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DESPERTANDO A BELA ADORMECIDA:<<strong>br</strong> />

LEITURAS BENJAMINIANAS DA CIDADE 1<<strong>br</strong> />

John Cowart Dawsey<<strong>br</strong> />

(Departamento de Antropologia <strong>da</strong> USP)<<strong>br</strong> />

“UM MANUSCRITO ESTRANHO, DESBOTADO...”<<strong>br</strong> />

Clifford Geertz enuncia uma <strong>da</strong>s abor<strong>da</strong>gens mais fecun<strong>da</strong>s para uma<<strong>br</strong> />

leitura antropológica <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. “Acreditando, <strong>com</strong>o Max Weber, que o homem é<<strong>br</strong> />

um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”, Geertz<<strong>br</strong> />

(1978:15) assume a cultura <strong>com</strong>o sendo essas teias. Em relação à vi<strong>da</strong> urbana,<<strong>br</strong> />

trata-se, para Geertz, de interpretar a sua tecitura. A ci<strong>da</strong>de se apresenta <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

um conjunto de textos carregados de significados.<<strong>br</strong> />

A seguir, porém, partindo de premissas do pensamento de Walter<<strong>br</strong> />

Benjamin, pretendo explorar as margens ou o lado oculto do enfoque de Geertz.<<strong>br</strong> />

Há uma “afini<strong>da</strong>de eletiva” entre as “<strong>leituras</strong>” de Geertz e Benjamin <strong>da</strong> cultura.<<strong>br</strong> />

Trata-se para o primeiro de ler “um manuscrito estranho, desbotado, cheio de<<strong>br</strong> />

elipses, incoerências, emen<strong>da</strong>s suspeitas e <strong>com</strong>entários tendenciosos, escrito não<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> os sinais convencionais do som, mas <strong>com</strong> exemplos transitórios de<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>portamento modelado” (Geertz 1978:20). A não ser por um detalhe, talvez<<strong>br</strong> />

1 Publicado em Interceções: revista de estudos interdisciplinares. Rio de Janeiro, no. 11, ano 6, no. 2, 2004,<<strong>br</strong> />

pp. 183 a 199.<<strong>br</strong> />

1


seja essa também a tarefa a qual Benjamin se propõe. O detalhe, porém, a<strong>br</strong>e<<strong>br</strong> />

uma ver<strong>da</strong>deira fen<strong>da</strong>. Em Benjamin o que se busca não são os “exemplos<<strong>br</strong> />

transitórios de <strong>com</strong>portamento modelado”. Não se busca os gestos e detalhes de<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>portamento para revelar o modelo. Seu olhar dirige-se justamente ao que<<strong>br</strong> />

escapa do modelo. Não procura-se “arrumar” o manuscrito mostrando <strong>com</strong>o, na<<strong>br</strong> />

ver<strong>da</strong>de, ele revela um modelo e uma coerência oculta. Procura-se justamente<<strong>br</strong> />

aquilo que um modelo tende a esconder: sua “estranheza”, seu “desbotamento”, e<<strong>br</strong> />

suas “elipses”, “incoerências”, “emen<strong>da</strong>s suspeitas” e “<strong>com</strong>entários tendenciosos”.<<strong>br</strong> />

Trata-se, para Benjamin, de revelar aquilo que interrompe a narrativa do<<strong>br</strong> />

manuscrito. Ele quer justamente “salvar” o “esquecido”. Ao invés de descrever o<<strong>br</strong> />

“contexto” que dá sentido aos detalhes e os detalhes que atualizam o “contexto”,<<strong>br</strong> />

Benjamin quer detectar os detalhes que interrompem o “sentido” do texto. Para<<strong>br</strong> />

isso, é preciso arrancá-los do contexto. Para Benjamin, a descrição de um<<strong>br</strong> />

contexto, assim <strong>com</strong>o a escrita de uma narrativa, pode ser uma forma de<<strong>br</strong> />

esquecimento. Suas perguntas são simples: Quem escreveu a narrativa? Quem<<strong>br</strong> />

montou o contexto? Diante de tantas incoerências, emen<strong>da</strong>s suspeitas e<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>entários tendenciosos, quem deu-lhe sentido? O que ficou de fora? O que foi<<strong>br</strong> />

esquecido? Para leitores que não se encontram ou se reconhecem no texto, onde<<strong>br</strong> />

estariam suas esperanças se não nas elipses e no próprio desbotamento do<<strong>br</strong> />

manuscrito -- se não em tudo que faz <strong>com</strong> que seja visto justamente <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

estranheza? Ao invés de descrever o manuscrito e, a partir de exemplos<<strong>br</strong> />

transitórios, o modelo mais ou menos consciente que lhe dá coerência, ele procura<<strong>br</strong> />

captar, no inconsciente do texto, os detalhes que irrompem do esquecimento. Para<<strong>br</strong> />

Benjamin, há esperanças não apenas porque os exemplos de <strong>com</strong>portamento<<strong>br</strong> />

2


modelado são transitórios, mas também porque é transitório (desbotado) o<<strong>br</strong> />

manuscrito. No entanto, paradoxalmente, é o mesmo manuscrito, em suas elipses,<<strong>br</strong> />

rasuras e silêncios, que vem carregado de esperanças.<<strong>br</strong> />

Neste artigo pretende-se fazer uma leitura benjaminiana de quatro imagens<<strong>br</strong> />

que irrompem de registros etnográficos feitos na déca<strong>da</strong> de 1980. Três se referem<<strong>br</strong> />

a Piracicaba, uma ci<strong>da</strong>de do interior paulista: 1) bonecos pescadores às margens<<strong>br</strong> />

do rio, 2) uma “grota” urbana em cujas encostas famílias do sertão de Minas<<strong>br</strong> />

construiram seus barracos, e 3) “novos anjos mineiros” transfigurados em “bóias-<<strong>br</strong> />

frias” em carrocerias de caminhões. A última imagem vem de Apareci<strong>da</strong>, Vale do<<strong>br</strong> />

Paraíba, eletrizando um circuito que se forma de Apareci<strong>da</strong> a Piracicaba, entre os<<strong>br</strong> />

quase infindáveis domínios <strong>da</strong> padroeira do Brasil. Observa-se que estas imagens<<strong>br</strong> />

emergem em meio a sonhos de “progresso” que tomam conta de imaginários<<strong>br</strong> />

sociais de campos, ci<strong>da</strong>des e país.<<strong>br</strong> />

“BRINCANDO DE BONECOS”<<strong>br</strong> />

Benjamin procura formas de leitura <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de nos limites <strong>da</strong> experiência<<strong>br</strong> />

racionalizante, associados a estados alterados <strong>da</strong> percepção frequentemente<<strong>br</strong> />

restritos aos que vivem nas margens: na experiência <strong>da</strong>s crianças, dos insanos,<<strong>br</strong> />

dos em<strong>br</strong>iagados. As crianças particularmente são “irresistivelmente atraí<strong>da</strong>s pelo<<strong>br</strong> />

resíduo que surge na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na<<strong>br</strong> />

costura ou na marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o rosto que o<<strong>br</strong> />

mundo <strong>da</strong>s coisas volta exatamente para elas, e para elas unicamente. Neles,<<strong>br</strong> />

elas menos imitam as o<strong>br</strong>as dos adultos do que põem materiais de espécie muito<<strong>br</strong> />

3


diferente, através <strong>da</strong>quilo que <strong>com</strong> eles aprontam no <strong>br</strong>inquedo, em uma nova,<<strong>br</strong> />

<strong>br</strong>usca relação entre si.” (Benjamin 1993:18-19).<<strong>br</strong> />

Ao falar so<strong>br</strong>e a ativi<strong>da</strong>de do historiador Benjamin (1985b:103) também<<strong>br</strong> />

evoca a figura do “catador de lixo”: “Temos aqui um homem: ele tem de catar pela<<strong>br</strong> />

capital os restos do dia que passou. Tudo o que a grande ci<strong>da</strong>de jogou fora, tudo o<<strong>br</strong> />

que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que ela espezinhou -- ele registrra e<<strong>br</strong> />

coleciona. Coleta e coleciona os anais <strong>da</strong> desordem, a Cafarnaum <strong>da</strong> devassidão;<<strong>br</strong> />

separa e seleciona as coisas, fazendo uma seleção inteligente; procede <strong>com</strong>o um<<strong>br</strong> />

avarento em relação a um tesouro, aferrando-se ao entulho que, nas maxilas <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

deusa <strong>da</strong> indústria, assumirá a forma de objetos úteis ou agradáveis.” Bolle<<strong>br</strong> />

(1994:381) <strong>com</strong>enta: “Através de uma montagem em forma de choque, nasce uma<<strong>br</strong> />

imagem dialética. O colecionador burguês, através dos tesouros que acumula,<<strong>br</strong> />

providencia para si uma visão de conjunto do universo; o colecionador de trapos e<<strong>br</strong> />

farrapos, lixo e entulho (Lumpensammler) providencia, a partir desses resíduos,<<strong>br</strong> />

uma imagem do camarote a partir do qual se contempla o mundo.”<<strong>br</strong> />

Em Piracicaba, nos inícios dos anos 80, figuras de bonecos pescadores<<strong>br</strong> />

irrompem na “mata” em barrancos <strong>da</strong> margem direita do rio, oposto à margem<<strong>br</strong> />

onde se situa a “casa do povoador”, monumento <strong>da</strong> o<strong>br</strong>a “civilizadora” de<<strong>br</strong> />

“bandeirantes” e heróis afins. Ao estilo de “visagens caipiras”, de caiporas e<<strong>br</strong> />

curupiras, os bonecos “assom<strong>br</strong>am” a ci<strong>da</strong>de. Não raramente, são vistos <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

“espantalhos”. O artista que fez estes bonecos, “Seu Elias”, antigo morador <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

Rua do Porto, “velho barranqueiro”, trabalha à mo<strong>da</strong> de um “<strong>br</strong>icoleur”, juntando<<strong>br</strong> />

roupas, chapéus, e sapatos descartados, <strong>com</strong> resíduos de oficinas, paus e pneus,<<strong>br</strong> />

e restos de ramos e galhos deixados pelas o<strong>br</strong>as de prefeituras nos dias em que<<strong>br</strong> />

4


as árvores são apara<strong>da</strong>s <strong>com</strong> fins de que curtos-circuitos dos fios elétricos <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

ci<strong>da</strong>de sejam evitados. Carregados de tensões, os bonecos evocam as<<strong>br</strong> />

esperanças de quem vivia às margens do rio, inclusive antes <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> dos<<strong>br</strong> />

“heróis”. Estas imagens se articulam ao presente, num momento de “perigo” para<<strong>br</strong> />

os velhos “barranqueiros”, moradores que se vêem ameaçados pelas<<strong>br</strong> />

transformações recentes no cenário urbano: deslocamento <strong>da</strong> antiga sede <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

prefeitura no centro e sua instalação em um prédio “moderno” <strong>com</strong> heliporto e<<strong>br</strong> />

vidros espelhados “pairando” so<strong>br</strong>e a área <strong>da</strong> Rua do Porto; o desaparecimento do<<strong>br</strong> />

<strong>br</strong>ejo e sua transformação em praça de lazer; a formação de uma área de passeio<<strong>br</strong> />

a partir do fechamento de parte <strong>da</strong> antiga Rua do Porto (na altura <strong>da</strong>s ruínas de<<strong>br</strong> />

olarias e locais onde moradores nos anos 70 ain<strong>da</strong> fa<strong>br</strong>icavam pamonhas em<<strong>br</strong> />

indústrias caseiras ou preparavam os peixes para ven<strong>da</strong> no mercado) agora<<strong>br</strong> />

destina<strong>da</strong> a restaurantes e lojas de uma nascente indústria do turismo; as<<strong>br</strong> />

pressões imobiliárias. Com a poluição do rio, os peixes vendidos nos restaurantes<<strong>br</strong> />

vêm de longe: Chile, Argentina e Pantanal Matogrossense.<<strong>br</strong> />

Em épocas de enchentes, especialmente, pressões aumentam para que<<strong>br</strong> />

famílias de “velhos barranqueiros” passem a morar em outras áreas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<<strong>br</strong> />

Histórias que “Seu Elias” conta a respeito dos “bonecos” -- “pode jogar no rio,<<strong>br</strong> />

pode tacar fogo, que eles não saem do barranco do rio” -- evocam histórias que se<<strong>br</strong> />

contam a respeito dos próprios “barranqueiros”. Quanto mais as pessoas<<strong>br</strong> />

maltratavam os bonecos, queimando-os, afogando-os ou roubando-lhes os<<strong>br</strong> />

chapéus, mais bonecos “Seu Elias” fazia. Mesmo após as piores enchentes, os<<strong>br</strong> />

bonecos voltam a povoar os barrancos do rio pelas mãos deste “<strong>br</strong>icoleur”.<<strong>br</strong> />

Relações lúdicas e miméticas que se estabelecem entre “velhos barranqueiros” e<<strong>br</strong> />

5


“bonecos pescadores” que se recusam a deixar as margens do rio vem<<strong>br</strong> />

carrega<strong>da</strong>s de forças. O fenômeno, aliás, poderia suscitar interesse por uma<<strong>br</strong> />

questão que emerge dos estudos clássicos de Frazer a respeito <strong>da</strong> magia<<strong>br</strong> />

simpática: os efeitos de poder <strong>da</strong>s representações so<strong>br</strong>e os representados.<<strong>br</strong> />

“Bonecos pescadores” que evocam imagens de “barranqueiros” suscitam forças<<strong>br</strong> />

em “barranqueiros” que fazem suas mora<strong>da</strong>s à beira do rio.<<strong>br</strong> />

Irrompendo ao lado de monumentos históricos, imagens de bonecos<<strong>br</strong> />

pescadores interrompem o efeito sedutor de narrativas <strong>da</strong> história, impedindo a<<strong>br</strong> />

o<strong>br</strong>a de esquecimento que se produz, paradoxalmente, em projetos de<<strong>br</strong> />

“preservação <strong>da</strong> memória”, tais <strong>com</strong>o os que se vinculam à “Casa do Povoador”.<<strong>br</strong> />

O que emerge nestas imagens é algo <strong>da</strong> memória involuntária <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, seu<<strong>br</strong> />

inconsciente social, que em relatos oníricos “oficiais” se encontra apenas em<<strong>br</strong> />

forma de elipses, rasuras e emen<strong>da</strong>s suspeitas. Uma “história originária” se<<strong>br</strong> />

articula ao presente. Os bonecos evocam os “mortos”. “Quando olho para os<<strong>br</strong> />

bonecos nos barrancos do rio eu vejo meus próprios parentes e amigos, muitos<<strong>br</strong> />

que já morreram”, diz “Seu Elias”. “É a minha família.”<<strong>br</strong> />

Os “bonecos” também evocam um código <strong>da</strong> dádiva que permeia as<<strong>br</strong> />

relações de “barranqueiros” <strong>com</strong> o rio, originando <strong>com</strong>o uma espécie de<<strong>br</strong> />

“contradom” capaz de suscitar, <strong>com</strong> varas de pescar e trajes de pescadores<<strong>br</strong> />

“caipiras”, a vi<strong>da</strong> de um rio ameaçado pelas forças do “progresso”. O rio que<<strong>br</strong> />

nunca deixou de oferecer peixes em épocas de fome e desemprêgo, passa a<<strong>br</strong> />

depender, em termos desse código, dos “contradons” de “velhos barranqueiros”.<<strong>br</strong> />

“Devo o<strong>br</strong>igação pro rio”.<<strong>br</strong> />

6


Conforme o relato do “Seu Elias”, a idéia dos bonecos surgiu do desejo de<<strong>br</strong> />

uma menina <strong>da</strong> vizinhança que queria uma boneca. A boneca que “Seu Elias” fez<<strong>br</strong> />

do tamanho <strong>da</strong> criança acabou produzindo um susto num menino vizinho e,<<strong>br</strong> />

provavelmente, em sua mãe que pediu que a boneca fosse leva<strong>da</strong> embora. “Seu<<strong>br</strong> />

Elias” a levou ao barranco do rio. A boneca então fez irromper lem<strong>br</strong>anças e<<strong>br</strong> />

promessas de um passado supostamente soterrado.<<strong>br</strong> />

UMA “GROTA” NA CIDADE<<strong>br</strong> />

Marshall Berman (1990:214) sugere que na figura do “homem do<<strong>br</strong> />

subterrâneo” de Dostoievski nos deparamos <strong>com</strong> uma <strong>da</strong>s “cenas primordiais” <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

moderni<strong>da</strong>de de São Petersburgo, Rússia, e <strong>da</strong> própria revolução de 1917. Quem<<strong>br</strong> />

sabe numa “grota” piracicabana, habita<strong>da</strong> por uma gente que veio do sertão de<<strong>br</strong> />

Minas Gerais, encontremos algo <strong>da</strong> história originária, carrega<strong>da</strong> de tensões, <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

moderni<strong>da</strong>de do interior paulista.<<strong>br</strong> />

Em 1978, certo dia ao cair <strong>da</strong> tarde, ao passear de ônibus num bairro de<<strong>br</strong> />

periferia de Piracicaba fui surpreendido por uma imagem insólita – por um<<strong>br</strong> />

“detalhe”, na ver<strong>da</strong>de, que surgiu repentinamente no canto inferior do vidro do<<strong>br</strong> />

ônibus. Desci imediatamente do ônibus para ver de perto. Ao lado <strong>da</strong> rua, a<strong>br</strong>ia-se<<strong>br</strong> />

uma cratera, um pequeno abismo, uma imensa fen<strong>da</strong> na terra, em cujas encostas<<strong>br</strong> />

se encontrava um grande número de barracos.<<strong>br</strong> />

Hoje, ao relem<strong>br</strong>ar a imagem do “buracão”, <strong>com</strong>o era chamado, tenho em<<strong>br</strong> />

mente o quadro de “Angelus Novus” de Paul Klee, interpretado por Walter<<strong>br</strong> />

7


Benjamin. Muitos haviam sido levados à ci<strong>da</strong>de por uma tempestade chama<strong>da</strong><<strong>br</strong> />

“progresso”. E muitos desses, <strong>com</strong>o o “angelus novus” de Klee, olhavam para os<<strong>br</strong> />

destroços aos seus pés e que haviam deixado para trás. Nessa época, creio que a<<strong>br</strong> />

imagem de uma favela tinha algo de insólito. O “milagre econômico” não estava<<strong>br</strong> />

tão distante. Os sonhos de um Brasil gigante que finalmente acor<strong>da</strong>ria do seu<<strong>br</strong> />

berço esplêndido para assumir o seu destino ao lado de outras potências<<strong>br</strong> />

mundiais, mesmo em meio aos temores <strong>da</strong> época, pairavam no ar. A favela do<<strong>br</strong> />

“buracão”, assim <strong>com</strong>o muitas outras favelas em Piracicaba, havia surgido na<<strong>br</strong> />

época <strong>da</strong> construção <strong>da</strong> Caterpillar e <strong>da</strong>s outras empresas do segundo distrito<<strong>br</strong> />

industrial em Piracicaba, em torno de 1974.<<strong>br</strong> />

Em meio a um clima de estupor, creio que o “buracão” do Jardim Glória<<strong>br</strong> />

provocava um efeito de interrupção. Desses subterrâneos poderia emergir algo do<<strong>br</strong> />

inconsciente de uma ci<strong>da</strong>de. Barrocos e mineiros <strong>com</strong>o Guimarães Rosa,<<strong>br</strong> />

personagens do Jardim Glória apresentam sua história através <strong>da</strong>s imagens <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

história natural: massas humanas que saem em direção à ci<strong>da</strong>de leva<strong>da</strong>s por uma<<strong>br</strong> />

tempestade chama<strong>da</strong> “progresso” se alojam nos fundos e encostas de uma fen<strong>da</strong><<strong>br</strong> />

na terra, uma pequena cratera, um “buracão”. Tratava-se certamente de algo<<strong>br</strong> />

insólito. Atordoa. “Buraco dos infernos!” “Buraco do capeta!” Mas, às vezes, nesse<<strong>br</strong> />

“buraco” na ci<strong>da</strong>de, o que irrompe são imagens de “grotas e fundos” de Minas<<strong>br</strong> />

Gerais. Nesses momentos, <strong>com</strong>o uma alegoria incerta, arbitrária, mas ain<strong>da</strong><<strong>br</strong> />

esperançosa, o significado do “buraco do capeta” e “cú dos infernos” oscilava, até<<strong>br</strong> />

mesmo se invertia.<<strong>br</strong> />

8


Perguntei so<strong>br</strong>e “Deus” e o “capeta”. “Como que eles são?” “A aparência<<strong>br</strong> />

deles?” Ela disse: “Voce [cê] quer saber de uma coisa, João? Uns fala que<<strong>br</strong> />

o capeta é <strong>da</strong> cor preta, não é? `Preta <strong>da</strong> cor do capeta...’, é o que dizem.<<strong>br</strong> />

Mas, o capeta não é preto. E Deus também não é <strong>br</strong>anco. Sabe <strong>com</strong>o que<<strong>br</strong> />

eu acho que Deus é? Ele é um velhinho <strong>da</strong> cor de canela. Ele an<strong>da</strong> meio<<strong>br</strong> />

curvado e tá sempre caminhando <strong>da</strong>qui prá-co-lá. Ele não mora numa casa,<<strong>br</strong> />

mas vive [veve] numa grota em algum lugar na beira do mundo.” (17.5.85)<<strong>br</strong> />

Quando o marido desta mulher colocava o seu chapéu de couro de veado<<strong>br</strong> />

mateiro (“é ligeiro, um cisco”), <strong>da</strong> terra e <strong>da</strong> mata onde nasceu, tal <strong>com</strong>o fez no dia<<strong>br</strong> />

em que “caiu na cana”, e <strong>com</strong>o fazia todo dia ao sair para trabalhar, imagens do<<strong>br</strong> />

passado carrega<strong>da</strong>s de esperanças iluminavam a “grota” que uma tempestade<<strong>br</strong> />

chama<strong>da</strong> “progresso” a<strong>br</strong>iu, em meio a qual este senhor e sua família moravam --<<strong>br</strong> />

“na beira do mundo”.<<strong>br</strong> />

O “grotesco”, termo derivado do substantivo italiano grotta, evoca na estética<<strong>br</strong> />

<strong>da</strong> cultura popular medieval e renascentista idéias de inacabamento e abertura.<<strong>br</strong> />

Associa-se também às imagens “infernais” de buracos, orifícios e subterrâneos<<strong>br</strong> />

em<strong>br</strong>ionários por onde seres agonizantes fecun<strong>da</strong>m e dão à luz (Bakhtin 1993:28,<<strong>br</strong> />

303).<<strong>br</strong> />

Um Pequeno Interlúdio para Tratar de Iluminuras Sagra<strong>da</strong>s e Profanas...<<strong>br</strong> />

Talvez seja possível delinear uma espécie de “tentação antropológica” que<<strong>br</strong> />

se configura na medi<strong>da</strong> em que antropólogos, em um dos momentos mais<<strong>br</strong> />

atrevidos de seu ofício, procuram representar a “visão”, o “saber”, ou as “vozes”<<strong>br</strong> />

9


dos “outros”. Trata-se, quem sabe, de uma “tentação hermenêutica” (<strong>com</strong> os<<strong>br</strong> />

rumores de um ofício sacralizante evocativo do deus Hermes). Certo dia, fui<<strong>br</strong> />

convi<strong>da</strong>do em Piracicaba a servir de intérprete para alguns palestrantes dos<<strong>br</strong> />

Estados Unidos ligados ao movimento “Black Power” (“Poder Negro”). O público<<strong>br</strong> />

era formado por estu<strong>da</strong>ntes e professores universitários. Aos poucos me<<strong>br</strong> />

entusiasmei. Em determinado momento os meus gestos e tim<strong>br</strong>e de voz<<strong>br</strong> />

rivalizavam <strong>com</strong> os do próprio palestrante, representante do Black Power. De<<strong>br</strong> />

repente, interrompendo um dos momentos mais dramáticos dessa encenação, o<<strong>br</strong> />

público <strong>com</strong>eçou a rir. Confuso, olhei para os lados, procurando o palestrante,<<strong>br</strong> />

sem o encontrar. Sorrateiramente, esse havia desaparecido. Absorvido no papel<<strong>br</strong> />

de intérprete, eu nem percebera. O palestrante negro se ocultara, colocando-se<<strong>br</strong> />

proposita<strong>da</strong>mente atrás do seu intérprete <strong>br</strong>anco.<<strong>br</strong> />

Poderíamos também falar de “tentações litúrgicas”? Haveriam “afini<strong>da</strong>des<<strong>br</strong> />

eletivas” entre “tentações” litúrgicas e hermenêuticas? A favela do Jardim Glória<<strong>br</strong> />

não existe mais. Quase todos os barracos viraram casas. O antigo “buraco” virou o<<strong>br</strong> />

bairro do “Jardim Glória II”. Um dos únicos barracos remanescentes pertenceu a<<strong>br</strong> />

um frei franciscano chamado Francisco. Através de recursos provenientes <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

Suiça, que se transformaram em tijolos e casas de alvenaria graças a um esforço<<strong>br</strong> />

persistente do frei junto aos moradores que trabalharam em mutirões, uma antiga<<strong>br</strong> />

favela virou bairro. Das oito imagens fotográficas reproduzi<strong>da</strong>s em uma<<strong>br</strong> />

reportagem recente do Jornal de Piracicaba (9-8-98) a respeito do Jardim Glória,<<strong>br</strong> />

apenas duas foram tira<strong>da</strong>s no antigo “buracão”. Uma delas, a de maior destaque<<strong>br</strong> />

na reportagem, é uma imagem luminosa <strong>da</strong> catedral construí<strong>da</strong> em anos recentes<<strong>br</strong> />

10


no centro <strong>da</strong> antiga favela. A segun<strong>da</strong> é uma foto “em close” do frei franciscano na<<strong>br</strong> />

janela do seu barraco.<<strong>br</strong> />

Teria o jornal sucumbido a uma espécie de “tentação litúrgica”? Focando as<<strong>br</strong> />

imagens do frei e de uma catedral o jornal apresenta uma “iluminação sagra<strong>da</strong>” do<<strong>br</strong> />

Jardim Glória. Suas “iluminações profanas”, porém, tais <strong>com</strong>o as que emergem de<<strong>br</strong> />

imagens <strong>benjaminianas</strong>, estão ausentes. Frequentemente a luz em excesso vindo<<strong>br</strong> />

de cima ofusca. Há luzes subterrâneas. Embora registre algumas <strong>da</strong>s imagens<<strong>br</strong> />

luminosas do Jardim Glória o jornal produz um esquecimento <strong>da</strong>s fontes<<strong>br</strong> />

subterrâneas que iluminam a própria vi<strong>da</strong> do frei. Aliás, <strong>com</strong>o vimos, o “buraco do<<strong>br</strong> />

capeta” não apenas ilumina o frei e a catedral, mas projeta so<strong>br</strong>e a ci<strong>da</strong>de sua luz<<strong>br</strong> />

subterrânea.<<strong>br</strong> />

“NOVOS ANJOS MINEIROS” EM CARROCERIAS DE CAMINHÕES<<strong>br</strong> />

O “bóia-fria” teve presença marcante em Piracicaba em inícios <strong>da</strong> déca<strong>da</strong><<strong>br</strong> />

de 70, quando ain<strong>da</strong> vivia-se o clima do “milagre <strong>br</strong>asileiro” e <strong>da</strong>s utopias do<<strong>br</strong> />

progresso. Os grandes projetos do Proálcool e Planalçúcar reativaram sonhos<<strong>br</strong> />

antigos e recentes, parcialmente interrompidos pela “crise do petróleo”de 1973, de<<strong>br</strong> />

um Brasil “colosso”, “país do futuro”. O sonho de um Brasil “gigante”, que,<<strong>br</strong> />

aparentemente “deitado eternamente em berço esplêndido”, finalmente acor<strong>da</strong>ria<<strong>br</strong> />

para a realização de sua “potência”, ganhava em meio a esse clima de<<strong>br</strong> />

em<strong>br</strong>iaguez, os contornos de uma visão: a de um país movido a álcool, graças a<<strong>br</strong> />

11


uma fonte de energia renovável capaz de garantir a autonomia <strong>da</strong> nação mediante<<strong>br</strong> />

a transformação de sítios, roçados e fazen<strong>da</strong>s em canaviais.<<strong>br</strong> />

Foi nesse cenário que irrompeu, no imaginário social e na produção<<strong>br</strong> />

acadêmica dos anos 70, a figura do “bóia-fria”. Tratava-se de uma “aparição”,<<strong>br</strong> />

semelhante, na ver<strong>da</strong>de, àquilo que surrealistas chamaram de “imagem poética”.<<strong>br</strong> />

A esse respeito, em inícios do século, Pierre Reverdy (apud Breton 1969:42)<<strong>br</strong> />

escreveu: “A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>paração, mas <strong>da</strong> aproximação de duas reali<strong>da</strong>des mais ou menos distantes.<<strong>br</strong> />

Quanto mais as relações <strong>da</strong>s duas reali<strong>da</strong>des forem longínquas e corretas, mais a<<strong>br</strong> />

imagem será forte -- mais poder emotivo e reali<strong>da</strong>de poética ela terá.” Aquilo que<<strong>br</strong> />

Reverdy chamou de “criação pura do espírito” tinha substância nos caminhões de<<strong>br</strong> />

turma.<<strong>br</strong> />

O longínquo se fez próximo. O estranho tornou-se cotidiano, e o cotidiano<<strong>br</strong> />

provocou estranheza. A aparição dos “bóias-frias” provocava, em quem os via<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o outros, uma sensação semelhante ao que se sentia vendo, em épocas de<<strong>br</strong> />

safra <strong>da</strong> cana, o chuvisco cotidiano de cinzas de cana queima<strong>da</strong> caindo so<strong>br</strong>e as<<strong>br</strong> />

ci<strong>da</strong>des. Talvez, num primeiro encontro <strong>com</strong> esse chuvisco, fosse até possível<<strong>br</strong> />

para um poeta “respirar” a “aura” de que fala Walter Benjamin (1985a:170): “Em<<strong>br</strong> />

suma, o que é aura? É uma figura singular, <strong>com</strong>posta de elementos espaciais e<<strong>br</strong> />

temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.<<strong>br</strong> />

Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no<<strong>br</strong> />

horizonte, ou um galho, que projeta sua som<strong>br</strong>a so<strong>br</strong>e nós, significa respirar a<<strong>br</strong> />

aura dessas montanhas, desse galho.” Canaviais literalmente projetavam sua<<strong>br</strong> />

som<strong>br</strong>a so<strong>br</strong>e a ci<strong>da</strong>de na forma de cinzas de cana queima<strong>da</strong>. No caso dos<<strong>br</strong> />

12


“bóias-frias”, eram, na ver<strong>da</strong>de, multidões que chegavam de lugares distantes, em<<strong>br</strong> />

ritmos de “industrialização <strong>da</strong> agricultura”, interrompendo o repouso e os sonhos<<strong>br</strong> />

de quem, na ci<strong>da</strong>de, possivelmente sonhando <strong>com</strong> o progresso, não deixava de<<strong>br</strong> />

projetar olhares idílicos so<strong>br</strong>e a vi<strong>da</strong> no campo. Não se trata apenas do fato de<<strong>br</strong> />

que pessoas do campo, avolumando-se em on<strong>da</strong>s de êxodo rural, chegavam à<<strong>br</strong> />

ci<strong>da</strong>de. Trata-se do fato de que, na figura do “bóia-fria”, essas reali<strong>da</strong>des<<strong>br</strong> />

contrastivas tomavam corpo em uma única imagem. Através do “bóia-fria”, -- que<<strong>br</strong> />

vinha de um campo em que a ci<strong>da</strong>de, de forma ca<strong>da</strong> vez mais ostensiva, se fazia<<strong>br</strong> />

presente, -- o campo realmente projetou a sua som<strong>br</strong>a so<strong>br</strong>e a ci<strong>da</strong>de. Na<<strong>br</strong> />

ver<strong>da</strong>de, a ci<strong>da</strong>de se assustava <strong>com</strong> a sua própria som<strong>br</strong>a.<<strong>br</strong> />

Quando caminhões de “bóias-frias” passavam por ruas e aveni<strong>da</strong>s, em<<strong>br</strong> />

meio à “gente <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de”, olhares se encontravam. Nesses momentos, a<<strong>br</strong> />

sensação de ver-se sendo visto por outros podia criar tensões: o objeto olhado<<strong>br</strong> />

devolvia o olhar. Marshall Berman chamou esses encontros de “cenas primordiais<<strong>br</strong> />

<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de”. Numa interpretação de um poema de Baudelaire (1991),<<strong>br</strong> />

Berman (1990:148) evoca uma dessas cenas: “Nesse ambiente, a reali<strong>da</strong>de<<strong>br</strong> />

facilmente se tornava mágica e sonhadora [...]. Contudo, cenas primordiais, para<<strong>br</strong> />

Baudelaire, <strong>com</strong>o mais tarde para Freud, não podem ser idílicas. Elas devem<<strong>br</strong> />

conter material idílico, mas no climax <strong>da</strong> cena uma reali<strong>da</strong>de reprimi<strong>da</strong> se interpõe,<<strong>br</strong> />

uma revelação ou descoberta tem lugar; `um novo bulevar, ain<strong>da</strong> atulhado de<<strong>br</strong> />

detritos [...] exibia seus infinitos esplendores’. Ao lado do <strong>br</strong>ilho, os detritos: as<<strong>br</strong> />

ruínas de uma dúzia de bairros [...]. A família em farrapos, do poema<<strong>br</strong> />

baudelaireano, sai de trás dos detritos, pára e se coloca no centro <strong>da</strong> cena. O<<strong>br</strong> />

problema não é que eles sejam famintos ou pedintes. O problema é que eles<<strong>br</strong> />

13


simplesmente não irão embora. Eles também querem um lugar sob a luz. [...]<<strong>br</strong> />

Pondo abaixo as velhas e miseráveis habitações medievais, Haussmann, de<<strong>br</strong> />

maneira involuntária, rompeu a crosta do mundo até então hermeticamente selado<<strong>br</strong> />

<strong>da</strong> tradicional po<strong>br</strong>eza urbana. Os bulevares, a<strong>br</strong>indo formidáveis buracos nos<<strong>br</strong> />

bairros po<strong>br</strong>es permitiram aos po<strong>br</strong>es caminhar através desses mesmos buracos,<<strong>br</strong> />

afastando-se de suas vizinhas arruina<strong>da</strong>s, para desco<strong>br</strong>ir, pela primeira vez em<<strong>br</strong> />

suas vi<strong>da</strong>s, <strong>com</strong>o era o resto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e <strong>com</strong>o era a outra espécie de vi<strong>da</strong> que aí<<strong>br</strong> />

existia. E, à medi<strong>da</strong> que vêem, eles também são vistos: visão e epifania fluem nos<<strong>br</strong> />

dois sentidos. [...] Os bulevares de Haussmann transformaram o exótico no<<strong>br</strong> />

imediato; a miséria que foi um dia mistério é agora um fato.”<<strong>br</strong> />

Nos anos 70 e 80, sonhos de “modernização” do campo e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<<strong>br</strong> />

tomaram conta <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de <strong>br</strong>asileira. Por detrás dos destroços, surgiram os<<strong>br</strong> />

“bóias-frias”. Às vezes, as carrocerias de caminhões carrega<strong>da</strong>s dessas “famílias<<strong>br</strong> />

de olhos” tomavam de surpresa os moradores do centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, descendo por<<strong>br</strong> />

aveni<strong>da</strong>s principais ou irrompendo ao lado de clubes de campo, geralmente<<strong>br</strong> />

quando, por alguma razão, retornavam mais cedo dos canaviais.Tais <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

“famílias dos olhos”, os “bóias-frias” não iam embora. Num vai-e-vem diário, iam e<<strong>br</strong> />

voltavam, mas sempre voltavam. Muitos sentiram-se in<strong>com</strong>o<strong>da</strong>dos, provocados e,<<strong>br</strong> />

talvez, até seduzidos pelos olhares dos “bóias-frias”.<<strong>br</strong> />

Como se fossem atores num teatro épico de Brecht, os “bóias-frias”<<strong>br</strong> />

provocavam no palco <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de um momento de tensão: a “dialética em<<strong>br</strong> />

estado de paralisia”. Reunindo reali<strong>da</strong>des distantes, <strong>com</strong>o Walter Benjamin diria,<<strong>br</strong> />

em uma única “imagem dialética”, produziram em quem tentava vê-los <strong>com</strong>o<<strong>br</strong> />

outros, uma sensação de assom<strong>br</strong>o. Benjamin (1985a:231) escreve: “Quando o<<strong>br</strong> />

14


pensamento pára, <strong>br</strong>uscamente, numa configuração satura<strong>da</strong> de tensões, ele lhes<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>unica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto<<strong>br</strong> />

môna<strong>da</strong>. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica<<strong>br</strong> />

dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportuni<strong>da</strong>de revolucionária<<strong>br</strong> />

de lutar por um passado oprimido.”<<strong>br</strong> />

Nos anos 80, a imagem do “bóia-fria” ain<strong>da</strong> surgia <strong>com</strong>o algo capaz de<<strong>br</strong> />

interromper o discurso do “progresso”. Denunciava os destroços. Não se poderia<<strong>br</strong> />

dizer que o “bóia-fria” estivesse às margens do progresso. Estava inserido em um<<strong>br</strong> />

dos setores mais dinâmicos <strong>da</strong> produção no campo e na ci<strong>da</strong>de, a agroindústria<<strong>br</strong> />

canavieira, em qual, na época, muitos depositavam sua fé no futuro. O “bóia-fria”<<strong>br</strong> />

produzia a matéria prima que alimentava os grandes projetos e utopias <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

modernização <strong>br</strong>asileira: o Proálcool e Planalçúcar. A cana-de-açúcar fazia uma<<strong>br</strong> />

“socie<strong>da</strong>de” sonhar. Os corpos dos “bóias-frias” friccionavam contra os sonhos<<strong>br</strong> />

estampados em suas camisetas e em seus bonés: “Winner” (“Vencedor”),<<strong>br</strong> />

“Hollywood Sucesso”, “Surfe”, etc. Do fundo dos caminhões que saíam para os<<strong>br</strong> />

canaviais, os “bóias-frias” olhavam a ci<strong>da</strong>de. Saíam de madruga<strong>da</strong> não apenas<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o quem voltava ao passado, mas também <strong>com</strong>o quem ia -- de costas -- em<<strong>br</strong> />

direção ao futuro.<<strong>br</strong> />

“Angelus Novus”...<<strong>br</strong> />

Walter Benjamin (1985l:226) escreve: “Há um quadro de Klee que se<<strong>br</strong> />

chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo<<strong>br</strong> />

que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilata<strong>da</strong>,<<strong>br</strong> />

suas asas abertas. O anjo <strong>da</strong> história deve ter esse aspecto. Seu rosto está<<strong>br</strong> />

15


dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele ve<<strong>br</strong> />

uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína so<strong>br</strong>e ruína e as<<strong>br</strong> />

dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acor<strong>da</strong>r os mortos e juntar os<<strong>br</strong> />

fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele<<strong>br</strong> />

irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado<<strong>br</strong> />

de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.”<<strong>br</strong> />

O pesquisador também viu muitas vezes nos rostos dos “bóias-frias” o esboço<<strong>br</strong> />

do espanto. Também viam uma catástrofe única. Suas reações, porém, eram<<strong>br</strong> />

menos dramatizantes e mais carnavalizantes do que a do “anjo <strong>da</strong> história”. Talvez<<strong>br</strong> />

se assemelhassem mais aos “bufões”, “alegres espantalhos” e “demônios<<strong>br</strong> />

<strong>br</strong>incalhões” <strong>da</strong> cultura popular <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média e do Renascimento, de quais fala<<strong>br</strong> />

Bakhtin, do que ao “angelus novus” mais dramático de Benjamin. Seus gestos,<<strong>br</strong> />

porém, não deixavam de evocar os traços de criança dos desenhos de Klee.<<strong>br</strong> />

As igrejas barrocas de Minas Gerais estão povoa<strong>da</strong>s por imagens de pequenos<<strong>br</strong> />

anjos travessos. So<strong>br</strong>e as tábuas de carrocerias de caminhões nos anos 70 e 80,<<strong>br</strong> />

emergem, entre outras, as imagens de novos anjos mineiros. De madruga<strong>da</strong>,<<strong>br</strong> />

olhando a ci<strong>da</strong>de, impelidos por uma “tempestade chama<strong>da</strong> progresso”, an<strong>da</strong>vam<<strong>br</strong> />

de costas, feito curupiras, em direção aos canaviais.<<strong>br</strong> />

ÀS MARGENS DA “CIDADE LITÚRGICA”: NOSSA SENHORA APARECIDA E<<strong>br</strong> />

A MULHER LOBISOMEM<<strong>br</strong> />

16


Um enfoque benjaminiano nos leva, me parece, a pensar em termos de<<strong>br</strong> />

estratégias para subverter os efeitos anestesiantes de textos litúrgicos. A Nossa<<strong>br</strong> />

Senhora Apareci<strong>da</strong> fala relativamente pouco nos textos litúrgicos que encontramos<<strong>br</strong> />

em Apareci<strong>da</strong> do Norte. Sua voz ganha corpo principalmente no “Cântico de<<strong>br</strong> />

Maria”, de Lucas 1:46-55. Porém, na liturgia que lá encontrei nos anos oitenta<<strong>br</strong> />

aparecem apenas os versos 46-50:<<strong>br</strong> />

“Minha alma engrandece a Deus, meu Senhor, meu espírito se alegra no<<strong>br</strong> />

meu Salvador. Olhado ele tem a sua vil serva: glória disto a mim se reserva.<<strong>br</strong> />

Por to<strong>da</strong>s as gentes serei nomea<strong>da</strong>: em todos os tempos bem-aventura<strong>da</strong>.<<strong>br</strong> />

Em mim, grandes coisas fez o Poderoso; cujo nome é sacro, santo e<<strong>br</strong> />

majestoso. Glória ao Pai, ao Filho outro tanto; glória ao que procede de<<strong>br</strong> />

ambos, Amor Santo. Assim <strong>com</strong>o era no princípio, agora, para sempre seja<<strong>br</strong> />

a trin<strong>da</strong>de glória.”<<strong>br</strong> />

[“Rezemos o Terço” Terço-La<strong>da</strong>inha-Ofício de N. Senhora. Novena a M.<<strong>br</strong> />

Sra. Apareci<strong>da</strong>. Apareci<strong>da</strong>, S.P. Editora Santuário, p. 59].<<strong>br</strong> />

Procedendo à maneira de Benjamin, <strong>com</strong> olhos atentos às elipses, rasuras ou<<strong>br</strong> />

emen<strong>da</strong>s suspeitas, procuramos por aquilo que está submerso no texto. O que diz<<strong>br</strong> />

o trecho ausente, os versos 51-55 do “Cântico de Maria”?<<strong>br</strong> />

“51. Agiu <strong>com</strong> o seu <strong>br</strong>aço valorosamente;<<strong>br</strong> />

dispersou os que no coração alimentavam pensamentos soberbos.<<strong>br</strong> />

52. Derrubou dos seus tronos os poderosos<<strong>br</strong> />

17


e exaltou os humildes.<<strong>br</strong> />

53. Encheu de bens os famintos<<strong>br</strong> />

e despediu vazios os ricos.<<strong>br</strong> />

54. Amparou a Israel, seu servo,<<strong>br</strong> />

a fim de lem<strong>br</strong>ar-se <strong>da</strong> sua misericórdia,<<strong>br</strong> />

55. a favor de A<strong>br</strong>aão e de sua descendência, para sempre,<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o prometera aos nossos pais.<<strong>br</strong> />

(A Bíblia Sagra<strong>da</strong>)<<strong>br</strong> />

A própria ci<strong>da</strong>de de Apareci<strong>da</strong> do Norte se apresenta <strong>com</strong>o um texto. Creio,<<strong>br</strong> />

inclusive, que nela deparamos <strong>com</strong> uma espécie de “ci<strong>da</strong>de litúrgica”. Da mesma<<strong>br</strong> />

forma que alguns versos do “Cântico de Maria” acabaram ficando às margens <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

liturgia oficial, algumas <strong>da</strong>s maiores “atrações” <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de se apresentam às<<strong>br</strong> />

margens <strong>da</strong> catedral. Ao pé do morro no final de um trajeto que se inicia na<<strong>br</strong> />

esca<strong>da</strong>ria <strong>da</strong> “catedral nova”, à esquer<strong>da</strong> dos devotos recém-chegados que<<strong>br</strong> />

dirigem-se à missa, em um espaço fora <strong>da</strong> visão desses devotos, encontra-se o<<strong>br</strong> />

centro de diversões: “carrosssel, tiro ao alvo, carrinhos elétricos de <strong>da</strong>r tromba<strong>da</strong>,<<strong>br</strong> />

`Mulher Lobisomem’, `Mulher Gorila’, `Mulher Co<strong>br</strong>a’.” Walter Benjamin viu nos<<strong>br</strong> />

parques de diversões os locais de educação <strong>da</strong>s massas: “As massas, escreve<<strong>br</strong> />

Benjamin, `obtém conhecimento apenas através de pequenos choques que<<strong>br</strong> />

martelam a experiência seguramente às entranhas. Sua educação se constitui de<<strong>br</strong> />

uma série de catástrofes que so<strong>br</strong>e elas se arrojam sob as lonas escuras de feiras<<strong>br</strong> />

e parques de diversões, onde as lições de anatomia penetram até a medula<<strong>br</strong> />

óssea, ou no circo, onde a imagem do primeiro leão que viram na vi<strong>da</strong> se associa<<strong>br</strong> />

18


inextricavelmente à do treinador que enfia seu punho na boca do leão. É preciso<<strong>br</strong> />

geniali<strong>da</strong>de para extrair energia traumática, um pequeno, específico, terror <strong>da</strong>s<<strong>br</strong> />

coisas’” (apud Jennings 1987:82-83).<<strong>br</strong> />

O que mais chama atenção no parque de diversões de Apareci<strong>da</strong> do Norte<<strong>br</strong> />

são os espetáculos de mulheres virando bichos. Partindo de um enfoque<<strong>br</strong> />

hermenêutico, ao estilo de Geertz (ver principalmente o capítulo 4 de Negara),<<strong>br</strong> />

poderia-se ver nessas atrações a manifestação carnavalizante do caos em meio a<<strong>br</strong> />

qual emerge uma ordem serena de proporções cósmicas. A selvageria dessas<<strong>br</strong> />

mulheres mutantes, grotescas, dramatiza, por efeitos de <strong>com</strong>paração, a beleza e<<strong>br</strong> />

<strong>br</strong>andura do rosto de Nossa Senhora Apareci<strong>da</strong>. O ver<strong>da</strong>deiro terror que se<<strong>br</strong> />

instaura nesses espetáculos, cujos artistas se especializam na produção do medo,<<strong>br</strong> />

magnifica os anseios de se ver no regaço <strong>da</strong> santa. No santuário <strong>da</strong> “catedral<<strong>br</strong> />

nova”, nos seus recônditos mais sagrados, enquanto devotos contemplam o rosto<<strong>br</strong> />

e os olhos <strong>da</strong> santa, envoltos num manto bor<strong>da</strong>do <strong>com</strong> ren<strong>da</strong> de ouro, outros<<strong>br</strong> />

visitantes a Apareci<strong>da</strong> do Norte testemunham <strong>com</strong> uma mistura de espanto e riso<<strong>br</strong> />

a erupção de um “baixo-corporal” medonho nos corpos de mulheres-monstros<<strong>br</strong> />

despi<strong>da</strong>s, pelu<strong>da</strong>s, escamosas. Como uma serpente que tentaria engolir a sua<<strong>br</strong> />

própria cau<strong>da</strong>, a “catedral nova” <strong>com</strong> suas torres luminosas, dirigi<strong>da</strong>s ao sol,<<strong>br</strong> />

coloca em polvorosa, senão em deban<strong>da</strong><strong>da</strong>, as forças ctônicas que irrompem no<<strong>br</strong> />

final de um trajeto descendente que serpenteia pelas ruas morro abaixo de<<strong>br</strong> />

Apareci<strong>da</strong> do Norte.<<strong>br</strong> />

Num lampejo, mulheres aparentemente sãs, até mesmo <strong>com</strong> rostos<<strong>br</strong> />

angelicais, se transformam em bichos selvagens. Com estrondos e barulhos<<strong>br</strong> />

eletrônicos, uma moça <strong>br</strong>anca e frágil se transforma na “mulher lobisomem”. Ela<<strong>br</strong> />

19


avança, arrebenta as grades de sua jaula e salta, de repente, em meio a<<strong>br</strong> />

espectadores que até então se encontram em pé, distribuídos em semi-círculo.<<strong>br</strong> />

Há algo estranhamente familiar nesses espetáculos de parques de<<strong>br</strong> />

diversões. Talvez sejam surpreendentes as semelhanças entre o espetáculo <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

“mulher lobisomem” e as descrições que mulheres do “buraco” do Jardim Glória,<<strong>br</strong> />

os “novos anjos mineiros” que já tivemos a oportuni<strong>da</strong>de de apresentar, fazem de<<strong>br</strong> />

suas próprias mutações repentinas:<<strong>br</strong> />

-“Essas horas eu fico doi<strong>da</strong>. Fico doi<strong>da</strong> de raiva. Eu sou sã. Que nem, nós<<strong>br</strong> />

conversando aqui. Mas tem hora que eu fico doi<strong>da</strong>!”<<strong>br</strong> />

- “Eu também sou assim.”<<strong>br</strong> />

(10.4.85)<<strong>br</strong> />

Na ver<strong>da</strong>de, esses espetáculos são bastante cotidianos: “Virei o cão!” “Virei uma<<strong>br</strong> />

onça!” “Fico doi<strong>da</strong> de raiva!”<<strong>br</strong> />

Eis a descrição que uma moradora do Jardim Glória fez de uma proeza de<<strong>br</strong> />

sua vizinha, cujo nome também era Apareci<strong>da</strong> (uma Apareci<strong>da</strong>, aliás, bastante<<strong>br</strong> />

profana):<<strong>br</strong> />

- “O povo do Seu Chico <strong>com</strong>eçou a rodear o menino. Aí, Apareci<strong>da</strong> pulou<<strong>br</strong> />

no meio <strong>da</strong> aldeia que nem uma doi<strong>da</strong>. [...] `Pode vir!’ ela falou. `Não tenho<<strong>br</strong> />

medo de voces. Pode vir, que eu mato o primeiro que vier! [...].’ Os homens<<strong>br</strong> />

ficaram <strong>com</strong> medo de fazer qualquer coisa....”<<strong>br</strong> />

- “Aquilo que era mulher!”<<strong>br</strong> />

20


- “Enfrentava qualquer capeta!”. (7.6.83)<<strong>br</strong> />

Dessa forma, a Apareci<strong>da</strong> do “buraco dos capetas” protegeu seu filho <strong>da</strong> raiva<<strong>br</strong> />

dos homens.<<strong>br</strong> />

Certo dia, repentinamente, uma mulher do Jardim Glória saiu em defesa de<<strong>br</strong> />

seu <strong>com</strong>panheiro, enfrentando a polícia. O “causo” que seria imediatamente<<strong>br</strong> />

narrado numa ro<strong>da</strong> de vizinhos também faz lem<strong>br</strong>ar o espetáculo <strong>da</strong> “Mulher<<strong>br</strong> />

Lobisomem”:<<strong>br</strong> />

“Ela ficou doi<strong>da</strong> de raiva. Avançou no Luisão [um dos investigadores]!”<<strong>br</strong> />

(6.6.84)<<strong>br</strong> />

O relato de uma mulher a respeito de seu enfrentamento <strong>com</strong> os donos de um bar,<<strong>br</strong> />

que queriam co<strong>br</strong>ar de seu marido uma dívi<strong>da</strong> que já havia sido paga, é<<strong>br</strong> />

igualmente evocativo.<<strong>br</strong> />

“Aí, ele (o dono do bar) falou: `Mulher [muié] doi<strong>da</strong>!’ Falei: `Sou doi<strong>da</strong><<strong>br</strong> />

mesmo [memo]! Voce [cê] tá pensando que eu sou gente?! Rá! Não é <strong>com</strong><<strong>br</strong> />

o suor do Zé (marido) e de meus filhos [fio] que voce [cê] vai enricar!’”<<strong>br</strong> />

(12.6.84)<<strong>br</strong> />

“Voce [cê] tá pensando que eu sou gente?!” Essa frase poderia ter saído dos<<strong>br</strong> />

lábios <strong>da</strong> “mulher lobisomem”. Justamente nessas transformações eletrizantes, em<<strong>br</strong> />

21


meio a lampejos e estrondos, as esperanças de moradores do Jardim Glória<<strong>br</strong> />

<strong>br</strong>ilhavam <strong>com</strong> intensi<strong>da</strong>de maior.<<strong>br</strong> />

Às margens <strong>da</strong> “catedral nova” de Apareci<strong>da</strong> do Norte, nos seus parques de<<strong>br</strong> />

diversões, a partir de uma espécie de pe<strong>da</strong>gogia do “assom<strong>br</strong>o”, aprende-se a<<strong>br</strong> />

“virar bicho”. Talvez, de fato, a “mulher lobisomem” esteja estranhamente próxima<<strong>br</strong> />

à Nossa Senhora Apareci<strong>da</strong>, não, porém, enquanto contraste dramático, mas<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong>o uma figura que emerge, conforme a expressão de Carlo Ginzburg, de sua<<strong>br</strong> />

“história noturna”. Quem sabe, algumas <strong>da</strong>s esperanças e promessas mais<<strong>br</strong> />

preciosas, ain<strong>da</strong> não realiza<strong>da</strong>s, associa<strong>da</strong>s à figura de Nossa Senhora<<strong>br</strong> />

Apareci<strong>da</strong>, se encontram nos efeitos de interrupção - no pasmo - provocados pela<<strong>br</strong> />

“mulher lobisomem”.<<strong>br</strong> />

A Bela Adormeci<strong>da</strong>...<<strong>br</strong> />

Em uma tese recente a respeito <strong>da</strong> Festa de Nossa Senhora <strong>da</strong> Pie<strong>da</strong>de<<strong>br</strong> />

em Lorena (Salles 1999:123), fica-se sabendo que no Domingo de encerramento<<strong>br</strong> />

<strong>da</strong> festa “a Conga<strong>da</strong> e a Bateria <strong>da</strong> Cavalaria se reúnem na Igreja de Nossa<<strong>br</strong> />

Senhora do Rosário – hoje adormeci<strong>da</strong> em seus ofícios religiosos...” (grifos meus).<<strong>br</strong> />

A imagem é evocativa de um prefácio que Walter Benjamin, de acordo <strong>com</strong> seu<<strong>br</strong> />

amigo Scholem, teria escrito:<<strong>br</strong> />

Gostaria de recontar a história <strong>da</strong> Bela Adormeci<strong>da</strong>.<<strong>br</strong> />

Ela dormia em meio aos arbustos de espinhos. E, após tantos e tantos<<strong>br</strong> />

anos, ela acordou.<<strong>br</strong> />

Mas não <strong>com</strong> o beijo de um príncipe feliz.<<strong>br</strong> />

22


O cozinheiro a acordou quando deu na jovem cozinheira um tabefe nos<<strong>br</strong> />

ouvidos que resoou pelo castelo, zunindo <strong>com</strong> a energia represa<strong>da</strong> de<<strong>br</strong> />

tantos anos.<<strong>br</strong> />

Uma lin<strong>da</strong> criança dorme atrás <strong>da</strong> cerca viva espinhosa <strong>da</strong>s páginas que<<strong>br</strong> />

seguem.<<strong>br</strong> />

Mas não deixem que qualquer príncipe de fortuna trajado no<<strong>br</strong> />

equipamento deslum<strong>br</strong>ante do conhecimento chegue perto. Pois no<<strong>br</strong> />

momento do beijo de núpcias, ela pode lhe morder. (...) (apud Buck-Morss<<strong>br</strong> />

1991:22)<<strong>br</strong> />

Estariam a Conga<strong>da</strong> e a Bateria <strong>da</strong> Cavalaria em Lorena tentando despertar –<<strong>br</strong> />

<strong>com</strong> barulho e muita festa – uma Nossa Senhora adormeci<strong>da</strong>? Nesta tese também<<strong>br</strong> />

ficamos sabendo que a festa de Nossa Senhora <strong>da</strong> Pie<strong>da</strong>de “<strong>com</strong>eça a se<<strong>br</strong> />

concretizar aos olhos <strong>da</strong>s pessoas” <strong>com</strong> a instalação do parque de diversões na<<strong>br</strong> />

praça <strong>da</strong> Nossa Senhora bem em frente à Matriz Catedral (Salles 1999:38). Os<<strong>br</strong> />

parques de diversões em Lorena e Apareci<strong>da</strong> serviriam para despertar essas<<strong>br</strong> />

“belas adormeci<strong>da</strong>s”? Haveria nos barulhos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, tais <strong>com</strong>o os que ouvimos<<strong>br</strong> />

nos parques de diversões, em meio a carrosséis, carros elétricos, montanhas<<strong>br</strong> />

russas e mulheres lobisomens, algumas <strong>da</strong>s imagens acústicas mais energizantes<<strong>br</strong> />

para fazer emergir, <strong>com</strong> efeitos de interrupção, esperanças e promessas conti<strong>da</strong>s<<strong>br</strong> />

nas elipses, rasuras e emen<strong>da</strong>s suspeitas de textos litúrgicos?<<strong>br</strong> />

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