APRESENTAÇÃO Almanaque do Bicentenário de Pelotas (Vol. 1
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<strong>APRESENTAÇÃO</strong><br />
<strong>Almanaque</strong> <strong>do</strong> <strong>Bicentenário</strong> <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong> (<strong>Vol</strong>. 1)<br />
O HISTÓRICO E A IMPORTÂNCIA DA REVISTA DO 1 o CENTENÁRIO<br />
Luís Rubira*<br />
João Simões Lopes Neto, como bem observou Carlos Reverbel, “foi quem mais<br />
contribuiu para o brilhantismo das celebrações <strong>do</strong> primeiro centenário <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>.<br />
Na sua empolgação pelo acontecimento, chegou a fundar uma revista mensal,<br />
da qual saíram oito números, o primeiro em outubro <strong>de</strong> 1911, os <strong>do</strong>is últimos<br />
(aglutina<strong>do</strong>s num único volume), em maio <strong>de</strong> 1912” (REVERBEL, C. Um capitão<br />
da guarda nacional: vida e obra <strong>de</strong> J. Simões Lopes Neto. Caxias <strong>do</strong> Sul: UCS, p.<br />
75). É ainda Reverbel quem lamenta, nos anos oitenta, o fato <strong>de</strong> somente poucas<br />
pessoas terem acesso à “coleção <strong>de</strong>ssa revista (infelizmente hoje raríssima)”, pois,<br />
nela, João Simões Lopes Neto disponibilizou uma importante <strong>do</strong>cumentação sobre<br />
<strong>Pelotas</strong>, reunida ao longo <strong>de</strong> muitos anos, na qual constava, por exemplo, um<br />
“repertório <strong>de</strong> anúncios” capaz <strong>de</strong> fornecer uma “idéia das ativida<strong>de</strong>s econômicas<br />
da cida<strong>de</strong> no ano <strong>do</strong> seu centenário” (I<strong>de</strong>m, p. 78).<br />
O <strong>de</strong>scaso e o esquecimento que pairavam sobre a reedição da Revista <strong>do</strong> 1º Centenário<br />
<strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>, preconiza<strong>do</strong>s por Carlos Reverbel, levou o historia<strong>do</strong>r Mario<br />
Osorio Magalhães, em 1994, a fazer uma seleção <strong>de</strong> textos da mesma, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a<br />
disponibilizar parte <strong>de</strong> seu conteú<strong>do</strong> para um público mais amplo. A edição, sabemos,<br />
não po<strong>de</strong> apresentar aquele “repertório <strong>de</strong> anúncios”, e tampouco a reprodução<br />
das fotos e <strong>de</strong>senhos que ilustravam o trabalho <strong>de</strong> Simões. O historia<strong>do</strong>r,<br />
então, justificou que, “em concordância com os editores”, iria <strong>de</strong>ixar, “para uma<br />
talvez futura edição os trechos em que [Simões] transcreve <strong>do</strong>cumentos, primários<br />
* Professor <strong>do</strong> Departamento <strong>de</strong> Filosofia<br />
da UFPEL
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ou secundários”, bem como adiaria “a reprodução das variadas fotos e <strong>de</strong>senhos<br />
que ilustravam a Revista, com o objetivo, também no caso, <strong>de</strong> reduzir os custos,<br />
capazes <strong>de</strong> inviabilizar, não fosse assim, a confecção <strong>do</strong> livro” (Magalhães, M. O.<br />
Apontamentos referentes à história <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong> e <strong>de</strong> outros <strong>do</strong>is municípios da<br />
zona sul: São Lourenço <strong>do</strong> Sul e Canguçu. <strong>Pelotas</strong>: Armazém Literário, 1994, p.<br />
7). Embora fragmentada, a Revista <strong>do</strong> 1º Centenário <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong> ganhava, “uma<br />
primeira edição, pois nunca se corporificou, antes, em livro” (I<strong>de</strong>m).<br />
A originalida<strong>de</strong> das reflexões <strong>de</strong> Carlos Reverbel, jornalista e pesquisa<strong>do</strong>r pioneiro<br />
no estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Simões (Augusto Meyer já o elogia, em 1945, pelo “excelente<br />
trabalho biográfico” publica<strong>do</strong> na Revista Província <strong>de</strong> São Pedro), tornaria a<br />
encontrar eco, recentemente, no posicionamento <strong>de</strong> Mario Osorio Magalhães:<br />
A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> festejar o aniversário da cida<strong>de</strong> toman<strong>do</strong> por base a fundação<br />
da freguesia quem concebeu, projetou, promoveu, levou adiante<br />
até a plena aceitação, até a realização final, foi ninguém menos que<br />
João Simões Lopes Neto, o consagra<strong>do</strong> autor <strong>do</strong>s Contos gauchescos e<br />
das Lendas <strong>do</strong> Sul. (Magalhães, M. O. “Aniversário <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>”, Diário<br />
Popular, 07/07/2011).<br />
Mario Osorio, assim, na esteira <strong>de</strong> Carlos Reverbel, volta a atribuir a Simões, a<br />
primazia no estabelecimento <strong>de</strong> uma data para comemorar o primeiro centenário<br />
da cida<strong>de</strong> (é importante notar que João Simões Lopes Neto também indicou,<br />
no primeiro volume da Revista, o ano <strong>de</strong> 1780 como o momento da “Fundação<br />
da hoje bela e adiantada cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>”, sen<strong>do</strong> que 1880 ele tinha apenas<br />
quinze anos). É o próprio historia<strong>do</strong>r quem reconhece, ainda no mesmo artigo,<br />
o débito <strong>de</strong> seu avô para com o autor da Revista: “ao ampliar, com riqueza <strong>de</strong><br />
informações, o seu primitivo texto <strong>de</strong> 1905 [uma monografia sobre a História<br />
<strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>, publicada nos Anais da Biblioteca Pública Pelotense], Simões Lopes<br />
facilitou o trabalho a que Fernan<strong>do</strong> Osório se <strong>de</strong>dicaria, <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois”, ou<br />
seja, na tarefa <strong>de</strong> elaboração <strong>do</strong> livro “A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>” (I<strong>de</strong>m).<br />
***<br />
João Simões Lopes Neto elegeu, portanto, a data <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 1812 (momento<br />
<strong>de</strong> criação da Freguesia), para comemorar o centenário da cida<strong>de</strong>. Foi,<br />
então, aos 47 anos que ele empreen<strong>de</strong>u, sozinho, a partir <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> semestre<br />
<strong>de</strong> 1911, o esforço monumental para realizar os oito números da Revista (<strong>de</strong>ntre<br />
os <strong>de</strong>z inicialmente previstos), sen<strong>do</strong> que os números 7 e 8 somente surgiram<br />
após a comemoração <strong>do</strong> centenário. O próprio autor justificava “o atraso das<br />
publicações por ter si<strong>do</strong> acometi<strong>do</strong> <strong>de</strong> ‘moléstia grave e <strong>de</strong> <strong>de</strong>morada convalescença’”<br />
(Sica Diniz, C. F. João Simões Lopes Neto: uma biografia. Porto Alegre:<br />
Editora AGE, p. 184). O <strong>Bicentenário</strong> da cida<strong>de</strong>, festeja<strong>do</strong> em 7 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong><br />
2012, é, portanto, indissociável <strong>do</strong> nome e <strong>do</strong> gesto <strong>de</strong> João Simões Lopes Neto.<br />
Transcorri<strong>do</strong>s cem anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a publicação <strong>do</strong>s oito números da Revista, nenhuma<br />
homenagem po<strong>de</strong>ria ser mais justa, ao intelectual que procurou valorizar<br />
e pensar a singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua cida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> que editá-la integralmente (e, pela<br />
primeira vez, <strong>de</strong> forma impressa). Por essa razão, a edição em fac-símile da Revista
<strong>do</strong> 1º Centenário ocupa o núcleo <strong>de</strong>ste primeiro volume <strong>do</strong> <strong>Almanaque</strong> <strong>do</strong> <strong>Bicentenário</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>. Se com ela Simões foi capaz <strong>de</strong> estabelecer o marco para a data<br />
<strong>de</strong> comemoração <strong>do</strong> centenário da cida<strong>de</strong>, bem como <strong>de</strong> percorrer uma senda que<br />
facilitaria o percurso <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r Fernan<strong>do</strong> Osório, é certo, então, que, ao alcançar<br />
um vasto público <strong>de</strong> leitores, a Revista <strong>do</strong> 1º Centenário <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong> não somente<br />
recebe o seu justo apreço (cem anos <strong>de</strong>pois), mas abre o caminho para novas possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> reflexão e pesquisa em muitas áreas <strong>do</strong> conhecimento.<br />
NOTAS SOBRE A REVISTA:<br />
A DISPOSIÇÃO DOS TEXTOS E O PERFIL INTELECTUAL DE SIMÕES<br />
Cosmopolitismo e regionalismo<br />
Logo na página <strong>de</strong> abertura, Simões Lopes Neto <strong>de</strong>fine a programação da Revista<br />
<strong>do</strong> 1º Centenário <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>: “O nosso programa abrange o registro tão<br />
completo quanto possível da gênese da fundação da cida<strong>de</strong>, os funda<strong>do</strong>res, os<br />
beneméritos, filhos ilustres, comércio e indústria, jornalismo, colégios – professora<strong>do</strong><br />
–, repartições, os notáveis da cida<strong>de</strong>, socieda<strong>de</strong>s locais, notas diversas,<br />
estatísticas, curiosida<strong>de</strong>s, etc” (no 1, p. 01). De fato, ao nos <strong>de</strong>termos nos oito<br />
exemplares, é possível verificar que o autor <strong>de</strong>dicou diversas passagens aos temas<br />
<strong>do</strong> programa, excetuan<strong>do</strong>-se um significativo caso. A seção “Curiosida<strong>de</strong>s”<br />
surge somente no sexto número, à página 95, trazen<strong>do</strong> apenas um registro,<br />
retira<strong>do</strong> <strong>do</strong> “Almanak Pelotense, para 1862, <strong>de</strong> Joaquim Ferreira Nunes”.<br />
Não parece ser ao acaso que, em meio a tantas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> resgatar uma informação<br />
para a seção “Curiosida<strong>de</strong>s” (em diversos <strong>do</strong>cumentos disponíveis, entre<br />
eles o Almanak <strong>de</strong> 1862), Simões tenha escolhi<strong>do</strong> justamente a propaganda <strong>de</strong><br />
produtos <strong>de</strong> um refina<strong>do</strong> armazém da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>, a propósito da qual ele<br />
observa: “vão completar-se cinquenta anos, que foi publica<strong>do</strong> o seguinte anúncio<br />
(...) e parece um anúncio da atualida<strong>de</strong>; por ele também se aprecia a antiguida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> alguns artigos e marcas”. A seguir, então, o autor da Revista faz a reprodução<br />
<strong>do</strong> mesmo (a atualização da grafia <strong>de</strong> algumas palavras é nossa):<br />
ARMAZÉM DE COMESTÍVEIS<br />
TORRES & TASSIS<br />
No armazém acima encontra-se um completo sortimento <strong>de</strong> secos e<br />
molha<strong>do</strong>s por preços cômo<strong>do</strong>s, pois recebem gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s seus<br />
artigos diretamente.<br />
VINHOS Champagne, Porto, Jerez, Val<strong>de</strong>peñas, Marsala, Sauternes,<br />
Bor<strong>de</strong>aux, Ma<strong>de</strong>ira, Muscatel, Lisboa e Priorato. MANTEIGA inglesa<br />
superior. QUEIJOS flamengos em pelicas. PRESUNTOS <strong>de</strong> Westphalia e<br />
<strong>do</strong> Porto. SALAME <strong>de</strong> Bolonha. DOCES secos e em calda. AMÊNDOAS<br />
com casca e cobertas francesas, em vidros. CONSERVAS inglesas e<br />
americanas. AMEIXAS secas <strong>de</strong> la qualida<strong>de</strong>. PASSAS em caixas, meias,<br />
quartos e em caixinhas como para mimo. CERVEJA branca e preta,<br />
inglesa e francesa. LICORES <strong>de</strong> todas as qualida<strong>de</strong>s, entre eles o afama<strong>do</strong><br />
D’anthieh. GENEBRA em frascos e garrafões. CHOCOLATE espanhol.<br />
SUPERIOR CHÁ Hysson preto e pérola. ARARUTA americana em<br />
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pacotes <strong>de</strong> 1/2 libra. VELAS <strong>de</strong> espermacete e composição. CHARUTOS<br />
<strong>de</strong> todas as qualida<strong>de</strong>s. FUMO para cachimbo. CAPORAL CWERVICK.<br />
CAFÉ em grão e moí<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1a sorte, garanti<strong>do</strong>. AÇUCAR cristaliza<strong>do</strong>,<br />
refina<strong>do</strong>, Pernambuco <strong>de</strong> 1a sorte. BISCOITOS ingleses e bolachinhas<br />
da terra. TERRA romana em barricas <strong>de</strong> superior qualida<strong>de</strong>.”<br />
João Simões Lopes Neto, então, resgata um anúncio <strong>de</strong> produtos refina<strong>do</strong>s, <strong>de</strong><br />
alta qualida<strong>de</strong>, oriun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> diversas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, próprios <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong><br />
que, ainda em 1911 (“parece um anúncio da atualida<strong>de</strong>”), mantém não<br />
só o po<strong>de</strong>r aquisitivo, mas o refinamento <strong>do</strong> gosto. Na estratégia <strong>de</strong> seleção<br />
<strong>do</strong> texto está implícita, necessariamente, tanto a face cosmopolita da cida<strong>de</strong><br />
quanto a <strong>de</strong> seu filho pródigo. Todavia, para bem po<strong>de</strong>rmos ter uma compreensão<br />
da personalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> autor da Revista, é preciso pensar que o anúncio<br />
retira<strong>do</strong> <strong>do</strong> Almanak <strong>de</strong> 1862, está coloca<strong>do</strong> no volume que data <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong><br />
março <strong>de</strong> 1912. Ora, é justamente no dia imediatamente após, ou seja, em 31<br />
<strong>de</strong> março, que o homem <strong>de</strong> gosto cosmopolita começa a publicar os Contos<br />
Gauchescos, no jornal Diário Popular:<br />
Domingo, 31.03.1912 No Manantial<br />
Quinta-feira, 04.04.1912 Trezentas Onças<br />
Domingo, 07.04.1912 O Boi Velho<br />
Quinta-feira: 11.04.1912 Correr Eguada<br />
Domingo: 14.04.1912 Melancia-Coco Ver<strong>de</strong><br />
Quinta-feira: 18.04.1912 O Anjo da Vitória<br />
Domingo: 21.04.1912 Os cabelos da China<br />
Quinta-feira: 25.04.1912 O mate <strong>de</strong> João Car<strong>do</strong>so<br />
Domingo: 28.04.1912 O Chasque <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r<br />
Quarta-feira: 1º. 05.1912 O jogo <strong>do</strong> Osso<br />
Domingo: 05.05.1912 Penar <strong>de</strong> Velhos<br />
(Sica Diniz, C. F. João Simões Lopes Neto, p. 191)<br />
A face cosmopolita e regional <strong>de</strong> João Simões Lopes Neto reluzem, assim, num<br />
mesmo perío<strong>do</strong>. É preciso, aqui, fazer uma pausa, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a perceber que estes<br />
elementos já estavam presentes, há bastante tempo, em nosso intelectual. Atentemos,<br />
então, para uma página conhecida da crítica literária brasileira. Quan<strong>do</strong><br />
Augusto Bosi trata da “Literatura regionalista” <strong>de</strong> João Simões Lopes Neto, ele<br />
escreve que em Simões<br />
a matéria rural é tomada a sério, isto é, assumida nos seus precisos<br />
contornos físicos e sociais <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma concepção mimética<br />
da prosa (...). Na medida em que esse trabalho foi consciente acrescentou<br />
algo à praxis literária herdada <strong>do</strong> Naturalismo. Este algo po<strong>de</strong><br />
interpretar-se como o la<strong>do</strong> brasileiro da oscilação pendular nacional-<br />
-cosmopolita, que marca as culturas <strong>de</strong> extração colonial.<br />
E prossegue, dizen<strong>do</strong> que “o fato” <strong>de</strong> João Simões Lopes Neto e Val<strong>do</strong>miro Silveira<br />
terem pensa<strong>do</strong> a terra e o homem <strong>do</strong> interior já era um sintoma <strong>de</strong><br />
que nem tu<strong>do</strong> tinha vira<strong>do</strong> belle époque no Brasil <strong>de</strong> 1900. O projeto<br />
explícito <strong>do</strong>s regionalistas era a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao meio a <strong>de</strong>screver: no
que aprofundavam a linha realista esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-a para a compreensão<br />
<strong>de</strong> ambientes rurais ainda virgens para a ficção.<br />
<strong>Vol</strong>tan<strong>do</strong> as costas para as modas que as elites urbanas importavam,<br />
tantas vezes por mero esnobismo, puseram-se a pesquisar o folclore<br />
e a linguagem <strong>do</strong> interior, alcançan<strong>do</strong>, em alguns momentos, efeitos<br />
notáveis (...): alguns <strong>do</strong>s nossos regionalistas prece<strong>de</strong>ram, em contexto<br />
diferente, o vivo interesse <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>rnos pela realida<strong>de</strong> brasileira<br />
total, não apenas urbana. Hoje, quan<strong>do</strong> já se incorporaram à nossa<br />
consciência literária o alto regionalismo crítico <strong>de</strong> Graciliano Ramos<br />
e a experiência estética universal <strong>do</strong> regionalista Guimarães Rosa, é<br />
mais fácil reconhecer o trabalho paciente e amoroso <strong>de</strong> um Val<strong>do</strong>miro<br />
e <strong>de</strong> um Simões Lopes, volta<strong>do</strong>s para a verda<strong>de</strong> humana da província”<br />
(Bosi, A. História concisa da literatura brasileira. 43 ed. São Paulo:<br />
Cultrix, 2006, p. 207. Grifo nosso).<br />
O intelectual que valoriza os abolicionistas e republicanos à frente <strong>de</strong> seu tempo<br />
Após <strong>de</strong>finir o “Programa” da Revista, é significativo que Simões indique o<br />
méto<strong>do</strong> como irá trabalhar na abordagem <strong>do</strong>s temas: “Daremos os retratos e<br />
traço biográfico das individualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque como fator pensante, dirigente,<br />
responsável, da nossa vida urbana” (no 1, p. 1. Grifo nosso). É, portanto, a<br />
capacida<strong>de</strong> intelectual que ele consi<strong>de</strong>ra como um valor <strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m. O<br />
acento é importante, pois, embora Simões diga, na sequência, que não irá fazer<br />
uma abordagem cronológica das “individualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque”, ao tratar <strong>do</strong>s<br />
“Filhos ilustres”, ele opta por começar por um abolicionista: Antonio Ferreira<br />
Viana (que nasce numa charqueada em <strong>Pelotas</strong>, no ano <strong>de</strong> 1833). Assim, no<br />
exíguo espaço que possui para fornecer um “traço biográfico” <strong>de</strong> Ferreira Viana,<br />
Simões <strong>de</strong>staca justamente o seguinte: “É sua a glória <strong>de</strong> ter formula<strong>do</strong> o projeto<br />
<strong>de</strong> abolição absoluta e incondicional da escravatura. A lei <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> maio,<br />
como foi concebida e formulada é <strong>de</strong> sua inspiração” (no 1, p. 6). Não se trata,<br />
todavia, <strong>de</strong> um caso isola<strong>do</strong>.<br />
No segun<strong>do</strong> número da Revista, por exemplo, em “Notícia sobre a fundação<br />
das xarqueadas”, Simões observa que “João Baptista Roux, francês, que pelo fim<br />
da revolução farroupilha estava em Jaguarão”, veio trabalhar em <strong>Pelotas</strong> com<br />
“seu compatriota Eugène Salgues”, sen<strong>do</strong> que, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> charquea<strong>do</strong>r,<br />
“J. B. Roux [foi] o primeiro a empregar o braço livre num meio e numa época<br />
por inteiro oposto à inovação” (no 2, p. 11). E, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> volta a<br />
apresentar a relação <strong>do</strong>s “Filhos ilustres”, elege Felisberto Ignácio da Cunha, o<br />
“Barão <strong>de</strong> Corrientes”, pois, como enfatiza Simões, “antes da lei <strong>do</strong> ventre livre<br />
(28 <strong>de</strong> setembro [<strong>de</strong> 1871]) já os filhos das suas escravas eram por ele reconheci<strong>do</strong>s<br />
livres; antes da libertação <strong>do</strong> município, já ele havia concedi<strong>do</strong> a liberda<strong>de</strong><br />
plena a uns e a curto prazo <strong>de</strong> serviço a outros <strong>do</strong>s seus servos” (no 2, p. 12-13).<br />
Vê-se, portanto, que além <strong>de</strong> privilegiar vultos abolicionistas, a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s “Filhos<br />
ilustres”, <strong>de</strong> fato, coloca o acento no “fator pensante, dirigente, responsável<br />
<strong>de</strong> nossa vida urbana”. Isto explica o fato <strong>de</strong> inicialmente surgir um advoga<strong>do</strong><br />
e político (Ferreira Viana), em seguida um charquea<strong>do</strong>r (Felisberto Ignácio da<br />
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Cunha), outro advoga<strong>do</strong>, jornalista e político (Henrique Bernardino Marques<br />
Canarim), e, em seguida, um poeta: Francisco Lobo da Costa “um <strong>do</strong>s poetas<br />
mais populares <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o Rio Gran<strong>de</strong>” (no 2, p. 13) – único homem <strong>de</strong> letras a<br />
quem ele se refere na Revista <strong>do</strong> 1º Centenário <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>.<br />
Do <strong>de</strong>staque intelectual, passan<strong>do</strong> pelo dirigente e responsável da vida local, Simões<br />
faz questão <strong>de</strong> colocar o foco não só nos engaja<strong>do</strong>s <strong>do</strong> movimento abolicionista,<br />
mas também nos partidários <strong>do</strong> regime político republicano. É por esta<br />
razão que, na “Galeria <strong>do</strong>s Funda<strong>do</strong>res”, o segun<strong>do</strong> nome que surge é o <strong>do</strong> português<br />
Antonio José Gonçalves Chaves, que “aportou no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul em<br />
1805”, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong>miciliar-se “no incipiente – povinho – <strong>de</strong> S. Francisco <strong>de</strong> Paula<br />
[<strong>Pelotas</strong>]”, on<strong>de</strong> se tornou charquea<strong>do</strong>r, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong>, entre 1810 e 1812, um <strong>do</strong>s<br />
que mais “se interessavam pela fundação da freguesia; e no seguimento um <strong>do</strong>s<br />
melhores propugna<strong>do</strong>res <strong>do</strong> seu engran<strong>de</strong>cimento” (no 1, p. 8). Simões, então,<br />
faz questão <strong>de</strong> enfatizar que Gonçalves Chaves era um homem culto, admira<strong>do</strong><br />
por Saint-Hilaire por falar “bem o francês” e ser possui<strong>do</strong>r “<strong>de</strong> uma excelente<br />
biblioteca”, ten<strong>do</strong> publica<strong>do</strong>, em 1822, as Memórias econômico-políticas sobre<br />
a administração pública <strong>do</strong> Brasil, “um trabalho notável para a época”, visto<br />
que ali “pregava ele sobre a abolição da escravatura” (I<strong>de</strong>m). Gonçalves Chaves,<br />
sabemos, tomou parti<strong>do</strong> pelo la<strong>do</strong> republicano durante a revolução farroupilha.<br />
Simões Lopes Neto, simpático aos conterrâneos que tomaram parti<strong>do</strong> pelo movimento<br />
republicano, dá, então, especial atenção a um <strong>do</strong>s <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />
Gonçalves Chaves:<br />
Dr. Álvaro José Gonçalves Chaves. Nasceu em 13 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1861<br />
(...), funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> “Clube Republicano 20 <strong>de</strong> Setembro” e redator-chefe<br />
<strong>de</strong> “A República”, <strong>de</strong> São Paulo; organiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Republicano<br />
Pelotense, e abolicionista (...). Ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> Saldanha Marinho foi o verda<strong>de</strong>iro<br />
organiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Republicano no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Aí, em 20<br />
<strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1885, fun<strong>do</strong>u o Clube Republicano Sul Riogran<strong>de</strong>nse, que,<br />
ao <strong>de</strong>pois, foi um <strong>do</strong>s melhores esteios abolicionistas (...). Achan<strong>do</strong>-se<br />
<strong>do</strong>ente seguiu para a Europa, e em Paris, teve a notícia da proclamação<br />
da República no Brasil, e regressou, vin<strong>do</strong> pela Espanha (no 1, p. 10).<br />
Em síntese, João Simões Lopes Neto percebe que sua terra natal abrigou ou<br />
gerou homens bem à frente <strong>de</strong> seu tempo. Talvez pelo fato <strong>de</strong> que, em muitos<br />
aspectos, e, em particular, nos movimentos abolicionistas e republicanos, a cida<strong>de</strong><br />
e seus “filhos ilustres” tenham ti<strong>do</strong> <strong>de</strong>staque no cenário nacional, ele faça<br />
questão <strong>de</strong> pontuar no quinto número da Revista: “existe em <strong>Pelotas</strong>, (na Costa)<br />
o único monumento no Brasil publicamente ergui<strong>do</strong> ao i<strong>de</strong>al republicano, durante<br />
o regime monárquico” (no 5, p. 68).<br />
O repertório <strong>de</strong> anúncios: o potencial econômico e cultural <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong><br />
na visão <strong>do</strong> empresário e homem <strong>de</strong> letras<br />
Buscan<strong>do</strong> dar ao leitor uma idéia da intensida<strong>de</strong> das ativida<strong>de</strong>s econômicas que movimentavam<br />
a vida urbana da cida<strong>de</strong> que estava prestes a comemorar o seu centenário,
Simões apresenta um da<strong>do</strong> recente sobre <strong>Pelotas</strong> no primeiro número da Revista: “Da<br />
estatística municipal <strong>de</strong> 1910 verifica-se que nesse ano existiam 188 fábricas, 278<br />
oficinas e 822 casas diversas <strong>de</strong> negócio, ou seja, 1288 firmas em ativida<strong>de</strong>” (no 1, p.<br />
13). Ciente, portanto, das mais <strong>de</strong> mil firmas existentes no município, ele apresenta<br />
aproximadamente 70 <strong>de</strong>las (as <strong>de</strong>mais são <strong>de</strong> Piratini e Canguçu), justifican<strong>do</strong>, na<br />
página inicial da Revista, que não se trata tão somente <strong>de</strong> propaganda das empresas:<br />
Os anúncios aqui publica<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vem ser toma<strong>do</strong>s mais como atesta<strong>do</strong>s,<br />
<strong>do</strong>cumentos, da capacida<strong>de</strong> industrial-comercial <strong>de</strong>sta época da cida<strong>de</strong>,<br />
<strong>do</strong> que propriamente como reclamos.<br />
O conjunto <strong>de</strong>les, no futuro, dirá o que éramos e o que valíamos. (no 1, p. 1).<br />
O intelectual e empresário para quem o valor maior não era o monetário (ele<br />
mesmo escreve na página <strong>de</strong> abertura <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> número: “Não nos move o<br />
cálculo <strong>do</strong>s ganhos”), seleciona, então, criteriosamente, os “<strong>do</strong>cumentos” que<br />
representam o diagnóstico <strong>de</strong> uma época e <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>. A gran<strong>de</strong> maioria<br />
<strong>do</strong>s anúncios (cerca <strong>de</strong> 40) está concentrada no primeiro número da Revista. Vários<br />
também são os “atesta<strong>do</strong>s” que irão surgir em outros números (é o caso <strong>do</strong>s<br />
anúncios <strong>do</strong>s agentes que representam o “Comércio e navegação” e os “Automóveis<br />
Ford”, da refinada “Relojoaria-Ótica <strong>de</strong> Henrique Krentel”, da “Livraria Americana”,<br />
<strong>do</strong> “Salão Le Chic”, da Fábrica <strong>de</strong> Fumo “S. Raphael”, das lojas “Bromberg<br />
& Comp.”, da “Socieda<strong>de</strong> Rio-gran<strong>de</strong>nse Protetora <strong>do</strong>s Animais”, <strong>de</strong>ntre outros).<br />
A escolha <strong>do</strong> primeiro anúncio apresenta<strong>do</strong> (<strong>do</strong> “Agente da Companhia <strong>de</strong> Vapores<br />
– Comércio e Navegação”), não parece ser fortuita. A hidrovia teve, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
momento da fundação da cida<strong>de</strong>, um papel <strong>de</strong>terminante para o seu <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
Neste senti<strong>do</strong> observemos que, das qualida<strong>de</strong>s visionárias e empresariais<br />
que Simões <strong>de</strong>stacou em Antonio José Gonçalves Chaves (o segun<strong>do</strong> nome que<br />
surge na lista da “Galeria <strong>do</strong>s Funda<strong>do</strong>res”), encontra-se justamente esta:<br />
Dentre os empreendimentos <strong>de</strong> maior alcance em que se envolveu,<br />
<strong>de</strong>staca-se o trabalho que com Domingos José <strong>de</strong> Almeida iniciou para<br />
preparar a abertura da barra <strong>do</strong> S. Gonçalo (...); trabalho <strong>de</strong> previsão,<br />
esse, <strong>de</strong> tão fecun<strong>do</strong> resulta<strong>do</strong>, e que só quarenta e quatro anos mais<br />
tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>via ser executa<strong>do</strong> (no 1, p. 9).<br />
Ele ressalta, é importante notar, que foi o filho <strong>de</strong> Gonçalves Chaves, Antonio<br />
(cujos traços biográficos surgem imediatamente após o nome <strong>do</strong> pai), que, nasci<strong>do</strong><br />
em <strong>Pelotas</strong> em 1813, “organizou a Companhia da Desobstrução da Foz <strong>do</strong> S.<br />
Gonçalo (...) realizada em fevereiro <strong>de</strong> 1876, data (dia 11) em que transpuseram a<br />
barra <strong>do</strong> S. Gonçalo – pela vez primeira – navios <strong>de</strong> alto bor<strong>do</strong>” (i<strong>de</strong>m, p. 9 e 10).<br />
Mas se a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s anúncios po<strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong> reflexão, a diversida<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>s mesmos é ainda mais interessante. O biógrafo Carlos Reverbel, quan<strong>do</strong><br />
tomou contato com o repertório <strong>de</strong> anúncios, <strong>de</strong>stacou: “Chama a atenção,<br />
por exemplo, o número <strong>de</strong> firmas <strong>de</strong>dicadas à industrialização <strong>de</strong> fumo.<br />
Era consi<strong>de</strong>rável, também, o contingente <strong>de</strong> empresas locais empenhadas<br />
na produção <strong>de</strong> medicamentos. A indústria cervejeira igualmente figurava<br />
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40<br />
com <strong>de</strong>staque no parque industrial da cida<strong>de</strong>” (Reverbel, C. Op. cit., p. 78).<br />
Impressionam também, a nosso ver, os anúncios <strong>de</strong> armazéns, confeitarias,<br />
livrarias, lojas <strong>de</strong> roupas e <strong>de</strong> fazendas, <strong>de</strong> louças, vidros e cutelaria; as propagandas<br />
<strong>de</strong> hotel, bazar musical, floricultura e perfumaria; as fábricas (<strong>de</strong><br />
preparo <strong>de</strong> massas e moagem <strong>de</strong> café, <strong>de</strong> carros <strong>de</strong> época, <strong>de</strong> sabão e velas,<br />
<strong>de</strong> móveis, <strong>de</strong> fumos e cigarros, <strong>de</strong> malas, <strong>de</strong> cerveja, <strong>de</strong> calça<strong>do</strong>s e teci<strong>do</strong>s);<br />
as casas <strong>de</strong> importação <strong>de</strong> produtos (merca<strong>do</strong>rias da França, Alemanha, Inglaterra,<br />
China, Japão), ou daquelas cujos estabelecimentos encontram-se<br />
em cida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> exterior (Paris, Hamburgo, Buenos Aires) ou espalhadas pelo<br />
país (São Paulo, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Pará) e também no próprio esta<strong>do</strong> (Porto<br />
Alegre, Bagé, Rio Gran<strong>de</strong>, Santa Maria, Dom Pedrito, Alegrete). Destacam-se,<br />
ainda, os bancos, companhias <strong>de</strong> seguro e profissionais liberais <strong>do</strong>s ramos<br />
imobiliário, o<strong>do</strong>ntológico, advocatício. Mas caberá ao leitor, por certo, esmiuçar<br />
a riqueza <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>stes anúncios.<br />
Por fim, se <strong>de</strong>stacamos o primeiro anúncio apresenta<strong>do</strong> por Simões na Revista, é<br />
também importante prestarmos atenção ao último. Trata-se <strong>de</strong> uma propaganda<br />
que começa a ter <strong>de</strong>staque já no segun<strong>do</strong> número da Revista: a “Socieda<strong>de</strong><br />
Rio-gran<strong>de</strong>nse protetora <strong>do</strong>s animais”. Criada em 25 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1911, seu primeiro<br />
presi<strong>de</strong>nte é João Simões Lopes Neto (cf. Reverbel, C. Op. cit., p. 196), o<br />
escritor que concebe uma frase impregnada <strong>de</strong> reflexão filosófica para compor<br />
o anúncio da Socieda<strong>de</strong>:<br />
Srs.<br />
Auxiliai a propaganda contra a cruelda<strong>de</strong>:<br />
sem justiça para os animais o civiliza<strong>do</strong> nivela-se ao selvagem<br />
Quan<strong>do</strong> pensamos no teor <strong>de</strong>ste anúncio e na atualida<strong>de</strong> da proposta <strong>de</strong> uma<br />
Socieda<strong>de</strong> Protetora <strong>do</strong>s Animais em <strong>Pelotas</strong>, percebemos o quão lamentável é<br />
o fato da Revista não ter si<strong>do</strong> reeditada nos últimos cem anos.<br />
Sobre a primeira charqueada e o primeiro charquea<strong>do</strong>r<br />
Talvez nenhuma outra informação constante na Revista <strong>do</strong> 1º Centenário tenha<br />
causa<strong>do</strong> tanta polêmica, nos últimos anos, quanto a informação que Simões<br />
Lopes Neto transmitiu para a posterida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que caberia a<br />
José Pinto Martins, natural <strong>do</strong> Ceará (...) a primazia na fundação (...)<br />
da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>. Em 1780 estabeleceu uma xarqueada sobre a<br />
margem direita e a cerca <strong>de</strong> uma légua da foz <strong>do</strong> rio das <strong>Pelotas</strong> (...).<br />
Do estabelecimento <strong>de</strong> José Pinto Martins, irradiou pois, sem constestação,<br />
a fundação (no 1, p. 7).<br />
Em primeiro lugar, é preciso atentar para o seguinte fato: João Simões Lopes<br />
Neto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a página inicial da Revista, ao abrir a seção “A fundação <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>”,<br />
justificou em epígrafe:<br />
As linhas que se vão ler não [se] impõem como afirmativa intangível:<br />
representam, antes, concurso para trabalho escoima<strong>do</strong> (I<strong>de</strong>m, p. 03).
Do mesmo mo<strong>do</strong>, ao iniciar a “Galeria <strong>do</strong>s Funda<strong>do</strong>res”, ele escreve em nota <strong>de</strong><br />
rodapé: “A ausência <strong>do</strong> arquivo da Igreja Matriz no bispa<strong>do</strong>, em Porto Alegre,<br />
muito dificulta certa or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> verificações” (I<strong>de</strong>m). Mas, se no primeiro momento<br />
em que tratou <strong>de</strong> Pinto Martins ele era enfático em sua informação, que<br />
parecia, então, ter si<strong>do</strong> retirada <strong>de</strong> uma fonte direta, já no segun<strong>do</strong> número da<br />
Revista existe uma oscilação no mo<strong>do</strong> como ele trata o assunto: “Sabe-se que<br />
em 1780 (...), numa parte <strong>do</strong>s terrenos <strong>de</strong> M. Carvalho <strong>de</strong> Souza (arroio <strong>Pelotas</strong>)<br />
fun<strong>do</strong>u José Pinto Martins, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ceará, uma charqueada” (n 2, p. 4). Ora, o<br />
“Sabe-se”, aqui, indica que Simões não estava diante <strong>de</strong> um <strong>do</strong>cumento sóli<strong>do</strong><br />
para afirmar que Pinto Martins fun<strong>do</strong>u a primeira charqueada em <strong>Pelotas</strong> no<br />
ano <strong>de</strong> 1780. Na verda<strong>de</strong>, logo a seguir, no mesmo número da Revista, ele nos<br />
fornece a (única) pista <strong>de</strong> on<strong>de</strong> teria retira<strong>do</strong> tal informação:<br />
Quan<strong>do</strong>, em 1835, na Assembleia Provincial, tratou-se da elevação da<br />
Vila <strong>de</strong> S. Francisco <strong>de</strong> Paula à categoria <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>, foram-lhe propostos<br />
diversos nomes. Domingos José <strong>de</strong> Almeida <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o <strong>de</strong> – <strong>Pelotas</strong><br />
– argumentava por esta forma: “que o nome proposto memorava o<br />
fato histórico que aglomerara com a rapi<strong>de</strong>z <strong>do</strong> raio a gente e a riqueza<br />
da localida<strong>de</strong>, pois fora no arroio <strong>Pelotas</strong> que, em fins <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong><br />
José Pinto Martins, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ceará, estabelecera uma charqueada e...<br />
atrain<strong>do</strong> a população... que aí começou a fixar-se, espalhan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>pois<br />
até o sítio on<strong>de</strong> mais tar<strong>de</strong> foi criada a freguesia” (no 2, p. 7).<br />
Domingos José <strong>de</strong> Almeida, como sabemos, era contemporâneo <strong>de</strong> Pinto Martins.<br />
Todavia, ele precisa a data exata <strong>de</strong> fundação da charqueada (“fins <strong>do</strong> século<br />
passa<strong>do</strong>”), e oscilação <strong>de</strong> Simões indica que a informação sobre a fundação<br />
em 1780 carece <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos. Que Simões estava certo <strong>de</strong> que Pinto Martins<br />
teria si<strong>do</strong> aquele que mais contribuiu para o <strong>de</strong>senvolvimento da indústria sala<strong>de</strong>iril<br />
no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, sobre isto não há dúvida. <strong>Pelotas</strong>, é certo, teve um<br />
papel extremamente importante no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sta indústria, pois, tal<br />
como observa o próprio autor, foi <strong>de</strong> “quarenta e cinco milhões o número <strong>de</strong><br />
rezes abatidas nas xarqueadas <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>” (no 3, p. 46).<br />
João Simões Lopes Neto, como buscamos mostrar, tinha ciência <strong>de</strong> não ser historia<strong>do</strong>r.<br />
A<strong>de</strong>mais, ele insiste nisto quan<strong>do</strong>, novamente, na abertura <strong>do</strong> terceiro<br />
número da Revista, ao tratar da abordagem histórica <strong>de</strong> outros municípios,<br />
escreve, indican<strong>do</strong> seu méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho:<br />
Inseriremos, não o histórico, mas apenas – notas – referentes aos ditos<br />
municípios (...). Tais notas dispersas, são apenas linhas <strong>de</strong> subsídio,<br />
que não dissertação histórica (no 3, p. 33).<br />
É, por fim, nosso intelectual quem lamenta, nos últimos <strong>do</strong>is números, o fato<br />
<strong>de</strong> não ter ti<strong>do</strong> acesso a muitos <strong>do</strong>cumentos que po<strong>de</strong>riam ter contribui<strong>do</strong> para<br />
um trabalho histórico mais exaustivo: “Parte valiosa <strong>de</strong> informações não nos foi<br />
respondida, apesar <strong>de</strong> reiterada solicitação, <strong>de</strong> forma que nosso inquérito sobre<br />
a vida local – antiga – ressentir-se-á <strong>de</strong> lacunas: para suprí-las as empregamos<br />
os nossos melhores esforços” (nos 7 e 8, p. 97).<br />
***<br />
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42<br />
A nosso ver, as contribuições <strong>do</strong>cumentais mais significativas que surgiram nos<br />
últimos anos sobre esse tema (ou seja, aqueles que fizeram jus ao pedi<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
Simões <strong>de</strong> realizar um “trabalho escoima<strong>do</strong>”) são duas: a investigação <strong>de</strong> Paulo<br />
Xavier, em artigo publica<strong>do</strong> no Jornal Correio <strong>do</strong> Povo (data<strong>do</strong> <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro<br />
<strong>de</strong> 1971), que mostrou que José Pinto Martins não era cearense, mas<br />
sim português; bem como as teses <strong>do</strong> livro Desfazen<strong>do</strong> mitos: notas à história<br />
<strong>do</strong> continente <strong>de</strong> São Pedro, <strong>de</strong> A. F. Monquelat e V. Marcolla, publica<strong>do</strong> no<br />
presente ano <strong>de</strong> 2012, on<strong>de</strong> são <strong>de</strong>fendidas as seguintes teses:<br />
a) João Car<strong>do</strong>so da Silva é o primeiro a instituir estabelecimento <strong>de</strong><br />
indústria sala<strong>de</strong>iril no Continente;<br />
b) O rio Piratini (e, portanto, Arroio Gran<strong>de</strong>, e não <strong>Pelotas</strong>) é o berço<br />
da indústria sala<strong>de</strong>iril;<br />
c) O “processo inicial <strong>de</strong> ocupação <strong>do</strong>s campos <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s ‘das <strong>Pelotas</strong>’<br />
não foi obra fortuita ou tão pouco <strong>de</strong> um único empreendimento:<br />
a charqueada <strong>de</strong> Pinto Martins’”. Pelo contrário: <strong>Pelotas</strong>, nos seus<br />
primórdios “é consequência <strong>do</strong> agro-pastoreio”;<br />
d) Devi<strong>do</strong> aos <strong>do</strong>cumentos até agora encontra<strong>do</strong>s, José Pinto Martins<br />
somente partiu <strong>do</strong> Ceará para estabelecer-se por aqui “nos anos 90 <strong>do</strong><br />
século XVIII”.<br />
Além <strong>do</strong>s pesquisa<strong>do</strong>res acima cita<strong>do</strong>s, é também o historia<strong>do</strong>r Mário Osório<br />
Magalhães quem afirma, em texto publica<strong>do</strong> recentemente numa prestigiosa<br />
revista <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, cuja edição presta “homenagem aos<br />
200 anos da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>”:<br />
SOBRE A PRESENTE EDIÇÃO<br />
(...) a verda<strong>de</strong> é que se <strong>de</strong>sconhece inteiramente o exato instante em<br />
que José Pinto Martins aportou por estas plagas; tampouco se sabe<br />
o momento preciso em que adquiriu o imóvel, o estabelecimento em<br />
que iria implantar sua indústria. (Magalhães, M. “Sobre o bicentenário<br />
<strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>”. In: Revista <strong>do</strong> Instituto Histórico e Geográfico <strong>do</strong> Rio<br />
Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, no 146, 2012, p. 120).<br />
Visto que a Revista <strong>do</strong> 1º Centenário <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong> é capaz <strong>de</strong> nos colocar na<br />
atmosfera econômica e cultural em que vivia a cida<strong>de</strong> há cem anos, fizemos<br />
questão <strong>de</strong> trazer para o leitor, no primeiro volume <strong>do</strong> <strong>Almanaque</strong> <strong>do</strong> <strong>Bicentenário</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>, um conjunto <strong>de</strong> fotografias e imagens da cida<strong>de</strong> anteriores ao<br />
término <strong>do</strong> ano <strong>de</strong> 1912. Por certo não é uma reconstituição exaustiva (e talvez<br />
até mesmo eivada <strong>de</strong> algum erro cronológico), mas uma tentativa <strong>de</strong> reunir e<br />
disponibilizar para um público mais amplo imagens que somente constam, até o<br />
presente momento, em publicações especializadas, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a fornecermos uma<br />
impressão <strong>do</strong> que a cida<strong>de</strong> foi e <strong>do</strong> ambiente sobre o qual João Simões Lopes<br />
Neto procurou se <strong>de</strong>bruçar.
No entorno <strong>do</strong> fac-símile da Revista encontram-se, criteriosamente posiciona<strong>do</strong>s,<br />
os textos <strong>do</strong>s pesquisa<strong>do</strong>res Luís Borges e Adão Monquelat. A escolha<br />
justifica-se pelo seguinte: o primeiro é um <strong>do</strong>s investiga<strong>do</strong>res pelotenses mais<br />
entusiastas no trato da obra <strong>de</strong> Simões, <strong>de</strong>dican<strong>do</strong>-se ao autor há mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />
anos (em 2001 publicou, em parceria com Agemir Bavaresco, História, resistência<br />
e projeto em João Simões Lopes Neto, que recebeu, no ano seguinte,<br />
na categoria <strong>de</strong> ensaio, o Prêmio Açorianos <strong>de</strong> Literatura; bem como autor <strong>de</strong><br />
Trocan<strong>do</strong> orelhas. Ensaios <strong>de</strong> crítica, pesquisa e hermenêutica lopesnetina,<br />
<strong>de</strong> 2003; <strong>de</strong>ntre outras). A<strong>de</strong>mais, ele aporta um texto que visa penetrar em<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s aspectos da Revista que ocupa o núcleo da presente edição. O segun<strong>do</strong><br />
pesquisa<strong>do</strong>r, Adão Monquelat, foi convida<strong>do</strong> a comparecer aqui por duas<br />
razões: em primeiro lugar por ser, certamente, um daqueles que mais insuflou a<br />
retomada das investigações sobre Simões na cida<strong>de</strong>, bem como por ter colabora<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>cisivamente para o tombamento <strong>do</strong> imóvel e a fundação da, hoje, Casa <strong>de</strong><br />
Cultura João Simões Lopes Neto. Neste senti<strong>do</strong>, basta lembrar <strong>de</strong> seu artigo publica<strong>do</strong><br />
nos anos noventa, precisamente intitula<strong>do</strong> “Tributo a Simões Lopes Neto”,<br />
no qual, após dizer que o “levantamento, feito por nós, da produção literária <strong>de</strong><br />
Simões Lopes no perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1897 a 1907”, <strong>de</strong>sfere: “Po<strong>de</strong>mos afirmar com absoluta<br />
convicção que, Simões Lopes escreveu os trabalhos acima em sua residência<br />
da Dom Pedro II” (Diário Popular, 10/06/1995). Em segun<strong>do</strong> lugar pelo fato <strong>de</strong><br />
Monquelat vir apresentar uma nova tese: a <strong>de</strong> que o “João Car<strong>do</strong>so”, <strong>do</strong> conto<br />
<strong>de</strong> João Simões Lopes Neto, é o mesmo indivíduo que teria institui<strong>do</strong> o primeiro<br />
estabelecimento sala<strong>de</strong>iril nas margens <strong>do</strong> Rio Piratini, no ano <strong>de</strong> 1780. Como,<br />
então, João Car<strong>do</strong>so foi parar há quilômetros <strong>do</strong> antigo forte <strong>de</strong> São Gonçalo<br />
(on<strong>de</strong> estava sua primitiva charqueada), e estabelecer-se, ainda nas margens <strong>do</strong> rio<br />
quilômetros acima, é algo que fica reserva<strong>do</strong> para o leitor <strong>do</strong> texto. Trata-se, por<br />
certo, <strong>de</strong> uma justa homenagem aos cem anos <strong>do</strong> conto O mate <strong>do</strong> João Car<strong>do</strong>so,<br />
publica<strong>do</strong>, como vimos, no jornal Diário Popular <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1912.<br />
A i<strong>de</strong>alização <strong>do</strong> <strong>Almanaque</strong> <strong>do</strong> <strong>Bicentenário</strong> <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong> (que surgiu no final<br />
<strong>de</strong> 2010) e o projeto que (elabora<strong>do</strong> em 2011) foi aprova<strong>do</strong> e financia<strong>do</strong> pelo<br />
Procultura/RS (no ano <strong>de</strong> 2012), é <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Duda e Fernan<strong>do</strong> Keiber, irmãos<br />
que integram a Gaia Cultura & Arte. Já a seleção das imagens foi realizada em<br />
parceria com Guilherme Pinto <strong>de</strong> Almeida, este promissor talento que, para nossa<br />
surpresa e contentamento, trouxe a público, em maio <strong>de</strong> 2012, uma edição<br />
eletrônica da Revista <strong>do</strong> 1º Centenário <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong> – gesto inédito até então. O<br />
projeto gráfico e a edição das imagens são assina<strong>do</strong>s pela Nativu Design, com<br />
toda a <strong>de</strong>dicação e empenho <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>r Valeirão.<br />
Agra<strong>de</strong>cemos especialmente à Secretaria <strong>de</strong> Cultura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> Sul e à empresa Josapar, bem como a to<strong>do</strong>s aqueles que, <strong>de</strong> forma direta ou<br />
indireta, contribuíram com a presente edição.<br />
Ao centenário da Revista. Ao bicentenário <strong>de</strong> <strong>Pelotas</strong>.<br />
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