18.04.2013 Views

TOMO 1 - CiFEFiL

TOMO 1 - CiFEFiL

TOMO 1 - CiFEFiL

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

ISSN 1519-8782<br />

XIV CONGRESSO NACIONAL<br />

DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA<br />

Promovido pelo Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Realizado no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />

23 a 27 de agosto de 2010<br />

(http://www.filologia.org.br/xiv_cnlf)<br />

VOL. XIV, Nº 04, <strong>TOMO</strong> 1<br />

Anais do XIV CNLF<br />

Rio de Janeiro, 2010<br />

<strong>CiFEFiL</strong>


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO<br />

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES<br />

FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES<br />

DEPARTAMENTO DE LETRAS<br />

Reitor<br />

Ricardo Vieiralves de Castro<br />

Vice-Reitora<br />

Maria Christina Paixão Maioli<br />

Sub-Reitora de Graduação<br />

Lená Medeiros de Menezes<br />

Sub-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa<br />

Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron<br />

Sub-Reitora de Extensão e Cultura<br />

Regina Lúcia Monteiro Henriques<br />

Diretor do Centro de Educação e Humanidades<br />

Glauber Almeida de Lemos<br />

Diretora da Faculdade de Formação de Professores<br />

Maria Tereza Goudard Tavares<br />

Vice-Diretora da Faculdade de Formação de Professores<br />

Catia Antonia da Silva<br />

Chefe do Departamento de Letras<br />

Maria Cristina Cardoso Ribas<br />

Sub-Chefe do Departamento de Letras<br />

Leonardo Pinto Mendes<br />

Coordenador de Publicações do Departamento de Letras<br />

José Pereira da Silva


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Boulevard 28 de Setembro, 397/603 – Vila Isabel – 20.551-030 – Rio de Janeiro – RJ<br />

eventos@filologia.org.br – (21) 2569-0276 – www.filologia.org.br<br />

DIRETOR-PRESIDENTE<br />

José Pereira da Silva<br />

VICE-DIRETORA<br />

Cristina Alves de Brito<br />

PRIMEIRA SECRETÁRIA<br />

Délia Cambeiro Praça<br />

SEGUNDA SECRETÁRIA<br />

Maria Lúcia Mexias Simon<br />

DIRETOR CULTURAL<br />

Marilene Meira da Costa<br />

VICE-DIRETORA CULTURAL<br />

Adriano de Sousa Dias<br />

DIRETORA DE RELAÇÕES PÚBLICAS<br />

Antônio Elias Lima Freitas<br />

VICE-DIRETORA DE RELAÇÕES PÚBLICAS<br />

Eduardo Tuffani Monteiro<br />

DIRETORA FINANCEIRA<br />

Ilma Nogueira Motta<br />

VICE-DIRETORA FINANCEIRA<br />

Jônia Maria Souza Silva<br />

DIRETOR DE PUBLICAÇÕES<br />

Amós Coelho da Silva<br />

VICE-DIRETOR DE PUBLICAÇÕES<br />

José Mário Botelho


XIV CONGRESSO NACIONAL<br />

DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA<br />

de 23 a 27 de agosto de 2010<br />

COORDENAÇÃO GERAL<br />

José Pereira da Silva<br />

Cristina Alves de Brito<br />

Marilene Meira da Costa<br />

COMISSÃO ORGANIZADORA E EXECUTIVA<br />

Amós Coelho da Silva<br />

Jonia Maria Souza Silva<br />

Antônio Elias Lima Freitas<br />

José Mário Botelho<br />

Eduardo Tuffani Monteiro<br />

Ilma Nogueira Motta<br />

Maria Lúcia Mexias Simon<br />

Antônio Elias Lima Freitas<br />

COORDENAÇÃO DA COMISSÃO DE APOIO<br />

Adriano de Sousa Dias<br />

Ilma Nogueira Motta<br />

COMISSÃO DE APOIO ESTRATÉGICO<br />

Marilene Meira da Costa<br />

Laboratório de Idiomas do Instituto de Letras (LIDIL)<br />

SECRETARIA GERAL<br />

Sílvia Avelar Silva


SUMARIO<br />

1. A ALUSÃO COMO PROPOSTA DE LER E ESCREVER NO GÊNERO<br />

ROMANCE<br />

Amanda Maria Nascimento Gomes ........................................... 1 – 19<br />

2. A APLICAÇÃO DO ESTUDO DO CÓDIGO BIBLIOGRÁFICO NAS EDI-<br />

ÇÕES DO SÉCULO XIX DE PAPÉIS AVULSOS DE MACHADO DE ASSIS<br />

Fabiana da Costa Ferraz Patueli...............................................20 – 27<br />

3. A CIRCUNFIXAÇÃO EM PORTUGUÊS<br />

Caio Cesar Castro da Silva .....................................................28 – 37<br />

4. A CONCORDÂNCIA DE NÚMERO NO SINTAGMA NOMINAL NA FALA<br />

DOS ESTUDANTES DA REDE PÚBLICA DE ENSINO DE SANTO ANTÔNIO<br />

DE JESUS-BA<br />

Dayane Moreira Lemos ..........................................................38 – 51<br />

5. A CONCORDÂNCIA VERBAL NO PORTUGUÊS POPULAR DE<br />

SALVADOR<br />

Welton Rodrigues Santos....................................................... 52 – 71<br />

6. A CONSTRUÇÃO DO PÚBLICO LEITOR EM TABLOIDES DO RIO DE<br />

JANEIRO<br />

Michelle Martins de Mattos Rangel ...........................................72 – 83<br />

7. A DIGLOSSIA ÁRABE: UMA APRECIAÇÃO DO HASSANIYYA COMO<br />

REPRESENTANTE DA VERTENTE BAIXA NO BINÁRIO DIGLÓSSICO<br />

Elias Mendes Gomes .............................................................84 – 96<br />

8. A ESCRITA NOS AUTOS DE QUERELA DO SÉCULO XIX: DO<br />

PASSADO AO PRESENTE<br />

Emilia Maria Peixoto Farias / Expedito Eloísio Ximenes / Patrícia de Oliveira<br />

Batista / Katharine Silva de Oliveira Soares.....................97 – 108<br />

9. A EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM EM A TURMA DA MÔNICA<br />

Luciana da Costa Quintal ......................................................109- 124<br />

10. A FACE OCULTA DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: UM<br />

ESTUDO DE CASO<br />

Sinéia Maia Teles Silveira / Sônia Maia Teles Xavier ..............125 – 145<br />

11. A FEMME FATALE EM “TARDE”, DE OLAVO BILAC<br />

Armando Rabelo Soares Neto .............................................146 – 160<br />

12. A HETEROGENEIDADE DO DISCURSO EM OURO, INCENSO E<br />

MIRRA, DE ALÍPIO MENDES<br />

Geysa Silva ......................................................................161 – 168<br />

13. A ILUSTRE CASA DE RAMIRES ANÁLISE DE VARIANTES (1895 –<br />

1900)<br />

Ânderson Rodrigues Marins ................................................169 – 182


14. A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO E DO DESENVOLVIMENTO DOS<br />

MOCAMBOS PARA A RECIFE DOS ANOS 1930 E 1940<br />

Jacqueline de Cássia Pinheiro .............................................183 – 190<br />

15. A IMPORTÂNCIA DA LEITURA NAS ESCOLAS BRASILEIRAS CON-<br />

TEMPORÂNEAS<br />

Vagner Aparecido de Moura ...............................................191 – 207<br />

16. A IMPORTÂNCIA DE PESQUISAS EM ESTRATÉGIAS DE<br />

APRENDIZAGEM NO ENSINO DE LÍN GUAS ESTRANGEIRAS<br />

Márcio Luiz Corrêa Vilaça ...................................................208 – 220<br />

17. A IMPORTÂNCIA DO PARATEXTO NA EDIÇÃO DO TEXTO TEATRAL<br />

VEGETAL VIGIADO, DE NIVALDA COSTA<br />

Débora de Souza / Rosa Borges dos Santos .........................221 – 231<br />

18. A IMPORTÂNCIA DOS QUADROS E PARÂMETROS LINGUÍSTICOS<br />

PARA O ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS<br />

Carmem Praxedes .............................................................232 – 249<br />

19. A INFUÊNCIA DA ORALIDADE NA PRODUÇÃO TEXTUAL ESCRITA<br />

Tays Angélica Rezende .......................................................250 – 257<br />

20. A INTERNET NO ENSINO DE ESPANHOL PARA ALUNOS<br />

BRASILEIROS<br />

Beatriz Pereira da Silva .....................................................258 – 290<br />

21. A LINGUAGEM ANÁRQUICA DE ROLAND BARTHES EM DOIS<br />

MOMENTOS: AULA E O GRAU ZERO DA ESCRITA<br />

Regina Céli Alves da Silva ..................................................291 – 302<br />

22. A LINGUÍSTICA E O ENSINO DO PORTUGUÊS: INSTRUMENTOS<br />

PARA PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA<br />

Patrícia Ribeiro de Andrade ................................................303 – 312<br />

23. A MULTIPLICIDADE SEMÂNTICA DO VERBO ‘TER’ PLENO À LUZ DA<br />

SEMÂNTICA COGNITIVA<br />

Diogo Pinheiro ..................................................................313 – 325<br />

24. A PRODUÇÃO TEXTUAL SOB A PERSPECTIVA DA RETEXTUALIZAÇÃO<br />

EM UMA CLASSE DO ENSINO MÉDIO<br />

José Ricardo Carvalho .......................................................326 – 333<br />

25. A QUESTÃO DO MECENATO NA ANTIGUIDADE E NO<br />

RENASCIMENTO PORTUGUÊS<br />

Márcio Luiz Moitinha Ribeiro ...............................................334 – 340<br />

26. A QUESTÃO DO MÉTODO NO ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA:<br />

SÉCULO XIX<br />

Márcia A. G. Molina ...........................................................341 – 353


27. A RELEVÂNCIA DAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS NA AULA DE LÍN-<br />

GUA PORTUGUESA<br />

Cláudia Cristina Marques dos Santos ...................................354 – 361<br />

28. A RESPEITO DA MUDANÇA HISTÓRICA NAS CONSTRUÇÕES PARAS-<br />

SINTÉTICAS /A...ECER/ E /EN...ECER<br />

Caio Cesar Castro da Silva..................................................362 – 370<br />

29. A RETÓRICA EM O CRIME DO PADRE AMARO<br />

Ânderson Rodrigues Marins.................................................371 – 379<br />

30. A SEDUÇÃO DISCURSIVA DA MÚSICA CRÉU<br />

Vagner Aparecido de Mour .................................................380 – 398<br />

31. A SELEÇÃO LEXICAL COMO ESTRATÉGIA ARGUMENTATIVA NOS<br />

TEXTOS PUBLICITÁRIOS<br />

Marcia de Oliveira Gomes ..................................................399 – 407<br />

32. A UNIDADE LEXICAL NO DISCURSO ETNOLITERÁRIO<br />

Maria Margarida de Andrade ...............................................408 – 418<br />

33. A UNIDADE LEXICAL NO DISCURSO PUBLICITÁRIO REGIONAL<br />

Nelly Carvalho...................................................................419 – 424<br />

34. A VARIAÇÃO FONÉTICA DAS VOGAIS MÉDIAS PRE E POSTÔNICAS<br />

NO LÉXICO DE MONTES CLAROS/MG<br />

Patrícia Goulart Tondineli 425 – 438<br />

35. A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM DOIS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍN-<br />

GUA PORTUGUESA<br />

Michelle de Oliveira ...........................................................439 – 452<br />

36. ALGUMAS MUSAS DE ÉBANO DE GREGÓRIO DE MATTOS: HINÁRIO<br />

CRIOULO: VERSOS EM FRAGMENTOS<br />

Ruy Magalhães de Araujo ...................................................453 – 464<br />

37. ANÁLISE DE AMBIGUIDADE LEXICAL EM MÚSICAS<br />

Adriana Hotz Tavares .........................................................465 – 475<br />

38. ANÚNCIOS E LETREIROS DO COMÉRCIO POPULAR: GÊNEROS EM<br />

DISCUSSÃO<br />

Osvaldo Barreto Oliveira Júnior ...........................................476 – 500<br />

39. APORTES SOCIOLINGUÍSTICOS À PRÁTICA DO PROFESSOR – IM-<br />

PLICAÇÕES NA SALA DE AULA<br />

Consuelo Domenici Mozzer Pinto / Lucia Furtado de Mendonça Cyranka<br />

...................................................................................... 501 – 513<br />

40. APRENDENDO PORTUGUÊS COM TEXTOS DE HUMOR<br />

Claudia Moura da Rocha / Darcilia M. P. Simões ....................514 – 527


41. ARISTÓTELES E PEIRCE: OS SUBSTRATOS PARA A COMPREENSÃO<br />

LÓGICA DOS PROCESSOS SEMIÓTICOS<br />

Luiz Roberto Peel Furtado de Oliveira ..................................528 – 534<br />

42. ARNALDO ANTUNES, INFERENCIAÇÃO E SENTIMENTO:<br />

FUNDAMENTOS SEMIOLINGUÍSTICOS PARA AULA DE LEITURA<br />

Beatriz dos Santos Feres ...................................................535 – 547<br />

43. AS CANÇÕES DIZEM MAIS: DESVENDANDO AS METÁFORAS<br />

PRESENTES NAS MÚSICAS SERTANEJAS<br />

Josiane Silveira Coimbra / Margareth Myriam da Rocha / Nívia de Souza<br />

Costa / Tays Angélica Rezende ..............................................548 – 559<br />

44. AS MARIAS NA MACROTOPONÍMIA SERGIPANA: A IGREJA E O<br />

PODER<br />

Cezar Alexandre Neri Santos ..............................................560 – 573<br />

45. AS METÁFORAS DO AMOR EM REVISTAS PARA ADOLESCENTES<br />

Ana Paula Ferreira ............................................................574 – 583<br />

46. AS METAMORFOSES DA MULHER NA POESIA BRASILEIRA<br />

FINISSECULAR<br />

Juliana Pêgas Costa ..........................................................584 – 592<br />

47. ASPECTOS DO PORTUGUÊS DO BRASIL NAS LETRAS DA MÚSICA<br />

POPULAR BRASILEIRA<br />

Maria Aparecida Rocha Gouvêa ...........................................593 – 602<br />

48. ASPECTOS SINTÁTICOS DO LATIM TARDIO- O CASO DO DISCURSO<br />

ADUERSUS IUDAEOS, DE TERTULIANO<br />

Renata Pereira Bastos / Luís Carlos Carpinetti ......................603 – 611<br />

49. ASPECTOS SINTÁTICOS DO TEXTO DE SÃO JERÔNIMO CONTRA<br />

IOHANNEM HIEROSOLYMITANUM EPISCOPUM AD PAMMACHIUM<br />

Ana Luíza Silva de Freitas / Luís Carlos Carpinetti .................612 – 619<br />

50. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O INGLÊS ANTIGO<br />

João Bittencourt de Oliveira ...............................................620 – 644<br />

51. CAMINHOS TEÓRICOS E PRÁTICOS EM ANÁLISE CRÍTICA DO<br />

DISCURSO<br />

Cleide Emília Faye Pedrosa / Derli Machado de Oliveira / Taysa Mércia<br />

dos Santos Souza Damaceno ..............................................646 – 691<br />

52. CARTAS DO LEITOR: A CONSTRUÇÃO DO ETHOS COMO ESPELHO<br />

DA CIDADANIA<br />

Lygia Maria Gonçalves Trouche ...........................................692 – 704<br />

53. CIÊNCIA E VIDA MODERNA NA DIALÉTICA MUSICAL DE GILBERTO<br />

GIL<br />

Beatriz Pereira da Silva .....................................................705 – 740


54. COMO E POR QUE TRABALHAR COM O TEXTO PUBLICITÁRIO EM<br />

SALA DE AULA<br />

Ilana da Silva Rebello Viegas ..............................................741 – 756<br />

55. COMO FUNCIONA O DISCURSO DO GÊNERO DIVULGAÇÃO CIENTÍ-<br />

FICA?<br />

Urbano Cavalcante Filho .....................................................757 – 770<br />

56. COMO SE PADECE NO PARAÍSO REPRESENTAÇÃO DA FIGURA<br />

MATERNA EM TRÊS FALAS<br />

Lucineide Lima de Paulo ....................................................771 – 784<br />

57. COMPONENTES ESTRUTURAIS DOS REPERTÓRIOS DE UMA OBRA<br />

LEXICOGRÁFICA<br />

Valéria Cristina de Abreu Vale Caetano ................................785 – 799<br />

58. COMPREENSÃO DE TEXTOS NARRATIVOS E ARGUMENTATIVOS DI-<br />

ALÓGICOS POR LEITORES DO ENSINO FUNDAMENTAL: RESULTADOS<br />

DA PESQUISA<br />

Antonia Valdelice de Sousa ................................................800 – 814<br />

59. CONSERVAÇÃO E PRESERVAÇÃO DOS ACERVOS DOCUMENTAIS<br />

BAIANOS<br />

E O TRABALHO FILOLÓGICO<br />

Maria da conceição Reis Teixeira .........................................815 – 826<br />

60. CONSTRUÇÕES LOCATIVAS NA FALA CULTA: UM ESTUDO<br />

VARIACIONISTA<br />

Elaine M. Thomé Viegas .....................................................827 – 836<br />

61. CONTRIBUIÇÕES AO DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO DA LÍNGUA<br />

PORTUGUESA, DE ANTÔNIO GERALDO DA CUNHA: AS PALAVRAS<br />

COGNATAS EM FOCO<br />

Messias dos Santos Santana ..............................................837 – 847<br />

62. CRÍTICA TEXTUAL E CRÍTICA DE PROCESSO: EDIÇÃO E ESTUDO<br />

DO TEXTO TEATRAL<br />

Rosa Borges dos Santo.......................................................848 – 865<br />

63. CULTURA PARTILHADA E PUBLICIDADE USOS LEXICAIS NO<br />

DISCURSO PUBLICITÁRIO<br />

Nelly Carvalho ..................................................................866 – 875<br />

64. DA CIÊNCIA À DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: NATUREZA E<br />

FUNCIONALIDADE DO DISCURSO<br />

Urbano Cavalcante Filho ....................................................876 – 891<br />

65. DE DIDO À MATRONA DE ÉFESO<br />

Amós Coêlho da Silva ........................................................892 – 898<br />

66. DE PRETO À AFRODESCENDENTE: IMPLICAÇÕES TERMINOLÓGICAS<br />

José Geraldo da Rocha ......................................................899 – 907


67. DISCURSOS DE POSSE DOS PRESIDENTES DO STF AS MANIFESTA-<br />

ÇÕES LINGUÍSTICAS E O ETHOS DO PODER JUDICIÁRIO<br />

Claudia Maria Gil Silva .......................................................908 – 917<br />

68. DISPARIDADES CRÍTICAS SOBRE A OBRA DE GIL VICENTE<br />

Rafael Santana Gomes ......................................................918 – 924<br />

69. DO SILENCIAMENTO DE LÍNGUAS: ALGUMAS REFLEXÕES<br />

DISCURSIVAS SOBRE A LEI 6.001<br />

Marcos Lúcio de S. Góis .....................................................925 – 940<br />

70. EDIÇÃO E ESTUDO DOS PROCESSOS ARGUMENTATIVOS DE<br />

DOCUMENTOS MANUSCRITOS DA CIDADE DO SALVADOR<br />

Gilberto Nazareno Telles Sobral ..........................................941 – 949<br />

71. ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA ESCOLA BÁSICA GÊNEROS E<br />

SEQUÊNCIAS TEXTUAIS<br />

Vania L. R. Dutra / Gustavo Listo ........................................950 – 962<br />

72. ENTRE INFORMAÇÃO E FICÇÃO, A ESCRITURA LITERÁRIA E O ES-<br />

PAÇO DE DISCURSIVIDADE DOS FOLHETINS NOS PERIÓDICOS DO SÉ-<br />

CULO XIX<br />

Vera Maria Aragão de Souza Sanchez ..................................963 – 971<br />

73. ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS EM SILVA JARDIM (SÉCULO XIX)<br />

Márcia A G Molina .............................................................972 – 980<br />

74. EXISTE MESMO UMA FACULDADE DE LINGUAGEM INATA E ESPECÍ-<br />

FICA? ALGUNS PROBLEMAS<br />

Zinda Vasconcellos ............................................................981 – 992<br />

75. EXPRESSÃO E SENTIDOS NO TRATAMENTO DA APICULTURA POR<br />

VARRÃO E VIRGÍLIO<br />

Matheus Trevizam ........................................................... 993 – 1004


A ALUSÃO COMO PROPOSTA DE LER E ESCREVER<br />

NO GÊNERO ROMANCE<br />

1. Introdução<br />

Amanda Maria Nascimento Gomes (UNEB)<br />

amandalispector@hotmail.com<br />

A leitura do romance Ciganos de Bartolomeu Campos de<br />

Queirós nos indicia a presença de várias categorias da intertextualidade.<br />

Buscamos com nossa pesquisa, o leitor-modelo do autormodelo<br />

do livro Ciganos de Bartolomeu Campos de Queirós, por entendermos<br />

que aquele que faz o jogo alusivo como a metáfora categoria<br />

da alusão e a memória se constitui o leitor-modelo do autormodelo<br />

do autor Bartolomeu Campos de Queirós. Por isso, o objetivo<br />

desta pesquisa é desenvolver um estudo intertextual tendo a metáfora<br />

como constituidora do jogo alusivo.<br />

A singularidade da obra pode ser percebida pela constituição<br />

gráfica, pois as páginas não são enumeradas convencionalmente e há<br />

uma linha gráfica que divide as duas histórias; a dos ciganos e a do<br />

menino. Observamos também outras possibilidades para que o leitor<br />

torne-se um leitor nômade que ao ir e vir entrelace as histórias, leiaas<br />

de tantas outras formas, outras possibilidades.<br />

Acima da linha, uma leitura permitida é aquela que os ciganos<br />

despertavam em um pequeno vilarejo, curiosidade, mistério, contemplação<br />

de medo, alegria, liberdade e beleza. Provocavam sonho<br />

nas pessoas daquele lugar. O sagrado misturava-se ao profano. E,<br />

ninguém sabia exatamente de onde viam ou para onde partiam os ciganos.<br />

Escutei de outros que eram filhos das grandes florestas e procuravam<br />

uma passagem para as minas de ouro do rei Salomão. (p. 1)<br />

Ninguém sabia para onde iam os ciganos. Se voltavam para o Egito<br />

ou se tiverem notícias, pelas cartas do baralho, das minas de ouro do rei<br />

Salomão. (p. 11)<br />

Os fragmentos acima aludem ao livro As Minas do Rei Salomão<br />

que narra a história de uma jornada ao coração da África feita<br />

por um grupo de aventureiros em busca de lendária riqueza do Rei


Salomão, rei bíblico renomado tanto por sua sabedoria quanto por<br />

sua riqueza. No livro os aventureiros correm riscos, desvendam mistérios,<br />

tudo para chegar à tão sonhada riqueza.<br />

O nome das serras, realmente, sempre foi serras de Salomão. Além<br />

disso, uma feiticeira, do distrito de Manica, uma velha de mais de cem<br />

anos, contou-me tudo... Isto é, contou-me que para lá das serras vive um<br />

povo que é da raça dos zulus, e que fala um dialeto zulu... Pois nesse povo<br />

há videntes, grandes feiticeiros, que de geração em geração, têm trazido<br />

o segredo de uma mina prodigiosa, que foi de um rei... (HAG-<br />

GARD, 2003, p. 25)<br />

– A entrada das minas de Salomão lá está... Chegaremos nós lá? (Id,<br />

p. 51)<br />

Em Ciganos há alusões ao livro citado à medida que o povo<br />

cigano também busca riquezas, correm riscos, desvendam mistérios,<br />

estão em busca de desvendar o segredo das minas, já que são também<br />

feiticeiros e videntes que o guardam “... se tiveram notícias, pelas<br />

cartas do baralho, das minas de ouro do rei Salomão” (p. 11)<br />

Outros falavam que vinham das terras de Espanha ou das areias de<br />

Portugal. Cortaram o mar, guiados pelo brilho das escamas de sereias,<br />

escondidos nas noites.<br />

Sem saber ao certo de onde viam ou para onde iam, sei que os ciganos<br />

surgiam. (p. 1)<br />

O trecho acima nos alude a um discurso histórico, que é uma<br />

das hipóteses de origem do povo cigano, que ainda hoje é de todo<br />

desconhecida. No princípio, devido à dificuldade de se estabelecer a<br />

origem dos diversos grupos de ciganos que chegaram a Portugal, foram<br />

erradamente chamados de gregos ou egipicianos, porque se pensava<br />

que vinham da Grécia ou do Egito.<br />

Não se conhece com exatidão a data da chegada dos ciganos a<br />

Portugal, mas a sua presença começa a ser assinalada no início do<br />

século XVI, de acordo com os primeiros testemunhos que aparecem<br />

na literatura e na legislação, isto é, no Cancioneiro de 1510 e no<br />

“Auto das Ciganas” de Gil Vicente em 1521.<br />

Em Portugal os ciganos apresentavam práticas misteriosas e<br />

pagãs estranhas como, adivinhar o futuro, acampar e vestir roupas diferentes,<br />

não podiam deixar de causar o pasmo das populações fortemente<br />

marcada pelo poder da igreja católica.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

2


Muitos ciganos foram perseguidos e por isso saíram para diferentes<br />

partes do mundo e estiveram sujeitos a efeitos que se fazem<br />

sentir até hoje; cigano rouba menino, cigano rouba objetos, ciganos<br />

são pagãs, são amaldiçoados.<br />

É nesse jogo discursivo que destacamos a alusão, não como<br />

uma mera menção como propôs Paulino (1995, p. 29) a alusão é um<br />

tipo de intertextualidade fraca, uma vez que nota apenas uma leve<br />

menção a outro componente seu. Mas entendemos que a alusão é<br />

perturbadora porque exige do leitor um compromisso com o ir e vir<br />

dos discursos.<br />

Segundo Torga (2001, p. 10) a alusão;<br />

É perturbadora, é sutil, criadora do movimento de ir e vir, devir,<br />

porque exige do leitor um compromisso com a construção da narrativa,<br />

que tem uma história e precisa ser por ele reconstruída mnemonicamente<br />

pela cooperação.<br />

A perspectiva teórica sobre a alusão em Torga (2001) nos remete<br />

também a Eco (1994, p. 9) quando ele afirma que: o texto é<br />

uma máquina preguiçosa, pedindo ao leitor que faça uma parte do<br />

seu trabalho. Percebe-se que os autores acima comungam da mesma<br />

ideia que a memória constitui ao lado da metáfora uma das categorias<br />

do movimento de ir e devir da alusão como estratégia de leitura e<br />

escrita sutil, porém perturbadora na construção de sentido do texto.<br />

Ou ainda como Torga (2001, p. 10), que afirma que “as alusões<br />

vão formando a figura do todo – a partir dos índices – pequenas<br />

citações, enquanto parte desse todo”.<br />

Nascia assim, de repente como a morte, uma vila colorida que se aninhava<br />

naquele povo antigo. (p. 02)<br />

A emoção de misturava: de um lado o recado dos céus e do outro a<br />

realidade dos gitanos. Essa dúvida se tornava o sossego da cidade. (p.<br />

03)<br />

Desejo escondido de ler a linha do horizonte (grifos nossos). (p. 1)<br />

Os fragmentos acima indicam que a utilização de metáforas<br />

permite decifrar os mistérios do mundo e das emoções do povo cigano.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

3


Em “Nascia assim, de repente como a morte” alude à ideia de<br />

que é também a morte um (re)nascimento e a vila (re)nascia com a<br />

chegada dos ciganos. Mas as pessoas daquele lugar conviviam com<br />

“o recado dos céus”, ou seja, a lembrança de que o sagrado deve imperar<br />

sobre a realidade dos ciganos, mas havia o desejo de “ler a linha<br />

do horizonte”, decifrar os mistérios que os envolviam, pois a origem<br />

dos ciganos está ligada, desde sempre, a fantasia. Tolerados ou<br />

hostilizados, os ciganos não deixam ninguém indiferente.<br />

Abaixo da linha gráfica está o sonho soturno do meninonarrador<br />

adulto em busca de preencher a sua falta interior. Um menino<br />

feito de coragem e medo que enxergava nos ciganos a possibilidade<br />

de eles ocuparem o vazio que ele carrega dentro de si.<br />

Foi no tempo dos ciganos que o conheci. Ele era como a madrugada<br />

perto de acordar. Era um menino feito de coragem e medo. (p. 01)<br />

Ah, ser roubado era o mesmo que ser amado. Ele sentia que só roubamos<br />

o que nos faz falta. E ele – como gostaria de ser ausência, mesmo<br />

dos ciganos. (p. 7)<br />

Para um menino, assim só, os ciganos eram uma espécie de sol que<br />

acordava os afetos (grifos nossos). (p. 8)<br />

Percebemos nos excertos que o menino constrói uma imagem<br />

dos ciganos de “espécie de sol que acordava os afetos” contrariando<br />

a memória coletiva que se organiza em torno de um mito social de<br />

ser o povo cigano nômade, aquele que rouba objetos, rouba meninos<br />

e tem um modo de existir que causa medo. Mas “Ah, ser roubado era<br />

o mesmo que ser amado”, aqui o verbo “roubar” assume um significado<br />

positivo, contrário ao seu significado real de retirar algo de outrem<br />

indevidamente. Pois para um menino que convivia com tantas<br />

faltas; indiferença e sisudez do pai, perda da mãe, solidão, só os ciganos<br />

com tanta alegria que despertam na cidade eram capazes de<br />

preencher seu vazio. Por isso ele queria ser levado pelos ciganos, desejava<br />

desfrutar de outros mundos com outras companhias. Para ele<br />

“os ciganos eram uma espécie de sol que acordava os afetos”. (p. 8)<br />

Ler Ciganos de Bartolomeu Campos de Queirós é a possibilidade<br />

de contemplar a beleza e a singularidade de sua obra. O texto –<br />

prosa poética - faz o leitor transitar pelas páginas e “[...] destramelar<br />

as janelas e espiar mais longe”. (QUEIRÓS, 1996). E isso se dá a<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

4


partir de uma estratégia de leitura daquele que faz o jogo alusivo<br />

com as metáforas e a memória discursiva.<br />

Assim, percebendo a metáfora e a memória discursiva como<br />

categorias constituidoras da alusão, entendemos que ela, a alusão<br />

pode ser uma teoria de leitura e escrita que nos possibilita ler Ciganos<br />

de Bartolomeu Campos de Queirós como “desejo escondido de<br />

ler a linha do horizonte e desvendar os mistérios que diziam além<br />

dos mares e das montanhas”. (QUEIRÓS, 1991).<br />

2. Da alusão e da fenomenologia dialética<br />

Em seu livro intertextualidade Paulino (1995, p. 29) afirma<br />

que a alusão é um tipo de intertextualidade fraca, uma vez que nota<br />

apenas uma leve menção a outro componente seu. Já Torga (2001)<br />

afirma que a alusão é criadora do movimento ir, vir e devir, que é o<br />

movimento da contradição inerente à fenomenologia dialética.<br />

Hegel (Apud TORGA, 2001, p. 10) traz para a filosofia a concepção<br />

de dialética em que a contradição se constitui o motor do<br />

pensamento. É por ela que o pensamento, e a história se realizam<br />

como processo, como movimento – movimento dos contrários.<br />

E, é este o movimento dialético do ir e vir, movimento da não<br />

linearidade que consiste o jogo alusivo em Ciganos, que apresenta os<br />

fenômenos que contém o movimento que releva a essência e esta por<br />

sua vez, contém, dialeticamente o fenômeno.<br />

Para Kosik (1995, p. 16) captar o fenômeno de determinada<br />

coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta<br />

naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde. Compreender<br />

o fenômeno é atingir a essência.<br />

Os fragmentos a seguir demonstram como se dá o movimento<br />

de sentido da alusão na perspectiva da fenomenologia dialética.<br />

Essa maneira milenar que os ciganos tinham de estar no mundo –<br />

nascendo em cada chegada e morrendo em cada partida – incomodava os<br />

habitantes da cidade, sempre a perseguirem o eterno. (p. 2)<br />

A emoção se misturava: de um lado o recado dos céus e do outro a<br />

realidade dos gitanos. Essa dúvida se tornava o sossego da cidade. (p. 3)<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

5


Nascia assim de repente como a morte, uma vila colorida que se aninhava<br />

naquele povoado antigo. (p. 2)<br />

Nos exemplos destacados podemos perceber a fenomenologia<br />

dialética como em “nascendo em cada chegada e morrendo a cada<br />

partida” é nítida, neste trecho, a contradição entre o “nascer” da chegada<br />

dos ciganos conota-se a alegria que a cidade sentia e o “morrer”<br />

na partida pelo vazio e tristeza que eles deixavam, mais adiante<br />

“nascia assim de repente como a morte, uma vila colorida”, a morte<br />

aqui assume um valor de vida pelo renascer da vila com a chegada<br />

dos ciganos.<br />

O movimento fenomenológico dialético do jogo alusivo se dá<br />

exatamente no jogo luz/sombra/luz presente no fenômeno e na teoria.<br />

Ou seja, no fenômeno há a presença da teoria e nela a presença do<br />

fenômeno. Assim ao se falar em “nascendo a cada chegada e morrendo<br />

a cada partida” o movimento de chagar já alude à partida que<br />

há em si o movimento daquele que chegou.<br />

Há também a presença do sagrado e do profano “de um lado o<br />

recado dos céus e do outro a realidade dos gitanos”<br />

Eles deixaram a Índia, alguns diziam, em busca de um caminho para<br />

se chegar ao sol. Escutei de outros que eram filhos das grandes florestas<br />

e procuravam uma passagem para as minas de ouro do rei Salomão. (p.<br />

1)<br />

Neste excerto percebemos a construção mitológica em torno<br />

dos ciganos, de que constituem um povo nômade sempre em busca<br />

de riquezas, que não se fixam em nenhum lugar, por isso causam curiosidades<br />

onde chagam. De maneira geral, pouco se sabe sobre sua<br />

cultura, a sua origem, a sua história e a razão de serem como são;<br />

festeiros, amantes do canto e da dança, das roupas coloridas, dos hábitos<br />

ruidosos e do desejo de liberdade. Tudo isso instigava a curiosidade<br />

de todos e do menino-narrador adulto que queria ser levado<br />

por eles.<br />

A metáfora “caminhos para se chegar ao sol” indicia esse desejo<br />

de ir além dos limites, de explorar lugares para se chegar ao<br />

“sol” ao brilho, às contemplações de alegria e felicidade. Daí o mito<br />

de ser o povo cigano alegre, festeiro. Alude, ainda, à lenda do Rei<br />

Salomão, personagem bíblico que sendo rei de Israel acumulou mui-<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

6


tas riquezas em seu reinado através da exploração de riquezas do<br />

Mediterrâneo.<br />

Nos escritos bíblicos do velho testamento Salomão é um dos<br />

reis mais exaltados pela sua riqueza e sabedoria.<br />

Todas as taças que o rei Salomão usava para beber eram de ouro, e<br />

toda a baixela do salão da floresta era também de ouro puro... E o rei Salomão<br />

superou em riqueza e sabedoria todos os reis da terra. Todo mundo<br />

queria visitar Salomão, para aprender a sabedoria que Deus lhe havia<br />

dado. Cada um trazia seus presentes: vasilhas de prata e ouro, roupas,<br />

armas e aromas, cavalos e mulas. (10 Rs, 21-25, p. 380)<br />

O fascínio provocado pelo esplendor da riqueza do rei Salomão<br />

nos remete à memória social que nos faz pensar que o povo cigano<br />

está sempre também em busca de riquezas, do ouro. Este não<br />

deixa de estar presente na vida deles que sendo nômades acumulam<br />

suas riquezas de maneira portátil.<br />

Era o amarelo a cor preferida dos ciganos. Eles amavam o sol, o ouro,<br />

o cobre. Enfeitavam-se com ouro nos dedos, nos dentes, nas orelhas,<br />

nos braços. (p. 8)<br />

O fragmento abaixo revela o desejo do menino-narrador adulto<br />

de também explorar sua vida, de “ler a linha do horizonte” de ir<br />

além, de desvendar mistérios, de buscar outras possibilidades de vida.<br />

Essa seria sua maior riqueza.<br />

Lembro-me, contudo, de seu primeiro segredo:desejo escondido de<br />

ler a linha do horizonte e desvendar o mistério que diziam além dos mares<br />

e das montanhas. (p. 1)<br />

Cabe ao leitor tornar-se nômade para transitar entre as duas<br />

histórias; a dos ciganos e a do menino. É ele o leitor empírico que<br />

vestido de leitor – modelo fará ou não o jogo alusivo. Isso se dá no<br />

momento em que se percebe a construção do discurso com o movimento<br />

do ir, vir e devir que une as duas histórias e faz perceber como<br />

os ciganos constroem no imaginário social o desejo de adquirir riquezas<br />

e liberdade, por isso estão sempre transitando e o desejo do<br />

menino de sair de seu lugar comum aludindo à vida dos ciganos.<br />

Para Torga (2001, p. 19) o texto vai, na sua significação, além<br />

do trabalho significante do autor. "Compreender uma obra é, assim,<br />

compreendê-la enquanto mediatizada pelas relações sociais, pela lin-<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

7


guagem, ou enfim, pelas relações autor-leitor, pela linguagem, pela<br />

alusão”.<br />

A presença dos ciganos mudava o ritmo de ser da cidade. Portas eram<br />

cerradas, roupas não dormiam em varal, nem cavalos soltos nos pastos.<br />

(p. 2)<br />

Com a chegada dos ciganos o medo passava a ser companheiro dos<br />

meninos: isto por contarem que cigano roubava criança. E, como ninguém<br />

sabia de onde viam ou para onde iam, as crianças ficariam perdidas<br />

para sempre. (p. 6)<br />

Ah, ser roubado era o mesmo que ser amado. Ele sentia que só roubamos<br />

o que nos faz falta. E ele como – gostaria de ser a ausência, mesmo<br />

dos ciganos... (p. 7)<br />

Aqui nota-se a de sentimentos antagônicos em relação ao povo<br />

cigano; primeiro temos os medos e a insegurança perante o povo<br />

cigano “a presença dos ciganos mudava o ritmo de ser da cidade”. O<br />

medo surgiu como mito construído em torno de um imaginário coletivo<br />

social de que ciganos roubam objetos de, que não são pessoas<br />

confiáveis, que são “diferentes”, pois têm uma cultura ímpar que não<br />

é comparada a nenhum outro povo. Até mesmo as crianças são influenciadas<br />

por esse discurso, principalmente quando os adultos lhe dizem<br />

que ciganos roubam menino, “Com a chegada dos ciganos o<br />

medo passava a ser companheiro dos meninos” (p. 6)<br />

Segundo, temos curiosamente o sentimento do menino de<br />

querer ser roubado pelos ciganos “Ah, ser roubado era o mesmo que<br />

ser amado”. Mas de onde vem esse desejo? Por que um menino gostaria<br />

de ser “roubado” pelos ciganos? É aqui que percebemos que o<br />

mito dos ciganos é uma alusão ao preenchimento das faltas do menino-narrador<br />

adulto. Se o povo cigano é alegre, festeiro, unido entre<br />

si, só eles poderiam preencher os vazios que há em um menino que<br />

convive com a perda da mãe, a indiferença do pai e a falta de amor<br />

da família.<br />

Ninguém sabia, nem as sábias ciganas, que morrer cedo era a sorte<br />

de sua mãe, mas assim foi. Ela partiu numa madrugada, neste momento<br />

frágil que nem mesmo a natureza se define. (p. 4)<br />

Foi do seu pai que ele herdou essa mania calada, esse jeito escondido<br />

e mais a saudade de coisas que ele não conhecia nem imaginava. Sua<br />

vontade de partir veio, porém, do desamor. Tudo em casa já andava ocu-<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

8


pado: as cadeiras, as camas, os pratos, os copos. Mesmo o carinho distribuído.<br />

(p. 3)<br />

Por seguidas vezes a sua solidão se misturava aos ruídos do chicote<br />

do pai, nas costas. E desse surpreendente dueto também ele não sabia a<br />

dor maior, se da carne ou a do coração. (p. 3)<br />

Ah, ser roubado era o mesmo que ser amado. Ele sentia que só roubamos<br />

o que nos faz falta. E ele – como gostaria de ser ausência, mesmo<br />

dos ciganos... (p. 7)<br />

Para um menino, assim só, os ciganos eram uma espécie de sol que<br />

acordava os afetos. (p. 8)<br />

Mas esta raça colorida, que roubava até o sono das crianças, se convertia<br />

em esperança para aquele menino contido. (p. 7)<br />

Na construção gráfica do livro há uma linha que divide as duas<br />

histórias; a dos ciganos e a do menino. Assim no desenvolver da<br />

narrativa os dois discursos vão se entrelaçando em forma de espiral;<br />

acima da linha a história dos ciganos aparece de forma mitológica<br />

que conduz o leitor à história do menino-narrador adulto. Abaixo da<br />

linha gráfica por sua vez alude à história dos ciganos acima da linha<br />

gráfica. E este o movimento fenomenológico-dialético da alusão às<br />

partes compondo o todo e o todo levando as partes.<br />

Era o amarelo a cor preferida dos ciganos. Eles amavam o sol, o ouro,<br />

o cobre. Enfeitavam-se com ouro nos dedos, nos dentes, nas orelhas,<br />

nos braços. (p. 8)<br />

A simbologia do amarelo alude à cor do ouro, do cobre que<br />

são metonimicamente as partes que compõe o todo que metaforicamente<br />

a riqueza. E, é também a cor amarela que representa o sol que<br />

é uma alusão à ação de aquecer, que é uma alusão ao afeto, este a<br />

maior riqueza do menino.<br />

Para um menino, assim só, os ciganos eram uma espécie de sol que<br />

acordava os afetos. E era tanto o amor, que muitas vezes ele duvidava de<br />

tudo, pensava ser um cigano em porta de família alheia. (p. 8)<br />

Desta maneira o menino-narrador, voz do autor empírico, do<br />

livro Ciganos alude em sua narrativa outros discursos que precisam<br />

ser recuperados pelo leitor.<br />

Em Ciganos o jogo alusivo constitui o cerne do discurso, sem<br />

ele o leitor empírico que não esteja vestido de leitor-modelo não<br />

desvendar as possibilidades de movimento de sentido do texto. Para<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

9


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

10<br />

Eco (1994 p. 22) O leitor-modelo é um conjunto de instruções textuais<br />

apresentadas pela manifestação linear do texto precisamente como<br />

um conjunto de frases ou de outros sinais.<br />

Adornado a mesa da sala da casa desse menino, havia um caramujo.<br />

Feito de um rosa quase branco e brilhante como o vazio, ele tinha a superfície<br />

lisa como pedra enrolada.<br />

Sempre que os ciganos surgiam, armava no coração do menino a<br />

vontade de ter sempre esse caramujo sobre o ouvido. É que ele trazia enrolado<br />

sob sua forma, o barulho das ondas do mar. Mas que existia depois<br />

das montanhas, atrás da linha do horizonte, mas que o caramujo<br />

mantinha como um recado ou uma saudade, fielmente. (p. 2)<br />

Outros falavam que vinham das terras de Espanha ou das areias de<br />

Portugal. Cortaram o mar, guiados pelo brilho das escamas de sereias,<br />

escondidos na noite.<br />

Sem saber ao certo de onde vinham ou para onde iam, sei que os ciganos<br />

surgiam. (p. 1)<br />

Os ciganos deixavam a cidade e nem sempre desavisadamente. Enquanto<br />

dobravam as lonas, os tapetes, as sedas, empilhavam o cobre, o<br />

menino recolhia sua esperança escondido em roupas dos varais.<br />

No dia seguinte restos de cinzas marcariam a presença dos ciganos.<br />

Engolido pelas noites, ele se punha a pensar no caminho daqueles<br />

gitanos vindos da Índia, das terras de Espanha e das areias de Portugal.<br />

Mas nem eles, capazes de roubos, o desejavam.<br />

Então o silêncio se instalava, frágil e rígido como vidro. (p. 11)<br />

Não faz muito, encontrei esse menino. Estava alheio como antes da<br />

chegada ou depois da partida dos ciganos.<br />

Ele passeava entre fadas, conchas, pássaros e domingos. Tentei por<br />

outra vez adivinhar seu pensamento. Vi que seu coração já não anda farto<br />

de desejos. Como caramujo, enrolado sobre si mesmo, ele imaginava viagens<br />

a lugares que só existem muito depois das nuvens. (p. 12)<br />

Os enunciados acima denotam que o jogo alusivo está justamente<br />

nos sinais que o autor-modelo proporciona para que o leitormodelo<br />

compreenda que o texto é uma máquina preguiçosa, pedindo<br />

ao leitor que faça a parte do seu trabalho, Eco (1994, p. 9).<br />

Em “Sempre que os ciganos surgiam, armava no coração do<br />

menino a vontade de ter sempre esse caramujo sobre o ouvido” percebemos<br />

que metaforicamente o caramujo alude ao sentimento de<br />

solidão de introspecção do menino, por isso "É que ele trazia, enro-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

11<br />

lado sob sua forma, o barulho das ondas do mar”. E, o mar nos alude<br />

aos caminhos que provavelmente os ciganos percorriam para chegar<br />

a vila que o menino morava. "Cortaram o mar guiados pelo brilho<br />

das escamas de sereias, escondidos na noite.” Quando os ciganos<br />

deixavam aquele lugar o menino voltava de novo para dentro de si,<br />

para suas faltas e seu vazio interior “Então o silêncio se instalava,<br />

frágil e rígido como vidro”, assim “como caramujo, enrolado sobre si<br />

mesmo, ele imaginava viagens a lugares que só existem muito depois<br />

das nuvens.”<br />

Os sinais que são partes, vão indiciando fragmentariamente, a<br />

constituição do sentido de certo todo na obra.<br />

2.1. Da metáfora<br />

As metáforas no dizer de Harries (1992, p. 87) falam daquilo<br />

que está ausente. Toda metáfora que é mais do que uma abreviação<br />

de uma linguagem mais direta acena para aquilo que transcende a<br />

linguagem ou ainda para Torga (2001, p. 46), a metáfora, é a parte<br />

que é produzida para ser equivalente ao todo, de forma que a relação<br />

todo/parte possa ser vista pretensamente na condensação do todo.<br />

Para Gagnebin (1997 apud TORGA, 200, p. 45), a ação metafórica<br />

é uma relação entre dois elementos da linguagem, ou seja, a<br />

possibilidade de transpor para uma coisa o nome de outra coisa.<br />

Ou ainda como afirma (TORGA, 2001, p. 45), “a metáfora,<br />

pela condensação, atuaria na linha da reprodução da relação todo/parte,<br />

a parte se identificaria com o todo.”<br />

No corpus analisado nossa atenção está voltada também para<br />

as metáforas, numa tentativa de desvelar o processo de construção<br />

desse jogo semiolinguístico da alusão de sentido e/ou expressões.<br />

São as experiências, as vivências que forjam o leitor, que lhe permitem<br />

alcançar (ou não) o projeto do autor e do narrador.<br />

Assim em Ciganos as metáforas vão formando o todo que alude<br />

às partes que, por sua vez são da ordem da metonímia. A força<br />

da metáfora no jogo alusivo depende basicamente de nossa incerteza,


da capacidade de deixar o interlocutor oscilando entre dois significados.<br />

Nos exemplos abaixo podemos perceber como se dá essa<br />

formação:<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

12<br />

Para um menino, assim só, os ciganos eram uma espécie de sol que<br />

acordava os afetos. (p. 8)<br />

O sol nos remete ao poder que ele tem de aquecer, o que é<br />

metaforicamente ligado ao afeto. Aquele que possui afeto está aquecido.<br />

E, o menino queria ser parte dos ciganos uma vez que ele acreditava<br />

que somente os ciganos poderiam preencher sua falta de amor.<br />

Por muitas vezes o sino da igreja se integrava às batidas dos martelos,<br />

e desse surpreendente dueto a cidade, como a poesia, ficava indefinida.<br />

(p. 3)<br />

O sino da igreja enquanto parte e as batidas dos martelos<br />

também enquanto parte constituem metonímias que aludem ao todo.<br />

O sino vindo da igreja anuncia aquilo que é da dimensão do sagrado,<br />

enquanto que as batidas do martelo anunciam para muitos um ritual<br />

profano dos ciganos.<br />

A cidade tornava-se indefinida com esse dueto, pois se de um<br />

lado o sagrado os convidava para os rituais religiosos, do outro os<br />

ciganos os seduziam para os rituais profanos. Tanto um quanto o outro<br />

aludem ao mesmo preenchimento das lacunas, das faltas, do não<br />

afeto da espiritualidade, da festividade, do trabalho dos ciganos.<br />

A emoção se misturava: de um lado o recado dos céus e do outro a realidade<br />

dos gitanos. Essa dúvida se tornava o sossego da cidade. (p. 3)<br />

O jogo alusivo é marcado neste fragmento de um lado como o<br />

céu sendo o lugar do sagrado, do mistério da purificação, do não pecador,<br />

de serem homens merecedores da alegria, do bem estar. Do<br />

outro lado a realidade dos gitanos, do mistério, das fantasias, das festas,<br />

do profano. Mas também da purificação.<br />

Nascia assim de repente como a morte, uma vila colorida que se aninhava<br />

naquele povoado antigo. (p. 2)<br />

A vila, metaforicamente renascia, ou seja, os moradores voltavam<br />

a ter alegria com a presença dos ciganos que eram promessa<br />

de mistério, fantasias, festas.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

13<br />

Nos fragmentos que se seguem, percebemos, como o jogo alusivo<br />

ocorre nas relações do menino-narrado adulto, seu meio familiar<br />

e o mundo social dos ciganos: o povo cigano é conhecido como<br />

um povo nômade, sem endereço fixo, que vive de chegadas e partidas,<br />

sem uma definição na vida, tendo como ponto forte a noção de<br />

pecadores, de ladrões, de perigosos, de perdidos na vida. Aqueles<br />

que faziam parte do grupo, as mulheres de roupas longas e coloridas,<br />

os homens com um modo singular de agir, aqueles que com sua chegada<br />

provocavam desejos escondidos nas pessoas daquele lugar e<br />

despertava o sonho do menino de ser levado por eles. O mistério que<br />

a presença deles provocava é, metaforicamente, uma alusão à liberdade,<br />

ao despertar dos desejos escondidos em respeito a religiosidade,<br />

ao afeto , às faltas interiores que os ciganos preenchiam em cada<br />

um daqueles lugares por onde andavam.<br />

Eles deixaram a Índia, alguns diziam, em busca de um caminho para<br />

se chegar ao sol. Escutei de outros que eram filhos das grandes florestas<br />

e procuravam uma passagem para as minas de ouro do rei Salomão. (p.<br />

1)<br />

Nascia assim de repente como a morte, uma vila colorida que se aninhava<br />

naquele povoado antigo. (p. 2)<br />

Eles devem ter inventado a festa, a cor, a forma do circo. (p. 9)<br />

Nas noites, forte de música saía das cabanas e, percorrendo a cidade,<br />

invadindo ouvidos, promovia sonhos. (p. 7)<br />

Assim, revelando desejos, confirmando anseios, realizando fantasias,<br />

os ciganos passavam a ser silenciosamente amados. (p. 5)<br />

Por seguidas vezes a sua solidão se misturava aos ruídos do chicote<br />

do pai nas costas. E desse surpreendente dueto também ele não sabia a<br />

dor maior, se a da carne ou a do coração. (p. 3)<br />

[...] Ele comungava a vontade de fazer de fazer-se atraído pelos ciganos<br />

e ser roubado por eles. Ah, ser roubado era o mesmo que ser amado<br />

e ele sentia que só roubamos o que nos faz falta. E ele - como gostaria<br />

de ser ausência, mesmo dos ciganos. (p. 7)<br />

Os fragmentos acima contêm no nosso entender, exemplos do<br />

jogo alusivo em Ciganos de Bartolomeu Campos de Queirós.<br />

O título já nos alude ao mito “ciganos” povo de origem desconhecida,<br />

que chega a causar medo, mas que sempre despertaram a


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

14<br />

curiosidade, o fascínio pelo desconhecido e também o desejo de espiar<br />

mais longe e desvendar os mistérios além dos mares e oceanos.<br />

Para Torga (2001, p. 19) O texto vai além, na sua significação,<br />

além do trabalho significante do autor. Compreender uma obra<br />

é, assim, compreendê-la enquanto mediatizada pelas relações sociais<br />

pela linguagem, ou enfim, pelas relações autor-leitor, pela alusão.<br />

Assim, revelando desejos, confirmando anseios, realizando fantasias,<br />

os ciganos passavam a ser silenciosamente amados. (p. 5)<br />

2.2. Da memória discursiva<br />

Em Ciganos de Bartolomeu Campos de Queirós percebemos<br />

que o discurso é uma prosa-poética construída com a memória.<br />

Para Halbwachs (Apud DAVALLON, 1999) a memória é caracterizada<br />

como o que ainda é vivo na consciência do grupo e para a<br />

comunidade.<br />

É o rememorar através das imagens, das experiências do passado:<br />

imagens dos ciganos; de seus costumes, das festas, do sagrado,<br />

do profano, dos sonhos, das faltas, que vão possibilitando ao leitor<br />

vestido de leitor-modelo e ao autor vestido de autor-modelo a construção<br />

do mosaico que é o livro Ciganos.<br />

Segundo Goff (Apud TORGA, 2001, p. 53), nas sociedades<br />

sem escrita cabia aos homens – memória ou aos membros mais velhos<br />

das comunidades serem os guardiões da memória. A memória<br />

coletiva se organiza em torno de três grandes interesses: o mito, o<br />

prestígio das famílias dominantes (genealogia) e o saber profissional<br />

ligado à magia religiosa.<br />

Os conceitos de memória se fazem necessários, pois entendemos<br />

que ela constitui uma das categorias da alusão em Ciganos.É<br />

ela, a memória, que permite resgatar o imaginário social do povo cigano<br />

e possibilitar o ir e vir do discurso na obra.<br />

No dizer de Brandão (Apud TORGA, 2001, p. 68) a memória<br />

discursiva é que torna possível toda a formação discursiva fazer circular<br />

formulações anteriores já anunciadas.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

15<br />

E de rua em rua, de porta em porta, elas se ofereciam para ler o destino<br />

que diziam oculto na palma de todas as mãos. Contavam ainda que a<br />

mão era uma cartilha que elas aprenderam a decifrar com os egípcios, há<br />

muitos e muitos séculos. (p. 4)<br />

E nas mãos que a cidade timidamente oferecia, estas ciganas – tiradoras<br />

de sorte – liam futuros cheios de amor e fortuna. Diziam de longas<br />

viagens e de terras desconhecidas. Falavam de um rapaz louro ou de uma<br />

rapariga morena que completaria a felicidade de cada um. Previam casamentos<br />

muito em breve e com muitos filhos. Viam um sinal de pequeno<br />

desgosto, mas a vida, esta seria longa e cheia de aventuras. (p. 5)<br />

Os fragmentos citados aludem ao discurso mitológico de que<br />

as ciganas são tiradoras de sorte, adivinhas, conseguem prever o futuro<br />

e para muitos profetizar significar blasfemar ir contra o sagrado.<br />

Desta maneira socialmente muitas ciganas causam estranheza, medo,<br />

onde chegam por prever o futuro. Assim ao longo da história foram<br />

rotuladas como feiticeiras, amaldiçoadas. No entanto, para a comunidade<br />

cigana a prática da quiromancia não é um mero sistema de adivinhação,<br />

mas, acima de tudo um inteligente esquema de orientação<br />

sobre o corpo, a mente e o espírito; sobre a saúde e o destino.<br />

O povo cigano pelo seu modo singular de estar no mundo<br />

causa curiosidade, medo, fascínio. A razão da diáspora dos ciganos<br />

ainda não é de todo conhecida, restando, portanto, apenas hipóteses.<br />

Mas o imaginário social criou conclusões de que o povo cigano é aventureiro,<br />

mau, ladrão e é isso que é repassado até hoje pelo mundo.<br />

A presença dos ciganos mudava o ritmo de ser da cidade. Portas eram<br />

cerradas, roupas não dormiam em varal, nem cavalos soltos nos pastos.<br />

(p. 2)<br />

O livro Ciganos nos convida ao sentimento despertado no<br />

menino que gostaria de ser roubado pelos ciganos contrariando o mito<br />

social. É a “cartilha” dos ciganos que o menino-narrador adulto<br />

quer decifrar.<br />

Por tantas vezes ele quis oferecer sua mão às ciganas, mas recusava,<br />

explicando para si mesmo que mão de menino não tem leitura, as linhas<br />

não são definidas. (p. 5)<br />

Mas seu primeiro amor foi Lili. Ela era feita de papel, impresso na<br />

cartilha, mas que lhe permitia repetir ao avesso: Lili, olhe para mim. Mas<br />

também ela continuava de olha fixo sem o ensinar a decifrar a linha do<br />

horizonte ou a descobrir o que imaginava escondido atrás dos mares. (p.<br />

5)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

16<br />

Em “Mas seu primeiro amor foi Lili. Ela era feita de papel,<br />

impresso na cartilha”, o menino-narrador fala de um tempo passado,<br />

que nos alude a um dos lugares da socialização: a escola, já que a<br />

Cartilha, “O livro de Lili” era uma cartilha que seguia o Método<br />

Global de alfabetização, desde a década de 30 até meados na década<br />

de 60. Mas esta “cartilha” não ajudava o menino a decifrar o mundo<br />

“Mas também ela continuava de olha fixo sem o ensinar a decifrar a<br />

linha do horizonte ou a descobrir o que imaginava escondido atrás<br />

dos mares”.<br />

Um pensamento feliz invadia, raras vezes, o menino, que passava<br />

então a construir histórias. Seria roubado pelos ciganos e o pai partiria<br />

para resgatá-lo. Ofereceria recompensa, mesmo pouca, pediria rezas. E<br />

como todos os meninos ele voltaria para casa e se amedrontaria com os<br />

ciganos. Adotado, esqueceria o caramujo sobre a mesa, e pelas mãos do<br />

pai percorreria a vida e dormiria nas madrugadas. Herdaria o mesmo<br />

ofício e como o pai andaria estradas. Cansados repousariam os talheres<br />

e viveriam em si silencioso afeto (grifo nosso). (p. 10)<br />

A passagem acima nos remete a um sonho do meninonarrador<br />

adulto, pois ele gostaria de ser “roubado” pelos ciganos pela<br />

falta de afeto do pai e gostaria de ser “adotado” por esse mesmo pai.<br />

Aqui aludimos essas faltas ao discurso psicanalítico, pois a ausência<br />

de amor do pai, a não presença da mãe o levava a fantasiar exílios, e<br />

estes encontravam espaço na comunidade cigana, sempre alegre e<br />

unida “Ah, ser roubado era o mesmo que ser amado. Ele sentia que<br />

só roubamos o que nos faz falta. E ele – como gostaria de ser ausência,<br />

mesmo dos ciganos...” (p. 7). Mas ao ser resgatado pelo pai<br />

como todos os meninos ele voltaria para casa e se amedrontaria com os<br />

ciganos. Adotado, esqueceria o caramujo sobre a mesa, e pelas mãos do<br />

pai percorreria a vida e dormiria nas madrugadas. Cansados repousariam<br />

os talheres e viveriam em si silencioso afeto.<br />

A narrativa é convidativa, como é a alusão que possibilita<br />

capturar fragmentariamente a coisa e levar ao leitor-empírico a vestir-se<br />

se leitor-modelo e compor o mosaico que é a obra.<br />

3. Conclusão<br />

Tendo como corpus da pesquisa o livro “Ciganos” de Bartolomeu<br />

Campos de Queirós preocupou-se em investigar: quem é o lei-


tor-modelo do autor-modelo do livro Ciganos de Bartolomeu Campos<br />

de Queirós?<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

17<br />

Indagação que só foi possível ser respondida após a leitura da<br />

teoria da alusão proposta por Torga (2001), assim traçamos como hipótese:<br />

Que o leitor-modelo do autor-modelo do livro Ciganos é aquele<br />

que faz o jogo alusivo com as metáforas.<br />

Considerando que “a alusão é perturbadora, sutil, criadora do<br />

movimento de ir, vir, devir, porque exige do leitor um compromisso<br />

com a construção da narrativa, que tem uma história e precisa por ele<br />

ser reconstruída mnemonicamente, pela cooperação” (TORGA,<br />

2001, p. 10), é que foi possível ter um suporte teórico que desse conta<br />

da análise do corpus.<br />

Escrever uma monografia bibliográfica tendo como principal<br />

pesquisa o corpus Ciganos e a teoria da alusão como principal marco<br />

teórico foi pertinente porque ratificou nossa hipótese. Muito angustiava<br />

saber que o conceito proposto por Paulino (1994) era de que a<br />

alusão é um tipo fraco de intertextualidade.<br />

Em Ciganos percebemos como a narrativa se constrói a partir<br />

de duas histórias; a dos ciganos e a do menino-narrador adulto. E que<br />

nós enquanto leitoras e investigadoras tivemos que transitar pelas<br />

histórias e assim como os ciganos nos tornamos nômades alusivos<br />

para compor as partes que dão conta do todo da obra.<br />

Fazer as alusões presentes na narrativa nos possibilitou “ ler a<br />

linha do horizonte e desvendar os mistérios...”, já que a obra é uma<br />

prosa-poética e nos convida para desvendar com as metáforas, as entrelinhas,<br />

como bem disse Clarice Lispector “ o melhor não está nas<br />

linhas, o melhor está nas entrelinhas”.<br />

A leitura com a alusão permite formar um certo todo da obra<br />

a partir de fragmentos que conduzem a outros:<br />

Eles deixaram a Índia, alguns diziam, em busca de um caminho para<br />

se chegar ao sol. Escutei de outros que eram filhos das grandes florestas<br />

e procuravam uma passagem para as minas de ouro do rei Salomão. (p.<br />

1)<br />

O fragmento acima alude ao livro As Minas do Rei Salomão<br />

que por sua vez é uma alusão ao Rei bíblico Salomão.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

18<br />

Mas seu primeiro amor foi Lili. Ela era feita de papel, impresso na<br />

cartilha, mas que lhe permitia repetir ao avesso: Lili, olhe para mim. Mas<br />

também ela continuava de olha fixo sem o ensinar a decifrar a linha do<br />

horizonte ou a descobrir o que imaginava escondido atrás dos mares. (p.<br />

5)<br />

Há também alusão a fragmentos de outros textos e a seus próprios<br />

textos, quando remete não apenas do discurso pedagógico da<br />

cartilha – Lili, mas também do seu livro Ler, Escrever e Fazer Conta<br />

de Cabeça: “Se queria dizer ‘eu gosto de doce’ com o a Lili que olhava<br />

para mim, ficava assim: ‘ou geste muare do deco’.”<br />

Também os fragmentos abaixo aludem ao mito dos ciganos<br />

construído pelo imaginário social.<br />

Com a chegada dos ciganos o medo passava a ser companheiro dos<br />

meninos: isto por contarem que cigano roubava criança. E, como ninguém<br />

sabia de onde viam ou para onde iam, as crianças ficariam perdidas<br />

para sempre. (p. 6)<br />

A presença dos ciganos mudava o ritmo de ser da cidade. Portas eram<br />

cerradas, roupas não dormiam em varal, nem cavalos soltos nos pastos.<br />

(p. 2)<br />

E nas mãos que a cidade timidamente oferecia, estas ciganas – tiradoras<br />

de sorte – liam futuros cheios de amor e fortuna. Diziam de longas<br />

viagens e de terras desconhecidas. Falavam de um rapaz louro ou de uma<br />

rapariga morena que completaria a felicidade de cada um. Previam casamentos<br />

muito em breve e com muitos filhos. Viam um sinal de pequeno<br />

desgosto, mas a vida, esta seria longa e cheia de aventuras. (p. 5)<br />

O desenvolvimento deste trabalho mostrou que foi possível<br />

uma análise tendo a alusão como estratégia de leitura do livro Ciganos.<br />

E que outros livros também podem ser melhor analisados a partir<br />

desta estratégia.<br />

Como bem ensina Bartolomeu Campos de Queirós é preciso<br />

“...destramelar as janelas e espiar mais longe...”<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ACHARD, Pierre et al. Papel da memória. Trad. J. H. Nunes. Campinas:<br />

Pontes. 1999.


BOSI, Ecleá. Memória e sociedade – lembranças de velhos. São<br />

Paulo: Cia. das letras, 1998.<br />

STORNILO, Ivo. Trad. A bíblia sagrada.São Paulo: Paulus, 1998.<br />

ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Trad. Feist,<br />

Hildegard. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.<br />

HAGGARD, Henry. As minas do Rei Salomão. Trad. Jean Melville.<br />

São Paulo: Martin Claret, 2003.<br />

ISER,Wolfgang. A interação do texto com o leitor. Trad. Luiz Costa<br />

Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.<br />

LAURENT, Jenny. Intertextualidades. Coimbra: Almedina, 1979.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

19<br />

LYOTARD. Jean François. A fenomenologia. São Paulo: Difusão do<br />

Livro, 1967.<br />

PAULINO, Graça, WALTY, Ivete, CURY, Maria Zilda. Intertextualidades;<br />

teoria e prática. Belo Horizonte: Lê, 1995.<br />

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Trad. Célia Neves e Alderico<br />

Toríbio. São Paulo, 1995.<br />

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Ciganos. 12. ed. Belo Horizonte:<br />

Miguilim, 1999.<br />

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Ler, escrever e fazer conta de cabeça.<br />

2. ed. Belo Horizonte: Miguilim, 1994.<br />

TORGA, Vânia Lúcia Menezes. O movimento de sentido da alusão:<br />

Uma estratégia textual da leitura de Ler, Escrever e Fazer Conta de<br />

Cabeça, de Bartolomeu Campos de Queirós. Dissertação (Mestrado<br />

em Estudos Linguísticos) – faculdade de Letras, Universidade Federal<br />

de Minas Gerais, 2001.


A APLICAÇÃO DO ESTUDO<br />

DO CÓDIGO BIBLIOGRÁFICO<br />

NAS EDIÇÕES DO SÉCULO XIX DE PAPÉIS AVULSOS<br />

DE MACHADO DE ASSIS<br />

Fabiana da Costa Ferraz Patueli (UFF)<br />

patueli@click21.com.br<br />

[...] Avulsos são êles mas não vieram para aqui<br />

como passageiros que acertam de entrar na<br />

mesma hospedaria. São pessoas de uma só<br />

família que a obrigação do pae fez sentar à<br />

mesma mesa (ASSIS, 1882, I).<br />

O presente trabalho tem como pretensão expor o resultado final<br />

da Defesa de Projeto de Mestrado e os caminhos que foram tomados<br />

na elaboração da Dissertação de Mestrado em Letras, Subárea<br />

em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura, área de concentração<br />

em Estudos de Literatura, na Universidade Federal Fluminense –<br />

UFF, sob a orientação da Professora Doutora Ceila Maria Ferreira<br />

Batista Rodrigues Martins.<br />

Primeiramente, não podemos deixar de relatar que a presente<br />

pesquisa iniciou após os estudos dos quais participei, realizados desde<br />

o ano de 2006, no Laboratório de Ecdótica – LABEC da Universidade<br />

Federal Fluminense – UFF, a fim de se elaborar uma edição<br />

crítica da obra Papéis Avulsos de Machado de Assis. Tendo em vista<br />

que os contos que compõe Papéis Avulsos, bem como suas respectivas<br />

publicações no século XIX são: “O Alienista”, em A Estação<br />

(15/10/1881 a 15/03/1882); “Teoria do Medalhão”, em Gazeta de<br />

Noticias (18/12/1881); “A Chinela Turca”, em A Épocha<br />

(14/11/1875); “Na Arca”, em O Cruzeiro (14/05/1878); “D. Benedicta”,<br />

em A Estação (15/04/1882 a 15/06/1882); “O Segredo do<br />

Bonzo”, na Gazeta de Noticias (30/04/1882); “O Anel de Polycrates”,<br />

na Gazeta de Noticias (02/07/1882); “O Empréstimo”, na Gazeta<br />

de Noticias (30/07/1882); “A Sereníssima República”, na Gazeta<br />

de Noticias (20/08/1882); “O Espelho”, na Gazeta de Noticias<br />

08/09/1882; “Uma visita de Alcibíades”, no Jornal das Famílias


(outubro de 1876) e na Gazeta de Noticias (01/01/1882); e “Verba<br />

Testamentária”, em Gazeta de Noticias (08/10/1882).<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

21<br />

Assim, essa Dissertação de Mestrado se desenvolveu a partir<br />

do objetivo geral de contribuir para a preservação do patrimônio cultural<br />

brasileiro e para a divulgação da Crítica Textual de autores modernos.<br />

Haja vista o autor Machado de Assis, que assim consideramos,<br />

destaca o ser humano em todos os contos do livro Papéis Avulsos.<br />

Os Papéis Avulsos se destacam, sobretudo, pelo aprofundamento<br />

psicológico do ser humano, de sua condição social e suas necessidades<br />

interiores. Por meio da sátira, não só em um recorte individual,<br />

mas do individual para o coletivo, em que a sociedade se abre<br />

em leque, conforme Francisco Luís da Gama Rosa em comentário a<br />

publicação da edição em livro de Papéis Avulsos, na Gazeta da Tarde<br />

(Rio de janeiro), em 02 de novembro de 1882:<br />

[...] a sociedade é o que há de mais infame; toda essa gente está<br />

contaminada pelo vício e pelo crime […] Por toda parte pululam os<br />

medalhões, os pomadistas, os parasitas, os boêmios, os caloteiros, os<br />

trampolineiros de eleições, os cacetes autores de dramas, os ambiciosos<br />

sórdidos, os invejosos miseráveis... Vícios, infâmia, loucura são coisas<br />

que não existem individualmente porque são o apanágio da multidão [...]<br />

(MACHADO, 2003, p. 141).<br />

Para tal esboço, compuseram a Dissertação os seguintes capítulos<br />

e subcapítulos gerais: 1. INTRODUÇÃO; 2. PRESSUPOSTOS<br />

TEÓRICOS E METODOLOGIA; 3. O ESTUDO DO CÓDIGO BI-<br />

BLIOGRÁFICO DE PAPÉIS AVULSOS; 3.1. ANÁLISE DO CÓ-<br />

DIGO BIBLIOGRÁFICO NAS EDIÇÕES DOS CONTOS DE PA-<br />

PÉIS AVULSOS; 4. OS EDITORES OU TIPÓGRAFOS DOS CON-<br />

TOS DE PAPÉIS AVULSOS, NA SEGUNDA METADE DO SÉ-<br />

CULO XIX; e 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.<br />

O estudo dos códigos bibliográficos, sob qual entendemos aplicarmos,<br />

diz a respeito às distribuições textuais e de imagens, na<br />

tradição escrita, considerando as representações textuais, materializadas<br />

nas diferentes edições, produtoras de sentidos, cuja recepção<br />

pelo público leitor não podemos qualificar ou mensurar.<br />

Segundo Abel Barros Baptista, em Autobibliografias (2003:<br />

136), faz a seguinte ideia da qual nós concordamos:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

22<br />

[…] os traços tipográficos prolongam a escrita do texto e complementam<br />

a intenção do autor, pelo que, em última instância, todo o texto destinado<br />

à reprodução tipográfica prescreve a respectiva disposição pelo processo<br />

da própria constituição<br />

Em conformidade, também, com o autor Jerome J. McGann,<br />

em The Textual Condition (1991), os códigos bibliográficos são os<br />

elementos que compõem, por exemplo, a disposição textual em parágrafos<br />

e na própria página, exclusivas do sentido visual que há no<br />

impresso. Os responsáveis por tal composição são o autor, responsável<br />

pelo texto, e o editor, responsável, muitas vezes, pela escolha do<br />

suporte e da apresentação textual.<br />

Assim, os códigos bibliográficos, como elementos impressos,<br />

podem transmitir significados:<br />

Significações bibliográficas, por outro lado, chamam a atenção imediatamente<br />

para outros estilos e relações de troca simbólica que envolvem<br />

todos os eventos de linguagem. O significado é transmitido através<br />

de códigos bibliográficos, bem como os códigos linguísticos. […] (MC-<br />

GANN, 1991, p. 57, tradução nossa). 1<br />

No entanto, o suporte responsável pela comunicação textual<br />

se constitui como outro elemento que por si só desponta como um<br />

aspecto influenciador no processo de socialização do texto, apesar de<br />

não ser o único.<br />

Nessa pesquisa, observamos outros aspectos, por exemplo, os<br />

decorrentes da transposição dos veículos de comunicação e a tradição<br />

que permeia esse ato no final do século XIX. Posto que será necessário<br />

evocar o processo editorial e seus personagens que compartilham<br />

a responsabilidade com o autor do texto publicado: seja o editor,<br />

seja as tipografias, ou vice-versa.<br />

A metodologia de trabalho adotada consistiu na pesquisa e na<br />

análise dos periódicos em que foram publicados os contos que constituem<br />

Papéis Avulsos, bem como a publicação em livro, na segunda<br />

metade do século XIX, apurando a existência de relações entre: ilustrações,<br />

partituras musicais e demais interlocuções textuais.<br />

1 “Bibliographical signifiers, on the other hand, immediately call our attention to other styles and<br />

scales of symbolic exchange that every language event involves. Meaning is transmitted<br />

through bibliographical as well as linguistic codes. […]” (MCGANN, 1991, p. 57).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

23<br />

O confronto dos contos publicados em periódicos a realizado<br />

à edição em livro de 1882 dos Lombaerts rastreou algumas das alterações<br />

textuais, realizadas nos contos no processo de transposição<br />

para o livro. Como por exemplo, a mudança de nome de personagem<br />

nos contos que integram Papéis Avulsos, Crispim Soares um humilde<br />

industrial do Rio de Janeiro, na metade do século XIX, em “Verba<br />

Testamentária”, passa a Joaquim Soares por causa de outro conto<br />

publicado anteriormente em periódico “O Alienista” que tinha um<br />

personagem com o mesmo nome, Crispim Soares, um boticário da<br />

vila de Itaguaí.<br />

Por meio do estudo código bibliográfico realizado sob a obra<br />

Papéis Avulsos, pudemos constatar que nas publicações em periódicos,<br />

como por exemplo, do conto “O Alienista”, encontramos intercalando<br />

a publicação do capítulo, na A Estação, em 31 de dezembro<br />

de 1881, uma partitura musical, que serve de ilustração ao discurso<br />

que seria proferido à multidão pelo barbeiro Porfirio.<br />

Os contos de Papéis Avulsos foram publicados separadamente<br />

e depois publicados em conjunto em 1882 pelos Srs. Lombaerts &<br />

C.. Contudo, na transposição dos periódicos para o livro, alguns contos<br />

sofreram outra intervenção autoral, como por exemplo: a mudança<br />

de nomes de personagens e a implementação dos contos, comentada<br />

pelo próprio autor em nota na primeira publicação em livro.<br />

Desta forma, cada edição se torna única, uma representação de um<br />

texto a ser resgatada de acordo com suas historicidades e os objetivos<br />

simbólicos de cada suporte, o que justifica também a presente<br />

pesquisa.<br />

Consideramos, assim, única cada edição, sob a perspectiva<br />

das representações em um espaço e em um determinado tempo. Por<br />

isso, contempla-se em Papéis Avulsos – uma edição em livro de doze<br />

contos de Machado de Assis – as noções de obra e texto, livro-objeto<br />

e livro-metafísico. Ademais, sem a intenção de contemplar profundamente<br />

um estudo sob a perspectiva do gênero literário.<br />

Também, não foi menos importante, a pesquisa de informações<br />

fora do texto, como, por exemplo, a leitura de correspondências<br />

de Machado de Assis que trazem esses “papéis” que ao longo de suas<br />

produções foram já pensados para o suporte livro.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

24<br />

Incorporou-se ao estudo do código bibliográfico a perspectiva<br />

das Artes Gráficas, a fim de se observar as diagramações utilizadas<br />

nos impressos do século XIX no Brasil, tendo como ponto de partida<br />

o Diagrama de Villard que representa um padrão clássico, assim como<br />

a diversidade de estilos tipográficos que caracterizou a história<br />

das tipografias na segunda metade do século XIX.<br />

Além disso, estudamos a “ADVERTENCIA 2 ”, os contratos<br />

de propriedade intelectual e os demais testemunhos escritos. Na<br />

mesma proporção que a leitura de textos teóricos, biográficos e históricos<br />

contribuíram à pesquisa no apontamento das alegorias adotadas<br />

pelo autor, as historicidades e o conteúdo sociocultural brasileiro<br />

investidos na narrativa.<br />

Seguindo, como as pistas externas deixadas por Machado de<br />

Assis, como a carta a Joaquim Nabuco, de 14 de abril de 1883, referente<br />

à publicação de Papéis Avulsos, os contos que constituem esta<br />

obra “Não é propriamente uma reunião de escriptos esparsos, porque<br />

tudo o que alli está (excepto justamente a Chinella turca) foi escripto<br />

com o fim especial de fazer parte de um livro [...]” (ASSIS, 1944:<br />

40), verifica-se que Papéis avulsos se trata de uma composição una e<br />

não papéis espaçados que tomam o aspecto de um livro. O autor<br />

também confirma esta unidade aos seus leitores na parte intitulada<br />

como “ADVERTÊNCIA” da própria obra publicada em 1882. Por<br />

sorte neste volume se conservou o plano textual autorizado por Machado<br />

de Assis.<br />

Quanto às intromissões editoriais, verificamos muitos barbarismos.<br />

Além dos lapsos e gralhas tipográficas, as edições em especial<br />

de W. M. Jackson Inc. de 1937, expurgou textos que compunham<br />

o livro escolhidos inicialmente pelo autor, inserindo outros por<br />

conta própria. Por elegância e cordialidade algumas vezes avisou aos<br />

leitores que alguns textos escolhidos pelo próprio autor iriam compor<br />

outros volumes, em “Nota dos Editores” contradizendo as notas do<br />

autor que considerava os contos que ali estavam outro pelo autor<br />

Machado de Assis, definitivamente, não foram aleatórias, ora porque<br />

se observa um esforço em suas advertências em compor explicação<br />

sob os títulos dados e as escolhas que comporiam os seus planos tex-<br />

2 Pré-texto publicado na primeira edição em livro de Papéis Avulsos (ASSIS, I-II).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

25<br />

tuais, como se exemplifica com as seguintes palavras acerca dos volumes<br />

de Várias Histórias e Histórias sem Data, respectivamente:<br />

AS VÁRIAS histórias que formam este volume foram escolhidas entre<br />

outras, e podiam ser acrescentadas, se não conviesse limitar o livro às<br />

suas trezentas páginas. É a quinta coleção que dou ao público. [...] O<br />

tamanho não é o que faz mal a este gênero de histórias, é naturalmente a<br />

qualidade; mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna<br />

superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem<br />

curtos.<br />

De todos os contos que aqui se acham há dous que efetivamente não<br />

levam data expressa: os outros a tem [...] Supondo, porém, que o meu<br />

fim é definir estas páginas como tratando, em substância, de cousas que<br />

não são especialmente do dia, ou de certo dia, penso que o título está<br />

explicado [...] (ASSIS, 1975, p. 56).<br />

Das análises sob os planos textuais propostos pelo autor e a<br />

organização literária dada durante a transmissão editorial, ao longo<br />

do tempo. Por motivação mercadológica ou pedagógica, inicialmente,<br />

foram justificadas, ou ao menos comunicado em “notas dos editores”<br />

endereçado ao publico leitor que já não se encontram.<br />

Na verdade, o que se acha nas prateleiras das livrarias são unidades<br />

de contos publicados separadamente, ressalvando as poucas<br />

edições preocupadas com a sua utilização pedagógica faz referência<br />

a sua origem, todas as outras desconsideram o esforço do título e da<br />

composição, e até mesmo da unidade dos seus textos escolhidos para<br />

serem publicados em um mesmo volume, seja por nada terem de esparsos,<br />

seja por serem “folhas amigas” ou “relíquias”.<br />

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFIA:<br />

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Contos fluminenses. Rio de Janeiro:<br />

Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975, 265 p. v. 1. (Edições<br />

Críticas de Obras de Machado de Assis).<br />

______. Histórias da meia noite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;<br />

Brasília: INL, 1975, 226 p. v. 4. (Edições Críticas de Obras de<br />

Machado de Assis).<br />

______. Histórias sem data. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;<br />

Brasília: INL, 1975, 104 p. v. 5. (Edições Críticas de Obras de Machado<br />

de Assis)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

26<br />

______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;<br />

Brasília: INL, 1975, 263 p. v. 11. (Edições Críticas de Obras de<br />

Machado de Assis)<br />

______. Várias histórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília:<br />

INL, 1975, 197 p. v. 9. (Edições Críticas de Obras de Machado<br />

de Assis)<br />

ASSIS, Machado de. Correspondência. São Paulo: W. M. Jackson<br />

Inc., 1944.<br />

______. Exposição de Machado de Assis. Centenário do nascimento<br />

de Machado de Assis. 1839-1939. Rio de Janeiro: Ministério da Educação<br />

e Saúde, 1939.<br />

______. Páginas recolhidas. Paris: H. Garnier, 1900.<br />

______. Páginas recolhidas. São Paulo: W. M. Jackson Inc., 1937.<br />

______. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Lombaerts & C, 1882.<br />

______. Papéis avulsos. São Paulo: W. M. Jackson Inc., 1937.<br />

______. Relíquias de casa velha. Paris: H. Garnier, 1906.<br />

______. Relíquias de casa velha. 1º volume. São Paulo: W. M. Jackson<br />

Inc., 1937.<br />

______. Relíquias de casa velha. 2º volume. São Paulo: W. M. Jackson<br />

Inc., 1937.<br />

BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias. Campinas: UNICAMP,<br />

2003.<br />

BLECUA, Alberto. Manual de crítica textual. Madrid: Castalia,<br />

1983.<br />

CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo:<br />

Martins Fontes, 2005.<br />

DIDEROT, Denis. Carta sobre o comércio do livro. Prefácio de Roger<br />

Chartier e trad. de Bruno Feitler. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,<br />

2002. Coleção Bibliomania, vol. 3.<br />

A ESTAÇÃO. Lombaerts & Comp., Rio de Janeiro, 1881-1882.


GAZETA de Noticias. Rio de Janeiro: Typographia da Gazeta de Noticias,<br />

1882.<br />

JORNAL das Familias, Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1863-1876.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

27<br />

MACHADO, Ubiratan. A vida literária no Brasil durante o Romantismo.<br />

Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.<br />

MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. 1839-<br />

1870. Trad. de Marco Aurélio de Moura Matos. Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira, 1971.<br />

MCGANN, Jerome J. The Textual Condition. Nova Jersey (EUA):<br />

Princeton University Press, 1991. (Princeton studies in culture/ power/<br />

history)<br />

SOUZA, J. Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de<br />

Janeiro: MEC, Instituto Nacional do Livro, 1955.


1. Introdução<br />

A CIRCUNFIXAÇÃO EM PORTUGUÊS<br />

Caio Cesar Castro da Silva (UFRJ)<br />

caiocvianna@gmail.com<br />

Neste trabalho, abordaremos o processo de formação de palavras<br />

do português conhecido como parassíntese, procurando nos deter<br />

às suas controversas definições. Observaremos alguns dos principais<br />

trabalhos da tradição gramatical e da literatura especializada em<br />

morfologia derivacional.<br />

O texto encontra-se dividido da seguinte maneira: objetivamos<br />

apresentá-la sob a ótica da tradição gramatical em 2, citando as<br />

hipóteses correntes na tradição e na literatura morfológica. Nas seções<br />

em 3, 4 e 5 levantaremos questões relacionadas a essas hipóteses,<br />

seguindo em 6 considerações finais e as referências bibliográficas<br />

em 7.<br />

2. A parassíntese<br />

A parassíntese é, tradicionalmente, definida como a anexação<br />

simultânea de um prefixo e um sufixo a uma base (CUNHA & CIN-<br />

TRA, 2007; LIMA, 2008; CAMARA JR., 1975). Dessa forma, vocábulos<br />

como amanhecer e emparedar são analisados como nos<br />

moldes em (a):<br />

(a) a + manhã + ecer à amanhecer<br />

e/N/ + parede + ar à emparedar<br />

Percebemos, a partir das estruturas em (a), que o fator simultaneidade<br />

é aplicado com a adjunção dos afixos à base em um nível,<br />

e não em dois. Esse fator distingue formas como as citadas em (a) de<br />

outras como prefixar, em que o prefixo e o sufixo não são incorporados<br />

à base ao mesmo tempo (prefixo ~ fixar).<br />

A simultaneidade, segundo Valente et alii (2009), parece<br />

também ser o único ponto acordado na descrição do processo entre


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

29<br />

os autores da tradição gramatical e os da literatura especializada. As<br />

análises estabelecidas pelos teóricos, contudo, divergem nos demais<br />

pontos (como se há ou não um sufixo nos verbos terminados em -ar),<br />

gerando, por vezes, contradições. Surgem, assim, algumas possibilidades<br />

de análise da derivação parassintética:<br />

(1) considerar que, na maioria dos verbos de 1ª conjugação<br />

(apaixonar, encarar), haveria um espaço vazio no lugar<br />

do sufixo, ou um sufixo Ø (ao contrário dos verbos de 2ª<br />

conjugação (entristecer));<br />

(2) julgar, como faz a tradição, que se existe um vocábulo<br />

sem o prefixo ou sem o sufixo (abaixar ~ baixar), o procedimento<br />

mais indicado é excluir a interpretação de parassíntese;<br />

(3) considerar que os vocábulos se formam não a partir da anexação<br />

de prefixos e sufixos, mas de morfemas descontínuos,<br />

que se separariam para a inserção da base.<br />

Nas próximas seções, observaremos as três possibilidades apresentadas,<br />

tecendo considerações sobre cada uma delas, sobretudo<br />

com um maior destaque para a análise (3), que parece dar o melhor<br />

tratamento ao processo. Nossas amostras foram colhidas nos dicionários<br />

eletrônicos Houaiss (2001) e Aurélio (2004) e contém 452 verbos<br />

parassintéticos, formados a partir das construções a-X-ar, e/N/-<br />

X-ar, es-X-ar, a-X-ecer e e/N/-X-ecer.<br />

3. A hipótese do Ø<br />

Alguns autores, no âmbito da literatura especializada, propõem<br />

que a maioria dos verbos parassintéticos de 1ª conjugação, i.e.,<br />

com a terminação em -ar, não apresentam constituinte sufixal. Os<br />

verbos que apresentam a terminação -ejar seriam a exceção. Os verbos<br />

de 2ª conjugação também não se encaixariam nesse paradigma,<br />

porque apresentariam o sufixo -ec. Observemos em (b) e (c) os exemplos:<br />

(b) enrouquecer (e/N/- + rouco + -ec + -e + -r)<br />

esbravejar (es- + bravo + -ej + -a + -r)


(c) acostumar (a- + costume + ... + -a + -r)<br />

encarar (e/N/- + cara + ... + -a + -r)<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

30<br />

Os itens em (b), de acordo com Carone (1994) e Villalva<br />

(2003), demonstram haver dois sufixos (-ec e -ej, respectivamente)<br />

responsáveis pela derivação parassintética. No entanto, os exemplos<br />

em (c) apresentariam um problema para a descrição morfológica,<br />

visto que o sufixo estaria ausente. No caso, as autoras propõem uma<br />

posição sufixal vazia seguida da vogal temática e do morfe de infinitivo,<br />

que é apenas uma forma de citação. Haveria, pois, dois tipos de<br />

parassíntese no português: uma derivacional, como em (b), e outra<br />

flexional, como em (c).<br />

A análise, contudo, fere alguns princípios básicos da parassíntese,<br />

o que ocasiona algumas incoerências. Primeiramente, o processo<br />

exige um prefixo e um sufixo para formar vocábulos. Nos moldes<br />

da proposta anterior, verbos seriam formados unicamente a partir do<br />

prefixo, o que é discutível; a mudança categorial é, via de regra, de<br />

responsabilidade dos sufixos 1 . Sobre isso, Basílio (1993, p. 303) diz<br />

que essa generalização (...) é uma característica geral dos prefixos,<br />

nas mais variadas línguas, embora não absoluta. Em segundo lugar,<br />

o critério simultaneidade não poderia ser aplicado, uma vez que não<br />

ocorreria a inserção de elemento final derivacional. Acrescentemos<br />

ainda, não haver explicação para o surgimento de uma vogal temática<br />

verbal, nos exemplos em (c), já que não houve mudança de classe<br />

gramatical (N à V), pois, como dissemos acima, esta é uma propriedade<br />

do sufixo.<br />

Monteiro (1987) sustenta uma hipótese semelhante à apresentada<br />

anteriormente, com pequenas reformulações. O autor aponta para<br />

o fato de que nas formações típicas de (c) um sufixo Ø ocupa a<br />

posição do sufixo derivacional (esfarelar à es + farelo + Ø + a + r).<br />

Nesta interpretação, o princípio que determina um prefixo e um sufixo<br />

para toda construção parassintética é satisfeito, e, por consequência,<br />

o critério de simultaneidade, já que há um prefixo e um sufixo.<br />

1 Rocha (2008, p. 154) cita alguns exemplos raros de mudança categorial por prefixos<br />

em vocábulos cristalizados, como inglório (in + glória) e prefixo (pré + fixo).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

31<br />

Se por um lado, Monteiro repara a contradição de se interpretar<br />

uma posição de sufixo vazia, por outro recorre a um artifício teórico<br />

de característica flexional para solucionar o problema.<br />

O zero morfêmico é, nas palavras de Bybee (1985, p. 4), "um<br />

tipo de distúrbio no mapeamento de um para um entre som e significado".<br />

Em esbravejar, por exemplo, verifica-se uma partícula entidade<br />

fonética, mais especificamente -ej, portadora de significado,<br />

enquadrar uma forma nominal na categoria verbal. Já em apaixonar,<br />

segundo Monteiro, haveria um zero morfofonético, já que não há<br />

uma partícula morfêmica, nem o som correspondente.<br />

Ainda sobre o zero, Bybee e Gonçalves (2005) assinalam que<br />

é um artifício utilizado para tentar uniformizar as descrições estruturais.<br />

Por isso mesmo, está vinculado a categorias mais básicas e não<br />

marcadas da língua. No português, aparece com frequência no gênero<br />

masculino, no número singular, na terceira pessoa do singular e no<br />

tempo presente. Como afirmam Valente et alii (2009, p. 6),<br />

Essas categorias não possuem representação fonética por seu caráter<br />

mais genérico, o que é comum nas línguas do mundo. Além disso, esses<br />

significados gramaticais tendem a se manifestar via flexão, o que leva à<br />

proposição de um morfe Ø apenas para a morfologia flexional.<br />

Aplicar o zero, que tem forte valor gramatical, à derivação é<br />

um risco, uma vez que a toda entidade sem valor morfológico e sem<br />

representação fonética seria possível postular um morfe Ø. Por essas<br />

razões, a hipótese (2) não se confirma.<br />

Em (c), a terminação -ar é responsável por reenquadrar, nos<br />

termos propostos por Nascimento (2006), a base nominal na categoria<br />

verbal. Assim, pela anexação da construção a-X-ar e e/N/-X-ar<br />

temos, respectivamente, acostumar [a [costume]N ar]V e encarar<br />

[e/N/ [cara]N ar]V. Como indica Basílio (1993), -ar é um sufixo derivacional<br />

justamente por fazer a mudança de classe. Além disso, apresenta<br />

a propriedade flexional resguardada na vogal temática.<br />

4. A hipótese tradicional<br />

A definição da tradição gramatical foi abordada anteriormente<br />

e dela também se aproximam alguns teóricos da literatura morfológica<br />

(ROCHA, 2008; SANDMANN, 1997). Nela, o fator da simulta-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

32<br />

neidade prevalece como critério para identificar ou excluir uma formação<br />

parassintética. Entretanto, como apontam Basílio (2007) e<br />

Kehdi (2003), este critério não é suficiente para descrever o processo.<br />

Vejamos os pares em (d):<br />

(d) alargar x largar<br />

descarnar x descarnado<br />

No primeiro par, há dois verbos com a mesma base, mas formados<br />

por modelos morfológicos diferentes. A existência de uma<br />

forma sem o prefixo levaria alguns autores à exclusão de alargar do<br />

quadro de parassíntese. Este verbo seria, então, analisado em dois<br />

níveis: primeiramente, haveria a derivação sufixal [[largo]ADJ ar]V,<br />

seguida de anexação do prefixo [a [largar]V ]V. Da mesma maneira,<br />

poderia acontecer com o segundo par em (d): descarnado seria o particípio<br />

do verbo descarnar, e não o adjetivo formado pela adjunção<br />

simultânea do prefixo des- e do sufixo -ado à base carne.<br />

Percebemos, todavia, que o significado dos vocábulos diferem.<br />

Segundo o dicionário Houaiss (2001), alargar é tornar mais<br />

largo, ao passo que largar significa soltar, deixar de segurar. Assim<br />

como, descarnado não é o paciente do ato de descarnar, mas um sujeito<br />

muito magro. Observemos as frases a seguir:<br />

(e1) A prefeitura alargou a Avenida 1.<br />

(e2) ?A prefeitura largou a Avenida 1.<br />

(f1) Pedro é descarnado.<br />

(f2) A fome deixou Pedro descarnado.<br />

(f3) ?João foi descarnado pela fome.<br />

Em (e1), dizemos que a avenida se tornou mais larga; já em<br />

(e2), embora seja estranha, uma leitura possível (com o verbo em seu<br />

sentido metafórico) seria a de a prefeitura ter esquecido da tal avenida,<br />

abandonando-a.. Alargar apresenta um valor semântico diferente<br />

daquele veiculado por largar. Se os verbos em questão apresentam<br />

significados diferentes, não se sustenta a proposta de que alguns parassintéticos<br />

são assemânticos, como assertam Henriques (2007) e


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

33<br />

Sandmann (1997) 2 . Veremos mais adiante que a construção circunfixal<br />

é responsável por essa diferença de significado.<br />

Para os exemplos em (f1), (f2) e (f3) também é necessário que<br />

o critério semântico seja ativado juntamente ao critério de simultaneidade<br />

para identificarmos os derivados parassintéticos. Em (f1) informamos<br />

que Pedro é magro; em (f2), que a fome é a causa de Pedro<br />

ser magro; e em (f3) que Pedro é o paciente do ato de descarnar.<br />

Em (f1) e (f2) aparecem as formas adjetivas parassintéticas, enquanto<br />

que em (f3) o particípio passado do verbo descarnar. Mesmo com<br />

a estranheza causada por esta frase, verificamos dois tipos morfológicos<br />

(um adjetivo e um verbal, pois o adjetivo em (f1) é diferente do<br />

particípio em (f3)), que são licenciados por apresentarem significados<br />

diferentes.<br />

O que esses exemplos revelam é a insuficiência da hipótese<br />

tradicional para acomodar a parassíntese. Baseando a análise na existência<br />

de um vocábulo sem um dos afixos, seríamos obrigados a excluir<br />

as formas exemplificadas em (e1) e (f1-f2). Uma verificação<br />

que leve em conta o aspecto semântico é relevante não só para explicar<br />

a ocorrência de determinados vocábulos, como também para entender<br />

o traço morfossemântico do processo.<br />

5. A hipótese da circunfixação<br />

A respeito da hipótese (3), autores como Lopes (2003), Silva<br />

& Koch (2005) e Henriques (2007) focalizam o critério de simultaneidade<br />

como um traço decisivo na descrição estrutural da derivação<br />

parassintética. Justamente por prefixo e sufixo não poderem estar ausentes<br />

do processo, a ligação entre as partes torna-se um traço marcado.<br />

Os autores propõem que as frações sejam, então, compreendidas<br />

como circunfixos.<br />

Circunfixos são morfes descontínuos, em que a unidade de<br />

expressão é desmembrada para a inserção de outra forma (GON-<br />

ÇALVES, 2005). As partes representativas do morfe aparecem no i-<br />

2 Os autores afirmam que o prefixo a- não agrega significado à construção verbal, diferentemente<br />

dos prefixos des- e e/N/-. Para maiores detalhes, ver Valente et alii (2009).


nício e no fim de cada forma gerada. Observe no esquema da Figura<br />

1 como se dá a formação de amolecer a partir da circunfixação:<br />

aecer<br />

/a....ecer/<br />

mole<br />

Figura 1: formação circunfixal de amolecer<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

34<br />

Há vantagens tanto morfológica, quanto semântica na adoção<br />

da hipótese (3). Bechara (2009) e Kehdi (1999) afirmam que é um<br />

traço dos prefixos, geralmente, se coadunarem a verbos ou a adjetivos,<br />

como em (h) e (1), respectivamente:<br />

(h) refazer, deter, reter, conter, pospor, sobrepor;<br />

(1) infeliz, desrespeitoso, impensável, antiaderente.<br />

Poucos são os exemplos de prefixos que se anexam a substantivos.<br />

Normalmente, isso se verifica com deverbais (desempate, retorno).<br />

Entretanto, com base no nosso corpus de palavras coletadas<br />

em dicionários eletrônicos, ao analisarmos a distribuição categorial<br />

das bases que entram na derivação parassintética, observamos que há<br />

uma predominância de substantivos em relação a adjetivos (gráfico 1).<br />

Adjetivos<br />

Gráfico 1: distribuição categorial das bases<br />

Substantivos


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

35<br />

No gráfico acima, percebemos que o percentual de substantivos<br />

(pizza listrada), com 75, 66%, é bem mais expressivo do que o<br />

de adjetivos (pizza pontilhada), com 24, 34%, num total de 452 dados.<br />

A seleção para bases adjetivas, em geral, se dá com as construções<br />

a-X-ecer e e/N/-X-ecer. Isto se justifica pelo valor semântico de<br />

processo das construções estar intimamente relacionado ao traço [+<br />

qualificador] do adjetivo.<br />

Se, na parassíntese, os prefixos se unem a substantivos, em<br />

sua maioria, – embora teóricos afirmem que essa junção é atípica –<br />

surge o problema, do ponto de vista formal, de como lidar com os<br />

prefixos. Analisar a parassíntese com base na hipótese (3), resolve a<br />

questão de substantivos serem anexados à construção, porque a base<br />

está se unindo a morfes descontínuos, apesar de ampliar o inventário<br />

de afixos da morfologia derivacional.<br />

Os morfes descontínuos também solucionam a questão do valor<br />

semântico do processo, visto que o conteúdo está expresso na totalidade,<br />

e não em uma de suas frações. Na análise tradicional, há a<br />

contradição de considerar o sufixo vazio semanticamente. Em despudorado,<br />

por exemplo, a terminação -ado indica aquele que possui<br />

o que é expresso pela base (aquele que tem pudor), porém o prefixo<br />

indica negação (aquele que não tem pudor). Num enfoque tradicionalista,<br />

diz-se que o sentido ativado é o último, mas não há uma explicação<br />

para o fato, enquanto que num exame baseado na circunfixação,<br />

ao contrário, o significado parte do todo. Despudorado é, assim,<br />

aquele que não tem pudor, porque o circunfixo veicula esse significado<br />

prototípico 3 , como em desalmado, desventurado.<br />

De certa maneira, a proposta do circunfixo dá conta de todos<br />

os problemas discutidos durante o artigo, pois garante a presença do<br />

prefixo e sufixo por meio dos morfes descontínuos e confere ao fator<br />

semântico relevância na constituição do processo.<br />

3 Em desbocado, por exemplo, o resultado não é aquele que não tem boca, mas o indivíduo<br />

que usa linguagem inconveniente. Verifica-se aqui a extensão polissêmica motivada<br />

por processos conceituais como a metáfora.


6. Considerações finais<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

36<br />

Pudemos analisar, neste trabalho, a complexidade em se adotar<br />

uma definição para a derivação parassintética, assim como observamos<br />

as propostas correntes nas pesquisas acadêmicas. O enfoque<br />

tradicionalista não consegue acomodar as formações parassintéticas,<br />

visto que se baseia apenas no critério de simultaneidade. Da mesma<br />

maneira, outros estudos, de marcada base estruturalista, pautam-se<br />

em estratégias que acabam por também sabotar a univocidade do<br />

morfema. Concluímos que a verificação através de morfes descontínuos<br />

é mais adequada, tendo em vista que abarca os fatores formais e<br />

semânticos do processo.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BASÍLIO, Margarida. Teoria lexical. São Paulo: Ática, 2007.<br />

______. Verbos em -a(r) em português: afixação ou conversão?<br />

D.E.L.T.A. São Paulo: vol. 9, número 2, 1993.<br />

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 2009.<br />

BYBEE, Joan. Morphology: the relations between meaning and form.<br />

Amsterdam/ Philadelphia: John Benjamins Publishing Co, 1985.<br />

CÂMARA Jr., Joaquim Matoso. História e estrutura da língua portuguesa.<br />

Rio de Janeiro: Padrão, 1975.<br />

CARONE, Flávia de Barros. Morfossintaxe. São Paulo: Ática, 1994.<br />

CUNHA, Celso Ferreira da & CINTRA, Luís Filipe Lindley. Nova<br />

gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Lexicon Informática,<br />

2007.<br />

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio eletrônico<br />

versão 5.12. Positivo Informática, 2004.<br />

GONÇALVES, Carlos Alexandre. Flexão e derivação em português.<br />

Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2005.<br />

HENRIQUES, Claudio Cezar. Morfologia: Estudos lexicais em<br />

perspectiva sincrônica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

37<br />

HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.<br />

Objetiva, 2001.<br />

KEHDI, Valter. Formação de palavras em português. São Paulo: Ática,<br />

2003.<br />

______. Morfemas do português. São Paulo: Ática, 1999.<br />

LIMA, Carlos Henrique da Rocha. Gramática normativa da língua<br />

portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.<br />

LOPES, Carlos Alberto Gonçalves. Lições de morfologia da língua<br />

portuguesa. Jacobina: Tipô-carimbos, 2003.<br />

MONTEIRO, José Lemos. Morfologia portuguesa. Fortaleza: E-<br />

DUFC, 1987.<br />

NASCIMENTO, Mauro José Rocha do. Repensando as vogais temáticas<br />

nominais a partir da gramática das construções 2006. Tese<br />

(doutorado em língua portuguesa – Faculdade de Letras, UFRJ, RJ,<br />

2006.<br />

ROCHA, Luiz Carlos de Assis. Estruturas morfológicas do português.<br />

São Paulo: Martins Fontes, 2008.<br />

SANDMANN, Antonio José. Morfologia lexical. São Paulo: Contexto,<br />

1997.<br />

SILVA, Maria Cecília Pérez de Souza & KOCH, Ingedore Grunfeld<br />

Villaça. Linguística aplicada ao português: Morfologia. São Paulo:<br />

Cortez, 2005.<br />

VALENTE, Ana Carolina Mrad de Moura; SILVA, Caio César Castro<br />

da; GONÇALVES, Carlos Alexandre; ALMEIDA, Maria Lúcia<br />

Leitão de. Enfoques sobre parassíntese em português: da tradição<br />

gramatical à lingüística cognitiva. ReVEL, vol. 7, n. 12, 2009. Disponível<br />

em: www.revel.inf.br.<br />

VILLALVA, Alina. Estrutura morfológica básica. In: MATEUS,<br />

M.H. M. et al. – Gramática da língua portuguesa. 5. ed. rev. e aum.<br />

Lisboa: Caminho, 2003.


A CONCORDÂNCIA DE NÚMERO<br />

NO SINTAGMA NOMINAL NA FALA<br />

DOS ESTUDANTES DA REDE PÚBLICA<br />

DE ENSINO DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS-BA<br />

Dayane Moreira Lemos (UNEB) 1<br />

dayaneml@yahoo.com.br<br />

Brasil, um país colonizado, é mundialmente reconhecido por<br />

sua diversidade cultural, por uma mistura de povos que origina uma<br />

população matizada, única e singular. Mas, a mistura de índios,<br />

brancos e negros, não só originou novas culturas, o encontro desses<br />

povos originou de antemão um caos linguístico. Como conviver em<br />

uma comunidade bilíngue, multilíngue? Como haver comunicação<br />

entre os povos?<br />

Tais perguntas se tornam inevitáveis em tal contexto, uma vez<br />

que a linguagem gestual já havia se tornado limitada depois que o<br />

homem descobriu que emitindo sons articulados poderiam estabelecer<br />

diálogo. Devido à necessidade de comunicação se elegeu, no<br />

Brasil, uma língua oficial, o que acarretou, em 1758 pelo decreto de<br />

Marques de Pombal, a fixação do português como língua oficial brasileira.<br />

Dessa forma, tal decreto obrigou a população negra e indígena<br />

a utilizarem a língua do colonizador, porém a implantação do decreto<br />

não significou a exclusão das centenas de línguas que vigoravam<br />

no país.<br />

Em um processo gradual o português passou a vigorar, à medida<br />

que havia os intercâmbios entres as diversas populações, porém<br />

o português dos colonizados e/ou escravizados foram ganhando características<br />

peculiares que o diferenciava e diferencia do português<br />

1 Discente concluinte do curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia –<br />

Campus v, vinculada ao grupo de pesquisa "Múltiplas linguagens: estudo, ensino e formação<br />

docente" - Certificado pela Universidade do Estado da Bahia; bolsista do Projeto de pesquisa<br />

“A fala dos estudantes da rede pública de Santo Antônio de Jesus-Ba”, financiado pelo PICIN e<br />

organizado pela professora Ms. Patrícia Ribeiro de Andrade, Lattes:<br />

http://lattes.cnpq.br/3691443901148216


europeu, estabelecendo o que se reconhece hoje como Variação Linguística.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

39<br />

Devido ao longo processo de colonização e exploração a língua<br />

portuguesa, na modalidade brasileira, se torna um campo frutífero<br />

de pesquisas através desse potencial linguístico tão peculiar. Assim,<br />

se faz necessário a existência de uma ciência que se dedique a<br />

tal aspecto, nesse sentido surge a sociolinguística, dando lugar de<br />

destaque às variações e às mudanças linguísticas ocorridas dentro<br />

das diversas comunidades, aspectos essenciais ao funcionamento da<br />

língua. Através do aparato teórico-metodológico dessa ciência é possível<br />

a realização de diversas pesquisas sobre os dialetos do português<br />

do Brasil, constituindo no país um campo fértil para investigação.<br />

O modelo teórico da Sociolinguística possibilitou que fossem<br />

inseridos nos estudos da linguagem eventos sócio-históricos e culturais,<br />

hoje tidos como essenciais para a análise do dialeto de uma dada<br />

comunidade. Essa vertente da ciência da linguagem imprimiu na<br />

investigação a cultura de que a língua falada numa sociedade é heterogênea<br />

e como tal, é falada variavelmente, em conformidade com<br />

aspectos sociais, históricos, políticos, econômicos e culturais das diversas<br />

comunidades que compõem o todo social.<br />

Através desse aparato teórico que se pretende discutir e analisar<br />

um fenômeno que vem ganhando espaço entre os falantes do português<br />

brasileiro, que é a ausência da marca de plural em todos os elementos<br />

flexionáveis do Sintagma Nomina (SN). Pesquisas vêm<br />

demonstrando que os brasileiros tem se distanciado do padrão fixo<br />

proposto pelas gramáticas normativas, em que todos os itens do sintagma<br />

nominal devem ser, obrigatoriamente, flexionados.<br />

Sendo assim, o projeto objetiva demonstrar que o uso da concordância<br />

de número no SN na fala dos estudantes da rede pública de<br />

Santo Antônio de Jesus-Ba é uma regra variável, ratificando pesquisas<br />

anteriores. Para que uma pesquisa desse nível, sociolinguístico,<br />

seja realizada é preciso passar por alguns processos: a coleta de dados,<br />

as transcrições, codificações e análises.<br />

Diante de um mundo modernizado, o trabalho do sociolinguista<br />

tem se tornado menos exaustivo, uma vez que são oferecidos


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

40<br />

alguns suportes tecnológicos, assim como a ferramenta de quantificação<br />

GOLDVARB, a qual a alguns, poucos, anos era conhecida<br />

como VARBRUL, a qual rodava apenas no DOES, um sistema computacional<br />

que apresentava aos usuários muitas dificuldades, as quais<br />

ocasionava abandono de pesquisas. Mas, graças a criatividade humana<br />

hoje já temos em mãos o GOLDVARB que vem se aperfeiçoando<br />

constantemente e colaborado para dados mais precisos. É através<br />

dessa ferramenta quantitativa que essa pesquisa fornecerá seus dados.<br />

Fazendo o possível para deixar claros os percentuais e pesos oferecidos<br />

para análise.<br />

No primeiro capítulo, intitulado “A concordância nominal de<br />

número”, discutiremos a padronização desse fenômeno pelas gramáticas<br />

tradicionais, traçando elos entre o português brasileiro (PB) e o<br />

português europeu (PE), na tentativa de apresentar ao leitor o quanto<br />

os falantes do PB tem se distanciado da língua do colonizador.<br />

Após a retratação do fenômeno em análise, se inicia a análise<br />

dos dados, momento que observamos como se encontra o processo<br />

da variação da marcação de número no SN, na fala dos estudantes da<br />

rede pública de ensino de Santo Antônio de Jesus-Ba.<br />

Por fim, será exposto de forma sintetizada os resultados objetivos<br />

através das análises, tendo sempre em vista que o corpus é mínimo<br />

diante do amplo campo de atuação da língua em uso. O projeto<br />

se torna, apenas, uma amostra da riqueza da nossa língua.<br />

Importante salientar, que a escolha desse objeto deu-se a partir<br />

do desenvolvimento da pesquisa A fala dos estudantes da rede<br />

pública de ensino de Santo Antônio de Jesus 2 , através do qual se<br />

constituiu um corpus gravado e transcrito da língua oral, nos anos de<br />

2009 e 2010.<br />

2 Projeto de pesquisa desenvolvido por Patrícia Ribeiro de Andrade, com apoio da Pró-Reitoria<br />

de Pesquisa e Ensino de Pós-Graduação da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), através<br />

do seu Programa de Iniciação Científica, do qual participam as bolsistas Dayane Moreira<br />

Lemos e Luzileide de Jesus Santos e Santos.


1. A concordância nominal de número<br />

1.1. Um padrão europeu para o português brasileiro<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

41<br />

Por muito tempo o português brasileiro foi categorizado pelos<br />

formalistas como homogêneo e sistematicamente rígido, desconsiderando<br />

todo processo de “intercâmbio linguístico” por que a população<br />

brasileira passou na época da colonização. Entender a língua<br />

dessa forma é desconsiderar as suas peculiaridades, seus elementos<br />

externos. Entretanto, com o advento da Sociolinguística, surgem<br />

muitos estudos, os quais questionam os padrões formalistas, promovendo<br />

a realização cada vez mais intensa de novas pesquisas que<br />

demonstram o quanto são fortes os laços entre língua e sociedade,<br />

trabalhando a heterogeneidade da língua brasileira.<br />

Dentre os diversos estudos, podemos considerar a obra de<br />

Marcos Bagno (2001), o qual questiona o ensino da língua portuguesa<br />

no Brasil, demonstrando que não é mais possível trabalhar a língua<br />

materna na perspectiva da gramática tradicional, assim como<br />

proposta pelos formalistas. Dessa forma, afirma:<br />

[...] nossas gramáticas normativas tentam analisar o português do Brasil<br />

com o mesmo aparato teórico-descritivo usado para analisar o português<br />

de Portugal, sem se dar conta de que a língua falada aqui já apresenta<br />

muitas e profundas diferenças em relação à língua de lá, o que exige a elaboração<br />

de outra gramática, a gramática do português brasileiro.<br />

(BAGNO, 2001, p.19)<br />

Pensar a língua falada no Brasil de uma forma homogênea e<br />

semelhante ao português falado em Portugal é desconsiderar todo o<br />

processo de colonização, é “fechar os olhos” para uma realidade cada<br />

dia mais visível, a qual vem sendo camuflada no intuito, como diria<br />

Marcos Bagno (2001), de preservar os mitos em torno do português<br />

brasileiro.<br />

Dentro os vários mitos que são gerados, Bagno (2001) descreve<br />

alguns em seu livro: Preconceito Linguístico: o que é, como se<br />

faz. Através, desse simples e riquíssimo livro é possível perceber de<br />

forma clara que a população brasileira vem sendo manipulada através<br />

de mitos que têm corroborado para elevação de um preconceito<br />

cruel – o preconceito linguístico.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

42<br />

As nossas crianças nascem, aprendem a andar e a falar – quão<br />

mágicos são esses momentos! Na sua comunidade apreendem características<br />

peculiares e comuns ao ambiente linguístico, mas toda essa<br />

harmonia é rompida quando elas se deparam com um novo ambiente<br />

chamado escola. É lá que elas aprendem a LÍNGUA PORTUGUE-<br />

SA. Com relação a isto, Bagno (2001) nos faz refletir: seria essa criança<br />

uma pessoa sem-língua?<br />

Por que é tão difícil para os estudantes aprenderem sua “língua<br />

materna”, que mistério estaria por trás da nossa língua que nos<br />

faria sentir medo de aprendê-la? Estas são ótimas perguntas, sobre as<br />

quais os crentes na homogeneidade linguística deveriam refletir.<br />

É preciso deixar claro que o fato de aqui não se falar esse padrão<br />

de língua europeia, não tem feito dos falantes brasileiros menos<br />

falantes, uma vez que, segundo Dubois-Charlier (1981), falar significa,<br />

simplesmente, “[...] emitir sons tais e combinados de tal maneira<br />

que transmitem significações a outra pessoa que fala a mesma língua<br />

que você” (p.15). Sendo assim, pode-se concordar com Possenti<br />

(1999) quando afirma que "todos podemos ver diariamente que as<br />

crianças são bem sucedidas no aprendizado das regras necessárias<br />

para falar. A maior evidência disso é que falam". (POSSENTI, 1999,<br />

p. 21-22)<br />

Nesse sentido Perini acredita que<br />

[...] apesar das crenças populares, sabemos, e muito bem, a nossa língua<br />

[...]. Isso não se aplica apenas àqueles que sempre brilharam nas provas<br />

de português, mas também a praticamente qualquer pessoa que tenha o<br />

português como língua materna (PERINI, 2003, p. 10)<br />

Negrão, Scher e Viotti (2003) afirmam que qualquer criança<br />

antes de ingressar no ambiente escolar consegue construir sentenças<br />

impessoais. Isso fica claro, ao observarmos crianças em contato com<br />

qualquer outra pessoa. A partir de certa idade ela já começa a construir<br />

suas sentenças no intuito de estabelecer diálogo com seu interlocutor<br />

e de deixar claras suas opiniões, seus posicionamentos e<br />

questionamentos.<br />

Algumas pessoas poderiam se questionar: seria essa criança<br />

capaz de localizar o sujeito da oração e classificá-lo? E nós perguntamos:<br />

seria isto, realmente, necessário para haver comunicação? É<br />

refletindo nessa perspectiva, que se entende quando Bagno (2001, p.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

43<br />

9) diz que "o preconceito linguístico está ligado, em boa medida, à<br />

confusão que foi criada, no curso da história, entre língua e gramática<br />

normativa. Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão".<br />

(BAGNO, 2001, p. 9)<br />

Pensar em língua é pensar em dinamicidade, em variação, em<br />

mudança. Dentro desse contexto poderíamos nos questionar sobre o<br />

papel da escola no ensino de língua portuguesa, e é sobre isso, que<br />

ainda, Negrão, Scher e Viotti (2003) afirmam que<br />

O que a escola vai fazer é ensinar [...] que existe uma outra forma<br />

para construir uma sentença equivalente [...], que ela vai reconhecer em<br />

textos literários e científicos e que ela pode usar em contextos mais formais,<br />

como uma composição ou como uma carta a alguém não muito<br />

próximo. (NEGRÃO, SCHER E VIOTTI, 2003, p. 96).<br />

Mas, infelizmente os modelos que vigoram nas instituições<br />

escolares estão, ainda, distantes de reflexões nessa perspectiva. Os<br />

modelos atuais de ensino têm feito com que os falantes se sintam<br />

deslocados ao usarem a sua própria língua e o CERTO e o ERRADO<br />

empregados pelos professores de gramática desfazem do processo<br />

individual dos estudantes, do seu contexto de aquisição da linguagem.<br />

Tal metodologia ocasiona as contínuas evasões escolares, repetências,<br />

dentre outras consequências que giram em torno da matéria<br />

Língua Portuguesa, a qual prega normas e padrões que se distanciam<br />

do dia-a-dia dos brasileiros. Dessa forma,<br />

A substituição dessa pedagogia por um ensino crítico/reflexivo, certamente<br />

ajudaria a suprimir o preconceito que existe em torno da variação<br />

linguística no Brasil. Mas, enquanto a escola exclui a diversidade<br />

linguística dos seus programas, pesquisas vêm demonstrando como e<br />

porquê, no Brasil, a língua portuguesa difere tanto da variedade europeia.<br />

(ANDRADE, 2003, p. 8)<br />

1.2. Variação na concordância nominal de número no português<br />

brasileiro<br />

A variação na concordância de número no português falado<br />

no Brasil tem sido intensamente estudada e documentada, uma vez<br />

que se refere a um fenômeno que tem se evidenciado com os novos<br />

estudos, os quais dão a oportunidade de apresentar um português es-


sencialmente brasileiro que se caracteriza por sua heterogeneidade<br />

linguística, rica fonte de pesquisas.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

44<br />

Para se entender melhor o fenômeno da concordância de número<br />

no sintagma nominal (SN) é preciso que fique claro que existem<br />

duas variantes: a variante marcada e a variante zero, (não marcada).<br />

Vejamos tal fenômeno através do exemplo extraído do corpus:<br />

Variante explícita:<br />

“[...] eu tinha dois cachorros” (INFO 1, 2010, p. 2)<br />

Variante zero de plural:<br />

“[...] minha mãe comprou dois coelhoØ” (INFO 1, 2010, p. 2)<br />

De forma resumida, pode-se afirmar que a concordância nominal<br />

de número ocorre a partir da inserção da marca de plural -s em<br />

todos os elementos flexionáveis do sintagma.<br />

No português brasileiro a concordância nominal de número<br />

não é tão invariável como “afirmam” algumas gramáticas. Scherre<br />

(1994) acredita e afirma que esse fenômeno não é uma regra categórica,<br />

mas sim variável conforme certos determinantes linguísticos e<br />

sociais, como vêm indicando várias pesquisas realizadas sobre os dialetos<br />

brasileiros.<br />

A ausência de concordância de número é estigmatizada por<br />

um círculo vicioso denominado preconceito linguístico. Para os pesquisadores,<br />

a não marcação do plural tem sido um fenômeno intensificado<br />

constantemente, mas os falantes ainda são temerosos ao assumirem<br />

esse modo peculiar de se expressar. Dificilmente, se encontra<br />

um falante brasileiro que assuma esse modo de se expressar, uma<br />

vez que este foge de um padrão elitizado. Nesse sentido, Perini<br />

(1997) afirma:<br />

Sabemos que é frequente, entre nós, fazer o plural marcando-o apenas<br />

no primeiro elemento do sintagma [...]. Essas construções, quando<br />

não são simplesmente ignoradas, são dadas como da linguagem das ‘pessoas<br />

incultas’, ou de ‘baixa classe’. Segundo essa opinião, não se trataria<br />

de um fato normal do português brasileiro, mas de um ‘erro’ cometido<br />

por aquelas pessoas (coitadas) que não tiveram a sorte de uma educação<br />

formal suficiente. (PERINI, 1997, p. 19)<br />

O autor segue afirmando que levantamentos mostram o contrário,<br />

uma vez que construções em que se deixa de marcar alguns


dos elementos do SN são amplamente utilizadas pelos falantes do<br />

Português Brasileiro, incluindo os “cultos”.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

45<br />

Entende-se, então, que tal fenômeno é característico da oralidade<br />

sem exclusões de grupos minoritários e/ou majoritários. Ainda,<br />

nesse sentido, pesquisas registradas por Scherre (1994), afirmam<br />

[...] que o fenômeno da variação na concordância de número no português<br />

brasileiro falado do Brasil, longe de ser restrito a uma região ou<br />

classe social específica, é característico de toda comunidade de fala brasileira,<br />

apresentando diferenças mais de grau do que de principio, ou seja,<br />

as diferenças são mais relativas à quantidade de marca de plural e não<br />

aos contextos linguísticos nos quais a variação ocorre. (SCHERRE,<br />

1994, p. 38)<br />

Torna-se evidente que a ausência da marca de plural é comum<br />

em todas as comunidades brasileiras, condicionada por fatores linguísticos<br />

e extralinguísticos, mas cabe ressaltar que, assim como citado<br />

acima, alguns fatores extralinguísticos, como pouco grau de escolaridade,<br />

tendem a ser mais propensos à marca zero de plural, o<br />

que não implica dizer que tal fenômeno se restrinja a tal variável social.<br />

Pensar na variação da concordância de número no SN é entender<br />

que o português falado no Brasil apresenta características peculiares<br />

ao comparado com outras línguas, características essas que<br />

incitam pesquisas. Tentar entender a língua vernacular é tentar entender<br />

um pouco mais sobre nós.<br />

2. A concordância de número no sintagma nominal na fala dos estudantes<br />

da rede pública de santo Antônio de Jesus-BA<br />

2.1. Contextualização da pesquisa de campo<br />

Para realização de um projeto embasado na teoria de análise<br />

quantitativa se faz necessário o processo de pesquisa de campo, a<br />

busca pelos dados. É buscar no seio da comunidade material para análise,<br />

na tentativa de recolher amostras de língua em uso.<br />

Não é fácil se dispor a tal tarefa. É um trabalho cansativo e<br />

muitas vezes desgastante, mas tudo é válido quanto estamos com os<br />

resultados em mãos. Antes de ir a campo, é preciso uma preparação<br />

metodológica, uma vez que, assim como afirma Tarallo (1986), os


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

46<br />

documentadores precisam levar em conta que é um “intruso” na comunidade.<br />

Por isso, é preciso modelar nosso comportamento social e<br />

linguístico ao do falante, buscando a concretização de uma conversa<br />

informal.<br />

Muitos outros cuidados são abordados por Tarallo (1986), para<br />

que seja possível a coleta do vernáculo. Tudo isso é preciso ficar<br />

bem sistematizado antes do primeiro contato com a comunidade.<br />

A comunidade escolhida para elaboração do projeto foi a da<br />

rede pública estudantil, claro, fazendo um recorte mediante aos critérios<br />

que mais adiante serão expostos.<br />

2.2. Metodologia (tratamento de dados)<br />

Para a análise da recorrência de variantes na realização da regra<br />

de concordância de número entre os elementos do SN, no dialeto<br />

dos estudantes da rede pública de ensino de Santo Antônio de Jesus-<br />

Ba, utilizamos um corpus constituído de quatro inquéritos transcritos<br />

a partir de entrevistas gravadas. Essas entrevistas foram realizadas<br />

pelas pesquisadoras, Dayane Moreira Lemos e Lucileide XXX, bolsista<br />

do projeto A fala dos estudantes da rede pública de ensino de<br />

Santo Antônio de Jesus-Ba, organizado pela professora mestra Patrícia<br />

Andrade e financiado pelo PCIN (Programa de Iniciação Científica<br />

da UNEB), desde agosto de 2009.<br />

No projeto supracitado foi levado em consideração três variáveis<br />

sociais (escolarização, procedência geográfica e sexo) e seis variáveis<br />

linguísticas (configuração sintagmática do SN, função sintática<br />

do SN, número de constituintes flexionáveis do SN e saliência fônica),<br />

diante do fenômeno da concordância de número no SN.<br />

Para esse artigo foi selecionado apenas um grupo de informantes,<br />

formado por estudantes da quinta série, os quais se encaixam<br />

em duas células: estudantes oriundos da zona urbana e da zona rural.<br />

Desses grupos formou-se outra célula, o gênero (masculino e feminino),<br />

podendo tal distribuição ser visualizada no quadro abaixo:


Escolaridade<br />

5ª série<br />

Ensino Fundamental<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

47<br />

Quadro 1: Descrição da população em estudo<br />

Zona urbana Zona rural<br />

Feminino Masculino Feminino Masculino<br />

Informante Informante Informante Informante<br />

01<br />

02<br />

03<br />

04<br />

De posse dos inquéritos já transcritos, foi feita uma revisão<br />

destes através da audição das entrevistas que foram gravadas na escola,<br />

com duração média de trinta minutos cada uma delas. Nas<br />

transcrições foram recortados os sintagmas nominais pluralizáveis,<br />

constituídos de pelo menos dois elementos. Logo após, se iniciou o<br />

processo de codificação de dados.<br />

Estabelecidos os SN s a serem analisados, bem como as variáveis<br />

explanatórias e dependente, codificamos os dados levantados,<br />

preparando-os para a leitura pelo programa GOLDVARB 2005, uma<br />

nova versão do VARBRUL (Programa das Regras Variáveis), com a<br />

finalidade de analisar quantitativamente a variação da concordância<br />

nominal de número dos SN encontrados na fala dos entrevistados.<br />

2.3. Análise dos dados<br />

Como já relatado anteriormente, os dados que constarão nas<br />

análises são fornecidos através da ferramenta computacional<br />

GOLDVAB, colaborando para resultados mais precisos. Sendo assim,<br />

agora iniciaremos a parte mais envolvente do projeto, na qual os<br />

leitores constataram visualmente – em números – em que nível se<br />

encontra o fenômeno linguístico da concordância de número no sintagma<br />

nominal na comunidade em análise.<br />

Podemos observar, através das amostras analisadas, que a<br />

marca explícita de plural pode ser encontrada:<br />

1. Todos os elementos flexionáveis do SN:<br />

Ex.: “Todos os animais não falam” (INFO 03)


2. Em alguns elementos flexionáveis do SN:<br />

Ex.: “Todos os meus cachorroØ eu mandei para o interior”<br />

(INFO 01)<br />

3. Em apenas um dos elementos flexionáveis do SN:<br />

Ex.: “Meus amigoØ é tudo por fora” (INFO 04)<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

48<br />

Conforme foi discutido anteriormente, é através da perspectiva<br />

de análise não atomística que podemos, efetivamente, nos certificar<br />

do nível de aplicação da regra de concordância de número entre<br />

os elementos do sintagma nominal. Para as análises, através da variável<br />

dependente binária, fica estabelecido que a aplicação da regra<br />

ocorre se houver presença de marcas em todos os itens pluralizáveis<br />

do SN, enquanto que a ausência dessa marca, seja em apenas um dos<br />

elementos do SN sob análise, constitui-se falta de concordância.<br />

Foram analisados 138 SNs de mais de dois elementos flexionáveis.<br />

Desses 83 SNs não receberam marca de plural em todos os<br />

elementos flexionáveis, já 55 dos SNs apresentam regularidade na<br />

marca de plural. Percentualmente entendemos que:<br />

Fatores Número de ocorrências/Total % Input<br />

Com concordância 55/138 39 .60<br />

Sem concordância 83/138 60 .60<br />

Tabela 1: Aplicação da regra de concordância no SN,<br />

na fala dos estudantes da rede pública de Santo Antônio de Jesus-Ba<br />

O percentual de SNs de mais de dois elementos com todas as<br />

marcas de plural foi de 39% e com ausência de algumas dessas marcas<br />

temos 60%. O que equivale dizer que através da análise de um<br />

pequeno corpus se observa que há uma forte tendência de não marcação<br />

de plural em todos os elementos flexionáveis do SN.<br />

Na análise foram levadas em consideração duas variáveis sociais<br />

(procedência geográfica e sexo) e seis variáveis linguísticas<br />

(configuração sintagmática do SN, função sintática do SN, posição<br />

do SN em relação ao verbo, número de constituintes absolutos do<br />

SN, número de constituintes flexionáveis do SN e saliência fônica).<br />

Na análise em relação à procedência geográfica podemos observar<br />

que os falantes oriundos da zona rural e da zona urbana da ci-


dade SAJ equiparam-se quando se trata da marcação de plural nos itens<br />

flexionáveis do SN. Podendo ser visualizado da seguinte forma:<br />

Número de ocorrências/Total<br />

Fatores Com % Sem % Peso<br />

concordância concordância relativo<br />

Zona Urbana 34/87 39 53/87 60 .50<br />

Zona Rural 21/51 41 30/51 58 .49<br />

Tabela 1.1:<br />

Aplicação da regra de concordância no SN, conforme procedência geográfica<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

49<br />

Os falantes da zona urbana apresentam uma frequência de<br />

39% de SNs flexionados, enquanto os itens não flexionados ocorrem<br />

numa frequência de 60%. Este fator tem um peso relativo de .50, indicando<br />

sua relevância. Quanto aos falantes da zona rural observa-se<br />

uma recorrência de 41% de SNs marcados, contra 58% de SNs sem<br />

todas as marcas, apresentando peso relativo de .49.<br />

Nesta variável não encontramos discrepâncias no uso da concordância,<br />

conforme havíamos imaginado que aconteceria: os falantes<br />

da zona rural fazendo menos concordância que os da zona urbana.<br />

Entretanto, os números indicam um equilíbrio no emprego deste<br />

fenômeno. Inclusive o peso relativo dos dois fatores é praticamente o<br />

mesmo.<br />

Confirmando o já relatado por Scherre (1994) quando afirma<br />

que “[...] o fenômeno da variação de número no português falado do<br />

Brasil, pode ser caracterizado como um caso de variação linguística<br />

inerente, tendo em vista que ocorre em contextos linguísticos e sociais<br />

semelhantes [...]” (SCHERRE, 1994, p. 38). Ser da zona rural ou<br />

urbana não tem indicado se o falante é um usuário exclusivo da normal<br />

culta ou não, esses fatores estão tão implícitos no dia-a-dia do<br />

falante que para nos pesquisadores há uma linha tênue que define os<br />

grupos dos estigmatizados e dos inclusos.<br />

Diante dos dados acima apresentados notamos que realmente<br />

a variação na marcação do plural é uma constante na oralidade dos<br />

falantes analisados, e que apesar de ser uma variante estigmatizada<br />

se faz presente nos diferentes níveis sociais.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

50<br />

Já no que tange à variável gênero do informante notamos que<br />

o gênero feminino tende a marcar o plural um pouco mais em relação<br />

ao gênero masculino. Observe-se:<br />

Número de ocorrências/Total<br />

Fatores Com % Sem % Peso relativo<br />

concordância concordância<br />

Masculino 9/24 37 15/24 62 .52<br />

Feminino 46/114 40 68/114 59 .50<br />

Tabela 1.2:<br />

Aplicação da regra de concordância no SN, conforme a variável social gênero<br />

Mais uma vez, não encontramos grandes distinções no uso da<br />

concordância em função de diferentes fatores, uma vez que a frequência<br />

na fala dos informantes do gênero masculino é de 37% e na<br />

fala dos informantes do gênero feminino é de 40%.<br />

Em relação aos elementos sem concordância, os percentuais<br />

indicam uma frequência um pouco maior na fala dos informantes do<br />

gênero masculino (62%, contra 59%). É importante ressaltar que os<br />

dois fatores apresentam peso relativo relevante (.52 para o gênero<br />

masculino e .50 para o gênero feminino). Mais uma vez, os dados<br />

nos surpreendem quebrando a hipótese pré-levantada de que os falantes<br />

do gênero feminino tenderiam mais à marcação de plural.<br />

Considerando as duas variáveis sociais, procedência geográfica<br />

e gênero, podemos afirmar que nenhum dos dois fatores apresentou<br />

discrepâncias no que tange ao fenômeno da concordância. Os pesos<br />

gerados pelo programa GOLDVARB confirmou a estabilidade<br />

do fenômeno no corpus em análise.<br />

Apesar das limitações do projeto, se pode observar que os falantes<br />

da rede pública de ensino de Santo Antônio de Jesus-Ba, ainda<br />

se encontram em processo de variação em curso, por não apresentarem<br />

altos níveis de ausência da marca de plural em algum dos itens<br />

flexionáveis. Entretanto, isso não deve ser definitivo, pois só foi testado<br />

em apenas uma série (5ª série do fundamental). Doravante isso<br />

deve ser analisado na tentativa de buscar dados mais reais diante do<br />

maior número de ocorrências de SNs.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

51<br />

ANDRADE, Patrícia Ribeiro de. Um fragmento da constituição sócio-histórica<br />

do português do Brasil: variação na concordância nominal<br />

de número em um dialeto afro-brasileiro. Dissertação de Mestrado<br />

em Letras e Linguística: UFBA, Salvador, 2003.<br />

BAGNO, Marcos. Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa.<br />

São Paulo: Parábola, 2001.<br />

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 7.<br />

ed. São Paulo: Loyola, 2001.<br />

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. ver.<br />

e ampl. 16. Reimpr. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.<br />

DUBOIS-CHARLIER, Françoise. Bases de análise linguística. Trad.<br />

João A. Peres. Coimbra: Almeida, 1981.<br />

MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luíza. Introdução à sociolinguística:<br />

o tratamento da variação. 2. ed. São Paulo: Contexto,<br />

2004.<br />

NEGRÃO, E. V.; SCHER, A. P.; VIOTTI, E. . Sintaxe: explorando a<br />

estrutura da sentença. In: José Luiz Fiorin. (Org.). Introdução à linguística<br />

II: princípios de análise. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2003, v.<br />

II, p. 81-109.<br />

PERINI, Mário A. Sofrendo a gramática: ensaios sobre a linguagem.<br />

3. ed. São Paulo: Ática, 2003.<br />

SCHERRE, M. M. P. Aspectos da concordância de número no português<br />

do Brasil. Revista Internacional de Língua Portuguesa<br />

(RILP) - Norma e Variação do Português. Associação das Universidades<br />

de Língua Portuguesa, 1994.<br />

SCHERRE, M. M. P. & NARO, A. J. Sobre a concordância de número<br />

no português falado do Brasil. In: RURRINO, Giovanni (Org.).<br />

Dialettologia, geolinguistica, sociolinguistica. (Atti del XXI Congresso<br />

Internazionale di Linguistica e Filologia Romanza). Centro di<br />

Studi Filologici e Linguistici Siciliani, Universitá di Palermo. Tubingen:<br />

Max Niemeyer Verlag, 5, p. 509-523, 1998.<br />

TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. 2. ed. São Paulo:<br />

Ática, 1986.


1. Introdução<br />

A CONCORDÂNCIA VERBAL<br />

NO PORTUGUÊS POPULAR DE SALVADOR<br />

Welton Rodrigues Santos (UFBA)<br />

weltonsantos83@gmail.com<br />

A língua pode tomar formas diversas a depender da faixa etária<br />

do falante, sexo/gênero, escolarização, localização geográfica e<br />

até mesmo a depender da situação de fala.<br />

Analisar os falares de uma comunidade linguística consiste<br />

em ter um olhar bem apurado no que concerne à diversidade cultural<br />

e ao histórico, bem como ao modo de vida de determinados indivíduos.<br />

Neste trabalho monográfico, estaremos abordando o uso da<br />

concordância verbal mediante a análise de duas variáveis: faixa etária<br />

e escolarização. Para isso, tentaremos responder à seguinte indagação:<br />

Até que ponto a faixa etária e a escolaridade podem influenciar<br />

na utilização da concordância verbal? Na primeira variável, tentar-se-á<br />

uma análise a respeito da influência da idade na utilização da<br />

concordância verbal. Para tal estudo, chamaremos a atenção para as<br />

faixas etárias de 17 a 35 anos e de 51 anos em diante, nas quais veremos<br />

qual grupo de falantes aplicam de maneira mais frequente as<br />

regras de concordância verbal. Já na segunda variável, trabalharemos<br />

também com dois níveis de escolarização: fundamental e médio.<br />

Mostraremos a partir da averiguação de dados em situações reais de<br />

fala, se pesa ou não a variável escolaridade no uso da concordância<br />

verbal.<br />

Tomaremos por base diversos teóricos e pesquisadores que,<br />

de maneira exaustiva, já se debruçaram sobre o tema tratado neste<br />

trabalho. Nomes de pesquisadores como Anthony Julius Naro, Maria<br />

Marta Pereira Sherre, Dante Lucchesi e teóricos como Marcos Bagno,<br />

Willian Labov, Perini, dentre outros, darão o norte para o desenvolvimento<br />

das considerações que serão apresentadas.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

53<br />

Este trabalho de pesquisa objetiva-se em fazer uma abordagem<br />

referente ao uso da concordância verbal, tentado mostrar os<br />

principais casos de ausência de concordância (os que ocorrem com<br />

mais frequência) segundo a gramática tradicional. Iniciaremos esclarecendo<br />

o termo “concordância” trazendo uma abordagem epistemológica<br />

e sua utilização dentro da gramática normativa. Nesta parte,<br />

estaremos apresentando o conceito de concordância verbal, bem como<br />

o diferenciando da concordância nominal.<br />

Em seguida, estaremos apresentando a base teórica que norteará<br />

o trabalho. Mostraremos resultados já encontrados por outros<br />

pesquisadores da área de linguagens e também a metodologia utilizada<br />

para encontrar os resultados deste trabalho de pesquisa. Em última<br />

instância, traremos a análise dos dados colhidos a partir da observância<br />

de inquéritos do PEPP (programa de estudo do português<br />

popular de salvador).<br />

Por fim, espera-se que este trabalho seja como uma mola propulsora<br />

para a investigação de diversos outros aspectos, variações e<br />

mudanças apresentados pela língua.<br />

2. Concordância verbal<br />

De acordo com Ferreira (ano, p), o termo concordância significa<br />

“o ato de concordar, estar de acordo, em harmonia, em consonância”.<br />

Segundo o autor significa um "processo sintático em marcas<br />

morfológicas de uma palavra, tais como número, pessoa ou caso, são<br />

repetidas em outra(s) palavra(s) presente(s) no enunciado, indicando<br />

que formam, em conjunto, uma construção".<br />

Partindo da origem e da raiz da palavra, o termo concordância<br />

terá como significado “ter o mesmo coração, ser de um só coração”<br />

(do latim cum corde, literalmente “com o coração”). A gramática<br />

normativa faz uso do termo de uma forma metafórica, pois a concordância<br />

nos estudos gramaticais tem como objetivo harmonizar termos,<br />

ideias e/ou sentenças dentro das orações e períodos.<br />

A concordância na gramática tradicional pode ser dividida em<br />

dois tipos: nominal e verbal. A primeira trata da concordância em<br />

gênero e número do substantivo com seus determinantes – o adjeti-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

54<br />

vo, pronome adjetivo, artigo, numeral e particípio. Já o segundo tipo<br />

de concordância (objeto desse estudo), de acordo com Almeida<br />

(1999), aborda a relação de concordância entre o verbo e o sujeito<br />

em pessoa e número, ou seja, o verbo deverá ir para o mesmo número<br />

e pessoa do sujeito. Ainda de acordo com a gramática citada, deve<br />

ficar evidente que o verbo é quem deve concordar com o sujeito e<br />

não o contrário, porque o verbo é que depende do sujeito, ele é regido.<br />

3. Base teórica<br />

A sociolinguística é uma subárea da linguística que trata da<br />

língua em uso, considerando as relações entre suas estruturas linguísticas<br />

e os aspectos sociais e culturais de sua produção (CEZARIO e<br />

VOTRE, 2008). Tal ciência trata de todas as realizações verbais,<br />

buscando entender os principais fatores que impulsionam e inibem as<br />

variações e mudanças linguísticas e o nível de estabilidade de determinado<br />

fenômeno linguístico. Fernando Tarallo (2007, p. 63) em seu<br />

livro intitulado “A Pesquisa Sociolinguística”, sobre a questão da variação<br />

ou mudanças linguísticas, diz: "Nem tudo que varia sofre mudança;<br />

toda mudança linguística, no entanto, pressupõe variação. Variação,<br />

portanto, não implica mudança; mudança, sim, implica sempre<br />

variação".<br />

Em outras palavras, as mudanças linguísticas são antecedidas<br />

por variações, porém o fato de ocorrer variação na língua não significa<br />

que haverá mudança. Com isso, podemos perceber e distinguir<br />

de maneira objetiva a variação e a mudança linguística.<br />

Apesar de o aspecto social na língua ter sido chamado atenção<br />

desde os anos iniciais do século XX, através do linguista suíço Ferdinand<br />

de Saussure, a sociolinguística somente estabeleceu-se como<br />

ciência nos Estados Unidos, na década de 1960, com William Labov,<br />

criador da teoria variacionista. Em pesquisas sociolinguísticas, adota-se<br />

uma metodologia bem delimitada, que possibilita a coleta e codificação<br />

de dados. Aspectos do falante como contexto social, faixa<br />

etária, escolaridade, condição socioeconômica, sexo/gênero, dentre<br />

outros, são fatores preponderantes nos estudos sociolinguistas labovianos.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

55<br />

Dentre diversas contribuições das pesquisas sociolinguistas,<br />

destaca-se a constatação de variações na fala ocorrentes entre indivíduos<br />

de diversos níveis de escolarização a depender da situação de<br />

fala. Pode-se chegar a essa conclusão através da metodologia sociolinguista<br />

de análise da língua em situação de fala real. Até então, atribuía-se<br />

a fala não padrão somente a indivíduos não escolarizados.<br />

Em um estudo realizado no estado do Rio de Janeiro no ano<br />

de 1970, constatou-se que falantes não escolarizados diante da variante<br />

“As meninas brincam no quintal”, davam preferência à realização<br />

“As menina brinca no quintal”, ou seja, apresentavam a marca de<br />

pluralidade somente no determinante. Quanto ao núcleo do sujeito e<br />

ao verbo, a marca de plural não se fazia presente.<br />

A sociolinguística, no decorrer dos anos, além de buscar descrever<br />

e explicar os fenômenos linguísticos apresentou também subsídios<br />

para a área do ensino de línguas. Os sociolinguistas estudam<br />

qualquer variedade de fala e apresentam a língua das classes menos<br />

favorecidas (que se distanciam da norma padrão) não como inferior,<br />

insuficiente ou errada. Assinalam que esses falares são baseados em<br />

regras gramaticais, porém seguindo uma orientação de concordância<br />

distinta daquela utilizada na língua padrão. Para exemplificar essa<br />

forma distinta de concordância da língua não padrão, reanalisemos o<br />

exemplo supracitado “As menina brinca no quintal”. Vejamos que a<br />

marca de pluralidade aparece apenas no determinante se fazendo<br />

desnecessária nos outros elementos do enunciado para se compreender<br />

que não se trata de somente uma menina, mas sim de duas ou<br />

mais. Dessa forma, cria-se um pensamento menos preconceituoso,<br />

pois se passa a ver a língua padrão apenas como privilegiada socialmente,<br />

mas, no que concerne a sua estrutura e funcionamento, não<br />

existe nenhuma diferença, pois a língua conseguiu cumprir o seu papel<br />

– estabelecer a comunicação.<br />

De acordo com Bagno (2007), a competência comunicativa<br />

da língua não está relacionada com a gramática estudada na escola,<br />

mas sim com a própria vivência e experiência de mundo do indivíduo.<br />

Ele cita ainda, que cada pessoa tem internalizada a gramática de<br />

sua língua materna e, assim sendo, qualquer sentença produzida não<br />

constituirá erro, pois apenas saberes secundários (como é o caso da<br />

gramática aprendida na escola) podem constituir erros por serem a-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

56<br />

prendidas, praticadas, treinadas e memorizadas. Bagno faz referência<br />

ainda a Perini (1997) que diz que ”nosso conhecimento da língua é<br />

ao mesmo tempo altamente complexo, incrivelmente exato e extremamente<br />

seguro”. Entretanto, Perini continua dizendo que:<br />

Qualquer falante do português possui um conhecimento implícito altamente<br />

elaborado da língua, muito embora não seja capaz de explicitar<br />

esse conhecimento. E [...] esse conhecimento não é fruto de instrução recebida<br />

na escola, mas foi adquirido de maneira tão natural e espontânea<br />

quanto a nossa habilidade de andar. Mesmo pessoas que nunca estudaram<br />

gramática chegam a um conhecimento implícito perfeitamente adequado<br />

da língua. São como pessoas que não conhecem a anatomia e a fisiologia<br />

das pernas, mas que andam, dançam, nadam e pedalam sem problemas.<br />

Naro e Scherre (2007) tratam, ao longo de seus sete capítulos,<br />

de temas relativos à origem do português brasileiro e suas peculiaridades<br />

estruturais.<br />

O capítulo dois, mais precisamente, tratam da concordância<br />

variável do português, analisando este processo tanto no Brasil quanto<br />

em Portugal. Os autores apresentam as duas correntes que analisam<br />

ou procuram explicar a concordância verbal no Brasil, derivação<br />

ou crioulização, fundamentam sua tese – a derivação – apresentando<br />

a concordância variável no português europeu moderno, trata da documentação<br />

histórica da concordância variável no português europeu<br />

e suas implicações referentes ao tema.<br />

A respeito da teoria da derivação Naro e Scherre acreditam<br />

que a falta variável de concordância, assim como outros fenômenos<br />

variáveis no português não padrão do Brasil, tem origem na deriva<br />

secular das línguas. Afirmaram assim que a falta variável de concordância<br />

é uma tendência linguística e poderia ocorrer tanto no Brasil<br />

quanto em Portugal em maior ou menor grau e em épocas diferentes.<br />

Já a teoria do contato ou crioulização defende a tese de que,<br />

por ocasião da colonização no Brasil, o contato entre línguas distintas<br />

e a necessidade de comunicação para o exercício das atividades<br />

laborais deram origem à língua emergencial – Pidgin – e mais tarde à<br />

língua crioula. – língua materna para a geração subsequente. Tais<br />

contatos entre línguas se valeram da simplificação estrutural e gramatical,<br />

o que pode ter influenciado através da transmissão linguística<br />

irregular na falta variável de concordância no português brasileiro.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

57<br />

Com relação ao português europeu moderno, os autores comprovam<br />

que há variação na concordância, embora os linguistas portugueses<br />

a neguem. A monografia de Joana Lopes Alves intitulada<br />

“A linguagem dos pescadores de Ericeira” comprova a afirmativa<br />

dos autores. Salienta-se, no entanto, que os linguistas portugueses<br />

concordam em haver variação na concordância em Portugal apenas<br />

em alguns aspectos como no uso variável de desinências verbais de<br />

3ª pessoa do singular e 1ª do plural com a expressão “a gente” e o<br />

uso variável do –S final nas regiões de Andaluzia e especialmente<br />

em Barrancos que já pertenceu à Espanha.<br />

Os autores levantaram uma documentação histórica para a<br />

comprovação da concordância variável no português europeu, exemplificando<br />

tais ocorrências através de tabelas.<br />

Ao confrontarem as duas correntes de estudo das variantes de<br />

concordância, Naro e Scherre defendem a teoria da derivação, argumentando<br />

a falta de variável de concordância em todo o território<br />

brasileiro, independentemente do contato com línguas africanas ou<br />

processo de crioulização. Afirmam que a posição do verbo em relação<br />

ao sujeito é um fato plausível de observação visto que os estudos<br />

apontam a ocorrência em maior ou menor grau de variante de concordância<br />

a partir desse aspecto.<br />

O português do Brasil seria então resultado natural da deriva<br />

secular do português trazido de Portugal com o agravamento do contato<br />

com falantes de línguas das mais diversas origens.<br />

Por fim, os pressupostos teórico-metodológicos da sociolinguística<br />

são utilizados em vários centros de pesquisa em todo o<br />

mundo. Ainda hoje, muitos estudos se encontram em andamento, no<br />

entanto, existe muito a ser explorado.<br />

4. Antecedentes<br />

Diversos pesquisadores sociolinguistas tem se interessado pelo<br />

estudo da concordância verbal em seus diversos aspectos. Dentre<br />

esses pesquisadores, dois nomes tem se destacado: Anthony Julius<br />

Naro e Maria Marta Pereira Sherre (1999). Em um dos seus trabalhos<br />

sobre o tema citado, eles analisaram a influencia da saliência fônica


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

58<br />

em textos antigos e modernos, tendo como corpus enunciados retirados<br />

de jornais e revistas de circulação nacional. Nessa pesquisa, observaram<br />

a concordância variável de número verbo/sujeito e constataram<br />

que a saliência fônica controla a frequência relativa de uso de<br />

marca de plural nos verbos. Além disso, constataram também que esse<br />

fenômeno ocorre tanto na fala como na escrita em construções<br />

simples ou complexas e com sujeitos de núcleo simples ou compostos.<br />

A pesquisadora Maria Benedita dos Santos (1999) da Universidade<br />

Federal de Alagoas (UFAL) analisou como se processa a variação<br />

verbo/sujeito na língua falada por alunos da 1ª a 5ª série do<br />

ensino fundamental. Para essa averiguação, fez uso do banco de dados<br />

do projeto “A Língua Falada em Alagoas” do curso de pósgraduação<br />

em Letras da UFAL. Para essa pesquisa, ela utilizou para<br />

análise duas situações de fala: Posição sujeito (anteposto e posposto<br />

ao verbo) e a distância entre o sujeito e o verbo.<br />

Ao concluir a análise dos dados, Benedita chegou à conclusão<br />

de que a ausência de concordância verbal é mais acentuada quando o<br />

sujeito se encontra posposto ao verbo e também com o sujeito contíguo<br />

(sujeito imediatamente antes do verbo).<br />

Constância Maria Borges de Souza (1999), pesquisadora da<br />

Universidade Federal da Bahia, analisou em um de seus trabalhos a<br />

relação entre a concordância verbal e a saliência fônica do verbo na<br />

posição 3ª pessoa do singular/3ª pessoa do plural, e a posição e a distância<br />

do sujeito em relação ao verbo na fala de pessoas de diferentes<br />

níveis de escolaridade da cidade de Salvador, distribuídas em dois<br />

grupos: sexo masculino e feminino. Para esse trabalho, a pesquisadora<br />

utilizou como corpus seis inquéritos do PEPP / SSA.<br />

A partir das análises feitas, concluiu-se que quando o sujeito<br />

se encontra à esquerda do verbo, o falante emprega mais marcas de<br />

concordância. No entanto, a quantidade de marcas de concordância<br />

vai decrescendo à medida que o sujeito vai se distanciando do verbo.<br />

Dante Lucchesi (1994), ao observar a variação linguística entre<br />

falantes de uma comunidade rural afro-brasileira, constatou uma<br />

peculiaridade em relação aos resultados obtidos nos centros urbanos.<br />

Enquanto que as regras de concordância verbal nas grandes cidades


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

59<br />

se encontram em diminuição nas faixas etárias mais jovens, nesta<br />

comunidade ocorre o contrário, os jovens estão empregando com<br />

mais frequência as regras de concordância verbal que pessoas idosas.<br />

De acordo com o estudo, isso se dá por alguns aspectos. O primeiro<br />

deles e talvez o principal, é o fato dos jovens estarem tendo mais acesso<br />

a educação. Em seguida, pode-se ressaltar que estes jovens<br />

também estão saindo mais de suas comunidades para trabalhar em<br />

outras áreas que não a lavoura e, além disso, estão mais informados<br />

através da televisão e do rádio. Enquanto que os mais idosos vivem<br />

de forma mais confinada, isolada o mundo globalizado.<br />

A maior interação do individuo no processo produtivo da vida<br />

social, exposto a outros padrões linguísticos, favorece a assimilação<br />

de uma nova forma de utilização da língua e, por consequência, das<br />

regras de concordância verbal.<br />

Ainda de acordo com o estudo de Lucchesi, existem as mulheres<br />

que se restringem aos afazeres domésticos e à criação dos filhos.<br />

Estas por sua vez, também perpetuam, na maior parte dos casos,<br />

a não utilização das regras de concordância pelo isolamento que<br />

vivem em suas comunidades. Assim sendo, chega-se a conclusão de<br />

que os mais jovens são os que lideram essa ascendência quanto à utilização<br />

da concordância.<br />

Existem ainda muitos outros pesquisadores que já se dispuseram<br />

a tratar sobre a concordância verbal encontrando resultados diversos<br />

e muito pertinentes para a compreensão da língua como um<br />

sistema que sofre variações e mudanças constantes em sua trajetória.<br />

5. Metodologia<br />

A base teórica deste trabalho de pesquisa baseia-se nos estudos<br />

sociolinguísticos que tem sido objeto de inúmeras investigações<br />

nos últimos anos. Partindo do próprio nome “sociolinguística”, podese<br />

perceber que esta área da ciência estabelece uma correlação entre<br />

o estudo da língua em situação real de utilização e a sociedade, relação<br />

esta que resulta nas variações linguísticas objeto deste trabalho.<br />

Portanto, será utilizado para esta investigação um corpus<br />

constituído por 16 inquéritos do PEPP (Programa de Estudos do Por-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

60<br />

tuguês Popular de Salvador). Também serão analisadas duas variantes<br />

– faixa etária e escolaridade. Para tanto, adotar-se-á uma fundamentação<br />

teórica baseada na teoria da variação, cuja corrente, segundo<br />

Mollica (1994), se apresenta “como um espaço interdisciplinar,<br />

que atua nas fronteiras entre língua e sociedade, focalizando<br />

principalmente os empregos concretos da língua”.<br />

Se por um lado a Teoria da Variação atua nas fronteiras entre<br />

língua e sociedade, por outro, essa teoria contempla também questões<br />

relacionadas à variação e à mudança linguística, não de forma<br />

isolada, mas buscando desvendar o que existe na interface linguístico<br />

e extralinguístico e como esses fatores atuam ora impulsionado, ora<br />

retardando um processo de mudança.<br />

O percurso deste trabalho monográfico foi constituído por<br />

uma pesquisa bibliográfica na qual se buscou a partir de estudiosos<br />

da área, a base teórica necessária para a compreensão da variação. E<br />

também, por uma coleta de dados em situações reais de fala, através<br />

do PEPP, onde se teve o embasamento concreto para os resultados<br />

obtidos.<br />

Nessa perspectiva, este trabalho consiste em uma pesquisa investigativa<br />

de resultados quantitativos. Para isso, será constituído um<br />

corpus a partir de um grupo de inquéritos, em que os informantes se<br />

distribuirão em duas faixas etárias que compreendem a de 17 a 35<br />

anos e 51 em diante. Quanto a variável escolaridade os informantes<br />

se dividirão em ensino fundamental (primário) e ensino médio completo<br />

(antigo 2º grau).<br />

Por fim, os resultados obtidos serão apresentados em seus valores<br />

absolutos e também através de gráficos que nos darão a noção<br />

contrastiva dos somatórios.<br />

6. Análise de dados<br />

Os dados que serão analisados e apresentados estão baseados<br />

em variáveis extralinguísticas como faixa etária e escolaridade. Todos<br />

os inquéritos avaliados, extraídos do PEPP (Programa de Estudos<br />

do Português Popular de Salvador), foram divididos de acordo<br />

com as variáveis supracitadas.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

61<br />

A partir do corpus analisado, pôde-se chegar à conclusão,<br />

mais uma vez, de que as variáveis linguísticas existem e estão latentes<br />

a todos, e se encontram em diversos níveis da fala humana. Outro<br />

dado importantíssimo, constatado a partir deste estudo, foi o quanto a<br />

variável faixa etária influencia no falar do individuo, mais precisamente<br />

no que concerne a concordância verbal (objeto deste estudo).<br />

Assim sendo, observou-se neste trabalho que pessoas com idade de<br />

51 anos em diante, tendo cursado apenas o ensino fundamental ou<br />

completado o ensino médio, empregam com muito mais frequência a<br />

concordância verbal do que pessoas com faixa etária de 17 a 35 anos<br />

e que possuíam a mesma escolaridade. Esse fenômeno se dá por diversos<br />

fatores que serão abordados mais adiante.<br />

Vale salientar, por fim, que as análises e considerações que<br />

serão apresentadas a seguir se baseiam a partir da gramática normativa.<br />

6.1. Variável escolaridade<br />

Na análise dos inquéritos do PEPP referentes a indivíduos do<br />

ensino fundamental (primário), pôde-se perceber um número acentuado<br />

de falta de concordância verbal sujeito/verbo em sentenças simples,<br />

como em situações de uso do pronome pessoal “eles” (sujeito) e<br />

os verbos relacionados a esse termo. Vejamos os exemplos:<br />

1. “[...] todos eles corre [...]”<br />

2. “[...] eles só vai [...]”<br />

3. “[...] eles mexe mesmo [...]”<br />

4. “[...] você não sabe se eles está [...]”<br />

Tratando apenas da situação de concordância sujeito/verbo,<br />

sendo o sujeito o pronome “eles” (3ª pessoa do plural), foram encontradas<br />

17 ocorrências em que não se apresentavam a marca de pluralidade<br />

nos verbos relacionados a esse sujeito, ou seja, aproximadamente<br />

27,5 % da ausência de concordância se deu por este fator.<br />

Outro dado interessante quanto aos informantes desse nível de<br />

escolaridade, consiste na presença marcante de concordância verbal<br />

sujeito/verbo quando esse sujeito é o indefinido “a gente”. Essa ex-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

62<br />

pressão por se tratar de uma linguagem mais próxima das camadas<br />

populares, pois substitui o termo “nós” (2ª pessoa do plural), e por<br />

ser constantemente usada por todos os falantes, não cria nenhum tipo<br />

de dificuldade ou resistência na sua utilização. Vejamos os exemplos:<br />

1. [...] as condições financeiras da gente é muito [...]<br />

2. [...] que a gente vá de calça [...]<br />

3. [...] a gente brincava [...]<br />

4. [...] a gente mata em casa [...]<br />

Nesse caso de concordância verbal, a gramática normativa<br />

nos orienta que o sujeito “a gente” por ser um indefinido, concordará<br />

com a 3ª pessoa do singular. Portanto, não houve ocorrências de falta<br />

de concordância entre os informantes do ensino fundamental, no que<br />

concerne ao uso do indefinido “a gente”.<br />

Ao se tratar de informantes que possuem o ensino médio<br />

completo, constatou-se um número mais elevado de falta de concordância<br />

verbal sujeito/verbo no que tange a utilização do verbo “ser”,<br />

conforme segue:<br />

1. [...] as meninas era de saia [...]<br />

2. [...] as coreografias é em músicas [...]<br />

3. [...] é muitas, muitas brincadeiras [...]<br />

4. [...] eu brincava com meus primos, era primos, era amigos<br />

[...]<br />

Nesta relação sujeito/verbo, podemos perceber o verbo “ser”<br />

como um elemento fomentador da ausência de concordância. Nos oito<br />

inquéritos de informantes com ensino médio completo analisados,<br />

foram encontrados 34 casos de falta de concordância verbal sujeito/verbo.<br />

Desses, oito casos correspondem à falta de concordância<br />

entre o sujeito e o verbo “ser”, número que corresponde aproximadamente<br />

a 24%.<br />

Graficamente temos:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

63<br />

Através dessa pesquisa, vale destacar ainda um outro aspecto<br />

interessante. Constatou-se que há um número considerável de ausência<br />

de concordância quando o verbo se encontra após o pronome relativo<br />

“que”, como pode ser visto nos exemplos abaixo:<br />

1. [...] dessas pessoas que estudou [...]<br />

2. [...] tem outros que era [...]<br />

3. [...] tem uns que se sobressai [...]<br />

4. [...] muitos colegas que acha [...]<br />

No caso referente à falta de concordância verbal depois do<br />

pronome relativo “que”, dos 34 casos de ausência de concordância<br />

sujeito/verbo, 7 se apresentaram com o relativo “que” entre o sujeito<br />

e o verbo, perfazendo assim um percentual aproximado de 21% de<br />

falta de concordância.<br />

Graficamente temos:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

64<br />

Partindo dos dados gerais analisados para este trabalho de<br />

pesquisa, o efeito da escolarização na aplicação da concordância<br />

verbal sujeito/verbo foi preponderante. Pôde-se perceber que indivíduos<br />

com o ensino médio completo apresentaram menos ocorrências<br />

de falta de concordância, em detrimento aos que possuíam apenas o<br />

ensino fundamental. Enquanto que os informantes de ensino médio<br />

apresentam 34 casos de falta de concordância sujeito/verbo, os de<br />

ensino fundamental apresentaram 62 ocorrências, ou seja, um número<br />

que equivale a um acréscimo de mais de 82,35%.<br />

Assim, podemos concluir que o tempo em que o individuo<br />

permanece na escola consiste em um fator importante na aquisição<br />

das normas da concordância verbal. Vários aspectos podem influenciar<br />

nessa constatação. Um deles pode se dar pelo fato de a concordância<br />

verbal ser um conteúdo gramatical que sua abordagem é feita<br />

a partir da 7ª série, quando do inicio do estudo da sintaxe, e este<br />

mesmo conteúdo é revisto com mais aprofundamento durante o estudo<br />

no ensino médio. Outro aspecto que pode também influenciar é a<br />

questão da convivência com pessoas escolarizadas no ambiente escolar.<br />

Ao estar em contato constante com professores de língua portuguesa<br />

e também de outras disciplinas, o individuo pode perfeitamente<br />

assimilar a concordância mesmo sem o estudo sistemático das regras,<br />

visto que a prática, em muitos casos, é muito mais eficaz que a<br />

teoria.


6.2. Variável faixa etária<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

65<br />

A faixa etária é outra variável que pode ser analisada nos estudos<br />

sociolinguísticos e que traz um grande arcabouço de informações.<br />

Dados como conservação e mudanças linguísticas podem ser<br />

investigados a partir da observação de distintas faixas etárias.<br />

O corpus em questão é constituído por inquéritos do PEPP em<br />

que serão analisados informantes com idades entre 17 e 35 anos e de<br />

51 anos em diante. Observaremos, então, em quais aspectos se diferem<br />

os falares desses dois grupos de informantes e, em termos quantitativos,<br />

até que ponto ocorre essas diferenças em relação à concordância<br />

verbal sujeito/verbo.<br />

Em oito inquéritos analisados de pessoas com faixa etária entre<br />

17 a 35 anos foram encontrados 60 casos de ausência de concordância<br />

verbal sujeito/ verbo. Das ausências de concordância encontradas,<br />

o aspecto que mais chamou a atenção foi o da ausência da<br />

marca de pluralidade “m” no final dos verbos em 3ª pessoa do plural,<br />

conforme se pode observar nas sentenças a seguir:<br />

1. [...] as meninas tinha [...]<br />

2. [...] todos eles corre [...]<br />

3. [...] eles exige que a gente vá de calça [...]<br />

4. [...] as pessoas invade [...]<br />

Neste aspecto, correspondente à concordância sujeito/verbo<br />

foram detectados 27 casos de ausências da marca “m”, sendo assim<br />

um valor que corresponde a um percentual de 45% do total de casos.<br />

Graficamente temos:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

66<br />

Nos inquéritos correspondentes a informantes com idade de<br />

51 anos em diante, pôde-se perceber uma conservação maior no que<br />

concerne ao uso da língua, mais precisamente ao que compete a aplicação<br />

da concordância verbal sujeito/verbo. Independentemente do<br />

nível de escolaridade desses informantes, houve um uso maior da<br />

concordância em questão. No entanto, um aspecto que foi propulsor<br />

da ausência de concordância nesta faixa etária foi a distância entre o<br />

sujeito e o verbo. Em situações em que o verbo se encontra separado<br />

por uma ou mais palavras do núcleo do sujeito, a tendência em ocorrer<br />

falta de concordância será maior, como podemos ver nos exemplos<br />

a seguir:<br />

1.[...] os jovens de hoje em dia é [...]<br />

2. [...] elas mesma que não se respeita [...]<br />

3. [...] muitos professores que não se interessa [...]<br />

4. [...] tem muitos que não se interessa [...]<br />

Em situações de concordância com o verbo imediatamente<br />

após o sujeito foram encontrados 7 casos de falta de concordância,<br />

enquanto que nas situações em que o verbo se encontra separado por<br />

uma ou mais palavras do núcleo do sujeito foram registradas 10 ocorrências.


Vejamos no gráfico a seguir:<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

67<br />

Partindo dos dados analisados, observou-se que a faixa etária<br />

também foi um fator considerável quanto à aplicação da concordância<br />

verbal. Enquanto que falantes com idade de 51 anos em diante<br />

apresentaram 36 casos de ausência de concordância verbo/sujeito, os<br />

de 17 a 35 anos incidiram 60 vezes nessa falta de concordância, valor<br />

correspondente a um acréscimo de 66,7%, conforme pode ser visualizado<br />

no gráfico abaixo.<br />

Diante dos números apresentados, percebe-se uma tendência à<br />

não utilização da concordância verbal por parte de indivíduos mais<br />

jovens (neste caso na faixa etária de 17 a 35 anos). Essa faixa etária<br />

apresenta uma inclinação maior para uma inovação linguística, enquanto<br />

que pessoas mais idosas tendem a utilizar a língua de forma<br />

mais conservadora, observando assim, aspectos mais formais da língua.<br />

6.3. Escolaridade / Faixa etária<br />

Ao se fazer o cruzamento de dados da faixa etária com a escolaridade<br />

dos falantes, os resultados não foram tão diferentes dos já<br />

mencionados, isto é, os falantes mais jovens, independente da escolarização,<br />

apresentaram maiores índices da não utilização da concor-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

68<br />

dância verbal sujeito/verbo, enquanto que os informantes de 51 anos<br />

em diante demonstraram uma preocupação maior no que se refere à<br />

norma padrão da língua.<br />

Os informantes correspondentes à faixa etária de 17 a 35 anos,<br />

que cursaram o ensino fundamental, apresentaram 35 ocorrências<br />

de ausência de concordância. No entanto, os inquiridos de 51<br />

anos em diante constituíram um somatório de 27 ocorrências, ou seja,<br />

22,9% a menos nos casos de concordância sujeito/verbo.<br />

No entanto, ao se tratar de informantes das duas faixas etárias<br />

citadas, porém com ensino médio completo, os resultados constituíram<br />

uma diferença gritante. Falantes mais jovens ocorreram 25 vezes<br />

na ausência de concordância, enquanto que os mais idosos obtiveram<br />

um somatório de apenas 9 ocorrências. Vejamos graficamente.<br />

Podemos atribuir esse resultado a aspectos profissionais dos<br />

informantes e pelo próprio meio social ao qual estão inseridos. Em<br />

torno de vinte e cinco anos atrás, uma pessoa que concluía o ensino<br />

médio tinha uma boa colocação no mercado de trabalho. Profissões<br />

como, administrador, contabilista, professor e outras mais, eram exercidas<br />

por profissionais de ensino médio. Por esse motivo, havia<br />

uma preocupação muito maior no que se refere aos profissionais de<br />

escolarização média quanto ao uso da língua que na sua maioria exerciam<br />

cargos de chefia. Em contra partida, os empregos atribuídos


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

69<br />

a indivíduos de escolaridade média atualmente são aqueles que não<br />

se tem a necessidade de esmero na utilização da língua, em muitos<br />

deles se utiliza apenas a força braçal.<br />

7. Considerações finais<br />

Ao longo das pesquisas para a preparação deste trabalho monográfico,<br />

muitas inquietações e questionamentos surgiram sobre as<br />

possíveis formas de utilização da língua, mais precisamente ao que<br />

concerne ao uso da concordância verbal entre populares da cidade do<br />

Salvador. Essas inquietações e questionamentos foram a razão para o<br />

desenvolvimento teste tema que, apesar de muito pesquisado e comentado<br />

entre os linguistas, ainda trás motivações para novas discussões<br />

e abordagens.<br />

Com base em análises de dados reais retirados de situações<br />

naturais de fala, podemos perceber a heterogeneidade da língua que,<br />

ao mesmo tempo, retrata uma homogeneidade, pois até mesmo o caráter<br />

heterogêneo da língua pressupõe um sistema devidamente estruturado.<br />

Este trabalho de pesquisa iniciou-se com uma abordagem epistemológica,<br />

trazendo a origem da palavra concordância e seus diversos<br />

significados assumidos a depender do contexto em que se encontra.<br />

Em continuação, abordou-se a visão de alguns teóricos que, a<br />

partir de seus conhecimentos, oportunizaram e conduziram as análises<br />

desta pesquisa.<br />

A partir da observância dos dados retirados dos inquéritos do<br />

PEPP, podemos concluir que tanto a escolaridade como a faixa etária<br />

do individuo influenciará de forma considerável na utilização da língua.<br />

Viu-se que falantes de escolaridade média aplicam mais a concordância<br />

verbal (de acordo com a gramática tradicional) do que falantes<br />

com o curso fundamental. Outro dado que se concluiu através<br />

desta pesquisa foi que falantes com idade de 51 anos em diante aplicaram<br />

muito mais concordâncias conforme a norma padrão do que<br />

pessoas de 17 a 35 anos de idade.<br />

Por fim, nesta monografia não se encerram as possibilidades<br />

de discussões referentes a concordância verbal. Temos aqui somente


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

70<br />

uma minúscula parcela de tudo que ainda pode ser resgatado e observado.<br />

Como consta na introdução, este trabalho deverá servir tão<br />

somente como uma mola propulsora para que outros interessados<br />

neste assunto possam se debruçar e se deleitar nas discussões sobre<br />

esse tema tão vasto que é a Concordância Verbal no Português Popular<br />

de Salvador.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica da língua<br />

portuguesa. 44. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.<br />

CEZARIO, Maria Maura; VOTRE, Sebastião. Sociolinguística. In:<br />

MARTELOTTA, Mario Eduardo (org.). Manual de linguística. 1.<br />

ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 141 – 153.<br />

LUCCHESI, Dante. Variação e norma: elementos para uma caracterização<br />

sociolinguística do português do Brasil. Revista Internacional<br />

da Língua Portuguesa, v. 12, p. 17-28.<br />

MOLLICA, Maria Cecília. Fundamentação teórica: conceituação e<br />

delimitação. In. MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza<br />

(Orgs.). Introdução à sociolinguística: o tratamento da variação. 1.<br />

ed. São Paulo: Contexto, 2003, p. 9-14.<br />

NARO, Anthony Julius. Modelos quantitativos e tratamento estatístico.<br />

In. MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza (Orgs.).<br />

Introdução à sociolinguística: o tratamento da variação. 1. ed. São<br />

Paulo: Contexto, 2003, p. 15-25.<br />

NARO, Anthony Julius; SCHERRE, Maria Marta. Concordância variável<br />

em Português: A situação no Brasil e em Portugal. In. S-<br />

CHERRE, Maria Marta (org.). Origens do português brasileiro. 1.<br />

ed. São Paulo: Parábola, 2007, p. 49-69.<br />

PAIVA, Maria da Conceição de. A variável gênero/sexo. In. MOL-<br />

LICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza (Orgs.). Introdução à<br />

sociolinguística: o tratamento da variação. 1. ed. São Paulo: Contexto,<br />

2003, p. 33-42.<br />

PERINI, Mario Alberto. Para uma nova gramática do português. 3.<br />

ed. São Paulo: Ática, 1986.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

71<br />

SOUZA, Maria Borges de. Posição do sujeito e fatores sociais na<br />

concordância verbal em Salvador. In: MOURA, Denilda (Org.). Os<br />

múltiplos usos da língua. 1. ed. Maceió, 1999, p. 506-510.<br />

TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. 3. ed. São Paulo:<br />

Ática, 2000.<br />

VOTRE, Sebastião Josué. Relevância da variável escolaridade. In.<br />

MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza (Orgs.). Introdução<br />

à sociolinguística: o tratamento da variação. 1. ed. São Paulo:<br />

Contexto, 2003, p. 51-56.<br />

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio<br />

da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 197?.


A CONSTRUÇÃO DO PÚBLICO LEITOR<br />

EM TABLOIDES DO RIO DE JANEIRO<br />

Michelle Martins de Mattos Rangel<br />

michellemichellinha@hotmail.com<br />

Desde as primeiras publicações dos jornais Meia Hora de Notícias<br />

e Expresso da Informação no estado do Rio de Janeiro em setembro<br />

de 2005 e março de 2006, respectivamente, percebe-se que<br />

estes jornais têm uma grande circulação. Em um ranking nacional 1 o<br />

jornal Meia Hora ocupa a 6ª posição com a média de publicação<br />

mensal de 214.768 exemplares. O jornal Expresso, por outro lado<br />

ocupa a 15ª posição com a média de publicação mensal de 64.236<br />

exemplares. O crescimento da divulgação desses tabloides 2 constitui<br />

a motivação principal para analisar tais publicações. Soma-se a isso<br />

o fato de que ambos apresentam um projeto gráfico semelhante, bem<br />

como a configuração da manchete em sua multimodalidade.<br />

Considerando essas questões e compreendendo que as construções<br />

de significações de um texto jornalístico estão intimamente<br />

ligadas ao tipo de veículo adequado à expectativa de um leitor potencial,<br />

conforme observou Corrêa (2002), o objetivo deste trabalho<br />

é perceber como se dá a construção da identidade do público leitor a<br />

partir da constituição multimodal desses tabloides.<br />

Cabe dizer que a quando trabalhamos com a multimodalidade<br />

por causa da multiplicidade de conhecimentos constituídos de estruturas<br />

sociais diversas, deve-se levar em conta uma análise de múltiplas<br />

categorias, a saber, o design, a produção e a distribuição. O design<br />

refere-se aos usos e combinações dos recursos semióticos a partir<br />

das convenções e conhecimentos socialmente construídos, sendo<br />

modificados somente numa interação social. A produção é a articulação<br />

do texto, o modo como foi organizada a expressão do design. A<br />

1 Ranking - Posição Participação e Evolução das Publicações - realizado pelo Instituto Verificador<br />

de Circulação (IVC) em 23 de abril de 2009.<br />

2 Jornais que em relação aos modelos tradicionais apresentam medidas reduzidas, notícia em<br />

formato curto e um maior número de ilustrações.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

73<br />

distribuição diz respeito a como será veiculado, se é para ser comercializado<br />

ou funcionar apenas como linguagem na interação (VAN<br />

LEEUWEN, 2001, apud PIMENTA e SANTANA, 2007).<br />

1. Os tabloides em foco: meia hora e expresso<br />

Os jornais Meia Hora de Notícias e Expresso da Informação<br />

são comumente denominados versões populares dos jornais O Dia<br />

(grupo o Dia) e Extra (Infoglobo), respectivamente. Estes jornais são<br />

configurados no formato tabloide. Inicialmente publicado em setembro<br />

de 2005 o Meia Hora ganha um concorrente em março de 2006,<br />

i.e., o Expresso. Publicados diariamente são vendidos a 0,70 centavos<br />

o Meia Hora e 0,50 o Expresso, alterando os preços nos finais de<br />

semana para 1,40 e 1,00, na sequência.<br />

O projeto gráfico dos referidos tabloides é bem semelhante.<br />

As cores vermelho, preto e branco configuram o logotipo dos mesmos.<br />

Ao lado e em tamanho bem visível encontra-se o preço padrão<br />

de circulação. Entretanto, internamente o Meia Hora é predominantemente<br />

preto e branco enquanto o Expresso, colorido. Semelhante<br />

também é a predominância de temas que circulam nas manchetes,<br />

configurando a capa dos jornais: ações criminosas versus operações<br />

policiais, mídia e futebol.<br />

As manchetes desses jornais são permeadas por gírias, expressões<br />

populares, expressões da oralidade, figuras de linguagem,<br />

simplificações, trocadilho, neologismos, rompem com o ideal de<br />

neutralidade fazendo juízos de valor e animalização (i.e. as pessoas<br />

são apresentadas como animais selvagens). Além disso, não se valem<br />

da norma escrita culta como o padrão linguístico dos jornais.<br />

Para exemplificar o que foi dito acima citaremos alguns textos<br />

das manchetes desses jornais que poderão ser verificadas no anexo:<br />

[a] Apropriação de gírias: “Civil esculacha 3 a milícia do Batman”;<br />

[b] Apropriação de expressões populares: “Brasil esculacha,<br />

Argentina paga mico”; [c] Apropriação de expressões da oralidade:<br />

3 Esculachar, segundo o dicionário Aurélio é uma gíria, os significados possíveis seriam descompor,<br />

desmoralizar; esculhambar.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

74<br />

“Tá a fim de espiar Michelle todinha?”; [d] Apropriação de figuras<br />

de linguagem (neste caso o eufemismo 4 ): “Polícia arregaça geral e<br />

deixa sete na horizontal”; [e] Uso de simplificações: “Bope acaba<br />

com farra de bandidos em apê de luxo 5 ”; [f] Criação de trocadilhos:<br />

“Festão da bandidagem só tinha convidado VIP 6 -Violento, Infrator,<br />

Procurado”; [g] Uso de Neologismos: “Poliçada manda oito pro colo<br />

do capiroto”; [h] Julgamentos de valor: “Monstro assassina criancinha<br />

de 5 anos”; [i] Animalização: “Ladrões que infernizavam a Zona<br />

Norte vão pra jaula”.<br />

Entretanto, se na capa percebemos grande ruptura com o padrão<br />

lingüístico comumente estabelecido para o jornal, i. e. com a<br />

norma culta escrita e com os ideais de imparcialidade que se apregoa,<br />

o interior do jornal os retoma. Apenas os títulos das notícias são<br />

construídos semelhantemente as manchetes, o texto não.<br />

Isto nos faz crer que a primeira capa tem por função impactar<br />

o leitor promovendo crescimento na demanda de consumo, já que<br />

rompe drasticamente com os modelos tradicionais dos jornais correntes.<br />

Contudo, essa configuração se dá em vista da imagem que se têm<br />

sobre o seu público ideal, sobre as características de leituras desejáveis<br />

deste público, desde o nome dos jornais, Meia Hora e Expresso,<br />

ao valor de venda, pouco menos de um real, e a formatação, neste<br />

caso tabloide.<br />

Sendo assim, quais são as imagens do leitor ideal veiculadas<br />

por estes jornais? Primeiramente, o leitor ideal desses jornais é aquele<br />

que tem pouco tempo para se dedicar à leitura diária de um jornal<br />

devido à correria cotidiana, dado que os nomes desses jornais já apontam<br />

para uma leitura breve e compacta, Meia Hora, diríamos de<br />

leitura, e Expresso da Informação.<br />

4 Eufemismo, que segundo Garcia (2006), consiste na substituição de um termo desagradável<br />

ou inaceitável por um termo mais agradável ou aceitável. Dessa forma a expressão “na horizontal”<br />

serve para substituir a palavra “mortos” amenizando o efeito de sentido causado pela<br />

mesma.<br />

5 Simplificação da palavra apartamento.<br />

6 Sigla da expressão de língua inglesa “Very Important People” que compreendemos por “Pessoa<br />

Muito Importante”


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

75<br />

Além dos nomes, a formatação contribui para formar a imagem<br />

do leitor ideal. As medidas reduzidas permitem fácil manejo,<br />

podendo ser lido no banco de um ônibus, por exemplo, quando se está<br />

a caminho do trabalho. A notícia em formato curto e o grande número<br />

de imagens que possuem reforçam a efemeridade e praticidade<br />

da leitura.<br />

Partindo do pressuposto que o leitor ideal está envolvido em<br />

uma multiplicidade de tarefas, esses jornais buscam oferecer uma facilidade<br />

e praticidade ao mesmo. Eles já apresentam ao leitor uma<br />

leitura pronta, direcionada, monitorada, logo a leitura é manipulada,<br />

isto é, não permite ao leitor refletir, questionar, nem mesmo o deixa<br />

livre para criar as suas próprias opiniões como podemos ver no texto<br />

da manchete a seguir em que o julgamento já foi previamente feito<br />

“Bandidagem covardona mata quatro PMs a tiros” 7 (grifos nosso).<br />

Esses jornais fazem a imagem de um leitor ideal pouco intelectualizado,<br />

ele precisa de uma já opinião formada, não é capaz de<br />

formar a sua própria opinião, seus interesses se reduzem a violência<br />

urbana, mídia e futebol. Soma-se a isso o fato de não dominarem a<br />

norma culta, como vemos, especialmente nas primeiras páginas, não<br />

há um compromisso com a norma escrita culta como nos demais jornais.<br />

Dessa forma esses jornais se configuram como um mecanismo<br />

controlador da ideologia dominante, ajudando a manter uma<br />

mesma estrutura social. Esses jornais ao se configurarem “como um<br />

mecanismo social e de linguagem” (BONINI, 2006, p. 68) de grande<br />

expressividade, tornaram-se um formador de opinião em massa. Esse<br />

poder que este veículo midiático acaba assumindo em nossa sociedade<br />

é extremamente preocupante, dado que o discurso, nas palavras de<br />

Fairclough (2001, p. 91),<br />

contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social<br />

que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias<br />

normas e convenções, como também relações, identidades e instituições<br />

que lhe são subjacentes.<br />

7 Esta manchete poderá ser verificada no anexo.


Essa manipulação da leitura levará o leitor sempre a compartilhar<br />

de uma mesma ideologia sem questioná-la.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

76<br />

Percebemos, portanto, que a esses tabloides são constituídos<br />

de elementos multimodais que atuam como controladores da demanda<br />

de consumo, além de manipularem a construção de opinião<br />

através de uma ideologia dominante. Dessa forma contribuem para a<br />

manutenção da mesma estrutura social, uma vez que se mantém uma<br />

mesma prática discursiva e consequentemente social (FAIRCLOU-<br />

GH, 2001).<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BONINI, Adair. Os gêneros do jornal: questões de pesquisa e ensino.<br />

In: KARWOSKI, Acir Mário; GAYDECZKA, Beatriz; BRITO, Karim<br />

Siebeneicher. (Orgs.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. 2.<br />

ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006, p. 57-69.<br />

CORRÊA, Manoel Luiz Gonçalves. Linguagem e comunicação social:<br />

visões da lingüística moderna. São Paulo: Parábola, 2002.<br />

FAIRCLOURGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília:<br />

Universidade de Brasília, 2001.<br />

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda; ANJOS, Margarida do;<br />

FERREIRA, Marina Baird; Miniaurélio século XXI escolar: O minidicionário<br />

da língua portuguesa. 4. ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 2001.<br />

GARCIA, Afrânio da Silva. Estudos universitários em semântica.<br />

Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2006.<br />

PIMENTA, Sônia M. O. & SANTANA, Carolina D. A. Multimodalidade<br />

e semiótica social: o estado da arte. In: MATTE, Ana Cristina<br />

Fricke. (Org.). Lingua(gem), texto, discurso: entre a reflexão e a prática.<br />

Rio de Janeiro: Lucerna; Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2007,<br />

p. 153-173.<br />

RANKING – Posição, Participação e Evolução das Publicações – realizado<br />

pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC) em 23 de abril<br />

de 2009. Disponível em:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

77<br />

http://docs.google.com/gview?a=v&q=cache:qSGNSdN_sL4J:www.<br />

redetribuna.com.br/images/RANKING%2520IVC%2520MAR%25202009.pd<br />

f+expresso+e+meia+hora+no+IVC&hl=pt-BR&gl=br. Acesso em:<br />

15/set./2009.<br />

ANEXOS<br />

Manchete publicada no jornal Meia Hora de Notícias<br />

no dia 27 de agosto de 2009, ano 4, n° 1.421.<br />

Manchete publicada no jornal Meia Hora de Notícias<br />

no dia 10 de setembro de 2009, ano 4, n°1.435.


Manchete publicada no Jornal Meia Hora de Notícias<br />

no dia 22 de outubro de 2009, ano 5, n° 1.477.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

78


Manchete publicada no jornal Meia Hora de Notícias<br />

no dia 5 de março de 2009, ano 4, n° 1.246.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

79


Manchete publicada no jornal Expresso da Informação<br />

no dia 6 de julho de 2009, ano IV, n° 990.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

80


Manchete publicada no jornal Expresso da Informaçã<br />

no dia 1 de outubro de 2009, ano 4, n°1.077.<br />

Manchete publicada no jornal Meia Hora de notícias<br />

no dia 28 de fevereiro de 2009, ano 4, n° 1.241.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

81


Manchete publicada no jornal Meia Hora de Notícias<br />

no dia 09 de março de 2009, ano 4, n° 1.250.<br />

Manchete publicada no jornal Meia Hora de Notícias<br />

no dia 24 de junho de 2009, ano 4, n° 1.357.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

82


Manchete publicada no jornal Meia Hora de Notícias<br />

no dia 14 de março de 2009, ano 4, nº 1.255.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

83


A DIGLOSSIA ÁRABE:<br />

UMA APRECIAÇÃO DO HASSANIYYA<br />

COMO REPRESENTANTE DA VERTENTE BAIXA<br />

NO BINÁRIO DIGLÓSSICO<br />

Elias Mendes Gomes (USP)<br />

eligomes@usp.br<br />

Enquanto a maioria dos ocidentais sente afeto<br />

por suas línguas maternas, o orgulho e amor<br />

que os árabes sentem pelo árabe é muito mais<br />

intenso. A língua árabe é o maior tesouro cultural<br />

deles. (Margaret Nydell)<br />

Historicamente, a rica língua árabe – com a prosa e a poesia<br />

altamente desenvolvida na época da Ja:hili:ya (a era pertencente ao<br />

período pré-islâmico) – sempre teve seu indiscutível lugar na Península<br />

Arábica e Oriente Médio mas, foi somente com o advento e expansão<br />

do Islamismo é que ela ganhou a projeção que a levou para<br />

além de suas fronteiras linguísticas históricas.<br />

Até a morte de Mohamed, o Profeta do Islã, o Islamismo esteve<br />

confinado a duas cidades na Península Arábica: Meca e Medina.<br />

Com o governo centrado nas mãos dos três primeiros califas, o Império<br />

Islâmico teve um período de expansão e consolidação. As fronteiras<br />

do Islamismo extenderam-se através do Norte da África até a atual<br />

Tunísia, ao norte até a moderna Turquia, e a leste até a Pérsia.<br />

Com o advento da Dinastia Omíada (661-750), o Império alcançou<br />

o extremo oeste do Norte da África (Marrocos), atravessou o<br />

Estreito de Gibraltar e adentrou a Península Ibérica ao norte. A leste,<br />

as fronteiras foram alargadas até a Índia (Lahore) e China. Com a<br />

queda da Dinastia Omíada, percebe-se que o Islamismo havia testemunhado<br />

uma expansão externa impressionante (tanto geograficamente<br />

quanto em influência); na Dinastia Abássida, entretanto, o<br />

Império Islâmico testemunhará uma consolidação e expansão interna<br />

sem precedentes. Durante os quase oito séculos de domínio do Califado<br />

Abássida, o território geográfico do Islamismo extendeu-se<br />

muito pouco, contudo, a civilização islâmica deu um salto para se


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

85<br />

tornar exemplo de modernidade, erudição e desenvolvimento. Braswell<br />

(1996, p. 46) atesta esse fato ao relatar:<br />

Quando os mongóis saquearam Bagdá em 1258 tendo em vista por<br />

um fim ao Califado Abássida lá, a civilização islâmica tinha sido estruturada<br />

em teologia, jurisprudência e ciência; e o árabe era falado da Espanha<br />

à Índia.<br />

Esta justaposição de línguas, de um lado o árabe e do outro as<br />

línguas vernaculares, produziu um enriquecimento do léxico árabe,<br />

mas também levou à estratificação do idioma, o que resultou, posteriormente,<br />

em uma diglossia.<br />

Nogueira (2006) explora essa noção em seu artigo “a diglossia<br />

nas comunidades árabes”. Ela traça a origem do conceito ao lingüísta<br />

françês William Marçais que em 1930 definiu a situação de<br />

diglossia e cunhou o termo para designar o fenômeno. Entretanto, foi<br />

Charles Ferguson que se tornou referência na literatura língüística<br />

por sua definição do termo 1 . Em seu clássico artigo de 1959, Ferguson<br />

descreveu a diglossia como “uma situação em que duas variedades<br />

da mesma língua são usadas para diferentes funções dentro da<br />

comunidade” (p. 35), que é o caso da língua falada no mundo árabe.<br />

A vertente “H” (Alta) abrange antigos conceitos poéticos, estadísticos,<br />

filosóficos e religiosos que foram preservados e fazem<br />

parte de um universo arcaico, mas ainda utilizado, principalmente na<br />

arena religiosa islâmica. Essa variedade é conhecida como o árabe<br />

clássico (a linguagem perpetuada pelo Alcorão), e ela nunca é utilizada<br />

nas conversacões do dia-a-dia, não sendo a língua materna de<br />

nenhuma das nações árabes. Entretanto, ela é aprendida formalmente<br />

e usada por estudiosos religiosos quando debatendo assuntos concernentes<br />

à fé. Essa variedade é símbolo de erudição e conhecimento<br />

teológico (HUDSON, 1980).<br />

Essa mesma vertente “H” também engloba a variedade árabe<br />

padrão moderno (APM) que é uma forma modernizada do árabe<br />

clássico e é menos complexa do que a variedade clássica no que se<br />

1 William Marçais, em 1930, definiu a situação de diglossia nas comunidades árabes,<br />

mas foi Ferguson (1964), que posteriormente definiu esse fenômeno. Ferguson atribui<br />

às duas variedades as denominações H (H[igh], como sendo a variedade elevada, identificando<br />

as vertentes clássica e padrão como pertencentes à essa categoria) e L<br />

(L[ow], como sendo a variedade “baixa”, identificando com ela os dialetos regionais).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

86<br />

refere à sintaxe, morfologia e semântica (CORTÉS, 1996; NYDELL,<br />

2002). Ela é entendida, se não falada, pela maioria dos árabes. O<br />

APM é usado em situações de locuções formais, tais como palestras,<br />

noticiários e discursos e, na forma escrita, em correspondência oficial,<br />

literatura e jornais. Essa variedade é aprendida através do sistema<br />

educacional formal, e serve como a “língua franca” entre todos os<br />

países árabes. A morfologia e sintaxe do árabe padrão moderno são<br />

essencialmente as mesmas em todos os países árabes, da Mauritânia<br />

ao Iraque. As poucas diferenças lexicais são restritas a apenas algumas<br />

áreas especializadas, ajudando a manter, como no passado, a unidade<br />

linguística do mundo árabe. Este fato dá a todos os descendentes<br />

árabes um senso de identidade e uma consciência de sua herança<br />

cultural comum. O árabe padrão moderno é de caráter conservativo<br />

e tende a criar e agregar neologismos ao seu banco de vocabulário<br />

partindo de combinações já existentes no árabe clássico, embora<br />

vários lexemas tenham sido emprestados de outros idiomas<br />

(CORTÉS, 1996).<br />

A outra parte nessa diglossia é o árabe dialetal, ou o código<br />

“L”. Esta vertente varia de país a país e de região para região e é usada<br />

em todas as situações não formais do dia a dia, não obedecendo<br />

as regras gramaticais do clássico ou do padrão moderno, embora siga<br />

uma convenção própria e reconhecida. Essencialmente, esses dialetos<br />

são utilisados somente na versão oral, mas, algumas vezes, é reduzido<br />

à escrita, particularmente na poesia, em caricaturas de periódicos<br />

e em certos diálogos incluídos em romances contemporâneos.<br />

Entretanto não têm uma ortografia estabelecida. Contrário à vertente<br />

clássica e padrão moderno, os dialetos “não têm nenhum prestígio.<br />

Algumas pessoas vão ao extremo de dizerem que eles não têm gramática<br />

e que não vale a pena serem estudados com seriedade” (NY-<br />

DELL, 2002, p. 116).<br />

Outros estudiosos acrescentam à essa terceira vertente duas<br />

outras variedades: O árabe falado culto (HUDSON, 1980; ABU-<br />

MELHIM, 1992), e o árabe cairota (ABU-MELHIM, 1992). O árabe<br />

falado culto é a variedade usada por pessoas instruídas quando se<br />

comunicando com outras pessoas igualmente instruídas. El-Hassan<br />

(1978) citado em Abu-Melhim (1992) acrescenta a essa definição a<br />

seguinte característica: “No mundo árabe, os falantes instruídos usam<br />

uma variedade de árabe que nós chamamos de árabe falado cul-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

87<br />

to (AFC), que está baseado tanto no árabe padrão moderno como no<br />

árabe dialetal [as variedades regionais do árabe falado]” (ABU-<br />

MELHIM, 1992, p. 02).<br />

O árabe cairota é a variedade urbana falada no Cairo (Egito),<br />

sendo a variedade mais conhecida de todos os dialetos árabes, “e<br />

provavelmente o mais prestigiado entre eles” (ABU-MELHIM,<br />

1992, p. 07). Isso se deve ao fato de Cairo ser a “Hollywood” do<br />

mundo árabe. Centenas de filmes e músicas são oriundos deste centro<br />

cultural, disseminando, naturalmente, o léxico local. Além disso,<br />

educadores egípcios trabalham em todos os países de fala árabe,<br />

muitas vezes enviados pelo próprio governo egípcio em parceria com<br />

outros governos árabes.<br />

Com essa breve introdução à diglossia árabe, espera-se ter apresentado<br />

argumentos que legitimizem a reivindicação de que a sociolinguística,<br />

especialmente o campo da dialetologia seja muito importante<br />

na linguística árabe. O objeto desse estudo, o Hassaniyya, é<br />

apenas um dos muitos “falares” presentes em todos os países árabes<br />

do Norte da Africa e Oriente Médio.<br />

1. Mauritânia: a terra dos mouros<br />

A denominação “Mauritânia” foi dada pelos romanos para toda<br />

a África do norte. “Mauri” deriva-se da palavra fenícia “Mahurim”<br />

que significa “os homens do deserto”. Após a independência, os<br />

mouros – o grupo étnico dominante no país – se apropriaram desse<br />

antigo nome, batizando a recém-independente nação com o título<br />

República Islâmica da Mauritânia. O país se limita ao norte com o<br />

Marrocos (Saara Ocidental) e a Argélia, a leste com o Mali e ao sul<br />

com o Senegal. Ela cobre uma área de aproximadamente 1.030.000<br />

km 2 , o undécimo maior país africano. (NANTET, 2001).<br />

A Mauritânia tem sido habitada desde a pré-história: a abundância<br />

de pinturas nas rochas e cavernas, as ferramentas e as flechas<br />

de pedra que são facilmente encontradas no deserto parecem dar uma<br />

clara indicação de um passado glorioso, onde culturas pré-históricas<br />

disputavam entre si os animais de caça.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

90<br />

cisão ao fato dos pesquisadores se aterem à classe mais instruída da<br />

sociedade moura, esquecendo-se do resto da população. 2<br />

3. Swadesh e a filogênese linguística<br />

Morris Swadesh, um proeminente linguísta norte-americano,<br />

fez seus estudos universitários na Universidade de Chigago sob a tutela<br />

de Leonard Bloomfield e Edward Sapir (precursores do estruturalismo<br />

americano, que ganhou expressão com Noam Chomsky).<br />

Durante toda sua carreira como linguísta, Swadesh continuou a ser<br />

influenciado por Sapir e suas teorias, o que o levou a nortear suas<br />

pesquisas para o campo de estudos linguísticos comparados. Devido<br />

as suas teorias não muito convencionais para a época, Swadesh foi<br />

comumente considerado uma figura muito controversial no campo de<br />

linguística. Antes mesmo de completar seu doutorado (Yale University),<br />

ele já havia trabalhado em várias línguas indígenas (nez perce,<br />

nitinat, chitimacha), tentando encontrar um ancestral linguístico comum,<br />

um tipo de “protolíngua” que, teoricamente, teria originado as<br />

diferentes expressões linguísticas presentes na América do Norte.<br />

Foi neste contexto de linguística comparada que suas ideias<br />

de glotocronologia se desenvolveram e se solidificaram. Seu método<br />

não foi apenas usado para medir a profundidade do “grau de parentesco”<br />

das línguas conhecidas como “geneticamente” relacionadas,<br />

mas também para procurar demonstrar um possível relacionamento<br />

em um passado remoto daquelas línguas que, no momento atual, não<br />

são consideradas como sendo de uma mesma família de línguas. À<br />

medida que seus estudos avançavam, ele procurou encontrar relações<br />

linguísticas mais amplas, de escopo continental ou até mesmo global.<br />

Esse estudo das relações linguísticas estava totalmente baseado em<br />

semelhanças dos sistemas fonológicos e morfológicos e no paralelismo<br />

entre os itens lexicais. (NEWMAN, 1967).<br />

2 . No prefácio do “Étude du dialecte Maure”, Henri Carbou testifica: “O trabalho de<br />

R. Pierret permitirá aos berberisantes de se darem conta, acuradamente, da influência<br />

do berbére sobre o hassaniyya. Esta influência se expande paulatinamente à medida<br />

em que se avança em direção ao leste, e que se embrenha no país tuaregue.” (Carbou<br />

apud Pierret, 1948, p. IX).


4.6. Considerações finais<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

95<br />

A expansão da língua árabe para além de suas fronteiras históricas,<br />

bem como os resultados advindos desse crescimento, tem sido<br />

sobejamente estudada no meio acadêmico. O contato do árabe<br />

com as expressões vernaculares dos povos conquistados deu origem<br />

a muitos “falares” que, em tempo, se cristalizaram em dialetos distintos,<br />

distanciando-se, em alguns casos consideravelmente, da vertente<br />

escrita. Muitos desses dialetos têm sido estudados (notavelmente aqueles<br />

de países conhecidos) enquanto que outros permanecem na<br />

obscuridade. O hassaniyya, o dialeto falado na Mauritânia, Saara Ocidental<br />

e nos campos de refugiados de Tindouf (Argélia), se enquadra<br />

na categoria dos menos conhecidos, e por isso essa pesquisa.<br />

Com essa pesquisa esperou-se contribuir para a escassa literatura da<br />

área da dialetologia hassaniyya.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ABU-MELHIM, A. H. Communication across Arabic dialects:<br />

Code-switching and linguistic accommodation in informal conversational<br />

interactions. College Station, TX. 1992. 266 p. Tese de doutoramento<br />

(English Studies) – Texas A & M University.<br />

BRASWELL, G. W. Islam: Its prophet, peoples, politics and power.<br />

Nashville: Broadman & Holman, 1996.<br />

CORTÉS, J. Diccionario de árabe culto moderno: árabe-español.<br />

Biblioteca Romántica Hispánica. Madrid: Gredos. 1996.<br />

DÉSIRE-VUILLEMIN, G. Histoire de la Mauritanie: Des origines à<br />

l’indépendence. Paris: Karthala, 1997.<br />

EL-HASSAN, S. A. Variation in the demonstrative system in Educated<br />

Spoken Arabic. In: Archivun Linguisticum 9 (1), p. 32-57.<br />

1978.<br />

FERGUSON, C. Contribution to Arabic linguistics. Cambridge:<br />

Harvard University Press, 1964.<br />

HUDSON, R. A. Sociolinguistics. Cambridge: Cambridge University<br />

Press, 1980.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

96<br />

NOGUEIRA, C. R. A diglossia nas comunidades árabes. In: Tiraz -<br />

Revista de Estudos Árabes e das Culturas do Oriente Médio. Ano<br />

III, p. 32-57. São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura<br />

e Cultura Árabe – USP, 2006.<br />

NEWMAN, S. Morris Swadesh (1909-1967). Language 43, 1967.<br />

PIERRET, R. Étude du dialecte maure des régions sahariennes et<br />

sahéliennes de l’Afrique Occidentale Française. Paris: Imprimerie<br />

Nationale, 1948.<br />

MARMOL, G.; OTREPPE, A. VAES, B. Sahara. Paris: Hachette,<br />

2000.<br />

NANTET, B. Mauritanie. Paris: Arthaud, 2001.<br />

NYDELL, M. K. Understanding Arabs: A guide to westerners. Revised<br />

Version. Boston: Intercultural Press, 2002.<br />

TAINE-CHEIKH, C. Dictionnaire hassaniyya-français: Dialecte<br />

arabe de Mauritanie. Paris: Geuthner, 1988.<br />

TAINE-CHEIKH, C. Lexique français-hassaniyya: Dialecte arabe de<br />

Mauritanie. 2. ed. Paris: Geuthner, 2004.<br />

WEHR, H. Dictionary of Modern Written Arabic. Ithaca: Spoken<br />

Language Services, 1979.<br />

SWADESH LIST: http://en.wiktionary.org/wiki/Appendix:Afro-<br />

Asiatic_Swadesh_lists. Acesso em: 20 jul. 2010.


A ESCRITA NOS AUTOS DE QUERELA DO SÉCULO XIX:<br />

DO PASSADO AO PRESENTE<br />

Emilia Maria Peixoto Farias (UFC)<br />

emiliapfarias@globo.com<br />

Expedito Eloísio Ximenes (UECE)<br />

eloisio22@hotmail.com<br />

Patrícia de Oliveira Batista (UFC)<br />

Katharine Silva de Oliveira Soares (UFC)<br />

A variação e a mudança são características naturais das línguas,<br />

para as quais concorrem fatores de ordem social e cultural que<br />

podem marcar a fala e a escrita de uma sociedade ao longo do tempo.<br />

Nesse contexto, as pesquisas que se debruçam sobre documentos<br />

remanescentes têm importância inquestionável, pois nos permitem<br />

conhecer a escrita de uma sociedade em épocas distantes e compreender<br />

fenômenos linguísticos atuais.<br />

O presente trabalho discute a grafia registrada em documentos<br />

do início século XIX da Capitania do Ceará intitulados Autos de<br />

Querela, nos quais estão denunciados os mais diversos tipos de delitos.<br />

Para tanto, analisamos as ocorrências gráficas manifestas nos<br />

documentos, a fim de se caracterizar o período historiográfico da<br />

língua portuguesa ao qual pertencem.<br />

1. Os períodos da história da ortografia da língua portuguesa<br />

A tradição histórica da ortografia portuguesa é marcada por<br />

três períodos: (1) o fonético, que se inicia com os primeiros documentos<br />

redigidos em português e se estende até o século XVI; (2) o<br />

pseudoetimológico, que se inicia no século XVI e vai até o ano de<br />

1911, quando se inicia o terceiro e último período denominado de<br />

moderno ou reformado. Há, contudo, estudiosos como Joaquim José<br />

Nunes que reconhecem na história da ortografia portuguesa somente<br />

os dois primeiros períodos.<br />

1. Professora do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Linguística.<br />

2. Professor do Curso de Letras.<br />

3. Mestranda CAPES/DS do Programa de Pós-Graduação em Linguística.<br />

4. Bolsista PIBIC/CNPq do Curso de Letras.


No início da escrita da língua portuguesa, aqueles que a escreviam<br />

procuravam reproduzir muito fielmente as formas manifestas<br />

na oralidade. A escrita caracterizava-se por uma representação<br />

fonética quase fiel dos sons da fala. Esse é o primeiro período da ortografia<br />

da língua portuguesa em Portugal e no Brasil. Denominado<br />

de fonético, estendeu-se do século XII ao século XVI. Mesmo que a<br />

tentativa fosse de representar muito proximamente os sons da fala, a<br />

escrita fonética nunca foi considerada adequada.<br />

De acordo com Carvalho (1996, p.1), "como não havia norma<br />

[...], o som /i/ podia ser representado por i, por y, e até h; a nasalidade<br />

por m, por n, ou por til, etc.” Segundo o autor, ainda nesse período,<br />

o sistema ortográfico manteve-se conservador em relação às mudanças<br />

na pronúncia de ler (leer) e ter (teer). Essa simplificação não<br />

é uma característica desse período.<br />

Nunes (1989) classifica a história da ortografia portuguesa em<br />

dois períodos: o fonético e o pseudoetimológico e tece o seguinte<br />

comentário relativo ao primeiro período:<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

98<br />

...caracteriza este período a representação, pelas letras, dos sons que<br />

elas realmente representam, consoante a evolução por eles sofrida, e a<br />

ausência, em geral, de caracteres não proferidos. Verdade seja que essa<br />

representação nem sempre acompanhou pari passu as alterações que se<br />

foram dando e por vezes conservou-se antiquada em relação ao desenvolvimento<br />

da língua. (NUNES, 1989, p. 193).<br />

Segundo Pereira (1932), o sistema fonético consiste em escrever<br />

como se pronuncia, fazendo com que a palavra escrita seja a<br />

imagem da palavra falada. Contudo, como há inúmeras diferenças<br />

nos falares dos indivíduos, a uniformidade na ortografia era apenas<br />

um ideal a ser buscado. O resultado desse sistema é um sincretismo<br />

na escrita como bem refere o autor:<br />

...este systema, tão preconizado pelos phoneticistas, não offerece,<br />

comtudo, base uniforme para uma reforma ortographica, vista a grande<br />

variedade da pronuncia, de região para região e de século para século.<br />

Sendo nelle a palavra escripta a imagem exacta da palavra fallada, a mudança<br />

constante da pronuncia determinaria a constante mudança de sua<br />

representação. (PEREIRA, 1932, p. 102).<br />

De acordo com Paiva (2008, p. 176), houve ainda o fenômeno<br />

em que “as vogais orais simples alternaram-se constantemente na


passagem do latim para o português. Assim, encontramos a em lugar<br />

de e ou e por a (...)”.<br />

O segundo período, denominado pseudoetimológico, sofre<br />

grande influência do latim, devido ao momento renascentista pelo<br />

qual atravessava a história. Esse momento é marcado pela valorização<br />

da cultura clássica e representa, na escrita, a tentativa de se recuperar<br />

a tradição etimológica greco-latina. Surgem, assim, grupos<br />

consonantais como: th (thesouro), ph (pharmacia), rh (rheumatismo)<br />

e ch (trachéia). Como houve excessos em relação à grafia justificada<br />

em pretensa etimologia, como em lyrio, Carvalho (1996, p. 2), afirma<br />

que “a ignorância não deixava ir além da pseudo-etimologia.”<br />

O terceiro e último período, denominado de moderno, simplificado<br />

ou reformado coincide com a codificação, pela primeira vez,<br />

da ortografia do português por Portugal. Quando desse fato, a escrita<br />

já estava bem diferente das realidades fonéticas e não estava predominantemente<br />

presa à etimologia. Segundo Castro (2007, p. 2), “a<br />

comissão de linguistas encarregue pela República de fazer uma ortografia,<br />

produziu um documento tecnicamente muito bom.”<br />

Desde então, muitos foram os acordos e as reformas para tornar<br />

unificada a ortografia do português do Brasil e de Portugal. Muitas<br />

foram também as discussões calorosas em torno do tema. Mais<br />

do que apontar inconsistências ou mesmo descuidos com a grafia dos<br />

autos, teremos o interesse maior em mostrar como a sociedade brasileira,<br />

mais precisamente, a cearense, registrou seus momentos em<br />

instâncias legitimamente representadas e representantes do nosso<br />

povo.<br />

2. A grafia nos Autos de Querela: o período fonético<br />

Os Autos de Querela são documentos do poder judiciário, nos<br />

quais estão registradas as queixas referentes aos mais diferentes tipos<br />

de crimes. Os documentos manuscritos pertencem ao Arquivo Público<br />

do Estado do Ceará (APEC), onde está reunido um rico acervo<br />

documental de natureza administrativa e notarial.<br />

Para efeito do presente trabalho, foram consultados quatro<br />

códices do século XIX, compreendendo o período que se estende de<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

99


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

100<br />

1802 a 1829. O período escolhido é marcado por valiosa fonte documental,<br />

pois inclui as duas últimas décadas da Colônia, 1802 a<br />

1822, e os primeiros anos do Império, 1822 a 1829.<br />

Nosso trabalho tem como base a obra de Ximenes (2006), que<br />

apresenta a transcrição de 67 documentos que compõem os quatro<br />

códices: o livro 39 é composto de dezoito autos, datados de 1802 a<br />

1806; o livro 33 é composto de dezenove autos, datados de 1807 a<br />

1813; o livro 64 é composto de dezessete autos, datados de 1811 a<br />

1813 e o livro 1097 é composto de treze autos, datados de 1824 a<br />

1829. A transcrição seguiu as normas de edição semidiplomática,<br />

conforme orientação adotada pelo grupo do PHPB (Para a História<br />

do Português Brasileiro).<br />

Na perspectiva lexicológica, os manuscritos investigados incluem-se<br />

cronologicamente no período pseudoetimológico da ortografia<br />

da língua portuguesa. No entanto, pela análise que mostraremos<br />

a seguir, a grafia está indiscutivelmente marcada pelas formas<br />

gráficas do período fonético.<br />

O período fonético coincide com o período arcaico ou nacional<br />

da língua portuguesa estendendo-se do século XII ao século XVI.<br />

Conforme Coutinho (1976, p.65), datam desse período os mais antigos<br />

documentos em prosa e em verso da língua portuguesa. Em prosa,<br />

os documentos são: o Auto de Partilhas (1192), o Testamento de<br />

Elvira Sanchez (1193) e a Notícia de Torto (1206?). Em verso, o autor<br />

cita duas cantigas: a primeira de Pai Soares de Taveirós (1189) e<br />

a segunda Del-rei D.Sancho (1194-1199).<br />

Nas palavras de Mattos e Silva (2004, p.262), o início do português<br />

arcaico ainda é “uma questão aberta”, a tradição filológica<br />

marca como início desse período o surgimento de quatro documentos:<br />

sendo um oficial, O Testamento de Afonso II (1214) e três particulares:<br />

Auto de Partilhas e o Testamento de Elvira Sanches, datados<br />

do final do século XII, e a Notícia de Torto (1212-1214). Como discute<br />

a autora, trata-se de assunto ainda em discussão devido aos achados<br />

de Ana Maria Martins, que nomeia como os textos mais antigos<br />

escritos em português testamentos, notícias e listas (fintos) datados<br />

do período que vai de 1175 a 1252.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

107<br />

AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa.<br />

Rio de Janeiro: Delta, 1964.<br />

CARVALHO, Manuel Mendes de. Ortografias. Disponível em:<br />

. Acesso em: 20 nov. 2007.<br />

CASTRO, Rui. Entrevista a Ivo Castro: a língua portuguesa no<br />

Brasil e em Portugal. Entrevistador: Rui Martinho. Portugal, 2007.<br />

Entrevista concedida ao O ponto. Disponível em:<br />

. Acesso<br />

em: 20 nov. 2007.<br />

COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. 7. ed.<br />

Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976.<br />

CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua<br />

portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.<br />

ELIA, Sílvio. Preparação à linguística românica. 3. ed. rev. e aum.<br />

Rio de Janeiro: Livro Técnico, 1979.<br />

GONÇALVES BARBOSA, A. O contexto dos textos coloniais. In.:<br />

ALKIMIN, T. M. (Org.) Para a história do português brasileiro.<br />

São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP. Novos Estudos, 2002. vol. III:<br />

p. 421-431.<br />

DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro:<br />

Forense. 1963.<br />

ELIA, Sílvio. Preparação à linguística românica. 3 ed. rev. e aum.<br />

Rio de Janeiro: Livro Técnico, 1979.<br />

HUBER, Joseph. Gramática do português antigo. Lisboa: Fundação<br />

Calouste Gulbenkian. (s.d).<br />

LAUSBERG, Heinrich. Linguística românica. Berlin: Fundação Calouste<br />

Gulbenkian, 1962.<br />

MATTOS E SILVA. Novos indicadores para os limites do português<br />

arcaico. Revista da ABRALIN. vol III, n.1 e 2, julho-dezembro, 2004.<br />

p. 259-268.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

108<br />

MATTOS e SILVA, Rosa Virgínia. Para a história do português<br />

brasileiro. São Paulo: Humanistas/FFLCH/USP: FAPESP, 2001.<br />

Volume II. Primeiros estudos. Tomo II.<br />

MELO, Gladstone Chaves. Iniciação à filologia e à linguística portuguesa.<br />

5. ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1975.<br />

MONTE, Vanessa Martins do. Os fonemas sibilantes e a variedade<br />

de sua representação em documentos setecentistas. Disponível<br />

em:. Acesso<br />

em: 09 jun 2010.<br />

NUNES, Joaquim José. Compêndio de gramática histórica portuguesa.<br />

9. ed. Lisboa: Clássica, 1989.<br />

OLIVEIRA, Klebson. A escrita que mascara e desmascara: alteamento<br />

de vogais átonas em textos brasileiros oitocentistas. In: OLI-<br />

VEIRA, Klebson; CUNHA E SOUZA, Hirão F.; SOLEDADE, Juliana.<br />

(Orgs.). Do português arcaico ao português brasileiro: outras<br />

histórias. Salvador: EDUFBA, 2009, p. 216-226.<br />

PAIVA, Dulce de Farias. Século XV e meados do século XVI. In:<br />

SPINA, Segismundo (Org.). História da língua portuguesa. São<br />

Paulo: Ateliê, 2008, p. 175-184.<br />

PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática histórica. 7. ed. São Paulo:<br />

Cia. Ed. Nacional, 1932.<br />

QUEIROZ, Rita de Cássia Ribeiro de. A escrita autobiográfica de<br />

Doutor Remédios Monteiro: edição de suas memórias. Salvador:<br />

Quarteto, 2006.<br />

XIMENES, Expedito Eloísio. Autos de querella e denúncia: edição<br />

de documentos judiciais do século XIX no Ceará para estudos filológicos.<br />

Fortaleza: Gráfica e Editora LC Ltda, 2006.<br />

______. Aspectos da ortografia fonética em um texto seiscentista do<br />

Ceará. 2006. Disponível em:<br />

.<br />

WILLIAMS, Edwin B. Do latim ao português. Tradução de Antonio<br />

Houaiss. Instituto Nacional do Livro, 1961.


A EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM<br />

EM A TURMA DA MÔNICA<br />

Luciana da Costa Quintal<br />

professoralucianaquintal@gmail.com<br />

... o tempo altera todas as coisas; não<br />

existe razão para que a língua escape a<br />

essa lei universal. (Ferdinand de<br />

Saussure)<br />

1. O gênero em quadrinhos: a evolução do veículo de<br />

comunicação<br />

A utilização de desenhos para a comunicação atravessou milênios.<br />

Hoje, associados à linguagem verbal, as histórias em quadrinhos<br />

ganharam grande espaço na mídia escrita. A importância do<br />

gênero é reconhecida, após a revolução cultural sofrida na pósmodernidade,<br />

com a geração da informática e da informação, por sua<br />

contribuição para a educação e pelo prazer de ler. Por decorrência da<br />

abordagem contínua acerca desse tema, será exposta como HQs, sigla<br />

já usada em suas fontes.<br />

Apesar de a ilustração como atividade comunicativa ter as suas<br />

raízes na pré-história, os quadrinhos surgiram na Europa e eram<br />

predominantemente em caricaturas e humor. Em seu desenvolvimento<br />

evolutivo – conforme dito por Sonia Bibe Luyten, em O que é história<br />

em quadrinhos? (LUYTEN, 1985, p.12) – seus textos passaram<br />

do rodapé para junto dos personagens e, logo, foram incorporados os<br />

balões, diferencial primordial da linguagem das HQs.<br />

Com temas e estilos diversos, as HQs antes veiculadas somente<br />

pelos jornais, hoje ganharam autonomia por conquistarem o<br />

seu espaço em gibis próprios, meio de comunicação exclusivo. A<br />

primeira fase de circulação do gênero levou a serem consideradas


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

110<br />

como discurso jornalístico, mas logo tomaram outras categorizações,<br />

pois possuem linguagem linguístico-cognitiva e rico material pedagógico<br />

em semioses verbais e não-verbais. Hoje, as HQs são encontradas<br />

desde em bancas, como nas livrarias e na internet.<br />

Elas são de fácil identificação, pelo reconhecimento de suas<br />

peculiaridades: balões, quadros e desenhos. Entretanto, a sua classificação<br />

de gênero é complexa, pois existem muitos critérios utilizados<br />

na formulação dos quadrinhos. Essa dificuldade de reconhecê-lo<br />

ocorre por haver uma diversidade de discursos em sua expressão visual.<br />

O enredo é planejado através da incorporação da linguagem<br />

verbal que completa o que sugerem as imagens. Este recurso tecnológico<br />

das HQs assemelha-se às narrativas cinematográficas e de desenho<br />

animado, diferenciando-se apenas porque, nos quadrinhos, o<br />

movimento é relacionado e disposto em sequências narrativas que<br />

exigem maior esforço por parte do leitor em construir os sentidos.<br />

Logo, a caracterização do gênero HQs se manifesta através de<br />

suas composições em quadrinhos em sequência narrativa, caracterizados<br />

como um gênero icônico-verbal, cuja progressão temporal é<br />

organizada em quadrinhos, desenhos, balões e texto verbal. Elas carregam<br />

traços característicos na reprodução da fala, na maioria das<br />

vezes em tratamento informal, interjeições e reduções vocabulares.<br />

Sua principal característica é funcionar como meio de comunicação<br />

de massa junto ao desenvolvimento tecnológico da sua produção de<br />

modo a facilitar a compreensão ao leitor através da associação de<br />

imagens, cores, frases e até sons (onomatopeias).<br />

Na composição dos quadrinhos, os balões são as características<br />

principais, pois eles têm a função de expressar a fala de seus personagens<br />

em diferentes tons de humor e das reações mais diversas<br />

tais como surpresa, raiva, alegria, medo, desaprovação, sono, e, assim,<br />

fazendo parte da imagem em questão. Suas formas variam de<br />

acordo com o objetivo do autor em passar a mensagem, como exemplificado<br />

no exposto a seguir, proporcionando melhor compreensão e<br />

economia, tanto visual como comunicativa:


Fig. 1: http://www.turmadamonica.com.br/index.htm (Página Semanal 144)<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

111<br />

Na historinha acima, numa brincadeira metalinguística com o<br />

próprio artifício das HQs, se podem analisar três diferentes tipos de<br />

balões: o balão-fala; o balão-pensamento e o balão-trêmulo. O primeiro,<br />

o mais comum, transcreve as falas dos personagens; o segundo,<br />

em sua forma peculiar, apenas descreve o que o personagem está<br />

pensando no momento da ação; já o último expressa sempre algum<br />

tipo de emoção. No caso da personagem Mônica, a raiva.<br />

Outros recursos comunicativos utilizados são as onomatopeias,<br />

linguagem figurada que se expressa por meio de palavras nos<br />

quadrinhos a fim de traduzir certos sons e ruídos na língua escrita.<br />

Os balões onomatopaicos apresentam efeitos sonoros que surgiram,<br />

primeiramente, na língua inglesa, por ser um idioma mais sintético,<br />

e, assim, ganhavam proximidade com a realidade, assemelhando-se<br />

prontamente ao ruído expresso.<br />

Convencionou-se, na tradução das onomatopeias para os quadrinhos<br />

brasileiros, sua transcrição como meros signos visuais na<br />

linguagem das HQs. Alguns desses ruídos, tal como “gulp”, que em


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

112<br />

inglês significa tragar; engolir; devorar; sufocar e suas correlações;<br />

são usados nos quadrinhos nacionais de maneira que se aproxime apenas<br />

do som, sem valor semântico. Neste caso, uma das onomatopeias<br />

usadas é o “glu”, como veremos no quadrinho a seguir:<br />

Fig. 2: http://www.turmadamonica.com.br/index.htm (Página Semanal 120)<br />

No Brasil, embora ainda predomine a produção estrangeira de<br />

HQs, não é necessário que se haja uma preocupação com estrangeirismos<br />

ou a possível descaracterização do nacional, pois desenhistas<br />

como Maurício de Sousa já demarcaram as HQs brasileiras como<br />

produtos meramente nossos.<br />

As histórias em quadrinhos já não são mais meros produtos<br />

de consumo e sim marca da nova literatura contemporânea. Desse<br />

modo, a descoberta da criação artística através do gênero quadrinhos<br />

pode e deve funcionar como elemento formador e conscientizador do<br />

mundo para o mundo. Hoje, a quadrinização assume seu lugar de relevância<br />

na leitura, confirmando o grande nível de excelência a que<br />

se chegou a produção brasileira deste gênero.<br />

2. A evolução da linguagem<br />

Quando tratamos de evolução linguística, falamos também<br />

sobre a evolução dos tempos. Tudo o que evolui com o passar dos<br />

anos, influi na linguagem de uma mesma comunidade. Dessa forma,<br />

a produção das histórias em quadrinhos preocupa-se com este acompanhamento,<br />

utilizando-se da inclusão de novos recursos linguísticos<br />

de acordo com o período em questão.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

113<br />

Sendo assim, observamos a evolução de A Turma da Mônica<br />

que completou, em 2009, 50 anos de existência, tornando-se impossível<br />

passarem despercebidas as inúmeras transformações que sofreu<br />

durante todo este tempo. Para a realização deste trabalho, a respeito<br />

da inclusão de novos recursos linguísticos na obra de Maurício de<br />

Sousa, foram analisadas obras desde a década de 60 até os dias atuais.<br />

E, Para demonstrar este fato, foram selecionadas certas características<br />

que ajudam a demarcar o tempo de sua publicação. Dentre<br />

elas destacamos: as atualidades, a simplificação, os estrangeirismos,<br />

a linguagem de internet (o “internetês”), as gírias, a reforma ortográfica<br />

e a variação linguística. Estes temas serão expostos nos exemplos<br />

apresentados nos tópicos que se seguem.<br />

2.1. As Atualidades<br />

Fig. 3:<br />

Almanaque da Mônica, 1979, N. 04<br />

Fig. 4:<br />

Magali. Ano 2004, N. 375<br />

Para começar a falar de atualidades, se pode observar que o<br />

primeiro quadrinho não corresponde à época em que nos encontramos,<br />

pois vemos um artigo que, para muitos jovens, pode ser desconhecido:<br />

o filme fotográfico. Este quadrinho pertence ao final da década<br />

de 70, enquanto o segundo quadrinho é do final dos anos 90.<br />

Este apresenta um novo conceito em fotografia – não para nós, habitantes<br />

da era digital – trazendo uma máquina fotográfica de revelação<br />

instantânea.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

114<br />

No próximo quadrinho, temos uma referência olímpica: Ricardo<br />

Prado, que conquistou a medalha de prata na natação, modalidade<br />

400 metros medley, nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984.<br />

Curioso é que, nosso atual campeão das piscinas, nosso ídolo brasileiro<br />

desde 2008, Cesar Cielo, nem havia nascido ainda.<br />

2.2. A Simplificação<br />

Fig. 5: Cascão, 1986, N. 94.<br />

A questão da simplificação acontece na nossa língua desde o<br />

latim, principalmente na oralidade. Logo, como as histórias em quadrinhos<br />

buscam aproximar a língua escrita da língua falada, com o<br />

passar do tempo, vemos cada vez mais palavras simplificadas, seja<br />

na conjugação dos verbos, seja no próprio uso dos substantivos.<br />

Fig. 6: “não é”, no ano 1991.<br />

Almanaque do Cebolinha, 1991, N. 13<br />

Fig. 7: “né”, no ano 1998.<br />

Mônica. Coleção Um Tema<br />

Só, 1998, N. 20


2.3. Os estrangeirismos<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

115<br />

Ao fato de o nosso país abranger pessoas de diversas gerações<br />

e de diversas regiões do mundo, está ligada a evolução da nossa linguagem,<br />

sendo assim, a nossa língua ganha vários recursos. E, justamente<br />

pela influência de outras culturas, entram os estrangeirismos.<br />

Algumas expressões já foram “abrasileiradas” e outras se integram<br />

ao português ainda com a forma original.<br />

Fig. 8: “céuboy” e “show”, no ano 2008. Turma da Mônica Jovem, 2008, N. 01


2.4. O “internetês”<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

116<br />

A linguagem de internet, o internetês, é a linguagem utilizada<br />

no meio virtual, mais precisamente nas conversas instantâneas, nas<br />

salas de bate papo e até mesmo em sites onde há um máximo de caracteres<br />

exigidos. Como o computador tem sido um meio de comunicação<br />

muito utilizado no mundo contemporâneo, principalmente<br />

entre os jovens, as pessoas passaram a abreviar as palavras e, logo,<br />

estas ganharam uma configuração padronizada. É uma prática comum<br />

no âmbito da informática que, acostumados com a rapidez do<br />

mundo moderno, a utilizam como meio de agilizar e dinamizar as<br />

conversas.<br />

Fig. 9: “naum” e “vc”, na década de 00. Turma da Mônica Jovem, 2008, N. 02<br />

2.5. As gírias<br />

As gírias são vocábulos e expressões utilizadas por certos<br />

grupos sociais. Ao fato de estarem divididas por classes, se pode agregar<br />

também que cada época necessita de uma nova gama de palavras<br />

e expressões, de acordo com o seu grupo de falantes. Isso significa<br />

dizer que nem sempre se trata de uso de palavras não convencionais<br />

designando outras palavras, mas também de usos populares<br />

que se aplicam somente a um determinado período.


Fig. 10: “tô bege”, no ano 2009. Turma da Mônica Jovem, 2009, N. 10<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

117


Fig. 11: “diacho”, na década de 70. Almanaque da Mônica, 1979, N. 04<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

118<br />

Assim, pode ser observado que os personagens de “A Turma<br />

da Mônica” não trazem necessariamente jargões próprios, mas revelam<br />

dizeres que correspondem ao período de enunciação de suas falas.<br />

Logo, podemos ver nos quadrinhos abaixo os usos “diacho” e “to<br />

bege!”.<br />

No primeiro caso, conforme Aurélia: a Dicionária da língua<br />

afiada (LIBI, 2006), temos uma amostra da linguagem popular, que<br />

significa “diabo”, mas de forma eufemística. Dessa forma, a palavra<br />

“diacho” não carrega o seu sentido denotativo, pois é usada como<br />

uma interjeição de impaciência, usada na década de 70 e nem tão usual<br />

atualmente. Já no segundo caso, temos uma expressão que significa<br />

“tô boba”, ou “tô passada”, exprimindo surpresa através da fala<br />

da personagem Magali – que agora é pertencente a outra comunidade<br />

linguística, pois é uma adolescente nos dias atuais.<br />

2.6. A reforma ortográfica<br />

Desde a década de 60, a Turma da Mônica acompanha algumas<br />

alterações na ortografia da nossa língua. Nos anos de 1971 e


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

119<br />

1973 foram promulgadas alterações em Portugal, reduzindo as divergências<br />

ortográficas com o Brasil. Em 1975, Brasil e Portugal elaboraram<br />

novo projeto de acordo, que não foi aprovado oficialmente.<br />

Em 1996, o Acordo Ortográfico foi apenas ratificado por Portugal,<br />

Brasil e Cabo Verde. E, enfim, em 2008, o Acordo Ortográfico<br />

de 1990 foi aprovado por Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Brasil e<br />

Portugal, e implementado no início de 2009.<br />

Nos quadrinhos de “A Turma da Mônica”, foi destacada a<br />

mudança do verbo “parar” através do uso de “pára” (2002) e “para”<br />

(2009), designando a conjugação na segunda pessoa do singular, no<br />

modo imperativo. Depois do novo acordo, esse acento gráfico diferencial<br />

– que era usado para distinguir da preposição “para” - tornouse<br />

facultativo.<br />

Desde a década de 60, a Turma da Mônica acompanha algumas<br />

alterações na ortografia da nossa língua. Neste trabalho, foram<br />

observadas as mudanças do Acordo Ortográfico de 1990, que foi aprovado<br />

em 2008. Como a sua implementação começou no início de<br />

2009, analisamos obras anteriores e posteriores a este ano para demonstrar<br />

esta evolução.<br />

Fig.12: Almanaque da Mônica. Ano 2002 – Número 91


Fig.13: Cebolinha. Ano 2009 – Número 32<br />

2.7. A variação linguística<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

120<br />

O fato de o Brasil inteiro falar a mesma língua, não significa<br />

dizer que exista uma unidade linguística. Todos nós falamos o português,<br />

mas há de se reconhecer que em cada canto do país, em cada<br />

grupo social e até mesmo em cada profissão, ocorre a variação linguística.<br />

Ela nem sempre é demonstrada na escrita, pois não é reconhecida<br />

a sua devida importância. A começar pelos próprios livros<br />

didáticos, que não expõem a variação como uma das formas de comunicação<br />

da nossa língua. Sobre este tema, destacamos a opinião a<br />

seguir:<br />

Esse mito é muito prejudicial à educação porque, ao não reconhecer<br />

a verdadeira diversidade do português falado no Brasil, a escola tenta<br />

impor sua norma linguística como se ela fosse, de fato, a língua comum a<br />

todos os 160 milhões de brasileiros, independentemente de sua idade, de<br />

sua origem geográfica, de sua situação socioeconômica, de seu grau de<br />

escolarização etc. (BAGNO, 1999, p. 15)<br />

No caso do personagem em questão, não se trata de falta de<br />

instrução, pois Chico Bento tem acesso à escola. Trata-se de uma va-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

121<br />

riação regional por ser habitante de uma região não central, confirmando<br />

que o Brasil, apesar de ser um país monolíngüe, não possui<br />

homogeneidade linguística. Felizmente, Maurício de Sousa soube reconhecer<br />

esta diferença com a evolução de suas HQs.<br />

são <br />

inclu-<br />

Fig. 14: “vou”, na década de 70. Almanaque da Mônica, 1979, N. 04


3. Conclusão<br />

Fig. 15: “vô”, na década de 90. Chico Bento, 1996, N. 259<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

122<br />

A nova era aproxima o antigo ao novo como instrumento importante<br />

que provoca maior interesse entre o seu público. Este estímulo<br />

funciona como um despertar da curiosidade e como uma nova<br />

fonte de aquisição de conhecimento de outros conteúdos. Particularmente<br />

para este trabalho, pode ser visto que as histórias de A Turma<br />

da Mônica servem é, sim, rica ferramenta em prol do amadurecimento<br />

lingüístico e cultural do homem contemporâneo.<br />

Há de se acrescentar também que, além dos estudos específicos<br />

a que podem se dedicar os gibis, a inserção de novas linguagens<br />

também funcionam como fonte de conhecimento para os nossos alunos.<br />

Com a evolução do pensamento quadrinista, junto à nossa evolução<br />

linguística, progridem os recursos do cinema, da música, do<br />

esporte e, principalmente, da abordagem didático-pedagógica, que<br />

contribuem intensamente para o nosso gibi para a integração destas<br />

linguagens.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

123<br />

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 43 a .<br />

Edição. São Paulo: Edições Loyola, 1999.<br />

GUSMAN, Sidney. Maurício quadrinho a quadrinho. São Paulo:<br />

Globo, 2006.<br />

LIBI, Fred. VIP, Ângelo. Aurélia, a dicionária da língua afiada. São<br />

Paulo: Editora da Bispa, 2006.<br />

LUYTEN, Sonia M. Bibe. O que é história em quadrinhos? São<br />

Paulo: Brasiliense, 1985.<br />

MOYA, Álvaro de. História da História em Quadrinhos. Porto<br />

Alegre: L & PM, 1986.<br />

SOUSA, Maurício. Turma da Mônica. Disponível em:<br />

. Acesso em: 20 abr.<br />

2010.<br />

______. Almanaque da Mônica, 1979, N. 04.<br />

______. Magali, 2004, N. 375.<br />

______. Cascão, 1986, N. 94.<br />

______. Almanaque do Cebolinha, 1991, N. 13.<br />

______. Mônica. Coleção Um Tema Só, 1998, N. 20.<br />

______. Turma da Mônica Jovem, 2008, N. 01.<br />

______. Turma da Mônica Jovem, 2008, N. 02.<br />

______. Turma da Mônica Jovem, 2009, N. 10.


______. Almanaque da Mônica, 1979, N. 04.<br />

______. Almanaque da Mônica, 2002, N. 91.<br />

______. Cebolinha, 2009, N. 32.<br />

______. Almanaque da Mônica, 1979, N. 04.<br />

______. Chico Bento, 1996, N. 259.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

124


A FACE OCULTA DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:<br />

UM ESTUDO DE CASO<br />

1. Uma provocação<br />

Sinéia Maia Teles Silveira (UNEB)<br />

sineiasilveira@hotmail.com<br />

Sônia Maia Teles Xavier (UNILESTEMG)<br />

smsilveira@uneb.br.<br />

O que ocorre nas escolas de 1º e 2º graus, no que diz respeito<br />

ao ensino de Língua Portuguesa, é um contínuo convite à reflexão de<br />

todos os que, nas universidades, vêm preparando alunos para atuar<br />

nesses níveis, já que uma das missões dos cursos de Letras é qualificá-los<br />

para atuar no ensino Fundamental e Médio.<br />

Pensando nisso, surgem alguns questionamentos: quais fatores<br />

têm interferido nas aulas ofertadas pela universidade para que a<br />

maioria dos alunos, assim que assume suas aulas, entenda que o repertório<br />

acumulado durante o curso pouco tem cooperado para a prática<br />

das aulas ministradas nas escolas em que atua ou atuará? Apesar<br />

do conhecimento de Linguística, muitos estagiários e egressos sentem-se<br />

impotentes no momento em que têm de executar o estágio:<br />

não dão conta de articular teoria e prática por fatores vários.<br />

Essas e outras questões inquietam aos professores, quando<br />

partem para as escolas de Ensino Fundamental e Médio, a fim de<br />

transpor as teorias apreendidas ao longo do curso de Letras para a<br />

prática. Estes, em sua maioria, durante a graduação, declaram-se adeptos<br />

de um ensino produtivo, tecem críticas ao ensino formalista e<br />

prescritivista adotado pelos professores observados na primeira fase<br />

do estágio, porém, no momento de traçar o planejamento das ações,<br />

acabam se sentindo inseguros, em terreno de areia movediça, afundam-se<br />

em dúvidas e incertezas.<br />

Quando assumem a sala de aula, alguns acabam por reproduzir<br />

muito daquilo que criticaram, preocupam-se excessivamente com<br />

conteúdos e menos com resultados. Como consequência, deixam à<br />

parte algumas estratégias pedagógicas bem formuladas e, assim, retroalimentam<br />

os problemas relativos ao ensino de Língua Portugue-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

126<br />

sa, na medida em que prescrevem regras de forma descontextualizada,<br />

utilizam o texto literário como pretexto para o ensino de gramática,<br />

sem levar em conta as múltiplas possibilidades literárias e semânticas<br />

do texto, a polifonia discursiva etc.<br />

Esse fazer pedagógico contribui significativamente para resultados<br />

negativos quanto ao domínio de língua. Estudos, pesquisas,<br />

documentos e referenciais qualitativos como os Parâmetros Curriculares<br />

Nacionais apontam essa crise no ensino de Língua Portuguesa,<br />

a exemplo dos resultados apresentados pelo espaço midiático que revelam<br />

dados preocupantes: os alunos finalizam a 4ª e 8 ª séries do<br />

ensino Fundamental e não conseguem demonstrar ter apreendido estratégias<br />

básicas de leitura, como compreender o que leem, fazer inferências,<br />

conforme atestam os resultados do SAEB – Sistema Nacional<br />

de Avaliação da Educação Básica. Concluintes do Ensino<br />

Médio revelam os mesmos resultados, demonstrando dificuldades na<br />

área de leitura e produção textual, como apontam os resultados do<br />

ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio. Os testes do ENADE –<br />

Exame Nacional de Desempenho de Estudantes em todo o Brasil sinalizam<br />

índices preocupantes, já que evidenciam a pouca familiaridade<br />

desses alunos com uma área em que o domínio da língua é de<br />

extrema importância, é uma ferramenta básica para o exercício, não<br />

apenas de sua profissão, mas também de cidadania.<br />

2. Crise no ensino de língua portuguesa: falácia ou realidade? O<br />

olhar do aluno<br />

Quando se fala em crise no ensino de Língua Portuguesa, invariavelmente<br />

as atenções se direcionam para a gramática: alguns a<br />

apontam como a vilã, outros como a redentora capaz de contribuir<br />

para a reversão desse caos. Assim, a questão do ensino de Língua<br />

Portuguesa suscita um questionamento básico: deve-se ou não ensinar<br />

gramática na escola? Cabendo à escola ensiná-la, o que se deve<br />

objetivar e que tipo de gramática ensinar? Ou ainda, que tratamento<br />

deve ser dado ao seu ensino?<br />

Por um lado, os gramáticos apontam a necessidade de um ensino<br />

gramatical para instrumentalizar o aluno a se tornar um bom<br />

produtor de textos, um usuário competente da língua. De outro, os


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

127<br />

linguistas fazem críticas muito bem fundamentadas, apontando as falhas<br />

no ensino de língua, na medida em que se prioriza o ensino<br />

gramatical em detrimento do texto, a partir de uma concepção equivocada<br />

de que o domínio da linguagem é oriundo do conhecimento<br />

de regras e conceitos gramaticais, apontando como esse ensino tem<br />

sido propulsor de preconceitos linguísticos e exclusão social, principalmente<br />

em função de uma visão equivocada do que vem a ser a<br />

norma padrão.<br />

Britto (1997, p.73), sobre o assunto, afirma que essa ideia de<br />

que cabe à escola ensinar português padrão é resultante de uma confusão<br />

entre o que se entende por português padrão ou norma culta e<br />

as formas do discurso da escrita, comentando que desde Saussure fica<br />

evidente para quem estuda a língua despreconceituosamente que a<br />

“forma essencial da linguagem é a fala, sendo a escrita um sistema<br />

simbólico secundário [...] com uma longa história de constituição e<br />

relação com a fala”, sendo uma modalidade específica, regido por<br />

regras próprias, e, nesse sentido, não corresponde a nenhuma das variedades<br />

da língua portuguesa, ainda que interaja com elas. Nesse<br />

sentido, dominar a escrita, muito mais que o conhecimento de regras<br />

de uso, implica conhecer certas formas do discurso e acessar a determinados<br />

bens culturais.<br />

Na tentativa de entender um pouco essa problemática e verificar<br />

como os graduandos enxergam o ensino de Língua Portuguesa,<br />

fizemos uma pesquisa de campo em dois espaços universitários: a<br />

Universidade do Estado da Bahia, Campus V (Santo Antonio de Jesus),<br />

com graduandos do segundo semestre do Curso de Letras Vernáculas;<br />

uma universidade do interior de Minas Gerais, 1 com graduandos<br />

do primeiro período do Curso de Comunicação Social. Dentre<br />

as questões propostas, destacamos:<br />

A escola deve garantir ao aluno acesso à escrita e aos discursos que<br />

se organizam a partir dela. Diante disso, escreva sobre sua experiência<br />

relativa ao ensino de língua portuguesa no ensino médio, evidenciando<br />

qual o comportamento dos professores durante os três anos de ensino<br />

médio em relação ao ensino da língua materna.<br />

1 Como combinado com os alunos, utilizaremos o nome de informante a fim de preservar suas<br />

identidades.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

128<br />

Os alunos, ao rememorarem como eram ministradas as aulas<br />

de Língua Portuguesa no Ensino Médio, reiteram os problemas elencados.<br />

A primeira informante 2 descreve como as aulas eram ministradas:<br />

[...] Lembro da acomodação de alguns docentes ao passar o conteúdo,<br />

era sempre igual, não tínhamos novidades nas aulas, algo que fizesse<br />

com que nós, alunos, se interessasse 3 mais, provavelmente pensavam ou<br />

pensam que é mais cômodo seguir um modelo tradicional, do que expor<br />

algo novo, tendo como único objetivo que nós, alunos, aprendêssemos a<br />

norma culta, o que importava ou importa é que não podíamos falar, escrever<br />

ou ler errado. Hoje percebo que fui prejudicada por causa do ensino<br />

de alguns professores [...] Eles faziam parte da concepção que não influenciava<br />

a leitura, que quando iram passar algum assunto gramatical<br />

não interagia com um texto literário. Nas atividades, tínhamos que aplicar<br />

as regras gramaticais em sentenças isoladas, esses acontecimentos<br />

contribuíram para o bloqueio em vários alunos, que hoje em dia por consequência,<br />

encontram dificuldades em seu desenvolvimento no ensino<br />

superior e o mais triste é que sabemos que existem vários desse tipo de<br />

docente ainda. (A.C.S.O. – BA)<br />

Outra informante vai além, despejando sua mágoa e decepção<br />

em relação aos professores de Língua Portuguesa. Ela diz:<br />

É intrigante saber como um professor deixa o aluno se decepcionar<br />

com a matéria que ele transmite, informa ou esclarece. [...]. Tive três<br />

professoras de português, no primeiro ano uma amante da língua portuguesa,<br />

nos ensinava com classe [...] uma maravilha. No segundo ano foi<br />

um desastre, a professora era depressiva, velha no contexto, chantagista,<br />

aprender português era uma condenação e em fim no terceiro ano como<br />

dizem os baianos, “oh lezeira”, a professora dava sono de tão lenta, de<br />

voz baixa [...]. Me sinto constrangida de de ter que falar e escrever uma<br />

língua que além de ser passada sem muito amor e técnica ela é complicada<br />

deixando a desejar. (C.A – MG)<br />

Notemos que os informantes deixam entrever, nas linhas e entrelinhas<br />

do seu discurso, primeiro, sua perspicácia em enxergar, pelas<br />

lentes do aluno, as falácias de um ensino que não privilegia o texto,<br />

desconsidera as variações linguísticas, é prescritivo por excelência,<br />

dentre outros problemas. Do Nordeste ao Sudeste, os mesmos<br />

2 Os informantes serão citados pelas iniciais dos seus nomes, de modo a terem sua identidade<br />

preservada. Após as iniciais, serão codificados com a sigla BA, quando pertencentes à universidade<br />

da Bahia e MG, quando oriundos da universidade de Minas Gerais.<br />

3 Fomos fiéis à escrita dos informantes.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

129<br />

problemas são denunciados. E a visão que o aluno acaba por construir<br />

do professor e da Língua Portuguesa é deprimente: uma língua difícil,<br />

professores desmotivados, com concepções equivocadas e distorcidas<br />

da própria língua que ensinam e falam, metodologias que<br />

em nada contribuem para despertar paixão por aprender.<br />

A descrição feita por outros informantes confirma esse diagnóstico:<br />

Os professores tinham uma concepção prescritivista, pois eles ensinavam<br />

dizendo o que era certo e o que era errado, assim eram ditadas regras.<br />

[...] Nas aulas de Português usava-se só as regras com palavras isoladas,<br />

não se usava a palavra num contexto. Tinha professor que ensinava<br />

por ensinar. Era ensinada normas [...] mas isso era passado com palavras<br />

isoladas e não num contexto. O professor só ensinava assim.<br />

I.O.L.S. (BA)<br />

A língua portuguesa no ensino médio é tratada como algo bem básico,<br />

os professores ensinam o que o “sistema” promete que é particularmente<br />

a gramática e pouco de interpretação de texto, focando principalmente<br />

na gramática. A.L.A. (MG)<br />

Esse mesmo perfil do ensino de língua se configura nos depoimentos:<br />

Na minha trajetória estudantil, os professores utilizam a concepção<br />

da “linguagem enquanto expressão do pensamento”, ou seja, o ensino<br />

tradicional de língua, reproduzindo a gramática desvinculada das situações<br />

reais da língua. [...] não tinha aula de redação e só produzi um texto<br />

em sala de aula durante todo o colegial, que foi um breve resumo sobre o<br />

Romantismo. O enfoque do texto era só pra ensinar a gramática normativa<br />

de forma descontextualizada. O ensino de língua durante o colegial<br />

nunca ficou claro para mim, pois ensinava-se regras e a forma que eu e<br />

meus colegas utilizavam a língua oral não aparecia nos exemplo que o<br />

professor copiava no quadro. [...] O professor, através de exercícios, enfatizava<br />

a valorização do padrão normativo, assim, desprezava a análise<br />

linguística. [...] Reduzia as manifestações da língua que eu e meus colegas<br />

utilizavam através da fala a uma teoria normativa que era incoerente<br />

com as realizações reais da língua. (M.S – BA)<br />

No meu ensino médio, meus professores de língua portuguesa de<br />

nada acrescentaram ao meu conhecimento. Nas aulas, os alunos não davam<br />

atenção, conversavam o tempo todo e “matavam aula”. Mas a culpa<br />

do péssimo ensino médio não é somente dos alunos. Os professores<br />

quando começavam uma matéria, iam com ela até o fim do bimestre. Os<br />

alunos que prestavam atenção nas aulas, também terminavam o ano sabendo<br />

pouco ou quase nada. Meu desempenho no E.M., em relação a nota,<br />

estava ótimo, porém, na prática, isso não acontecia. Assim foi meu<br />

desastre no ensino médio. (V.A.C.P. – MG)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

130<br />

É impressionante a unanimidade em relação ao ensino de língua<br />

nos dois depoimentos: ambos tecem sua decepção em relação à<br />

metodologia dos professores, à visão distorcida dos fatos da língua, a<br />

pouca ênfase no texto, o excesso de ensino de regras gramaticais<br />

descontextualizadas, o desinteresse do alunado por um ensino pouco<br />

ou nada produtivo. Notemos que a segunda informante (V.A.C.P.<br />

(MG)) reconhece a parcela de culpa dos alunos, no que tange ao desinteresse,<br />

mas ressalta que mesmo aqueles que agiam diferente não<br />

alcançavam bons resultados do ponto de vista qualitativo, ou seja,<br />

obtinham boas notas, contudo, a aprendizagem, de fato, não ocorria<br />

satisfatoriamente, já que ela evidencia o “desastre” no ensino médio.<br />

Tais depoimentos confirmam dados apontados em uma pesquisa<br />

realizada por Neves (2002, p. 237). Esse estudo revela que os<br />

professores, em sua maioria, afirmam ensinar gramática, porém, contraditoriamente,<br />

admitem que esse ensino gramatical aplicado nas<br />

escolas não tem nenhuma utilidade, não serve para nada. Quanto à<br />

forma de utilização da gramática, esse estudo revela que eles veem a<br />

gramática e a empregam para exercitar a metalinguagem em detrimento<br />

daquelas atividades propiciadoras de reflexão e operação sobre<br />

a linguagem, motivo pelo qual trabalham isoladamente redação,<br />

leitura e interpretação; de outro, literatura, e mais isoladamente ainda<br />

a gramática, sendo esta ensinada como uma transmissão daqueles<br />

conteúdos esboçados no livro didático adotado pela escola. Tais livros<br />

trazem textos que documentam a variação, a evolução linguística,<br />

as quais são desconsideradas nos exercícios, nas lições de gramática<br />

que não levam em conta a variação nem a mudança, assim como<br />

a ampla liberdade de o usuário produzir seus enunciados por meio da<br />

língua.<br />

Quanto a esses exercícios comumente aplicados nessas gramáticas,<br />

os professores revelam preferência por dois tipos: classificação<br />

de palavras e discriminação das funções sintáticas, afirmando<br />

que fazem isso a partir de textos ou frases, provavelmente para não<br />

serem acusados de artificializar o estudo gramatical. Ou seja, por<br />

conta dos equívocos que os estudos linguísticos apontam no ensino<br />

de língua, esses professores mudam de postura, adotam o texto para<br />

não serem acusados de artificializar o estudo gramatical, porém, esse<br />

uso é equivocado na medida em que o texto, como tão bem explicita<br />

Geraldi (1997), é apenas um pretexto para a retirada de palavras ou


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

131<br />

frases isoladamente, sem se levar em conta a riqueza do universo<br />

textual. Isso se reflete no depoimento abaixo:<br />

Durante minha vida estudantil, no ensino fundamental e médio, o<br />

ensino de língua portuguesa sempre foi como um conjunto de regras a<br />

serem aprendidos e colocados em prática [...]. Conjunto estes que não foram<br />

aprendidos e que tornava o ensino de língua muito cansativo. [...]<br />

Não havia separação entre as disciplinas de língua portuguesa e literatura,<br />

mas a prioridade do professor era trabalhar as normas gramaticais,<br />

somente em alguns momentos foram trabalhados alguns romances, que o<br />

professor pediu que fosse lido e não problematizou o conteúdo, e simplesmente<br />

aplicou uma atividade. [...] Estudar a língua é algo que se tornou<br />

muito complexo pela maneira que é ensinado. Se for feito uma pesquisa,<br />

poderá perceber que há maioria dos alunos não gostam de estudar<br />

língua portuguesa por considerar um sistema de regras. Na minha época,<br />

não era diferente, havia sempre uma valorização da norma culta e não se<br />

entendia o porquê de se aprender tudo aquilo se na realidade não se colocava<br />

em prática nem se comentava sobre as variações linguísticas e tudo<br />

que para a norma culta é considerado “erro” era denominado figura de<br />

linguagem. (N.J.S. – BA)<br />

Os graduandos abaixo revelam terem sido expostas ao tipo de<br />

ensino e contato com o texto em sala de aula semelhante ao vivenciado<br />

por N.J.S. – BA. Dizem eles:<br />

[...] Pouco se discutia ou até mesmo produzia para exercício de produções<br />

textuais, o foco não era o texto e sim as regras determinadas pela<br />

gramática normativa. Assim, as formas de abordagem dos textos tanto<br />

em língua portuguesa quanto em literatura eram trabalhados em questões<br />

escritas, estas mediadas através de avaliações, seminários, aulas expositivas,<br />

ministradas pelo professor. Desta forma, com um ensino conteudista<br />

e não trabalhado de forma condizente com o desempenho dos alunos,<br />

o aprendizado com certeza ficava deficiente em decorrência da forma de<br />

abordagem dos conteúdos propostos. (S.S.R. – BA)<br />

[...] o texto tornou-se muito desvalorizado na sala de aula, e os discentes<br />

ficam com uma deficiência muito grande quando se trata de interpretação<br />

de texto e leitura e fruição. (A.P.J.S. – BA)<br />

A língua materna seria a primeira língua que uma criança aprende<br />

em geral ensinada pela mãe, amigos, parentes e etc. Os professores tendem<br />

a corrigir os erros gramaticais e adequá-los de acordo com os padrões<br />

da norma culta. No meu caso não considero que o meu português é<br />

correto, ainda ultilizo muito da língua materna aquela que aprendi nas<br />

ruas, em casa, na internet etc. Ainda falta muito para que eu possa me<br />

aperfeiçoar de acordo com as regras gramaticais. (L.P.S.– MG)<br />

Refletindo sobre o tipo de ensino descrito pelos depoentes,<br />

verificamos uma prática equivocada, já que o ensino se reduz a um


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

132<br />

conhecimento metalinguístico que é visto pelo aluno como inútil,<br />

complicado, incompleto, já que não contribui significativamente para<br />

que ele domine a língua, configurando-se o que Geraldi (1987, p. 21)<br />

alega: “O ensino da língua foi desviado para o ensino da teoria gramatical”.<br />

O texto tem a sua função precípua desviada, o aluno perde<br />

o prazer de ler por ler, de buscar construir sentidos, de se empolgar<br />

com a leitura, de produzir outros sentidos, subverter, de envolver-se<br />

com o universo textual em uma perspectiva dialógica.<br />

Observamos que esse tipo de ensino conduz a concepções equivocadas<br />

em relação ao ensino de língua, como relata a terceira informante,<br />

quando alega que não considera o seu português correto,<br />

como se as outras variações fossem “erradas” e a única função dos<br />

professores de língua seja a de “corrigir erros gramaticais”. Além de<br />

ser, em alguns casos, vítima de preconceito linguístico, pois é tachado<br />

de não saber a sua própria língua, aquela que, como diz Carlos<br />

Drummond de Andrade, “é mistério, só cabe ao professor Carlos<br />

Góis desvendar”.<br />

E essa prática narrada acaba por ser nefasta, na medida em<br />

que distancia o aluno do texto, o que se refletirá negativamente na<br />

sua vida, como se verifica nos depoimentos transcritos:<br />

Na minha prática discente li apenas dois romances: Iracema e Senhora,<br />

indicados pela professora de Literatura. [...] a professora de língua<br />

portuguesa não trabalhava com textos, trazia apenas regras gramaticais<br />

para serem decoradas e postas nas provas. Se meus professores tivessem<br />

incentivado mais a leitura, acredito que hoje estaria melhor na minha vida<br />

acadêmica, pois tenho dificuldades para interpretar alguns textos e<br />

poemas. (I.C.S. – BA)<br />

[...] Deixou a desejar na elaboração de texto [...]. (S.S.M. – MG)<br />

Se a escola levar em conta que sua função básica é o ensino<br />

da língua padrão, certamente não é com teoria gramatical que ela atingirá<br />

tal objetivo. Pelo contrário, esse tipo de ensino levará o aluno<br />

a se desinteressar pelo estudo da língua, já que, quando pensa haver<br />

captado o que vem sendo trabalhado em sala de aula, entra em contato<br />

com determinadas construções sintáticas que não consegue entender,<br />

desestruturando-se, frustrando-se, sendo alvo de reprovações,<br />

recriminações que começam pela própria escola.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

133<br />

Nesse enfoque, como tão bem defende Neves (2003, p. 18), a<br />

escola trabalha equivocadamente o ensino de língua, na medida em<br />

que reduz o ensino de gramática à taxonomia e à nomenclatura em si<br />

por si. Aplica a gramática a partir da reflexão sobre o funcionamento<br />

da linguagem, não leva em conta as relações naturais estabelecidas<br />

entre várias formas de desempenho linguístico oral ou escrito, culto<br />

ou coloquial, o que, se contemplado fosse, possibilitaria ao usuário<br />

da língua dispor eficientemente dos recursos do processamento discursivo,<br />

sistematizando, a partir disso, os fatos linguísticos legitimados<br />

pelo funcionamento efetivo da linguagem, aqui entendidos como<br />

foco das ações.<br />

Esse foco, na prática, tem se desviado para ações excessivamente<br />

ritualistas no ensino gramatical, dentre elas: a aplicação de atividades<br />

de rotulação; reconhecimento e subclassificação de classes<br />

ou funções; definições, tidas como prontas, acabadas, inquestionáveis,<br />

percebendo-se a gramática como um “mapa taxonômico de categorias”,<br />

como cita Neves (2003, p. 116), o qual não considera a<br />

língua em funcionamento, organizada a partir da interação linguística,<br />

as funções que são efetuadas no uso.<br />

Procedimentos ritualísticos dessa natureza são reveladores de<br />

um ensino de gramática expositivo e impositivo de modelos, aos<br />

quais essas classes ou funções devem se encaixar, isso a partir de<br />

textos-pretextos formulados unicamente para esse exercitar mecânico<br />

e improdutivo da língua, desconhecendo-se, portanto, os usos da linguagem<br />

no trato com a gramática. Isso se confirma no depoimento<br />

dos graduandos, os quais esmiúçam como o texto se presentificou<br />

nas suas vidas estudantis e o tipo de ensino ministrado:<br />

Em minha prática discente o texto foi desvalorizado, pois não havia<br />

uma reflexão sobre a língua, no que diz respeito à sua efetiva realização.<br />

Em alguns momentos que o texto foi utilizado em sala de aula ele servia<br />

como base para auxiliar o ensino da norma padrão. [...] A prática pedagógica<br />

exercida por alguns professores não demonstrava uma definição<br />

sobre a finalidade do ato de ensinar e consequentemente uma real reflexão<br />

sobre o conteúdo transmitido. Não houve um vínculo claro entre a<br />

metalinguagem e a prática efetiva de análise linguística, mas uma valorização<br />

da norma culta e da escrita em detrimento da oralidade. Exercícios<br />

como escrever listas de verbos com o objetivo de demonstrar os tempos<br />

verbais, como pretérito perfeito, pretérito imperfeito e mais que perfeito,<br />

exemplificam a valorização da escrita e a utilização de uma metalingua-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

134<br />

gem que não facilita a retenção do conteúdo pelos alunos. (C.L.S.S. –<br />

BA)<br />

No ensino médio o ensinamento de língua portuguesa foi abordado<br />

no formato de uma revisão das regras e normas mais importantes acerca<br />

do nosso idioma. (F.T.A.S. – MG)<br />

Revelando ter sido exposta ao mesmo tipo de ensino, o depoente<br />

desabafa, deixando entrever no seu discurso a sua insatisfação<br />

com a experiência vivenciada em sala de aula, no que tange ao estudo<br />

da língua portuguesa:<br />

Infelizmente estes problemas perduraram no efetivo processo educacional<br />

durante o período escolar. Conceitos estabelecidos indefinidamente,<br />

não condizentes com a realidade e o interesse dos alunos, assim como<br />

a inserção de regras e métodos agregados a gramática tradicional e a valorização<br />

da norma culta como padrão para a sociedade, comprometeu<br />

em parte o ensino de qualidade. Em fim, todos esses fatores não que sejam<br />

inviáveis para o aprendizado, a exemplo da norma culta e a gramática,<br />

o fato é a forma como foram instaurados nos estudos o qual tornaram<br />

desinteressantes para os alunos [...]. (S.S.R. – BA)<br />

Outro graduando apresenta experiência similar ao da depoente<br />

acima, quando confessa: “[...] Os textos (normalmente crônicas ou<br />

trechos literários) serviam como pretextos para o aprendizado das<br />

normas gramaticais”. Ele também revela ter sido exposto ao mesmo<br />

tipo de ensino, quando narra sua vivência escolar:<br />

Durante o Ensino Médio, as aulas de Redação que eu tive eram totalmente<br />

mecânicas e estabelecidas. A docente (sempre auxiliada pelo livro<br />

didático) passava somente exercícios de acentuação gráfica e erros<br />

ortográficos e lia as regras para a criação de uma boa redação, sem qualquer<br />

tipo de prática. Os textos trabalhados nas aulas eram utilizados somente<br />

para fins gramaticais, sem haver qualquer discussão ou debate.<br />

(D.B. – BA)<br />

Os depoimentos permitem entrever a adoção, pela escola, de<br />

um modelo de ensino reducionista, prescritivista, revelando claramente<br />

uma concepção segundo a qual a linguagem é vista como expressão<br />

do pensamento. O texto é utilizado como pretexto para ensino<br />

da metalinguagem, isso quando se presentifica na sala de aula. Ou<br />

seja, o modo como o texto que se usa em cada situação de interação<br />

comunicativa está constituído não depende em nada para quem se fala,<br />

em que situação de fala, conforme Travaglia, tendo suas raízes na<br />

filosofia grega e, baseado nela, o ensino de Língua volta-se para a<br />

tradição gramatical, buscando-se a homogeneidade padronizada,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

135<br />

desprezando-se a heterogeneidade dialetal, cabendo à escola unicamente<br />

o ensino da gramática normativa.<br />

Esse tipo de concepção, segundo Bagno (2002, p. 22), trabalha<br />

com abstrações, visto que a linguagem é vista como algo místico,<br />

além deste mundo, como uma essência, uma abstração, o que não é<br />

concebível visto que a língua é viva, concretizando-se como atividade<br />

social. Isso fica claro nos relatos a seguir, que rememoram o fazer<br />

pedagógico dos seus professores de língua portuguesa:<br />

Durante minha prática discente os professores tinham como prioridade<br />

empregar o uso correto da gramática, sem se preocupar com as variações<br />

da língua e com sua oralidade [...] dizendo que “esta palavra está<br />

errada, você pronunciou tal palavra errada para esse contexto”, sem se<br />

preocupar com o porque essa variação ocorreu. (A.P.J.S. – BA)<br />

Os professores do Ensino Médio de L.P. que me deram aula, são<br />

pessoas boas, mas que infelizmente me ensinaram pouco. Não sei se por<br />

causa do próprio sistema, dos professores ou por mim mesmo. Resumindo:<br />

meu conhecimento tanto na escrita quanto na fala é ruim. (G.G. –<br />

MG)<br />

Os professores do E.M. funcionam como corretores de todos os defeitos<br />

que nós alunos temos em relação a língua portuguesa. Eles nos<br />

forçam a exercitar nossas maiores dificuldades para que assim possamos<br />

praticar os exercícios básicos dentro da língua materna. [...]. (S.N.M. –<br />

MG)<br />

Fica evidente nesses relatos que os alunos enxergam no professor<br />

de português um detetive de “erros” que se preocupa excessivamente<br />

com a aplicação de um ensino prescritivo de regras, que<br />

pouco ou nada trabalha a variação linguística, conduzindo ao alunado<br />

a uma percepção equivocada desta, como deixa bem claro o depoente<br />

A.J.S. (BA), o qual apresenta uma visão ampla dessa variação.<br />

3. Concepções de gramáticas (ainda) vigentes nas aulas de língua<br />

portuguesa: um percurso teórico<br />

Concebendo a linguagem na perspectiva acima esboçada, a<br />

escola perpetua a pedagogia tradicional, no momento em que, como<br />

diz Bagno (2002, p. 25), a partir de uma abstração-redução – a norma<br />

culta-, procura apresentá-la como algo revestido de estabilidade,<br />

homogeneidade, um produto pronto e acabado. Isso revela uma das


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

136<br />

mais gritantes contradições desse tipo de concepção tradicional: fazendo-se<br />

uso dessa norma culta (abstração) como se fosse um corpo<br />

de regras aplicáveis na prática, na concretude, reduz-se a língua a essa<br />

norma, esta, por sua vez, à gramática (de frase).<br />

No enfoque explicitado acima, a escola adota, em decorrência<br />

disso, uma concepção de ensino essencialmente prescritiva de regras,<br />

buscando levar o aluno a substituir seus padrões linguísticos considerados<br />

“errados” por outros considerados “corretos”. É prescritivo<br />

porque para cada “faça isso” corresponde um “não faça aquilo”, mediante<br />

a aplicação de um único tipo de gramática, a normativa, só<br />

privilegiando a variedade escrita culta, sendo, desta forma, um tipo<br />

de ensino reducionista, o que não cabe mais nos dias atuais.<br />

Baseando-nos nessa concepção, a gramática é vista unicamente<br />

como manual com regras de bom uso da língua a serem seguidas<br />

por aqueles que querem se expressar adequadamente, sendo, por<br />

conseguinte, um conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever,<br />

estabelecidas por especialistas, com base no uso da língua<br />

adotado e perpetuado pelos bons escritores, conforme Franchi (1991,<br />

p. 48). Sendo assim, apontamos que a língua é só a variedade tida<br />

como padrão ou culta, sendo as outras variações desvios, erros, agramaticais.<br />

Com isso, muitos professores ignoram a língua oral, criam<br />

preconceitos de todos os tipos, usando argumentos infundados<br />

para incluir ou excluir formas e usos nessa gramática, que são, na<br />

verdade, de outra ordem: estética; elitista ou aristocrática; política<br />

(purismo); comunicacional (facilidade de compreensão); histórica<br />

(tradição). Ou então justificam todo esse aparato metalinguístico em<br />

função do vestibular, alegando que precisam preparar o estudante para<br />

enfrentar esse desafio.<br />

Percebemos que a escola tem tratado a gramática como “uma<br />

entidade postiça a qual só teremos acesso se sairmos dos textos”,<br />

como alega Neves (2003, p. 129), esquecendo a escola que a gramática<br />

se explicita mediante o uso da linguagem; que a gramática de<br />

uma língua em funcionamento não é feita de regras absolutas; que<br />

não é eficiente nem produtivo reduzir a gramática a uma metalinguagem,<br />

catalogando-se e nomeando-se classes de palavras e, acima de<br />

tudo, que não é concebível a disciplina gramatical escamotear ou ignorar<br />

o real funcionamento da linguagem.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

137<br />

Levando em conta os pressupostos acima, vemos que não é<br />

dominando uma determinada variedade linguística que o indivíduo<br />

poderá mobilizar o conhecimento. Antes, o que o possibilitará isso<br />

será o acesso à cultura e à informação, consequentemente, a ampliação<br />

do seu domínio linguístico. Como diz Britto (1997, p. 176), trata-se,<br />

isso sim, de garantir a todos o acesso à escola e aos discursos<br />

que se organizam a partir dela, visto que o conhecimento linguístico<br />

decorre da experiência social e do acesso aos bens sociais e não da<br />

aprendizagem de uma metalinguagem. Logo, a reflexão sobre a língua<br />

é extremamente necessária, na medida em que<br />

Objeto historicamente construído, a língua nacional é plena de valores<br />

e sentidos, e a percepção aguda destes valores (preconceito, exclusão,<br />

elitização, apropriação), o reconhecimento da variação, o entendimento<br />

dos diferentes registros e o lugar da norma padrão [...] tudo isso exige<br />

um sujeito que, além de usar a língua, saiba como esses processos ocorrem.<br />

(BRITTO: 1997, p. 177)<br />

Não questionamos que o objetivo da escola é ensinar o português<br />

padrão ou de criar condições para que a sua aprendizagem seja<br />

efetivada, como afirma Geraldi (1999, p. 33). Para ele, essa tese infundada<br />

de que não se deve ensinar o padrão é fruto de um equívoco<br />

político e pedagógico, segundo o qual esse modelo de língua é altamente<br />

complexo, sendo, por conseguinte, de difícil aprendizagem<br />

para os alunos oriundos das camadas populares, falantes e usuários<br />

de variedades não padrão. Na verdade, para o autor, a não aprendizagem<br />

ou o desuso desse dialeto padrão decorre de valores sociais dominantes<br />

e também da adoção de estratégias pedagógicas ineficientes<br />

ou equivocadas por parte da escola. Assim, falar contra o que Possenti<br />

(1996, p. 56) chama de gramatiquice não é inviabilizar a reflexão<br />

sobre a língua, até porque tal ação é corrente na vida do ser humano,<br />

logo, não há razão para inviabilizá-la no espaço escolar.<br />

Bagno (2003) também não se posiciona contra a existência e<br />

o ensino de um padrão. O que ele combate é se estabelecer um padrão<br />

escrito tradicional como única norma a ser aceita para todos os<br />

meios de comunicação, todas as regiões e relações sociais, visto que<br />

para cada situação comunicativa há uma variedade adequada da língua.<br />

O que não se pode é, em nome dessa norma, desconhecer a variação<br />

linguística, ou não se refletir sobre ela na escola. O que não é<br />

mais cabível é que essa instituição, no trato com a linguagem, confunda<br />

noções de norma linguística e preconceito linguístico, conce-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

138<br />

bendo que a ela cabe avaliar usos linguísticos pela ótica da valoração<br />

social.<br />

Como defende Neves (2003, p. 22), até por conta da pressão<br />

da sociedade pela preservação da identidade, há na escola um espaço<br />

para o estudo da língua padrão, porém, é preciso partir da língua – da<br />

linguagem – para o padrão, ou seja, do uso para a norma, e não do<br />

movimento inverso – do padrão para a linguagem e para a língua,<br />

que é, numa visão acrítica, o que se tem efetivado na prática, quando<br />

se oferece a gramática de uma língua como uma camisa-de-força que<br />

vem desenhada para depois se encaixar os exemplos que caibam no<br />

desenho traçado, no modelo desenhado, na doutrina assentada, tratando-se<br />

a gramática como mera transmissora e registradora de modelos.<br />

Estes são denominados por Neves (2003, p. 85) de esquemas<br />

mudos, esqueletos inexplicados que depois são revestidos com aquilo<br />

que melhor se adapte a esses moldes.<br />

Com esse tipo de ensino, a metalinguagem acaba engolindo a<br />

linguagem que lhe deu vida e estatuto, instaurando dois problemas<br />

cruciais: o sufocamento da linguagem pela metalinguagem e a limitação<br />

do nível da análise à oração, a qual não atinge o patamar alcançado<br />

pela linguagem, desconsiderando-se, assim, que a gramática é<br />

decorrente de uma capacidade natural efetivada no uso, na interlocução<br />

e criação de textos, conforme a autora.<br />

Ora, é evidente que ninguém precisa estudar regras gramaticais<br />

para depois ser um falante competente de sua própria língua, logo,<br />

A gramática, como disciplina escolar, terá de ser entendida como<br />

explicitação do uso de uma linguagem – em todos os ângulos, inclusive o<br />

social – com base em muita reflexão sobre dados, o que exclui toda atividade<br />

de encaixamento em moldes que prescindam das ocorrências naturais<br />

e ignoram zonas de imprecisão e/ou oscilação. (NEVES, 2003, p. 25/6).<br />

Nesse viés, uma gramática escolar cientificamente conduzida,<br />

apoiada no real funcionamento da linguagem, verá como não científica<br />

a adoção de um conceito de correção no estabelecimento de um<br />

padrão linguístico a ser buscado pela escola, e natural e científica a<br />

utilização de um conceito de norma linguística e de língua-padrão no<br />

exame das relações estabelecidas entre gramática e uso da língua, a<br />

aceitação de propostas respaldadas pela Linguística na atuação escolar,<br />

renovando-se o tratamento dado à linguagem, à língua e à gramá-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

139<br />

tica, o que, por sua vez, implicaria numa realimentação das discussões<br />

teóricas aplicáveis sobre a linguagem.<br />

4. Que concepção de gramática e ensino, enfim, adotar?<br />

Levando-se em conta as discussões feitas, negar a necessidade<br />

do ensino gramatical é negar a sistematicidade da língua portuguesa.<br />

Saber gramática não significa decorar nomenclaturas, regras,<br />

exceções. Saber gramática é saber concatenar, combinar, criar de acordo<br />

com regras interiorizadas. É saber falar, ler e escrever com clareza<br />

e eficiência, dominando, o mais automaticamente possível, o<br />

sistema de regras do nosso meio de comunicação – o português. Assim,<br />

o professor deve ter uma concepção instrumentalista da língua<br />

que ensina, e não uma concepção normativa prescritiva. Deve considerar<br />

que a língua expressa as necessidades da cultura, esta desenvolve<br />

a linguagem sem por ela ser exigida. Quando a cultura muda, a<br />

língua tem recursos necessários para mudar com ela, ajustando-se às<br />

necessidades comunicativas.<br />

O que sugerimos, na verdade, é que se possibilite ao aluno elaborar<br />

um conhecimento sobre a língua, vendo-se a linguagem como<br />

um todo, investigando-a, pesquisando-a em todas as suas possibilidades,<br />

contemplando-a em todos os seus aspectos: sua historicidade,<br />

funcionalidade, variabilidade; os gêneros do discurso, a anáfora,<br />

a dêixis, dentre outras questões, bem como propiciando a revisão de<br />

bases semânticas de relações argumentativas, os sistemas de construção<br />

do seu léxico, suas relações com a gramática internalizada, conforme<br />

sugere Britto (1997, p. 178). Assim, a gramática, no contexto<br />

escolar, estaria vinculada aos processos da constituição do enunciado,<br />

sendo, consequentemente, dirigida pela observação da produção<br />

linguística efetivamente operada. (NEVES, 2003, p. 22).<br />

Nesse enfoque, é muito mais produtivo estudar as relações<br />

que se constituem entre os falantes, nos seus atos de fala, do que<br />

procurar o ensino da metalinguagem: analisar a língua, dominando<br />

conceitos e metalinguagens, descrevendo-a. Ora, descrever a língua é<br />

diferente de saber a língua, ou seja, usá-la nas diversas situações do<br />

dia-a-dia, em interação com outros falantes, demonstrando entendimento<br />

e produção de enunciados, diferençando as formas de expressão.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

140<br />

Geraldi (1997) propõe que, com base nessa postura, a partir<br />

de uma concepção de linguagem como processo ou fruto de uma interação<br />

social, as atividades no 1º Grau girem em torno do ensino de<br />

língua, usando-se a metalinguagem apenas quando esta for necessária<br />

para o alcance do objetivo final do domínio da Língua na variante<br />

padrão.<br />

Bagno (2002, p. 53), por sua vez, sugere que as aulas de língua<br />

portuguesa não se reduzam à aula de gramática, mas se configure<br />

em um espaço de leitura e escrita diárias de material diversificado,<br />

defendendo que o objetivo de Língua Portuguesa na escola deve ser<br />

o de levar o aluno a alcançar um grau de letramento cada vez maior,<br />

propiciando o desenvolvimento das habilidades de ler e escrever,<br />

possibilitando-o usar a sua língua com eficiência. Assim, saber português<br />

implicaria outras aptidões, como ler certos tipos de textos,<br />

compreendendo-os, dominar recursos da modalidade escrita, e não<br />

apenas dominar regras gramaticais.<br />

Como assegura Brito (1997), o papel da escola deve ser o de<br />

garantir ao aluno o acesso à escrita e aos discursos que se organizam<br />

a partir dela, permitindo a emergência de sujeitos críticos que, atuando<br />

sobre o seu objeto de estudo, que é a língua, investiguem, descubram,<br />

articulem, aprendam, enfim, estabeleçam relações, formem juízo<br />

e crítica, experimentem liberdade de expressão do pensamento.<br />

Muitos gramáticos afirmam que não se pode confundir o estudo<br />

da linguagem com a gramática. Bechara, por exemplo, adere a<br />

essa distinção e privilégio da Gramática, e isso não é mais que uma<br />

forma de desvalorizar e excluir variedades. Isso, conforme Britto, é<br />

retroceder no tempo, pois não faz sentido imaginar um professor de<br />

gramática que não tenha sua prática alicerçada na Linguística.<br />

A Língua, na verdade, só existe na interlocução. Estudar a<br />

língua, por conseguinte, é buscar identificar compromissos que surgem<br />

a partir da fala, e as condições a serem preenchidas pelos falantes<br />

para falar de certo modo em determinada situação concreta de interlocução.<br />

Nesse direcionamento, caberá à escola promover reflexões<br />

sobre a língua materna, levando em conta as relações de uso da<br />

linguagem e atividades de análise linguística e de explicitação da<br />

gramática, rejeitar um tratamento homogêneo da língua, trabalhando,<br />

portanto, a partir de uma perspectiva sociointeracionista, tendo como


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

141<br />

objeto de investigação a língua em uso, já que é a partir da interação<br />

que a linguagem é utilizada que há produção, ampliação dos usos da<br />

própria língua. Assim, nessa perspectiva, o foco passaria a ser a<br />

construção do sentido do texto, deixando este de ser usado apenas<br />

como pretexto para trabalho metalinguístico.<br />

Nesse viés, será muito mais produtivo estudar as relações que<br />

se constituem entre os falantes, nos seus atos de fala, do que procurar<br />

o ensino da metalinguagem: analisar a Língua, dominando conceitos<br />

e metalinguagens, descrevendo-a. Ora, descrever a língua é diferente<br />

de saber a língua, ou seja, usá-la nas diversas situações do dia-a-dia,<br />

em interação com outros falantes, demonstrando entendimento e<br />

produção de enunciados, diferençando as formas de expressão. Neves<br />

(2003) assegura que<br />

Ensinar eficientemente a língua e, portanto, a gramática é, acima de<br />

tudo, propiciar e conduzir a reflexão sobre o funcionamento da linguagem,<br />

e de uma maneira, afinal, óbvia: indo pelo uso linguístico para chegar<br />

aos resultados de sentido.<br />

Bagno (1999, p. 142) indica, dentre outras coisas: que o professor<br />

se conscientize de que todo falante nativo é um usuário competente<br />

dessa língua; aceite que não existe erro de português, mas diferenças<br />

de usos; não confunda erro de português com simples erro<br />

ortográfico, visto que a ortografia é artificial, enquanto que a língua<br />

é natural; reconheça que aquilo que é visto pela gramática tradicional<br />

como erro é um fenômeno com explicações científicas demonstráveis;<br />

conscientize-se de que há variação e mudança linguística em<br />

todas as línguas; perceba que a língua portuguesa não vai nem bem<br />

nem mal, apenas evolui; respeite a variedade linguística de todos os<br />

falantes; entenda que a língua permeia tudo, constituindo-nos enquanto<br />

seres humanos, daí sermos a língua que falamos; ensine bem,<br />

ensinando para o bem, respeitando o conhecimento intuitivo do aluno,<br />

valorizando o que ele sabe do mundo, da vida, reconhecendo a<br />

língua tal qual ele fala.<br />

Neves (2003, p. 151), por sua vez, afirma que<br />

[...] estudar a língua é refletir sobre o uso linguístico, sobre o exercício<br />

da linguagem; que o lugar da observação desse uso é os produtos que<br />

temos disponíveis – falados e escritos-, mas é, também, a própria atividade<br />

linguística de que participamos, isto é, a produção e a recepção, afinal,<br />

a interação; que, afinal, a gramática rege a produção de sentido.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

142<br />

Neves (2002, p. 266) advoga que o ensino de linguística deve<br />

oferecer condições para que o aluno tire dele orientação e conteúdo<br />

para o trabalho com a linguagem quando ele assumir a outra ponta (a<br />

sala de aula), no processo de ensino, compreendendo: que uma língua<br />

– e seu conhecimento –, envolve esquemas cognitivos: o conhecimento<br />

de uma língua é, afinal, o conhecimento de uma das manifestações<br />

do funcionamento da mente; as propriedades básicas da faculdade<br />

da linguagem, o que lhes irá permitir compreender o processo<br />

de aquisição da linguagem; de uma teoria funcionalista, pelo contrário–<br />

e complementarmente, levará conhecimentos que têm seu<br />

centro no uso linguístico; que o que se pretende, nas escolas de ensino<br />

fundamental e médio, é um bom uso da língua; o que é a língua<br />

em funcionamento, sabendo o que é ensinar a língua materna para os<br />

seus alunos.<br />

A autora defende que dar privilégio à reflexão é o modo de<br />

preconizar-se um tratamento da gramática que objetive o uso linguístico.<br />

Não apenas o estudioso da língua portuguesa, mas também o falante<br />

comum, conduzido na reflexão sobre o uso da linguagem, vai<br />

poder orientar-se para a utilização eficiente dos recursos do processamento<br />

discursivo, e, a partir desse ponto, chegar a uma sistematização<br />

dos fatos da língua legitimada pelo efetivo funcionamento da<br />

linguagem. Defende a autora que é “Partindo do todo da interlocução<br />

que a análise se torna legítima, e, mesmo, possível”. Para ela, “[...]<br />

não é a homogeneidade que se tem de buscar no exercício de uma atividade<br />

reflexiva sobre a linguagem: pelo contrário, a heterogeneidade<br />

é constitutiva da linguagem, pois a língua é um sistema eminentemente<br />

variável.” Dessa forma, a escola deve tratar a linguagem, em<br />

princípio, rejeitando moldes, vendo que não é natural que os padrões<br />

se imponham ao uso, mas que o uso estabeleça padrões, os quais,<br />

obviamente, do ponto de vista sociocultural, são submetidos a uma<br />

avaliação, já que diferentes usos hão de ser adequados a diferentes<br />

situações de uso.<br />

Aponta a autora algumas lições dessas reflexões: que ninguém<br />

precisa primeiro estudar as regras de uma disciplina gramatical<br />

para depois ser falante competente de sua língua; a gramática como<br />

disciplina escolar terá de entender-se como explicitação do uso de<br />

uma língua particular historicamente inserida, e, por aí, do próprio


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

143<br />

funcionamento da linguagem – com base em muita reflexão sobre<br />

dados.<br />

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), referenciais<br />

qualitativos norteadores da educação no Brasil, pautam-se nas tendências<br />

linguísticas contemporâneas, fazem críticas aos aspectos negativos<br />

no ensino de língua, bem como apontam diretrizes para o ensino<br />

de Língua Portuguesa, dando assim, uma grande contribuição<br />

para o ensino. Neste referencial, a Língua Portuguesa é apresentada<br />

como uma área em mudança, no que concerne ao ensino de língua.<br />

Este se fundamenta em um tripé: escuta/leitura de textos orais/escritos;<br />

prática de produção de textos orais/escritos; prática de análise<br />

linguística. Dessa forma, o foco do ensino sai de regras estanques,<br />

pré-estabelecidas, e do tradicionalismo, passando para um questionamento<br />

de regras e comportamentos linguísticos.<br />

5. Sem conclusões; apenas provocações<br />

O que sugerimos é a saída de um ensino prescritivo, metalinguístico,<br />

descontextualizado e de uma teoria gramatical inconsistentes,<br />

para uma perspectiva mais crítica de ensino de língua, mediante<br />

a leitura e produção textual como eixos basilares para a formação do<br />

aluno. Isso porque se entende a língua, não mais como um corpo<br />

homogêneo e transparente, mas um somatório de possibilidades condicionadas<br />

pelo uso e pela situação discursiva, vendo-se o texto como<br />

unidade de ensino e a diversidade de gêneros como um aspecto a<br />

ser privilegiado no espaço escolar.<br />

Ressaltemos, como aspecto extremamente relevante, a importância<br />

que os textos produzidos pelos alunos passam a ter, nesse contexto,<br />

aqui contempladas a produção, a refacção como exercícios de<br />

análise linguística, reflexão sobre língua, linguagem e variações linguísticas,<br />

dentre outras possibilidades.<br />

Com base no que foi discutido, o que propomos é que o ensino<br />

de Língua Portuguesa se organize em torno do uso da leitura, da<br />

produção de textos e da gramática, aqui entendida como uma prática<br />

reflexiva sobre a língua e seus usos. Que se privilegie, no ensino da<br />

língua, a perspectiva sociointeracionista, concebendo-se a linguagem<br />

como processo de interação, levando-se em conta os contextos soci-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

144<br />

ais. Nesse sentido, é necessária uma mudança de paradigma do professor<br />

no que tange às suas concepções de linguagem, língua e ensino<br />

de língua, bem como ousadia para mudar, para desconstruir velhas<br />

práticas, implantando um ensino que contemple a riqueza e as<br />

potencialidades da língua; que seduza o aluno, que o faça encantar-se<br />

pela língua que o identifica, que pode contribuir para que ele se torne<br />

sujeito de sua história, ocupando, de fato, seu lugar de direito: a sala<br />

de aula.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São<br />

Paulo: Loyola 1999.<br />

______. (org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2002.<br />

______. A norma oculta – língua & poder na sociedade brasileira. 2.<br />

ed. São Paulo: Parábola, 2003.<br />

BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental.<br />

Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa.<br />

Brasília, 2000.<br />

BRITO, Luiz Percival Leme. A sombra do caos: ensino de língua X<br />

tradição gramatical. Campinas: Mercado de Letras, 1997.<br />

FRANCHI, C. Mas o que é mesmo ‘Gramática’? In: LOPES, H. V.<br />

et al. Língua portuguesa: o currículo e a compreensão da realidade.<br />

São Paulo: Secretaria da Educação/Coordenadoria de Estudos e<br />

Normas Pedagógicas, 1991.<br />

GERALDI, João Wanderlei. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática,<br />

1997.<br />

NEVES, Maria Helena de Moura. Que gramática estudar na escola?<br />

Normas e uso na língua portuguesa. São Paulo: Contexto, 2003.<br />

______. Gramática de usos do português. São Paulo: Contexto, 2000.<br />

______. A gramática: história, teoria e análise, ensino. São Paulo:<br />

UNESP, 2002.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

145<br />

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas:<br />

ALB/Mercado de Letras, 1996.<br />

TRAVAGLIA, Gramática e interação: uma proposta para o ensino<br />

de gramática no 1º e 2º Graus. São Paulo: Cortez, 1996.


A FEMME FATALE EM “TARDE”, DE OLAVO BILAC<br />

1. Introdução<br />

Armando Rabelo Soares Neto (UERJ)<br />

armandorabelo_soares@hotmail.com<br />

Apesar de estarem separados nos ideais e na vida literária, as<br />

composições dos parnasianos e simbolistas interligavam-se. Para<br />

Massaud Moisés (1984, p. 3), as manifestações realistas, nelas “incluindo<br />

as ramificações naturalistas e parnasianas, [...] e simbolistas<br />

entraram a exercer mútua influência [...]: Realismo e Simbolismo<br />

constituem estéticas [...] paralelas e interinfluentes”. Afrânio Coutinho<br />

(1968, p. 208) chega a afirmar a existência de “paralelismo e<br />

mistura” entre ambas as estéticas, definindo-as como “uma fase de<br />

poesia de transição e sincretismo”. Já Fernando Cerisara Gil (2006,<br />

p. 15) é categórico ao delimitar “a poesia parnasiana e simbolista<br />

como inscritas num mesmo andamento poético, estético e histórico”.<br />

Oriundo da Europa e tento como precursores Théophile Gautier<br />

e Charles Baudelaire, outro movimento fez-se presente entre as<br />

produções finisseculares oitocentistas, mesmo que de forma mais sutil:<br />

o Decadentismo. Segundo Gentil de Faria (1988, p. 55), “ordinariamente,<br />

as obras produzidas [...] no período de 1890 a 1930, caracterizam-se<br />

pela adaptação de modelos franceses. É em grande parte o<br />

reflexo de toda a literatura decadente reinante na França nas últimas<br />

décadas do século XIX”. Tal afirmação leva a crer que o Decadentismo<br />

também exercia influência nas produções parnasianosimbolistas,<br />

fazendo parte do sincretismo estético no qual estava imerso<br />

todo o cenário finissecular do último quartel daquele século.<br />

Se “esse entrecruzamento de correntes estéticas constitui a dinâmica<br />

do século XIX” (COUTINHO, 1968, p. 207-208) em seu finde-siècle,<br />

toda a produção poética oriunda neste tempo deve ser analisada<br />

sob esta ótica. Não seria diferente com Olavo Bilac. Inserido<br />

neste contexto e viajando anualmente para a França (BROCA, 2005,<br />

p. 143-144), o comentado poeta sofreu influência do movimento decadente<br />

que, paralelo à sua produção, ocorria: Bilac, ao mesmo tempo<br />

em que partilhava do contexto literário brasileiro, inseria-se na


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

147<br />

tradição artística francesa. Dessa forma, na poesia bilaquiana, pode<br />

ter penetrado o sincretismo que vigorava até então, sincretismo este<br />

fortemente marcado pela arte decadentista.<br />

Dentre os ideais estéticos decadentistas, dos quais se falará<br />

adiante, o erotismo surge como um dos mais latentes na obra de Olavo<br />

Bilac. Ao longo dos livros que compõem Poesias, o citado poeta,<br />

em diversos momentos, recorrerá à temática da mulher fatal, vista<br />

como paradigma da concepção erótica decadentista. Entretanto, é no<br />

livro Tarde que Bilac consagrará as suas femmes fatales, revestindoas<br />

de uma postura mitológica ancestral. Julga-se necessário, portanto,<br />

investigar as relações entre mito e literatura presentes em Tarde,<br />

procurando assim demonstrar o cotejo entre a mitologia e a literatura<br />

decadente na criação poética das mulheres fatais bilaquianas.<br />

2. A femme fatale em “Tarde”, de Olavo Bilac<br />

O Decadentismo idealizará um erotismo cerebral, que teria<br />

existência somente no plano mental. O erotismo transviado porque<br />

não consumado será tema recorrente dos decadentes. Dentre os diversos<br />

traços desta estética - o gosto pela artificialidade, o desprezo<br />

pela natureza, a linguagem rebuscada, “a curiosidade mórbida pelas<br />

coisas misteriosas e o prazer das sensações raras” (FARIA,1988:56),<br />

por exemplo – o erotismo se destaca. Na vertente do mencionado estilo<br />

literário, o erotismo se revela como forma de perversão, isto é,<br />

devido à negação ao natural, a concepção erótica decadentista se voltará<br />

para o sexo como ato transgressor, postura que provém do próprio<br />

ideal decadente de contrariedade aos valores sociais estabelecidos<br />

e da influência de Charles Baudelaire e Théophile Gautier, dentre<br />

outros autores que serviram de matrizes ao Decadentismo.<br />

Em Baudelaire e em Gautier encontra-se o ideal decadentista<br />

da femme fatale, figura que representa a alegoria da ruína da tradição<br />

artística ocidental, encarnada pelo próprio decadentismo. Neste movimento,<br />

a mulher deixará seu lugar de parceira passiva para assumir<br />

a posição de dominadora, o que já demonstraria uma modificação na<br />

concepção dos papéis eróticos. Bela, porém cruel, esta mulher se<br />

desprenderá de qualquer relação com ideais femininos de veneração<br />

e amor para revestir-se de maldade e frieza. Ela se tornará má na


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

148<br />

medida em que seduz o homem para levá-lo à ruína. A femme fatale<br />

decadentista geralmente é descrita como uma mulher de belos e exuberantes<br />

atributos físicos, mas, contudo, também um ser de alma<br />

monstruosa, marca que lhe cobre de paradoxos.<br />

Ao se falar em mulheres fatais do Decadentismo, deve-se<br />

sempre recorrer a uma figura feminina que, para os próprios decadentes,<br />

melhor as encarnaria: a personagem bíblica Salomé. Eleita a<br />

“deusa” do Decadentismo, Salomé traz em sua própria história a<br />

marca da fatalidade. Devido a sua frieza e crueldade, aliada à sua beleza<br />

e exuberância, a comentada personagem tornou-se, por excelência,<br />

a figura na qual se inspiravam grande parte dos artistas decadentes.<br />

De acordo com o já citado Latuf Mucci (1994, p. 71), “o tema da<br />

Salomé identifica-se com a concepção decadentista do amor, que une<br />

desejo e morte, volúpia e fatalidade, mulher e abismo”.<br />

A presença de tais figuras femininas fatais é frequente na obra<br />

poética de Olavo Bilac. Sua femme fatale irá desde uma tentadora em<br />

“Abyssus” (BILAC, 2006, p. 60) “bela e traidora”, capaz de seduzir<br />

o homem com o único desejo de levá-lo às ruínas, arquétipo feminino<br />

presente no livro “Sarças de Fogo”, até uma “Guerreira” (Idem, p.<br />

23) cruel e sanguinária, representada no poema como a própria “encarnação<br />

do mal” – composição presente no livro “Panóplias”. Outras<br />

mulheres fatais bilaquianas também poderiam ser enumeradas;<br />

no entanto, devido às posturas malsãs que as tornam comuns, uma<br />

explicitação mais profunda não se faz necessária. Necessário é que<br />

se perceba a não relação destes arquétipos femininos com a estética<br />

parnasiana. No Parnasianismo, a mulher emerge como um elemento<br />

distante ao poeta, possuindo atributos tão perfeitos que chega a ser<br />

mineralizada no poema, isto é, comumente ela será vista como estátua<br />

– objeto no qual converge o trabalho artístico da beleza, supremo<br />

ideal parnasiano. A mulher para este estilo literário será moldada, esculpida<br />

e petrificada pelo poeta, este admirador de sua beleza. Este<br />

ideal parnasiano acerca do feminino pode ser notado no poema “Estátua”,<br />

de Teófilo Dias (apud ABDALA JUNIOR, 1985, p. 21), produção<br />

que deixa evidente o desejo do eu-lírico de transformar sua<br />

musa em estátua:<br />

Do albor de brancas formas eu vestira<br />

Teus contornos gentis: eu te cobria<br />

Com marmóreo cendal os moles flancos.


E a sôfrega avidez dos meus desejos<br />

Em mudo turbilhão de imóveis beijos<br />

As curvas te enrolava em flocos brancos.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

149<br />

É evidente que o Parnasianismo também possui um “forte lastro<br />

de sugestão sensual” (CANDIDO & CASTELLO, 1968, p. 126).<br />

Contudo, nesta escola, o feminino e a postura do eu-lírico estão sempre<br />

contidos, atitude aposta à demonstrada pelo poema bilaquiano<br />

“XIV”, integrante do livro “Via-láctea” (BILAC, 2006, p. 44), no<br />

qual o eu-lírico lamenta-se por ter se deixado envolver com uma mulher<br />

destruidora, produção poética que se aproxima mais da estética<br />

decadentista de erotismo destruidor:<br />

Por que tanta serpente atra e profana<br />

Dentro d’alma deixei que se aninhasse?<br />

Por que, abrasado de uma sede insana,<br />

A impuros lábios entreguei a face?<br />

No seu derradeiro livro, Tarde, Olavo Bilac dará vida a mulheres<br />

fatais identificadas com arquétipos mitológicos grecoromanos,<br />

egípcios e judaico-cristãos. Diferentemente dos outros livros,<br />

neste o poeta fará uma relação direta entre a femme fatale e as<br />

antigas concepções do feminino, melhor dizendo, os ancestrais arquétipos<br />

mitológicos. Aliás, sobre as mulheres fatais e sua relação<br />

com o mito e a literatura, Mario Praz (1996, p. 179) afirma:<br />

Sempre houve no mito e na literatura mulheres fatais, porque o mito<br />

e a literatura só fazem espelhar fantasticamente aspectos da vida real e a<br />

vida real sempre ofereceu exemplos mais ou menos perfeitos de feminilidade<br />

prepotente e cruel. (Ibidem)<br />

Diante de tão importante relação, é propício um estudo que<br />

procure expor tal cotejo: é necessário analisar a femme fatale presente<br />

em Tarde e sua relação com a mitologia.<br />

No poema “Oração à Cibele”, Bilac fará referência à deusa<br />

romana que intitula a composição. Esta divindade trazida da Frígia<br />

para Roma é denominada como Grande Mãe, identificada com a natureza<br />

como um todo e classificada como deusa da fecundidade. Aparentemente,<br />

não possuiria nenhum atributo que lhe concedesse aspectos<br />

fatais. No entanto, segundo Chevalier & Gheerbrant (1996, p.<br />

237), “de uma forma quase delirante, ela simboliza os ritmos da morte<br />

e da fecundidade, da fecundidade pela morte”. Visto que esta fecundidade<br />

presente na referida deusa dá-se pela ação mortífera, sua


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

150<br />

postura já poderia se aproximar de uma concepção de erotismo fatal.<br />

Outros elementos que envolvem o mito de Cibele contribuem para<br />

essa aproximação, dentre os quais se destacam cultos orgiásticos desenvolvidos<br />

em torno da deusa (GRIMAL, 1997, p. 86) e sua própria<br />

condição de mulher dominante e controladora, observável no “seu<br />

carro [...] puxado por leões: o que significa que ela domina, ordena e<br />

dirige a potência vital” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996, p.<br />

237). Na produção bilaquiana em questão, o eu lírico se dirige a Cibele,<br />

fazendo-lhe uma prece:<br />

Deitado sobre a terra, em cruz, levanto o rosto<br />

Ao céu e às tuas mãos ferozes e esmoleres.<br />

Mata-me! Abençoarei teu coração, composto,<br />

Ó mãe, dos corações de todas as mulheres!<br />

Nesta primeira estrofe, o eu-lírico deixa entrever sua condição<br />

de prostração frente a esta mulher forte e dominadora. Seu único desejo<br />

é morrer por estas “mãos ferozes”, em uma atitude passiva de<br />

entrega. A estrofe seguinte ressalta o paradoxo que envolve a deusa,<br />

revestida com atributos de encanto, mas também de devassidão (traço<br />

peculiar às femmes fatales) e a perplexidade do eu lírico frente a<br />

uma deusa tão aniquiladora:<br />

Tu, que me dás amor e dor, gosto e desgosto,<br />

Glória e vergonha, tu que me afagas e feres,<br />

Aniquila-me! E doura e embala o meu sol posto,<br />

Fonte! berço! mistério! Ísis! Pandora! Ceres!<br />

Cibele é identificada no poema como divindade destruidora<br />

que, através de seu dualismo, seduz e encanta seu observador ao<br />

mesmo tempo que o maltrata. O poema faz uma aproximação da divindade<br />

em questão com outras deusas da mitologia: Ísis, da mitologia<br />

egípcia, e Pandora e Ceres, da mitologia clássica.<br />

Ísis “encarna o princípio feminino, fonte mágica de toda fecundidade<br />

e de toda transformação” (CHEVALIER & GHEER-<br />

BRANT, 1996, p. 507). Dentre os eventos que envolvem sua figura,<br />

destaca-se a passagem mítica da ausência de seu marido Osíris em<br />

viagem à Terra. Tendo inveja do irmão, Tífon tentara tomar o trono<br />

no momento da viagem de Osíris; contudo, o traidor tem seus planos<br />

frustrados por Ísis que, na falta do esposo, assumira o comando.<br />

Considera como deusa absoluta, “tanto no Oriente Médio quanto na<br />

Grécia e em Roma, e em toda a bacia do Mediterrâneo, Ísis foi ado-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

151<br />

rada como a deusa suprema e universal” (Ibidem), fato que lhe confere,<br />

como Cibele, traços dominantes e fortes. Sua representações<br />

também se aproximam de Cibele:<br />

Representavam Ísis ora sob os traços de mulher, com cornos de vacas,<br />

símbolo das fases da lua, ora com um sistro na mão direita e um vaso<br />

na esquerda, ora com a cabeça coroada de torres, como Cibele, tendo<br />

a seus pés o globo da terra; às vezes davam-lhe asas, um carcás ao ombro<br />

e nas mãos o Corno da Abundância. (SPALDING, 1973, p. 295)<br />

Além de sua personalidade imponente, Ísis é “considerada<br />

[...] como grande feiticeira”, marca que talvez explique a relação da<br />

deusa com os cultos de mistérios praticados nos primeiros séculos da<br />

era cristã (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996, p. 507) e com o<br />

estatuário da deusa, “representada com a cabeça coberta por um véu<br />

que representava o mistério” (BULFINCH, 2006, p. 373).<br />

Da mulher forte e misteriosa, passa-se para a concepção de<br />

feminino como ser destruidor. Pandora foi um “presente” de Zeus a<br />

Epimeteu; todavia, a intenção do deus supremo não foi a de presentear,<br />

mas sim de castigar Epimeteu e seu irmão Prometeu, pois estes<br />

haviam roubado o fogo sagrado e o dado aos homens (GRIMAL,<br />

1997, p. 353-354). Pandora foi criada por todos os deuses e presenteada<br />

com muitos atributos, porém, não só elementos de bondade lhe<br />

foram atribuídos: a astúcia, a curiosidade e a mentira também lhe foram<br />

acrescentadas. Sendo assim, Pandora causaria um dano imenso<br />

para a humanidade: através de sua personalidade, toda a humanidade<br />

viria a perecer:<br />

Criada com a cooperação de todos os deuses, Pandora recebeu uma<br />

longa série de qualidades, como a beleza, a graça e a persuasão. Mas<br />

Hermes havia inoculado em sua alma a mentira e a astúcia, e Hera, a curiosidade.<br />

Pandora foi enviada a Epimeteu, irmão de Prometeu, levandolhe<br />

como presente de núpcias um vaso fechado por uma tampa. Tomada<br />

por uma curiosidade irresistível, Pandora abriu o vaso, derramando sobre<br />

os homens todos os males que este continha. (MAGALHÃES, 2007, p.<br />

32-34)<br />

Segundo os já citados Chevalier e Gheerbrant (1996, p. 681),<br />

“Pandora simboliza a origem dos males da humanidade” e “o fogo<br />

dos desejos que causam a desgraça dos homens”. Essa marca de ruína<br />

que acompanha o mito de Pandora faz com que ela seja relacionada<br />

a uma femme fatale devastadora.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

152<br />

Seguindo a mesma concepção de feminino aliado à imponência<br />

e maldade, encontra-se citada no poema a deusa Ceres, “nome<br />

romano da deusa grega Deméter, com quem se identifica completamente”<br />

(GRIMAL, 1997, p. 84). A citada deusa é conhecida por vingar-se<br />

furiosamente da terra, no episódio do desaparecimento de sua<br />

filha Perséfone, raptada por Hades. O culto à deusa “remonta à mais<br />

remota Antiguidade, e se reveste dos maiores mistérios, Deméter ocupa<br />

o centro dos mistérios iniciáticos de Elêusis, que celebram [...]<br />

o ciclo dos mortos e dos renascimentos” (CHEVALIER & GHEER-<br />

BRANT, 1996, p. 328). Ceres/Deméter é vista como “deusa das alternâncias<br />

entre a vida e a morte” (Idem, p. 329), isto é, reúne plenitude<br />

e ruína.<br />

Ao eu lírico do poema em questão resta somente a morte. Diante<br />

de tão monstruosas figuras femininas, sua única ação é entregarse<br />

a Cibele que, nesta composição, encarna todas essas divindades:<br />

Que eu morra assim feliz, tudo de ti querendo:<br />

Mal e bem, desespero e ideal, veneno e pomo,<br />

Pecados e perdões, beijos puros e impuros!<br />

E os astros sobre mim caiam de ti, chovendo,<br />

Como os teus crimes, como as tuas bênçãos, como<br />

A doçura e o travor de teus cachos maduros!<br />

De igual forma a este poema, tem-se outra figura mitológica<br />

que se aproxima da concepção de mulher fatal. Trata-se do poema<br />

“Esfinge”. De acordo com Pierre Grimal (1997, p. 149), já citado, a<br />

esfinge é um “monstro feminino a quem se atribuía cabeça de mulher,<br />

peito, patas e cauda de leão, mas que estava provido de asas<br />

como uma ave de rapina”. Na mitologia grega, acredita-se que “este<br />

monstro foi enviado por Hera contra Tebas para castigar a cidade”<br />

(Ibidem). A esfinge devorava todos os que estavam ao seu alcance e<br />

criava enigmas aos viajantes que, não os conseguindo decifrar, eram<br />

devorados de igual forma. Seu mito aparece na tragédia Édipo Rei de<br />

Sófocles, cujo fragmento serve de epígrafe ao poema bilaquiano em<br />

destaque. Édipo foi o herói que decifrou o enigma da esfinge e esta,<br />

ultrajada, atirou-se de um precipício, suicidando-se. Em “Esfinge”,<br />

Olavo Bilac recria a esfinge mitológica, dando a ela traços da concepção<br />

de feminino fatal. Apesar de monstruosa, a esfinge bilaquiana<br />

será graciosa, sensual e sedutora, atributos que envolvem o homem,<br />

mas que também o destroem:


Perto de Tebas, junto a um monte, sobre o Ismeno,<br />

Águia e mulher, serpente e abutre, deusa e harpia,<br />

Tapando a estrada, à espera, - aterrava e sorria<br />

O monstro sedutor, horrível e sereno:<br />

“Devoro-te, ou decifra!” Era fascínio o aceno;<br />

A voz, morna e sensual, tinha afeto e ironia,<br />

Graça e repulsa; e a luz dos olhos escorria<br />

Fluido filtro, estilando um pérfido veneno.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

153<br />

Este poema também faz referência às harpias, seres mitológicos<br />

que trazem em suas personalidades a marca da destruição:<br />

Gênios maus, monstros alados, de corpo de ave, cabeça de mulher,<br />

garras aceradas, odor infecto, elas atormentam as almas com perversidades<br />

incessantes. [...] As harpias simbolizam as paixões viciosas, tanto os<br />

tormentos obsedantes que o desejo faz sofrer quanto os remorsos que se<br />

seguem à satisfação. [...] Harpias figuram as importunações dos vícios e<br />

as provocações da maldade. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996, p.<br />

484)<br />

Neste poema bilaquiano, tanto a esfinge quanto a harpia são<br />

representações do feminino destruidor. Suas descrições físicas são<br />

marcadas por garras, presas, odores, cauda, patas, asas: símbolos do<br />

instinto devorador da mulher fatal. Chevalier e Gheerbrant (1996, p.<br />

484) verão na esfinge grega o “símbolo da feminilidade pervertida” e<br />

a designação da “vaidade tirânica e destrutiva” (Idem, p. 390). Esta<br />

concepção aproxima estes monstros da femme fatale cultuada pelo<br />

decadentismo.<br />

No poema “A morte de Orfeu” (BILAC, 2006, p. 199), este<br />

mesmo ideal de feminino devorador aparece sob a ação sanguinária<br />

das bacantes, as sacerdotisas de Baco, contra Orfeu, este filho da<br />

musa Calíope: Orfeu havia perdido sua amada Eurídice que morrera<br />

picada por uma cobra; devido ao grande amor que por ela nutria, decide<br />

ir até os infernos para trazer sua amada de volta. As divindades<br />

infernais lhe concedem o desejo, mas sob uma única condição: ele<br />

não poderia olhar para trás enquanto não saísse do citado local. Orfeu<br />

não cumpre a condição e jamais revê sua amada (VICTORIA,<br />

2000, p. 111). Triste e abatido, Orfeu dispensa todas as mulheres<br />

que, incessantemente, procuram consolá-lo. As bacantes, furiosas<br />

com o seu desdém, esquartejam Orfeu em uma ação atroz, ato que<br />

pode ser notado no poema bilaquiano referenciado:


No último canto, no supremo brado,<br />

Pelo ódio das mulheres trucidado,<br />

Chorando o amor de uma mulher, morreu...<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

154<br />

Encerrando os exemplos de mulheres fatais que trazem consigo<br />

o mal e, portanto, assemelham-se às divindades e figuras femininas<br />

de outrora, encontra-se “Gioconda”. O conhecido quadro de Leonardo<br />

Da Vinci, também conhecido pela alcunha de “Mona Lisa”,<br />

faz surgir uma persona fascinante e enigmática. Walter Pater, professor<br />

de um grande expoente do decadentismo inglês – Oscar Wilde<br />

-, através de seus estudos sobre a história da Renascença (Studies in<br />

the history of the Renaissance, 1873), verá no sorriso de Gioconda<br />

uma marca que deixa entrever sua relação com a história da mulher<br />

fatal. Para Pater (apud PRAZ, 1996, p. 223), Gioconda seria a convergência<br />

de todo o passado maléfico e cruel que envolve as femme<br />

fatales, sejam elas divindades da mitologia clássica, personagens fatais<br />

bíblicas, mulheres sanguinárias orientais etc. É digno de nota as<br />

considerações do mencionado crítico sobre a “Gioconda”, de Da<br />

Vinci:<br />

É uma beleza que vem do interior e se imprime – o depósito, célula<br />

por célula, de estranhos pensamentos, de fantásticas divagações e de paixões<br />

esquisitas. Ponham-na por um momento ao lado de uma daquelas<br />

deusas gregas ou das belas mulheres da antiguidade: oh, como estas ficariam<br />

atormentadas com sua beleza, em que se transfunde a alma com todas<br />

as suas doenças! Todos os pensamentos e todas as experiências do<br />

mundo deixaram ali os seus sinais e suas marcas graças ao poder que têm<br />

de refinar e tornar expressiva a forma exterior. [...] A imaginação de uma<br />

vida perpétua, que reúna milhares de experiências, é de antiga data. E a<br />

filosofia moderna tem concebido a idéia da humanidade como sujeita à<br />

influência de todos os modos de pensamento e de vida. Certamente Mona<br />

Lisa poderia ser considerada como a encarnação daquela fantasia antiga<br />

e o símbolo da idéia moderna. (Ibidem)<br />

No poema “Gioconda” (BILAC, 2006, p. 200), Olavo Bilac<br />

faz culminar, assim como Pater, todo o espírito feminino fatal na figura<br />

que intitula esta produção, afirmando que<br />

Deu-te o grande Leonardo ao sorriso a ironia,<br />

Insídia, e eterno ardil, na luminosa teia:<br />

Tal, a Belerofonte a Quimera sorria,<br />

E a Esfinge de Gizé sorri na adusta areia...<br />

A cilada do amor, o embuste da utopia,<br />

O desejo, que abrasa, e a esperança, que enleia,<br />

Chispam na tua boca impenetrável, fria...


Seduzes, através dos séculos, sereia!<br />

Esse leve clarão no teu lábio, indeciso,<br />

É a dobrez ancestral, a malícia primeva<br />

Da Ísis, da pecadora altriz do Paraíso:<br />

Porque, para extrair as gerações da treva,<br />

A serpe, e a Adão, e a Deus, com o teu mesmo sorriso,<br />

Sorria, astuta e forte, a mãe das raças, Eva.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

155<br />

Gioconda encarna toda a “dobrez ancestral” e, dessa forma, é<br />

comparada com diversas personas fatais. A primeira destas, Quimera,<br />

de origem clássica, “é um animal fabuloso, um misto de cabra e<br />

de leão. Ora se considera que tem a parte posterior de serpente e cabeça<br />

de leão implantada num corpo de cabra, ora que tem várias cabeças,<br />

uma de cabra e outra de leão.” (GRIMAL, 1997, p. 402) Foi<br />

morta por Belerofonte a mando do rei da Lícia Ióbates, devido à devastação<br />

que causava a seu território. Monstro avassalador, “a quimera<br />

seduz e causa desgraça de todo aquele que a ela se entrega”<br />

(CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996, p. 763), traço que aproxima<br />

o monstro da concepção feminina estudada neste trabalho.<br />

Posteriormente, esta femme fatale é comparada à “Esfinge de<br />

Gizé”, monumento egípcio, e à Ísis, divindade também egípcia, bem<br />

como à Sereia, ser da mitologia clássica e, tempos depois, na mitologia<br />

nórdica (Idem, p. 814). Estas duas primeiras figuras já foram analisadas<br />

anteriormente, não havendo, pois, necessidade de retomá-las.<br />

Quanto à Sereia, vale comentar o seu desejo atroz e devorador. Na<br />

mitologia grega, eram monstros marinhos metade mulher, metade<br />

pássaro, que seduziam os navegantes com sua beleza e a melodia de<br />

seu canto para depois devorá-los, o que contribui para a formação de<br />

uma imaginação tradicional, na qual prevalece “o simbolismo de sedução<br />

mortal” das sereias (Ibidem), aproximando-as da mulher fatal.<br />

Ao final do poema em questão, encontra-se a femme fatale<br />

por excelência da cultura judaico-cristã: Eva. Descrita em Gênesis<br />

como a companheira do homem criada por Deus, Eva é lembrada<br />

como a mulher que arruinou a raça humana, trazendo para esta todos<br />

os males existentes. “Defronte de uma serpente que falava, Eva começou<br />

a duvidar da proibição divina e desobedeceu deliberadamente”<br />

(SCHULTZ, 1995, p. 14), ação que resultou no castigo divino<br />

tanto para a mulher quanto para o homem e, consequentemente, para


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

156<br />

toda a humanidade. De acordo com Chevalier & Gheerbrant (1996,<br />

p. 410), “na maior parte das vezes, Eva designará a mulher, a carne,<br />

a concupiscência”, fato que, corroborado pela sua atitude desobediente,<br />

“faz surgir a questão se a mulher não deva ser considerada a<br />

parte mais fraca” (DAUER, 1988, p. 733). É notável a semelhança<br />

entre a Eva judaico-cristã e a Pandora clássica (VICTÓRIA, 2000, p.<br />

116; MAGALHÃES, 2007, p. 34), analisada anteriormente. Ambas<br />

astutas e curiosas, ambas levam a humanidade à ruína: Eva morde o<br />

fruto, Pandora abre a caixa. Eva age como legítima femme fatale que,<br />

de forma destruidora, arruína a raça humana, constituindo-se assim<br />

como mais um exemplo de feminino destruidor e como elemento utilizado<br />

por Bilac para encerrar o poema. Eva, assim como todo o ideal<br />

de feminilidade cruel, converge, neste poema, para a figura de Gioconda.<br />

Na análise dos poemas bilaquianos fica evidente a utilização<br />

da temática mitológica como recurso artístico do poeta para invocar<br />

e dar vida a figuras cruéis e monstruosas, mas também enigmáticas e<br />

sedutoras, figuras estas que remontam às concepções ancestrais do<br />

elemento feminino como destruidor e devorador. As imagens poéticas<br />

presentes nestas produções recriam “o medo intemporal que os<br />

homens têm das mulheres e que disfarçam através de uma agressividade<br />

contra elas” (SANT’ANNA, 1984, p. 78). Atitude que demonstraria<br />

“a externalização de um canibalismo [do homem], ou uma passividade<br />

que poder ser a reafirmação do canibalismo da fêmea sobre<br />

o macho” (Ibidem).<br />

3. Conclusão<br />

Pode-se perceber, ao longo deste trabalho, os recursos poéticos<br />

utilizados por Olavo Bilac para compor as mulheres fatais. Utilizando<br />

mitologias de diversas culturas (grega, romana, egípcia, judaico-cristã)<br />

o poeta faz emergir a imagem de divindades de outrora ligadas,<br />

geralmente, ao mistério, à ruína e à destruição.<br />

Fazendo um paralelo entre mitologia e literatura, Bilac compõe<br />

femmes fatales envolventes, devoradoras e enigmáticas: figuras<br />

que, por sua postura imponente e dominante, fazem do homem um<br />

ser pequeno e passivo à sua vontade. É o caso de Cibele (em “Oração


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

157<br />

à Cibele”), da “Esfinge”, das bacantes (em “A morte de Orfeu”) e de<br />

“Gioconda”.<br />

Em todos os poemas analisados, além da imponência destas<br />

figuras femininas, transparece a posição de prostração e impotência<br />

masculinas. É o caso do eu lírico que se dirige a Cibele, de Orfeu<br />

sendo devorado pelas bacantes, de Édipo sendo envolvido no enigma<br />

esfíngico e do homem aturdido diante da imagem da Gioconda. Prostração<br />

esta símbolo da fragilidade e do medo masculino frente à mulher.<br />

A femme fatale decadentista encarnará estes ideais de atração<br />

e ruína. A Cleópatra de Gautier e as vampiras e lésbicas de Baudelaire<br />

(figuras predecessoras) e a Salomé de Huysmans trazem em si a<br />

marca decadente de erotismo feminino: Cleópatra atrai e destrói, as<br />

mulheres baudelairianas seduzem e devoram, Salomé encanta e mata.<br />

Tais personas em muito se aproximam das divindades antigas aqui<br />

trabalhadas. Sendo assim, no que tange à concepção de erotismo<br />

devorador, compartilham de atitudes e posturas próximas.<br />

Conclui-se, portanto, que o retorno às imagens e figuras mitológicas<br />

fatais é um recurso do poeta de recriar mulheres que se aproximam<br />

mais da concepção decadentista de feminino do que da ideia<br />

parnasiana de erotismo marmóreo. Destarte, as mencionadas produções<br />

podem ser vistas como exemplos da manifestação decadente na<br />

obra de Olavo Bilac. A análise de tais composições comprova o sincretismo<br />

estético existente no cenário finissecular oitocentista e as<br />

ressonâncias da estética decadentista na poesia bilaquiana.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ABDALA JUNIOR, Benjamin (Org.). Antologia de poesia brasileira:<br />

Realismo e Parnasianismo. São Paulo: Ática, 1985.<br />

ANDRADE, Oswald de. Manifesto da Poesia Pau-Brasil. In: TE-<br />

LES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro.<br />

10. ed. Rio de Janeiro: Record, 1987.<br />

BAJU, Anatole. A Escola Decadente. In: MORETTO, Fulvia. Caminhos<br />

do decadentismo francês. São Paulo: Perspectiva/Universidade<br />

de São Paulo, 1989.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

158<br />

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio<br />

de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.<br />

______. As flores do mal. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin<br />

Claret, 2007.<br />

______. Poesia e prosa. Trad. Ivo Barroso et alii. Rio de Janeiro:<br />

Nova Aguilar, 1995.<br />

BAUER, B. Johannes. Dicionário de teologia bíblica. Trad. Helmuth<br />

Alfredo Simon. Vol. II. 4 ed. São Paulo: Loyola, 1988.<br />

BÍBLIA. A. T. Gênesis. Bíblia sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida.<br />

2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008.<br />

BILAC, Olavo. Poesias. São Paulo: Martin Claret, 2006.<br />

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 44. ed. São<br />

Paulo: Cultrix, 2006.<br />

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 14. ed. Vol. III. Petrópolis:<br />

Vozes, 2007.<br />

BROCA, Brito. A vida literária no Brasil -1900. 5 ed. Rio de Janeiro:<br />

José Olympio, Academia Brasileira de Letras, 2005.<br />

BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: história de deuses e heróis.<br />

Trad. Luciano Alves Meira. São Paulo: Martin Claret, 2006.<br />

CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura<br />

brasileira: das origens ao Realismo. 12. ed. Rio de Janeiro:<br />

Bertrand Brasil, 2005.<br />

______. Presença da literatura brasileira: do Romantismo ao Simbolismo.<br />

3. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.<br />

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos.<br />

10. ed. Trad. Vera da Costa e Silva [et al]. Rio de Janeiro: José<br />

Olympio, 1996.<br />

COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 4. ed. Rio<br />

de Janeiro: Livraria São José, 1968.<br />

FARIA, Gentil de. A presença de Oscar Wilde na Belle Époque literária<br />

brasileira. São Paulo: Pannartz, 1988.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

159<br />

GAUTIER, Théophile. Uma noite de Cleópatra. In: COSTA, Flávio<br />

Moreira da. (Org). Os melhores contos que a História escreveu. Rio<br />

de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.<br />

GIL, Fernando Cerisara. Do encantamento à apostasia: a poesia brasileira<br />

de 1880-1919: antologia e estudo. Curitiba: UFPR, 2006.<br />

GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Trad.<br />

Victor Jabouille. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.<br />

HUYSMANS, Joris-Karl. Às avessas. Trad. José Paulo Paes. São<br />

Paulo: Cia. das Letras, 1987.<br />

JABOUILLE, Victor. Introdução à edição portuguesa. In: GRIMAL,<br />

Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Trad. Victor Jabouille.<br />

3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.<br />

MAGALHÃES, Roberto Carvalho de. O grande livro da mitologia:<br />

a mitologia clássica nas artes visuais. Trad. Joana Angélica D’Ávila<br />

Melo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.<br />

MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história<br />

da literatura brasileira. Vol I. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,<br />

1979.<br />

MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira: Realismo. 2<br />

ed. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1985.<br />

______. História da literatura brasileira: Simbolismo. São Paulo:<br />

Cultrix, 1984.<br />

MORETTO, Fulvia. Caminhos do decadentismo francês. São Paulo:<br />

Perspectiva/Universidade de São Paulo, 1989.<br />

MUCCI, Latuf Isaías. Ruína e simulacro decadentista. Rio de Janeiro:<br />

Tempo Brasileiro, 1994.<br />

PAGLIA, Camille. Personas sexuais: arte e decadência de Nefertite<br />

a Emily Dickinson. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Cia. das Letras,<br />

1992.<br />

PAZ, Octavio. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São<br />

Paulo: Perspectiva, 2005.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

160<br />

PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica.<br />

Trad. Philadelpho Menezes. Campinas: UNICAMP, 1996.<br />

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo<br />

e a interdição em nossa cultura através da poesia. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1984.<br />

SCHUTZ, Samuel J. A história de Israel no Antigo Testamento.<br />

Trad. João Marques Bentes. São Paulo: Vida Nova, 1995.<br />

SIMÕES JÚNIOR, Álvaro Santos. A sátira do parnaso: estudo da<br />

poesia satírica de Olavo Bilac publicada em periódicos de 1894 a<br />

1904. São Paulo: UNESP, 2007.<br />

SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário da mitologia latina. São<br />

Paulo: Cultrix, 1972.<br />

______. Dicionário das mitologias europeias e orientais. São Paulo:<br />

Cultrix, 1973.<br />

VICTORIA, Luís Augusto Pereira. Dicionário básico de Mitologia:<br />

Grécia, Roma, Egito, Grécia, Roma, Egito. Rio de Janeiro: Ediouro,<br />

2000.


A HETEROGENEIDADE DO DISCURSO<br />

EM OURO, INCENSO E MIRRA, DE ALÍPIO MENDES<br />

Geysa Silva (Instituto Cravo Albin)<br />

silva.geysa20@gmail.com<br />

As narrativas de Ouro, incenso e mirra. Narrativas históricas<br />

sobre Angra dos Reis (MENDES, 2009) colocam o leitor em contato<br />

com textos tão diferentes quanto os presentes oferecidos pelos chamados<br />

reis magos ao Menino Deus. São apresentados fatos históricos,<br />

lendas, retratos de vultos ilustres da cidade, festas populares<br />

etc., demonstrando o grau de informação de seu autor e a intenção de<br />

divulgá-la.<br />

Essa diversidade de assuntos se manifesta também no método<br />

usado nas pesquisas, que oscilam entre a consulta a fontes primárias<br />

e depoimentos colhidos da tradição oral, cuja veracidade não pode<br />

ser comprovada. Tem-se, por exemplo, a transcrição da certidão de<br />

batismo de Dom Luís Antônio dos Santos: “Aos vinte e cinco de<br />

março de mil oitocentos e dezessete, nesta matriz da Vila da Ilha<br />

Grande, batizei e pus os santos óleos a Luís, nascido ao primeiro do<br />

mesmo mês e ano” (MENDES, 2009, p. 291); por outro lado, é evidente<br />

a ausência de informações sobre bandas e orquestras, fato lamentado<br />

pelo próprio autor: “Bandas de música devem ter existido<br />

em Angra dos Reis desde os mais remotos tempos, talvez desde os<br />

tempos da antiga vila ou depois que recebeu o foral de cidade”<br />

(MENDES, 2009, p. 127), ou ainda: “Quanto às orquestras, é natural<br />

que houvesse pelo menos conjuntos locais capazes de execução de<br />

músicas sacras nas grandes festividades religiosas que se faziam no<br />

tempo antigo” (MENDES, 2009, p. 127). Na verdade, fica-se no terreno<br />

das suposições, uma vez que é criado um hiato entre a linguagem<br />

e a realidade, pois as frases não têm onde se apoiar, não dão a<br />

conhecer suas origens, devido às dificuldades encontradas pelo pesquisador.<br />

O livro, de início, torna muito claro a referência à Bíblia, introduzindo<br />

o leitor num jogo com a tradição católica e com o próprio<br />

nome da cidade em questão. Pela via da intertextualidade, Angra dos<br />

Reis é apresentada de maneira poética, através de uma estratégia que,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

162<br />

sem explicitar o título, supõe leitores que farão o liame pretendido<br />

pelo locutor, condição necessária para que se realizem as potencialidades<br />

do que será exposto nas páginas seguintes.<br />

Os “capítulos”, organizados de maneira aleatória, formam um<br />

sistema solidário de narrativas coordenadas ou não, referentes a uma<br />

comunidade socioespacial que se reconhece neles projetada. Veja-se<br />

a seguinte sequência: A índia feiticeira ou mais um milagre de Nossa<br />

Senhora (p. 101), O celebérrimo Vidigal (p. 109), O rio do Choro (p.<br />

117) e Bandas de música e orquestras (p. 125). Nem cronologia, nem<br />

gênero discursivo, nem afinidade temática. Apenas o topos de referência<br />

a unir os assuntos.<br />

Essa dimensão comunitária do livro permite que sejam renovados<br />

e reforçados sentimentos coletivos que constituem a união daqueles<br />

que se veem ali incluídos, quer pela gênese dos assuntos tratados,<br />

quer pela efervescência cultural que provocam e acentuam a<br />

coesão dos habitantes dessa histórica cidade no sul fluminense. O sujeito<br />

locutor aposta na eficácia de seu discurso, apoiado na crença do<br />

lugar de enunciação; enunciação que tem implícita um nós, uma filiação<br />

do texto à determinada comunidade.<br />

O “nós” do autor de um texto histórico elimina a alternativa de atribuir<br />

a história seja a um indivíduo (o autor, sua filosofia pessoal, etc.) seja<br />

a um sujeito global (o tempo, a sociedade, etc.). Em lugar destas pretensões<br />

subjetivas ou destas generalidades edificantes, propõe a positividade<br />

de um lugar no qual o discurso se articula sem, no entanto, reduzirse<br />

a ele (MAINGUENEAU, 1993, p. 58-59).<br />

É evidente que o locutor procura fazer os leitores participarem<br />

das propriedades semânticas do texto, tornando-os capazes de se<br />

constituir como legitimadores do discurso proferido. O uso do plural<br />

não é sempre índice de modéstia do locutor; ele muitas vezes pressupõe<br />

que alguns leitores são diferentes de outros, alguns ocupam o<br />

plano em que, além de a referência ser sobejamente conhecida, a relação<br />

identitária é compartilhada, o que lhes garante um lugar especial<br />

na cena enunciativa. Veja-se a citação abaixo:<br />

Nós angrenses, que tanto nos orgulhamos da terra natal, também<br />

somos muito orgulhosos da santa padroeira, Nossa Senhora da Conceição,<br />

e por isso muito veneramos sua imagem, que está entre nós desde o<br />

dia 8 de dezembro de 1632, quando ficou conosco pela forma que detalhamos<br />

em outra narrativa deste livro... (MENDES, 2009, p. 103).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

163<br />

O autor não hesita em transcrever o que chama de milagres,<br />

quando relata episódios referentes aos santos que são cultuados em<br />

Angra dos Reis. São Benedito e Nossa Senhora da Conceição surgem<br />

na magnitude da crença que provocam, pois o autor faz questão<br />

de ressaltar que as histórias sobre eles contadas não são lendas, são<br />

fatos comprovados. Não se levam em consideração crenças diferentes<br />

da que está sendo veiculada: “Nesta crônica, vamos contar o que<br />

aconteceu com uma índia feiticeira, ou seja, mais um milagre de nossa<br />

padroeira, a Imaculada Conceição” (MENDES, 2009, p. 103).<br />

Sem dúvida o autor emprega uma argumentação retórica para defender<br />

posições éticas, políticas e históricas: “Seria uma preciosidade<br />

para os historiadores angrenses se ainda existissem as coleções de<br />

todos aos jornais que circularam em nossa terra” (MENDES, 2009,<br />

p. 251); “A solução, como de outras vezes, veio do alto, lá do céu<br />

onde Deus, de sua janela do infinito, vê o que se passa neste mundo<br />

sublunar” (MENDES, 2009, p. 276).<br />

A subjetividade invade os tópicos frasais e atesta a fala de um<br />

locutor que não consegue esconder sua religiosidade, atravessando a<br />

linha que separa o pesquisador do crente. Ao falar como católico, o<br />

locutor passa a outro espaço na cena enunciativa, diferente daquele<br />

que é ocupado pelo historiador, assumindo a heterogeneidade de lugares<br />

em que se forma o discurso.<br />

Ao falar como católico, pode se entender que o enunciador fala<br />

por si e por outros, que são coenunciadores implícitos, pois os angrenses<br />

são, em sua maioria, católicos; entretanto, esse jogo no interior<br />

do discurso não significa igualdade de posições, já que esta cena<br />

se realiza com performatividade pedagógica, em que o autor se identifica<br />

como pesquisador e os leitores como interessados no assunto e<br />

assujeitados ao que é dito.<br />

Estar inscrito na cena pedagógica faz com que o sujeito atinja<br />

o status de detentor do saber, enquanto o discurso presume destinatários<br />

ordenados segundo múltiplos níveis de recepção: os angrenses,<br />

outros historiadores, as autoridades locais, os curiosos, etc. Daí o<br />

“tom” repreensivo, as observações críticas: “fúria devastadora que<br />

assolou essas plagas”; “o velho chafariz representa a carcaça do que<br />

foi e muita gente não sabe, ou não se interessa por saber” (MEN-<br />

DES, 2009, p. 25). Os enunciados, portanto, não estão voltados ape-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

164<br />

nas para seus objetos, eles consideram também o discurso do outro<br />

que neles repercutem, de maneira direta ou indireta.<br />

Há uma reversibilidade entre a comunidade imaginária de<br />

Angra dos Reis, o pesquisador, os angrenses e aquele que faz a enunciação;<br />

os efeitos textuais provocam os leitores que se inscrevem<br />

na cena enunciativa e no discurso a ela correlato. Ou seja, para o autor,<br />

Angra é a cidade esquecida de sua história e os angrenses são<br />

aqueles que não valorizam seus monumentos, portanto os que são<br />

responsáveis pelo que ficou esquecido; ele próprio é o pregador que<br />

denuncia esse estado de coisas; os demais são os que precisam ou<br />

desejam conhecer uma cidade a ser edificada pela palavra.<br />

Nessas condições, a unidade temática do livro perde a importância,<br />

porque se trata de dar publicidade a uma coletânea de fatos<br />

que dizem respeito a determinado local, investindo numa possível<br />

divulgação desses acontecimentos em outros lugares do país, até então<br />

desconhecedores da terra que se quer louvar.<br />

Os outros para os quais meu pensamento se torna, pela primeira vez,<br />

um pensamento real (e, com isso, real para mim), não são ouvintes passivos,<br />

mas participantes ativos da comunicação verbal. Logo de início, o<br />

locutor espera deles uma resposta, uma compreensão responsiva ativa.<br />

Todo enunciado se elabora como que para ir ao encontro dessa resposta<br />

(BAKHTIN, 1992, p. 320).<br />

Para realizar tal tarefa, aquele que enuncia esses discursos se<br />

coloca em determinado lugar e o “outro”, em um lugar complementar<br />

ao seu, mas ambos compartilham experiências e comportamentos.<br />

Dessa forma, garante-se a adesão, no mínimo, de alguns leitores virtuais,<br />

que são instados a colaborar com os objetivos do autor: “Quem<br />

ler o décimo volume da obra intitulada Santuário Mariano, de autoria<br />

de frei Agostinho de Santa Maria, editada em Lisboa no ano de<br />

1707, encontrará a fonte de onde colhemos o assunto” (MENDES,<br />

2009, p. 103). Na verdade há uma sugestão para que a obra seja consultada.<br />

As diversas narrativas postas em relação inserem lembranças<br />

que movimentam o discurso para fazer aceitar, não as argumentações,<br />

porém as fronteiras imprecisas entre os participantes da cena<br />

discursiva. Para os analistas do discurso, não interessa o sujeito antes


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

165<br />

de fazer a enunciação, mas qual é sua instância de enunciação. Podese<br />

dizer que<br />

Na realidade, é possível recorrer às mesmas categorias semânticas<br />

para analisar a formação discursiva e a comunidade discursiva que é seu<br />

correlato. Não nos é possível, aqui, entrar em detalhes; levando a caricatura<br />

ao exagero, dir-se-á simplesmente que, no plano semântico, este discurso<br />

se organiza em torno de uma noção de “ordem”, definida como<br />

uma totalidade cujos elementos estão distribuídos em lugares complementares<br />

e em comunicação constante e regrada (MAINGUENEAU,<br />

1993, p. 65).<br />

Discurso e realidade não são exteriores um ao outro, uma vez<br />

que o primeiro se constitui como experiência social. Quando Alípio<br />

Mendes afirma que “O tempo passa e a humanidade esquece rapidamente...<br />

Decorridos alguns anos da tragédia do Benedito Noite, alguns<br />

engenheiros, muitos, por coincidência, de origem francesa...”<br />

(MENDES, 2009, p. 211) está operando uma opinião e transmitindoa,<br />

não como visão de mundo, porém a partir da ideia de que o grupo<br />

social em que está inserido age sobre o locutor e interrelaciona discurso<br />

e comunidade, que, mesmo sendo categorias distintas de análise,<br />

ao entrar em contato, desencadeiam um determinado tipo de valorização,<br />

ou de seu contrário.<br />

Há um referente implícito nesses discursos que, ao não ser<br />

nomeado, aciona condições de sua enunciação mesma. Nesse caso,<br />

tem-se o pressuposto de que alguns angrenses concordam com a afirmação<br />

vista acima; nessas condições, o discurso teatraliza sua originalidade<br />

e, simultaneamente, ecoa vozes outras que circulam na<br />

comunidade discursiva.<br />

O sujeito de quem emana a opinião de que há falhas na história<br />

revolve a nostalgia de um passado concreto ou não, que ele deseja<br />

ver reverenciado e compartilhado pelos conterrâneos. Convencido de<br />

sua autoridade de pesquisador, impõe suas opiniões sobre os demais,<br />

usando uma linguagem que diz, ininterruptamente, os ideais que movem<br />

sua escrita e, de maneira simultânea, define a comunidade a que<br />

se refere, salientando a religiosidade que nela impera: “Uma das<br />

mais caras tradições do povo angrense é verdadeiramente a festa de<br />

São Benedito. Se assim é ainda hoje, que diríamos daquele tempo em<br />

que a religião católica dominava todas as camadas sociais” (MEN-<br />

DES, 2009, p. 277). Não por acaso a epígrafe do livro é tirada de Ca-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

166<br />

simiro de Abreu: “Todos cantam sua terra,/ Também vou cantar a<br />

minha;/ Nas débeis cordas da lira/ Hei de fazê-la rainha.”<br />

As efemérides e os elogios transparecem na linguagem plena<br />

de adjetivos que dão o tom bombástico às frases: “Destemido e altamente<br />

patriota, muito se distinguiu o valoroso angrense em sua vida<br />

político-militar” (MENDES, 2009, p. 183); “O barco está desarvorado,<br />

rotas as velas, partido o cordame, alagado o convés pelas águas.<br />

Mas consegue acolher-se ao seio azul da plácida enseada” (MEN-<br />

DES, 2009, p. 65); “A jovem apaixonada do moço poeta vivera nesse<br />

tempo da saudade do seu grande amor. Se alguma esperança alimentara<br />

antes, essa foi quebrada definitivamente com a confirmação da<br />

morte heroica do seu amado” (MENDES, 2009, p. 141).<br />

Cada discurso tem seu proprietário interessado e parcial; não há discurso<br />

sem dono, discurso que não signifique nada. (...) Na compreensão<br />

do discurso não é importante o seu sentido direto, objetal e expressivo-<br />

essa é sua falsa aparência – o que importa é a utilização real e sempre interessada<br />

desse sentido e dessa expressão pelo falante, utilização determinada<br />

pela sua posição (profissão, classe) e pela sua situação concreta<br />

(BAHKTIN, 1993, p. 192).<br />

O discurso de Ouro, incenso e mirra por ser tão heterogêneo<br />

procura construir, em seus movimentos, uma relação de afinidade<br />

sustentada por narrativas que compartilham o mesmo campo referencial.<br />

A semântica integradora cria um sistema de junções destinado a<br />

atribuir aos textos uma interdiscursividade fortemente coesa, em que<br />

não existem motivo nem tema com direito a monopólio enunciativo<br />

É preciso perceber que os “capítulos” do livro estabelecem<br />

uma relação de importância simétrica entre eles, para compreender a<br />

estrutura linguística que permeia a formação discursiva. Não há um<br />

capítulo mais importante que outro; todos são equivalentes. A heterogeneidade<br />

de temas reflete-se na heterogeneidade enunciativa, pois<br />

o locutor usa com frequência o metadiscurso para balizar suas afirmações,<br />

valendo-se de glosas que atravessam os enunciados. Observam-se<br />

rubricas de: autojustificação (“Não poderíamos omitir nesta<br />

nossa narrativa...”); presença de outro sujeito enunciador. (Em 1554,<br />

segundo Hans Staden, testemunha do fato...); confirmação (“Inicialmente<br />

devemos esclarecer que só resolvemos incluir o Dr. Coutinho<br />

no rol de nossos conterrâneos após termos certeza comprovada de<br />

que o nosso biografado nasceu em Angra dos Reis...”).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

167<br />

É evidente que a operação metadiscursiva predominante é a<br />

parafrasagem. Ela é um dispositivo que se constitui como negociação<br />

entre os enunciadores na arena em que estão instauradas as palavras,<br />

promovendo coerções ao reajustar a enunciação, portanto não sendo<br />

nunca gratuitas. As glosas não são procedimentos ingênuos, porque<br />

Cada glosa apresenta-se, pois, como exibição de um debate com as<br />

palavras, o qual pretende exemplar; ela define para o coenunciador o<br />

bom caminho através do rumor infinito dos signos da língua e do interdiscurso.<br />

O sujeito cuja imagem é construída pelas glosas é um sujeito<br />

que domina um discurso e que oferece este domínio em espetáculo (MA-<br />

INGUENEAU, 1993, p. 94).<br />

Quando Alípio Mendes, ao escrever sobre Dom Sebastião<br />

Pinto do Rego, diz que “Durante o seu episcopado não se ateve às rotineiras<br />

causas administrativas ou aos tradicionais ritos religiosos”<br />

(p. 331), isto é, não fez apenas aquelas ações efetuadas pelos membros<br />

do clero, ele bloqueia outras interpretações que possam ser conferidas<br />

às palavras rotineiras e ritos, constrói um sentido dentro de<br />

sua enunciação e os termos passam a ter determinada entonação expressiva.<br />

Argumentar supõe o dialogismo, a presença de outro que<br />

deve ser convencido.<br />

No caso em estudo, o locutor é soberano e trabalha com uma<br />

finalidade explícita: a divulgação da história angrense. Tal objetivo<br />

aparece em toda a atividade enunciativa e, ao mesmo tempo em que<br />

lhe cria obrigações - citar fontes, colher depoimentos, etc.- concede a<br />

ele o direito de falar com autoridade sobre o assunto.<br />

O dialogismo, entretanto, cria delimitações ao enunciado. O<br />

locutor precisa imaginar como é ou como são seus destinatários para<br />

ter uma resposta presumida, daí a heterogeneidade de suas posições<br />

na cena enunciativa, daí o apelo constante à parafrasagem, como sói<br />

acontecer na maioria dos discursos históricos e literários.<br />

Pode-se afirmar que a heterogeneidade do discurso de Ouro,<br />

Incenso e Mirra deve-se também à escolha dos destinatários, feita<br />

pelo locutor, que procurou sempre levar em conta como sua fala seria<br />

recebida. Esse fator foi determinante no uso dos gêneros e dos<br />

procedimentos discursivos, embora houvesse a intenção de veracidade<br />

histórica, logo certa pretensão à neutralidade.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

168<br />

O estilo chamado neutro ou objetivo, o estilo das exposições essencialmente<br />

concentradas no seu objeto e que, ao que parece deveriam ignorar<br />

o outro, não deixa de implicar certa ideia do destinatário. Esse estiloobjetivo-neutro<br />

seleciona os recursos lingüísticos em função não só de<br />

uma adequação ao objeto do discurso, mas também do pressuposto fundo<br />

aperceptivo do destinatário (...) (BAKHTIN, 1992, p.324).<br />

É inegável que Alípio Mendes consegue tornar a história de<br />

Angra dos Reis acessível a todos os que se acercam de seu livro, livro<br />

que expressa os sentimentos do autor para com a terra em que<br />

nasceu e que ele quer introduzir no conhecimento de alguns e na<br />

memória de seus conterrâneos.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina<br />

G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.<br />

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. A teoria<br />

do romance. Trad. Aurora Fornoni e outros. São Paulo: UNESP,<br />

1993.<br />

MAINGUENEAU, Dominique. Novas técnicas em análise do discurso.<br />

Trad. Freda Indursky. Campinas: UNESP, 1993.<br />

MENDES, Alípio. Ouro, incenso e mirra. Narrativas históricas sobre<br />

Angra dos Reis. Angra dos Reis: Ateneu Angrense de Letras e Artes,<br />

2009.


A ILUSTRE CASA DE RAMIRES<br />

ANÁLISE DE VARIANTES (1895 – 1900)<br />

Ânderson Rodrigues Marins (UERJ)<br />

profandermarins@hotmail.com<br />

INTRODUÇÃO<br />

A Ilustre Casa de Ramires é considerado, inquestionavelmente,<br />

um dos romances mais importantes do escritor português Eça de<br />

Queirós, reflexo de muito trabalho e almejo pela perfeição, características<br />

peculiares da escrita queirosiana. Nessa obra existem diferenças<br />

entre as edições que confrontaremos a fim de apontar as variantes.<br />

Serão comparados dois fragmentos do início do capítulo VI,<br />

pertencentes a duas edições da obra A Ilustre Casa de Ramires: a de<br />

1900, que será o texto-base, e a de 1895, que corresponde à edição<br />

da revista A Arte. As duas versões reproduzidas neste trabalho foram<br />

extraídas da Edição Crítica de Elena Losada Soler (1999).<br />

1. Os textos cotejados<br />

De acordo com a Edição de Elena Losada (ibidem, p. 27-28) a<br />

versão de A Ilustre Casa de Ramires de 1900 foi publicada no Porto<br />

pela Livraria Chardron de Lello & Irmãos, sucessores de Lugan &<br />

Geneliox, os editores de Eça. O texto, composto por 543 páginas,<br />

aparece dividido em XII capítulos de tamanho desigual, oscila entre<br />

as 86 páginas do capítulo V e as 24 do capítulo XII, sendo a extensão<br />

mais frequente de umas 45 a 49 páginas.<br />

Quanto à edição da revista A Arte sabe-se que Eça de Queirós<br />

colaborou com um fragmento d’A Ilustre Casa de Ramires no primeiro<br />

número da revista. Ele ocupa metade da página 9 e toda a página<br />

10 do número 1 (1895). Nesse fragmento narra-se o primeiro<br />

reencontro entre Gonçalo Mendes Ramires e André Cavaleiro.<br />

As diferenças consideradas mais importantes que apresenta A<br />

Arte situam-se em três níveis: substituições antroponímicas e toponímicas,<br />

inexistência do passeio ao jardim na quinta entre o encontro<br />

no quarto de André e o almoço na sala de jantar.


2. Breve análise de duas versões<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

170<br />

Os fragmentos das edições serão apresentados de maneira que<br />

os da revista A Arte ficarão com a letra B, e sua edição estará em anexo<br />

neste trabalho sendo, portanto, desnecessária a transcrição integral<br />

dos fragmentos cotejados.<br />

Os símbolos §, [...] e ] serão utilizados, respectivamente, para<br />

indicar mudança de parágrafo, evitar reprodução dos fragmentos integrais<br />

das edições comparadas e para separar as diferentes versões.<br />

Para cada trecho haverá, no início, a primeira e a última linha,<br />

por exemplo, “1-19”, mostrando que serão comparadas as variantes<br />

da linha 1 a 19 do texto-base com as da outra edição.<br />

1 – 19: A casa do Cavaleiro [...] em ceroulas!] B: No domingo cedo [...] em ceroulas.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

171<br />

20: E em ceroulas o abraçou, num generoso abraço de parabéns.] B: Em ceroulas lhe<br />

deu o grande abraço de parabéns.<br />

20 – 45: Depois, enquanto [...] me demito, e arde Tróia!...>>] B: E foi procurando [...]<br />

ou me demito”.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

172<br />

45 – 68: me demito, [...] sossega e, almocemos regaladamente!...] B: me demito [...]<br />

Então sossega, e dorme.


68 – 70: sossega e, [...] graça, hem?] B: sossega, e dorme.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

173<br />

70 – 224: - Magnífico! afirmou Gonçalo. [...] - ] B: A criada, uma bela rapariga, [...] - “Então aquele<br />

Ramires não me manda o romance?”


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

174


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

175


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

176


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

177


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

178<br />

224 – 229: Parece que o primeiro número da revista sai em Dezembro, [...] um trabalho<br />

sério, de erudição forte, bem português...] B: - Diz que o primeiro número da Revista<br />

sai a quinze de Outubro, [...] um trabalho sério, histórico.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

179<br />

230 – 234: - Pois convém! concordou vivamente Gonçalo. E à Novela só falta o capítulo<br />

quarto. [...] Que te parece?] B: - Está quase pronto, disse o Fidalgo da Torre que<br />

se servia outra vez de arroz. § Falta o Capítulo IV, que é o último. [...] perfeitamente<br />

segura.<br />

235 - 245: Cavaleiro riu, [...] até lhe achei graça:] B: O Cavaleiro enchia devagar o<br />

copo, [...] até lhe achei graça:<br />

245 - 247: - ]<br />

B: - “Eu vejo [...] o teu Ramires morrer, então é o Bento, e não outro...”<br />

248: Gonçalo recuou a cadeira:] B: O Fidalgo da Torre recuara a cadeira!<br />

249 – 252: - Se eu morrer!... [...] Enfim o impossível!] B: - Se eu morrer!... [...] Nesse<br />

caso era o Bento.


3. Conclusão<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

180<br />

Este artigo, distante da longa tarefa que seria uma verdadeira<br />

edição crítica, teve como objetivo central analisar uma das produções<br />

literárias de Eça de Queirós por meio do cotejo de duas versões. Assim,<br />

pode-se comprovar que uma das características habituais do trabalho<br />

de Eça são as substituições, transformações e depurações estilísticas.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

DUARTE, Lélia Parreira. A lúdica complexidade de A ilustre casa<br />

de Ramires, de Eça de Queirós. Disponível em:<br />

. Acesso<br />

em: 02/05/2010.<br />

FERREIRA, Juliana Casarotti. Eça de Queirós: um gênio da literatura<br />

mundial. Disponível em:<br />

Acesso em: 27 fev. 2010.<br />

LOUREIRO, Roberto. A trilogia do último Eça. Disponível em:<br />

Acesso em: 27 fev. 2010.<br />

MARINS, Ânderson Rodrigues. Crítica Textual: Compromisso com<br />

a Preservação e Transmissão Fiel dos Textos. Disponível em:<br />

. Acesso em: 19 jan. 2010.<br />

QUEIRÓS, José Maria Eça de. A ilustre casa de Ramires. Edição<br />

crítica de Elena Losada Soler. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da<br />

Moeda, 1999.


ANEXOS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

181


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

182


A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO<br />

E DO DESENVOLVIMENTO DOS MOCAMBOS<br />

PARA A RECIFE DOS ANOS 1930 E 1940<br />

Jacqueline de Cássia Pinheiro (UNIGRANRIO)<br />

jpinheiro@unigranrio.com.br<br />

A intenção deste trabalho é estudar a história dos Mocambos<br />

do Recife durante os anos de 1930 e 1940, através da dimensão de<br />

seu termo. Autores mostram que a palavra mocambo, embora há<br />

muito estudada, revela em suas significações uma grande diversidade<br />

já que seu sentido é manipulado conforme as visões que recebe ao<br />

longo do tempo. A palavra mocambo, além de associada ao quilombo,<br />

como mostrou Gilberto Freyre, representando local de esconderijo<br />

e resistência dos escravos, também é associada ao local destinado<br />

aos negros, aos marginalizados socialmente, à sua dimensão ecológica,<br />

às atividades agrícolas, à insalubridade e ao atraso cultural, sendo<br />

inclusive, comparados às favelas da cidade do Rio de Janeiro à época<br />

do estudo em questão.<br />

Relacionada muitas vezes ao mocambo, as favelas do Rio de<br />

Janeiro eram, também, consideradas vergonha nacional, lugar da malandragem<br />

e de moradia do negro, considerado como "raça inferior".<br />

Neste sentido, a intenção aqui é determinar a origem, o significado e<br />

a forma que o termo mocambo fora empregado, analisando-o no contexto<br />

em que apareceu como objeto de um debate político intenso<br />

desde o final do século XIX, envolvendo políticos, engenheiros, urbanistas,<br />

artistas, intelectuais, bem como toda a população do Recife.<br />

Com relação aos mocambos, sabemos que é a partir do século<br />

XIX que este tipo de habitação se espalha pelas “zonas desprezadas<br />

da cidade”. E nessa nova configuração urbana a convivência entre<br />

negros e brancos se acentua. Tal convivência se mostrava nas próprias<br />

relações e comparações que podem ser feitas, principalmente<br />

de acordo com a educação, as posturas e os hábitos de um e de outro.<br />

A convivência, na verdade, os afastava (FREYRE, 2000).<br />

Os negros eram “o terror da burguesia dos sobrados”, pois<br />

habitavam as casas populares da cidade, os mocambos. Vale lembrar


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

184<br />

que à época da libertação dos escravos, em 1888, eles não tiveram, a<br />

princípio, um gosto pela liberdade. Muitos ficaram sem emprego e as<br />

condições de habitabilidade em que se encontravam era muito precária.<br />

Eram, em sua maioria mocambos, embora muitos tivessem se alocado<br />

em cortiços.<br />

Então, como viviam estas pessoas? Em que condições? Toda<br />

vez que se iria retratar a realidade de tais moradias, os materiais de<br />

construção dos mocambos não eram mencionados por suas qualidades,<br />

mas somente julgados por seus defeitos. Porém, o caráter considerado<br />

primitivo não estava somente em seu lado material, mas na<br />

própria paisagem social. A ideia de refugo e de local de habitação de<br />

negros e pardos dava esse ar de habitação primária comparada às habitações<br />

dos primeiros anos da Colônia.<br />

Os mocambos mantinham a intenção de reinventar os estilos<br />

de habitação e convivência africanos. Havia um misto de culturas<br />

que os próprios negros abarcaram dos europeus cristãos. Nos mocambos,<br />

então, havia a configuração de um espaço misto em sua<br />

própria estrutura. A diversidade cultural de negros com suas características<br />

e com as características dos brancos, se misturavam. Hábitos<br />

que ocorriam na frente das casas grandes se perpetuavam nos mocambos,<br />

como, por exemplo, cenas das senhoras que catavam piolho<br />

de suas filhas na porta da casa.<br />

Bezerra (1965) mostra ainda que no que competem às habitações<br />

populares, no final do século XIX os alagados também foram<br />

sendo cada vez mais substituídos pelos mocambos, que tinham sua<br />

ocupação completamente desordenada, se assemelhando, neste ponto,<br />

com as favelas.<br />

O trabalho de José Tavares Correia de Lira, Mots Cachés: les<br />

lieux du mocambo à Recife (1998), procura desvendar a história da<br />

palavra mocambo, mostrando que há muito ela é estudada em suas<br />

significações diversas. O autor revela que no fim do século XIX Recife<br />

era a principal zona de cultivo e de exportação de cana-deaçúcar,<br />

além de se constituir como pólo regional e possuir muitos<br />

trabalhadores, além dos escravos. E por causa da aglomeração de<br />

trabalhadores na cidade a representação do mocambo não mais era<br />

associada somente aos quilombos, mas aos pobres de uma maneira<br />

geral.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

185<br />

Já em 1919, na cidade de Recife foi proibida a construção de<br />

mocambos em sua região central. Nos anos 20 do mesmo século, os<br />

mocambos eram entendidos como sinônimo de diversidade da arquitetura<br />

e da cultura popular do Nordeste brasileiro, além de ser encarado<br />

como “habitação miserável”, sinônimo de cortiço, embora alguns<br />

autores defendessem a ideia de que os mocambos ainda tivessem<br />

melhores condições do que este último (LIRA, 1998). Mesmo<br />

assim, eram considerados a marca dos problemas sociais da cidade<br />

de Recife. A falta de higiene e a necessidade de um olhar mais atento<br />

das autoridades pernambucanas também era a preocupação de alguns<br />

intelectuais (FREYRE, 1937, p. 81).<br />

A substituição dos mocambos por outro tipo de casas populares<br />

na verdade se mostrou como uma substituição somente cenográfica,<br />

na visão de Freyre. Este entende que a higiene e a adaptação ao<br />

clima pernambucano se fazem sentir mais com os mocambos do que<br />

as construções de alvenaria. Este autor observa que o problema dos<br />

mocambos deveria ser visto mais como um problema social do que<br />

urbanístico, e sua apreensão por parte dos governantes apresentava<br />

um teor demagógico.<br />

No período da Segunda Guerra houve um considerável crescimento<br />

populacional no Recife 1 . Neste meio, disputas pelos aforamentos<br />

como os mocambos apareceram como um modo de fazer<br />

fonte de renda e tributos. Era o fomento de uma briga entre os administradores<br />

da cidade e os donos de mocambos que, pressionados,<br />

como enfatiza Daniel Bezerra (1965), criaram sociedades para defender<br />

seus interesses. Um grande exemplo aparece no final dos anos<br />

1920: a “Sociedade a Bem de Nossa Defesa”, uma das primeiras associações<br />

que deu origem a tantas outras até os anos de 1940 e 1950,<br />

como veremos mais tarde. Nessas associações já se mostrava um caráter<br />

educador e integrador que se queria durante o Governo Vargas<br />

(BEZERRA, 1965).<br />

Em pleno Estado Novo a demolição dos mocambos no centro<br />

de Recife ainda representava resquícios dessa mentalidade interventora<br />

e dissidente, pois “as transformações por que passaram os ve-<br />

1 Como mostra o Censo de 1940, o cálculo da população de Recife era de 348.410 pessoas.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

186<br />

lhos centros de Salvador ou Recife são exemplares deste elo entre intervenção<br />

urbana e identidade regional” (LIRA, 1999, p. 56).<br />

Tal problema era, então, minimizado com atitudes como exclusão<br />

social por um lado e afirmação cultural por outro, já que “[...]<br />

houve momentos em que fazia sentido imediato pensar a cidade em<br />

referência à raça, à cultura e à nação” (Ibidem, p. 57). Isto mostra<br />

que o processo de urbanização do Brasil nas décadas de 20 e 30 do<br />

século XX garantiu um sem-número de interpretações. Um dos exemplos<br />

era o pensamento de Oliveira Vianna, que defendia um culto<br />

ao passado para o êxito do nacionalismo brasileiro: “os últimos<br />

tempos do Império e, principalmente, os três decênios republicanos<br />

representam [...] uma fase de consideráveis alterações na estrutura da<br />

nossa população” (VIANNA, 1933, p. 105, apud LIRA, 1999, p. 60).<br />

Nas palavras de José Mariano Filho os mocambos eram:<br />

O retorno à vida primária permite aos negros a satisfação de suas<br />

tendências raciais, as práticas fetichistas, as danças, as macumbas, etc.<br />

As favelas do Rio de Janeiro como os Mocambos do Recife, são puras<br />

sobrevivências africanas como o foram os Quilombos dos Palmares no<br />

século XVII. (MARIANO FILHO, 1943, p. 20, apud LIRA, 1999, p. 63).<br />

Segundo Mariano Filho, em lugar dos mocambos deveriam<br />

ser erguidas “cidades-jardins” a fim de acabar com a insalubridade, a<br />

promiscuidade e a indisciplina que lhes eram comuns. Estas cidades,<br />

ou bairros-jardins, deveriam, entretanto, ser separados dos bairros<br />

nobres, como forma de estabelecer uma hierarquia. Mais uma vez,<br />

vê-se como as reformas urbanas estavam ligadas, de algum modo, ao<br />

debate racial da época.<br />

Tanto as favelas como os mocambos precisariam ser erradicados,<br />

no entender de muitos intelectuais e políticos da época, e seus<br />

habitantes deveriam trabalhar o mais longe possível do restante da<br />

sociedade. Afinal, a se manter esta situação, “a ‘integridade higiênica’<br />

da cidade estava ameaçada” (LIRA, 1999, p. 64).<br />

É importante, ainda, salientar o fluxo imigratório europeu nas<br />

cidades brasileiras, mostrado por Lira, em que grande parte da população<br />

do Brasil descendeu destes imigrantes em algum momento.<br />

Embora negros e índios contribuíssem também para essa genealogia,<br />

pensadores como Oliveira Vianna viam nos brancos europeus a salvação<br />

da nação brasileira, como comentado anteriormente. No e-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

187<br />

xemplo dado pelo autor sobre a cidade de São Paulo, “a miscigenação<br />

foi tanto mais rara, quanto mais forte os obstáculos à infiltração<br />

de indivíduos de cor na classe superior” (Ibidem, p. 65).<br />

Era como se Recife fosse etnicamente dividida em várias cidades,<br />

já que podemos observar a variedade de culturas que nela existia,<br />

e a dificuldade de adaptação da sociedade a esta variedade.<br />

[...] Recife, cidade vista ao mesmo tempo como símbolo de uma civilização<br />

luso-afro-brasileira bem-sucedida, e em que a faculdade de adaptação<br />

e hibridização entre raças e culturas e delas com o meio tropical é<br />

significativa. (Ibidem, p. 68-69).<br />

Mas, o interessante é que o debate acadêmico acaba gerando,<br />

no final da década de 1920, uma discussão pela valorização dos dois<br />

lados de Recife. Ora pela característica lusitana, defendida por pensadores<br />

como Oliveira Vianna, ora pela africana. Isto se dá porque<br />

alguns intelectuais, como Gilberto Freyre, vêem na urbanização da<br />

cidade alguns limites. Embora se ansiasse por uma urbanização, fazia-se,<br />

ao mesmo tempo, a “apologia das velhas ruas estreitas do<br />

Nordeste”, pois, para Freyre, o que algumas capitais pretendiam,<br />

dentre elas o próprio Rio de Janeiro, era imitar as cidades europeias<br />

e, segundo ele, Recife não deveria também fazê-lo. (Ibidem, p. 71):<br />

O Rio no conjunto de suas avenidas novas e dos seus palácios cosmopolitas,<br />

não passará dum amontoado inexpressivo de construções: imitá-lo<br />

será para o Recife o sacrifício de personalidade própria a um<br />

modelo que já em si é incolor, indistinto, inexpressivo. (FREYRE, 1924<br />

apud LIRA, 1999, p. 72).<br />

Deste modo, podemos perceber que para Gilberto Freyre a uniformização<br />

dada pelas reformas urbanas não combinava com o estilo<br />

e a identidade da cidade do Recife e é em favor desse regionalismo<br />

que Freyre será o porta-voz dos que o acompanham nesta ideia.<br />

Neste contexto, os mocambos produzem um interesse diferente,<br />

seja por uma curiosidade social, ou por suas características estéticas.<br />

Pintores, desenhistas e escritores vêem no mocambo uma forma de<br />

se chegar à cultura popular. Gilberto Freyre procura entender os fatores<br />

de resistência cultural e ver nos mocambos uma forma de identidade<br />

regional que leva à nacional. Um exemplo é a obra Mucambos<br />

do Nordeste, ensaio de G. Freyre, que “(...) visava pesquisar as constantes<br />

e as inovações em matéria de casa popular. O autor aí falava


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

188<br />

em causa da região, dos trópicos e da mestiçagem como fatores de<br />

resistência à uniformização da cultura” (LIRA, 1999, p. 100).<br />

A preocupação de Gilberto Freyre estava, como indica Lira,<br />

em reabilitar o mocambo, considerado por ele uma casa ecologicamente<br />

saudável numa época em que a discussão estava em torno de<br />

sua erradicação, pois não se encontrava nada de bom neste tipo de<br />

moradia. Tal reabilitação ensejada por Freyre teria a ver com a preocupação<br />

de reconstruir a memória nacional, as raízes culturais da<br />

mestiçagem entre brancos, negros e índios.<br />

Outro autor que também vê revela outra face do termo mocambo<br />

é Josué de Castro (1992), que percebia um sentido estético e<br />

cultural num mundo de singularidades e de moral próprias. Estes<br />

dois autores representam o que Lira chama de “romantização” deste<br />

tipo de habitação (LIRA, 1994).<br />

Mas, se o debate andava pelos corredores acadêmicos, pelas<br />

empreitadas políticas, como a população do Recife via o papel dos<br />

mocambos? O modo como as pessoas encaravam os mocambos era<br />

como verdadeiros inimigos da cidade e da população, já que as suas<br />

condições de habitabilidade e as noções de raça e etnia da época depunham<br />

contra a imagem de progresso para o Recife. Nascia, então,<br />

a “Sociedade dos Inimigos do Mocambo”, em 1929. Suas propostas<br />

eram o “melhoramento da raça” daquela população e uma especial<br />

atenção à saúde das pessoas, o que gerou a ideia de extinção dos mocambos<br />

a fim de cortar os males pela raiz. Esta ideia ia de encontro<br />

às empreitadas políticas. (LIRA, 1998, p. 94).<br />

Para o discurso implementado pelos políticos, substituir os<br />

mocambos por cortiços denotava um interesse de intervenção do Estado.<br />

E é a partir de então, anos de 1920, que aparecem os primeiros<br />

olhares para os mocambos como um lugar anti-higiênico, feio, inabitável.<br />

O termo mudava sua função outra vez.<br />

O Departamento de Saúde e Assistência de Pernambuco, na<br />

pessoa do médico Amaury de Medeiros, idealiza e cria em 1924, a<br />

“Fundação A Casa Operária”, incisiva nos questionamentos sobre as<br />

habitações populares. É o início de um projeto assistencialista, embora<br />

o trabalho efetivo do governo frente a esse problema só viesse<br />

nos anos 1930.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

189<br />

Deste modo, percebemos como o mocambo foi objeto de um<br />

debate político intenso desde o final do século XIX, envolvendo políticos,<br />

engenheiros, urbanistas, artistas, intelectuais, bem como toda<br />

a população. De um lado, os que não queriam esquecer que este tipo<br />

de habitação foi uma marca cultural importante para a cidade de Recife,<br />

de outro, os que procuravam dar um novo rumo à cidade, tentando<br />

apagar as marcas deixadas pelos mocambos.<br />

É, então, nessa perspectiva que nos anos de 1920 e 1930 os<br />

empresários pernambucanos também dão as mãos aos políticos e<br />

começam a pensar na higienização da população menos favorecida e<br />

ter como preocupação a construção das vilas operárias. Chegava, então,<br />

o Estado Novo, e com ele a configuração da luta contra o mocambo<br />

tendo como líder o interventor Agamenon Magalhães, como<br />

veremos no próximo capítulo. Era uma luta não só contra os mocambos<br />

e seus habitantes, mas contra todas as ameaças, entre elas, a que<br />

parecia mais grave, o comunismo 2 , e para isso era necessário a ajuda<br />

de todas as esferas da população, inclusive da imprensa, pois este era<br />

um órgão de tamanha influência na mudança de hábitos num processo<br />

de organização e reeducação da sociedade, como era o plano do<br />

governo.<br />

Observamos como a concepção do termo pode revelar toda<br />

uma relação com a identidade urbana, o sentido do lugar e, ainda,<br />

promover um intenso debate entre entidades diversas. A manifestação<br />

de cada momento porque a palavra mocambo passou revelou o<br />

entendimento de características físicas e simbólicas específicas aproximadamente<br />

durante cinquenta anos de história.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BEZERRA, Daniel Uchoa Cavalcanti. Alagados, mocambos e mocambeiros.<br />

Pernambuco: Imprensa Universitária, 1965.<br />

CASTRO, Josué. Geografia da fome. Rio de Janeiro: Gyphus, 1992.<br />

FREYRE, Gilberto. Mucambos do Nordeste. Algumas notas sobre o<br />

2 O comunismo revelou-se uma grande ameaça, incluindo perseguições a intelectuais e políticos<br />

ligados aos mocambos, como Gilberto Freyre e o interventor Carlos de Lima Cavalcanti.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

190<br />

typo de casa popular mais primitiva do Nordeste do Brasil. Rio de<br />

Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1937.<br />

______. Sobrados e mocambos. 12. ed. Rio de Janeiro: Record,<br />

2000.<br />

LIRA, José Tavares Correia de. A romantização e a erradicação do<br />

mocambo, ou de como a casa popular ganha nome. Espaço &<br />

debates. São Paulo: vol. 14, n. 37, 1994.<br />

______. Mots Cachés: les lieux du mocambo à Recife. In: Genèse.<br />

Sciences sociales et histoire. n. 33. Paris, 1998.<br />

______. O urbanismo e o seu outro: raça, cultura e cidade no Brasil<br />

(1920-1945). Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. N.<br />

1, maio, 1999.<br />

VIANNA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 2. ed. São Paulo:<br />

Cia. Ed. Nacional, 1933.


A IMPORTÂNCIA DA LEITURA<br />

NAS ESCOLAS BRASILEIRAS CONTEMPORÂNEAS<br />

1. Considerações preliminares<br />

Vagner Aparecido de Moura (PUC-SP)<br />

moura_vagner@ig.com.br<br />

Ler não é apenas decodificar os símbolos gráficos, mas também<br />

interpretar o mundo em que vivemos, visto que o ato de ler representa,<br />

para o leitor em potencial, a ponte entre o mundo linguístico<br />

e o real, deste modo, possibilitando-lhe desenvolver a sua capacidade<br />

simbólica de interagir com o outro pela manifestação da palavra,<br />

em virtude da associação das informações lidas por ele ao seu<br />

conhecimento de mundo, armazenados em seu cérebro em forma de<br />

frames. Neste processo, estão envolvidas questões culturais, políticas,<br />

históricas e sociais no ato de decodificar os lexemas impressos<br />

nas páginas de um jornal, na tela de um computador, livro etc.<br />

Partindo dessa premissa, surgiram as seguintes inquietações:<br />

interpretar o mundo e desnudá-lo por meio das palavras será que é<br />

um ato prazeroso para os discentes? será que escola propicia as condições<br />

necessárias para desenvolver o prazer do ato de ler? em que<br />

condições são desenvolvidas a prática de leitura na escola contemporânea?<br />

Essas inquietações nos impeliram a definir a seguinte questão:<br />

Qual a importância da leitura nas instituições brasileiras contemporâneas?<br />

partindo desta questão, pretendemos, no presente artigo, com<br />

base no embasamento teórico Jouve (2002), Freire (1993), Novoa<br />

(1995), Schôn (1995), Bresson (1996), Possenti (1999), abordar a<br />

concepção e os processos de leitura; o papel do leitor (discente) e do<br />

docente em relação à prática de leitura; discutir a crise que envolve a<br />

formação do professor de ensino básico, e tratar da necessidade de<br />

uma política nacional que favoreça aos professores, no que diz respeito<br />

à habilidade de integrar formação acadêmica e prática escolar.<br />

Para corroborar nossas inferências, é apresentado um questionário,<br />

estruturado em 5 (cinco) questões, que envolveu 75 (setenta e<br />

cinco) alunos do ensino Médio, com o objetivo de descobrir a postu-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

192<br />

ra dos alunos diante da leitura e suas preferências. Trata-se de um<br />

demonstrativo que não se pauta pela quantidade, mas revela dados<br />

consideráveis em relação ao desenvolvimento do gosto pela leitura.<br />

Para finalizarmos, ressaltamos que é preciso considerar que<br />

vivemos numa sociedade com princípios e valores diferentes das gerações<br />

passadas, e, por conseguinte, a leitura ocorre em meio à velocidade<br />

da informação e aos avanços da tecnologia.<br />

2. Processos de Leitura<br />

Jouve (2002), ao tratar da leitura, informa que se fundamenta<br />

nas propostas de Gilles Thérien (1990), que a compreende como um<br />

processo de cinco dimensões: um processo neurofisiológico, um processo<br />

cognitivo, um processo afetivo, um processo argumentativo e<br />

um processo simbólico.<br />

Conforme Jouve, antes de qualquer coisa, a leitura é tida como<br />

algo concreto, que depende do funcionamento da visão e do cérebro,<br />

já que, segundo estudos, é necessário primeiramente perceber,<br />

identificar e memorizar signos, ou seja, é preciso enxergar e processar<br />

os signos para depois acontecer a análise e compreensão do conteúdo.<br />

Depois dessas etapas neurofisiológicas, acontece um processo<br />

de compreensão da leitura (processo cognitivo). Assim, tem-se uma<br />

atividade abstrata, que depende da conversão das palavras em elementos<br />

significativos. Nesse processo, a progressão da leitura depende<br />

do conhecimento do leitor, isto é, em alguns casos este precisa<br />

de mais tempo para compreender o que lê porque lhe falta um saber<br />

mínimo sobre o assunto.<br />

Outro fator que interfere no processamento da leitura é a emoção,<br />

já que, quanto mais o leitor identifica-se com o que lê, mais<br />

convincente a obra torna-se para ele. Alguns estudiosos afirmam que<br />

a afetividade é essencial para tornar a leitura mais significativa.<br />

A argumentação também está presente nos textos (inclusive<br />

nas narrativas), e o leitor pode ou não assumir para si a argumentação<br />

desenvolvida. Além disso, uma relação simbólica também é par-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

193<br />

te integrante do processo de leitura, pois o leitor valoriza a obra relacionando-a<br />

a outros elementos que tenham sentido para ele.<br />

Segundo Jouve, no processo de leitura, a distância entre o autor<br />

e o leitor pode acarretar dúvidas, visto que não há remissões diretas<br />

referentes ao espaço-tempo comuns aos interlocutores. Diferentemente<br />

do diálogo, em que sempre há uma relação de troca, o leitor<br />

precisa reconstruir o sentido do texto por meio da estrutura, das relações<br />

internas que este explicita. Dessa forma, um texto literário, fora<br />

de seu contexto, pode abrir margens a diferentes interpretações, dependendo<br />

da experiência e da cultura do leitor, além dos valores de<br />

sua época. A “descontextualização” é tida, portanto, como a principal<br />

responsável pela pluralidade do texto escrito.<br />

É claro que podemos fazer diferentes leituras de um mesmo<br />

texto literário; no entanto, não se permite qualquer leitura. É preciso<br />

atentar, segundo Barthes (1966, apud JOUVE 2002), para a coerência<br />

interna do texto para que as interpretações sejam válidas. Já Ricoeur<br />

(1986, apud JOUVE, 2002) acrescenta a coerência externa ao<br />

princípio de coerência interna, pois, segundo ele, dados como biografia,<br />

história, entre outros, estão ali para auxiliar na compreensão.<br />

Para uma leitura mais crítica, dentre todas as leituras consideradas<br />

legítimas, é preciso se considerar a primeira leitura da obra,<br />

pois, assim, há uma interpretação que leva em conta a época em que<br />

foi escrita. Entretanto, a partir do momento em que há a preocupação<br />

em analisar a obra, perde-se a leitura “inocente”, aquela que faz com<br />

que ela seja lida de maneira linear (esta é a forma mais comum e esperada,<br />

principalmente nas obras de ficção, que são escritas com a<br />

finalidade de envolver o leitor). A releitura de uma obra ou texto<br />

também é necessária em alguns casos que precisam de maiores esclarecimentos<br />

de detalhes que possam dar “efeitos de sentido” ao texto.<br />

O processo de leitura, portanto, depende de vários fatores e<br />

das relações de proximidade ou distanciamento do leitor para com o<br />

texto. Esse processo, que consiste na compreensão, pode ser mais<br />

demorado ou rápido, mais legítimo ou não, depende de releituras ou<br />

não, de acordo com o conhecimento de cada leitor.<br />

Segundo Bresso (1996), a escrita é uma codificação da linguagem<br />

oral, e embora ela seja sempre exposta aos humanos, desde


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

194<br />

muito cedo, precisa ser ensinada, assim como a leitura, e esta não está<br />

ligada apenas ao processo de identificação dos traçados e seu encadeamento,<br />

mas sim da compreensão do significado.<br />

É o que também confirma Fonseca (1992, apud GUIMA-<br />

RÃES, 2007, p. 36), já que para ele a leitura é sempre apropriação,<br />

invenção, produção de significados, ou seja, é um processo dinâmico.<br />

Segundo Guimarães (2007), a leitura e o texto se entrelaçam,<br />

sendo este a construção e aquela, o processo. Assim, na leitura, o que<br />

importa é o que está entretecido no texto, nas significações, ou seja,<br />

o importante é encontrar o sentido dele e não apenas desvendar as intenções<br />

do autor.<br />

Sobre essa compreensão de sentidos, temos ainda o que rezam<br />

os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa:<br />

A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de<br />

compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu<br />

conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a<br />

linguagem etc. Não se trata de extrair informação, decodificando letra<br />

por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias<br />

de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais<br />

não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita<br />

controlar o que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades<br />

de compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar<br />

no texto suposições feitas (...). O leitor competente é capaz de ler as entrelinhas,<br />

identificando, a partir do que está escrito, elementos implícitos,<br />

estabelecendo relações entre o texto e seus conhecimentos prévios ou entre<br />

o texto e outros textos já lidos. (BRASIL 1998. PCN – 3º e 4º ciclos.<br />

Brasília, MEC, p. 69/70)<br />

O leitor, portanto, de acordo com Possenti (1999), está numa<br />

posição de prestígio, já que, hoje, depois do surgimento da Linguística<br />

moderna, este passou a fazer parte do processo de construção dos<br />

sentidos do texto (coisa que até então não era comum, visto que para<br />

se descobrir o sentido de um texto devia-se interrogá-lo, a fim de saber<br />

o que o autor quis dizer nele). Assim, apenas o autor e o texto eram<br />

importantes na produção de sentido.<br />

Segundo Soares (1991), na leitura envolvem-se indivíduos: o<br />

leitor, o seu universo, sua posição na estrutura social, sua relação<br />

com o mundo e com os outros, o autor, o seu universo, sua posição<br />

social, e sua relação com o mundo e com os outros. Assim, conforme


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

195<br />

afirma Melo (1999), a leitura não é unilateral, mas sim interativa, já<br />

que não é não é apenas receptiva.<br />

A leitura, ainda de acordo com Soares (1991, p. 19), traz benefícios<br />

à sociedade e ao indivíduo: é forma de lazer e de prazer, de<br />

aquisição de conhecimentos e de enriquecimento cultural. Além disso,<br />

o indivíduo amplia suas condições de convívio social e de interação.<br />

Entretanto, apenas para as classes dominantes a leitura é vista<br />

por esses ângulos, enquanto as classes dominadas a entendem como<br />

sendo necessária à sobrevivência, ao acesso ao trabalho, à luta contra<br />

suas condições de vida, ou seja, um instrumento na busca de melhores<br />

condições de vida.<br />

Os depoimentos de pais dos dois grupos sociais (pertencentes<br />

à classe popular e pertencente às classes favorecidas), colhidos por<br />

Soares (1991), comprovam a tese de que apenas os privilegiados (economicamente)<br />

dão importância à leitura como forma de lazer e expressão<br />

(comunicação) mais efetiva, enquanto os mais desfavorecidos<br />

a vêem apenas como uma forma de ascensão social, afirmando<br />

que sem ela “a pessoa não serve para nada”. (cf. SOARES, 1991, p.<br />

22)<br />

3. Papel do leitor X docente<br />

A leitura é parte da interação verbal, enquanto implica a participação<br />

cooperativa do leitor na interpretação e na construção e reconstrução<br />

do sentido e das intenções pretendidos pelo autor. (AN-<br />

TUNES, 2003, p. 66)<br />

Ler é identificar-se com o apaixonado ou com o místico. É ser um<br />

pouco clandestino, é abolir o mundo exterior, deportar-se para uma ficção,<br />

abrir o parêntese do imaginário. Ler muitas vezes é trancar-se (no<br />

sentido próprio e figurado) É manter uma ligação através do tato, do olhar,<br />

até mesmo do ouvido, (as palavras ressoam). As pessoas leem com<br />

seus corpos. Ler é também sair transformado de uma experiência de vida,<br />

é esperar alguma coisa. É um sinal de vida, um apelo, uma ocasião de<br />

amar sem a certeza de que vai amar. Pouco a pouco o desejo desaparece<br />

sob o prazer (BELLENGER, p. 17, apud KLEIMAN, 2007, p. 15).<br />

O leitor é um dos sujeitos da interação, atua de forma ativa,<br />

buscando recuperar, interpretar e compreender as intenções do autor.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

196<br />

Os elementos gráficos (as palavras, os sinais,as notações) colaboram<br />

e facilitam a interpretação.<br />

De acordo com o princípio de que nem tudo está explícito no<br />

texto, afirma Van Dijk (1984, apud ANTUNES, 2003, p. 67) que “os<br />

textos são inevitavelmente incompletos e que um texto hipercompleto<br />

seria incoerente, além de comunicativamente inadequado”.<br />

Ser leitor é construir seu próprio saber sobre texto e leitura.<br />

Não é apenas compreender a palavra no sentido cabal, mas sim compreender<br />

o que está escrito de forma ampla, objetivando funcionar<br />

plenamente na sociedade.<br />

A compreensão de um texto envolve vários processos cognitivos.<br />

Na verdade, a compreensão de um texto é um processo que<br />

pode ser caracterizado pela utilização de conhecimento prévio, pois o<br />

leitor usa na leitura o que já sabe: o conhecimento adquirido no<br />

transcorrer da sua vida, uma vez que há interação dos divergentes níveis<br />

de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o<br />

conhecimento de mundo, que fazem com que o leitor construa o sentido<br />

do texto. Dessa forma, a leitura é um processo interativo.<br />

A compreensão de um texto escrito envolve vários fatores, desde a<br />

compreensão de frases, sentenças, de argumentos, de provas formais e<br />

informais, de objetivos, de tenções, às vezes de ações do ato de compreender,<br />

já que envolve desde a compreensão de uma charada até a de uma<br />

obra de arte. (KLEIMAN, 2007, p. 10)<br />

Os textos também podem ser classificados, considerando-se o<br />

caráter da interação entre autor e leitor, uma vez que o autor propõese<br />

a fazer algo, mas é claro que essa intenção deve estar materialmente<br />

no texto por intermédio de marcas formais, pois o leitor dispõe-se<br />

a escutar o autor para que possa aceitar, julgar ou rejeitar, ou<br />

seja, ter sua opinião sobre o tema abordado.<br />

Percebemos que, durante uma leitura, há uma interação de vários<br />

níveis de conhecimento: de nível sintático, semântico e extralinguístico,<br />

objetivando construir a coerência local e a temática.<br />

Pode-se prever a existência de uma leitura não uniforme, diferente,<br />

portanto, em cada circunstância dependendo do tema, do nível de formalidade<br />

e do gênero do texto, ou ainda dos objetivos e dos motivos implicados<br />

no ato de ler. Assim como variam os gêneros de textos (editoriais,<br />

artigos, ensaios, noticiais, anúncios, avisos, relatórios, instruções de uso,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

197<br />

editais, contos, poemas). Conforme variam os objetivos pretendidos para<br />

a leitura (leitura informativa, recreativa, instrumental etc.), variam também<br />

as estratégias a serem utilizadas. O grau de familiaridade do leitor<br />

com o conteúdo veiculado pelo texto interfere, também no modo de realizar<br />

a leitura. (cf. ALLENDE e CONDEMARIN, 1987, apud ANTU-<br />

NES, 2007, p. 77).<br />

Observa-se que para desenvolver um grau de familiaridade do<br />

leitor com os temas/leituras abordados em sala de aula, o docente<br />

deverá propor as seguintes estratégias:<br />

· Estabelecer objetivos de leitura;<br />

· Evitar paráfrase de textos literários;<br />

· Levantar questões para o aluno - leitor refletir sobre o texto:<br />

primeiro de compreensão e depois de interpretação;<br />

· Planejar a atividade de leitura;<br />

· Escolher textos à altura do repertório dos alunos para que<br />

o diálogo com a leitura seja produtivo, mas também outros<br />

de leitura complexa, que mediados pelo professor permitam<br />

tornar o diálogo possível;<br />

· Ativar conhecimentos prévios e instigar inferências necessárias<br />

para atingir seu objetivo.<br />

4. A formação do professor<br />

A discussão sobre a formação do professor vem de décadas<br />

em congressos, seminários, cursos e outros eventos similares, onde<br />

se procura encontrar um meio termo visando uma formação ideal ou<br />

necessária do professor do ensino básico (fundamental e médio), porém<br />

diante da platéia que destas discussões participa , depara-se com<br />

um grupo que vem demonstrar uma ostensiva insatisfação generalizada<br />

com relação aos modelos e às propostas formativas vigentes,<br />

principalmente, nos cursos de licenciatura.<br />

Tais discussões, quase sempre se voltam para a afirmação da<br />

necessidade de uma “política nacional de formação de professores e,<br />

em seguida, desfavorece aos professores, tecendo um perfil profissional<br />

por meio de um inventário de competências cognitivas e do-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

198<br />

centes que deveriam ser desenvolvidas pelos cursos formadores”. No<br />

entanto, dessa ampla e continuada discussão, não têm emergido propostas<br />

que ultrapassem o nível de recomendações abstratas sobre a<br />

necessidade de uma sólida formação dos educadores, da integração<br />

de teoria e prática, da interdisciplinaridade, etc. Naturalmente que<br />

sugestões dessa natureza são capazes de travar debates, mas a sua utilidade<br />

não vai além de efeitos retóricos.<br />

Num país como o Brasil, em que há grandes diferenças econômicas,<br />

sociais e culturais, não pode se investir numa única política<br />

de formação de professores tal como a própria LDB e por outro lado<br />

ultrapassar este limite conduzindo a formação do professor a um<br />

modelo mais abstrato com ampla variedade de situação nacional fica<br />

aquém das discussões.<br />

Há algumas décadas, acreditava-se que o professor ao terminar<br />

a graduação estaria pronto e apto para atuar na sua área o resto da<br />

vida. A escola contemporânea não deixa de constituir uma novidade<br />

social e cultural. Em tal espaço institucional, agora, o desempenho<br />

do professor não mais pode ser pensado e considerado como uma<br />

questão de formação teórica apenas – alguém que ensina; a escola<br />

hoje é uma ruptura com a escola do passado. Também as relações<br />

entre pais e filhos, nessa nova situação, não podem mais ser tomadas<br />

como modelo, sobretudo porque a vida cultural e social das famílias<br />

e do alunado mudou completamente.<br />

Para tanto, o professor deve estar consciente de que sua formação<br />

é permanente e integrada no seu dia-a-dia na escola. Por isso,<br />

o professor não pode se abster de estudar: o prazer pelo estudo e a<br />

leitura deve ser evidente, senão não irá conseguir passar esse gosto<br />

para seus alunos O professor que não aprende com prazer não ensinará<br />

com prazer. (SNYDERS, 1990).<br />

Desse modo, para a formação do professor é preciso conceber<br />

a escola como um ambiente educativo onde trabalhar e formar-se<br />

não sejam atividades distintas. O professor deve conceber sua formação<br />

como um processo permanente integrado no dia-a-dia e ser personagem<br />

ativo em todas as fases do seu processo de formação.<br />

O professor deve estar preparado para enfrentar os grandes<br />

desafios que certamente virão, e, para tanto, estar atualizado e saber


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

199<br />

desenvolver e conduzir práticas pedagógicas eficientes, assim, estará<br />

realmente dando a sua contribuição como educadores. Nóvoa (1995,<br />

p. 23) postula que “o aprender contínuo é essencial e se concentra<br />

em dois pilares: a própria pessoa, como agente, e a escola, como lugar<br />

de crescimento profissional permanente”. Para esse estudioso<br />

português, a formação continuada se dá de maneira coletiva e depende<br />

da experiência e da reflexão como instrumentos contínuos de análise.<br />

Para Vygotsky (2005), todo conhecimento é construído socialmente<br />

pela linguagem, no âmbito das relações humanas num processo<br />

sócio-histórico. O conhecimento, portanto, permite o desenvolvimento<br />

mental que se realiza na interação com o outro. Nessa<br />

perspectiva, o professor constrói sua formação, fortalecendo e enriquecendo<br />

seu conhecimento de mundo. Por isso é importante a troca<br />

de experiência com outro na construção de um saber coletivo. Para<br />

Nóvoa (1995, p. 26): “a troca de experiências e a partilha de saberes<br />

consolidam espaços de formação mútua, nos quais cada professor é<br />

chamado a desempenhar, simultaneamente, o papel de formador e de<br />

formando”.<br />

Assim, ambos os trabalhos em equipe interdisciplinar se revelam<br />

importantes, uma vez que as decisões tomadas em conjunto fortalecem<br />

os laços cooperativos ao mesmo tempo em que enfraquece,<br />

de certa forma, a resistência às mudanças, contribuindo para que todos<br />

possam ser responsáveis pelo sucesso da aprendizagem na escola.<br />

Haja vista que a produção de práticas educativas eficazes surge de<br />

reflexões da experiência particular, mas partilhada no grupo.<br />

Estudos têm mostrado a necessidade de o professor ser crítico<br />

para que possa refletir sua prática direcionando-a à realidade em<br />

que atua, ou seja, levando em conta as necessidades do grupo com o<br />

qual trabalha. Nesse sentido, Freire (1996, p. 43) postula que: “pensando<br />

criticamente a prática de hoje ou de ontem é que se pode melhorar<br />

a próxima prática”.<br />

Para Schön (1995), a prática-reflexiva em várias profissões,<br />

não apenas na prática docente, tem apontando situações conflitantes,<br />

desafiantes, e que a aplicação de técnicas convencionais simplesmente<br />

não resolve problemas. No ensino propriamente, a confrontação<br />

com dados diretamente observáveis produz um choque educa-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

200<br />

cional, à medida que os professores percebem que suas teorias de ações<br />

no ato de atuação divergem daquelas:<br />

No desenvolvimento de uma prática reflexiva é importante juntar<br />

três dimensões da reflexão sobre a prática: primeira, a compreensão das<br />

matérias pelo aluno (como é que este rapaz compreende estes modelos?<br />

Como é que a rapariga percebeu a distancia através da laçada de cordel<br />

que pendurou no quadro?); segundo, a interação interpessoal entre professor<br />

as quais idealizam. E aluno (como é que o professor compreende e<br />

responde a outros indivíduos a partir do ponto de vista da sua ansiedade,<br />

controle, diplomacia, confrontação, conflito ou autoridade?); terceira, a<br />

dimensão burocrática da prática (como é que um professor vive e trabalha<br />

na escola e procura a liberdade essencial à pratica reflexiva?). (1995,<br />

p. 90-91).<br />

Há um distanciamento entre o saber escola e o saber dos alunos,<br />

e entre o saber privilegiado da escola e o modo espontâneo como<br />

os professores encaram o ensino. Isso leva ao conflito. Não se<br />

trata de abandonar a utilização da técnica na prática docente, mas<br />

haverá momentos em que o professor estará em situações conflitantes<br />

e ele não terá como se guiar somente por critérios técnicos préestabelecidos.<br />

Veja o que diz Nóvoa (1995, p.27):<br />

As situações conflitantes que os professores são obrigados a enfrentar<br />

(e resolver) apresentam características únicas, exigindo, portanto características<br />

únicas: o profissional competente possui capacidades de autodesenvolvimento<br />

reflexivo (…). A lógica da racionalidade técnica opõe-se<br />

sempre ao desenvolvimento de uma práxis reflexiva.<br />

Sem dúvida, há bons profissionais que utilizam uma série de<br />

estratégias não planejadas, criatividades para resolver problemas no<br />

dia-a-dia, deste modo, conseguem estabelecer uma combinação entre<br />

ciência, técnica e arte. Deve-se ressaltar que essa dinâmica é imprescindível<br />

em contextos instáveis como o da sala de aula.<br />

Ora, para maior mobilização do conceito de reflexão na formação<br />

de professores, é necessário criar condições de trabalho em<br />

equipe entre os professores. Sendo assim, isso sugere que a escola<br />

deve criar espaço para esse crescimento.<br />

Nesse sentido, Schön (1995) nos diz que:<br />

(…) Nessa perspectiva o desenvolvimento de uma prática reflexiva<br />

eficaz tem que integrar o contexto institucional. O professor tem de se


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

201<br />

tornar um navegador atendo à burocracia. E os responsáveis escolares<br />

que queiram encorajar os professores a tornarem-se profissionais reflexivos<br />

devem criar espaços de liberdade tranquila onde a reflexão seja possível.<br />

Estes são os dois lados da questão – aprender a ouvir os alunos e<br />

aprender a fazer da escola um lugar no qual seja possível ouvir os alunos<br />

– devem ser olhados como inseparáveis. (1995, p. 87)<br />

A proposta prático-reflexiva propõe-se a levar em conta esta<br />

série de variáveis do processo didático, buscando um processo de<br />

metacognição, pelo qual o professor perceba os efeitos de sua atuação<br />

na aprendizagem de seus alunos. Diante disso, o desenvolvimento<br />

profissional do professor corresponde ao curso superior bom, somado<br />

ao conhecimento acumulado ou prévio, porém isso não basta.<br />

Faz-se essencial a atualização contínua a necessidade da formação<br />

continuada no processo, ou seja, a necessidade da construção do saber,<br />

do interagir permanente. Nóvoa (1995) observa sobre a importância<br />

da formação continuada do professor:<br />

A formação deve capitalizar as experiências inovadoras e as redes de<br />

trabalho que já existem no sistema educativo português, investindo-as do<br />

ponto de vista da sua transformação qualitativa, em vez de instaurar novos<br />

dispositivos de controle e de enquadramento. A formação implica a<br />

mudança dos professores e das escolas, o que não é possível sem investimento<br />

positivo das experiências inovadoras que já estão no terreno. Caso<br />

contrário, desencadeiam-se fenômenos de resistência pessoal e institucional,<br />

e provoca-se a passividade de muitos atores educativos. (1995, p. 30).<br />

4.1. Pesquisa com os alunos<br />

Conforme o embasamento das teorias de Nóvoa (1995),<br />

Schön (1995), Vygotsky (2005) acerca da formação de professores, e<br />

o pressuposto dos Parâmetros Curriculares e o posicionamento de<br />

Soares (1991), que a leitura envolve indivíduos: o leitor, o seu universo,<br />

sua posição na estrutura social, sua relação com o mundo e<br />

com os outros, o autor, o seu universo, sua posição social, e sua relação<br />

com o mundo e com os outros. Perante essa perspectiva, pretende-se,<br />

neste subitem, apresentar a coleta de dados, que foi realizada<br />

por intermédio de um questionário aos discentes do ensino médio regular<br />

e suplência, com o propósito de identificar o interesse do aluno<br />

contemporâneo a respeito da leitura.<br />

O questionário apresentado foi estruturado por cinco questões<br />

norteadoras: Você gosta de ler? Por quem é incentivado a ler? Que


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

202<br />

tipo de texto você gosta de ler? Você costuma ler? E quanto aos livros<br />

e textos solicitados na escola? Seguem, abaixo, os dados coletados:<br />

Pesquisa de campo, envolvendo 75 alunos do Ensino Médio Regular e Suplência sobre a leitura.<br />

Perguntas Respostas (%)<br />

Você gosta de ler?<br />

Por quem é<br />

incentivado a ler?<br />

Que tipo de texto você<br />

gosta de ler?<br />

Você costuma ler:<br />

Quanto aos livros e<br />

textos solicitados na<br />

escola?<br />

Pouco Muito Mais ou Menos<br />

24,66 17,18 56,16<br />

Romances<br />

Iniciativa própria Professores Familiares Amigos<br />

61,19 32,84 4,48 1,49<br />

histórias em Quadrinhos Textos sobre Informática,<br />

Ciência, mecânica<br />

54,82 30,66 14,52<br />

Às vezes<br />

Com<br />

freqüência<br />

Nunca lê porque<br />

acha chato<br />

Somente quando o<br />

professor pede<br />

Raramente<br />

41,18 27,45 0,98 8,82 21,57<br />

Lê porque a professora<br />

manda e vale nota<br />

Pega um<br />

resumo na<br />

internet<br />

Lê todos porque<br />

gosta<br />

Não lê por não ter<br />

tempo<br />

Nunca lê<br />

por achar<br />

chato<br />

52 8 20 17,33 2,67<br />

4.2. Organização e interpretação dos dados<br />

4.2.1. Você gosta de ler?<br />

O gráfico mostra que a maior concentração, 57%, é de alunos<br />

que gostam de ler mais ou menos, 25% gostam pouco de ler e apenas<br />

18% gostam de ler.<br />

57%<br />

Você gosta de ler?<br />

25%<br />

18%<br />

Pouco<br />

Muito<br />

Mais ou Menos


Quanto aos livros e textos solicitados na escola?<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

203<br />

O gráfico demonstra que há um grande resquício da pedagogia<br />

tradicional da educação no ensino contemporâneo, uma vez que<br />

os dados coletados com essa indagação, impelem-nos a verificar que<br />

52 % dos alunos lêem porque a professora manda e vale nota, e somente<br />

20% lê porque gosta, o restante dos alunos justificam da seguinte<br />

forma: 17% não lê porque não tem tempo; 8% pega um resumo<br />

na internet ; 3% nunca lê porque acha chato.<br />

20%<br />

17%<br />

Quanto aos livros solicitados na escola?<br />

8%<br />

3%<br />

52%<br />

4.2.2. Por quem é incentivado a ler?<br />

33%<br />

Lê porque a professora<br />

manda e vale nota<br />

Pega um resumo na<br />

internet<br />

Lê todos porque gosta<br />

Por quem é incentivado a ler?<br />

4%<br />

1%<br />

62%<br />

Não lê por não ter tempo<br />

Nunca lê por achar chato<br />

Iniciativa própria<br />

Professores<br />

Familiares<br />

Amigos


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

204<br />

O gráfico indica que o papel do professor na intervenção do<br />

processo de leitura é incipiente, visto que somente 33% dos alunos<br />

são incentivados pela postura do docente em sala de aula, por outro<br />

lado, 62% são por iniciativa própria, 4% são estimulados pelos familiares<br />

e 1%, por amigos.<br />

4.2.3. Que tipo de texto você gosta de ler?<br />

O gráfico demonstra que os discentes têm maior interesse por<br />

romances (54%), 31% por histórias em quadrinhos, 15% por textos<br />

sobre informática ciência e mecânica.<br />

31%<br />

15%<br />

Que tipo de texto você gosta de ler?<br />

54%<br />

4.2.4. Você costuma ler ?<br />

Romances<br />

histórias em<br />

Quadrinhos<br />

Textos sobres<br />

Informática,<br />

Ciência,mecânica<br />

O gráfico mostra que 41% dos alunos lêem às vezes, 27% leem<br />

com frequência, 22% raramente, 9% leem quando os professores<br />

pedem e 1% nunca lê porque acha chato.<br />

9%<br />

1%<br />

22%<br />

27%<br />

Você costuma ler:<br />

41%<br />

Às vezes<br />

Com frequência<br />

Nunca lê porque<br />

acha chato<br />

Somente quando o<br />

professor pede<br />

Raramente


5. Considerações finais<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

205<br />

Como vimos, a leitura é um processo complexo, multifacetado,<br />

pois envolve dimensões que se integram e se complementam.<br />

Esse processo dinâmico, devido às diversas estratégias que o<br />

leitor ativa para compreender o texto, deve ser ensinado (não apenas<br />

avaliado) com o objetivo de formar leitores proficientes, capazes de<br />

utilizar a leitura com fins diversos, inclusive, como forma de adquirir<br />

entretenimento e prazer.<br />

Ressaltamos que a questão da afetividade, conforme Jouve<br />

(2002), é essencial para a formação de leitores que considerem a leitura<br />

uma atividade significativa. Por isso, ao considerarmos a leitura<br />

em suas múltiplas dimensões, é preciso observar que o professor de<br />

língua materna deve refletir e planejar situações de ensino e aprendizagem<br />

que favoreçam não apenas o trabalho com a leitura, mas também<br />

o prazer de ler e a socialização de leituras como: compartilhar<br />

títulos, trocar idéias sobre obras, autores e experiências diversas com<br />

a prática leitora, com o propósito de apresentar aos discentes a importância<br />

da leitura em seu dia-a-dia, que abarca não só a esfera institucional<br />

– ambiente escolar – quanto à esfera social.<br />

Dessa forma, promovendo a inserção e vivência do aluno em<br />

um ambiente cultural letrado, por meio de práticas efetivas de leitura,<br />

o professor ocupará um papel fulcral como agente mobilizador de<br />

novas posturas em relação ao desenvolvimento do gosto de ler. Cabe<br />

a ele, refletir, planejar e propiciar situações didáticas adequadas aos<br />

seus alunos.<br />

Como observamos, na pesquisa, os dados do gráfico presente<br />

no item 4.21 indicam que os alunos revelam pouco apreço pela leitura.<br />

O gráfico 4.2.2 demonstra que 52/ dos entrevistados lêem apenas<br />

porque a professora manda. Essa informação reitera as observações<br />

do item anterior.<br />

O gráfico presente no item 4.2.3 demonstra que apenas um<br />

terço, aproximadamente, dos docentes incentiva a leitura, tal informação<br />

indica um envolvimento insatisfatório dos professores com a<br />

formação de leitores.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

206<br />

Podemos acrescentar a isso ao baixo envolvimento da família<br />

com o processo de leitura, pois a escola poderia engajar a família<br />

nesse processo, desde as séries iniciais, promovendo uma parceria e<br />

uma prática leitora inerente ao processo de desenvolvimento do educando,<br />

tendo em vista a importância dessa competência para a vida.<br />

O gráfico 4.2.5 nos mostra o baixo envolvimento dos alunos<br />

com a leitura, pois se destaca a ausência de prática e constância. Isso<br />

confirma uma situação preocupante no que tange à formação de leitores.<br />

Levando em conta a interpretação dos dados, obtidos por<br />

meio do questionário, só podemos considerar a importância da leitura<br />

nas escolas brasileiras contemporâneas, desde que o ensino seja<br />

desenvolvido em suas múltiplas facetas, envolvendo a cada dimensão<br />

da leitura novos desafios para a formação do leitor, pois é indubitável<br />

a necessidade de garantirmos o aprendizado dessa competência<br />

contemplando estratégias e gêneros textuais diversos. Para isso,<br />

reiteramos a relevância do trabalho pedagógico planejado de forma<br />

reflexiva e sistemática pelo professor a fim de promover situações de<br />

aprendizagem significativas.<br />

Ao trilharmos esse caminho, será possível formar leitores autônomos,<br />

críticos e preparados para utilizar a leitura em diferentes<br />

prismas e com objetivos variados; pois a formação adequada da leitura<br />

os fundamenta para engajar-se na sociedade de forma construtiva.<br />

Por fim, discutir o processo de leitura é fundamental para traçarmos<br />

novos caminhos, revermos posturas, vislumbrarmos horizontes<br />

que contemplem a leitura em toda a sua complexidade e, desenvolva,<br />

inclusive, o prazer de ler.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ANTUNES, I. Aula de português: encontro & interação. São Paulo:<br />

Parábola, 2003.<br />

FREIRE, P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São<br />

Paulo: Olho D’Água, 1993.


________. A educação na cidade. São Paulo, Cortez, 1991.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

207<br />

GARCIA, C. M. A formação de professores: novas perspectivas baseadas<br />

na investigação sobre o pensamento do professor. In: NÓ-<br />

VOA, A. (Coord.) Os professores e a sua formação. Tradução de<br />

Graça Cunha, Cândida Hespana, Conceição Afonso e José A. S. Tavares.<br />

Lisboa: Dom Quixote, 1995, p. 51-76.<br />

KLEIMAN, A. Texto & leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas:<br />

Pontes, 2007.<br />

KLEIMAN, A. Oficina de leitura: teoria & prática. Campinas: Pontes,<br />

2007.<br />

NÓVOA, A. (org.). Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom<br />

Quixote, 1995.<br />

SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos.<br />

In: NÓVOA, A. (Coord.). Os professores e a sua formação. Lisboa:<br />

Dom Quixote, 1995, p. 77-91.<br />

VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Trad. CAMARGO, J. L.<br />

São Paulo: Martins Fontes, 2005.<br />

BRASIL, Secretaria da educação, 1998. PCN – 3º e 4º ciclos. Brasília,<br />

MEC.<br />

BRESSON, F. A leitura e suas dificuldades. In: CHARTIER, Roger.<br />

Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 25-34.<br />

GUIMARÃES, E. Texto, leitura e escrita. In: FÁVERO, Leonor;<br />

BASTOS, Neusa; MARQUESI, Sueli. (Orgs.): Língua portuguesa:<br />

pesquisa e ensino, v. 2. São Paulo: EDUC/Fapesp, 2007, 35-44.<br />

JOUVE, V. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002.<br />

POSSENTI, S. A leitura errada existe. In: BARZOTTO, Valdir<br />

(org.). Estado de leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999, p.<br />

169-178.<br />

SOARES, M. As condições sociais da leitura: uma reflexão em contraponto.<br />

In: ZILBERMAN, R; SILVA, E. T. (Orgs.). Leitura: perspectivas<br />

interdisciplinares. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 18-29.


1. Introdução<br />

A IMPORTÂNCIA DE PESQUISAS<br />

EM ESTRATÉGIAS DE APRENDIZAGEM<br />

NO ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS<br />

Márcio Luiz Corrêa Vilaça (UFF, UFRJ, UNIGRANRIO)<br />

professorvilaca@gmail.com<br />

O ensino de línguas estrangeiras é uma área rica em pesquisas<br />

e publicações pelo mundo. A diversidade de temáticas, focos e metodologias<br />

de pesquisa pode ser facilmente constatada. As publicações<br />

de editoras americanas e inglesas, de abrangências internacionais,<br />

são bibliografias constantes em pesquisas em diferentes países<br />

do mundo. Tais publicações ocorrem predominantemente em duas<br />

áreas: Linguística Aplicada e Educação.<br />

As influências destas publicações internacionais não são ocasionadas<br />

apenas por questões mercadológicas e de marketing. Os Estados<br />

Unidos e a Inglaterra apresentam tradição em pesquisas sobre<br />

aquisição e aprendizagem de línguas estrangeiras, com foco, logicamente,<br />

na língua inglesa. No Brasil, a intensificação de pesquisas sobre<br />

ensino-aprendizagem de Português como Língua Estrangeira<br />

(PLE) é mais recente.<br />

Com a Segunda Guerra Mundial, os investimentos em pesquisas<br />

sobre ensino de línguas ganham força nos Estados Unidos e na<br />

Europa. No cenário pós-guerra, a língua inglesa entra em lugar de<br />

língua estrangeira de destaque e ela começa a ser considerada uma<br />

língua internacional, sendo empregada em diversos campos para a<br />

comunicação entre pessoas de diferentes nacionalidades e culturas.<br />

Esta discussão inicial não pretende enfocar a importância da<br />

língua inglesa no mundo contemporâneo, mas oferecer uma breve<br />

compreensão de aspectos que contribuíram para o crescimento e para<br />

o fortalecimento de pesquisas sobre aprendizagem de línguas estrangeiras.<br />

Neste processo de expansão e consolidação de estudos sobre a<br />

aprendizagem de línguas estrangeiras, os métodos de ensino foram


209<br />

um dos temas mais comuns de pesquisa e publicações. Métodos eram<br />

desenvolvidos, descritos, analisados, criticados e renovados<br />

(LEFFA, 1998, BROWN, 2001; RICHARDS & RODGERS, 2001;<br />

LARSEN-FREEMAN, 2003). Isto indica que professores e pesquisadores<br />

acreditavam que o método exercia um papel crucial no sucesso<br />

ou insucesso da aprendizagem de línguas (VILAÇA, 2008).<br />

Tratava-se, portanto, do que podemos chamar de era dos métodos. A<br />

era dos métodos atinge níveis surpreendentes na segunda metade do<br />

século XX. No período pós-guerra, de uma forma geral, linguistas<br />

estudavam mais diretamente as estruturas das línguas, buscando descrevê-las,<br />

compreendê-las e compará-las. No mesmo período, com o<br />

surgimento da linguística aplicada, o foco estava nos métodos de ensino<br />

e nas pesquisas sobre tradução. Importante destacar que não se<br />

trata de determinismo. Logicamente outras pesquisas, envolvendo diferentes<br />

temáticas, eram realizadas por linguistas e linguistas aplicados.<br />

Gradualmente os métodos de ensino de línguas estrangeiras<br />

sofreram críticas e começaram a abrir maior espaço para que estudos<br />

e pesquisas sobre diferentes aspectos relacionados à aprendizagem/aquisição<br />

de línguas se popularizassem. Os métodos não deixaram<br />

de ser pesquisados ou desenvolvidos, mas começava um período<br />

que, mais nitidamente na década de noventa e nos primeiros anos do<br />

terceiro milênio, seria denominado de "Era pós-método" (BROWN,<br />

1995; KUMARAVADIVELU, 1994 e 2001; BROWN, 2002; VI-<br />

LAÇA, 2008).<br />

Esta transição deslocava o foco dos métodos de ensino para<br />

os professores e para os alunos. Afinal, as descrições e/ou prescrições<br />

metodológicas poderiam ser universais, mas os professores, os<br />

alunos e os contextos não eram. Não havia como garantir que o método<br />

adotado era aplicado conforme planejado ou desejado na sala de<br />

aula. Constatou-se também que metodologias consideradas de sucesso<br />

em alguns contextos não obtinham sucesso em outros.<br />

Embora não haja uma linearidade clara de mudanças de perspectivas<br />

e focos, muitos pesquisadores em Psicologia, Educação e<br />

Linguística Aplicada intensificaram as investigações em aspectos diversos<br />

que influenciam a aprendizagem, como, por exemplo, inteligência,<br />

aptidão, idade, estilos e estratégias de aprendizagem


210<br />

(SPOLSKY, 1989; LIGHTBOWN & SPADA, 1993; TARONE &<br />

YULE, 1999; ELLIS, 2000).<br />

2. Um pouco de história sobre as estratégias<br />

Em 1975, o trabalho da linguista americana Joan Rubin<br />

(1975), What the “good language learner” can teach us., deu impulso<br />

a um crescente interesse pelas estratégias de aprendizagem. É comum<br />

que a obra seja considerada um marco para a área, sendo referência<br />

quase obrigatória em estudos e publicações sobre estratégias.<br />

Na década de 90, os trabalhos de Anita Wenden, Rebecca Oxford,<br />

Andrew Cohen, Chamot e O' Malley ajudaram a tornar as estratégias<br />

em tema amplamente pesquisado e discutido. O livro Language<br />

Learning Strategies: what every teacher should know, de Rebecca<br />

Oxford (1990), é uma obra de referência. A obra combina discussões<br />

teóricas sobre de estratégias de aprendizagem e orientações<br />

para práticas em sala de aula para a identificação das estratégias empregadas<br />

por aprendizes e para o ensino de estratégias.<br />

Outros motivos podem ter contribuído para a popularização<br />

do livro da pesquisadora. Vejamos alguns destes possíveis motivos.<br />

A autora oferece o maior inventário de estratégias. Em obra anterior,<br />

O`Malley e Chamot (1990) sinalizavam que Oxford publicaria em<br />

breve o mais extenso inventário de estratégias disponível. A autora<br />

publica ainda aquele que se tornaria o questionário mais empregado<br />

para a identificação de estratégias de aprendizagem: SILL (Strategy<br />

Inventory for Language Learning). Um fator que, apesar de sutil,<br />

pode ter sido um diferencial foi a menor articulação entre estratégias<br />

e cognitivismo. No início de seu livro, Oxford reconhece que muitos<br />

estudos de estratégias eram vistos demasiadamente de forma cognitivista.<br />

A pesquisadora afirma que:<br />

Estratégias de aprendizagem de línguas não estão restritas às funções<br />

cognitivas (...). As estratégias também incluem funções comunicativas<br />

como planejamento, avaliação e organização da própria aprendizagem; e<br />

funções emocionais (afetivas), sociais, assim como outras funções. Infelizmente,<br />

muitos especialistas não prestaram atenção suficiente às estratégias<br />

sociais e afetivas no passado. (...) É provável que a ênfase venha a<br />

se tornar mais equilibrada, porque a aprendizagem de línguas é, indubitavelmente,<br />

um processo emocional e interpessoal, assim como eventos<br />

cognitivos e metacognitivos. (OXFORD, 1990, p. 11)


211<br />

Esta afirmação pode ter atraído a atenção de adeptos e defensores<br />

da abordagem comunicativa e dos críticos da psicologia cognitiva.<br />

A experiência indica que, infelizmente, muitos pesquisadores<br />

em linguística aplicada restringem, de forma indevida, os estudos de<br />

estratégias a investigações cognitivistas.<br />

Com a virada do milênio, as estratégias continuam a ser pesquisadas<br />

em diversos contextos. No caso específico do Brasil, podemos<br />

encontrar vários trabalhos sobre estratégias de aprendizagem de<br />

línguas realizados por pesquisadores brasileiros nos últimos anos<br />

(ALMEIDA, 2002; VILAÇA, 2003, 2009, 2010; FIGLIOLINI,<br />

2004; GOMES, 2004; CARDOSO, 2005; ARAÚJO-SILVA, 2006;<br />

LOPES, 2007, entre outros). No entanto, a quantidade de pesquisas<br />

poderia ser maior.<br />

3. O que são estratégias de aprendizagem?<br />

Convém apresentar as duas definições mais empregadas na literatura.<br />

O`Malley & Chamot (1990, p. 1) definem as estratégias de<br />

aprendizagem como “pensamentos ou comportamentos especiais que<br />

os indivíduos usam para ajudá-los a compreender, aprender ou reter<br />

nova formação”. Acrescentam ainda que “as estratégias de aprendizagem<br />

são modos especiais de processamento de informações que<br />

melhoram a compreensão, a aprendizagem, ou retenção de informações”.<br />

No livro Language Learning Strategies: what every teacher<br />

should know, Oxford (1990, p. 1) afirma que:<br />

Estratégias de aprendizagem são passos dados pelos estudantes para<br />

melhorar sua aprendizagem. As estratégias são especialmente importantes<br />

na aprendizagem de línguas porque elas são ferramentas para um envolvimento<br />

ativo e autodirigido, o que é essencial para o desenvolvimento<br />

da competência comunicativa. Estratégias de aprendizagem de línguas<br />

apropriadas resultam em proficiência aperfeiçoada e maior autoconfiança.<br />

Em termos gerais, as estratégias podem ser compreendidas<br />

como comportamentos, técnicas, ações e ferramentas empregadas<br />

para a aprendizagem e o uso de uma língua (OXFORD, 1990; CO-<br />

HEN, 1998).


4. Porque pesquisar estratégias de aprendizagem?<br />

212<br />

Em trabalho anterior (VILAÇA, 2010), discuto um panorama<br />

sobre as pesquisas em estratégias de aprendizagem. As formas mais<br />

empregadas de investigação são caracterizadas naquele trabalho.<br />

Neste artigo, algumas discussões são brevemente retomadas. Entretanto,<br />

convém salientar que a prioridade aqui é apontar a relevância e<br />

possíveis contribuições dos estudos envolvendo estratégias de aprendizagem<br />

de línguas.<br />

As pesquisas sobre estratégias de aprendizagem de línguas estão<br />

predominantemente relacionada a quatro aspectos (VILAÇA,<br />

2010), que são:<br />

1. Estudo e descrição do bom aluno de línguas<br />

2. Aprendizagem Autônoma<br />

3. Pesquisa centrada no aluno<br />

4. Ensino ou treinamento estratégico<br />

Nas próximas seções, focaremos em cada um destes aspectos<br />

de forma objetiva, buscando compreender possíveis contribuições<br />

práticas de cada um deles. É necessário reconhecer que eles não se<br />

encontram isolados. Em outras palavras, uma pesquisa pode abordar<br />

vários ou até mesmo os quatro aspectos relacionados.<br />

Em termos práticos, as pesquisas em estratégias realizadas em<br />

salas de aulas apresentam dois objetivos principais:<br />

ü Identificação de estratégias empregadas<br />

ü Ensino de estratégias de aprendizagem<br />

A identificação de estratégias de aprendizagem permite identificar<br />

o que o aluno faz durante a aprendizagem de uma língua ou<br />

em situações comunicativas. É possível, portanto, traçar um perfil estratégico<br />

do aluno. O perfil estratégico possibilita relacionar as estratégias<br />

a outros fatores, tais como crença, motivação, autonomia,<br />

idade, gênero, estilos, entre muitos outros. Pesquisas desta natureza<br />

apresentam propósito analítico-descritivo.


213<br />

Diferentes instrumentos de pesquisa podem ser empregados<br />

para a identificação das estratégias. Os principais são questionários,<br />

formulários, entrevistas, diários, gravações em áudio ou vídeo. A identificação<br />

de estratégias pode ocorrer antes, durante e depois da atividade<br />

de aprendizagem (COHEN, 1998).<br />

Com base no perfil estratégico, o professor pode compreender<br />

melhor como o aluno tende a abordar e gerenciar a própria aprendizagem.<br />

Os desenhos e focos de pesquisas podem ser variados.<br />

Muitas vezes a pesquisa enfoca uma habilidade linguística específica<br />

(produção oral, leitura, por exemplo) ou em componente de aprendizagem<br />

(vocabulário e gramática, por exemplo) (VILAÇA, 2010). A<br />

identificação de estratégias é o objetivo mais comum nas pesquisas<br />

em estratégias.<br />

Outro objetivo predominante nas pesquisas sobre estratégias é<br />

o ensino de estratégias, também referenciado na literatura como ensino<br />

estratégico (strategic teaching), treinamento do aprendiz (learner<br />

training), treinamento estratégico (strategy training), entre outras<br />

possíveis denominações.<br />

Este objetivo de pesquisa encontra amplo suporte na literatura<br />

sobre ensino de línguas estrangeiras (COHEN, 1998 e 2003; ELLIS,<br />

2000; BROWN, 2001; NUNAN, 2002; OXFORD, 2002 e 2004;<br />

CHAMOT, 2004a). É possível ensinar estratégias com diferentes abordagens<br />

e em diferentes contextos (aulas, oficinas e seminários,<br />

materiais didáticos, entre outras possibilidades). O ensino de estratégia<br />

apresenta um propósito instrumental-formador, uma vez que pretende<br />

preparar melhor o aprendiz para a aprendizagem e o uso de<br />

línguas.<br />

Pesquisas indicam que o ensino de estratégias pode contribuir<br />

para que os alunos:<br />

a) aprendam a aprender línguas (BROWN, 2001; HAR-<br />

RIS et al, 2001; NUNAN, 2002, OXFORD, 2002 e 2004,<br />

CHAMOT, 2004a, 2004b, 2005; COTTERALL & REIN-<br />

DERS, 2005, CHEN, 2007)<br />

b) desenvolvam autonomia (COTTERALL, 2000; GRIF-<br />

FITHS & PARR, 2001; NUNAN, 2002; CHAMOT, 2005;<br />

CARDOSO, 2005; PAIVA, 2005, SILVA, 2006).


214<br />

c) desenvolvam a competência comunicativa (OXFORD,<br />

1990; COHEN, 1998)<br />

d) ampliem a metacognição (RUBIN, 1975; WENDEN,<br />

1986; COHEN, 1998, CHAMOT, 2004a; MICELI &<br />

MURRAY, 2005)<br />

e) expandam seus estilos de aprendizagem (REID, 1995,<br />

OXFORD, 2001)<br />

O quadro abaixo se propõe a oferecer uma síntese destas duas<br />

principais formas de pesquisas em estratégias de aprendizagem de<br />

línguas.<br />

Tipos Básicos de Pesquisa em Estratégias de Aprendizagem<br />

Identificação e Descrição<br />

das Estratégias<br />

Ensino de Estratégias<br />

Propósito: analítico-descritivo instrumental-formador<br />

Objetivos Identificar as estratégias empre- Ensinar a aprender línguas;<br />

mais cogadas; Desenvolver a autonomia;<br />

muns: Relacionar o uso de estratégias a Ampliar o nível de conscien-<br />

variáveis específicas, tais como tização sobre a aprendizagem;<br />

idade, gênero, cultura, estilo, en- Desenvolver a competência<br />

tre muitos outros;<br />

comunicativa;<br />

Caracterizar os bons aprendizes; Desenvolver a metacognição;<br />

Identificar estratégias específicas Expandir os estilos de apren-<br />

por habilidade linguística;<br />

Elaborar inventários de estratégiasdizagem<br />

O ensino de estratégias não deve ser entendido como um treinamento<br />

mecanicista sem reflexão sobre a aprendizagem. Trate-se,<br />

na verdade, de uma possibilidade de instrumentalização e capacitação<br />

do aprendiz, seja este um aluno formal, um usuário da língua ou<br />

um autodidata, para melhor lidar com o processo de aprendizagem.<br />

Outro cuidado importante é não restringir o ensino de estratégias a<br />

metodologias específicas. Adotando abordagens diferentes, as estratégias<br />

podem ser ensinadas de forma direta/explícita ou indireta/implícita,<br />

integradas ou não ao programa de ensino.<br />

A identificação das estratégias empregadas pelos alunos costuma<br />

anteceder o ensino de estratégias. Com isso, o pesquisador busca<br />

avaliar as estratégias que devem ser ensinadas e/ou priorizadas.<br />

Neste caso, é comum que as pesquisas comparem o uso de estratégias,<br />

muitas vezes por meio de relatos verbais, antes e depois do en-


215<br />

sino das estratégias. O perfil estratégico possibilita melhor planejamento<br />

das estratégias, em especial quando o tempo e as oportunidades<br />

são limitados.<br />

É possível dividir o ensino de estratégias em amplo ou restrito,<br />

quanto à diversidade de tipos de estratégias. No ensino amplo, estratégias<br />

de diferentes naturezas e classificações são ensinadas, tais<br />

como cognitivas, metacognitivas etc. Por outro lado, no ensino restrito<br />

o ensino foca em um tipo de estratégia (cognitiva, por exemplo).<br />

Pesquisas sobre ensino de estratégias de aprendizagem podem<br />

contribuir significativamente para a elaboração de materiais didáticos,<br />

não apenas para os materiais didáticos publicados e comerciais,<br />

mas para materiais desenvolvidos pelos próprios professores em suas<br />

salas de aula. Uma das vantagens da inclusão de estratégias em materiais<br />

didáticos é a maior integração das estratégias às atividades e tarefas<br />

pedagógicas, o que permite maior possibilidade de contextualização<br />

e assimilação das mesmas.<br />

Outras contribuições do ensino de estratégias são possíveis.<br />

No entanto, este trabalho apontou aquelas que são mais discutidas da<br />

literatura. No caso da competência comunicativa, muitos autores<br />

pesquisam estratégias de comunicação. O termo requer cuidado,<br />

uma vez que estratégias comunicativas podem ter pouca relação com<br />

as estratégias de aprendizagem. Este caso fica mais evidente em estudos<br />

que analisam estratégias de comunicação em língua materna,<br />

nos discursos escritos e orais. Em outras palavras, o conceito de estratégias<br />

de comunicação pode não estar relacionado à aprendizagem<br />

de línguas. Isto se deve ao abrangente emprego do termo estratégia<br />

em estudos e pesquisas em Linguística e da Linguística Aplicada.<br />

Em Vilaça (2010, p. 22) aponto que:<br />

Este fato pode ser facilmente constatado no Glossário de Linguística<br />

Aplicada, publicado por Almeida Filho & Schmitz (1998). A publicação,<br />

um glossário bilíngue (Português-Inglês) de termos em Linguística Aplicada,<br />

apresenta mais de uma centena de ocorrências do termo estratégia.<br />

Termos que incluem, por exemplo, estratégias didáticas, estratégias fonéticas<br />

e estratégias discursivas.


5. Considerações finais<br />

216<br />

Este trabalho tem por objetivo estimular estudos e pesquisas<br />

sobre estratégias de aprendizagem. Tentar aprofundar algumas discussões<br />

aqui ofereceria riscos de superficialidade. Por este motivo,<br />

na medida do possível, o artigo procurou apresentar objetividade na<br />

apresentação das possibilidades e nas possíveis contribuições das<br />

pesquisas de estratégias.<br />

Considerando as dificuldades normalmente encontradas por<br />

professores de línguas estrangeiras, tais como tempo limitado, alunos<br />

desnivelados, é possível considerar que o ensino de estratégias de<br />

pode oferecer novas formas de instrumentalização do aluno para uma<br />

aprendizagem ativa e produtiva, buscando desenvolver cada vez<br />

mais diferentes competências e habilidades necessárias à aprendizagem<br />

e ao uso de uma língua estrangeira.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ARAÚJO-SILVA, G. B. Estratégias de aprendizagem em sala de<br />

aula: um estudo com formandos de Letras. (Dissertação) Universidade<br />

Federal de Santa Maria, Santa Maria. 2006.<br />

ALMEIDA FILHO, J. C. P.; SCHMITZ, J. R. Glossário de linguística<br />

aplicada: português-inglês/inglês-português. Campinas: Pontes,<br />

1998.<br />

BARBOSA, J. S. A. The use of study plans to foster the use of metacognitive<br />

strategies in Brazilian EFL learners. Niterói, 2001. Dissertação<br />

de Mestrado apresentada ao Instituto de Letras da Universidade<br />

Federal Fluminense, 153 p.<br />

BROWN, D. Beyond method: toward a principled approach to language<br />

learning and teaching. In: Anais do XIII ENPULI- PUC-RIO –<br />

24-28 jul. 1995.<br />

BROWN, H. D. Teaching by principles: an interactive approach to<br />

language pedagogy. San Francisco: Longman, 2001.<br />

BROWN, H. D. English language teaching in the “post-method” era:<br />

towards better diagnosis, treatment, and assessment. In: RICH-<br />

ARDS, J. C.; RENANDYA, W. A. Methodology in Language


217<br />

Teaching: an Anthology of Current Practice. New York: Cambridge,<br />

2002.<br />

CARDOSO, J, S. As estratégias de aprendizagem: eficácia e autonomia<br />

na compreensão oral. (Tese) Niterói: Universidade Federal<br />

Fluminense – UFF, 2005.<br />

CHAMOT, A. U. Issues in Language Learning Strategy Research<br />

and Teaching. Electronic Journal of Foreign Language Teaching.<br />

Vol. 1, N. 1, p. 14-26, 2004a.<br />

CHAMOT, A.U. Preparing language teachers to teach learning strategies.<br />

In: CHAN, W. M.; CHIN, K. N.; MARTIN-LAU, P. & SU-<br />

THIWAN, T. (Eds.) Proceedings of the CLaSIC2004 Conference. p.<br />

87-95. Singapore: Center for Language Studies, 2004b.<br />

CHAMOT, A. U. Language Learning Strategy Instruction: Issues<br />

and Research. Annual Review of Applied Linguistics Vol. 25. Cambridge<br />

University Press, 2005.<br />

CHEN, Y. Learning to learn: the impact of strategy training. ELT J<br />

61, p. 20-29, 2007.<br />

COHEN, A. D. Strategies in learning and using a second language.<br />

London: Longman, 1998.<br />

COHEN, A. D. Strategy training for second language learners. ERIC<br />

Digest, August, 2003.<br />

COTTERALL, S. Promoting learner autonomy through the curriculum:<br />

principles for designing languages courses. ELT Journal. Vol.<br />

54/2, abr. 2000.<br />

COTTERALL, S.; REINDERS, H. Estratégias de estudo: guia para<br />

professores. São Paulo: SBS, 2005.<br />

ELLIS, R. The study of second language acquisition. 7ª imp. New<br />

York: Oxford University Press, 2000.<br />

FIGLIOLINI, M. C. R. A utilização de estratégias de aprendizagem<br />

de compreensão oral em LE no curso de Letras. In: CONSOLO, D.<br />

A; VIEIRA-ABRAHÃO, M. H. (Orgs.) Pesquisa em linguística aplicada:<br />

ensino e aprendizagem de língua estrangeira. São Paulo,<br />

UNESP, 2004.


218<br />

GOMES, R. A. Estratégias de aprendizagem e o sintagma nominal<br />

inglês. (Dissertação) Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de<br />

Janeiro, 2004.<br />

GRIFFITHS, C.; PARR, J. M. Language-learning strategies: theory<br />

and perception. ELT Journal. Vol. 55/3 July 2001, p. 247-254.<br />

GRIFFITHS, C. Language Learning Strategies: Theory and Research.<br />

Occasional Paper, N. 1, Feb., 2004.<br />

HARMER, J. The practice of English language teaching. Third Edition.<br />

Essex: Longman, 2001.<br />

KUMARAVADIVELU, B. The postmethod condition: Emerging<br />

strategies for second/foreign language teaching. TESOL Quarterly,<br />

29, p. 27-48, 1994<br />

KUMARAVADIVELU, B. Toward a Postmethod Pedagogy. TESOL<br />

quarterly. Vol. 35, N. 4, 2001, p. 537-560.<br />

LARSEN-FREEMAN, D. Techniques and principles in language<br />

teaching. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2003.<br />

LAM, W. Y. K. Gauging the effects of ESL oral communication<br />

strategy teaching: A multi-method approach. Electronic Journal of<br />

Foreign Language Teaching, 3(2), 142-157, 2006.<br />

LEE, I. Supporting greater autonomy in language learning. ELT<br />

Journal. Vol. 52/4, Oct. 1998.<br />

LEFFA, V. J. Metodologia do ensino de línguas. In: BOHN, H. I.;<br />

VANDRESEN, P. Tópicos em linguística aplicada: o ensino de línguas<br />

estrangeiras. Florianópolis: UFSC, 1988.<br />

LIGHTBOWN, P.; SPADA, N. How language are learned. New<br />

York: Oxford University Press, 1993.<br />

LOPES, G. R. Crenças em estratégias de aprendizagem de línguas<br />

(inglês) de alunos de cursos de letras. (Dissertação). Brasília: Universidade<br />

de Brasília, 2007.<br />

MARTINS, M. M. F. N. The use of learning strategies by intermediate<br />

level EFL learners when writing essays. (Dissertação) Niterói:<br />

Universidade Federal Fluminense, 1996.


219<br />

MICELI, T.; MURRAY, S. V. Strategy Training: Developing Learning<br />

Awareness in a Beginning FL Classroom. In: BARLET, B, Bryer<br />

F.; ROEBUCK, D. Stimulating the "Action" as Participants in Participatory<br />

Research. Griffith University, 2005.<br />

NUNAN, D. Language teaching methodology: a textbook for teachers.<br />

Nova York e Londres: Phoenix ELT, 1995.<br />

NUNAN, D. Learner strategy training in the classroom: an action research<br />

study. In: RICHARDS, J. C.; RENANDYA, W. A. Methodology<br />

in language teaching: an anthology of current practice. New<br />

York: Cambridge, 2002.<br />

O`MALLEY, J.; CHAMOT, A. Learning strategies in second language<br />

acquisition. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.<br />

OXFORD, R. Language learning strategies: what every teacher<br />

should know. New York: Newbury House Publishers, 1990.<br />

OXFORD, R. L. Language Learning Styles and Strategies. In:<br />

CELCE-MURCIA, M. Teaching English as a second or foreign language.<br />

3. ed.. London: Heinle Heinle - Thomson Learning, 2001.<br />

OXFORD, R. Language learning strategies in a nutshell: Update and<br />

ESL suggestions. In: RICHARDS, J. C. e RENANDYA, W. A. Methodology<br />

in language teaching: an anthology of current practice.<br />

New York: Cambridge, 2002.<br />

OXFORD, R. Language learning strategies. In: CARTER, R. e NU-<br />

NAN, D. Teaching English to speakers of other languages. Cambridge:<br />

Cambridge, 2004.<br />

PAIVA, V. L. M. O. Refletindo sobre estilos, inteligências múltiplas<br />

e estratégias de aprendizagem. In: PAIVA, V. L. M. O. (Org.). Práticas<br />

de ensino e aprendizagem de inglês com foco na autonomia.<br />

Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005, p. 11-30.<br />

REID, J. M. Preface. In: REID, J. M. Learning styles in the ESL/EFL<br />

classroom. Boston: Heinle & Heinle Publishers, 1995.<br />

RICHARDS, J. C.; RODGERS, M. Approaches and Methods in<br />

Language Teaching. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press,<br />

2001.


220<br />

RUBIN, J. What the “good language learner” can teach us. TESOL<br />

Quarterly 9, p. 41-51, 1975.<br />

SILVA, W. M. Estratégias de aprendizagem de línguas estrangeiras -<br />

um caminho em direção à autonomia. Revista Intercâmbio, Vol. XV.<br />

São Paulo: LAEL/PUC-SP, 2006.<br />

SPOLSKY, B. Conditions for second language learning. Oxford:<br />

OUP, 1989.<br />

TARONE, E e YULE, G. Focus on the language learner. Oxford:<br />

Oxford University Press, 1999.<br />

VILAÇA, M. L. C. Estratégias na aprendizagem de língua estrangeira:<br />

um estudo de caso autobiográfico. 2003. 158 f. Dissertação (Mestrado<br />

em Interdisciplinar de Linguística Aplicada. Faculdade de Letras).<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.<br />

VILAÇA, M. L. C. Métodos de Ensino de Línguas Estrangeiras:<br />

fundamentos, críticas e ecletismo. Revista Eletrônica do Instituto de<br />

Humanidades da Unigranrio. Vol. VII, N. XXVI, jul.-set. 2008.<br />

VILAÇA, M. L. C. Strategies in Vocabulary Teaching and Learning.<br />

Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades da Unigranrio. Vol.<br />

VII. N. XXVIII, jan.-mar. 2009.<br />

VILAÇA, M. L. C. Pesquisas em Estratégias de Aprendizagem: um<br />

panorama. Revista E-scrita. Vol. 1, N. 1, jan.-abr. 2010.<br />

WENDEN, A. Helping language learners think about learning. ELT<br />

Journal. Vol. 40/1, jan. 1986.<br />

WENDEN, A. Conceptual background and utility. In: WENDEN, A<br />

& RUBIN, J. Learner strategies in language learning. New York:<br />

Prentice Hall, 1987<br />

WENDEN, A. Learner strategies for learner autonomy: planning<br />

and implementing learner training for language learners. New York.<br />

Prentice Hall, 1991.


A IMPORTÂNCIA DO PARATEXTO<br />

NA EDIÇÃO DO TEXTO TEATRAL VEGETAL VIGIADO,<br />

DE NIVALDA COSTA<br />

1. Considerações iniciais<br />

Débora de Souza (UFBA)<br />

deboras_23@yahoo.com.br<br />

Rosa Borges dos Santos (UFBA)<br />

borgesrosa6@yahoo.com.br<br />

O presente trabalho se realiza a partir de estudos desenvolvidos<br />

no Grupo de Edição e Estudo de textos teatrais censurados na<br />

Bahia, coordenado pela Profa. Dra. Rosa Borges dos Santos (UFBA)<br />

que tem como principal objetivo recuperar e interpretar, por meio de<br />

atividade filológica, o texto teatral censurado no período da ditadura<br />

milita, na Bahia, assim como ao trabalho de conclusão de curso, intitulado<br />

Vegetal Vigiado, de Nivalda Costa: texto e censura (por uma<br />

análise de estratégias para driblar a censura), apresentado à Universidade<br />

do Estado da Bahia – UNEB, Salvador, 2009.<br />

O corpus 1 utilizado neste trabalho encontra-se no acervo do<br />

Espaço Xisto Bahia, à Biblioteca Pública do Estado da Bahia, e no<br />

arquivo privado de Nivalda Costa, ambos em Salvador. Os documentos<br />

integram também o arquivo Textos Teatrais Censurados, digital,<br />

organizado pelo referido grupo de pesquisa.<br />

Propõe-se, então, tratar da importância de materiais que se<br />

constituem em elementos paratextuais que servem à transcrição e à<br />

edição do texto teatral Vegetal Vigiado, de Nivalda Costa, produzido<br />

e censurado na época da ditadura militar, na Bahia. Observa-se, desse<br />

modo, em proposta de análise que se quer interpretativa, a grande<br />

contribuição desse vasto campo da paratextualidade constituído de<br />

materiais que cercam o texto. Justifica-se a realização deste trabalho<br />

pela possibilidade de contribuir com a recuperação, a preservação e a<br />

1 O texto aqui tomado como objeto de estudo faz parte do corpus utilizado por esta pesquisadora<br />

na pesquisa de mestrado em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Literatura<br />

e Cultura da Universidade Federal da Bahia – (UFBA).


222<br />

transmissão do patrimônio cultural escrito baiano no que tange à literatura<br />

dramática.<br />

2. Crítica textual: edição e estudo do texto teatral<br />

Uma verdadeira leitura filológica é ativa; implica adentrar no processo<br />

da linguagem já em funcionamento nas palavras e fazer com que<br />

revele o que pode estar oculto, incompleto, mascarado ou distorcido em<br />

qualquer texto que possamos ter diante de nós (SAID, 2007, p. 82).<br />

Nesse sentido, a crítica textual é concebida como método crítico,<br />

histórico e cultural que se aplica à análise de diferentes textos<br />

para decifrá-lo, interpretá-lo e explicá-lo enquanto processo e produto<br />

de determinada sociedade. Na crítica textual moderna, aplicada a<br />

texto com original disponível, em que se busca estabelecer uma forma<br />

autorizada do mesmo, têm-se como objeto textos modernos e<br />

contemporâneos, dos quais se dispõem, muitas vezes, de materiais<br />

pré, para e pós- textuais.<br />

No exercício filológico os textos são tomados como verdadeiros<br />

indivíduos históricos (PÉREZ PRIEGO, 1997), documentos e<br />

monumentos de uma sociedade, sendo o editor um mediador, que oferece<br />

ao público, uma possível leitura, resultado de um estudo efetivado<br />

em momento específico, que supõe a tomada de uma série de<br />

decisões criticas.<br />

No campo da crítica textual, e da crítica de processo, em que<br />

se estudam processos de criação, no Brasil, são quase inexistentes<br />

edições científicas de textos teatrais. Segundo Gadelha (1993, p.<br />

147) o texto teatral, efêmero por natureza, exige uma edição que seja<br />

elaborada segundo critérios científicos. A autora assevera:<br />

No caso da literatura dramática brasileira, chega a ser alarmante o<br />

estado de conservação dos textos: perderam-se incontáveis manuscritos;<br />

outros jazem à mercê do humor de traças, ratos e baratas nos porões das<br />

bibliotecas; alguns textos do passado desfiguraram-se pela sucessão de<br />

edições nada criteriosas; outros, ainda, acenam apenas com o seu título<br />

para os dias atuais, como fantasmas clamando pela chance de ascender<br />

aos céus.<br />

Chartier (2002) também chama atenção para o modo de<br />

transmissão de peças de teatro que têm sido largamente ignoradas<br />

pela história literária, mostrando que as modalidades de transmissão


223<br />

eram múltiplas, o que criou mais instabilidade textual. Nesse sentido,<br />

o autor afirma ser necessário o cruzamento entre crítica textual e história<br />

cultural, propondo uma análise do processo de produção, publicação,<br />

circulação e recepção dos textos.<br />

No Instituto Nacional de Artes Cênicas – INACEN, órgão do<br />

Ministério da Cultura, elaboraram-se edições nas áreas da dramaturgia<br />

brasileira e do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (MA-<br />

RINHO, 1986).<br />

Segundo Santos (2008), na Bahia, a Secretaria de Cultura e<br />

Turismo e a Universidade Federal da Bahia são responsáveis pelo<br />

fomento à produção bibliográfica na área teatral, em regime de cooperação<br />

mútua e de parceria com organizações profissionais da área,<br />

como o Teatro Vila Velha e o Teatro XVIII. A autora ressalta ainda a<br />

contribuição dada pelo grupo de pesquisa que coordena, Edição e<br />

Estudo de Textos Teatrais Censurados na Bahia, desde 2006.<br />

Na atividade de edição de textos teatrais, deve-se considerar a<br />

natureza literária e cênica desse objeto, que se configura como texto<br />

escrito e como performance. O elemento cênico é parte integrante do<br />

processo de escritura teatral, como afirma Grésillon (1995, p. 282):<br />

“o componente cênico coexiste com o texto desde o projeto inicial,<br />

embora de modo latente, não dito, até mesmo não dizível, como que<br />

recalcado pelo código da linguagem escrita”.<br />

Portanto, aqui, toma-se o texto escrito como objeto de estudo,<br />

levando-se em conta a arte dramática em sua totalidade, texto escrito<br />

e elementos cênicos (gestos, cenário, espaço, iluminação etc.). Dessa<br />

forma, deve-se entender a produção teatral como resultado de uma<br />

colaboração, pois o tecido teatral está sujeito a várias transformações,<br />

efetivadas pelo dramaturgo, pelo diretor, pelo encenador, pelos<br />

atores etc.<br />

Nessa perspectiva, os textos teatrais são partes de um sistema<br />

múltiplo e instável, não existindo como obra acabada, definitiva, pois<br />

estão sempre em contínuo movimento. Os “próprios autores reconhecem<br />

implicitamente, por sua prática, que, em matéria de escritura<br />

teatral, têm dificuldade em admitir que a obra tenha realmente chegado<br />

a seu termo” (GRÉSILLON, 1995, p. 271).


224<br />

Percebe-se, portanto, a necessidade de elaboração de edições<br />

confiáveis desses textos, levando-se em conta as suas peculiaridades,<br />

contribuindo-se com a recuperação, a preservação e a transmissão do<br />

patrimônio cultural escrito dramático.<br />

3. Nivalda Costa e sua produção teatral<br />

Nivalda Silva Costa, dramaturga, diretora, atriz e poetisa baiana,<br />

começou a fazer teatro no período ginasial, no Colégio Estadual<br />

Severino Vieira, em Salvador – BA. Segundo Costa o teatro pode e<br />

deve despertar diversas sensações, tem que fazer “[...] chorar, pensar,<br />

suar, rasgar e gritar” 2 , pois todas as emoções são possíveis. Desse<br />

modo, utilizando a arte dramática como uma arma frente ao regime<br />

militar, a diretora assevera: “[...] nossas vidas aqui era fazer arte,<br />

uma arte de driblar leões e atacar dragões e essa era nossa arma” 3 .<br />

Destacam-se aqui textos teatrais da dramaturga produzidos na<br />

época da ditadura militar, que fazem parte de uma série de estudos<br />

cênicos sobre relações entre poder e espaço, arquivados no Acervo<br />

do Espaço Xisto Bahia, localizado à Biblioteca Pública do Estado da<br />

Bahia, e no Arquivo Privado da diretora. Os espetáculos teatrais foram<br />

apresentados, em sua maioria, pelo Grupo de Experiências Artísticas,<br />

Testa, companhia criada por Costa.<br />

Têm-se, portanto, as seguintes produções: Aprender a Nada-r<br />

[1975]; Hamlet, Príncipe da Dinamarca [1976]; O Pequeno Príncipe<br />

ou Ciropédia [1976]; Pequeno Príncipe: aventuras [1977]; Vegetal<br />

Vigiado [1977]; Anatomia das Feras [1978]; Glub! Estória de um<br />

Espanto [1979]; Paixão, o caminho do ressurgir [1980]; Casa de<br />

Cães Amestrados [1980]. 4<br />

Nesse conjunto dos textos que compõem a produção teatral de<br />

Nivalda Costa, observa-se que em seu processo de escritura, ou de<br />

2 Informação verbal obtida em entrevista em 2007, em Salvador.<br />

3 Informação verbal obtida em entrevista em 2007, em Salvador.<br />

4 Em entrevista concedida ao grupo Edição e estudo de textos teatrais censurados na Bahia,<br />

em 2009, Costa informou as datas dos textos, pois nenhum é datado.


225<br />

criação, a dramaturga faz bricolagem de texto alheio, e ainda retoma<br />

sua obra e a reescreve, sempre quando necessário.<br />

Para entender o processo de construção dos textos daquela diretora,<br />

portanto, deve-se levar em conta “[...] os documentos como a<br />

correspondência, os testemunhos de terceiros, os artigos de imprensa,<br />

as obras consultadas antes ou durante a redação, que o geneticista<br />

de qualquer modo inclui tacitamente em suas análises [...]” (GRÉ-<br />

SILLON, 2007, p. 281). Dessa forma, faz-se de suma importância os<br />

materiais pré, para e pós- textuais no trabalho de interpretação e edição<br />

dos textos teatrais censurados.<br />

3.1. Edição do texto teatral vegetal vigiado: a importância<br />

dos elementos paratextuais<br />

No trabalho de edição e de interpretação do texto teatral Vegetal<br />

Vigiado, desde o início, mostraram-se relevantes os materiais<br />

que se constituem em elementos paratextuais. Nesse sentido, fazemse<br />

necessárias algumas considerações sobre paratexto.<br />

Paratextualidade é um dos cinco tipos de transtextualidade<br />

designadas por Gérard Genette (2006). O paratexto configura-se como<br />

tudo o que auxilia o leitor na interpretação de um texto, desse<br />

modo, tratam-se de<br />

[...] título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências,<br />

prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações;<br />

errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios,<br />

autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e<br />

por vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista<br />

e o menos vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor<br />

tão facilmente como desejaria e pretende (GENETTE, 2006, p. 9-10).<br />

Nessa perspectiva, o conjunto de materiais que se constituem<br />

em elementos paratextuais veicula diversas informações que acompanham<br />

e/ou prolongam uma obra, situados na periferia do texto,<br />

mediando a atividade de leitura e interpretação entre leitor e texto,<br />

leitor e autor, leitor e mundo editorial.<br />

Segundo Telles (2006, p. 39) “o paratexto é composto de um<br />

conjunto heterogêneo de práticas e de discursos que reúne, entretan-


226<br />

to, uma visão comum, aquela que consiste ao mesmo tempo em informar<br />

e em convencer, afirmar e argumentar”.<br />

O paratexto se divide em dois grandes subconjuntos, o peritexto<br />

e o epitexto, como aponta Genette (1997). O peritexto agrupa<br />

os paratextos previamente elaborados para o texto maior, como rascunhos,<br />

esboços, projetos diversos, e o epitexto se refere a materiais<br />

que circulam fora da obra, como entrevistas, correspondências, notícias<br />

em jornais e revistas etc.<br />

Nesse sentido, alguns elementos paratextuais, entrevistas com<br />

Nivalda Costa concedidas ao Grupo de Pesquisa em 2007 e em 2009,<br />

uma notícia veiculada no jornal A Tarde, na Bahia, e desenhos do<br />

cenário, ajudaram no processo de interpretação e de edição do texto<br />

teatral Vegetal Vigiado, pois obtiveram-se informações sobre as circunstâncias<br />

de produção e de recepção da obra, bem como sobre a<br />

produção teatral da dramaturga, suas concepções estéticas e ideológicas,<br />

e sua atuação frente ao regime militar através do teatro.<br />

Em entrevista, a dramaturga revelou que o espetáculo Vegetal<br />

Vigiado, com estreia marcada e cenário pronto, foi proibido de ser<br />

encenado pelo Departamento de Censura. Essa proibição provocou<br />

também o cancelamento da apresentação do espetáculo em São Paulo,<br />

pois, após o ocorrido, passaram-se os prazos, realizando-se apenas<br />

leituras dramáticas da peça em Salvador.<br />

A partir de uma notícia veiculada no jornal A Tarde, na Bahia,<br />

em 11 de setembro de 1977, podem-se esclarecer um pouco mais<br />

os fatos, pois se noticiava a estreia da montagem relatada em entrevista<br />

por Costa, essa estava marcada para o dia 12 de outubro, no Solar<br />

do Unhão, em Salvador. Na notícia, comentava-se ainda a atuação<br />

de Nivalda Costa como diretora, o que também ajuda a entender<br />

sua participação no teatro baiano.<br />

Outro material paratextual relevante são os desenhos/plantas<br />

do cenário da peça concedidos ao Grupo de Pesquisa pela diretora,<br />

em que se podem visualizar as grandes estruturas que constituiriam o<br />

cenário. Essa informação ajuda a entender a produção teatral de Nivalda<br />

Costa, pois muito significam, e a perceber como a dramaturga<br />

estava envolvida na composição de diferentes tessituras da montagem.


227<br />

Outro fato esclarecido em entrevista diz respeito às datas dos<br />

testemunhos. O texto teatral Vegetal Vigiado é representado em sua<br />

tradição 5 , por dois testemunhos: 1. datiloscrito em papel vegetal,<br />

com 10 folhas, submetido ao exame dos órgãos de censura, apresenta<br />

carimbos da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), do<br />

Departamento da Polícia Federal (DPF), no ângulo superior direito; e<br />

outro da Sociedade Brasileira de Atores Teatrais ¾ Bahia (SBAT),<br />

além de carimbos “CORTE”, em tinta preta, às folhas 5 e 6, datado<br />

de 1977 (VV (1977)); 2. digitoscrito em papel ofício, com intervenções<br />

à mão, em tinta azul e vermelha, com 16 folhas, de 1978 (VV<br />

(1978)).<br />

O esclarecimento quanto à data dos testemunhos ajudou na<br />

escolha do texto de base, em que se adotou, para o estabelecimento<br />

do texto crítico, o testemunho VV (1978) por se tratar, até aquele<br />

momento, de último estado do texto modificado pela dramaturga.<br />

Pode-se ainda desfazer a dúvida quanto ao mecanismo de registro,<br />

máquina elétrica ou computador, do testemunho VV (1978).<br />

Intervenções também foram esclarecidas. Nos textos, observam-se<br />

algumas intervenções à tinta azul e vermelha, de modo que<br />

as intervenções da dramaturga confundem-se com as de outras pessoas,<br />

dificultando a identificação autoral de tais transformações 6 . Pode-se<br />

esclarecer, por exemplo, no testemunho VV (1977) uma intervenção<br />

feita pelo censor, à mão, em tinta azul, bem como outras feitas<br />

pela própria dramaturga. Em VV (1978), pode-se confirmar a hipótese<br />

de intervenções autorais, à mão, tinta azul e vermelha, obtendo-se<br />

ainda a informação de que existia outro sujeito no processo de<br />

escritura que datilografava e/ou digitava os textos da diretora.<br />

Questões textuais próprias à linguagem cifrada usada por<br />

muitos dramaturgos durante o regime opressor também foram explanadas.<br />

Cita-se, como exemplo, o jogo de palavras empreendido com<br />

5 Em entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em novembro de 2007, Costa revelou que a<br />

versão original da peça Vegetal Vigiado foi escrita, na verdade, em uma grande folha verde,<br />

entretanto, a dramaturga não fez referência ao que aconteceu com o testemunho.<br />

6 Aqui, não se tratam de intervenções explicitamente identificadas como estabelecidas pelos<br />

censores no trecho censurado, como retângulos, sublinhados e palavras “cortes” ou “com cortes”,<br />

assim como os carimbos observados.


229<br />

plicar e editar uma obra plural, oferecendo ao público diverso um<br />

texto teatral a ser lido, encenado e estudado.<br />

4. Considerações finais<br />

Na pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Edição e Estudo de<br />

textos teatrais censurados na Bahia, coordenado pela Profa. Dra.<br />

Rosa Borges (UFBA), tem-se buscado reunir os seguintes materiais<br />

que se constituem em elementos paratextuais: 1. Pesquisa de fontes,<br />

recortes de jornais sobre espetáculos teatrais, críticas, comentários,<br />

citações, processos encaminhados pelos serviços de censura, parecer<br />

censório, relatório de observação do ensaio geral e certificado de<br />

censura; 2. Entrevistas com dramaturgos e com pessoas ligadas às<br />

peças. A partir desses materiais paratextuais pode-se melhor conhecer<br />

o autor e suas idiossincrasias, as circunstâncias de produção e recepção,<br />

o processo de criação etc., auxiliando na leitura e na interpretação<br />

do texto teatral a ser editado. Na edição crítica do texto teatral<br />

censurado Vegetal Vigiado, dessa forma, mostraram-se de fundamental<br />

relevância os elementos paratextuais, auxiliando sobremaneira<br />

na interpretação e no estabelecimento do texto.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CHARTIER, Roger. Do palco à página: publicar teatro e ler romances<br />

na época moderna (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Casa da<br />

Palavra, 2002.<br />

COSTA, Nivalda. Ditadura militar na Bahia: depoimento [nov.<br />

2007]. Entrevistadores: Luís César Souza e Iza Dantas. Salvador,<br />

2007. 1 CD. Entrevista concedida ao Grupo de Edição e Estudo de<br />

textos teatrais produzidos na Bahia no período da ditadura.<br />

COSTA, Nivalda. Vegetal Vigiado: depoimento [fev. 2009]. Entrevistador:<br />

Débora de Souza. Salvador, 2009. 1 CD. Entrevista concedida<br />

ao Grupo de Edição e Estudo de textos teatrais produzidos na<br />

Bahia no período da ditadura.<br />

COSTA, Nivalda. Vegetal Vigiado. Salvador. 1977. 10 f. Acervo do<br />

Espaço Xisto Bahia. Pasta nº. 83C.


230<br />

COSTA, Nivalda. Vegetal Vigiado. Salvador. 1978. 16 f. Arquivo<br />

Privado de Nivalda Costa.<br />

GADELHA, Carmem. Texto e espetáculo: edição crítica e movência.<br />

In: ENCONTRO DE ECDÓTICA E CRÍTICA GENÉTICA, 3.,<br />

1993, João Pessoa. Anais... João Pessoa, UFPB, 15 a 18 de outubro<br />

de 1991. Publicação em 1993, p. 145-148.<br />

GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Extratos<br />

traduzidos por Luciene Guimarães e Maria Antonia Ramos<br />

Coutinho. Belo Horizonte: EDUFMG, 2006. Disponível em:<br />

http://www.letras.ufmg.br/site/publicacoes/donwload/palimpsestosm<br />

ono- site.pdf>. Acesso em: 10 out 2009.<br />

GENETTE, Gérard. Paratexts: thresholds of interpretation. Tradução<br />

Jane E. Lewin. Nova York: University Press Cambridge, 1997.<br />

GRÉSILLON, Almuth. Elementos de crítica genética: ler os manuscritos<br />

modernos. Tradução Cristina de Campos Velho Birck et al.,<br />

superv. Patrícia Chittoni Ramos Reuillard. Porto Alegre: EDUFRGS,<br />

2007.<br />

GRÉSILLON, Almuth. Nos limites da gênese: da escritura do texto<br />

de teatro à encenação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 9, n. 23, abr<br />

1995. Disponível em: . Acesso em: 10<br />

abr 2010.<br />

MARINHO, Teresinha. Preparo de edições fidedignas nas áreas da<br />

dramaturgia brasileira e do patrimônio histórico e artístico nacional.<br />

In: ENCONTRO DE CRÍTICA TEXTUAL: O MANUSCRITO<br />

MODERNO E AS EDIÇÕES, 1., 1986, São Paulo. Anais... São Paulo,<br />

FFCH da USP, 16 a 20 de setembro de 1985. Publicação em<br />

1986, p. 175-292.<br />

PÉREZ PRIEGO, Miguel Angel. La edición de textos. Madrid: Síntesis,<br />

1997.<br />

SAID, Edward. O regresso à filologia. In: ___. Humanismo e crítica<br />

democrática. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Cia. das Letras,<br />

2007, p. 80-109.<br />

SANTOS, Rosa Borges dos. Uma metodologia aplicada à edição de<br />

textos teatrais. In: MAGALHÃES, José Sueli de; TRAVAGLIA, Lu-


231<br />

iz Carlos (Org.). Múltiplas perspectivas em linguística. Uberlândia:<br />

Edufu, 2008. 1 CD-ROM.<br />

TELLES, Célia Marques. O paratexto e a filologia. In: TEIXEIRA,<br />

M. C; QUEIROZ, R. C. R; SANTOS, R. B. Diferentes perspectivas<br />

dos estudos filológicos. Salvador: Quarteto, 2006.<br />

VEGETAL Vigiado. A Tarde, Salvador, 11 set. 1977.


A IMPORTÂNCIA DOS QUADROS<br />

E PARÂMETROS LINGUÍSTICOS<br />

PARA O ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS<br />

1. Introdução<br />

Carmem Praxedes (UERJ/USP)<br />

clpraxedes@yahoo.it<br />

Este trabalho faz parte de uma pesquisa sobre Educação Linguística<br />

1 que estamos desenvolvendo em colaboração com a Universidade<br />

de São Paulo – USP, dando continuidade a estudos anteriores<br />

a que temos nos dedicado no Instituto de Letras da UERJ. Especificamente<br />

nesta parte da pesquisa, o nosso objetivo é contrastar os dois<br />

principais documentos de referência linguística no Brasil e na Itália:<br />

os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs e o Quadro Comum<br />

Europeu de Ensino Aprendizagem e Avaliação de Línguas – Framework,<br />

para, conjuntamente à aproximação de outros resultados sobre<br />

o assunto, organizar uma tipologia das culturas educacionais linguísticas<br />

destes dois países. A nossa referência teórica básica é PIERINI<br />

(2003) para o contraste; PAIS (2003) e ECO (1993) para a tipologia<br />

das culturas.<br />

2. O quadro comum europeu de referência para as línguas: aprender,<br />

ensinar, avaliar 2 – Framework<br />

O Quadro é um documento produzido pela Divisão de Políticas Linguísticas<br />

(Estrasburgo, França) do Conselho da Europa (Cf.<br />

www.coe.int), cujo último estágio de sua produção ocorreu após o<br />

ano de 1991 com a preciosa colaboração de professores e pesquisadores<br />

europeus e extracomunitários.<br />

1 Educação Linguística: Legalidade, legitimidade e legitimização – implicações semióticas.<br />

2 Título original: Common European Framework of Reference for Languages, Learning, Teaching,<br />

Assessment-CEFR.


233<br />

O Framework, como é chamado o quadro, é produto da política<br />

de integração europeia que vem sendo implementada neste continente<br />

desde o término da 2ª grande Guerra Mundial. Neste contexto,<br />

sinaliza-nos Balboni (2005) que, logo após a devastação da 2ª<br />

Guerra, todos os países Europeus criaram o Conselho da Europa, para<br />

encontrar na cultura comum uma maneira de sobreviver.<br />

Desde então, podemos notar a grande importância do Quadro<br />

para a Comunidade Europeia, ou seja, ele é um movimento linguístico<br />

em busca da unificação do continente e também uma resposta àqueles<br />

(USA) que se consideravam hegemônicos no mundo 3 . Ele é<br />

oferecido àqueles que pensavam que a Europa iria se silenciar nas<br />

cinzas do seu sofrimento, deixando os americanos dominarem o<br />

mundo como déspotas esclarecidos.<br />

Com vistas à implementação de uma série de medidas revitalizadoras<br />

do continente europeu, foi criado o Conselho da Europa,<br />

cujo objetivo principal é encontrar na cultura comum um modo de<br />

sobrevivência e reconstrução dos Estados Europeus.<br />

O Conselho da Europa – COE - com sede em Estrasburgo, na<br />

França, foi fundado em 05 de maio de 1949, através do Tratado de<br />

Londres, com o objetivo de promover a democracia, os direitos humanos,<br />

a identidade cultural e a busca de soluções para as sociedades<br />

da Europa (Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Conselho_da_Europa). O<br />

seu principal instrumento de ação é oferecer aos estados membros as<br />

condições necessárias para o estabelecimento de acordos, intercâmbios<br />

e convênios.<br />

A União Europeia foi criada para consolidar os ideais do<br />

Conselho da Europa com um caráter supragovernamental e intergovernamental,<br />

desde 1º de janeiro de 2007, compreendendo 27 Estados<br />

que aderiram aos seus pressupostos, a partir do Tratado de Maastrichit,<br />

de 07 de fevereiro de 1992.<br />

3 Balboni (2005, p. 2) “(...) nos últimos anos os Estados Unidos repetiram diversas vezes, da<br />

Casa Branca, do Pentágono, dos Jornais; a Europa é o continente curvado sobre si mesmo,<br />

sobre os seus velhos habitantes aposentados que destroem os balanços estatais com as suas<br />

obstinadas sobrevivências (...) a Europa é aquela do velho catolicismo e do velho protestantismo<br />

e da velha ortodoxia, tradicionalista, voltada para o passado, enquanto a América neocom<br />

é aquela dos Born again, os renascidos que olham para frente e se esquecem (...) do<br />

passado de alcoolizados”.


234<br />

Num contexto cuja proposta, que fora apreendida a partir dos<br />

dados da realidade vivida e sofrida pelos europeus, era integrar-se<br />

para não se entregar, unir-se para não se destruir, tolerar para não<br />

massacrar, tornava-se evidente que o fio condutor da integração europeia<br />

não poderia percorrer toda a Europa, se não fosse através do<br />

compartilhar os saberes linguísticos e culturais das diversas nações<br />

componentes do território europeu. Tendo isto em vista, a valorização<br />

do ensino, aprendizagem e avaliação das línguas vivas, traduz-se<br />

na busca de compreender e reconhecer o outro; não através do filtro<br />

modelador de uma língua franca, que é na atualidade a língua inglesa,<br />

conforme fora no passado o latim, mas através da ruptura da praga<br />

de Babel.<br />

A grande percepção europeia não saiu do nada, do vazio, da<br />

destruição, mas do exercício purificador do sofrimento, sinalizador<br />

da possibilidade da inexistência do l’avenir, de um futuro colocado<br />

no calabouço solitário das paixões emanadas pelo desejo de alguns<br />

de dominar o mundo. Neste contexto, os europeus propuseram a aceitação<br />

da Babel, não mais para confundir e separar, mas para esclarecer<br />

e unir. Entendeu-se, finalmente, que valorizar a identidade de<br />

cada língua significa buscar romper a casca que envolve em um casulo<br />

a essência humana, tão bem manifestada através das línguas naturais.<br />

Valorizar as línguas e a linguagem humanas é o caminho para<br />

abrir as portas para a mútua e pacífica convivência, para a tolerância,<br />

para o amor e para a união das nações. Imaginem os europeus, habitantes<br />

do Velho Mundo, com as suas culturas em contato, com o seu<br />

percurso histórico; podendo conversar entre si na busca do autoconhecimento<br />

e da salvaguarda do continente, fazendo uso, cada vez<br />

mais, de suas línguas maternas?<br />

Mais do que uma língua de trânsito, função da língua franca,<br />

tentativa unicista de tradução/versão de todas as línguas em uma só,<br />

desconsiderando os limites e as amplitudes do fazer tradutório das<br />

culturas manifestadas por cada língua natural; o que queriam os europeus<br />

era estabelecer a paz e esta não se faria sem a compreensão<br />

dos gestos e atos dos povos que estejam constantemente em contato.<br />

Além disso, externamente, impunha-se o domínio cada vez mais<br />

crescente dos americanos, efetivos ganhadores das duas grandes<br />

guerras mundiais, era, então, necessário equilibrar a balança do poder<br />

internacional; ou isto ou a subserviência.


235<br />

Assim, a Europa se organizou através do Conselho da Europa<br />

e, posteriormente, da União Europeia e, entre as medidas tomadas<br />

para a efetiva ocorrência desta união, esteve a da criação de uma<br />

comissão de estudiosos de línguas que desenvolveu o Quadro Comum<br />

Europeu de Ensino-aprendizagem e Avaliação de Línguas –<br />

Framework – CEFR.<br />

O Quadro Comum Europeu, no seu contexto político e educativo,<br />

segue rigorosamente o objetivo geral do Conselho da Europa<br />

em suas recomendações do Comitê dos Ministros, ou seja, alcançar a<br />

maior unidade possível entre os seus membros, para a adoção de um<br />

método comum no domínio cultural. No que concerne às línguas vivas,<br />

o trabalho do Conselho da Cooperação Cultural, estruturado após<br />

a criação do Conselho maior (Conselho da Europa) em torno a<br />

uma série de projetos de caráter intermediário, fundamentou a sua<br />

coerência e continuidade sobre a adesão a três princípios:<br />

1º Que o rico patrimônio que representa a diversidade linguística<br />

e cultural na Europa constitui um recurso comum precioso que<br />

nos convém salvaguardar e desenvolver e que todos os esforços consideráveis<br />

se impõem na área da Educação, a fim de que esta diversidade,<br />

diferentemente de ser um obstáculo à comunicação, torne-se<br />

um recurso de enriquecimento e compreensão recíprocas.<br />

2º Que é somente através de um melhor conhecimento das<br />

línguas vivas europeias que se conseguirá facilitar a comunicação e<br />

as trocas entre os europeus de línguas maternas diferentes e, portanto,<br />

favorecer a mobilidade, a compreensão recíproca e a cooperação<br />

na Europa e, por conseguinte, eliminar os prejuízos da discriminação.<br />

3º Que os estados membros, ao adotar ou ao desenvolver uma<br />

política nacional na área de ensino-aprendizagem de línguas vivas,<br />

poderão oportunizar uma ação conjunta europeia com vistas à cooperação<br />

constante entre os seus estados.<br />

Com a finalidade de colocar em prática tais princípios, o comitê<br />

dos ministros solicitou aos governos dos estados membros a<br />

promoção nacional e internacionalmente das políticas governamentais<br />

e não governamentais, expondo os seus métodos de ensinoaprendizagem<br />

e avaliação de línguas, no que se refere especifica-


236<br />

mente à aprendizagem de línguas vivas e à produção e utilização de<br />

material, inclusive os multimídia.<br />

Da mesma forma, o comitê determinou que todos os estados<br />

deverão fazer o necessário para estabelecer um lugar eficaz no sistema<br />

europeu de informações englobando todos os aspectos da aprendizagem,<br />

ensino e pesquisa das línguas vivas com a adoção das mais<br />

avançadas tecnologias da informação e da comunicação.<br />

Consequentemente, as atividades do Conselho da Cooperação<br />

Cultural, seu Comitê de Educação e sua Secção de Línguas Vivas estão<br />

focalizados sobre o encorajamento, a sustentação e a coordenação<br />

de esforços dos estados membros e das organizações não governamentais<br />

para o melhoramento da aprendizagem das línguas, de acordo<br />

com os princípios fundamentais e, notadamente, o método seguido<br />

para colocar em prática as medidas gerais apresentadas nos<br />

anexos da Recomendação R (82) 18.<br />

As medidas de caráter geral que foram tomadas para a implementação<br />

do Framework consideraram que todos os países membros<br />

devem, na medida do possível:<br />

Desenvolver esforços para tornar possível que todos os meios<br />

de adquirir conhecimentos das línguas dos outros estados membros<br />

(ou de outras comunidades linguísticas no seu próprio país, considerando<br />

que muitos países da UE convivem com dialetos) sejam, efetivamente,<br />

disponibilizados a todas as classes sociais.<br />

Possibilitar o uso das línguas da comunidade para satisfazer<br />

as necessidades de comunicação de seus habitantes, sempre que necessário,<br />

estando eles em seu país de nascimento ou em trânsito pela<br />

União Europeia.<br />

Incentivar a troca de informações e de ideias entre os jovens e<br />

adultos através de outra língua, além da materna, de modo a comunicar<br />

os seus pensamentos e sentimentos e melhor compreender o modo<br />

de vida e a mentalidade de outros povos e os seus patrimônios<br />

culturais.<br />

Promover, encorajar e apoiar os esforços dos professores e alunos<br />

que, em todos os níveis, se disponibilizem a aplicar, de acordo<br />

com a realidade de cada um, os princípios de aprendizagem das lín-


237<br />

guas, conforme o definido no programa “Línguas Vivas” do Conselho<br />

da Europa, a saber:<br />

· Fundamentar o ensino e a aprendizagem das línguas sobre<br />

as necessidades, as características e os recursos dos aprendizes.<br />

· Definir, com o máximo de precisão, os objetivos válidos e<br />

realistas.<br />

· Elaborar os métodos e os materiais apropriados.<br />

· Propor modelos de instrumentos que permitam a avaliação<br />

dos programas de aprendizagem.<br />

· Promover os programas de pesquisa e de desenvolvimento,<br />

visando introduzir, em todos os níveis de ensino, os<br />

métodos e materiais com as melhores adaptações para<br />

permitir aos aprendizes de diferentes grupos adquirir uma<br />

atitude comunicativa correspondente as suas necessidades<br />

particulares.<br />

O Preâmbulo à recomendação R (98) reafirma os objetivos<br />

políticos de suas ações na área das línguas vivas, a saber:<br />

· Preparar todos os Europeus para uma possível intensificação<br />

da mobilidade internacional e cooperação entre eles,<br />

não somente educacional, cultural ou científica, mas igualmente<br />

para o comércio e a indústria.<br />

· Promover a compreensão e a tolerância mútuas, respeito<br />

das identidades e diversidades culturais para uma comunicação<br />

internacional mais eficaz.<br />

· Encorajar a desenvolver as riquezas e a diversidade da vida<br />

cultural na Europa para um conhecimento mútuo das<br />

línguas nacionais e regionais, compreendendo os meios<br />

mais largamente ensinados.<br />

· Atender às necessidades de uma Europa multilíngue e<br />

multicultural, desenvolvendo sensivelmente a capacidade<br />

de os Europeus se comunicarem, para além das fronteiras<br />

linguísticas e culturais.


238<br />

· Evitar os prejuízos que poderão ser causados àqueles que<br />

não possuam as capacidades necessárias para se comunicar<br />

em uma Europa interativa.<br />

Tem-se consciência de que todos os esforços deverão ser encorajados,<br />

concretamente organizados e financiados, em todos os níveis<br />

do sistema educativo pelos organismos competentes.<br />

O processo de produção do Framework e sua elaboração contaram<br />

com a colaboração de ilustres professores europeus e não europeus.<br />

É importante, todavia, destacar que o Framework é uma referência<br />

para o ensino-aprendizagem e avaliação de línguas em território<br />

Europeu, sem possuir a força impositiva da lei. Entretanto, os objetivos<br />

que nortearam a sua produção, bem como a qualificação da<br />

equipe envolvida lhe ofereceu uma grande respeitabilidade entre educadores<br />

e profissionais de línguas de todo o mundo.<br />

Os dois objetivos principais do Quadro são:<br />

· Encorajar professores e pesquisadores de línguas vivas a pensar<br />

sobre quais as habilidades e competências linguísticas e<br />

discursivas eles desejam que seus alunos desenvolvam, para<br />

tanto foram propostas algumas questões:<br />

a- O que nós fazemos exatamente no momento da troca oral<br />

ou escrita com outras pessoas?<br />

b- O que nos faz agir desta ou daquela maneira?<br />

c- Qual parte da aprendizagem é necessária a fim de que possamos<br />

utilizar uma nova língua.<br />

d- Como nós fixamos os objetivos e demarcamos nosso progresso<br />

entre ignorância total e a organização mental de sua<br />

matriz mínima?<br />

e- Como se efetiva a aprendizagem de uma língua?<br />

f- O que nós professores fazemos para ajudar as pessoas a aprender<br />

melhor uma língua?<br />

· Facilitar as trocas de informação entre os professores e os alunos,<br />

a fim de que os primeiros possam dizer aos segundos o


239<br />

que esperam deles em termos de aprendizagem e como eles<br />

tentarão ajudá-los.<br />

a- O que o aprendiz terá necessidade de fazer com a língua?<br />

b- O que se necessita aprender para ser capaz de utilizar a língua<br />

com os fins previamente estabelecidos?<br />

c- Por que o aprendiz quis aprender uma determinada língua?<br />

d- Quem é o aprendiz (idade, sexo, posição social e nível de<br />

instrução)?<br />

e- Quais são os conhecimentos, profissões e experiências do<br />

aprendiz e o que ele pretende fazer com a língua?<br />

f- Em qual medida o aprendiz tem acesso a manuais, a obras<br />

de referência gramáticas, dicionários etc.), a meios audiovisuais<br />

e informativos; materiais didáticos.<br />

g- Quanto tempo o aprendiz poderá ou será capaz de dedicar à<br />

aprendizagem de uma língua?<br />

A partir desta análise da situação de ensino-aprendizagem, é<br />

fundamental definir com o máximo de precisão os objetivos imediatamente<br />

avaliáveis, de acordo com as necessidades dos estudantes,<br />

considerando também as suas características individuais e os meios<br />

operacionais disponíveis. Há diversos parceiros com os quais devemos<br />

contar para o bom andamento do processo de ensinoaprendizagem<br />

de línguas, destacamos entre eles a quantidade de professores<br />

(instrutores, estagiários) dentro da sala de aula; a quantidade<br />

de administradores e técnicos de ensino; a relação e a possibilidade<br />

de contato presencial com autores e editores de manuais; pois existem<br />

bons livros e materiais que não são devidamente explorados pelos<br />

docentes; o uso das novas tecnologias da informação e comunicação<br />

– TIC.<br />

Mas, para além de todo um aparato didático e tecnológico, é<br />

fundamental que tenhamos uma equipe coesa e coerente na aplicação,<br />

desenvolvimento e avaliação dos percursos e objetivos propostos,<br />

cada um no seu domínio, trabalhando no mesmo sentido de orientar<br />

os estudantes no desenvolvimento das habilidades e competências<br />

linguísticas e discursivas.


240<br />

Tendo em vista o acima exposto, podemos notar que o Framework<br />

foi elaborado com a intenção de buscar responder a certas<br />

questões de transparência e coerência, sendo o mais exaustivo o possível<br />

em suas respostas. Em seu âmbito, entende-se por competências<br />

um saber-fazer e as atitudes que lhes são correlatas (não basta<br />

saber-fazer, é também importante considerar como se fez).<br />

Compreende-se também que o uso de uma língua é forjado ao<br />

longo da experiência de cada um, mas que cabe ao professor estimular<br />

o aluno à vivência da língua em situações modelos a serem propostas<br />

em seu cotidiano de aprendizagem, ou seja, é possível aprender<br />

a falar francês mesmo sem nunca ter ido à França! E é para isto<br />

que existe o professor de língua estrangeira: ele é um representante<br />

linguístico-cultural e afetivo de uma determinada língua, caberá a ele<br />

dar os passos iniciais para inserir o aprendiz em outro mundo e se esta<br />

inserção for bem feita, a continuidade da aprendizagem ocorrerá<br />

de forma tranquila e satisfatória, tornando a experiência singular e<br />

multiplicadora.<br />

Para tanto, o professor de línguas necessitará propor atividades<br />

que demonstrem os usos de uma mesma língua em diversos contextos<br />

sociais. Neste sentido, os organizadores do Framework propuseram<br />

fichas modelos 4 , a fim de que os professores possam acompanhar<br />

mais cuidadosamente o processo de aprendizagem de seus alunos.<br />

É também importante destacar que os órgãos de certificação<br />

em línguas estrangeiras da Europa estão seguindo os modelos do<br />

Framework, especialmente aqueles do Portfólio Europeu de Línguas<br />

– PEL, para conferir os seus diplomas. Sendo assim, é importantíssimo<br />

que professores e alunos, que estejam se preparando para tais<br />

certificações, tenham em mãos o PEL, para verificar se conseguiram<br />

desenvolver as competências e habilidades prognosticáveis. Além<br />

disso, ainda precisamos destacar que a certificação no nível C2 do<br />

Quadro 5 ; que possui seis níveis divididos em 90h cada, totalizando<br />

4 Referimo-nos ao Portfolio Européen des langues. Contact: Division des Langues Vivantes. Direction<br />

Générale IV. Conseil de L’Europe, Strasbourg, France. Site Internet:<br />

http://culture.coe.int/lang 2000 Conseil de l’Europe, Strasbourg, France.<br />

5 O quadro possui seis níveis, a saber: A1, A2, B1, B2, C1, C2.


241<br />

540h; permitirá o acesso a quem a tenha obtido em uma universidade<br />

da UE. 6<br />

3. Parâmetros Curriculares Nacionais<br />

No Brasil é a Secretaria de Educação Básica que deve zelar<br />

pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. Segundo<br />

fontes do Ministério da Educação brasileiro – MEC:<br />

A educação básica é o caminho para assegurar a todos os brasileiros<br />

a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhes<br />

os meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores.<br />

São dois os principais documentos norteadores da educação básica: a Lei<br />

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394, de 20<br />

de dezembro de 1996 e o Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº<br />

10.172/2001, regidos, naturalmente, pela Constituição da República Federativa<br />

do Brasil. 7<br />

Além dos documentos acima, existem os Parâmetros Curriculares<br />

Nacionais, que foram divididos em três partes; a primeira contempla<br />

o 1º ciclo do ensino fundamental, a segunda o 2º ciclo e a terceira<br />

o ensino médio. Os parâmetros têm o valor de referência para a<br />

educação nacional. Sua natureza não é, nem pretendeu ser, impositiva,<br />

todavia, a proposta que os nortearam buscou, em meio à construção<br />

de um eixo comum de caráter nacional, propiciar aos estados e<br />

municípios a possibilidade de, conjuntamente às comunidades representativas,<br />

tanto dos profissionais de educação quanto de pais e alunos,<br />

fazer as suas próprias escolhas sem perder de vista a base comum<br />

para todos os brasileiros.<br />

O contexto histórico oficial dos PCNs advém da participação<br />

do Brasil, em 1990, da Conferência Mundial de Educação para Todos,<br />

em Jomtien, na Tailândia, que foi convocada pela Unesco, Unicef,<br />

PNUD e Banco Mundial. Desta conferência e da Declaração de<br />

6 Até aqui retomamos parte de um artigo nosso: "Quadro comum europeu de ensinoaprendizagem<br />

e avaliação de línguas – o que falta ao cone sul para seguir este exemplar modelo<br />

de integração multicultural?" Disponível em:<br />

.<br />

7 ,<br />

Acesso em 15 set. 2009.


242<br />

Nova Delhi, países em desenvolvimento, como o Brasil, buscaram<br />

posições consensuais para a Educação. Tendo em vista a grandeza de<br />

tal acordo, o MEC coordenou a Elaboração do Plano Decenal da Educação<br />

(1993-2003), que foi um conjunto de diretrizes políticas em<br />

contínuo processo de negociação, voltado para a recuperação da escola<br />

fundamental, a partir do compromisso com a equidade e com o<br />

incremento da qualidade, bem como da constante avaliação dos sistemas<br />

escolares, com vistas ao seu contínuo aproveitamento.<br />

Para a elaboração dos PCNs consideraram-se as propostas<br />

curriculares dos Estados e Municípios brasileiros, a análise realizada<br />

pela Fundação Carlos Chagas sobre os currículos oficiais, dados estatísticos<br />

sobre o desempenho dos alunos do ensino fundamental, experiências<br />

de sala de aula difundidas em encontros, seminários e<br />

congressos, publicações e ainda as experiências de outros países.<br />

Posteriormente, organizou-se uma proposta inicial, que, após um<br />

processo de discussão em âmbito nacional, tendo envolvido professores<br />

e técnicos de ensino de diversos níveis de ensino, em 1995 e<br />

1996, foram gerados aproximadamente 700 pareceres sobre a proposta<br />

inicial. Após a reelaboração desta proposta e sua ampla divulgação<br />

e discussão, considerou-se que era necessária uma política de<br />

implementação da proposta educacional, além das possibilidades de<br />

atuação das Universidades e das Faculdades de Educação para a melhoria<br />

do ensino nas séries iniciais com impacto na formulação de<br />

propostas para a elaboração de novos programas de formação de professores,<br />

o que está obrigatoriamente vinculado à implementação dos<br />

PCNs.<br />

Assim temos a vinculação hierárquica existente entre Constituição<br />

da República, Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB,<br />

Plano Nacional de Educação e Parâmetros Curriculares Nacionais.<br />

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 –<br />

determina no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais –<br />

Capítulo I – Art. 5º "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de<br />

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros<br />

residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à<br />

igualdade e à propriedade (...)".<br />

No Capítulo II – Dos Direitos Sociais – Art. 6º: "São direitos<br />

sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previ-


243<br />

dência social, a proteção à maternidade e à família, a assistência aos<br />

desamparados, na forma desta constituição".<br />

Na LDB, destaca-se que o objetivo maior do ensino é o de<br />

propiciar, ainda no ensino fundamental, a todos os cidadãos a formação<br />

básica para a cidadania, criando nas escolas as condições de aprendizagem<br />

para:<br />

I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos<br />

o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo;<br />

II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da<br />

tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade;<br />

III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a<br />

aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores;<br />

IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade<br />

humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social”(art.<br />

32). (Fonte: MEC/SEF, 1997).<br />

No que se refere ao ensino e aprendizagem de línguas, a<br />

LDB, 9.394/96 – Art.36 – III preconiza que “será incluída uma língua<br />

estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela<br />

comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das<br />

disponibilidades da instituição” (LDB, 1999, p. 31).<br />

Diante de tal redação, é já esperado que aqueles menos comprometidos<br />

com um projeto educacional que tenha seriedade usem o<br />

eterno argumento dos gastos que impedem a inclusão de mais uma<br />

língua, além da Inglesa, mesmo que de forma optativa. Em geral, são<br />

poucas as escolas, públicas ou particulares, que buscam estabelecer<br />

convênios, parcerias e intercâmbios nacionais e internacionais, com<br />

vistas a viabilizar o ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras. Da<br />

parte para o todo, do Brasil para toda a América do Sul, quantos são<br />

os estudantes que são incentivados a ir e vir para desenvolver os seus<br />

estudos linguísticos?<br />

Diante da falta de atitude dos governantes e da pouca insistência<br />

da população, como e quando teremos uma integração tal qual<br />

a que está ocorrendo na UE, onde os estudantes universitários po-


244<br />

dem, amparados pelo Projeto Erasmus, cursar o último ano da faculdade<br />

em um outro país da UE? 8<br />

Entretanto, para que isto ocorra, é necessário implementar,<br />

pelo menos, a parte do PCNs relativa às Linguagens, seus Códigos e<br />

Tecnologias, para que, rompendo as barreiras das línguas faladas no<br />

Continente Americano (Inglês, Espanhol, Francês e Português), possamos<br />

ter as portas abertas a um projeto multicultural.<br />

Sobre os PCNs, destacamos aqui o artigo de Rojo e Lopes<br />

(2004) em que os autores demonstram a incompletude dos PCNs, no<br />

que diz respeito à ausência ou pouca referenciação às mudanças de<br />

estrutura, organização, gestão e práticas didáticas que seriam necessárias<br />

para a realização dos princípios e diretrizes expostos nos documentos<br />

legais.<br />

Logo de início, notamos uma longa distância entre aquilo que<br />

está posto no texto legal da LDB ou no texto propositivo dos PCNs e<br />

a prática na maioria das instituições educacionais brasileiras, ou seja,<br />

de que maneira são aprofundadas questões como: pensar em cidadania,<br />

enquanto um saber-ser no mundo, conhecer línguas enquanto<br />

ferramentas de compreensão do mundo e suas culturas e propiciar<br />

aos alunos vivências em educação tecnológica básica?<br />

A crítica dos autores é relativa à operacionalização dessas<br />

metas, i. é; ao como tornar legítimo aquilo que é legal – LDB – e<br />

como legitimizar aquilo que, pelo processo de sua produção e pelos<br />

atores envolvidos, já nasceu legítimo. No entanto, a legitimização<br />

ampla e irrestrita consistirá na realização de suas metas e pressupostos<br />

no cotidiano escolar.<br />

Sobre as definições de legalidade e legítimo, vejamos o que é<br />

apresentado no Dicionário de Ciências Sociais da FGV:<br />

Legalidade: Em sua estrita significação etimológica, legalidade<br />

é a qualidade que acompanha a conduta ou a realidade que obedece<br />

a alguma lei. Como afirma L. Legaz Lacambra em Filosofia del<br />

Derecho (Barcelona, Bosch, 1953), legalidade significa, no sentido<br />

mais amplo e mais geral, a existência de leis e a submissão a elas dos<br />

8 Aqui nos referimos a intercâmbios prioritariamente no Continente Americano.


245<br />

atos de todos aqueles que lhes estão sujeitos. Esse conceito refere-se<br />

à legalidade social em sentido restrito.<br />

O mesmo dicionário expõe o seguinte sobre legitimidade:<br />

Legitimidade diz respeito: a) à condição de uma criança presumivelmente<br />

gerada ou nascida na constância do casamento, implicando direitos<br />

e obrigações filiais absolutas; ou b) à condição real, válida e aceita,<br />

de governantes, instituições, movimentos políticos e sistemas de domínio,<br />

decorrente da conformidade de tais governantes, instituições, movimentos<br />

e sistemas de autoridade com alguma lei, princípio ou fonte de<br />

autorização.<br />

No âmbito deste trabalho, entendemos o termo legalidade<br />

como aquilo que está previsto na lei e obriga, portanto, todos os cidadãos<br />

a cumprir.<br />

Legitimidade como aquilo que mesmo não tendo a força da<br />

lei, devido ao processo de sua criação, desenvolvimento ou implementação,<br />

tem uma força social tão grande que deveríamos considerá-lo<br />

como se fosse lei.<br />

E por legitimização entendemos os processos pelos quais passaram<br />

ou passou (ou passarão ou passará) um dado fato, documento<br />

ou ser para se tornar aceito(s) por todos.<br />

4. Considerações finais<br />

No Brasil não se aprendem línguas nas escolas, conforme os<br />

objetivos do Framework. Raríssimas exceções existem e, na maioria<br />

das vezes, são movidas pelo esforço de alguns docentes, que doam as<br />

suas vidas à Educação e ao Ensino. Em geral, pagando um preço<br />

muito caro por tal comprometimento. E isto se deve, antes de tudo, à<br />

falta de uma política educacional que considere a educação linguística<br />

como uma prioridade nacional, logicamente que isto implicaria ter<br />

previamente considerado a Educação como a base da sociedade.<br />

Diferentemente da valorização e aplicação do Framework na<br />

Itália e na Europa, no Brasil, os PCNs são vistos como algo enfadonho<br />

que não servem para nada. Exemplo disto é o lugar que ele ocupa<br />

nos programas e ementas dos currículos das licenciaturas. Em alguns<br />

casos, é lançado um olhar crítico aos PCNs no âmbito da disciplina<br />

Estrutura e Funcionamento de Ensino, mas muito raramente há


246<br />

um aprofundamento específico por área do conhecimento, i. é; nas<br />

Letras, dar-se-ia maior ênfase às Linguagens seus Códigos e suas<br />

Tecnologias, por exemplo. Expor e discutir os PCNs nas Faculdades<br />

e Institutos de Formação propiciaria a modificação do quadro atual<br />

de inércia na aplicação dos parâmetros ou ainda, para aqueles que<br />

não defendem a sua aplicação; a sua possível modificação. Só não<br />

podemos nos manter no espaço do não legal e do não legítimo, fossilizando<br />

ainda mais os processos de ensino-aprendizagem que dependam<br />

das línguas, ou seja, grande parte deles.<br />

A questão é muito grave, mas parece ficar oculta, pois não<br />

ganha muito espaço na mídia, nem nos eventos científicos, nem nas<br />

escolas. A postura tomada é a da aceitação que a aprendizagem de<br />

línguas não seja algo a ser feito nas escolas. Paradoxalmente, o<br />

mesmo professor que não é capaz de fazer o seu aluno aprender uma<br />

determinada língua na escola, trabalha em curso de língua, em que é<br />

capaz de levar a termo tal aprendizagem. Muitos atribuem tal insucesso<br />

ao fato de terem muitos alunos em sala, diferentemente do que<br />

ocorre nos cursos de idioma, que têm no máximo 20 alunos por turma,<br />

todavia, mesmo em algumas escolas, que podem dividir as turmas<br />

em grupos de 10 ou 15 alunos, os estudantes apresentam problemas<br />

na aprendizagem de línguas estrangeiras 9 , o que implica no<br />

não desenvolvimento satisfatório das quatro habilidades linguísticas<br />

ao término de anos de estudos. Modestamente, é possível esperar que<br />

todos os estudantes alcancem o desempenho de um nível B1 do<br />

Framework ao término da Educação Básica e isto levando em conta<br />

as diferenças cognitivas existentes em cada indivíduo.<br />

4.1. Compreender<br />

4.1.1. Competência Oral<br />

Sou capaz de compreender os pontos essenciais de uma sequência<br />

falada que incida sobre assuntos correntes do trabalho, da escola, dos<br />

tempos livres, etc. Sou capaz de compreender os pontos principais de<br />

muitos programas de rádio e televisão sobre temas atuais ou assuntos de<br />

interesse pessoal ou profissional, quando o débito da fala é relativamente<br />

lento e claro.<br />

9 Diga-se e também na aprendizagem da língua materna.


4.1.2. Competência Leitora<br />

4.2. Falar<br />

247<br />

Sou capaz de compreender textos em que predomine uma linguagem<br />

corrente do dia-a-dia ou relacionada com o trabalho. Sou capaz de compreender<br />

descrições de acontecimentos, sentimentos e desejos, em cartas<br />

pessoais.<br />

4.2.1. Interação oral<br />

Sou capaz de lidar com a maior parte das situações que podem surgir<br />

durante uma viagem a um local onde a língua é falada. Consigo entrar,<br />

sem preparação prévia, numa conversa sobre assuntos conhecidos, de interesse<br />

pessoal ou pertinentes para o dia a dia (por exemplo, família, passatempos,<br />

trabalho, viagens e assuntos da atualidade).<br />

4.2.2. Produção oral<br />

Sou capaz de articular expressões de forma simples para descrever<br />

experiências e acontecimentos, sonhos, desejos e ambições. Sou capaz de<br />

explicar ou justificar opiniões e planos. Sou capaz de contar uma história,<br />

de relatar o enredo de um livro ou de um filme e de descrever as minhas<br />

reações.<br />

4.3. Escrever<br />

Sou capaz de escrever um texto articulado de forma simples sobre<br />

assuntos conhecidos ou de interesse pessoal. Sou capaz de escrever cartas<br />

pessoais para descrever experiências e impressões. (Cf.<br />

http://europass.cedefop.europa.eu).<br />

As competências e habilidades descritas acima foram extraídas<br />

do Passaporte Europeu de Línguas PEL, que aqui inserimos como<br />

citação porque o consideramos um modelo bem organizado e que<br />

poderia ser utilizado também no Brasil, provavelmente, com pequenas<br />

adequações, sem que isto implique num processo de aculturação.<br />

Contudo, muito mais do que uma referência de descritores de competências<br />

e habilidades linguísticas, o que necessitamos é de divulgar,<br />

discutir, rever, enfim analisar os PCNs e Quadros Linguísticos<br />

com os estudantes dos cursos de Formação Docente, para que o futuro<br />

do ensino e aprendizagem de línguas na Educação Básica propicie<br />

a nossa população ter um alcance linguístico além-fronteira, ou seja,


248<br />

possuindo condições de acessar estudos, pesquisas, entrevistas, jogos<br />

etc., sem depender da barra de tradução do Google, que, diga-se, nos<br />

serve muito bem como amostragem de que línguas não são etiquetas,<br />

conforme afirmou Hjelmslev. Com esta tomada de decisão estaremos<br />

contribuindo para viabilizar um dos princípios da LDB: "o desenvolvimento<br />

da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o<br />

pleno domínio da leitura, da escrita (...)".<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BALBONI, P.“Quando la vecchia Europa si dà un quadro di riferimento”.<br />

In: In.IT nº 15 – Quadrimestrale di servizio per gli insegnanti<br />

di italiano come língua straniera. Perugia: Guerra Edizioni,<br />

2005, p. 2 e 3. Disponível em: .<br />

Conselho da Europa – Un cadre européen commun de référence<br />

pour les langues: apprendre, ensegner, évaluer. Division des<br />

Politiques Linguistiques, Strasbourg, France, 2000. Disponível em:<br />

.<br />

ECO, U. Verso una logica della cultura. In: ECO, U. Trattato di Semiotica<br />

Generale. Milano: Bompiani, 1993, p. 11-46.<br />

LDB: Lei de Diretrizes e Bases da Educação: Lei nº 9.394/96/ apresentação<br />

Esther Grossi. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. Linguagens,<br />

códigos e suas tecnologias. / Secretaria de Educação Média e<br />

Tecnológica. Brasília: MEC; SEMTEC, 2002. PCN+Ensino Médio:<br />

Orientações Educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares<br />

Nacionais.<br />

http://www2.redepitagoras.com.br/main.asp?View={9CB9C43C-<br />

368F-4914-A28B-566517258AA8}. Acesso em: 22 jul. 2010.<br />

LOPES, M. & ROJO, Rojo. Linguagens, códigos e suas tecnologias.<br />

.<br />

Acesso em: abr. 2006.<br />

PAIS, C. T. Le lexique et la semiotique de la culture: quelques<br />

remarques semantico-syntaxiques et semiotiques In: ___. Conditions<br />

Semantico-syntaxiques et semiotiques de la productivite systemique,<br />

lexicale et discursive. These Docteur D’Etat. Paris: Université de<br />

Paris IV UFR Études Iberiques e Linguistique, 2003, p. 641-649.


249<br />

PARÂMETROS Curriculares Nacionais: introdução aos parâmetros<br />

curriculares nacionais / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília:<br />

MEC/SEF, 1997. Disponível em:<br />

. Acesso em:<br />

22 jul. 2010.<br />

PARÂMETROS Curriculares Nacionais: Linguagens, códigos e suas<br />

tecnologias. / Secretaria de Educação Média e Tecnológica – Brasília<br />

: MEC ; SEMTEC, 2002. PCN + Ensino Médio: Orientações Educacionais<br />

complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais.<br />

Disponível em:<br />

. Acesso em: 22 jul. 2010.<br />

PIERINI, L. Principi di Linguistica Contrastiva. Università di Roma<br />

Tre. & Consorzio Icon Italian Culture On the Net, 2003.


1. Introdução<br />

A INFUÊNCIA DA ORALIDADE<br />

NA PRODUÇÃO TEXTUAL ESCRITA<br />

Tays Angélica Rezende (UFJF)<br />

trezende85@hotmail.com<br />

Hoje, sabe-se muito mais sobre as relações entre oralidade e<br />

escrita do que há algumas décadas. Porém, pode-se perceber que tal<br />

estudo não se encontra bem propagado e nem está relacionado com a<br />

prática.<br />

Este artigo tem como objetivo analisar as marcas da oralidade<br />

presentes em produções textuais escritas por alunos do 3º ano do Ensino<br />

Fundamental, do Colégio de Aplicação João XXIII, da cidade<br />

de Juiz de Fora, contribuindo assim para um melhor conhecimento<br />

dos usos da língua.<br />

Para que esse trabalho se concretizasse, acompanhou-se a rotina<br />

de dois professores de Língua Portuguesa durante um ano letivo.<br />

Dessa forma, foram coletadas cerca de sessenta produções textuais<br />

realizadas pelos alunos; e esse material é a base do nosso estudo.<br />

O propósito é observar quais características de oralidade são<br />

mais empregadas no texto escrito desses alunos e a partir dessas observações,<br />

pretende-se refletir a importância do professor de língua<br />

portuguesa trabalhar com atividades relacionadas à língua oral e a<br />

escrita. Assim, nos abarcaremos das visões de Luiz Antônio Marcuschi<br />

(2008), Eric Havelock (1976), Harvey Graff (1995), Jânia Ramos<br />

(1997) sobre oralidade, escrita e linguagem.<br />

Além disso, realiza-se uma revisão literária dos PCNs de língua<br />

portuguesa de 2ª a 4ª série com o objetivo de analisar o seu parecer<br />

em relação ao trabalho em foco.<br />

Enfim, procuraremos estabelecer relações entre os estudos<br />

feitos por esses autores em relação à oralidade e à escrita com o que<br />

observamos em sala de aula e a partir daí corroborar ou não com a<br />

bibliografia.


2. Fundamentação teórica<br />

251<br />

Segundo Marcuschi (2008), o moderno homo sapiens tem<br />

cerca de um milhão de anos e a escrita surgiu há apenas 5.000 anos,<br />

exceto no Ocidente em que começou a ser usada cerca de 2.500 anos<br />

atrás.<br />

Para Eric Havelock (1976), a tardia entrada da escrita na humanidade<br />

e sua repentina valorização podem ser explicadas como<br />

um fato biológico-histórico, pois o homo sapiens emprega o discurso<br />

oral para se comunicar. Esse uso verbal foi conseguido ao longo de<br />

um milhão de anos por processos de seleção natural. O costume de<br />

usar “símbolos linguísticos” para representar a fala é um dispositivo<br />

que existe há pouco tempo.<br />

Os estudos de Michael Tomasello (1976), antropólogo evolucionista,<br />

corrobora a afirmação de Eric Havelock. Tomasello, ao partir<br />

da discussão Darwiniana para contestar a evolução, descobriu que<br />

os 6 milhões de anos que separam os seres humanos de outros macacos<br />

é um tempo muito curto do ponto de vista da evolução, ou seja,<br />

não houve tempo suficiente para que os processos de evolução biológica<br />

criassem habilidades cognitivas tais como nossa complexa<br />

forma de comunicação. Pesquisas atuais revelam que apenas nos últimos<br />

2 milhões de anos a linhagem humana deixou de apresentar<br />

apenas habilidades cognitivas típicas de grandes macacos, e os primeiros<br />

sinais contundentes de habilidades cognitivas únicas da espécie<br />

surgiram apenas nos últimos 200 mil anos com o Homo sapiens.<br />

Para Tomasello, o único mecanismo biológico que poderia<br />

ocasionar esse tipo de mudança é a “transmissão social ou cultural”.<br />

Os seres humanos têm modos de transmissão cultural únicos da espécie,<br />

seus artefatos culturais e tradições se acumulam ao longo do<br />

tempo de uma maneira que não ocorre nas outras espécies.<br />

Refletindo sobre essas observações, enquanto os homo sapiens<br />

surgiram há cerca de dois milhões de anos, a escrita surgiu há<br />

pouco mais de cinco mil anos. O fato é que a fala não perdeu seu lugar<br />

para a escrita, como afirma Graff (1995):<br />

A despeito das décadas nas quais os estudiosos vêm proclamando<br />

uma queda na difusão da cultura oral ‘tradicional”, a partir do advento<br />

da imprensa tipográfica móvel, continua igualmente possível e significa-


252<br />

tivo situar o poder persistente de modos orais de comunicação. (GRAFF,<br />

1995, p. 37)<br />

De acordo com Marcuschi (2008) “Oralidade e escrita são<br />

práticas e usos da língua com características próprias, mas não suficientemente<br />

opostas para caracterizar dois sistemas lingüísticos.”<br />

(MARCUSCHI, 2008, p. 17). Ramos (1997), toma a mesma concepção<br />

de Marcuschi ao afirmar que, “a correlação entre fala e a escrita<br />

está num continuum das práticas sociais.” (Ramos, 2007 p. 16). Para<br />

esses dois autores, a língua falada e a escrita não estão divididas e<br />

sim interligadas.<br />

3. Metodologia<br />

A partir das ideias apresentadas anteriormente, pretende-se,<br />

em um primeiro momento, destacar algumas marcas de oralidade<br />

mais freqüentes nas produções textuais escritas pelos alunos do 3º<br />

ano do Colégio de Aplicação João XXIII.<br />

Observamos que as dificuldades encontradas por esses estudantes<br />

foram: repetição de palavras, ausência de pontuação, marcadores<br />

conversacionais e erros ortográficos relacionados à fala.<br />

Em relação à repetição de palavras, analisou-se casos como:<br />

1. (...) Então depois de noite e noite o fazendeiro percebeu que um novilho<br />

não estava lá. O fazendeiro foi na casa grande o fazendeiro desceu do<br />

cavalo e pegou o chicote e deu uma surra de chicote no negrinho do pastoreio<br />

o negrinho levantou (...)<br />

2. (...) o patrão pediu ele cuidar dos novilhos dele ele saiu com os novilhos<br />

e ele deixou o novilho e perdeu um novilho(...)<br />

Observou-se que essa repetição corresponde a uma estratégia<br />

conversacional de manutenção de uma seqüência narrativa. Pode-se<br />

perceber que os trechos apresentados demonstram desconhecimento<br />

dos recursos disponíveis na língua para se evitar a repetição e manter<br />

a coesão textual. No entanto, deve-se lembrar que o corpus do trabalho<br />

desenvolvido aqui deriva-se de crianças que acabaram de ser alfabetizadas<br />

e não aprenderam, ainda, recursos gramaticais para se<br />

adequarem à norma culta padrão.


253<br />

No entanto, houve exceções. Notamos em alguns dos textos<br />

analisados, alunos que se mostraram conhecedores da norma culta<br />

padrão.<br />

1. (...) Numa fazenda muito grande morava um fazendeiro com sua mulher.<br />

Ele criava escravos que procuravam fazer tudo direitinho para não apanhar<br />

do patrão. (...)<br />

2. (...) seu patrão não entendeu e lhe deu um castigo de amarrá-lo pelos pés<br />

e jogá-lo em formigueiro.<br />

No primeiro exemplo, o estudante usou o pronome pessoal<br />

“ele” para estabelecer uma relação com “fazendeiro” que aparece anteriormente;<br />

e usou a palavra “patrão” para se referir também a “fazendeiro”,<br />

evitando a repetição.<br />

No segundo exemplo, o aluno usou os pronomes oblíquos<br />

“lo” e “lhe” para se referir ao Negrinho do Pastoreio.<br />

Outra ocorrência marcante nos textos é a ausência de pontuação.<br />

Essa falha é um reflexo da fala, pois está relacionada com os<br />

marcadores conversacionais, como mostra o exemplo abaixo:<br />

1. Num dia uma fasenda que tinha um fasendeiro muito mauvado que tinha<br />

muitos escravos um cafesau uma família e tinha que ter um escravo para<br />

cuidar do godo e ele chamou o negrinho e o nouvilio fugiu e o negrinho<br />

foi achar o novilho e a corda estava podre e foi apanhar e foi levado (...)<br />

O emprego de marcadores conversacionais, elementos típicos<br />

da fala, pode exercer funções diferenciadas de acordo com a situação<br />

em que se configuram. No fragmento acima, a falta de domínio das<br />

estratégias discursivas de segmentação e coesão textual, faz com que<br />

os alunos empreguem a conjunção “e”, que acaba se configurando<br />

como um marcador conversacional de continuidade discursiva.<br />

Nos exemplos abaixo, o recurso utilizado para estabelecer a<br />

coesão textual é o emprego dos marcadores “então” e “aí”. O uso<br />

desse recurso advém da intenção de promover a organização do texto,<br />

evidenciando a continuidade dos fatos:<br />

1. (...) o fazendeiro tinha muitos escravos mas precisava de mais um então<br />

ele se lembrou que tinha um negrinho na casa grande então o fazendeiro<br />

chamou ele lá e ordenou-o levar os novilhos então o negrinho (...)<br />

2. Teve um dia que uns dos seus escravos avia sumido aí o fazendeiro<br />

chamou o Negrinho do Pastoreio para subistituilo aí o fazendeiro falou<br />

asim para o Negrinho:


– Vai pegar o novilho?<br />

Aí o Negrinho foi preucuralo.”<br />

254<br />

Foram observados, ainda, “erros” de ortografia. Percebe-se<br />

que tais “erros” ocorrem pelo fato de que o aluno escreve de uma<br />

maneira muito próxima da forma como se fala. Dessa maneira, podese<br />

dizer que existe uma escrita “quase fonética”, pois trata-se da representação<br />

exata do som que se ouve, transcrevendo-o.<br />

1. Ele foi proucurar o novilho.<br />

2. (...) e jogou o negrinho no furmigueiro.<br />

3. (...) e amarro os pés dele.<br />

4. (...) o negrinho sobir para o céu.<br />

5. (...) ele não quiria tirar<br />

6. (...) e o negrinho foi procura (...) e falo<br />

7. Em vez dele i para a fazenda.<br />

8. (...) o corpo do negrinho foi subino até não (...)<br />

9. (...) o negrinho pidiu para (...)<br />

10. (...) aí ela rebentou (...)<br />

Nos textos também foram encontrados a troca de fonemas<br />

surdos por fonemas sonoros e vice-versa, geralmente no mesmo ponto<br />

de articulação do aparelho fonador.<br />

· p / b (labiais surda/sonora)<br />

1. (...) o fazendeiro deu uma surra no negrinho e jogou o corbo de negrinho<br />

(...)<br />

2. (...) e construiu uma cabela que era o sonho da mulher.<br />

· t / d (labio dentais surda/sonora)<br />

1. (...) O fazendeiro mantou o negrinho seguir(...)”<br />

2. (...) O Negrinho do Pastoreiro condou tudo para o patrão (...)”<br />

· c / g (gutural surda/sonora)<br />

1. (...) e foi progura o novilho (...)”


2. (...) o fasendero volto para ve o gastigo (...)”<br />

· f / v (fricativas surda/sonora)<br />

1. Você vai pagar por tudo que você vez.”<br />

2. Era uma fez (...)”<br />

255<br />

Diante disso, sugere-se que o professor realize atividades para<br />

que o aluno perceba a distinção existente entre os textos que são tipicamente<br />

escritos, os que são falados e ainda, aqueles que se configuram<br />

por meio de características de ambos.<br />

Para que um professor possa trabalhar em sala de aula atividades<br />

que tenham por objetivo a distinção entre oralidade e escrita,<br />

abarcaremos agora, os conceitos propostos para oralidade e escrita<br />

segundo Marcuschi (1998) e os Parâmetros Curriculares Nacionais<br />

da Língua Portuguesa de 2ª a 4ª série.<br />

De acordo com Marcuschi (2008), a oralidade equivale a uma<br />

prática social “[...]i nterativa para fins comunicativos que se apresenta<br />

sob variadas formas ou gêneros textuais fundados na realidade sonora;<br />

ela vai desde uma realização mais informal à mais formal nos<br />

mais variados contextos de uso .” (MARCUSCHI, 1998, p. 25). Os<br />

textos escritos seriam “[...] um modo de produção textual-discursiva<br />

para fins comunicativos com certas especificidades materiais e se caracterizaria<br />

por sua constituição gráfica, embora envolva também recursos<br />

de ordem pictória e outros.” (MARCUSCHI, 1998, p. 26). Ou<br />

seja, conforme Marcuschi, a diferença que há entre fala e escrita são<br />

os “aspectos formais, estruturais e semiológicos”, ou seja, o modo<br />

como representamos a língua através de códigos (sonoro e gráfico).<br />

Os Parâmetros Curriculares Nacionais da Língua Portuguesa<br />

propõem que a escola deve eleger em seu conteúdo escolar a Língua<br />

Oral e a Língua Escrita. O estudo da Língua Oral deve garantir que<br />

as atividades em sala de aula envolvam fala, escuta e reflexão sobre<br />

a língua, tais como:<br />

atividades de produção e interpretação de uma ampla variedade de textos<br />

orais, de observação de diferentes usos, de reflexão sobre os recursos que<br />

a língua oferece para alcançar diferentes finalidades comunicativas. Para<br />

isso, é necessário diversificar as situações propostas tanto em relação ao<br />

tipo de assunto como em relação aos aspectos formais e ao tipo de ativi-


256<br />

dade que demandam — fala, escuta e/ou reflexão sobre a língua. (PCNs,<br />

1998, p. 38/39).<br />

De acordo com os Parâmetros Curriculares, a Língua Escrita<br />

está fortemente ligada à leitura, pois são práticas complementares<br />

que se modificam mutuamente, isto é, “[...]a escrita transforma a fala<br />

(a constituição da “fala letrada”) e a fala influencia a escrita (o aparecimento<br />

de “traços da oralidade” nos textos escritos).” (PCNs,<br />

1998, p. 35).<br />

Dentre os conceitos de Língua Escrita, os dois sub-blocos, leitura<br />

e escrita, são divididos entre Prática de Leitura e Prática em<br />

Produção de Texto. Segundo os PCNs, “[...] o domínio da linguagem<br />

escrita se adquire muito mais pela leitura do que pela própria escrita;<br />

que não se aprende a ortografia antes de se compreender o sistema<br />

alfabético de escrita; e a escrita não é o espelho da fala.” (PCNs,<br />

1998, p. 48)<br />

Contudo, quando comparamos o que foi afirmado pelos<br />

PCNs, de que “[...] a escrita não é o espelho da fala” (PCNs, 1998, p.<br />

48), com o que foi observado em nossa análise, notamos uma similaridade<br />

muito grande entre fala e escrita. Isto é, alguns traços da oralidade,<br />

tais como, repetição de palavras, marcadores conversacionais<br />

e erros ortográficos relacionados à fala são muito marcantes na escrita<br />

da criança. Essa similaridade ocorre devido ao momento, já que a<br />

diferenciação entre as estruturas da modalidade oral e da escrita está<br />

sendo construída. Portanto, o professor deverá propor atividades em<br />

que se trabalhe as diferenças entre linguagem oral e linguagem escrita.<br />

4. Considerações finais<br />

Oralidade e escrita são práticas sociais próprias da interação<br />

entre os seres humanos, e que, por isso mesmo, têm mais similaridades<br />

do que diferenças. Cada uma dessas modalidades lingüísticas<br />

possui características que as particularizam. A distinção ocorre principalmente<br />

no modo como são organizados seus elementos estruturais<br />

e as semelhanças tornam-se evidentes quando os resultados de<br />

cada modalidade são dispostos num continuum tipológico.


257<br />

Diante disso, “Como se pode ensinar [e aprender] uma língua<br />

sem conhecer sua estrutura e o seu funcionamento, bem como os<br />

mecanismos que permitem a sua aquisição?" (ROULET (1978 p.<br />

75). Fortalecendo o questionamento de Roulet, os professores de língua<br />

portuguesa deveriam dispor atividades em que o aluno perceba<br />

que existem textos que são tipicamente escritos, aqueles que são tipicamente<br />

falados e outros que se configuram por meio da utilização<br />

de características de escrita e de fala.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BAGNO, M.; STUBBS, M.; GAGNÉ, G. Língua materna: letramento,<br />

variação & ensino. São Paulo: Parábola, 2002.<br />

BRASIL Parâmetros curriculares nacionais: Ensino de primeira à<br />

quarta série. Língua Portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental<br />

Brasília, 1997.<br />

HAVELOCK. Eric. Originis of Western literacy. Toronto: Ontario<br />

Institute for Studies Education, 1976.<br />

GRAFF, Harvey J. Os labirintos da alfabetização. Porto Alegre: Artes<br />

Médicas, 1995.<br />

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização.<br />

9 ed. São Paulo: Cortez, 2008.<br />

RAMOS. Jania M. O espaço da oralidade na sala de aula. São Paulo:<br />

Martins Fontes, 1997.


A INTERNET NO ENSINO DE ESPANHOL<br />

PARA ALUNOS BRASILEIROS 1<br />

INTRODUÇÃO<br />

Beatriz Pereira da Silva (UFLA)<br />

bia-letras@hotmail.com<br />

O ensino/aprendizagem de espanhol no Brasil não pode mais<br />

ser considerada uma prática recente. Fatores como a globalização e<br />

os tratados que o nosso país tem assinado com os parceiros do Mercosul<br />

vem tornando o espanhol um idioma imprescindível pela necessidade<br />

de comunicação. Mas os brasileiros apresentam algumas<br />

particularidades na aprendizagem de espanhol como língua estrangeira<br />

(E/LE). Apresentam facilidade na leitura e reconhecem algumas<br />

palavras que têm relação com o português, relacionando-se muito<br />

melhor com a língua espanhola falada do que com a escrita.<br />

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998, p. 69-<br />

70): A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo<br />

de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos,<br />

de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que<br />

sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair informação, decodificando<br />

letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade<br />

que implica estratégia de seleção, antecipação, inferência e<br />

verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o uso desses<br />

procedimentos que possibilita controlar o que vai sendo lido, permitindo<br />

tomar decisões diante de dificuldades de compreensão, avançar<br />

na busca de esclarecimentos, validarem no texto suposições feitas.<br />

É necessário para isto, ter em mente o uso das TIC como recursos<br />

não como fim.<br />

A grande revolução no uso da Internet foi o aparecimento da<br />

web que permitiu que professores e alunos de línguas estrangeiras<br />

passassem a ter acesso à produção cultural de outros países e a falan-<br />

1 Este texto resulta do trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal de<br />

Lavras, como requisito para conseguir o diploma de Especialista em Informática na Educação.


259<br />

tes dos diversos idiomas em salas de chat, listas de discussão e fóruns.<br />

A web evoluiu e hoje falamos em 3 fases. A web 1.0, que alguns<br />

estabelecem como data 1994 a 2004, a web 2, que é o estágio<br />

atual, e a web 3, um estágio futuro, mas cuja previsão é a ampliação<br />

da inteligência artificial, avanços na computação gráfica e em aplicações<br />

na web. É relevante dizer que essa história não é linear e dependendo<br />

da conexão e do equipamento ainda existem muitas pessoas<br />

que só podem usar os primeiros recursos da web 1.0.<br />

1. Revisão de Literatura<br />

1.1. O processo de ensino /aprendizagem de espanhol como<br />

segunda língua para brasileiros<br />

Segundo a Enciclopédia das Línguas no Brasil, a presença da<br />

língua espanhola no Brasil está caracterizada pelo seu modo de distribuição<br />

no território brasileiro. Por um lado, o espanhol como língua<br />

de contato; por outro lado, o espanhol como língua estrangeira.<br />

Em outras zonas fronteiriças do Brasil o espanhol é mais uma língua<br />

em convivência com o português, além das línguas indígenas com as<br />

quais tanto a língua portuguesa como a língua espanhola tem contato<br />

em ambos lados das fronteiras. Embora não haja nenhuma descrição<br />

linguística que comprove a existência de um bilinguismo nestas regiões,<br />

o espanhol é uma língua praticada e compreendida, sobretudo,<br />

pela necessidade de comunicação e inter-relação entre os habitantes<br />

destas regiões de fronteira. A situação da língua espanhola no Brasil<br />

como língua estrangeira cresceu e ganhou força no Brasil, a partir da<br />

aprovação no senado da lei nº 4.004 de 1993 que determina a obrigatoriedade<br />

do ensino do espanhol no ensino médio e facultativo no<br />

ensino fundamental. Além disto, posterior à implementação do Mercosul,<br />

o espanhol tornou-se também uma língua tão importante quanto<br />

o inglês no âmbito dos negócios e do comércio no país. Em razão<br />

destes fatores, o Brasil é o lugar onde o crescimento do interesse pela<br />

aprendizagem da língua foi o mais significativo nas últimas décadas<br />

do séc. XX e início deste século.<br />

Dentro deste contexto serão apresentadas características a serem<br />

observadas no que se refere ao processo de ensino/aprendiza-


260<br />

gem de espanhol como segunda língua, para alunos brasileiros. Destacaremos<br />

a seguir o porquê da necessidade de um processo de ensino/aprendizagem<br />

que seja centrado no aluno; objetive sua habilidade<br />

comunicativa; esteja embasado em conteúdo real e que use materiais<br />

obtidos de contextos autênticos (material que não foi previamente<br />

preparado ou adaptado para o ensino de línguas).<br />

1.2. Planejamento centrado no aluno<br />

Ao iniciar seus estudos os alunos brasileiros apresentam certa<br />

facilidade no que se refere ao entendimento do léxico, o que os leva<br />

por muitas vezes a sensação de que o espanhol é uma língua de fácil<br />

aquisição. Certamente para os alunos que possuem a língua portuguesa<br />

como primeira língua a facilidade existe e se dá pela, como<br />

abordaremos novamente, pela aproximação das línguas. Richman<br />

(2005, p. 58) afirma que o espanhol compartilha 96% das suas palavras<br />

mais frequentes com o português. O que explicaria a necessidade<br />

do ensino com base no léxico, baseando-se no conhecimento prévio<br />

do aluno. Obviamente isso não significa que se deva negligenciar<br />

o ensino das estruturas gramaticais. É necessário, porém, observar<br />

que nem todas estas palavras que supostamente apresentam ortografia<br />

idêntica tenham o mesmo sentido no português e no espanhol.<br />

Marrone (1990) afirma que o emprego de palavras idênticas quanto<br />

ao léxico e características uniformes quanto à morfologia e à sintaxe<br />

pode acarretar erro no uso e na grafia de vários vocábulos análogos,<br />

criando, como ocorre com os habitantes de países de língua espanhola<br />

que fazem fronteira com o Brasil, o portunhol.<br />

Infelizmente a maior parte dos materiais impressos e métodos<br />

utilizados até hoje para o ensino de espanhol como segunda língua<br />

não levam em conta o conhecimento do léxico que o aluno brasileiro<br />

tem em relação ao espanhol. Roca (1998, p. 187) afirma que “os objetivos<br />

de aprendizagem tem que ser diferentes para cada pessoa”,<br />

pois as metodologias, materiais e recursos podem ser bem utilizados<br />

se adaptados aos diferentes momentos e pessoas (estudantes) que os<br />

utilizarem.


1.3. Desenvolvimento da habilidade comunicativa<br />

261<br />

Não há como desenvolver a habilidade comunicativa sem<br />

comunicação. Grande parte dos manuais utilizados para o ensino de<br />

espanhol tem quase sempre textos de situações do dia-a-dia seguidos<br />

de diálogos prontos. O educador, por sua vez, ao optar pelo enfoque<br />

comunicativo, preocupado com o aspecto funcional da língua e seu<br />

caráter de instrumento de conversação, buscará apresentar aos alunos<br />

ferramentas para o desenvolvimento comunicativo que o aproximem<br />

de situações reais que ele viverá em contatos com nativos da língua<br />

que se estuda. Desta forma estará utilizando o texto como pretexto<br />

para a conversação e/ou produção textual. Porém, interagir realmente<br />

com falantes nativos de espanhol significa muito mais que empregar<br />

estruturas lexicais apropriadas a um contexto. A comunicação não se<br />

restringe às sequências de perguntas e respostas prontas. Goettenauer<br />

(2005, p. 69) esclarece que<br />

Obter um diálogo com começo, meio e fim é somente o começo do<br />

processo de interação que deve renovar-se infinitamente, pois sempre<br />

aparecerão circunstâncias novas que exigirão o improviso, de modo a<br />

não provocar uma lacuna no ato comunicativo.<br />

Dentre as diversas ferramentas encontradas para facilitar o<br />

processo de reconhecimento quanto ao léxico e desenvolver a habilidade<br />

comunicativa dos alunos brasileiros de E/LE, enfocaremos o<br />

uso da internet.<br />

A internet se destaca como ferramenta por sua capacidade de<br />

aglutinar os diferentes meios de comunicação existentes, por ser um<br />

veículo que permite ao usuário várias formas de comunicação de<br />

forma sincrônica (com o chat), ou assíncronas (com o email), seu<br />

destaque para o ensino da língua também se dá por possibilitar que a<br />

troca de informações ocorra de forma escrita ou oral, além de permitir<br />

o envio de material áudio visual, e a interatividade, a capacidade<br />

de intervenção no discurso opinando, agregando e trocando informações,<br />

algo que não nos oferecem até agora os outros meios de comunicação.<br />

(SANTA e KRAHEIN, 2003, p. 76)<br />

Softwares e chats são alguns dos recursos disponíveis utilizados<br />

como ferramentas para o ensino de línguas com enfoque comunicativo<br />

e apresentam um resultado satisfatório neste sentido. Com<br />

eles os alunos têm a possibilidade de acesso a comunicação em tem-


262<br />

po real com nativos do idioma ao qual se pretende estudar, seja oralmente<br />

ou por escrito. Desta forma estarão em contato com contextos<br />

reais de conversação, textos autênticos, e não só aos materiais<br />

utilizados e diálogos mediados empregados em sala de aula, podendo<br />

escolher entre assuntos, grupos e contatos que mais lhe interessem.<br />

1.4. Embasamento em conteúdo real e uso de materiais obtidos<br />

de contextos autênticos.<br />

Apenas alguns anos atrás, conseguir material ‘autêntico’ chegava,<br />

para os professores afastados das grandes metrópoles, a ser uma façanha.<br />

Era difícil saber o que pedir e quando o material chegava, às vezes, já estava<br />

ultrapassado. Isso era o caso mais do que nada de jornais e revistas,<br />

julgados de grande potencial para as aulas. No caso de livros, o professor<br />

tinha que estar por dentro do que se publicava, era difícil enviar dinheiro<br />

pra fora etc. (HUMBLÉ, 2002, p. 158).<br />

Atualmente com o uso da internet é possível buscar conteúdos<br />

de jornais publicados no mesmo dia em diversos países em um curto<br />

espaço de tempo, além de tornar possível o conhecimento de obras<br />

recentemente publicadas assim como a compra. Além dos aspectos já<br />

citados, o papel da internet torna-se fundamental na aquisição de material<br />

para as aulas de idiomas pois, além de possibilitar ao aluno<br />

contato direto com nativos de espanhol na forma oral ou escrita, possibilita<br />

a compilação de artigos, periódicos, revistas e sites por parte<br />

do professor para uso dos alunos, formando assim um corpus<br />

Humblé (2002, p. 160) explica:<br />

Um corpus é uma quantidade grande de textos estocados num computador<br />

e que são acessados com programas próprios de pesquisa. Os<br />

textos que fazem parte de um corpus podem ser variados, indo de jornais<br />

a romances, ou se concentrar num determinado gênero, como só periódicos.<br />

Estes textos podem ser apresentados de maneira impressa ou<br />

por meio de uma webquest, por exemplo. O educador pode disponibilizar<br />

sites que contenham os textos previamente selecionados, podendo<br />

inclusive contar com um recurso chamado “Delicious”, disponível<br />

na web, formando assim um corpus confiável. Obviamente,<br />

como a internet se modifica e amplia constantemente, deverá existir<br />

revisão por parte do professor com certa frequência, para evitar a indicação<br />

de material não mais existente.


263<br />

Esta pré-seleção feita pelo professor permite ao aluno fazer<br />

suas próprias pesquisas, além disso, os textos produzidos com a intenção<br />

de comunicar uma mensagem útil para um leitor costumam<br />

ser mais interessantes e mais reais do que exemplos de linguagem<br />

inventados. Sendo assim, além de estimular ao aluno, a utilização<br />

deste recurso permitirá que ele se torne mais livre na hora de produzir,<br />

pois muitas das dificuldades que mesmo os bons dicionários não<br />

conseguem resolver poderão ser superadas pelo uso inteligente de<br />

um corpus formado por textos autênticos.<br />

2. Metodologia<br />

A metodologia adotada foi caracterizada por estudo de caso,<br />

aplicado a dois cursos de idiomas e uma universidade (departamento<br />

de Letras) na cidade do Rio de Janeiro.<br />

Inicialmente foi realizada uma revisão bibliográfica para fundamentar<br />

a parte teórica do trabalho. Em seguida foi realizado um<br />

estudo de caso, tendo como instrumento de coleta de dados a observação<br />

da pratica pedagógica realizada por um período de dois meses<br />

nas três instituições.<br />

Após a coleta de dados foi realizada uma análise qualitativa<br />

nos dados colhidos para chegar à conclusão do trabalho e apontamento<br />

de algumas sugestões e ferramentas para a uma prática qualitativa<br />

no ensino de espanhol como língua estrangeira (E/LE) para alunos<br />

brasileiros com ênfase no enriquecimento do léxico.<br />

3. Resultados e discussão<br />

3.1. Por que utilizar a internet no ensino de Espanhol como<br />

língua estrangeira (E/LE)?<br />

As vantagens e limitações que a internet apresenta no ensino<br />

de línguas são determinadas pelas próprias características do meio.<br />

Por isso convém revisar as peculiaridades desta TIC denominada internet,<br />

para ver que consequências seu uso oferece ao ensino de<br />

E/LE.


264<br />

A maioria dos conteúdos presentes na internet são textos escritos,<br />

com as mesmas letras e as mesmas palavras que vêm sido<br />

empregadas nos meios agora chamados “tradicionais”.<br />

A este respeito, Aguirre (1997) destaca que a literatura é a arte<br />

da palavra, não a do papel. Cada mídia e suporte têm seus méritos<br />

próprios, mas não são a palavra. Apenas promovem a sua divulgação.<br />

A nova mídia digital também vai sediar a palavra e, no entanto<br />

por mais técnico que possa parecer, há sempre por trás, nessas palavras,<br />

um ser humano querendo se comunicar ou expressar, enviandonos<br />

as suas ideias e sentimentos, sua palavra.<br />

Segundo Ruipérez (1998, p. 853) pode-se afirmar que as possibilidades<br />

de troca de todo tipo de informação multimídia através da<br />

web começaram a mudar as formas de aprendizagem do E/LE, o autor<br />

destaca ainda que o uso da internet e da multimídia seguirão de<br />

enorme proveito na aprendizagem de E/LE, pois parecem ter sido<br />

criadas na medida para este fim.<br />

Na verdade, busca-se com o uso das ferramentas disponíveis<br />

na internet, desenvolver o uso da língua seguindo um modelo construtivista,<br />

integrador e participativo, que valorize a integração entre<br />

falantes do idioma estudado na construção do conhecimento. Portanto,<br />

observam-se como pontos positivos no que se refere ao uso das<br />

novas tecnologias para o desenvolvimento do léxico no ensino de espanhol<br />

como língua estrangeira que:<br />

As atividades e tarefas do professor são ampliadas, o professor<br />

é agora em mediador do processo de aprendizagem que facilita o<br />

acesso à informação e que ao mesmo tempo organiza didaticamente<br />

a informação disponibilizada na web. O professor já não é a única<br />

fonte de informação, as aulas já não são mais unidirecionais.<br />

Na fase em que se privilegia o intercambio linguístico, unemse<br />

agora atividades individuais ou em grupos pequenos na web, ou<br />

classes virtuais, em que o estudante organiza seu tempo, suas tarefas<br />

e o tipo de atividade que deseja realizar. Isso significa que estamos<br />

cada vez mais próximos de um ensino verdadeiramente centrado no<br />

aluno, que leva em consideração seus gostos e necessidades de aprendizagem,<br />

que aceita diferentes formas de aprender e que ao


265<br />

mesmo tempo proporciona uma situação de reunir interesses e informações.<br />

O estudante torna-se independente com relação a sua aprendizagem,<br />

ou seja, toma decisões quanto ao momento e a forma de aprender,<br />

podendo escolher entre se dedicar-se mais aos exercícios de<br />

escrita ou de pronúncia, de acordo com as suas necessidades. Isso<br />

significa uma tomada de consciência de si mesmo, de em que consiste<br />

aprender, ou, segundo Vigotsky, “aprender a aprender”.<br />

São agregadas as habilidades de forma natural.<br />

Os estudantes realizam atividades através da internet, levando<br />

em conta o que fará em sua vida real com o uso do espanhol.<br />

3.2. A Internet no desenvolvimento do léxico no ensino de<br />

E/LE<br />

A internet apresenta um alto grau de interesse para os estudantes<br />

em geral por sua ligação a ideia de comunicação, novidade e<br />

informação, tornando-se, ferramenta imprescindível para o ensino/aprendizagem<br />

de idiomas em todo o mundo. Altamente relacionada<br />

a utilização da língua e sendo de uso cotidiano de grande parte<br />

dos alunos, não podemos deixar de considerá-la uma grande ferramenta<br />

para a construção da aprendizagem e enriquecimento do vocabulário.<br />

É interessante, portanto destacar que a internet não constitui<br />

em si mesma um projeto docente, seus recursos são basicamente ferramentas<br />

que a ele podem ser inseridas. É desta forma, como uma<br />

entre várias ferramentas, que trataremos aqui da utilização da internet<br />

para o desenvolvimento do léxico no ensino de espanhol.<br />

É fato que, para que os estudantes desenvolvam satisfatoriamente<br />

suas produções escritas na língua de estudo, devem ter acesso<br />

a modelos e exemplos, além de técnicas. A mudança fundamental<br />

ocorrida neste momento é que o professor deixou de ser a principal<br />

referência e fonte de material para os alunos, pois é possível através<br />

de buscas individuais na web que estes encontrem diversos modelos<br />

e informações que enriquecerão e motivarão seu desenvolvimento.<br />

Além disso, o professor deixa de ser o único destinatário dos textos


266<br />

produzidos pelos estudantes, suas produções podem ser compartilhadas<br />

com outros alunos ou com quem desejarem.<br />

O sentimento de autonomia é uma das grandes vantagens do<br />

uso do computador e da internet, pois, ainda que o aluno tenha que<br />

cumprir determinadas tarefas, pode encontrar diferentes meios para<br />

concluí-las. Muitas vezes ávidos em conhecer e testar seus conhecimentos,<br />

os alunos de idiomas se aventuram em buscas ou fazem amizades<br />

com nativos, participam de listas, cursos, e-learning etc.<br />

Nestes casos, quando tratamos de multimídia, a internet é uma ferramenta<br />

bastante completa, pois possibilita o acesso não só a textos<br />

escritos, como a imagens, sons, interação em interface gráfica, simuladores,<br />

ou seja, comunicação não só escrita como falada, e vivenciada,<br />

de maneira bastante eficiente. Os textos escritos se apresentam<br />

na maioria das buscas feitas pela internet. Há, no entanto, uma necessidade<br />

emergente de que os estudantes brasileiros de E/LE tenham<br />

uma melhor produção textual, visto que apresentam maior facilidade<br />

na leitura que na produção escrita. O trabalho pedagógico<br />

com foco no desenvolvimento da expressão escrita está presente durante<br />

todo o processo de aprendizagem de uma língua estrangeira,<br />

mas quando está fora do livro didático, dos exercícios propostos pelo<br />

professor, ou seja, fora da sala de aula, a atitude do aluno frente a<br />

expressão escrita é outra. Ela é desvinculada de seu uso dentro da esfera<br />

escolar e didática e passa a ser usada em situações reais de comunicação,<br />

frente a necessidades e interesses imediatos, aos quais<br />

deseja satisfazer. Isso leva o aluno à criação de um discurso autêntico,<br />

produto da interação social entre os participantes desse discurso<br />

(VIGOTSKY, 1987, p. 6).<br />

Hilgert (2000, p. 17) destaca que a conversação digital apresenta<br />

uma estreita relação entre a fala e a escrita, em que estratégias<br />

conversacionais próprias da fala são utilizadas no momento da interação<br />

eletrônica. Concordaremos com o autor quando o mesmo afirma<br />

que a comunicação na internet “... se afina muito mais com o texto<br />

falado prototípico (conversação espontânea, conversação telefônica)<br />

do que com o correspondente escrito”. Neste caso, o foco passa a<br />

ser primeiramente o significado (o que se deseja dizer) e não a forma<br />

(como dizer), favorecendo a interação com a língua alvo e beneficiando<br />

o desenvolvimento de uma comunicação autentica.


267<br />

É necessário perceber que a utilização das Tecnologias da Informação<br />

e Comunicação (TIC) para o desenvolvimento do léxico<br />

aborda a formação contextualizada e significativa do vocabulário não<br />

só do aluno brasileiro de E/LE, mas de todos os estudantes de línguas.<br />

Esta formação contextualizada e significativa do vocabulário é<br />

realizada ao propor buscas, análises, contextualização, possíveis explicações,<br />

problematizações, autoria, coautoria, diálogo, interação,<br />

apropriação de teorias sobre problemas, investigação e, sobretudo,<br />

experimentação da língua com a utilização de diversos recursos disponíveis<br />

na internet.<br />

3.3. Algumas de ferramentas pedagógicas encontradas na web<br />

TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO INFORMA ÃO E COMUNICAÇÃO<br />

COMUNICA ÃO<br />

ORKUT<br />

MSN<br />

TWITTER<br />

BLOG<br />

WIKI<br />

AVA<br />

CHAT<br />

SOFTWARE<br />

HARDWARE<br />

WEB<br />

Figura 1: Ferramentas da web 2<br />

TELECON-<br />

FERÊNCIA<br />

DOWLOAD<br />

FÓRUM<br />

LISTA DE<br />

DISCUSSÃO<br />

HIPER-<br />

TEXTO<br />

E-MAIL<br />

2 Esta figura foi elaborada por Cristina Alves de Brito (2010) e está disponível na página 136 do<br />

artigo "Perspectivas para o ensino de língua portuguesa à distância", no número 47 da Revista<br />

Philologus, resultante de trabalho apresentado no III Simpósio Nacional de Estudos Filológicos<br />

e Linguísticos, em abril de 2010. (Cf. http://www.filologia.org.br/revista/47/09.pdf)


268<br />

A Internet é composta pela hipermídia, definida por quatro características<br />

básicas: a mistura de diferentes linguagens, tais como verbais<br />

(textos), visuais (fotografias, desenhos, gráficos), sonoras (músicas, efeitos<br />

sonoros), audiovisuais (filmes, games, simulações etc.); a articulação<br />

em hipertextos; recursos de apoio à navegação (mapas, roteiros, sistemas<br />

de busca); e a interação. (SANTAELLA, 2004, p. 78).<br />

O conhecimento e o uso das diferentes ferramentas disponíveis<br />

na web possibilita ao educador usar a Internet de maneira consciente.<br />

Por seu potencial de comunicação e de pesquisa, ela é um extraordinário<br />

instrumento cognitivo, que potencializa as metodologias<br />

de ensino e aprendizagem.<br />

Serão listadas a seguir algumas ferramentas disponíveis na internet<br />

que possibilitam a comunicação síncrona e assíncrona. Algumas<br />

ferramentas apresentadas utilizam-se da aprendizagem colaborativa,<br />

outras não, mas apresentam todas elas resultados satisfatórios<br />

no que tange ao enriquecimento do léxico dos alunos brasileiros de<br />

E/LE e de suas competências comunicativas. Vale destacar que alguns<br />

desses recursos já vêm sido utilizados há algum tempo no ensino<br />

de diversas outras línguas e disciplinas e no ensino a distancia.<br />

As ferramentas abordadas a seguir são: E-mail, Web site,<br />

Chats, Twiter, Muds, Simulações, Lista de Discussão, Grupos, Fórum,<br />

Comunidades virtuais, Blog, Fotolog ou flog, Videolog, Webquest,<br />

Wiki, Podcast, Skoool, Delicious.


3.4. E-mail<br />

Ex.: Gmail<br />

Figura 2: E-mail<br />

269<br />

Possibilita ao usuário receber mensagens em seu computador.<br />

O interlocutor pode responder. às mensagens na hora que desejar, já<br />

que esta é uma interface de comunicação assíncrona.


3.5. Site<br />

Ex.: http://www.elpais.com/global/<br />

Figura 3: Site<br />

270<br />

Possibilita o acesso a textos autênticos de vários países hispânicos,<br />

com a intenção de aproximar o aluno às variantes do espanhol,<br />

às distintas culturas dos países hispânicos e ao uso comum do idioma.<br />

Torna possível encontrar os mais variados estilos e modalidades<br />

de texto e refletir sobre as ideias e a língua.<br />

3.6. Chat<br />

Considerado uma "conversa informal", o bate-papo via Internet<br />

é uma forma de comunicação síncrona, isto é, permite que duas<br />

ou mais pessoas se comuniquem em tempo real. Nessa modalidade<br />

de comunicação todos os participantes podem se comunicar com todos<br />

que estiverem conectados. Além de possibilitar uma comunicação<br />

entre todos ao mesmo tempo, essa interface também permite<br />

uma comunicação on-line mais reservada com qualquer participante.<br />

cias).<br />

Ex. 1: Windows Messenger-MSN (chat, vídeo chat, conferên


Figura 4: MSN<br />

Ex. 2: http://www.skype.com/intl/pt<br />

271<br />

Chats, ligações telefônicas, videoconferências, envio de mensagens,<br />

compartilha arquivos.<br />

Figura 5: Skype


272<br />

Esta ferramenta possibilita reunir pessoas distantes geograficamente<br />

em um mesmo ambiente virtual. Assim, alunos de diversas<br />

cidades do país e mesmo do exterior podem se encontrar para debater<br />

um dado tema, trocar experiências, informações e curiosidades<br />

mútuas. O conteúdo pode ser gravado e impresso.<br />

3.7. Twiter<br />

Ex.: http://twitter.com/home<br />

Figura 6: Twitter<br />

Permite aos usuários o recebimento diário de mensagens contendo<br />

novidades do grupo ou pessoas “seguidas” por este meio.<br />

"A sua utilização como mídia educativa, pode despertar o interesse<br />

dos alunos no que diz respeito a interação e fácil assimilação<br />

do conteúdo.” (MARTINS; GOMES; SANTOS, 2009)


3.8. MUDs<br />

Ex.: http://www.topmudsites.com/<br />

Figura 7: MUDs<br />

273<br />

Sigla para "multi-user domain". Uma forma de software que<br />

roda em redes e permite a participação de muitos usuários na criação<br />

colaborativa e interativa. Utilizados também para fins educacionais,<br />

principalmente o desenvolvimento de habilidades com a língua escrita.<br />

Os MUDs são mundos imaginários nos quais os jogadores assumem<br />

o papel de uma personagem, e recebem informações textuais<br />

que descrevem salas, objetos, outras Os participantes entram em descrições<br />

textuais de lugares imaginários, de objetos e personagens robóticos,<br />

habitantes desses lugares que podem ser visitados. Ficam à<br />

espera da interação inscrita de outros visitantes. O programa junta<br />

todas as descrições e inscrições, criando um único ambiente que evolui<br />

continuamente. O interessante é que toda a interface de um MUD<br />

é textual, ou seja, não há figuras, nem gráficos, sons ou qualquer coisa<br />

semelhante na interação com o usuário.


3.9. Simulações<br />

274<br />

Cano (1998, p. 171) apresenta já nesta época uma definição<br />

para os programas de simulação como ferramentas utilizadas na educação<br />

que:<br />

...reproduzem na tela do computador, de forma artificial, fenômenos e<br />

leis naturais, oferecendo ao aluno um ambiente exploratório que lhe<br />

permite levar a cabo uma atividade de pesquisa, manipulando determinados<br />

parâmetros e comprovando as consequências do seu desempenho.<br />

Citaremos como exemplos apenas os dois simuladores mais<br />

utilizados para o estudo de idiomas:<br />

Ex.1: http://secondlife.com/?v=2.0<br />

Figura 8: Second Life<br />

Em 2007 o mundo virtual Second Life passou a ser usado<br />

como um meio de ensino de línguas estrangeiras. Educadores, tanto<br />

em Second Life quanto na vida real, começaram a usar o mundo virtual<br />

para ensinar. A língua espanhola e o Instituto Cervantes possuem<br />

uma ilha em Second Life. O inglês (como língua estrangeira)<br />

também ganhou presença através de várias escolas e cursos, como<br />

British Council. Em português, há um livro específico sobre o tema,<br />

Second Life e Web 2.0 na Educação: o potencial revolucionário das


275<br />

novas tecnologias, dos pelos professores Carlos Valente e João Mattar,<br />

publicado pela Novatec.<br />

A comunicação fomentada pelo SecondLife, através das ferramentas<br />

de chat, voice, mensagens privadas e gestos, permite lecionar remotamente,<br />

reunindo, num mesmo local, estudantes de diferentes países, o<br />

que se revela uma mais-valia indescritível para a percepção da multiculturalidade.<br />

(PITA, 2010).<br />

Por outro lado, este ambiente possibilita a resposta imediata<br />

aos problemas colocados pelo aluno, independentemente do local ou<br />

da hora, o que não é possível com as ferramentas assíncronas que se<br />

utilizam regularmente na educação. Embora muitos professores recorram<br />

a ferramentas síncronas, o Second Life tem a vantagem de<br />

permitir a demonstração dos conteúdos em tempo real.<br />

Ex.: 2: http://thesims2.br.ea.com<br />

Figura 9: The Sims<br />

A comunicação no universo The Sims se dá por meio da língua,<br />

cujos diálogos são inscritos em balões, por eles é possível nomear<br />

pessoas, objetos e situações, transmitir emoções e desejos. A<br />

simulação do mundo imaginário-virtual do The Sims torna possível a<br />

simulação da vida real porque de forma análoga no mundo virtual<br />

precisa se valer da memória, da cognição, da capacidade de saber o<br />

que se conhece (metacognição) e da compensação, processos presen-


276<br />

tes no ensino-aprendizagem da língua espanhola. Os jogos, neste caso,<br />

são um momento real de aprendizado.<br />

3.10. Lista de Discussão<br />

Ex.: http://br.groups.yahoo.com/group/espanholinstrumental<br />

Figura 10: Yahoo Grupos<br />

Possibilita compartilhar informações com quem desejar. O<br />

grupo dá aos participantes dele acesso instantâneo a arquivos de<br />

mensagens, fotos, agendas, enquetes e links.


3.11. Fórum<br />

Ex.: http://br.answers.yahoo.com<br />

Figura 10: Yahoo Respostas<br />

277<br />

Emissão e recepção se confundem permitindo que a mensagem<br />

circulada seja comentada por todos os sujeitos do processo de<br />

comunicação. A inteligência coletiva é alimentada pela conexão da<br />

própria comunidade de maneira colaborativa Os fóruns são importantes<br />

para dinamizar debates entre um ou mais grupos de trabalho.


3.12. Comunidades virtuais<br />

Ex.:<br />

http://www.peabirus.com.br/redes/form/comunidade?id=980#<br />

Figura 11: Comunidade Educação (SEM) distancia<br />

278<br />

Permite estabelecer relações com o uso da língua estudada,<br />

com um grupo que compartilha dos mesmos interesses. Sartori<br />

(2003) vai um pouco mais além ao perceber que:<br />

As comunidades virtuais de aprendizagem têm seu funcionamento<br />

ligado, num primeiro momento, às redes de conexões proporcionadas pelas<br />

tecnologias de informação e comunicação; num segundo momento,<br />

pela possibilidade de, neste espaço, pessoas com objetivos comuns, se<br />

encontrarem e estabelecerem relações. Através da ação a distância é possível<br />

o desenvolvimento de novas sociabilidades e subjetividades, tornando-se<br />

um espaço que materializa a comunicação, a cultura e a educação.


3.13. Blog<br />

Ex.: http://ntevaiaescola2008.blogspot.com<br />

Figura 12: Blog NTE vai á Escola<br />

279<br />

Comumente usado como ferramenta interativa, os blogs são<br />

página na Web que se pressupõe ser atualizada com grande frequência<br />

através da colocação de mensagens constituídas por imagens e/ou<br />

textos, normalmente de pequenas dimensões (muitas vezes incluindo<br />

links para sites de interesse e/ou comentários e pensamentos pessoais<br />

do autor) e apresentadas de forma cronológica, sendo as mensagens<br />

mais recentes normalmente apresentadas em primeiro lugar.<br />

A possibilidade de interação proporcionada pelos weblogs é<br />

complementar à função dos fóruns de discussão. Os blogs, entretanto,<br />

são mais úteis na organização da conversa se o objetivo for inserir<br />

novas informações e links (Cf. WISE, 2005).


3.14. Videolog ou Vlog<br />

Ex.1: http://www.videologtv.com<br />

3.15. Fotolog ou Flog<br />

Figura 13: Videologtv<br />

Ex.2: http://www.fotolog.net<br />

Figura 14: Fotolog<br />

280


281<br />

Como nos blogs, os flogs e vlogs permitem que sejam realizadas<br />

constantes atualizações nos mesmos, favorecendo o trabalho<br />

em projetos de pesquisa tanto pessoais, como acadêmicos. São de fácil<br />

criação e, unidos a um bom planejamento de aula, podem se tornar<br />

valiosas ferramentas de cooperação e interação entre os alunos.<br />

Moran (2007) observa que<br />

Os blogs, flogs (fotologs ou videologs) permitem a atualização constante<br />

da informação, pelo professor e pelos alunos, favorecem a construção<br />

de projetos e pesquisas individuais e em grupo, e a divulgação de<br />

trabalhos. Com a crescente utilização de imagens, sons e vídeos, os flogs<br />

têm tudo para explodir na educação e se integrarem com outras ferramentas<br />

tecnológicas de gestão pedagógica.<br />

3.16. Webquest<br />

A palavra webquest significa Pesquisa na Internet (OLIVEI-<br />

RA et alii, 2004, p. 132) e é um método de pesquisa virtual. O professor<br />

estipula uma tarefa para seus alunos e oferece as ferramentas<br />

(links de sites de pesquisa, previamente escolhidos pelo professor)<br />

para que eles mesmos busquem o conteúdo e atinjam um resultado,<br />

que será exposto de forma virtual (pelo computador) ou convencional<br />

(produção manual).<br />

Uma webquest é composta por:<br />

· Introdução: é o problema que deve ser resolvido. Nessa parte,<br />

cria-se uma pequena história que motiva os estudantes para<br />

resolverem tal problema, gerando curiosidade sobre os resultados;<br />

· Tarefa: é a forma como os resultados da pesquisa serão apresentados<br />

como conclusão da atividade;<br />

· Processo e fontes de informação: são as etapas que os estudantes<br />

deverão percorrer para realizar toda a atividade, assim<br />

como as fontes de consulta e os materiais que deverão utilizar<br />

em todo o processo;<br />

· Avaliação: contém os níveis de desempenho que serão usados<br />

pelos estudantes para que estes façam sua própria avaliação.


282<br />

Cada nível deve conter os erros e acertos a que se referem de<br />

acordo com o que o professor estipulou na tarefa;<br />

· Conclusão: é o fechamento da atividade, congratulando os estudantes<br />

pelo resultado obtido. Nesta parte também pode ser<br />

acrescentada alguma informação extra que seja interessante<br />

para os alunos consultarem mais tarde, independente da realização<br />

desta atividade; referências: nesta parte serão listadas as<br />

fontes utilizadas na pesquisa.<br />

3.17. Wiki<br />

Ex.: http://www.wikispaces.com<br />

Figura 15: Wikispaces<br />

Wiki é o termo utilizado para definir um site da web que contém<br />

páginas que podem ser editadas por qualquer visitante, a depender<br />

da sua configuração. Na prática é um sítio que pode ser editado<br />

diretamente a partir de um navegador como Internet Explorer ou<br />

qualquer outro.<br />

Como ferramenta pedagógica, pode ser utilizado para a publicação<br />

do trabalho coletivo de um grupo de alunos ao longo de um<br />

curso, pois a sua estrutura lógica é muito semelhante à de um blog,


283<br />

mas, com a funcionalidade acrescida de que qualquer um pode juntar,<br />

editar e apagar conteúdos ainda que estes tenham sido criados<br />

por outros autores. Os wikis também são utilizados como ferramentas<br />

na educação para facilitar a escrita colaborativa de resumos de livros,<br />

palestras que foram assistidas pelos alunos ou projetos que estão em<br />

desenvolvimento pelos mesmos.<br />

3.18. Podcast<br />

Ex. http://spanish-podcast.com<br />

Figura 16: Poscast em espanhol<br />

Podcast é um arquivo de áudio digital, geralmente em formato<br />

MP3 ou AAC (este último pode conter imagens estáticas e links),<br />

publicado através de podcasting na internet . O termo podcast foi criado<br />

em 2004 pela junção das palavras iPod (tocador de música da<br />

empresa Apple) e broadcasting (transmissão de rádio ou televisão).<br />

O Podcast nada mais é que um arquivo de áudio transmitido e<br />

acessado pela Internet onde qualquer pessoa poderá criar um episódio<br />

(sinônimo de Podcast) de acordo com os seus gostos e interesses.<br />

Existem duas formas de se trabalhar com os Podcasts em sala<br />

de aula, a passiva e a ativa.


284<br />

Forma passiva: os alunos irão visitar os sites que oferecem os<br />

episódios e eles apenas ouvirão o conteúdo. Os professores de idiomas<br />

podem usar os serviços de Podcasting nas salas de aula como<br />

uma fonte de material autêntico para as atividades auditivas.<br />

Forma ativa: eles podem de fato participar na construção de<br />

sua aprendizagem, criando os próprios áudios e os publicando posteriormente.<br />

3.19. Wikisaber<br />

Ex.: http://www.wikisaber.es<br />

Figura 17: Wikisaber<br />

Possui soluções multimídia e recursos interativos<br />

Esse projeto permite tanto apreender/aprender online quanto offline<br />

porque é possível baixar todos os conteúdos, simulações e atividades,<br />

que permitem avaliar a compreensão dos temas, narrações em áudio e<br />

material complementar no computador ou em dispositivos móveis, como<br />

telefones e PDAs [Assistentes Digitais Pessoais]. (EducaRede Colômbia,<br />

2008)


285<br />

Os conteúdos em Wikisaber mesclam unidades conceituais<br />

com apoios de autoavaliações, que permitem interação com conteúdos<br />

da página, além do envio de sugestões a um correio eletrônico<br />

para aprimorar as opções oferecidas pelo sistema. Quando necessário,<br />

os temas também são tratados com simuladores, dando a sensação<br />

de um processo de aprendizagem ao qual estamos acostumados<br />

(professor–aluno), com a opção de oferecer conceitos, análise dos<br />

temas e desenvolvimento mais amplo dos conteúdos. É uma ferramenta<br />

utilizada para trabalhar a língua de maneira interdisciplinar.<br />

3.20. Delicious<br />

Ex.: http://delicious.com<br />

Figura 18: Delicious<br />

Oferece um serviço on-line que permite adicionar e pesquisar<br />

bookmarks sobre qualquer assunto. Mais do que um mecanismo de<br />

buscas para encontrar o que quiser na web ele é uma ferramenta para<br />

arquivar e catalogar os sites selecionados para que possa acessá-los<br />

de qualquer lugar. Permite compartilhar seus bookmarks com os amigos<br />

e visualizar os favoritos públicos de vários membros da comunidade<br />

e realizar pesquisas sobre diversos assuntos. Além disso, o<br />

Delicious pode ser usado, por exemplo, para montar um corpus (já


286<br />

citado anteriormente) de textos autênticos de sites previamente selecionados<br />

pelo professor.<br />

3.21. Vantagens no uso das ferramentas disponíveis<br />

na web<br />

As novas ferramentas criadas dentro da Segunda Geração da<br />

Web, popularmente conhecida por Web 2.0, vêm ganhando a atenção<br />

dos professores de língua estrangeira. Todas as ferramentas da web<br />

2.0 como Blogs, Wikis, Podcastings, entre outros, não foram construídos<br />

para fins educacionais. Entretanto, devido às suas características<br />

colaborativas, os professores estão aproveitando esse potencial<br />

da para utilizarem esses recursos como ferramentas adicionais no ensino<br />

de língua estrangeira.<br />

Para os professores que têm acesso à banda larga e buscam<br />

inovações no ensino de línguas estrangeiras, o uso das ferramentas<br />

da web 2.0 é uma ótima alternativa. Essas ferramentas promovem<br />

um ambiente colaborativo onde professores e alunos podem trocar<br />

experiências e desenvolver atividades que envolvam as habilidades<br />

linguísticas essenciais no ensino-aprendizagem da língua estrangeira.<br />

As ferramentas apresentadas acima fazem parte de um vasto<br />

leque de oportunidades que a internet oferece ao professor de línguas.<br />

Com elas, professores poderão utilizar recursos de áudio, imagens,<br />

vídeos em uma única tarefa, proporcionando aos alunos uma<br />

participação mais ativa no processo de construção de sua aprendizagem.<br />

Segundo Valente e Mattar (2007), a web 2.0 ajudou no processo<br />

de criação do conteúdo dos sites criando uma “sociedade de autores<br />

”. O aluno assume outro papel na aprendizagem:<br />

... o aluno passa também a ser, além de leitor, autor e produtor de material<br />

didático, e inclusive editor e colaborador, para uma audiência que ultrapassa<br />

os limites da sala de aula, ou mesmo do ambiente de aprendizagem.<br />

A habilidade para acessar e publicar conteúdo com facilidade nos<br />

força a repensar o que esperamos de nossos alunos, e inclusive o que<br />

significa ensinar e aprender.<br />

Todas as ferramentas apresentadas abordam o ampliação das<br />

competências comunicativas, e o enriquecimento do léxico possibilitando<br />

alem disso atividades que: desenvolvam as comunicação e a


287<br />

pesquisas; potencializem as metodologias de ensino e aprendizagem;<br />

estimulem atividades colaborativas e individuais; reúnam pessoas<br />

distantes geograficamente em um mesmo ambiente virtual; favoreçam<br />

debates, troca de experiências e interação; ajudem na fácil assimilação<br />

do conteúdo; colaborem no aperfeiçoamento da linguagem<br />

escrita; permitam o contato com textos autênticos e atuais na língua<br />

de estudo; possibilitem uma relação direta com a língua (espanhola)<br />

falada, assim como o desenvolvimento da metacognição( capacidade<br />

de saber o que se conhece),do dinamismo nos debates e da capacidade<br />

de compartilhar das informações.<br />

4. Conclusão<br />

Pelo fato da língua espanhola ter semelhanças com o português<br />

algumas pessoas acreditam que não seja necessário estudá-la<br />

seriamente. Essas pessoas costumam fazer uma tentativa dramática<br />

na hora de se comunicar, geralmente através do que se costuma chamar<br />

de “portunhol”. Durante as observações que antecederam a este<br />

projeto percebemos alunos cometerem erros ao pensarem que tudo<br />

pode ser transformado em diminutivo (como no português se faz habitualmente)<br />

e que palavras com sons parecidos sejam, de fato, o que<br />

estão pensando ser.<br />

Para alegria dos que gostam da língua, a procura pelo ensino<br />

do espanhol cresce a cada dia e os cursos focam cada vez mais no<br />

desenvolvimento conversacional. A produção oral de estudantes de<br />

língua espanhola, conforme as observações realizadas e os diversos<br />

autores citados, se realiza mediante a cooperação entre os seus falantes<br />

e o uso de estratégias que possam garantir a interação. Em estágios<br />

de aquisição e aprendizagem de espanhol, observou-se que um<br />

dos recursos utilizados pelos alunos para obter sucesso nas situações<br />

de interação é o uso da internet, por sugestão ou não dos professores.<br />

Essas ferramentas são de grande valia no desenvolvimento dos alunos<br />

por (algumas) já fazerem parte do cotidiano dos alunos, por serem<br />

fáceis de acessar e possibilitarem o contato com falantes nativos<br />

e/ou outros grupos de estudantes.<br />

As ferramentas citadas neste trabalho são utilizadas pelos professores<br />

e alunos observados no estudo de caso para o desenvolvi-


288<br />

mento comunicativo da língua espanhola. Muitas delas, tornaram-se<br />

ferramentas pedagógicas por acaso e outras não foram listadas como<br />

exemplo por não desenvolverem na prática do ensino de E/LE a função<br />

comunicativa da maneira idealizada pelos educadores no contexto<br />

educacional, ou por apresentarem difícil acesso aos alunos.<br />

Com o resultado deste trabalho pretende-se não só divulgar a<br />

internet como ferramenta no ensino de espanhol, mas auxiliar a escolha<br />

entre os recursos disponíveis na web, que melhor se adapte aos<br />

estudos e ao desenvolvimento de estratégias que contribuam para<br />

que os alunos tenham uma maior competência linguística e conversacional.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AGUIRRE, J. M. Sistemas de gestión y producción editoriales en línea<br />

y sus aplicaciones en el ámbito universitario, In Actas del II<br />

Congreso Nacional de Usuarios de Internet e Infovía, Madrid: Asociación<br />

de Usuarios de Internet, 1997, p. 259-265.<br />

BRASIL; Lei de Diretrizes e Bases. Ministério da Educação e do<br />

Desporto. Brasília: MEC, 1996.<br />

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Estrangeira.<br />

Ministério da Educação e do Desporto. Brasília: MEC, 1996.<br />

EDUCAREDE Colômbia. Skoool, uma ferramenta com soluções<br />

multimídia e recursos interativos, 2008. Disponível em:<br />

. Acesso em: 4 abr. 2010<br />

ENCICLOPÉDIA DAS LÍNGUAS NO BRASIL. Espanhol no Brasil.<br />

Disponível em:<br />

. Acesso em: 11 mar. 2010.<br />

HILGERT, J. G. A construção do texto ‘falado’ por escrito: a conversação<br />

na Internet. In: PRETI, Dino (Org.). Fala e escrita em<br />

questão. São Paulo: Humanitas, 2000, p. 17-55.


289<br />

GOETTENAUER, E. Espanhol: Língua de Encontros. In: SEDYCI-<br />

AS, J. (Org.). O ensino do espanhol no Brasil. São Paulo: Parábola,<br />

2005, p. 61-70.<br />

HUMBLÉ, P. R. M.. O uso de corpora no ensino de línguas. Alguns<br />

exemplos do português e do espanhol. In: Linguística e ensino: Novas<br />

tecnologias. Loni Grimm Cabral e Pedro de Souza (Eds.). Blumenau:<br />

Nova Letra, 2001, p. 157-180.<br />

MATTAR, J.; VALENTE, C.. Second Life e Web 2.0 na educação: o<br />

potencial revolucionário das novas tecnologias. São Paulo: Novatec,<br />

2007.<br />

MORRONE, C. S. Português-espanhol: aspectos comparativos. São<br />

Paulo. Editora do Brasil, 1990.<br />

MARTINS, Eros Augusto Asturiano; GOMES, Iara de Oliveira;<br />

SANTOS, Leandro César Moreira. O twitter como ferramenta no ensino<br />

e atuação de profissionais de publicidade e propaganda. Disponível<br />

em:<br />

. Acesso em: 03 abr. 2010.<br />

MORÁN, J. M. Como utilizar as tecnologias na escola? In: A educação<br />

que desejamos: Novos desafios e como chegar lá. Campinas:<br />

Papirus, 2007, p. 101-111.<br />

OLIVEIRA, C. Couto de; COSTA, J. W. da; MOREIRA, M. Ambientes<br />

informatizados de aprendizagem. In: COSTA, José Wilson da;<br />

OLIVEIRA, Maria Auxiliadora Monteiro (Org.). Novas linguagens e<br />

novas tecnologias: Educação e sociabilidade. Petrópolis: Vozes,<br />

2004. p. 111-138.<br />

PITA, S. T. de Oliveira. As Interacções no Second Life: a comunicação<br />

entre avatares. Disponível em:<br />

. Acesso: 3 mar. 2010.<br />

RICHMAN,S. H. A Comparative Study of Spanish and Portuguese.<br />

In: SEDYCIAS, J. (Org.). O ensino do espanhol no Brasil. São Paulo:<br />

Parábola, 2005, p. 54-60.


290<br />

ROCA, O. A autoformação e a formação à distancia: as tecnologias<br />

da educação nos processos de aprendizagem. In: SANCHO, J. M.<br />

(Org.). Para uma tecnologia educacional. Porto Alegre: Artmed,<br />

1998, p. 182-207.<br />

RONA, J. P. La frontera linguística entre el Portugués y el Español<br />

en el norte del Uruguay. Porto Alegre: Véritas, PUC/RS, 1963, p.<br />

201-221. Disponível em: . Acesso<br />

em: 05 mar. 2010.<br />

RUIPÉREZ, G. M. Series y Tipos Documentales. Modelos de Análisis.<br />

In: Legajos. Cuadernos de Investigación Archivistica y Gestión<br />

Documental. Archivo Municipal de Priego. Córdoba, 1998, p. 853.<br />

SANTA, C. G.; KRAE, S. E. Analisis y necessidades em la creación<br />

de uma página web para um curso de E/LE. In: Actas del Seminario<br />

de dificultades específicas de la enseãnza del español a lusohablantes.<br />

São Paulo: Consejería de Educación em Brasil, 2004, p. 75-88.<br />

SANTAELLA, L.; Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do<br />

leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 75-97.<br />

SARTORI, A. S.; ROESLER, J. Comunidades virtuais de aprendizagem:<br />

espaços de desenvolvimento de sociabilidades, comunicação<br />

e cultura. In: II SIMPÓSIO E-AGOR@, PROFESSOR? PARA ON-<br />

DE VAMOS? COMFILPUC-SP/COGEAE 2003. Nov. 2003. Disponível<br />

em:<br />

. Acesso<br />

em: 18 mar. 2010.<br />

VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes,<br />

1987.<br />

WISE, L. Blogs contra los foros de discusión en línea de postgrado<br />

de educación médica continua. BlogTalk conference paper, Sydney,<br />

2005. Disponível em: .<br />

Acesso em 05 abr. 2010.


A LINGUAGEM ANÁRQUICA DE ROLAND BARTHES<br />

EM DOIS MOMENTOS:<br />

AULA E O GRAU ZERO DA ESCRITA<br />

1. Sobre linguagem e anarquismo: introdução<br />

Regina Céli Alves da Silva (UERJ)<br />

reginaceli@click21.com.br<br />

O sintagma de abertura do título deste trabalho, “a linguagem<br />

anárquica”, leva-nos, de imediato, a uma explicação a respeito do adjetivo<br />

que o compõe. Afinal, o termo comporta, como verificamos ao<br />

consultar os dicionários, pelo menos duas acepções: “aquilo que está<br />

sem governo ou autoridade; desordem consequente dessa ausência”<br />

(AULETE, 2007, p. 57). Quanto ao substantivo que lhe corresponde,<br />

anarquismo, encontramos: “teoria política que rejeita o governo e a<br />

autoridade do Estado” (Ibidem). Como o sentido que lhe atribuímos<br />

aqui está ligado a essa segunda opção, ou seja, à teoria política conhecida<br />

como anarquista, necessário será um esclarecimento mais<br />

amplo e aprofundado acerca desta.<br />

Para isso, contaremos com os apontamentos de George Woodcock,<br />

no estudo dedicado ao anarquismo, suas ideias e seus movimentos<br />

(1983). Logo no prólogo, devido mesmo à confusão existente<br />

em torno das palavras anarquismo, anarquista, anarquia, o autor se<br />

preocupa em esclarecê-las, de forma que aquele (des) entendimento<br />

generalizado, que liga o anarquismo à desordem, ao caos, seja desfeito.<br />

Assim, diz ele:<br />

Anarchos, a palavra grega original, significa apenas “sem governante”<br />

e assim, a palavra anarquia pode ser usada tanto para expressar a<br />

condição negativa de ausência de governo quanto a condição positiva de<br />

não haver governo por ser ele desnecessário à preservação da ordem.<br />

(WOODCOCK, 1983, p. 8)<br />

George W. menciona adiante um histórico dos termos, que<br />

não iremos desenvolver, mas que nos interessa, no trecho em que cita<br />

Proudhon, afirmando que este, em 1840, publicou um livro, O que<br />

é propriedade?, tornando-se “o primeiro homem a reclamar para si,<br />

voluntariamente, o título de anarquista”. (Ibidem, p. 9) Nessa obra, o<br />

francês entende que:


292<br />

Assim como o homem busca a justiça na igualdade, a sociedade procura<br />

a ordem na anarquia. Anarquia – a ausência de um senhor, de um<br />

soberano – tal é a forma de governo da qual nos aproximamos a cada dia.<br />

(Ibidem, p. 10)<br />

Ordem e anarquia, juntas, parecem esboçar uma contradição.<br />

Porém, apontam, segundo Woodcock, uma mudança de sentido por<br />

que passa os termos anarquismo, anarquia, pois, Proudhon,<br />

ao conceber uma lei de equilíbrio atuando no interior da sociedade, repudia<br />

a autoridade por considerá-la não como uma amiga da ordem, mas<br />

sua inimiga e, ao fazê-lo, devolve aos partidários do autoritarismo as acusações<br />

lançadas contra os anarquistas, ao mesmo tempo em que adota<br />

o título que espera tê-lo livrado do descrédito. (Ibidem, p. 10)<br />

As reflexões de Proudhon encontraram eco em muitos outros<br />

pensadores anarquistas, tais como, Bakunin e Kropotkin. E, apesar<br />

das variadas concepções acerca do assunto, da multiplicidade de, digamos,<br />

linhas, ou escolas, é possível rastrear, em todas, ideias em<br />

comum, que as une em torno de uma filosofia libertária, ou seja: a<br />

rejeição a toda autoridade, a toda forma de governo coercitiva, que<br />

prive o indivíduo de sua liberdade. E é também nesse sentido a abordagem<br />

que faremos dos escritos de Barthes em destaque no título<br />

desta análise.<br />

Para a empreendermos, iniciaremos com uma exposição de<br />

Aula (1992), seguida de O grau zero da escrita (1986). O que nos<br />

levou a escolher os dois textos tem a ver com o fato de este ter sido<br />

concebido no início do percurso reflexivo do autor e aquele, no (quase)<br />

arremate de tal percurso. A seguir, numa comparação entre os<br />

dois, apontaremos a relação em comum que mantêm com o ideário<br />

anarquista.<br />

2. Aula: reflexões sobre língua e poder, semiologia e seu ensino<br />

Escrito para ser apresentado em sua aula inaugural, quando<br />

tomou posse, no Colégio de França, em 1977, da cadeira de Semiologia,<br />

naquele momento inaugurada, o texto Aula retém momentos<br />

fundamentais da obra de Roland Barthes. De entrada, ele comenta a<br />

alegria que sente por estar ali; primeiramente, por poder reencontrar,<br />

na lembrança ou em presença, com autores que lhe são caros, entre<br />

eles: Michelet, Maurice Merleau-Ponty, Emile Benveniste, Michel


293<br />

Foucault. Depois, diz que a alegria se relaciona à sua entrada num<br />

lugar que está “fora do poder” (BARTHES, 1992, p. 8), enfatizando<br />

que o professor, lá, “não tem outra atividade senão a de pesquisar e<br />

de falar” (Ibidem, p. 8).<br />

A partir dessa fala inicial, o estudioso inicia a palestra, enfatizando<br />

a relação existente entre língua/linguagem e poder, observando,<br />

em princípio, que este não pode ser compreendido no singular,<br />

pois se apresenta nos múltiplos mecanismos das trocas sociais. Confiramos<br />

o que diz o palestrante:<br />

[...] chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e,<br />

por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe. Alguns esperam<br />

de nós, intelectuais, que nos agitemos a todo momento contra o Poder;<br />

mas nossa verdadeira guerra está alhures: ela é contra os poderes, e não é<br />

um combate fácil: pois, plural no espaço social, o poder é, simetricamente,<br />

perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece<br />

ali; nunca perece; façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente<br />

reviver, re-germinar no novo estado de coisas. A razão dessa resistência<br />

e dessa ubiquidade é que o poder é o parasita de um organismo<br />

trans-social, ligado à história inteira do homem, e não somente à sua história<br />

política, histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde<br />

toda eternidade humana, é: a linguagem – ou, para ser mais preciso, sua<br />

expressão obrigatória: a língua. A linguagem é uma legislação, a língua é<br />

seu código. (Ibidem, p. 11-2)<br />

Segue o autor afirmando que “a língua é fascista” (Ibidem, p.<br />

14), pois obriga a dizer. Assertiva e gregária, ela tanto expõe a dúvida,<br />

a possibilidade, a suspensão de julgamento quanto, pela necessidade<br />

de reconhecimento, repete-se, guardando estereótipos. Nela, o<br />

sujeito é, ao mesmo tempo, mestre e escravo. “Servidão e poder se<br />

confundem inelutavelmente” (Ibidem, p. 15). Na linguagem, o homem<br />

é prisioneiro; sua liberdade só pode ocorrer fora dela. Mas esta<br />

não tem exterior, é fechada. Advém daí a necessidade de uma trapaça.<br />

Tal trapaça, já desde a publicação de O Grau Zero da Escritura,<br />

de 1953, vinha delineada ao se ocupar da compreensão de escritura,<br />

reflexão fundamental dentro da sua obra. Já se pode vislumbrar<br />

o anúncio, nessas primeiras incursões barthesianas acerca da linguagem,<br />

de uma inclinação anarquista. O golpe primeiro ali desferido atingiria<br />

todo o seu percurso reflexivo, uma vez que a língua/linguagem,<br />

como alvo, sofreria, desde então, e sempre, deslocamentos,<br />

de forma que as repetições (donde seu caráter gregário) re-


294<br />

cebessem, continuamente, o abalo de outra visada. O aceno anarquista<br />

está, portanto, atrelado à firme e declarada intenção de golpear o<br />

centro, lá onde os sentidos se repetem, onde habita o estereótipo, e o<br />

poder se resguarda e se perpetua.<br />

Voltemos ao Aula, precisamente ao momento em que o mestre<br />

anuncia:<br />

Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite<br />

ouvir a língua fora de seu poder, no esplendor de uma revolução permanente<br />

da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura (Ibidem, p.<br />

16).<br />

Sobre a literatura, ele assinala que exercita a liberdade, na<br />

medida em que desloca, desvia a ordem da linguagem. Três forças de<br />

liberdade (entre outras) residem nela (na literatura), libertando, pelo<br />

deslocamento, o texto literário: a mathesis, a mimesis e a semiosis.<br />

Pela mathesis, “a literatura assume muitos saberes” (Ibidem,<br />

p. 18), fazendo-os girar e concedendo-lhes um lugar indireto, e nisso<br />

ela é realista. “Através da escritura o saber reflete incessantemente<br />

sobre o saber” (Ibidem, p. 19), dramatiza-se. No discurso da ciência,<br />

o saber se reproduz na ausência de um sujeito enunciador; no da literatura,<br />

um sujeito é ouvido, e “as palavras [...] são lançadas como<br />

projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz<br />

do saber uma festa” (Ibidem, p. 21).<br />

Na mimesis, o que ocorre é a representação do real, ou melhor,<br />

a tentativa de representação, pois sendo o real uma ordem pluridimensional<br />

e a linguagem unidimensional não é possível o paralelismo<br />

entre ambos. Nesse caso, a literatura é irrealista – “acredita<br />

sensato o desejo do impossível” (Ibidem, p. 23). Utópica, portanto. A<br />

utopia não freia o poder; a utopia da língua pode ser recuperada<br />

“como língua da utopia” (Ibidem, p. 25). Ao autor resta o deslocamento<br />

e/ou a teimosia. Deslocando, faz a ordem girar; teimando, resiste-se<br />

ao estereótipo, afirmando o “irredutível da literatura” (Ibidem,<br />

p. 26). Espia e movimento. Entrada no jogo, dramatização.<br />

A terceira força, semiosis, “consiste em jogar com os signos”<br />

(Ibidem, p. 28). Promove uma heteronímia. Barthes descreve como<br />

“cúmulos de artifício” (Ibidem, p. 33), estereótipos, são produzidos<br />

por uma sociedade e, a seguir, transformados em “cúmulos de natureza”<br />

(Ibidem, p. 33), sentidos inatos. Tal força está voltada para o


295<br />

texto, índice do despoder. Este conduz a palavra gregária para outro<br />

lugar, atópico, fora do centro, portanto, e “longe dos topoi da cultura<br />

politizada” (Ibidem, p. 35).<br />

Um anarquismo – considera-se a etimologia do termo – pode<br />

ser detectado nas observações expostas. E este, pela trapaça, é realizado<br />

no texto literário. Não em todos, mas naqueles nos quais os signos<br />

sofrem constantes deslocamentos, salvando os textos da possibilidade<br />

de configuração de sentidos únicos, do caráter gregário, isto é,<br />

da repetição e do estereótipo.<br />

A seguir, Barthes fala sobre a semiologia, a sua semiologia,<br />

“ao mesmo tempo negativa e ativa” (Ibidem, p. 36). Negativa, ou<br />

melhor, apofática: "Não porque ela negue o signo, mas porque nega<br />

que seja possível atribuir-lhe caracteres positivos, fixos, a-históricos,<br />

acorpóreos, em suma: científicos". (Ibidem, p. 36-8)<br />

Mantendo uma relação com a ciência, não como disciplina,<br />

ela, a semiologia, pode contribuir com as ciências, “propondo-lhes<br />

um protocolo operatório” (Ibidem, p. 38). Além, e já finalizando a<br />

palestra, Barthes sublinha o método e o ensino desse campo semiológico,<br />

que, sem se fixar, colabora com os saberes, mas não se firma<br />

como um saber.<br />

3. O Grau Zero da Escritura: da escrita clássica ao neutro<br />

Dividido em duas partes, o texto traz, na primeira, uma interrogação<br />

a respeito da escritura e uma explanação sobre as suas diversas<br />

formas: a política, a burguesa, a romanesca, a poética; na segunda,<br />

faz uma breve história da escritura, partindo do nascimento da<br />

“má consciência”, momento em que a escritura se torna possível, segundo<br />

sua visão, até a escritura de grau zero, neutra. Dessas duas etapas<br />

do livro, acolheremos a indagação acerca do que é a escritura e,<br />

depois, em brevíssimas palavras, sinalizaremos com a sua história.<br />

Quando da indagação sobre o que é a escritura, Barthes, inicialmente,<br />

divisa a língua e o estilo. Sobre aquela, afirma estar aquém<br />

da literatura, e este, quase além. Acompanhemos o autor:<br />

O horizonte da língua e a verticalidade do estilo desenham, portanto,<br />

para o escritor, uma natureza, pois ele não escolhe nenhum dos dois. A


296<br />

língua funciona como uma negatividade, o limite inicial do possível; o<br />

estilo é como uma Necessidade que vincula o humor do escritor à sua<br />

linguagem. Naquela, ele encontra a familiaridade da História; neste, a de<br />

seu próprio passado. [...] entre a língua e o estilo, há lugar para outra realidade<br />

formal: a escritura. [Esta] é um ato de solidariedade histórica. [...]<br />

é a linguagem literária transformada por sua destinação social, é a forma<br />

apreendida na sua intenção humana e ligada assim às grandes crises da<br />

História. (BARTHES, 1986, p. 123-4)<br />

Sendo um compromisso “entre uma liberdade e uma lembrança”<br />

(BARTHES, 1986, p. 125), a escritura é momento e duração. Seu<br />

aparecimento está atrelado à constituição de uma língua nacional,<br />

tornando-se “uma espécie de negatividade, um horizonte que separa<br />

o que é proibido do que é permitido, sem se interrogar mais acerca<br />

das origens ou das justificações desse tabu.” (Ibidem, p. 148)<br />

Assim, a escritura clássica francesa, consolidada depois da<br />

nacionalização da língua, de cunho universalizante, voltada para a<br />

tradição, “não provocava nunca repulsa pela sua hereditariedade,<br />

sendo apenas um cenário feliz sobre o qual se elevava o ato do pensamento”<br />

(Ibidem, p. 148). Por volta de 1850, esse panorama começou<br />

a mudar devido mesmo às interferências históricas, que provocaram<br />

o nascimento de um “Trágico da literatura” (Ibidem, p. 150).<br />

[...] a unidade ideológica da burguesia produziu uma escritura única<br />

e que nos tempos burgueses (isto é, clássicos e românticos), a forma não<br />

podia ser dilacerada, já que a consciência não o era; e que, pelo contrário,<br />

desde o momento em que o escritor deixou de ser uma testemunha<br />

do universal para tornar-se uma consciência infeliz (por volta de 1850),<br />

seu primeiro gesto foi escolher o engajamento da forma, seja assumindo,<br />

seja recusando a escritura de seu passado. A escritura clássica explodiu<br />

então e toda a Literatura, de Flaubert até hoje, tornou-se uma problemática<br />

da linguagem. (BARTHES, 1986, p. 118)<br />

Tal preocupação com a forma leva a literatura a ser considerada<br />

como um objeto e isso faz com que ela provoque, então, sentimentos<br />

“que estão ligados ao fundo de qualquer objeto: sentido do<br />

insólito, familiaridade, repugnância, complacência, uso, assassínio”<br />

(Ibidem, p. 118). Passando por vários estágios, de Flaubert a Mallarmé,<br />

a literatura encontra em Camus um estilo da ausência, “a escritura<br />

se reduz então a uma espécie de modo negativo no qual os caracteres<br />

sociais ou míticos de uma linguagem são abolidos em benefício<br />

de um estado neutro e inerte da forma” (Ibidem, p. 161).


297<br />

O último parágrafo de O Grau Zero da Escritura, no qual<br />

Barthes registra aquilo que, para ele, é característico nas modernas<br />

escrituras, aquelas mais próximas de nossa época atual, merece destaque:<br />

Existe, portanto, em toda escritura presente, uma dupla postulação:<br />

há o movimento de ruptura e o de um advento, há o próprio desenho de<br />

toda situação revolucionária, cuja ambiguidade fundamental é que a Revolução<br />

deve tirar daquilo que quer destruir a própria imagem do que<br />

quer possuir. Como a arte moderna na sua totalidade, a escritura literária<br />

traz consigo, ao mesmo tempo, a alienação da História e o sonho da História:<br />

como Necessidade, ela atesta o dilaceramento das linguagens, inseparável<br />

do dilaceramento das classes: como Liberdade, ela é a consciência<br />

desse dilaceramento e o próprio esforço para ultrapassá-lo. Sentindo-se<br />

constantemente culpada de sua própria solidão, ela não deixa de<br />

ser uma imaginação ávida de uma felicidade das palavras; precipita-se<br />

para uma linguagem sonhada cujo frescor, por uma espécie de antecipação<br />

ideal, representaria a perfeição de um novo mundo adâmico, em que<br />

a linguagem não mais seria alienada. A multiplicação das escrituras institui<br />

uma Literatura nova, na medida em que esta só inventa sua linguagem<br />

para ser um projeto: A Literatura torna-se a Utopia da linguagem.<br />

(Ibidem, p. 167)<br />

Se, nesse momento, o de O Grau Zero da Escritura, Barthes<br />

ainda mantinha, no desenvolvimento de suas propostas teóricas, um<br />

vínculo com o pensamento marxista, como bem pode ser flagrado no<br />

parágrafo acima, à frente, tal vínculo se torna tênue para, finalmente,<br />

ceder, dando lugar a um questionamento e uma produção que podem,<br />

seguramente, ser acolhidos dentro de uma perspectiva anárquica. A<br />

utopia, por exemplo, será preterida pela atopia, o “habitáculo em deriva”<br />

(BARTHES, 2003, p. 62), o esfacelamento do sentido, a pluralidade<br />

das diferenças, enfim, os deslocamentos.<br />

4. Aula e O Grau Zero da Escritura: lições de um anarquista<br />

Leila Perrone-Moisés, em artigo escrito para a edição especial<br />

da Revista Cult dedicada a Roland Barthes, em março de 2006, comenta:<br />

A teoria barthesiana é, portanto, uma teoria mutante, que evolui e se<br />

transforma ao longo dos anos. Por isso é impróprio chamar Barthes de<br />

crítico marxista sociológico ou de semiólogo, porque essas denominações<br />

corresponderiam apenas a determinadas fases de sua carreira. Embora<br />

sempre em transformação, o teórico Barthes conservou as lições das


298<br />

fases abandonadas. Mesmo sendo cada vez mais avesso ao dogmatismo<br />

marxista, a fundamentação principal de sua teoria será sempre ética e politicamente<br />

de esquerda. [...] Presenças constantes em seus textos, dos<br />

primeiros até os últimos, são as palavras “história” e “crítica”, que ele<br />

tentará, incansavelmente, aliar às palavras “corpo”, “desejo” e “prazer”<br />

(PERRONE-MOISÉS, 2006, p. 46)<br />

A essas presenças constantes citadas por Leila, acrescentamos<br />

aquela que, segundo nossa visão, transmite uma preocupação fundamental<br />

que atravessa toda a obra de Barthes: a liberdade, ou melhor,<br />

a sua falta. Sendo assim, os dois trabalhos aqui em foco, embora separados<br />

por um intervalo de vinte e cinco anos, se aproximam, na<br />

medida em que, em ambos, o aceno libertário está presente. Está lá<br />

em O Grau Zero da Escritura, ao expor a noção de escritura e fazer<br />

o elogio do grau zero, do neutro da escrita, e em Aula, palestra inteiramente<br />

dedicada à discussão em torno das relações entre língua e<br />

poder.<br />

A persistente busca da liberdade na língua, na linguagem, fez<br />

com que Barthes se voltasse para o estudo da literatura, observandoa<br />

como uma “trapaça salutar”, um “logro magnífico”, através do qual<br />

nos é permitido vislumbrar, ainda que aprisionados no fechamento<br />

linguístico, uma aragem libertária. Daí, a “história” e a “crítica” serem<br />

palavras recorrentes em suas obras, bem como o “corpo”, o “desejo”,<br />

o “prazer”. Todas elas signos do aprisionamento e da trapaça.<br />

Essa ênfase na liberdade, a mesma que o afastou, no dizer de<br />

Leila Perrone-Moisés, do dogmatismo marxista, mas não de uma<br />

postura politicamente de esquerda, é que caracteriza, segundo nossa<br />

visão, a obra de Barthes como anarquista, isto é, estreitamente vinculada<br />

aos princípios gerais e profundos que norteiam a chamada “filosofia<br />

libertária”. Para sustentar tal aferição, continuemos com as explicações<br />

de George Woodcock:<br />

Descrever a teoria essencial do anarquismo é um pouco como tentar<br />

lutar com Proteu, pois as próprias características da atitude libertária –<br />

rejeição ao dogma, a deliberada fuga dos sistemas teóricos rígidos e, acima<br />

de tudo, a ênfase que dá à total liberdade de escolha, à primazia do<br />

julgamento individual – cria imediatamente a possibilidade de uma imensa<br />

variedade de pontos de vista, inconcebíveis num sistema rigorosamente<br />

dogmático. Na verdade, o anarquismo é a um só tempo diversificado<br />

e inconstante [...]. Como doutrina, muda constantemente, como<br />

movimento, cresce e se desintegra, em permanente flutuação, mas jamais<br />

se acaba. Existe na Europa desde 1840 ininterruptamente, e por suas


299<br />

próprias características multiformes, conseguiu sobreviver onde muitos<br />

movimentos do século anterior, bem mais poderosos, mas com menor<br />

capacidade de adaptação, desapareceram totalmente. (WOODCOCK,<br />

1983, p. 15)<br />

Rejeição ao dogma, fuga a sistemas teóricos rígidos, ênfase<br />

na liberdade de escolha individual são três características essenciais<br />

ao pensamento anarquista, como nos mostra Woodcock. E não são<br />

elas também essenciais nos escritos de Barthes, nas ideias difundidas<br />

por ele em suas obras? Por mais que o estudioso se confessasse anarquista,<br />

apenas no sentido etimológico do termo, e avesso à militância,<br />

é possível afirmar que ele militou, em tudo o que escreveu, em<br />

favor do anarquismo, de forma profunda, podendo mesmo ser equiparado<br />

aos mais fervorosos defensores da causa, tais como: Proudhon,<br />

Kropotkin, Bakunin, Stirner, etc. Seus textos alimentam verdadeira<br />

propaganda das ideias anarquistas e, segundo aqueles que<br />

conviveram com Barthes, também em sua vida, em sua maneira de<br />

viver, a filosofia libertária se fez presente.<br />

A própria inconstância dos movimentos, a multiplicidade e as<br />

divergências encontradas nas diferentes linhas do pensamento anarquista<br />

são características presentes nas produções barthesianas. Afinal,<br />

deslocamentos, variações e mutações, anunciados por Woodcock<br />

em relação ao anarquismo, também são pontos fundamentais defendidos<br />

por Roland Barthes. Novamente, recorremos a Woodcock:<br />

Proudhon diverge dos verdadeiros anarquistas individualistas por<br />

considerar a história em seu aspecto social e, apesar de sua entusiástica<br />

defesa das liberdades individuais, pensa em termos de associação: “Para<br />

que eu possa permanecer livre, para que eu não esteja sujeito a nenhuma<br />

lei exceto aquelas que eu mesmo tenha criado e para que eu me governe,<br />

diz ele – é preciso reconstruir o edifício da sociedade, tendo como base a<br />

ideia do Contrato.” (Ibidem, p. 17)<br />

Sobre o contrato, podemos ler em um fragmento do Roland<br />

Barthes por Roland Barthes:<br />

Elogio ambíguo do contrato – A primeira imagem que ele tem do contrato<br />

é, em suma, objetiva: o signo, a língua, a narrativa, a sociedade funcionam<br />

por contrato, [...]. [Este] permite a regra de ouro de toda habitação,<br />

decifrada no corredor de Shikidai: “nenhum querer-agarrar e, no entanto,<br />

nenhuma oblação.” (BARTHES, 2003, p. 72-3)


300<br />

A reflexão a respeito do contrato, em ambos, Proudhon e Barthes,<br />

tem em comum a convivência social espontânea, de forma que<br />

o indivíduo, vivendo em livre associação, não se perca de si mesmo.<br />

Na verdade, a noção de contrato, tal como a desenvolvida por<br />

Rousseau, era rejeitada pela maior parte dos teóricos anarquistas.<br />

Bem como a noção de comunismo de Marx e, até mesmo, a ideia de<br />

utopia, na medida em que esta é “uma construção mental rígida que,<br />

se bem sucedida, demonstraria ser tão prejudicial ao livre desenvolvimento<br />

dos que lhe estivessem sujeitos quanto qualquer outro dos<br />

sistemas já existentes” (WOODCOCK, 1983, p. 20)<br />

Aquela ideia de utopia exposta no último parágrafo de O grau<br />

zero vem revista no Roland Barthes por Roland Barthes, no fragmento<br />

dedicado, especificamente, a esse tópico.<br />

Para que serve a utopia- [...] No grau zero, a utopia (política) tem a<br />

forma (ingênua?) de uma universalidade social, como se utopia só pudesse<br />

ser o contrário estrito do mal presente, como se, à divisão, só pudesse<br />

responder, mais tarde, a indivisão; mas desde então, embora vaga e<br />

cheia de dificuldades, uma filosofia pluralista vem à luz: hostil à massificação,<br />

voltada para a diferença, fourierista, em suma; a utopia (sempre<br />

mantida) consiste então em imaginar uma sociedade infinitamente parcelada,<br />

cuja divisão não fosse mais social e, portanto, não fosse mais conflituosa.<br />

(BARTHES, 2003, p. 91)<br />

Barthes cita Fourier, do qual, certas ideias, principalmente essa<br />

sobre a utopia, foram incorporadas pelo ideário anárquico. A reflexão<br />

fourierista sobre como fazer com que os homens trabalhem<br />

por amor e não apenas por dinheiro penetrou nas discussões anarquistas<br />

e nas perquirições barthesianas. Na obra acima citada, o escritor,<br />

no fragmento “Uma sociedade de emissores”, afirma que “o<br />

gozo de escrever, de produzir, assalta de todos os lados; mas como o<br />

circuito é comercial, a produção livre continua estrangulada, [...]”<br />

(BARTHES, 2003, p. 94). A seguir, menciona a “cena utópica de<br />

uma sociedade livre (onde o gozo circularia sem passar pelo dinheiro),<br />

[...]” (Ibidem, p. 94). Assim, o trabalho por prazer, por amor (este<br />

também requisitado por Barthes), e não como simples parte de um<br />

contrato comercial, também encontra eco nas considerações propostas<br />

por Roland Barthes.<br />

Para finalizarmos nossas considerações tecidas em torno dos<br />

textos de Barthes em diálogo com as concepções construídas pelos


301<br />

adeptos da filosofia libertária, assinalamos que, em Barthes, todos os<br />

questionamentos estão voltados para aquilo que ele destacou na sua<br />

aula inaugural: a relação entre a língua e o poder. Assim, inúmeros<br />

tópicos que movimentam a propaganda e a ação anarquista são tratados,<br />

pelo pensador francês, como construções da linguagem e nesse<br />

sentido devem ser analisados.<br />

5. Língua, linguagem, escritura e poder: epílogo<br />

Enfim, pensamos que os trechos recolhidos nos textos de Barthes,<br />

postos ao lado das anotações de Woodcock, possam dar uma<br />

noção do que requisitamos no título deste trabalho: a relação profunda<br />

existente entre as ponderações barthesianas e as concepções mais<br />

caras e fundamentais ao pensamento anárquico. Tal relação pode ser<br />

verificada tanto nas indagações do mestre francês quanto na construção<br />

destas.<br />

Em Aula, e também já em O Grau Zero da Escritura, bem<br />

como em Roland Barthes por Roland Barthes, e todos os outros estudos<br />

produzidos por Barthes, no entremeio dessas obras, as compreensões<br />

veem embaladas (toma-se a palavra em seu sentido duplo) pela<br />

permanente e recorrente noção de escolha, de liberdade, ainda que<br />

esta apenas de viés, como trapaça ou logro, possa ser vislumbrada.<br />

De qualquer forma, estarão lá: a rejeição ao dogma, aos sistemas<br />

teóricos fixos e rígidos e a ênfase na liberdade do indivíduo. E,<br />

se, em O Grau Zero da Escritura, apareciam em rascunho, como tênue<br />

fio d’água correndo em direção ao mar, ao longo do tempo, foram<br />

ganhando força, encorpando-se, virando caudaloso rio, que pode<br />

ser navegado em Aula, no Roland Barthes por Roland Barthes e em<br />

outros escritos.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AULETE, Caldas. Dicionário Caldas Aulete da língua portuguesa.<br />

Rio de Janeiro: Lexikon, 2007.<br />

BARTHES, Roland. Aula. 6. ed. Trad. Leila Perrone-Moisés. São<br />

Paulo: Cultrix, 1992.


302<br />

______. O grau zero da escritura. 3. ed. Trad. Heloysa de Lima<br />

Dantas e Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo: Cultrix,<br />

1986.<br />

______. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leila Perrone-<br />

Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.<br />

PERRONE-MOISÉS, Leila. Roland Barthes e o prazer da palavra.<br />

Revista Cult. Edição especial. São Paulo, n.100, p. 42-6, mar. 2006.<br />

WOODCOCK, George. Anarquismo. Uma história das ideias e movimentos.<br />

Trad. Júlia Tettamanzy. Porto Alegre: L&PM, 1983.


A LINGUÍSTICA E O ENSINO DO PORTUGUÊS:<br />

INSTRUMENTOS PARA PROFESSORES<br />

DA EDUCAÇÃO BÁSICA<br />

1. Introdução<br />

Patrícia Ribeiro de Andrade (UNEB) 1<br />

patricia_campus5@yahoo.com.br<br />

Há décadas, a linguística consta dos currículos dos cursos de<br />

Letras em universidades brasileiras e, à medida que se desenvolve,<br />

tem tornado possível a realização de muitas pesquisas voltadas para<br />

o ensino de língua materna, na educação básica. Porém, os resultados<br />

desse crescimento ainda são pouco notados na formação dos estudantes,<br />

haja vista as contínuas críticas, vindas de vários segmentos<br />

da sociedade, as quais refletem um sentimento geral de que os alunos<br />

não sabem ler, não sabem escrever e nem falar (!). Quem trabalha na<br />

área de formação de professores consegue vivenciar de perto essa<br />

angústia e, certamente, a experimenta de forma intensificada por<br />

perceber que a universidade promove poucas mudanças na atuação<br />

do professor de português, que continua reproduzindo aquele velho<br />

ensino que não forma.<br />

Mesmo considerando que o insistente fracasso da educação<br />

brasileira não é função de eventos isolados, mas de uma confluência<br />

de razões, especialmente razões de ordem social, ainda assim, o aprendizado<br />

insatisfatório daquilo que se configura como objeto do<br />

ensino do português (leitura, produção de texto e análise linguística),<br />

figurará como um problema que se impõe reiteradamente aos estudiosos<br />

do assunto.<br />

O presente trabalho discute um projeto que visa a construção<br />

de ferramentas voltadas para a melhoria da qualidade do ensino do<br />

português. O projeto foi delineado a partir de hipóteses que se forma-<br />

1 Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde coordena o projeto<br />

de pesquisa “A fala dos estudantes da rede pública de ensino de Santo Antônio de Jesus-Ba”,<br />

vinculado ao Grupo de Pesquisa “"Múltiplas linguagens: estudo, ensino e formação docente"<br />

(Certificado pela Universidade do Estado da Bahia).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

304<br />

ram ao começarmos a perceber que há certa resistência à linguística,<br />

por parte dos professores da educação básica, embora estes não se<br />

furtem a reproduzir algumas partes do discurso dessa ciência que<br />

lhes parecem “politicamente corretas”.<br />

A primeira dessas hipóteses é a de que os professores que têm<br />

ainda a linguística como uma “ilustre desconhecida”, rejeitam-na, de<br />

forma categórica, em função de uma muito difundida crença de que<br />

ela prega que tudo que se fala e se escreve está correto, independentemente<br />

de contextos de uso. Sendo assim, qualquer tentativa de levar<br />

o conhecimento dessa ciência a tais professores vai necessariamente<br />

ter de passar por uma profunda desconstrução ideológica.<br />

A segunda hipótese considera que os professores que tiveram<br />

oportunidade de estudar linguística, principalmente as correntes ditas<br />

funcionalistas, que deram origem a um grande número de trabalhos<br />

destinados ao ensino de língua, embora tenham uma ideia diferente<br />

sobre a linguística, daquela que têm os professores mencionados anteriormente,<br />

não conseguem acionar o conhecimento adquirido por<br />

que é difícil estabelecer uma ponte entre o que aprenderam e o que a<br />

escola quer que ensinem.<br />

Entendemos que um salto neste sentido só acontecerá a partir<br />

do momento em que a oralidade fizer parte do programa da disciplina<br />

língua portuguesa, na educação básica, não porque esta deva ter<br />

primazia, mas porque, isto representaria uma mudança na compreensão<br />

do que seja língua e, por conseguinte, abriria as portas para um<br />

ensino que considere a gramática internalizada, como apontam Perini<br />

(2002) e Possenti (1997). Além disso, ampliaria o entendimento do<br />

que seja a menor unidade da língua, o texto, e que toda análise linguística<br />

deve ser contextualizada (KOCH, 1991; NEVES, 2003;<br />

ANTUNES, 2002).<br />

A terceira hipótese é a de que, a partir do conhecimento gerado<br />

pelo estudo de construções discursivas desses professores, será<br />

possível quebrar resistências que impedem mudanças no ensino e fazer<br />

proposições em função de um trabalho com língua materna, fortemente<br />

norteado pela linguística, trabalho este que levará a um aprendizado<br />

mais significativo, na formação inicial.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

305<br />

Tendo em vista o problema aqui levantado, discutiremos procedimentos<br />

que, acreditamos, podem vir a indicar respostas a este.<br />

Tais procedimentos envolvem a busca pelo conhecimento daquilo<br />

que os professores sabem e pensam sobre a linguística e, posteriormente,<br />

a realização de um trabalho junto a eles, tendo como suporte<br />

as diversas correntes da linguística, de forma a instrumentalizá-los<br />

pedagogicamente, para um trabalho mais adequado com o objeto de<br />

ensino do português.<br />

Com a realização do trabalho que ora apresentamos, pretendemos<br />

alcançar dois grandes objetivos: i) contribuir com os estudos<br />

voltados para a melhoria do ensino do português na educação básica;<br />

ii) propor um caminho para se estabelecer uma efetiva parceria de<br />

trabalho entre a universidade e escola básica, visando o aperfeiçoamento<br />

do aprendizado do português.<br />

E, relativamente às atividades a serem desenvolvidas, temos<br />

como objetivos específicos: i) interpretar as construções discursivas<br />

de professores da educação básica, sobre as contribuições da linguística<br />

para o ensino do português, à luz da análise do discurso; ii) construir<br />

métodos de abordagens do objeto do português, juntamente com<br />

professores da educação básica, tendo como suporte os Parâmetros<br />

Curriculares Nacionais para o ensino de língua materna, a Sociolinguística,<br />

linguística textual, análise do discurso, e as abordagens<br />

cognitivista e sociocognitivista dos processos de leitura e produção<br />

de texto.<br />

2. O que pensam, o que sabem os professores da educação básica<br />

sobre a linguística?<br />

Uma vez que o objetivo da pesquisa é, a princípio, conhecer o<br />

discurso do professor, cabe apresentar neste esboço alguns dos conceitos<br />

e categorias da análise do discurso que nortearão a realização<br />

do trabalho.<br />

A análise do discurso surge, conforme explana Mussalim<br />

(2001), na década de 1960, na França, fundamentada nas concepções<br />

políticas do linguista Jean Dubois e do filósofo Michel Pêcheux. A<br />

evolução dessa disciplina se faz na convergência de estudos de ordem<br />

política, encontrando respaldo científico na linguística estrutura-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

306<br />

lista da época, a exemplo da abordagem do filósofo Althusser, em<br />

Ideologia e aparelhos ideológicos do estado (1970):<br />

A linguística, então, aparece como um horizonte para o projeto althusseriano<br />

da seguinte maneira: como a ideologia deve ser estudada em<br />

sua materialidade, a linguagem se apresenta como o lugar privilegiado<br />

em que a ideologia se materializa. A linguagem se coloca para Althusser<br />

como uma via por meio da qual se pode depreender o funcionamento da<br />

ideologia. (MUSSALIM, 2001, p. 104).<br />

Na altura, as pesquisas eram feitas na perspectiva da linguística<br />

dita formal, em que a língua é analisada fora de seu contexto de<br />

uso, considerando-se apenas aspectos internos, exclusivamente estruturais.<br />

Atribui-se, então, à estrutura da língua toda responsabilidade<br />

pelo seu funcionamento. A língua é autônoma e funciona unicamente<br />

em consonância com seus dispositivos estruturais. Essa concepção<br />

de língua, amplamente aceita, até a segunda metade do século XX,<br />

possibilitou ao Estruturalismo manter uma hegemonia nos estudos da<br />

linguagem.<br />

Saussure é o pioneiro nessa busca pela unificação da linguística.<br />

É, pois, nesse intuito que esse linguista estabelece que a língua é<br />

um sistema autônomo, composto por elementos denominados signos.<br />

A partir da proposta saussuriana, a abordagem que se faz é da língua<br />

na sua imanência, o que propiciou a constituição de métodos próprios<br />

de investigação, e a elevação da linguística ao status de ciência.<br />

A língua, então, passa a ser vista apenas como estrutura, tendo como<br />

níveis de análise a fonética, fonologia, morfologia, sintaxe e semântica.<br />

Conforme Lucchesi (1998),<br />

Para Saussure o universo da linguagem, por seu caráter heterogêneo<br />

e plural seria incognoscível. Em contrapartida, a língua, dada a sua<br />

natureza unitária e homogênea, constituiria, para o linguista, o seu objeto<br />

de estudo por excelência. (LUCCHESI, 1998, p. 44),<br />

Tais formas de se explicar o fenômeno são pouco elucidativas<br />

no que se refere ao seu emprego enquanto prática social. Novamente<br />

considerando as palavras de Lucchesi: "Para dissociar a língua do<br />

seu existir concreto, é preciso separá-la também de sua história,<br />

ignorando o processo ininterrupto de transformações que é inerente à<br />

sua constituição". (LUCCHESI, 1998, p. 45).<br />

Assim, Michel Pêcheux, imprime outros rumos à nova ciência<br />

que surge:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

307<br />

É neste contexto que nasce o projeto da AD. Michel Pêcheux, apoiado<br />

numa formação filosófica, desenvolve um questionamento crítico sobre<br />

a linguística e, diferentemente de Dubois, não pensa a instituição da<br />

AD como um progresso natural permitido pela linguística, ou seja, não<br />

concebe que o estudo do discurso seja uma passagem natural da Lexicologia<br />

(estudo das palavras) para a análise do discurso. A instituição da<br />

AD, para Pêcheux, exige uma ruptura epistemológica, que coloca o estudo<br />

do discurso num outro terreno em que intervêm questões teóricas relativas<br />

à ideologia e ao sujeito. (MUSSALIM, 2001, p. 105).<br />

No Brasil, a análise do discurso é consolidada por Eni Orlandi,<br />

cuja obra é tomada como suporte para o embasamento da pesquisa<br />

que ora apresentamos.<br />

A contribuição que almejamos oferecer ao meio acadêmico é<br />

de ordem teórica, uma vez que buscaremos abordar o discurso do<br />

professor no que se refere à linguística. Constituímos esse objeto por<br />

entendermos que, quanto mais aprendermos sobre as “vozes” que<br />

conduzem a prática docente, mais aptos estaremos a ajudar, se é este<br />

o nosso desejo.<br />

É bastante corrente a prática de “observar” o professor e depois<br />

partir para a crítica ferrenha ao seu trabalho. Até quando falamos<br />

com eles, parece que fazemos com o intuito de confirmar aquilo<br />

o que já sabemos e assim ampliamos nosso poder de fogo contra a<br />

sua prática “ultrapassada”. E surgem as teorias e os métodos de trabalho<br />

com a ilusão de salvar o ensino.<br />

E por que isto não tem acontecido, compreendemos que os<br />

caminhos devem ser reconfigurados. Ao invés de observar este professor<br />

e apenas falar sem jamais escutá-lo, talvez seja pertinente ouvir,<br />

de verdade, o que eles também têm a dizer sobre nós, os “pensadores”<br />

de sua prática e de suas atribuições, na tentativa de, ao interpretá-los,<br />

possamos nos reinterpretar.<br />

Nas palavras de Orlandi, os dizeres funcionam como pistas<br />

para a construção do conhecimento.<br />

Os dizeres não são como dissemos, apenas mensagens a serem decodificadas.<br />

São efeitos de sentidos que são produzidos em condições<br />

determinadas e que estão de alguma forma presentes no modo como se<br />

diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem de apreender. São<br />

pistas que ele aprende a seguir para compreender os sentidos aí produzidos,<br />

pondo em relação o dizer com sua exterioridade, suas condições de<br />

produção. Esses sentidos têm a ver com o que é dito ali, mas também em


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

308<br />

outros lugares, assim como com o que não é dito, e com o que poderia<br />

ser dito e não foi. (ORLANDI, 2005, p. 30)<br />

Os “dizeres” do professor provavelmente devem começar a<br />

funcionar como ponto de partida para quaisquer outros discursos lhes<br />

avaliem.<br />

É na tentativa de explicitar o que está por trás da aparente resistência<br />

dos professores ao pensamento da linguística, no que concerne<br />

ao ensino de língua, que utilizaremos os métodos e as categorias<br />

propostas pela análise do discurso, registrando, para controle da<br />

pesquisa, as construções discursivas por eles produzidas.<br />

Os procedimentos analíticos da análise do discurso serão ferramenta<br />

de estudo para o trabalho, por se constituírem os recursos<br />

mais apropriados para se trazer à tona os implícitos do discurso sobre<br />

o qual repousa a manutenção de práticas pedagógicas que temos considerado<br />

ineficientes. Se o discurso “é efeito de sentidos entre locutores”<br />

(ORLANDI, 2005), há que se identificar tais efeitos, compreender<br />

como eles são apreendidos e a partir daí (re)construir.<br />

Sendo discurso o meio através do qual o homem se relaciona<br />

com o seu meio natural e social, e por intermédio deste os eventos da<br />

realidade sofrem deslocamentos ou ficam inalterados, então, o conhecimento<br />

profundo do discurso dos professores é condição necessária<br />

para conhecer seu pensamento e manter com este um diálogo<br />

que nos permita compreender e atuar na sua realidade, de modo a<br />

explicitar a ideologia que subjaz a defesa do ensino tradicional, trabalhando<br />

na perspectiva de sugerir visões outras sobre o instituído.<br />

Neste sentido, nos ocuparemos de identificar os contextos imediato<br />

e amplo, explicitando de que modo o contexto sóciohistórico<br />

vem determinando as condições de produção discursiva.<br />

Assumir essa posição significa percorrer os caminhos do interdiscurso<br />

que<br />

...consiste em considerar o que é dito em um discurso e o que é dito em<br />

outro, o que é dito de um modo e o que é dito de outro, procurando escutar<br />

o não dito naquilo que é dito, como uma presença de uma ausência<br />

necessária. (ORLANDI, 2005, p. 34).<br />

Na observância do “como” se dão as construções discursivas,<br />

a concepção de sujeito do discurso tem relevância fundamental. Este


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

309<br />

é um sujeito que deverá ser compreendido a partir da confluência de<br />

leituras que o considerem como o sujeito do inconsciente e da ideologia.<br />

Todo enunciado [...] é linguisticamente descritível como uma série<br />

de pontos de deriva possível oferecendo lugar à interpretação. Ele é sempre<br />

suscetível de ser/tornar-se outro. Esse lugar do outro enunciado é o<br />

lugar da interpretação, manifestação do inconsciente e da ideologia na<br />

produção dos sentidos e na constituição dos sujeitos. (ORLANDI, p. 59).<br />

Estes e outros dispositivos de análise serão acionados para<br />

tentarmos encontrar as respostas para o problema que ora inscrevemos.<br />

E, conforme dissemos anteriormente, interpretar o discurso do<br />

professor sobre a linguística é uma das etapas da pesquisa e esta é o<br />

cerne do projeto. Entretanto, é nosso objetivo também poder estabelecer<br />

com esse professor um trabalho de parceria, através do qual<br />

buscaremos auxiliá-lo no desenvolvimento de suas atividades com<br />

língua materna, ao tempo em que aprenderemos com ele a construir<br />

novos rumos para a formação de professores. Insere-se, então, a outra<br />

fase que denominamos etapa prática, a qual se guiará pelas propostas<br />

de ensino do português oferecidas por vertentes funcionalistas<br />

da linguística.<br />

3. Instrumentos para a educação básica<br />

O objeto do ensino de português na formação inicial é contemplado<br />

pelas atividades de leitura, escrita e análise linguística,<br />

como bem se sabe. A escola não deixa de cobrir essas atividades,<br />

mas as têm desenvolvido de forma assistemática e, por vezes, absolutamente<br />

contraproducente. Mas, não desejamos aqui manter o procedimento<br />

que critica ferozmente a forma como a escola conduz o<br />

desenvolvimento dessas habilidades pelo estudante. Queremos, sobretudo,<br />

apresentar um breve panorama do referencial teórico que<br />

embasa a fase prática da pesquisa.<br />

A proposta é trabalhar com professores de língua portuguesa,<br />

da educação básica, de escolas públicas, na cidade de Santo Antônio<br />

de Jesus-BA. Pretendemos constituir um corpus contendo o discurso<br />

de professores sobre o objeto do ensino do português e sobre o seu<br />

interesse pelas contribuições da linguística para o trabalho pedagógico.<br />

Nesse intuito, realizaremos, durante um semestre, encontros se-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

310<br />

manais para estudo e discussão dos Parâmetros Curriculares Nacionais<br />

para o ensino de língua materna, além do estudo de obras na linha<br />

da Sociolinguística, linguística textual, análise do discurso, cognitivista<br />

e sociocognitivista sobre os processos de leitura, produção<br />

de texto e análise linguística.<br />

Além de abordagens teóricas, em que buscaremos demonstrar<br />

a relevância desses postulados para o ensino, os encontros servirão<br />

para realizar o planejamento das aulas, bem como para organização<br />

de material didático. Ou seja, a função do trabalho com os professores<br />

é promover a ação/reflexão/ação, visando construir, junto com<br />

eles, uma concepção de língua e de ensino de língua que leve a procedimentos<br />

pedagógicos mais significativos. Tais ações refletem a<br />

hipótese levantada anteriormente de que os construtos teóricos por si<br />

e nem mesmo as propostas de ordem mais prática que sejam terão<br />

uma resposta, se não houver um trabalho de perto com os professores.<br />

Esta etapa prática do trabalho será fundamentada pelos estudos<br />

da “linguística aplicada” (em sentido mais amplo do que costumamos<br />

encontrar, a despeito do ensino de línguas estrangeiras), baseados<br />

na Sociolinguística, como as obras de Sírio Possenti (1997);<br />

Bagno (2001, 2002); Mattos e Silva (1997); Neves (2003), os quais<br />

chamam atenção para a importância do estudo da diversidade do português<br />

do Brasil, demonstrando como funcionam as variantes de uma<br />

regra variável e como o professor pode descrever os diversos registros,<br />

a fim de que o aluno compreenda a situacionalidade desse uso.<br />

O ensino de língua a partir de textos orais é outro ponto fundamental<br />

a ser trabalhado na etapa prática. Para isto, servirão de suporte<br />

teórico, os trabalhos de Antunes (2002); Geraldi (1997, 2001);<br />

Koch e Travaglia (1991); Marcuschi (2004); Kaufman e Rodríguez<br />

(1995). Esses estudos abordam tanto o funcionamento dos textos,<br />

bem como apresentam sugestões para trabalho com os mesmos, sua<br />

leitura e produção.<br />

A leitura e a produção de textos são competências amplamente<br />

estudadas na atualidade. O suporte teórico de tais competências<br />

serão abordados na etapa prática da pesquisa através das obras de<br />

Kaufman e Rodríguez (1995); Solé (1998); Geraldi (1997) Kleiman<br />

(1998); Alves (2001); Geraldi (1997); Brito (1997), em que, além de


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

311<br />

poder compreender os processos cognitivos envolvidos no aprendizado<br />

da leitura e da produção textual, será possível aprender como<br />

trabalhar a formação do gosto.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontros e interação. São<br />

Paulo: Parábola, 2002.<br />

ALVES, Rubem. Entre a ciência e a sapiência: os dilemas da educação.<br />

6. ed. São Paulo: Loyola, 2001.<br />

CASTILHO, Ataliba T. de. A língua falada no ensino do português.<br />

São Paulo: Contexto, 1998.<br />

BAGNO, Marcos (Org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola,<br />

2002.<br />

BAGNO, Marcos (Org.). Norma linguística. São Paulo: Loyola,<br />

2001.<br />

BAGNO, Marcos. Português ou brasileiro: um convite à pesquisa.<br />

São Paulo: Parábola, 2001.<br />

BRITTO, Luiz Percival Leme. Em terra de surdos-mudos: um estudo<br />

sobre as condições de produção de textos escolares. In: GERALDI,<br />

João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática,<br />

1997.<br />

GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula. São<br />

Paulo: Ática, 1997.<br />

FORTKAMP, Mailce Borges Mota; TOMITCH, Lêda Maria Braga.<br />

(orgs.) Aspectos da linguística aplicada. Florianópolis: Insular,<br />

2000.<br />

GARRIDO, Selma; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência.<br />

Cortez, 2004.<br />

GERALDI, João Wanderley; CITELLI, Beatriz (Org.). Aprender e<br />

ensinar com textos de alunos. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2001.<br />

GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula. São<br />

Paulo: Ática, 1997.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

312<br />

KLEIMAN, Angela B. Texto e leitor. Campinas: Pontes; UNI-<br />

CAMP, 1989.<br />

KOCH, Ingedore; TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. São<br />

Paulo: Contexto, 1991.<br />

KAUFMAN, Ana María; RODRÍGUEZ, María Helena. Escola, leitura<br />

e produção de textos. Trad. Inajara Rodrigues. Porto Alegre:<br />

Artmed, 1995.<br />

LUCCHESI, Dante. Sistema, mudança e linguagem. Lisboa: Colibri,<br />

1998.<br />

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de<br />

retextualização. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2004.<br />

MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Contradições no ensino de português:<br />

a língua que se fala X a língua que ensina. São Paulo: Contexto,<br />

1997.<br />

MUSSALIM, Fernanda. Análise do discurso. In: MUSSALIM, Fernanda;<br />

BENTES, Anna Christina. Introdução à linguística: domínios<br />

e fronteiras. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001.<br />

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos.<br />

6. ed. Campinas: [Pontes?], 2005.<br />

PARÂMETROS Curriculares Nacionais: ensino médio. Ministério da<br />

Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnologia. Brasília: Ministério<br />

da Educação, 1999.<br />

PERINI, Mário A. Sofrendo a gramática. 3. ed. São Paulo: Ática,<br />

2002.<br />

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola.<br />

Campinas: Mercado das Letras, 1997.<br />

NEVES. Maria Helena de Moura. Que gramática estudar na escola?<br />

Norma e uso na língua portuguesa. São Paulo: Contexto, 2003.<br />

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Trad. Cláudia Schilling.<br />

Porto Alegre: Artmed, 1998.


1. Primeiras palavras<br />

A MULTIPLICIDADE SEMÂNTICA<br />

DO VERBO ‘TER’ PLENO<br />

À LUZ DA SEMÂNTICA COGNITIVA<br />

Diogo Pinheiro (UFRJ)<br />

dorpinheiro@gmail.com<br />

Historicamente, a semântica lexical tem servido como arena<br />

de debates para visões muito diferentes, e em grande medida conflitantes,<br />

acerca de língua, linguagem e significado. De maneira um<br />

tanto esquemática, e inevitavelmente grosseira, é possível opor duas<br />

perspectivas. De um lado, as concepções formalistas se caracterizam,<br />

do ponto de vista filosófico-epistemológico, pela assunção de que o<br />

significado (ou pelo menos a parte linguisticamente relevante dele)<br />

está inerentemente associado à forma linguística. De outro lado, concepções<br />

(mais ou menos radicalmente) pragmáticas tendem a enxergar<br />

o sentido como o produto resultante de uma ação conjunta, vale<br />

dizer, uma negociação na qual interferem fatores os mais variados,<br />

como o conhecimento prévio dos interlocutores e determinações contextuais.<br />

Dada a dominância histórica da concepção formalista, é natural<br />

que maioria esmagadora dos estudos sobre a multiplicidade semântica<br />

– entendida como o fenômeno segundo o qual uma mesma<br />

forma se vincula a mais de um uso ou sentido – procure responder a<br />

questões do tipo “quantos significados tem uma determinada palavra?”.<br />

Essa maneira de formular a questão é, evidentemente, compatível<br />

com a ideia de que o léxico tem o formato de um repositório de<br />

formas ao lado das quais são enumerados os significados correspondentes.<br />

Essa visão não é, entretanto, a única possível. Como já se disse,<br />

outra possibilidade, que lentamente vem ganhando espaço nos últimos<br />

anos, muito em função dos sucessivos fracassos do projeto<br />

formalista no que tange à semântica lexical, é assumir que o significado<br />

de uma palavra é produto da interpretação – contingente e provisória<br />

em medida nada desprezível – do ouvinte ou leitor. No que


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

314<br />

diz respeito especificamente ao problema da multiplicidade semântica,<br />

essa nova perspectiva provoca, no mínimo, uma inovação metodológica<br />

considerável: a partir dela, a descrição dos múltiplos sentidos<br />

ou usos associados a uma forma deverá ser considerada um problema<br />

empírico, já que será necessário avaliar de que maneira o ouvinte<br />

constrói processualmente os significados. Dessa forma, a detecção<br />

dessa multiplicidade não poderá mais ser deixada a cargo,<br />

meramente, da introspecção do pesquisador.<br />

Embora tenha sido defendida pioneiramente por Sandra e Rice<br />

(1995), essa posição não tem encontrado terreno fértil no cenário<br />

dos estudos semânticos do português brasileiro – de agora em diante,<br />

PB (no que tange ao português europeu, seu êxito é um pouco mais<br />

significativo, mas ainda assim bastante limitado, ao menos do ponto<br />

de vista estritamente quantitativo). Neste trabalho, tais perspectivas<br />

filosóficas e metodológicas serão adotadas para a descrição da multiplicidade<br />

semântica do verbo ‘ter’ pleno do PB. Por ‘ter’ pleno, entendam-se<br />

os usos não modais e não auxiliares – o que exclui, portanto,<br />

casos como os seguintes:<br />

(1) Você tem que me ajudar!<br />

(2) Ele tem encontrado dificuldade para ser ouvido.<br />

Tudo isso significa, na prática, que este trabalho procurará dar<br />

conta da multiplicidade semântica do ‘ter’ pleno do PB a partir de<br />

uma abordagem eminentemente empírica. Com essa abordagem,<br />

procuramos avaliar – através de testes de julgamento semântico – a<br />

percepção semântica de 79 falantes nativos do português brasileiro<br />

acerca dos usos e sentidos do ‘ter’ pleno.<br />

Ademais, a fim de organizar e atribuir coerência aos resultados<br />

dos testes, recorreremos ao modelo de semântica lexical desenvolvido<br />

por Tuggy (1993; 2003). Fundamentado na gramática cognitiva<br />

(LANGACKER, 1987 e 1991), esse modelo permite representar,<br />

por meio de redes esquemáticas, o grau de proximidade semântica<br />

entre os diversos conceitos.


2. Quantos sentidos tem essa palavra?<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

315<br />

Determinar o número de sentidos de uma palavra equivale,<br />

tradicionalmente, a fazer uma escolha entre as categorias de polissemia<br />

e vagueza. Historicamente, o conceito de vagueza tem recebido<br />

acolhida calorosa nas semânticas de inspiração formalista (cf. SIL-<br />

VA, 2006). Um exemplo paradigmático desse tipo de abordagem é<br />

Viotti (2003). Debruçando-se sobre o ter pleno do PB, a autora conclui<br />

que se trata de um verbo “totalmente subespecificado” (p. 235),<br />

com estrutura de evento “em si vazia de conteúdo semântico” (p.<br />

238). Essa semântica inerentemente vaga seria, então, “especificada<br />

por composicionalidade, mais precisamente pela especificação de<br />

sua estrutura qualia pela estrutura qualia de outros constituintes” (p.<br />

238).<br />

Como lembra Taylor (2006), esse tipo de abordagem enfrenta<br />

um grande desafio: trata-se de obter uma formulação suficientemente<br />

geral para dar conta de todos os usos associados a uma palavra e suficientemente<br />

específica para não invadir o terreno conceptual de palavras<br />

semanticamente próximas. A alternativa contrária é aquela<br />

que tem sido perseguida pelos praticantes da Linguística Cognitiva<br />

(LC): privilegiar a polissemia, vale dizer, os usos concretos.<br />

Não tardou, contudo, para que essa abordagem fosse posta<br />

sob ataque. Para Sandra e Rice (1995), o modelo das redes radiais se<br />

ressente da ausência de um procedimento metodológico explícito capaz<br />

de conter a “proliferação descontrolada de distinções” (p. 91). O<br />

risco é o de que essa situação de “vagueza metodológica” (SAN-<br />

DRA; RICE, 1995, p. 90) conduza a uma “polissemia desenfreada”<br />

(CUYCKENS; ZAWADA, 2001). Um dos problemas causados por<br />

essa situação, e levantado inicialmente por Sandra e Rice (1995), diz<br />

respeito à realidade psicológica: como ter certeza de que o falante de<br />

fato armazena e/ou reconhece todas as representações conceptuais<br />

postuladas nas redes radiais?<br />

Essas questões recolocam, ao fim e ao cabo, o problema central<br />

do tratamento da multiplicidade semântica: como determinar o<br />

grau ótimo de generalidade/especificidade na descrição do significado<br />

de uma palavra? Em virtude dos problemas verificados tanto com<br />

a abordagem abstracionista quanto com a abordagem das redes radi-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

316<br />

ais, uma saída possível é representar tanto os significados mais gerais<br />

quanto as acepções específicas.<br />

Esta é a ideia por trás do modelo de Tuggy (1993, 2003). O<br />

autor assume que homonímia, polissemia e vagueza equivalem a<br />

pontos em um continuum de proximidade/afastamento semântico cujos<br />

extremos corresponderiam, de um lado, à situação na qual dois<br />

sentidos associados à mesma forma não guardam qualquer relação<br />

semântica (homonímia) e, de outro, à situação em que duas acepções<br />

são tomadas como mínimas variações contextuais de um único sentido<br />

(vagueza).<br />

A inovação fundamental de Tuggy, porém, consiste em abordar<br />

a multiplicidade semântica a partir da noção de rede esquemática<br />

(LANGACKER, 1987 e 1991). Na gramática cognitiva, esquema é o<br />

nome dado a tudo que há em comum entre duas ou mais estruturas<br />

cognitivas; tais estruturas, por sua vez, serão as elaborações do esquema.<br />

O insight crucial de Tuggy consiste na ideia de que os diferentes<br />

pontos do continuum resultam de uma alternância de foco:<br />

quanto maior o foco sobre o esquema, mais próximo se está do polo<br />

da vagueza; inversamente, quanto maior o foco sobre as elaborações,<br />

mais próximo se está do polo da homonímia. Eis como o autor representa<br />

essa ideia:<br />

C<br />

A B<br />

Estrutura<br />

fonológica<br />

A<br />

C<br />

B<br />

Estrutura<br />

fonológica<br />

A<br />

C<br />

B<br />

Figura 1: o continuum homonímia-polissemia-vagueza, segundo Tuggy (1993)<br />

A<br />

Estrutura<br />

fonológica<br />

C<br />

B<br />

A<br />

C<br />

Estrutura<br />

fonológica<br />

B<br />

Estrutura<br />

fonológica<br />

No diagrama acima, a letra C corresponde ao esquema, ao<br />

passo que A e B são suas elaborações. O extremo esquerdo, item a,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

317<br />

representa a homonímia absoluta; o extremo direito, item e, representa<br />

a vagueza absoluta. Da esquerda para a direita, a distância vertical<br />

entre C (de um lado) e A e B (de outro) vai se tornando menor,<br />

indicando a progressiva aproximação semântica entre as elaborações<br />

e seu esquema respectivo.<br />

Além da progressiva aproximação conceitual entre as elaborações<br />

e o esquema, indicada pela distância vertical entre eles, a passagem<br />

da homonímia para a vagueza também se reflete no grau de<br />

saliência dos conceitos envolvidos. Quanto mais próximo se está da<br />

homonímia, mais salientes são as elaborações, e menos saliente os<br />

esquemas. Inversamente, conforme encaminhamos em direção à vagueza,<br />

os esquemas se tornam progressivamente mais proeminentes,<br />

ao contrário das elaborações. Essas mudanças ficam visualmente<br />

marcadas no esquema por meio das linhas ao redor de cada box, que<br />

podem ser tracejadas (vagueza) ou cheias e, sendo cheias, podem aparecer<br />

mais ou menos espessas, atingindo a espessura máxima no<br />

extremo esquerdo da homonímia.<br />

Tipicamente, porém, uma mesma forma fonológica não exibe<br />

apenas duas acepções. É comum que inúmeros usos/sentidos se distribuam<br />

por diversos pontos do continuum, de maneira a compor<br />

uma ampla e intrincada rede esquemática. Tuggy (1993) ilustra essa<br />

situação por meio do verbo paint:<br />

Embora represente um avanço significativo no tratamento da<br />

multiplicidade semântica, a abordagem de Tuggy parece padecer da<br />

mesma dificuldade identificada por Sandra e Rice (1995) nos estudos<br />

baseados nas redes radiais: como ter certeza de que as representações<br />

propostas correspondem de fato ao conhecimento do falante?


Apply<br />

disinfectant to<br />

patient’s body<br />

Apply make<br />

up to face<br />

Apply color to<br />

surface<br />

Paint<br />

portrait<br />

Apply<br />

paint to<br />

surface<br />

Artistic<br />

paint<br />

Trompe<br />

L’oeil<br />

3. A testagem empírica<br />

Decorative<br />

paint<br />

Utilitarian<br />

paint<br />

Paint road<br />

stripes<br />

Paint trim<br />

Paint<br />

houses<br />

Paint<br />

interior<br />

walls<br />

Figura 2: rede esquemática de paint , segundo Tuggy (1993)<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

PAINT<br />

Cover large<br />

area with<br />

single color<br />

of paint<br />

318<br />

Paint<br />

exterior<br />

Para avaliar a distância semântica entre os sentidos do ter<br />

pleno, aplicamos um teste de percepção a 83 falantes nativos do português<br />

brasileiro, todos com idade entre 18 e 20 anos. O teste consistia<br />

em 100 pares de sentenças nos quais uma mesma forma fonológica<br />

era necessariamente repetida. Destes, 33 nos interessavam diretamente<br />

– aqueles em que o segmento repetido correspondia a alguma<br />

forma do verbo ter – e os demais foram acrescentados para fornecer<br />

um parâmetro de comparação e para servir como distratores.<br />

Cada par de sentenças vinha acompanhado de uma escala de 0<br />

a 4, na qual se deveria marcar o grau de proximidade semântica percebida<br />

entre as formas idênticas: o grau 0 correspondia a homonímia<br />

(nenhuma relação), ao passo que 4 correspondia a vagueza (as duas<br />

acepções são tão próximas que são tomadas como um único sentido,<br />

com pequenas variações contextuais).<br />

Nosso teste se inspira em experimento semelhante realizado<br />

por Silva (2006, cap. 6). Dos 83 testes, dois foram descartados por<br />

trazerem escalas marcadas duplamente, e dois foram descartados


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

319<br />

porque traziam uma escala em branco. A tabela abaixo mostra a pontuação<br />

média atribuída a cada par de acepções.<br />

ITEM SENTIDOS / USOS MÉDIA CATEGO-<br />

RIA<br />

1 Continência concreta / Locação concreta 2.4 Polissemia<br />

2 Continência concreta/Continência abstrata 2.5 Polissemia<br />

3 Continência concreta / Locação abstrata 2.2 Polissemia<br />

4 Continência abstrata / Locação abstrata 2.4 Polissemia<br />

5 Locação concreta / Locação abstrata 2.5 Polissemia<br />

6 Continência concreta / Relação interpessoal 1.6 Polissemia /<br />

homonímia<br />

7 Continência concreta / Ter algo à disposição 1.8 Polissemia /<br />

homonímia<br />

8 Continência concreta / Propriedade 1.7 Polissemia /<br />

homonímia<br />

9 Continência concreta / Apoiar, aderir 1.5 Polissemia /<br />

homonímia<br />

10 Propriedade / Relação interpessoal 1.5 Polissemia /<br />

homonímia<br />

11 Propriedade / Ter algo à disposição 1.5 Polissemia /<br />

homonímia<br />

12 Propriedade / Experiência 1.3 Polissemia /<br />

homonímia<br />

13 Propriedade / Apoiar, aderir 1.0 Polissemia /<br />

homonímia<br />

14 Propriedade / Ser presenciado 1.0 Polissemia /<br />

homonímia<br />

15 Ter algo à disposição / Apoiar, aderir 3.5 Polissemia /<br />

vagueza<br />

16 Ter algo à disposição / Relação interpessoal 4 Vagueza<br />

17 Ter algo à disposição / Ser presenciado 4 Vagueza<br />

18 Ter algo à disposição para uso / Experiência 3.8 Vagueza /<br />

polissemia<br />

19 Apoiar, aderir / Relação interpessoal 3.7 Vagueza /<br />

polissemia<br />

20 Apoiar, aderir / Experiência 3.9 Vagueza /<br />

polissemia<br />

21 Relação interpessoal / Ser presenciado 4 Vagueza<br />

22 Relação interpessoal / Experiência 4 Vagueza<br />

23 Apoiar, aderir / Posse-locação abstrata 3 Vagueza /<br />

polissemia<br />

24 Relação interpessoal/Posse-locação abstrata 3.2 Vagueza /<br />

polissemia<br />

25 Ter algo à disposição/Posse-locação abstrata 3.3 Vagueza /<br />

polissemia<br />

26 Propriedade/Posse-locação concreta 3.8 Vagueza /


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

320<br />

27 Posse-locação concreta/Posse-locação abs- 1.8<br />

polissemia<br />

Polissemia /<br />

trata<br />

homonímia<br />

28 Propriedade / Posse-locação abstrata 1.3 Polissemia /<br />

homonímia<br />

29 Continência concreta / Qualificativo 1 Polissemia /<br />

homonímia<br />

30 Propriedade / Qualificativo 0.5 Polissemia /<br />

homonímia<br />

31 Relação interpessoal / Qualificativo 1 Polissemia /<br />

homonímia<br />

32 Possessivo-locativo concreto / Qualificativo 0.5 Homonímia<br />

33 Possessivo-locativo abstrato / Qualificativo 1.5 Polissemia /<br />

homonímia<br />

Tabela 1: resultados do experimento de percepção das acepções do ter pleno<br />

Os resultados mostram que as diversas acepções do ter pleno<br />

se distribuem ao longo do continuum homonímia-polissemiavagueza.<br />

Eis o panorama geral. Na parte de cima da Figura 3 – que<br />

abrange continência concreta, continência abstrata, locação concreta<br />

e locação abstrata –, estamos no domínio da polissemia (conforme<br />

1 a 5 do Tabela 1). Abaixo e à direita, a maior parte dos usos irmanados<br />

sob o rótulo de continência metonímica aproxima-se da região<br />

da vagueza, conforme 15 a 26. A exceção fica por conta de propriedade,<br />

que se distancia dos usos ilustrados em 10 a 14. Finalmente,<br />

a acepção qualificativa tende a ser percebida como um uso homonímico<br />

em relação a diversos outros sentidos, com a média do grau<br />

de semelhança oscilando entre 0,5 e 1.8 (conforme 29 a 33).<br />

A partir desses resultados, construímos a seguinte rede:


Continência<br />

concreta<br />

Experiência<br />

Posse-locação<br />

abstrata<br />

Relação<br />

interpesso<br />

al<br />

Continência<br />

abstrata<br />

Ter algo à<br />

disposição<br />

Continência<br />

Locação<br />

concreta<br />

Ser<br />

presenciado<br />

Locação<br />

abstrata<br />

Apoio<br />

adesão<br />

Propriedade<br />

Estabelecer<br />

relação<br />

Posselocação<br />

abstrata<br />

Figura 3: rede esquemática do ter pleno no PB<br />

Posse-locação<br />

concreta<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

Ser dono<br />

321<br />

A linha mais forte indica o alto grau de saliência da acepção<br />

julgar/considerar. Esse sentido é percebido como muito distante da<br />

noção geral de continência, o que caracteriza, precisamente, a situação<br />

de (quase) homonímia refletida pelos índices 0.5, 1.0 e 1.8 nos<br />

itens 29 a 33 da Tabela 1.<br />

Por outro lado, as linhas tracejadas mostram o baixo grau de<br />

saliência das acepções experiência, relação interpessoal, ter algo à<br />

disposição, aderir/apoiar e manter, guardar abstratamente em relação<br />

ao conceito mais geral glosado como estabelecer relação, o que<br />

caracteriza a (quase) vagueza revelada pelos itens 15 a 25.<br />

Note-se também que a acepção ser proprietário se destaca<br />

desse grupo: embora fosse possível, em tese, incluí-la sob o rótulo<br />

genérico estabelecer relação, o falante, na prática, atribui a ela um<br />

nível especial de proeminência. A linha mais forte entre estabelecer<br />

relação e ser proprietário sinaliza a tendência à homonímia entre esses<br />

dois conceitos, como revelado pelos índices dos itens 10 a 14.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

322<br />

Por outro lado, a ideia geral glosada como ser proprietário<br />

parece mais saliente que suas elaborações – aquela expressa pelo<br />

verbo possuir (que não pressupõe qualquer informação acerca do<br />

armazenamento da coisa possuída) e o uso possessivo-locativo concreto,<br />

que parece acrescentar a ideia de armazenamento à noção de<br />

propriedade, aproximando-se do sentido de verbos como manter,<br />

guardar. Caracteriza-se, assim, uma tendência à vagueza, revelada<br />

pelo índice 3.8 em 26.<br />

Nos demais casos, em que não há linhas fortes nem tracejadas,<br />

verificam-se diferentes graus de polissemia (conforme os índices<br />

dos itens 1 a 5). As acepções continência concreta, continência<br />

abstrata, locação concreta e locação abstrata são percebidas como<br />

distintas, mas ainda suficientemente próximas para que o esquema<br />

geral – apreendido como continência – possa ser reconhecido (o que<br />

aponta para um nível intermediário de saliência).<br />

Dentre as acepções ligadas diretamente a continência, destoa<br />

bastante aquela glosada como estabelecer relação. Os índices de 6 a<br />

9 mostram que os usos ligados a ela situam-se, em relação a continência<br />

concreta, entre a polissemia e a homonímia. Essa tendência é<br />

sinalizada pela linha mais forte no box correspondente e pela posição<br />

relativa de continência no diagrama.<br />

4. Explicando a distância semântica percebida<br />

Se as diversas acepções do ter pleno distribuem-se ao longo<br />

do continuum homonímia-polissemia-vagueza, cabe indagar que fatores<br />

atuam para aumentar ou diminuir a distância semântica percebida.<br />

Cinco fatores nos pareceram relevantes:<br />

(1) o número de processos cognitivos necessários para conectar dois<br />

significados: quanto mais processos forem necessários para encadear<br />

dois sentidos, maior a tendência de afastamento entre eles;<br />

(2) a natureza dos processos cognitivos necessários para conectar<br />

dois significados: processos que alteram a configuração semântica<br />

(topologia) do cenário inicial tendem a produzir uma sensação de<br />

maior afastamento semântico;


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

323<br />

(3) a regularidade ou produtividade dos processos: quanto mais produtivo<br />

o processo, menor a sensação de afastamento gerada (como já<br />

observado por Silva, cap. 6);<br />

(4) a estrutura argumental da construção em que a palavra se insere:<br />

quanto mais dessemelhantes as construções, maior o afastamento<br />

semântico percebido;<br />

(5) o grau de proeminência cultural de cada conceito: quanto mais<br />

proeminente é o conceito, mais afastado ele se coloca em relação aos<br />

demais usos.<br />

Nos itens 1, 2 e 4 da Tabela 1, as acepções de cada par são<br />

separadas por apenas um processo – realinhamento em 1 e 4, metáfora<br />

em 2. Nesses casos, o índice se mantém entre 2.4 e 2.5. Já em 3,<br />

dois processos (realinhamento e metáfora) separam as acepções, o<br />

que provavelmente explica o aumento da distância semântica percebida.<br />

Analogamente, quando se compara a continência concreta<br />

com os usos da continência metonímica, nota-se um grau significativo<br />

de afastamento (conforme 6 a 9), que parece motivado pela existência<br />

de dois processos cognitivos: (metáfora e metonímia, conforme<br />

a Figura 3).<br />

A mesma lógica se aplica aos itens 15 a 25. Nesses casos, os<br />

pares não foram separados por nenhum processo cognitivo. O resultado<br />

é uma pontuação média bastante elevada (entre 3.5 e 4), caracterizando<br />

uma nítida tendência à vagueza.<br />

Além do número de processos conectando duas acepções, sua<br />

natureza também se mostra relevante. A metonímia parece produzir<br />

um afastamento semântico mais acentuado que a metáfora e o realinhamento.<br />

Tanto em 3 quanto em 6 a 9, há dois processos envolvidos.<br />

Contudo, no primeiro caso, em que estão presentes realinhamento<br />

e metáfora, a pontuação média foi 2.2, ao passo, que, no segundo,<br />

com metáfora e metonímia, a média oscilou entre 1.5 e 1.8. Atribuímos<br />

essa diferença ao fato de que apenas metonímia altera a topologia<br />

do cenário experiencial que sustenta a rede. Se o realinhamento e<br />

a metáfora preservam um locativo (como sujeito) e um objeto locado<br />

(como objeto direto), a substituição metonímica destrói essa configu-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

324<br />

ração, contribuindo, presumivelmente, para aumentar a sensação de<br />

afastamento semântico.<br />

Nos itens 10 a 14, o grau de semelhança semântica percebida<br />

é baixo a despeito da ausência de processos conectando as acepções.<br />

É possível que esse fenômeno reflita a proeminência alcançada pela<br />

noção de propriedade, sentida pelos falantes como o significado<br />

“verdadeiro” de ter. Pode-se entender que propriedade atua como o<br />

protótipo da categoria formada pelo conjunto de usos de ter – como<br />

já intuíra Langacker (1991, p. 171) em relação à categoria de Posse.<br />

Tudo indica, em suma, que o falante identifica dois blocos<br />

dentro da continência metonímica: de um lado, propriedade; de outro,<br />

os demais usos, que se colocam em oposição a propriedade. Esses<br />

usos são sentidos como próximos ou mesmo idênticos entre si, ao<br />

mesmo tempo em que todos estão significativamente afastados da<br />

noção de propriedade (com pontuação 1.0 ou 1.5).<br />

Outro indicador da prototipicidade de propriedade aparece<br />

em 26 a 28. A posse-locação concreta foi julgada mais próxima de<br />

propriedade do que da sua contraparte metafórica direta – a posselocação<br />

abstrata. Por ser prototípica, a noção de propriedade é aquela<br />

com a qual as outras acepções são comparadas e em relação à qual<br />

são avaliadas. Como a posse-locação concreta pressupõe a propriedade,<br />

o fenômeno se repete, com o surgimento de dois grupos claramente<br />

delimitados. De um lado, as acepções propriedade e possessivo-locativo<br />

concreto, com grau de proximidade semântica bastante<br />

elevado (média de 3.8); de outro lado, o uso possessivo-locativo abstrato,<br />

afastado dos outros dois.<br />

Por fim, a acepção qualificativa é a que mais se afasta dos<br />

demais usos de ter, de modo que os pares 29 a 33 são os que mais se<br />

aproximam do extremo esquerdo do continuum. Isso não pode ser atribuído<br />

apenas ao número e à natureza dos processos envolvidos, já<br />

que tanto a acepção qualificativa quanto a posse-locação abstrata<br />

resultam igualmente de quatro passos encadeados (Fig. 3).<br />

Mas há uma diferença: o uso possessivo-locativo abstrato resulta<br />

de uma metáfora ontológica (LAKOFF; JOHNSON, 1980),<br />

processo regular e produtivo; o uso qualificativo resulta de uma metáfora<br />

menos generalizada: ESTADOS SÃO LUGARES (LAKOFF;


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

325<br />

JOHNSON, 1980). Como já mostrou Silva (2006), processos produtivos<br />

produzem a percepção de aproximação semântica. Além disso,<br />

deve-se considerar que, entre a posse-locação concreta e a abstrata,<br />

a metáfora não produz uma nova construção gramatical, ao contrário<br />

do que ocorre no caso do uso qualificativo. A semântica da nova<br />

construção parece também influencia na percepção do significado de<br />

ter.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CUYCKENS, H.; ZAWADA, B. Polysemy in cognitive linguistics.<br />

Amsterdam: John Benjamins, 2001.<br />

LANGACKER, R. Foundations of cognitive grammar: theoretical<br />

prerequisites. Vol. 1. Stanford: University Press, 1987.<br />

______. Foundations of cognitive grammar: descriptive application.<br />

Vol 2. Stanford: University Press, 1991.<br />

SILVA, A. Soares da. O mundo dos sentidos em português. Coimbra:<br />

Almedina, 2006.<br />

TAYLOR, J. Polysemy and the lexicon. In: KRISTIANSEN, G.;<br />

ACHARD, M.; DIRVEN, R.; IBÁÑEZ, F. J. R. de M. (Eds.). Cognitive<br />

Linguistics: current applications and future perspectives. Berlin<br />

New York: Mouton de Gruyter, 2006.<br />

TUGGY, D. Ambiguity, polysemy and vagueness. Cognitive Linguistics<br />

4(3): 273-290, 1993.<br />

______. The Nawatl verb kisa: A case study in polysemy. In:<br />

CUYCKENS, H.; DIRVEN, R.; TAYLOR, J (Eds.). Cognitive Approaches<br />

to Lexical Semantics. Berlin New York: Mouton de Gruyter,<br />

2003.<br />

VIOTTI, E. C. A composicionalidade nas sentenças com o verbo ter.<br />

In: MÜLLER, A. L., NEGRÃO, E. V., FOLTRAN, M. J (Orgs.).<br />

Semântica formal. São Paulo: Contexto, 2003.


A PRODUÇÃO TEXTUAL<br />

SOB A PERSPECTIVA DA RETEXTUALIZAÇÃO<br />

EM UMA CLASSE DO ENSINO MÉDIO<br />

José Ricardo Carvalho (FUFSE)<br />

ricardocarvalho.ufs@hotmail.com<br />

As reflexões sobre a cultura oralizada e a cultura letrada vem<br />

sendo desenvolvidas e alimentadas por diversas áreas de saber. Uma<br />

das perguntas mais recorrentes que os pesquisadores fazem é de como<br />

se processa as mediações simbólicas do homem com o mundo<br />

por meio da oralidade e por meio da língua escrita. Estudos tradicionais<br />

propõem a visão dicotômica entre oralidade e escrita como se as<br />

duas atividades fossem totalmente distintas. Enquanto a oralidade é<br />

definida pela relação face a face, decorrente do planejamento simultâneo<br />

da fala entre os participantes de uma conversação; o discurso<br />

escrito é estabelecido por uma interação à distância, havendo maior<br />

tempo de elaboração do discurso e a possibilidade de reformulá-lo<br />

em seu processo de revisão. Estas diferenças, no entanto, não significam<br />

soberania de uma modalidade sobre a outra como uma série de<br />

pesquisas e preleções gramaticais defenderam. Para redimensionar<br />

estas ideias é preciso compreender mais sobre os elementos que dão<br />

sentido ao texto escrito e ao falado para assim avaliarmos o processo<br />

de interação entre as duas modalidades. No discurso falado encontramos<br />

dimensões emotivas que dão significação as palavras por um<br />

viés envolvente como afirma Reyzábal (1999).<br />

As emoções mais intensas e pessoais exigem os sons da voz: do suspiro<br />

ao murmúrio até o grito revelam uma explosão vocal do ser, uma<br />

maneira de respirar, até mesmo antes da palavra. Na realidade, qualquer<br />

um pode “trair-se” pela voz, dizer mais do que diz através do próprio<br />

discurso. Pela voz, e não pela escrita em geral, diferenciamos sexos, idades<br />

e estados de ânimo. A voz envolve o corpo, por isso se fala de “beber<br />

as palavras”, “engolir as palavras” etc. A voz sozinha seduz, como sucede<br />

com Circe ou com as sereias, acalma as crianças e os animais; existem<br />

vozes cálidas, ásperas, mecânicas, frias, doces, envolventes, agradáveis<br />

ao ouvido... Dentro do grupo social, a comunicação oral implica uma<br />

função exteriorizadora, autoafirmativa, pois permite a transmissão do<br />

discurso que a comunidade sustenta sobre si mesma, o que assegura sua<br />

continuidade. (REYZÁBAL, 1999, p. 22)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

327<br />

Como vemos, por meio da fala transmitimos muitas informações<br />

que ultrapassam o domínio do código verbal. Uma criança para<br />

aprender a falar, por exemplo, precisa interagir com falantes de sua<br />

língua materna para aos poucos incorporar o estilo entonacional, bem<br />

como aspectos os prosódicos da língua a serem internalizados. Junto<br />

a isto, a fala, em muitos momentos, vem acompanhada de movimentos<br />

que ajudam a significar as palavras no processo de interação verbal.<br />

O envolvimento da falação com a expressão corporal é tão forte<br />

que se amarrarmos as mãos de quem fala, enquanto se comunica,<br />

provavelmente, o sujeito não terá o mesmo desempenho discursivo.<br />

Os gestos, de alguma forma, acompanham e apoiam a organização e<br />

complementação de sentidos constitutivos do discurso. Sendo assim,<br />

os recursos do discurso oral ultrapassam a dinâmica do universo do<br />

sistema linguístico como previam antigos estudos sobre a dinâmica<br />

oral.<br />

Como vemos, o discurso falado se constitui de formas verbais<br />

e não verbais. Os elementos verbais, isto é, o léxico, a sintaxe, as gírias<br />

e mesmo marcadores conversacionais de uma língua, são acompanhados<br />

de traços suprassegmentais que orientam o sentido dos enunciados.<br />

São compreendidos neste processo, então, as mudanças<br />

de tom da voz e o próprio ritmo da fala com suas hesitações, ênfases,<br />

pausas e aceleração na produção de um discurso oral.<br />

Segundo Urbano (1999) para estudarmos a língua falada, precisamos<br />

antes de tudo considerar os recursos expressivos da língua<br />

no momento da enunciação. Um dos traços mais marcante é a entonação<br />

que liga a palavra e a experiência concreta do sujeito com o<br />

fato comunicado, esta, contudo, só se realiza a partir de um conjunto<br />

de variáveis que a torna expressiva. Sendo assim, o autor classifica<br />

os fatores expressivos da linguagem falada a ser considerado de acordo<br />

com a sua natureza:<br />

a) Elementos linguísticos e b) elementos não linguísticos ou paralinguísticos.<br />

Entre os primeiros incluem-se, de um lado, os verbais ou segmentais,<br />

e de outro, os prosódicos que, por sua vez, se subdividem em dois<br />

tipos: os suprassegmentais, como a entonação, a duração etc. e os cosegmentais,<br />

como a pausa, a ordem etc. Entre os não linguísticos ou paralinguísticos<br />

incluem-se os elementos cinésicos e os situacionais.”<br />

(URBANO, 1999, p. 122)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

328<br />

Para Urbano (1999) os elementos linguísticos verbais, oriundos<br />

das faculdades intelectuais, constituem-se em um processo heterogêneo<br />

associado a elementos afetivos que se marcam por traços<br />

suprassegmentais. Entre os procedimentos de linguísticos que se destacam<br />

na compreensão expressiva dos enunciados, encontramos a<br />

repetição, as gírias, os vocativos, o uso de prefixos e sufixos com valor<br />

afetivo, as metáforas, os eufemismo, as alusões à fala de outrem,<br />

bem como expressões de atenuação etc. Tais aspectos são compreendidos<br />

junto a elementos prosódicos suprassegmentais de caráter não<br />

verbal, como o tom da voz, a acentuação das palavras, a entonação e<br />

a duração de um dizer, seguido, então, de traços co-segmentais tais<br />

como a ordem, a pausa e os possíveis deslocamentos funcionam como<br />

organizadores e articuladores do discurso. Todos estes elementos<br />

envolvidos, quando seguidos por gestos e expressões fisionômicas<br />

dão particularidades ao discurso falado.<br />

Contudo, em Marcuschi (2007) vemos que a fala e a escrita<br />

são formas de representação verbal cognitiva e social constitutivas<br />

das práticas sociais, portanto a língua, elemento nuclear, não se<br />

comporta com simples fator de modelação de seus usos, mas sim dos<br />

usos que modelam a língua. Sendo assim, fala e escrita; oralidade e<br />

letramento são atividades complementares e não opostas, visto que<br />

compartilham de semelhanças e diferenças que interagem entre si em<br />

processo dinâmico histórico-cultural. A compreensão dos processos<br />

de letramento não deve partir de regras que descrevem o funcionamento<br />

do código escrito em si, mas das práticas sociodiscursivas em<br />

que a escrita e a fala estão inseridas. Desta maneira, a polarização<br />

entre fala e escrita não tem sentido no processo de ensino da língua<br />

materna, visto que as duas modalidades de uso da linguagem reservam<br />

mais semelhanças do que diferenças, pois se constituem do<br />

mesmo sistema linguístico, compartilhando de gêneros textuais que<br />

intercambiam procedimentos similares na estruturação do funcionamento<br />

discursivo.<br />

O ensino da língua materna: a relação oralidade e escrita<br />

A visão teórica de Marcuschi (2001) fornece indicações para<br />

o trabalho de produção textual sob a ótica da retextualização, considerado<br />

os diferentes gêneros textuais como fonte de estímulo para re-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

329<br />

fletir e agir sobre a linguagem. Em sua proposta Marcuschi (2001, p.<br />

48) prevê a passagem de uma ordem para outra (falada e escrita) pode<br />

ocorrer em diferentes níveis. “1. Fala à Escrita (entrevista oral<br />

à Entrevista impressa); 2. Fala à Fala (conferênciaà Tradução<br />

simultânea); 3. Escrita àFala (texto escritoàExposição oral); 4. Escrita<br />

àEscrita (texto escrito àResumo escrito)”. As operações mencionadas<br />

ocupam o território da retextualização, envolvendo mudanças<br />

tanto no nível do código como no processo de construção de sentido.<br />

Para trabalhar sobre este processo é preciso considerar um conjunto<br />

de atividades que o usuário da língua realizar a passagem de<br />

uma modalidade para outra ou de um gênero textual para outro.<br />

Quando se procura reproduzir um determinado enunciado, por meio<br />

de outro código, é necessário se voltar para a atividade de transcodificação.<br />

No caso do discurso falado para o escrito temos a conversão<br />

da linguagem sonora para a gráfica, considerando um conjunto de<br />

convenções.<br />

As mudanças operadas na transcrição devem ser de ordem a não interferir<br />

na natureza do discurso produzido do ponto de vista da linguagem<br />

e do conteúdo. Já no caso da retextualização, a interferência é maior<br />

e há mudanças mais sensíveis, em especial no caso da linguagem.<br />

(MARCUSCHI, 2001, p. 49)<br />

Para ilustramos o movimento as operações ocorridas na passagem<br />

de uma modalidade para outra relatamos uma experiência de<br />

retextualização com uma turma de Ensino Médio de uma escola<br />

localizada no município de Itabaiana-Sergipe. Descrevemos o<br />

trabalho de produção textual realizado, em sala de aula, a partir da<br />

exibição de um texto em linguagem cinematográfica, seguido do<br />

registro do discurso oral e escrito produzido por alunos de uma<br />

classe do 3º anos do Ensino Médio. Os dados obtidos revelam um<br />

conjunto de operações linguísticas e semióticas realizadas pelos<br />

alunos para transferir conhecimentos de uma linguagem para outra.<br />

Primeiramente, foi exibido para uma turma de alunos do Ensino<br />

Médio o filme “Pequenas histórias”, tendo como autor e diretor<br />

Helvécio Ratton. O longa-metragem é composto de quatro histórias<br />

que intitulamos da seguinte forma: “O casamento do pescador com a<br />

Iara”; “O coroinha e o encontro das almas”; “O encontro com Papai<br />

Noel” e “A história de Zé Burraldo”. A trama é costurada por uma


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

330<br />

velha senhora que narra pequenas histórias em uma varanda de acordo<br />

com os recursos da tradição oral.<br />

Depois da exibição em vídeo, foi realizada uma conversa com<br />

os alunos a respeito do filme. Explicitaram-se procedimentos desenvolvidos<br />

nas quatro narrativas, observando os traços de oralidade explorados<br />

na linguagem cinematográfica para tornar o filme atraente<br />

do ponto de vista discursivo. De acordo com os alunos, a história que<br />

mais chamou atenção foi “O casamento do pescador com a Iara”,<br />

pois nela havia a reunião de elementos cômicos e românticos em<br />

uma única história. Tal narrativa foi, então, escolhida para organização<br />

de atividades de retextualização.<br />

Alguns dias após e exibição do filme, foi pedido a seis alunos<br />

que recontassem a lenda oralmente, sendo gravada e posteriormente<br />

transcrita de acordo com indicações de Castilho (1989). Os dados<br />

transcritos foram devolvidos aos informantes para que lessem e retextualizassem<br />

o material. Apresentamos a seguir a comparação entre<br />

a transcrição oral e a versão escrita retextualizada pela aluna-A.<br />

Versão oral:<br />

(1) Sim... a história do Tibúcio ..foi assim, né?... é... é como vocês já<br />

ouviram... é... foi ...um...um homem... assim que ele ia pescar todos os<br />

dias...era o sustento que ele tinha... pra vida dele... morava sozinho numa<br />

casa próxima ao rio que ele ia pescar todos os dias ... só qui frequentemente<br />

ele não tava conseguindo nada... (ALUNA – A)<br />

No discurso oral, a aluna inicia a história com um marcador<br />

conversacional “sim” para recontar a história do filme. O fato de saber<br />

que os outros interlocutores compartilham do mesmo saber, ou<br />

seja, já tinham visto o filme, enuncia “como vocês já ouviram...”. Este<br />

é um traço típico da cultura oral, chamar atenção do leitor no primeiro<br />

instante, revelando que a história já é conhecida por aqueles<br />

que se encontram no local. Na cultura de tradição oral, o mesmo acontece,<br />

visto que os griots (contadores de história) quando rememoram<br />

as histórias antigas. A narradora, ao fazer a passagem para o texto<br />

escrito conserva o mesmo traço da cultura oral, como se tomasse o<br />

turno de uma conversa.<br />

Versão escrita:<br />

(1) Sim vou relatar a história de Tibúcio; Tibúcio era o homem pescador<br />

que sobrevivia da pesca era seu sustento, ele morava sozinho em casa


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

331<br />

próximo ao rio que ele todos dias estava lá, só que certo tempo ele não<br />

estava mais conseguindo pescar absolutamente nada. (ALUNA – A)<br />

Na segunda clausula, a informante segue os passos de uma<br />

narrativa escrita tradicional: “Tibúcio era o pescador...”. Contudo, utiliza<br />

do artigo definido para apresentar um personagem teoricamente<br />

desconhecido para os interlocutores. A aluna parte do princípio que<br />

todos os leitores de seu texto escrito compartilharam da experiência<br />

de assistir o filme, portanto não haveria necessidade marcar o sujeito<br />

com pronome indefinido “um” por ser já conhecido pelos interlocutores.<br />

Do ponto de vista do ensino, fica claro que é necessário explicitar<br />

aos alunos de produção textual a importância de reescrever uma<br />

narrativa considerando os leitores ausentes, portanto a organização<br />

das informações no discurso escrito precisam ser reconfiguradas de<br />

maneira distinta para o efeito bem-sucedido.<br />

A retextualização segue a marcha introdutória da narração<br />

com apresentação do cenário em que vivia a personagem, lançando-o<br />

para a situação de conflito. A seleção lexical é mantida, acrescentando<br />

novos elementos que condensam as ideias. Para produzir o efeito<br />

de passagem de tempo decorrido na narrativa, a informante opta pelo<br />

uso da expressão “aí” em diferentes momentos da versão oral.<br />

Versão oral<br />

(2) aí certo dia ele viu uma Sereia... aí... ela perguntou o que ele fazia<br />

lá... aí ele contou a história dele... aí ele dissi qui a certo tempo ele<br />

não tava pescando mais.. (3). aí foi quando ela mandou... assim... falou<br />

pra ele que ele... (ALUNA – A)<br />

Versão escrita<br />

(3) Um certo dia como era de costume ele estava lá, triste bem triste e<br />

dirrepente aparece uma sereia, ele ficou surpreso e até assustado,<br />

perguntou a ela o que faz aqui? E Ela respondeu sou uma sereia e<br />

pediu-lhe que ele contasse o que estava acontecendo ele foi se acalmando<br />

e começou a lhe contar. (ALUNA – A)<br />

Na passagem do discurso oral para o escrito, observamos o<br />

acréscimo de novas informações a fim de expressar sentimentos do<br />

personagem e a criação de suspense por meio da expressão “dirrepente”<br />

(de repente), traço típico da oralidade. Por outro lado, há supressão<br />

da expressão “aí” na versão escrita, sendo substituída por outras<br />

formulações que ajudam o texto progredir do ponto de vista de


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

332<br />

novas informações. Acrescentam-se, principalmente, verbos no pretérito<br />

que ajudam na evolução temporal da narrativa.<br />

Versão oral<br />

(7) aí os dois se casaram e foram pra casa dele... a casa dele ...se transformou<br />

porque não tinha nada... a geladeira cheia de alimento a casa<br />

toda arrumada, tal ... (8) aí depois de um certo tempo, ele foi se<br />

transformando ... assim...e ela fez... lembrei agora... ela fez um pedido<br />

a ele... que ele nunca fizesse, assim, ela sofrer... porque ... que<br />

ele nunca fizesse assim ela sofrer.... aí foi assim... ele foi se transformando,<br />

bebendo muito... esquecia dela ... ia pras farras com os<br />

amigos, bebia chagava em casa bebo, não dava atenção ..a ela... ficava<br />

irritado. (ALUNA – A)<br />

Versão escrita<br />

(7) Eles casaram ela foi para a casa dele, mas sim, antes ela tinha feito<br />

um pedido a ele, que ele nunca a fizesse chorar nem maltratasse a<br />

ela. (8) Mas com o passar do tempo ele foi se transformando e estava<br />

deixando a sua esposa de lado, não lhe dava mais atenção, chegava<br />

em casa embriagado ia dormir e ela não falava nada, ou seja, sofria<br />

calada. (ALUNA – A)<br />

Na versão falada, a narradora manifesta esquecimento de uma<br />

parte da história que no texto escrito não é apagado de todo. A expressão<br />

“lembrei” que corresponde uma hesitação do contador e não<br />

do narrador, é retomada pelo função do narrador quando enuncia “Eles<br />

casaram ela foi para a casa dele, mas sim, antes ela tinha feito um<br />

pedido a ele...”. No texto escrito, novamente temos uma condensação<br />

de ideias para gerar o clímax da história com a briga entre os personagens.<br />

Como vemos as atividades de retextualização ajudam organizar<br />

estratégias de adaptação de um texto em uma linguagem para outra.<br />

Para o processo de adaptação é preciso, então, levar em conta o<br />

novo contexto discursivo, considerando: o propósito da reescrita, o<br />

tipo de relação a ser estabelecida entre os interlocutores na atividade<br />

discursiva e organização tipológica na passagem de um gênero para<br />

outro. Com este trabalho é possível observar como os alunos podem<br />

estabelecer uma relação de paráfrase entre dois textos que exigem<br />

um trabalho de reformulação, considerando as especificidades da<br />

modalidade falada e da modalidade escrita.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

333<br />

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Mar-<br />

tins Fontes, 1992.<br />

BAKHTIN, M. M./ VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da<br />

linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência<br />

da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995.<br />

BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora?<br />

Sociolinguística & educação. São Paulo: Parábola, 2005.<br />

CASTILHO, A. T. Apresentação. In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH,<br />

I. G. V.. (Orgs.) Gramática do português culto falado no Brasil:<br />

construção do texto falado. Campinas: UNICAMP, 2006.<br />

DELL'ISOLA, Regina Lúcia Péret. Retextualização de gêneros escritos.<br />

Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de<br />

retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.<br />

REYZÁBAL, Maria Victoria. A comunicação oral e sua didática. –<br />

Bauru: EDUSC, 1999.<br />

SANTANA, Ana Paula. Escrita e afasia: o lugar da escrita na afasiologia.<br />

São Paulo: Plexus, 2002.<br />

THOMAS, Rosalind. Letramento e oralidade na Grécia antiga. São<br />

Paulo: Odysseus, 2005.<br />

URBANO, H. Marcadores conversacionais. In: PRETI, Dino. Análise<br />

de textos orais. São Paulo: FFLCHUSP, 1993.


A QUESTÃO DO MECENATO NA ANTIGUIDADE<br />

E NO RENASCIMENTO PORTUGUÊS<br />

Márcio Luiz Moitinha Ribeiro (UERJ)<br />

Havia na Grécia e Roma antigas como também em Portugal<br />

na época do Renascimento a divinização do imperador, este membro<br />

de uma família de sangue real era apontado “pelos deuses” para governar<br />

no mundo real dos homens. Leni Ribeiro Leite (2007) afirma<br />

no resumo de sua comunicação a respeito de Marcial e desta divinização:<br />

Marcial foi um dos escritores que buscava, segundo ele mesmo diz<br />

em sua obra, retratar o dia a dia da capital do Império. Nesta comunicação,<br />

procuraremos mostrar como a divinização do Imperador é um tema<br />

importante nos epigramas de Marcial, servindo ao duplo propósito de<br />

conquistar favores imperiais e sustentar o projeto geral de sua obra: corroborar<br />

a construção de uma sociedade que siga preceitos rígidos de adequação<br />

à moral.<br />

O fato é que, não só Marcial, Virgílio e Horácio em Roma,<br />

mas também Calímaco e Teócrito no período helenístico entre tantos<br />

outros poetas; e Henrique Caiado em Portugal escreveram 1 suas obras<br />

com duplo propósito: o de alcançar a benevolência e a amizade<br />

do rei para subsistência; e o de escrever para educar a sociedade. Vale<br />

lembrar que Calímaco iniciou a sua carreira como modesto professor<br />

em Elêusis, num subúrbio de Alexandria, entrementes ocupou<br />

posição de grande destaque na corte de Ptolomeu Filadelfo, onde<br />

prestou serviços para ele até aproximadamente o ano 235 a. C.,<br />

quando morreu (HIME, 1989), como nos aponta Hime Gonçalves<br />

Muniz em sua tese de doutorado.<br />

De Marcial queremos destacar o que Jean Bayet, (1965) no<br />

livro Littérature Latine, nos apresenta a respeito da vida sofrida do<br />

poeta acima referido:<br />

1 Calímaco e Henrique Caiado teciam encômios aos reis da época com dois escopos. Primeiramente,<br />

queriam fazer parte do círculo da amizade dos poetas ilustres e monarcas; e, depois,<br />

precisavam de patrocínio para a sobrevivência deles.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

335<br />

M. Valérius Martialis était venu de Bilbilis (en Espagne, dans la<br />

province de Tarraconaise) achever sés études à Rome. Il y resta, séduit<br />

par la variété des impressions que la grande ville offrait à sa vivacité<br />

naturelle, mais y menant, pour subsister, la vie dure et humiliante du<br />

flatteur et du quémandeur: il flagorna Domitien, fit sa cour aux mêmes<br />

riches protecteurs que Stace. Il finit par y gagner, avec beaucoup de<br />

dégoûts, une mince aisance; et, par ses Épigrammes, la célébrité 2 .<br />

Para Ettore Paratore (1983) Marcial tornou-se um cliens, um<br />

adulador do rei, que beirava a pobreza e a miséria, de todo o seu esforço<br />

como poeta só obteve um casebre e um pequeno terreno em<br />

Nomento:<br />

Afinal, o que lhe sucedeu foi a condenação ao ofício ingrato de cliens,<br />

que o consumiu durante trinta e cinco anos em fatigantes corridas de<br />

um palácio para outro, em adulações exageradas e vãs, que deviam ser<br />

particularmente repugnantes para o seu bom gosto de poeta, numa pobreza<br />

que raiava a miséria e que o extenuou e lhe pesou no espírito, tolhendo-lhe<br />

talvez os ímpetos mais genuínos. De tanto esforço, não conseguiu<br />

obter mais que uma casinha, privada de água, no Quirinal e um<br />

pequeno terreno de pouco valor, em Nomento.<br />

Virgílio, como todos nós sabemos, escreveu três obras monumentais:<br />

A Eneida, as Bucólicas e as Geórgicas (poema didático<br />

elaborado por solicitação de Mecenas). Nestas obras, há algumas alusões<br />

ao mecenato e às questões políticas da época.<br />

Na Eneida, Virgílio 3 faz algumas alusões ao “deus” Augusto.<br />

Este na verdade pede ao poeta mantuano que faça uma obra épica de<br />

encomenda, sendo assim o poeta tece elogios no texto épico ao seu<br />

governo em Roma. Diz Zélia Cardoso (1989):<br />

Ele já era bastante conhecido nos meios artísticos e intelectuais de<br />

Roma quando, por solicitação de Augusto, se dispôs, em 29 a. C., a encetar<br />

a empresa gigantesca de escrever uma epopeia grandiosa que pudesse<br />

ombrear-se com os poemas homéricos.<br />

2 “M. Valério Marcial tinha vindo de Bílbilis (na Espanha, na província de Tarraconense) para<br />

concluir seus estudos em Roma. Ele aí permaneceu, seduzido pela variedade de impressões<br />

que a grande cidade oferecia à sua vivacidade natural, porém, aí levou, para subsistir, a vida<br />

dura e humilhante de adulador e de pedinte: ele bajulou Domiciano, fez seu cortejo aos mesmos<br />

ricos protetores que Estácio. Ele terminou por aí ganhar, com muito desgosto, uma escassa<br />

comodidade; e por seus epigramas, a celebridade”.<br />

3 Sabemos que Virgílio foi deveras o épico latino por excelência, o poeta nacional do Império.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

336<br />

Um pouco mais abaixo, a professora doutora e titular da USP,<br />

Zelia de Almeida Cardoso (1989): também ressalta esta questão do<br />

mecenato e da obra épica de encomenda:<br />

Conhecendo suas qualidades e sabedor de que o poeta, como havia<br />

demonstrado nesses textos, se dispunha a funcionar como verdadeiro<br />

porta-voz da política imperial, Augusto o incumbiu dessa nova missão.<br />

Durante dez anos - de 29 a 19 a. C. -, Virgílio trabalhou na composição<br />

do novo poema, A Eneida (Aeneis). Não chegou, todavia, a dar-lhe o último<br />

polimento.<br />

Diz Zélia de Almeida Cardoso (1989): em seu livro Literatura<br />

latina, sobre a 1ª. Bucólica:<br />

Na primeira Bucólica – que, certamente, não é a primeira na ordem<br />

de composição – temos um diálogo entre dois pastores, Melibeu e Títiro.<br />

O primeiro, deixando as terras que lhe tinham sido confiscadas, queixase<br />

ao segundo. Este agradece ao “deus” que lhe permitira permanecer nas<br />

suas. Essa bucólica é frequentemente considerada uma espécie de alegoria:<br />

para muitos, Títiro é a projeção de Virgílio, que exalta Otávio por ter<br />

este autorizado a devolução de uma propriedade confiscada à família do<br />

poeta. Melibeu espoliado, entretanto, também pode representar Virgílio.<br />

Há outras alusões políticas como na IV bucólica, por exemplo,<br />

quando Virgílio a dedica ao cônsul Polião.<br />

Em Horácio 4 , em algumas passagens de seus poemas, também<br />

encontramos esta questão do mecenato e de elogios ao rei. Nas Odes,<br />

apresenta-se o Horácio que se coloca a serviço da política de Augusto.<br />

Vejamos por exemplo que no primeiro livro das Odes, há a seguinte<br />

passagem que assim traduzimos e que comprova o que acabamos<br />

de afirmar:<br />

Ó Mecenas, descendente de antigos reis não só meu amparo como<br />

também minha doce glória, existem homens aos quais agrada ter reunido<br />

o pó olímpico 5 no carro; e a baliza não tocada pelas ligeiras rodas 6 , e a<br />

nobre vitória os leva até aos Deuses senhores das terras.<br />

4 Horácio viveu na mesma época de Virgílio e tornou-se seu amigo pessoal. Sabemos que Horácio<br />

só começou a publicar as suas obras, depois de Virgílio apresentá-lo a Mecenas. Horácio<br />

escreveu um livro de Sátiras, os Epodos, quatro livro de Odes, dois livros de Epístolas e o<br />

Cântico Secular, conhecido em latim como Carmen saeculare. Há uma dissertação sobre este<br />

canto, defendida na UFRJ pelo saudoso docente da UERJ, José de Oliveira Magalhães.<br />

5 Diz respeito ao pó dos jogos olímpicos.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

337<br />

Este se a turba dos inconstantes Romanos procura elevar as três<br />

grandes honras 7 ; (...)<br />

Referimo-nos ao Carmen saeculare numa nota acadêmica.<br />

Esta obra foi composta também com o escopo de encomenda pelos<br />

poderes públicos para ser cantado por ocasião dos jogos seculares,<br />

realizados por Augusto em 17 a. C.<br />

Quanto a Henrique Caiado, poeta português do período renascentista,<br />

deixou o Direito e deu preferência ao seu amor às Letras,<br />

por isto seu tio suspendeu a mensalidade do poeta e deixou-o sofrer<br />

privações, contudo o rei D. Manuel I patrocinou Henrique Caiado de<br />

modo que este ficou eternamente grato ao rei e compôs em alguns de<br />

seus epigramas encômios ao monarca. Vejamos duas passagens da<br />

vida de Caiado, tiradas da obra As Éclogas de Henrique Caiado, de<br />

Tomás da Rosa (1965) sobre esta questão de amor e gratidão ao Rei:<br />

Caiado dedicara-se de preferência às Letras, que o seduziam, pondo<br />

de parte a árida disciplina de Direito. Viajou depois pela Itália, satisfazendo<br />

a sua ânsia de saber, ao contacto com os mais altos valores do<br />

Humanismo Italiano. Visitou, entre outros centros culturais, Roma, Ferrara<br />

e Pádua. Seu tio, ao ter conhecimento do fato, suspendeu-lhe a mensalidade.<br />

Caiado sofreu privações... E só por ordem de D. Manuel I, encetou<br />

os estudos de Direito Romano, em que, como nas Letras Humanas,<br />

primou e triunfou, vindo a doutorar-se pela Universidade de Pádua.<br />

Um pouco mais abaixo afirma Tomás da Rosa (1965): "Caiado<br />

jamais esfriou a dedicação ao seu rei, sobretudo a D. Manuel. E<br />

em tudo procurou servir ao Humanismo português, e engrandecer<br />

Portugal com inteligência e amor".<br />

Do livro I dos Epigramas de Caiado, destacamos o de número<br />

III que trata esta questão do mecenato. Como perceberemos abaixo<br />

há encômios ao Rei Manuel. Vejamos a minha tradução (RIBEI-<br />

RO, 2010):<br />

6 Isto é, também lhes agrada.<br />

7 Alusão de Horácio as honras de Pretor, de Questor e de Cônsul na Roma antiga.


Ad Emmanuelem Regem<br />

EPIGRAMMA<br />

III.<br />

Hesperiae, Rex magne, decus, quo praefide virtus<br />

E coelo in terras conciliata venit.<br />

Maiorum superas clarissima facta tuorum:<br />

Aurea te redeunt principe saecla iterum.<br />

5 Nigros usque tuum nomen penetravit ad Indos:<br />

Vela tua Oceanus fertque, refertque Pater.<br />

Extremique tuis parent confinia mundi<br />

Legibus, es Regum maximus, Emmanuel.<br />

AO REI MANUEL<br />

EPIGRAMA<br />

III.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

338<br />

Ó grande rei, glória da Hespéria 8 , por meio de quem o valor, comprometidamente<br />

conciliado, veio do céu à terra.<br />

Tu superas os feitos mais ilustres de teus antepassados:<br />

os séculos de ouro de novo retornam, sendo tu o soberano.<br />

5 Teu nome chegou até mesmo junto aos trigueiros indianos:<br />

o Oceano 9 impele tuas velas 10 e o Pai as traz de volta<br />

e os limites do extremo mundo se submetem às tuas<br />

leis, tu és o maior dos reis, ó Manuel 11 .<br />

Selecionamos uma passagem de Carlos Antonio Kalil Tannus<br />

(2007) em seu artigo, Um olhar sobre a Literatura Novilatina em<br />

Portugal, que vem a corroborar este costume que os reis tinham de<br />

patrocinar os poetas portugueses em seus estudos na Europa:<br />

8 As regiões do Ocidente são denominadas Hespéria.<br />

9 “Oceano”, personificação do deus do mar, esposo de Tétis. E o “Pai”, ao qual o verso 6 se refere,<br />

serve de exemplo da antonomásia do próprio Deus Júpiter.<br />

10 Trata-se de um exemplo de sinédoque, o autor quer dizer que navios são levados pelo Oceano<br />

às terras longínquas.<br />

11 Vale lembrar que Caiado obteve muitos favores de seu caríssimo rei, mormente financeiros.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

339<br />

Encontramos também um panegírico de D. João III, em que se ressalta<br />

a personalidade ativa, a prudência e agudeza de espírito, e o senso<br />

de justiça do rei, além do seu amor às Humanidades e da sua preocupação<br />

com os estudos dos seus bolseiros no Exterior ou com a qualidade do<br />

ensino na Universidade conimbricense:<br />

Mirantur omnes tuum grauissimum iudicium atque acerrimam mentis<br />

aciem ... Nam et complures adolescentes Parisiorum Lutetiam ad capiendum<br />

ingenii cultum tuo sumptu, alendos misisti et nouam hic litterarum<br />

academiam erexisti quae non modo externas omnium gentium scholas<br />

possit Lacessere sed ueteres etiam Athenas in nostra haec tempora<br />

reuocare uideatur. (Panegírico de D. João III escrito por Pedro Sanches)<br />

Eis a tradução de Carlos Tannus:<br />

Admiram todos teu seriíssimo julgamento e a agudeza de tua mente.<br />

Com efeito, enviaste muitos jovens a Paris, a tuas expensas, para ilustrarem-se<br />

e ainda, aqui, fundaste uma nova academia que não somente pudesse<br />

congregar os estudos de todas as nações mas que, também, parecesse<br />

trazer de volta aos nossos tempos a velha Atenas.<br />

Claudie Balavoine (1983) também retrata a questão do patronato,<br />

afirmando que é verdadeiro que da Florença a Ferrara, passando<br />

por Bolonha, seus apoios haviam acompanhado Caiado. Parece<br />

que eles haviam desejado que ele se tornasse poeta oficial do rei<br />

Dom Manuel.<br />

Vale enfatizar, como afirma a autora supracitada (BALA-<br />

VOINE, 1983), que em algumas éclogas de Henrique Caiado, o poeta<br />

procura captar a atenção de uma poderosa família, sem que um único<br />

mecenas seja sempre visado, pois sobre esse ponto Caiado não<br />

terá com que se lamentar de uma falta de proteção. Mas, sua ambição<br />

ultrapassa a preocupação de assegurar a sua sobrevivência.<br />

A mesma autora (BALAVOINE, 1983) também nos diz que o<br />

idílio XVI, de Teócrito já fazia referência ao mecenato, como também<br />

a VI écloga de Caiado, nos versos 38 a 39. Em uma comparação<br />

atenta dessas duas coletâneas, aparecem imitações pontuais inadiáveis<br />

que engajam os contextos. Ora todo segmento do texto do idílio<br />

XVI, de Teócrito, proclama o papel essencial das Musas, na propagação<br />

de o renomar e de procurar a proteção oficial e generosa do “basileus”<br />

Hiéron. Teócrito garantia então duplamente a solicitação de<br />

Caiado: primeiramente, fazendo aparecer o mecenato como uma instituição<br />

tão antiga quanto necessária e num segundo momento pro-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

340<br />

vando que as Musas pastoris poderiam cantar também a glória dos<br />

príncipes.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BAYET, Jean. Littérature Latine. Paris: Armand Colin,1965.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

341<br />

BALAVOINE, Claudie. Les églogues D’Henrique Caiado ou<br />

l’humanisme portugais a la conquete de la poesie neo-latine. Lisboa-<br />

Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.<br />

CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. Porto Alegre:<br />

Mercado Aberto, 1989.<br />

HIME, Gonçalves Muniz. Arte e significado nos Epigramas Funerários<br />

de Calímaco: uma abordagem estilística. Tese de Doutorado.<br />

Rio de Janeiro: UFRJ, 1989.<br />

LEITE, Leni Ribeiro. Humano mais que profano. Leituras do sagrado<br />

na Antiguidade Clássica e na cultura oriental. In: III CONGRES-<br />

SO DE LETRAS CLÁSSICAS E ORIENTAIS DO INSTITUTO DE<br />

LETRAS DA UERJ. De 07 a 10 de maio de 2007. Caderno de resumos.<br />

PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Lisboa: Fundação<br />

Calouste Gulbenkian, 1983.<br />

RIBEIRO, Márcio Luiz Moitinha. Epigramas de Henrique Caiado:<br />

Estudo e tradução do Livro I. Tese de doutorado. São Paulo: USP,<br />

2010.<br />

ROSA, Tomás da. As éclogas de Henrique Caiado. Separata de Humanitas.<br />

Vols. I e II da Nova Série. (Vols. V e VI da Série Contínua).<br />

Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,<br />

Instituto de Estudos Clássicos, 1954.<br />

TANNUS, Carlos Antonio Kalil. Um olhar sobre a literatura novilatina<br />

em Portugal. Revista Calíope – Presença Clássica. Número 16,<br />

Rio de Janeiro: UFRJ, dez/2007.


A QUESTÃO DO MÉTODO<br />

NO ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA:<br />

SÉCULO XIX<br />

Márcia A. G. Molina (UNISA-SP)<br />

maguemol@yahoo.com.br<br />

Partimos neste trabalho da seguinte afirmação Nietzche<br />

(1873): "Só devemos interpretar o passado através do que há de mais<br />

forte no presente". O que há de mais forte em nossa área de atuação,<br />

que nos incomoda e intriga e poucos são as ações efetivas que resultam<br />

em bons resultados? Para mim, o ensino da língua portuguesa, o<br />

material didático, o método mesmo de ensino. Intrigados com o fato,<br />

fomos estudar o passado, procurando historiá-lo, na busca de analisar<br />

o presente e melhor compreendê-lo. Assim, à luz da História das Ideias<br />

Linguísticas, em especial Auroux, analisamos, no doutorado,<br />

uma das gramáticas mais utilizadas no século XX, a de Eduardo Carlos<br />

Pereira, verificando tratar-se de uma obra muito importante, com<br />

inúmeras edições, instruindo vários importantes vultos brasileiros.<br />

Essa gramática, ao mesmo tempo em que muito se aproximava de<br />

obras de séculos anteriores, apresentava discussões inovadoras, acompanhando,<br />

algumas vezes, as diretrizes da Gramática Histórico-<br />

Comparativa. Constatamos que logo em seu Prefácio, o autor tem<br />

preocupação com o ensino e o método, mas nisso quase nada apresenta<br />

de inovador. No pós-doutorado, fomos ao século XIX, às gramáticas<br />

brasileiras da primeira infância e, qual não foi nossa surpresa<br />

ao já percebermos também em algumas delas uma importante preocupação<br />

com o ensino, com o método, com a aprendizagem da língua.<br />

Essa preocupação, não era exclusividade dos estudiosos brasileiros,<br />

ao contrário, transpunha (ou transpõe?) continentes: Vasconcelloz,<br />

autor português, em sua a Grammatica Portuguesa, editada<br />

no Porto, mas também utilizada no Brasil, em meados do século<br />

XIX, asseverava:<br />

O ensino gramatical nas nossas escolas ainda geralmente se faz pelos<br />

velhos processos, incoerentes, arbitrários, metafísicos, que, longe de<br />

imprimirem conveniente orientação ao espírito do adolescente, lhe dão<br />

uma noção falsa da língua e da gramática, e apenas servem para lhe fati-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

342<br />

gar sem proveito a memória com a fixação de paradigmas e regras, cujo<br />

fundamento fica sendo uma incógnita para o aluno, como para toda a<br />

gente, e cuja exatidão é muitas vezes desmentida pelos fatos. (Prólogo da<br />

1 edição).<br />

Poucos anos depois, Cândido de Figueiredo em sua Gramática<br />

das Crianças (1918, p. 5) criticava:<br />

Em geral, os gramáticos de mais competência e saber não escreveram<br />

para crianças. Homens de ciência, adestrados a técnica da alta Filologia,<br />

dificilmente baixam de sua elevada esfera, para que os ouçam e os<br />

compreendam as pequenas criaturas, que procuram o primeiro ensinamento<br />

metódico da arte da falar e escrever a sua língua; e o modesto professor,<br />

que fala a essas crianças (...) acata o processo dos sábios, tentando<br />

transmiti-lo a quem tarde o compreenderá.<br />

Restaino (2009) lembra que até meados do século XIX, o ensino<br />

da Gramática Nacional estava associado ao conhecimento do<br />

professor ou preceptor, que o transmitia aos alunos por meio de ditados<br />

ou de suas “postillas”. Somente em 1856 é que o Compêndio do<br />

Prof. Cyrillo Dilermano é adotado no Colégio Pedro II.<br />

Embora os alunos desse colégio pertencessem, na sua maioria,<br />

à elite brasileira (FÁVERO, 2002) e, portanto, já dominando o padrão-culto<br />

de nossa língua, o colégio Imperial começava a ser freqüentado<br />

por aqueles que precisariam adquiri-la na escola.<br />

A adoção daquele Compêndio foi uma tentativa de sistematizar<br />

um trabalho intuitivo até então guiado somente pela experiência e<br />

sensibilidade dos mestres.<br />

Somada a essa questão de método, outra se impunha: a da língua.<br />

Que língua era a nossa? Os valores do Romantismo começavam<br />

a ser aqui difundidos, defendendo o elemento nacional, assim, em<br />

1855, Joaquim Norberto de Souza e Silva, redarguia:<br />

Já alguém nos lançou em rosto que não temos literatura nacional,<br />

porque não temos língua; ficou porém provado a toda a luz que a literatura<br />

de um povo é a voz de sua inteligência e que da influência do nosso<br />

clima, da configuração do nosso terreno, da fisionomia de nossos vegetais,<br />

do aspecto da natureza do nosso país (...) tudo tão dessemelhante de<br />

Portugal, devia resultar uma tal ou qual modificação nessa literatura,<br />

embora portuguesa, mas produzida por brasileiros. (...)<br />

Ora, o que se tem dado com a literatura é o que ainda não se deu<br />

com a língua (...) (SOUZA, 2002, p. 341, 342)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

343<br />

Nessa mesma época, foram acrescidas ao programa do Colégio<br />

Pedro II, aulas de leitura, recitação e ortografia.<br />

Vale recordar que a concepção de leitura na ocasião estava<br />

circunscrita à noção de fluidez:<br />

A leitura, para se tornar verdadeiramente proveitosa, tem de obedecer<br />

a determinadas regras. De contrário redunda em pura perda, ou até dá<br />

resultados nocivos. Não basta ler: torna-se necessário saber ler (...)<br />

A maior parte da gente lê mal, porque lê depressa (...) a leitura precipitada<br />

nunca dá resultado (...) (VIANA, 1949, p. 24)<br />

De forma sucinta, então, esse era o contexto:<br />

– buscava-se uma sistematização dos estudos de língua portuguesa<br />

a fim de se atender à diversidade de alunos que chegava à escola:<br />

– buscava-se um material que fosse adequado ao ensino das<br />

crianças;<br />

– buscava-se um material que pudesse circular pela malha social,<br />

auxiliando a difundir os valores da época: respeito, nacionalidade,<br />

identidade etc.<br />

É sobre uma obra criada para procurar atender a essas necessidades<br />

que versa nosso trabalho: A Gramática da Infância, do cônego<br />

Pinheiro, em especial, analisaremos sua parte introdutória,<br />

"Aos leitores" e o “Prefácio”, passando brevemente pelo seu conteúdo,<br />

para que possamos refletir acerca das orientações seguidas pelo<br />

referido cônego.<br />

1. Gramática da Infância 1 – J. C. Fernandes Pinheiro<br />

1.1. Dados sobre o autor<br />

O cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (1825-1876)<br />

lecionou Retórica, Poética e Literatura Nacional no Colégio de Pedro<br />

II, foi comendador da Ordem de Cristo e membro dos Institutos His-<br />

1 Procedemos à atualização ortográfica para facilitar à leitura.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

344<br />

tóricos do Brasil e da França, da Academia das Ciências de Lisboa e<br />

Madri e da Sociedade Geográfica de Nova Iorque. Polígrafo de compêndios,<br />

escreveu, principalmente: Catecismo da Doutrina Cristã<br />

(1855), Episódios da História Pátria Contados à Infância (1860),<br />

Curso Elementar de Literatura Nacional (1862), Meandro Poético<br />

(1864), História Sagrada Ilustrada (s/d), Gramática Teórica e Prática<br />

da Língua Portuguesa (com oito edições) e a obra em epígrafe.


1.2. Aos leitores<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

345<br />

A Gramática da Infância, produzida em 1864 e com, pelo<br />

menos, quatro edições 2 , é uma pequena gramática com 127 páginas,<br />

reunindo um “Aos leitores”, em que o autor explicita que a única<br />

coisa que tem na obra feito por si (lembremo-nos que se trata de um<br />

compêndio) é o método, já que, afirma, ter procurado simplificar as<br />

regras gramaticais.<br />

Expressa que espera que sua inovação seja sancionada pela<br />

experiência e diz que seu método procura aliar teoria e prática, confiando<br />

muito mais nisso do que n’esses arrojos de memória com que<br />

alguns preceptores pretendem iludir os incautos. (p. 1). Mas que método<br />

é esse a que se refere o autor? O que seriam essas inovações?<br />

Na tentativa de responder a essas perguntas, passemos, a seguir,<br />

à leitura do texto produzido pelo Dr. A. de Castro Lopes (professor<br />

da Escola Politécnica), à guisa de “Prefácio” em que apresenta<br />

uma minuciosa discussão acerca da obra, iniciando por uma crítica<br />

aos homens das Letras:<br />

Com efeito, muito pendor, muita dedicação devem ter esses que no<br />

Brasil em uma época de mercantilismo, e a despeito da grita atordoadora<br />

com que nos salões de suas orgias a política, nova Mesalina, estraga e<br />

corrompe uma mocidade talentosa, ousam ainda compor livros, escrever<br />

compêndios, e curar da instrução pública. (p. 8)<br />

Faz seu autor uma digressão nesse momento para criticar subliminarmente<br />

a sociedade, em especial, aqueles que se dedicam à política,<br />

mas que nada fazem à Educação:<br />

É que esse santo fogo que os anima, e que para arrefecê-lo bastava a<br />

indiferença dos governos e a inveja de espíritos tacanhos, acha elementos<br />

para seu incremento n’aquele ILUSTRE BRASILEIRO 3 , que ama sinceramente<br />

as letras e protege seus sacerdotes.<br />

Voltando a tratar da obra, destaca a importância de uma dirigida<br />

à infância, afirmando<br />

2 A obra estudada é a quarta edição.<br />

3 Quer nos parecer que essa é uma forma irônica de ele se referir a D. Pedro II.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

346<br />

...ser repugnante ver meninos e meninas de 7,8 ou 9 anos, estudando tratados<br />

gramaticais da língua portuguesa, e carregando inutilmente a cabeça<br />

de um acervo ingente de definições metafísicas, que, ingeridas facilmente<br />

pela memória voraz da criança, são expelidas pela língua sem jamais<br />

se poder fazer a digestão cerebral. (p. 9)<br />

Lembremo-nos aqui de que a criança começava a ser compreendida<br />

como tal, deixando de ser vista como adulto em miniatura.<br />

E A. Castro continua apontando:<br />

Cumpre que o menino aprenda gramática: mas a gramática que deve<br />

ser ensinada ao menino não é a mesma que deve aprender o adulto, o que<br />

já tem a inteligência desenvolvida pela idade, e mais ou menos enriquecida<br />

pelos variados conhecimentos adquiridos.<br />

A sagacidade desse crítico pareceu-nos imensa. Quando nem<br />

se cogitava sobre a importância dos conhecimentos de mundo na<br />

compreensão da leitura, fazia ele uma afirmação dessa monta.<br />

Depois dessa visão geral, vai, parte a parte, analisando a obra<br />

do Cônego, afirmando aqui e ali que "cada lição contém um pequeno<br />

número de regras, as principais e indispensáveis, relativas ao objeto<br />

da mesma lição marcadas com um algarismo". 4<br />

Especifica que se sentia feliz sempre que via em "obras elementares<br />

realizado o princípio de Jacotot com tão feliz artifício aplicado<br />

pelo grande Robertson".<br />

J. Jacotot (1770-1840) foi filósofo, matemático, advogado e<br />

professor francês criador do método da “emancipação intelectual”,<br />

baseado em três princípios:<br />

a) todos os homens têm inteligência igual;<br />

b) todos homem recebe de Deus a faculdade de ser capaz de<br />

instruir-se;<br />

c) tudo está em tudo.<br />

Afirmava Jacotot que o que diferencia os homens é o modo<br />

como cada um usa sua inteligência. No que concerne à linguagem,<br />

4 Como veremos a seguir, ao final de cada tópico gramatical, o autor insere um questi-<br />

onário e exercícios.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

347<br />

por exemplo, dizia que se deveria oferecer ao estudante uma passagem<br />

de poucas linhas, encorajando o aluno a estudar primeiramente<br />

as palavras, depois as letras, então a gramática, depois o significado,<br />

para depois partir para a literatura de um modo geral. Esse seu<br />

método está exposto em Enseignement Universel, Langue Maternelle<br />

(Louvain and Dijon, 1823) e no Journal de l’Èmancipation Intellectuelle<br />

(Achille Guillard, Paris, 1860).<br />

Parece-nos que, realmente, a tentativa do Cônego foi esta: a<br />

de que a criança aprendesse uma coisa de cada vez, então, ao final de<br />

cada capítulo, para fixação, apresentava um questionário com perguntas<br />

relativas ao conteúdo, cujas respostas deveriam ser localizadas<br />

na exposição gramatical e meramente copiadas ipsis litteris, revelando<br />

a importância dada, na ocasião, à memorização do conteúdo.<br />

Lembremo-nos de que esse era o método escolástico, “tradicional”<br />

que atravessou séculos nas aulas de gramática.<br />

Além disso, ao final de cada tópico gramatical uma grande<br />

lista de exercícios, objetivando a retenção do conteúdo, era oferecida<br />

aos alunos, talvez também seguindo os ditames de Robertson, cujo<br />

método era similar ao de Jacotot, mas aplicado ao aprendizado de<br />

uma segunda língua. Esse modelo estimulava o aprendizado na prática,<br />

através de atividades, por isso, a cada conteúdo gramatical ensinado<br />

uma lista de exercícios era apresentada, cujo tamanho foi crescendo<br />

ao longo da obra.<br />

Sobre isso se refere o professor da escola politécnica:<br />

Os exercícios são excelentes: abundantes de exemplos, em que se<br />

verificam as regras pouco antes expressas, além da utilidade prática para<br />

o fim gramatical, encerram a vantagem de versarem sobre variadíssimos<br />

assuntos, como sejam: história sagrada, história e geografia geral, e<br />

principalmente as do país (p. 12, grifos nossos)<br />

Lembremo-nos de que na ocasião do surgimento desse compêndio,<br />

há pouco as obras adotadas haviam deixado de ser importadas<br />

da Europa e, praticamente na mesma ocasião, começaram a ser<br />

ensinados história e geografia de nossa pátria e a gramática nacional.<br />

Restaino (op. cit.) afirma que somente em 1856 que, no colégio de<br />

Pedro II, se usa o Compêndio de Cyrillo Dilermando. Antes disso, utilizavam-se<br />

em aulas os conhecimentos dos mestres transmitidos por


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

348<br />

meio de ditados e apostilas, não havendo no Império obras didáticas<br />

brasileiras.<br />

Voltando à nossa gramática, afirma o professor:<br />

De uma atraente amenidade, e adequados a ambos os sexos, há<br />

n’esses exercícios sentenças. Máximas, reflexões, apotegmas, em suma,<br />

proposições, já do próprio autor, já de clássicos portugueses como Vieira,<br />

Camões, Bernardim Ribeiro, etc. as quais contendo verdades e doutrinas<br />

interessantes, é de toda a utilidade implantar no ânimo tenro das<br />

crianças. (p. 12)<br />

Como já se falou, a escola era para meninos (e brancos) e as<br />

poucas mulheres que freqüentavam o ambiente escolar só chegavam<br />

às primeiras letras.<br />

Vê-se também que o autor ressalta a formação do caráter, papel,<br />

como vimos, também delegado à escola.<br />

Depois, continuando o prefácio, elogia as modificações introduzidas<br />

pelo autor na questão de verbo 5 e nas "cerebrinas classificações<br />

de conjunções copulativas e disjuntivas e a introdução de um<br />

novo modo verbal: o modo condicional". 6<br />

Conclui seu prefácio dizendo que a obra apresentaria, no geral,<br />

a doutrina admitida e o que teria de mais importante era o fato de<br />

ter sido escrita em "estilo e frase a alcance das inteligências infantis,<br />

para as quais foi expressamente destinada". (p. 14).<br />

Para finalizar a discussão acerca desse prefácio, faz-se importante<br />

sublinhar que, ao lê-lo, criamos a expectativa de que estaríamos<br />

à frente de uma obra bastante diferenciada das demais, mas não foi<br />

isso que constatamos. O que a diferencia é a maneira paulatina com<br />

que apresenta o conteúdo, a sumarização desse no final e a apresentação<br />

acumulativa e crescente dos exercícios.<br />

Na realidade, por meio da análise do conteúdo gramatical da<br />

obra, percebemos ser seu autor seguidor das de orientação clássica,<br />

que compreendiam o conceito de gramática como "uma arte que en-<br />

5 As quais, pouco notamos, como verão.<br />

6 Aqui o autor inseria o Futuro de Pretérito e o Imperfeito do Subjuntivo.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

349<br />

sina a declarar bem os nossos pensamentos por meio de palavras".<br />

(p. 15). A definição de gramática como arte remonta à Antigüidade<br />

Clássica, Fávero (2001, p. 61) ensina:<br />

Ars é tradução do grego. Aristóteles na Metafísica atribui ao termo o<br />

sentido de ofício, habilidade para se fazer algo, artesão é o que possui essa<br />

habilidade e conhece as coisas pelos efeitos, não pelas causas. Dionísio<br />

7 chamou sua obra de arte gramatical, por não ser ela especulativa e<br />

não prática. (...) A Gramática, a Retórica, a Poética, a Lógica, a Geometria,<br />

a Aritmética e a Astronomia são artes; a Matemática e a Física não o<br />

são, pois seu objeto é o necessário e elas não são instrumentais. (...)<br />

E, de acordo com a autora, essas sete artes (as praticadas por<br />

homens livres, por isso Artes Liberales) constituíram o curriculum<br />

escolar durante séculos. 8<br />

Essa definição perdurou por muitos séculos 9 em obras como<br />

essas. Nas gramáticas do século anterior, como por exemplo, na<br />

Gramática Filosófica, de Soares Barbosa (escrita século XVIII e<br />

com a 2ª edição datada de1830), p. VIII pode-se ler: “A Gramática<br />

pois, que não é outra coisa, segundo temos visto, senão a "Arte, que<br />

ensina a pronunciar, escrever e falar corretamente qualquer língua<br />

(...)”<br />

Continuando, Fernandes Pinheiro, nas pegadas das obras do<br />

século XVIII e essas ancoradas nas da Idade Média, divide a gramática<br />

em quatro partes: etimologia, sintaxe, prosódia e ortografia:<br />

A divisão em quatro partes, a mesma que se encontra nos gramáticos<br />

do século anterior, Reis Lobato e Soares Barbosa [século XVIII] é herança<br />

da Idade Média (talvez Prisciano (...) (FÁVERO, op. cit., p. 65)<br />

Isso se deve, possivelmente à sua bagagem cultural. Já vimos<br />

que nasceu no século XVIII. Educado, possivelmente, por religiosos,<br />

recebeu formação clássica e chegou, inclusive, a lecionar, além de<br />

gramática, filosofia.<br />

7 “Dionísio o Trácio foi o verdadeiro organizador da arte da gramática na Antigüidade”<br />

(Neves, 1987, p.155). Ou seja, primeiro gramático grego.<br />

8 Muitas dessas disciplinas foram lecionadas por anos sucessivos no Colégio de Pedro<br />

II.<br />

9 Tendo sido abandonada somente no final do século XIX, com o desenvolvimento das<br />

ciências em geral e das ciências da linguagem, em especial.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

350<br />

Prosseguindo, por etimologia compreende a parte que traz a<br />

natureza das palavras e suas propriedades; por sintaxe, a que ensina<br />

coordenar com acerto a oração; por prosódia 10 , a que aponta a boa<br />

pronunciação das palavras; e por ortografia, a que mostra como escrever<br />

sem erros e empregar com acerto os sinais de pontuação.<br />

Chamamos atenção para o fato de que, na época, o caráter prescritivo<br />

da gramática era o vigente, ou seja sua função era a de ensinar a falar,<br />

como dizia Nebrija (1492), de acordo com os nobres:<br />

Cuando bien comigo pienso, mui esclarecida Reina, e pongo delante<br />

los ojos el antiguedad de todas las cosas que para nuestra recordación e<br />

memoria quedaron escritas, una cosa hallo e saco por conclusión mui<br />

certa: que siempre la lengua fue compañera del imperio (p. 6. edição de<br />

1946)<br />

Seguindo ainda a tradição greco-latina, o autor define oração<br />

como a reunião "de palavras com que enunciamos qualquer juízo".<br />

(p. 16).<br />

Explica, na primeira parte de seu compêndio, na Etimologia,<br />

que as palavras que compõem a oração podem ser de dez espécies:<br />

substantivo, artigo, adjetivo, pronome, verbo, particípio, preposição,<br />

advérbio, conjunção e interjeição. Atentamos aqui para dois fatos relevantes:<br />

de um lado, a proposta de inscrever as classes de palavras<br />

em dez categorias remete-nos às dez categorias de pensamento sugeridas<br />

por Aristóteles, na Metafísica; de outro, revela modernidade já<br />

que as obras do século XVIII, amparadas no modelo latino, desconsideravam<br />

o artigo e adjetivo e/ou pronome chegando a oito classes.<br />

Notemos que ele já os considera como classes gramaticais distintas<br />

do nome substantivo, como o fizera, anteriormente, por exemplo, o<br />

Prof. Coruja (1875), autor em que parece estar bastante calcado.<br />

Na segunda parte de sua obra, que compreende a Sintaxe,<br />

rompe, algumas vezes com o postulado por suas antecessoras.<br />

Inicia definindo oração ou período, informando "é a maneira<br />

de exprimir qualquer idéia, ou de comunicar aos outros os nossos<br />

pensamentos sobre qualquer coisa". (p. 103). Depois, de um lado, afirma<br />

que ela (a oração) compõe-se de três partes: sujeito, verbo e a-<br />

10 Neste trabalho, somente as duas primeiras partes serão objeto de discussão.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

351<br />

tributo, contrariando os preceitos da gramática logicista, como, por<br />

exemplo, a de Port-Royal, onde se lê:<br />

(...) como quando digo: A terra é redonda contém necessariamente dois<br />

termos: um chamado sujeito, que é aquele de que se afirma, como terra;<br />

e outro chamado atributo, que é o que se afirma, como redonda, além<br />

disso, a ligação entre esses dois termos, que é propriamente a ação de<br />

nosso espírito, que afirma o atributo do sujeito. (ARNAULD/ LANCE-<br />

LOT, 1992, p. 85)<br />

Por outro lado, comungando novamente com os preceitos de<br />

gramática como arte de falar e escrever bem, traz sintaxe de regência,<br />

concordância e construção, seguindo as demais gramáticas de orientação<br />

filosófica, como, por exemplo, a de Soares Barbosa (1822).<br />

Finaliza o capitulo com sintaxe figurada, estudando as principais figuras<br />

de sintaxe.<br />

Importa também especificar que o autor aproveita os exemplos<br />

e exercícios para, por meio deles, exercer outro importante papel<br />

que cabia à escola, tão divulgado na época, ou seja, além de ensinar,<br />

deveria ela também educar, incutindo nos jovens valores morais.<br />

(...) no período em questão, houve entrosamento acentuado entre a vida<br />

intelectual e as preocupações político-sociais. As diretrizes respectivas –<br />

conforme as entreviam os nossos homens de então nos modelos franceses<br />

e ingleses – se harmonizavam pela confiança na força da razão, considerada<br />

tanto como instrumento de ordenação do mundo, quanto como<br />

modelo de uma certa arte clássica, abstrata e universal. A isto se juntavam:<br />

1) o culto da natureza, (...) 2) o desejo de investigar o mundo (...) 3)<br />

finalmente, a aspiração à verdade, como descoberta intelectual, como fidelidade<br />

consciente ao natural, como sentimento de justiça na sociedade.<br />

(CÂNDIDO, 2000, p. 89)<br />

Assim, deparamo-nos, em cada rol de exercícios, ao final dos<br />

tópicos gramaticais, com asserções como as abaixo:<br />

É de nosso dever socorrer os pobres. (p. 29)<br />

Jesus Cristo, Senhor Nosso, morreu para nos salvar (p. 29)<br />

Leve e suave é a obrigação de obedecermos a nossos pais (p. 31)<br />

Seus dias eram contados por suas virtudes (p. 35)<br />

Ter juízo é a maior de todas as riquezas. (p. 45)<br />

Como pudemos perceber, o que a Gramática da Infância, do<br />

Cônego Pinheiro, poderia trazer de “novo” era o método, em que se-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

352<br />

guia Jacotot, apresentando paulatinamente o conteúdo. Se esse foi<br />

uma boa escolha, se frutificou, se facilitou seu trabalho, frente às dificuldades<br />

com que se deparava, com a vinda de um novo tipo de alunos,<br />

não sabemos, não temos nenhum testemunho nesse sentido,<br />

mas podemos afirmar que a leitura desse Compêndio mostrou-nos<br />

que discussões como tais são bastante antigas. Resta-nos, então, procurar<br />

trazer essas reflexões para nossa sala de aula, aparar arestas,<br />

adaptá-las à nossa realidade, à nossa sociedade. Cabe-nos, portanto,<br />

recordar a história para alinhavar sentidos, na tentativa de amenizar<br />

dificuldades que atravessam séculos no ensino da língua portuguesa.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ARNAULD & LANCELOT Gramática de Port-Royal Gramática<br />

Geral e Razoada. Trad. Bruno F. Bassetto e Henrique G. Muracho –<br />

São Paulo: Martins Fontes, 1992.<br />

AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. São Paulo:<br />

Unicamp, 2001.<br />

CÂNDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.<br />

CORUJA, Compêndio de gramática da língua nacional. 2. ed. Rio<br />

de Janeiro: Tipografia Esperança, 1875.<br />

FÁVERO, L. L. O ensino no Império – 1837-1867 – Trinta anos do<br />

Imperial Colégio de Pedro II. In: ORLANDI & ___. Gramática é a<br />

arte... – In: História das ideias linguísticas; construção do saber metalinguístico<br />

e da constituição da língua nacional. Cuiabá: Unemat,<br />

2001<br />

FIGUEIREDO, C. Gramática das crianças. 1. ed. Lisboa: Clássica,<br />

1918.<br />

GUILLARD, A. Biographie of Jacotot. Journal de l’èmancipation<br />

intelecctuelle. Paris, 1860.<br />

GUIMARÃES (Orgs.). Institucionalização dos estudos de linguagem.<br />

Campinas, 2002.<br />

JACOTOT, J. Enseignament universel (universel education) langue<br />

maternelle. Louvain and Dijon, 1823.


NEBRIJA, E. A. Gramática castelana. 6. ed. Madrid: Fundación<br />

Antonio de Nebrija, 1946.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

353<br />

NEVES, M. H. M. Em defesa de uma gramática que funcione. São<br />

Paulo: Contexto, 1987.<br />

PINHEIRO, J. C. Grammatica da infância. Rio de Janeiro: Garnier,<br />

1864.<br />

RESTAINO, H.C. A trajetória do ensino de língua portuguesa e de<br />

leitura na escola da República Velha. Anais do 15º Congresso de<br />

Leitura do Brasil, 2009.<br />

SILVA, J. N. S. A língua brasileira. O Guanabara. Rio de Janeiro,<br />

1855. In: História da literatura brasileira e outros ensaios. Org. por<br />

SOUZA, R. A. Rio de Janeiro: Zé Mário, 2002.<br />

VASCONCELLOZ, A. G. R. Grammatica portugueza. Paris: Aillaaud<br />

e C. 1909.<br />

VIANA, M. G. A arte da leitura. Porto: Educação Nacional, 1949.


A RELEVÂNCIA DAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS<br />

NA AULA DE LÍNGUA PORTUGUESA<br />

Cláudia Cristina Marques dos Santos (UERJ)<br />

claudiacmsantos@ig.com.br<br />

Este trabalho refere-se às reflexões iniciais da minha dissertação<br />

que surge de algumas inquietações referentes ao tipo de ensino<br />

produzido pela sociedade que, muitas vezes, não possibilita à língua<br />

portuguesa se representar como linguagem. Um idioma transpira identidade<br />

e não se pode estudá-lo apenas como mais uma matéria da<br />

grade curricular.<br />

Em diversos níveis de aprendizagem – do ensino fundamental<br />

ao médio – os alunos encaram mecanicamente o estudo da língua,<br />

como uma “decoreba” de regras que nada significam. Em sua maioria,<br />

não conseguem realizar uma leitura além da superfície. Não há<br />

interlocução com os textos, o que acarreta total falta de articulação<br />

do conhecimento. Solicitar a um aluno que explique com as próprias<br />

palavras um assunto, supostamente compreendido, pode ser um imenso<br />

desafio.<br />

Como, porém, desfazer a imagem de desnecessário que o estudo<br />

da língua materna carrega? Qual a maneira para os discentes<br />

perceberem sua importância? Não se maquia a língua e se finge,<br />

simplesmente, que o estudo da gramática não se impõe como fundamental.<br />

Além de reverter essa visão, o ensino da língua portuguesa<br />

demanda uma reformulação que se coadune com o objetivo de formar<br />

cidadão críticos.<br />

Partindo do princípio de que sabedoria não se submete à<br />

compartimentalização, tomo emprestado do marketing, os fundamentos<br />

de “reposicionamento de marca” para estruturar minhas investigações.<br />

Conforme Armstrong e Kotler (1998, p. 201) esse conceito<br />

“pode exigir modificação do produto e também de sua imagem” a<br />

fim de modificar a percepção dos consumidores acerca dele.<br />

De modo geral, reposicionar envolve reverter a imagem de<br />

uma marca ou produto. Na história da propaganda moderna, encontra-se<br />

o caso clássico das sandálias Havaianas que, de produto consi-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

355<br />

derado de terceira categoria, popular e sem graça, passa a objeto da<br />

moda, com preço elevado e cobiçado por pessoas de diferentes níveis<br />

sociais.<br />

A mudança exige planejamento e, em seu processo usual, envolve<br />

pesquisas de mercado e entrevistas. Pode, no entanto, advir<br />

somente da observação pura e simples do comportamento do consumidor.<br />

O olho de um bom observador, às vezes, substitui, com vantagem,<br />

processos complexos de pesquisa e análise. Traçando um paralelo<br />

com a aprendizagem formal da língua nativa, pensar em algo<br />

que desinstalasse a ordem atual requereria que eu estivesse atenta ao<br />

comportamento, desejos e expectativas não só da comunidade escolar,<br />

como também da sociedade.<br />

Em um segundo momento, promovem-se campanhas publicitárias<br />

para associar o produto a eventos ou ocasiões que transmitam<br />

uma aura de felicidade, sofisticação, conforto, entre outros. Tudo, de<br />

acordo com o detectado na fase inicial. A melhor maneira de fazer a<br />

associação de um produto consiste em observar as pessoas em seu<br />

habitat, sem interferir. Da perspectiva da língua precisa-se, então, realçar<br />

o que já se dispõe no ambiente linguístico. Em concomitância,<br />

deve-se trabalhar com foco no público-alvo. Recriar a imagem do idioma<br />

para um público ou classe social ainda não bem posicionado<br />

em relação à visão anterior. No caso da aula de português, a meta se<br />

dirige para convencer os jovens de que o conhecimento da língua<br />

não se reduz à aplicação de avaliações ou produções textuais. Uma<br />

língua representa o código que determinado grupo social dispõe para<br />

falar sobre as demais linguagens e quanto maior a segurança nesse<br />

canal de expressão, melhor a habilidade de expressar o pensamento e<br />

mais ampla a capacidade de lidar com o novo.<br />

Estabelecendo uma relação com o marketing, o sucesso depende<br />

de uma consulta bem elaborada, em que as perguntas certas<br />

aconteçam, antes das respostas definitivas. Do lado pedagógico, torna-se<br />

vital para a motivação do aluno que as aulas de língua portuguesa<br />

dialoguem com a realidade que o jovem tem acesso. Cabe,<br />

portanto, buscar as alternativas viáveis para se reformatar o produto.<br />

Vale ressaltar que há muitos caminhos, alguns de ordem puramente<br />

linguística, outros de processo de aprendizagem ou mesmo<br />

de abordagem, porém, o que se propõe neste trabalho tem como


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

356<br />

premissa pensar a língua como a principal marca cultural de um país,<br />

valorizando o ensino a partir do dia a dia da sociedade, na qual a interação<br />

das diferentes linguagens promove a comunicação entre os<br />

homens.<br />

No mundo pós-moderno, velocidade tornou-se sinônimo de<br />

sucesso; quanto mais rápido se depreende uma informação, maior a<br />

chance de se produzir uma ação eficaz e eficiente. Já diz a sabedoria<br />

popular que “tempo é dinheiro” e, em uma sociedade de relações tão<br />

complexas quanto a da atualidade, compreender as regras de uma<br />

comunidade, sua cultura e tradição não se constitui tarefa das mais<br />

fáceis.<br />

A harmonia de uma coletividade passa pela capacidade de cada<br />

integrante produzir e interpretar sentidos. Por meio do pleno domínio<br />

da linguagem, devem-se apreender do cotidiano dados que se<br />

transformem em instrumentos para contribuir na conscientização do<br />

cidadão como um “indivíduo que, como membro de um Estado, usufrui<br />

de direitos civis e políticos garantidos pelo mesmo Estado e desempenha<br />

os deveres que, nesta condição, lhe são atribuídos”, segundo<br />

o Grande Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001, p.<br />

714).<br />

Dessa forma, as instituições de ensino têm papel fundamental<br />

na capacitação de alunos aptos a destrinchar as informações que se<br />

apresentam pela mídia ou pelos meios acadêmicos, permitindo que<br />

os jovens utilizem a língua para além do reconhecimento de leis e<br />

regras gramaticais, munidos de argumentos para criarem os próprios<br />

modos de ver o mundo, respeitando a diversidade e ganhando mobilidade<br />

no ambiente social.<br />

A partir da constatação de que a escola representa um forte<br />

agente de mudança na sociedade, precisa-se reformular o quê e como<br />

a escola deve ensinar. A realidade atual demanda uma maneira diferente<br />

de organizar o espaço, de se relacionar e, consequentemente,<br />

solicita novos cidadãos.<br />

Uma das posturas fundamentais no processo implica reconhecer<br />

que conhecimento científico não encerra um fim em si mesmo,<br />

mas se constitui instrumento para ajudar a desenvolver competências.<br />

A escola não deve ser vista como um lugar de transmissão de


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

357<br />

conhecimento, mas como espaço de criação e produção intelectual<br />

sem barreiras. Ao representar formas de conhecimento, práticas de<br />

linguagem, relações e valores sociais que são seleções e exclusões<br />

particulares da cultura mais ampla, pode-se afirmar que sua meta se<br />

traduz na aprendizagem individual.<br />

A bagagem escolar do ponto de vista curricular não atende<br />

mais à educação do século XXI. Com tantas ondas de informações,<br />

as pessoas ficam desorientadas frente a um mundo complexo e constantemente<br />

em mudança. Assim, conforme o relatório da UNESCO<br />

elaborado por Delors et alii (2000, p. 89), “a educação deve transmitir,<br />

de fato, de forma maciça e eficaz, cada vez mais saberes e saberfazer<br />

evolutivos, adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases<br />

das competências do futuro”. Quatro aprendizagens tornam-se fundamentais<br />

como pilares do conhecimento: aprender a conhecer, dominar<br />

os instrumentos do conhecimento; aprender a fazer, a fim de<br />

por em prática o conhecimento; aprender a viver juntos, permitindo<br />

um contexto igualitário e a descoberta do outro; e aprender a ser, para<br />

melhor desenvolver um pensamento autônomo e crítico, refletindo<br />

sobre o mundo em construção.<br />

Segundo Delors (2000, p. 96), os países em desenvolvimento,<br />

como o Brasil, “encaram o futuro como estreitamente ligado à aquisição<br />

da cultura científica que lhes dará acesso à tecnologia moderna,<br />

sem negligenciar com isso as capacidades específicas de inovação e<br />

criação ligadas ao contexto local”. Questiona-se, porém, em que<br />

momento da educação formal esse ambiente nativo ganha cores fortes.<br />

Como o estudante é incentivado a perceber o mundo? Seu olhar<br />

enxerga tudo o que vê?<br />

Num mundo em transformação, devem-se valorizar, principalmente,<br />

a imaginação e a criatividade, expressões da liberdade<br />

humana, sempre ameaçadas pela padronização de comportamentos.<br />

O século XXI precisa oferecer às crianças e aos adolescentes ocasiões<br />

de descoberta e experimentação que contribuam para o aprender<br />

a ser, inclusive de forma a lhes apresentar em que âmbito se criou a<br />

sua geração e as que os precederam.<br />

Na sociedade contemporânea, altamente tecnológica, as informações<br />

chegam a todo instante e de qualquer lugar. Ainda em<br />

busca de suas próprias identidades, os jovens, porém, não estão aptos


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

358<br />

a filtrar e reprocessar o conteúdo das mensagens. Quanto mais tempo<br />

se despende na construção desse mecanismo de seleção e entendimento,<br />

menos preparado o indivíduo para criticar e transformar o<br />

meio social.<br />

De modo geral, parece que as famílias veem as instituições<br />

escolares como dotadas de responsabilidade e autoridade para educarem<br />

seus rebentos. Os pais, cada vez mais atarefados em garantir o<br />

próprio sustento, ou mesmo a sobrevivência como indivíduos pertencentes<br />

a um grupo, delegam a elas muito mais do que a educação<br />

formal. Os adolescentes, por sua vez, acostumados a conseguir o que<br />

precisam e desejam de forma facilitada, esperam que a escola forneça<br />

os instrumentos necessários ao sucesso profissional, sem se importarem<br />

em refletir sobre a realidade ao seu redor e as suas consequências<br />

para o futuro.<br />

Pensando o cidadão do século XXI, como espécie responsável<br />

pela continuação da vida no planeta, não só no que se refere à natureza,<br />

mas também à convivência entre os homens, e a fim de que não<br />

se forme apenas como útil à produção, esse trabalho aponta alguns<br />

caminhos para a inserção das manifestações culturais no ambiente<br />

escolar, especialmente nas aulas de língua portuguesa, como ferramentas<br />

que auxiliem à constituição de um sujeito contemporâneo crítico.<br />

A cada dia, presencia-se a alienação dos jovens em relação<br />

aos problemas que enfrenta a sociedade moderna. De certa forma,<br />

essa constante apatia, que cresce de geração em geração, contribui<br />

para a grande barbárie em que se vive.<br />

Muitas vezes, por não receberem estímulos adequados ao<br />

processo de reflexão - que se constitui em um exercício contínuo –,<br />

esquecem-se de que são dotados de tal habilidade. Outras, a dificuldade<br />

com a língua os impede de progredir num encadeamento lógico<br />

que conduza aos argumentos necessários para um debate eficaz.<br />

Assim, pressupõe-se que o incentivo à maior exposição às<br />

manifestações culturais proporcione a ampliação das percepções<br />

cognitivas e linguísticas, bem como uma oportunidade de crescimento<br />

como ser humano, integrante de uma coletividade bastante heterogênea.<br />

Cabe ao professor, mais do que estimular o conhecimento de


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

359<br />

todos os tipos de expressões - desde a clássica até a pop –, “vender”<br />

o desejo de partilhar o mundo que acontece fora dos muros da escola.<br />

De certa forma, pratica-se um exercício de humanidade, pois, nesse<br />

momento, se começa a perceber que mão se precisa gostar de tudo<br />

ou de todos, mas há a obrigação como ser humano de não se recusar<br />

experiências. Afinal, para se afirmar que algo não agrada, deve-se<br />

primeiro conhecer.<br />

Propagar essa prática, alcançando efetivamente as salas de aula<br />

e ratificar sua importância, representa uma grande contribuição da<br />

universidade para a ciência, uma vez que o discurso científico constitui-se<br />

o lugar da autoria e da argumentação.<br />

Na tarefa de perceber determinada linguagem, requisita-se ao<br />

aluno a capacidade de reconhecê-la, identificar suas características,<br />

seus traços, seu ambiente. Na medida em que há uma impressão sensorial<br />

que se verbaliza, quando já se domina o código linguístico ou,<br />

pelo menos, se admite sua relevância, se tangibiliza o aproveitamento<br />

dessa interação. Além de uma questão estética e cognitiva, o aluno<br />

desperta para aspectos referentes à língua portuguesa, levantando<br />

questões sobre as escolhas gramaticais ou sintáticas do autor, por exemplo.<br />

O embate com novas linguagens por meio da cultura salienta,<br />

ainda, a questão do estilo, conduzindo o aluno à reflexão sobre o<br />

porquê de sua identificação com determinada obra ou autor/artista.<br />

Essa sensibilização só se torna possível quando se teve a oportunidade<br />

de passar por diferentes estilos, de vivenciar as várias maneiras de<br />

se materializar a criação. Ao concretizar suas escolhas, leva-se o aluno<br />

a expressar o subjetivo, a quantificar em palavras a qualidade da<br />

sua emoção. O trabalho em equipe “manifestação cultural – aluno –<br />

verbalização” permite uma nova perspectiva do ensino, na qual se<br />

solicita a todo o momento o aprimoramento linguístico.<br />

Aliado à contribuição significativa para o aluno, frisa-se a<br />

importância para o desenvolvimento do professor, que passa a ter<br />

como interlocutor alguém que se coloca como sujeito de suas próprias<br />

palavras, exigindo do docente uma constante interação comunicativa<br />

que proporciona trocas e novas visões sobre o estudo.<br />

Entende-se que a relevância do estudo está em contribuir para<br />

o debate acerca das manifestações culturais aplicadas à sala de aula,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

360<br />

trabalhando os conceitos de leitura, produção de textos e ensino da<br />

língua materna nos dias atuais.<br />

Um estudo que pretende contemplar as manifestações culturais<br />

como fomento para a motivação da aprendizagem da língua não<br />

se limita à área de concentração destinada e deve, portanto, buscar<br />

outras convergentes ao tema.<br />

A revisão bibliográfica abrangerá, dentre outros, aspectos da<br />

Filosofia, abordando teóricos como Theodor Adorno que versa sobre<br />

a massificação cultural e Michel Foucault que propõe uma reflexão<br />

sobre o utilitarismo; da Antropologia, a partir das considerações de<br />

Roque de Barros Laraia e José Luiz dos Santos; e dos Estudos Culturais,<br />

contemplando as propostas de Andrea Semprini sobre o Multiculturalismo<br />

e de Rogério Fleuri sobre Educação Intercultural.<br />

A história da humanidade presenciou três revoluções da informação:<br />

a escrita, o livro e a imprensa causaram grande impacto na<br />

sociedade, no ensino, na cultura – para não falar na religião. Afirmase<br />

que o mundo vivencia a quarta onda da informação; a atual, entretanto,<br />

não se traduziria em tecnologia, maquinário, técnicas ou velocidade,<br />

mas em conceitos. Com a crescente acessibilidade dos jovens<br />

a toda sorte de dados e a importância da linguagem para o pleno domínio<br />

das tecnologias e demandas do mundo contemporâneo, este<br />

trabalho visa a apontar caminhos para a inserção das manifestações<br />

culturais, entendidas como a voz social, uma maneira subjetiva de o<br />

ser humano transpor seu interior, o que pensa, o que deseja fazer,<br />

mover, ou modificar, em suas múltiplas possibilidades, na dinâmica<br />

das aulas de língua portuguesa, viabilizando, assim, que os indivíduos<br />

sejam capazes de aprender a organizar as informações como recurso-chave<br />

para o sucesso.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ARMSTRONG, Gary; KOTLHER, Philip. Princípios de marketing.<br />

Rio de Janeiro: Prentice Hall do Brasil, 1998.<br />

DELORS, Jacques et alii. (Org.). Educação: um tesouro a descobrir.<br />

Relatório para UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação<br />

para o Século XXI. São Paulo: Cortez; Brasília: MEC, 2000.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

361<br />

DERRIDA, Jacques. Positions. Chicago: University of Chicago<br />

Press, 1981.<br />

SILVA, Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In:<br />

SILVA, Tomaz. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos<br />

Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.<br />

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro. Grande dicionário Houaiss<br />

da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.<br />

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro.<br />

São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2000.


A RESPEITO DA MUDANÇA HISTÓRICA NAS CONSTRU-<br />

ÇÕES PARASSINTÉTICAS<br />

/A...ECER/ E /EN...ECER/<br />

1. Introdução<br />

Caio Cesar Castro da Silva (UFRJ)<br />

caiocvianna@gmail.com<br />

Neste artigo, pretende-se fazer uma análise histórico-semântica<br />

de duas construções parassintéticas: /a...ecer/ e /eN...ecer/. Partiremos,<br />

então, de nossa hipótese primária de que uma das construções<br />

haveria se fossilizado, enquanto a outra teria se mantido produtiva ao<br />

longo da história da língua portuguesa.<br />

Para alcançarmos nossos objetivos, foram feitas análises baseadas<br />

em corpora informatizados do português e em testes de aceitabilidade<br />

com falantes da faculdade de Letras da UFRJ. Além disso,<br />

com base nos postulados da teoria da metáfora, observaremos a polissemia<br />

das palavras.<br />

2. A parassíntese<br />

A parassíntese é, tradicionalmente, definida como a anexação<br />

simultânea de um prefixo e um sufixo a uma base (CUNHA & CIN-<br />

TRA, 2007; LIMA, 2008; CÂMARA JR., 1975). Dessa forma, vocábulos<br />

como amanhecer e emparedar são analisados como nos<br />

moldes em (1):<br />

(1) a + manhã + ecer à amanhecer<br />

e/N/ + parede + ar à emparedar<br />

Percebe-se, a partir das estruturas em (1), que o fator simultaneidade<br />

é aplicado com a adjunção dos afixos à base em um nível, e<br />

não em dois. Esse fator distingue formas como as citadas em (a) de<br />

outras como prefixar, em que o prefixo e o sufixo não são incorporados<br />

à base ao mesmo tempo (prefixo e fixar coexistem).<br />

Alguns autores, como Silva & Koch (2005) e Henriques<br />

(2007), defendem que o processo seria mais bem analisado em ter-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

363<br />

mos de circunfixos, que podem ser definidos como uma unidade de<br />

expressão desmembrada para a inserção de outra forma (GONÇAL-<br />

VES, 2005). O esquema em (2) ilustra o processo derivacional que<br />

ocorre com a inserção da base entre as frações do circunfixo.<br />

3. O corpus e hipóteses<br />

mole<br />

/a....ecer/ amolecer<br />

(2) esquema da circunfixação<br />

O levantamento de dados foi feito nos dicionários eletrônicos<br />

Houaiss e Aurélio, tendo sido considerados os circunfixos /a...ecer/,<br />

formador de verbos como “amadurecer” e “anoitecer”, e /eN...ecer/,<br />

que forma verbos como “enriquecer” e “enlouquecer”. Dos 47 vocábulos<br />

encontrados, 77% eram iniciados por e/N/-, enquanto apenas<br />

23% apresentava o prefixo a-.<br />

Observou-se, também, que muitos dos vocábulos, embora<br />

fossem formados por morfes descontínuos diferentes, apresentavam<br />

a mesma base, como nos pares em (3). Para saber se os dois vocábulos<br />

dos pares são reconhecidos, fez-se uma consulta informal a falantes<br />

nativos do português, que revelou uma forte preferência pelos<br />

verbos iniciados por e/N/-.<br />

(3) abrutecer X embrutecer, abranquecer X embranquecer<br />

Os vocábulos em (3) veiculam o mesmo significado: o primeiro<br />

par significa, de acordo com o dicionário Houaiss, tornar-se<br />

bruto, e o segundo, tornar-se branco. Com base nessas informações,<br />

pôde-se formular as hipóteses de que (i) o não-reconhecimento de<br />

/a...ecer/ pelos falantes e sua baixa produtividade seriam indícios de<br />

fossilização morfológica, (ii) a construção /eN...ecer/, ao contrário,<br />

continuaria produzindo novos itens lexicais e (iii) os dois circunfixos<br />

seriam produtivos semanticamente, i.e., as palavras existentes no léxico<br />

passam por extensões de sentido.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

364<br />

Objetivando buscar indícios que corroborem as hipóteses descritas<br />

acima, serão feitas análises de dados em dicionários etimológicos<br />

do português e em textos históricos. Além disso, serão feitas<br />

considerações sobre os resultados de testes de aceitabilidade realizados<br />

com estudantes universitários.<br />

4. Análise histórica dos circunfixos<br />

Foram consultados alguns dicionários etimológicos, como<br />

Cunha (1999), Machado (1973), Nascentes (1955) e Silveira Bueno<br />

(1967), para confirmar a primeira datação registrada em textos escritos.<br />

Os primeiros vocábulos aparecem ainda no século XIII, enquanto<br />

os últimos são registrados no século XX. A distribuição dos itens<br />

pelo período analisado encontra-se na tabela 1, em que se verifica<br />

um período de concorrência entre os circunfixos que vai desde o século<br />

XIII ao século XVI.<br />

Século Frequência de /a...ecer/<br />

XIII 6/14 = 43%<br />

XIV 3/14 = 21%<br />

XV 0/3 = 0%<br />

XVI 2/3 = 67%<br />

XVII 0/1 = 0%<br />

XVIII 0/2 = 0%<br />

XIX 0/6 = 0%<br />

XX 0/2 = 0%<br />

Total 11/ 45 = 24%<br />

Quadro 1: datação dos vocábulos<br />

Cabe ressaltar que não foram encontradas as datas de entradas<br />

de dois verbos (enfurecer e encalvecer). Percebe-se que, até o século<br />

XVI, o circunfixo /a...ecer/ formou novos itens, embora a quantidade<br />

de dados analisados não seja tão robusta. Ainda assim, verifica-se<br />

que a partir do século XVII nenhum novo verbo é registrado nos dicionários<br />

etimológicos, como pode ser visualizado no gráfico abaixo.


100<br />

80<br />

60<br />

40<br />

20<br />

0<br />

séc.<br />

XIII<br />

séc.<br />

XIV<br />

séc.<br />

XV<br />

séc.<br />

XVI<br />

séc.<br />

XVII<br />

séc.<br />

XVIII<br />

séc.<br />

XIX<br />

séc.<br />

XX<br />

Gráfico 1: distribuição dos vocábulos nos séculos<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

/a...ecer<br />

365<br />

/eN...ecer/<br />

Outro fator que ajuda a explicar a concorrência entre os circunfixos<br />

é a acepção dos prefixos. o prefixo a- tem como significado<br />

“aproximação; em direção a (base)”, enquanto o e/N/- tem o significado<br />

prototípico de “movimento sobre”, mas também pode significar<br />

“aproximação; em direção a (base)”. Todos os verbos encontrados<br />

que se assemelham aos pares em (3) são formados no período em<br />

que as construções estavam em concorrência, ou seja, entre os séculos<br />

XIII e XVI. Seguindo o princípio da economia linguística, que<br />

está relacionado à simplificação das formas da língua, um dos circunfixos<br />

resistiria à força do tempo e continuaria produzindo novos<br />

vocábulos, enquanto o outro se tornaria um fóssil morfológico.<br />

Para verificar a compreensão dos falantes do português atual,<br />

aplicaram-se testes psicolinguísticos (cf. LIMA, 1999) a 23 informantes<br />

da Faculdade de Letras/ UFRJ. O objetivo dos testes era verificar<br />

se o falante nativo de língua portuguesa produziria palavras novas<br />

a partir da construção /a...ecer/ ou de /eN...ecer/. Foram utilizadas<br />

formas inventadas para que o léxico internalizado de cada indivíduo<br />

influenciasse o menos possível os resultados. Exemplos dessas<br />

criações são: anerdecer/enerdecer, abanguelecer/ embanguelecer, agatecer/engatecer.<br />

Os testes foram realizados individualmente para que não<br />

houvesse interferência nas respostas. Todos os entrevistados estavam<br />

cursando a graduação e tinham entre 18 e 25 anos. Foram realizados<br />

três modelos de testes para que se pudesse controlar uma maior<br />

quantidade de dados.<br />

O tempo que o informante levava para julgar cada uma das<br />

palavras também foi contabilizado, já que evidenciaria a velocidade


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

366<br />

com que cada informação é acessada no léxico do indivíduo. Dizendo<br />

de outra maneira, espera-se encontrar um tempo menor para as<br />

formas em /eN...ecer/, já que estaria disponível para fins de produção<br />

de novos itens lexicais. A contrário, as palavras de /a...ecer/ devem<br />

apresentar um tempo maior.<br />

Foram controladas 18 formações parassintéticas e obtiveramse<br />

138 respostas, no total. O comportamento de cada uma das construções<br />

parassintéticas é descrito no gráfico 2.<br />

80<br />

60<br />

40<br />

20<br />

0<br />

a-X-ecer<br />

e/N/-X-ecer<br />

Gráfico 2: escolha dos circunfixos nos testes de aceitabilidade<br />

Percebe-se, assim, que somente 29%, ou 40 respostas, foram<br />

para o circunfixo /a...ecer/, enquanto que /eN...ecer/ recebeu 71%, ou<br />

98 respostas, de preferência dos informantes. O tempo médio para o<br />

processamento dos dados parassintéticos foi o seguinte: 9,2 segundos<br />

no teste 1; 8,02 segundos no teste 2; e 10,07 segundos no teste 3. O<br />

tempo médio total foi de 9,1 segundos. O tempo médio para cada<br />

construção parassintética é apresentado no quadro 2:<br />

Tempo Médio<br />

a-X-ecer e/N/-X-ecer<br />

Modelo 1 10,4 segundos 8,3 segundos<br />

Modelo 2 8,3 segundos 7,8 segundos<br />

Modelo 3 10,3 segundos 9,5 segundos<br />

Total 9,7 segundos 8,5 segundos<br />

Quadro 2: resultado do tempo em relação aos testes<br />

Cotejando os resultados, percebe-se que a média de tempo de<br />

/eN...ecer/ é bem inferior que a do outro grupo, assim como a média<br />

total de tempo revela uma grande discrepância: 1,2 segundos de diferença<br />

entre os dois dados investigados.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

367<br />

A partir dos resultados dos testes, pôde-se trazer à baila mais<br />

um indicativo de que a construção /a...ecer/ se fossilizou, uma vez<br />

que apresentou baixa escolha entre os falantes do português (29%<br />

contra 71% de preferência por /eN...ecer/), como também demonstrou<br />

um tempo maior de processamento cognitivo. Se fosse uma<br />

construção produtiva, teria tido resultados não tão expressivos na<br />

comparação com o outro circunfixo.<br />

5. A extensão de sentido: uma questão de polissemia<br />

Para mostrar que as palavras das duas construções ainda possuem<br />

extensões semânticas, será utilizado o aparato da linguística<br />

cognitiva, mais especificamente a noção de metáfora e de mapeamento.<br />

Segundo a LC, a metáfora é entendida como uma operação<br />

cognitiva fundamental, ao contrário do que postula a tradição retórica.<br />

Lakoff & Johnson (2002) propõem que a nossa linguagem cotidiana<br />

é essencialmente metafórica, oferecendo uma alternativa experiencialista<br />

às perspectivas do objetivismo e do subjetivismo. Assim<br />

sendo, as palavras apresentam, comumente, extensões de sentido que<br />

não são aleatórias, mas motivadas cognitivamente. Sob esse enfoque,<br />

toda metáfora pode ser explicada por nossas experiências corporais<br />

ou interações com o meio. O espraiamento de um domínio fonte<br />

(mais concreto) para um domínio alvo (mais abstrato) é fundamental<br />

para a estruturação semântica. Os mapeamentos de sentidos são, dessa<br />

forma, descritos por Sweetser (1990:30) como “unidirecionais: as<br />

experiências corporais são uma fonte de vocabulário para nossos estados<br />

psicológicos, mas não o contrário”.<br />

Pode-se, assim, observar a metáfora TER CONTROLE É<br />

PARA CIMA; SER CONTROLADO É PARA BAIXO, que tem<br />

como exemplo (4), retirado do site Mídia News 1 .<br />

(4) Em MT, PSB ajuda a enfraquecer candidatura de Ciro.<br />

Seguindo Lakoff & Johnson (2002), inferimos que há uma<br />

competição entre dois candidatos adversários e que, nesse confronto,<br />

1


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

368<br />

PSB exerce controle sobre a candidatura de Ciro Gomes. Podemos<br />

concluir que o partido se encontra em uma posição superior em relação<br />

ao candidato. Isso é estabelecido a partir de nosso conhecimento<br />

de mundo, que apresenta a questão de ter controle sobre um oponente,<br />

como estando (a) na frente em um placar, (b) em uma posição à<br />

frente em uma corrida ou (c) acima, em uma luta corporal. Assim,<br />

nossa cognição atua metaforicamente e projeta esse significado para<br />

um debate, ou seja, uma competição eleitoral.<br />

Outro exemplo é apresentado em (5), retirado do site Uol<br />

Música 2 . Nesse caso, as ideias são conceptualizadas como entidades<br />

naturais, que podem sofrer o processo de maturação.<br />

(5) “Eu escutei muitas músicas do Black Jones, Stevie Wonder,<br />

Michael Jackson, coisas lindas. Nós acabamos desviando a atenção<br />

de muitas coisas lindas que tinham. Eu com isto busquei amadurecer<br />

as idéias para fazer uma coisa simples e com bom gosto.” cantora<br />

Luciana Melo.<br />

A metáfora IDEIAS SÃO ENTIDADES NATURAIS está relacionada<br />

à hipótese da corporificação, muito cara aos estudos cognitivistas.<br />

Pode-se citar Lakoff & Johnson (2002: 28) a esse respeito:<br />

A mente seria “corporificada”, isto é, estruturada através de nossas<br />

experiências corporais, e não uma entidade de natureza puramente metafísica<br />

e independente do corpo. Da mesma forma, a razão não seria algo<br />

que pudesse transcender o nosso corpo: ela é também “corporificada”,<br />

pois origina-se tanto da natureza de nosso cérebro, como das peculiaridades<br />

de nossos corpos e de suas experiências no mundo em que vivemos.<br />

6. Considerações finais<br />

Espera-se ter apresentado evidências de que o circunfixo<br />

/a...ecer/ se cristalizou, enquanto o outro se manteve produtivo ao<br />

longo da história da língua. No mais, ambas as construções possibilitam<br />

a atuação de processos metafóricos que ampliam as acepções de<br />

cada uma das palavras.<br />

2


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

369<br />

BUENO, F. da S. Grande dicionario etimologico, prosodico da lingua<br />

portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1967.<br />

CAMARA Jr., Joaquim Mattoso. História e Estrutura da Língua<br />

Portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975.<br />

CUNHA, A. G. da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua<br />

portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.<br />

CUNHA, Celso Ferreira da & CINTRA, Luis Filipe Lindley. Nova<br />

gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Lexicon Informática,<br />

2007.<br />

Em MT, PSB ajuda a enfraquecer candidatura de Ciro. In:<br />

Midia News. Disponível em:<br />

http://www.midianews.com.br/?pg=noticias&cat=1&idnot=22103<br />

Acesso em: 25 abr. 2010, às 14h20min.<br />

FERREIRA, A. B. de H. Minidicionário Aurélio. São Paulo: Editora<br />

Nova Fronteira, 1996.<br />

GONÇALVES, Carlos Alexandre. Flexão e derivação em português.<br />

Rio de Janeiro: Ed Faculdade de Letras da UFRJ, 2005.<br />

HENRIQUES, Claudio Cezar. Morfologia: Estudos lexicais em<br />

perspectiva sincrônica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.<br />

HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico Houaiss da língua portuguesa.<br />

Ed. Objetiva: 2001.<br />

LAKOFF, G. & JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana. Campinas:<br />

Mercado de Letras e Educ, 2002.<br />

LIMA, Carlos Henrique da Rocha. Gramática normativa da língua<br />

portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.<br />

LIMA, P. L. L. Desejar é ter fome: novas ideias sobre antigas<br />

metáforas conceituais. Tese de doutorado. São Paulo: UNICAMP,<br />

1999.<br />

Luciana Mello disse que faz CD para ser tocado nas rádios. In: UOL<br />

Música. Disponível em:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

370<br />

. Acesso<br />

em: 03 jul. 2007 às 19h00min.<br />

MACHADO, J. P. Dicionário etimológico da língua portuguesa:<br />

com a mais antiga documentação escrita e conhecida de muitos dos<br />

vocábulos estudados. Lisboa: Livros Horizonte, 1973.<br />

NASCENTES, A. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio<br />

de Janeiro: Acadêmica, 1955.<br />

SILVA, Augusto S. O mundo dos sentidos em português. Coimbra:<br />

Almedina, 2006.<br />

SILVA, Maria Cecília Pérez de Souza & KOCH, Ingedore Grunfeld<br />

Villaça. Lingüística Aplicada ao Português: Morfologia. São Paulo:<br />

Cortez, 2005.<br />

SWEETSER, E. From etymology to pragmatics. Metaphorical and<br />

cultural aspects os sematic structure. Cambridge: Cambridge University<br />

Press, 1990.


A RETÓRICA EM O CRIME DO PADRE AMARO<br />

1. Introdução<br />

Ânderson Rodrigues Marins (UERJ)<br />

profandermarins@hotmail.com<br />

No romance O Crime do Padre Amaro, do escritor português<br />

Eça de Queirós (1845-1900), reside a exposição do comportamento<br />

pernicioso não só dos padres, mas também do clero em geral. Entre<br />

as principais ideias discutidas ao longo da obra identificam-se, ainda:<br />

aliança entre a igreja e os políticos, troca de favores para conquista<br />

de benefícios, valorização da ciência e das teorias vigentes na época,<br />

crime sem castigo, homossexualismo, miséria, casamento por interesse.<br />

O presente artigo analisa os principais comportamentos das<br />

personagens e os tipos de discursos utilizados por elas, e para esse<br />

fim adotamos por base a retórica antiga de Aristóteles 1 e os métodos<br />

de elaboração da linguagem persuasiva. Assim é que, estando a par<br />

de que todos os homens se empenham dentro de certos limites em<br />

submeter a exame ou sustentar uma tese, em apresentar uma defesa<br />

ou uma acusação, analisamos como isso é realizado pelas personagens<br />

do romance.<br />

2. Intencionalidade discursiva<br />

O homem utiliza diariamente a linguagem nas relações com<br />

outros indivíduos como um instrumento de ação carregado de intencionalidade.<br />

A linguagem torna-se o mecanismo necessário para a<br />

interação social, transmitindo pensamentos, vontades, experiências,<br />

1 Atente-se para a definição da Retórica dada por Aristóteles (1996, p. 33): Assentemos<br />

que a Retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser<br />

capaz de gerar a persuasão. Nenhuma outra arte possui esta função, porque as demais<br />

artes têm, sobre o objeto que lhes é próprio, a possibilidade de instruir e de persuadir;<br />

por exemplo, a Medicina, sobre o interessa à saúde e à doença, a Geometria, sobre as<br />

variações das grandezas, a Aritmética, sobre o número; e o mesmo acontece com as<br />

outras artes e ciências.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

372<br />

tentando assim envolver o destinatário na consciência interior do locutor,<br />

a fim de que participe da sua realidade e de seu conhecimento<br />

de mundo 2 .<br />

Quando há o ato interativo, o locutor tem, necessariamente,<br />

determinados objetivos e propósitos, que vão desde a básica intenção<br />

de estabelecer ou manter o contato com o receptor até a de levá-lo a<br />

partilhar de suas opiniões ou a agir ou comportar-se de determinada<br />

maneira. Pode-se notar facilmente que a intencionalidade tem estreita<br />

relação com o que se tem chamado de argumentatividade. Essa intencionalidade<br />

no discurso é realizada através de argumentos. E é<br />

nesse discurso argumentado que há pretensões (KOCK, 2007; NO-<br />

GUEIRA, 2007).<br />

Além desse discurso argumentado, o romance é, ab initio, impregnado<br />

de um discurso filosófico-questionador (GARCIA, 2003),<br />

que se revela como que à procura de saber a verdade por trás dos fenômenos,<br />

das aparências, das verdades estabelecidas, das crenças<br />

generalizadas:<br />

Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria que o pároco da<br />

Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco<br />

era um homem sanguíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo<br />

comilão dos comilões. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O<br />

Carlos da Botica – que o detestava – costumava dizer, sempre que o via sair<br />

depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:<br />

– Lá vai a jiboia esmoer. Um dia estoura!<br />

Com efeito, estourou, depois de uma ceia de peixe – à hora em que<br />

defronte, na casa do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido.<br />

Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado.<br />

Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca,<br />

cabelos nos ouvidos, palavras muitos rudes (QUEIRÓS, 1991 3 , p. 13).<br />

2 Consideramos relevante apontar aqui as três funções essenciais da linguagem: representação<br />

mental, exteriorização psíquica e interação social. A primeira está ligada ao<br />

fato de o ser humano poder demonstrar a sua compreensão das coisas que o cercam,<br />

isto é, do mundo em que vive; quanto à segunda compreende-se que é o ato de ele exprimir<br />

o pensamento com o objetivo de se fazer entender e, dessa forma, participar<br />

com os outros da vida comum; e a terceira, por sua vez, refere-se ao fato de o ser humano<br />

estar integrado em uma comunidade, na qual o ato de sugestionar é recíproco<br />

entre os membros da sociedade.<br />

3 Todas as citações serão dessa edição.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

373<br />

Percebe-se, facilmente, que a reboque da riqueza de detalhes,<br />

da caracterização científica de personagens, emite-se, mediante um<br />

discurso filosófico-questionador, uma evidente crítica social. Essa<br />

crítica, na verdade, alia-se ao propósito assumido por Eça de Queirós<br />

de escrever, em coerência com as teorias do Realismo - que procurava<br />

ver esteticamente os problemas sociais, como alguém que se pusesse<br />

num camarote a analisar com binóculos as chagas sócias, ou<br />

quando delas se aproximasse, fizesse-o com luvas de pelica – e com<br />

as ideias aceitas, obras de combate às instituições vigentes (Monarquia,<br />

Igreja, Burguesia) e de ação e reforma social (MOISÉS, 2003,<br />

p. 192-5).<br />

Existem outros exemplos nos quais encontramos confirmações<br />

do que até então vimos afirmando. No que reproduzimos abaixo,<br />

ficam manifestos os desejos carnais cometidos pelo Padre Amaro<br />

– que pecava por desejar Amélia –, reflexo do péssimo comportamento<br />

do clero:<br />

Amaro achava aquelas unhas admiráveis, porque tudo que era ela ou<br />

vinha dela lhe parecia ser perfeito; gostava da cor dos seus vestidos, do<br />

seu andar, do modo de passar os dedos pelos cabelos, e olhava até com<br />

ternura para as saias brancas que ela punha a secar à janela do seu quarto,<br />

enfiadas numa cana. Nunca estivera assim na intimidade de uma mulher.<br />

Quando percebia a porta do quarto dela entreaberta, ia resvalar para dentro<br />

olhares gulosos, como para perspectivas de um paraíso: um saiote<br />

pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficara sobre o baú, eram<br />

revelações da sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo pálido. E<br />

não se saciava de a ver falar, rir, andar com as saias muito engomadas<br />

que batiam as ombreias das portas estreitas. Ao pé dela, muito franco,<br />

muito langoroso, não lhe lembrava que era padre: o Sacerdócio, Deus, a<br />

Sé, o Pecado, ficavam embaixo, longe; via-os muito esbatidos do alto do<br />

seu enlevo, como de um monte se veem as casas desaparecer no nevoeiro<br />

dos vales; e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na<br />

brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha (p. 57).<br />

3. Elementos do discurso retórico<br />

Pode-se afirmar sem reservas que todo ato de tomar a palavra<br />

implica a construção de uma imagem de si, o que, consequentemente,<br />

é inferido pelo interlocutor. Assim, o ethos era designado pelos<br />

antigos como a construção de uma imagem de si destinada a garantir<br />

o sucesso do empreendimento oratório. O ethos, então, está vinculado<br />

aos traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório –


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

374<br />

pouco importando sua sinceridade – para causar boa impressão. O<br />

orador enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: sou isto, não<br />

sou aquilo. Aristóteles afirma em sua Retórica que é ao caráter moral<br />

que o discurso deve, por assim dizer, quase todo seu poder de persuasão.<br />

A título de exemplo, basta lembrarmos as tramas enganosas tecidas<br />

pelo padre Amaro para conquistar Amélia, do partido do sedutor<br />

inconsequente e o da mulher disponível e ingênua que acredita no<br />

discurso vazio e enganador de galã que se valoriza: Amaro com sua<br />

pretensa ligação direta com Deus.<br />

O logos (a ideia, o conceito) existente na mensagem é carregado<br />

de um discurso emocional, o qual pode persuadir, ao apelar-se<br />

para emoção e não para a razão, quando vazio de significado (GAR-<br />

CIA, 2003).<br />

Exemplo significativo tem-se a seguir:<br />

– E Amaro despeitado, descontente também por não a ter visto nessa<br />

manhã à missa das nove, resolveu “pôr tudo a claro numa carta de sentimento”;<br />

e preparava os períodos sentidos que lhe deviam ir resolver o<br />

coração, passeando pela casa, juncando o chão de pontas de cigarro, a<br />

cada momento curvando sobre o Dicionário de Sinônimos.<br />

Ameliazinha do meu coração: (escrevia ele). Não posso atinar com<br />

as razões maiores que a não deixaram responder ao bilhetinho que lhe<br />

dei em casa da senhora sua mamã; pois que era pela muita necessidade<br />

que tinha de lhe falar a sós, e as minhas intenções eram puras, e na inocência<br />

desta alma que tanto lhe quer e que não medita o pecado.<br />

Deve ter compreendido que lhe voto um fervente afeto, e pela sua<br />

parte me parece, (se não me enganam esses olhos que são os faróis da<br />

minha vida, e como a estrela do navegante) que também tu, minha Ameliazinha,<br />

tens inclinação por quem tanto te adora, pois que até outro dia,<br />

quando o Libânio quinou com os seis primeiros números, e que todos fizeram<br />

tanta algazarra, tu apertaste-me a mão por baixo da mesa com tanta<br />

ternura, que até me pareceu que o céu se abria e que eu sentia os anjos<br />

entoarem o hosana! Por que não respondeste pois? Se pensas que o nosso<br />

afeto pode ser desagradável aos nossos anjos da guarda, então te direi<br />

que maior pecado cometes trazendo-me nesta incerteza e tortura , que até<br />

na celebração da missa estou sempre com o pensar em ti, e nem me deixa<br />

elevar a minha alma no divino sacrifício. Se eu visse que este mútuo afeto<br />

era obra do tentador, eu mesmo te diria: oh, minha bem amada filha,<br />

façamos o sacrifício a Jesus, para lhe pagar parte do sangue que derramou<br />

por nós! Mas eu tenho interrogado a minha alma e vejo nela a brancura<br />

dos lírios. E o teu amor também é puro como a tua alma, que um dia<br />

se unirá à minha, entre os coros celestes, na bem-aventurança. Se tu soubesses<br />

como eu te quero, querida Ameliazinha, que até às vezes me pare-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

375<br />

ce que te podia comer aos bocadinhos! Responde pois e dize se não te<br />

parece que poderia arranjar-se a vermo-nos no Morenal, pela tarde. Pois<br />

eu anseio por te exprimir todo o fogo que me abrasa, bem como falar-te<br />

de coisas importantes, e sentir na minha mão a tua que eu desejo que me<br />

guie pelo caminho do amor, até aos êxtases de uma felicidade celestial.<br />

Adeus, anjo feiticeiro, recebe a oferta do coração do teu amante e pai espiritual.<br />

(p. 94-5)<br />

Apelando para a emoção, revestido de um ethos sedutor, Amaro<br />

organiza o pensamento e a linguagem, os quais podem servir à<br />

finalidade de quem discursa para obter, em determinada situação, o<br />

efeito que pretende. A prática persuasiva está a serviço de um partido,<br />

de uma ideologia, de uma verdade. No caso de Amaro, de fato, o<br />

partido de um sedutor inconsequente.<br />

Já em relação à personagem Amélia, encontra-se um traço do<br />

caráter feminino frequente na ficção literária: a ambiguidade, derivada<br />

da dissimulação e da astúcia (cf. EPSTEIN, 1993, p. 107), como<br />

se percebe facilmente no fragmento abaixo:<br />

E Amaro não sabia, quando passeava agitado pelo seu quarto, que<br />

ela em cima o escutava, regulando as palpitações do seu coração pelas<br />

passadas dele, abraçando o travesseiro, toda desfalecida de desejos, dando<br />

beijos no ar, onde se lhe representavam os lábios do pároco.<br />

[...]<br />

Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a donzela inexperiente<br />

a que aludia o Comunicado era ela, Amélia, e torturava-a o vexame<br />

de ver assim o seu amor publicado no jornal. Depois (como ela pensava,<br />

mordendo o beiço numa raiva muda, com os olhos afogados de lágrimas),<br />

aquilo vinha estragar tudo! Na Praça, na Arcada já se diria com risinhos<br />

perversos: – “Então a Ameliazita da S. Joaneira metida com o pároco<br />

hem?” Decerto o senhor chantre, tão severo em “coisas de mulheres”,<br />

repreenderia o Padre Amaro... E por alguns olhares, alguns apertos<br />

de mão, aí estava a sua reputação estragada, estragado o seu amor!<br />

E Amélia, que ficara branca como a cal, teve imediatamente a certeza<br />

que o pároco, aterrado com o escândalo do jornal, aconselhado pelos<br />

padres timoratos, zelosos “do bom nome do clero” – tratava de se descartar<br />

dela! Mas, cautelosa, diante das amigas da mãe, escondeu o seu desespero;<br />

foi mesmo sentar-se ao piano, e tocou mazurcas tão estrondosas<br />

– que o cônego, tomando a mexer-se na poltrona, grunhiu:<br />

– Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga! (p. 73, 104-5)<br />

Assim, a personagem pode forjar comportamentos, inventar<br />

mentiras e dissimular atitudes para fugir às consequências ocasiona-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

376<br />

das pelos seus atos. Mas como ver esta dissimulação? Negativamente,<br />

como traço inferior de caráter ou como estratégia de combate do<br />

mais fraco?<br />

Filha de dona Augusta Caminha (a S. Joaneira), Amélia não<br />

conheceu o pai e foi educada em ambiente clerical, pois sua mãe recebia<br />

frequentes visitas de padres e de outros membros da igreja.<br />

Romântica e sonhadora, pode-se dizer que a personalidade e o caráter<br />

de Amélia são um espelho de sua criação. Ela ama, por assim dizer,<br />

a figura do padre e não o homem.<br />

À luz das reflexões de Garcia (1999, p. 307) é a simples inspeção<br />

(ausência de análise dos fatos ou análise superficial deles) que<br />

nos leva a pronunciamentos motivados por impulsos afetivos, a expressão<br />

de sentimentos e não a juízos pautados pela razão. É exatamente<br />

o que se vê a seguir:<br />

Amélia ficou na sala de jantar até tarde fazendo o rascunho da carta.<br />

Dizia:<br />

SR. JOÃO EDUARDO<br />

A mamã cá me pôs ao fato da conversação que teve consigo. E se a<br />

sua afeição é verdadeira, como creio e me tem dado muitas provas, eu<br />

estou pelo que se decidiu com muita boa vontade, pois conhece os meus<br />

sentimentos. E a respeito de enxoval e papéis, amanhã se falará, pois<br />

que o esperamos para o chá. A mamã está muito contente e eu desejo<br />

que tudo seja para nossa felicidade, como espero há de ser, com a ajuda<br />

de Deus. A mamã recomenda-se e eu sou<br />

A que muito lhe quer<br />

Amélia Caminha.<br />

Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante<br />

dela deram-lhe o desejo de escrever ao Padre Amaro. Mas o quê? Confessar-lhe<br />

o seu amor, com a mesma pena, molhada na mesma tinta, com<br />

que aceitava por marido o outro?... (p. 107).<br />

Pela razão, Amélia sabia que deveria se afastar de Amaro; pela<br />

emoção, não era capaz de resistir a essa ideia. Corrobora-se, então,<br />

como traço do caráter de Amélia a dissimulação.<br />

É possível identificar, facilmente, no discurso empregado por<br />

Amélia, uma modalização do discurso. Esse tipo de estratégia persuasiva<br />

consiste em organizar o discurso de tal modo que ele não sirva<br />

a nenhum outro propósito senão o de também convencer, persuadir o


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

377<br />

ouvinte. E para tanto, foram utilizados a diretividade – o falante diz<br />

claramente ao ouvinte o que fazer – e a assertividade – o falante sequer<br />

aventa possibilidades de dúvidas ou de negativas (GARCIA,<br />

2006, p. 9).<br />

No contexto em que foi empregada, a modalização serviu para<br />

aprazer o João Eduardo que, desconfiado do envolvimento de Amélia<br />

com Amaro, fizera uma crítica anônima ao clero no jornal "A Voz<br />

do Distrito". Esse ato, quando descoberto, faz com que o rapaz perca<br />

o emprego, a noiva, e passe a ser tratado como um excomungado na<br />

cidade de Leiria. Como sabemos, sua situação só não ficou pior porque<br />

começou a trabalhar como educador dos filhos do senhor Morgado,<br />

que também não gostava muito do clero.<br />

João Eduardo – rapaz alto, pele branca e um belo bigode pequeno<br />

muito negro, caído aos cantos, que ele costumava mordicar<br />

com os dentes – é um personagem usado por Eça para denunciar o<br />

jogo de interesses e a politicagem, pois sempre sonhou em conseguir<br />

um emprego melhor por meio de favores de pessoas influentes. Trabalhava<br />

como escrevente no cartório do Nunes e era noivo de Amélia<br />

que, por sua vez, não estava verdadeiramente interessada pelo rapaz.<br />

Lembremos, por fim, que João Eduardo detestava o clero e frequentava<br />

a igreja somente para agradar à Amélia e a sua mãe, o que<br />

vem a confirmar o seu jogo de interesses.<br />

4. Conclusão<br />

Os elementos do discurso retórico e as estratégias de elaboração<br />

da linguagem persuasiva puderam ser facilmente identificados<br />

nos discursos das personagens. Nosso estudo, evidentemente, não<br />

ambicionou esgotar o assunto, mas buscou aplicar parte dessas teorias<br />

em um rico romance, assim como o mesmo pode ser feito em outros<br />

gêneros textuais.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

378<br />

AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso.<br />

Disponível em:<br />

.<br />

Acesso em: 09/12/2009.<br />

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro,<br />

1996.<br />

CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 8. ed. São Paulo: Ática,<br />

1994.<br />

DUARTE, Lélia Parreira. Arte & manhas da ironia e do humor. Disponível<br />

em:<br />

. Acesso<br />

em: 09/12/2009.<br />

EPSTEIN, Issac. Gramática do poder. São Paulo: Ática, 1993.<br />

GARCIA, Afrânio. Estratégias de persuasão. Rio de Janeiro: O Autor,<br />

2006.<br />

______. Tipos de discurso. Rio de Janeiro: O Autor, 2003.<br />

GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna: aprenda a escrever,<br />

aprendendo a pensar. 17. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1999.<br />

GINZBURG, Carlo. Relação de força: história, retórica, prova. Tradução<br />

de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.<br />

KOCK, Ingedore Grunfeld Villaça. A coerência textual. 17. ed. São<br />

Paulo: Contexto, 2007.<br />

______. Argumentação e linguagem. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1993.<br />

MARINS, Ânderson Rodrigues. Discurso da narrativa e ensino. In:<br />

Cadernos do CNLF. Rio de Janeiro: CIFEFIL, Vol. XII, Nº6, 2008,<br />

p. 40-6.<br />

NOGUEIRA, Andréa Scavassa Vecchia. Algumas considerações sobre<br />

a linguagem persuasiva. Jus Navigandi. Teresina, ano 11, nº<br />

1316, 7 fev. 2007. Disponível em:<br />

. Acesso em:<br />

05/01/ 2010.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

379<br />

QUEIRÓS, Eça de. O crime do padre Amaro. São Paulo: Ediouro,<br />

1991.<br />

TESCH, André Gabrich. Análise do discurso religioso em O Crime<br />

do Padre Amaro. Disponível em:<br />

.<br />

Acesso em: 08/12/2009


A SEDUÇÃO DISCURSIVA DA MÚSICA CRÉU<br />

1. Considerações preliminares<br />

Vagner Aparecido de Moura (PUC-SP)<br />

moura_vagner@ig.com.br<br />

A antropologia interpretativa, postula que, no estudo dos valores<br />

culturais de uma determinada sociedade, não cabe mais a busca<br />

de leis universalizantes para o gênero humano, porém uma interpretação<br />

das culturas existentes, a sua compreensibilidade por nós, por<br />

intermédio de sua tradução 1 , em outras palavras, segundo Jordão<br />

(2004, p. 38), “o critério de cientificidade deve residir na estruturação<br />

lógica da pesquisa, na compreensão do fenômeno estudado e não<br />

mais em uma neutralidade e objetividade absolutas do conhecimento”.<br />

Partindo desse pressuposto, fomos impelidos a adentrar no<br />

ambiente escolar e perceber que o cotidiano escolar é movido por valores,<br />

sentimentos, pensamentos, concepções, culturas escolares e<br />

profissionais, onde as culturas sociais guiam os agentes, sujeitos da<br />

prática educativa, já que é o momento da autodescoberta da ação<br />

humana é mais do que a descoberta de explicações causais, teóricas<br />

ou ideológicas. Nesse processo de desnudamento da realidade que<br />

cerca o cotidiano do adolescente, nota-se que a música exerce um<br />

papel fucral no desenvolvimento de um comportamento, das escolhas<br />

lexicais, do vestiário, uma vez que aglutina valores e comportamentos<br />

de um estrato da sociedade, assim criando a sua própria linguagem<br />

e valores culturais para interagir com os interlocutores. Baseado<br />

nessas premissas, este artigo abordará: o histórico da análise<br />

do discurso, formação discursiva – dialogismo e ethos; o conceito de<br />

Música e o histórico do estilo Funk, com o propósito de analisar o<br />

corpus da música Créu – que contagia os adolescentes da periferia de<br />

São Paulo – por meio de um embasamento teórico de Mussalim<br />

(2005), Maigueneau (2004), Bakhtin (1992), Kerbrat-Orecchioni<br />

(1989), Amossy (2005) e Herschmann (2005).<br />

1 Essa concepção nos leva a defesa que postulou Evans-Ptrichard (1950) da antropologia como<br />

tradução para nossa cultura daqueles que são nossos sujeitos de pesquisa.


2. Histórico da análise do discurso<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

381<br />

A língua é analisada na estrutura interna em um sistema fechado,<br />

surgindo assim o estruturalismo. A análise do discurso cresce<br />

estruturada no Marxismo, juntamente com o desenvolvimento e<br />

crescimento da linguística. De acordo com Mussalim (2005), a priori<br />

discurso significa qualquer coisa, pois toda produção de linguagem é<br />

um discurso.<br />

A análise do discurso teve origem na França em 1960, neste<br />

momento, não considera a intenção do sujeito como algo determinante,<br />

porém os estudos pós 1960 demonstram que os sujeitos são<br />

condicionados por uma ideologia, sendo que analisar o discurso nada<br />

mais é que estudar a discursivização. Além disso, a análise do discurso<br />

trabalha com conceitos de formação discursiva, formação ideológica,<br />

heterogeneidade e interdiscurso, quer dizer, que a análise do<br />

discurso é ancorado no Marxismo Althusseriano, na psicanálise lacaniana<br />

e na linguística estrutural. Sendo assim, de acordo com Maigueneau<br />

(2004, p. 21), “a análise do discurso supõe a colocação conjunta<br />

de vários textos, dado que a organização do texto tomado isoladamente<br />

não pode remeter senão a si mesmo (estrutura fechada) ou<br />

à língua (estrutura infinita).”<br />

2.1. Dialogismo<br />

De acordo com Bakhtin (1992) a linguagem é dialógica, uma<br />

vez que a ciência humana possui método e objetos dialógicos, as ideias<br />

sobre o homem e a vida são marcadas pelo dialogismo, por isso<br />

Bakhtin (1992, p. 35 apud BRAIT, 1997, p. 30) ”a vida é dialógica<br />

por natureza”.<br />

2.2. Ethos<br />

O ato de utilizar a palavra leva a construção de uma imagem<br />

de si. Não é preciso que o locutor faça seu autorretrato, simplesmente<br />

o locutor faz em seu discurso uma apresentação de si, efetua-se<br />

com frequência à revelia dos parceiros, nas trocas verbais do cotidiano.<br />

Roland Barthes (1970, p. 315) designa ethos como os traços de<br />

caráter que o orador mostra ao auditório com sinceridade ou não,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

382<br />

contudo objetiva causar boa impressão. A construção da imagem dos<br />

interlocutores na obra de Michel Pêcheux (1969), onde é feita uma<br />

imagem um do outro, o emissor a faz uma imagem de si mesmo juntamente<br />

com seu interlocutor e de forma recíproca o receptor faz<br />

uma imagem do emissor e de si mesmo. Kerbrat-Orecchioni (1989)<br />

salienta que a imagem que fazem de si mesmos, do outro e aquela<br />

que imaginam que o outro faz deles. Nesse processo marca das competências<br />

não linguísticas dos interlocutores que mostram a situação<br />

que forma o universo discursivo. Dominique Maingueneau (1993, p.<br />

138, apud AMOSSY, 2005, p. 31) salienta que o ethos não é dito<br />

claramente, porém mostrado:<br />

O que o orador pretende ser, ele o dá a entender e mostra: não diz<br />

que é simples ou honesto, mostra-o por sua maneira de se exprimir. O<br />

ethos está, dessa maneira, vinculado ao exercício da palavra, ao papel<br />

que corresponde a seu discurso, e noção ao individuo real, independente<br />

de seu desempenho oratório: é, portanto, o sujeito da enunciação uma<br />

vez que enuncia que está em jogo aqui.<br />

O lugar onde aparece o ethos é o discurso, o logos do orador,<br />

mostra as escolhas feitas. Toda forma de se expressar, resulta da escolha<br />

entre diversas possibilidades linguísticas e estilísticas, Ruth<br />

Amossy lembra que Roland Barthes (1966, p. 212, apud AMOSSY,<br />

2005, p. 70) sublinhou esta característica essencial: “são os traços de<br />

caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importando<br />

sua sinceridade) para causar boa impressão. [...] O orador enuncia<br />

uma informação e, ao mesmo tempo, ele diz: eu sou isto, eu sou aquilo".<br />

O ethos está ligado ao ato de enunciação e o público constrói<br />

representações do ethos do enunciador antes que fale.<br />

3. Formação Discursiva<br />

De acordo com Maingueneau (2004, p. 20), “formação discursiva<br />

é um conjunto de enunciados produzidos de acordo com esse<br />

sistema (a superfície discursiva)”. Sendo esse item (superfície discursiva)<br />

definido por Foucault (1995, p. 135, apud MANINGUE-<br />

NEAU, 2004, p. 20) como discurso "um conjunto de enunciados na<br />

medida em que eles decorram da mesma formação discursiva... é<br />

constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos<br />

definir um conjunto de condições de existência”.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

383<br />

Compreende-se que enunciado e formação discursiva estão<br />

intimamente ligados, principalmente das práticas discursivas que<br />

Foucault chama de práticas discursivas e que ele definiu assim:<br />

4. Música<br />

Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas<br />

no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada<br />

área econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício<br />

da função enunciativa. (FOUCAULT, 1969, apud PAVEAU &<br />

SARFARI, 2006, p. 207)<br />

A música não expressa uma ideia intelectual definida, tampouco<br />

um sentimento determinado, mas apenas aspectos psicológicos<br />

gerais, abstratos, (SCHNEIDER, 1957), porém essa generalidade<br />

não é uma abstração vazia, mas sim uma espécie de expressão com<br />

objetos divergentes que correspondem ao pensamento conceitual, por<br />

isso a música pode ser compreendida, interpretada e executada de<br />

diversas formas.<br />

Para Richard Wagner (1813/1883), música é a linguagem do<br />

coração humano. O conceito de música diverge de cultura para cultura,<br />

embora a linguagem verbal seja uma forma de comunicar e de<br />

nos relacionarmos.<br />

A música não é universal, já que cada povo possui sua maneira<br />

de expressão por meio da palavra. Então, a música possui uma<br />

linguagem universal, porém com dialetos que variam de cultura para<br />

cultura, envolvendo a maneira de tocar, cantar, organizar os sons e<br />

definir as notas básicas juntamente com seus intervalos. Ela está vinculada<br />

às emoções e ao mundo pré- verbal, tem uma linguagem privilegiada,<br />

já que por intermédio da música os seres humanos se comunicam<br />

e até dialogam com os cosmos, objetivando viajar pelo espaço<br />

com um disco de bronze banhado de ouro, levando o som da<br />

Terra.<br />

Em razão disso, Sagan (1983, p. 287, apud JEANDOT, 2008,<br />

p. 13) postula que “a música delicada de muitas culturas, algumas<br />

delas expressando nossa sensação de solidão cósmica, nosso desejo<br />

de terminar o isolamento, nossa vontade de estabelecer contato com<br />

outros seres no Cosmos”.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

384<br />

No entanto, quando um ser humano toca determinado instrumento,<br />

cria um gesto, por isso controla o som, já que a palavra cantada<br />

amplia, de forma significativa, o vigor da linguagem falada. Enfatiza<br />

Stockhausen (1971, p. apud JEANDOT, 2008, p. 18), dizendo<br />

que a música é<br />

determinada pelos músculos: os da laringe para o canto, os dos dedos para<br />

os instrumentos, os da respiração para os instrumentos de sopro, tudo<br />

é determinado pelo corpo do homem e é por isso que nunca se tocou segundo<br />

ritmos mais rápidos ou mais lentos que os naturais do corpo.<br />

Percebemos assim, que a música não surgiu das reflexões de<br />

Pitágoras, tampouco de estudos das cordas ou das lâminas que vibram;<br />

é simplesmente resultado de extensas e infinitas vivências do<br />

indivíduo com a música e de civilizações musicais diversas. Por conseguinte,<br />

Aguiar (1998) diz que:<br />

5. Estilo Funk<br />

A canção, tal como conhecemos hoje, existe há bastante tempo. Uma<br />

de suas características foi a de ser música produzida no meio popular e<br />

para ele especialmente dirigida.<br />

(...) Contudo, é pela antiga combinação letra & música que a canção<br />

melhor define. Quando pensamos em música popular, logo nos vem à<br />

mente a imagem de um cantor. (...). As palavras da letra servem para fixar<br />

a melodia na memória. Saber cantar as canções é um dos prazeres do<br />

ouvinte, e isto só é possível graças à presença da letra combinada à música.<br />

O termo funk ou funky surgiu na virada da década de 60 para<br />

70, deixando de lado a conotação negativa para tornar-se símbolo de<br />

alegria, de orgulho negro. No mercado o soul marca presença, então,<br />

alguns músicos da época começaram ver o funky apenas como uma<br />

vertente da música negra, capaz de elaborar uma música revolucionária,<br />

direcionada para a minoria étnica, já que os guetos de Nova<br />

York, aparecia um tipo de som com a intenção de transformar o cenário<br />

da música negra.<br />

A origem do funk carioca foi no início dos anos 70, com os<br />

Bailes da pesada promovidos por Big Boy e Ademir Lemos. A equipe<br />

Soul Grand Prix iniciou a nova fase dos ritmos funky no Rio de<br />

Janeiro. O rapper Nelson na década de 80 trouxe o ritmo para a Praça<br />

da Sé, em São Paulo iniciou embasado na música negra norte-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

385<br />

americana, que faziam referência às políticas raciais e culturais, que<br />

eram incompreendidas pelos funkeiros nacionais.<br />

Então foi se nacionalizando e se distanciando do hip-hop, porém<br />

parte de juventude negra que era mais politizada continuou a fidelidade.<br />

Agora, no Rio, o conteúdo, o ritmo, foi traduzido em forma<br />

de música dançante, alegre e não tanto politizada. Já em São Paulo, o<br />

hip-hop foi firmado pelo discurso político que fazia reivindicações<br />

do movimento negro.<br />

Na década de 90, o funk e o hip-hop se popularizavam e nacionalizavam<br />

em São Paulo e no Rio, onde funkeiros e b-boys distanciavam-se,<br />

surgindo uma dicotomia entre alienados e engajados,<br />

não porque o funk produzia uma música alegre, romântica e bemhumorada,<br />

possuía uma visão apolítica – por isso os funkeiros deixaram<br />

de ser bem-vindos nos demais bailes. Na verdade, o funk e o<br />

hip-hop não se iniciaram com os arrastões, mas isso pode ter causado<br />

a popularização. Verificando o contexto sociopolítico geral dos anos<br />

90, percebe-se o clima de pânico que aterrorizou as principais cidades<br />

brasileiras, onde ocorreram arrastões, ou seja, ação conjunto de<br />

jovens, objetivando pegar o que podiam e a mídia acentuou essa sensação<br />

de medo.<br />

Sendo assim, percebe-se que há certo interesse dos jovens pobres<br />

pelo linguajar que apresenta (expressão artística), mas também<br />

como forma de protesto, de afirmações de valores, de significados e<br />

de etnicidades. Na primeira metade dos anos 90, ocorreram inúmeros<br />

noticiários, que chocaram a opinião pública como o assassinato de<br />

menores na Candelária, Chacina de Vigário Geral, arrastões Militares<br />

no Rio de Janeiro, massacre de Carandiru (SP), as invasões e os<br />

massacres dos sem-terra em várias localidades...<br />

Nesse contexto, percebemos a violência na sociedade brasileira,<br />

há indício de uma desordem urbana, na verdade é uma maneira de<br />

expor a insatisfação pela estrutura autoritária e celetista, que gera a<br />

exclusão social, já que, a punição só ocorre para as camadas menos<br />

favorecidas da população, então a violência é uma forma de romper a<br />

ordem social. À medida que o funk foi se destacando na mídia, foi se<br />

identificando como atividade criminosa, uma atividade de gangue,<br />

que teve nos arrastões e na “biografia suspeita” dos que a integram a<br />

“contraprova” que acabam confirmando essa acusação.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

386<br />

Não é apenas a mídia que constituiu arena para o surgimento<br />

de discursos e sentidos divergentes. De acordo com Mikhail Bakhtin<br />

(1987), cada discurso comporta uma polissemia que não é controlada<br />

totalmente pelo sujeito.<br />

Desta forma, o discurso nem sempre é traduzido num projeto<br />

ideológico do produtor. Percebe-se que o discurso que demoniza o<br />

funk é o mesmo que assenta a sua estrutura para o glamour. O funk<br />

parecia seduzir os jovens carentes e da classe média, encontrando o<br />

caminho para o sucesso, dando uma perfeita visão de expectativa e<br />

frustrações. Desenvolvendo assim, seus próprios veículos de divulgação.<br />

Com objetivo de ter imagens normalizadoras a mídia também<br />

possui limitações, mas também há frestas, brechas, onde surge o “outro”,<br />

constituindo um lugar para se perceber as diferenças, denunciando<br />

condições e reivindicar a cidadania, desta forma, nota-se que os<br />

funkeiros constroem seus estilos nas ruas, desenvolvendo trajetórias<br />

e elaborando sentidos e territórios.<br />

Atualmente o funk está muito apelativo, quer dizer, que um<br />

empresário opta por uma dançarina seminua rebolando. Anteriormente<br />

dança-se, faziam-se coreografias criativas, no entanto hoje,<br />

nos bailes há trenzinhos, pulando de um lado para o outro, os jovens<br />

em fila indiana, trazendo a mão sobre o ombro do companheiro da<br />

frente, como marca de solidariedade, segurança, proteção e recolhimento.<br />

Além disso, há uma exibição grupal demonstrando competição<br />

e rivalidade entre os mesmos, o baile possui uma dimensão erótica,<br />

onde ocorrem movimentos corporais que simulam atos sexuais.<br />

Na verdade esse ambiente produzido pelo funk é visivelmente masculino,<br />

mas é claro que a presença feminina é fundamental para descontrair<br />

o baile, objetivando a criar competição entre os rapazes.<br />

As coreografias dos homens são mais expansivas, com movimentos<br />

largos e jogo de pernas e braços metrificados, já as mulheres<br />

apresentam movimentos sinuosos, porém não deixam de uma base<br />

mais mecânica, produzindo movimentos retos. Enquanto os homens<br />

dançam sozinhos ou em grupo, os passos são sincronizados.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

387<br />

Em contrapartida, as mulheres geralmente dançam em duplas ou em<br />

grupos pequenos com movimentos iguais opostos.<br />

O ritual de violência nos bailes funk, os grupos não objetivam<br />

eliminar o inimigo, mas sim, almejam reconhecimento de um lugar,<br />

um território, nesse jogo, almeja a participação, a inclusão compensando<br />

seu cotidiano onde são rejeitados e excluídos. Esses grupos,<br />

oriundos de segmentos populares, transitam na mídia numa espécie<br />

de jogo de espelhos, que ora os associa a imagens de delinquência,<br />

ora os apresenta como uma expressão da cultura popular dos anos<br />

90.<br />

Percebemos então, que o funk tem impressionado muito pela<br />

força que possui, e a capacidade de permanecer presente, de se disseminar<br />

pelas localidades. O funk é considerado perigoso porque traduz<br />

uma conduta inconsequente, que glorifica a delinquência.<br />

O estilo de vida desses jovens, quer dizer, os produtos culturais,<br />

gostos, opções de entretenimento, dança, roupas tem como principio<br />

estético “pegue e misture”. Em outras palavras é uma maneira<br />

de chantagear as estruturas de dominação, por isso, elaboram valores,<br />

sentidos, identidade e afirmam localismos, e ainda se integram<br />

cada vez mais no mundo globalizado. Contudo, os funkeiros não sabem<br />

explicar ao certo como as coreografias se consagraram, uma vez<br />

que é um processo de criação natural, espontâneo. Ressaltam que algumas<br />

músicas são elaboradas a partir de uma dança, já outras vezes,<br />

a letra da música sugere construção de passos de dança e novas brincadeiras.<br />

E quando estão distantes de seu território de origem (favelas e<br />

bairros pobres) sentem-se mais frágeis, porém mais engajados em lutar<br />

por um lugar, um reconhecimento. É claro que isso não ocorre<br />

somente pela dança e certas práticas sociais, já que a música está<br />

presente nos momentos de lazer, formando assim o lócus público,<br />

podemos assim afirmar e intervir de forma crítica no espaço público,<br />

mostrando um discurso próprio das favelas e subúrbios para toda a<br />

cidade.<br />

Tendo como base o arcabouço teórico discutido nos itens anteriores:<br />

dialogismo, ethos, música e o estilo funk. Pretende-se, no<br />

próximo item, analisar o corpus da música "Créu".


Análise do Corpus<br />

É créu é creu neles é créu nelas.<br />

Bora que vamos, bora que vamos.<br />

Pra dançar créu tem que ter disposição<br />

Pra dançar créu tem que ter habilidade<br />

Pois essa dança ela não é mole não<br />

Eu venho te lembrar são cinco velocidade<br />

A primeira é devagarzinho,<br />

É só aprendizado hein<br />

É assim o...<br />

Creeeuuu, creeuuu, creeeuuu.<br />

Se ligou... de novo...<br />

Creeeuuu, creeeuuu, creeeuuu<br />

Número dois:<br />

Creeuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu,<br />

creeuu, continua…<br />

Fácil né… de novo<br />

Creeuu, creeuu, creeuu,<br />

creeuu, creeuu,<br />

creeuu<br />

Número três:<br />

Creuu, creuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu,<br />

creeuu, creeuu, creeuu,<br />

creuu, creeuu, creeuu, tá ficando difícil hein…<br />

creeuu, creeuu<br />

, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu<br />

creeuu, creeuu, creeuu…<br />

Agora eu quero ver na quatro hein<br />

Creu, tá aumentando mané<br />

Créu, créu, créu, créu<br />

Créu, créu, créu, creu, créu, créu, créu, créu<br />

Créu, créu ...<br />

Segura, dj vou confessar a vocês<br />

Que eu não consigo a número cinco hein, dj<br />

Número cinco hein, dj<br />

velocidade cinco na dança do creeuu...<br />

créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu,<br />

créu, créu, créu,<br />

créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu,<br />

créu créu créu,<br />

créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu,<br />

créu, créu, créu,<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

388


créu, creu, créu, créu, créu, créu, créu, créu<br />

créu, créu, créu,<br />

créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu,<br />

créu, créu, créu,<br />

créu...<br />

hahahahaha...<br />

créu, créu, créu, créu, creu, créu, créu, créu,<br />

créu, créu, créu,<br />

créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu,<br />

créu, créu, créu,<br />

créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu<br />

créu créu créu<br />

créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu<br />

créu, créu, créu<br />

créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu<br />

créu, créu, créu<br />

créu...<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

389<br />

A música inicia-se com um diálogo entre um enunciador que<br />

é o cantor, que faz uma convocação ao enunciatário que são os jovens<br />

funkeiros. Lembrando que segundo Bakhtin (1929/1988) considera<br />

que a língua é formada pelo fenômeno social da interação verbal,<br />

uma vez que o ser humano é inconcebível distante das relações<br />

que o ligam ao outro.<br />

Esses jovens formam a base da sociedade que almejam diversão<br />

e reconhecimento, já que vivem numa sociedade injusta, e a<br />

grande massa humana vive em condições miseráveis, em morros e<br />

favelas, já que a política é essencialmente concentrada na renda, sendo<br />

que a topografia e a cronografia dessa cenografia é um baile, num<br />

centro urbano, cujo estilo de vida desses jovens é similar, visto que<br />

conota uma forma de autoexpressão, envolvendo o corpo, as roupas,<br />

o discurso, os entretenimentos de lazer. Engloba a produção cultural<br />

do grupo, formando assim, o ethos dos funkeiros, salientando que os<br />

mesmos constroem seu estilo nas ruas, em especial nas de terra batida,<br />

nas praias e principalmente nos bailes, desenvolvem trajetórias,<br />

elaboram-se sentidos e territórios. A noção de ethos retomada por<br />

Oswald Ducrot (1984, p. 193, apud AMOSSY, 2005, p. 121) assevera:<br />

Em minha terminologia, diria que o ethos é ligado a L, o locutor enquanto<br />

tal: é como fonte da enunciação que ele se vê dotado de certos caracteres<br />

que, em consequência, tornam essa enunciação aceitável ou recusável.<br />

O que o orador poderia dele dizer, como objeto da enunciação,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

390<br />

concerne, em contrapartida [...], ao ser do mundo, e não é este que está<br />

em questão na parte da retórica de que falo.<br />

Quando o enunciador diz...<br />

É créu é creu neles é créu nelas.<br />

Bora que vamos, bora que vamos.<br />

Há uma imbricação por parte do enunciador (cantor) direcionando<br />

ao enunciatário (plateia), neste momento ocorre uma espécie<br />

de ritual social da linguagem implícito, que é compartilhado pelos<br />

interlocutores. Quanto ao léxico créu, cujo significado contextual obtém<br />

possivelmente a seguinte definição: onomatopeia de conotação<br />

sexual, que supostamente corresponde ao som ou ruído no momento<br />

da conjunção carnal, que simula um movimento.<br />

Seguindo a música com o léxico "bora”, que é um mecanismo<br />

de interação com o locutor, que gramaticalmente de acordo com Celso<br />

Cunha (2007, p. 83/105) é uma palavra cuja composição é formada<br />

por aglutinação, (em+boa+hora), resultando embora. O autor<br />

pondera que:<br />

Chama-se formação de palavras o conjunto de processos morfossintáticos<br />

que permitem a criação de unidades novas com base em morfemas<br />

lexicais. Utilizam – se assim, para formar as palavras, os afixos de<br />

derivação ou os procedimentos de composição, que consiste em formar<br />

uma nova palavra pela união de dois ou mais radicais.<br />

Sendo assim, no discurso houve um apagamento do prefixo<br />

“em”, restando apenas "bora”. Esse enunciador manifesta seu discurso,<br />

fazendo um convite persuasivo ao enunciatário, que de acordo<br />

com, Maingueneau (2007, p. 17, apud BRUNELLI, 2008, p. 11) “...é<br />

um sistema de regras que define a especificidade de enunciação”.<br />

Percebe-se que existe um comportamento intencional por parte do<br />

enunciador em liderar a plateia, há um jogo que é constituído pelos<br />

atos de fala, os quais demonstram convenções que regulam as relações<br />

entre sujeitos, dando a cada elemento um estatuto na atividade<br />

da linguagem, sendo assim, acaba ocorrendo um contrato, que de acordo<br />

com Charaudeau (1983, p. 50, apud MAINGUENEAU, 1997,<br />

p. 30)<br />

... pressupõe que os indivíduos pertencentes a um mesmo corpo de práticas<br />

sociais sejam capazes de entrar em acordo a propósito das representações<br />

de linguagem destas práticas. Consequentemente, o sujeito que se<br />

comunica sempre poderá, com certa razão, atribuir ao outro (o não – EU)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

391<br />

uma competência de linguagem análoga à sua que o habilite ao reconhecimento.<br />

O ato da fala transforma-se então, em uma proposição que o EU<br />

dirige ao TU e para a qual aguarda uma contrapartida de conivência.<br />

Levando isso em consideração, um sujeito ao enunciar demonstra<br />

um ritual social da linguagem implícito, que naturalmente é<br />

partilhado pelos interlocutores. Na verdade os atos da fala fornecem<br />

credibilidade às enunciações do cantor que afirma o seguinte:<br />

Pra dançar créu tem que ter disposição<br />

Pra dançar créu tem que ter habilidade<br />

Pois essa dança ela não é mole não<br />

Eu venho te lembrar são cinco velocidades<br />

A subjetividade enunciativa constitui o sujeito (cantor) e o<br />

assujeita, segundo Maingueneau (1997) dando-lhe autoridade, é claro<br />

que a encenação (sequência musical) não é uma máscara do real,<br />

já que este real é investido pelo discurso do enunciador quando diz: é<br />

necessário ter “disposição”,“habilidade”, já que “não é mole não”.<br />

Ocorre a, heterogeneidade constitutiva, visto que procura explicitar<br />

ao outro (plateia) por meio do discurso, salientando essas hipóteses.<br />

Depois, há um reconhecimento por parte da plateia, que aceita e vibra<br />

com o enunciado do cantor, devido a autoridade que possui no<br />

discurso relatado. Isso ocorre devido à formação discursiva, a qual<br />

está escrita o enunciador pelo seu caráter, que de acordo com Maingueneau<br />

(1997, p. 47) “corresponde a este conjunto de traços psicológicos<br />

que o leitor-ouvinte atribui espontaneamente à figura do enunciador<br />

em função de seu modo de dizer”. Salienta Foucault<br />

(1995), que esse sujeito traz e por isso demonstra suas experiências.<br />

O enunciador ao afirmar isso, utiliza um tom, alegre, e variado,<br />

já que assevera Bakhtin (1992, p. 396, apud BRAIT, 1997, p.<br />

33) “o tom não é determinado pelo material do conteúdo do enunciado<br />

ou pela vivência do locutor, mas pela atitude do locutor para com<br />

a pessoa do interlocutor (a atitude para com sua posição social, para<br />

com sua importância...)”. Por isso, a plateia espontaneamente compreendeu<br />

que o cantor tinha o objetivo de salientar o erotismo, já que<br />

o funk assume a condição de invenção e potencializa essa tradição do<br />

pegue e misture, por isso Herchmann (2005, p. 214) esclarece que:<br />

O estilo de vida e as práticas sociais dos grupos revelam um tipo de<br />

consumo e de produção que os desterritorializa e reterritorializa. A partir<br />

do funk esses jovens elaboram valores, sentidos, identidades e afirmam<br />

localismos, ao mesmo tempo em que se integram em um mundo cada


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

392<br />

vez mais globalizado. Ao construir seu mundo a partir do improviso, da<br />

montagem de elementos provenientes também de uma cultura transnacionalizada,<br />

em cima daquilo que está em evidência naquele momento,<br />

esses jovens, se não ressituam sua comunidade, amigos e a si mesmos no<br />

mundo, pelo menos denunciam a condição de excluídos da estrutura social.<br />

Percebe-se, que há certo convencimento por parte da plateia,<br />

ocorrendo assim, a eficácia discursiva advinda desse jogo de vozes.<br />

Primeiramente o cantor lembra, depois afirma que são cinco velocidades:<br />

A primeira é devagarzinho,<br />

É só aprendizado hein<br />

É assim o...<br />

Creeeuuu, creeuuu, creeeuuu<br />

Se ligou... de novo...<br />

Creeeuuu, creeeuuu, creeeuuu<br />

Nessa enunciação, ocorre uma ordem por parte do enunciador,<br />

que espera uma atitude responsiva da plateia. A formação discursiva<br />

fornece certa corporalidade ao enunciador, e essa corporalidade<br />

que de acordo com Maingueneau, (1997) possibilita aos sujeitos<br />

a incorporação de esquemas, que definem a maneira específica de<br />

praticar o ato, incorporando assim, uma dimensão erótica, realizando<br />

movimentos corporais, visto que, de acordo com Maingueneau,<br />

(1997, p. 40) “a formação discursiva na qual inscreve, o enunciador<br />

poderá jogar com estas coerções, ou pelo menos, realizar escolhas<br />

significativas entre as múltiplas possibilidades que se lhe oferecem”.<br />

Na sequência musical, ocorre a repetição das vogais (e/u) na<br />

palavra créu, conforme um eco, almejando indicar a intensidade do<br />

ato, pois procura mostrar o prolongamento gestual, seguindo assim a<br />

enumeração:<br />

Número dois:<br />

Creeuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu,<br />

creeuu, continua…<br />

Fácil né… de novo<br />

Creeuu, creeuu, creeuu,<br />

creeuu, creeuu,<br />

creeuu<br />

No baile provavelmente é tudo pura emoção. Há meninos e<br />

meninas de todos os estilos, circulam intensamente, ocorrendo uma<br />

grande proximidade de corpos. As meninas geralmente trajam shor-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

393<br />

tinhos e saias curtíssimas, (algumas jovens um pouco mais velhas,<br />

vestem calças jeans, de moletom ou lycra) acompanhados de um top.<br />

Já os meninos, boné, bermudão, blusão, calça jeans ou moletom e<br />

camisa de malha, às vezes com mangas rasgadas. Baseado nesses fatos,<br />

Hermano Vianna (1997, apud HERSCHMANN, 2005, p. 25)<br />

ressalta que: “tudo podia ser funky: uma roupa, um bairro da cidade,<br />

o jeito de andar e uma forma de tocar música que ficou conhecida<br />

como funk”. Quanto às coreografias dos homens são mais expansivas,<br />

com movimentos largos e jogos de pernas e braços metrificados,<br />

já as mulheres apresentam movimentos sinuosos, porém retos. Vejamos<br />

a próxima enuneração:<br />

Número três:<br />

Creuu, creuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu,<br />

creeuu, creeuu, creeuu,<br />

creuu, creeuu, creeuu, tá ficando difícil hein…<br />

creeuu, creeuu,<br />

reeuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu, creeuu<br />

creeuu, creeuu, creeuu…<br />

O enunciador determina uma atividade, um movimento, uma<br />

ação e exige da plateia uma atividade responsiva, demonstrando assim,<br />

a heterogeneidade mostrada, que é uma tentativa do sujeito, o<br />

qual é representado pelo (cantor), pois procura explicitar a presença<br />

do outro, harmonizando essa presença, a qual aparece na música.<br />

Lembrando que pertencer ao mesmo grupo, obriga a acreditar no<br />

discurso, uma vez que a enunciação não é uma cena ilusória, onde se<br />

diz algo que é elaborado em outro lugar, mas sim, um dispositivo da<br />

construção do sentido e dos sujeitos que se reconhecessem na música.<br />

Na verdade, o sujeito é clivado (LACAN, 1998), já que não<br />

decide sobre os sentidos do discurso e suas possibilidades enunciativas,<br />

porém ocupa um lugar na sociedade, onde simplesmente enuncia<br />

com fundamentos ideológicos. Por isso Althusser (1970, apud<br />

MUSAALIM, 2005, p. 110) assevera que:<br />

A ideologia é bem um sistema de representações. Mas estas representações<br />

não tem, na maior parte do tempo, nada a ver com a consciên-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

394<br />

cia, elas são na maior parte das vezes imagens, às vezes conceitos, mas<br />

se impõem a maioria dos homens, sem passar por suas consciências.<br />

Dessa forma, o sentido desse discurso é demarcado e preestabelecido<br />

pela identidade de cada um: o cantor e a plateia, nesse espaço<br />

interdiscursivo. O sentido da música vai se construindo, à medida<br />

que o discurso foi se formando, logicamente que embasado na formação<br />

ideológica que de acordo com Maingueneau (2008, p. 206):<br />

A enunciação, ao se desenvolver, esforça-se por instituir progressivamente<br />

seu próprio dispositivo de fala. Ela implica, portanto, um processo<br />

de enlaçamento paradoxal (...). Assim a, a cenografia é ao mesmo<br />

tempo, origem e produto do discurso; ela legitima um enunciado que, retroativamente,<br />

deve legitimá-la e fazer com que essa cenografia da qual<br />

se origina a palavra seja precisamente a cenografia requerida por tal discurso.<br />

Na sequência musical temos:<br />

Agora eu quero ver na quatro hein<br />

Creu, tá aumentando mané<br />

Créu, créu, créu, créu<br />

Créu, créu, créu, creu, créu, créu, créu, créu<br />

Créu, créu ...<br />

Aqui, a dêixis coordena o espaço–temporal, articulando o eu e<br />

tu/aqui e agora. Onde o locutor discursivo do público, a topografia<br />

(aqui – no baile) e a cronografia (agora). Que de acordo com Maingueneau<br />

(1997, p. 41)<br />

A dêixis define as coordenadas espaço-temporais implicadas em um<br />

ato de enunciação (...) possui a mesma função, mas manifesta-se em um<br />

nível diferente: o do universo de sentido que uma formação discursiva<br />

constrói através de sua enunciação (...) distinguir-se-á nesta dêixis o locutor<br />

e o destinatário discursivos, a cronografia e a topografia.<br />

O sujeito constrói a cenografia de sua autoridade enunciativa.<br />

Por isso, Maingueneau (2008, p. 205) ressalta que “O discurso impõe<br />

sua cenografia, de algum modo, desde o início; mas, por outro lado,<br />

é por intermédio de sua própria enunciação que ele poderá legitimar<br />

a cenografia que impõe”.<br />

Em uma cenografia, associam-se a figura do enunciador e figuras<br />

correlatas de coenunciadores. Esses lugares supõem igualmente<br />

uma cronografia (um momento) e uma topografia (um lugar) das<br />

quais o discurso pretende originar-se (a cronografia e a topografia<br />

não são tempos cronológicos nem espaços geográficos, mas tempos e


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

395<br />

espaços ideológicos, históricos: a favela, a cidade, a civilização, a<br />

globalização).<br />

Baseando-se nisso, o enunciador determina para si e para o<br />

destinatário uma enunciação legítima, neste momento aparece no enunciado<br />

(música) uma terceira pessoa, a qual o sujeito (cantor) dirige-se<br />

ao público interpelando como mané, que, de acordo com o<br />

verbete do minidicionário Aurélio (2000, p. 443) significa indivíduo<br />

inepto, desleixado, tolo e bobo. Na progressão musical, impele ao dj<br />

que não prossiga, porque demonstra insegurança quando diz:<br />

Segura, dj vou confessar a vocês<br />

Que eu não consigo a número cinco hein, dj<br />

Número cinco hein, dj<br />

velocidade cinco na dança do creeuu...<br />

créu, créu, créu, créu, creu, créu, creu, créu,<br />

créu, creu, creu,<br />

créu, creu, créu, creu, creu, créu, creu, créu,<br />

créu créu creu,<br />

créu, créu, creu, creu, creu, creu, creu, créu,<br />

créu, crêu, créu,<br />

créu, creu, créu, créu, créu, créu, creu, créu<br />

creu, créu, créu,<br />

créu, créu, créu, créu, créu, créu, creu, creu,<br />

créu, creu, créu,<br />

créu...<br />

hahahahaha...<br />

créu, creu, creu, créu, creu, créu, créu, creu,<br />

créu, creu, creu,<br />

créu, créu, créu, créu, créu, creu, créu, créu,<br />

créu, créu, créu,<br />

creu, créu, créu, créu, creu, creu, créu, créu<br />

créu créu créu<br />

créu, creu, créu, créu, créu, creu, créu, créu<br />

creu, creu, créu<br />

créu, créu, créu, creu, créu, créu, créu, créu<br />

créu, créu, créu<br />

créu...<br />

Lembrando que de acordo com Herschmann (2005, p. 287)<br />

“dj é discotecário, é quem comanda o som e, por conseguinte, o baile.”.<br />

O cantor (enunciador) dirige-se ao público (plateia) por meio de<br />

seu discurso, salientando a pressuposição, que não vai conseguir realizar<br />

a número cinco, demonstrando assim, uma refutação proposicional.<br />

Sendo que a velocidade da dança poderá atingir o ápice, que<br />

dizer, o êxtase. Por isso, assevera Kerbrat-Orecchioni (1978, p. 56,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

396<br />

apud POSSENTI, 2008, p. 79) que “toda asserção é assumida, explícita<br />

ou implicitamente por um sujeito enunciador e é para este sujeito,<br />

em primeiro lugar que ela é verdadeira”.<br />

No entanto, para expressar toda a velocidade e êxtase nesta<br />

cena, o cantor pronuncia ininterruptamente a palavra créu, totalizando,<br />

113 vezes, pronunciada num tom de autoridade e satisfação,<br />

transparecendo assim, a heterogeneidade mostrada, que de acordo<br />

com Authier-Revuz, (1982, apud MUSSALIM, 2005, p. 134) “é uma<br />

tentativa do sujeito de explicitar a presença do outro no fio discursivo,<br />

numa tentativa de harmonizar as diferentes vozes que atravessam<br />

o seu discurso, numa busca pela unidade, mesmo que ilusória”.<br />

6. Considerações finais<br />

Dado o exposto, podemos perceber que a Análise do Discurso<br />

com fulcro nos critérios da linha francesa, estuda as produções verbais<br />

baseadas nas condições sociais de produção, sendo essas consideradas<br />

integrantes na significação e modo de formação dos discursos.<br />

Por isso nos remetemos ao dialogismo, que origina da interação<br />

verbal estabelecida entre o enunciador e o enunciatário, aparecendo a<br />

relação eu-tu, que nos conduz para o subjetivismo, conclui-se ocorrer<br />

um deslocamento do conceito de sujeito, o qual perde o papel principal,<br />

sendo substituído por divergentes vozes sociais que fazem dele<br />

um sujeito histórico e ideológico.<br />

Esse sujeito contribui para a formação do ethos, que está ligado<br />

ao estatuto do locutor e à questão de sua legitimidade, quer dizer,<br />

ao processo de legitimação pela fala, sendo que ato de utilizar a palavra<br />

leva a construção de uma imagem de si, pois o locutor faz em<br />

seu discurso uma apresentação de si.<br />

Partindo dessa premissa, percebemos a construção do ethos<br />

do enunciador na música analisada (Créu), juntamente com o enunciatário<br />

que é o fiador, embasado na ampliação do nosso conhecimento<br />

de mundo sobre o estilo funk que simplesmente invadiu a cena<br />

cultural no Brasil, seduzindo o jovem em paulistano por possuir um<br />

ritmo sincopado, que é levado por guitarras, um baixo denso, a presença<br />

marcada por metais e percussão, um rítmica forte devido às batidas<br />

mais vigorosa e dançante, e, por conseguinte, é acompanhado


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

397<br />

por modernas melodias. Devido a isso tem se consolidado como expressão<br />

artística, mas também como meio de protesto, de afirmação<br />

de valores, significados e etnicidades.<br />

Sendo assim, pode-se depreender que a sociedade atualmente<br />

possui diversas etnias e valores culturais, por isso cabe ao analista do<br />

discurso recuperar as formas de materialização, mostrando os efeitos<br />

de sentido, fazendo os recortes e analisando os planos de forma global.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AGUIAR J. A poesia da canção. [s/l.]: Seccione. 1998,<br />

AMOSSY, R. (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos.<br />

São Paulo: Contexto, 2005.<br />

ARROYO, M. G. Ofício de mestre. Petrópolis: Vozes, 2000.<br />

BRAIT, B. (Org.). Dialogismo e construção do sentido. Campinas:<br />

UNICAMP, 1997.<br />

BRUNELI, A. F. Notas sobre a abordagem interdiscursiva de Maingueneau.<br />

In: POSSENTI, S. e BARONAS, R. L. (Orgs.). Contribuições<br />

de Domenique Maingueneau para análise do discurso do Brasil.<br />

São Carlos: Pedro & João, 2008, p. 13-26.<br />

CUNHA, C.; CINTRA, L. F. L. Nova gramática do português contemporâneo.<br />

3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.<br />

COPLAND A. Como ouvir e entender música. [s/l.]: Arte Nova,<br />

1974.<br />

CHALITA, G. B. I. O poder de fogo da educação. Revista Fapesp,<br />

ed. 85, março de 2003.<br />

DIJK, T. A. V. Cognição, discurso e interação. São Paulo: Contexto,<br />

2004.<br />

FERREIRA, A. B. H. Miniaurélio século XXI escolar: O minidicionário<br />

da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.<br />

HERSCHMANN, M. O funk e o hip-hop invadem a cena. 2. ed. Rio<br />

de Janeiro: UFRJ, 2005.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

398<br />

IMBERNÓN, F. (Org.). A educação no século XXI: Os desafios do<br />

futuro imediato. Porto Alegre: Artmed, 2000.<br />

JEANDOT, N. Explorando o universo da música São Paulo: Seccione,<br />

1999.<br />

JORDÃO, P. A antropologia pós-moderna: Uma nova concepção da<br />

etnografia e seus sujeitos. Disponível em:<br />

<br />

Acesso em: 04/12/2009.<br />

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. 3.<br />

ed. Campinas: Unicamp/Pontes, 1997.<br />

MAIGUENEAU, D. Gênese do discurso. São Paulo: Cortez, 2004.<br />

MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia, incorporação. In: A-<br />

MOSSY, R. (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos.<br />

São Paulo: Contexto, 2005, p. 69-92.<br />

MARQUES, I. A. Dançando na escola, 4. ed. São Paulo: Cortez,<br />

2007.<br />

MUSSALIM, F. & BENTES, A. C. (Orgs.). Introdução à linguística:<br />

domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2005.<br />

PAVEAU, M.-A. & SARFATI, G.- É. As grandes teorias da linguística.<br />

São Carlos: Claraluz, 2006.<br />

POSSENTI, S. Um dispositivo teórico e metodológico. In: POS-<br />

SENTI, S e BARONAS, R. L. (Orgs.). Contribuições de Domenique<br />

Maingueneau para análise do discurso do Brasil. São Carlos: Pedro<br />

& João, 2008, p. 201-212.<br />

POSSENTI S. Novas tendências, cenas da enunciação. São Carlos:<br />

Pedro & João, 2008.<br />

POSSENTI, S. & BARONAS, R. L. (Orgs.). Contribuições de Domenique<br />

Maingueneau para a análise do discurso do Brasil. São<br />

Carlos: Pedro & João, 2008.<br />

ZUBEN P. Música e tecnologia: O som e seus novos instrumentos.<br />

[s/l.]: Editores-Brasil, Irmãos Vitale, 2004.


A SELEÇÃO LEXICAL<br />

COMO ESTRATÉGIA ARGUMENTATIVA<br />

NOS TEXTOS PUBLICITÁRIOS<br />

1. Considerações iniciais<br />

Marcia de Oliveira Gomes (UERJ)<br />

marcya79@hotmail.com<br />

Catar feijão se limita com escrever:<br />

Jogam-se os grãos na água do alguidar<br />

E as palavras na da folha de papel;<br />

e depois, joga-se fora o que boiar.<br />

(MELO NETO, 1995, p. 346).<br />

Catar palavras, ajustar-lhes o sentido ou criar outras, não é<br />

exclusividade literária. Tal labor integra em maior ou menor grau todo<br />

ato de comunicação, pois, cada vocábulo possui uma carga semântica,<br />

marcada por seu significado ou uso social. Desse modo, por<br />

exemplo, se ao discutir soluções para uma dificuldade, um chefe a<br />

trata como um problema, traz com ela semas (traços distintivos semânticos),<br />

como difícil e trabalhoso; já um desafio implica disputa,<br />

coragem, ousadia. Logo, a segunda alternativa torna a questão mais<br />

atrativa e motivadora para seus funcionários.<br />

Em textos argumentativos, tal escolha pode ser crucial para o<br />

sucesso do projeto de comunicação, sendo diretamente responsável<br />

pela persuasão do alvo. Assim, este artigo objetiva analisar a seleção<br />

lexical no texto publicitário, que, visando informar, convencer e seduzir<br />

o consumidor, serve-se ricamente desse recurso como alicerce<br />

de sua argumentação.<br />

2. Análise dos textos publicitários<br />

Convencer pela palavra requer estratégias que podem ir do<br />

prazer estético do texto, capaz de seduzir o interlocutor, ao apelo à<br />

razão, na defesa de uma tese, característica do discurso argumentati-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

400<br />

vo. Tais elementos embora distintos não são excludentes. Os mecanismos<br />

de sedução serão argumentativos:<br />

Se ficarem periféricas, como apoio ilustrativo de um argumento, mas<br />

sairão do quadro argumentativo se o apelo aos sentimentos tomar o lugar<br />

de argumento e constituir o único meio de transporte da opinião. (BRE-<br />

TON, 1999, p. 50)<br />

O texto publicitário se vale, sobretudo, desses dois expedientes<br />

para vender suas ideias, criando uma imagem ideal do consumidor,<br />

na qual se baseia seu projeto de comunicação. E quanto mais abrangente<br />

o público-alvo, mais comum deve ser o vocabulário empregado<br />

para que a mensagem esteja ao alcance de todos. O que torna<br />

o texto criativo e marcante é o uso de recursos linguísticoexpressivos.<br />

No tocante à seleção lexical, eles se estabelecem a partir de<br />

oposições, jogos de palavras, metáforas, campos associativos etc.<br />

Observemos como esses elementos contribuem para a argumentação,<br />

nos exemplos que seguem.<br />

Exemplo 1:<br />

(Veja Rio, 22 jul. 2009)<br />

Nesse texto, chama a atenção o slogan: “É devassa. Mas cozinha<br />

como uma vovó”, que joga com o par contrastante devassa/ vovó.<br />

O primeiro vocábulo além de se referir à marca da cervejaria De-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

401<br />

vassa, também tem um apelo sexual, remetendo à imagem de libertinagem<br />

e ousadia. Já o segundo tem como representações a idade avançada,<br />

respeito e tradição. Essa combinação inusitada é a razão do<br />

impacto e da expressividade da mensagem.<br />

O uso da conjunção adversativa reforça a oposição, introduzindo<br />

o argumento mais forte no enunciado; “cozinha como uma vovó”.<br />

Assim, a orientação argumentativa, ou seja, o sentido para o<br />

qual o enunciado conduz (cf. DUCROT, 1987), é para a qualidade da<br />

comida do estabelecimento.<br />

Exemplo 2:<br />

(Veja Rio, 28 nov. 2007)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

402<br />

O anúncio dos produtos “Casino” mescla palavras e expressões<br />

francesas com o texto em português, evocando a cultura francesa,<br />

origem da marca em questão. O uso de estrangeirismos, nesse caso,<br />

é bastante expressivo, conferindo autenticidade e exotismo à<br />

mensagem.<br />

Cabe ressaltar que, apesar de o texto contar com alguns galicismos,<br />

como chef e carte, a maioria dos estrangeirismos não é de<br />

uso comum no Brasil, restringindo-se, assim, o público-alvo.<br />

Exemplo 3:<br />

(Veja, 28 jul. 2010)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

403<br />

O texto brinca com o sentido polissêmico das palavras branco<br />

e preto. Lembrando ser a polissemia, conforme Bechara, “um conjunto<br />

de significados, cada um unitário, relacionados com uma mesma<br />

forma”. (BECHARA, 2001, p. 402).<br />

Desse modo, o anúncio propicia duas leituras. Quando tais<br />

palavras se referem a cores, sua mescla resulta em uma outra cor:<br />

cinza. Se entendermos, entretanto, que branco e preto remetem a<br />

pessoas de grupos étnicos distintos, a união tem cunho cultural, tornando-se,<br />

portanto, mais atrativa.<br />

O adjetivo “interessante”, por sua vez, orienta argumentativamente<br />

o texto para a tese de que devemos assistir ao programa.<br />

Exemplo 4:<br />

(Veja Rio, 21 abr. 2010)<br />

A publicidade do Rei do Mate trabalha com o campo associativo<br />

de realeza: rei, monarquia e bobo da corte. Vale-se, desse modo,<br />

do conhecimento compartilhado pelo leitor para comprovar seu argumento<br />

“Toda monarquia tem um bobo da corte”. Segundo Bally:<br />

O campo associativo é um halo que circunda o signo e cujas franjas<br />

exteriores se confundem com o ambiente... A palavra boi faz pensar: 1)<br />

em “vaca, touro, vitelo, chifres, ruminar, mugir” etc.; 2) em “lavoura,<br />

charrua, jugo”, etc.; finalmente 3) pode evocar, e evoca em francês, ideias<br />

de força, de resistência, de trabalho paciente, mas também de lentidão,<br />

de peso, de passividade. (BALLY 1940 apud ULLMANN, 1977, p. 500).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

404<br />

Outrossim, ao colocar a concorrência no papel de bobo da<br />

corte, visa a ridicularizá-la, aludindo à figura bizarra e zombeteira<br />

encarnada por esses bufões, responsáveis por divertir o rei e sua corte<br />

na Idade Média.<br />

Exemplo 5:<br />

(Veja Rio, 28 jul. 2010)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

405<br />

A mensagem do restaurante Beluga alude à frase bíblica “A<br />

carne é fraca”, que, originalmente, significa que, a qualquer momento,<br />

pode-se cair em tentação. Entretanto, o significado se modifica<br />

diante do referente, pois, em se tratando de um restaurante, e carne<br />

deixa de remeter a corpo, em oposição a espírito, para se referir ao<br />

alimento servido no restaurante.<br />

Assim, a forma fixa que serve de argumento para que se frequente<br />

o restaurante é reformulada através da negação e do uso polissêmico<br />

da palavra “carne”. Segundo Carvalho:<br />

Na íntegra ou modificados, esses jogos de palavras facilitam a comunicação,<br />

estabelecendo uma certa familiaridade com o leitor, além de<br />

incorporar o elemento surpresa na fórmula fixa. (CARVALHO, 2010, p. 84)<br />

Exemplo 6:<br />

(O Globo, 13 jun. 2010)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

406<br />

Esse anúncio faz parte de uma série da campanha da rede<br />

Hortifruti, que tem como carro-chefe a intertextualidade com músicas<br />

de sucesso. Nesse caso, a relação se dá com um trecho da música<br />

“óculos”, de Herbert Viana.<br />

O trocadilho “óculos/ brócolis” é possível pela semelhança<br />

fonética, colocando, como prometido pelo slogan, a natureza na posição<br />

de estrela. Segundo Maingueneau:<br />

O slogan está associado sobretudo à sugestão e se destina, acima de<br />

tudo, a fixar na memória dos consumidores potenciais a associação entre<br />

uma marca e um argumento persuasivo para a compra. (MAINGUENE-<br />

AU, 2002, p.171)<br />

Assim, o slogan “Aqui a natureza é uma estrela” funciona<br />

como argumento para que se adquira produtos da rede, mostrando<br />

que a natureza, metáfora para produtos, é valorizada e bem cuidada,<br />

o que garantiria a sua qualidade.<br />

Complementa o texto, o convite “Entre no ritmo do Hortifruti”,<br />

que, ainda explorando o campo associativo de música, convoca,<br />

de forma mais direta, o consumidor para as compras.<br />

3. Considerações finais<br />

Clara ou misteriosa, simples ou rebuscada, vernácula ou estrangeira,<br />

única ou com múltiplos sentidos. Cada palavra possui uma<br />

carga semântica, que pode ser atenuada ou salientada em seu emprego,<br />

produzindo efeitos expressivos que, quando apreendidos pelo interlocutor,<br />

são capazes de suscitar nele as emoções e julgamentos<br />

pretendidos por quem os produz.<br />

Desse modo, a seleção lexical mostra-se extremamente relevante<br />

na argumentação de textos publicitários, à medida que, bem<br />

executada, pode agir sobre o consumidor, influenciando a formação<br />

de sua opinião acerca do produto divulgado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

407<br />

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro:<br />

Lucerna, 2001.<br />

BRETON, Philippe. A argumentação na comunicação. São Paulo:<br />

EDUSC, 1999.<br />

CARVALHO, Nelly de. Publicidade: a linguagem da sedução. São<br />

Paulo: Ática, 2010.<br />

DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. São Paulo: Pontes, 1987.<br />

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação.<br />

São Paulo: Cortez, 2002.<br />

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova<br />

Aguilar, 1995.<br />

ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado.<br />

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1977.


A UNIDADE LEXICAL NO DISCURSO ETNOLITERÁRIO<br />

1. Introdução<br />

Maria Margarida de Andrade (U P M)<br />

guida17@hotmail.com<br />

Tem este trabalho o objetivo de analisar a unidade lexical do<br />

discurso etnoliterário, contudo, para alcançar este objetivo, torna-se<br />

necessário localizar a etnoliteratura no conjunto das ciências que estudam<br />

o Homem e suas relações com o seu Universo antropocultural.<br />

Nesse percurso, serão apontadas as relações da etnoterminologia<br />

com outras disciplinas afins, destacando-se a etnoliteratura e seus<br />

discursos. Uma ligeira referência aos universos de discursos introduzirá<br />

a análise dos discursos literário e etnoliterário, para, no final,<br />

discutir-se o estatuto da unidade lexical nesses tipos de discursos.<br />

Para tanto, serão analisados os conceitos de vocábulo e termo, com<br />

referência obrigatória aos processos de terminologização e vocabularização.<br />

Só então será possível caracterizar o discurso etnoliterário e<br />

a sua unidade lexical, com base nos argumentos suscitados pelo raciocínio<br />

lógico dedutivo.<br />

2. Relações da etnoterminologia com outras disciplinas<br />

O objeto da etnoterminologia são os discursos etnoliterários,<br />

considerados por Greimas (1976, p. 3) discursos figurativos (folclore,<br />

mitologia, literatura), que, por sua vez, remetem à Antropologia:<br />

“ciência do homem no sentido lato, que engloba origens, evolução,<br />

desenvolvimento físico, material e cultural, fisiologia, psicologia, características<br />

sociais, crenças etc. (...) Antropologia cultural é o estudo<br />

da cultura, servindo-se dos dados das outras ciências: arqueologia,<br />

etnologia, etnografia, linguística, economia etc. (HOUAISS, 2001, p.<br />

240).<br />

A etnoliteratura, bem como a etnoterminologia constituem<br />

subáreas da Etnolinguística, conjunto de disciplinas que estuda a linguagem<br />

em seu contexto social e as relações entre linguagem e os<br />

demais aspectos da sociedade e da cultura. (FERREIRA, 1999, p.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

409<br />

849). A etnoterminologia, subárea da terminologia, inclui-se entre as<br />

disciplinas da lexicologia. A etnolinguística constituiu-se o lugar de<br />

encontro entre etnólogos e semioticistas que, indo além da descrição<br />

das línguas naturais exóticas, se interessou, desde a origem, por suas<br />

particularidades semânticas. No vasto domínio da sociossemiótica,<br />

destaca-se a etnossemiótica, que detém “o mérito de haver concebido,<br />

inaugurado e fundamentado as análises sintagmáticas que dizem<br />

respeito aos diferentes gêneros da literatura étnica, tais como as narrativas<br />

folclóricas (v. PROPP) e míticas (DUMÉZIL e LÉVI-<br />

STRAUSS), graças às quais se renovou a problemática do discurso<br />

literário”.<br />

Cabe à sociossemiótica o estudo dos discursos sociais não literários:<br />

o científico, político, jurídico, jornalístico, publicitário, pedagógico,<br />

burocrático, religioso e outros.<br />

O discurso literário é um domínio de pesquisa cujos limites<br />

parecem ter sido estabelecidos mais pela tradição que por critérios<br />

formais, objetivos. (GREIMAS; COURTÉS, ([1981], p. 168-169).<br />

Caracteriza-se como ficcional, objetiva despertar emoções, suscitar o<br />

prazer do texto, sem, contudo, constituir uma “imitação da vida”,<br />

mas metáforas da vida que conduzem a uma melhor compreensão<br />

dela. O elemento determinante de sua eficácia e de sua valorização é<br />

a estética.<br />

3. Tipologia dos discursos<br />

Para a semiótica e a linguística, a noção de discurso ultrapassa<br />

os limites do texto enunciado.<br />

O léxico de cada língua representa o universo antropocultural<br />

de seus falantes. Segundo Andrade (2005, p. 31) “Os dados da experiência<br />

humana, classificados pelos antropólogos em biofatos (fatos<br />

do universo físico e biológico), sociofatos (fatos da vida social, estruturas<br />

sociais), mentefatos (fatos da vida psíquica, interior), manufatos<br />

(objetos fabricados pelo homem) compõem o universo referencial,<br />

que, para o código linguístico, corresponde ao universo antropocultural”.<br />

Pais (2005, p. 156 e 165) afirma:<br />

A língua e seus discursos, juntamente com as semióticas não verbais,<br />

conferem a uma comunidade humana: a sua memória social; a sua


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

410<br />

consciência histórica; a consciência de sua identidade cultural; a consciência<br />

de sua permanência no tempo. (...) Assim, cada língua, por exemplo,<br />

é um instrumento de pensar o mundo.<br />

De modo geral, os universos de discursos podem ser classificados<br />

em dois grandes grupos: o que diz respeito à linguagem comum<br />

e o que respeita às linguagens de especialidades. Segundo Pais<br />

(1995, p. 163), “o discurso e seus universos não formam compartimentos<br />

estanques, interferindo incessantemente uns sobre os outros”.<br />

Contudo, entre os universos de discursos da língua comum e das línguas<br />

de especialidades, podem-se estabelecer algumas distinções:<br />

Lerat (1995 p. 62, 185 e 17) ensina que a língua de especialidade é<br />

uma língua escrita e que a Terminologia é por excelência o material<br />

distintivo do texto especializado. Entende-se por língua de especialidade<br />

um subsistema linguístico, que utiliza uma Terminologia e outros<br />

meios linguísticos visando a não ambiguidade da comunicação<br />

num domínio particular. A linguagem especializada é, antes de tudo,<br />

uma linguagem em situação de emprego científico ou profissional e<br />

sua maior função é transmitir conhecimentos. O léxico comum tem<br />

como funções básicas a emotiva, a conativa, fática, poética etc., enquanto<br />

a função básica da língua de especialidade é a referencial. As<br />

situações comunicativas do léxico comum são menos formais, enquanto<br />

as das línguas de especialidades são mais formais. Rondeau<br />

(1984) explica que o conjunto de palavras e expressões que não se<br />

refiram, no contexto em que são empregadas, a uma atividade especializada,<br />

pertence ao léxico da língua comum; as línguas de especialidades,<br />

ao contrário, caracterizam-se pelas relações de seus termos<br />

com uma área ou atividade específica.<br />

4. A unidade lexical<br />

A referência a termos vem a propósito, para que se observe<br />

que o vocabulário geral da língua tem o lexema ou vocábulo como<br />

unidade do discurso; as linguagens especializadas têm como unidade<br />

padrão o termo. Cabré (1993, p. 169) diz que “os termos são a unidade<br />

base da Terminologia, designam os conceitos próprios de cada<br />

disciplina especializada”. São muito tênues as fronteiras que delimitam<br />

termo e lexema, uma vez que há palavras (lexemas) que fazem<br />

parte do léxico comum, tais sejam: acidente, caráter, função, solu-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

411<br />

ção etc. que, ao ingressarem no vocabulário de uma linguagem específica<br />

(geografia, biologia, química etc.) perdem seu caráter polissemêmico,<br />

transformam-se em termos e seus significados são reduzidos<br />

a um único, naquele contexto. Portanto, o vocabulário das linguagens<br />

comuns constitui-se de lexemas ou vocábulos, enquanto o<br />

das linguagens especializadas constitui-se de termos. Na verdade, toda<br />

unidade lexical é plurifuncional no nível do sistema e monofuncional<br />

no nível de uma norma ou falar concreto.<br />

Galisson ([1978]) distingue vocabulário comum, compartilhado<br />

por todos os membros de uma comunidade linguística do vocabulário<br />

especializado, que, afinal, provém do léxico geral da língua.<br />

Barbosa (1998, p. 40) esclarece: “uma unidade lexical não é<br />

termo ou vocábulo em si mesma, mas, ao contrário, está em função<br />

‘termo’ ou em função ‘vocábulo’ ou seja, o universo de discurso em<br />

que se insere determina seu estatuto, em cada caso”.<br />

5. Terminologização X vocabularização<br />

Assim como não existem fronteiras rígidas entre linguagens<br />

comuns e linguagens de especialidades, não se pode rotular um vocábulo<br />

como “termo” ou “lexema”, dado que todas as unidades lexicais<br />

provêm do inventário geral do léxico da língua. Tal característica<br />

origina dois fatos linguísticos: terminologização e vocabularização.<br />

O primeiro fato ocorre quando um vocábulo da língua comum<br />

ingressa no vocabulário de uma língua de especialidade, p. ex. o vocábulo<br />

martelo transforma-se em termo na linguagem da anatomia;<br />

no segundo caso, vocabularização, apresenta-se como a transformação<br />

de um termo em vocábulo, ou seja, um termo do vocabulário especializado,<br />

como p.ex. neurastenia (neurastênico) passa a integrar o<br />

vocabulário da linguagem comum. Isto significa que, considerandose<br />

que são tênues os limites entre linguagens comuns e linguagens de<br />

especialidades, observa-se que na relação inter-universos pode ocorrer<br />

a transposição de um termo para o léxico comum ou a migração<br />

de um lexema para um vocabulário especializado. Como foi dito, no<br />

primeiro caso, tem-se a lexicalização ou vocabularização, ou seja, a<br />

transformação de um termo em vocábulo; no segundo, ocorre a terminologização,<br />

transformação de vocábulo em termo. Segundo Barbosa<br />

(1998, p. 30) trata-se de “normas de um sistema linguístico,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

412<br />

uma relação horizontal intrassistema de significação e interuniverso<br />

de discurso”.<br />

6. Os discursos etnoliterários<br />

Os discursos etnoliterários compreendem a literatura oral, a<br />

literatura popular, incluindo a literatura de cordel, os contos, fábulas,<br />

histórias e anedotas etc., que passam de uma geração a outra por<br />

meio da tradição oral, que preserva o sistema de valores de uma comunidade<br />

humana, o sistema de crenças, o imaginário coletivo, o saber<br />

compartilhado sobre o mundo, em outras palavras, a etnoliteratura<br />

é o método de análise do discurso literário como fonte de conhecimento<br />

no estudo da diversidade cultural. "Têm os seus textos importantes<br />

funções culturais e estéticas, didática e mítica, assemelham-se,<br />

em muitos aspectos, ao mythos da antiga cultura grega”.<br />

Pais e Barbosa (2004, p. 79).<br />

Conceituando bem claramente os universos de discursos sociais<br />

não literários e os universos de discursos etnoliterários Pais<br />

(1993, p. 454-521) afirma: “os universos de discursos sociais não literários,<br />

sempre produzidos por grupos ou segmentos sociais que, através<br />

deles se sustentam, caracterizam-se por estruturas de poder<br />

próprias, mecanismos de argumentação / veridicção específicos, processos<br />

de manipulação peculiares, relações intersubjetivas e espaçotemporais<br />

de enunciação e enunciado”. Sobre os universos de discursos<br />

etnoliterários, Pais e Barbosa (2003, p. 257) assim se manifestam:<br />

“Neles se encontram narrativas que por certo não ocorreram ou,<br />

pelo menos, não teriam acontecido nos termos em que são explicitados.<br />

Falta-lhes, numa primeira leitura, a verossimilhança. Seus autores<br />

não são conhecidos ou, se há nomes, não podem ser atestados. O<br />

sujeito-enunciador é comumente apagado ou substituído por um ente<br />

imaginário ou virtual. As marcas de tempo e espaço do enunciado<br />

inexistem ou são muito vagas. Essas características produzem um efeito<br />

de sentido de atemporalidade e remetem a um espaço que é da<br />

utopia, do não lugar”.<br />

Os textos da etnoliteratura não se classificam como ficcionais,<br />

no sentido estrito do termo, por falta de verossimilhança. De certa<br />

forma poderiam ser considerados ficcionais, por serem (ou parece-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

413<br />

rem) os eventos narrados inverossímeis, se analisados denotativamente<br />

e não corresponderem a fatos historicamente comprovados.<br />

Desse modo, aproximam-se da fábula. Não se classificam, também,<br />

como documentais, porque não contam fatos históricos comprovados.<br />

Entretanto, os discursos etnoliterários assumem o importante<br />

papel de sustentar, conservar, atualizar e transmitir aspectos relevantes<br />

de um saber compartilhado, nas comunidades socioculturais em<br />

que são produzidos preservados e manifestados, dando aos seus<br />

membros o sentimento de pertencer à comunidade em questão. Pais e<br />

Barbosa lembram que<br />

Os textos etnoliterários são preservados ao longo dos séculos pela<br />

memória coletiva das comunidades e transmitidos de uma geração a outra<br />

pelas populações. Fazem parte da tradição popular, ou guardadas na<br />

memória, ou registradas em publicações artesanais, logo em seguida,<br />

transmitidos oralmente. (...) Nesse sentido, constituem documentos altamente<br />

significativos, reveladores de uma cultura e do seu processo histórico.<br />

(PAIS; BARBOSA, 2003, p. 258)<br />

Os discursos sociais não literários têm um estatuto sociossemiótico<br />

conferido pela sociedade, que os caracteriza como documentais x não<br />

ficcionais, de acordo com o seu modo de existência e produção socialmente<br />

aceitos. (....) No tocante aos discursos etnoliterários, verifica-se<br />

que sua produção se sustenta em combinações de modalidades complexas<br />

distintas. Ocupam-se, tais discursos, dentre outros aspectos, de sistema<br />

de valores, que por sua vez determinam pensamentos e condutas,<br />

formas de ver o mundo e o ser humano, comportamentos recomendáveis<br />

ou condenáveis, no fazer social. (....) Enquanto alguns universos de discursos<br />

sociais não literários, como o científico e o tecnológico pretendem<br />

apoiar-se, eminentemente na racionalidade os discursos etnoliterários<br />

sustentam-se, sobretudo, na afetividade, na sensibilidade e na historicidade.<br />

(PAIS, 2005).<br />

7. A unidade lexical no discurso etnoliterário<br />

As unidades lexicais dos discursos etnoliterários apresentam<br />

características específicas: são vocábulos metassemióticos, considerados<br />

quase termos técnicos, porque pertencem a uma linguagem especial.<br />

Seus sememas, porém, não correspondem nem aos sememas<br />

da linguagem comum, nem aos das linguagens científicas.<br />

Observa-se uma tensão dialética vocábulo X termo, nas unidades<br />

lexicais etnoliterárias. Essas unidades léxicas reúnem qualidades<br />

das linguagens de especialidades e da linguagem literária, con-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

414<br />

servando um valor semântico social, ao mesmo tempo permanecendo<br />

como documentos do processo histórico de uma cultura.<br />

Pode-se dizer que as unidades lexicais dos discursos etnoliterários<br />

apresentam um significado muito especializado, específico<br />

desse universo de discurso. Essas unidades lexicais, portanto, acumulam<br />

características das linguagens de especialidades e da linguagem<br />

literária. No nível da Norma e do falar concreto a unidade lexical<br />

do discurso literário assume as duas funções: vocábulo e termo.<br />

Trata-se de um vocábulo, nos seus aspectos referenciais, pragmáticos<br />

e simbólicos, em função semiótica, metassemiótica ou metametassemiótica<br />

e é um termo, na medida em que a unidade léxica em questão<br />

tem características de uma linguagem de especialidade. (PAIS; BAR-<br />

BOSA, 2004, p. 92).<br />

Certos universos de discurso suportam relações intertextuais e<br />

interdiscursivas que admitem uma abordagem transdisciplinar; outros<br />

há, no entanto, em que as relações intertextuais e interdiscursivas,<br />

por sua natureza, impõem um tratamento transdisciplinar.<br />

(BARBOSA, 2004).<br />

8. Conclusão<br />

Tomando-se em consideração a argumentação apresentada,<br />

pode-se chegar às seguintes conclusões:<br />

v O léxico geral da língua abriga inúmeras variedades de linguagens,<br />

destacando-se a dicotomia linguagem comum e linguagem<br />

especializada; a primeira diz respeito ao uso geral de todos os falantes,<br />

enquanto as linguagens especializadas constituem um<br />

conjunto de subcódigos, parcialmente coincidentes com os códigos<br />

e subcódigos da linguagem comum;<br />

v A variedade dos tipos de linguagem corresponde às finalidades<br />

específicas das diversas situações de comunicação;<br />

v Na área das linguagens especializadas, a significação de um termo<br />

muda, conforme o tipo de terminologia na qual é empregado;<br />

v Sabendo-se que a palavra pode assumir o estatuto de vocábulo<br />

e/ou de termo, cumpre observar: a palavra é um símbolo linguístico<br />

que admite plurissignificação; o termo, além de seu caráter


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

415<br />

monossemêmico, pertence a determinado sistema de conceitos e<br />

apresenta um grau de precisão muito mais elevado;<br />

v O discurso etnoliterário não pode ser considerado como integrante<br />

das chamadas linguagens especializadas, pois não apresenta<br />

características de cientificidade e outras, que permitam defini-lo<br />

como tal;<br />

v O discurso etnoliterário não se restringe aos parâmetros da chamada<br />

linguagem comum, pois extrapola seus limites, contudo se<br />

não se insere nas chamadas linguagens especializadas;<br />

v O discurso etnoliterário constitui um tipo de linguagem específica:<br />

não se enquadra no rol das linguagens especializadas, porém,<br />

ultrapassa os limites da linguagem comum;<br />

v Dadas essas características, conclui-se que a unidade lexical do<br />

discurso literário acumula o estatuto de termo e de vocábulo, ou<br />

seja, tanto pode ser termo como vocábulo, dependendo das circunstâncias<br />

e do tipo de universo de discurso no qual se insere.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

ANDRADE, M. M de. O léxico e os valores da cultura. Revista Brasileira<br />

de Linguística, v. 13, n. 1, p. 25-36. São Paulo: Terceira Margem;<br />

SBPL, 2005.<br />

______. Da constituição da terminologia técnico-científica: lexicalização<br />

e terminologização. In: Anais do XV Encontro Nacional da<br />

ANPOLL. Niterói, 4 a 7 jul 2000.<br />

______. Sobre a normalização terminológica: banalização / vulgarização.<br />

Revista Brasileira de Linguística, São Paulo: Plêiade; SBPL,<br />

v. 10, n. 1, p. 7-27, 1999.<br />

______. Conceitos /Denominações nas línguas de especialidades e<br />

na língua geral. Acta Semiotica et Lingvistica. São Paulo: Plêiade;<br />

SBPL, v. 7, p. 9-24, 1988.<br />

AROCHA, Jaime. Etnografia iconográfica entre grupos negros. In:<br />

FRIEDEMANN, Nina S. Criole Criole son. Bogotá: Planeta, 1989.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

416<br />

BARBOSA, Maria Aparecida. Pesquisas em etnoterminologia: natureza<br />

e funções das unidades lexicais na Literatura de Cordel. Revista<br />

Brasileira de Linguística. São Paulo: UBC; /SBPL, v. 15, p. 23-33,<br />

2007.<br />

______. Riqueza e diversidade lexical das etnias. Anais da 59ª. Reunião<br />

anual da SBPC, Belém-PA, SBPC; UFPA, 2007, v. 1, p. 1.<br />

______. Os discursos etnoliterários: etnoterminologia, léxico e axiologia.<br />

XXI Jornada Nacional de Estudos Linguísticos. UFPB. João<br />

Pessoa: GELNE; IDEIA, 2006, p. 1-3.<br />

______. Para uma etnoterminologia: recortes epistemológicos. Ciência<br />

e Cultura, n. 2, p. 48-51. São Paulo: SBPC, 2006.<br />

______ . O engendramento de conceitos em linguagens de especialidade,<br />

em discursos literários e em discursos sociais não literários.<br />

Revista Philologus. Rio de Janeiro: UERJ, v. 8, p. 32-43, 2002.<br />

______. Terminologização, vocabularização, cientificidade, banalização:<br />

relações. Acta Semiotica et Linguistica. São Paulo: Plêiade;<br />

SBPL, v. 7, p. 25-44, 1998.<br />

CABRÉ, M. T. La Terminología: teoria, metodologia, aplicaciones.<br />

Barcelona: Antártida/Empuries, 1993.<br />

DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de Linguística. Tradução de Frederico<br />

Pessoa de Barros et alii. Direção e coordenação geral da tradução:<br />

Prof. Dr. Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix [1978].<br />

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI:<br />

o dicionário de língua portuguesa. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 1999.<br />

GALLISSON, Robert. Recherches de lexicologie descriptive: la banalisation<br />

lexicale. Contribution aux recherches sur les langues techniques.<br />

Paris: Nathan, 1978.<br />

GREIMAS, A. J. O contrato da veridicção. Tradução de Cidmar Teodoro<br />

Pais. Acta Semiotica et Linguistica. São Paulo: SBPL; Global,<br />

v. 2, n.1, p. 211-221, 1978.<br />

______. Semiótica do discurso científico. Da modalidade. Prefácio e<br />

Tradução de Cidmar Teodoro Pais. São Paulo: DIFEL; SBPL, 1976.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

417<br />

______; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Tradução de Alceu<br />

dias Lima et alii. São Paulo: Cultrix, [1981].<br />

GUILBERT, Louis. Le lexique: Langue Française. Paris: Larousse,<br />

mai 1969.<br />

HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem.<br />

São Paulo: Perspectiva, 1975.<br />

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro Salles. Dicionário Houaiss<br />

da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva/Instituto Antônio<br />

Houaiss, 2001.<br />

LERAT, Pierre. Les langues spécialisées. Paris: PUF, 1995.<br />

LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. Antropologia estrutural<br />

II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1976.<br />

PAIS, Cidmar Teodoro. Semiótica das culturas: valores e saberes<br />

compartilhados. Revista Brasileira de Linguística, v. 13, n. 1, p. 155-<br />

172, 2005.<br />

______. Os discursos etnoliterários, a função mítica e os valores da<br />

cultura. In: Anais do Congresso Internacional de Literatura de Cordel,<br />

Simpósio: Tradição oral, literatura popular, etnoliteratura.<br />

UFPB, João Pessoa, out 2005.<br />

______. Texto, discurso e universo de discurso. Revista Brasileira de<br />

linguística. São Paulo: Plêiade; SBPL, v. 8, n. 1, p. 135-164, 1995.<br />

______. Conditions semântico-syntaxique et sémiotiques de la<br />

production systémique lexicale et discoursive, 1993, 764 p. Thèse de<br />

doctorat d´Etat (Lettres et Sciences Humaines). Lille: Université de<br />

Paris IV: Atelier National de Réproduction des Thèses, 1993.<br />

______. Aspectos de uma tipologia dos universos de discurso. Revista<br />

Brasileira de Linguística. São Paulo: Global; SBPL, v. 7, n. 1, p.<br />

43-65, 1984.<br />

_______; BARBOSA, Maria Aparecida. Da análise de aspectos semânticos<br />

e lexicais dos discursos etnoliterários à proposição de uma<br />

etnoterminologia. Matraga, Rio de Janeiro, v. 16, p. 79-100, 2004.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

418<br />

______; ______. Tradição oral, literatura popular e discursos etnoliterários:<br />

aspectos semióticos e lexicais da construção do imaginário<br />

coletivo. Revista Brasileira de Linguística, v. 12, p. 255-270, 2003.<br />

PICOCHE. J. Précis de lexicologie française. Paris: Nathan, 1977.<br />

RONDEAU, G. Introduction à la terminologie. 2. ed. Quebec:<br />

Gaëtan Morin, 1984, p. 91-119.<br />

SANDE, Paula Morgado. O que realizamos: pontos de partida, algumas<br />

perspectivas teóricas e metodológicas. Disponível em<br />

http://www.ielt.org.página/artigos. Acesso em 25-04-2010.


A UNIDADE LEXICAL NO DISCURSO<br />

PUBLICITÁRIO REGIONAL<br />

1. Considerações iniciais<br />

Nelly Carvalho (UFPE)<br />

nellycar@terra.com.br<br />

A língua, não tendo função em si, existe para expressar a cultura<br />

e possibilitar que a informação circule. Ela corporifica as demais<br />

interpretações culturais, como as letras nas músicas, a oração na religião,<br />

a descrição e a especificação na moda, a receita na culinária, o<br />

título nas obras de arte.<br />

A cultura é transmitida pela língua, sendo também seu resultado,<br />

o meio para operar e a condição da subsistência dessa cultura.<br />

O discurso publicitário é também matizado pela cultura em que está<br />

inserido, seja no vocabulário escolhido, seja nas imagens selecionadas.<br />

A competência do discurso publicitário e a sua eficácia vão de<br />

pender da forma como representa a cultura em que está inserido,<br />

permitindo estabelecer uma relação pessoal com a realidade próxima.<br />

A presença de índices carregados de cultura partilhada pela comunidade<br />

aumenta o poder de persuasão e sedução da mensagem veiculada,<br />

pois apela para valores que circulam e são aceitos, sendo entendidos<br />

facilmente. Na publicidade brasileira, podemos observar<br />

que, enquanto algumas mensagens dirigem-se a um público-alvo nacional,<br />

outras são construídas visando a um público-alvo mais específico,<br />

regional.<br />

2. Fundamentos linguísticos<br />

Língua e cultura formam um todo indissociável e, no caso da<br />

língua e da cultura maternas, esse todo não é ensinado em nenhum<br />

lugar especial, mas adquirido ao sabor dos acontecimentos cotidianos.<br />

Ele identifica os indivíduos como participantes de uma coletividade<br />

e serve de denominador comum para o convívio social.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

420<br />

No caso da língua portuguesa – falada no Brasil e em Portugal,<br />

consistindo em duas vertentes de uma mesma língua – ‘veiculam-se<br />

culturas que, embora tenham raízes comuns, diversificaramse<br />

ao longo da história.<br />

Os componentes de uma língua são de ordem fonológica, sintática,<br />

e semântico-lexical. Todos estes sofrem diferenciações quando<br />

submetidos a influências diversas e são observadas na pronúncia,<br />

nas escolhas sintáticas, nas alterações de sentido, nas escolhas do<br />

termo, em vertentes diferentes de uma mesma língua.<br />

É, contudo, o componente semântico-lexical que revela com<br />

maior clareza as divergências entre os usos por diferentes comunidades<br />

linguísticas. O léxico, nomeando as realidades extralinguísticas<br />

vai permitir compreender conceitos abstratos e nomear diferentes<br />

ocorrências da vida cotidiana.<br />

O implícito (cultural) desempenha um papel decisivo, impondo<br />

uma fronteira eficaz e discreta entre os que compreendem e os<br />

que não compreendem o sentido total da mensagem. A fronteira cultural<br />

não é apenas a das nações, nem sequer a da língua: pode ser regional<br />

e ata mesmo grupal.<br />

A aquisição da competência cultural (na própria cultura) não<br />

faz parte de uma escolha possível: ela é vivida como uma ligação<br />

imediata e única com o mundo.<br />

3. Unidade Lexical: a Palavra<br />

A palavra analisa e objetiva o pensamento individual, tendo<br />

também um valor coletivo, pois há uma sociedade própria da língua.<br />

A palavra permite ao conceito ultrapassar o estágio individual e afetivo:<br />

ela racionaliza, classifica, distingue e generaliza o pensamento,<br />

tornando-o abstrato.<br />

O vocabulário, símbolo verbal da cultura, perpetua a herança<br />

cultural através dos signos verbais e faz a ponte entre o mundo da<br />

linguagem e o mundo objetivo. Palavras são emblemas culturais,<br />

símbolos com significados sociais, que conservam a experiência da<br />

atividade humana.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

421<br />

São inúmeros os exemplos de palavra que cristalizam uma<br />

carga cultural diferenciada. Galisson, linguista francês que estudou o<br />

tema para explicar o significado acrescido da carga cultural. Como<br />

dentro do próprio Brasil existem as diferenças dialetais entre regiões,<br />

decorrentes de condições e épocas de implantação da língua portuguesa<br />

e de sua imposição como língua veicular, isto pode revelar diferenças<br />

de uso.<br />

4. Zonas Dialetais Brasileiras<br />

Segundo Antenor Nascentes em O Linguajar Carioca, o falar<br />

brasileiro, apesar de sua relativa uniformidade, apresenta variações: a<br />

enorme extensão territorial, sem fáceis comunicações interiores quebrou<br />

a unidade da língua transplantada, fragmentando-o em subdialetos,<br />

contribuindo para isso o modo diferente de povoações das diversas<br />

regiões. Vinda da Europa, a língua e a cultura implantaram-se no<br />

litoral, formando dois focos de irradiação: São Paulo e Pernambuco.<br />

Seguem–se depois, na ordem, a Bahia, o Maranhão e o Rio de Janeiro.<br />

São Paulo levou ambas, língua e cultura, a Minas, Goiás, Mato<br />

Grosso. Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A Pernambuco<br />

coube o papel de divulgá-las na margem esquerda do rio São Francisco<br />

que serviu como divisor de falares: em Alagoas, Paraíba, Rio<br />

Grande do Norte e Ceará, que as levou ao Acre.<br />

A Bahia influenciou a margem direita do velho Chico: Sergipe<br />

e Espírito Santo. O Maranhão divulgou a língua na Amazônia e o<br />

Rio de janeiro, capital da colônia desde 1763, por ter se tornado a<br />

língua da corte com a vinda da Família Real, em 1808 teve sua variante<br />

considerada, a partir de então o modelo da língua falada no Brasil.<br />

Antenor Nascente considerou o dialeto brasileiro dividido em<br />

duas zonas norte e sul, dividida em subfalares. No Norte, o amazônico<br />

e o nordestino. No sul: baiano, fluminense, mineiro e sulista. Mas,<br />

apesar da força atual da mídia, cada um desses subfalares, nos vários<br />

estados, vai criando características próprias no léxico.<br />

Como isso pode interessar ao publicitário e pode influenciar o<br />

mercado?


5. Diferentes usos da unidade Lexical<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

422<br />

Há duas formas de estabelecer a tipologia de diferenças lexicais<br />

interdialetais: partindo da palavra ou partindo do referente. São<br />

elas:<br />

Uma única forma e um único referente<br />

Formas múltiplas e um único referente<br />

1. cachaça/pinga. 2. bigu/carona;.kombeiro/perueiro 3. capiongo/tristonho/aperriado<br />

Forma única e referentes múltiplos<br />

Polissemia: Tampa, trouxa, Diadema/tiara; calção/maiô, pronto<br />

6. Múltiplas formas e único referente<br />

bravo/brabo Sutiã/califon/corpinho<br />

Múltiplas formas e múltiplos referentes (bomonímia)<br />

Manga, fruta; Manga, verbo (só no Nordeste significa zombar).<br />

1. boyzinho/mauricinho-patricinha/boyzinha<br />

2. mandioca/aipim/ macaxeira; laranja cravo, bergamota, tangerina.<br />

São sutis as distinções entre as zonas dialetais e como são delicadas<br />

as relações semânticas que limitam os campos dialetais<br />

7. Corpus<br />

– “O sol trabalha 365 dias por ano e usa sua pele como escritório”,<br />

da Episol, loção hidratante, é bem uma peça publicitária<br />

de cultura brasileira, coloca em evidência o fato qualidade de ser um<br />

país ensolarado.<br />

– Liberdade ainda que à tardinha, das sandálias Havaianas,<br />

traz à memória do receptor-alvo, a frase-símbolo da Inconfidência<br />

Mineira.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

423<br />

– Sogra chamando, dos celulares Sony Ericsson com identificador<br />

visual de chamadas, tem no visor uma cobra verde e amarela,<br />

forma como a nossa cultura trata as sogras.<br />

– Peixe-gato. Outdoor da Movimento exibindo um belo rapaz,<br />

um gato, de minúsculo calção de praia, na areia, onde aparecem<br />

os igualmente minúsculos peixes-gato, como são nomeados em Pernambuco.<br />

– Neste verão você precisa de uma sombrinha. Faz o jogo<br />

polissêmico entre pequena sombra, guarda-sol de praia e adorno carnavalesco,<br />

colocando como elemento estranho o fato de ser preciso<br />

sombrinha no inverno e não no verão.<br />

– Do maracatu para o cinema, da praia parra as orquestras<br />

de frevo, dos pólos de animação para o restaurante. Não é à<br />

toa que o Recife é a cidade das pontes. Recife, diversão dentro e<br />

fora da folia.<br />

– Obrigado, Maria Bonita, Lampião e Cleópatra. O Galo<br />

da Madrugada agradece a todos os pernambucanos que colocaram<br />

sua fantasia, entraram na folia e fizeram, mais uma vez, o<br />

maior bloco carnavalesco do mundo.<br />

– O boné - O abadá – O folião (descrevendo uma garrafa<br />

de cerveja) Antártica, paixão nacional, a cerveja oficial do Carnaval<br />

de Salvador.<br />

8. Conclusão<br />

Os exemplos permitem observar as diferenças de escolha das<br />

unidades lexicais nos dialetos brasileiros, resultantes da sedimentação<br />

cultural. As diferenças são produto de uma dialética histórica de<br />

diferenciação cumulativa. No curso de histórias diferentes, partindo<br />

de uma raiz comum, as comunidades desenvolvem culturas próprias<br />

que se expressam na sua forma de linguagem, nas escolhas de imagens.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

424<br />

BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veut dire: l’economie des<br />

échanges linguistiques. Paris: Fayard, 1982.<br />

CARVALHO, Nelly. Publicidade, a linguagem da sedução. São<br />

Paulo: Ática, 2002.<br />

GALISSON, R. Lexicologie et enseignement des langues: Essais<br />

Methodologique. Paris: Hachette, 1979.<br />

NASCENTES, Antenor. O dialeto carioca. Rio de Janeiro: Nova<br />

Fronteira, 1945.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

426<br />

lexicais com o intuito de contribuir para os projetos que buscam entender<br />

as escolhas léxico-fonológicas dos falantes.<br />

Para que pudéssemos realizar essa discussão, tomamos como<br />

base os resultados das pesquisas de autores como Castro (1990), em<br />

Juiz de Fora/MG; Guimarães (2006), na região norte de Minas Gerais;<br />

Ribeiro (2007), em Belo Horizonte/MG; Viana (2008), em Pará<br />

de Minas/MG e Viegas (2001), em Belo Horizonte/MG. Além disso,<br />

nos utilizamos, para comprovar e discutir o caráter difusionista em<br />

relação ao comportamento das vogais médias [e, o] em posição pretônica<br />

e postônica não final, dos trabalhos de Bisol (1981), Bybee<br />

(2002), Chen & Wang (1975), Cristófaro-Silva (2001, 2006), Fidelholtz<br />

(1975), Khrishnamurti (1978), Labov (1981, 2008), Lee<br />

(1992), Oliveira (1991, 1995, 2008), Oliveira & Lee (2003, 2006),<br />

Wang (1969).<br />

No presente estudo, foram selecionados 9.149 dados da amostra,<br />

os quais foram submetidos ao programa GOLDVARB 2001. No<br />

corpus, 5.470 dados referem-se a variável (e) – 5.078 em posição<br />

pretônica e 392 em posição postônica não final –, e 3.679 referem-se<br />

a variável (o) – 3.299 em posição pretônica e 380 em posição postônica<br />

não final.<br />

Conforme já havíamos dito, o comportamento das pretônicas<br />

forma, na cidade de Montes Claros/MG, um quadro complexo. Já em<br />

relação às postônicas não finais, alem de se comportarem de modo<br />

diferenciado das pretônicas, verificamos, ainda, comportamento diferenciado<br />

em relação às variáveis (e) e (o): na variável (o) em posição<br />

postônica não final, o alçamento (53%) e predominante. Já em relação<br />

à variável (e), a manutenção da variável predomina, tanto em relação<br />

pretônica (70,8%), quanto em posição postônica não final<br />

(77,8%).<br />

1. O comportamento variável pretônica (e)<br />

A manutenção da variável (e), em posição pretônica, prevalece<br />

entre os falantes montes-clarenses. O percentual de 1% de rebaixamento<br />

aponta para uma das hipóteses iniciais deste trabalho: que o<br />

falar de Montes Claros não é mais caracterizado pela realização da


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

428<br />

Apesar de eliminado pela stepping down, o grupo escolaridade<br />

foi selecionado pela rodada stepping up. Já em relação ao rebaixamento<br />

da variável (o) em posição pretônica, dos 3.299 dados coletados,<br />

133 referem-se ao fenômeno e 2.704 à manutenção da variável<br />

(o) 4 . Ainda, as rodadas stepping up e down excluíram distância da<br />

silaba tônica, nasalidade, classe de palavras, grau de formalidade,<br />

individuo, sexo do falante, escolaridade e classe social. Apesar de<br />

eliminado pela stepping down, o grupo faixa etária foi selecionado<br />

pela rodada stepping up.<br />

3. O comportamento variável postônica (e) em posição não final<br />

Aqui, diferentemente das pretônicas, não foram utilizados os<br />

seguintes grupos de fatores: status da tonicidade, distância da silaba<br />

tônica, classe de palavra e grau de formalidade pela insuficiência de<br />

dados para compô-los. Não se utilizou, também, o grupo posição da<br />

vogal postônica por, neste estudo, as vogais serem sempre mediais.<br />

Parece-nos, em comparação com a realização das pretônicas,<br />

que a manutenção também prepondera entre os falantes montesclarenses<br />

– 78% – em detrimento do alçamento – 22%. Das 392 ocorrências<br />

da média (e) em posição postônica não final, 87 são relativas<br />

ao alçamento e 305 à manutenção da vogal. Os grupos selecionados<br />

pelas rodadas stepping up e down foram: vogal da silaba seguinte,<br />

vogal da silaba precedente, contexto fonológico precedente e contexto<br />

fonológico seguinte.<br />

Assim como ocorreu em relação ao alçamento da variável (e)<br />

em posição pretônica, em posição postônica verificamos que nenhum<br />

dos grupos de fatores não estruturais foi selecionado, sendo tal fato,<br />

portanto, indicativo de difusão lexical. Em relação ao dialeto montesclarense,<br />

comparando-o com os dados referentes ao dialeto da capital<br />

mineira (RIBEIRO, 2007), verificamos que o comportamento<br />

da postônica (o) é diferenciado, apesar de ambos favorecerem a manutenção<br />

da variável. Tal fato condiz com o que nos afirma Oliveira<br />

(2008): “E evidente que os falantes de um mesmo dialeto apresentarão<br />

mais semelhanças do que diferenças entre si. (...) E é evidente,<br />

4 462 dados coletados referem-se ao alçamento da vogal média [o] em posição pretônica.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

429<br />

também, que as diferenças irão crescer quando falantes de dialetos<br />

diferentes são comparados”.<br />

4. O comportamento da variável postônica (o) em posição não final<br />

Em relação à variável (o), em posição postônica não final,<br />

vemos um comportamento diferente do de todas as outras variáveis<br />

aqui analisadas, sejam elas em posição pretônica ou postônica. Aqui,<br />

o alçamento prevalece em relação à manutenção – 53% e 47%, respectivamente.<br />

Entretanto, se levarmos em consideração a margem de<br />

4 pontos percentuais de erro estatístico, podemos dizer que, em relação<br />

às postônicas (o), o comportamento dos falantes da cidade de<br />

Montes Claros e equivalente para os dois processos – manutenção e<br />

alçamento.<br />

Tal fato e confirmado pelo que nos mostra Ribeiro (2007) em<br />

relação ao falar de Belo Horizonte/MG. Assim como no dialeto montesclarense,<br />

na capital mineira, há a tendência de se elevar a média<br />

postônica (o), em posição não final.<br />

Os grupos selecionados pelas duas rodadas do VARBRUL foram:<br />

vogal da silaba seguinte, vogal da silaba precedente, contexto<br />

fonológico seguinte, contexto fonológico precedente e individuo. Ainda<br />

é necessário dizer que, para que as rodadas pudessem ser efetuadas,<br />

tivemos que retirar as 17 ocorrências da palavra páscoa; além<br />

disso, o alçamento da variável (o) foi categórico: pásc[u]a. Também<br />

excluímos a única ocorrência de alçamento com ausência de contexto<br />

seguinte – aure[w], variação de auréola.<br />

5. Os itens lexicais<br />

Dos 69 diferentes itens lexicais encontrados no nosso corpus<br />

com as vogais médias (e, o), em posição postônica não final, relativos<br />

ao fenômeno do alçamento, 34 dizem respeito à postônica (e) e<br />

35 à postônica (o) – conforme dados nas Tabelas 1 e 2. Além disso,<br />

em relação ao rebaixamento das postônicas (e, o), houve, nos dados<br />

colhidos, ausência quase categórica do fenômeno, sendo apenas en-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

430<br />

contrado em x[e]r[ ]x e bróc[ ]lis; este, com apenas uma ocorrência.<br />

Isso nos faz crer, assim como dito anteriormente por Vieira<br />

(1994) e Ribeiro (2007), que o dialeto montesclarense, no que se refere<br />

às médias postônicas em posição não final, é composto por um<br />

quadro com as vogais /e, i, a, u, o/, diferentemente do que postulou<br />

Câmara Jr. (2007, p. 44), que nos apresentou o seguinte quadro das<br />

primeiras vogais postônicas dos proparoxítonos, ou vogais penúltimas<br />

átonas:<br />

Altas /u/ /i/<br />

Médias /../ /e/<br />

Baixas /a/<br />

Itens como Jâmbore, âncora, cômodo, sambódromo, autônomas,<br />

monótona, diácono(s), brócolis e Xerox tiveram manutenção<br />

categórica, sendo que nos dois últimos (brócolis e Xerox) houve casos<br />

de realização da média (o) em posição postônica não final como<br />

baixa [ ]. Já os itens auréola, bússola, páscoa e período tiveram alçamento<br />

categórico.<br />

Verificamos que, em relação ao comportamento da postônica<br />

não final (o), o alçamento é superior à manutenção da variável, diferentemente<br />

do que verificamos em relação à postônica não final (e),<br />

cuja manutenção é a preferência dos falantes de Montes Claros.<br />

Dos 34 itens dados referentes à variável postônica (e), verificamos<br />

que a maioria deles possui manutenção ou alçamento categórico<br />

(bafômetro, câmera, centímetro, cérebro, crisântemo, cronômetro,<br />

fenômeno, helicóptero, núcleo, números, ópera, pálpebra, parênteses,<br />

presbítero, prótese, quilômetro, taxímetro, termômetro, útero<br />

e velocípede tiveram manutenção categórica. Já área, áurea –<br />

variação de auréola –, orquídea, petróleo e Timóteo tiveram alçamento<br />

categórico).<br />

Assim, através dos nossos dados, podemos confirmar as duas<br />

hipóteses levantadas por Ribeiro (2007): (1) itens lexicais, que podem<br />

se apresentar variáveis quando olhamos para toda a comunidade<br />

de fala, possuem pronuncias categóricas para cada individuo (a vari-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

431<br />

ação intraindividual existente é mínima); e, em decorrência disso, (2)<br />

não se pode computar como variáveis os itens que possuem pronuncias<br />

categóricas dentro da mesma comunidade de fala. (op. cit., p.<br />

161)<br />

Através da nossa análise sobre o comportamento das vogais<br />

médias (e, o), em posição pretônica e postônica não final, no falar de<br />

Montes Claros, pudemos verificar que as mesmas formam um sistema<br />

complexo, principalmente em posição pretônica, onde encontramos<br />

médias altas e baixas como variáveis.<br />

O comportamento das vogais médias – excetuando-se (o) em<br />

posição postônica não final – tem a manutenção como preferência de<br />

realização. Quanto ao comportamento individual, verifica-se que e<br />

variável, seja em relação ao posicionamento de (e, o), seja em relação<br />

ao individuo; entretanto, conforme nos aponta Ribeiro (2007, p.<br />

164), “apesar de os falantes terem apresentado variação intraindividual,<br />

(...) essa variação pode ser considerada uma situação marcada<br />

na língua, conforme postulou Oliveira (2006)”.<br />

A exclusão das variáveis extralinguísticas (sexo, faixa etária,<br />

grau de escolaridade e classe social) em quase todas as posições das<br />

vogais médias (e, o) aqui investigadas, confirma a hipótese maior<br />

deste trabalho: que a variação é lexical. Além, há vocábulos que alçaram<br />

mesmo sem ambiente vocálico favorecedor 5 , como apar[i]ceram,<br />

b[i]zerro, cr[i]sceu, m[i]lhor, r[i]ais, r[i]lacão,<br />

s[i]mestre, ac[u]mpanha, alg[u]dão, b[u]cado, c[u]meça, c[u]mer,<br />

v[u]ando, v[u]mitando, entre outros.<br />

Corroborando a hipótese da difusão lexical temos, ainda, casos<br />

categóricos como tod[o] e tud[u], pess[o]a e pess[u]al, além de<br />

[i]ntão, d[i]mais, d[e]pois, [e]xemplo, v[o]cê e p[u]rque.<br />

Verificamos que o alçamento das médias pretônicas (e, o), assim<br />

como o rebaixamento, é um processo variável, desmitificando,<br />

assim, a questão da harmonização vocálica. Quanto ao rebaixamento<br />

de (e, o), pudemos constatar que as categorias específicas propostas<br />

por Cristófaro-Silva (2005) dão conta de quase todos os casos encontrados<br />

neste trabalho.<br />

5 Levando-se em consideração os resultados de diversos estudos realizados no Brasil.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

436<br />

(a) inúmeras exceções a determinadas mudanças fonéticas não podem<br />

ser explicadas unicamente por analogia e/ou por empréstimo;<br />

(b) muitos processos fonológicos não são explicados somente por<br />

condicionamentos sonoros, mas por uma gama variada de fatores,<br />

incluindo os de natureza discursivo-pragmática e sócio-geográficosocial;<br />

(c) nem todos os vocábulos que contêm o som em mudança são afetados<br />

simultaneamente e da mesma maneira. Longe de se aplicar a<br />

todas as palavras ao mesmo tempo, as mudanças fônicas reconhecem<br />

limites temporais, quer por razões socioculturais, quer por razões<br />

pragmáticas, sendo, pois, continuas.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BISOL, Leda. Harmonização vocálica: uma regra variável. Tese<br />

(Doutorado em Linguística). Universidade Federal do Rio de Janeiro,<br />

1981.<br />

BYBEE, Joan. Word frequency and context of use in the lexical diffusion<br />

of phonetically contitioned sound change. Language, Variation<br />

and Change, 14, p. 261-290, 2002.<br />

CAMARA JR., Joaquim Mattoso. Problemas de linguística descritiva.<br />

19. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.<br />

______. Estrutura da Língua Portuguesa. 39. ed. Petrópolis: Vozes,<br />

2007.<br />

______. Para o estudo da fonêmica portuguesa. Petrópolis: Vozes,<br />

2008.<br />

CASTRO, Elzimar Cesar de. As pretônicas na variedade mineira juizdeforana.<br />

Dissertação (Mestrado em Linguística). Rio de Janeiro:<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1990.<br />

CHEN, M. & WANG, W.S.-Y. Sound change: actuation and implementation.<br />

Language, v.51, n. 2, p. 255-81, 1975.<br />

CRISTÓFARO-SILVA, Thais. Fonética e fonologia: perspectivas<br />

complementares. Estudos da Lingua(gem), n. 3, p. 25-40, jun. 2006.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

437<br />

______. DL: Estudo de Casos do Português Brasileiro. In: MEN-<br />

DES. Eliana Amarante de M.; OLIVEIRA, Paulo Motta; BENN-<br />

IBLER, Veronika. (org.). O novo milênio: interfaces linguísticas e literárias.<br />

Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2001. p. 209-218.<br />

FIDELHOLTZ, James L. Word frequency and vowel reduction in<br />

English. CLS 11, p. 200-213, 1975.<br />

GUIMARÃES, Rubens Vinicius Martins. Variação das vogais médias<br />

em posição pretônica nas regiões Norte e Sul de Minas Gerais.<br />

2006. 212 f. Dissertação (Mestrado em Linguística). Universidade<br />

Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.<br />

KRISHNAMURTI, B. Areal and lexical diffusion of sound change.<br />

Language, v. 54, n. 1, marco, p. 9-25, 1978.<br />

LABOV, W. Resolving the neogrammarian controversy. Language,<br />

v. 57, n. 2, p. 267-308, junho, 1981.<br />

______. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.<br />

LEE, S.-H. Fonologia Lexical do Português. Cadernos de Estudos<br />

Linguísticos, 23, Campinas: Unicamp, 1992.<br />

LEE, S. H. & OLIVEIRA, M. A. Variação inter– e intradialetal no<br />

português brasileiro: Um problema para a teoria fonológica. In: O-<br />

LIVEIRA, Dermeval da Hora; COLLISCHONN, Gisela. (Org.). Teoria<br />

linguística: fonologia e outros temas. João Pessoa: Universitária<br />

da UFPB, p. 67-91, 2003.<br />

OLIVEIRA, Marco Antonio. The neogrammarian controversy revisited.<br />

International journal of the sociology of language. Berlin, 89, p.<br />

93-105, 1991.<br />

______. O léxico como controlador de mudanças sonoras. Revista de<br />

Estudos da Lingua(gem). Vitória da Conquista, Ano 4, n. 3, p. 75-92,<br />

1995.<br />

______. Variação linguística, teoria fonológica e difusão lexical: por<br />

uma fonologia cognitiva. Belo Horizonte: PUC-Minas, Seminário<br />

Espaços Mentais e Interfaces, 2008. [Inédito]


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

438<br />

OLIVEIRA, M. A; LEE, S. H. Teorias fonológicas e variação linguística.<br />

Revista Estudos da Lingua(gem), Vitória da Conquista, v. 3,<br />

p. 41-67, 2006.<br />

RIBEIRO, Darinka Fortunato Suckow. Alçamento de vogais postônicas<br />

não finais no português de Belo Horizonte – Minas Gerais:<br />

uma abordagem difusionista. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa<br />

e Linguística). Pontifícia Universidade Católica de Minas<br />

Gerais, 2007.<br />

VIANA, Vanessa Faria. As vogais médias pretônicas em Pará de<br />

Minas: um caso de variação linguística. Dissertação (Mestrado em<br />

Linguística e Língua Portuguesa). Belo Horizonte: PUC-Minas,<br />

2008.<br />

VIEGAS, Maria do Carmo. O alçamento de vogais médias pretônicas<br />

e os itens lexicais. Tese (Doutorado em Letras – Estudos Linguísticos).<br />

Universidade Federal de Minas Gerais, 2001.<br />

VIEIRA, Maria Jose Blaskovski. Neutralização das vogais médias<br />

postônicas. Dissertação (Mestrado em Letras). Porto Alegre: Universidade<br />

Federal do Rio Grande do Sul, 1994.<br />

WANG, W. S.-Y. Competing changes as a cause of residue. Language,<br />

v. 45, n. 1, p. 9-25, 1969.


A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA<br />

EM DOIS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA<br />

1. Introdução<br />

Michelle de Oliveira (UERJ)<br />

michelle_letras@oi.com.br<br />

O Brasil, país com grande diversidade linguística- cerca de<br />

duzentas línguas são faladas atualmente (incluindo-se as línguas indígenas)<br />

por 189,6 milhões de falantes – de acordo com dados do<br />

IBGE, é marcado pela pluralidade linguística, cultural, social e econômica,<br />

apesar de a língua portuguesa, como língua oficial, ser a língua<br />

falada em todo o território nacional, além de ser a língua ensinada<br />

nas escolas.<br />

A diversidade linguístico-cultural do Brasil coloca em destaque<br />

o tema da variação como uma das preocupações centrais no ensino<br />

de Língua Portuguesa. No entanto, ao analisarmos os livros didáticos<br />

de Português, verificamos que o tratamento da variação linguística<br />

não é contemplado levando-se em conta a diversidade de variações<br />

existentes na língua (dialetais, diacrônicas, sociais, fonéticas,<br />

morfológicas, sintáticas etc.).<br />

Ao analisar o LDP, optamos por dois livros: Português: linguagens,<br />

de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães,<br />

da 7ª série e Português: Projeto Araribá, da 8ª, no intuito de verificar<br />

se abordagens mais modernas de ensino, tais como as contribuições<br />

da Linguística Contemporânea e os Parâmetros Curriculares para o<br />

ensino de Língua Portuguesa, tem sido postas em prática já nas últimas<br />

séries dos LDPs de Ensino Fundamental.<br />

2. Análise dos livros didáticos de língua portuguesa<br />

2.1. Português: linguagens – Magalhães e Cereja<br />

2.1.1. Análise da variação no ensino de Gramática<br />

No livro Português: linguagens, os capítulos que trabalham a<br />

variação linguística são os correspondentes ao capítulo dois (da uni-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

440<br />

dade um), o capítulo um (da unidade dois) e os capítulos um e dois<br />

(da unidade três). Analisaremos, portanto, tais capítulos em relação à<br />

variação linguística no ensino de gramática.<br />

No capítulo dois da unidade um, Magalhães e Cereja apresentam<br />

primeiramente a gramática de forma sistematizada, sob um<br />

prisma tradicional e, geralmente, na seção "Linguagem e interação"<br />

trabalham a variação linguística. Nesta seção, os autores explicam<br />

que “na linguagem coloquial, é muito comum o emprego do verbo<br />

ter como impessoal, no lugar do verbo haver.” (pg. 48). Para exemplificar<br />

a proposição, utilizam como exemplo duas frases:<br />

Ao abordar os usos dos verbos “ter” e “haver”, os autores trabalham<br />

os diferentes níveis de registro, ao enfatizarem que “muitos<br />

escritores e compositores já incorporaram esse tipo de construção em<br />

seus textos, embora a variedade padrão recomende que se empregue<br />

nesses casos o verbo haver como impessoal” (p. 48). Com isso, tenta-se<br />

mostrar que o verbo “ter” encontra-se presente tanto na linguagem<br />

oral quanto na linguagem escrita.<br />

Verificamos, nesta parte, uma abordagem coerente quanto à<br />

variação linguística, visto exemplificar os diferentes usos e registros<br />

do verbo “haver” (usado em situações que exigem maior formalidade)<br />

e do verbo “ter” (bastante comum no discurso oral, embora também<br />

utilizado na linguagem escrita). Tal proposta está condizente<br />

com as orientações sugeridas pelos PCNs, uma vez que neste documento<br />

afirma-se que<br />

O estudo da variação, por cumprir um papel fundamental na formação<br />

da consciência linguística e no desenvolvimento da competência discursiva<br />

do aluno, deve estar sistematicamente presente nas atividades de<br />

Língua Portuguesa. (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1998, p. 82)<br />

Analisando-se os exercícios propostos, os autores, no primeiro<br />

exercício, solicitam ao aluno apenas a passagem de uma variedade<br />

para outra:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

441<br />

No exercício dois, questiona-se qual das duas formas é mais<br />

agradável de ouvir (quando se usa o verbo “ter” ou o “haver”?). Na<br />

resposta sugerida pelos autores, consta que o emprego do verbo “ter”<br />

soa “mais natural no português brasileiro” (p. 48).<br />

Os autores enfatizam, portanto, na resposta apresentada, uma<br />

não ruptura com a língua falada. Além disso, ao mostrar como exemplo<br />

o emprego do verbo “ter” no lugar do “haver” em fragmentos<br />

de textos do escritor Manuel Bandeira e do compositor Chico<br />

Buarque, conforme se verifica no exercício um, mostram que tais<br />

construções também são utilizadas na linguagem dos falantes cultos,<br />

enfocando, assim, a variação estilística, que considera as diversas<br />

circunstâncias de comunicação.<br />

Constatamos, assim, nessa seção, uma abordagem coerente<br />

sobre a variação nos fenômenos gramaticais, pois nela a gramática é<br />

concebida como “flexível, variável, mutável, exatamente por ser parte<br />

constitutiva das línguas, que são flexíveis, variáveis e mutáveis<br />

por natureza” (ANTUNES, 2004, p. 129).<br />

Por fim, no exercício três, expõe-se um texto de Chico Buarque<br />

e após há questões do tipo:<br />

Observe o emprego dos verbos amanhecer e chover no texto.<br />

a) Qual é a predicação deles?<br />

b) Qual é o sujeito a que cada um deles se refere?<br />

Assim, verificamos que a variação linguística é abordada somente<br />

nos exercícios um e dois. No exercício três, os autores retornam<br />

aos moldes tradicionais do ensino de gramática: identificação de<br />

funções sintáticas, sem a reflexão sobre as funções que os sujeitos e<br />

predicados possuem no texto.<br />

Desta forma, constatamos que neste capítulo a variação linguística<br />

é parcialmente trabalhada, havendo uma mescla da aborda-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

442<br />

gem tradicional, embasada no ensino da norma padrão com o ensino<br />

da variação linguística em alguns exercícios, sobretudo nos que correspondem<br />

à seção "Linguagem e interação".<br />

Já no capítulo um, da unidade dois, introduz-se o tema da adolescência,<br />

os comportamentos, assim como a linguagem que permeia<br />

o universo dos jovens. Na seção "A linguagem do texto", explora-se<br />

a variante linguística falada por este grupo, o que está relacionado<br />

à faixa etária de tal grupo social.<br />

No início do capítulo, há um texto intitulado “Qual é a sua<br />

tribo?”, de Walcyr Carrasco, o que já induz, pelo título, que se tratará<br />

de temas típicos da adolescência, visto o emprego do item lexical<br />

“tribo”, bastante comum na linguagem dos adolescentes.<br />

Na seção "Trocando ideias", há uma parte denominada "Ler é<br />

diversão", na qual se apresenta uma tira com os personagens utilizando<br />

a variante falada por adolescentes, o que se evidencia pelo<br />

emprego constante de gírias e expressões dessa faixa etária, como<br />

por exemplo: “compro sua barra”, “grilado” e “man”:<br />

Segundo Bortoni-Ricardo,<br />

A rede social de um indivíduo, constituída pelas pessoas com quem<br />

esse indivíduo interage nos domínios sociais, também é um fator


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

443<br />

determinante das características de seu repertório sociolinguístico<br />

(BORTONI-RICARDO, 2006, p. 49).<br />

Tal fato podemos observar ao analisar as expressões apresentadas<br />

na tira acima, típica do repertório linguístico dos grupos juvenis.<br />

É certo que a tira em questão estimula a leitura, pois trata de<br />

um tema que pertence ao universo juvenil: as tribos urbanas, os<br />

punks. Verificamos, assim, que o tema proposto reflete a realidade<br />

dos alunos, contudo, a tira poderia ser mais bem explorada no livro,<br />

trabalhando-se a variação diafásica, que se reflete na diferença de registros<br />

(formal, informal). Poderia, por exemplo, haver questões sobre<br />

a linguagem apresentada na tira, ou seja, as diferenças entre a<br />

linguagem utilizada em situações informais (uma conversa entre amigos,<br />

conforme é apresentada na charge) e em situações que exigem<br />

uma linguagem mais formal, como uma palestra, uma exposição<br />

etc.<br />

Nesta unidade, assim como na unidade anterior, há a explicitação<br />

das regras gramaticais. Na seção "A língua em foco", na parte<br />

"Linguagem e interação", há a ênfase no contexto situacional, quando<br />

se propõe a seguinte questão (p. 96):<br />

7- Se o contexto não esclarecer a intenção do locutor, a frase “O<br />

professor de Educação Física atendeu os alunos de uniforme” pode<br />

ser ambígua, isto é, ter duplo sentido.<br />

a) Quais são esses sentidos?<br />

b) Indique o tipo de predicado dessa oração, no caso de um e no caso<br />

de outro sentido.<br />

Evidencia-se, assim, uma mescla de abordagens, com questões<br />

(como na letra a) que tratam do funcionamento da linguagem,<br />

dos sentidos adquiridos por um determinado uso linguístico e outras<br />

perguntas (letra b) que, segundo Neves, “organizam-se em atividades<br />

de simples rotulação, reconhecimento e subclassificação de entidades<br />

(classes ou funções) (NEVES, 2008:116).<br />

Partindo-se para a unidade três, capítulo um, na seção "A linguagem<br />

do texto", verificamos que a variação linguística diafásica é<br />

apresentada por meio das falas de dois personagens (os filhos de dona<br />

Dolores), conforme consta no seguinte exercício:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

444<br />

Enfatizam-se, assim, no diálogo expressões típicas da oralidade,<br />

na qual há a supressão de partes das palavras, como por exemplo:<br />

“tá” no lugar de “está”, assim como a gíria “pirou”. No exercício,<br />

aborda-se a questão da intimidade entre os interlocutores, o que<br />

faz a língua variar, adquirir um tom mais informal, por se tratar de<br />

relação mães-filho.<br />

Por fim, no capítulo dois, há um exercício sobre contração,<br />

informando que há algumas frases que estão em desacordo com a variedade<br />

padrão da língua, solicitando, então, que o aluno passe para a<br />

modalidade culta da língua. Uma das frases é a seguinte: “Fique quieto!<br />

É a vez dela falar...” (de ela falar-variedade padrão).<br />

Neste exercício, os autores poderiam ter explorado mais o<br />

trabalho com a variação linguística, ao mostrar que embora tais frases<br />

não estejam na norma culta, a maioria dos falantes, inclusive os<br />

que conhecem a norma “culta” usam essa variante.<br />

Com essa análise, vimos que os autores abordam o tema da<br />

variação, porém poderiam explorá-lo mais, propondo exercícios que<br />

trabalhassem com as diversas variantes, destacando as diferentes características<br />

de grupos de falantes: a classe social, o nível de escolaridade,<br />

a ocupação e nível de renda, a idade, ascendência étnica, o<br />

gênero, assim como os dialetos sociais, jargões profissionais, gírias,<br />

estilos de fala que a Língua Portuguesa possui.<br />

2.2. Projeto Araribá: Português/obra coletiva<br />

2.2.1. Análise da variação no ensino de gramática<br />

Ao longo da obra, verificamos que somente duas unidades<br />

trabalham com a variação no ensino de gramática (unidade três e<br />

cinco). Na unidade três, a parte que apresenta a variação corresponde


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

445<br />

ao estudo da colocação pronominal. Esta seção (Estudo da língua) inicia-se<br />

com o texto “Papos”, de Luis Fernando Veríssimo. Nesse<br />

texto, há a discussão entre duas pessoas sobre a colocação pronominal,<br />

sendo que um deles tenta “corrigir” o outro, baseando-se nas<br />

prescrições da norma padrão:<br />

Após o texto, há as seguintes questões:<br />

Enquanto a questão “a” trata do assunto principal do texto (a<br />

discussão entre duas pessoas sobre a colocação dos pronomes), na<br />

qual uma tenta “corrigir” a outra, a questão “b” induz à reflexão sobre<br />

a correção gramatical e a variedade padrão. Sabemos que o modo<br />

de falar do outro gera avaliações, diversas vezes preconceituosas.<br />

Assim, as pessoas que avaliam negativamente a fala do outro se baseiam<br />

na correção gramatical para estabelecerem julgamentos diversos.<br />

Sobre essa questão, Faraco afirma que “é frequente em nossa


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

446<br />

sociedade que se condene como erro todas as formas que não estão<br />

de acordo com aquilo que está prescrito nos velhos manuais de gramática.”<br />

(FARACO, 2006, p. 21).<br />

Tal atitude é representada pelo personagem do texto em questão,<br />

que trata a variedade não padrão como “erro”, ao condenar o<br />

modo de falar do outro personagem. Assim, as perguntas apresentadas<br />

poderiam ser mais bem trabalhadas, caso tivessem sido exploradas<br />

questões referentes ao preconceito linguístico e as atitudes em relação<br />

à fala da personagem apresentada.<br />

Após os exercícios, explica-se sobre a colocação pronominal,<br />

ao afirmar-se que “como o modo de falar do Brasil difere bastante do<br />

de Portugal e as regras gramaticais são as mesmas, é comum que haja<br />

desvios da variedade padrão” (pg. 115- grifo meu). Com esse comentário,<br />

nota-se que a variação é apresentada como um desvio da<br />

norma padrão, o que caracteriza uma atitude preconceituosa em relação<br />

às outras variantes.<br />

Passando-se para os exercícios propostos no livro, no exercício<br />

um, pergunta-se sobre “que regras gramaticais justificariam a colocação<br />

pronominal nos seguintes poemas”:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

447<br />

Utiliza-se, portanto, a poesia somente como estratégia para o<br />

ensino de gramática, abandonando-se, assim, o trabalho com o texto.<br />

Sobre essa questão, Faraco utiliza o termo gramatiquice, para referirse<br />

“ao estudo da gramática como um fim em si mesmo” (FARACO,<br />

2006, p. 21)<br />

Já no exercício dois, trabalham-se, novamente, os tipos de registro,<br />

ao apresentar-se a seguinte questão:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

448<br />

No entanto, o exercício privilegia apenas a identificação do<br />

registro, sem levar e aprofundar a reflexão sobre esse uso nesse contexto.<br />

No exercício seis, também se abordam os diferentes registros,<br />

quando se propõe ao aluno que frases foram escritas de modo mais<br />

formal em cada um dos pares abaixo:<br />

Partindo-se para a unidade cinco, verificamos que a variação<br />

não é quase abordada e quando o é, é tratada novamente como desvio,<br />

a notar-se, sobretudo, na parte em que se explica sobre os pronomes<br />

oblíquos (o, a, os, as) que funcionam como objeto direto,<br />

constando a observação reproduzida a seguir:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

449<br />

Conforme observado, há um esvaziamento da proposta, uma<br />

vez que a explicação apresentada induz à noção de erro e à discriminação<br />

das variantes não padrão. A proposta seria mais bem apresentada<br />

se se destacasse que formas como “Eu não lhe convidei” são<br />

perfeitamente aceitáveis em certas situações comunicativas, mas que<br />

em situações mais formais poderia ser utilizada a variante padrão<br />

“Eu não o convidei”.<br />

Nos exercícios propostos, o único que aborda a variação linguística<br />

é o número sete. Introduz-se, então, uma poesia de Ulisses<br />

Tavares a fim de propor exercícios sobre a regência na variedade padrão<br />

e não padrão:<br />

Observamos, então, que as questões propostas direcionam o<br />

aluno para a identificação de erros, correspondendo a questões de<br />

simples rotulação, conforme observamos na questão oito, em que ainda<br />

há noções como as de correto e incorreto:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

450<br />

Pelas questões apresentadas, verificamos que há a necessidade<br />

de se romper a dualidade entre correção e incorreção, substituindo-a<br />

pela de adequação ou inadequação. Era imprescindível que os<br />

autores enfatizassem que o uso da variante não padrão funciona como<br />

um recurso estilístico expressivo em textos literários, como ocorre<br />

na poesia de Ulisses Tavares, apresentada na questão sete.<br />

Seria necessária, ainda, a explicitação de que, se caso os pronomes<br />

fossem usados na variante padrão, a expressividade e o sentido<br />

não seriam os mesmos, já que, na poesia, aparece a reprodução do<br />

discurso direto. Sendo assim, a ausência da preposição em “e desconfio<br />

que era a única que ele tinha” são comuns na oralidade, presente<br />

na fala de todas as classes sociais, inclusive na dos falantes cultos.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Ao refletirmos sobre o ensino da variação linguística apresentado<br />

nos dois livros didáticos de Língua Portuguesa, verificamos que<br />

estes trazem explicações sobre os diferentes níveis de registro, destacando-se<br />

os contextos de produção dos enunciados, além de apresentarem<br />

uma seleção variada de textos em diferentes gêneros. Contudo,<br />

ainda há muito que aperfeiçoar.<br />

Os autores poderiam ter trabalhado mais a linguagem dos textos,<br />

de modo que possibilitasse ao aluno refletir sobre os usos da língua,<br />

ao propor atividades que desenvolvessem a reflexão sobre as<br />

motivações pragmáticas, ampliando, assim, a capacidade de reflexão<br />

crítica sobre a linguagem.<br />

Em vez disso, muitos exercícios propostos nos livros didáticos<br />

apresentaram um ensino descontextualizado, utilizando diversas<br />

vezes o texto como pretexto para o ensino gramatical.<br />

Sobre a variação linguística nos livros analisados, somente o<br />

livro de Magalhães e Cereja apresentou um tratamento mais adequado<br />

à variação, ao trabalhar as marcas linguísticas ligadas a gerações,<br />

além de apresentarem variações diafásicas e lexicais, trabalhando-se,<br />

assim, com vários tipos de variações de que a língua dispõe. Já o li-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

451<br />

vro Projeto Araribá tratou a variação como desvio, ao citar ao longo<br />

da obra as prescrições da norma padrão e listar os desvios da norma.<br />

Já no livro Projeto Araribá, afirma-se que o texto foi utilizado<br />

como “unidade básica do ensino”, conforme as orientações recomendadas<br />

pelos PCNs. No entanto, no ensino gramatical, verificamos<br />

que não se privilegia o trabalho com o texto. Além do mais,<br />

consta também, sobre o tipo de linguagem utilizada, a concepção<br />

desta como “atividade discursiva e cognitiva” (p.4), o que não se verifica<br />

ao longo da obra.<br />

Nesta perspectiva, torna-se necessário que o professor analise<br />

criticamente os livros didáticos, verificando os objetivos expostos na<br />

obra, no sentido de perceber se nestes se prioriza o desenvolvimento<br />

das habilidades linguísticas dos alunos ou se trata a linguagem como<br />

homogênea, não suscetível a mudanças.<br />

Concordamos com Bechara, quando este afirma que é tarefa<br />

do professor de língua materna "transformar seu aluno num poliglota<br />

dentro de sua própria língua, possibilitando-lhe escolher a língua<br />

funcional adequada a cada momento de criação (BECHARA, 1993,<br />

p. 40).<br />

Tal afirmação só se torna possível por meio do trabalho com a<br />

variação linguística, que deve estar presente tanto nas aulas de língua<br />

materna quanto nos livros didáticos de Língua Portuguesa.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ANTUNES, Irandé Costa. No meio do caminho tinha um equívoco:<br />

Gramática, tudo ou nada. In: BAGNO, Marcos. Linguística da norma.<br />

São Paulo: Loyola, 2002, p. 127-134.<br />

BAGNO, M. (Org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2004.<br />

BECHARA, Evanildo. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade?<br />

7. ed. São Paulo: Ática, 1993. Série Princípios.<br />

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna:<br />

a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

452<br />

FARACO, C. A. Ensinar x não ensinar gramática: ainda cabe essa<br />

questão? In: Calidoscópio. Vol. 4, n.1, pp.15-26, jan/abr 2006.<br />

MARCUSCHI, Luiz Antonio. O livro didático de portuguêsmúltiplos<br />

olhares. Lucerna: Rio de Janeiro, 2002.<br />

NEVES, Maria Helena de Moura. Que gramática estudar na escola?<br />

São Paulo, Contexto, 2003.<br />

PARÂMETROS Curriculares Nacionais: Terceiro e quarto ciclos do<br />

Ensino Fundamental – Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF,<br />

1997, v. 2.


ALGUMAS MUSAS DE ÉBANO<br />

DE GREGÓRIO DE MATTOS:<br />

HINÁRIO CRIOULO: VERSOS EM FRAGMENTOS<br />

Ruy Magalhães de Araujo (UERJ)<br />

ruymar1@gmail.com<br />

Este trabalho faz parte de nosso livro Pérolas Recolhidas de<br />

Gregório de Mattos, Rio de Janeiro, Galo Branco, 2009, e diz respeito<br />

a uma coleção de musas, todas negras e também mulatas, pertencentes<br />

à poesia romântico-erótica atribuída a Gregório de Mattos e<br />

por ele concebida com toda a sensualidade de um amante apaixonado.<br />

Essas musas de ébano fazem parte do chamado “hinário crioulo”,<br />

que foi decantado por ocasião da permanência de Gregório de Mattos<br />

no Recôncavo Baiano, em que a natureza paradisíaca propiciava à<br />

imagística poética mesclar-se com o prazer, ao sabor de gostos e amores<br />

intensos.<br />

Essas pérolas negras, dentre outras, podem ser assim enumeradas:<br />

Agrela, Babu, Beleta, Beliza, Bertola, Betica, Brásia, Britres,<br />

Cabra, Calabari, Carira, Conga, Córdula, Clara Dias, Gafeira, Ginga,<br />

Ilhoa, Inácia Barrosa, Inês, Jacupema. Jelu, Lise, Luíza da Prima,<br />

Luzia Sapata, Macotinha, Mangá, Maria João, Maria Pereira, Maria<br />

Viegas, Marimbonda, Marta, Mingota, Negra Xarifa, Papa-Moletas,<br />

Pelica, Puta Andresona, Puta Cagajosa, Puta Cambaia, Puta Jacutinga,<br />

Puta Velhaca, Quita, Rola, Samba, Supupema, Tona, Úrsula, Zabelona.<br />

Por vezes, aparece o nome dessas musas; em outras<br />

ocasiões, seu apelido. Nos versos fragmentados encontram-se<br />

os comentários.<br />

Agrela<br />

[De agrela, pequena agra.] Substantivo feminino. Nome de uma negra.<br />

Vem Luzia sacrifício<br />

Juíza de refestela<br />

Agrela, que já não grela,<br />

por ser puta d’abinitio<br />

de um jantar, que era vício


Apolônia<br />

Babu<br />

va.<br />

Beleta<br />

rodava o Santos licor,<br />

e a negra serva do amor<br />

gritava com saia verde,<br />

aqui-d’El-Rei, que se perde<br />

a roupa do meu Senhor.<br />

S. f. Nome de outra mulata amante do poeta.<br />

A ser bela a formosura,<br />

a beleza a ser formosa<br />

mudamente as ensinava<br />

a boquinha de Apolônia.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

454<br />

(AMADO, 1990, vol. I, p. 482)<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1145)<br />

Substantivo feminino. Apelido de Bárbara, uma negra que o poeta corteja-<br />

Catona, Ginga, e Babu,<br />

com outra pretinha mais<br />

entraram nestes palhais<br />

não mais que a bolir co cu:<br />

eu vendo-as, disse, Jesu,<br />

que bem jogam as cambetas!<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1009)<br />

Substantivo feminino. Apelido de Isabel, mulata que o poeta maldiz, por<br />

tê-lo desprezado.<br />

Beliza<br />

Beleta, a vossa perna tão chagada<br />

Olha poderá ser pelo podrida,<br />

Mas eu não quero<br />

Olha em minha vida<br />

Podrida pelo mal infeccionada.<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1056)<br />

Substantivo feminino. Anagrama de Izabel, uma das musas do poeta.<br />

Quize-te, Beliza, amar,<br />

y por mas que iba queriendo,<br />

iba conmigo diziendo,<br />

que me havias de engañar:


Bertola<br />

Betica<br />

Brásia<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

455<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 718)<br />

Substantivo feminino. Apelido de outra mulata, amiga do poeta.<br />

Bertola devia estar<br />

faminta e desconjuntada,<br />

pois vendo a pendência armada,<br />

tratou de se caldear:<br />

(AMADO, 1990, vol. I, p. 478)<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma crioula, amante do poeta.<br />

Dize a Betica que quando<br />

buscava, que lhe mandar,<br />

um só cara pude achar,<br />

que por ser cará lho mando.<br />

(AMADO, 1990, p. 735)<br />

Substantivo feminino. Refere-se à Brásia do Calvário, mulata meretriz a<br />

quem o poeta satiriza.<br />

Brites<br />

Brásia: que brabo desar!<br />

vós me cortastes o embigo,<br />

mas inda que vosso amigo,<br />

não vos hei de perdoar:<br />

pusestes-vos a cascar,<br />

e invocastes os Lundus;<br />

Jesus, nome de Jesus!<br />

quem vos meteu no miolo,<br />

que se enfeitiçava um tolo<br />

mais que co jogo dos cus?<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 854)<br />

“desar”:desaire.<br />

Substantivo feminino. Nome de mulher. Alteração de Breatiz por Beatriz,<br />

do it. Beatrice, este do lat. beatrice, de beare, ‘aquela que faz alguém feliz’.] Foi uma<br />

das grandes musas do poeta. Var.: Britiz.<br />

Aqui-d’El-Rei, que me matam<br />

os negros olhos de Brites!<br />

eu não vi mulher tão branca<br />

com tão negros azeviches.


Cabra<br />

Calabari<br />

Dizem, que pelos cabelos<br />

a leva certa velhice,<br />

que como enfim é menina,<br />

gosta mais de meninices.<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma das amantes do poeta.<br />

A Cabra é puta cambaia,<br />

e em sentindo o membro a vela<br />

por fingir,que inda é donzela,<br />

quando fode, se desmaia:<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

456<br />

(AMADO, 1990, p. 714)<br />

(AMADO, 1990, p. 1086.)<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma prostituta. Possível pronúncia lusitana<br />

de Calabar.<br />

Carira<br />

za.<br />

Catona<br />

(...) falta uma, e outra Mulata,<br />

e se acaso se acha aqui<br />

a Conga, a Calabari,<br />

e outras negras no folguedo,<br />

como as dorme o Azevedo,<br />

quem há de ir folgar-se ali?<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1078)<br />

Substantivo feminino. Apelido de Margarida, mulata a quem o poeta satiri-<br />

Carira: por que chorais?<br />

que é perdição não vereis,<br />

as pérolas, que perdeis<br />

pela perda dos corais?<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 870)<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma negra que poeta cortejava.<br />

Catona, Ginga, e Babu,<br />

com outra pretinha mais<br />

entraram nestes palhais<br />

não mais que a bolir co cu:<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1009)


Conga<br />

Córdula<br />

Clara Dias<br />

Gafeira<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma prostituta.<br />

Falta Luzia a Sapata<br />

que estava na Cajaíba,<br />

arriba, putas, arriba,<br />

não se torne a Ilha em mata:<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

457<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1078)<br />

Substantivo feminino. Uma das mulatas preferidas do poeta.<br />

Córdula da minha vida,<br />

Mulatinha da minha alma,<br />

leda como as aleluias,<br />

é garrida como as Páscoas.<br />

Substantivo feminino. Também conhecida por “Mãe Monda”.<br />

(...) adeus a outra Mãe Monda<br />

Que se chama Clara Dias.<br />

(AMADO, 1990, p. 1084)<br />

(AMADO, 1990, p. 1036)<br />

Substantivo feminino. Apelido da mulata Joana, – ou Joana Gafeira, – cortejada<br />

pelo poeta.<br />

Ginga<br />

Aqui-d’El-Rei, que me mata,<br />

Gafeira, os vossos desdéns:<br />

eu não vi Parda tão branca<br />

com tão negro proceder.<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1087)<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma negra, amante do poeta.<br />

Catona, Ginga, e Babu,<br />

com outra pretinha mais<br />

entraram nestes palhais<br />

não mais que a bolir co cu:<br />

eu vendo-as, disse, Jesu,<br />

que bem jogam as cambetas!<br />

(AMADO, 1990, p. 1009)


Ilhoa<br />

Inácia<br />

Inácia Barrosa<br />

Substantivo feminino. Apelido da mulata Inácia.<br />

Inácia, chamada Ilhoa<br />

para cada beiçarrão<br />

não bastava um canjirão<br />

com sopas de pão, e broa:<br />

bebeu vinho de Lisboa,<br />

bebeu do Porto, e Canárias,<br />

e vendo, que em copas várias<br />

outras o bebem do Beja,<br />

disse picada de inveja,<br />

ó Virgem das Candelárias!<br />

Substantivo feminino. Nome de uma das mulatas do poeta.<br />

Inácia, vós que me vedes<br />

em tal desesperação<br />

remediai-o senão<br />

dareis por essas paredes:<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

458<br />

(AMADO, 1990, p. 483)<br />

(AMADO, 1990, p, 1144)<br />

Nome próprio de uma prostituta. Em Barrosa, subentenda-se: Barroso com<br />

a primeira grafia, assim us. por efeito de rima com “escabrosa”.<br />

Inês<br />

Jacupema<br />

Faltam outras, que eu deixei,<br />

como é Inácia Barrosa,<br />

que inda que puta escabrosa,<br />

presta, para o que eu bem sei:<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1077)<br />

Substantivo feminino. Nome de uma das amantes do poeta.<br />

Adeus Inês amuada,<br />

Que por uma negra pinga<br />

três dias não me falaste,<br />

e me xingaste três dias.<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma escrava.<br />

(AMADO, 1990, p. 1036)


Jelu<br />

Lise<br />

Luíza da Prima<br />

Luzia Sapata<br />

Macotinha<br />

Se acaso furtou, Senhor,<br />

algum ovo a Jacupema,<br />

o fez só, para que gema<br />

cos pesos do meu amor:<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

459<br />

(AMADO, 1990, p. 849)<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma das mulatas amigas do poeta.<br />

Triste Jelu sem ventura<br />

ali ficou enterrada,<br />

mas foi bem afortunada<br />

de ir morrer à sepultura:<br />

Substantivo feminino. Provavelmente, Beliza.<br />

Lise, porque vos trocastes,<br />

e como um mal me deixastes<br />

em câmbio de um bem, Senhora,<br />

em seres meu mal agora,<br />

Que fostes meu bem, mostrastes.<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma negra.<br />

Dizem, Luíza da Prima,<br />

que sois puta feiticeira,<br />

no de puta derradeira,<br />

no de feiticeira prima:<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma mulata.<br />

Maribonda, minha ingrata<br />

tão pesada ali se viu,<br />

que desmaiada caiu<br />

sobre Luzia Sapata:<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma mulata.<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 859)<br />

(AMADO, 1990, p. 717)<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 866)<br />

(AMADO, 1990, p. 478)


Mangá<br />

Maria João<br />

Maria Pereira<br />

Maria Viegas<br />

Marimbonda<br />

Foi com fausto soberano<br />

Macotinha, e a Pelica<br />

assistir à festa rica<br />

dia de São Caetano:<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma mulata.<br />

A Mangá com ser de alcorça<br />

dá-se a um Pardo vaganau,<br />

que a cunha do mesmo pau<br />

melhor atocha.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

460<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 986)<br />

(AMADO, 1990, p. 1169)<br />

Substantivo feminino. Nome de uma crioula, cortejada pelo poeta.<br />

Estais dada a Berzabu,<br />

Chica, e não tendes razão,<br />

sofrei-me Maria João,<br />

pois eu vos sofro a Mungu:<br />

Substantivo feminino. Uma das musas do poeta.<br />

Adeus Maria Pereira,<br />

Que sempre à mesa assistias<br />

digentemente alegre<br />

c’o a comida e co’a a bebida.<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 844)<br />

(AMADO, 1990, p. 1036).<br />

Substantivo feminino. Nome de uma negra, a quem o poeta satirizava.<br />

Dize-me Maria Viegas<br />

qual é a causa, que te move,<br />

a quereres, que te prove<br />

todo o home, a quem te entregas?<br />

(AMADO, 1990, vol. I, p. 439) m<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma mulata, conhecida do poeta.


Marta<br />

Mingota<br />

Negra Xarifa<br />

mo.<br />

Papa-moleta<br />

Marimbonda, minha ingrata<br />

tão pesada ali se viu,<br />

que desmaiada caiu<br />

sobre Luzia Sapata:<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

461<br />

(AMADO, 1990, p. 478)<br />

Substantivo feminino. Nome de mulher. Era uma das namoradas do poeta.<br />

Marta: mandai-me um perdão<br />

em qualquer continha benta<br />

tocada na vossa venta<br />

passada por vossa mão:<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma meretriz.<br />

É mui semelhante a Agrela<br />

a Mingota do Negreiros,<br />

que me mamou os dinheiros,<br />

o pôs-me à orça.<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 861)<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1168)<br />

Expressão. Subentenda-se: negra muçulmana, i.e., que professa o islamis-<br />

mas logo mandou levar<br />

por uma negra Xarifa<br />

a alcativa tão patifa,<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 994)<br />

Expressão sarcástica. dirigida à Beleta, que capengava de uma das pernas.<br />

Era uma das mulatas que haviam recusado os amores do poeta. No texto, subentendase:<br />

papa-muleta.<br />

Pelica<br />

As mãos pusestes no chão,<br />

e sentindo a terra branda,<br />

da brandura, que tresanda,<br />

tivestes má presunção:<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1057)


Puta Andresona<br />

Puta cagajosa<br />

Puta cambaia<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma mulata, conhecida do poeta.<br />

Bebeu Pelica, um almude,<br />

e não faltou, quem notasse,<br />

que mil saúdes tragasse;<br />

e ficasse sem saúde:<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma conhecida meretriz.<br />

Puta Andresona, eu pecador te aviso,<br />

que o que amor te ti tiver, não terá siso;<br />

tu te finges não ser senão honrada<br />

e nunca vi mentira mais provada:<br />

Substantivo feminino. Provavelmente, meretriz imunda.<br />

que uma Puta cagajosa<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

462<br />

(AMADO, 1990, vol. I, p. 479)<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 876)<br />

(AMADO, 1990, p. 1086)<br />

Substantivo feminino. Provavelmente, meretriz de pernas tortas ou que<br />

tem o andar claudicante.<br />

Puta Jacutinga<br />

Puta velhaca<br />

A Cabra é puta cambaia,<br />

e em sentindo o membro a vela<br />

por fingir, que inda é donzela,<br />

quando fode, se desmaia:<br />

Substantivo feminino. Provavelmente, meretriz depravada.<br />

tanta pimenta rescaldo,<br />

tanta manipuba impressa<br />

no vão da tal boa peça.<br />

na tal puta Jacutinga<br />

faz, com que sobre a catinga<br />

a minipuba me fessa.<br />

(AMADO, 1990, p. 1086)<br />

(AMADO, 1990, p. 1086)


Quita<br />

Expressão. Provavelmente, meretriz traiçoeira.<br />

espanta-me que tão lerda<br />

fosse uma Puta velhaca,<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

463<br />

(AMADO, 1990, p. 1058)<br />

Substantivo feminino. Fam. No texto, dimin. de Mariquita, mulata cortejada<br />

e amada por Gregório de Matos.<br />

Rola<br />

Samba<br />

Supupema<br />

Vim ao sítio num lanchão,<br />

Quita, e tudo achei trocado,<br />

vós com peito atraiçoado,<br />

e eu vendido por traição:<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1154)<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma das conhecidas do poeta.<br />

Sou eu acaso o Mazulo,<br />

que, do que tem de outras contas,<br />

dá sem conta cada um ano<br />

cem mil cruzados à Rola?<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 737)<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma das amigas do poeta.<br />

Adeus, Catona Bizarra,<br />

adeus gente da cozinha,<br />

adeus putíssima Samba,<br />

e honestíssima Luzia.<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1035)<br />

Adjetivo feminino. Apelido de uma crioula chamada Cipriana, que o poeta<br />

namorava.<br />

Tona<br />

Crioula da minha vida,<br />

Supupema da minha alma,<br />

bonita como umas flores,<br />

e alegre como umas páscoas.<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 983)


Úrsula<br />

Zabelona<br />

Substantivo feminino. Apelido de Catona.<br />

Estou triste, e solitário<br />

esperando pelo baque<br />

que há de dar, Tona,<br />

esse achaque,<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

464<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1030)<br />

Substantivo feminino. Nome de uma mulata, cortejada pelo poeta.<br />

Só vós, Úrsula bizarra,<br />

entre uma e outra borracha<br />

cantáveis como gavacha<br />

sustenidos de guitarra:<br />

Substantivo feminino. Apelido de uma certa Isabel.<br />

Já que a puta Zabelona<br />

anda morta por me ouvir,<br />

eu lhe corto de vestir,<br />

que anda despida a putona:<br />

(AMADO, 1990, vol. II, p. 1017)<br />

(AMADO, 1990, vol. I, p. 632)<br />

AMADO, James. Gregório de Mattos. Obra poética. Rio de Janeiro:<br />

Record, 1990. 2 volumes.<br />

ARAUJO, Ruy Magalhães de. Pérolas recolhidas de Gregório de<br />

Mattos. Rio de Janeiro: Galo Branco, 2009.<br />

SILVA, José Pereira da. Sonetos de Gregório de Matos. Textos selecionados<br />

e estabelecidos com base na Edição Crítica da Obra Poética<br />

de Gregório de Matos, de autoria de Francisco Topa, da Universidade<br />

do Porto. Rio de Janeiro: Botelho, 2008.<br />

WISNIK, José Miguel. Poemas escolhidos de Gregório de Matos.<br />

São Paulo: Cultrix, 1989.


ANÁLISE DE AMBIGUIDADE LEXICAL EM MÚSICAS<br />

1. Ambiguidade<br />

Adriana Hotz Tavares (FASAR)<br />

adrianatavares@unipaclafaiete.edu.br<br />

Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) considerado o precursor na<br />

discussão sobre as metáforas, em Poética define metáfora como “a<br />

transposição do nome de uma coisa para outra, transposição do gênero<br />

para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para<br />

outra, por via de analogia” (ARISTÓTELES, 1959, p. 312)<br />

Segundo Tânia Serrano Nakamura a função da ambiguidade é<br />

sugerir significados diversos para uma mesma mensagem. É uma figura<br />

de palavra e de construção. Embora funcione como recurso estilístico,<br />

a ambiguidade também pode ser um vício de linguagem, que<br />

decorre da má colocação da palavra na frase. Nesse caso, deve ser<br />

evitada, pois compromete o significado da oração.<br />

Mattoso Câmara (1986) apresenta a seguinte definição de<br />

ambiguidade: “Circunstância de uma comunicação linguística se<br />

prestar a mais de uma interpretação; a antiga retórica grega focalizou-a<br />

na construção da frase sob o nome de Anfibologia”.<br />

Figura 1 – Exemplo de ambiguidade.<br />

A ambiguidade pode se originar do fato da frase ter uma estrutura<br />

sintática suscetível de várias interpretações. O que gera a ambiguidade<br />

são as diferentes possibilidades de reorganizar as sentenças,<br />

ou seja, possibilidade de ocorrência de diferentes estruturas sintáticas<br />

na mesma sentença. Assim, na frase a seguir há duas interpretações:


O magistrado julga as crianças culpadas.<br />

a) O magistrado julga que as crianças são culpadas.<br />

b) O magistrado julga as crianças que são culpadas.<br />

gue.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

466<br />

Existem várias classificações para a ambiguidade. É o que se-<br />

1.1. Ambiguidade sintática<br />

A ambiguidade sintática é aquela em que a mesma estrutura<br />

de superfície sai de duas (ou mais de duas) estruturas profundas diferentes,<br />

ou seja, não é necessário interpretar cada palavra individualmente<br />

como ambígua, mas se atribui a ambiguidade as distintas estruturas<br />

sintáticas que originam as distintas interpretações: uma sequência<br />

de palavras pode ser analisada em um grupo de palavras de<br />

vários modos.<br />

Exemplo: Jorge ama Rosa tanto quanto João.<br />

É possível inferir que:<br />

a) Jorge ama Rosa tanto quanto João ama Rosa.<br />

b) Jorge ama Rosa tanto quanto ele ama João.<br />

1.2. Ambiguidade de escopo<br />

A ambiguidade de escopo sempre envolve a idéia de distribuição<br />

coletiva ou individual.<br />

Exemplo: As meninas tinham 6 bonecas.<br />

Pode-se interpretar que cada menina tem 6 bonecas ou que 6<br />

bonecas são distribuídas entre todas elas.<br />

1.3. Ambiguidade semântica<br />

Para o professor Dílson Catarino, esta não é gerada pelos itens<br />

lexicais nem na estrutura sintática e nem no escopo da sentença,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

467<br />

mas sim pelo fato de os pronomes poderem ter diversos antecedentes.<br />

Exemplo: Encontrei João correndo no vale.<br />

Não fica claro na sentença quem corria no vale. João ou eu?<br />

1.4. Ambiguidade visual<br />

São imagens nas quais vemos coisas diferentes, conforme o<br />

enfoque. Com tais imagens, deve-se procurar sempre algo a mais do<br />

que o primeiro olhar nota.<br />

É o que se observa na imagem a seguir, em que é possível ver<br />

uma mulher sentada à penteadeira, ou uma caveira.<br />

Figura 2 – Exemplo de ambiguidade visual.<br />

1.5. Ambiguidade lexical<br />

A ambiguidade lexical consiste na dupla interpretação que incide<br />

apenas sobre o item lexical. Segundo Mattoso Câmara (1986), a<br />

ambiguidade é consequência da homonímia, polissemia e deficiência<br />

dos padrões sintáticos.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

468<br />

A homonímia ocorre quando os sentidos da palavra ambígua<br />

não são relacionados:<br />

Exemplo: Preciso limpar minha manga. (Manga – fruta /<br />

Manga – parte do vestuário)<br />

Figura 1- Exemplo de homonímia.<br />

Já a polissemia ocorre quando os possíveis sentidos da palavra<br />

ambígua têm alguma relação entre si.<br />

Exemplo: Guarda: roupa, chuva, municipal – porque ambos<br />

protegem.<br />

Figura 2- Exemplo de polissemia.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

469<br />

A ambiguidade lexical será o principal foco deste artigo sob o<br />

prisma de sua aplicabilidade nas músicas.<br />

2. Análise das músicas sob o prisma da ambiguidade lexical<br />

Dentro de um mesmo estilo musical há frases em que é possível<br />

perceber a duplicidade de sentido sem dificuldades e outras nas<br />

quais a ambiguidade está em entrelinhas. É o caso do sertanejo caipira,<br />

que é a execução composta e executada das zonas rurais, do<br />

campo, a antiga moda de viola; e o breganejo, que consiste em uma<br />

nova roupagem do sertanejo de raiz que tem pouca temática rural a<br />

fim de agradar habitantes de cidades grandes. Na diferenciação<br />

dessas ramificações do sertanejo, principal enfoque de estilo musical<br />

desta pesquisa, observa-se que ambas apresentam ambiguidade<br />

lexical, mas que se dão em diferentes níveis de percepção.<br />

Observe:<br />

No Sertanejo de raiz:<br />

A Caneta e a Enxada<br />

Zico e Zeca<br />

Composição: Capitão Barduíno e Teddy Vieira<br />

Certa vez uma caneta foi passear lá no sertão<br />

Encontrou-se com uma enxada, fazendo uma plantação.<br />

A enxada muito humilde, foi lhe fazer saudação,<br />

Mas a caneta soberba não quis pegar na sua mão.<br />

E ainda por desaforo lhe passou uma repreensão.<br />

Disse a caneta pra enxada não vem perto de mim, não<br />

Você está suja de terra, de terra suja do chão<br />

Sabe com quem está falando, veja sua posição<br />

E não se esqueça a distância da nossa separação.<br />

Eu sou a caneta dourada que escreve nos tabelião<br />

Eu escrevo pros governos a lei da constituição<br />

Escrevi em papel de linho, pros ricaços e barão<br />

Só ando na mão dos mestres, dos homens de posição.<br />

A enxada respondeu de fato eu vivo no chão,<br />

Pra poder dar o que comer e vestir o seu patrão<br />

Eu vim no mundo primeiro quase no tempo de Adão<br />

Se não fosse o meu sustento ninguém tinha instrução.


Vai-te caneta orgulhosa, vergonha da geração<br />

A tua alta nobreza não passa de pretensão<br />

Você diz que escreve tudo, tem uma coisa que não<br />

É a palavra bonita que se chama.... educação!<br />

No breganejo:<br />

Lembranças De Amor<br />

Veja só<br />

Sei que palavras não consertam nada<br />

Mas eu acho que é melhor<br />

A gente conversar<br />

Afinal<br />

O nosso caso não difere de outros casos<br />

Que acabaram mal<br />

E só pra te lembrar<br />

Eu já sofri demais<br />

Mas longe de você<br />

Sofrerei bem mais<br />

Refrão:<br />

Preciso te dizer o que acontece com meu sentimento<br />

Chego em casa, não te vejo<br />

O meu desejo é te ligar correndo<br />

E pouco a pouco, a solidão e o silêncio me abraçam<br />

Minha alegria passou<br />

Só as lembranças de amor, não passam...<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

470<br />

Victor e Leo<br />

Composição: Victor Chaves<br />

“A caneta e a enxada” enquadra-se no sertanejo de raiz. Esse<br />

apólogo de sucesso até hoje foi lançado em 1956 na gravadora<br />

Colúmbia inaugurando a dupla Zico e Zeca. Infere-se a percepção<br />

pelo caipira do distanciamento entre as classes sociais: essa canção<br />

tem implicita uma metáfora sutil na qual a caneta representa a classe<br />

de pessoas que dominam as ciências humanas ou exatas, os<br />

detentores do conhecimento e a enxada representa as pessoas que<br />

trabalham nos campos, nos sertões; que ganham a vida com o<br />

trabalho braçal. Sendo assim, observa-se o emprego de uma<br />

ambiguidade lexical porque ocorre nos termos “caneta” e “enxada”,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

471<br />

isto é, no elemento lexical. Outro ponto a ser considerado é a<br />

maneira com que as palavras são pronunciadas nessa música. Os<br />

cantores Zico e Zeca fazem juz a música caipira e pronunciam<br />

“prantação” ao invés de plantação, “pusição” ao invés de posição e<br />

deixam claro o sotaque nas consoantes L e R em termos como alta e<br />

orgulhosa. Além disso não usam o plural de maneira adequada,<br />

dizendo “pros ricaço” no lugar de “para os ricaços” e “dos homi” no<br />

lugar de “dos homens”. Isso dá à música naturalidade e remete ao<br />

verdadeiro sertanejo de raiz. Um último fator a ser destacado é o tipo<br />

de instrumentos usados (como a viola) e a falta de tecnologia: a<br />

música gravada não passou por montagens computadorizadas.<br />

A segunda canção, “Lembrança de amor” enquadra-se no<br />

breganejo e tornou-se um enorme sucesso nos últimos meses.<br />

Apresenta metáforas de identificação mais clara. É o que pode ser<br />

observado na seguinte sentença, por exemplo: “Te ligar correndo” –<br />

ao ouvir essa frase, fica claro que o autor não referia-se a ação de<br />

correr, andar rapidamente, mas ao fato de que ele ligaria<br />

imediatamente após chegar em casa. Um outro exemplo nesta canção<br />

é a expressão: “a solidão e o silêncio me abraçam” – sabemos que<br />

solidão e silêncio são substantivos abstratos e que não poderiam<br />

abraçar um ser humano. Trata-se da relação de envolvimento que<br />

esses sentimentos estabelecem com o eu-lírico.<br />

Deste modo, observa-se novamente um caso de ambiguidade<br />

lexical porque a duplicidade de sentido está no emprego da<br />

conotação das palavras. Ressalta-se ainda o uso de vocabulário<br />

comum do dia-a-dia, sem predominância de sotaque. O instrumental<br />

é mais elaborado, com uso de teclado e outros instrumentos não<br />

encontrados no sertanejo de raiz. Além disso, as músicas são feitas<br />

com apoio de recursos tecnológicos que melhoram a voz dos artistas<br />

e fazem as canções ficaram mais atraentes e compatíveis com o<br />

gosto dos jovens – público alvo do breganejo.<br />

3. Conclusão<br />

Como foi visto “A caneta e a enxada” e “Lembrança de amor”<br />

diferem-se nos instrumentos musicais usados, no público alvo, na<br />

abordagem do tema e no tipo de ambiguidade lexical.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

472<br />

Ao abordarmos a ambiguidade lexical existente nas canções<br />

“A caneta e a enxada” e “Lembrança de amor”, nos referimos a<br />

metáforas aristotélicas, que são aquelas em que “a metáfora é uma<br />

‘criação linguística’, pois a língua não é apenas veículo comum, ela é<br />

também um meio de despertar emoções e de as fazer surgir nos outros”,<br />

conforme o próprio Aristóteles diz.<br />

Observa-se então que apesar de tratar-se de duas ramificações<br />

diferentes de um mesmo estilo musical, ambas apresentam ambiguidade<br />

lexical, mas que aparecem em níveis diferentes de entendimento.<br />

Enquanto uma apresenta uma ambiguidade lexical gerada por<br />

uma metáfora mais visível “Lembrança de amor”, a outra não deixa<br />

claro que se trata de ambiguidade e os interlocutores usualmente remetem-se<br />

ao sentido conotativo da canção (“A caneta e a enxada”).<br />

A linguagem metafórica é, sem dúvida, uma das principais estratégias<br />

expressivas disponíveis na língua. A metáfora lexical, então,<br />

é entendida a partir dos padrões da palavra, pelos quais se estabelecem<br />

principalmente as relações de semelhança. Utilizar uma metáfora<br />

implica em empregar um termo em lugar de outro, seja como desvio,<br />

como um empréstimo semântico ou como uma substituição.<br />

Dessa forma, quando se entende a metáfora como figura de linguagem,<br />

vemos que, no âmbito da figura, a metáfora assemelha-se a<br />

uma imagem. Quanto a esta aproximação conceitual, Aristóteles afirma:<br />

A imagem é igualmente uma metáfora; entre uma e outra a diferença<br />

é pequena. [...] Podemos empregar todas estas expressões quer como imagens,<br />

quer como metáforas. Todas as que saborearmos como metáforas<br />

servirão também manifestamente como imagens e as imagens, por<br />

sua vez, serão metáforas a que não falta senão uma palavra (ARISTÓ-<br />

TELES, 1959, p. 201).<br />

Partindo desse pressuposto, observa-se a presença de<br />

ambiguidades em vários outros estilos musicais além do sertanejo<br />

abordado neste artigo. Entre outros destacam-se:<br />

– Na Música Popular Brasileira<br />

No dia em que a Terra parou (Raul Seixas)<br />

E o aluno não saiu para estudar<br />

Pois sabia o professor também não tava lá<br />

E o professor não saiu pra lecionar


– No funk<br />

– No axé<br />

– No pagode<br />

Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar<br />

No dia em que a Terra parou (Ôôôô)<br />

Deu mole prá caramba<br />

É um tremendo vacilão<br />

Tá todo arrependido<br />

Vai comer na minha mão<br />

Isso aqui vai pegar fogo<br />

Temperatura sobe<br />

É não tem como controlar<br />

É fogo de alegria<br />

Se dou a mão, quer logo o pé<br />

Isso me aborrece<br />

Sai pra lá bicão, sai pra lá mané<br />

Vê se desaparece<br />

É toda a hora meu cumpadre<br />

Quebra o galho aí<br />

Tremendo vacilão (Perlla)<br />

É fogo (Harmonia do Samba)<br />

Sai da minha aba (Só pra contrariar)<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

473<br />

Acredita-se ainda, que esse recurso seja usado para dar um<br />

tom de humor às músicas e deixá-las mais próximas da linguagem<br />

cotidiana do povo, afinal, essa é uma das principais intenções da<br />

música, alegrar a vida das pessoas. Cada estilo musical é destinado a<br />

determinado público-alvo, e para atingi-lo é necessário que os<br />

autores usem uma linguagem mais próxima da realidade dessas<br />

pessoas, ainda sim, trata-se de um objeto de lazer e descontração,<br />

talvez por isso dispõem, em grande parte das músicas, de linguagem<br />

não tão formal, o que é mais acessível e usado no dia a dia. Infere-se,<br />

ainda, que a temática das músicas também muda: no sertanejo<br />

caipira os temas são comumente de problemas de amor ou de<br />

denúncia social e no breganejo a abordagem dá-se de forma<br />

diferenciada.<br />

Nas músicas “A Caneta e a enxada” e “Lembrança de amor”<br />

foi possível perceber observar uma linguagem não tão rebuscada o


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

474<br />

que torna as canções mais abrangentes. Em “A caneta e a enxada” foi<br />

vista uma metáfora aristotélica, usada não para descontração, mas<br />

para a realização de uma crítica social mais sutil. Em contraposição<br />

em “Lembrança de amor” observou-se uma linguagem ainda mais<br />

descontraída na qual as ambiguidades foram usadas para que a letra<br />

ficasse mais próxima da linguagem do público alvo do breganejo.<br />

É o que afirma Letícia Vianna no artigo Movimentos musicais<br />

e identidades sociais no contexto da cultura de massa no Brasil:<br />

uma reflexão caleidoscópica (p 71): "Música é um complexo e diversificado<br />

lugar de interação social, criação e reprodução de representações<br />

que falam de culturas e identidades específicas".<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CÂMARA, J. M. Problemas de linguística descritiva. 12. ed. Petrópolis:<br />

Vozes, 1986.<br />

CANÇADO, Márcia. Manual de semântica. Belo Horizonte: UFMG,<br />

2005.<br />

CHOMSKY, N. Estruturas sintáticas. Hague: Mounton, 1957.<br />

______. O conhecimento da língua: sua natureza, origem e uso. Tradução<br />

Anabela Gonçalves e Ana Tereza Alves. Lisboa: Caminho,<br />

1986.<br />

Dicionário Michaelis – DTS Softwares Brasil Ltda.<br />

DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1988.<br />

FIORIN, José Luiz. (Org.). Introdução à linguística: objetos teóricos.<br />

São Paulo: Contexto, 2002.<br />

______. Introdução à linguística. São Paulo: Contexto, 2002.<br />

http://acd.ufrj.br/~pead/tema11/oqueeambiguidade.html<br />

http://brazilianguitar.net/index.php?showtopic=468&st=10<br />

http://carlosabelheira.blogspot.com/2004/05/ambiguidade-visualcaveira-e-moa-no.html


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

475<br />

http://dilsoncatarino.blogspot.com/2007/05/ambigidade-semntica-xambigidade.html<br />

http://ilusaodeotica.com/<br />

http://julianludwigcomposer.googlepages.com/equipe<br />

http://letras.terra.com.br/<br />

http://maciel.rogerio.sites.uol.com.br/outros/p1.jpg<br />

http://potox.files.wordpress.com/2007/08/charge.jpg<br />

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ax%C3%A9_music<br />

http://pt.wikipedia.org/wiki/Funk<br />

http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%BAsica_sertaneja<br />

http://vestibular.uol.com.br/redacao/ult2826u17.jhtm<br />

http://www.brasilescola.com/redacao/ambiguidade.htm<br />

http://www.filologia.org.br/xcnlf/15/03.htm<br />

http://www.reporterbrasil.org.br/images/articles/20070424familia<br />

JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix,<br />

1969.<br />

MARTINET, A. Elementos de linguística geral. 8. ed. São Paulo:<br />

Martins Fontes, 1878.<br />

ORLANDI, Eni Pulcinelli. O que é linguística. São Paulo: Editora<br />

Brasiliense, 1986.<br />

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix/Edusp,<br />

1969.<br />

www.klickeducacao.com.br/2006


ANÚNCIOS E LETREIROS DO COMÉRCIO POPULAR:<br />

GÊNEROS EM DISCUSSÃO<br />

1. Considerações iniciais<br />

Osvaldo Barreto Oliveira Júnior (IF Baiano, UFAC)<br />

osvaldobojr@yahoo.com.br<br />

Os estudos de Mikhail Bakhtin (2003 e 2006) 1 instauraram<br />

uma concepção de língua centrada nas funções sociocomunicativas<br />

da linguagem humana, ou seja, como fato social fundado nas necessidades<br />

de comunicação; por isso, dinâmico, evolutivo e concreto.<br />

Essa concepção questionou os paradigmas abstrato e subjetivista, nos<br />

quais a língua era entendida, respectivamente, como um sistema de<br />

regras imutáveis e como uma criação mental do falante.<br />

Ao valorizar o caráter social da linguagem humana, Bakhtin<br />

(2003) entende a língua como veículo de comunicação vivo, que deve<br />

ser compreendido nos contextos de uso. Além disso, argumenta<br />

que a concretização dos produtos de linguagem efetiva-se mediante a<br />

interativa social, negando, portanto, que a enunciação seja monológica,<br />

para afirmar o caráter dialógico da linguagem. Nessa lógica, o<br />

diálogo é concebido como essência de toda comunicação verbal, isto<br />

é, toda construção linguística é fruto da interação entre sujeitos sócio<br />

e historicamente situados.<br />

Vale ressaltar que, quando propõe o diálogo como essência da<br />

interação verbal, Bakhtin define-o em um sentido mais amplo, não o<br />

restringindo à interação verbal face a face:<br />

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão<br />

uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação<br />

verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido mais<br />

amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas<br />

colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo<br />

que seja. (BAKHTIN, 2006, p. 127)<br />

1 As edições das obras de Bakhtin lidas para fundamentar este artigo datam de 2003 e 2006,<br />

mas as ideias desse linguista russo foram disseminadas desde a segunda metade do século<br />

XX.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

477<br />

Assim, nas palavras de Bakhtin (2006), a comunicação verbal<br />

é sempre dialógica, pois a palavra sempre comporta duas faces: procede<br />

de alguém que, através da interação social, se dirige a outro(s)<br />

interlocutor(es). Isso significa que o signo linguístico só congrega<br />

sentidos através da interação realizada no convívio social. Trata-se,<br />

portanto, de um posicionamento sociointeracionista acerca da linguagem<br />

humana, que elege o dialogismo como condição de existência<br />

da própria língua e, por conseguinte, dos produtos de linguagem.<br />

Essa vertente dos estudos linguísticos prioriza – como objeto<br />

de estudo – as formas nas quais as ações linguísticas (interlocuções)<br />

se concretizam, os gêneros discursivos (ou gêneros textuais) 2 , pois,<br />

através deles, podem ser percebidos os sentidos que são construídos<br />

(por meio de) e com a língua, já que os gêneros possuem existência<br />

concreta e revelam os modos culturais de uso da leitura, da escrita e<br />

da oralidade.<br />

Os gêneros não surgem de mecanismos autônomos da língua,<br />

mas da associação dos conhecimentos linguísticos socialmente construídos<br />

com as ações históricas, ideológicas, discursivas e cognitivas<br />

culturalmente elaboradas em contextos sociais específicos. Como toda<br />

ação de linguagem se estrutura através de uma forma mais ou menos<br />

estabilizada, torna-se coerente afirmar que os gêneros discursivos<br />

são indispensáveis à interlocução humana, ou melhor, a comunicação<br />

humana somente se concretiza através da articulação dos gêneros<br />

textuais. Dessa forma, concordamos com Marcuschi (2008, p.<br />

161), quando ele afirma:<br />

Os gêneros são atividades discursivas socialmente estabilizadas que<br />

se prestam aos mais variados tipos de controle e até mesmo ao exercício<br />

de poder. Pode-se, pois, dizer que os gêneros textuais são nossa forma de<br />

inserção, ação e controle social no dia a dia. Toda e qualquer atividade<br />

discursiva se dá em algum gênero que não é decidido ad hoc, como já<br />

lembrava Bakhtin ([1953]1979) em seu célebre ensaio sobre os gêneros<br />

do discurso. Daí também a imensa pluralidade de gêneros e seu caráter<br />

essencialmente socio-histórico. Os gêneros são também necessários para<br />

a interlocução humana.<br />

2 Neste artigo, concebemos as expressões “gêneros discursivos” e “gêneros textuais” como<br />

equivalentes, tal qual Marcuschi (2001, p. 42-43) em Letramento e Oralidade no Contexto das<br />

Práticas Sociais e Eventos Comunicativos.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

478<br />

Como se vê, a comunicação verbal é condicionada pelos gêneros<br />

discursivos de tal modo “que é impossível se comunicar verbalmente<br />

a não ser por algum gênero” (MARCUSCHI, 2003, p. 22).<br />

Ademais, vale salientar que os gêneros representam formas de controle<br />

social e possibilitam o exercício do poder, já que legitimam o<br />

discurso. Por essa razão, nas sociedades ocidentais, alguns gêneros<br />

possuem maior prestígio que outros, pois, na valoração de um discurso<br />

empiricamente realizado, questões como o prestígio da esfera<br />

social em que circula, o nível de formalidade da linguagem e a posição<br />

social dos interlocutores são preponderantes.<br />

Contudo, embora aceitemos que haja gêneros de maior prestígio,<br />

não podemos subestimar o valor e a funcionalidade dos gêneros<br />

textuais que circulam em contextos sociais menos formais e, por<br />

questões econômicas e ideológicas, também menos valorizados. Por<br />

essa razão, associamos, neste trabalho, duas correntes teóricas que<br />

investigam a relação linguagem e sociedade (a das práticas sociais de<br />

letramento e a dos gêneros textuais), para discutir os aspectos que<br />

definem a identidade de um gênero – circulação sócio-histórica, funcionalidade,<br />

conteúdo temático, construção composicional e estilo –<br />

a partir da análise de anúncios e letreiros do comércio popular, que<br />

são exemplo de práticas sociais concretizadas à margem da escola,<br />

com pouco ou nenhuma influência das normas linguísticas valorizadas<br />

nas instituições formais de ensino.<br />

2. Práticas sociais de letramento e gêneros textuais<br />

O desenvolvimento de práticas de oralidade, leitura e escrita<br />

envolve processos complexos, em que os aspectos socioculturais,<br />

históricos e ideológicos são determinantes, haja vista que os modos<br />

de articulação da linguagem verbal dependem das condições de vida<br />

dos sujeitos. Nessa lógica, compreender os usos linguísticos concretizados<br />

por sujeitos sócio e historicamente situados implica reconhecer<br />

que os usos da língua são variados e condicionados pelas características<br />

das atividades humana.<br />

De forma análoga, Mikhail Bakhtin (2003, p. 262) apregoa<br />

que a elaboração dos gêneros discursivos é determinada pelas formas<br />

culturais de interação desenvolvidas nos diversos campos de ativida-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

479<br />

des humanas. Como são muitos e variados os campos de atuação<br />

humana, a diversidade de gêneros é enorme. Assim, para compreender<br />

os gêneros, faz-se também indispensável associá-los às esferas de<br />

circulação ou aos domínios discursivos que os põem em evidência,<br />

que os legitimam, que os fazem assumir determinadas formas, em<br />

vez de outras.<br />

No artigo Letramento e oralidade no contexto das práticas<br />

sociais e eventos comunicativos, Luiz Antônio Marcuschi (2001, p.<br />

43) afirma que os gêneros textuais são construídos socialmente e<br />

congregam propriedades dos textos empíricos produzidos para fins<br />

de interação verbal. Esses gêneros podem ser orais e/ou escritos, e<br />

muitos deles envolvem letramento e oralidade de forma simultânea.<br />

Por essa razão, os gêneros textuais são inseridos no contexto das discussões<br />

sobre as práticas sociais de letramento, que valorizam os usos<br />

linguísticos que surgem e se desenvolvem à margem da escola.<br />

O modelo que pretendo sugerir como adequado para tratar dos problemas<br />

do letramento é o que parte da observação das relações entre oralidade<br />

e letramento na perspectiva do contínuo das práticas sociais e atividades<br />

comunicativas, envolvendo parcialmente o modelo ideológico<br />

(em especial o aspecto da inserção da fala e da escrita no contexto da<br />

cultura e da vida social) e observando a organização das formas linguísticas<br />

no contínuo dos gêneros textuais. Trata-se de uma questão que possibilita<br />

um leque muito grande de análise sem trazer como central a questão<br />

ideológica e sem se fixar na morfossintaxe nem em modelos estratificados<br />

e alienados da realidade sociocomunicativa. (MARCUSCHI, 2001,<br />

p. 28)<br />

A perspectiva social do fenômeno letramento insere-se no<br />

contexto das proposições sobre o sociointeracionismo da linguagem,<br />

concebendo leitura e escrita como práticas sociais que se concretizam<br />

em contextos comunicativos diversos, conforme as especificidades<br />

socioideológicas dos contextos de interação verbal. Essa acepção<br />

social do processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem<br />

engloba as nuanças políticas, culturais, sociais e ideológicas do uso<br />

da língua, salientando a existência de um contínuo de relações entre<br />

fala e escrita, do qual surgem e se desenvolvem os gêneros discursivos,<br />

para suprir as necessidades de comunicação verbal entre os integrantes<br />

dos diferentes campos de atuação humana.<br />

A conjuntura teórica das práticas sociais de letramento mostra-se<br />

vinculada à perspectiva sócio-histórica e cultural de aborda-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

480<br />

gem dos gêneros textuais, que – sob influência dos estudos de Bakhtin<br />

e, em especial, norteada por interesses antropológicos, sociológicos<br />

e etnográficos – volta-se para a análise da organização social e<br />

das relações de poder que os gêneros representam. Nessa perspectiva,<br />

“A atenção não se volta para o ensino e sim para a compreensão<br />

do funcionamento social e histórico dos produtos concretos de linguagem”<br />

(MARCUSCHI, 2008, p. 153, grifo nosso).<br />

O modelo das práticas sociais de letramento preocupa-se com<br />

as relações entre oralidade e escrita e a influência dessas nas práticas<br />

sociais de interação verbal. Essas práticas são importantes, pois revelam<br />

os modos culturais de uso do letramento. Numa mesma sociedade,<br />

os usos da língua escrita e da língua oral são influenciados por<br />

contextos socioculturais específicos. Por essa razão, o letramento deve<br />

ser compreendido através da análise dos gêneros discursivos escritos<br />

e/ou orais, pois há gêneros híbridos, numa perspectiva sociointerativa<br />

de ações de usos da língua em contextos socioculturais situados,<br />

posto que se desenvolvem para garantir a interlocução, uma<br />

das atividades através das quais o homem se sociabiliza.<br />

3. Gêneros em discussão3<br />

Por serem formas de ação social, os gêneros do discurso estão<br />

intrinsecamente relacionados às esferas sociais em que circulam, ou,<br />

nas palavras de Bakhtin (2003, p. 262), aos campos da atividade humana.<br />

Por isso, as formas concretas de materialização do discurso,<br />

embora sejam relativamente estáveis, variam conforme as características<br />

do contexto social em que se desenvolvem. Nesse raciocínio,<br />

investigar a formatação de um gênero não implica apenas estudar as<br />

suas características linguísticas, mas, sobretudo, discutir as nuanças<br />

sociais, históricas e discursivas envolvidas em sua concretização.<br />

Por esse motivo, priorizamos, nessa discussão, as questões<br />

que, segundo Bakhtin (2003, p. 261), definem as formas dos enunciados<br />

– o conteúdo temático, o estilo da linguagem e a construção<br />

composicional –, já que esses aspectos são determinados pelas especificidades<br />

dos atos de interação verbal e pelas características soci-<br />

3 Os exemplares analisados neste artigo estão disponíveis nos anexos.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

481<br />

ais, históricas e ideológicas dos sujeitos envolvidos no processo de<br />

comunicação.<br />

Antes das questões supracitadas, abordamos as especificidades<br />

de “circulação sócio-histórica e funcionalidade” (MARCUSCHI,<br />

2003, p. 24) dos gêneros em voga, que, associadas às anteriores, representam<br />

os principais aspectos identitários dos gêneros textuais.<br />

Essa abordagem é coerente com os propósitos deste trabalho, pois se<br />

funda na noção de gênero como “formas verbais de ação social relativamente<br />

estáveis realizadas em textos situados em comunidades de<br />

práticas sociais e em domínio discursivos específicos” (MARCUS-<br />

CHI, 2003, p. 25).<br />

3.1 Circulação sócio-histórica<br />

Os textos analisados neste artigo foram colhidos, durante o<br />

segundo semestre de 2008 e primeiro semestre de 2009, no comércio<br />

popular que circunda o terminal urbano da cidade de Rio Branco-<br />

AC, para composição do corpus da pesquisa desenvolvida no curso<br />

de Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade (2007-2009), da<br />

Universidade Federal do Acre (UFAC), que resultou na dissertação<br />

intitulada Práticas de Oralidade, Leitura e Escrita no Comércio Popular<br />

do Centro da Cidade de Rio Branco-AC, orientada pela professora<br />

Dra. Luciana Marino do Nascimento (UFAC).<br />

Nesse trabalho de pesquisa, discutimos as características da<br />

variante linguística concretizada nos gêneros agora retomados, usando<br />

um procedimento etnográfico, pois visávamos ao estudo e descrição<br />

de práticas linguísticas desenvolvidas por uma comunidade específica.<br />

Esse olhar etnográfico também nos orienta agora, quando<br />

optamos por discutir os aspectos que definem a identidade dos anúncios<br />

e letreiros em voga.<br />

Rio Branco, capital do estado do Acre, é uma cidade com aproximadamente<br />

350.000 (trezentos e cinquenta mil) habitantes, que<br />

cresceu e se desenvolveu fortemente na última década. A população<br />

é composta, em sua maioria, por descendentes de nordestinos, sobretudo<br />

cearenses, que desbravaram a floresta, no início do século XX,<br />

para extrair a seringa, matéria-prima da borracha. No entanto, em


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

482<br />

virtude do desenvolvimento experimentado nos últimos anos, a cidade<br />

também possui habitantes que advieram de outras regiões do Brasil,<br />

e até do mundo, devido ao interesse que a floresta amazônica<br />

desperta.<br />

No centro da cidade, ao lado do terminal urbano, existe um<br />

comércio popular que reúne diversos lojistas e vendedores ambulantes.<br />

Trata-se de trabalhadores formais e informais que desenvolvem<br />

suas atividades profissionais, através da comercialização de mercadorias<br />

de baixo preço, em empreendimentos simples, voltados para o<br />

público de baixa renda e transeuntes ocasionais. Circulam, por esses<br />

centro comercial, praticamente todos os habitantes que necessitam de<br />

transporte urbano coletivo para se locomoverem.<br />

Como todo gênero textual precisa de um suporte para circular<br />

socialmente, é importante especificar, para determinar os contextos<br />

de circulação sócio-histórica dos gêneros por ora discutidos, os tipos<br />

de suporte que registramos no comércio popular em questão. Antes,<br />

contudo, vale esclarecer “que suporte de um gênero é uma superfície<br />

física em formato específico que suporta, fixa e mostra um texto”<br />

(MARCUSCHI, 2008, p. 174). Assim, o suporte possibilita a materialização<br />

do discurso em texto.<br />

No comércio popular pesquisado, encontramos suportes variados<br />

que possibilitam a veiculação social dos anúncios e letreiros registrados,<br />

a saber: pôsteres, paredes de lojas, papéis variados, pedaços<br />

de papelão, placas luminosas, carrinho de picolé, pedaços de<br />

madeira etc. Essa gama de materiais demonstra que as condições socioeconômicas<br />

dos interlocutores são preponderantes na escolha do<br />

material de divulgação, um indício de que os textos assumem as<br />

formas condicionadas pela esfera discursiva em que circulam: por<br />

ser um comércio popular e variado, a informalidade dos atos de interação<br />

verbal é proeminente, resultando também na simplicidade, e<br />

até improvisação, dos suportes utilizados.<br />

3.2 Funcionalidade e conteúdo temático<br />

Os gêneros discursivos permitem-nos realizar linguisticamente<br />

nossas intenções, externar nossos objetivos em situações comuni-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

483<br />

cativas específicas, enfim, concretizar nossa vontade discursiva, que<br />

é realizada, a priori, na escolha do gênero. Nessa lógica, adaptamos<br />

nossas intenções ao gênero do discurso, cujo conteúdo e forma tendem<br />

a se adequar, dentre outros condicionantes, à situação concreta<br />

de comunicação, aos sujeitos participantes da interlocução e às características<br />

do campo discursivo.<br />

A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha<br />

de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade<br />

de um campo da comunicação discursiva, por considerações<br />

semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta de comunicação<br />

discursiva, pela composição pessoal dos seus participantes, etc. A intenção<br />

discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade,<br />

é em seguida aplicada e adaptada ao gênero escolhido, constitui-se e desenvolve-se<br />

em uma determinada forma de gênero. (BAKHTIN, 2003, p.<br />

282)<br />

A leitura do texto supracitado ratifica a ideia de que os gêneros<br />

legitimam, nos contextos de interação verbal, as formas do dizer<br />

e funcionam conforme as intenções linguístico-discursivas dos falantes.<br />

Por essa razão, a determinação de um gênero textual leva sempre<br />

em conta a natureza dos objetivos das atividades desenvolvidas e as<br />

intenções do produtor do discurso concretizadas através do gênero<br />

selecionado, pois “Quando dominamos um gênero textual, não dominamos<br />

uma forma linguística e sim uma forma de realizar linguisticamente<br />

objetivos específicos em situações sociais particulares.”<br />

(MACUSCHI, 2003, p. 29)<br />

Na esfera publicitária, por exemplo, os gêneros discursivos<br />

que se prestam à divulgação ou propagação de serviços e produtos<br />

geralmente revelam a intenção de conquistar, seduzir o cliente, levando-o<br />

a consumir/contratar o produto/serviço anunciado, através<br />

da veiculação de conteúdos que, via de regra, ressaltam as qualidades<br />

do objeto anunciado. Esse intuito determina a funcionalidade linguístico-discursiva<br />

dos textos, respaldando-o em estratégias do dizer, cujo<br />

modo de funcionamento da linguagem predominante é o apelativo.<br />

Dessa forma, mesmo que distintas sequências linguísticas estejam<br />

presentes em um gênero publicitário, normalmente ganham maior<br />

destaque – não pela quantidade, e sim pelo enfoque – as sequências<br />

injuntivas, que acionam enunciados incitadores de ações (do consumo).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

484<br />

Os letreiros e anúncios do comércio popular também são gêneros<br />

de divulgação de produtos, serviços, estabelecimentos comerciais<br />

etc.; mas, devido à esfera de circulação e ao campo de atividade<br />

humana em que inserem, eles possuem características bastante distintas<br />

das formas discursivas do âmbito da publicidade. Enquanto<br />

nestas a formulação dos enunciados é determinada por uma complexa<br />

estrutura funcional, que atribui aos textos caráter profissional, estilo<br />

sofisticado e conteúdo formulado a partir de pesquisas de opinião<br />

pública; nos anúncios e letreiros, a informalidade e o caráter popular<br />

da atividade desenvolvida são determinantes na construção de textos<br />

simples, objetivos e materializados segundo as condições de letramento<br />

social do falante.<br />

No tocante à funcionalidade e ao conteúdo temático, os anúncios<br />

e letreiros registrados no comércio popular do centro de Rio<br />

Branco-AC revelam, principalmente, a intenção de informar o possível<br />

cliente ou passante sobre as especificidades do negócio, os preços<br />

dos produtos e serviços, promoções, horário de expediente, ou<br />

até mesmo veicular pedidos de ajuda. Existe, portanto, uma diferença<br />

essencial entre a intenção concretizada nos gêneros em foco e aquela<br />

que geralmente é acionada no discurso publicitário, que preza pela<br />

ação de seduzir, de conquistar o cliente. Isso pode ser constatado através<br />

do modo de funcionamento da linguagem, pois nos textos analisados<br />

prevalece a função informativa, enquanto que, na publicidade,<br />

geralmente a função apelativa (conativa) é proeminente.<br />

Nesses letreiros, alguns feitos de forma improvisada, com materiais<br />

diversos, torna-se saliente a necessidade do locutor (produtor<br />

das mensagens) de estabelecer comunicação com os interlocutores<br />

(passantes eventuais, possíveis clientes etc.), a fim de conquistar o<br />

comprador (placas que anunciam mercadorias, serviços e preços),<br />

seduzir o passante (letreiros que divulgam supostas qualidades dos<br />

estabelecimentos), informar aos clientes (placas que indicam horário<br />

de almoço e de funcionamento etc.) e até mesmo pedir ajuda financeira<br />

(letreiro em que a vendedora solicita ajuda para um parente enfermo).<br />

Em todos esses casos, a elaboração dos gêneros é definida<br />

por uma necessidade pragmática, utilitária, daí a formatação de textos<br />

breves, sintéticos e centrados na função de informar conteúdos<br />

relacionados à atividade comercial desenvolvida.


3.3 Estilo da Linguagem e Construção Composicional<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

485<br />

Na hipótese sociointeracionista de língua, os textos não são<br />

produções individuais que dependem, exclusivamente da vontade do<br />

falante, e sim produtos da ação social desenvolvida; por isso, revelam<br />

os modos socioculturais e históricos de articulação da linguagem<br />

na esfera social em que circula. Nas palavras de Marcuschi (2003, p.<br />

35):<br />

Considerando que os gêneros independem de decisões individuais e<br />

não são facilmente manipuláveis, eles operam como geradores de<br />

expectativas de compreensão mútua. Gêneros textuais não são fruto de<br />

invenções individuais, mas formas socialmente maturadas em práticas<br />

comunicativas. Esta era também a posição de Bakhtin [1997] que, como<br />

vimos, tratava os gêneros como atividades enunciativas “relativamente<br />

estáveis”.<br />

Dessa forma, ao acionar a linguagem para estabelecer comunicação<br />

social, o sujeito necessita articulá-la na forma dos gêneros<br />

do discurso, que têm a sua composição definida socialmente. Esses<br />

gêneros geram expectativa no falante, pois são relativamente estáveis.<br />

Assim, quando recebe uma carta, o interlocutor já imagina em<br />

qual composição se enquadra o texto, pois, socialmente, o gênero<br />

carta assume determinados aspectos que lhe são próprios, que lhe identificam<br />

enquanto um gênero de correspondência e não outro.<br />

É claro que renovações podem acontecer, transformando a<br />

composição típica de um gênero, pois, como produto de linguagem,<br />

os gêneros também são suscetíveis às transformações e mudanças<br />

que ocorrem no meio social. Ademais, há também o fenômeno da intergenericidade,<br />

pois há gêneros que apresentam configuração híbrida,<br />

ou seja, que se apropriam da forma de outros gêneros para materializar<br />

o discurso. Isso é muito comum nos campos de atividade<br />

humana em que a criatividade ou espontaneidade norteiam a construção<br />

textual, mas nem tanto naquelas atividades formais nas quais<br />

a formatação do discurso deve seguir rigorosamente as formas preestabelecidas.<br />

No entanto, apesar das mudanças e transformações a que os<br />

produtos de linguagem são suscetíveis, é preciso admitir, tal qual<br />

Bakhtin, que os gêneros discursivos possuem formas relativamente<br />

estáveis que os caracterizam. Por esse motivo, as construções com-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

486<br />

posicionais dos gêneros geralmente alinham-se às formas definidas<br />

nos diversos campos de atividade humana. Nessa lógica, discutir o<br />

estilo e a construção composicional de gêneros veiculados em certa<br />

esfera social representa compreender os modos socioculturais de interação<br />

verbal articulados num contexto específico.<br />

Na esfera do comércio popular do centro da cidade de Rio<br />

Branco-AC, os anúncios e letreiros registrados apresentam composição<br />

curta, com poucos enunciados, em que prevalecem sequências<br />

tipológicas do tipo expositiva e descritiva, com função informativa.<br />

Prevalece um estilo direto, econômico nas palavras e informal, respaldado<br />

na variante linguística que a comunidade de falantes domina<br />

e determinado, dentre outros condicionantes, pela natureza do conteúdo<br />

veiculado e pelas formações sociais dos interlocutores.<br />

Outrossim, os gêneros em discussão viabilizam o estabelecimento<br />

de relações diversas: entre conhecidos (comerciantes e seus<br />

clientes) e desconhecidos (comerciantes e passantes), muitos deles<br />

inseridos em níveis de escolaridade e formações sociais diversificados.<br />

Essa análise demonstra que o estilo dos gêneros (anúncios e letreiros<br />

do comércio popular) esta intrinsecamente relacionado ao estilo<br />

da linguagem articulada e às relações sociais estabelecidas no<br />

campo de atuação em voga, pois<br />

A relação orgânica e indissolúvel do estilo com o gênero se revela<br />

nitidamente também na questão do estilo de linguagem ou funcionais.<br />

No fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são outra coisa senão<br />

estilos de gênero de determinadas esferas da atividade humana e comunicação.<br />

Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem<br />

às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros<br />

que correspondem determinados estilos. Uma determinada função (científica,<br />

técnica, publicitária, oficial, cotidiana) e determinadas condições<br />

de comunicação discursivas, específicas de cada campo, geram determinados<br />

gêneros, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e<br />

composicionais relativamente estáveis. O estilo é indissociável de determinadas<br />

unidades temáticas – de determinadas unidades composicionais:<br />

de determinados tipos de construção do conjunto, de tipos do seu acabamento,<br />

de tipos da relação do falante com outros participantes da comunicação<br />

discursiva – com os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso<br />

do outro, etc. (BAKHTIN, 2003, p. 266)<br />

Nesses termos, discutir o estilo e a composição dos anúncios<br />

e letreiros em questão inclui também analisar as características da<br />

linguagem nas quais esses textos se concretizam, pois, dessa forma,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

487<br />

poderemos elucidar as razões que definem as formas de estabilização<br />

por ora apresentadas na situação pública de circulação em que se situam.<br />

Por serem produtos de linguagem veiculados em uma esfera<br />

popular, os textos em análise são escritos numa variante não padrão<br />

do português, na qual a economia linguística resulta em objetividade<br />

e síntese da linguagem, que se centra nos interesses imediatos do divulgador:<br />

seduzir, conquistar e disputar o cliente, para vender um<br />

produto ou prestar um serviço. Por essa razão, a construção composicional<br />

dos gêneros é sucinta, direta e prioriza o que é essencial, ou<br />

seja, a informação, já que, segundo Edith Pimentel pinto (2001, p.<br />

28):<br />

As manifestações escritas de particulares ou pequenos comerciantes,<br />

com vista à comunicação com o público, um público indiferenciado,<br />

constituído por passantes ocasionais, são linguisticamente econômicas,<br />

dispensando tudo o que seja acessório ao núcleo da mensagem. Centramse<br />

nas necessidades, reclamos e interesses do anunciante, sem qualquer<br />

menção explícita à pessoa do destinatário.<br />

Como se pode notar, a construção dos gêneros em discussão é<br />

norteada por estrutura composicional e estilo definidos pela e na comunidade<br />

de comunicação (campo de atuação humana) em que circulam,<br />

revelando sintonia entre língua e sociedade, entre produtos de<br />

linguagem e os sujeitos sócio-históricos e culturais que os produzem<br />

para interagir socialmente; demonstrando, sobremaneira, que os gêneros<br />

– como ações sociais relativamente estabilizadas – assumem as<br />

formas legitimadas pela esfera de circulação, porque, assim como<br />

não é possível dissociar linguagem e sociedade, também não se pode<br />

separar gêneros, estilos e campos de atividade humana.<br />

4. Considerações finais<br />

Toda ação linguística é materializada por meio de um gênero<br />

discursivo estruturado conforme as especificidades da situação de<br />

comunicação, o nível social dos sujeitos envolvidos no processo, a<br />

vontade discursiva do locutor, a relação deste com o interlocutor etc.;<br />

por isso, os gêneros são produtos de linguagem que revelam os aspectos<br />

sociais, históricos, discursivos, ideológicos e cognitivos en-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

488<br />

volvidos nos atos de interação verbal articulados em um campo de<br />

atividade humana.<br />

Desse modo, eles congregam características discursivas e linguísticas<br />

da comunidade de falantes que os estruturam, revelando os<br />

modelos concretos de legitimação do dizer. Em alguns campos de<br />

atuação humana, esses modelos são mais rígidos; em outros, mais<br />

flexíveis, dependendo da natureza das relações estabelecida no meio<br />

social em questão. Isso possibilita afirmar que os gêneros também<br />

são práticas sociais de letramento e, como estas, podem surgir e se<br />

desenvolver com pouco ou nenhuma influência dos saberes formais<br />

veiculados pela e na escola.<br />

A discussão sobre os anúncios e letreiros do comércio popular<br />

do centro da cidade de Rio Branco-AC permitiu-nos constatar que os<br />

fatores sociais – natureza do conteúdo veiculado, situação de comunicação,<br />

relação entre os participante da esfera de atividade social,<br />

intenção comunicativa, estilo social etc. – são determinantes para a<br />

estrutura composicional dos enunciados. Não que a variante da linguagem<br />

também não influencie nessa formatação, mas esta também<br />

é determinada pelas condições sociais dos interlocutores, pois a língua<br />

é uma ação social que se sintoniza às características históricas,<br />

culturais, geográfica etc. dos falantes e dos atos de interação verbal.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOPGRÁFICAS<br />

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação<br />

verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />

______. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo:<br />

Hucitec, 2006.<br />

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de<br />

retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.<br />

______. Letramento e oralidade no contexto das práticas sociais e<br />

eventos comunicativos. In: SIGNORI, Inês (Org.). Investigando a<br />

relação oral/escrito. Campinas: Mercado de Letras, 2001.<br />

______. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In:<br />

DIONÍSIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel & BEZERRA,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

489<br />

Maria Auxiliadora. (Orgs.). Gêneros textuais & ensino. 2. ed. Rio de<br />

Janeiro: Lucerna, 2003.<br />

______. Gêneros textuais no ensino de língua. In: Produção textual,<br />

análise de gêneros e compreensão. 3. ed. Parábola, 2008.<br />

PINTO, Edith Pimentel. O português popular escrito. 3. ed. São<br />

Paulo: Contexto, 2001.


6. ANEXOS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

490<br />

6.1 Anúncios que informam a especificidade do negócio, ou seja, as mercadorias<br />

comercializadas ou os serviços prestados;


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

491


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

492


6.2 Anúncios que indicam preços de produtos ou serviços;<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

493


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

494


6.3 Anúncios que divulgam promoções<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

495


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

496


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

497<br />

6.4 Letreiros produzidos para conquistar a clientela, usando sequências<br />

linguísticas que salientam supostas qualidades do estabelecimento comercial;


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

498


6.5 Anúncios que veiculam pedidos de ajuda ou informam o horário de<br />

expediente.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

499


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

500


1. Introdução<br />

APORTES SOCIOLINGUÍSTICOS<br />

À PRÁTICA DO PROFESSOR<br />

– IMPLICAÇÕES NA SALA DE AULA<br />

Consuelo Domenici Mozzer Pinto (PMJF)<br />

cdmozzer@gmail.com<br />

Lucia Furtado de Mendonça Cyranka (UFJF)<br />

Um dos grandes desafios dos educadores é aproximar-se do<br />

universo do aluno e apreender suas concepções acerca dos saberes<br />

adquiridos, no sentido de auxiliá-lo na geração de um novo conhecimento<br />

que evolua a partir das manifestações e experiências no contexto<br />

das aprendizagens escolares.<br />

Nesse sentido, a língua, como um bem cultural, não só se caracteriza<br />

como força mediadora do conhecimento; mas também é, ela<br />

mesma, conhecimento.<br />

A criança, ao chegar na escola, já traz um saber de sua língua<br />

que lhe capacita a comunicação de forma satisfatória. Nesse arsenal<br />

de conhecimentos, inclui-se a variedade linguística que lhe é própria,<br />

seja considerada de prestígio, ou não. Entretanto, se o seu vernáculo<br />

está incluído nesse último caso, isto é, se não é reconhecido socialmente<br />

e, principalmente, na escola como sendo legítimo, esse aluno<br />

se vê severamente limitado no desenvolvimento de competências<br />

linguísticas que o levem, no futuro, à competente participação em<br />

eventos de fala públicos e formais.<br />

Buscando refletir sobre essa temática, a sociolinguística tem<br />

contribuído consideravelmente para a desmistificação dessas noções.<br />

O que ela mostra, segundo Freire (1990), é que cientificamente, todas<br />

as línguas são válidas, sistemáticas, sistemas normatizados, e que<br />

a distinção inferioridade/superioridade constitui um fenômeno social.<br />

Segundo Bagno (2002, p. 32),<br />

O papel do linguista é descrever a língua em suas múltiplas manifestações<br />

e oferecer hipóteses e teorias consistentes para explicar os fenômenos<br />

linguísticos, de modo que os educadores possam se servir dessas


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

502<br />

descrições e explicações para empreender uma prática pedagógica que<br />

leve em conta a pluralidade de realizações empíricas da língua.<br />

Neste artigo, pretendemos discutir, à luz de uma abordagem<br />

sociolinguística, os impactos desses conhecimentos no contexto da<br />

sala de aula, abordando o papel da escola no ensino da variedade culta<br />

da língua e os desafios presentes no enfrentamento dessa questão,<br />

enfatizando como os conhecimentos da sociolinguística podem aprimorar<br />

a prática docente e contagiar nossos alunos com a confiança<br />

e a alegria de se usar a língua com segurança, para o desempenho de<br />

qualquer tarefa comunicativa cabível.<br />

2. A voz dos alunos<br />

Freire (1990) adverte que a língua dos alunos é o único meio<br />

pelo qual podem desenvolver sua própria voz, pré-requisito para o<br />

desenvolvimento de um sentimento positivo do próprio valor. A voz<br />

dos alunos jamais deve ser sacrificada, uma vez que ela é o único<br />

meio pelo qual eles dão sentido à própria experiência no mundo.<br />

A sociolinguística nos ensina que onde há variação linguística<br />

sempre há avaliação social. Numa sociedade profundamente hierarquizada,<br />

como a nossa, todos os valores culturais e simbólicos que<br />

nela circulam também estão dispostos em categorias de prestígio, ou<br />

não. Entre esses valores culturais e simbólicos, está a língua, certamente<br />

o mais importante deles. Podemos, então, dizer, de acordo<br />

com Bagno (2006, p. 8):<br />

Uma das tarefas do ensino de língua na escola seria, portanto, discutir<br />

criticamente os valores sociais atribuídos a cada variante linguística,<br />

chamando a atenção para a carga de discriminação que pesa sobre determinados<br />

usos da língua, de modo a conscientizar o aluno de que sua produção<br />

linguística, oral ou escrita, estará sempre sujeita a uma avaliação<br />

social, positiva ou negativa.<br />

O nosso sistema escolar está norteado para ensinar a língua da<br />

cultura dominante, também denominada de língua-padrão.<br />

Bagno (2002) argumenta que o ensino da língua na escola<br />

brasileira tem visado, tradicionalmente, “reformar” ou “consertar” a<br />

língua do aluno, considerado, logo de saída, como um “deficiente<br />

linguístico”, ao qual a escola deve “dar” algo que ele “não tem”, isto


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

503<br />

é, uma ”língua” digna desse nome. Esse modo de conceber os fatos<br />

de linguagem condena ao submundo do não ser todas as manifestações<br />

linguísticas não normatizadas, rotuladas automaticamente de<br />

“erro” – e, junto com as formas linguísticas estigmatizadas, condenase<br />

ao silêncio e à quase-inexistência as pessoas que se servem delas.<br />

É possível observar esse fato, através do depoimento de alguns<br />

alunos matriculados em duas escolas da rede municipal da cidade<br />

de Juiz de Fora (MG). Ambas as escolas situam-se na periferia<br />

e atendem crianças do 2º ao 9º ano do ensino fundamental. A comunidade,<br />

na qual estão inseridas, possui características comuns, como:<br />

população com escassez de recursos financeiros; transporte inadequado;<br />

precariedade nos serviços básicos de água, luz, esgoto, atendimento<br />

médico e saúde pública; estrutura familiar comprometida;<br />

problemas relacionados à criminalidade e ao tráfico de drogas, dentre<br />

outros.<br />

Ao serem perguntados sobre a razão pela qual estudavam a<br />

língua portuguesa na escola, os alunos responderam 1 :<br />

Graciele (09 anos/4º ano): Pra aprender falar a língua portuguesa<br />

direito, né! Tem gente que fala errado. Meu primo, por exemplo. Tem<br />

gente na minha sala que fala “trusse”, invés de trouxe.<br />

Mauro (09 anos/2º ano): Pra “passá” de ano e não “ficá” burro, né!<br />

Observe-se o como uma criança de apenas 09 anos de idade,<br />

provavelmente, quatro de vida escolar, já tem inculcadas crenças negativas<br />

sobre sua competência como usuário da própria língua materna,<br />

o que, do ponto de vista linguístico, é um absurdo. Nessa fase<br />

da vida, a não ser por questões de patologias físico-mentais, qualquer<br />

falante domina todas as estruturas básicas de sua língua, sejam regras<br />

morfossintáticas, sejam recursos de construção lexical, sejam até<br />

mesmo certos recursos discursivos mais sofisticados. Graciele, por<br />

exemplo, se percebe como membro de uma comunidade de fala, juntamente<br />

com seu primo, seus colegas de sala e é capaz, como tal, de<br />

construir argumentos para comprovar a crença que já lhe foi inculcada,<br />

prova de sua competência de falante, mas infelizmente, prova<br />

também de que está sendo vítima de uma concepção equivocada de<br />

1 Os nomes dos alunos e das professoras aqui citados são fictícios.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

504<br />

linguagem e de educação linguística. Perini (2010, p. 21) adverte<br />

que:<br />

Para nós, “certo” é aquilo que ocorre na língua. É verdade que quase<br />

todo mundo tem suas preferências, detesta algumas construções, prefere<br />

a pronúncia de alguma região, etc. Mas o linguista precisa manter uma<br />

atitude científica, com atenção constante às realidades da língua e total<br />

respeito por elas. O linguista, cientista da linguagem, observa a língua<br />

como ela é, não como algumas pessoas acham que ela deveria ser. Condenar<br />

uma construção ou uma palavra ocorrente como incorreta é mais<br />

ou menos como decretar que é “errado” que aconteçam terremotos (não<br />

seria melhor que não acontecessem?). Mas eles acontecem, e um cientista<br />

não tem remédio senão reconhecer os fatos.<br />

Em outro momento, foi perguntado às crianças se a língua falada<br />

por eles era a mesma ensinada na escola. As respostas foram as<br />

seguintes:<br />

Graciele: É. Mas tem gente que fala errado, tem a língua presa.<br />

Gisele (09 anos/4º ano): É. A gente fala meio errado. Fala com jeito<br />

meio da roça.<br />

Paulo (08 anos/3º ano): Não. Eu falo de um jeito que tá errado. Elas<br />

(professoras) falam mais certo do que eu. Por exemplo, eu falo “melorá”<br />

(melhorar). A professora, a diretora, o meu pai, minha mãe, “fala” certo.<br />

Menos quem não sabe “escrevê” ainda é que fala errado.<br />

Observe-se como a Gisele já considera errado o dialeto rural,<br />

fonte preciosa de inúmeras manifestações culturais de valor inegável.<br />

E Paulo parece já ter “aprendido” que só a modalidade certa é a escrita,<br />

quando afirma que quem não sabe escrever, fala errado... A que<br />

ostracismo vê, então, relegados os milhares de analfabetos brasileiros,<br />

excluídos da possibilidade de integrarem, efetivamente, a sociedade<br />

brasileira!<br />

Segundo Bortoni-Ricadro (2005), o prestígio associado ao<br />

português-padrão é, sem dúvida, um valor cultural muito arraigado,<br />

herança colonial consolidada nos nossos cinco séculos de existência<br />

como nação. Podemos e devemos questioná-lo, desmistificá-lo e demonstrar<br />

sua relatividade e seus efeitos perversos na perpetuação das<br />

desigualdades socais, mas negá-lo, não há como. É preocupante o fato<br />

de muitos estudiosos e professores considerarem que toda a linguagem,<br />

e consequentemente, a cultura das crianças de classes populares,<br />

tem que ser substituída pela língua da cultura institucionalizada.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

505<br />

Buscando conhecer a opinião dos professores regentes do ensino<br />

fundamental – 2º ao 5º ano – sobre a eficiência do ensino da língua<br />

portuguesa na escola e o papel do professor nesse processo, levando-se<br />

em consideração a língua falada por seus alunos, observamos<br />

o seguinte:<br />

Mariana (professora há 17 anos do ensino fundamental, atualmente,<br />

como regente do 2º e 5º anos na rede municipal):<br />

O problema é que eles (alunos) chegam com a fala carregada com<br />

muita gíria. Não é errada, né? Mas, muito pobre. Na hora de escrever, eles<br />

colocam isso tudo. Isso dificulta a aprendizagem. Demora um pouco.<br />

Tem que explicar. Você fala assim, mas escreve assim. Não é que eles<br />

estejam certos ou errados, né? Só que a escola tem que se aproximar o<br />

máximo do português escrito. Mas eles usam o português falado. Tem<br />

que tirar o que eles falam a vida inteira e voltar pro português escrito.<br />

Aqui está a origem da crença do Paulo expressa acima: a modalidade<br />

melhor é a escrita (“...a escola tem que se aproximar o máximo<br />

do português escrito.”). Quer dizer que falar é errado? Então o<br />

aluno deve permanecer calado para não errar? Como se pode pretender<br />

que a escola promova a formação do homem integral, negandolhe<br />

o direito à palavra?<br />

Clara (professora há 21 anos do ensino fundamental, atualmente<br />

como regente do 2º e 4º anos na rede municipal), apresenta<br />

sua opinião:<br />

O problema é que o jeito dos nossos alunos falarem não está de acordo<br />

com o da escola. Mas nós não podemos desprezar o jeito deles. O<br />

que procuro fazer é mostrar pra eles que existe uma outra maneira deles<br />

se expressarem. Isto (a fala do aluno) interfere na aprendizagem deles<br />

porque eles querem usar esse jeito de falar deles na escrita. Será que isso<br />

é uma maneira errada, ou não? A língua vem deles, é o jeito deles, da<br />

convivência deles, do ambiente familiar.<br />

Se levarmos em consideração o contexto em que eles vivem, de como<br />

se usa o português, como eles aprenderam a usar o português, eu acho<br />

que não é errado. Porque eles estão usando da maneira que eles aprenderam<br />

ali. Agora, se considerarmos o que a sociedade cobra, esse<br />

jeito de falar é considerado errado.<br />

A escola deve procurar esclarecer pro aluno esta diferença. Ele tem a<br />

sua maneira de falar no contexto da família, mas na sociedade, esse português,<br />

essa gramática tem que ser usada de outra maneira. Tem uma cobrança<br />

do mundo lá fora.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

506<br />

Nesse depoimento, a professora demonstra consciência da existência<br />

das variedades linguísticas encontradas em sala de aula,<br />

mas revela a sua insegurança de como tratar a questão. O prestígio<br />

conferido à língua culta na escola leva à marginalização o jeito de falar<br />

e de se expressar dos alunos. Uns momentos de reflexão, de acordo<br />

com Perini (2010, p. 19), deixam bem claro que as duas variedades<br />

existem, vão continuar a existir e, principalmente, não podem<br />

ser trocadas. Segundo o autor, tanto o português falado pelos alunos<br />

(português falado do Brasil, ou PB), quanto o português padrão têm<br />

importância na nossa sociedade. Mas, no que pese a relevância de<br />

cada uma, a variedade que ele denominou PB tem uma importância<br />

que o padrão não tem: o PB é conhecido e usado constantemente pela<br />

totalidade dos brasileiros, ao passo que o padrão é privilégio de<br />

uma pequena minoria de pessoas mais escolarizadas.<br />

A situação seguinte traz a experiência de Valéria, (professora<br />

há 07 anos, atualmente como regente do 3º ano do ensino fundamental<br />

na rede municipal):<br />

Eu “to” fazendo um curso de língua portuguesa, pela Secretaria Municipal<br />

de Educação (Práticas de mediação no processo ensinoaprendizagem<br />

de oralidade/escrita, leitura e do trabalho com os dialetos<br />

sociais na escola pública) pra me atualizar e oferecer um ensino de qualidade.<br />

O que tá proposto no curso, “to” colocando em prática. Mas, acho<br />

que não estou tendo o sucesso que eu esperava. Eu acho que a gente ensina,<br />

mas falta interesse dos alunos. Tem uma distância entre a nossa fala<br />

e a fala que o aluno usa no seu dia-a-dia. Se a gente se aproxima muito<br />

(da fala do aluno), o português perde a qualidade. Não sei bem como resolver<br />

isso.<br />

O jeito de falar do aluno está distante do desejo da escola. Isso é por<br />

causa do desinteresse pela língua portuguesa. Os alunos acham muito difícil.<br />

Eles acham mais difícil que a matemática. Não deveria, porque eles<br />

falam português desde que nasceram. A matemática, não. Eles aprendem<br />

quando entram pra escola. Eles não enxergam quanto o português auxilia<br />

nas outras áreas. Não existe o jeito certo e errado de falar o português.<br />

Existem diferentes formas em diferentes espaços. É isso que eu quero<br />

que o meu aluno aprenda. Ele não comunica errado. Ele precisa aprender<br />

que a forma de comunicar no grupo social dele é uma. Ele precisa aprender<br />

outras formas de comunicar para participar de outros grupos e entender<br />

outras culturas.<br />

Nota-se, como no caso anterior, a mesma insegurança da professora<br />

de como lidar com as questões da variação linguística no<br />

contexto da sala de aula. Percebe-se também a sua consciência da


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

507<br />

necessidade de mudança de postura da escola frente a essa questão.<br />

Ela compreende que as variações da língua são parte da vida da nossa<br />

sociedade e que desprezar uma em detrimento da outra não é a solução<br />

para o problema. Mas como levar nossas crianças a se tornarem<br />

competentes em utilizar, quando necessário, a variedade culta do<br />

português, tanto na modalidade oral quanto na escrita? E mais: como<br />

fazê-los se interessarem por esta questão? Segundo Cyranka, em artigo<br />

inédito,<br />

A sociolinguística, considerando a contraparte social da linguagem,<br />

oferece o caminho para o tratamento adequado da heterogeneidade linguística<br />

na escola. Para essa ciência, a variação e a mudança linguísticas<br />

são processos naturais e têm motivações várias, entre elas, a identidade<br />

dos falantes dentro do seu grupo social e até mesmo de localidade geográfica.<br />

Nesse sentido, a capacitação docente na área da sociolinguística<br />

constitui o primeiro passo, indispensável para predispor os professores à<br />

ampliação do seu conhecimento acerca da língua e suas variações.<br />

Mediante esses depoimentos, constatamos, na fala de algumas<br />

professoras, indícios da consciência de que a escola não pode ignorar<br />

as diferenças sociolinguísticas. Os professores e, por meio deles, os<br />

alunos têm que estar bem conscientes de que existem duas ou mais<br />

maneiras de dizer a mesma coisa. E mais, que essas formas alternativas<br />

servem a propósitos comunicativos distintos e são recebidas de<br />

maneira diferenciada pela sociedade. Algumas conferem prestígio ao<br />

falante, aumentando-lhe a credibilidade; outras contribuem para formar-lhe<br />

uma imagem negativa, diminuindo-lhe as oportunidades.<br />

Para firmar essa convicção, Bortoni-Ricadro (2004, p. 9), partindo<br />

da análise das principais características das variedades linguísticas<br />

faladas pelos brasileiros de origem rural e urbana, defende:<br />

Como bem sabemos, nas disputas do mercado linguístico, diferença<br />

é deficiência. Por isso, cabe à escola levar os alunos a se apoderar também<br />

das regras linguísticas que gozam de prestígio, a enriquecer o seu<br />

repertório linguístico, de modo a permitir a eles o acesso pleno à maior<br />

gama possível de recursos para que possam adquirir uma competência<br />

comunicativa cada vez mais ampla e diversificada – sem que ainda isso<br />

implique a desvalorização de sua própria variedade linguística, adquirida<br />

nas relações sociais dentro de sua comunidade.<br />

Para realizar a tarefa de enriquecer o repertório linguístico do<br />

aluno, o professor necessita dos conhecimentos sociolinguísticos para<br />

proceder a uma análise criteriosa dos fenômenos de variação e


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

508<br />

mudança linguística em sala de aula. Em seu artigo, Bagno (2006, p.<br />

8) acrescenta:<br />

O profissional da educação tem que saber reconhecer os fenômenos<br />

linguísticos que ocorrem em sala de aula, reconhecer o perfil sociolinguístico<br />

de seus alunos para, junto com eles, empreender uma educação<br />

em língua materna que leve em conta o grande saber linguístico prévio<br />

dos aprendizes e que possibilite a ampliação incessante do seu repertório<br />

verbal e de sua competência comunicativa, na construção de relações sociais<br />

permeadas pela linguagem cada vez mais democráticas e não discriminadoras.<br />

Entendemos que a prática docente implica aprendizagem por<br />

parte dos alunos, bem como aprendizagem, ou reaprendizagem, por<br />

parte dos que ensinam - os professores. Temos muito a aprender com<br />

os alunos a quem ensinamos.<br />

3. O papel da escola no ensino da variedade culta da língua e<br />

seus enfrentamentos<br />

A crença na superioridade de uma variedade linguística sobre<br />

as demais é um mito arraigado na cultura brasileira. Segundo Bortoni-Ricardo<br />

(2004), as variedades faladas pelos grupos de maior poder<br />

político e econômico passam a ser vistas como variedades mais bonitas<br />

e até mais corretas. Mas essas variedades, que ganham prestígio<br />

porque são faladas por grupos de maior poder, nada têm de intrinsecamente<br />

superior às demais. O prestígio que adquirem é mero resultado<br />

de fatores políticos e econômicos.<br />

A escola não pode ignorar as diferenças sociolinguísticas.<br />

Bagno (2002) advoga que uma das tarefas do ensino de língua na escola<br />

seria, então, discutir os valores socais atribuídos a cada variante<br />

linguística, enfatizando a carga de discriminação que pesa sobre determinados<br />

usos da língua, de modo a conscientizar o aluno de que<br />

sua produção linguística, oral ou escrita, estará sempre sujeita a uma<br />

avaliação social, positiva ou negativa. É responsabilidade do professor,<br />

desenvolver competências de uso da variedade culta do português<br />

do Brasil, isto é, a que realmente está em uso. Cyranka (2008,<br />

p. 27) completa esta ideia ao afirmar:<br />

Toda essa evidência aponta claramente para a necessidade de a escola<br />

reconhecer a legitimidade da variedade vernacular dos alunos, a ponto


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

509<br />

de trabalhar com ela em sala de aula, mostrando-se não propriamente<br />

compassiva, mas detentora do conhecimento de que ela vale para seus<br />

fins, tanto quanto a variedade prestigiada vale para outros diferentes fins.<br />

Enquanto a escola insistir em negar o caráter sócio-histórico-funcional<br />

dessa variedade, ela permanecerá na perplexidade, ao se defrontar com<br />

resultados cada vez mais pobres do ponto de vista do desenvolvimento,<br />

nos alunos, da competência de uso da língua culta. Isso porque, ao invés<br />

de aproximar, ela os distancia da crença de que são capazes de adquirir a<br />

competência de uso dessa variedade, ainda que mais prestigiada e diferente<br />

da que utilizam.<br />

A consciência gera responsabilidade.<br />

Entretanto, observa-se que o aluno que chega à escola exibindo,<br />

em sua linguagem, uma incidência maior de variáveis linguísticas<br />

não padrão é estigmatizado e julgado com severidade. Segundo<br />

pesquisas realizadas por Bortoni-Ricardo (2005, p 120),<br />

...os professores tendem a ter expectativas mais modestas em relação aos<br />

alunos falantes de dialetos estigmatizados do que em relação aos alunos<br />

falantes de variedades de prestígio e que essa expectativa influencia o<br />

rendimento acadêmico dos alunos. Formam-se assim as profecias autorrealizáveis,<br />

que se vão haurir no processo de ratificação das teorias da<br />

deficiência.<br />

Quando a professora faz dos modos de falar da criança uma<br />

área de conflito, a criança adere ao conflito e torna seu estilo interacional<br />

progressivamente mais distinto do estilo da professora. Ao<br />

contrário, quando seu modo de falar não é um campo de conflito, a<br />

criança se adapta à variedade culta, prestigiada. Segundo a mesma<br />

autora, as estratégias intuitivas usadas pelos professores para lidar<br />

com a complexa questão da variação linguística podem contribuir<br />

para a implementação de uma pedagogia culturalmente sensível.<br />

Entende-se por pedagogia culturalmente sensível um tipo de<br />

esforço especial empreendido pela escola, a fim de reduzir os problemas<br />

de comunicação entre professores e alunos. Segundo Bortoni-Ricardo<br />

(2005, p. 128):<br />

É objetivo da pedagogia culturalmente sensível criar em sala de aula<br />

ambientes de aprendizagens onde se desenvolvam padrões de participação<br />

social, modos de falar e rotinas comunicativas presentes na cultura<br />

dos alunos.<br />

A prática da pedagogia culturalmente sensível prevê o respeito<br />

às características socioculturais e individuais dos alunos. É na es-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

510<br />

cola que a criança brasileira pobre vai começar a ter acesso a estilos<br />

diferentes do seu vernáculo e vai iniciar a tarefa de incorporar esses<br />

estilos ao seu repertório linguístico. Bortoni-Ricardo afirma que, na<br />

familiarização do aluno com estilos monitorados – os que se sobrepõem<br />

ao vernáculo aprendido pela criança no contato, inicialmente<br />

com a família e, em seguida, com os pares – e na sua aquisição dos<br />

recursos comunicativos que lhe vão permitir usar esses estilos, é que<br />

se observa os efeitos positivos da ampliação da competência linguística<br />

e comunicativa do aluno.<br />

4. Implicações na sala de aula<br />

Para envolver o aluno no universo dos saberes escolares, é<br />

preciso descobrir os conhecimentos da cultura popular que já trazem<br />

de suas casas. Interações dos ambientes educacionais com a realidade<br />

familiar e comunitária da criança favorecem o seu desenvolvimento<br />

e facilitam a emergência de novos saberes. Nesse contexto,<br />

quando o uso da língua padrão não leva em conta a cultura popular<br />

do aluno, torna-se um grande entrave na construção do seu aprendizado.<br />

Essa questão nos remete a pensar sobre aqueles alunos que<br />

frequentam as nossas aulas e não encontram formas de interagir com<br />

as informações que lhes são apresentadas. Quando falta continuidade<br />

entre a casa e a instituição educativa, a criança fica sem saber o que<br />

fazer, não consegue aproveitar as aprendizagens adquiridas, emudece<br />

e perde o interesse em aprender.<br />

De acordo com a abordagem sociolinguística, as crianças<br />

chegam à escola trazendo variações linguísticas de diferentes registros,<br />

modos de dizer diferentes que, discutidos e compartilhados,<br />

contribuem para aumentar o repertório linguístico à disposição de<br />

cada uma delas.<br />

Nessa perspectiva, Gagné (2002) afirma que a escola deve visar<br />

o aumento do repertório linguístico das crianças para lhes dar a<br />

possibilidade de utilizar as variantes apropriadas às situações de comunicação<br />

mais diversas e assegurar, o mais eficazmente possível,<br />

as funções a que a língua serve. A escola, portanto, deve organizar<br />

sua pedagogia de tal modo que a criança tenha não só um repertório


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

511<br />

extenso, mas também que saiba se servir dele adequadamente e que<br />

tenha o gosto de fazê-lo.<br />

A linguagem, como riqueza cultural, é um recurso fundamental<br />

para comunicar ideias, sentimentos, conhecimentos e opiniões.<br />

Um ambiente que oferece liberdade de expressão e ao mesmo tempo<br />

orienta, leva o aluno a aprender positivamente e a tomar decisões sobre<br />

sua aprendizagem.<br />

Segundo Bortoni-Ricardo (2005), para operar de maneira aceitável,<br />

um membro de uma comunidade de fala tem de aprender o<br />

que dizer e como dizê-lo apropriadamente, a qualquer interlocutor e<br />

em quaisquer circunstâncias. Se um falante não tiver acesso a recursos<br />

linguísticos necessários para a implementação de certo ato de fala,<br />

como por exemplo, vocabulário ou padrões retóricos, esse ato de<br />

fala se torna inviável.<br />

Os estudos da sociolinguística, na prática docente, possibilitam<br />

um novo olhar sobre questões relacionadas ao processo de ensino/aprendizagem<br />

das crianças. A partir dessas reflexões, pode-se dizer<br />

que o sucesso do trabalho em sala de aula depende da congruência<br />

entre os saberes trazidos pelo aluno do seu meio familiar e os da<br />

escola, o respeito à diversidade de formas de leitura do mundo pela<br />

criança, a qualidade dos ambientes de educação, as abordagens baseadas<br />

numa pedagogia culturalmente sensível e a definição de uma<br />

política educacional voltada para o ensino e aprendizagem como prática<br />

social.<br />

5. Conclusão<br />

A criança que chega à escola tem certo domínio da sua língua<br />

materna, isto é, sabe organizar seu pensamento explicitá-lo de forma<br />

coerente a fim de comunicar-se nas diversas situações. Mas ainda carece<br />

de um conjunto amplo de recursos comunicativos que lhe permitam<br />

realizar tarefas comunicativas complexas que exijam uma fala<br />

monitorada.<br />

Nesse sentido, Bortoni-Ricardo (2004) afirma que é papel da<br />

escola facilitar a ampliação da competência comunicativa dos alunos,<br />

permitindo-lhes apropriarem-se dos recursos necessários para se


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

512<br />

desempenharem bem, e com segurança, nas mais distintas tarefas<br />

linguísticas. A escola é, por excelência, o espaço em que os educandos<br />

vão adquirir, de forma sistemática, recurso comunicativo que<br />

lhes permitam desempenhar-se competentemente em práticas socais<br />

especializadas.<br />

A pluralidade cultural e a rejeição aos preconceitos linguísticos<br />

são valores que precisam ser cultivados em todas as etapas da vida<br />

escolar. O domínio da língua é central para o processo de desenvolvimento,<br />

crescimento, aprendizagem, construção, conhecimento.<br />

Vincula-se à imaginação, à criação, ao diálogo, à expressão de saberes,<br />

afetos, valores.<br />

A contribuição mais efetiva que a sociolinguística pode dar,<br />

no sentido de apoiar os professores na sua prática, está em capacitálos<br />

para a autorreflexão, a análise crítica e a transformação do seu<br />

fazer pedagógico com o objetivo de conciliar estratégias de ensino<br />

inseridas nos parâmetros de uma pedagogia culturalmente sensível,<br />

promovendo, ao mesmo tempo, a educação linguística dos alunos.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BAGNO, Marcos; GAGNÉ, Gilles, SUTBBS, Michael. Língua materna:<br />

variação e ensino. São Paulo: Parábola, 2002.<br />

______. Nada na língua é por acaso: ciência e senso comum na educação<br />

em língua materna. Presença Pedagógica, Belo Horizonte,<br />

ano 12, n. 71, set. 2006.<br />

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna:<br />

a sociolinguística em sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.<br />

______. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística na sala<br />

de aula. São Paulo: Parábola, 2005.<br />

CYRANKA, Lúcia F. Mendonça; NASCIMENTO, Lívia Arcanjo,<br />

OTONI, Patrícia Rafaela; PERON, Simone Rodrigues. A reflexão<br />

sociolinguística no ensino fundamental: resultados de uma pesquisaação/<br />

FAPEMIG. (Artigo a ser publicado).<br />

CYRANKA, Lúcia F. Mendonça; PERNAMBUCO, Déa Lúcia<br />

Campos. A língua culta na escola: uma interpretação sociolinguísti-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

513<br />

ca. Instrumento: Revista de Estudo e Pesquisa em Educação, Juiz de<br />

Fora, v. 10, p.17-28, jan./dez. 2008.<br />

FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura da palavra,<br />

leitura do mundo. Trad.: Lólio Lourenço de Oliveira. 4. ed. Rio<br />

de Janeiro: Paz e Terra, 1990.<br />

PERINI, Mário, A. Gramática do português brasileiro. São Paulo:<br />

Parábola, 2010.


APRENDENDO PORTUGUÊS COM TEXTOS DE HUMOR<br />

1. Considerações iniciais<br />

Claudia Moura da Rocha (UERJ)<br />

claudiamoura@infolink.com.br<br />

Darcilia M. P. Simões (UERJ)<br />

www.darciliasimoes.pro.br<br />

É notória a crise por que passa o ensino em nosso país. Ensino<br />

que não corresponde às expectativas dos alunos, da sociedade<br />

nem dos professores. Os alunos queixam-se do distanciamento entre<br />

conteúdos ensinados e a vida prática; a sociedade endossa as queixas<br />

dos primeiros, uma vez que necessita de mão de obra especializada e<br />

preparada para trabalhar com as novas tecnologias; os professores,<br />

conscientes dessas novas demandas, nem sempre conseguem “atrair”<br />

o interesse dos alunos para suas aulas. Há ainda um agravante em relação<br />

a essa situação: apesar de todo o desenvolvimento tecnológico<br />

alcançado pela sociedade, o ensino ainda se dá, nos mesmos moldes<br />

tradicionais de um ou dois séculos atrás.<br />

Em relação ao ensino de língua portuguesa, a situação pouco<br />

difere do que foi anteriormente exposto. Professores se queixam de<br />

que é cada vez mais difícil ensinar a alunos desmotivados, desinteressados,<br />

que consideram o conteúdo apresentado distante de sua<br />

realidade e de suas necessidades. Outro fator age como complicador<br />

dessa situação: a distância existente entre a língua falada em casa,<br />

nas ruas, ouvida na televisão e no rádio e a ensinada na escola mostra-se<br />

um grande obstáculo para esses alunos. Isso só vem a reforçar<br />

o importante papel exercido pela escola no ensino da língua-padrão:<br />

é ela a responsável por proporcionar esse acesso, oferecendo aos alunos<br />

meios de inclusão social.<br />

Em vista desse panorama nada alentador, mudanças vêm sendo<br />

implementadas a fim de despertar o interesse dos educandos, aproximando<br />

o ensino de língua portuguesa da realidade. Passou-se a<br />

incluir a leitura de textos de diferentes gêneros textuais, muitos deles<br />

próximos da realidade do aluno (histórias em quadrinhos, bilhetes,<br />

cartas, letras de música, piadas) com vistas a modificar sua relação


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

515<br />

com a própria língua. A inclusão de outros gêneros textuais, além<br />

dos literários, só veio a corroborar as descobertas dos estudos linguísticos<br />

(da Linguística Textual, por exemplo, que ampliou o conceito<br />

de texto), atendendo também às necessidades de uma sociedade<br />

que precisa de indivíduos que saibam lidar com os mais variados gêneros<br />

textuais existentes. Além dos gêneros textuais, a língua-padrão<br />

continua sendo ensinada nas aulas de língua materna (aliás, como<br />

deve ser, sem, no entanto, ignorarmos as outras variedades linguísticas<br />

existentes e muitas vezes faladas pelos alunos), uma vez que é<br />

ela que permite a esse aluno a participação integral na vida em sociedade.<br />

Entre os gêneros que passaram a receber mais atenção por<br />

parte de estudiosos, professores e autores de livros didáticos estão os<br />

que veiculam o humor. É muito recorrente encontrarmos em livros<br />

didáticos a presença de histórias em quadrinhos, charges, cartuns,<br />

piadas, crônicas e contos de humor. Por essa razão, acreditamos ser<br />

relevante estudar de que forma esses gêneros textuais podem ser trabalhados<br />

em sala de aula, seja nas atividades de leitura e interpretação,<br />

seja nas de produção textual, com especial interesse pelos recursos<br />

linguísticos empregados para fazer rir.<br />

2. Aprendendo português com textos de humor<br />

É possível aprender português por meio da leitura de textos de<br />

humor? É a essa pergunta que pretendemos responder. Os gêneros<br />

textuais de humor oferecem rico material para o professor de língua<br />

portuguesa utilizar em suas aulas, uma vez que a língua é empregada<br />

com a finalidade de fazer rir, ou seja, é usada como um recurso expressivo,<br />

não apenas como simples meio de comunicação. Procuraremos<br />

demonstrar como os recursos linguísticos (de natureza fonológica,<br />

morfológica, semântica, entre outros) presentes nos textos de<br />

humor podem ser aproveitados pelo professor em suas aulas de leitura,<br />

interpretação e produção textual.<br />

Por uma característica intrínseca a alguns gêneros textuais de<br />

humor (aliar a linguagem verbal à não verbal), nas aulas de leitura e<br />

interpretação, por exemplo, seria interessante levar os alunos a uma


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

516<br />

leitura desses dois aspectos, já que a compreensão textual depende<br />

de ambos. Vejamos alguns exemplos:<br />

Disponível em:<br />

. Acesso<br />

em: 06 ago. 2009.<br />

A história em quadrinhos de Caulos estabelece uma relação<br />

intertextual com o famoso poema de Gonçalves Dias, Canção do Exílio.<br />

É a linguagem verbal empregada que nos permite dizer isso.<br />

Mas é a imagem do último quadrinho (um tronco cortado) que introduz<br />

o elemento novo, produzindo, de forma irônica, uma crítica ao<br />

desmatamento. Percebe-se, por conseguinte, a importância da linguagem<br />

não verbal para a compreensão do sentido do texto.<br />

A difusão da cultura digital, proporcionada pelo avanço tecnológico,<br />

gerou um contato mais constante do leitor com outros có-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

517<br />

digos não verbais, daí a necessidade de a escola não restringir sua área<br />

de atuação à linguagem verbal apenas. Simões (2009, p. 52) afirma,<br />

a esse respeito, que<br />

Estudos e pesquisas contemporâneos voltados para o ensino da língua<br />

portuguesa têm promovido uma integração dialógica entre áreas,<br />

com vista não só ao aprofundamento da análise do sistema linguístico e<br />

de sua potencialidade estrutural, mas também à combinação de dados extraídos<br />

de áreas afins que participam dos processos discursivocomunicativos.<br />

Estes, por sua vez, emoldurados pelos recursos digitais,<br />

vêm abrindo novas discussões em relação ao texto e à leitura. Essas discussões<br />

destacam a relevância da preparação dos sujeitos para interagir<br />

com múltiplos códigos, uma vez que a hegemonia do verbal de há muito<br />

foi quebrada pela intervenção da imagem.<br />

Legenda: Global warming. If we don’t act now, the future looks blue.<br />

Aquecimento global. Se não agirmos agora, o futuro será triste (azul).<br />

Agência: Bhadra Communications (Índia). Disponível em:<br />

.<br />

Acesso em 17/06/2010.<br />

Esse tipo de exercício pode auxiliar na leitura de outros gêneros<br />

que reúnam as duas linguagens (verbal e não verbal) ou que se


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

518<br />

utilizem apenas da linguagem não verbal. O que podemos perceber é<br />

que as estratégias empregadas na leitura de textos de humor podem<br />

ser utilizadas também na leitura de textos de outra natureza, como o<br />

anúncio publicitário apresentado a seguir. Nele, as informações apresentadas<br />

pelo texto e pela ilustração se complementam e, somente<br />

pela integração de ambas, é possível estabelecer o sentido do texto.<br />

O leitor precisa perceber que o jogo de palavras (possível em inglês,<br />

pois blue tanto pode significar azul como triste) é complementado<br />

pela imagem do planeta Terra coberto pelos oceanos (os continentes<br />

estariam submersos pelo grande volume de águas provocado pelo<br />

aquecimento global).<br />

A leitura de textos humorísticos também permite que se explorem<br />

o duplo sentido, a ambiguidade provocada pela homonímia,<br />

pela polissemia e pela paronímia. Segundo Travaglia (1989: 60), a<br />

ambiguidade é um recurso básico no humor devido à bissociação,<br />

que “consiste em, por recursos diversos, ativar dois mundos textuais”<br />

(TRAVAGLIA, 1995, p. 43).<br />

Vejamos alguns exemplos de textos de humor, pertencentes a<br />

diferentes gêneros, que exploram esse recurso:<br />

CONCERTO OU CONSERTO?<br />

O português foi convidado pelo amigo brasileiro para assistir a um<br />

concerto de piano. No intervalo do espetáculo o amigo pergunta ao português:<br />

– E aí? Está gostando do concerto de piano?<br />

– O gajo toca tão bem que eu nem havia percebido que o piano estava<br />

quebrado! (AVIZ, 2003, p. 153)<br />

O menino que chupou a bala errada<br />

Diz que era um menininho que adorava bala e isto não lhe dava<br />

qualquer condição de originalidade, é ou não é? Tudo que é menininho<br />

gosta de bala. Mas o garoto desta história era tarado por bala. Ele tinha<br />

assim uma espécie de ideia fixa, uma coisa assim... assim, como direi?<br />

Ah... creio que arranjei um bom exemplo comparativo: o garoto tinha por<br />

bala a mesma loucura que o senhor Lacerda tem pelo poder.<br />

Vai daí um dia o pai do menininho estava limpando o revólver e, para<br />

que a arma não lhe fizesse uma falseta, descarregou-a, colocando as


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

519<br />

balas em cima da mesa. O menininho veio lá do quintal, viu aquilo ali e<br />

perguntou pro pai o que era.<br />

– É bala – respondeu o pai, distraído.<br />

Imediatamente o menininho pegou diversas, botou na boca e engoliu,<br />

para desespero do pai, que não medira as consequências de uma informação<br />

que seria razoável a um filho comum, mas não a um filho que<br />

não podia ouvir falar em bala que ficava tarado para chupá-las.<br />

Chamou a mãe (do menino), explicou o que ocorrera e a pobre senhora<br />

saiu desvairada para o telefone, para comunicar a desgraça ao médico.<br />

Esse tranquilizou a senhora e disse que iria até lá, em seguida.<br />

Era um velho clínico, desses gordos e bonachões, acostumados aos<br />

pequenos dramas domésticos. Deu um laxante para o menininho e esclareceu<br />

que nada de mais iria ocorrer. Mas a mãe estava ainda aflita e insistiu:<br />

– Mas não há perigo de vida, doutor?<br />

– Não – garantiu o médico: – Para o menino não há o menor perigo<br />

de vida. Para os outros talvez.<br />

– Para os outros? – estranhou a senhora.<br />

– Bem... – ponderou o doutor: – O que eu quero dizer é que, pelo<br />

menos durante o período de recuperação, talvez fosse prudente não apontar<br />

o menino para ninguém. (PRETA, 2003, p. 89-90)<br />

O primeiro texto, uma piada, explora a homonímia conserto/concerto,<br />

reforçando o estereótipo de que portugueses são pouco<br />

inteligentes. É a interpretação equivocada do personagem lusitano<br />

que é responsável pela graça da piada.<br />

No segundo texto, uma crônica de Stanislaw Ponte Preta, é<br />

explorada a polissemia do vocábulo bala. Quando o filho e o pai<br />

conversam, cada um aciona um significado diferente da palavra bala,<br />

e é esse desencontro entre as expectativas de cada um que gera o equívoco<br />

entre os dois.<br />

Apresentamos também o anúncio de um veículo que se valia<br />

da polissemia do termo perua para provocar o cômico. O termo em<br />

questão tanto pode se referir a uma mulher que se veste de forma espalhafatosa,<br />

mas que acredita ser elegante, como pode ser uma designação<br />

regional (mais especificamente de São Paulo) para caminhonete<br />

ou van. Há também o trocadilho com o substantivo próprio


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

520<br />

Besta, nome do veículo, e besta, indivíduo ignorante ou pouco inteligente.<br />

Um homem vinha dirigindo<br />

uma Besta por uma estrada quando<br />

foi parado por um guarda.<br />

O guarda se aproximou e pediu:<br />

“Por favor, o documento da Besta.”<br />

O motorista levou a mão ao bolso<br />

e tirou sua carteira de identidade.<br />

“Não”, disse o guarda,<br />

“eu quero os papéis da perua”.<br />

Aí, o homem virou para a mulher e<br />

falou: “Ah, é o seu documento<br />

que ele está pedindo, querida”.<br />

Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah...<br />

Kia.<br />

Besta. Só um veículo tão inteligente consegue rir de si mesmo.<br />

(Veja, 31/08/1994)<br />

Há muitos exemplos de anúncios publicitários que empregam<br />

o humor como estratégia para atrair a atenção do público, além de<br />

cativá-lo. No exemplo a seguir, encontramos dois vocábulos (pêssego<br />

e amora) que estabelecem uma relação paronímica com duas palavras<br />

em ausência (preço e agora), remetendo a famosos slogans de<br />

anúncios de cartão de crédito. O emprego dos parônimos acaba produzindo<br />

um enunciado ambíguo. Ao trabalhar esse texto, o professor<br />

também pode fazer referência à função distintiva que os fonemas apresentam,<br />

o que ocorre com o par de palavras amora/agora.


Disponível em:<br />

www.mppublicidade.com.br/image.php?url=trabalhos/original/517.jpg&type=img<br />

Acesso em 18/06/2010.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

521<br />

Os mesmos fenômenos podem ser encontrados em poemas,<br />

letras de música, por exemplo, o que corrobora a ideia de que a leitura<br />

de textos de humor desenvolve habilidades de leitura requeridas


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

522<br />

por outros textos. Para interpretar a letra de música Metáfora, de<br />

Gilberto Gil, é necessário que o leitor perceba o jogo de palavras feito<br />

com os vocábulos meta e lata. O texto explora a relação homonímica<br />

entre meta (objetivo que se almeja; substantivo) e meta (atribuir<br />

a si condição ou competência que não possui; imperativo do verbo<br />

meter). Em relação à palavra lata, o eu lírico reconhece que ela pode<br />

vir a adquirir outros sentidos num poema, podendo tornar-se polissêmica<br />

(“Mas quando o poeta diz: "Lata"/Pode estar querendo dizer<br />

o incontível”)<br />

Metáfora<br />

Uma lata existe para conter algo<br />

Mas quando o poeta diz: "Lata"<br />

Pode estar querendo dizer o incontível<br />

Uma meta existe para ser um alvo<br />

Mas quando o poeta diz: "Meta"<br />

Pode estar querendo dizer o inatingível<br />

Por isso, não se meta a exigir do poeta<br />

Que determine o conteúdo em sua lata<br />

Na lata do poeta tudonada cabe<br />

Pois ao poeta cabe fazer<br />

Com que na lata venha caber<br />

O incabível<br />

Deixe a meta do poeta, não discuta<br />

Deixe a sua meta fora da disputa<br />

Meta dentro e fora, lata absoluta<br />

Deixe-a simplesmente metáfora<br />

Gilberto Gil<br />

É possível perceber que, ao analisarmos os textos anteriores,<br />

nossa atenção se voltou para determinados itens lexicais que, à maneira<br />

de pistas, foram conduzindo o leitor no seu processo de construção<br />

do sentido do texto. Essas pistas funcionam com ícones ou índices<br />

(cf. SIMÕES, 2009, p. 86-88), que vão sendo identificados pelo<br />

leitor, oferecendo-lhe um (ou mais de um) caminho na interpretação<br />

de um texto. No caso do texto de humor, que muitas vezes se<br />

calca no duplo sentido, na ambiguidade, os ícones e índices se caracterizam<br />

por, propositalmente, serem desorientadores (cf. SIMÕES,<br />

2009, p. 96-98), oferecendo mais de uma possibilidade de interpretação.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

523<br />

Outro fenômeno muito explorado pelos textos de humor e que<br />

pode ser trabalhado com os alunos é a dêixis. Os dêiticos são elementos<br />

que adquirem sua significação de acordo com o contexto,<br />

dando, muitas vezes, margem a equívocos decorrentes da dupla interpretação,<br />

como o que ocorre na tirinha apresentada a seguir.<br />

O Globo, 12/07/2006<br />

O vocábulo aqui não indica o mesmo referente para Eddie<br />

Sortudo e para Hagar, pois cada um o emprega pensando num lugar<br />

diferente. Para Hagar, sua pergunta é uma espécie de indagação filosófica<br />

e estar aqui pode se referir tanto a ainda estar vivo daqui a duas<br />

semanas ou a permanecer naquela cidade, sem estar viajando (os<br />

vikings são conhecidos por viajarem pelos mares em busca de riquezas).<br />

Eddie Sortudo, personagem considerado tolo, pouco inteligente,<br />

interpreta aqui como sendo o bar. Rimos da sua falta de compreensão<br />

acerca do que o amigo disse, pois não percebe que seria impossível<br />

permanecerem no bar por tanto tempo; seu amigo só poderia estar<br />

se referindo à sua permanência no plano terrestre (estar vivo) ou<br />

naquela cidade (não estar viajando).<br />

A presença de implícitos, subentendidos também é recorrente<br />

em textos humorísticos. Essas lacunas precisam ser “preenchidas”<br />

para que o texto faça sentido e, para isso, o leitor precisa acionar vários<br />

tipos de conhecimento, entre eles o de mundo e o linguístico. O<br />

mesmo tipo de habilidade (saber empregar variados tipos de conhecimento)<br />

também é requerido na leitura de outros gêneros que não<br />

sejam humorísticos.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

524<br />

Na tira a seguir, o leitor necessita acionar seu conhecimento<br />

de mundo (saber o que é um deserto, como são o clima e a temperatura<br />

nesse ambiente) e seu conhecimento sobre o personagem da história<br />

em quadrinhos em questão (no caso, Cascão, da Turma da Mônica,<br />

que tem ojeriza à água) para compreender o texto. Note-se que<br />

há apenas um balão de fala (“Ufa! Estou indo na direção certa!”) e<br />

para compreender a tirinha é necessário, além de observar as ilustrações,<br />

levar em consideração informações que não estão explicitadas<br />

no texto (o fato de o personagem ter aversão à água). Dessa forma, é<br />

possível interpretar o texto: Cascão não gosta de tomar banho e foge<br />

de água (indo em direção contrária a ela), portanto o sobrevivente do<br />

deserto estaria indo na direção certa.<br />

O Globo, 13/07/2006<br />

Para compreender a próxima história em quadrinhos, do<br />

mesmo personagem, é necessário que o leitor acione os mesmos conhecimentos<br />

a fim de entender que somente alguém com aversão à<br />

água gostaria de escorregar em uma casca de banana e se sujar todo.<br />

Notamos a importância da ilustração (demonstrando como Xaveco, o<br />

amigo de Cascão, ficou sujo; como ocorreu a queda; como a fisionomia<br />

de Cascão é de satisfação ao vislumbrar a possibilidade de se<br />

sujar da mesma forma), da linguagem verbal, mas, assim como ocorre<br />

na tira anterior, é preciso suprir lacunas, ler os subentendidos, as<br />

informações implícitas no texto para compreendê-lo.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

525<br />

O Globo, 08/07/2006<br />

No tocante às atividades de produção textual, podemos mostrar<br />

aos alunos como os tipos textuais (MARCUSCHI, 2008, p. 154-<br />

155) ou modos de organização do texto (OLIVEIRA, 2007, p. 81)<br />

contribuem para a construção do texto humorístico. Nas piadas e nas<br />

histórias em quadrinhos, por exemplo, costuma predominar o tipo<br />

narrativo. No entanto, também é possível encontrarmos passagens<br />

desses textos em que se verifica a presença de outros tipos textuais,<br />

como o descritivo, por exemplo.<br />

Ex-surdo<br />

Após anos praticamente surdo, um homem compra um aparelho auditivo<br />

moderno, quase invisível, e volta ao consultório do médico, que<br />

lhe pergunta:<br />

– E então? Gostou da compra?<br />

– Sem dúvida. Ouvi uns sons nas últimas semanas que nem imaginava<br />

que existissem.<br />

– Muito bom. E sua família? Também gostou da novidade?<br />

– Ah! Ninguém em casa sabe que eu tenho o aparelho. E está sendo<br />

ótimo. Só este mês resolvi mudar meu testamento pelo menos três vezes!<br />

(AVIZ, 2003, p. 86-87)<br />

Na piada transcrita anteriormente, percebemos que predomina<br />

o tipo textual narrativo, mas notamos a presença de trechos de cunho


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

526<br />

descritivo, importantíssimos para a construção do humor da piada. O<br />

trecho “após anos praticamente surdo” serve para caracterizar o personagem<br />

principal da piada como alguém que tem sérios problemas<br />

de audição. Essa informação faz o leitor (ou o ouvinte) da piada acionar<br />

seu conhecimento de mundo sobre o assunto; seu conhecimento<br />

sobre o gênero textual piada lhe permite elaborar hipóteses<br />

sobre o que poderá acontecer na narrativa. O outro trecho descritivo<br />

“um aparelho auditivo moderno, quase invisível” é que será fundamental<br />

para o texto ser engraçado. Como o aparelho é quase imperceptível,<br />

os parentes do personagem nem notaram a melhora de sua<br />

audição. A graça reside no fato de que o homem passou a ouvir tudo<br />

o que seus parentes diziam, sem que estes soubessem.<br />

O professor pode solicitar a seus alunos que, após a leitura de<br />

textos humorísticos, procurem identificar os tipos textuais nele presentes,<br />

qual tipo costuma predominar em cada gênero, que recursos<br />

linguísticos são mais encontrados em cada tipo textual (por exemplo,<br />

verbos no pretérito, no tipo narrativo; adjetivos e locuções adjetivas,<br />

no descritivo; verbos no imperativo, no injuntivo). Seria interessante<br />

solicitar aos alunos que fizessem o mesmo com outros textos que não<br />

pertencessem ao universo humorístico, o que lhes permitiria comparar<br />

os empregos dos tipos textuais em textos de gêneros diferentes. A<br />

partir do reconhecimento dos tipos e de suas características, podemos<br />

pedir ao aluno que escreva o seu próprio texto (de humor ou não),<br />

empregando os tipos textuais mais adequados ao gênero escolhido e,<br />

consequentemente, a seu propósito comunicativo.<br />

3. Considerações finais<br />

A melhor maneira de se aprender uma língua é por meio do<br />

seu uso, quer falando ou ouvindo, quer lendo ou escrevendo. Então<br />

seria possível aprender português por meio da leitura de textos de<br />

humor? Acreditamos que sim, pois os textos de humor oferecem farto<br />

material sobre a língua portuguesa em uso. Por meio dos exemplos<br />

arrolados anteriormente, pudemos identificar os recursos linguísticos<br />

sendo empregados com a finalidade de provocar o riso. Ao trabalharmos<br />

o texto de humor em sala de aula, permitimos ao aluno que<br />

reconheça outra finalidade para seu idioma que não seja a comunica-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

527<br />

tiva. Além disso, demonstramos como a língua é uma enorme fonte<br />

de recursos expressivos, que podem ser empregados ora para fazer<br />

rir, ora para emocionar; ora para argumentar, ora para informar. Cabe<br />

ao professor ampliar o repertório de textos lidos por seus alunos,<br />

permitindo-lhes o acesso aos mais variados gêneros textuais, incluindo-se,<br />

nesse caso, os textos humorísticos.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AVIZ, Luiz (Org.). Piadas da internet para crianças espertas. Rio<br />

de Janeiro: Record, 2003.<br />

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros<br />

e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.<br />

OLIVEIRA, Helênio Fonseca de. Gêneros textuais e conceitos afins:<br />

teoria. In: VALENTE, André (Org.). Língua portuguesa e identidade:<br />

marcas culturais. Rio de Janeiro: Caetés, 2007.<br />

PRETA, Stanislaw Ponte. Gol de padre e outras crônicas. São Paulo:<br />

Ática, 2003.<br />

SIMÕES, Darcilia. Iconicidade verbal. Teoria e prática. Rio de Janeiro:<br />

Dialogarts, 2009.<br />

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. O que é engraçado? Categorias do risível<br />

e o humor brasileiro na televisão. In: Estudos linguísticos e literários,<br />

v. 5 e 6, 1989, p. 42-79.<br />

______. Homonímia, mundos textuais e humor. In: Organon, v. 9,<br />

1995, p. 41-50.


ARISTÓTELES E PEIRCE:<br />

OS SUBSTRATOS PARA A COMPREENSÃO LÓGICA<br />

DOS PROCESSOS SEMIÓTICOS<br />

Luiz Roberto Peel Furtado de Oliveira (UFT)<br />

luizpeel@yahoo.com.br<br />

A linguagem comporta uma tríplice categorização: a “absignificação”<br />

1 , a significação e a consignificação. Dizer algo é, então,<br />

“absignificar”, significar ou consignificar: ou designamos intuitivamente<br />

a própria linguagem verbal, “absignificando”; ou a sua generalização,<br />

a partir da predicação, significando; ou, a sua composicionalidade<br />

textual, por meio da coesão e da coerência, consignificando.<br />

Esses conceitos foram parcialmente apresentados por Aristóteles,<br />

principalmente em seu Organon, e posteriormente discutidos,<br />

com mais precisão, por Charles Sanders Peirce. Partindo, pois, do<br />

primeiro chegaremos sempre ao segundo, dissecando tanto as suas<br />

considerações preliminares quanto as consequências delas advindas.<br />

Quanto à primeira categoria, “absignificar” é apontar diretamente<br />

para a significância; sendo ótimos exemplos os nomes ou signos<br />

que indicam direta e simplesmente as suas próprias formas – o<br />

texto lírico, a pintura abstrata, o teatro do absurdo.<br />

Em relação à segunda categoria, significar é definir conotativamente,<br />

ou seja, apontar genericamente para a essência; sendo exemplos<br />

precisos e diretos as frases declarativas, em que, a partir de<br />

uma substância ou sujeito, enunciamos um predicado genérico. Logo,<br />

podemos dizer, que a enunciação declarativa – o logos apofhantikós<br />

aristotélico – comporta sempre um substrato e uma predicação<br />

(uma referência a um fenômeno real ou cultural e uma afirmação genérica<br />

a partir dele).<br />

1 A escolha de “absignificação” se justifica em função de ser um processo significativo fruto do<br />

acaso e da intuição, diferentemente dos processos da significação, calcados na indução, e da<br />

consignificação, fundamentada na dedução; outra justificativa é a relação que esse processo<br />

guarda com a abdução de Peirce.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

532<br />

ção gráfica indicada acima, quando dissertamos a respeito desse processo,<br />

pode ser desenvolvida até a enésima potência, pois, dependendo<br />

do intérprete, haverá multiplicidade hermenêutica, isto é, ampla<br />

possibilidade interpretativa. Um exemplo tirado de Manuel Bandeira<br />

nos ajudará a compreender o processo: o primeiro verso do<br />

Rondó dos Cavalinhos, “Os cavalinhos correndo e nós cavalões comendo”,<br />

suscitou uma disputa muita saudável num jornal carioca – o<br />

debate entre Manuel Bandeira e Aurélio Buarque de Holanda a respeito<br />

do significado das palavras desse verso, veremos que para cada<br />

um dos autores, o vocábulo “cavalinhos” tem um significado; para o<br />

primeiro, esses versos trouxeram à mente os cavalinhos do carrossel,<br />

cavalinhos de pau, presos como objetos e soltos como fantasia, em<br />

que os indivíduos realizam prodigiosas viagens, circulares e cheias<br />

de mimese; já para Bandeira, os cavalinhos eram de carne e osso, os<br />

do Jóquei Clube, pequenos somente quando contemplados à distância,<br />

distantes do olhar. E essas várias possibilidades significativas,<br />

cada uma por sua vez, levam todos os outros signos a alterarem igualmente<br />

o seu sentido.<br />

Por outro lado, no texto informativo, predomina o processo<br />

paronímico, que resulta em procedimentos mais simples, já que o<br />

sentido passa a ser fechado, determinado. O processo paronímico é<br />

percebido na relação entre as frases, ou melhor, na relação entre os<br />

signos de frases diferentes que se referem à mesma realidade objetiva.<br />

Já a sinonímia aparece sempre em qualquer texto argumentativo<br />

(o publicitário ou o jurídico, por exemplo), uma vez que, nesses<br />

discursos, as bases referenciais e predicativas serão sempre genéricas,<br />

para poderem persuadir ou convencer.<br />

Relacionando, agora, com as afirmações de Peirce, com suas<br />

matrizes de pensamento e linguagem, podemos afirmar que os processos<br />

que estamos abordando – “absignificação”, significação e<br />

consignificação, em relação aos enunciados verbais, ocorrem sempre<br />

na terceira matriz, a simbólica: a “absignificação” na sua expressão<br />

primeira (a primeiridade na terceiridade – o texto expressivo, lírico<br />

ou mimético); a significação na sua expressão segunda (a secundidade<br />

na terceiridade – o texto informativo); e a consignificação na sua


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

533<br />

expressão terceira (a terceiridade na terceiridade – o texto argumentativo).<br />

Dissequemos essas afirmações: no texto expressivo encontraremos<br />

as possibilidades significativas, ou seja, a explosão de significados,<br />

a existência de rhema (o que é dito, o vocábulo que predica –<br />

segundo Aristóteles e Frege) sem sujeito definido; por outro lado, no<br />

texto informativo, haverá a predominância do processo paronímico,<br />

já que o sentido é determinado; por último, na sinonímia, com a identidade<br />

de significantes e de interpretantes, depararemo-nos com<br />

generalizações, posto que somente as referências ou as realidades objetivas<br />

é que serão distintas.<br />

Consequentemente, a homonímia denota identidade nominal<br />

ou sígnica; a sinonímia, identidade nominal e nocional; e a paronímia,<br />

identidade referencial.<br />

Quanto ao rhema, como já foi dito acima, constitui-se a partir<br />

de uma referência, isto é, de um sujeito, sendo sua elaboração a partir<br />

da predicabilidade. E seu papel básico, no processo de elaboração<br />

do enunciado, é definido em função do contexto semântico e pragmático,<br />

como propriedade, generalização ou acidente – ou indica<br />

uma característica própria ou genérica ou acidental do substrato empregado<br />

como sujeito.<br />

Em relação a esse último, o sujeito, tem-se situação semelhante:<br />

ou é compreendido em relação ao contexto semântico e<br />

pragmático através de processos sinonímicos, ou paronímicos, ou<br />

homonímicos. Se os seres (ou realidades) nomeados apresentarem<br />

identidade nocional e nominal em relação ao contexto linguístico e<br />

pragmático, falar-se-á em processo elaborado com base na sinonímia;<br />

se somente apresentarem identidade nominal, o processo se baseará<br />

na homonímia; se identidade apenas do objeto, na paronímia;<br />

se, ao contrário, não houver identidade de nenhum tipo, ter-se-á um<br />

texto pouco coeso e pouco coerente.<br />

A predicação pode, então, ser definida como o modo de criação<br />

de sentidos a partir da realidade (natural ou cultural), ou seja,<br />

como a possibilidade concreta de modalização sistêmica, estabelecendo,<br />

por meio de processos de “absignificação”, de “significação”<br />

ou de “consignificação”, coesão e coerência semânticas para o texto.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

534<br />

ARISTOTE. Organon – catégories et de l’interprétation. Paris: Librairie<br />

Philosophique J. Vrin, 1989.<br />

ARISTÓTELES. Organon. Lisboa: Guimarães, 1985.<br />

ARISTOTELIS. Categoriae et liber de interpretatione. Oxford: Oxford<br />

University Press, 1986.<br />

PEIRCE, C.S. Escritos coligidos. São Paulo: Nova Cultural, 1989.<br />

______. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1972.<br />

______. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1995.


ARNALDO ANTUNES, INFERENCIAÇÃO E SENTIMENTO:<br />

FUNDAMENTOS SEMIOLINGUÍSTICOS<br />

PARA AULA DE LEITURA<br />

1. A aula de leitura ou a leitura da aula<br />

Beatriz dos Santos Feres (UFF/CIAD-Rio)<br />

beatrizferes@yahoo.com.br<br />

Há mais de dez anos os Parâmetros Curriculares Nacionais<br />

preconizam o trabalho centrado no texto, numa tentativa de estabelecer,<br />

por parte da escola e, sobretudo, do professor, uma nova postura<br />

para o ensino de língua. Segundos os PCNs, o estudo da língua portuguesa<br />

deve se pautar na análise e reflexão sobre seu uso efetivo na<br />

sociedade, atrelando, por meio de textos, as variedades linguíticas<br />

existentes a seus contextos específicos de manifestação.<br />

Longe da teoria e perto da prática, no entanto, verifica-se uma<br />

lenta modificação da metodologia adotada e a permanência do “vício”<br />

da irrefletida metalinguagem decorada e da incipiência do trabalho<br />

com a produção textual e com a leitura – e, consequentemente, o<br />

desamor pelas letras e pela aprendizagem. Mesmo com o interesse<br />

crescente das pesquisas aplicadas ao ensino, a realidade das escolas<br />

tem sido apenas pontuada por iniciativas isoladas de uma minoria<br />

docente mais “crédula”, que tem demonstrado dificuldade para disseminar<br />

sua prática renovadora. Por isso a necessidade de trabalhos<br />

como este, cujo objetivo precípuo é divulgar modos de fazer fundamentados<br />

teoricamente, não só a fim de esclarecer postulações e práticas<br />

pedagógicas diferenciadas, mas também estimular a formação<br />

de professores capacitados para uma escola consciente de seu papel<br />

na formação de cidadãos autônomos e críticos.<br />

A orientação recebida pelos professores de língua portuguesa<br />

nas escolas, em geral, reside na responsabilidade pela aquisição do<br />

“padrão culto da língua” e pelo desenvolvimento das habilidades de<br />

leitura e de escrita. Em relação aos modos de fazer que envolvem essa<br />

prática, muitas questões podem ser levantadas: as atividades de<br />

leitura e produção permanecem dissociadas das de investigação gramatical?<br />

O estudo de gramática continua privilegiando a abordagem


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

536<br />

de conceitos abstratos, abstraídos do uso efetivo da língua? Aprender<br />

o “padrão culto” ainda é sinônimo de “aprender português”? O estudo<br />

abstrato da gramática e a “cultura do certo e do errado” têm oferecido<br />

ao alunado um conhecimento sólido sobre adequação linguística<br />

às circunstâncias de enunciação? Tem-se formado usuários autônomos,<br />

proficientes na oralidade, na leitura e na escrita? A exígua<br />

capacidade leitora dos recém-egressos do ensino médio e sua dificuldade<br />

com a produção de textos atestados por exames como os do<br />

ENEM e dos vestibulares provam, entre outros fatos, a ineficácia do<br />

método.<br />

Por esses motivos (e alguns outros, omitidos em virtude dos<br />

limites impostos pelo propósito deste trabalho), pretende-se aqui focalizar<br />

estratégias para o desenvolvimento da capacidade leitora e,<br />

mais especificamente, os processos de inferenciação e de sentimento<br />

(como ato de sentir) de latências na construção do(s) sentido(s) do<br />

texto. Para isso, serão explorados os conceitos de patemização<br />

(CHARAUDEAU, 2010), iconicidade (PEIRCE, 2003; SANTAEL-<br />

LA, 2000; PIGNATARI, 2004) e de competência fruitiva (FERES,<br />

2010). Como corpus para análise, serão usados textos poéticos de<br />

Arnaldo Antunes, contidos no livro Palavra desordem (2002). A partir<br />

dessa abordagem, espera-se mostrar como o trabalho com o texto<br />

na aula de LP pode levar o aluno a cogitar, fazer relações, posicionar-se,<br />

sentir e tornar-se um usuário competente e autônomo da língua<br />

portuguesa.<br />

2. Fundamentos semiolinguísticos, inferenciação e sentimento<br />

A teoria semiolinguística de análise do discurso (CHARAU-<br />

DEAU, 2008) propõe, para a análise do fato linguageiro, uma perspectiva<br />

psicossociocomunicativa. Assim, aspectos formais, facilmente<br />

localizáveis na superfície do texto, são analisados em sua relação<br />

com aspectos da ordem do discurso e da situação que envolve a troca<br />

comunicativa. O texto passa a ser visto como o lugar de confluência<br />

de propósitos, saberes compartilhados e formas em função de um<br />

projeto interativo que é “colocado em cena” por sujeitos ajustados às<br />

circunstâncias enunciativas. Saber construir o sentido do texto, seja<br />

na extremidade da produção, seja na da recepção, pressupõe, portanto,<br />

o acionamento de saberes que excedem o reconhecimento do sig-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

537<br />

no linguístico e de sua estruturação. São saberes que possibilitam a<br />

criação de expectativas (confirmadas na finalização do processo) em<br />

relação ao texto e ao sujeito interagente com quem se divide a construção<br />

do sentido.<br />

Considerando-se a inferenciação o processo de extração de<br />

conteúdos implícitos ao texto, exige-se do sujeito-interpretante uma<br />

habilidade para relacionar o material linguageiro, ou a superfície do<br />

texto, às suas condições de uso e aos conhecimentos partilhados pelos<br />

interagentes. Nessa relação, emergem sentidos além da “simbolização<br />

referencial” (CHARAUDEAU, 2008), concomitantes aos explícitos,<br />

mas apenas sugeridos pelo contrato de comunicação. A interpretação,<br />

portanto, necessita de uma competência leitora que ultrapasse<br />

a “evidência textual” na direção de sentidos indiretos, subjacentes,<br />

ou ainda, “excedentes”. Essa perspectiva é corroborada por<br />

teorias que tomam a compreensão como inferência – e não mais como<br />

decodificação:<br />

...toda compreensão será sempre atingida mediante processos em que atuam<br />

planos de atividades desenvolvidos em vários níveis e em especial<br />

com a participação decisiva do leitor ou ouvinte numa ação colaborativa.<br />

(MARCUSCHI, 2008, p. 238)<br />

Segundo Kleiman (2009), a leitura é considerada um processo<br />

interativo justamente porque níveis de conhecimento prévio, como o<br />

linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, se interpenetram a<br />

fim de que sejam inferidos os sentidos. Além disso, o tipo de inferência<br />

“que se dá como decorrência do conhecimento de mundo e<br />

que é motivado pelos itens lexicais dos textos é um processo inconsciente<br />

do leitor proficiente” (KLAIMEN, 2009, p. 25) e, embora inconsciente,<br />

constitui aquilo que é efetivamente lembrado após a leitura<br />

(e não, como se poderia crer, o que o texto explicitava).<br />

Há, porém, outro tipo de inferência, relacionada à patemização,<br />

isto é, ao desencadeamento de emoções e, pode-se acrescentar, à<br />

percepção de qualidades: trata-se de uma inferência relacionada ao<br />

sentimento (como ato de sentir), dependente do reconhecimento de<br />

representações impregnadas de valores socialmente disseminados<br />

(Charaudeau, 2010), ou ainda, dependente da habilidade para, a partir<br />

de “pistas textuais”, relacionar elementos semelhantes entre si a<br />

fim de permitir a emergência de qualidades, num processo baseado<br />

na iconicidade.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

538<br />

Segundo Charaudeau (2010, p. 34), a análise do discurso “pode<br />

tentar estudar o processo discursivo pelo qual uma emoção pode<br />

ser estabelecida, ou seja, tratá-la como um efeito visado (suposto)”;<br />

“como um possível surgimento de seu ‘sentido’ em um sujeito específico,<br />

em situação particular”. Em outras palavras, a patemização é<br />

um processo observável a partir de representações que trazem em si<br />

valores coletivamente partilhados e que engajam o sujeito em um<br />

comportamento reacional previsível, de acordo com as normais sociais.<br />

Palavras como “cólera”, “horror”, “angústia”, “indignação” etc. designam<br />

estados emocionais, mas não provocam, necessariamente, emoção.<br />

Pode acontecer que seu emprego tenha um efeito contra-produtivo:<br />

explicitar um estado emocional poderia ser interpretado como um faz-deconta,<br />

porque, como se diz em determinadas culturas, “a verdadeira emoção<br />

não é dita, é sentida. Outras palavras como “vítima”, “assassinato”,<br />

“crime”, “massacre”, imagens de sangue, de destruição, de inundação,<br />

de desmoronamentos que são em parte ligadas aos dramas do mundo,<br />

exclamações (Ah! Oh! Nossa!) são suscetíveis de expressar ou engendrar<br />

medos, sofrimentos, horrores, mas são somente “suscetíveis”. O<br />

que se pode dizer é que estas palavras e estas imagens são, cada vez<br />

mais, “bons candidatos” para o desencadeamento de emoções. Mas tudo<br />

depende do ambiente em que essas palavras estão, do contexto, da situação<br />

na qual se inscrevem, de quem as emprega e de quem as recebe.”<br />

(CHARAUDEAU, 2007, p. 242-243)<br />

De acordo com esse ponto de vista, a emoção é desencadeada<br />

pela presença de signos patêmicos, responsáveis por despertar, no interlocutor,<br />

estados emocionais “colaterais”, que excedem o sentido<br />

intelectivo, em função das relações estabelecidas com o contexto situacional<br />

em que esses signos se inserem.<br />

Há outro tipo de processo que provoca inferências vinculadas<br />

às emoções e à percepção de qualidades: a iconicidade. Baseando-se<br />

em conceitos advindos da Semiótica peirciana 1 (Peirce, 2003; Santaella,<br />

2000; Pignatari, 2004), a iconicidade é tomada como um pro-<br />

1 Uma das tríades propostas por Peirce (2003) baseia-se na relação entre signo e objeto:<br />

quando a relação se estebelece a partir de convenções, tem-se o símbolo, considerado o signo<br />

genuíno; quando a relação se estabelece por contiguidade, pela ligação factual entre signo e<br />

objeto, por exemplo, numa relação de causa e efeito, ou de parte pelo todo, tem-se um índice;<br />

quando a relação se estabelece por similaridade, tem-se o ícone. A similaridade, nesse caso,<br />

não diz respeito somente a aspectos visuais, mas a qualquer aspecto perceptível, seja físico<br />

(sonoro, tátil, gustativo, olfativo), sensitivo, ou ainda, valorativo.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

539<br />

cesso cognitivo que se baseia em aproximações de elementos por similaridade.<br />

Aproximados os elementos, a qualidade que os une não<br />

só é evocada, mas exacerbada, passando à centralidade da significação<br />

e do sentimento (como ato de sentir).<br />

A semiose, segundo Peirce (2003), é um processo infinito,<br />

pois a relação signo-objeto-interpretante 2 pode contar com outro signo<br />

como objeto 3 , provocando, portanto, redes relacionais intermináveis<br />

4 entre os signos, que se “explicariam” uns aos outros. Quanto à<br />

especificidade da expressão de qualidades, o emprego de signos icônicos<br />

(que se “parecem” com o objeto que representam) e de relações<br />

icônicas entre signos e elementos exteriores a eles, presentes no<br />

contexto situacional, ou guardados na memória coletiva, favorecem a<br />

apresentação de emoções e sensações às vezes indizíveis.<br />

Na iconicidade intrassígnica, há motivação entre o signo e o<br />

objeto, ou, entre o significante e o significado. É o caso do signo imagético,<br />

que se parece com o objeto a que se refere (objeto psíquico,<br />

de existência limitada pela cognição, e não elemento concreto do<br />

mundo, como poderia ser confundido). As onomatopeias e as palavras<br />

com forte impacto sonoro correspondente ao sentimento que<br />

significam, como os “palavrões” cujas consoantes plosivas se assemelham<br />

ao rompante emocional expresso, também são exemplos de<br />

similaridade entre os constituintes sígnicos. Há igualmente uma relação<br />

icônica entre palavras e/ou expressões que se assemelham, isto é,<br />

2 “Nenhum signo pode funcionar como tal a não ser na medida em que é interpretado como outro<br />

Signo (por exemplo, num ‘pensamento’, o que quer que seja isso). Consequentemente, é<br />

absolutamente essencial ao Signo que ele deve afetar outro Signo (8225). (...) O interpretante<br />

não é outra coisa senão outra representação (1339). Todo propósito de um Signo é aquele de<br />

que ele deva ser interpretado em outro Signo (8191)”. (PEIRCE, apud SANTAELLA, 2000, p.<br />

64)<br />

3 Por exemplo, diz-se que o significado de “estímulo” pode ser “incentivo” (o objeto do signo<br />

“estímulo” é, portanto, outro signo, “incentivo”), ou ainda, que o significado de “gato”, em determinado<br />

contexto, pode ser “bonito”, “atraente”, num sentido “figurado”, em função da similaridade<br />

entre a beleza e a elegância do animal e as do homem a quem se atribui a denominação.<br />

4 “...a significação (e a comunicação), por meio de deslocamentos contínuos, que referem um<br />

signo a outros signos ou a outra cadeia de signos, circunscreve as unidades culturais de modo<br />

assintótico, sem jamais conseguir ‘tocá-las’ diretamente, mas tornando-as acessíveis através<br />

de outras unidades culturais.” (ECO, 2003, p. 60)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

540<br />

uma iconicidade intersígnica, seja em sua materialidade, como aquela<br />

ocorrida nas rimas, por exemplo, seja em seu conteúdo, como nos<br />

sinônimos mais ou menos próximos, ou também entre signos verbais<br />

e não verbais.<br />

A iconicidade também pode atuar ancorada no conhecimento<br />

prévio acionado pelas inferências, ou por elementos das circunstâncias<br />

enunciativas. Nesses casos, diferenciados daqueles citados anteriormente,<br />

a aproximação por semelhança não se localiza na superfície<br />

textual, ou se circunscreve às formas, mas une elementos presentes<br />

na “materialidade” textual e outros, evocados por ela, oriundos<br />

dos níveis discursivo e situacional que compõem a construção do<br />

sentido, permitindo a inferenciação. Charaudeau (2001 e 2004) explica<br />

que há uma competência de linguagem, ligada à convergência<br />

das habilidades relativas a esses três níveis (superficial, discursivo e<br />

situacional) de que se valem os sujeitos interagentes para criar expectativas<br />

e/ou estados favoráveis de aceitabilidade a fim de que se<br />

possa finalizar o sentido veiculado por determinado texto e, consequentemente,<br />

atingir o propósito da troca estabelecida.<br />

Se é preciso utilizar uma competência de linguagem que abarca<br />

conhecimentos linguageiros, discursivos e situacionais a fim<br />

de se estabelecer o sentido intelectivo, para a apreensão das qualidades<br />

relativas a estados emocionais tematizados, também será exigida<br />

uma competência fruitiva, que diz respeito à construção de um sentido,<br />

sobretudo, afetivo, aberto ao ato de sentir. É uma competência<br />

ligada à habilidade para relacionar elementos por meio da similaridade<br />

e suscitar a partir disso uma qualidade – sensação, emoção,<br />

sentimento – às vezes indizível, não “representável”, mas com certeza<br />

sentida, “apresentável” por meio da enunciação; uma competência<br />

estésica, no sentido de Valery (apud Costa Lima, 1983), relacionada<br />

às sensações, excitações e reações sensíveis.


3. Um pouco de Arnaldo Antunes<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

541<br />

Antunes, 2002<br />

Em Palavra Desordem (2002), Arnaldo Antunes investe na<br />

reconstrução de lexias simples e complexas (palavras, expressões,<br />

clichês, ou ditos populares), cuja diagramação original – cada qual<br />

em uma página inteira, utilizando as mais diversas direções – acrescenta-lhes<br />

efeitos de sentido e/ou estéticos. Na reconstrução, o estranhamento<br />

provoca a alusão ao sentido correspondente à nova forma<br />

– iconicamente. Aqui, respeitando-se a subjetividade das interpretações<br />

de base poética, serão analisados quatro casos de neologia apresentados<br />

nesse livro, grafados verticalmente, “EXCESSÍSSSISSS-<br />

SISSSSSIMO”, “CINE-PENSAMENTO”, “CABEÇA-DESPENSA”<br />

e “REJUVELHECER”, e dois casos de “reorganização morfológica”<br />

(“GEN ET” e “SENTI MENTAL MENTE”), cujas partes em que se<br />

dividem se colocam sobrepostas em diferentes níveis, organizados<br />

horizontalmente.<br />

“EXCESSÍSSSISSSSISSSSSIMO”: a própria palavra apresenta<br />

o excesso que expressa. Considerado o grau um processo derivativo<br />

(e não flexional), a aplicação do sufixo superlativo -íssimo<br />

(que por si só expressa intensidade, ou abundância) à base substantiva<br />

EXCESSO, cujo significado é redundado pelo sufixo num quase<br />

espelhamento significativo, provoca-se a exacerbação da Qualidade<br />

de SER EXCESSIVO. Além disso, a repetição das sílabas e das vogais,<br />

sugerindo alongamentos (que também significam intensidade,<br />

ou abundância, ou seja, excessos), também provoca, iconicamente,<br />

pelo excesso de elementos, não só a ideia que se quer comunicar,<br />

mas, sobretudo, a sensação daquela Qualidade. A interpretação no<br />

nível superficial/formal, a fim de se estabelecer o sentido intelectivo,<br />

é permeada pelo sentimento (ato de sentir) daquele EXCESSO.<br />

Em “CINE-PENSAMENTO” e em “CABEÇA-DESPENSA”,<br />

a união de substantivos com objetivo de Qualificação de um sobre o<br />

outro, além da referenciação, também trabalha com o princípio da


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

542<br />

iconicidade no nível superficial, agora dependendo do acionamento<br />

de traços significativos comuns, que tornam semelhantes os elementos<br />

aproximados.<br />

No primeiro caso, o que permite a aproximação dos elementos<br />

CINE e PENSAMENTO (aparentemente nada relacionáveis) é,<br />

digamos, a Qualidade do SER IMAGÉTICO: o cinema e o pensamento<br />

se parecem por se constituírem de imagens relacionadas, sequenciais,<br />

moldáveis, criadas etc. O cinema se assemelha ao pensamento;<br />

o pensamento se assemelha ao cinema – ainda que parcialmente.<br />

Se o elemento qualificador é “pensamento”, caracteriza-se<br />

“cine” como aquele capaz de se parecer com o pensamento, seja em<br />

sua capacidade criativa, ou representacional, seja na influência sobre<br />

a formação de conceitos e opiniões. Se “cine”, anteposto a “pensamento”,<br />

qualifica-o subjetivamente, então o pensamento é caracterizado<br />

como “cinematográfico”, capaz de construir cenas comparáveis<br />

às de cinema. Dessa composição, salta a Qualidade que os assemelha<br />

e que se quer destacar: a de SER IMAGÉTICO.<br />

Igualmente em “CABEÇA-DESPENSA”, a iconicidade aproxima<br />

os elementos formadores por meio de uma similaridade evocada:<br />

“despensa”, local apropriado para guardar, armazenar, ou para se<br />

“despender” pensamentos, qualifica “cabeça”. Na junção dos lexemas,<br />

atualiza-se o sentido-Qualidade de SER LOCAL DE ARMA-<br />

ZENAMENTO, transferindo para “cabeça” a Qualidade essencial de<br />

“despensa”, de local onde se acumulam itens, ideias, memórias,<br />

quinquilharias.<br />

Já em “REJUVELHECER”, percebe-se a sobreposição de palavras<br />

(REJUVENECER/REJUVELHECER), possibilitada pela semelhança<br />

sonora, e a formação da base/palavra-valise “juvelho”, de<br />

que derivaria “rejuvelhecer”. Com isso, une-se, iconicamente, a condição<br />

de “ser jovem” à de “ser velho” e, ao aproximar esses elementos,<br />

assemelha-os, e/ou mistura-os. A modificação operada no nível<br />

superficial, ligada a mecanismos linguísticos, faz aflorar uma questão<br />

própria do nível discursivo, bastante debatida na atualidade: a ideia<br />

da “eterna juventude”, mesclada às campanhas de valorização<br />

da “melhor idade”, influenciadas pela evolução da qualidade de vida<br />

na terceira idade. Ou ainda, o simples questionamento existencial<br />

daquele que envelhece, sentindo-se ainda jovem. De qualquer forma,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

543<br />

emerge uma discussão partilhada socialmente, oriunda das relações<br />

estabelecidas com o contexto social, por meio da neologia, da analogia<br />

e daquilo que os elementos formadores fornecem como representações.<br />

Os outros casos dependem mais especificamente da liberdade<br />

de diagramação oferecida aos textos para a construção dos sentidos.<br />

“GEN ET”, cujas partes são dispostas horizontalmente, uma acima<br />

da outra, obriga uma leitura dupla: na apreensão visual imediata,<br />

“gente”; mas, numa apreensão “em sentido horário”, gente/ET, uma<br />

possível referência a “extraterrestre”, comumente abreviada como<br />

“ET”. Como se houvesse, sobre a palavra “gente”, uma reorganização<br />

de seus constituintes, desdobrada em “gente” + “ET”. A concomitância<br />

de “gente” e de “ET” provoca, além das referências isoladas<br />

a seus significados, a necessidade de se estabelecer o sentido<br />

dessa mesclagem: há um “tipo de gente” que pode ser considerada<br />

“ET”, um estranho às características atribuídas a quem se possa designar<br />

“gente”, termo por meio do qual se atribui um valor especialmente<br />

positivo para “ser humano”. Aqui, um investimento maior nos<br />

“saberes de crença” a que se ligam os elementos e, consequentemente,<br />

na paternização oriunda dessa “impressão” nos signos. Na aproximação<br />

dos elementos, similares em sua condição de “ser” (“ser<br />

humano” e “ser extraterrestre”), ocorre a transposição da Qualidade<br />

de SER ESTRANHO (característica de “ET”, “adjetivo”, predicativo)<br />

ao elemento “GENTE” (“substantivo”, referencial), que passa a<br />

identificá-los. Mais uma vez, a iconicidade, atuando, no caso, no<br />

plano do significado a partir de uma conformação/diagramação textual<br />

inusitada que induz à aproximação dos elementos (ou mesmo à<br />

sua mescla) e à sua condição comum de “ser”, provoca a exacerbação<br />

da Qualidade de SER ESTRANHO e a atribuição dessa Qualidade<br />

ao signo que, de certa maneira, a contém.<br />

Por último, tem-se “SENTI MENTAL MENTE”, cujos fragmentos<br />

se dispõem horizontalmente, um acima do outro. “Mental”<br />

aparece invertido, “de cabeça para baixo”, contrastando com os outros<br />

elementos e, nesse contraste, enfatiza-se seu conteúdo. “Sentimentalmente”<br />

é, em princípio, um modificador cujo valor atribuído<br />

coletivamente pode ser negativo em função de uma possível predominância<br />

da emoção sobre a razão em um mundo em que se precisa<br />

agir racionalmente. Na fragmentação, o elemento “mental” aparece


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

544<br />

como a parte central de “sentimentalmente”. Iconicamente, aquilo<br />

que pode ser considerado “mental”, racional, localiza-se centralmente<br />

do que acontece baseado na emoção, “sentimentalmente”, mas<br />

mostra seu contraste pela inversão.<br />

Pode-se interpretar a soma desses recursos expressivos como<br />

um convite para que “se sinta por meio da mente”, numa tentativa de<br />

se racionalizar, de se recobrir de signos aquilo que é sentido, submetido<br />

ao sentimento, ao ato de sentir. Na reação àquilo que se percebe<br />

(uma “fusão” entre “mente” e “sentimento”), emerge um registro, algo<br />

que represente o produto dessa percepção. Às vezes, essa representação<br />

corresponde a uma designação própria; às vezes, por sua<br />

natureza mais perceptiva do que objetiva, é preciso recorrer a mecanismos<br />

analógicos de representação (ou de apresentação, dado seu<br />

caráter icônico). Numa síntese do tema deste artigo, busca-se significar<br />

o sentimento.<br />

4. Por uma nova pedagogia para a aprendizagem de leitura<br />

Ainda hoje prevalece a crença de que a responsabilidade no<br />

desenvolvimento da autonomia leitora é exclusiva do professor de<br />

língua portuguesa. A insuficiência da capacidade interpretativa por<br />

grande parte de alunos egressos do ensino médio (e o que dizer dos<br />

de nível fundamental...) é patente; a queixa quanto ao péssimo rendimento<br />

nas demais matérias costuma encontrar justificativa na dificuldade<br />

na interpretação de enunciados de exercícios e provas e, sobretudo,<br />

no entendimento dos textos didáticos; enfim, o mau resultado<br />

no trato com o texto escrito é comumente atribuído a falhas das<br />

aulas de língua materna, além, é claro, do desinteresse do aluno, acostumado<br />

a realizar tarefas de repetição, de cópia, e não de reflexão.<br />

O desenvolvimento da capacidade leitora na escola depende<br />

de um investimento global, tanto no que diz respeito ao letramento,<br />

quanto no que se refere à leiturização. O letramento, processo leitor<br />

“completo”, envolve não só a simples decodificação do sistema escrito,<br />

como também a finalização interpretativa ancorada no contexto<br />

sociodiscursivo. Para isso, vários mecanismos linguísticos devem ser<br />

trabalhados em sua relação com a textualização (escrita e oral), no<br />

intuito de refletir sobre a língua em uso, além de possibilitar a vincu-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

545<br />

lação da materialidade textual ao conhecimento prévio dos leitores<br />

em formação, num movimento de extensão cognitiva. Já a leiturização,<br />

por seu caráter geral (não circunscrito ao texto verbal escrito)<br />

expande o processo leitor a toda atividade de linguagem, desde que<br />

consideradas as representações sociais que a constituem.<br />

A habilidade leitora não se restringe aos textos escritos, mas se aplica<br />

a qualquer objeto, real ou não, concreto ou não, verbal ou não. Seu<br />

desenvolvimento visa a estimular a capacidade de atribuir o mais variado<br />

conjunto possível de juízos acerca dos objetos de todos os tipos lidos e<br />

de perceber as representações atribuídas por outras pessoas aos objetos<br />

que o próprio indivíduo representa de modo diverso. (SENNA, 2000, p.<br />

9)<br />

Nesse sentido, o investimento global de que necessita o desenvolvimento<br />

da capacidade leitora não se limita às aulas de língua<br />

portuguesa, mas é de responsabilidade de todas as disciplinas, sobretudo<br />

no ensino fundamental e médio, fase em que ainda se deve ter o<br />

professor como mediador da aprendizagem. A leiturização está presente<br />

em toda atividade escolar, pois aprender é, de fato, uma construção<br />

de sentido, um trabalho conjunto em direção à significação<br />

compartilhada socialmente. Afinal, como defende Morin (2008),<br />

“um ensino educativo tem como missão transmitir não um mero saber,<br />

mas uma cultura que permita compreender nossa condição e nos<br />

ajude a viver”.<br />

O letramento tem sido um grande desafio para os educadores,<br />

seja pelo desinteresse demonstrado pelos alunos em relação ao texto<br />

escrito, seja pela dificuldade que apresentam em atividades que dependem<br />

de maior abstração.<br />

Um texto escrito é um objeto de leitura dos mais complexos. A despeito<br />

de ser ele mesmo um objeto concreto, não se lê através de operações<br />

concretas, pois o conteúdo objetivo de sua leitura não está em sua<br />

forma concreta, mas sim, nas representações expressas pelas palavras.<br />

Todo texto escrito é abstrato, mesmo que trate de coisas as mais concretas,<br />

uma vez que não são as coisas que estão sendo lidas, mas, as representações<br />

subordinadas aos juízos que outra pessoa construiu sobre as<br />

coisas. (SENNA, 2000, p. 9).<br />

Além disso, o letramento é visto como uma atividade multidisciplinar<br />

em virtude dos saberes de conhecimento e de crença que<br />

envolvem as representações de que essa atividade se constitui. Ao<br />

professor de língua portuguesa cabe a tarefa, também realizada na


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

546<br />

leiturização, de mediar o processamento da leitura em relação às inferências<br />

dependentes do entorno contextual acessado pelo texto –<br />

tarefa que engloba a capacidade para apreender sentimentos a partir<br />

das representações socialmente disseminadas, ou ainda a partir de<br />

mecanismos baseados na iconicidade. Mas também cabe a ele a responsabilidade<br />

quanto ao trato específico com a superfície textual escrita<br />

e suas idiossincrasias. Isso requer o estudo, exemplificado neste<br />

trabalho, da língua e seus mecanismos significativos, do ordenamento<br />

linear e sequenciado, próprio da escrita, da projeção de expectativas<br />

de construção de sentido direcionadas e restringidas pela língua<br />

em uso. É na convergência desses aspectos que se coloca a competência<br />

de linguagem, intrínseca a todo processo de construção de<br />

sentido, na leiturização, ou no letramento.<br />

O desenvolvimento da competência leitora, portanto, deve<br />

considerar a habilidade do professor/mediador para promover atividades<br />

relacionadas a cada um desses aspectos e, sobretudo, a textos<br />

exigentes de inferenciação e sentimento, por meio dos quais sejam<br />

acionadas estratégias leitoras que exercitem o cálculo de sentido baseado<br />

em observação, relação, reflexão, juízo de valores e ajuste à situação<br />

comunicativa.<br />

REVERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ANTUNES, Arnaldo. Palavra desordem. São Paulo: Iluminuras,<br />

2002.<br />

CHARAUDEAU, Patrick. A patemização na televisão como estratégia<br />

de autenticidade. In: MENDES, Emília; MACHADO, Ida Lucia<br />

(Orgs.). As emoções no discurso, v. II. Campinas: Mercado de Letras,<br />

2010.<br />

______. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo:<br />

Contexto, 2008.<br />

______. Pathos e discurso político. In: MACHADO, Ida Lucia;<br />

MENEZES, William; MENDES, Emília (Orgs.). As emoções no discurso,<br />

v. I. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />

______. De la competencia social de comunicación a las competencias<br />

discursivas. In: Revista interamericana de estudios del discurso


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

547<br />

– ALED, Venezuela: Editorial Latina, v. I, nº 1, p. 7-22, agosto de<br />

2001.<br />

______. MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do<br />

discurso. São Paulo: Contexto, 2004.<br />

COSTA LIMA, Luiz. Teoria da literatura em suas fontes. 2. ed. ver.<br />

e ampl. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.<br />

ECO, Umberto. Tratado geral de semiótica. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,<br />

2003.<br />

FERES, Beatriz dos Santos. Competência para ler com emoção. In:<br />

As emoções no discurso Vol. II. Campinas: Mercado de Letras, 2010.<br />

KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura.<br />

12. ed. Campinas: Autêntica, 2009.<br />

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros<br />

e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.<br />

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o<br />

pensamento. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.<br />

PEIRCE, Charles. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.<br />

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 8. ed. Cotia:<br />

Ateliê, 2004.<br />

SANTAELLA, Lúcia. A teoria geral dos signos: como as linguagens<br />

significam as coisas. São Paulo: Pioneira, 2000.<br />

SENNA, Luiz Antonio Gomes. Letramento ou leiturização? O sociointeracionismo<br />

na linguística e na psicopedagogia. In: Anais do 12º<br />

Congresso de Leitura do Brasil. Campinas: Associação de Leitura do<br />

Brasil, 2000, p. 3203-3225.


AS CANÇÕES DIZEM MAIS:<br />

DESVENDANDO AS METÁFORAS PRESENTES<br />

NAS MÚSICAS SERTANEJAS<br />

1. Introdução<br />

Josiane Silveira Coimbra(UFJF)<br />

josicoimbra86@hotmail.com<br />

Margareth Myriam da Rocha(UFJF)<br />

alextostes1@hotmail.com<br />

Nívia de Souza Costa(UFJF)<br />

niviacosta@hotmail.com<br />

Tays Angélica Rezende(UFJF)<br />

trezende85@hotmail.com<br />

A linguística cognitiva rompe com o paradigma científico<br />

centrado nas descrições das estruturas das línguas (com foco no significante)<br />

e começa os modernos estudos sobre a linguagem (com o<br />

foco no significado).<br />

Dentre os diversos estudos propostos pela linguística cognitiva,<br />

Geoge Lakoff e Mark Johnson (2002), base teórica do nosso estudo,<br />

no livro Metáforas da Vida Cotidiana, rompem com a ideia de<br />

que a metáfora é apenas um artifício literário e defendem que ela assume<br />

uma função fundamental no nosso sistema conceptual.<br />

Este trabalho tem como objetivo identificar e analisar as principais<br />

metáforas empregadas nas músicas sertanejas e, a partir dessas<br />

observações, estabelecer os conceitos metafóricos mais comuns nessa<br />

área musical.<br />

O corpus da presente pesquisa é constituído por 69 canções,<br />

de quatro duplas sertanejas famosas entre os brasileiros, e nele encontrou-se<br />

cerca de 20 metáforas, de acordo com o modelo proposto<br />

por Lakoff e Johnson (2002).<br />

Dentre as canções analisadas, foram encontradas metáforas<br />

orientacionais, ontológicas e estruturais.


2. Questões teórico-metodológicas<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

549<br />

A perspectiva metodológica da pesquisa está relacionada com<br />

o fundamento teórico proposto por Geoge Lakoff e Mark Johnson<br />

(2002), no livro Metáforas da Vida Cotidiana. Esse estudo propõe<br />

um rompimento com o conceito metafórico, geralmente presente em<br />

estudos tradicionais, no qual diz que a metáfora é apenas um artifício<br />

literário, usado apenas com o intuito de “embelezar” o texto. Esses<br />

dois autores propõem uma visão nova, na qual a metáfora está presente<br />

no cotidiano dos usuários de qualquer língua.<br />

O corpus do presente trabalho foi composto pela análise de 69<br />

canções, de quatro duplas brasileiras famosas: Chitãozinho e Xororó,<br />

Gino e Geno, Teodoro e Sampaio e por fim Zezé di Camargo e Luciano.<br />

Encontramos, nesse recolhimento de dados, em torno de 20 metáforas<br />

diferentes. Isso pode ser uma evidência da hipótese levantada<br />

pelos autores, nos quais inspiramos nossos fundamentos teóricos, de<br />

que a metáfora está presente em nossa “vida cotidiana”.<br />

Os dois pesquisadores colocam a existência de três tipos de<br />

metáforas: as orientacionais, as ontológicas e as estruturais, as quais<br />

serão explicitadas mais abaixo.<br />

3. A semântica sob a ótica do estruturalismo e o gerativismo<br />

Para a fundamentação do presente trabalho, foram visitados<br />

alguns conceitos norteadores da linguística cognitiva, os quais são de<br />

incontestável importância em relação ao estudo e análise das metáforas<br />

presentes em nossa vida cotidiana, sobretudo nas canções sertanejas,<br />

foco de nossa análise.<br />

No século XX, despontaram duas teorias formalistas nos estudos<br />

científicos da linguagem, o Estruturalismo e o Gerativismo, de<br />

acordo com as quais privilegiava-se o significante em detrimento do<br />

significado que ,por sua vez, era subfocalizado.<br />

A Semântica Estruturalista opera com a noção de valor opositivo,<br />

descrevendo o sistema linguístico pela Teoria dos Traços que,<br />

baseada na Hipótese Forte da Composicionalidade, postula que o<br />

produto é igual ao resultado da soma das partes que o integram. Já a<br />

Semântica Gerativista, cujo foco também é o significante, opera com


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

550<br />

modelos matemáticos, focalizando a competência linguística e , assim<br />

como os estruturalistas, primam pelo centro da gramática e analisam<br />

os modelos mais regulares.<br />

No entanto, essas duas correntes teóricas desprezam o significado<br />

e consequentemente os usuários da língua, a cultura, interação e<br />

experiência humanas. Por esta razão, os formalistas não conseguiram<br />

explicar, por exemplo, as expressões idiossincráticas da língua bem<br />

como as construções irregulares (para nós em especial as metáforas),<br />

pois tais fenômenos estão ancorados na cognição humana e, portanto,<br />

na cultura do falante. Se levarmos em consideração a Teoria dos<br />

Traços e o significado linguístico, explicaríamos uma construção<br />

como “A estrada por que passei estava parcialmente interditada”, segundo<br />

a qual o elemento “estrada” porta o seu significado linguístico,<br />

pois é um fenômeno regular da língua. Contudo, pela mesma teoria,<br />

não explicaríamos a construção “A estrada desta vida está difícil<br />

sem você”, segundo a qual o sentido do mesmo elemento “estrada”<br />

não tem previsibilidade nem transparência, já que sua construção é<br />

metafórica.<br />

Desta maneira, observa-se que a “Hipótese Forte da Composicionalidade”<br />

não se aplica ao conhecimento cultural, uma vez que<br />

este está relacionado à experiência, à cultura, à condição social, ao<br />

período histórico, etc. É fundamental observarmos também que embora<br />

as teorias formalistas mencionadas tenham contribuído expressivamente<br />

para o estudo do significante, não foram satisfatórias no<br />

estudo do significado, objeto da Semântica, que hoje une forma,<br />

cognição e cultura para desvendá-lo.<br />

4. A linguística cognitiva e os estudos da linguagem<br />

A linguística cognitiva redefiniu os estudos da linguagem a<br />

partir de três hipóteses sociocognitivas quais sejam a insuficiência do<br />

significante, o caráter partilhado da significação e a força da experiência<br />

física, corporal e social na constituição dos significados. De<br />

acordo com a primeira hipótese, podemos depreender que a forma<br />

linguística é apenas uma pista suscitadora do significado, uma vez<br />

que este é proveniente da ação conjunta. A segunda hipótese prevê a<br />

relação triádica na qual o símbolo é motivado a partir da ação inte-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

551<br />

grada entre o “eu”, o “outro” e o “mundo”, ou seja, ele não é nem arbitrário<br />

nem previsível. A terceira hipótese está ancorada na força da<br />

experiência para a construção do significado, considerando o corpo<br />

como cerne do pensamento e da linguagem. Com isso, incorporamse<br />

as situações particulares de uso da linguagem às estruturas linguísticas<br />

para a interpretação do significado, sobretudo das idiossincrasias,<br />

até então consideradas exceção. Dessa forma, podemos perceber<br />

que o ser humano é biológico e cultural ao mesmo tempo, sendo a<br />

experiência biológica imprescindível para juntamente com a experiência<br />

cultural desvendarem os significados.<br />

5. Metáfora conceptual/tipologia<br />

De acordo com abordagens tradicionais, a metáfora está relacionada<br />

ao emprego literário e/ou retórico, sem valor cognitivo. Sendo<br />

assim, ela seria um fenômeno verbal, desassociado dos usos cotidianos<br />

da linguagem, ou seja, seu uso tradicional estaria ligado apenas<br />

à ornamentação de textos literários. Contudo, a metáfora é um<br />

mecanismo fundamentalmente conceptual e cognitivo através do<br />

qual raciocinamos e compreendemos conceitos abstratos de nosso<br />

dia a dia em termos de outros mais concretos; Lakoff (2002) diz “A<br />

essência da metáfora é compreender e experienciar uma coisa em<br />

termos de outra.” (LAKOFF, 2002, p. 48). Segundo George Lakoff<br />

(2002), o ser humano conceptualiza e categoriza o mundo à sua volta<br />

a partir de sua experiência corporal, de seus estímulos culturais, sociais<br />

e interacionais. Sendo assim, nossa mente projeta pensamentos<br />

metafóricos através dos quais mapeamos domínios conceptuais diferentes,<br />

transferindo elementos do domínio concreto (domínio fonte)<br />

para outro abstrato (domínio alvo), facilitando assim a compreensão<br />

de experiências novas integradas às anteriores. Logo, a metáfora torna-se<br />

um recurso de nosso pensamento que parte de nossas experiências<br />

corporais e de nosso cotidiano como esse autor retrata em seu livro<br />

Metáforas da vida cotidiana.<br />

É importante ressaltar que as metáforas também podem se realizar<br />

de formas não linguísticas ou pensamentos, por exemplo, nas<br />

práticas sociofísicas e a realidade de nossa vida cotidiana. Se o que é<br />

importante é central, em um evento social, pessoas em alta posição<br />

social tendem a ocupar lugares físicos mais centrais do que as menos


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

552<br />

importantes, porém nosso foco é na linguagem. Percebermos que ao<br />

mesmo tempo em que a metáfora destaca, ela também oculta. Da<br />

mesma forma que a metáfora nos levará a compreendermos um aspecto<br />

de um conceito em termos de outro, ela também ocultará outros<br />

aspectos do conceito em questão, isto é, a estrutura metafórica é<br />

parcial e não total. De acordo com Lakoff (2002) “quando dizemos<br />

que um conceito é estruturado por uma metáfora, queremos dizer que<br />

ele é parcialmente estruturado e que ele pode ser expandido de algumas<br />

maneiras e não de outras”. (LAKOFF, 2002, p. 57).<br />

Analisaremos a presença de metáforas estruturais, orientacionais<br />

e ontológicas nas canções sertanejas. Para isso faremos uma<br />

breve definição sobre cada uma delas, segundo George Lakoff<br />

(2002) em seu livro já mencionado. As metáforas estruturais ocorrem<br />

quando um conceito é estruturado metaforicamente em termos<br />

de outro como TEMPO É DINHEIRO e O AMOR É UMA VIA-<br />

GEM. Nessa metáfora, entendemos que estruturar é corresponder os<br />

elementos similares de um domínio e de outro. As metáforas orientacionais<br />

estão relacionadas à nossa orientação espacial como para<br />

cima – para baixo, dentro – fora, frente – trás. Nesse tipo de projeção<br />

metafórica a base física são as experiências corporais do aparelho<br />

sensório-motor como FELIZ É PARA CIMA e TRISTE É PARA<br />

BAIXO. Por fim, as metáforas ontológicas são utilizadas de forma<br />

ampla e são a base para “conceber eventos, atividades, emoções, ideias,<br />

etc. como entidades e substâncias.” (LAKOFF, 2002, p. 76)<br />

Nossa experiência com os objetos e as substâncias físicas auxiliam<br />

na compreensão de conceitos, uma vez que através da personificação<br />

de entidades, temos nós mesmos como domínio-fonte. Ao identificarmos<br />

nossas experiências, podemos categorizá-las, agrupá-las e<br />

quantificá-las e, por conseguinte, raciocinar sobre elas. De acordo<br />

com Lakoff (2002), as metáforas ontológicas são necessárias para<br />

tentar lidar racionalmente com nossas experiências como em MEN-<br />

TE É MÁQUINA e INFLAÇÃO É UMA ENTIDADE.<br />

6. Análise das metáforas nas canções sertanejas<br />

Para confirmar a existência e utilização abundante dessas metáforas<br />

no cotidiano, vamos analisar alguns exemplos nas canções


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

553<br />

sertanejas de algumas duplas de sucesso: Zezé di Camargo e Luciano,<br />

Gino e Geno, Teodoro e Sampaio e Chitãozinho e Xororó.<br />

6.1. A vida como trajeto / amor é trajeto<br />

Eu quero este amor, viagem louca. (Salva meu coração - Zezé di<br />

Camargo e Luciano)<br />

Não quero ser mais um na sua estrada (Toma juízo - Zezé di Camargo<br />

e Luciano)<br />

Deixei meu lar pra seguir seu caminho. (Raízes sertanejas – Gino e<br />

Geno)<br />

Que é melhor seguir outro caminho (Bebendo com os amigos – Teodoro<br />

e Sampaio)<br />

O caminho eu já sei de cor. Desta vida marvada... (Vida Marvada<br />

Chitãozinho e Xororó).<br />

Nesses trechos, observamos uma projeção metafórica na qual<br />

a vida/o amor seria um trajeto. Em “Eu quero este amor, viagem louca”<br />

podemos perceber que o amor (domínio alvo) é projetado para a<br />

viagem (domínio fonte) e em “não quero ser mais um na sua estrada”<br />

a vida (domínio alvo) é projetada para a estrada (domínio fonte).<br />

Como viagem e estrada são experienciados por nós através de nosso<br />

corpo, podemos compreender amor e vida pela metáfora estrutural<br />

do trajeto, na qual poderíamos destacar os elementos: os amantes<br />

como viajantes, o trajeto como a vida no dia a dia e o destino como<br />

objetivo. Em “Deixei meu lar para seguir seu caminho” e “Que é melhor<br />

seguir outro caminho” observamos que caminho (domínio fonte)<br />

é projetado para a vida (domínio alvo). Novamente conceitos concretos<br />

de base física corporal projetam-se metaforicamente para conceitos<br />

abstratos; fica mais fácil compreender a vida através do caminho<br />

que podemos percorrer. Nessa metáfora, nós, seres humanos, somos<br />

os viajantes projetados para os amantes, o trajeto projetado para o dia<br />

a dia e o caminho, para a vida a dois.<br />

6.2. A vida é um jogo / amor é um jogo<br />

Eu sem juízo, faço o seu jogo. (Sem medo de ser feliz – Zezé di Camargo<br />

e Luciano).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

554<br />

Eu juro que eu jogo limpo, fui bom jogador, mas fui trapaceado. No<br />

jogo do amor, pelo adversário, que era meu amigo. (Troféu de dor Gino e<br />

Geno).<br />

A vida é como um jogo. Um dia a gente perde, o outro a gente<br />

ganha. ( A vida é como um jogo – Chitãozinho e Xororó)<br />

Também estou nesse jogo eu já amarrei um fogo por causa da gostosona.<br />

(Gostosona – Teodoro e Sampaio).<br />

Em “Eu sem juízo, faço seu jogo” e “Eu juro que eu jogo limpo”<br />

podemos observar a projeção metafórica do amor para o jogo,<br />

em os jogadores (domínio fonte) se projetam para os amantes (domínio<br />

alvo). Como jogo é um conceito que experienciamos através<br />

do nosso aparelho sensório motor, podemos compreendê-lo facilmente;<br />

logo o projetamos para o amor, que por ser um conceito abstrato<br />

é de difícil compreensão. Ao dizer “faço o seu jogo”, o autor<br />

pode estar referindo-se à submissão às regras do parceiro e que ambos<br />

estão do mesmo lado; já em “jogo limpo” percebemos que há um<br />

desabafo por parte de um dos adversários, pois os amantes (jogadores)<br />

não estão do mesmo lado; se um deles diz que joga limpo é porque<br />

é sincero no relacionamento ao passo que o outro (o adversário)<br />

não o é, pois trapaceia “Mas fui trapaceado”. Podemos notar através<br />

da metáfora AMOR É UM JOGO que nem sempre o relacionamento<br />

é sincero, pois em se tratando de jogo, ocorrem disputas nas quais os<br />

amantes (adversários) podem se tornar trapaceiros ao mentirem ou<br />

traírem. Contudo, se o relacionamento está bem, os amantes tornamse<br />

parceiros nesse jogo, pois jogam do mesmo lado.<br />

6.3. Amor é guerra<br />

Eu já fiz de tudo pra não te perder, briguei com o mundo, lutei por<br />

você (Vem cuidar de mim – Zezé di Camargo e Luciano).<br />

Lutei por ela com dentes e unhas e Deus é testemunha ela judiou de<br />

mim. (Largue mão dessa mulher – Teodoro e Sampaio).<br />

Nessa metáfora estrutural, notamos que os elementos do domínio<br />

fonte “os guerreiros” projetam-se para o domínio alvo como<br />

“os amantes”. Os verbos briguei e lutei já denotam esse cenário bélico<br />

que se projeta para os eventos do relacionamento amoroso; o verbo<br />

perder remete aos danos sofridos pelos amantes projetados metaforicamente<br />

pelos prejuízos aos guerreiros. Em “Lutei por ela com


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

555<br />

dentes e unhas” também observamos essa característica bélica através<br />

do verbo lutei reforçado pela expressão popular “unhas e dentes”,<br />

explicitando a garra com que os amantes/guerreiros lutam para<br />

alcançar seu objetivo: a vitória (domínio fonte) projetada para o domínio<br />

do parceiro (domínio alvo). Em contrapartida, temos “ela judiou<br />

de mim” em que o verbo judiar expressa a superioridade da mulher<br />

nesse relacionamento, uma vez que ela domina o parceiro, levando-o<br />

à rendição (domínio fonte) projetada pela submissão do<br />

parceiro em concessão do controle (domínio alvo).<br />

6.4. Amor é loucura<br />

Enlouqueceu o meu coração (Irresistível – Zezé di Camargo e Luciano)<br />

Por amor, quantas loucuras eu já fiz. (Felicidade que saudade de você-<br />

Zezé di Camargo e Luciano)<br />

O nosso amor é loucura. (Delícias do amor - Teodoro e Sampaio).<br />

Mas se a gente ama, não tem jeito, faz loucura, perde a razão. (Tudo<br />

Por Amor - Chitãozinho e Xororó).<br />

Nessa metáfora temos o amor estruturado em termos da loucura,<br />

as similaridades entre esses dois sentimentos nos levam a estruturar<br />

tais conceitos. Em “enlouqueceu meu coração” e “...Por amor,<br />

quantas loucuras eu já fiz...” o verbo enlouqueceu e o substantivo<br />

loucuras são projetados metaforicamente para as ações dos amantes;<br />

assim como os loucos projetam-se para os amantes. Ora, se quem<br />

ama é capaz de cometer atitudes impensadas e imprudentes, ele pode<br />

ser comparado a um louco que também age irracionalmente. Como a<br />

loucura pode ser experienciada, nós a projetamos para o amor que é<br />

um sentimento através do qual, no auge da paixão, nos leva a agir<br />

sem pensar.<br />

6.5. Amor é fogo, que queima<br />

Uma luz de fogo, o meu corpo vem queimar (Vem ficar comigo –<br />

Zezé di Camargo e Luciano)<br />

Eu me queimei no fogo do amor. (Sem medo de ser feliz – Zezé di<br />

Camargo e Luciano).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

556<br />

Amantes ardentes com todas as sedes (Perigosas Emoções -<br />

Chotãozinho e Xororó)<br />

Quero me queimar no seu calor, quero te encher de amor. (Uma<br />

noite especial – Chitãozinho e Xororó).<br />

Assim como a metáfora “Amor é loucura”, “Amor é fogo” é<br />

uma metáfora estrutural, na qual os conceitos de amor e fogo se misturam<br />

devido às suas similaridades. Em “Uma luz de fogo, o meu<br />

corpo vem queimar”, o amor (domínio alvo) é projetado metaforicamente<br />

pelo fogo (domínio fonte), pois este é concreto, visível e, portanto,<br />

experienciado pelo nosso aparelho sensório motor. Sendo assim,<br />

compreendemos mais facilmente como o amor pode queimar.<br />

Se o calor/luz do fogo nos queima, entendemos essa propriedade do<br />

amor; o próprio verbo queimar, usado metaforicamente em vários<br />

exemplos extraídos das canções confirma essa projeção. Além disso,<br />

o fogo assume o papel de causador, projetando-se para o amor que<br />

causa os desejos ardentes, o calor e que queima, todos para expressar<br />

o domínio abstrato das sensações humanas diante desse sentimento<br />

que é tão arrebatador quanto o fogo é destruidor.<br />

6.6. Tempo é um objeto móvel e nós estamos parados<br />

O tempo passa (O tempo passa) (Não é Papel da Gente - Chitãozinho<br />

e Xororó.).<br />

Partindo do TEMPO, um conceito abstrato e que não percebemos<br />

pelos nossos sentidos, os autores Lakoff e Johnson (2002) selecionam<br />

características mais concretas que permitem projetar um<br />

domínio no outro. O ser humano entende o tempo como algo que está<br />

à frente ou atrás de si (espacialmente) ou que ele está parado e nós<br />

nos movimentamos em torno dele. Temos aqui um exemplo de metáfora<br />

orientacional TEMPO É UM OBJETO EM MOVIMENTO ou<br />

O TEMPO PASSA POR NÓS. No exemplo “...o tempo passa” comprovamos<br />

que o tempo é um objeto em movimento, pois essa expressão<br />

linguística compõe a metáfora de que o tempo é um objeto que<br />

se move. O domínio alvo é o TEMPO projetado pelo domínio fonte<br />

OBJETO MÓVEL. Há um apelo para que se atente ao fato de que o<br />

que passa diante de nós é o passado e não há como voltar atrás para<br />

recuperá-lo.


6.7. Sucesso é destruição<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

557<br />

E quando chega num pagode ela arrasa. (Bola da vez Gino e Geno).<br />

Ela usa saia curta, ela arrasa, ela detona. (Gostosona - Teodoro e<br />

Sampaio).<br />

Temos nesses exemplos “Ela arrasa” e “Ela detona” um tipo<br />

de metáfora cada vez mais frequente, na qual os verbos “arrasar” e<br />

“detonar” dentre outros necessitam sintaticamente de um objeto direto,<br />

porém este está implícito nas orações devido a questões morais<br />

por se tratarem de verbos destrutivos. Esses são exemplos que se referem<br />

a domínios conceptuais vetados, por isso os verbos transitivos<br />

diretos foram destransitivizados. Se o sucesso leva à competição, esta<br />

pressupõe uma guerra no universo da concorrência que ocasionará<br />

a omissão dos objetos diretos, pois estes são na verdade o adversário<br />

que será arrasado, detonado por ela; nessa metáfora, o conceito de<br />

agressor (domínio fonte) projeta-se para o sucesso (domínio alvo).<br />

6.8. Feliz é para cima; triste é para baixo/ bom é para cima;<br />

ruim é para baixo<br />

Levanta a cabeça, meu bem (...) levanta a cabeça fale aqui comigo.<br />

(Ex-mulher - Teodoro e Sampaio)<br />

Diz que eu posso estar no maior alto astral. (É mentira dela – Teodoro<br />

e Sampaio).<br />

Eu já fui pobre daquele de andar na lona. Mas eu venci e dei a volta<br />

por cima. Jamais eu vou pisar em quem ta lá em baixo. (Só dou carona<br />

para quem dá pra mim – Teodoro e Sampaio).<br />

Chegou no fundo do poço escuto o povo gritar. (No fundo do poço –<br />

Teodoro e Sampaio)<br />

Nos trechos acima temos o que chamamos metáfora orientacional,<br />

visto que indicam uma orientação espacial, de base física. Em<br />

“Levanta a cabeça” e “alto astral”, temos um exemplo dessa metáfora<br />

em que a postura caída corresponde à tristeza e depressão e a postura<br />

ereta corresponde a um estado emocional positivo. Nos trechos<br />

“andar na lona”, “a volta por cima”, “quem ta lá em baixo”, “fundo<br />

do poço” correspondem à metáfora BOM É PARA CIMA; RUIM É<br />

PARA BAIXO. O que é bom para uma pessoa se caracteriza para<br />

cima e o que é ruim, para baixo.


6.9. Personificação<br />

Solidão me ataca. (Cara de boi - Gino e Geno).<br />

Solidão me arrasa. (Chorei, chorei - Gino e Geno)<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

558<br />

A paixão me devora e essa dor não quer passar. (Vem me amar - Gino<br />

e Geno).<br />

A saudade devora o meu coração. (Eu e a lua – Teodoro e Sampaio).<br />

Nos exemplos “Solidão me ataca”, “Solidão me arrasa” e “A<br />

paixão me devora” temos tipos de metáforas ontológicas, expandidas<br />

pela personificação. Em todas percebemos o que não é humano agindo<br />

como se o fosse. A solidão e a paixão foram personificadas e<br />

poderíamos ter as metáforas SOLIDÃO É DESTRUIÇÃO e PAI-<br />

XÃO É DESTRUIÇÃO respectivamente como submetáforas de<br />

AMOR É GUERRA, pois em ambos os casos observamos verbos de<br />

caráter destrutivo, quais sejam atacar, arrasar e devorar dentre outros.<br />

Dessa forma, pensamos na solidão e na paixão como algo que<br />

pode nos ferir ou até destruir/matar. De acordo com Lakoff (2002) “o<br />

que todas têm em comum é o fato de serem extensões de metáforas<br />

ontológicas, permitindo-nos dar sentido a fenômenos do mundo em<br />

termos humanos, termos esses que podemos entender com base em<br />

nossas próprias motivações, objetivos, ações e características.” (LA-<br />

KOFF, 2002, p. 88). Assim, conceitos abstratos como solidão e paixão<br />

são projetados para o domínio humano como causadores de sofrimento,<br />

tornando-se dessa maneira mais compreensíveis para nós.<br />

7. Considerações finais<br />

Na presente análise verificou-se que ocorreu a predominância<br />

das metáforas ontológicas e das estruturais, sobretudo esta última.<br />

Levanta-se a hipótese de que como essas canções tratam, principalmente,<br />

do amor, que é um conceito abstrato, busca-se através dessas<br />

metáforas estruturais e ontológicas descrever e explicar as sensações<br />

que esse sentimento, ou outros, provoca nos seres humanos.<br />

Observou-se que, assim como na vida cotidiana há um uso<br />

abundante de metáforas, também há tal uso nas canções, visto que<br />

estas falam sobre as ocorrências do dia-a-dia. Para compreender conceitos<br />

abstratos como o amor, a solidão e outros sentimentos, as me-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

559<br />

táforas acima mencionadas são fundamentais para essa compreensão,<br />

sendo estruturadas sobre conceitos baseados em termos de experiências<br />

básicas, por serem mais familiares ao nosso entendimento.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

LAKOFF, George & MARK, Johnson. Metáforas da vida cotidiana.<br />

Coordenação da tradução Mara Sophia Zanotto. Campinas: Mercado<br />

das Letras; São Paulo: Educ, 2002.<br />

SALOMÃO, Maria Margarida Martins. A questão da construção do<br />

sentido e a revisão da agenda dos estudos da linguagem. In: Veredas<br />

Revista de Estudos Linguísticos – UFJF. V. 3, nº 1, jan/jun, 1999.<br />

Juiz de Fora. EDU FJF, 1999.<br />

TOMASELLO, Michael. Origens culturais da aquisição do conhecimento<br />

humano; tradução Claudia Berliner. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 2003.


AS MARIAS NA MACROTOPONÍMIA SERGIPANA:<br />

A IGREJA E O PODER<br />

1. Justificativa<br />

Cezar Alexandre Neri Santos (UFS)<br />

cezarneri@hotmail.com<br />

Pretende-se expor a presença da entidade religiosa Maria na<br />

macrotoponímia sergipana. De cunho histórico-interdisciplinar a partir<br />

da perspectiva linguística, este trabalho analisa o fenômeno toponomástico<br />

de nomeação de Maria, a mãe de Jesus, nos municípios<br />

sergipanos. Mostrar-se-á que tais municípios não foram determinados<br />

aleatoriamente, mas que sua formação perpassa por um emaranhado<br />

de significações históricas por vezes esquecida ou desconhecida.<br />

Para elaboração do estudo, fundamenta-se o referencial teórico<br />

em autores como Dick (1992), que embasa a análise taxonômica,<br />

além de documentos históricos sobre Sergipe e seu processo de ocupação,<br />

uso e posse. Centralizar-se-á aqui nos hierotopônimos.<br />

Há uma classe dentro da taxonomia de Dick (1992) denominada<br />

hierotopônimos. Estes dizem respeito aos topônimos relativos a<br />

nomes sagrados de crenças diversas, a efemérides religiosas, às associações<br />

religiosas e aos locais de culto. Essa categoria subdivide-se<br />

em hagiotopônimos - nomes de santos ou santas do hagiológio católico<br />

romano, objetos específico de estudo do presente trabalho, e mitotopônimos,<br />

que se referem às entidades mitológicas – ex.: Exu, em<br />

Pernambuco. A ocorrência de mitotopônimos inexiste no escopo<br />

pesquisado nos municípios sergipanos. Isso também demonstra o<br />

poder da Igreja Católica ao impedir a penetração de outras denominações<br />

religiosas no léxico.<br />

A partir da listagem dos municípios sergipanos atuais, nota-se<br />

o grande número de cidades em honra ao hagiológio católico romano,<br />

especialmente a Nossa Senhora, nas suas diversas denominações.<br />

Ao pesquisar outros trabalhos acadêmicos que dialogam com o presente,<br />

percebe-se que também há preocupação de entender esse fenômeno<br />

alhures, a saber Carvalhinhos (2005; 200?) e Ramos (2007).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

561<br />

Na primeira, há uma justificativa compatível com a do presente trabalho:<br />

[...] investigar por que uma única entidade sagrada recebe tantas denominações<br />

(referimo-nos ao nome específico, que a Igreja denomina título),<br />

além de tentar criar, na medida do possível, tipologias que congregassem<br />

os vários núcleos semânticos contidos nos títulos de Nossa Senhora.<br />

Essas tipologias foram absolutamente necessárias para que se evidenciassem<br />

as relações semânticas dentro dos sintagmas toponímicos.<br />

Não apenas o léxico expõe a materialidade do poder religioso<br />

nas cidades sergipanas. Qualquer um que adentre nos municípios que<br />

possuam os nomes de Maria encontrará no ponto inicial da cidade<br />

estátuas em tamanho ampliado (imagens). Estes símbolos religiosos<br />

representam, bem como o relógio dos 500 anos do ‘descobrimento’<br />

do Brasil (GREGOLIN, 2003), monumentos de sentido.<br />

1.1. Caracterizando o ato toponímico<br />

Nomear é uma atribuição linguística e característica inata ao<br />

ser humano. Demonstrar um sentimento de pertença e as características<br />

singulares dos locais fazem parte da ação toponímica. Esse ato<br />

denominativo perpassa um signo linguístico especial, portador de<br />

motivação e de significação semântica particulares, pois agem como<br />

reflexo de características físicas e/ou socioeconômico-cultural do<br />

ambiente designado.<br />

Dick escreve que o signo toponímico se configura<br />

como um signo duplamente motivado, pois além de seu motivo semântico<br />

possui o motivo do denominador, ou seja, a intencionalidade (quer<br />

objetiva, quer subjetiva) que resultou na eleição de uma lexia e não outra<br />

para compor aquele enunciado. Essa escolha condiciona-se, muitas vezes,<br />

à cultura do grupo. (apud CARVALHINHOS, 2010, p. 2463-4)<br />

A ação nomeadora é objeto de estudo de um ramo da linguística:<br />

a Onomástica. À Toponímia, que juntamente com a Antroponímia<br />

são subáreas da Onomástica, cabe o interesse pelos itens lexicais<br />

que designam os lugares ou acidentes geográficos – os topônimos. A<br />

escolha dos topônimos pode ser motivada por diversos fatores, tais<br />

quais: geográficos, históricos, culturais, religiosos etc. Somada a essas<br />

motivações, encontra-se a subjetividade do denominador, que<br />

conscientemente ou não, irá depositar em sua escolha traços de sua


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

562<br />

percepção. Esse conjunto é responsável por manter viva a memória<br />

cultural da sociedade, além de ser o retrato da relação homem, ambiente,<br />

língua e cultura, como sustentou Sapir (1969, p. 44) na qual “a<br />

língua de qualquer povo servirá como reflexo de seu meio e de sua<br />

cultura, pois eles se influenciam mutuamente”.<br />

2. Ocupação de Sergipe e igreja católica: histórias que se confundem<br />

Segundo Oliva e Santos (2002), antes de se tornar um território<br />

da Coroa Portuguesa, as terras que iam da Baía de Todos os Santos<br />

até o rio São Francisco eram posse do português Francisco Pereira<br />

Coutinho. Localizada entre as prósperas capitanias da Bahia e de<br />

Pernambuco, o território sergipano foi dominado tardiamente pela<br />

metrópole europeia – somente no final do século XVI – sendo até então<br />

controlado por tribos indígenas. Ao tentar fugir da ameaça de escravidão<br />

nos engenhos de colonos portugueses, tais tribos pediram<br />

ao governo-geral que<br />

[...] enviasse missionários às suas aldeias, o que aconteceu no ano de<br />

1575, com a vinda de padres jesuítas. Sob a chefia do padre Gaspar Lourenço,<br />

os religiosos, que vieram da Bahia, percorreram aldeias ensinando<br />

a língua portuguesa e os princípios da religião cristã. Por onde passavam<br />

os missionários erguiam igrejas [...] (OLIVA e SANTOS, 2002, p. 23)<br />

A primeira povoação de Sergipe foi onde hoje está a antiga<br />

capital do estado, São Cristovão. O banco de dados do Instituto Brasileiro<br />

de Geografia e Estatísticas (IBGE) descreve que<br />

[...] após subjugar o gentio a 1.° de janeiro de 1590 e levantar o forte Cotenguiba,<br />

junto à foz do rio Sergipe, Cristóvão de Barros fundou a primitiva<br />

povoação, sob a denominação de Cidade de São Cristóvão de Sergipe<br />

d'EI Rei. 1<br />

Acima, vimos que é fato comum a nomeação de localidades<br />

com hierotopônimos, ou seja, santos ou entidades religiosas como<br />

forma de “proteção ao lugar referido”, assim como quando pais nomeiam<br />

seus filhos com santos homônimos. O donatário poderia até<br />

ter denominado a povoação de São Cristovão com seu nome – constituindo<br />

um antropotopônimo (ex: Tobias Barreto, Simão Dias), mas<br />

1 http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

563<br />

o fez em alusão ao santo católico. Isso demonstra novamente o poder<br />

exercido pela Igreja tanto na esfera política quanto individual, enquanto<br />

força espiritual humana. É o indivíduo/grupo ofertando a terra<br />

à proteção divinal.<br />

Tal ocorrência se mostrou presente e constante nos topônimos<br />

sergipanos. Datado de 1808, o documento Memória sobre a capitania<br />

de Sergipe, do bispo Dom Marcos Antônio de Souza, que fora<br />

vigário da Freguesia de Jesus, Maria e José de São Gonçalo do Pé de<br />

Banco (Siriri), relata sobre a divisão espacial sergipana do começo<br />

do século XIX:<br />

Alcançava, na época, a população de Sergipe 72.236 habitantes,<br />

sendo 20.300 brancos, 19.954 negros, 1.440 índios e 30.542 raças combinadas<br />

(mestiços). Vê-se quão dizimados foram os habitantes primitivos.<br />

Existiam sete vilas: Santa Luzia, Geru, Santo Amaro das Brotas,<br />

Própria, Nossa Senhora da Piedade de Lagarto, Santo Antônio e Almas<br />

de Itabaiana e Vila Nova do Rio São Francisco. Sobressaíam-se as povoações<br />

de Laranjeiras e Estância. (NUNES, 1978, p. 25).<br />

Vemos aqui nomeações instituídas em língua portuguesa,<br />

como demonstração de poder sobre a língua geral – nhengatu, a língua<br />

franca no Brasil da época. Fato curioso é a tendência contrária<br />

no século seguinte, no qual as línguas indígenas são utilizadas na<br />

nomeação de vários municípios sergipanos. Ao apagar um símbolo<br />

identitário tão poderoso quanto a língua de um grupo, os portugueses<br />

mascaram uma unificação nacional com a Língua Portuguesa e destroem<br />

marcas socioétnico-culturais 2 . Ver o índio como estrangeiro<br />

em sua própria terra é um dos resultados desta ação 3 .<br />

3. Hierotopônimos na macrotoponímia sergipana<br />

Dos 75 municípios atuais no estado de Sergipe, localizado no<br />

nordeste brasileiro, a presença dos hierotopônimos é marcante. Não<br />

só por se tratar de um estado do Nordeste, mas por, como descrito<br />

anteriormente, a posição de destaque da instituição católica em Sergipe<br />

ser historicamente bem explícita.<br />

2 Atualmente, dos 75 municípios sergipanos, 23 possuem nomes indígenas (30,6% do total).<br />

3 Eni Orlandi (1997) trabalha bem a questão do apagamento cultural.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

564<br />

Carvalhinhos (2005) também pontua uma expressão exclusiva<br />

da toponímia brasileira, na qual Maria recebe aqui o pronome possessivo<br />

Nossa, enquanto que, em Portugal, o designativo geralmente<br />

se apresenta Senhora das Graças em vez de Nossa Senhora das<br />

Graças. Sergipe, obviamente, não fica fora desta tendência brasílica.<br />

Sobre tal dado, acreditamos que a forma composta difundida no Brasil,<br />

pelo uso gramatical do possessivo nossa, acaba criando um elo entre<br />

o eu discursivo, enunciador, e o objeto enunciado, a senhora. Este elo,<br />

que gramaticalmente denota relação ou posse, diminui a distância entre<br />

enunciador e objeto, sendo mais íntimo, a nosso ver, que o termo Senhora<br />

ou Virgem Maria. (CARVALHINHOS, 200?)<br />

Topônimos atuais em homenagem à Maria (7 municípios –<br />

10,7% do total), a saber, Divina Pastora, Nossa Senhora Aparecida,<br />

Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora<br />

de Lourdes, Nossa Senhora do Socorro e Rosário do Catete.<br />

A referência a esses topônimos se dá de forma regressiva.<br />

Com exceção de Divina Pastora, todos são mais conhecidos e designados<br />

por seu termo específico. Destarte, Nossa Senhora da Glória é<br />

tratado simplesmente por Glória, Nossa Senhora (N. Sra.) das Dores<br />

por Dores e assim sucessivamente. O mesmo processo será feito pelo<br />

autor neste trabalho.<br />

3.1. Divina pastora<br />

A cidade de Divina Pastora, a 40 quilômetros da capital Aracaju,<br />

tem se destacado como aquela que recebe a maior romaria no<br />

Estado. Milhares vão até a igreja matriz da cidade nos meses de<br />

Maio e Outubro, numa procissão de 9 quilômetros. Em devoção à<br />

Nossa Senhora Divina Pastora, vários romeiros, inclusive de estados<br />

circunvizinhos, vão em caravanas festejar essa celebração de fé católica.<br />

Sergipe é citado em número considerável nos websites em<br />

homenagem a divindades. Isso demonstra o quanto a toponímia reflete<br />

fatores sócio-histórico-culturais e permite o conhecimento, até<br />

não espontâneo do território a partir do signo toponímico. Conhecerse-<br />

á mais da cosmovisão e ideais dos povos, seus rituais e até curio-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

565<br />

sidades sobre a terra. Explicitamos duas citações que remetem ao<br />

município a partir dessa devoção mariológica.<br />

A Igreja Matriz de Divina Pastora, em Sergipe, construída no século<br />

XIX, herança dos frades missionários, é um outro testemunho eloquente<br />

da presença missionária. O seu teto reserva-nos a mais expressiva obra<br />

do pintor baiano José Teófilo de Jesus, fiel pintor da visão de frei Isidoro.<br />

Pode-se afirmar, com segurança que é a maior pintura painelista de<br />

Sergipe. 4<br />

[...] Já no Brasil até existe, no estado de Sergipe, uma cidade chamada<br />

Divina Pastora, elevada a vila em 1836, e cuja Igreja Matriz é dedicada<br />

a Nossa Senhora sobre esta invocação 5 .<br />

Ladeira, um ergotopônimo (Dick, 1992), é a denominação<br />

inicial para a atual Divina Pastora. Nota-se desde cedo a presença da<br />

igreja católica na região – fato comum há todas as regiões do Estado,<br />

o que justifica essa mudança toponímica para Nossa Senhora Divina<br />

Pastora.<br />

Não há registro do tempo exato em que a povoação Ladeira, nome<br />

dado inicialmente ao município de Divina Pastora, começou a se<br />

formar, mas há um fato que pode indicar uma data aproximada.<br />

Quando o vigário Manoel Carneiro de Sá tomou posse da paróquia<br />

de Siriri, em 18 de fevereiro de 1700, a freguesia de Ladeira já existia.<br />

(ibidem)<br />

Segundo o IBGE (2008), o distrito é criado com a denominação<br />

de Nossa Senhora da Divina Pastora, pela lei provincial de<br />

31/05/1833. Uma segunda mudança toponímica acontece em meados<br />

do século XX, quando Nossa Senhora da Divina Pastora passa a ser<br />

denominada simplesmente Divina Pastora. Há aí a conservação lexical<br />

de elementos formantes do topônimo anterior, na qual o novo topônimo<br />

preserva alguma base do anterior.<br />

Quadro diacrônico da mudança toponímica: Ladeira > Nossa<br />

Senhora da Divina Pastora > Divina Pastora.<br />

4 Divina Pastora. Disponível em: . Acessado<br />

em: 27 jun. 2010.<br />

5 Nossa Senhora Divina Pastora. Disponível em:<br />

. Acesso em: 27 jun. 2010.


3.2. Nossa Senhora Aparecida<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

566<br />

O município de Nossa Senhora Aparecida, no sertão sergipano,<br />

com 8.123 habitantes, foi criado em 26 de novembro de 1963,<br />

com a denominação de Cruz das Graças e sede no povoado Cruz do<br />

Cavalcante, desmembrado do município de Ribeirópolis pelo decreto-lei<br />

estadual nº. 1.233 (IBGE, 2008).<br />

Em 1975 foi mudada a denominação do município para Nossa<br />

Senhora Aparecida pela lei Estadual n.° 165-A, de 24 de dezembro<br />

de 1975, passou ao atual topônimo, o qual permanece até hoje. A<br />

mudança toponímica aconteceu dentro da própria taxe (Dick, 1992),<br />

demonstrando uma tradição religiosa a região. Para homenagear a<br />

padroeira do Brasil, o município passa a ter mais um hierotopônimo<br />

mariano.<br />

3.3. Nossa Senhora da Glória<br />

Segundo fontes precárias 6 , a primeira povoação na região da<br />

atual cidade recebeu o nome de Boca da Mata (somatotopônimo),<br />

dado pelos viajantes que descansavam no local. Por volta de 1600 a<br />

1620, os ranchos ali existentes formaram uma povoação. Posteriormente,<br />

a localidade foi rebatizada quando o pároco Francisco Gonçalves<br />

Lima, fez uma campanha junto aos moradores para aquisição<br />

de uma imagem de Nossa Senhora da Glória.<br />

Sua primeira denominação, “Boca da Mata”, segundo relatam<br />

os glorienses mais idosos, deu-se por conta desses viajantes, pois tinham<br />

medo de seguir suas rotas durante a noite e ali, na entrada da<br />

mata, dormiam. Disso surgiu uma expressão que se tornou comum<br />

entre eles: “dormir na boca da mata”. Daí a origem da toponímia.<br />

6 Nossa Senhora da Glória. Disponível em:<br />

. Apesar de o site Wikipedia compor<br />

uma biblioteca on-line aberta, os dados aqui colhidos têm como fonte principal relatórios feitos<br />

pela Universidade Tiradentes, universidade renomada no estado, baseados no IBGE (1991-<br />

1996) cedidos pela Secretaria Municipal de Educação, Esporte, Cultura e Lazer de Nossa Senhora<br />

da Glória.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

567<br />

Em 1922, a lei nº 835 de 6 de fevereiro, constituiu o então<br />

povoado “Boca da Mata” como “Nossa Senhora da Glória”. Em 26<br />

de Setembro de 1928, deu-se a emancipação política do município.<br />

O nome Nossa Senhora da Glória, segundo informam as pessoas<br />

mais antigas do lugar, foi iniciativa do Pe. Francisco Gonçalves<br />

Lima, seu primeiro capelão, que trouxe a imagem da referida santa,<br />

consagrada então padroeira do lugar, e o sino para a primeira capela.<br />

(IBGE)<br />

3.4. Nossa Senhora das Dores<br />

Também chamada Nossa Senhora da Piedade, Nossa Senhora<br />

da Soledade, Nossa Senhora das Angústias, Nossa Senhora das Lágrimas,<br />

Nossa Senhora das Sete Dores, Nossa Senhora do Calvário<br />

ou ainda Nossa Senhora do Pranto, e invocada em latim como Beata<br />

Maria Virgo Perdolens, ou Mater Dolorosa, é um dos plúrices títulos<br />

pelos quais a Igreja Católica venera a Virgem Maria, sendo sob<br />

essa designação particularmente cultuada em Portugal.<br />

Essa veneração chegou até o Brasil, sendo grande o número<br />

de topônimos com tal denominação. Especificamente quanto ao município<br />

sergipano,<br />

[...] mantém a tradição religioso-cultural já centenária dos penitentes. O<br />

movimento adquiriu um cunho religioso a partir de promessas feitas por<br />

pessoas que viam na penitência a maneira mais correta de agradecer as<br />

graças recebidas. Apenas homens são recebidos no grupo dos penitentes.<br />

Eles ficam envoltos em túnica e capuz brancos, cobrindo todo o corpo e<br />

rosto. Toda Sexta-Feira da Paixão eles percorrem cruzeiros e santacruzes<br />

do subúrbio da cidade, durante um período de sete anos seguidos,<br />

entoando preces e cânticos em intenção das almas sofredoras. 7<br />

Segundo Laudelino Freire, Dores, que fica no agreste sergipano,<br />

a 72 quilômetros da capital, no início, chamou-se Enforcados,<br />

em virtude de ali terem sido sacrificados alguns gentios que habitavam<br />

a região. Com a chegada de um religioso, pregador da Santa<br />

7 Nossa Senhora das Dores (Sergipe). Disponível em:<br />

. Acesso em: 27 jun. 2010


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

568<br />

Missão, o topônimo foi mudado para Nossa Senhora das Dores. (apud<br />

IBGE, 2008)<br />

Vemos aqui mais uma mudança toponímica motivada por um<br />

religioso forasteiro – geralmente um jesuíta português, que para remeter<br />

à devoção de um santo do hagiológio católico, nomeia a cidade<br />

com uma denominação mariana: Enforcados (Animotopônimo ou<br />

Nootopônimo) > Nossa Senhora das Dores (hierotopônimo).<br />

3.5. Nossa Senhora de Lourdes<br />

A povoação deste município, a 136 quilômetros da capital<br />

Aracaju, cresceu ao redor da Lagoa das Antas, e recebeu esse nome<br />

por causa da grande quantidade desse animal na região. O casal pernambucano<br />

que primeiro explorou a região, por volta de 1810, Joaquim<br />

José e Ana Josefa da Rocha, fugiu da seca que assolava o sertão<br />

pernambucano. Ao chegar a uma grande lagoa onde existia uma<br />

considerável quantidade de antas (mamífero que chega a dois metros<br />

de altura), resolveram fazer morada.<br />

Em 1950, o lugar denominado anteriormente de Lagoa das<br />

Antas passou a se chamar Arraial de Antas. Na década de 1960, o<br />

distrito é criado com a denominação de Nossa Senhora de Lourdes,<br />

um ex-povoado, pela lei estadual nº 554, de 06-02-1954, subordinado<br />

do município de Canhoba. Elevado à categoria de município com<br />

a denominação de Nossa Senhora de Lourdes, pela lei estadual nº<br />

103-A, de 13-05-1963.<br />

O povo lourdense possui uma das mais fortes ligações de fé<br />

com Nossa Senhora. A padroeira e atual topônimo da cidade possui<br />

uma histórica relação com a comunidade, que encontra na imagem<br />

da santa de Lourdes sinais de esperança. Segundo IBGE (2008), não<br />

se sabe ao certo quando foi descoberta a gruta que abrigava a imagem<br />

de Nossa Senhora de Lourdes, no bairro Coqueiros, gruta esta<br />

natural com enormes pedras onde filtrava água e que para chegar nela,<br />

havia necessidade de atravessar um riacho. Essa gruta era onde o<br />

povo [...] ia passear rezar e captar água, onde muitos afirmavam ser<br />

"Benta" e "milagrosa", faziam churrascos, aniversários e outros eventos.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

569<br />

Essa relação de devoção, que perpassa o léxico enquanto reflexo<br />

cultural, pode ser notada nas reações do povo quanto a essa<br />

imagem da padroeira e sua representatividade.<br />

[Dois namorados] chegaram a casa, deu aquele estrondo, muito forte<br />

mesmo, chamando atenção da comunidade; [...] Apavorados chegou à<br />

notícia: Desmoronou a Gruta... Todos ficaram entristecidos, afinal, além<br />

de ser um local religioso, também de laser (sic).<br />

Temos aí duas mudanças toponímicas: Lagoa das Antas (hidrotopônimo)<br />

> Arraial das Antas (poliotopônimo) > Nossa Senhora<br />

de Lourdes (hierotopônimo). Esse município põe em destaque que a<br />

tradição de denominação por tradição religiosa é também um fenômeno<br />

recente, mesmo com o contínuo crescimento de protestantes e<br />

autodenominados não religiosos.<br />

3.6. Nossa Senhora do Socorro<br />

A apenas 8 km e Aracaju, com a segunda maior população do<br />

estado e cidade-dormitório da capital, Nossa Senhora do Socorro<br />

possui considerável força política e constitui mais um município cuja<br />

devoção do padroeiro é destinada a Maria, mãe de Jesus.<br />

Uma lei se refere à regulamentação feita durante o Estado<br />

Novo, regime ditatorial implantado pelo então presidente Getúlio<br />

Vargas, no qual os municípios brasileiros não poderiam ter homônimos.<br />

Antes mesmo desta lei federal, o historiador sergipano Luiz<br />

Antonio Barreto descreve que<br />

[...] em 1943 o Departamento Estadual de Estatística, dirigido por João<br />

Carlos de Almeida, preparou um projeto de mudança de nomes de vários<br />

municípios sergipanos, para evitar que existissem no Estado 20 localidades<br />

homônimas de outras anteriormente existentes no País 8 .<br />

De acordo com as alterações ocorridas a partir das leis supracitadas,<br />

não houve mudanças substanciais nos hierotopônimos marianos<br />

sergipanos. Entretanto, o município de Socorro foi atingido.<br />

Nem todos remetem à Cotinguiba, nome do rio que corta a cidade,<br />

8 In BARRETO, Luiz Antonio. Nomes & homenagens. s/d. Disponível em:<br />

www.sindipetroalse.org.br/site/images/stories/visite%20aracaju/NOMESHOMENAGENS.doc<br />

Acesso em: 25 jun. 2010.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

570<br />

designação primeira desta localidade ao mencionar o município, cujo<br />

nome primitivo foi Nossa Senhora do Perpétuo Socorro do Tomar<br />

da Cotinguiba.<br />

Nossa Senhora do Socorro de Cotiguiba 9 (sic) para Socorro alterado,<br />

pela lei provincial de 1902-1835. Socorro para Cotiguiba (sic) alterado<br />

pelo decreto-lei estadual ° 377, de 31-12-1943, revogado pela lei nº 533,<br />

de 07-12-1944.<br />

Entretanto, por vezes, a mudança toponímica incitada por intervenção<br />

do Poder Público “nem sempre [as mudanças sistemáticas]<br />

impostas são bem aceitas pela população, gerando protestos que levam<br />

o Poder Público a restaurar a nomenclatura anterior”. (RAMOS,<br />

2007)<br />

Em 31 de dezembro de 1943 passou a ter a denominação de Cotiguiba<br />

(sic), por fôrça da Legislação Federal que proibia a duplicidade de<br />

nomes dos municípios brasileiros. O novo topônimo era usado somente<br />

em documentos oficiais nunca chegando a linguagem do povo, e, por isto,<br />

atendendo a tal motivo, os poderes constituídos do Estado através da<br />

Lei estadual nº 554, de 6 de fevereiro de 1954, fizeram-no voltar a denominar-se<br />

Nossa Senhora do Socorro. (IBGE, 2008)<br />

Temos aí o seguinte quadro:<br />

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro do Tomar da Cotinguiba<br />

> Nossa Senhora do Socorro de Cotinguiba > Socorro > Cotinguiba<br />

> Nossa Senhora do Socorro.<br />

3.7. Rosário do Catete<br />

Além de ser um topônimo brasileiro, outras nações possuem<br />

topônimo homônimo, há exemplo de Argentina e Espanha. Especificamente<br />

quanto ao sergipano, cita o histórico da cidade, segundo o<br />

IBGE, que<br />

[...] as terras ocupadas pela Cidade de Rosário do Catete pertenciam<br />

ao antigo engenho Jordão, de propriedade de Jorge de Almeida Campos,<br />

que as doou para construção da capela de Nossa Senhora do Rosário, i-<br />

9 O site do IBGE descreve erroneamente Cotiguiba em vez de Cotinguiba. Tal ocorrência permite<br />

a discussão da toponímia como relevante meio de identificação de uma comunidade. Os<br />

órgãos oficiais devem ser os primeiros a resgatar e preservar de maneira cuidadosa sua história,<br />

inclusive no aspecto ortográfico.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

571<br />

magem que teria sido encontrada por escravos, nas matas adjacentes.<br />

(IBGE)<br />

Desde os primórdios da povoação, a devoção por Nossa Senhora<br />

do Rosário se mostra presente. O que talvez não se apresente,<br />

num primeiro momento, é a presença dessa devoção a partir deste<br />

signo toponímico. Isso porque muitos imaginam que Rosário designa<br />

um antropotopônimo, não a santa. Ao visitar a cidade, por outro lado,<br />

a presença imediata de um enorme rosário (instrumento usado<br />

para rezar o terço três vezes) denota a relação léxico e identidade<br />

cultural.<br />

Entretanto, esse signo toponímico possui algo de característico:<br />

a tentativa, mesmo que parcial/temporária, de apagamento do<br />

discurso religioso. Essa laicização vai à contramão do fluxo diacrônico<br />

dos topônimos, não apenas dos sergipanos. Note-se esse processo:<br />

Nossa Senhora do Rosário do Catete para simplesmente Rosário alterado,<br />

pelo decreto estadual nº 113, de 12-07-1932. Rosário para Rosário<br />

do Catete alterado, pelo decreto estadual nº 377, de 31-12-1943, revogado<br />

pelo decreto de nº 533, de 07-12-1944.<br />

No primeiro caso, a mudança toponímica: hierotopônimo ><br />

antropotopônimo, através do silenciamento parcial pelo governo das<br />

marcas religiosas. É o governo formulando alterações no campo de<br />

políticas linguísticas durante o período do presidente Getúlio Vargas.<br />

Com a lei federal de 1943 supracitada, para diferenciação<br />

com Rosário no Maranhão, temos a implantação do denominativo<br />

‘Catete’, cuja motivação é incerta. Nem o site oficial do IBGE dispõe<br />

informações sobre a questão. Contudo, muito esclarecedor é o<br />

hipertexto abaixo:<br />

Nada, absolutamente nada de oficial existe para explicar o nome Catete,<br />

mas existem indícios fortes. Catete é uma espécie de milho comum<br />

na região. Catete vem de caititu (tupi-guarani) que quer dizer “porco do<br />

mato”, animal encontrado naquelas terras. Catete significa reduto de escravos<br />

(em Rosário eles eram milhares). E catete era nome de um dos<br />

engenhos do Barão de Maruim 10 .<br />

10 Rosário do Catete. Disponível em: . Acesso<br />

em: 10 jul. 2010.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

572<br />

Bem, como é explícito, um dos dois municípios cujo signo<br />

toponímico mariológico não mais possui a configuração Nossa Senhora<br />

de(a).


3.8. Caso especial: O município de Itaporanga d’Ajuda<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

573<br />

Além destes seis, o município de Itaporanga d’Ajuda também<br />

alude a Maria. Esse topônimo faz menção a Nossa Senhora da Ajuda,<br />

como descrito no site do IBGE (2008).<br />

Em consequência, somente em 1845, a povoação atingiu categoria<br />

de freguesia, sob a invocação de Nossa Senhora da Ajuda de Itaporanga.<br />

O Município surgiu em 1854, passando a sua sede à vila e muito mais<br />

tarde à cidade sempre com o topônimo de Itaporanga, vocábulo de origem<br />

tupi que significa pedra bonita (ita-pedra, poranga-bonita). Em<br />

1944, atingido pela legislação federal que proibia duplicidade de nomes,<br />

passou a se chamar Irapiranga por determinação do Decreto-lei estadual<br />

n.° 533. A partir de 1.° de janeiro de 1949 adotou a denominação de Itaporanga<br />

d'Ajuda por força da Lei estadual n.° 123. (ibidem)<br />

A perspectiva diacrônica deste topônimo permite notar a recuperação<br />

tanto do nome indígena original – Itaporanga – quanto do<br />

primitivo designativo religioso, a padroeira da cidade – Nossa Senhora<br />

da Ajuda. Ao contrário do processo comum, houve aqui o resgate<br />

do indianismo.<br />

3.9. Hierotopônimos não marianos em Sergipe<br />

Outros 13 municípios aludem a santos católicos, a saber: Frei<br />

Paulo, Santa Luzia do Itanhy, Santa Rosa de Lima, Santana do São<br />

Francisco, Santo Amaro das Brotas, São Cristóvão, São Domingos,<br />

São Francisco, São Miguel do Aleixo, Cedro de São João, Amparo<br />

de São Francisco, Canindé de São Francisco, Carmópolis. Assim, os<br />

hierotopônimos atuais no estado perfazem um total de dezenove<br />

(25,3% dos topônimos atuais), dos quais 7 (36,8%) dos hierotopônimos<br />

sergipanos referem-se ao culto mariológico, explicitando a forte<br />

relação com a entidade Maria, argumento exposto em todo esse trabalho.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CARVALHINHOS, Patrícia de Jesus. Hierotoponímia portuguesa:<br />

os nomes de Nossa Senhora. Disponível em:<br />

. Acesso em: 20 jun.<br />

2010.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

574<br />

______. Intersecções línguo-culturais na onomástica: a questão religiosa.<br />

Disponível em:<br />

. Acesso<br />

em: 22 jun. 2010.<br />

____. Hierotoponímia portuguesa. De Leite de Vasconcelos às atuais<br />

teorias onomásticas. Estudo de caso: as Nossas Senhoras. 2005.<br />

(Doutorado pelo programa de pós-graduação em Semiótica e Linguística<br />

Geral – Departamento de Linguística). Universidade de São<br />

Paulo, São Paulo.<br />

DICK, Maria Vicentina. Toponímia e antroponímia no Brasil. Coletânea<br />

de estudos. São Paulo: Gráfica da FFLCH/USP, 1992.<br />

GREGOLIN, Maria do Rosário (org.). Discurso e Mídia. A cultura<br />

do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003.<br />

NUNES, Maria Thetis. História de Sergipe a partir de 1820. [s/l.]:<br />

Cátedra / MEC, 1978<br />

OLIVA, Terezinha. A.; SANTOS, Lenalda Andrade. Trajetória histórica<br />

de Sergipe. São Paulo: Ática, 2002.<br />

ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silêncio: no movimento dos<br />

sentidos. 4. ed. Campinas: Unicamp, 1997.<br />

PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et alii.<br />

Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999.<br />

RAMOS, Ricardo Tupiniquim. Processos de mudança toponímica e<br />

sua abordagem pela teoria da variação e mudança linguística. 2007,<br />

Ano 13, nº 38<br />

SAPIR, Edward. Língua e ambiente. Linguística como ciência. Ensaios.<br />

Rio de Janeiro: Acadêmica, 1969, p. 43-62.


1. Introdução<br />

AS METÁFORAS DO AMOR<br />

EM REVISTAS PARA ADOLESCENTES<br />

Ana Paula Ferreira (UERJ)<br />

anapaferr@gmail.com<br />

Assim como o próprio conceito de indivíduo, o amor é uma<br />

construção histórico-social, portanto, não pode ser considerado como<br />

constituinte de uma “essência humana”, visto que nem mesmo esta<br />

existe. Diferentes representações acerca do amor podem ser verificadas,<br />

podendo estas ser mantidas ou alteradas de acordo com os valores,<br />

interesses, necessidades, costumes e crenças de cada época e sociedade.<br />

Se há, então, essa pluralidade, existiria uma forma predominante<br />

nos dias atuais, que fosse mais valorizada ou possibilitada pela<br />

sociedade moderna? Seria a mídia, de alguma forma, instrumento<br />

participante nesse processo?<br />

É inegável a importância da mídia na formação de comportamentos.<br />

A todo o momento, ela orienta a ação das pessoas, indicando<br />

o que estas devem ou não consumir, o modo como devem agir, e, até<br />

mesmo, o que devem ser e pensar. Ao mesmo tempo, é também reflexo<br />

da sociedade, refletindo os anseios desta, com a intenção de atingir<br />

seu público e ser consumida por este.<br />

Os jovens, em particular, parecem ser constantemente influenciados<br />

pelo o que é apresentado pela mídia. Isso não significa que<br />

os adultos estariam alheios ao poder desta. Mas, sem dúvida, a juventude<br />

merece aqui um destaque, devido ao período em que se encontra<br />

de construção e desenvolvimento, necessidade de experimentações,<br />

integração e aceitação. Paralelamente a isto, os espaços tradicionais<br />

de referência para o adolescente e o jovem, como a família e<br />

a escola, nem sempre têm conseguido prover as necessidades de informação<br />

geradas por uma realidade em acelerado processo de mudança.<br />

É nesse contexto que a mídia se firma ainda mais como um<br />

instrumento de formação de mentalidades e atitudes.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

575<br />

As relações amorosas são intensamente abordadas pela mídia.<br />

Reconhecendo as representações sociais acerca dos relacionamentos,<br />

ela busca oferecer aquilo que acredita ser de interesse do público a<br />

que se destina. Consequentemente, acaba também por influenciar este,<br />

ratificando as regras de conduta social.<br />

A sociedade ocidental contemporânea parece estimular, em<br />

geral, um tipo muito particular de amor, diferente da concepção romântica<br />

das gerações passadas, onde o que se busca em uma relação,<br />

primordialmente, é a satisfação dos próprios desejos. Tudo se torna<br />

muito fluido, as sensações superam o sentimento, em uma necessidade<br />

imperativa de se consumir bem-estar e eliminar qualquer incômodo<br />

ou desconforto. Observa-se uma maior preocupação com a satisfação<br />

pessoal, onde os próprios desejos prevalecem sobre os do<br />

outro, o qual, nessa relação, não é alguém dotado de alteridade, mas<br />

“qualquer um”, ou melhor, alguém que proporcione prazer.<br />

Minha intenção, através da observação das representações da<br />

mídia impressa acerca das relações amorosas contemporâneas, seria<br />

a de verificar como o conceito de amor é apresentado nessas produções,<br />

averiguando as formas de relacionar-se privilegiadas atualmente<br />

pelos instrumentos midiáticos voltados para a juventude. Para tanto,<br />

contarei com contribuições da Linguística Cognitiva; em especial,<br />

utilizarei a Teoria da Metáfora Conceptual.<br />

No intuito de entender melhor como o amor é conceptualizado<br />

contemporaneamente, quais as ideologias presentes e as mensagens<br />

transmitidas nestes discursos que têm o jovem como seu principal<br />

interlocutor, destacarei as metáforas conceptuais que são utilizadas<br />

quando os relacionamentos amorosos são abordados, visto que<br />

estas são instrumentos poderosos para a compreensão da visão de<br />

mundo existente em determinada sociedade.<br />

Por trabalhar com essa faixa etária, verifico que seus relacionamentos,<br />

de modo geral, são baseados em busca por satisfação pessoal<br />

através de contatos superficiais e efêmeros, e isso se reflete em<br />

seus atos e objetivos de vida. Considero que a mídia pode ser instrumento<br />

que, ao mesmo tempo, transparece e estimula esse tipo de<br />

comportamento.


2. Metáfora e Cognição<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

576<br />

O estudo acerca das metáforas não é recente. Sua noção mais<br />

antiga no Ocidente vem do século IV a. C., da Grécia Antiga. Aristóteles,<br />

em sua Arte Poética, define-a como “a transposição do nome<br />

de uma coisa para outra, transposição do gênero para a espécie, ou da<br />

espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, por via de analogia.”<br />

(1964, p. 304). Com o passar do tempo, essa categoria proposta<br />

por Aristóteles foi sendo desmembrada em outras figuras de<br />

linguagem, e o senso comum nos indica que a metáfora, hoje, pode<br />

ser definida como uma figura que faz uma comparação implícita entre<br />

duas coisas, entidades ou assuntos não relacionados.<br />

Essa concepção nos leva a defender que a metáfora é um fenômeno<br />

usado com finalidades artísticas e baseado na semelhança<br />

entre duas entidades que são comparadas. Sendo apenas um elemento<br />

acessório, usado para “enfeitar” o discurso, a metáfora não seria<br />

essencial em nossa comunicação.<br />

Contudo, a partir de 1980, com a publicação de Metáforas da<br />

vida cotidiana, de George Lakoff e Mark Johnson, surge uma nova<br />

visão de metáfora: a metáfora conceptual. De acordo com ela, a metáfora<br />

tem o objetivo de auxiliar na compreensão de determinados<br />

conceitos, sendo empregada comumente no dia-a-dia por todas as<br />

pessoas. A metáfora passa a não mais ser considerada como um ornamento,<br />

mas como um processo importante do pensamento humano.<br />

Segundo Lakoff (2002), uma metáfora conceptual é uma maneira<br />

convencional de conceptualizar um domínio de experiências<br />

em termos de outro, normalmente de modo inconsciente. Ou seja, a<br />

metáfora é chamada de conceptual porque fornece o conceito de algo.<br />

Em uma metáfora conceptual, encontramos dois tipos de domínios,<br />

o domínio-fonte e o domínio-alvo. Domínio é a área do conhecimento<br />

ou experiência humana. O domínio-fonte é aquele a partir<br />

do qual alguma coisa é conceptualizada metaforicamente; geralmente<br />

é algo concreto, que faz parte de nossa experiência. O domínioalvo<br />

é o abstrato, é aquele que desejamos conceptualizar.<br />

Se pegarmos o exemplo O AMOR É UMA VIAGEM (as metáforas<br />

conceptuais são sempre grafadas em caixa alta), torna-se cla-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

577<br />

ro que o conceito de amor é fornecido a partir do conceito de viagem.<br />

O amor é o domínio-alvo, aquele a que queremos atribuir um<br />

conceito e viagem é o domínio-fonte, a partir do qual o amor é conceptualizado.<br />

Quando afirmamos que um conceito é compreendido a partir<br />

de outro, consideramos que há uma série de correspondências entre a<br />

fonte e o alvo, assim, elementos conceptuais do alvo correspondem a<br />

elementos conceptuais da fonte. Essas correspondências conceptuais<br />

sistemáticas são chamadas de mapeamento. Para o exemplo dado anteriormente,<br />

Sardinha (2007, p. 31) fornece os seguintes mapeamentos,<br />

entre outros:<br />

· Viajantes: marido e mulher;<br />

· Mapa da viagem: planos futuros da vida a dois;<br />

· Destino da viagem: relação feliz a dois;<br />

· Deslocamento tranquilo na viagem: relação sem problemas.<br />

Sardinha ainda sinaliza que se uma viagem longa é monótona<br />

ou cansativa, um casal que vive há muito tempo junto pode se cansar<br />

do relacionamento ou achá-lo monótono. Esses seriam desdobramentos,<br />

ou seja, as inferências que podemos fazer a partir de uma metáfora<br />

conceptual.<br />

Compreender, então, uma metáfora significa efetuar o mapeamento<br />

entre a fonte e o alvo. Ao utilizarmos uma expressão linguística<br />

metafórica, nós respeitamos o mapeamento convencionado pela<br />

comunidade linguística; não é qualquer elemento do alvo que pode<br />

ser mapeado com determinado elemento da fonte. Gostaria de ressaltar<br />

aqui a diferença entre expressões linguísticas e metáforas conceptuais.<br />

As expressões linguísticas são as manifestações (modo de falar)<br />

das metáforas conceptuais (modos de pensar). É através do uso<br />

das expressões linguísticas que a existência das metáforas conceptuais<br />

é revelada.<br />

As metáforas conceptuais são culturais, resultantes de mapeamentos<br />

que são relevantes para uma determinada cultura. Elas refletem<br />

a ideologia e o modo de ver o mundo de certo grupo de pessoas.<br />

Elas são coletivas, no sentido de que para serem verdadeiras, precisam<br />

ser compartilhadas em sociedade. Portanto, podem ser emprega-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

578<br />

das como meio de entender como as pessoas vivem e interagem no<br />

meio social, em interface com diferentes áreas, como a análise do<br />

discurso e a linguística de corpus, entre outras.<br />

A teoria da metáfora conceptual pressupõe que os mapeamentos,<br />

em uma dada cultura, sejam legítimos, frutos de um desenvolvimento<br />

histórico-cognitivo na tentativa de compreender melhor o<br />

mundo ao seu redor. Nem sempre, porém, é o que verificamos; em<br />

alguns casos, deparamo-nos com mapeamentos artificiais, ou seja,<br />

construídos de acordo com necessidades de certo grupo, em benefício<br />

de determinadas pessoas ou instituições.<br />

As mídias, em especial, a publicidade, costumam utilizar as<br />

metáforas como um mecanismo eficiente para seduzir, apresentam<br />

uma ideologia de modo sutil e criam uma relação mais próxima com<br />

o público consumidor, que se torna cúmplice do emissor ao “entender”<br />

a mensagem que está sendo transmitida. É o exemplo da propaganda<br />

que nos mostra um grupo de amigos, felizes, magros, todos de<br />

aparência saudável, em contato com a natureza, a qual nos diz que<br />

BEBER O REFRIGERANTE X É SER FELIZ / É SER MAGRO / É<br />

SER SAUDÁVEL / É TER AMIGOS / É RESPEITAR A NATU-<br />

REZA, e assim por diante. Podemos, assim, constatar que as metáforas<br />

são recursos retóricos poderosos.<br />

3. As metáforas conceptuais nas revistas para adolescentes<br />

Com o intuito de observar a conceptualização do amor e verificar<br />

as mensagens que são transmitidas às jovens leitoras das revistas<br />

Capricho e Atrevida, selecionei artigos sobre relacionamentos<br />

amorosos em seis revistas, ao todo, publicadas nos meses de maio e<br />

junho de 2009. Todos os artigos abordavam questões acerca dos relacionamentos<br />

amorosos juvenis. Destaquei algumas metáforas conceptuais<br />

presentes nesses artigos, as quais apresentarei a seguir. O<br />

processo de identificação das metáforas foi feito manualmente,<br />

através da leitura de cada artigo.


1. AMOR É VIAGEM<br />

“... porque seu amor vai assim, aos trancos e barrancos...”.<br />

“... porque o amor chegou ao fim...”.<br />

· Domínio-alvo: amor.<br />

· Domínio-fonte: viagem.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

579<br />

Os viajantes são o namorado e a namorada, e se o relacionamento<br />

amoroso é uma viagem, podemos considerar que ele teve um<br />

início, terá um término, o trajeto poderá ser longo ou curto, monótono<br />

ou excitante etc.<br />

2. AMOR É NEGÓGIO<br />

“... tem que investir quando a gente sente que é um amor<br />

maior”.<br />

· Domínio-alvo: amor.<br />

· Domínio-fonte: negócio.<br />

Neste caso, o investidor é a namorada; ela poderá realizar os<br />

mais variados investimentos, os quais podem ser atenção, carinho,<br />

respeito, um bom papo, ou também trapaças, e até mesmo uma produção<br />

mais caprichada, como roupas, maquiagens... O lucro obtido<br />

com o investimento deverá ser a aquisição e manutenção do próprio<br />

namorado.<br />

3. AMOR É ELEIÇÃO<br />

“... que tipo de namorada você vai ser quando for eleita<br />

ganhadora do amor dele. Se está em fase de campanha, ...”.<br />

“Inicie a sua campanha rumo ao amor do gato. Panfletos,<br />

cartazes, propagandas ...”.<br />

· Domínio-alvo: amor.<br />

· Domínio-fonte: eleição.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

580<br />

O candidato é a pretendente a namorada, o cargo almejado é o<br />

posto de namorada, a campanha poderá se valer de várias estratégias,<br />

novamente podem ser utilizados carinho, atenção, respeito, um bom<br />

papo, como também mentiras, trapaças, e até mesmo uma produção<br />

mais caprichada, roupas novas, maquiagens... Vale lembrar que a eleição<br />

poderá ser vencida, ou não, assim como também há a possibilidade<br />

de renúncia e de outros candidatos concorrendo ao almejado<br />

posto.<br />

4. AMOR É JOGO<br />

“No jogo do amor você deve aspirar sempre pelo posto de<br />

titular. Nada de ficar no banco de reserva...”.<br />

“Goooool!!! Tá na maior disputa pelo amor do gato?”.<br />

· Domínio-alvo: amor.<br />

· Domínio-fonte: jogo.<br />

Os jogadores são o namorado e a namorada. Eles podem estar<br />

no mesmo time, buscando uma diversão em conjunto, ou em times<br />

adversários, competindo entre si; nesse caso, o objetivo é ganhar do<br />

outro. O prêmio pode ser conquistar a afeição do namorado, dominálo,<br />

enganá-lo, dependendo de qual for a proposta do jogo e se algumas<br />

regras, como, por exemplo, respeito, sinceridade, entre outras,<br />

serão estabelecidas. Outros jogadores poderão participar também do<br />

jogo, brigando pela posição de namorada e deixando a perdedora no<br />

banco de reserva, ou seja, sem participar do jogo do amor.<br />

5. AMOR É GUERRA<br />

“... que possam ser rivais batalhando pelo amor do gato”.<br />

“... deu todas as estratégias para conquistar o coração dele”.<br />

· Domínio-alvo: amor.<br />

· Domínio-fonte: guerra.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

581<br />

Os adversários poderão ser o namorado e a namorada, ou a<br />

namorada e uma rival, ambas querendo conquistar o amor do mesmo<br />

garoto. O objetivo é conquistar ou derrotar o outro (o inimigo). É<br />

claro que não se pode confiar no inimigo, e as táticas de guerra poderão<br />

ser as mais variadas possíveis, visando ao alcance do objetivo.<br />

6. AMOR É MAGIA<br />

“... até mesmo ‘enfeitiçada’. É que o amor é magia mesmo”.<br />

“Enfeitice o gato. Dicas e magias para você ter o seu amor”.<br />

· Domínio-alvo: amor.<br />

· Domínio-fonte: magia.<br />

O mágico é a namorada, que se valerá de mágicas, truques ou<br />

encantamentos para enfeitiçar sua plateia, o namorado. Cabe aqui<br />

ressaltar que mágicas são ilusões utilizadas para dar uma falsa impressão<br />

às pessoas. O encantamento tem um efeito temporário e os<br />

truques podem ser descobertos ou revelados.<br />

7. AMOR É DOENÇA<br />

“Ele pode estar morrendo de amor ...”.<br />

“... só o tempo e um novo amor tudo de bom podem curar<br />

esse amor”.<br />

· Domínio-alvo: amor.<br />

· Domínio-fonte: doença.<br />

Os pacientes são o namorado e/ou a namorada, a cura seria o<br />

término do amor, os sintomas podem ser variados como sofrimento<br />

causado pelo outro, falta de concentração nas atividades cotidianas<br />

que não estejam relacionadas com o outro, alta emotividade etc. Segundo<br />

as metáforas verificadas, os remédios mais eficientes seriam o<br />

aumento da autoestima e um novo amor que não provocasse tais sintomas.


8. AMOR É SEMENTE<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

582<br />

“... estiverem dispostos a cultivar esse amor em equilíbrio<br />

com a família”.<br />

“... você já sinta o amor desabrochar no seu coração”.<br />

· Domínio-alvo: amor.<br />

· Domínio-fonte: semente.<br />

Os semeadores são o namorado e a namorada, e a terra semeada<br />

é o namoro. Bons frutos seriam um relacionamento feliz, sem<br />

problemas, os cuidados são os mais variados. Os adubos podem ser<br />

atenção, carinho, respeito, um bom papo, e até mesmo uma produção<br />

mais caprichada, como roupas, maquiagens... Nem sempre, porém, a<br />

semente vinga, fatores internos e externos podem dificultar esse processo,<br />

como a fofoca e interferência de terceiros no relacionamento,<br />

ciúmes, incompatibilidades e demais tribulações pelas quais podem<br />

passar os relacionamentos.<br />

4. Considerações finais<br />

A partir das metáforas, pode ser confirmada a pluralidade de<br />

representações para o amor na sociedade contemporânea. Foram encontradas<br />

a representação de amor como algo positivo, seja um presente<br />

que é ofertado, ou uma semente que necessita ser cuidada para<br />

florescer, como também verificamos uma visão negativa, a de uma<br />

doença, ou a de uma guerra, por exemplo.<br />

Entre as metáforas sinalizadas, há algumas bastante significativas<br />

que parecem ratificar a sensação de que o outro é um adversário,<br />

alguém que deve ser combatido e que precisa ser derrotado para<br />

que possamos alcançar a vitória e a sensação de felicidade e bemestar<br />

que constantemente nos é imposta.<br />

Há também aqui espaço para a ideia do amor enquanto uma<br />

ilusão, ou um negócio. De qualquer modo, continuamos a ter de enganar,<br />

passamos a ter concorrentes e/ou oponentes, que, curiosamente,<br />

são aqueles com quem nos relacionamos afetivamente.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

583<br />

Não quero, com essa breve observação, afirmar que todos os<br />

relacionamentos amorosos são pautados por regras egocêntricas, e<br />

que a visão de amor preponderante nos dias atuais seria a do outro<br />

como um inimigo, alguém que, em certo ponto, passa a impedir a obtenção<br />

de prazer e que, portanto, deve ser deixado em segundo plano.<br />

Mas é interessante reconhecer que as metáforas indicam fortemente<br />

essa visão de relacionamento, que cada vez mais vem sendo retratada<br />

e estimulada pelos meios de comunicação. E se os relacionamentos<br />

ditos íntimos passam a ser pautados por essas regras, o que podemos<br />

pensar sobre as outras formas de relacionar-se?<br />

Certamente, trata-se de uma pequena pesquisa, restrita a alguns<br />

artigos de duas revistas voltadas ao público adolescente, mas<br />

creio que o reconhecimento das possibilidades diversas de amar que<br />

hoje são oferecidas é fundamental para que ideologias não nos sejam<br />

impostas sem uma análise crítica daquilo que necessitamos e realmente<br />

queremos.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ARISTÓTELES. Arte poética. In: ___. Arte retórica e arte poética.<br />

Tradução: Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Difusão Europeia<br />

do Livro, 1964, p. 301-309.<br />

KÖVECSES, Zoltán. Metaphor: a practical introduction. New York:<br />

Oxford University Press, 2002.<br />

______. Metaphor in culture: universality and variation. Cambridge:<br />

Cambridge University Press, 2005.<br />

LAKOFF, George. Moral politics: how liberals and conservatives<br />

think. Chicago: University of Chicago Press, 2002.<br />

LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors we live by.<br />

Chicago: University of Chicago Press, 1980.<br />

_____. Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge<br />

to Western thought. New York: Basic Books, 1999.<br />

SARDINHA, Tony Berber. Metáfora. São Paulo: Parábola, 2007.


1. Introdução<br />

AS METAMORFOSES DA MULHER<br />

NA POESIA BRASILEIRA FINISSECULAR<br />

Juliana Pêgas Costa (UERJ/FFP)<br />

jujupegas@hotmail.com<br />

A poesia brasileira do segundo oitocentos, marcada por uma<br />

verdadeira pluralidade de estilos literários, apresenta a mulher em<br />

suas diversas metamorfoses. Essa figura feminina perpassa as estéticas<br />

de fin de siècle sob influência decadentista, estética que elege<br />

Charles Baudelaire como patrono e retira, de seu tom profanador,<br />

grande inspiração.<br />

Este trabalho pretende analisar algumas das diversas faces atribuídas<br />

à mulher, presentes nos poemas de Olavo Bilac e Raimundo<br />

Correia, inseridos e rotulados como parnasianos, mas que carregam<br />

nítida influência da estética decadentista.<br />

2. As diversas faces da femme fatale<br />

Charles Baudelaire, poeta francês, foi considerado o “pai” do<br />

Decadentismo. Seus poemas revelam a mulher como agente, dominadora<br />

do ato sexual, trazendo para a literatura a figura da femme fatale,<br />

que será recorrente na poesia brasileira finissecular. O escritor,<br />

ao apresentar essa “fêmea maldita”, desagrada a burguesia francesa,<br />

causando polêmica. Vale lembrar que a sexualidade constitui-se como<br />

um tabu em muitas sociedades. Os valores, a moral, com o reforço<br />

da religião, tentam deter ou regular o instinto natural do sexo. Segundo<br />

Camille Paglia: “A sociedade é uma construção artificial, uma<br />

defesa contra o poder da natureza (...). O homem civilizado esconde<br />

de si mesmo a extensão de sua subordinação à natureza” (PAGLIA,<br />

1993, p.13).<br />

Dessa forma, Baudelaire, ao apresentar a mulher exercendo<br />

seus desejos, mostrando sua sexualidade, transgredia, de fato, os valores<br />

morais. O autor de “As flores do Mal” repudiava o natural. Sob


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

585<br />

essa perspectiva, a mulher, “ser natural por excelência”, era abominável<br />

na visão baudelairiana:<br />

A mulher é o oposto do Dândi.<br />

Deve, pois, nos causar repulsa.<br />

A mulher tem fome e quer comer – sede, e quer beber.<br />

No cio, quer ser comida.<br />

Que glória!<br />

A mulher é natural, isto é, abominável.<br />

Por isso mesmo ela é sempre vulgar, ou seja, o contrário do Dândi.<br />

(BAUDELAIR, 1995, p.525)<br />

A partir dessa concepção, o poeta traz para a literatura figuras<br />

femininas que se afastam, ao máximo, do ideal naturista. Surge, nesse<br />

cenário, a mulher maquiada, em que o artifício da maquiagem<br />

transforma a natureza imperfeita: “tudo o que a moda faz deve ser<br />

considerado uma deformação sublime da natureza, transformando a<br />

natureza grosseira e imunda em charme e beleza” (BAUDELAIRE,<br />

1993, p. 244). Surgem, também, as figuras da lésbica, da prostituta e<br />

da mulher infértil, uma vez que a maternidade representaria o retrato<br />

mais fiel da natureza.<br />

O período entre o final do século XIX e início do século XX é<br />

marcado por uma verdadeira pluralidade de estilos. Como afirma José<br />

Guilherme Merquior (1996, p. 141): “A pluralidade de estilos é o<br />

aspecto mais ostensivo do segundo Oitocentos”. Estes estilos retiram<br />

de Baudelaire grande influência.<br />

O Parnasianismo, movimento literário francês, inicia-se com<br />

a publicação de Le Parnasse Contemporain, em 1866, que contou<br />

com Theóphile Gautier, um dos poetas mais importantes do movimento.<br />

Esta escola literária buscava a precisão vocabular, a perfeição<br />

formal e evitava os exageros sentimentais, como fizera outrora o<br />

Romantismo. Os poemas deveriam ser fruto de um verdadeiro trabalho<br />

com as palavras, e não um mero produto da inspiração. No Brasil,<br />

essa estética, assim como o Simbolismo, foi alvo de inúmeras críticas,<br />

uma vez que nela não havia preocupação direta com questões<br />

sociais ou de cunho nacional. Isso fez com que o movimento fosse<br />

considerado superficial, por muitos críticos literários entusiastas do<br />

Modernismo.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

586<br />

Essa estética, para alguns influenciada pelo cientificismo e<br />

positivismo, mostrou certa dualidade na figura feminina: de um lado,<br />

a mulher da ideologia católica, ressaltando-se sua bondade e maternidade.<br />

De outro lado, seus desejos e sua sensualidade. “De alguma<br />

maneira, é também a repetição de um certo dualismo entre o 'bem' e<br />

o 'mal', o pecado e a virtude”(SANT’ANNA, 1984, p. 68).<br />

Segundo os preceitos positivistas, a mulher deveria representar<br />

o amor e a bondade, deveria sustentar a base familiar. Dessa forma,<br />

a estética parnasiana, sob influência dessa corrente cientificista,<br />

mostra a face dessa mulher de uma sociedade patriarcal.<br />

Por outro lado, encontramos a mulher, ainda na estética parnasiana,<br />

de forma bastante sensual. Porém, nota-se um conflito, uma<br />

vez que todo o prazer do eu lírico pela figura feminina transporta-se<br />

para um distanciamento, no momento em que a imagem da mulher<br />

transforma-se em objeto estático, passível de contemplação: “Fixada<br />

num pedestal ou colocada no imaginário do poeta como algo a ser<br />

apenas visto, essa imagem narra o conflito entre a pulsão e o recalque”,<br />

afirma Affonso Romano de Sant’anna (Idem, p. 71). Nesse<br />

sentido, ao colocar a mulher como objeto a ser contemplado, transparece<br />

o ideal parnasiano em seu sentido estético, no “culto do objeto<br />

plástico à distância” (Ibidem, p. 71). Mas essas não são as únicas faces<br />

atribuídas à mulher no Parnasianismo. Há também a presença da<br />

fêmea devoradora e cruel, o que reforça a marca decadentista nesse<br />

movimento literário.<br />

O Decadentismo, estética também de matriz francesa do século<br />

XIX, mostrava-se contrária ao “cientificismo” parnasiano e ao naturalismo.<br />

A princípio, esta nomenclatura fora atribuída a certos pensadores<br />

que, com inspiração na obra de Charles Baudelaire, eram<br />

contrários à sociedade norteada pelos valores positivistas e burgueses.<br />

Entre esses intelectuais, destacam-se Stéphanie Mallarmé (1842-<br />

1898), Paul Verlaine (1844-1896) e Joris Karl Huysmans (1842-<br />

1898). Este movimento retira de Baudelaire seu prazer em desagradar,<br />

em chocar e em transgredir.<br />

A figura da femme fatale baudelairiana emerge no Decadentismo,<br />

o qual irá influenciar as estéticas Parnasiana e Simbolista. De<br />

acordo com a professora francesa Mireille Dottin-Orsini, “a literatura


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

587<br />

da segunda metade do século XIX mostra claramente que a mulher<br />

mete medo, que é cruel e pode matar” (1996, p. 13).<br />

Nossos poetas Raimundo Correia e Olavo Bilac, inseridos no<br />

Parnasianismo, trazem essa figura feminina transgressora em diversos<br />

de seus poemas, colaborando para a percepção de que o Decadentismo<br />

se faz presente em poetas rotulados e classificados como<br />

pertencentes a outra estética literária.<br />

A partir desse perfil, sob influência da estética decadentista, é<br />

que serão analisadas algumas faces recorrentes da mulher na poesia<br />

brasileira parnasiana: as emblemáticas Salomé e Cleópatra, a mulher<br />

sereia, a mulher vampira e a Esfinge.<br />

Quando se fala em Decadentismo, principalmente ao abordar<br />

a imagem feminina, surge, de imediato, a imagem de Salomé.<br />

O episódio bíblico contido nos evangelhos de Mateus (14, 1-<br />

11) e Marcos (6,17-28) apontam Salomé como responsável pela morte<br />

de João Batista. Mas esse fato não é suficiente para que essa emblemática<br />

figura se torne a deusa dos decadentistas. Salomé, numa<br />

festa do palácio, dança para Herodes, conquistando, assim, a possibilidade<br />

de realizar um de seus desejos. Atendendo ao pedido de sua<br />

mãe Herodias, pede a cabeça de João Batista.<br />

Eis a musa eleita pelos decadentistas, ao unir beleza e sensualidade<br />

à ruína e à destruição. De acordo com Cláudia Amorim, “Salomé<br />

não é apenas uma sedutora; é, para os decadentistas, uma obra<br />

de arte viva, perigosa, fatal ao homem” (AMORIM, 2004, p. 41-42).<br />

O episódio bíblico será alvo de diversas releituras, a partir do<br />

século XIX, tornando-a cada vez mais cruel e libidinosa. Entre as célebres<br />

interpretações estão as pinturas de Gustave Moreau, em 1876,<br />

e a peça teatral de Oscar Wilde, estreada em 1896, quatro anos após<br />

ter sofrido censura.<br />

Com efeito, Salomé está presente nas mulheres, ao unirem beleza<br />

e sensualidade à ruína do homem. Essa figura serve de alegoria<br />

a tantas outras mulheres malditas da literatura. De acordo com Paula<br />

Morão:<br />

O mito de Salomé, ao longo da história das suas ocorrências textuais,<br />

cada vez se afasta mais da glosa do texto matricial dos Evangelistas,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

588<br />

e progressivamente se encaminha para a miscigenação com diversas outras<br />

figuras mitológicas que se estruturam segundo um mesmo paradigma<br />

disfórico, de sexo representado como ritual violento, angustiante,<br />

provocador de ruínas, morte e destruição (MORÃO, 1997, p. 116)<br />

Diversos poemas de Olavo Bilac e Raimundo Correia deixam<br />

entrever a imagem de Salomé, através de figuras femininas com exuberante<br />

beleza que mostram seus poderes de destruição.<br />

O poema “Abyssus”, de Olavo Bilac mostra, claramente, a ferocidade<br />

da mulher que destrói e devora o homem:<br />

Bela e traidora! Beijas e assassinas...<br />

Quem te vê não tem forças que te oponha<br />

Ama-te, e dorme no teu seio, e sonha,<br />

E, quando acorda, acorda feito em ruínas...<br />

Seduzes e convidas, e fascinas,<br />

Como o abismo que, pérfido, a medonha<br />

Fauce apresenta flórida e risonha,<br />

Tapetada de rosas e boninas.<br />

O viajor, vendo as flores, fatigado<br />

Foge o sol, e, deixando a estrada poenta,<br />

Avança, incauto... Súbito, esbroado,<br />

Falta-lhe o solo aos pés: recua e corre,<br />

Vacila e grita, luta e se ensanguenta,<br />

E rola, e tomba, e se espedaça, e morre...<br />

Logo de início, o poeta ressalta a beleza da mulher relacionada<br />

à maldade e o prazer que o homem tem em ser seduzido por ela.<br />

Em seguida, apresenta a face escondida desse prazer: a degradação<br />

do homem. Essa mulher ataca e, sem motivo aparente, devora o homem<br />

e o submete à pior das tormentas. A mulher é, aparentemente,<br />

um universo dicotômico de extremos. Ora proporciona imenso prazer,<br />

ora imensa dor, mas essas sensações caminham juntas no significado<br />

dessa mulher, ressaltando-se o ideal decadente. A mulher apresenta-se<br />

como verdadeira encarnação do mal, levando a figura<br />

masculina, através das tentações carnais, às penitências do que fora<br />

desfrutado. Na visão de Camille Paglia, “para Baudelaire, sexo é limitação<br />

e não libertação” (1992, p.388). Da mesma forma, o poema<br />

de Bilac apresenta essa percepção de que o homem “é traído pelo<br />

corpo, entregue às mãos das mulheres por fraqueza sexual” (Idem, p.<br />

388).<br />

Os últimos versos mostram essa destruição sendo efetivada. A<br />

mulher, como um animal feroz, faz do homem sua presa e o devora.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

589<br />

O homem tenta fugir, mas a superioridade desta mulher não permite<br />

que ele tenha forças para lutar.<br />

O poema sugere outra figura feminina muito recorrente no<br />

Decadentismo: a mulher-vampiro. O primeiro verso já contém traços<br />

de vampirismo, no momento em que o poeta relaciona o beijo ao assassinato.<br />

Essa imagem misteriosa, que une paixão e morte, constitui-se<br />

como uma das diversas faces da mulher fatal. No poema “As<br />

metamorfoses do Vampiro”, Charles Baudelaire apresenta a mulher<br />

sob esta figura, com “lábios de framboesa / coleando qual serpente<br />

ao pé da lenha acesa”. Ainda no mesmo poema, ela diz: “Tão douta<br />

na volúpia eu sou, queridos sábios, / Quando um homem sufoco à<br />

borda de meus lábios”. O soneto XIV, de Via-Láctea, de Olavo Bilac<br />

deixa entrever os mesmos efeitos mortais causados pela figura feminina,<br />

através de sua “mordida”:<br />

Depois dos lábios sôfregos e ardentes,<br />

Senti – duro castigo aos meus desejos –<br />

O gume fino de perversos dentes...<br />

E não posso das faces poluídas<br />

Apagar os vestígios desses beijos<br />

E os sangrentos sinais dessas feridas!<br />

Outra forte imagem feminina presente na estética decadentista<br />

é a de Cleópatra. A mais famosa rainha egípcia foi eternizada por sua<br />

inteligência e seu enorme poder sedutor. De acordo com Camille Paglia,<br />

“escravizada pela natureza, Cleópatra torna-se uma escravizadora<br />

sexual sadiana” (1993, p. 385). Com sua fascinação por serpentes,<br />

encarnará, na poesia do segundo oitocentos, a imagem da mulher-serpente,<br />

sedutora, envolvente e letal, símbolo da tentação erótica.<br />

O poema “Na Tebaida”, de Sarças de Fogo, de Olavo Bilac, traz<br />

essa mulher, encarnada na figura da serpente, sensual, sedutora e sádica:<br />

“Luto: porém teu corpo se avizinha/Do meu, e o enlaça como<br />

uma serpente... / Fujo: porém a boca prendes, quente, / Cheia de beijos,<br />

palpitantes, à minha...”.<br />

O mesmo poeta, em “O sonho de Marco Antônio”, descreve a<br />

sensualidade e o poder da mulher na figura de Cleópatra: “Ele é valente<br />

e ela o subjuga e o doma... / Só Cleópatra é grande, amada e<br />

bela! / Que importa o império e a salvação de Roma? / Roma não vale<br />

um só dos beijos dela!”.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

590<br />

A enigmática Esfinge também terá forte representação na poesia<br />

do segundo oitocentos. Segundo a mitologia grega, Esfinge era<br />

formada por cabeça de mulher, patas, garras e peitos de um leão,<br />

uma cauda de serpente e asas de águia. De acordo com a tradição<br />

grega, ela teria sido enviada para amaldiçoar a cidade de Tebas, lançando<br />

seu enigma, quase indecifrável, aos seus desafiadores. Como<br />

mortal consequência por não desvendar seu mistério, a criatura maligna<br />

devorava diversos homens que ousavam desafiá-la. Por sua inteligência<br />

(representada pela cabeça humana), causando destruição,<br />

essa Esfinge feminina torna-se uma das diversas metamorfoses sofridas<br />

pela mulher, presente nas estéticas finisseculares. O poeta Raimundo<br />

Correia, inserido na estética parnasiana, contém leves ressonâncias<br />

decadentistas, e apresenta a figura da mulher em seus poemas,<br />

sob nítida influência dessa estética. O soneto “Desdéns” mostra<br />

a face cruel, maligna das femmes fatales. Logo no início do poema, a<br />

mulher surge como uma fera, com “unhas de coral felinas”, pronta<br />

para destruir o homem: “garras que, a sorrir, tu me assassinas”. Assim<br />

como a Esfinge, essa mulher é uma cruel fera, que domina sua<br />

presa e a devora sem piedade.<br />

A efígie da Esfinge não está presente somente na femme fatale.<br />

Por ser uma figura enigmática, misteriosa, surge no cenário como<br />

a figura do mistério e das máscaras. A estética decadentista, através<br />

do simulacro configura-se, de acordo com Latuf Isaias Mucci, como<br />

“um texto esfíngico, que prescinde da decifração, porque vive de suas<br />

máscaras” (MUCCI, 1994, p. 52).<br />

Outra persona que emergirá na poesia brasileira parnasiana,<br />

através das influências decadentistas, é a sereia. Sugestiva e insaciável,<br />

a “mulher-sereia” seduz e inebria com seu canto. Essa figura,<br />

como tantas faces da mulher fatal, possui um poder infindável de sedução<br />

e de causar a morte do homem. O poema “A uma cantora”, de<br />

Raimundo Correia, deixa transparecer essa figura mitológica seduzindo<br />

o eu lírico, que diz ter sofrido uma flechada em seus ouvidos,<br />

através de seu canto.<br />

Olavo Bilac também traz em seus poemas a figura da sereia.<br />

Em “Medalha Antiga”, sua beleza e sua sensualidade são exaltadas:<br />

“Nua a deusa, nadando, a onda dos seios túmidos/ Leva diante de si,<br />

amorosa e sensual”. O mesmo poeta, no poema “A Iara” mostra, no-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

591<br />

vamente, essa figura folclórica sendo contemplada pelo eu lírico:<br />

“Vive dentro de mim, como num rio, / Uma linda mulher, esquiva e<br />

rara”.<br />

3. Conclusão<br />

A mulher aparece na literatura do segundo oitocentos assumindo<br />

diversas faces. Algumas delas, como as emblemáticas Salomé<br />

e Cleópatra, a vampira, a Esfinge e a sereia mostram-se extremamente<br />

sensuais e sádicas e entram no cenário da literatura como agentes,<br />

dominadoras do ato sexual. Os poetas Olavo Bilac e Raimundo Correia<br />

deixam entrever diversas das configurações da mulher fatal. Inseridos<br />

na estética parnasiana, esses, entre diversos poetas, mostram<br />

a visível presença da tão esquecida estética decadentista. Os traços<br />

do Decadentismo estão presentes, e muitas vezes, escondidos nas estéticas<br />

rotuladas como parnasianas ou simbolistas. Por isso, é importante<br />

ressaltar que, a figura feminina, em suas metamorfoses, perpassa<br />

essas estéticas do segundo oitocentos sob nítida influência decadentista.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

AMORIM, Cláudia. A cabeça de Sá-Carneiro na bandeja de Salomé:<br />

uma imagem da mulher na obra do poeta dos abismos. In: NAZAR,<br />

Sérgio (org.). As mulheres são o diabo. Rio de Janeiro: Eduerj, 2004.<br />

BAUDELAIRE, Charles. Meu coração a nu. Trad. Fernando Guerreiro.<br />

In: ___. Poesia e prosa. Edição organizada por Ivo Barroso.<br />

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.<br />

____.O pintor da vida moderna em Obras estéticas, filosofia da imaginação<br />

criadora. Petrópolis: Vozes, 1993.<br />

DOTTIN-ORSINI, Mireille. A mulher que eles chamavam fatal:<br />

Textos e imagens da misoginia Fin-de-Siècle. Trad. Ana Maria Schreber.<br />

Rio de Janeiro: Rocco, 1996.<br />

MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. Breve história<br />

da literatura brasileira I. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

592<br />

MORÃO, Paula. Salomé e seus avatares: representações do feminino<br />

perverso nos poetas portugueses de Orpheu. In: Convergência lusíada,<br />

n. 24. Rio de Janeiro: Nórdica, 1997.<br />

MUCCI, Latuf Isaias. Ruína & simulacro decadentista. Rio de Janeiro.<br />

Tempo Brasileiro, 1994.<br />

PAGLIA, Camille. Personas sexuais: arte e decadência de Nefertite<br />

a Emily Dickinson. 3. reimp. Trad. de Marcos Santarrita. São Paulo:<br />

Cia. das Letras, 1993.<br />

SANT’ANNA, Afonso Romano de. Da mulher esfinge como estátua<br />

devoradora ao strip-tease na alcova. In: __. O canibalismo amoroso:<br />

o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1984.


ASPECTOS DO PORTUGUÊS DO BRASIL<br />

NAS LETRAS DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA<br />

1. Introdução<br />

Maria Aparecida Rocha Gouvêa (UERJ e UniFOA)<br />

cidarochagouvea@hotmail.com<br />

“O Brasil é grande, todos o sabemos. E os sessenta milhões<br />

de brasileiros falamos e escrevemos de inúmeras maneiras a língua<br />

que nos deu Portugal.” Assim, Raquel de Queiroz (1958, p. 280) iniciou<br />

uma carta de resposta a um editor português que propunha alterações<br />

nos textos dela, como condição para publicação em Portugal.<br />

As diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil é<br />

uma discussão antiga, iniciada no período pós-independência. De um<br />

lado, os puristas defendiam a conservação do padrão português; de<br />

outro lado, havia os defensores do abrasileiramento da língua, com<br />

absorção das características próprias do modo brasileiro culto de se<br />

falar/escrever.<br />

Este artigo objetiva refletir sobre as propostas de inovações<br />

na língua nesse período histórico, como também sobre a legitimação<br />

do português falado/escrito no Brasil e demonstrar como a música<br />

popular brasileira, por se aproximar da nossa realidade, contribuiu e,<br />

até hoje, contribui para o registro da língua na forma como é falada/<br />

escrita no país.<br />

Para essas reflexões serão utilizadas as contribuições, principalmente,<br />

de Azeredo (2008), Cunha (1977) e Faraco (2008). Fontes<br />

como Bechara (2000), Sant’Anna (2004), entre outros, também referenciaram<br />

as reflexões e análises.<br />

2. Abrasileirar ou não? Eis a questão.<br />

Com a independência, o Brasil deu início ao processo de estruturação<br />

da sociedade e isso incluiu várias ações, como a criação<br />

de instituições educativas, dentre elas, o Colégio Pedro II com seus<br />

programas de ensino que incluíam o ensino da língua. Atrelado a isso,<br />

iniciou-se também a produção de instrumentos linguísticos como


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

594<br />

gramáticas, dicionários e antologias. Evidentemente, tais fatos também<br />

fizeram emergir o debate em torno das diferenças entre o português<br />

de Portugal e o português do Brasil, como relata Faraco (2008,<br />

p. 112): “O caminhar da carruagem vai constituindo, desde a Independência,<br />

dois grupos distintos: um conservador, purista; e outro,<br />

defensor da absorção, na escrita, de características próprias do modo<br />

brasileiro culto de falar a língua.”<br />

Azeredo (2008, p. 538) também registra a polêmica em torno<br />

da proposta do abrasileiramento da língua.<br />

A sorte da língua portuguesa na boca e na pena dos brasileiros tem<br />

sido, desde as primeiras décadas do século XIX, tema de controvérsia e<br />

debates entre dois grupos: tradicionalistas e progressistas. Estes geralmente<br />

defendendo o direito à inovação e à diferença, aqueles condenando<br />

uma e outra coisa em nome do que consideram uma prerrogativa dos<br />

mais antigos e verdadeiros donos da língua.<br />

Os puristas encontravam adeptos à proposta de conservação,<br />

como José Honório Rodrigues e Cândido de Figueiredo, com sua coluna<br />

no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, intitulada “o que se<br />

não deve dizer”. Joaquim Nabuco também acreditava na superioridade<br />

da raça portuguesa e defendia a conservação e uniformidade da<br />

língua no padrão português, como registra Faraco (2008, p. 113, apud<br />

PINTO, 1978, p. 197)<br />

A raça portuguesa, entretanto, como raça pura, tem maior resistência<br />

e guarda assim melhor o seu idioma: para essa uniformidade de língua<br />

escrita devemos tender. Devemos opor um embaraço à deformação que é<br />

mais rápida entre nós: devemos reconhecer que eles são os donos das<br />

fontes, que as nossas empobrecem mais depressa e que é preciso renoválas<br />

indo a eles.<br />

Do outro lado, brasileiros como Gonçalves Dias e José de Alencar<br />

defendiam que o abrasileiramento do português era uma necessidade.<br />

Para garantir essa tese, os escritores utilizavam dois argumentos:<br />

as necessidades expressivas dos artistas e a recepção da literatura<br />

pelo povo, como dizia Alencar: “Nós, os escritores nacionais,<br />

se quisermos ser entendidos de nosso povo, havemos de falarlhe<br />

em sua língua, com os termos ou locuções que ele entende, e que<br />

lhes traduz os usos e sentimentos” (FARACO 2008, p. 115, apud<br />

PINTO, 1978, p. 123).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

595<br />

Vale ressaltar que a inovação proposta por eles não era uma<br />

nova língua brasileira. Essa causa lutava apenas contra a inflexibilidade<br />

dos puristas como registra Cunha (1977, p. 25).<br />

A bem dizer, toda a questão da “língua brasileira” se resume, ainda<br />

hoje, na luta contra as regras inflexíveis dos puristas, dos gramáticos retrógrados,<br />

sempre contrários a inovações e defensores de um desarticulado<br />

sistema idiomático, simples mosaico de formas e construções colhidas<br />

em épocas diversas do passado literário.<br />

Como vemos, esse debate discute o limite entre a conservação<br />

do lusitanismo e a inovação, e persiste até os dias atuais, embora estejamos<br />

muito mais próximos da consciência da legitimação dos usos<br />

do português do Brasil.<br />

3. A norma é normal?<br />

Sabemos que nenhuma língua é homogênea, a não ser nas representações<br />

imaginárias de uma cultura e nas concepções políticas<br />

de uma sociedade. Ela é heterogênea porque é “um conjunto de variedades<br />

reconhecidas histórica, política e culturalmente como manifestação<br />

de uma mesma língua por seus falantes”. (FARACO, 2008,<br />

p. 34).<br />

Nesse contexto, também se faz necessário recuperar o conceito<br />

de norma, formulado pelo linguista Eugênio Coseriu, na década de<br />

50, entendendo-o como cada um dos diferentes modos sociais de realizar<br />

os grandes esquemas de relações do sistema da língua.<br />

Segundo Faraco (2008, p. 37)<br />

É possível, conceituar tecnicamente norma como determinado conjunto<br />

de fenômenos lingüísticos (fonológicos, morfológicos, sintáticos e<br />

lexicais) que são correntes, costumeiros, habituais numa dada comunidade<br />

de fala. Norma nesse sentido se identifica com normalidade, ou seja,<br />

com o que é corriqueiro, usual, habitual, recorrente (“normal”) numa certa<br />

comunidade de fala.<br />

Na abordagem sobre o tema, o autor (2008, p. 73) classifica<br />

três normas para o português no Brasil:<br />

· Norma culta/comum/standard – conjunto de fenômenos linguísticos<br />

que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações<br />

monitoradas de fala e escrita. É a expressão viva de certos<br />

segmentos sociais em determinadas situações.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

596<br />

· Norma padrão – construto sócio-histórico que serve de referência<br />

para estimular um processo de uniformização. É uma codificação relativamente<br />

abstrata, uma baliza extraída do uso rela para servir de<br />

referência, em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos<br />

políticos de uniformização linguística. O autor defende que não<br />

precisamos de uma norma-padrão para a pronúncia, pois é desnecessária<br />

e inconveniente, entretanto é óbvio que necessitamos de uma<br />

grafia-padrão.<br />

· Norma gramatical – segundo o autor, nossos melhores gramáticos<br />

da segunda metade do século XX flexibilizaram os juízos normativos,<br />

quebrando a rigidez da tradição imposta no século XIX. Para<br />

ele, “nossas gramáticas atuais estão assim, num meio termo, entre<br />

‘os excessos caprichosos’ da norma-padrão e as descrições sistemáticas<br />

da norma culta/comum /standard”.<br />

Azeredo (2008, p. 549-552) descreve dezesseis aspectos que<br />

distinguem o português de Portugal do português do Brasil.<br />

São eles:<br />

· A construção do ser/ficar etc. + gerúndio: ficavam conversando;<br />

· A preferência pela colocação proclítica dos pronomes átonos: me<br />

solta;<br />

· O uso do ele e respectivas variações como complemento direto do<br />

verbo: guardei ele;<br />

· A tendência para a eliminação das estruturas proparoxítonas: cosca<br />

(por cócegas);<br />

· A dupla negação: não quero não;<br />

· O uso do presente do indicativo nas frases imperativas: pega outro<br />

pedaço de bolo;<br />

· A redução do sistema de pessoa do verbo à oposição entre duas formas<br />

– uma para a pessoa que fala e outra para as demais pessoas: eu<br />

planto X tu/você/ele/nós planta;<br />

· O uso de a gente como expressão genérica ou indeterminadora da<br />

pessoa do discurso que inclui o enunciador: a gente quase não sai de<br />

casa;<br />

· O uso do em para reger o complemento verbal que designa o limite<br />

de um movimento: foi na cidade;<br />

· O uso da forma pronominal tu com o verbo na terceira pessoa: tu<br />

sabe onde fica o cinema?;


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

597<br />

· A mistura de formas relativas a você e tu: se ela te convidar, você<br />

aceita?;<br />

· O uso do lhe como objeto direto: não lhe vi na festa.;<br />

· O uso do sujeito pronominal redundante: nós dissemos;<br />

· Certas construções de relativização: “Conheço um rapaz que o pai é<br />

marceneiro” e “A casa que eu moro é antiga”;<br />

· Substituição de determinados clíticos pronominais: “Ela prendia o<br />

cachorro, mas à noite deixava ele solto no quintal”;<br />

· Determinados usos do pronome possessivo: “Você sabia que hoje é<br />

aniversário do seu/teu irmão?” “Onde estão seus pais?” (para um<br />

interlocutor no singular) e “Onde estão os pais de vocês?”(para<br />

mais de um interlocutor).<br />

Considerando os aspectos descritos por Azeredo, este artigo<br />

se propõe a demonstrar como as letras da MPB contribuíram e, até<br />

hoje, contribuem para o registro da norma culta/comum/standard. Para<br />

a análise, foram selecionadas sete trechos de letras de músicas que<br />

utilizam os aspectos descritos pelo autor.<br />

É importante registrar que a letra da música tem características<br />

comuns à oralidade, pois, normalmente, é memorizada para ser<br />

cantada, acompanhada por algum instrumento. Esse aspecto faz com<br />

que, habitualmente, os compositores optem por marcas linguísticas<br />

coloquiais, próprias do falar, entretanto, o produto escrito não deixa<br />

de ser um importante objeto linguístico para o estudo da realidade<br />

brasileira, principalmente, a partir da década de 60, com as canções<br />

de protesto social, como defende Sant’Anna (2004, p. 13)<br />

Toda essa evolução marca, no entanto, uma crescente transformação<br />

da música popular brasileira num fenômeno não apenas sonoro, mas num<br />

produto escrito. O que era apenas voz tanto na música quanto na poesia,<br />

se converte em grafia marcando o ponto máximo desses movimentos de<br />

equivalência e identidade. Por isso, críticos e professores universitários<br />

começam a se interessar pela letra da música popular, surgindo daí uma<br />

ensaística a ela dedicada que não é apenas o texto jornalístico das crônicas<br />

de ontem ou das necessárias histórias da música popular.<br />

4. Análise do corpus<br />

Para a análise, serão utilizados como referência os aspectos<br />

apresentados por Azeredo, descritos acima.


O meu guri – Chico Buarque - 1981<br />

Chega no morro com o carregamento<br />

Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador<br />

Rezo até ele chegar no alto<br />

Essa onda de assalto tá um horror<br />

Eu consolo ele, ele me consola<br />

Boto ele no colo pra ele me ninar<br />

De repente acordo, olho pro lado<br />

E o danado já foi trabalhar, olha aí<br />

Olha aí, ai o meu guri<br />

Olha aí, é o meu guri<br />

E ele chega<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

598<br />

Nesse trecho da música de Chico Buarque, encontramos um<br />

dos aspectos citados por Azeredo como característica do português<br />

do Brasil: o uso do pronome pessoal ele como complemento direto<br />

do verbo em “eu consolo ele” e “boto ele”. Outro aspecto descrito<br />

por Azeredo é o uso da preposição em para reger o complemento<br />

verbal que designa o limite de um movimento em “chega no morro”<br />

e “chegar no alto”.<br />

Castigo<br />

A gente briga<br />

Diz tanta coisa que não quer dizer<br />

Briga pensando que não vai sofrer<br />

Que não faz mal se tudo terminar<br />

Um belo dia<br />

A gente entende que ficou sozinho<br />

Vem a vontade de chorar baixinho<br />

Vem o desejo triste de voltar.<br />

(...)<br />

Azeredo também aponta o uso de a gente como expressão genérica<br />

ou indeterminadora da pessoa do discurso que inclui o enunciador,<br />

encontrada na letra dessa música de Tom Jobim e Dolores Duran,<br />

sucesso da década de 50.<br />

Roda Viva – Chico Buarque - 1967<br />

Tem dias que a gente se sente<br />

Como quem partiu ou morreu<br />

A gente estancou de repente<br />

Ou foi o mundo então que cresceu<br />

A gente quer ter voz ativa<br />

No nosso destino mandar<br />

Mas eis que chega a roda viva


E carrega o destino pra lá.<br />

(...)<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

599<br />

Nessa música de Chico, encontramos, mais uma vez, o uso de<br />

a gente como expressão genérica ou indeterminadora da pessoa que<br />

inclui o enunciador. Também encontramos o verbo ter no lugar de<br />

haver, uma forma muito utilizada no cotidiano dos brasileiros, embora<br />

não recomendado pelas gramáticas normativas.<br />

Olé, olá – Chico Buarque - 1965<br />

(...)<br />

Não chore ainda não, que eu tenho uma razão<br />

Pra você não chorar<br />

Amiga, me perdoa, se eu insisto à toa<br />

Mas a vida é boa para quem cantar<br />

Meu pinho, toca forte que é pra todo mundo acordar<br />

Não fale da vida, nem fale da morte<br />

Tem dó da menina, não deixa chorar<br />

Olê, olê, olê, olá<br />

Nessa canção de Chico, encontramos mais três aspectos apontados<br />

por Azeredo: a dupla negação em “não chore ainda não” e o<br />

uso do presente do indicativo nas frases imperativas: “amiga, me<br />

perdoa”“meu pinho, toca forte” e “tem dó da menina, não deixa<br />

chorar”. Observa-se também que, embora o compositor utilize a<br />

forma pronominal você, há alguns verbos conjugados na 2ª pessoa do<br />

singular, que também é característico do português do Brasil.<br />

Blues do Elevador – Zeca Baleiro<br />

(...)<br />

mas hoje eu só quero chorar<br />

como um poeta do passado<br />

e fumar o meu cigarro<br />

na falta de absinto<br />

eu sinto tanto eu sinto muito<br />

eu nada sinto<br />

como dizia Madalena<br />

replicando os fariseus<br />

quem dá aos pobres e empresta,<br />

adeus<br />

Nessa letra do compositor maranhense Zeca Baleiro, encontramos<br />

mais um aspecto apontado por Azeredo: o sujeito pronominal<br />

redundante em “eu sinto tanto”, “eu sinto muito”, “eu nada sinto”.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

600<br />

Segundo o autor, embora as gramáticas normativas recomendem a<br />

supressão do pronome nesse caso, “o português do Brasil, mesmo em<br />

sua variedade culta, está dando ampla preferência ao resgate do sujeito,<br />

ao contrário do que se passa em Portugal” (AZEREDO, 2008,<br />

p. 550).<br />

Travessia – Milton Nascimento – 1967<br />

(...)<br />

Vou seguindo meu caminho<br />

Me esquecendo de você<br />

Eu não quero mais a morte<br />

Tenho muito que viver<br />

Vou querer amar de novo<br />

E se não der não vou sofrer<br />

Já não sonho<br />

Hoje faço<br />

Com meu braço o meu viver<br />

Nessa canção de Milton Nascimento, encontramos três aspectos<br />

apontados por Azeredo. No primeiro verso, aparece a construção<br />

ir + gerúndio em “vou seguindo meu caminho”; no segundo verso,<br />

aparece a colocação proclítica do pronome átono me em “me esquecendo<br />

de você”; e no terceiro verso, aparece novamente o sujeito<br />

pronominal redundante em “eu não quero mais a morte”.<br />

Inútil – Roger Moreira<br />

A gente não sabemos escolher presidente<br />

A gente não sabemos tomar conta da gente<br />

A gente não sabemos nem escovar os dentes<br />

Tem gringo pensando que nós é indigente<br />

A gente somos inútil.<br />

Nesse fragmento da irreverente letra de Roger Moreira, integrante<br />

do grupo de rock Ultraje a Rigor, sucesso da década de 80,<br />

encontramos novamente a expressão a gente como apontado por Azeredo.<br />

Observa-se também o verbo no plural, em desacordo com a<br />

recomendação da gramática normativa. Vale ressaltar que, nessa letra,<br />

há uma intenção discursiva para esse uso, pois, nesse período, o<br />

país enfrentava dificuldades políticas e sociais (processo de abertura<br />

política com voto direto, baixo nível educacional, dívida externa,...)<br />

que passavam uma imagem negativa do Brasil no exterior. Construções<br />

do tipo “a gente fomos” ou “nós foi”, durante muito tempo, re-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

601<br />

presentaram a fala do brasileiro que não tinha acesso à educação e<br />

que, portanto, não utilizava a norma culta. Dessa forma, a escolha<br />

pela forma “a gente não sabemos” é intencional, utilizada para satirizar<br />

a falta de políticas públicas destinadas à educação, a passividade<br />

do povo brasileiro e as consequências advindas dessa realidade.<br />

5. Conclusão<br />

Neste trabalho observamos como é importante levantar os aspectos<br />

históricos relacionados ao português do Brasil e como o país<br />

construiu e ainda constrói sua identidade e legitima seu modo de falar<br />

e escrever. Para isso, é necessário identificar características próprias<br />

do povo brasileiro e reconhecer o que herdamos dos outros povos/raças<br />

que participaram da nossa história. Nesse contexto, a MPB<br />

contribuiu e continua a contribuir para o registro do português falado<br />

e escrito aqui, pois como comprovado, as características peculiares<br />

do nosso idioma são utilizadas com frequência pelos compositores<br />

brasileiros.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da língua portuguesa.<br />

São Paulo: Publifolha, 2008.<br />

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio<br />

de Janeiro: Lucerna, 2000.<br />

CUNHA, Celso. Língua portuguesa e realidade brasileira. Rio de<br />

Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.<br />

FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns<br />

nós. São Paulo: Parábola, 2008.<br />

HENRIQUES, Claudio César & SIMÕES, Darcilia Marindir P.<br />

(Orgs.) A redação de trabalhos acadêmicos: teoria e prática. Rio de<br />

Janeiro: EdUERJ, 2002.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

602<br />

QUEIROZ, Raquel. 100 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: José<br />

Olympio, 1958.<br />

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Música popular e moderna poesia<br />

brasileira. São Paulo: Landmark, 2004.<br />

TELLES, Tereza. Chico Buarque na sala de aula: leitura, interpretação<br />

e produção de textos. Petrópolis: Vozes, 2009.


ASPECTOS SINTÁTICOS DO LATIM TARDIO- O CASO DO<br />

DISCURSO ADUERSUS IUDAEOS, DE TERTULIANO<br />

1. Introdução<br />

Renata Pereira Bastos (UFJF)<br />

renatapbastos@ig.com.br<br />

Luís Carlos Carpinetti (UFJF)<br />

luclicarpinetti@uol.com.br<br />

Quintus Septimius Florens Tertullianus, por nós conhecido<br />

como simplesmente Tertuliano, nasceu por volta de 160 d. C. em<br />

Cartago, filho de um centurião proconsular romano, gentio. Recebeu<br />

uma sólida instrução intelectual, jurídica e retórica. Dos escritores<br />

eclesiásticos latinos é um dos mais originais. Sua retórica joga com<br />

todo registro de indignação patética, de ironia espirituosa e habilidade<br />

jurídica. Morreu depois de 220, em Cartago, onde nascera. Na obra<br />

Aduersus Iudaeos, o autor tem o intuito de mostrar que a lei veterotestamentária<br />

foi válida somente até a vinda de Jesus Cristo, o novo<br />

legislador, prenunciado pelos profetas e que também os gentios<br />

participam da graça de Deus.<br />

Neste trabalho nosso foco não será os aspectos dogmáticos ou<br />

teológicos que este texto de Tertuliano possa conter, mas sim os aspectos<br />

gramaticais e literários deste importante tratado retórico de<br />

Tertuliano. Também estamos apresentando o resultado de uma análise<br />

que fizemos do texto em questão, como participação no projeto de<br />

iniciação científica intitulado "A construção da irrealidade na argumentação<br />

de arengas judiciárias da latinidade clássica". 1<br />

2. Aspectos sintáticos do discurso Aduersus Iudaeos, de<br />

Tertuliano<br />

Nesta sessão, apresentaremos as principais ocorrências sintáticas<br />

que representem discrepâncias com relação ao que prescreve a<br />

1 Projeto orientado pelo Prof. Dr. Luís Carlos Lima Carpinetti, da área de Língua e Literatura<br />

Latinas, do Departamento de Letras, da Faculdade de Letras, da UFJF.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

604<br />

norma clássica, dos quais os autores da época clássica são os modelos,<br />

e que as gramáticas de língua latina propõem como padrão a ser<br />

adotado ou, pelo menos, aprendido. Os exemplos citados representam<br />

ocorrências que podem se repetir várias vezes no texto ou, às<br />

vezes, representam situações únicas.<br />

Observamos que a citação bíblica funciona como complemento<br />

do uerba dicendi dico, ou outros, e seria uma novidade em relação<br />

à prática da época clássica que modificava o texto em sua estrutura<br />

sintática para constituir uma oração infinitiva, complemento de um<br />

uerbum dicendi. Agora, a citação bíblica é tomada tal e qual acontece<br />

no seu texto de origem e entra, como citação e complemento de<br />

um uerbum dicendi, sem sofrer qualquer modificação em sua estrutura<br />

sintática.<br />

Dari enim habebat circumcisio, sed in signum unde Israel in nouissimo<br />

tempore dinosci haberet, quando secundum sua merita in sanctam<br />

ciuitatem ingredi prohiberetur — secundum uerba prophetarum dicentium:<br />

Terra uestra deserta, ciuitates uestrae igni exustae, regionem uestram<br />

in conspectu uestro extranei comedent, et deserta et subuersa a populis<br />

extraneis derelinquetur filia Sion, sicut casa in uinea et sicut custodiarium<br />

in cucumerario et quasi ciuitas quae expugnatur.<br />

A circuncisão era apenas um sinal característico, que serviria para<br />

fazer reconhecer Israel no fim dos tempos, quando lhe seria proibido entrar<br />

na cidade santa por causa de seus crimes, segundo as palavras dos<br />

profetas que dizem: Vossa terra será deserta, vossas cidades serão tomadas<br />

pelo fogo, estrangeiros devorarão vossa pátria sob vossos olhos. Ela<br />

será desolada como o campo que o inimigo devastou. A filha de Sião foi<br />

abandonada como a tenda depois da estação dos frutos, como uma cabana<br />

em um campo de pepinos, como uma cidade arruinada. (AI, III, 4). 2<br />

A oração a seguir contém o advérbio unde, que seria um<br />

complemento de lugar indicando origem. No texto citado abaixo, ele<br />

recupera as citações bíblicas das profecias de Jeremias que recomenda<br />

uma circuncisão espiritual, além da circuncisão carnal, como aquela<br />

circuncisão após a saída do Egito. Por esse advérbio, o autor<br />

remete o leitor ao texto citado do profeta Jeremias e, como seria um<br />

advérbio que indica origem, serve para introduzir uma consequência<br />

2 Tertuliano, Aduersus Iudaeos, III, 4. Essa referência é a encontramos na edição eletrônica do<br />

texto de Tertuliano, no site www.thelatinlibrary.com. Nas demais citações deste texto, indicaremos<br />

o mesmo segundo essa edição.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

605<br />

ou conclusão, sacada do texto de Jeremias. Assim acontece neste<br />

fragmento que ora citamos:<br />

Unde intellegimus et priorem circumcisionem tunc datam cessaturam<br />

et nouam legem, non talem qualem iam dederat patribus, processuram<br />

adnuntiari, sicut Esaias praedicabat dicens, quod in nouissimis diebus<br />

manifestus futurus esset mons domini et domus dei super uertices<br />

montium.<br />

Donde entendemos que a primeira circuncisão que tinha sido dada,<br />

devia cessar para dar lugar a uma lei nova, diferente da que tinha sido<br />

dada a seus pais. Assim o tinha assinalado antecipadamente o profeta<br />

Isaías. Por volta dos últimos tempos, a montanha em que habita o Senhor<br />

será conhecida, e a casa de Deus será elevada acima das colinas, sobre o<br />

cimo das montanhas. (AI, III, 8)<br />

O exemplo a seguir traz uma oração que se encerra com um<br />

só verbo (cessaret) e que tem dois elementos de introdução: quod e<br />

quando. Pela tradução que apresentamos, fica patente que o autor<br />

justapôs as duas partículas com as quais introduziu as orações:<br />

Manifestum est itaque non aeternum sed temporale fuisse praeceptum<br />

quod quandoque cessaret.<br />

É, pois, manifesto que não foi eterno, mas temporal o preceito o qual<br />

cessasse e quando cessasse. (AI, IV, 7)<br />

O verbo ostenduntur aparece como uma espécie de depoente,<br />

no qual a conjugação passiva não corresponde ao sentido que esse<br />

verbo apresenta na frase. Provavelmente, a conjugação depoente dá<br />

conta de uma passagem de ostendo à classe de verbo depoente.<br />

Cui etenim tenet dexteram pater deus nisi Christo filio suo, quem et<br />

exaudierunt omnes gentes, id est cui omnes gentes crediderunt, cuius et<br />

praedicatores apostoli in psalmis Dauid ostenduntur: "In uniuersam, inquit,<br />

terram exiuit sonus eorum et ad terminos terrae uerba eorum"?<br />

A quem Deus Pai toma pela mão senão Jesus Cristo seu Filho, o<br />

qual todas as nações escutaram, isto é, no qual creram todas as nações e<br />

do qual o Salmista nos designa assim, os apóstolos encarregados de pregar<br />

seu nome: "Sua palavra se espalhou em todo o universo, ela ressoou<br />

até às extremidades da terra"? (CI, VII, 3).<br />

Pela construção desta frase, a conjunção causal quoniam assume<br />

valor de advérbio interrogativo. O quoniam, pela tradução inglesa<br />

é um advérbio interrogativo (how). Na tradução francesa, o<br />

tradutor optou por construir uma oração com um gerúndio. A tradu-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

606<br />

ção inglesa parece ser mais de acordo com a observação que fizemos<br />

do fragmento.<br />

Sic igitur de eo Daniel praedicauit, ut quando et quo in tempore<br />

gentes esset liberaturus ostenderet et quoniam post passionem ipsa<br />

ciuitas exterminari haberet.<br />

In such wise, therefore, did Daniel predict concerning Him, as to<br />

show both when and in what time He was to set the nations free; and<br />

how, after the passion of the Christ, that city had to be exterminated. 3<br />

Tal é, pois, a natureza da profecia de Daniel sobre Jesus Cristo, que<br />

ele anunciou em que tempo e em que época ele devia libertar as nações,<br />

e como, depois da paixão de Cristo, a cidade devia ser arruinada. (CI,<br />

VIII, 3).<br />

A oração interrogativa subordinada com verbo no indicativo<br />

se dá porque, pela própria questão semântica de seu conteúdo que,<br />

por se tratar de uma predição, encerra uma certeza acerca do que é<br />

predito, nesse caso as setenta semanas vindouras, o uso do indicativo<br />

encontra sua justificativa de emprego para expressar certeza. Assim,<br />

o uso do indicativo atende a uma questão aspectual que as gramáticas<br />

latinas atribuem ao uso do indicativo.<br />

Animaduertamus igitur, terminum quomodo in uero praedicit LXX<br />

ebdomadas futuras; in quibus si reciperent eum, "aedificabitur in latitudinem<br />

et longitudinem et innouabuntur tempora".<br />

Observemos, pois, o término fixado pelo profeta, e com que justeza<br />

ele predisse que as setenta semanas se escoariam, depois das quais, "eles<br />

seriam edificados em latitude e longitude, e os tempos seriam renovados",<br />

se eles recebessem Jesus Cristo". (CI, VIII, 7).<br />

Quia é uma conjunção causal, mas no trecho abaixo aparece<br />

como partícula introdutória de uma oração integrante com verbo no<br />

subjuntivo (praemittat) e que se apresenta como oração complemento<br />

do particípio presente animaduertentes. Assim entendemos, pois a<br />

predicação de animaduerto prevê que lhe seja atribuído um complemento<br />

e que, estando a oração introduzida por quia em contiguidade<br />

com o particípio desse verbo, é lógico que pensemos que a oração introduzida<br />

por quia seja esse complemento.<br />

Aeque sono nominis inducuntur, cum uirtutem Damasci et spolia<br />

Samariae et regnum Assyriorum sic accipiunt, quasi bellatorem porten-<br />

3 De acordo com a tradução do site New Advent: http://www.newadvent.org/fathers/0308.htm


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

607<br />

dant Christum, non animaduertentes quia scriptura praemittat: "Quoniam<br />

priusquam cognoscat puer uocare patrem aut matrem accipiet uirtutem<br />

Damasci et spolia Samariae aduersus regem Assyriorum".<br />

[Os judeus] se deixam ainda abusar pelas palavras, quando nesta<br />

"potência de Damasco que Jesus Cristo deve destruir, nestes despojos de<br />

Samaria que ele carrega diante do rei da Assíria" eles teimam em ver os<br />

presságios de um Cristo conquistador, sem prestar atenção às declarações<br />

que a Escritura anteponha. "Antes que a criança saiba chamar pelo nome<br />

seu pai e sua mãe, ele destruirá a potência de Damasco e ele carregará os<br />

despojos de Samaria diante do rei dos assírios".<br />

O trecho introduzido por quod aparece traduzido como se se<br />

tratasse de um pronome relativo neutro, mas se assim o for, o que<br />

poderia ser apontado como antecedente? Virga é feminino, radix, idem.<br />

Se, ao contrário, for uma conjunção causal, descaracteriza-se<br />

como causa, já que se configura como oração relativa. Diante disso,<br />

isto é, não sendo oração causal e não se sustentando como oração relativa,<br />

segundo os padrões da gramática do latim clássico, somos levados<br />

a pensar que este quod ou é uma conjunção causal mesmo, já<br />

que não pode ser pronome relativo, pois o contexto não comporta tal<br />

categoria, ou ele é um pronome relativo que já sofreu uma mutação<br />

morfológica e não tem o mesmo funcionamento sintático que os pronomes<br />

qui, quae, quod. Mas isto também o restante do texto não traz<br />

outros exemplos semelhantes.<br />

O trecho é o seguinte:<br />

Et nascetur, inquit, uirga de radice Iesse, quod est Maria, et flos de<br />

radice ascendet...<br />

Un rejeton naîtra de la tige de Jessé, "c'est-à-dire de Marie", et une<br />

fleur s'élèvera de ses racines... 4<br />

Um rebento nascerá do tronco de Jessé, que é Maria e uma flor se<br />

elevará de suas raízes. (CI, IX, 26).<br />

Atrocitas é um caso de catáfora. No caso, o pronome relativo<br />

não se identifica com antecedentes como manus (fem. pl.) e pedes<br />

(masc. pl.) e sim com atrocitas (fem. sing.).<br />

Si adhuc quaeris dominicae crucis praedicationes, satis iam poterit<br />

tibi facere uicesimus primus psalmus totam Christi continens passionem<br />

4 Conforme tradução encontrada no site:<br />

http://www.tertullian.org/french/g3_02_adversus_judaeos.htm


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

608<br />

canentis iam tunc gloriam suam: Foderunt, inquit, manus meas et pedes,<br />

quae propria est atrocitas crucis.<br />

Se tu buscas outras provas de que a cruz de Nosso Senhor foi predita,<br />

abra o Salmo 21, onde está contida a paixão de Cristo, que canta assim<br />

antecipadamente toda a sua glória: “eles perfuraram meus pés e minhas<br />

mãos”, o qual é peculiar o suplício da cruz. (CI, X, 13).<br />

Em torno de intellegatur temos uma estrutura de nominativo<br />

com infinitivo e uma de acusativo com infinitivo, sendo que a estrutura<br />

de nominativo com infinitivo é própria quando usada com o<br />

verbo na voz passiva, como intellegatur. Já a estrutura de acusativo<br />

com infinitivo supõe a ideia de intellego, verbo na voz ativa, o qual<br />

não aparece expresso, apoiando-se a estrutura de acusativo com infinitivo<br />

em intellegatur. Depois de nec, deveria vir expresso o verbo<br />

intellegant.<br />

Nunc si omnes istas interpretationes respuerit et inriserit duritia cordis<br />

uestri, probabimus sufficere posse mortem Christi prophetatam, ut ex<br />

hoc quod non esset edicta qualis mors intellegatur per crucem euenisse<br />

nec alii deputandam fuisse passionem crucis quam cuius mors praedicabatur.<br />

Agora se a dureza de vosso coração rejeita essas explicações e se escarnece,<br />

basta-me, nós o provamos, que a morte de Jesus Cristo tenha sido<br />

predita, para que eu esteja em direito de concluir que ela se consumou<br />

pelo suplício da cruz, ainda que a Escritura tenha mantido silêncio sobre<br />

este tipo de morte e que eu não possa atribuir a morte da cruz senão àquele<br />

cuja morte estava anunciada. (CI, X, 14)<br />

A citação bíblica, marcada pela coordenação, contém uma estrutura<br />

rítmica que, a princípio não tem uma valorização dentro desse<br />

texto, apesar de ser possível observá-la. Santo Agostinho, em sua obra<br />

De doctrina christiana 5 lembra que o próprio texto da Bíblia<br />

contém o modelo retórico próprio e, nesse sentido, valoriza a estruturação<br />

rítmica e a estrutura paralelística presente nas narrativas bíblicas<br />

ou em outros gêneros de textos. Tertuliano recorre à Bíblia como<br />

fonte de provas passíveis de combater os absurdos presentes na linguagem<br />

bíblica e defende a prevalência dos textos do Novo Testamento<br />

sobre os do Antigo Testamento, como os profetas, os livros do<br />

Pentateuco e os escritos históricos.<br />

5 Conforme se pode ler na Dissertação de Mestrado de Fabrício Klain Cristofoletti, defendida<br />

em 31 de maio de 2010, na FFLCH-USP


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

609<br />

Huius autem signi sacramentum, uariis modis praedicatum, est in<br />

quo uita hominibus praestruebatur, in quod Iudaei non essent credituri,<br />

sicut Moyses ante nuntiabat in Exodo dicens: Eiciemini de terra in qua<br />

introibitis, / et in nationibus illis non eritis in requiem, / et erit instabilitas<br />

uestigii pedis tui, / et dabit tibi deus cor taedians / et tabescentem animam<br />

et oculos deficientes ut non uideant, / et erit uita tua pendens in<br />

ligno ante oculos tuos, / et non credes uitae tuae. 6<br />

O sacramento deste sinal misterioso, que preludiava antecipadamente<br />

à vida dos homens, e no qual os judeus não deviam crer, foi anunciado<br />

por vários símbolos. Moisés o designava ainda no Êxodo, quando dizia:<br />

"O Senhor vos expulsará da terra na qual vós entrareis. Dispersados entre<br />

as nações, vós não encontrareis aí nenhum repouso; vós não tereis somente<br />

onde repousar a planta de vossos pés. Pois o Senhor vos dará um<br />

coração trêmulo, olhos lânguidos e uma alma devorada de dores. Vossa<br />

vida estará como suspensa diante de vós, e vós não acreditareis em nada<br />

em vossa vida". (CI, XI, 9).<br />

Registramos o aparecimento do emprego da preposição de<br />

como expressão de instrumento, fato não consignado na norma clássica<br />

pelas gramáticas consultadas.<br />

Si autem iam nec unctio est illic, ut Daniel prophetauit – dicit enim<br />

exterminabitur –, ergo iam non est illic unctio, quia nec templum ubi erat<br />

cornu de quo reges unguebantur.<br />

Ora, se a unção não estiver mais com eles, assim como te profetizou<br />

Daniel com essas palavras: "A unção será destruída", não há, pois, mais<br />

unção entre vós, visto que eles não têm mais nem o templo onde estava o<br />

chifre com o qual os reis eram ungidos. (CI, XIII, 6).<br />

Está havendo intromissão da oralidade, dialogismo e isto se<br />

observa nas orações adverbiais soltas e um afrouxamento da coesão<br />

textual, ou seja, uma quebra da estrutura estritamente hierarquizada<br />

de orações encadeadas por orações principais e suas subordinadas<br />

devidamente encaixadas. Este tipo de ocorrência dificilmente aconteceria<br />

em uma arenga judiciária de Cícero.<br />

A qua fide Israel excidit secundum Hieremiam prophetam dicentem:<br />

Mittite, interrogate nimis, si facta sunt talia, si mutabunt gentes deos suos<br />

et isti non sunt dii; populus autem meus mutauit gloriam suam, ex quo<br />

6 A marcação da citação latina da Escritura com barras serve para demonstrar a marcação rítmica<br />

de que falamos.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

610<br />

nihil proderit eis; expauit caelum super isto. Et quando expauit? Indubitate<br />

quando passus est Christus. 7<br />

E nós recobramos a vida por esta mesma fé que Israel repudiou, seguindo<br />

esta mesma palavra de Jeremias: "Enviai ao longe e interrogai<br />

com cuidado: houve alguma vez algo semelhante? As nações mudaram<br />

seus deuses, vãos simulacros? E meu povo mudou sua glória por um ídolo!<br />

O céu estremeceu de espanto". Quando o céu pôde estremecer de espanto?<br />

Incontestavelmente quando Jesus sofreu. (CI, XIII, 13).<br />

O quod é referente a todas as ações relatadas na frase: é o uso<br />

demonstrativo do pronome:<br />

alios enim lapidauerunt, alios fugauerunt, plures uero ad necem tradiderunt,<br />

quod negare non possunt.<br />

Os judeus, com efeito, lapidaram a uns, baniram a outros, imolaram a<br />

muitos; eles não poderiam negá-lo. (CI, XIII, 20).<br />

Aqui terminamos a nossa amostragem que nos propusemos<br />

fazer. Seria apenas importante lembrar que, como amostragem, supõe<br />

que os fatos apontados ocorram mais vezes ao longo de todo o<br />

texto.<br />

3. Conclusão<br />

Os casos que trouxemos para este artigo são resultantes de um<br />

levantamento realizado no âmbito do projeto de pesquisa citado.<br />

Ressaltamos o que encontramos como diferenças com relação à<br />

norma clássica ou os modelos retóricos consagrados desta época, que<br />

muitas vezes ocupam os exemplos das gramáticas latinas citadas na<br />

bibliografia, mas que têm relevância no sentido em que mostram que<br />

novo modelo retórico e literário está sendo engendrado, e que o modelo<br />

retórico herdado está sendo bombardeado pelo contato com o<br />

texto bíblico, com o surgir de uma nova fase da latinidade e que tudo<br />

isso cria um novo modo de escrever, de citar etc. Observamos também<br />

e procuramos mostrar as alterações que os padrões sintáticos sofreram<br />

e que este texto expõe tais mudanças.<br />

7 O negrito é para marcar a oração adverbial não acoplada a uma oração principal.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

611<br />

ALTANER, B. e STUIBER, A. Patrologia. Vida, obras e doutrina<br />

dos Padres da Igreja. Trad. Monjas Beneditinas. São Paulo: Paulinas,<br />

1988.<br />

CRISTOFOLETTI, F. A noção de eloquência no De doctrina christiana<br />

de Agostinho de Hipona. São Paulo: FFLCH-USP, 2010.<br />

FARIA, E. Gramática superior da língua latina. Rio de Janeiro: Acadêmica,<br />

1959.<br />

LIPPARINI, G. Sintaxe latina. Trad. e adaptação Pe. Alípio R. Santiago<br />

de Oliveira. Petrópolis: Vozes, 1961.<br />

MAURER Jr., T. Gramática do latim vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica,<br />

1959.<br />

MOHRMANN, C. Études sur le latin des chrétiens. Tomes I e II.<br />

Roma: Edizioni di Storia e letteratura, 1961.<br />

TERTULIANO. Aduersus Iudaeos. Disponível em:<br />

.<br />

TERTULIANO. An answer to the Jews. Disponível em:<br />

http://www.newadvent.org/fathers/0308.htm<br />

TERTULIANO. Contre les juifs. Disponível em:<br />

http://www.tertullian.org/french/g3_02_adversus_judaeos.htm


ASPECTOS SINTÁTICOS DO TEXTO DE SÃO JERÔNIMO<br />

CONTRA IOHANNEM HIEROSOLYMITANUM<br />

EPISCOPUM AD PAMMACHIUM<br />

1. Introdução<br />

Ana Luíza Silva de Freitas (UFJF)<br />

analufrei@yahoo.com.br<br />

Luís Carlos Carpinetti (UFJF)<br />

luclicarpinetti@uol.com.br<br />

Neste trabalho refletiremos sobre aspectos sintáticos do texto<br />

de São Jerônimo “Contra João de Jerusalém”. Este tratado, publicado<br />

entre janeiro e março de 397 de nossa era, constitui um libelo contra<br />

o origenismo, mas que expõe ao público a heresia ariana, condenada<br />

havia já 50 anos, a qual o bispo de Jerusalém professava sob as feições<br />

da heresia origenista, ainda objeto de debate, tendo-se originado<br />

esse debate nessa importante diocese, governada então por João, sob<br />

cuja jurisdição vive Jerônimo na cidade de Belém, mas o qual este<br />

não poupa no inflamado libelo.<br />

Particularmente, não nos deteremos nos aspectos dogmáticos<br />

que dominam este texto, em sua discussão heresiológica. Mas sim<br />

como objeto de análise de construção textual, sob o ponto de vista da<br />

sintaxe oracional. Como bolsista de iniciação científica do projeto<br />

“A construção da irrealidade na argumentação de arengas judiciárias<br />

da latinidade clássica” 1 , o texto chama a atenção por suas estruturas<br />

sintáticas, pelo contraste que apresenta com os padrões expostos nas<br />

gramáticas de língua latina que se ocupam, em sua grande parte, de<br />

autores que se situam, no mais tardar, na época clássica ou pósclássica,<br />

mas não na época tardia, como é o caso de São Jerônimo e<br />

de seu tratado polêmico que iremos analisar.<br />

1 Orientado pelo Prof. Dr. Luís Carlos Lima Carpinetti, área de Língua e Literatura<br />

Latinas do Departamento de Letras, da Faculdade de Letras da UFJF.


2. Aspectos sintáticos do texto<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

613<br />

Trabalharemos nessa seção de modo a apresentar o que pudemos<br />

coletar no texto quanto a aspectos sintáticos que mereçam<br />

uma apreciação por representarem situações novas no curso da pesquisa<br />

sobre sintaxe oracional latina e que comentamos esses achados<br />

nesta seção. É importante ressaltar que, na medida em que o texto<br />

reproduz a descrição sintática do latim clássico, descrita na maior<br />

parte das gramáticas de língua latina (que neste trabalho adotaremos<br />

como referência a gramática de Ernesto Faria, 1959), nós admitimos<br />

como ocorrências da língua padrão e que as gramáticas descrevem<br />

como tal e que a ausência de comentários sobre essas ocorrências é<br />

um reconhecimento tácito de que as mesmas se referem a um uso<br />

adotado pela linguagem literária culta, não sendo necessário deternos<br />

nestas situações, senão nas situações que apresentam relevância<br />

para o trabalho de pesquisa que empreendemos. Apresentaremos tópicos<br />

em torno dos fragmentos selecionados no texto com os devidos<br />

comentários.<br />

Primeiramente faremos uma reflexão sobre a correspondência<br />

da oração infinitiva com os complementos em particípio. O trecho<br />

em nota traz uma oração condicional que apresenta um verbum dicendi<br />

o qual tem como complemento dois elementos coordenados<br />

pela conjunção aditiva et: multorum animos perturbatos e et in utramque<br />

partem fluctuare sententiam. A coordenação faz-nos rever<br />

uma hipótese que havíamos construído acerca dos elementos semelhantes<br />

a multorum animos perturbatos que, como complemento de<br />

diceres, constituiria o que o português tem como objeto direto e predicativo<br />

do objeto direto, sem podermos classificá-los como uma oração<br />

infinitiva. Em etapas anteriores deste projeto, nós acrescentávamos<br />

ao texto latino o verbo esse, ao lado dos particípios, especialmente<br />

os particípios passados e futuros, na tentativa de configurar<br />

o texto de forma a reproduzir o modelo da oração infinitiva. Tal procedimento<br />

foi abandonado quando percebemos que o acusativo, acompanhado<br />

de particípio também no acusativo (como complementos<br />

de uerba dicendi, por exemplo) era um procedimento textual<br />

constante e não nos era permitido ficar, de certo modo, corrigindo<br />

sistematicamente aquilo que a constituição do texto insistia em trazer<br />

e, por isso, rendemo-nos às evidências de que a construção sintática<br />

citada era alguma coisa que o próprio português reconhece e pratica.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

614<br />

Nesse caso, abandonamos a pratica de indicar o verbo esse como elipse<br />

e então o exemplo que encontramos em São Jerônimo nesse<br />

texto traz-nos uma luz sobre o que nos ocupava como hipótese ou<br />

como observação latente. A ocorrência dessa coordenação faz-nos<br />

pensar que a oração infinitiva, devidamente configurada com o acusativo<br />

e infinitivo, tem o mesmo valor que o elemento que aparece<br />

em primeiro lugar, uma vez que a coordenação reúne elementos de<br />

mesmo valor sintático. Tal situação, a de “multorum animos perturbatos”,<br />

tratada a princípio como oração infinitiva com elipse do infinitivo<br />

esse agora reaparece e nos leva a concluir que a elipse desse<br />

infinitivo realmente é coisa para se cogitar uma vez que a coordenação<br />

entre os complementos aponta para a igualdade dos valores sintáticos.<br />

Se isto não se verificava entre os autores do período clássico,<br />

pode ser que essa equivalência que verificamos entre esses complementos<br />

seja um dado do latim tardio, ressalvadas as questões relativas<br />

a transmissão dos textos que pode encobrir lapsos ou erros nos<br />

textos que chegaram até nós hoje. Vejamos o fragmento:<br />

Denique nisi ad Apologiam, de qua nunc scribere institui, multorum<br />

animos diceres perturbatos, et in utramque partem fluctuare sententiam,<br />

decreueram in incepto silentio permanere.<br />

Enfim se não dirias perturbados os espíritos de muitos para a Apologia,<br />

sobre a qual comecei agora a escrever, e que o parecer flutua para<br />

uma e outra parte, eu havia decretado permanecer no silêncio inicial.<br />

(CIH, 1) 2<br />

O uso da conjunção etiamsi mais o indicativo contraria a exposição<br />

encontrada na gramática de G. Lipparini 3 , segundo a qual essa<br />

conjunção rege de preferência o subjuntivo para expressar um fato<br />

que se leva em conta apesar da contrariedade do mesmo em relação<br />

aos demais fatos. Acreditamos que, neste caso, o uso do indicativo e<br />

o uso do subjuntivo esteja vinculado à motivação da expressão do<br />

real, do potencial e do irreal e que, quando São Jerônimo utiliza o<br />

2 Contra Iohannem Hierosolymitanum, 1° parágrafo. Adotaremos neste trabalho a sigla<br />

CIH. Para referir-nos ao texto em estudo, seguido no número do parágrafo, conforme<br />

a edição eletrônica desse texto no site: www.thelatinlibrary.com<br />

3 LIPPARINI (1961), à página 228, informa "Etiamsi (se bem que) de preferência rege<br />

o conjuntivo".


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

615<br />

indicativo, esteja aludindo ao aspecto do real ao construir a seguinte<br />

oração concessiva:<br />

Etiam si bene credit, et circumspecte et timide loquitur, suspicionem<br />

mihi facit nimia diligentia.<br />

Se bem que acredita muito e fala com circunspecção e recato, lança<br />

sobre mim uma suspeita com demasiada diligência. (CIH, 2).<br />

É interessante observar no exemplo em nota que a oração que<br />

segue o uerbum dicendi não constitui como seria de esperar, uma oração<br />

infinitiva, conforme tantas vezes observamos na oratória ciceroniana.<br />

O que temos aqui é a figura correspondente ao uso dos dois<br />

pontos após o verbo dicendi, que seria um recurso que adotaríamos<br />

modernamente, por exemplo, na tradução. Essa ocorrência registra<br />

um momento em que a língua literária modifica um padrão da construção<br />

da retórica clássica.<br />

Sed dicis, epistolam meam probauit Alexandrinus episcopus.<br />

Mas dizes: o bispo alexandrino aprovou a minha epístola. (CIH, 5).<br />

O exemplo a seguir é um caso de uso da oração infinitiva,<br />

mas a ocorrência apenas decalca a estrutura da oração infinitiva de<br />

uso dos autores clássicos. A estrutura em questão traz um sujeito no<br />

acusativo, seguido de infinitivo ou particípios + esse e aparece como<br />

complementos de uerba dicendi ou declarandi, uerba sentiendi e uerba<br />

voluntatis. No exemplo em nota a seguir, o sujeito da oração infinitiva<br />

é “te”, o qual se depreende do sujeito “tu” que é o mesmo sujeito<br />

de “dicis” e que se acha oculto diante de “locutum”, nesse caso<br />

forma abreviada do infinitivo locutum esse, figurando apenas o particípio<br />

no acusativo locutum, o que nos leva a entendê-lo em concordância<br />

com um possível sujeito no acusativo, nesse caso “te”:<br />

Sed dicis, epistolam meam probauit Alexandrinus episcopus. Quid<br />

probauit? contra Arium, contra Photinum, contra Manichaeum bene locutum.<br />

Mas dizes: o bispo alexandrino aprovou minha epístola. O que aprovou?<br />

Que tu tenhas falado bem contra Ário, contra Fotino, contra o Maniqueu.<br />

(CIH, 5)<br />

Nas orações em negrito observamos a ocorrência da conjunção<br />

"quod" como integrante, fato que passou a suceder no latim tardio<br />

com mais frequência. Quando no latim clássico, a conjunção integrante<br />

quod ocorria após verbos como dico, credo, scio e seme-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

616<br />

lhantes, e também em escritores de cunho mais popular, como Plauto,<br />

Tertuliano, Macróbio (citados por Theodoro Henrique Maurer Júnior<br />

(1959) como representantes de fala de latim vulgar ou tardio,<br />

quando esta fonte ganhou foros de oficialidade literária) no texto de<br />

São Jerônimo torna-se proverbial e famoso o uso de "quod" depois<br />

de dico, quando o uso literário tendia a construir complementos com<br />

orações infinitivas e não utilizar construções de orações integrantes<br />

introduzidas por "quod":<br />

Et primum de libro ubi loquitur: sicut enim incongruum est dicere,<br />

quod possit Filius uidere Patrem: ita inconueniens est opinari, quod<br />

Spiritus sanctus possit uidere Filium.<br />

E primeiramente acerca do livro em que diz: como é, pois, inconveniente<br />

dizer que o Filho possa ver o Pai: assim inconveniente sustentar<br />

que o Espírito Santo possa ver o Filho. (CIH, 7)<br />

A oração interrogativa Generationem eius quis enarrabit?<br />

Representa, no exemplo em nota a seguir, o complemento oracional<br />

como uma interrogativa, mas não uma interrogativa indireta (como<br />

era comum nos textos ciceronianos ou outros da época clássica),<br />

complemento do uerbum dicendi “ait”. A oração interrogativa, configurada<br />

como interrogativa direta, com o verbo no modo indicativo,<br />

nos dá a dimensão do uso novo da citação literária praticada na época<br />

de São Jerônimo. A frase citada no início desse parágrafo constitui<br />

uma citação da Bíblia (Isaías, 53, 8). Em textos anteriores, estudados<br />

como corpus de pesquisa, verificamos muito amiúde o uso da<br />

oração interrogativa indireta, como complementos de uerba dicendi,<br />

para reportar perguntas de personagens destes textos, como costuma<br />

se dar em textos de retórica judiciária. Mas neste tratado polêmico de<br />

São Jerônimo, observamos que a técnica de citação literária utilizada<br />

por este autor, neste tratado, é utilizada até hoje, em termos de parâmetros<br />

sintáticos, e nos parece ter nascido com os Padres da Igreja<br />

em suas relações com os textos bíblicos, pois se observa a mesma situação<br />

em relação ao texto de Tertuliano, por exemplo, no tratado<br />

Aduersus Iudaeos, que estudamos. A oração que é a citação de um<br />

trecho da Bíblia parece inalterada em sua sintaxe, diferentemente do<br />

que acontecia no período clássico, quando ocorria a transformação<br />

do indicativo em subjuntivo. O texto em que se insere a pergunta,<br />

como citação bíblica é:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

617<br />

Ubi Isaias Virginis demonstrator, qui in una quaestione succumbens<br />

ait: Generationem eius quis enarrabit?<br />

Quando Isaías, descritor da Virgem, que, sucumbindo em única<br />

questão, disse: a sua geração quem defenderá? (CIH, 10).<br />

Se transformássemos ao modo clássico a oração, como uma<br />

oração completiva interrogativa indireta, o texto de São Jerônimo teria<br />

a seguinte formulação:<br />

Ubi Isaias Virginis demonstrator, qui in una quaestione succumbens<br />

ait generationem eius quis enarraturus sit.<br />

No exemplo em nota a seguir, a expressão de Anastasi ocorre<br />

o uso da preposição “de” que precede o substantivo próprio “Anastasius”,<br />

no caso genitivo. É possível que aí encontremos o principio do<br />

uso da preposição “de” para indicar o caso genitivo nas línguas românicas,<br />

quando a desinência de caso era concomitante com o uso da<br />

preposição. Vejamos:<br />

Nonne cum de Anastasi pergeretis ad crucem, et ad eum omnis aetatis<br />

et sexus turba conflueret... tu tortus inuidia aduersus gloriosum senem<br />

clamitabas...?<br />

Acaso, quando prosseguíeis para a cruz de Anastásio e para ele uma<br />

turba de toda idade e sexo confluía, não ficavas a clamar torcido de ódio<br />

contra o glorioso velho...? (CIH, 11).<br />

É preciso considerar a predicação de dono, a qual difere de<br />

do, em sua construção sintática, especialmente no período clássico,<br />

época em que a construção de dono era diferente do que aparece aqui,<br />

quando dono funciona como a regência de “dar” em português,<br />

demandando um objeto direto e um objeto indireto. O complemento<br />

de dono no período clássico era um ablativo (a coisa presenteada) e<br />

um acusativo (a pessoa presenteada). No caso, seu significado era de<br />

presentear. Ex: Rex me uita donauit. "O rei deu-me de presente a vida".<br />

Assim vejamos:<br />

Dono tibi nutriculas tuas, ne uagiant infantes; dono decrepitos senes,<br />

ne hyberno frigore contrahantur.<br />

Dou-te tuas amazinhas, para que as crianças não deem vagidos; doute<br />

velhos decrépitos, para que não se contraiam com o frio hibernal.<br />

(CIH, 32)<br />

A oração "quid est maius" é complemento de "dic", mas não<br />

se constrói com o subjuntivo. Se o subjuntivo marca subordinação,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

618<br />

aqui a subordinação é a justaposição de um discurso direto colocado<br />

como complemento de "dic", como simples complemento, diferentemente<br />

do que se dava nas construções ciceronianas.<br />

Dic mihi, acutissime disputator, quid est maius, tantam terrae magnitudinem<br />

appendere super nihilum, et super aquarum incerta librare: an<br />

Deum transire per clausam portam, et creaturam cedere Creatori?<br />

Diz-me, ó agudíssimo discutidor, o que é maior, dependurar-se sobre o<br />

nada tamanha grandeza da terra e igualar-se às incertezas das águas: ou<br />

Deus passar pela porta fechada, e a criatura ceder ao Criador? (CIH, 35).<br />

Entretanto o uso do subjuntivo nas orações interrogativas indiretas<br />

subsiste, isso nos leva a perguntar o porquê da coexistência<br />

das duas estruturas. Estaria o autor indiferente ao fato destas estruturas<br />

terem uma equivalência? Ou então o uso de uma ou outra atesta<br />

uma intenção retórica e estilística?<br />

Sed noui cur Caesariam, cur Antiochiam nolueris mittere (litteras).<br />

Mas sei por que não quiseste enviar (cartas) a Cesaréia, por que não<br />

a Antioquia. (CIH, 37)<br />

É muito comum no texto do Contra João de Jerusalém a<br />

presença de orações relativas nas quais o pronome relativo é precedido<br />

de preposição, fato que não era muito comum nos discursos analisados<br />

de Cícero. Vejamos um exemplo:<br />

Sin autem sub nomine presbyteri tollis mihi, propter quod saeculum<br />

dereliqui...<br />

Se, porém, sob o nome de presbítero suprimes a mim, por cuja causa<br />

abandonei o mundo... (CIH, 41).<br />

3. Notas de conclusão<br />

Pelo que ficou demonstrado, pelos exemplos e análises apresentadas,<br />

sempre em contraste com a análise de autores clássicos,<br />

como padrão gramatical que as gramáticas propõem como análise da<br />

língua e padrão sintático dos textos, como se em todos os períodos<br />

em que se pensou e se escreveu em latim fosse possível se espelhar<br />

sempre na sintaxe clássica, a análise desse tratado polêmico, o Contra<br />

João de Jerusalém, de São Jerônimo, mostra-nos que não somente<br />

este tratado se diferencia do padrão clássico, como incorpora tendên-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

619<br />

cias da sintaxe do latim vulgar, bem como inaugura novas formas do<br />

discurso indireto, com a citação do texto bíblico.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BIBLIA sacra iuxta vulgatam Clementinam. Madrid: BAC, 1946.<br />

DUVAL, Y.-M. Sur les insinuations de Jérôme contre Jean de<br />

Jérusalem. De l’arianisme à l’origénisme. Revue d’Histoire Ecclésiastique<br />

65, 1970, p. 353-374.<br />

FARIA, E. Gramática superior da língua latina. Rio de Janeiro: Acadêmica,<br />

1959.<br />

GOELZER, H. Étude lexicographique et grammaticale de la latinité<br />

de Saint Jérôme. Paris: Hachette, 1884.<br />

LIPPARINI, G. Sintaxe latina. Trad. e adapt. Pe. Alípio R. Santiago<br />

de Oliveira. Petrópolis: Vozes, 1961.<br />

MAURER Jr., T. Gramática do latim vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica,<br />

1959.<br />

MOHRMANN, C. Études sur le latin des chrétiens. Tomes I e II.<br />

Roma: Edizioni di Storia e letteratura, 1961.<br />

SÃO JERÔNIMO. Contra Joannem Hierosolymitanum. In: MIGNE,<br />

J.-P. Patrologiae cursus completus, tomo 23, series graeca. Paris: Petit<br />

Montrouge, 1883.<br />

S. Eusebii Hieronymi stridonensis, presbyteri, contra Ioannem Hierosolymitanum,<br />

episcopum ad pammachium. Disponível em:<br />

.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

622<br />

anônimo anglo, provavelmente um monge ou clérigo, que conseguiu<br />

mesclar fatos da história escandinava e da mitologia pagã com elementos<br />

cristãos. O Poema se refere a acontecimentos semi-históricos<br />

de um passado distante que pode ser datado do ano 520 aproximadamente,<br />

já que muitas pessoas citadas são conhecidas através de outras<br />

fontes; fala dos reis e heróis escandinavos e de suas contendas.<br />

A ação envolve não somente os Anglo-Saxões, mas também algumas<br />

tribos do norte, principalmente os Suiões, os Getas, os Frísios e os<br />

Danes.<br />

Figura 1: Primeira página do único manuscrito existente do poema Beowulf. Note-se<br />

como as margens estão esfarrapadas e a página escurecida pela fumaça de incêndio de<br />

século XVIII. (POOLEY, 1968, p. 22)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

623<br />

Apresentamos, a seguir, os dez primeiros versos originais de<br />

Beowulf, com a tradução em inglês contemporâneo realizada pelo<br />

poeta e escritor irlandês Seamus Heaney, agraciado com o Nobel de<br />

Literatura de 1995.<br />

Hwæt! We Gardena in geardagum,<br />

þeodcyninga, þrym gefrunon,<br />

hu ða æþelingas ellen fremedon.<br />

Oft Scyld Scefing sceaþena þreatum,<br />

monegum mægþum, meodosetla ofteah,<br />

egsode eorlas. Syððan ærest wearð<br />

feasceaft funden, he þæs frofre gebad,<br />

weox under wolcnum, weorðmyndum þah,<br />

oðþæt him æghwylc þara ymbsittendra<br />

ofer hronrade hyran scolde,<br />

So. The Spear-Danes in days gone by<br />

and the kings who ruled them had courage and greatness.<br />

We have heard of those princes' heroic campaigns.<br />

There was Shield Sheafson, scourge of many tribes,<br />

a wrecker of mead-benches, rampaging among foes.<br />

This terror of the hall-troops had come far.<br />

A foundling to start with, he would flourish later on<br />

as his powers waxed and his worth was proved.<br />

In the end each clan on the outlying coasts<br />

beyond the whale-road had to yield to him<br />

(Beowulf, vv. 1-10)<br />

(Beowulf, vv. 1-10, tradução de Seamus Heaney)<br />

Na primeira versão do Pai Nosso, datada por volta do ano<br />

1000, mais de 80% das 54 palavras são irreconhecíveis para grande<br />

parte dos falantes nativos do inglês moderno. Antes da invasão dos<br />

Normandos (1066), muitas palavras do inglês moderno tomadas do<br />

francês ainda não faziam parte do léxico inglês. Podemos observar<br />

que o texto da versão King James de 1611, com exceção do emprego<br />

do u em lugar do v, já se aproxima muito do inglês moderno, sendo,<br />

pois, acessível a qualquer falante nativo.<br />

Inglês antigo (Old English) Versão King James (1611)<br />

Fæder ure þu þe eart on heofonum;<br />

Si þin nama gehalgod<br />

to becume þin rice<br />

gewurþe ðin willa<br />

on eorðan swa swa on heofonum.<br />

Our father which art in heauen,<br />

hallowed be thy name.<br />

Thy kingdom come.<br />

Thy will be done in earth as it is in heauen.<br />

Giue us this day our daily bread.


urne gedæghwamlican hlaf syle us todæg<br />

and forgyf us ure gyltas<br />

swa swa we forgyfað urum gyltendum<br />

and ne gelæd þu us on costnunge<br />

ac alys us of yfele soþlice<br />

2. O povoamento germânico<br />

And forgiue us our debts<br />

as we forgiue our debters.<br />

And lead us not into temptation,<br />

but deliuer us from euill.<br />

Amen.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

624<br />

O inglês antigo consistia de vários dialetos germânicos levados<br />

para a Grã-Bretanha do noroeste do continente europeu em meados<br />

do primeiro milênio da Era Cristã. O povoamento germânico foi<br />

muito limitado durante o período romano (41-410 d. C), mas se expandiu<br />

grandemente após a saída dos romanos nas primeiras décadas<br />

do século V d. C. A língua nunca foi totalmente homogeneizada como<br />

um meio literário ou administrativo, contudo logrou maior progresso<br />

nessa direção (apesar da primazia do latim) do que a maioria<br />

das outras línguas vernáculas europeias. Escrevendo em latim no século<br />

XIII, o monge e historiador anglo-saxão do mosteiro de Jarrow,<br />

na Northumbria, Bede, identificou em sua monumental obra<br />

concluída em 731, acima citada, os primeiros colonizadores<br />

germânicos como três povos distintos: os Jutos (Iatae em latim), os<br />

Anglos 3 , e os Saxões. Com base nos seus escritos e também em<br />

outras indicações, os Jutos e o Anglos provavelmente habitavam na<br />

península dinamarquesa, os Jutos no norte (donde o nome Jutlândia,<br />

em dinamarquês Jylland e em alemão Jütland) e os Anglos no sul,<br />

em Schleswig-Holstein (atualmente um dos 16 Länder ou estados<br />

federais da Alemanha). Os Saxões se estabeleceram ao sul e ao oeste<br />

dos Anglos, mais ou menos entre o Elba e o Ems, possivelmente até<br />

o Reno. Uma quarta tribo, os Frísios ou Frisões, alguns dos quais<br />

com muita probabilidade foram para a Inglaterra, ocupavam uma<br />

estreita faixa de terra ao longo da costa desde Weser até o Reno,<br />

juntamente com as ilhas fronteiriças. Na época das invasões, os Jutos<br />

haviam aparentemente descido para a área costeira próxima à voz do<br />

Weser, e possivelmente se fixado ao redor do Zuyder Zee (Holanda)<br />

e do baixo Reno, daí o contato com os Frísios e os Saxões (BAUGH<br />

& CABLE, 1993, p. 45-46).<br />

3 São os dialetos germânicos falados pelos anglos e pelos saxões que vão dar origem ao inglês.<br />

A palavra England, por exemplo, originou-se de Angle-land (literalmente: “terra dos anglos”).


Figura 2: Mapa mostrando as diversas rotas migratórias tomadas pelas tribos germânicas<br />

entre os séculos V e XI.<br />

Fonte: http://www.theancientweb.com/explore/content.aspx?content_id=34<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

625<br />

Os membros das tribos germânicas que chegaram primeiro –<br />

os Jutos liderados pelos irmãos Hegest e Horsa – se instalaram principalmente<br />

na parte sudeste da ilha, ainda conhecida pelo nome céltico<br />

de “Kent” (do britônico Cantus, literalmente: "aba" ou "borda").<br />

Subsequentemente, os Saxões continentais vieram a ocupar o restante<br />

da região sul do Tâmisa, e os Anglos se estabeleceram na grande<br />

área que se estendia do norte do Tâmisa aos planaltos escoceses<br />

(Scottish Highlands), exceto a parte do extremo sudoeste (atual País<br />

de Gales).<br />

A ocupação germânica compreendia sete reinos, a heptarquia<br />

anglo-saxônica: Kent, Essex, Sussex, Wessex, East Anglia (Anglia<br />

Oreintal), Mércia, e Northumbria – sendo o último, as terras ao norte<br />

do Humber, uma amalgamação de dois reinos anteriores, Bernica e<br />

Deira. Kent logo se tornou o centro principal de cultura e riqueza, e<br />

antes do final do século VI seu rei Ethelbert (Æðelberht) pôde reivindicar<br />

a hegemonia sobre todos os outros reinos ao sul do Humber.<br />

Mais tarde, nos séculos VII e VIII, essa supremacia teve que passar a<br />

Northumbria, com seus grandes centros de erudição em Lindisfarme,<br />

em Wearmouth, e em Jarrow, o próprio mosteiro de Bede; em seguida<br />

a Mércia; e por fim a Wessex, com sua brilhante linhagem de reis<br />

começando com Egbert (Ecgberht), que destronou o rei de Mércia


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

626<br />

em 825, e culminando no seu neto, o superlativamente grande Alfred,<br />

cujos sucessores, após sua morte em 899, tomaram para si o título<br />

de Rex Anglorum (“Rei dos Ingleses”) (PILES, 1971, p. 115-16).<br />

Figura 3: Distribuição dos principais dialetos do inglês antigo por volta do ano 600. A<br />

área em amarelo era ainda habitada pelos britânicos nativos. Fonte:<br />

http://www.lib.utexas.edu/maps/historical/shepherd/britain_settlement_600_1923.jpg<br />

Já no século VIII, os falantes do inglês antigo dominavam territórios<br />

aproximadamente equivalentes em extensão e distribuição ao<br />

reino posterior da Inglaterra. Quatro variedades principais da língua<br />

podem ser distinguidas nos documentos preservados: o Kentish, associado<br />

aos Jutos; o West Saxon, na região sul chamada Wessex, basicamente<br />

o mais poderoso dos reinos saxônicos, cujos fundadores se<br />

originaram no norte da Alemanha; o Mercian, dialeto anglo falado<br />

em Mércia, um reino que se estendia do Tâmisa ao Humber; e o Northumbrian,<br />

o mais setentrional dos dialetos anglos, falado do Humber<br />

ao Forth. A Crônica Anglo-Saxônica (The Anglo-Saxon<br />

Chronicle), iniciada no século IX (891) a pedido do rei de Wessex<br />

Alfredo o Grande, e escrita inteiramente em inglês antigo, por sua<br />

vez, descreve ano a ano, do ponto de vista dos colonizadores, o progresso<br />

de vários líderes e grupos à medida que superam a resistência<br />

dos britânicos céltico-romanos do século V ao VII.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

629<br />

Gênero – No inglês antigo, além dos gêneros masculino e<br />

feminino, há ainda o gênero neutro, para as palavras que não são<br />

nem masculinas nem femininas. Porém, cumpre aqui observar que<br />

nem sempre o gênero natural, baseado nas diferenças de sexo, corresponde<br />

exatamente ao gênero gramatical. Desse modo, as palavras<br />

wíf ”mulher”, mægden “menina” e cild “criança”, ao contrário do<br />

que se espera, são neutras.<br />

No inglês moderno, predomina o gênero natural, ou seja, os<br />

substantivos gramaticalmente masculinos são biologicamente do sexo<br />

masculino. Há pouquíssimas exceções a essa regra, como, por exemplo,<br />

ao se referirem a navios e países, os falantes nativos utilizam<br />

o pronome she “ela” e não he “ele”.<br />

Número – Como no inglês moderno, há no inglês antigo apenas<br />

dois números: o singular e o plural. Do antigo dual, o único vestígio<br />

é encontrado nos pronomes da primeira e segunda pessoa: wit<br />

“nós dois” e git “vocês dois”.<br />

Caso – Diferentemente do que acontece no inglês moderno,<br />

onde as palavras, como os substantivos, apresentam variações em<br />

sua parte final (desinências nominais) para indicarem apenas as categorias<br />

de número e gênero (este em casos excepcionais, como count<br />

“conde” – countess “condessa”), no inglês antigo, os substantivos,<br />

adjetivos e pronomes indicam, ainda por meio de desinências, qual a<br />

função que desempenham na frase. Chama-se caso à forma tomada<br />

por uma palavra declinável para indicar precisamente qual a função<br />

sintática que desempenha na frase. São quatro os casos no inglês antigo,<br />

a saber:<br />

Nominativo – É o caso que designa a pessoa ou coisa de que<br />

trata a frase, geralmente o sujeito, como por exempla se cyning (“o<br />

rei”). Adjetivos na função predicativa também tomavam a forma de<br />

nominativo.<br />

Genitivo 5 – É principalmente o caso do complemento terminativo<br />

do nome, cuja função principal é indicar posse, como por exemplo<br />

þæs cyninges scip ("o navio do rei").<br />

5 O –s indicador do genitivo singular e também do plural geral dos substantivos no inglês moderno<br />

vem diretamente do genitivo singular e das formas do plural do nominativo-acusativo do


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

630<br />

Dativo – É principalmente o caso da atribuição, indicando a<br />

pessoa ou coisa a quem um objeto é destinado, ou em benefício de<br />

quem se faz alguma coisa. Seu emprego mais comum e generalizado<br />

é indicar a função de objeto ou complemento indireto da oração, como<br />

por exemplo Ohthere sæde his hlaforde / Ælfrede cyninge...<br />

(“Ohtere disse ao seu senhor, (ao) Rei Afredo”).<br />

Acusativo – A função primária do acusativo é a de indicar o<br />

objeto ou complemento direto do verbo. Por exemplo Æþelbald lufode<br />

þone cyning ("Æþelbald amava o rei"), onde Æþelbald é o sujeito<br />

e þone cyning é o objeto. Note-se que o acusativo já havia começado<br />

a se mesclar com o nominativo.<br />

A declinação foi grandemente simplificada durante o período<br />

do inglês médio (1100–1500), quando os pronomes no acusativo e<br />

dativo se fundiram num único pronome objeto (oblíquo). Devido às<br />

limitações de espaço e a complexidade do tema, trataremos aqui somente<br />

das cinco categorias gramaticais mais relevantes.<br />

3.2.1. Substantivo<br />

No estudo das flexões nominais, é fácil perceber que a palavra<br />

é constituída essencialmente de dois elementos: tema e desinência.<br />

As desinências são em geral as mesmas para cada caso, variando<br />

de declinação para declinação a parte final do tema, que se caracteriza<br />

pelo elemento que imediatamente precede a desinência. Desse<br />

modo, enquanto o tema encerra a significação da palavra e a característica<br />

da declinação a que a mesma pertence, a desinência indica simultaneamente<br />

as categorias gramaticais de gênero, número e caso.<br />

Havia diferentes terminações dependendo da categoria de<br />

número do substantivo singular (por exemplo, hring “um anel”) ou<br />

plural (por exemplo, hringas “muitos anéis”). Os substantivos são<br />

também categorizados pelo gênero gramatical – masculino, feminino<br />

inglês antigo. Essa forma é o resultado da redução da vogal átona –as, que veio também a ser<br />

grafada –es no inglês médio. Novas palavras invariavelmente conformam o que sobrevive da<br />

declinação de tema em –a (por exemplo the king’s “do rei”, the kings “os reis”, the kings’ “dos<br />

reis”, sem nenhuma distinção na pronúncia), de modo que pode-se afirmar ser este o único<br />

vestígio de declinação sobrevivente no inglês moderno.


3.2.2. Adjetivo<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

633<br />

O adjetivo no inglês antigo flexiona para indicar as distinções<br />

de gênero, número e caso. Existem dois paradigmas de declinação<br />

para o adjetivo: forte e fraca. Diferentemente do substantivo, o mesmo<br />

adjetivo pode declinar-se num ou noutro paradigma, dependendo<br />

da estrutura da frase. Desse modo, quando o adjetivo segue um demonstrativo<br />

ou possessivo declina-se como fraco; nos demais casos,<br />

declina-se como forte.<br />

Paradigma para o adjetivo swift (“veloz”) na declinação<br />

fraca:<br />

Singular<br />

Caso Masculino Feminino Neutro<br />

Nom. (se) swifta (séo) swifte (Þaet) swifte<br />

Acus. (þone) swiftan (þá) swiftan (Þaet) swifte<br />

Gen. (þæs) swiftan (þære) swiftan (þæs) swiftan<br />

Dat. (þæm) swiftan (þá) swiftan (þæm) swiftan<br />

Plural (todos os três gêneros)<br />

Caso<br />

Nom. (þá) swiftan<br />

Acus. (þá) swiftan<br />

Gen. (Þára) swiftena<br />

Dat. (þæm) swiftum


Agora, o mesmo adjetivo na declinação forte:<br />

Singular Plural<br />

Caso Masculino Feminino Neutro<br />

Nom. swift swift swift<br />

Acus. swiftne tswifte swift<br />

Gen. swiftes swiftre swiftes<br />

Dat. swiftum swiftre Swiftm<br />

Instr. swifte swifte<br />

Comparativo e superlativo<br />

3.2.3. Artigo definido<br />

O comparativo de swift é swiftra.<br />

O superlativo de swift é swiftost<br />

Nom. swifte swifta swift<br />

Acus. swifte swifta swift<br />

Gen. swiftra swiftra swiftra<br />

Dat. swiftum swiftum swiftum<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

634<br />

O artigo definido no inglês antigo desempenhava praticamente<br />

a mesma função que desempenha no inglês moderno, ou seja, a de<br />

determinante; porém, às vezes exercia o papel de pronome demonstrativo<br />

e pronome relativo. Isto é, podia significar não somente the<br />

(“o”, “a”; “os”, “as”), mas também this, that; these, those (“este”,<br />

“aquele”; “estes”, “aqueles”); ou podia ser usado como pronome relativo<br />

para introduzir uma oração subordinada. Quando o artigo definido<br />

é usado como pronome relativo, ele concorda com o seu antecedente<br />

em gênero e número.<br />

Atualmente, o artigo definido the é uma palavra simples e invariável,<br />

mas no inglês antigo declinava em gênero, número e caso,<br />

em concordância com o substantivo que determinava, conforme<br />

mostra a tabela abaixo.


Caso Masculino Feminino Neutro Plural (todos os três gêneros)<br />

Nom. sé séo þaet þá<br />

Acus. þone þá þaet þá<br />

Gen. þaes þaere þaes þára<br />

Dat. þaem þaere þaem Þaem<br />

Instr. þý /þon þý /þon<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

635<br />

A tabela seguinte mostra a concordância do adjetivo e do artigo<br />

definido com o substantivo:<br />

Caso Masculino Feminino Neutro<br />

Nom. se dola cyning seo dole ides tæt dole bearn<br />

Acus. tone dolan cyning ta dolan idese tæt dole bearn<br />

Gen. tæs dolan cyninges tære dolan idese tæs dolan bearnes<br />

Dat. tæm dolan cyninge tære dolan idese tæm dolan bearne<br />

Tradução O rei tolo A mulher tola A criança tola<br />

Desse modo, num paradigma nominal padrão temos 4 casos x<br />

2 números x 3 gêneros = 24 “lacunas” morfológicas — mas o inglês<br />

antigo possuía somente nove formas para todas essas flexões, a saber:<br />

Ø (ausência de flexão), umlaut (do alemão "alteração de som"),<br />

-u, -a, -e, -an, -um, -as, -es (bem mais simples, portanto, do que o alemão).<br />

3.2.4. Pronome<br />

No inglês antigo, todos os pronomes são declináveis, sendo,<br />

porém, seu sistema de declinação diferente dos diversos sistemas de<br />

declinação nominal.<br />

Pronomes pessoais – Os pronomes pessoais dividem-se pelas três<br />

pessoas gramaticais, sendo em número de seis.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

637<br />

Pronomes interrogativos – Esses pronomes se traduzem por who<br />

“quem” ou what ”que ou qual” e se usam somente em frases interrogativas.<br />

Who (masculino e feminino) What (neutro)<br />

Nom. hwá hwæt<br />

Acus. hwone hwæt<br />

Gen. hwæs hwæs<br />

Dat. hwæm hwæm<br />

Instr. hwy 9<br />

3.2.5. Verbo<br />

3.2.5.1. Generalidades<br />

O verbo no inglês antigo é flexionado para indicar as distinções<br />

de pessoa, número e tempo. O sistema temporal é bem mais<br />

simples do que no inglês moderno. Há apenas dois tempos: o presente<br />

e o passado (pretérito). Não há futuro no inglês antigo. Para exprimir<br />

essa função, utilizavam-se perífrases com auxiliares modais,<br />

do tipo willan (literalmente: "to wish to do" = desejar fazer) ou sculan<br />

(literalmente: "to have to do" = ter que fazer) + infinitivo. O pretérito<br />

inclui o território semântico ocupado no inglês moderno pelas<br />

formas compostas do “past progressive” (I was writing), do “present<br />

perfect” (I have written), e do “past perfect” (I had written). 10<br />

Os verbos no inglês antigo, quanto à morfologia, se classificam<br />

em verbos fracos e verbos fortes. Como em todas as línguas<br />

9 Do instrumental neutro hwy desenvolveu-se o pronome interrogativo moderno why “por que”.<br />

10 Essas formas verbais compostas começaram a se desenvolver ainda no período do inglês<br />

antigo, provavelmente para suprir noções aspectuais ao lado da categoria de tempo. Desse<br />

modo, no inglês moderno, verifica-se uma oposição aspectual bem marcada entre frases do tipo:<br />

I wrote a letter last week. (“Escrevi uma carta na semana passada.”) e<br />

I have written letters. (“Escrevi cartas.”)<br />

No primeiro caso, o falante se refere a uma ação passada definida e conhecida, portanto, marcada<br />

pelo adjunto adverbial “last week”. Já no segundo, trata-se de uma ação que, embora seja<br />

também passada, percebe-se uma ligação do passado com o presente, ou seja, a ação tem<br />

consequências no presente.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

643<br />

“comer”, drincan > drink “beber”, sloœpan > sleep “dormir”, libban<br />

> live “viver”, foehatan > fight “lutar” etc.<br />

Quase tudo mudou. No inglês moderno, como vimos, o gênero<br />

gramatical dos substantivos desapareceu completamente, os adjetivos<br />

não mais concordam com os substantivos em número, caso e<br />

gênero; os substantivos possuem apenas dois casos: nominativo e<br />

genitivo; os verbos se reduziram a poucas formas (no presente do indicativo<br />

só flexionam na terceira pessoa do singular); o subjuntivo<br />

praticamente desapareceu. As diversas noções aspectuais se fazem<br />

através de perífrases. A maioria dessas mudanças foi causada, ou pelo<br />

menos acelerada, pelas invasões dos Nórdicos, nos fins do século<br />

VII e dos Normandos, em 1066, mas isso é outra história.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ANÔNIMO. Beowulf: a new verse translation (Bilingual Edition)<br />

by Seamus Heaney. New York: W.W. Northon & Company, 2000.<br />

ANÔNIMO. The Anglo Saxon chronicle: a history of England from<br />

Roman times to the Norman conquest. Translated by Rev. James Ingram<br />

in 1823. St. Petersburg, Florida: Red and Black Publishers,<br />

2009.<br />

BAUGH, Albert; CABLE, Thomas. A history of the English language.<br />

4 th ed. London: Routledge, 1993.<br />

BEDE. The Ecclesiastical history of the English people (Penguin<br />

Classics) D.H. Harmer (Editor, Introduction), Ronald E. Latham<br />

(Editor), Leo Sherley-Price (Translator). London: Penguin Books,<br />

1990.<br />

BIBLE: Authorized King James version (Oxford World's Classics).<br />

London: Oxford University Press, 1990.<br />

CARLSEN, G. Robert; CARLSEN, Ruth Christoffer (editors). English<br />

literature: a chronological approach. New York: Webster-<br />

MacGraw-Hill, 1985.<br />

CLARK-HALL, J. R. A Concise Anglo-Saxon dictionary (MART:<br />

The Medieval Academy Reprints for Teaching) Reprinted of the<br />

fourth edition. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

644<br />

D’HAUTERIVE, R. Grandsaignes. Dictionnaire des racines des<br />

langues européennes. Paris: Larousse, 1948.<br />

FARIA, Ernesto. Gramática superior da língua latina. Rio de Janeiro:<br />

Acadêmica, 1958.<br />

HARVEY, Sir Paul. The Oxford companion to English Literature.<br />

Fourth edition. Oxford: Oxford University Press, 1967.<br />

LINDOW, John. Norse mythology: a guide to gods, heroes, rituals,<br />

and beliefs. Oxford: Oxford University Press, 2001.<br />

McARTHUR, Tom (editor). The Oxford companion to the English<br />

language. Oxford and New York: Oxford University Press, 1992.<br />

McCRUM, Robert; CRAM, William; MacNEIL, Robert. The story<br />

of English. London: Faber and Faber, 1986.<br />

McGILLVRAY, Murray. Old English: an introductory course. University<br />

of Calgary. Disponível em:<br />

http://www.the-orb.net/textbooks/oeindex.html. Acesso em: 15 maio<br />

2010.<br />

MOORE, Samuel; KNOTT, Thomas A. The elements of Old English.<br />

1919. Ed. James R. Hulbert. 10th ed. Ann Arbor, Michigan:<br />

George Wahr Publishing Co., 1958.<br />

ONIONS, C. T. The Oxford dictionary of English etymology. Oxford:<br />

Oxford University Press, 1966.<br />

PILES, Thomas. The origins and development of the English language.<br />

Second edition. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971.<br />

POOLEY, R. C. (ed.). England in literature. Illinois: Scott, Foresman<br />

and Company, 1968.<br />

TRUMBLE, William R.; BROWN, Lesley; STEVENSON, Angus<br />

(editors). Shorter Oxford English dictionary (5th ed.). Oxford: Oxford<br />

University Press, 2004.


1. Introdução<br />

CAMINHOS TEÓRICOS E PRÁTICOS<br />

EM ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO<br />

Cleide Emília Faye Pedrosa (UFRN, UFS, UERJ)<br />

eliaspedrosa@uol.com.br<br />

Derli Machado de Oliveira (UFRN, Faculdade Atlântico)<br />

derli_machado@hotmail.com<br />

Taysa Mércia dos Santos Souza Damaceno (UFRN)<br />

taysa_damaceno@yahoo.com.br<br />

Este minicurso apresenta como objetivo a proposta de aplicar<br />

conhecimentos advindos da análise crítica do discurso em práticas de<br />

análise em texto/discurso, ressaltando as categorias de comodificação,<br />

tecnologização e intertextualidade. Este objetivo dar conta da<br />

seguinte ementa: visão teórica da análise crítica do discurso (ACD);<br />

propostas de análise a partir das categorias: democratização; comodificação;<br />

tecnologização; intertextualidade e primado do interdiscurso.<br />

Como justificativa para esta abordagem, apontamos: Por julgar<br />

que a análise crítica do discurso (ACD) ainda é pouco conhecida na<br />

academia, principalmente, em suas perspectivas de aplicação, este<br />

minicurso tem como objetivo apresentar, em primeiro plano, uma visão<br />

teórica da análise crítica do discurso (ACD), para logo em seguida<br />

apresentar duas propostas de análise que foram desenvolvidas<br />

com base nessa linha de investigação, especialmente, na que concerne<br />

à corrente social desenvolvida por Fairclough (2003, 2008). Faz<br />

parte ainda da parte prática, deste minicurso, os pressupostos desenvolvidos<br />

por Maingueneau (2008) em ‘Gênese dos discursos’ sobre a<br />

‘semântica global’, especificamente, sobre o primado do interdiscurso<br />

e a polêmica como interincompreensão. Desse modo, organizamos<br />

o material de apoio ao desenvolvimento da proposta em: a) caminhos<br />

históricos e metodológicos em análise crítica do discurso; b)<br />

Modelo tridimensional da ACD; c) Democratização; tecnologização<br />

e comodificação: categorias de análise e; d) Semântica Global: teoria<br />

e prática. Com o resultado, esperamos que as perspectivas do público-alvo<br />

(alunos de Letras e áreas afins, professores do ensino médio,<br />

profissionais e usuários do texto/discurso) sejam atendidas.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

646<br />

2. Caminhos históricos e metodológicos em análise crítica do discurso<br />

Análise crítica do discurso, perspectiva que recusa a neutralidade da<br />

investigação e do investigador, que define os seus objetivos em termos<br />

políticos, sociais e culturais e que olha para a linguagem como prática<br />

social e ideológica e para a relação entre interlocutores como contextualizada<br />

por relações de poder, dominação e resistência institucionalmente<br />

constituídas. (PEDRO, 1998, p. 15)<br />

Os analistas críticos do discurso se posicionam politicamente<br />

quanto às análises que procedem. Para eles, é importante verificar<br />

como as práticas linguísticas, discursivas e sociais se interrelacionam<br />

de tal maneira nas estruturas socialmente alicerçadas em<br />

práticas ideológicas que se torna difícil fugir delas. Seguir uma postura<br />

crítica, como a assumida pela análise crítica do discurso (ACD),<br />

requer se identificar com seu objetivo, qual seja, elucidar as naturalizações<br />

advindas de práticas ideológicas, tornando claro os efeitos<br />

que o discurso causa por serem opacos para os participantes (FAIR-<br />

CLOUGH, 1995a) e, deste modo, intervir na sociedade a fim de gerar<br />

mudanças, principalmente, a favor dos ‘perdedores’ (excluídos<br />

sociais, pessoas sujeitas a relações de opressão, pobres’), dos menos<br />

favorecidos. Pois é fato sabido que a circulação de texto dentro de<br />

uma sociedade pode servir de meios de dominação através da linguagem,<br />

entre alguns destes aspectos Hanks (2008, p. 155) aponta:<br />

exercício de poder social, desigualdade política, cultural, discriminação<br />

de classe, sexo, etnia. Por isso que cabe a ACD desnaturalizar<br />

estas práticas discursivas – “analisar e revelar o papel do discurso na<br />

(re)produção da dominação” (PEDRO, 1998, p. 25).<br />

Sobre este assunto, Van Dijk (2008, p. 19) afirma o seguinte:<br />

Se o discurso controla mentes, e mentes controlam ação, é crucial<br />

para aqueles que estão no poder controlar o discurso em primeiro lugar.<br />

Como eles fazem isso? Se eventos comunicativos consistem não somente<br />

de escrita e fala “verbais”, mas também de um contexto que influencia o<br />

discurso, então o primeiro passo para o controle do discurso é controlar<br />

seus contextos. [...] Isso significa que precisamos examinar em detalhe as<br />

maneiras como o acesso ao discurso está sendo regulado por aqueles que<br />

estão no poder (VAN DIJK, 2008, p. 19).<br />

“Examinar em detalhe as maneiras como o acesso ao discurso<br />

está sendo regulado por aqueles que estão no poder” (FAIRCLOU-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

647<br />

GH, 1995b, p. 33; RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 49-50) é o<br />

grande desafio da ACD. E para dar conta deste desafio, esta concepção<br />

assume que a ideologia é, por natureza, hegemônica, pois serve<br />

tanto para estabelecer como para sustentar relações de dominação e<br />

convém, igualmente, para reproduzir a ordem social que beneficia<br />

indivíduos e os blocos dominantes nos quais estão inseridos, perpassando<br />

suas ideias como fruto do senso comum.<br />

Foi com esta postura que surgiu – dentro do campo da Linguística<br />

– a análise crítica do discurso com fortes influências de outras<br />

escolas, tais como linguística crítica, semiótica social e sociolinguística<br />

crítica.<br />

Seu termo foi utilizado por Fairclough em artigo publicado<br />

em 1985. Mas foi um congresso na Universidade de Amsterdam, em<br />

janeiro de 1991, que deu corpo às ideias de um grupo de pesquisadores:<br />

Teun van Dijk, Norman Fairclough, Gunter Kress, Theo van Leeuwen<br />

e Ruth Wodak. Eles estiveram juntos discutindo teorias e métodos<br />

de análises de discursos. Wodak (2003, p. 21, Tradução Nossa),<br />

que participou ativamente deste congresso histórico, pronunciase;<br />

assim, em relação à este encontro: esta “reunião de Amsterdam<br />

supôs um começo institucional, um esforço tendente a começar um<br />

programa de intercâmbio (ERAMUS, durante três anos)” (WODAK,<br />

2003, p. 21, tradução nossa). Desde a primeira reunião, o grupo, embora<br />

internacional e heterogêneo, consolidou o novo paradigma. Esta<br />

consolidação foi mais fruto de um agendamento “e programa de investigação<br />

que pela existência de teorias e metodologias comum”,<br />

acrescenta Wodak (2003, p. 22, tradução nossa).<br />

Fairclough (2008) esclarece-nos que, mesmo tendo ligação<br />

com a LC, como apontado acima, a ACD vai surgir a partir de limitações<br />

desta. O autor também aponta que limitações também em<br />

propostas de análise da Análise do Discurso (AD) contribuíram para<br />

o surgimento da ACD. Para ele, a AD, ao enfatizar a perspectiva social,<br />

relegou a análise linguística; enquanto, a LC ao evidenciar a análise<br />

linguística, deu pouca ênfase aos conceitos de ideologia e poder.<br />

Fairclough sustenta que ambas apresentam uma visão estática<br />

das relações de poder.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

648<br />

Nessa conjuntura, o grande posicionamento deste novo paradigma<br />

vai ser o fato de considerar a ‘linguagem como uma forma de<br />

prática social’ e para tal, é necessário atender a três perspectivas: linguagem<br />

como parte da sociedade (não algo externo a ela); linguagem<br />

como um processo social; linguagem como um processo condicionado<br />

socialmente (FAIRCLOUGH, 1995b, p. 22). Também ela será<br />

norteada por três conceitos básicos: poder, história e ideologia.<br />

As situações de socialização e subjetividades em que os seres<br />

humanos estão inseridos são cruciais para estudos críticos. Pois estes<br />

estudos do discurso requerem teorização e descrição dos processos e<br />

das estruturas sociais, bem como dos processos nos quais os sujeitos<br />

históricos criam sentidos em sua interação com textos (WODAK,<br />

2003). Os textos, para investigação, podem estar inseridos em diversos<br />

contextos, tais como o político, o econômico; "o racismo, a propaganda<br />

e a mídia, e os ambientes institucionais como a burocracia e<br />

a educação” (HANKS, 2008, p. 172, 173).<br />

Para dar suporte a sua análise do texto\discurso, a ACD busca<br />

base teórica na linguística de Halliday, na sociolinguística de Bernstein,<br />

nas obras de críticos literários e também de filósofos sociais<br />

como Pêcheux, Foucault, Harbemas, Bakhtin, e Voloshinov e Giddens<br />

com sua Teoria da Estruturação. Para esta teoria, o sujeito é capaz<br />

de gerar transformações sociais por meio do discurso (o discurso<br />

modela a sociedade e é modelado por ela). Esclarecendo um pouco<br />

mais a Teoria da Estruturação, temos:<br />

Aspectos da Teoria da Estruturação de Giddens (1989) prestam-se à<br />

discussão sobre o papel dos agentes sociais, e seus discursos, na manutenção<br />

e transformação da sociedade. Segundo essa teoria, a constituição<br />

da sociedade se dá de maneira bidirecional, ou seja, há uma dualidade da<br />

estrutura social que a torna o meio e o resultado de práticas sociais (RE-<br />

SENDE & RAMALHO, 2006, p. 41).<br />

Abaixo apontaremos algumas correntes desta escola e destacaremos<br />

a corrente social, com a qual vamos trabalhar neste minicurso.<br />

2.1. Correntes de pesquisa em ACD


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

649<br />

Com base em Resende (2009), pode-se afirmar que Fairclough<br />

articula a linguística sistêmica funcional com a sociologia; que<br />

van Dijk procura estabelecer a ligação entre a linguística textual com<br />

a Psicologia Social; e que os trabalhos de Wodak ligam-se com a Sociolinguística<br />

e a História. Já com base em Meyer (2003), podemos<br />

destacar as correntes que sugiram devido às escolhas do quadro teórico-metodológico<br />

assumido por alguns pesquisadores em ACD: a<br />

microsociológica com Ron Scollon; as teorias sobre a sociedade e o<br />

poder com base na tradição de Michel Foucault com Siegfried Jäger,<br />

Norman Fairclough e Ruth Wodak; e as teorias do conhecimento social<br />

com Teun van Dijk. Entre estas correntes e quadro teórico apontados,<br />

destacaremos a corrente que seguimos: corrente social da linguagem<br />

de Fairclough.<br />

2.1.1. Corrente social da linguagem: Norman Fairclough<br />

Norman Fairclough, um dos pioneiros da ACD, interessa-se<br />

pelos estudos críticos e interdisciplinares sobre a prática discursiva e<br />

a sua relação com a mudança social e cultural. Suas contribuições<br />

centrais para os estudos críticos da linguagem foram criar um método<br />

para estudar o discurso e fazer com que cientistas sociais e estudiosos<br />

da mídia reconheçam a necessidade de um trabalho com linguistas<br />

(MAGALHÃES 2005; cf. RESENDE; RAMALHO, 2006).<br />

Este seu trabalho assumiu grande importância na solidificação da<br />

função de linguistas críticos na crítica social contemporânea (RE-<br />

SENDE; RAMALHO, 2006). As autoras ainda afirmam:<br />

O diálogo crescente entre a Linguística e a Ciência Social Crítica,<br />

nas bases teóricas da ADC, foi determinante no processo de abertura da<br />

disciplina, que culminou no movimento da centralidade do discurso para<br />

a percepção deste como um momento de práticas sociais (RESENDE;<br />

RAMALHO, 2006, p. 146).<br />

O modelo desenvolvido por Fairclough reúne análise linguística<br />

e teoria social, “numa combinação desse sentido mais socioteórico<br />

de ‘discurso’ com o sentido de ‘texto e interação’ na análise de<br />

discurso orientada linguisticamente” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 22).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

650<br />

Sobre isto, Resende e Ramalho (2006, p. 11) 1 afirmam: “A teoria social<br />

do discurso é uma abordagem de análise de discurso crítica<br />

(ADC), desenvolvida por Norman Fairclough, que se baseia em uma<br />

percepção da linguagem como parte irredutível da vida social dialeticamente<br />

entrecortada a outros elementos sociais”.<br />

A forte herança de Halliday se faz presente explicitamente<br />

nas propostas de Fairclough. O texto analisado, segundo o modelo sitêmico-funcional,<br />

daria conta das funções: ideacional – experiência<br />

do mundo, sistema de conhecimentos e crenças; interpessoal – interação<br />

social entre os participantes, sujeitos sociais, identidade; Textual<br />

– ligação das partes de um texto em um todo coerente. Caldas–<br />

Coulthard (2008, p. 33), assim, se expressa:<br />

A metafunção ideacional ou experimental é a manifestação no sistema<br />

linguístico de um propósito geral que nos permite entender ou experimentar<br />

o ambiente em que vivemos; a metafunção interpessoal ou relacional<br />

nos permite constituir e mudar relações sociais e identidades sociais,<br />

marcando a interação entre as pessoas.<br />

Para Fairclough (2008), a localização teorética da ACD está<br />

em ver o discurso como um momento das práticas sociais, sabendo<br />

que todas as práticas incluem os elementos: atividade produtiva,<br />

meios de produção, relações sociais, identidades sociais, valores culturais,<br />

consciência e semioses.<br />

O primeiro modelo de análise desenvolvido por Fairclough<br />

(2008) – chamado de modelo tridimensional do discurso – engloba<br />

três dimensões: o texto, a prática discursiva e a prática social. Assim<br />

se expressa Hanks (2008, p. 172)<br />

Nessa abordagem (ACD), o discurso é tratado sob três perspectivas:<br />

como texto dotado de forma linguística, como ‘prática discursiva’ por<br />

meio da qual os textos são produzidos, distribuídos e consumidos, e como<br />

‘ prática social’ que tem vários efeitos ideológicos, incluindo normatividade<br />

e hegemonia.<br />

A seguir, no próximo tópico, abordaremos este quadro teórico/metodológico<br />

tridimensional desenvolvido por Fairclough (2008).<br />

Nele, observa-se, além das categorias que compõem as práticas tex-<br />

1 As autoras Resende e Ramalho utilizam o termo "análise de discurso crítica" (ADC),<br />

preferimos utilizar ACD como em Pedro (1998) e Wodak & Meyer (2003), entre outros.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

651<br />

tuais, discursivas, a prática social que envolve “três tendências principais<br />

de mudança discursiva que têm afetado a ordem do discurso<br />

societal”, que podemos relacionar diretamente às mudanças social e<br />

cultural: a democratização, a comodificação e a tecnologização. Especificamente,<br />

estas três tendências também serão desenvolvidas em<br />

tópico a parte.<br />

2.1.2. Modelo tridimensional<br />

O modelo tridimensional desenvolvido por Fairclough (2008)<br />

é baseado na linguística sistêmica-funcional de Halliday, como já afirmado,<br />

teoria que considera a linguagem na forma como ela é configurada<br />

pelas funções sociais que deve atender. Segundo esta escola<br />

“a linguagem é uma semiótica social” e “a forma linguística é afetada<br />

sistematicamente pelas circunstâncias sociais (CALDAS-<br />

COULTHARD, 2008, p. 27-28). Halliday (apud CALDAS-<br />

COULTHARD, 2008, p. 28) afirma que “a forma particular apresentada<br />

pelo sistema gramatical de uma língua está estreitamente relacionada<br />

com as necessidades pessoais e sociais para as quais a língua<br />

irá servir”. O texto, analisado segundo esta perspectiva, é considerado<br />

uma unidade semântica e uma forma de inter(ação).<br />

Este modelo tridimensional de análise do texto\discurso assume<br />

o posicionamento que qualquer evento ou exemplo de discurso<br />

pode ser considerado, simultaneamente, um texto (análise linguística),<br />

um exemplo de prática discursiva (análise da produção e interpretação<br />

textual) e um exemplo de prática social (análise das circunstâncias<br />

institucionais e organizacionais do evento comunicativo).<br />

Nas palavras de Fairclough (1998, p. 83-84):<br />

Esta abordagem tem uma característica especial: a ligação entre a<br />

prática sociocultural e o texto é mediada pela prática discursiva. A forma<br />

como um texto é produzido e interpretado – ou seja, que práticas e convenções<br />

discursivas têm origem em que ordem (ou ordens) do discurso e<br />

como se articulam – dependem da natureza da prática sociocultural que o<br />

discurso integra (incluindo a sua relação com hegemonias já existentes);<br />

a natureza da prática discursiva da produção textual molda o texto, deixando<br />

‘vestígios’ nas suas características superficiais; por fim, a natureza<br />

da prática discursiva da interpretação textual determina a forma como serão<br />

interpretados os laços superficiais de um texto.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

652<br />

Para atender a esse modelo tridimensional, deverão ser consideradas<br />

três perspectivas analíticas, a multidimensional, a multifuncional<br />

e a histórica. A primeira, para avaliar as relações entre mudança<br />

discursiva e social e, também, para relacionar as propriedades<br />

particularizadas de textos às propriedades sociais de eventos discursivos;<br />

a segunda, a multifuncional, para averiguar as mudanças nas<br />

práticas discursivas que contribuem para mudar o conhecimento, as<br />

relações e identidades sociais; finalmente, a histórica, para discutir a<br />

“estruturação ou os processos ‘articulatórios’ na construção de textos<br />

e na constituição, em longo prazo, de ‘ordens de discurso’” (FAIR-<br />

CLOUGH, 2008, p. 27, destaques do autor).<br />

A análise de um discurso, tomado como exemplo particular<br />

de prática discursiva, focaliza os processos tanto de produção e de<br />

distribuição como de consumo textual. Esses processos são sociais,<br />

por isso exigem referência aos ambientes econômicos, políticos e<br />

institucionais particulares, nos quais o discurso é gerado. Podemos,<br />

ainda, afirmar que a produção e o consumo são, parcialmente, de natureza<br />

sociocognitiva. Essa afirmação se justifica porque ambas são<br />

práticas que abrangem processos cognitivos de produção e interpretação<br />

textual que, por sua vez, são fundamentados nas estruturas e<br />

nas convenções sociais interiorizadas (daí o uso do prefixo “sócio-”).<br />

Van Dijk (2008), da corrente sociocognitivista da ACD, não aceita a<br />

passagem do discurso ao social (especialmente ao poder e dominação),<br />

sem ligá-lo ao cognitivo:<br />

De acordo com o meu esquema teórico, essa ligação direta não existe:<br />

não há uma influência direta da estrutura social sobre a escrita ou a<br />

fala. Antes, estruturas sociais são observadas, experimentadas, interpretadas<br />

e representadas por membros sociais, por exemplo, como parte de<br />

sua interação ou comunicação continuada. É essa (subjetiva) representação,<br />

esses modelos mentais de eventos específicos, esse conhecimento,<br />

essas atitudes e ideologias que, no fim, influenciam os discursos e outras<br />

práticas sociais das pessoas (VAN DIJK, 2008, p. 26).<br />

Por fim, ainda se pode afirmar que a “concepção tridimensional<br />

do discurso” reúne três tradições analíticas (FAIRCLOUGH,<br />

1998): descrição – análise textual; interpretação – prática discursiva;<br />

explicação – análise social. Caldas-Coulthard (2008) nos informa<br />

que na tradição descritiva, o texto, embora unidade semântica, é analisado<br />

segundo suas características formais; a interpretação investiga


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

653<br />

o uso das convenções; a explicação tem por objetivo “explicitar como<br />

as propriedades de interação situam-se na ação social” (p. 32),<br />

verificando o uso político e ideológico dessa interação e as relações<br />

de poder e valores discriminatórios.<br />

Observa-se que nem sempre é nítida a distinção entre “descrição”<br />

e “interpretação”. O critério recomendável, segundo o próprio<br />

Fairclough (1998, 2008), é considerar como “descrição” os casos em<br />

que mais se destaquem os aspectos formais do texto. Realçando-se<br />

mais os processos produtivos e interpretativos, há de ter-se em conta<br />

a análise da prática discursiva, embora se envolvam, também, os aspectos<br />

formais do texto. Também vale lembrar que a análise do discurso<br />

é uma atividade multidisciplinar. Ao analisar textos, mesmo<br />

linguisticamente, estamos considerando tanto forma quanto conteúdo,<br />

ainda que algumas abordagens tenham tentado diferenciar e distanciar<br />

esses aspectos.<br />

A seguir, o modelo tridimensional e suas categorias de análise.<br />

Deve-se considerar que estas categorias e dimensão não devem<br />

constituir-se de forma estanques, são apenas nortes que ajudam na<br />

análise.


Figura 1: Adaptação do Modelo Tridimensional 2<br />

2.1.3. Análise textual<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

654<br />

Dimensão baseada na tradição de análise textual e linguística<br />

e tem como objetivo descrever as características organizacionais gerais,<br />

o funcionamento e o controle das interações. Não deve ser feita<br />

isoladamente das outras dimensões. Os itens relevantes nesta análise<br />

são: tomada de turnos, estruturas de trocas, controle de tópicos, determinação<br />

e policiamento de agendas, formulação, modalidades, polidez,<br />

ethos, conectivos e argumentação, transitividade e tema, significado<br />

das palavras, criação de palavras, metáforas, entre outros. A<br />

análise textual envolve quatro itens, apresentados em escalas ascendentes:<br />

a) vocabulário (lexicalização); b)gramática, c) coesão e d) estrutura<br />

textual.<br />

a) Vocabulário<br />

Significado das palavras: mapear as palavras-chave que apresentam<br />

significado cultural variável, o significado potencial<br />

de uma palavra, enfim, como elas funcionam como um modo<br />

de hegemonia e um foco de luta.<br />

Criação de palavras: examinar as lexicalizações alternativas<br />

e sua significação tanto política quanto ideológica. É interessante<br />

constatar que a criação de itens lexicais gera novas categorias<br />

culturalmente essenciais.<br />

Para Fairclough (Cf. RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 75)<br />

“Os significados das palavras e a lexicalização de significados<br />

não são construções individuais, são variáveis socialmente<br />

construídas e socialmente contestadas, são ‘facetas de processos<br />

sociais e culturais mais amplos’. Com isto devemos entender<br />

que os significados das palavras ou a lexicalização destes<br />

significados não resultam de leituras individuais, mas leituras<br />

de indivíduos inseridos histórico-socialmente. O próprio<br />

2 Pedrosa (2005) apresenta o modelo através de quadros em "Análise crítica do discurso<br />

– uma proposta para a análise crítica..." Propostas da ACD. A ACD propõe-se a estudar<br />

a linguagem como prática social e, Os que fundamentam suas pesquisas na análise<br />

crítica do discurso www.filologia.org.br/ixcnlf/3/04.htm


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

655<br />

Rajagopalan (2003) destaca que o processo de nomeação é<br />

um ato político.<br />

Metáfora: caracterizar as metáforas utilizadas em contraste<br />

com metáforas usadas para sentidos semelhantes em outro lugar,<br />

verificar que fatores (cultural, ideológico, histórico etc.)<br />

determinam a escolha dessa metáfora. Verificar as implicações<br />

políticas e ideológicas, identificando os conflitos entre<br />

metáforas alternativas. Fairclough (2008), com base em Lakoff<br />

e Johnson, afiança que as metáforas estão ‘infiltradas’ na<br />

vida cotidiana, na linguagem, no pensamento e na ação. Isto<br />

corrobora o fato de nosso sistema conceitual ser, por natureza,<br />

metafórico. Significa, deste modo, que os conceitos não só estruturam<br />

os pensamentos, estruturam também o modo como<br />

apreendemos o mundo e como nele nos comportamos. Para<br />

Dell’Isola (1998), a metáfora é um fenômeno discursivo e por<br />

isso apresenta-se em um contexto referencial, podendo também<br />

conter marcas culturais. O criador da metáfora e seu<br />

‘desconstrutor’, inseridos em um contexto cultural, subvertem<br />

as regras da língua/do discurso a fim de construir novas formas<br />

de discursos e representações da realidade.<br />

Caldas-Coulthard (2008, p. 33, 34) sugere uma lista de perguntas<br />

norteadoras para se proceder à análise do vocabulário:<br />

1- Há palavras no texto que são ideologicamente contestadas<br />

(sexistas, recistas etc.);<br />

2- Há algumas que permitem classificar as pessoas no texto<br />

quanto ao tipo de profissão e de papeis sociais.<br />

3- Há palavras formais ou informais no texto (formas de tratamento,<br />

por exemplo)?<br />

4- Que valor expressivo é dado às palavras (como as palavras<br />

avaliativas são usadas, por exemplo)?<br />

5- Que metáforas são usadas?<br />

b) Gramática


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

656<br />

Transitividade (função ideacional da linguagem): Verificar se<br />

tipos de processo [ação, evento...] e participantes estão favorecidos<br />

no texto, que escolhas de voz são feitas (ativa ou passiva)<br />

e quão significante é a nominalização dos processos”<br />

(FAIRCLOUGH, 2008, p. 287). Há uma motivação social para<br />

analisar a transitividade. Pode-se tentar estabelecer que fatores<br />

sociais, culturais, ideológicos, políticos ou teóricos decidem<br />

como um processo é significado num tipo de discurso<br />

particular (ou mesmo em diferentes discursos) ou em um dado<br />

texto. Por exemplo, há motivação para escolher a voz passiva.<br />

Seu uso permite a omissão do agente por ser irrelevante,<br />

por ser evidente por si mesmo ou por ser desconhecido, mas,<br />

também, a omissão pode ter razões políticas ou ideológicas, a<br />

fim de ofuscar o agente, a causalidade e a responsabilidade.<br />

Tema (função textual da linguagem): observar se existe um<br />

padrão discernível na estrutura do tema do texto para as escolhas<br />

temáticas das orações. Tema é a “dimensão textual da<br />

gramática da oração dedicada aos modos pelos quais os elementos<br />

da oração são posicionados de acordo com a sua proeminência<br />

informacional” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 221).<br />

Modalidade (função interpessoal da linguagem): determinar<br />

padrões por meio da modalidade, quanto ao grau de afinidade<br />

expressa com proposições. Quando as pessoas escolhem suas<br />

orações em termos de modelo e estrutura, selecionam, também,<br />

o significado e a construção de identidades sociais, de<br />

relações sociais, de crenças e conhecimentos. Alguns itens<br />

gramaticais são utilizados para modalizar a oração: verbos<br />

auxiliares modais, tempos verbais, conjunto de advérbios modais<br />

e seus adjetivos equivalentes. Além desses elementos,<br />

outros aspectos da linguagem também indicam a modalização,<br />

como padrões de entonação, fala hesitante, entre outros.<br />

Na modalidade, temos mais que um comprometimento do falante<br />

com suas proposições, um comprometimento que passa,<br />

também, pela interação com os interlocutores.<br />

A lista de Caldas-Coulthard (2008, p. 34) em relação á gramática<br />

é a seguinte:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

657<br />

1- Que tipos de processos verbais e participantes são predominantes<br />

na interação?<br />

2- O agenciamento é explicito (quem faz o quê)?<br />

3- Que tipos de nominalizações são usados?<br />

4- As orações são ativas ou passivas?<br />

5- Que modos (declarativo, interrogativo, imperativo) são<br />

usados?<br />

6- Como a modalidade é feita?<br />

7- Que tipos de pronomes são usados? E como?<br />

8- As orações são positivas ou negativas?<br />

9- As orações complexas são caracterizadas por subordinação<br />

ou coordenação?<br />

c) Coesão<br />

Mostrar de que forma as orações e os períodos estão interligados<br />

no texto. Na coesão, pode-se considerar como as orações<br />

são ligadas em frases e como essas são ligadas para formar<br />

unidades maiores nos textos. Os marcadores coesivos não<br />

podem ser vistos apenas como propriedades objetivas dos textos,<br />

mas “têm de ser interpretados pelos intérpretes de textos<br />

como parte do processo de construção de leituras coerentes do<br />

texto” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 220). Esses marcadores<br />

também necessitam ser tomados dinamicamente e segundo a<br />

visão do produtor do texto: os produtores de texto situam ativamente<br />

relações coesivas de determinados tipos no processo<br />

de posicionar o intérprete como sujeito. A coesão pode tornarse<br />

um modo significativo de trabalho ideológico que ocorre<br />

em um texto.<br />

d) Estrutura textual


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

658<br />

Descrever as características organizacionais gerais, o funcionamento<br />

e o controle das interações. A estrutura textual também<br />

diz respeito à arquitetura do texto, principalmente no que<br />

se refere a aspectos superiores do planejamento de diferentes<br />

tipos de texto. A forma como o texto se organiza pode expandir<br />

a percepção dos sistemas de crenças e conhecimentos e alargar,<br />

também, a percepção dos pressupostos sobre as relações<br />

sociais dos tipos de texto mais diversos.<br />

Polidez: identificar que estratégias de polidez são mais utilizadas<br />

na amostra e o que isso sugere sobre as relações sociais<br />

entre os participantes. As regras de polidez particulares tanto<br />

incorporam quanto reconhecem relações sociais de poder particulares.<br />

Segundo Fairclough (2008, p. 204), “investigar as<br />

convenções de polidez de um dado gênero ou tipo de discurso<br />

é um modo de obter percepção das relações sociais dentro das<br />

práticas e dos domínios institucionais, aos quais esse gênero<br />

está associado”.<br />

Ethos: verificar as características que contribuem para a construção<br />

do ‘eu’ ou de identidades sociais. “A imagem discursiva<br />

de si é [...] ancorada em estereótipos, um arsenal de representações<br />

coletivas que determinam, parcialmente, a apresentação<br />

de si e sua eficácia em uma determinada cultura”<br />

(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 221). Esses<br />

estereótipos culturais circulam nos mais diversos domínios:<br />

literatura, cinema, publicidade etc. (MAINGUENEAU,<br />

2001). O posicionamento de Fairclough (2008) é o de que o<br />

ethos pode ser considerado como parte de um processo mais<br />

amplo de “modelagem” em que o tempo e o lugar de uma interação<br />

e seus participantes, assim como o ethos desses participantes,<br />

são constituídos pela valorização de ligações em<br />

certas direções intertextuais de preferência a outras.<br />

Mais uma vez, a contribuição da lista elaborada por Caldas-<br />

Coulthard (2008, p. 34)<br />

1- Onde está situada a principal informação no texto?<br />

2- Que tipos de relações oracionais existem?


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

659<br />

3- Que tipos de estruturas genéricas são usados (narrativa,<br />

argumentações, relatórios etc.)?<br />

2.1.4. Análise discursiva<br />

A prática discursiva (produção, distribuição e consumo) está<br />

baseada na tradição interpretativa ou microssociológica de levar em<br />

conta a prática social como algo que as pessoas, ativamente, produzem<br />

e apreendem com embasamento em procedimentos compartidos<br />

consensualmente. Trata-se, portanto, de uma análise chamada de “interpretativa”,<br />

pois é uma dimensão que trabalha com a natureza da<br />

produção e interpretação textual. Alguns aspectos podem ser observados<br />

nessa análise, envolvendo as três dimensões da prática discursiva:<br />

produção do texto – interdiscursividade e intertextualidade manifesta;<br />

distribuição do texto – cadeias intertextuais; consumo do texto<br />

– coerência. A essas três dimensões, Fairclough (2008) acrescentou<br />

as “condições da prática discursiva” com a finalidade de apresentar<br />

aspectos sociais e institucionais que envolvem produção e consumo<br />

de textos.<br />

a) Produção do texto<br />

Por interdiscursividade e intertextualidade, entende-se a propriedade<br />

que os textos têm de estar repletos de fragmentos de<br />

outros textos. Esses fragmentos podem estar delimitados explicitamente<br />

ou miscigenados com o texto que, por sua vez,<br />

pode assimilar, contradizer ou fazer ressoar, ironicamente, esses<br />

fragmentos.<br />

Interdiscursividade (intertextualidade constitutiva): Especificar<br />

os tipos de discurso que estão na amostra discursiva sob<br />

análise, e de que forma isso é feito.<br />

Intertextualidade manifesta: Especificar o que outros textos<br />

estão delineando na constituição do texto da amostra, e como<br />

isso acontece. Como ocorre a representação discursiva: direta<br />

ou indireta? O discurso representado está demarcado claramente?<br />

De acordo com o processo considerado, a intertextua-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

660<br />

lidade pode ser vista diferentemente. No processo de produção,<br />

a intertextualidade acentua a historicidade dos textos,<br />

sendo sempre acréscimo às “cadeias de comunicação verbal”<br />

(BAKHTIN, 2000). No processo de distribuição, a intertextualidade<br />

é útil para a “exploração de redes relativamente estáveis<br />

em que os textos se movimentam, sofrendo transformações<br />

predizíveis ao mudarem de um tipo de texto a outro”<br />

(FAIRCLOUGH, 2008, p. 114). No processo de consumo, a<br />

intertextualidade é proveitosa ao destacar que não é unicamente<br />

“o texto” (ou os textos intertextualizados na constituição<br />

desse texto) que molda a interpretação, porém, também os<br />

outros textos que os intérpretes, variavelmente, trazem ao<br />

processo de interpretação. Observar se há relação entre intertextualidade<br />

e hegemonia é importante e produtivo como pista<br />

para a interpretação, para explicar as mudanças. O conceito<br />

de intertextualidade liga-se à produtividade dos textos, pois<br />

aponta para como os textos transformam textos anteriores e<br />

reestruturam as convenções existentes a fim de originar novos<br />

textos.<br />

b) Distribuição do texto<br />

Cadeias intertextuais: classificar a distribuição de uma amostra<br />

discursiva através da descrição das séries de textos nas<br />

quais ou das quais é transformada. Quais os tipos de transformações,<br />

quais as audiências antecipadas pelo produtor?<br />

Quando especificamos as cadeias intertextuais em que entra<br />

um tipo particular de discurso, estamos, na verdade, especificando<br />

sua distribuição. O número de cadeias intertextuais é<br />

limitado pelo número de cadeias reais, ou seja, pelo número<br />

de instituições e de práticas sociais. As cadeias intertextuais<br />

podem ser muito complexas, como ocorre, por exemplo,<br />

quando se transforma um discurso presidencial em outros textos,<br />

pertencentes a diferentes gêneros (reportagens, análises e<br />

comentários, artigos acadêmicos etc.), ou podem ser muito<br />

simples, pois uma contribuição a uma conversa informal não<br />

poderá gerar tantas cadeias intertextuais como no exemplo an-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

661<br />

terior, provavelmente será apenas modificada por formulações<br />

dos coparticipantes.<br />

c) Consumo do texto<br />

Coerência: Considerar as implicações interpretativas das particularidades<br />

intertextuais e interdiscursivas da amostra. Como<br />

os textos são interpretados e quanto de trabalho inferencial<br />

é requerido. A coerência deixa de ser abordada como propriedade<br />

do texto para ser tratada como propriedades de interpretação,<br />

pois um texto só faz sentido para alguém, quando<br />

lhe é possível interpretá-lo, ao gerar leituras coerentes. Contudo,<br />

não se deve esquecer que há a possibilidade de fazeremse<br />

leituras diferentes, como resistência à proposta pelo texto.<br />

De qualquer modo, a fim de que um texto faça sentido, é necessário<br />

que os intérpretes encontrem uma maneira de convencionar<br />

seus vários dados em uma unidade coerente, conquanto<br />

não necessariamente unitária, determinada ou não ambivalente.<br />

No dizer de Magalhães (2001, p. 23): “Os interpretantes,<br />

além de sujeitos discursivos em processos discursivos,<br />

são também sujeitos sociais com determinadas experiências<br />

acumuladas de vida e recursos orientados diferentemente para<br />

as dimensões múltiplas da vida”.<br />

d) Condições da prática discursiva<br />

Especificar as práticas sociais de produção e consumo do texto,<br />

ligadas ao tipo de discurso que a amostra representa. A<br />

produção é coletiva ou individual? Há diferentes estágios de<br />

produção? A fim de compreender as condições de práticas<br />

discursivas, é necessário perceber que os textos são produzidos<br />

de maneira particular e em contextos sociais particulares.<br />

Semelhantemente à produção, os textos são consumidos diferentemente<br />

em variados contextos sociais. A produção e o<br />

consumo podem ser individuais ou coletivos. Os textos podem<br />

ser caracterizados por distribuição simples (conversa casual)<br />

ou complexa. Eles podem apresentar resultados variá-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

662<br />

veis, de natureza extradiscursiva e, ainda, discursiva (os atos<br />

de fala).<br />

2.1.5. Análise social<br />

O objetivo geral dessa prática é especificar “a natureza da<br />

prática social da qual a prática discursiva é uma parte, constituindo a<br />

base para explicar por que a prática discursiva é como é; e os efeitos<br />

da prática discursiva sobre a prática social” (FAIRCLOUGH, 2008,<br />

p. 289), porque “a prática social (política, ideológica etc.) é uma dimensão<br />

do evento comunicativo, da mesma forma que o texto” (FA-<br />

IRCLOUGH, 2008, p. 99). Essa é uma análise de tradição macrossociológica<br />

e com características interpretativas. É uma dimensão que<br />

verifica as questões de interesse na análise social, ou seja, analisa as<br />

circunstâncias institucionais e organizacionais do evento discursivo e<br />

de que maneira elas moldam a natureza da prática discursiva. Em resumo<br />

a análise social tem por objetivo, especialmente, trabalhar ideologia<br />

e hegemonia.<br />

a) Matriz social do discurso: especificar as relações e as estruturas<br />

sociais e hegemônicas que constituem a matriz dessa instância<br />

particular da prática social e discursiva; como essa instância<br />

aparece em relação a essas estruturas e relações [...]; e que efeitos<br />

ela traz, em termos de sua representação ou transformação?”<br />

(FAIRCLOUGH, 2008, p. 289-290).<br />

b) Ordens do discurso: explicitar o relacionamento da instância<br />

da prática social e discursiva com as ordens de discurso que ela<br />

descreve e os efeitos de reprodução e transformação das ordens<br />

de discurso para as quais colaborou.<br />

c) Efeitos ideológicos e políticos do discurso: focalizar os seguintes<br />

efeitos ideológicos e hegemônicos particulares: sistemas<br />

de conhecimento e crença, relações sociais, identidades sociais<br />

(eu).<br />

Conforme Fairclough, ideologias são construções ou significações<br />

da realidade (mundo físico, relações sociais, identidades sociais)<br />

que se fundamentam em diferentes dimensões das formas e dos


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

663<br />

sentidos das práticas discursivas e que colaboram para a produção, a<br />

reprodução ou a transformação das relações de poder.<br />

As ideologias implícitas nas práticas discursivas são por demais<br />

eficazes quando se tornam naturalizadas e conseguem atingir o<br />

status de senso comum (repositório dos diversos efeitos de lutas ideológicas<br />

passadas e constante alvo de reestruturação nas lutas atuais).<br />

Contudo, essa propriedade aparentemente estável e estabelecida das<br />

ideologias pode ser subjugada pela transformação, ou seja, pela luta<br />

ideológica como dimensão da prática discursiva, conseguindo-se, assim,<br />

remodelar as práticas discursivas e as ideologias que nelas foram<br />

construídas, no contexto das redefinições das relações de dominação.<br />

A ideologia é uma propriedade tanto de estruturas nas ordens<br />

dos discursos (que constituem o resultado de eventos passados)<br />

quanto de eventos (ou condições de eventos atuais e nos próprios eventos).<br />

Nas palavras de Fairclough (2001, p. 119), “é uma orientação<br />

acumulada e naturalizada que é construída nas normas e nas<br />

convenções, como também um trabalho atual de naturalização e desnaturalização<br />

de tais orientações nos eventos discursivos”.<br />

Fairclough afirma que os sujeitos, mesmo sendo posicionados<br />

ideologicamente, têm capacidade de agir criativamente, no sentido<br />

de executar suas próprias conexões entre as diversas práticas e ideologias<br />

a que são expostos e, também, de reestruturar tanto as práticas<br />

quanto as estruturas posicionadoras. “O equilíbrio entre o sujeito ‘efeito’<br />

ideológico e o sujeito agente ativo é uma variável que depende<br />

das condições sociais, tal como a estabilidade relativa das relações<br />

de dominação” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 121).<br />

Esta questão do sujeito vem a ser o grande embate entre AD e<br />

ACD. Aquela com um sujeito assujeitado e esta com um sujeito<br />

transformador. Diante deste aspecto, é interessante conhecer o posicionamento<br />

de um grande analista (da AD) nacional – Sirio Possente.<br />

Possenti (2009, p. 83) afirma que passou “não aceitar a tese corrente<br />

em AD segundo a qual o sujeito é assujeitado, não foi por desconhecê-la.<br />

Foi exatamente porque eu a conhecia bastante bem e a<br />

tinha anteriormente aceito. Se passei a não mais aceitá-la, pelo menos<br />

na formulação Althusseriana, foi por outras razões, teóricas e


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

664<br />

empíricas”, e ainda acrescenta que o próprio Foucault em sua obra o<br />

Uso dos Prazeres (1984 apud POSSENTI, 2009, p. 87) “abandonara<br />

seu posto antigo, e visava agora a um sujeito das práticas do cotidiano,<br />

cercado de circunstâncias que certamente não o deixam livre,<br />

mas que não o subjugam.” E arremata com a frase: “Estamos longe<br />

do sujeito assujeitado”.<br />

Fairclough considera que nem todo discurso é irremediavelmente<br />

ideológico. As ideologias caracterizam as sociedades que são<br />

estabelecidas numa relação de poder, de dominação. Assim, à medida<br />

que os seres humanos transcendem esse tipo de sociedade, transcendem<br />

também a ideologia. Por isso, Fairclough (2008) não aceita a<br />

visão que atribui a Althusser, em que a ideologia é o cimento social,<br />

o que é inseparável da sociedade. Os discursos caracterizam-se abertos<br />

em termos de princípios, logo, eles não são investidos ideologicamente<br />

no mesmo grau.<br />

O segundo ponto a ser tratado na análise da prática social é a<br />

hegemonia, conceito procedente dos estudos de Gramsci (Apud FA-<br />

IRCLOUGH, 2008) sobre o capitalismo ocidental e da estratégia revolucionária<br />

da Europa Ocidental. Destacaremos algumas concepções<br />

de hegemonia aceitas por Fairclough (2008, p. 122):<br />

a. É tanto liderança como exercício do poder em vários domínios de<br />

uma sociedade (econômico, político, cultural e ideológico).<br />

b. É, também, a manifestação do poder de uma das classes economicamente<br />

definidas como fundamentais em aliança com outras forças<br />

sociais sobre a sociedade como um todo, porém nunca alcançando,<br />

senão parcial e temporariamente, um ‘equilíbrio instável’.<br />

c. É, ainda, a construção de alianças e integração através de concessões<br />

(mais do que a dominação de classes subalternas).<br />

d. É, finalmente, um foco de luta constante sobre aspectos de maior volubilidade<br />

entre classes (e blocos), a fim de construir, manter ou,<br />

mesmo, a fim de romper alianças e relações de dominação e subordinação<br />

que assumem configurações econômicas, políticas e ideológicas.<br />

Ideologia, a partir dessa visão de hegemonia, é “uma concepção<br />

do mundo que está implicitamente manifesta na arte, no direito,<br />

na atividade econômica e nas manifestações da vida individual e coletiva”<br />

(GRAMSCI apud FAIRCLOUGH, 2008, p. 123). A produ-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

665<br />

ção, a distribuição e o consumo de textos são, em verdade, um dos<br />

enfoques da luta hegemônica que contribui, em diferentes graus, para<br />

a reprodução ou a transformação da ordem de discurso e das relações<br />

sociais e assimétricas existentes.<br />

Hegemonia, em resumo, é o domínio baseado no consenso, na<br />

concessão que grupos poderosos fazem a grupos menores, a fim de<br />

não desestabilizar o poder.<br />

O discurso vem a ser a grande força utilizada para naturalizar<br />

práticas sociais hegemônicas, pois ele tem a força de naturalizar<br />

condições adversas ou discrepantes socialmente em algo aceito sem<br />

questionamento. Van Dijk (2008, p. 21) afirma que “A ilusão de liberdade<br />

e diversidade pode ser uma das melhores maneiras de produzir<br />

a hegemonia ideológica que servirá aos interesses dos poderes<br />

dominantes na sociedade".<br />

2.2. Metodologia em análise crítica do discurso<br />

A análise crítica do discurso é uma disciplina que dialoga<br />

com a Linguística e a Ciência Social Crítica e constitui um modelo<br />

teórico-metodológico aberto a pesquisas de diversas práticas na vida<br />

social. Conforme Pedro (1998, p. 26). “a ACD procura centrar-se na<br />

análise das estratégias discursivas que legitimam o controle, que ‘naturalizam’<br />

a ordem social e, especialmente, as relações de desigualdade”.<br />

Por isso, as análises empíricas em ACD devem movimentarse<br />

entre o linguístico e o social, pois esta considera o discurso como<br />

uma forma de prática social, ou seja, como um modo de ação sobre o<br />

mundo e a sociedade, apontando para as mudanças sociais contemporâneas<br />

e as práticas emancipatórias. Isto justifica por que pesquisa,<br />

nesse campo, requer uma visão científica de crítica social a fim de<br />

prover base científica para um questionamento crítico da prática social<br />

(RESENDE; RAMALHO, 2004).<br />

Por isso que fundamentam suas pesquisas na análise crítica do<br />

discurso orientam para que os métodos utilizados sirvam para vincular<br />

a teoria com a observação. Seus métodos indicam as vias segui-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

666<br />

das ou que serão seguidas pela investigação. Pelo fato de os investigadores<br />

seguirem vários enfoques, a metodologia adotada, como não<br />

poderia deixar de ser, seguirá, também, vários caminhos, de acordo<br />

com os enfoques ressaltados. Segundo Meyer (2003), é necessário<br />

que a ACD mantenha, continuamente, uma retroalimentação entre a<br />

análise e a recolhida de dados. Por isso, a seleção de dados não se<br />

encerra quando do início da análise, ao contrário, o analista, diante<br />

de um fato novo, buscará, em sua fonte de dados, exemplos que possam<br />

confirmar o que foi encontrado. O que poderia gerar uma análise<br />

infinita é controlado pelo recorte estabelecido para a pesquisa. Assim,<br />

a coleta de dados passa a ser uma fase, ou melhor, um processo<br />

permanentemente operativo. Isto por que trabalhos em ACD não delimitam<br />

as diferenças entre teoria, descrição e aplicação.<br />

Dentre seus campos de pesquisa, estão: mídia, enquadramento<br />

profissional, contextos burocráticos, burocratização e tecnologização<br />

da linguagem, literatura, discursos legais, médico, da ciência, da economia,<br />

racismo, discriminação com base no sexo, desvantagem<br />

educativa, situações multiétnica, entre outros.


3. Democratização, tecnologização e comodificação: as tendências<br />

contemporâneas do discurso<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

667<br />

Novas práticas de linguagem estão emergindo nos mais variados<br />

campos da vida social. De acordo com Fairclough (2008), as<br />

mudanças na prática social são inicialmente marcadas no plano da<br />

linguagem pelas mudanças no sistema de gêneros discursivos. Uma<br />

sociedade ou instituição particular tem uma configuração particular<br />

de gêneros com relações particulares entre eles, constituindo um sistema.<br />

Dessa forma, quando os gêneros sofrem mudanças, isso acaba<br />

alterando as relações entre eles, e consequentemente, o seu sistema.<br />

Para o autor, as três tendências que têm afetado o discurso nas<br />

sociedades contemporâneas são: a democratização, a comodificação<br />

e a tecnologização. As duas primeiras referem-se a mudanças efetivas<br />

nas práticas discursivas, enquanto a terceira, a tecnologização do<br />

discurso, é uma tendência de mudança nas ordens de discurso que<br />

sugere uma intervenção consciente nas práticas discursivas, fator<br />

significativo na produção de transformações sociais.<br />

Destaca ainda, o referido autor, que as tendências interagem<br />

entre si nos processos de luta hegemônica sobre a estrutura das ordens<br />

de discurso, causando um impacto notável sobre diversas ordens<br />

de discurso contemporâneas e projetando rearticulações.<br />

Fairclough (2008) desenvolveu análises de publicidade referente<br />

ao ensino superior para ilustrar esses processos. Os resultados<br />

mostram uma mudança nas tecnologias discursivas empregadas, fundamentadas<br />

em posicionamentos discursivos que revelam a construção<br />

do leitor como consumidor de um produto.<br />

Essa tendência neoliberal e globalizada também tem causado<br />

mudanças que afetam as práticas religiosas, contribuindo para uma<br />

nova visão de religião, associando-a aos princípios mercadológicos<br />

de produção e rentabilidade, introduzindo nas instituições religiosas<br />

a lógica da competição e concorrência no mercado.<br />

Escolhemos como objeto de análise o discurso institucional<br />

da Igreja Universal do Reino de Deus, entidade pública religiosa, em<br />

virtude de ela nos parecer um exemplo característico de estrutura<br />

empresarial-eclesiástica na atualidade. O corpus para análise é cons-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

668<br />

tituído por testemunhos publicados na seção Superação do jornal Folha<br />

Universal em 2008. Para entendermos melhor os três processos<br />

vejamos como eles são conceituados e como se realizam neste corpus.<br />

3.1 Democratização do discurso: a eliminação simulada<br />

de marcadores explícitos de poder<br />

As transformações ocorridas nas últimas décadas, aceleradas<br />

pelos avanços na tecnologia – nos meios de comunicação, nos modos<br />

de produção e na natureza das organizações – produziram a necessidade<br />

de uma nova linguagem. De modo geral, o discurso formal vem<br />

sendo substituído pelo informal.<br />

Para Fairclough (2008), essa tendência ao discurso conversacional<br />

é resultado do processo de democratização em todas as esferas<br />

da atividade humana. O autor entende como democratização do discurso,<br />

“a redução de marcadores explícitos de assimetria de poder<br />

entre pessoas com poder institucional desigual – professores e alunos,<br />

gerentes e trabalhadores, pais e filhos, médicos e pacientes –,<br />

que é evidente numa diversidade de domínios institucionais” (FA-<br />

IRCLOUGH 2008, p. 129).<br />

Em sua pesquisa, o linguista britânico analisa cinco áreas de<br />

democratização discursiva: relações entre línguas e dialetos sociais;<br />

acesso a tipos de discurso de prestígio; eliminação de marcadores<br />

explícitos de poder em tipos de discurso institucionais com relações<br />

desiguais de poder; tendência à informalidade das línguas, e mudanças<br />

nas práticas referentes ao gênero na linguagem. Em nosso trabalho<br />

destacaremos a retirada de marcadores explícitos de poder em tipos<br />

de discurso institucionais com relações desiguais de poder.<br />

Essa tendência de eliminar marcadores explícitos de poder,<br />

enfatiza o autor, está intimamente ligada à informalidade, cuja importância<br />

tem sido bastante acentuada pelos valores culturais contemporâneos.<br />

Ele afirma: “é nos tipos mais formais de situação que<br />

as assimetrias de poder e status são as mais nítidas” (FAIRCLOU-<br />

GH, 2008, p. 251). A forma como o discurso conversacional está<br />

sendo projetado do seu domínio privado para a esfera pública é uma


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

669<br />

manifestação clara de informalidade. Destaca ainda que a conversação<br />

está colonizando a mídia, vários tipos de discurso profissional/<br />

público, educacional e outros.<br />

A mudança na relação entre discurso falado e escrito dá a dimensão<br />

dessa manifestação de informalidade. Percebemos essa mudança<br />

referente à conversação não só em todas as partes da mídia<br />

impressa, mas também nos meios eletrônicos como rádio e televisão.<br />

Com isso cresce o número de programas de entrevistas e de apresentadores<br />

que conversam com seus ouvintes como se estivessem batendo<br />

um papo com amigos. Reportagens de jornais simulam o discurso<br />

conversacional. Observemos a chamada da seção Superação.<br />

“TODA SEMANA VOCÊ VAI ACOMPANHAR, AQUI,<br />

HISTÓRIAS EMOCIONANTES E DRAMÁTICAS<br />

DE QUEM ENFRENTOU E VENCEU DESAFIOS”.<br />

A personalização dos leitores (você), e a direção individualizada<br />

a fiéis potenciais (você e não vocês), simulam uma relação conversacional<br />

e, portanto, relativamente pessoal, informal, íntima, solidária<br />

e igual entre a instituição (Folha Universal/Igreja Universal) e<br />

o leitor, a quem ela deseja persuadir. Desse modo, com o uso do pronome<br />

“você”, o locutor encena um diálogo com o leitor e o convida<br />

para ler a seção todas as semanas.<br />

A referência direta é usada convencionalmente como marcador<br />

de informalidade na publicidade moderna. A esse respeito Fairclough<br />

(2008) afirma que os textos comodificados, construídos sobre<br />

modelos de publicidade, manifestam comumente aspectos democratizantes<br />

como a informalidade e o discurso conversacional.<br />

Porém, Fairclough (2008) ressalta que essa retirada funciona<br />

apenas como uma maquiagem e mostra sua preocupação com a eliminação<br />

de marcadores explícitos de hierarquia e assimetria de poder<br />

em tipos de discurso institucional nos quais as relações de poder<br />

são desiguais. Nas palavras do autor, “detentores de poder e ‘sentinelas’<br />

de vários tipos estão simplesmente substituindo mecanismos explícitos<br />

de controle por mecanismos encobertos” (FAIRCLOUGH,<br />

2008, p. 251).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

670<br />

Corroborando e ampliando essa ideia, Carvalho (2002, p. 17)<br />

afirma que “o discurso [da propaganda] e da publicidade é um dos<br />

instrumentos de controle social e, para realizar esta função, simula<br />

igualitarismo, remove da estrutura de superfície os indicadores de<br />

autoridade e poder, substituindo-os pela linguagem da sedução”.<br />

Esses traços textuais marcam uma mudança histórica importante<br />

na natureza e nos objetivos dos “testemunhos religiosos” alinhada<br />

com as mudanças maiores da religião cristã: a colonização do<br />

discurso religioso pelo discurso de mercado. O mercado opera no<br />

sentido de cooptar o campo da religião para a reprodução dos seus<br />

interesses, exercendo assim o papel de reprodução e legitimação do<br />

modo de produção e da ideologia dominante.<br />

Nessa perspectiva, as leis da religião passam a praticar o idioma<br />

da mercadoria e a submeter tudo a essa engrenagem mercantilizadora.<br />

A publicidade, por sua vez, portadora dos interesses do capital,<br />

pressiona a religião a operar na mesma lógica, submete-a as<br />

mesmas regras e valores. Num primeiro momento, o evangelho vira<br />

mercadoria, oferecido em outdoors, faixas, propagandas e outras<br />

formas de mídia. Num segundo momento a fé vira mercadoria, que<br />

submete seu valor de uso ao valor de troca. E num momento final, os<br />

próprios fiéis viram mercadorias, através das notícias, dos testemunhos.<br />

Então, podemos afirmar que, nos casos analisados, há uma<br />

espécie de democratização relacionada a um sentido hegemônico,<br />

que acaba por participar da manutenção ou mudança dos valores, das<br />

crenças, da prática social.<br />

3.2 Tecnologização do discurso: a mudança discursiva<br />

como resultado de um processo consciente<br />

O termo ‘tecnologias discursivas’, adotado por Fairclough<br />

(2008), foi adaptado da análise de Foucault sobre as ‘tecnologias’ e<br />

‘técnicas’ ligadas ao ‘biopoder’ moderno, e a tecnologização do discurso<br />

como características de ordens de discurso modernas, ao se referir<br />

a uma das tendências de produção de mudança discursiva.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

671<br />

Norman Fairclough (2008, p. 264) chama de “tecnologização<br />

do discurso” um conjunto de técnicas que são usados estrategicamente<br />

para “ter efeitos particulares sobre o público”. Tendência das<br />

sociedades modernas, essas “técnicas” têm sido cada vez mais utilizadas<br />

por um grupo de pessoas detentoras de “habilidades especiais”,<br />

geralmente especialistas no manejo da linguagem, das técnicas linguísticas,<br />

de conhecimentos sobre a sociedade e seu funcionamento,<br />

na tentativa frequente de controle sobre a vida das pessoas.<br />

O teórico britânico (2008, p. 90) listou cinco características<br />

da tecnologização do discurso: 1. O surgimento de peritos em “tecnologia<br />

do discurso”; 2. Uma mudança no “policiamento” das práticas<br />

discursivas; 3. Concepção e projeção de técnicas discursivas descontextualizadas;<br />

4. Simulação discursiva com fundamentos estratégicos;<br />

5. Pressão no sentido de uniformizar as práticas discursivas.<br />

Ele diz:<br />

As tecnologias discursivas estabelecem uma ligação íntima entre o<br />

conhecimento sobre linguagem e discurso e poder. Elas são planejadas e<br />

aperfeiçoadas com base nos efeitos antecipados mesmo nos mais apurados<br />

detalhes de escolhas linguísticas no vocabulário, na gramática, na entonação,<br />

na organização do diálogo, entre outros, como também a expressão<br />

facial, o gesto, a postura e os movimentos corporais. Elas produzem<br />

mudança discursiva mediante um planejamento consciente. Isso implica<br />

acesso de parte dos tecnólogos ao conhecimento psicológico e sociológico<br />

(FAIRCLOUGH, 2008, p. 265).<br />

Caracterizadas como uma forma de poder, como instrumentos<br />

de policiamento e dominação das práticas discursivas, as tecnologias<br />

discursivas estão avançando para locais institucionais específicos,<br />

onde são conscientemente cuidadas, planejadas e aperfeiçoadas por<br />

especialistas para atender às exigências institucionais na transmissão<br />

das técnicas. Os especialistas ou tecnólogos têm acesso ao conhecimento<br />

sobre a linguagem e o discurso que moldam as práticas discursivas<br />

institucionais.<br />

Fairclough (2008, p. 264) afirma que a entrevista, o ensino, o<br />

aconselhamento e a publicidade são “técnicas transcontextuais que<br />

são consideradas como recursos ou conjunto de instrumentos que<br />

podem ser usados para perseguir uma variedade ampla de estratégias<br />

em muitos e diversos contextos”.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

672<br />

A mídia (recursos tecnológicos ligados à comunicação) é o<br />

espaço ideal para a tecnologização dos discursos das igrejas neopentecostais.<br />

Através dos meios de comunicação de massa, espaço que<br />

abriga profissionais aptos e especialistas em técnicas persuasivas, é<br />

que são publicizados os discursos comodificados das instituições religiosas.<br />

A produção discursiva midiática evangélico neopentecostal<br />

vem se caracterizando através da capacidade de despertar desejos.<br />

Em relação à ideia de sedução, Fairclough (2008), citando a obra de<br />

Habermas (1984), destaca a “colonização” do mundo pelos “sistemas<br />

da economia e do Estado”, o que provocaria “um deslocamento de<br />

usos ´comunicativos´ da linguagem (...) por usos ´estratégicos´ da<br />

linguagem – orientados para o sucesso, para conseguir que as pessoas<br />

realizem coisas” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 24).<br />

Não podemos deixar de observar que a IURD, enquanto instituição<br />

religiosa, investe nessas tecnologias discursivas, usando uma<br />

gama de estratégias. Para ser mais eficaz naquilo que propõe, convencer<br />

os fiéis dos eficientes serviços e produtos, a IURD aperfeiçoou<br />

sua técnica de oratória contratando jornalistas e profissionais da<br />

área de marketing. Esses profissionais usam técnicas cada vez mais<br />

aprimoradas para convencer da capacidade que a própria IURD tem<br />

de resolver todos os males da face da Terra. Giddens (1991) utiliza o<br />

termo “peritos” quando se refere aos profissionais das igrejas que são<br />

pagos pelo trabalho de mediação entre o fiel e Deus, espécie de psicoterapeutas<br />

que proveem as pessoas das chaves compreensivas de<br />

suas dificuldades.<br />

Como ressaltamos anteriormente, o sucesso profissional e os<br />

ganhos materiais são temas recorrentes nos testemunhos publicados<br />

na seção Superação. Essa estratégia discursiva de sedução fica bem<br />

evidenciada nos exemplos abaixo.<br />

Título: “A pobreza tentou apagar meu sonho”<br />

[...]<br />

“Atribuo nosso sucesso profissional aos propósitos de fé que sempre<br />

participamos na IURD”. Além do consultório, o casal alcançou outra vitória:<br />

o nascimento do filho. (Edição 832, 16/03/2008)


Título: Determinação é essencial para o sucesso<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

673<br />

Subtítulo: Mergulhado em dívidas, médico encontra o verdadeiro<br />

caminho para os objetivos<br />

[...]<br />

Hoje, ele é proprietário de centros clínicos nos municípios de São<br />

Gonçalo, Itaboraí e Araruama, no interior do Rio de Janeiro, e de um<br />

consultório próprio na capital, oferecendo serviços em diversas áreas<br />

médicas, contando com uma equipe de aproximadamente 30 especialistas.<br />

(Edição 837, 20/04/2008)<br />

Título: Ideia redentora<br />

Subtítulo: Após duas falências e muitas derrotas, empresária faz<br />

sucesso em outros países<br />

“Superamos as duas falências que tivemos e as derrotas se tornaram<br />

conquistas”, conta.<br />

Tais resultados satisfatórios, segundo Selma, foram alcançados após<br />

participar do propósito da Fogueira Santa (campanha realizada na I-<br />

URD), do qual ela faz questão de não ficar de fora até os dias de hoje. “A<br />

cada Fogueira Santa, Deus me dá novas inspirações. Recentemente, adquiri<br />

um salão de beleza e estética num dos bairros de alto nível de Curitiba”,<br />

relata. (Edição 858, 22/09/2008)<br />

Nos fragmentos selecionados acima, o sucesso profissional e<br />

a prosperidade financeira detém importante centralidade. Os exemplos<br />

comprovam os propósitos comunicativos tecnologizados dos editores<br />

e evidenciam a lógica eminentemente capitalista que procura<br />

contextualizar a “fé” ao mercado consumidor.<br />

Constatamos, portanto, que a tecnologização do discurso tem<br />

provocado mudanças no discurso religioso, por meio de mudanças<br />

nas ordens de discurso das instituições e na configuração e articulação<br />

de novos gêneros discursivos, como é o caso do testemunho midiático,<br />

contexto da nossa pesquisa. Nesse caso, a mudança discursiva<br />

é planejada em detalhes, estrategicamente, para atingir objetivos<br />

predeterminados.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

674<br />

3.3 Comodificação: o discurso mercantilizado e marketizado<br />

da religião<br />

Além de poder classificá-los na tendência de “democratização”<br />

e “tecnologização”, é possível vislumbrar outra tendência na<br />

superfície dos textos analisados: a comodificação.<br />

Segundo Fairclough (2008), a comodificação é um processo<br />

que se configura na organização de domínios sociais diversos – cujo<br />

alvo não é a produção de bens de consumo – em estruturas de produção,<br />

distribuição e consumo: discursos associados com a produção de<br />

bens de consumo colonizam outros discursos institucionais.<br />

O exemplo de comodificação que o autor apresenta é o discurso<br />

educacional que oferece cursos vendidos pela publicidade. Tal<br />

como a educação, os “produtos” e “serviços” religiosos seriam apenas<br />

um de uma série de domínios cujas ordens de discurso são colonizadas<br />

pelo gênero publicitário. O resultado é uma proliferação de<br />

textos que conjugam aspectos de publicidade com aspectos de outros<br />

gêneros de discurso.<br />

O foco nesta seção é a intergenericidade: a emergência de um<br />

discurso híbrido de depoimento-e-publicidade e segue um modelo de<br />

análise tomado de Fairclough (2008). Pode-se destacar, de acordo<br />

com esse autor, que as mudanças na prática social são marcadas no<br />

plano da linguagem pelas mudanças no sistema de gênero discursivo.<br />

A análise intertextual e interdiscursiva do gênero discursivo é fundamental<br />

para o estudo do aspecto híbrido dos gêneros discursivos.<br />

Na concepção de Fairclough (2008), o aparecimento de novos gêneros<br />

e a transformação dos já existentes estão relacionados com mudanças<br />

discursivas mais amplas na sociedade contemporânea. Essa é<br />

uma tendência à comodificação do discurso que explica o caráter híbrido,<br />

interdiscursivo do gênero discursivo testemunho religioso em<br />

mídia impressa que é composto por configurações de diferentes gêneros<br />

e discursos.<br />

Até aqui temos nomeado nosso objeto de análise de gênero<br />

testemunho religioso em mídia impressa, para fazer distinção do testemunho<br />

religioso veiculado na mídia não impressa (radiofônica, televisiva<br />

e outras). A recente evolução dos “testemunhos” é um refle-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

675<br />

xo das “pressões” sofridas pelas igrejas no sentido de se adequarem<br />

às condições do mercado “vendendo” os seus “cultos” e fazendo uso<br />

de técnicas discursivas provenientes da área da publicidade. Algumas<br />

das mudanças já efetuadas refletem-se na aparência física dos<br />

“testemunhos”: uma configuração de texto multimodal, utilizando<br />

várias linguagens ou semioses – a verbal, a imagética, as cores etc.<br />

Tradicionalmente o testemunho consistia no relato de alguma<br />

benção alcançada. Continha, portanto, informações relativas ao problema<br />

enfrentado pelo depoente e a sua solução. O objetivo era a<br />

glorificação do nome de Deus. No modelo comodificado, o objetivo<br />

seria divulgar uma marca (instituição) e “vender” seus produtos.<br />

Trata-se, portanto, de um tipo de texto jornalístico com propriedades<br />

publicitárias, ou seja, expõe um fato, relata um acontecimento<br />

com intenções explícitas de promoção mercantil. Embora o<br />

testemunho publicado na seção Superação tenha um funcionamento<br />

linguístico-discursivo e formal do que seja uma linguagem jornalística<br />

(título, subtítulo, lead, relato de um fato), utiliza a linguagem<br />

marquetizada da persuasão, carregando a ideia de promoção mercantil.<br />

Constatamos, portanto, que tal gênero discursivo, de maneira<br />

sutil, incita os leitores a um estilo de vida, despertando neles antes<br />

uma necessidade ou desejo de ter algo. Assim, o espaço para o depoimento<br />

dos fiéis deixa de ser um simples relato e passa a ser persuasivo,<br />

mercantilista.<br />

O fato é que o produto ou serviço veiculado sob ícone de um<br />

depoimento (ACONTECEU COMIGO), no espaço editorial, terá<br />

mais credibilidade e legitimidade perante os leitores do testemunho.<br />

Assim, podemos dizer que o gênero discursivo testemunho religioso<br />

em mídia impressa tem como propósito comunicativo divulgar algum<br />

produto ou serviço, no caso específico, a própria IURD e seus<br />

produtos (Fogueira Santa de Israel) aproveitando-se do espaço editorial<br />

e de algumas propriedades da linguagem jornalística, com intenções<br />

explícitas de promoção mercantil. Portanto, a função comunicativa<br />

deste gênero é híbrida: informa para vender e vende para informar.<br />

Essa dubiedade confere ao depoimento/produto uma nova forma<br />

de ação e interação com o público, despertando o desejo pelo


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

676<br />

produto/serviço anunciado, impelindo o leitor/consumidor à ação.<br />

Dessa forma, vinculado a um acontecimento, o testemunho-publicidade<br />

passa a estimular as necessidades e interesses do leitor/consumidor,<br />

tendo como argumento vantagens, benefícios, como pode ser<br />

verificado no exemplo:<br />

Vida sem dívidas [manchete]<br />

Casal sofre fracasso financeiro mas participa de propósitos e recupera<br />

as perdas<br />

Por Ana Carolina Sousa<br />

redacao@folhauniversal.com.br<br />

São inúmeros os motivos que levam uma pessoa à Igreja Universal<br />

do Reino de Deus. Um deles é o fracasso na vida financeira. Foi o que<br />

aconteceu, por exemplo, com Marlene José Cabral Soares e Élcio Aparecido<br />

Soares, ambos de 37 anos. (FATO, ACONTECIMENTO) Quando o<br />

casal de trabalhadores autônomos chegou à IURD (PRODUTO) não possuía<br />

nada além de dívidas. Marlene relembra aquele momento difícil da<br />

vida:<br />

“Trabalhávamos muito e não crescíamos. Morávamos de favor em<br />

apenas dois cômodos e nossos filhos adoeciam constantemente. Com isso,<br />

o pouco dinheiro que entrava era gasto com médicos e remédios.<br />

Nosso casamento também estava desgastado por brigas e traições”.<br />

A mudança aconteceu quando chegaram à IURD (PRODUTO). Aprenderam<br />

sobre a importância do dízimo e participaram de campanhas e<br />

propósitos (PRODUTOS). Hoje, a família comemora o casamento feliz,<br />

os filhos saudáveis e a próspera vida financeira. “Somos muito abençoados<br />

em todos os sentidos. Nossa família é unida e não temos doenças.<br />

Conquistamos quatro caminhões, pois trabalhamos com comércio de frutas.<br />

Temos casa própria, um lote e carro de passeio”, conclui Marlene.<br />

(EDIÇÃO 852, 8/08/2008, destaques nossos)<br />

Como se pode observar, o texto acima apresenta uma configuração<br />

híbrida: insere-se no espaço editorial Superação, tendo a temática<br />

da fé, como pano de fundo, para divulgar os produtos da IURD,<br />

que transforma a vida das pessoas. Para tanto, de forma direta, divulga<br />

os benefícios e vantagens do produto IURD, por meio de um texto<br />

jornalístico.<br />

Percebemos no exemplo que o texto traz uma estrutura jornalística:<br />

título “Vida sem dívidas” (frase curta para chamar a atenção),


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

677<br />

atribuição de voz a um dos personagens (Marlene José Cabral Soares<br />

e Élcio Aparecido Soares), assinatura (por Ana Carolina Sousa redacao@folhauniversal.com.br),<br />

enfatizando a responsabilidade do jornalista,<br />

e foto-legenda. O texto traz informações acerca dos fiéis,<br />

mas procura, neste cenário informativo, divulgar produtos oferecidos<br />

pela IURD.<br />

Embora veiculadas no espaço para o depoimento do fiel, no<br />

exemplo fica evidenciado a promoção de produtos ou serviços, como<br />

a divulgação das campanhas oferecidas pela IURD e suas vantagens<br />

e benefícios, despertando o interesse do público leitor/consumidor.<br />

Brown (1971) afirma que a propaganda, ou a publicidade, usa<br />

alguns esquemas básicos a fim de obter o convencimento dos receptores,<br />

dentre os quais destacarei dois: a criação de inimigos (o discurso<br />

persuasivo costuma criar inimigos) e o apelo à autoridade (o<br />

discurso persuasivo chama alguém que valide o que está sendo afirmado).<br />

Em relação ao primeiro, as narrativas dos testemunhos revela<br />

muito bem esta questão. A IURD se justifica contra algo: a derrota<br />

em suas mais diferentes áreas da vida. Antes de chegar à IURD, a<br />

pessoa está falida, deprimida, desenganada etc.<br />

Os elementos apresentados acima convergem para certas conotações<br />

que se encontram no eixo combate-triunfo. Ou seja, as pessoas<br />

encontram uma arma para vencer os seus inimigos: a IURD. O<br />

resultado da vitória é o aumento do prestígio social, a paz e harmonia<br />

completa na família, a ausência total de doenças e vícios.<br />

Trouxemos outro exemplo (o número das frases foi acrescentado<br />

por nós). O texto ocupa um quarto de uma página do jornal, o<br />

resto é ocupado por duas fotos (com legendas que remetem à matéria<br />

interna) onde uma senhora aparece sorridente num escritório e na outra<br />

pousa entre dois carros novos em frente a uma garagem.<br />

Na legenda da primeira o destaque em negrito “CONQUIS-<br />

TA: Representação da marca de perfumes onde Izilda recebe distribuidores”,<br />

na segunda sobressai: “CARROS: Bênçãos conquistadas<br />

através da Fogueira Santa”.<br />

[Título]: “Eu venci a pobreza”


[Subtítulo] Empresária dá a volta por cima depois de conviver<br />

com a falta de dinheiro.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

678<br />

A empresária Izilda de Oliveira Bandeira, de 50 anos, passou por<br />

muitas dificuldades antes de chegar à IURD [1]. “Meu marido sempre<br />

trabalhou, mas, em uma determinada época, ficou desempregado, o que<br />

desestruturou a nossa vida, inclusive o nosso casamento”, conta [2]. Com<br />

dois filhos pequenos e a casa para cuidar, Izilda diz que ficava angustiada<br />

diante da situação [3]. “Chegamos a depender de favor e de empréstimos<br />

de familiares para sobreviver [4]. Embora morássemos em casa<br />

própria, era inacabada, por conta das precárias condições financeiras”,<br />

relata, acrescentando que, não bastassem tantos problemas, os filhos viviam<br />

doentes, e isso gerava gastos também com remédios [5]. Sem dormir<br />

direito, a empresária lembra que, durante as madrugadas, assistia à<br />

programação da IURD pela televisão, o que despertou o interesse dela<br />

em buscar ajuda [5]. “Fui à Igreja e lá aprendi a lutar, agir minha fé e, acima<br />

de tudo, obedecer a Deus totalmente [6]. Tomei conhecimento da<br />

Fogueira Santa de Israel – um propósito de fé da Igreja – e me lancei de<br />

corpo, alma e espírito”, diz, salientando que, de lá para cá, a vida dela<br />

nunca mais foi a mesma, senão de vitórias [7]. Hoje, Izilda é proprietária<br />

de uma marca de perfumes, com escritório próprio de representação em<br />

Santo André, no ABC Paulista. Segundo ela, a marca foi criada e estruturada<br />

a partir de uma inspiração concedida por Deus [8]. “Pagamos as dívidas,<br />

não dependemos mais de ninguém e temos tudo do bom e do melhor,<br />

inclusive automóveis zero quilômetro, uma casa ampla e confortável<br />

e um belo apartamento na praia da Enseada, região nobre do Guarujá,<br />

litoral de São Paulo”, testemunha [9]. (Edição 843 – 01/06/2008, p. 2i).<br />

O exemplo apresenta o depoimento de uma usuária (cliente)<br />

da IURD e, ao mesmo tempo, tenta “vende-la”. O texto apresenta de<br />

forma padronizada uma alternância no nível da frase entre tipos de<br />

discurso de depoimento e de publicidade. Por exemplo, a manchete<br />

(em caixa alta, tamanho de letras bem maiores, em negrito) “EU<br />

VENCI A POBREZA” entre aspas, possui características de um testemunho<br />

pessoal, já a continuação da mesma manchete, “empresária<br />

dá a volta por cima depois de conviver com a falta de dinheiro” parece<br />

um anúncio de uma instituição financeira, ou de uma gerenciadora<br />

de loteria.<br />

No exemplo, o programa de televisão da igreja é mencionado<br />

como o grande responsável pelo início da transformação na vida da<br />

pessoa: sem dormir direito, a empresária lembra que, durante as<br />

madrugadas, assistia à programação da IURD (frase (5)). Outras,<br />

como (6), (7) e (8) são muito claramente atribuíveis ao discurso publicitário.<br />

Assim, a reportagem acaba por se assemelhar a uma peça


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

679<br />

publicitária sobre a IURD. Além disso, ao analisar as imagens, também<br />

é possível verificar a sua capacidade de simular um estilo de vida,<br />

criando um mundo que consumidores potenciais, produtores e<br />

produtos podem conjuntamente ocupar.<br />

A mescla de informações sobre o depoimento e publicidade<br />

pode ser interpretada como um modo de reagir ao dilema que instituições<br />

como igrejas enfrentam no mercado moderno. Segundo Fairclough<br />

(2008, p. 151), “setores da economia fora da produção de<br />

bens de consumo estão, de modo crescente, sendo arrastados para o<br />

modelo dos bens de consumo e para a matriz do consumismo, e estão<br />

sob pressão para 'empacotar' suas atividades como bens de consumo<br />

e 'vendê-las' aos 'consumidores'”.<br />

A comodificação, de acordo com o autor supracitado, não é<br />

um processo particularmente novo, mas recentemente ganhou força e<br />

intensidade como um aspecto da “cultura empresarial”. Observa-se<br />

que essa cultura vem se concretizando cada vez com maior força no<br />

campo religioso, à medida que os fiéis passam a ser vistos como clientes.<br />

Isso tem feito com que as instituições religiosas se tornem cada<br />

vez mais atrativas, e seus serviços precisam agradar cada vez mais<br />

os consumidores, acirrando a concorrência no mercado religioso cada<br />

vez mais. No intuito de atrair uma determinada “clientela”, as instituições<br />

tendem a mostrar que a religião pode ser algo lucrativo,<br />

bastando que os fiéis frequentem regularmente a igreja, que se “vende”<br />

através do discurso marketizado como uma instituição diferenciada,<br />

e contribua financeiramente.<br />

Assim, as pessoas são atraídas para os templos, “catedrais da<br />

fé” como são chamadas, (verdadeiros shopping centers da fé) com a<br />

promessa de algum ganho, seja ele de caráter físico, emocional ou<br />

financeiro. Com isso até mesmo a “fé” tem se transformado em um<br />

bem de consumo, um objeto de leilão: leva quem dá o maior lance.<br />

Ou um tipo de “título de capitalização celestial”: sua oferta rende juros<br />

e correção monetária e se tiver sorte alguns prêmios extras, do tipo:<br />

carros importados, apartamentos na praia, sítios e fazendas, e<br />

uma empresa, é claro.<br />

Ainda segundo Fairclough (2008, p. 151), “textos do tipo informação<br />

e publicidade ou falar e vender são comuns em várias or-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

680<br />

dens de discurso institucionais na sociedade contemporânea. Eles<br />

testemunham um movimento colonizador da publicidade do domínio<br />

do mercado de bens de consumo, num sentido estrito, para uma variedade<br />

de outros domínios”.<br />

No testemunho religioso midiático a fala do testemunhante,<br />

inserida num contexto jornalístico, tem como principal objetivo<br />

“vender” o produto IURD. Para incrementar um trabalho provocativo<br />

e sensacionalista, recursos estratégicos com fórmulas gráficas são<br />

utilizados pelos editores do jornal Folha Universal para provocar reações<br />

emocionais e assim atrair a atenção do leitor, seguindo princípios<br />

básicos de toda propaganda: persuadir.<br />

O sucesso editorial depende de uma boa composição da página.<br />

Por isso, a seção Superação é formada de um texto escrito mais<br />

uma ou até duas fotografias que chegam a ocupar mais da metade de<br />

todo o seu espaço.<br />

A reportagem da edição publicada pela Folha Universal em<br />

15 de junho de 2008 na página 2i de seu caderno Folha IURD é um<br />

exemplo. A primeira foto traz como legenda: “CONQUISTA: Depois<br />

de tomar conhecimento do poder de Deus, Alcimínio usou a<br />

fé, deixou a vida de derrotas e conquistou muitas vitórias”.<br />

Apresenta, no primeiro plano, um senhor de meia idade, em<br />

pé, provavelmente em frente a sua casa. Seu corpo está ereto e ele<br />

olha diretamente para a lente da câmera que o fotografa. Em segundo<br />

plano, vemos uma grande piscina, uma casa bem construída, um sobrado<br />

com jardim. Temos aí elementos que compõem o espaço em<br />

que o testemunhante se insere. A segunda fotografia, que ocupa um<br />

espaço bem menor, mostra o pátio de uma empresa de siderurgia,<br />

com a seguinte legenda: “NEGÓCIOS: Empresário investe no<br />

ramo de siderurgia em cinco estados”. As imagens em questão, em<br />

harmonia com o título da reportagem e a legenda das fotos, deixam<br />

pressuposto que o empresário citado na reportagem adquiriu aqueles<br />

bens (mansão, empresa) como resultado de sua participação na campanha<br />

da Fogueira Santa.<br />

Para alguns analistas, o discurso neoliberal da IURD está fazendo<br />

com que os fiéis se tornem “homens econômicos”. Não só


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

681<br />

com relação ao sagrado, mas também em suas vidas profanas. No<br />

âmbito do sagrado, eles negociam com a Divindade, e do profano,<br />

eles são “vigorosos consumidores” (CAMPOS, 1997). Os fiéis, considerados<br />

como consumidores, optam pelos produtos da “cesta” e<br />

enchem seus carrinhos de compra.<br />

Campos (1999, p. 358) afirma:<br />

Nos templos da IURD, os consumidores religiosos escolhem aqueles<br />

produtos que mais se relacionam com suas necessidades e arquiteturaram<br />

em sua própria cabeça o produto desejado, conforme as suas aspirações.<br />

Isto é, a Igreja Universal oferece um Kit contendo os ingredientes de um<br />

produto retrabalhado no imaginário do “consumidor”. O preço a ser pago<br />

para a satisfação dos desejos na IURD é monetarizado. Daí a importância<br />

em sua pregação de temas como “sacrifício do dinheiro”, “ofertas de<br />

amor”, pois “dar o dízimo é candidatar-se a receber bênçãos sem medida”,<br />

repete o fundador.<br />

Podemos também enxergar no discurso midiático, além dos<br />

bens simbólicos que toda religião acaba por oferecer, a oferta de<br />

bens materiais de consumo em ampla escala. Neste caso, o discurso<br />

religioso assume visivelmente os ares do discurso mercadológico,<br />

ambos se caracterizando na forma de discursos de poder, já que eles<br />

não ocorrem fora dos meios de comunicação, e, para isso, o discurso<br />

religioso começa a incorporar outros domínios discursivos que são<br />

peculiares aos anseios dos espectadores. Prega-se o que os consumidores-alvo<br />

anseiam. Promete-se o que os clientes potenciais precisam.<br />

Analisando a proposta de marketing da Igreja Universal,<br />

Campos (1997, p. 224) observou que: “Cada produto iurdiano, embora<br />

faça parte de uma ‘família de produtos’, é uma espécie de iceberg<br />

que aponta para uma visão de mundo, consubstanciada num<br />

grupo de ideias centradas ao redor da expressão ‘Cristo salva, cura,<br />

faz prosperar os que o aceitam na Igreja Universal do Reino de<br />

Deus’”.<br />

Dentre os serviços, uma espécie de “cesta básica da fé”, estão<br />

aqueles que envolvem as emoções (terapia do amor), intelectuais e<br />

financeiros. A maioria deles requer a participação constante nos cultos<br />

e uma contrapartida: o sacrifício – ou seja, dinheiro. Se os fiéis<br />

estão com problemas financeiros, são convencidos a “agir a fé”, ou


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

682<br />

seja, doar mais do que podem, e até mesmo o que não tem, para que<br />

a vida sofra uma reviravolta. É o caso da campanha “Fogueira Santa<br />

de Israel”.


4. Semântica global: teoria e prática<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

683<br />

Apresentamos, neste tópico, os pressupostos desenvolvidos<br />

por Maingueneau (2007) em ‘Gênese dos discursos’ sobre a ‘semântica<br />

global’, especificamente, sobre o primado do interdiscurso e a<br />

polêmica como interincompreensão, para assim demonstrarmos outra<br />

possibilidade a análise discursiva convergente com o modelo Tridimensional<br />

de Fairclough (2008). As análises propostas nesta seção<br />

trazem discursos de docentes em formação na área de Letras e a temática<br />

restrita abordada é o ensino de língua portuguesa na Educação<br />

Básica.<br />

4.1. A proposta de análise de Fairclough e os elos com a Semântica<br />

Global<br />

O sistema de regras de boa formação semântica do discurso<br />

diz respeito às restrições de semânticas globais que serão detalhadas<br />

mais adiante nesse trabalho. Esses traços semânticos que restringem,<br />

ao mesmo tempo, todos os planos discursivos: vocabulário, temas<br />

tratados, intertextualidade, instâncias de enunciação. Esses traços<br />

funcionam como marcas nos textos que se filiam a um determinado<br />

discurso. Essa visão macro e microlinguística dos discursos tem<br />

também aporte teórico no modelo de análise de Norman Fairclough<br />

(2008), que será tomado aqui como uma adição às análises de Maingueneau<br />

(2007), para abarcar o estudo do interdiscurso.<br />

Para Fairclough (2008), cada caso discursivo tem três dimensões<br />

ou facetas, que estão interligados, mas analiticamente separáveis:<br />

É uma língua falada ou escrita texto; É um exemplo de discurso<br />

práticas envolvendo a produção e interpretação de texto; E é uma peça<br />

de prática social.<br />

Dessa proposta depreende-se que há três níveis método da análise do<br />

discurso: o método da análise do discurso inclui descrição linguística da<br />

língua texto, a interpretação da relação entre o (produtivo e interpretativos)<br />

processos discursivos e de texto, e explicação da relação entre os<br />

processos discursivos e os processos sociais. (FAIRCLOUGH, 2008, p.<br />

97)<br />

Quando usa o termo discurso o autor considera o uso da linguagem<br />

como forma de prática social e não como pura atividade in-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

684<br />

dividual, o discurso não é só um modo de ação sobre o mundo, mas<br />

também um modo de representação:<br />

I – O ensino de língua materna deve ser ministrado sob a ótica da<br />

uma prática educativa 3 , respeitando as variações linguísticas, haja vista<br />

que o homem é produto social (...) É papel da escola propiciar ao estudante<br />

de língua materna uma orientação acerca das oportunidades que<br />

um falante da norma culta terá, principalmente numa sociedade estratificada.<br />

II – É fundamental que os alunos tenham certo domínio de sua própria<br />

linguagem, para que não ocorra discriminação sociolinguística. É<br />

importante que os professores se conscientizem, a procurar melhoria no<br />

ensino para mudança social.<br />

Podemos observar nesse discurso de um acadêmico de Letras,<br />

quando a temática tratava do ensino de língua materna. As vozes aqui<br />

representadas estão centradas na proposta variacionista de ensino,<br />

que representa um conjunto de teorias que circulam na Academia.<br />

Vocábulos como “sociedade estratificada, produto social, mudança<br />

social, prática educativa, variação linguística” remetem a um contexto<br />

abarcado pelo conjunto político de propostas democratizadoras inerentes<br />

a modelo seguido pela ideologia renovadora sobre o ensino<br />

de LM, o que não deixa de ser um modo de representação e prática<br />

social revelada no discurso.<br />

Isso posto, implica relação entre estrutura social e discurso,<br />

uma como causa ou efeito da outra. Para dar conta desse entendimento<br />

o autor também entende interdiscurso como precedente ao<br />

discurso. “As categorias intertextualidade e interdiscursividade são<br />

bastante exploradas pela ACD, pois ela analisa as relações de um<br />

texto ou um discurso, considerando outros que lhe são recorrentes.”<br />

(PEDROSA, 2008, p. 139)<br />

O modelo tridimensional de Fairclough (2008) compreende a<br />

análise textual, a análise discursiva e a prática social. Dentro dessas<br />

categorias, outras subcategorias convergem com a proposta da semântica<br />

global de Maingueneau.<br />

3 Os grifos nossos objetivam o direcionamento para as análises centradas no vocábulo,<br />

no tema e na intertextualidade – categorias relevantes para análise discursiva pautada<br />

pela Semântica Global de Maingueneau (2007).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

685<br />

Conforme Ramalho e Resende (2006), a análise textual é a<br />

primeira dimensão de análise no modelo tridimensional e caracteriza-se<br />

pela descrição linguística. Dentre as subcategorias tem-se gramática,<br />

coesão, estrutura textual e vocabulário. Abrimos um parêntese,<br />

para demonstrar este último como a ponte real entre o modelo de<br />

Fairclough e as restrições globais de Maingueneau.<br />

Para Fairclough (2008, p. 288), ênfase da análise está nas “palavras-chave<br />

que têm significado cultural geral ou mais local; nas palavras<br />

cujos significados são variáveis e mutáveis; e no significado<br />

potencial de uma palavra – uma estruturação particular de seus significados<br />

– como um modo de hegemonia e um foco de luta”.<br />

Esses traços operadores do discurso, pela via do vocabulário<br />

definem conjunto de categorias lexicais opostas, já que a luta e a hegemonia<br />

evidenciada pala materialidade linguística pode ser definida<br />

como operadores de individuação que de acordo com Brunelli<br />

(2008), para cada discurso, dois conjuntos de categorias semântica<br />

dos vocabulários aparecem opostas: o conjunto dos semas reivindicados<br />

(os semas positivos) e o conjunto de semas rejeitados(os negativos).<br />

Nos discursos dos graduandos em questão, semas do tipo<br />

gramática, regras, erro, língua terão cargas positivas ou negativas a<br />

partir da posição discursiva do enunciador.<br />

Veja-se:<br />

III – Deve sempre aproveitar o conhecimento que o aluno já possui e<br />

não trabalhar somente com a gramática normativa, pois essa tem que<br />

deixar de ser um fim e passar a ser um meio.<br />

IV – Os professores deveriam se desprender mais da gramática e<br />

trabalhar temas variados, ligados a linguagem.<br />

V – O ensino de Língua Materna deve não ser somente algo mecânico<br />

como anda sendo (...) as aulas estão sendo baseadas em regras que<br />

são expostas na gramática normativa. O que realmente deve ser levado<br />

em conta é a língua como algo funcional, ou seja, ela serve para ser utilizada<br />

de várias formas e o professor como um ser consciente, deveria passar<br />

a ensinar a língua de uma forma não somente tradicional.<br />

VI – O ensino de LP deve ser de forma clara, com muita explicação<br />

e de fácil entendimento, pois exige muitas regras, e não é tão fácil entender<br />

a língua portuguesa.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

686<br />

VII – É bem verdade que o ensino de LP está defasado, as crianças<br />

chegam aos onze anos falando um português abaixo da média, segundo<br />

as normas gramaticais, devido ao convívio com os pais. Não basta o professor<br />

passar 1h20min , quando o aluno chega em casa e ouve gírias, palavras<br />

incorretas.<br />

Pelas explorações semânticas das unidades lexicais e pelo espaço<br />

discursivo que esses exemplos se encontram, tomemos os exemplos<br />

para motivo de exploração contraditória implícita.Pela posição<br />

enunciativa, o discurso V é característico pela posição de um sujeito<br />

opositor às ideias propostas pela prescrição do ensino tradicional,<br />

um sujeito crítico. Enquanto a posição enunciativa no discurso<br />

VII traz a prescrição como premissa para o ensino demonstrando aí o<br />

que chamamos de semas positivos e negativos na análise discursiva<br />

pautada pela semântica global. Em V, o vocábulo regras é um sema<br />

negativo, enquanto em VI, ele não aparece com tanta negatividade<br />

semântica. O que chamamos aqui de negatividade é uma rejeição e<br />

positivo como uma aceitação, uma vez que cada discurso repousa, de<br />

fato, sobre um conjunto de semas repartidos em dois registros: de um<br />

lado, os semas positivos, “reivindicados”; de outro, os semas negativos,<br />

“rejeitados”. A cada posição discursiva se associa um dispositivo<br />

que a faz interpretar os enunciados de seu Outro 4 traduzindo-as<br />

nas categorias do registro negativo de seu próprio sistema. (MAIN-<br />

GUENEAU, 2007, p. 103)<br />

Dentro desse diálogo com o outro, temos o que chamamos<br />

de interdicurso, que se inscreve na perspectiva da heterogeneidade<br />

enunciativa pela negação, aceitação, citação, referenciação vocabular,<br />

como veremos a seguir.<br />

4.2. Interdiscurso: pressuposto para análise discursiva sob a<br />

ótica da Semântica Global<br />

A análise da prática discursiva, segundo Ramalho e Resende<br />

(2006) do modelo tridimensional contempla a interdiscursividade, as<br />

cadeias textuais, a coerência, as condições prática discursivas, a in-<br />

4 Não estamos tratando de uma proposta lacaniana, mas sim pautada na linha discur-<br />

siva de Dominique Maingueneau (2007).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

687<br />

tertextualidade manifesta. Dessa categoria fica evidente a ponte que<br />

se faz com o interdiscurso. Implicado nessa teoria sob a ótica da intertextualidade<br />

manifesta ou constitutiva, mas evidenciando a primazia<br />

dessas relações sobre o discurso. “A intertextualidade implica<br />

uma ênfase sobre a heterogeneidade dos textos e um modo de análise<br />

que ressalta os elementos e as linhas diversos e frequentemente contraditórios.”<br />

(FAIRCLOUGH, 2008, p. 137). Dessa forma, toma-se<br />

nesse trabalho o interdiscurso como objeto de análise.<br />

O conceito de interdiscurso no presente trabalho terá a orientação<br />

teórica de Maingueneau (2008, p. 33) “Nossa hipótese do primado<br />

do interdiscurso inscreve-se na perspectiva de uma heterogeneidade<br />

constitutiva, que amarra em uma relação inextricável, o<br />

Mesmo do discurso e seu Outro.” A proposta de Maingueneau coloca<br />

o discurso como uma interação entre discursos, o que implica um<br />

tipo de análise em que a identidade discursiva é definida pela interdiscursividade,<br />

isto é da relação do seu discurso com o discurso do<br />

seu Outro. O autor diz que é necessário refinar o conceito que aparece<br />

tão amplo. Para tanto, o a generalização do interdiscurso será<br />

substituída pela tríade: universo discursivo, campo discursivo e espaço<br />

discursivo.<br />

Por “universo discursivo”, o autor entende o conjunto de todos<br />

os tipos de formações discursivas interagem numa condição de<br />

produção, também representa necessariamente um conjunto finito,<br />

mesmo que não possa ser apreendido em sua globalidade. Trata-se<br />

do horizonte mais amplo tratado no discurso, do qual serão construídos<br />

os domínios mais estruturados para a pesquisa do analista do<br />

discurso: os campos discursivos. Para Brunelli (2008), trata-se do<br />

conjunto de discursos que se delimitam numa região determinada pelo<br />

universo discursivo, mantendo diversos tipos de relações como o<br />

confronto aberto, aliança, aparente neutralidade. Ou seja, embora sejam<br />

discursos com a mesma função social, divergem sobre o modo<br />

pelo qual essa função deve ser preenchida. Daí o encaixe, a coerência<br />

na análise dos discursos dos discentes de letras, sobre o ensino de<br />

língua portuguesa, como observamos nos discursos III e VII, que interagem<br />

pela linha do ensino, que embora divergentes, estão determinadas<br />

pela região ensino de língua portuguesa (universo), apresentando<br />

agora os campos discursivos.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

688<br />

Para Maingueneau (2007, p. 35), campo discursivo é “um<br />

conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência,<br />

delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo<br />

discursivo”, divergindo, como já fora dito, na forma como a<br />

função social do discurso será preenchida. Esse recorte em campos é<br />

apenas uma abstração necessária, que deve permitir abrir múltiplas<br />

redes de trocas. Para o autor, é no interior do campo discursivo que<br />

se constitui um discurso, e sua hipótese é que tal constituição pode<br />

deixar-se descrever em termos de operações regulares sobre formações<br />

discursivas já existentes. Não significa que os discursos se<br />

constituam todos da mesma forma.<br />

Tomando como base essas noções, podemos dizer que no interior do<br />

“universo discursivo” temos um “campo discursivo”, em que várias formações<br />

discursivas se encontram em concorrência, delimitando-se reciprocamente.<br />

Dentro do campo podem ser isolados os espaços discursivos,<br />

isto é, subconjuntos que ligam ao menos duas formações discursivas<br />

que mantêm relações privilegiadas, relações essas que o analista julga<br />

pertinente para o seu propósito. (LARA, 2004, p. 118)<br />

Nesse contexto, tomando a noção de interdiscurso, enquanto<br />

espaço de trocas entre vários discursos, evidencia-se que as falas dos<br />

alunos de Letras sobre o ensino de LM é atravessada por várias formações<br />

discursivas, mostrando que a heterogeneidade é princípio de<br />

sua constituição.<br />

4.3. Heterogeneidade, Interdiscursividade, Intertextualidade:<br />

da teoria à prática<br />

Maingueneau (2007), na Gênese dos Discursos, faz uma distinção<br />

entre intertexto e intertextualidade. Para o autor, o intertexto é<br />

um complexo de fragmentos citados em um mesmo corpus enquanto<br />

a intertextualidade é conceituada como um sistema de regras que define<br />

o intertexto. A intertextualidade torna-se plano de análise uma<br />

vez que “todo campo discursivo define certa maneira de citar os discursos<br />

anteriores do mesmo campo” (op. cit. p.81). Assim, o intertexto<br />

ancora-se no eixo da memória discursiva, aceitando alguns discursos<br />

e recusando outros, seja pela intertextualidade interna (memória<br />

discursiva acerca do ensino de LM) e intertextualidade externa<br />

(textos de outros campos discursivos que se ligam ao discurso do a-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

689<br />

cadêmico de Letras acerca do ensino de LM). Essas regras acabam<br />

definindo que a intertextualidade do discurso tradicional sobre o ensino<br />

de LM não é mesma que a intertextualidade do discurso inovador<br />

da Linguística, como nos discursos que seguem, marcados pela<br />

inovação:<br />

VIII – Que o ensino de LP possa ser efetivado a partir do texto, priorizando<br />

a visão da língua como um mecanismo vivo e de extrema interatividade.<br />

Claro que o padrão normativo deve ser levado em consideração,<br />

no entanto, não como verdade absoluta.<br />

IX – A LP deve ser ensinada através de textos, desmontando e montando<br />

textos e a gramática deve ser ensinada como complementar. Formar<br />

leitores e produtores de texto é a única alternativa e ainda ensinar<br />

com os gêneros textuais.<br />

A intertextualidade aqui marcada pela proposta dos Gêneros<br />

Textuais, da interação verbal é externa, pois traz um elo entre teorias<br />

que aqui se apresentam em diferentes discursos e posições enunciativas.<br />

É nesse contexto que a Polêmica como interincompreensão<br />

nos é pertinente para a breve exposição neste minicurso. Maingueneau<br />

(2007) diz que<br />

Cada formação discursiva tem uma maneira própria de interpretar o<br />

seu outro. Uma tal ideia contraria, aliás, as representações espontâneas,<br />

para as quais o ‘antagonismo” entre os dois discursos é uma noção estável<br />

que não é necessário especificar mais. (MAINGUENEAU, 2007, p.<br />

108)<br />

Dessa forma, o discurso da inovação não pode ser dissociado<br />

do discurso da tradição uma vez que um determina o outro, como<br />

podemos perceber nos exemplos IV e VII:<br />

IV – Os professores deveriam se desprender mais da gramática e<br />

trabalhar temas variados, ligados à linguagem.<br />

VII – É bem verdade que o ensino de LP está defasado, as crianças<br />

chegam aos onze anos falando um português abaixo da média, segundo<br />

as normas gramaticais, devido ao convívio com os pais. Não basta o professor<br />

passar 1h20min , quando o aluno chega em casa e ouve gírias, palavras<br />

incorretas<br />

De acordo com o francês, a Interincompreensão regrada é<br />

constitutiva da prática interdiscursiva dos discursos que partilham do


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

690<br />

mesmo espaço discursivo. Nesse sentido, interessa-nos saber quais<br />

os mecanismos linguísticos que entram em cena quando dois discursos<br />

que estão em um mesmo espaço discursivo instauram uma polêmica<br />

entre si. Os textos dos alunos de Letras versando sobre o ensino<br />

de LM como corpus é justificado pelo fato deles apresentarem duas<br />

opiniões diferentes sobre um mesmo assunto – o ensino de português<br />

e mudança de postura diante do fenômeno língua.<br />

Assim, noção de semântica global estrutura-se sobre esse postulado<br />

da existência de uma zona de regularidade semântica a partir<br />

da qual todos os planos da discursividade, como o léxico, os processos<br />

gramaticais, até o modo de enunciação e de organização da comunidade<br />

que enuncia o discurso, estão submetidos ao mesmo sistema<br />

de restrições globais. Esse sistema de restrições é concebido<br />

como um delineador de critérios que, em uma formação discursiva<br />

determinada, distinguem o que é possível ou não de ser enunciado do<br />

interior daquela formação.<br />

5. Palavras finais<br />

Resende e Ramalho (2006, p. 146) destacam que mesmo diante<br />

do fato de a ACD ser uma disciplina relativamente nova no<br />

meio acadêmico “já conta com uma história de desdobramentos à<br />

qual subjaz a intenção de superar possíveis limitações linguísticas<br />

que permeiam trabalhos com textos”. E reforçam a importância do<br />

modelo tridimensional que trabalhamos neste minicurso.<br />

O próprio Rajagopalan (2003) chama a atenção para a necessidade<br />

de que pesquisadores na área de linguística assumam suas<br />

‘responsabilidades perante a sociedade’. Isto se coaduna com o posicionamento<br />

de analistas críticos do discurso. Utilizando as palavras<br />

de Garcia (2003, p. 203): “Fairclough deixa bem clara a sua visão de<br />

que a análise do discurso crítica não se limitará apenas a descrever as<br />

práticas discursivas, mas também propiciará a mudança discursiva e,<br />

portanto, a mudança social. Essa postura é politicamente ativa e ideologicamente<br />

renovadora”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

691<br />

BROWN, J. A.C. Técnicas de persuasão. Rio de Janeiro: Zahar,<br />

1971.<br />

BRUNELLI, Anna Flora. Notas sobre a abordagem interdiscursiva<br />

de Maingueneau. In: POSSENTI, Sírio. BARONAS, Roberto Leiser.<br />

Contribuições de Dominique Maingueneau para a análise do discurso<br />

do Brasil. São Carlos: Pedro & João, 2008.<br />

CAMPOS, L.S. Teatro, templo e mercado: Organização e Marketing<br />

de um Empreendimento Neopentecostal. Petrópolis: Vozes, 1997.<br />

______. A Igreja Universal do Reino de Deus, um empreendimento<br />

religioso atual e seus modos de expansão (Brasil, África e Europa).<br />

Lusotopie, 1999. Disponível em:<br />

. Acesso em:<br />

10 dez. 2008.<br />

CARVALHO, N. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo:<br />

Ática, 2002.<br />

DELL’ISOLA, Regina Lúcia Péret. A metáfora e seu contexto social.<br />

In: PAIVA, Vera Lúcia Oliveira e. Metáforas do Cotidiano. Belo<br />

Horizonte: Do Autor, 1998, p. 39-51.<br />

______. Critical Discourse Analysis: the critical study of language.<br />

New York: Longman, 1995a.<br />

FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. New York: Longman,<br />

1995b.<br />

______. Discurso, mudança e hegemonia. In: PEDRO, Emília Ribeiro<br />

(Org.). Análise crítica do discurso. Lisboa: Caminho, 1998, p. 77-<br />

103.<br />

______. El análisis crítico del discurso como método para la investigación<br />

en ciencias sociales. In: WODAK, Ruth; MEYER, Michel<br />

(eds.). Métodos de análisis crítico del discurso. Barcelona: Gedisa,<br />

2003, p. 179-203.<br />

______. Discurso e mudança social. Brasília: Universidade de Brasília,<br />

2008.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

692<br />

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 12. ed. São Paulo: Loyola,<br />

2005.<br />

GARCIA, Janete Melasso. Análise do discurso crítica: uma perspectiva<br />

de trabalho. IN: VIEIRA, Josênia Antunes; SILVA, Denize Elena<br />

Garcia da Silva (Orgs.). Práticas de análise do discurso. Brasília:<br />

Plano Editora: oficina editorial do Instituto de Letras, UnB, 2003, p.<br />

191-216.<br />

HANKS, William F. Língua como prática social: das relações entre<br />

língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. São Paulo:<br />

Cortez, 2008.<br />

LARA, Glaucia Muniz. O que dizem da língua os que ensinam a língua.<br />

Uma análise semiótica do discurso do professor de português.<br />

Campo Grande: UFMS, 2004.<br />

MAGALHÃES, Célia. Reflexões sobre a análise crítica do discurso.<br />

Belo Horizonte: Faculdade de Letras, UFMG, 2001.<br />

MAINGUENAEU, Dominique. Gênese dos discursos. Trad. Sírio<br />

Possenti. Curitiba: Criar, 2007.<br />

MEYER, Michael. Entre la teoria, el método y la política: La ubicación<br />

de los enfoques relacionados com el ACD. In: WODAK, Ruth.<br />

& MEYER, Michael (Orgs.). Métodos de análisis crítico del discurso.<br />

Barcelona: Gedisa, 2003, p. 35-59.<br />

PEDRO, Emília R. Análise crítica do discurso: aspectos teóricos,<br />

metodológicos e analíticos. In: PEDRO, Emília R. (Org.). Análise<br />

crítica do discurso. Lisboa: Caminho, 1998, p. 19-46.<br />

PEDROSA, Cleide Emília Faye. Análise crítica do discurso: introdução<br />

teórica e perspectivas de análise. In: BEZERRA, Antonio Ponciano;<br />

___. (Orgs.). Língua, cultura e ensino: multidisciplinaridade em<br />

Letras. Aracaju: EDUFS, 2008a, p. 83-128.<br />

______. Análise crítica do discurso: do linguístico ao social no gênero<br />

midiático. Aracaju: EDUFS, 2008b.<br />

______. Gênero textual ‘frase’: marcas do editor nos processos de<br />

retextualização (re)contextualização. Tese de Doutorado. Recife:<br />

UFPE, 2005a.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

693<br />

______. Análise crítica do discurso: uma proposta para a análise crítica<br />

da linguagem. In: CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍS-<br />

TICA E FILOLOGIA, 9. Tomo 2: Filologia, linguística e ensino.<br />

Rio de Janeiro: CiFEFil, 2005b, p. 43-70.<br />

RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma linguística crítica. São Paulo:<br />

Parábola, 2003.<br />

RESENDE, Viviane de Melo. Análise de Discurso Crítica e Realismo<br />

Crítico: Implicações interdisciplinares. São Paulo: Pontes, 2009.<br />

RESENDE, Viviane de Melo. RAMALHO, Viviane. Análise de discurso<br />

crítica. São Paulo: Contexto, 2006.<br />

______. Análise de discurso crítica, do modelo tridimensional à articulação<br />

entre práticas: implicações teórico-metodológicas. Revista<br />

linguagem em (dis)curso, vol 5. N 1, 2004. Disponível em:<br />

<br />

WODAK, Ruth. De qué trata el análisis crítico del discurso (ACD).<br />

Resumen de su historia, sus conceptos fundamentales y sus desarrollos.<br />

In: WODAK, Ruth; MEYER, Michael (Orgs.). Métodos de análisis<br />

crítico del discurso. Barcelona: Gedisa, 2003, p. 17-34.


CARTAS DO LEITOR: A CONSTRUÇÃO DO ETHOS COMO<br />

ESPELHO DA CIDADANIA<br />

1. Apresentação<br />

Lygia Maria Gonçalves Trouche (UFF)<br />

lymt@terra.com.br<br />

O texto não é para ser contemplado, ele é enunciação<br />

voltada para um co-enunciador que é necessário<br />

mobilizar para fazê-lo aderir “fisicamente”<br />

a um certo universo de sentido.<br />

(Maingueneau, 2005, p. 73)<br />

Este texto tem por objetivo discutir, sob o ponto de vista da<br />

encenação discursiva no gênero “carta de leitor”, os procedimentos<br />

linguístico-discursivos da construção enunciativa (Charaudeau,<br />

2009) com apoio nos princípios da linguística da enunciação (Koch,<br />

2003), relacionados às questões de construção do ethos – imagem de<br />

si no discurso – desenvolvidas por Maingueneau (2005, 2008). Assim,<br />

a análise do corpus permitirá uma reflexão consistente dos aspectos<br />

linguísticos e uma leitura do ethos de um recorte datado da<br />

opinião pública, como um espelho de questões relevantes da cidadania.<br />

Especificamente serão pesquisados os papéis discursivos do<br />

locutor e do interlocutor nas cartas publicadas. Os fatos de língua já<br />

descritos em nossas gramáticas e estudos sobre a modalização (sentido<br />

de língua) serão observados nos efeitos de sentido que produzem<br />

(sentido de discurso) na situação de comunicação em que se inserem.<br />

Analisaremos uma “carta de leitor” do jornal O Globo, publicada<br />

na seção fixa DOS LEITORES que apresenta o seguinte subtítulo:<br />

“Pelo e-mail, pelo site do GLOBO, por celular e por carta, este<br />

é um espaço aberto para a expressão do leitor.” O jornal, em um box<br />

destacado, informa que acolhe opiniões sobre todos os temas e que<br />

rejeita acusações insultuosas ou desacompanhadas de documentação.<br />

Avisa que devido às limitações de espaço será realizada uma seleção<br />

de cartas e que, quando não forem concisas, poderão ser publicados


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

693<br />

trechos mais relevantes. Na mesma página, há um espaço separado<br />

denominado NO SITE E NO CELULAR que procura manter e incentivar<br />

uma interação com os leitores por meio da internet e da telefonia<br />

móvel. Logo, a seção DOS LEITORES destina-se inteiramente<br />

à comunicação com os leitores, reservando-lhes uma possibilidade<br />

de expressão de suas idéias.<br />

2. Texto: produto da atividade discursiva<br />

Podemos conceituar texto como uma unidade construída por<br />

uma série de frases encadeadas sintática e semanticamente, sob a orientação<br />

de um tema, cumprindo uma finalidade comunicativa.<br />

Segundo Koch (2003, p. 6), o texto apresenta-se como<br />

Uma manifestação verbal constituída de elementos linguísticos selecionados<br />

e ordenados pelos coenunciadores, durante a atividade verbal,<br />

de modo a permitir-lhes, na interação, não apenas a depreensão de conteúdos<br />

semânticos, em decorrência da ativação de processos e estratégias<br />

de ordem cognitiva, como também a interação (ou atuação) de acordo<br />

com práticas socioculturais.<br />

Devemos, desde logo, levar em conta também que do ponto<br />

de vista dos interlocutores (eu comunicante/locutor e tu interpretante<br />

/leitor) interagem três fatores para que a comunicação se realize: o<br />

conhecimento linguístico, o conhecimento de mundo e o conhecimento<br />

interacional (KOCH, 2002, p. 32-33.). O conhecimento linguístico<br />

corresponde ao domínio da competência gramatical que diz<br />

respeito às regras da linguagem, como a formação de palavras e de<br />

frases, à pronúncia, à ortografia, à semântica. Esta competência se<br />

centra diretamente na habilidade e no conhecimento necessários para<br />

a expressão adequada, em primeira instância, do sentido literal. Segundo<br />

a concepção de Charaudeau (2008, p. 25), “a produção dessas<br />

paráfrases estruturais permite que se efetue na linguagem um jogo de<br />

reconhecimento morfossemântico construtor de sentido, que remete à<br />

realidade que nos rodeia (atividade referencial), conceituando-a (atividade<br />

de simbolização) O conhecimento de mundo corresponde ao<br />

conhecimento do tipo declarativo (asserções a respeito dos fatos do<br />

mundo) e ao tipo episódico (modelos cognitivos adquiridos pela experiência<br />

na vida social). Com base nesses conhecimentos e em<br />

competências específicas, o falante pode formular hipóteses, estabe-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

694<br />

lecer e perceber a coesão lexical, realizar inferências com base em<br />

“remissões a alguma coisa além do enunciado explícito, que se encontra<br />

antes e depois do ato de proferição da fala”. (CHARAUDE-<br />

AU, 2008, p. 25) O conhecimento sociointeracional se refere ao domínio<br />

das ações verbais que permitem a interação pela linguagem.<br />

Falamos, pois, de competência sociolinguística que corresponde ao<br />

uso adequado de expressões linguísticas aos diferentes contextos, isto<br />

é, à situação dos participantes, propósitos da interação, normas e<br />

convenções da interação, adequação entre significado e forma, significado<br />

e função comunicativa. Os três fatores: o conhecimento linguístico,<br />

o conhecimento de mundo e o conhecimento interacional<br />

levam à competência discursiva que corresponde ao modo como se<br />

combinam formas gramaticais e significado para a significação da<br />

totalidade discursiva, veiculada por diversos gêneros em que se dão<br />

as relações sociais. Charaudeau (2008, p. 78) faz uma correspondência<br />

entre modos de discurso e gêneros textuais, mostrando que um<br />

gênero pode coincidir com um determinado modo de organização<br />

dominante ou apresentar uma combinação dos modos.<br />

3. Gênero “carta de leitor”<br />

A carta de leitor é um gênero textual que se organiza em torno<br />

de um assunto que, geralmente, faz parte das pautas dos jornais e<br />

que, portanto, de alguma forma, representa um interesse despertado<br />

na sociedade. Caracteriza-se por um estilo de comunicação “in absentia”,<br />

em forma de paragrafação e limites de linha padronizados<br />

pelo jornal e por um conjunto de ideias e opiniões de locutores que<br />

interagem diretamente com o veículo de comunicação.<br />

Atualmente, a “carta de leitor” apresenta-se como um gênero<br />

bastante difundido e, até certo ponto, incentivado pelos meios de<br />

comunicação que buscam a interatividade com os leitores. Assim,<br />

A “carta do leitor” é uma carta aberta dirigida a destinatários desconhecidos.<br />

Ela é veiculada através dos meios de comunicação escrita, de<br />

circulação ampla ou restrita, tem caráter público, cumprindo importante<br />

função social na medida em que possibilita o intercâmbio de informações,<br />

ideias, opiniões entre diferentes pessoas de um determinado grupo.<br />

Nessas cartas, encontramos o português escrito no padrão formal, atual,<br />

da forma como é concebido pela comunidade usuária. (PASSOS, 2003,<br />

p. 81)


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

695<br />

Dominar um gênero textual não se reduz a dominar determinadas<br />

formas de língua, mas sim a possibilidade de realizar, pela língua,<br />

objetivos específicos de comunicação, em situações sociais particulares.<br />

Logo, a adequada utilização dos gêneros textuais por parte<br />

dos falantes está firmemente estruturada na cultura, já que se trata de<br />

fenômenos sócio-históricos. Destacamos a concepção contemporânea<br />

de gêneros com enfoque em seu caráter de comunicação em atividades<br />

socialmente organizadas com base em Bronckart (1999, p.<br />

103) para quem “a apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental<br />

de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas<br />

humanas” e em Bazerman (2006, p. 31) que define: “Gêneros<br />

são o que nós acreditamos que eles sejam. Isto é, são fatos sociais<br />

sobre os tipos de atos de fala que as pessoas podem realizar e sobre<br />

modos como elas os realizam”.<br />

Assim podemos entender que os gêneros resultam de processos<br />

sociais, vivenciados por pessoas que procuram, pela linguagem,<br />

compartilhar significados com propósitos práticos.<br />

Pode-se resumir o gênero “carta de leitor” como aquele em<br />

que o locutor, em sua condição de cidadão, transmite a interlocutores<br />

indeterminados e, presumivelmente, heterogêneos uma opinião, reflexão<br />

ou indignação sobre um fato social, julgado relevante, para<br />

evidenciar determinada situação, talvez mais como forma de catarse<br />

do que para buscar o comprometimento dos leitores com atitudes radicais<br />

de transformação social Trata-se de denúncias ou de juízos de<br />

valor que não possuem força suficiente para abalar o sistema. Todavia,<br />

constituem-se em excelentes subsídios para a identificação de<br />

um ideal de civilidade, ainda que apenas discursivamente idealizado.<br />

O espaço dos leitores seria, pois, um simulacro de atuação democrática,<br />

enraizado na cultura, para evidenciar o “dever ser” do lugar comum.<br />

Trata-se de uma situação comunicativa em que os parceiros<br />

não estão face a face, mas mantêm suas identidades psicológicas, sociais<br />

e de ethos. Segundo Charaudeau, esses parceiros estão envolvidos<br />

num contrato de comunicação que implica um ritual sociodiscursivo<br />

em que o eu-comunicante/locutor e o tu-interpretante/leitor devem<br />

conhecer seus papéis. Isso implica, ainda, que há um conjunto<br />

de liberdades e restrições, resultantes desse tipo de enunciação do ato


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

696<br />

de linguagem: o espaço cedido pelo jornal, a possibilidade de interferência<br />

do editor no texto com cortes ou escolha de algum trecho para<br />

destaque, bem como as recomendações apresentadas no box de explicitação<br />

do que pode ou não ser dito. Entra, portanto, também em<br />

jogo a competência comunicativa que requer dos participantes da encenação<br />

(locutor e leitores), além do conhecimento de mundo partilhado<br />

(o conhecimento dos fatos relatados), a habilidade no uso da<br />

língua em registro adequado ao contexto (texto veiculado pela imprensa).<br />

Portanto, de grande importância, a situação social dos participantes,<br />

os propósitos da interação (comentários e críticas sobre acontecimentos<br />

de domínio público), normas e convenções linguístico-discursivas<br />

do gênero textual. O texto do gênero “carta de leitor”<br />

deve apresentar os traços linguísticos que permitam identificar o remetente<br />

(enunciador) [o modo como se manifesta discursivamente<br />

como locutor] e o destinatário [o modo como se constrói discursivamente<br />

o destinatário]; o assunto; os efeitos de sentido construídos para<br />

a persuasão ou manipulação do destinatário (leitor) em direção a<br />

determinado ponto de vista; a predominância do tipo textual, a qualidade<br />

do ethos, isto é, a construção de uma identidade compatível<br />

com o mundo construído discursivamente. Embora o gênero “carta”<br />

(em sentido amplo) permita uma variedade de finalidades: pedido,<br />

apresentação, conselho, informações, críticas, comentários, agradecimento,<br />

notícias familiares entre tantas outras, a “carta de leitor”,<br />

geralmente, constitui-se em uma exposição crítica, quase sempre<br />

emotiva, sobre fato de conhecimento público. Essa seção do jornal,<br />

por ilustrar o espírito de uma época, lembra, de certo modo, as tiras<br />

da Mafalda e as charges que, com sua ironia cortante, comentam a<br />

realidade e, nos implícitos, nos mostram, em relação especular, muito<br />

de nossas próprias faces.<br />

4. Modos de organização do discurso<br />

Comunicar, como se sabe, é uma tarefa complexa, já que não<br />

se trata apenas de se transmitir uma informação entre interlocutores,<br />

como se a linguagem fosse o reflexo do pensamento. A comunicação<br />

resulta de um processo de produção de linguagem, tanto do ponto de<br />

vista de sua concepção, como de sua compreensão.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

697<br />

Um discurso, para cumprir sua função social, se organiza em<br />

“modos” (CHARAUDEAU, 2008, p. 74) que consistem no emprego<br />

de determinada categoria de língua, ordenados em função das finalidades<br />

do ato de comunicação. Os “modos de organização do discurso”<br />

compreendem o enunciativo, o descritivo, o narrativo e o argumentativo.<br />

Cada um desses modos possui uma função de base e um<br />

princípio de organização que pressupõem, ao mesmo tempo, uma organização<br />

do “mundo referencial” e uma organização de sua “encenação”<br />

(descritiva, narrativa, argumentativa). Focalizaremos, nesse<br />

trabalho, o modo enunciativo, especificado no seguinte quadro (resumido):<br />

Charaudeau (2008, p. 750)<br />

O modo enunciativo dá conta da posição do locutor em relação<br />

ao interlocutor, a si mesmo e aos outros. Esse modo intervém na<br />

encenação de cada um dos outros – descritivo, narrativo e argumentativo.<br />

O modo de organização enunciativo não se confunde com a<br />

situação de comunicação, pois o foco está centrado nos protagonistas,<br />

seres da fala, internos à linguagem; não se confunde também<br />

com a “modalização” que é uma categoria de língua que permite, por<br />

procedimentos linguísticos, tornar explícito o implícito no ponto de<br />

vista do locutor.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

698<br />

O modo enunciativo é uma categoria de discurso que constrói<br />

a maneira pela qual o sujeito falante (locutor) age na encenação 1 do<br />

ato de comunicação. Na perspectiva da semiolinguística, pode-se entender<br />

que todo ato de linguagem se compõe de um “propósito referencial”<br />

que se concretiza em “ponto de vista enunciativo” do sujeito<br />

falante, integrados a uma situação de comunicação.<br />

Sintetizando, Charaudeau (2008, p. 82) conceitua:<br />

No âmbito da análise do discurso, que é a nossa perspectiva,<br />

o verbo enuncia se refere ao fenômeno que consiste em organizar<br />

as categorias de língua, ordenando-as de forma que dêem<br />

conta da posição que o sujeito falante ocupa em relação ao interlocutor,<br />

em relação ao que ele diz e em relação ao que o outro<br />

diz.<br />

As três funções do modo enunciativo resumem-se nos seguintes<br />

comportamentos: a) alocutivo que estabelece uma relação de influência<br />

entre locutor e interlocutor (o locutor age sobre o interlocutor,<br />

impondo-lhe uma reação); b) elocutivo que revela o ponto de vista<br />

do locutor (o locutor enuncia seu ponto de vista, modalizando subjetivamente<br />

o enunciado); c) delocutivo que retoma a fala de um terceiro<br />

(o locutor se apaga no ato de comunicação e não implica o interlocutor,<br />

sua enunciação é aparentemente objetiva).<br />

5. A construção do ethos na “carta de leitor”<br />

Tomamos ethos em seu viés pragmático como construção de<br />

imagens que se dão na interação verbal como troca simbólica regida<br />

por mecanismos sociais. Nesse estudo sobre a construção do ethos<br />

nas “cartas de leitor” como espelho da cidadania, destacamos que o<br />

locutor – porta-voz e reflexo da opinião pública – critica os acontecimentos<br />

e, implicitamente, busca a adesão dos leitores às opiniões<br />

expressas. O discurso da “carta de leitor” constrói a expectativa de<br />

que o público compartilhe com o locutor um conjunto de valores, de<br />

crenças e de evidências socialmente valorizadas. Ruth Amossy<br />

1 Charaudeau denomina “encenação” (mise-en-scène) a interação entre os participantes de um<br />

ato de comunicação.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

699<br />

(2005, p. 124), ao discutir as instâncias do orador, do auditório e das<br />

crenças compartilhadas, afirma:<br />

O orador apoia seus argumentos sobre a doxa que toma emprestada<br />

de seu público do mesmo modo que modela seu ethos com as representações<br />

coletivas que assumem, aos olhos dos interlocutores, um valor positivo<br />

e são suscetíveis de produzir neles a impressão apropriada às circunstâncias.<br />

Embora os locutores das “cartas” raramente sejam figuras socialmente<br />

reconhecidas (políticos, intelectuais, artistas etc.), seus<br />

discursos abordam a realidade com base em representações culturais<br />

preexistentes.<br />

Nesse gênero discursivo, o “fiador” 2 do ethos corresponde aos<br />

ideais cristalizados de moralidade e de comportamentos socialmente<br />

valorizados que o leitor identifica no locutor. A “apresentação de si”<br />

do locutor se constrói com base nos esquemas coletivos que ele identifica<br />

como cristalizados na cultura e em modalidades enunciativas<br />

que componham determinada imagem.<br />

O locutor ou eu comunicante pode adotar atitudes diferenciadas<br />

em relação ao seu dizer, isto é, pode apresentar-se em primeira<br />

pessoa do singular ou do plural, pode assumir uma atitude distanciada<br />

em um comentário centrado no assunto ou ainda dirigir-se ao leitor<br />

mesmo que indiretamente.<br />

Normalmente, os locutores das “cartas de leitor” revelam, pelos<br />

comentários e críticas que fazem, os ethé da moralidade, da temperança<br />

e da honestidade, implícitas na avaliação contundente do<br />

“fazer” das autoridades e dos comportamentos protagonizados por<br />

personalidades conhecidas na mídia ou que, eventualmente, se envolvam<br />

em acontecimentos destacados no noticiário do jornal e da<br />

TV.<br />

Analisaremos apenas uma “carta de leitor” (em função dos<br />

limites de extensão deste tipo de trabalho) de O Globo de<br />

115/07/2010, no que se refere aos modos de organização do discurso<br />

e à construção dos ethé:<br />

2 O “fiador”, para Maingueneau (2005, p. 72) é uma imagem construída pelo coenunciador com<br />

base em indícios textuais de diversas ordens.


Carta<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

700<br />

O presidente Lula poderia ser menos destemperado. Ele se irrita com<br />

qualquer tipo de comentário. A FIFA tem razão em se preocupar com a<br />

infraestrutura para a Copa de 2014. Se não temos aeroportos, estádios,<br />

rodovias etc., o início está atrasado, sim. Caso contrário, teremos obras<br />

malfeitas, mal acabadas e um legado de sucata.<br />

Victor Alberto ferreira Corrêa Rio<br />

Nessa carta, observamos o ethos do locutor como alguém equilibrado<br />

com capacidade de avaliar o temperamento irritadiço do<br />

presidente Lula frente a uma crítica da FIFA, julgada pertinente. No<br />

texto em análise, o modo enunciativo apresenta, predominantemente,<br />

comportamento elocutivo – ponto de vista da avaliação, por meio de<br />

opinião e apreciação do fato. Há aspectos de modalização que compõem<br />

a caracterização da subjetividade do locutor tais como: o auxiliar<br />

“poder” no futuro do pretérito, indicando uma possibilidade não<br />

concretizada; o uso do presente do indicativo com valor de asserções<br />

sobre fatos apresentados como reais. O emprego do presente do indicativo<br />

e do futuro como tempos do comentário (WEINRICH, apud<br />

KOCH & FÁVERO, 2008, p. 44,45), conduzem o leitor a uma atitude<br />

receptiva e atenta, intensificando a validade do relato. A condicional<br />

“se”, relacionada ao tempo presente, anula de certo modo a<br />

condição, que é apresentada como real – não temos mesmo aeroportos:<br />

trata-se de argumento retórico para corroborar a afirmativa da<br />

FIFA sobre o atraso das obras para a Copa do Mundo de 2014, fato<br />

intensificado pelo uso do “sim”, que dialoga com uma voz fora do<br />

texto. Destaque-se a escolha de adjetivos e de locuções adjetivas de<br />

avaliação pessoal como: “destemperado, malfeitas, mal acabadas, de<br />

sucata”. Há, também, no texto da “carta” aspectos do comportamento<br />

delocutivo, pois o locutor diz “como o mundo existe”, apresentando<br />

fatos mencionados por outro locutor (a FIFA). A polifonia funciona<br />

como argumento para validar as críticas feitas e apontar a real situação<br />

em que nos encontramos (sem aeroportos, estádios, rodovias<br />

etc.). Nota-se que, apesar da aparente objetividade, o locutor se vale<br />

de exemplos que alertam o leitor para as prováveis consequências<br />

indesejadas, se não houver mudança de atitude das autoridades. Podemos<br />

inferir os ethé da falta de responsabilidade no cumprimento<br />

dos prazos para a realização das obras e da irresponsabilidade em re-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

701<br />

lação à infraestrutura necessária à realização de uma Copa do Mundo<br />

no Brasil.


6. Reflexões finais<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

702<br />

Aspectos como a polifonia, a intertextualidade, a ironia, a metáfora,<br />

entre outros, são igualmente importantes constituintes da produção<br />

de sentido do texto, no ato da comunicação que implica, necessariamente<br />

a interação entre os interlocutores. Segundo Charaudeau<br />

(2006, p. 67),<br />

A situação de comunicação constitui assim o quadro de referência ao<br />

qual se reportam os indivíduos de uma comunidade social quando iniciam<br />

uma comunicação. Como poderiam trocar palavras, influenciar-se,<br />

agredir-se, seduzir-se, se não existisse um quadro de referência?<br />

A análise de texto requer sempre um trabalho continuado ao<br />

longo da vida, já que todo ato de leitura põe, face a face, quase sempre<br />

em confronto, conhecimentos de mundo e experiências discursivas<br />

diferentes.<br />

Os textos das “cartas de leitor” permitem uma visão de aspectos<br />

relevantes de nossa cultura, pois apresentam avaliações e comentários<br />

de uma parcela da população sobre o cotidiano, servindo como<br />

um espelho da opinião geral. Observa-se nessas cartas, ainda que<br />

implicitamente, uma busca de concordância dos leitores em relação a<br />

juízos de valor sobre vários aspectos do comportamento social. Nesse<br />

sentido, a “carta de leitor” funciona como um termômetro da visão<br />

de mundo de uma parcela pequena, mas constante da população. Os<br />

ethé percebidos, com base nas críticas feitas, apontam, em uma relação<br />

especular, as características de nossa cidadania, ainda um projeto<br />

em construção.<br />

Como atividade pedagógica, a análise das “cartas de leitor”<br />

pode ser um eficiente meio de desenvolvimento do leitor crítico tanto<br />

em relação a fatos da língua, como a reflexões sobre comportamentos<br />

que nos identificam como pertencentes a uma cultura. Podem<br />

também levantar questões que induzam a uma autocrítica que produza,<br />

mesmo que a longo prazo, uma conscientização de nosso problemas.sociais.<br />

Um tratamento sistemático das questões de interpretação de<br />

texto deve considerar, portanto, a situação de comunicação, os tipos<br />

e gêneros textuais, o modo de organização do discurso, o registro de<br />

língua em sua adequação às finalidades do texto, os fatores de tex-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

703<br />

tualidade, o conhecimento de mundo. Assim, ficará evidente para o<br />

aluno que, para ler e interpretar um texto, há um instrumental teórico<br />

capaz de permitir-lhe uma abordagem adequada de análise.<br />

O gênero textual “carta de leitor” constitui um material importante<br />

e adequado à análise da orientação discursiva de um texto.<br />

Possui ainda a vantagem de tratar de assuntos do cotidiano e que dizem<br />

respeito à vida do cidadão.<br />

Os resultados desse tipo de análise poderão favorecer uma<br />

prática de ensino de língua portuguesa que procure apontar estratégias<br />

de leitura e de produção de texto, permitindo que o aluno se desenvolva<br />

como sujeito de sua linguagem e estabeleça um diálogo<br />

produtivo com os textos que circulam em nossa sociedade. Enfim<br />

que capte as entrelinhas.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso. A construção do<br />

ethos. São Paulo: Contexto, 2005.<br />

BAZERMAN, Charles. Gêneros textuais, tipificação e interação.<br />

Organizado por Ângela Paiva Dionísio & Judith Chambliss Hoffnagel.<br />

São Paulo: Cortez, 2003.<br />

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos.<br />

São Paulo: EDUC/PUC-SP, 1999.<br />

CHARAUDEAU, Patrick.Grammaire du sens et de l’expression. Paris:<br />

Hachette, 2002.<br />

______. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006<br />

______. Linguagem e discurso. São Paulo: Contexto, 2008.<br />

KOCH, Ingedore. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto,<br />

2003.<br />

______. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto,<br />

2003.<br />

KOCH, Ingedore; FÁVERO, Leonor Lopes. Linguística textual: introdução.<br />

São Paulo: Cortez, 2008.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

704<br />

MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. In:<br />

AMOSSY, Ruth. A imagem de si no discurso. São Paulo: Contexto:<br />

2005.<br />

PASSOS, Cleide Maria Teixeira Veloso dos. As cartas do leitor nas<br />

revistas Nova Escola e Educação. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva &<br />

Beserra, Normanda da Silva. (Orgs.) Tecendo textos, construindo experiências.<br />

Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.


CIÊNCIA E VIDA MODERNA<br />

NA DIALÉTICA MUSICAL DE GILBERTO GIL 1<br />

1. Introdução<br />

Beatriz Pereira da Silva (UFLA e UVA)<br />

bia-letras@hotmail.com<br />

Sei que a arte é irmã da ciência<br />

ambas filhas de um deus fugaz.<br />

(Gilberto Gil)<br />

A partir da década de sessenta a ciência revoluciona o planeta.<br />

Alguns acontecimentos marcados pelas evoluções científicas e<br />

tecnológicas causaram fortes mudanças na vida do homem, sua visão<br />

de mundo e seu comportamento. Entre eles pode-se destacar a chegada<br />

do primeiro homem no espaço, enviado pelos soviéticos, o primeiro<br />

homem na lua, enviado pelos americanos, a reprodução do<br />

DNA, o capitalismo avançado e a nova concepção das religiões dentro<br />

da sociedade.<br />

Antenado as mudanças sociais do país e grande admirador das<br />

evoluções científicas, Gilberto Gil apresenta em seu trabalho a tentativa<br />

de populariza e vulgarizar algumas noções da ciência, no sentido<br />

de afirmar o lugar que ela ocupa na vida humana.<br />

Não é uma vulgarização da ciência em si, e sim de notícias do<br />

que ela significa, de aspectos da história da ciência, no sentido de localizar<br />

os indivíduos com relação às invenções, ao progresso e às<br />

novas descobertas. E mais ainda, a notícia no sentido das relações<br />

próximas ou distantes que a ciência possa ou deva ter com outros aspectos<br />

da questão humana, como a religião, a filosofia, a magia, enfim,<br />

as ciências humanas de um modo geral.<br />

1 Este trabalho resulta da monografia "O Homem e a Ciência na Obra de Gilberto Gil", apresentada<br />

em 2007, como requisito de conclusão do curso de Letras com habilitação em Português<br />

e Espanhol na Faculdade de Letras da Universidade Veiga de Almeida, orientada pelo<br />

Professor Raiff Magno Barbosa Pereira.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

706<br />

Dentro desse contexto, este trabalho explora como se expressam<br />

temas e visões sobre a ciência, a tecnologia e seus impactos na<br />

vida moderna nas letras de canções de Gilberto Gil. O objetivo primordial<br />

do trabalho é realizar um levantamento inicial de como temas<br />

de ciência, atividade social imersa em determinado contexto cultural,<br />

podem surgir na manifestação das artes populares, neste caso a<br />

música brasileira.<br />

Tendo como objetivo relacionar as implicações gerais entre<br />

ciência e música, esse trabalho explora um aspecto dessa relação<br />

complexa entre ciência e música: como nas letras de canções da música<br />

de Gilberto Gil surgem e se expressam temas e visões sobre a<br />

ciência, a tecnologia e seus impactos na vida moderna. Foram examinadas<br />

letras de diversas canções sem a preocupação de abordar<br />

outros elementos do discurso musical.<br />

Isso é evidentemente uma limitação forte, já que a música<br />

guarda uma integralidade entre a harmonia, o ritmo e as palavras. A<br />

aliança texto–música é matéria das mais antigas e sensíveis no campo<br />

da arte. Por isso, analisar somente os aspectos informativos e poéticos<br />

das letras musicais significa uma atitude redutora e um risco<br />

maior. Apesar dessa limitação, pode-se acreditar que estudos como<br />

esse podem ajudar a investigar como temas de ciência e tecnologia<br />

estão presentes no imaginário de compositores.<br />

Será apresentado, no que se segue, letras de músicas de Gilberto<br />

Gil provenientes do acervo da música popular brasileira, desde<br />

a década de 1960. Serão consideradas letras musicais que se referem<br />

de alguma forma a temas, conceitos, visões ou atitudes diante da ciência,<br />

da tecnologia e de seus impactos sobre os indivíduos e sobre a<br />

sociedade.<br />

No sentido de facilitar a análise, agrupamos tentativamente as<br />

letras examinadas de acordo com as seguintes categorias:<br />

1. Ciência: medos e apreensões – referem-se a eventos científicos<br />

ou tecnológicos como a chegada do homem à Lua;<br />

criticando ou ironizando as consequências dos usos da ciência<br />

e da tecnologia, como aquelas referentes à influência da<br />

tecnologia sobre o homem.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

707<br />

2. Pausa para reflexão: O poeta e seus questionamentos –<br />

indagam ou têm como assunto conceitos ou teorias científicas,<br />

como aquelas que se referem a cibernética, ao uso do<br />

raio laser, e aos conceitos fundamentais de tempo e espaço;<br />

questionam e/ou se referem a conceitos e teorias científicas<br />

para aplicá-los em diversos contextos e situações da vida<br />

social.<br />

3. A ciência é amiga da arte – abordam relações na vida social<br />

e individual decorrentes de avanços tecnológicos, como<br />

a introdução de aparatos tecnológicos diversos - a televisão,<br />

o computador, a internet etc.;<br />

Essa classificação é evidentemente superficial e é necessário<br />

aprimorá-la. Note-se que as fronteiras entre as categorias aqui apresentadas<br />

não são muito precisas; várias letras musicais mencionadas<br />

a seguir poderiam se enquadrar em mais de uma delas. Apesar disso,<br />

essa listagem pode ser útil como uma primeira tentativa classificatória<br />

ou pelo menos como um artifício didático para o acompanhamento<br />

deste texto.<br />

As letras de música selecionadas a seguir são apenas alguns<br />

exemplos possíveis; muitas outras escolhas poderiam ter sido feitas.<br />

O objetivo é destacar que uma análise da música popular, uma expressão<br />

artística tão forte no Brasil, pode conduzir a interessantes<br />

questionamentos sobre a relação entre ciência e cultura no país.<br />

2. Ciência: ontem e hoje<br />

A perspectiva histórica sobre o modo como as teorias científicas<br />

se desenvolvem e a informação é acumulada mostram que, até<br />

recentemente a crença era de que havia um círculo constante de conhecimento;<br />

e que as teorias tornavam-se, gradualmente cada vez<br />

mais abrangentes e mais precisas.<br />

Os criadores do método científico moderno buscaram contrapor<br />

suas ideias à visão de mundo dominante na Antiguidade e por<br />

toda a Idade Média. O conhecimento da natureza se fundamentava<br />

na compreensão da interação de seus elementos. O sujeito que se


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

708<br />

propunha conhecer a natureza, não procurava conquistá-la ou dominá-la.<br />

A conquista e o domínio da natureza passam a ser a nova<br />

perspectiva da ciência a partir dos séculos XVI e XVII, quando alguns<br />

pensadores (Galileu, Newton, Bacon, Descartes, dentre outros)<br />

lançam as bases do método científico que predominou até o início do<br />

século XX, como paradigma da atividade científica.<br />

A noção de paradigma é normalmente utilizada para estabelecer<br />

uma diferenciação entre dois momentos ou dois níveis do processo<br />

de conhecimento científico (KUHN, 1989; CAPRA, 1982). Para<br />

um entendimento mínimo do que significa essa noção, pode-se conceituar<br />

o paradigma enquanto um modelo de ciência que serve como<br />

referência para todo um fazer científico, durante uma determinada<br />

época ou um período de tempo demarcado. A partir de certo momento<br />

da história da ciência, o referido modelo predominante tende a se<br />

esgotar em função de uma crise de confiabilidade nas bases de seu<br />

conhecimento. Então, o paradigma passa a ser substituído por outro<br />

modelo científico predominante.<br />

Fritjof Capra (1991, p. 83-133) discorre sobre os dois paradigmas<br />

da ciência. Segundo ele, o velho modelo científico teve suas<br />

principais características formuladas por Descartes, Newton, e Bacon.<br />

Nesse paradigma chamado de racionalista acreditava-se que em<br />

qualquer sistema complexo, a dinâmica do todo poderia ser compreendida<br />

a partir da propriedade das partes.<br />

No novo paradigma, chamado de holístico, ecológico, ou sistêmico,<br />

as relações entre as partes e o todo são invertidas. As propriedades<br />

das partes só podem ser entendidas a partir da dinâmica do<br />

todo. Nele cada estrutura é vista como manifestação de um processo<br />

subjacente.<br />

O paradigma científico moderno deu uma nova visão do<br />

mundo, opondo-se à visão Aristotélica. A ciência moderna é contra<br />

todas as formas de dogmatismo e de autoridade e se opõe ao conhecimento<br />

vulgar (senso comum) na medida em que desconfia das evidencias<br />

da experiência imediata e crê na razão, avançando pela observação<br />

descomprometida e livre, sistemática e mais rigorosa possível<br />

dos fenômenos naturais.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

709<br />

Santos afirma que “todo o conhecimento científico visa constituir-se<br />

em senso comum” (1990, p. 55). Essa tese afirma, basicamente,<br />

que a ciência pós-moderna deve dialogar com outras formas<br />

de conhecimento, em particular com o conhecimento do senso comum.<br />

Sendo assim, durante as mudanças de paradigma, sentiu-se<br />

que os alicerces do conhecimento estavam se desagregando. O paradigma<br />

cartesiano baseou-se na crença de que o conhecimento científico<br />

poderia alcançar a certeza absoluta e final.<br />

Contudo, e principalmente em Descartes, o novo método científico<br />

– que colocava a ordenação da realidade como sendo promovida<br />

pela razão – ainda se deixava impregnar por uma entidade<br />

metafísica alheia ao objeto de estudo da ciência: a razão, consequentemente,<br />

e em última instância, era validada por Deus.<br />

Mesmo séculos depois, essa noção ainda impregna o pensamento<br />

de Albert Einstein, um dos maiores cientistas do século XX:<br />

ao afirmar que “Deus não joga dados”, ainda pressupõe a existência<br />

de um ser supramundano. Porém, essa pressuposição perde o seu<br />

significado, sobretudo como o desenvolvimento da física quântica,<br />

onde a natureza do conhecimento, o papel dos cientistas, a objetividade<br />

e o determinismo da ciência tradicional a que atende aos pressupostos<br />

da perspectiva cartesiana são profundamente questionados.<br />

Sendo assim, tivemos na física um conceito que parecia absolutamente<br />

indispensável e depois caiu por terra. Isso acontece também<br />

em outros campos da ciência através dos tempos.<br />

Segundo Capra (1991, p. 83), “os cientistas não lidam com a<br />

verdade, eles lidam com descrições limitadas da realidade”. Todos os<br />

conceitos, teorias e descobertas segundo o novo paradigma da ciência<br />

são limitadas e aproximadas, desse modo, a ciência nunca poderá<br />

fornecer uma compreensão completa e definitiva da realidade.<br />

A verdade será, portanto, a preocupação fundamental da ciência,<br />

mas será impossível formular um critério de verdade e aqui reside<br />

certa contradição, pois se por um lado a ciência caminha para a<br />

verdade, por outro lado não há critério que permita afirmar que uma<br />

proposição é verdadeira. Quando muito, pode-se dizer que é falsa ou<br />

que resistiu às suas falsificações e às falsificações das anteriores teorias<br />

e, nessa medida, é superior a elas.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

710<br />

A verdade funcionará como uma espécie de ideal regulador.<br />

Aproximando-nos da verdade eliminando os erros das teorias precedentes<br />

e substituindo-as por outras com maior grau de probabilidade,<br />

sendo nisto que reside o progresso da ciência, e só há progresso se<br />

for admitida uma verdade na direção da qual se segue. Assim, o objeto<br />

da ciência não será tanto a verdade, mas o desenvolver da probabilidade<br />

mediante a procura de proposições aproximadamente<br />

mais verdadeiras.<br />

3. Ciência: medos e apreensões<br />

Os anos 50 e 60 foram marcados por transformações mundiais<br />

no campo sociopolítico, econômico, técnico-científico e cultural.<br />

Gilberto Gil antenado nas mudanças ocorridas em sua época irá interpretar<br />

a problemática existente entre os avanços científicos e as<br />

manifestações artísticas.<br />

Grande defensor da arte como espaço de fuga espiritual e resistência<br />

às tendências desumanizantes da vida, preocupa-se especificamente<br />

com o caráter ambíguo da tecnologia e sua presença cada<br />

vez mais decisiva no cotidiano. Destacou-se entre os artistas e compositores<br />

de sua época ao colocar nas canções a temática referente ao<br />

embate entre o processo desumano da ciência e a existência do ser.<br />

Em 1966, sob o impacto da decida da nave Lunik 9 no solo<br />

lunar, compôs uma canção com o mesmo nome, da qual diversos elementos<br />

mais tarde fariam parte da estética tropicalista, como a iniciativa<br />

de retirar de fatos jornalísticos motivos a serem trabalhados<br />

em canções e a fusão entre o novo e o tradicional.<br />

Poetas, seresteiros, namorados, correi<br />

É chegada a hora de escrever e cantar<br />

Talvez as derradeiras noites de luar<br />

Momento histórico, simples resultado do desenvolvimento da<br />

ciência viva<br />

Afirmação do homem normal, gradativa sobre o universo natural<br />

Sei lá que mais<br />

Ah, sim! Os místicos também profetizando em tudo o fim do mundo<br />

E em tudo o início dos tempos do além<br />

Da nova guerra ouvem-se os clarins<br />

Guerra diferente das tradicionais, guerra de astronautas nos espaços<br />

siderais


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

711<br />

E tudo isso em meio às discussões, muitos palpites, mil opiniões<br />

Um fato só já existe que ninguém pode negar, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, já!<br />

E lá se foi o homem conquistar os mundos lá se foi<br />

Lá se foi buscando a esperança que aqui já se foi<br />

Nos jornais, manchetes, sensação, reportagens, fotos, conclusão:<br />

A lua foi alcançada afinal, muito bem, confesso que estou contente<br />

também<br />

A mim me resta disso tudo uma tristeza só<br />

Talvez não tenha mais luar pra clarear minha canção<br />

O que será do verso sem luar?<br />

O que será do mar, da flor, do violão?<br />

Tenho pensado tanto, mas nem sei<br />

Poetas, seresteiros, namorados, correi<br />

É chegada a hora de escrever e cantar<br />

Talvez as derradeiras noites de luar.<br />

Na canção, o compositor revelava-se ao mesmo tempo encantado<br />

e temeroso diante do avanço da tecnologia. Em suas próprias<br />

palavras:<br />

Recebi o impacto da notícia do pouso da Lunik 9 na Lua com orgulho<br />

e ponderação: estávamos conquistando o espaço, mas onde isso ia<br />

dar? Não era só o cidadão que especulava, mas também o artista, com o<br />

senso de ser locutor da sociedade junto a história.... (RENNÓ, 2003, p.<br />

70-71).<br />

A letra inicia conclamando os poetas a uma urgente corrida<br />

para aproveitar o momento ainda possível de se escrever poesias e<br />

canções inspirada pelo luar. Apresenta também um temor exagerado<br />

da tecnologia e de que ela pudesse afugentar todo o caráter romântico,<br />

lírico que abarca a imagem da lua. A partir do momento em que o<br />

satélite começasse a ser explorado e colonizado pelos homens, deixaria<br />

de ser algo distante, inalcançável, o que era uma das condições<br />

necessária para a prática de um lirismo saudosista romântico. Acrescenta<br />

ainda admiração por aquele momento histórico e ao invés de<br />

louvar a ponte entre ciência e arte, o que fará posteriormente em outras<br />

canções, o compositor se queixa de que a ciência e o avanço do<br />

progresso estariam destruindo o romantismo poético, resultando na<br />

morte da poesia.<br />

Apresenta uma nítida opção pelas temáticas recorrentes no<br />

Romantismo (mar, luar, violão), tradicionalmente relacionados com<br />

poeta e poesia. É aparentemente um alerta à ingênua tríade “poetas,<br />

seresteiros, namorados”, mas compõe um forte manifesto político a


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

712<br />

respeito das conquistas espaciais, “Guerra diferente / Das tradicionais<br />

/ Guerra de astronautas / Nos espaços siderais”. Isso porque emergia<br />

no cenário internacional a Guerra Fria: disputa entre Estados<br />

Unidos e União Soviética (URSS) pelos poderes político e econômico,<br />

além da conquista do espaço. Esse foi o grande impulso para a<br />

exploração espacial e resultou em grandes avanços científicos e tecnológicos,<br />

além de outras descobertas importantes.<br />

Segundo Gil, a inspiração nasceu de uma “profunda assunção<br />

de um sentido trágico” de seu tempo, em que os avanços científicos<br />

geravam medo e dúvidas sobre o futuro da humanidade. Lembra-nos<br />

Lacerda (2002, p. 49) que o perigo de uma terceira guerra mundial<br />

era uma das grandes preocupações da época, além do crescimento<br />

bélico, cada vez mais potente desde o episódio de Hiroshima. Lacerda<br />

destaca ainda que “... nessa canção, o apocalipse vem surgindo<br />

em uma dupla face, não apenas o fim, mas também um novo começo,<br />

um fenômeno simultaneamente destrutivo e construtivo”.<br />

Nos versos “Lá se foi buscando / A esperança que aqui já se<br />

foi”, podemos realmente comprovar essa posição, visto que o espaço<br />

sideral apresenta a esperança de um recomeço para a humanidade,<br />

um reencontro com a esperança que já não era facilmente encontrada<br />

em nosso planeta.<br />

Ampliando a discussão podemos buscar um entendimento<br />

maior no diálogo com a poesia intitulada O homem; as viagens, de<br />

Carlos Drummond de Andrade (1979, p. 440-441).<br />

Nesse trabalho o poeta mineiro nos mostra que a grande falência<br />

existencial do homem, muitas vezes, é abdicar de uma mudança<br />

radical do seu interior ao naufragar em viagens siderais que só o<br />

confirmam como grande negligenciador de sua própria alma.<br />

A esse ser “bicho da terra tão pequeno”, cabe buscar uma ligação<br />

primordial, harmoniosa e benéfica entre o já conclamado<br />

mundo científico e a expansiva alma humana. Sendo essa a mais difícil<br />

viagem proposta: “a viagem de si a si mesmo”.<br />

Para se buscar a “esperança que aqui já se foi” não é necessário<br />

ao homem outros mundos colonizar, apenas se faz necessário


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

713<br />

“humanizar o homem” para que esse possa “con-viver” em um espaço<br />

onde a esperança seja inesgotável.<br />

Prosseguindo no embate entre ciência e humanidade, Gilberto<br />

Gil escreve em 69 a canção Cérebro Eletrônico, em que avalia e retifica<br />

a condição humana como soberana em relação à robótica.<br />

O cérebro eletrônico faz tudo<br />

Faz quase tudo<br />

Faz quase tudo<br />

Mas ele é mudo<br />

O cérebro eletrônico comanda<br />

Manda e desmanda<br />

Ele é quem manda<br />

Mas ele não anda<br />

Só eu posso pensar<br />

Se Deus existe<br />

Só eu<br />

Só eu posso chorar<br />

Quando estou triste<br />

Só eu<br />

Eu cá com meus botões<br />

De carne e osso<br />

Eu falo e ouço. Hum<br />

Eu penso e posso<br />

Eu posso decidir<br />

Se vivo ou morro por que<br />

Porque sou vivo<br />

Vivo pra cachorro e sei<br />

Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro<br />

No meu caminho inevitável para a morte<br />

Porque sou vivo<br />

Sou muito vivo e sei<br />

Que a morte é nosso impulso primitivo e sei<br />

Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro<br />

Com seus botões de ferro e seus<br />

Olhos de vidro<br />

As discussões sobre a cibernética começaram a se tornar públicas<br />

nos anos 70, o computador já estava se tornando uma realida-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

714<br />

de, era o chamado cérebro eletrônico, nem um pouco miniaturizado<br />

como são os computadores hoje.<br />

Sempre atento ao seu tempo, na música Cérebro Eletrônico<br />

Gil atenta ao risco dessa crescente maquinização, robotização e<br />

computadorização. Nela, o autor enfoca o problema do avanço tecnológico,<br />

pois novamente se vê diante do perigo de que a tecnologia<br />

assuma feições desumanizantes e venha a representar uma grave ameaça<br />

à humanidade, visto que o cérebro eletrônico “faz tudo, comanda,<br />

manda e desmanda”.<br />

A música já admitia as perspectivas de um “mundo novo” e<br />

suas implicações, mas com certa ironia; nela o homem aceita a importância<br />

do computador, e faz um alerta para o homem-máquina ou<br />

a máquina comandando o homem. Diante disso, põe o ser humano<br />

em situação superior à máquina, demonstrando que ela deverá servir<br />

ao homem, e não o contrário, o que, aliás, é o pressuposto básico da<br />

cibernética, as novas inteligências artificiais colocadas sob o controle<br />

da inteligência original, humana.<br />

Segundo o cientista Francis Crick, prêmio Nobel pela descoberta<br />

da estrutura dupla hélice do DNA, o homem não precisa provar<br />

ser melhor que o computador ou qualquer máquina, pois ele realmente<br />

o é. Mesmo o homem produzindo máquinas que enxerguem<br />

ou conversem, elas não têm a capacidade de interpretar significados,<br />

e são confusas na identificação de objetos “... podemos construir um<br />

modelo com um comportamento um pouco parecido com o do cérebro,<br />

mas construir algo que se comporte exatamente como ele talvez<br />

seja tecnicamente impossível” (GRECO, 2001, p. 57-58).<br />

Sendo assim, o homem ainda é insubstituível por não haver<br />

máquinas que possam tomar decisões, para isso seria necessário<br />

construir máquinas que funcionassem como redes neurais.<br />

Por haver sido escrita em um período em que as informações<br />

sobre o assunto ainda eram poucas e os avanços crescentes, havia o<br />

medo de o homem ser comandado pelas máquinas. As comparações<br />

entre as capacidades dos dois tornaram-se inevitáveis. Gil recorre,<br />

então, para o campo da espiritualidade como espaço de autonomia do<br />

homem, em que a máquina por ser irracional não atua.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

715<br />

Os versos “Só eu posso pensar se Deus existe / Só eu / Só eu<br />

posso chorar quando estou triste” chamam a atenção para essas impossibilidades<br />

do cérebro eletrônico que, embora cérebro, não tem<br />

vida própria e não pode chorar, curiosa concepção da possibilidade<br />

humana, em contraponto à capacidade eletrônica de mandar e desmandar<br />

vista pelo poeta: “O cérebro eletrônico comanda / Manda e<br />

desmanda / Ele é quem manda / Mas ele não anda” Percebe-se então<br />

um jogo de contrastes que se estabelece no texto, valorizando as possibilidades<br />

do ser humano diante das impossibilidades da máquina.<br />

O que poderia ser visto como característica superior à raça<br />

humana surge como grande diferencial do homem: pensar cá com<br />

“seus botões de carne e osso” sobre sua existência e ao mesmo tempo<br />

sua finitude. Soma-se a isso uma característica pungente: a autonomia<br />

do individuo que pensa e pode decidir entre a vida e a morte,<br />

pois “Que cérebro nenhum (...) dá socorro” no “caminho inevitável<br />

para a morte”.<br />

A máquina pode até ser eterna, mas não faz do homem um ser<br />

perene. E isso não descarta e não tira do humano a possibilidade de<br />

pensar em Deus, de vivenciar ou experienciar algo de teor místico.<br />

Mesmo em um momento em que a tecnologia aponta às vantagens<br />

da máquina, Gil valoriza as sutilezas, as fragilidades do ser<br />

humano, dando a ele o poder supremo de alcançar realidades sensíveis<br />

em contato com sua própria limitação.<br />

Durante o tempo que passa na prisão, Gilberto Gil compõe<br />

três músicas que retratam uma nova opção de vida. Devido possivelmente<br />

à dificuldade em recompor uma perspectiva de vida presente,<br />

em razão da privação de liberdade que vivia no momento,<br />

compõe músicas sobre temas futurísticos, voltando sua atenção para<br />

as novas descobertas e avanços científicos, entre essas composições<br />

está Futurível.<br />

Você foi chamado, vai ser transmutado em energia<br />

Seu segundo estágio de humanóide hoje se inicia<br />

Fique calmo, vamos começar a transmissão<br />

Meu sistema vai mudar<br />

Sua dimensão<br />

Seu corpo vai se transformar<br />

Num raio, vai se transportar


No espaço, vai se recompor<br />

Muitos anos-luz além<br />

Além daqui<br />

A nova coesão<br />

Lhe dará de novo um coração mortal<br />

Pode ser que o novo movimento lhe pareça estranho<br />

Seus olhos talvez sejam de cobre, seus braços de estanho<br />

Não se preocupe, meu sistema manterá<br />

A consciência do ser<br />

Você pensará<br />

Seu corpo será mais brilhante<br />

A mente, mais inteligente<br />

Tudo em superdimensão<br />

O mutante é mais feliz<br />

Feliz porque<br />

Na nova mutação<br />

A felicidade é feita de metal.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

716<br />

Segundo o próprio Gil, “essa música representa o diálogo entre<br />

a liberdade e a prisão, constituídas pelas próprias cadeias que os<br />

homens encadeiam. A liberdade é o que está na essência de nós<br />

mesmos nas situações limites.” (FONTELES, 1999, p. 141).<br />

Por esse caminho, entendemos que mesmo fisicamente preso<br />

é possível que a consciência esteja livre, pois se pode aprisionar o<br />

homem, mas não seus pensamentos. A liberdade é mais que puramente<br />

física, é o que está no cerne de cada um.<br />

Em Futurível, nos versos em que diz: “Não se preocupe, meu<br />

sistema manterá / A consciência do ser / Você pensará...”. Gil projeta<br />

no futuro seus anseios e medos, entre eles o de que a tecnologia desenvolvida<br />

para resolver os problemas humanos acabe criando novas<br />

dificuldades à humanidade.<br />

Ultrapassando o significado da letra e refletindo sobre como<br />

ela é cantada, observamos na introdução da música sons que lembram<br />

os filmes de ficção científica, nos remetendo à ideia futurista<br />

que se consagrou na época com películas do mesmo gênero de 2001:<br />

uma Odisseia no Espaço, acrescentando um tom de suspense, de mistério<br />

com relação às novidades.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

717<br />

Percebemos uma nítida preocupação quanto às mudanças<br />

possíveis na essência do homem, em decorrência dos avanços científicos<br />

e tecnológicos. Por outro ângulo, esses versos nos possibilitam<br />

ver a música como uma crítica social muito clara ao momento histórico<br />

que Gil e o país estavam atravessando.<br />

A chegada dos militares ao poder restringiu o direito do homem<br />

de se expressar livremente. O sistema manteria a “consciência<br />

do ser”, mas servindo aos seus objetivos. Neste caso, cabe a definição<br />

feita pelo neurologista português António Damásio, que<br />

...divide a consciência humana em duas, a consciência nuclear e a consciência<br />

alargada, a primeira se refere ao aqui e agora, não há passado<br />

nem futuro para ela, a segunda é referente não só ao aqui e agora, mas<br />

também ao nosso passado e ao nosso futuro antecipado (GRECO, 2001,<br />

p. 26).<br />

Este ser transformado, após passar pelo “segundo estágio de humanóide”,<br />

conservaria somente a consciência nuclear. Não faria referências<br />

ao passado, nem planos e projetos para o futuro.<br />

Lacerda (2002, p. 65) destaca que a chegada dos militares ao<br />

poder pôs em evidência a figura do ser humano com características<br />

que nos remetem às máquinas, funcionando ao comando de superiores<br />

sem questionar os motivos ou consequências de seus atos, somente<br />

importando-se com o aqui e agora (consciência nuclear). Um<br />

homem comandado por detentores do poder sem ideais políticos,<br />

mas com objetivos calculados em termos de produtividade e de progresso<br />

material a ser obtido a qualquer custo.<br />

O regime militar agia como um cientista sem escrúpulos, visando<br />

ao resultado de seu experimento a qualquer custo, mesmo que<br />

fosse necessário dispor da vida das cobaias de seu laboratório. Nesse<br />

caso, vidas de homens comuns que tinham sua privacidade violada.<br />

Tudo isso, visto como necessário e certo para o avanço da sociedade:<br />

“Olha você está sendo trazido pra um novo estágio da humanidade,<br />

mas não se preocupe, isso é muito natural”, como uma iniciação aos<br />

novos tempos a que o homem será submetido.<br />

Vale ressaltar ainda que no contexto histórico educacional do<br />

Brasil, foram implementados nos currículos escolares disciplinas que<br />

direcionavam os alunos ao, e somente, viés técnico-científico. Mui-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

718<br />

tas vezes renegadas, disciplinas como Sociologia, Filosofia e Artes<br />

não contribuíam para a formação do educando que privilegiava a<br />

formação dos alunos para trabalharem em indústrias.<br />

A chegada dos militares ao poder gerou uma grande censura<br />

aos pensamentos libertários da época. Muitos foram presos, exilados<br />

ou mortos, pois a “mutação” conservaria a consciência do ser, mas a<br />

felicidade não seria criada por essa consciência, já viria pronta, estrategicamente<br />

planejada, “de metal”, não seria criada pela liberdade de<br />

pensar ou agir. Também é possível a interpretação de que a felicidade<br />

se daria por meio de bens materiais ou da evolução industrial: “O<br />

mutante é mais feliz / Feliz porque / Na nova mutação / A felicidade<br />

é feita de metal”.<br />

Diante disso, não parecendo mais haver “futuro possível”, Futurível<br />

expressa de forma sutil o fim da humanidade e a descrença de<br />

que o progresso material de alguns traga mais felicidade ao mundo,<br />

ideias consideradas comunistas e temidas pelo regime da época.<br />

4. Pausa para reflexão: O poeta e seus questionamentos<br />

Desde a instalação da ciência, no século XVII, até recentemente,<br />

o conhecimento era entendido como um aumento ou aproximação<br />

da verdade acerca das coisas e que ia sendo acumulado nas<br />

memórias e nos livros. Essa concepção ainda segue e ganha cada vez<br />

mais associação à crença de que o conhecimento é uma criação sempre<br />

nova (não uma acumulação), que toma por base o já existente.<br />

Atualmente há uma tendência em querer tornar o conhecimento<br />

científico mais acessível ao maior número de pessoas, simplificando-o.<br />

Apesar de não ser muito fácil divulgar uma teoria de modo<br />

popular, isso se faz cada vez mais necessário devido ao aumento<br />

da importância da ciência na vida cotidiana.<br />

As novas tecnologias permitem contatos muito mais ricos,<br />

constantes e variados de grupos com diversos critérios de valor, podendo<br />

enriquecer a experiência pessoal ou enfraquecer as identidades<br />

já constituídas na qual divergem alguns teóricos.<br />

Vejamos a letra da canção Queremos Saber, de 1976.


Queremos saber,<br />

O que vão fazer<br />

Com as novas invenções<br />

Queremos notícia mais séria<br />

Sobre a descoberta da antimatéria<br />

e suas implicações<br />

Na emancipação do homem<br />

Das grandes populações<br />

Homens pobres das cidades<br />

Das estepes dos sertões<br />

Queremos saber,<br />

Quando vamos ter<br />

Raio laser mais barato<br />

Queremos, de fato, um relato<br />

Retrato mais sério do mistério da luz<br />

Luz do disco voador<br />

Pra iluminação do homem<br />

Tão carente, sofredor<br />

Tão perdido na distância<br />

Da morada do senhor<br />

Queremos saber,<br />

Queremos viver<br />

Confiantes no futuro<br />

Por isso se faz necessário prever<br />

Qual o itinerário da ilusão<br />

A ilusão do poder<br />

Pois se foi permitido ao homem<br />

Tantas coisas conhecer<br />

É melhor que todos saibam<br />

O que pode acontecer<br />

Queremos saber, queremos saber<br />

Queremos saber, todos queremos saber<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

719<br />

A composição é um questionamento sobre a democratização<br />

das informações científicas. Segundo Gilberto Gil, essa canção serve<br />

como afirmação do compromisso do artista em se fazer abrir os acessos<br />

para todo mundo. “Quanto mais todo mundo souber, melhor. Essa<br />

coisa de que o saber é para especialistas, não!” (FONTELES,<br />

1999, p. 256).<br />

O poeta baiano sugere ainda que a ciência deixe de ser algo<br />

distante do homem comum e contribua para a sua emancipação. Essa<br />

visão também é compartilhada por cientistas como Carl Sagan, cien-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

720<br />

tista que buscou sempre oferecer ao público leigo ou especializado a<br />

mais completa e acessível visão científica dos fatos que se fez<br />

possível, e Alan Sokal, que defende a incrementação do<br />

conhecimento científico como essencial para a democracia,<br />

justificando que assim evitará que decisões importantes sejam<br />

tomadas sem participação popular (GRECCO, 2001, p. 22).<br />

Partindo do pressuposto de que a maior fonte de poder é a<br />

informação, Queremos Saber nos leva á observar que apesar de<br />

tantas descobertas científicas importante, como o raio laser e a<br />

antimatéria, há um jogo paradoxal que mantém o homem comum<br />

ainda “perdido”, “carente” e “sofredor”, distante da “luz do disco<br />

voador”, das novidades científicas que o levariam ao conhecimento.<br />

Lacerda (2002, p. 93) destaca que todos os elementos trabalhados na<br />

música convergem para um debate sobre a ilusão do poder, como<br />

uma alusão à atitude arrogante dos que detêm o saber como privilégio<br />

em nossa sociedade. na sociedade atual quem detem o poder é a<br />

elite, Sugere também uma outra leitura em que o texto nos leve a um<br />

diálogo intercultural e interdisciplinar.<br />

A pós-modernidade trás a possibilidade de pensar o indivíduo<br />

com uma formação pautada em um saber unívoco. È preciso refletir<br />

o mundo e por consequência o pensamento contemporâneo como algo<br />

em eterna formação, e mais do que isso num viés holístico em que<br />

os diferentes saberes são vistos não como algo compartimentalizado<br />

ou fragmentado.<br />

O sociólogo francês Edgar Morin (2003, p. 116) afirma que,<br />

diante dos problemas complexos que as sociedades contemporâneas<br />

hoje enfrentam, apenas estudos de caráter inter-poli-trandisciplinar<br />

poderiam resultar em análises satisfatórias de tais complexida- des:<br />

"Afinal, de que serviriam todos os saberes parciais senão para formar<br />

uma configuração que responda a nossas expectativas, nossos<br />

desejos, nossas interrogações cognitivas?” (MORIN, 2003, p. 116).<br />

De acordo com várias tradições místicas muito consideradas e<br />

utilizadas por Gil em suas composições, a verdade última deve ser<br />

buscada pela intuição e não pela análise e pelo raciocínio.<br />

Há também aqueles que apontam o período atual como resultante<br />

de um enfraquecimento da crença que poderíamos ter em um


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

721<br />

elemento comum a toda a humanidade, assim como também se enfraqueceu<br />

a crença de que seria possível chegar-se a atingir um conhecimento<br />

não parcial, nem ilusório das coisas – a verdade.<br />

Sendo assim, todo poder é uma ilusão, mesmo o que é baseado<br />

no conhecimento, pois tudo o que existe está em permanente andamento<br />

e se modifica a cada instante, portanto, aquele que detém<br />

hoje o saber pode não possuí-lo no futuro, pelo menos não como<br />

verdade absoluta, a não ser que consiga obter uma visão holística,<br />

mas essa, a mente humana só é capaz de conceber quando livre de<br />

interesses mundanos.<br />

A imprecisão semântica, característica do autor aparece claramente<br />

na música Logos versus logo, mas mesmo aparentemente<br />

confusa, a composição expõe com clareza a complexidade do que<br />

tem a dizer.<br />

Trocar o logos da posteridade<br />

Pelo logo da prosperidade<br />

Celebra-se, poeta que se é<br />

Durante um tempo a ideia radical<br />

De tudo importar, se para o supremo ser<br />

De nada importar, se para o homem mortal<br />

Abarrotam-se os cofres do saber<br />

Um saber que se torne capital<br />

Um capital que faça o futuro render<br />

Os juros da condição de imortal<br />

(Mas a morte é certa!)<br />

Trocar o logos da posteridade<br />

Pelo logo da prosperidade<br />

E assim por muito tempo busca-se<br />

O cuidadoso esculpir da estátua<br />

Que possa atravessar os séculos intacta<br />

Tornar perpétua a lembrança do poeta<br />

Mas chega-se ao cruzamento da vida<br />

O ser pra um lado, pra outro lado o mundo<br />

Sujeita-se o poeta à servidão da lida<br />

Quando a voz da razão fala mais fundo


E essa voz comanda:<br />

Trocar o logos da posteridade<br />

Pelo logo da prosperidade<br />

E o bom poeta, sólido afinal<br />

Apossa-se da foice ou do martelo<br />

Para investir do aqui e agora o capital<br />

No produzir real de um mundo justo e belo<br />

Celebra assim, mortal que já se crê<br />

O afazer como bem ritual<br />

Cessar da obsessão pelo supremo ser<br />

Nascer do prazer pelo social<br />

E o poeta grita:<br />

Trocar o logos da posteridade<br />

Pelo logo da prosperidade<br />

Eis o papel da grande cidade<br />

Eis a função da modernidade<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

722<br />

De imediato salta aos olhos o jogo linguístico que o poeta se<br />

propõe a usar durante toda a canção. Presencia-se assim a linguagem<br />

poético-musical como forma de discutir duas posições de ser e de agir<br />

do homem perante o mundo.<br />

No título, se mostra a oposição entre logos e logo. A primeira<br />

como cenário de um mundo regrado pelo discurso técnico cientificista<br />

em que o paradigma de viver se pauta na racionalidade (logo, do<br />

grego significa, palavra, ciência, conhecimento). A segunda na urgência<br />

de reencontrar a prosperidade, tendo como agenciador a figura<br />

do poeta que através da “ideia radical” busca captar de tudo pra<br />

daí surgir o supremo existir, o conviver para além de um mundo material.<br />

É a urgência de uma visão utilitarista e produtivista, em oposição<br />

ao mundo puramente poético.<br />

Cada vez mais usufruindo dos paradoxos, Gilberto Gil num<br />

jogo-poético linguístico apresenta a vida num eterno jogo e posições,<br />

brincando com as palavras no seu sentido mais corriqueiro, prova<br />

poder escavar delas e transformá-las em outras verdades. “Cofres” já<br />

não aprisionam, libertam; o capital se transfigura naquilo que é imprescindível<br />

para o ser. Não no sentido de reificar o humano, mas


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

723<br />

trazendo para ele uma condição de imortalidade. As palavras, então,<br />

outrora configuradas em um universo dicionarizado capitalista se revestem<br />

de um sentido libertário, ampliando e potencializando os seus<br />

sentidos.<br />

Gilberto Gil também sabe que a busca pela prosperidade é<br />

uma tarefa árdua, visto que a sedução da voz da razão (Capitalismo<br />

Mundial Integrado) tudo faz para driblar, velar e levar o poeta a um<br />

caminho de servidão. E assim os papéis se invertem: “Trocar o logos<br />

da posteridade / Pelo logo da prosperidade”. Seria lugar comum dizer<br />

que a prosperidade na voz capitalista é lucrar? Parece que sim.<br />

Mas cabe ao bom poeta, aquele convicto de seu papel, reinventar o<br />

mundo de maneira a recuperar o fraterno, o igual, numa atitude aos<br />

ideais socialistas sugeridos a partir das palavras foice e martelo, símbolos<br />

do partido comunista.<br />

Inserindo o poeta num lócus mais social do que puramente<br />

metafísico, Gilberto Gil inscreve a prática desse numa atitude mais<br />

engajada, tirando dele a imagem de um ser no pedestal e o colocando<br />

numa atitude “sólida afinal”. Seguindo as estrofes, acompanhamos<br />

como o artistas poeta sai do seu papel de contemplador do ser e torna-se<br />

apenas mais um na engrenagem da máquina capitalista.<br />

Na primeira estrofe, o desejo de evolução transcendente está<br />

acima do desejo de evolução material, e aquela, só se dá pela arte,<br />

visto que essa consiste na mais audaciosa expressão de um projeto<br />

cultural e espiritual: além de ser “geradora de perfeição e plenitude,<br />

ela é, por essência, afirmação, benção e divinização da existência”<br />

(NIETZSCHE, apud JAPIASSU, 2005, p. 230); além disso, é “a<br />

mais direta visão da realidade” (BÉRGSON, apud JAPIASSU, id.<br />

ib.) ou “a contemplação das coisas independentemente do princípio<br />

da razão” (SCHOPENHAUER, apud JAPIASSU, id. ib.). Encontramos<br />

aí a ideia do estreitamento do poeta com Deus, justificando a<br />

grandeza daquele que, em tese, seria superior ao cientista, por buscar<br />

e obter tal aproximação.<br />

A segunda estrofe traz um sentido diminuidor, depreciativo,<br />

da atribuição exagerada que o poeta faz de si mesmo ao associar a<br />

poesia ao plano da economia, ao plano da acumulação. O refrão nos<br />

leva a esse sentido de inclusão do poeta, no utilitarismo, fazendo de-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

724<br />

le um ser comum ao fazer de sua arte algo meramente burocrático,<br />

profissional, trocando o “logos da posteridade” por sua urgência de<br />

capital, pelo “logo da prosperidade”.<br />

Nas estrofes seguintes, é abordada a questão do engajamento:<br />

O poeta após entrar no processo capitalista da sociedade, se engaja,<br />

resgatando a excelência poética através de um serviço prestado à<br />

humanidade pela conscientização política ou social em busca de um<br />

mundo melhor, através de sua poesia. Desenvolvendo a ideia de que,<br />

já que se tornou “sólido”, com desejos concretos e não apenas espirituais,<br />

o poeta entra na esteira da produção, dobrando-se à contingência<br />

de ser um indivíduo produtivo e comum, como tantos outros, em<br />

busca da sobrevivência física, deixando de lado sua preocupação anterior<br />

com o uso da arte para o crescimento espiritual.<br />

A palavra Cibernética, do grego, significa condutor, e foi<br />

utilizado como o nome de uma nova ciência que visava à compreensão<br />

dos fenômenos naturais e artificiais através do estudo dos processos<br />

de comunicação e controle nos seres vivos, nas máquinas e<br />

nos processos sociais. A teoria cibernética de Wiener, originou pesquisas<br />

e influenciou vários campos científicos, incluindo a antropologia<br />

desde a década de 1940. Atualmente, a cibernética está praticamente<br />

esquecida como uma ciência, mas deixou importantes contribuições<br />

para a cultura.<br />

Inserido no assunto no período em que trabalhava na alfândega,<br />

Gilberto Gil foi introduzido à cibernética por seu amigo César,<br />

“um entusiasta da cibernética” que lhe deu o primeiro livro sobre o<br />

assunto – a obra clássica, de Norbert Wiener.<br />

Atento às possibilidades surgidas com as contribuições da cibernética,<br />

tidas como meios criativos para as reavaliações do consenso<br />

social acerca dos significados das coisas, Gilberto Gil compõe Cibernética,<br />

como uma forma de reavaliar, questionar e ao mesmo<br />

tempo responder as dúvidas existentes.<br />

Na época, a União Soviética atingiu seu auge geopolítico e<br />

tecnológico utilisando a cibernética para a gestão e controle da economia.<br />

Lá na alfândega Celestino era o Humphrey Bogart<br />

Solino sempre estava lá


Escrevendo: "Dai a César o que é de César"<br />

César costumava dar<br />

Me falou de cibernética<br />

Achando que eu ia me interessar<br />

Que eu já estava interessado<br />

Pelo jeito de falar<br />

Que eu já estivera estado interessado nela<br />

Cibernética<br />

Eu não sei quando será<br />

Cibernética<br />

Eu não sei quando será<br />

Mas será quando a ciência<br />

Estiver livre do poder<br />

A consciência, livre do saber<br />

E a paciência, morta de esperar<br />

Aí então tudo todo o tempo<br />

Será dado e dedicado a Deus<br />

E a César dar adeus às armas caberá<br />

Que a luta pela acumulação de bens materiais<br />

Já não será preciso continuar<br />

A luta pela acumulação de bens materiais<br />

Já não será preciso continuar<br />

Onde lia-se alfândega leia-se pândega<br />

Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá<br />

Cibernética<br />

Eu não sei quando será<br />

Cibernética<br />

Eu não sei quando será<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

725<br />

Apresentando uma forte crítica ao capitalismo e a acumulação<br />

de bens materiais, acreditando ser esse um dos fatores que emperram<br />

o mecanismo do desenvolvimento e evolução da humanidade. O verso<br />

“Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá”, é um exemplo do anarquismo libertário<br />

que tomava conta da juventude universitária da época.<br />

Há uma entonação libertária e até mesmo comunista na música,<br />

colocando-se de maneira esperançosa com a chegada da cibernética,<br />

mas desacreditando que sua vinda fosse possível.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

726<br />

Num mundo regido pelo prisma positivista, é a ciência que direciona<br />

os discursos do poder os quais, muitas vezes serão revestidos<br />

de uma verdade absoluta.<br />

A ciência, representada na música pela cibernética, terá seu<br />

sentido positivo quando “estiver livre do poder, a consciência livre<br />

do saber a paciência morta de esperar”. Ou seja, um direcionamento<br />

maior dado á ciência no sentido de levá-la e elevá-la a um diálogo<br />

com Deus e trazer benefícios espirituais ao homem.<br />

5. A ciência é amiga da arte<br />

As canções que se seguem foram agrupadas por tematizar<br />

questões relacionadas à ciência como saber que auxilia o homem em<br />

sua caminhada existencial. Vejamos a primeira intitulada Parabolicamará<br />

Antes mundo era pequeno<br />

Porque Terra era grande<br />

Hoje mundo é muito grande<br />

Porque Terra é pequena<br />

Do tamanho da antena parabolicamará<br />

Ê, volta do mundo, camará<br />

Ê, ê, mundo dá volta, camará<br />

Antes longe era distante<br />

Perto, só quando dava<br />

Quando muito, ali defronte<br />

E o horizonte acabava<br />

Hoje lá trás dos montes, den de casa, camará<br />

Ê, volta do mundo, camará<br />

Ê, ê, mundo dá volta, camará<br />

De jangada leva uma eternidade<br />

De saveiro leva uma encarnação<br />

Pela onda luminosa<br />

Leva o tempo de um raio<br />

Tempo que levava Rosa<br />

Pra aprumar o balaio<br />

Quando sentia que o balaio ia escorregar<br />

Ê, volta do mundo, camará<br />

Ê, ê, mundo dá volta, camará


Esse tempo nunca passa<br />

Não é de ontem nem de hoje<br />

Mora no som da cabaça<br />

Nem tá preso nem foge<br />

No instante que tange o berimbau, meu camará<br />

Ê, volta do mundo, camará<br />

Ê, ê, mundo da volta, camará<br />

De jangada leva uma eternidade<br />

De saveiro leva uma encarnação<br />

De avião, o tempo de uma saudade<br />

Esse tempo não tem rédea<br />

Vem nas asas do vento<br />

O momento da tragédia<br />

Chico, Ferreira e Bento<br />

Só souberam na hora do destino apresentar<br />

Ê, volta do mundo, camará<br />

Ê, ê, mundo dá volta, câmara<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

727<br />

O texto trabalha em cima da alteração do tempo e do<br />

encurtamento das distâcias provocados pela globalização, e explora<br />

bem duas de suas características: a revolução tecnológica nas<br />

comunicações e na eletrônica e a hibridização entre culturas<br />

populares locais e uma cultura de massa universal.<br />

O compositor utiliza uma linguagem simples em toda a composição.<br />

O título Parabolicamará propõe a fusão das palavras parabólica,<br />

tipo de antena mais eficiente em captar sinais de TV, e camará,<br />

vocativo usado por praticantes de capoeira para se referirem uns aos<br />

outros, apresenta durante a música contrastes entre o rural e o urbano,<br />

o artesanal e o industrial e a harmonização entre o tradicional e o<br />

moderno.<br />

Na música, o tempo existencial encontra-se em contraposição<br />

ao tempo cronológico – a eternidade, a encarnação e a saudade se<br />

contrapõem à jangada e o saveiro, e estes dois ao avião Com o avanço<br />

tecnológico, os conceitos de grande e pequeno, longe e perto são<br />

tidos como relativos, podem ser encurtados com a velocidade e facilidade<br />

de acesso encontradas nos tempos atuais.<br />

Há também uma alusão ao tempo subatômico, da pequena<br />

partícula de tempo, fazendo uma referência a Einstein, cujo trabalho


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

728<br />

teórico possibilitou o desenvolvimento da energia atômica. Segundo<br />

Gil “A imagem mais representativa desse tempo subatômico referido<br />

anteriormente é a correção equilibradora que Rosa faz com o balaio,<br />

observado nos seguintes versos: Pela onda luminosa / Leva o tempo<br />

de um raio / Tempo que levava Rosa / Pra aprumar o balaio”.<br />

Além da questão do tempo, há na música uma referência ao<br />

espaço. Para alguns estudiosos a globalização teve seu início com as<br />

grandes navegações entre países e continentes, com isso, além de<br />

outros benefícios, foi possível ao homem conhecer e relacionar-se<br />

com culturas diferentes.<br />

Trazendo o tema para os dias atuais, Gilberto Gil sugere em<br />

Parabolicamará uma tecnologia voltada a divulgação das culturas de<br />

pequenas comunidades do país, e a mescla entre culturas populares<br />

locais e uma cultura universal. A proposta da música é que não só<br />

essas pequenas comunidades tenham acesso a informações de todo o<br />

mundo, como também que o mundo tenha acesso a cultura de diversas<br />

comunidades do país, principalmente as interioranas e sertanejas.<br />

(Rennó, 2003, p. 403)<br />

A globalização tecnológica possibilite ao homem aumentar o<br />

tamanho de seu conhecimento, do seu mundo, antes restrito devido<br />

ao pouco contato ou informações de outros lugares, povos e culturas<br />

distantes e o torne maior, “do tamanho da antena” parabólica, do tamanho<br />

da possibilidade de informações que se pode adquirir com os<br />

avanços da tecnologia da informação.<br />

A internet, rede mundial de computadores, é a face mais<br />

visível da globalização das comunicações, possível graças a acordos<br />

e protocolos entre diferentes entidades privadas da área de<br />

telecomunicações e governos no mundo. Isto permitiu um fluxo de<br />

troca de ideias e informações sem precedentes na história da<br />

humanidade. Permitindo as pessoas observar as tendências do mundo<br />

inteiro, tendo apenas como fator de limitação a barreira linguística.<br />

Criar meu web site<br />

Fazer minha home-page<br />

Com quantos gigabytes<br />

Se faz uma jangada<br />

Um barco que veleje


Que veleje nesse infomar<br />

Que aproveite a vazante da infomaré<br />

Que leve um oriki do meu velho orixá<br />

Ao porto de um disquete de um micro em Taipé<br />

Um barco que veleje nesse infomar<br />

Que aproveite a vazante da infomaré<br />

Que leve meu e-mail até Calcutá<br />

Depois de um hot-link<br />

Num site de Helsinque<br />

Para abastecer<br />

Eu quero entrar na rede<br />

Promover um debate<br />

Juntar via Internet<br />

Um grupo de tietes de Connecticut<br />

De Connecticut acessar<br />

O chefe da Macmilícia de Milão<br />

Um hacker mafioso acaba de soltar<br />

Um vírus pra atacar programas no Japão<br />

Eu quero entrar na rede pra contactar<br />

Os lares do Nepal, os bares do Gabão<br />

Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular<br />

Que lá na praça Onze tem um vídeopôquer para se jogar<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

729<br />

Pela Internet é uma das canções de Gil em louvor à tecnologia<br />

com a intenção de fazer relações entre as novas tecnologias e outros<br />

campos. Os jogos poéticos são a base para a construção dessa canção.<br />

Pode-se observar na gravação da música uma brincadeira verbal<br />

interessante relacionada à palavra “Connecticut”, introduzindo uma<br />

fala rápida na qual diz: “Don’t cut my connection! I connect, you<br />

cut! I connect, you cut!”.<br />

A letra segue para os lugares mais distantes, “os lares do Nepal”,<br />

“os bares do Gabão”, para dar conta da agilidade que caracteriza<br />

a internet. Em entrevista a Rennó, Gil comenta sobre a satisfação<br />

em relação a essa música após ler um ensaio sobre a internet na África,<br />

de John Perry Barlow, onde fala da incorporação ágil que o continente<br />

está fazendo desse meio. Segundo ele a internet apresentou<br />

uma vitalidade extraordinária na África, que nesse campo está queimando<br />

etapas, enquanto em muitos outros se mantém ainda subdesenvolvida.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

730<br />

O título reforça o que a música também faz, a incorporação<br />

alegre, lúdica, dos novos jogos tecnológicos e a intenção se jogar o<br />

jogo poético junto com o jogo tecnológico, reportando a oitenta anos<br />

atrás, quando provavelmente um mesmo tipo de estímulo tenha levado<br />

Donga e Mauro de Almeida a fazer Pelo telefone.<br />

Na década de 1990, Gilberto Gil incluiu Pela Internet no já<br />

mencionado álbum "Quanta" e, com ela, explorou o 'infomar', seus<br />

termos técnicos e a globalização emergente, fazendo referência ao<br />

mencionado Pelo Telefone.<br />

O universo se põe diante do homem, dessa vez, através da internet<br />

e das redes que lhe são disponibilizadas pela mesma. Criar<br />

websites, fazer homepages e usar gygabites para fazer jangadas e<br />

barcos que velejem através da internet em busca de respostas, propostas,<br />

ideias e soluções para os problemas da humanidade ao mesmo<br />

tempo em que geram alegria e capacidade de superação de suas<br />

angústias, medos e inseguranças deve ser o foco de todos.<br />

No espaço virtual tem-se o mundo no horizonte e, nas mãos, o<br />

seu destino. Gil já como Ministro da Cultura, em aula magna na USP<br />

em 2004 diz que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos.<br />

O uso pleno da Internet e do software livre cria fantásticas possibilidades<br />

de democratizar os acessos à informação e ao conhecimento,<br />

maximizar os potenciais dos bens e serviços culturais, amplificarem<br />

os valores que formam o repertório comum e, portanto, a<br />

cultura, e potencializar também a produção cultural, criando inclusive<br />

novas formas de arte.<br />

A música Quanta é um convite do autor para compartilhar<br />

com o público sua admiração pelas conquistas e possibilidades abertas<br />

pela pesquisa científica nas últimas décadas, em particular no<br />

campo da física subatômica, fundamentada na teoria quântica e na<br />

tecnologia da informática.<br />

Gilberto Gil sempre nutriu um fascínio pelas ciências naturais<br />

e suas aplicações na vida humana, tanto que não dedicou a elas não<br />

somente canções isoladas, mas o álbum duplo, lançado em 1997,<br />

com o nome Quanta.<br />

É um trabalho que vem do meu enorme fascínio pelo universo masplanckiano,<br />

schrodingeriano, heisenberguiano, niels-bohriano; um fascí-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

731<br />

nio de anos... Quanto mais eu leio sobre o quantum da matéria, sobre essa<br />

abolição da escravatura da física do mecanicismo, do paradigma cartesiano,<br />

mais eu fico pensando por que eu resolvi passar quase cinco anos<br />

dedicando uma especulação sobre isso a um trabalho artístico, acabando<br />

por fazer um disco duplo, enorme, exaustivo, até confuso para muita<br />

gente (Rennó, 2003, p. 431).<br />

Nesse álbum fica clara a diferente abordagem da ciência e do<br />

mundo feita por Gil, se comparada com suas músicas das décadas de<br />

60 e 70.<br />

Mas não é só o artista quem modifica suas abordagens, a própria<br />

ciência e toda a realidade a nossa volta estão em permanente<br />

mudança.<br />

Estudos sobre o átomo derrubam a teoria da inércia, um dos<br />

pilares da física newtoniana, mudando completamente a relação com<br />

os conhecimentos já estabelecidos. Além de constatarem uma complexidade<br />

cada vez maior dentro do átomo, descobriram várias outras<br />

partículas e chegaram à conclusão de que todas elas estão em movimento<br />

constante, jamais estão em repouso, estão sempre interagindo,<br />

trocando energia. Disso resulta que nenhum objeto ou fenômeno natural<br />

pode ser estudado de maneira completa sem se avaliar sua relação<br />

com o restante do universo.<br />

Nasce então uma nova maneira de interpretar a Natureza,<br />

mais próxima da compreensão do mundo desenvolvida pelos místicos<br />

orientais (hindus, budistas e taoístas). Essa noção de que tudo o<br />

que existe está entrelaçado em uma teia dinâmica de relações, de que<br />

a Natureza é um sistema dinâmico de forças e energias, foi fundamental<br />

para o desenvolvimento da moderna consciência ecológica.<br />

Sendo assim, a ciência possibilita ao homem perceber hoje o que povos<br />

antigos já sabiam: somos parte da Natureza e tudo o que fazemos<br />

é interagir com o mundo à nossa volta.<br />

Diante dos aspectos observados, não existe contradição entre<br />

o engajamento na causa ecológica, defendido por Gil em composições<br />

anteriores, e a valorização da ciência. O que observamos é a afinidade<br />

do autor com as mais recentes tendências da pesquisa científica.<br />

Essa relação de afinidade de Gilberto Gil com a ciência e suas<br />

implicações na busca de uma consciência humanística surge com a


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

732<br />

música Quanta. Nessa música ganhou espaço um conceito fundamental<br />

e complexo da física moderna: o quantum.<br />

Para a concepção da canção Quanta, Gilberto Gil contou com<br />

César Lates, integrante do grupo de cientistas que descobriu o píon<br />

(uma das partículas que compõem o universo subatômico), como um<br />

tipo de consultor, a quem o autor recorria para não cometer “nenhum<br />

sacrilégio”. (Jornal do Brasil, 25 abr.1997 apud LACERDA, 2002,<br />

p. 102)<br />

Quanta do latim<br />

Plural de quantum<br />

Quando quase não há<br />

Quantidade que se medir<br />

Qualidade que se expressar<br />

Fragmento infinitésimo<br />

Quase que apenas mental<br />

Quantum granulado no mel<br />

Quantum ondulado no sal<br />

Mel de urânio, sal de rádio<br />

Qualquer coisa quase ideal<br />

Cântico dos cânticos<br />

Quântico dos quânticos<br />

Canto de louvor<br />

De amor ao vento<br />

Vento, arte do ar<br />

Balançando o corpo da flor<br />

Levando o veleiro pro mar<br />

Vento de calor<br />

De pensamento em chamas<br />

Inspiração<br />

Arte de criar o saber<br />

Arte, descoberta, invenção<br />

Theoría em grego quer dizer<br />

O ser em contemplação<br />

Cântico dos cânticos<br />

Quântico dos quânticos<br />

Sei que a arte é irmã da ciência<br />

Ambas filhas de um deus fugaz<br />

Que faz num momento e no mesmo momento desfaz


Esse vago deus por trás do mundo<br />

Por detrás do detrás<br />

Cântico dos cânticos<br />

Quântico dos quânticos<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

733<br />

O compositor baiano, abusando da "licença científica", mas<br />

com grande sensibilidade poética, combina ciência e arte fazendo<br />

uma referência ao samba de Cartola com os versos: “Sei que a arte é<br />

irmã da ciência / Ambas filhas de um Deus fugaz” (GIL. 1996, p.<br />

358).<br />

Nos mesmos versos se refere a arte e ciência colocando-as no<br />

mesmo nível do que se quer e o que se materializa, entre a suposição<br />

e a constatação científica, entre a inspiração e arte, sendo ambas filhas<br />

do mesmo “vago deus por trás do mundo” um deus imenso, incorpóreo,<br />

“Que faz num momento e no mesmo momento desfaz” nos<br />

remetendo a ideia de que todo o cosmos está entregue a um contínuo<br />

fluxo, concepção básica para se compreenda os avanços da física<br />

contemporânea.<br />

Ao longo do percurso da história a ciência viu seus ensinamentos<br />

serem pautados em dois prismas: o primeiro pregava o paradigma<br />

cartesiano em que não haveria possibilidade de convergência<br />

de pensamento entre ciência e espiritualidade. O segundo abarcava<br />

uma visão integradora das coisas do mundo, através do paradigma<br />

holístico e da teoria da relatividade iremos perceber a vida e seu mistério<br />

interligando as várias áreas do saber, inclusive aproximando-as<br />

uma vez que “a arte é irmã da ciência”.<br />

Para Gil, o entendimento do ser humano não se dá nem pelo<br />

viés da ciência, nem pelo viés da arte. É uma confluência desses<br />

segmentos que uma possível leitura do mistério do homem se faz<br />

presente. Daí talvez possamos dizer expressões com sintagmas aparentemente<br />

tão contrastantes “mel de urânio”, “sal de rádio”<br />

O autor trabalha também na comunhão da ciência com a espiritualidade,<br />

a transcendência, ao brincar com as expressões “cântico<br />

dos “cânticos” “cântico dos quânticos”.<br />

Segundo a canção, “theoría em grego quer dizer / O ser em<br />

contemplação”, sabendo que o termo teoria é mais utilizado para nos


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

734<br />

referirmos ás ciências, Gil brinca mais uma vez com as palavras nos<br />

levando ao termo contemplação, base de todo e qualquer tipo de arte.<br />

Assim, ao utilizar os versos “Vento, arte do ar / Balançando o corpo<br />

da flor / Levando o veleiro pro mar”, refere-se não só a observação<br />

do artista, como também do cientista que a emprega para seu estudo.<br />

A música Átimo de pó brinca com o som e a rima de palavras<br />

relacionadas à ciência, a e mecânica quântica como spin e quark, e<br />

mescla a elas palavras como yang e yin relacionados à filosofia chinesa.<br />

Esses dois últimos representam o príncipio da dualidade. Yin<br />

como negativo e Yang como positivo. É uma analogia, assim como a<br />

carga elétrica atribuída a prótons e elétrons, são opostos que se<br />

complementam.<br />

Niels Bhor, um dos grandes construtores da teoria quântica<br />

teve como inspiração para entender a Mecânica dos Quanta o I<br />

Ching, conhecido como o livro das mutações na cultura chinesa. Isso<br />

porque tudo o que existe está em permanente transformação. As provas<br />

físicas, as equações e experiências de laboratório, todas elas até<br />

então, eram para provar que as coisas existiam, mas não questionavam<br />

ou cogitavam suas mudanças.<br />

Foi quando se descobriu que o átomo, até algumas décadas<br />

atrás considerado a menor porção em que se poderia dividir a<br />

matéria, era subdividido em partículas menores, que se chegou à incerteza<br />

e a indefinição.<br />

Os cientistas foram chegando a esses fatos. E chegaram à Teoria<br />

dos Quarks, que é um dos elementos básicos que constituem a<br />

matéria, e é a única das partículas que interage através de todas as<br />

quatro forças fundamentais. Essa teoria possibilitou as novas noções<br />

sobre o Universo.<br />

É possível que Steven Weinberg, prêmio Nobel de física em<br />

1979, esteja certo em afirmar que o fato de ser possível entender o<br />

universo de modo sistemático tenha sido realmente a grande descoberta<br />

da ciência, e que talvez a única descoberta nessa área realmente<br />

importante para a filosofia tenha sido a descoberta da própria ciência<br />

Weinberg destaca ainda que a filosofia profissional tem seu<br />

valor próprio, mas não apresenta nenhum valor para o estudo da ci-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

735<br />

ência. (GRECO, 2001, p. 170). Mesmo assim não podemos descartar<br />

o uso da filosofia como ferramenta interessante utilizada por alguns<br />

cientistas no estudo de suas e teorias, como foi o caso de Niels Bhor<br />

com a filosofia oriental.<br />

Analisando a letra da música Átimo de pó essa relação entre a<br />

filosofia e a ciência se põe de maneira muito explicita.<br />

Entre a célula e o céu<br />

O germe e Perseu<br />

O quark e a Via-Láctea<br />

A bactéria e a galáxia<br />

Entre agora e o eon<br />

O íon e Órion<br />

A lua e o magnéton<br />

Entre a estrela e o elétron<br />

Entre o glóbulo e o globo blue<br />

Eu, um cosmos em mim só<br />

Um átimo de pó<br />

Assim: do yang ao yin<br />

Eu e o nada, nada não<br />

O vasto, vasto vão<br />

Do espaço até o spin<br />

Do sem-fim além de mim<br />

Ao sem-fim aquém de mim<br />

Den de mim<br />

Já no título da composição observamos o uso da palavra “átimo”,<br />

que provém de átomo, mas é tomada na concepção de momento,<br />

de pequeno instante de tempo, e a palavra “pó”, utilizada na música<br />

para representar a matéria, como na utilização feita pela Bíblia.<br />

Sendo assim, Átimo de pó é um momento de matéria, que segundo<br />

algumas religiões é do que se trata a encarnação, um momento de<br />

materialização do homem, e a canção segue “filosofando” a esse respeito,<br />

utilizando-se de termos científicos.<br />

“Galáxia” e “quark”, que em física de partículas representa o<br />

componente básico para a constituição da matéria, representando o<br />

macro e o micro, a imensidão e o ponto mínimo a que se pode chegar.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

736<br />

A representação do tempo aparece claramente nos termos “agora”<br />

e “eon” (período de tempo extremamente longo e indefinido).<br />

A representação do espaço aparece nas palavras “íon” utilizado pelos<br />

químicos para descrever a porção das moléculas capaz de viajar, e<br />

“Órion”, que além do nome de uma constelação, é também o nome<br />

escolhido para a nova nave espacial da NASA, que irá substituir os<br />

ônibus espaciais.<br />

Sendo assim o poete segue a canção esclarecendo ser ele<br />

quem se encontra entre “Galáxia” e “quark”, o “agora” e “eon” e entre<br />

o “íon” e o “Órion”, e se coloca como um possuidor de um<br />

cosmos em si, termo utilisado na filosofia para representar tudo o<br />

que existe, tenha ou não sido identificado.<br />

Coloca-se como um cosmos em si só, o termo cosmos segundo<br />

a Filosofia significa tudo o que existe, tenha ou não sido identificado.<br />

Por fim a canção retrata o homem como um ser infinito de experiências<br />

e descobertas a serem realizadas e ao mesmo tempo pequeno<br />

e insignificante diante do universo. Este homem posto entre a<br />

grandiosidade das descobertas científicas e das coisas naturais que ao<br />

invés de se oporem, se complementam, como o yin e o yang, se identifica<br />

com elas e percebe nele mesmo um sem fim de descobertas a<br />

serem feitas além, aquém e dentro de si.<br />

Escrita em 1988, após uma viagem ao país do sol nascente e<br />

estimulado pelo significado do Japão como potência tecnológica,<br />

Gilberto Gil compõe a música Do Japão. A canção pode ser interpretada<br />

como a imagem de um lugar onde residem forças antagônicas,<br />

colocadas de forma a coexistirem.<br />

Do Japão<br />

Quero uma máquina de filmar sonhos<br />

Pra registrar nas noites de verão<br />

Meu corpo astral leve, feliz, risonho<br />

Voando alto como um gavião<br />

Que filme dentro de minha cabeça<br />

Todo pensamento raro que eu mereça<br />

Toda ilusão a cores que apareça<br />

Toda beleza de sonhar em vão<br />

Do Japão<br />

Quero também um trem-bala-de-coco


Pra atravessar túneis do dissabor<br />

Quero um microcomputador barroco<br />

Que seja louco e desprograme a dor<br />

Visitar um templo zen-desbundista<br />

Conversar com um samurai futurista<br />

Que me dê pistas sobre o sol-nascente<br />

Que me oriente sobre o novo amor<br />

Do Japão<br />

Quero uma gueixa que em poucos minutos<br />

Da minha queixa faça uma paixão<br />

Descubra novos sentimentos brutos<br />

E, enfeitiçada, tome um avião<br />

E a gente vá viver num outro mundo<br />

Pra lá do Terceiro ou Quarto ou Quinto Mundo<br />

Onde a rainha seja uma açucena<br />

E a divindade, a pena do pavão.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

737<br />

Em Gil fica clara a compreensão de um país que tenta construir<br />

sua identidade através da convivência de duas culturas, a ocidental<br />

e a oriental. Ou seja, o Japão tecnológico, cibernético e o Japão<br />

tradicional, fundado nas concepções culturais milenares. Do país<br />

marcado por um pensamento zen, mas inscrito na era científica.<br />

Para ele a canção visa “as possibilidades de contribuição da<br />

tecnologia para o próprio fundamento da visão existencial, a visão de<br />

dentro” (GIL in RENNÓ, 2003, p. 386) buscando um equilíbrio entre<br />

o universo maquínico e o onírico. Será possível? Haverá máquina<br />

que filme os sonhos?<br />

A canção de Gil não faz desmerecer toda a contribuição que a<br />

ciência e a tecnologia deixaram para o homem. Tenta, porém conjugar<br />

a ciência com o que há de mais profundo e tradicional da existência<br />

japonesa. A ciência como o elo entre o passado (samurai) e o<br />

futuro (futurista).<br />

Utiliza vocábulos ligados a tecnologia e a tradição como recurso<br />

para representar o seu propósito na música. O “microcomputador”<br />

representa o racional, o previsível e o “barroco” representa aquilo<br />

que é dialético, dicotômico, paradoxal. Assim como no encontro<br />

das palavras zen-desbundista podemos interpretar ao mesmo aquilo<br />

que é introspectivo, equilibrado e harmonioso e o que é exterior,<br />

desmesurado.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

738<br />

Além da tecnologia, o Japão é referencia para aqueles que<br />

buscam na meditação e no conhecimento interno a desobstrução da<br />

mente e o bem espiritual. Sendo assim, saindo do mundo da tecnologia<br />

industrial em direção a alma japonesa, a canção passa pelo “microcomputador<br />

barroco” e chega ao samurai e a gueixa.<br />

Essa última aparece configurada em um jogo antitético com a<br />

expressão “sentimentos brutos”, uma vez que a gueixa remete a um<br />

símbolo de leveza e delicadeza.<br />

Vale comentar a leve brincadeira sugerida na cena em que<br />

uma gueixa pega um avião, isso porque o universo construído sobre<br />

esta figura emblemática foi sempre de reclusão ao lar. O avião surge<br />

não só como aquilo que entra em cheque com a tradição (gueixa),<br />

como também sugere a emancipação da mulher saindo do espaço<br />

privado se deslocando para o universo público.<br />

Ao citar “microcomputador barroco” que é “louco e desprograma<br />

a dor”, o poeta começa a delinear uma nova visão de tecnologia.<br />

Desta vez o computador que era, utilizado para fins capitais é<br />

humanizado, o que segundo Lacerda (2002, p. 101) “não se trata de<br />

desenvolver uma nova tecnologia, mas de dar um novo uso a que já<br />

existe”.O objetivo da tecnologia não seria somente aumentar a produtividade,<br />

mas ajudar o homem à “atravessar os túneis do dissabor”<br />

com um “trem-bala-de-coco” para que pudesse alcançar sua felicidade.<br />

6. Conclusão<br />

O trabalho apresentado resulta de uma pesquisa de muitas leituras<br />

e debates sobre a evolução científica do século XX, contextualizadas<br />

na obra de Gilberto Gil. A proposta inicial desta monografia<br />

a princípio era o estudo da ciência e do sagrado na poética do autor,<br />

mas ao longo de buscas incansáveis de referências sobre o assunto,<br />

chegou-se à conclusão que, em se tratando de Gil, não seria temporalmente<br />

possível realizar a pesquisa em apenas um semestre letivo.<br />

Sendo assim, as pesquisas foram restritas apenas à ciência dentro de<br />

sua obra.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

739<br />

Enquanto apreciadora das canções de Gil, várias questões foram<br />

fascinantes em relação a esse trabalho, questões essas que haviam<br />

passado despercebidas, até mesmo por quem dizia admirar suas<br />

musicas há muito tempo. Entre essas questões, a que mais chama a<br />

atenção é a maneira como o autor brinca com as palavras ao tratar do<br />

local e o universal na perspectiva científica, contextualizando-as.<br />

As leituras necessárias para tratar da ciência nas canções de<br />

Gilberto Gil foram, a cada novo livro indicado, mais intrigantes. Estudos<br />

sobre filosofia oriental, física quântica, entre outro temas revelaram,<br />

a princípio espanto, por se tratar de assuntos tão distantes e ao<br />

mesmo tempo tão próximos da realidade. Mas aos poucos, a variedade<br />

temática existente em Gil, fez de sua obra terreno ideal para o estudo<br />

de temas tão atuais.<br />

Ao término desse trabalho, a ideia de que se espera transmitir,<br />

entre outras é a de que “a arte é irmã da ciência”, e que diferentes<br />

campos do saber humano, quando mesclados geram novos conhecimentos,<br />

possibilitando ao homem não mais viver “a ilusão do poder”.<br />

REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS<br />

CALVANI, Carlos Eduardo B. Teologia e MPB. São Paulo: Loyola,<br />

1998.<br />

CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura<br />

emergente. São Paulo: Cultrix, 1982.<br />

––––––; STEINDL-RAST, David; MATUS, Thomas. Pertencendo<br />

ao universo: explorações nas fronteiras da ciência e da espiritualidade.<br />

Tradução de Maria de Lourdes Eichenberger e Newton Roberval<br />

Eichenberg. São Paulo: Cultrix, [1991].<br />

COUTINHO, Afrânio (Dir.); COUTINHO, Eduardo de Faria (Codir.).<br />

A literatura no Brasil. Vol. I – Preliminares e generalidades. 3.<br />

ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: J. Olympio; Niterói: Eduff, 1986.<br />

DANTAS, Boaventura. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento,<br />

1990.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

740<br />

FONTELES, Bené. Giluminoso: a poética do ser. Brasília: Edunb;<br />

São Paulo: SEXC, 1999.<br />

GIL, Gilberto. Gilberto Gil. Seleção de textos, notas, estudos biográfico,<br />

histórico e crítico e exercícios por Fred de Góes. Colaboração:<br />

Lauro Góes e Nelson Motta. São Paulo: Abril Educação, 1982. (Coleção<br />

Literatura Comentada).<br />

––––––. Todas as letras. Organizado por Carlos Rennó. São Paulo:<br />

Cia. das Letras, 2003.<br />

GREGO, Alessandro. Homens de ciência [entrevistados por...]. São<br />

Paulo: Conrad Ed. do Brasil, 2001.<br />

JAPIASSU, Hilton. Ciência e destino humano. [Rio de Janeiro]: Imago,<br />

[2005].<br />

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 3. ed. São<br />

Paulo: Perspectiva, 1989.<br />

LACERDA, Francisco José Neiva. Gilberto Gil: Partículas em suspensão.<br />

Niterói: Eduff, 2002.<br />

LAZARTE, Rolando. Max Weber: Ciência e valores. 2. ed. São Paulo:<br />

Cortez, 2001.<br />

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Vol. I. 5. ed. Petrópolis:<br />

Vozes, 2002.<br />

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o<br />

pensamento. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.<br />

PEREIRA, Raiff Magno Barbosa. Se eu quiser falar com Deus: O<br />

sagrado na obra de Gilberto Gil. Anteprojeto de doutorado apresentado<br />

ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética),<br />

vinculado à linha de pesquisa “Poéticas das diferentes linguagens”,<br />

elaborado sob a orientação da Professora Doutora Helena Parente<br />

Cunha. UFRJ – Faculdade de Letras, 2° semestre de 2006.<br />

RISÉRIO, Antonio (Org.). Gilberto Gil – Expresso 2222. Salvador:<br />

Corrupio, 1982.


COMO E POR QUE TRABALHAR<br />

COM O TEXTO PUBLICITÁRIO<br />

EM SALA DE AULA<br />

Ilana da Silva Rebello Viegas (UFF)<br />

ilanarebello@uol.com.br<br />

A ausência de trabalhos, em sala de aula, com<br />

textos que circulam socialmente, como jornal,<br />

letras de música, anúncios ou outdoors, surge<br />

como sintonia de recusar a experiência do aluno<br />

como cidadão fora do espaço acadêmico. (...)<br />

(MENEZES, Gilda et alli: 2003: 9)<br />

A educação, sendo uma prática social, não pode restringir-se<br />

a ser puramente livresca, teórica, sem compromisso com a realidade<br />

local e com o mundo em que vivemos.<br />

Cada vez mais, se torna necessário o trabalho em sala de aula<br />

com diferentes textos, dentre eles, os da mídia, pois são esses textos<br />

que fazem parte do dia a dia dos alunos e da sociedade em geral.<br />

1. A difícil tarefa de ler e interpretar na escola<br />

Segundo Vargas (2000, p. 7-8), a estrutura educacional brasileira<br />

tem formado mais ledores que leitores. Para a autora, a diferença<br />

entre uns e outros está<br />

na qualidade da decodificação, no modo de sentir e de perceber o que está<br />

escrito. O leitor, diferentemente do ledor, compreende o texto na sua<br />

relação dialética com o contexto, na sua relação de interação com a forma.<br />

O leitor adquire através da observação mais detida, da compreensão<br />

mais eficaz, uma percepção mais crítica do que é lido, isto é, chega à política<br />

do texto. A compreensão social da leitura dá-se na medida dessa<br />

percepção. Pois bem, na medida em que ajudo meu leitor, meu aluno, a<br />

perceber que a leitura é fonte de conhecimento e de domínio do real, ajudo-o<br />

a perceber o prazer que existe na decodificação aprofundada do texto.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

742<br />

Leitura, texto e sentido fazem parte do processo de interpretação.<br />

Se não existe texto, seja ele verbal ou não verbal, não há leitura<br />

e muito menos produção de sentidos.<br />

Estudo realizado por Marcuschi (2001, p. 47) sobre o tratamento<br />

dado à compreensão de textos nos livros didáticos de Língua<br />

Portuguesa revela que<br />

A língua é tomada como um instrumento de comunicação não problemático<br />

e capaz de funcionar com transparência e homogeneidade. (...)<br />

(...) O vocabulário, por exemplo, é quase sempre proposto numa definição<br />

ou explicação por sinonímia (ou antonímia), esquecendo-se outros<br />

aspectos de funcionamento, tais como o metafórico, o figurado e, em<br />

especial a significação situada. A realidade fonológica da língua é suplantada<br />

com naturalidade já nas 2ª e 3ª séries do ensino fundamental. As<br />

estruturas e funções sintáticas são identificadas linearmente e com segurança,<br />

sobretudo na perspectiva de uma metalinguagem, pouco se tratando<br />

o caso tão complexo da variação, seja dialetal ou social. A produção<br />

textual, quando exercitada, não é explicitada sequer para o professor,<br />

quanto menos para o aluno.<br />

Essa realidade descrita por Marcuschi (ibidem) mostra que a<br />

maioria dos livros didáticos de Língua Portuguesa não leva o aluno a<br />

analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando<br />

textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização<br />

das manifestações, de acordo com as condições de produção e<br />

recepção. (PCN, 1999, p. 127)<br />

O livro didático de Língua Portuguesa, sendo uma das ferramentas<br />

e, talvez, a mais utilizada pelos professores, acaba não contribuindo<br />

muito na formação de leitores críticos, capazes de interpretarem<br />

o que leem.<br />

Tal problema é detectado por muitos educadores e pesquisadores,<br />

como Kleiman (2004, p. 56), levando-a a afirmar que<br />

Se o aluno é capaz de decodificar o texto escrito, se ele é capaz de<br />

utilizar a informação sintática do texto na leitura, e se, ademais, ele já<br />

completou a aquisição da língua materna, as dificuldades que ele revela<br />

na compreensão do texto escrito são decorrentes de estratégias inadequadas<br />

de leitura. A prática mencionada, a utilização do texto como pretexto<br />

da aula de gramática, certamente contribui para a formação de estratégias<br />

de leitura inadequadas, pela ênfase que coloca nos aspectos sequenciais e<br />

distribucionais dos elementos linguísticos do texto, justamente aqueles<br />

elementos que não são constitutivos do texto enquanto unidade de significação.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

743<br />

Para um trabalho produtivo de ensino de língua portuguesa,<br />

os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) recomendam a utilização<br />

de diferentes gêneros textuais. A proposta não é utilizar o texto<br />

como pretexto para o ensino de gramática, mas sim, como fonte de<br />

leitura, ampliação de vocabulário, interpretação e análise de elementos<br />

linguísticos.<br />

Assim, de acordo com os objetivos propostos pelos PCN’s,<br />

fica evidente que o professor deve trabalhar com os alunos diferentes<br />

gêneros textuais, de modo que eles sejam capazes de ler, compreender<br />

e interpretar esses textos, sabendo utilizá-los em situações concretas.<br />

O estudo dos gêneros discursivos e dos modos como se articulam<br />

proporciona uma visão ampla das possibilidades de usos da linguagem,<br />

(...) (PCN, 1999, p. 18)<br />

Porém, como são muitos os gêneros, os PCN’s recomendam<br />

que o professor priorize os que caracterizam os usos públicos da linguagem,<br />

já que é compromisso da escola assegurar ao aluno o exercício<br />

pleno da cidadania. (Cf. PCN, 1998, p. 24).<br />

Assim, por meio de um trabalho sistemático com o texto, o<br />

professor pode estar contribuindo para a formação de verdadeiros<br />

leitores. O aluno precisa extrair sentido do que lê, ou seja, chegar ao<br />

“sentido de discurso”, para, então, perceber que o texto é fonte de<br />

prazer e de conhecimento.<br />

2. Sentido de língua x sentido de discurso:<br />

contribuições da teoria semiolinguística de análise do discurso<br />

Distinguir sentido de língua de sentido de discurso (terminologia<br />

proposta por Patrick Charaudeau: 1995, 1999, p. 29) é de fundamental<br />

importância tendo em vista que o nosso objetivo é propor<br />

atividades que ajudem o aluno a ultrapassar o sentido de língua/compreensão<br />

e chegar ao sentido de discurso/interpretação.<br />

Charaudeau (ibidem) estabelece uma distinção entre sentido<br />

de língua e sentido de discurso, tendo como base a noção referencial<br />

da língua. Tal distinção é importante porque mostra a diferença entre


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

744<br />

dois processos tomados comumente como idênticos – a compreensão<br />

e a interpretação.<br />

De acordo com Charaudeau (2001, p. 31-2), todo ato de linguagem<br />

é uma encenação que comporta quatro protagonistas, sendo<br />

dois situacionais, externos e dois discursivos, internos. Os sujeitos<br />

“externos” são o EUc (eu-comunicante) e o TUi (tu-interpretante) e<br />

os sujeitos “internos”, o EUe (eu-enunciador) e o TUd (tudestinatário).<br />

No circuito externo, os seres são de ação, instituídos pela<br />

produção (EUc) e pela interpretação (TUi) e guiados pelo FAZER da<br />

situação psicossocial. Já no circuito interno, os seres são da fala, instituídos<br />

pelo DIZER (EUe e TUd).<br />

No ato de comunicação, o sujeito comunicante tem por objetivo<br />

significar o mundo, a partir de seus propósitos, para um sujeito<br />

interpretante. Nessa troca, ou seja, nesse processo de transação, para<br />

proceder a uma análise do texto, o sujeito interpretante precisa não<br />

só mobilizar o sentido das palavras e suas regras de combinação<br />

(langue) como também construir um sentido que corresponda a sua<br />

intencionalidade (parole). Nesse ponto, passa-se do sentido de língua<br />

ao sentido de discurso, tendo em vista que o sujeito interpretante não<br />

busca o significado das palavras ou sua combinação (sentido de língua),<br />

mas seu sentido social (sentido de discurso).<br />

O processo de ordem categorial que termina no reconhecimento<br />

do sentido de língua pode se chamar “compreensão”. E o processo<br />

duplo (discursivo e situacional) de ordem inferencial, que leva<br />

ao reconhecimento – construção do sentido de discurso problematizado<br />

e finalizado – pode ser chamado de “interpretação”.<br />

Cabe à escola, trabalhar com os alunos estratégias de leitura<br />

de modo que sejam capazes de ultrapassar o sentido de língua.<br />

3. Análise e criação de textos publicitários<br />

O que há na linguagem publicitária que tanto atrai consumidores?<br />

As pessoas consomem basicamente para experimentar um tipo<br />

qualquer de satisfação. Porém, é interessante observar que a propaganda<br />

não é uma linguagem qualquer, livre de intencionalidades.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

745<br />

Quando nos propomos a mergulhar nas entrelinhas do texto publicitário,<br />

percebemos o emaranhado de combinações a fim de seduzir,<br />

levando o leitor a adquirir um determinado produto.<br />

Assim, ler um texto publicitário não é somente desvelar a ideologia<br />

transmitida, mas também, é perceber o jogo feito com as<br />

palavras, a fim de tirar o leitor da indiferença.<br />

O professor pode mostrar aos alunos que o texto publicitário é<br />

um apelo, um vínculo entre o anunciante e o consumidor. E, para seduzir<br />

o leitor, os argumentos objetivos, somente, não bastam, pois é<br />

preciso mostrar vantagens para o consumidor.<br />

Ao elaborar um texto publicitário, é de suma importância que<br />

o aluno imagine o que o consumidor virtual pensa a respeito do produto<br />

a ser oferecido.<br />

Outro aspecto relevante é que a linguagem publicitária faz<br />

uso também dos signos não verbais ou icônicos como uma grande<br />

força de expressão e persuasão. Em alguns casos, a ilustração é autossuficiente<br />

para conseguir os objetivos que se pretende obter. O<br />

professor pode mostrar que os signos icônicos servem para reforçar<br />

os valores de atenção, compreensão, memorização e credibilidade.<br />

Enquanto algumas pessoas acreditam no que está impresso, uma<br />

grande maioria acredita no que vê, e não precisa ser uma prova científica,<br />

mas apenas uma aparência da prova de verdade que se quer<br />

transmitir.<br />

O logotipo, a marca e o espaço em branco formam, juntamente<br />

com a ilustração, os aspectos gráficos de um anúncio. O que importa<br />

é trabalhar no limite do texto, levantando-se as suas verdades<br />

escondidas.<br />

Assim, o professor pode propor um trabalho de observação,<br />

interpretação e criação de novos textos publicitários. A partir da leitura<br />

de anúncios, comentar o ocultamento dos verbos “compre” ou<br />

“faça” e descobrir a maneira de conseguir o que se quer, sem que apareçam<br />

os imperativos. Na verdade, nesse tipo de texto, todos os<br />

imperativos valem por “compre”. Como afirma Monnerat (2003, p.<br />

34),<br />

(...) os verbos (...) quando usados no imperativo, equivalem sempre a<br />

comprar. “Assine Caras e ganhe gênios da música” equivale a compre.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

746<br />

O uso do imperativo caracteriza uma linguagem autoritária, pouco usada<br />

no cotidiano, quando, por exemplo, a ordem “faça isso” é substituída por<br />

eufemismos: “Por favor, você pode fazer isso?” Na publicidade, o receptor<br />

obedece a ordens categóricas sem protestar: “Leia Manchete”, “Abuse<br />

e use C&A” etc., e isto porque a publicidade, não se dirigindo a ninguém<br />

em especial, dirige-se individualmente ao receptor.<br />

O professor pode levar os alunos a entenderem as diferentes<br />

motivações para o uso do imperativo e também perceberem de que<br />

outra forma eles podem dar uma ordem, sem utilizar esse modo verbal.<br />

Nem sempre o publicitário utiliza verbos no imperativo, tendo<br />

em vista que este modo caracteriza uma linguagem autoritária. O publicitário<br />

pode utilizar, para seduzir o leitor, estratégias argumentativas,<br />

como a singularização e a pressuposição e, ainda, a inferência.<br />

“Uma estante pra quem gosta do bom<br />

e do melhor. Mas prefere o melhor.”<br />

Rudnick Store & Projetos<br />

Veja Rio: 30/09/03


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

747<br />

Na singularização, o agente publicitário procura distinguir o<br />

produto (Marca) de todos os outros produtos possíveis, tornando-o<br />

único. O produto x de uma determinada Marca é sempre “o melhor”,<br />

“o irresistível” em relação a y, de outra Marca, como por exemplo,<br />

na propaganda da Rudnick Store & Projetos.<br />

Já a pressuposição, na publicidade, fabrica uma imagem do<br />

destinatário da qual ele próprio não pode fugir, como na propaganda<br />

do carro da Ford, em que o publicitário parte do pressuposto de que o<br />

leitor gosta de modelos bonitos de carros e gosta também de pagar<br />

pouco pelo produto.<br />

“Para quem é<br />

exigente no<br />

design, mas se<br />

contenta com<br />

pouco no preço.<br />

Ford Focus<br />

hatch”<br />

Ford Focus<br />

hatch<br />

Veja Rio:<br />

17/09/03


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

748<br />

Na relação posto/pressuposto, observa-se que o posto pode<br />

ser contestado, já o pressuposto é um dado indiscutível para o leitor;<br />

não podendo ser contestado, sob pena de se tornar incoerente o enunciado.<br />

No texto da Ford temos o seguinte:<br />

POSTO: O leitor é exigente no design (“gosta do bom e do<br />

melhor”), mas gosta também de pagar pouco pelo produto.<br />

PRESSUPOSTO: O design e o preço do carro Ford Focus<br />

hatch são ótimos; atingem a quem é exigente no preço e na<br />

qualidade.<br />

O texto da Rudnick Store & Projetos, a seguir, é exemplo de<br />

inferência. Ao ler o enunciado, o receptor deverá perceber o elogio<br />

implícito – se “a sala é a sua cara” (“a não ser que ele se ache feio”)<br />

é porque tanto ele, quanto os móveis são bonitos. Vale notar que o<br />

adjetivo “bonito” não aparece uma única vez, surgindo do reconhecimento<br />

da inferência.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

749<br />

“Essa sala é a sua cara. A não ser<br />

que você se ache feio.”<br />

Rudnick Store & Projetos<br />

Veja Rio: 22/10/03<br />

Pressuposição e subentendido não são o mesmo mecanismo.<br />

Na pressuposição, há o posto (o dado) e o pressuposto, que é reconhecido<br />

por meio de marcas textuais explícitas, como certos conectores<br />

circunstanciais (ainda, já, já que, também, desde que etc.); verbos<br />

que indicam mudança ou permanência de estado (ficar, começar,<br />

continuar etc.) e verbos de estado psicológico (sentir, saber, lastimar<br />

etc.); orações adjetivas (explicativas e restritivas); expressões e verbos<br />

reiterativos (de novo, refazer etc.) etc.<br />

Já no subentendido, ou inferência (chamado por Grice de implicatura<br />

conversacional), o receptor da mensagem tem de inferir o<br />

não dito por meio de conhecimento de mundo, conhecimento partilhado,<br />

situação comunicativa etc.<br />

Como sugestão de atividade, o professor pode pedir que os<br />

alunos identifiquem, em alguns textos publicitários, os seguintes me-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

750<br />

canismos: singularização, pressuposição e inferência. Vale lembrar<br />

que, num texto, pode ser utilizada mais de uma estratégia. Nos textos<br />

em que a pressuposição é utilizada, os alunos podem também identificar<br />

o POSTO, o PRESSUPOSTO e o MARCADOR DE PRESSU-<br />

POSIÇÃO.<br />

Os alunos também podem ser levados a escreverem textos argumentativos<br />

para os anúncios, utilizando as estratégias – singularização<br />

e/ou pressuposição - de modo que o leitor seja seduzido a<br />

comprar o produto anunciado. Nessa atividade, o professor recorta<br />

propagandas de jornais e revistas e retira o texto de argumentação. O<br />

professor deve mostrar aos alunos que o texto argumentativo deve<br />

ressaltar as qualidades do produto, utilizando sempre palavras positivas.<br />

Muitos textos publicitários também “jogam” com a polissemia<br />

das palavras ou expressões, possibilitando várias interpretações.<br />

O professor pode solicitar que os alunos identifiquem o(s) sentido(s)<br />

denotativo(s) (sentido de língua, dicionarizado) das palavras ou expressões<br />

e, quando houver, o(s) sentido(s) conotativo(s) (sentido de<br />

discurso, figurado).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

751<br />

“Montanha não é lugar de<br />

pé frio.”<br />

Timberland<br />

Veja: 04/06/03<br />

No texto da marca de calçados Timberland, o publicitário joga<br />

com a polissemia da expressão “pé frio”.<br />

Numa primeira análise, após lermos o texto argumentativo,<br />

compreendemos que os calçados da Timberland, feitos de couro hidrofugado<br />

– “couro com tratamento especial e costura selada, que<br />

proporciona total impermeabilidade” – permitem que o leitor fique<br />

com os pés aquecidos, mesmo em montanhas. Porém, a expressão<br />

“pé frio” é também utilizada popularmente em relação às pessoas<br />

pessimistas, que não acreditam no sucesso, ou que atraem azar. Assim,<br />

numa segunda leitura, escalar montanhas não é atividade para<br />

“pé frio”, ou seja, para pessimistas.<br />

Questões de reconhecimento do sentido denotativo das palavras<br />

e expressões exigem do aluno um conhecimento básico da língua.<br />

Para que esse aluno chegue ao sentido global do texto, precisa<br />

primeiramente, identificar os sentidos literais de uma palavra ou expressão.<br />

Após esse primeiro reconhecimento, ele terá mais possibili-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

752<br />

dades de perceber os outros possíveis sentidos atribuídos às palavras<br />

e as implicações que tais sentidos trazem ao texto.<br />

Outro recurso muito utilizado pelo texto publicitário é a ambiguidade.<br />

“Faixa. De uma forma ou de outra, você acaba usando.”<br />

Fonte: http://www.transportes.gov.br/Pare/Camp5.htm<br />

O professor deve discutir com os alunos quando a ambiguidade<br />

é problemática e quando é um recurso estilístico.<br />

No texto do Ministério dos Transportes, a ambiguidade é considerada<br />

estilística, tendo em vista que é intencional e voluntária. O<br />

publicitário tira proveito da possibilidade de duplo sentido do termo<br />

“faixa” e constrói o seu texto jogando com os dois sentidos (faixa de<br />

pedestre e faixa de curativo) para atingir o interlocutor, afetando-o.<br />

A intertextualidade também é um recurso explorado nas propagandas.<br />

O professor pode selecionar vários textos publicitários que<br />

apresentem intertextualidade e pedir que os alunos a identifique.<br />

O texto do Greenpeace vale-se desse recurso para identificar<br />

um problema ambiental.


“Você não quer contar esta história para seus filhos, quer?”<br />

Greenpeace<br />

Fonte: www.greenpeace.org.br<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

753<br />

Nesse texto, há a relação intertextual com a conhecida história<br />

infantil: “Chapeuzinho Vermelho” e a intertextualidade é explícita,<br />

estabelecida por meio da imagem: uma criança, vestida com uma capa<br />

vermelha e levando uma cesta, passeia por uma floresta desmatada;<br />

e pelo texto: “Você não quer contar esta história para seus filhos,<br />

quer?”. Sugere-se, com o pronome “esta”, a existência de uma outra<br />

história, diferente dessa, a ser contada, ou seja, a história de Chapeuzinho<br />

Vermelho.<br />

Esse texto publicitário foi veiculado para promover a conscientização<br />

dos leitores de diversas revistas sobre problemas na relação<br />

entre o homem e o ambiente. O próprio título do texto é uma<br />

provocação. Assim, a intertextualidade é utilizada para sensibilizar e,<br />

consequentemente, seduzir o leitor para a adesão da causa.<br />

Questões que envolvem esse fator da textualidade requerem<br />

que o aluno assuma uma atitude crítica e reflexiva em relação às diferentes<br />

ideias relativas ao mesmo tema encontradas em um mesmo<br />

ou em diferentes textos, ou seja, ideias que se cruzam no interior dos<br />

textos lidos, ou aquelas encontradas em textos diferentes.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

754<br />

Atividades que relacionam texto verbal e texto não-verbal<br />

propiciam ao leitor relacionar informações expressas verbalmente<br />

com as imagens. Exigem que o leitor perceba os mínimos detalhes<br />

do texto visual para relaciona-los com a imagem como um todo e, a<br />

partir daí, extrair sentidos.<br />

Na atividade com o texto publicitário da marca Philco, o aluno<br />

pode ser levado, num primeiro momento, a identificar o contexto<br />

de um casamento, representado pelo bouquet de noiva, logo abaixo<br />

do texto publicitário.<br />

“O casamento perfeito: ela, impossível de tirar os olhos; ele, discreto como deve ser.<br />

Duetto Philco tela plana e DVD. Enfim juntos.”<br />

Philco<br />

Veja: 08/06/05<br />

Numa segunda análise, o aluno pode ser levado a identificar<br />

os referentes dos pronomes pessoais do caso reto, levando-se em<br />

consideração o contexto e os produtos anunciados: ela (a noiva - TV<br />

tela plana) e ele (o noivo – DVD). É uma questão de coesão referencial,<br />

que tem por objetivo mostrar ao aluno os elementos que constroem<br />

a articulação entre as diversas partes de um texto. Para que as<br />

ideias estejam bem relacionadas, também é preciso que estejam bem<br />

interligadas, bem “unidas” por meio de vocábulos que têm a finalidade<br />

de ligar ou retomar palavras, locuções, orações e períodos ou<br />

atribuir a marca da temporalidade.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

755<br />

Além dos recursos analisados, o professor pode aproveitar todos<br />

os textos publicitários utilizados em sala de aula para discutir<br />

com os alunos a ideologia implícita. Os textos publicitários fabricam<br />

uma imagem de mundo que provoca o leitor, levando-o a adquirir o<br />

produto. A não obtenção do produto pode representar para o consumidor<br />

a anulação social. Por meio das palavras, o receptor “descobre”<br />

o que lhe faltava, passando por um momento de “mudança”,<br />

embora logo após a compra sinta a frustração de permanecer insatisfeito.<br />

Se a compra levar a satisfação, o publicitário não conseguirá<br />

comprador para novos produtos.<br />

Essas são apenas algumas sugestões de como o professor pode<br />

explorar os textos publicitários nas aulas de língua materna. Concordamos<br />

com Antunes (2009, p. 206), quando diz:<br />

Não sei se seria sonhar muito. Mas acredito que, se desde o início,<br />

for dada aos alunos a oportunidade da leitura plena (do livro e do mundo)<br />

– aquela que desvenda, que revela, que lhes possibilita uma visão crítica<br />

do mundo e de si mesmos – se lhes for dada a oportunidade da leitura<br />

plena, repito, uma nova ordem de cidadãos poderá surgir e, dela, uma<br />

nova configuração de sociedade.<br />

4. Breves considerações finais<br />

Não existem fórmulas mágicas para o ensino de qualquer disciplina.<br />

Se não temos um caminho novo, precisamos encontrar um<br />

jeito novo de caminhar. O caminho pode ser o mesmo, mas se as estratégias<br />

e os objetivos forem repensados, podemos contribuir para a<br />

formação de leitores críticos.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola é possível.<br />

São Paulo: Parábola, 2009.<br />

CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In:<br />

MARI, H. et alii. Análise do discurso: fundamentos e práticas. Belo<br />

Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso – FALE/UFMG, 2001, p.<br />

23-37.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

756<br />

______. Análise do discurso: controvérsias e perspectivas. In:<br />

MARI, H. et alli. (Orgs.). Fundamentos e dimensões da análise do<br />

discurso. Belo Horizonte: Carol Borges – Núcleo de Análise do Discurso.<br />

Fale – UFMG, 1999, p. 27-43.<br />

______. Les conditions de compréhension du sens de discours. In:<br />

Anais do I Encontro Franco-Brasileiro de Análise do Discurso. Rio<br />

de Janeiro: UFRJ, 1995, pp. 9-16.<br />

KLEIMAN, Ângela B. Leitura: ensino e pesquisa. 2. ed. Campinas:<br />

Pontes, 2004.<br />

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Compreensão de texto: algumas reflexões.<br />

In: DIONÍSIO, Ângela Paiva; BEZERRA, Maria Auxiliadora<br />

(Orgs.). O livro didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro:<br />

Lucerna, 2001, p. 46-59.<br />

MENEZES, Gilda et alli. Como usar outras linguagens na sala de<br />

aula. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2003.<br />

MONNERAT, Rosane. A publicidade pelo avesso. Niterói: EDUFF,<br />

2003.<br />

PARÂMETROS Curriculares Nacionais: ensino médio: linguagens,<br />

códigos e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação, 1999.<br />

PARÂMETROS Curriculares Nacionais: Terceiro e quarto ciclos do<br />

ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: Ministério da Educação,<br />

1998.<br />

REBELLO, Ilana da Silva. O produto (marca) como garotopropaganda:<br />

as modalidades do ato delocutivo e a intertextualidade -<br />

uma leitura semiolinguística do texto publicitário escrito. Dissertação<br />

de Mestrado em Letras. Niterói, UFF, Instituto de Letras, 2005.<br />

______. VIEGAS, Ilana da Silva. Conteúdos de interpretar – a leitura<br />

como passaporte para a interação com o mundo. Tese de Doutorado<br />

em Letras. Niterói, UFF, Instituto de Letras, 2009.<br />

VARGAS, Suzana. Leitura: uma aprendizagem de prazer. 4. ed. Rio<br />

de Janeiro: José Olympio, 2000.


1. Introdução<br />

COMO FUNCIONA O DISCURSO<br />

DO GÊNERO DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA?<br />

Urbano Cavalcante Filho (IFBA/UFBA/UESC)<br />

urbanocavalcante@yahoo.com.br<br />

O ensino da língua materna ainda tem como característica o<br />

caráter normativo, prescritivo e conceitual, marcado por aulas classificatórias<br />

de nomenclaturas e categorias da gramática normativa,<br />

com ênfase nos estudos da ortografia e da sintaxe da língua portuguesa<br />

(daqui em diante LP).<br />

Na década de 70, e, sobretudo, a partir dos anos 80, com o<br />

surgimento das teorias linguísticas, a concepção do ensino da língua<br />

materna pautada no caráter normativo prescritivo e conceitual, marcado<br />

por aulas classificatórias de nomenclaturas e categorias da gramática<br />

tradicional, passou a ser contestada. Essas teorias postulam<br />

que o ensino e estudo da língua ultrapassam as formas linguísticas, e<br />

os interesses voltam para as relações entre essas formas, seu contexto<br />

de uso e suas condições de produção. Por isso que muitas críticas foram<br />

dirigidas ao ensino tradicional da língua materna. Duas das críticas<br />

merecem especial atenção. Uma delas diz respeito à excessiva<br />

valorização da gramática normativa dissociada da realidade linguística<br />

e discursiva dos alunos (tendo como consequência o preconceito<br />

contra as formas de oralidade e as variedades não padrão) e a outra<br />

se centra no uso do texto como pretexto para o tratamento de aspectos<br />

gramaticais.<br />

Portanto, quando se pensa no verdadeiro objeto de ensino da<br />

língua, tem-se que considerar os usos sociais que os falantes fazem<br />

dela, centrados na concepção sociointeracional da linguagem. Desse<br />

modo, o ensino da língua – antes conceitual, classificatório, prescritivista,<br />

gramaticalista, nomenclaturista, – passa a ser visto no uso e<br />

funcionamento da língua, enquanto sistema simbólico, situado num<br />

contexto sócio-histórico determinado.<br />

Toda essa discussão em torno da redefinição do objeto de ensino<br />

e estudo da língua portuguesa tem permitido surgir documentos


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

758<br />

orientativos oficiais, a exemplo dos já citados Parâmetros Curriculares<br />

Nacionais (PCNs), que apresentam orientações teóricometodológicas<br />

para o ensino da língua materna. O cerne das ideias<br />

dos PCNs fundamenta-se na teoria dos gêneros do discurso (BAKH-<br />

TIN, 1992), sejam eles orais, sejam escritos, permitindo um maior<br />

esclarecimento do seu funcionamento, o que é extremamente importante<br />

tanto para sua produção quanto para sua compreensão. Inferimos,<br />

com isso, que o trabalho com gêneros discursivos 1 , na escola, é<br />

uma excelente oportunidade para se lidar com a língua nos seus mais<br />

variados usos no dia-a-dia, pois nada do que fazemos linguisticamente<br />

está fora de ser um gênero.<br />

Dentre o conjunto dos gêneros tidos como potencialmente infinitos<br />

e mutáveis (KLEIMAN, 2005, p. 8), temos a divulgação científica,<br />

que, na agenda do dia, se coloca como um gênero discursivo<br />

que demanda estudos, na medida em que, hoje, ao se refletir sobre o<br />

papel da ciência tal como ela se constitui na atualidade, numa sociedade<br />

como a nossa, implica pensar também numa discussão que deve<br />

levar em conta não só a produção do conhecimento científico, mas<br />

também a sua transmissão e a sua reprodução.<br />

O presente trabalho objetiva apresentar as reflexões obtidas a<br />

partir de um trabalho desenvolvido nas aulas de língua materna nos<br />

cursos técnicos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia<br />

da Bahia (IFBA), Campus Valença. Os textos trabalhados nas aulas<br />

pertenciam ao gênero divulgação científica, constantes da Revista<br />

Galileu 2<br />

1 Há uma oscilação terminológica entre os termos gênero textual e gênero discursivo.<br />

São termos considerados equivalentes pelos autores que abordam o assunto. Nesse<br />

trabalho, portanto, optamos por utilizar a noção de gênero por esta está “associada à<br />

de discurso (gênero de ou do discurso) e a noção de tipo, à de textos (tipos textuais ou<br />

tipos de textos) e, consequentemente, a dimensão textual aparece subordinada à dimensão<br />

discursiva” (BRONCKART, 1999, p. 139).<br />

2 Os textos trabalhados foram reunidos da Revista Galileu, de periodicidade mensal,<br />

da Editora Globo. Os textos selecionados para exemplificação no presente artigo constam<br />

da edição nº 217, de agosto de 2009.


2. Sobre os gêneros discursivos: breve reflexão<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

759<br />

Desde Platão e Aristóteles, a noção de gênero discursivo vem<br />

sendo uma preocupação constante entre os estudiosos da linguagem,<br />

haja vista as várias classificações que têm aparecido ao longo dos<br />

tempos, sob os mais diferentes termos (gêneros textuais, tipos de discurso,<br />

tipos textuais, modos/modalidades de organização textual, espécies<br />

de texto e de discursos etc.) (BRANDÃO, 2003, p. 35). Dessa<br />

forma, essa questão do gênero foi preocupação primeira da poética e<br />

da retórica e não da linguística. Sobre isso Brandão (2003, p. 35) elenca<br />

duas razões: primeiro, porque a linguística, enquanto ciência<br />

específica da linguagem, é recente, e depois porque a preocupação<br />

inicial foi com as unidades menores que o texto (a exemplo do fonema,<br />

da palavra, da frase). Na medida em que ela passa a se preocupar<br />

com o texto, começa a pensar na questão da classificação. Essa<br />

preocupação se torna crucial quando ela deixa de trabalhar somente<br />

com textos literários, mas se volta também para o funcionamento de<br />

qualquer tipo de texto.<br />

Em seus escritos, o linguista russo Mikhail Bakhtin (1992)<br />

focaliza sua reflexão no caráter social dos fatos de linguagem. Nessa<br />

perspectiva, o enunciado é encarado como produto da interação verbal,<br />

determinado tanto por uma situação material concreta como pelo<br />

contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida<br />

de uma dada comunidade linguística. Dessa forma, o autor insiste<br />

sobre a diversidade das atividades sociais que são exercidas pelos diversos<br />

grupos e, consequentemente, sobre a multiplicidade das produções<br />

de linguagem ligadas a essas atividades. Isso nos permite dizer<br />

que é impossível a comunicação verbal a não ser por algum gênero,<br />

assim como também é impossível se comunicar a não ser por algum<br />

texto. Dito de outra maneira, a comunicação verbal só é possível<br />

por algum gênero discursivo 3 . Essa é uma posição defendida por<br />

Bakhtin (1992), ao tratar a língua em seus aspectos discursivos e enunciativos,<br />

e não em suas peculiaridades formais e estruturais. Com<br />

essa noção, Bakhtin ratifica a concepção de encarar a linguagem como<br />

um fenômeno social, histórico e ideológico, definindo um enunciado<br />

como uma verdadeira unidade de comunicação verbal.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

760<br />

Entendemos, portanto, que a riqueza e diversidade das produções<br />

de linguagem, neste universo, são infinitas, mas organizadas.<br />

Nas palavras de Bakhtin (1992, p. 279):<br />

A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a<br />

variedade virtual da atividade humana é inesgotável e cada esfera dessa<br />

atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se<br />

e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve<br />

e fica mais complexa.<br />

Dessa forma, Bakhtin estende os limites da competência linguística<br />

dos sujeitos para além da frase na direção dos “tipos relativamente<br />

estáveis de enunciados” e do que ele chama “a sintaxe das<br />

grandes massas verbais”, isto é, os gêneros discursivos, com os quais<br />

temos contato e vivemos imersos desde o início de nossas atividades<br />

de linguagem.<br />

Considerando sob este prisma, os gêneros discursivos não são<br />

apenas um conjunto de propriedades estruturais, uma unidade composicional<br />

com características e procedimentos formais, mas também<br />

são concomitantemente produtos da atividade humana, refletida a<br />

partir de condições específicas e de finalidades tanto temática quanto<br />

intuitiva, estilística de cada sujeito social. Com isso, não pretendemos<br />

secundarizar os aspectos formais, mas, e essa é uma posição defendida<br />

por Maingueneau (1996), que é preciso articular, num movimento<br />

dialético contraditório, o “como dizer” ao conjunto de elementos<br />

enunciativos, porque cada gênero se associa a épocas, a lugares<br />

específicos e a um ritual apropriado.<br />

Na atividade social, em cada esfera, em que os indivíduos estão<br />

inseridos, eles utilizam a língua de acordo com os gêneros de<br />

discurso específicos. Considerando o fato de que os atos sociais vivenciados<br />

pelos grupos são diversos, consequentemente a produção<br />

de linguagem também o será.<br />

Conforme dito a respeito da riqueza e variedade dos gêneros<br />

produzidos pelos indivíduos nas situações sociais, esses gêneros, nas<br />

palavras de Bakhtin (1992, p. 279):<br />

As condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas<br />

não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela<br />

seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos<br />

e gramaticais – mas também, e sobretudo, por sua estrutura composicional.<br />

Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção compo-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

761<br />

sicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles<br />

são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação.<br />

Com base nesse postulado bakhtiniano, o gênero se caracteriza,<br />

então, por esses três elementos: o conteúdo temático, o estilo verbal<br />

e a estrutura composicional.<br />

Diante dessa contextualização introdutória, discutir a divulgação<br />

científica, enquanto gênero do discurso, na acepção bakhtiniana,<br />

é também evidenciar que há um jogo de regras, que controlam o funcionamento<br />

e a circulação dos discursos sociais. Por isso que não dizemos<br />

o que queremos, onde e quando queremos, mas os discursos<br />

são organizados socialmente, inserem-se numa ordem enunciativa e<br />

são regulados, moldados pelos gêneros que os constituem. Em outras<br />

palavras, cada esfera da comunicação social apresenta “tipos relativamente<br />

estáveis de enunciados”.<br />

3. Sobre o gênero divulgação científica<br />

Podemos caracterizar a divulgação científica, considerada<br />

como um processo de difusão de pesquisas e teorias em âmbito geral,<br />

como a reenunciação de um discurso-fonte (D1) elaborado por “especialistas”<br />

e destinado a seus pares em um discurso segundo (D2)<br />

reformulado por um divulgador e destinado ao “grande público”.<br />

Na concepção de Authier-Revuz (1998, p. 107), o texto de<br />

DC é uma associação do discurso científico com o discurso cotidiano,<br />

sendo que este último favorece a leitura por parte de um número<br />

maior de leitores. A autora conceitua divulgação científica como:<br />

uma atividade de disseminação, em direção ao exterior, de conhecimentos<br />

científicos já produzidos e em circulação no interior de uma comunidade<br />

mais restrita; essa disseminação é feita fora da instituição escolaruniversitária,<br />

não visa à formação de especialistas, isto é, não tem por<br />

objetivo estender a comunidade de origem.<br />

Constitui, portanto, o texto de DC a interseção entre dois gêneros<br />

discursivos: o discurso da ciência e o discurso do jornalismo,<br />

este último visto como o discurso de transmissão de informação. Para<br />

Campos (s/d, p. 1), esse gênero “é considerado como realização<br />

enunciativa marcada pela ação de quem é colocado na posição de um<br />

ao falar pelo outro (o especialista) para o outro (não especialista)”


(grifos do autor).<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

762<br />

Noutras palavras, é como se o texto de DC operasse uma espécie<br />

de tradução intralingual, na medida em que busca uma equivalência<br />

entre o jargão científico e o jornalístico. Assim, o gênero em<br />

discussão compreende um texto reformulado, o qual pode ter sido originado<br />

a partir de um artigo ou relatório acadêmico-científico, de<br />

uma entrevista ou até mesmo de uma tradução de um texto em língua<br />

estrangeira, direcionado para a população distanciada do vocabulário<br />

e das práticas científicas, mas que deseja e necessita do conhecimento<br />

das ciências.<br />

Entendemos, com isso, que a DC é uma prática eminentemente<br />

heterogênea na medida em que incorpora no seu fio discursivo<br />

tanto elementos provenientes daquele que lhe serve de fonte – o discurso<br />

científico – quando daquele que pretende atingir – o discurso<br />

jornalístico. É, portanto, no limiar entre uma e outra prática discursiva,<br />

no espaço do interdiscurso, que a atividade de DC se desenvolve.<br />

O diálogo, o contato com o seu exterior discursivo é, aqui, o elemento<br />

chave na compreensão do que vem a ser este gênero discursivo.<br />

Segundo Campos (2006), o gênero de DC exige socialmente a<br />

materialização de uma relação dialógica que pressupõe a posição de<br />

um que delineia uma realização de linguagem determinada pelo outro<br />

– o especialista – tendo em vista o não especialista na posição alternativa<br />

daquele que tem o lugar destinatário de para o outro. Nesse<br />

sentido, assumir a posição de um, como divulgador, é assumir uma<br />

dupla exterioridade e uma dupla excedência com o acabamento e a<br />

completude provisórios, associados a tal duplicidade. De forma geral,<br />

podemos afirmar, pautados nas reflexões de Leibruder (2003)<br />

que o texto de DC, na sua função de vulgarização científica, contrapõe-se<br />

ao hermetismo próprio do discurso científico, buscando propiciar<br />

ao leitor leigo (não especialista) o contato com o universo da<br />

ciência através de uma linguagem que lhe seja familiar.<br />

3.1. DC: Discurso e funcionamento<br />

Conscientes de que a “língua” dos cientistas é considerada<br />

uma “língua estrangeira” para o grande público, concordamos que<br />

há, no discurso de divulgação, uma prática de reformulação de um


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

763<br />

discurso-fonte (D1) por um discurso segundo (D2) - em função de<br />

um leitor, “receptor” diferente daquele a quem se endereçava o discurso<br />

científico.<br />

Pautados na ideia de que o discurso de DC é considerado um<br />

lugar privilegiado de reformulação explícita do discurso, os discursos<br />

de DC distinguem-se dos demais “gêneros” de reformulação exatamente<br />

pelo quadro da estrutura enunciativa - o D1 não é apenas<br />

fonte, mas, sobretudo, o objeto mencionado de D2. Em tais discursos,<br />

funciona uma dupla estrutura enunciativa, na qual duas situações,<br />

dois cenários enunciativos ficam interligados: por um lado, os<br />

interlocutores (cientistas e seus pares) e o quadro enunciativo de D1<br />

e, por outro, os interlocutores (divulgador e público em geral) e o<br />

quadro enunciativo de D2.<br />

No nível do fio do discurso, o discurso da DC representa uma<br />

ação de colocar em contato dois discursos, uma vez que esse tipo de<br />

discurso é constituído pelo discurso científico e pelo discurso cotidiano,<br />

no próprio desenrolar da atividade por meio de um fio heterogêneo.<br />

É um trabalho pelo e no discurso.<br />

3.1.1. Leitor e autor-modelo de DC<br />

O leitor, enquanto ingrediente do processo de produção e recepção<br />

do texto se diferencia do leitor empírico, já que é uma entidade<br />

ideal que o texto prevê como colaborador e que também procura<br />

criá-lo. A quem Eco (1979, p. 17) denomina de leitor-modelo:<br />

O leitor-modelo (...) não é o leitor empírico. O leitor empírico é você,<br />

todos nós, quando lemos um texto. Os leitores empíricos podem ler<br />

de varias formas, e não existe lei que determine como devem ler, porque<br />

em geral utilizam o texto como receptáculo de suas próprias paixões.<br />

Maingueneau (1996, p. 50) compartilha com a definição de<br />

Eco quando afirma que o destinatário da narrativa, e aqui nós deslocamos<br />

a reflexão para o destinatário dos textos de DC, não são leitores<br />

reais, mas certa figura de leitor construída pelo texto através da<br />

enunciação do autor.<br />

É importante o estabelecimento dessa distinção, quando consideramos<br />

a posição de leitura assumida pelo leitor. A primeira posição<br />

caracteriza o leitor de primeiro nível que ler querendo saber o fi-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

764<br />

nal do texto, sua conclusão e a segunda descreve a movimentação<br />

que o leitor de segundo nível deve fazer dentro do texto. Nesse sentido<br />

o leitor-modelo de segundo nível é “um conjunto de instruções<br />

textuais, apresentadas pela manifestação linear do texto, precisamente<br />

como um conjunto de frases ou de outros sinais” (ECO, 1994, p.<br />

22).<br />

3.1.2. Heterogeneidade discursiva da divulgação científica<br />

É com base na teoria bakhtiana que fundamentamos nossa<br />

discussão, já que esta aponta para a presença do Outro em todos os<br />

discursos. Assim sendo, o discurso de DC está permeado pelas palavras<br />

alheias.<br />

Nos estudos linguísticos pós-bakhtinianos, Authier-Revuz elaborou<br />

uma distinção no campo da heterogeneidade discursiva: heterogeneidade<br />

mostrada e heterogeneidade constitutiva. Authier-<br />

Revuz (1990) considera a heterogeneidade constitutiva como “todo<br />

discurso é constitutivamente atravessado pelos ‘outros discursos’ e<br />

pelo ‘discurso do Outro’”. Já a heterogeneidade mostrada apresenta<br />

dois tipos de enunciados: aquele com marcas explícitas e aqueles cujas<br />

marcas não são mostradas.<br />

Nos dizeres, verificamos a presença e os valores das vezes alheias.<br />

O discurso direto, por exemplo, indica outra posição, outro<br />

significado, outro valor axiológico, advindos do discurso do outro. O<br />

discurso direto vem separado da fala do autor por meio de aspas,<br />

dois pontos, travessões, itálico e verbos discendi, por exemplo.<br />

“Ela é feita para resistir a impactos muito fortes e a temperaturas altíssimas.<br />

Não há material leve que possa suportar essas condições”, afirma<br />

o coordenador do curso de engenharia aeronáutica da USP de São<br />

Carlos, Fernando Catalano.<br />

“Apesar de seus espinhos curtos e pontiagudos serem capazes de ferir<br />

e afastar seus agressores, a região da genitália e a região da barriga<br />

dos porcos-espinhos são livres dessa proteção ou possuem pelos menos<br />

rígidos (os espinhos são pelos modificados)”, diz Luiz Pires, diretor do<br />

Zoológico de Bauru, no interior de São Paulo.<br />

Como pôde ser visto, é estratégia linguístico-discursiva do autor<br />

do texto marcar esse discurso do outro como forma de provar sua<br />

neutralidade diante do que está sendo dito, ou mar a origem do dis-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

765<br />

curso ou o direito autoral. Essa presença do discurso relatado também<br />

se presta para, mesmo sendo destacado no discurso (por aspas,<br />

por exemplo), marcar o argumento de autoridade. Assim, temos como<br />

efeito da utilização desse recurso, uma autenticidade, evidenciando<br />

que as palavras foram realmente proferidos pelo seu autor.<br />

Com análise dessas categorias no discurso da divulgação científica,<br />

pretendemos perceber como esse discurso (re)atualiza (se<br />

podemos dizer assim) o discurso da ciência. Assim, ao comentar o<br />

discurso científico, o divulgador (re)atualiza-o em outra ordem, a do<br />

senso comum, através de um gesto de interpretação.<br />

4. O texto de DC em sala de aula: implicações pedagógicas<br />

Assim afirmam os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRA-<br />

SIL, 1998, p. 20-21):<br />

Interagir pela linguagem significa realizar uma atividade discursiva:<br />

dizer alguma coisa a alguém, de uma determinada forma, num determinado<br />

contexto histórico e em determinadas circunstâncias de interlocução.<br />

Isso significa que as escolhas feitas ao produzir um discurso não são<br />

aleatórias - ainda que possam ser inconscientes -, mas decorrentes das<br />

condições em que o discurso é realizado. Quer dizer: quando um sujeito<br />

interage verbalmente com outro, o discurso se organiza a partir das finalidades<br />

e intenções do locutor, dos conhecimentos que acredita que o interlocutor<br />

possua sobre o assunto, do que supõe serem suas opiniões e<br />

convicções, simpatias e antipatias, da relação de afinidade e do grau de<br />

familiaridade que têm, da posição social e hierárquica que ocupam. Isso<br />

tudo determina as escolhas do gênero no qual o discurso se realizará, dos<br />

procedimentos de estruturação e da seleção de recursos linguísticos.<br />

Com esse posicionamento dos PCNs, justifico o caráter heterogêneo,<br />

dinâmico e não transparente da linguagem. Dessa forma, se<br />

a pretensão da escola é a formação de sujeitos críticos e leitores proficientes<br />

dos mais variados gêneros discursivos, é preciso, então, que<br />

ocorra um trabalho que se volte para essas questões da linguagem, no<br />

intuito de perceber sua dinâmica, seu funcionamento.<br />

Concordamos com Bezerra (2005), quando afirma reconhecer<br />

que a escola sempre trabalhou com gêneros, até porque, na década de<br />

80, com a divulgação de algumas teorias linguísticas privilegiando o<br />

estudo do texto, os livros didáticos diversificaram e ampliaram ainda<br />

mais a sua seleção textual, destacando-se a presença de textos jorna-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

766<br />

lísticos (notícias, reportagens, entrevistas, propagandas etc.). No entanto,<br />

os seus ensinamentos eram restritos à observação e análise de<br />

aspectos estruturais ou formais dos textos. Ou seja, os textos eram<br />

usados como pretexto para o estudo da metalinguagem e classificação<br />

gramatical (identificação de verbos, retirada de adjetivos, categorização<br />

dos substantivos e pronomes etc.).<br />

Portanto, ao trazer o gênero discursivo DC para sala de aula<br />

de língua materna, acreditamos que alunos e professores, ao lerem e<br />

analisarem criticamente o seu discurso, podem perceber os delineamentos<br />

sociais que levaram à construção dos sentidos discursivos.<br />

Podem, assim, verificar como as práticas discursivas se processam<br />

numa dinâmica interacional, na qual os sentidos se constroem pela<br />

negociação entre os sujeitos e como esses têm suas ações motivadas<br />

ideologicamente.<br />

Além disso, o trabalho com a língua toma uma dimensão outra<br />

e mais significativa se este for desenvolvido partindo de uma<br />

perspectiva que trate das “características discursivas” (que aqui não<br />

abordamos de forma tão aprofundada), mas possível perfeitamente<br />

para a sala de aula e minimamente suficiente para o trabalho pedagógico.<br />

Assim, a título de exemplificação, vejo as questões abaixo<br />

como indagações que, de maneira geral, podem permitir que nossos<br />

alunos entendam as condições de produção e circulação desse gênero:<br />

a) Quem escreve (em geral) esse gênero discursivo?, b) Com que<br />

propósito?, c) Onde?, d) Quando?, e) Como?, f) Com base em que<br />

informações?, g) Como o enunciador obtém as informações?, h)<br />

Como o enunciador transmite essas informações?, i) Que estratégias<br />

o enunciador utiliza para transmitir as informações?, j) Que estratégias<br />

o leitor precisa para ler os textos de divulgação científica?, m)<br />

Para quem é dirigido esse gênero?, n) Por que o faz?, o) Onde o encontra?,<br />

p) Em que condições esse gênero pode ser produzido e pode<br />

circular na nossa sociedade?<br />

Dessa forma, possibilitar o trabalho com esse gênero textual é<br />

perceber que a língua não acontece artificialmente, com aulas “decorativas”<br />

de nomenclatura gramatical (metalinguagem). Pelo contrário,<br />

esse trabalho permitirá ao aluno o desenvolvimento de sua competência<br />

discursiva. Assim dizem os Parâmetros Curriculares Nacionais<br />

(BRASIL, 1998, p. 23):


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

767<br />

Nessa perspectiva, não é possível tomar como unidades básicas do<br />

processo de ensino as que decorrem de uma análise de estratos: letras/fonemas,<br />

sílabas, palavras, sintagmas, frases que, descontextualizados,<br />

são normalmente tomados como exemplos de estudo gramatical e<br />

pouco têm a ver com a competência discursiva. Dentro desse marco, a<br />

unidade básica do ensino só pode ser o texto.<br />

O que defendemos aqui é que é importante que os alunos saibam<br />

que, ao lerem o texto, não basta o domínio da sintaxe, a relação<br />

de elementos e a semântica. O significado dos signos é insuficiente,<br />

por si só, para a interpretação dos textos, daí a necessidade de os professores<br />

terem acesso a outras teorias, que versam sobre a linguagem<br />

para redimensionar seu trabalho na formação de leitores críticos de<br />

textos, sejam esses de qualquer natureza.<br />

E qual o perfil do leitor crítico que a escola pretende formar?<br />

Buscamos a resposta nas reflexões de Brandão (2001, p. 18):<br />

a) o leitor crítico não é apenas um decifrador de sinais, um decifrador<br />

da palavra (...) o leitor busca uma compreensão ativa (e não passiva)<br />

do texto, dialogando com ele, recriando sentidos implícitos, fazendo inferências,<br />

estabelecendo relações e mobilizando seus conhecimentos para<br />

dar coerência às possibilidades significativas do texto; (...) b) o leitor crítico<br />

é cooperativo, na medida em que deve ser capaz de construir o universo<br />

textual a partir das indicações linguísticas e discursivo-pragmáticas<br />

que lhe são fornecidas; c) o leitor crítico é produtivo, na medida em que<br />

trabalha o texto e se institui como um co-enunciador (...); d) o leitor crítico<br />

é, enfim, sujeito do processo de ler e não objeto, receptáculo de informações.<br />

É um sujeito que é capaz de estender o ato de ler para além<br />

da leitura da palavra, tendo no seu horizonte uma leitura de mundo (no<br />

sentido paulo-freiriano) que o leve, que o habilite a inteligir o contexto<br />

social, histórico que o cerca e nele atuar com cidadão.<br />

Dessa forma, nos textos de DC são perceptíveis as relações<br />

entre linguagem e sociedade, exigindo de nós, leitores, estratégias<br />

específicas para a realização de uma leitura crítica e eficiente desses<br />

textos. As reflexões desse estudo sinalizam para a possibilidade de<br />

um excelente trabalho de leitura nas aulas de língua materna, com o<br />

intuito de desenvolver e aprimorar a competência leitora de nossos<br />

alunos dos mais diversos gêneros discursivos disponíveis em nossas<br />

relações histórico-sociais.


5. Considerações finais<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

768<br />

Os reflexos da evolução a respeito dos estudos referentes aos<br />

gêneros discursivos (antecipados por Bakhtin há várias décadas) e as<br />

relações entre linguagem e sociedade são percebidos nos textos de<br />

DC, os quais constituem um gênero que mescla diferentes domínios<br />

discursos, ou seja, discursos advindos de diferentes áreas das ciências<br />

com o discurso jornalístico ou, ainda, com o discurso do cotidiano,<br />

com a finalidade de adaptar-se aos interesses e às necessidades<br />

sócio-históricas dos indivíduos.<br />

Considerando as palavras de Motta-Roth (2006, p. 145):<br />

A sala de aula de línguas talvez seja o melhor lugar para analisar,<br />

criticar e/ou avaliar as várias instâncias de interação humana de culturas<br />

localizadas, nas quais a linguagem é usada para mediar práticas sociais.<br />

Acredito que ensinar línguas é ensinar alguém a ser um analista do discurso,<br />

portanto creio que as discussões em sala de aula devem enfocar as<br />

práticas linguageiras em associação a ações específicas na sociedade.<br />

Somente a prática pedagógica nesses termos pode contribuir para o desenvolvimento,<br />

no aluno e no professor, da consciência crítica dos aspectos<br />

contextuais e textuais do uso a linguagem e, portanto, das competências<br />

linguísticas e discursivas, de modo a empoderar a todos nós que participamos<br />

da vida em sociedade.<br />

Dessa forma, o trabalho didático-pedagógico de leitura deve<br />

levar os alunos a perceberem que a composição dos gêneros, levando<br />

em conta todos os seus aspectos (verbais, não verbais, informações<br />

apresentadas ou omitidas, destaque dado a algumas mais do que às<br />

outras) é planejada de acordo com sua função social e seus propósitos<br />

enunciativos.<br />

Finalmente, esclarecemos que, trabalhar com os gêneros que<br />

os alunos têm contato no dia-a-dia não significa dizer que só estes<br />

sejam importantes. Pelo contrário, acredito que cabe à escola também<br />

aprimorar ou fazer conhecidos gêneros que, normalmente, não<br />

são do âmbito da experiência cotidiana dos alunos, visando ampliar<br />

seu universo de conhecimento. Julgamos interessante, pois, que as<br />

aulas possam levar o aluno a entender o funcionamento textual em<br />

sua produção de sentido; que apenas reconheça ou identifique os já<br />

existentes, mas também esteja apto a integrar, na sua prática de produção<br />

e recepção, novas modalidades discursivas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

769<br />

AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não coincidências do<br />

dizer. Campinas: UNICAMP, 1998.<br />

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s).<br />

Cadernos de estudos linguísticos. Campinas: UNICAMP, n. 19, p.<br />

25-42, jul.; dez. 1990.<br />

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ___. Estética da<br />

comunicação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.<br />

BEZERRA, Maria Auxiliadora. Ensino de língua e contextos teórico-metodológicos.<br />

In: DIONISIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna<br />

Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora. (Orgs.). Gêneros textuais &<br />

ensino. 4. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005, p. 37-46.<br />

BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Gêneros do discurso e formas<br />

de textualização. In: MACEDO, Joselice; ROCHA, Maria José<br />

Campos; SANTANA NETO, João Antônio de. Discursos em análise.<br />

Salvador: Universidade Católica do Salvador. Instituto de Letras,<br />

2003, p. 35-51.<br />

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares<br />

nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua<br />

portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.<br />

BRONCKART, Jean-Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos.<br />

São Paulo: EDUC, 1999.<br />

CAMPOS, Edson Nascimento. Gênero, discurso, persuasão e gramática.<br />

2006 (Inédito).<br />

CAVALCANTE FILHO, Urbano. A propaganda é a alma do negócio?<br />

Uma proposta linguístico-metodológica de trabalho com o texto<br />

publicitário nas aulas de língua materna. Ilhéus: UESC, 2008.<br />

ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Trad. de Hildegard<br />

Feist. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.<br />

______. Lector in fabula: a cooperação interpretativa no texto literário.<br />

Lisboa: Presença, 1979.<br />

LEIBRUDER, Ana Paula. O discurso de divulgação científica. In:<br />

BRANDÃO, Helena Nagamine (Coord.). Gêneros do discurso na


escola. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2003.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

770<br />

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em analise do discurso.<br />

2. ed. Trad. Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1996.<br />

MOTTA-ROTH, Désirée. Questões de metodologia em análise de<br />

gêneros. In: KARWOSKI, Acir Mário; GAYDECZKA, Beatriz;<br />

BRITO, Karim Siebeneicher. (Orgs.). Gêneros textuais: reflexões e<br />

ensino. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006, p. 145-163.<br />

SÁNCHEZ MORA, A. M. S. A divulgação da ciência como literatura.<br />

14. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.


COMO SE PADECE NO PARAÍSO<br />

REPRESENTAÇÃO DA FIGURA MATERNA<br />

EM TRÊS FALAS<br />

1. Considerações Iniciais<br />

Lucineide Lima de Paulo (UFF; IFRJ)<br />

lucineide.paulo@ifrj.edu.br<br />

Os sujeitos, na interação, empregam a linguagem com diferentes<br />

intenções. Frequentemente, o objetivo é comunicar, ao outro,<br />

fatos vivenciados. Nessa tentativa de compartilhar acontecimentos,<br />

são narradas histórias que, em geral, apresentam traços comuns, isto<br />

é, elementos que a tornam mais ou menos prototípicas (por exemplo,<br />

uma complicação, um clímax etc.). Além disso, as narrativas permitem<br />

ao sujeito significar o mundo em que vive, caracterizando-o ou<br />

apenas nomeando-o de forma que, ao relatar, expresse sua visão sobre<br />

dado ponto. Essas maneiras de expressão constituem traços culturais<br />

que funcionam como uma forma de se reconhecer pertencente<br />

a um grupo determinado. Não se pode esquecer que, comumente, tais<br />

características são definidas por oposição às características de outros<br />

grupos sociais, como se se pudesse declarar: “sou a e ajo da forma a<br />

porque não sou do grupo b, onde se age da maneira b”. A questão relevante<br />

nessa classificação é evitar-se o estigma e o julgamento por<br />

meio das oposições positivo x negativo.<br />

Por isso, buscamos neste trabalho discutir a construção das<br />

identidades maternas em três mulheres com cerca de 50 anos de idade,<br />

indagando a elas sobre o significado de ser mãe e incentivando-as<br />

a narrar como foi o parto do primeiro filho. Buscamos, com isso, analisar<br />

as falas para distinguir como construíram suas próprias identidades<br />

de mãe e como se manifestam em relação ao serviço médico<br />

prestado no parto do primeiro filho. Assim, distanciadas temporalmente<br />

do acontecimento narrado, testamos a idealização do momento,<br />

cujos pontos negativos presumíamos ver apagados, mas que na<br />

verdade foram mencionados com ênfase. Além disso, comprovamos<br />

o que Labov já verificara: ao contar experiências pessoais, as infor-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

772<br />

mantes se envolvem emocionalmente e passam a controlar menos a<br />

fala, sendo, portanto, mais espontâneas.<br />

2. Narrativa – um enfoque sociointeracionista<br />

Há uma maneira muito comum de se empregar a linguagem<br />

para interagir: contando histórias. Por meio da narrativa, o ser humano<br />

é capaz de significar o mundo em que vive, suas experiências,<br />

a si próprio. Contam-se histórias com diferentes finalidades, como<br />

informar, divertir, argumentar, expressar sentimentos. Espera-se, entretanto,<br />

que tenham certo efeito de suspense ou surpresa e um fechamento<br />

qualquer (FINNA, 2009, p. 120). Isso, grosso modo, define<br />

a narrativa.<br />

3. Narrativas<br />

Ao narrar, o indivíduo organiza acontecimentos passados, indicando<br />

uma sequência, temporal ou causal. Essa, aliás, é a característica<br />

básica para um texto ser assim considerado: apresentar ordem<br />

temporal ou sequencialidade.<br />

A forma narrativa seria, assim, uma forma de prática social estruturadora<br />

não só do discurso, mas também das relações sociais, constituindo-se<br />

em um mecanismo rotineiro de intelecção – socialmente aceitável<br />

e respondendo a intenções, audiências e contextos específicos – sobre<br />

quem somos, sobre quem são os outros e sobre o que nós e eles fazemos<br />

(FABRÍCIO; BASTOS, 2009, p. 42).<br />

Starosky (2009) retoma a clássica proposta de Labov (1972,<br />

p. 354-398) para explicar a constituição da narrativa. Haveria uma<br />

previsibilidade quanto às partes fundamentais (ou ao menos importantes)<br />

para se tomar um texto como uma narrativa canônica:<br />

Resumo:<br />

trecho no qual há uma síntese do tema, funcionando como<br />

uma apresentação, uma introdução da história;<br />

Orientação:<br />

fragmento no qual há uma contextualização, isto é, a localiza-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

773<br />

ção espacial e temporal da história, além das personagens envolvidas<br />

e a própria situação;<br />

Ação complicadora:<br />

orações nas quais se encontra o clímax;<br />

Avaliação:<br />

comentários extras nos quais são descritos os estados psicológicos<br />

das personagens e, também, notas explicativas ou comparativas<br />

por parte do narrador. Na avaliação, pode estar explicitado<br />

o objetivo da história;<br />

Resultado ou resolução:<br />

apresentação do final da história, de forma que a tensão criada<br />

na ação complicadora se desfaça ou reduza;<br />

Coda:<br />

parte em que se anuncia o fim da história, por exemplo, com<br />

um pequeno resumo, de forma que se faça uma ligação da<br />

narrativa com o momento presente.<br />

É importante ressaltar que essa ordem não é fixa e que nem<br />

todos os elementos são imprescindíveis. Para Labov (apud STA-<br />

ROCKY, 2009, p. 103), apenas a ação complicadora é essencial, já<br />

que definiria o caráter narrativo de um texto. Nas palavras de Finna<br />

(2009, p. 118), essa ação complicadora constitui-se de um tipo de<br />

ruptura ou distúrbio no decorrer normal dos eventos, o que provocará<br />

uma reação ou uma tentativa de reajuste. A autora também menciona<br />

que nas histórias prototípicas está presente um objetivo convergente,<br />

baseada na interpretação do narrador seja quanto às personagens, seja<br />

quanto a eventos, ou mesmo a estados. Em outras palavras, ao se<br />

contar uma história, deve-se ter um ponto, um motivo para reproduzi-la<br />

– ao qual se deve conceder destaque.<br />

A estrutura narrativa, portanto, é composta por elementos<br />

fundamentais e por outros apenas acessórios. Poder-se-ia formular<br />

uma proposta simplificada do modelo de narrativa de Labov da seguinte<br />

forma (FINNA, 2009, p. 121)<br />

a. Resumo: essa história é sobre o quê?<br />

b. Orientação: onde e quando?


c. Ação complicadora: e então... O que aconteceu?<br />

d. Resolução: e... Como terminou?<br />

e. Coda: como isso é relevante para o aqui e agora?<br />

f. Avaliação: e daí?<br />

4. Identidades nas Narrativas<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

774<br />

Narrar envolve diversos aspectos além de uma história a ser<br />

contada: há a manifestação de uma postura, de uma forma de ver o<br />

mundo, de como se posicionar diante do outro e de si mesmo. A língua,<br />

por si só, já é reveladora de como as pessoas encaram conflitos<br />

e contradições próprias do sistema sócio-político, lembra Minayo<br />

(2008). As narrativas, portanto, não fugiriam à regra: manifestam os<br />

sujeitos e suas identidades. Os narradores constroem uma variedade<br />

de sentidos, articulando-os: por meio desses sentidos, manifestam a<br />

si e suas práticas sociais. Assim, seus valores culturais e julgamentos<br />

estarão presentes, explícita ou implicitamente.<br />

Já houve a crença de que a identidade de um indivíduo poderia<br />

ser determinada, descrita sem falhas. Essa era uma visão que tomava<br />

o sujeito como alguém único e livre para escolher. Entretanto,<br />

reconhece-se atualmente que o sujeito manifesta diferentes identidades,<br />

uma vez que, nos diferentes momentos em que interage, está assumindo<br />

diversas posições de sujeito, isto é, não se comporta como<br />

um ser imutável, mas é instável – apesar de estar dentro de uma previsibilidade.<br />

Por isso, o termo identidade já está marcado com o traço do<br />

pré-configurado, invariável, permanente – diferentemente dos sujeitos<br />

na realidade. Falar em identidade equivale a crer que o indivíduo<br />

se constitui de uma essência imutável. Assim, sugere-se o uso do<br />

termo identidades, que assinala o caráter múltiplo, plural dos sujeitos,<br />

os quais teriam à disposição algumas “posições de sujeito” com<br />

as quais se movimentariam em sociedade, ou o termo identificação,<br />

denotador de um processo contínuo de construção do sujeito.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

775<br />

Essa relação entre práticas sociais e narrativa se dá por meio<br />

de três fatores: estilos diferentes que deixam perceptíveis os recursos<br />

narrativos mais comuns, reelaboração dos papéis sociais e negociação<br />

dos sentidos (baseando-se em crenças, valores etc.).<br />

Isso ocorre porque o sujeito sempre apresenta traços culturais<br />

em sua postura, ainda que inconscientemente. Em outras palavras:<br />

um sujeito é capaz de revelar o comportamento social do grupo a que<br />

pertence, representando-o.<br />

Nas palavras de Woodward (2008, p. 17):<br />

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos<br />

por meio dos quais os significados são produzidos, posicionandonos<br />

como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações<br />

que damos sentido à nossa existência e àquilo que somos.<br />

Além disso tudo, não se pode esquecer que a identidade é parte<br />

de um composto: ela não se constitui sozinha, mas somente a partir<br />

da diferença. O sujeito categoriza, classifica, etiqueta um elemento<br />

a partir do que ele é, mas também a partir do que ele não é.<br />

5. Leitura das identidades latentes nas narrativas<br />

É possível distinguir um sujeito com traços bem delineados<br />

por trás do narrador. Isso se dá porque, ao construir a história, o narrador<br />

deixa transparecer seu sistema de valores, sua visão de mundo,<br />

sua forma de se relacionar com o mundo e com o outro, já que emprega<br />

uma espécie de “filtro cultural e afetivo”.<br />

Os falantes são, em geral, bons narradores e dominam estratégias<br />

que elevam o suspense, ou criam expectativa, prendendo a atenção<br />

do ouvinte. Um desses recursos é o emprego do discurso relatado.<br />

Haveria um efeito de realce ao provocar a suspensão das ações<br />

da história. Isso revelaria a performance do narrador, isto é, como o<br />

narrador conta a história, quais suas técnicas e meios de envolver o<br />

ouvinte com seu relato.<br />

Dessa forma, alguns narradores seriam portadores de um “estilo<br />

de alto envolvimento” (TANNEN, 1989 apud BASTOS, 2008, p.<br />

102), isto é, empregariam recursos (figuras de linguagem, imagens,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

776<br />

repetições, rimas, diálogos, padrões rítmicos etc.) que tornariam suas<br />

narrativas atraentes, prendendo a atenção dos ouvintes, tal qual uma<br />

Sherazade.<br />

6. Metodologia: leitura de textos em Análise da Conversa<br />

6.1. As narrativas colhidas<br />

Para proceder à análise, realizamos minientrevistas com três<br />

falantes, no mês de agosto de 2009. Seguem as descrições (apenas<br />

uma letra identificará as entrevistadas):<br />

1. A.: 52 anos, casada, dona-de-casa, nunca trabalhou fora, nasceu<br />

no interior do estado do Pará e mudou-se para o estado do<br />

Rio de Janeiro em 1978, onde deu à luz três filhos (30, 28 e<br />

26 anos);<br />

2. B.: 51 anos, casada, dona-de-casa, trabalhou fora durante a<br />

juventude (por cerca de 12 anos), nasceu no Pará e mudou-se<br />

para o Rio de Janeiro aproximadamente em 1975. Deu à luz<br />

dois filhos (24 e 17 anos);<br />

3. C.: 52 anos, casada, dona de casa, trabalhou fora durante a<br />

juventude (por cerca de 15 anos), nasceu no Rio de Janeiro,<br />

onde deu à luz um filho (27 anos).<br />

Para colher os dados, procedemos da seguinte forma: individualmente<br />

abordamos as mulheres, às quais era explicado sucintamente<br />

o objetivo do encontro (uma pesquisa em que analisaríamos<br />

particularidades das histórias contadas, comparando experiências de<br />

vida). Optamos por revelar parcialmente o objetivo no início, deixando<br />

claro que se, ao final, fosse do interesse da entrevistada inutilizar<br />

a gravação, assim seria feito. Ao final, quando já estavam colhidos<br />

os dados, explicávamos com mais detalhes o ponto central da<br />

pesquisa e pedíamos autorização para o trabalho com as respostas.<br />

A seguir, a sequência de questões propostas às três participantes:<br />

a) O que significa ser mãe para a senhora?


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

777<br />

b) Como foi o nascimento do seu primeiro filho? (aqui, convidávamos<br />

a entrevistada a esmiuçar como ocorreu esse<br />

parto, que emoções e sentimentos teve etc.)<br />

c) Como foi o tratamento médico que você recebeu nesse<br />

parto?<br />

6.2. Notas sobre a transcrição<br />

Empregaremos, neste trabalho, alguns conceitos próprios da<br />

Análise da Conversa para dar tratamento adequado às gravações realizadas<br />

e posteriores transcrições e estudos. Para isso, recorremos a<br />

alguns autores brasileiros, que revisitaram teóricos como Tannen<br />

(1989) ou Jefferson (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 1974)<br />

(entre outros) em suas notações.<br />

Dividimos o texto em unidades, para torná-lo mais visível<br />

graficamente. Além disso, essa divisão em linhas permite ao analista<br />

distinguir padrões rítmicos e repetições nas falas. Gago (2002, p. 93)<br />

explica que unidades de construção de turno são unidades de fala<br />

constituídas por jatos de linguagem.<br />

Para representar, na escrita, o discurso produzido originalmente<br />

na modalidade oral, escolhemos manter a ortografia-padrão.<br />

Gago (idem) explica que há dois sistemas (não necessariamente excludentes):<br />

a escrita-padrão e a escrita modificada.<br />

Na escrita-padrão, opta-se por grafar as palavras obedecendo<br />

a um registro da língua tido como padrão. Já na escrita modificada,<br />

busca-se indicar, por meio de algumas convenções, os detalhes da<br />

pronúncia (“pra num chegá atrasadu” – por exemplo).<br />

Como nosso objetivo, neste trabalho, não recai sobre formas<br />

de se expressar, mas sobre representações sociais – para cujo estudo<br />

pouco interferem as variações – esclarecemos que os textos serão<br />

transcritos com o mínimo de sinais convencionais de transcrição (silêncios,<br />

alongamentos, ênfase, aceleração etc.). Entretanto, ressalvamos<br />

que, sendo relevante para a análise, será feita uma breve descrição<br />

de tal ou qual fator que tenha influenciado uma fala (como um<br />

silêncio mais longo ou risos).


7. Três pequenas entrevistas: ser mãe é...<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

778<br />

Nossa expectativa, ao optar por um tema subjetivo como a<br />

maternidade, era observar relatos que revelassem o alto envolvimento<br />

das entrevistadas com o assunto, tornando a narrativa mais fluente,<br />

uma vez que o próprio Labov já previra essa facilidade em discorrer<br />

sobre um tema, desde que atingisse o aspecto emocional. Além disso,<br />

optamos por fazer referência a um evento passado há muito tempo<br />

(o primeiro filho em mulheres na faixa dos 50 anos) para deixar<br />

virem à tona descrições romantizadas, em que a distância temporal<br />

influiria ao apagar ou minimizar a importância de acontecimentos<br />

desagradáveis ocorrido à época.<br />

Após as leituras, verificamos haver três eixos ordenadores de<br />

ideias, como três grandes motes, os quais serão discutidos em tópicos,<br />

a seguir.<br />

7.1. Nasci para ser mãe<br />

Em duas entrevistadas, observou-se a revelação de uma vocação<br />

para a maternidade.<br />

A entrevistada A apresenta a condição de mãe como a “mais<br />

importante” e esse status é de longa duração, pois o filho “vem pra<br />

gente (...) pra gente tomar conta o resto da vida”. Mais que isso, ser<br />

mãe, para A, é cuidar dos filhos: “isso basta”.<br />

Já B, direciona essa importância para o aspecto coletivo da<br />

família, pois afirma: “acho que a importância de ter filho / é construir<br />

uma família, né? / Depois ao longo do casamento / construir uma<br />

família”.<br />

Assim, observamos que ambas assumem um papel construído<br />

culturalmente: mulher nasceu para ser mãe e esposa. E há alegria<br />

nesse cumprimento de dever.


7.2. Ser mãe é padecer no paraíso<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

779<br />

As mães A e C, por um lado, e B, por outro, viveram partos<br />

de tipos diferentes: as primeiras deram à luz por parto normal no sistema<br />

público de saúde; a segunda, por cesárea com um médico conhecido,<br />

do ambiente de trabalho. Assim, a visão de sofrimento é<br />

distinta. Para A e C, houve longo sofrimento antes de ir ao hospital e<br />

mesmo depois de dar entrada no sistema público de saúde, e tratamento<br />

inadequado ao chegar ao serviço médico. Entretanto, A faz<br />

questão de mencionar que o momento do nascimento desse filho foi<br />

especial e todo o sofrimento foi relegado a segundo plano diante da<br />

felicidade do primeiro bebê.<br />

A revela seu sofrimento durante a narrativa: “comecei a sofrer<br />

dor às quatro horas da manhã”; somente “uma hora da tarde a vizinha<br />

me levou pro hospital”; e “quando deu umas seis horas da tarde<br />

nasceu a minha primeira filha”. A ideia do sacrifício também está<br />

perceptível na doação materna, na contínua e infindável dedicação:<br />

“esse filhão essa filhona que vem pra gente/ o resto da vida/ pra gente<br />

tomar conta o resto da vida”. Entretanto, se A declara ter sofrido<br />

muito, também ameniza a importância dessa dor. A respeito do momento<br />

em que foi levada ao hospital, conta: “eu já estava com muitas<br />

dores/ mas dor... dor do amor”, ou quando comenta o atendimento<br />

ruim que recebeu: “foi horrível porque a enfermeira me tratou mal” e<br />

acrescenta, ao final, após uma pausa: “mas depois pa... tudo passou/<br />

depois ficou muito bem”. Acreditamos ver, nesse gesto de reduzir o<br />

impacto negativo do parto, uma tentativa de mostrar-se feliz com a<br />

tarefa que lhe foi destinada, apesar de esta lhe causar certo martírio:<br />

a maternidade.<br />

Da mesma forma, C relata seu sofrimento. Ao responder à<br />

questão “Como foi o nascimento do seu primeiro filho”, declara rapidamente:<br />

“Foi bom não”: “comecei a passar mal cedo/ umas oito<br />

horas da manhã / Cheguei no hospital às duas horas da tarde/ Fiquei<br />

até onze e meia da noite com dor”. Diferentemente de A, que narra a<br />

história e acrescenta os horários, intercalando-os no fluxo narrativo,<br />

C inicia seu relato com a sequência de horários organizada. Essa<br />

forma de introduzir sua história situa o ouvinte e cria certa sensação<br />

de suspense, como que a fazer o outro pensar: “o que terá ocorrido


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

780<br />

nesse meio tempo, já que as dores do parto começaram às oito da<br />

manhã e o bebê nasceu quase meia-noite?”. Seu relato é cronológico<br />

e, empregando um recurso que busca envolver o ouvinte, o discurso<br />

relatado, cita o mau tratamento recebido: em certo momento, percebeu<br />

que, apesar da hemorragia que sofria, não havia seu tipo sanguíneo<br />

anotado no prontuário, pois o próprio médico a inquiriu a respeito:<br />

“Aí o doutor até no final / Na minha ficha não tinha / Perguntou o<br />

tipo do meu sangue / A senhora sabe o tipo do seu sangue / Eu falei<br />

sei / Ah se não passar a hemorragia / nós vamos ter que / vai ter que<br />

tomar o sangue”. C chega mesmo a mencionar que havia outras parturientes<br />

que, também em recuperação, a convidavam para caminhar:<br />

“As mulheres lá / Vamos passear / Vamos comer maçã / Que comer<br />

maçã nada / Eu quero deitar / Quero descansar / Aquelas mulheres lá<br />

/ Estão acostumadas a ter filho”. E aqui ainda observamos uma tentativa<br />

de construir uma identidade para tais mulheres que “estão acostumadas<br />

a ter filho” e, por isso, teriam mais disposição.<br />

Verificamos assim que a experiência de dar à luz um filho,<br />

para essas duas informantes, foi traumática. A procura minimizar esse<br />

sofrimento, procedimento diferente de C, que não oculta sua insatisfação<br />

com o serviço público.<br />

Por outro lado, B, beneficiada pelo acompanhamento de um<br />

obstetra conhecido, esteve tranquila, pois agendou-se o nascimento<br />

do bebê para dia 26 de dezembro, permitindo à gestante dirigir-se à<br />

maternidade sem dores: “Eu tive cesárea porque não tinha passagem<br />

/ aí o médico marcou tudo direitinho / aí eu passei o Natal em casa”.<br />

7.3. Amo meu filho<br />

Um traço comum às informantes A e B foi a menção ao amor<br />

sentido pelo filho, ainda que não fosse o tópico trazido pelo entrevistador.<br />

A, já na segunda unidade de fala, declara que “ser mãe é fruto<br />

do amor”. E mantém essa visão amorosa em outras unidades: na “dor<br />

do amor” e na revelação emocionada (momento em que a voz ficou<br />

embargada e os olhos marejados) de como se sentiu depois do parto,<br />

ao dizer que “eu chorei muito de emoção/ quando ela nasceu / de


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

781<br />

tanta alegria”. Ao final da entrevista, quando observa que as três<br />

perguntas já foram feitas e acredita que não há mais o que relatar,<br />

procura encerrar sua exposição com “isso me causou muita alegria”.<br />

Essa declaração de amor e felicidade também esteve presente<br />

na fala de B, por exemplo, no uso diminutivo ao se referir à filha. A<br />

tentativa de encerramento é mais significativa para essa notação:<br />

“Mas foi tudo bem / Fiquei feliz com a chegada da minha filha /<br />

Como eu sou feliz até hoje com ela / Minha ( ) / Eu adoro minha filha<br />

/ É isso”.<br />

8. Considerações finais<br />

Todas as três informantes produziram narrativas com presença<br />

de clímax, coda, apresentação do contexto, o que indica que,<br />

mesmo sob uma situação tensa (entrevista gravada para pesquisa),<br />

são capazes de conduzir uma narrativa, envolvendo o ouvinte, buscando<br />

revelar com clareza o que sentiram e viveram, seja por um relato<br />

marcado cronologicamente, seja pela redundância presente em<br />

algumas unidades.<br />

Observamos tentativas de reparo mais frequentemente ligadas<br />

à busca de um dado na memória, que por considerar haver erros na<br />

fala, haja vista a narrativa fazer referência a um fato ocorrido há<br />

mais de vinte anos.<br />

B, em certo momento, relata que “O ginecologista era nossomeu<br />

conhecido, né?”, optando por não se expressar no plural (talvez<br />

incluindo o marido), mas mantendo o singular. Esse é um reparo prototípico.<br />

Entretanto, essa mesma informante, em alguns momentos,<br />

busca ganhar tempo com a inserção de “aí”, no início das unidades<br />

(demarcando um novo parágrafo ou etapa do acontecimento relatado),<br />

ou apenas mantendo o silêncio para tentar rememorar um fato.<br />

Como nessas entrevistas não houve interação, consideramos que as<br />

pausas estavam mais ligadas à organização do pensamento do que a<br />

um sentido que o sujeito quisesse atribuir à fala – como pode ocorrer<br />

em conversas espontâneas (por exemplo, para ironizar).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

782<br />

Por fim, constatamos que a imagem de mãe ainda prevalece<br />

como a da mulher que se sacrifica, que sofre, abdicando de si pelo filho.<br />

Entretanto, ressalte-se que essa renúncia é altruísta, pois mesmo<br />

vivendo tais situações, ser mãe é rir e chorar, é amar, é ser feliz. Assim,<br />

cremos que a imagem romantizada do primeiro filho nas descrições<br />

dessas mães e de seus papeis quanto à criação/ educação se dá,<br />

principalmente, pelo afeto que nutrem, mas também por estarem distanciadas<br />

temporalmente do momento focalizado.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BASTOS, Liliana Cabral. Estórias, vida cotidiana e identidade – uma<br />

introdução ao estudo da narrativa. In: CALDAS-COULTHARD,<br />

Carmem Rosa; SCLIAR-CABRAIL, Leonor (Orgs.). Desvendando<br />

discursos: conceitos básicos. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008.<br />

(p.79-111)<br />

FABRÍCIO, Branca Falabella; BASTOS, Liliana Cabrail. Narrativas<br />

e identidades de grupo: a memória como garantia do “nós” perante o<br />

“outro”. In: PEREIRA, Maria das Graças Dias et al (Orgs.). Discursos<br />

socioculturais em interação: interfaces entre a narrativa, a conversação<br />

e a argumentação: navegando nos contextos da escola, saúde,<br />

empresa, mídia, política e migração. Rio de Janeiro: Garamond,<br />

2009, p. 39-66.<br />

______; LOPES, Luiz Paulo da Moita. Discursos e vertigens: identidades<br />

em xeque em narrativas contemporâneas. Revista Veredas –<br />

Revista de Estudos Linguísticos. Volume 6, número 2. Juiz de Fora,<br />

MG: UFJF, jul/dez 2002. Disponível em:<br />

. Acesso em:<br />

29/07/2009.<br />

FINNA, Anna de. Narrativa e identidade: uma perspectiva discursiva<br />

do relato e do sujeito. In: ALMEIDA, Fernando Afonso de; GON-<br />

ÇALVES, José Carlos (Orgs.). Interação, conceito e identidade em<br />

práticas sociais. Niterói, RJ: EdUFF, 2009, p. 117-143.<br />

FLICK, Uwe. Entrevista episódica. In: BAUER, Martin W.; GAS-<br />

KELL, George (ed.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

783<br />

um manual prático. 7. ed. Trad. Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis:<br />

Vozes, 2008. p. 114-136.<br />

GAGO, Paulo Cortes. Questões de transcrição em Análise da Conversa.<br />

Revista Veredas – Revista de Estudos Linguísticos. Volume 6,<br />

número 2. Juiz de Fora: UFJF, jul/dez 2002. Disponível em:<br />

. Acesso em: 29<br />

jul. 2009.<br />

HALL, Stuart. A identidade em questão. In: ___. A identidade cultural<br />

na pós-modernidade. 11. ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira<br />

Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 7-22.<br />

LABOV, W. The Transformation of Experience in Narrative Sintax.<br />

In: ___. Language in the Inner City. Philadelphia: University of<br />

Pennsylvania Press, 1972, p. 354-398.<br />

LODER, Letícia Ludwig. Noções fundamentais: a organização do<br />

reparo. In: ___; JUNG, Neiva Maria (Orgs.). Falar-em-interação social:<br />

introdução à análise da conversação etnometodológica. Campinas:<br />

Mercado de Letras, 2008, p. 95-126.<br />

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Palavra, interações e representações<br />

sociais. In: ___. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa<br />

em saúde. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2008, p. 204-260.<br />

PEREIRA, Tania Conceição. A voz da medicina na entrevista psiquiátrica:<br />

o meta-enquadre de gerenciamento de informações. In:<br />

PEREIRA, Maria das Graças Dias et al (Orgs.). Discursos socioculturais<br />

em interação: interfaces entre a narrativa, a conversação e a<br />

argumentação: navegando nos contextos da escola, saúde, empresa,<br />

mídia, política e migração. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 273-<br />

296.<br />

SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON. A simplest systematic for the<br />

organization of turn-taking for conversation. Language, 50 (4), p.<br />

696-735, 1974.<br />

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença.<br />

In: ___. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.<br />

8. ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 73-102.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

784<br />

STAROSKY, Priscila. Estrutura narrativa e conarração em fonoaudiologia<br />

na interação entre terapeuta e paciente. In: PEREIRA, Maria<br />

das Graças Dias et alii. (Orgs.). Discursos socioculturais em interação:<br />

interfaces entre a narrativa, a conversação e a argumentação:<br />

navegando nos contextos da escola, saúde, empresa, mídia, política e<br />

migração. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 101-132.<br />

TANNEN, D. Talking voices. Repetition, dialogue and imagery in<br />

conversational discourse. Cambridge: Cambridge University Press,<br />

1989.<br />

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica<br />

e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e<br />

diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 8. ed. Petrópolis: Vozes,<br />

2008, p. 7-72.


COMPONENTES ESTRUTURAIS<br />

DOS REPERTÓRIOS DE UMA OBRA LEXICOGRÁFICA<br />

Valéria Cristina de Abreu Vale Caetano (UERJ)<br />

valeriacristinacaetano@yahoo.com.br<br />

Neste capítulo do livro intitulado Curso Básico de Terminologia,<br />

a autora Lídia Almeida Barros, estuda as obras lexicográficas<br />

e terminográficas do ponto de vista de sua organização interna, ou<br />

seja, dos seus três componentes estruturais: a macroestrutura, a microestrutura<br />

e o sistema de remissivas.<br />

1. A macroestrutura<br />

Por macroestrutura entende-se a organização interna de uma<br />

obra lexicográfica ou terminológica e está relacionada às características<br />

gerais do repertório.<br />

Geralmente, todos os dicionários apresentam logo nas primeiras<br />

páginas uma introdução, texto fundamental que expõe ao leitor as<br />

características da obra, os critérios adotados para sua elaboração, seu<br />

público-alvo, seus objetivos, informações básicas sobre o domínio<br />

especializado cuja terminologia é tratada na obra. Também constam<br />

as abreviações, símbolos utilizados e outros elementos que se considere<br />

de importância para a compreensão dos dados veiculados no repertório.<br />

A lista de entradas, conjunto de unidades linguísticas descritas<br />

nos verbetes, constitui a nomenclatura.<br />

Os verbetes reúnem os dados relativos à unidade lexical ou<br />

terminológica descrita e compõem pelo menos dois elementos: entrada<br />

(unidade lexical ou terminológica que encabeça um verbete) e


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

786<br />

o enunciado lexicográfico/terminográfico (informações fornecidas<br />

sobre ela).<br />

1.1. Ordem Alfabética Contínua ou Descontínua<br />

Na ordem alfabética contínua, a sequência não leva em conta<br />

os espaços em branco, nem os caracteres não alfabéticos ou sinais<br />

diacríticos, tais como apóstrofo, hífen, cedilha, til, acentos diferenciais<br />

e outros.<br />

Alguns terminógrafos preferem a sequência descontínua, que<br />

se caracteriza pelo fato de que o espaço em branco precede sinais<br />

como apóstrofo, hífen, dois pontos etc. que, por sua vez, precedem a<br />

letra (AUGER & ROUSSEAU, 1978, p. 43).<br />

Ordem alfabética contínua<br />

galinha galinha<br />

galinha-arrepiada galinha-arrepiada<br />

galinha-choca galinha-choca<br />

galinha-d’água galinha-d’água<br />

galinha-da-guiné galinha-d’angola<br />

galinha-da-índia galinha-da-guiné<br />

galinha-d’angola galinha-da-índia<br />

Ordem alfabética descontínua<br />

galinha-da-numídia galinha-da-numídia<br />

galinha-do-mato galinha-do-mato<br />

As diferenças de ordenamento acima se dão pelo fato de que<br />

na ordem contínua o apóstrofo e o hífen são ignorados e somente a<br />

sequência alfabética é considerada. Na descontínua, apóstrofo tem<br />

precedência em relação à letra.


1.2. O Fechamento da Cadeia Interpretante<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

787<br />

As definições devem veicular as informações necessárias para<br />

a total compreensão do conteúdo semântico-conceitual da entrada.<br />

Porém, nem sempre elas são capazes de suprir todas as necessidades<br />

de decodificação, pois, às vezes, nelas são empregadas unidades lexicais<br />

desconhecidas do leitor. Neste sentido, coloca-se a questão do<br />

fechamento do texto lexicográfico ou terminográfico, isto é, da decodificação,<br />

por meio da macroestrutura, de todas as unidades lexicais<br />

ou terminológicas inscritas na definição.<br />

Em medicina, os termos próprios dessa área do saber são frequentemente<br />

descritos por enunciados definicionais que contêm termos<br />

da biologia. Se o terminólogo decidir pelo tratamento dos termos<br />

da biologia, estará adotando um sistema fechado. Caso opte por<br />

definir apenas os termos específicos da medicina, remetendo o leitor<br />

a outros repertórios, estará optando pelo sistema aberto.<br />

O sistema aberto é considerado como o mais viável, sobretudo<br />

porque um dicionário não existe sozinho. Ele faz parte de um<br />

conjunto de repertórios mais vasto, capaz de suprir as necessidades<br />

de compreensão geral de um conjunto terminológico específico.<br />

As necessidades de circulação e de recuperação de dados podem<br />

ainda ser satisfeitas no interior do próprio dicionário, por meio<br />

de informações expressas no enunciado definicional. O vocabulário<br />

para exercer a função pedagógica do discurso terminológico, pode<br />

preencher as lacunas provocadas pela ausência na macroestrutura das<br />

unidades linguísticas cuja compreensão é difícil, usando alguns subterfúgios.<br />

Exemplo:<br />

Em um verbete procura-se garantir o fechamento do texto<br />

terminográfico dentro dos limites da própria definição, evitando uti-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

788<br />

lizar apenas o termo científico. A compreensão é facilitada pelo emprego<br />

de uma metalinguagem mais simples, de fácil entendimento.<br />

2. A microestrutura<br />

Entende-se por microestrutura a organização dos dados contidos<br />

no verbete, ou melhor, o programa de informações sobre a entrada<br />

disposto no verbete. Três elementos devem ser levados em<br />

consideração, quando da distribuição dos dados na microestrutura:<br />

a) o número de informações transmitidas pelo enunciado lexicográfico/terminográfico;<br />

b) a constância no programa de informações em todos os<br />

verbetes dentro de uma mesma obra;<br />

c) a ordem de sequência dessas informações.<br />

O tipo e a organização dos dados variam de um dicionário para<br />

outro, no entanto devem ser constantes no interior de uma obra. O<br />

programa de informações previamente estabelecido varia de acordo<br />

com o tipo de unidade linguística descrita, mas deve ser aplicável a<br />

todos os verbetes cujas entradas sejam de mesma natureza. Esse programa<br />

constante de informações é também chamado de microestrutura<br />

básica e é um dos elementos responsáveis pela homogeneidade<br />

do repertório.<br />

2.1. Paradigmas Mínimos e Possíveis da Microestrutura<br />

O enunciado lexicográfico ou terminológico se organiza segundo<br />

Barbosa (1990, p. 230), em três macroparadigmas, três grandes<br />

zonas semântico-sintáticas (paradigma informacional, definicio-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

789<br />

nal e pragmático) que se compõem, por sua vez, de microparadigmas.<br />

Os microparadigmas variam em qualidade e quantidade, conforme<br />

a natureza da obra lexicográfica, seus objetivos, limites e público-alvo.<br />

2.2. A Entrada<br />

Em Lexicografia, a entrada é também chamada endereço e<br />

em Terminologia, vedeta. A unidade linguística que recebe um tratamento<br />

lexicográfico ou terminográfico é chamada unidade de tratamento.<br />

Do ponto de vista gráfico, a entrada é normalmente escrita<br />

em negrito e é separada do corpo do enunciado lexicográfico ou terminológico.<br />

O signo linguístico em posição de entrada deve sempre<br />

começar por uma letra minúscula.<br />

A entrada deve sempre se apresentar em sua forma não marcada:<br />

no infinitivo, se for um verbo; no masculino, quando se tratar<br />

de um substantivo ou um adjetivo. Os termos complexos devem conservar<br />

sua ordem sintagmática normal.<br />

A entrada é um modelo de realização de palavras-ocorrência e<br />

representa, assim, suas variantes. Ela é a síntese morfossintática e léxico-semântica<br />

das ocorrências, é o lema, a forma de base, ou seja, a<br />

estrutura escolhida segundo as convenções lexicográficas e terminográficas<br />

para representar uma palavra.<br />

2.3. A Definição<br />

O enunciado que descreve o conteúdo semântico-conceitual<br />

de uma unidade lexical ou terminológica em posição de entrada de<br />

um verbete é chamado definição ou enunciado definicional. É um<br />

conjunto de informações que são dadas sobre a obra.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

790<br />

Há três tipos fundamentais de definições, os quais condizem<br />

com os tipos básicos de obras lexicográficas e terminográficas (o dicionário<br />

de língua, a enciclopédia e o dicionário terminológico):<br />

a) definições lexicográficas caracterizam-se pela predominância<br />

de informações linguísticas, tratando mais de “palavras”;<br />

b) definições enciclopédicas se ocupam mais de referentes e<br />

de descrição de “coisas”;<br />

c) definições terminológicas trazem predominantemente conhecimentos<br />

formais sobre “coisas” e fenômenos (Finatto, 2001b,<br />

p.120).<br />

2.3.1. A definição em um dicionário de língua geral<br />

As informações veiculadas pelas definições em um dicionário<br />

de língua são de natureza linguística. No verbete do dicionário devem<br />

constar todas as acepções da unidade lexical definida. Portanto,<br />

o dicionário de língua define a unidade lexical em seus sentidos denotativos,<br />

conotativos, idiomáticos e especializados.<br />

2.3.2. A definição em vocabulários técnicos, científicos e<br />

especializados<br />

Enquanto um dicionário de língua procura apresentar de forma<br />

exaustiva todos os sentidos de uma unidade lexical dentro de um<br />

sistema linguístico, uma obra terminográfica se atém exclusivamente<br />

ao conteúdo específico de um termo em um dado domínio. É preciso<br />

levar em conta ao se elaborar definições de um dicionário terminológico<br />

elementos objetivos e subjetivos que determinam as condições


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

791<br />

de produção. O repertório especializado é um projeto inserido em um<br />

contexto social.<br />

2.3.2.1. Adequação ao domínio<br />

A definição de uma unidade terminológica deve adaptar-se ao<br />

domínio da experiência ao qual o conceito descrito pertence. Por exemplo,<br />

o termo jogo pode ser definido de maneiras diferentes de<br />

acordo com o significado que adquire em cada domínio. É o caso de<br />

jogo em música (domínio mais amplo) e em técnica instrumental<br />

(subdomínio da música).<br />

2.3.2.2. Estrutura formal e organização conceitual do<br />

enunciado definicional<br />

A definição é um enunciado que descreve e explica um termo,<br />

fazendo parte de uma predicação definicional composta de um sujeito<br />

(a entrada) e de um predicado (definição). Estes são ligados por<br />

uma cópula normalmente não explícita. A primeira palavra da definição<br />

(descritor) pode ser de natureza metalinguística ou funcionar<br />

como elemento de inclusão lógico-semântica. As cópulas podem ser<br />

metalexias ou arquilexemas (POTTIER, 1965, apud BARROS,<br />

2004, p. 39).<br />

Expressões como tipo de, ação de, espécie de, coisa, pessoa<br />

etc. são metalexias. Em contrapartida, assento (para designar cadeira)<br />

é um arquilexema.<br />

A constância da metalinguagem e da organização semântico-<br />

conceitual dos enunciados definicionais é importante para a homogeneidade<br />

da obra. A definição deve ser elaborada respeitando alguns<br />

princípios:


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

792<br />

· não se deve utilizar cópulas do tipo diz-se de, significa (tal<br />

termo) é, é quando, trata-se de, indica, (essa palavra)<br />

quer dizer, esse termo designa etc.;<br />

· a definição não deve conter em seu enunciado o termo definido;<br />

· deve ser completa sem veicular dados supérfluos e inúteis;<br />

· deve manter com o termo definido uma relação de univocidade;<br />

· a definição deve se adaptar ao público-alvo;<br />

· quando houver a possibilidade de redigir a definição na<br />

forma afirmativa, não utilizar a forma negativa;<br />

· palavras de sentido vago, ambíguo ou figurado não devem<br />

ser empregadas.<br />

Uma minuciosa análise semântica do termo-entrada, do público-alvo<br />

e dos propósitos da obra dará subsídios para a elaboração de<br />

uma definição que exprima com exatidão os atributos semânticoconceituais,<br />

não dando margem a ambiguidades e sendo adequada às<br />

particularidades do repertório em projeto.<br />

2.3.2.3. Gênero próximo + diferenças específicas<br />

Para o filósofo grego Aristóteles, o gênero próximo é que só<br />

tem abaixo de si espécies; o gênero distante é o que recobre outros<br />

gêneros de menor extensão.<br />

A fórmula proposta gênero próximo + diferenças específicas<br />

permitem elaborar uma definição que descreve o termo- entrada co-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

793<br />

mo uma espécie única no gênero. Como exemplo, a autora apresenta<br />

definições adaptadas de termos que designam os diferentes tipos de<br />

impostos existentes no Brasil (SANDRONI, 1994). As definições<br />

deixam clara a condição de gênero próximo do termo imposto em relação<br />

a seus hipônimos (diferentes tipos de impostos).<br />

A definição terminológica distribui a carga conceitual no enunciado<br />

definicional de modo que se identifique o termo como parte<br />

de um conjunto. Ao mesmo tempo em que o distingue dos outros<br />

termos pertencentes a esse mesmo conjunto.<br />

A possibilidade de elaboração de definições terminológicas<br />

que sigam o modelo gênero próximo + diferenças específicas é limitada.<br />

Esse modelo é funcional somente em sistemas extremamente<br />

coerentes.<br />

2.3.2.4. Tipos de definições<br />

As definições podem ser classificadas de acordo com o tipo<br />

de informações que elas transmitem, o qual depende da natureza linguística<br />

da palavra escrita. Elas podem ser substanciais, relacionais,<br />

morfossemânticas, nominais, etimológicas, acidentais, definição por<br />

compreensão ou por extensão. Em Terminologia, distingue-se, ainda,<br />

a definição da descrição e da explicação.<br />

· Definições substanciais e relacionais<br />

As definições substanciais “exprimem a substância do termo<br />

definido” (REY-DEBOVE, 1971, apud BARROS, 2004, p. 205) e<br />

estas se aplicam “a quatro categorias (gramaticais)”, sobretudo ao<br />

substantivo e ao verbo. São as mais empregadas nas obras terminográficas.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

794<br />

As definições relacionais exprimem a relação que une o termo<br />

definido a outra palavra que o qualifica. Colocam em evidência<br />

as relações que os adjetivos e os advérbios mantêm em língua com<br />

outras unidades lexicais.<br />

· Definições morfossemânticas, nominais e etimológicas<br />

As definições morfossemânticas têm como base a estrutura<br />

formal da unidade linguística descrita. Baseiam-se na equivalência<br />

formal. É preciso que o terminólogo tome cuidado para não cair no<br />

que se chama definição nominal, ou seja, na definição que não respeita<br />

o princípio da não circularidade.<br />

A definição etimológica procede do ponto de vista formal de<br />

maneira semelhante à morfossemântica, com enfoque, entretanto, no<br />

significado original da palavra; procura resgatar o sentido que os elementos<br />

morfológicos constituintes da unidade linguística tinham<br />

no momento de criação desta última.<br />

· Definições por compreensão e por extensão<br />

A definição por compreensão é estabelecida com base em<br />

uma relação de inclusão semântico-conceitual que descreve o termo<br />

por meio de traços distintivos (características). É ideal para a elaboração<br />

de vocabulários técnicos, científicos e especializados e segue o<br />

modelo clássico gênero próximo + diferenças específicas. Seu objetivo<br />

maior é atingir o princípio de monorreferencialidade.<br />

A definição por extensão (genérica) consiste “em enumerar<br />

todas as espécies que estão no mesmo nível de abstração ou todos os<br />

objetos individuais que pertencem ao conceito definido” (FELBER,<br />

1984, apud BARROS, 2004, p. 137).<br />

· Diferença entre definição, descrição e explicação


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

795<br />

“Enquanto a definição deve explicar todos os traços pertinentes<br />

de significação (definição linguística) ou todos os traços conceituais<br />

pertinentes, a descrição pode acumular traços pertinentes e traços<br />

característicos não pertinentes” (REY, 1977, apud BARROS,<br />

2004, p. 42).<br />

A definição organiza os atributos semântico-conceituais de<br />

um termo com vistas a evidenciar o seu lugar em um sistema unificado<br />

de conceitos e a explicação é a descrição do conceito visto de<br />

maneira isolada.<br />

· Outros elementos importantes<br />

Béjoint salienta a necessidade de se elaborar, para cada categoria<br />

de termos, um modelo de definição que agruparia os traços<br />

mais importantes, assegurando, desta forma, a exaustividade e a precisão<br />

(BÉJOINT, 1997, apud BARROS, 2004, p. 22)<br />

Uma relação unívoca deve estabelecer-se entre a definição e o<br />

termo definido.<br />

“Tipologia de uma obra lexicográfica e tipologia de definição<br />

situam-se numa relação determinante/determinado” (BARBOSA,<br />

1995, p. 1).<br />

Para Béjoint, a definição terminológica é uma descrição funcional<br />

do conceito (BÉJOINT, 1997, apud BARROS, 2004, p. 23).<br />

3. O sistema de remissivas<br />

3.1. Funções e Objetivos<br />

O sistema de remissivas (rede de remissivas, referências cruzadas)<br />

procura resgatar as relações semântico-conceituais existentes


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

796<br />

entre as unidades lexicais ou terminológicas que compõem a nomenclatura<br />

de uma obra lexicográfica ou terminológica. Sua função é<br />

corrigir o isolamento das mensagens, ligando variantes, criando<br />

campos semânticos. Esse percurso orientado estrutura-se com base<br />

em duas direções principais:<br />

a) as relações semânticas que o termo de entrada mantém<br />

com os outros termos do domínio repertoriado;<br />

b) os usos específicos do termo no interior do universo em<br />

que está inserido (Krieger et al, 2001, p. 252).<br />

O sistema de remissivas pode estar presente na macroestrutura<br />

ou na microestrutura. Está presente em qualquer tipo de repertório,<br />

atribuindo-lhe uma homogeneidade maior, na qual as informações<br />

aparentemente compartimentadas se religam e constituem um todo.<br />

3.2. Limites e Critérios para o Estabelecimento do Sistema<br />

de Remissivas<br />

O fato de que a priori todas as unidades linguísticas que<br />

compõem a lista das entradas de um repertório mantêm relações semântico-conceituais<br />

entre si impõe um limite para o estabelecimento<br />

do sistema de remissivas.<br />

Os lexicógrafos e os terminógrafos devem definir critérios<br />

qualitativos e quantitativos para a organização desse sistema. Os critérios<br />

podem variar de acordo com o tipo de obra.<br />

3.3. Tipos de Remissivas<br />

Na macroestrutura, algumas entradas não são definidas e encabeçam<br />

um verbete que remete o leitor a um outro verbete, onde se


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

797<br />

encontra a informação completa. Na microestrutura, a remissiva pode<br />

assumir formas diversas, como V. (ver), q. v. (queira ver), cf.<br />

(confronte, compare), asterisco, negrito, número de série, símbolo de<br />

classificação, índice e outros.<br />

3.3.1. Remissiva ver<br />

Utiliza-se a remissiva Ver para dirigir o leitor a um verbete<br />

em que se encontram as informações que deseja. O emprego desse<br />

tipo de remissiva pode se dar em diversas direções:<br />

a) Para indicar ao consulente uma forma léxica mais adequada,<br />

preferível ou usual.<br />

b) Variantes: a remissiva é empregada para indicar os seguintes<br />

percursos da variante para a forma de maior aceitação; do regionalismo<br />

à forma de uso territorial mais amplo; do termo popular<br />

ao termo científico (dentro de um mesmo domínio); da expressão em<br />

linguagem familiar à expressão da norma culta; da forma arcaica à<br />

forma atualmente em uso.<br />

c) Da forma estrangeira para a vernácula: boutique|butique<br />

d) Elementos de fraseologismos ou adjetivos, para indicar<br />

locução ou lexia complexa a qual pertence.<br />

3.3.2. Queira ver e confronte<br />

A remissiva q. v. empregada para aconselhar o leitor a consultar<br />

um outro verbete para complementar as informações.<br />

O emprego de q.v. também se dá em situações em que a definição<br />

de uma unidade lexical, embora completa, não satisfaça às necessidades<br />

de elucidação exigidas pelo leitor.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

798<br />

Encontra-se, ainda, nos dicionários o uso de q. v. para orientar<br />

o leitor a consultar um verbete cuja entrada é uma variante ortográfica<br />

da unidade lexical procurada. Exemplo: electrocardiograma\ eletrocardiograma.<br />

A remissiva cf. também aconselha o leitor a consultar outro<br />

verbete, sem que esta consulta seja obrigatória ou absolutamente necessária.<br />

Seu objetivo é o de alertar para a existência de unidades lexicais<br />

semelhantes. Ex.: migração- emigração- imigração.<br />

No caso das unidades lexicais que são parônimas, é muito utilizada<br />

a remissiva cf. e o dicionário procura alertar o leitor para as<br />

semelhanças e diferenças.<br />

3.3.3. Asterisco<br />

O asterisco (*) tem por objetivo indicar ao leitor que aquela<br />

unidade linguística é entrada de um verbete e nele é definida. Um<br />

exemplo da utilização desse tipo de remissiva é fornecido pelo Dicionário<br />

de Semiótica de A. J. Greimas e de Joseph Courtès.<br />

1.1.1. Número de série e símbolo de classificação<br />

O número de série, entendido como um símbolo numérico<br />

que indica o lugar de um verbete na cadeia formada por todos os<br />

verbetes de um dicionário, tem por objetivo facilitar a remissão.<br />

Exemplo: 521. HBM Nacional: n p Ver: Horto Botânico do<br />

Museu Nacional (528). (BARROS, 1997, p. 601).<br />

Nos vocabulários sistemáticos, o número é frequentemente<br />

substituído pelo símbolo de classificação. O leitor é informado sobre<br />

o lugar que as unidades terminológicas ocupam no sistema de con-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

799<br />

ceitos, podendo encontrá-las facilmente e situá-las em um conjunto<br />

maior.<br />

1.1.2. Índice<br />

O índice alfabético é muito importante para a garantia da operacionalidade<br />

da obra.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AUGER, P. e ROUSSEAU, L. et alii. Méthodologie de la recherche<br />

terminologique. Québec: Officiel du Quebec, 1978.<br />

BARBOSA, M. A. Considerações sobre a estrutura e funções da obra<br />

lexicográfica. In: Actas do Colóquio de Lexicologia e Lexicografia.<br />

Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1990, p. 229-241.<br />

BARROS, Lídia de Almeida. Curso básico de terminologia .São<br />

Paulo: USP, 2004.<br />

SANDRONI, Paulo. Novo dicionário de economia. [São Palo]: Record,<br />

1994.


COMPREENSÃO DE TEXTOS NARRATIVOS<br />

E ARGUMENTATIVOS DIALÓGICOS<br />

POR LEITORES DO ENSINO FUNDAMENTAL:<br />

RESULTADOS DA PESQUISA<br />

1. Introdução<br />

Antonia Valdelice de Sousa (UFC) 1<br />

licesousa@terra.com.br<br />

A pesquisa que ora apresentamos fundamenta-se em modelos<br />

que tratam de esclarecer o aprendizado da escrita de textos argumentativos<br />

e analisar como funcionam os textos narrativos, o processo de<br />

negociação, as marcas de argumentação, os graus de argumentatividade,<br />

as macrorregras de sumarização, as metarregras de coerência,<br />

as estratégias cognitivas, a metacognição, a retórica e uma visão geral<br />

da pesquisa acerca de leitura e escrita. Entre as versões mais difundidas,<br />

estão os modelos de Alliende (1990), Barthes (1970), Boissinot<br />

(1992), Cunningham (1990), Chambliss (1985), Charolles<br />

(1997), Dolz (1992), Golder e Coirier (1994), Kintsch e van Dijk<br />

(1983, 1985), Labov e Waletsky (1967), Nelson e Narens (1994), Perelman<br />

(1977), Schneuwly (1988).<br />

Nesta perspectiva, este trabalho procurou avaliar a compreensão<br />

de textos narrativos e argumentativos dialógicos por leitores do<br />

ensino fundamental, a partir da análise da macro e superestrutura<br />

desses tipos textuais, obtidos mediante a tarefa de reescritura.<br />

Sob este enfoque, propusemo-nos verificar experimentalmente,<br />

as hipóteses da pesquisa que serviram como diretrizes para a<br />

construção dos instrumentos do experimento, direcionaram os passos<br />

práticos da pesquisa e a demarcação dos limites da discussão que se<br />

segue.<br />

1 Doutora e Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Especialista em<br />

Língua Portuguesa pela Universidade Estadual do Ceará - UECE. Tem experiência em Linguística<br />

e Psicolinguística, com ênfase em Linguística Cognitiva e Linguística Aplicada. Pesquisa<br />

os seguintes temas: capacidade argumentativa, compreensão textual, tipos de texto,<br />

marcas de argumentação. Membro do grupo de pesquisa GELP-COLIN da UFC.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

801<br />

São objetivos específicos: a) verificar a compreensão leitora<br />

dos sujeitos avaliada com base na reconstrução da macroestrutura de<br />

textos narrativos e argumentativos dialógicos; b) observar as estratégias<br />

utilizadas pelos sujeitos, a partir da reescrita da macro e superestrutura<br />

dos textos; c) identificar as estratégias relacionadas aos esquemas<br />

de reconhecimento da macroestrutura e da organização global<br />

de textos narrativos e argumentativos dialógicos.<br />

Dessa forma, considerando-se que a análise de reescrituras<br />

produzidas pelos sujeitos para cada um dos textos argumentativos<br />

(narrativos e argumentativos dialógicos), utilizadas como instrumentos<br />

para avaliar a compreensão, deve ser uma atividade escolar utilizada<br />

por professores, como forma de avaliar a compreensão de materiais<br />

de leitura, por seus alunos, em quase todos os níveis de escolaridade,<br />

e considerando que a capacidade de identificar a organização<br />

global e reconstruir a organização da estrutura de um texto está relacionada<br />

à habilidade de reescrevê-lo, colocamos os seguintes problemas:<br />

a) o conhecimento mínimo do esquema canônico dos textos<br />

(TNA/TAD) proporcionará melhor compreensão das formas de estruturação<br />

dessas tipologias?; b) o esquema textual permite o uso de<br />

estratégias para a (re) construção da macroestrutura?; c) há diferença<br />

entre o desempenho leitor do aluno e o tipo de texto (narrativo ou argumentativo).<br />

Portanto, os problemas citados estão relacionados às<br />

questões de estudos e serviram como diretrizes na construção das hipóteses.<br />

Nesse sentido, com esses problemas em vista, procuramos verificar<br />

a validade das hipóteses relacionadas abaixo. Assim, temos<br />

como hipótese básica, verificar se os leitores proficientes, ao realizarem<br />

uma tarefa de reescritura, apresentam melhor desempenho quanto<br />

à recuperação da macroestrutura textual e quanto ao reconhecimento<br />

da organização global do texto narrativo do que do texto argumentativo<br />

dialógico, tendo em vista a maior explicitude da organização<br />

interna deste primeiro tipo de texto. Como hipóteses secundárias,<br />

acreditamos que: 1) o conhecimento mínimo do esquema canônico<br />

dos textos (TNA/TAD) será o fator determinante para uma melhor<br />

compreensão das formas de estruturação dessas tipologias; 2)<br />

existe um esquema textual para cada tipologia que deve ser atingido<br />

para que leitores independentes possam empregar as estratégias de


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

802<br />

leitura e (re) construir a macroestrutura; 3) a diferença entre o desempenho<br />

leitor do aluno e o tipo de texto (narrativo ou argumentativo<br />

dialógico) deverá ser demonstrada claramente, a partir de estratégias<br />

cognitivas utilizadas no processamento.<br />

2. Metodologia da pesquisa<br />

Este trabalho é o resultado de uma pesquisa experimental com<br />

estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental, de uma escola particular,<br />

que atende a alunos de classe média de Fortaleza.<br />

Para obter os dados, realizamos a pesquisa em duas etapas<br />

distintas, antes das quais, selecionamos os textos e verificamos se os<br />

instrumentos eram adequados para testar a validade das hipóteses.<br />

Na primeira etapa, selecionamos os sujeitos da pesquisa, mediante<br />

a aplicação da técnica do Cloze, separando leitores proficientes<br />

de leitores não proficientes.<br />

Os resultados finais da aplicação do teste Cloze, permitiram a<br />

constituição de um grupo de sujeitos (S 01 a S 20) testados em um único<br />

momento. Desse modo, os vinte (20) sujeitos obtiveram entre<br />

60% e 70% de quantidade média de acertos. Por fim, estes resultados<br />

constatam que os sujeitos obtiveram o maior escore, com mesma faixa<br />

etária e a menor variação possível entre a faixa inicial e a final, permitindo,<br />

diante disto, a seleção de sujeitos para a execução da tarefa de<br />

reescritura.<br />

Importa destacar, para a nossa avaliação, que o resultado final<br />

da aplicação do teste Cloze indicou a habilidade dos sujeitos com nível<br />

independente.<br />

Na segunda etapa, buscamos verificar se os leitores proficientes,<br />

ao realizarem uma tarefa de reescritura, apresentam melhor desempenho<br />

quanto à recuperação da macroestrutura textual e quanto<br />

ao reconhecimento da organização global do texto narrativo do que


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

803<br />

do texto argumentativo dialógico, tendo em vista a maior explicitude<br />

da organização interna deste primeiro tipo de texto (TNA 2 /TAD 3 ).<br />

Nesta etapa, os sujeitos realizaram uma tarefa experimental para<br />

avaliar a compreensão de textos narrativos e argumentativos dialógicos<br />

nas produções lidas, a saber: a) leitura e reescritura de um texto<br />

narrativo; b) leitura e reescritura de um texto argumentativo dialógico.<br />

Para a composição da parte do corpus referente à reescritura,<br />

todos os alunos foram solicitados a ler os textos e reescrevê-los, formando<br />

um total de quarenta (40) reescrituras de textos narrativos<br />

(TNA) e quarenta (40) de textos argumentativos dialógicos (TAD).<br />

Para efeito de análise de resultados, entretanto, foram considerados<br />

apenas os vinte (20) leitores, ou seja, dez (10) de cada texto, selecionados<br />

com base na aplicação do Cloze.<br />

3. Análise do processo de compreensão de textos narrativos e argumentativos<br />

Os resultados mostram que, ao reescrever os textos, as macrorregras<br />

não foram apreendidas de forma homogênea por todos os<br />

sujeitos. Diante disso, acreditamos que a percepção destas macrorregras<br />

está condicionada à intenção comunicativa do autor, ao propósito<br />

da leitura, ao tipo de situação em que se processa a leitura e aos<br />

esquemas (estruturas abstratas, construídas pelo próprio indivíduo,<br />

para formar a sua teoria de mundo) do sujeito leitor. Tais condicionamentos<br />

e esquemas têm forte influência sobre a compreensão e,<br />

portanto, sobre a reescritura. Outrossim, de posse desses conhecimentos<br />

e das macrorregras, o sujeito leitor poderá compreender melhor<br />

as informações dos textos.<br />

De modo geral, os resultados relacionados à identificação<br />

dessas estratégias, apontam uma tendência maior de uso satisfatório<br />

dos textos TNAs em relação aos TADs. Neste caso, acreditamos<br />

que quanto maior for a compreensão, maior será a adequação da<br />

reescritura, pois o sujeito não pode reescrever aquilo que não co-<br />

2 Abreviaremos (TNA) para texto narrativo.<br />

3 Abreviaremos (TAD) para texto argumentativo dialógico.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

804<br />

nhece. Tal compreensão deve ser atribuída à habilidade de apreender<br />

a macro e superestrutura textual. Por sua vez, o baixo desempenho<br />

dos textos TADs ocorre, ainda, devido à ausência de um trabalho<br />

centrado nesta tipologia (TAD). Enfim, as ocorrências sinalizam<br />

que as estratégias podem ser desenvolvidas e até modificadas<br />

pela intervenção pedagógica, indicando, portanto, que essas estratégias<br />

não funcionam como norma para ordenar uma ação ou sequências<br />

de proposições, mas possibilitam avançar seu curso em<br />

função de critérios de eficácia textual, de intensificação e compreensão<br />

do que foi lido, de detecção das possíveis falhas de compreensão<br />

responsáveis pela construção de uma interpretação para o<br />

texto.<br />

Por outro lado, toda essa discussão pode nos conduzir à<br />

conclusão de que essas metarregras não dão conta, sozinhas, de todas<br />

as condições necessárias para um texto ser avaliado como bem<br />

formado. No entanto, para a construção do sentido de um texto,<br />

muitos elementos se entrelaçam e muitos caminhos são tomados<br />

para que o leitor consiga atingir o propósito de leitura e desenvolver<br />

habilidades inferenciais e argumentativas. Assim, tais habilidades<br />

estão associadas à capacidade de compreensão, pois só se fala<br />

daquilo que se compreende. Nesse sentido, tomando como exemplo<br />

a tarefa de reescritura proposta neste trabalho, os resultados demonstraram<br />

que os sujeitos leitores reescreveram apenas aquilo que<br />

eles compreenderam.<br />

Cumpre salientar, ainda, que com relação à superestrutura do<br />

texto (TAD), a consideração de aspectos superestruturais foi feita com o<br />

propósito de verificar a validade de uma das hipóteses apresentadas neste<br />

trabalho. No caso do texto (TAD), o esquema superestrutural proposto<br />

por Boissinot (1992) corresponde aos seguintes componentes mínimos:<br />

a) tese proposta (corresponde ao ponto de vista privilegiado no texto); b)<br />

tese refutada (indica um ponto de vista contrário ao da tese proposta); c)<br />

justificativa (corresponde aos argumentos, fatos, exemplos que fundamentam<br />

a tese proposta); d) conclusão (consiste na reafirmação da tese<br />

proposta mediante um argumento de caráter genérico). Por outro lado, a<br />

ordem seguida na realização textual desse esquema, pode ser descrita ainda,<br />

por evidência, justificativa e tese.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

805<br />

Dito isto, não devemos rejeitar as reescrituras com percentual<br />

macro ou superestrutural insatisfatório, mas principalmente, entender<br />

até que ponto eles refletiram acerca do texto. Assim sendo, os resultados<br />

demonstram que os esquemas cognitivos que permitem as inferências<br />

necessárias para depreender a macro e superestrutura dos textos,<br />

em termos de cálculos cognitivos, não foram os mesmos acionados<br />

pelas tipologias em questão (TNAs/TADs), indicando por que as<br />

leituras e reescrituras são extremamente variáveis.<br />

Com base nas ocorrências obtidas, veremos a comparação do<br />

percentual (%) e número de sujeitos com relação aos componentes<br />

superestruturais verificados nas reescrituras (TNAs/TADs).<br />

SUJEITOS PERCENTUAL(%) COMPONENTES<br />

TNAs TADs TNAs TADs Ocorrências<br />

4 3 40 30 Sim<br />

2 1 20 10 Parcial<br />

4 6 40 60 Não<br />

Os resultados da tabela sugerem que esses dois grupos de sujeitos<br />

apresentam um desempenho diferenciado na recuperação dos<br />

componentes superestruturais de cada texto. Destarte, esses resultados<br />

confirmam a primeira hipótese secundária de que o conhecimento<br />

mínimo do esquema canônico dos textos (TNA/TAD) será o fator<br />

determinante para uma melhor compreensão das formas de estruturação<br />

dessas tipologias. Porém, do ponto de vista quantitativo, essa diferença<br />

não apresenta tanta discrepância, principalmente, no que se<br />

refere à identificação total (sim) e parcial (P), pois verificamos nas<br />

reescrituras dos textos TNAs, que 40% dos sujeitos recuperaram plenamente<br />

(significa que o sujeito considerado produziu em sua reescritura<br />

uma macroproposição correspondente ao conteúdo do componente<br />

em questão) os componentes superestruturais em relação a<br />

30% dos textos TADs. Este desempenho, por parte dos sujeitos,<br />

comprova ainda que 20% dos sujeitos (TNAs) e 10% (TADs) recuperaram<br />

parcialmente (demonstra que o sujeito produziu uma macroproposição<br />

correspondente ao conteúdo do componente em questão,<br />

porém, com algum desvio ou lacuna de conteúdo) esses componentes<br />

superestruturais. No entanto, os que não conseguiram recuperar<br />

(significa que o sujeito produziu uma macroproposição expressando<br />

um conteúdo distinto daquele do componente em questão ou


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

806<br />

ignorou completamente tal componente, não fazendo, diante disto,<br />

referência a ele) os componentes, oscilaram entre 40% para o TNA e<br />

60% para o TAD.<br />

De modo geral, os resultados acima destacados sugerem um<br />

melhor desempenho em relação à superestrutura para os textos TNAs<br />

do que para os textos TADs. Portanto, os dois textos (TNAs/TADs)<br />

comparados na tabela, podem também, ser observados a partir do<br />

gráfico, a seguir.<br />

Comparação com relação à superestrutura<br />

Como vemos neste gráfico, do ponto de vista quantitativo, entretanto,<br />

não verificamos diferença tão significativa com relação aos<br />

dois grupos de leitores na comparação da recuperação dos componentes<br />

superestruturais para o resultado total com o código (Sim) e o<br />

parcial (P), mas, apenas uma diferença (40% TNA e 60% TAD) para<br />

a ausência (N), ou seja, a falta de recuperação desses componentes.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

807<br />

No entanto, no que diz respeito à organização global, a atenção deve<br />

ser centrada em todos os componentes que foram minimamente identificados.<br />

Na verdade, poderíamos mesmo afirmar que a maior ou menor<br />

presença de cada um desses componentes superestruturais depende<br />

da maneira como o sujeito leitor recruta e opera com vários<br />

recursos linguísticos de que dispõe, bem como da relevância do esquema<br />

de tipo de texto para a produção ou a compreensão. Assim,<br />

conforme van Dijk e Kintsch (1983), a construção de um texto é resultado<br />

da capacidade de usar os recursos disponíveis para construir<br />

um macroplano, cuja execução depende da construção do texto base<br />

(representação semântica do input discursivo na memória episódica),<br />

por meio de subestratégias responsáveis pelo estabelecimento da coerência<br />

semântica, global e local. Além disso, para se entender os<br />

componentes superestruturais de um texto é necessário que o leitor<br />

demonstre conhecer esse tipo de texto.<br />

Diante disso, os dados mostram que o baixo desempenho<br />

(principalmente para a conclusão) com relação aos textos TADs pode<br />

ser atribuído a não familiaridade dos alunos com esses tipos textuais<br />

na escola. De fato, os sujeitos recuperaram mais facilmente os<br />

componentes superestruturais do TNA. Nesse sentido, concordamos<br />

com Dolz (1992) quando diz que esse tipo de texto (TNA) passou a<br />

ser mais trabalhado com os estudantes em sala de aula e, por isso,<br />

passou a ser mais familiar. Por fim, como salientamos anteriormente<br />

(SOUSA, 2003), o ensino de tipos e gêneros textuais deve ser feito a<br />

partir do primeiro ano, possibilitando, portanto, que o sujeito leitor<br />

apreenda, efetivamente, a lidar com a argumentação oral e escrita.<br />

4. Considerações finais<br />

A nossa proposta neste trabalho foi avaliar a compreensão leitora<br />

de textos narrativos e argumentativos dialógicos por leitores do<br />

ensino fundamental, a partir da análise da macro e superestrutura<br />

desses tipos textuais, obtidos mediante a tarefa de reescritura e de<br />

testes de leitura do tipo Cloze. Investigamos até que ponto as reescrituras<br />

por leitores do ensino fundamental para os dois tipos de textos


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

808<br />

refletiam a compreensão adequada da macroestrutura textual e do reconhecimento<br />

da organização global dessas tipologias. Assim, os<br />

textos selecionados estão organizados segundo diferentes formas de<br />

estruturação, sendo um narrativo e outro argumentativo dialógico. O<br />

primeiro apresenta maior explicitude da organização interna, tendo<br />

sido por isso, considerado mais familiar e, portanto, mais favorável<br />

ao processamento do que o texto argumentativo dialógico, mais<br />

complexo do ponto de vista de sua estrutura global, organizado segundo<br />

um esquema de confronto de teses: tese proposta e tese refutada<br />

mediante um processo de argumentação.<br />

Desse modo, estabelecemos como hipótese básica de nossa<br />

pesquisa que leitores proficientes, ao realizarem uma tarefa de reescritura,<br />

apresentam melhor desempenho quanto à recuperação da<br />

macroestrutura textual e quanto ao reconhecimento da organização<br />

global do texto narrativo do que do texto argumentativo dialógico,<br />

tendo em vista a maior explicitude da organização interna deste primeiro<br />

tipo de texto. De modo complementar, formulamos três hipóteses<br />

secundárias em função do mesmo nível de leitura dos sujeitos<br />

da pesquisa. Nesse sentido, esperávamos que o conhecimento mínimo<br />

do esquema canônico dos textos (TNA/TAD) seria o fator determinante<br />

para uma melhor compreensão das formas de estruturação<br />

dessas tipologias; existe um esquema textual para cada tipologia que<br />

deveria ser atingido para que leitores independentes pudessem empregar<br />

as estratégias de leitura e (re) construir a macroestrutura; a diferença<br />

entre o desempenho leitor do aluno e o tipo de texto (narrativo<br />

ou argumentativo dialógico) deveria ser demonstrada claramente,<br />

a partir de estratégias cognitivas utilizadas no processamento.<br />

Na avaliação das reescrituras foram considerados diversos fatores<br />

que acreditávamos serem evidenciadores de compreensão global<br />

dos textos reescritos: a organização global, a progressão da informação,<br />

o uso de estratégias de reescrituras e de regras de sumarização<br />

e a percepção da coerência macro e superestrutural das reescrituras.<br />

De forma geral, as análises procedidas dos resultados das avaliações<br />

confirmaram a hipótese básica, ou seja, leitores proficientes,<br />

ao realizarem uma tarefa de reescritura, apresentam melhor desem-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

809<br />

penho quanto à recuperação da macroestrutura textual e quanto ao<br />

reconhecimento da organização global do texto narrativo do que do<br />

texto argumentativo dialógico, tendo em vista a maior explicitude da<br />

organização interna deste primeiro tipo de texto.<br />

O desempenho dos sujeitos da amostra variou de acordo com<br />

o tipo de texto, mas também, a partir de estratégias cognitivas utilizadas<br />

no processamento.<br />

Os resultados confirmam que foi possível recuperar plenamente<br />

40% e parcialmente 20% da macroestrutura textual e do reconhecimento<br />

de organização global dos textos TNAs comparado aos<br />

textos TADs, que obtiveram respectivamente, 30% e 10% na apreensão<br />

desses mesmos conteúdos.<br />

Com relação às hipóteses secundárias, todas foram testadas e<br />

confirmadas.<br />

A primeira dessas hipóteses era de que o conhecimento mínimo<br />

do esquema canônico dos textos (TNA/TAD) seria o fator determinante<br />

para uma melhor compreensão das formas de estruturação<br />

dessas tipologias. Assim, os resultados indicam que dos textos TNAs<br />

foi possível depreender plenamente 40% de todos os componentes<br />

do esquema canônico, 20% parcial e 40% que apresentaram dificuldade<br />

ou que ignoraram qualquer referência com relação aos componentes<br />

do texto base, que comparado aos textos TADs, obtiveram<br />

30% total, 10% parcial e 60% que apresentaram dificuldades ou produziram<br />

componentes discrepantes para o texto base. A segunda hipótese<br />

secundária, por consequência, era a de que existe um esquema<br />

textual para cada tipologia que deveria ser atingido para que leitores<br />

independentes pudessem empregar as estratégias de leitura e (re)<br />

construir a macroestrutura. De fato, as análises realizadas indicaram<br />

que durante a leitura, os sujeitos tentaram aplicar as estratégias que<br />

eles consideravam adequadas a fim de alcançar os objetivos estabelecidos<br />

na execução da tarefa. Com isso, desse grupo de sujeitos,<br />

20% dos textos TNAs e 10% dos textos TADs utilizaram em suas reescrituras<br />

procedimentos estratégicos cognitivamente menos sofisticados,<br />

ou seja, menos habilidade na manipulação dos diferentes recursos<br />

(substituições lexicais, pronominalizações, explicitações de<br />

inferências etc) que garantem a retomada ou recuperação de elemen-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

810<br />

tos dos textos, valendo-se ainda, da estratégia geral de reorganização<br />

das informações do texto base, sugerindo assim, uma leitura mais<br />

global dos textos e um esforço na tentativa de (re) construir a macroestrutura,<br />

reescrevendo-a, portanto, apenas parcialmente, em relação<br />

aos textos base. Por fim, os demais sujeitos, isto é, 40% dos textos<br />

TNAs e 60% dos textos TADs, apresentaram problemas de coerência<br />

macroestrutural. Em geral, todas (40% e 60%) essas reescrituras revelaram<br />

problemas de desenvolvimento sequencial e incoerência na<br />

progressão das informações, além de enunciados contraditórios com<br />

relação ao conteúdo base, principalmente, para a finalização de suas<br />

reescrituras. Finalmente, a terceira hipótese secundária era a de que a<br />

diferença entre o desempenho leitor do aluno e o tipo de texto (narrativo<br />

ou argumentativo dialógico) deveria ser demonstrada claramente,<br />

a partir de estratégias cognitivas utilizadas no processamento. Assim,<br />

os resultados, de modo geral, comprovam um melhor desempenho<br />

dos sujeitos dos textos TNAs com relação às estratégias cognitivas<br />

utilizadas no processamento cognitivo do que os sujeitos dos textos<br />

TADs, ao utilizarem estratégias de reescrituras mais sofisticadas,<br />

como por exemplo, a explicitação de inferências, a integração e a reconstrução<br />

de informações dos textos originais, o atendimento às<br />

condições de coerência global (repetição, progressão, não contradição<br />

e relação), a reconstituição dos componentes superestruturais essenciais<br />

de cada texto base.<br />

Dessa forma, o desempenho dos sujeitos da amostra variou, a<br />

partir da execução da atividade de reescritura proposta, isto quer dizer<br />

que quando comparamos o desempenho dos sujeitos leitores nos<br />

dois tipos de textos (TNAs/TADS), para a habilidade inferencial e o<br />

processamento de estratégias macro e superestruturais, constatamos<br />

diferenças pouco significativas ponto de vista quantitativo, principalmente,<br />

no que se refere à identificação total e parcial, pois verificamos<br />

nas reescrituras dos textos TNAs que 40% dos sujeitos recuperaram<br />

plenamente (significa que o sujeito considerado produziu<br />

em sua reescritura uma macroproposição correspondente ao conteúdo<br />

do componente em questão) os componentes superestruturais em<br />

relação a 30% dos textos TADs. Assim, este desempenho, por parte<br />

dos sujeitos, comprova, ainda, que 20% dos sujeitos (TNAs) e 10%<br />

(TADs) recuperaram parcialmente (demonstra que o sujeito produziu


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

811<br />

uma macroproposição correspondente ao conteúdo do componente<br />

em questão, porém com algum desvio ou lacuna de conteúdo) esses<br />

componentes superestruturais. De fato, os que não conseguiram recuperar<br />

os componentes superestruturais (significa que o sujeito produziu<br />

uma macroproposição expressando um conteúdo distinto daquele<br />

do componente, em questão ou ignorou completamente tal<br />

componente, não fazendo, destarte, referência a ele) oscilaram entre<br />

40% para o TNA e 60% para o TAD.<br />

Diante disso, verificamos que existe uma tendência em favor<br />

de melhor desempenho para os textos TNAs no que se refere à identificação<br />

total e parcial desses componentes superestruturais, entretanto,<br />

essa diferença parece pouco significativa quantitativamente<br />

(40% e 20% para o TNA/ 30% e 10% para o TAD), o que nos leva a<br />

ponderar que não basta sugerir que o texto narrativo seria propício ao<br />

processamento e, portanto, de fácil compreensão, dada a maior familiaridade<br />

de sua estrutura ou que o texto argumentativo, por sua vez,<br />

seria o tipo de texto mais complexo do ponto de vista de sua estrutura<br />

global ou ainda, comparado aos textos narrativo e expositivo, o<br />

texto argumentativo, por sua vez, seria o tipo de texto mais complexo<br />

do ponto de vista de sua estrutura global.<br />

Cumpre salientar ainda, que não basta verificar se o sujeito<br />

leitor preservou mais ou menos itens com relação à macroestrutura<br />

textual e à organização global do texto original, mas principalmente,<br />

entender o que ele compreendeu do texto. Nesse sentido, não queremos<br />

fazer distinções para ver quem é melhor ou menos hábil, pois a<br />

compreensão do processo de leitura não termina na produção de reescrituras,<br />

mas na compreensão e não basta só o sujeito compreender<br />

o texto do autor, ele tem que fazer uma leitura crítica, refletir acerca<br />

do texto. Eis aí que entra a proposta de nossa pesquisa, pois ao trabalharmos<br />

com as tipologias em questão (TNAs/TADs), poderemos<br />

contribuir no sentido de levar o aluno a pensar, a refletir sobre o texto,<br />

a compreender o que está nas entrelinhas.<br />

Nesta perspectiva, com base nas teorias elencadas e nos dados<br />

obtidos na pesquisa, podemos afirmar que com a solicitação de transformar<br />

o texto base em sua forma de reescritura, verifica-se não só a<br />

compreensão do conteúdo, mas também, o domínio da habilidade de


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

812<br />

expressão escrita. Portanto, a reescritura, como forma de aprendizagem<br />

e de avaliação, poderia ter sua utilização estendida para todos os<br />

níveis de ensino (do ensino fundamental ao superior) permitindo o<br />

desenvolvimento simultâneo e integrado das duas habilidades envolvidas<br />

na atividade escolar: leitura e escrita.<br />

As macrorregras de sumarização propostas neste trabalho,<br />

embora apresentem limitações, deixam uma contribuição ao ensino<br />

que é o quadro teórico apresentando os critérios para avaliação de<br />

reescrituras produzidas pelos sujeitos em tarefas oriundas de sala de<br />

aula. Neste caso, a partir delas, pode-se subsidiar o sujeito leitor na<br />

identificação das informações básicas do texto. Além disso, como o<br />

conjunto de conhecimento varia de leitor para leitor, durante o processo<br />

de leitura, com compreensão, ocorre um processo de sumarização,<br />

através do qual o sujeito leitor, mentalmente, constrói os elementos<br />

essenciais do texto. Ainda assim, esses processos (leitura/sumarização)<br />

podem apresentar resultados (compreensão/interpretação)<br />

extremamente variáveis.<br />

As evidências sugeridas pelos dados e pelos exemplos comentados,<br />

embora frutos de uma pesquisa experimental de rigor científico,<br />

não podem ser entendidas como conclusivas. Com isso, temos<br />

consciência da necessidade de mais investigação sobre o assunto,<br />

pois falta ainda muito trabalho, tanto teórico como experimental, para<br />

encontrarmos novos parâmetros que permitam dar conta de diferenças<br />

de compreensão entre os textos reescritos pelos sujeitos leitores<br />

de nossa pesquisa.<br />

Destarte, diante dos resultados sumarizados, julgamos ter apresentado<br />

alguns elementos que podem contribuir para uma melhor<br />

compreensão dos textos abordados (TNAs/ TADs). Portanto, esperamos<br />

que as ideias expostas neste trabalho possam servir de ponto<br />

de partida para outras pesquisas sobre o assunto e de motivação para<br />

que professores envolvidos com o ensino fundamental e médio alimentem<br />

uma reflexão, sempre oportuna, sobre o ensino/aprendizagem<br />

da língua, sobretudo, no que diz respeito à tarefa (reescritura) de<br />

pesquisa proposta. Nesse sentido, no tocante às pesquisas posteriores<br />

nesta linha de trabalho, fica aberta uma pesquisa que estude como<br />

essa tarefa pode ser reconfigurada em outras turmas e por que não


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

813<br />

reaplicá-la em escolas públicas, para comparar os dados e saber se os<br />

sujeitos leitores (alunos) apresentariam ou não o mesmo desempenho.<br />

Por fim, não nos parece, contudo, insensato apostar na possibilidade<br />

de outra pesquisa sugerindo o cumprimento de tarefa de reescritura<br />

para avaliar a compreensão leitora dos sujeitos com relação às<br />

tipologias em questão (TNAs/TADs) ou de outros tipos e gêneros<br />

textuais, tais como uma tarefa de escrita argumentativa, uma tarefa<br />

de reconhecimento de inferências, uma tarefa de textualidade, uma<br />

tarefa de julgamento argumentativo, em particular, para julgamentos,<br />

graus de argumentatividade e desenvolvimento de suas capacidades<br />

argumentativas.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ALLIENDE, F. Evaluacion de la legibilidad de los materiales escritos.<br />

Lectura y Vida. Newark, Delaware, IRA, 14-8, 1990.<br />

BARTHES, Roland. L'anciene rhéthorique. Comunication. Nº 16, p.<br />

172-229, 1970.<br />

BOISSINOT, Alan. Les textes argumentatifs. Toulouse: Bertrand-<br />

Lacoste, 1992.<br />

CHAROLLES, Michel. Les forms directes et indirectes de<br />

l’argumentation the direct and indirect forms of argumentation. Pratiques,<br />

n. 28, p. 7-43, 1980.<br />

______. Introdução aos problemas de coerência dos textos. In: ___.<br />

O texto: leitura e escrita. 2. ed. Campinas: Pontes, 1997, p. 39-90,<br />

CHAMBLISS, M. J. Text cues and strategies successful readers use<br />

to construct the gist of lengthy written arguments. Reading Research<br />

Quarterly, Newark, Delaware, IRA, 30 (4), 778-807, 1995.<br />

CUNNINGHAM, J. W.; GALL, M. D. The effects of expository and<br />

narrative prose on students achievement and attitudes toward textbooks.<br />

Journal of Experimental Education, 58 (3), 165-75, 1990.<br />

DOLZ, Joaquim. Learning argumentative capacities. A study of the<br />

effects of a systematic and intensive teaching of argumentative dis-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

814<br />

course in 11-12 year old children. Department of Psychology and<br />

Educational Sciences. University of Genebra, p. 1-27, 1992.<br />

______.Cómo ensenar a escribir relatos históricos? Elaboración de<br />

dos secuencias didácticas y evaluación de su impacto en alumnos de<br />

la escuela primaria, Aula de innovación educativa, n. 2, 23-28, 1992.<br />

GOLDER, Caroline; COIRIER, Pierre. Argumentative Text Writing:<br />

Developmental Trends. Université de Poitiers, France. Discourse<br />

Processes, 18, p. 187-210, 1994.<br />

KINTSCH, Walter;van, DIJK. Strategies of discouse comprehension.<br />

San Diego, California: Academic Press, 1983.<br />

______. Cognitive psychology and discourse: recalling and summarizing<br />

stories. In: SINGER, H.; RUDELL, R. (Eds.). Teoretical models<br />

and processes os reading. Newark, Delaware, IRA, 794-812,<br />

1985.<br />

LABOV, Willian; Waletzky, J. Narrative analysis: Oral versions of<br />

personal experience. In: HELM, J. (ed.) Essays on the visual arts.<br />

Washington: Univ. of Wahington Academic Press, 1967.<br />

______. Metacognition. Knowing about knowing. Why Investigate<br />

Metacognition? Edited by Janet Metcalfe and Arthur p. Shimamura.<br />

A. Bradford Book. The MIT Press. Cambridge, Massachusetts. London,<br />

England, p. 01-35, 1994.<br />

PERELMAN, Cbaïm. L’empire rhétorique. Paris. Vrin, 1977.<br />

SCHNEUWLY, Bernard. Le langage écrit chez l’enfant. Neuchâtel.<br />

Delachaux et Niestlé, 1988.<br />

SOUSA, Antonia Valdelice de. Compreensão de textos argumentativos<br />

por leitores do ensino fundamental. Dissertação de Mestrado:<br />

UFC, 2003.


1. Introdução<br />

CONSERVAÇÃO E PRESERVAÇÃO<br />

DOS ACERVOS DOCUMENTAIS BAIANOS<br />

E O TRABALHO FILOLÓGICO<br />

Maria da conceição Reis Teixeira (UNEB; SALT)<br />

conceicaoreis@ig.com.br<br />

A “certidão de nascimento” do Brasil, ou melhor, a carta de<br />

“achamento do Brasil”, redigida por Pero Vaz de Caminha, em 1500,<br />

foi lavrada na Província da Bahia. Nela, o seu redator prestava conta<br />

à coroa portuguesa “do achado das terras do Brasil”. O país “nasceu”,<br />

deu seus primeiros passos em solos da Baía de Todos os Santos.<br />

Não há dúvidas de que aqui foram lavrados os primeiros documentos<br />

oficiais que marcaram a sua história política, econômica, social<br />

e cultural. Como não há dúvidas que aqui também teve início a<br />

criação dos primeiros acervos documentais brasileiros. As igrejas,<br />

devido ao poder e ao prestígio que detinham, certamente foram as<br />

naturais guardiãs dos primeiros textos aqui lavrados. As cadeias, as<br />

câmaras administrativas, as bibliotecas particulares, os arquivos públicos<br />

e privados, com o passar do tempo, vão gradativamente se encarregando<br />

desta atividade, preservando-os do extravio, do desaparecimento,<br />

da destruição.<br />

Por esta razão, os acervos baianos depositam documentos jurídicos,<br />

legislativos, executivos, folhetos, jornais, revistas, obras literárias<br />

e não literárias. São textos valiosíssimos, que armazenam informações<br />

preciosas capazes de ajudar a elucidar muitos aspectos da<br />

nossa história que ainda carecem de ser esclarecidos, escritos e rescritos,<br />

nos permitindo compreender melhor o cotidiano da sociedade,<br />

elucidando aspectos da história do Brasil da época em que estes foram<br />

lavrados. Entretanto, com o passar do tempo, parece que estes<br />

acervos não receberam a devida atenção de seus gestores, do poder<br />

público no seu gerenciamento, visando à preservação e à conservação<br />

dos mesmos.<br />

Para a concretização dos objetivos traçados no projeto de<br />

pesquisa intitulado Edição e Estudos de Textos Literários e Não Li-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

816<br />

terários, é preciso visitar os acervos baianos na tentativa de localizar<br />

os textos, mapeá-los para depois transcrevê-los. Atividade que tem<br />

se mostrado árdua de ser executada, devido à dificuldade de acesso<br />

aos arquivos e, consequentemente, ao conjunto de documentos que<br />

interessam ao trabalho em execução. Contudo, as constantes visitas<br />

aos acervos têm oportunizando, gradativamente, delinear um quadro<br />

real do estado de conservação dos acervos documentais existentes no<br />

estado da Bahia.<br />

Almejo, no presente texto, a partir de alguns exemplos, oferecer<br />

uma pequena mostra do estado de conservação dos acervos visitados<br />

até o momento com vistas à composição do corpus que pretendo<br />

editar, destacando o importante labor desenvolvido pela Filologia<br />

Textual, ramo do saber que trabalha com o texto escrito, retirando-o<br />

do ostracismo e facultando à sociedade o acesso ao patrimônio espiritual<br />

produzido por uma dada comunidade.<br />

2. Preservação e conservação de acervos documentais<br />

Acervos, do latim acervus, ‘montão, ‘ruma’ ou ‘conjunto de<br />

bens que integram um patrimônio’, são celeiros que os pesquisadores<br />

das variadas áreas do saber, sobretudo os filólogos, adentram, vasculham,<br />

esmiúçam na tentativa de encontrar indícios que os possibilitem<br />

reconstruir ou tentar reconstruir e compreender os fatos, os acontecimentos<br />

elaborados, vividos, experimentados por um povo,<br />

uma nação, uma civilização. A palavra acervo remete a arquivos,<br />

que, até pouco tempo, eram entendidos como simples “depósito” de<br />

papéis velhos, entretanto, na atualidade, são definidos como unidades<br />

administrativas, cuja principal função é a de reunir, ordenar, selecionar,<br />

guardar e dispor conjuntos de documentos, para uso individual<br />

ou coletivo. Portanto, o papel básico dos arquivos é recolher,<br />

conservar e disponibilizar os documentos públicos após terem eles<br />

desempenhado a finalidade que os fez surgir.<br />

O homem por onde passa deixa seu rastro, seja este produzido<br />

involuntariamente como, por exemplo, os resquícios dos objetos, utensílios,<br />

seja produzido voluntariamente, com o objetivo de registrar,<br />

documentar para as gerações futuras o saber acumulado por aquele<br />

homem ou por aquela civilização, através das diversas formas


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

817<br />

de escrita experimentada pela humanidade. Concordo com Diderot<br />

quando diz que:<br />

[...] sem escrita, privilégio do homem, cada indivíduo, reduzido à sua<br />

própria experiência, seria forçado a recomeçar a carreira que o seu antecessor<br />

teria percorrido, e a história dos conhecimentos do homem seria<br />

quase a da ciência da humanidade. (apud MARTINS, 1996, p. 70)<br />

Talvez seja por esta razão que Vera Acioli (2003), em A Escrita<br />

no Brasil Colônia: Um Guia para Leitura de Documentos Manuscritos,<br />

considere o documento manuscrito a mola-mestra da História.<br />

Aqui amplio o qualificativo “mola-mestra” para todos os textos<br />

escritos. Graças à necessidade de comunicação, através do texto escrito<br />

se pôde inferir sobre o passado dos egípcios, assírios, babilônios,<br />

cretenses, hebreus, romanos, chineses, hindus, por exemplo. O<br />

que já inferimos e ainda poderemos inferir sobre os americanos, os<br />

brasileiros, sem dúvida, é e será graças aos documentos “armazenados”<br />

nos arquivos.<br />

Os documentos dos arquivos permitem avivar os fatos, acontecimentos,<br />

todavia para que isto aconteça é necessário adentrar nos<br />

“sótãos dos fatos”, revirar papéis velhos amórficos, raspar a camada<br />

espessa de poeira, colar fragmentos, organizar retalhos, colocar em<br />

desordem para depois ordená-los, fazendo emergir o texto e contribuído<br />

para “o mover das histórias” que se encontram aprisionadas,<br />

adormecidas, silenciadas nos cartórios, nas igrejas, nos conventos,<br />

nas Câmaras Municipais, nas bibliotecas, nos arquivos públicos e eclesiásticos.<br />

Fato é que os documentos armazenados nas estantes dos arquivos,<br />

com raríssimas exceções, agonizam e morrem lenta e silenciosamente.<br />

Acredito que é necessário pensar numa política de preservação<br />

e em conservação preventiva. É necessário também que as<br />

ações empreendidas sejam, de fato, efetivas e bem direcionadas.<br />

Mas, afinal, que é uma política de preservação? Uma política de prevenção<br />

é um tipo de ação de âmbito superior, que engloba o desenvolvimento<br />

e implantação de planos, programas e projetos de preservação<br />

de acervos. Possui objetivos, limites e diretrizes para atingir<br />

um resultado. Visa definir orientações globalizantes, sistemáticas e<br />

contínuas a serem alcançadas.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

818<br />

Acredito que as péssimas condições constatadas nos acervos<br />

baianos não sejam exclusivas do Estado da Bahia, uma vez que Vera<br />

Acioli (2003), na obra supracitada, afirma que o estado de conservação<br />

dos documentos manuscritos na maioria dos Estados brasileiro é<br />

desolador. Diz-nos ainda:<br />

[...] da falta de interesse dos detentores dos documentos e da carência de<br />

uma política voltada à preservação dos arquivos, quer públicos, quer<br />

provados, é a ausência de condições para a conservação e organização da<br />

maioria deles. Arquivo morto, no Brasil, é sinônimo de porão, onde os<br />

documentos são jogados sem qualquer tratamento técnico. Na maior parte<br />

dos casos é preciso um grande esforço de triagem do documento por<br />

parte do pesquisador, a fim de recuperar qualquer informação. (ACIOLI,<br />

2003, p. 15)<br />

A pesquisadora tem razão quando afirma que os poderes públicos,<br />

até o momento, não desenvolveram, efetivamente, uma política<br />

de conservação e restauração dos documentos que ainda restam.<br />

Salvo raras exceções, os nossos acervos documentais são geridos por<br />

gestores desqualificados para a função de guardiões do patrimônio<br />

cultural, acondicionados em ambientes inadequados, manipulados<br />

por servidores inábeis para a função que desempenham.<br />

Destarte, Spinelli Júnior (1997) aponta, como exigências básicas<br />

para a conservação de um patrimônio cultural, administração<br />

segura, recursos adequados e conhecimentos decorrentes da ciência e<br />

da técnica. Assevera ainda que todo legado histórico é de responsabilidade<br />

de todos e isto implica na disponibilidade ao uso, sob critérios<br />

determinados que garantam sua transmissão às gerações futuras. E<br />

diz ainda:<br />

A gravidade e a urgência de todos os problemas concernentes à<br />

conservação de patrimônios culturais como os vemos hoje, só poderão<br />

ser resolvidos através de ampla revisão nas atitudes profissionais, institucionais<br />

e políticas. Não haverá nenhum tipo de avanço substancial quanto,<br />

à permanência de um bem cultural, seja ele qual for, enquanto não<br />

houver um maciço esforço neste sentido. (SPINELLI JÚNIOR, 1997, p.<br />

11)<br />

Penso que o compromisso em conservar e preservar as fontes<br />

documentais não é dever apenas de quem gere os acervos. Quem se<br />

utiliza destas fontes também deve ser responsável. Os pesquisadores<br />

devem ser treinados tecnicamente para manusear de forma a não acentuar<br />

ou contribuir para a degradação do suporte ou da mancha es-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

819<br />

crita. Deve também ser conscientizado da importância da preservação<br />

do acervo enquanto documento de uma época, ou seja, não basta<br />

recolher a informação, transcrever o texto, acreditando que está preservando,<br />

é imprescindível a preservação do documento enquanto<br />

documento.<br />

Carecem de cuidados não somente as chamadas obras raras,<br />

mas toda a produção escrita da atualidade. Os livros, as revistas, os<br />

jornais, os documentos manuscritos legais do poder executivo, legislativo<br />

e judiciário, por exemplo, serão os “papéis velhos” do futuro,<br />

portanto, devem ser conservados. Não se pode perder de vista que os<br />

acervos bibliográficos, legados históricos, traduzem todo bem cultural,<br />

são testemunhos ou provas de contínuo desenvolvimento cultural<br />

da humanidade, e, por esta razão, a sua preservação é de responsabilidade<br />

de todos e isto implica na responsabilidade de uso. È imprescindível<br />

ter consciência da fragilidade dos suportes. As agressões<br />

climáticas e o manuseio pelo próprio homem, o uso dos processos de<br />

reprodução modernos, aceleram a destruição dos suportes. Então,<br />

como decidir o que deve ser preservado ou ser incluído em um programa<br />

de preservação? Todas as coleções de uma biblioteca ou de<br />

um acervo devem ser alvo de um programa de preservação?<br />

Não há dúvidas de que é todo o acervo, ou melhor dizendo,<br />

todos os acervos devem ser incluídos em um programa de conservação<br />

e preservação. No entanto, Zuñiga (2002) diz que, na impossibilidade<br />

de incluir todo o acervo num programa de preservação, é necessário,<br />

em primeiro lugar, conhecer a fundo o arquivo sobre o qual<br />

se pretende trabalhar. Ressalta que tudo é importante para se ter um<br />

quadro preciso do risco que o acervo vem sofrendo e a partir daí decidir-se-á<br />

pelas obras que deverão ser incluídas no programa de preservação<br />

e conservação. Para que isto aconteça é fundamental que os<br />

gestores conheçam qual o valor do acervo e qual o impacto das perdas<br />

e danos para o conjunto de obras que faz parte do acervo. É necessário<br />

identificar que métodos, ações normativas serão mais eficazes<br />

na minimização dos processos de degradação do acervo e quais<br />

os custos e prazos para tais ações.


2.1. Alguns exemplos<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

820<br />

O Arquivo Público da Bahia, criado em 1890, é a mais<br />

importante entidade arquivistiva do estado da Bahia, pertence ao<br />

Poder Executivo. A instituição, subordinada à Fundação Pedro<br />

Calmon – Centro de Memória e Arquivo Público da Bahia, localizase<br />

no Mosteiro da Baixa de Quintas à Ladeira de Quintas, 50, em<br />

Salvador. É guardião de importantes documentos históricos da<br />

Bahia. Compõem o acervo Documental os Arquivos Permanentes e<br />

os Temporários. As Seções do acervo permanente compreendem<br />

documentos divididos por cinco temas e períodos, a saber, (1) Seção<br />

Colonial – Provincial; (2) Seção de Arquivos Judiciários; (3) Seção<br />

de Arquivos Republicanos; (4) Seção Fazendária - Alfandegária; e<br />

(5) Seção de Arquivos Privados.<br />

A instituição conta com uma equipe de profissionais<br />

qualificados para o manuseio e transporte até a sala de consulta.<br />

Entretanto, ainda não há uma politica de preservação global do<br />

acervo. O estado de conservação dos documentos é lastimável.<br />

Muitos documentos encontram-se danificados, devido à ação de<br />

insetos, fungos, nível de umidade e a temperatura ambiente favorece<br />

a ploriferação dos mesmos. Apresentam odor muito forte. Inclusive,<br />

o seu manuseio, sem ou com uso de de luvas e máscaras<br />

(instrumentos indispensavéis quando da consulta de documentos<br />

“antigos”), poderá trazer danos à saúde do pesquisador. O suporte de<br />

alguns documentos encontram-se em bom estado de conservação,<br />

todavia, a mancha escrita esmaeceu-se e sua leitura é impossível.<br />

A Biblioteca Pública do Estado da Bahia, localizada na Rua<br />

General Labatut, Barris,Salvador, foi fundada em 1811 e passou por<br />

várias sedes até ser reinaugurada, em 1970, no atual endereço. É a<br />

primeira biblioteca com esse caráter criada no Brasil. Conta, na Subgerência<br />

de Obras Raras e Valiosas, com cerca 60.000 títulos, que<br />

abarcam quase todos os ramos do conhecimento. Há ainda uma subgerência<br />

de periódicos onde podem ser encontrados quase todos os<br />

primeiros periódicos produzidos no Brasil. Em 1912, a Biblioteca foi<br />

incendiada durante bombardeio no governo de Hermes da Fonseca,<br />

tendo perdido a maioria do seu acervo de 25.000 volumes, que ficou<br />

reduzido a 400. Sem dúvida, um prejuízo incalculável. É gerida pela<br />

Fundação Pedro Calmon, através da Diretoria de Bibliotecas (Siste-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

821<br />

ma de Bibliotecas Públicas Estaduais), que é responsável pelos serviços<br />

de implantação, assistência técnica, dinamização, aquisição e<br />

conservação de seus acervos.<br />

Infelizmente, a instituição não dispõe de profissionais com<br />

formação específica na área de conservação e preservação de acervos<br />

documentais, nem especialistas em obras raras; por exemplo, a subgerência<br />

Obras Raras e Valiosas é administrada por uma bibliotecária.<br />

Apesar dos gestores saber o valor do acervo, até o momento nada<br />

foi feito no sentido de se proceder a transferência de suporte – ou seja,<br />

transferência do suporte papel para o suporte digital via processo<br />

de escaneamento e/ou digitalização – ou o resgate via transcrição dos<br />

textos.<br />

A adoção da técnica transferência de suporte é muito benéfica<br />

a documentos raros, principalmente quando estes têm duplo valor: o<br />

suporte formato jornal, por exemplo, tem valor documental da memória<br />

da história da imprensa no Brasil e o seu conteúdo intelectual<br />

tem valor enquanto informações históricas que registram o mundo e<br />

as formas do homem conceber o mundo circundante.<br />

Cabe ressaltar que decidir digitalizar um acervo documental<br />

significa tomar decisões importantes quanto à resolução de imagem,<br />

à reprodução cromática, às compressões, ao armazenamento, à viabilização<br />

do acesso. Por exemplo, quanto maior a resolução na captura<br />

da imagem fac-similar, maior o tamanho do arquivo digital e consequentemente<br />

mais oneroso o seu armazenamento. A decisão deverá<br />

estar atrelada ao compromisso da instituição com a manutenção da<br />

versão digital através do tempo, considerando-se as mudanças tecnológicas<br />

e baseando-se numa política que assegure o acesso contínuo<br />

ao material digitalizado que tenha valor permanente para a pesquisa.<br />

Em termos práticos, a transferência de suporte pode ser adequadamente<br />

realizada, sem provocar danos aos originais, porque já<br />

existem equipamentos capazes de capturar imagens sem que ocorra o<br />

contato direto com o material alvo da digitalização. Além disso, a<br />

transferência de suporte possibilitará a preservação do conteúdo intelectual<br />

para as gerações futuras e dará acessibilidade aos pesquisadores,<br />

sem que estes contribuam para acelerar ainda mais o processo de<br />

destruição definitiva a que estão sujeitos os documentos originais,<br />

quando do seu manuseio.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

822<br />

É bom lembrar que, se o suporte do documento estiver desidratado,<br />

o próprio manuseio dos pesquisadores, no processo de resgate<br />

dos textos, contribui para acentuar ainda mais a sua fragilidade,<br />

acelerando, portanto, a sua destruição por completo e definitivamente.<br />

Caso o conjunto de documentos ou acervo bibliográfico esteja<br />

como os que ilustramos com as imagens a seguir, quase nada poderá<br />

ser feito, pois não resta mais nada a preservar. Coleções completas<br />

de periódicos raros, que somente a Biblioteca dispunha, foram totalmente<br />

destruídas. As imagens dispensam qualquer comentário acerca<br />

do estado de conservação e revelam quanto valor tem os nossos acervos<br />

para os poderes públicos.<br />

Fig. 1: Fotografia Coleção Diário da Bahia, 1871.


Fig. 2: Fotografia Coleção Echo Santamarense, 1884<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

823


Fig. 3: Fotografia da Coleção Diário da Bahia, 1872<br />

3. Considerações finais<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

824<br />

Convém lembrar que a palavra filologia, etimologicamente,<br />

tem sido entendida como ‘culto da erudição’. Lázaro Carreter (1990,<br />

p. 187), por exemplo, define como sendo a “ciência que estuda a linguagem,<br />

a literatura e todos os fenômenos de cultura de um povo ou<br />

de um grupo de povos por meio de textos escritos.” Basseto (2001, p.<br />

17) afirma que “o filólogo é aquele que apreende a palavra, a expressão<br />

da inteligência, do pensamento alheio e com isso adquire conhecimentos,<br />

cultura e aprimoramento intelectual”. Lausberg (1974) diz<br />

que a filologia tem de cumprir a tarefa tripla de crítica textual, interpretação<br />

de textos e a integração superior dos textos tanto na história<br />

da literatura como e na fenomenologia literária.<br />

Fato é que, independente das definições que o termo tem recebido<br />

ao longo da história, este ramo do saber se preocupa com a<br />

preservação da memória coletiva. Esta atividade não é uma exclusividade<br />

das sociedades modernas, pelo contrário, o homem, à medida<br />

que vem acumulando conhecimento, tem buscado manter viva a


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

825<br />

memória como forma de significar sua existência, fazendo emergir, a<br />

partir dela, sua própria história.<br />

No presente texto, busquei, através de dois exemplos, dar uma<br />

pequena mostra do estado de conservação dos acervos que foram visitados<br />

durante o meu processo de busca dos textos para a composição<br />

do corpus que pretendo editar. A situação em que se encontram<br />

nossos acervos documentais é desalentador. Se nos acervos de dois<br />

centros de referência como o Arquivo Público da Bahia e a Biblioteca<br />

Pública do Estado da Bahia não há uma política sistemática de<br />

conservação e preservação do patrimônio escritural de que são guardiões,<br />

imaginemos os acervos e bibliotecas das cidades do interior do<br />

Estado, onde os recursos, humanos e financeiros, são escassos e tardam<br />

chegar.<br />

Procurei também destacar o papel basilar desempenhado pelo<br />

filólogo para a compressão da história literária baiana, quiçá brasileira,<br />

a partir da sua incursão nos acervos públicos e privados. O trabalho<br />

do filólogo pode ser comparado com o do arqueólogo, pois enquanto<br />

este procura conhecer as civilizações da Antigüidade através<br />

dos vestígios materiais, aquele estuda os testemunhos escritos a fim<br />

de desvencilhar a história das civilizações engendrada nos materiais<br />

escritos deixados por aquelas.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil Colônia: um guia para<br />

leitura de documentos manuscritos. 2. ed. Recife: UFPE/Fundação<br />

Joaquim Nabuco/Massangana, 2003.<br />

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 6. ed. Rio de Janeiro:<br />

Forense Universitária, 2000.<br />

MAGALHÃES, Aloísio. E triunfo? a questão dos bens culturais no<br />

Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: Fundação Nacional<br />

Pró-Memória, 1985.<br />

MARTINS, Wilson. A palavra escrita: história do livro, da imprensa<br />

e da biblioteca. 2. ed. São Paulo: Ática, 1996.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

826<br />

QUEIROZ, Rita C. R. de. Para que editar? A filologia a serviço da<br />

preservação da memória baiana. In: TEIXEIRA, Maria da Conceição<br />

R.; QUEIROZ, Rita e Cássia R. de; SANTOS, Rosa Borges dos<br />

(Org.) Diferentes perspectivas dos estudos filológicos. Salvador:<br />

Quarteto, 2006, p. 141-157.<br />

______. A crítica textual e a recuperação da história. Scripta Philologica,<br />

Feira de Santana, n. 1, p. 64-79, 2005.<br />

SPINELLI JÚNIOR, Jayme. A conservação de acervos bibliográficos<br />

e documentais. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional,<br />

1997.<br />

TEIXEIRA, Maria da Conceição Reis. Textos de imprensa: problemas<br />

na sua edição. Cadernos do CNLF. Rio de Janeiro: Universidade<br />

do Estado do Rio de Janeiro, vol. 9, n. 10, 2005, p. 171-178.<br />

ZUÑIGA, Solange. A importância de um programa de preservação<br />

em arquivos públicos privados. Revista Registro, Indaiatuba, n. 1,<br />

jul. 2002, p. 71-89.


CONSTRUÇÕES LOCATIVAS NA FALA CULTA:<br />

UM ESTUDO VARIACIONISTA<br />

1. Introdução<br />

Elaine M. Thomé Viegas (UFRJ)<br />

elainemt@gmail.com<br />

Este trabalho trata da possibilidade de uso do advérbio locativo<br />

à esquerda do sintagma preposicional (SP) locativo, como nos exemplos<br />

de (01) a (03), com o objetivo de verificar o comportamento<br />

desse tipo de construção em dados de fala do Rio de Janeiro do século<br />

XX sob a metodologia da Sociolinguística implantada por Labov<br />

(1994).<br />

(01) nós moramos com meus tios-avós porque eles eram já mais idosos e... eu tinha<br />

que realmente morar com eles... e então eles é que saíram de casa... então<br />

nós morávamos num apartamento AQUI no Flamengo... e eles saíram de casa<br />

e nós tivemos a nossa lua de mel... [071-495]<br />

(02) e eu sempre odiei aquela ca... aquela carreira... eu tinha horror àquele troço...<br />

sabe... negócio de ler Diário Oficial todo dia... e andar no fórum... um calor<br />

danado AQUI no Rio de Janeiro e a gente de paletó e gravata... suando em<br />

bicas... deixando o sapato marcado no asfalto... isso não... isso não... isso não<br />

é mentira não... às vezes fazia tanto calor que a gente ficava com o sapato<br />

marcado LÁ no asfalto [018-62]<br />

(03) o meu filho mais velho teve um casamento... assim mais... mais no estilo... no<br />

estilo clássico vamos dizer assim... porque... foi um casamento AQUI na reitoria...<br />

e... os pais da moça... ficaram quer dizer viviam normalmente né?<br />

[071-514]<br />

2. Hipótese<br />

Nos exemplos em (04), em que os sintagmas preposicionados<br />

não possuem elemento definidor, a gramaticalidade das construções<br />

é duvidosa ( ( * ) ). O acréscimo de um dos advérbios de dentro dos parêntesis<br />

em anteposição ao SP locativo não modificaria tal condição.<br />

(04) a. ( * ) (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) Em sala trabalham com língua portuguesa.<br />

b. ( * ) (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) Em colégio aqueles alunos lideram a confusão.<br />

c. ( * ) O Pedro se machucou (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) em parquinho.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1


d. ( * ) Os documentos (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) em pasta precisam de carimbo.<br />

828<br />

Em (05), o acréscimo de artigo definido ou pronome demonstrativo<br />

à preposição torna, indiscutivelmente, todos os exemplos<br />

gramaticais. A presença dos advérbios locativos à esquerda dos SPs<br />

locativos não alteraria a gramaticalidade das sentenças.<br />

(05) a. (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) Na/Nesta/Nessa/Naquela sala trabalham com língua<br />

portuguesa.<br />

b. (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) No/Neste/Nesse/Naquele colégio aqueles alunos lideram<br />

a confusão.<br />

c. O Pedro se machucou (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) no/neste/nesse/naquele parquinho.<br />

d. Os documentos (AQUI/AÍ/ALI/LÁ) na/nesta/nessa/naquela pasta precisam<br />

de carimbo.<br />

Assim, uma hipótese para o uso do advérbio locativo à esquerda<br />

do SP locativo seria a de que a presença de advérbio estaria<br />

relacionada à definitude do sintagma preposicionado.<br />

3. O corpus e a metodologia<br />

O corpus utilizado como base para a análise é o do Projeto<br />

Norma Linguística Urbana Culta (NURC) da cidade do Rio de Janeiro<br />

(www.letras.ufrj.br/nurc-rj). São identificados os SPs locativos de<br />

6 entrevistas da década de 70 do século XX, independentemente da<br />

presença ou ausência do advérbio locativo à esquerda do SP, chegando-se<br />

a um total de 471 ocorrências.<br />

Na análise variacionista, a variável dependente analisada é<br />

caracterização da margem esquerda do SP locativo e as variantes<br />

são presença de advérbio locativo × ausência de advérbio locativo,<br />

como exemplificado em (06) e (07):<br />

(06) e eu sempre morei aqui... é muito engraçado isso... a minha mulher... morava<br />

AQUI nessa casinha mesmo... quando solteira... [233-17]<br />

(07) [Botafogo]... é um bairro que (es)tá... altamente familiar porque estudei lá<br />

também tenho a família toda morando Ø nesse bairro... a casa que eu estava...<br />

até... um ano atrás... [133-15]<br />

Além da variável dependente, também são analisados fatores<br />

internos e externos à língua, a saber: a) valor da preposição que in-


829<br />

troduz o SP locativo; b) caracterização do lugar contido no SP; c)<br />

função sintática do SP locativo; d) tipo de verbo; e) tipo de advérbio<br />

locativo que figura à esquerda do SP locativo; f) definitude do nome<br />

contido no SP locativo; g) definitude do nome que figura à esquerda<br />

do SP locativo; h) preposição introdutora do SP locativo; i) esvaziamento<br />

semântico da preposição de; j) tema do inquérito; k) gênero e<br />

l) faixa etária do locutor.<br />

4. Resultados iniciais e análise dos dados<br />

O programa estatístico Goldvarb X (2005) realizou a leitura<br />

dos dados percentuais. Em apenas 7% (34/471) das ocorrências de<br />

SPs locativos há advérbio locativo à esquerda. São 19 casos de aqui,<br />

9 de ali e 6 de lá.<br />

(08) quanto mais leite uma criança puder tomar melhor né até adultos também...<br />

devíamos tomar leite nas refeições mas AQUI no Brasil esse costume não é<br />

nada difundido né?<br />

(09) nunca imaginei que o Fundão pudesse ser uma calamidade como é... eu tenho<br />

a impressão que deve andar até cobra naqueles jardins ALI do Fundão... vocês<br />

trabalham LÁ no Fundão? [233-183]<br />

A ocorrência do tipo de preposição distribui-se conforme a<br />

Fig. 1. Como era esperado, as preposições locativas são as que mais<br />

introduzem o tipo de SP analisado. 1<br />

1 A preposição de pode assumir uma série de valores, a depender do contexto em que<br />

está inserida (cf. FERREIRA, 1999; CUNHA e CINTRA, 2001; LIMA, 2001; HOU-<br />

AISS, 2004; BECHARA, 2009), podendo veicular, especialmente em função de adjunto<br />

adnominal, conteúdos semânticos mais definidos como os das preposições em,<br />

com e para. Essa propriedade da preposição de pode ser analisada como resultado de<br />

ela não apresentar um eixo semântico bem delineado, o que possibilita a sua ocorrência<br />

em contextos onde outras preposições poderiam ocorrer, o que faz de de uma preposição<br />

curinga, com conteúdo semântico difuso, por isso, de difuso (THOMÉ, AN-<br />

DRADE e CALLOU, 2005; AVELAR, 2006; THOMÉ, 2006a e 2006b; SANTOS,<br />

CAMPOS e CALLOU, 2006a e 2006b; VIEGAS, 2008). Esse tipo de afirmação vai<br />

de encontro aos casos em que o item de possui uma significação mais precisa, como<br />

em adjuntos adverbiais que carregam, claramente, as noções de origem ou afastamento.<br />

De, então, possuiria a capacidade de comportar-se tanto como um item gramatical<br />

quanto como um item lexical.


15%<br />

12%<br />

73%<br />

Locativa DE Difuso Direcional<br />

Fig. 1: Distribuição do tipo de preposição<br />

830<br />

Os resultados apontam que somente os SPs que possuem termos<br />

com clara noção locativa admitem o uso do advérbio a sua esquerda<br />

(cf. Tab. 1). Termos em que a noção de lugar confunde-se<br />

com a de meio, como avião, carro, ônibus, ou termos cuja noção de<br />

lugar confunde-se com a de matéria, como pasta, jornal ou bolsa,<br />

não figuraram com advérbio locativo à esquerda do SP locativo.<br />

Caracterização de Presença Ausência<br />

lugar<br />

de advérbio de advérbio Total<br />

Oco % Oco % Oco %<br />

não topônimo 11 5 214 95 225 53<br />

topônimo 23 12 174 88 197 47<br />

Total 34 8 388 92 422 100<br />

Tab. 1: Distribuição do elemento locativo em relação à variável dependente<br />

(10) e depois a cidade ainda... voltou a crescer mais recentemente então pra bairros<br />

residenciais... e com isso ela se uniu a certas outras cidades vizinhas que<br />

eram consideradas cidades e que hoje em dia são bairros de Barcelona...<br />

(133-72)-topônimo<br />

(11) bandeira de porta é uma parte da porta eh... superior... você está vendo aquilo?<br />

bem... aquela parte superior... antigamente... em portas antigas... eh... tinha...<br />

eh... o vidro... tinha o vidro pra... pra... pra.... pra iluminação do... do...<br />

do... do recinto... não é? (233-52)-não-topônimo<br />

O cruzamento do grupo tipo de preposição com o que caracteriza<br />

lugar aponta para o fato de as preposições direcionais serem as<br />

que menos introduzem elemento locativo topônimo, com uma fre-


831<br />

quência de 26%. Já a preposição de com conteúdo semântico difuso<br />

é a que mais introduz topônimos, talvez pelo fato de veicular com<br />

maior frequência o conteúdo semântico de em, preposição essencialmente<br />

locativa (Thomé Viegas, 2008) (cf. Fig. 2).<br />

100%<br />

75%<br />

50%<br />

25%<br />

0%<br />

54%<br />

46%<br />

31%<br />

69%<br />

74%<br />

26%<br />

Locativa DE Difuso Direcional<br />

Topônimo Não-top.<br />

Fig. 2: Distribuição da presença de advérbio por preposição e tipo de lugar<br />

As funções sintáticas de complemento verbal e adjuntos adnominal<br />

e adverbial distribuem-se equilibradamente, assim como as<br />

frequências de presença de advérbio locativo de acordo com as funções<br />

sintáticas (cf. Tab. 2).<br />

Função sintática<br />

Presença<br />

de advérbio<br />

Ausência<br />

de advérbio<br />

Total<br />

Oco % Oco % Oco %<br />

c. verbal 12 7 159 93 171 37<br />

adj. adverbial 12 7 157 93 169 36<br />

adj. adnominal 10 8 115 92 125 27<br />

Total 34 7 431 93 465 100<br />

Tab. 2: Distribuição do elemento locativo em relação à função sintática<br />

(12) eu estou morando em Botafogo que é o bairro onde eu sempre morei... (133-<br />

13)-c. verbal;<br />

(13) sábado ela às vezes quer que eu leve ela pra fazer compras... porque ela não<br />

sabe guiar... então eu tenho que... e eu me recuso a ir a Copacabana num sábado...<br />

guiando... (233-466)-c. verbal;<br />

(14) período de atender despachar encapar cadernos comprar coisas na papelaria<br />

voltar para casa fazer dever... (133-278)-adj. adverbial;


832<br />

(15) os melhores restaurantes franceses do mundo... que são melhores do que em<br />

Paris... porque o garçom serve bem... em Paris o garçom serve como se estivesse<br />

fazendo um favor... né... em Tóquio não... (233-281)-adj. adverbial;<br />

(16) [Papa] que pregava uma espécie de sociedade entre o operário e o patrão... o<br />

patrão entraria com traba/com o capital e o operário entraria com o trabalho...<br />

isso esquematizou novamente o modo de vida... poucos patrões admitem isso...<br />

o governo atual no Brasil preparou um esquema parecido com esses...<br />

(164-116)-adj. adnominal;<br />

(17) geralmente o sujeito que vive em cidade grande é um chato que não tem nada<br />

que fazer no sábado e domingo... não é? [...] a vida em casa geralmente pra<br />

ele é um inferno... (233-573)-adj. adnominal.<br />

Os verbos estativos são os que mais se relacionam ao SP locativo<br />

(cf. Tab. 3). Isso talvez se deva ao fato desse tipo de verbo precisar<br />

ter seu sentido completado com o auxílio de SPs locativos, como<br />

ocorre com o locativo morar e com os copulativos estar e ficar.<br />

Presença<br />

Ausência<br />

Tipo de verbo de advérbio de advérbio Total<br />

Oco % Oco % Oco %<br />

estativo 19 11 149 89 168 52<br />

de processo 4 3 115 97 119 37<br />

de culminação 2 6 33 94 35 11<br />

Total 25 8 297 92 322 100<br />

Tab. 3: Distribuição do elemento locativo em relação ao tipo de verbo<br />

(18) o sindicato é oriundo de antigos regimes sociais desde que o Socialismo Cristão<br />

na metade do século passado... os principais sindicatos estão nos países<br />

mais fortes... os Estados Unidos têm alguns dos sindicatos mais fortes do<br />

mundo que decidem realmente... (164-91)-estativo;<br />

(19) são três ao todo... eu tenho dois netos que são os que estão aqui... hoje... são<br />

filhos do meu filho mais velho que mora em Brasília vieram... passar agora<br />

uns... uns dias aqui conosco... (071-52)-estativo;<br />

(20) ele [professor] não pode ser funcionário se ele se sindicalizar... se sindicalizará<br />

se trabalhar em colégio particular... se o seu empregador for o Estado...<br />

ele não/o sindicato nunca poderá agir contra o seu patrão... (164-268)-de processo;<br />

(21) agora normalmente o jovem quer ir embora pra casa por quê... quer ir embora<br />

de casa por quê? por quê? porque ele não quer ter hora pra chegar em casa...<br />

(373-149)-de culminação.<br />

Em relação à definitude do SP, quando é definido, a presença<br />

de advérbio é maior do que quando não há elemento algum relacio-


833<br />

nado à preposição. Quando o SP é introduzido por elemento indefinido,<br />

não há advérbio a sua esquerda.<br />

Definitude<br />

Presença Ausência Total<br />

do SP locativo de advérbio de advérbio<br />

Oco % Oco % Oco %<br />

sem elemento algum 4 2 156 98 160 36<br />

com elemento definido 30 11 251 89 281 64<br />

Total 34 7 407 93 441 100<br />

Tab. 4: Distribuição do elemento locativo em relação à definitude<br />

O cruzamento do grupo função sintática e definitude do SP<br />

mostra que, em todas as funções, o SP é, na maioria das vezes, definido<br />

(cf. Fig. 3).<br />

100%<br />

80%<br />

60%<br />

40%<br />

20%<br />

0%<br />

31%<br />

69%<br />

43%<br />

57%<br />

37%<br />

63%<br />

A. adverb. C. verbal A. adnom.<br />

Definido Sem elem.<br />

Fig. 3: Distribuição da definitude do SP locativo por função sintática<br />

Os resultados relativos ao gênero e à faixa etária mostram que<br />

a frequência de uso do advérbio distribui-se equilibradamente (Tab.<br />

5 e 6).<br />

Gênero<br />

Presença<br />

de advérbio<br />

Ausência<br />

de advérbio<br />

Total<br />

Oco % Oco % Oco %<br />

masculino 21 9 219 91 240 51<br />

feminino 13 6 218 94 231 49<br />

Total 34 7 437 93 471 100<br />

Tab. 5: Distribuição do gênero do locutor em relação à variável dependente


834<br />

Faixa etária<br />

Presença<br />

de advérbio<br />

Ausência<br />

de advérbio<br />

Total<br />

Oco % Oco % Oco %<br />

1 10 6 156 94 166 35<br />

2 15 8 183 92 198 42<br />

3 9 8 98 92 107 23<br />

Total 34 7 436 93 471 100<br />

Tab. 6: Distribuição da faixa etária do locutor em relação à variável dependente<br />

Somente um estudo em tempo real, com o acréscimo dos resultados<br />

da década de 90, poderá apontar tanto se homens comportam-se<br />

de maneira diferente da das mulheres, quanto se há gradação<br />

etária ou mudança geracional.<br />

5. Conclusões iniciais e etapas futuras<br />

A análise inicial com os dados de 70 mostra que a frequência<br />

de presença do advérbio locativo à esquerda do SP locativo é baixa.<br />

Em uma etapa futura, pretende-se ampliar a amostra de 70 e<br />

estender a análise para dados de fala da década de 90, aprofundando<br />

a avaliação dos resultados a fim de verificar se o padrão de uso se<br />

mantém e quais os fatores relevantes para o uso do advérbio à esquerda<br />

do SP através da obtenção dos pesos relativos. Outra intenção<br />

é observar o mesmo fenômeno no português europeu oral culto, para<br />

investigar se há e quais seriam as diferenças entre as variedades da<br />

língua.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AVELAR, J. Adjuntos adnominais preposicionados no português<br />

brasileiro. Tese de doutoramento. Campinas: Unicamp, 2006.<br />

AZEREDO, J. C. Gramática Houaiss da língua portuguesa. 2. ed.<br />

São Paulo: Publifolha, 2008.<br />

BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. ver., ampl. e<br />

atual. Conforme o novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova<br />

Fronteira, 2009.


835<br />

CUNHA, C. e CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo.<br />

3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.<br />

FERREIRA, A. B. H. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua<br />

portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.<br />

HOUAISS, A. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de<br />

Janeiro: Objetiva, 2004.<br />

http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj<br />

LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. Trad. Marcos Bagno, Maria<br />

Marta Scherre e Caroline Cardoso. São Paulo: Parábola, 2008.<br />

______. Principles of Linguistic Change – Volume 1: Internal Factors.<br />

Cambridge: Blackwell, 1994.<br />

______. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania<br />

Press, 1972.<br />

LIMA, C. H. R. Gramática normativa da língua portuguesa. 41. ed.<br />

Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.<br />

LYONS, C. Definiteness. Cambridge: Cambridge University Press,<br />

1998.<br />

MIRA MATEUS, Mª H. et alii. Gramática da língua portuguesa. 5.<br />

ed. Lisboa: Caminho, 2003.<br />

NEVES, Mª H. de M. Gramática de usos do português. São Paulo:<br />

UNESP, 2000.<br />

SANKOFF, D.; TAGLIAMONTE, S. A.; SMITH, E. Goldvarb X-A<br />

multivariate analysis application. 2005. Disponível em:<br />

<br />

VIEGAS, E. M. T. Preposições de, em, com e para em adjuntos adnominais:<br />

uma análise variacionista. Dissertação de Mestrado em<br />

Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras,<br />

2008.<br />

______. A funcionalidade da preposição de em corpus do século<br />

XIX. Trabalho de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras,<br />

2006a.


836<br />

______. Preposições DE e EM: variação nas línguas escrita e falada<br />

nos séculos XIX e XX. Trabalho de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ,<br />

Faculdade de Letras, 2006b.<br />

______; ANDRADE, P.; CALLOU, D. Sobre o uso da preposição<br />

DE e EM no português brasileiro: uma abordagem variacionista. In:<br />

SANTOS, D. V. (Org.). Inicia – Revista da Graduação em Letras da<br />

UFRJ, nº 3. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2005, p.<br />

161-168.<br />

WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. Fundamentos empíricos<br />

para uma teoria da mudança linguística. Trad. Marcos Bagno.<br />

São Paulo: Parábola, 2006.


CONTRIBUIÇÕES AO<br />

DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO DA LÍNGUA PORTUGUESA,<br />

DE ANTÔNIO GERALDO DA CUNHA:<br />

AS PALAVRAS COGNATAS EM FOCO<br />

1. Introdução<br />

Messias dos Santos Santana (UESPI)<br />

messiasdsantana@click21.com.br<br />

É comum, ao termos dúvidas quanto à escrita ou à significação<br />

de algumas palavras, recorrermos a um dicionário para dirimirmos<br />

tais dúvidas. Tal situação fez surgir, para o dicionário, um “apelido”<br />

nada muito convencional, segundo se infere a seguir, a partir<br />

dos trechos retirados de Houaiss & Villar (2002): “pai dos burros”,<br />

um “substantivo masculino”, que possui um caráter de “Regionalismo”<br />

e empregado no “Brasil”, em situações de “Uso informal” da<br />

língua portuguesa, como sinônimo de “Dicionário”, com a mesma<br />

significação que esta palavra é empregada em lexicografia.<br />

Ora, a partir de uma caracterização como a apresentada acima<br />

para a palavra dicionário, é possível admitir que, no uso informal (e<br />

aqui não podemos esquecer que uma parcela muito grande da população<br />

brasileira só faz uso dessa variedade linguística), o dicionário é<br />

visto como “uma perfeição só”, como aquele que “dá a última palavra”<br />

em termos de como se grafa uma palavra ou acerca de qual(is) é<br />

(são) sua(s) (“verdadeira(s)”) significação(ões).<br />

Dessa maneira de pensar sobre o dicionário, para considerá-lo<br />

como não apresentando nenhum erro ou equívoco, acredito nada faltar.<br />

E é verdade, pois se existe algo que possui credibilidade incontestável<br />

entre as pessoas que só se expressam através da variedade<br />

coloquial ou fazendo uso de uma língua somente em sua variedade<br />

informal, esse algo é o dicionário.<br />

Se, por outro lado, tivermos o cuidado de consultar o que dizem<br />

Houaiss & Villar (op. cit.), sobre o que é um dicionário, quando<br />

definido em sua concepção lexicográfica, compreenderemos que um<br />

dicionário envolve mais elementos que as compilações da forma de<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1


838<br />

escrever uma palavra e de sua(s) correspondente(s) significação(ões),<br />

conforme abaixo:<br />

Compilação completa ou parcial das unidades léxicas de uma língua<br />

(palavras, locuções, afixos etc.) ou de certas categorias específicas suas,<br />

organizadas numa ordem convencionada, ger. alfabética, e que fornece,<br />

além das definições, informações sobre sinônimos, antônimos, ortografia,<br />

pronúncia, classe gramatical, etimologia etc. ou, pelo menos, alguns<br />

destes elementos [A tipologia dos dicionários é bastante variada; os mais<br />

correntes são aqueles em que os sentidos das palavras de uma língua ou<br />

dialeto são dados em outra língua (ou em mais de uma) e aqueles em que<br />

as palavras de uma língua são definidas por meio da mesma língua.]<br />

Analisando, pois, o que dizem os autores acima, verificaremos<br />

que um dicionário envolve, realmente, muitos outros elementos,<br />

além da simples listagem das palavras de uma língua e de seu(s) correspondente(s)<br />

significado(s). No entanto, dois desses elementos apresentados<br />

por eles chamam a nossa atenção com mais destaque,<br />

em virtude da própria natureza do texto que aqui é escrito: quando<br />

eles contemplam a organização do dicionário, dizendo que suas unidades<br />

léxicas vêm “organizadas numa certa ordem convencionada,<br />

ger.[almente] alfabética” (destaque meu), e quando dizem que ele<br />

pode conter “informações sobre sinônimos, antônimos, ortografia,<br />

pronúncia, classe gramatical, etimologia etc. ou, pelo menos, alguns<br />

destes elementos [A tipologia dos dicionários é bastante variada; os<br />

mais correntes são aqueles em que os sentidos das palavras de uma<br />

língua ou dialeto são dados em outra língua (ou em mais de uma) e<br />

aqueles em que as palavras de uma língua são definidas por meio da<br />

mesma língua.]” (destaque meu). Com isso, Houaiss & Villar chamam<br />

a nossa atenção para a estrutura do dicionário e para os seus<br />

tipos, temas que discutiremos a seguir.<br />

2. Sobre a estrutura e os tipos de dicionários<br />

Embora quase todas as pessoas já tenham visto um dicionário<br />

ou já tenham consultado um, são poucas as que sabem como ele se<br />

estrutura e que a maneira como se encontra organizado está diretamente<br />

relacionada com a sua classificação. Daí, ser importante, sobretudo<br />

para quem estuda dicionários, saber que<br />

Todo diccionario se halla construido y organizado en torno a dos ejos<br />

fundamentales: una macroestructura, constituida por todas sus entra-


839<br />

das dispuestas de acuerdo con un determinado criterio ordenador, junto a<br />

una microestructura o conjunto de informaciones – también dispuestas<br />

de acuerdo con un determinado patrón o patrones – que se ofrecen dentro<br />

del artículo lexicográfico. (DAPENA, 2002, p. 75).<br />

Mas como organizar as entradas 1 de um dicionário? Que critério<br />

levar em consideração? Para Dapena (op. cit., p.71) “la ordenación<br />

a que se hallan sometidas las entradas de un diccionario [...] es<br />

arbitraria y convencional, y responde siempre a unas necesidades de<br />

tipo practico”. Não obstante ser arbitrária e convencional, é possível<br />

afirmar que<br />

La ordenación más frecuente de los diccionarios es la alfabetica; pero,<br />

a su lado, existen otras, que generalmente se dan en combinación con<br />

esta ultima, tales como a ideológica o analógica, por familias etimologicas<br />

o morfológicas y la estadística, a las que podemos añadir [...] la estructural<br />

(DAPENA, op. cit., p.71).<br />

Conclui-se, portanto, que a ordenação das palavras em um dicionário<br />

dá-se em conformidade com o interesse de seu autor, não<br />

havendo, pois, uma maneira obrigatória de ordená-las, ou seja, o lexicógrafo<br />

ordena as palavras de acordo com os critérios que ele define,<br />

atendendo ao que lhe convém, conforme a sua proposta de trabalho<br />

e a finalidade de seu dicionário, podendo os dicionários ser classificados,<br />

na respectividade dos critérios apresentados na citação anterior,<br />

em dicionários “alfabéticos, ideológicos o analógicos, de familias<br />

etimológicas, estadísticos o de frecuencia, estructurales y mixtos”.<br />

(DAPENA, op. cit., p.71).<br />

3. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antônio<br />

Geraldo da Cunha<br />

Ao lermos as páginas iniciais do Dicionário Etimológico da<br />

Língua Portuguesa (CUNHA, 2007) – doravante DELP –, percebemos<br />

que é nítida a preocupação de Cunha em apresentar ao seu leitor<br />

os critérios que ele elege para estruturar o seu dicionário:<br />

Com o propósito de facilitar ao consulente o manuseio do Dicionário<br />

(destaque do autor), julgamos oportuno adotar, também, a ordenação<br />

1 O conceito de entrada que se adotará, aqui, está conforme Dapena (op. cit., p. 136),<br />

isto é, a palavra que inicia o verbete de um dicionário e a respeito da qual são apresentadas<br />

algumas informações.


840<br />

alfabética, que é a mais normal e a mais comum em obras deste gênero.<br />

Convém notar, porém, que certos verbetes mereceram tratamentos diferenciados,<br />

em face das suas características peculiares e, principalmente,<br />

em razão das vantagens que adviriam da reunião em um só verbete dos<br />

derivados, compostos e cognatos do vocábulo que intitula o verbete, para<br />

melhor compreensão das origens e da história de cada um desses vocábulos.<br />

(p. XI, grifo nosso).<br />

Tanto no trecho acima quanto no que abaixo se segue, podemos<br />

perceber o seu interesse em deixar clara a relação etimológica<br />

entre os vocábulos que compõem esse dicionário:<br />

Para melhor elucidar o consulente no tocante às íntimas correlações<br />

etimológicas entre vocábulos de mesma origem remota e, mais particularmente,<br />

com o objetivo de economizar o espaço físico do Dicionário<br />

(destaque do autor), propiciando assim um melhor aproveitamento da<br />

matéria e a consequente inclusão de um maior número de vocábulos, reuniram-se<br />

num único verbete, como já mencionamos anteriormente, os<br />

principais derivados, compostos e cognatos do vocábulo em epígrafe. (p.<br />

XIX, grifo nosso).<br />

Considerando, portanto, as duas citações acima retiradas do<br />

DELP, fica nítida a preferência de Cunha por distribuir, ao longo da<br />

estrutura de seu dicionário, as palavras alfabeticamente e por famílias<br />

etimológicas, sendo que esta última distribuição “consiste en la<br />

agrupación en torno a una raíz, étimo o palabra inicial en una derivación,<br />

de todos los vocablos emparentados” (DAPENA, op. cit., p. 73)<br />

e, com isso, ele opta por apresentar as palavras que são cognatas<br />

“num único verbete”.<br />

Dessa forma e considerando o que diz Dapena (op. cit., p. 71),<br />

sobre os tipos de dicionário, conforme acima, o título do dicionário<br />

de Cunha encontra-se, pois, justificado, ou seja, é um dicionário que<br />

contém informações etimológicas sobre palavras da língua portuguesa,<br />

as quais estão nele dispostas alfabeticamente, para que o leitor<br />

possa melhor manuseá-lo e perceber as relações etimológicas entre<br />

elas.<br />

Mas será que Cunha, realmente, apresenta todas as palavras<br />

que são cognatas em um único verbete ao longo da estrutura de seu<br />

dicionário?


846<br />

Após todas essas explanações, podemos perceber que as palavras<br />

acima – mas também todos os outros grupos de palavras analisados<br />

nesta seção – quando analisadas numa perspectiva sincrônica,<br />

deixam dúvidas quanto a serem ou não cognatas, dúvidas essas que,<br />

num estudo diacrônico, não mais se fazem presentes, e a classificação<br />

delas como cognatas é feita com uma segurança que não é<br />

transmitida pela análise sincrônica.<br />

4. Conclusões<br />

O que até aqui foi exposto permite-nos chegar a algumas conclusões<br />

importantes acerca dos dicionários de uma forma geral, mas<br />

especialmente sobre o DELP, no que diz respeito à distribuição das<br />

palavras cognatas ao longo de sua estrutura.<br />

Uma primeira informação importante é que a construção de<br />

um dicionário é sustentada através de conhecimentos que permitem<br />

ao lexicográfico, considerando sua proposta de trabalho, organizar a<br />

estrutura de seu dicionário de modo a permitir um manuseio satisfatório.<br />

Essa foi a proposta de Cunha, no DELP, conforme podemos<br />

perceber através da análise de trechos iniciais de duas citações que<br />

aqui foram apresentadas, como em: “Com o propósito de facilitar ao<br />

consulente o manuseio do Dicionário [...] (destaque do autor, p. XI);<br />

e através deste outro: “Para melhor elucidar o consulente no tocante<br />

às íntimas correlações etimológicas entre vocábulos de mesma origem<br />

remota [...]” (p. XIX).<br />

Apesar de seu interesse em apresentar as palavras cognatas<br />

em um mesmo verbete, verificamos, a partir do que expusemos, que,<br />

no tocante ao tratamento dado às palavras cognatas, existem equívocos,<br />

ou seja, Cunha dispõe algumas palavras que são cognatas em<br />

verbetes diferentes, como se elas não fossem cognatas, pelo “[...] fato<br />

de ele ter concentrado as suas análises em informações sincrônicas,<br />

como, por exemplo, as formas e as significações atuais dessas<br />

palavras” (SANTANA, op. cit., p. 81).<br />

Dessa forma, com o que aqui apresentamos sobre o DELP,<br />

esperamos chamar a atenção, sobretudo, dos que se dedicam ao estu-


847<br />

do da lexicografia, para o aprimoramento desse dicionário no que se<br />

refere aos problemas apontados.<br />

Por fim, resta-nos deixar claro que o fato de as palavras aqui<br />

apresentadas estarem dispostas como não constituindo palavras cognatas<br />

não significa, necessariamente, que Cunha e seus auxiliares<br />

não as pudessem reconhecer como cognatas ou que não soubessem<br />

que elas são cognatas – o que fica difícil até de imaginar quando se<br />

observam as palavras amar, amigo e amor. Os dados, no entanto, tais<br />

como foram analisados, permitem-nos afirmar que há um número<br />

significativo de palavras cognatas no DELP que não estão assim caracterizadas.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua<br />

portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2007.<br />

DAPENA, José-Álvaro Porto. Manual de técnica lexicográfica. Madrid:<br />

Arco/Libros, 2002.<br />

ERNOUT, A.; MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la<br />

langue latine: histoire de mots. Paris: Klincksieck, 1959.<br />

FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 6. ed. Rio de<br />

Janeiro: FAE, 1985.<br />

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Sales. Dicionário eletrônico<br />

Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.<br />

CD-ROM.<br />

OLIVEIRA, Josenir Alcântara de. A produtividade fonéticosemântica<br />

e cultural da raiz indo-europeia *pel- ‘dobrar’. 3. v. Tese.<br />

USP, São Paulo, 2002.<br />

SANTANA, Messias dos Santos. Nem tudo que é parece e nem tudo<br />

que parece é: mudando a língua, não reconhecendo os cognatos. Dissertação.<br />

UFPI, Teresina, 2009.<br />

SARAIVA, F. R. Santos. Novíssimo dicionário latino-português: etimológico,<br />

prosódico, histórico, geográfico, mitológico, biográfico,<br />

etc. 11. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 2000.


CRÍTICA TEXTUAL E CRÍTICA DE PROCESSO:<br />

EDIÇÃO E ESTUDO DO TEXTO TEATRAL<br />

1. Espaço delimitado: primeiras palavras<br />

Rosa Borges dos Santos (UFBA)<br />

borgesrosa6@yahoo.com.br<br />

Neste trabalho, discutem-se brevemente algumas questões relativas<br />

à edição e ao estudo de textos teatrais censurados na Bahia no<br />

período da ditadura militar, no âmbito das críticas, textual e de processo<br />

(Crítica Genética), considerando as especificidades da obra teatral,<br />

em quadro teórico e metodológico que atenda aos processos de<br />

composição e de transmissão da obra, observando-se como certo autor<br />

ou transmissor interfere no texto e, como isso, atribui significados<br />

a significantes em duas dimensões processuais, discursiva e material<br />

(DUARTE, 2007). As observações serão aqui construídas a partir de<br />

alguns dos textos que compõem o Arquivo Textos Teatrais Censurados<br />

na Bahia.<br />

2. Diálogos entre críticas: textual e genética<br />

A crítica tradicional filológica, com o propósito, de reconstituir<br />

o texto final para ser lido, representativo do ânimo autoral, tendia<br />

para um fim pré-determinado, o de buscar um texto acabado, um<br />

produto. Ressalte-se, porém, que a Crítica Textual já estudava os<br />

rascunhos, os esboços, os manuscritos, entre outros elementos, ou seja,<br />

considerava, de certa forma, o processo, mas para cumprir uma<br />

finalidade: estabelecer um texto final, expurgando as alterações introduzidas<br />

ao longo do tempo pelos diversos agentes, escritor e<br />

transmissor. Embora as edições tivessem aparato crítico, comentários<br />

e uma série de outras estratégias de contemplação das variantes do<br />

texto, quer autorais, quer editoriais, elas ficavam à margem, sem que<br />

fossem tomadas como “chaves de leitura do texto”.<br />

Quando a Crítica Genética começa a trabalhar com as variantes<br />

autorais com vistas à compreensão do processo de criação de um<br />

autor, assume-se, cada vez mais, na Crítica Textual, o interesse pelo<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1


849<br />

processo de construção do texto, conciliando, além da perspectiva filológica,<br />

orientações de outros campos do saber, da teoria literária,<br />

das críticas, literária e biográfica, da história literária e da arquivística<br />

literária.<br />

O filólogo, editor de textos, ocupar-se-ia dos textos enquanto<br />

processo e produto, ou somente enquanto processo, conforme situação<br />

textual examinada e finalidade do trabalho a ser realizado; e o<br />

critico genético trabalharia com os documentos que testemunham o<br />

processo escritural, tudo que vem antes do texto. Combinadas, atuam no<br />

sentido de recuperar, reconstituir e interpretar textos e suas versões.<br />

Quanto à edição no âmbito das Críticas aqui expostas, esclarece-se<br />

que, no terreno da filologia, a prática editorial faz-se de acordo<br />

com cada situação textual encontrada. Interessa, portanto, oferecer<br />

ao leitor um ou mais texto(s) dado(s) a ler, fundamentando-se em<br />

critérios científicos rigorosos. Assim, a opção se daria por uma edição<br />

crítica, crítica em perspectiva genética, histórico-crítica, sinóptico-crítica,<br />

diplomática e fac-similar.<br />

No que tange à Crítica de Processo, a edição pode constituirse,<br />

conforme afirma Grésillon (1994), de: reprodução dos documentos<br />

sob a forma de fac-símiles; transcrição que respeite a topologia<br />

da página manuscrita, linearizada, mista – diplomática e linearizada<br />

–, e diplomática (GRÉSILLON, 1994, p. 121-135); e comentários<br />

que permitam ao leitor refazer os caminhos da escritura. Interessando-se<br />

pela dinâmica escritural, realizam-se: edição fac-similar, edições<br />

genéticas propriamente ditas, edição genética eletrônica (GRÉ-<br />

SILLON, 1994, p. 177-202) para tornar o prototexto 1 visível, legível<br />

e inteligível.<br />

Deve-se, no entanto, atentar-se para as limitações dos suportes,<br />

papel ou computador, no que tange à apresentação do texto ou do<br />

processo, a escrita em movimento. A passagem para o suporte ele-<br />

1 Termo cunhado por Jean Bellemin-Noel em sua obra O texto e o prototexto para designar “o<br />

conjunto de documentos escritos que carregam algum tipo de testemunho do processo escritural<br />

[...] e, caso se faça necessário, as reescrituras que antecedem a nova edição do texto”<br />

(GRÉSILLON, 2009, p. 43).


850<br />

trônico “convida o leitor a abrir seu próprio caminho pela materialidade<br />

imaterial da edição eletrônica” (GRÉSILLON, 2009, p. 50).<br />

No exame desses materiais, vários campos do saber se harmonizam<br />

em torno do texto, filologia, codicologia, paleografia, teoria<br />

literária, historia literária, lingüística, estilística, entre outros. Em<br />

perspectiva filológica, vale-se então dos saberes que saem desses lugares<br />

teóricos com a finalidade de editar e interpretar os textos.<br />

Outro aspecto importante a considerar é o caráter memorialístico<br />

que tais textos (testemunhos, documentos e monumentos) apresentam,<br />

ficando atento para as marcas de como a memória se manifesta<br />

nesses materiais, pondo em relevo o processo de criação.<br />

3. Texto em cena: processo de produção e transmissão do texto<br />

teatral<br />

Almuth Grésillon (1995), no artigo Nos limites da Gênese: da<br />

escritura do texto de teatro à encenação, trata da necessidade de esclarecimentos<br />

a respeito do texto de teatro em relação ao texto em<br />

prosa ou verso no que se refere à análise do processo de gênese.<br />

Chama atenção para o fato de que, mesmo depois de o dramaturgo<br />

estabelecer seu imprimatur como para selar o fim absoluto do percurso<br />

genético, pode-se ainda partir em direção a novos desdobramentos<br />

escriturais (GRÉSILLON, 1995).<br />

Para a edição e análise da obra teatral, deve-se considerar que<br />

Cada texto es un producto histórico: […] que en él se reflejan – filtradas<br />

por una serie más o menos numerosa de mediaciones estéticoculturales<br />

– la situación personal del autor, su concepción del mundo, los<br />

conflictos socio-económicos por él vividos, sus experiencias existenciales,<br />

sus conocimientos teóricos y prácticos, el grado de su adhesión a toda<br />

clase de convenciones de su tiempo y de la colectividad a la cual pertenece<br />

(TAVANI, 1988, p. 35). 2<br />

2 Tradução nossa: Cada texto é um produto histórico: [...] que nele se refletem – filtradas por<br />

uma série mais ou menos numerosa de mediações estético-culturais – a situação pessoal do<br />

autor, sua concepção de mundo, os conflitos socioeconômicos vividos por ele, suas experiências<br />

existenciais, seus conhecimentos teóricos e práticos, o grau de sua adesão a toda classe<br />

de convenções de seu tempo e da coletividade a qual pertence.


851<br />

Nesse sentido, faz-se necessário conhecer o processo de produção<br />

e transmissão do texto teatral tomado em suas particularidades,<br />

a saber: é feito para ser encenado, tem estrutura, conteúdo e funções<br />

específicas, traz anotações do diretor, dos atores, quando tratam,<br />

por exemplo, da composição de suas personagens, indicações<br />

cênicas etc.. Todos os textos (do autor, do diretor, do ator, dentre outros)<br />

derivam do que se pode chamar de “texto do autor”. Cabe, portanto,<br />

ao editor considerar tais peculiaridades do teatro, que se constitui<br />

de TEXTO e de ENCENAÇAO, como afirma Luigi Giuliani<br />

(2006, p. 2):<br />

El texto, fijo y durable, y la representación, efímera, constituyen las<br />

dos vertientes de lo que llamamos teatro, son – parafraseando una célebre<br />

definición de Saussure –, las dos caras de una misma hoja: no podemos<br />

separarlas so pena de hacer desaparecer la hoja misma. 3<br />

O texto teatral é, desse modo, parte de um sistema múltiplo e<br />

instável, não existindo, nesse caso, como obra acabada, definitiva,<br />

pois está sempre em contínuo movimento. Deve-se, no entanto, levar<br />

em conta dois aspectos: o texto escrito para ser encenado (texto/representação)<br />

que orienta a performance, e o texto enquanto objeto<br />

literário, destinado à leitura.<br />

Gadelha (1993) afirma que o texto teatral, efêmero por natureza,<br />

por sua dupla existência como literatura e espetáculo, exige<br />

uma edição que seja elaborada segundo critérios científicos. Contudo,<br />

edições de textos teatrais, seja no campo da Crítica Textual e ou<br />

da Crítica de Processo (Genética), são ainda em número reduzido no<br />

Brasil.<br />

O Instituto Nacional de Artes Cênicas – INACEN, órgão do<br />

Ministério da Cultura, ocupou-se do preparo de edições fidedignas<br />

nas áreas da Dramaturgia Brasileira e do Patrimônio Histórico e Artístico<br />

Nacional, publicando a Coleção Clássicos do Teatro Brasileiro,<br />

com vistas à divulgação das obras de teatro de autores brasileiros,<br />

permitindo a outros profissionais o acesso a textos para leitura e encenação<br />

(MARINHO, 1986).<br />

3 Tradução nossa: O texto, fixo e durável, e a representação, efêmera, constituem as duas vertentes<br />

do que chamamos teatro, são – parafraseando uma célebre definição de Saussure –, as<br />

duas faces da mesma moeda: não podemos separá-las sob a pena de fazer desaparecer a<br />

própria moeda.


852<br />

Na Bahia, o Grupo de Edição e Estudo de Textos, através da<br />

Equipe Textos Teatrais Censurados, coordenada pela professora e<br />

pesquisadora, Rosa Borges, tem-se ocupado de reunir tais textos para<br />

desenvolvimento de teorias de edição, modelos editoriais e estudo.<br />

Recorta-se, a partir desse momento, o texto teatral censurado, produzido<br />

na Bahia no período da ditadura militar, que se caracteriza pela<br />

ação de vários sujeitos que nele interferem, direta ou indiretamente,<br />

autores, diretores, atores, e até mesmo censores, para se tecerem as<br />

observações.<br />

Tem-se, em determinada situação, um texto, perene e único,<br />

encaminhado ao Serviço de Censura da Polícia Federal, algumas vezes<br />

publicados nas Revistas de Teatro ou mesmo em livro; em outra,<br />

um texto efêmero e múltiplo, que se modifica a cada performance. É<br />

neste espaço que se conciliam os trabalhos da Crítica Textual e da<br />

Crítica Genética ou Crítica de Processo. A Crítica Textual daria conta<br />

da edição de um texto, que estabelece, ainda que provisoriamente,<br />

e divulga; enquanto a Crítica Genética analisaria os movimentos de<br />

escritura, evidenciando diferentes versões de uma obra.<br />

Passa-se à descrição do processo de produção e transmissão<br />

do texto teatral censurado. São textos datiloscritos, em sua maioria,<br />

originais ou cópias mimeografadas ou xerocopiadas, que apresentam<br />

cortes destacados em vermelho ou azul, identificados com um carimbo<br />

com as seguintes inscrições: CORTE ou COM CORTES. Outros<br />

carimbos também se registram no suporte textual: da Divisão de<br />

Censura de Diversões Públicas (DCDP) do Departamento da Polícia<br />

Federal (DPF), em formato redondo e retangular; da Superintendência<br />

Regional da Bahia – Censura Federal – Departamento da Polícia<br />

Federal; da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – SBAT. Vejase<br />

abaixo uma folha datilografada de um texto de João Augusto, com<br />

cortes e carimbo da DCDP do DPF, que se encontra no acervo do<br />

Teatro Vila Velha, e outra folha de um texto de Nivalda Costa, Vegetal<br />

Vigiado, com outros carimbos, da DCDP e da SBAT, e com cortes,<br />

além de anotações manuscritas a tinta azul.


Fig. 1 – Carimbos e cortes no texto Quem não morre num vê Deus, de João Augusto<br />

Fonte: Acervo do Teatro Vila Velha<br />

853


Fig. 02 – Carimbos e cortes no texto da peça Vegetal vigiado, de Nivalda Costa<br />

Fonte: Acervo do Espaço Xisto Bahia<br />

854


4. Processo de criação: análise em textos teatrais censurados<br />

855<br />

Para ilustrar um possível estudo do processo de criação, tomam-se<br />

alguns excertos de textos teatrais submetidos ao exame da<br />

Censura Federal.<br />

Em (Gay) Paradise 4 , texto de Walter Dultra Grimm, com dois<br />

testemunhos, a palavra Gay foi rasurada, apagada, em um deles, aquele<br />

submetido ao exame da Censura Federal, talvez por autocensura,<br />

diante da possibilidade de corte por parte dos censores. Comparem-se<br />

os testemunhos a partir da capa do texto da peça (Fig. 3 e 4):<br />

Fig. 03 – Capa do texto encaminhado ao Serviço de Censura<br />

Fonte: Acervo do Espaço Xisto Bahia<br />

Fig. 04 – Capa do texto para encenação<br />

Fonte: Acervo do Espaço Xisto Bahia<br />

Outra situação que se pode examinar nos textos teatrais censurados<br />

diz respeito à ação do censor, diferente da provável censura<br />

do autor mostrada acima. Observa-se no excerto abaixo do datiloscri-<br />

4 São dois os testemunhos dessa obra e embora não tragam datas, a peça foi encenada em<br />

1983, conforme Aninha Franco (1994), em O teatro na Bahia através da imprensa, no Teatro<br />

Gamboa.


856<br />

to de À Flor da Pele, texto de Consuelo de Castro, submetido ao exame<br />

da censura em 1974, o corte do censor, de cunho moral, que silencia<br />

as práticas sexuais dissonantes com o que preconiza a formação<br />

ideológica religiosa cristã:<br />

.<br />

(f. 40, l.33-35; f. 41, l. 1-4) 5<br />

Tais marcas (cortes) na materialidade do texto possibilitam o<br />

entendimento desse movimento contínuo característico da obra teatral,<br />

do texto à cena, intensificado pela intervenção dos censores, envolvendo<br />

procedimentos diversos diante do veto, no sentido de encenar<br />

ou não a peça, de usar de estratégias para dar conta da lacuna<br />

deixada pelos cortes etc., considerando, desse modo, as modificações<br />

feitas ao texto por ação de outros.<br />

Sônia Khéde (1981, p. 93) esclarece que:<br />

No relacionamento da censura com a obra de arte, aquela não deseja<br />

julgá-la esteticamente e sim ideologicamente […] resultando daí um ato<br />

triplamente acrescentado: a censura do escritor, a censura do censor e<br />

como feedback a autocensura ideológica, decorrente da censura ideológica<br />

do censor.<br />

Assim, vê-se que como consequência desse relacionamento<br />

entre censura e obra, a postura de dramaturgos e intelectuais que<br />

adotaram diferentes estratégias para driblar a ação da censura, tais<br />

como: “valer-se de episódios/personagens históricos e de obras/autores<br />

clássicos para discutir a situação atual e a realidade brasileira”<br />

(GARCIA, 2008, p. 306), empregar linguagem figurada, metáforas,<br />

alusões, jogos simbólicos, digressões, “títulos dissuasivos ou palavrões<br />

em excesso para desviar a análise censória dos objetivos prin-<br />

5 O trecho citado foi todo cortado pelo censor.


857<br />

cipais da peça teatral” (GARCIA, 2008, p. 306), deixar espaços em<br />

branco, dentre outros recursos realizados durante a encenação,<br />

trocando, muitas vezes, a palavra pelo gesto significativo.<br />

Veja-se que as anotações manuscritas feitas em um dos testemunhos<br />

do texto História da Paixão do Senhor (Fig. 5), de João<br />

Augusto, foram consideradas no datiloscrito passado a limpo, enviado<br />

à Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Situação<br />

nem sempre comum no que se refere à obra teatral.


Fig. 5 – Testemunhos de História da paixão do Senhor (s.d.)<br />

858


859<br />

Anotações manuscritas de Cleise Mendes (1980) em folha em<br />

branco entre os papéis que testemunham o preparo da peça Cândido:<br />

o herói sem nenhum caráter ou Cândido ou O Otimismo, original de<br />

Voltaire, adaptado por Cleise Mendes a partir de tradução portuguesa<br />

6 , evidenciam o diálogo constante e o trabalho integrado de um<br />

grupo, que envolve diretores e atores no processo, tais como Armindo<br />

Bião e Deolindo Checcucci. Há ainda sugestão de corte, de correção<br />

etc. Confiram-se tais informações na figura abaixo:<br />

Fig. 06 - Cândido: “O herói de muito caráter” / Cândido ou O Otimismo<br />

Adaptação de Cleise Mendes<br />

6 Informação verbal.


860<br />

Diante das situações textuais acima expostas, propõem-se algumas<br />

práticas editoriais que levem em conta o trabalho integrado de<br />

dois campos do conhecimento, e, ao mesmo tempo, de dois métodos<br />

críticos para a análise literária, a Crítica Textual e a Crítica Genética<br />

(Crítica de Processo).<br />

Desse modo, visando à conservação e à preservação dos textos<br />

trabalhados e também para torná-los acessíveis a outros interessados,<br />

faz-se a digitalização dos mesmos. Devido ao avanço tecnológico,<br />

tem-se optado pela edição fac-similar 7 ou a simples reprodução<br />

fotográfica, transferindo-se a imagem do documento para o meio digital.<br />

Alguns dos textos reunidos no Arquivo Textos Teatrais Censurados<br />

se prestam a diferentes tipos de edição, apresentadas a seguir,<br />

enquanto propostas de edição que atendam a esse diálogo entre<br />

as Críticas, Textual e Genética.<br />

Segundo Grésillon (1995, p. 11):<br />

A Gênese do texto de teatro obriga então a uma mudança de direção.<br />

Ela proíbe que o encaminhamento genético seja sistematicamente barrado<br />

pelos limites impostos pelo texto impresso, considerado versão ne varietur.<br />

Os dossiês genéticos de teatro ensinam-nos que os projetos de encenação<br />

determinam, muitas vezes, repercussões textuais que podem dar<br />

à obra escrita uma orientação totalmente diferente (GRÉSILLON, 1995,<br />

p. 11).<br />

Diante do exposto, sugere-se para uma situação que se caracteriza<br />

pelo exame das variantes autorais, uma metodologia analítica<br />

que possa determinar uma matriz ou matrizes de criação do texto ou<br />

da obra de um autor, conforme se posiciona Santos (2008) em artigo<br />

que trata da metodologia aplicada à edição de textos teatrais. Para<br />

tanto, levar-se-iam em conta os seguintes critérios para a realização<br />

da edição genética:<br />

a) Reunião dos textos (autógrafos) de um determinado dramaturgo;<br />

7 A edição fac-similar é uma “[...] reprodução obtida por meios mecânicos (litografia, fotografia,<br />

fototipia etc.) de um texto manuscrito, impresso ou esculpido, cujo testemunho se revela muito<br />

importante, do ponto de vista estético e filológico, e é de difícil acesso” (APL, 1920 apud DU-<br />

ARTE, 1997, p. 76).


861<br />

b) Investigação do processo de criação efetivado pelo escritor,<br />

identificando os padrões de criação que ela apresenta;<br />

c) Determinação dos elementos (“de natureza estrutural, ou seja,<br />

constitui uma das bases sobre a qual se erige a produção do<br />

criador” (BRITO; GUINSBURG, 2006, p. 21) que deverão<br />

ser considerados no estabelecimento da matriz (“é um quadro<br />

formado por elementos de criação que o artista escolhe para<br />

gerar sua obra” (BRITO; GUINSBURG, 2006, p. 20) bem<br />

como os procedimentos (“ação do artista no uso dos elementos<br />

eleitos” (BRITO; GUINSBURG, 2006, p. 21) adotados,<br />

com o objetivo de esclarecer os modos pelos quais o autor<br />

configura esses elementos.<br />

A busca de uma matriz criativa do autor apóia-se no método<br />

comparativo, o qual revela aspectos comuns e diferentes do objeto<br />

analisado. Consideram-se os modos de composição da obra e como<br />

esta produção dialoga com a realidade artística, cultural e social nas<br />

quais esta obra se insere e como o autor incorpora, em seu processo<br />

criativo, novos instrumentos inspirados por esse contexto. Interessa,<br />

portanto, o processo criativo e não a obra, no que tange à edição genética.<br />

Outra sugestão seria a elaboração de uma edição crítica em<br />

uma perspectiva genética que procurará trazer à tona o momento textual<br />

último, pelo menos no que concerne aquele processo de produção,<br />

de manipulação do texto pelo escritor, e, através do exame do<br />

texto teatral, mostrar os caminhos da criação, a partir dos materiais<br />

autógrafos reunidos, definindo as marcas estilísticas, o usus scribendi,<br />

8 que, por sua vez, deverão fornecer subsídios para outras leituras<br />

ou conjecturas por parte de estudiosos do assunto e até mesmo para<br />

tomadas de decisões do editor quando da fixação do texto crítico ou<br />

determinar a lição 9 definitiva face a uma lição alternativa. 10 Para a<br />

8 Diz respeito ao estilo do autor do texto em que se trabalha.<br />

9 Entende-se por LIÇÃO o conteúdo de um lugar do texto em qualquer de seus testemunhos;<br />

pode ser substantiva (palavras ou frases) ou adjetiva (sinais de pontuação e capitalização, por<br />

exemplo) (DUARTE, 1997, p. 82).<br />

10 Diz-se que uma LIÇÃO é ALTERNATIVA quando o escritor apresenta várias lições para o<br />

mesmo lugar, não se decidindo por nenhuma delas.


862<br />

edição crítica em uma perspectiva genética, são relevantes o processo<br />

de criação e a obra.<br />

Uma edição crítico-genética, portanto, é aquela que combina<br />

os objetivos e os métodos da edição crítica e da edição genética: por<br />

um lado, edita o texto e anota todas as intervenções do editor bem<br />

como prepara um aparato de variantes da tradição; por outro, faz a<br />

recensão de todos os manuscritos relacionados com o texto, classifica-os,<br />

organiza-os e descreve-os, e registra em aparato genético as<br />

sucessivas alterações autorais, lugar a lugar e testemunho a testemunho.<br />

Enquanto crítica, procura fixar o texto mais autorizado; enquanto<br />

genética, documenta o percurso seguido pelo autor na construção<br />

do texto, fornecendo ao leitor o registro total e ordenado dos estados<br />

evolutivos por que passou o texto, com as correções, as alternativas e<br />

as hesitações do autor, permitindo ao leitor a possibilidade de reconstituir,<br />

por si próprios, os estados pertinentes (CARVALHO,<br />

2003).<br />

Quanto à edição histórico-crítica de tradição alemã, Louis<br />

Hay (2007, p. 346) esclarece que a “distinção entre as edições ‘histórico-críticas’<br />

e edições genéticas baseia-se na escolha de seus procedimentos<br />

editoriais.” Ela, porém, estaria bem situada entre a edição<br />

crítica e a genética, destacando-se que, na atividade filológica, o manuscrito<br />

é abordado na pluralidade de suas significações, em uma<br />

perspectiva crítica e hermenêutica.<br />

Propõe-se ainda fazer uma edição sinóptica que “consiste en<br />

la reproducción simultánea (normalmente en páginas contrastadas o<br />

en columnas paralelas, verticales u horizontales) de la transcripción<br />

diplomática de todos y cada uno de los testimonios de la tradición de<br />

una obra (PÉREZ PRIEGO, 1997, p. 44).” 11 Tal edição tem a<br />

vantagem de dar a ler simultaneamente diferentes versões.<br />

11 Tradução nossa: [...] consiste na reprodução simultânea (normalmente em páginas contrastadas<br />

ou em colunas paralelas, verticais ou horizontais) da transcrição diplomática de todos e<br />

de cada um dos testemunhos da tradição de una obra.


5. Limites encerrados: palavras finais<br />

863<br />

Observam-se, portanto, nos textos teatrais censurados, em<br />

seus aspectos materiais e discursivos, inúmeros vestígios e diferentes<br />

marcas de vários agentes, o escritor, o transmissor, o censor, o diretor,<br />

os atores, entre outros. Cabe aos estudiosos interessados entender<br />

essas peculiaridades que caracterizam a obra teatral, para que se possa<br />

analisar o processo de criação evidenciado por tais marcas, considerando<br />

o percurso do texto à cena, bem como os processos de produção,<br />

recepção e circulação de tais textos. São importantes, para essa<br />

análise, roteiros, rascunhos, anotações, entrevistas com as pessoas<br />

envolvidas com a montagem das peças, notícias veiculadas nos jornais<br />

que circularam àquela época, e, sobretudo, textos submetidos ao<br />

exame da Censura Federal.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BRITO, Rubens; GUINSBURG, Jacó. Método matricial. In: CAR-<br />

REIRA, André et al. Metodologias de pesquisa em artes cênicas. Rio<br />

de Janeiro: 7 Letras, 2006, p. 18-25.<br />

CARVALHO, Rosa Borges Santos. Poemas do Mar de Arthur de<br />

Salles: edição crítico-genética e estudo. 2002, 2 v., 901 f. Tese<br />

(Doutorado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal da<br />

Bahia, Salvador, 2002.<br />

DUARTE, Luís Fagundes. Tempo de perguntar. Veredas: Revista da<br />

Associação Internacional de Lusitanistas, Porto Alegre, v. 8, p. 11-<br />

29, 2007.<br />

DUARTE, Luiz Fagundes. Glossário. In: ___. Crítica textual. Lisboa,<br />

Universidade Nova de Lisboa, 1997. 106 p. Relatório apresentado<br />

a provas para a obtenção do título de Agregado em estudos portugueses,<br />

disciplina Crítica Textual, p. 66-90.<br />

GADELHA, Carmem. Texto e espetáculo: edição crítica e movência.<br />

In: ENCONTRO DE ECDÓTICA E CRÍTICA GENÉTICA, 3.,<br />

1993, João pessoa. Anais... João Pessoa, UFPB, 15 a 18 de outubro<br />

de 1991. Publicação em 1993, p. 145-148.


864<br />

GARCIA, Miliandre. “Ou vocês mudam ou acabam”: teatro e censura<br />

na ditadura militar (1964-1985). 2008. 420 f. Tese (Doutorado<br />

em História Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade<br />

Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.<br />

GIULIANI, Luigi. Textos, performances y dilemas ecdóticos. In:<br />

JORNADA SOBRE A EDIÇÃO DE TEATRO, Lisboa. Actas... Lisboa:<br />

Centro de Estudos de Teatro, 2006. Disponível em:<br />

http://www.fl.ul.pt/centros_invst/teatro/pagina/Publicacoes/Actas/co<br />

municacao_Giuliani.pdf. Acesso em: 20 jul. 2010.<br />

GRÉSILLON, Almuth. Crítica genética, prototexto, edição. Trad.<br />

Adriana Camargo. In: GRANDO, Ângela; CIRILLO, José (Orgs.).<br />

Arqueologias da criação: estudos sobre o processo de criação. Belo<br />

Horizonte: C Arte, 2009, p. 41-51.<br />

GRÉSILLON, Almuth. Eléments de critique génétique: lire les<br />

manuscrits modernes. Paris: PUF, 1994.<br />

GRÉSILLON, Almuth. Nos limites da gênese: da escritura do texto<br />

de teatro à encenação. Trad. Jean Briant. Estudos Avançados. São<br />

Paulo, v. 9, n. 23, p. 269-285, abr.1995. Disponível em:<br />

. Acesso em: 15<br />

dez. 2009.<br />

HAY, Louis. A Literatura dos escritores: questões de crítica genética.<br />

Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: UFMG,<br />

2007.<br />

KHÉDE, Sônia Salomão. A censura após 1964. In: ___. Censores de<br />

pincenê e gravata: dois momentos da censura teatral no Brasil. Rio<br />

de Janeiro: Codecri, 1981. Parte II.<br />

MARINHO, Teresinha. Preparo de edições fidedignas nas áreas da<br />

dramaturgia brasileira e do patrimônio histórico e artístico nacional.<br />

In: ENCONTRO DE CRÍTICA TEXTUAL: O MANUSCRITO<br />

MODERNO E AS EDIÇÕES, 1., 1986, São Paulo. Anais... São Paulo,<br />

FFCH da USP, 16 a 20 de setembro de 1985. Publicação em<br />

1986, p. 175-292.<br />

PÉREZ PRIEGO, Miguel Ángel. La edición de textos. Madrid: Síntesis,<br />

1997.


865<br />

SANTOS, Rosa Borges dos. Uma metodologia aplicada à edição de<br />

textos teatrais. In: MAGALHÃES, José Sueli de; TRAVAGLIA, Luiz<br />

Carlos (Orgs.). Múltiplas Perspectivas em Linguística. Uberlândia:<br />

Edufu, 2008. 1 CD-ROM.<br />

TAVANI, Giuseppe. Teoría y metodología de la edición critica de<br />

textos literarios contemporáneos. In: LITTERATURE LATINO-<br />

AMERICAINE ET DES CARAIBES DU XX SIECLE: theorie et<br />

pratique de l’édition critique. Roma: Bulzoni, 1988, p. 65-84. (Collection<br />

Archives).


CULTURA PARTILHADA E PUBLICIDADE<br />

USOS LEXICAIS NO DISCURSO PUBLICITÁRIO<br />

1. Considerações iniciais<br />

Nelly Carvalho (UFPE)<br />

nellycar@terra.com.br<br />

A língua, não tendo função em si, existe para expressar a cultura<br />

e possibilitar que a informação circule. Ela corporifica as demais<br />

interpretações culturais, como as letras nas músicas, a oração na religião,<br />

a descrição e a especificação na moda, a receita na culinária, o<br />

título nas obras de arte.<br />

A cultura é transmitida pela língua, sendo também seu resultado,<br />

o meio para operar e a condição da subsistência dessa cultura.<br />

O discurso publicitário é também matizado pela cultura em que está<br />

inserido, seja no vocabulário escolhido, seja nas imagens selecionadas.<br />

A competência do discurso publicitário e a sua eficácia vão de<br />

pender da forma como representa a cultura em que está inserido,<br />

permitindo estabelecer uma relação pessoal com a realidade próxima.<br />

A presença de índices carregados de cultura partilhada pela comunidade<br />

aumenta o poder de persuasão e sedução da mensagem veiculada,<br />

pois apela para valores que circulam e são aceitos, sendo entendidos<br />

facilmente. Na publicidade brasileira, podemos observar<br />

que, enquanto algumas mensagens dirigem-se a um público-alvo nacional,<br />

outras são construídas visando a um público-alvo mais específico,<br />

regional.<br />

2. Fundamentos linguísticos<br />

Língua e cultura formam um todo indissociável e, no caso da<br />

língua e da cultura maternas, esse todo não é ensinado em nenhum<br />

lugar especial, mas adquirido ao sabor dos acontecimentos cotidianos.<br />

Ele identifica os indivíduos como participantes de uma coletividade<br />

e serve de denominador comum para o convívio social.<br />

No caso da língua portuguesa – falada no Brasil e em Portu-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

867<br />

gal, consistindo em duas vertentes de uma mesma língua – veiculamse<br />

culturas que, embora tenham raízes comuns, diversificaram-se ao<br />

longo da história.<br />

Os componentes de uma língua são de ordem fonológica, sintática<br />

e semântico-lexical.<br />

Todos estes sofrem diferenciações quando submetidos a influências<br />

diversas e são observadas na pronúncia, nas escolhas sintáticas,<br />

nas alterações de sentido, nas escolhas do termo, em vertentes<br />

diferentes de uma mesma língua.<br />

É, contudo, o componente semântico-lexical que revela com<br />

maior clareza as divergências entre os usos por diferentes comunidades<br />

linguísticas. O léxico, nomeando as realidades extralinguísticas<br />

vai permitir compreender conceitos abstratos e nomear diferentes<br />

ocorrências da vida cotidiana.<br />

As diferenças entre nações que têm em comum a língua materna,<br />

no caso, Brasil e Portugal, são um tipo particular de fronteira<br />

cultural: a identidade é percebida pelo que se é (explícito) e pelo que<br />

não se é (implícito).<br />

Um saber comum é constituído de uma rede de forças. O<br />

principio de exclusão dos não iniciados naquele saber partilhado é<br />

decisivo para o sentido que tomam os signos: é o que acontece em<br />

toda a comunidade cultural, seja qual for a sua extensão.<br />

O jogo é sempre o mesmo: no momento da comunicação, entender<br />

um signo é construir uma linha de demarcação entre os que<br />

compartilham o sentido evocado e os que ficam excluídos. O implícito<br />

(cultural) desempenha um papel decisivo, impondo uma fronteira<br />

eficaz e discreta entre os que compreendem e os que não compreendem<br />

o sentido total da mensagem. A fronteira cultural não é apenas<br />

a das nações, nem sequer a da língua: pode ser regional e ata<br />

mesmo grupal.<br />

A aquisição da competência cultural (na própria cultura) não<br />

faz parte de uma escolha possível: ela é vivida como uma ligação<br />

imediata e única com o mundo. Os fatos são interpretados, mediatizados<br />

por uma aprendizagem e percebidos como expressão de uma<br />

evidência indiscutível. A realidade não se apresenta da mesma forma


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

868<br />

em todas as culturas: ela é uma construção elaborada por meio da<br />

experiência pragmática do mundo, sem que se perceba sua relatividade,<br />

isto é, sem que se considere a existência de outras formas de<br />

viver e de interpretar a realidade objetiva. As próprias mudanças culturais<br />

acontecem de forma imperceptível: uma comunidade não percebe<br />

as mutações a não ser quando se instalam definitivamente.<br />

O processo de socialização introduz o indivíduo numa construção<br />

arbitrária do mundo, coerente, mas não universal. O indivíduo<br />

(ou a sociedade), contudo, pretende alcançar essa universalidade em<br />

relação à sua cultura. Bastante ilustrativo é o caso da cultura ocidental<br />

europeia, que nos primeiros contatos com os povos dos continentes<br />

recém-descobertos, na época das grandes navegações, tentou fazer<br />

de suas iniciativas culturais um parâmetro universal. Os portugueses<br />

diziam que os índios não tinham fé, nem lei, nem rei, porque<br />

além de não serem valores na cultura tupi, eles não sabiam pronunciar<br />

os fonemas, F, L, R, por não integrarem a fonética de sua língua.<br />

3. Palavra e conceito<br />

A palavra analisa e objetiva o pensamento individual, tendo<br />

também um valor coletivo, pois há uma sociedade própria da língua.<br />

A palavra permite ao conceito ultrapassar o estágio individual e afetivo:<br />

ela racionaliza, classifica, distingue e generaliza o pensamento,<br />

tornando-o abstrato.<br />

Resultante de uma evolução histórica, a língua ordena e classifica<br />

os signos de acordo com seu próprio sistema classificatório<br />

semântico e formal.<br />

O vocabulário, símbolo verbal da cultura, “perpetua a herança<br />

cultural através dos signos verbais” e faz a ponte entre o mundo da<br />

linguagem e o mundo objetivo. Não é estático, como a realidade objetiva<br />

em que se espelha; ele evolui e se adapta, constituindo sempre<br />

um portador apropriado de significações, valores e cargas novas que<br />

a realidade gera e a palavra transmite. Essas cargas novas são responsáveis<br />

pelo surgimento constante e inevitável de neologismos,<br />

pela adoção de empréstimos, pela arcaização de termos, pela mudança<br />

de significados, como forma de adaptação da língua á evolução do<br />

mundo. Ao permitir a comunicação interpessoal, a língua favorece as


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

869<br />

representações e atitudes coletivas, produzindo a cultura. O jogo de<br />

simbiose no qual funcionam língua e cultura faz com que sejam o reflexo<br />

recíproco e obrigatório uma da outra.<br />

Palavras são emblemas culturais, símbolos com significados<br />

sociais, que conservam a experiência da atividade humana.<br />

O estudo de palavras, nas quais o componente cultural manifesta-se<br />

com mais intensidade, pode ser o fio condutor para o conhecimento<br />

de uma comunidade. Esse componente cultural é denominado,<br />

por Galisson, “carga cultural partilhada” e permite identificar<br />

o falante na condição de “indivíduo coletivo”, um conceito que<br />

distingue e esclarece mecanismos sociais, culturais e linguísticos, facilitando<br />

o estudo do comportamento humano.<br />

Um dos elementos (talvez o mais forte) de identificação coletiva<br />

é a língua materna, que, associada à cultura, permite a intercompreensão.<br />

Isolada da cultura de origem, porém, e inserida em<br />

comunidades diferentes, a língua materna vai recebendo marcas dessa<br />

nova cultura e formando vertentes que se afastam, sobretudo, no<br />

aspecto lexical, aquele que nomeia a realidade. As palavras passam a<br />

receber uma carga conotativa cultural diferente da anterior. A cultura<br />

na qual a língua se insere desempenha um papel de grande importância,<br />

sendo uma “cultura transversal”, que pertence à comunidade<br />

como um todo e não deve ser confundida com a cultura erudita.<br />

A língua, como já vimos, é sempre carregada de cultura em<br />

todos os níveis (fonológico, morfológico, sintático e lexical e até<br />

mesmo nos gestos e na mímica que reforçam a mensagem). Mas é o<br />

vocabulário que carrega consigo a maior carga cultural, a cultura<br />

comportamental comum. Não há, contudo, uma carga cultural uniforme.<br />

O acervo lexical é formado por unidades estáveis e privilegiadas<br />

para os conteúdos de cultura que neles aderem, anexando-lhes<br />

outra dimensão à dimensão originária. Palavras como eagle (águia)<br />

ou king(rei) têm o mesmo referente em inglês e português, mas cargas<br />

culturais diversas.<br />

Nas duas vertentes do português (Portugal e Brasil), isso é<br />

óbvio em palavras como rapariga e bicha. Há palavras quase neutras<br />

e outras bastante marcadas pelos usos sociais. São inúmeros os e-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

870<br />

xemplos de palavra que cristalizam uma carga cultural diferenciada.<br />

Galisson, linguista francês que estudou o tema, criou um esquema<br />

bastante elucidativo para explicar o significado acrescido da carga<br />

cultural.<br />

Como dentro do próprio Brasil existem as diferenças dialetais<br />

entre regiões, decorrentes de condições e épocas de implantação da<br />

língua portuguesa e de sua imposição como língua veicular, este esquema<br />

pode revelar diferenças de uso.<br />

4. Zonas Dialetais Brasileiras<br />

Para entendermos essa carga cultural das palavras no português<br />

do Brasil, faz-se necessário conhecer, em linhas gerais, as zonas<br />

dialetais brasileiras.<br />

Segundo Antenor Nascentes em O Linguajar Carioca, o falar<br />

brasileiro, apesar de sua relativa uniformidade, apresenta variações<br />

bem características: a enorme extensão territorial, sem fáceis comunicações<br />

interiores quebrou a unidade da língua transplantada, fragmentando-o<br />

em subdialetos, contribuindo para isso o modo diferente<br />

de povoações das diversas regiões. Vinda da Europa, a língua e a<br />

cultura implantaram-se no litoral, formando dois focos de irradiação:<br />

São Paulo e Pernambuco. Seguem-se depois, na ordem, a Bahia, o<br />

Maranhão e o Rio de Janeiro.<br />

São Paulo levou ambas, língua e cultura, a Minas, Goiás, Mato<br />

Grosso. Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A Pernambuco<br />

coube o papel de divulgá-las na margem esquerda do rio São<br />

Francisco que serviu como divisor de falares: em Alagoas, Paraíba,<br />

Rio Grande do Norte e Ceará, que as levou ao Acre.<br />

A Bahia influenciou a margem direita do velho Chico: Sergipe<br />

e Espírito Santo. O Maranhão divulgou a língua na Amazônia e<br />

ao Rio de janeiro, capital da colônia desde 1763, se vincula a colonização<br />

do estado do Rio. Esta variante, por ter se tornado a língua da<br />

corte com a Transmigração da Família Real, em 1808, foi considerada,<br />

a partir de então o modelo da língua falada no Brasil.<br />

Antenor Nascente considerou o dialeto brasileiro dividido em<br />

duas zonas norte e sul, que por sua vez se subdividem em subfalares.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

871<br />

No Norte, o amazônico e o nordestino. No sul: o baiano, o fluminense,<br />

o mineiro e o sulista. Mas, apesar da força homogeneizadora dos<br />

meios de transporte modernos e mais ainda dos meios de comunicação,<br />

em cada um desses subfalares, nos vários estados, vão-se criando<br />

características próprias no léxico, na fonética e nos torneios sintáticos.<br />

Mas, como isso pode interessar ao publicitário e pode influenciar<br />

o mercado?<br />

5. Diferenças Lexicais<br />

Algeo criou uma tipologia mais minuciosa para analisar as diferenças<br />

lexicais entre o inglês britânico e o americano. Ele considera<br />

duas formas de estabelecer a tipologia de diferenças lexicais interdialetais:<br />

partindo da palavra ou partindo do referente. Utilizando seu<br />

esquema para estudar as diferenças regionais, teremos:<br />

5.1. Uma única forma e um único referente<br />

1. Referente correspondente na língua comum – É a classe que não<br />

envolve diferença entre variedades.<br />

2. Lacuna referencial ou referente sem correspondente em uma das<br />

variedades: cantoria (desafio de violeiros) – maracatu-frevo.<br />

3. Lacuna lexical ou termo sem correspondente: peba, gaitada.<br />

4. Lacuna cultural – representa hábitos inexistentes e sem correspondência<br />

na outra cultura: lapinha, pitoco, cotoco.<br />

5.2. Formas múltiplas e um único referente<br />

1. Sinônimos – cachaça/pinga.<br />

2. Termos equivalentes – Sinônimos interdialetais: bigu/carona;<br />

kombeiro/perueiro.<br />

3. Sinônimos em apenas uma das variedades: capiongo/tristonho;<br />

aperriado/preocupado.


5.3. Forma única e referentes múltiplos<br />

1. Polissemia<br />

2. Polissemia interdialetal: tampa.<br />

3. Uma forma única pode denotar três ou mais referentes: trouxa.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

872<br />

4. -Termos mais ou menos equivalentes – Diadema/tiara;calção/maiô.<br />

5. Termos nos quais uma forma geral é semanticamente restrita em<br />

outra variedade pernambucana, pronto.<br />

5.4. Múltiplas formas e múltiplos referentes<br />

1. Termos intercambiáveis – São aqueles que, embora usados nas<br />

duas variedades, não cabem exatamente nos mesmos contextos<br />

linguísticos, como ocorre com bravo/brabo Sutiã/califon/corpinho.<br />

5.5. Múltiplas formas e múltiplos referentes (bomonímia)<br />

1. Homonímia.<br />

2. Homonímia interdialetal usado em área restrita; manga, fruta;<br />

manga, verbo (só no Nordeste significa zombar).<br />

3. Analogia – Importante relação para comparações interculturais, a<br />

analogia é o oposto da homonímia. Análogos são objetos que diferem<br />

entre si e têm nomes diversos, mas preenchem posições parecidas<br />

em diferentes sistemas. boyzinho/mauricinho; patricinha/<br />

boyzinha.<br />

4. Analogia interdialetal – Diferenças culturais levam a diferenças<br />

linguísticas e constituem a causa mais significativa das variações<br />

dialetais. Ex: mandioca/aipim/macaxeira; laranja cravo, bergamota,<br />

tangerina. Os alimentos, aliás, são um dos maiores responsáveis<br />

pelas variações interdialetais, porque as coisas que eles<br />

nomeiam nas duas culturas são similares, mas não iguais.<br />

As dificuldades para estabelecer correspondências lexicais


são, resumidamente, as seguintes:<br />

· Demarcar os limites do significado das palavras.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

873<br />

· Considerar a diferença entre o vocabulário passivo e o ativo, que<br />

mascara as dificuldades.<br />

· Perceber que a frequência modifica a questão de uso.<br />

Vimos, nas tipologias acima, como são sutis as distinções entre<br />

as zonas dialetais e como são delicadas as relações semânticas<br />

que limitam os campos dialetais. Essas classificações orientam a análise,<br />

mas dada à limitação do objeto de estudo – os usos do discurso<br />

publicitário, observados em jornais, revista e outdoors, no início de<br />

2003, nas peças regionais e nacionais.<br />

6. Apresentação do Corpus<br />

“O sol trabalha 365 dias por ano e usa sua pele como escritório”,<br />

da Episol, loção hidratante, é bem uma peça publicitária<br />

carregada de cultura brasileira,pois apesar do produto ser de uma<br />

multinacional, coloca em evidência uma qualidade de que nos vangloriamos<br />

todos:ser um país ensolarado.<br />

Iniciamos a apresentação do corpus com três publicidades que<br />

levam a marca da cultura brasileira e só são entendidas por quem vive<br />

aqui e compartilha as vivências acumuladas. A seguir serão apresentadas<br />

peças regionais.<br />

1. Liberdade ainda que à tardinha, das sandálias Havaianas, traz<br />

à memória do receptor-alvo, a frase-símbolo da Inconfidência<br />

Mineira.<br />

2. Sogra chamando, dos celulares Sony Ericsson com identificador<br />

visual de chamadas, tem no visor uma cobra verde e amarela<br />

(creio que é jararaca), forma como a nossa cultura trata as sogras.<br />

Na França é o cortês belle-mère.<br />

3. Por que não eu? Me leva pra casa. Da Assolan, faz referência à<br />

supremacia da outra marca no Brasil e usa o nível coloquial, iniciando<br />

a frase com pronome oblíquo.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

874<br />

4. Peixe-gato. Outdoor da Movimento exibindo um belo rapaz, um<br />

gato, com um minúsculo e colorido calção de praia, deitado na<br />

areia, à beira mar, onde aparecem os igualmente minúsculos peixes-gato,<br />

como são nomeados nas praias de Pernambuco.<br />

5. Neste verão você precisa de uma sombrinha. Propaganda institucional<br />

do verão em Pernambuco. Faz o jogo polissêmico entre<br />

pequena sombra, guarda-sol de praia e adorno carnavalesco, colocando<br />

como elemento estranho o fato de ser preciso sombrinha<br />

no inverno e não no verão.<br />

6. Do maracatu para o cinema, da praia parra as orquestras de<br />

frevo, dos pólos de animação para o restaurante. Não é à toa<br />

que o Recife é a cidade das pontes. Recife, diversão dentro e<br />

fora da folia.<br />

7. E você pensando que as pontes eram as únicas coisas que Recife<br />

tinha em comum com Veneza. Quanto Prima: as delícias<br />

da Itália em fast food.<br />

Segue-se uma mostra das inúmeras peças publicitárias com o<br />

mote do carnaval, sobretudo do Galo da Madrugada:<br />

1. Obrigado, Maria Bonita, Lampião e Cleópatra. O Galo da<br />

Madrugada agradece a todos os pernambucanos que colocaram<br />

sua fantasia, entraram na folia e fizeram, mais uma vez,<br />

o maior bloco carnavalesco do mundo.<br />

2. O boné – O abadá – O folião (descrevendo uma garrafa de<br />

cerveja) Antártica, paixão nacional, a cerveja oficial do Carnaval<br />

de Salvador.<br />

7. Conclusão<br />

Os exemplos retirados do minicorpus permitem observar as<br />

diferenças de escolha dos itens lexicais e dos usos linguísticos nos<br />

dialetos brasileiros, resultantes da sedimentação cultural, que se fez<br />

diferente nas várias regiões.<br />

As diferenças observadas são o produto de uma dialética histórica<br />

de diferenciação cumulativa. No curso de histórias diferentes,


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

875<br />

partindo de uma raiz comum, as comunidades desenvolvem culturas<br />

próprias que se expressam na sua forma de linguagem, nas escolhas<br />

de imagens. Constituindo-se em variantes, que se baseiam na intercompreensão,<br />

as regiões dialetais brasileiras têm as raízes de sua identidade<br />

fincadas nos elementos culturais partilhados.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ALGEO, John. British/American lexical differences. In: English<br />

across cultures/Culture across English. Communications. New<br />

York. Edited by Ofélia Garcia and Richard Otheguy, 1989.<br />

BIDERMAN, Maria Teresa Camargo. Teoria linguística: Linguística<br />

quantitativa e computacional. Rio de Janeiro: Ao livro Técnico,<br />

1979.<br />

BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veut dire: l’economie des<br />

échanges linguistiques. Paris: Fayard, 1982.<br />

CARVALHO,Nelly. Publicidade, a linguagem da sedução. São Paulo:<br />

Ática, 2002.<br />

DIONÍSIO, Mário. Meu reino (se o tivesse) por um cavalo de pau.<br />

In: Monólogo a duas vozes. Lisboa: Almedina, 1983.<br />

GALISSON, R. Lexicologie et enseignement des langues: Essais<br />

Methodologique. Paris: Hachette, 1979.<br />

NASCENTE, Antenor. O dialeto carioca. Rio de Janeiro: Nova<br />

Fronteira, 1945.<br />

ZARATE, Geneviève. Enseigner une culture étrangère. Paris: Hachette,<br />

1986.


DA CIÊNCIA À DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA:<br />

NATUREZA E FUNCIONALIDADE DO DISCURSO<br />

1. Introdução<br />

Urbano Cavalcante Filho (IFBA/UFBA/UESC)<br />

urbanocavalcante@yahoo.com.br<br />

A palavra é uma espécie de ponte lançada entre<br />

mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa<br />

extremidade, na outra apoia-se sobre o meu<br />

interlocutor. A palavra é o território comum do<br />

locutor e do interlocutor. Mas como se define o<br />

locutor? Com efeito, se a palavra não lhe pertence<br />

totalmente, uma vez que ela se situa numa<br />

espécie de zona fronteiriça, cabe-lhe, contudo,<br />

uma boa metade.<br />

(Mikhail Bakhtin)<br />

O objetivo deste texto 1 é caracterizar o gênero divulgação científica<br />

e analisar o papel do divulgador enquanto aquele que fala<br />

pelo outro e para o outro. Assim, procuraremos primeiramente discutir<br />

aspectos concernentes à concepção, natureza e funcionalidade dos<br />

gêneros discursivos, tomando como aporte teórico, principalmente,<br />

as reflexões promovidas pelo estudioso russo Mikhail Bakhtin. Em<br />

seguida, abordaremos as condições de produção tanto do discurso da<br />

ciência, quanto do discurso jornalístico para, finalmente, refletir sobre<br />

a natureza, características e funcionalidade de um novo gênero<br />

discursivo, que é o resultado da fusão, da hibridização dos dois gêneros<br />

anteriores – o gênero divulgação científica, destacando o papel<br />

do divulgador científico como mediador.<br />

1 O presente artigo faz parte das reflexões feitas pelo autor no desenvolvimento de sua pesquisa<br />

no Mestrado em Letras: Linguagens e Representações da Universidade Estadual de Santa<br />

Cruz (UESC), sob a orientação da Profª Dra. Vânia Lúcia Menezes Torga.


2. Dos gêneros do discurso<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

877<br />

A noção de gênero discursivo, retomado das antigas retórica e<br />

poética, bem como as análises de gêneros diversos têm sido objeto<br />

de reflexão e estudo de inúmeras escolas e vertentes teóricas. Dentre<br />

os diversos estudiosos, dos mais diversos campos do saber, que vai<br />

desde à nova retórica até a abordagem sistêmico-funcional, da linguística<br />

de corpus até à reflexão bakhtiniana, passando pelos críticos<br />

literários, retóricos, sociólogos, cientistas cognitivistas, linguistas<br />

computacionais, professores, analistas do discurso, comunicadores,<br />

dentre tantos outros, o estudo dos gêneros foi, dessa forma, uma<br />

constante temática que interessou aos antigos e tem atravessado, ao<br />

longo dos tempos, as preocupações, principalmente, dos estudiosos<br />

da linguagem.<br />

O estudo dos gêneros textuais não é novo e, no Ocidente, já tem pelo<br />

menos vinte e cinco séculos, se considerarmos que sua observação sistemática<br />

iniciou-se em Platão. O que hoje se tem é uma nova visão do<br />

mesmo tema. Seria gritante ingenuidade histórica que foi os últimos decênios<br />

do século XX que se descobriu e iniciou o estudo dos gêneros textuais.<br />

Portanto, uma dificuldade natural no tratamento desse tema acha-se<br />

na abundância e diversidade das fontes e perspectivas de análise. Não é<br />

possível realizar aqui um levantamento sequer das perspectivas teóricas<br />

atuais (MARCUSCHI, 2008, p. 147).<br />

Nossa pesquisa também se insere nesse grupo que objetiva se<br />

debruçar no estudo dos gêneros. Dentre a infinidade de gêneros que<br />

estão em circulação na sociedade e que produzimos cotidianamente,<br />

na medida em que das mais diversas são nossas atividades de linguagem,<br />

nosso trabalho debruçar-se-á no estudo sobre o gênero divulgação<br />

científica.<br />

No processo de interação verbal, não dizemos o que queremos,<br />

onde e quando queremos. Os discursos são organizados socialmente,<br />

inserem-se numa ordem enunciativa e são regulados, moldados<br />

pelos gêneros que os constituem. Em outras palavras, cada esfera<br />

da comunicação social apresenta “tipos relativamente estáveis de enunciados”.<br />

Considerando as anotações feitas por Bakhtin (1997) quanto à<br />

constituição, à natureza e a própria funcionalidade dos gêneros discursivos,<br />

estes são, num primeiro plano de observação, considerados


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

878<br />

como modos relativamente acabados de comunicação que permitem<br />

aos atores sociais a interlocução em sua integralidade.<br />

Entendendo, pois, os gêneros do discurso como “tipos relativamente<br />

estáveis de enunciados”, é notório que esse conceito de gênero<br />

está integrado à atividade social de utilização da língua, que sofre<br />

uma regulação das condições e finalidades de cada uma de suas<br />

esferas da atividade produzida pelos seres humanos nas situações<br />

comunicativas relativamente estáveis a que estão integrados. Esses<br />

enunciados, então, dispõem de certa estabilidade:<br />

Trata-se de rotinas, de comportamentos estereotipados e anônimos<br />

que se estabilizaram pouco a pouco, mas que continuam sujeitos a uma<br />

variação contínua. A arenga de um camelô ou a redação de um fait divers<br />

seguem uma rotina, adaptada às circunstâncias; não se baseiam em nenhum<br />

texto-modelo. Por outro lado, alguns gêneros muito ritualizados<br />

obedecem a um modelo definitivamente estabelecido, do qual não é possível<br />

afastar-se (por exemplo, a missa)” (MAINGUENEAU, 2001)<br />

Esse fato de os gêneros serem considerados rotinas, como nos<br />

apresentou Maingueneau, impede, contudo, que o gênero seja pensado<br />

de acordo com o sentido de molde:<br />

Os gêneros não podem ser considerados como formas que se encontram<br />

à disposição do locutor a fim de que este molde seu enunciado nessas<br />

formas. Trata-se, na realidade, de atividades sociais que, por isso<br />

mesmo, são submetidas a um critério de êxito (MAINGUENEAU,<br />

2001).<br />

Ainda pensando no aspecto “relativamente acabado” dos gêneros,<br />

poder-se-ia resumir a discussão em torno de tal temática da<br />

seguinte maneira: os gêneros, segundo essa visão bakhtiniana, são<br />

resultados da fusão de três dimensões constitutivas, como bem sinaliza<br />

Bakhtin: i) o conteúdo temático ou aspecto temático - objetos,<br />

sentidos, conteúdos, gerados numa esfera discursiva com suas realidades<br />

socioculturais -, o qual tem a função de definir o assunto a ser<br />

intercambiado; ii) o estilo verbal ou aspecto expressivo – seleção lexical,<br />

frasal, gramatical, formas de dizer que têm sua compreensão<br />

determinada pelo gênero –; iii) a construção composicional ou aspecto<br />

formal do texto – procedimentos, relações, organização, participações<br />

que se referem à estruturação e acabamento do texto, que sinaliza,<br />

na cena enunciativa, as regras do jogo de sentido disponibilizados<br />

pelos interlocutores.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

879<br />

Assim, percebemos que os gêneros sempre estão ligados a um<br />

tema e a um estilo, apresentando uma composição própria, com os<br />

quais operamos de modo inevitável:<br />

Esses gêneros do discurso nos são dados quase como nos é dada a<br />

língua materna, que dominamos com facilidade antes mesmo que lhe estudemos<br />

a gramática [...] Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados<br />

[...] Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira<br />

que a organizam as formas gramaticais. [...] Se não existissem os gêneros<br />

do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de construir<br />

cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível<br />

(BAKHTIN, 1997, p. 301-302).<br />

Num segundo plano, cabe ressaltar que sua constituição e definição<br />

não se esgotam nem se limitam apenas a esses três elementos.<br />

Numa cena enunciativa concreta, observa-se que sua constituição atrela-se,<br />

depende, sobretudo, de condições exteriores à língua e ao<br />

sujeito-falante. Depende, nesse sentido, de uma necessidade real e<br />

específica e da atividade humana exercida pelo sujeito. Dentro dessa<br />

necessidade, da atividade humana e da utilização do sistema de código<br />

linguístico é que a organização dos três elementos devem ser estudados.<br />

Assim, os gêneros, como a língua, refletem e, simultaneamente,<br />

refratam, na metáfora do espelhamento de Campos (2006), as<br />

vontades, os desejos, as necessidades sociais, os quereres humanos<br />

dentro de uma atividade social singular e de uma situação comunicativa<br />

específica. Assim, apresenta o autor:<br />

[...] podemos dizer que o espelho, como materialidade, não é processo<br />

que se reduz à operação de produzir, em reflexo, as imagens que vão<br />

sendo mostradas na superfície de sua lâmina como se ali pudesse acontecer<br />

apenas a dimensão visível das imagens. Nesse sentido, o espelhamento<br />

processaria as imagens passíveis de reprodução e, como tal, constituiriam<br />

os objetos marcados pela movimentação coagulada da aparência de<br />

vida. À primeira vista, tal processo de constituição da visão das imagens,<br />

não consideraria a possibilidade da diferença dos olhares na sua produção,<br />

reduzindo as imagens à ilusão superficial da reprodução em série.<br />

Diante dos limites da reprodução, o espelho não só reflete, mas, ainda, e,<br />

simultaneamente, refrata. (CAMPOS, 2006, p. 303)<br />

E ainda:<br />

Com esse quadro, o espelhamento, que vai além do refletir, realizando<br />

a operação de refratar, o faz no interior da excedência, ou visão de<br />

mundo do autor enquanto construção social que não só aponta para o a-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

880<br />

cabamento, mas, ainda, para o inacabamento do que cerca o humano. E<br />

isso nos possibilita dizer que o espelhamento enquanto processo da linguagem<br />

seria a metáfora da criação, que não se efetiva sem a diferença<br />

dos raios de luz da refração na lâmina que reproduz e transforma as imagens,<br />

mas, ainda, na lâmina enquanto nada: processo instaurador da singularidade<br />

(CAMPOS, 2006, p. 306-307).<br />

Se, ainda tratando da estabilidade dos gêneros, eles apresentam<br />

formas “relativamente acabadas” e, por outro lado, emanam por<br />

intermédio da apropriação da língua em condições específicas, os<br />

gêneros, em um terceiro plano, possuem em sua essencialidade uma<br />

natureza inacabada, ambivalente e dúbia. Noutras palavras, sua natureza<br />

revela um movimento de tensão da linguagem entre o móvel e o<br />

imóvel, o elástico e o rígido, o estável e o instável numa relação dialética<br />

da contradição.<br />

Nessa perspectiva, os gêneros, por conta desses traços contraditórios<br />

e dialéticos que os constituem, são abertos, transmutáveis e<br />

passíveis de hibridização. É o que ocorre, por exemplo, quando fundem-se<br />

o gênero da ciência com o gênero jornalístico, dando origem<br />

a um novo gênero – o divulgação científica, objeto de estudo e análise<br />

dessa pesquisa.<br />

Além disso, o sujeito deve ser considerado como um componente<br />

significativo na manifestação do acabamento e inacabamento<br />

dos gêneros, uma vez que são responsáveis pela regularização ou não<br />

dos enunciados. Afinal, o sujeito é uma instância que está investida<br />

social e institucionalmente de um papel para realizar o ato de linguagem.<br />

Partindo da concepção de inacabamento dos gêneros, percebe-se<br />

um alargamento dos elementos básicos que contribuem para o<br />

ritual de configuração dos mesmos, porque, nessa perspectiva, é incoerente,<br />

impossível pensar o gênero sem a inserção ou certo reflexo<br />

e refração da figura de um eu locutor que fala para um tu interlocutor.<br />

Noutras palavras, com isso queremos dizer que o gênero, o<br />

enunciado, como produto da enunciação, é um ato individual em que<br />

está pressuposta a instância do sujeito. Ou seja, alguém enuncia. Alguém<br />

produz um discurso. Alguém produz um ato de fala. No entanto,<br />

essa instância produtora de discurso não se encontra só no processo<br />

de enunciação. O enunciado constitui uma ação verbal entre dois


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

881<br />

sujeitos. Ao enunciar pressupõe o outro, quando se diz, diz-se a alguém.<br />

O discurso é, portanto, uma relação verbal entre locutor/enunciador<br />

e alocutário/enunciatário. E ainda, todo discurso é<br />

composto de uma pluralidade de enunciados, marcado por diferentes<br />

formações e posições.<br />

Com isso, ratificamos a ideia de que eles são responsáveis pela<br />

constituição de sentido. Sendo assim, os gêneros não conseguiriam<br />

significar simplesmente a partir dos três elementos básicos defendidos<br />

por Bakhtin.<br />

Nesse caso, os gêneros nada mais são do que um espaço de<br />

mediação de sentidos, um modo de organização da experiência humana<br />

em uma situação dada. Diante disso, como pensar ou pensar<br />

isoladamente a relação construída entre o eu locutor e o seu tu interlocutor<br />

e os outros elementos da enunciação, se o eu locutor é uma<br />

constituição semântica, certa visão de mundo doada ao outro numa<br />

experiência dialógica?<br />

Seguindo esse raciocínio, os atores sociais significam a si, ao<br />

outro e ao mundo, numa lógica do espelho defendida por Campos,<br />

através do excedente de visão. O locutor quando se coloca em posição<br />

de enunciação reflete e refrata, cria uma imagem de si, de uma<br />

visão de mundo e, consequentemente, tenta, num jogo do espelho,<br />

“vender” sua imagem para o interlocutor. O que retoma o caráter de<br />

tensão estabelecido pela linguagem no espaço de comunicação.<br />

Isso nos leva a pensar numa certa projeção do sujeito na figura<br />

do locutor e do ouvinte como partes constitutivas dos elementos<br />

básicos do estudo dos gêneros. Com isso, abandona-se, de uma vez<br />

por todas, o fechamento e isolamento usuais estabelecido pelo estruturalismo<br />

das categorias: obra, autor, leitor, gênero e domínio epistemológico,<br />

posto que é na articulação desses elementos que os gêneros<br />

se manifestam.<br />

Esses elementos, apesar de possuírem suas especificidades,<br />

mantêm entre si uma relação espiralada, fazendo-se partes integrantes<br />

de um todo enunciativo.<br />

A articulação desses elementos ainda não é suficiente para entender<br />

a natureza complexa dos gêneros discursivos. Se se pensa o<br />

gênero mediante a relação de significação estabelecida pelos interlo-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

882<br />

cutores, pensa-se também como tal relação é construída e contribui<br />

para o todo significativo. Nesse caso, entram em cena componentes<br />

que fundam o discurso ou os discursos. A intenção comunicativa, interdiscurso<br />

e o intradiscurso e o papel social que o enunciador assume<br />

contribuem para a compreensão da natureza de um dado gênero.<br />

3. A ordem do discurso científico<br />

O discurso é um fenômeno social. Esta é uma noção de discurso<br />

apresentada por Orlandi (1996), que, tomando-o como tal, está<br />

considerando a linguagem enquanto interação. Isso nos permite afirmar<br />

que, tomando-a como interação, estamos levando em consideração<br />

as suas condições de produção e recepção. Afinal, o discurso<br />

só significa num dado espaço/tempo. Desse modo, a relação estabelecida<br />

pelos interlocutores, assim como o contexto, faz parte da constituição<br />

da significação daquilo que se diz.<br />

Todo discurso só significa quando são levadas em consideração<br />

suas condições de produção e recepção. Portanto, considerando o<br />

discurso da ciência, esse tipo de discurso não pode ser encarado sem<br />

a consideração do estabelecimento da relação que sua linguagem estabelece<br />

com o contexto, “compreendendo-se contexto em seu sentido<br />

estrito (situação de interlocução, circunstância de comunicação,<br />

instanciação de linguagem) e no sentido lato (determinações histórico-sociais,<br />

ideológicas etc.)” (ORLANDI, 1996, p. 152). E o seu significar,<br />

sem dúvida, está aberto a acolher as diferentes formas e sentidos,<br />

pois toda vez que um sujeito enuncia ou anuncia, diz algo a alguém<br />

uma configuração para seu discurso é estabelecida.<br />

Nas palavras da autora:<br />

Um tipo de discurso resulta do funcionamento discursivo, sendo este último<br />

definido como a atividade estruturante de um discurso determinado,<br />

para um interlocutor determinado, por um falante determinado, com finalidades<br />

específicas. Observando-se sempre, que esse "determinado" não<br />

se refere nem ao número, nem a presença física, ou à situação objetiva<br />

dos interlocutores como pode ser descrita pela sociologia. Trata-se de<br />

formações imaginárias, de representações, ou seja, da posição dos sujeitos<br />

no discurso (ORLANDI, 1996, p. 153).<br />

Nos gêneros discursivos da ciência, por exemplo, a intenção<br />

comunicativa se revela mediante o discurso de ciência enquanto o


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

883<br />

lugar autorizado a dizer a verdade, devendo ser aceita como tal sem<br />

contestação. Isso não significa dizer que a intenção deve ser aceita de<br />

modo passivo, tranquilo. Mas que existe um sujeito autorizado a dizer<br />

para que o dito seja significado.<br />

O que temos, no discurso autoritário, é a desarticulação da dinâmica<br />

da interlocução – que é a articulação locutor-ouvinte. Ou seja,<br />

a reversibilidade – o que determina a dinâmica da enunciação, ou<br />

seja, a troca de papéis no discurso entre locutor e ouvinte –, no discurso<br />

autoritário tende a ser zero, já que apenas um dos polos da enunciação<br />

está autorizado a dizer o que diz e como diz.<br />

É possível que, ao tratarmos da autoridade que o discurso científico<br />

é possuidor, aproximá-lo do conceito de discurso competente,<br />

proposto por Chauí (1990), ressalvadas as possíveis restrições a<br />

tal proposta de relação, de aproximação. Para Chauí (1990), o discurso<br />

competente é aquele que ao ser proferido, ouvido é aceito como<br />

autorizado. Vamos além: é um discurso em que, considerando a<br />

dinâmica da linguagem, não é qualquer um que pode proferi-lo, em<br />

qualquer lugar, em qualquer circunstância, ou seja, para ser aceito<br />

como manifestação da verdade, é pela voz do cientista que ele deve<br />

ser enunciado, já que é resultado de algo que foi observado, testado,<br />

comprovado.<br />

O lugar de enunciação também se revela como um componente<br />

importante na tradução da natureza do gênero. O lugar permite<br />

um excedente de visão que o autoriza a concretizar sua intenção. Ainda<br />

o lugar de enunciação autoriza o que deve ser interdito ou dito<br />

no espaço interlocução. E isso se constitui em traço determinante na<br />

definição e distinção dos gêneros.<br />

O lugar social corresponde em certa medida a uma função<br />

empírica assumida pelo indivíduo. É esse lugar social que permite a<br />

representação, a imagem que esse indivíduo projeta dentro do seu<br />

discurso, a partir de sua posição discursiva, a fim de delimitar os espaços<br />

de interação entre o “eu” que fala/escreve e o “tu” que ouve/lê.<br />

O “eu” que fala no discurso de ciência, deve, através de mecanismos<br />

linguístico- discursivos, imprimir para o interlocutor uma representação<br />

de um sujeito que sabe exatamente o que diz porque analisou,<br />

observou, testou, comprovou, portanto, a atividade responsiva do sujeito<br />

“tu” deve ser de aceitação.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

884<br />

Essa relação entre o “eu” autorizado a dizer de uma determinada<br />

posição não confere a relação de força estabelecida entre o “tu”<br />

sua eficácia, eficiência, porque o sujeito “tu” pode, orientado por<br />

princípios discursivos diversos, desconsiderar a autoridade.<br />

Por exemplo, o discurso da ciência sobre a transfusão de sangue:<br />

“Quem doa sangue, salva vidas”. Os cientistas da saúde evidenciam<br />

a importância do sangue, o tipo sanguíneo... Mas esse discurso<br />

é vazio de sentido para os interlocutores filiados a formação dialógica<br />

e discursiva “testemunhas de Jeová”, uma vez que é discurso religioso.<br />

Essa observação nos faz perceber que a relação de forma entre<br />

“eu” e “tu” é complexa, visto que não é passiva, tranquila, estável,<br />

mas envolve as formações discursivas e ideológicas que o “tu”<br />

faz parte.<br />

4. A ordem do discurso jornalístico<br />

No gênero discursivo jornalístico, vemos também que a intenção<br />

comunicativa se revela mediante um discurso que objetiva a<br />

transmissão de informações em função de interesses e expectativas.<br />

Esse gênero discursivo, enquanto reprodutor de fatos da realidade,<br />

anuncia, comunica acontecimentos. Assim, caracterizado como produtor<br />

e interpretador de um conjunto de enunciados, o gênero jornalístico<br />

toma corpo. No seu ato de enunciar, enquanto ato de dizer o<br />

mundo, o discurso do gênero jornalístico fala o outro, fala ao outro e<br />

com o outro.<br />

Nesse processo de construção da escritura do fato jornalístico,<br />

os sujeitos envolvidos são os produtores do acontecimento, corporificados<br />

como as fontes de informação. Nestas estão, em um polo, o<br />

narrador do fato, o jornalista, e no outro extremo, os leitores, aqueles<br />

a quem o referido gênero se dirige, intentando socializar informações.<br />

Depreendemos disso que, nessa relação, temos uma relação tríplice<br />

operada pelos jornalistas, leitores e fontes de informações. Essa<br />

relação cooperativa acaba por desembocar, na verdade, numa semantização<br />

dos discursos das fontes, produzindo a partir deles, novos enunciados.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

885<br />

Para essa empreitada, as atividades típicas desse gênero de<br />

descrever/escrever um fato, buscam-se os mecanismos da estrutura<br />

morfológica, sintática, fonética da língua para que o “eu” responsável<br />

pelo discurso do informar, possa imprimir ao “tu” que ouve/lê<br />

uma representação de sujeito que enuncia perseguindo a precisão, a<br />

clareza, a transparência, a imparcialidade, e ao mesmo tempo, possibilitando<br />

ao interlocutor/leitor uma compreensão satisfatória para a<br />

formação de sua opinião a respeito daquilo que é apresentado, enunciado,<br />

dito.<br />

Uma categoria que merece destaque na abordagem desse gênero<br />

é a categoria de pessoa que, segundo Fiorin (1999), é essencial<br />

para que o ato de linguagem se torne discurso, já que todo discurso é,<br />

em geral, a relação entre um “eu” e um “tu”. No jornalismo, temos<br />

novos contornos dessa relação, já que a palavra do jornalismo funciona<br />

como uma mediação entre fontes e leitores. Aqui o que temos<br />

é um locutor que não se marca em seu próprio enunciado, que lhe é<br />

exterior, e o faz de forma impessoal. É nesse momento que o jornalista<br />

tenta extrair a marca de subjetividade na relação eu tu e lança<br />

mão da terceira pessoa. Esse uso da terceira pessoa do discurso assinala<br />

a garantia de sua estratégia de universalidade, de objetividade. É<br />

o que Ducrot (1968) vai referir-se a essa utilização do “ele” como a<br />

marcação de um não sujeito.<br />

Temos também aqui, como visto no discurso do gênero científico,<br />

a pretensão de um discurso autorizado, na medida em que, não<br />

só como mero reprodutor de enunciados, o discurso jornalístico também<br />

produz novos enunciados, só que a partir da interpretação do<br />

discurso de origem. Nesse processo de interpretação, há o apagamento<br />

da fala de sua fonte enquanto estratégia de construir sua própria<br />

fala. É como se o jornalista tomasse os enunciados dos quais não é o<br />

autor como se fossem seus e se impõe, na cena enunciativodiscursiva,<br />

como origem do dizer, isto é, um discurso autorizado.<br />

Esses enunciados jornalísticos ao falar do mundo, explicar o<br />

mundo por meio do relato dos acontecimentos não explicam em sua<br />

totalidade o mundo. Ora, o que se tem é a enunciação de fragmentos<br />

dos acontecimentos, já que há uma limitação que o impossibilita, seja<br />

o tempo, o espaço, seja a visão subjetiva de quem o enuncia que<br />

tem de fazer suas escolhas. É um discurso que a todo tempo, constrói


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

886<br />

e reconstrói, aparece numa arena de instabilidade e estabilidade de<br />

enunciados que fazem parte, por conseguinte, de diferentes formações<br />

e temas.<br />

Retomando a ideia de Campos sobre o espelhamento da linguagem<br />

que é constitutivamente uma experiência de caráter polifônico,<br />

já que, na vivência do falar e escrever, “o texto é sempre objeto<br />

de mediação uma vez que realiza o processamento de quem fala/escreve<br />

na relação com quem processa o que ouve/lê” (CAMPOS,<br />

2006, p. 307), é que direcionamos nossa reflexão agora para pensar<br />

que é dessa fusão, desse hibridismo, também possibilidade pela metáfora<br />

do espelhamento da linguagem, que nasce o gênero de divulgação<br />

científica, que funciona como um discurso sobre em que, ao<br />

“publicizar” o discurso da ciência, ressignifica-o, colocando-se entre<br />

a própria ciência e os sujeitos não especialistas. É um discurso que se<br />

inscreve num espaço de negociação entre as formações discursivas<br />

da ciência e da mídia (jornalismo) para atingir a um grande público<br />

(não especialistas).<br />

5. O gênero divulgação científica<br />

Podemos caracterizar a divulgação científica (DC), considerada<br />

como um processo de difusão de pesquisas e teorias em âmbito<br />

geral, como a reenunciação de um discurso-fonte (D1) elaborado por<br />

“especialistas” e destinado a seus pares em um discurso segundo<br />

(D2) reformulado por um divulgador e destinado ao “grande público”<br />

(D3). Entendendo-se D1 como discurso da ciência, D2 – divulgação<br />

científica e D3, discurso do cotidiano.<br />

Constitui-se tarefa não muito simples definir o texto de divulgação<br />

científica (daqui em diante DC), pois, de acordo com Sanches<br />

Moura (2003, p. 13), “cada divulgador tem sua própria definição de<br />

divulgação”. No entanto, é sugerido o seguinte conceito operativo:<br />

“a divulgação é uma recriação do conhecimento científico, para torná-lo<br />

acessível ao público”.<br />

Nesta perspectiva, destacamos como principal eixo teórico, o<br />

trabalho de Authier-Revuz (1998) sobre divulgação científica. Na<br />

concepção dessa autora, o texto de DC é uma associação do discurso<br />

científico com o discurso cotidiano, sendo que este último favorece a


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

887<br />

leitura por parte de um número maior de leitores. A autora conceitua<br />

divulgação científica como:<br />

uma atividade de disseminação, em direção ao exterior, de conhecimentos<br />

científicos já produzidos e em circulação no interior de uma comunidade<br />

mais restrita; essa disseminação é feita fora da instituição escolaruniversitária,<br />

não visa à formação de especialistas, isto é, não tem por<br />

objetivo estender a comunidade de origem (p. 107).<br />

Constitui, portanto, o texto de DC a interseção entre dois gêneros<br />

discursivos: o discurso da ciência e o discurso do jornalismo,<br />

este último visto como o discurso de transmissão de informação. Para<br />

Campos (2006, p. 1) esse gênero “é considerado como realização<br />

enunciativa marcada pela ação de quem é colocado na posição de um<br />

ao falar pelo outro (o especialista) para o outro (não especialista)”.<br />

Noutras palavras, é como se o texto de DC operasse uma espécie<br />

de tradução intralingual, na medida em que busca uma equivalência<br />

entre o jargão científico e o jornalístico. Assim, o gênero em<br />

discussão compreende um texto reformulado, o qual pode ter sido originado<br />

a partir de um artigo ou relatório acadêmico-científico, de<br />

uma entrevista ou até mesmo de uma tradução de um texto em língua<br />

estrangeira, direcionado para a população distanciada do vocabulário<br />

e das práticas científicas, mas que deseja e necessita do conhecimento<br />

das ciências.<br />

Para Campos (2006), o gênero de DC exige socialmente a<br />

materialização de uma relação dialógica que pressupõe a posição de<br />

um que delineia uma realização de linguagem determinada pelo outro<br />

– o especialista – tendo em vista o não especialista na posição alternativa<br />

daquele que tem o lugar destinatário de para o outro. Nesse<br />

sentido, assumir a posição de um, como divulgador, é assumir uma<br />

dupla exterioridade e uma dupla excedência com o acabamento e a<br />

completude provisórios, associados a tal duplicidade. De forma geral,<br />

podemos afirmar, pautados nas reflexões de Leibruder (2003)<br />

que o texto de DC, na sua função de vulgarização (ou divulgação)<br />

científica, contrapõe-se ao hermetismo próprio do discurso científico,<br />

buscando propiciar ao leitor leigo (não especialista) o contato<br />

com o universo da ciência através de uma linguagem que lhe seja<br />

familiar.


5.1. O papel do divulgador<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

888<br />

Pensar o gênero divulgação científica exige que pensemos<br />

também a respeito da importância que exerce, na mediação da enunciação<br />

do especialista em interação com a enunciação do não especialista,<br />

a mediação nessa experiência de linguagem da figura do divulgador.<br />

Na caracterização do gênero divulgação científica, percebemos<br />

a interação que marca a enunciação do especialista com a enunciação<br />

do não especialista, mediado pela enunciação do divulgador.<br />

Nessa articulação, segundo Campos (2006, p. 11):<br />

DV [divulgador] assume a posição de um para tentar, discursivamente,<br />

fazer a aproximação do outro (Ciência) ao universo do outro (Público),<br />

e vice-versa, constitui a enunciação ternária, ou seja, a enunciação<br />

do gênero divulgação científica, que se realiza com a mediação, praticada<br />

por DV, no jogo interativo de linguagem. Aqui, DV articula a enunciação<br />

primária (enunciação do especialista) com a enunciação secundária<br />

(enunciação do não especialista). Tal conjunto de experiências de linguagem,<br />

ou de gênero, vem marcado, dialogicamente, por uma dupla exterioridade<br />

e uma dupla excedência. Ou seja, ao dizer, emblematicamente,<br />

eu falo pelo outro para o outro, assume o seu propósito discursivo de<br />

produzir um texto que promova a aproximação de uma enunciação a outra.<br />

O que se observa, no gênero divulgação científica, a partir do<br />

papel desempenhado pelo divulgador, já que ele fala do outro para o<br />

outro, é que, ao ser constituído, o uso dialógico da linguagem entre<br />

duas enunciações – a do cientista e a do jornalista – gera, de modo<br />

criativo uma nova enunciação: a enunciação da divulgação científica.<br />

Assim, temos o divulgador assumindo duas exterioridades: uma exterioridade,<br />

por conta do discurso, da enunciação da ciência; e outra<br />

exterioridade, esta, referindo-se ao discurso, à enunciação do jornalismo.<br />

Dessa fusão, o divulgador assume outra exterioridade, aquele<br />

que, a partir da mescla das duas enunciações, articula um novo projeto<br />

de produção de sentido, onde o lugar de enunciação, a intenção<br />

comunicativa e o papel social ocupado pelo enunciador (divulgador)<br />

assume características próprias nesse ato de linguagem.<br />

A atividade do divulgador científico, antes de ser mera adaptação<br />

daquilo que foi formulado pelo discurso científico, é antes de<br />

tudo, um verdadeiro trabalho discursivo. O trabalho do divulgador é<br />

resultado de um gesto interpretativo do discurso da Ciência e não a-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

889<br />

penas uma reformulação do discurso da Ciência. O modo como o divulgador<br />

vai elaborar seu discurso depende essencialmente do contexto<br />

discursivo em que se inscreve, o que inclui, como vimos, não<br />

apenas o meio através do qual o seu artigo será veiculado, mas essencialmente<br />

o interlocutor a quem este se dirige.<br />

O espaço ocupado pela enunciação do divulgador é o espaço<br />

do interdiscurso, um espaço de conciliação entre duas forças enunciativas:<br />

de um lado, a enunciação científica, de outro, a enunciação<br />

jornalística. O papel do divulgador é, portanto, de articulador, conciliador<br />

das enunciações que são produzidas socialmente e que, para<br />

chegar ao público como “acessível” precisa ser reconfigurada, recriada.<br />

O que temos aí, não é mera forma de reformulação discursiva,<br />

mas essencialmente a formulação de um novo discurso (ZAM-<br />

BONI, 1997, p. 28), com características e finalidades próprias.<br />

Tudo isso que está sendo discutido pode ser observado nos<br />

textos de divulgação científica. As características, aportando-nos em<br />

Zamboni (2001), confirmam o que antes já foi afirmado sobre considerar<br />

os textos de divulgação científica como um gênero de discurso<br />

específico. Ora, suas características – que vão desde a estrutura gramatical,<br />

a organização do texto, os recursos retóricos, entre outros –<br />

imprimem no texto de divulgação uma estrutura estável que está relacionada<br />

à sua função central de apresentação do conhecimento científico<br />

para públicos não especialistas. Tudo isso é feito a partir<br />

dessa imagem e representação que o eu locutor – divulgador – faz do<br />

tu interlocutor.<br />

6. Considerações finais<br />

Com base no que foi discutido aqui, observamos que as modalidades<br />

enunciativas do discurso da ciência e da divulgação científica<br />

apresentam características próprias que as diferenciam. Isso se<br />

justifica pelo fato de as posições de sujeitos adotadas em cada um<br />

dos planos serem diferentes, bem como a imagem que se tem do interlocutor<br />

a quem os textos são direcionados.<br />

Portanto, a pertinência de análise de textos de DC, no âmbito<br />

dos estudos linguísticos, justifica-se porque levamos em consideração<br />

a grande necessidade que a escola tem de abrir espaço para a en-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

890<br />

trada dos gêneros discursivos; no âmbito da análise discursiva, por<br />

ser esse discurso marcado visivelmente pelo discurso do outro e<br />

também pela presença do eu. Além disso, o texto de divulgação científica,<br />

gênero textual difundido na mídia, carece de estudos mais<br />

aprofundados, por se tratar de um texto com vários recursos de linguagem<br />

a serem explorados.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). In: Cadernos<br />

de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 19, p. 25-42, jul./dez.<br />

1990.<br />

______. A encenação da comunicação no discurso de divulgação científica.<br />

In: ___. Palavras incertas: as não coincidências do dizer.<br />

Campinas: Unicamp, 1998.<br />

______. Dialogismo e divulgação científica. In: RUA n° 5. Revista<br />

do NUDECRI. Unicamp. Campinas, 1999.<br />

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,<br />

1997.<br />

BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Gêneros do discurso e formas<br />

de textualização. In: MACEDO, Joselice; ROCHA, Maria José<br />

Campos; SANTANA NETO, João Antônio de. Discursos em análise.<br />

Salvador: Universidade Católica do Salvador. Instituto de Letras,<br />

2003, p. 35-51.<br />

BAALBAKI, Angela Correa. A caracterização do discurso de divulgação<br />

científica nos estudos discursivos. Disponível em:<br />

. Acesso em: 05 jul.<br />

2009.<br />

BRONCKART, Jean-Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos.<br />

São Paulo: EDUC, 1999, p. 137-216.<br />

CAMPOS, Edson Nascimento. O diálogo do espelho. In: O eixo e a<br />

roda. Belo Horizonte, v. 12, p. 301-309, jan/jul. 2006. Disponível<br />

em: .


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

891<br />

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia – o discurso competente e<br />

outras falas. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1990.<br />

FIORIN, José Luz. As astúcias da enunciação. 2. ed. São Paulo, Ática,<br />

1999.<br />

______. (Org.). Introdução à linguística I. Objetos teóricos. 3. ed.<br />

São Paulo: Contexto, 2004.<br />

GUIMARÃES, Eduardo. Os limites do sentido. São Paulo: Pontes,<br />

1995.<br />

LEIBRUDER, Ana Paula. O discurso de divulgação científica. In:<br />

BRANDÃO, Helena Nagamine. (Coord.). Gêneros do discurso na<br />

escola. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2003.<br />

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação.<br />

São Paulo: Cortez, 2001.<br />

______. MARCUSCHI, Luiz Antonio. Produção textual, análise de<br />

gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.<br />

ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento – As formas de<br />

discurso. Campinas: Pontes, 1996.<br />

SÁNCHEZ MORA, A. M. S. A divulgação da ciência como literatura.<br />

14. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.<br />

ZAMBONI, L. Heterogeneidade e subjetividade no discurso de divulgação<br />

científica. 1997, 200 f. Tese (Doutorado em Linguística)-<br />

Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas.


DE DIDO À MATRONA DE ÉFESO<br />

Amós Coêlho da Silva (UERJ)<br />

amoscoelho@uol.com.br<br />

Públio Vergílio Marão (70 – 19 a. C.) nos legou três obras:<br />

Bucólicas (também denominada Éclogas ou Églogas), Geórgicas e<br />

Eneida. A Eneida é um poema épico e relata a fundação de Roma.<br />

Eneias, portanto, o patriarca, precisará se casar, porque perdeu sua<br />

esposa Creúsa em Troia. Encontra todas as adversidades (ou provas<br />

míticas), preparadas pela deusa Juno, no seu caminho de Troia para<br />

Itália e todo amparo de sua mãe Vênus.<br />

Vênus escondera Ascânio ou Iulo, filho de Enéias, em lugar<br />

seguro. Pediu ao seu filho Cupido que assumisse a forma de Ascânio<br />

e interdum gremio fovet, inscia Dido /Insidat quantus miserae deus!,<br />

durante algum tempo aperta-o) no regaço, não sabe Dido / (que tem)<br />

um deus em (seu) colo, como há de ser infeliz! (I, 719 -20) A expressão<br />

“gremio miserae, (literalmente) no colo da infeliz” se deve à antropomorfização<br />

e ao poder de Cupido. Por exemplo, possui na sua<br />

aljava tanto a flecha do amor quanto a flecha do ódio. Por isso, pôde<br />

medir forças com o poderoso Apolo, que tem como um dos atributos<br />

arco e flecha e riu da pequena arma do filho de Vênus, porque julgou<br />

ser um brinquedo, coisa de criança. Ardilosamente, Cupido feriu a<br />

ninfa Dafne, mas instilando-lhe repulsa por Apolo, e neste, inoculou<br />

com a do amor. A pedido, para livrar-se de Apolo, foi transformada<br />

na árvore loureiro, que é o próprio termo ‘dafne’ em grego, a árvore<br />

predileta de Apolo. Nos jogos dedicados a Apolo, o herói, vencedor<br />

de provas, recebia uma coroa de louros; daí, o sentido de glória...<br />

Eros ou Cupido é a personificação do amor. A sua função divina<br />

se traduz pela “complexio oppositorum”, a união dos opostos; é<br />

uma pulsão fundamental do ser, a libido, que garante a existência pela<br />

união e supera antagonismos. Os poetas cantam este amor há muito.<br />

Assim, nos versos (741-4), do poema em sua peça trágica Joannes<br />

Princeps do humanista Diogo de Teive (m. 1565):<br />

Hunc (furorem sentiunt) ferae densis nemorum latebris;<br />

hunc aper saeuus, leo, taurus, ursus;


hunc greges mites, simul et furore<br />

concita turba.<br />

Este (furor sentem), as feras nos densos esconderijos do bosque;<br />

Este, o selvagem javali, o leão, o touro, o urso;<br />

Este, os mansos rebanhos, e ao mesmo tempo, pelo furor,<br />

Uma turba excitada (de viventes).<br />

Chico Buarque compôs “O que será”:<br />

O que será, que será?<br />

Que andam suspirando pelas alcovas<br />

Que andam sussurrando em versos e trovas<br />

Que andam combinando no breu das tocas<br />

Que anda nas cabeças anda nas bocas<br />

Que andam acendendo velas nos becos<br />

Que estão falando alto pelos botecos<br />

E gritam nos mercados que com certeza<br />

Está na natureza<br />

Será, que será?<br />

O que não tem certeza nem nunca terá<br />

O que não tem conserto nem nunca terá<br />

O que não tem tamanho...<br />

O que será, que será?<br />

(...)<br />

Luís Vaz de Camões também já escreveu num belo soneto:<br />

Amor é fogo que arde sem se ver;<br />

É ferida que dói e não se sente;<br />

É um contentamento descontente;<br />

É dor que desatina sem doer!<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

893<br />

Olavo Bilac também falou de amor na expulsão de Adão e<br />

Eva do paraíso:<br />

Ah! bendito o momento em que me revelaste<br />

O amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime!<br />

Porque, livre de Deus, redimido e sublime,<br />

Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus,<br />

– Terra, melhor que o céu! homem, maior que Deus!<br />

Ao hóspede Eneias solicitou a rainha de Cartago que relatasse<br />

todas as proezas heroicas, enquanto a imagem de Siqueu, o marido<br />

querido, ia se desvanecendo ao longo daquela noite de banquete.<br />

O irmão de Siqueu usurpara o reinado do esposo de Dido; era<br />

cruel e avaro. Além de matá-lo, se apossou dos haveres dele. Esta,<br />

advertida em sonho pelo marido, reuniu suas coisas e as pessoas des-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

894<br />

contentes com o seu irmão e fundou Cartago. Como nestas sociedades<br />

arcaicas a mulher não pode ficar solteira, Jarbas na África pedelhe<br />

a mão em casamento, mas não consegue porque ela se une a Eneias<br />

após este conselho de sua irmã Ana (IV, 31- 34):<br />

(...) Ó luce magis dilecta sorori,<br />

Solane perpetua maerens carpere iuuenta,<br />

Nec dulces natos, Veneris nec praemia noris?<br />

Id cinerem aut Manes credis curare sepultos?<br />

(...) Ó dileta para a (tua) querida mais do que a luz,<br />

Acaso, te consumirás só, gemendo durante (a força ) de (tua) juventude,<br />

Nem doces filhos, nem as dádivas de Vênus?<br />

Crês tu que a cinza ou os manes sepultados (de Siqueu) se importam com<br />

isto?<br />

Era o que bastava para Dido ou Elissa. E as deusas Vênus e<br />

Juno encomendaram uma chuva de granizo que surpreendeu o casal<br />

em desamparo. Eles, porém, encontraram abrigo numa gruta: Speluncam<br />

Dido dux et Troianus eandem / Deveniunt. Dido e o chefe<br />

troiano chegam à mesma gruta (165 - 6). Ille dies primus leti primusque<br />

malorum / Causa fuit, Aquele dia foi, por primeiro, causa da<br />

morte e, por primeiro, causa dos males (IV, 169 - 170)<br />

A caverna (ou a gruta, os antros etc.) é o arquétipo do útero<br />

materno e se apresenta nos mitos de origem e de iniciação (CHE-<br />

VALIER & GHEERBRANDT, 1982: CAVERNA)<br />

Contudo, Eneias não pretende aliar-se a Dido, ele decidiu obedecer<br />

às ordens de Júpiter que era garantir “genus Latinum (...) atque<br />

altae moenia Romae, a geração latina (...) e as muralhas da poderosa<br />

Roma” (I, 6 - 7). Prepara Eneias uma saída secreta de Cartago.<br />

Dido descobre, censura-lhe a traição e resolve se suicidar.<br />

A morte de Dido (Livro IV, 651-671)<br />

651 `Dulces exuviae, dum fata deusque sinebant,<br />

accipite hanc animam, meque his exsolvite curis.<br />

Vixi, et, quem dederat cursum fortuna, peregi,<br />

et nunc magna mei sub terras ibit imago.<br />

655 Urbem praeclaram statui; mea moenia vidi;<br />

ulta virum, poenas inimico a fratre recepi;<br />

felix, heu nimium felix, si litora tantum<br />

numquam Dardaniae tetigissent nostra carinae!'<br />

Dixit, et, os impressa toro, `Moriemur inultae,<br />

660 sed moriamur' ait. `Sic, sic iuvat ire sub umbras:


Tradução:<br />

Hauriat hunc oculis ignem crudelis ab alto<br />

Dardanus, et nostrae secum ferat omina mortis.'<br />

Dixerat; atque illam media inter talia ferro<br />

conlapsam aspiciunt comites, ensemque cruore<br />

665 spumantem, sparsasque manus. It clamor ad alta<br />

atria; concussam bacchatur Fama per urbem.<br />

Lamentis gemituque et femineo ululatu<br />

tecta fremunt; resonat magnis plangoribus aether,<br />

non aliter, quam si immissis ruat hostibus omnis<br />

670 Karthago aut antiqua Tyros, flammaeque furentes<br />

culmina perque hominum volvantur perque deorum.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

895<br />

Doces despojos, enquanto o permitiriam os destinos e os deuses,<br />

Recebei esta alma e libertai-me destes cuidados.<br />

Vivi e cumpri a missão que a fortuna me tinha dado,<br />

E agora minha grande imagem (pelo feito realizado) irá para debaixo das<br />

terras.<br />

655 Fundei uma cidade ilustre; vi as minhas muralhas (prontas);<br />

Vinguei (meu) esposo, castiguei um irmão inimigo.<br />

Feliz, se nunca os navios troianos tivessem tocado os nossos litorais.”<br />

660 Disse (estas palavras) e, colando sua boca à almofada:<br />

“Morreremos sem vingança, mas morramos, diz. Assim, assim me agrada<br />

ir para as sombras.<br />

O cruel Dárdano do alto mar detenha com os olhos esta chama<br />

E leve consigo os agouros da minha morte.”<br />

663 Dissera (estas palavras), e as damas veem-na caída sobre o ferro,<br />

Espumando sangue no meio de tais palavras,<br />

665 E as mãos manchadas. Um clamor eleva-se<br />

Para os altos átrios, a Fama enfurece-se pela cidade alarmada.<br />

As casas estremecem com lamentações,<br />

Choro e gemido de mulheres;<br />

O ar ressoa com grandes clamores dolentes,<br />

Não de outro modo que se<br />

670 Toda a Cartago ou a antiga Tiro ruísse,<br />

Introduzidos os inimigos, e as chamas enfurecidas<br />

Reviram-se pelas moradas dos homens e pelos templos dos deuses.<br />

Para o traidor, o silêncio, quando Eneias, na realização de sua<br />

prova heroica máxima: a catábase, a encontrou mais tarde no Campo<br />

das Lágrimas. Ele relatou a ela que suspeitava que ela tivesse se matado.<br />

Chorou e lamento-se. Ela não respondeu. Ela usou a espada que<br />

tinha sido dada por ele como presente na noite do banquete.<br />

Petrônio (morreu 65 d. C.) foi admitido no fechado círculo do<br />

imperador Nero para opinar sobre as coisas elegantes. Logo a inveja<br />

de Tigelino, prefeito dos pretorianos, promoveu a morte de Petrônio.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

896<br />

Sua obra única é o Satyricon, com um ‘y’ parodiando a letra grega<br />

no termo ‘sátyro’. Ou seja, como é uma sátira menipeia e “sátira” é<br />

um étimo latino, cujo alfabeto não tem o “y”, o título com “y” para<br />

exprimir o caráter sensual dos sátiros, entidades da mitologia grega<br />

que se caracteriza pelo comportamento sensual. É a sensualidade de<br />

que se revestem os episódios narrados.<br />

A novela da matrona de Éfeso exprime o sutil pessimismo petroniano<br />

tão bem definido a respeito das fraquezas da carne e tornouse<br />

um clássico da literatura latina.<br />

Este capítulo 111 começa apresentando a senhora de Éfeso<br />

como um baluarte de castidade, Matrona quaedam Ephesi tam notae<br />

erat pudicitiae, ut vicinarum quoque gentium feminas ad spectaculum<br />

sui evocaret, uma mulher casada tão reconhecida pela sua virtude<br />

que atraía até as mulheres dos países vizinhos para vê-la. (111)<br />

O termo “matrona”, mulher casada, faz parte de uma constelação<br />

semântica indicativa do papel social da mulher em Roma antiga.<br />

É um derivado de mater, mãe que, além de sua função de maternidade,<br />

pouca atividade social exercia. Já “pater”, através de suas<br />

cognatas: patrimonium, patria, patrocinium (e o verbo) patro – executar,<br />

realizar etc. exprime o rico papel do homem na sociedade.<br />

Ela acompanhou e velou o esposo morto, como ainda é costume<br />

nos nossos dias. Mas o seu velório ultrapassou as expectativas,<br />

pois a fidelíssima viúva lamentava-se e preparava-se para morrer de<br />

fome, sem que parentes próximos pudessem demover da sua decisão<br />

e consolá-la daquela aflição. Dada a determinação inflexível daquele<br />

modelo exemplar de fidelidade, todos já a davam como morta e, na<br />

cidade, não se falava de outra coisa. Uma criada fiel pôs-se ao lado<br />

daquele exemplo único de amor conjugal. No entanto, como um soldado<br />

percebesse luz e gemidos em meio aos túmulos, enquanto montava<br />

sua guarda da crucificação de três ladrões por ordem do governador,<br />

aproximou-se. Petrônio ressalta os contrastes tétricos do cemitério,<br />

os quais deveriam ter despertado sentimento de medo do sobrenatural<br />

no soldado; mas, ao contrário, para o homem o que houve<br />

foi o estímulo de uma visão admirável de uma mulher tão bela naquele<br />

lugar e compaixão pelo desgrenhado da desesperada com o<br />

rosto ferido pelas unhas. Ofereceu-lhe sua pobre refeição e admoestou-lhe<br />

de tudo que todos já haviam recomendado na mesma situa-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

897<br />

ção: assim será o fim de cada um de nós, não devemos nos mortificar<br />

inutilmente etc.<br />

Dada a persistência paciente dele em oferecer bebida e comida,<br />

a criada atentou para o generoso cheiro do vinho, aceitou a gentileza<br />

e, pela primeira vez, exortou a sua ama que compartilhasse da<br />

ceia. Como o soldado se encolhesse, continuou a criada convencendo<br />

a sua senhora contra a sua obstinação de viúva numa expressão que é<br />

bem uma paródia de uma passagem na Eneida, de Vergílio. Agora<br />

também serviu de argumento, como naquele momento de Ana, irmã<br />

de Dido (Eneida IV, 34): Id cinerem aut manes sentire sepultos? Acreditas<br />

que as cinzas ou os manes sepultados percebem teu sacrifício?<br />

Imediatamente, a senhora, esgotada pelo jejum de muitos dias,<br />

abandonou a sua obstinação, a qual tinha repelido até as importantes<br />

e graves orientações dos magistrados. Enfim, comeu e bebeu<br />

com a mesma avidez da criada.<br />

No capítulo 112, relata-se que o soldado entusiasmado com<br />

seu sucesso, passou a assediar a virtude da senhora com a mesma argumentação<br />

que a demovera daquele jejum. A criada incumbiu-se de<br />

abrir-lhe o coração, alegando-lhe o desperdício da juventude dela em<br />

tão triste local. Ne hanc quidem partem [corporis] mulier abstinuit,<br />

victorque miles utrumque persuasit. Certamente a mulher não recusou<br />

os apelos do corpo, e o soldado vencedor a persuadiu duplamente.<br />

Conclusão<br />

Públio Ovídio Nasão, ou simplesmente Ovídio, escreveu Heroides,<br />

são monólogos de amor. Monólogos, porque as heroínas apaixonadas<br />

(uma personagem histórica: Safo, a carta de número 15)<br />

escreve aos seus amados, que nunca lerão tais mensagens, a não ser<br />

três cartas respondidas: a de Paris, 16; a de Leandro, 18 e a de Acôncio,<br />

20, que alguns as julgam espúrias (HARVEY, 1987, p. 271). Há<br />

um poema que é uma carta de Dido Aeneae, Dido para Eneias. Termina<br />

com um epitáfio, que um pentâmetro elegíaco: Praebuit Aeneas<br />

et causam morti et ensem; / Ipsa sua Dido concidit usa manu. Eneias


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

898<br />

ofereceu o motivo de sua morte e a espada; Dido com sua própria<br />

mão a usou e se cortou.<br />

O Prof. Walter Vergna chamou a esta ação de "apoteose do<br />

amor (que) com a morte da amante, morte que escreve em letras de<br />

sangue no firmamento da Mitologia a condenação do amado" (p. 77)<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia<br />

grega. Petrópolis: Vozes, 1991.<br />

______. Dicionário mítico-etimológico da mitologia e religião romana.<br />

Petrópolis: Vozes, 1993.<br />

______. Helena, o eterno feminino. Petrópolis: Vozes, 1991.<br />

HUMBERT, J. Histoire Illustrée de la Littérature Latine:<br />

Précis Methodique Paris: Didier, 1932.<br />

PETRONIUS, SENECA. Apocolocyntosis. With an English translation<br />

by Michael Heseltine & W.H.D. Rouse. Cambrigde: Harvard<br />

University, 1975.<br />

SILVA, Márcia Regina de Faria. O trágico nas ‘Heroides’ de Ovídio.<br />

Tese de Doutorado, Faculdade de Letras – UFRJ, Rio de Janeiro:<br />

2008.<br />

VIRGILE. L’Énéide. Nouvelle edition, revue et augmentée avec<br />

introduction, notes, appendices et index par Maurice Rat. Paris: Garnier<br />

Frères, s/d.<br />

VERGNA. Walter. Heroides: A concepção do amor em Roma<br />

através da obra de Ovídio. Rio de Janeiro: Museu de Armas<br />

Ferreira da Cunha, 1975.


DE PRETO À AFRODESCENDENTE:<br />

IMPLICAÇÕES TERMINOLÓGICAS<br />

José Geraldo da Rocha (Unigranrio) 1<br />

rochageraldo@hotmail.com<br />

Quem de nós já não teve a oportunidade de ouvir afirmações<br />

do tipo: “a coisa está preta”; “a situação esta preta”. Nessas circunstâncias<br />

não restam dúvidas de que se fala de realidades desfavoráveis.<br />

A coisa não anda bem, nem a situação está boa. Na linguagem<br />

cotidiana, o preto aqui é utilizado para aludir, ilustrar o quanto tal realidade<br />

está feia. Consequentemente, preto é a mesma coisa que feio.<br />

Em outros momentos, encontramos a mudança terminológica<br />

onde não é mais o “preto” que vai dinamizar a linguagem, mas sim o<br />

“negro”. Ao se referir às valas de esgotos à céu aberto, se afirma:<br />

“valas negras”. Na camada de ozônio vai-se falar do “buraco negro”<br />

; em relação ao câmbio não oficial o termo utilizado comumente é<br />

“câmbio negro”; ainda encontramos o “setembro negro”; “as nuvens<br />

negras”; “um dia negro” “alista negra”; “a alma negra”; “a fome negra”;”a<br />

viúva negra” e tantas outras situações. O que se pode perceber<br />

é que tal quais as afirmações em relação a “preto”, essas afirmações<br />

tão comuns na língua portuguesa no Brasil remetem, todas elas,<br />

a um horizonte de algo ruim.<br />

Esses dois termos, "preto e negro” acabaram sendo naturalizados<br />

na sociedade brasileira de tal forma carregados de pejoratividades,<br />

que em determinados ambientes se quer é admitido que se<br />

questione o emprego dos mesmos.<br />

O presente artigo objetiva colocar em discussão essa terminologia,<br />

demonstrando como na sociedade brasileira foi evoluindo suas<br />

compreensões, e, sobretudo, a relevância da desconstrução do caráter<br />

pejorativo e discriminador presente na utilização cotidiana da mes-<br />

1 Doutor em Ciências Humanas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Prof.<br />

Adjunto Dr. do Programa de Pós Graduação – Mestrado em Letras e Ciências Humanas de<br />

Unigranrio; professor no Programa de Pós Graduação Lato Seno – PENESB/UFF e na Pós<br />

Graduação em Africanidades da UCAM.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

900<br />

ma. O crescimento de uma consciência negra vai impulsionar uma<br />

revisão terminológica ao mesmo tempo uma busca de termos mais<br />

apropriados para referir-se aos povos negros de origens africanas.<br />

Preto é mesma coisa que negro? Uns afirmam ser tudo igual,<br />

outros buscam argumentos para diferenciar os termos. É comum ouvirmos<br />

afirmações do tipo: preta é cor, negro é raça. A distinção aqui<br />

se dá em função da relação ao objeto em questão. Como adjetivo,<br />

preto encerra uma qualificação “a cor do objeto”, já negro nos parece<br />

designar o próprio sujeito. Os dicionários da língua portuguesa não<br />

nos oferecem uma real distinção terminológica entre as duas palavras.<br />

Em ambos os casos preto aparece como sinônimo de pessoa de<br />

pele escura e ao mesmo tempo, cor, escuridão, ausência de luz. Tomando<br />

como referência o Dicionário Aurélio verificamos:<br />

Preto- que tem a mais sombria de todas as cores; da cor de ébano, do<br />

carvão. Rigorosamente no sentido físico o preto é ausência de cor, como<br />

o branco é o conjunto de todas as cores. ( …) Sujo, encardido, indivíduo<br />

negro, a cor da pele desse indivíduo, a cor da pele queimada pelo sol.(…)<br />

perigoso, difícil ( …) preto de alma branca – indivíduo negro bom, generoso,<br />

nobre, leal. (FERREIRA)<br />

Ao buscar definir o termo “negro”, o mesmo autor acaba induzindo<br />

a generalização da “confusão terminológica”. Para Holanda,<br />

negro significa: “de cor preta. Indivíduo de raça negra, preto. Sujo,<br />

encardido, preto. Muito triste, lúgubre. Melancólico, funesto. Maldito,<br />

sinistro. Escravo”. (FERREIRA)<br />

Nilma Gomes ao enveredar pelo campo das relações raciais<br />

explicita alguns elementos resultantes de tais confusões.<br />

A discussão sobre relações raciais no Brasil é permeada por uma diversidade<br />

de termos e conceitos. O uso destes, muitas vezes causa discordâncias<br />

entre autores, intelectuais e militantes com perspectivas teóricas<br />

e ideológicas diferentes (…) negros são denominados aqui as pessoas<br />

classificadas como pretas e pardas nos censos demográficos realizados<br />

pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (GOMES,<br />

2005, p. 39)<br />

As dificuldades terminológicas de tal realidade têm gerado ao<br />

longo da história incompreensões, equívocos e malversação das palavras<br />

no processo de ensino e aprendizagem. O simples, nem tão<br />

simples assim, fato de perguntar a cor de uma pessoa gera situações<br />

inusitadas. Aparentemente, existe certo medo da cor quando esta se


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

901<br />

encontra associada à pessoa, principalmente aos descendentes africanos.<br />

Veja como isso soa na crônica a seguir:<br />

Qual é a Sua Cor?<br />

Eu negro? Virgem Maria moço! Negro eu? Deus me livre. Só me<br />

faltava essa! Como posso ser negro? – não sei - Eu não sou negro?- o<br />

que você acha? – Não sei, olhe pra mim. Eu sou assim... como é que se<br />

diz... você me entende – ah tá – que cor eu sou? Cruz credo sô! Nunca<br />

tinha pensado nisso... mas por que você perguntou isso pra mim? – por<br />

perguntar - eu preciso responder? – seria bom – Deixa eu pensar um<br />

pouquinho... Bobagem essa. Que besteira sô! Que diferença faz ser negra<br />

ou qualquer outra cor? Ah mas você quer saber mesmo qual é a minha<br />

cor... uns me chamam de moreno, outros de mulato, de pardo, e alguns<br />

até me chamam de negro... sabe de uma coisa moço? Branco eu sei que<br />

não sou, mas sinceramente, sabe que não sei que cor eu sou. Meu Deus!<br />

Engraçado né! Agora veja eu não sei que cor eu sou. Como pode isso? –<br />

Sei não. – E se eu soubesse... o que iria mudar? Certamente nada. Meus<br />

cabelos continuariam assim, duros, ruim, feios e rebeldes. Meu nariz<br />

continuaria chato. Ou ficaria fininho só por que eu sei minha cor moço?<br />

O senhor acha que o meu salário aumentaria por eu saber a minha cor?<br />

Ou que meu barraco na favela se transformaria numa casa num lugar<br />

chique? As pessoas passariam a me tratar diferente? Sabe moço... tem<br />

horas que algumas perguntas não devem ser feitas. E o pior as respostas<br />

a essas perguntas, quando somos obrigados, aumentam a nossa dor! Responder<br />

uma pergunta como essa exige pensar muito, exige consciência.<br />

E tem momentos que é melhor fingir moço. Fingir que não se sabe, que<br />

não se tem consciência e continuar vivendo na ilusão... o senhor tá me<br />

entendendo? Fingir já faz parte da minha forma de resistir, da minha vida.<br />

Tantos fingem que eu não existo que eu não tenho direitos, que eu<br />

sou isso, que sou aquilo... Vivemos num mundo de muito fingimento<br />

moço. Fingir minha cor é apenas mais um fingimento entre tantos fingimentos<br />

que nos trazem tanta dor. (ROCHA, 2009)<br />

Em princípio, o termo “preto” surgido por volta do século X<br />

designava pessoas de pele escura originárias da África. Entretanto,<br />

com a escravidão no século XV a palavra “negro” passa a ser adotada<br />

pelos portugueses. A associação do termo “negro” à escravos foi<br />

utilizado pelos espanhóis na América. Daí o sentido do termo receber<br />

uma conotação ofensiva nos que marcou séculos de história. Ficou<br />

no ar certa confusão entre preto e negro, que passaram a significar<br />

a mesma coisa, ou seja, pessoas de pele escura. Como a escravidão<br />

ficou como realidade que marcou negativamente a história da<br />

humanidade, o termo passou a ser empregado como sinônimo de coisas<br />

ruins. Coisa preta ou coisa negra é sinônima de coisa que não<br />

presta.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

902<br />

Houve um tempo na historia do Brasil, e não foi diferente nos<br />

demais países das Américas, em que o “preto” foi sinônimo de escravo.<br />

Os escravos eram pretos e os pretos eram escravos. Pretos não<br />

eram considerados humanos, pois aos escravizados questionava-se a<br />

existência de alma. Daí o trato tal qual animais no período colonial.<br />

Escravo não presta, preto não presta, e preto é igual a negro, e negro<br />

não presta. É nesse contexto que encontramos as expressões “valas<br />

negras” para designar esgoto à céu aberto; “a situação está preta”,<br />

para significar que a mesma está ruim. Origina-se assim uma pseudonecessidade<br />

de identificação de tudo o que é bom ao branco, em<br />

oposição ao negro. Em decorrência de tal concepção, a beleza passa<br />

a ser branca, e a feiúra negra. A bondade assume a brancura em contraposição<br />

à maldade que é negra. Negro passa a significar algo sujo,<br />

enquanto a limpeza se associa ao branco. O inferno é concebido como<br />

negro ao passo que o céu é lugar das almas brancas.<br />

O emprego terminológico carrega consigo a fundamentação<br />

de uma ideologia do embranquecimento. Com isso, a negação da cor<br />

passa a ser uma necessidade dos negros como elemento de afirmação<br />

e busca de reconhecimento social. Se ser branco é sinônimo de ser<br />

bonito, por que um negro vai querer ser negro? Se ser branco é prérequisito<br />

para a aceitação social, que motivo tem um descendente de<br />

africanos para querer ser negro?<br />

Essa realidade de associação negativista dos termos, principalmente<br />

o termo negro vai passar por um processo de desconstrução<br />

e resignificação terminológica. No âmbito da sociologia, o termo negro,<br />

vai ganhar relevância por se tratar de uma realidade mais adequada<br />

na classificação de grupos étnicos raciais originários da África.<br />

Entretanto, em função da carga negativa de preconceitos em torno<br />

da terminologia utilizada ao longo da história, inúmeras dificuldades<br />

vão se explicitando e criando dificuldades de resgate e aplicação<br />

correta do termo.<br />

Nessa perspectiva, as lutas dos movimentos sociais negros para<br />

recontar a história do negro no Brasil não vão medir esforços para<br />

superar o caráter pejorativo impregnado no termo. Recontar a história<br />

passa por imprimir significados novos ou resignificar o termo negro,<br />

demarcando-o como valor. Assim muitos grupos negros cantaram<br />

nas comunidades eclesiais o canto: “eu sou negro sim como


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

903<br />

Deus criou, sei lutar pela vida cantar liberdade e gostar dessa cor”.<br />

Nesse canto a afirmação da certeza de ser filho de Deus como as<br />

demais pessoas.<br />

Ser negro não é então sinônimo de escravo, ser negro é sinônimo<br />

de pertença às origens africanas. Isso não mais se configurará<br />

como ofensa, mas ao contrário, deve ser motivo de orgulho. Nesse<br />

sentido, o manifesto do movimento negro unificado é veemente:<br />

Nós, negros brasileiros, orgulhosos por descendermos de Zumbi, líder<br />

da República negra de Palmares, (…) nos reunimos hoje, (…) para<br />

declarar a todo o povo brasileiro nossa verdadeira e efetiva data: 20 de<br />

novembro – dia da consciência negra (CARDOSO, 2002, p. 67)<br />

O termo negro vai aos poucos recebendo novas significações.<br />

Os tabus vão sendo quebrados e a carga de pejoratividade que envolvia<br />

a terminologia vai sendo removida. Os grupos de combate ao racismo<br />

vão se multiplicar na sociedade brasileira e com isso se dá o<br />

crescimento da aceitabilidade terminológica. A evocação da origem<br />

diferente dos negros vai fundamentar tal discurso. Ser negro no Brasil<br />

é ter uma origem africana.<br />

Então posso dizer com orgulho: sou de lá da África, se eu não<br />

sou de lá meus pais são de lá da África, se meus pais não são de lá,<br />

meus avôs são de lá, se meus avôs não são de lá, meus ancestrais são<br />

de lá da África. A compreensão do termo negro à luz do reconhecimento<br />

da existência da África vai mudar uma lógica de inserção na<br />

história. A aproximação da África tão distante, para a cotidianidade<br />

da vida do negro passa ser uma tarefa desafiadora.<br />

Existe uma áfrica!Existe uma áfrica em algum lugar! Existe uma áfrica<br />

ainda que distante! Existe uma áfrica nem tão distante! Existe uma<br />

áfrica bem mais perto do que se imagina! Existe uma áfrica em você e<br />

em mim! Somos todos rebentos engendrados no Ventre da Mãe África<br />

(ROCHA, 2008)<br />

Em sendo essa origem motivo de orgulho, por que então não<br />

dizer-se negro sim, mas agora com o significado terminológico de<br />

afro-brasileiro. Essa concepção vai embasar um processo de construção<br />

de identidade negra no país. É mais que uma consciência negra<br />

individual. Trata-se de uma consciência negra coletiva construída<br />

associada às origens com o toque de brasilidade.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

904<br />

Os africanos não foram trazidos e escravizados apenas no<br />

Brasil, eles foram espalhados pelas Américas. No decorrer do processo<br />

de afirmação das identidades étnicas nas Américas, foi constatada<br />

a necessidade de encontrar uma terminologia que pudesse “englobar”<br />

os negros como um todo nas Américas. Surge assim o termo<br />

“afro-americano”. Com isso, aumenta na América, a consciência de<br />

pertença à “Mãe África” por parte dos negros. Filhos originários de<br />

um mesmo continente, irmãos em uma mesma história em terras estranhas.<br />

A partilha dessas histórias de lutas em terra estranhas fomentou<br />

a solidariedade com negros de outras regiões do mundo par além<br />

das Américas, o que impulsionou a busca do termo “afrodescendente”<br />

para designar todos os negros presentes na diáspora. Evidentemente<br />

tal terminologia suscitou e continua suscitando acalorados debates.<br />

De certo modo, trata-se de formas de apropriação do termo<br />

numa perspectiva de poder. Existem em tal concepção terminológica<br />

diferenciados aspectos ideológicos. Para alguns, não passa de um<br />

discurso de manipulação política. Outros, entretanto, veem o termo<br />

como forma de fortalecimento de identidade. Agrega-se a essa compreensão<br />

terminológica o reconhecimento da situação vivenciada pelos<br />

descendentes africanos, conforme podemos constatar no documento<br />

das Américas com vistas à Declaração de Durban.<br />

Reconocemos que los afro descendientes han sido victimas de racismo,<br />

discriminación racial e esclavitud durante siglos, y de la negación<br />

histórica de muchos de SUS derechos(…) igalmente constatamos<br />

lãs consequencias nefastas de la esclavitud que se encuentra en la raiz<br />

de las situaciones de profunda desigualdad social y econômica de que<br />

son generalmente víctimas los afro descendientes.(FORO DE ONG’S, p.<br />

9)<br />

Conforme se pode notar, a dimensão do termo afrodescendente<br />

é extremamente ampla e abrangente. O seu emprego acaba instando<br />

às nações a uma revisão das relações estabelecidas historicamente<br />

com os povos originários do continente africano espalhados na diáspora.<br />

A consciência da afrodescendência fomenta busca solidária<br />

como a que se deu na Conferência das Américas em preparação para<br />

a Conferência Mundial ocorrida na África do Sul em 2001.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

905<br />

As possibilidades de superação do racismo, da discriminação<br />

racial, da xenofobia e todas as formas correlatas de intolerância estão<br />

associadas diretamente ao grau de desenvolvimento da consciência.<br />

Considerações finais<br />

As discussões terminológicas aqui apresentadas inscrevem-se<br />

numa perspectiva de se repensar as formas estereotipadas em que o<br />

racismo e a discriminação têm utilizado nos processos de exclusão<br />

dos afrodescendentes na sociedade brasileira.<br />

A naturalização da associação de preto, negro a coisas que<br />

não prestam, conduziram, inclusive no processo educacional, a incutir<br />

na mente das pessoas uma dose cavalar de teorias do embranquecimento.<br />

A fuga muitas vezes inconsciente de tudo o que se associa<br />

ao negro, inclusive do ponto de vista simbólico, tornou-se para muitos<br />

uma necessidade para trilhar os caminhos do reconhecimento e<br />

da aceitabilidade social. Obviamente que isso implicou em um longo<br />

e doloroso processo de negação da identidade negra.<br />

Num esforço salutar, os movimentos negros acabaram perseguindo<br />

outros termos que pudessem dar conta de um arregimentar de<br />

pessoas e ao mesmo tempo, possibilitasse um fomento da busca solidária<br />

de superação das discriminações e do racismo. Nesse contexto<br />

que os termos afro-brasileiros, afro-americanos e afrodescendentes<br />

vão ganhar relevância e se tornam realidades denunciadoras dos processos<br />

de exclusões, ao mesmo tempo referência para se propor e<br />

buscar estratégias conjuntas de inclusão.<br />

Em tempos de busca pelo “politicamente correto”, na relação<br />

com os negros na sociedade brasileira, a forma como a terminologia<br />

é empregada influencia decisiva e diretamente na convivência social.<br />

No processo de ensino e aprendizagem, a superação dos vícios de<br />

linguagem que empregam depreciativamente a terminologia aqui por<br />

nós abordada, tornou-se um desafio cotidiano.<br />

Na atualidade ainda é muito comum presenciarmos discursos<br />

onde alguns desses termos trabalhados criam certo mal estar. Em determinadas<br />

oportunidades tornam-se perceptíveis o desconforto dos<br />

indivíduos. Já não se sabe mais se deve chamar alguém de negro.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

906<br />

Ora por medo de estar ofendendo e ser “enquadrado” no crime de racismo<br />

pelo que se sentiu ofendido; ora pela própria falta de consciência<br />

e esclarecimento terminológico que a realidade encerra, para<br />

além da construção pejorativa que ao termo foi imbuído. Por outro<br />

lado, aos que trabalham na perspectiva de desconstrução da negatividade<br />

terminológica e resignificação da palavra negro, é motivo de<br />

orgulho ser chamado de negro. Obviamente que para esses indivíduos<br />

ou grupos, o ser chamado de negro encerra uma história uma<br />

cultura, uma hereditariedade vinculada às origens africanas. Evidentemente<br />

que isso fortalece a dimensão de afra descendência.<br />

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro. Belo Horizonte: Mazza,<br />

2002.<br />

FORO DE ONG’S. Conferencia Mundial Contra o Racismo. Santiago:<br />

2001.<br />

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate<br />

sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: Educação<br />

antirracista: caminhos abertos pela lei 10.639. Brasília: SECAD,<br />

2005.<br />

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua<br />

portuguesa. 3. ed. rev. atual. Curitiba: Positivo, 2004.<br />

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 31. ed. Rio de Janeiro:<br />

Record, 1996.<br />

NOVAES, Ana Lúcia. Ações Afirmativas e Ambiente Escolar: uma<br />

leitura sob o enfoque da promoção do senso de autoeficácia. In: RO-<br />

CHA, José Geraldo da & SANTOS, Ivanir dos (Orgs.). Diversidade<br />

& ações afirmativas. Rio de Janeiro: CEAP, 2007.<br />

ROCHA, J. G. Poema África. Rio de Janeiro: 2008.<br />

_____. Crônica Qual é a sua cor? Rio de Janeiro: 2009.<br />

SANT’ ANNA, Wânia. O impacto político-econômico das ações afirmativas.<br />

In: GOMES, Nilma Lino (Org.). Tempos de lutas: as a-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

907<br />

ções afirmativas não contexto brasileiro. Brasília: Secretaria de Educação<br />

Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006.<br />

SANTOS, Renato Emerson. Políticas de cotas raciais nas universidades<br />

brasileiras – o caso da UERJ. In: GOMES, Nilma Lino (Org.).<br />

Tempos de lutas: as ações afirmativas não contexto brasileiro. Brasília:<br />

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade,<br />

2006.<br />

SILVEIRA, Oliveira. Vinte de novembro: história e conteúdo. In:<br />

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves & SILVERIO, Valter Roberto<br />

(Orgs.). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a<br />

injustiça econômica.


DISCURSOS DE POSSE DOS PRESIDENTES DO STF<br />

AS MANIFESTAÇÕES LINGUÍSTICAS<br />

E O ETHOS DO PODER JUDICIÁRIO<br />

Claudia Maria Gil Silva (UERJ e UniFOA)<br />

cacaigil@bol.com.br<br />

1. Sobre os discursos de posse dos Presidentes do Supremo Tribunal<br />

Federal<br />

Acreditamos na democracia como regime ideal para os homens e sabemos<br />

que ela se assenta no prevalecimento das leis. Mas leis não se aplicam<br />

sozinhas. E os juízes, aos quais incumbe a aplicação delas, isto é,<br />

a função altíssima de dar vida a esses textos, encarnam poderes – por assim<br />

dizer – divinos. (Fragmento do discurso de posse do Presidente do<br />

STF, Ministro Lafayette Andrada – Brasília, 1962)<br />

Abrigos da história de um poder e suportes da imagem que<br />

dele se constrói, constituem os discursos de posse dos Presidentes do<br />

Supremo Tribunal Federal um tomo indispensável para o estudo da<br />

linguagem como templo da palavra em movimento no tempo e no<br />

espaço.<br />

Um lugar que revela uma prática comunicativa institucional<br />

capaz de retratar as distintas posições sócio-políticas, de épocas várias,<br />

de um Brasil e de um Poder. Tais discursos apresentam-se impregnados<br />

de uma carga semântica e ideológica que os entrelaça a<br />

outros discursos e enunciadores, constituindo-se, portanto, num corpus<br />

essencialmente dialógico.<br />

Discursos em que a ocorrência de manifestações metafóricas<br />

e metonímicas é capaz de forjar a realização de novos dizeres, uma<br />

vez que essas manifestações permitem o desdobramento de significados,<br />

além de convergirem para a concepção de diferentes identidades<br />

– individuais ou coletivas – que são capazes de denotar a imagem<br />

dos sujeitos enunciativos e da instituição que representam.<br />

Discursos em que é possível verificar que o binômio palavra /<br />

poder é, ao mesmo tempo, alicerce e compositor de uma imagem;<br />

que presidência e presidentes são o resultado de uma dupla identidade<br />

que se funde em uma só, ou seja, o enunciador referenda a ima-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

909<br />

gem do poder que assume e vice-versa, construindo, dessa forma, o<br />

ethos do Poder Judiciário no Brasil.<br />

Discursos em que a seleção e a combinação do léxico, cuidadosamente<br />

realizadas para a construção dos sentidos, conduzem-nos<br />

à leitura e identificação de uma imagem não apagada pelo tempo, e<br />

ainda constantemente fortalecida por enunciadores capazes de estabelecer<br />

em seus textos o modo com que pretendem se ver relacionados<br />

com o outro.<br />

Discursos proferidos por vinte e seis homens e apenas uma<br />

mulher no período de 1962 a 2010; que revelam a imagem de um<br />

Poder construída pelo próprio Poder por meio de seus respectivos<br />

membros na investidura de sua presidência. Discursos que definem<br />

um ethos que transita pelo tempo; que conclamam vozes outras para<br />

confirmarem a marca que não se quer dissociar dessa Instituição.<br />

Discursos que elevam o Poder Judiciário à altura do “Poder Divino”,<br />

uma vez que unem as características pessoais de seus membros à<br />

“missão” institucional que desempenham.<br />

2. Sobre a palavra<br />

Criada com o objetivo primeiro de decalcar a realidade, a palavra<br />

transforma-se quando assume a função do dizer, uma vez que<br />

se associa a outras palavras e insere-se em um determinado contexto,<br />

representando o homem diante de outro homem na construção de<br />

uma história e de uma imagem.<br />

Desde o momento de sua formação, quando selecionados os<br />

elementos de sua estrutura interna até a relação formal que estabelece<br />

com outras, a palavra dá ao homem a liberdade de se pôr no mundo<br />

e, nesse movimento palavra/homem/mundo as sociedades se instalam,<br />

as relações de força que se estabelecem entre os sujeitos são<br />

acionadas e a assimetria de papéis presente nas relações sociais se<br />

solidificam e fortalecem.<br />

Palavras são, portanto, sinais cujos significados se constroem<br />

na boca de quem as pronuncia, nos olhos de quem as lê, nos ouvidos<br />

de quem as escuta. Só a palavra pode oferecer ao homem a oportuni-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

910<br />

dade de dize(-se), de revelar(-se), de libertar(-se) ou de prender(-se)<br />

em um mundo onde ela é, ao mesmo tempo, a chave e a tranca: porta<br />

para todas as (im)possibilidades.<br />

Correia e Lemos (2005, p. 66) propõem, para a palavra, alguns<br />

conceitos e reflexões. Por palavra típica, por exemplo, entendem<br />

ser aquela que, no discurso escrito, representa a “sucessão de<br />

caracteres delimitados por espaços em branco, (a chamada ‘palavra<br />

gráfica’)”; palavras que assumem dimensão superior à palavra gráfica:<br />

sintagmas que se formam por mais de uma palavra e as locuções<br />

preposicionais, conjuncionais e adverbiais; palavras que assumem<br />

dimensão inferior à palavra gráfica, sem autonomia para funcionarem<br />

sozinhas, isoladamente, pois não ocupam posição sintática alguma,<br />

apenas funcionam como elementos compositores de outras palavras<br />

e, por fim, as expressões idiomáticas que comportam significados<br />

que vão além da sua estrutura e de seus componentes.<br />

Segundo as autoras, portanto, poderíamos afirmar que as palavras<br />

podem ser consideradas como símbolos do universo real ou<br />

imaginário do homem e, por isso, há aquelas que podem mais, que<br />

sabem mais longe, que atravessam outras palavras ou cruzam-se com<br />

elas para poderem significar. E há, no entanto, aquelas cuja significação<br />

reporta apenas a seus próprios elementos de construção.<br />

3. Sobre as criações neológicas<br />

Assim como há palavras que, cansadas, abandonam o cenário<br />

discursivo, há outras, no entanto, que invadem esse cenário abandonando<br />

o seu sentido primeiro, soldando-se a outros significados em<br />

busca de traduzir o pensamento humano. Esse mesmo pensamento,<br />

às vezes, necessita de criar um novo componente lingüístico para<br />

tornar-se concreto. São assim criados os neologismos, cujo objetivo<br />

é o enriquecimento da língua.<br />

Para Alves (1994), a ocorrência dos neologismos pode se dar<br />

das seguintes formas:<br />

· fonológicos: quando ocorre a criação de um item lexical<br />

cuja base do significante não se encontra presente na lín-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

911<br />

gua. Muito raro de se dar pelo fato de sua difícil decodificação<br />

e compreensão pelos falantes dessa mesma língua.<br />

· sintáticos: quando a combinação dos elementos que os<br />

constituem não está relacionada simplesmente à formação<br />

do léxico, mas principalmente à frase em que estão inseridos,<br />

por alterarem classes e funções.<br />

· semânticos: quando um componente lexical já existente<br />

em uma língua incorpora uma significado novo, não institucionalizado.<br />

· truncação: palavra criada por um tipo de abreviação em<br />

que se elimina uma parte da seqüência lexical, geralmente<br />

sua parte final.<br />

· palavra-valise: criada a partir da redução dos elementos<br />

de duas bases (ou apenas de uma delas) para criar um novo<br />

léxico – perda da parte final de uma base e a parte inicial<br />

de outra. Esse processo também é conhecido por cruzamento<br />

vocabular, palavra portmanteau, contaminação,<br />

entre outros.<br />

· reduplicação: repetição da base de uma palavra a fim de<br />

construir um novo léxico.<br />

· Derivação regressiva: na língua portuguesa, essa ocorrência<br />

se dá, principalmente, quando há a substantivação<br />

de formas verbais e seguido pelo acréscimo da vogais -a, -<br />

e e -o ao radical do verbo.<br />

· Por empréstimo: uso de unidade léxica estrangeira, seguida<br />

ou não de sua tradução, tendo sua estrutura alterada<br />

ou não.<br />

Há, portanto, diversas formas pelas quais o homem pode conceber<br />

e expressar o conhecimento resultante da sua vida em sociedade<br />

e a forma como ele utiliza a palavra, quando explora o seu valor<br />

simbólico, permite que seja reconhecido, identificado entre tantos<br />

como único, uma vez que espelha, em seu discurso, a imagem que<br />

faz de si e que deseja ver compartilhada.


4. Sobre os neologismos semânticos<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

912<br />

Por expressar nova associação entre significado e significante,<br />

uma palavra ou expressão poder ser considerada um neologismo semântico.<br />

Para M Louis Guilbert (Apud VALENTE, 2005, p. 131), a<br />

neologia semântica se concretiza no âmbito do lexema e pode apresentar-se<br />

sob três formas:<br />

· a neologia sintagmática: quando se dá a modificação do<br />

agrupamento dos semas referentes a um lexema, sem haver,<br />

no entanto, a modificação da forma deste. Consiste<br />

nas construções metafóricas e metonímicas, por exemplo,<br />

as quais serão objetos de análise deste artigo.<br />

· a neologia por conversão: afeta a categoria gramatical do<br />

lexema, ou seja, além de impregnado de novo sentido,<br />

desloca-se de sua classe gramatical de origem para assumir<br />

outra.<br />

· a neologia sociológica: quando um termo pertencente a<br />

um jargão profissional passa ou a incorporar a linguagem<br />

de um outro grupo profissional , rompendo com o significado<br />

primeiro para ajustar-se ao novo meio, ou mesmo<br />

quando passa a habitar a linguagem usual de um grupo de<br />

falantes, adaptando-se, também, à sua nova condição discursiva.<br />

5. A análise do corpus<br />

5.1. Fragmentos do discurso de agradecimento do Ministro<br />

Lafayette Andrada como o primeiro Presidente do Supremo<br />

Tribunal Federal eleito e empossado em Brasília<br />

(...) Mas as leis não se aplicam sozinhas. Os juízes, aos quais incumbe<br />

a aplicação delas, isto é, a função altíssima de dar vida a esses<br />

textos, encarnam poderes – por assim dizer – divinos.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

913<br />

· “...a função altíssima de dar vida a esses textos, ...” remete<br />

à passagem bíblica, escrita no 1º livro do Antigo Testamento:<br />

“Deus disse...” (Gênesis) e tudo foi feito;<br />

· a construção metafórica dialoga com a história registrada<br />

no mais sagrado dos livros, onde está documentada a magia<br />

da palavra, que, como brasa na boca de Deus, queima<br />

e se derrama sobre o abismo informe e vazio que era a terra<br />

e se transforma no grande mistério da vida, no princípio<br />

de tudo, de tudo o que está feito, de tudo o que está escrito.<br />

· a função altíssima do juiz é transformar palavra em justiça,<br />

é animar o inanimado, implicitando, concomitantemente,<br />

a construção metonímica o juiz é a justiça ou viceversa,<br />

a justiça é o juiz.<br />

“Sei quão difícil, árdua, hercúlea, a missão do juiz, mas nada há tão<br />

nobilitante.”<br />

· utiliza a marca de não-pessoa em “...hercúlea, a missão do<br />

juiz”, permitindo que enunciador e coenunciadores compartilhem<br />

a imagem criada do herói, daquele que foi o<br />

deus dos exércitos;<br />

· atravessa, novamente, o tempo na história da humanidade<br />

ao retomar a imagem de Hércules e inscrevê-la no discurso<br />

com o fim de confirmar o ethos divino, numa metáfora<br />

que supervaloriza a função do juiz, que aqui é tratada como<br />

missão e que garante a esse representante do Poder<br />

Judiciário um título de nobreza.<br />

“Encerro essas palavras, invocando a proteção divina para que, sob<br />

seu pálio, que sempre me cobriu, encontre eu forças para manter<br />

bem alta a Presidência do Supremo Tribunal Federal.”<br />

· invoca a proteção divina, mas, ao mesmo tempo, compartilha<br />

com Deus o manto de Deus, ora fazendo uso da pessoa<br />

ampliada, ora da pessoa restrita: “o seu pálio, que


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

914<br />

sempre me cobriu...” o que, metaforicamente, conota: a<br />

toga do juiz é o manto de Deus;<br />

· tanto o manto quanto a toga representam, metonimicamente,<br />

o poder, que nesse contexto, igualam-se, sustentando<br />

do ethos divino;<br />

· tal proteção tem o objetivo de “manter bem alta a Presidência<br />

do Supremo Tribunal Federal.”, ratificando a idéia<br />

de que o Supremo Tribunal Federal se eleva a uma altura<br />

inimaginável, só alcançada por Deus e pelos membros integrantes<br />

do “Poder Judiciário(-Divino)”.<br />

5.2. Fragmento do discurso de Posse da Ministra Ellen Gracie<br />

como Presidente do Supremo Tribunal Federal (e<br />

primeira mulher a ocupar esse cargo no Brasil)<br />

“Talvez por isso é que visionariamente, como é próprio dos artistas,<br />

e desejando um futuro em que não seja necessário fazer uso tão freqüente<br />

da balança, nem brandir a espada para garantir a execução<br />

do julgado, que o gênio de Ceschiatti fez repousar tranqüilamente a<br />

Themis que dá as boas vindas aos que adentram a esta Casa. Ela representa<br />

o ideal a ser perseguido, o de uma sociedade pacificada,<br />

que nada distraia de seu grande futuro. Onde a Justiça, como uma<br />

senhora que é, possa sentar-se em dignidade, e descansar sobre o<br />

regaço o gládio que é seu atributo impositivo.<br />

· ao inscrever a deusa Themis na cena enunciativa, o enunciador<br />

instala a marca da divindade e, ao mesmo tempo,<br />

autoriza o símbolo da Justiça a tomar vida mais uma vez<br />

na terra como a guardiã que sempre fora.<br />

· realiza isso entre a construção metonímica uso tão freqüente<br />

da balança, que suscita o equilíbrio singular de<br />

que necessitam os juízes nos julgamentos que realizam e<br />

decisões que proferem, e a construção metafórica e, ao<br />

mesmo tempo, metonímica brandir a espada para garantir<br />

a execução do julgado, que estabelece entre caneta e<br />

espada uma relação singular e ímpar de único instrumento<br />

e gesto capazes de proteger o ser humano da não-justiça.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

915<br />

· estará, portanto, o juramento/compromisso que profere o<br />

eu enunciativo, em seu discurso de posse, também “guardado”<br />

por ela.<br />

· ratifica a crença de que a palavra do enunciador será acatada<br />

tanto por homens quanto por deuses assim como as<br />

leis e oráculos proferidos por Themis.<br />

· a marca da intertextualidade permeia o discurso de posse<br />

da Ministra Ellen Gracie, uma vez que dialoga com a mitologia;<br />

· o lugar discursivo, representado nesse parágrafo por “esta<br />

Casa”, apontará a construção de um tempo. Um tempo<br />

discursivo que colabora para a construção da imagem de<br />

um enunciador justo, que crê na possibilidade de um presente<br />

que caminha ao encontro de um futuro pacífico para<br />

a sociedade e digno para a Justiça, assim como quis Deus.<br />

O desejo do Poder Judiciário é o desejo de Deus.<br />

· ainda em “esta casa”, uma relação metafórica subjaz à<br />

“casa de Deus”, que também “construiu” na Terra a Sua<br />

casa, a casa onde os homens podem se abrigar, encontrar<br />

a paz, o perdão, a justiça etc.;<br />

· “(...)Justiça, como uma senhora que é, possa sentar-se em<br />

dignidade (...)" remete, novamente, à imagem feminina e<br />

divina de Themis, numa relação ora metonímica, em referência<br />

aos poderes da deusa, ora metafórica à própria<br />

deusa, confirmando o ethos divino tanto do enunciador<br />

quando do Poder Judiciário no Brasil.<br />

6. Considerações Finais<br />

· Para que nos vejamos dentro de um ato de linguagem, é<br />

necessário produzirmos discursos impregnados de uma<br />

determinada carga semântica capaz de os entrelaçar a outros<br />

discursos e enunciadores, em tempos vários.<br />

· No plano de estudo dos processos neológicos é possível


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

916<br />

perceber que a palavra transita num universo discursivo,<br />

cuja finalidade é constituir sentidos.<br />

· Que pela inovação ou modificação de sentido das palavras<br />

e expressões de uma língua é possível construir um mundo<br />

paralelo ao real e resgatar seres e imagens de tempos<br />

distantes, inserindo-os na contemporaneidade.<br />

· Os processos metafóricos e metonímicos trazidos para estudo<br />

neste artigo constituem novidades tanto em si mesmos,<br />

uma vez que tanto na seleção dos semas – constituintes<br />

sintagmáticos do discurso – como também no resultado<br />

semântico, a modificação não afeta o léxico.<br />

· Os fragmentos selecionados neste artigo foram retirados<br />

de dois discursos que representam momentos importantes<br />

na história do Poder Judiciário e do Brasil. Lafayete Andrada<br />

foi o primeiro ministro do STF do Brasil Novo, eleito<br />

e empossado em Brasília – nova (e atual) capital do<br />

Brasil – e, Ellen Gracie, a primeira mulher no STF e a<br />

primeira a ocupar a presidência desse Poder.<br />

· Nos discursos de posse dos Presidentes do Supremo Tribunal<br />

Federal os processos neológicos semânticos analisados<br />

podem, também, ser estudados sob outros vieses (O<br />

da neologia por conversão ou sociológica, por exemplo), o<br />

que garantiria a continuidade e aprofundamento desse estudo.<br />

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA<br />

ALVES, Ieda Maria. Neologismo: Criação lexical. 2. ed. São Paulo:<br />

Ática, 1994.<br />

______. BARROS, Diana L. P. de. Dialogismo, Polifonia e Enunciação.<br />

In: BARROS, Diana L. Pessoa de, FIORIN, José Luiz (org.)<br />

Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003.<br />

CORREIA, Margarida e LEMOS, Lucia San Payo de. A inovação<br />

lexical em português. Lisboa: Edições Colibri/APP, 2005.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

917<br />

DASCAL, Marcelo. “O ethos na argumentação: uma abordagem<br />

pragma-retórica.” Ruth Amossy (org.). Imagens de si no discurso: a<br />

construção do ethos.São Paulo: Contexto, 2005.<br />

FEDERAL, Supremo Tribunal. Posses Presidenciais. Brasília 1962-<br />

2004. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2004.<br />

FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua portuguesa.<br />

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.<br />

HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss<br />

da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva: 2001.<br />

MAINGUENEAU, Dominique. Análises de textos de comunicação.<br />

Trad. Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. São Paulo: Cortez:<br />

2001.<br />

VALENTE, André. “Produtividade lexical: criações neológicas”. In:<br />

PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino e GRAVAZZI, Ingrid.<br />

(Orgs.) Da língua ao discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro:<br />

Lucerna, 2005.<br />

______. Neologismos literários em romance de Mia Couto. In: Valente,<br />

André (org.) Língua portuguesa e identidade: marcas culturais.<br />

Rio de Janeiro: Caetés, 2007.


DISPARIDADES CRÍTICAS<br />

SOBRE A OBRA DE GIL VICENTE<br />

Rafael Santana Gomes (UERJ)<br />

camonianus@gmail.com<br />

Gil Vicente, eis aí uma das mais importantes personalidades<br />

do teatro português. Mestre Gil, embora não tenha sido o fundador,<br />

ou melhor, o iniciante da atividade dramatúrgica em Portugal, como<br />

já ficou provado numa série de estudos acadêmicos, foi, no entanto –<br />

e talvez ainda seja –, a figura de maior destaque no panorama do teatro<br />

lusitano, porque, como bem o disse Garrett no prefácio ao drama<br />

Um Auto de Gil Vicente, o comediógrafo da Rainha D. Leonor foi<br />

aquele que, efetivamente, deixou lançados em suas peças os fundamentos<br />

de uma escola nacional de teatro, fazendo de seus textos um<br />

grande instrumento civilizador.<br />

De todos os escritores da literatura portuguesa, Gil Vicente<br />

talvez seja aquele que desperte as opiniões mais antagônicas por parte<br />

da crítica. Para alguns estudiosos, o dramaturgo teria sido um propagandista<br />

da política real portuguesa; para outros, um crítico dessa<br />

política. Alguns consideram Gil Vicente um católico fervoroso e ortodoxo;<br />

outros, um autor com ideias bastante próximas às dos reformadores<br />

protestantes. Há quem diga que Gil Vicente exprimia os valores<br />

da burguesia mercantil, contra os da aristocracia, e há quem<br />

pense exatamente o contrário. Essa disparidade de interpretações se<br />

deve a uma série de fatores. Em primeiro lugar, isso ocorre pelo fato<br />

de não sabermos exatamente quem foi Gil Vicente e qual a sua verdadeira<br />

posição social. Ressalte-se aqui que não se trata de tentar interpretar<br />

a obra de um autor a partir de sua biografia, mas apenas de<br />

buscar certas diretrizes de leitura a partir de seu posicionamento ideológico.<br />

Em segundo lugar, poderíamos dizer que, pelo fato de o teatro<br />

vicentino ter sido composto de uma forma um tanto improvisada,<br />

e pelo fato de a sua obra só ter sido publicada postumamente, há uma<br />

série de lacunas que não nos permitem saber, com precisão, como<br />

determinadas cenas eram representadas. Lembre-se que, no teatro, o<br />

texto verbal constitui apenas uma parte do espetáculo, sendo as rubricas<br />

ou didascálias de suma importância no que concerne às indi-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

919<br />

cações cênicas da peça. Finalmente, poderíamos dizer que, pela tonalidade<br />

cômica do teatro vicentino, os seus escritos se tornam bastante<br />

ambíguos do ponto de vista ideológico. Ou seja, às vezes é muito difícil,<br />

quando se trata de um texto cômico, dizer exatamente que valores<br />

são defendidos e que valores são criticados pela obra.<br />

O que é muito instigante no teatro de Gil Vicente, e, por isso<br />

mesmo, muito importante de se destacar, é que, embora o comediógrafo<br />

português tenha escrito suas peças no século XVI, isto é, em<br />

pleno Renascimento, há em sua obra um acentuado caráter medievalizante:<br />

Gil Vicente não seguiu os padrões estéticos renascentistas,<br />

quer no que concerne aos tipos composicionais por ele utilizados –<br />

mistérios, moralidades, farsas etc. –, quer no que tange ao processo<br />

de construção formal de seus escritos teatrais, urdidos, quase sempre,<br />

a partir de redondilhas. Além disso, Gil Vicente também não fez uso<br />

do português moderno do século XVI, valendo-se, propositadamente,<br />

de um registro arcaizante.<br />

No intuito de apresentar uma leitura coerente para o teatro vicentino,<br />

diante de tamanha disparidade crítica, tomaremos como<br />

ponto de partida o conhecido Auto da Barca do Inferno, e faremos,<br />

ainda, algumas referências a outras peças do autor, buscando, sempre<br />

que possível, tentar equilibrar os pontos de vista antagônicos.<br />

No Auto da Barca do Inferno, os personagens-tipo apresentam<br />

uma espécie de comportamento circular, isto é, tentam sair da situação<br />

na qual se encontram a partir da repetição das mesmas atitudes<br />

que os condenam. Assim, o fidalgo quer ter acesso à Barca da<br />

Glória tão somente pelo prestígio de sua condição social, e tenta<br />

convencer o Anjo para que o deixe embarcar em sua nau a partir do<br />

mesmo comportamento despótico com o qual agiu durante toda a vida:<br />

humilhando e tiranizando os mais simples; o onzeneiro, por sua<br />

vez, lamenta-se por haver falecido antes da época do recebimento<br />

dos lucros, fator que, em sua visão, não lhe conferira a oportunidade<br />

de subornar o Anjo, e, portanto, de comprar o seu lugar no céu; a alcoviteira<br />

crê-se no direito de adentrar a Barca da Glória pela atitude<br />

absurda de agenciar moças para os cônegos da Sé; o frade, por seu<br />

turno, não vê pecado algum em dançar, praticar esgrima e namorar, e<br />

continua a manter os mesmos atos depois de morto, pois crê que apenas<br />

no uso da batina e nos salmos rezados estaria a sua salvação.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

920<br />

Eis aí um quadro passível de muitas leituras. Lembrando sempre que<br />

Gil Vicente não trabalha com conflitos psicológicos, isto é, com caracteres<br />

individuais, mas sim com tipos sociais 1 , leiamos o Auto da<br />

Barca do Inferno, a partir da ideia de uma crítica social que, a um só<br />

tempo, não perdoa os desvios ideológicos das estruturas relacionadas<br />

ao mundo medieval e nem os das relacionadas ao mundo moderno.<br />

Apesar do acentuado caráter medievalizante da obra de Gil<br />

Vicente, parece-nos que não seria correto afirmar que o dramaturgo<br />

português rejeitasse, com vigor, tudo aquilo que representasse a nova<br />

sociedade, em prol de um furor passadista e de uma atitude ortodoxa.<br />

Tampouco se pode dizer que Gil Vicente tenha sido um entusiasta do<br />

mundo moderno. Parece-nos, outrossim, que Gil Vicente quisesse<br />

corrigir os vícios de ambas as sociedades – a medieval e a moderna –<br />

para, dialeticamente, aproveitar o que nelas havia de melhor. A sociedade<br />

medieval parece ser criticada, pelo teatrólogo, por sua estrutura<br />

opressora e completamente fechada em si própria, fator que geraria<br />

uma série de problemas, como, por exemplo, um excesso de frades<br />

sem a menor vocação para o serviço religioso, uma justiça corrupta<br />

e mancomunada com a nobreza – como fica mais que patente<br />

no auto da Frágua do Amor – e uma aristocracia de pobres, parasitas<br />

e ociosos – como é evidenciado na famosa Farsa do Escudeiro.<br />

No auto da Frágua do Amor, são duramente criticados, dentre<br />

outros, dois elementos pertencentes ao topo da pirâmide social do<br />

Portugal de quinhentos: a Justiça e o Clero. Diferentemente de sua<br />

imagem clássica, a Justiça aparece, nesse auto, representada na figura<br />

de uma velha corcovada, com as mãos enormes – para melhor receber<br />

os subornos –, e com a vara quebrada. Muito distante, pois, de<br />

sua iconografia tradicional – geralmente de postura reta e de expressão<br />

imparcial –, a personagem da Justiça procura a frágua no intuito<br />

de recuperar sua forma primitiva, o que só logra após passar três ve-<br />

1 Em relação a isso, dizem António José Saraiva e Óscar Lopes, “Diferentemente do<br />

que sucede com o teatro clássico, o teatro vicentino não tem por propósito apresentar<br />

conflitos psicológicos. Não é um teatro de caracteres e de contradições entre (ou dentro<br />

de) eles, mas um teatro de sátira social, um teatro de ideias, e um teatro polêmico.<br />

No palco vicentino não perpassam caracteres individuais, mas tipos sociais agindo segundo<br />

a lógica da sua condição, fixada de uma vez para sempre; personificações de<br />

conceitos e de instituições, e ainda entes sobrenaturais, como Diabos e Anjos” (1969,<br />

p. 195).


que me faça de jantar.<br />

Isto, eramá, é viver.<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

922<br />

(VICENTE, 1984, p. 394-397)<br />

Como se vê, o erro do frade estaria, não em se dar conta do<br />

grande número de sacerdotes sem vocação para o serviço religioso,<br />

e, portanto, sem serventia alguma para a sociedade, mas em querer<br />

abandonar sua condição de frade tão somente para adequar-se aos<br />

moldes da vida aristocrática, assentada no princípio do não trabalhar.<br />

Além disso, Gil Vicente também critica, em vários de seus autos, o<br />

ideal medieval do amor cortês, muitíssimo presente na mentalidade<br />

da nobreza. É o que assistimos, por exemplo, na famosa Farsa do<br />

Escudeiro. Nessa farsa, há a presença de um nobre falido, Aires Rosado,<br />

o qual passa os dias a fazer trovas e canções, enquanto ele e<br />

seu criado, Apariço, morrem de fome, porque o escudeiro concebe o<br />

trabalho como um empreendimento desonroso. E os textos de Gil<br />

Vicente parecem denunciar, como dizem António José Saraiva e Óscar<br />

Lopes (1969, p. 199), que quem sustentava essa classe de ociosos,<br />

que quem verdadeiramente suportava essa carga pesada de parasitas,<br />

era o pobre lavrador, explorado por consequência do próprio<br />

sistema. Ressalte-se que, não obstante o cômico das peças vicentinas,<br />

há um olhar bastante comovido do teatrólogo de quinhentos por parte<br />

dos humildes.<br />

Contudo, não apenas a tirania do mundo medieval é criticada<br />

nos autos de Gil Vicente: os desvios ideológicos da sociedade moderna<br />

também o são. Isso pode ser percebido, claramente, na Farsa<br />

de Inês Pereira e no Auto da Lusitânia, este último considerado, pela<br />

crítica, como uma espécie de síntese de todo o teatro vicentino. Na<br />

Farsa de Inês Pereira, a personagem principal – Inês Pereira, mulher<br />

pertencente à ainda engatinhante burguesia, – é apresentada como<br />

uma jovem que passa os dias entediada, a bordar, fiar e costurar, e<br />

que sonha casar-se, enxergando no matrimônio um modo de libertação<br />

dos trabalhos domésticos. Para casar-se com Inês, apresentam-se<br />

dois pretendentes: um, rústico e campesino, herdeiro de “fazenda de<br />

mil cruzados” (VICENTE, 1984, p. 340), Pero Marques; outro, nobre<br />

falido e escudeiro, Brás da Mata. Por ter como ideal de comportamento<br />

masculino aquele ditado pelas regras do código de amor cortês,<br />

Inês Pereira despreza completamente a figura de Pero Marques –<br />

que não tem os refinamentos da nobreza – e escolhe Brás da Mata


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

923<br />

para seu companheiro, sonhando, assim, poder experimentar os gozos<br />

da corte. Após o casamento, Brás da Mata se mostra um marido<br />

totalmente despótico, fazendo de Inês uma mulher prisioneira e infeliz.<br />

Ora, o que lemos nesse auto é a aspiração das classes populares e<br />

burguesas à vida da corte, mesmo que, para isso, tenham que passar<br />

por grandes sacrifícios, atitude duramente criticada por Gil Vicente.<br />

Ainda em relação a isso, lembre-se que a possibilidade de mobilidade<br />

social é um dos fenômenos mais típicos do mundo moderno e<br />

mercantil. No Auto da Lusitânia, por sua vez, duas personagens alegóricas,<br />

Todo-o-Mundo e Ninguém, representariam bem os problemas<br />

do mundo moderno. Assim, Todo-o-Mundo, alegoria da burguesia<br />

mercantil, representada na figura de um rico mercador, tem o desejo<br />

de comprar não apenas aquilo que o dinheiro pode comprar, isto<br />

é, bens materiais, mas também alguns outros bens mais abstratos,<br />

tais como a virtude, a honra e a moral. Em contrapartida, Ninguém,<br />

alegoria do descaso geral pelos valores éticos, busca a consciência, a<br />

verdade e a repressão, numa atitude oposta à de Todo-o-Mundo.<br />

Ora, sabemos que o mundo moderno, não obstante as melhorias<br />

empreendidas nas sociedades como um todo, também trouxera<br />

em seu bojo o esquecimento do mundo medieval, assentado nos valores<br />

da tradição teológica cristã. Como bem assinala o historiador e<br />

ensaísta Eduardo Lourenço, o nascimento do mundo moderno iniciara<br />

um longo processo de “dilaceração da temporalidade cristã”<br />

(2001, p. 74), processo a partir do qual o niilismo viria a tornar-se a<br />

lógica do mundo ocidental, convertendo-se o dinheiro numa espécie<br />

de valor sobrepujante a todos os outros valores. E parece-nos que é<br />

justamente contra essa lógica niilista, ou melhor, contra esse processo<br />

de reificação da espiritualidade cristã, que Gil Vicente se põe,<br />

com veemência, ao tratar dos problemas do mundo moderno. Daí o<br />

fato de profissionais que, anacronicamente, poderíamos nomear de<br />

liberais, tais como o onzeneiro, o sapateiro e a alcoviteira, serem duramente<br />

criticados no Auto da Barca do Inferno, pois todos eles agem<br />

de modo a valorizar mais o dinheiro do que qualquer valor moral<br />

existente. Todavia, como dissemos a certa altura deste texto, não<br />

podemos afirmar que Gil Vicente tenha sido, nem completamente reacionário<br />

ao mundo moderno, nem um apologista do mundo medieval.<br />

A este último, critica o dramaturgo a situação vergonhosa da Igreja<br />

– a venda de indulgências, o sistema de rezas decoradas, sem o


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

924<br />

menor ato de fé, o grande número de sacerdotes sem vocação para o<br />

serviço religioso, o conluio da justiça com a nobreza, a exploração<br />

impiedosa aos lavradores etc. –; ao mundo moderno, critica Gil Vicente<br />

a cobiça incessante e o esmagamento dos valores cristãos, sem,<br />

contudo, ser completamente contra esse mundo, porque cedo se deu<br />

conta de que a vida é um andar para adiante, e de que a solução dos<br />

problemas não estaria, em hipótese alguma, numa atitude retrógrada<br />

e na impossível tentativa de restaurar o passado de forma plena. Enfim,<br />

poderíamos dizer que, estando a meio caminho entre o medieval<br />

e o moderno, os autos de Gil Vicente criticam e refletem os valores<br />

aviltados de dois mundos, fazendo do riso um importante instrumento<br />

de recusa e de negação.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ALVES, Maria Theresa Abelha. Gil Vicente: Sob o signo da derrisão.<br />

Feira de Santana: UEFS, 2002.<br />

GARRETT, Almeida. Um auto de Gil Vicente. Porto: Editora Porto,<br />

1995.<br />

LOURENÇO, Eduardo. A nau de Ícaro. São Paulo: Companhia das<br />

Letras, 2001.<br />

SARAIVA, António José & LOPES, Óscar. História da literatura<br />

portuguesa. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Publicações,<br />

1969.<br />

VICENTE, Gil. Antologia do teatro de Gil Vicente. (Seleção, introdução,<br />

notas e glossário de Cleonice Berardinelli). Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 1984.


1. Introdução<br />

DO SILENCIAMENTO DE LÍNGUAS:<br />

ALGUMAS REFLEXÕES DISCURSIVAS<br />

SOBRE A LEI 6.001 1<br />

Marcos Lúcio de S. Góis (UFGD)<br />

marcosgois@ufgd.edu.br<br />

O que está dito – e porque está sob<br />

esta forma – expõe o que o texto calou.<br />

Peneira que permite ver, de viés,<br />

vislumbres de sol e silêncio.<br />

(Lourival Holanda)<br />

Desde 1511, quando surge o primeiro decreto régio regularizando<br />

as práticas de uso das terras e de contato com os povos do<br />

Brasil recém-colonizado, até a constituição brasileira de 1988, os indígenas<br />

são uma presença/ausência constante no discurso pficial do<br />

Estado.<br />

Naquele ano, o rei Dom Manuel I dirige a Cristóvão Pires,<br />

capitão do navio Bretoa, que partia de Lisboa rumo a Cabo Frio no<br />

intuito de explorar pau-brasil (ou pau de tinta, como era conhecido),<br />

um Regimento determinando, além de recomendações técnicas, como<br />

deveria ser o comportamento dos membros dessa nau, em relação<br />

aos indígenas que a expedição haveria de encontrar nas costas brasileiras.<br />

Segundo Thomas (1982), recaía, sobre a tripulação do navio, a<br />

proibição estrita de ofender, de algum modo, os indígenas ou de causar-lhes<br />

prejuízo. Isso pode significar que, para os portugueses do<br />

século XVI, extrair pau-brasil, ou empreender quaisquer outros tipos<br />

de exploração das terras e dos povos indígenas, não era visto como<br />

algo prejudicial aos habitantes do “Novo Mundo”. Para fazerem valer<br />

as determinações do Rei, ainda de acordo com o mesmo autor,<br />

1 Este artigo é uma versão modificada e ampliada do texto Constituição de identidade indígena<br />

na/pela lei 6.001: sujeito, história e poder, apresentado em forma de comunicação oral no II<br />

Encontro Nacional do GELCO, 2003, Goiânia-GO. In: Anais do II Encontro Nacional do GEL-<br />

CO. Goiânia-GO: Editora da UFG, 2003.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

926<br />

aos infratores prescreviam-se penas extraordinariamente duras, que<br />

iam da perda de parte dos salários até, de acordo com a categoria do<br />

infrator, um castigo correspondente ao delito 2 . Era fundamental, ao<br />

que tudo indica, assegurar a preservação daqueles que conheciam a<br />

nova terra.<br />

De lá para cá, as mudanças na legislação acompanharam as<br />

mudanças da cultura e da civilização, embora a essência do discurso<br />

colonialista perdure há séculos. Tal afirmação ainda necessita de<br />

uma investigação mais atenta, uma vez que se faz necessário, no<br />

campo da política indigenista brasileira, estudar a legislação buscando<br />

compreender as relações de poder que possibilitaram sua emergência.<br />

Ao tentar lançar um olhar discursivo sobre o assunto, nosso<br />

objetivo principal neste artigo é, considerando as práticas discursivas<br />

como uma relação entre linguagens e constituição de identidades, refletir<br />

sobre algumas condições que proporcionaram a irrupção e a existência<br />

de discursos institucionais que contribuíram e contribuem<br />

para o processo de construção de identidades dos índios brasileiros<br />

pelo não índio, em um momento determinado na História do país.<br />

Para tanto, tomamos como ponto de partida a Lei 6.001, de<br />

19/12/1973, “que regula a situação jurídica dos índios ou silvícola e<br />

das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura<br />

e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunidade nacional”<br />

(Art. 1) 3 .<br />

2 Apesar de haver um Regimento estabelecendo que os índios não deveriam ser “ofendidos”<br />

e/ou “prejudicados”, 35 escravos índios foram embarcados na mesma nau com destino a Portugal<br />

(RIBEIRO, 1997, 34).<br />

3 Em 1973 foi promulgada a Lei 6.001 para dispor sobre as relações entre Estado, sociedade<br />

brasileira e sociedades indígenas. Essa lei, mais conhecida como "Estatuto do Índio", em linhas<br />

gerais, seguiu um princípio estabelecido pelo Código Civil do Brasil de 1916: de que os<br />

índios, sendo "relativamente capazes", deveriam ser tutelados por um órgão indigenista estatal<br />

(de 1910 a 1967, coube ao Serviço de Proteção ao Índio - SPI, a responsabilidade pela “guarda”<br />

dos povos indígenas, tarefa que, atualmente, cabe à Fundação Nacional do Índio – Funai)<br />

até que eles estivessem “integrados à comunhão nacional”. No atual Código Civil (redação final<br />

aprovada em 6/12/2001, publicado no D. O. em 11/1/2002), fazem-se referências aos indígenas<br />

brasileiros no artigo 4, que trata dos que “são incapazes, relativamente a certos atos, ou<br />

à maneira de os exercer”, da seguinte maneira: “Parágrafo único. A capacidade dos índios será<br />

regulada por legislação especial”. No entanto, é importante frisar que antes, esse artigo refere-se<br />

à: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os vi-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

927<br />

Acreditando, pois, que uma prática discursiva não significa<br />

em si, mas na sua relação com o sujeito, com a história e com o poder,<br />

pretendemos lançar alguns questionamentos a respeito dos sentidos<br />

que foram se constituindo e se legitimando como discurso jurídico-legislativo<br />

acerca do que vem a ser “índio” para a política brasileira.<br />

Ou seja, tentaremos compreender, ancorados em Pêcheux<br />

(1994), como o discurso da lei produz uma espécie de policiamento<br />

dos enunciados, uma normalização asséptica de sua leitura. O que<br />

produz como efeito um deslocamento da cultura indígena para uma<br />

concepção judaico-cristã de civilidade.<br />

2. A lei, o discurso e os povos indígenas<br />

Dentre os chamados discursos formadores, há o de “senso<br />

comum”. No caso das leis, um bastante corrente é o pensamento de<br />

que a lei tem o poder de consertar e/ou evitar injustiças. Quando falamos<br />

em leis, portanto, um senso comum que as envolve é a ideia<br />

de que elas garantem a justiça e/ou servem para equilibrar as relações<br />

sociais. Esse discurso de senso-comum se constitui, acreditamos,<br />

num deslocamento do direito romano, pelo qual se procurou estabelecer<br />

as regras de conduta para os cidadãos de um local 4 . Histo-<br />

ciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os<br />

excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos”.<br />

4 Nos períodos iniciais do Império Romano, os cidadãos de Roma eram considerados, grosso<br />

modo, mais integrantes de uma comunidade do que indivíduos. Com o tempo, a evolução caracterizou-se<br />

por acentuar e desenvolver o poder central de Roma e, em consequência, pela<br />

progressiva criação de regras que visavam a reforçar sempre mais a autonomia do cidadão,<br />

como indivíduo. Em outros termos, pelas palavras de Michel-Jones: “Observa-se, nos mundos<br />

grego e romano, a passagem da máscara à personagem representada e dessa ao actor social<br />

cujo papel exprime, tanto no teatro como no jogo social, ‘direitos individuais, ritos, privilégios’.<br />

A persona, posteriormente, torna-se uma realidade fundamental do direito romano que divide o<br />

mundo em personae, res e actiones. Para M. Mauss, esta evolução resulta, por um lado, do<br />

uso dos nomen, cognomen e praenomen que pertencem ao indivíduo e o situam dentro da família<br />

e, por outro, da ascensão da plebe romana à persona civil, ao pleno direito de cidade. A<br />

pessoa abrange nessa altura: a classe social (conditio), o estado da vida civil (status), os cargos<br />

e honras da vida civil e militar (munus). Uma vez criados o direito de adquirir a persona –<br />

direito de que só o escravo está excluído - e o carácter pessoal do direito, a introdução da<br />

consciência na concepção jurídica da pessoa faz-se correlativamente à aquisição pela persona<br />

do sentido moral [um sentido de ser consciente, independente, autônomo, livre, responsável] -<br />

nomeadamente sob a influência dos estoicos” (MICHEL-JONES, 1978, p. 49-50).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

928<br />

ricamente então, o discurso jurídico-legislativo, enquanto enunciado<br />

administrativo, legitimou-se como que expressando a mais “legal”<br />

das verdades, cuja produção e interpretação são extremamente regradas.<br />

A partir desse ponto de vista, entendemos que as leis – como<br />

qualquer outra formação discursiva no interior de uma formação ideológica<br />

– são capazes de criar e propagar diferentes tipos de discriminações,<br />

inclusive a étnica. Subjacente à ilusão de objetividade do<br />

discurso jurídico, encobre-se uma subjetividade latente, principalmente<br />

aos levarmos em conta a ideologia que está materializada nas<br />

leis, geralmente produzidas por pessoas ligadas ao discurso hegemônico,<br />

sendo em geral brancas, pertencentes a classes de maior prestígio<br />

socioeconômico e do sexo masculino. Assim, tanto as leis como<br />

as decisões legais que as envolvem, tenderão a refletir as relações assimétricas<br />

de poder entre legisladores, juízes e advogados, de um lado,<br />

e, de outro, os membros de grupos sociais à margem do processo<br />

jurídico, dos quais fazem parte os povos indígenas.<br />

Mas afinal, o que são leis? A primeira acepção do dicionário<br />

Aurélio 5 , nos aponta para a seguinte definição: “S. f. 1. Regra de direito<br />

ditada pela autoridade estatal e tornada obrigatória para manter,<br />

numa comunidade, a ordem e o desenvolvimento”. Um dicionário<br />

técnico traz outra definição:<br />

Lei – Norma, preceito. A doutrina considera a lei sob dois aspectos:<br />

em seu sentido formal, quando é toda disposição de caráter imperativo<br />

emanada de autoridade competente para legislar; e em sentido material,<br />

como sendo a norma imperativa contendo, em seu caráter geral, uma regra<br />

objetiva (LEITE, 1965, p. 118).<br />

Se considerarmos a noção de Pêcheux (1990) acerca da relação<br />

entre universo logicamente estabilizado e universo não estabilizado<br />

logicamente, podemos incluir, pela contraposição da definição<br />

encontrada no AE e em Leite, e corrente nos discursos jurídicos, as<br />

leis dentro desse universo logicamente estabilizado, porque, em sua<br />

essência, são um tipo de discurso que não permite interpretação, salvo<br />

para aos “iniciados”, “implicando o uso regulado de proposições<br />

lógicas com interrogações disjuntivas e a recusa de certas marcas de<br />

5 Neste nosso trabalho, estamos usando a versão eletrônica do Novo dicionário Aurélio eletrônico<br />

séc. XXI, de 1999; doravante apenas AE.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

929<br />

distância discursiva e, principalmente, a recusa de aspa de natureza<br />

interpretativa” (PÊCHEUX, 1990, p. 31).<br />

Em Contrato Social, Rousseau trabalhou a natureza dessa<br />

questão, afirmando que os homens, por serem desiguais, precisam de<br />

convenções e leis para viverem harmoniosamente. Ou, nas palavras<br />

do próprio autor:<br />

Toda a justiça vem de Deus, só Ele é a sua fonte, mas se soubéssemos<br />

recebê-la de tão alto, não precisaríamos de governos nem de leis...<br />

Mas quando o povo estatui sobre o povo, só a si mesmo se considera e,<br />

se alguma relação então existe, é entre o todo segundo um ponto de vista<br />

e o todo segundo outro ponto de vista, sem qualquer divisão no todo. Se<br />

assim é, a matéria sobre a qual se estatui é geral como a vontade que estatui.<br />

É a este ato que eu chamo de lei (ROUSSEAU, 1999, p. 105-6).<br />

Se confrontarmos as duas assertivas acima – a do AE e a de<br />

Rousseau – com os postulados de Pêcheux, será possível depreender<br />

que em um espaço logicamente estabilizado, “supõe-se que todo sujeito<br />

falante sabe do que se fala, porque todo enunciado produzido<br />

nesses espaços reflete propriedades estruturais independentes de sua<br />

enunciação” (PÊCHEUX, 1990, p. 31). Porém, do ponto de vista<br />

discursivo, as leis não são discursos homogêneos, porque perpetuam<br />

nelas marcas de uma pluralidade discursiva. Em outras palavras, está<br />

presente, na aparente objetividade das leis, uma subjetividade dissimulada.<br />

As leis se legitimam, logo, por observar o discurso hegemônico<br />

de certo período histórico. Podemos encontrar, valendo-nos das<br />

palavras de Miotello (2000), ao olhar a forma como a sociedade se<br />

organiza e a estrutura que ela mantém, dois conjuntos discursivos: no<br />

primeiro grupo, estão os “discursos explicadores”, que se fundamentam<br />

em acontecimentos passados, buscando “explicar de onde viemos<br />

e por que somos do jeito que somos”; e, no outro lado, encontram-se<br />

os “discursos formadores”, os do vir a ser, do porvir, alicerçados<br />

nas “garras” do futuro, “que buscam deixar claro onde se quer<br />

chegar”.<br />

Percebemos, então, a “fala” das leis se alicerçando nos discursos<br />

formadores de cada época, evidenciando, desse modo, as tramas<br />

da linguagem, compreendida no seu enlace com a História, com<br />

o sujeito e com o poder. Como toda relação com a linguagem é dada<br />

à ambiguidade, há sempre um discurso entre o dito e o não dito.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

930<br />

Voltando à definição de lei encontrada no AE, ou seja: uma<br />

“regra de direito ditada pela autoridade estatal e tornada obrigatória<br />

para manter, numa comunidade, a ordem e o desenvolvimento”, existem,<br />

nesse enunciado, elementos que marcam a exclusão do sujeito.<br />

Se a regra é “ditada”, por uma “autoridade estatal”, para que haja<br />

certa “ordem” e “desenvolvimento”, é essencial a pergunta: ditada a<br />

quem? Que autoridade estatal? De que ponto de vista se estabelece o<br />

que é “ordem” e “desenvolvimento”?<br />

A lei, desse modo, é um dos produtos de uma “ideologia dominante”,<br />

nos dizeres de Pêcheux (1997, p. 151) ao reler toda uma<br />

tradição dos estudos sobre “ideologia” (de Marx a Althusser) 6 , resultante<br />

“das relações de desigualdade-contradição-subordinação que<br />

caracterizam, numa formação social historicamente dada, o “todo<br />

complexo com dominante” das formações ideológicas que nela funcionam”.<br />

Dizendo de outra maneira, o discurso jurídico ocidental está<br />

necessariamente inscrito numa “macroenunciação”, que é a moral<br />

e os valores da sociedade ocidental capitalista e cristã. Lei, ordem e<br />

desenvolvimento, portanto, seguem à lógica que funda essa sociedade<br />

e seus valores.<br />

Neste momento, necessitamos voltar ao parágrafo inicial desse<br />

item, quando dissemos que é senso comum ver a “lei” como um<br />

poder capaz de consertar e/ou evitar erros e/ou injustiças. Na verdade,<br />

as leis existem para manter um status quo dominante, objetivando<br />

preservar a ordem e o desenvolvimento (progresso) segundo a racionalidade<br />

capitalista e cristã. Ou seja, é preciso haver este, e não<br />

outro tipo de lei, para que haja ordem e desenvolvimento conforme o<br />

princípio do capital e da cristandade. Sem a lei, não há nem “ordem”<br />

e nem “desenvolvimento”. Assim, cria-se a necessidade de um mundo<br />

“semanticamente normal”, no qual a necessidade de fronteiras<br />

...coincide com a construção de laços de dependência face às múltiplas<br />

coisas a saber, [...] máquinas de saber contras as ameaças de toda espécie”,<br />

[e, assim,] “[...] o Estado e as instituições funcionam como polos<br />

privilegiados de respostas a essa necessidade ou a essa demanda (PÊ-<br />

CHEUX, 1990, p. 34).<br />

6 Cf. também Zizek (1966); Eagleton (1995); Thompson (1997).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

931<br />

Aceitando, pois, como parâmetros as considerações anteriores,<br />

afirmamos que o sistema legal envolve o confronte entre discursos,<br />

e seria um trabalho árduo, senão impossível, mapear e analisar<br />

cada um deles com atenção. Por essa razão, neste trabalho procuramos<br />

produzir uma reflexão a partir de um tipo específico de discurso<br />

jurídico: a Lei 6.001.<br />

E afinal, quem são os indígenas? A Lei 6.001, em seu art. 3.º,<br />

afirma o seguinte: Para efeito de lei, ficam estabelecidas as definições<br />

a seguir discriminadas:<br />

I – Índio ou silvícola – É todo indivíduo de origem e ascendência<br />

pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um<br />

grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional.<br />

(Os destaques são nossos).<br />

O AE afirma, na sua quarta acepção, que “índio” (doravante<br />

sem aspas) é todo “Indivíduo pertencente a qualquer um dos povos<br />

aborígines das Américas”, e abre espaço para o seguinte comentário:<br />

Historicamente, designação genérica dada às populações que habitavam<br />

a América quando da chegada dos conquistadores europeus; atualmente,<br />

aplica-se a qualquer indivíduo que pertence a grupo étnico descendente<br />

ou supostamente descendente daquelas populações.<br />

A Constituição de 1988, por sua vez, nada acrescenta à definição<br />

de índio atribuída pelo “Estatuto do Índio”; na verdade, embora<br />

seja um enorme avanço em relação aos direitos das minorias étnicas,<br />

ela mantém vigente a Lei 6.001.<br />

Se confrontarmos o art. 1.º e 3.º, dessa Lei, novamente a pergunta:<br />

“quem são os índios?”. No artigo primeiro, está deste modo<br />

expresso:<br />

Art. 1.º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e<br />

das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e<br />

integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.<br />

Parágrafo único. Aos índios e às comunidades indígenas se estende a<br />

proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos<br />

demais brasileiros, resguardados os usos, costumes e traduções indígenas,<br />

bem como as condições peculiares reconhecidas nesta Lei.<br />

Neste parágrafo único, mostra-se o índio como “brasileiro”:<br />

“nos mesmos termos que se aplicam aos demais brasileiros”. Observemos<br />

que o advérbio demais, ao modificar o adjetivo "brasileiros",


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

933<br />

O Estatuto do Índio diz sobre a terra 7 , sobre as riquezas naturais,<br />

sobre os bens móveis ou imóveis, no entanto, pouco menciona<br />

sobre a língua, ocorrendo uma única menção no artigo 49, a respeito<br />

do qual discorreremos adiante. Tal como a intenção pombalina, silencia-se<br />

aqui todo o patrimônio linguístico indígena: o discurso legal<br />

desistoriciza assim as línguas indígenas, colocando-as na condição<br />

de não línguas. Levando em conta a relação do sujeito com a linguagem,<br />

veremos que não é possível dissociar “linguagem” e “ser<br />

humano”. Segundo Benveniste (1988):<br />

É na e pela linguagem que o homem se constitui como ‘sujeito’,<br />

porque só a linguagem funda na realidade, na ‘sua’ realidade, que é a do<br />

ser, o conceito de ‘ego’. A ‘subjetividade’ de que tratamos aqui é a capacidade<br />

do locutor de se colocar como ‘sujeito’ (p. 259).<br />

A linguagem está na natureza do homem, que não a fabricou (...).<br />

Nós não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo (...). Todos os<br />

caracteres da linguagem, sua natureza não material, seu funcionamento<br />

simbólico, seu arranjo articulado, o fato de que tenha um ‘conteúdo’, já<br />

são suficientes para tornar suspeita esta assimilação a um instrumento,<br />

que tende a dissociar do homem a propriedade da linguagem (p. 284).<br />

Se não há língua, não existe sujeito. O sujeito se constitui a<br />

partir dos enfrentamentos que a própria natureza das línguas implica.<br />

Recentemente, para ilustrar, talvez o fato mais marcante seja o dos<br />

índios Pataxó-Hãhãhãi que, na década de 1980, lutaram para resgatar<br />

linguisticamente sua Atxohã (língua). Para eles, como bem observa<br />

Orlandi (1990), uma das integrantes da equipe elaboradora da cartilha<br />

Linções de Bahetá (1983), a posse da língua significava “o desejo<br />

de ser índio, em momento de ameaça de extermínio”. E acrescenta a<br />

autora:<br />

Como, no Brasil, a língua atesta a identidade e, para o índio, o direito<br />

à terra, pode-se compreender a ambiguidade da noção de língua no<br />

processo identitário: voltada para interior do próprio grupo, é um dos<br />

princípios de sua identidade; para o exterior, na relação de contato, é um<br />

7 A Convenção 107, da Organização Internacional do Trabalho da ONU, realizada em Genebra<br />

em 1957, da qual o Brasil é signatário desde 30/4/1965, declara: “Art. 11 – O direito de propriedade,<br />

coletivo ou individual, será reconhecido aos membros das populações interessadas sobre<br />

as terras que ocupem tradicionalmente”. No entanto, segundo a Constituição Federal 1988,<br />

em seu art. 4, parágrafo 5, as terras ocupadas “tradicionalmente” pelos índios são bens inalienáveis<br />

da União, e não propriedade dos povos indígenas. Essa convenção foi revista pela<br />

Convenção 169, sobre povos indígenas e tribais.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

934<br />

dos documentos que o identificam (ORLANDI, 1990, p. 162-163. Destaques<br />

da autora).<br />

Em outros termos, muito embora haja comunidades indígenas<br />

que não possuem mais o domínio de sua língua ancestral, é sem dúvida<br />

a língua uma das mais fortes características identitárias e ideológicas<br />

de um povo, embora o critério “língua” seja, nesse caso, relativo.<br />

É certo que um povo pode não possuir, por motivos históricos,<br />

sua língua “original”, e sofre por manter viva suas manifestações<br />

culturais, mas certamente não existe língua sem que haja ou tenha<br />

existido um povo. E reforça Orlandi (1990, p. 165-166):<br />

Dependendo das condições históricas de existência do povo, ou seja,<br />

da violência do contato, sabemos que um índio pode não falar mais a sua<br />

língua e ser do seu povo, ser índio. O que nos permite dizer que este critério<br />

só tem validade positiva: quando fala a língua, é índio; quando não<br />

fala, não é certo que não o seja.<br />

De fato, é já sabido que a Lei em questão tem uma caráter integracionista<br />

e que não corresponde mais à atualidade, no entanto, é<br />

possível a partir de agora investigar a hipótese de que a maneira dúbia<br />

como os indígenas são significados no e pelo discurso jurídico<br />

está diretamente relacionada com o silenciamento do seu falar. Em<br />

outros termos, os vários povos indígenas são “mais ou menos brasileiro”<br />

porque não falam o português, a língua do colonizador. A<br />

condição para sua “ascensão” à condição de brasileiro é a total renúncia<br />

de seu falar em prol do português. A título de exemplo, vejamos<br />

o caso em que há, na Lei 6.001, uma referência à “língua” indígena:<br />

“Art. 49° A alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo<br />

a que pertençam, e em português, salvaguardado o uso da primeira”.<br />

E no artigo seguinte:<br />

Art. 50. A educação do índio será orientada para a integração na<br />

comunhão nacional mediante processo de gradativa compreensão dos<br />

problemas gerais e valores da sociedade nacional, bem como do aproveitamento<br />

das suas aptidões individuais.<br />

Embora seja assegurado aos indígenas a alfabetização na própria<br />

língua e a determinação de que a educação dos mesmos será orientada<br />

para a sua integração à sociedade nacional, a “língua” acaba<br />

ocupando papel secundário no que se refere a outras questões relacionadas<br />

aos povos indígenas. Veja-se, por exemplo, que a língua


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

935<br />

não é considerada um patrimônio indígena. O que se pode considerar<br />

é o fato de que, muito embora possa a língua indígena ocupar uma<br />

posição de destaque nessa Lei num primeiro momento, se o objetivo<br />

é a integração nacional, a língua portuguesa, como única língua oficial<br />

do Estado brasileiro, torna-se, indubitavelmente, proeminente<br />

sobre a primeira.<br />

Ainda que muitas línguas indígenas tenham sido extintas por<br />

conta da colonização, do século XVI até a época atual, alguns povos<br />

ainda permanecem vivos e muitos têm empreendido considerável fôlego<br />

para fazer com que as novas gerações aprendam e reforcem a<br />

própria língua. O esforço de resgate linguístico reforça a ideia de que<br />

dentre as várias formas de resistência ao discurso colonizador (no caso,<br />

o colonizador falante do português), é fundamental a resistência<br />

linguística porque, sem língua, tornam-se cada vez mais distantes os<br />

aspectos identitários que unem os membros de um mesmo grupo.<br />

De onde vêm, contudo, esses discursos que silenciam as línguas<br />

indígenas? Talvez pudéssemos considerar que, regendo os discursos<br />

legais produzidos sobre os povos indígenas, o enunciadoreitor,<br />

nos termos de Michel Foucault da Arqueologia do Saber 8 , seja<br />

o enunciado de Gândavo:<br />

A lingoa de que usam, toda pela costa, he huma: ainda que em certos<br />

vocábulos differe n'algumas partes; mas nam de maneira que se deixem<br />

huns aos outros entender: e isto até altura de vinte e sete gràos, que daqui<br />

por diante ha outra gentilidade, de que nós nam temos tanta noticia, que<br />

falan já outra lingoa differente. Esta de que trato, que he geral pela costa,<br />

he mui branda, e a qualquer nação fácil de tomar. Alguns vocabulos ha<br />

nella de que nam usam senam as femeas, e outros que nam servem senam<br />

pera os machos: carece de tres letras, convem a saber, nam se acha<br />

nella F, nem L, nem R, cousa digna despanto porque assi nam têm Fé,<br />

nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem<br />

além disso conta, nem peso, nem medido (GÂNDAVO, 1980, p. 123-24.<br />

Os destaques são nossos).<br />

8 Por enunciados reitores compreendem-se, nas palavras de Foucault: “...os que se referem à<br />

definição das estruturas observáveis e do campo de objetos possíveis, os que prescrevem as<br />

formas de descrição e os códigos perceptivos de que ele pode servir-se, os que fazem aparecerem<br />

as possibilidades mais gerais de caracterização e abram, assim, todo um domínio de<br />

conceitos a serem construídos; enfim, os que, constituindo uma escolha estratégica, dão lugar<br />

ao maior número de opções ulteriores” (1986, p. 168).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

936<br />

Essa posição de Gândavo, como a maioria dos posicionamentos<br />

europeus em relação aos indígenas, vem carregada de um extremo<br />

preconceito. Para sermos mais precisos, nitidamente notamos a<br />

manifestação do que atualmente se considera “preconceito linguístico”<br />

(BAGNO, 1999). Em outros termos, notamos que, impregnado<br />

de uma visão ingênua dos universos indígenas, Gândavo achava que<br />

os povos indígenas “viviam desordenadamente”. Não devemos nos<br />

esquecer de que a lei tem forte relação com a ordem e o desenvolvimento.<br />

Notemos, ainda nesse fragmento, que, por causa dessa suposta<br />

“carência”, “viviam desordenadamente”, o que significa dizer que<br />

as sociedades indígenas não eram “ordenada”, “organizada”, por não<br />

terem nem F, nem L e nem R, ou, nem fé, nem lei e nem rei. Por não<br />

terem lei, rei e fé, era um desvio que precisava ser corrigido; era preciso<br />

catequizar (Deus), administrar (Lei) e governar (Rei), dado que<br />

uma nação não poderia viver sem os preceitos religiosos, administrativos<br />

e governamentais 9 .<br />

Existem assim, de um lado, os povos indígenas que não tinham<br />

voz no século XVI e que hoje dizem que suas terras foram invadidas,<br />

e, de outro, o discurso colonizador que afirma: o Brasil foi<br />

“descoberto”, “achado”, “conquistado”, “civilizado”. Duas formações<br />

discursivas em confronto que impedem outros discursos de significar,<br />

entre eles o outro “brasileiro”.<br />

Há sempre relações de poder e de controle presentes nos discursos,<br />

é certo. E elas retratam, principalmente, procedimentos de<br />

controle do discurso nas interações verbais, os quais podem ser classificados,<br />

conforme Foucault (1998), de três modos, a saber: mecanismos<br />

externos de controle, mecanismos internos de controle e mecanismos<br />

de controle do sujeito.<br />

Esses mecanismos nos levam a pensar nas práticas discursivas<br />

envolvendo as leis e o universo indígena. Podemos pressupor, para<br />

que os índios façam parte da “sociedade nacional”, que eles, ao en-<br />

9 Importante observar também que essa afirmação feita por Gândavo foi feita a partir da observância<br />

de sociedades indígenas da Costa brasileira, predominantemente pertencentes à família<br />

linguística tupi. No entanto, esse enunciado, ao longo dos anos, veio reproduzindo seus efeitos,<br />

independentemente do povo indígena em referência.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

937<br />

trar no universo cultural do “brasileiro”, abandonem seu discurso,<br />

construído, até então, fora do âmbito da instituição, para assumirem<br />

o que lhes será transmitido pelo Estado. Além do mais, sabendo que<br />

os indígenas precisam ter “conhecimento da língua portuguesa” para<br />

deixarem o regime tutelar previsto na Lei (Art. 9.º, II), pressupõe-se<br />

que, quando “abandonarem” a própria língua, haverá um maior controle<br />

do dizer, isto é, do que se pode ou não dizer num conjuntura<br />

dada (PÊCHEUX, 1995). Deduzimos, portanto, que a “nova realidade”<br />

determinará, aos indígenas, as regras discursivas, dizendo quem<br />

fala, o que fala, como fala e em que momento fala.<br />

Parece nítida, por parte das práticas jurídico-legislativas do<br />

Estado brasileiro, uma tentativa de negação da diversidade cultural,<br />

linguística e política diante do que seja uma “sociedade nacional”.<br />

Negar os conhecimentos prévios dos povos indígenas, inclusive linguísticos,<br />

como partes constitutivas da “sociedade nacional”, é desejar<br />

o total apagamento das diferenças. Desse modo, o Estado desconsidera,<br />

por exemplo, as línguas faladas pelos índios em detrimento<br />

do legitimado por ele, o português, silenciando, assim, o sujeito “índio”.<br />

Interessante, porém, é notar que alguns indígenas e grupos de<br />

estudiosos, encontraram na nessa legislação um brecha em relação ao<br />

linguístico, e isso levou a que alguns municípios se tornassem bilíngues<br />

10 .<br />

10 O caso mais exemplar talvez seja, no Brasil, o de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.<br />

Nas palavras do professor Gilvan Müller de Oliveira: [Em relação à oficialização de línguas indígenas<br />

em São Gabriel], “A ideia foi levada a uma assembleia geral da Federação das Organizações<br />

Indígenas do Rio Negro (FOIRN) com cerca de 500 delegados das 42 organizações<br />

de base que a integram, e foi aprovado, no início de 2001, um pedido da FOIRN ao IPOL para<br />

a elaboração do anteprojeto de lei e sua justificativa. Incorporamos à nossa equipe um advogado<br />

especialista em elaboração de legislação municipal, Márcio Rovere Sandoval, e o anteprojeto<br />

foi discutido, aperfeiçoado e encaminhado para a câmara pelo vereador Camico Baniwa.<br />

Foi aprovado por unanimidade em dezembro de 2002, fazendo de São Gabriel da Cachoeira<br />

o único dos 5.507 municípios a ter, [até então], além do português, língua oficial da União,<br />

também línguas cooficiais municipais. Como são, pelos nossos cálculos, pelo menos 11 municípios<br />

de maioria populacional indígena no Brasil e muitos de maioria falante do japonês, italiano<br />

ou outras línguas de imigração, abre-se com esta jurisprudência a possibilidade de construirmos<br />

oficialmente um quadro de bilinguismo estável para o Brasil, na medida em que a visibilidade<br />

dos futuros ‘municípios bilíngues’ será um importante estímulo para frear a tendência à<br />

perda linguística das línguas minorizadas brasileiras”. (OLIVEIRA, 2005, p. 90).


3. Palavras de conclusão<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

938<br />

Procuramos evidenciar com este artigo que o Estado, por<br />

meio do Estatuto do Índio (Lei 6.001), de alguma forma, ao silenciar<br />

as línguas indígenas, contribui para construir uma identidade branca<br />

para os povos índios, contribuindo para o apagamento de traços que<br />

os identificam não só enquanto indivíduos de povos distintos, mas<br />

como sujeitos de tais. Há aqui uma tentativa de enquadrá-los nos padrões<br />

e valores da sociedade ocidental e cristã. É importante que,<br />

nessa mesma linha de raciocínio, sejam investigados outros documentos,<br />

tais como a Constituição Federal de 1988, a fim de buscar<br />

compreender como essa relação entre o discurso oficial do Estado<br />

produz sentido quando da relação entre línguas, identidades, discursos.<br />

Este estudo da legislação indigenista no Brasil não teve pretensões<br />

de ser exaustivo. Devido a sua dimensão, ela carece de fôlego<br />

e de olhos que ajudem a esmiuçar a legislação enquanto uma prática<br />

do discurso da lógica dominante. O mar é grande e, nesse grande<br />

mar da legislação indigenista e da história discursiva sobre os povos<br />

indígenas brasileiros, fazendo minhas as palavras de Holanda, “sempre<br />

o mar ao mar se assemelha, sendo diverso” (1992, p. 19).<br />

Foi um risco essa leitura. Porém, mesmo assim, valeu o risco.<br />

E sendo ocioso investigar o mar, pegamos só aquilo de que precisávamos.<br />

Ademais, adiante, outros textos irão explorar o que este silenciou.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BAGNO, Marcos. O preconceito linguístico: o que é, como se faz.<br />

São Paulo: Loyola, 1999.<br />

BENVENISTE, Emile. Problemas de linguística geral I. São Paulo:<br />

Nacional/EDUSP, 1976.<br />

COMISÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. Lições de Bahetá. São<br />

Paulo: CPI-SP, 1983.<br />

EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Unesp, 1997.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

939<br />

FERREIRA, Aurélio B. de H. Dicionário Aurélio eletrônico: século<br />

XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lexicon Informática, 1999.<br />

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. São Paulo: Forense<br />

Universitária, 1986.<br />

______. A ordem do discurso. 6. ed. São Paulo: Loyola, 1998.<br />

GANDAVO, Pero de M. Tratado da terra do Brasil e história<br />

da província Santa Cruz. Belo Horizonte Itatiaia; São Paulo:<br />

Edusp, 1980.<br />

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 4. ed. Rio<br />

de Janeiro: DP&A, 2000.<br />

HOLANDA, Lourival. Sob o signo do silêncio. São Paulo: Edusp,<br />

1992. (Criação e Crítica, v. 8)<br />

MICHEL-JONES, Françoise. A noção de pessoa. In. AUGÉ, M. A<br />

construção do mundo. Lisboa: Edições 70, 1978.<br />

MIOTELLO, Valdemir. A questão dos discursos hegemônicos. Primeira<br />

Versão, ano I, n. 19, junho, Porto Velho, 2002.<br />

NOVO código civil brasileiro. Disponível em:<br />

.<br />

Acesso em: 5/5/2002.<br />

OLIVEIRA, Gilvan M. Política linguística na e para além da educação<br />

formal. Estudos linguísticos XXXIV. Campinas: Unicamp, 2005,<br />

p. 87-94. Disponível em:<br />

http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/edicoesanteriores/4publica<br />

-estudos-2005/4publica-estudos-2005.htm. Acesso em: 25/2/2010.<br />

ORGANIZAÇÃO Internacional do Trabalho. Convenção 107. Disponível<br />

em:<br />

.<br />

Acesso em: 5/2/2005.<br />

______. Convenção 169. Disponível em:<br />

.<br />

Acesso em: 25/5/2009.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

940<br />

ORLANDI, Eni. Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo<br />

mundo. São Paulo: Cortez; Campinas: Unicamp, 1990.<br />

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação<br />

do óbvio. Trad. Eni Orlandi et al. 2. ed. Campinas: UNICAMP,<br />

1995.<br />

______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Orlandi.<br />

2. ed. Campinas: Pontes, 1990.<br />

______. O mecanismo do (des)conhecimento ideológico. In: ZIZEK,<br />

S. Um mapa da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto,<br />

1997.<br />

RIBEIRO, Berta. G. O índio na história do Brasil. 8. ed. São Paulo:<br />

Global, 1997.<br />

ROUSSEAU, Jean J. Do contrato social. In: Os pensadores. Vol. 1.<br />

São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 31 a 243.<br />

THOMAS, Georg. Política indigenista dos portugueses no Brasil<br />

1500-1640. Trad. P. e Jesus Hortal. São Paulo: Loyola, 1981.<br />

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes,<br />

1995.<br />

ZIZEK, S. (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto,<br />

1997.


EDIÇÃO E ESTUDO<br />

DOS PROCESSOS ARGUMENTATIVOS<br />

DE DOCUMENTOS MANUSCRITOS<br />

DA CIDADE DO SALVADOR<br />

Gilberto Nazareno Telles Sobral (UNEB)<br />

gsobral@uneb.br<br />

Em 10 de Abril de 1932, inaugura-se o Arquivo Histórico<br />

Municipal de Salvador, com o objetivo de ser guardar toda a documentação<br />

do antigo Senado da Câmara deste o período colonial.<br />

O seu vasto acervo está dividido entre arquivos permanentes,<br />

arquivos de impressos e biblioteca, arquivos audiovisuais (fotografias<br />

e slides de aspectos urbanos de Salvador e de seus habitantes entre<br />

os anos 40 e 90 do século XX, projetos arquitetônicos, filmes e partituras<br />

musicais) e arquivos correntes e intermediários (documentos do<br />

Poder Público municipal).<br />

Compondo a documentação dos arquivos permanentes estão<br />

provisões reais, atas da Câmara, provisões do Governo e Senado,<br />

posturas Municipais, provisões do Senado, registro de Patentes de<br />

Militares, provisões do Governo, cartas de Eclesiásticos, circulares<br />

da Câmara, certidões do Senado, escrituras de compra e venda de escravos,<br />

cartas do Senado à Sua Majestade etc.<br />

Infelizmente as condições de acondicionamento dos documentos<br />

não são condizentes com seu valor. Os encadernados ficam<br />

em prateleiras sem um suporte adequado e os avulsos em caixas de<br />

papelão simples e sem nenhum invólucro protetor. Além disso, a<br />

temperatura e a umidade do ambiente corroboram com a proliferação<br />

de agentes biológicos que favorecem a deterioração do acervo.<br />

Com o intuito de preservar e divulgar esta documentação,<br />

vem sendo desenvolvido um trabalho em duas etapas: inicialmente, é<br />

feito um levantamento e seleção da documentação a ser editada, respeitando<br />

o estado de conservação, que permita o manuseio e a leitura,<br />

e, em seguida, realizado um estudo dos processos argumentativos<br />

presentes, objetivando compreender a mentalidade dos administradores<br />

da Cidade do Salvador no período em questão. É importante res-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

942<br />

saltar que, sendo, estes documentos, fontes primárias, editá-los é<br />

uma etapa fundamental neste estudo, pois materializam fatos importantes<br />

da história do povo soteropolitano.<br />

A pesquisa é concentrada, prioritariamente, nos livros de registro<br />

de Cartas a Sua Majestade, nos séculos XVII e XVIII, mas<br />

também já foram editados requerimentos da população enviados à<br />

Câmara e documentos do livro Identidade de Pretos. No presente<br />

trabalho, serão apresentados alguns resultados das análises possibilitadas<br />

pelas edições de documentos da segunda metade do século<br />

XVIII e, em seguida, a edição de um manuscrito do início da primeira<br />

metade do século em questão, que compõe o atual conjunto de<br />

documentos da pesquisa, acompanhada de breves considerações, a<br />

partir dos pressupostos teóricos da Nova Retórica, na qual argumentar<br />

é “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam<br />

a seu assentimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-<br />

TYTECA, 1996, p. 50).<br />

Sobre a edição dos manuscritos, além da dificuldade de leitura<br />

em virtude do traçado das letras e do estado de conservação dos<br />

manuscritos, outro problema encontrado diz respeito ao grande número<br />

de abreviaturas, que totalizaram 927 ocorrências, sendo 06 por<br />

contração, 301 por suspensão e 620 por letra sobreposta. Destaca-se<br />

também o fato de, num mesmo manuscrito, aparecerem formas abreviativas<br />

distintas para uma mesma palavra, permitindo uma multiplicidade<br />

de significados para uma mesma abreviatura, principalmente<br />

em relação a nomes próprios.<br />

Editados os documentos, procedeu-se ao agrupamento dos<br />

testemunhos para análise. Sendo todos os documentos datados da segunda<br />

metade do século XVIII, foram divididos em dois grupos, tomando-se<br />

como base para o agrupamento o auditório: o primeiro é<br />

composto de cartas dirigidas ao Rei D. José I; o segundo é composto<br />

de cartas dirigidas à Rainha D. Maria I. Todas as cartas têm como<br />

tema questões financeiras, que afetavam diretamente o cotidiano dos<br />

soteropolitanos.<br />

Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 131), “para<br />

cada auditório existe um conjunto de coisas admitidas que têm, todas,<br />

a possibilidade de influenciar-lhe as reações”, o que pode ser<br />

comprovado com a variedade de argumentos empregados pelos ca-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

943<br />

maristas da cidade de Salvador para o estabelecimento do acordo essencial<br />

em todo processo argumentativo e, consequentemente, a adesão<br />

de sua tese.<br />

Todo acordo está fundamentado em duas categorias: a relativa<br />

ao real, que são os fatos, as verdades e as presunções, e a relativa ao<br />

preferível, aquela que diz respeito aos valores, as hierarquias e os lugares<br />

do preferível. Entende-se aqui por real apenas o que um auditório<br />

acredita ou simplesmente entende ser real.<br />

A categoria do real pode ser ilustrada, no corpus aqui analisado,<br />

da seguinte forma: a administração da Cidade do Salvador era<br />

exercida pelo Senado da Câmara (fato), que realizava obras de manutenção<br />

e melhoria da cidade (verdade), visando à qualidade de vida<br />

dos seus habitantes (presunção).<br />

Entre os argumentos baseados na estrutura do real presentes<br />

nos discursos entre a Câmara do Senado de Salvador e a Corte Portuguesa,<br />

no período que abrange a pesquisa, estão: o argumento<br />

pragmático, que é definido por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996,<br />

p. 303) como “aquele que permite apreciar um ato ou um acontecimento<br />

consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis”; o<br />

argumento do desperdício, que consiste em defender a continuidade<br />

de uma atividade para que não sejam perdidos o tempo e o investimento<br />

já empregados. É aquele que incita a continuar a ação começada<br />

até o êxito final; o argumento de autoridade, aquele que utiliza<br />

o juízo de valor de uma pessoa ou de grupo de pessoas como meio de<br />

prova a favor de uma tese.<br />

Há ainda a ocorrência dos argumentos que fundam a estrutura<br />

do real, isto é, aqueles situados no exemplo, no modelo, no antimodelo<br />

etc.<br />

Analisando a ocorrência do argumento de autoridade, observa-se<br />

a presença em 50% do corpus. Este índice demonstra que os<br />

camaristas reconheciam a necessidade, em determinadas situações,<br />

de utilizar juízos de valor de pessoas da confiança de Sua Majestade<br />

como meio de prova da tese defendida.<br />

O argumento de desperdício também foi identificado em 50%<br />

do corpus. A utilização deste argumento pode representar, junto ao<br />

auditório, a valorização do dinheiro da Câmara pelo orador, cuja es-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

944<br />

cassez de recursos, diante das necessidades da Cidade do Salvador,<br />

demandaria a solicitação de verbas que eram destinadas à Coroa.<br />

A argumentação pelo exemplo foi a menos utilizada pelos<br />

membros da Câmara, sendo encontrada em apenas 20% do corpus.<br />

Destaca-se o fato de que as ações, de cuja imitação era sugerida, eram<br />

atribuídas aos Reis que antecederam D. José I.<br />

A argumentação pelo modelo foi utilizada em 80% do corpus,<br />

ocupando o segundo lugar em relação aos demais argumentos. Observa-se<br />

que o modelo, além de indicar a conduta a ser seguida, serve<br />

como garantia para o comportamento adotado. Destaca-se, ainda,<br />

que a grande ocorrência deste argumento também está associada à<br />

diversidade daqueles tomados como modelo – antigos camaristas,<br />

ministros, reis etc.<br />

O emprego da argumentação pelo antimodelo foi verificado<br />

em 50% do corpus. É possível atribuir à grande utilização deste argumento<br />

ao fato de ele, ao sugerir a recusa à conduta de determinadas<br />

pessoas por parte do auditório, o orador valorizava o próprio<br />

comportamento, já que os antimodelos eram pessoas cujas posições<br />

eram contrárias aos interesses do próprio orador, ou seja, os camaristas.<br />

O argumento pragmático ocupa um lugar privilegiado em toda<br />

a argumentação, visto que é identificado em 100% do corpus. Tal<br />

fato justifica-se uma vez que toda argumentação pressupõe um acordo<br />

prévio entre orador e auditório e os camaristas sempre utilizavam<br />

o bem-comum como principal objetivo de tudo que era requerido.<br />

Logo há uma relação direta entre os fatos apresentados e suas possíveis<br />

conseqüências.<br />

Após as considerações feitas acerca do primeiro grupo de documentos<br />

estudados e tendo em vista a divulgação deste acervo manuscrito,<br />

apresenta-se, a seguir, a edição de um documento do início<br />

do século XVIII, cujo lançamento, no livro de registro, está nos fólios<br />

78r, 79r e v, 80r e v. Datado de 27 de agosto de 1701, discorre<br />

sobre as benfeitorias de Dom João de Lancastro, governador geral no<br />

período de 22 de Maio de 1694 a 03 de julho de 1702.


Cópia de huma Carta<br />

que este Senado escreveu asua Mages<br />

tade sobre o acerto ebom governo<br />

do General o S(e)n(ho)r Dom João de<br />

05 Lancastro //_________ // ________ //_____<br />

Senhor= Na Frota do anno passa-<br />

do de mil esente centos fizemos pre-<br />

zente aVossa Magestade onotavel<br />

zelo e Cabal acerto com que Dom<br />

João de Lancastro Governador e<br />

capitão geral deste Estado, etinha<br />

avido neste governo, epor que<br />

05 continuaraõ as suas proezas<br />

he razaõ naõ cessamos com as re-<br />

ferir aVossa Magestade // Aca=<br />

bou com efeito as seis companhi-<br />

as de soldados para o socorro de<br />

10 Mombaça / em que vossa Ma-<br />

gestade ja falavamas na dita con-<br />

ta/ e eram todas maças bem dis-<br />

postas e capazes de qual quer oc-<br />

cazião, emais parece assentaraõ<br />

15 praça obrigados da afebilidade ,<br />

emodo do dito Governador, do que<br />

de qualquer outro motivo, enaõ<br />

ficaraõ alguns sem [...] minera =<br />

cão , porque se despio para as ves<br />

20 tir , e com tudo digo , ecom todo o<br />

necessario as embarcou socegadamen-<br />

te nas duas Naus de que tambem<br />

demos aVossa Magestade parte ,<br />

as quaes fez dar a Vossa em sab-<br />

25 bado vinte sete de Novembro do dito<br />

anno de mil esete centos com belo<br />

tempo , eainda que amais peque-<br />

pequena naõ foi bem succedida de<br />

pois de sahir a barra, naõ esteve<br />

por elle esta desgraça deque só Deos<br />

pode saber a Cauza, elevava amaior tan-<br />

05 ta gente emonicões que bastava só pa-<br />

ra opretendido socorro, e esperamos ,<br />

em Deos lhe naõ fizesse falta a Com-<br />

78 v<br />

79 r<br />

79 v<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

945


panheira// Tendo noticia de que no te-<br />

quiriça temia da Villa de Camamú<br />

10 se tinhaõ achado algumas migalhas<br />

de ouro mandou fazer deligencia pa-<br />

ra que se descubrissem as Minas delle,<br />

enaõ sefez anecessaria por impedi-<br />

mento da chuva echeia os rios<br />

15 e havendo mandado tambem<br />

ao Coronel Antonio da Silva Pi-<br />

mentel a outro semelhante desco-<br />

brimento e o Certaõ naõ chegou<br />

ao Citio determinado por terno-<br />

20 ticia estava já occupado dos<br />

paulistas mas mandou ao Coro=<br />

nel Antonio Vieira de Lima a fazer de<br />

ligencia em outras partes domesmo<br />

Certaõ em que se acharaõ tambem ou-<br />

25 tras migalhas de ouro epoderá [...]<br />

lo e industria do dito Governador<br />

vir a achar a inda grandes mi=<br />

80 r<br />

Minas se estiver aqui mais na-<br />

anos em utilidade da Fazenda Re-<br />

al de Vossa Mag(estad)e e desta Capitania e naõ será<br />

muito que se acrescente aquella<br />

05 por intervençaõ sua quando em<br />

todos estes annos tem feito haver<br />

tam grandes econhecidos argumen-<br />

tos nos contractos, efez que os dos<br />

dizimos se rematasse este anno<br />

10 em cento ecincoenta mil cruza-<br />

dos, esperando-se naõ passasse<br />

de cem, assim porque rematan-<br />

do-se nesta quantia o anno pas-<br />

sado perdeu muito quem atomou,<br />

15 como por senaõ esperar ainda<br />

cabal safra de Assucar // Por<br />

mizericordia de Deos edeligen-<br />

cias suas fica esta capitania co<br />

notavel abundancia defarinha<br />

20 emais mantimentos ecom todo<br />

o cuidado e inteireza adminis=<br />

tra justiça a todos fazendo que<br />

vivamos bem procedidos e em paz<br />

e se castiguem os mal feitores, esse<br />

25 evitem os delictos eaté os maos cos-<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

946


tumes de trajes desonestos, e dan-<br />

ças lascivas fez evitar // No cuida-<br />

No cuidado da conduçaõ edespacho<br />

do Tabaco eaviamento desta Frota<br />

foi incensante achando-se prezente<br />

atudo, efazendo só aquilo para que<br />

05 muitos naõ bastariaõ, mas sem<br />

embargo disso ainda que naõ tivera<br />

ordens deVossa Magestade para se<br />

deter adita Frota / se he que asiti-<br />

nha/ naõ podera partir mais se-<br />

10 do pelo grande numero de folhas<br />

de Tabaco, que houve, edescuidado dos<br />

carregadores. Finalmente em tu-<br />

do o que he requeremos por serviço<br />

de Vossa Magestade ebem deste Povo<br />

15 nos ampara edifere com grande a-<br />

amor epromptidaõ e assim quize-<br />

ramos, que fosse aqui mais dila-<br />

tada asua assistencia porem qu-<br />

ando onaõ mereçamos por que<br />

20 as suas prendas etalento acha-<br />

maõ para maiores lugares fi-<br />

cará satisfeito anosso desejo, econ-<br />

solada anossa saudade com o<br />

virmos com maiores contenta-<br />

25 mentos epremios muito iguaes<br />

aseu merecimento, evontade, pa-<br />

ra que sirvaõ de estimulo, aque<br />

os mais oimitem todos lovem a<br />

Vossa Magestade por justo, eliberal<br />

remunerador dos que servem A Pe-<br />

ssoa de Vossa Magestade nos Guarde<br />

05 Deos por muitos annos Bahia<br />

e Camara a os vinte esete de A=<br />

gosto de mil sete centos ehum// e<br />

Eu Pedro Dias Pereira que sirvo<br />

de Escrivaõ da Camara o subscre<br />

10 vi // Andre Leitaõ de Mello// Joaõ de<br />

Barros Machado // Pedro Barboza<br />

Leal// Gonçalo Soares da Franca //<br />

Joaõ Gonsalves Pinheiro //___________//<br />

80 v<br />

81 r<br />

Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

947


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

948<br />

O manuscrito compõe um bloco de quatro cartas do livro de<br />

registro nº 28.8, que foram encaminhadas a Portugal acerca de um<br />

mesmo tema. A edição destes documentos permitiu, principalmente,<br />

revelar um fato não muito comum na colônia: a defesa de um governador<br />

geral entre os administradores da cidade do Salvador, uma vez<br />

que era uma relação tradicionalmente conflituosa.<br />

Cada processo argumentativo demanda atitudes específicas do<br />

orador. Como já dito, a utilização da argumentação pelo exemplo, no<br />

conjunto de documentos analisados, não era freqüente, tendo em vista<br />

que a conduta e ações daqueles que interferiam na administração<br />

local eram sempre colocadas em dúvida. No entanto a argumentação<br />

pelo exemplo, na questão mencionada, foi fundamental por aproximar<br />

ações do governador geral ao comportamento dos camaristas, o<br />

que confirma que a consciência do lugar social de onde se fala é essencial<br />

para validar uma determinada tese.<br />

O estudo, portanto, tem contribuído para a compreensão de<br />

um importante momento da história do Brasil, em particular, das relações<br />

sociais na Cidade do Salvador.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil colônia: um guia para<br />

leitura de documentos manuscritos. Recife: EDUFPE; Fundação<br />

Joaquim Nabuco; Massangana, 1994.<br />

CÂMARA MUNICIPAL DE SALVADOR. Cartas do Senado a Sua<br />

Magestade. Salvador: Câmara Municipal; Fundação Gregório de<br />

Matos, 1994/1996. Documentos Históricos do Arquivo Municipal.<br />

FÁVERO, Leonor Lopes. As concepções linguísticas no século XVIII:<br />

a gramática portuguesa. Campinas: UNICAMP, 1996.<br />

FLEXOR, Maria Helena Occhi. Abreviaturas: manuscritos dos séculos<br />

XVI ao XIX. São Paulo: UNESP/Secretaria da Cultura/Divisão<br />

de Arquivo do Estado, 1991.<br />

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de<br />

argumentação: a nova retórica. Trad. Maria Ermantina Galvão G.<br />

Pereira. São Paulo: M. Fontes, 1996.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

949<br />

RUY, Affonso. História da câmara municipal do Salvador. Salvador:<br />

Câmara Municipal, 1996.<br />

SOBRAL, Gilberto Nazareno Telles Sobral. A relação colôniametrópole<br />

no século XVIII: edição semidiplomática das cartas do senado<br />

e estudo da argumentação, 2004. Tese (Doutorado em Letras) –<br />

Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador.


ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA ESCOLA BÁSICA<br />

GÊNEROS E SEQUÊNCIAS TEXTUAIS<br />

1. Introdução<br />

Vania L. R. Dutra (UERJ e UFF)<br />

vaniardutra@uol.com.br<br />

Gustavo Listo (UFF)<br />

Hoje, grande parte dos alunos que sai da escola apresenta<br />

muitos problemas em relação à leitura e à escrita. Resultados de avaliações<br />

oficiais têm comprovado essa afirmação: o Brasil ocupa, em<br />

relação mesmo a outros países da América Latina, uma das últimas<br />

posições no que se refere ao nível de conhecimento esperado de um<br />

aluno que conclui seus estudos no Ensino Fundamental e Médio. Esse<br />

quadro, que tantos prejuízos traz para toda a sociedade, não é absolutamente<br />

novo, conforme pode parecer. Ele vem de longa data, e,<br />

pelo que se percebe, a tendência é que se agrave cada vez mais, caso<br />

a Educação não venha a ser tratada como prioridade pelas autoridades<br />

de nosso país.<br />

Apesar de todo o esforço dos professores, o resultado do trabalho<br />

desenvolvido nas escolas ainda está aquém do que se espera,<br />

tendo em vista o objetivo de formar leitores e produtores proficientes<br />

de textos. Certamente, uma das causas desse fracasso escolar 1 foi o<br />

entendimento equivocado, por parte dos professores, de uma forma<br />

geral, de que estudar a língua era estudar gramática. Essa era a visão<br />

acerca do trabalho com a língua na escola, uma visão restrita e reducionista.<br />

Hoje, entretanto, a perspectiva de trabalho é outra.<br />

Com o avanço dos estudos linguísticos e, consequentemente,<br />

entre nós, com o advento dos PCN, o foco do trabalho foi modificado.<br />

O foco, agora, passa a ser o gênero, embora a filosofia de traba-<br />

1 Essa é uma causa interna ao processo de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa. Há<br />

muitas outras que poderiam aqui ser consideradas. A mais grave, entretanto, e a mais difícil de<br />

sanar – porque não está nas mãos dos educadores – diz respeito às políticas educacionais por<br />

que passamos ao longo dos anos, com uma progressiva e perversa desvalorização do Professor.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

951<br />

lho permaneça a mesma: continua-se a trabalhar metalinguisticamente.<br />

Só que, agora, estuda-se sobre o gênero, sobre o texto – sem se<br />

deixar de estudar, também, sobre a gramática. Seu uso – do gênero,<br />

do texto e da gramática –, entretanto, permanece à margem das aulas<br />

de língua.<br />

O gênero passou, então, a ocupar o centro dos trabalhos nas<br />

aulas de Língua Portuguesa, esquecendo-se o professor de que não é<br />

o gênero que produz a língua, mas a língua que produz o gênero.<br />

Nessa perspectiva, é nosso objetivo maior trazer de volta a<br />

língua para o lugar central de objeto de análise nas aulas de Língua<br />

Portuguesa. Para tanto, é preciso considerar que os gêneros são inúmeros<br />

(MARCUSCHI, 2002) e que nem todos precisam ser objeto<br />

de análise na escola. É preciso que se possam distinguir, com segurança,<br />

os que devem lá estar, e quais deles devem ser objeto de leitura<br />

ou, conjuntamente, de leitura e de escrita. É preciso considerar,<br />

também, que os gêneros podem ser agrupados, numa perspectiva didática,<br />

com base na sequência textual (ADAM, 1992) que neles predomina<br />

– o que estabelece, para aquele agrupamento de gêneros, aspectos<br />

gramaticais a serem observados como característicos daquela<br />

sequência textual específica.<br />

Essa perspectiva de trabalho com os textos possibilita uma<br />

organização diferente dos conteúdos programáticos da Língua Portuguesa<br />

e, especificamente, de gramática, que girarão em torno das sequências<br />

textuais e não dos gêneros propriamente ditos. Isso permitirá<br />

ao aluno perceber a aplicabilidade dos conhecimentos gramaticais<br />

adquiridos aos textos que lê e aos textos que escreve. Além disso, o<br />

aluno poderá perceber a relação íntima existente entre aspectos linguísticos<br />

e sequências textuais, transportando, automaticamente, os<br />

conhecimentos linguísticos adquiridos de um gênero para outro, desde<br />

que eles apresentem, em sua base linguístico-textual, a mesma sequência.<br />

Os conceitos de sequência textual e de gênero textual assim<br />

considerados podem promover uma mudança relevante no trabalho<br />

com a leitura e com a escrita na escola, e, consequentemente, – acreditamos<br />

–, uma mudança no quadro desalentador que temos hoje: os<br />

alunos saem da escola, depois de, no mínimo, doze anos de escolari-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

952<br />

zação, sem o domínio básico da leitura e da escrita, habilidades essenciais<br />

para a vida em sociedade.<br />

2. Gêneros, tipos e sequências textuais<br />

Sabe-se que a interação verbal realiza-se por meio de enunciados<br />

produzidos nas diferentes esferas da atividade humana socialmente<br />

organizada. Sabe-se, também, que esses enunciados são tão<br />

heterogêneos e complexos quanto o são os diversos campos dessas<br />

atividades. A esses tipos relativamente estáveis de enunciados produzidos<br />

em cada esfera de troca verbal, no interior das atividades<br />

humanas, Bakhtin (2003) chama de gêneros do discurso. Para o autor,<br />

falamos por meio de gêneros dentro de determinada esfera da atividade<br />

humana. Não atualizamos simplesmente um código linguístico,<br />

mas moldamos a nossa fala aos parâmetros de um gênero no interior<br />

de uma atividade. Sendo assim, não se pode pensar o gênero<br />

em si mesmo ou em seus aspectos formais somente. Suas funções<br />

socioverbais e ideológicas são imprescindíveis para sua constituição.<br />

Considerando-se que todos os textos – orais e escritos – materializam-se<br />

sempre na forma de um gênero, isto é, considerando-se<br />

que possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção<br />

do todo (op.cit., p. 282), é fundamental que se busque conhecer o seu<br />

funcionamento visando a uma maior eficácia em sua produção e sua<br />

compreensão.<br />

Sendo um fenômeno que se localiza entre a língua, o discurso<br />

e as estruturas sociais (MEURER, 2000), o gênero passa a ser uma<br />

noção essencial para a definição da própria linguagem. Assim, ele<br />

possibilita diálogos entre estudiosos de diferentes áreas e traz elementos<br />

teóricos que provocam uma revisão de muitos conceitos até<br />

então estabelecidos – a noção de tipo de texto, por exemplo.<br />

A tradição do ensino da redação na escola classificava os textos,<br />

de uma forma geral, em três “tipos”: descrição, narração e dissertação.<br />

Os professores propunham um tema e acrescentavam, à<br />

proposta de trabalho, o “tipo” de texto que deveria ser construído:<br />

descritivo, narrativo ou dissertativo (DUTRA, 2007).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

953<br />

Para Adam (1992), entretanto, os gêneros textuais são constituídos<br />

por sequências textuais – também chamadas tipos textuais<br />

(MARCUSCHI, 2002), entre outros. Essas sequências são “esquemas”<br />

linguísticos básicos cuja função, conforme Bronckart (1999), é<br />

organizar linearmente seu conteúdo temático, exercendo papel fundamental<br />

na organização infraestrutural mais geral dos textos.<br />

Em Adam, os gêneros são considerados como componentes<br />

da interação social e as sequências, como organizações linguísticoformais<br />

em interação no interior de um gênero.<br />

Desse modo, os gêneros textuais são fenômenos históricos,<br />

profundamente vinculados à vida cultural e social; são manifestações<br />

linguísticas concretas, constituindo textos empiricamente realizados<br />

que cumprem funções diversas em diferentes situações comunicativas.<br />

Por sua vez, as sequências são construtos teóricos semiotizados<br />

por meio de propriedades linguísticas específicas que planificam os<br />

diferentes gêneros. Enquanto os gêneros são inúmeros, as sequências<br />

são relativamente poucas: narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa<br />

e dialogal (ADAM, op.cit.) 2 .<br />

Marcuschi – com base no que propõe Werlich (apud MAR-<br />

CUSCHI, 2002) –, por sua vez, apresenta cinco tipos de textos: ele<br />

não considera a sequência dialogal, chama de tipo expositivo 3 a sequência<br />

explicativa de Adam e acrescenta o tipo injuntivo 4 .<br />

É bastante comum que, no mesmo gênero textual, se realizem<br />

duas ou mais sequências, havendo sempre a predominância de uma<br />

sobre as demais. Um texto é, em geral, heterogêneo em relação às<br />

sequências textuais, mas caracteriza-se como um tipo de texto descritivo,<br />

narrativo, argumentativo etc. de acordo com a sequência que<br />

nele prevalecer. A sequência textual é caracterizada por um conjunto<br />

2 Embora sendo poucas, há divergências entre os tipos de sequências apresentadas pelos<br />

autores de uma forma geral. A questão, entretanto, não é meramente terminológica, mas de<br />

concepção teórica.<br />

3 O expositivo é de natureza analítica, racional. O expositor analisa um tema objetiva e<br />

logicamente, expondo suas características. Ele se afasta do argumentativo, uma vez que neste<br />

o sujeito falante está comprometido com uma tese, buscando persuadir seu interlocutor.<br />

4 O tipo injuntivo associa-se à presença de verbos no imperativo e seus equivalentes<br />

semânticos, característicos de textos instrucionais.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

954<br />

de traços linguísticos que formam, de fato, um “segmento” de texto,<br />

não um texto – a não ser que essa sequência componha todo o texto.<br />

Assim, podem fazer parte da constituição de um mesmo texto sequências<br />

textuais diferentes, mas relacionadas entre si.<br />

Diante do quadro teórico que apresentamos, para uma maior<br />

objetividade e clareza, e para escapar à confusão terminológica, esclarecemos<br />

quais são os termos com que trabalhamos para nomear os<br />

principais conceitos discutidos nesta seção – conceitos que, propomos,<br />

devem nortear o trabalho do professor na escola. Nossa escolha<br />

se dá com base nos objetivos do trabalho que, acreditamos, devam<br />

ser os das aulas de Língua Portuguesa: análise centrada principalmente<br />

na materialidade textual, embora considerando também a situação<br />

de produção dos textos e seu aspecto sócio-histórico. Optamos,<br />

então, pelas expressões gênero textual (texto empiricamente realizado),<br />

tipo de texto (de acordo com a sequência nele predominante) e<br />

sequência textual (segmento de texto específico), por fazerem mais<br />

diretamente referência à materialidade textual.<br />

Os gêneros são considerados como componentes da interação<br />

social e as sequências, como organizações linguístico-formais em interação<br />

no interior de um gênero (ADAM, 1992). As sequências textuais<br />

se fundamentam em critérios intratextuais – linguísticos e formais.<br />

Os gêneros, por sua vez, em critérios extratextuais – sóciocomunicativos<br />

e discursivos.<br />

No nível da oração, a relação que se constrói entre as partes é<br />

estrutural: é a organização de partes para formar um todo. É o caso<br />

da relação entre, por exemplo, substantivo e artigo para formar o sintagma<br />

nominal sujeito; da relação entre sujeito e predicado para formar<br />

o sintagma oracional. Numa análise gramatical de base funcional<br />

(HALLIDAY, 2002), isso significa uma configuração orgânica<br />

de elementos, em que cada um desempenha uma função específica<br />

em relação ao todo de que é parte integrante – é o sistema linguístico<br />

organizando-se em estruturas gramaticais.<br />

Porém, como vêm apontando os estudos sobre gêneros textuais<br />

desenvolvidos pela Academia, existe estrutura para além do período,<br />

da frase. O texto também tem uma organização interna, mas não<br />

baseada na gramática. Sua organização é semântica e muito mais “livre”<br />

que a organização das unidades gramaticais.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

955<br />

À semelhança do que ocorre com a sílaba e com a oração, por<br />

exemplo, que têm, respectivamente, uma estrutura fonológica e uma<br />

estrutura gramatical previsíveis, o texto tem uma estrutura semântica,<br />

às vezes surpreendente. A ideia de estrutura aqui é a mesma – construto<br />

teórico criado a partir de elementos menores. A diferença está<br />

no modo como essa estrutura é “codificada”, ou seja, no modo como<br />

ela toma corpo. Um texto não é um somatório de frases; ele é constituído<br />

de elementos específicos, que variam de um gênero para outro,<br />

de uma sequência textual para outra – cada um deles com seus elementos<br />

e configurações próprios, cujos constituintes mínimos são as<br />

frases – períodos simples e compostos.<br />

Para Halliday & Hasan (1977, p. 339), para um texto ser coerente,<br />

é preciso que ele seja coeso 5 e que atenda às exigências do gênero<br />

a que pertence:<br />

Para um texto ser coerente, ele deve ser coeso; mas ele precisa ir<br />

além. Ele deve empregar os recursos coesivos da maneira que requer o<br />

gênero de que é um exemplar; deve ser semanticamente apropriado, com<br />

realizações léxico-gramaticais a atingir (i.e., precisa fazer sentido); e<br />

deve ter estrutura. (tradução livre) 6<br />

Os textos socialmente considerados como representantes de<br />

determinado gênero têm características semelhantes, atribuídas a restrições<br />

genéricas: os gêneros têm identidade e nos condicionam a escolhas<br />

que não podem ser livres nem aleatórias. Segundo Bakhtin<br />

(2003), eles limitam nossa ação na fala e na escrita, organizando-a,<br />

assim como a gramática organiza as formas linguísticas.<br />

Já as sequências textuais são organizações linguístico-formais<br />

que entram na configuração de um gênero textual para realizar objetivos<br />

discursivos por ele suscitados – como narrar, descrever, argumentar<br />

etc. Essas sequências atendem a critérios basicamente linguísticos<br />

e são descritas por meio dos elementos linguísticos e estruturas<br />

gramaticais característicos de sua constituição formal.<br />

5 Estudos mais recentes esclarecem que a coesão é um dos fatores que concorrem para a<br />

coerência, podendo haver sequências sem coesão e mesmo assim coerentes, e vice-versa.<br />

6 For a text to be coherent, it must be cohesive; but it must be more besides. It must deploy the<br />

resources of cohesion in ways that are motivated by the register of which it is an instance; it<br />

must be semantically appropriate, with lexicogrammatical realizations to match (i.e. it must<br />

make sense); and it must have structure.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

956<br />

Um gênero pode ter – e geralmente tem –, em sua constituição,<br />

mais de uma sequência textual. E, quando isso acontece, aquela<br />

que predomina é, normalmente, a que caracteriza o tipo textual a que<br />

aquele exemplar do gênero pertence.<br />

2.1. A sequência narrativa<br />

Adam (op.cit.), inspirado principalmente em Labov & Waletzky<br />

(1967), caracteriza a sequência narrativa como composta por<br />

seis macroproposições: situação inicial, complicação, (re)ações, resolução,<br />

situação final e moral. A situação inicial e a situação final<br />

representam os momentos de equilíbrio da ação e têm uma base mais<br />

descritiva. A complicação, as (re)ações e a resolução é que caracterizam<br />

o esquema narrativo em si: um fato ocorre, quebrando o equilíbrio<br />

inicial e desencadeando (re)ações; essas (re)ações forçam uma<br />

resolução, que cria uma nova situação de equilíbrio. A moral –<br />

quando explicitamente apresentada, como no caso de grande parte<br />

das fábulas – é uma reflexão acerca dos fatos narrados e é de responsabilidade<br />

do narrador.<br />

Essa ordem de apresentação das macroproposições da narrativa<br />

é normalmente fixa, obedecendo à linearidade temporal 7 . Por isso<br />

essa sequência é considerada a mais apropriada para, a partir dela,<br />

por exemplo, se apresentar aos alunos a relação entre os tempos pretérito<br />

perfeito, pretérito imperfeito e pretérito mais-que-perfeito do<br />

indicativo, discutindo seu emprego e suas funções no texto. Além<br />

desse, há outros aspectos linguísticos que são característicos da constituição<br />

da sequência narrativa, assim como há outros que são mais<br />

determinantes na constituição de cada uma das demais sequências.<br />

3. Desdobramentos didáticos<br />

Para demonstrar a viabilidade da proposta aqui desenvolvida,<br />

descrevemos, na sequência, a organização do trabalho que propomos<br />

para o gênero conto – que, claro, pode ser reduplicada com outros<br />

7 Referimo-nos, aqui, à estruturação das narrativas lineares tradicionais.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

957<br />

gêneros. Vale dizer, também, que vimos trabalhando nessa linha e<br />

que os resultados têm-se apresentado encorajadores.<br />

3.1. O gênero conto – uma análise<br />

O conto caracteriza-se por ser uma narrativa em prosa de fatos<br />

fictícios. Costuma apresentar uma ação central ou núcleo narrativo,<br />

e outro(s) núcleo(s) narrativo(s) secundário(s) diferente(s) – dependendo<br />

de sua extensão –, mas que mantêm, entre si, uma relação<br />

causal.<br />

Os núcleos narrativos central e secundários colocam em ação<br />

personagens que realizam suas “cenas” em um determinado espaço e<br />

um determinado tempo. O conto, ao apresentar as características dessas<br />

personagens e caracterizar o espaço e o tempo da narrativa, recorre<br />

a recursos descritivos.<br />

Como já fora salientado aqui, os gêneros normalmente são<br />

constituídos por sequências textuais diferentes, embora uma predomine<br />

sobre as demais. Nesse caso, a sequência descritiva é comum<br />

no início do texto, quando são apresentadas as personagens, o tempo<br />

e o espaço. E pode retornar à cena a qualquer momento em que se fizer<br />

necessária a apresentação de um elemento novo. As sequências<br />

argumentativa e dialogal também são frequentes nesse gênero. Entretanto,<br />

prevalece, no conto, a sequência narrativa. Por isso sua caracterização<br />

como um gênero narrativo.<br />

3.2. Aspectos linguístico-gramaticais característicos da<br />

sequência narrativa<br />

Um recurso frequente de que lança mão o escritor do conto é<br />

a apresentação do diálogo que se dá entre as personagens – o chamado<br />

discurso direto, que traz à baila questões de pontuação, uso e função<br />

do vocativo, emprego de letra maiúscula, por exemplo, a depender<br />

do nível dos alunos com que se esteja trabalhando.<br />

A coerência temporal é um aspecto a ser observado com muito<br />

cuidado, pois a manutenção da linha temporal é, normalmente, um<br />

ponto frágil na produção de texto dos alunos. Os tempos e modos


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

958<br />

verbais desempenham um papel importante na leitura (compreensão)<br />

e na escrita (produção) dos textos de uma forma geral, mas, principalmente,<br />

dos gêneros constituídos basicamente por sequências narrativas.<br />

Assim, é fundamental discutir com eles, observando o texto<br />

que se está lendo, se o autor mantém a linearidade temporal da narrativa<br />

– quais os elementos gramaticais que ele utiliza para isso e de<br />

que forma – ou se opta por romper essa linearidade voltando ao passado<br />

ou projetando acontecimentos no futuro. É esse o momento de<br />

investir na análise dos tempos e modos, e na forma como eles se relacionam<br />

uns com os outros.<br />

O emprego dos artigos definido e indefinido também merece<br />

atenção especial aqui. Conforme Kaufman (1995, p. 22), a apresentação<br />

das personagens ajusta-se à estratégia da definibilidade. As<br />

personagens são apresentadas, pela primeira vez no texto, por meio<br />

de um sintagma nominal introduzido por um artigo indefinido (ou<br />

outro elemento a ele equivalente). Quando essa personagem é novamente<br />

referida no texto, o artigo indefinido é substituído pelo definido<br />

ou por um nome, pronome etc.<br />

As relações semânticas mais frequentes que se estabelecem<br />

entre as diferentes partes do texto – orações, frases, parágrafos – são<br />

as de tempo e as de causa. É fundamental, então, que se investiguem,<br />

com os alunos, os conectivos que explicitam tais relações nos contos<br />

que estão lendo. Esses conectivos podem se afigurar como conjunções,<br />

locuções prepositivas, locuções adverbiais, marcadores discursivos,<br />

entre outros. Isso será de grande valia para a ampliação do repertório<br />

de que lançam mão para construir tais relações nos textos<br />

que escrevem.<br />

Por último – mas não esgotando todas as possibilidades de<br />

exploração dos aspectos linguísticos da sequência narrativa –, é preciso<br />

observar como o autor dos textos em análise constrói o ponto de<br />

vista da narrativa. O narrador é uma “entidade” criada pelo autor do<br />

texto para narrar os fatos que constituem o enredo do texto lido. É a<br />

voz que guiará o leitor na construção do sentido do texto. Essa voz<br />

pode-se apresentar em primeira pessoa ou em terceira pessoa, e faz<br />

parte da coerência do texto a manutenção do ponto de vista adotado<br />

desde o início da narrativa. É uma oportunidade para mostrar aos alunos<br />

a função e o uso textual dos pronomes pessoais e demonstrati-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

959<br />

vos, para que eles possam usá-los com mais propriedade em seus<br />

próprios textos.<br />

3.3. Análise e reflexão linguística<br />

A reflexão sobre os aspectos linguísticos enumerados no item<br />

anterior, e sua exploração nos textos lidos em sala, suscita a necessidade<br />

de uma sistematização mais detalhada de cada um deles. Essa<br />

sistematização se dá, necessariamente, fora do texto. Decide-se, então,<br />

que tema linguístico-gramatical será tratado a partir de cada um<br />

dos textos a serem lidos, planejando-se uma rotina de trabalho com<br />

alguns contos.<br />

Essa sistematização não dispensa a apresentação dos conceitos<br />

e das nomenclaturas dos itens estudados, mas, principalmente,<br />

pressupõe a apresentação de seus usos e suas funções. Na sequência,<br />

exercícios de uso são propostos aos alunos para que eles tenham a<br />

oportunidade de automatizar o emprego daqueles elementos linguísticos<br />

em sua prática linguística tanto oral quanto escrita.<br />

3.4. Produção de textos<br />

Após o trabalho assim desenvolvido com cada um dos contos,<br />

uma proposta de escrita de texto é apresentada. Solicita-se aos alunos<br />

que escrevam um conto, com base em uma temática específica, correlata<br />

ao tema do conto lido, mas não necessariamente a mesma.<br />

Essa prática propõe que os alunos redijam para colocar em<br />

prática, efetivamente, o que se discutiu, tanto em termos do gênero<br />

conto – com suas características formais de superestrutura e sua função<br />

social –, como em termos das estruturas linguísticas dele características,<br />

que são a base para a sua construção.<br />

O que se tem afigurado como resultado dessa prática tem nos<br />

estimulado a continuar investindo nela. Os textos produzidos pelos<br />

alunos têm apresentado um nível cada vez melhor em relação a sua<br />

estruturação linguística. São textos coerentes e mais próximos de<br />

uma escrita proficiente.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

960<br />

Percebe-se, também, uma modificação na disposição do aluno<br />

para a escrita de textos na escola. A maioria dos alunos escreve e até<br />

demonstra prazer em fazê-lo. Isso se deve, talvez, ao fato de se explorar<br />

o gênero de forma a que ele não seja uma incógnita para o aluno.<br />

O aluno-escritor já sabe o que é um conto, como ele se estrutura,<br />

qual a sua função social e quais os elementos linguísticos de que<br />

precisará lançar mão para que ele seja “bem escrito”, cumprindo seu<br />

objetivo comunicativo.<br />

4. Considerações finais<br />

É muito importante que o aluno perceba a relação entre o gênero<br />

que está sendo estudado e os aspectos gramaticais abordados,<br />

que devem ser trabalhados de forma associada, por meio da sequência<br />

textual nele predominante. Assim ele reconhecerá esses elementos<br />

linguísticos e identificará sua função nos textos que lê, e os usará<br />

com adequação nos textos que escreve, a serviço da concretização de<br />

sua intenção comunicativa.<br />

Estudar gramática a partir do texto é essencial para que o aluno<br />

não fique com a impressão equivocada de que texto é uma coisa e<br />

gramática é outra, e que um nada tem a ver com o outro. Não há texto<br />

sem gramática. Essa verdade torna-se ainda mais concreta para o<br />

aluno quando ele percebe que o conhecimento gramatical adquirido e<br />

reconhecido nos textos que lê é aplicado, com mais segurança e proveito,<br />

nos textos que escreve. Para isso, a sistematização das estruturas<br />

gramaticais e os exercícios de uso dessas mesmas estruturas, que<br />

se fazem fora do texto, são muito relevantes – e, diríamos, até essenciais<br />

–, principalmente para os alunos das classes mais populares,<br />

que podem não ter – e normalmente não têm – tais estruturas como<br />

características da variedade de língua que usam em seu dia a dia.<br />

No que diz respeito à avaliação da aprendizagem, é na produção<br />

de textos que o professor poderá de fato verificar se os conteúdos<br />

trabalhados foram significativos para os alunos, se eles se apropriaram<br />

desse conteúdo, aplicando-o adequada e estrategicamente nos<br />

textos que produzem a partir de então.<br />

Ao jogar o foco do trabalho gramatical sobre as sequências<br />

textuais, ou seja, ao se eleger uma sequência textual como unidade


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

961<br />

de trabalho, elegem-se, também, os conteúdos gramaticais que serão<br />

trabalhados na mesma unidade. Abre-se, assim, o leque dos gêneros<br />

textuais que poderão fazer parte das leituras eleitas para o mesmo período<br />

e para as propostas de escrita.<br />

As estruturas gramaticais emanadas da sequência textual narrativa,<br />

objeto de análise nas “aulas de gramática”, estarão presentes<br />

em todos os gêneros em cuja constituição tal sequência predominar.<br />

Portanto, o professor poderá transitar entre contos, crônicas narrativas,<br />

fábulas, romances, notícias de jornal, relatos históricos, entre<br />

outros gêneros considerados narrativos, pois o conhecimento adquirido<br />

pelos alunos a partir do conto será naturalmente transposto para<br />

a leitura e a produção dos demais gêneros, graças à semelhança estrutural<br />

que há entre eles – semelhança essa que o professor fará com<br />

que os alunos percebam e usem a seu favor na leitura e na escrita.<br />

Para terminar, vale dizer, ainda, que não é nossa intenção<br />

propor outra terminologia – que os conceitos de gênero, tipo e sequência<br />

textuais aqui tratados podem sugerir –, a ser levada à sala de<br />

aula para se juntar à terminologia gramatical já existente proposta<br />

pela NGB. Quem precisa dominar essa teoria e essa nomenclatura,<br />

além da teoria e da nomenclatura gramatical, é o professor. Conhecendo<br />

tudo isso é que o professor poderá dimensionar o verdadeiro<br />

lugar da Gramática nas aulas de Língua Portuguesa e produzir material<br />

didático adequado para trabalhar o uso da língua, principalmente<br />

na modalidade escrita e na variedade padrão, que é o que a sociedade<br />

espera que a escola faça.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ADAM, J. M. Les textes: types et prototypes. Paris: Nathan, 1992.<br />

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ___. Estética da criação<br />

verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />

BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por<br />

um interacionismo sociodiscursivo. São Paulo: Educ, 1999.<br />

DUTRA, Vania L. R. Relações conjuntivas causais no texto<br />

argumentativo. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UERJ, 2007.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

962<br />

HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar. 2.<br />

ed. London: Edward Arnold, 2002.<br />

HALLIDAY, M. A. K & HASAN, R. Cohesion in English. London:<br />

Longman, 1977.<br />

KAUFMAN, A. M. & RODRÍGUEZ, M. H. Escola, leitura e<br />

produção de textos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.<br />

LABOV, W. & WALWTSKY, J. Narrative analysis: oral versions of<br />

personal narratives. In: HELM, J. (Org.). Essays on the verbal and<br />

visual arts. Seattle: Washington University Press, 1967.<br />

MARCUSCHI, L. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. In:<br />

DIONISIO, A. e outros (Org.). Gêneros textuais e ensino. Rio de<br />

Janeiro: Lucerna, 2002.<br />

MEURER, J. L. O conhecimento de gêneros textuais e a formação<br />

do profissional da linguagem. In: FORTKAMP. M. B.; TOMITCH,<br />

L. M. B. (Orgs.). Aspectos da linguística aplicada. Florianópolis:<br />

Insular. 2000.


ENTRE INFORMAÇÃO E FICÇÃO,<br />

A ESCRITURA LITERÁRIA<br />

E O ESPAÇO DE DISCURSIVIDADE DOS FOLHETINS<br />

NOS PERIÓDICOS DO SÉCULO XIX<br />

1. Introdução<br />

Vera Maria Aragão de Souza Sanchez (UNIRIO)<br />

varagao@superig.com.br<br />

É senso comum o pressuposto de que o jornalista deva pautar<br />

seu relato pela exatidão, registrando fatos ou descrevendo cenas de<br />

modo imparcial, neutro, abstendo-se de qualquer julgamento de valor.<br />

O jornalismo informativo define a si próprio como isento e parte<br />

da credibilidade almejada depende do modo de fazer crer que se interpõe<br />

entre os fatos e o leitor de forma a narrar, noticiar, descrever,<br />

dentro da concepção de que o exposto é o “real”.<br />

Por considerar que nenhum discurso é neutro, parece impossível<br />

não levar em conta que a escrita jornalística, informativa ou expositiva,<br />

é construída a partir do lugar social ocupado pelo sujeito<br />

que a produz – na ilusão de autoria de seu próprio texto –, assim<br />

como pelas características do periódico onde é publicada e sua forma<br />

de distribuição. Do mesmo modo, a relação entre o leitor e o mundo<br />

irá determinar sua leitura do texto e a consequente formação de sentidos,<br />

igualmente subjugada à memória, à ideologia, à historicidade<br />

que os constituem como sujeito.<br />

Há um leitor virtual inscrito no texto. Um leitor que é constituído no<br />

próprio ato da escrita. Em termos do que denominamos "formações imaginárias"<br />

em análise de discurso, trata-se aqui do leitor imaginário, aquele<br />

que o autor imagina (destina) para seu texto e para quem ele se dirige.<br />

Tanto pode ser um seu "cúmplice" quanto um seu "adversário" (OR-<br />

LANDI, 1988, p. 9).<br />

Estabelecidas as relações entre o leitor “real” e o leitor imaginado<br />

– residente no texto e nele constituído a priori –, a relação entre<br />

os interlocutores e as condições de leitura passam a ser entendidas<br />

como componentes do texto. A interpretação faz-se presente no<br />

autor/leitor e no analista, todos sujeitos-intérpretes, frutos da histori-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

964<br />

cidade que os afeta e, embora metodologicamente com atuações diferenciadas,<br />

na prática, desencadeiam processos inter-relacionados.<br />

O interesse de estudar os periódicos oitocentistas vem exatamente<br />

por vislumbrarmos seu valor documental revelador dos processos<br />

sociais, dos conflitos, das paixões e dos interesses que, conscientemente<br />

ou não, os revestem de uma função icônica. Este trabalho<br />

é um recorte da tese que tem como corpus analítico, discursos<br />

que narraram a cena carioca do século XIX, pesquisados através de<br />

crônicas/críticas e anúncios de espetáculos teatrais. Neste trabalho<br />

iremos refletir sobre a escritura literária que pautou os discursos dos<br />

periódicos da época. Para tal, iniciamos com a análise de algumas<br />

importantes publicações quanto à diagramação, à tipologia e outras<br />

características, chegando ao espaço reservado a estes discursos – em<br />

especial a coluna “Folhetim”, que inaugurou um tipo de texto escrito<br />

no formato popular – para melhor entendimento da relação entre o<br />

jornalismo informativo/literário e o gênero que se firmava a partir<br />

daí: a crônica.<br />

2. Contextualizando as matérias jornalísticas 1<br />

Geralmente compostos de quatro páginas, os periódicos de<br />

meados do século XIX apresentavam similaridade quanto ao título<br />

das seções que se ocupavam de espetáculos teatrais ou de artistas em<br />

geral, como “Correspondencia”, “Theatros”, “Publicações a pedido”,<br />

“Pacotilha”, “Comunicado 2 ” e outros. Era frequente, no mesmo jornal,<br />

uma edição nomear a seção “Publicações a pedido” e na edição<br />

seguinte estampar “Publicação a pedidos”. No Diário do Rio de Janeiro,<br />

na coluna “Theatros”, localizada na página 3 ou 4, o subtítulo<br />

costumava indicar o local do espetáculo criticado, como “Theatro de<br />

São Pedro de Alcântara”, ou “São Januário”. Mas as matérias podi-<br />

1 Nas transcrições dos títulos, subtítulos etc., foi mantida a grafia e a acentuação com<br />

que foram publicados.<br />

2 O nome “Pacotilha” apareceu pela primeira vez no Correio Mercantil em 9 de fevereiro<br />

de 1851, p. 1, apresentando notas e pequenos artigos em tom irônico, em subtítulo<br />

à seção “Comunicado”. Foi nesse espaço que Manuel Antonio de Almeida publicou<br />

Memórias de um Sargento de Milícias, sob o pseudônimo “Um Brasileiro” (SODRÉ,<br />

1996, p. 218).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

965<br />

am estar tanto nas colunas intituladas “Correspondências” quanto em<br />

“Communicado”. Na edição de 18 de maio de 1851, por exemplo,<br />

após a completa indicação “Anno XXX, nº 8818, Sabbado”, a seção<br />

“Communicado”, à p.2, apresentava o extenso subtítulo: “Breves<br />

considerações sobre a poezia dramática nacional – O incendio do<br />

theatro – As produções brasileiras – A abertura de S. Januário – A<br />

estreia da nova dama – O Bahiano na Côrte – O Manuel Raimundo”.<br />

A matéria é bastante variada e extensa, mas aborda, primordialmente,<br />

o incêndio ocorrido dias antes, no Teatro S. Pedro.<br />

A seção “Publicações a pedido”, coluna fixa localizada entre<br />

as páginas 1 e 2 dos periódicos, como o nome indica, tratava-se de<br />

espaço aberto aos leitores, que tanto cobravam providências às autoridades,<br />

quanto publicavam um agradecimento, ou dedicavam um<br />

poema à sua amada – geralmente assinado apenas com uma inicial.<br />

Eram comuns os debates de leitores entre si, cuja defesa de opiniões<br />

ocasionava réplicas e tréplicas sucessivas sobre o mesmo assunto.<br />

Quanto à diagramação, apesar de não percebermos uma organização<br />

rígida, todos os jornais seguiam, aproximadamente, a mesma<br />

diagramação: a maioria dividia as páginas em 3 ou 5 colunas e dispunha<br />

seus artigos, anúncios e comunicados separados por uma linha<br />

horizontal, simples ou dupla, desenhada ou não. As notícias veiculadas<br />

não eram separadas por assunto e apenas os anúncios vinham<br />

agrupados por tema, obedecendo a certa organização. É comum encontrarmos<br />

uma matéria extensa iniciando ao final de uma página e<br />

alongando-se por várias colunas na página seguinte. No tocante à tipologia,<br />

alguns faziam uso de vários tipos em uma mesma página,<br />

uns mais rebuscados, outros menos.<br />

Características diferentes tinham os pasquins. Sem periodicidade<br />

certa, com um único redator disfarçado por pseudônimo, geralmente<br />

disponibilizavam apenas um artigo e o que mais fosse publicado<br />

inseria-se na seção “Correspondência”. Sodré (1996, p. 183)<br />

afirma que, pelas características panfletárias dos discursos em linguagem<br />

combativa, mais facilmente entendidos pela população menos<br />

erudita, havia certa confusão entre pasquim e panfleto, indefinição<br />

que chegou até nós e ainda hoje dificulta classificações mais<br />

precisas.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

966<br />

Os pasquins estampavam uma epígrafe logo abaixo do nome,<br />

deixando claro suas tendências. O Beija-Flor, por exemplo, chamado<br />

inicialmente Beija-Flor: Annaes Brasileiros de Sciencia, Politica,<br />

Litteratura, etc., etc., por huma Sociedade de Litteratos, até 1849 tinha<br />

o subtítulo “Jornal de Instrucção e Recreio”. A partir de 1849,<br />

assim se apresentava: “No meio de disputas tão azedadas e que todas<br />

versam sobre a política, os leves divertimentos de mera literatura não<br />

cativam suficientemente a atenção” (SODRÉ, 1996, p. 186). Já no<br />

enunciado de apresentação, critica as outras publicações (azedas disputas<br />

políticas) e reclama a pouca atenção dada às publicações literárias.<br />

Evidenciando a disputa entre interesses, define a posição-sujeito<br />

assumida no enunciado, ao adjetivar classificatória e dicotomicamente<br />

os assuntos: as azedadas disputas que versam sobre o tema (a política),<br />

versus os leves divertimentos (a literatura).<br />

Nessas publicações, era comum a epígrafe em verso, como<br />

em A Marmota na Corte: “Eis a Marmota / Bem variada / Pra’ ser de<br />

todos / Sempre estimada / Fala a verdade / Diz o que sente / Ama e<br />

respeita / A toda gente”. Após 1852, chamando-se apenas Marmota,<br />

substituiu a epígrafe pelo subtítulo “Jornal de modas e variedades” e,<br />

afinado com o público feminino, passou a distribuir aos seus assinantes,<br />

músicas e figurinos litografados (Idem, p. 233). Incentivando a<br />

dramaturgia nacional e reclamando do prestígio que o governo dispensava<br />

às companhias italianas, A Marmota tanto enaltecia a figura<br />

de D. Pedro quanto cobrava providências a algumas instituições. Polêmica,<br />

sua tônica mais marcante era a sátira e a crítica de costumes.<br />

Entretanto, a maioria das matérias sobre espetáculos e artistas<br />

em geral, tinha lugar no rodapé das primeiras páginas dos jornais,<br />

espaço chamado “Folhetim”, modelo importado da França, marco de<br />

todos os periódicos do período. A importância do feuilleton justificase<br />

a seguir.<br />

3. Do folhetim à crônica, a riqueza do jornalismo literário do século<br />

XIX<br />

Inicialmente, o “Folhetim” era um espaço composto de diferentes<br />

ordens discursivas, miscelâneas sem restrições temáticas nem<br />

preocupação de continuidade, pequenas histórias do cotidiano, pia-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

967<br />

das e charadas para entreter o leitor. Posteriormente, com a publicação<br />

de artigos, passou constituir-se em duas formas distintas, isto é,<br />

mantendo o entretenimento do folhetim-variedades e adotando a nova<br />

concepção, a do folhetim-romance (BENDER e LAURITO,<br />

1993). Portanto, era comum encontrarmos no rodapé de alguns jornais<br />

apenas variedades e, em outros, histórias publicadas passo a<br />

passo, em capítulos. Entretanto, como já mencionado, a organização<br />

não era rígida: no Diário do Rio de Janeiro, por exemplo, a seção<br />

“Variedades” continha histórias com estrutura de folhetim, mas fora<br />

do espaço do rodapé. Em algumas edições, o Diário publicava uma<br />

história na seção “Variedade” e outra no “Folhetim”, espaço que anteriormente<br />

no mesmo jornal era intitulada “Appendice”. As razões<br />

da troca de nome foram assim expostas no exemplar de 12 de fevereiro<br />

de 1841:<br />

A palavra folhetim, adoptada pelo Jornal do Commercio para dar ideia<br />

dos artigos de recreio que os francezes chamao feuilleton, está geralmente<br />

recebida: nós, para não contrariar o uso, substituimos o nosso<br />

appendice pelo folhetim. Publicamos hoje algumas fabulas e uma ode,<br />

composição d’um nosso compatriota, o Sr. Doutor J. J. T.: o publico apreciará<br />

seu merecimento.<br />

Não tardou muito e o espaço “Folhetim” passou a ser fundamental<br />

à difusão de obras literárias e aos futuros romances brasileiros<br />

3 ; mesmo sem grandes pretensões literárias e escrevendo sob<br />

pseudônimo, tal despretensão “salvou o romance, tão contrastante,<br />

em seu miúdo realismo e em sua graça fluente, da pesada ornamentação<br />

que o Romantismo triunfante vinha impondo, avassaladoramente”<br />

(SODRÉ, 1966, p. 218-219). Mas, antes de se divulgarem<br />

nos folhetins dos jornais e antes de publicarem seus próprios livros,<br />

estes autores atuavam como críticos teatrais.<br />

As matérias, raramente assinadas, continham apenas as iniciais<br />

do autor – verdadeiras ou não; o uso de pseudônimo, como dissemos,<br />

era a forma mais habitual, como “Dr. Semana”, que sabemos<br />

pertencer a Machado de Assis, assim como hoje sabemos que Gonçalves<br />

Dias assinava os folhetins do Correio Mercantil em meados<br />

3 Entre os romances publicados em fascículos estão O Guarani, de José de Alencar,<br />

Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida e O Ateneu, de<br />

Raul Pompéia, dentre vários outros.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

968<br />

do século XIX. De modo impressionista, notícia e crítica amalgamavam-se<br />

a opiniões pessoais.<br />

É fato que as apreciações dos críticos se dão dentro de um espaço<br />

determinado, onde assistem ao espetáculo junto com os demais<br />

espectadores, sofrendo influência da plateia que por vezes aplaude<br />

entusiasticamente, outras vezes vaia, ri, silencia, esboça reações que<br />

formam um conjunto relacional determinante à recepção que o crítico<br />

terá da cena. Dependendo do lugar de onde “fala”, se técnico, crítico<br />

ou plateia, o autor assume posições-sujeito e constrói sentidos<br />

diferentes. Subjugado a essas posições, é assim que a rede de sentidos<br />

se estabelece, em constante movimento, (re)construindo e<br />

(re)significando a memória.<br />

Na complexidade dos discursos jornalísticos que vinham se<br />

delineando na imprensa do século XIX, vemos as marcas ideológicas<br />

impressas em sua materialização. Pródigos em humor irônico, mesclando<br />

ficção a documentário, entremeando lembranças pessoais e<br />

opiniões a dados históricos, marcam, dentre outros, uma escritura literária<br />

que deixou evidente o processo discursivo de formação e estabilização<br />

de uma fala popular e brasileira.<br />

Naquele momento, como representação própria de um povo,<br />

constituído de um modo de dizer que representava a oralidade, o folhetim,<br />

como espaço de divulgação dos ideais românticos, instaurava<br />

uma nova estética na escrita literária. Em remissão às camadas populares,<br />

cabe notar também que, conforme observado por Martin-<br />

Barbero (2003, p. 192), até mesmo quanto à tipologia sua organização<br />

era sintomática: letra grande, clara e espacejada, escolhas cujo<br />

formato “fala, muito mais que do comerciante, do público ao qual o<br />

texto se dirige: um leitor ainda imerso no universo da cultura oral”.<br />

Era necessário falar a essa camada da população e o folhetim transpunha<br />

a barreira da escritura literária e abria-se à pluralidade e à heterogeneidade.<br />

Grosso modo, foi a partir da escrita folhetinesca e das condições<br />

de produção cultural inauguradas naquele espaço que, em suas<br />

múltiplas possibilidades, firmou-se a crônica – do grego chronikós,<br />

procedente de chronos, relativo ao tempo; portanto, relatos do dia a<br />

dia, do tempo presente.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

969<br />

Diversos estudiosos apontam a carta de Pero Vaz de Caminha,<br />

como a primeira crônica com sentido de narração histórica no<br />

Brasil. No documento, a observação direta de Caminha relatando ao<br />

rei de Portugal a descoberta do Brasil, em 1500, é fundamental à dimensão<br />

temporal do registro e à sua veracidade. Caminha comportou-se<br />

“como um cronista no sentido atual da palavra – o de flagrador<br />

do tempo presente – na medida em que seu relato é contemporâneo<br />

dos acontecimentos que narra” (BENDER e LAURITO, 1993, p.<br />

12). Ao redimensionar a observação da paisagem brasileira e seu aspecto<br />

exótico, assim como a cultura e os costumes indígenas, o narrador<br />

imprimiu sua visão particular ao momento e deu-lhe a concretude<br />

capaz de assegurar sua imortalidade.<br />

Assim, de característica histórica, do tempo em que os cronistas<br />

(principalmente medievais) relatavam os grandes feitos dos heróis,<br />

até a literatura jornalística do século XIX, a crônica fixou-se no<br />

país e tomou conotações caracteristicamente brasileiras. Fosse um<br />

registro do passado ou do presente, com toques de ironia e humor,<br />

em sua multiplicidade de assuntos, a crônica constitui-se como um<br />

meio de representação temporal, de resgate do tempo. “Onde cabem<br />

as pequenas coisas do cotidiano? Como registrar a historia nossa de<br />

cada dia, não necessariamente a História? Como tornar eterno o instantâneo?<br />

Na crônica.” (Idem, p. 43).<br />

Prática de jornalistas/literatos da época, a crônica compunhase,<br />

obrigatoriamente, de elementos híbridos, ou seja, da escritura poética<br />

proveniente da subjetividade ideológica que determina a visão<br />

de mundo desses sujeitos-autores, e de sua destinação a um público<br />

leitor heterogêneo, que vinha aderindo aos veículos impressos. Para<br />

diversos pesquisadores, o século XIX assistiu ao nascimento de artistas<br />

híbridos, homens a um só tempo jornalistas e escritores e, consequentemente,<br />

o amalgamado entre imprensa e literatura.<br />

É sob esse aspecto que a relação da crônica com a história do<br />

cotidiano é interessante ao analista do discurso, pois se constitui como<br />

testemunho de uma vida ou uma época, lugar de memória, “um<br />

meio de se inscrever a História no texto” (ARRIGUCCI JR., 1987, p.<br />

52). O cotidiano, dimensão temporal onde se desenrola toda ação<br />

humana, é também o espaço onde os cronistas deixam evidentes dis-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

970<br />

putas e conflitos socioculturais, promovem a transformação ou mantêm<br />

a permanência, revelam ou apagam ideologias.<br />

Na maioria desses autores dos primeiros tempos, a crônica tem um<br />

ar de aprendizado de uma matéria literária nova e complicada, pelo grau<br />

de heterogeneidade e discrepância de seus componentes, exigindo também<br />

novos meios linguísticos de penetração e organização artística: é<br />

que nela afloram em meio ao material do passado, herança persistente da<br />

sociedade tradicional, as novidades burguesas trazidas pelo processo de<br />

modernização do país, de que o jornal era um dos instrumentos (Idem, p.<br />

57).<br />

Desse modo, é possível pensar o cronista como um historiador<br />

do cotidiano, sujeito-autor que se equilibra entre o coloquial e o<br />

literário, que é livre o suficiente para dar colorido ao que escreve,<br />

explorando a função poética e lúdica da linguagem e, sob aparente<br />

superficialidade, fazer história. É possível, igualmente, pensar a crônica<br />

como gênero romântico, pelo caráter que adotou, por exemplo,<br />

em oposição às línguas greco-latinas do período clássico, reconhecendo<br />

a importância de precedências como o sânscrito ou a cultura<br />

orientalista e, finalmente, pela apropriação democrática da gramática,<br />

convertendo-se em uma manifestação nacionalista de expressão<br />

(ELIA, 2005).<br />

4. Considerações Finais<br />

Como sabemos, até a primeira metade do século XIX não havia<br />

no Brasil uma produção literária significativa: com um grande<br />

número de analfabetos, não eram incomuns as leituras feitas por um<br />

membro da família, oral e coletivamente, para os demais. Com a abertura<br />

e o desenvolvimento da imprensa brasileira, a produção cultural<br />

do país encontrou, efetivamente, condições para progredir. Observou-se,<br />

portanto, o crescimento da produção do material impresso<br />

e os folhetins muito contribuíram para a divulgação e expansão do<br />

material literário e para a construção de um público leitor.<br />

Depois do Romantismo, a crônica passou não mais a se legitimar<br />

apenas dentro da tradição da narrativa, mas o cronista estabeleceu<br />

novos processos de enunciação em espaços textuais que absorviam<br />

várias linguagens, inaugurando-se novas condições de produção<br />

cultural, marcas que remetem ao universo da cultura popular.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

971<br />

Sem dúvida, parte do valor do folhetim foi incorporar elementos<br />

da memória narrativa popular ao imaginário social urbano, assim<br />

como, por meio da leitura fragmentada, instigar a curiosidade do leitor<br />

por aquele gênero de narrativa interminável, ideal à formação do<br />

público leitor e ao encontro do intelectual com o povo.<br />

Entendemos a prática jornalística de forma análoga à literária,<br />

associando jornalista e escritor, ambos partícipes das interconexões<br />

sociais que constituem o mundo, do mesmo modo que é possível entendermos<br />

as práticas narrativas à luz da fluência, do movimento<br />

contínuo e inacabado, da linguagem em ação que constituem as práticas<br />

discursivas.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ARRIGUCCI JR., Davi. Enigma e comentário – Ensaios sobre literatura<br />

e experiência. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.<br />

BENDER, Flora; LAURITO, Ilka. Crônica – História, teoria e prática.<br />

São Paulo: Scipione, 1993.<br />

ELIA, Silvio. Romantismo e Linguística. In: GUINSBURG, J. O<br />

Romantismo. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.<br />

MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações – Comunicação,<br />

cultura e hegemonia. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.<br />

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: No movimento dos sentidos.<br />

Campinas: Pontes, 1987.<br />

______. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2.<br />

ed. rev. e aum. Campinas: Pontes, 1987a.<br />

______. Discurso e leitura. Coleção Passando a Limpo. São Paulo:<br />

Cortez, 1988.<br />

SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de<br />

Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.


ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS<br />

EM SILVA JARDIM (SÉCULO XIX)<br />

Márcia A G Molina (UNISA/SP)<br />

maguemol@yahoo.com.br<br />

Nosso objetivo neste trabalho foi o de analisar um texto publicado<br />

na imprensa periódica do século XIX, à luz da AD [na linha<br />

francesa], servindo-nos, em especial de Van Dijk, em seu News as<br />

Discourse (1988). Para nossa análise selecionamos um discurso proferido<br />

por Silva Jardim no Rio de Janeiro, em 21/09/1888, e publicado<br />

em partes, por nove dias, no ano subseqüente, começando no dia<br />

22/10 até o dia 04/11, mais de um ano depois, nas páginas do Correio<br />

do Povo, às vésperas da Proclamação da República. Esse discurso,<br />

no jornal, foi publicado com o nome Movimento Republicano.<br />

No dia que antecedeu à sua publicação, ou seja, no dia 21/10,<br />

em nota, o jornal esclareceu:<br />

O Correio do Povo começará amanhã a publicar este discurso. Preparado<br />

para a publicidade desde que foi proferido, só agora pôde ser dado<br />

à imprensa. Tem, entretanto, como o leitor verá, a mesma atualidade<br />

que quando foi pronunciado.<br />

Vale informar que o discurso é uma réplica ao proferido por<br />

Joaquim Nabuco, contra o movimento republicano, na Câmara dos<br />

Deputados.<br />

Analisaremos três dos níveis ou dimensões textuais sugeridos<br />

por Van Dijk na obra supracitada:<br />

a) Coerência local;<br />

b) Implícitos;<br />

c) Estilo e Retórica.<br />

Van Dijk explicita que uma análise adotando os pressupostos<br />

da AD deve caminhar para além do textual, considerando também<br />

"os contextos cognitivo, social, cultural ou histórico". (Op. cit.. p.<br />

111).


973<br />

Assim, começaremos discorrendo sobre o autor e o contexto<br />

de criação de sua obra, para depois partimos para a análise.<br />

1. Silva Jardim e o contexto de produção de sua obra<br />

Antônio da Silva Jardim, um dos mais brilhantes jornalistas<br />

do final do século XIX, nasceu em Capivari, Rio de Janeiro, atualmente<br />

Silva Jardim, a 18 de agosto de 1860. Estudou na Faculdade<br />

de Direito de São Paulo, formando-se em 1882, ano em que começa<br />

a lecionar no Curso Anexo da Escola Normal de São Paulo. Três anos<br />

depois, demite-se do cargo e transfere-se para Santos onde se<br />

dedica ao ensino e à advocacia.<br />

Sua notável campanha política pró-República inicia-se em janeiro<br />

de 1888, por ocasião do ato do governo imperial de destituir de<br />

seu mandato os vereadores da Câmara Municipal de São Borja que<br />

haviam indicado que o país deveria ser consultado sobre o fim da<br />

monarquia pela morte do Imperador, visto ser a princesa Isabel “uma<br />

princesa fanática, casada com um príncipe estrangeiro” (FÁVERO;<br />

MOLINA, 2008).<br />

Essa atividade se estende até 1890 com o manifesto de dois<br />

de outubro, dirigido ao Partido Republicano do Estado do Rio, em<br />

que faz um exame dos resultados da primeira eleição do novo regime.<br />

Em novembro desse mesmo ano, parte para a Europa com a família<br />

e a primeiro de julho de 1891 morre tragado pelo Vesúvio.<br />

Sua obra compreende opúsculos, manifestos e artigos, todos<br />

de propaganda republicana, tendo sido considerado a "voz mais intrépida<br />

e o pensamento mais arrojado" da época. Muitos desses discursos<br />

foram pronunciados veementemente em público, momento<br />

em que, fazendo uso de sua retórica, realizava um verdadeiro espetáculo.<br />

Sua influência, como diz seu biógrafo, foi muito grande, já que<br />

auxiliou na "criação de uma consciência republicana" (JARDIM,<br />

1978, p. 14). De espírito rebelde, "intransigente, autoritário e insubordinado,<br />

pôs na causa da República toda a sua atividade" (Idem, p.<br />

15).<br />

Embora muito discutida nos meios intelectuais, a República<br />

não foi um movimento popular, ao contrário, foi idealizada e realiza-


974<br />

da pela classe dominante, especialmente por militares e demais pessoas<br />

iluminadas pelas correntes filosóficas divulgadas no século<br />

XIX, como o liberalismo e o positivismo de August Comte. Portanto,<br />

urgia que as idéias do Movimento Republicano fossem levadas aos<br />

demais e o meio mais eficaz para isso, na ocasião, era a imprensa.<br />

Silva Jardim, então, defensor da causa e buscando adeptos, explicita<br />

ainda no Prelóquio:<br />

Falando é que a gente se entende, diz o provérbio popular, e é falando<br />

claro, razoável, digno, que todos poderemos chegar à unificação<br />

da opinião e da conduta política. A República nada teme, tudo estuda,<br />

tudo discute, tudo concilia, tudo melhora; porque a República é a Pátria,<br />

é forçosamente o Bem.(Idem, p. 242)<br />

A imprensa, como veículo de divulgação de informação e<br />

formadora de opinião, acaba, também, representando a realidade retratada,<br />

mostrando como são traduzidas as posições e interesses dos<br />

indivíduos que compõem a sociedade, como pensam que ela é, como<br />

agem, ou como gostariam que ela fosse. E o veículo onde o pronunciamento<br />

de Silva Jardim foi publicado não era diferente. Na ocasião,<br />

a imprensa escrita multiplicava-se e muitos desses jornais vinham<br />

à lume na intenção de serem porta-vozes da sociedade, ou como diz<br />

Mello (2007) feitos para o povo, para as causas do povo. O Correio<br />

do Povo, um órgão republicano, que circulou de 1889 a 1891, dirigido<br />

por Alcindo Guanabara, foi um desses. Muitos dos textos nele<br />

publicados questionavam a Monarquia, discutiam a República com a<br />

finalidade de reunir possíveis adeptos à causa.<br />

Analisaremos, pois, a seguir, O Movimento Republicano, de<br />

Silva Jardim.<br />

2. Análise do Movimento Republicano<br />

Van Dijk ensina que uma das mais importantes noções semânticas<br />

a ser estudada nos textos é a de coerência local, explicando<br />

que essa é observada em proposições referentes aos fatos relatados,<br />

por meio de relações de tempo, condição, causa e consequência.<br />

Assim, quando o veículo em que foi divulgado o discurso de<br />

Silva Jardim intitulou-o “Movimento Republicano”, já exigia que os


975<br />

leitores recorressem ao seu “script” e previssem o que seria tratado<br />

no texto.<br />

Por outro lado, o jovem, ao afirmar a seus interlocutores: "Aqui<br />

estou de novo, diante de vós, na tribuna popular, a cumprir o meu<br />

dever de apostolar o nosso ideal republicano, e de combater o erro<br />

monárquico" (p. 196, grifos nossos), faz com que todos infiram que<br />

já estivera em plenários outras vezes para discutir seu ideal e combater<br />

aquilo que os presentes e, posteriormente, seus leitores (já que se<br />

tratava de um jornal defensor das causas republicanas) questionavam.<br />

Van Dijk informa que outra propriedade do discurso, somada<br />

à coerência local, é a global, já que o texto é uma unidade semântica,<br />

cuja principal informação advém de sequências organizadas, selecionadas,<br />

topicalizadas e sua compreensão depende de operações como<br />

a de seleção e abstração por parte de seu leitor. Isso se vê com clareza<br />

no discurso proferido por Silva Jardim, quando, por exemplo, tece<br />

uma crítica àqueles que ainda se posicionavam contra os ideais republicanos:<br />

Senhores, é de lamentar que nem todos os que se preocupam das<br />

questões de direção e de governo da sociedade se tenham ainda libertado<br />

de preconceitos metafísico, que na vida política os levam ao vago nas<br />

meditações e nos atos e ao empirismo desregrado o mais falível (p. 197).<br />

Sabia que seus ouvintes utilizar-se-iam de seu conhecimento<br />

de mundo para inferir que estava se dirigindo a Joaquim Nabuco.<br />

O mesmo conhecimento autoriza-o a citar, subliminarmente,<br />

as correntes filosóficas que norteavam os estudiosos à época, para<br />

criticar a postura autoritária e individualista de nosso monarca em<br />

várias passagens do texto:<br />

Nós vivemos sob o regímen de leis naturais, e nada a elas escapa:<br />

nada há que resulte apenas da nossa vontade individual; (p. 197, grifos<br />

nossos);<br />

Poder-se-ia supor uma força capaz de fazer a nós, brasileiros, habituados<br />

à liberdade e somente até aqui tolerando a sua mistificação pelo<br />

receio de subverter a ordem, de nos fazer aceitar o regímen da monarquia<br />

absoluta (...) (Idem)<br />

Agora, criticando a morosidade com que agia a monarquia<br />

brasileira, verbaliza:


976<br />

Não ides pensar, um instante, senhores, que eu condene a lei que aboliu<br />

a escravidão no Brasil. Em meu pensar, não resta dúvida que é certo<br />

que a lei de 13 de maio foi, depois da independência, o ato mais gloriosos<br />

de nossa pátria; mas não é menos certo que foi um ato tardio e violento:<br />

fazer uma cousa rapidamente não quer dizer fazê-la cedo, nem fazê-la<br />

bem (...) (p. 206)<br />

Recorrendo à História para assegurar seu posicionamento,<br />

constata: "Que foi a Revolução Francesa, senão o produto do egoísmo<br />

das massas ferido?" (p. 209)<br />

Muitos outros são os exemplos em que, sabendo a quem se dirigia,<br />

sabendo o que poderia ser compreendido e inferido por sua audiência,<br />

cita e deixa ao outro a responsabilidade de completar os não<br />

ditos.<br />

Para Van Dijk, palavras, períodos e outras expressões textuais<br />

que podem ser inferidas no texto comportam importantes dimensões<br />

ideológicas. Assim, segundo ele, a análise do não dito pode se mostrar,<br />

muitas vezes, mais relevante que a leitura do que vem expresso<br />

textualmente.<br />

Já Guimarães (2009, p. 62) informa que as diferentes significações<br />

dos enunciados embutidas nos implícitos, condicionam-se ao<br />

contexto no qual o enunciado foi produzido, do ato de fala e da intenção<br />

comunicativa.<br />

No discurso proferido por Silva Jardim, há muitos implícitos<br />

e seu uso é bastante estratégico. Por meio deles ora critica, ora denuncia,<br />

ora ironiza o Imperialismo, como em:<br />

(...) antigamente éramos acusados [por quem?] de ser um partido de<br />

moços utopistas ou de velhos políticos descrentes da monarquia, por verem<br />

burladas as suas pretensões. Os elementos conservadores do país, os<br />

homens graves, refletidos, sem pretensões, não estão convosco, diziam<br />

[quem?]! E, entretanto, agora, senhores, que esses elementos estão entre<br />

nós, acusam-nos justamente por isso mesmo! É o caso de a tais amigos<br />

só responder com o riso! (p. 208, grifos nossos)<br />

Convidando sua audiência a inferir, por meio de seu estilo vigoroso,<br />

que os republicanos seriam de toda forma criticados... pelos<br />

imperialistas.<br />

Para Van Dijk, estilo é o resultado de escolhas entre variados<br />

caminhos de se dizer a mesma coisa, utilizando-se de diferentes pa-


977<br />

lavras, ou diferentes estruturas sintáticas. Para ele, o estilo pode ter<br />

implicações sociais e ideológicas, porque, muitas vezes, essas escolhas<br />

revelam a opinião do locutor sobre os atores e a situação comunicativa.<br />

No texto em estudo, o estilo de Silva Jardim é eloqüente:<br />

Cidadãos! A grandeza do movimento republicano ressalta evidentemente<br />

de suas gloriosas origens, de sua justa legitimidade (...). A aspiração,<br />

já agora inabalável, da classe eminentemente conservadora de nossa<br />

pátria, é demais, desde 1870(...) (p. 212)<br />

Repleto de figurativizações:<br />

O viajor que atravessa o Saara é presa do fenômeno enganador da<br />

miragem. Oásis benditos, sorridentes, vicejantes; casarias brancas, cidades,<br />

campos, povos: tudo acode à sua vista como um deslumbramento; e<br />

o viajor fatigado caminha cheio de esperança... Caminha... e a miragem<br />

não se torna realidade; tudo lhe é ilusão à vista, tudo lhe é um sonho à<br />

alma! (p. 212)<br />

E de negações, como:<br />

No preencher esta gloriosa tarefa, não há retroceder um ponto: contra<br />

a zombaria ignorante e má, a afirmação consciente e serena; contra a<br />

pedrada, o argumento, contra o tiro assassino, a perícia do cirurgião que<br />

extraia a bala (...)<br />

Não há parar um instante, se nem diante da morte, também não diante<br />

da tristeza negra das prisões (...)<br />

Não há parar um só dia: são muitos e acumulados os recursos do regímen<br />

do erro, da ignorância e da maldade, ara impedir o advento da<br />

nossa aspiração (...) (p. 196)<br />

Sublinhamos aqui, seguindo Maingueneau (1989), o caráter<br />

polifônico dessa construção, fazendo emergir do texto um enunciador<br />

que sustenta os ideais republicanos, com o qual, parece a audiência<br />

se identificar e para quem nada é impossível, contrapondo-se ao<br />

enunciador que divulga a voz da monarquia, como compreendida por<br />

ele: defendida por cidadãos ignaros, regime do erro, da ignorância,<br />

da maldade.<br />

Neste jogo polifônico, Silva Jardim constrói-se e se mostra a<br />

seu auditório (leitores). Aristóteles, em sua Retórica, explica que o<br />

locutor persuade por seu caráter (ethos) quando seu discurso o torna<br />

um orador digno de fé e que a construção do ethos é, sobretudo, uma<br />

construção do discurso. Silva Jardim mostrava-se intrépido, batalhador,<br />

questionador e sua audiência o acompanhava aplaudindo, ova-


978<br />

cionando, vibrando, e essas marcas não foram apagadas no texto, depois,<br />

publicado no jornal:<br />

(...) a monarquia usa de seduções à inevidência do talento, a força do egoísmo,<br />

e às fraquezas do caráter; e é mister tudo combater, para que<br />

caia de todo o erro, isto é, o Império, e se alevante a grandeza da Pátria,<br />

isto é, a República! (Aplausos). (p. 196, grifos nossos).<br />

(...) diante das fatalidades cósmicas e sociais, e de atividade contínua, incessante,<br />

para a aspiração do bem: - do verdadeiro, do belo e do bom!<br />

(Muito bem! Muito bem) (Idem).<br />

Frisamos aqui a eloquência do texto de Silva Jardim, jovem<br />

reconhecidamente intempestivo, arrogante, corajoso que fazia vibrar<br />

audiência, defendia fervorosamente a República, praticamente exigindo<br />

a adesão de seu auditório. Frisamos aqui também as palavras<br />

de Silvio Romero (1888, p. 541, v. 2): "As peças oratórias eram escritas<br />

para serem recitadas, mas eram-no com verdadeiro entusiasmo<br />

(...) O povo que nada lia, era ávido por ouvir os oradores mais famosos..."<br />

E o povo cria em suas palavras, emaranhava-se nas tramas de<br />

seu discurso repleto de figuras retóricas, como, por exemplo, interrogações,<br />

usadas estilisticamente, fazendo com que cada interlocutor a<br />

elas respondesse mentalmente:<br />

Poder-se-á negar a Marcha da Humanidade para o bem? (p.198)<br />

Se o movimento republicano não é um fato de caráter social, se é<br />

produto unicamente da revolta do egoísmo ferido, como o receais? (p.<br />

199)<br />

Ou como por meio de assíndetos:<br />

Artistas, escritores, médicos, pensadores, mestres, todos os homens<br />

de pensamento aderem aos programas de reformas sociais antes que os<br />

agricultores, os comerciantes, os fabricantes, os banqueiro. É um erro?<br />

Não: é uma necessidade. (Muito bem!) (p. 201)<br />

Enumerando os intelectuais que participavam do movimento,<br />

mas sublinhando que o povo nele precisaria acreditar.<br />

Utilizando-se de apóstrofes, conclama o povo:<br />

Senhores, é de lamentar que nem todos os que se preocupam das<br />

questões de direção e de governo da sociedade se tenham ainda libertado<br />

de preconceitos metafísicos (...) (p. 197) interpelam os interlocutores,<br />

chamando-os para o discurso, tornando-os colaboradores do texto. Re-


979<br />

força essa função o uso do pronome pessoal majestático: (...) é em defesa<br />

dos nossos que aqui estou, sem ódio, nem paixões, sem o propósito da<br />

ofensa (...) (p. 196).<br />

Metáforas e sinédoques embelezam o texto, tornando-o ainda<br />

mais crível, já que utilizadas como elemento argumentativo, convencendo<br />

pela paixão (pathos):<br />

Notai bem, senhores, que os lavradores não receberam a lei da abolição<br />

com as armas na mão: o que eles fizeram foi desquitar-se das suas ligações<br />

espirituais com o trono, no que tiveram tanto mais razão quanto<br />

não era precisa grande sagacidade para compreender que a monarquia tinha<br />

e tem sido a nossa ruína (...) a lavoura não fez mais do que, especialmente<br />

em Minas, retomar as suas tradições (...) (p. 204).<br />

Recordemo-nos aqui que<br />

O efeito estético nasce quando o código é percebido como mensagem<br />

e a mensagem é percebida como código, o texto é transferido de um<br />

para outro sistema de comunicação, enquanto o público tem a percepção<br />

de ambos (RIBEIRO, 2006, p. 24)<br />

E seu público sentia a força desses ornamentos no discurso.<br />

Como pudemos perceber, o discurso de Silva Jardim, publicado<br />

na íntegra, um ano depois, leva-nos a deduzir por que ele fora<br />

mantido na gaveta esse tempo todo, tendo sido dado a público quase<br />

às vésperas da Proclamação da República: acreditamos que, em virtude<br />

de ser muito forte, muito combativo, muito envolvente e produzido<br />

num “tom” quase revolucionário, mobilizando a audiência a posicionar-se<br />

contra a Monarquia, poderia trazer prejuízos ao jornal,<br />

mesmo sendo o Correio do Povo um veículo de divulgação Republicana.<br />

A voz de Silva Jardim ratifica os dizeres de seu biógrafo, para<br />

quem era ele um dos mais representativos "ideólogos da corrente radical"<br />

(JARDIM, p. 9), fazendo emergir a vibração, o jovem: "no estilo<br />

da Revolução Francesa, meio a Danton, meio a Camille Desmoulins,<br />

que queria a participação do povo" (...) naquele momento histórico.<br />

(Idem, p. 10).<br />

Logo, Silva Jardim sabia o que queria dizer e, mais, sabia<br />

como dizer:<br />

O agente constrói uma certa representação sobre a interação comunicativa<br />

em que se insere e tem, em princípio, um conhecimento exato


980<br />

sobre sua situação no espaço-tempo; baseando-se nisso, mobiliza algumas<br />

de suas representações declarativas sobre os mundos como conteúdo<br />

temático e intervém verbalmente. (BRONCKART, 2003, p. 99)<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro,<br />

s/d.<br />

BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos. São<br />

Paulo, Educ. 2003.<br />

FÁVERO, L. L. e MOLINA, M. A. G. A propaganda republicana na<br />

imprensa. Revista da ANPOLL, n. 25, p. 93 a 106.<br />

GUIMARÃES, E. Texto, discurso e ensino. São Paulo: Contexto,<br />

2009.<br />

MAINGUENEAU, D. Análise do discurso. São Paulo: Pontes, 1989.<br />

RIBEIRO, J. A. Transdisciplinaridade: literatura brasileira e jornalismo/Correio<br />

Mercantil. São Paulo: Fernando Bilah, 2006.<br />

JARDIM, A. Silva. Propaganda republicana. Rio de Janeiro: Ministério<br />

da Educação e Cultura. Fundação Casa de Rui Barbosa, 1978.<br />

SOUZA, A. R. O império da eloquência. Rio de Janeiro: UERJ,<br />

1999.<br />

VAN DIJK, T. A. New as discourse. New Jersey and London: Lawrence<br />

E. Associates, 1988.


1. Introdução<br />

EXISTE MESMO UMA FACULDADE<br />

DE LINGUAGEM INATA E ESPECÍFICA?<br />

ALGUNS PROBLEMAS<br />

Zinda Vasconcellos (UERJ)<br />

zinda@superig.com.br<br />

Em artigo anterior (VASCONCELLOS, 2010), motivada por<br />

uma desconfiança antiga quanto a explicações inatistas do comportamento<br />

e da linguagem, efetuei um amplo levantamento de subsídios<br />

interdisciplinares em busca de alternativas e/ou confirmações<br />

sobre o inatismo e, sobretudo, de fatores que explicassem em que as<br />

características universais da linguagem e das línguas são necessárias.<br />

Pesquisei sobre todos os tipos de “começos”: sobre aquisição da linguagem;<br />

sobre cognição animal e experiências de ensino de linguagem<br />

a primatas; sobre “sinalização caseira” 1 ; sobre línguas crioulas;<br />

e também sobre a origem da linguagem. Além disso, aventurei-me<br />

por trabalhos de genética, teoria da evolução e neurociências. E em<br />

todos esses estudos deparei-me com sérios obstáculos para a possibilidade<br />

de existência de uma faculdade inata específica para a linguagem.<br />

Não terei como, nas dimensões previstas para este artigo, tratar<br />

de todos esses obstáculos. Assim, entre os problemas encontrados,<br />

privilegiarei os que apontam para a implausibilidade biológica<br />

das concepções inatistas sobre a linguagem, fazendo apenas breve<br />

menção aos outros tipos de dificuldades em que essas concepções incorrem.<br />

1 Tradução minha de home signing, os sinais feitos por crianças surdas não expostas a uma<br />

língua de sinais.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

982<br />

2. Caracterização prototípica das propostas quanto a uma faculdade<br />

de linguagem inata<br />

A existência de uma faculdade inata específica para a linguagem,<br />

além de pressuposta por Chomsky em praticamente todas as<br />

suas obras desde pelo menos Aspects…, é também defendida por vários<br />

outros teóricos, dos quais os principais são Jackendoff, Pinker, e<br />

Bickerton 2 , quase todos dissidentes do gerativismo chomskyano. Para<br />

esclarecer os pontos problemáticos das concepções em pauta, na<br />

impossibilidade de fazer isso para cada proposta existente na literatura,<br />

apresentarei primeiro uma caracterização prototípica dessa faculdade<br />

que valha para a maioria dos inatistas, embora cada um deles<br />

possa se afastar de uma ou mais das características apontadas.<br />

Seria uma capacidade mental: a) inata; b) de natureza representacional,<br />

isso é, um “sistema de competência”: conjunto de conhecimentos<br />

(de regras e/ou princípios conforme as teorias) de natureza<br />

simbólica, que estariam de algum modo instanciados no cérebro<br />

3 ; c) específica para a linguagem, e separada de outras capacidades<br />

da mente 4 ; d) não presente em outras espécies animais, nem<br />

mesmo nos primatas superiores; e) cuja principal função seria a de<br />

guiar a aquisição da linguagem pelas crianças, que, sem ela, é considerada<br />

impossível por esses teóricos, principalmente por causa de<br />

uma alegada “pobreza do estímulo” 5 , mas também devido à descrença<br />

que a maioria dos inatistas manifesta no que diz respeito à<br />

importância de processos de aprendizagem 6 .<br />

2 Por exemplo, em BICKERTON 2003, 2007; JACKENDOFF, 2003; JACKENDOFF & PINKER<br />

2005; PINKER, 1995, 2003; e PINKER & JACKENDOFF, 2005.<br />

3 E não um substrato neural que possibilite o desempenho, por ex. permitindo o comando articulatório<br />

ou a percepção dos sons usados na linguagem.<br />

4 Para muitos autores, correspondente a um módulo da mente/cérebro (ver mais abaixo no<br />

texto).<br />

5 Resumidamente trata-se da ideia de que o input linguístico não é suficiente para que as crianças<br />

possam adquirir linguagem apenas induzindo as propriedades dele, havendo necessidade<br />

da GU para “estreitar” a classe das possíveis análises.<br />

6 Um exemplo extremo em tal desconfiança na possibilidade da aprendizagem se encontra na


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

983<br />

Como disse antes, vou-me centrar, neste artigo, nos problemas<br />

relacionados com a implausibilidade biológica dessas concepções.<br />

Mas outros problemas para elas vêm dos estudos sobre a aquisição<br />

da linguagem e a cognição animal.<br />

Os primeiros 7 questionam o argumento da pobreza do estímulo<br />

e a interpretação inatista do chamado período crítico 8 , mostrando<br />

a existência de muito mais estrutura no input do que é suposto pelas<br />

propostas inatistas, e deixando um papel muito maior para a aprendizagem<br />

e para faculdades gerais da mente na aquisição da linguagem.<br />

Já os segundos demonstram uma continuidade muito maior<br />

entre o homem e outros animais do que se acreditava anteriormente,<br />

e não só entre o homem e outros primatas, mas até entre o homem e<br />

pássaros, cetáceos etc.<br />

Por exemplo, em 2002, num artigo conjunto com outros autores<br />

(HAUSER et alii, 2002), talvez pressionado pelas evidências da<br />

natureza evolutiva de várias características da linguagem, Chomsky<br />

distinguiu, na capacidade de linguagem, dois níveis: uma faculdade<br />

de linguagem em sentido estrito, constituída apenas por um sistema<br />

computacional responsável pela recursividade da linguagem, que seria<br />

o único componente da faculdade da linguagem privativo da espécie<br />

humana; e uma faculdade de linguagem em sentido amplo, que<br />

incluiria também um sistema sensório-motor e um conceitualintensional,<br />

os quais poderiam ter evoluído por razões não relacionadas<br />

à linguagem. No entanto, essa característica da recursividade, do<br />

contribuição de Fodor ao dito debate Chomsky/Piaget (Cf. PIATTELLI-PALMARINI, 1983/<br />

1975), em que, defendendo a impossibilidade lógica de desenvolvimento de linguagens ou estruturas<br />

mais ricas se já não estiverem pré-disponíveis, o autor simplesmente exclui a possibilidade<br />

de existência de qualquer aprendizagem real.<br />

7 Uma boa apresentação de resultados recentes de tais estudos e dos desafios que eles colocam<br />

para teorias tradicionais da aprendizagem, tanto behavioristas como inatistas, encontra-se<br />

em Kuhl 2006.<br />

8 O termo período crítico se refere a um período de tempo, que se acredita ser biologicamente<br />

determinado, durante o qual os organismos estão predispostos para a aquisição de respostas<br />

específicas, a qual tende se tornar impossível depois. O conceito nasceu no campo da Etologia.<br />

Os gerativistas o interpretam como resultante de um “fechamento” da faculdade de linguagem.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

984<br />

uso infinito de meios finitos, deixada como exclusiva dos humanos,<br />

foi descoberta também no canto dos pássaros (OKANOYA, 2002)!<br />

Não se pode esquecer, ainda, de que ao menos outro animal, o<br />

célebre bonobo Kanzi, conseguiu adquirir naturalmente uma língua<br />

humana, o inglês oral, manifestando inclusive compreensão de orações<br />

relativas (SAVAGE-RUMBAUGH et alii, 2001).<br />

3. Problemas quanto à compatibilidade das concepções inatistas<br />

sobre a linguagem com os conhecimentos biológicos<br />

Um problema sério é a implausibilidade de que uma faculdade<br />

inata – o que em princípio 9 significaria que fosse um fruto da evolução<br />

guiada pela seleção natural – tenha o caráter de um sistema de<br />

competência, e não de desempenho. Como bem diz Lieberman<br />

(2002, p. 13), a seleção natural age sobre comportamentos que aumentem<br />

a adaptabilidade biológica dos organismos e suas oportunidades<br />

reprodutivas, e não sobre uma competência encoberta apenas<br />

potencial.<br />

Problema esse que é ainda agravado pela natureza tão abstrata,<br />

e tão específica para a linguagem, dos sistemas que as teorias de<br />

cunho gerativista têm proposto, cujos tipos de regras e/ou princípios<br />

(regras de reescrita, c-comando, princípio de subjacência ou princípios<br />

de ligação, operação AGREE, para citar de memória alguns dos<br />

recursos constantes da literatura de diferentes épocas) não têm qualquer<br />

relação com a sobrevivência dos indivíduos ou com vantagens<br />

reprodutivas deles 10 .<br />

9 Digo em princípio porque Chomsky pessoalmente sempre tendeu a resistir à ideia de que a<br />

seleção natural seja o fator causal predominante da gênese da faculdade de linguagem<br />

(CHOMSKY, 2006, p. 55, 57, 67, e 94-97), preferindo atribuir o seu surgimento à organização<br />

do sistema nervoso ou ao resultado “…de leis físicas e químicas em um cérebro que atingiu<br />

certo nível de complexidade” (ibidem, p. 67). Ideia que não é, porém, compartilhada pelos demais<br />

adeptos do inatismo linguístico acima mencionados.<br />

10 Dentro especificamente da obra de Chomsky, esse problema diminuiu de gravidade, mas<br />

não desapareceu, após o programa minimalista, por causa da menor especificidade linguística


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

985<br />

E há ainda o fato dessa faculdade de linguagem ser vista como<br />

exclusivamente humana, o que implicaria no seu caráter recente.<br />

Como se teria originado, em tão pouco tempo evolutivo? Por meio<br />

de uma “mutação miraculosa”? Mas os biólogos não acreditam nesse<br />

tipo de possibilidade…<br />

Aliás, a crer nos críticos construtivistas do inatismo (por ex.<br />

ELMAN et alii, 1998), a maioria das concepções inatistas sobre a<br />

conduta e a cognição dos organismos superiores se baseia em ideias<br />

desmentidas pelos avanços da genética molecular 11 , e também nem<br />

sempre consideram as restrições sobre os tipos de mudanças evolutivas<br />

possíveis segundo a teoria do Evo-devo, que corresponde à versão<br />

mais recente da teoria da evolução.<br />

Elman et alii criticam, sobretudo, o que chamam de ilusão<br />

preformacionista, segundo a qual o genoma especifica, explicitamente,<br />

os traços de comportamento ou os conhecimentos dos organismos.<br />

Tal ilusão decorre de uma concepção de gene chamada de gene<br />

P (P de preformacionismo) (Apud GRIFFITHS, 2006, p. 4), segundo<br />

a qual os genes são vistos enquanto causas de dados traços do fenótipo<br />

(por ex., um gene para olhos azuis). Dela resulta uma disposição<br />

para acreditar em genes únicos para a determinação de características<br />

complexas, e, no caso da linguagem, a esperança em encontrar um<br />

gene, ou um pequeno conjunto de genes, que sejam o fruto de mutações<br />

próprias à espécie humana e tenham causado o advento da capacidade<br />

de linguagem preconizada. Mas tal concepção não encontra<br />

fundamentos nas descobertas mais recentes sobre a genética e o desenvolvimento<br />

epigenético dos organismos, por um lado, e nas versões<br />

mais atuais da teoria da evolução, por outro, segundo as quais as<br />

características do adulto não dependem diretamente dos genes, mas<br />

do funcionamento do sistema computacional em que se crê a partir de então, e sua talvez possível<br />

correspondência com um modo de operação geral do sistema nervoso (embora não observado<br />

até agora em nenhum outro comportamento…).<br />

11 Boa parte dessas ideias desmentidas só o veio a ser recentemente, sobretudo após as<br />

descobertas genéticas resultantes do deciframento do genoma humano e de outras espécies.<br />

Outras já são questionadas por evolucionistas, geneticistas, biólogos moleculares e embriologistas<br />

há bastante tempo, mas permanecem vivas no senso comum, de que nem sempre os<br />

linguistas conseguem escapar.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

986<br />

se desenvolvem gradualmente através de uma série de interações<br />

causais dos produtos gênicos entre si e com fatores externos 12 .<br />

A visão preferida atualmente é a do gene M (M de molecular),<br />

caracterizado por sua estrutura molecular e por sua atuação nos<br />

processos epigenéticos do desenvolvimento do organismo. Com efeito,<br />

a teoria do Evo-devo liga a evolução, sobretudo, a mudanças no<br />

padrão temporal de desenvolvimento dos indivíduos de uma espécie<br />

(CARROLL, 2006), que é determinado pelos genes, mas especialmente<br />

pelos mais antigos, que têm versões correspondentes desde os<br />

primeiros seres multicelulares!<br />

E os estudos sobre o desenvolvimento dos organismos também<br />

mostram que a trajetória dos genes às características é bastante<br />

indireta, e tem um caráter “histórico” (no sentido das características<br />

dependerem mais do processo do seu desenvolvimento do que dos<br />

genes em si). Os mesmos genes podem se expressar ou não, e podem<br />

fazê-lo em momentos diferentes, dependendo dos outros genes ativos<br />

anteriormente ou no mesmo momento, o que tem consequências nas<br />

características resultantes. Tais estudos também mostram que o padrão<br />

típico de desenvolvimento de uma espécie é muito “canalizado”,<br />

no sentido de que fenótipos semelhantes podem resultar de genótipos<br />

relativamente diferentes, havendo vários caminhos para soluções<br />

equivalentes – o que, até certo ponto, protege o padrão da variação<br />

genética, visto que o efeito das mutações em um gene é uma<br />

consequência global da expressão de todos os outros genes: o impacto<br />

fenotípico de uma mutação não é proporcional à magnitude da<br />

mesma, mas depende da dinâmica geral do desenvolvimento.<br />

Dessa canalização resultam restrições aos tipos de mudanças<br />

possíveis, não bastando que uma estrutura ou característica seja favorável<br />

à sobrevivência para que possa ter evoluído.<br />

12 Tal ilusão ainda seria admissível se os seres humanos tivessem genes muito diferentes dos<br />

das outras espécies, o que não ocorre: não só eles têm mais de 98% dos genes em comum<br />

com os chimpanzés, como mais de 70% em comum com os ratos. É óbvio que a relação dos<br />

genes com características não pode ser tão direta, e que as diferenças entre essas espécies<br />

dependem mais de mecanismos regulatórios diferentes, determinantes dos padrões de expressão<br />

dos mesmos genes durante o desenvolvimento delas, do que de novos genes estruturais.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

987<br />

Uma observação importante que decorre das considerações<br />

acima é que não basta encontrar um ou poucos genes que difiram dos<br />

primatas aos humanos para que se possa atribuir a eles os conhecimentos<br />

que fariam parte da GU, a menos que se possa explicar como<br />

esses genes atuam e como os processos epigenéticos que eles desencadeiam<br />

levam a uma estrutura cerebral específica para a linguagem,<br />

sobretudo uma que contenha conteúdos representacionais específicos.<br />

Além desses problemas de ordem mais geral, as concepções<br />

inatistas também são dificilmente conciliáveis com os resultados de<br />

pesquisas neurocientíficas sobre a natureza do cérebro. Em particular,<br />

ideias segundo as quais o genoma especificaria, explicitamente,<br />

os traços de comportamento ou os conhecimentos dos organismos<br />

sob a forma de representações inscritas no cérebro são implausíveis,<br />

dada a plasticidade do desenvolvimento cerebral dos organismos<br />

complexos 13 .<br />

Também não encontra respaldo a visão do sistema nervoso<br />

que acompanha tipicamente as concepções inatistas, a dita hipótese<br />

da modularidade da mente, que postula a existência de uma série de<br />

módulos mentais independentes uns dos outros, cada um com seus<br />

primitivos e operações, que, no que toca à linguagem, tem uma versão<br />

ancestral nas ideias de Chomsky sobre a existência de um “órgão<br />

da linguagem” independente da cognição geral.<br />

Com efeito, os estudos de Edelman (1992) e de Edelman &<br />

Tononi (2000) sobre o desenvolvimento do sistema nervoso mostram<br />

que este só é determinado pelos genes de modo muito indireto, “de<br />

rascunho”. Seria um sistema auto-organizado, guiado no seu processo<br />

de formação por forças estatisticamente tão variáveis, que nem<br />

gêmeos idênticos têm exatamente a mesma estrutura cerebral: os genes<br />

restringem os processos de desenvolvimento possíveis, mas não<br />

determinam o resultado deles. Isso, por si só, já fala contra a existência<br />

de “microcircuitos” que correspondam a representações inatas<br />

13 Seriam também impossíveis porque não há um número suficiente de genes para determinar<br />

todos esses conteúdos. O número de sinapses cerebrais é de ordem muito maior do que o de<br />

combinações de genes possíveis.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

988<br />

específicas para dados domínios de conhecimentos, como tendem a<br />

crer os adeptos do inatismo cognitivo e linguístico.<br />

Mas há mais. Descobertas neurocientíficas mostram que a<br />

plasticidade do córtex cerebral é incompatível não só com conteúdos<br />

representacionais inatos, mas até com “módulos inatos” para dadas<br />

funções 14 .<br />

Aqui e no que se segue, por impossibilidade de reportar as várias<br />

experiências, me basearei principalmente em Elman et alii<br />

(1998). Mas não consigo deixar de mencionar as experiências de<br />

substituição sensorial levadas a efeito por Bach-y-Rita, (Apud<br />

PHILLIPS, 2006), que ilustram cabalmente o dito acima. Bach-y-<br />

Rita fez com que um rapaz cego há anos voltasse a “ver” com a língua:<br />

uma câmara em sua testa leva o sinal até um dispositivo que<br />

transforma os padrões de claro e escuro em impulsos elétricos, que<br />

estimulam uma grade de eletrodos em sua língua, que carrega a imagem<br />

codificada. Observação de Phillips: “O órgão do sentido que<br />

capta a informação, assim como a forma como ela é levada ao cérebro<br />

[acrescento: e a zona do córtex a que chega, que provavelmente<br />

não deve ser o córtex visual primário] parecem menos importantes<br />

que a informação em si” (PHILLIPS, 2006, p. 71).<br />

Ninguém nega que, apesar da variabilidade individual da estrutura<br />

cerebral, haja tendências consistentes para a alocação do processamento<br />

das funções a dadas áreas corticais. Isso se explica seja<br />

pelas propriedades computacionais de tais áreas, mais adequadas para<br />

umas funções que para outras, seja por fatores temporais do desenvolvimento<br />

(que funções se desenvolvem primeiro, e que áreas<br />

ainda estão livres ou já ocupadas). Assim essas tendências se aplicam<br />

à maioria dos indivíduos, desde que passem pelas experiências<br />

necessárias – que, no caso humano, incluem não só terem estímulos<br />

14 Os críticos conexionistas alegam que as concepções modulares se baseiam em resultados<br />

afasiológicos de adultos e não levam em conta o desenvolvimento. Também se baseiam, segundo<br />

eles, em ideias falsas, como a de que, na gênese de diferentes déficits neurológicos, há<br />

alguns módulos preservados e outros atingidos – quando, para esses autores, em vez de ser<br />

qualitativamente diferentes, tais déficits formam um contínuo, e suas causas são devidas a<br />

processos de nível “mais baixo” do que os relativos a danos em módulos cognitivos inteiros.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

989<br />

visuais, auditivos, táteis etc., mas, para a aquisição da linguagem, estarem<br />

expostos a uma língua durante a infância e ser objeto de cuidados<br />

interpessoais dentro de uma cultura.<br />

Mas essas áreas do cérebro, em vez de serem “módulos” inatos<br />

específicos para um dado domínio cognitivo, no início são apenas<br />

adequadas para o processamento dos inputs típicos de tal domínio, e<br />

só se tornam específicas para ele como resultado de um processo de<br />

modularização, dependente da experiência, capaz de acontecer até<br />

para atividades que ninguém diria que são inatas, como a leitura.<br />

Processo que pode não se dar, ou só de modo diferente do<br />

normal, na falta da experiência adequada, ou em circunstâncias excepcionais,<br />

como problemas durante o desenvolvimento do sistema<br />

nervoso, falta séria de inputs sensoriais, amputações de partes do<br />

corpo, isolamento na infância etc.<br />

Fora isso, o desenvolvimento das funções típicas é muito canalizado,<br />

havendo vários caminhos para soluções equivalentes; e, em<br />

caso de danos cerebrais, outras zonas do cérebro se ocupam das funções<br />

normalmente processadas pela atingida, desde que o dano seja<br />

precoce: por ex., lesões que causariam afasia em adultos não impedem<br />

a aquisição ou recuperação da linguagem por crianças pequenas;<br />

e os déficits provisórios que estas sofrem não correspondem aos<br />

que danos às mesmas áreas causariam em adultos 15 .<br />

Além disso, todas as diferenças entre a estrutura do cérebro<br />

humano e a de outros primatas são questão de grau: há variações de<br />

15 Essas diferenças nos efeitos de danos cerebrais em crianças e adultos são devidas ao fato<br />

de que dadas “aquisições” em uma fase do desenvolvimento são necessárias para outras posteriores.<br />

Por ex., ao passo que, nos adultos, a área de Broca está mais ligada à produção da<br />

linguagem que à compreensão, e a de Wernicke mais à compreensão que à produção, danos<br />

precoces na área de Broca do hemisfério esquerdo têm efeitos leves na produção da linguagem,<br />

enquanto danos na área de Wernicke esquerda interferem mais na linguagem expressiva!<br />

Mas isso se explica porque esses últimos dificultam a análise acústica, o que por sua vez<br />

perturba o estabelecimento dos padrões motores da fala, que precisam de suporte perceptual.<br />

Esses efeitos não ocorrem em adultos com lesões na área de Wernicke esquerda, porque<br />

seus padrões motores para a pronúncia já estão automatizados (ver a longa discussão sobre<br />

isso em Elman et alii, 1998, p. 301-314).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

990<br />

tamanho absoluto e relativo de áreas homólogas, e também na distância<br />

entre os subsistemas, mas não há evidências de que os humanos<br />

tenham desenvolvido novos tipos de neurônios, novas formas de<br />

circuitos, novas camadas corticais ou novos neurotransmissores sem<br />

correspondentes no cérebro dos primatas. Onde residiria o substrato<br />

para um órgão de linguagem apenas humano?<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BICKERTON, D. Symbol and Structure: A Comprehensive Framework<br />

for Language Evolution. In: CHRISTIANSEN, M. H. & KIR-<br />

BY, S. (Orgs.). Language Evolution. New York: Oxford Univ. Press,<br />

2003.<br />

______. Language Evolution: A Brief Guide for Linguists. Lingua<br />

117 (2007), p. 510-526.<br />

CARROLL, S. B. Infinitas formas de grande beleza. Como a evolução<br />

forjou a grande quantidade de criaturas que habitam o nosso planeta.<br />

Rio de Janeiro: Zahar, 2006.<br />

CHOMSKY, N. Sobre natureza e linguagem. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 2006.<br />

EDELMAN, G. M. Bright Air, Brillian Fire. On the Matter of the<br />

Mind. New York: Basic Books, 1992.<br />

EDELMAN, G. M. & TONONI, G. A Universe of Consciousness.<br />

How Matter Becames Imagination. New York: Basic Books, 2000.<br />

ELMAN, J. et alii Rethinking Innateness. A Connectionist Perspective<br />

on Development. Cambridge: MIT Press, 1996.<br />

GRIFFITHS, P. E. The Baldwin Effect and Genetic Assimilation:<br />

Constrasting Explanatory Foci and Gene Concepts in Two Approaches<br />

to an Evolutionary Process. In: CARRUTHERS, P. et alii.<br />

(Orgs.). The Innate Mind: Vol. 2, Culture and Cognition, Cap. 6.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

991<br />

New York: Oxford Univ. Press, 2006. Disponível em:<br />

.<br />

Acesso em 22 ago. 2009.<br />

HAUSER, M. D. et alii. The Faculty of Language: What is It, Who<br />

Has It, and How Did It Evolve? Science, Cambridge, Vol. 298,<br />

22/11/2002, p. 1569-1579.<br />

JACKENDOFF, R. Foundations of Language. Brain, Meaning,<br />

Grammar, Evolution. New York: Oxford Univ. Press, 2003.<br />

JACKENDOFF, R. & PINKER, S. The Nature of the Language Faculty<br />

and Its Implications for Evolution of Language. Cognition 97<br />

(2005), p. 211-225.<br />

LIEBERNAN, P. Human Language and Our Reptilian Brain: The<br />

Subcortical Bases of Speech, Syntax and Thought, 2. ed. Cambridge:<br />

Harvard Univ. Press, 2002.<br />

OKANOYA, K. Sexual Display as a Syntactical Vehicle: The Evolution<br />

of Syntax in Birdsong and Human Language Through Sexual<br />

Selection. In: WRAY, A. (Org.). The Transition to Language. 2. ed.<br />

p. 46-63. Oxford: Oxford Univ. Press, 2002.<br />

PHILLIPS, H. Por Todos os Sentidos. Viver Mente & Cérebro. São<br />

Paulo, Ano XIV N. 156, jan/2006.<br />

PINKER, S. The Language Instinct: How the Mind Creates Language.<br />

New York: William Morrow, 1984; Harper Perennial 1995.<br />

______. Language as an Adaptation to the Cognitive Niche. In:<br />

CHRISTIANSEN, M. H. & Kirby, S. Language Evolution. New<br />

York: Oxford Univ. Press, 2003.<br />

______; JACKENDOFF, R. The Faculty of Language: What Is Special<br />

About It? Cognition 95 (2005), p. 201-236.<br />

SAVAGE-RUMBAUGH, S. et alii. Apes, Language, and the Human<br />

Mind. New York: Oxford Univ. Press, 2001.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

992<br />

VASCONCELLOS, Z. Alguns subsídios interdisciplinares para o<br />

tratamento da questão da natureza cognitiva da linguagem. Alfa: revista<br />

de linguística, nº 54(2), 2010, no prelo.


1. Introdução<br />

EXPRESSÃO E SENTIDOS<br />

NO TRATAMENTO DA APICULTURA<br />

POR VARRÃO E VIRGÍLIO<br />

Matheus Trevizam (UFMG)<br />

matheustrevizam2000@yahoo.com.br<br />

Propomo-nos a seguir, partindo da leitura comparativa de<br />

passagens afins das obras agrárias de Varrão reatino (De Re Rustica)<br />

e Virgílio (Geórgicas), apontar, do ponto de vista lexical e estilístico,<br />

algumas particularidades da escrita desses contemporâneos<br />

nas Letras latinas do séc. I a. C. Em princípio, pode-se grosseiramente<br />

dizer que estamos, em ambos os casos, diante de textos afins<br />

à vertente técnica da literatura antiga, por isso entendendo todo um<br />

corpus literário ocupado, entre outras possíveis funções, também de<br />

abordar domínios do saber humano com objetivos mais ou menos<br />

sistemáticos de sua exposição ao público. 1 Tal postura de veicular<br />

ordenadamente informações atinentes aos mais variados ramos do<br />

saber produzidos pelas culturas – gramática, retórica, filosofia, agropecuária,<br />

caça, pesca, estratégia militar... – não se deixa restringir<br />

por modelos genéricos estanques, pois que, no caso das Geórgicas,<br />

assistimos a semelhantes desenvolvimentos pelo viés da poesia<br />

didática, enquanto, no De Re Rustica III, sob a forma dialógica.<br />

Isso significa, então, alguma abertura para divisarmos, apesar<br />

da suposta e “imutável” tecnicidade de obras como o De Re<br />

Rustica e as Geórgicas – inclusive no detalhe de se veicularem, em<br />

ambas, tópicos miúdos relativos às partes da apicultura –, diferenças<br />

constitutivas nos planos do vocabulário e do agenciamento<br />

formal dos recursos de linguagem/ estilo, cujas motivações, em última<br />

instância, enraízam-se não só nas matrizes genéricas em pauta<br />

a cada vez de escrita, mas ainda, fundamentalmente, nas dinâmicas<br />

1 Cf., sobre a característica de veiculação de conteúdos da poesia didática antiga, as seguintes<br />

palavras de Zélia de Almeida Cardoso (2003, p. 102): "Assim sendo, poderia parecer estranha<br />

a utilização da poesia para transmitir o saber. Em Roma, contudo – como, de resto,<br />

também havia ocorrido na Grécia – foi frequente essa prática".


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

994<br />

de recepção de início previstas para um ou outro texto. Desse modo,<br />

se é verdade que a dicção dialógica, com frequência utilizada<br />

nas letras antigas com vistas à abordagem técnica de assuntos em<br />

importantes âmbitos como a filosofia e a retórica, por exemplo,<br />

pautou-se amiúde por parâmetros como os da oralidade e de alguma,<br />

ou razoável, elaboração da linguagem, 2 sem, contudo, descuidar<br />

do foco principal da informatividade, o mesmo não se pode categoricamente<br />

afirmar da assim dita “poesia didática” greco-latina.<br />

Nesse último gênero textual, portanto, encontram-se ora o privilégio<br />

da face informativa – caso inegável, segundo alguns críticos e o<br />

próprio poeta, do acurado poema filosófico identificado com o De<br />

Rerum Natura –, 3 ora de outros níveis semânticos concomitantes,<br />

como o da metáfora e o da proposição de intrincados jogos metalinguísticos<br />

para leitores cultos. 4<br />

2. Análises comparativas<br />

De início, direcionamo-nos para o tratamento do tema da localização<br />

da colmeia em Varrão (III XVI 12-17) e Virgílio (IV 18-<br />

32). Do ponto de vista lexical, assim, destacamos os apelativos do<br />

ninho de abelhas em um e outro autor: no primeiro, pois, recorre-se,<br />

internamente ao âmbito doravante circunscrito, às palavras mellitona,<br />

mellarium, melitrophium, aluarium e aluus; mas, no segundo, a<br />

sedes (v. 8), statio (v. 8), stabulum (v. 14), aluarium (v. 34), tectum<br />

(v. 38), lar (v. 43) e cubile (v. 45). Ora, como já observamos em<br />

outra ocasião de posicionamento teórico (Cf. TREVIZAM, 2006, p.<br />

2 Cf., sobre a literariedade dos diálogos platônicos, especificamente, as seguintes palavras<br />

de Bloom (2004, p. 45): Não tenho competência para avaliar Platão como filósofo, mas seus<br />

diálogos, no que têm de melhor, são poemas dramáticos absolutamente singulares, sem par<br />

na história da literatura.<br />

3 Cf. Lucrécio, De rerum natura I 930-931: Primum, quod magnis doceo de rebus, et artis/ relligionum<br />

animum nodis exsoluere pergo,/ deinde, quod obscura de re tam lucida pango/ carmina,<br />

musaeo contingens cuncta lepore. – “Primeiro, porque ensino sobre grandes coisas, e<br />

dos estreitos/ nós das religiões continuo a soltar teu espírito,/ depois, porque, sobre assunto<br />

obscuro, tão claros versos/ canto, contagiando tudo com o encanto das Musas” (aqui, citado<br />

em minha tradução).<br />

4 A Ars amatoria ovidiana enquadra-se nesta última descrição, pois, nela, além da camada<br />

superficial dos supostos ensinamentos galantes, veem-se desenvolvimentos relacionados ao<br />

questionamento da poética elegíaca “ortodoxa” (TREVIZAM, 2003, p. 109 ss).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

995<br />

259ss), as expressões varronianas sem dúvida pendem para o campo<br />

de uma distinta tecnicidade: em três delas, de fato, notam-se raízes<br />

gregas ou latinas (mel-) evocativas do principal produto sintetizado<br />

por esses animais. Por outro lado, enquanto aluarium, dicionarizado<br />

com o sentido inicial de “ninho de abelhas”, também se<br />

enquadra nesta definição de recorrência a itens lexicais diretamente<br />

oriundos de uma zona do vocabulário técnico em latim, o mesmo<br />

não se pode dizer de aluum, pois, com seus originais significados<br />

de “entranhas” ou “intestinos”, furta-se a esse cerrado limite.<br />

Virgílio, segundo vimos, além de por aluarium, referiu-se ao<br />

mesmo objeto da vida agrícola por sedes (“assento”, “morada”...),<br />

statio (“local de parada”, “posto”, “acampamento”...), stabulum<br />

(“morada”, “hospedaria”, “estábulo”...), tectum (“teto”, “casa”,<br />

“covil”...) e cubile (“leito”, “quarto de dormir”, “toca”...), em preferencial<br />

recorrência a vocabulário de emprego muito vasto no idioma.<br />

Em outras palavras, se, com dizer aluarium, por força remeteríamos<br />

o ouvinte ao universo dos antigos apicultores romanos, o<br />

mesmo não se dá com os imprecisos tectum, cubile, stabulum e, sobretudo,<br />

sedes e statio, termos, nos dois últimos casos, sequer capazes<br />

de garantir-nos sempre a vinculação com a ideia de um “abrigo”<br />

contextualmente identificável, por vezes, com o espaço de<br />

recolhimento das abelhas.<br />

Aqui preferimos, apesar da aparente “desvantagem” de Virgílio<br />

no quesito da acuidade técnica, compreender o direcionamento<br />

dado por um e outro autor ao plano lexical da apicultura em conjunto<br />

com sua inserção nos âmbitos genérico e receptivo dos textos.<br />

Ora, em princípio corresponde à poesia, nos termos de Jakobson<br />

(1969, p. 118-162), evidenciar a mensagem/ modus dicendi, não,<br />

necessariamente, meros conteúdos. Assim, o fato de muitas das expressões<br />

designativas da “morada” das abelhas poderem estenderse<br />

também para a menção a outros animais ou ao homem apontanos<br />

para uma espécie de afrouxamento poético de barreiras entre<br />

todos os domínios da vida numa obra como as Geórgicas, em que,<br />

a saber, videiras novas necessitam, à maneira de jovens humanos,<br />

serem “educadas” pelo agricultor (Cf. VIRGILE, II, 362-370); homens<br />

e animais, ao longo do livro III, condoem-se dos mesmos males<br />

do amor e da peste; indivíduos de certas sociedades, conforme


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

996<br />

adiante veremos, manifestam profunda reverência por seus reis...<br />

semelhantemente às abelhas (Cf. VIRGILE, IV, 210-218). Com isso<br />

desejamos apontar, num poema didático no qual a tecnicidade<br />

agrícola, embora não ausente, presta-se com frequência a pano de<br />

fundo para a derivação de sentidos num nível que se poderia dizer<br />

“metafórico”, as prováveis e justificadas motivações do poeta em<br />

fazer-se, sensivelmente, mais generalizante.<br />

Nesse mesmo aspecto de conformação estrutural da obra e<br />

dos objetivos de escrita, Varrão, por sua vez, mostra-se, como bom<br />

praticante do dialogismo no sentido genérico do termo, eficaz e, até<br />

certo ponto, preciso comunicador de saberes atinentes ao domínio<br />

agrário romano (Cf. SKYDSGAARD, 1968, p. 90). Por sinal, as situações<br />

interativas ficcionais a envolverem as personagens de seus<br />

diálogos rústicos correspondem, inalteradamente, a encontros informais<br />

para que se exponham, segundo o desejo e os conhecimentos<br />

mesmos de cada interlocutor, as sucessivas partes de muitas<br />

práticas agrícolas. Assim, parece-nos claro que, diante de personagens<br />

desejando, inclusive, aprender para pôr em prática com eficácia,<br />

mostrar-se direto e claro na apresentação de conteúdos corresponde<br />

a uma importante finalidade dos três diálogos agrários de<br />

Varrão reunidos sob a rubrica do De Re Rustica:<br />

Mas, devido ao luxo”, disse ele, “de certo modo há um festim diário<br />

dentro dos portões de Roma. Acaso ainda L. Abúcio, homem, como<br />

sabeis, grandemente douto, cujos livros são à maneira dos de Lucílio,<br />

não dizia que sua propriedade no território de Alba sempre era superada<br />

nas criações pela casa de campo? O campo, com efeito, rendia menos<br />

de dez mil sestércios, mas a casa de campo mais de vinte. Ele<br />

mesmo que, se tivesse adquirido uma casa de campo junto ao mar, onde<br />

o desejasse, haveria de receber mais de cem mil sestércios dessa casa<br />

de campo. Pois bem! M. Catão, há pouco, quando recebeu a tutela<br />

de Luculo, não vendeu os peixes de seus tanques por quarenta mil sestércios?”<br />

Áxio disse: “Meu Mérula, recebe-me, por favor, como aluno<br />

da criação na casa de campo. 5<br />

5 Cf. Varrão, De Re Rustica III II 18: Sed propter luxuriam, inquit, quodam modo epulum cotidianum<br />

est intra ianuas Romae. Nonne item L. Abuccius, homo, ut scitis, apprime doctus, cuius<br />

Luciliano charactere sunt libelli, dicebat in Albano fundum suum pastionibus semper uinci<br />

a uilla? Agrum enim minus decem milia reddere, uillam plus uicena. Idem secundum mare,<br />

quo loco uellet, si parasset uillam, se supra centum milia e uilla recepturum. Age, non M. Cato<br />

nuper, cum Luculli accepit tutelam, e piscinis eius quadraginta milibus sestertiis uendidit


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

997<br />

Um pormenor, por outro lado, para que atentou Cesidio de<br />

Meo (1986, p. 50ss) ao descrever os traços da linguagem técnica<br />

agrícola em Roma também pode auxiliar-nos a avançar um pouco<br />

na compreensão das escolhas lexicais de Varrão e Virgílio teóricos<br />

da apicultura. Trata-se da incorporação de helenismos, que não se<br />

restringe, como observa, a um universo experiencial como o da agropecuária<br />

antiga, mas “invade”, por assim dizer, muitos domínios<br />

do saber nos quais os gregos, tantas vezes adotados em Roma como<br />

modelos e referenciais teóricos, fizeram sentir as marcas da própria<br />

cultura. Notamos, com efeito, que, nas passagens citadas, eles são<br />

mais visíveis em Varrão [haja vista, por exemplo, os nomes mellitona<br />

e melitrophium, em cuja composição adentram, além da raiz<br />

grega para “mel/ abelha” – méli- –, aquela, no segundo caso, para<br />

“nutrição” – tropheîon –, serpyllon (hérpyllon – “serpão”), cytisum<br />

(kýtisos – “codesso”) e cyperum (kýpeiron – “junco”)] e, bem menos,<br />

em Virgílio [além de Eurus – Eûros, vento do leste, v. 29 –,<br />

unicamente se apresentam, nos versos citados, serpylla, plural neutro<br />

do supracitado serpyllon varroniano – v. 31 –, e thymbrae – v.<br />

31 –, “segurelha”].<br />

Se tivéssemos de ensaiar alguma interpretação para estes<br />

dados, primeiramente lembraríamos que a língua poética romana,<br />

como bem notou Kroll (1988, p. 6 ss), foi, na verdade, bastante<br />

permeável ao influxo linguístico grego, em níveis estruturais tão<br />

variados quanto, além do léxico, os da morfologia e, mesmo, da<br />

sintaxe; não seria obviamente correto, assim, restringir os helenismos<br />

de qualquer espécie a uma “exceção” das linguagens técnicas<br />

em Roma.<br />

Contudo, os motivos de sua entrada na dicção poética latina<br />

correspondem, em geral, a outros distintos daqueles a lhes justificarem<br />

a presença num prosador técnico como Varrão: pautados pela<br />

necessidade de se fazerem mais refinados do que os usuários do latim<br />

vinculados à simples linguagem de uso do dia-a-dia, os poetas,<br />

muitas vezes, tiveram em recursos como os estrangeirismos e os arcaísmos<br />

uma via possível de acessar planos linguísticos nobres (Cf.<br />

KROLL, 1988, p. 6-24). Por sua vez, a incorporação de vocabulário<br />

piscis? Axius, Merula mi, inquit, recipe me quaeso discipulum uillaticae pastionis (aqui, citado<br />

em minha tradução).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

998<br />

estrangeiro oriundo de um domínio técnico qualquer – filosofia, retórica,<br />

agricultura, medicina... – para o corpo de obras antes de tudo<br />

pautadas pelo princípio-mestre da tecnicidade expositiva parecenos,<br />

sobretudo, manter nexos com a necessidade de fazer-se preciso:<br />

como dar-se a entender inequivocamente, ao introduzir novos<br />

saberes em determinado ambiente que não dispunha deles no mesmo<br />

grau (ou na mesma maneira) de desenvolvimento, à revelia da<br />

entrada de conceitos, tantas vezes, a exigirem a segura “ancoragem”<br />

em vocábulos do primitivo idioma de veiculação cultural?<br />

Dois nomes do ninho de abelhas que dissemos acima utilizados por<br />

Varrão – mellitona e melitrophium –, parecem-nos corresponder a<br />

tais direcionamentos de “preservação de sentidos”, na medida em<br />

que, aludindo ele a objetos fundamentais ao trato das abelhas por<br />

nomes de imediato evocativos dos primitivos vocábulos gregos, o<br />

autor, que sabemos amiúde ter derivado saberes técnicos mesmo de<br />

Aristóteles e Teofrasto, entre outros, faz-se inequívoco intérprete<br />

do alheio (Cf. HEURGON, 2003, p. XXVI ss).<br />

Os trechos seguintes que tomamos de Varrão (III XVI 8-9) e<br />

Virgílio (IV 67-87) para análise correspondem aos que se poderiam<br />

dizer correspondentes à “batalha das abelhas”. De início, assim, em<br />

Virgílio, fazemos atentar para o caráter obviamente épico desta<br />

passagem: trata-se afinal de apresentar, no tradicional metro da poesia<br />

heroica antiga – hexâmetros datílicos –, um episódio de enfrentamento<br />

entre diferentes “exércitos” liderados por diferentes “reis”.<br />

Para o leitor um pouco familiarizado com a literatura clássica, tal<br />

descrição sumária corresponde exatamente ao que assistimos nas<br />

obras de dois de seus maiores expoentes, Homero, que retratou de<br />

maneira fundadora na Ilíada a sangrenta guerra entre os gregos, liderados<br />

por Agamêmnon, e os troianos, liderados por Heitor, e<br />

Virgílio, o qual, na segunda parte da Eneida (cantos VII-XII), mostra-nos<br />

com vivacidade as lutas entre o príncipe Eneias e os itálicos<br />

de Turno.<br />

Várias expressões virgilianas da passagem, num nível mais<br />

miúdo de leitura, correspondem, ainda, ao imaginário da épica antiga:<br />

chamamos a atenção, especificamente, para trepidantia corda –<br />

“palpitantes corações”, v. 69-70; Martius ille canor – “aquele som<br />

marcial”, v. 71; sonitus tubarum – “barulhos das tubas”, v. 72; ipsa


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

999<br />

ad praetoria – “junto aos acampamentos mesmos”, v. 75; magnisque<br />

clamoribus – “e com grandes gritos”, v. 76; aethere in alto –<br />

“no alto éter”, v. 78; non densior aëre grando,/ nec de concussa<br />

tantum pluit ilice glandis – “não mais basto do céu o granizo,/ nem<br />

de uma azinheira batida chove tanta glande”, v. 80-81; per medias<br />

acies – “pelo meio dos exércitos”, v. 82; dare terga – “dar as costas”<br />

(em fuga), v. 85. Acreditamos em que a recorrência a semelhante<br />

vocabulário contribui em si para dar realce estilístico ao trecho<br />

em pauta: afinal, trata-se de ressonâncias de um nível expressivo<br />

e poético mais sublime (o da poesia heroica, não didática!) que<br />

não se restringem à coincidência métrica, ao vago uso do mesmo<br />

tema guerreiro, ao tom movimentado advindo da própria situação<br />

de peleja, mas, fundamentalmente, trazem à tona, de maneira impressiva,<br />

evidentes reminiscências do mundo em “maior escala” característico<br />

de produções como as que assinalamos acima para Homero<br />

e, na imediata sequência cronológica de escrita das Geórgicas,<br />

para Virgílio mesmo.<br />

Dentre tais expressões, o recurso a um Martius canor e a aether/aër,<br />

por “céu”, parecem-nos corresponder às três mais importantes<br />

contribuições para o efeito nobilitador que aqui desejamos<br />

destacar. De fato, enquanto, nos demais casos, sobretudo o contexto<br />

e sua ocorrência conjunta parecem produzir sentidos inequivocamente<br />

dispersores da banalidade, o adjetivo Martius, decerto vinculado<br />

ao deus Marte (Mars), e as denominações helenizantes “éter”/<br />

“ar” para designar o firmamento revestem-se, mesmo que tomados<br />

em si, de inegável aura de nobreza. Bastando-nos o que se disse a<br />

respeito de Martius, aether e aër, por outro lado, enquadram-se em<br />

certa listagem proposta por Leumann, quando explica a seletividade<br />

do léxico poético romano (Cf. LEUMANN, 1988, p. 176):<br />

No âmbito dos substantivos, o fenômeno mais patente é o emprego<br />

de termos substitutivos dos nomes “específicos”, os kýria onómata.<br />

Alguns exemplos bastarão. Para dei: diui, caelestes, caelites, caelicolae,<br />

superi; para pater: parens, genitor, sator; para mater: genetrix, creatrix;<br />

para filius: gnatus, illo satus, generatus, quo sanguine creatus,<br />

proles; para caelum: aether, aër, aethra.<br />

Por outro lado, outros recursos contribuem para atribuir ao<br />

texto Virgiliano dessa passagem “bélica” o vigor épico que lhe cabe:<br />

destacamos, assim, o acúmulo de verbos de ação [exierint – “ti-


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

1000<br />

verem saído”, v. 67/ increpat – “excita”/ coeunt – “juntam-se”, v.<br />

73/ exacuunt – “afiam”, v. 74/ aptant – “preparam”, v. 74/ miscentur<br />

– “misturam-se”, v. 76/ uocant – “chamam”, v. 76/ erumpunt –<br />

“irrompem”, v. 77/ concurritur – “avança-se contra”, v. 78/ glomerantur<br />

– “enovelam-se”, v. 79/ cadunt – “caem”, v. 80/ pluit –<br />

“chove”, v. 81/ uersant – “revolvem”, v. 83/ dare (terga) – “dar as<br />

costas”, v. 85] e a sequenciação corrida em duas grandes partes interligadas<br />

(v. 67-76/ 77-85), nas quais o fluxo contínuo dos eventos<br />

se faz, além de pela farta recorrência a et e -que aditivos, ainda pela<br />

eventual presença de outras partículas coesivas (nam – “com efeito”,<br />

v. 67/ tum – “então”, v. 73/ ergo – “logo”, v. 77). Sintomaticamente,<br />

a impressão de movimento e, mesmo, grandeza cessa na<br />

leitura desses versos ao depararmos o par 86-87, em que, segundo a<br />

observação dos críticos (Cf. TREVIZAM, 2005, p. 190-191), reconduzem-se<br />

os insetos a seu posto diminuto no Universo:<br />

hi motus animorum atque haec certamina tanta<br />

pulueris exigui iactu compressa quiescunt.<br />

estes movimentos do espírito e estes tamanhos combates<br />

com um jato de pó escasso aquietam reprimidos (minha tradução).<br />

Isso nos permite, como desejam alguns estudiosos, 6 ver em<br />

todo o episódio da “batalha das abelhas” efeitos de ridicularização<br />

parodística dos insetos, como se, na verdade, a grandeza de tom expressa<br />

nos versos imediatamente anteriores a esse desfecho inesperado<br />

viesse revelar-se irônica e, de fato, insustentável...<br />

A passagem que assim também denominamos em Varrão,<br />

em parte por alguma comodidade analítica – pois não se trata, a rigor,<br />

de uma parte da obra do escritor técnico tão coesa ou óbvia<br />

quanto a virgiliana, apresenta distintas diferenças quando comparada:<br />

Regem suum secuntur, quocumque it, et fessum subleuant, et si<br />

nequit uolare, succollant, quod eum seruare uolunt. Neque ipsae sunt<br />

inficientes nec non oderunt inertes. Itaque insectantes ab se eiciunt fucos,<br />

quod hi neque adiuuant et mel consumunt, quos uocificantes plures<br />

persecuntur etiam paucae. Extra ostium alui opturant omnia, qua<br />

6 Cf. Dalzell (1996, p. 119): The picture of the tiny bees, described with all the earnestness of<br />

an ethnographic treatise, must surely be intended to raise a smile. The description of the battle<br />

of bees is the most obvious case of mock-heroic intent.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

1001<br />

uenit inter fauos spiritus, quam erithacen appellant Graeci. Omnes ut<br />

in exercitu uiuunt atque alternis dormiunt et opus faciunt pariter et ut<br />

colonias mittunt, iique duces conficiunt quaedam ad uocem ut imitatione<br />

tubae. Tum id faciunt, cum inter se signa pacis ac belli habeant. 7<br />

Seguem seu rei para onde quer que vá; cansado, auxiliam; se não<br />

pode voar, carregam nas costas, porque desejam salvá-lo. Nem elas<br />

mesmas são ociosas nem não odeiam os inertes. E assim, expulsam de<br />

junto delas os zangões perseguindo, porque não ajudam e consomem<br />

mel; fazendo eles muito barulho, mesmo poucas, perseguem grande<br />

número deles. Fora da entrada da colmeia selam tudo, por onde vem o<br />

ar que permeia os favos, com um material chamado erithace pelos gregos.<br />

Todas vivem como no exército, dormem e trabalham alternadamente,<br />

do mesmo modo, também enviam como que colônias, e seus<br />

chefes dão certas ordens com a voz como se imitassem uma trombeta.<br />

Agem assim quando têm sinais de paz e de guerra entre si.<br />

Consideramos, dessa maneira, a frase extra ostium a appellant<br />

Graeci uma interpolação que pouco tem a ver com a belicosidade,<br />

ou, ao menos, com a combatividade das abelhas varronianas.<br />

Contudo, quando se fala, no início, de uma fidelidade incondicional<br />

aos “reis” da colmeia – algo que nos recorda de pronto o espírito<br />

hierárquico de adesão de suas correlatas em Virgílio – e da expulsão<br />

dos zangões barulhentos e inertes, além, em seguida, da vida<br />

“militar” dos insetos, em que não faltam turnos de vigília, “colônias”,<br />

ordens de chefes e até “trombetas”, aproximamo-nos inequivocamente<br />

do mesmo plano da experiência tratado naquele poema<br />

didático.<br />

A intermediação do sóbrio interlocutor varroniano, porém<br />

(Appius), faz com que esta passagem assuma sentidos, antes de<br />

mais nada, descritivos: não se trata de apresentar uma cena com vivacidade<br />

e a recorrência a concretos efeitos imagéticos e, até, sonoros,<br />

8 mas, sobretudo, de relatar de forma apenas direta o comportamento<br />

dos insetos em situações de desavença. Linguisticamente,<br />

em concordância com um subentendido sujeito identificável como<br />

apes (“abelhas”), surgem quase sempre, com monotonia, verbos<br />

conjugados na terceira pessoa do singular do presente do indicativo,<br />

perfazendo a série de atividades caracterizadoras, na fala de Ápio,<br />

7 Cf. Varrão, De re rustica III XVI 8-9 (aqui, citado em minha tradução).<br />

8 Cf., no v. 72 de Virgílio (et uox/ auditur fractos sonitus imitata tubarum – “e uma voz/ é ouvida<br />

à imitação dos barulhos retumbantes de uma tuba” – minha tradução), a marcada aliteração<br />

em “t”, como que a mimetizar o toque marcial de uma trombeta.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

1002<br />

da disciplina e industriosidade das abelhas. Algo assim, por outro<br />

lado, não ocorria na dinâmica dicção de Virgílio, dada a própria<br />

mudança dos sujeitos associáveis a cada verbo conjugado de emprego,<br />

alguma alternância entre a voz passiva e a ativa e, mesmo,<br />

no emprego dos tempos... 9 Do ponto de vista lexical, da mesma<br />

forma que em Virgílio, surgem obviamente expressões evocativas<br />

do âmbito humano da guerra – regem, ut in exercitu, ut colonias,<br />

duces, ut imitatione tubae, signa pacis et belli... –, mas destacamos,<br />

aqui, a diferenciação de planos operada pelo escritor técnico ao<br />

deixar claro, por três vezes (“como no exército”/ “como que colônias”/<br />

“como se imitassem uma trombeta”), que compara, não identifica,<br />

práticas animais com culturais; ainda, a menção em grego ao<br />

erithace, um dos produtos das abelhas com o mel e o própolis, retoma<br />

o viés precisamente técnico do léxico varroniano, tal como<br />

antes o vimos.<br />

Isso posto, encontramos-nos em condições de divisar, com<br />

base nos exemplos tratados, algo do desenho lexical e estilístico das<br />

obras agrárias de Varrão e Virgílio. No primeiro, assim, parecemnos<br />

sobressair, em cumprimento da vocação dialógica e informativa<br />

do diálogo, uma maior precisão técnica e a linearidade comunicativa;<br />

no segundo, por sua vez, tendo o autor optado por fazer poesia<br />

didática “metafórica”, ou seja, não de todo centrada em seus conteúdos<br />

ostensivos, destaca-se a beleza de construção do todo, em detrimento,<br />

muitas vezes, da mera face expositiva de saberes técnicos.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BLOOM, H. Onde encontrar a sabedoria? Tradução de J. R.<br />

O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.<br />

CARDOSO, Z. A. A literatura latina. São Paulo: Martins Fontes,<br />

2003.<br />

9 Assim, exierint (v. 67) pressupõe como sujeito um subentendido apes, bem como exacuunt<br />

(v. 74) e aptant (v. 74), entre outros verbos; miscentur (v. 76) e glomerantur (v. 79) também,<br />

mas, nestes casos, com a introdução variada da voz passiva; pluit (v. 81) e subegit (v. 85),<br />

por sua vez, têm como respectivos sujeitos tantum glandis (v. 81) e grauis uictor (v. 84-85).


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

1003<br />

CATO; VARRO. On agriculture. Translated by W. D. Hooper, revised<br />

by H. B. Ash. Cambridge, Mass./ London: Harvard University<br />

Press, 2006.<br />

DALZELL, A. The criticism of didactic poetry. Toronto/Buffalo/<br />

London: University of Toronto Press, 1996.<br />

GRIMAL, P. A civilização romana. Tradução de Isabel St. Aubyn.<br />

Lisboa: Edições 70, 2009.<br />

HEURGON, J. Introduction. In: VARRON. Économie rurale.<br />

Texte établi, traduit et commenté par J. Heurgon. Paris: Les Belles<br />

Lettres, 2003. Livre I, p. VII-LXXV.<br />

JAKOBSON, R. Linguística e poética. In: JAKOBSON, R. (org.).<br />

Linguística e comunicação. Tradução de A. Chelini et alii. São<br />

Paulo: Cultrix, 1969, p. 118-162.<br />

KROLL, W. La lingua poetica romana. In: LUNELLI, A. (org.). La<br />

lingua poetica latina. Bologna: Pàtron, 1988, p. 1-66.<br />

LEUMANN, M. La lingua poetica latina. In: LUNELLI, A. (org.).<br />

La lingua poetica latina. Bologna: Pàtron, 1988, p. 131-178.<br />

LUCRÈCE. De la nature. Traduction nouvelle par H. Clouard. Paris:<br />

Garnier Frères, 19...<br />

MEO, C. La lingua dell’agricoltura. In: de MEO, C. de. (Org.).<br />

Lingue tecniche del latino. Bologna: Pàtron, 1986, p. 32-58.<br />

SARAIVA, F. R S. Novíssimo dicionário latino-português. Rio de<br />

Janeiro/Belo Horizonte: Garnier, 1993.<br />

SKYDSGAARD, J. E. Varro the scholar: studies in the first book<br />

of Varro’s “De re rustica”. Copenhagen: Einar Munksgaard, 1968.<br />

TREVIZAM, M. A elegia erótica romana e a tradição didascálica<br />

como matrizes compositivas da “Ars amatoria” de Ovídio. Dissertação<br />

inédita submetida ao Programa de Pós-graduação em Linguística<br />

do IEL-UNICAMP, como parte dos requisitos para obtenção<br />

do título de Mestre em Linguística/Letras Clássicas. Campinas:<br />

UNICAMP, 2003.


Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1<br />

1004<br />

______. Heterogeneidade enunciativa e discursiva nas “Geórgicas”<br />

de Virgílio. In: BARBOSA. M. V.; FONTANA, M. G. Z. (orgs.).<br />

Caderno de qualificações. Campinas: IEL-UNICAMP, 2005, p.<br />

185-198.<br />

______. Linguagem e interpretação na literatura agrária latina.<br />

Tese de Doutorado em Linguística/Letras Clássicas. Campinas:<br />

UNICAMP, 2006.<br />

VARRON. Économie rurale. Texte établi, traduit et commenté par<br />

J. Heurgon. Paris: Les Belles Lettres, 2003. Livre I.<br />

______. Économie rurale. Texte établi, traduit et commenté par C.<br />

Guiraud. Paris: Les Belles Lettres, 1997. Livre III.<br />

VIRGILE. Géorgiques. Texte traduit par E. de Saint-Denis. Paris:<br />

Les Belles Lettres, 1998.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!