Gógol | Avenida Niévski & História da rixa entre os Ivans (amostra)
Participe até 8 novembro 2020: catarse.me/gogol-e-otto | O leitor que se deixar envolver pela História da rixa entre os Ivans (1835), afora rir-se deliciosamente (assim o fizeram tipógrafos que o puseram em livro em 1835), há de nela encontrar a estrutura da triste história de Caim e Abel, narrativa do gênero humano. Com efeito, os vizinhos Ivan Ivánovitch e Ivan Nikíforovitch, de grandes amigos passam a empedernidos contendores — por uma trágica confusão dos diabos (tema caríssimo a Nikolai Gógol).
Participe até 8 novembro 2020: catarse.me/gogol-e-otto | O leitor que se deixar envolver pela História da rixa entre os Ivans (1835), afora rir-se deliciosamente (assim o fizeram tipógrafos que o puseram em livro em 1835), há de nela encontrar a estrutura da triste história de Caim e Abel, narrativa do gênero humano. Com efeito, os vizinhos Ivan Ivánovitch e Ivan Nikíforovitch, de grandes amigos passam a empedernidos contendores — por uma trágica confusão dos diabos (tema caríssimo a Nikolai Gógol).
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NIKOLAI GÓGOL
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capítulo i
O Ivan Ivánovitch
e o Ivan Nikíforovitch
ue extraordinário casaco possui Ivan Ivánovitch! Maravilhoso
mesmo! Que astracã ele tem! Puxa, oh! diabo, é dum
cinza azulado como a geada! Duvido que alguém o tenha
Qigual. Procure, pelo amor de Deus, observá-lo — especial-
mente quando ele estiver conversando —, contemple-o de lado:
que delícia! Nem se pode descrever: veludo! Prata! Fogo! ó meu
Deus do céu! Milagroso, santíssimo Nicolau!
Por que não hei de possuir também um casaco assim? Foi
manufaturado numa época em que Agáfia Fiedossêevna ainda
não fazia aquelas suas viagens a Kiev. Não conhecem Agáfia
Fiedossêevna, a tal que deu uma dentada na orelha do conselheiro
de Estado?
Ivan Ivánovitch é uma excelente criatura! Que bela casa possui
em Mírgorod! Em torno da residência há uma varanda apoiada
em vigas de carvalho, e sob toda ela os bancos. Quando se eleva a
temperatura, despindo o casaco e as roupas de baixo, apenas em
camisola, Ivan Ivánovitch, sentado na varanda, descansa e observa
o quintal e a rua. Oh! as maçãs e as peras que tem sob suas janelas!
Basta abrir uma — e os galhos parece que entram pelo quarto
dentro. Pois isto é apenas o que fica na frente da casa; se vissem os
pomares! Que é que não existe neles! Ameixeiras, cerejeiras, toda
a espécie de legumes, girassóis, pepinos, melões, gravetos, eira e
até uma ferraria.
Que homem notável é este Ivan Ivánovitch! Adora melão. Seu
prato predileto. Imediatamente após o almoço, quando, apenas em
camisa, vem descansar sob a varanda, ordena que Gapka lhe traga
dois melões. Após parti-los, ele próprio separa as sementes num
papel previamente preparado, e senta-se para saboreá-los. A seguir,
manda Gapka trazer-lhe o tinteiro e, do próprio punho, escreve
no tal papel: “Comi este melão no dia...”. E quando alguma visita
assiste por acaso à cena, lá fica registrado: “Participou fulano de tal”.
O falecido juiz de Mírgorod era grande admirador da residência
de Ivan Ivánovitch. Sim, senhor, não é das piores a casinha. Ainda
mais me agrada por ser toda circundada de varandas e varandins;
por isso, quem a fita de longe, apenas vê telhados superpostos,
lembrando antes um prato de panquecas, ou melhor, essas esponjas
que nascem nos troncos das árvores. Aliás, todos os telhados são
cobertos de junco; sobre eles espalham seus ramos o salgueiro, o
carvalho e duas macieiras. Por entre as árvores, aparecem e desaparecem,
como se saltassem para a rua pequenas janelinhas com
venezianas brancas.
Que estupendo homem, esse Ivan Ivánovitch! O próprio
comissário de Poltava o conhece também. Sempre que regressa de
Khorol, este Dóroch Tarássovitch Pukhivôtchka faz-lhe sua visitinha.
Quando se reúnem em sua casa pelo menos cinco pessoas, o
arcipreste de Koliberd, Pedro, afirma infalivelmente não conhecer
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outra pessoa tão cumpridora de seus deveres cristãos como Ivan
Ivánovitch.
Ó Deus meu, como voa o tempo! Já nessa época mais de dez
anos eram passados desde que enviuvara. Filhos, nunca os teve.
Gapka os possui, e eles correm pelo quintal. Ivan Ivánovitch sempre
distribui entre os mesmos, ou rosquinhas, ou fatias de melão, ou
peras. Gapka traz as chaves das despensas e dos celeiros; contudo, ele
não confia a pessoa alguma as do cofre grande de seu quarto e a da
despensa do centro, pois não gostaria de ver ninguém nesses locais.
Gapka, rapariga forte, usa sarafana, tem bochechas e panturrilhas
bastante desenvolvidas.
E como é devoto o nosso Ivan Ivánovitch! Todos os domingos,
põe o casaco e vai à igreja. Ao subir a escada, vai distribuindo cumprimentos
aos presentes, dirigindo-se à ala do coro, o qual, com voz de
baixo, acompanha muito bem. Concluído o ofício religioso, Ivan
Ivánovitch não se contém e passa em revista a todos os mendigos.
Talvez não lhe seja muito agradável ocupar-se com tão fastidioso
assunto, porém sua inata bondade obriga-o a proceder dessa forma.
— Saúde, pobre velhinha! — exclama geralmente, procurando
a mais estropiada e esfarrapada mendiga. — De onde vens, infeliz?
— Estou arribando da vila, meu senhor, meus próprios filhos
me expulsaram de lá, há três dias não como nem bebo.
— Coitadinha! Mas p’ra que vieste para cá?
— Meu senhor, vim pedir esmolas e ver se alguém, por dó de
mim, quer me dar um pedaço de pão.
— Hum! Será que tens mesmo vontade de comer pão? — indagava
geralmente.
— Oh! se quero! Estou mais esfomeada do que um cão.
— Hum! — retrucava então Ivan Ivánovitch: — sem dúvida,
vais também querer carne, não é?
— Ficarei satisfeita com aquilo que sua graça me conceder.
— Hum! Será a carne mais gostosa do que o pão?
História da rixa entre os Ivans
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— Pobre não tem direito de escolher. Agradece tudo que lhe dão.
E assim dizendo, em geral a anciã lhe estendia a mão.
— Vai com Deus! — exclamava Ivan Ivánovitch. — Por que
estás te defendendo com a mão? Não te estou espancando! — e
dirigindo-se a outras com idênticas perguntas, tornava afinal a casa,
quando não ia tomar um cálice de vodca na residência do vizinho,
Ivan Nikíforovitch, ou na do juiz, ou na casa do delegado municipal.
Ivan Ivánovitch adora receber presentes e ser festejado. São
coisas que lhe agradam imensamente.
Ótima pessoa também é Ivan Nikíforovitch. Seu quintal limita
com o de Ivan Ivánovitch. Mas, além disso, são grandes amigos,
como ainda não os concebeu o mundo. Anton Prokôfievitch
Golopuz, que até hoje usa paletó marrom de mangas azuis, e almoça
aos domingos na casa do juiz, afirmava que o próprio diabo atara
esses dois amigos com uma corda. Se um lá vai andando, infalivelmente
o outro arrastar-se-á atrás.
Ivan Nikíforovitch jamais se casou. Correram boatos de
que o fizera; tudo porém era mentira. Conheço perfeitamente
o Nikíforovitch; posso afirmar, com toda a certeza, que nunca
manifestou intenções a esse respeito. Contudo, alguém sempre
difunde tais rumores. Foi dessa forma que inventaram também
que Nikíforovitch nascera com rabo. É tão absurda porém, e ao
mesmo tempo abominável e indigna essa intriga, que acho desnecessário
até negá-la perante os cultos e instruídos leitores, os quais
naturalmente, sabem muito bem que rabo só o têm certas bruxas,
que aliás pertencem ao sexo feminino.
Apesar da grande amizade que unia tão raros amigos, os respectivos
gênios não eram lá muito compatíveis. A fim de que se possa
conhecer melhor seus temperamentos vamos compará-los: Ivan
Ivánovitch possui o dom especial da palavra; quando faz uso do
verbo, todos ficam embevecidos. Deus meu, como fala bem! Ao
ouvi-lo, a gente tem uma sensação apenas comparável àquela que
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sente quando nos fazem cafuné, ou alguém passa muito de leve
o dedo pela sola de nosso pé. A gente mesmo ouve-o, ouve-o até
cabecear de sono. É delicioso, extraordinariamente delicioso, tal o
sono após o banho. Ao contrário, Ivan Nikíforovitch é mais calado;
no entanto, por isso mesmo, sempre que profere uma palavra,
não há quem resista: corta mais do que navalha. O Ivánovitch é
magro e alto; o Nikíforovitch, um pouco mais baixo — entretanto,
por isso amplia-se na largura. O crânio de Ivánovitch parece um
rabanete com a cauda para baixo; o de Nikíforovitch, ao contrário,
lembra um rabanete com a cauda para cima. Somente depois
do almoço, vestindo apenas uma camisa, Ivánovitch repousa na
varanda; à noitinha, envergando o casaco, sai a dar umas voltas, ou
dirige-se ao armazém da cidade, ao qual fornece farinha, ou vai ao
campo caçar codornizes. Nikíforovitch passa o dia todo deitado
na varanda — quando não faz muito calor, expõe as costas ao sol
— e não tem desejo de ir a parte alguma. Às vezes, quando cisma,
dá um passeio de manhã pelo quintal, examina o serviço todo e
retorna ao descanso. Antigamente, de vez em quando visitava seu
amigo Ivánovitch. Este é um homem demasiadamente polido,
pois numa conversação normal é incapaz de proferir uma palavra
indecorosa, ofendendo-se, imediatamente, ao ouvi-la de alguém.
De vez em quando, Nikíforovitch se descuida; nesse momento,
erguendo-se, exclama Ivánovitch: “Basta, basta, Ivan Nikíforovitch;
não blasfeme dessa maneira, olhe para o céu”. Se lhe cai no borche
uma mosca, Ivánovitch fica furioso; completamente transtornado
— atira fora o prato e passa uma descompostura no próprio anfitrião.
Nikíforovitch adora banhar-se, por isso quando mergulha
até o pescoço na água, manda que se ponha na banheira o samovar
e a mesa, pois gosta de tomar seu chazinho, ao mesmo tempo
que se refresca. Ivánovitch faz a barba duas vezes por semana;
Nikíforovitch apenas uma. Ivánovitch é extremamente curioso.
Livre Deus alguém que principie e não conclua uma história perto
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5
dele! Também, se não lhe agrada algo, vai logo dando a entender. É
muito difícil saber, pela aparência, se Nikíforovitch está contente
ou zangado; ainda que lhe agrade qualquer coisa, não se manifesta.
Ivánovitch é um caráter um tanto medroso. Nikíforovitch, pelo
contrário, usa pantalonas de tão largas pregas que cheias de ar nelas
se acomodariam as cocheiras, celeiros e todas as coisas que existem
no quintal. Ivánovitch possui grandes e expressivos olhos, cor de
tabaco e a boca parecida com a letra íjitzaV; já Nikíforovitch tem
olhos amarelados e pequenos, completamente enterrados entre as
sobrancelhas grossas e as bochechas gordas, e o nariz é igualzinho
a ameixa madura. Ao oferecer-lhe tabaco, Ivánovitch primeiro
passa a língua na tampinha da tabaqueira, dando-lhe batidas
leves com os dedos; caso o conheça, pergunta-lhe: “Quer dar-me
a honra de servir-se?”; se não o conhece, diz então: “Concede-me
a honra, malgrado desconhecer-lhe nome e título, de servir-se?”
Ivan Nikíforovitch, porém, mete-lhe logo a tabaqueira nas mãos,
acrescentando apenas: “Sirva-se”. Tanto Ivan Ivánovitch como
Ivan Nikíforovitch detestam pulgas; razão por que, nenhum dos
dois, de maneira alguma deixa passar o judeu mercador sem lhe
comprar alguns potes de remédio contra tais parasitas, e além disso,
ainda o afrontam por praticar a religião hebraica.
Em que pese a alguma dissemelhança entre ambos, tanto Ivan
Ivánovitch como Ivan Nikíforovitch, indiscutivelmente, são excelentes
criaturas.
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«Serão seus mesmos os lábios que acabam de
proferir essas palavras? Repita-as! Talvez
alguém se ocultou às suas costas, e fala em
seu nome?» (História da rixa entre os Ivans)