cidades e possibilidades em vidas secas
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Anais Eletrônicos do IV S<strong>em</strong>inário Nacional Literatura e Cultura<br />
São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128<br />
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CIDADES E POSSIBILIDADES EM VIDAS SECAS<br />
José Allan Nogueira Cavalcante (Ufal)<br />
A partir do caráter potencial da arte, é possível observar que os el<strong>em</strong>entos<br />
externos são selecionados e tornam-se internos. As experiências próprias de cada<br />
autor, sua vivência com a realidade, os conhecimentos que ele adquiriu de forma<br />
direta ou indireta, pod<strong>em</strong> ser apreendidas como matéria para a composição literária.<br />
Este processo, que Antônio Candido chama de redução estrutural, “por cujo<br />
intermédio a realidade do mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional,<br />
componente de uma estrutura literária, permitindo que esta seja estudada <strong>em</strong> si<br />
mesma, como algo autônomo” (1993, p. 9), apesar de não ser uma regra para todos os<br />
escritores, é coerente com o caso de Graciliano Ramos, que <strong>em</strong> entrevistas, depoimentos<br />
e outros escritos, afirma a sua necessidade de criar a partir da própria vivência (ver<br />
CANDIDO, 1992). Por tal motivo, é possível ressaltar el<strong>em</strong>entos contextuais como forma<br />
de <strong>em</strong>basar a análise textual, no caso do presente artigo, observações a respeito das<br />
relações entre o campo e a cidade no Brasil.<br />
Tais relações ocorreram de maneiras peculiares <strong>em</strong> todos os seus períodos<br />
históricos. Explica Pereira de Queiroz (1979, p. 29) que “rural e urbano entretêm um<br />
com o outro relações que s<strong>em</strong>pre estão se modificando; [...] sua forma de<br />
relacionamento, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong>pre ativa, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre será a de oposição”. A pesquisa
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afirma, ainda, que apenas quando a família real transferiu-se para o Rio de Janeiro, as<br />
diferenças começaram a aparecer:<br />
Viver na cidade passou a ter valor, na medida <strong>em</strong> que se confundia com<br />
"viver na Corte", <strong>em</strong> contato com os "grandes" e o poder. E foi a partir desse<br />
momento que um novo ritmo de vida iniciou seu processo, segundo o qual<br />
se passava mais t<strong>em</strong>po na cidade e períodos mais curtos de férias na<br />
fazenda. (PEREIRA DE QUEIROZ, 1979, p. 40)<br />
No estudo As migrações campo-cidade: diferentes enfoques interpretativos<br />
(2005), os autores levantam diversos fatores para os movimentos de migração, que se<br />
tornaram mais constantes entre as décadas de 1930 e 1940. Segundo o texto existiram<br />
motivações de expulsão do campo (a mecanização, mudanças climáticas, grilag<strong>em</strong> de<br />
terra) e de atração na cidade (crescimento do comércio, <strong>possibilidades</strong> de<br />
estabilidade) que forçaram a migração: “as modificações no campo e na cidade<br />
introduz<strong>em</strong> novas formas de contextualização [...] provocando a mobilidade espacial<br />
de milhares de famílias que s<strong>em</strong> muitas esperanças no campo segu<strong>em</strong> para a cidade”<br />
(ROCHA DE PAULA, CLEPS JÚNIOR, 2005, p.1).<br />
Em seu texto sobre a categoria da particularidade, George Lukács (1978, p. 262)<br />
nos apresenta um el<strong>em</strong>ento que compõe o universo literário, mas que, segundo ele,<br />
t<strong>em</strong> seu conceito subordinado às regras universais, visto que nele é possível<br />
identificar o caráter da particularidade: o tipo. Diz o autor que este tipo é o<br />
“compêndio concentrado daquelas qualidades que – por uma necessidade objetiva –<br />
derivam de uma posição concreta determinada na sociedade, sobretudo no processo de<br />
produção”. Por esta ótica, é possível relacionar os tipos criados por Graciliano Ramos
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com seres reais, que <strong>em</strong>bora não individualizados apresentam características<br />
s<strong>em</strong>elhantes às dadas pelo escritor alagoano aos seus personagens.<br />
Em sua leitura sobre o romance de Graciliano Ramos, intitulado Vidas <strong>secas</strong> –<br />
os desejos de sinha Vitória (2001), Belmira Magalhães faz um paralelo entre o que é<br />
narrado no livro e o contexto real no qual ele está inserido:<br />
Vidas <strong>secas</strong> é a representação de um olhar sobre a realidade que, ao<br />
constatar a impossibilidade de mudança da estrutura agrária a partir dela<br />
própria, propõe às personagens a fuga para outros lugares <strong>em</strong> que as<br />
relações sociais possibilit<strong>em</strong>, qu<strong>em</strong> sabe, uma transformação global, que<br />
acabe, inclusive, com as <strong>secas</strong> fabricadas. (MAGALHÃES, 2001, p. 13 e 14)<br />
A partir das características dadas aos protagonistas do romance é admissível<br />
analisar a sua relação com el<strong>em</strong>entos citadinos, tendo <strong>em</strong> vista que a possibilidade de<br />
transformação também é proposta, no romance, a partir do contato de tais<br />
personagens com vários signos da cidade: outros moradores, configuração espacial, a<br />
área urbana <strong>em</strong> que acontece a festa, etc..<br />
Diferentes concepções de cidade para Fabiano e sinha Vitória<br />
Em Vidas <strong>secas</strong>, t<strong>em</strong>os um enredo centrado nos caminhos percorridos por<br />
personagens componentes de uma família nordestina: Fabiano, sinha Vitória, o<br />
menino mais velho, o menino mais novo e, junto destes, a cachorra Baleia. O<br />
personag<strong>em</strong> Fabiano é um ser rude e t<strong>em</strong> dificuldade de comunicação. T<strong>em</strong> como<br />
característica a submissão e o sentimento de impotência diante da realidade que lhe é<br />
dada: “Era sina. O pai vivera assim, o avo também. E para trás não existia família.
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Cortar mandacaru, ensebar látegos - aquilo estava no sangue. Conformava-se, não<br />
pretendia mais nada” (RAMOS, 2007, p. 97).<br />
Na relação de Fabiano com sinha Vitória há uma disparidade de pensamento,<br />
tendo como simbologia maior para a discordância a l<strong>em</strong>brança de um antigo vizinho,<br />
seu Tomás da bolandeira, visto que principal desejo de sinha Vitória é baseado <strong>em</strong><br />
um pertence deste personag<strong>em</strong>: “sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e<br />
sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira” (RAMOS, 2007, p. 46).<br />
O desejo de sinha Vitória, <strong>em</strong> detrimento à situação <strong>em</strong> que se encontrava<br />
naquele momento – dormia numa cama de varas – deu à personag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina o<br />
papel de fazer os contrapontos à situação de exploração <strong>em</strong> que viviam e ao<br />
conformismo do marido, e, com isso, dá movimento ao romance. Nas palavras de<br />
Magalhães (2001, p. 135)<br />
“está posta a característica dessa mulher, que é a<br />
representação metafórica do ser social, possível nessas paragens: pensa, reflete, faz<br />
associações e t<strong>em</strong> desejos, que a impulsionam <strong>em</strong> busca de satisfazê-los”.<br />
O menino mais velho e o menino mais novo são personagens com significações<br />
que perpassam a identificação apenas de uma família tradicional. O primeiro dado<br />
importante que se t<strong>em</strong> sobre as crianças: não têm nome. Murta (1988, p.16), <strong>em</strong> seu<br />
estudo sobre os nomes próprios neste romance, afirma que o principal objetivo <strong>em</strong> não<br />
dar nome a tais personagens seria o de “acentuar, de maneira radical, a partir mesmo<br />
do nascedouro, a coisificação, a reificação do indivíduo, posto que, filhos de
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paupérrimos, explorados retirantes, seus futuros, suas sinas, seriam s<strong>em</strong>elhantes às<br />
dos pais”.<br />
Mais do que indicar uma importância menor a esses personagens, também é<br />
possível interpretar essa não nomeação a partir da relação com os outros tipos<br />
construídos no romance. O fato dos meninos ser<strong>em</strong> novos indica que estavam<br />
desenvolvendo suas personalidades, e que iriam, provavelmente, adquirir<br />
características do contexto com o qual se relacionavam, principalmente de sinha<br />
Vitória e Fabiano. A relação dos meninos com a cidade no romance também passa<br />
por este aprendizado, junto aos pais.<br />
Nos dois capítulos iniciais do romance exist<strong>em</strong> algumas indicações de<br />
conceitos a respeito da cidade a partir do pensamento de Fabiano. O vaqueiro,<br />
acostumado com a vida afastada de maiores movimentações, mostra satisfação com a<br />
rotina que levava no meio da fazenda, inclusive com o fato de ter um vocabulário<br />
escasso, apesar de admirar a capacidade de comunicação de outras pessoas:<br />
Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se<br />
dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco.<br />
Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava<br />
reproduzir algumas, <strong>em</strong> vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez<br />
perigosas. (RAMOS, 2007, p. 20)<br />
No capítulo Cadeia estão os primeiros momentos do romance <strong>em</strong> que as ações<br />
se dão no espaço da cidade. Nela, Fabiano entra <strong>em</strong> confusão com o soldado amarelo<br />
e é preso. No momento <strong>em</strong> que está sendo detido, há uma descrição da cidade e de<br />
seus caracteres. O vaqueiro expressava oposição, <strong>em</strong> pensamento, a partir da
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intervenção do narrador, para alguns dos el<strong>em</strong>entos descritos neste espaço, como o<br />
dono da bodega e os caixeiros viajantes, construindo o conceito da cidade como um<br />
lugar negativo.<br />
Fabiano achava que todos iriam ludibriá-lo e caçoar dele, dessa forma, v<strong>em</strong>os<br />
a ênfase na relação campo-cidade mais uma vez, onde “o comportamento do<br />
indivíduo varia conforme esteja ele no campo ou na cidade” (PEREIRA DE<br />
QUEIROZ, 1979, p. 40) ou, como é narrado <strong>em</strong> Vidas <strong>secas</strong>, “na catinga ele às vezes<br />
cantava de galo, mas na rua encolhia-se” (RAMOS, 2007, p. 30) – mas, por mais que<br />
houvesse novos el<strong>em</strong>entos naquele contexto, o vaqueiro também fazia parte daquela<br />
realidade.<br />
É no capítulo Festa que a dualidade de pensamento entre Fabiano e sinha<br />
Vitória, suas características individuais descritas anteriormente, terão como foco a<br />
experiência na cidade. O sentimento de estranhamento é presente <strong>em</strong> todos os<br />
m<strong>em</strong>bros da família neste caso, desde a maneira que tiveram que se vestir, que<br />
diferia de como estavam habituados dentro da fazenda:<br />
Fabiano, apertado na roupa de brim branco feita por sinha Terta, com<br />
chapéu de beata, colarinho, gravata, botinas de vaqueta e elástico,<br />
procurava erguer o espinhaço, o que ordinariamente não fazia. Sinha<br />
Vitória, enfronhada no vestido vermelho de ramagens, equilibrava-se mal<br />
nos sapatos de salto enorme. Teimava <strong>em</strong> calçar-se como as mocas da rua -<br />
e dava topadas no caminho. (RAMOS, 2007, p. 71)<br />
Na cidade, a reação frente ao contexto vai se dar de acordo com a<br />
personalidade de cada m<strong>em</strong>bro. É aqui que Fabiano concluirá que “todos os
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habitantes da cidade eram ruins” (RAMOS, 2007, p. 76). De fato, o vaqueiro era o que<br />
mais se incomodava com o fato de estar<strong>em</strong> <strong>em</strong> um espaço diferente do seu canto na<br />
fazenda. Isso influenciará, inclusive, na dificuldade de Fabiano <strong>em</strong> abandonar o<br />
campo.<br />
Trechos descritos pelas personagens, através do narrador, mostram a sensação<br />
de novidade que o contato com o meio citadino lhes proporcionava, o fato de existir<br />
muitas pessoas aglomeradas foi fator de observação para todas elas. O vaqueiro se<br />
achava <strong>em</strong> território inimigo: “Olhou as caras <strong>em</strong> redor. Evident<strong>em</strong>ente as criaturas<br />
que se juntavam ali não o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, t<strong>em</strong>ia<br />
envolver-se <strong>em</strong> questões e acabar mal à noite” (RAMOS, 2007, p. 75). É com esse<br />
contato com um número maior de pessoas, com a multidão que “apertava-o mais que a<br />
roupa” (RAMOS, 2007, p. 75) que Fabiano terá repulsa ainda mais forte aos tipos<br />
componentes daquele local:<br />
Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso<br />
desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava<br />
conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. [...] Todos<br />
lhe davam prejuízo. Os caixeiros, os comerciantes e o proprietário tiravamlhe<br />
o couro, e os que não tinham negocio com ele riam vendo-o passar nas<br />
ruas, tropeçando. Por isso Fabiano se desviava daqueles viventes (RAMOS,<br />
2007, p. 76)<br />
Era a primeira vez que os meninos iam à cidade. Como estavam acostumados<br />
com a calmaria de dentro da fazenda, a multidão lhes assustava, e eles se questionavam<br />
“Como podia haver tantas casas e tanta gente? Com certeza os homens iriam brigar.<br />
Seria que o povo ali era brabo e não consentia que eles andass<strong>em</strong> entre as barracas? [...]
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os pequenos retraiam-se, encostavam-se as paredes” (RAMOS, 2007, p. 74). O<br />
pensamento de Baleia também era próxima a deles, como mostram os trechos<br />
seguintes:<br />
Achava é que perdiam t<strong>em</strong>po num lugar esquisito, cheio de odores<br />
desconhecidos. Quis latir, expressar oposição a tudo aquilo, mas percebeu<br />
que não convenceria ninguém e encolheu-se, baixou a cauda, resignou-se ao<br />
capricho dos seus donos. (RAMOS, 2007, p. 81)<br />
Em todo caso, por mais que os meninos d<strong>em</strong>onstrass<strong>em</strong> t<strong>em</strong>or ao que estavam<br />
vendo, também ficaram admirados, e mostraram animação ao constatar novos fatos:<br />
“supunham que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos maravilhosos na<br />
serra azulada” (RAMOS, 2007, p. 74).<br />
Apenas sinha Vitória via de forma positiva a experiência que passava na<br />
cidade. O movimento a deixava extasiada e interessada <strong>em</strong> participar da festa. Ela<br />
olhava “com interesse o formigueiro que circulava na praça, a mesa do leilão, as<br />
listas luminosas dos foguetes” (RAMOS, 2007, p. 80) e concluía, por isso, que<br />
“realmente a vida não era má” (RAMOS, 2007, p. 80). Além disso, sinha Vitória<br />
enfatizava seu t<strong>em</strong>or <strong>em</strong> relação aos t<strong>em</strong>pos de maior miséria no sertão e fazia uma<br />
dualidade com o que vivia naquele instante: “Pensou com um arrepio na seca, na<br />
viag<strong>em</strong> medonha que fizera <strong>em</strong> caminhos abrasados, vendo ossos e garranchos.<br />
Afastou a l<strong>em</strong>brança ruim, atentou naquelas belezas” (RAMOS, 2007, p. 80).<br />
A cidade como oportunidade de transformação
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Depois da experiência da Festa, Fabiano ainda voltaria até o espaço urbano, no<br />
capítulo Contas, para resolver sobre o pagamento de seus serviços na fazenda do<br />
patrão. Ele r<strong>em</strong><strong>em</strong>ora, a partir do narrador <strong>em</strong> discurso indireto, uma passag<strong>em</strong> que<br />
aconteceu na cidade <strong>em</strong> que se sentiu ludibriado pelo cobrador de impostos da<br />
prefeitura, que o impediu de vender pedaços de carne de porco – “daquele dia <strong>em</strong><br />
diante não criara mais porcos. Era perigoso criá-los” (RAMOS, 2007, p. 96).<br />
Neste capítulo, Fabiano ainda toma as pessoas da cidade como referência, na<br />
questão da capacidade de comunicação, ao refletir sobre a sua brutalidade e a<br />
aptidão de sinha Terta, que “falava quase tão b<strong>em</strong> como as pessoas da cidade”<br />
(RAMOS, 2007, p. 98). Nesta ocasião, Fabiano já t<strong>em</strong> alguma consciência da<br />
importância das habilidades que são adquiridas <strong>em</strong> contato com outros seres<br />
humanos – “Muito bom uma criatura ser assim, ter recurso para se defender. Ele não<br />
tinha. Se tivesse, não viveria naquele estado” (RAMOS, 2007, p. 99) –, mas ainda<br />
assim preferia não se aproximar delas: “Não gostava de se ver no meio do povo.<br />
Falta de costume” (RAMOS, 2007, p. 98).<br />
No episódio O mundo coberto de penas, a admiração que Fabiano sentia por<br />
sinha Vitória cresce, pois ele reflete a respeito de uma frase da esposa, na qual ela<br />
dizia que as arribações “queriam matar o gado” (RAMOS, 2007, p. 109) e conclui que<br />
esposa estava certa. L<strong>em</strong>bra-se da mulher como uma pessoa capaz, e isso lhe traz<br />
alguma animação: “esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantado com a<br />
esperteza de sinha Vitória. Uma pessoa como aquela valia ouro. Tinha idéias, sim
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senhor, tinha muita coisa no miolo. Nas situações difíceis encontrava saída”<br />
(RAMOS, 2007, p. 110). Essas l<strong>em</strong>branças estimulam Fabiano <strong>em</strong> buscar uma vida<br />
diferente e abandonar o sertão, apesar do receio que tinha <strong>em</strong> enfrentar algo novo.<br />
Fuga, o último capítulo do romance, indica de forma mais clara ser a cidade o<br />
el<strong>em</strong>ento principal na movimentação do enredo de Vidas <strong>secas</strong>. A personag<strong>em</strong> sonha<br />
Vitória vence as resignações do marido, que ainda nutria esperança <strong>em</strong> algum milagre<br />
que fizesse com que eles não se retirass<strong>em</strong> do campo. Convence Fabiano que seria<br />
melhor buscar um novo lugar, com novas oportunidades para seus filhos e para eles<br />
próprios, e no fim, o vaqueiro concluía que “Ela devia ter razão. Tinha s<strong>em</strong>pre razão”<br />
(RAMOS, 2007, p. 123):<br />
Aproximavam-se agora dos lugares habitados, haveriam de achar morada.<br />
Não andariam s<strong>em</strong>pre à toa, como ciganos. O vaqueiro ensombrava-se com<br />
a idéia de que se dirigia a terras onde talvez não houvesse gado para tratar.<br />
Sinha Vitória tentou sossegá-lo dizendo que ele poderia entregar-se a outras<br />
ocupações [...] Agora Fabiano estava meio otimista. (RAMOS, 2007, p. 121 e<br />
122)<br />
A cidade, por enquanto existente apenas na imaginação das personagens,<br />
toma o significado descrito por Rocha de Paula e Cleps Júnior (2005, p.5) ao<br />
afirmar<strong>em</strong> que “na contextualização das <strong>cidades</strong> observamos que o espaço urbano<br />
torna-se símbolo [...] da busca de melhores condições de vida e que o rural, torna-se<br />
‘atrasado’, um espaço difícil de viver e ‘progredir’ na vida”.<br />
Ao discutir sobre o futuro dos filhos, mais uma vez a cidade aparece como<br />
possibilidade de vida melhor, <strong>em</strong> contraponto ao campo:
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Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde havia montes<br />
baixos, cascalhos, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo, gente<br />
morrendo. Não voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os<br />
sertanejos na mata. Então eles eram bois para morrer tristes por falta de<br />
espinhos? Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes.<br />
Fabiano ouviu os sonhos da mulher, deslumbrado, relaxou os músculos, e o saco<br />
da comida escorregou-lhe no ombro. Aprumou-se, deu um puxão a carga. A<br />
conversa de sinha Vitória servira muito: haviam caminhado léguas quase s<strong>em</strong><br />
sentir. (RAMOS, 2007, p. 123 e 124)<br />
Neste ponto do romance já estava colocada a proposta para o povo do sertão,<br />
que era explorado pelo latifúndio naquele momento histórico, e não apenas para<br />
aquelas personagens que participam do enredo, como argumenta Belmira Magalhães<br />
(2001, p.155): “A partir da cidade é que <strong>em</strong>ergirá a possibilidade de transformação, o<br />
latifúndio ficaria como estava, a estrutura rural permaneceria inalterada”.<br />
Marshall Berman (1990, p. 158), comentando a respeito da idéia exposta por<br />
Baudelaire <strong>em</strong> seus textos poéticos sobre a modernização de Paris, coloca que a<br />
cidade possibilita que sujeitos de mesma sorte se reúnam e busqu<strong>em</strong> as mudanças:<br />
“as multidões de solitários, que faz<strong>em</strong> da cidade moderna o que ela é, se reún<strong>em</strong>, <strong>em</strong><br />
uma nova forma de encontro, e se tornam povo. ‘As ruas pertenc<strong>em</strong> ao povo’:<br />
assum<strong>em</strong> controle da matéria el<strong>em</strong>entar da cidade e a tornam sua”. A massa presente<br />
na cidade t<strong>em</strong> condição de conscientizar-se enquanto classe e buscar as<br />
transformações que torn<strong>em</strong> dignas as suas existências.<br />
Transformação no cin<strong>em</strong>a: o filme rumo à cidade
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É lugar comum afirmar, atualmente, que a relação entre o cin<strong>em</strong>a e a<br />
literatura, no sentido de adaptação, não passa pelo crivo de uma suposta ‘fidelidade’<br />
para afirmar a sua qualidade e/ou importância. Para estudiosos como Randal<br />
Johnson (1982, p. 6) e outros que se dedicam a tais estudos na cont<strong>em</strong>poraneidade, a<br />
adaptação está mais para uma recriação, pelo cin<strong>em</strong>a, da obra escrita.<br />
Por tal motivo, pode-se afirmar que esta discussão a respeito da cidade como<br />
oportunidade de transformação é menos óbvia no filme, visto que apenas <strong>em</strong><br />
momentos de diálogos específicos o assunto v<strong>em</strong> à tona – diferente do romance, que<br />
faz esta reflexão <strong>em</strong> várias passagens. Além disso, na maior parte da narrativa fílmica<br />
não fica tão clara a oposição entre o casal protagonista a respeito da cidade, já que é<br />
notável a repulsa de Fabiano, mas não o estímulo de sinha Vitória.<br />
Em todo caso, é possível afirmar que esta concepção de cidade como fuga se<br />
faz presente no filme por questões fílmicas, assim como tendo <strong>em</strong> vista el<strong>em</strong>entos<br />
externos à obra, mas que se relacionam com ela. Em entrevista a Paulo Roberto<br />
Ramos (2007, p. 332), Nelson Pereira dos Santos, diretor do longa-metrag<strong>em</strong>, afirma<br />
que "os personagens de Vidas <strong>secas</strong> e muita ‘gente bruta’ como eles procuram mudar<br />
para a cidade, quer dizer, a cidade grande, com escolas e trabalho. No sertão ficam os<br />
velhos e doentes, incapazes de fazer revoluções". O realizador afirma ainda, na<br />
mesma entrevista, que tentou se aproximar desta forma, das discussões a respeito da<br />
questão agrária no Brasil, assim como havia feito Graciliano Ramos na década de<br />
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Na sequência final, a obra audiovisual afirma esta posição de forma mais<br />
direta, quando as falas dos personagens se aproximam de forma mais direta do<br />
diálogo que encerra o romance, além de, na mesma sequência, existir um trabalho<br />
com a imag<strong>em</strong> que permite interpretar, a partir de pressupostos de leitura imagéticas<br />
de Marcel Martin (2005), que a fam ília está deixando o ambiente do sertão e indo<br />
<strong>em</strong>bora para uma cidade, já que neste momento os atores caminham <strong>em</strong> direção ao<br />
horizonte, de costas para a câmera, que está parada, enquanto o letreiro do filme<br />
exibe a frase final do romance (RAMOS, 2006, p. 128): “O sertão mandaria para a<br />
cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos”.<br />
Desta maneira, é possível interpretar que Vidas <strong>secas</strong>, na literatura e no<br />
cin<strong>em</strong>a, propõ<strong>em</strong> que há “uma terra desconhecida e civilizada” <strong>em</strong> que os viventes<br />
de áreas campestres, antes explorados, terão a oportunidade de construir estas<br />
transformações. A partir do contato com a realidade citadina e olhando para o sertão<br />
com uma maior consciência da situação que aquela região apresenta, estes novos<br />
cidadãos poderão, inclusive, lutar pelas mudanças que elimine o movimento<br />
insistente que faz com que novos Fabianos, sinhas Vitórias e os seus meninos<br />
continu<strong>em</strong> explorados e obrigados à migração.<br />
Referências<br />
BERMAN, Marshall. Baudelaire: o Modernismo nas ruas. In Tudo que é sólido se<br />
desmancha no ar. São Paulo: Companhia das letras, 1990.
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