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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES<br />

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO<br />

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES<br />

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN<br />

MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA<br />

ADRIANA MARIA ROMITTI ALBARELLO<br />

DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE<br />

EM A CASA DA ÁGUA, DE ANTONIO OLINTO<br />

Frederico Westphalen<br />

2011


ADRIANA MARIA ROMITTI ALBARELLO<br />

DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE<br />

EM A CASA DA ÁGUA, DE ANTONIO OLINTO<br />

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado<br />

em Letras como requisito parcial e último à<br />

obtenção do grau de Mestre em Letras da<br />

Universidade Regional Integrada do Alto<br />

Uruguai e das Missões, Campus de Frederico<br />

Westphalen. Área de Concentração:<br />

Literatura.<br />

Frederico Westphalen<br />

Orientadora: Prof. Dr. Denise Almeida Silva<br />

2011


UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES<br />

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO<br />

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES<br />

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN<br />

MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA<br />

A Banca Examinadora, abaixo assinada,<br />

aprova a Dissertação de Mestrado<br />

DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE<br />

EM A CASA DA ÁGUA, DE ANTONIO OLINTO<br />

Elaborada por<br />

ADRIANA MARIA ROMITTI ALBARELLO<br />

como requisito parcial para a obtenção do grau de<br />

Mestre em Letras<br />

BANCA EXAMINADORA<br />

_____________________________________________<br />

Profª. Dr. Denise Almeida Silva – <strong>URI</strong><br />

(Presidente/Orientador)<br />

__________________________________________________<br />

Membro Prof. Dr. Uruguay Cortazzo Gonzalez - UFPel<br />

______________________________________________<br />

Membro Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari - <strong>URI</strong><br />

Frederico Westphalen, 29 setembro de 2011.


AGRADECIMENTOS<br />

A Deus, autor da vida e de tudo que existe, por guiar os meus passos, por ser luz na<br />

minha vida e tornar tudo possível.<br />

À professora Denise Almeida Silva, minha orientadora, pelo conhecimento<br />

transmitido, pelas dúvidas esclarecidas, pela amizade, confiança e paciência, por acreditar e<br />

me auxiliar a escolher um caminho, dentre tantos... Meu agradecimento especial.<br />

Aos meus filhos, Luís Felipe e Luísa Helena, meus dois tesouros, minhas alegrias, que,<br />

mesmo sem compreender, tentaram aceitar minhas ausências, em tantos momentos.<br />

Ao meu marido, Julio César, pelo companheirismo, pelo incentivo, pela paciência e<br />

compreensão, pelo carinho, por acreditar em mim, por tudo. Sem seu apoio, eu não teria<br />

conseguido.


RESUMO<br />

A presente pesquisa estuda as relações entre deslocamento, memória e identidade no romance<br />

A casa da água (1969), de autoria do escritor Antonio Olinto. Estudam-se tais relações a<br />

partir da história de vida dos personagens Catarina, Mariana e os filhos, Joseph, Ainá e<br />

Sebastian. A dissertação compõe-se de três capítulos. No primeiro, analisa-se o papel da<br />

memória, individual e coletiva, na construção da identidade, bem como a ligação entre ambas.<br />

Ressalta-se a importância do espaço na construção identitária e o papel do entre-lugar, que se<br />

constitui num lugar de negociação das vivências, o que revela o indivíduo como uma síntese<br />

dos territórios por onde se desloca. O segundo capítulo trata do negro no imaginário<br />

brasileiro, fazendo uma retrospectiva de sua presença no contexto literário, salientando-se o<br />

tratamento estereotipado que caracterizou grande parte dessa literatura até o século XX. A<br />

partir da década de 60, surge a literatura negra, um discurso que compreende a reapropriação<br />

do espaço existencial do negro, demonstrando seu posicionamento nos escritos literários. O<br />

terceiro capítulo ocupa-se do estudo da obra A casa da água, a partir das noções de<br />

deslocamento, memória e identidade. Inicialmente enfoca-se Catarina, personagem cuja<br />

trajetória envolve o deslocamento África/Brasil/África, evidenciando o papel da memória na<br />

formação identitária nesse contexto. Na continuidade, analisa-se, também, a questão do<br />

deslocamento do afro-brasileiro, em direção à África, na figura de Mariana, e sua construção<br />

identitária, naquele continente. Ainda, estuda-se a quarta geração, que compreende os três<br />

filhos de Mariana, ressaltando sua construção híbrida. Finaliza-se, constatando a<br />

impossibilidade de resgatar os posicionamentos identitários, os quais ficam restritos à<br />

memória, visto que a exposição à diversidade cultural, linguística e religiosa hibridiza e<br />

transforma o sujeito.<br />

Palavras-chave: Memória. Identidade Cultural. Entre-lugar. A casa da água. Antonio Olinto.


ABSTRACT<br />

This research studies the relationship between displacement, memory and identity in Antonio<br />

Olinto´s novel A casa da água (1969). The thesis is divided in three chapters. In the first, the<br />

role of individual and collective memory, identity construction, as well as the connection<br />

between them are studied. The importance of space in identity construction, and the role of<br />

“in-between” spaces as places where experiences are negotiated are emphasized so as to focus<br />

the individual as the synthesis of the territories in which he/she circulates. The second chapter<br />

deals with the image of the Negro in Brazilian imaginary; a retrospective evaluation of such<br />

presence in the literary context is offered, pointing out the stereotypical treatment that is given<br />

to the Negro in much of this literature, from the colonial period. A Brazilian Negro literature<br />

appears in the sixties, characterized by a discourse that seeks the re-appropriation of black<br />

existential space, showing the peculiar placement and vision of this ethnical group. The third<br />

chapter studies A casa da água, applying the notions of displacement, memory and identity to<br />

textual study. Catarina, character whose life involves the displacement Africa/Brazil/Africa is<br />

first analyzed; the role of memory in the different phases of her life is considered. Then,<br />

afrodescendent´s displacement to Africa is focused through the life of another character,<br />

Mariana; her identitary construction in “in-between” spaces is considered. The fourth<br />

generation of the family- Mariana´s three children- is analyzed next, showing their hybrid<br />

formation. Data analysis allows one to exemplify the impossibility of recovering past<br />

identitary positions, which can only be relived through memory, because cultural, linguistic<br />

and religious diversity has – in the case of these characters– hybridized the subject,<br />

transforming her/him.<br />

Keywords: Memory. Cultural Identity. “In-between” space. A casa da água. Antonio Olinto.


SUMÁRIO<br />

ITINERÁRIO ........................................................................................................................... 8<br />

1 DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE ........................................................ 13<br />

1.1 A relação entre memória individual e coletiva .............................................................. 14<br />

1.2 Referenciais identitários................................................................................................... 17<br />

1.3 Deslocamento: o espaço na (re)construção das identidades ......................................... 19<br />

1.3.1 O entre-lugar a partir das reflexões de Homi Bhabha ..................................................... 21<br />

1.3.2 O conflito identitário no deslocamento de culturas ......................................................... 23<br />

2 O NEGRO NO IMAGINÁRIO LITERÁRIO BRASILEIRO ........................................ 29<br />

2.1 O imaginário sobre o negro: discriminação e preconceito de cor com os<br />

afrodescendentes ..................................................................................................................... 30<br />

2.2 Período colonial ................................................................................................................ 35<br />

2.3 O século XIX ..................................................................................................................... 39<br />

2.4 Século XX .......................................................................................................................... 50<br />

2.5 A literatura afro-brasileira .............................................................................................. 52<br />

3 DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE EM A CASA DA ÁGUA ............... 58<br />

3.1 O negro na literatura de Antonio Olinto: a trilogia Alma da África ........................... 58<br />

3.2 A África no Brasil e o Brasil na África sob o olhar de Catarina .................................. 63<br />

3.3 Brasil-África: o entre-lugar de Mariana ........................................................................ 82<br />

3.3.1 Deslocamento, memória e identidade .............................................................................. 82<br />

3.3.2 A figura materna e o ancestral ......................................................................................... 89<br />

3.3.3 Uma cultura híbrida ......................................................................................................... 95<br />

3.4 Os descendentes de Mariana: a quarta geração .......................................................... 106<br />

CAMINHOS PERCORRIDOS, TRILHAS EM ABERTO .............................................. 116<br />

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 119


ITINERÁRIO<br />

Existimos porque temos memória, porque<br />

a usamos contra o esquecimento.<br />

Antonio Olinto<br />

Lembrar é trazer à memória as lembranças e experiências vivenciadas num espaço,<br />

onde se desenvolvem laços relativos de pertencimento a um determinado grupo social. Esses<br />

laços é que vão reforçar as recordações comuns à memória social. A memória compõe-se das<br />

lembranças que constituem o ser humano a partir de suas vivências, proporcionando a<br />

aquisição de conhecimentos que permitem rever atitudes e transformar a prática.<br />

Enquanto discurso cultural, a literatura se constitui em um espaço privilegiado para a<br />

construção de imagens, conceitos e posições identitárias, bem como a inclusão de ideias e<br />

valores, através da reflexão e da participação, agindo “no sentido de aprofundar, superar e<br />

contribuir para o engendramento de novas contradições sociais”. 1<br />

Valendo-se do texto literário, o presente trabalho tem, como objeto de estudo, o corpus<br />

A casa da água (1969), de Antonio Olinto, primeiro romance da trilogia Alma da África.<br />

Analisa-se o papel da memória na recuperação da história de vida da personagem diaspórica<br />

Catarina e de seus descendentes, Mariana e os filhos Joseph, Ainá e Sebastian. A partir da<br />

abordagem de aspectos referentes ao deslocamento e à (re)construção da identidade cultural,<br />

busca-se compreender o duplo deslocamento do negro, que, tendo sido escravizado, é trazido<br />

ao Brasil, e com o término da escravidão, retorna à África. Esse trânsito é representado pela<br />

personagem africana Catarina, que volta à Nigéria, sua terra natal, agora por vontade própria,<br />

sob o olhar de liberdade.<br />

Na companhia da matriarca, viajam a filha, Epifânia, e os três netos, dentre os quais<br />

Mariana, a protagonista da obra. Além desses elementos, analisam-se referenciais acerca da<br />

cultura tradicional africana, na Nigéria, bem como as influências dessa cultura nos costumes<br />

brasileiros, devido à diversidade cultural presente nos espaços, em que as personagens<br />

analisadas transitam.<br />

1 CUTI. O leitor e o texto afro-brasileiro. s.d. p. 1. Disponível em: . Acesso em: 15 abr.<br />

2011.


Meu interesse pela literatura, enquanto discurso cultural, ampliou-se através dos<br />

estudos e análises textuais desenvolvidos nas disciplinas de Literatura Comparada e Literatura<br />

Marginal, ministradas no segundo semestre de 2009, no Curso de Mestrado em Letras. Esses<br />

estudos facultam conhecimento e informações sobre a importância da memória na<br />

reconstituição de fatos da vida e da história pessoal e coletiva do indivíduo. Por outro lado,<br />

nessas disciplinas, tive contato com outras literaturas, o que me permitiu conhecer algumas<br />

temáticas e investigá-las, como é o caso da identidade negra, com enfoque no território<br />

feminino, tema da obra Ponciá Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo, analisada em um<br />

artigo de conclusão da disciplina de Literatura Marginal, tendo como aspectos abordados a<br />

memória e a identidade.<br />

O estudo despertou meu interesse para investigar a literatura negra e sobre o negro. Ao<br />

ler A casa da água, chamou-me a atenção a trajetória África/Brasil do negro no período<br />

escravagista e, também, o movimento Brasil/África desse africano e de seus descendentes,<br />

que, com o fim da escravidão, conseguem retornar. Por essa razão, escolheu-se essa obra<br />

como corpus de análise dessa pesquisa. Ademais, trata-se de romance ainda pouco estudado:<br />

após exaustiva pesquisa, constatei a existência de quatro livros, uma dissertação e dois<br />

estudos menores sobre Antonio Olinto e sua obra.<br />

A obra foi tema da dissertação intitulada O narrador- intruso e os orikis em A casa<br />

da Água, de Antonio Olinto, de Adelina Maria Alfenas Amorim, pelo Centro de Ensino<br />

Superior de Juiz de Fora – MG. A autora aborda a modificação do discurso narrativo face à<br />

transformação do narrador-intruso em narrador-personagem, além de investigar a linguagem<br />

simbólica dos orikis 2 e sua intertextualidade. Também ressalta o diálogo Brasil x África, no<br />

que se refere à cultura africana no Brasil, a influência dos dialetos africanos e a formação da<br />

identidade cultural brasileira.<br />

Antonio Olinto: o operário da palavra: uma viagem da realidade à ficção (2005), da<br />

jornalista Cláudia de Moraes Sarmento Condé, faz um estudo minucioso sobre a influência do<br />

texto jornalístico na obra de ficção de Olinto. Nesse texto, a autora analisa as semelhanças<br />

entre A casa da água e Brasileiros na África, livro produzido por Olinto a partir de sua<br />

2 O oriki é um gênero poético, oral, tradicional, milenar, oriundo do povo nagô-iorubá. Todo mundo pode ter um:<br />

as plantas, os animais, as pessoas, as cidades, as coisas, os fenômenos naturais, os orixás... O oriki reúne as<br />

características mais salientes dos objetos que focaliza. Aparece embutido em outros textos. É emitido para ninar<br />

crianças, em comemorações como batizados e casamentos, receber visitas, saudar pessoas ilustres e para todos os<br />

que fazem algo em prol da comunidade (AMORIM, Adelina Maria Alfenas. O narrador- intruso e os orikis em<br />

A casa da Água, de Antonio Olinto. 2008, 86f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira)- Centro de<br />

Ensino Superior de Juiz de Fora/MG, 2008, p. 71. Disponível em: . Acesso em:<br />

29 ago. 2011).<br />

8


vivência, por quase três anos, como Adido Cultura do Brasil na África. Além disso, Antonio<br />

Olinto faz alusão à vida e à obra do autor.<br />

Em São eu, estas coisas (2008), Condé dá sequência à investigação sobre Antonio<br />

Olinto, produzindo um texto que aborda fatos da vida desse autor e suas vivências. Dentre<br />

outras obras, enfoca A casa da Água e a trilogia Alma da África, destacando a presença<br />

feminina no romance.<br />

Outro livro que retrata a vida de Antonio Olinto é Brasileiro com alma africana:<br />

Antonio Olinto (2008), em que José Luís Lira constrói um texto evidenciando a vida e a<br />

trajetória literária desse escritor, bem como seu trabalho como jornalista. Lira ressalta as<br />

características do autor de A casa da água ao escrever, bem como sua habilidade em usar as<br />

palavras, transcrevendo o discurso de posse de Olinto, na Academia Brasileira de Letras, entre<br />

outras coisas.<br />

Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura e cultura<br />

(2010), de Eurídice Figueiredo, traz um artigo intitulado “Os brasileiros do Benin: a questão<br />

do retorno à África”. Nesse texto, a autora reflete sobre a volta de muitos afro-brasileiros à<br />

África, cuja história foi tematizada por escritores brasileiros e antilhanos, tendo como foco a<br />

mulher brasileira que retorna. Assim, aborda A casa da água, de Antonio Olinto, Um defeito<br />

de cor (2007), de Ana Maria Gonçalves e a saga antilhana Segu (1984-1985), de Maryse<br />

Condé, numa análise comparativa entre as protagonistas, ressaltando a força e a capacidade de<br />

superação dessas mulheres, diante dos obstáculos da vida.<br />

João Lins de Albuquerque, em sua obra Antonio Olinto: Memórias de um imortal<br />

(2009), faz um relato sobre as experiências de vida de Olinto ao lado de amigos, escritores e<br />

outras figuras que tiveram papel importante na vida desse autor, tanto no Brasil quanto no<br />

exterior. É um livro que narra as memórias de um escritor que batalhou pela divulgação da<br />

literatura brasileira, pelas raízes africanas e pela educação, deixando uma enorme e<br />

diversificada obra, dentre elas, a que o consagrou como romancista, a trilogia Alma da<br />

África.<br />

Ainda sobre A casa da água, o artigo de Niyi Afolabi, da Tulane University, USA,<br />

“Contra-memória e violação da imaginação: alegorias (supra) nacionais n‟O eleito do sol, de<br />

Armênio Vieira e n‟A casa da água, de Antonio Olinto”, faz um estudo comparativo das<br />

similaridades e contrastes dos imaginários cabo-verdiano e afro-brasileiro. De um lado, a ilha<br />

cabo-verdiana serve de alegoria supranacional no engajamento mítico-filosófico entre o<br />

intelectual e o político e do outro, a viagem transatlântica das personagens de A casa da<br />

9


água, como uma diáspora invertida na procura de raízes, deixadas na África, pelos negros,<br />

antes de se dispersarem.<br />

A presente investigação relaciona-se à linha de pesquisa Memória e Identidade<br />

Cultural do Programa do Mestrado em Letras da <strong>URI</strong>, tendo em vista que examina a<br />

identidade, a memória e os espaços, buscando o entendimento das práticas sociais, artísticas e<br />

culturais. O corpus de análise contribuirá para os estudos acerca das identidades culturais e<br />

suas afirmações identitárias em áreas como a Literatura, a História e a Antropologia.<br />

Com base nessas colocações, justifica-se a importância da pesquisa, pois investigar<br />

elementos do passado de uma pessoa e de um povo não é somente recuperar aspectos de sua<br />

própria vida, mas conhecer a história coletiva, a fim de compreender os processos de<br />

formação da identidade a partir do deslocamento. Porém, segundo Halbwachs, não se pode<br />

esquecer que, embora o passado permaneça na mente do sujeito, certos obstáculos, inclusive o<br />

comportamento do cérebro, impedem que seja possível evocar todas as suas partes, 3 até<br />

mesmo porque a imagem do passado se altera pelas contradições e, consequentemente,<br />

sentimentos, emoções e lembranças acabam sendo perdidos.<br />

Nesse sentido, julga-se pertinente a temática contida no corpus utilizado para a<br />

análise, o qual ficou restrito a apenas uma das obras da trilogia de Antonio Olinto, tendo em<br />

vista a riqueza de informações e de situações a serem pesquisadas. Caso fossem utilizados os<br />

três livros, não haveria possibilidade de explorar profundamente a temática pela grande<br />

quantidade de subsídios que a aludida trilogia oferece.<br />

Nascido em 10 de maio de 1919, em Minas Gerais, na cidade de Ubá, Antonio Olinto<br />

tem uma extensa produção literária. Inicia com a publicação do livro de poesias Presença, em<br />

1949. A influência de sua terra natal e da cidade do Piau, onde passou parte da infância, é<br />

visível em sua literatura, e muito clara na obra A casa da água, em que a história inicia com<br />

os personagens vivendo no Piau.<br />

Esse romance, obra de estreia do autor, é, também, nitidamente influenciado pela<br />

vivência de Olinto na Nigéria. Para Condé, na África, ele encontra o assunto, a inspiração<br />

para criar sua obra-prima.<br />

Olinto já se revelara mais do que um grande repórter: a imersão na vida e nos<br />

costumes do povo africano e a exploração minuciosa do que viu e sentiu, aliadas à<br />

técnica e à sensibilidade no escrever, resultaram num documento histórico cuja<br />

importância foi amplamente reconhecida, aqui e no exterior. 4<br />

3 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006, p. 97.<br />

4 CONDÉ, Cláudia de Morais Sarmento. São eu, estas coisas. Minas Gerais: Suprema, 2008, p. 95-96.<br />

10


Então, como a investigação histórica já havia sido realizada, Olinto envereda pelo<br />

caminho do imaginário, transformando os fatos em literatura. E assim nasce A casa da água,<br />

um romance que narra as memórias brasileiras e africanas de uma família, que, por meio da<br />

rememoração individual e particular, busca manter os elos com o passado, com sua<br />

comunidade.<br />

O romance está dividido em quatro partes. A primeira, intitulada “A viagem”, retrata a<br />

saída do Piau e a viagem até a Nigéria, no navio Esperança; a segunda, chamada de “O<br />

marido”, focaliza a vida conjugal e maternal de Mariana; já a terceira, “A casa da água”,<br />

retrata o comércio da água e, consequentemente, o crescimento econômico da família, guiado<br />

pela heroína Mariana; por último, em “O grande chefe”, há o relato da vida política de<br />

Sebastian, filho mais novo de Mariana, e sua ascensão à presidência da república do fictício<br />

Zorei.<br />

Com essa obra, editada em dezenove idiomas, Antonio Olinto projeta-se<br />

internacionalmente. Segundo Claudia Condé,<br />

[o] romance foi traduzido para o inglês, o francês e o espanhol, logo após a<br />

publicação de sua primeira edição brasileira, e obteve consagração imediata no<br />

exterior. Muito do seu sucesso pode ser creditado ao fato de ter contribuído para<br />

abrir os olhos dos leitores para a cultura africana, ainda desconhecida, e que muitos<br />

vieram a descobrir ser fascinante. 5<br />

No primeiro capítulo, faz-se um estudo a respeito do papel da memória, tanto<br />

individual quanto coletiva, na construção da identidade, a partir dos fundamentos teóricos de<br />

Maurice Halbwachs (2006), Paul Connerton (1993) e Ecléia Bosi (2001). Quanto aos<br />

referenciais identitários, buscou-se embasamento em Michael Pollack (1992) e R. C.Brandão<br />

(1990), já que a identidade do sujeito é algo que se constrói a partir das experiências e<br />

afinidades com o outro e que vive em constante incompletude. Analisou-se, ainda, o papel do<br />

espaço na construção da identidade, ressaltando o conceito de entre-lugar de Homi Bhaha,<br />

1998, uma vez que esse espaço representa a negociação das experiências, do interesse<br />

comunitário e do valor cultural, responsáveis pela formação dos sujeitos. A ênfase entre<br />

formação identitária e deslocamento levou, também, a reflexões teóricas sobre a influência<br />

recíproca entre o espaço e o homem.<br />

O segundo capítulo trata da presença do negro no contexto literário brasileiro, desde<br />

1500 até o presente. A princípio, reflete-se sobre a questão da discriminação e o preconceito<br />

de cor para com a etnia negra, em torno da qual se formou uma ideia de submissão e<br />

5 CONDÉ, 2008, p. 97.<br />

11


dominação, bem como de inferioridade. Na sequência, verifica-se o papel do negro no<br />

imaginário brasileiro no período colonial, no século XIX e XX, mostrando a invisibilidade<br />

literária que foi imposta pela sociedade, através do uso de imagens estereotipadas. Por fim, a<br />

partir da década de 60, enfatiza-se a presença de um discurso que evidencia um<br />

posicionamento do negro nos escritos literários. Surge a literatura negra, que compreende uma<br />

reapropriação do espaço existencial, como forma de sair da invisibilidade e da estereotipação<br />

do elemento negro.<br />

O terceiro capítulo ocupa-se do estudo da obra A casa da água, a partir das noções de<br />

deslocamento, memória e identidade. A escolha das personagens não foi realizada de forma<br />

aleatória. Escolheu-se Catarina, cuja análise é desenvolvida na primeira parte, porque a<br />

personagem encerra todo o contexto diaspórico, envolvendo o deslocamento, a memória e o<br />

desejo de resgatar a identidade, no retorno ao seu continente. Na continuidade, o estudo é<br />

sobre a neta de Catarina, Mariana, que pertence à terceira geração. Essa personagem assume a<br />

função de líder da família, após a morte da avó, tornando-se a referência para os demais.<br />

Representa o indivíduo que procura estabelecer laços com sua comunidade africana, mas sem<br />

se esquecer do Brasil, seu país de origem. Por fim, o foco é a quarta geração, que compreende<br />

os três filhos de Mariana. Esses descendentes demonstram a aquisição dos costumes do<br />

colonizador, estudando na Europa, porém, sem abandonar os referenciais africanos de sua<br />

terra natal.<br />

Na obra, a segunda geração é representada por Epifânia, filha de Catarina e mãe de<br />

Mariana. O fato de a personagem, que nasce no Brasil, não ter sido estudada de modo mais<br />

profundo, justifica-se porque ela, embora sendo presença constante na vida de Mariana, e<br />

representando os elos com o Brasil, nunca se impôs, sempre acatou as ideias da filha, depois<br />

que Catarina, morreu. Viveu sempre trabalhando, primeiro no Brasil, a fim de, na companhia<br />

da mãe, buscar o sustento da família e juntar dinheiro para a viagem à África. Já na Nigéria,<br />

prosseguiu trabalhando, primeiro ao lado da mãe, depois ao lado de Mariana, cuidando da<br />

loja, da casa e dos netos.<br />

Pretende-se (re)descobrir A casa da água, com a possibilidade de novas interpretações<br />

no que se relaciona à questão da memória como elemento suporte da identidade, além do<br />

espaço como interferência na realidade do indivíduo e desenvolvimento de pertencimentos.<br />

Porém, com a certeza de que muitos outros caminhos, ainda não explorados, poderão ser<br />

objetos de investigação, como os que são mencionados na conclusão desse estudo.<br />

12


1 DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE<br />

Pensar na formação da identidade cultural de um povo sem relacioná-la à contribuição<br />

da memória nesse processo é tarefa impossível, visto que memória e identidade possuem uma<br />

intrínseca relação vinculada ao tempo. O homem, como sujeito histórico, transforma o ato de<br />

recordar em uma ação coletiva, ligada a um contexto de natureza social. Nesse sentido,<br />

investigar elementos do passado não é somente recuperar aspectos individuais, mas conhecer<br />

a história coletiva do grupo com o qual o indivíduo se identifica, a fim de compreender os<br />

processos de formação dessa identidade e a influência do meio na realidade desses sujeitos.<br />

Enfoca-se primeiramente a memória e, após, a identidade; posteriormente, faz-se uma<br />

relação entre ambas. Estuda-se, também, a questão do espaço na formação das identidades.<br />

Memória e identidade são conceitos fundamentais para o estudo do romance A casa da água<br />

(1969), do escritor Antonio Olinto, já que a obra oferece ao leitor uma viagem por diferentes<br />

lugares, culturas e tradições, tanto no Brasil quanto na África, focalizando o papel da memória<br />

na reconstrução da história de vida dos personagens, em busca de suas raízes.<br />

A memória pode ser descrita de diversas maneiras, dentre as quais como a capacidade<br />

de lembrar, recordar, evocar o passado; processo de assimilar, registrar e reter uma<br />

informação. Sob uma perspectiva sociológica, o estudo da memória envolve o confronto de<br />

diversas esferas de interação. O indivíduo faz parte de uma comunidade, e com ela se<br />

identifica a partir de padrões coletivos. Dessa forma, o acesso ao passado é feito não somente<br />

a partir das percepções individuais, mas também por elementos constituídos pelo outro. Para<br />

saber quem é, o sujeito precisa das lembranças dos outros. Assim, o indivíduo vê-se imerso<br />

em um universo de interfaces, a partir do qual as identidades são construídas, numa constante<br />

interação entre passado e presente. 6<br />

Para que a memória dos outros venha reforçar e completar a memória de cada um, é<br />

necessário que as lembranças desses grupos não deixem de ter alguma relação com os<br />

acontecimentos que constituem o passado do sujeito, pois este pertence ao mesmo tempo a<br />

muitos grupos, e em cada um assume uma posição identitária. 7<br />

6 HALBWACHS, 2006, p. 39-42.<br />

7 Ibidem, p. 98.<br />

13


Na memória, o movimento em direção ao passado faz com que se perceba a forma<br />

como os indivíduos recordam a si mesmos e a maneira como acontece a reconstrução dessas<br />

lembranças. Segundo Myrian Sepúlveda dos Santos, a memória está presente em tudo e em<br />

todos; não é só pensamento, imaginação e construção social; ela é também uma determinada<br />

experiência de vida capaz de transformar outras experiências, a partir dos resquícios deixados<br />

anteriormente. 8<br />

As lembranças afloram de modos diversos, devido aos diferentes contextos em que a<br />

memória individual está enraizada. Ou seja, o passado não pode ser traduzido exatamente<br />

como foi, pois tudo depende do ponto de vista de quem o recorda ou conta, se é individual ou<br />

coletivo:<br />

Por um lado, as lembranças de uma pessoa teriam lugar no contexto de sua<br />

personalidade ou de sua vida pessoal. Por outro lado, em certos momentos, ela seria<br />

capaz de se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para<br />

evocar e manter lembranças impessoais, na medida em que estas interessam ao<br />

grupo. Essas duas memórias se interpenetram com frequência. A memória coletiva<br />

contém as memórias individuais, mas não se confunde com elas. 9<br />

Em outras palavras, a memória faz parte de um processo social, em que os seres<br />

humanos não são vistos como seres isolados, mas interagindo uns com os outros ao longo de<br />

suas vidas. O indivíduo sozinho não consegue recuperar com exatidão as imagens do passado,<br />

pois essa rememoração se constrói no encadeamento das memórias dos diferentes grupos com<br />

quem o indivíduo se relaciona.<br />

1.1 A relação entre memória individual e coletiva<br />

Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, a qual só pode<br />

ser formada a partir de um grupo específico e de acontecimentos que se fizeram inesquecíveis<br />

em determinado tempo e circunstância. A lembrança reaparece em função de uma série de<br />

pensamentos coletivos emaranhados. 10 Porém,<br />

se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de<br />

pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta<br />

massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que<br />

aparecerão com maior intensidade a cada um deles. De bom grado, diríamos que a<br />

memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de<br />

8 SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória coletiva e teoria social. São Paulo: Annablume, 2003, p. 25-26.<br />

9 HALBWACHS, 2006, p. 71.<br />

10 Ibidem, p. 70.<br />

14


vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as<br />

relações que mantenho com outros ambientes. 11<br />

A memória individual, separada em absoluto da memória social - também chamada de<br />

coletiva - é uma abstração quase destituída de sentido, pois “a narrativa de uma vida faz parte<br />

de um conjunto de narrativas que se interligam, está incrustada nas histórias dos grupos a<br />

partir dos quais os indivíduos adquirem a sua identidade”. Se “a produção de histórias é uma<br />

característica de toda a memória social” e se a memória social é veiculada através das<br />

histórias de vida, a narração individual torna-se uma maneira de transmitir a memória<br />

coletiva. 12<br />

Posto que todas as lembranças estão constituídas no interior de um grupo, a memória<br />

coletiva reforça a memória individual. O indivíduo carrega a lembrança, mas está interagindo<br />

com a sociedade, onde ocorre a construção das recordações. 13 Assim, reflexões, ideias,<br />

sentimentos, mesmo quando atribuídos pelo sujeito somente a si, são, na verdade, uma<br />

influência que vem do grupo. A maneira de lembrar e de perceber o mundo decorre a partir<br />

das experiências do outro, mesmo que não se tenha consciência dessa situação:<br />

[P]ara evocar seu próprio passado, em geral, a pessoa precisa recorrer às lembranças<br />

de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados<br />

pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da memória individual não é<br />

possível sem esses instrumentos que são as palavras e ideias, que o indivíduo não<br />

inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. Não é menos verdade que não<br />

conseguimos lembrar senão do que vimos, fizemos, sentimos, pensamos num<br />

momento do tempo, ou seja, nossa memória não se confunde com a dos outros. 14<br />

Sem a ajuda de sua comunidade, o ser humano não consegue reconstituir sozinho o<br />

seu passado, mesmo que ele pense que as lembranças sejam inteiramente suas.<br />

[S]omos de nossas recordações, apenas uma testemunha, que às vezes não crê em<br />

seus próprios olhos e faz apelo constante ao outro para que confirme nossa visão. É<br />

preciso reconhecer que muitas de nossas lembranças, ou mesmo de nossas ideias,<br />

não são originais: foram inspiradas nas conversas dos outros. Com o correr do<br />

tempo, elas passam a ter uma história dentro da gente, acompanham nossa vida e são<br />

enriquecidas por experiências e embates. Parecem tão nossas que ficaríamos<br />

surpresos se nos dissessem o seu ponto exato de entrada em nossa vida. Elas foram<br />

formuladas por outrem, e nós, simplesmente, as incorporamos ao nosso cabedal. Na<br />

maioria dos casos creio que este não seja um processo consciente. 15<br />

11<br />

HALBWACHS, 2006, p. 69.<br />

12<br />

CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Lisboa, 1993, p. 45.<br />

13<br />

HALBWACHS, 2006.<br />

14<br />

Ibidem, p. 72.<br />

15<br />

BOSI, Ecléia. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 407.<br />

15


Na verdade, é a partir do espaço de pertencimento a uma comunidade que se constitui<br />

o que é pessoal. Em outros termos, em conjunto com as ideias de um meio é que o sujeito<br />

passa a elaborar seus próprios valores e conceitos, originados na prática de uma coletividade.<br />

Ele recorda de acordo com as estruturas sociais que o antecedem, fazendo uso de suas<br />

vivências para reconstruí-los. Mesmo a memória mais peculiar a cada um se compõe de<br />

elementos constituídos socialmente e recuperados a partir da interação com o grupo. “Nossa<br />

memória não se apoia na história aprendida, mas na história vivida”, 16 ou seja, as lembranças<br />

podem, a partir da vivência em grupo, ser reconstruídas, pois o indivíduo cria representações<br />

do passado assentadas na percepção de outras pessoas, naquilo que ele imagina ou na<br />

memória compartilhada historicamente.<br />

Para que alguém venha a ser beneficiado pela memória dos outros, é preciso que haja<br />

uma correspondência entre essas memórias, para que a lembrança que os outros trazem possa<br />

ser reconstruída sobre uma base comum. Assim, “[a] sucessão de lembranças, mesmo as mais<br />

pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os<br />

diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo pelas transformações desses ambientes,<br />

cada um tomado em separado, e em seu conjunto”. 17<br />

A memória individual não é exclusividade do sujeito. Mesmo sozinho, ele vivencia<br />

algo, mas sua memória não se constitui somente dessas lembranças particulares:<br />

Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que<br />

se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente<br />

nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros<br />

estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e<br />

em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem. 18<br />

Porém, mesmo dependendo da memória coletiva, não se pode esquecer que é o<br />

indivíduo que relembra e que memoriza o que o passado oferece, retendo para si significados<br />

de coisas que habitam um espaço coletivo. Então, caracterizar a memória como seletiva é<br />

possível, pois nem tudo fica gravado ou registrado. Ela não se refere apenas à vida física da<br />

pessoa, pois sofre flutuações que são em função do momento em que é articulada. As<br />

preocupações desse momento constituem um elemento de estruturação da memória. Nesse<br />

sentido, é possível tratar a memória como um fenômeno construído. 19 Então,<br />

16 HALBWACHS, 2006, p. 78-79.<br />

17 Ibidem, p. 69.<br />

18 Ibidem, p. 30.<br />

19 POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992.<br />

Disponível em:<br />

16


[q]uando falo em construção, em nível individual, quero dizer que os modos de<br />

construção podem ser tanto conscientes como inconscientes. O que a memória<br />

individual grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um<br />

verdadeiro trabalho de organização. 20<br />

Uma vez que a memória é um fenômeno construído social e individualmente, também<br />

se pode assegurar que “há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o<br />

sentimento de identidade”. 21 Então, se é possível o confronto entre a memória individual e a<br />

dos outros, é porque memória e identidade são valores que têm origem nas relações sociais<br />

intergrupais. A memória é uma referência essencial para a constituição da identidade do<br />

sujeito, pois fornece elementos para o autoconhecimento, a partir do convívio com o outro.<br />

1.2 Referenciais identitários<br />

A identidade, muitas vezes, confunde-se com o nome de um indivíduo. Contudo, o<br />

nome não é identidade, mas apenas parte dela: a identidade refere-se à imagem que a pessoa<br />

tem de si mesma. Como Brandão comenta,<br />

Os acontecimentos da vida de cada pessoa geram sobre ela a formação de<br />

uma lenta imagem de si mesma, uma viva imagem que aos poucos se constrói<br />

ao longo de experiências de trocas com outros: a mãe, os pais, a família, a<br />

parentela, os amigos de infância e as sucessivas ampliações de outros círculos<br />

de outros: outros sujeitos investidos de seus sentimentos, outras pessoas<br />

investidas de seus nomes, posições, regras sociais de atuação. 22<br />

Para Michel Pollack, o sentimento de identidade significa a imagem de si, para si e<br />

para os outros. Ou seja, “a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela<br />

própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua<br />

própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida<br />

pelos outros”. 23<br />

Porém, é importante não limitar o conceito identitário ao de autoimagem ou<br />

autoconsciência. Não se constrói uma autoimagem sem mudanças em virtude do grupo. Isso<br />

. Acesso em: 30 nov. 2010.<br />

20<br />

POLLACK, 1992, p. 4-5.<br />

21<br />

Ibidem, p. 5.<br />

22<br />

BRANDÃO, R. C. Identidade e etnia: construção da pessoa e resistência cultural. São Paulo: Brasiliense,<br />

1990, p. 37.<br />

23 POLLACK, 1992, p. 5.<br />

17


porque a identidade diz respeito a um conjunto vivo de relações sociais que estabelece a<br />

comunhão de determinados valores entre os membros de uma sociedade.<br />

Conforme Pollack, “a construção da identidade é um fenômeno que se produz em<br />

referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade,<br />

credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros”. 24 Em outras palavras,<br />

constroem-se posições identitárias a partir de experiências e afinidades com o outro. Isso gera<br />

uma ideia de movimento e de construção por meio das relações sociais.<br />

O espaço das identidades é conflituoso e se transforma conforme o sujeito é<br />

representado. Nesse jogo, todos os interesses estão envolvidos, e busca-se harmonizar<br />

frequentemente num espaço inconstante. Assim, incluídas nesse conflito estão as relações<br />

pessoais, no que se refere ao sentimento para com o outro ou o próprio indivíduo. A<br />

identidade do sujeito não é um alvo a ser atingido, mas algo que vive na tensão, em uma<br />

permanente incompletude.<br />

Pollack afirma que, na construção da identidade, a memória é o elemento constituinte,<br />

“na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de<br />

continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”. 25<br />

Sendo assim, cada membro do grupo deve buscar formas de desenvolver o sentimento de<br />

pertencimento, unidade e integração. Sem memória, a comunidade caminha sem horizontes,<br />

pois, não conhecendo o passado, não consegue ter consciência do seu presente e não projeta<br />

perspectivas no futuro.<br />

A busca do controle sobre a memória institui uma identidade para o agente social nela<br />

envolvido, no sentido de gerar um lugar dentro de uma rede específica de circularidade e<br />

fluxo. Quando a memória e a identidade estão suficientemente constituídas, não será preciso<br />

mudanças e transformações dentro do grupo, a partir dos questionamentos externos, pois elas<br />

são capazes de fazer o trabalho de organização e manutenção da própria comunidade. 26<br />

Portanto, lembrar significa emergir o que passou e, concomitantemente ao processo<br />

corporal e presente da percepção, misturar dados imediatos com lembranças. Assim, a<br />

memória construída no presente, a partir das necessidades dadas por este e não<br />

necessariamente pelo passado em si, pode ser pensada como fator fundamental para a<br />

construção de pertencimentos sociais, aos mais diversos níveis associativos.<br />

24 POLLACK, 1992, p. 5.<br />

25 Ibidem, p. 5.<br />

26 Ibidem, p. 7.<br />

18


1.3 Deslocamento: o espaço na (re)construção das identidades<br />

O passado, segundo Stuart Hall, guarda resquícios de elementos identitários que<br />

continuam a influenciar o presente por meio da memória, da fantasia, da narrativa, do mito.<br />

Para o teórico,<br />

[a]s identidades culturais são os pontos de identificação, os pontos instáveis de<br />

identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e da história. Não<br />

uma essência, mas um posicionamento. Donde haver sempre uma política da<br />

identidade, uma política de posição, que não conta com nenhuma garantia absoluta<br />

numa “lei de origem” sem problemas, transcendental. 27<br />

É muito difícil entender a formação de uma identidade, pois ela não procede de uma<br />

origem fixa e sem interrupções. A identidade é influenciada pelo posicionamento do indivíduo<br />

diante de sua comunidade: “[t]odos nós escrevemos e falamos desde um lugar e um tempo<br />

particulares, desde uma história e uma cultura que nos são específicas”. 28 Tudo o que o sujeito<br />

expressa está sempre contextualizado e posicionado no tempo e no espaço de seu grupo, ou<br />

seja, agrega as características do ambiente em que o indivíduo se sente pertencer.<br />

Nesse sentido, posições identitárias acabam sendo adotadas de acordo com esse<br />

espaço, o qual concorre para a produção da vida social. É onde se busca o fundamento do<br />

apego afetivo que liga a pessoa ao seu território:<br />

Quando inserido numa parte do espaço, um grupo o molda à sua imagem, mas ao<br />

mesmo tempo se dobra e se adapta a coisas materiais que a ela resistem. O grupo se<br />

fecha no contexto que construiu. A imagem do meio exterior e das relações estáveis<br />

que mantém com este passa ao primeiro plano da ideia que tem de si mesmo. [...]<br />

Não é o indivíduo isolado, é o indivíduo enquanto membro do grupo, é o grupo em<br />

si que, dessa maneira, permanece sujeito à influência da natureza material e participa<br />

de seu equilíbrio. Mesmo que se pudesse acreditar que não é bem isso, quando os<br />

membros do grupo estão dispersos e nada encontram em seu novo ambiente material<br />

que recorde a casa e os quartos que deixaram, quando permanecem unidos pelo<br />

espaço é porque pensam nessa casa e nesses quartos. 29<br />

Isso mostra que o espaço tem um significado próprio para os representantes do grupo.<br />

E não existe uma memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial. Em outras<br />

palavras, o sujeito necessita do grupo para que suas lembranças emerjam, pois é nesse<br />

conjunto que se constroem tanto as memórias individuais quanto as coletivas:<br />

27 HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24,<br />

p. 70, 1996. Ênfase do autor.<br />

28 Ibidem, p. 68.<br />

29 HALBWACHS, 2006, p. 159.<br />

19


[O] espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem umas às outras,<br />

nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja possível<br />

retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que nos<br />

circunda. É ao espaço, ao nosso espaço – o espaço que ocupamos, por onde<br />

passamos muitas vezes, a que sempre temos acesso e que, de qualquer maneira,<br />

nossa imaginação ou nosso pensamento a cada instante é capaz de reconstruir – que<br />

devemos voltar nossa atenção, é nele que nosso pensamento tem de se fixar para que<br />

essa ou aquela categoria de lembranças reapareça. 30<br />

Como toda comunidade mantém vínculos com um lugar, é nesse espaço definido que<br />

são encontradas suas lembranças. Cada sociedade recorta o ambiente à sua maneira de modo a<br />

constituir um contexto fixo em que estão inseridas as lembranças.<br />

A questão do papel do espaço na formação identitária é pertinente à obra A casa da<br />

água, tendo em vista as mudanças de lugar sofridas pelos personagens, desde a avó Catarina<br />

até os descendentes de sua neta Mariana. O início da trajetória da família começa em Minas<br />

Gerais, no povoado do Piau e depois em Juiz de Fora. Na sequência vão para o Rio de Janeiro<br />

e Bahia. De lá, a família parte de navio para a África, mais precisamente em Lagos, na<br />

Nigéria.<br />

A partir daí, Mariana tem contato com inúmeros locais no território africano, seja a<br />

passeio, quando ainda jovem, ou com o intuito de ampliar os negócios, depois de sua ascensão<br />

econômica. Alguns desses ambientes são cidades da Nigéria, de Benin, do Togo, e do fictício<br />

Zorei. Seus parentes também experimentam esse deslocamento, como os três filhos da<br />

protagonista, que estudam na Europa, visitam vários países e convivem com outras etnias. Ao<br />

retornar, Joseph, o mais velho, permanece trabalhando com a mãe; a filha, formada em<br />

Medicina, casa-se e muda de região; o mais novo, jovem político de ideias revolucionárias, é<br />

eleito presidente de Zorei e, logo depois, assassinado. Já Antônio, irmão de Mariana, faz o<br />

caminho de volta, estabelecendo-se no Brasil e dando continuidade ao negócio de exportação<br />

e importação da irmã.<br />

Os membros dessa família afrodescendente, que passam a habitar diferentes espaços,<br />

o fazem por escolha ou não. No caso de vó Catarina, ela é trazida para o Brasil como escrava.<br />

Porém, a África, seu povo e sua cultura permanecem vivos em sua memória e o desejo de<br />

retornar é cada vez mais forte. O restante da família, Epifânia e seus três filhos, Mariana,<br />

Antônio e Emília, acompanham a matriarca para esse espaço novo para eles, até então<br />

conhecido através das histórias e das lembranças de Catarina.<br />

30 HALBWACHS, 2006, p. 170.<br />

20


1.3.1 O entre-lugar a partir das reflexões de Homi Bhabha<br />

O deslocamento para um novo território dá origem a uma tensão contínua, em que os<br />

envolvidos nesse processo passam a buscar meios para se adaptarem à nova situação. Forjam,<br />

então, um espaço intersticial, a que Homi Bhabha chama de entre-lugar, ou terceiro espaço.<br />

As reflexões do teórico indiano acerca dessa posicionalidade partem da constatação<br />

do lugar ocupado pelo sujeito na virada do século XX. Pondera: “nossa existência hoje é<br />

marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do presente”. 31<br />

Esse local peculiar identifica um espaço intermediário, um movimento entre dois polos, entre<br />

o aqui e o lá:<br />

Inícios e fins podem ser os mitos de sustentação dos anos no meio do século, mas<br />

neste fin de siècle, encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo<br />

se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e<br />

presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. Isso porque há uma sensação de<br />

desorientação, um distúrbio de direção, no “além”: um movimento exploratório<br />

incessante, [...] para lá e para cá, para a frente e para trás 32 .<br />

De acordo com Bhabha, o “além” é a distância espacial que promete o futuro, ao qual,<br />

no entanto, não se pode chegar sem antes retornar ao presente. Na perspectiva do além, o<br />

presente é o ponto de partida, pois esse “além” é pensado a partir do domínio temporal do<br />

agora. Residir nessa temporalidade é “ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao<br />

presente para redescrever a contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunalidade<br />

humana, histórica; tocar o futuro em seu lado de cá”. 33 Assim, o “além” se torna um espaço de<br />

intervenção no aqui e no agora, o que gera um encontro com o novo.<br />

Dessa forma, a fronteira “se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer<br />

presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente, do além<br />

que venho traçando”. 34 A temporalidade caracterizada como “viver no além” surge como uma<br />

tradução cultural, retomando o passado como causa social, reconstruindo-o e<br />

redimensionando-o como um entre-lugar que inova e transforma o presente. É um desacordo<br />

entre dois tempos que dá origem a um tempo renovado, que possibilita negociar e traduzir as<br />

identidades culturais individuais, na temporalidade desconexa da diferença entre culturas. 35<br />

31 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 19.<br />

32 Ibidem, p. 19.<br />

33 Ibidem, p. 27.<br />

34 Ibidem., p. 24.<br />

35 Ibidem, p. 27.<br />

21


Um exemplo da cisão dos espaços liminares, citado por Bhabha, é o uso do poço da<br />

escada na obra de Renée Green, Sites of Genealogy, exposta no Institute of Contemporary, de<br />

Long Island, de Nova Iorque. Green cria uma metáfora do prédio do museu usando o sótão, o<br />

compartimento da caldeira e o poço da escada para associá-los a divisões binárias; a área<br />

superior e inferior recebe placas referentes ao negro e ao branco. Ao integrar o superior e o<br />

inferior, a escada é o elemento de ligação que constrói a diferença entre esses dois locais. Isso<br />

porque “[o] ir e vir do poço da escada, o movimento temporal e a passagem que ele propicia<br />

evita que as identidades a cada extremidade dele se estabeleçam em polaridades primordiais”,<br />

evitando que haja hierarquia na diferença, devido ao hibridismo cultural que surgiu. 36<br />

Bhabha ressalta como teoricamente inovadora e crucial a necessidade de passar além<br />

das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e focalizar como se forma o “além”. Ao<br />

invés de deter-se no lá e no cá, há que se investigar o novo, articulando as diferenças<br />

culturais. Esses entre-lugares são importantes porque “fornecem o terreno para a elaboração<br />

de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de<br />

identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia<br />

de sociedade”. 37 Esses interstícios representam o espaço de negociação das experiências, do<br />

interesse comunitário e do valor cultural, responsáveis pela formação dos sujeitos.<br />

Quando Bhabha se refere à negociação, quer transmitir uma temporalidade que<br />

possibilita articular elementos contraditórios. “Em tal temporalidade discursiva, o evento da<br />

teoria torna-se a negociação de instâncias contraditórias e antagônicas, que abrem lugares e<br />

objetivos híbridos de luta e destroem as polaridades negativas entre o saber e seus objetos e<br />

entre a teoria e a razão prático-política”. 38 Então, é no confronto entre dois espaços que<br />

surgem as afinidades e as diferenças entre as culturas, abrindo espaço para a negociação de<br />

ideias contraditórias e opostas que abrem espaço para o novo. Rearticula-se, assim, a cultura,<br />

gerando uma tradução de elementos que não são “nem o Um”, “nem o Outro”, “mas algo a<br />

mais”, que contesta os termos e territórios de ambos. 39 Essa síntese dá origem a uma terceira<br />

cultura que carrega um pouco de cada uma das identidades formadoras, sem se confundir com<br />

nenhuma delas.<br />

O teórico está particularmente preocupado em descobrir como se formulam estratégias<br />

de aquisição de poder, pois a representação da diferença não deve ser vista como o reflexo de<br />

traços culturais já determinados. Assim, inquirir acerca da articulação social da diferença, na<br />

36 BHABHA, 1998, p. 22.<br />

37 Ibidem., p. 20.<br />

38 Ibidem, p. 51.<br />

39 Ibidem, p. 55.<br />

22


perspectiva das minorias destituídas de poder, é uma negociação complexa que evidencia os<br />

hibridismos culturais, os quais surgem em momentos de transformação histórica.<br />

Uma das estratégias de articulação do poder evidencia-se a partir da produção da<br />

diferença sob a perspectiva da minoria. Esse é um processo de negociação complexo e que<br />

procura conferir poder aos hibridismos culturais que emergem nos interstícios das sociedades.<br />

O direito de se expressar a partir da periferia não depende da tradição, mas de seu poder de se<br />

transformar e reinscrever a partir de situações adversas, que regem a vida dos que fazem parte<br />

dessa minoria. Então, outras temporalidades entram em cena, e isso afasta qualquer acesso<br />

imediato a uma identidade original ou a uma tradição recebida.<br />

O que interessa a Bhabha é o estudo do deslocamento cultural, mais precisamente do<br />

espaço que leva à formação do híbrido. O teórico procura entender “qual poderia ser a função<br />

de uma perspectiva teórica comprometida, uma vez que o hibridismo cultural e histórico do<br />

mundo pós-colonial é tomado como lugar paradigmático de partida”. 40 Portanto, a identidade<br />

cultural não pode ser única, visto que os deslocamentos identitários são constantes. Na medida<br />

em que elementos de uma cultura, de uma comunidade específica são assimilados, a<br />

identidade passa por um deslocamento e, consequentemente, por uma transformação.<br />

1.3.2 O conflito identitário no deslocamento de culturas<br />

Quando o ser humano se desloca de um território ao outro, o faz por necessidade e/ou<br />

por vontade própria. Segundo Clifford, as culturas da diáspora mediam, em uma tensão<br />

vivida, as experiências de separação e entrelaçamento, de viver aqui e lembrar ou desejar um<br />

outro lugar. 41 Por essa razão, há uma resistência à assimilação da cultura do outro, como<br />

forma de preservação da nação que foi perdida, em outro lugar no espaço e no tempo, mas que<br />

exerce uma força poderosa no presente do indivíduo.<br />

Ainda conforme o teórico, na experiência da diáspora, a presença de “aqui” e “lá” é<br />

articulada com uma temporalidade desconecta. A história linear é quebrada, o presente é<br />

constantemente sombreado por um passado que é também um futuro desejado, mas obstruído:<br />

um anseio renovado e doloroso. 42 Dessa forma, as conexões, no sentido de manter, sentir,<br />

reviver a terra de origem, realizadas pela população submetida ao deslocamento em razão da<br />

diáspora, devem ser fortes o suficiente para resistir à eliminação e o esquecimento.<br />

40 Ibidem, p. 46.<br />

41 CLIFFORD, James. Diasporas. Cultural Antropology, Toward Ethnographies of the Future. v. 9, n. 3, p.<br />

310-311, Aug. 1994.<br />

42 Ibidem, p. 318.<br />

23


De acordo com Hall, as pessoas submetidas à diáspora<br />

retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão<br />

de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em<br />

que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente<br />

suas identidades. Elas carregam traços das culturas, das tradições, das linguagens e<br />

das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e<br />

nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto<br />

de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a<br />

várias “casas” (e não a uma “casa” particular). 43<br />

Nessa situação, o indivíduo dispersado de sua terra natal apresenta uma cultura<br />

híbrida, que não oferece possibilidade de recuperação da identidade cultural de outrora, em<br />

razão da sua tradução. Em outras palavras, esse sujeito pertence a dois mundos, com<br />

referenciais de ambos os lugares e que não conseguem ser separados. A solução é conviver e<br />

negociar com as duas identidades, tendo em vista que esse ser encontra-se em um entre-lugar,<br />

ou seja, entre duas culturas distintas.<br />

Bhabha pensa o hibridismo a partir da interação entre elementos linguísticos e<br />

culturais, contraditórios e conflitantes. O teórico indiano aborda o hibridismo partindo da<br />

perspectiva da linguagem e da identidade, revelando a inexistência de identidades, línguas e<br />

linguagens tidas como legítimas, em razão da convivência entre vários grupos e da influência<br />

exercida pelas suas pluralidades culturais. 44<br />

Na verdade, o híbrido se constitui na interação entre as diferentes culturas, pela<br />

sobreposição de valores. Como as identidades estão em constante transformação, não são<br />

únicas, o indivíduo submetido ao deslocamento, precisa negociar entre culturas e tradições,<br />

entre o lá e o cá, o que possibilita o surgimento do terceiro espaço e, a partir deste, o<br />

surgimento de outros posicionamentos.<br />

Um exemplo do deslocamento de culturas e de conflitos identitários é o relato de<br />

Edward Said. O teórico habitou diferentes lugares, nos quais agregou características. Isso o<br />

levou a adquirir a sensação de pertencer a todos os espaços e, ao mesmo tempo, a nenhum.<br />

Said sentia necessidade de resolver essa inquietação, mas não conseguia.<br />

[Q]uando visitei a Jordânia [...], me vi entre vários contemporâneos de ideias<br />

similares. Mas nos Estados Unidos minhas posições políticas eram rejeitadas – com<br />

algumas exceções notáveis – [...]. Pela primeira vez senti-me realmente dividido<br />

entre as novas pressões afirmativas de meu passado e minha língua e as complicadas<br />

43<br />

HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes<br />

Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 88-89.<br />

44<br />

SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In: ABDALA JUNIOR,<br />

Benjamin (Org.). Margens da História: mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004.<br />

24


exigências de uma situação nos Estados Unidos que ignorava – na verdade -<br />

desprezava – o que eu tinha a dizer sobre a busca por justiça para a Palestina, que<br />

era considerada antissemita e parecida com o nazismo. 45<br />

Continuando as reflexões, Said expõe que, numa determinada época, tirou férias e<br />

passou um ano em Beirute, gastando seu tempo com coisas que nunca havia feito, pelo menos<br />

de forma tão intensa. O teórico esclarece:<br />

O que me levou a isso foi o sentimento de que deixara crescer muito a disparidade<br />

entre minha identidade adquirida e a cultura em que nascera e da qual fora afastado.<br />

Em outras palavras, sentia uma necessidade existencial e política de harmonizar as<br />

duas [...]. Pelo que me lembro sempre me permiti ficar de fora do abrigo que<br />

protegia ou acomodava meus contemporâneos. Não posso dizer se isso se dava<br />

porque eu era de fato diferente, concretamente um forasteiro, ou porque era um<br />

solitário por temperamento, mas o fato é que, embora cumprisse todas as rotinas<br />

institucionais porque julgava que devia fazê-lo, algo em mim resistia a elas. Não sei<br />

o que me continha, mas, mesmo quando eu estava na mais profunda solidão ou fora<br />

de sincronia com todo mundo, eu mantinha firmemente esse afastamento privado<br />

[...]. O fato é que não me enquadrava nas situações em que me envolvia e não me<br />

incomodava muito aceitar esse estado de coisas. 46<br />

Essas palavras revelam o conflito interior da pessoa que não consegue desvincular-se<br />

das raízes e interagir com o novo ambiente em que se insere. Muitas vezes, essa atitude<br />

configura-se numa posição de resistência diante do novo, no intuito de manter sua referência<br />

anterior, não assimilando a cultura do outro. Há um envolvimento com a comunidade, mas<br />

tende a ser superficial, visto que o ser humano não é só o presente, mas carrega consigo uma<br />

gama de vivências e experiências que o transformam.<br />

Há momentos em que não se pode viver sob influência do passado, desejando<br />

substituí-lo pelo presente. Assim, como o ser humano se modifica e assume diferentes<br />

posições identitárias, os lugares também sofrem mutações, a partir do trânsito de pessoas.<br />

Esses espaços idealizados pelas lembranças, só existem enquanto rememoração. Por essa<br />

razão, não se pode acreditar que um retorno fará com que uma posição identitária passada seja<br />

recuperada integralmente. É preciso reconciliar-se com o presente e procurar formas de<br />

adaptação com o território em que se vive. Entretanto, ainda conforme Said, à vezes é difícil<br />

encontrar razões para sentir-se pertencer a algo:<br />

A identidade tem a ver com sondar um sujeito tanto quanto se possa imaginar. [...] É<br />

muito mais desafiador transformar-se em algo diferente [...] Por ter perdido um país<br />

45 SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 2003, p. 307.<br />

46 Ibidem, p. 308.<br />

25


sem esperança imediata de recuperá-lo, não encontro muito conforto em cultivar um<br />

novo jardim ou procurar uma outra associação para me filiar. 47<br />

Essa declaração ilustra a dimensão do conflito ocasionado pelo deslocamento. Nessa<br />

situação, o indivíduo, tende a rejeitar o novo espaço, pois não consegue recuperar suas raízes.<br />

Essa rejeição surge a partir da renúncia ao sonho de redescobrir sua identidade cultural,<br />

devido à impossibilidade de fazê-la.<br />

Segundo Hall, “[n]a situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas”. 48 Há<br />

elos centrípetos, que unem o indivíduo a sua terra de origem, ajuntam-se outras forças, como<br />

semelhanças com outras minorias étnicas, identidades emergentes, geografias partilhadas, e<br />

re-identificações simbólicas com as culturas ancestrais compartilhadas. Tal contexto pode<br />

levar a construir um senso coletivo do eu. Nesse sentido,<br />

Possuir uma identidade cultural [...] é estar primordialmente em contato com um<br />

núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa linha<br />

ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de tradição, cujo teste é o de<br />

sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si mesma, sua<br />

autenticidade. É claro, um mito – com todo o potencial real de nossos mitos<br />

dominantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações, conferir<br />

significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história. 49<br />

Fernando Ortiz chama de transculturação o processo de transformação por que<br />

passaram as sociedades e seus membros devido ao contato entre povos diferentes:<br />

Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor as diferentes fases do<br />

processo de transição de uma cultura a outra, porque este não consiste só em<br />

adquirir uma cultura diferente, que é o que a rigor indica a palavra anglo-americana<br />

aculturação, mas que o processo implica também necessariamente perda ou<br />

desenraizamento de uma cultura precedente, o que poderia ser chamado de parcial<br />

desculturação e, além disto, significa a criação subsequente de novos fenômenos<br />

culturais que poderiam ser denominados neoculturação. 50<br />

Isso significa que permanecer entre duas correntes culturais implica transformação, ou<br />

seja, no contato com uma cultura diferente surge a necessidade de adaptação. Segundo Ángel<br />

Rama, nesse processo de transculturação, ocorre de início uma parcial perda de elementos<br />

identitários e, em seguida, a incorporação de outros procedentes de uma cultura externa. Por<br />

47<br />

SAID, 2003, p. 313-314.<br />

48<br />

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende et al.<br />

Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 27.<br />

49<br />

Ibidem, p. 29.<br />

50<br />

ORTIZ, 1963, p. 99 apud FIGUEIREDO, Eurídice. Representações de etnicidade: perspectivas<br />

interamericanas de literatura e cultura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010, p. 87. Grifos do autor.<br />

26


fim, um esforço de recomposição articulando elementos sobreviventes da cultura originária e<br />

da atual. 51<br />

O teórico, quando se refere à literatura que surge a partir desse processo conflituoso<br />

entre culturas, pondera:<br />

À medida que a cultura tende a se tornar uma segunda natureza que define até<br />

melhor a constituição interna do grupo humano que gera, podemos dizer que a<br />

literatura que surge nessas ocasiões de passagem sobrepõe a natureza e a história,<br />

mais ainda, associa ambas dentro de uma estrutura artística que aspira a integrá-la e<br />

equilibrá-las, dando-lhes, mediante essas operações, significação e continuidade: o<br />

sentido da história torna-se acessível por meio do emprego de forças culturais<br />

específicas da comunidade regional, e estas inserem-se no devir que a história<br />

postula, aspirando a prolongar-se sem perder sua textura íntima. 52<br />

Nesse contexto, insere-se o romance A casa da água, tendo em vista que uma das<br />

personagens, Catarina, vivencia um duplo deslocamento: África-Brasil-África. Assim, o<br />

contato com uma nova cultura faz com que ocorra um processo de adaptação, ou seja, uma<br />

aquisição de traços culturais do ambiente em que passa a habitar. Depois, como escrava<br />

liberta, ocorre um retorno à cultura deixada, já modificada pelo próprio tempo e pela própria<br />

Catarina, que assimilou parte da cultura brasileira. Também o restante da família experimenta<br />

a perda de alguns fenômenos culturais e a aquisição de outros. Em outros termos, precisam<br />

integrar-se a essa construção nova, que assume as rupturas e os problemas do choque cultural.<br />

É uma forma de constituir uma identidade com o intuito de equilibrar o desejo de<br />

quem não sabe se remete o passado para um segundo plano ou se vive em função dele. Afinal,<br />

“[t]er raízes é talvez a necessidade mais importante e menos reconhecida da alma humana”. 53<br />

O ser humano sente necessidade de integrar uma comunidade e fazer parte de sua cultura, pois<br />

aquele que é “excessivamente livre e sem regras, encontra-se atormentado pelas aporias do<br />

mundo em convulsão, pelo descentramento advindo dos deslocamentos e dos confrontos entre<br />

sonhos e aspirações e as duras imposições da realidade”. 54<br />

Nas páginas iniciais do romance A casa da água, o desejo de retornar à África move<br />

as ações da matriarca Catarina, fundamentando-se na sensação de não pertencimento ao<br />

51 RAMA, Ángel. Literatura e cultura na América Latina. Organização de Flávio Aguiar e Sandra Guardini<br />

T. Vasconcelos. São Paulo: Editora da Universidade, 2001. p. 11. Disponível em:<br />

. Acesso em: 30 abr. 2011.<br />

52 Ibidem, p. 317-318.<br />

53 WEIL apud SAID, 2003, p. 56.<br />

54 FIGUEIREDO, 2010, p. 274.<br />

27


território brasileiro. Ex-escrava, ela representa a condição de muitos africanos que sentem<br />

necessidade de resgatar suas raízes, recuperar uma história interrompida em sua terra natal,<br />

em função da diáspora a que foram submetidos.<br />

Trazidos ao Brasil em navios negreiros, os escravos não apagam totalmente suas<br />

memórias da África. Esses sujeitos assimilam outros costumes, mas a cultura africana<br />

permanece nas suas situações cotidianas, mostrando que, até na diáspora, a África se mantém<br />

viva. Por essa razão, o interesse em retornar ao país de origem nutre os pensamentos da<br />

maioria dos ex-escravos, que veem no retorno a recuperação de seu posicionamento<br />

identitário.<br />

O próximo capítulo versa sobre a trajetória do negro no imaginário brasileiro,<br />

examinado a presença desse indivíduo na literatura brasileira. Nessa abordagem, procura-se<br />

demonstrar a discriminação e o preconceito com o negro, e, principalmente, as transformações<br />

ocorridas nos escritos literários, no decorrer do tempo, no sentido de modificar a imagem<br />

estereotipada e a invisibilidade impostas a esse sujeito, durante séculos.<br />

28


2 O NEGRO NO IMAGINÁRIO LITERÁRIO BRASILEIRO<br />

Na literatura brasileira, pode-se dizer que a figura do negro faz parte das produções<br />

desde o século XVI. Porém, a sua participação, na maioria dos casos, ocorre com uma simples<br />

menção à sua presença em solo brasileiro. É a partir da Lei Áurea, que a matéria negra torna-<br />

se assunto dos escritos, os quais, com poucas exceções, envolvem procedimentos que indicam<br />

ideologias, atitudes e estereótipos da estética branca dominante com relação ao negro. 55 O que<br />

se percebe são textos que procuram inferiorizar os africanos ou colocá-los numa espécie de<br />

invisibilidade literária, destacando as personagens brancas, com uma enorme gama de tipos,<br />

em papéis de protagonistas.<br />

Segundo Homi Bhabha, o estereótipo não é uma simplificação só por ser uma falsa<br />

representação de uma dada realidade; é uma forma fixa que nega o jogo da diferença,<br />

constituindo assim um problema para a representação do sujeito em suas relações<br />

psicossociais. 56 Em outras palavras, o estereótipo serve apenas para reforçar e justificar<br />

preconceitos, visto que reflete a visão que alguém tem em relação ao papel do outro na<br />

sociedade. A literatura é o campo fértil para desenvolvimento de visões deturpadas da<br />

realidade referindo-se aos afro-brasileiros.<br />

Conforme afirma Cuti, a literatura brasileira é abusivamente branca, em seu propósito<br />

de anular e estereotipar o negro e o mestiço. 57 Essa invisibilidade com relação aos negros<br />

africanos e seus descendentes brasileiros, enquanto personagens da literatura, tem uma relação<br />

direta com o espaço que é reservado a esses indivíduos na sociedade brasileira. Os homens de<br />

cor tem uma participação quase nula, tanto na sociedade quanto na literatura. Segundo<br />

Florentina da Silva Souza, essa situação<br />

é paradoxal, pois grande parte da população no Brasil é composta por negros e<br />

mestiços. A presença negra é percebida. Entretanto, há lugares marcados e<br />

permitidos para que a visibilidade negra se dê. [...] Na mesma proporção, em que<br />

determinados espaços são conferidos aos negros, várias interdições lhe são<br />

colocadas [...]. Quando uma pessoa negra rompe com o espaço que lhe é reservado,<br />

55<br />

PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estudos Avançados, v.18, n. 50,<br />

São Paulo: 2004, p. 2. Disponível em:<br />

. Acesso em: 14<br />

jan. 2011.<br />

56<br />

BHABHA, 1998, p. 117.<br />

57 CUTI, s.d.<br />

29


o da subalternidade, passa a sofrer uma espécie excessiva de visibilidade, causando<br />

inclusive incômodo para muitos. 58<br />

Por outro lado, o negro se torna invisível em locais de subalternidade ou realizando<br />

atividades em espaços nobres. Porém, quando o próprio afro-brasileiro ocupa posições de<br />

destaque em lugares não permitidos aos negros enquanto coletividade, é, automaticamente,<br />

embranquecido e considerado fora do grupo étnico de origem. Nesse contexto, “a literatura,<br />

enquanto forma de poder de articulação e de imposição de um determinado discurso, [...]<br />

revela não só as representações literárias para e dos grupos dominantes, como também exerce<br />

o poder de representar o Outro”. 59 Isso pode ser percebido nas produções literárias dos séculos<br />

que se sucederam ao descobrimento do país.<br />

2.1 O imaginário sobre o negro: discriminação e preconceito de cor com os<br />

afrodescendentes<br />

Muito tempo se passou desde a Abolição da escravidão, em 1888. Contudo, atitudes<br />

preconceituosas e de discriminação com relação ao negro ainda persistem, principalmente no<br />

que diz respeito à cor. O preconceito contra o negro está incrustado na sociedade brasileira e,<br />

por isso, está presente também nos escritos literários. Na obra A casa da água, objeto de<br />

análise desse trabalho, a personagem Catarina, por ser ex-escrava, é um dos exemplos da<br />

herança dos sofrimentos causados pela escravidão. Por essa razão, justifica-se a inclusão<br />

dessa parte do estudo, a fim de mostrar algumas visões e ideias a respeito da cor negra, por<br />

parte do branco.<br />

A questão da cor é uma categoria classificatória, criada culturalmente na tentativa de<br />

situar o sujeito em um contexto social em que as relações de poder o posicionam como igual<br />

ou diferente, dominado ou dominante. Em outras palavras, a tonalidade da pele tem sido<br />

relacionada à posição social ocupada na estrutura socioeconômica da sociedade, o que torna<br />

indissociáveis as categorias de cor, etnia 60 e classe social quando se identifica um brasileiro<br />

como negro, mulato ou branco.<br />

58 SOUZA apud EVARISTO, Conceição. Literatura e educação segundo uma perspectiva afro-brasileira. In:<br />

SIMPÓSIO AFRO-CULTURA, LITERATURA E EDUCAÇÃO, 1., 2010. Frederico Westphalen, RS. Anais...<br />

Frederico Westphalen: <strong>URI</strong>/FW, 2010, p. 459.<br />

59 EVARISTO, Conceição. Literatura e educação segundo uma perspectiva afro-brasileira. In: SILVA, Denise<br />

Almeida; EVARISTO, Conceição. Literatura, história, etnicidade e educação: estudos nos contextos afrobrasileiro,<br />

africano e da diáspora africana. Frederico Westphalen: <strong>URI</strong>, 2011, p. 50.<br />

60 SANTOS, Célia Regina dos; WIELEWICKI, Vera Helena Gomes. Literatura de autoria de minorias étnicas e<br />

sexuais. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Org.). Teoria Literária: abordagens históricas e<br />

tendências contemporâneas. 3. ed. Maringá: Eduem, 2009, p. 342. Etnia é a articulação das lutas de classe, das<br />

30


Pensada desse modo, a cor deixa de ser um qualitativo e passa a ter um caráter<br />

essencial. Nessa perspectiva, é a partir dos traços físicos que o negro passa a ser avaliado,<br />

acentuando-se a diferença entre brancos e pretos. Por outro lado, se sua aparência não revela a<br />

sua ascendência negra, é considerado branco. De um modo ou de outro, no Brasil, a<br />

discriminação se manifesta de maneira velada, e a posição social é forjada em função da etnia.<br />

A discriminação com base na etnia demonstra a violação do princípio de que todos os<br />

seres humanos são iguais em dignidade e direitos. Julgar o indivíduo pela sua aparência é<br />

comportamento de um grupo social dominante que se considera superior e, portanto, procura<br />

afastar-se dos demais. De acordo com João Baptista Pereira, “[a] discriminação é o processo<br />

de marginalização social e cultural imposta ao homem ou ao grupo „diferente”. 61<br />

A classificação dos indivíduos com relação à cor, posição social e raça é produzida em<br />

contextos históricos específicos e não simplesmente um reflexo transparente no espaço da<br />

linguagem. Segundo Cuti, o silêncio em face da supremacia branca e suas práticas de rejeição<br />

social, no período pós-abolicionista, aos poucos, vai sedimentando o viés comportamental do<br />

brasileiro não negro ou daquele que se julga como tal, e, inclusive dos próprios negros.<br />

Portanto, nesse último contexto, discriminar é uma forma de os mestiços de diversas origens<br />

negarem-se como negros, mesmo que seus vínculos estejam presentes em sua ascendência ou<br />

e em suas caraterísticas físicas. 62<br />

Essa atitude de autodiscriminação explica-se pela necessidade de integração, pois<br />

viver em sociedade significa dominar técnicas sociais e assimilar padrões culturais, requisitos<br />

indispensáveis para que o indivíduo possa disputar e preservar posições na estrutura social. O<br />

negro sofre as condições desfavoráveis e, por esse motivo, em algumas situações, por medo<br />

de represálias, acaba negando-se como sendo um homem de cor. 63<br />

No Brasil, segundo Santos, constrói-se um ideário de submissão e dominação pautado<br />

na ideia de inferioridade da etnia negra, em torno da qual se forma uma imagem peculiar de<br />

qualidades e relacionada a características negativas, como forma de degradação do negro.<br />

particularidades de gênero, dos processos culturais e históricos. A etnicidade de um povo refere-se às diferenças<br />

raciais que se aproximam por relações múltiplas de língua, religião, história, conhecimento e defesas comuns,<br />

constituindo assim um campo de comunicação e interação que o distinguirá de outros. Já raça, é o conceito que<br />

diz respeito a certos atributos físicos biológicos comuns a um determinado grupo, geralmente classificando os<br />

grupos raciais em negro, branco, amarelo etc. Construído sobre fenótipos, o conceito de raça está ligado ao<br />

sentido de tipo, classificando os seres humanos por suas características físicas ou capacidade mental.<br />

61 PEREIRA, João Baptista Borges; FERNANDES, Florestan; NOGUEIRA, Oracy. A questão racial brasileira<br />

vista por três professores. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 175, dez./fev. 2005-2006.<br />

62 CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010, p. 16-17.<br />

63 PEREIRA, FERNANDES, NOGUEIRA, 2005-2006, p. 176.<br />

31


Contrariamente ao que representava a cor branca, ao negro sempre se impuseram atributos<br />

depreciativos. Em relação a isso, Cohen pondera:<br />

Em todos os tempos esta cor sempre esteve revestida de valores negativos nas<br />

línguas indo-europeias. É desta maneira que em sânscrito, o branco simboliza a<br />

classe dos brâmanes, a mais elevada da sociedade. Em grego, o negro sugere uma<br />

mácula tanto moral quanto física; ele trai, igualmente, os homens de intenções<br />

sinistras. Os romanos não somaram a este vocábulo nenhum significado novo: para<br />

eles, o negro é signo de morte e de corrupção enquanto o branco representa a vida e<br />

a pureza. Os homens da Igreja, à procura de chaves e símbolos que revelassem os<br />

sentidos ocultos da natureza, fizeram do negro a representação do pecado e da<br />

maldição divina. 64<br />

De acordo com William Cohen, desde a antiguidade greco-romana, existe uma<br />

imagem distorcida sobre a África e os africanos. Terra de figuras monstruosas segundo<br />

Heródoto, Plínio e Rabelais e tantos outros, a África é vista pela Europa “como uma porta<br />

para o inferno”. 65 Essas figuras são os homens de cor que, pela sua aparência e pelo modo<br />

como vivem, são igualados aos animais, conforme relatos sobre os mistérios selvagens da<br />

África negra, feitos por viajantes em busca de terras perdidas. A cor que os distinguia dos<br />

brancos necessitava de um esclarecimento.<br />

O ser do negro, então, torna-se objeto de investigação, uma vez que se constituía em<br />

um fenômeno diferente. Segundo a visão europeia, “quer por obra da natureza, quer por obra<br />

divina, havia se produzido um ser que merecia explicação, um ser anormal”. 66 Isso, na<br />

maioria das vezes, era justificativa para considerar o negro como alguém que apresenta<br />

inferioridade natural. Ainda de acordo com as ideias da Europa civilizada, a África é uma<br />

terra de pecado e imoralidade. Seus habitantes vivem sem regras, são “povos de clima tórrido<br />

com sangue quente e paixões anormais que só sabem beber e fornicar”. 67 Isso gera seres<br />

corrompidos, inferiores, sem inteligência.<br />

As diferenças culturais entre os vários povos que pertencem ao continente africano<br />

tornam-se invisíveis, quando entra em cena a questão da cor da pele. Essa invisibilidade é<br />

dada ao povo da África pela sociedade que, por falta de conhecimento, rotula de negros todos<br />

os seus habitantes, como se todos fossem iguais no que diz respeito à cor, cultura e religião. Já<br />

a Europa, branca, é tomada como paradigma para a compreensão da cultura, como se fosse<br />

possível transplantar os valores. A inferioridade dos africanos é justificada por meio de<br />

64 COHEN, 1980, p. 39 apud SANTOS, Gislene Aparecida. A invenção do ser negro: um percurso das ideias<br />

que naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/Fapesp; Rio de janeiro: Pallas, 2002, p. 45.<br />

65 COHEN, 1980 apud SANTOS, 2002, p. 53.<br />

66 SANTOS, 2002, p. 55.<br />

67 Ibidem, p. 55.<br />

32


argumentos ecológicos, ou seja, as condições ambientais da África levam seus habitantes a<br />

uma vida tranquila, sem preocupações. Isso faz com que sua inteligência se desenvolva<br />

pouco, tendo em vista que não precisam estimulá-la. Em outras palavras, o desenvolvimento<br />

se dá de acordo com as exigências do meio.<br />

Com o passar do tempo, muitas são as explicações que tentam justificar a inferioridade<br />

do homem de pele escura, quer sejam pelo caráter social, político físico ou religioso. Porém, a<br />

única diferença decorrente de todas as outras é a raça. Nesse sentido, transforma-se a<br />

aparência, a cor da pele, em fator de discriminação:<br />

[s]e os traços físicos estabeleciam uma conduta, seria importante desenvolver uma<br />

ciência da aparência, que seria a reedição da ideia de que o corpo representa a<br />

exteriorização da alma, revelando, por meio de seus traços, os vícios e as virtudes<br />

humanas. Com os avanços conseguidos pela anatomia, que podia provar a<br />

interdependência dos órgãos do corpo e a influência de suas funções na conduta do<br />

indivíduo, não foi difícil argumentar que diferenças físicas entre as raças<br />

produzissem diferenças intelectuais e morais. 68<br />

No Brasil e em outros países do Novo Mundo, o preconceito contra o negro é um dos<br />

mais arraigados em virtude dos séculos de escravidão. O negro, mesmo antes de ter sido<br />

escravizado, já apresenta um defeito: a cor. Segundo David Brookshaw,<br />

[a] associação da cor preta com maldade e feiura, e da cor branca com bondade e<br />

beleza remonta à tradição bíblica, resultando daí que o simbolismo do branco e preto<br />

constitui parte intrincada da cultura europeia, permanecendo em seu folclore e em<br />

seu patrimônio literário e artístico. H. R. Isaacs repete este aspecto do assunto<br />

sucintamente: Estes conceitos e usos de maldade preta e de bondade branca, de<br />

formosa brancura e feia negritude estão profundamente inseridos na Bíblia, [...] na<br />

verdade, estão atados em quase todas as fibras entrelaçadas de arte e literatura das<br />

quais nossa história se reveste. 69<br />

Diante do exposto, é possível supor que o racismo faz uso de vários elementos<br />

presentes no imaginário, oferecendo-lhes um caráter científico. A ideologia racista vale-se dos<br />

valores estéticos em relação ao negro. Por esses motivos, é que o preconceito com relação ao<br />

negro busca argumentos e elucidações para sua razão de ser, edificando-se, enraizando-se<br />

cada vez mais na mente e na realidade das pessoas.<br />

Para Hannah Arendt, a ideologia racista, com raízes profundas no século XVIII,<br />

emerge simultaneamente em todos os países ocidentais durante o século XIX. Desde o início<br />

do século XX, o racismo reforça a ideologia da política imperialista, absorvendo e revivendo<br />

68 SANTOS, 2002, p. 57.<br />

69 BROOKSHAW, David. Raça & cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado<br />

Aberto, 1983, p. 12.<br />

33


todos os antigos pensamentos racistas que, por si só, não teriam sido capazes de transformar<br />

esse racismo em ideologia. 70<br />

A autora, ao discutir o caráter persuasivo dessa ideologia, analisa que:<br />

A extraordinária força de persuasão decorrente das principais ideologias do nosso<br />

tempo não é acidental. A persuasão não é possível sem que seu apelo corresponda<br />

às nossas experiências ou desejos ou, em outras palavras, a necessidades imediatas.<br />

Nessas questões a plausibilidade não advém nem de fatos científicos, como vários<br />

cientistas gostariam que acreditássemos, nem de leis históricas, como pretendem os<br />

historiadores em seus esforços de descobrir a lei que leva as civilizações ao<br />

surgimento e ao declínio. Toda a ideologia que se preza é criada, mantida e<br />

aperfeiçoada como arma política e não como doutrina teórica. 71<br />

E a ciência, segundo Hannah Arendt, torna-se o artifício que justifica a dominação e<br />

que cria uma nova necessidade, pois consente com a ideologia, enfatizando as ilusões e as<br />

ideias que difunde. O racismo projeta-se a partir do momento em que alguns povos lançam<br />

seu olhar imperialista sobre outros, de modo a submetê-los mais facilmente.<br />

O racismo deliberadamente irrompeu através de todas as fronteiras nacionais,<br />

definidas por padrões geográficos, linguísticos, tradicionais ou quaisquer outros, e<br />

negou a existência político-nacional como tal. A ideologia racial, e não a de classes,<br />

acompanhou o desenvolvimento da comunidade das nações europeias, até se<br />

transformar em arma que destruiria essas nações. Historicamente falando, os<br />

racistas, embora assumissem posições aparentemente ultranacionalistas, foram<br />

piores patriotas que os representantes de todas as outras ideologias internacionais;<br />

foram os únicos que negaram o princípio sobre o qual se constroem as organizações<br />

nacionais de povos – o princípio de igualdade e solidariedade de todos os povos,<br />

garantido pela ideia de humanidade. 72<br />

O exercício da literatura associa-se aos movimentos de afirmação do negro, a partir da<br />

conscientização da situação desse sujeito na sociedade, “seja no espaço dos povos da África,<br />

seja no domínio da afro-diáspora” 73 [...] Isso traz uma preocupação, pois quando o negro faz<br />

uso do espaço literário como meio de afirmação cultural, pode enfrentar novas e sutis<br />

armadilhas marginalizantes, como o preconceito velado. Essa preocupação se torna pertinente<br />

no momento em que o espaço literário agrega elementos de resgate da memória coletiva e dos<br />

que fazem a história do negro, enquanto grupo étnico. Com relação a isso, Proença Filho<br />

expõe:<br />

70 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras,<br />

1989, p. 188.<br />

71 Ibidem, p. 189.<br />

72 ARENDT, 1989, p. 191.<br />

73 PROENÇA FILHO, 2004, p. 15.<br />

34


O resgate dos mitos, a proximidade cultural com a África, mas sem distorções<br />

nostálgicas, e com outros países em que a discriminação existe, o tempo escravo<br />

repensado, as revoltas, situação do negro e de seus descendentes na construção<br />

socioeconômica do país e sua marcada participação nos tempos heroicos da<br />

formação da nacionalidade, as contribuições linguísticas colocadas em evidência na<br />

nossa língua portuguesa do Brasil, podem, entre outros traços, contribuir, através da<br />

transfiguração na literatura para o conhecimento e o redimensionamento da presença<br />

do negro na sociedade brasileira. São verdades e valores capazes de se opor<br />

vigorosamente aos estereótipos e preconceitos ainda vigentes no comportamento de<br />

muitos brasileiros. [...] Há que se considerar a literatura como lugar de afirmação e<br />

singularização de identidades múltiplas e várias, mas integradas no tecido da arte<br />

literária brasileira e universal. 74<br />

Diante disso, é importante que os negros e seus descendentes ocupem os espaços na<br />

literatura, em busca de uma representatividade plena, para que essa etnia não seja mais vista a<br />

partir de uma diferença redutora. E os brasileiros, todos, precisam assumir a igualdade na<br />

coparticipação da construção da nacionalidade e o direito à plenitude da cidadania.<br />

Na continuidade, aborda-se a imagem do negro na literatura brasileira, desde o período<br />

colonial até o momento presente. Procura-se demonstrar a importância desse sujeito e a sua<br />

ascensão nos escritos literários ao longo dos séculos.<br />

2.2 Período colonial<br />

A presença do negro nos escritos coloniais é dotada de pouca representatividade. Nos<br />

textos de José Anchieta, aparecem “pequenas descrições que se limitam a constatar a<br />

existência do elemento negro inserido no vasto grupo dos que deviam ser conquistados e<br />

assistidos pelos catequizadores”. Nas “Informações do Brasil e de suas capitanias” (1854), o<br />

jesuíta afirma que na Capitania de Pernambuco existem fazendas e engenhos de açúcar, “cada<br />

um dos quais é uma boa povoação com muita gente branca, Negros da Guiné e Índios da terra.<br />

A todos estes acode a companhia com pregações, doutrinas, confissões...”. 75<br />

Nesse trecho e em outros de seus diversos escritos, Anchieta menciona a presença do<br />

africano, que, juntamente com os índios, são o foco da pregação dos religiosos. Porém, não<br />

passam de pequenas notas, visto que nada é feito em favor dos negros da Guiné, como eram<br />

chamados. Pelo contrário, eles continuam desempenhando as funções serviçais, até nos<br />

colégios da Companhia dos padres jesuítas.<br />

Nos textos de padre Antonio Vieira, é possível perceber uma posição no que se refere<br />

à escravidão. Ele chama atenção para o caráter violento, injusto e degradante da escravização<br />

74 PROENÇA FILHO, 2004, p. 16.<br />

75 ANCHIETA apud FRANÇA, Jean M. Carvalho. Imagens do negro na literatura brasileira. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1998, p. 8-9.<br />

35


dos negros. Todavia, com várias contradições, pois critica e, ao mesmo tempo, considera a<br />

incapacidade de convertê-los. Conforme França, não hesitava “em defender a importação de<br />

escravos de Angola para substituir a mão de obra indígena”. 76<br />

As opiniões desencontradas de Vieira podem ser observadas no trecho em que declara<br />

não acreditar na catequização dos negros: “sendo rebelados e cativos, estão e perseveram em<br />

pecado contínuo e atual, de que não podem ser absoltos, nem receber a graça de Deus, nem se<br />

restituírem ao serviço e obediência de seus senhores, o que de nenhum modo hão de fazer”. 77<br />

Porém, em outros escritos, suas opiniões voltam a ser contraditórias, como em uma carta,<br />

escrita em1652, na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, quando se refere aos habitantes da ilha:<br />

São todos pretos, mas somente neste acidente se distinguem dos europeus. Têm<br />

grande juízo e habilidade, e toda a política que cabe em gente sem fé e muitas<br />

riquezas [...]. Há aqui clérigos e cônegos tão negros com o azeviche, mas tão<br />

compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem<br />

morigerados, que podem fazer inveja aos que lá vemos nas nossas catedrais. 78<br />

Percebe-se, aqui, o juízo inconstante de Vieira a respeito do africano. Suas obras, ao<br />

mesmo tempo em que desqualificam a figura do negro, afirmando que convertê-los é<br />

praticamente impossível, somente com a liberdade, o que ocasionaria prejuízos ao Brasil, por<br />

outro lado, criticam o caráter degradante do comércio de escravos.<br />

O século XVII também marca a presença do homem negro nos versos satíricos de<br />

Gregório de Matos Guerra. Em “Epílogos”, estende a crítica a todas as classes da sociedade<br />

baiana de seu tempo, incluindo os negros e os mulatos.<br />

Que falta nesta cidade?... Verdade.<br />

Que mais por sua desonra?... Honra.<br />

Falta mais que se lhe ponha... Vergonha.<br />

O demo a viver se exponha,<br />

Por mais que a fama a exalta<br />

Numa cidade onde falta<br />

Verdade, honra e vergonha. [...]<br />

Quem são seus doces objetos?... Pretos.<br />

Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.<br />

Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.<br />

Dou ao demo os insensatos,<br />

Dou ao demo a gente asnal,<br />

Que estima por cabedal<br />

Pretos, mestiços, mulatos. [...] 79<br />

76 FRANÇA, 1998, p. 16.<br />

77 VIEIRA, 1926, p. 621 apud FRANÇA, 1998, p. 16-17.<br />

78 VIEIRA, 1926, p. 295 apud FRANÇA, 1998, p. 18.<br />

79 MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 37.<br />

36


Constata-se a crítica à paisagem moral de Salvador, Bahia, a capital do Brasil, na<br />

época colonial. O poder corrupto não escapa à visão do poeta. Gregório critica, de forma<br />

impiedosa, o governador, a igreja, os comerciantes, os brancos, os negros, os mulatos, os<br />

colonos. Ninguém escapa à sua ferocidade linguística, nem mesmo os homens de cor, que<br />

aparecem como objetos e posses da sociedade corrupta e, mesmo assim, não reagem.<br />

Em outros textos, o autor elenca uma série de tipos negros no cotidiano da Bahia. Para<br />

ele, a presença dos africanos é motivo para comentários desabonadores, quase sempre<br />

associados a aspectos negativos, principalmente com relação à mulher negra e à sua<br />

sensualidade.<br />

mesmo autor:<br />

[...] Vossa luxúria é tão indiscreta<br />

É tão pesada, e violenta,<br />

Que em dois putões se sustenta<br />

Uma mulata e uma preta [...] 80<br />

A seguir, a citação também revela a presença do negro estereotipado, nos versos desse<br />

Achei Anica na fonte<br />

Lavando sobre uma pedra [...]<br />

Namorei-a, achei-a dura[...]<br />

Depois de feito o conchavo,<br />

Passei o dia com ela,<br />

Eu deitado a uma sombra,<br />

ela batendo na pedra.<br />

Tanto deu, tanto deu<br />

co‟a barriga e co‟as cadeiras,<br />

Que me deu a anca fendida,<br />

Mil tentações de ir-me a ela. [...] 81<br />

O excerto é parte do poema que o autor fez a uma mulata, que estava lavando roupa,<br />

num passeio que ele realizou até uma ilha. Verifica-se que a personagem é parte do universo<br />

restringido ao negro: os serviços domésticos. Gregório associa a figura da mestiça à<br />

sensualidade e aos prazeres do corpo. O exemplo seguinte assinala, novamente, a<br />

estereotipação do negro:<br />

Ficou a gente pasmada<br />

de ver que uma negra bruta<br />

sendo na vida tão puta,<br />

80 MATOS, 1976, p. 230.<br />

81 MATOS, Gregório de. Os melhores poemas de Gregório de Matos. Sel. Darcy Damasceno. 7. ed. São<br />

Paulo: Global, 2003, p. 86-87.<br />

37


vá na morte tão honrada:<br />

quem é tão aparentada<br />

sempre na honra se estriva,<br />

e assim a gente cativa<br />

ficou pasmada, e absorta,<br />

de ver ir com honra, morta,<br />

quem nunca teve honra na vida. [...] 82<br />

O poema é sobre uma negra que foi enterrada com o hábito de São Francisco, o que<br />

causou estranheza e indignação por parte da população, pois ela não tinha tido uma vida<br />

exemplar e nem prestígio na sociedade. Dessa forma, após a morte, não pode ter honras,<br />

especialmente no que se refere ao uso da roupa de um santo da Igreja Católica.<br />

Após o período colonial, na chamada escola mineira, a referência ao negro é bastante<br />

rara. Os autores em geral limitam-se<br />

a constatar a existência do elemento africano, seja como um possível fiel (fiel não<br />

preferencial) a ser convertido, como parte da paisagem local, como força de trabalho<br />

indispensável para o andamento da economia colonial, como um foco de desordem,<br />

ou ainda como membro ativo do cotidiano de uma cidade onde seu número era<br />

avultado, Salvador. 83<br />

O árcade Tomás Antonio Gonzaga registra a presença da personagem negra, em sua<br />

obra Cartas Chilenas (1788). Mostra vários tipos negros, representando a parcela humilde da<br />

população:<br />

E manda a um bom cabo que lhe traga<br />

A quantos quilombotas se apanharem<br />

Em duras gargalheiras. Voa o cabo,<br />

Agarra a um e outro num instante<br />

Enche a cadeia de alentados negros.<br />

Não se contenta o cabo com trazer-lhe<br />

Os negros que têm culpas, prende e manda<br />

Também, nas grandes levas, os escravos<br />

Que não têm mais delitos que fugirem<br />

Às fomes e aos castigos, que padecem [...] 84<br />

O negro é mostrado como um infrator, que deve ser punido por ser de cor. Se esse<br />

indivíduo não tem culpas, é preso da mesma forma. Aqui, o preconceito está diretamente<br />

ligado à melanina da pele.<br />

Basílio da Gama, outro poeta árcade, confere maior importância ao homem de cor, em<br />

seu poema Quitúbia (1791):<br />

82 MATOS, 2003, p. 131.<br />

83 FRANÇA, 1998, p. 33.<br />

84 GONZAGA, Tomas Antonio. Cartas Chilenas. São Paulo: PAE - Programa de Assistência ao Estudante,<br />

2007, p. 15. (Coleção Mestres da Literatura 2).<br />

38


[...] Teus olhos sobre a escura África se estende;<br />

depois, alada deusa, os ares fende,<br />

e entoa ao tom de bárbara trombeta,<br />

o forte Capitão da Guerra Preta.<br />

Esforçado Quitúbia, o Tejo sabe<br />

Quanto valor em teu peito cabe.<br />

Herdaste de teu Pai o nome e o brio,[...]<br />

O título que tens compraste a tua glória.<br />

Que ainda que essa cor escura o encobre,<br />

Verteste-o por teu Rei: é sangue nobre. 85<br />

Trata-se da grandeza do herói negro, Domingos Ferreira da Assunção, capitão<br />

angolano, que se destaca na Guerra Preta. Esse indivíduo é exaltado por seus feitos históricos,<br />

porém há uma ressalva quando o autor cita a cor da pele do bravo guerreiro: ainda que seja<br />

um homem de cor, tem sangue nobre. Evidencia-se, assim, mais um descaso com relação ao<br />

negro, na história literária brasileira, mesmo ocupando, na obra, um lugar de destaque.<br />

2.3 O século XIX<br />

Nessa época, os temas da escravidão e do escravo passam a suscitar uma reflexão mais<br />

profunda, passando da fase de mera constatação da sua existência. A partir das primeiras<br />

décadas do século XIX, os negros começam a surgir na poesia nacional, como no livro<br />

Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, publicado em 1836. 86<br />

[...] Que ao filho sempre a mãe anosa antolhas,<br />

A pátria ao peregrino, o amigo ao amigo,<br />

O esposa à esposa; e ao malfadado escravo,<br />

Que sem futuro pelo mundo vaga,<br />

Mostras a liberdade e o lar paterno; [...]<br />

Oh terra do Brasil, terá querida,<br />

Quantas vezes do mísero Africano<br />

Te regaram as almas saudosas?<br />

Quantas vezes teus bosques repetiram<br />

Magoados acentos<br />

Do cântico do escravo,<br />

Ao som dos duros golpes de Machado? [...]<br />

À voz do eterno obediente a terra<br />

Se mostra austera e parca<br />

Que a lágrima do escravo esteriliza<br />

O terreno que orvalha.<br />

A natureza preza a liberdade,<br />

E só franqueia aos livres seus tesouros. [...]<br />

Oh suspirada, oh cara Liberdade,<br />

85 GAMA, Basílio da. Quitúbia. 1791. Disponível em:<br />

. Acesso em: 19 mar. 2011.<br />

86 FRANÇA, 1998, p. 37.<br />

39


Descende asinha do Africano à choça,<br />

Seu pranto enxuga, quebra-lhe as cadeias,<br />

E adoça-lhe da pátria a dor saudosa. [...] 87<br />

Nessa obra, o poema Invocação à saudade mostra um tipo negro que é retomado<br />

muitas outras vezes pela literatura oitocentista: o escravo melancólico e saudoso de sua terra.<br />

O autor retrata o africano como um sujeito perdido, longe de suas raízes, com saudades da<br />

África. Mostra, ainda, a tristeza do negro, pelo sofrimento, a falta de dignidade e o desejo de<br />

liberdade.<br />

Segundo Edimilson de Almeida Pereira, as ligações entre Brasil e África estreitaram-<br />

se devido ao enorme contingente de escravos que chegaram entre os séculos XVI e XIX,<br />

trazendo uma gama de elementos culturais, que se tornaram parte das práticas cotidianas do<br />

brasileiro. Porém, a sociedade brasileira dispensou um tratamento preconceituoso para com os<br />

negros, desqualificando alguns dos aspectos referentes às culturas africanas. 88 Assim, no<br />

século XIX, os escritores e os artistas elegem a figura do índio e a natureza como símbolos da<br />

nacionalidade, desvalorizando, mais uma vez, a presença do negro nos escritos. Para o crítico,<br />

[i]sso ocorreu na medida em que o português foi sendo identificado com a figura do<br />

ex-colonizador e o negro africano, por sua vez, com a imagem do atraso e da<br />

ignorância. A idealização do índio na literatura romântica produzida no Brasil e a<br />

rejeição dos demais grupos étnicos do País caracterizaram-se como um<br />

procedimento reducionista. 89<br />

Esse modo de afirmar a identidade nacional baseia-se na valorização de um grupo em<br />

detrimento de outro. Nesse contexto, “os descendentes de escravizados são utilizados como<br />

temática literária predominantemente pelo viés do preconceito e da comiseração. A<br />

escravização havia coisificado os africanos e sua descendência”. 90 E a literatura está sujeita a<br />

seguir essa linha, negando complexidade às personagens de pele escura, visto que ela é o<br />

reflexo e o reforço das relações sociais e de poder.<br />

Conforme Brookshaw, nessa época romântica, o espírito de independência e liberdade<br />

estava ligado ao espírito de nacionalismo e à procura por uma identidade totalmente<br />

brasileira. Conforme o que demonstra Gonçalves Dias, no poema Os Timbiras (1857), o<br />

87 MAGALHÃES, Gonçalves de. Invocação à saudade. In: ______. Suspiros Poéticos e saudades. 1836.<br />

Disponível em: . Acesso em: 19<br />

mar. 2011.<br />

88 PEREIRA, Edimilson de Almeida. Malungos na escola: questões sobre culturas afrodescendentes e educação.<br />

2. ed. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 22.<br />

89 Ibidem, p. 23.<br />

90 CUTI, 2010, p. 16.<br />

40


índio torna-se o representante desses ideais românticos. 91 Porém, mesmo exaltando o<br />

indígena, o poeta não deixa de referir-se ao negro. Em Meditação (1850), Dias escreve uma<br />

crítica à escravidão:<br />

Pois em verdade vos digo que será o primeiro escarnecido, ludibriado e martirizado<br />

aquele que se julgar dominador por todo o tempo de sua vida.<br />

Porque o Senhor disse: - E se alguém de vós quiser dominar os seus irmãos tornarse-á<br />

o último dentre eles.<br />

E assim será por todo o sempre, porque a palavra do Senhor é eterna. 92<br />

O poema representa simbolicamente uma afronta à política do favor. Por outro lado,<br />

reflete o desejo do poeta de interferir no processo de formação da sociedade brasileira,<br />

extinguindo o trabalho escravo para atingir a civilidade. A obra não atende às expectativas<br />

românticas, mas traz elementos que denunciam as mazelas sociais do Brasil oitocentista,<br />

principalmente a escravidão, como é possível observar quando o autor critica o indivíduo que<br />

se julga superior aos seus.<br />

À medida que o negro aparece na literatura brasileira é para contrastar com o índio. O<br />

negro, que representa a realidade da classe colonizada, trabalhando na lavoura do colonizador,<br />

não se sobressai ao padrão indígena nos escritos literários. O índio é corajoso e tem orgulho<br />

de sua independência. 93<br />

José de Alencar, no romance de costumes rurais Til (1872), demonstra a submissão<br />

“natural” dos escravos negros, opondo-os com o índio João Fera, que demonstra um espírito<br />

de independência. Ele mesmo diz: “Não me torno [...] escravo de um homem, que nasceu rico,<br />

por causa das sobras que me atirava, como atiraria a qualquer outro, ou a seu negro”. 94<br />

Examina-se a superioridade do índio em relação ao negro, no momento em que menciona que<br />

o homem branco dá as sobras aos escravos. Com as palavras de João Fera, fica evidente que,<br />

numa escala hierárquica, o homem de cor ocupa a última posição, é um ser qualquer.<br />

Outro romance que retrata os estereótipos com relação ao negro é A escrava Isaura<br />

(1875), de Bernardo Guimarães. Filha de um homem branco e de uma negra, Isaura tem pele<br />

branca, mas é escrava e recebe da família, a que pertence, fina educação: sabe francês, toca<br />

piano. A heroína é uma escrava considerada branca, de linhagem nobre por parte do pai. Por<br />

91<br />

BROOKSHAW, 1983, p. 27.<br />

92<br />

DIAS, Gonçalves. Meditação. Disponível em: . Acesso<br />

em: 21 jul. 2011.<br />

93<br />

BROOKSHAW, 1983, p. 27.<br />

94<br />

ALENCAR, José. Til. 8. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1964, p. 79.<br />

41


essa razão, suas características, seus traços europeus são ressaltados, colocando-a em<br />

vantagem sobre qualquer outra mulata:<br />

Acha-se ali sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de moça. As linhas<br />

do perfil desenham-se distintamente entre o ébano da caixa de piano e as bastas<br />

madeixas ainda mais negras do que ele. São tão puras e suaves essas linhas que<br />

fascinam os olhos, enlevam a mente e paralisam toda análise. A tez é como o<br />

marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que<br />

não sabereis dizer se é leve palidez ou cor de rosa desmaiada. [...] 95<br />

Isso revela que o escravo, em qualquer situação literária, na qual está em posição de<br />

superar o branco, é retratado na cor branca ou seu tom de pele não é mencionado. Tem-se,<br />

dessa forma, o escravo nobre que vence pela força de seu branqueamento, embora a custo de<br />

muito sacrifício e humilhação. A respeito disso, Brookshaw pondera:<br />

A figura do escravo branco oferece prova substancial de que os escritores<br />

interessados no problema escravidão foram, contudo, vítimas de todos os<br />

preconceitos e intolerâncias que rodeavam a questão da raça e da cor. O escravo, em<br />

certas situações, tinha de ser retratado na cor branca, a fim de provar uma exceção à<br />

regra (sic) que negros eram escravos por natureza e para não ofender as<br />

suscetibilidades de um público leitor fundamentalmente pró-escravatura. 96<br />

Portanto, na literatura brasileira, a personagem negra, além de pouca<br />

representatividade, desaparece, seja através da morte ou do clareamento. Desde os escritos<br />

coloniais, ao tema negro tem sido negada importância nos escritos, numa espécie de<br />

apagamento dessa raça, como forma de inferiorizar as manifestações de origem africana<br />

diante das demais raças.<br />

Na mesma situação de A escrava Isaura, aparece a obra O mulato (1881) de Aluísio<br />

Azevedo, em que o personagem Raimundo, um belo mulato de olhos azuis, educado e<br />

recentemente vindo da Europa, vive um caso de amor com sua prima rica, Ana Rosa.<br />

Desconhecendo sua condição de filho de uma escrava, Raimundo sofre sem compreender a<br />

hostilidade do meio social maranhense, conservador e racista. A princípio não consegue<br />

entender o porquê da recusa da mão de Ana Rosa em casamento.<br />

- Mas o senhor deve compreender a minha insistência! Não se diz assim, sem mais<br />

nem menos, a um homem que vem, legítima e conscienciosamente, pedir a mão de<br />

uma senhora, que a isso o autorizou. “Não lha dou, porque não quero! [...] O senhor<br />

deve concordar que me deve uma resposta, seja qual for! [...]<br />

Manuel sacudiu os ombros e resmungou depois, em ar de confidência:<br />

- Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor é... é filho de uma escrava...<br />

95 GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. 20. ed. São Paulo: Ática, 1994, p. 13.<br />

96 BROOKSHAW, 1983, p. 30.<br />

42


- Eu?!<br />

- O senhor é um homem de cor!... Infelizmente esta é a verdade... 97<br />

Quando descobre o motivo que o impede de ser feliz com a prima, Raimundo lamenta<br />

e finalmente compreende “todos os mesquinhos escrúpulos que a sociedade do Maranhão<br />

usara para com ele”. 98 Porém, não consegue esquecer as palavras de Manuel; sente-se mais só<br />

do que nunca:<br />

E tudo por quê?... pensava ele, porque sucedera sua mãe não ser branca!...Mas do<br />

que servira então ter-se instruído e educado com tanto esmero? [...] E Raimundo<br />

revoltava-se. Pois, melhores que fossem as suas intenções, todos ali o evitavam,<br />

porque a sua pobre mãe era preta e fora escrava? Mas que culpa tinha ele em não ser<br />

branco e não ter nascido livre?... [...] Amaldiçoada fosse aquela maldita raça de<br />

contrabandistas que introduziu o africano no Brasil! Maldita! Mil vezes maldita!<br />

Com ele quantos desgraçados não sofriam o mesmo desespero e a mesma<br />

humilhação sem remédio? 99<br />

Em O Mulato, o autor expõe as mazelas da sociedade, que explora o trabalho escravo<br />

e nutre um profundo preconceito contra os negros e mestiços. Denuncia o preconceito para<br />

com os escravos, mostrando a consequência trágica desse relacionamento: a morte de<br />

Raimundo pelo rival branco. Ana Rosa aborta o filho que espera de Raimundo, casa-se com o<br />

assassino e torna-se uma típica mãe de família burguesa. Mais uma vez, o branco sobrepõe-se<br />

ao negro, e este é eliminado.<br />

Muitos outros autores dessa época dedicam versos ao negro, dentre eles o maranhense<br />

Manuel Odorico Mendes, com “Hino à tarde” (1844); Teixeira e Sousa, com um poema<br />

chamado “A Independência do Brasil” (1847); José Bonifácio de Andrada, na década de 50,<br />

com “Calabar” e “Saudades do escravo”; Joaquim Norberto de Sousa e Silva, “Os Palmares”,<br />

poema épico de 1851 e Bernardo Guimarães, com o livro de poesias Cantos da solidão<br />

(1852), o qual traz um poema consagrado ao africano: “À sepultura de um escravo”. 100<br />

Contudo, é com Castro Alves que a presença do negro é vista com mais frequência na<br />

literatura nacional, mais precisamente na poesia. Considerado o poeta dos escravos, o autor<br />

retira o tema da escravidão do anonimato, colocando o tipo negro como figura constante nos<br />

escritos, mas com personagens que são a representação da realidade: jardineiros, cozinheiras,<br />

etc. Seus textos poetizam a vida do negro escravo, apresentando-o como ser humano digno a<br />

uma sociedade que o mercantiliza:<br />

97<br />

AZEVEDO, Aluísio. O mulato. São Paulo: Ática, 1996, p. 166.<br />

98<br />

Ibidem, p. 167.<br />

99<br />

Ibidem, p. 185.<br />

100<br />

FRANÇA, 1998, p. 38-41.<br />

43


América<br />

[...] A filha das matas – cabocla morena-<br />

Se inclina indolente sonhando talvez!<br />

A fronte nos Andes reclina serena.<br />

E o Atlântico humilde se estende a seus pés.[...]<br />

Já falta bem pouco. Sacode a cadeia<br />

Que chamam riquezas... que nódoas te são!<br />

Não manches a folha de tua epopeia<br />

No sangue do escravo, no imundo balcão.<br />

Sê pobre, que importa? Sê livre... és gigante,<br />

Bem como os condores dos píncaros teus!<br />

Arranca este peso das costas do Atlante,<br />

Levanta o madeiro dos ombros de Deus. 101<br />

Na primeira estrofe, a “cabocla morena” é referência à América. Essa imagem<br />

sintetiza a origem mestiça da população americana: da mistura do branco com o índio resulta<br />

o caboclo. A seguir, o poema expressa a visão do eu lírico com relação à escravidão, tida<br />

como um negócio lucrativo e sórdido, capaz de envergonhar a história de um continente.<br />

As obras A cachoeira de Paulo Afonso (1876) e Os escravos (1883), ambas<br />

publicadas depois da morte de Castro Alves, abordam o tema da escravidão, mostrando uma<br />

enorme quantidade de estereótipos, que caracterizam a literatura do período. Um exemplo é o<br />

do negro humilhado:<br />

[...] Trema o céu... ó ruína! Ó desgraça!<br />

Porque o negro bandido é quem passa<br />

Porque o negro bandido bradou:<br />

Cai, orvalho de sangue do escravo,<br />

Cai, orvalho, na face do algoz.<br />

Cresce, cresce, seara vermelha,<br />

Cresce, cresce, vingança feroz.<br />

Dorme o raio na negra tormenta...<br />

Somos negros... o raio fermenta<br />

Nesses peitos cobertos de horror.<br />

Lança o grito da livre coorte,<br />

Lança, ó vento, pampeiro de morte,<br />

Este guante de fero ao senhor.[...] 102<br />

Esse texto é o início do poema “Bandido negro”, pertencente ao livro Os escravos.<br />

Essa composição retrata a revolta do homem de cor com a sua condição de escravo,<br />

101 ALVES, Castro. Os escravos. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 61-62.<br />

102 Ibidem, p. 58.<br />

44


transformando-se em justiceiro. A sua vingança é para com o fazendeiro, que o mantém<br />

escravo, assassina seu pai e desonra sua mãe.<br />

Outro texto que demonstra a estereotipação é o poema “Tragédia no lar” (1865).<br />

Neste, uma mãe negra sofre com o drama da escravidão:<br />

E a mãe em pranto ao pé dos mercadores. Atirou-se a gemer.<br />

- Senhor! Basta a desgraça<br />

De não ter pátria nem lar,<br />

De ter honra e ser vendida,<br />

De ter alma e nunca amar![...]<br />

Deixai à mãe o filhinho,<br />

Deixai à desgraça o amor.<br />

Meu filho é-me a sombra amiga<br />

Neste deserto cruel... [...]<br />

É da vida o único brilho...<br />

Meu filho! É mais... é meu filho...<br />

Deixai-mo em nome da Cruz!... 103<br />

A tristeza da mãe que tem o filho arrancado dos braços para ser vendido é evidente. A<br />

alegria da maternidade é dilacerada pela crueldade do cativeiro, pela falta de humanidade dos<br />

homens brancos, que negam à escrava o direito de zelar pelo seu bem mais precioso: o filho.<br />

Tem-se, então, a desagregação da família negra devido ao comércio de escravos, o que revela<br />

outro estereótipo: a criança de cor, que, desamparada e longe da família, alimenta sonhos de<br />

vingança.<br />

Que tens criança? [...]<br />

Tu choras porque um ramo de baunilha<br />

Não pudeste colher,<br />

Ou pela flor gentil da granadilha?<br />

Dou-te, um ninho, uma flor, dou-te uma palma.<br />

Para em teus lábios ver<br />

O riso – a estrela no horizonte da alma.<br />

Não. Perdeste tua mãe ao fero açoite<br />

Dos seus algozes vis.<br />

E vagas tonto a tatear à noite.<br />

Choras antes de rir... pobre criança!<br />

Que queres, infeliz!...<br />

- Amigo, eu quero o ferro da vingança. 104<br />

Esses versos foram retirados do poema “A criança”, de 1865. O autor, Castro Alves,<br />

demonstra em muitos textos a crítica com relação à escravidão. Além dos tipos negros<br />

mencionados, muitos outros são encontrados em seus escritos, tais como o escravo sofredor<br />

103 ALVES, 2003, p. 50.<br />

104 Ibidem, p. 54-55.<br />

45


que alcança a liberdade pela morte, a escrava desonrada pelo filho do patrão, a bela mulata<br />

que se torna amante do fazendeiro e o escravo nobre. Além desses temas, destacam-se a<br />

abolição e o apostolado abolicionista, a desumanidade e a selvageria do tráfico de escravos, a<br />

homenagem à república de Palmares e a escravidão como o toque de barbárie da história da<br />

pátria e do continente americano. 105<br />

Com Castro Alves, negros e mulatos aparecem na poesia nacional, não mais como<br />

resultado de uma criação passageira, que ocupa alguns poucos versos, mas como parte de um<br />

movimento progressivo, que se inicia lentamente, na década de 30, com Gonçalves de<br />

Magalhães. Já na década de 50, ganha impulso, atingindo seu ponto mais forte, no início da<br />

década de 60, inclusive como tema para peças teatrais.<br />

No teatro brasileiro, os problemas relativos à escravidão são discutidos diretamente<br />

em algumas obras, revivendo alguns tipos negros já referidos. Destacam-se O cego (1855), de<br />

Joaquim Manuel de Macedo, com o negro fiel e empenhado em servir seu senhor cego;<br />

História de uma moça rica (1861), de Francisco Pinheiro de Guimarães, em que aparece<br />

uma bela mulata, cínica e insolente, que se amasia com o patrão; O escravocrata (1882), de<br />

Arthur Azevedo e Urbano Duarte, que trata do caso amoroso entre um escravo fiel com sua<br />

patroa; O demônio familiar (1857), de José de Alencar, cujo tema é a corrupção moral do<br />

negro pela escravidão, tendo como personagem principal um moleque, que, por conhecer os<br />

segredos domésticos, faz algumas intrigas a respeito dos patrões. Por último, A mãe (1859),<br />

também de autoria de Alencar, que enfoca a vida de Joana, uma mãe negra dedicada e<br />

sofredora, que devota toda a sua vida a Jorge, seu filho, e que mais tarde se torna seu senhor,<br />

desconhecendo a verdadeira identidade de Joana:<br />

105 FRANÇA, 1998, p. 56-60.<br />

Cena III<br />

JOANA - Ah! Quando senti o primeiro movimento que ele fez no meu seio, tive<br />

uma alegria grande, como nunca pensei que uma escrava pudesse ter. Depois uma<br />

dor que só tornarei a ter se ele souber. Pois meu filho havia de ser escravo como eu?<br />

Eu havia de lhe dar a vida para que um dia quisesse mal à sua mãe? Deu-me vontade<br />

de morrer para que ele não nascesse... Mas isso era possível?... Não, Joana devia<br />

viver!<br />

Dr. LIMA - Foi então que Soares te comprou...<br />

JOANA - Ele me queria tanto bem! Deu por mim tudo quanto tinha... Dois contos de<br />

réis! Eu fui para sua casa. Aí meu nhonhô nasceu, e foi logo batizado como filho<br />

dele, sem que ninguém soubesse quem era sua mãe.[...]<br />

JOANA - E por isso só. Vm. era capaz de afirmar? Não! Quem lhe contou fui eu,<br />

com a condição de não dizer nunca!...<br />

Dr. LIMA - Pois bem, Joana! Não direi uma palavra. Continuarás a ser escrava de<br />

teu filho. Será para ele a dor mais cruel quando souber...<br />

46


JOANA - Nunca!... Quem vai lhe dizer?... Além de Vm. e de mim, só Deus sabe<br />

este segredo. Enquanto meu senhor estava fora eu vivia descansada... [...]<br />

Dr. LIMA - Nunca me habituarei!.... Tu não sabes como eu te admiro, Joana; e<br />

como dói-me no coração ver esse martírio sublime a que te condenas.<br />

JOANA - Eu vivo tão feliz, meu senhor! [...] 106<br />

O medo de sair da clandestinidade é atribuído ao temor da rejeição pela pessoa que<br />

Joana mais ama. Assim, a heroína prefere suicidar-se, quando Jorge descobre seu segredo.<br />

Entretanto, a preocupação de Castro Alves com o direito dos escravos à liberdade não<br />

significa que esse autor está imune ao preconceito contra os negros. Evidências, em sua obra,<br />

comprovam que o preconceito se faz presente. Isso se deve ao fato de o escritor tratar do tema<br />

“do ponto de vista da classe a que pertencia: com uma mistura de idealismo e medo”. Um<br />

exemplo do idealismo de Alves é o personagem Luiz, na peça Gonzaga, um negro<br />

responsável que está integrado à sociedade, mas que trata seus superiores com o respeito que<br />

esperam dele. 107 Isso demonstra que o negro, mesmo quando integrado à sociedade branca,<br />

continua assumindo a postura de subserviente.<br />

Joaquim Manuel de Macedo e Franklin Távora são dois escritores que fazem uso de<br />

estereótipos em suas obras, porém de maneiras distintas. Távora, em seus romances O<br />

Cabeleira (1876), O Matuto (1878) e Lourenço (1881), apresenta bons negros, libertos da<br />

escravidão e trabalhando em suas próprias terras, enfatizando as qualidades passivas e<br />

respeitáveis do negro. Por outro lado, retrata, também, o escravo demônio, assim como o faz<br />

Castro Alves. Já Macedo, evidencia o escravo livre, mas abandonado à própria sorte,<br />

diferentemente de Távora. 108<br />

A justificativa para o preconceito contra o negro recebe um impulso a partir do<br />

romance naturalista O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Essa obra traz o negro e o mestiço<br />

erotizados e sensuais, como é o caso da mulata Rita Baiana. Com relação a isso Brookshaw<br />

comenta:<br />

Ela é a típica heroína naturalista cuja composição biológica domina o<br />

comportamento. Com efeito, em várias ocasiões, Azevedo enfatiza a sua<br />

amoralidade. Tendo seduzido o português Jerônimo, ela, então, torna-se a causa da<br />

degeneração do mesmo, que de um imigrante trabalhador e honesto passa a ser um<br />

brasileiro inútil e dado a vícios. Nessa trajetória, porém, Jerônimo elimina seu rival<br />

Firmo, mulato e primeiro amor de Rita. 109<br />

106 ALENCAR, José. A mãe. 1859. Disponível em: . Acesso em: 28 mar. 2011.<br />

107 BROOKSHAW, 1983, p. 38.<br />

108 Ibidem, p. 39-41.<br />

109 Ibidem, p. 45.<br />

47


Assim demonstrado, tem-se mais uma vez a supremacia do branco diante do negro.<br />

Além do estereótipo negativo da mulata imoral que, pela exagerada sensualidade,<br />

volubilidade e falta de princípios morais sólidos corrompe os lares brancos e influencia<br />

negativamente as pessoas mais próximas. O cortiço, também, traz o negro como serviçal,<br />

subalterno e animalizado na figura da personagem Bertoleza. Esta pagava ao seu proprietário<br />

para viver sozinha e tocar uma pequena quitanda: “Bertoleza também trabalhava forte; a sua<br />

quitanda era a mais bem-afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite, peixe-frito e<br />

iscas de fígado”. [...] 110<br />

Com o passar do tempo, Bertoleza confia a João Romão todas as economias que<br />

juntou para poder pagar sua alforria. Fez isso com medo de ser assaltada, como já havia sido.<br />

João Romão se apossa de tudo o que era dela, compra um terreno e começa a construção do<br />

cortiço. A escrava, que nem desconfia das intenções de João Romão, considerando-o um<br />

amigo, uma espécie de sócio, trabalha incansavelmente, como é possível observar:<br />

Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de<br />

criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada<br />

estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois<br />

preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que havia para além de<br />

um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão<br />

na taverna quando o amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua quitanda durante<br />

o dia no intervalo de outros serviços e à noite passava-se para a porta da venda, e,<br />

defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia<br />

pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à praia do<br />

Peixe. E o demônio da mulher ainda encontrava tempo para lavar e consertar, além<br />

da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha a verdade, não era tanta e nunca<br />

passava em todo o mês de alguns pares de calças de zuarte e outras tantas camisas de<br />

riscado. 111<br />

A partir de seu progresso econômico, João Romão começa a interessar-se por Zulmira,<br />

filha do comerciante Miranda, e sonha em casar-se com ela para mudar de condição social.<br />

Depois de uma vida dedicada ao trabalho e ao próprio João Romão, Bertoleza percebe que foi<br />

enganada por ele e que sua carta de alforria não é verdadeira. Ameaçada de voltar ao<br />

cativeiro, a escrava se suicida, e João Romão casa-se com Zulmira. Esses estereótipos<br />

enfatizam a tese de que o forte sobrevive e o fraco é eliminado pelo bem da sociedade.<br />

Com relação a Machado de Assis, Proença Filho avalia que é um escritor que merece<br />

considerações especiais. Há quem defenda que um mulato ter se tornado um dos maiores<br />

escritores brasileiros é significativo para a afirmação da etnia negra, mesmo que, em suas<br />

obras, esse tema não esteja muito aprofundado. Outros criticam a ausência da problemática<br />

110 AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Moderna, 1995, p. 19.<br />

111 Ibidem, p. 21.<br />

48


negra positivamente dimensionada. 112 Machado é um escritor que tem a crítica como uma<br />

característica singular, e toma posição diante da temática da escravidão, como exemplificam<br />

os contos “O caso da vara”, publicado no livro Páginas recolhidas (1889), e “Pai contra<br />

mãe”, que está em Relíquias da casa velha (1906).<br />

Neste último conto, o autor inicia a narração fazendo uma descrição dos instrumentos<br />

de tortura em uso contra o escravo. Depois fala do personagem Candinho, que se torna<br />

caçador de escravos fugidos. Menciona as dificuldades financeiras do personagem que, com<br />

um filho pequeno, vê-se obrigado a colocar a criança na roda dos enjeitados. É nessa situação<br />

de conflito interior que aparece uma escrava procurada, para a qual estava sendo oferecida<br />

uma boa gratificação. Então, Candinho a domina e a leva. Grávida, a escrava aborta devido à<br />

luta pela sua liberdade. 113<br />

Através dessa narrativa, o tema da escravidão se faz presente, mostrando os excluídos<br />

e os que têm apoio para vencer: negro x branco. Em outros termos: Candinho é branco e livre,<br />

está ao lado dos fortes, enquanto a escrava, por ser negra, é privada da liberdade e é excluída<br />

da sociedade. Nesse sentido, Machado de Assis adentra na questão da escravidão,<br />

denunciando que o direito à vida é concedido apenas aos que são livres.<br />

Cruz e Sousa, poeta do simbolismo brasileiro, é outro caso singular. Negro, filho de<br />

escravos alforriados, sofre preconceito que o impede, entre outras discriminações, de assumir<br />

o cargo de promotor público. Esse conflito vivenciado pelo autor reflete-se em seus escritos,<br />

através da associação da cor branca às qualidades ideais e da cor negra aos mesmos<br />

infortúnios de outrora. 114 Essas características depreciativas da cor negra e a supremacia da<br />

branca se fazem presentes nos versos:<br />

De linho branco e rosas brancas vais vestido,<br />

Sonho virgem que cantas no meu peito!...<br />

És do Luar o claro deus eleito,<br />

Das estrelas puríssimas nascido. 115 [...]<br />

A citação exemplifica a valorização e o desejo pela cor branca. Essa atitude é uma<br />

forma de negar a cor negra, tendo em vista a discriminação e o preconceito que o próprio<br />

autor foi vítima. Em contrapartida, o excerto a seguir revela o sofrimento dos mais humildes:<br />

112 PROENÇA FILHO, 2004, p. 8.<br />

113 ASSIS, Machado. Relíquias da casa velha. s.d. Disponível em:<br />

. Acesso em: 29<br />

mar. 2011.<br />

114 PROENÇA FILHO, 2004, p. 9.<br />

115 SOUSA, Cruz e. Poesias completas. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 25.<br />

49


Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,<br />

Ó ser humilde entre os humildes seres,<br />

Embriagado, tonto dos prazeres,<br />

O mundo para ti foi negro e duro.[...]<br />

Mas eu que sempre te segui os passos<br />

Sei que cruz infernal prendeu-te os braços<br />

E o teu suspiro como foi profundo! 116<br />

O fragmento revela os infortúnios sofridos pelos escravos. O poeta, condicionado aos<br />

conceitos tradicionais de branco e preto na cultura europeia, aceita todos os preconceitos e<br />

estereótipos dos brancos com relação à sua raça.<br />

2.4 Século XX<br />

No modernismo brasileiro, a visão distorcida do negro continua presente, nos registros<br />

literários. Os escritores modernistas de grandes centros, como São Paulo, são responsáveis<br />

pela incorporação de material ameríndio e afro-brasileiro na literatura e na arte. Porém, a<br />

preferência mais pelo índio do que pelo negro é algo que pode ser explicado a partir da<br />

tradição maior de indianismo no nacionalismo literário brasileiro, autodeterminada pela<br />

própria distância temporal do índio e seu isolamento dos efeitos da história colonial. A razão<br />

disso está no grande número de imigrantes europeus sobrepondo sua cultura em detrimento da<br />

afro-brasileira. 117<br />

Se os modernistas de modo geral voltam-se mais ao índio em busca de material<br />

primitivo, o fazem com objetivo diverso dos escritores românticos do século XIX, que o<br />

caracterizavam como um “selvagem nobre” e como um símbolo da identidade nacional, mas<br />

sem rejeitar a cultura europeia. Os modernistas procuram no índio e no negro a corporificação<br />

de uma cultura oposta, ou seja, um selvagem irreverente. O objetivo não é a busca de material<br />

artístico, mas a transformação de todo um sistema de valores. O potencial cultural e a<br />

originalidade brasileira estão na combinação da tradição ameríndia com a afro-brasileira. 118<br />

A procura de outros personagens representantes brasileiros sem ascendência africana é<br />

a saída usada por alguns intelectuais, que veem no sertanejo um ponto de estabilidade no<br />

panorama étnico brasileiro. Euclides da Cunha, em Os Sertões (1902), argumenta que,<br />

mesmo o habitante do sertão sendo etnicamente misturado, desenvolve-se “isolado das<br />

116 SOUSA, 1998, p. 99.<br />

117 BROOKSHAW, 1983, p. 80-81.<br />

118 Ibidem, p. 82-84.<br />

50


circunstâncias históricas e das exigências de uma civilização imposta que podia ter perturbado<br />

sua constituição”. O escritor estabelece um contraste entre “o rude sertanejo, o degenerado<br />

mulato e o fraco, subserviente negro das plantações do litoral”, esquecendo que muitos desses<br />

sertanejos têm descendência africana. 119<br />

Para ele, “o sertanejo é antes de tudo um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos<br />

mestiços neurastênicos do litoral”. 120 Cunha eleva a posição dos sertanejos e rebaixa os<br />

mestiços, mesmo que o sertanejo tenha se originado da miscigenação das raças. Isso<br />

demonstra que o interesse dos ideais culturais brasileiros é o desejo de uma civilização branca<br />

e de um representante nacional que permaneça como símbolo de pureza rural. Tal atitude faz<br />

com que a presença do afro-brasileiro seja cada vez mais abafada nos romances do período<br />

pós-abolição. 121<br />

A discriminação, embora assumindo, muitas vezes, formas discretas, sempre<br />

acompanha os caminhos da etnia negra. O afrodescendente continua sendo excluído da<br />

sociedade e raramente aceito. Seu espaço resume-se a posições inferiores e a profissões sem<br />

prestígio, tendo em vista o preconceito e a discriminação com relação ao seu tom de pele. Na<br />

maioria dos textos, esses sujeitos são relegados aos trabalhos domésticos e a atividades sem<br />

expressão, do menino de recado à cozinheira da casa, como se exemplifica com Tia<br />

Anastácia, personagem do Sítio do Picapau Amarelo (1920), de Monteiro Lobato.<br />

Jorge Amado, na década de 30, aborda o tema da escravidão em várias obras. Dentre<br />

elas, Jubiabá (1935), que traz como personagem o exuberante negro Antonio Balduíno, que<br />

segue o exemplo de Zumbi dos Palmares, na luta contra as injustiças sociais. Segundo<br />

Brookshaw:<br />

A figura do herói de Jubiabá corresponde exatamente ao negro estereotipado da<br />

voga primitivista e é a esse respeito que se manifesta o preconceito de Jorge Amado.<br />

Balduíno é uma criatura só instinto. Sua vitalidade, espontaneidade e libido<br />

imunizam-no contra desejos materiais. Por isso Balduíno “era puro como um animal<br />

e tinha por única lei os instintos”. Em determinado momento, Amado salienta que<br />

“dinheiro era coisa que não fazia falta ao negro Antonio Balduíno”. De fato, seu<br />

insaciável instinto não se volta em direção ao dinheiro, mas para a experiência<br />

sexual sem a qual, conforme foi mencionado, ele não pode viver. 122<br />

119 BROOKSHAW, 1983, p. 59.<br />

120 CUNHA, Euclides. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 118.<br />

121 BROOKSHAW, 1983, p. 60.<br />

122 Ibidem, p. 134-135.<br />

51


Tem-se, então, o estereótipo do negro sexualmente mais ativo e depravado do que o<br />

branco. Jorge Amado faz uso de personagens negros, em seus escritos, tendo em vista a forte<br />

presença da mitologia africana na cultura na vida baiana, sua terra de origem.<br />

Jorge de Lima é um escritor que merece destaque. Em Poemas negros (1947),<br />

manifesta a consciência da discriminação racial, porém defende uma identidade brasileira<br />

culturalmente mestiça. Seu interesse é que o mulato, embora se despoje de sua pigmentação<br />

preta, ainda assim, preserve a espiritualidade de seus antepassados negros. 123 Isso demonstra a<br />

defesa de uma estratégia de branqueamento da raça negra, o que, no Brasil, segundo<br />

Brookshaw, “era tão irreversível quanto desejável”. 124<br />

2.5 A literatura afro-brasileira<br />

A literatura afro-brasileira emerge como uma forma de preenchimento do vazio criado<br />

pela perda de identidade do negro, no longo período em que a cultura dominante foi o ideal da<br />

grande maioria dos negros brasileiros. Esse discurso literário é um modo de recuperar as<br />

raízes, a própria história africana.<br />

Segundo Bernd, falar em literatura negra não é atrelar-se à cor da pele do autor nem à<br />

temática por ele utilizada. É, antes de tudo, assumir a condição negra por meio de um eu que<br />

se quer negro. Para a autora, a concepção de negritude é uma questão linguística:<br />

[a] presença de uma articulação entre textos, determinada por um certo modo<br />

negro de ver e sentir o mundo, e a utilização de uma linguagem marcada,<br />

tanto no nível do vocabulário quanto no dos símbolos, pelo empenho em<br />

resgatar uma memória negra esquecida legitimam uma escritura negra<br />

vocacionada a proceder a desconstrução do mundo nomeado pelo branco e a<br />

erigir sua própria cosmogonia. Logo, uma literatura cujos valores fundadores<br />

repousam sobre a ruptura com contratos de fala e de escritura ditados pelo<br />

mundo branco e sobre a busca de novas formas de expressão dentro do<br />

contexto literário brasileiro. 125<br />

A literatura negra compreende a presença de um sujeito que reconquista a posição de<br />

enunciador, não só como reconhecimento, mas reapropriando-se de um espaço existencial,<br />

como meio de sair da invisibilidade que lhe foi imposta. Para isso, não é preciso ser negro,<br />

mas sentir-se como tal.<br />

123 BROOKSHAW, 1983, p. 94-95.<br />

124 Ibidem, p. 97.<br />

125 BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 22.<br />

52


Uruguay Cortazzo diverge das ideias de Zilá Bernd, no que se refere à separação de<br />

corpo e identidade, na literatura negra. Para o autor, “a literatura negra tem como fundamento<br />

uma política corporal que se desenvolve como uma estética identitária”. 126 Toda literatura<br />

nasce num contexto sociocultural e, portanto, não pode exprimir o que não é experienciado. O<br />

negro não é somente um ente linguístico; é um indivíduo que traz na pele as marcas de um<br />

passado de escravidão, que só pode ser expresso, a partir do ponto de vista de quem viveu e<br />

conviveu com essa realidade.<br />

De acordo com Cuti, denominar a literatura negro-brasileira de afro é atribuir-lhe uma<br />

desqualificação com base na hierarquização das culturas. Os termos “afro-brasileiro” e<br />

“afrodescendente” “são expressões que induzem a discreto retorno à África, afastamento<br />

silencioso no âmbito da literatura brasileira para se fazer de sua vertente negra um mero<br />

apêndice da literatura africana” 127 . Em outras palavras, é considerar a literatura produzida no<br />

Brasil, por autores que desenvolvem temas negros, como uma extensão da literatura africana e<br />

não parte integrante do imaginário brasileiro.<br />

Atrelar a literatura negro-brasileira à literatura africana teria um efeito de referendar<br />

o não questionamento da realidade brasileira por esta última. A literatura africana<br />

não combate o racismo brasileiro. E não se assume como negra. Ainda, a<br />

continentalização africana da literatura é um processo desigual se compararmos com<br />

outros continentes. Países com a sua singularidade estético-literária são colocados<br />

sob o mesmo rótulo. A diversidade africana mais uma vez é negada. [...] 128<br />

Essa negação das particularidades promove ainda mais a dominação, agora no âmbito<br />

literário. Isso demonstra que a tendência é a rejeição de uma identidade continental por parte<br />

dos literatos africanos, brancos ou negros, pois a preferência é por uma caracterização<br />

nacional, a partir das noções de território geográfico.<br />

Cuti prossegue suas reflexões, explicando que o termo “negro” remete o cidadão à<br />

reivindicação diante do racismo. Já “afro-brasileiro” retoma o continente africano, com todas<br />

as suas nações e seus habitantes, nem todos negros e tampouco ligados à ascendência negro-<br />

brasileira. Para o autor,<br />

identificar-se com essa palavra é comprometer sua consciência na luta antirracista, é<br />

estar atento aos preconceitos e à consequente cristalização de estereótipos, é dar<br />

mais ênfase à criação diáspórica do que à origem de seus produtores ou teor de<br />

melanina em suas peles.[...] 129<br />

126 CORTAZZO, Uruguay. Branquitude e crítica literária. In: SILVA, EVARISTO, 2011, p. 127.<br />

127 CUTI, 2010, p. 34.<br />

128 Ibidem, p. 36.<br />

129 Ibidem, p. 44-45.<br />

53


Utilizar termos que não expressam a verdadeira identidade do negro e nem revelam<br />

seu teor reivindicatório é estar contribuindo para o preconceito e a estereotipação do cidadão<br />

de pele escura. Há ainda resistência com relação a essa denominação. O cânone literário<br />

brasileiro “precisa de forte antídoto contra o racismo nela entranhado”. Os autores que se<br />

comprometem com a causa do negro discriminado devem revelar em seus textos “um Brasil<br />

que se quer negro também no campo da produção literária, pois o país plural se manifesta no<br />

entrechoque das ideias e nos intercâmbios de pontos de vista”. 130<br />

Já Conceição Evaristo e Denise Almeida Silva defendem, na introdução da obra<br />

Literatura, história, etnicidade e educação, o termo afro-brasileiro. Conforme as autoras,<br />

Para referência à poética negra praticada em território brasileiro, optamos pelo termo<br />

literatura afro-brasileira, pois cremos que o uso do adjetivo hifenizado distingue uma<br />

produção literária criada a partir de sujeitos cuja assunção de uma nacionalidade,<br />

também hifenizada, “afro-brasileira”, além de reportar à ascendência africana de<br />

seus/suas criadores/as, intencionalmente marca o lugar político de sujeitos que, por<br />

injunções históricas, reivindicam identidades pessoal e coletiva específicas na nação<br />

brasileira. 131<br />

Evaristo chama a atenção para como, nas últimas três décadas, afirma-se, no interior<br />

da Literatura Brasileira, um discurso que evidencia um posicionamento do negro como sujeito<br />

agente, e não mais como objeto a ser descrito:<br />

se há uma literatura que aprisiona os sujeitos negros no espaço da estereotipia ou os<br />

apaga como seres inexistentes na sociedade, há outro discurso literário em que,<br />

vigorosamente, seus criadores, homens e mulheres, afirmam uma ancestralidade<br />

africana. Esses discursos incorporam saberes, visões de mundo vivenciados em<br />

outros espaços sociais e culturais, assim como muitas vezes além de revelar o<br />

pertencimento étnico, revelam também o de gênero. 132<br />

O discurso do negro revela-se em uma literatura da qual emerge uma consciência<br />

negra, assumindo uma identidade, que busca recuperar as raízes da cultura negra. Além disso,<br />

há uma preocupação em desenvolver um protesto contra as complicadas e sutis formas de<br />

racismo e preconceito de que a comunidade negra brasileira ainda é vítima, depois de tanto<br />

tempo da Abolição da escravatura.<br />

De acordo com Cortazzo, o discurso do negro como sujeito “procura redefinir agora a<br />

representação convencional e preconceituosa que se tem formado do negro na instituição<br />

130 CUTI, 2010, p. 13.<br />

131 SILVA, EVARISTO, 2011, p. 10.<br />

132 EVARISTO, 2011, p. 51.<br />

54


literária”. 133 Em outros termos, a presença desse indivíduo, na literatura brasileira, quase<br />

sempre tem envolvido procedimentos ideológicos, atitudes e estereótipos da estética branca.<br />

O discurso do negro começa a manifestar o comprometimento de escritores negros e<br />

seus descendentes com a etnia. No Brasil, essa literatura<br />

emerge no bojo de uma situação histórica, configuradora da reivindicação pelos<br />

negros de determinados valores de uma identidade própria. Essa identidade e sua<br />

presença forjadora e aglutinadora da comunidade em que o grupo étnico se situa<br />

seriam elementos decisivos na luta pela eliminação das discriminações e pela<br />

conquista do lugar que lhes pertence de direito e que o grupo dominante insiste em<br />

negar, das mais variadas maneiras, ostensiva e disfarçadamente. A luta é um<br />

procedimento que surge forte no âmbito da crise da modernidade, ligada à<br />

fragmentação social. 134<br />

Esses textos, na maioria poemas, centralizam-se na temática negra e na tomada de<br />

posição quanto ao preconceito. É um discurso revelador de visões do mundo, caracterizando-<br />

se por uma certa especificidade, ligada a um intuito bem claro de singularidade cultural.<br />

De acordo com Eurídice Figueiredo, na literatura brasileira, não há uma produção<br />

muito vasta que tematiza a escravidão e os elementos culturais negros. O que há é uma<br />

produção sobre o negro, visto a partir dos interesses de uma elite branca. Autores do século<br />

XX como Jorge Amado, Josué Montello, João Ubaldo Ribeiro e Ana Maria Gonçalves tratam<br />

da memória do período escravista e a herança do candomblé. Para a autora, essa lacuna<br />

justifica-se pelo fato de a elite literária brasileira ter tentado apagar a história da escravidão,<br />

como forma de eliminar o passado de vergonha; ademais, esses escritores eram, na maioria,<br />

brancos. 135<br />

O posicionamento engajado em favor do afro-brasileiro começa a ganhar força a partir<br />

dos anos de 1960. Porém, alguns casos em que a voz do negro falou sobre a temática negra, já<br />

haviam se manifestado anteriormente. Dentre esses, destacam-se Luis Gama e Lima Barreto.<br />

Segundo Jorge de Souza Araujo, Luiz Gama foi o primeiro escritor negro a expor o<br />

preconceito de cor na sociedade brasileira. “Consciente dos valores intrínsecos da negritude,<br />

Gama opôs a assimilação como forma de unificar a brasilidade à segregação absurda e<br />

preconceituosa.” 136 Em suas poesias satíricas, fez referência a sua cor e criticou os afro-<br />

brasileiros que não se mostram como tal. Abolicionista, destacou-se através dos poemas,<br />

133 CORTAZZO, 2011, p. 125.<br />

134 PROENÇA FILHO, 2004, p. 15.<br />

135 FIGUEIREDO, 2010, p. 168-169.<br />

136 ARAUJO, Jorge de Souza. Poética negra brasileira, do barroco ao modernismo: afirmação de espaços e<br />

sagração de valores. In: SILVA, Denise Almeida; EVARISTO, Conceição. Literatura, história, etnicidade e<br />

educação: estudos nos contextos afro-brasileiro, africano e da diáspora africana. Frederico Westphalen: <strong>URI</strong>,<br />

2011, p. 119-130.<br />

55


pronunciamentos e artigos em jornais, sustentando a ideia de que todos os brasileiros têm elos<br />

sanguíneos e, por essa razão, deveriam unificar-se, da mesma forma como a língua já era um<br />

traço comum a todos.<br />

Lima Barreto é outro escritor negro que em seus romances critica os valores artificiais<br />

e a falta de autenticidade da classe dominante. Segundo Brookshaw, “[o]s romances de Lima<br />

Barreto atingem um nível de consciência social que o tornam o único tanto como escritor<br />

afro-brasileiro, quanto como predecessor dos romances do realismo social que surgiram nas<br />

décadas de 30 e 40”. 137 Em outros termos, é o escritor que, pela primeira vez, criticou<br />

abertamente o preconceito racial a partir do ponto de vista do mulato, como na obra<br />

Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1902) e, mais tarde, em Clara dos Anjos<br />

(1922).<br />

Esse novo posicionamento literário de autores como Lima Barreto e Luis Gama revela<br />

a presença de grupos de escritores assumidos como negros ou descendentes destes,<br />

preocupados em marcar a afirmação cultural da condição negra na realidade brasileira. Essa<br />

tomada de posição relaciona-se aos movimentos de conscientização da população de cor<br />

surgidos no século XX, os quais vêm ganhando contornos mais nítidos e definidos ao longo<br />

desse período histórico. 138 Os debates em torno da literatura negra vêm se ampliando com o<br />

intercâmbio entre autores, críticos e público interessado nessa linha de produção literária.<br />

Desde os anos 80, escritores que se declararam afro-brasileiros ou negro-brasileiros têm<br />

abordado a temática do negro em seus trabalhos. Dentre esses, destaca-se Luiz Silva – Cuti –<br />

cujo espaço de divulgação nos Cadernos negros vem contribuindo para o crescimento das<br />

produções literárias que abordam a escravidão. 139<br />

A produção literária contemporânea tem abordado a memória da escravidão,<br />

mostrando situações que repercutem no imaginário ou no inconsciente coletivo. Para<br />

Figueiredo,<br />

137 BROOKSHAW, 1983, p. 166.<br />

138 PROENÇA FILHO, 2004, p. 10.<br />

139 FIGUEIREDO, 2010, p. 169.<br />

140 Ibidem, p. 169.<br />

[re]contar literariamente nossa história sobredeterminada pela escravidão é criar<br />

ficções que deem conta de um certo ambiente, forçosamente imaginário, através de<br />

diferentes formas de arquivos a fim de figurar nossa memória cultural. O escritor usa<br />

os arquivos não para reconstituir a história como ela de fato foi; através dos<br />

vestígios deixados, através das expressões culturais lacunares que resistiram, através<br />

dos traumas que persistem, o escritor conta histórias para testemunhar. 140<br />

56


Portanto, a literatura usa os elementos da própria história, mas os reelabora de forma<br />

imaginária com o intuito de tentar recriar uma época habitada por personagens que viveram e<br />

sofreram no passado.<br />

Segundo Bernd, a literatura negra passará a ocupar um espaço mais importante no<br />

contexto literário e da sociedade brasileira no momento em que deixar de exprimir<br />

constantemente a violência, o preconceito e os ataques aos direitos humanos dos quais são<br />

vítimas os negros brasileiros. Um exemplo desse discurso literário é o poema em prosa de<br />

Edimilson de Almeida Pereira, que traz um novo enfoque, um olhar diferenciado sobre a<br />

causa negra:<br />

O grito<br />

A palavra tem sido o lugar onde levantamos abrigo. Na plantação, no garimpo,<br />

tecemos o grito, origem do que falamos. O que foi registro de rebeldia, não se<br />

aplacou, irrompe na página desnorteando os cães de caça. O grito espreita atrás da<br />

escrita, não confia em setas, escolhe os atalhos. Os cães foram ensinados a varar a<br />

noite e o tempo. A palavra, no entanto, é um edifício e se alarga para as margens da<br />

floresta. 141<br />

Logo, é nas entrelinhas do discurso e na capacidade de trabalhar a linguagem que a<br />

literatura produz consequências de verdades que levam o leitor, o sujeito, a reavaliar a sua<br />

prática, ou seja, o seu relacionamento com o outro e a consequente valorização do negro como<br />

ser humano.<br />

As informações trazidas neste capítulo, sobre a imagem do negro na literatura<br />

brasileira, juntamente com o estudo realizado, no primeiro capítulo, a respeito do<br />

deslocamento do indivíduo e sua busca por uma identidade, através da memória dos fatos,<br />

serão a base para o estudo da obra A casa da água, cujo foco são as personagens Catarina,<br />

Mariana, Joseph, Ainá e Sebastian, tendo em vista sua contribuição nas diferentes épocas que<br />

a obra retrata. Tais subsídios servirão para que se observe, no romance, a maneira distinta<br />

com que Antonio Olinto constrói seus personagens, livres dos estereótipos que<br />

acompanharam, e ainda acompanham, em muitos casos, os negros no imaginário literário<br />

brasileiro.<br />

141 PEREIRA, 2003, p. 211 apud BERND, Zilá (Org.). Escrituras híbridas: estudos em literatura comparada.<br />

Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2001.<br />

57


3 DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE EM A CASA DA ÁGUA<br />

Esse capítulo ocupa-se da análise do romance A casa da água, do escritor mineiro<br />

Antonio Olinto, tendo como elementos de investigação o deslocamento, a memória e a<br />

identidade em alguns personagens do romance. Inicia-se com a apresentação do escritor<br />

Antonio Olynto Marques da Rocha, e o lugar ocupado pelo romance em estudo em sua obra.<br />

A análise do romance parte de enfoque sobre a matriarca Catarina/Ainá, que é trazida da<br />

África para trabalhar como escrava nas fazendas brasileiras, mas nunca perde a esperança de<br />

retornar. A seguir, aborda-se a protagonista Mariana, neta de Catarina, que faz a viagem de<br />

retorno à África com a avó, os irmãos e a mãe, e acaba tornando-se a referência econômica e<br />

emocional da família. Por último, o enfoque recai sobre os descendentes de Mariana: os filhos<br />

Joseph, Ainá e Sebastian, que nascendo na África, não encontram dificuldades de adaptação à<br />

cultura africana nem à cultura europeia, adquirida durante os anos de estudo na Europa,<br />

convivendo com uma diversidade cultural enorme.<br />

3.1 O negro na literatura de Antonio Olinto: a trilogia Alma da África<br />

Antonio Olynto Marques da Rocha nasceu no dia dez de maio de 1919, em Ubá,<br />

Minas Gerais. Herdou o gosto pelas letras do avô, que foi professor e jornalista. Olinto teve<br />

uma vida simples ao lado dos pais. Seus irmãos morreram ainda pequenos. Viveu no<br />

seminário durante muitos anos, onde aperfeiçoou seus conhecimentos, pois suas tarefas eram<br />

a leitura e a oração. Com o passar dos anos começa a produzir suas obras. São poesias,<br />

ensaios, crítica literária, dentre outros.<br />

Em 1962, quando é nomeado Adido cultural do Brasil na Nigéria, Olinto dá início,<br />

junto à colônia de descendentes brasileiros desse país e, também, de Daomé, atual Benin, a<br />

um trabalho pioneiro e eficaz na promoção do restabelecimento do contato com o Brasil, ao<br />

qual se mantinham ainda sentimentalmente ligados, mesmo após o retorno. 142<br />

Nessa época, registram-se algumas tentativas brasileiras de estreitar os laços com a<br />

África Negra, criando-se embaixadas em vários estados africanos, dentre as quais a que Olinto<br />

foi designado. Lá, regularmente, ele escreveu artigos sobre a vida do lugar para o jornal O<br />

142 CONDÉ, 2008, p. 77.<br />

58


Globo. Ao retornar, depois de três anos, reúne os textos e os publica na obra Brasileiros na<br />

África (1964), o qual é considerado pela crítica um registro primoroso da presença brasileira<br />

em solo africano. Esse texto passou a ser objeto de estudos e de teses acadêmicas em todo o<br />

país e no mundo.<br />

A esposa, Zora, estudiosa da cultura africana, contribui para a divulgação da cultura<br />

nigeriana junto à imprensa. A partir das demonstrações de preservação da cultura brasileira<br />

em terra africana, o casal sugere medidas para ajudar a manter o entusiasmo do povo<br />

daomeano pelas coisas do Brasil, como a criação de cursos regulares de Português, a<br />

concessão de bolsas de estudo e a instalação de um centro cultural que organizava exposições<br />

periódicas sobre a arte e os costumes brasileiros. 143<br />

Na Nigéria, Olinto e a esposa participam de todos os eventos sociais, envolvendo-se<br />

verdadeiramente com os nativos, na busca pelo estabelecimento de laços de amizade. Isso<br />

contribuiu para a perfeita integração do autor com o povo africano e sua cultura.<br />

Antonio Olinto situa-se entre os escritores brancos que recorrem à temática negra.<br />

Brasileiros na África (1964) e A casa da água (1969) são obras produzidas a partir da<br />

experiência na África, mais precisamente em Lagos, na Nigéria, como Adido Cultural da<br />

Embaixada do Brasil. Apesar de branco, Olinto se opõe às escritas tradicionais do branco<br />

sobre o negro. Não recorre a estereótipos, como o fizeram escritores do período colonial e dos<br />

séculos XIX e XX. É um autor que não se encaixa na tradição da escrita sobre o negro, pois o<br />

indivíduo negro, em suas obras, é respeitado e valorizado, sendo representado por<br />

personagens que têm orgulho de sua cor, de sua terra e de seus costumes, livres da<br />

estereotipação visível na literatura brasileira que o antecede.<br />

A carreira de romancista surge com a publicação de A casa da água, romance<br />

traduzido para o inglês, o francês e o espanhol, logo após sua primeira edição brasileira,<br />

consagrando Olinto internacionalmente. Essa obra, que é o corpus de análise, neste capítulo,<br />

recria a saga de uma família negro-brasileira de volta à terra mãe, depois da Lei Áurea.<br />

O romance aborda os costumes do negro-africano, que passou muitos anos lutando<br />

para manter sua identidade. Vivendo no Brasil e submetido ao regime de escravidão, o<br />

africano procura preservar as lembranças de sua terra natal, através de um constante ir e vir da<br />

memória. Já na África, o continente idealizado, esses indivíduos diaspóricos percebem que<br />

seus referenciais identitários sofreram uma hibridação cultural. Agora, precisam integrar-se a<br />

essa construção nova, numa constante negociação de ideias contraditórias, que se abrem para<br />

143 CONDÉ, 2008, p. 79.<br />

59


o novo. Entre o lembrar e o esquecer, as personagens transitam, tomando consciência de que a<br />

história não pode ser resgatada por um simples retorno ao lar de então.<br />

Segundo Eurídice Figueiredo, durante o século XIX, muitos afro-brasileiros<br />

retornaram à África, sobretudo na região do Golfo de Benin, mais precisamente em Benin,<br />

Nigéria, Togo e Gana. A maioria retorna por vontade própria e se instala na África, criando<br />

uma comunidade de brasileiros. Isso acaba sendo tematizado por alguns romances brasileiros,<br />

centrados na figura da mulher que retorna. 144 Esse é o caso de A casa da água, produzido por<br />

um escritor que vivencia a experiência de viver longe de sua terra. Segundo Claudia Condé,<br />

[a] matéria prima de A casa da água é a conexão Brasil-África, seu povo, seus<br />

costumes, suas particularidades. A partir de sua vivência na Nigéria, que lhe<br />

permitiu conhecer os brasileiros que voltavam ao continente africano em busca de<br />

suas origens, Olinto se apropria do mundo dessa gente e, incorporando o seu próprio<br />

mundo, cria uma verdadeira odisseia que dura setenta anos – 1898 a 1968 – nesse<br />

primeiro volume de sua trilogia africana. A esse, seguem-se O rei de Keto e Trono<br />

de vidro, que fecha a série. 145<br />

Esse três livros dão origem à trilogia Alma da África, composta pelos romances A<br />

casa da água, O rei de Keto e Trono de vidro. A primeira obra tem como personagem<br />

principal Mariana, que juntamente com seus descendentes ascendem socialmente no tão<br />

sonhado e idealizado espaço, pela matriarca Catarina. Essa ascensão tem na figura da<br />

protagonista o esteio e a liderança para todas as conquistas. Uma mulher que não se deixa<br />

vencer e não teme desafios; que adquiriu o respeito e a admiração não só da família, mas de<br />

todas as pessoas, em todos os lugares da África, por onde passou. Isso demonstra o resgate da<br />

imagem positiva do negro, principalmente, a mulher negra, marginalizada e excluída na<br />

sociedade brasileira de todos os tempos.<br />

Segundo Figueiredo, a literatura faz uso de elementos históricos, reelaborando-os de<br />

forma imaginária, com o intuito de “recriar um espaço-tempo habitado por personagens que<br />

viveram e sofreram no passado” 146 Cabe ao escritor resgatar essa memória. Para Glissant, “a<br />

tarefa do escritor consistiria em explorar o tormento do passado, revelá-lo de maneira<br />

contínua no momento atual a fim de desentranhar um sentido doloroso do tempo e projetá-lo<br />

no futuro”. 147 E é isso que Olinto faz em A casa da água: retrata o negro africano e o negro<br />

144 FIGUEIREDO, 2010, p. 235.<br />

145 CONDÉ, Cláudia de Morais Sarmento. Antonio Olinto: o operário da palavra: uma viagem da realidade à<br />

ficção. 2. ed. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2005, p. 94.<br />

146 FIGUEIREDO, 2010, p. 168.<br />

147 GLISSANT, 1981, p. 133 apud FIGUEIREDO, 2010, p. 168.<br />

60


asileiro, sua dificuldade de readaptação, o sentimento de viver em um entre-lugar, mas,<br />

sobretudo, a superação, o sucesso.<br />

O romance foi escrito no Rio de Janeiro, após a publicação de Brasileiros na África<br />

(1964), obra jornalística que contém as memórias e as vivências africanas de Antonio Olinto.<br />

Na leitura de ambas, verifica-se a associação de personagens da ficção com algumas pessoas<br />

mencionadas em Brasileiros na África. Segundo Cláudia Condé, jornalista pesquisadora da<br />

obra desse autor, esses personagens não são uma reprodução fiel, pois além das características<br />

dos habitantes africanos,<br />

incorporam também características do próprio autor e de pessoas que ele conheceu<br />

ao longo de sua vida, além de ser um sem-número de emoções, sentimentos e<br />

experiências paralelas do próprio autor. A fusão desses elementos capturados e<br />

armazenados na mente do autor, que ali permaneceram até resultar numa<br />

combinação perfeita, irá compor o resultado final. 148<br />

A casa da água retrata a história de Mariana, inspirada em Romana da Conceição,<br />

uma mulher idosa que Olinto conheceu em solo africano e que faz a viagem de retorno à<br />

África acompanhada da avó, chamada Catarina, da mãe e de dois irmãos. Como se percebe,<br />

há coincidência nos nomes das avós, tanto a do romance como a conhecida pelo autor na vida<br />

real. A Romana de Brasileiros na África é, segundo Olinto,<br />

considerada pelos outros brasileiros como a incentivadora de movimentos tendentes<br />

a fazer com que ninguém se esquecesse do Brasil. Olhos alegres, conversa escorreita<br />

e agradável, tia Romana é incansável nesse propósito. [...] Chegou do Brasil em<br />

1900, aos doze anos de idade, num veleiro chamado “Aliança”. 149<br />

A história da personagem Catarina assemelha-se a da avó de Romana, Catarina Pereira<br />

Chaves, descendente de africanos, que, ainda jovem, foi trazida ao Brasil, mas sempre teve o<br />

sonho de voltar à terra natal. Conseguiu convencer a filha, já nascida no Brasil, a ir com ela e<br />

levar seus três netos. O retorno à Nigéria ocorre entre 1890 e 1900, um pouco depois do<br />

grande fluxo de africanos saídos do Brasil rumo à África. Em Brasileiros na África, Olinto<br />

descreve a chegada, em Lagos, de Catarina Pereira Chaves e sua família:<br />

Vêm, em seguida, três irmãos nascidos no Brasil: Romana da Conceição, Luísa da<br />

Conceição e Manuel Emídio da Conceição. São os três, de Recife. Lembram-se, com<br />

muita precisão, da Bahia, porque passaram em Salvador os três últimos anos de sua<br />

vida brasileira. Romana está com 76 anos; Luísa, com 74; Manuel, com 73. [...]<br />

Romana e seus irmão viajaram no veleiro “Aliança”, o mesmo em que também<br />

148 CONDÉ, 2005, p. 91.<br />

149 OLINTO, Antonio. Brasileiros na África. São Paulo: GDR, 1980, p. 146.<br />

61


seguiu Maria Ojelabi. Com eles foram a mãe, Caetana Joaquim da Mota, e a avó,<br />

Catarina Pereira Chaves. Esta, nascida em Abeokutá, ficou decepcionada com sua<br />

terra natal e, com saudades do Brasil, morreu logo depois de ter chegado à África. 150<br />

Ao que parece, os personagens da realidade e as cidades de Lagos e Abeokutá<br />

emprestam sua história para a ficção. Olinto prossegue, nessa mesma obra, reproduzindo a<br />

fala de Romana, acerca da viagem e da chegada à Nigéria:<br />

- Chegamos aqui no dia 7 de setembro de 1900. No alto do mar, a gente sofreu fome<br />

e sede. A viagem durou seis meses. [...] Minha irmã Luísa brincava com o balanço<br />

do navio, sem medo algum. Eu, não: eu tinha medo. Nossa avó vivia falando como<br />

era bom viver na África. Ela tinha saído de Abeocutá (sic) muito moça e achava que<br />

não havia lugar melhor para se viver. Quando a gente chegou, tudo foi difícil. Com<br />

receio de doença, os ingleses tomaram tudo o que a gente possuía. Descemos em<br />

Lagos enrolados nuns panos que não eram nossos. Minha avó chorou quando viu<br />

que minha mãe, eu e meus irmãos, que éramos brasileiros, não íamos nos acostumar<br />

depressa aqui. Morreu gente na viagem, sim. De fome, principalmente. E velhos que<br />

não aguentaram a dureza da vida. Ainda existem em Lagos, hoje, quatro pessoas que<br />

vieram no Aliança: eu, meu irmão Manuel, minha irmã Luísa e Dona Maria<br />

Ojelabi. 151<br />

Essa sensação inicial de não pertencimento e, principalmente, de não reconhecimento<br />

perdura pelos anos que se sucedem à chegada, tanto da família de Catarina Chaves, quanto a<br />

da personagem Catarina de A casa da água. As lembranças do Brasil são muito grandes.<br />

Para Olinto, em Brasileiros na África,<br />

[a] chamada “comunidade brasileira” da África Ocidental não é constituída apenas<br />

de descendentes de brasileiros natos. Pertenceram a essa comunidade repatriados<br />

que, tendo sido levados para o Brasil ainda na infância, mais tarde, voltariam à<br />

África, mas já com hábitos brasileiros e sem a menor lembrança de um passado<br />

africano. 152<br />

Infere-se, a partir da fala do escritor, que o contato com uma cultura diferente faz com<br />

que o indivíduo se modifique e assuma um novo posicionamento identitário, a partir das<br />

experiências e afinidades. Mesmo mantendo a memória de outros espaços onde o sujeito<br />

transita, ocorre a hibridação dos costumes, pois, estando longe da terra natal e sem contato<br />

físico com sua comunidade, é necessário construir-se através das relações sociais. Por essa<br />

razão, o encontro das duas Catarinas com a África revela o ser humano transformado pelas<br />

suas vivências.<br />

150 OLINTO, 1980, p. 187.<br />

151 Ibidem, p. 262.<br />

152 Ibidem, p. 188.<br />

62


3.2 A África no Brasil e o Brasil na África sob o olhar de Catarina<br />

A história do romance A casa da água inicia em 1898, dez anos após a abolição da<br />

escravidão, com a decisão de Catarina em retornar à Nigéria. Viaja levando sua filha Epifânia<br />

e os três netos: Mariana, Antonio e Emília. A família deixa a cidade do Piau, em Minas<br />

Gerais, e depois de passarem mais de um ano na Bahia, embarcam em um navio, fazendo a<br />

viagem de retorno à África. A chegada acontece somente em 1900. No decorrer da narrativa,<br />

os fatos são escritos enumerando os usos e costumes dessa família afro-brasileira, dando<br />

destaque ao espaço em que se desenrolam esses fatos, tanto no Brasil, quanto na África.<br />

E é a memória que serve de fio condutor para toda a obra A casa da água; é o que<br />

move os personagens da história. No Brasil, Catarina reconstrói as lembranças do passado<br />

africano, de forma que, movida por essa memória, não mede esforços para realizar a viagem<br />

de retorno ao continente africano. Uma vez na África, Catarina volta-se para as memórias do<br />

espaço brasileiro, pois percebe a impossibilidade de resgate das raízes africanas, com uma<br />

volta física ao espaço de outrora. Como o indivíduo é um ser social por natureza, a memória<br />

possibilita as lembranças dos lugares, experiências, imagens que fazem parte de um tempo<br />

vivido e compartilhado em uma comunidade. Isso leva o sujeito a redimensionar suas<br />

experiências e integrá-las ao presente, muitas vezes ausente de conteúdo identitário. 153<br />

Segundo Stuart Hall, o indivíduo escreve e fala a partir do posicionamento que ocupa<br />

em seu grupo. 154 Nesse sentido, o sujeito passa a expressar-se de acordo com o contexto,<br />

assumindo características dele. É nesse espaço que se encontram as lembranças individuais e<br />

coletivas. No romance, mesmo tendo assimilado costumes brasileiros, devido ao contato entre<br />

as culturas, a avó Catarina nunca esquece sua terra africana, nem perde o desejo de voltar:<br />

Tenho de voltar e quero levar minha filha e meus netos. Saí de lá faz mais de<br />

cinquenta anos, foi meu tio que me vendeu. Eu morava em Abeocutá (sic) 155 , fui<br />

passear em Lagos, meu tio já havia me vendido para uns homens, me levou até eles,<br />

eu tinha dezoito anos, queria tanto passear em Lagos, mas para que é que fui fazer<br />

isso? Nem bem cheguei já meu tio me entregou aos homens, me puseram num<br />

navio, depois de muito tempo cheguei à Bahia, fui vendida e nunca mais saí do Piau<br />

[...] Agora quero voltar. Não tem mais escravo aqui, Tio Inhaim vai me ajudar,<br />

juntei um dinheirinho e arranjei mais algum com tudo quanto foi preto dessas<br />

fazendas todas aí ao redor. Agora quero voltar e levar minha filha, que já nasceu<br />

aqui, e meus netos 156 .<br />

153<br />

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História oral: memória, tempo e identidades. 2. ed. Belo Horizonte:<br />

Autêntica, 2010, p. 60-61.<br />

154<br />

HALL, 1996, p. 68.<br />

155<br />

Grafa-se Abeocutá com c, conforme o autor Antonio Olinto. Porém, a escrita do nome dessa cidade nigeriana<br />

é Abeokutá com k.<br />

156<br />

OLINTO, Antonio. A casa da água. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 13-14.<br />

63


Percebe-se, nas palavras de Catarina, o desejo de reencontro com um lugar relembrado<br />

a cada momento, passando a impressão de que só no retorno, no contato com os seus,<br />

encontraria a paz necessária para uma vida digna, que lhe é roubada ainda bem jovem, por um<br />

igual, ou seja, um negro como ela. Vê-se aqui, a escravização do negro pelo negro.<br />

Considerando o romance em estudo, a ideia que perpassa é a de que a personagem<br />

necessita fazer o caminho de volta. Para Catarina, a África que está presente em sua memória<br />

ainda é a mesma, não imagina que tenha sofrido mudança, tanto no espaço físico como social<br />

e cultural. Porém, a sociedade muda porque seus membros se deslocam para novos espaços e<br />

adquirem, no contato com outros indivíduos, experiências que lhe são individuais. Assim, na<br />

interação dos indivíduos, na exposição a diferentes culturas e na partilha de conhecimentos<br />

ocorrem as transformações do sujeito, que passam a repercutir no seu grupo.<br />

Catarina imagina ser esse o início da reconstrução de seu antigo posicionamento<br />

identitário. Através das próprias lembranças, a ex-escrava transforma a África num universo<br />

inalterado. Verifica-se que a terra de origem nunca foi esquecida no dia-a-dia dessa mulher e<br />

de tantos outros escravos que formaram a diáspora africana no Brasil, embora contra a sua<br />

vontade. Por isso, o retorno, para a personagem, é almejado como uma espécie de<br />

preenchimento da história pessoal interrompida na África. Destaca-se, nessa circunstância, o<br />

oposto do deslocamento inicial, ou seja, a vinda da África para a Bahia e depois para o Piau<br />

vai ser percorrida inversamente: do Piau para a Bahia e da Bahia para a África.<br />

A respeito de como a África sobrevive na diáspora, Hall tece alguns comentários, a<br />

partir do contexto caribenho. Conforme o teórico,<br />

[s]ilenciada aparentemente além da memória pela força da experiência da<br />

escravidão, a África, na realidade, fez-se presente em toda parte: na vida cotidiana e<br />

costumes das senzalas, nas línguas e linguajares da grande lavoura em nomes e<br />

palavras frequentemente desconectados de suas taxinomias, nas misteriosas<br />

estruturas sintáticas através das quais eram faladas outras línguas, nos contos e<br />

histórias narrados às crianças, nas crenças e práticas religiosas, na vida espiritual,<br />

nas artes e artesanato, nas músicas e ritmos da sociedade escravista e pósemancipação.<br />

[...] Esta foi – é – a África que “está viva e bem na diáspora. 157<br />

As colocações de Hall demonstram que a memória da África não se relaciona somente<br />

às vivências da escravidão. Com a vinda desses habitantes para trabalharem como escravos, a<br />

cultura africana passa a fazer parte do universo cotidiano. Semelhante influência verifica-se<br />

no Brasil, onde a África resiste nas lembranças dos antepassados africanos e em seus<br />

descendentes e nos hábitos e influências trazidas por eles.<br />

157 HALL, 1996, p. 72.<br />

64


A África sobrevive nas fazendas de café, através da devoção religiosa, dos rituais e<br />

danças, principalmente na intensidade dos batuques, que “permitiam aos africanos e seus<br />

descendentes reafirmar seus laços de pertencimento ao grupo, bem como comentar fatos do<br />

cotidiano [...] o batuque consiste numa dança em que os participantes se colocam um de frente<br />

para o outro” [...] 158 . A África está na produção de artesanato, que, vendido, depois da<br />

abolição da escravatura, serviu como meio de sustento. Essa presença se manifesta no<br />

reconhecimento do ancestral, na linguagem e, dentre outras, de maneira concreta, na<br />

alimentação. Por todo o país encontra-se uma variedade de receitas oriundas da herança<br />

africana como o acarajé, o vatapá, o abará, o mungunzá, o cuscuz, entre outros. Para Edmilson<br />

de Almeida Pereira,<br />

Os modos de preparar os alimentos demonstram como os antepassados africanos<br />

investiram na inserção de seus hábitos em nosso cotidiano. O gosto por<br />

determinados ingredientes e a sua introdução na cozinha brasileira revelam, de<br />

alguma maneira, a necessidade que os africanos tinham de interagir com a realidade<br />

que lhes era apresentada. Nesse caso, a troca de sabores representava também uma<br />

troca de saberes entre os diferentes grupos da sociedade brasileira. 159<br />

Em A casa da água, a vontade de reencontrar a África era tão grande que o país natal<br />

se torna um símbolo, cujas raízes geográficas são ampliadas pelo olhar de Catarina. Porém,<br />

como Hall observa acerca da África construída pela afrodescendência diaspórica, “[a] África<br />

original não se encontra mais lá. Já foi muito transformada”, 160 com o passar do tempo, não<br />

sendo mais possível reverter a história, recuperá-la totalmente, nem mesmo por meio das<br />

memórias:<br />

Ela pertence irrevogavelmente, para nós, ao que Edward Said certa vez chamou de<br />

“uma história e uma geografia imaginativas”, que ajudam “a mente a intensificar sua<br />

percepção de si mesma por uma dramatização da diferença entre o que está perto e o<br />

que está muito distante”. Ela “adquiriu uma valor imaginativo ou figurativo, que<br />

podemos sentir e nomear”. 161<br />

A África de Catarina faz parte somente do seu imaginário, pois nem o espaço<br />

geográfico nem a própria comunidade resistem às transformações. Os territórios estão sujeitos<br />

ao fluxo de entrada e saída de pessoas de diferentes culturas e lugares. Esses indivíduos são<br />

movidos por razões variadas para se deslocarem. Um dos motivos do deslocamento é de<br />

158 PEREIRA, 2010, p. 24.<br />

159 Ibidem, p. 23.<br />

160 HALL, 1996, p. 73.<br />

161 Ibidem, p. 73.<br />

65


caráter emocional. Em outras palavras, os sujeitos guardam na memória as lembranças dos<br />

momentos vividos no passado, precisando regressar para resgatar essas vivências.<br />

Em se tratando de Catarina, o que ocorre é uma construção fantasiosa, por parte dessa<br />

personagem, como estratégia de fuga da realidade. Dessa forma, o retorno desejado, quando<br />

acontecer na prática, será para um mundo novo para ela, que não é o do passado nem o do<br />

presente, mas um terceiro, formado a partir do movimento de pessoas e das transformações do<br />

tempo. Conforme Hall, ainda falando do contexto caribenho, mas com pensamentos<br />

aplicáveis à realidade brasileira, esse espaço<br />

[é] por ser constituído para nós como um lugar, como uma narrativa de<br />

deslocamento, que este Novo Mundo provoca de modo tão profundo uma certa<br />

plenitude imaginária, recriando o desejo infinito de retornar às “origens perdidas”,<br />

de ser de novo um só com a mãe, de voltar ao começo. 162<br />

Se os africanos diaspóricos são influenciados pela cultura brasileira, a cultura africana,<br />

também, interfere nas tradições dos brasileiros. Ainda conforme Edmilson de Almeida<br />

Pereira, no que se refere à vivência religiosa dos brasileiros, as presenças africanas são<br />

profundas e por essa razão estão inseridas na vida social do cidadão, bem como servindo de<br />

base para o diálogo com as demais matrizes culturais da sociedade brasileira. 163<br />

O sincretismo religioso entre África e Brasil é evidente. Revela-se na adaptação dos<br />

rituais da fé católica do Brasil nas crenças religiosas africanas. Isso contribui para a<br />

preservação das tradições dos negros, pois, cultuando seus orixás, os negros participavam,<br />

também, das celebrações católicas. De forma geral, o contato entre nações africanas diferentes<br />

empreendeu a troca e a difusão de um grande número de divindades. A princípio, esse<br />

sincretismo poderia representar a perda da identidade religiosa do africano. Porém, como os<br />

escravos não abandonaram as suas crenças oriundas da terra natal, ao longo do tempo, a<br />

coexistência abriu espaço para novas experiências religiosas, dotadas de elementos africanos e<br />

cristãos. 164 O excerto de A casa da água, em que Catarina fala da viagem à África, demonstra<br />

esse sincretismo religioso:<br />

Sabia que seria ajudada na viagem, Xangô seguraria o barco para que nele nada de<br />

mau acontecesse, seu machado duplo era capaz de tudo, Nossa Senhora do Rosário,<br />

a santa dos pretos, auxiliaria também, já visitara a irmandade da Bahia, estivera com<br />

pessoas que organizavam as procissões, a de Nossa Senhora dos Prazeres estava<br />

162 HALL, 1996, p. 75.<br />

163 PEREIRA, 2010, p. 24-25.<br />

164 SOUSA, Rainer. As religiões afro-brasileiras e o sincretismo. Disponível em:<br />

. Acesso em: 14 jul. 2011.<br />

66


longe, lembrava-se das congadas do Piau, o rei e a rainha na frente, as fitas<br />

coloridas, os espelhinhos, muito diferentes das festas com tambor de Abeokutá.<br />

[...] 165<br />

As festas religiosas e os santos africanos estão inseridos no contexto brasileiro. O<br />

candomblé é uma religião de origem africana, também chamada de religião dos orixás. Estes,<br />

de procedência iorubá, segundo os preceitos sagrados, zelam por partes específicas do mundo<br />

e da natureza. É por isso que Catarina pede proteção a Xangô, o deus da justiça e do trovão,<br />

para que tudo dê certo na viagem. Também, menciona Nossa Senhora do Rosário,<br />

considerada a santa dos pretos, pois aliviava seus sofrimentos no período escravagista. É de<br />

origem católica e foi adotada pelos negros, porque já na África havia a devoção devido à<br />

influência portuguesa. 166 Essa santa é uma transposição de Iemanjá, a rainha das águas, que<br />

protegeria a família de Catarina no retorno à África.<br />

Catarina faz referência a Nossa Senhora dos Prazeres, que é uma santa católica, de<br />

origem portuguesa, a qual foi trazida pelos jesuítas com o intuito de catequizar os índios.<br />

Nessa evocação dos santos, a personagem compara a congada do Piau com as da Nigéria. No<br />

momento em que a personagem ressalta as diferenças entre as festas, a saudade da África<br />

aumenta. Essa observação demonstra o desejo de preservação das tradições e, também, a<br />

transformação dos costumes e a combinação de culturas devido à distância das raízes<br />

africanas.<br />

De ascendência africana, o Congado é uma comemoração em que os devotos cantam e<br />

dançam, ao som de tambores, para louvar os antepassados, os deuses e os santos católicos.<br />

Uma de suas características é o cortejo dos guardas, que percorrem as ruas, visitam igrejas,<br />

cantando e dançando ao som de músicas sagradas. Segundo Edmilson Pereira,<br />

O Congado e o Candomblé constituem vivências religiosas nas quais muitos<br />

brasileiros de diferentes origens étnicas encontram os seus valores para se relacionar<br />

com o mundo. Como práticas religiosas, o Congado e o Candomblé apresentam uma<br />

série de preceitos que, uma vez conhecidos, ajudam os devotos a fazer suas escolhas<br />

pessoais e firmar alianças com os seus semelhantes. Além disso, essas práticas os<br />

situam dentro de uma ordem social que tem nas heranças africanas a base para o<br />

diálogo com as demais matrizes culturais da sociedade brasileira. 167<br />

O desejo de reencontrar a sua terra é tão grande que, quando a enchente destrói sua<br />

casa no Piau, decide planejar a volta. Catarina segura a neta Mariana pelo braço e diz: “-Você<br />

165 OLINTO, 2007, p. 39-40.<br />

166 MELO, Verísssimo de. Festa de Nossa Senhora do Rosário (dos pretos) em Jardim do Seridó. Jangada<br />

Brasil, v. 7, n. 73, dez. 2004. Disponível em:<br />

. Acesso em: 23 jun. 2011.<br />

167 PEREIRA, 2010, p. 25.<br />

67


está com dez anos. É tempo de voltar”. 168 Para a avó, que deixou sua terra muito jovem, esse é<br />

o momento certo, pois a neta ainda jovem pode, de certa forma, resgatar a África que<br />

permanece na memória dessa anciã. Para Mariana, a lembrança dessa ocasião é inapagável.<br />

Ela aproveita todos os dias que se seguem e não esquece a partida: os cavalos, a família, o<br />

homem que a avó contrata para guiá-las até Juiz de Fora, pois não conhecem o caminho.<br />

Depois, até ao Rio de Janeiro a família viaja de trem e hospeda-se na casa do irmão de<br />

seu antigo proprietário. Na chegada, percebe-se o tratamento discriminatório para com os<br />

afro-brasileiros, através do lugar oferecido à família de Catarina:<br />

- Quem é?<br />

- Gente do Piau.<br />

Um homem alto desceu com um lampião, olhou bem para Catarina, perguntou:<br />

- É da casa do Joaquim?<br />

- É, sim, senhor, ele mandou uma carta.<br />

O homem leu a carta ali mesmo, chamou para dentro:<br />

- Ô Sebastiana, leve o pessoal para o seu quarto e dê uma comida para eles.<br />

Uma preta gorda apareceu no átrio, conduziu a família de Catarina para um quarto<br />

quase sem luz, disse que esperassem ali que ela ia ver o que havia para comer, mas<br />

não havia quase nada, os viajantes foram dormir mesmo sem comer, a esteira em<br />

que se deitaram todos juntos fedia a urina, a avó ficou fumando cachimbo até tarde,<br />

pensando pedaços de coisas 169 .<br />

Mesmo após a Abolição da Escravatura, o negro encontra-se à margem da sociedade.<br />

Como se percebe, o lugar ocupado por ele ainda é o quarto da empregada, sem nenhuma<br />

estrutura; um espaço qualquer, sem condições de higiene. Não há uma preocupação com os<br />

indivíduos de cor, nem com relação ao conforto, nem com a alimentação. Para a personagem<br />

Catarina, pouca coisa muda com o término da escravidão. Ela continua dependente de seu<br />

antigo proprietário: mora numa terra que não é sua, não tem uma renda fixa, e o que<br />

conseguiu economizar é muito pouco, por isso depende de ajuda. Isso demonstra a exclusão<br />

do negro, que, mesmo livre, tem poucas oportunidades de ascender socialmente e de integrar-<br />

se ao mundo habitado pelo branco.<br />

Segundo Halbwachs, os negros, quando escravos, são reduzidos ao estado de coisas,<br />

somente com obrigações e nenhum direito. Eles podem ultrapassar os limites apenas quando<br />

autorizados, reforçando a condição servil. O teórico expõe: “Entrasse ele uma das salas em<br />

que vivia o senhor, tomava de novo a consciência de ser escravo – como se passando o limiar,<br />

168 OLINTO, 2007, p. 16.<br />

169 Ibidem, p. 21-22.<br />

68


fosse transportado a uma parte do espaço em que se conservava a lembrança da relação de<br />

dependência em que estava diante do seu senhor”. 170<br />

Na obra A casa da água, embora já assinada a Lei Áurea, os limites espaciais<br />

continuam evidentes. A sala permanece sendo o lugar de visita, e a cozinha, reservada aos<br />

serviçais, é o lugar onde o negro frequenta: “a cozinha larga da casa de Tio Inhaim estava<br />

cheia de gente, todos falavam da enchente e da viagem”. 171 Isso denota que os negros<br />

conquistam a liberdade da senzala, mas não o tratamento e os direitos iguais. Esses momentos<br />

mostram ao indivíduo que esse espaço que demonstra os limites de seus direitos não o deixa<br />

fixar suas raízes, fazendo-o buscar outro espaço, por meio da memória: a sua juventude vivida<br />

na África.<br />

No intuito de realizar um sonho, Catarina enfrenta dificuldades, apesar da euforia<br />

inicial de se libertar do Brasil. Ela procura incansavelmente um transporte que a leve até à<br />

Bahia. Assim, a família passa algum tempo no Rio de Janeiro, onde as crianças sentem uma<br />

liberdade até então não experienciada. Mariana, tomada por um encantamento pela cidade,<br />

anda por todos os lugares, parecendo deleitar-se com cada rua, cada praça. Conforme as<br />

palavras do narrador, em A casa da água, a inquietação de Catarina ocorre pela sensação de<br />

não pertencimento e pelo medo de criar vínculos em mais um lugar. Sentindo-se, então, em<br />

um espaço intersticial, ela não quer que nada atrapalhe a partida da família:<br />

É num relance que examino o Rio daquele tempo, tal como o viu e sentiu Mariana,<br />

como a avó o sofreu, simples passagem, terra temporária, de onde se devia sair logo<br />

para nela não se criar raiz, e como Epifânia o amou, tão rápido lhe parecia tudo [...]<br />

Catarina não conseguia acalmar-se. O medo, cada vez maior, de que as coisas a<br />

prendessem, de que surgissem dificuldades, de que seu plano desse em nada, não a<br />

deixava dormir direito, um dia notou que estava no Rio há tanto tempo e ainda não<br />

reparara no mar, lembrava-se daquele sem-fim de coisa quando da viagem de vinda,<br />

foi pôr os olhos nele. 172<br />

Diferentemente de Catarina, o restante da família parece habituar-se nesse novo<br />

espaço. Nas lembranças desses membros da família, não se encontram as recordações de um<br />

passado africano que não consegue ser esquecido. Para eles, a África é somente o sonho da<br />

avó, pois não vivenciaram essa experiência ainda. Já a avó parece distante da sua realidade,<br />

com o foco nas lembranças do tempo vivido na África e, consequentemente, no futuro, pois<br />

quer que este lhe traga de volta a sua história pessoal e, também, do grupo.<br />

170 HALBWACHS, 2006, p. 175.<br />

171 OLINTO, 2007, p. 13.<br />

172 Ibidem, p. 22-23.<br />

69


Na viagem de navio até a Bahia, Catarina perde-se em suas lembranças. É como se<br />

essa viagem se confundisse com a da vinda até o Brasil. No vaivém, ela envolve-se nas<br />

lembranças da África, da sua terra que ela pensava recuperar pela rememoração dos fatos.<br />

Nesse devaneio, ela percebe a transformação que aconteceu com ela desde a saída da África:<br />

aquela jovem de 18 anos que fora trazida ao Brasil, depois transformada numa ex-escrava que<br />

viveu no Piau, já não existe. Ambas se fundiram em uma terceira Catarina, que ainda precisa<br />

se descobrir, reconstruir-se, como descreve o narrador do romance A casa da Água:<br />

Percebo-a encostada em seu acolchoado, indago de seu reencontro e vejo no<br />

movimento de recomposição que ela é novamente obrigada a fazer uma espécie de<br />

saída, como se ao adaptar-se ao Piau tivesse nascido uma pessoa que vinha morrer<br />

agora, na viagem à Bahia, ou agora tivesse nascendo outra, que não era a de<br />

Abeokutá nem a do Piau, mas que talvez continuasse a manter uma ligação de<br />

memória com a morta de antigamente e a morta de agora. As duas mortas iriam<br />

presas às costas de Catarina, que as levaria para a reunificação impossível, para a<br />

descoberta da jovem que fora vendida em Lagos e precisava reconstruir-se,<br />

restaurar-se, sentindo que os mortos são leves e pesados, garantem uma<br />

continuidade e asseguram o medo, oferecem a unidade e o rompimento. 173<br />

Catarina situa-se, dessa forma, num novo espaço transitório em que passado e presente<br />

confundem-se e se fundem, originando uma mulher que precisou morrer duas vezes para<br />

tentar sobreviver aos infortúnios da vida e das heranças da escravidão. Essas “mortes” – a<br />

interrupção da vida em Abeokutá, sua cidade natal, e mais tarde no Piau - estão ligadas ao<br />

sentimento de descontinuidade: precisa romper os laços com um espaço e adaptar-se ao novo<br />

que ora se apresenta. Catarina configura-se como uma síntese das duas mulheres que foi: a<br />

jovem africana livre e a ex-escrava no Piau. Das duas resultou uma terceira, que vivencia um<br />

entre-lugar naquilo que foi e deseja ser. Em outras palavras, há uma desarmonia entre dois<br />

posicionamentos identitários, o que permite a negociação das experiências e das vivências,<br />

através do deslocamento das histórias de cada um, para a criação de um terceiro<br />

posicionamento, pautado nos demais.<br />

Nesse contexto, a Bahia evidencia-se como um lugar de passagem para a família, até<br />

que a avó consiga o transporte que as leve à África. Para Catarina, desde a chegada à Bahia,<br />

um sentimento de paz a envolve, tendo em vista a proximidade da África, percebida no<br />

contato com pessoas, correspondências, informações de africanos que haviam feito o caminho<br />

de volta. A memória de seu país de origem desencadeia-se quando Catarina se depara, em<br />

Salvador, com africanos, que apresentam marcas no rosto, que os identificam como<br />

conterrâneos:<br />

173 OLINTO, 2007, p. 26.<br />

70


Catarina ficou de cachimbo aceso, olhando as coisas no mercado, era comum<br />

deparar com gente de marcas no rosto, iguais às marcas de sua cidade, três riscos de<br />

cada lado, de cima para baixo, não sabia como essas marcas lhe faltavam, lembravase<br />

do tio com elas, no começo, depois de ter sido vendida pelo tio, tivera raiva de<br />

quem mostrasse os mesmos sinais, hoje eles surgiram como um reencontro, ou como<br />

uma pausa a caminho do reencontro a mulher voltava, laboriosa e lentamente, mas<br />

voltava, e sentia na presença da filha e dos netos, o dever de reconduzir à<br />

normalidade um rumo que se havia desviado, cada vez mais necessário lhe parecia<br />

esse regresso, como e reconquistasse uma vida que se perdera [...]. As marcas no<br />

rosto constituíam uma visão natural. A farinha que vendera, o inhame, o peixe<br />

faziam parte de um mundo próximo, o acará com pimenta exibia o mesmo gosto dos<br />

acarás de sua infância. Adivinhara em cada coisa uma proximidade com o que havia<br />

cessado de existir e agora, num milagre, voltava. Deixara de ter pressa. 174<br />

Percebe-se aí a tranquilidade de Catarina com a possibilidade de regresso cada vez<br />

mais perto. Essa calma da personagem ocorre pelo reencontro com a Nigéria através dos<br />

africanos de Abeokutá no Brasil e informações sobre afro-brasileiros que embarcaram na<br />

Bahia e estão vivendo felizes em Lagos, Badagre e outras cidades. Isso reforça a imagem da<br />

África fantasiada por Catarina, um lugar onde se pode ser feliz. O caso dos brasileiros que<br />

trazem informações sobre Abeokutá reforça sua memória individual da terra de origem.<br />

Como Halbwachs comenta, um grupo é sempre o suporte para a memória. Mas para<br />

que o sujeito se sinta integrado a ele, é preciso que se identifique com essa comunidade. Por<br />

isso, depende, também, da posição desse indivíduo no contexto.<br />

[As] lembranças grupais se apoiam umas nas outras formando um sistema que<br />

subsiste enquanto puder sobreviver à memória grupal. Se por acaso esquecemos, não<br />

basta que os outros testemunhem o que vivemos. É preciso mais: é preciso estar<br />

sempre confrontando, comunicando e recebendo impressões para que nossas<br />

lembranças ganhem consistência 175 .<br />

A ex-escrava apoia suas lembranças na memória do outro, na recordação de fatos<br />

concretos, na aparência das pessoas, nas manifestações religiosas, enfim, em tudo que possa<br />

representar a relação entre seu passado e seu presente, com intuito reaver a própria história e,<br />

também, de sua comunidade, buscando reconquistar sua identidade cultural.<br />

Para o retorno, Catarina compra um baú de madeira, revestido de couro, para levar os<br />

poucos pertences da família Santos. Instalam-se no porão do navio, o mesmo espaço<br />

miserável reservado aos negros na vinda da África. Isso demonstra a precariedade das<br />

condições da viagem, além de evidenciar os resquícios deixados pelo período escravagista. A<br />

única diferença entre as duas viagens é a liberdade que os africanos têm. Contudo, é possível<br />

174 OLINTO, 2007, p. 38-39.<br />

175 BOSI, 2001, p. 414.<br />

71


perceber que a viagem de volta está sendo feita, também, de maneira desfavorável, sem as<br />

mínimas condições para a família de Catarina, que, agora livre, sofre com as dificuldades da<br />

vida, com as lembranças da escravidão e, como sempre, com a saudade de seu país.<br />

No navio, Catarina sente-se cada vez mais parte da África, tão próxima de suas raízes<br />

que começa a falar em iorubá, 176 a língua usada pelos nigerianos. É como se tivesse esquecido<br />

a linguagem de sua realidade, a comunicação com o espaço de passagem, visto que para ela<br />

não é dotado de grande importância. E novamente as recordações tomam parte de seu<br />

presente, encontrando forças na esperança da chegada: “Ainda teria parentes em Abeokutá? O<br />

tio que a vendera devia ter morrido ou estaria hoje com perto de cem anos.[...]”. 177 Essas<br />

dúvidas permeiam a viagem da personagem, que, com o decorrer dos dias, cala-se, antevendo<br />

o fim da viagem.<br />

Além das dificuldades em relação ao bem-estar, a tripulação do navio está sujeita às<br />

adversidades da natureza. Por falta de vento, ficam vários meses em alto mar.<br />

Concomitantemente, depara-se com uma epidemia que dura algum tempo e mata mais de<br />

vinte passageiros. A avó Catarina, nessa época, ausenta-se de tudo à sua volta:<br />

Depois de três meses sem vento seis pessoas haviam morrido, Catarina fazia agora<br />

questão de subir de manhã ao convés, tomava sol apoiada pela filha e pelos netos, no<br />

fundo do pensamento passara a só ver a chegada a Lagos, nada mais existia, mortes<br />

não a tocavam, sol e comida, sim, eram importantes, comia com decisão, mastigava<br />

bem a farinha e o arroz 178 .<br />

Catarina precisa estar preparada para a chegada, para o reencontro com a África. Fora<br />

isso, ela fica alheia a tudo. A sua ideia fixa está na chegada a Lagos, nada mais importa, nem<br />

a doença que acomete alguns tripulantes do patacho Esperança.<br />

Problemas relacionados a doenças são enfrentados, não só pelos africanos da ficção.<br />

Durante os anos que marcam o tráfico de escravos, a falta de condições adequadas nos porões<br />

dos navios deflagra a propagação de epidemias, também chamadas pestes, entre os escravos.<br />

A preocupação com a disseminação da doença faz com que as embarcações sejam vistoriadas<br />

e, em caso de suspeita de doença, submetidas a longas quarentenas, 179 como ocorre na obra A<br />

casa da água.<br />

176<br />

Ao lado de outros idiomas, a língua iorubá é falada na parte oeste da África, principalmente na Nigéria,<br />

Benin, Togo e Serra Leoa, há muitos séculos. Porém, a língua oficial é o inglês, devido às influências da<br />

colonização inglesa.<br />

177<br />

OLINTO, 2007, p. 62.<br />

178<br />

Ibidem, p. 65-66.<br />

179<br />

SÁ, Magali Romero. A peste branca nos navios negreiros: epidemias de varíola na Amazônia colonial e os<br />

primeiros esforços de imunização. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11, n. 4, São<br />

72


Ao chegar à Nigéria, os passageiros foram avisados de que, devido às mortes e à<br />

epidemia, deveriam ficar de quarentena e, quando descessem, não poderiam levar os<br />

pertences. Catarina não queria admitir a ideia de descer sem o baú. Abriu-o e observou os<br />

pertences tão bem guardados, “pegou nos panos dobrados, olhou a brancura dos lençóis e das<br />

anáguas” [...], 180 deixando as recordações a reportarem a um mundo particular. Depois,<br />

concordou em deixá-lo, pois o resgataria mais tarde.<br />

Primeiramente a função do baú é a de armazenar, guardar os poucos pertences da<br />

família Souza; porém, já no navio, sua função se amplia. Ele passa a representar o elo com o<br />

passado brasileiro, com a memória dos acontecimentos, das pessoas, as dificuldades, as<br />

tristezas e as alegrias, transformando-se em uma espécie de marco da travessia de um espaço<br />

a outro.<br />

Para Augusto Comte, a sensação de tranquilidade e equilíbrio mental que o ser<br />

humano necessita resulta da imagem de permanência e estabilidade que os objetos materiais<br />

oferecem ao sujeito, pois não mudam ou há apenas pequenas mudanças. Esses objetos, pelo<br />

contato diário, traduzem-se em presença silenciosa e imóvel, contrária à agitação das<br />

pessoas. 181<br />

Na obra, o baú perpassa a sensação de equilíbrio, encerra um sentido, traz a memória<br />

da escravidão que Catarina quer esquecer e os poucos momentos de contentamento<br />

vivenciados em um território que ela não escolheu habitar. Em outros termos: Catarina o<br />

compreende a partir do que ele representa para ela: a passagem entre Brasil e África, onde,<br />

para a personagem, haverá a recuperação de seus referenciais identitários. Segundo Claudia<br />

Condé,<br />

[o] baú, que atravessa a narrativa e está presente em todos os acontecimentos<br />

significativos da trama, é uma bela apresentação da memória de um povo, do amor à<br />

origens, do apego às raízes, como suporte e incentivo a que se siga em frente, a<br />

qualquer custo. 182<br />

Tudo o que é importante para a personagem mencionada é guardado nesse objeto, que<br />

funciona como um mundo de lembranças, um espaço de intimidade que não se abre para<br />

qualquer um. Segundo Gaston Bachelard, lembranças retornam sempre que a imagem de um<br />

objeto, em que se guardam coisas valorizadas por seu possuidor, faz-se presente na memória,<br />

Paulo, 2008. Disponível em Acesso em: 06 jun. 2011.<br />

180 OLINTO, 2007, p. 68.<br />

181 COMTE apud HALBWACHS, 2006, p. 156.<br />

182 CONDÉ, 2005, p. 98.<br />

73


com tudo o que há dentre dele. 183 Bachelard usa como tema para suas reflexões o armário e<br />

suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas e o cofre. Para ele, nesses objetos, só se<br />

guardam coisas de grande valor, inesquecíveis para o indivíduo e as pessoas que lhe são<br />

importantes. 184<br />

No romance, o baú se equivale aos objetos descritos pelo teórico, pois nele estão<br />

inseridos os tesouros de Catarina: o seu passado, representado pelas peças de roupas<br />

adquiridas para a viagem à terra natal; o presente, que se mostra como um rito de passagem<br />

para um mundo cheio de expectativas e sonhos; um futuro incerto, que nele se condensa, a<br />

partir das vivências do ontem e do hoje.<br />

Abrir esse móvel significa adentrar no mundo da imaginação para descobrir o que se<br />

esconde, confrontando as duas lembranças: exterior x interior Na perspectiva de valores da<br />

intimidade, essa dimensão é infinita: novidades, alegrias, diferenças, uma vida, tudo está no<br />

interior do objeto. No decorrer de todo romance, o baú acompanha a família de Catarina.<br />

Na África, Catarina depara-se com um espaço não tanto familiar, mas ainda procura<br />

encontrar seus referenciais identitários, mesmo na diferença. D. Zezé, uma senhora rica da<br />

rua, diz-lhe que têm chegado muitos brasileiros, sem a menor ideia do que é Lagos e de que,<br />

lá, as coisas não são fáceis. Catarina diz que a África é a sua terra, e a mulher responde: “É e<br />

não é, Iaiá. Para a maioria, os avós saíram daqui e foram escravos no Brasil, se (sic)<br />

acostumaram lá, mas sempre pensando que aqui era o paraíso. Pois isto aqui é o paraíso e<br />

também não é o paraíso, Iaiá”. 185<br />

Esse comentário refere-se às transformações que a África sofre pela influência dos<br />

estrangeiros e pelas divisões de classe. Isso modifica o lugar, devido ao contato com outros<br />

povos, outra cultura. É por essa razão que D. Zezé argumenta que a vida africana em Lagos<br />

não é o que a personagem acredita ser, porque, além das mudanças no espaço, os africanos<br />

que viveram no Brasil e retornam têm outra vivência, pertencem a uma realidade diferente.<br />

Catarina, a princípio, não percebe as diferenças nem na África, nem nela própria. Com o<br />

decorrer do tempo, começa a notar as profundas mudanças que ocorreram na Nigéria e nela<br />

própria.<br />

Nesse contexto, recorda-se a definição de diáspora de Safran: para o teórico, a<br />

diáspora, dentre outras acepções, é definida como uma dispersão de comunidades que<br />

mantêm, na memória, a visão de sua terra natal como um lugar de eventual retorno. Esses<br />

183 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 2. ed. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 2008, p. 92.<br />

184 Ibidem, p. 97.<br />

185 OLINTO, 2007, p. 77.<br />

74


africanos têm plena convicção que a “homeland” 186 será mantida e preservada até sua volta.<br />

Na obra A casa da água, fica evidente esse modo de imaginar e sentir a África, a partir do<br />

espaço brasileiro.<br />

Porém, a situação da África é outra. As transformações nesse continente são<br />

empreendidas pelos colonizadores, principalmente, alemães, portugueses, franceses e<br />

ingleses. Na Nigéria, país do qual faz parte a cidade de Lagos, a Grã-Bretanha assumiu, no<br />

século XVII e meados do século XIX, a liderança da colonização, combatendo a escravatura,<br />

já menos lucrativa, e direcionando o comércio africano para a exportação de ouro, marfim,<br />

tapetes e animais. Em consequência disso, os africanos ficam com o mercado dominado pelos<br />

interesses do Império Britânico, o qual estabelece novas colônias na costa e passa a implantar<br />

um sistema administrativo fortemente centralizado na mão de colonos brancos ou<br />

representantes da coroa inglesa. Esse estado tornou-se independente do Reino Unido somente<br />

em 01 de janeiro de 1960. 187<br />

Diante da realidade africana, a avó desenvolve um sentimento saudosista do passado<br />

no Brasil. Surgem as dificuldades para se religar a sua sociedade de origem, pois carrega<br />

consigo uma valoração positiva do Brasil, mesmo tendo vivido, nesse país, os momentos mais<br />

dolorosos da vida, no período da escravidão. O regresso ao lugar de antes não é uma volta<br />

para casa, porque a identidade de Catarina transformou-se devido ao contato com outras<br />

culturas, ideias, pessoas. Aos poucos, a ex-escrava começa a frustrar-se por não reconhecer<br />

mais seu país. Tudo está diferente.<br />

Para Hall, a busca pelo passado, pelo caminho da memória é o meio de resgate do que<br />

foi encoberto pela experiência colonial. Buscar a história da África é uma forma de<br />

restabelecer a identidade. Porém, não se pode esquecer que a influência de outra cultura<br />

modifica a visão do mundo do sujeito, que se torna um ser híbrido, influenciado pelos regimes<br />

dominantes. 188<br />

Catarina frustra-se ao perceber que não consegue fazer o resgate da Nigéria de suas<br />

memórias. Um dos motivos é perceptível: a anciã não encontra mais parentes em Abeokutá,<br />

sua cidade natal.<br />

Em relação à rememoração, Halbwachs expõe:<br />

186 CLIFFORD, 1994, p. 204. Terra natal. Tradução da autora.<br />

187 HISTÓRIA da colonização da África. Disponível em:<br />

. Acesso<br />

em: 03 jul. 2011.<br />

188 HALL, 1996, p. 70.<br />

75


Nem sempre encontramos as lembranças que procuramos, porque temos de esperar<br />

que as circunstâncias, sobre as quais nossa vontade não tem influência, as despertem<br />

e as representem para nós. Nada é mais surpreendente em relação a isso do que o<br />

reconhecimento de uma figura ou de um lugar, quando estes voltam a se encontrar<br />

no campo da percepção. 189<br />

Catarina fez a recuperação do espaço físico e, através dele, surgiram as lembranças da<br />

infância, do lugar onde nascera. Porém, percebe que sua viagem não está lhe devolvendo o<br />

espaço e o tempo feliz, como ela sempre esperou:<br />

Catarina via o verde da terra, cada curva se desdobrava como numa reconquista, o<br />

barulho dos remos na água tinha um tom de paz. Desceram em Abeokutá, a mulher<br />

mais velha avançou pelas ruas e chegou em frente ao palácio de obá. [...] Catarina<br />

andava por toda parte, mostrava-lhe pedreiras, atravessava as ruas de gente, numa<br />

certa hora parou em silêncio, olhou longamente para um conjunto de casas africanas,<br />

depois disse:<br />

- Eu morava aqui.<br />

O silêncio voltou, um grupo de crianças brincava na rua, Epifânia quis entrar, a mãe<br />

disse ríspida, em português:<br />

- Não adianta. Não mora mais ninguém da família aí. 190<br />

Parece que Catarina começa a perceber a dificuldade de restabelecer os elos originais,<br />

devido às mudanças acontecidas naquele espaço. Volta a falar português, depois de muito<br />

tempo usando somente iorubá. É a síntese da mulher que se encontra num espaço intersticial,<br />

mais uma vez. Porém, agora parece definitivo. Não há mais um desejo aparente de retorno,<br />

somente lembranças do passado, tanto africano quanto brasileiro. É um misto de lugares e de<br />

culturas presentes na vida dessa mulher que, agora, prefere o silêncio e a tristeza de não<br />

reconhecer mais a Nigéria do momento.<br />

A personagem espera a recuperação de sua história africana, pois todo deslocamento<br />

desperta no indivíduo um desejo de voltar ao começo, de recuperar a sua história e,<br />

consequentemente, a história de seu povo. Porém a presença brasileira na África era muito<br />

maior. Esse foi o motivo da frustração da avó, que não se reconhecia mais como uma africana<br />

em Lagos. Ela percebe que o sonho alimentado durante toda a sua vida foi em vão; o regresso<br />

não é capaz de lhe devolver o lar, de preencher o vácuo deixado entre a vinda e a volta. Sem<br />

querer, Catarina sente-se uma estrangeira em sua própria terra.<br />

No que se refere ao sentimento de estrangeiro, Julia Kristeva pondera:<br />

189 HALBWACHS, 2006, p. 53.<br />

190 OLINTO, 2007, p. 82-83.<br />

Não pertencer a nenhum lugar, nenhum tempo, nenhum amor. A origem perdida, o<br />

enraizamento impossível, a memória imergente, o presente em suspenso. O espaço<br />

76


do estrangeiro é um trem em marcha, um avião em pleno ar, a própria transição que<br />

exclui a parada. Pontos de referência, nada mais. 191<br />

Catarina dá-se conta de que sua cidade imaginada é uma ilusão do passado que jamais<br />

poderá ser reencontrada. Sua decepção é manifestada na forma de tristeza e melancolia,<br />

conforme relata a filha Epifânia:<br />

Agora ela está percebendo que não mudou nada, não há diferença muito grande<br />

entre isto aqui e a Bahia, a diferença que há é para pior, lá a gente era da terra, aqui<br />

somos estrangeiros para os ingleses e somos estrangeiros para os africanos, até nas<br />

festas de Xangô e dos santos dela o movimento daqui é pequeno, e o que diverte a<br />

gente aqui é festa como as de lá, a do Divino, a de São José, a do Bonfim, a de<br />

Nossa Senhora dos Prazeres 192 .<br />

Verifica-se, então, uma crise de identidade. Para Epifânia, no Brasil, eles eram<br />

considerados brasileiros, e, na África, seu país de origem, a família não está sendo vista como<br />

africana. Sentem-se estrangeiros. Assim, buscam no espaço brasileiro os referenciais<br />

identitários. Essa situação é de certa forma irônica, pois, quando Catarina vive no Brasil, só<br />

pensa na África e em tudo o que possa representá-la. Participa das comunidades africanas que<br />

se instalaram como forma de preservar os costumes. Já na África, o que a avó quer é a<br />

recuperação de sua vida roubada na juventude, de seus parentes, de seus sonhos de menina.<br />

Percebendo a impossibilidade, volta-se para os elementos brasileiros presentes no contexto<br />

africano, como as festas religiosas.<br />

Essas comemorações são preservadas pelos africanos que retornam após a abolição.<br />

Tendo em vista o tempo em que conviveram com a cultura brasileira, adotam algumas<br />

tradições em razão da necessidade de adaptação. Essa hibridação de culturas comprova que o<br />

sujeito carrega uma diversidade de experiências adquiridas nos diferentes espaços em que<br />

habita. E a cada espaço torna-se uma síntese dos demais, pela influência cultural a que se<br />

submete.<br />

Com relação às dificuldades do retorno de ex-escravos para a África, Eurídice<br />

Figueiredo expõe:<br />

A inadaptação inicial dos afro-brasileiros que voltaram à África no século XIX,<br />

deportados ou retornados por vontade própria, comprova que a travessia dos<br />

territórios sempre cobra pedágio no que concerne aos afetos. Ao sentir saudade do<br />

Brasil e tentar recriar seus usos e costumes e, sobretudo, ao considerar que os anos<br />

passados no Brasil tinham sido os mais felizes de suas vidas, apesar do cativeiro,<br />

191 KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Trad. Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro:<br />

Rocco, 1994, p. 15.<br />

192 OLINTO, 2007, p. 90.<br />

77


eles atestam que toda mudança de país desencadeia uma crise, porque as pessoas se<br />

transformam e se adaptam. Quando se dá uma nova mudança, alguns têm maior<br />

facilidade do que outros para se readaptar, estabelecer relação, se enraizar. 193<br />

O homem, sempre que se desloca e tem de abandonar laços tecidos no espaço e no<br />

tempo, sente uma espécie de desconforto. No entanto, é próprio do ser humano lutar para<br />

sobreviver, mesmo nas condições mais adversas. Segundo Edmilson de Almeida Pereira, a<br />

decisão de lançar-se para além das fronteiras interfere nos campos da percepção do indivíduo.<br />

Assim, o retorno à terra de origem pode gerar conflitos, quando não se reconhece mais o<br />

espaço idealizado; por outro lado, o próprio indivíduo pode não ser reconhecido como um<br />

membro de seu antigo lugar. 194<br />

Catarina não é a única a frustrar-se com a África. Muitos outros afro-brasileiros que<br />

fazem a viagem de volta, durante os anos que se sobrevêm a escravidão, desenvolvem o<br />

mesmo sentimento. Porém, alguns retornam ao Brasil. A respeito disso, Olinto narra em<br />

Brasileiros na África, obra construída a partir da sua experiência na Nigéria:<br />

Na história do regresso de africanos a seu continente houve também a parte dos que,<br />

uma vez lá, resolveram cruzar de novo o Atlântico e voltar ao Brasil. Isto aconteceu<br />

tanto no caso de brasileiros natos – que haviam acompanhado parentes na ida para a<br />

África Ocidental – como no de africanos que não mais se acostumaram com a vida<br />

em Lagos, Badagre, Porto Novo ou Cotonu. 195<br />

Percebe-se que a influência da cultura brasileira nos hábitos dos cidadãos faz com que<br />

muitos destes não se sintam pertencendo mais ao espaço africano. Criam laços com o Brasil e<br />

hibridizam sua cultura. Ao invés de encontrar semelhanças e uma saída para esse conflito<br />

entre costumes, o retorno ao Brasil é a solução para alguns. Na obra A casa da água, esse<br />

regresso ocorre somente com Antônio, irmão de Mariana, o qual se estabelece como<br />

comerciante em solo brasileiro. O restante da família, as mulheres das três gerações<br />

alimentam uma saudade do Brasil, que se torna parte de suas memórias. Porém, a viagem<br />

nunca se concretiza, pois não fazem nenhum esforço para realizá-la, ou seja, manifestam a<br />

vontade, mas não decidem retornar.<br />

Sobre a presença do Brasil na África, em Brasileiros na África, Olinto prossegue:<br />

193 FIGUEIREDO, 2010, p. 246.<br />

194 PEREIRA, 2010, p. 46.<br />

195 OLINTO, 1980, p. 270.<br />

A presença do Brasil na África, senti-a, com o tempo, cada vez mais forte. Paisagens<br />

e gentes se tornavam para mim, naquela costa, familiares. Ganhava facilidade no<br />

entrar na africanidade das coisas. As iorubanas do mercado, com suas roupas de<br />

78


sempre inesperada beleza, me pareciam insubstituíveis. As esculturas de madeira<br />

que se viam ao longo das cidades me olhavam e me pensavam com intimidade e<br />

compreensão. E esse entendimento era tanto maior porque não esbarrava na menor<br />

dificuldade. Nada do que era africano me parecia estranho porque traços da<br />

influência brasileira apareciam nas menores coisas. E me espantava sempre de não<br />

estar no Rio. Porque a verdade é que estava em casa. 196<br />

Esse relato evidencia, também, a forte presença africana no Brasil. Olinto sente-se tão<br />

familiar na Nigéria, que por vezes tem a sensação de estar no seu próprio país. Isso ocorre<br />

porque a cultura africana se faz bastante visível no dia a dia do povo brasileiro, nos costumes<br />

e nas tradições.<br />

Assim, Catarina tendo estabelecido contato com a cultura brasileira e agregado a ela<br />

características do espaço africano, faz com que seus referenciais identitários interajam,<br />

deixando-a dividida entre duas culturas, com a sensação de pertencimento a ambas e, ao<br />

mesmo tempo, a nenhuma.<br />

Segundo Hall, a identidade é resultado de um processo que tem origem nas relações do<br />

sujeito com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem 197 . A<br />

avó passa a assumir diferentes identidades nos momentos diversos de sua vida, em razão de<br />

seu deslocamento. Isso a torna confusa, deslocada, em busca de seu verdadeiro eu, de sua<br />

essência de vida.<br />

A tentativa de busca de uma posição identitária é exemplificada pela lembrança de<br />

Catarina, no que diz respeito ao nome que possui antes de ser escravizada. Ao chegar ao<br />

Brasil, recebe o nome de Catarina, tendo que abandonar seu nome africano. Já na África,<br />

demonstra a não aceitação dos valores impostos, quando revela seu verdadeiro nome:<br />

- Não quero que me chamem de Catarina mais. Meu nome é outro. Quero que todos<br />

me chamem pelo meu nome. [...] Meu nome é Ainá. [...] Ainá. Sempre me chamei<br />

Ainá. No Brasil é que trocaram meu nome, fiquei sendo Catarina, mas tenho nome:<br />

meu nome é Ainá. [...] Devia ser proibido trocar os nomes das pessoas. Meu nome é<br />

Ainá. [...] Nome é coisa sagrada, não deve ser dito de mais nem à toa e só as pessoas<br />

da família deviam saber o nome da gente. Para os de fora um apelido serve 198 .<br />

A perda do nome é a perda de referenciais identitários. Percebe-se a tentativa de<br />

reapropriação de um espaço existencial. Com essa atitude, Catarina confirma a existência de<br />

relações concretas entre esse espaço e a sua personalidade. Segundo Fábio Leite, na cultura<br />

africana, o nome não é considerado um elemento estrangeiro à personalidade. Ao contrário,<br />

196 OLINTO, 1980, p. 159-160.<br />

197 HALL, 2005.<br />

198 OLINTO, 2007, p. 91.<br />

79


é atributo revelador de suas características mais significativas, que permitem a<br />

identificação profunda da essência natural e social do indivíduo. Mas o nome, assim<br />

como os princípios vitais naturais, é também dotado de uma dinâmica distintiva,<br />

pois identifica e define as mutações sofridas por esses princípios vitais ao longo da<br />

integração paulatina do homem na sociedade. Por tal razão, as pessoas recebem<br />

vários nomes, inclusive sucessivamente, os quais vão sendo acrescentados aos<br />

anteriores na medida em que essas mutações vão ocorrendo. [...] Visto sob esse<br />

ângulo abrangente, proposto pela sociedade, o nome pode ser considerado, ele<br />

mesmo, também como um elemento vital constitutivo do homem, sendo sua<br />

natureza, no entanto, de ordem histórica. [...] 199<br />

Portanto, o nome, além de caracterizar o indivíduo, estabelece relações significativas<br />

entre o próprio sujeito e a sociedade, a partir dos valores propostos por ela. É algo que precisa<br />

ter sentido, significado, representar a pessoa, o que não ocorria com o nome Catarina, imposto<br />

na chegada ao Brasil. Dessa maneira, a avó fez uso da memória, buscando no tempo vivido<br />

uma forma de libertação, com a intenção de apagar os vestígios deixados pela escravidão e<br />

reaver parte de suas raízes.<br />

De origem havaiana, o nome Ainá significa pessoa ousada, independente e forte,<br />

sempre disposta a se aventurar, com personalidade ativa e decidida, além de líder por<br />

natureza, está, em qualquer situação, pronta a enfrentar os obstáculos que a vida lhe impõe. 200<br />

Essa definição representa o modo de ser e agir da personagem, algo que a constitui e a<br />

diferencia dos demais indivíduos.<br />

Contrasta-se a esse nome escolhido, a imposição do sobrenome Santos em terras<br />

brasileiras. Logo após a chegada a Lagos, ao ser interrogada por D. Zezé acerca de seu nome,<br />

Catarina esclarece:<br />

- Qual o nome todo de vocês?<br />

- Eu sou Catarina dos Santos, minha filha é Epifânia dos Santos, e os netos são<br />

Mariana, Emília e Antônio, tudo dos Santos.<br />

- De onde veio o sobrenome?<br />

- De meu dono, Joaquim dos Santos, chamado Tio Inhaim. Quando fiquei livre,<br />

peguei o nome dele e dei para minha filha e meus netos. 201<br />

Essa marca de subordinação e inferioridade denuncia a ausência, entre os<br />

remanescentes de escravos, dos mínimos requisitos de cidadania. Diante disso, percebe-se<br />

que, ao invés do esquecimento das agruras do passado de escravidão no Brasil, a avó procura<br />

199<br />

LEITE, Fabio Rubens da Rocha. A questão ancestral: África negra. São Paulo: Palas Athena: Casa das<br />

Áfricas, 2008, p. 69.<br />

200<br />

SIGNIFICADO dos nomes. Disponível em: <br />

Acesso em: 04 jun. 2011.<br />

201 OLINTO, 2007, p. 78.<br />

80


minimizar o sofrimento, transformando a memória em crítica contra a mudança de nomes e,<br />

ao mesmo tempo, a aceitação de um sobrenome, já que não possui outro.<br />

Diante de dois espaços, a África e o Brasil, e não conseguindo reconstruir seus<br />

referenciais identitários, Catarina fecha-se em seu mundo interior, mergulhando nas memórias<br />

de toda uma vida, a fim de ressaltar as esperanças não consolidadas. Assim, depois de ter<br />

realizado sua última tentativa de resgate identitário – a revelação do nome Ainá - a mulher<br />

desiste de viver:<br />

Ainá, que fora até então conhecida como Catarina, morreu às dez da manhã, o sol<br />

batia forte na frente da casa de D. Zezé, que saiu de vestido comprido, passos<br />

miúdos, procurou Epifãnia:<br />

- Vamos dar um banho no corpo e preparar a serenata. Você vai precisar de bebida,<br />

muito biscoito, pastéis, acará, caruru, bolos, dois atabaquistas, um tocador de violão,<br />

um flautista, um clarinetista, mesas e cadeiras. E tem de matar uma cabra. O que<br />

você não tiver, eu empresto.<br />

Epifânia concordou, a outra foi em frente:<br />

- É a primeira pessoa do Esperança que morre. Dos outros navios todos já morreu<br />

muita gente. A serenata precisa ser animada. Vou arranjar búzios em boa quantidade<br />

para você ir dando a cada um que chegar; assim todos pensarão bem da morte. 202<br />

Após a morte de Catarina, realiza-se um ritual de acordo com os costumes da cultura<br />

africana. Diferentemente da cerimônia de sepultamento brasileira, é uma festa alegre e<br />

comemorativa. Considera-se que, sendo ela uma anciã, deixou uma história concretizada e,<br />

por esse motivo, precisa ser homenageada. Segundo Fábio Leite, a morte na velhice é<br />

diferente das demais; é chamada de positiva:<br />

A morte que mais parece se aproximar de um conceito de consequência natural da<br />

existência visível é a ocorrida na velhice e dentro de certas regras sociais. É o caso<br />

de um indivíduo já idoso falecido após preencher critérios socialmente dados, como<br />

iniciação, formação de família numerosa permitindo descendência significativa e a<br />

existência de herdeiros legais, comportamento ético apropriado, dedicação ao<br />

trabalho, conhecimento respeitado na comunidade, posse de certos bens materiais. 203<br />

A celebração da morte de uma pessoa idosa tem seu registro garantido com a morte de<br />

Catarina. Começando pela lavação do corpo, passando pela festa da serenata, até o enterro na<br />

praça, todo o ritual é apresentado detalhadamente. Nessa circunstância, D. Zezé diz à<br />

Epifânia: “ Morta que viveu bem sua vida, não deve ser chorada”. 204 Evidentemente, a morte<br />

não se configura em algo facilmente aceitável. As cerimônias são marcadas pelos sons dos<br />

tambores, por danças, cumprimentos, alegria; enfim, é a expressão do estreitamento dos laços<br />

202 OLINTO, 2007, p. 92-93.<br />

203 LEITE, 2008, p. 96.<br />

204 OLINTO, 2007, p. 96.<br />

81


comunitários como forma de vencê-la, permitindo a continuidade da existência em outro<br />

plano. A morte é pensada como a restituição à fonte primordial da vida.<br />

Catarina viveu toda a vida no espaço brasileiro idealizando a África, esforçando-se<br />

para manter vivos os laços com seu passado, sua juventude. Após realizar o sonho de retornar<br />

à sua África, percebe o quão difícil se torna o resgate das raízes, pelas influências culturais, a<br />

que as pessoas estão propensas, no deslocamento. É sepultada, segundo a tradição africana. O<br />

último ato, que põe fim à trajetória de uma ex-escrava que passou grande parte de sua vida<br />

tentando recuperar os referenciais identitários da África, encerra sua vida naquele espaço.<br />

3.3 Brasil-África: o entre-lugar de Mariana<br />

Mariana sai do Piau com dez anos, junto com a avó, a mãe e os irmãos. A família<br />

passa por Juiz de Fora, Rio de Janeiro e Bahia, até embarcar num navio em direção à Lagos,<br />

na Nigéria. Naquele continente, Mariana casa-se, ainda muito jovem, com Sebastian Silva,<br />

que morre assassinado, quando seus dois filhos mais velhos, Joseph e Ainá, ainda são muito<br />

pequenos. Logo após a morte do marido, Mariana descobre a gravidez de seu terceiro filho,<br />

que é batizado de Sebastian, em homenagem ao pai. Torna-se uma rica comerciante,<br />

mantendo negócios com países estrangeiros, inclusive o Brasil, além de cidades da região<br />

onde mora. Nos contatos estabelecidos pelos locais em que passa, Mariana convive com<br />

diferentes culturas, fazendo com que seus referenciais identitários estejam em constante<br />

interação. Por outro lado, mantém viva a memória do Brasil.<br />

3.3.1 Deslocamento, memória e identidade<br />

A memória constitui-se no fundamento dos processos identitários, referindo-se a<br />

comportamentos e atitudes coletivas, por meio da rememoração individual, que constrói as<br />

representações do passado. Refletindo sobre a memória como possiblidade de percorrer os<br />

caminhos da vida, Norberto Bobbio constata:<br />

O relembrar é uma atividade mental que não exercitamos com frequência por que é<br />

desgastante e embaraçosa. Mas é uma atividade salutar. Na rememoração<br />

encontramos a nós mesmos e a nossa identidade, não obstante muitos anos<br />

transcorridos, os mil fatos vividos [...] Se o futuro se abre para a imaginação, mas<br />

não nos pertence mais, o mundo passado é aquele no qual, recorrendo a nossas<br />

82


lembranças, podemos buscar no refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-nos sobre<br />

nós mesmos e nele reconstruir nossa identidade. 205<br />

A memória é o elemento que contribui no autorreconhecimento do sujeito como<br />

integrante de uma comunidade. Ela é o meio pelo qual o ser humano pode se redescobrir,<br />

identificar-se a partir de uma reflexão sobre a experiência individual, fazendo uma relação<br />

com as experiências coletivas. É fundamental para a constituição do indivíduo, pois, conforme<br />

Jean-Yves Tadié e Marc Tadié, “permite que tenhamos uma identidade pessoal: é ela que faz<br />

a ligação entre toda a sucessão de eus que existiram, desde nossa concepção até o momento<br />

presente”. 206 Em outros termos: a busca da identidade passa pela recuperação de valores, a<br />

partir das vivências do indivíduo, no passado, e a diversidade de culturas presentes em sua<br />

vida.<br />

A memória individual da protagonista está arraigada em diferentes contextos, que<br />

fazem com que suas lembranças desencadeiem-se de modos diversos, seja através de uma<br />

imagem, de um objeto, uma cor, sensações, palavras. Segundo Halbwachs, as lembranças<br />

aparecem quando as circunstâncias as despertam. 207 No que concerne à memória, Lucilia<br />

Delgado expõe:<br />

A memória, como esteio de identidades, refere-se aos comportamentos e às<br />

mentalidades coletivas, na medida em que o relembrar individual encontra-se<br />

relacionado à inserção social e histórica de cada indivíduo. [...] Como processo<br />

social ativo, a memória tem como ponto de partida a vida em sociedade na qual se<br />

inscrevem as experiências individuais. Pressupõe diversidade de possiblidades e<br />

combinação de heterogêneas expressões algumas vezes visíveis e, em outras,<br />

omitidas ou ocultas. Dessa forma, estímulos exteriores são de real importância para<br />

o processo de reordenação e releitura de vestígios, trazendo para o presente<br />

motivações e sentimentos que outrora mobilizaram indivíduos [...]. 208<br />

Nessa situação, a memória pessoal é o elo com os fatos do passado, que não pertencem<br />

somente ao indivíduo, mas a todo o seu grupo. A memória coletiva se desenvolve a partir de<br />

laços de convivência, nas sociedades em que a pessoa participa. A família é uma delas;<br />

entrelaça a memória de seus membros.<br />

Na infância, na viagem de trem até o Rio de Janeiro, a menina Mariana contempla<br />

cada momento, cada fato, cada objeto, diferentemente da mãe e da avó que têm receio de<br />

olhar e ignoram a paisagem:<br />

205 BOBBIO, 1997, p. 30-31 apud DELGADO, 2010, p. 38.<br />

206 TADIÉ, 1999, p. 9 apud ZILBERMAN, Regina. Memória entre oralidade e escrita. Letras de Hoje, Porto<br />

Alegre: EDIPUCRS, v. 41, n. 3, p. 117, 2006.<br />

207 HALBWACHS, 2006, p. 53.<br />

208 DELGADO, 2010, p. 69.<br />

83


Mariana comeu o prazer de cada imagem, debruçou-se na janela e contemplou as<br />

coisas correndo até, casas, cercas, bois, árvores, o rio, também estava cheio, em<br />

muitos pontos viam-se margens cobertas de água, uma ou outra canoa parada ou<br />

andando. [...] Comeram quando um rio enorme tomava toda a paisagem lá fora [...].<br />

A água e a ponte de ferro que havia entre a água e o trem constituíam uma novidade<br />

que eliminava tudo o que conhecera antes. No outro lado do rio, o trem seguia novos<br />

caminhos, mas a menina queria ver ainda, lá atrás, a água maior do que a<br />

enchente. 209<br />

Para a personagem, sempre há algo que desperta as lembranças do Piau. Já que o<br />

passado não volta, o que voltam são as recordações, sem uma sequência cronológica. Anos<br />

mais tarde, já na África, Mariana lembra essa viagem, quando vai visitar a irmã Emília, que<br />

está prestes a dar a luz. “Mariana sorriu lembrando-se de sua viagem há tantos anos, de Juiz<br />

de Fora para o Rio de Janeiro, a paisagem correndo como se o trem é que estivesse parado”<br />

[...]. 210<br />

Em A casa da água, o que deflagra algumas das recordações da protagonista é a<br />

enchente que ela vivenciou, quando menina, no Piau:<br />

[a] enchente se engrossara de imagens, uma atrás da outra, todas nítidas, Mariana<br />

fora ver a ponte caída, o rio levara a base de tijolos que havia no centro e onde se<br />

apoiavam as traves de madeira, as águas batiam com violência no que restava dos<br />

tijolos, [...] outra cena da enchente fora uma tropa de animais atravessando o rio a<br />

nado, eram vários burros e cavalos, o homem que ia na frente perdeu o chapéu que<br />

caiu no rio, os cavalos faziam barulho ao nadar e saíam pingando [...] 211<br />

A sequência de imagens da enchente contribui para a construção da memória de<br />

Mariana, e, ao longo do romance, surge como representações de um passado individual e<br />

coletivo. Já na África, tempos depois, uma dessas representações remete a lembranças do<br />

Brasil, de onde surge a ideia da construção do poço:<br />

209 OLINTO, 2007, p. 20-21.<br />

210 Ibidem, p. 154.<br />

211 Ibidem, p. 15.<br />

212 Ibidem, p. 126-127.<br />

[...] um dia viu um grupo de homens fulanis tangendo vacas pela rua, lembrou-se da<br />

semana que passara num engenho de cana, dos bois e vacas que havia lá. E viu<br />

diante de si o poço. Era isto: tinha gostado de sentar-se perto do poço, olhava cada<br />

moça que chegava, com um vaso na cabeça ou no ombro, quando não havia<br />

ninguém por perto Mariana tirava a água que lhe escorria pelo vestido e tentava<br />

distinguir o que havia no fundo. Era isto: Lagos precisava de um poço, Mariana faria<br />

um no quintal da casa, venderia água em vez de vender obis. 212<br />

84


Nessa ocasião, Mariana, na tentativa de conseguir recursos para o sustento da família,<br />

e com o marido sem emprego, precisa dar um rumo para a família. Com pouco dinheiro e com<br />

a escassez de água, descobre que a cidade seria abastecida pela água que viria de Abeokutá 213 ,<br />

pois Lagos era cercada por lagoas de água salobra. Devido a esse fato, as imagens do passado<br />

emergem e Mariana começa a transformar a ideia em projeto, pesquisando tudo a respeito do<br />

assunto, desde o significado da palavra poço, até como construí-lo.<br />

As lembranças, segundo Bordieu, não são o relato coerente de uma sequência de<br />

acontecimentos, com significado e direção, pois não se consegue resgatar a história através da<br />

cronologia dos fatos, ou seja, início, meio e fim. 214 O teórico expõe essa noção a partir da<br />

reflexão sobre o romance moderno, que abandona a estrutura do relato linear, o que coincide<br />

com a realidade, formada por elementos imprevistos.<br />

O ato de rememorar se manifesta como um recorte seletivo do passado, que nunca é<br />

aquele do indivíduo somente, mas de um sujeito inserido num contexto familiar ou social. No<br />

romance de Olinto, a memória surge por meio de flashes que respondem à evocação do<br />

presente da protagonista, pois não é possível resgatar todas as vivências que compõem o<br />

passado, mesmo sendo parte integrante da pessoa. Em A casa da água, Mariana transita entre<br />

o lembrar e o esquecer, como mostra a viagem de barco do Rio de Janeiro até a Bahia, e,<br />

também, os dias que passa em um engenho:<br />

Para Mariana, a enchente e a viagem continuavam juntas, o mar, o sal e o sol, a água<br />

que se estendia até onde só havia mais água. O enjoo dos primeiros dias não<br />

permitiu que ela andasse muito [...]. 215<br />

Em fevereiro Mariana passou uma semana num engenho de cana, gostava de ficar<br />

junto a um poço de onde todos puxavam água, pensou na viagem que iam fazer, da<br />

Bahia à África, chupou mangas, soube de currais, onde havia muito gado, foi ver<br />

tirarem leite das vacas, o Piau voltou-lhe à lembrança, há quanto tempo não pensava<br />

na enchente nem na casa que descia ao encontro do rio. 216<br />

No decorrer da obra, fica evidente a importância da água, sempre presente na memória<br />

da protagonista. É através da água que Mariana realiza seus desejos e começa a ascender<br />

socialmente. São as memórias que a personagem tem de situações que envolvem a água que<br />

movem a sua vida: a enchente no Piau, o mar na viagem de regresso, as lagoas que circundam<br />

213 Abeokutá localiza-se perto de Lagos.<br />

214 BORDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; FIQUEIREDO, Janaina P.<br />

Amado Baptista de (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 185.<br />

215 OLINTO, 2007, p. 26.<br />

216 Ibidem, p. 54.<br />

85


Lagos e a água potável do poço, que lhe deu uma razão, um sentido, como ela mesma diz: “É<br />

que eu comecei a ser eu depois que fiz um poço”. 217<br />

A água contribui para que Mariana comece a fixar suas raízes no solo africano. Esse<br />

lugar oferece a possibilidade de Mariana construir-se como africana, visto que essa terra não é<br />

sua por origem. Ela nasceu no Brasil e está na África porque a avó decidiu retornar em<br />

companhia da família. Assim, a partir da construção do poço, ela passa a sentir-se parte do<br />

território que habita, por haver buscado formas de adaptação, por meio da assimilação dos<br />

costumes e do progresso econômico. Porém, sem ignorar a cultura de seu país natal: o Brasil.<br />

As duas culturas interagem pacificamente.<br />

A história da enchente é uma situação vivida, também, pelo autor Antonio Olinto, que,<br />

aos cinco anos de idade, passa pela experiência de ter sua casa destruída por uma enchente.<br />

Esse trágico fato é emprestado à personagem Mariana, que tem sua partida para a África<br />

registrada na memória junto com a enchente que a antecede. Em A casa da água, percebe-se<br />

que as lembranças do despertar com a inundação estão na memória de Mariana, conforme<br />

relato do narrador: 218<br />

A enchente e a viagem ficariam sempre ligadas na memória de Mariana, uma<br />

aconteceu perto da outra e sinto que suas memórias anteriores se perderam, talvez<br />

porque a enchente e a viagem não permitam que além delas algo possa ter ainda<br />

força, e por mais que eu apele para suas recordações nada consegue varar a cortina<br />

formada pelas duas realidades da enchente e da viagem. 219<br />

Essa ligação entre inundação e viagem ocorre porque é a partir desse fato que sua avó,<br />

Catarina, decide fazer a viagem de retorno à África. São duas lembranças tão fortes e<br />

marcantes na vida da protagonista, que a impressão é a de que a sua vida tem início com a<br />

cheia. Mariana lembra mais tarde que, naquela noite, na cozinha da casa de Tio Inhaim, todos<br />

falam da enchente e da viagem. 220<br />

À parte a ficção, a abertura de um poço é contada por Olinto, também, em Brasileiros<br />

na África. João Esan da Rocha, brasileiro da Bahia, também abre um poço:<br />

217 OLINTO, 2007, p. 182.<br />

218 Ibidem, p. 12.<br />

219 Ibidem, p. 14.<br />

220 Ibidem, p. 13.<br />

O sobrado de João Esan da Rocha tem, contudo, uma denominação própria: chamase<br />

“Water House”, porque ali se abriu um poço, num tempo em que Lagos, cercada<br />

de lagoas de água salobra, recebia sua água de Abeocutá, situada a 70 quilômetros a<br />

86


Noroeste. Foi esse poço a primeira água potável arrancada do solo da ilha de<br />

Lagos. 221<br />

Imitando a realidade, o poço de Mariana dá a Lagos a primeira água potável. Então,<br />

ela encomenda uma tabuleta para colocar na porta da casa com os dizeres: omi, água, water. A<br />

palavra água escrita em iorubá, português e inglês revela o trânsito de Mariana entre as três<br />

culturas que influenciam sua vida naquele momento: África, Brasil e Inglaterra. A<br />

protagonista valoriza a cultura que vem de seus ascendentes, por isso o uso dessa palavra em<br />

iorubá, idioma que pertence à família Níger-Congo, 222 falado pelo povo iorubano, maior<br />

grupo étnico da Nigéria. Por predominar em Lagos, Mariana decide incluir esse idioma, como<br />

forma de demonstrar a importância que dá a terra em que vive e, também, pelo que a terra lhe<br />

dá em troca: a oportunidade de progredir. Já a palavra water representa as influências<br />

exercidas pelos ingleses, colonizadores dessa parte do continente africano, onde a família de<br />

Mariana reside e, por esse motivo, precisa manter boas relações com o poder dominante. Por<br />

fim, água no idioma português demonstra que a personagem procura recuperar seus<br />

referenciais brasileiros, de sua terra natal, trazendo-os para o presente, como um meio de<br />

construir-se no espaço africano. Assim, envolvida num espaço em que as culturas convivem,<br />

Mariana procura fixar suas raízes e ascender socialmente. É o início seu progresso econômico.<br />

A protagonista compra, com dinheiro emprestado, o terreno, onde está o poço. Depois, manda<br />

construir um sobrado para a família, que fica conhecido como a “Casa da água”.<br />

Em A casa da água, a história é construída por meio da intercalação de lembranças à<br />

narração dos fatos presentes. Tudo o que acontece na realidade, cada olhar, cada gesto ou uma<br />

situação remete a personagem a vários contextos, evocando momentos vividos, que<br />

preenchem o agora, e até mesmo o futuro. Um outro exemplo disso é o que ocorre nos dias<br />

que antecedem o casamento da irmã, Emília, em solo africano, e no próprio dia do casamento:<br />

Mariana mandou enfeitar a casa toda, papéis coloridos nas portas, como quando era<br />

festa no Brasil, uma semana antes começaram a fazer doces e a reservar a comida,<br />

[...]<br />

[n]a manhã do casamento sentiu-se enternecida, lembrava-se de Emília no Piau, tão<br />

pequena que não podia participar das pescarias no rio, depois a viagem de trem para<br />

o Rio de Janeiro, de vapor para a Bahia, o tempo de vida baiana, a família dormindo<br />

no mercado, o cheiro de peixe, Padre José, o sacrifício do carneiro, as roupas<br />

brancas da festa do Bonfim, as conversas na barraca, a viagem pelo Esperança, a<br />

221 OLINTO, 1980, p. 193-194.<br />

222 LÍNGUAS nígero-congolesas. Disponível em: .<br />

Acesso em: 28 jul. 2011. As línguas nígero-congolesas são uma família de línguas, sendo o maior<br />

das línguas africanas, tanto quanto ao número de falantes, quanto à área geográfica ou ao número de línguas.<br />

Quase todas as línguas da África subsaariana pertencem a este grupo. Uma propriedade comum destas línguas é<br />

o uso de um sistema de classes para os nomes.<br />

87


calmaria, a época difícil do começo em Lagos, a abertura do poço, agora a irmã ia<br />

casar-se, moraria longe, teria outra vida, quando surgiu no seu vestido de noiva<br />

estava linda, quem fez o casamento foi o Padre O‟Brien [...].<br />

Mariana ouviu-se cantando:<br />

Ô enganadeira,<br />

Não me venha me enganar,<br />

Ô enganadeira,<br />

Não me venha me enganar.<br />

Não me venha dar o pago<br />

Que a outra veio me dar.<br />

A canção saiu-lhe com naturalidade, ouvira-a no Rio de Janeiro, a melodia da flauta<br />

era a da antiga, a mulher sorriu quando os outros bateram palmas [...] 223<br />

O momento alegre desencadeou a memória da infância, vivida no espaço brasileiro.<br />

Nesse mergulho na memória, surge a recordação da música que a personagem ouviu pela<br />

primeira vez no Brasil, em uma festa, com dança e batuques. Era uma festa de Santo Antônio<br />

ou de São João. Ela já não tem certeza, pois havia passado as duas no Rio de Janeiro. Aquela<br />

voz está sempre nas lembranças, como relata a obra: “Guardaria para sempre essa letra e essa<br />

música. Nos anos que se seguissem, elas seriam a presença do Rio, da infância e de um vago<br />

sentimento alegremente triste de que as coisas podem mudar, podem enganar, e contudo são<br />

boas”. 224<br />

Muito tempo depois, a recordação da música acontece novamente, quando Mariana<br />

decide enviar Fadori 225 para estudar na França. Junto dessa lembrança vem a memória do seu<br />

passado no Piau, como um flash: “Mariana se pôs a pensar em sua partida do Piau, o cavalo<br />

subindo e descendo o morro, à noite Emília e Maria Gorda 226 conversavam sobre a viagem de<br />

navio entre a Bahia e Lagos, Mariana começou a cantar, numa lembrança”. 227 A evocação da<br />

música ocorre em momentos distintos, alegres e também tristes, exatamente como a<br />

personagem comenta quando ouve a música pela primeira vez. Quando esse passado é<br />

rememorado, é como se abrisse um espaço em seu presente, para, logo em seguida, retornar e<br />

ceder lugar aos fatos atuais, que continuam o seu curso.<br />

223 OLINTO, 2007, p. 140-141.<br />

224 Ibidem, p. 23.<br />

225 Fadori é filho de Fatumbi, amigo e conselheiro de Mariana. O rapaz morou com a personagem, alguns anos,<br />

para lhe fazer companhia. Foi Fatumbi que sugeriu que Mariana cuidasse do rapaz e os filhos de Mariana não se<br />

opuseram. Sebastian, o mais novo, achou que seria bom para a mãe, pois ela andava um pouco só.<br />

226 Essa personagem é uma amiga que Mariana conheceu durante a viagem até Lagos.<br />

227 OLINTO, 2007, p. 325.<br />

88


3.3.2 A figura materna e o ancestral<br />

Como o sujeito está sempre em busca de suas referências, a identidade apresenta uma<br />

dimensão coletiva, além de pessoal, no que diz respeito à construção da história. Em outros<br />

termos, o indivíduo não constrói sua história, sozinho, isolado; ele precisa da participação da<br />

família ou de uma comunidade, para poder relacionar-se e compartilhar os conhecimentos. É<br />

no convívio com o outro que os referenciais de pertencimento vão sendo fixados.<br />

Na volta às origens, por meio da memória, está a oportunidade de o indivíduo<br />

demonstrar a importância da sua história que, partilhada na comunidade, readquire o<br />

encantamento e relaciona a perspectiva individual à esperança coletiva. Nesse contexto, a<br />

figura materna é a referência. Sobre a importância da figura feminina, na Nigéria, Olinto<br />

reflete, em Brasileiros na África:<br />

Seria difícil dizer se a sociedade brasileiro-nigeriana é um patriarcado ou um<br />

matriarcado. Se às vezes o costume tradicional africano da poligamia nela também<br />

se impõe, a mulher é independente, inclusive do ponto de vista econômico, porque é<br />

ela quem negocia, monta barracas nos mercados e tem contas em banco. Nesse<br />

particular, os descendentes de brasileiros conservaram usanças africanas.<br />

Conservaram-nas ou apenas recuperaram. 228<br />

A reflexão de Olinto ocorre a partir da observação das características da festa de Nossa<br />

Senhora dos Prazeres, em Lagos, em que são as mulheres que acompanham os tambores e a<br />

música. Somente os homens muitos jovens e solteiros é que participam das danças. O que<br />

Olinto ressalta são os hábitos que os africanos descendentes de brasileiros preservam de seus<br />

antepassados.<br />

A estreita ligação entre Brasil e África tem como causa o fato de o espaço brasileiro<br />

ter recebido cerca de quarenta por cento dos quase dez milhões de africanos transportados<br />

para as Américas entre os séculos XVI e XIX. Segundo Edmilson de Almeida Pereira,<br />

“[p]ensar o Brasil a partir desse fato significa dar atenção a uma gama de elementos culturais<br />

relacionados à diáspora africana que se tornaram parte de nossa percepção de mundo e de<br />

nossas práticas cotidianas”. 229 Porém, apesar disso, a sociedade brasileira sempre teve um<br />

olhar de preconceito com relação ao negro, apesar de suas contribuições culturais na<br />

constituição do espaço brasileiro.<br />

Constatam-se diferenças culturais na obra A casa da água, quando o assunto é<br />

poligamia. Embora vivendo em uma sociedade em que essa prática é comum, Mariana nunca<br />

228 OLINTO, 1980, p. 168.<br />

229 PEREIRA, 2010, p. 22.<br />

89


aceitou esse costume, nem para si mesma, nem para a irmã e a filha, como ela mesma relata<br />

no dia do casamento da irmã: “Toda a família de Ebenezer ficou hospedada no sobrado, o pai<br />

tinha três mulheres, só duas haviam acompanhado o marido, Mariana resolveu não pensar na<br />

possibilidade de o marido da irmã vir a ser polígamo, [...].” 230 A hipótese de dividir o marido<br />

com outras mulheres nunca foi considerada pela protagonista, que prefere conservar a tradição<br />

brasileira, que não vê a poligamia como algo aceitável.<br />

Com relação a esse assunto, uma das novas amigas de Epifânia, a mãe de Mariana,<br />

justifica: “Pois é muito bom e muito certo o homem ter várias mulheres. E nós também<br />

podemos ter vários homens”. 231 A procriação é entendida como a maior razão para o<br />

casamento e a justificativa principal para a poligamia. Já no que diz respeito à questão<br />

financeira, é a mulher que exerce o controle, recorrendo ao marido, somente para<br />

aconselhamento. É dela, por conseguinte, todo o poder de decisão.<br />

Para Emilia Ippolito, que reflete sobre o papel da mulher negra no contexto literário<br />

caribenho, as mulheres são respeitadas não somente por serem mães, mas pelo papel que têm<br />

na vida social, cultural, política e econômica da comunidade. Essas mulheres são conscientes<br />

da importância de seu trabalho, em todos os setores, acumulando, também, a responsabilidade<br />

pela educação dos filhos. 232<br />

Em muitas sociedades africanas, a identidade da mulher é determinada pela fertilidade,<br />

pelo fato de ser mãe, o que lhe garante respeito e consideração. Um ditado iorubano sintetiza<br />

o valor da maternidade: “Mãe é ouro e pai é vidro”. 233 Esse adágio revela a maternidade como<br />

um dos aspectos culturais mais relevantes na África, a mais alta expressão da condição<br />

feminina.<br />

Esse costume também é observado no romance, em que o papel da mulher-mãe é<br />

evidenciado. Mariana assume a função de condutora do destino da família, procurando formas<br />

de ascender socialmente, através de suas ideias postas em prática. O papel do homem, no<br />

caso, o marido, é somente o de ouvir as decisões da esposa, pois não se impõe e pouco faz<br />

para assumir essa função. Tanto é que ele sai em busca de trabalho em uma cidade, da qual<br />

Mariana nunca tinha ouvido falar. Retorna, muito tempo depois, e percebe que o dinheiro que<br />

ele procura está em Lagos mesmo. Surpreende-se com tudo o que Mariana conquistou e<br />

mostra-se disposto a colaborar:<br />

230 OLINTO, 2007, p. 140.<br />

231 Ibidem, p. 101.<br />

232 IPPOLITO, Emilia. Caribbean Womens Writer: Identity and Gender. USA: Copyright, 2000, p. 23.<br />

233 PAPEL feminino nas sociedades africanas. Disponível em: .<br />

Acesso em: 19 jul. 2011.<br />

90


No dia seguinte, o homem viu a loja, sentou-se nas cadeiras que João das Tábuas<br />

fizera, perguntou à mulher:<br />

- Que é que você prefere que eu faça?<br />

- É melhor você dirigir a loja. Tem várias cartas para responder, vamos embarcar<br />

para a Bahia, no mês que vem, setenta e cinco barris de óleo de palmeira que no<br />

Brasil se chama azeite de dendê. E a firma de Seu Domingos Antônio de Sousa,<br />

baiana, vai embarcar para nós quarenta caixotes de carne-seca. 234<br />

A presença masculina, na obra, é ofuscada pela feminina. A respeito da importância da<br />

mulher, na África, Antonio Olinto ilustra, em Brasileiros na África:<br />

Um anúncio de cinema, em estilo desenho animado, para divulgar a ideia de que<br />

dinheiro se guarda em banco, mostra uma nigeriana saindo de casa para vir vender<br />

no mercado. Ela se despede do filho – que está a caminho do colégio – e do marido<br />

que, deitado numa rede, se limita a acenar-lhe com a mão direita. A propaganda se<br />

dirige à mulher, que é quem trabalha e mostra o homem como uma espécie de<br />

relações públicas da casa, isto é, o que vai discutir certos assuntos (principalmente<br />

os oficiais) e o que dá conselho à mulher, quando isto se faz necessário. É claro que<br />

a situação se modifica e foram os brasileiros que ajudaram a influir na modificação.<br />

Mas uma corrente dos hábitos locais se insinuou na comunidade brasileira. O que<br />

era inevitável. 235<br />

Na cultura tradicional brasileira, é o homem que desempenha a função de prover o<br />

sustento da família, mesmo com aquisição de igualdade de direitos da mulher, na sociedade<br />

de hoje. Na obra, Sebastian, marido de Mariana, é a representação do homem iorubano, cuja<br />

função primordial é, segundo os costumes, a procriação, que garante à mulher a realização da<br />

maternidade.<br />

Em A casa da água, verifica-se a importância dos filhos nas palavras de uma anciã<br />

iorubá: “- Filho é bom para enterrar a gente. Só o homem que é enterrado pelo filho teve de<br />

fato um filho”. 236 Assim, na ocasião em que Mariana, já viúva de Sebastian, reluta em fazer<br />

uma festa de batizado para o caçula, nascido pouco tempo depois da morte do pai, D. Zezé<br />

replica:<br />

234 OLINTO, 2007, p. 143-144.<br />

235 Idem, 1980, p. 168.<br />

236 Idem, 2007, p. 118.<br />

237 Ibidem, p. 175.<br />

- Minha filha, acho que mesmo para os jovens é preciso haver serenata. A morte,<br />

que é o fim de todos nós, é sempre boa. Na época da morte de Sebastian você não<br />

teria aceitado uma ideia assim, por isso vamos ter essa festa de hoje como se fosse<br />

em homenagem a ele porque ele teve uma boa vida, deixou três filhos e foi muito<br />

feliz. 237<br />

91


Diante dos argumentos, Mariana consente que se faça a comemoração. O marido lhe<br />

deu três filhos, então cumpriu seu papel na vida. Com essa atitude, mesmo em um momento<br />

de tristeza, pela morte do marido ainda jovem, Mariana demonstra a valorização dos costumes<br />

nigerianos.<br />

Para os africanos, a morte tem significados especiais. Não denota o fim, mas parte da<br />

existência, que tem como referência maior os ancestrais. Quando acontece com pessoas<br />

jovens, há uma pequena cerimônia triste, pois é a vida interrompida precocemente. Por isso,<br />

não há lugar para comemorações. Esse é o caso das mortes de Sebastian, marido de Mariana,<br />

que foi morto ao tentar separar uma briga; de Segui, nora da protagonista, que morreu ao dar a<br />

luz; da morte do filho de Mariana, Sebastian, presidente de Zorei, que foi assassinado em um<br />

golpe de estado; a de Elizabeth, primeira mulher do irmão de Mariana, que morreu sem causa<br />

específica, entre outras.<br />

a morte:<br />

Em Brasileiros na África, Olinto comenta a naturalidade com que os africanos tratam<br />

O cemitério a que Romana fazia alusão era um de meus espantos em Lagos. É<br />

enorme a intimidade do africano com a morte. Cemitério é lugar de passeio e<br />

descanso e alguns deles têm bancos em que se assentam os namorados. O velho<br />

cemitério do Bairro Brasileiro, hoje abandonado, tem alguns túmulos que as crianças<br />

aproveitam como traves de jogo de futebol. 238<br />

No Brasil, os cemitérios são frequentados para visitas e orações, bem diferente da<br />

tradição africana. Em A casa da água, confirma-se essa outra realidade dos cemitérios, em<br />

uma visita que Mariana faz:<br />

[F]oi visitar o túmulo do primeiro Sebastian, as crianças haviam transformado o<br />

lugar em campo, entre a sepultura da avó Ainá e do marido ficava um dos gols,<br />

Mariana pensou em protestar, depois concordou com a ideia, era a vida continuando<br />

a existir sobre os mortos, estes deviam sentir-se um pouco ressuscitados com o<br />

barulho dos meninos jogando bola, driblando, tentando fazer gols, [...] 239<br />

Na atitude da protagonista, revela-se a convivência de costumes africanos e<br />

brasileiros. Ela é católica, assim como a mãe Epifânia, porém não vê problemas nos demais<br />

costumes da população de Lagos, de Daomé, enfim de todos os territórios por onde circula.<br />

Adapta-se, aceita e convive com as diferenças.<br />

238 OLINTO, 1980, p. 169.<br />

239 Idem, 2007, p. 218.<br />

92


Na cultura africana, a presença do ancestral é muito forte. Segundo Toni Morrison,<br />

“[w]hen you kill the ancestor you kill yourself”. 240 A figura do antepassado tem uma<br />

influência marcante, independente da época do indivíduo. A falta ou a negação de contato<br />

com o ancestral traz uma descontinuidade entre o passado e o presente. As experiências do<br />

passado não são baseadas na memória individual, mas na memória transferida da experiência<br />

vivida dos antepassados para a imaginação coletiva.<br />

Em muitas partes do livro A casa da água, o antepassado aparece como fundamento<br />

para a tomada de decisões, pois é ele que é consultado sempre que há necessidade de uma<br />

opinião para a realização de algo. É o caso de Mariana, que se torna o apoio da família. É ela<br />

que assume o papel de referência, que tinha sido da avó Catarina. Já a mãe, Epifânia, presença<br />

constante na vida da família, está sempre de acordo com as decisões da filha, ajudando,<br />

colaborando, mas delegou a função de líder à Mariana.<br />

A protagonista direciona sua vida a partir dos ensinamentos recebidos da avó e da<br />

mãe, além do que aprende com os contatos estabelecidos com as pessoas mais velhas de<br />

Lagos e, também, com antigos afrodescendentes que viveram no Brasil, como Iaiá Joana, a<br />

brasileira mais velha da Rua Bangboshe, que disse a ela:<br />

- Esconde as coisas boas, menina. Esconde sempre. Não deixe ninguém saber que<br />

você é feliz, ou rica, ou que tem saúde. Surge tanta inveja, a inveja rodeia a gente e,<br />

daí a pouco, vem doença, vem infelicidade, vem pobreza.[...]<br />

- Retrato destrói a alma da gente. Cada retrato que se tira é um pedacinho da imagem<br />

da gente que se gasta. 241<br />

Mariana gosta muito de visitar essa senhora e aprender com a sua experiência, com<br />

suas palavras dotadas de ensinamentos. É esse o motivo pelo qual ela não quis ser fotografada<br />

junto com o marido e os filhos e, assim, guardar uma lembrança de um momento “tão<br />

serenamente feliz”. 242 A herança ancestral, dotada de uma valoração positiva, na sociedade<br />

africana, é mais durável que a existência do próprio indivíduo, pois pertence ao grupo, ao qual<br />

o sujeito pertence. Segundo Ferreira Santos, a presença ancestral é uma herança coletiva que<br />

ultrapassa o próprio indivíduo, que, desta forma, tem “com esta ancestralidade uma relação de<br />

240 MORRISON, Toni. The Ancestor as Foundation. In: EVANS, Mari. Black Women Writers. United States<br />

of America: Copyright, 1984, p. 344. Tradução da autora: Quando você mata o ancestral você mata a si mesmo.<br />

241 OLINTO, 2007, p. 146.<br />

242 Ibidem, p.146.<br />

93


endividamento na medida em que somos o futuro que este passado possuía e nos cabe<br />

atualizar as suas energias mobilizadoras e fundadoras”. 243<br />

Nesse contexto, o compromisso do ser humano com suas heranças é o de ser ele<br />

próprio; de conservar as tradições adquiridas ao longo das gerações e repassá-las aos seus<br />

descendentes. Ainda, conforme Ferreira Santos, a ancestralidade possibilita a religação com<br />

as origens, com os antepassados, o que permite à pessoa repensar sua prática, suas atitudes e<br />

relações, a partir dos ensinamentos ancestrais. 244<br />

Em A casa da água, é no contato com os mais experientes que a personagem constrói-<br />

se como uma mulher sem medo de enfrentar os obstáculos e conduzir o destino de uma<br />

comunidade. É através dos princípios da experiência, que a protagonista torna-se aquilo que<br />

os antepassados são para ela: a base, a mulher sábia que sempre tinha algo para dizer, sugerir,<br />

aconselhar. Mesmo nas horas mais difíceis, a matriarca consegue ser forte, sabe agir por meio<br />

da razão, como no episódio da morte do filho Sebastian, nas últimas páginas do romance:<br />

Mariana fechou os olhos, percebeu as batidas do próprio coração, o sangue lhe corria<br />

mais depressa e uma veia da testa latejava, escutou passos na sala, mas não abriu os<br />

olhos, [...] viu que havia mulheres por toda a parte, encostadas na parede, perto da<br />

mesa, em frente à janela, um choro, um choro de mulher se localizou no topo da<br />

escada, Mariana gritou:<br />

- Que ninguém chore!<br />

O silêncio se impôs durante alguns instantes, o rádio interrompera a música e<br />

parecia ter sido desligado, mas não, a voz do locutor voltou, agora mais nervosa:<br />

“- Atenção, atenção! Notícia de última hora! Confirma-se a morte do Presidente<br />

Sebastian Silva, um dos libertadores da nova África.[...]<br />

[...] quando Mariana chegou à janela os lamentos aumentaram, ela percorreu a cena<br />

com os olhos, homens e mulheres se acumulavam em toda a extensão da frente do<br />

sobrado, voltou, reparou no copo que Jean da Cruz segurava, pegou-o, tomou um<br />

gole, mandou chamar o chofer, desceu com a menina, entrou no carro, [...] 245<br />

Num momento de extrema dor, Mariana consegue tomar atitudes, pois é isso o que as<br />

pessoas que vão até sua casa esperam que ela faça. A impressão que passa é que todos estão<br />

imóveis, esperando por Mariana. Assim, a protagonista decide buscar o filho assassinado, em<br />

Zorei, demonstrando uma força inigualável. Justifica-se, aqui, a referência que a protagonista<br />

é na sua comunidade, pela coragem e sabedoria, típicas da mulher africana, acostumada a<br />

enfrentar desafios.<br />

243 FERREIRA SANTOS, Marcos. Ancestralidade e convivência no processo identitário: a dor do espinho e a<br />

arte da paixão entre Karabá e Kiriku. s.d., p. 213. Disponível em:<br />

. Acesso em: 20 jul. 2011.<br />

244 FERREIRA SANTOS, 2004 apud FERREIRA SANTOS s.d., p. 213-214.<br />

245 OLINTO, 2007, p. 381-382.<br />

94


3.3.3 Uma cultura híbrida<br />

Das três gerações que se deslocam do Brasil à África, avó Catarina, Epifânia, Mariana<br />

e os irmãos, estes, a terceira geração, parecem ser os únicos a se adaptarem na Nigéria.<br />

Mesmo sem esquecer o Brasil, Mariana se adapta à realidade local. Em uma conversa com a<br />

mãe, ainda jovem, antes de casar-se, Mariana sofre ao ouvir as palavras da mãe:<br />

- Estou aqui em Lagos, minha filha, mas é só fechar os olhos que me sinto como se<br />

estivesse no Piau, o adro da igreja bem em frente da casa, a janela que dava para o<br />

rio. Outras vezes é como se estivesse na Bahia, a casa de Padre José fica logo ali<br />

adiante, a igreja é do lado, a torre de onde ele atirava coisas era alta e imponente.<br />

[...] Pensando naquilo, Mariana procurava adaptar-se a Lagos, ver o lado bom das<br />

coisas, saía para as ruas num passo rápido, em qualquer pausa da chuva lá estava ela<br />

andando pela beira-mar, [...] conversava longamente com Dona Zezé, com a velha<br />

Teresa, com as irmãs de caridade, com Padre O‟Malley, não queria ser igual à mãe,<br />

vivendo com o pensamento longe dali, percebeu as brigas entre os brasileiros e os da<br />

terra, deu a opinião de que elas deviam acabar, havia a aristocracia dos que tinham<br />

viajado em tal ou qual navio, a dos que estavam em Lagos há mais tempo, Seu<br />

Alexandre não deixou a filha se casar com um iorubá de Oshogbô, Mariana<br />

começou a visitar mais frequentemente casas de africanos, fez amizade com várias<br />

famílias ibôs, os ibôs também eram católicos, tinha de falar em inglês com eles,<br />

acostumou-se a discutir problemas de Lagos com iorubás, com eles era melhor,<br />

falava em iorubá, um dia, quando entrou na sala de um deles, Ogundipé, viu-o<br />

pintando uma série de máscaras de madeira, estavam nas vésperas das festas em<br />

gueledé, iam sair para as ruas com bailarinos que, ao som de tambores, dançavam<br />

para apaziguar as bruxas. 246<br />

Evidencia-se o interesse da personagem em fixar suas raízes na terra estrangeira, pois<br />

queria um destino diferente do da mãe, Epifânia, que se sente em um espaço que não lhe<br />

pertence; uma afrodescendente com a sensação de estar em um país estrangeiro. Por isso,<br />

Mariana, exposta à diversidade cultural de Lagos, busca interagir com as culturas, por meio da<br />

linguagem, no contato com a língua iorubá, inglesa e a portuguesa, sua língua de origem; na<br />

religião e nos costumes das pessoas que ela visita. Os iorubás conservam tradições típicas<br />

africanas, como a confecção das máscaras. 247 Estes convivem com os ibôs, 248 que são<br />

católicos e sua religião não tem o hábito do uso de máscaras.<br />

Dentre as festas em que se usam máscaras, estão as de gueledé, uma sociedade<br />

composta por mulheres acima da menopausa. Elas são temidas como mulheres feiticeiras,<br />

246 OLINTO, 2007, p. 104-105.<br />

. 247 FERREIRA, Luzia Gomes. As máscaras africanas e suas múltiplas facetas. Disponível em:<br />

. Acesso em: 07 ago. 2011. As<br />

máscaras africanas são confeccionadas geralmente em madeira e representam um conceito, uma ideia que vai<br />

além da aparência; elas invocam uma visão de mundo e as representam.<br />

248 Guerra de Biafra. Disponível em: . Os ibôs são<br />

nigerianos que moravam na província de Biafra, localizada a leste do país. Eram considerados a elite da Nigéria,<br />

pois tinham os melhores salários e os melhores empregos.<br />

95


com o poder ligado à retenção do sangue, que não é mais eliminado através da menstruação.<br />

De acordo com os costumes africanos, as mulheres, quando param de menstruar, guardam um<br />

reservatório de sangue impuro. Por essa razão, as mulheres de gueledé tem poder antigerativo,<br />

ou seja, de destruir, enfeitiçar. Assim, as máscaras, que serão usadas pelos homens, numa<br />

demonstração de respeito e temor à mulher, são uma forma de acalmar as bruxas. 249<br />

Para os africanos, a mulher, quando menstrua, libera as impurezas para fora do<br />

corpo. 250 Na obra A casa da água, isso ocorre com Mariana quando chega a Lagos:<br />

Mariana sentiu-se mal, estaria doente outra vez?, a distância entre o navio e a<br />

costa não era longa, mas como demorava, de repente a menina teve uma dor<br />

que lhe descia pelo ventre, uma dor e um calor, alguma coisa como que se<br />

rebentava dentro dela, o calor aumentou no sexo, Mariana pôs a mão e viu<br />

que estava molhada, levantou o lençol, havia sangue no fundo do barco e no<br />

branco do pano, Epifânia segurou a filha, o barco se aproximava da terra, a<br />

mulher e um dos remadores ajudaram a levar Mariana até um trecho de<br />

capim, sob uma árvore, a mãe pegou no lençol, abriu as pernas de Mariana,<br />

limpou-lhe cada lado da coxa, Mariana tornou-se a cobrir-se com o lençol,<br />

um cheiro forte e acre andava no ar, o sol batia na terra amarela que havia<br />

além do verde. 251<br />

Segundo a crença local, quando a menina se transforma em mulher está “salvando a<br />

terra”. 252 Em outras palavras, é uma forma de renascer para uma vida nova. E Mariana,<br />

juntamente com a família, estava começando uma vida de liberdade, tão perseguida pela avó<br />

e, finalmente, conquistada, na chegada a Nigéria.<br />

Segundo Homi Bhabha, é a partir do encontro de grupos distintos que aparece uma<br />

infinidade de discursos possíveis num mesmo território. Para o teórico, a diversidade cultural<br />

é o reconhecimento de conteúdos e costumes de uma determinada comunidade, que,<br />

intocados, são protegidos pela memória mítica de uma identidade coletiva única. Já a<br />

diferença cultural diz respeito a um processo de significação através do qual as afirmações da<br />

cultura ou sobre a cultura se distinguem uma da outra. 253<br />

Os referenciais identitários de Mariana vão sendo construídos a partir do contato com<br />

culturas diversas, em razão dos deslocamentos a que é submetida. No Brasil, quando menina,<br />

assimila a cultura de sua terra natal, porém com influência da cultura africana que a avó<br />

Catarina tentava preservar na memória. Depois, na Nigéria, adapta-se à cultura africana, tendo<br />

em vista a sua descendência, mas com a memória do passado brasileiro.<br />

249 FERREIRA. p. 7. Disponível em: .<br />

250 Ibidem. p. 7.<br />

251 OLINTO, 2007, p. 70-71.<br />

252 Ibidem, p. 78.<br />

253 BHABHA, 1998, p. 63-64.<br />

96


As imagens e os pensamentos resultam dos diversos territórios por onde uma pessoa<br />

se desloca, sendo sucessivamente agregados à história de cada um. Por essa razão, todo<br />

indivíduo tem uma percepção própria de cada espaço que está ou esteve em contato. Isso leva<br />

à transformação e à construção de diferentes posicionamentos identitários. Segundo<br />

Halbwachs, o passado compreende dois elementos:<br />

Os que podemos evocar quando desejamos e os que, ao contrário, não atendem ao<br />

nosso apelo, se bem que tão logo os procuramos no passado nossa vontade parece<br />

bater num obstáculo. Na verdade, dos primeiros podemos dizer que estão no terreno<br />

comum, [...] a ideia que mais facilmente representamos é composta de elementos tão<br />

pessoais e particulares quanto desejarmos, é a ideia que os outros fazem de nós, [...]<br />

Assim, os fatos e ideias que mais facilmente recordamos são do terreno comum,<br />

pelo menos para um ou alguns ambientes. Essas lembranças existem para todo o<br />

mundo nesta medida e é porque podemos apoiar na memória dos outros que somos<br />

capazes de recordá-las a qualquer momento e quando o desejamos. Das segundas,<br />

das que não conseguimos recordar à vontade, de bom grado diremos que não<br />

pertencem aos outros, mas a nós, porque somente nós podemos reconhecê-las. 254<br />

Na obra, as lembranças do passado brasileiro da personagem ressurgem<br />

frequentemente. O que ajuda a protagonista a estreitar esses laços é comércio de importação e<br />

exportação que ela mantém com o Brasil. É um meio de manter vivas as lembranças de sua<br />

terra e suavizar a saudade dos costumes brasileiros, como a importação da carne-seca, tão<br />

lembrada por esses sujeitos que deixaram o Brasil rumo à África.<br />

Nesse contexto, reafirmando seus posicionamentos no grupo, o indivíduo adquire<br />

valores e partilha vivências, próprias de cada espaço. Em A casa da água, no momento da<br />

escolha do nome da filha de Mariana, percebe-se que a opinião individual está relacionada à<br />

cultura local:<br />

- Vai ter o nome da vovó.<br />

- Catarina?<br />

- Não, Ainá.<br />

- Catarina é melhor, é mais brasileiro.<br />

- Não, mamãe, o nome dela vai ser africano.<br />

Epifânia olhou para a criança, que tinha olhos ainda fechados, a boca em movimento<br />

de procura, repetiu o nome:<br />

- Ainá.<br />

- Vovó teria preferido Ainá a Catarina. 255<br />

A escolha do nome Ainá é uma homenagem à avó, que considerava muito o nome<br />

africano, pelo qual nunca foi chamada no Brasil. Somente na África, pôde recuperar esse<br />

referencial. Constata-se, então, a valorização do antepassado, além da importância do espaço<br />

254 HALBWACHS, 2006, p. 66-67.<br />

255 OLINTO, 2007, p. 121.<br />

97


africano para Mariana, adquirido no decorrer dos anos, por meio da necessidade de fixar<br />

raízes e construir a sua África, que se torna a sua realidade e seu espaço: “Mariana pensou: e<br />

se quisesse voltar ao Brasil?, nunca lhe ocorrera essa ideia, mesmo agora achava-a<br />

impossível, já era gente de Lagos, mas tudo podia acontecer”. 256<br />

Nessa situação, fica claro que os referenciais de Mariana têm, agora, raízes na<br />

comunidade africana; por outro lado, ela deixa transparecer que há possibilidades de<br />

mudanças em seus pensamentos e, no futuro, pode vir a pensar sobre um provável retorno ao<br />

Brasil. Dessa atitude, infere-se que os posicionamentos identitários da personagem ocorrem<br />

em função do deslocamento e do cruzamento de identidades tipicamente brasileiras, outras<br />

tipicamente africanas, além dos demais referenciais que constituem o espaço africano.<br />

Na obra, mais tarde, Mariana dá provas de sua adaptação em Lagos, com a ideia de<br />

não retornar ao Brasil, numa conversa com Maria Gorda, que, também, estava no navio que as<br />

levou à África:<br />

Maria Gorda continuava:<br />

- Você acha que alguma de nós ainda volta?<br />

- Para onde?<br />

- Para o Brasil.<br />

Mariana olhou espantada para a amiga:<br />

- Como é que você pode pensar nisto? Ninguém volta ao lugar de onde saiu como<br />

nós saímos. Quando pegamos aquele navio, ninguém pensava em voltar, foi de vez.<br />

O Brasil fica no outro lado do mar, você se lembra como é longe, o navio demorou<br />

meses. Nossa vida é aqui mesmo, ninguém vai voltar, não.<br />

A outra sacudiu a cabeça como se só naquele instante houvesse tomado consciência<br />

do que ouvia:<br />

- Bem que eu teria prazer em ver a Bahia outra vez.<br />

- Lagos é um lugar muito bonito, gosto muito daqui. 257<br />

As palavras de Mariana demonstram os laços estabelecidos com o espaço africano. No<br />

momento em que ela percebe as diferenças entre o passado e o presente, passa a situar-se no<br />

espaço que lhe permitiu construir uma história, distinta da anterior. A construção de<br />

identidades é um modo de identificação das semelhanças e a afirmação das diferenças que<br />

situam o ser humano nos grupos sociais.<br />

A firmeza da protagonista em assegurar a África como a sua terra deve-se ao momento<br />

de tranquilidade pelo qual ela passa. Os motivos que a levam a isso são a presença do esposo,<br />

que permaneceu longe da família, por muito tempo, em busca de trabalho; a situação<br />

financeira estável e, principalmente, por estar tendo mais tempo para os filhos. Enfim, sente-<br />

256 OLINTO, 2007, p. 121.<br />

257 Ibidem, p. 150.<br />

98


se bem com a vida que conquistou na África. E assim, Mariana transita entre as diferenças<br />

culturais, valorizando-as, mas preservando seus elementos identitários brasileiros:<br />

Mariana pediu a Seu Gaspar:<br />

- Quer fazer uma Oxum para mim?<br />

O homem levou semanas para terminar a encomenda, Mariana ia vê-lo no trabalho,<br />

com uma pequena faca ele cortava aqui e ali, era um belo pedaço de madeira, no<br />

início nada parecia surgir daqueles corte, um dia Mariana percebeu uma cabeça de<br />

mulher,[...] uma tarde Mariana levou-a para casa, colocou-a no quarto, de vez em<br />

quando punha um pouco de água na frente de Oxum, ó água do poço que Oxum te<br />

receba com alegria, que a deusa da água doce e do ouro se alegre contigo, Sebastian<br />

perguntou o que significava, soube que era Oxum, ficou olhando longamente para a<br />

imagem, comentou:<br />

- Minha mãe tinha uma no Brasil.<br />

Epifânia também teve o que dizer:<br />

- Você está me saindo muito parecida com a avó.<br />

No Natal, a família toda foi à Missa do Galo, Ainá dormiu no colo de Mariana, o<br />

coro cantava, Joseph gostou do colorido da festa, no final grupos de amigos ficaram<br />

conversando na rua, de vez em quando passava alguém com uma lamparina na mão,<br />

um vizinho pegou a tocar violão, o sobrado se destacava a luz da manhã que nascia,<br />

Mariana foi ver os calungas antes de dormir, o bumba-meu-boi sairia em janeiro [...]<br />

Toda a Nangboshe e mais a Ok-Suna e mais a Praça Campos e mais a Rua<br />

Tokunboh e mais a Olunlami compareceram, Mariana pôs um vestido de pano<br />

inglês, penteou o cabelo rente e amarrou a cabeça com um pano iorubá, Sebastian<br />

vestiu-se de branco, Maria Gorda apareceu bem cedo, Abigail levou toda a família,<br />

Seu Alexandre também, Mariana lembrou-se de ter assistido a um bumba-meu-boi<br />

na casa dele. 258<br />

Essa pluralidade cultural que Mariana tem contato e assume na África transparece nos<br />

hábitos, como festas e comemorações, e nas roupas, tipicamente africanas. Os laços com o<br />

Brasil se mantêm por meio da religião e das tradições populares, como o bumba meu boi. Por<br />

fim, a presença africana na Oxum demonstra a herança da avó, que sempre cultivou sua<br />

religião e seus santos. Essa mistura de tradições transforma a protagonista num ser<br />

hibridizado, transformado pelo meio.<br />

A multiplicidade de culturas faz parte da vida de Mariana desde cedo, no Brasil, com a<br />

convivência com avó e outros ex-escravos, que habitam o Piau, os quais conservam tradições<br />

da terra natal. Assim, ela convive desde cedo com os referenciais africanos e brasileiros.<br />

Talvez esse fato seja uma das razões pelas quais a protagonista não percebe, tão intensamente,<br />

as diferenças culturais, quanto à avó e a própria mãe, na Nigéria. A mãe, Epifânia, nunca<br />

agregou os costumes da terra africana, mantendo sempre na memória as lembranças<br />

brasileiras. Ela aprende a conviver com a diversidade, mas nunca a aceita, de fato. Já a avó,<br />

ao perceber a impossibilidade de resgatar a África que ficou idealizada em sua memória,<br />

durante a vida no Brasil, tem dificuldades de inserir-se no contexto africano.<br />

258 OLINTO, 2007, p. 148-149.<br />

99


No trânsito da África para os demais territórios, inclusive o Brasil, os escravos,<br />

afastando-se de seus elementos culturais de origem, buscavam, nos resíduos da memória,<br />

recompor os aspectos que remetiam à sua terra natal. Nesse contexto, os escravos africanos<br />

estão propensos a adotar mais facilmente a cultura do outro, quando não conseguem conservar<br />

suas heranças culturais, somente através do poder da memória. Assim, sem a equivalência dos<br />

elementos culturais e expostos à heterogeneidade desses elementos, os negros africanos<br />

inferiorizam-se, como ocorreu no Caribe e no Brasil. 259 Isso se dá porque seus referenciais<br />

identitários estão distantes. A cultura dominante aparece com mais força.<br />

No espaço brasileiro, os saberes, conforme são conservados, são passados de geração<br />

em geração, como preservação das raízes. Também, são mesclados com as tradições do<br />

espaço que envolve o grupo. Percebe-se, no decorrer de A casa da Água, a intensa presença<br />

de particularidades, diferentes religiões, como a participação de Mariana em festas católicas,<br />

tipicamente brasileiras como São João e Santo Antonio e nas missas, que ela participa<br />

juntamente com a mãe. Por outro lado, participa de rituais africanos como a festa de Xangô,<br />

na Bahia, levada pela avó Catarina.<br />

Já na África, essa hibridização continua. O sincretismo religioso é visível, ainda, no<br />

excerto que relata a festa de brasileiros de que Catarina, a filha e a neta participam em<br />

homenagem ao bumba meu boi, um costume típico brasileiro:<br />

100<br />

Os calungas eram enormes figuras da mulher, do boi, do burro, da ema, que<br />

formavam o bumba-meu-boi, Mariana ficou logo sabendo que em Lagos chamavam<br />

essa brincadeira de burrinha, viu quando um homem entrou dentro da armação da<br />

mulher, tocaram música em instrumentos, cantaram, o boi investia contra os que<br />

estavam ao redor, [...] De repente surgiu uma briga num canto, homens com pedaços<br />

de caixote nas mãos começaram a bater nos que dançavam, pessoas de casa foram<br />

em defesa dos amigos, o boi correu para dentro, na porta de entrada do sobrado de<br />

Seu Alexandre havia um cartaz onde estava escrito Viva Deus, [...] 260<br />

O Bumba meu boi ou boi-bumbá é uma dança do folclore popular brasileiro, com<br />

personagens humanos e animais fantásticos, que gira em torno da morte e ressurreição de um<br />

boi. A essência da lenda enlaça a sátira, a comédia, a tragédia e o drama, e demonstra sempre<br />

o contraste entre a fragilidade do homem e a força bruta de um boi. Essa festa surgiu no<br />

nordeste do país, mais especificamente no Estado do Piauí. Ao espalhar-se pelo país, o bumba<br />

meu boi adquire nomes, ritmos, formas de apresentação, indumentárias, personagens,<br />

instrumentos, adereços e temas diferentes. Levado para a África, esse costume brasileiro<br />

259 GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Enilce do Carmo Albergaria Rocha.<br />

Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005, p. 21-22.<br />

260 OLINTO, 2007, p. 80-81.


ecebe o nome de “burrinha”, mas o boi continua personagem principal da festa. 261 Isso<br />

demonstra que o Brasil também sobrevive na Nigéria, com a preservação dos costumes<br />

adquiridos pela família, enquanto habitantes do espaço brasileiro, revelando a influência dessa<br />

cultura na vida dos africanos que fazem o caminho de volta.<br />

São as festas africanas convivendo com as realizadas por descendentes de brasileiros,<br />

como lembranças do passado. A influência é tanta que “Mariana resolveu ter seu próprio<br />

bumba-meu-boi (sic) 262 . Mandou fazer armações de madeira sobre as quais poderia colocar<br />

panos pintados, pedaços de papelão, fitas rendadas, com as figuras do boi, da burrinha, da<br />

ema, da mulher grande”. 263<br />

Nessa época, Mariana é tomada por sentimentos inexplicáveis. Suas lembranças se<br />

mantêm vivas em sua memória ao longo do tempo e dos espaços habitados, como uma ponte<br />

que liga passado e presente, com o intuito de construir o futuro. Porém, em seus pensamentos,<br />

surgem questionamentos, como, por exemplo, quando Antônio, seu irmão, comenta que ela<br />

está aumentando de peso:<br />

101<br />

De noite ela se examinou, realmente estava sacudida, sentia-se bem, um fluxo de<br />

saúde parecia sair dela, a mulher constatava uma nova força naquele corpo<br />

caminhando, fazendo coisas, tomando conta de acontecimentos, mais tarde pensaria<br />

estranhos pensamentos que, postos em palavras, talvez se resumissem neste: quem<br />

consegue mandar nos acontecimentos? Ela mandara em si mesma, parecia ter<br />

dirigido o que fora sucedendo a toda a família, mas notava que mandar cansa. Às<br />

vezes queria ser mandada, encaminhada, que lhe dissessem o que fazer, o que<br />

desejar, o que pensar. 264<br />

A personagem demonstra estar vivendo num espaço transitório, pelo menos em alguns<br />

momentos. Ela questiona seus referenciais num retorno à memória, buscando o papel da<br />

mulher no espaço brasileiro, onde, segundo as tradições, não é o centro da família, pelo menos<br />

quando há presença de uma figura masculina, diferente da África, onde a mulher é que tem a<br />

responsabilidade de conduzir a família, e o homem de concordar com as ideias dela.<br />

Na obra, nesse tempo alegre, Sebastian, o esposo da protagonista, é assassinado,<br />

quando tenta separar uma briga. Assim, Mariana, num momento de tristeza profunda, faz uma<br />

releitura dos comportamentos, dos valores e das tradições atendendo ao apelo da ocasião. Para<br />

ela, as lembranças vêm do passado num período de angústia e desolação, após a morte trágica<br />

do marido. Reclusa no quarto, ela perde-se nos devaneios da memória:<br />

261<br />

BUMBA MEU BOI. Disponível em: . Acesso em: 01 jul.<br />

2011.<br />

262<br />

Grafa-se bumba meu boi, de acordo com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.<br />

263 OLINTO, 2007, p. 147.<br />

264 Ibidem, p. 147.


102<br />

[N]em sempre tinha certeza do lugar em que se achava, uma vez pensou estar na<br />

Bahia, sentada no fundo da barraca de peixe, levantou a cabeça e chegou a sentir<br />

cheiro de peixe, mas o que estava em frente era a parede do quarto, exatamente na<br />

cor determinada por ela, azul-claro, e então recomeçava a tomar consciência das<br />

coisas, a cama em que ela e Sebastian haviam dormido, o cobertor, depois perdia-se<br />

outra vez e via-se em cima do cavalo que a levara do Piau a Juiz de Fora, o negro de<br />

rosto simpático virando-se a cada instante para ela, ouvia gritos da pesca do piau, o<br />

peixe saltava, a mulher reconquistava lentamente a realidade do momento, o<br />

balanço da cadeira, para deixá-la ir-se novamente e perceber que o convés subia e<br />

descia, o navio furando o mar, isolado no meio do sol, a cena da morte de Sebastian<br />

lhe voltava de vez em quando à memória, escutou o choro de Ainá um momento,<br />

ficou três dias e três noites assim. 265<br />

A diferença nas lembranças de Mariana, neste momento, com relação às da mãe e da<br />

avó é que ela está passando por uma situação única, de desgosto, e tenta relembrar o passado<br />

em sua terra natal, num ir e vir desordenado da memória. Ela sempre se sentiu uma africana<br />

em Lagos, enquanto as outras duas não. Agora, porém, sentindo-se confusa, Mariana<br />

rememora o Brasil em um momento de angústia. Depois de mergulhar em suas lembranças e<br />

procurar forças para continuar, a protagonista revela seus pensamentos:<br />

Mariana sabe que Maria Gorda, Abigail, Teresa, Seu Justino e Jerônimo estiveram<br />

perto dela, falando, dizendo coisas, respondeu a cada um, não está certa de haver<br />

sorrido, mas foi delicada, no fundo pensava em sair de Lagos, para onde iria?, como<br />

busca de novo chão, de horizonte diferente, voltar ao Brasil seria difícil, talvez o<br />

melhor fosse procurar onde houvesse mais brasileiros, Badagre, Porto Novo, Uidá,<br />

[...] 266<br />

Toda a memória ativada leva Mariana a querer resgatar as posições identitárias de sua<br />

terra natal. Como o retorno não se mostra favorável, a personagem procura esse resgate<br />

deslocando-se para lugares que podem representar, para ela, esse enraizamento, seja no<br />

contato com brasileiros que, assim como ela, deslocam-se para a África, com os parentes, ou<br />

no comércio de importação dos produtos do Brasil. Ela decide, então, explorar novos lugares,<br />

habitados, também, por brasileiros. E assim o faz. Compra terras e constrói uma segunda<br />

“Casa da água”, em frente ao mar, na cidade de Uidá, 267 que faz fronteira com Zorei. 268<br />

265 OLINTO, 2007, p. 167.<br />

266 Ibidem, p. 168.<br />

267 Uidá pertence à República de Benin, antigo Daomé. É um país da região ocidental da África, limitado ao<br />

norte pelo e pelo Níger, ao leste pela Nigéria, ao sul pela Enseada do Benim e a oeste pelo Togo. Sua capital<br />

constitucional é a cidade de Porto-Novo, mas Cotonou é a sede do governo e a maior cidade do país. Antiga<br />

colônia francesa, o país alcança independência em 1º de agosto de 1960, com o nome de República de Daomé.<br />

Em 1975, adota o atual nome de Benin, em razão de o país ser banhado, ao sul, pela Baía de Benin. Benin.<br />

Disponível em: .<br />

268 Zorei é um país fictício, criado por Antonio Olinto em A casa da água, sendo a cidade de Aduni capital desse<br />

país.


Dividindo-se entre as casas e os negócios em Lagos, Uidá e Aduni, Mariana continua<br />

liderando não só a família, mas uma comunidade. Vive cercada por pessoas que a respeitam e<br />

dão continuidade aos negócios, sempre de acordo com suas ideias e seus conhecimentos.<br />

Supera as perdas que o destino lhe reserva e sente prazer em conversar com quem a procura.<br />

Com o passar do tempo, os filhos retornam da Europa e cada um procura seguir seu<br />

destino. Quando Sebastian, o filho mais novo, já casado, conta à mãe que iria ser pai, como<br />

num flash as lembranças da mulher se voltam para o Brasil:<br />

103<br />

Olhou Segui de alto a baixo, viu-lhe o ventre se destacando do resto do corpo,<br />

lembrou-se de uma frase que a mãe usava:<br />

- Feliz como água de chafariz.<br />

Era como se sentia, nunca mais encontrara um chafariz, a memória devolveu-lhe a<br />

lembrança de um chafariz grande do Rio de Janeiro, a água jorrando 269 .<br />

Nesse contexto, a memória chega e transforma a distância em proximidade; as<br />

lembranças do passado misturam-se com as do presente: água como sinônimo de vida e uma<br />

nova vida sendo gerada. Antes disso, em um encontro com João das Tábuas, Mariana começa<br />

a perceber que<br />

os velhos brasileiros se procuravam mutuamente, queriam conversar um com o<br />

outro, provar que ainda viviam no seu mundo, muitos dos que haviam feito dinheiro<br />

estavam com os filhos na Inglaterra, eles voltariam mais ingleses do que nigerianos,<br />

e nada brasileiros, no fundo era bom, porque tudo mudara, os jovens precisavam<br />

viver num ambiente novo, Ainá talvez acabasse médica de todo o bairro brasileiro.<br />

Joseph não falava muito em aulas nas últimas cartas, [...]. 270<br />

As reflexões da protagonista demonstram que a existência do indivíduo em um<br />

determinado espaço ocorre devido ao reconhecimento do outro, além dos elos que mantém<br />

com seu grupo. É necessária essa constatação para que o sujeito construa sua identidade,<br />

através de sua representação no grupo. As transformações que os deslocamentos operam nos<br />

indivíduos são grandes. Se isso ocorre por meio da imposição dos valores culturais de uma<br />

determinada sociedade ou etnia, como no caso da colonização e da escravidão, a tendência é a<br />

separação desse grupo e a busca por seus antigos territórios, onde os referenciais identitários,<br />

mesmo vagos, devido à passagem do tempo, possam de alguma forma ser resgatados. Porém,<br />

o resgate identitário não ocorre exatamente como o indivíduo idealiza, em razão de todas as<br />

influências culturais, devido ao deslocamento.<br />

269 OLINTO, 2007, p. 347.<br />

270 Ibidem, p. 215.


Cada lugar possui uma história que lhe é muito peculiar. Quem se desloca, precisa<br />

abandonar os laços tecidos com esse lugar, e as lembranças tornam-se, por vezes, sinônimo de<br />

saudade. Numa conversa com seu Haddad, um libanês vizinho de sua loja em Zorei, Mariana<br />

fala do Brasil:<br />

104<br />

Também ela há quarenta anos, ou quase, não ia ao Brasil, agora sentia-se africana,<br />

gostava da variedade, de sair de um lugar para outro, de ter uma casa no Daomé,<br />

outra na Nigéria, de lidar com lojas em cidades diferentes, não conseguia pensar em<br />

outra língua que não fosse o português, mas agradava-lhe conversar em inglês e<br />

francês, em ioruba e ewê, mesmo em alemão que há tanto tempo não falava [...] de<br />

repente ouviu-se contando:<br />

- Também não vou ao Brasil há muito tempo. Meu irmão esteve agora lá e voltou<br />

casado com uma brasileira. Moça da Bahia. Cheguei a Lagos com treze anos.<br />

Viajamos num veleiro chamado Esperança, demoramos seis meses no mar.<br />

- Você se lembra da viagem?<br />

- Como se fosse hoje. Me lembro do céu e da noite, com muita estrela, me lembro<br />

das pessoas que morreram, me lembro do cheiro do navio 271 .<br />

Ela manifesta um vago desejo de voltar ao Brasil. Porém, sente-se bem adaptada aos<br />

costumes africanos, procurando pela sua própria memória, de quem observa, reconstruir a<br />

experiência para aqueles que não conhecem. Tempos depois, Mariana reafirma a sua posição<br />

com relação à África, por ocasião da prisão do filho Sebastian, em plena campanha pela<br />

independência de Zorei:<br />

271 OLINTO, 2007, p. 271.<br />

272 Ibidem, p. 328.<br />

Mariana quase não falou, quando todos se retiraram entrou no quarto, esperou que o<br />

silêncio caísse sobre as coisas, depois saiu, atravessou a cidade quieta, sentou-se<br />

num banco da praça que ficava em frente à prisão, botou as mãos no colo e deixou<br />

que o tempo passasse, começou a pensar no que ouvira, a independência, muitos<br />

haviam achado que Sebastian se precipitara, ainda não era hora disso, os mais jovens<br />

tinham concordado com o filho, quanto mais cedo melhor, Mariana se sentiu ligada<br />

àquele chão, estava na África há tempo suficiente para saber que suas imagens eram<br />

daquelas terras, tornara-se africana antes de tudo, tanto de Lagos como da Casa da<br />

Água e de Aduni, não via muita diferença entre esses lugares, aqui, porém, onde o<br />

filho mais próximo, o último, o que sempre lhe dera uma sensação de segurança, o<br />

que tinha o nome do marido, o que nascera depois da morte do pai, era onde ele<br />

trabalhava e morava, onde fora preso, como podia ser na Casa da Água ou em<br />

Lagos, na independência nunca pensara com atenção, talvez por se ter sempre<br />

achado independente e nunca se haver sentido dependente de ingleses, alemães ou<br />

franceses. Pouco falara com eles, só se sentira dependente na ocasião em que os<br />

ingleses haviam exigido que todos os brasileiros de Lagos falassem inglês, e durante<br />

a guerra entre os franceses do Daomé e os alemães de Zorei, mas o filho tinha razão,<br />

chegara o tempo de cada região tratar de seus próprios assuntos, lembrou-se de que<br />

era uma proprietária importante em três lugares da África, sua opinião teria de pesar,<br />

[...] 272


As palavras da protagonista revelam a coragem e o espírito de independência de<br />

Mariana. Aqui, a protagonista revela o sentimento de pertencimento à África e o engajamento<br />

na cultura desse espaço. A mulher-mãe, na ânsia de cumprir com seu papel, transpõe os<br />

obstáculos que ora se apresentam, ignorando-os ou enfrentando-os. Além disso, demonstra os<br />

laços que a ligam ao filho, que esteve sempre com ela, diferente dos outros dois, Joseph e<br />

Ainá, que, por conta dos deslocamentos de Mariana, ficaram aos cuidados da avó Epifânia.<br />

Segundo Clifford, que reflete sobre a diáspora, as relações que se estabelecem no<br />

espaço atual podem ser tão importantes quanto aquelas que são formadas pelo binômio<br />

origem/retorno. E uma história compartilhada, contínua de deslocamento, sofrimento,<br />

adaptação ou resistência pode ser tão importante quanto à projeção de uma origem<br />

específica. 273 Assim é a história de Mariana na África: estabelece elos com sua comunidade<br />

presente, o que fez com que sua relação com a África se tornasse tão forte como era a relação<br />

que a avó Catarina manteve com esse continente, por meio da memória, durante o tempo em<br />

que viveu no Brasil.<br />

Outras lembranças do passado brasileiro, também, povoam o pensamento de Mariana,<br />

agora na ocasião da morte do filho Sebastian:<br />

105<br />

Mariana entrou no quarto, abriu o baú, ficou um minuto olhando os desenhos da<br />

tampa, reviu a avó comprando o baú na Bahia, passou as mãos pelos lençóis de<br />

dentro, pegou nos tecidos um por um, tirou um lençol que nunca fora usado, que<br />

saíra da Bahia quase sessenta e oito anos antes, sua brancura tinha tons de amareloclaro,<br />

levou-o para a sala, pediu a Antônio, Joseph e Ainá que a ajudassem a erguer<br />

o corpo do filho, pôs o lençol por baixo e depois cobriu o rosto de Sebastian com<br />

ele 274 .<br />

A referência a um espaço pode significar as expressões mais imediatas e concretas da<br />

realidade vivida, além de conter aspectos significativos relacionados aos valores, sentimentos,<br />

perspectivas que rodeiam a vida das pessoas. Essa realidade faz com que Mariana, ao buscar o<br />

lençol, dentro do baú, transporte seus referenciais junto ao espaço brasileiro, num tentativa de<br />

fuga da realidade, que ora se apresenta. Os momentos vividos se fazem presentes por meio<br />

das memórias guardadas e representadas no baú, que atravessou o Atlântico, na companhia de<br />

brasileiros em busca de um continente idealizado.<br />

Mariana já havia perdido muitas pessoas. Além da avó, da mãe, de outros parentes e<br />

conhecidos, perdeu a nora Segui, durante o parto da neta, que é chamada, também, de<br />

Mariana. A neta ficou sob seus cuidados, pois Sebastian, na época, não conseguia cuidar<br />

273 CLIFFORD, 1994, p. 306.<br />

274 OLINTO, 2007, p. 384.


sozinho da menina, pela fragilidade do momento e pelas obrigações do cargo que ocupava.<br />

Assim, oito anos depois, Mariana, diante do filho morto, faz, novamente, um retorno ao<br />

passado, através das memórias, na ânsia de encontrar forças para amenizar a dor da perda:<br />

106<br />

Mariana segurou a menina, apertou-a com força, pegou num punhado de areia,<br />

jogou-a sobre a bandeira que cobria o morto, de repente soltou um berro, não foi<br />

choro, que nunca chorara, mas berro, ó berro que atravessou o areal, que chegou à<br />

Casa da Água, que fez tremerem as pessoas, ó berro que segurou aquele momento<br />

num único som, ó berro vindo do Piau, da Bahia, do mar sem vento, das mortes em<br />

alto-mar, do sangue da menina que virava mulher, do poço arrancado da terra, ó<br />

berro que vinha do umbigo, da barriga, dos intestinos, e subia por todo o corpo antes<br />

de sair pela boca, ó berro que era berro de velha e de criança, ó berro que era berro,<br />

só berro, ó berro. 275<br />

É nessa situação que a protagonista, brasileira, descendente de africanos, que, há quase<br />

setenta anos, viaja à África pela vontade da avó Catarina, após a morte do filho sente<br />

necessidade de rememorar o passado. As imagens chegam pela importância que a elas foi<br />

conferida, numa conexão entre o passado e o presente, como forma de reter as vivências e<br />

prolongá-las no presente, como uma válvula de escape da realidade, que se mostra tão cruel:<br />

uma mãe enterrando o próprio filho. Quando, na verdade, o que deveria ocorrer é o contrário:<br />

filhos enterrarem os pais, depois de esses ter cumprido a missão na vida. Mas o filho de<br />

Mariana, assim como o próprio pai, morre jovem, tem a vida abreviada, por isso não há o que<br />

celebrar, comemorar, somente lamentar.<br />

Apesar de ter mantido um intenso contato com as pessoas no Brasil em seus negócios,<br />

Mariana nunca deixa a África. Por outro lado, também, nunca esquece o Brasil. Quem refaz o<br />

caminho de volta é a neta, Mariana, filha de Sebastian, muitos anos depois, no terceiro livro<br />

da trilogia Alma da África. Ela filma e fotografa todos os lugares que conhece pelas histórias<br />

da avó que, naturalmente, sente imensa alegria em reconhecer o cenário de sua infância.<br />

Porém, a consciência a respeito do que viveu na África reporta Mariana ao seu presente,<br />

afirmando-lhe os elos com o espaço em que escolheu viver, e com a posição identitária<br />

construída tanto a partir da vivência africana como da memória do Brasil de sua infância.<br />

3.4 Os descendentes de Mariana: a quarta geração<br />

O ser humano é capaz de criar e transformar tudo o que o circunda, construindo sua<br />

vida, moldando seu comportamento e estabelecendo, assim, seu processo identitário. Nesse<br />

275 OLINTO, 2007, p. 386.


contexto, posições, atitudes são assumidas diante do grupo, procurando no convívio com o<br />

outro, na relação social e na troca de experiências formarem uma identidade, que não pode<br />

mais ser considerada fixa e imutável, posto que os deslocamentos e o intercâmbio cultural<br />

encarreguem-se de modificar as relações entre os indivíduos.<br />

Na obra A casa água, os filhos da protagonista, Joseph, Ainá e Sebastian, convivem<br />

desde cedo com a pluralidade de culturas, em razão dos deslocamentos de pessoas entre os<br />

lugares onde transitam: Nigéria, Benin, Zorei, Alemanha, Inglaterra, França. Costumes<br />

africanos, próprios da Nigéria, Benin e do fictício Zorei, coexistem com as tradições<br />

brasileiras, mantidas pelos ex-escravos e seus descendentes que retornam à África, depois do<br />

fim da escravidão. Já os costumes estrangeiros são, de certa forma, impostos em função do<br />

processo colonizatório. Para os habitantes da Nigéria, a metrópole é a Inglaterra; já em Benim<br />

e Zorei, a colonização é feita por franceses e alemães.<br />

Joseph, o filho mais velho, nasce em uma época em que as condições financeiras da<br />

família não são muito boas. Nesse dia, Mariana chama a mãe Epifânia e diz: “Meu próximo<br />

filho não vai nascer em esteira. Vai nascer em cama”. 276 A esteira representa o local onde,<br />

tradicionalmente, os negros dormiam; faz parte da cultura do povo africano. Quando Mariana<br />

pensa em substituí-la por uma cama, demonstra a interação com outras culturas e a<br />

diversidade dos componentes culturais, na comunidade da qual faz parte. Evidencia, ainda, as<br />

influências da colonização inglesa, que estão sendo assimiladas pelo povo nigeriano, bem<br />

como as memórias do Brasil, renascendo nos brasileiros que fizeram a viagem à África.<br />

As lembranças do espaço brasileiro se justificam, pois, no começo da obra, por ocasião<br />

da enchente, tem-se a imagem de Mariana sendo arrancada da cama. Nesse contexto, ela<br />

deseja recuperar esse referencial, trazendo para a realidade a memória do passado, além de<br />

preocupar-se com o conforto da família. Ainá, a segunda filha, nasce em uma cama, conforme<br />

previu Mariana, que, após ter dado muitas aulas particulares, consegue o dinheiro para<br />

adquiri-la. A menina herda o nome africano da bisavó, como uma afirmação da ligação com a<br />

terra africana. Segundo Fábio Leite, o nome revela as “características mais significativas, que<br />

permitem a identificação profunda da essência natural e social do indivíduo”. 277 Além da<br />

identificação formal, é um atributo que estabelece relações significativas entre o sujeito e a<br />

sociedade, sob todos os aspectos, a partir dos valores propostos por ela.<br />

276 OLINTO, 2007, p. 119.<br />

277 LEITE, 2008, p. 69.<br />

107


Posterior à morte do marido de Mariana, nasce o terceiro filho da protagonista:<br />

Sebastian. 278 O menino, diferentemente dos irmãos, que nasceram em casa, na cidade de<br />

Lagos, nasce num hospital, em Aduni, capital de Zorei. Verifica-se então a evolução social da<br />

protagonista, nas condições de nascimento de cada filho: Joseph - esteira, Ainá – cama,<br />

Sebastian – hospital, ao mesmo tempo em que se constata a aceitação dos costumes<br />

estrangeiros.<br />

Joseph, Ainá e Sebastian fazem parte da quarta geração da família, que tem<br />

ascendência africana e brasileira: são bisnetos de uma africana, netos e filhos de brasileiras.<br />

Os dois mais velhos nascem na Nigéria, e o mais novo em Zorei. Assimilam a cultura dos<br />

países que colonizam sua região e acabam estudando, na Europa, nesses mesmos países.<br />

Mesmo morando muitos anos fora da África, eles nunca esquecem as tradições africanas nem<br />

as brasileiras, conservadas e transmitidas pela própria Mariana, como as festas religiosas e as<br />

comemorações. Uma delas é a cerimônia do nome do irmão mais novo, que os filhos mais<br />

velhos da protagonista presenciam:<br />

108<br />

A cerimônia do nome se realizou no mesmo dia. Alguns convidados na sala, Joseph<br />

e Ainá sentados no chão, Epifânia arrumando cadeiras e puxando a mesa, Maria<br />

Gorda, Abigail, D. Zezé, Seu Machado, Seu Alexandre, João das Tábuas, Jerônimo,<br />

quando seu Justino e a mulher chegaram Mariana foi lá dentro e trouxe uma pequena<br />

bacia cheia de água, colocou-a sobre a mesa do centro, Epifânia surgiu com uma<br />

bandeja sobre a qual estavam três pires, um com sal, o segundo com mel e o terceiro<br />

com azeite de dendê. Seu Justino pegou no menino, Mariana sentou-se ao lado dele,<br />

o homem mais velho pôs um dedo na água, molhou com ela os lábios de Sebastian,<br />

dizendo:<br />

- A água é a base de tudo, é a coisa mais importante do mundo, que a vida do<br />

menino seja calma e serena como a água.<br />

Pegou um punhado de sal, passou-a na boca do neto:<br />

- O sal limpa as coisas, que o menino seja limpo e justo.<br />

Apanhou um pouco de mel, esfregou-o nos lábios agora abertos:<br />

- O mel adoça a vida. Que o menino tenha uma vida cheia de doçura e de alegria.<br />

Mergulhou os dedos no azeite dendê:<br />

- O óleo da palmeira é sinal do que comemos. Que durante toda a sua vida o menino<br />

tenha sempre o que comer e que nisto sinta alegria.<br />

Seu Justino fez uma pausa, antes de acrescentar:<br />

- Tu és Sebastian.<br />

Em seguida, cada um que estava na sala, a começar por Seu Justino e Mariana, pôs<br />

na boca, sucessivamente, água, sal, mel e óleo, na hora em que o fazia Mariana<br />

olhou para Sebastian que estava com os olhos pousados na roupa do avô, Joseph e<br />

Ainá foram trazidos por Epifânia até a mesa, participaram também da cerimônia,<br />

depois ficaram contemplando a cara do irmão menor [...] 279<br />

Observa-se, aqui, a importância de certos elementos na cultura africana, mostrando<br />

que a população, mesmo sob o regime do colonizador, tenta conservar costumes. Em Lagos,<br />

278 O marido da protagonista e o filho mais novo chamam-se Sebastian.<br />

279 OLINTO, 2007, p. 173-174.


espaço onde se passa a maior parte da história da obra A casa da água, constata-se a<br />

interferência inglesa na sociedade e, principalmente, na vida de Joseph e Ainá, que moram<br />

nesse lugar, na companhia da avó Epifânia, quando Mariana está na segunda Casa da Água,<br />

em Daomé. Isso se verifica, no momento em que a protagonista pensa no nome do primeiro<br />

filho: Mariana lembra-se de José, por causa de Padre José, com quem conviveu na Bahia.<br />

Porém, o esposo sugere que seja Joseph, já que o menino “vai viver no mundo dos ingleses, é<br />

melhor ficar logo com nome inglês”. 280 Observa-se, também, o domínio inglês nos nomes das<br />

ruas do bairro, onde a família afro-brasileira reside, nos negócios e na linguagem falada:<br />

[...] Mariana perguntou se os dois já sabiam ler, Epifânia explicou:<br />

- Joseph já sabe, mas é muito preguiçoso.<br />

- Que língua ele lê?<br />

- Português e inglês. 281<br />

Essa situação reflete a pluralidade cultural presente no espaço africano, bem como a<br />

ruptura de algumas tradições, a assimilação de outras e a rememoração do acontecido,<br />

evidências da construção de uma identidade cultural híbrida. A memória brasileira, sendo<br />

valorizada, remete o indivíduo ao passado. No entanto, as influências do espaço presente<br />

acabam se sobrepondo:<br />

109<br />

- Quando meu menino ficar maior vai estudar português, mas acho que os meninos<br />

devem estudar inglês também. Eles vão precisar disso para arranjar empregos e lidar<br />

com os ingleses.<br />

Zezé opinou:<br />

- Inglês, eles aprendem conversando com os ingleses e fazendo negócios com eles.<br />

Não é preciso estudar.<br />

- Conversar não basta. 282<br />

Mariana percebe que é necessário preparar-se para conviver com os estrangeiros. A<br />

protagonista não sente de modo profundo a dominação cultural estrangeira, como ela mesma<br />

revela, por ocasião da prisão do filho mais novo, que nunca pensou na independência, pois<br />

nunca se sentiu dependente dos colonizadores. 283 Os filhos crescem imersos na cultura<br />

africana, conhecendo os referenciais brasileiros e aderindo às influências da cultura<br />

estrangeira.<br />

Ao deslocar-se por diferentes territórios como Nigéria, Togo, Benin e Zorei, na<br />

companhia do pequeno Sebastian, Mariana faz com que o menino passe a agregar referenciais<br />

280 OLINTO, 2007, p. 120.<br />

281 Ibidem, p. 174.<br />

282 Ibidem, p. 123.<br />

283 Ibidem, p. 327.


de cada um desses lugares, o que se reflete primeiramente na aquisição de outras línguas.<br />

Assim, o filho começa a pronunciar as primeiras palavras em alemão e francês.<br />

Sebastian é o filho que mais convive com a mãe. Por ser o menor e ter nascido em<br />

uma época em que a protagonista explora novos espaços e expande os negócios, o menino<br />

está sempre em sua companhia. Quando ele está em idade para estudar no estrangeiro,<br />

Mariana decide enviá-lo à França, de forma análoga à decisão anterior de enviar Joseph e<br />

Ainá à Inglaterra.<br />

A deliberação de os filhos estudarem em lugares distintos é tomada mediante<br />

indicações de um senhor que faz previsões para o futuro, a partir do rosário de Ifá. 284 Segundo<br />

ele, os três filhos de Mariana são a mesma coisa, filhos dos mesmos pais, educados da mesma<br />

forma, porém, não se misturam e devem seguir caminhos diferentes: Joseph e Ainá estudam<br />

em Londres. Nasceram em Lagos, que é colonizada pelos ingleses; Sebastian, tendo nascido<br />

em Zorei, colonizado por alemães e franceses, estuda na França.<br />

Vivendo em Londres, em uma das cartas que Joseph envia à mãe, o rapaz menciona<br />

algumas diferenças culturais entre Nigéria e Inglaterra:<br />

110<br />

Mamãe. A bênção. Aqui vai tudo bem. Comecei o terceiro ano de direito e achei as<br />

matérias relativamente fáceis. Há uma diferença entre as leis inglesas e a lei<br />

tradicional das raças que formam a Nigéria de hoje. Acho que um advogado africano<br />

deverá preocupar-se com esse problema que será cada vez mais importante para nós.<br />

Como conciliar, por exemplo, os casamentos poligâmicos ainda permitidos em<br />

certas regiões da Nigéria com o sistema de monogamia da Inglaterra? O dinheiro<br />

não tem dado muito, mas estou recebendo ajuda de um organismo inglês. Tenho<br />

visto Ainá quase todas as semanas. Ela vai bem. Lembranças e abraços para vovó e<br />

toda a família. Joseph. 285<br />

A comparação entre as culturas é inevitável. A exposição à diversidade cultural faz<br />

com que as diferenças emerjam. Nessa situação, o indivíduo hibridizado é influenciado pelos<br />

referenciais que se mostram mais presentes em sua realidade. Nesse caso, Joseph, assim como<br />

os outros filhos, volta-se mais à cultura estrangeira.<br />

festa:<br />

Joseph é o primeiro a retornar à África. Formado em Advocacia é saudado com uma<br />

[...] primeiro havia a bênção de ação de graças na igreja, Padre O'Toole, que se<br />

achava em Lagos desde o último Natal, jogou água benta sobre cada um, a mesa da<br />

comunhão ficou cheia de gente, todos acompanhavam o canto tirado por Maria<br />

284 OLINTO, 2007, p. 188. Ifá é o deus da previsão do futuro. O adivinho jogava ao chão uma bandeja especial e,<br />

através da posição de cada peça do rosário de Ifá, que tem dezesseis peças, e da combinação das posições, tirava<br />

conclusões sobre o futuro, extraindo as respostas.<br />

285 Ibidem, p. 207.


111<br />

Gorda, um raio de sol atravessava o vidro colorido da direita da igreja e ia dar sobre<br />

um santo, Mariana rezou para que o filho fizesse boa carreira, depois da bênção,<br />

Joseph passou minutos na porta da igreja, recebeu abraços, parabéns, viu gente de<br />

que não se lembrava mais, antes de chegar ao sobrado parou na rua para falar com<br />

um grupo de rapazes de longas roupas iorubás, a festa se prolongou pela tarde e pela<br />

noite, num certo momento Mariana puxou com a mão o inglês que acompanhava o<br />

filho na viagem, disse-lhe:<br />

- Vem provar um doce de batata, Adolph.<br />

Joseph achou graça e comentou:<br />

- É bom ir-se acostumando. Todo mundo vai chamá-lo pelo primeiro nome. É a<br />

moda brasileira. Você passa a ser de agora em diante só Adolph. Pode até esquecer o<br />

Twelvetrees. 286<br />

A festa reflete a mistura de costumes. Esses sujeitos africanos hibridizados, quando<br />

realizam suas comemorações, fazem uso de tradições tanto da África, onde vivem, quanto do<br />

Brasil, onde viveram sua avó Epifânia e sua mãe Mariana. Além desses dois espaços, inclui-se<br />

a cultura dos países que colonizaram a África: Inglaterra, França, Alemanha, dentre outros.<br />

Esse intercâmbio cultural demonstra a pluralidade sociocultural desses lugares.<br />

Reconhecer as diferenças culturais é a forma de apreender as práticas culturais e os<br />

valores de procedência estrangeira que ajudam a constituir o espaço africano, estreitando as<br />

fronteiras culturais entre esses países. Mais tarde, formada em Medicina, Ainá também é<br />

recebida com homenagens: a bênção na igreja, a festa no sobrado, os abraços, as conversas,<br />

exatamente como a festa para Joseph. No sobrado, em Lagos, a jovem médica olha pela janela<br />

e diz: “- Quantas vezes vi na memória cada pedaço dessa rua! Ainda bem que está tudo na<br />

mesma”. 287<br />

A sensação de voltar a um lugar e diante dos objetos de outrora, ou das construções,<br />

haver o reconhecimento, é chamada, por Bergson, de reconhecimento de imagens. Para o<br />

teórico, reconhecer por imagens “é ligar a imagem (vista ou evocada) de um objeto a outras<br />

imagens que formam com elas um conjunto e uma espécie de quadro, é reencontrar as<br />

ligações desse objeto com outros que podem ser também pensamentos ou sentimentos”. 288<br />

Essa sensação de Ainá se explica pelo fato de ela manter laços com esse espaço, que,<br />

desde sempre, faz parte de seu cotidiano, e lhe desperta sensações, saudades de um tempo<br />

vivido. No momento em que há o contato físico com esse ambiente, mesmo temporariamente,<br />

as lembranças são despertadas e o tempo parece imóvel. A impressão é de que é possível<br />

voltar o tempo e reviver as mesmas emoções, pois a lembranças das imagens ficaram<br />

guardadas. No entanto, o tempo cronológico não volta. O que retorna são as recordações.<br />

286 OLINTO, 2007, p. 223.<br />

287 Ibidem, p. 278.<br />

288 HALBWACHS, 2006, p. 55.


Segundo Halbwachs, o grau de dificuldade está na particularidade de cada lembrança.<br />

Se for coletiva, o grupo contribui no resgate dessas memórias. Todavia, as individuais,<br />

vivenciadas somente pelo indivíduo, num outro grupo, parece resistirem à evocação. Isso<br />

acontece, pois somente ele participa, em outra comunidade. Essa rememoração é pessoal,<br />

reflete o passado de uma visão particular e não pode ser apoiada pela memória coletiva. 289<br />

Joseph, Ainá e Sebastian, enquanto habitantes do espaço estrangeiro, rememoram a<br />

terra em que nasceram. Por outro lado, quando de volta a Lagos, a realidade é que os demais<br />

habitantes, em sua grande parte, não vivenciaram a Europa. Portanto, as memórias do tempo<br />

vivido na metrópole só podem se tornar visíveis a partir de sua própria evocação, sem a ajuda<br />

da comunidade africana. Nisso diferem das recordações no espaço africano, em que o grupo, a<br />

todo o momento faz, consciente ou não, com que a rememoração aconteça, quer seja através<br />

dos costumes diários, como por meio de roupas, paisagens, construções, rituais religiosos,<br />

gestos e movimentos.<br />

Os três filhos de Mariana retornam com ideias bem distintas. Joseph parece não ter<br />

encontrado suas raízes africanas, na volta a Lagos, e demora a se estabilizar, trabalhar e<br />

constituir uma família. Somente mais tarde, casa-se com Ana, devido à persistência da moça e<br />

de Mariana, que argumenta: “Ouça uma coisa, Ana: os homens têm mais medo da gente do<br />

que nós deles. Não espere que ele convide. Dê a entender a ele que você quer ir”. 290 Mais uma<br />

vez, enfatiza-se a grande força do matriarcado no espaço africano, provando que a mulher,<br />

realmente, é quem conduz o destino da família e se impõe, quando necessário.<br />

A filha Ainá, decidida como a mãe Mariana, começa a realizar um trabalho como<br />

médica no setor de pediatria de Lagos, que a torna conhecida, em pouco tempo, na região. A<br />

princípio não pensa em casar-se, conforme responde à mãe:<br />

112<br />

- De modo algum. Tenho de trabalhar, isto, sim. Só se aparecer um homem<br />

excepcional, mas não aparece. Na Inglaterra, homem comum tinha complexo<br />

comigo, achava que eu era muito avançada. Todos os meus namoros deram em nada.<br />

- Aqui é diferente. Africano gosta de mulher importante. 291<br />

Pelas palavras de Ainá, no continente europeu, os costumes da população não são<br />

semelhantes aos da África, pelo menos no que se refere à posição da mulher na família. A<br />

mulher não tem os mesmos princípios e as mesmas responsabilidades que tem na África. Os<br />

289 HALBWACHS, 2006, p. 66-67.<br />

290 OLINTO, 2007, p. 247.<br />

291 Ibidem, p. 278.


homens europeus têm medo de ser conduzidos por uma mulher. Já o africano, não. Para ele,<br />

uma mulher decidida, com objetivos definidos é motivo de orgulho.<br />

A atitude de Ainá, com relação ao casamento, revela a assimilação da cultura<br />

estrangeira, porque na África, as mulheres casam cedo. O casamento tem por objetivo<br />

principal a maternidade. Por outro lado, demonstra, também, o intercâmbio entre as culturas,<br />

na decisão de trabalhar e construir sua identidade como profissional, antes de construir a sua<br />

própria família, o que, na Nigéria não é comum. A própria mãe, Mariana, casou-se cedo e,<br />

logo em seguida, vieram os filhos.<br />

As comemorações acontecem sempre que algo bom acontece. A volta de Sebastian, da<br />

França, também é bastante festejada. Muita comida e bebida, dentre elas vinho-de-palmeira,<br />

costume típico da região onde Mariana vive, uísque, vinho francês e português, cerveja, além<br />

da cachaça trazida por um navio brasileiro. Também, o bumba meu boi, tradição herdada dos<br />

brasileiros e os orixás dos africanos tomam parte da festa. A diversidade cultural, mais uma<br />

vez, demonstra sua força e interferência, nessa comunidade, que procura compartilhar<br />

ideologias e convenções sociais, numa festa híbrida.<br />

Sebastian prepara-se para ser professor. Com ideais revolucionários, ele preocupa-se<br />

com o destino da África. Torna-se um líder político, presidente de Zorei, e empreende uma<br />

luta em prol da independência do país. Sebastian herda da mãe a coragem de lutar e transpor<br />

obstáculos, diferente dos homens africanos, com quem convive, os quais se costumam a ser<br />

chefiados por uma mulher. Destaca-se pela força e pelo espírito de liderança política<br />

aprendidos com a mãe, em razão da forte convivência com ela.<br />

Com o tempo, Ainá resolve se casar com um advogado iorubano. Alguém que, assim<br />

como ela, também estuda na Europa, mas conserva referenciais da terra natal. Essa atitude<br />

evidencia um apego às raízes, pois tendo convivido com uma variedade cultural enorme, ela<br />

procura em um igual a sua realização pessoal, demonstrando um retorno aos referenciais<br />

africanos. Em outros termos, o contato com a pluralidade cultural transforma Ainá, mas, no<br />

contato com as raízes, os referenciais do passado africano se sobrepõem, já que voltam a fazer<br />

parte da sua realidade.<br />

No decorrer da obra A casa da Água, o trânsito entre a África e a Europa feito por<br />

Joseph, Ainá e Sebastian não constitui uma separação completa, visto que a comunicação é<br />

mantida, através de cartas, e, tanto a ida como a volta são realizadas por vontade própria.<br />

Diferente da época da escravidão, quando a bisavó Catarina foi enviada ao Brasil sem<br />

perspectiva de retorno.<br />

113


De acordo com Mekada Grahan, a filosofia africana engloba um sistema baseado em<br />

valores e normas que são reforçadas por rituais, músicas, danças, contos, provérbios e<br />

metáforas, os quais são postos em prática na criação familiar e educação infantil, nos ritos de<br />

passagem, nas cerimônias de nome, nos nascimentos, nas mortes. A visão africana considera<br />

alguns princípios, dentre eles, a natureza coletiva e individual da identidade na estrutura<br />

familiar. 292<br />

Ainda de acordo com o autor, a natureza coletiva da identidade é expressa no seguinte<br />

provérbio: “I am because we are and because we are therefore I am”. 293 A frase revela o<br />

sentido de pertencimento ao coletivo como parte de um todo. Nesse contexto, insere-se a<br />

família, com a valorização dos parentes biológicos. Na obra A casa da água, Mariana é a<br />

referência para seu grupo e para os filhos, que se constroem como sujeitos a partir do que a<br />

mãe se torna para eles. Assim, todas as atitudes são tomadas com o conhecimento e a opinião<br />

da mãe. O elo que une essa família não se desfaz, pois sempre estão por perto, quando é<br />

necessário.<br />

Há um senso de família ampliada; percebe-se continuidade de Mariana nos filhos, que<br />

a tem como referência, e na neta Mariana, 294 que ela cuida depois da morte da nora, Segui.<br />

Enfim, todos os descendentes da protagonista mantêm um espírito de interação e de<br />

convivência, seja através das relações pessoais ou profissionais.<br />

Quanto a Sebastian, depois de oito anos após a independência de seu país, morre<br />

assassinado, devido a um golpe de estado, deixando a herança para a filha, que mais tarde<br />

continuaria a missão do pai, elegendo-se presidente de Zorei. 295 Ainá, casada, com filho,<br />

continua desenvolvendo seu trabalho como médica, na região em que vive. Joseph,<br />

trabalhando nos negócios da mãe, aumenta sua família, ao lado de Ana, com a chegada dos<br />

filhos.<br />

Os descendentes de Mariana, mesmo seguindo por diferentes caminhos, sempre<br />

estiveram ligados às raízes africanas, herdadas da mãe. Mesmo expostos a uma diversidade<br />

cultural enorme, conservam os referenciais identitários de seus espaços de procedência,<br />

demonstrando que os laços construídos com uma comunidade podem ser preservados, porém<br />

não de forma inalterável. Na verdade, o que ocorre é a retenção das lembranças, que por força<br />

292 GRAHAN, Mekada. African-centred Social Work: Concretising Ethical Principles of Equality and Social<br />

Justice for a New Millenium. In: CHRISTIAN, Mark. Black Identity in the 20 th Century. Great Britain: Hansib<br />

Publications, 2002, p. 137.<br />

293 Ibidem, p. 149. Tradução da autora: Eu sou porque nós somos e porque nós somos eu sou.<br />

294 A filha de Sebastian, filho mais novo de Mariana, recebeu, também, o nome de Mariana.<br />

295 A trajetória de Mariana, filha de Sebastian, é contada no terceiro livro da trilogia “Alma da África”, intitulado<br />

Trono de Vidro.<br />

114


e apelo do momento ressurgem, de modo aleatório. Essa rememoração dos fatos vivenciados<br />

possibilita o entendimento de situações do passado, as quais, mesmo limitadas e influenciadas<br />

por emoções e sentimentos, permitem resgatar aspectos de sua história e de sua comunidade,<br />

e, consequentemente, (re)construir seu posicionamento identitário.<br />

115


CAMINHOS PERCORRIDOS, TRILHAS EM ABERTO<br />

116<br />

Sabemos, no entanto, que a memória vence o<br />

tempo. A memória é o antitempo, o remédio para<br />

as fissuras do tempo, e só na memória palpita uma<br />

possível imortalidade.<br />

Antonio Olinto<br />

A epígrafe é expressiva para a análise de A casa da água, do escritor mineiro Antonio<br />

Olinto, tendo em vista que trata da temática da memória, tão presente nessa obra. A memória<br />

é o meio de (re)construção da identidade do africano diaspórico, que retorna à Nigéria; e do<br />

afro-brasileiro, seu descendente, que o acompanha nessa volta.<br />

A memória, como capacidade de lembrar e evocar o passado, faz com que as<br />

recordações individuais aconteçam, apoiadas nas lembranças de sua comunidade. Assim, no<br />

romance, a memória do Brasil passa a ter uma relação com os fatos que constituem o passado<br />

individual da personagem Mariana, fazendo com que ela assuma um posicionamento diante<br />

do grupo, primeiro na Nigéria, depois em Daomé e Zorei. Por essa razão, Mariana está sempre<br />

negociando a partir de uma série de posições diferentes, cada uma com sua profunda<br />

identificação subjetiva.<br />

A memória associa-se à sensação de pertencimento a um mundo que constitui a<br />

protagonista como sujeito e que deve ser preservado. Recordar é a condição da inclusão da<br />

personagem no espaço e no tempo, mantendo ligação com a tradição e com as experiências, o<br />

que revela a hibridização. Como o tempo não volta e não recupera os fatos vividos, Mariana<br />

necessita desenvolver laços de adaptação aos territórios, onde se insere. Caso contrário, a vida<br />

perde o sentido, como aconteceu com Catarina, quando percebe não haver a recuperação do<br />

espaço idealizado pela sua memória.<br />

A interação com o espaço e a convivência com a comunidade oferecem a possibilidade<br />

de Mariana fixar raízes no território nigeriano. Procura meios de se inserir no lugar, aprender<br />

a língua dos colonizadores ingleses e, mais tarde, franceses e alemães, já em Benin e Zorei. A<br />

protagonista vive a realidade com ajuda das memórias do Brasil e das experiências dos<br />

antepassados, que se apresentam como um referencial para ela, através da partilha de decisões<br />

e das descobertas, bem como nas dificuldades da vida, pois através do contato com o outro,<br />

Mariana vai adquirindo novos posicionamentos identitários.


Em A casa da água, Antonio Olinto produz um romance revelando os valores, os<br />

hábitos, os costumes, as tradições africanas por meio da história de uma família, que transita<br />

em diferentes espaços: no Brasil: Piau, Juiz de Fora, Bahia; na África: Nigéria, Daomé e<br />

Zorei; na Europa: Inglaterra, França, Alemanha. Essas personagens, expostas à diversidade<br />

cultural, acabam agregando referenciais identitários e se hibridizando.<br />

Então, estar em diferentes territórios pode revelar que o entre-lugar é capaz de abrir<br />

caminho à significação de uma cultura, baseada na articulação de um misto de tradições.<br />

Explorar o Terceiro Espaço é o meio de constituir-se, assim como o faz Mariana, que<br />

reconstrói sua posição identitária, já que as identidades devem ser entendidas como estratégias<br />

resultantes de desejos ou interesses de filiação a grupos específicos e, portanto, elas são<br />

sempre passíveis de reestruturação.<br />

Constata-se que Catarina, habitando no espaço brasileiro, passa a conviver com<br />

diferentes culturas, o que acaba influenciando seus hábitos e costumes. Assim, agregando<br />

características desse outro espaço, verifica-se que a identidade cultural não é uma essência<br />

fixa, mas um posicionamento adquirido em função da diáspora. A ex-escrava é a<br />

representação do africano diaspórico, querendo reencontrar suas raízes. Em meio à<br />

diversidade cultural, linguística e religiosa a que está submetida, ainda no Brasil, Catarina<br />

assimila os costumes sem nunca se esquecer de sua história na África. Isso é o que a motiva a<br />

retornar, pensando ser possível o resgate de sua identidade africana.<br />

A exposição de Catarina à diversidade cultural a tornaram um ser híbrido. Por essa<br />

razão, o resgate de sua história africana torna-se mais difícil. Situação diferente é a de<br />

Mariana, sua neta, que aprendeu a cultura africana por vontade, para fixar suas raízes no solo<br />

africano. A protagonista transita por diversos espaços, adquirindo traços culturais das<br />

diferentes culturas a que está em contato. Contudo, mantém viva a memória do Brasil.<br />

Os filhos de Mariana, Joseph, Ainá e Sebastian, morando na Europa, também estão<br />

expostos a uma diversidade cultural, que os hibridiza. Porém, seus referenciais africanos<br />

nunca são deixados de lado. Filhos de uma brasileira, que optou viver naquele continente, eles<br />

nascem na África e, mesmo longe de suas raízes, buscam na companhia dos africanos, os elos<br />

com seu espaço de origem. Por fim, o retorno dos três a sua terra expressa o desejo de<br />

reapropriação de sua história africana.<br />

Assim, as personagens analisadas no romance transitam em um entre-lugar formado<br />

pelas culturas de origem e as adquiridas de forma voluntária ou não. Isso demonstra que tanto<br />

Catarina, quanto Mariana e os filhos constroem sua história a partir dos deslocamentos,<br />

117


assimilando as características de cada espaço, tornando-se um misto de tudo o que vivenciam.<br />

Esse processo de migrações livres e forçadas diversifica as culturas e pluraliza as identidades.<br />

A identidade cultural, como um conjunto vivo de relações, estabelece a comunhão de<br />

determinados valores entre os membros de uma sociedade. Isso faz com que, apoiados nas<br />

lembranças de sua comunidade, as personagens desenvolvam sentimentos de pertencimento e<br />

interação, com os espaços que passam a habitar.<br />

Antonio Olinto escreve um romance que difere da maior parte dos escritos literários<br />

até a primeira metade do século XX. O autor produz A casa da água na década de 60, época<br />

que marcou o início de um discurso voltado à temática negra. Alguns escritores, assim como<br />

Olinto, empenham-se para fazer do texto literário uma produção livre das visões deturpadas<br />

sobre os negros africanos. Para esse escritor, o convívio com o povo africano, durante quase<br />

três anos, foi determinante para criação de um texto sem estereótipos e imagens negativas do<br />

povo africano e afrodescendente.<br />

A análise realizada em A casa da Água, a partir do deslocamento, da memória e da<br />

construção da identidade não se esgota, tendo em vista que uma pesquisa nunca está<br />

terminada. Sempre há o que acrescentar e aprofundar. Assim, muitos caminhos, ainda,<br />

poderão ser trilhados nessa obra, por meio da investigação de vários elementos, como a<br />

linguagem usada pelo autor, que se aproxima da oralidade, pela maneira como é composta; o<br />

narrador, que interrompe a narrativa em terceira pessoa, para colocar-se como personagem; a<br />

diáspora, que compreende a dispersão do povo negro para vários territórios, e o trauma como<br />

consequência; as relações raciais entre os diferentes povos que convivem tanto no Brasil,<br />

quanto na África, mais precisamente na Nigéria e Benin; as relações de gênero e o<br />

homoerotismo; o sincretismo religioso presente nas manifestações culturais da população<br />

negra no Brasil, bem como nos costumes brasileiros, conservados, na África, por esses<br />

habitantes; o matriarcado, que tem na figura da mulher o suporte e a referência da família e da<br />

comunidade; a ancestralidade, como fundamento para as novas gerações africanas, que<br />

buscam a sabedoria e o conhecimento de seus antepassados, por meio da memória.<br />

118


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