A representação feminina nos lendários gaúcho e quebequense
A representação feminina nos lendários gaúcho e quebequense
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desejo de vingança e ciúmes com relação a Eva, criada depois dela para substituí-la – criada<br />
não mais de barro, como Adão ou Lilith (fato apontado como a causa do desentendimento<br />
entre Lilith e Adão), mas de uma costela deste último –, Lilith retorna ao mundo dos homens,<br />
descendentes de Adão e Eva, para fazer-lhes mal.<br />
O mito de Lilith tem por função afastar dela os homens, alertando-os do perigo que<br />
representa para eles. Sua função principal, contudo, é alertar as mulheres: aquela que não<br />
segue a lei de Adão será rejeitada, eternamente insatisfeita e fonte de infelicidade. O final do<br />
conto de Anatole France “La fille de Lilith” (A filha de Lilith), no livro Balthasar 72 ,<br />
estabelece com essa heroína um paralelo feminino do “Holandês Voador”, que aspira ao<br />
destino de Eva e à condição de mortal para conhecer “a vida” e “o prazer” (COUCHAUX, in<br />
BRUNEL, 2005, p. 583).<br />
No entanto, a evolução do mito no correr dos textos, e suas ressurgências repetidas <strong>nos</strong><br />
tempos moder<strong>nos</strong>, tendem a atrair <strong>nos</strong>sa atenção de maneira particular para essa figura<br />
<strong>feminina</strong> – que também representa uma visão da vida, do mundo humano e da hierarquia que<br />
o governa – rejeitada pela sociedade dos homens, mas que se deseja fazer conhecer, “às<br />
avessas”, se necessário, pelo mal que lhes faz. Assim, e com base nessa sua relação com o<br />
mal, Lilith será sempre ligada e lembrada pelas forças do mal que respondem às forças da<br />
vida. Ela mostrará justamente que o ponto de equilíbrio entre dia e noite, obscuridade e luz,<br />
feminino e masculino é possível sem que nenhum julgamento de valor ou relação de<br />
dominação possam ser atribuídos a uma ou outra parte do mesmo todo, sob pena de para ele<br />
acarretar conseqüências nefastas. Ela também tenta <strong>nos</strong> dizer que há sempre algo a descobrir<br />
com resultados benéficos para o conjunto, em qualquer parte rejeitada da criação que, de<br />
muito longe, continua a <strong>nos</strong> acenar. No que tange ao objetivo de Lilith, ele vai ao encontro do<br />
da Corriveau e da Teiniaguá, também personagens do discurso mítico utilizadas como forma<br />
de alertar as mulheres: aquelas que não cumprirem as leis serão condenadas ou à morte, ou à<br />
infelicidade e insatisfação. Teiniaguá não consegue a realização completa com Santão: ela o<br />
seduz, o salva da morte, mas é infeliz ao lado dele no Cerro do Jarau. Corriveau busca a<br />
realização <strong>nos</strong> casamentos que tem, mas acaba acusada de matar os maridos, pondo em<br />
dúvida se os assassinatos realmente foram cometidos por ela e, em caso afirmativo, se ela não<br />
teria sido vítima de maus tratos por parte dos maridos. Aí reside a sua semelhança com Lilith,<br />
72 O que o mito de Lilith quer aqui é ser um alerta acerca dos interditos sociais, já que em relação aos homens ela<br />
representa um perigo e, no que tange às mulheres, Lilith pretende ser Eva, aquela que, ao transgredir as normas<br />
estabelecidas, é expulsa do paraíso e passa a ser uma mulher comum. Ser comum é, portanto, ter a oportunidade<br />
de viver a vida dos huma<strong>nos</strong>, plena de problemas, mas também de prazeres.<br />
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