Trabalho Completo - URI
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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES<br />
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO<br />
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES<br />
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN<br />
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA<br />
ADRIANA MARIA ROMITTI ALBARELLO<br />
DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE<br />
EM A CASA DA ÁGUA, DE ANTONIO OLINTO<br />
Frederico Westphalen<br />
2011
ADRIANA MARIA ROMITTI ALBARELLO<br />
DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE<br />
EM A CASA DA ÁGUA, DE ANTONIO OLINTO<br />
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado<br />
em Letras como requisito parcial e último à<br />
obtenção do grau de Mestre em Letras da<br />
Universidade Regional Integrada do Alto<br />
Uruguai e das Missões, Campus de Frederico<br />
Westphalen. Área de Concentração:<br />
Literatura.<br />
Frederico Westphalen<br />
Orientadora: Prof. Dr. Denise Almeida Silva<br />
2011
UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES<br />
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO<br />
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES<br />
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN<br />
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA<br />
A Banca Examinadora, abaixo assinada,<br />
aprova a Dissertação de Mestrado<br />
DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE<br />
EM A CASA DA ÁGUA, DE ANTONIO OLINTO<br />
Elaborada por<br />
ADRIANA MARIA ROMITTI ALBARELLO<br />
como requisito parcial para a obtenção do grau de<br />
Mestre em Letras<br />
BANCA EXAMINADORA<br />
_____________________________________________<br />
Profª. Dr. Denise Almeida Silva – <strong>URI</strong><br />
(Presidente/Orientador)<br />
__________________________________________________<br />
Membro Prof. Dr. Uruguay Cortazzo Gonzalez - UFPel<br />
______________________________________________<br />
Membro Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari - <strong>URI</strong><br />
Frederico Westphalen, 29 setembro de 2011.
AGRADECIMENTOS<br />
A Deus, autor da vida e de tudo que existe, por guiar os meus passos, por ser luz na<br />
minha vida e tornar tudo possível.<br />
À professora Denise Almeida Silva, minha orientadora, pelo conhecimento<br />
transmitido, pelas dúvidas esclarecidas, pela amizade, confiança e paciência, por acreditar e<br />
me auxiliar a escolher um caminho, dentre tantos... Meu agradecimento especial.<br />
Aos meus filhos, Luís Felipe e Luísa Helena, meus dois tesouros, minhas alegrias, que,<br />
mesmo sem compreender, tentaram aceitar minhas ausências, em tantos momentos.<br />
Ao meu marido, Julio César, pelo companheirismo, pelo incentivo, pela paciência e<br />
compreensão, pelo carinho, por acreditar em mim, por tudo. Sem seu apoio, eu não teria<br />
conseguido.
RESUMO<br />
A presente pesquisa estuda as relações entre deslocamento, memória e identidade no romance<br />
A casa da água (1969), de autoria do escritor Antonio Olinto. Estudam-se tais relações a<br />
partir da história de vida dos personagens Catarina, Mariana e os filhos, Joseph, Ainá e<br />
Sebastian. A dissertação compõe-se de três capítulos. No primeiro, analisa-se o papel da<br />
memória, individual e coletiva, na construção da identidade, bem como a ligação entre ambas.<br />
Ressalta-se a importância do espaço na construção identitária e o papel do entre-lugar, que se<br />
constitui num lugar de negociação das vivências, o que revela o indivíduo como uma síntese<br />
dos territórios por onde se desloca. O segundo capítulo trata do negro no imaginário<br />
brasileiro, fazendo uma retrospectiva de sua presença no contexto literário, salientando-se o<br />
tratamento estereotipado que caracterizou grande parte dessa literatura até o século XX. A<br />
partir da década de 60, surge a literatura negra, um discurso que compreende a reapropriação<br />
do espaço existencial do negro, demonstrando seu posicionamento nos escritos literários. O<br />
terceiro capítulo ocupa-se do estudo da obra A casa da água, a partir das noções de<br />
deslocamento, memória e identidade. Inicialmente enfoca-se Catarina, personagem cuja<br />
trajetória envolve o deslocamento África/Brasil/África, evidenciando o papel da memória na<br />
formação identitária nesse contexto. Na continuidade, analisa-se, também, a questão do<br />
deslocamento do afro-brasileiro, em direção à África, na figura de Mariana, e sua construção<br />
identitária, naquele continente. Ainda, estuda-se a quarta geração, que compreende os três<br />
filhos de Mariana, ressaltando sua construção híbrida. Finaliza-se, constatando a<br />
impossibilidade de resgatar os posicionamentos identitários, os quais ficam restritos à<br />
memória, visto que a exposição à diversidade cultural, linguística e religiosa hibridiza e<br />
transforma o sujeito.<br />
Palavras-chave: Memória. Identidade Cultural. Entre-lugar. A casa da água. Antonio Olinto.
ABSTRACT<br />
This research studies the relationship between displacement, memory and identity in Antonio<br />
Olinto´s novel A casa da água (1969). The thesis is divided in three chapters. In the first, the<br />
role of individual and collective memory, identity construction, as well as the connection<br />
between them are studied. The importance of space in identity construction, and the role of<br />
“in-between” spaces as places where experiences are negotiated are emphasized so as to focus<br />
the individual as the synthesis of the territories in which he/she circulates. The second chapter<br />
deals with the image of the Negro in Brazilian imaginary; a retrospective evaluation of such<br />
presence in the literary context is offered, pointing out the stereotypical treatment that is given<br />
to the Negro in much of this literature, from the colonial period. A Brazilian Negro literature<br />
appears in the sixties, characterized by a discourse that seeks the re-appropriation of black<br />
existential space, showing the peculiar placement and vision of this ethnical group. The third<br />
chapter studies A casa da água, applying the notions of displacement, memory and identity to<br />
textual study. Catarina, character whose life involves the displacement Africa/Brazil/Africa is<br />
first analyzed; the role of memory in the different phases of her life is considered. Then,<br />
afrodescendent´s displacement to Africa is focused through the life of another character,<br />
Mariana; her identitary construction in “in-between” spaces is considered. The fourth<br />
generation of the family- Mariana´s three children- is analyzed next, showing their hybrid<br />
formation. Data analysis allows one to exemplify the impossibility of recovering past<br />
identitary positions, which can only be relived through memory, because cultural, linguistic<br />
and religious diversity has – in the case of these characters– hybridized the subject,<br />
transforming her/him.<br />
Keywords: Memory. Cultural Identity. “In-between” space. A casa da água. Antonio Olinto.
SUMÁRIO<br />
ITINERÁRIO ........................................................................................................................... 8<br />
1 DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE ........................................................ 13<br />
1.1 A relação entre memória individual e coletiva .............................................................. 14<br />
1.2 Referenciais identitários................................................................................................... 17<br />
1.3 Deslocamento: o espaço na (re)construção das identidades ......................................... 19<br />
1.3.1 O entre-lugar a partir das reflexões de Homi Bhabha ..................................................... 21<br />
1.3.2 O conflito identitário no deslocamento de culturas ......................................................... 23<br />
2 O NEGRO NO IMAGINÁRIO LITERÁRIO BRASILEIRO ........................................ 29<br />
2.1 O imaginário sobre o negro: discriminação e preconceito de cor com os<br />
afrodescendentes ..................................................................................................................... 30<br />
2.2 Período colonial ................................................................................................................ 35<br />
2.3 O século XIX ..................................................................................................................... 39<br />
2.4 Século XX .......................................................................................................................... 50<br />
2.5 A literatura afro-brasileira .............................................................................................. 52<br />
3 DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE EM A CASA DA ÁGUA ............... 58<br />
3.1 O negro na literatura de Antonio Olinto: a trilogia Alma da África ........................... 58<br />
3.2 A África no Brasil e o Brasil na África sob o olhar de Catarina .................................. 63<br />
3.3 Brasil-África: o entre-lugar de Mariana ........................................................................ 82<br />
3.3.1 Deslocamento, memória e identidade .............................................................................. 82<br />
3.3.2 A figura materna e o ancestral ......................................................................................... 89<br />
3.3.3 Uma cultura híbrida ......................................................................................................... 95<br />
3.4 Os descendentes de Mariana: a quarta geração .......................................................... 106<br />
CAMINHOS PERCORRIDOS, TRILHAS EM ABERTO .............................................. 116<br />
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 119
ITINERÁRIO<br />
Existimos porque temos memória, porque<br />
a usamos contra o esquecimento.<br />
Antonio Olinto<br />
Lembrar é trazer à memória as lembranças e experiências vivenciadas num espaço,<br />
onde se desenvolvem laços relativos de pertencimento a um determinado grupo social. Esses<br />
laços é que vão reforçar as recordações comuns à memória social. A memória compõe-se das<br />
lembranças que constituem o ser humano a partir de suas vivências, proporcionando a<br />
aquisição de conhecimentos que permitem rever atitudes e transformar a prática.<br />
Enquanto discurso cultural, a literatura se constitui em um espaço privilegiado para a<br />
construção de imagens, conceitos e posições identitárias, bem como a inclusão de ideias e<br />
valores, através da reflexão e da participação, agindo “no sentido de aprofundar, superar e<br />
contribuir para o engendramento de novas contradições sociais”. 1<br />
Valendo-se do texto literário, o presente trabalho tem, como objeto de estudo, o corpus<br />
A casa da água (1969), de Antonio Olinto, primeiro romance da trilogia Alma da África.<br />
Analisa-se o papel da memória na recuperação da história de vida da personagem diaspórica<br />
Catarina e de seus descendentes, Mariana e os filhos Joseph, Ainá e Sebastian. A partir da<br />
abordagem de aspectos referentes ao deslocamento e à (re)construção da identidade cultural,<br />
busca-se compreender o duplo deslocamento do negro, que, tendo sido escravizado, é trazido<br />
ao Brasil, e com o término da escravidão, retorna à África. Esse trânsito é representado pela<br />
personagem africana Catarina, que volta à Nigéria, sua terra natal, agora por vontade própria,<br />
sob o olhar de liberdade.<br />
Na companhia da matriarca, viajam a filha, Epifânia, e os três netos, dentre os quais<br />
Mariana, a protagonista da obra. Além desses elementos, analisam-se referenciais acerca da<br />
cultura tradicional africana, na Nigéria, bem como as influências dessa cultura nos costumes<br />
brasileiros, devido à diversidade cultural presente nos espaços, em que as personagens<br />
analisadas transitam.<br />
1 CUTI. O leitor e o texto afro-brasileiro. s.d. p. 1. Disponível em: . Acesso em: 15 abr.<br />
2011.
Meu interesse pela literatura, enquanto discurso cultural, ampliou-se através dos<br />
estudos e análises textuais desenvolvidos nas disciplinas de Literatura Comparada e Literatura<br />
Marginal, ministradas no segundo semestre de 2009, no Curso de Mestrado em Letras. Esses<br />
estudos facultam conhecimento e informações sobre a importância da memória na<br />
reconstituição de fatos da vida e da história pessoal e coletiva do indivíduo. Por outro lado,<br />
nessas disciplinas, tive contato com outras literaturas, o que me permitiu conhecer algumas<br />
temáticas e investigá-las, como é o caso da identidade negra, com enfoque no território<br />
feminino, tema da obra Ponciá Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo, analisada em um<br />
artigo de conclusão da disciplina de Literatura Marginal, tendo como aspectos abordados a<br />
memória e a identidade.<br />
O estudo despertou meu interesse para investigar a literatura negra e sobre o negro. Ao<br />
ler A casa da água, chamou-me a atenção a trajetória África/Brasil do negro no período<br />
escravagista e, também, o movimento Brasil/África desse africano e de seus descendentes,<br />
que, com o fim da escravidão, conseguem retornar. Por essa razão, escolheu-se essa obra<br />
como corpus de análise dessa pesquisa. Ademais, trata-se de romance ainda pouco estudado:<br />
após exaustiva pesquisa, constatei a existência de quatro livros, uma dissertação e dois<br />
estudos menores sobre Antonio Olinto e sua obra.<br />
A obra foi tema da dissertação intitulada O narrador- intruso e os orikis em A casa<br />
da Água, de Antonio Olinto, de Adelina Maria Alfenas Amorim, pelo Centro de Ensino<br />
Superior de Juiz de Fora – MG. A autora aborda a modificação do discurso narrativo face à<br />
transformação do narrador-intruso em narrador-personagem, além de investigar a linguagem<br />
simbólica dos orikis 2 e sua intertextualidade. Também ressalta o diálogo Brasil x África, no<br />
que se refere à cultura africana no Brasil, a influência dos dialetos africanos e a formação da<br />
identidade cultural brasileira.<br />
Antonio Olinto: o operário da palavra: uma viagem da realidade à ficção (2005), da<br />
jornalista Cláudia de Moraes Sarmento Condé, faz um estudo minucioso sobre a influência do<br />
texto jornalístico na obra de ficção de Olinto. Nesse texto, a autora analisa as semelhanças<br />
entre A casa da água e Brasileiros na África, livro produzido por Olinto a partir de sua<br />
2 O oriki é um gênero poético, oral, tradicional, milenar, oriundo do povo nagô-iorubá. Todo mundo pode ter um:<br />
as plantas, os animais, as pessoas, as cidades, as coisas, os fenômenos naturais, os orixás... O oriki reúne as<br />
características mais salientes dos objetos que focaliza. Aparece embutido em outros textos. É emitido para ninar<br />
crianças, em comemorações como batizados e casamentos, receber visitas, saudar pessoas ilustres e para todos os<br />
que fazem algo em prol da comunidade (AMORIM, Adelina Maria Alfenas. O narrador- intruso e os orikis em<br />
A casa da Água, de Antonio Olinto. 2008, 86f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira)- Centro de<br />
Ensino Superior de Juiz de Fora/MG, 2008, p. 71. Disponível em: . Acesso em:<br />
29 ago. 2011).<br />
8
vivência, por quase três anos, como Adido Cultura do Brasil na África. Além disso, Antonio<br />
Olinto faz alusão à vida e à obra do autor.<br />
Em São eu, estas coisas (2008), Condé dá sequência à investigação sobre Antonio<br />
Olinto, produzindo um texto que aborda fatos da vida desse autor e suas vivências. Dentre<br />
outras obras, enfoca A casa da Água e a trilogia Alma da África, destacando a presença<br />
feminina no romance.<br />
Outro livro que retrata a vida de Antonio Olinto é Brasileiro com alma africana:<br />
Antonio Olinto (2008), em que José Luís Lira constrói um texto evidenciando a vida e a<br />
trajetória literária desse escritor, bem como seu trabalho como jornalista. Lira ressalta as<br />
características do autor de A casa da água ao escrever, bem como sua habilidade em usar as<br />
palavras, transcrevendo o discurso de posse de Olinto, na Academia Brasileira de Letras, entre<br />
outras coisas.<br />
Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura e cultura<br />
(2010), de Eurídice Figueiredo, traz um artigo intitulado “Os brasileiros do Benin: a questão<br />
do retorno à África”. Nesse texto, a autora reflete sobre a volta de muitos afro-brasileiros à<br />
África, cuja história foi tematizada por escritores brasileiros e antilhanos, tendo como foco a<br />
mulher brasileira que retorna. Assim, aborda A casa da água, de Antonio Olinto, Um defeito<br />
de cor (2007), de Ana Maria Gonçalves e a saga antilhana Segu (1984-1985), de Maryse<br />
Condé, numa análise comparativa entre as protagonistas, ressaltando a força e a capacidade de<br />
superação dessas mulheres, diante dos obstáculos da vida.<br />
João Lins de Albuquerque, em sua obra Antonio Olinto: Memórias de um imortal<br />
(2009), faz um relato sobre as experiências de vida de Olinto ao lado de amigos, escritores e<br />
outras figuras que tiveram papel importante na vida desse autor, tanto no Brasil quanto no<br />
exterior. É um livro que narra as memórias de um escritor que batalhou pela divulgação da<br />
literatura brasileira, pelas raízes africanas e pela educação, deixando uma enorme e<br />
diversificada obra, dentre elas, a que o consagrou como romancista, a trilogia Alma da<br />
África.<br />
Ainda sobre A casa da água, o artigo de Niyi Afolabi, da Tulane University, USA,<br />
“Contra-memória e violação da imaginação: alegorias (supra) nacionais n‟O eleito do sol, de<br />
Armênio Vieira e n‟A casa da água, de Antonio Olinto”, faz um estudo comparativo das<br />
similaridades e contrastes dos imaginários cabo-verdiano e afro-brasileiro. De um lado, a ilha<br />
cabo-verdiana serve de alegoria supranacional no engajamento mítico-filosófico entre o<br />
intelectual e o político e do outro, a viagem transatlântica das personagens de A casa da<br />
9
água, como uma diáspora invertida na procura de raízes, deixadas na África, pelos negros,<br />
antes de se dispersarem.<br />
A presente investigação relaciona-se à linha de pesquisa Memória e Identidade<br />
Cultural do Programa do Mestrado em Letras da <strong>URI</strong>, tendo em vista que examina a<br />
identidade, a memória e os espaços, buscando o entendimento das práticas sociais, artísticas e<br />
culturais. O corpus de análise contribuirá para os estudos acerca das identidades culturais e<br />
suas afirmações identitárias em áreas como a Literatura, a História e a Antropologia.<br />
Com base nessas colocações, justifica-se a importância da pesquisa, pois investigar<br />
elementos do passado de uma pessoa e de um povo não é somente recuperar aspectos de sua<br />
própria vida, mas conhecer a história coletiva, a fim de compreender os processos de<br />
formação da identidade a partir do deslocamento. Porém, segundo Halbwachs, não se pode<br />
esquecer que, embora o passado permaneça na mente do sujeito, certos obstáculos, inclusive o<br />
comportamento do cérebro, impedem que seja possível evocar todas as suas partes, 3 até<br />
mesmo porque a imagem do passado se altera pelas contradições e, consequentemente,<br />
sentimentos, emoções e lembranças acabam sendo perdidos.<br />
Nesse sentido, julga-se pertinente a temática contida no corpus utilizado para a<br />
análise, o qual ficou restrito a apenas uma das obras da trilogia de Antonio Olinto, tendo em<br />
vista a riqueza de informações e de situações a serem pesquisadas. Caso fossem utilizados os<br />
três livros, não haveria possibilidade de explorar profundamente a temática pela grande<br />
quantidade de subsídios que a aludida trilogia oferece.<br />
Nascido em 10 de maio de 1919, em Minas Gerais, na cidade de Ubá, Antonio Olinto<br />
tem uma extensa produção literária. Inicia com a publicação do livro de poesias Presença, em<br />
1949. A influência de sua terra natal e da cidade do Piau, onde passou parte da infância, é<br />
visível em sua literatura, e muito clara na obra A casa da água, em que a história inicia com<br />
os personagens vivendo no Piau.<br />
Esse romance, obra de estreia do autor, é, também, nitidamente influenciado pela<br />
vivência de Olinto na Nigéria. Para Condé, na África, ele encontra o assunto, a inspiração<br />
para criar sua obra-prima.<br />
Olinto já se revelara mais do que um grande repórter: a imersão na vida e nos<br />
costumes do povo africano e a exploração minuciosa do que viu e sentiu, aliadas à<br />
técnica e à sensibilidade no escrever, resultaram num documento histórico cuja<br />
importância foi amplamente reconhecida, aqui e no exterior. 4<br />
3 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006, p. 97.<br />
4 CONDÉ, Cláudia de Morais Sarmento. São eu, estas coisas. Minas Gerais: Suprema, 2008, p. 95-96.<br />
10
Então, como a investigação histórica já havia sido realizada, Olinto envereda pelo<br />
caminho do imaginário, transformando os fatos em literatura. E assim nasce A casa da água,<br />
um romance que narra as memórias brasileiras e africanas de uma família, que, por meio da<br />
rememoração individual e particular, busca manter os elos com o passado, com sua<br />
comunidade.<br />
O romance está dividido em quatro partes. A primeira, intitulada “A viagem”, retrata a<br />
saída do Piau e a viagem até a Nigéria, no navio Esperança; a segunda, chamada de “O<br />
marido”, focaliza a vida conjugal e maternal de Mariana; já a terceira, “A casa da água”,<br />
retrata o comércio da água e, consequentemente, o crescimento econômico da família, guiado<br />
pela heroína Mariana; por último, em “O grande chefe”, há o relato da vida política de<br />
Sebastian, filho mais novo de Mariana, e sua ascensão à presidência da república do fictício<br />
Zorei.<br />
Com essa obra, editada em dezenove idiomas, Antonio Olinto projeta-se<br />
internacionalmente. Segundo Claudia Condé,<br />
[o] romance foi traduzido para o inglês, o francês e o espanhol, logo após a<br />
publicação de sua primeira edição brasileira, e obteve consagração imediata no<br />
exterior. Muito do seu sucesso pode ser creditado ao fato de ter contribuído para<br />
abrir os olhos dos leitores para a cultura africana, ainda desconhecida, e que muitos<br />
vieram a descobrir ser fascinante. 5<br />
No primeiro capítulo, faz-se um estudo a respeito do papel da memória, tanto<br />
individual quanto coletiva, na construção da identidade, a partir dos fundamentos teóricos de<br />
Maurice Halbwachs (2006), Paul Connerton (1993) e Ecléia Bosi (2001). Quanto aos<br />
referenciais identitários, buscou-se embasamento em Michael Pollack (1992) e R. C.Brandão<br />
(1990), já que a identidade do sujeito é algo que se constrói a partir das experiências e<br />
afinidades com o outro e que vive em constante incompletude. Analisou-se, ainda, o papel do<br />
espaço na construção da identidade, ressaltando o conceito de entre-lugar de Homi Bhaha,<br />
1998, uma vez que esse espaço representa a negociação das experiências, do interesse<br />
comunitário e do valor cultural, responsáveis pela formação dos sujeitos. A ênfase entre<br />
formação identitária e deslocamento levou, também, a reflexões teóricas sobre a influência<br />
recíproca entre o espaço e o homem.<br />
O segundo capítulo trata da presença do negro no contexto literário brasileiro, desde<br />
1500 até o presente. A princípio, reflete-se sobre a questão da discriminação e o preconceito<br />
de cor para com a etnia negra, em torno da qual se formou uma ideia de submissão e<br />
5 CONDÉ, 2008, p. 97.<br />
11
dominação, bem como de inferioridade. Na sequência, verifica-se o papel do negro no<br />
imaginário brasileiro no período colonial, no século XIX e XX, mostrando a invisibilidade<br />
literária que foi imposta pela sociedade, através do uso de imagens estereotipadas. Por fim, a<br />
partir da década de 60, enfatiza-se a presença de um discurso que evidencia um<br />
posicionamento do negro nos escritos literários. Surge a literatura negra, que compreende uma<br />
reapropriação do espaço existencial, como forma de sair da invisibilidade e da estereotipação<br />
do elemento negro.<br />
O terceiro capítulo ocupa-se do estudo da obra A casa da água, a partir das noções de<br />
deslocamento, memória e identidade. A escolha das personagens não foi realizada de forma<br />
aleatória. Escolheu-se Catarina, cuja análise é desenvolvida na primeira parte, porque a<br />
personagem encerra todo o contexto diaspórico, envolvendo o deslocamento, a memória e o<br />
desejo de resgatar a identidade, no retorno ao seu continente. Na continuidade, o estudo é<br />
sobre a neta de Catarina, Mariana, que pertence à terceira geração. Essa personagem assume a<br />
função de líder da família, após a morte da avó, tornando-se a referência para os demais.<br />
Representa o indivíduo que procura estabelecer laços com sua comunidade africana, mas sem<br />
se esquecer do Brasil, seu país de origem. Por fim, o foco é a quarta geração, que compreende<br />
os três filhos de Mariana. Esses descendentes demonstram a aquisição dos costumes do<br />
colonizador, estudando na Europa, porém, sem abandonar os referenciais africanos de sua<br />
terra natal.<br />
Na obra, a segunda geração é representada por Epifânia, filha de Catarina e mãe de<br />
Mariana. O fato de a personagem, que nasce no Brasil, não ter sido estudada de modo mais<br />
profundo, justifica-se porque ela, embora sendo presença constante na vida de Mariana, e<br />
representando os elos com o Brasil, nunca se impôs, sempre acatou as ideias da filha, depois<br />
que Catarina, morreu. Viveu sempre trabalhando, primeiro no Brasil, a fim de, na companhia<br />
da mãe, buscar o sustento da família e juntar dinheiro para a viagem à África. Já na Nigéria,<br />
prosseguiu trabalhando, primeiro ao lado da mãe, depois ao lado de Mariana, cuidando da<br />
loja, da casa e dos netos.<br />
Pretende-se (re)descobrir A casa da água, com a possibilidade de novas interpretações<br />
no que se relaciona à questão da memória como elemento suporte da identidade, além do<br />
espaço como interferência na realidade do indivíduo e desenvolvimento de pertencimentos.<br />
Porém, com a certeza de que muitos outros caminhos, ainda não explorados, poderão ser<br />
objetos de investigação, como os que são mencionados na conclusão desse estudo.<br />
12
1 DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE<br />
Pensar na formação da identidade cultural de um povo sem relacioná-la à contribuição<br />
da memória nesse processo é tarefa impossível, visto que memória e identidade possuem uma<br />
intrínseca relação vinculada ao tempo. O homem, como sujeito histórico, transforma o ato de<br />
recordar em uma ação coletiva, ligada a um contexto de natureza social. Nesse sentido,<br />
investigar elementos do passado não é somente recuperar aspectos individuais, mas conhecer<br />
a história coletiva do grupo com o qual o indivíduo se identifica, a fim de compreender os<br />
processos de formação dessa identidade e a influência do meio na realidade desses sujeitos.<br />
Enfoca-se primeiramente a memória e, após, a identidade; posteriormente, faz-se uma<br />
relação entre ambas. Estuda-se, também, a questão do espaço na formação das identidades.<br />
Memória e identidade são conceitos fundamentais para o estudo do romance A casa da água<br />
(1969), do escritor Antonio Olinto, já que a obra oferece ao leitor uma viagem por diferentes<br />
lugares, culturas e tradições, tanto no Brasil quanto na África, focalizando o papel da memória<br />
na reconstrução da história de vida dos personagens, em busca de suas raízes.<br />
A memória pode ser descrita de diversas maneiras, dentre as quais como a capacidade<br />
de lembrar, recordar, evocar o passado; processo de assimilar, registrar e reter uma<br />
informação. Sob uma perspectiva sociológica, o estudo da memória envolve o confronto de<br />
diversas esferas de interação. O indivíduo faz parte de uma comunidade, e com ela se<br />
identifica a partir de padrões coletivos. Dessa forma, o acesso ao passado é feito não somente<br />
a partir das percepções individuais, mas também por elementos constituídos pelo outro. Para<br />
saber quem é, o sujeito precisa das lembranças dos outros. Assim, o indivíduo vê-se imerso<br />
em um universo de interfaces, a partir do qual as identidades são construídas, numa constante<br />
interação entre passado e presente. 6<br />
Para que a memória dos outros venha reforçar e completar a memória de cada um, é<br />
necessário que as lembranças desses grupos não deixem de ter alguma relação com os<br />
acontecimentos que constituem o passado do sujeito, pois este pertence ao mesmo tempo a<br />
muitos grupos, e em cada um assume uma posição identitária. 7<br />
6 HALBWACHS, 2006, p. 39-42.<br />
7 Ibidem, p. 98.<br />
13
Na memória, o movimento em direção ao passado faz com que se perceba a forma<br />
como os indivíduos recordam a si mesmos e a maneira como acontece a reconstrução dessas<br />
lembranças. Segundo Myrian Sepúlveda dos Santos, a memória está presente em tudo e em<br />
todos; não é só pensamento, imaginação e construção social; ela é também uma determinada<br />
experiência de vida capaz de transformar outras experiências, a partir dos resquícios deixados<br />
anteriormente. 8<br />
As lembranças afloram de modos diversos, devido aos diferentes contextos em que a<br />
memória individual está enraizada. Ou seja, o passado não pode ser traduzido exatamente<br />
como foi, pois tudo depende do ponto de vista de quem o recorda ou conta, se é individual ou<br />
coletivo:<br />
Por um lado, as lembranças de uma pessoa teriam lugar no contexto de sua<br />
personalidade ou de sua vida pessoal. Por outro lado, em certos momentos, ela seria<br />
capaz de se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para<br />
evocar e manter lembranças impessoais, na medida em que estas interessam ao<br />
grupo. Essas duas memórias se interpenetram com frequência. A memória coletiva<br />
contém as memórias individuais, mas não se confunde com elas. 9<br />
Em outras palavras, a memória faz parte de um processo social, em que os seres<br />
humanos não são vistos como seres isolados, mas interagindo uns com os outros ao longo de<br />
suas vidas. O indivíduo sozinho não consegue recuperar com exatidão as imagens do passado,<br />
pois essa rememoração se constrói no encadeamento das memórias dos diferentes grupos com<br />
quem o indivíduo se relaciona.<br />
1.1 A relação entre memória individual e coletiva<br />
Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, a qual só pode<br />
ser formada a partir de um grupo específico e de acontecimentos que se fizeram inesquecíveis<br />
em determinado tempo e circunstância. A lembrança reaparece em função de uma série de<br />
pensamentos coletivos emaranhados. 10 Porém,<br />
se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de<br />
pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta<br />
massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que<br />
aparecerão com maior intensidade a cada um deles. De bom grado, diríamos que a<br />
memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de<br />
8 SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória coletiva e teoria social. São Paulo: Annablume, 2003, p. 25-26.<br />
9 HALBWACHS, 2006, p. 71.<br />
10 Ibidem, p. 70.<br />
14
vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as<br />
relações que mantenho com outros ambientes. 11<br />
A memória individual, separada em absoluto da memória social - também chamada de<br />
coletiva - é uma abstração quase destituída de sentido, pois “a narrativa de uma vida faz parte<br />
de um conjunto de narrativas que se interligam, está incrustada nas histórias dos grupos a<br />
partir dos quais os indivíduos adquirem a sua identidade”. Se “a produção de histórias é uma<br />
característica de toda a memória social” e se a memória social é veiculada através das<br />
histórias de vida, a narração individual torna-se uma maneira de transmitir a memória<br />
coletiva. 12<br />
Posto que todas as lembranças estão constituídas no interior de um grupo, a memória<br />
coletiva reforça a memória individual. O indivíduo carrega a lembrança, mas está interagindo<br />
com a sociedade, onde ocorre a construção das recordações. 13 Assim, reflexões, ideias,<br />
sentimentos, mesmo quando atribuídos pelo sujeito somente a si, são, na verdade, uma<br />
influência que vem do grupo. A maneira de lembrar e de perceber o mundo decorre a partir<br />
das experiências do outro, mesmo que não se tenha consciência dessa situação:<br />
[P]ara evocar seu próprio passado, em geral, a pessoa precisa recorrer às lembranças<br />
de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados<br />
pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da memória individual não é<br />
possível sem esses instrumentos que são as palavras e ideias, que o indivíduo não<br />
inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. Não é menos verdade que não<br />
conseguimos lembrar senão do que vimos, fizemos, sentimos, pensamos num<br />
momento do tempo, ou seja, nossa memória não se confunde com a dos outros. 14<br />
Sem a ajuda de sua comunidade, o ser humano não consegue reconstituir sozinho o<br />
seu passado, mesmo que ele pense que as lembranças sejam inteiramente suas.<br />
[S]omos de nossas recordações, apenas uma testemunha, que às vezes não crê em<br />
seus próprios olhos e faz apelo constante ao outro para que confirme nossa visão. É<br />
preciso reconhecer que muitas de nossas lembranças, ou mesmo de nossas ideias,<br />
não são originais: foram inspiradas nas conversas dos outros. Com o correr do<br />
tempo, elas passam a ter uma história dentro da gente, acompanham nossa vida e são<br />
enriquecidas por experiências e embates. Parecem tão nossas que ficaríamos<br />
surpresos se nos dissessem o seu ponto exato de entrada em nossa vida. Elas foram<br />
formuladas por outrem, e nós, simplesmente, as incorporamos ao nosso cabedal. Na<br />
maioria dos casos creio que este não seja um processo consciente. 15<br />
11<br />
HALBWACHS, 2006, p. 69.<br />
12<br />
CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Lisboa, 1993, p. 45.<br />
13<br />
HALBWACHS, 2006.<br />
14<br />
Ibidem, p. 72.<br />
15<br />
BOSI, Ecléia. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 407.<br />
15
Na verdade, é a partir do espaço de pertencimento a uma comunidade que se constitui<br />
o que é pessoal. Em outros termos, em conjunto com as ideias de um meio é que o sujeito<br />
passa a elaborar seus próprios valores e conceitos, originados na prática de uma coletividade.<br />
Ele recorda de acordo com as estruturas sociais que o antecedem, fazendo uso de suas<br />
vivências para reconstruí-los. Mesmo a memória mais peculiar a cada um se compõe de<br />
elementos constituídos socialmente e recuperados a partir da interação com o grupo. “Nossa<br />
memória não se apoia na história aprendida, mas na história vivida”, 16 ou seja, as lembranças<br />
podem, a partir da vivência em grupo, ser reconstruídas, pois o indivíduo cria representações<br />
do passado assentadas na percepção de outras pessoas, naquilo que ele imagina ou na<br />
memória compartilhada historicamente.<br />
Para que alguém venha a ser beneficiado pela memória dos outros, é preciso que haja<br />
uma correspondência entre essas memórias, para que a lembrança que os outros trazem possa<br />
ser reconstruída sobre uma base comum. Assim, “[a] sucessão de lembranças, mesmo as mais<br />
pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os<br />
diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo pelas transformações desses ambientes,<br />
cada um tomado em separado, e em seu conjunto”. 17<br />
A memória individual não é exclusividade do sujeito. Mesmo sozinho, ele vivencia<br />
algo, mas sua memória não se constitui somente dessas lembranças particulares:<br />
Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que<br />
se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente<br />
nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros<br />
estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e<br />
em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem. 18<br />
Porém, mesmo dependendo da memória coletiva, não se pode esquecer que é o<br />
indivíduo que relembra e que memoriza o que o passado oferece, retendo para si significados<br />
de coisas que habitam um espaço coletivo. Então, caracterizar a memória como seletiva é<br />
possível, pois nem tudo fica gravado ou registrado. Ela não se refere apenas à vida física da<br />
pessoa, pois sofre flutuações que são em função do momento em que é articulada. As<br />
preocupações desse momento constituem um elemento de estruturação da memória. Nesse<br />
sentido, é possível tratar a memória como um fenômeno construído. 19 Então,<br />
16 HALBWACHS, 2006, p. 78-79.<br />
17 Ibidem, p. 69.<br />
18 Ibidem, p. 30.<br />
19 POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992.<br />
Disponível em:<br />
16
[q]uando falo em construção, em nível individual, quero dizer que os modos de<br />
construção podem ser tanto conscientes como inconscientes. O que a memória<br />
individual grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um<br />
verdadeiro trabalho de organização. 20<br />
Uma vez que a memória é um fenômeno construído social e individualmente, também<br />
se pode assegurar que “há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o<br />
sentimento de identidade”. 21 Então, se é possível o confronto entre a memória individual e a<br />
dos outros, é porque memória e identidade são valores que têm origem nas relações sociais<br />
intergrupais. A memória é uma referência essencial para a constituição da identidade do<br />
sujeito, pois fornece elementos para o autoconhecimento, a partir do convívio com o outro.<br />
1.2 Referenciais identitários<br />
A identidade, muitas vezes, confunde-se com o nome de um indivíduo. Contudo, o<br />
nome não é identidade, mas apenas parte dela: a identidade refere-se à imagem que a pessoa<br />
tem de si mesma. Como Brandão comenta,<br />
Os acontecimentos da vida de cada pessoa geram sobre ela a formação de<br />
uma lenta imagem de si mesma, uma viva imagem que aos poucos se constrói<br />
ao longo de experiências de trocas com outros: a mãe, os pais, a família, a<br />
parentela, os amigos de infância e as sucessivas ampliações de outros círculos<br />
de outros: outros sujeitos investidos de seus sentimentos, outras pessoas<br />
investidas de seus nomes, posições, regras sociais de atuação. 22<br />
Para Michel Pollack, o sentimento de identidade significa a imagem de si, para si e<br />
para os outros. Ou seja, “a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela<br />
própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua<br />
própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida<br />
pelos outros”. 23<br />
Porém, é importante não limitar o conceito identitário ao de autoimagem ou<br />
autoconsciência. Não se constrói uma autoimagem sem mudanças em virtude do grupo. Isso<br />
. Acesso em: 30 nov. 2010.<br />
20<br />
POLLACK, 1992, p. 4-5.<br />
21<br />
Ibidem, p. 5.<br />
22<br />
BRANDÃO, R. C. Identidade e etnia: construção da pessoa e resistência cultural. São Paulo: Brasiliense,<br />
1990, p. 37.<br />
23 POLLACK, 1992, p. 5.<br />
17
porque a identidade diz respeito a um conjunto vivo de relações sociais que estabelece a<br />
comunhão de determinados valores entre os membros de uma sociedade.<br />
Conforme Pollack, “a construção da identidade é um fenômeno que se produz em<br />
referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade,<br />
credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros”. 24 Em outras palavras,<br />
constroem-se posições identitárias a partir de experiências e afinidades com o outro. Isso gera<br />
uma ideia de movimento e de construção por meio das relações sociais.<br />
O espaço das identidades é conflituoso e se transforma conforme o sujeito é<br />
representado. Nesse jogo, todos os interesses estão envolvidos, e busca-se harmonizar<br />
frequentemente num espaço inconstante. Assim, incluídas nesse conflito estão as relações<br />
pessoais, no que se refere ao sentimento para com o outro ou o próprio indivíduo. A<br />
identidade do sujeito não é um alvo a ser atingido, mas algo que vive na tensão, em uma<br />
permanente incompletude.<br />
Pollack afirma que, na construção da identidade, a memória é o elemento constituinte,<br />
“na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de<br />
continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”. 25<br />
Sendo assim, cada membro do grupo deve buscar formas de desenvolver o sentimento de<br />
pertencimento, unidade e integração. Sem memória, a comunidade caminha sem horizontes,<br />
pois, não conhecendo o passado, não consegue ter consciência do seu presente e não projeta<br />
perspectivas no futuro.<br />
A busca do controle sobre a memória institui uma identidade para o agente social nela<br />
envolvido, no sentido de gerar um lugar dentro de uma rede específica de circularidade e<br />
fluxo. Quando a memória e a identidade estão suficientemente constituídas, não será preciso<br />
mudanças e transformações dentro do grupo, a partir dos questionamentos externos, pois elas<br />
são capazes de fazer o trabalho de organização e manutenção da própria comunidade. 26<br />
Portanto, lembrar significa emergir o que passou e, concomitantemente ao processo<br />
corporal e presente da percepção, misturar dados imediatos com lembranças. Assim, a<br />
memória construída no presente, a partir das necessidades dadas por este e não<br />
necessariamente pelo passado em si, pode ser pensada como fator fundamental para a<br />
construção de pertencimentos sociais, aos mais diversos níveis associativos.<br />
24 POLLACK, 1992, p. 5.<br />
25 Ibidem, p. 5.<br />
26 Ibidem, p. 7.<br />
18
1.3 Deslocamento: o espaço na (re)construção das identidades<br />
O passado, segundo Stuart Hall, guarda resquícios de elementos identitários que<br />
continuam a influenciar o presente por meio da memória, da fantasia, da narrativa, do mito.<br />
Para o teórico,<br />
[a]s identidades culturais são os pontos de identificação, os pontos instáveis de<br />
identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e da história. Não<br />
uma essência, mas um posicionamento. Donde haver sempre uma política da<br />
identidade, uma política de posição, que não conta com nenhuma garantia absoluta<br />
numa “lei de origem” sem problemas, transcendental. 27<br />
É muito difícil entender a formação de uma identidade, pois ela não procede de uma<br />
origem fixa e sem interrupções. A identidade é influenciada pelo posicionamento do indivíduo<br />
diante de sua comunidade: “[t]odos nós escrevemos e falamos desde um lugar e um tempo<br />
particulares, desde uma história e uma cultura que nos são específicas”. 28 Tudo o que o sujeito<br />
expressa está sempre contextualizado e posicionado no tempo e no espaço de seu grupo, ou<br />
seja, agrega as características do ambiente em que o indivíduo se sente pertencer.<br />
Nesse sentido, posições identitárias acabam sendo adotadas de acordo com esse<br />
espaço, o qual concorre para a produção da vida social. É onde se busca o fundamento do<br />
apego afetivo que liga a pessoa ao seu território:<br />
Quando inserido numa parte do espaço, um grupo o molda à sua imagem, mas ao<br />
mesmo tempo se dobra e se adapta a coisas materiais que a ela resistem. O grupo se<br />
fecha no contexto que construiu. A imagem do meio exterior e das relações estáveis<br />
que mantém com este passa ao primeiro plano da ideia que tem de si mesmo. [...]<br />
Não é o indivíduo isolado, é o indivíduo enquanto membro do grupo, é o grupo em<br />
si que, dessa maneira, permanece sujeito à influência da natureza material e participa<br />
de seu equilíbrio. Mesmo que se pudesse acreditar que não é bem isso, quando os<br />
membros do grupo estão dispersos e nada encontram em seu novo ambiente material<br />
que recorde a casa e os quartos que deixaram, quando permanecem unidos pelo<br />
espaço é porque pensam nessa casa e nesses quartos. 29<br />
Isso mostra que o espaço tem um significado próprio para os representantes do grupo.<br />
E não existe uma memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial. Em outras<br />
palavras, o sujeito necessita do grupo para que suas lembranças emerjam, pois é nesse<br />
conjunto que se constroem tanto as memórias individuais quanto as coletivas:<br />
27 HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24,<br />
p. 70, 1996. Ênfase do autor.<br />
28 Ibidem, p. 68.<br />
29 HALBWACHS, 2006, p. 159.<br />
19
[O] espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem umas às outras,<br />
nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja possível<br />
retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que nos<br />
circunda. É ao espaço, ao nosso espaço – o espaço que ocupamos, por onde<br />
passamos muitas vezes, a que sempre temos acesso e que, de qualquer maneira,<br />
nossa imaginação ou nosso pensamento a cada instante é capaz de reconstruir – que<br />
devemos voltar nossa atenção, é nele que nosso pensamento tem de se fixar para que<br />
essa ou aquela categoria de lembranças reapareça. 30<br />
Como toda comunidade mantém vínculos com um lugar, é nesse espaço definido que<br />
são encontradas suas lembranças. Cada sociedade recorta o ambiente à sua maneira de modo a<br />
constituir um contexto fixo em que estão inseridas as lembranças.<br />
A questão do papel do espaço na formação identitária é pertinente à obra A casa da<br />
água, tendo em vista as mudanças de lugar sofridas pelos personagens, desde a avó Catarina<br />
até os descendentes de sua neta Mariana. O início da trajetória da família começa em Minas<br />
Gerais, no povoado do Piau e depois em Juiz de Fora. Na sequência vão para o Rio de Janeiro<br />
e Bahia. De lá, a família parte de navio para a África, mais precisamente em Lagos, na<br />
Nigéria.<br />
A partir daí, Mariana tem contato com inúmeros locais no território africano, seja a<br />
passeio, quando ainda jovem, ou com o intuito de ampliar os negócios, depois de sua ascensão<br />
econômica. Alguns desses ambientes são cidades da Nigéria, de Benin, do Togo, e do fictício<br />
Zorei. Seus parentes também experimentam esse deslocamento, como os três filhos da<br />
protagonista, que estudam na Europa, visitam vários países e convivem com outras etnias. Ao<br />
retornar, Joseph, o mais velho, permanece trabalhando com a mãe; a filha, formada em<br />
Medicina, casa-se e muda de região; o mais novo, jovem político de ideias revolucionárias, é<br />
eleito presidente de Zorei e, logo depois, assassinado. Já Antônio, irmão de Mariana, faz o<br />
caminho de volta, estabelecendo-se no Brasil e dando continuidade ao negócio de exportação<br />
e importação da irmã.<br />
Os membros dessa família afrodescendente, que passam a habitar diferentes espaços,<br />
o fazem por escolha ou não. No caso de vó Catarina, ela é trazida para o Brasil como escrava.<br />
Porém, a África, seu povo e sua cultura permanecem vivos em sua memória e o desejo de<br />
retornar é cada vez mais forte. O restante da família, Epifânia e seus três filhos, Mariana,<br />
Antônio e Emília, acompanham a matriarca para esse espaço novo para eles, até então<br />
conhecido através das histórias e das lembranças de Catarina.<br />
30 HALBWACHS, 2006, p. 170.<br />
20
1.3.1 O entre-lugar a partir das reflexões de Homi Bhabha<br />
O deslocamento para um novo território dá origem a uma tensão contínua, em que os<br />
envolvidos nesse processo passam a buscar meios para se adaptarem à nova situação. Forjam,<br />
então, um espaço intersticial, a que Homi Bhabha chama de entre-lugar, ou terceiro espaço.<br />
As reflexões do teórico indiano acerca dessa posicionalidade partem da constatação<br />
do lugar ocupado pelo sujeito na virada do século XX. Pondera: “nossa existência hoje é<br />
marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do presente”. 31<br />
Esse local peculiar identifica um espaço intermediário, um movimento entre dois polos, entre<br />
o aqui e o lá:<br />
Inícios e fins podem ser os mitos de sustentação dos anos no meio do século, mas<br />
neste fin de siècle, encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo<br />
se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e<br />
presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. Isso porque há uma sensação de<br />
desorientação, um distúrbio de direção, no “além”: um movimento exploratório<br />
incessante, [...] para lá e para cá, para a frente e para trás 32 .<br />
De acordo com Bhabha, o “além” é a distância espacial que promete o futuro, ao qual,<br />
no entanto, não se pode chegar sem antes retornar ao presente. Na perspectiva do além, o<br />
presente é o ponto de partida, pois esse “além” é pensado a partir do domínio temporal do<br />
agora. Residir nessa temporalidade é “ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao<br />
presente para redescrever a contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunalidade<br />
humana, histórica; tocar o futuro em seu lado de cá”. 33 Assim, o “além” se torna um espaço de<br />
intervenção no aqui e no agora, o que gera um encontro com o novo.<br />
Dessa forma, a fronteira “se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer<br />
presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente, do além<br />
que venho traçando”. 34 A temporalidade caracterizada como “viver no além” surge como uma<br />
tradução cultural, retomando o passado como causa social, reconstruindo-o e<br />
redimensionando-o como um entre-lugar que inova e transforma o presente. É um desacordo<br />
entre dois tempos que dá origem a um tempo renovado, que possibilita negociar e traduzir as<br />
identidades culturais individuais, na temporalidade desconexa da diferença entre culturas. 35<br />
31 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 19.<br />
32 Ibidem, p. 19.<br />
33 Ibidem, p. 27.<br />
34 Ibidem., p. 24.<br />
35 Ibidem, p. 27.<br />
21
Um exemplo da cisão dos espaços liminares, citado por Bhabha, é o uso do poço da<br />
escada na obra de Renée Green, Sites of Genealogy, exposta no Institute of Contemporary, de<br />
Long Island, de Nova Iorque. Green cria uma metáfora do prédio do museu usando o sótão, o<br />
compartimento da caldeira e o poço da escada para associá-los a divisões binárias; a área<br />
superior e inferior recebe placas referentes ao negro e ao branco. Ao integrar o superior e o<br />
inferior, a escada é o elemento de ligação que constrói a diferença entre esses dois locais. Isso<br />
porque “[o] ir e vir do poço da escada, o movimento temporal e a passagem que ele propicia<br />
evita que as identidades a cada extremidade dele se estabeleçam em polaridades primordiais”,<br />
evitando que haja hierarquia na diferença, devido ao hibridismo cultural que surgiu. 36<br />
Bhabha ressalta como teoricamente inovadora e crucial a necessidade de passar além<br />
das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e focalizar como se forma o “além”. Ao<br />
invés de deter-se no lá e no cá, há que se investigar o novo, articulando as diferenças<br />
culturais. Esses entre-lugares são importantes porque “fornecem o terreno para a elaboração<br />
de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de<br />
identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia<br />
de sociedade”. 37 Esses interstícios representam o espaço de negociação das experiências, do<br />
interesse comunitário e do valor cultural, responsáveis pela formação dos sujeitos.<br />
Quando Bhabha se refere à negociação, quer transmitir uma temporalidade que<br />
possibilita articular elementos contraditórios. “Em tal temporalidade discursiva, o evento da<br />
teoria torna-se a negociação de instâncias contraditórias e antagônicas, que abrem lugares e<br />
objetivos híbridos de luta e destroem as polaridades negativas entre o saber e seus objetos e<br />
entre a teoria e a razão prático-política”. 38 Então, é no confronto entre dois espaços que<br />
surgem as afinidades e as diferenças entre as culturas, abrindo espaço para a negociação de<br />
ideias contraditórias e opostas que abrem espaço para o novo. Rearticula-se, assim, a cultura,<br />
gerando uma tradução de elementos que não são “nem o Um”, “nem o Outro”, “mas algo a<br />
mais”, que contesta os termos e territórios de ambos. 39 Essa síntese dá origem a uma terceira<br />
cultura que carrega um pouco de cada uma das identidades formadoras, sem se confundir com<br />
nenhuma delas.<br />
O teórico está particularmente preocupado em descobrir como se formulam estratégias<br />
de aquisição de poder, pois a representação da diferença não deve ser vista como o reflexo de<br />
traços culturais já determinados. Assim, inquirir acerca da articulação social da diferença, na<br />
36 BHABHA, 1998, p. 22.<br />
37 Ibidem., p. 20.<br />
38 Ibidem, p. 51.<br />
39 Ibidem, p. 55.<br />
22
perspectiva das minorias destituídas de poder, é uma negociação complexa que evidencia os<br />
hibridismos culturais, os quais surgem em momentos de transformação histórica.<br />
Uma das estratégias de articulação do poder evidencia-se a partir da produção da<br />
diferença sob a perspectiva da minoria. Esse é um processo de negociação complexo e que<br />
procura conferir poder aos hibridismos culturais que emergem nos interstícios das sociedades.<br />
O direito de se expressar a partir da periferia não depende da tradição, mas de seu poder de se<br />
transformar e reinscrever a partir de situações adversas, que regem a vida dos que fazem parte<br />
dessa minoria. Então, outras temporalidades entram em cena, e isso afasta qualquer acesso<br />
imediato a uma identidade original ou a uma tradição recebida.<br />
O que interessa a Bhabha é o estudo do deslocamento cultural, mais precisamente do<br />
espaço que leva à formação do híbrido. O teórico procura entender “qual poderia ser a função<br />
de uma perspectiva teórica comprometida, uma vez que o hibridismo cultural e histórico do<br />
mundo pós-colonial é tomado como lugar paradigmático de partida”. 40 Portanto, a identidade<br />
cultural não pode ser única, visto que os deslocamentos identitários são constantes. Na medida<br />
em que elementos de uma cultura, de uma comunidade específica são assimilados, a<br />
identidade passa por um deslocamento e, consequentemente, por uma transformação.<br />
1.3.2 O conflito identitário no deslocamento de culturas<br />
Quando o ser humano se desloca de um território ao outro, o faz por necessidade e/ou<br />
por vontade própria. Segundo Clifford, as culturas da diáspora mediam, em uma tensão<br />
vivida, as experiências de separação e entrelaçamento, de viver aqui e lembrar ou desejar um<br />
outro lugar. 41 Por essa razão, há uma resistência à assimilação da cultura do outro, como<br />
forma de preservação da nação que foi perdida, em outro lugar no espaço e no tempo, mas que<br />
exerce uma força poderosa no presente do indivíduo.<br />
Ainda conforme o teórico, na experiência da diáspora, a presença de “aqui” e “lá” é<br />
articulada com uma temporalidade desconecta. A história linear é quebrada, o presente é<br />
constantemente sombreado por um passado que é também um futuro desejado, mas obstruído:<br />
um anseio renovado e doloroso. 42 Dessa forma, as conexões, no sentido de manter, sentir,<br />
reviver a terra de origem, realizadas pela população submetida ao deslocamento em razão da<br />
diáspora, devem ser fortes o suficiente para resistir à eliminação e o esquecimento.<br />
40 Ibidem, p. 46.<br />
41 CLIFFORD, James. Diasporas. Cultural Antropology, Toward Ethnographies of the Future. v. 9, n. 3, p.<br />
310-311, Aug. 1994.<br />
42 Ibidem, p. 318.<br />
23
De acordo com Hall, as pessoas submetidas à diáspora<br />
retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão<br />
de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em<br />
que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente<br />
suas identidades. Elas carregam traços das culturas, das tradições, das linguagens e<br />
das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e<br />
nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto<br />
de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a<br />
várias “casas” (e não a uma “casa” particular). 43<br />
Nessa situação, o indivíduo dispersado de sua terra natal apresenta uma cultura<br />
híbrida, que não oferece possibilidade de recuperação da identidade cultural de outrora, em<br />
razão da sua tradução. Em outras palavras, esse sujeito pertence a dois mundos, com<br />
referenciais de ambos os lugares e que não conseguem ser separados. A solução é conviver e<br />
negociar com as duas identidades, tendo em vista que esse ser encontra-se em um entre-lugar,<br />
ou seja, entre duas culturas distintas.<br />
Bhabha pensa o hibridismo a partir da interação entre elementos linguísticos e<br />
culturais, contraditórios e conflitantes. O teórico indiano aborda o hibridismo partindo da<br />
perspectiva da linguagem e da identidade, revelando a inexistência de identidades, línguas e<br />
linguagens tidas como legítimas, em razão da convivência entre vários grupos e da influência<br />
exercida pelas suas pluralidades culturais. 44<br />
Na verdade, o híbrido se constitui na interação entre as diferentes culturas, pela<br />
sobreposição de valores. Como as identidades estão em constante transformação, não são<br />
únicas, o indivíduo submetido ao deslocamento, precisa negociar entre culturas e tradições,<br />
entre o lá e o cá, o que possibilita o surgimento do terceiro espaço e, a partir deste, o<br />
surgimento de outros posicionamentos.<br />
Um exemplo do deslocamento de culturas e de conflitos identitários é o relato de<br />
Edward Said. O teórico habitou diferentes lugares, nos quais agregou características. Isso o<br />
levou a adquirir a sensação de pertencer a todos os espaços e, ao mesmo tempo, a nenhum.<br />
Said sentia necessidade de resolver essa inquietação, mas não conseguia.<br />
[Q]uando visitei a Jordânia [...], me vi entre vários contemporâneos de ideias<br />
similares. Mas nos Estados Unidos minhas posições políticas eram rejeitadas – com<br />
algumas exceções notáveis – [...]. Pela primeira vez senti-me realmente dividido<br />
entre as novas pressões afirmativas de meu passado e minha língua e as complicadas<br />
43<br />
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes<br />
Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 88-89.<br />
44<br />
SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In: ABDALA JUNIOR,<br />
Benjamin (Org.). Margens da História: mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004.<br />
24
exigências de uma situação nos Estados Unidos que ignorava – na verdade -<br />
desprezava – o que eu tinha a dizer sobre a busca por justiça para a Palestina, que<br />
era considerada antissemita e parecida com o nazismo. 45<br />
Continuando as reflexões, Said expõe que, numa determinada época, tirou férias e<br />
passou um ano em Beirute, gastando seu tempo com coisas que nunca havia feito, pelo menos<br />
de forma tão intensa. O teórico esclarece:<br />
O que me levou a isso foi o sentimento de que deixara crescer muito a disparidade<br />
entre minha identidade adquirida e a cultura em que nascera e da qual fora afastado.<br />
Em outras palavras, sentia uma necessidade existencial e política de harmonizar as<br />
duas [...]. Pelo que me lembro sempre me permiti ficar de fora do abrigo que<br />
protegia ou acomodava meus contemporâneos. Não posso dizer se isso se dava<br />
porque eu era de fato diferente, concretamente um forasteiro, ou porque era um<br />
solitário por temperamento, mas o fato é que, embora cumprisse todas as rotinas<br />
institucionais porque julgava que devia fazê-lo, algo em mim resistia a elas. Não sei<br />
o que me continha, mas, mesmo quando eu estava na mais profunda solidão ou fora<br />
de sincronia com todo mundo, eu mantinha firmemente esse afastamento privado<br />
[...]. O fato é que não me enquadrava nas situações em que me envolvia e não me<br />
incomodava muito aceitar esse estado de coisas. 46<br />
Essas palavras revelam o conflito interior da pessoa que não consegue desvincular-se<br />
das raízes e interagir com o novo ambiente em que se insere. Muitas vezes, essa atitude<br />
configura-se numa posição de resistência diante do novo, no intuito de manter sua referência<br />
anterior, não assimilando a cultura do outro. Há um envolvimento com a comunidade, mas<br />
tende a ser superficial, visto que o ser humano não é só o presente, mas carrega consigo uma<br />
gama de vivências e experiências que o transformam.<br />
Há momentos em que não se pode viver sob influência do passado, desejando<br />
substituí-lo pelo presente. Assim, como o ser humano se modifica e assume diferentes<br />
posições identitárias, os lugares também sofrem mutações, a partir do trânsito de pessoas.<br />
Esses espaços idealizados pelas lembranças, só existem enquanto rememoração. Por essa<br />
razão, não se pode acreditar que um retorno fará com que uma posição identitária passada seja<br />
recuperada integralmente. É preciso reconciliar-se com o presente e procurar formas de<br />
adaptação com o território em que se vive. Entretanto, ainda conforme Said, à vezes é difícil<br />
encontrar razões para sentir-se pertencer a algo:<br />
A identidade tem a ver com sondar um sujeito tanto quanto se possa imaginar. [...] É<br />
muito mais desafiador transformar-se em algo diferente [...] Por ter perdido um país<br />
45 SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 2003, p. 307.<br />
46 Ibidem, p. 308.<br />
25
sem esperança imediata de recuperá-lo, não encontro muito conforto em cultivar um<br />
novo jardim ou procurar uma outra associação para me filiar. 47<br />
Essa declaração ilustra a dimensão do conflito ocasionado pelo deslocamento. Nessa<br />
situação, o indivíduo, tende a rejeitar o novo espaço, pois não consegue recuperar suas raízes.<br />
Essa rejeição surge a partir da renúncia ao sonho de redescobrir sua identidade cultural,<br />
devido à impossibilidade de fazê-la.<br />
Segundo Hall, “[n]a situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas”. 48 Há<br />
elos centrípetos, que unem o indivíduo a sua terra de origem, ajuntam-se outras forças, como<br />
semelhanças com outras minorias étnicas, identidades emergentes, geografias partilhadas, e<br />
re-identificações simbólicas com as culturas ancestrais compartilhadas. Tal contexto pode<br />
levar a construir um senso coletivo do eu. Nesse sentido,<br />
Possuir uma identidade cultural [...] é estar primordialmente em contato com um<br />
núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa linha<br />
ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de tradição, cujo teste é o de<br />
sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si mesma, sua<br />
autenticidade. É claro, um mito – com todo o potencial real de nossos mitos<br />
dominantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações, conferir<br />
significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história. 49<br />
Fernando Ortiz chama de transculturação o processo de transformação por que<br />
passaram as sociedades e seus membros devido ao contato entre povos diferentes:<br />
Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor as diferentes fases do<br />
processo de transição de uma cultura a outra, porque este não consiste só em<br />
adquirir uma cultura diferente, que é o que a rigor indica a palavra anglo-americana<br />
aculturação, mas que o processo implica também necessariamente perda ou<br />
desenraizamento de uma cultura precedente, o que poderia ser chamado de parcial<br />
desculturação e, além disto, significa a criação subsequente de novos fenômenos<br />
culturais que poderiam ser denominados neoculturação. 50<br />
Isso significa que permanecer entre duas correntes culturais implica transformação, ou<br />
seja, no contato com uma cultura diferente surge a necessidade de adaptação. Segundo Ángel<br />
Rama, nesse processo de transculturação, ocorre de início uma parcial perda de elementos<br />
identitários e, em seguida, a incorporação de outros procedentes de uma cultura externa. Por<br />
47<br />
SAID, 2003, p. 313-314.<br />
48<br />
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende et al.<br />
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 27.<br />
49<br />
Ibidem, p. 29.<br />
50<br />
ORTIZ, 1963, p. 99 apud FIGUEIREDO, Eurídice. Representações de etnicidade: perspectivas<br />
interamericanas de literatura e cultura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010, p. 87. Grifos do autor.<br />
26
fim, um esforço de recomposição articulando elementos sobreviventes da cultura originária e<br />
da atual. 51<br />
O teórico, quando se refere à literatura que surge a partir desse processo conflituoso<br />
entre culturas, pondera:<br />
À medida que a cultura tende a se tornar uma segunda natureza que define até<br />
melhor a constituição interna do grupo humano que gera, podemos dizer que a<br />
literatura que surge nessas ocasiões de passagem sobrepõe a natureza e a história,<br />
mais ainda, associa ambas dentro de uma estrutura artística que aspira a integrá-la e<br />
equilibrá-las, dando-lhes, mediante essas operações, significação e continuidade: o<br />
sentido da história torna-se acessível por meio do emprego de forças culturais<br />
específicas da comunidade regional, e estas inserem-se no devir que a história<br />
postula, aspirando a prolongar-se sem perder sua textura íntima. 52<br />
Nesse contexto, insere-se o romance A casa da água, tendo em vista que uma das<br />
personagens, Catarina, vivencia um duplo deslocamento: África-Brasil-África. Assim, o<br />
contato com uma nova cultura faz com que ocorra um processo de adaptação, ou seja, uma<br />
aquisição de traços culturais do ambiente em que passa a habitar. Depois, como escrava<br />
liberta, ocorre um retorno à cultura deixada, já modificada pelo próprio tempo e pela própria<br />
Catarina, que assimilou parte da cultura brasileira. Também o restante da família experimenta<br />
a perda de alguns fenômenos culturais e a aquisição de outros. Em outros termos, precisam<br />
integrar-se a essa construção nova, que assume as rupturas e os problemas do choque cultural.<br />
É uma forma de constituir uma identidade com o intuito de equilibrar o desejo de<br />
quem não sabe se remete o passado para um segundo plano ou se vive em função dele. Afinal,<br />
“[t]er raízes é talvez a necessidade mais importante e menos reconhecida da alma humana”. 53<br />
O ser humano sente necessidade de integrar uma comunidade e fazer parte de sua cultura, pois<br />
aquele que é “excessivamente livre e sem regras, encontra-se atormentado pelas aporias do<br />
mundo em convulsão, pelo descentramento advindo dos deslocamentos e dos confrontos entre<br />
sonhos e aspirações e as duras imposições da realidade”. 54<br />
Nas páginas iniciais do romance A casa da água, o desejo de retornar à África move<br />
as ações da matriarca Catarina, fundamentando-se na sensação de não pertencimento ao<br />
51 RAMA, Ángel. Literatura e cultura na América Latina. Organização de Flávio Aguiar e Sandra Guardini<br />
T. Vasconcelos. São Paulo: Editora da Universidade, 2001. p. 11. Disponível em:<br />
. Acesso em: 30 abr. 2011.<br />
52 Ibidem, p. 317-318.<br />
53 WEIL apud SAID, 2003, p. 56.<br />
54 FIGUEIREDO, 2010, p. 274.<br />
27
território brasileiro. Ex-escrava, ela representa a condição de muitos africanos que sentem<br />
necessidade de resgatar suas raízes, recuperar uma história interrompida em sua terra natal,<br />
em função da diáspora a que foram submetidos.<br />
Trazidos ao Brasil em navios negreiros, os escravos não apagam totalmente suas<br />
memórias da África. Esses sujeitos assimilam outros costumes, mas a cultura africana<br />
permanece nas suas situações cotidianas, mostrando que, até na diáspora, a África se mantém<br />
viva. Por essa razão, o interesse em retornar ao país de origem nutre os pensamentos da<br />
maioria dos ex-escravos, que veem no retorno a recuperação de seu posicionamento<br />
identitário.<br />
O próximo capítulo versa sobre a trajetória do negro no imaginário brasileiro,<br />
examinado a presença desse indivíduo na literatura brasileira. Nessa abordagem, procura-se<br />
demonstrar a discriminação e o preconceito com o negro, e, principalmente, as transformações<br />
ocorridas nos escritos literários, no decorrer do tempo, no sentido de modificar a imagem<br />
estereotipada e a invisibilidade impostas a esse sujeito, durante séculos.<br />
28
2 O NEGRO NO IMAGINÁRIO LITERÁRIO BRASILEIRO<br />
Na literatura brasileira, pode-se dizer que a figura do negro faz parte das produções<br />
desde o século XVI. Porém, a sua participação, na maioria dos casos, ocorre com uma simples<br />
menção à sua presença em solo brasileiro. É a partir da Lei Áurea, que a matéria negra torna-<br />
se assunto dos escritos, os quais, com poucas exceções, envolvem procedimentos que indicam<br />
ideologias, atitudes e estereótipos da estética branca dominante com relação ao negro. 55 O que<br />
se percebe são textos que procuram inferiorizar os africanos ou colocá-los numa espécie de<br />
invisibilidade literária, destacando as personagens brancas, com uma enorme gama de tipos,<br />
em papéis de protagonistas.<br />
Segundo Homi Bhabha, o estereótipo não é uma simplificação só por ser uma falsa<br />
representação de uma dada realidade; é uma forma fixa que nega o jogo da diferença,<br />
constituindo assim um problema para a representação do sujeito em suas relações<br />
psicossociais. 56 Em outras palavras, o estereótipo serve apenas para reforçar e justificar<br />
preconceitos, visto que reflete a visão que alguém tem em relação ao papel do outro na<br />
sociedade. A literatura é o campo fértil para desenvolvimento de visões deturpadas da<br />
realidade referindo-se aos afro-brasileiros.<br />
Conforme afirma Cuti, a literatura brasileira é abusivamente branca, em seu propósito<br />
de anular e estereotipar o negro e o mestiço. 57 Essa invisibilidade com relação aos negros<br />
africanos e seus descendentes brasileiros, enquanto personagens da literatura, tem uma relação<br />
direta com o espaço que é reservado a esses indivíduos na sociedade brasileira. Os homens de<br />
cor tem uma participação quase nula, tanto na sociedade quanto na literatura. Segundo<br />
Florentina da Silva Souza, essa situação<br />
é paradoxal, pois grande parte da população no Brasil é composta por negros e<br />
mestiços. A presença negra é percebida. Entretanto, há lugares marcados e<br />
permitidos para que a visibilidade negra se dê. [...] Na mesma proporção, em que<br />
determinados espaços são conferidos aos negros, várias interdições lhe são<br />
colocadas [...]. Quando uma pessoa negra rompe com o espaço que lhe é reservado,<br />
55<br />
PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estudos Avançados, v.18, n. 50,<br />
São Paulo: 2004, p. 2. Disponível em:<br />
. Acesso em: 14<br />
jan. 2011.<br />
56<br />
BHABHA, 1998, p. 117.<br />
57 CUTI, s.d.<br />
29
o da subalternidade, passa a sofrer uma espécie excessiva de visibilidade, causando<br />
inclusive incômodo para muitos. 58<br />
Por outro lado, o negro se torna invisível em locais de subalternidade ou realizando<br />
atividades em espaços nobres. Porém, quando o próprio afro-brasileiro ocupa posições de<br />
destaque em lugares não permitidos aos negros enquanto coletividade, é, automaticamente,<br />
embranquecido e considerado fora do grupo étnico de origem. Nesse contexto, “a literatura,<br />
enquanto forma de poder de articulação e de imposição de um determinado discurso, [...]<br />
revela não só as representações literárias para e dos grupos dominantes, como também exerce<br />
o poder de representar o Outro”. 59 Isso pode ser percebido nas produções literárias dos séculos<br />
que se sucederam ao descobrimento do país.<br />
2.1 O imaginário sobre o negro: discriminação e preconceito de cor com os<br />
afrodescendentes<br />
Muito tempo se passou desde a Abolição da escravidão, em 1888. Contudo, atitudes<br />
preconceituosas e de discriminação com relação ao negro ainda persistem, principalmente no<br />
que diz respeito à cor. O preconceito contra o negro está incrustado na sociedade brasileira e,<br />
por isso, está presente também nos escritos literários. Na obra A casa da água, objeto de<br />
análise desse trabalho, a personagem Catarina, por ser ex-escrava, é um dos exemplos da<br />
herança dos sofrimentos causados pela escravidão. Por essa razão, justifica-se a inclusão<br />
dessa parte do estudo, a fim de mostrar algumas visões e ideias a respeito da cor negra, por<br />
parte do branco.<br />
A questão da cor é uma categoria classificatória, criada culturalmente na tentativa de<br />
situar o sujeito em um contexto social em que as relações de poder o posicionam como igual<br />
ou diferente, dominado ou dominante. Em outras palavras, a tonalidade da pele tem sido<br />
relacionada à posição social ocupada na estrutura socioeconômica da sociedade, o que torna<br />
indissociáveis as categorias de cor, etnia 60 e classe social quando se identifica um brasileiro<br />
como negro, mulato ou branco.<br />
58 SOUZA apud EVARISTO, Conceição. Literatura e educação segundo uma perspectiva afro-brasileira. In:<br />
SIMPÓSIO AFRO-CULTURA, LITERATURA E EDUCAÇÃO, 1., 2010. Frederico Westphalen, RS. Anais...<br />
Frederico Westphalen: <strong>URI</strong>/FW, 2010, p. 459.<br />
59 EVARISTO, Conceição. Literatura e educação segundo uma perspectiva afro-brasileira. In: SILVA, Denise<br />
Almeida; EVARISTO, Conceição. Literatura, história, etnicidade e educação: estudos nos contextos afrobrasileiro,<br />
africano e da diáspora africana. Frederico Westphalen: <strong>URI</strong>, 2011, p. 50.<br />
60 SANTOS, Célia Regina dos; WIELEWICKI, Vera Helena Gomes. Literatura de autoria de minorias étnicas e<br />
sexuais. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Org.). Teoria Literária: abordagens históricas e<br />
tendências contemporâneas. 3. ed. Maringá: Eduem, 2009, p. 342. Etnia é a articulação das lutas de classe, das<br />
30
Pensada desse modo, a cor deixa de ser um qualitativo e passa a ter um caráter<br />
essencial. Nessa perspectiva, é a partir dos traços físicos que o negro passa a ser avaliado,<br />
acentuando-se a diferença entre brancos e pretos. Por outro lado, se sua aparência não revela a<br />
sua ascendência negra, é considerado branco. De um modo ou de outro, no Brasil, a<br />
discriminação se manifesta de maneira velada, e a posição social é forjada em função da etnia.<br />
A discriminação com base na etnia demonstra a violação do princípio de que todos os<br />
seres humanos são iguais em dignidade e direitos. Julgar o indivíduo pela sua aparência é<br />
comportamento de um grupo social dominante que se considera superior e, portanto, procura<br />
afastar-se dos demais. De acordo com João Baptista Pereira, “[a] discriminação é o processo<br />
de marginalização social e cultural imposta ao homem ou ao grupo „diferente”. 61<br />
A classificação dos indivíduos com relação à cor, posição social e raça é produzida em<br />
contextos históricos específicos e não simplesmente um reflexo transparente no espaço da<br />
linguagem. Segundo Cuti, o silêncio em face da supremacia branca e suas práticas de rejeição<br />
social, no período pós-abolicionista, aos poucos, vai sedimentando o viés comportamental do<br />
brasileiro não negro ou daquele que se julga como tal, e, inclusive dos próprios negros.<br />
Portanto, nesse último contexto, discriminar é uma forma de os mestiços de diversas origens<br />
negarem-se como negros, mesmo que seus vínculos estejam presentes em sua ascendência ou<br />
e em suas caraterísticas físicas. 62<br />
Essa atitude de autodiscriminação explica-se pela necessidade de integração, pois<br />
viver em sociedade significa dominar técnicas sociais e assimilar padrões culturais, requisitos<br />
indispensáveis para que o indivíduo possa disputar e preservar posições na estrutura social. O<br />
negro sofre as condições desfavoráveis e, por esse motivo, em algumas situações, por medo<br />
de represálias, acaba negando-se como sendo um homem de cor. 63<br />
No Brasil, segundo Santos, constrói-se um ideário de submissão e dominação pautado<br />
na ideia de inferioridade da etnia negra, em torno da qual se forma uma imagem peculiar de<br />
qualidades e relacionada a características negativas, como forma de degradação do negro.<br />
particularidades de gênero, dos processos culturais e históricos. A etnicidade de um povo refere-se às diferenças<br />
raciais que se aproximam por relações múltiplas de língua, religião, história, conhecimento e defesas comuns,<br />
constituindo assim um campo de comunicação e interação que o distinguirá de outros. Já raça, é o conceito que<br />
diz respeito a certos atributos físicos biológicos comuns a um determinado grupo, geralmente classificando os<br />
grupos raciais em negro, branco, amarelo etc. Construído sobre fenótipos, o conceito de raça está ligado ao<br />
sentido de tipo, classificando os seres humanos por suas características físicas ou capacidade mental.<br />
61 PEREIRA, João Baptista Borges; FERNANDES, Florestan; NOGUEIRA, Oracy. A questão racial brasileira<br />
vista por três professores. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 175, dez./fev. 2005-2006.<br />
62 CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010, p. 16-17.<br />
63 PEREIRA, FERNANDES, NOGUEIRA, 2005-2006, p. 176.<br />
31
Contrariamente ao que representava a cor branca, ao negro sempre se impuseram atributos<br />
depreciativos. Em relação a isso, Cohen pondera:<br />
Em todos os tempos esta cor sempre esteve revestida de valores negativos nas<br />
línguas indo-europeias. É desta maneira que em sânscrito, o branco simboliza a<br />
classe dos brâmanes, a mais elevada da sociedade. Em grego, o negro sugere uma<br />
mácula tanto moral quanto física; ele trai, igualmente, os homens de intenções<br />
sinistras. Os romanos não somaram a este vocábulo nenhum significado novo: para<br />
eles, o negro é signo de morte e de corrupção enquanto o branco representa a vida e<br />
a pureza. Os homens da Igreja, à procura de chaves e símbolos que revelassem os<br />
sentidos ocultos da natureza, fizeram do negro a representação do pecado e da<br />
maldição divina. 64<br />
De acordo com William Cohen, desde a antiguidade greco-romana, existe uma<br />
imagem distorcida sobre a África e os africanos. Terra de figuras monstruosas segundo<br />
Heródoto, Plínio e Rabelais e tantos outros, a África é vista pela Europa “como uma porta<br />
para o inferno”. 65 Essas figuras são os homens de cor que, pela sua aparência e pelo modo<br />
como vivem, são igualados aos animais, conforme relatos sobre os mistérios selvagens da<br />
África negra, feitos por viajantes em busca de terras perdidas. A cor que os distinguia dos<br />
brancos necessitava de um esclarecimento.<br />
O ser do negro, então, torna-se objeto de investigação, uma vez que se constituía em<br />
um fenômeno diferente. Segundo a visão europeia, “quer por obra da natureza, quer por obra<br />
divina, havia se produzido um ser que merecia explicação, um ser anormal”. 66 Isso, na<br />
maioria das vezes, era justificativa para considerar o negro como alguém que apresenta<br />
inferioridade natural. Ainda de acordo com as ideias da Europa civilizada, a África é uma<br />
terra de pecado e imoralidade. Seus habitantes vivem sem regras, são “povos de clima tórrido<br />
com sangue quente e paixões anormais que só sabem beber e fornicar”. 67 Isso gera seres<br />
corrompidos, inferiores, sem inteligência.<br />
As diferenças culturais entre os vários povos que pertencem ao continente africano<br />
tornam-se invisíveis, quando entra em cena a questão da cor da pele. Essa invisibilidade é<br />
dada ao povo da África pela sociedade que, por falta de conhecimento, rotula de negros todos<br />
os seus habitantes, como se todos fossem iguais no que diz respeito à cor, cultura e religião. Já<br />
a Europa, branca, é tomada como paradigma para a compreensão da cultura, como se fosse<br />
possível transplantar os valores. A inferioridade dos africanos é justificada por meio de<br />
64 COHEN, 1980, p. 39 apud SANTOS, Gislene Aparecida. A invenção do ser negro: um percurso das ideias<br />
que naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/Fapesp; Rio de janeiro: Pallas, 2002, p. 45.<br />
65 COHEN, 1980 apud SANTOS, 2002, p. 53.<br />
66 SANTOS, 2002, p. 55.<br />
67 Ibidem, p. 55.<br />
32
argumentos ecológicos, ou seja, as condições ambientais da África levam seus habitantes a<br />
uma vida tranquila, sem preocupações. Isso faz com que sua inteligência se desenvolva<br />
pouco, tendo em vista que não precisam estimulá-la. Em outras palavras, o desenvolvimento<br />
se dá de acordo com as exigências do meio.<br />
Com o passar do tempo, muitas são as explicações que tentam justificar a inferioridade<br />
do homem de pele escura, quer sejam pelo caráter social, político físico ou religioso. Porém, a<br />
única diferença decorrente de todas as outras é a raça. Nesse sentido, transforma-se a<br />
aparência, a cor da pele, em fator de discriminação:<br />
[s]e os traços físicos estabeleciam uma conduta, seria importante desenvolver uma<br />
ciência da aparência, que seria a reedição da ideia de que o corpo representa a<br />
exteriorização da alma, revelando, por meio de seus traços, os vícios e as virtudes<br />
humanas. Com os avanços conseguidos pela anatomia, que podia provar a<br />
interdependência dos órgãos do corpo e a influência de suas funções na conduta do<br />
indivíduo, não foi difícil argumentar que diferenças físicas entre as raças<br />
produzissem diferenças intelectuais e morais. 68<br />
No Brasil e em outros países do Novo Mundo, o preconceito contra o negro é um dos<br />
mais arraigados em virtude dos séculos de escravidão. O negro, mesmo antes de ter sido<br />
escravizado, já apresenta um defeito: a cor. Segundo David Brookshaw,<br />
[a] associação da cor preta com maldade e feiura, e da cor branca com bondade e<br />
beleza remonta à tradição bíblica, resultando daí que o simbolismo do branco e preto<br />
constitui parte intrincada da cultura europeia, permanecendo em seu folclore e em<br />
seu patrimônio literário e artístico. H. R. Isaacs repete este aspecto do assunto<br />
sucintamente: Estes conceitos e usos de maldade preta e de bondade branca, de<br />
formosa brancura e feia negritude estão profundamente inseridos na Bíblia, [...] na<br />
verdade, estão atados em quase todas as fibras entrelaçadas de arte e literatura das<br />
quais nossa história se reveste. 69<br />
Diante do exposto, é possível supor que o racismo faz uso de vários elementos<br />
presentes no imaginário, oferecendo-lhes um caráter científico. A ideologia racista vale-se dos<br />
valores estéticos em relação ao negro. Por esses motivos, é que o preconceito com relação ao<br />
negro busca argumentos e elucidações para sua razão de ser, edificando-se, enraizando-se<br />
cada vez mais na mente e na realidade das pessoas.<br />
Para Hannah Arendt, a ideologia racista, com raízes profundas no século XVIII,<br />
emerge simultaneamente em todos os países ocidentais durante o século XIX. Desde o início<br />
do século XX, o racismo reforça a ideologia da política imperialista, absorvendo e revivendo<br />
68 SANTOS, 2002, p. 57.<br />
69 BROOKSHAW, David. Raça & cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado<br />
Aberto, 1983, p. 12.<br />
33
todos os antigos pensamentos racistas que, por si só, não teriam sido capazes de transformar<br />
esse racismo em ideologia. 70<br />
A autora, ao discutir o caráter persuasivo dessa ideologia, analisa que:<br />
A extraordinária força de persuasão decorrente das principais ideologias do nosso<br />
tempo não é acidental. A persuasão não é possível sem que seu apelo corresponda<br />
às nossas experiências ou desejos ou, em outras palavras, a necessidades imediatas.<br />
Nessas questões a plausibilidade não advém nem de fatos científicos, como vários<br />
cientistas gostariam que acreditássemos, nem de leis históricas, como pretendem os<br />
historiadores em seus esforços de descobrir a lei que leva as civilizações ao<br />
surgimento e ao declínio. Toda a ideologia que se preza é criada, mantida e<br />
aperfeiçoada como arma política e não como doutrina teórica. 71<br />
E a ciência, segundo Hannah Arendt, torna-se o artifício que justifica a dominação e<br />
que cria uma nova necessidade, pois consente com a ideologia, enfatizando as ilusões e as<br />
ideias que difunde. O racismo projeta-se a partir do momento em que alguns povos lançam<br />
seu olhar imperialista sobre outros, de modo a submetê-los mais facilmente.<br />
O racismo deliberadamente irrompeu através de todas as fronteiras nacionais,<br />
definidas por padrões geográficos, linguísticos, tradicionais ou quaisquer outros, e<br />
negou a existência político-nacional como tal. A ideologia racial, e não a de classes,<br />
acompanhou o desenvolvimento da comunidade das nações europeias, até se<br />
transformar em arma que destruiria essas nações. Historicamente falando, os<br />
racistas, embora assumissem posições aparentemente ultranacionalistas, foram<br />
piores patriotas que os representantes de todas as outras ideologias internacionais;<br />
foram os únicos que negaram o princípio sobre o qual se constroem as organizações<br />
nacionais de povos – o princípio de igualdade e solidariedade de todos os povos,<br />
garantido pela ideia de humanidade. 72<br />
O exercício da literatura associa-se aos movimentos de afirmação do negro, a partir da<br />
conscientização da situação desse sujeito na sociedade, “seja no espaço dos povos da África,<br />
seja no domínio da afro-diáspora” 73 [...] Isso traz uma preocupação, pois quando o negro faz<br />
uso do espaço literário como meio de afirmação cultural, pode enfrentar novas e sutis<br />
armadilhas marginalizantes, como o preconceito velado. Essa preocupação se torna pertinente<br />
no momento em que o espaço literário agrega elementos de resgate da memória coletiva e dos<br />
que fazem a história do negro, enquanto grupo étnico. Com relação a isso, Proença Filho<br />
expõe:<br />
70 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras,<br />
1989, p. 188.<br />
71 Ibidem, p. 189.<br />
72 ARENDT, 1989, p. 191.<br />
73 PROENÇA FILHO, 2004, p. 15.<br />
34
O resgate dos mitos, a proximidade cultural com a África, mas sem distorções<br />
nostálgicas, e com outros países em que a discriminação existe, o tempo escravo<br />
repensado, as revoltas, situação do negro e de seus descendentes na construção<br />
socioeconômica do país e sua marcada participação nos tempos heroicos da<br />
formação da nacionalidade, as contribuições linguísticas colocadas em evidência na<br />
nossa língua portuguesa do Brasil, podem, entre outros traços, contribuir, através da<br />
transfiguração na literatura para o conhecimento e o redimensionamento da presença<br />
do negro na sociedade brasileira. São verdades e valores capazes de se opor<br />
vigorosamente aos estereótipos e preconceitos ainda vigentes no comportamento de<br />
muitos brasileiros. [...] Há que se considerar a literatura como lugar de afirmação e<br />
singularização de identidades múltiplas e várias, mas integradas no tecido da arte<br />
literária brasileira e universal. 74<br />
Diante disso, é importante que os negros e seus descendentes ocupem os espaços na<br />
literatura, em busca de uma representatividade plena, para que essa etnia não seja mais vista a<br />
partir de uma diferença redutora. E os brasileiros, todos, precisam assumir a igualdade na<br />
coparticipação da construção da nacionalidade e o direito à plenitude da cidadania.<br />
Na continuidade, aborda-se a imagem do negro na literatura brasileira, desde o período<br />
colonial até o momento presente. Procura-se demonstrar a importância desse sujeito e a sua<br />
ascensão nos escritos literários ao longo dos séculos.<br />
2.2 Período colonial<br />
A presença do negro nos escritos coloniais é dotada de pouca representatividade. Nos<br />
textos de José Anchieta, aparecem “pequenas descrições que se limitam a constatar a<br />
existência do elemento negro inserido no vasto grupo dos que deviam ser conquistados e<br />
assistidos pelos catequizadores”. Nas “Informações do Brasil e de suas capitanias” (1854), o<br />
jesuíta afirma que na Capitania de Pernambuco existem fazendas e engenhos de açúcar, “cada<br />
um dos quais é uma boa povoação com muita gente branca, Negros da Guiné e Índios da terra.<br />
A todos estes acode a companhia com pregações, doutrinas, confissões...”. 75<br />
Nesse trecho e em outros de seus diversos escritos, Anchieta menciona a presença do<br />
africano, que, juntamente com os índios, são o foco da pregação dos religiosos. Porém, não<br />
passam de pequenas notas, visto que nada é feito em favor dos negros da Guiné, como eram<br />
chamados. Pelo contrário, eles continuam desempenhando as funções serviçais, até nos<br />
colégios da Companhia dos padres jesuítas.<br />
Nos textos de padre Antonio Vieira, é possível perceber uma posição no que se refere<br />
à escravidão. Ele chama atenção para o caráter violento, injusto e degradante da escravização<br />
74 PROENÇA FILHO, 2004, p. 16.<br />
75 ANCHIETA apud FRANÇA, Jean M. Carvalho. Imagens do negro na literatura brasileira. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1998, p. 8-9.<br />
35
dos negros. Todavia, com várias contradições, pois critica e, ao mesmo tempo, considera a<br />
incapacidade de convertê-los. Conforme França, não hesitava “em defender a importação de<br />
escravos de Angola para substituir a mão de obra indígena”. 76<br />
As opiniões desencontradas de Vieira podem ser observadas no trecho em que declara<br />
não acreditar na catequização dos negros: “sendo rebelados e cativos, estão e perseveram em<br />
pecado contínuo e atual, de que não podem ser absoltos, nem receber a graça de Deus, nem se<br />
restituírem ao serviço e obediência de seus senhores, o que de nenhum modo hão de fazer”. 77<br />
Porém, em outros escritos, suas opiniões voltam a ser contraditórias, como em uma carta,<br />
escrita em1652, na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, quando se refere aos habitantes da ilha:<br />
São todos pretos, mas somente neste acidente se distinguem dos europeus. Têm<br />
grande juízo e habilidade, e toda a política que cabe em gente sem fé e muitas<br />
riquezas [...]. Há aqui clérigos e cônegos tão negros com o azeviche, mas tão<br />
compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem<br />
morigerados, que podem fazer inveja aos que lá vemos nas nossas catedrais. 78<br />
Percebe-se, aqui, o juízo inconstante de Vieira a respeito do africano. Suas obras, ao<br />
mesmo tempo em que desqualificam a figura do negro, afirmando que convertê-los é<br />
praticamente impossível, somente com a liberdade, o que ocasionaria prejuízos ao Brasil, por<br />
outro lado, criticam o caráter degradante do comércio de escravos.<br />
O século XVII também marca a presença do homem negro nos versos satíricos de<br />
Gregório de Matos Guerra. Em “Epílogos”, estende a crítica a todas as classes da sociedade<br />
baiana de seu tempo, incluindo os negros e os mulatos.<br />
Que falta nesta cidade?... Verdade.<br />
Que mais por sua desonra?... Honra.<br />
Falta mais que se lhe ponha... Vergonha.<br />
O demo a viver se exponha,<br />
Por mais que a fama a exalta<br />
Numa cidade onde falta<br />
Verdade, honra e vergonha. [...]<br />
Quem são seus doces objetos?... Pretos.<br />
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.<br />
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.<br />
Dou ao demo os insensatos,<br />
Dou ao demo a gente asnal,<br />
Que estima por cabedal<br />
Pretos, mestiços, mulatos. [...] 79<br />
76 FRANÇA, 1998, p. 16.<br />
77 VIEIRA, 1926, p. 621 apud FRANÇA, 1998, p. 16-17.<br />
78 VIEIRA, 1926, p. 295 apud FRANÇA, 1998, p. 18.<br />
79 MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 37.<br />
36
Constata-se a crítica à paisagem moral de Salvador, Bahia, a capital do Brasil, na<br />
época colonial. O poder corrupto não escapa à visão do poeta. Gregório critica, de forma<br />
impiedosa, o governador, a igreja, os comerciantes, os brancos, os negros, os mulatos, os<br />
colonos. Ninguém escapa à sua ferocidade linguística, nem mesmo os homens de cor, que<br />
aparecem como objetos e posses da sociedade corrupta e, mesmo assim, não reagem.<br />
Em outros textos, o autor elenca uma série de tipos negros no cotidiano da Bahia. Para<br />
ele, a presença dos africanos é motivo para comentários desabonadores, quase sempre<br />
associados a aspectos negativos, principalmente com relação à mulher negra e à sua<br />
sensualidade.<br />
mesmo autor:<br />
[...] Vossa luxúria é tão indiscreta<br />
É tão pesada, e violenta,<br />
Que em dois putões se sustenta<br />
Uma mulata e uma preta [...] 80<br />
A seguir, a citação também revela a presença do negro estereotipado, nos versos desse<br />
Achei Anica na fonte<br />
Lavando sobre uma pedra [...]<br />
Namorei-a, achei-a dura[...]<br />
Depois de feito o conchavo,<br />
Passei o dia com ela,<br />
Eu deitado a uma sombra,<br />
ela batendo na pedra.<br />
Tanto deu, tanto deu<br />
co‟a barriga e co‟as cadeiras,<br />
Que me deu a anca fendida,<br />
Mil tentações de ir-me a ela. [...] 81<br />
O excerto é parte do poema que o autor fez a uma mulata, que estava lavando roupa,<br />
num passeio que ele realizou até uma ilha. Verifica-se que a personagem é parte do universo<br />
restringido ao negro: os serviços domésticos. Gregório associa a figura da mestiça à<br />
sensualidade e aos prazeres do corpo. O exemplo seguinte assinala, novamente, a<br />
estereotipação do negro:<br />
Ficou a gente pasmada<br />
de ver que uma negra bruta<br />
sendo na vida tão puta,<br />
80 MATOS, 1976, p. 230.<br />
81 MATOS, Gregório de. Os melhores poemas de Gregório de Matos. Sel. Darcy Damasceno. 7. ed. São<br />
Paulo: Global, 2003, p. 86-87.<br />
37
vá na morte tão honrada:<br />
quem é tão aparentada<br />
sempre na honra se estriva,<br />
e assim a gente cativa<br />
ficou pasmada, e absorta,<br />
de ver ir com honra, morta,<br />
quem nunca teve honra na vida. [...] 82<br />
O poema é sobre uma negra que foi enterrada com o hábito de São Francisco, o que<br />
causou estranheza e indignação por parte da população, pois ela não tinha tido uma vida<br />
exemplar e nem prestígio na sociedade. Dessa forma, após a morte, não pode ter honras,<br />
especialmente no que se refere ao uso da roupa de um santo da Igreja Católica.<br />
Após o período colonial, na chamada escola mineira, a referência ao negro é bastante<br />
rara. Os autores em geral limitam-se<br />
a constatar a existência do elemento africano, seja como um possível fiel (fiel não<br />
preferencial) a ser convertido, como parte da paisagem local, como força de trabalho<br />
indispensável para o andamento da economia colonial, como um foco de desordem,<br />
ou ainda como membro ativo do cotidiano de uma cidade onde seu número era<br />
avultado, Salvador. 83<br />
O árcade Tomás Antonio Gonzaga registra a presença da personagem negra, em sua<br />
obra Cartas Chilenas (1788). Mostra vários tipos negros, representando a parcela humilde da<br />
população:<br />
E manda a um bom cabo que lhe traga<br />
A quantos quilombotas se apanharem<br />
Em duras gargalheiras. Voa o cabo,<br />
Agarra a um e outro num instante<br />
Enche a cadeia de alentados negros.<br />
Não se contenta o cabo com trazer-lhe<br />
Os negros que têm culpas, prende e manda<br />
Também, nas grandes levas, os escravos<br />
Que não têm mais delitos que fugirem<br />
Às fomes e aos castigos, que padecem [...] 84<br />
O negro é mostrado como um infrator, que deve ser punido por ser de cor. Se esse<br />
indivíduo não tem culpas, é preso da mesma forma. Aqui, o preconceito está diretamente<br />
ligado à melanina da pele.<br />
Basílio da Gama, outro poeta árcade, confere maior importância ao homem de cor, em<br />
seu poema Quitúbia (1791):<br />
82 MATOS, 2003, p. 131.<br />
83 FRANÇA, 1998, p. 33.<br />
84 GONZAGA, Tomas Antonio. Cartas Chilenas. São Paulo: PAE - Programa de Assistência ao Estudante,<br />
2007, p. 15. (Coleção Mestres da Literatura 2).<br />
38
[...] Teus olhos sobre a escura África se estende;<br />
depois, alada deusa, os ares fende,<br />
e entoa ao tom de bárbara trombeta,<br />
o forte Capitão da Guerra Preta.<br />
Esforçado Quitúbia, o Tejo sabe<br />
Quanto valor em teu peito cabe.<br />
Herdaste de teu Pai o nome e o brio,[...]<br />
O título que tens compraste a tua glória.<br />
Que ainda que essa cor escura o encobre,<br />
Verteste-o por teu Rei: é sangue nobre. 85<br />
Trata-se da grandeza do herói negro, Domingos Ferreira da Assunção, capitão<br />
angolano, que se destaca na Guerra Preta. Esse indivíduo é exaltado por seus feitos históricos,<br />
porém há uma ressalva quando o autor cita a cor da pele do bravo guerreiro: ainda que seja<br />
um homem de cor, tem sangue nobre. Evidencia-se, assim, mais um descaso com relação ao<br />
negro, na história literária brasileira, mesmo ocupando, na obra, um lugar de destaque.<br />
2.3 O século XIX<br />
Nessa época, os temas da escravidão e do escravo passam a suscitar uma reflexão mais<br />
profunda, passando da fase de mera constatação da sua existência. A partir das primeiras<br />
décadas do século XIX, os negros começam a surgir na poesia nacional, como no livro<br />
Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, publicado em 1836. 86<br />
[...] Que ao filho sempre a mãe anosa antolhas,<br />
A pátria ao peregrino, o amigo ao amigo,<br />
O esposa à esposa; e ao malfadado escravo,<br />
Que sem futuro pelo mundo vaga,<br />
Mostras a liberdade e o lar paterno; [...]<br />
Oh terra do Brasil, terá querida,<br />
Quantas vezes do mísero Africano<br />
Te regaram as almas saudosas?<br />
Quantas vezes teus bosques repetiram<br />
Magoados acentos<br />
Do cântico do escravo,<br />
Ao som dos duros golpes de Machado? [...]<br />
À voz do eterno obediente a terra<br />
Se mostra austera e parca<br />
Que a lágrima do escravo esteriliza<br />
O terreno que orvalha.<br />
A natureza preza a liberdade,<br />
E só franqueia aos livres seus tesouros. [...]<br />
Oh suspirada, oh cara Liberdade,<br />
85 GAMA, Basílio da. Quitúbia. 1791. Disponível em:<br />
. Acesso em: 19 mar. 2011.<br />
86 FRANÇA, 1998, p. 37.<br />
39
Descende asinha do Africano à choça,<br />
Seu pranto enxuga, quebra-lhe as cadeias,<br />
E adoça-lhe da pátria a dor saudosa. [...] 87<br />
Nessa obra, o poema Invocação à saudade mostra um tipo negro que é retomado<br />
muitas outras vezes pela literatura oitocentista: o escravo melancólico e saudoso de sua terra.<br />
O autor retrata o africano como um sujeito perdido, longe de suas raízes, com saudades da<br />
África. Mostra, ainda, a tristeza do negro, pelo sofrimento, a falta de dignidade e o desejo de<br />
liberdade.<br />
Segundo Edimilson de Almeida Pereira, as ligações entre Brasil e África estreitaram-<br />
se devido ao enorme contingente de escravos que chegaram entre os séculos XVI e XIX,<br />
trazendo uma gama de elementos culturais, que se tornaram parte das práticas cotidianas do<br />
brasileiro. Porém, a sociedade brasileira dispensou um tratamento preconceituoso para com os<br />
negros, desqualificando alguns dos aspectos referentes às culturas africanas. 88 Assim, no<br />
século XIX, os escritores e os artistas elegem a figura do índio e a natureza como símbolos da<br />
nacionalidade, desvalorizando, mais uma vez, a presença do negro nos escritos. Para o crítico,<br />
[i]sso ocorreu na medida em que o português foi sendo identificado com a figura do<br />
ex-colonizador e o negro africano, por sua vez, com a imagem do atraso e da<br />
ignorância. A idealização do índio na literatura romântica produzida no Brasil e a<br />
rejeição dos demais grupos étnicos do País caracterizaram-se como um<br />
procedimento reducionista. 89<br />
Esse modo de afirmar a identidade nacional baseia-se na valorização de um grupo em<br />
detrimento de outro. Nesse contexto, “os descendentes de escravizados são utilizados como<br />
temática literária predominantemente pelo viés do preconceito e da comiseração. A<br />
escravização havia coisificado os africanos e sua descendência”. 90 E a literatura está sujeita a<br />
seguir essa linha, negando complexidade às personagens de pele escura, visto que ela é o<br />
reflexo e o reforço das relações sociais e de poder.<br />
Conforme Brookshaw, nessa época romântica, o espírito de independência e liberdade<br />
estava ligado ao espírito de nacionalismo e à procura por uma identidade totalmente<br />
brasileira. Conforme o que demonstra Gonçalves Dias, no poema Os Timbiras (1857), o<br />
87 MAGALHÃES, Gonçalves de. Invocação à saudade. In: ______. Suspiros Poéticos e saudades. 1836.<br />
Disponível em: . Acesso em: 19<br />
mar. 2011.<br />
88 PEREIRA, Edimilson de Almeida. Malungos na escola: questões sobre culturas afrodescendentes e educação.<br />
2. ed. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 22.<br />
89 Ibidem, p. 23.<br />
90 CUTI, 2010, p. 16.<br />
40
índio torna-se o representante desses ideais românticos. 91 Porém, mesmo exaltando o<br />
indígena, o poeta não deixa de referir-se ao negro. Em Meditação (1850), Dias escreve uma<br />
crítica à escravidão:<br />
Pois em verdade vos digo que será o primeiro escarnecido, ludibriado e martirizado<br />
aquele que se julgar dominador por todo o tempo de sua vida.<br />
Porque o Senhor disse: - E se alguém de vós quiser dominar os seus irmãos tornarse-á<br />
o último dentre eles.<br />
E assim será por todo o sempre, porque a palavra do Senhor é eterna. 92<br />
O poema representa simbolicamente uma afronta à política do favor. Por outro lado,<br />
reflete o desejo do poeta de interferir no processo de formação da sociedade brasileira,<br />
extinguindo o trabalho escravo para atingir a civilidade. A obra não atende às expectativas<br />
românticas, mas traz elementos que denunciam as mazelas sociais do Brasil oitocentista,<br />
principalmente a escravidão, como é possível observar quando o autor critica o indivíduo que<br />
se julga superior aos seus.<br />
À medida que o negro aparece na literatura brasileira é para contrastar com o índio. O<br />
negro, que representa a realidade da classe colonizada, trabalhando na lavoura do colonizador,<br />
não se sobressai ao padrão indígena nos escritos literários. O índio é corajoso e tem orgulho<br />
de sua independência. 93<br />
José de Alencar, no romance de costumes rurais Til (1872), demonstra a submissão<br />
“natural” dos escravos negros, opondo-os com o índio João Fera, que demonstra um espírito<br />
de independência. Ele mesmo diz: “Não me torno [...] escravo de um homem, que nasceu rico,<br />
por causa das sobras que me atirava, como atiraria a qualquer outro, ou a seu negro”. 94<br />
Examina-se a superioridade do índio em relação ao negro, no momento em que menciona que<br />
o homem branco dá as sobras aos escravos. Com as palavras de João Fera, fica evidente que,<br />
numa escala hierárquica, o homem de cor ocupa a última posição, é um ser qualquer.<br />
Outro romance que retrata os estereótipos com relação ao negro é A escrava Isaura<br />
(1875), de Bernardo Guimarães. Filha de um homem branco e de uma negra, Isaura tem pele<br />
branca, mas é escrava e recebe da família, a que pertence, fina educação: sabe francês, toca<br />
piano. A heroína é uma escrava considerada branca, de linhagem nobre por parte do pai. Por<br />
91<br />
BROOKSHAW, 1983, p. 27.<br />
92<br />
DIAS, Gonçalves. Meditação. Disponível em: . Acesso<br />
em: 21 jul. 2011.<br />
93<br />
BROOKSHAW, 1983, p. 27.<br />
94<br />
ALENCAR, José. Til. 8. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1964, p. 79.<br />
41
essa razão, suas características, seus traços europeus são ressaltados, colocando-a em<br />
vantagem sobre qualquer outra mulata:<br />
Acha-se ali sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de moça. As linhas<br />
do perfil desenham-se distintamente entre o ébano da caixa de piano e as bastas<br />
madeixas ainda mais negras do que ele. São tão puras e suaves essas linhas que<br />
fascinam os olhos, enlevam a mente e paralisam toda análise. A tez é como o<br />
marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que<br />
não sabereis dizer se é leve palidez ou cor de rosa desmaiada. [...] 95<br />
Isso revela que o escravo, em qualquer situação literária, na qual está em posição de<br />
superar o branco, é retratado na cor branca ou seu tom de pele não é mencionado. Tem-se,<br />
dessa forma, o escravo nobre que vence pela força de seu branqueamento, embora a custo de<br />
muito sacrifício e humilhação. A respeito disso, Brookshaw pondera:<br />
A figura do escravo branco oferece prova substancial de que os escritores<br />
interessados no problema escravidão foram, contudo, vítimas de todos os<br />
preconceitos e intolerâncias que rodeavam a questão da raça e da cor. O escravo, em<br />
certas situações, tinha de ser retratado na cor branca, a fim de provar uma exceção à<br />
regra (sic) que negros eram escravos por natureza e para não ofender as<br />
suscetibilidades de um público leitor fundamentalmente pró-escravatura. 96<br />
Portanto, na literatura brasileira, a personagem negra, além de pouca<br />
representatividade, desaparece, seja através da morte ou do clareamento. Desde os escritos<br />
coloniais, ao tema negro tem sido negada importância nos escritos, numa espécie de<br />
apagamento dessa raça, como forma de inferiorizar as manifestações de origem africana<br />
diante das demais raças.<br />
Na mesma situação de A escrava Isaura, aparece a obra O mulato (1881) de Aluísio<br />
Azevedo, em que o personagem Raimundo, um belo mulato de olhos azuis, educado e<br />
recentemente vindo da Europa, vive um caso de amor com sua prima rica, Ana Rosa.<br />
Desconhecendo sua condição de filho de uma escrava, Raimundo sofre sem compreender a<br />
hostilidade do meio social maranhense, conservador e racista. A princípio não consegue<br />
entender o porquê da recusa da mão de Ana Rosa em casamento.<br />
- Mas o senhor deve compreender a minha insistência! Não se diz assim, sem mais<br />
nem menos, a um homem que vem, legítima e conscienciosamente, pedir a mão de<br />
uma senhora, que a isso o autorizou. “Não lha dou, porque não quero! [...] O senhor<br />
deve concordar que me deve uma resposta, seja qual for! [...]<br />
Manuel sacudiu os ombros e resmungou depois, em ar de confidência:<br />
- Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor é... é filho de uma escrava...<br />
95 GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. 20. ed. São Paulo: Ática, 1994, p. 13.<br />
96 BROOKSHAW, 1983, p. 30.<br />
42
- Eu?!<br />
- O senhor é um homem de cor!... Infelizmente esta é a verdade... 97<br />
Quando descobre o motivo que o impede de ser feliz com a prima, Raimundo lamenta<br />
e finalmente compreende “todos os mesquinhos escrúpulos que a sociedade do Maranhão<br />
usara para com ele”. 98 Porém, não consegue esquecer as palavras de Manuel; sente-se mais só<br />
do que nunca:<br />
E tudo por quê?... pensava ele, porque sucedera sua mãe não ser branca!...Mas do<br />
que servira então ter-se instruído e educado com tanto esmero? [...] E Raimundo<br />
revoltava-se. Pois, melhores que fossem as suas intenções, todos ali o evitavam,<br />
porque a sua pobre mãe era preta e fora escrava? Mas que culpa tinha ele em não ser<br />
branco e não ter nascido livre?... [...] Amaldiçoada fosse aquela maldita raça de<br />
contrabandistas que introduziu o africano no Brasil! Maldita! Mil vezes maldita!<br />
Com ele quantos desgraçados não sofriam o mesmo desespero e a mesma<br />
humilhação sem remédio? 99<br />
Em O Mulato, o autor expõe as mazelas da sociedade, que explora o trabalho escravo<br />
e nutre um profundo preconceito contra os negros e mestiços. Denuncia o preconceito para<br />
com os escravos, mostrando a consequência trágica desse relacionamento: a morte de<br />
Raimundo pelo rival branco. Ana Rosa aborta o filho que espera de Raimundo, casa-se com o<br />
assassino e torna-se uma típica mãe de família burguesa. Mais uma vez, o branco sobrepõe-se<br />
ao negro, e este é eliminado.<br />
Muitos outros autores dessa época dedicam versos ao negro, dentre eles o maranhense<br />
Manuel Odorico Mendes, com “Hino à tarde” (1844); Teixeira e Sousa, com um poema<br />
chamado “A Independência do Brasil” (1847); José Bonifácio de Andrada, na década de 50,<br />
com “Calabar” e “Saudades do escravo”; Joaquim Norberto de Sousa e Silva, “Os Palmares”,<br />
poema épico de 1851 e Bernardo Guimarães, com o livro de poesias Cantos da solidão<br />
(1852), o qual traz um poema consagrado ao africano: “À sepultura de um escravo”. 100<br />
Contudo, é com Castro Alves que a presença do negro é vista com mais frequência na<br />
literatura nacional, mais precisamente na poesia. Considerado o poeta dos escravos, o autor<br />
retira o tema da escravidão do anonimato, colocando o tipo negro como figura constante nos<br />
escritos, mas com personagens que são a representação da realidade: jardineiros, cozinheiras,<br />
etc. Seus textos poetizam a vida do negro escravo, apresentando-o como ser humano digno a<br />
uma sociedade que o mercantiliza:<br />
97<br />
AZEVEDO, Aluísio. O mulato. São Paulo: Ática, 1996, p. 166.<br />
98<br />
Ibidem, p. 167.<br />
99<br />
Ibidem, p. 185.<br />
100<br />
FRANÇA, 1998, p. 38-41.<br />
43
América<br />
[...] A filha das matas – cabocla morena-<br />
Se inclina indolente sonhando talvez!<br />
A fronte nos Andes reclina serena.<br />
E o Atlântico humilde se estende a seus pés.[...]<br />
Já falta bem pouco. Sacode a cadeia<br />
Que chamam riquezas... que nódoas te são!<br />
Não manches a folha de tua epopeia<br />
No sangue do escravo, no imundo balcão.<br />
Sê pobre, que importa? Sê livre... és gigante,<br />
Bem como os condores dos píncaros teus!<br />
Arranca este peso das costas do Atlante,<br />
Levanta o madeiro dos ombros de Deus. 101<br />
Na primeira estrofe, a “cabocla morena” é referência à América. Essa imagem<br />
sintetiza a origem mestiça da população americana: da mistura do branco com o índio resulta<br />
o caboclo. A seguir, o poema expressa a visão do eu lírico com relação à escravidão, tida<br />
como um negócio lucrativo e sórdido, capaz de envergonhar a história de um continente.<br />
As obras A cachoeira de Paulo Afonso (1876) e Os escravos (1883), ambas<br />
publicadas depois da morte de Castro Alves, abordam o tema da escravidão, mostrando uma<br />
enorme quantidade de estereótipos, que caracterizam a literatura do período. Um exemplo é o<br />
do negro humilhado:<br />
[...] Trema o céu... ó ruína! Ó desgraça!<br />
Porque o negro bandido é quem passa<br />
Porque o negro bandido bradou:<br />
Cai, orvalho de sangue do escravo,<br />
Cai, orvalho, na face do algoz.<br />
Cresce, cresce, seara vermelha,<br />
Cresce, cresce, vingança feroz.<br />
Dorme o raio na negra tormenta...<br />
Somos negros... o raio fermenta<br />
Nesses peitos cobertos de horror.<br />
Lança o grito da livre coorte,<br />
Lança, ó vento, pampeiro de morte,<br />
Este guante de fero ao senhor.[...] 102<br />
Esse texto é o início do poema “Bandido negro”, pertencente ao livro Os escravos.<br />
Essa composição retrata a revolta do homem de cor com a sua condição de escravo,<br />
101 ALVES, Castro. Os escravos. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 61-62.<br />
102 Ibidem, p. 58.<br />
44
transformando-se em justiceiro. A sua vingança é para com o fazendeiro, que o mantém<br />
escravo, assassina seu pai e desonra sua mãe.<br />
Outro texto que demonstra a estereotipação é o poema “Tragédia no lar” (1865).<br />
Neste, uma mãe negra sofre com o drama da escravidão:<br />
E a mãe em pranto ao pé dos mercadores. Atirou-se a gemer.<br />
- Senhor! Basta a desgraça<br />
De não ter pátria nem lar,<br />
De ter honra e ser vendida,<br />
De ter alma e nunca amar![...]<br />
Deixai à mãe o filhinho,<br />
Deixai à desgraça o amor.<br />
Meu filho é-me a sombra amiga<br />
Neste deserto cruel... [...]<br />
É da vida o único brilho...<br />
Meu filho! É mais... é meu filho...<br />
Deixai-mo em nome da Cruz!... 103<br />
A tristeza da mãe que tem o filho arrancado dos braços para ser vendido é evidente. A<br />
alegria da maternidade é dilacerada pela crueldade do cativeiro, pela falta de humanidade dos<br />
homens brancos, que negam à escrava o direito de zelar pelo seu bem mais precioso: o filho.<br />
Tem-se, então, a desagregação da família negra devido ao comércio de escravos, o que revela<br />
outro estereótipo: a criança de cor, que, desamparada e longe da família, alimenta sonhos de<br />
vingança.<br />
Que tens criança? [...]<br />
Tu choras porque um ramo de baunilha<br />
Não pudeste colher,<br />
Ou pela flor gentil da granadilha?<br />
Dou-te, um ninho, uma flor, dou-te uma palma.<br />
Para em teus lábios ver<br />
O riso – a estrela no horizonte da alma.<br />
Não. Perdeste tua mãe ao fero açoite<br />
Dos seus algozes vis.<br />
E vagas tonto a tatear à noite.<br />
Choras antes de rir... pobre criança!<br />
Que queres, infeliz!...<br />
- Amigo, eu quero o ferro da vingança. 104<br />
Esses versos foram retirados do poema “A criança”, de 1865. O autor, Castro Alves,<br />
demonstra em muitos textos a crítica com relação à escravidão. Além dos tipos negros<br />
mencionados, muitos outros são encontrados em seus escritos, tais como o escravo sofredor<br />
103 ALVES, 2003, p. 50.<br />
104 Ibidem, p. 54-55.<br />
45
que alcança a liberdade pela morte, a escrava desonrada pelo filho do patrão, a bela mulata<br />
que se torna amante do fazendeiro e o escravo nobre. Além desses temas, destacam-se a<br />
abolição e o apostolado abolicionista, a desumanidade e a selvageria do tráfico de escravos, a<br />
homenagem à república de Palmares e a escravidão como o toque de barbárie da história da<br />
pátria e do continente americano. 105<br />
Com Castro Alves, negros e mulatos aparecem na poesia nacional, não mais como<br />
resultado de uma criação passageira, que ocupa alguns poucos versos, mas como parte de um<br />
movimento progressivo, que se inicia lentamente, na década de 30, com Gonçalves de<br />
Magalhães. Já na década de 50, ganha impulso, atingindo seu ponto mais forte, no início da<br />
década de 60, inclusive como tema para peças teatrais.<br />
No teatro brasileiro, os problemas relativos à escravidão são discutidos diretamente<br />
em algumas obras, revivendo alguns tipos negros já referidos. Destacam-se O cego (1855), de<br />
Joaquim Manuel de Macedo, com o negro fiel e empenhado em servir seu senhor cego;<br />
História de uma moça rica (1861), de Francisco Pinheiro de Guimarães, em que aparece<br />
uma bela mulata, cínica e insolente, que se amasia com o patrão; O escravocrata (1882), de<br />
Arthur Azevedo e Urbano Duarte, que trata do caso amoroso entre um escravo fiel com sua<br />
patroa; O demônio familiar (1857), de José de Alencar, cujo tema é a corrupção moral do<br />
negro pela escravidão, tendo como personagem principal um moleque, que, por conhecer os<br />
segredos domésticos, faz algumas intrigas a respeito dos patrões. Por último, A mãe (1859),<br />
também de autoria de Alencar, que enfoca a vida de Joana, uma mãe negra dedicada e<br />
sofredora, que devota toda a sua vida a Jorge, seu filho, e que mais tarde se torna seu senhor,<br />
desconhecendo a verdadeira identidade de Joana:<br />
105 FRANÇA, 1998, p. 56-60.<br />
Cena III<br />
JOANA - Ah! Quando senti o primeiro movimento que ele fez no meu seio, tive<br />
uma alegria grande, como nunca pensei que uma escrava pudesse ter. Depois uma<br />
dor que só tornarei a ter se ele souber. Pois meu filho havia de ser escravo como eu?<br />
Eu havia de lhe dar a vida para que um dia quisesse mal à sua mãe? Deu-me vontade<br />
de morrer para que ele não nascesse... Mas isso era possível?... Não, Joana devia<br />
viver!<br />
Dr. LIMA - Foi então que Soares te comprou...<br />
JOANA - Ele me queria tanto bem! Deu por mim tudo quanto tinha... Dois contos de<br />
réis! Eu fui para sua casa. Aí meu nhonhô nasceu, e foi logo batizado como filho<br />
dele, sem que ninguém soubesse quem era sua mãe.[...]<br />
JOANA - E por isso só. Vm. era capaz de afirmar? Não! Quem lhe contou fui eu,<br />
com a condição de não dizer nunca!...<br />
Dr. LIMA - Pois bem, Joana! Não direi uma palavra. Continuarás a ser escrava de<br />
teu filho. Será para ele a dor mais cruel quando souber...<br />
46
JOANA - Nunca!... Quem vai lhe dizer?... Além de Vm. e de mim, só Deus sabe<br />
este segredo. Enquanto meu senhor estava fora eu vivia descansada... [...]<br />
Dr. LIMA - Nunca me habituarei!.... Tu não sabes como eu te admiro, Joana; e<br />
como dói-me no coração ver esse martírio sublime a que te condenas.<br />
JOANA - Eu vivo tão feliz, meu senhor! [...] 106<br />
O medo de sair da clandestinidade é atribuído ao temor da rejeição pela pessoa que<br />
Joana mais ama. Assim, a heroína prefere suicidar-se, quando Jorge descobre seu segredo.<br />
Entretanto, a preocupação de Castro Alves com o direito dos escravos à liberdade não<br />
significa que esse autor está imune ao preconceito contra os negros. Evidências, em sua obra,<br />
comprovam que o preconceito se faz presente. Isso se deve ao fato de o escritor tratar do tema<br />
“do ponto de vista da classe a que pertencia: com uma mistura de idealismo e medo”. Um<br />
exemplo do idealismo de Alves é o personagem Luiz, na peça Gonzaga, um negro<br />
responsável que está integrado à sociedade, mas que trata seus superiores com o respeito que<br />
esperam dele. 107 Isso demonstra que o negro, mesmo quando integrado à sociedade branca,<br />
continua assumindo a postura de subserviente.<br />
Joaquim Manuel de Macedo e Franklin Távora são dois escritores que fazem uso de<br />
estereótipos em suas obras, porém de maneiras distintas. Távora, em seus romances O<br />
Cabeleira (1876), O Matuto (1878) e Lourenço (1881), apresenta bons negros, libertos da<br />
escravidão e trabalhando em suas próprias terras, enfatizando as qualidades passivas e<br />
respeitáveis do negro. Por outro lado, retrata, também, o escravo demônio, assim como o faz<br />
Castro Alves. Já Macedo, evidencia o escravo livre, mas abandonado à própria sorte,<br />
diferentemente de Távora. 108<br />
A justificativa para o preconceito contra o negro recebe um impulso a partir do<br />
romance naturalista O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Essa obra traz o negro e o mestiço<br />
erotizados e sensuais, como é o caso da mulata Rita Baiana. Com relação a isso Brookshaw<br />
comenta:<br />
Ela é a típica heroína naturalista cuja composição biológica domina o<br />
comportamento. Com efeito, em várias ocasiões, Azevedo enfatiza a sua<br />
amoralidade. Tendo seduzido o português Jerônimo, ela, então, torna-se a causa da<br />
degeneração do mesmo, que de um imigrante trabalhador e honesto passa a ser um<br />
brasileiro inútil e dado a vícios. Nessa trajetória, porém, Jerônimo elimina seu rival<br />
Firmo, mulato e primeiro amor de Rita. 109<br />
106 ALENCAR, José. A mãe. 1859. Disponível em: . Acesso em: 28 mar. 2011.<br />
107 BROOKSHAW, 1983, p. 38.<br />
108 Ibidem, p. 39-41.<br />
109 Ibidem, p. 45.<br />
47
Assim demonstrado, tem-se mais uma vez a supremacia do branco diante do negro.<br />
Além do estereótipo negativo da mulata imoral que, pela exagerada sensualidade,<br />
volubilidade e falta de princípios morais sólidos corrompe os lares brancos e influencia<br />
negativamente as pessoas mais próximas. O cortiço, também, traz o negro como serviçal,<br />
subalterno e animalizado na figura da personagem Bertoleza. Esta pagava ao seu proprietário<br />
para viver sozinha e tocar uma pequena quitanda: “Bertoleza também trabalhava forte; a sua<br />
quitanda era a mais bem-afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite, peixe-frito e<br />
iscas de fígado”. [...] 110<br />
Com o passar do tempo, Bertoleza confia a João Romão todas as economias que<br />
juntou para poder pagar sua alforria. Fez isso com medo de ser assaltada, como já havia sido.<br />
João Romão se apossa de tudo o que era dela, compra um terreno e começa a construção do<br />
cortiço. A escrava, que nem desconfia das intenções de João Romão, considerando-o um<br />
amigo, uma espécie de sócio, trabalha incansavelmente, como é possível observar:<br />
Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de<br />
criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada<br />
estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois<br />
preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que havia para além de<br />
um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão<br />
na taverna quando o amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua quitanda durante<br />
o dia no intervalo de outros serviços e à noite passava-se para a porta da venda, e,<br />
defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia<br />
pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à praia do<br />
Peixe. E o demônio da mulher ainda encontrava tempo para lavar e consertar, além<br />
da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha a verdade, não era tanta e nunca<br />
passava em todo o mês de alguns pares de calças de zuarte e outras tantas camisas de<br />
riscado. 111<br />
A partir de seu progresso econômico, João Romão começa a interessar-se por Zulmira,<br />
filha do comerciante Miranda, e sonha em casar-se com ela para mudar de condição social.<br />
Depois de uma vida dedicada ao trabalho e ao próprio João Romão, Bertoleza percebe que foi<br />
enganada por ele e que sua carta de alforria não é verdadeira. Ameaçada de voltar ao<br />
cativeiro, a escrava se suicida, e João Romão casa-se com Zulmira. Esses estereótipos<br />
enfatizam a tese de que o forte sobrevive e o fraco é eliminado pelo bem da sociedade.<br />
Com relação a Machado de Assis, Proença Filho avalia que é um escritor que merece<br />
considerações especiais. Há quem defenda que um mulato ter se tornado um dos maiores<br />
escritores brasileiros é significativo para a afirmação da etnia negra, mesmo que, em suas<br />
obras, esse tema não esteja muito aprofundado. Outros criticam a ausência da problemática<br />
110 AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Moderna, 1995, p. 19.<br />
111 Ibidem, p. 21.<br />
48
negra positivamente dimensionada. 112 Machado é um escritor que tem a crítica como uma<br />
característica singular, e toma posição diante da temática da escravidão, como exemplificam<br />
os contos “O caso da vara”, publicado no livro Páginas recolhidas (1889), e “Pai contra<br />
mãe”, que está em Relíquias da casa velha (1906).<br />
Neste último conto, o autor inicia a narração fazendo uma descrição dos instrumentos<br />
de tortura em uso contra o escravo. Depois fala do personagem Candinho, que se torna<br />
caçador de escravos fugidos. Menciona as dificuldades financeiras do personagem que, com<br />
um filho pequeno, vê-se obrigado a colocar a criança na roda dos enjeitados. É nessa situação<br />
de conflito interior que aparece uma escrava procurada, para a qual estava sendo oferecida<br />
uma boa gratificação. Então, Candinho a domina e a leva. Grávida, a escrava aborta devido à<br />
luta pela sua liberdade. 113<br />
Através dessa narrativa, o tema da escravidão se faz presente, mostrando os excluídos<br />
e os que têm apoio para vencer: negro x branco. Em outros termos: Candinho é branco e livre,<br />
está ao lado dos fortes, enquanto a escrava, por ser negra, é privada da liberdade e é excluída<br />
da sociedade. Nesse sentido, Machado de Assis adentra na questão da escravidão,<br />
denunciando que o direito à vida é concedido apenas aos que são livres.<br />
Cruz e Sousa, poeta do simbolismo brasileiro, é outro caso singular. Negro, filho de<br />
escravos alforriados, sofre preconceito que o impede, entre outras discriminações, de assumir<br />
o cargo de promotor público. Esse conflito vivenciado pelo autor reflete-se em seus escritos,<br />
através da associação da cor branca às qualidades ideais e da cor negra aos mesmos<br />
infortúnios de outrora. 114 Essas características depreciativas da cor negra e a supremacia da<br />
branca se fazem presentes nos versos:<br />
De linho branco e rosas brancas vais vestido,<br />
Sonho virgem que cantas no meu peito!...<br />
És do Luar o claro deus eleito,<br />
Das estrelas puríssimas nascido. 115 [...]<br />
A citação exemplifica a valorização e o desejo pela cor branca. Essa atitude é uma<br />
forma de negar a cor negra, tendo em vista a discriminação e o preconceito que o próprio<br />
autor foi vítima. Em contrapartida, o excerto a seguir revela o sofrimento dos mais humildes:<br />
112 PROENÇA FILHO, 2004, p. 8.<br />
113 ASSIS, Machado. Relíquias da casa velha. s.d. Disponível em:<br />
. Acesso em: 29<br />
mar. 2011.<br />
114 PROENÇA FILHO, 2004, p. 9.<br />
115 SOUSA, Cruz e. Poesias completas. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 25.<br />
49
Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,<br />
Ó ser humilde entre os humildes seres,<br />
Embriagado, tonto dos prazeres,<br />
O mundo para ti foi negro e duro.[...]<br />
Mas eu que sempre te segui os passos<br />
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços<br />
E o teu suspiro como foi profundo! 116<br />
O fragmento revela os infortúnios sofridos pelos escravos. O poeta, condicionado aos<br />
conceitos tradicionais de branco e preto na cultura europeia, aceita todos os preconceitos e<br />
estereótipos dos brancos com relação à sua raça.<br />
2.4 Século XX<br />
No modernismo brasileiro, a visão distorcida do negro continua presente, nos registros<br />
literários. Os escritores modernistas de grandes centros, como São Paulo, são responsáveis<br />
pela incorporação de material ameríndio e afro-brasileiro na literatura e na arte. Porém, a<br />
preferência mais pelo índio do que pelo negro é algo que pode ser explicado a partir da<br />
tradição maior de indianismo no nacionalismo literário brasileiro, autodeterminada pela<br />
própria distância temporal do índio e seu isolamento dos efeitos da história colonial. A razão<br />
disso está no grande número de imigrantes europeus sobrepondo sua cultura em detrimento da<br />
afro-brasileira. 117<br />
Se os modernistas de modo geral voltam-se mais ao índio em busca de material<br />
primitivo, o fazem com objetivo diverso dos escritores românticos do século XIX, que o<br />
caracterizavam como um “selvagem nobre” e como um símbolo da identidade nacional, mas<br />
sem rejeitar a cultura europeia. Os modernistas procuram no índio e no negro a corporificação<br />
de uma cultura oposta, ou seja, um selvagem irreverente. O objetivo não é a busca de material<br />
artístico, mas a transformação de todo um sistema de valores. O potencial cultural e a<br />
originalidade brasileira estão na combinação da tradição ameríndia com a afro-brasileira. 118<br />
A procura de outros personagens representantes brasileiros sem ascendência africana é<br />
a saída usada por alguns intelectuais, que veem no sertanejo um ponto de estabilidade no<br />
panorama étnico brasileiro. Euclides da Cunha, em Os Sertões (1902), argumenta que,<br />
mesmo o habitante do sertão sendo etnicamente misturado, desenvolve-se “isolado das<br />
116 SOUSA, 1998, p. 99.<br />
117 BROOKSHAW, 1983, p. 80-81.<br />
118 Ibidem, p. 82-84.<br />
50
circunstâncias históricas e das exigências de uma civilização imposta que podia ter perturbado<br />
sua constituição”. O escritor estabelece um contraste entre “o rude sertanejo, o degenerado<br />
mulato e o fraco, subserviente negro das plantações do litoral”, esquecendo que muitos desses<br />
sertanejos têm descendência africana. 119<br />
Para ele, “o sertanejo é antes de tudo um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos<br />
mestiços neurastênicos do litoral”. 120 Cunha eleva a posição dos sertanejos e rebaixa os<br />
mestiços, mesmo que o sertanejo tenha se originado da miscigenação das raças. Isso<br />
demonstra que o interesse dos ideais culturais brasileiros é o desejo de uma civilização branca<br />
e de um representante nacional que permaneça como símbolo de pureza rural. Tal atitude faz<br />
com que a presença do afro-brasileiro seja cada vez mais abafada nos romances do período<br />
pós-abolição. 121<br />
A discriminação, embora assumindo, muitas vezes, formas discretas, sempre<br />
acompanha os caminhos da etnia negra. O afrodescendente continua sendo excluído da<br />
sociedade e raramente aceito. Seu espaço resume-se a posições inferiores e a profissões sem<br />
prestígio, tendo em vista o preconceito e a discriminação com relação ao seu tom de pele. Na<br />
maioria dos textos, esses sujeitos são relegados aos trabalhos domésticos e a atividades sem<br />
expressão, do menino de recado à cozinheira da casa, como se exemplifica com Tia<br />
Anastácia, personagem do Sítio do Picapau Amarelo (1920), de Monteiro Lobato.<br />
Jorge Amado, na década de 30, aborda o tema da escravidão em várias obras. Dentre<br />
elas, Jubiabá (1935), que traz como personagem o exuberante negro Antonio Balduíno, que<br />
segue o exemplo de Zumbi dos Palmares, na luta contra as injustiças sociais. Segundo<br />
Brookshaw:<br />
A figura do herói de Jubiabá corresponde exatamente ao negro estereotipado da<br />
voga primitivista e é a esse respeito que se manifesta o preconceito de Jorge Amado.<br />
Balduíno é uma criatura só instinto. Sua vitalidade, espontaneidade e libido<br />
imunizam-no contra desejos materiais. Por isso Balduíno “era puro como um animal<br />
e tinha por única lei os instintos”. Em determinado momento, Amado salienta que<br />
“dinheiro era coisa que não fazia falta ao negro Antonio Balduíno”. De fato, seu<br />
insaciável instinto não se volta em direção ao dinheiro, mas para a experiência<br />
sexual sem a qual, conforme foi mencionado, ele não pode viver. 122<br />
119 BROOKSHAW, 1983, p. 59.<br />
120 CUNHA, Euclides. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 118.<br />
121 BROOKSHAW, 1983, p. 60.<br />
122 Ibidem, p. 134-135.<br />
51
Tem-se, então, o estereótipo do negro sexualmente mais ativo e depravado do que o<br />
branco. Jorge Amado faz uso de personagens negros, em seus escritos, tendo em vista a forte<br />
presença da mitologia africana na cultura na vida baiana, sua terra de origem.<br />
Jorge de Lima é um escritor que merece destaque. Em Poemas negros (1947),<br />
manifesta a consciência da discriminação racial, porém defende uma identidade brasileira<br />
culturalmente mestiça. Seu interesse é que o mulato, embora se despoje de sua pigmentação<br />
preta, ainda assim, preserve a espiritualidade de seus antepassados negros. 123 Isso demonstra a<br />
defesa de uma estratégia de branqueamento da raça negra, o que, no Brasil, segundo<br />
Brookshaw, “era tão irreversível quanto desejável”. 124<br />
2.5 A literatura afro-brasileira<br />
A literatura afro-brasileira emerge como uma forma de preenchimento do vazio criado<br />
pela perda de identidade do negro, no longo período em que a cultura dominante foi o ideal da<br />
grande maioria dos negros brasileiros. Esse discurso literário é um modo de recuperar as<br />
raízes, a própria história africana.<br />
Segundo Bernd, falar em literatura negra não é atrelar-se à cor da pele do autor nem à<br />
temática por ele utilizada. É, antes de tudo, assumir a condição negra por meio de um eu que<br />
se quer negro. Para a autora, a concepção de negritude é uma questão linguística:<br />
[a] presença de uma articulação entre textos, determinada por um certo modo<br />
negro de ver e sentir o mundo, e a utilização de uma linguagem marcada,<br />
tanto no nível do vocabulário quanto no dos símbolos, pelo empenho em<br />
resgatar uma memória negra esquecida legitimam uma escritura negra<br />
vocacionada a proceder a desconstrução do mundo nomeado pelo branco e a<br />
erigir sua própria cosmogonia. Logo, uma literatura cujos valores fundadores<br />
repousam sobre a ruptura com contratos de fala e de escritura ditados pelo<br />
mundo branco e sobre a busca de novas formas de expressão dentro do<br />
contexto literário brasileiro. 125<br />
A literatura negra compreende a presença de um sujeito que reconquista a posição de<br />
enunciador, não só como reconhecimento, mas reapropriando-se de um espaço existencial,<br />
como meio de sair da invisibilidade que lhe foi imposta. Para isso, não é preciso ser negro,<br />
mas sentir-se como tal.<br />
123 BROOKSHAW, 1983, p. 94-95.<br />
124 Ibidem, p. 97.<br />
125 BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 22.<br />
52
Uruguay Cortazzo diverge das ideias de Zilá Bernd, no que se refere à separação de<br />
corpo e identidade, na literatura negra. Para o autor, “a literatura negra tem como fundamento<br />
uma política corporal que se desenvolve como uma estética identitária”. 126 Toda literatura<br />
nasce num contexto sociocultural e, portanto, não pode exprimir o que não é experienciado. O<br />
negro não é somente um ente linguístico; é um indivíduo que traz na pele as marcas de um<br />
passado de escravidão, que só pode ser expresso, a partir do ponto de vista de quem viveu e<br />
conviveu com essa realidade.<br />
De acordo com Cuti, denominar a literatura negro-brasileira de afro é atribuir-lhe uma<br />
desqualificação com base na hierarquização das culturas. Os termos “afro-brasileiro” e<br />
“afrodescendente” “são expressões que induzem a discreto retorno à África, afastamento<br />
silencioso no âmbito da literatura brasileira para se fazer de sua vertente negra um mero<br />
apêndice da literatura africana” 127 . Em outras palavras, é considerar a literatura produzida no<br />
Brasil, por autores que desenvolvem temas negros, como uma extensão da literatura africana e<br />
não parte integrante do imaginário brasileiro.<br />
Atrelar a literatura negro-brasileira à literatura africana teria um efeito de referendar<br />
o não questionamento da realidade brasileira por esta última. A literatura africana<br />
não combate o racismo brasileiro. E não se assume como negra. Ainda, a<br />
continentalização africana da literatura é um processo desigual se compararmos com<br />
outros continentes. Países com a sua singularidade estético-literária são colocados<br />
sob o mesmo rótulo. A diversidade africana mais uma vez é negada. [...] 128<br />
Essa negação das particularidades promove ainda mais a dominação, agora no âmbito<br />
literário. Isso demonstra que a tendência é a rejeição de uma identidade continental por parte<br />
dos literatos africanos, brancos ou negros, pois a preferência é por uma caracterização<br />
nacional, a partir das noções de território geográfico.<br />
Cuti prossegue suas reflexões, explicando que o termo “negro” remete o cidadão à<br />
reivindicação diante do racismo. Já “afro-brasileiro” retoma o continente africano, com todas<br />
as suas nações e seus habitantes, nem todos negros e tampouco ligados à ascendência negro-<br />
brasileira. Para o autor,<br />
identificar-se com essa palavra é comprometer sua consciência na luta antirracista, é<br />
estar atento aos preconceitos e à consequente cristalização de estereótipos, é dar<br />
mais ênfase à criação diáspórica do que à origem de seus produtores ou teor de<br />
melanina em suas peles.[...] 129<br />
126 CORTAZZO, Uruguay. Branquitude e crítica literária. In: SILVA, EVARISTO, 2011, p. 127.<br />
127 CUTI, 2010, p. 34.<br />
128 Ibidem, p. 36.<br />
129 Ibidem, p. 44-45.<br />
53
Utilizar termos que não expressam a verdadeira identidade do negro e nem revelam<br />
seu teor reivindicatório é estar contribuindo para o preconceito e a estereotipação do cidadão<br />
de pele escura. Há ainda resistência com relação a essa denominação. O cânone literário<br />
brasileiro “precisa de forte antídoto contra o racismo nela entranhado”. Os autores que se<br />
comprometem com a causa do negro discriminado devem revelar em seus textos “um Brasil<br />
que se quer negro também no campo da produção literária, pois o país plural se manifesta no<br />
entrechoque das ideias e nos intercâmbios de pontos de vista”. 130<br />
Já Conceição Evaristo e Denise Almeida Silva defendem, na introdução da obra<br />
Literatura, história, etnicidade e educação, o termo afro-brasileiro. Conforme as autoras,<br />
Para referência à poética negra praticada em território brasileiro, optamos pelo termo<br />
literatura afro-brasileira, pois cremos que o uso do adjetivo hifenizado distingue uma<br />
produção literária criada a partir de sujeitos cuja assunção de uma nacionalidade,<br />
também hifenizada, “afro-brasileira”, além de reportar à ascendência africana de<br />
seus/suas criadores/as, intencionalmente marca o lugar político de sujeitos que, por<br />
injunções históricas, reivindicam identidades pessoal e coletiva específicas na nação<br />
brasileira. 131<br />
Evaristo chama a atenção para como, nas últimas três décadas, afirma-se, no interior<br />
da Literatura Brasileira, um discurso que evidencia um posicionamento do negro como sujeito<br />
agente, e não mais como objeto a ser descrito:<br />
se há uma literatura que aprisiona os sujeitos negros no espaço da estereotipia ou os<br />
apaga como seres inexistentes na sociedade, há outro discurso literário em que,<br />
vigorosamente, seus criadores, homens e mulheres, afirmam uma ancestralidade<br />
africana. Esses discursos incorporam saberes, visões de mundo vivenciados em<br />
outros espaços sociais e culturais, assim como muitas vezes além de revelar o<br />
pertencimento étnico, revelam também o de gênero. 132<br />
O discurso do negro revela-se em uma literatura da qual emerge uma consciência<br />
negra, assumindo uma identidade, que busca recuperar as raízes da cultura negra. Além disso,<br />
há uma preocupação em desenvolver um protesto contra as complicadas e sutis formas de<br />
racismo e preconceito de que a comunidade negra brasileira ainda é vítima, depois de tanto<br />
tempo da Abolição da escravatura.<br />
De acordo com Cortazzo, o discurso do negro como sujeito “procura redefinir agora a<br />
representação convencional e preconceituosa que se tem formado do negro na instituição<br />
130 CUTI, 2010, p. 13.<br />
131 SILVA, EVARISTO, 2011, p. 10.<br />
132 EVARISTO, 2011, p. 51.<br />
54
literária”. 133 Em outros termos, a presença desse indivíduo, na literatura brasileira, quase<br />
sempre tem envolvido procedimentos ideológicos, atitudes e estereótipos da estética branca.<br />
O discurso do negro começa a manifestar o comprometimento de escritores negros e<br />
seus descendentes com a etnia. No Brasil, essa literatura<br />
emerge no bojo de uma situação histórica, configuradora da reivindicação pelos<br />
negros de determinados valores de uma identidade própria. Essa identidade e sua<br />
presença forjadora e aglutinadora da comunidade em que o grupo étnico se situa<br />
seriam elementos decisivos na luta pela eliminação das discriminações e pela<br />
conquista do lugar que lhes pertence de direito e que o grupo dominante insiste em<br />
negar, das mais variadas maneiras, ostensiva e disfarçadamente. A luta é um<br />
procedimento que surge forte no âmbito da crise da modernidade, ligada à<br />
fragmentação social. 134<br />
Esses textos, na maioria poemas, centralizam-se na temática negra e na tomada de<br />
posição quanto ao preconceito. É um discurso revelador de visões do mundo, caracterizando-<br />
se por uma certa especificidade, ligada a um intuito bem claro de singularidade cultural.<br />
De acordo com Eurídice Figueiredo, na literatura brasileira, não há uma produção<br />
muito vasta que tematiza a escravidão e os elementos culturais negros. O que há é uma<br />
produção sobre o negro, visto a partir dos interesses de uma elite branca. Autores do século<br />
XX como Jorge Amado, Josué Montello, João Ubaldo Ribeiro e Ana Maria Gonçalves tratam<br />
da memória do período escravista e a herança do candomblé. Para a autora, essa lacuna<br />
justifica-se pelo fato de a elite literária brasileira ter tentado apagar a história da escravidão,<br />
como forma de eliminar o passado de vergonha; ademais, esses escritores eram, na maioria,<br />
brancos. 135<br />
O posicionamento engajado em favor do afro-brasileiro começa a ganhar força a partir<br />
dos anos de 1960. Porém, alguns casos em que a voz do negro falou sobre a temática negra, já<br />
haviam se manifestado anteriormente. Dentre esses, destacam-se Luis Gama e Lima Barreto.<br />
Segundo Jorge de Souza Araujo, Luiz Gama foi o primeiro escritor negro a expor o<br />
preconceito de cor na sociedade brasileira. “Consciente dos valores intrínsecos da negritude,<br />
Gama opôs a assimilação como forma de unificar a brasilidade à segregação absurda e<br />
preconceituosa.” 136 Em suas poesias satíricas, fez referência a sua cor e criticou os afro-<br />
brasileiros que não se mostram como tal. Abolicionista, destacou-se através dos poemas,<br />
133 CORTAZZO, 2011, p. 125.<br />
134 PROENÇA FILHO, 2004, p. 15.<br />
135 FIGUEIREDO, 2010, p. 168-169.<br />
136 ARAUJO, Jorge de Souza. Poética negra brasileira, do barroco ao modernismo: afirmação de espaços e<br />
sagração de valores. In: SILVA, Denise Almeida; EVARISTO, Conceição. Literatura, história, etnicidade e<br />
educação: estudos nos contextos afro-brasileiro, africano e da diáspora africana. Frederico Westphalen: <strong>URI</strong>,<br />
2011, p. 119-130.<br />
55
pronunciamentos e artigos em jornais, sustentando a ideia de que todos os brasileiros têm elos<br />
sanguíneos e, por essa razão, deveriam unificar-se, da mesma forma como a língua já era um<br />
traço comum a todos.<br />
Lima Barreto é outro escritor negro que em seus romances critica os valores artificiais<br />
e a falta de autenticidade da classe dominante. Segundo Brookshaw, “[o]s romances de Lima<br />
Barreto atingem um nível de consciência social que o tornam o único tanto como escritor<br />
afro-brasileiro, quanto como predecessor dos romances do realismo social que surgiram nas<br />
décadas de 30 e 40”. 137 Em outros termos, é o escritor que, pela primeira vez, criticou<br />
abertamente o preconceito racial a partir do ponto de vista do mulato, como na obra<br />
Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1902) e, mais tarde, em Clara dos Anjos<br />
(1922).<br />
Esse novo posicionamento literário de autores como Lima Barreto e Luis Gama revela<br />
a presença de grupos de escritores assumidos como negros ou descendentes destes,<br />
preocupados em marcar a afirmação cultural da condição negra na realidade brasileira. Essa<br />
tomada de posição relaciona-se aos movimentos de conscientização da população de cor<br />
surgidos no século XX, os quais vêm ganhando contornos mais nítidos e definidos ao longo<br />
desse período histórico. 138 Os debates em torno da literatura negra vêm se ampliando com o<br />
intercâmbio entre autores, críticos e público interessado nessa linha de produção literária.<br />
Desde os anos 80, escritores que se declararam afro-brasileiros ou negro-brasileiros têm<br />
abordado a temática do negro em seus trabalhos. Dentre esses, destaca-se Luiz Silva – Cuti –<br />
cujo espaço de divulgação nos Cadernos negros vem contribuindo para o crescimento das<br />
produções literárias que abordam a escravidão. 139<br />
A produção literária contemporânea tem abordado a memória da escravidão,<br />
mostrando situações que repercutem no imaginário ou no inconsciente coletivo. Para<br />
Figueiredo,<br />
137 BROOKSHAW, 1983, p. 166.<br />
138 PROENÇA FILHO, 2004, p. 10.<br />
139 FIGUEIREDO, 2010, p. 169.<br />
140 Ibidem, p. 169.<br />
[re]contar literariamente nossa história sobredeterminada pela escravidão é criar<br />
ficções que deem conta de um certo ambiente, forçosamente imaginário, através de<br />
diferentes formas de arquivos a fim de figurar nossa memória cultural. O escritor usa<br />
os arquivos não para reconstituir a história como ela de fato foi; através dos<br />
vestígios deixados, através das expressões culturais lacunares que resistiram, através<br />
dos traumas que persistem, o escritor conta histórias para testemunhar. 140<br />
56
Portanto, a literatura usa os elementos da própria história, mas os reelabora de forma<br />
imaginária com o intuito de tentar recriar uma época habitada por personagens que viveram e<br />
sofreram no passado.<br />
Segundo Bernd, a literatura negra passará a ocupar um espaço mais importante no<br />
contexto literário e da sociedade brasileira no momento em que deixar de exprimir<br />
constantemente a violência, o preconceito e os ataques aos direitos humanos dos quais são<br />
vítimas os negros brasileiros. Um exemplo desse discurso literário é o poema em prosa de<br />
Edimilson de Almeida Pereira, que traz um novo enfoque, um olhar diferenciado sobre a<br />
causa negra:<br />
O grito<br />
A palavra tem sido o lugar onde levantamos abrigo. Na plantação, no garimpo,<br />
tecemos o grito, origem do que falamos. O que foi registro de rebeldia, não se<br />
aplacou, irrompe na página desnorteando os cães de caça. O grito espreita atrás da<br />
escrita, não confia em setas, escolhe os atalhos. Os cães foram ensinados a varar a<br />
noite e o tempo. A palavra, no entanto, é um edifício e se alarga para as margens da<br />
floresta. 141<br />
Logo, é nas entrelinhas do discurso e na capacidade de trabalhar a linguagem que a<br />
literatura produz consequências de verdades que levam o leitor, o sujeito, a reavaliar a sua<br />
prática, ou seja, o seu relacionamento com o outro e a consequente valorização do negro como<br />
ser humano.<br />
As informações trazidas neste capítulo, sobre a imagem do negro na literatura<br />
brasileira, juntamente com o estudo realizado, no primeiro capítulo, a respeito do<br />
deslocamento do indivíduo e sua busca por uma identidade, através da memória dos fatos,<br />
serão a base para o estudo da obra A casa da água, cujo foco são as personagens Catarina,<br />
Mariana, Joseph, Ainá e Sebastian, tendo em vista sua contribuição nas diferentes épocas que<br />
a obra retrata. Tais subsídios servirão para que se observe, no romance, a maneira distinta<br />
com que Antonio Olinto constrói seus personagens, livres dos estereótipos que<br />
acompanharam, e ainda acompanham, em muitos casos, os negros no imaginário literário<br />
brasileiro.<br />
141 PEREIRA, 2003, p. 211 apud BERND, Zilá (Org.). Escrituras híbridas: estudos em literatura comparada.<br />
Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2001.<br />
57
3 DESLOCAMENTO, MEMÓRIA E IDENTIDADE EM A CASA DA ÁGUA<br />
Esse capítulo ocupa-se da análise do romance A casa da água, do escritor mineiro<br />
Antonio Olinto, tendo como elementos de investigação o deslocamento, a memória e a<br />
identidade em alguns personagens do romance. Inicia-se com a apresentação do escritor<br />
Antonio Olynto Marques da Rocha, e o lugar ocupado pelo romance em estudo em sua obra.<br />
A análise do romance parte de enfoque sobre a matriarca Catarina/Ainá, que é trazida da<br />
África para trabalhar como escrava nas fazendas brasileiras, mas nunca perde a esperança de<br />
retornar. A seguir, aborda-se a protagonista Mariana, neta de Catarina, que faz a viagem de<br />
retorno à África com a avó, os irmãos e a mãe, e acaba tornando-se a referência econômica e<br />
emocional da família. Por último, o enfoque recai sobre os descendentes de Mariana: os filhos<br />
Joseph, Ainá e Sebastian, que nascendo na África, não encontram dificuldades de adaptação à<br />
cultura africana nem à cultura europeia, adquirida durante os anos de estudo na Europa,<br />
convivendo com uma diversidade cultural enorme.<br />
3.1 O negro na literatura de Antonio Olinto: a trilogia Alma da África<br />
Antonio Olynto Marques da Rocha nasceu no dia dez de maio de 1919, em Ubá,<br />
Minas Gerais. Herdou o gosto pelas letras do avô, que foi professor e jornalista. Olinto teve<br />
uma vida simples ao lado dos pais. Seus irmãos morreram ainda pequenos. Viveu no<br />
seminário durante muitos anos, onde aperfeiçoou seus conhecimentos, pois suas tarefas eram<br />
a leitura e a oração. Com o passar dos anos começa a produzir suas obras. São poesias,<br />
ensaios, crítica literária, dentre outros.<br />
Em 1962, quando é nomeado Adido cultural do Brasil na Nigéria, Olinto dá início,<br />
junto à colônia de descendentes brasileiros desse país e, também, de Daomé, atual Benin, a<br />
um trabalho pioneiro e eficaz na promoção do restabelecimento do contato com o Brasil, ao<br />
qual se mantinham ainda sentimentalmente ligados, mesmo após o retorno. 142<br />
Nessa época, registram-se algumas tentativas brasileiras de estreitar os laços com a<br />
África Negra, criando-se embaixadas em vários estados africanos, dentre as quais a que Olinto<br />
foi designado. Lá, regularmente, ele escreveu artigos sobre a vida do lugar para o jornal O<br />
142 CONDÉ, 2008, p. 77.<br />
58
Globo. Ao retornar, depois de três anos, reúne os textos e os publica na obra Brasileiros na<br />
África (1964), o qual é considerado pela crítica um registro primoroso da presença brasileira<br />
em solo africano. Esse texto passou a ser objeto de estudos e de teses acadêmicas em todo o<br />
país e no mundo.<br />
A esposa, Zora, estudiosa da cultura africana, contribui para a divulgação da cultura<br />
nigeriana junto à imprensa. A partir das demonstrações de preservação da cultura brasileira<br />
em terra africana, o casal sugere medidas para ajudar a manter o entusiasmo do povo<br />
daomeano pelas coisas do Brasil, como a criação de cursos regulares de Português, a<br />
concessão de bolsas de estudo e a instalação de um centro cultural que organizava exposições<br />
periódicas sobre a arte e os costumes brasileiros. 143<br />
Na Nigéria, Olinto e a esposa participam de todos os eventos sociais, envolvendo-se<br />
verdadeiramente com os nativos, na busca pelo estabelecimento de laços de amizade. Isso<br />
contribuiu para a perfeita integração do autor com o povo africano e sua cultura.<br />
Antonio Olinto situa-se entre os escritores brancos que recorrem à temática negra.<br />
Brasileiros na África (1964) e A casa da água (1969) são obras produzidas a partir da<br />
experiência na África, mais precisamente em Lagos, na Nigéria, como Adido Cultural da<br />
Embaixada do Brasil. Apesar de branco, Olinto se opõe às escritas tradicionais do branco<br />
sobre o negro. Não recorre a estereótipos, como o fizeram escritores do período colonial e dos<br />
séculos XIX e XX. É um autor que não se encaixa na tradição da escrita sobre o negro, pois o<br />
indivíduo negro, em suas obras, é respeitado e valorizado, sendo representado por<br />
personagens que têm orgulho de sua cor, de sua terra e de seus costumes, livres da<br />
estereotipação visível na literatura brasileira que o antecede.<br />
A carreira de romancista surge com a publicação de A casa da água, romance<br />
traduzido para o inglês, o francês e o espanhol, logo após sua primeira edição brasileira,<br />
consagrando Olinto internacionalmente. Essa obra, que é o corpus de análise, neste capítulo,<br />
recria a saga de uma família negro-brasileira de volta à terra mãe, depois da Lei Áurea.<br />
O romance aborda os costumes do negro-africano, que passou muitos anos lutando<br />
para manter sua identidade. Vivendo no Brasil e submetido ao regime de escravidão, o<br />
africano procura preservar as lembranças de sua terra natal, através de um constante ir e vir da<br />
memória. Já na África, o continente idealizado, esses indivíduos diaspóricos percebem que<br />
seus referenciais identitários sofreram uma hibridação cultural. Agora, precisam integrar-se a<br />
essa construção nova, numa constante negociação de ideias contraditórias, que se abrem para<br />
143 CONDÉ, 2008, p. 79.<br />
59
o novo. Entre o lembrar e o esquecer, as personagens transitam, tomando consciência de que a<br />
história não pode ser resgatada por um simples retorno ao lar de então.<br />
Segundo Eurídice Figueiredo, durante o século XIX, muitos afro-brasileiros<br />
retornaram à África, sobretudo na região do Golfo de Benin, mais precisamente em Benin,<br />
Nigéria, Togo e Gana. A maioria retorna por vontade própria e se instala na África, criando<br />
uma comunidade de brasileiros. Isso acaba sendo tematizado por alguns romances brasileiros,<br />
centrados na figura da mulher que retorna. 144 Esse é o caso de A casa da água, produzido por<br />
um escritor que vivencia a experiência de viver longe de sua terra. Segundo Claudia Condé,<br />
[a] matéria prima de A casa da água é a conexão Brasil-África, seu povo, seus<br />
costumes, suas particularidades. A partir de sua vivência na Nigéria, que lhe<br />
permitiu conhecer os brasileiros que voltavam ao continente africano em busca de<br />
suas origens, Olinto se apropria do mundo dessa gente e, incorporando o seu próprio<br />
mundo, cria uma verdadeira odisseia que dura setenta anos – 1898 a 1968 – nesse<br />
primeiro volume de sua trilogia africana. A esse, seguem-se O rei de Keto e Trono<br />
de vidro, que fecha a série. 145<br />
Esse três livros dão origem à trilogia Alma da África, composta pelos romances A<br />
casa da água, O rei de Keto e Trono de vidro. A primeira obra tem como personagem<br />
principal Mariana, que juntamente com seus descendentes ascendem socialmente no tão<br />
sonhado e idealizado espaço, pela matriarca Catarina. Essa ascensão tem na figura da<br />
protagonista o esteio e a liderança para todas as conquistas. Uma mulher que não se deixa<br />
vencer e não teme desafios; que adquiriu o respeito e a admiração não só da família, mas de<br />
todas as pessoas, em todos os lugares da África, por onde passou. Isso demonstra o resgate da<br />
imagem positiva do negro, principalmente, a mulher negra, marginalizada e excluída na<br />
sociedade brasileira de todos os tempos.<br />
Segundo Figueiredo, a literatura faz uso de elementos históricos, reelaborando-os de<br />
forma imaginária, com o intuito de “recriar um espaço-tempo habitado por personagens que<br />
viveram e sofreram no passado” 146 Cabe ao escritor resgatar essa memória. Para Glissant, “a<br />
tarefa do escritor consistiria em explorar o tormento do passado, revelá-lo de maneira<br />
contínua no momento atual a fim de desentranhar um sentido doloroso do tempo e projetá-lo<br />
no futuro”. 147 E é isso que Olinto faz em A casa da água: retrata o negro africano e o negro<br />
144 FIGUEIREDO, 2010, p. 235.<br />
145 CONDÉ, Cláudia de Morais Sarmento. Antonio Olinto: o operário da palavra: uma viagem da realidade à<br />
ficção. 2. ed. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2005, p. 94.<br />
146 FIGUEIREDO, 2010, p. 168.<br />
147 GLISSANT, 1981, p. 133 apud FIGUEIREDO, 2010, p. 168.<br />
60
asileiro, sua dificuldade de readaptação, o sentimento de viver em um entre-lugar, mas,<br />
sobretudo, a superação, o sucesso.<br />
O romance foi escrito no Rio de Janeiro, após a publicação de Brasileiros na África<br />
(1964), obra jornalística que contém as memórias e as vivências africanas de Antonio Olinto.<br />
Na leitura de ambas, verifica-se a associação de personagens da ficção com algumas pessoas<br />
mencionadas em Brasileiros na África. Segundo Cláudia Condé, jornalista pesquisadora da<br />
obra desse autor, esses personagens não são uma reprodução fiel, pois além das características<br />
dos habitantes africanos,<br />
incorporam também características do próprio autor e de pessoas que ele conheceu<br />
ao longo de sua vida, além de ser um sem-número de emoções, sentimentos e<br />
experiências paralelas do próprio autor. A fusão desses elementos capturados e<br />
armazenados na mente do autor, que ali permaneceram até resultar numa<br />
combinação perfeita, irá compor o resultado final. 148<br />
A casa da água retrata a história de Mariana, inspirada em Romana da Conceição,<br />
uma mulher idosa que Olinto conheceu em solo africano e que faz a viagem de retorno à<br />
África acompanhada da avó, chamada Catarina, da mãe e de dois irmãos. Como se percebe,<br />
há coincidência nos nomes das avós, tanto a do romance como a conhecida pelo autor na vida<br />
real. A Romana de Brasileiros na África é, segundo Olinto,<br />
considerada pelos outros brasileiros como a incentivadora de movimentos tendentes<br />
a fazer com que ninguém se esquecesse do Brasil. Olhos alegres, conversa escorreita<br />
e agradável, tia Romana é incansável nesse propósito. [...] Chegou do Brasil em<br />
1900, aos doze anos de idade, num veleiro chamado “Aliança”. 149<br />
A história da personagem Catarina assemelha-se a da avó de Romana, Catarina Pereira<br />
Chaves, descendente de africanos, que, ainda jovem, foi trazida ao Brasil, mas sempre teve o<br />
sonho de voltar à terra natal. Conseguiu convencer a filha, já nascida no Brasil, a ir com ela e<br />
levar seus três netos. O retorno à Nigéria ocorre entre 1890 e 1900, um pouco depois do<br />
grande fluxo de africanos saídos do Brasil rumo à África. Em Brasileiros na África, Olinto<br />
descreve a chegada, em Lagos, de Catarina Pereira Chaves e sua família:<br />
Vêm, em seguida, três irmãos nascidos no Brasil: Romana da Conceição, Luísa da<br />
Conceição e Manuel Emídio da Conceição. São os três, de Recife. Lembram-se, com<br />
muita precisão, da Bahia, porque passaram em Salvador os três últimos anos de sua<br />
vida brasileira. Romana está com 76 anos; Luísa, com 74; Manuel, com 73. [...]<br />
Romana e seus irmão viajaram no veleiro “Aliança”, o mesmo em que também<br />
148 CONDÉ, 2005, p. 91.<br />
149 OLINTO, Antonio. Brasileiros na África. São Paulo: GDR, 1980, p. 146.<br />
61
seguiu Maria Ojelabi. Com eles foram a mãe, Caetana Joaquim da Mota, e a avó,<br />
Catarina Pereira Chaves. Esta, nascida em Abeokutá, ficou decepcionada com sua<br />
terra natal e, com saudades do Brasil, morreu logo depois de ter chegado à África. 150<br />
Ao que parece, os personagens da realidade e as cidades de Lagos e Abeokutá<br />
emprestam sua história para a ficção. Olinto prossegue, nessa mesma obra, reproduzindo a<br />
fala de Romana, acerca da viagem e da chegada à Nigéria:<br />
- Chegamos aqui no dia 7 de setembro de 1900. No alto do mar, a gente sofreu fome<br />
e sede. A viagem durou seis meses. [...] Minha irmã Luísa brincava com o balanço<br />
do navio, sem medo algum. Eu, não: eu tinha medo. Nossa avó vivia falando como<br />
era bom viver na África. Ela tinha saído de Abeocutá (sic) muito moça e achava que<br />
não havia lugar melhor para se viver. Quando a gente chegou, tudo foi difícil. Com<br />
receio de doença, os ingleses tomaram tudo o que a gente possuía. Descemos em<br />
Lagos enrolados nuns panos que não eram nossos. Minha avó chorou quando viu<br />
que minha mãe, eu e meus irmãos, que éramos brasileiros, não íamos nos acostumar<br />
depressa aqui. Morreu gente na viagem, sim. De fome, principalmente. E velhos que<br />
não aguentaram a dureza da vida. Ainda existem em Lagos, hoje, quatro pessoas que<br />
vieram no Aliança: eu, meu irmão Manuel, minha irmã Luísa e Dona Maria<br />
Ojelabi. 151<br />
Essa sensação inicial de não pertencimento e, principalmente, de não reconhecimento<br />
perdura pelos anos que se sucedem à chegada, tanto da família de Catarina Chaves, quanto a<br />
da personagem Catarina de A casa da água. As lembranças do Brasil são muito grandes.<br />
Para Olinto, em Brasileiros na África,<br />
[a] chamada “comunidade brasileira” da África Ocidental não é constituída apenas<br />
de descendentes de brasileiros natos. Pertenceram a essa comunidade repatriados<br />
que, tendo sido levados para o Brasil ainda na infância, mais tarde, voltariam à<br />
África, mas já com hábitos brasileiros e sem a menor lembrança de um passado<br />
africano. 152<br />
Infere-se, a partir da fala do escritor, que o contato com uma cultura diferente faz com<br />
que o indivíduo se modifique e assuma um novo posicionamento identitário, a partir das<br />
experiências e afinidades. Mesmo mantendo a memória de outros espaços onde o sujeito<br />
transita, ocorre a hibridação dos costumes, pois, estando longe da terra natal e sem contato<br />
físico com sua comunidade, é necessário construir-se através das relações sociais. Por essa<br />
razão, o encontro das duas Catarinas com a África revela o ser humano transformado pelas<br />
suas vivências.<br />
150 OLINTO, 1980, p. 187.<br />
151 Ibidem, p. 262.<br />
152 Ibidem, p. 188.<br />
62
3.2 A África no Brasil e o Brasil na África sob o olhar de Catarina<br />
A história do romance A casa da água inicia em 1898, dez anos após a abolição da<br />
escravidão, com a decisão de Catarina em retornar à Nigéria. Viaja levando sua filha Epifânia<br />
e os três netos: Mariana, Antonio e Emília. A família deixa a cidade do Piau, em Minas<br />
Gerais, e depois de passarem mais de um ano na Bahia, embarcam em um navio, fazendo a<br />
viagem de retorno à África. A chegada acontece somente em 1900. No decorrer da narrativa,<br />
os fatos são escritos enumerando os usos e costumes dessa família afro-brasileira, dando<br />
destaque ao espaço em que se desenrolam esses fatos, tanto no Brasil, quanto na África.<br />
E é a memória que serve de fio condutor para toda a obra A casa da água; é o que<br />
move os personagens da história. No Brasil, Catarina reconstrói as lembranças do passado<br />
africano, de forma que, movida por essa memória, não mede esforços para realizar a viagem<br />
de retorno ao continente africano. Uma vez na África, Catarina volta-se para as memórias do<br />
espaço brasileiro, pois percebe a impossibilidade de resgate das raízes africanas, com uma<br />
volta física ao espaço de outrora. Como o indivíduo é um ser social por natureza, a memória<br />
possibilita as lembranças dos lugares, experiências, imagens que fazem parte de um tempo<br />
vivido e compartilhado em uma comunidade. Isso leva o sujeito a redimensionar suas<br />
experiências e integrá-las ao presente, muitas vezes ausente de conteúdo identitário. 153<br />
Segundo Stuart Hall, o indivíduo escreve e fala a partir do posicionamento que ocupa<br />
em seu grupo. 154 Nesse sentido, o sujeito passa a expressar-se de acordo com o contexto,<br />
assumindo características dele. É nesse espaço que se encontram as lembranças individuais e<br />
coletivas. No romance, mesmo tendo assimilado costumes brasileiros, devido ao contato entre<br />
as culturas, a avó Catarina nunca esquece sua terra africana, nem perde o desejo de voltar:<br />
Tenho de voltar e quero levar minha filha e meus netos. Saí de lá faz mais de<br />
cinquenta anos, foi meu tio que me vendeu. Eu morava em Abeocutá (sic) 155 , fui<br />
passear em Lagos, meu tio já havia me vendido para uns homens, me levou até eles,<br />
eu tinha dezoito anos, queria tanto passear em Lagos, mas para que é que fui fazer<br />
isso? Nem bem cheguei já meu tio me entregou aos homens, me puseram num<br />
navio, depois de muito tempo cheguei à Bahia, fui vendida e nunca mais saí do Piau<br />
[...] Agora quero voltar. Não tem mais escravo aqui, Tio Inhaim vai me ajudar,<br />
juntei um dinheirinho e arranjei mais algum com tudo quanto foi preto dessas<br />
fazendas todas aí ao redor. Agora quero voltar e levar minha filha, que já nasceu<br />
aqui, e meus netos 156 .<br />
153<br />
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História oral: memória, tempo e identidades. 2. ed. Belo Horizonte:<br />
Autêntica, 2010, p. 60-61.<br />
154<br />
HALL, 1996, p. 68.<br />
155<br />
Grafa-se Abeocutá com c, conforme o autor Antonio Olinto. Porém, a escrita do nome dessa cidade nigeriana<br />
é Abeokutá com k.<br />
156<br />
OLINTO, Antonio. A casa da água. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 13-14.<br />
63
Percebe-se, nas palavras de Catarina, o desejo de reencontro com um lugar relembrado<br />
a cada momento, passando a impressão de que só no retorno, no contato com os seus,<br />
encontraria a paz necessária para uma vida digna, que lhe é roubada ainda bem jovem, por um<br />
igual, ou seja, um negro como ela. Vê-se aqui, a escravização do negro pelo negro.<br />
Considerando o romance em estudo, a ideia que perpassa é a de que a personagem<br />
necessita fazer o caminho de volta. Para Catarina, a África que está presente em sua memória<br />
ainda é a mesma, não imagina que tenha sofrido mudança, tanto no espaço físico como social<br />
e cultural. Porém, a sociedade muda porque seus membros se deslocam para novos espaços e<br />
adquirem, no contato com outros indivíduos, experiências que lhe são individuais. Assim, na<br />
interação dos indivíduos, na exposição a diferentes culturas e na partilha de conhecimentos<br />
ocorrem as transformações do sujeito, que passam a repercutir no seu grupo.<br />
Catarina imagina ser esse o início da reconstrução de seu antigo posicionamento<br />
identitário. Através das próprias lembranças, a ex-escrava transforma a África num universo<br />
inalterado. Verifica-se que a terra de origem nunca foi esquecida no dia-a-dia dessa mulher e<br />
de tantos outros escravos que formaram a diáspora africana no Brasil, embora contra a sua<br />
vontade. Por isso, o retorno, para a personagem, é almejado como uma espécie de<br />
preenchimento da história pessoal interrompida na África. Destaca-se, nessa circunstância, o<br />
oposto do deslocamento inicial, ou seja, a vinda da África para a Bahia e depois para o Piau<br />
vai ser percorrida inversamente: do Piau para a Bahia e da Bahia para a África.<br />
A respeito de como a África sobrevive na diáspora, Hall tece alguns comentários, a<br />
partir do contexto caribenho. Conforme o teórico,<br />
[s]ilenciada aparentemente além da memória pela força da experiência da<br />
escravidão, a África, na realidade, fez-se presente em toda parte: na vida cotidiana e<br />
costumes das senzalas, nas línguas e linguajares da grande lavoura em nomes e<br />
palavras frequentemente desconectados de suas taxinomias, nas misteriosas<br />
estruturas sintáticas através das quais eram faladas outras línguas, nos contos e<br />
histórias narrados às crianças, nas crenças e práticas religiosas, na vida espiritual,<br />
nas artes e artesanato, nas músicas e ritmos da sociedade escravista e pósemancipação.<br />
[...] Esta foi – é – a África que “está viva e bem na diáspora. 157<br />
As colocações de Hall demonstram que a memória da África não se relaciona somente<br />
às vivências da escravidão. Com a vinda desses habitantes para trabalharem como escravos, a<br />
cultura africana passa a fazer parte do universo cotidiano. Semelhante influência verifica-se<br />
no Brasil, onde a África resiste nas lembranças dos antepassados africanos e em seus<br />
descendentes e nos hábitos e influências trazidas por eles.<br />
157 HALL, 1996, p. 72.<br />
64
A África sobrevive nas fazendas de café, através da devoção religiosa, dos rituais e<br />
danças, principalmente na intensidade dos batuques, que “permitiam aos africanos e seus<br />
descendentes reafirmar seus laços de pertencimento ao grupo, bem como comentar fatos do<br />
cotidiano [...] o batuque consiste numa dança em que os participantes se colocam um de frente<br />
para o outro” [...] 158 . A África está na produção de artesanato, que, vendido, depois da<br />
abolição da escravatura, serviu como meio de sustento. Essa presença se manifesta no<br />
reconhecimento do ancestral, na linguagem e, dentre outras, de maneira concreta, na<br />
alimentação. Por todo o país encontra-se uma variedade de receitas oriundas da herança<br />
africana como o acarajé, o vatapá, o abará, o mungunzá, o cuscuz, entre outros. Para Edmilson<br />
de Almeida Pereira,<br />
Os modos de preparar os alimentos demonstram como os antepassados africanos<br />
investiram na inserção de seus hábitos em nosso cotidiano. O gosto por<br />
determinados ingredientes e a sua introdução na cozinha brasileira revelam, de<br />
alguma maneira, a necessidade que os africanos tinham de interagir com a realidade<br />
que lhes era apresentada. Nesse caso, a troca de sabores representava também uma<br />
troca de saberes entre os diferentes grupos da sociedade brasileira. 159<br />
Em A casa da água, a vontade de reencontrar a África era tão grande que o país natal<br />
se torna um símbolo, cujas raízes geográficas são ampliadas pelo olhar de Catarina. Porém,<br />
como Hall observa acerca da África construída pela afrodescendência diaspórica, “[a] África<br />
original não se encontra mais lá. Já foi muito transformada”, 160 com o passar do tempo, não<br />
sendo mais possível reverter a história, recuperá-la totalmente, nem mesmo por meio das<br />
memórias:<br />
Ela pertence irrevogavelmente, para nós, ao que Edward Said certa vez chamou de<br />
“uma história e uma geografia imaginativas”, que ajudam “a mente a intensificar sua<br />
percepção de si mesma por uma dramatização da diferença entre o que está perto e o<br />
que está muito distante”. Ela “adquiriu uma valor imaginativo ou figurativo, que<br />
podemos sentir e nomear”. 161<br />
A África de Catarina faz parte somente do seu imaginário, pois nem o espaço<br />
geográfico nem a própria comunidade resistem às transformações. Os territórios estão sujeitos<br />
ao fluxo de entrada e saída de pessoas de diferentes culturas e lugares. Esses indivíduos são<br />
movidos por razões variadas para se deslocarem. Um dos motivos do deslocamento é de<br />
158 PEREIRA, 2010, p. 24.<br />
159 Ibidem, p. 23.<br />
160 HALL, 1996, p. 73.<br />
161 Ibidem, p. 73.<br />
65
caráter emocional. Em outras palavras, os sujeitos guardam na memória as lembranças dos<br />
momentos vividos no passado, precisando regressar para resgatar essas vivências.<br />
Em se tratando de Catarina, o que ocorre é uma construção fantasiosa, por parte dessa<br />
personagem, como estratégia de fuga da realidade. Dessa forma, o retorno desejado, quando<br />
acontecer na prática, será para um mundo novo para ela, que não é o do passado nem o do<br />
presente, mas um terceiro, formado a partir do movimento de pessoas e das transformações do<br />
tempo. Conforme Hall, ainda falando do contexto caribenho, mas com pensamentos<br />
aplicáveis à realidade brasileira, esse espaço<br />
[é] por ser constituído para nós como um lugar, como uma narrativa de<br />
deslocamento, que este Novo Mundo provoca de modo tão profundo uma certa<br />
plenitude imaginária, recriando o desejo infinito de retornar às “origens perdidas”,<br />
de ser de novo um só com a mãe, de voltar ao começo. 162<br />
Se os africanos diaspóricos são influenciados pela cultura brasileira, a cultura africana,<br />
também, interfere nas tradições dos brasileiros. Ainda conforme Edmilson de Almeida<br />
Pereira, no que se refere à vivência religiosa dos brasileiros, as presenças africanas são<br />
profundas e por essa razão estão inseridas na vida social do cidadão, bem como servindo de<br />
base para o diálogo com as demais matrizes culturais da sociedade brasileira. 163<br />
O sincretismo religioso entre África e Brasil é evidente. Revela-se na adaptação dos<br />
rituais da fé católica do Brasil nas crenças religiosas africanas. Isso contribui para a<br />
preservação das tradições dos negros, pois, cultuando seus orixás, os negros participavam,<br />
também, das celebrações católicas. De forma geral, o contato entre nações africanas diferentes<br />
empreendeu a troca e a difusão de um grande número de divindades. A princípio, esse<br />
sincretismo poderia representar a perda da identidade religiosa do africano. Porém, como os<br />
escravos não abandonaram as suas crenças oriundas da terra natal, ao longo do tempo, a<br />
coexistência abriu espaço para novas experiências religiosas, dotadas de elementos africanos e<br />
cristãos. 164 O excerto de A casa da água, em que Catarina fala da viagem à África, demonstra<br />
esse sincretismo religioso:<br />
Sabia que seria ajudada na viagem, Xangô seguraria o barco para que nele nada de<br />
mau acontecesse, seu machado duplo era capaz de tudo, Nossa Senhora do Rosário,<br />
a santa dos pretos, auxiliaria também, já visitara a irmandade da Bahia, estivera com<br />
pessoas que organizavam as procissões, a de Nossa Senhora dos Prazeres estava<br />
162 HALL, 1996, p. 75.<br />
163 PEREIRA, 2010, p. 24-25.<br />
164 SOUSA, Rainer. As religiões afro-brasileiras e o sincretismo. Disponível em:<br />
. Acesso em: 14 jul. 2011.<br />
66
longe, lembrava-se das congadas do Piau, o rei e a rainha na frente, as fitas<br />
coloridas, os espelhinhos, muito diferentes das festas com tambor de Abeokutá.<br />
[...] 165<br />
As festas religiosas e os santos africanos estão inseridos no contexto brasileiro. O<br />
candomblé é uma religião de origem africana, também chamada de religião dos orixás. Estes,<br />
de procedência iorubá, segundo os preceitos sagrados, zelam por partes específicas do mundo<br />
e da natureza. É por isso que Catarina pede proteção a Xangô, o deus da justiça e do trovão,<br />
para que tudo dê certo na viagem. Também, menciona Nossa Senhora do Rosário,<br />
considerada a santa dos pretos, pois aliviava seus sofrimentos no período escravagista. É de<br />
origem católica e foi adotada pelos negros, porque já na África havia a devoção devido à<br />
influência portuguesa. 166 Essa santa é uma transposição de Iemanjá, a rainha das águas, que<br />
protegeria a família de Catarina no retorno à África.<br />
Catarina faz referência a Nossa Senhora dos Prazeres, que é uma santa católica, de<br />
origem portuguesa, a qual foi trazida pelos jesuítas com o intuito de catequizar os índios.<br />
Nessa evocação dos santos, a personagem compara a congada do Piau com as da Nigéria. No<br />
momento em que a personagem ressalta as diferenças entre as festas, a saudade da África<br />
aumenta. Essa observação demonstra o desejo de preservação das tradições e, também, a<br />
transformação dos costumes e a combinação de culturas devido à distância das raízes<br />
africanas.<br />
De ascendência africana, o Congado é uma comemoração em que os devotos cantam e<br />
dançam, ao som de tambores, para louvar os antepassados, os deuses e os santos católicos.<br />
Uma de suas características é o cortejo dos guardas, que percorrem as ruas, visitam igrejas,<br />
cantando e dançando ao som de músicas sagradas. Segundo Edmilson Pereira,<br />
O Congado e o Candomblé constituem vivências religiosas nas quais muitos<br />
brasileiros de diferentes origens étnicas encontram os seus valores para se relacionar<br />
com o mundo. Como práticas religiosas, o Congado e o Candomblé apresentam uma<br />
série de preceitos que, uma vez conhecidos, ajudam os devotos a fazer suas escolhas<br />
pessoais e firmar alianças com os seus semelhantes. Além disso, essas práticas os<br />
situam dentro de uma ordem social que tem nas heranças africanas a base para o<br />
diálogo com as demais matrizes culturais da sociedade brasileira. 167<br />
O desejo de reencontrar a sua terra é tão grande que, quando a enchente destrói sua<br />
casa no Piau, decide planejar a volta. Catarina segura a neta Mariana pelo braço e diz: “-Você<br />
165 OLINTO, 2007, p. 39-40.<br />
166 MELO, Verísssimo de. Festa de Nossa Senhora do Rosário (dos pretos) em Jardim do Seridó. Jangada<br />
Brasil, v. 7, n. 73, dez. 2004. Disponível em:<br />
. Acesso em: 23 jun. 2011.<br />
167 PEREIRA, 2010, p. 25.<br />
67
está com dez anos. É tempo de voltar”. 168 Para a avó, que deixou sua terra muito jovem, esse é<br />
o momento certo, pois a neta ainda jovem pode, de certa forma, resgatar a África que<br />
permanece na memória dessa anciã. Para Mariana, a lembrança dessa ocasião é inapagável.<br />
Ela aproveita todos os dias que se seguem e não esquece a partida: os cavalos, a família, o<br />
homem que a avó contrata para guiá-las até Juiz de Fora, pois não conhecem o caminho.<br />
Depois, até ao Rio de Janeiro a família viaja de trem e hospeda-se na casa do irmão de<br />
seu antigo proprietário. Na chegada, percebe-se o tratamento discriminatório para com os<br />
afro-brasileiros, através do lugar oferecido à família de Catarina:<br />
- Quem é?<br />
- Gente do Piau.<br />
Um homem alto desceu com um lampião, olhou bem para Catarina, perguntou:<br />
- É da casa do Joaquim?<br />
- É, sim, senhor, ele mandou uma carta.<br />
O homem leu a carta ali mesmo, chamou para dentro:<br />
- Ô Sebastiana, leve o pessoal para o seu quarto e dê uma comida para eles.<br />
Uma preta gorda apareceu no átrio, conduziu a família de Catarina para um quarto<br />
quase sem luz, disse que esperassem ali que ela ia ver o que havia para comer, mas<br />
não havia quase nada, os viajantes foram dormir mesmo sem comer, a esteira em<br />
que se deitaram todos juntos fedia a urina, a avó ficou fumando cachimbo até tarde,<br />
pensando pedaços de coisas 169 .<br />
Mesmo após a Abolição da Escravatura, o negro encontra-se à margem da sociedade.<br />
Como se percebe, o lugar ocupado por ele ainda é o quarto da empregada, sem nenhuma<br />
estrutura; um espaço qualquer, sem condições de higiene. Não há uma preocupação com os<br />
indivíduos de cor, nem com relação ao conforto, nem com a alimentação. Para a personagem<br />
Catarina, pouca coisa muda com o término da escravidão. Ela continua dependente de seu<br />
antigo proprietário: mora numa terra que não é sua, não tem uma renda fixa, e o que<br />
conseguiu economizar é muito pouco, por isso depende de ajuda. Isso demonstra a exclusão<br />
do negro, que, mesmo livre, tem poucas oportunidades de ascender socialmente e de integrar-<br />
se ao mundo habitado pelo branco.<br />
Segundo Halbwachs, os negros, quando escravos, são reduzidos ao estado de coisas,<br />
somente com obrigações e nenhum direito. Eles podem ultrapassar os limites apenas quando<br />
autorizados, reforçando a condição servil. O teórico expõe: “Entrasse ele uma das salas em<br />
que vivia o senhor, tomava de novo a consciência de ser escravo – como se passando o limiar,<br />
168 OLINTO, 2007, p. 16.<br />
169 Ibidem, p. 21-22.<br />
68
fosse transportado a uma parte do espaço em que se conservava a lembrança da relação de<br />
dependência em que estava diante do seu senhor”. 170<br />
Na obra A casa da água, embora já assinada a Lei Áurea, os limites espaciais<br />
continuam evidentes. A sala permanece sendo o lugar de visita, e a cozinha, reservada aos<br />
serviçais, é o lugar onde o negro frequenta: “a cozinha larga da casa de Tio Inhaim estava<br />
cheia de gente, todos falavam da enchente e da viagem”. 171 Isso denota que os negros<br />
conquistam a liberdade da senzala, mas não o tratamento e os direitos iguais. Esses momentos<br />
mostram ao indivíduo que esse espaço que demonstra os limites de seus direitos não o deixa<br />
fixar suas raízes, fazendo-o buscar outro espaço, por meio da memória: a sua juventude vivida<br />
na África.<br />
No intuito de realizar um sonho, Catarina enfrenta dificuldades, apesar da euforia<br />
inicial de se libertar do Brasil. Ela procura incansavelmente um transporte que a leve até à<br />
Bahia. Assim, a família passa algum tempo no Rio de Janeiro, onde as crianças sentem uma<br />
liberdade até então não experienciada. Mariana, tomada por um encantamento pela cidade,<br />
anda por todos os lugares, parecendo deleitar-se com cada rua, cada praça. Conforme as<br />
palavras do narrador, em A casa da água, a inquietação de Catarina ocorre pela sensação de<br />
não pertencimento e pelo medo de criar vínculos em mais um lugar. Sentindo-se, então, em<br />
um espaço intersticial, ela não quer que nada atrapalhe a partida da família:<br />
É num relance que examino o Rio daquele tempo, tal como o viu e sentiu Mariana,<br />
como a avó o sofreu, simples passagem, terra temporária, de onde se devia sair logo<br />
para nela não se criar raiz, e como Epifânia o amou, tão rápido lhe parecia tudo [...]<br />
Catarina não conseguia acalmar-se. O medo, cada vez maior, de que as coisas a<br />
prendessem, de que surgissem dificuldades, de que seu plano desse em nada, não a<br />
deixava dormir direito, um dia notou que estava no Rio há tanto tempo e ainda não<br />
reparara no mar, lembrava-se daquele sem-fim de coisa quando da viagem de vinda,<br />
foi pôr os olhos nele. 172<br />
Diferentemente de Catarina, o restante da família parece habituar-se nesse novo<br />
espaço. Nas lembranças desses membros da família, não se encontram as recordações de um<br />
passado africano que não consegue ser esquecido. Para eles, a África é somente o sonho da<br />
avó, pois não vivenciaram essa experiência ainda. Já a avó parece distante da sua realidade,<br />
com o foco nas lembranças do tempo vivido na África e, consequentemente, no futuro, pois<br />
quer que este lhe traga de volta a sua história pessoal e, também, do grupo.<br />
170 HALBWACHS, 2006, p. 175.<br />
171 OLINTO, 2007, p. 13.<br />
172 Ibidem, p. 22-23.<br />
69
Na viagem de navio até a Bahia, Catarina perde-se em suas lembranças. É como se<br />
essa viagem se confundisse com a da vinda até o Brasil. No vaivém, ela envolve-se nas<br />
lembranças da África, da sua terra que ela pensava recuperar pela rememoração dos fatos.<br />
Nesse devaneio, ela percebe a transformação que aconteceu com ela desde a saída da África:<br />
aquela jovem de 18 anos que fora trazida ao Brasil, depois transformada numa ex-escrava que<br />
viveu no Piau, já não existe. Ambas se fundiram em uma terceira Catarina, que ainda precisa<br />
se descobrir, reconstruir-se, como descreve o narrador do romance A casa da Água:<br />
Percebo-a encostada em seu acolchoado, indago de seu reencontro e vejo no<br />
movimento de recomposição que ela é novamente obrigada a fazer uma espécie de<br />
saída, como se ao adaptar-se ao Piau tivesse nascido uma pessoa que vinha morrer<br />
agora, na viagem à Bahia, ou agora tivesse nascendo outra, que não era a de<br />
Abeokutá nem a do Piau, mas que talvez continuasse a manter uma ligação de<br />
memória com a morta de antigamente e a morta de agora. As duas mortas iriam<br />
presas às costas de Catarina, que as levaria para a reunificação impossível, para a<br />
descoberta da jovem que fora vendida em Lagos e precisava reconstruir-se,<br />
restaurar-se, sentindo que os mortos são leves e pesados, garantem uma<br />
continuidade e asseguram o medo, oferecem a unidade e o rompimento. 173<br />
Catarina situa-se, dessa forma, num novo espaço transitório em que passado e presente<br />
confundem-se e se fundem, originando uma mulher que precisou morrer duas vezes para<br />
tentar sobreviver aos infortúnios da vida e das heranças da escravidão. Essas “mortes” – a<br />
interrupção da vida em Abeokutá, sua cidade natal, e mais tarde no Piau - estão ligadas ao<br />
sentimento de descontinuidade: precisa romper os laços com um espaço e adaptar-se ao novo<br />
que ora se apresenta. Catarina configura-se como uma síntese das duas mulheres que foi: a<br />
jovem africana livre e a ex-escrava no Piau. Das duas resultou uma terceira, que vivencia um<br />
entre-lugar naquilo que foi e deseja ser. Em outras palavras, há uma desarmonia entre dois<br />
posicionamentos identitários, o que permite a negociação das experiências e das vivências,<br />
através do deslocamento das histórias de cada um, para a criação de um terceiro<br />
posicionamento, pautado nos demais.<br />
Nesse contexto, a Bahia evidencia-se como um lugar de passagem para a família, até<br />
que a avó consiga o transporte que as leve à África. Para Catarina, desde a chegada à Bahia,<br />
um sentimento de paz a envolve, tendo em vista a proximidade da África, percebida no<br />
contato com pessoas, correspondências, informações de africanos que haviam feito o caminho<br />
de volta. A memória de seu país de origem desencadeia-se quando Catarina se depara, em<br />
Salvador, com africanos, que apresentam marcas no rosto, que os identificam como<br />
conterrâneos:<br />
173 OLINTO, 2007, p. 26.<br />
70
Catarina ficou de cachimbo aceso, olhando as coisas no mercado, era comum<br />
deparar com gente de marcas no rosto, iguais às marcas de sua cidade, três riscos de<br />
cada lado, de cima para baixo, não sabia como essas marcas lhe faltavam, lembravase<br />
do tio com elas, no começo, depois de ter sido vendida pelo tio, tivera raiva de<br />
quem mostrasse os mesmos sinais, hoje eles surgiram como um reencontro, ou como<br />
uma pausa a caminho do reencontro a mulher voltava, laboriosa e lentamente, mas<br />
voltava, e sentia na presença da filha e dos netos, o dever de reconduzir à<br />
normalidade um rumo que se havia desviado, cada vez mais necessário lhe parecia<br />
esse regresso, como e reconquistasse uma vida que se perdera [...]. As marcas no<br />
rosto constituíam uma visão natural. A farinha que vendera, o inhame, o peixe<br />
faziam parte de um mundo próximo, o acará com pimenta exibia o mesmo gosto dos<br />
acarás de sua infância. Adivinhara em cada coisa uma proximidade com o que havia<br />
cessado de existir e agora, num milagre, voltava. Deixara de ter pressa. 174<br />
Percebe-se aí a tranquilidade de Catarina com a possibilidade de regresso cada vez<br />
mais perto. Essa calma da personagem ocorre pelo reencontro com a Nigéria através dos<br />
africanos de Abeokutá no Brasil e informações sobre afro-brasileiros que embarcaram na<br />
Bahia e estão vivendo felizes em Lagos, Badagre e outras cidades. Isso reforça a imagem da<br />
África fantasiada por Catarina, um lugar onde se pode ser feliz. O caso dos brasileiros que<br />
trazem informações sobre Abeokutá reforça sua memória individual da terra de origem.<br />
Como Halbwachs comenta, um grupo é sempre o suporte para a memória. Mas para<br />
que o sujeito se sinta integrado a ele, é preciso que se identifique com essa comunidade. Por<br />
isso, depende, também, da posição desse indivíduo no contexto.<br />
[As] lembranças grupais se apoiam umas nas outras formando um sistema que<br />
subsiste enquanto puder sobreviver à memória grupal. Se por acaso esquecemos, não<br />
basta que os outros testemunhem o que vivemos. É preciso mais: é preciso estar<br />
sempre confrontando, comunicando e recebendo impressões para que nossas<br />
lembranças ganhem consistência 175 .<br />
A ex-escrava apoia suas lembranças na memória do outro, na recordação de fatos<br />
concretos, na aparência das pessoas, nas manifestações religiosas, enfim, em tudo que possa<br />
representar a relação entre seu passado e seu presente, com intuito reaver a própria história e,<br />
também, de sua comunidade, buscando reconquistar sua identidade cultural.<br />
Para o retorno, Catarina compra um baú de madeira, revestido de couro, para levar os<br />
poucos pertences da família Santos. Instalam-se no porão do navio, o mesmo espaço<br />
miserável reservado aos negros na vinda da África. Isso demonstra a precariedade das<br />
condições da viagem, além de evidenciar os resquícios deixados pelo período escravagista. A<br />
única diferença entre as duas viagens é a liberdade que os africanos têm. Contudo, é possível<br />
174 OLINTO, 2007, p. 38-39.<br />
175 BOSI, 2001, p. 414.<br />
71
perceber que a viagem de volta está sendo feita, também, de maneira desfavorável, sem as<br />
mínimas condições para a família de Catarina, que, agora livre, sofre com as dificuldades da<br />
vida, com as lembranças da escravidão e, como sempre, com a saudade de seu país.<br />
No navio, Catarina sente-se cada vez mais parte da África, tão próxima de suas raízes<br />
que começa a falar em iorubá, 176 a língua usada pelos nigerianos. É como se tivesse esquecido<br />
a linguagem de sua realidade, a comunicação com o espaço de passagem, visto que para ela<br />
não é dotado de grande importância. E novamente as recordações tomam parte de seu<br />
presente, encontrando forças na esperança da chegada: “Ainda teria parentes em Abeokutá? O<br />
tio que a vendera devia ter morrido ou estaria hoje com perto de cem anos.[...]”. 177 Essas<br />
dúvidas permeiam a viagem da personagem, que, com o decorrer dos dias, cala-se, antevendo<br />
o fim da viagem.<br />
Além das dificuldades em relação ao bem-estar, a tripulação do navio está sujeita às<br />
adversidades da natureza. Por falta de vento, ficam vários meses em alto mar.<br />
Concomitantemente, depara-se com uma epidemia que dura algum tempo e mata mais de<br />
vinte passageiros. A avó Catarina, nessa época, ausenta-se de tudo à sua volta:<br />
Depois de três meses sem vento seis pessoas haviam morrido, Catarina fazia agora<br />
questão de subir de manhã ao convés, tomava sol apoiada pela filha e pelos netos, no<br />
fundo do pensamento passara a só ver a chegada a Lagos, nada mais existia, mortes<br />
não a tocavam, sol e comida, sim, eram importantes, comia com decisão, mastigava<br />
bem a farinha e o arroz 178 .<br />
Catarina precisa estar preparada para a chegada, para o reencontro com a África. Fora<br />
isso, ela fica alheia a tudo. A sua ideia fixa está na chegada a Lagos, nada mais importa, nem<br />
a doença que acomete alguns tripulantes do patacho Esperança.<br />
Problemas relacionados a doenças são enfrentados, não só pelos africanos da ficção.<br />
Durante os anos que marcam o tráfico de escravos, a falta de condições adequadas nos porões<br />
dos navios deflagra a propagação de epidemias, também chamadas pestes, entre os escravos.<br />
A preocupação com a disseminação da doença faz com que as embarcações sejam vistoriadas<br />
e, em caso de suspeita de doença, submetidas a longas quarentenas, 179 como ocorre na obra A<br />
casa da água.<br />
176<br />
Ao lado de outros idiomas, a língua iorubá é falada na parte oeste da África, principalmente na Nigéria,<br />
Benin, Togo e Serra Leoa, há muitos séculos. Porém, a língua oficial é o inglês, devido às influências da<br />
colonização inglesa.<br />
177<br />
OLINTO, 2007, p. 62.<br />
178<br />
Ibidem, p. 65-66.<br />
179<br />
SÁ, Magali Romero. A peste branca nos navios negreiros: epidemias de varíola na Amazônia colonial e os<br />
primeiros esforços de imunização. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11, n. 4, São<br />
72
Ao chegar à Nigéria, os passageiros foram avisados de que, devido às mortes e à<br />
epidemia, deveriam ficar de quarentena e, quando descessem, não poderiam levar os<br />
pertences. Catarina não queria admitir a ideia de descer sem o baú. Abriu-o e observou os<br />
pertences tão bem guardados, “pegou nos panos dobrados, olhou a brancura dos lençóis e das<br />
anáguas” [...], 180 deixando as recordações a reportarem a um mundo particular. Depois,<br />
concordou em deixá-lo, pois o resgataria mais tarde.<br />
Primeiramente a função do baú é a de armazenar, guardar os poucos pertences da<br />
família Souza; porém, já no navio, sua função se amplia. Ele passa a representar o elo com o<br />
passado brasileiro, com a memória dos acontecimentos, das pessoas, as dificuldades, as<br />
tristezas e as alegrias, transformando-se em uma espécie de marco da travessia de um espaço<br />
a outro.<br />
Para Augusto Comte, a sensação de tranquilidade e equilíbrio mental que o ser<br />
humano necessita resulta da imagem de permanência e estabilidade que os objetos materiais<br />
oferecem ao sujeito, pois não mudam ou há apenas pequenas mudanças. Esses objetos, pelo<br />
contato diário, traduzem-se em presença silenciosa e imóvel, contrária à agitação das<br />
pessoas. 181<br />
Na obra, o baú perpassa a sensação de equilíbrio, encerra um sentido, traz a memória<br />
da escravidão que Catarina quer esquecer e os poucos momentos de contentamento<br />
vivenciados em um território que ela não escolheu habitar. Em outros termos: Catarina o<br />
compreende a partir do que ele representa para ela: a passagem entre Brasil e África, onde,<br />
para a personagem, haverá a recuperação de seus referenciais identitários. Segundo Claudia<br />
Condé,<br />
[o] baú, que atravessa a narrativa e está presente em todos os acontecimentos<br />
significativos da trama, é uma bela apresentação da memória de um povo, do amor à<br />
origens, do apego às raízes, como suporte e incentivo a que se siga em frente, a<br />
qualquer custo. 182<br />
Tudo o que é importante para a personagem mencionada é guardado nesse objeto, que<br />
funciona como um mundo de lembranças, um espaço de intimidade que não se abre para<br />
qualquer um. Segundo Gaston Bachelard, lembranças retornam sempre que a imagem de um<br />
objeto, em que se guardam coisas valorizadas por seu possuidor, faz-se presente na memória,<br />
Paulo, 2008. Disponível em Acesso em: 06 jun. 2011.<br />
180 OLINTO, 2007, p. 68.<br />
181 COMTE apud HALBWACHS, 2006, p. 156.<br />
182 CONDÉ, 2005, p. 98.<br />
73
com tudo o que há dentre dele. 183 Bachelard usa como tema para suas reflexões o armário e<br />
suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas e o cofre. Para ele, nesses objetos, só se<br />
guardam coisas de grande valor, inesquecíveis para o indivíduo e as pessoas que lhe são<br />
importantes. 184<br />
No romance, o baú se equivale aos objetos descritos pelo teórico, pois nele estão<br />
inseridos os tesouros de Catarina: o seu passado, representado pelas peças de roupas<br />
adquiridas para a viagem à terra natal; o presente, que se mostra como um rito de passagem<br />
para um mundo cheio de expectativas e sonhos; um futuro incerto, que nele se condensa, a<br />
partir das vivências do ontem e do hoje.<br />
Abrir esse móvel significa adentrar no mundo da imaginação para descobrir o que se<br />
esconde, confrontando as duas lembranças: exterior x interior Na perspectiva de valores da<br />
intimidade, essa dimensão é infinita: novidades, alegrias, diferenças, uma vida, tudo está no<br />
interior do objeto. No decorrer de todo romance, o baú acompanha a família de Catarina.<br />
Na África, Catarina depara-se com um espaço não tanto familiar, mas ainda procura<br />
encontrar seus referenciais identitários, mesmo na diferença. D. Zezé, uma senhora rica da<br />
rua, diz-lhe que têm chegado muitos brasileiros, sem a menor ideia do que é Lagos e de que,<br />
lá, as coisas não são fáceis. Catarina diz que a África é a sua terra, e a mulher responde: “É e<br />
não é, Iaiá. Para a maioria, os avós saíram daqui e foram escravos no Brasil, se (sic)<br />
acostumaram lá, mas sempre pensando que aqui era o paraíso. Pois isto aqui é o paraíso e<br />
também não é o paraíso, Iaiá”. 185<br />
Esse comentário refere-se às transformações que a África sofre pela influência dos<br />
estrangeiros e pelas divisões de classe. Isso modifica o lugar, devido ao contato com outros<br />
povos, outra cultura. É por essa razão que D. Zezé argumenta que a vida africana em Lagos<br />
não é o que a personagem acredita ser, porque, além das mudanças no espaço, os africanos<br />
que viveram no Brasil e retornam têm outra vivência, pertencem a uma realidade diferente.<br />
Catarina, a princípio, não percebe as diferenças nem na África, nem nela própria. Com o<br />
decorrer do tempo, começa a notar as profundas mudanças que ocorreram na Nigéria e nela<br />
própria.<br />
Nesse contexto, recorda-se a definição de diáspora de Safran: para o teórico, a<br />
diáspora, dentre outras acepções, é definida como uma dispersão de comunidades que<br />
mantêm, na memória, a visão de sua terra natal como um lugar de eventual retorno. Esses<br />
183 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 2. ed. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 2008, p. 92.<br />
184 Ibidem, p. 97.<br />
185 OLINTO, 2007, p. 77.<br />
74
africanos têm plena convicção que a “homeland” 186 será mantida e preservada até sua volta.<br />
Na obra A casa da água, fica evidente esse modo de imaginar e sentir a África, a partir do<br />
espaço brasileiro.<br />
Porém, a situação da África é outra. As transformações nesse continente são<br />
empreendidas pelos colonizadores, principalmente, alemães, portugueses, franceses e<br />
ingleses. Na Nigéria, país do qual faz parte a cidade de Lagos, a Grã-Bretanha assumiu, no<br />
século XVII e meados do século XIX, a liderança da colonização, combatendo a escravatura,<br />
já menos lucrativa, e direcionando o comércio africano para a exportação de ouro, marfim,<br />
tapetes e animais. Em consequência disso, os africanos ficam com o mercado dominado pelos<br />
interesses do Império Britânico, o qual estabelece novas colônias na costa e passa a implantar<br />
um sistema administrativo fortemente centralizado na mão de colonos brancos ou<br />
representantes da coroa inglesa. Esse estado tornou-se independente do Reino Unido somente<br />
em 01 de janeiro de 1960. 187<br />
Diante da realidade africana, a avó desenvolve um sentimento saudosista do passado<br />
no Brasil. Surgem as dificuldades para se religar a sua sociedade de origem, pois carrega<br />
consigo uma valoração positiva do Brasil, mesmo tendo vivido, nesse país, os momentos mais<br />
dolorosos da vida, no período da escravidão. O regresso ao lugar de antes não é uma volta<br />
para casa, porque a identidade de Catarina transformou-se devido ao contato com outras<br />
culturas, ideias, pessoas. Aos poucos, a ex-escrava começa a frustrar-se por não reconhecer<br />
mais seu país. Tudo está diferente.<br />
Para Hall, a busca pelo passado, pelo caminho da memória é o meio de resgate do que<br />
foi encoberto pela experiência colonial. Buscar a história da África é uma forma de<br />
restabelecer a identidade. Porém, não se pode esquecer que a influência de outra cultura<br />
modifica a visão do mundo do sujeito, que se torna um ser híbrido, influenciado pelos regimes<br />
dominantes. 188<br />
Catarina frustra-se ao perceber que não consegue fazer o resgate da Nigéria de suas<br />
memórias. Um dos motivos é perceptível: a anciã não encontra mais parentes em Abeokutá,<br />
sua cidade natal.<br />
Em relação à rememoração, Halbwachs expõe:<br />
186 CLIFFORD, 1994, p. 204. Terra natal. Tradução da autora.<br />
187 HISTÓRIA da colonização da África. Disponível em:<br />
. Acesso<br />
em: 03 jul. 2011.<br />
188 HALL, 1996, p. 70.<br />
75
Nem sempre encontramos as lembranças que procuramos, porque temos de esperar<br />
que as circunstâncias, sobre as quais nossa vontade não tem influência, as despertem<br />
e as representem para nós. Nada é mais surpreendente em relação a isso do que o<br />
reconhecimento de uma figura ou de um lugar, quando estes voltam a se encontrar<br />
no campo da percepção. 189<br />
Catarina fez a recuperação do espaço físico e, através dele, surgiram as lembranças da<br />
infância, do lugar onde nascera. Porém, percebe que sua viagem não está lhe devolvendo o<br />
espaço e o tempo feliz, como ela sempre esperou:<br />
Catarina via o verde da terra, cada curva se desdobrava como numa reconquista, o<br />
barulho dos remos na água tinha um tom de paz. Desceram em Abeokutá, a mulher<br />
mais velha avançou pelas ruas e chegou em frente ao palácio de obá. [...] Catarina<br />
andava por toda parte, mostrava-lhe pedreiras, atravessava as ruas de gente, numa<br />
certa hora parou em silêncio, olhou longamente para um conjunto de casas africanas,<br />
depois disse:<br />
- Eu morava aqui.<br />
O silêncio voltou, um grupo de crianças brincava na rua, Epifânia quis entrar, a mãe<br />
disse ríspida, em português:<br />
- Não adianta. Não mora mais ninguém da família aí. 190<br />
Parece que Catarina começa a perceber a dificuldade de restabelecer os elos originais,<br />
devido às mudanças acontecidas naquele espaço. Volta a falar português, depois de muito<br />
tempo usando somente iorubá. É a síntese da mulher que se encontra num espaço intersticial,<br />
mais uma vez. Porém, agora parece definitivo. Não há mais um desejo aparente de retorno,<br />
somente lembranças do passado, tanto africano quanto brasileiro. É um misto de lugares e de<br />
culturas presentes na vida dessa mulher que, agora, prefere o silêncio e a tristeza de não<br />
reconhecer mais a Nigéria do momento.<br />
A personagem espera a recuperação de sua história africana, pois todo deslocamento<br />
desperta no indivíduo um desejo de voltar ao começo, de recuperar a sua história e,<br />
consequentemente, a história de seu povo. Porém a presença brasileira na África era muito<br />
maior. Esse foi o motivo da frustração da avó, que não se reconhecia mais como uma africana<br />
em Lagos. Ela percebe que o sonho alimentado durante toda a sua vida foi em vão; o regresso<br />
não é capaz de lhe devolver o lar, de preencher o vácuo deixado entre a vinda e a volta. Sem<br />
querer, Catarina sente-se uma estrangeira em sua própria terra.<br />
No que se refere ao sentimento de estrangeiro, Julia Kristeva pondera:<br />
189 HALBWACHS, 2006, p. 53.<br />
190 OLINTO, 2007, p. 82-83.<br />
Não pertencer a nenhum lugar, nenhum tempo, nenhum amor. A origem perdida, o<br />
enraizamento impossível, a memória imergente, o presente em suspenso. O espaço<br />
76
do estrangeiro é um trem em marcha, um avião em pleno ar, a própria transição que<br />
exclui a parada. Pontos de referência, nada mais. 191<br />
Catarina dá-se conta de que sua cidade imaginada é uma ilusão do passado que jamais<br />
poderá ser reencontrada. Sua decepção é manifestada na forma de tristeza e melancolia,<br />
conforme relata a filha Epifânia:<br />
Agora ela está percebendo que não mudou nada, não há diferença muito grande<br />
entre isto aqui e a Bahia, a diferença que há é para pior, lá a gente era da terra, aqui<br />
somos estrangeiros para os ingleses e somos estrangeiros para os africanos, até nas<br />
festas de Xangô e dos santos dela o movimento daqui é pequeno, e o que diverte a<br />
gente aqui é festa como as de lá, a do Divino, a de São José, a do Bonfim, a de<br />
Nossa Senhora dos Prazeres 192 .<br />
Verifica-se, então, uma crise de identidade. Para Epifânia, no Brasil, eles eram<br />
considerados brasileiros, e, na África, seu país de origem, a família não está sendo vista como<br />
africana. Sentem-se estrangeiros. Assim, buscam no espaço brasileiro os referenciais<br />
identitários. Essa situação é de certa forma irônica, pois, quando Catarina vive no Brasil, só<br />
pensa na África e em tudo o que possa representá-la. Participa das comunidades africanas que<br />
se instalaram como forma de preservar os costumes. Já na África, o que a avó quer é a<br />
recuperação de sua vida roubada na juventude, de seus parentes, de seus sonhos de menina.<br />
Percebendo a impossibilidade, volta-se para os elementos brasileiros presentes no contexto<br />
africano, como as festas religiosas.<br />
Essas comemorações são preservadas pelos africanos que retornam após a abolição.<br />
Tendo em vista o tempo em que conviveram com a cultura brasileira, adotam algumas<br />
tradições em razão da necessidade de adaptação. Essa hibridação de culturas comprova que o<br />
sujeito carrega uma diversidade de experiências adquiridas nos diferentes espaços em que<br />
habita. E a cada espaço torna-se uma síntese dos demais, pela influência cultural a que se<br />
submete.<br />
Com relação às dificuldades do retorno de ex-escravos para a África, Eurídice<br />
Figueiredo expõe:<br />
A inadaptação inicial dos afro-brasileiros que voltaram à África no século XIX,<br />
deportados ou retornados por vontade própria, comprova que a travessia dos<br />
territórios sempre cobra pedágio no que concerne aos afetos. Ao sentir saudade do<br />
Brasil e tentar recriar seus usos e costumes e, sobretudo, ao considerar que os anos<br />
passados no Brasil tinham sido os mais felizes de suas vidas, apesar do cativeiro,<br />
191 KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Trad. Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro:<br />
Rocco, 1994, p. 15.<br />
192 OLINTO, 2007, p. 90.<br />
77
eles atestam que toda mudança de país desencadeia uma crise, porque as pessoas se<br />
transformam e se adaptam. Quando se dá uma nova mudança, alguns têm maior<br />
facilidade do que outros para se readaptar, estabelecer relação, se enraizar. 193<br />
O homem, sempre que se desloca e tem de abandonar laços tecidos no espaço e no<br />
tempo, sente uma espécie de desconforto. No entanto, é próprio do ser humano lutar para<br />
sobreviver, mesmo nas condições mais adversas. Segundo Edmilson de Almeida Pereira, a<br />
decisão de lançar-se para além das fronteiras interfere nos campos da percepção do indivíduo.<br />
Assim, o retorno à terra de origem pode gerar conflitos, quando não se reconhece mais o<br />
espaço idealizado; por outro lado, o próprio indivíduo pode não ser reconhecido como um<br />
membro de seu antigo lugar. 194<br />
Catarina não é a única a frustrar-se com a África. Muitos outros afro-brasileiros que<br />
fazem a viagem de volta, durante os anos que se sobrevêm a escravidão, desenvolvem o<br />
mesmo sentimento. Porém, alguns retornam ao Brasil. A respeito disso, Olinto narra em<br />
Brasileiros na África, obra construída a partir da sua experiência na Nigéria:<br />
Na história do regresso de africanos a seu continente houve também a parte dos que,<br />
uma vez lá, resolveram cruzar de novo o Atlântico e voltar ao Brasil. Isto aconteceu<br />
tanto no caso de brasileiros natos – que haviam acompanhado parentes na ida para a<br />
África Ocidental – como no de africanos que não mais se acostumaram com a vida<br />
em Lagos, Badagre, Porto Novo ou Cotonu. 195<br />
Percebe-se que a influência da cultura brasileira nos hábitos dos cidadãos faz com que<br />
muitos destes não se sintam pertencendo mais ao espaço africano. Criam laços com o Brasil e<br />
hibridizam sua cultura. Ao invés de encontrar semelhanças e uma saída para esse conflito<br />
entre costumes, o retorno ao Brasil é a solução para alguns. Na obra A casa da água, esse<br />
regresso ocorre somente com Antônio, irmão de Mariana, o qual se estabelece como<br />
comerciante em solo brasileiro. O restante da família, as mulheres das três gerações<br />
alimentam uma saudade do Brasil, que se torna parte de suas memórias. Porém, a viagem<br />
nunca se concretiza, pois não fazem nenhum esforço para realizá-la, ou seja, manifestam a<br />
vontade, mas não decidem retornar.<br />
Sobre a presença do Brasil na África, em Brasileiros na África, Olinto prossegue:<br />
193 FIGUEIREDO, 2010, p. 246.<br />
194 PEREIRA, 2010, p. 46.<br />
195 OLINTO, 1980, p. 270.<br />
A presença do Brasil na África, senti-a, com o tempo, cada vez mais forte. Paisagens<br />
e gentes se tornavam para mim, naquela costa, familiares. Ganhava facilidade no<br />
entrar na africanidade das coisas. As iorubanas do mercado, com suas roupas de<br />
78
sempre inesperada beleza, me pareciam insubstituíveis. As esculturas de madeira<br />
que se viam ao longo das cidades me olhavam e me pensavam com intimidade e<br />
compreensão. E esse entendimento era tanto maior porque não esbarrava na menor<br />
dificuldade. Nada do que era africano me parecia estranho porque traços da<br />
influência brasileira apareciam nas menores coisas. E me espantava sempre de não<br />
estar no Rio. Porque a verdade é que estava em casa. 196<br />
Esse relato evidencia, também, a forte presença africana no Brasil. Olinto sente-se tão<br />
familiar na Nigéria, que por vezes tem a sensação de estar no seu próprio país. Isso ocorre<br />
porque a cultura africana se faz bastante visível no dia a dia do povo brasileiro, nos costumes<br />
e nas tradições.<br />
Assim, Catarina tendo estabelecido contato com a cultura brasileira e agregado a ela<br />
características do espaço africano, faz com que seus referenciais identitários interajam,<br />
deixando-a dividida entre duas culturas, com a sensação de pertencimento a ambas e, ao<br />
mesmo tempo, a nenhuma.<br />
Segundo Hall, a identidade é resultado de um processo que tem origem nas relações do<br />
sujeito com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem 197 . A<br />
avó passa a assumir diferentes identidades nos momentos diversos de sua vida, em razão de<br />
seu deslocamento. Isso a torna confusa, deslocada, em busca de seu verdadeiro eu, de sua<br />
essência de vida.<br />
A tentativa de busca de uma posição identitária é exemplificada pela lembrança de<br />
Catarina, no que diz respeito ao nome que possui antes de ser escravizada. Ao chegar ao<br />
Brasil, recebe o nome de Catarina, tendo que abandonar seu nome africano. Já na África,<br />
demonstra a não aceitação dos valores impostos, quando revela seu verdadeiro nome:<br />
- Não quero que me chamem de Catarina mais. Meu nome é outro. Quero que todos<br />
me chamem pelo meu nome. [...] Meu nome é Ainá. [...] Ainá. Sempre me chamei<br />
Ainá. No Brasil é que trocaram meu nome, fiquei sendo Catarina, mas tenho nome:<br />
meu nome é Ainá. [...] Devia ser proibido trocar os nomes das pessoas. Meu nome é<br />
Ainá. [...] Nome é coisa sagrada, não deve ser dito de mais nem à toa e só as pessoas<br />
da família deviam saber o nome da gente. Para os de fora um apelido serve 198 .<br />
A perda do nome é a perda de referenciais identitários. Percebe-se a tentativa de<br />
reapropriação de um espaço existencial. Com essa atitude, Catarina confirma a existência de<br />
relações concretas entre esse espaço e a sua personalidade. Segundo Fábio Leite, na cultura<br />
africana, o nome não é considerado um elemento estrangeiro à personalidade. Ao contrário,<br />
196 OLINTO, 1980, p. 159-160.<br />
197 HALL, 2005.<br />
198 OLINTO, 2007, p. 91.<br />
79
é atributo revelador de suas características mais significativas, que permitem a<br />
identificação profunda da essência natural e social do indivíduo. Mas o nome, assim<br />
como os princípios vitais naturais, é também dotado de uma dinâmica distintiva,<br />
pois identifica e define as mutações sofridas por esses princípios vitais ao longo da<br />
integração paulatina do homem na sociedade. Por tal razão, as pessoas recebem<br />
vários nomes, inclusive sucessivamente, os quais vão sendo acrescentados aos<br />
anteriores na medida em que essas mutações vão ocorrendo. [...] Visto sob esse<br />
ângulo abrangente, proposto pela sociedade, o nome pode ser considerado, ele<br />
mesmo, também como um elemento vital constitutivo do homem, sendo sua<br />
natureza, no entanto, de ordem histórica. [...] 199<br />
Portanto, o nome, além de caracterizar o indivíduo, estabelece relações significativas<br />
entre o próprio sujeito e a sociedade, a partir dos valores propostos por ela. É algo que precisa<br />
ter sentido, significado, representar a pessoa, o que não ocorria com o nome Catarina, imposto<br />
na chegada ao Brasil. Dessa maneira, a avó fez uso da memória, buscando no tempo vivido<br />
uma forma de libertação, com a intenção de apagar os vestígios deixados pela escravidão e<br />
reaver parte de suas raízes.<br />
De origem havaiana, o nome Ainá significa pessoa ousada, independente e forte,<br />
sempre disposta a se aventurar, com personalidade ativa e decidida, além de líder por<br />
natureza, está, em qualquer situação, pronta a enfrentar os obstáculos que a vida lhe impõe. 200<br />
Essa definição representa o modo de ser e agir da personagem, algo que a constitui e a<br />
diferencia dos demais indivíduos.<br />
Contrasta-se a esse nome escolhido, a imposição do sobrenome Santos em terras<br />
brasileiras. Logo após a chegada a Lagos, ao ser interrogada por D. Zezé acerca de seu nome,<br />
Catarina esclarece:<br />
- Qual o nome todo de vocês?<br />
- Eu sou Catarina dos Santos, minha filha é Epifânia dos Santos, e os netos são<br />
Mariana, Emília e Antônio, tudo dos Santos.<br />
- De onde veio o sobrenome?<br />
- De meu dono, Joaquim dos Santos, chamado Tio Inhaim. Quando fiquei livre,<br />
peguei o nome dele e dei para minha filha e meus netos. 201<br />
Essa marca de subordinação e inferioridade denuncia a ausência, entre os<br />
remanescentes de escravos, dos mínimos requisitos de cidadania. Diante disso, percebe-se<br />
que, ao invés do esquecimento das agruras do passado de escravidão no Brasil, a avó procura<br />
199<br />
LEITE, Fabio Rubens da Rocha. A questão ancestral: África negra. São Paulo: Palas Athena: Casa das<br />
Áfricas, 2008, p. 69.<br />
200<br />
SIGNIFICADO dos nomes. Disponível em: <br />
Acesso em: 04 jun. 2011.<br />
201 OLINTO, 2007, p. 78.<br />
80
minimizar o sofrimento, transformando a memória em crítica contra a mudança de nomes e,<br />
ao mesmo tempo, a aceitação de um sobrenome, já que não possui outro.<br />
Diante de dois espaços, a África e o Brasil, e não conseguindo reconstruir seus<br />
referenciais identitários, Catarina fecha-se em seu mundo interior, mergulhando nas memórias<br />
de toda uma vida, a fim de ressaltar as esperanças não consolidadas. Assim, depois de ter<br />
realizado sua última tentativa de resgate identitário – a revelação do nome Ainá - a mulher<br />
desiste de viver:<br />
Ainá, que fora até então conhecida como Catarina, morreu às dez da manhã, o sol<br />
batia forte na frente da casa de D. Zezé, que saiu de vestido comprido, passos<br />
miúdos, procurou Epifãnia:<br />
- Vamos dar um banho no corpo e preparar a serenata. Você vai precisar de bebida,<br />
muito biscoito, pastéis, acará, caruru, bolos, dois atabaquistas, um tocador de violão,<br />
um flautista, um clarinetista, mesas e cadeiras. E tem de matar uma cabra. O que<br />
você não tiver, eu empresto.<br />
Epifânia concordou, a outra foi em frente:<br />
- É a primeira pessoa do Esperança que morre. Dos outros navios todos já morreu<br />
muita gente. A serenata precisa ser animada. Vou arranjar búzios em boa quantidade<br />
para você ir dando a cada um que chegar; assim todos pensarão bem da morte. 202<br />
Após a morte de Catarina, realiza-se um ritual de acordo com os costumes da cultura<br />
africana. Diferentemente da cerimônia de sepultamento brasileira, é uma festa alegre e<br />
comemorativa. Considera-se que, sendo ela uma anciã, deixou uma história concretizada e,<br />
por esse motivo, precisa ser homenageada. Segundo Fábio Leite, a morte na velhice é<br />
diferente das demais; é chamada de positiva:<br />
A morte que mais parece se aproximar de um conceito de consequência natural da<br />
existência visível é a ocorrida na velhice e dentro de certas regras sociais. É o caso<br />
de um indivíduo já idoso falecido após preencher critérios socialmente dados, como<br />
iniciação, formação de família numerosa permitindo descendência significativa e a<br />
existência de herdeiros legais, comportamento ético apropriado, dedicação ao<br />
trabalho, conhecimento respeitado na comunidade, posse de certos bens materiais. 203<br />
A celebração da morte de uma pessoa idosa tem seu registro garantido com a morte de<br />
Catarina. Começando pela lavação do corpo, passando pela festa da serenata, até o enterro na<br />
praça, todo o ritual é apresentado detalhadamente. Nessa circunstância, D. Zezé diz à<br />
Epifânia: “ Morta que viveu bem sua vida, não deve ser chorada”. 204 Evidentemente, a morte<br />
não se configura em algo facilmente aceitável. As cerimônias são marcadas pelos sons dos<br />
tambores, por danças, cumprimentos, alegria; enfim, é a expressão do estreitamento dos laços<br />
202 OLINTO, 2007, p. 92-93.<br />
203 LEITE, 2008, p. 96.<br />
204 OLINTO, 2007, p. 96.<br />
81
comunitários como forma de vencê-la, permitindo a continuidade da existência em outro<br />
plano. A morte é pensada como a restituição à fonte primordial da vida.<br />
Catarina viveu toda a vida no espaço brasileiro idealizando a África, esforçando-se<br />
para manter vivos os laços com seu passado, sua juventude. Após realizar o sonho de retornar<br />
à sua África, percebe o quão difícil se torna o resgate das raízes, pelas influências culturais, a<br />
que as pessoas estão propensas, no deslocamento. É sepultada, segundo a tradição africana. O<br />
último ato, que põe fim à trajetória de uma ex-escrava que passou grande parte de sua vida<br />
tentando recuperar os referenciais identitários da África, encerra sua vida naquele espaço.<br />
3.3 Brasil-África: o entre-lugar de Mariana<br />
Mariana sai do Piau com dez anos, junto com a avó, a mãe e os irmãos. A família<br />
passa por Juiz de Fora, Rio de Janeiro e Bahia, até embarcar num navio em direção à Lagos,<br />
na Nigéria. Naquele continente, Mariana casa-se, ainda muito jovem, com Sebastian Silva,<br />
que morre assassinado, quando seus dois filhos mais velhos, Joseph e Ainá, ainda são muito<br />
pequenos. Logo após a morte do marido, Mariana descobre a gravidez de seu terceiro filho,<br />
que é batizado de Sebastian, em homenagem ao pai. Torna-se uma rica comerciante,<br />
mantendo negócios com países estrangeiros, inclusive o Brasil, além de cidades da região<br />
onde mora. Nos contatos estabelecidos pelos locais em que passa, Mariana convive com<br />
diferentes culturas, fazendo com que seus referenciais identitários estejam em constante<br />
interação. Por outro lado, mantém viva a memória do Brasil.<br />
3.3.1 Deslocamento, memória e identidade<br />
A memória constitui-se no fundamento dos processos identitários, referindo-se a<br />
comportamentos e atitudes coletivas, por meio da rememoração individual, que constrói as<br />
representações do passado. Refletindo sobre a memória como possiblidade de percorrer os<br />
caminhos da vida, Norberto Bobbio constata:<br />
O relembrar é uma atividade mental que não exercitamos com frequência por que é<br />
desgastante e embaraçosa. Mas é uma atividade salutar. Na rememoração<br />
encontramos a nós mesmos e a nossa identidade, não obstante muitos anos<br />
transcorridos, os mil fatos vividos [...] Se o futuro se abre para a imaginação, mas<br />
não nos pertence mais, o mundo passado é aquele no qual, recorrendo a nossas<br />
82
lembranças, podemos buscar no refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-nos sobre<br />
nós mesmos e nele reconstruir nossa identidade. 205<br />
A memória é o elemento que contribui no autorreconhecimento do sujeito como<br />
integrante de uma comunidade. Ela é o meio pelo qual o ser humano pode se redescobrir,<br />
identificar-se a partir de uma reflexão sobre a experiência individual, fazendo uma relação<br />
com as experiências coletivas. É fundamental para a constituição do indivíduo, pois, conforme<br />
Jean-Yves Tadié e Marc Tadié, “permite que tenhamos uma identidade pessoal: é ela que faz<br />
a ligação entre toda a sucessão de eus que existiram, desde nossa concepção até o momento<br />
presente”. 206 Em outros termos: a busca da identidade passa pela recuperação de valores, a<br />
partir das vivências do indivíduo, no passado, e a diversidade de culturas presentes em sua<br />
vida.<br />
A memória individual da protagonista está arraigada em diferentes contextos, que<br />
fazem com que suas lembranças desencadeiem-se de modos diversos, seja através de uma<br />
imagem, de um objeto, uma cor, sensações, palavras. Segundo Halbwachs, as lembranças<br />
aparecem quando as circunstâncias as despertam. 207 No que concerne à memória, Lucilia<br />
Delgado expõe:<br />
A memória, como esteio de identidades, refere-se aos comportamentos e às<br />
mentalidades coletivas, na medida em que o relembrar individual encontra-se<br />
relacionado à inserção social e histórica de cada indivíduo. [...] Como processo<br />
social ativo, a memória tem como ponto de partida a vida em sociedade na qual se<br />
inscrevem as experiências individuais. Pressupõe diversidade de possiblidades e<br />
combinação de heterogêneas expressões algumas vezes visíveis e, em outras,<br />
omitidas ou ocultas. Dessa forma, estímulos exteriores são de real importância para<br />
o processo de reordenação e releitura de vestígios, trazendo para o presente<br />
motivações e sentimentos que outrora mobilizaram indivíduos [...]. 208<br />
Nessa situação, a memória pessoal é o elo com os fatos do passado, que não pertencem<br />
somente ao indivíduo, mas a todo o seu grupo. A memória coletiva se desenvolve a partir de<br />
laços de convivência, nas sociedades em que a pessoa participa. A família é uma delas;<br />
entrelaça a memória de seus membros.<br />
Na infância, na viagem de trem até o Rio de Janeiro, a menina Mariana contempla<br />
cada momento, cada fato, cada objeto, diferentemente da mãe e da avó que têm receio de<br />
olhar e ignoram a paisagem:<br />
205 BOBBIO, 1997, p. 30-31 apud DELGADO, 2010, p. 38.<br />
206 TADIÉ, 1999, p. 9 apud ZILBERMAN, Regina. Memória entre oralidade e escrita. Letras de Hoje, Porto<br />
Alegre: EDIPUCRS, v. 41, n. 3, p. 117, 2006.<br />
207 HALBWACHS, 2006, p. 53.<br />
208 DELGADO, 2010, p. 69.<br />
83
Mariana comeu o prazer de cada imagem, debruçou-se na janela e contemplou as<br />
coisas correndo até, casas, cercas, bois, árvores, o rio, também estava cheio, em<br />
muitos pontos viam-se margens cobertas de água, uma ou outra canoa parada ou<br />
andando. [...] Comeram quando um rio enorme tomava toda a paisagem lá fora [...].<br />
A água e a ponte de ferro que havia entre a água e o trem constituíam uma novidade<br />
que eliminava tudo o que conhecera antes. No outro lado do rio, o trem seguia novos<br />
caminhos, mas a menina queria ver ainda, lá atrás, a água maior do que a<br />
enchente. 209<br />
Para a personagem, sempre há algo que desperta as lembranças do Piau. Já que o<br />
passado não volta, o que voltam são as recordações, sem uma sequência cronológica. Anos<br />
mais tarde, já na África, Mariana lembra essa viagem, quando vai visitar a irmã Emília, que<br />
está prestes a dar a luz. “Mariana sorriu lembrando-se de sua viagem há tantos anos, de Juiz<br />
de Fora para o Rio de Janeiro, a paisagem correndo como se o trem é que estivesse parado”<br />
[...]. 210<br />
Em A casa da água, o que deflagra algumas das recordações da protagonista é a<br />
enchente que ela vivenciou, quando menina, no Piau:<br />
[a] enchente se engrossara de imagens, uma atrás da outra, todas nítidas, Mariana<br />
fora ver a ponte caída, o rio levara a base de tijolos que havia no centro e onde se<br />
apoiavam as traves de madeira, as águas batiam com violência no que restava dos<br />
tijolos, [...] outra cena da enchente fora uma tropa de animais atravessando o rio a<br />
nado, eram vários burros e cavalos, o homem que ia na frente perdeu o chapéu que<br />
caiu no rio, os cavalos faziam barulho ao nadar e saíam pingando [...] 211<br />
A sequência de imagens da enchente contribui para a construção da memória de<br />
Mariana, e, ao longo do romance, surge como representações de um passado individual e<br />
coletivo. Já na África, tempos depois, uma dessas representações remete a lembranças do<br />
Brasil, de onde surge a ideia da construção do poço:<br />
209 OLINTO, 2007, p. 20-21.<br />
210 Ibidem, p. 154.<br />
211 Ibidem, p. 15.<br />
212 Ibidem, p. 126-127.<br />
[...] um dia viu um grupo de homens fulanis tangendo vacas pela rua, lembrou-se da<br />
semana que passara num engenho de cana, dos bois e vacas que havia lá. E viu<br />
diante de si o poço. Era isto: tinha gostado de sentar-se perto do poço, olhava cada<br />
moça que chegava, com um vaso na cabeça ou no ombro, quando não havia<br />
ninguém por perto Mariana tirava a água que lhe escorria pelo vestido e tentava<br />
distinguir o que havia no fundo. Era isto: Lagos precisava de um poço, Mariana faria<br />
um no quintal da casa, venderia água em vez de vender obis. 212<br />
84
Nessa ocasião, Mariana, na tentativa de conseguir recursos para o sustento da família,<br />
e com o marido sem emprego, precisa dar um rumo para a família. Com pouco dinheiro e com<br />
a escassez de água, descobre que a cidade seria abastecida pela água que viria de Abeokutá 213 ,<br />
pois Lagos era cercada por lagoas de água salobra. Devido a esse fato, as imagens do passado<br />
emergem e Mariana começa a transformar a ideia em projeto, pesquisando tudo a respeito do<br />
assunto, desde o significado da palavra poço, até como construí-lo.<br />
As lembranças, segundo Bordieu, não são o relato coerente de uma sequência de<br />
acontecimentos, com significado e direção, pois não se consegue resgatar a história através da<br />
cronologia dos fatos, ou seja, início, meio e fim. 214 O teórico expõe essa noção a partir da<br />
reflexão sobre o romance moderno, que abandona a estrutura do relato linear, o que coincide<br />
com a realidade, formada por elementos imprevistos.<br />
O ato de rememorar se manifesta como um recorte seletivo do passado, que nunca é<br />
aquele do indivíduo somente, mas de um sujeito inserido num contexto familiar ou social. No<br />
romance de Olinto, a memória surge por meio de flashes que respondem à evocação do<br />
presente da protagonista, pois não é possível resgatar todas as vivências que compõem o<br />
passado, mesmo sendo parte integrante da pessoa. Em A casa da água, Mariana transita entre<br />
o lembrar e o esquecer, como mostra a viagem de barco do Rio de Janeiro até a Bahia, e,<br />
também, os dias que passa em um engenho:<br />
Para Mariana, a enchente e a viagem continuavam juntas, o mar, o sal e o sol, a água<br />
que se estendia até onde só havia mais água. O enjoo dos primeiros dias não<br />
permitiu que ela andasse muito [...]. 215<br />
Em fevereiro Mariana passou uma semana num engenho de cana, gostava de ficar<br />
junto a um poço de onde todos puxavam água, pensou na viagem que iam fazer, da<br />
Bahia à África, chupou mangas, soube de currais, onde havia muito gado, foi ver<br />
tirarem leite das vacas, o Piau voltou-lhe à lembrança, há quanto tempo não pensava<br />
na enchente nem na casa que descia ao encontro do rio. 216<br />
No decorrer da obra, fica evidente a importância da água, sempre presente na memória<br />
da protagonista. É através da água que Mariana realiza seus desejos e começa a ascender<br />
socialmente. São as memórias que a personagem tem de situações que envolvem a água que<br />
movem a sua vida: a enchente no Piau, o mar na viagem de regresso, as lagoas que circundam<br />
213 Abeokutá localiza-se perto de Lagos.<br />
214 BORDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; FIQUEIREDO, Janaina P.<br />
Amado Baptista de (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 185.<br />
215 OLINTO, 2007, p. 26.<br />
216 Ibidem, p. 54.<br />
85
Lagos e a água potável do poço, que lhe deu uma razão, um sentido, como ela mesma diz: “É<br />
que eu comecei a ser eu depois que fiz um poço”. 217<br />
A água contribui para que Mariana comece a fixar suas raízes no solo africano. Esse<br />
lugar oferece a possibilidade de Mariana construir-se como africana, visto que essa terra não é<br />
sua por origem. Ela nasceu no Brasil e está na África porque a avó decidiu retornar em<br />
companhia da família. Assim, a partir da construção do poço, ela passa a sentir-se parte do<br />
território que habita, por haver buscado formas de adaptação, por meio da assimilação dos<br />
costumes e do progresso econômico. Porém, sem ignorar a cultura de seu país natal: o Brasil.<br />
As duas culturas interagem pacificamente.<br />
A história da enchente é uma situação vivida, também, pelo autor Antonio Olinto, que,<br />
aos cinco anos de idade, passa pela experiência de ter sua casa destruída por uma enchente.<br />
Esse trágico fato é emprestado à personagem Mariana, que tem sua partida para a África<br />
registrada na memória junto com a enchente que a antecede. Em A casa da água, percebe-se<br />
que as lembranças do despertar com a inundação estão na memória de Mariana, conforme<br />
relato do narrador: 218<br />
A enchente e a viagem ficariam sempre ligadas na memória de Mariana, uma<br />
aconteceu perto da outra e sinto que suas memórias anteriores se perderam, talvez<br />
porque a enchente e a viagem não permitam que além delas algo possa ter ainda<br />
força, e por mais que eu apele para suas recordações nada consegue varar a cortina<br />
formada pelas duas realidades da enchente e da viagem. 219<br />
Essa ligação entre inundação e viagem ocorre porque é a partir desse fato que sua avó,<br />
Catarina, decide fazer a viagem de retorno à África. São duas lembranças tão fortes e<br />
marcantes na vida da protagonista, que a impressão é a de que a sua vida tem início com a<br />
cheia. Mariana lembra mais tarde que, naquela noite, na cozinha da casa de Tio Inhaim, todos<br />
falam da enchente e da viagem. 220<br />
À parte a ficção, a abertura de um poço é contada por Olinto, também, em Brasileiros<br />
na África. João Esan da Rocha, brasileiro da Bahia, também abre um poço:<br />
217 OLINTO, 2007, p. 182.<br />
218 Ibidem, p. 12.<br />
219 Ibidem, p. 14.<br />
220 Ibidem, p. 13.<br />
O sobrado de João Esan da Rocha tem, contudo, uma denominação própria: chamase<br />
“Water House”, porque ali se abriu um poço, num tempo em que Lagos, cercada<br />
de lagoas de água salobra, recebia sua água de Abeocutá, situada a 70 quilômetros a<br />
86
Noroeste. Foi esse poço a primeira água potável arrancada do solo da ilha de<br />
Lagos. 221<br />
Imitando a realidade, o poço de Mariana dá a Lagos a primeira água potável. Então,<br />
ela encomenda uma tabuleta para colocar na porta da casa com os dizeres: omi, água, water. A<br />
palavra água escrita em iorubá, português e inglês revela o trânsito de Mariana entre as três<br />
culturas que influenciam sua vida naquele momento: África, Brasil e Inglaterra. A<br />
protagonista valoriza a cultura que vem de seus ascendentes, por isso o uso dessa palavra em<br />
iorubá, idioma que pertence à família Níger-Congo, 222 falado pelo povo iorubano, maior<br />
grupo étnico da Nigéria. Por predominar em Lagos, Mariana decide incluir esse idioma, como<br />
forma de demonstrar a importância que dá a terra em que vive e, também, pelo que a terra lhe<br />
dá em troca: a oportunidade de progredir. Já a palavra water representa as influências<br />
exercidas pelos ingleses, colonizadores dessa parte do continente africano, onde a família de<br />
Mariana reside e, por esse motivo, precisa manter boas relações com o poder dominante. Por<br />
fim, água no idioma português demonstra que a personagem procura recuperar seus<br />
referenciais brasileiros, de sua terra natal, trazendo-os para o presente, como um meio de<br />
construir-se no espaço africano. Assim, envolvida num espaço em que as culturas convivem,<br />
Mariana procura fixar suas raízes e ascender socialmente. É o início seu progresso econômico.<br />
A protagonista compra, com dinheiro emprestado, o terreno, onde está o poço. Depois, manda<br />
construir um sobrado para a família, que fica conhecido como a “Casa da água”.<br />
Em A casa da água, a história é construída por meio da intercalação de lembranças à<br />
narração dos fatos presentes. Tudo o que acontece na realidade, cada olhar, cada gesto ou uma<br />
situação remete a personagem a vários contextos, evocando momentos vividos, que<br />
preenchem o agora, e até mesmo o futuro. Um outro exemplo disso é o que ocorre nos dias<br />
que antecedem o casamento da irmã, Emília, em solo africano, e no próprio dia do casamento:<br />
Mariana mandou enfeitar a casa toda, papéis coloridos nas portas, como quando era<br />
festa no Brasil, uma semana antes começaram a fazer doces e a reservar a comida,<br />
[...]<br />
[n]a manhã do casamento sentiu-se enternecida, lembrava-se de Emília no Piau, tão<br />
pequena que não podia participar das pescarias no rio, depois a viagem de trem para<br />
o Rio de Janeiro, de vapor para a Bahia, o tempo de vida baiana, a família dormindo<br />
no mercado, o cheiro de peixe, Padre José, o sacrifício do carneiro, as roupas<br />
brancas da festa do Bonfim, as conversas na barraca, a viagem pelo Esperança, a<br />
221 OLINTO, 1980, p. 193-194.<br />
222 LÍNGUAS nígero-congolesas. Disponível em: .<br />
Acesso em: 28 jul. 2011. As línguas nígero-congolesas são uma família de línguas, sendo o maior<br />
das línguas africanas, tanto quanto ao número de falantes, quanto à área geográfica ou ao número de línguas.<br />
Quase todas as línguas da África subsaariana pertencem a este grupo. Uma propriedade comum destas línguas é<br />
o uso de um sistema de classes para os nomes.<br />
87
calmaria, a época difícil do começo em Lagos, a abertura do poço, agora a irmã ia<br />
casar-se, moraria longe, teria outra vida, quando surgiu no seu vestido de noiva<br />
estava linda, quem fez o casamento foi o Padre O‟Brien [...].<br />
Mariana ouviu-se cantando:<br />
Ô enganadeira,<br />
Não me venha me enganar,<br />
Ô enganadeira,<br />
Não me venha me enganar.<br />
Não me venha dar o pago<br />
Que a outra veio me dar.<br />
A canção saiu-lhe com naturalidade, ouvira-a no Rio de Janeiro, a melodia da flauta<br />
era a da antiga, a mulher sorriu quando os outros bateram palmas [...] 223<br />
O momento alegre desencadeou a memória da infância, vivida no espaço brasileiro.<br />
Nesse mergulho na memória, surge a recordação da música que a personagem ouviu pela<br />
primeira vez no Brasil, em uma festa, com dança e batuques. Era uma festa de Santo Antônio<br />
ou de São João. Ela já não tem certeza, pois havia passado as duas no Rio de Janeiro. Aquela<br />
voz está sempre nas lembranças, como relata a obra: “Guardaria para sempre essa letra e essa<br />
música. Nos anos que se seguissem, elas seriam a presença do Rio, da infância e de um vago<br />
sentimento alegremente triste de que as coisas podem mudar, podem enganar, e contudo são<br />
boas”. 224<br />
Muito tempo depois, a recordação da música acontece novamente, quando Mariana<br />
decide enviar Fadori 225 para estudar na França. Junto dessa lembrança vem a memória do seu<br />
passado no Piau, como um flash: “Mariana se pôs a pensar em sua partida do Piau, o cavalo<br />
subindo e descendo o morro, à noite Emília e Maria Gorda 226 conversavam sobre a viagem de<br />
navio entre a Bahia e Lagos, Mariana começou a cantar, numa lembrança”. 227 A evocação da<br />
música ocorre em momentos distintos, alegres e também tristes, exatamente como a<br />
personagem comenta quando ouve a música pela primeira vez. Quando esse passado é<br />
rememorado, é como se abrisse um espaço em seu presente, para, logo em seguida, retornar e<br />
ceder lugar aos fatos atuais, que continuam o seu curso.<br />
223 OLINTO, 2007, p. 140-141.<br />
224 Ibidem, p. 23.<br />
225 Fadori é filho de Fatumbi, amigo e conselheiro de Mariana. O rapaz morou com a personagem, alguns anos,<br />
para lhe fazer companhia. Foi Fatumbi que sugeriu que Mariana cuidasse do rapaz e os filhos de Mariana não se<br />
opuseram. Sebastian, o mais novo, achou que seria bom para a mãe, pois ela andava um pouco só.<br />
226 Essa personagem é uma amiga que Mariana conheceu durante a viagem até Lagos.<br />
227 OLINTO, 2007, p. 325.<br />
88
3.3.2 A figura materna e o ancestral<br />
Como o sujeito está sempre em busca de suas referências, a identidade apresenta uma<br />
dimensão coletiva, além de pessoal, no que diz respeito à construção da história. Em outros<br />
termos, o indivíduo não constrói sua história, sozinho, isolado; ele precisa da participação da<br />
família ou de uma comunidade, para poder relacionar-se e compartilhar os conhecimentos. É<br />
no convívio com o outro que os referenciais de pertencimento vão sendo fixados.<br />
Na volta às origens, por meio da memória, está a oportunidade de o indivíduo<br />
demonstrar a importância da sua história que, partilhada na comunidade, readquire o<br />
encantamento e relaciona a perspectiva individual à esperança coletiva. Nesse contexto, a<br />
figura materna é a referência. Sobre a importância da figura feminina, na Nigéria, Olinto<br />
reflete, em Brasileiros na África:<br />
Seria difícil dizer se a sociedade brasileiro-nigeriana é um patriarcado ou um<br />
matriarcado. Se às vezes o costume tradicional africano da poligamia nela também<br />
se impõe, a mulher é independente, inclusive do ponto de vista econômico, porque é<br />
ela quem negocia, monta barracas nos mercados e tem contas em banco. Nesse<br />
particular, os descendentes de brasileiros conservaram usanças africanas.<br />
Conservaram-nas ou apenas recuperaram. 228<br />
A reflexão de Olinto ocorre a partir da observação das características da festa de Nossa<br />
Senhora dos Prazeres, em Lagos, em que são as mulheres que acompanham os tambores e a<br />
música. Somente os homens muitos jovens e solteiros é que participam das danças. O que<br />
Olinto ressalta são os hábitos que os africanos descendentes de brasileiros preservam de seus<br />
antepassados.<br />
A estreita ligação entre Brasil e África tem como causa o fato de o espaço brasileiro<br />
ter recebido cerca de quarenta por cento dos quase dez milhões de africanos transportados<br />
para as Américas entre os séculos XVI e XIX. Segundo Edmilson de Almeida Pereira,<br />
“[p]ensar o Brasil a partir desse fato significa dar atenção a uma gama de elementos culturais<br />
relacionados à diáspora africana que se tornaram parte de nossa percepção de mundo e de<br />
nossas práticas cotidianas”. 229 Porém, apesar disso, a sociedade brasileira sempre teve um<br />
olhar de preconceito com relação ao negro, apesar de suas contribuições culturais na<br />
constituição do espaço brasileiro.<br />
Constatam-se diferenças culturais na obra A casa da água, quando o assunto é<br />
poligamia. Embora vivendo em uma sociedade em que essa prática é comum, Mariana nunca<br />
228 OLINTO, 1980, p. 168.<br />
229 PEREIRA, 2010, p. 22.<br />
89
aceitou esse costume, nem para si mesma, nem para a irmã e a filha, como ela mesma relata<br />
no dia do casamento da irmã: “Toda a família de Ebenezer ficou hospedada no sobrado, o pai<br />
tinha três mulheres, só duas haviam acompanhado o marido, Mariana resolveu não pensar na<br />
possibilidade de o marido da irmã vir a ser polígamo, [...].” 230 A hipótese de dividir o marido<br />
com outras mulheres nunca foi considerada pela protagonista, que prefere conservar a tradição<br />
brasileira, que não vê a poligamia como algo aceitável.<br />
Com relação a esse assunto, uma das novas amigas de Epifânia, a mãe de Mariana,<br />
justifica: “Pois é muito bom e muito certo o homem ter várias mulheres. E nós também<br />
podemos ter vários homens”. 231 A procriação é entendida como a maior razão para o<br />
casamento e a justificativa principal para a poligamia. Já no que diz respeito à questão<br />
financeira, é a mulher que exerce o controle, recorrendo ao marido, somente para<br />
aconselhamento. É dela, por conseguinte, todo o poder de decisão.<br />
Para Emilia Ippolito, que reflete sobre o papel da mulher negra no contexto literário<br />
caribenho, as mulheres são respeitadas não somente por serem mães, mas pelo papel que têm<br />
na vida social, cultural, política e econômica da comunidade. Essas mulheres são conscientes<br />
da importância de seu trabalho, em todos os setores, acumulando, também, a responsabilidade<br />
pela educação dos filhos. 232<br />
Em muitas sociedades africanas, a identidade da mulher é determinada pela fertilidade,<br />
pelo fato de ser mãe, o que lhe garante respeito e consideração. Um ditado iorubano sintetiza<br />
o valor da maternidade: “Mãe é ouro e pai é vidro”. 233 Esse adágio revela a maternidade como<br />
um dos aspectos culturais mais relevantes na África, a mais alta expressão da condição<br />
feminina.<br />
Esse costume também é observado no romance, em que o papel da mulher-mãe é<br />
evidenciado. Mariana assume a função de condutora do destino da família, procurando formas<br />
de ascender socialmente, através de suas ideias postas em prática. O papel do homem, no<br />
caso, o marido, é somente o de ouvir as decisões da esposa, pois não se impõe e pouco faz<br />
para assumir essa função. Tanto é que ele sai em busca de trabalho em uma cidade, da qual<br />
Mariana nunca tinha ouvido falar. Retorna, muito tempo depois, e percebe que o dinheiro que<br />
ele procura está em Lagos mesmo. Surpreende-se com tudo o que Mariana conquistou e<br />
mostra-se disposto a colaborar:<br />
230 OLINTO, 2007, p. 140.<br />
231 Ibidem, p. 101.<br />
232 IPPOLITO, Emilia. Caribbean Womens Writer: Identity and Gender. USA: Copyright, 2000, p. 23.<br />
233 PAPEL feminino nas sociedades africanas. Disponível em: .<br />
Acesso em: 19 jul. 2011.<br />
90
No dia seguinte, o homem viu a loja, sentou-se nas cadeiras que João das Tábuas<br />
fizera, perguntou à mulher:<br />
- Que é que você prefere que eu faça?<br />
- É melhor você dirigir a loja. Tem várias cartas para responder, vamos embarcar<br />
para a Bahia, no mês que vem, setenta e cinco barris de óleo de palmeira que no<br />
Brasil se chama azeite de dendê. E a firma de Seu Domingos Antônio de Sousa,<br />
baiana, vai embarcar para nós quarenta caixotes de carne-seca. 234<br />
A presença masculina, na obra, é ofuscada pela feminina. A respeito da importância da<br />
mulher, na África, Antonio Olinto ilustra, em Brasileiros na África:<br />
Um anúncio de cinema, em estilo desenho animado, para divulgar a ideia de que<br />
dinheiro se guarda em banco, mostra uma nigeriana saindo de casa para vir vender<br />
no mercado. Ela se despede do filho – que está a caminho do colégio – e do marido<br />
que, deitado numa rede, se limita a acenar-lhe com a mão direita. A propaganda se<br />
dirige à mulher, que é quem trabalha e mostra o homem como uma espécie de<br />
relações públicas da casa, isto é, o que vai discutir certos assuntos (principalmente<br />
os oficiais) e o que dá conselho à mulher, quando isto se faz necessário. É claro que<br />
a situação se modifica e foram os brasileiros que ajudaram a influir na modificação.<br />
Mas uma corrente dos hábitos locais se insinuou na comunidade brasileira. O que<br />
era inevitável. 235<br />
Na cultura tradicional brasileira, é o homem que desempenha a função de prover o<br />
sustento da família, mesmo com aquisição de igualdade de direitos da mulher, na sociedade<br />
de hoje. Na obra, Sebastian, marido de Mariana, é a representação do homem iorubano, cuja<br />
função primordial é, segundo os costumes, a procriação, que garante à mulher a realização da<br />
maternidade.<br />
Em A casa da água, verifica-se a importância dos filhos nas palavras de uma anciã<br />
iorubá: “- Filho é bom para enterrar a gente. Só o homem que é enterrado pelo filho teve de<br />
fato um filho”. 236 Assim, na ocasião em que Mariana, já viúva de Sebastian, reluta em fazer<br />
uma festa de batizado para o caçula, nascido pouco tempo depois da morte do pai, D. Zezé<br />
replica:<br />
234 OLINTO, 2007, p. 143-144.<br />
235 Idem, 1980, p. 168.<br />
236 Idem, 2007, p. 118.<br />
237 Ibidem, p. 175.<br />
- Minha filha, acho que mesmo para os jovens é preciso haver serenata. A morte,<br />
que é o fim de todos nós, é sempre boa. Na época da morte de Sebastian você não<br />
teria aceitado uma ideia assim, por isso vamos ter essa festa de hoje como se fosse<br />
em homenagem a ele porque ele teve uma boa vida, deixou três filhos e foi muito<br />
feliz. 237<br />
91
Diante dos argumentos, Mariana consente que se faça a comemoração. O marido lhe<br />
deu três filhos, então cumpriu seu papel na vida. Com essa atitude, mesmo em um momento<br />
de tristeza, pela morte do marido ainda jovem, Mariana demonstra a valorização dos costumes<br />
nigerianos.<br />
Para os africanos, a morte tem significados especiais. Não denota o fim, mas parte da<br />
existência, que tem como referência maior os ancestrais. Quando acontece com pessoas<br />
jovens, há uma pequena cerimônia triste, pois é a vida interrompida precocemente. Por isso,<br />
não há lugar para comemorações. Esse é o caso das mortes de Sebastian, marido de Mariana,<br />
que foi morto ao tentar separar uma briga; de Segui, nora da protagonista, que morreu ao dar a<br />
luz; da morte do filho de Mariana, Sebastian, presidente de Zorei, que foi assassinado em um<br />
golpe de estado; a de Elizabeth, primeira mulher do irmão de Mariana, que morreu sem causa<br />
específica, entre outras.<br />
a morte:<br />
Em Brasileiros na África, Olinto comenta a naturalidade com que os africanos tratam<br />
O cemitério a que Romana fazia alusão era um de meus espantos em Lagos. É<br />
enorme a intimidade do africano com a morte. Cemitério é lugar de passeio e<br />
descanso e alguns deles têm bancos em que se assentam os namorados. O velho<br />
cemitério do Bairro Brasileiro, hoje abandonado, tem alguns túmulos que as crianças<br />
aproveitam como traves de jogo de futebol. 238<br />
No Brasil, os cemitérios são frequentados para visitas e orações, bem diferente da<br />
tradição africana. Em A casa da água, confirma-se essa outra realidade dos cemitérios, em<br />
uma visita que Mariana faz:<br />
[F]oi visitar o túmulo do primeiro Sebastian, as crianças haviam transformado o<br />
lugar em campo, entre a sepultura da avó Ainá e do marido ficava um dos gols,<br />
Mariana pensou em protestar, depois concordou com a ideia, era a vida continuando<br />
a existir sobre os mortos, estes deviam sentir-se um pouco ressuscitados com o<br />
barulho dos meninos jogando bola, driblando, tentando fazer gols, [...] 239<br />
Na atitude da protagonista, revela-se a convivência de costumes africanos e<br />
brasileiros. Ela é católica, assim como a mãe Epifânia, porém não vê problemas nos demais<br />
costumes da população de Lagos, de Daomé, enfim de todos os territórios por onde circula.<br />
Adapta-se, aceita e convive com as diferenças.<br />
238 OLINTO, 1980, p. 169.<br />
239 Idem, 2007, p. 218.<br />
92
Na cultura africana, a presença do ancestral é muito forte. Segundo Toni Morrison,<br />
“[w]hen you kill the ancestor you kill yourself”. 240 A figura do antepassado tem uma<br />
influência marcante, independente da época do indivíduo. A falta ou a negação de contato<br />
com o ancestral traz uma descontinuidade entre o passado e o presente. As experiências do<br />
passado não são baseadas na memória individual, mas na memória transferida da experiência<br />
vivida dos antepassados para a imaginação coletiva.<br />
Em muitas partes do livro A casa da água, o antepassado aparece como fundamento<br />
para a tomada de decisões, pois é ele que é consultado sempre que há necessidade de uma<br />
opinião para a realização de algo. É o caso de Mariana, que se torna o apoio da família. É ela<br />
que assume o papel de referência, que tinha sido da avó Catarina. Já a mãe, Epifânia, presença<br />
constante na vida da família, está sempre de acordo com as decisões da filha, ajudando,<br />
colaborando, mas delegou a função de líder à Mariana.<br />
A protagonista direciona sua vida a partir dos ensinamentos recebidos da avó e da<br />
mãe, além do que aprende com os contatos estabelecidos com as pessoas mais velhas de<br />
Lagos e, também, com antigos afrodescendentes que viveram no Brasil, como Iaiá Joana, a<br />
brasileira mais velha da Rua Bangboshe, que disse a ela:<br />
- Esconde as coisas boas, menina. Esconde sempre. Não deixe ninguém saber que<br />
você é feliz, ou rica, ou que tem saúde. Surge tanta inveja, a inveja rodeia a gente e,<br />
daí a pouco, vem doença, vem infelicidade, vem pobreza.[...]<br />
- Retrato destrói a alma da gente. Cada retrato que se tira é um pedacinho da imagem<br />
da gente que se gasta. 241<br />
Mariana gosta muito de visitar essa senhora e aprender com a sua experiência, com<br />
suas palavras dotadas de ensinamentos. É esse o motivo pelo qual ela não quis ser fotografada<br />
junto com o marido e os filhos e, assim, guardar uma lembrança de um momento “tão<br />
serenamente feliz”. 242 A herança ancestral, dotada de uma valoração positiva, na sociedade<br />
africana, é mais durável que a existência do próprio indivíduo, pois pertence ao grupo, ao qual<br />
o sujeito pertence. Segundo Ferreira Santos, a presença ancestral é uma herança coletiva que<br />
ultrapassa o próprio indivíduo, que, desta forma, tem “com esta ancestralidade uma relação de<br />
240 MORRISON, Toni. The Ancestor as Foundation. In: EVANS, Mari. Black Women Writers. United States<br />
of America: Copyright, 1984, p. 344. Tradução da autora: Quando você mata o ancestral você mata a si mesmo.<br />
241 OLINTO, 2007, p. 146.<br />
242 Ibidem, p.146.<br />
93
endividamento na medida em que somos o futuro que este passado possuía e nos cabe<br />
atualizar as suas energias mobilizadoras e fundadoras”. 243<br />
Nesse contexto, o compromisso do ser humano com suas heranças é o de ser ele<br />
próprio; de conservar as tradições adquiridas ao longo das gerações e repassá-las aos seus<br />
descendentes. Ainda, conforme Ferreira Santos, a ancestralidade possibilita a religação com<br />
as origens, com os antepassados, o que permite à pessoa repensar sua prática, suas atitudes e<br />
relações, a partir dos ensinamentos ancestrais. 244<br />
Em A casa da água, é no contato com os mais experientes que a personagem constrói-<br />
se como uma mulher sem medo de enfrentar os obstáculos e conduzir o destino de uma<br />
comunidade. É através dos princípios da experiência, que a protagonista torna-se aquilo que<br />
os antepassados são para ela: a base, a mulher sábia que sempre tinha algo para dizer, sugerir,<br />
aconselhar. Mesmo nas horas mais difíceis, a matriarca consegue ser forte, sabe agir por meio<br />
da razão, como no episódio da morte do filho Sebastian, nas últimas páginas do romance:<br />
Mariana fechou os olhos, percebeu as batidas do próprio coração, o sangue lhe corria<br />
mais depressa e uma veia da testa latejava, escutou passos na sala, mas não abriu os<br />
olhos, [...] viu que havia mulheres por toda a parte, encostadas na parede, perto da<br />
mesa, em frente à janela, um choro, um choro de mulher se localizou no topo da<br />
escada, Mariana gritou:<br />
- Que ninguém chore!<br />
O silêncio se impôs durante alguns instantes, o rádio interrompera a música e<br />
parecia ter sido desligado, mas não, a voz do locutor voltou, agora mais nervosa:<br />
“- Atenção, atenção! Notícia de última hora! Confirma-se a morte do Presidente<br />
Sebastian Silva, um dos libertadores da nova África.[...]<br />
[...] quando Mariana chegou à janela os lamentos aumentaram, ela percorreu a cena<br />
com os olhos, homens e mulheres se acumulavam em toda a extensão da frente do<br />
sobrado, voltou, reparou no copo que Jean da Cruz segurava, pegou-o, tomou um<br />
gole, mandou chamar o chofer, desceu com a menina, entrou no carro, [...] 245<br />
Num momento de extrema dor, Mariana consegue tomar atitudes, pois é isso o que as<br />
pessoas que vão até sua casa esperam que ela faça. A impressão que passa é que todos estão<br />
imóveis, esperando por Mariana. Assim, a protagonista decide buscar o filho assassinado, em<br />
Zorei, demonstrando uma força inigualável. Justifica-se, aqui, a referência que a protagonista<br />
é na sua comunidade, pela coragem e sabedoria, típicas da mulher africana, acostumada a<br />
enfrentar desafios.<br />
243 FERREIRA SANTOS, Marcos. Ancestralidade e convivência no processo identitário: a dor do espinho e a<br />
arte da paixão entre Karabá e Kiriku. s.d., p. 213. Disponível em:<br />
. Acesso em: 20 jul. 2011.<br />
244 FERREIRA SANTOS, 2004 apud FERREIRA SANTOS s.d., p. 213-214.<br />
245 OLINTO, 2007, p. 381-382.<br />
94
3.3.3 Uma cultura híbrida<br />
Das três gerações que se deslocam do Brasil à África, avó Catarina, Epifânia, Mariana<br />
e os irmãos, estes, a terceira geração, parecem ser os únicos a se adaptarem na Nigéria.<br />
Mesmo sem esquecer o Brasil, Mariana se adapta à realidade local. Em uma conversa com a<br />
mãe, ainda jovem, antes de casar-se, Mariana sofre ao ouvir as palavras da mãe:<br />
- Estou aqui em Lagos, minha filha, mas é só fechar os olhos que me sinto como se<br />
estivesse no Piau, o adro da igreja bem em frente da casa, a janela que dava para o<br />
rio. Outras vezes é como se estivesse na Bahia, a casa de Padre José fica logo ali<br />
adiante, a igreja é do lado, a torre de onde ele atirava coisas era alta e imponente.<br />
[...] Pensando naquilo, Mariana procurava adaptar-se a Lagos, ver o lado bom das<br />
coisas, saía para as ruas num passo rápido, em qualquer pausa da chuva lá estava ela<br />
andando pela beira-mar, [...] conversava longamente com Dona Zezé, com a velha<br />
Teresa, com as irmãs de caridade, com Padre O‟Malley, não queria ser igual à mãe,<br />
vivendo com o pensamento longe dali, percebeu as brigas entre os brasileiros e os da<br />
terra, deu a opinião de que elas deviam acabar, havia a aristocracia dos que tinham<br />
viajado em tal ou qual navio, a dos que estavam em Lagos há mais tempo, Seu<br />
Alexandre não deixou a filha se casar com um iorubá de Oshogbô, Mariana<br />
começou a visitar mais frequentemente casas de africanos, fez amizade com várias<br />
famílias ibôs, os ibôs também eram católicos, tinha de falar em inglês com eles,<br />
acostumou-se a discutir problemas de Lagos com iorubás, com eles era melhor,<br />
falava em iorubá, um dia, quando entrou na sala de um deles, Ogundipé, viu-o<br />
pintando uma série de máscaras de madeira, estavam nas vésperas das festas em<br />
gueledé, iam sair para as ruas com bailarinos que, ao som de tambores, dançavam<br />
para apaziguar as bruxas. 246<br />
Evidencia-se o interesse da personagem em fixar suas raízes na terra estrangeira, pois<br />
queria um destino diferente do da mãe, Epifânia, que se sente em um espaço que não lhe<br />
pertence; uma afrodescendente com a sensação de estar em um país estrangeiro. Por isso,<br />
Mariana, exposta à diversidade cultural de Lagos, busca interagir com as culturas, por meio da<br />
linguagem, no contato com a língua iorubá, inglesa e a portuguesa, sua língua de origem; na<br />
religião e nos costumes das pessoas que ela visita. Os iorubás conservam tradições típicas<br />
africanas, como a confecção das máscaras. 247 Estes convivem com os ibôs, 248 que são<br />
católicos e sua religião não tem o hábito do uso de máscaras.<br />
Dentre as festas em que se usam máscaras, estão as de gueledé, uma sociedade<br />
composta por mulheres acima da menopausa. Elas são temidas como mulheres feiticeiras,<br />
246 OLINTO, 2007, p. 104-105.<br />
. 247 FERREIRA, Luzia Gomes. As máscaras africanas e suas múltiplas facetas. Disponível em:<br />
. Acesso em: 07 ago. 2011. As<br />
máscaras africanas são confeccionadas geralmente em madeira e representam um conceito, uma ideia que vai<br />
além da aparência; elas invocam uma visão de mundo e as representam.<br />
248 Guerra de Biafra. Disponível em: . Os ibôs são<br />
nigerianos que moravam na província de Biafra, localizada a leste do país. Eram considerados a elite da Nigéria,<br />
pois tinham os melhores salários e os melhores empregos.<br />
95
com o poder ligado à retenção do sangue, que não é mais eliminado através da menstruação.<br />
De acordo com os costumes africanos, as mulheres, quando param de menstruar, guardam um<br />
reservatório de sangue impuro. Por essa razão, as mulheres de gueledé tem poder antigerativo,<br />
ou seja, de destruir, enfeitiçar. Assim, as máscaras, que serão usadas pelos homens, numa<br />
demonstração de respeito e temor à mulher, são uma forma de acalmar as bruxas. 249<br />
Para os africanos, a mulher, quando menstrua, libera as impurezas para fora do<br />
corpo. 250 Na obra A casa da água, isso ocorre com Mariana quando chega a Lagos:<br />
Mariana sentiu-se mal, estaria doente outra vez?, a distância entre o navio e a<br />
costa não era longa, mas como demorava, de repente a menina teve uma dor<br />
que lhe descia pelo ventre, uma dor e um calor, alguma coisa como que se<br />
rebentava dentro dela, o calor aumentou no sexo, Mariana pôs a mão e viu<br />
que estava molhada, levantou o lençol, havia sangue no fundo do barco e no<br />
branco do pano, Epifânia segurou a filha, o barco se aproximava da terra, a<br />
mulher e um dos remadores ajudaram a levar Mariana até um trecho de<br />
capim, sob uma árvore, a mãe pegou no lençol, abriu as pernas de Mariana,<br />
limpou-lhe cada lado da coxa, Mariana tornou-se a cobrir-se com o lençol,<br />
um cheiro forte e acre andava no ar, o sol batia na terra amarela que havia<br />
além do verde. 251<br />
Segundo a crença local, quando a menina se transforma em mulher está “salvando a<br />
terra”. 252 Em outras palavras, é uma forma de renascer para uma vida nova. E Mariana,<br />
juntamente com a família, estava começando uma vida de liberdade, tão perseguida pela avó<br />
e, finalmente, conquistada, na chegada a Nigéria.<br />
Segundo Homi Bhabha, é a partir do encontro de grupos distintos que aparece uma<br />
infinidade de discursos possíveis num mesmo território. Para o teórico, a diversidade cultural<br />
é o reconhecimento de conteúdos e costumes de uma determinada comunidade, que,<br />
intocados, são protegidos pela memória mítica de uma identidade coletiva única. Já a<br />
diferença cultural diz respeito a um processo de significação através do qual as afirmações da<br />
cultura ou sobre a cultura se distinguem uma da outra. 253<br />
Os referenciais identitários de Mariana vão sendo construídos a partir do contato com<br />
culturas diversas, em razão dos deslocamentos a que é submetida. No Brasil, quando menina,<br />
assimila a cultura de sua terra natal, porém com influência da cultura africana que a avó<br />
Catarina tentava preservar na memória. Depois, na Nigéria, adapta-se à cultura africana, tendo<br />
em vista a sua descendência, mas com a memória do passado brasileiro.<br />
249 FERREIRA. p. 7. Disponível em: .<br />
250 Ibidem. p. 7.<br />
251 OLINTO, 2007, p. 70-71.<br />
252 Ibidem, p. 78.<br />
253 BHABHA, 1998, p. 63-64.<br />
96
As imagens e os pensamentos resultam dos diversos territórios por onde uma pessoa<br />
se desloca, sendo sucessivamente agregados à história de cada um. Por essa razão, todo<br />
indivíduo tem uma percepção própria de cada espaço que está ou esteve em contato. Isso leva<br />
à transformação e à construção de diferentes posicionamentos identitários. Segundo<br />
Halbwachs, o passado compreende dois elementos:<br />
Os que podemos evocar quando desejamos e os que, ao contrário, não atendem ao<br />
nosso apelo, se bem que tão logo os procuramos no passado nossa vontade parece<br />
bater num obstáculo. Na verdade, dos primeiros podemos dizer que estão no terreno<br />
comum, [...] a ideia que mais facilmente representamos é composta de elementos tão<br />
pessoais e particulares quanto desejarmos, é a ideia que os outros fazem de nós, [...]<br />
Assim, os fatos e ideias que mais facilmente recordamos são do terreno comum,<br />
pelo menos para um ou alguns ambientes. Essas lembranças existem para todo o<br />
mundo nesta medida e é porque podemos apoiar na memória dos outros que somos<br />
capazes de recordá-las a qualquer momento e quando o desejamos. Das segundas,<br />
das que não conseguimos recordar à vontade, de bom grado diremos que não<br />
pertencem aos outros, mas a nós, porque somente nós podemos reconhecê-las. 254<br />
Na obra, as lembranças do passado brasileiro da personagem ressurgem<br />
frequentemente. O que ajuda a protagonista a estreitar esses laços é comércio de importação e<br />
exportação que ela mantém com o Brasil. É um meio de manter vivas as lembranças de sua<br />
terra e suavizar a saudade dos costumes brasileiros, como a importação da carne-seca, tão<br />
lembrada por esses sujeitos que deixaram o Brasil rumo à África.<br />
Nesse contexto, reafirmando seus posicionamentos no grupo, o indivíduo adquire<br />
valores e partilha vivências, próprias de cada espaço. Em A casa da água, no momento da<br />
escolha do nome da filha de Mariana, percebe-se que a opinião individual está relacionada à<br />
cultura local:<br />
- Vai ter o nome da vovó.<br />
- Catarina?<br />
- Não, Ainá.<br />
- Catarina é melhor, é mais brasileiro.<br />
- Não, mamãe, o nome dela vai ser africano.<br />
Epifânia olhou para a criança, que tinha olhos ainda fechados, a boca em movimento<br />
de procura, repetiu o nome:<br />
- Ainá.<br />
- Vovó teria preferido Ainá a Catarina. 255<br />
A escolha do nome Ainá é uma homenagem à avó, que considerava muito o nome<br />
africano, pelo qual nunca foi chamada no Brasil. Somente na África, pôde recuperar esse<br />
referencial. Constata-se, então, a valorização do antepassado, além da importância do espaço<br />
254 HALBWACHS, 2006, p. 66-67.<br />
255 OLINTO, 2007, p. 121.<br />
97
africano para Mariana, adquirido no decorrer dos anos, por meio da necessidade de fixar<br />
raízes e construir a sua África, que se torna a sua realidade e seu espaço: “Mariana pensou: e<br />
se quisesse voltar ao Brasil?, nunca lhe ocorrera essa ideia, mesmo agora achava-a<br />
impossível, já era gente de Lagos, mas tudo podia acontecer”. 256<br />
Nessa situação, fica claro que os referenciais de Mariana têm, agora, raízes na<br />
comunidade africana; por outro lado, ela deixa transparecer que há possibilidades de<br />
mudanças em seus pensamentos e, no futuro, pode vir a pensar sobre um provável retorno ao<br />
Brasil. Dessa atitude, infere-se que os posicionamentos identitários da personagem ocorrem<br />
em função do deslocamento e do cruzamento de identidades tipicamente brasileiras, outras<br />
tipicamente africanas, além dos demais referenciais que constituem o espaço africano.<br />
Na obra, mais tarde, Mariana dá provas de sua adaptação em Lagos, com a ideia de<br />
não retornar ao Brasil, numa conversa com Maria Gorda, que, também, estava no navio que as<br />
levou à África:<br />
Maria Gorda continuava:<br />
- Você acha que alguma de nós ainda volta?<br />
- Para onde?<br />
- Para o Brasil.<br />
Mariana olhou espantada para a amiga:<br />
- Como é que você pode pensar nisto? Ninguém volta ao lugar de onde saiu como<br />
nós saímos. Quando pegamos aquele navio, ninguém pensava em voltar, foi de vez.<br />
O Brasil fica no outro lado do mar, você se lembra como é longe, o navio demorou<br />
meses. Nossa vida é aqui mesmo, ninguém vai voltar, não.<br />
A outra sacudiu a cabeça como se só naquele instante houvesse tomado consciência<br />
do que ouvia:<br />
- Bem que eu teria prazer em ver a Bahia outra vez.<br />
- Lagos é um lugar muito bonito, gosto muito daqui. 257<br />
As palavras de Mariana demonstram os laços estabelecidos com o espaço africano. No<br />
momento em que ela percebe as diferenças entre o passado e o presente, passa a situar-se no<br />
espaço que lhe permitiu construir uma história, distinta da anterior. A construção de<br />
identidades é um modo de identificação das semelhanças e a afirmação das diferenças que<br />
situam o ser humano nos grupos sociais.<br />
A firmeza da protagonista em assegurar a África como a sua terra deve-se ao momento<br />
de tranquilidade pelo qual ela passa. Os motivos que a levam a isso são a presença do esposo,<br />
que permaneceu longe da família, por muito tempo, em busca de trabalho; a situação<br />
financeira estável e, principalmente, por estar tendo mais tempo para os filhos. Enfim, sente-<br />
256 OLINTO, 2007, p. 121.<br />
257 Ibidem, p. 150.<br />
98
se bem com a vida que conquistou na África. E assim, Mariana transita entre as diferenças<br />
culturais, valorizando-as, mas preservando seus elementos identitários brasileiros:<br />
Mariana pediu a Seu Gaspar:<br />
- Quer fazer uma Oxum para mim?<br />
O homem levou semanas para terminar a encomenda, Mariana ia vê-lo no trabalho,<br />
com uma pequena faca ele cortava aqui e ali, era um belo pedaço de madeira, no<br />
início nada parecia surgir daqueles corte, um dia Mariana percebeu uma cabeça de<br />
mulher,[...] uma tarde Mariana levou-a para casa, colocou-a no quarto, de vez em<br />
quando punha um pouco de água na frente de Oxum, ó água do poço que Oxum te<br />
receba com alegria, que a deusa da água doce e do ouro se alegre contigo, Sebastian<br />
perguntou o que significava, soube que era Oxum, ficou olhando longamente para a<br />
imagem, comentou:<br />
- Minha mãe tinha uma no Brasil.<br />
Epifânia também teve o que dizer:<br />
- Você está me saindo muito parecida com a avó.<br />
No Natal, a família toda foi à Missa do Galo, Ainá dormiu no colo de Mariana, o<br />
coro cantava, Joseph gostou do colorido da festa, no final grupos de amigos ficaram<br />
conversando na rua, de vez em quando passava alguém com uma lamparina na mão,<br />
um vizinho pegou a tocar violão, o sobrado se destacava a luz da manhã que nascia,<br />
Mariana foi ver os calungas antes de dormir, o bumba-meu-boi sairia em janeiro [...]<br />
Toda a Nangboshe e mais a Ok-Suna e mais a Praça Campos e mais a Rua<br />
Tokunboh e mais a Olunlami compareceram, Mariana pôs um vestido de pano<br />
inglês, penteou o cabelo rente e amarrou a cabeça com um pano iorubá, Sebastian<br />
vestiu-se de branco, Maria Gorda apareceu bem cedo, Abigail levou toda a família,<br />
Seu Alexandre também, Mariana lembrou-se de ter assistido a um bumba-meu-boi<br />
na casa dele. 258<br />
Essa pluralidade cultural que Mariana tem contato e assume na África transparece nos<br />
hábitos, como festas e comemorações, e nas roupas, tipicamente africanas. Os laços com o<br />
Brasil se mantêm por meio da religião e das tradições populares, como o bumba meu boi. Por<br />
fim, a presença africana na Oxum demonstra a herança da avó, que sempre cultivou sua<br />
religião e seus santos. Essa mistura de tradições transforma a protagonista num ser<br />
hibridizado, transformado pelo meio.<br />
A multiplicidade de culturas faz parte da vida de Mariana desde cedo, no Brasil, com a<br />
convivência com avó e outros ex-escravos, que habitam o Piau, os quais conservam tradições<br />
da terra natal. Assim, ela convive desde cedo com os referenciais africanos e brasileiros.<br />
Talvez esse fato seja uma das razões pelas quais a protagonista não percebe, tão intensamente,<br />
as diferenças culturais, quanto à avó e a própria mãe, na Nigéria. A mãe, Epifânia, nunca<br />
agregou os costumes da terra africana, mantendo sempre na memória as lembranças<br />
brasileiras. Ela aprende a conviver com a diversidade, mas nunca a aceita, de fato. Já a avó,<br />
ao perceber a impossibilidade de resgatar a África que ficou idealizada em sua memória,<br />
durante a vida no Brasil, tem dificuldades de inserir-se no contexto africano.<br />
258 OLINTO, 2007, p. 148-149.<br />
99
No trânsito da África para os demais territórios, inclusive o Brasil, os escravos,<br />
afastando-se de seus elementos culturais de origem, buscavam, nos resíduos da memória,<br />
recompor os aspectos que remetiam à sua terra natal. Nesse contexto, os escravos africanos<br />
estão propensos a adotar mais facilmente a cultura do outro, quando não conseguem conservar<br />
suas heranças culturais, somente através do poder da memória. Assim, sem a equivalência dos<br />
elementos culturais e expostos à heterogeneidade desses elementos, os negros africanos<br />
inferiorizam-se, como ocorreu no Caribe e no Brasil. 259 Isso se dá porque seus referenciais<br />
identitários estão distantes. A cultura dominante aparece com mais força.<br />
No espaço brasileiro, os saberes, conforme são conservados, são passados de geração<br />
em geração, como preservação das raízes. Também, são mesclados com as tradições do<br />
espaço que envolve o grupo. Percebe-se, no decorrer de A casa da Água, a intensa presença<br />
de particularidades, diferentes religiões, como a participação de Mariana em festas católicas,<br />
tipicamente brasileiras como São João e Santo Antonio e nas missas, que ela participa<br />
juntamente com a mãe. Por outro lado, participa de rituais africanos como a festa de Xangô,<br />
na Bahia, levada pela avó Catarina.<br />
Já na África, essa hibridização continua. O sincretismo religioso é visível, ainda, no<br />
excerto que relata a festa de brasileiros de que Catarina, a filha e a neta participam em<br />
homenagem ao bumba meu boi, um costume típico brasileiro:<br />
100<br />
Os calungas eram enormes figuras da mulher, do boi, do burro, da ema, que<br />
formavam o bumba-meu-boi, Mariana ficou logo sabendo que em Lagos chamavam<br />
essa brincadeira de burrinha, viu quando um homem entrou dentro da armação da<br />
mulher, tocaram música em instrumentos, cantaram, o boi investia contra os que<br />
estavam ao redor, [...] De repente surgiu uma briga num canto, homens com pedaços<br />
de caixote nas mãos começaram a bater nos que dançavam, pessoas de casa foram<br />
em defesa dos amigos, o boi correu para dentro, na porta de entrada do sobrado de<br />
Seu Alexandre havia um cartaz onde estava escrito Viva Deus, [...] 260<br />
O Bumba meu boi ou boi-bumbá é uma dança do folclore popular brasileiro, com<br />
personagens humanos e animais fantásticos, que gira em torno da morte e ressurreição de um<br />
boi. A essência da lenda enlaça a sátira, a comédia, a tragédia e o drama, e demonstra sempre<br />
o contraste entre a fragilidade do homem e a força bruta de um boi. Essa festa surgiu no<br />
nordeste do país, mais especificamente no Estado do Piauí. Ao espalhar-se pelo país, o bumba<br />
meu boi adquire nomes, ritmos, formas de apresentação, indumentárias, personagens,<br />
instrumentos, adereços e temas diferentes. Levado para a África, esse costume brasileiro<br />
259 GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Enilce do Carmo Albergaria Rocha.<br />
Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005, p. 21-22.<br />
260 OLINTO, 2007, p. 80-81.
ecebe o nome de “burrinha”, mas o boi continua personagem principal da festa. 261 Isso<br />
demonstra que o Brasil também sobrevive na Nigéria, com a preservação dos costumes<br />
adquiridos pela família, enquanto habitantes do espaço brasileiro, revelando a influência dessa<br />
cultura na vida dos africanos que fazem o caminho de volta.<br />
São as festas africanas convivendo com as realizadas por descendentes de brasileiros,<br />
como lembranças do passado. A influência é tanta que “Mariana resolveu ter seu próprio<br />
bumba-meu-boi (sic) 262 . Mandou fazer armações de madeira sobre as quais poderia colocar<br />
panos pintados, pedaços de papelão, fitas rendadas, com as figuras do boi, da burrinha, da<br />
ema, da mulher grande”. 263<br />
Nessa época, Mariana é tomada por sentimentos inexplicáveis. Suas lembranças se<br />
mantêm vivas em sua memória ao longo do tempo e dos espaços habitados, como uma ponte<br />
que liga passado e presente, com o intuito de construir o futuro. Porém, em seus pensamentos,<br />
surgem questionamentos, como, por exemplo, quando Antônio, seu irmão, comenta que ela<br />
está aumentando de peso:<br />
101<br />
De noite ela se examinou, realmente estava sacudida, sentia-se bem, um fluxo de<br />
saúde parecia sair dela, a mulher constatava uma nova força naquele corpo<br />
caminhando, fazendo coisas, tomando conta de acontecimentos, mais tarde pensaria<br />
estranhos pensamentos que, postos em palavras, talvez se resumissem neste: quem<br />
consegue mandar nos acontecimentos? Ela mandara em si mesma, parecia ter<br />
dirigido o que fora sucedendo a toda a família, mas notava que mandar cansa. Às<br />
vezes queria ser mandada, encaminhada, que lhe dissessem o que fazer, o que<br />
desejar, o que pensar. 264<br />
A personagem demonstra estar vivendo num espaço transitório, pelo menos em alguns<br />
momentos. Ela questiona seus referenciais num retorno à memória, buscando o papel da<br />
mulher no espaço brasileiro, onde, segundo as tradições, não é o centro da família, pelo menos<br />
quando há presença de uma figura masculina, diferente da África, onde a mulher é que tem a<br />
responsabilidade de conduzir a família, e o homem de concordar com as ideias dela.<br />
Na obra, nesse tempo alegre, Sebastian, o esposo da protagonista, é assassinado,<br />
quando tenta separar uma briga. Assim, Mariana, num momento de tristeza profunda, faz uma<br />
releitura dos comportamentos, dos valores e das tradições atendendo ao apelo da ocasião. Para<br />
ela, as lembranças vêm do passado num período de angústia e desolação, após a morte trágica<br />
do marido. Reclusa no quarto, ela perde-se nos devaneios da memória:<br />
261<br />
BUMBA MEU BOI. Disponível em: . Acesso em: 01 jul.<br />
2011.<br />
262<br />
Grafa-se bumba meu boi, de acordo com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.<br />
263 OLINTO, 2007, p. 147.<br />
264 Ibidem, p. 147.
102<br />
[N]em sempre tinha certeza do lugar em que se achava, uma vez pensou estar na<br />
Bahia, sentada no fundo da barraca de peixe, levantou a cabeça e chegou a sentir<br />
cheiro de peixe, mas o que estava em frente era a parede do quarto, exatamente na<br />
cor determinada por ela, azul-claro, e então recomeçava a tomar consciência das<br />
coisas, a cama em que ela e Sebastian haviam dormido, o cobertor, depois perdia-se<br />
outra vez e via-se em cima do cavalo que a levara do Piau a Juiz de Fora, o negro de<br />
rosto simpático virando-se a cada instante para ela, ouvia gritos da pesca do piau, o<br />
peixe saltava, a mulher reconquistava lentamente a realidade do momento, o<br />
balanço da cadeira, para deixá-la ir-se novamente e perceber que o convés subia e<br />
descia, o navio furando o mar, isolado no meio do sol, a cena da morte de Sebastian<br />
lhe voltava de vez em quando à memória, escutou o choro de Ainá um momento,<br />
ficou três dias e três noites assim. 265<br />
A diferença nas lembranças de Mariana, neste momento, com relação às da mãe e da<br />
avó é que ela está passando por uma situação única, de desgosto, e tenta relembrar o passado<br />
em sua terra natal, num ir e vir desordenado da memória. Ela sempre se sentiu uma africana<br />
em Lagos, enquanto as outras duas não. Agora, porém, sentindo-se confusa, Mariana<br />
rememora o Brasil em um momento de angústia. Depois de mergulhar em suas lembranças e<br />
procurar forças para continuar, a protagonista revela seus pensamentos:<br />
Mariana sabe que Maria Gorda, Abigail, Teresa, Seu Justino e Jerônimo estiveram<br />
perto dela, falando, dizendo coisas, respondeu a cada um, não está certa de haver<br />
sorrido, mas foi delicada, no fundo pensava em sair de Lagos, para onde iria?, como<br />
busca de novo chão, de horizonte diferente, voltar ao Brasil seria difícil, talvez o<br />
melhor fosse procurar onde houvesse mais brasileiros, Badagre, Porto Novo, Uidá,<br />
[...] 266<br />
Toda a memória ativada leva Mariana a querer resgatar as posições identitárias de sua<br />
terra natal. Como o retorno não se mostra favorável, a personagem procura esse resgate<br />
deslocando-se para lugares que podem representar, para ela, esse enraizamento, seja no<br />
contato com brasileiros que, assim como ela, deslocam-se para a África, com os parentes, ou<br />
no comércio de importação dos produtos do Brasil. Ela decide, então, explorar novos lugares,<br />
habitados, também, por brasileiros. E assim o faz. Compra terras e constrói uma segunda<br />
“Casa da água”, em frente ao mar, na cidade de Uidá, 267 que faz fronteira com Zorei. 268<br />
265 OLINTO, 2007, p. 167.<br />
266 Ibidem, p. 168.<br />
267 Uidá pertence à República de Benin, antigo Daomé. É um país da região ocidental da África, limitado ao<br />
norte pelo e pelo Níger, ao leste pela Nigéria, ao sul pela Enseada do Benim e a oeste pelo Togo. Sua capital<br />
constitucional é a cidade de Porto-Novo, mas Cotonou é a sede do governo e a maior cidade do país. Antiga<br />
colônia francesa, o país alcança independência em 1º de agosto de 1960, com o nome de República de Daomé.<br />
Em 1975, adota o atual nome de Benin, em razão de o país ser banhado, ao sul, pela Baía de Benin. Benin.<br />
Disponível em: .<br />
268 Zorei é um país fictício, criado por Antonio Olinto em A casa da água, sendo a cidade de Aduni capital desse<br />
país.
Dividindo-se entre as casas e os negócios em Lagos, Uidá e Aduni, Mariana continua<br />
liderando não só a família, mas uma comunidade. Vive cercada por pessoas que a respeitam e<br />
dão continuidade aos negócios, sempre de acordo com suas ideias e seus conhecimentos.<br />
Supera as perdas que o destino lhe reserva e sente prazer em conversar com quem a procura.<br />
Com o passar do tempo, os filhos retornam da Europa e cada um procura seguir seu<br />
destino. Quando Sebastian, o filho mais novo, já casado, conta à mãe que iria ser pai, como<br />
num flash as lembranças da mulher se voltam para o Brasil:<br />
103<br />
Olhou Segui de alto a baixo, viu-lhe o ventre se destacando do resto do corpo,<br />
lembrou-se de uma frase que a mãe usava:<br />
- Feliz como água de chafariz.<br />
Era como se sentia, nunca mais encontrara um chafariz, a memória devolveu-lhe a<br />
lembrança de um chafariz grande do Rio de Janeiro, a água jorrando 269 .<br />
Nesse contexto, a memória chega e transforma a distância em proximidade; as<br />
lembranças do passado misturam-se com as do presente: água como sinônimo de vida e uma<br />
nova vida sendo gerada. Antes disso, em um encontro com João das Tábuas, Mariana começa<br />
a perceber que<br />
os velhos brasileiros se procuravam mutuamente, queriam conversar um com o<br />
outro, provar que ainda viviam no seu mundo, muitos dos que haviam feito dinheiro<br />
estavam com os filhos na Inglaterra, eles voltariam mais ingleses do que nigerianos,<br />
e nada brasileiros, no fundo era bom, porque tudo mudara, os jovens precisavam<br />
viver num ambiente novo, Ainá talvez acabasse médica de todo o bairro brasileiro.<br />
Joseph não falava muito em aulas nas últimas cartas, [...]. 270<br />
As reflexões da protagonista demonstram que a existência do indivíduo em um<br />
determinado espaço ocorre devido ao reconhecimento do outro, além dos elos que mantém<br />
com seu grupo. É necessária essa constatação para que o sujeito construa sua identidade,<br />
através de sua representação no grupo. As transformações que os deslocamentos operam nos<br />
indivíduos são grandes. Se isso ocorre por meio da imposição dos valores culturais de uma<br />
determinada sociedade ou etnia, como no caso da colonização e da escravidão, a tendência é a<br />
separação desse grupo e a busca por seus antigos territórios, onde os referenciais identitários,<br />
mesmo vagos, devido à passagem do tempo, possam de alguma forma ser resgatados. Porém,<br />
o resgate identitário não ocorre exatamente como o indivíduo idealiza, em razão de todas as<br />
influências culturais, devido ao deslocamento.<br />
269 OLINTO, 2007, p. 347.<br />
270 Ibidem, p. 215.
Cada lugar possui uma história que lhe é muito peculiar. Quem se desloca, precisa<br />
abandonar os laços tecidos com esse lugar, e as lembranças tornam-se, por vezes, sinônimo de<br />
saudade. Numa conversa com seu Haddad, um libanês vizinho de sua loja em Zorei, Mariana<br />
fala do Brasil:<br />
104<br />
Também ela há quarenta anos, ou quase, não ia ao Brasil, agora sentia-se africana,<br />
gostava da variedade, de sair de um lugar para outro, de ter uma casa no Daomé,<br />
outra na Nigéria, de lidar com lojas em cidades diferentes, não conseguia pensar em<br />
outra língua que não fosse o português, mas agradava-lhe conversar em inglês e<br />
francês, em ioruba e ewê, mesmo em alemão que há tanto tempo não falava [...] de<br />
repente ouviu-se contando:<br />
- Também não vou ao Brasil há muito tempo. Meu irmão esteve agora lá e voltou<br />
casado com uma brasileira. Moça da Bahia. Cheguei a Lagos com treze anos.<br />
Viajamos num veleiro chamado Esperança, demoramos seis meses no mar.<br />
- Você se lembra da viagem?<br />
- Como se fosse hoje. Me lembro do céu e da noite, com muita estrela, me lembro<br />
das pessoas que morreram, me lembro do cheiro do navio 271 .<br />
Ela manifesta um vago desejo de voltar ao Brasil. Porém, sente-se bem adaptada aos<br />
costumes africanos, procurando pela sua própria memória, de quem observa, reconstruir a<br />
experiência para aqueles que não conhecem. Tempos depois, Mariana reafirma a sua posição<br />
com relação à África, por ocasião da prisão do filho Sebastian, em plena campanha pela<br />
independência de Zorei:<br />
271 OLINTO, 2007, p. 271.<br />
272 Ibidem, p. 328.<br />
Mariana quase não falou, quando todos se retiraram entrou no quarto, esperou que o<br />
silêncio caísse sobre as coisas, depois saiu, atravessou a cidade quieta, sentou-se<br />
num banco da praça que ficava em frente à prisão, botou as mãos no colo e deixou<br />
que o tempo passasse, começou a pensar no que ouvira, a independência, muitos<br />
haviam achado que Sebastian se precipitara, ainda não era hora disso, os mais jovens<br />
tinham concordado com o filho, quanto mais cedo melhor, Mariana se sentiu ligada<br />
àquele chão, estava na África há tempo suficiente para saber que suas imagens eram<br />
daquelas terras, tornara-se africana antes de tudo, tanto de Lagos como da Casa da<br />
Água e de Aduni, não via muita diferença entre esses lugares, aqui, porém, onde o<br />
filho mais próximo, o último, o que sempre lhe dera uma sensação de segurança, o<br />
que tinha o nome do marido, o que nascera depois da morte do pai, era onde ele<br />
trabalhava e morava, onde fora preso, como podia ser na Casa da Água ou em<br />
Lagos, na independência nunca pensara com atenção, talvez por se ter sempre<br />
achado independente e nunca se haver sentido dependente de ingleses, alemães ou<br />
franceses. Pouco falara com eles, só se sentira dependente na ocasião em que os<br />
ingleses haviam exigido que todos os brasileiros de Lagos falassem inglês, e durante<br />
a guerra entre os franceses do Daomé e os alemães de Zorei, mas o filho tinha razão,<br />
chegara o tempo de cada região tratar de seus próprios assuntos, lembrou-se de que<br />
era uma proprietária importante em três lugares da África, sua opinião teria de pesar,<br />
[...] 272
As palavras da protagonista revelam a coragem e o espírito de independência de<br />
Mariana. Aqui, a protagonista revela o sentimento de pertencimento à África e o engajamento<br />
na cultura desse espaço. A mulher-mãe, na ânsia de cumprir com seu papel, transpõe os<br />
obstáculos que ora se apresentam, ignorando-os ou enfrentando-os. Além disso, demonstra os<br />
laços que a ligam ao filho, que esteve sempre com ela, diferente dos outros dois, Joseph e<br />
Ainá, que, por conta dos deslocamentos de Mariana, ficaram aos cuidados da avó Epifânia.<br />
Segundo Clifford, que reflete sobre a diáspora, as relações que se estabelecem no<br />
espaço atual podem ser tão importantes quanto aquelas que são formadas pelo binômio<br />
origem/retorno. E uma história compartilhada, contínua de deslocamento, sofrimento,<br />
adaptação ou resistência pode ser tão importante quanto à projeção de uma origem<br />
específica. 273 Assim é a história de Mariana na África: estabelece elos com sua comunidade<br />
presente, o que fez com que sua relação com a África se tornasse tão forte como era a relação<br />
que a avó Catarina manteve com esse continente, por meio da memória, durante o tempo em<br />
que viveu no Brasil.<br />
Outras lembranças do passado brasileiro, também, povoam o pensamento de Mariana,<br />
agora na ocasião da morte do filho Sebastian:<br />
105<br />
Mariana entrou no quarto, abriu o baú, ficou um minuto olhando os desenhos da<br />
tampa, reviu a avó comprando o baú na Bahia, passou as mãos pelos lençóis de<br />
dentro, pegou nos tecidos um por um, tirou um lençol que nunca fora usado, que<br />
saíra da Bahia quase sessenta e oito anos antes, sua brancura tinha tons de amareloclaro,<br />
levou-o para a sala, pediu a Antônio, Joseph e Ainá que a ajudassem a erguer<br />
o corpo do filho, pôs o lençol por baixo e depois cobriu o rosto de Sebastian com<br />
ele 274 .<br />
A referência a um espaço pode significar as expressões mais imediatas e concretas da<br />
realidade vivida, além de conter aspectos significativos relacionados aos valores, sentimentos,<br />
perspectivas que rodeiam a vida das pessoas. Essa realidade faz com que Mariana, ao buscar o<br />
lençol, dentro do baú, transporte seus referenciais junto ao espaço brasileiro, num tentativa de<br />
fuga da realidade, que ora se apresenta. Os momentos vividos se fazem presentes por meio<br />
das memórias guardadas e representadas no baú, que atravessou o Atlântico, na companhia de<br />
brasileiros em busca de um continente idealizado.<br />
Mariana já havia perdido muitas pessoas. Além da avó, da mãe, de outros parentes e<br />
conhecidos, perdeu a nora Segui, durante o parto da neta, que é chamada, também, de<br />
Mariana. A neta ficou sob seus cuidados, pois Sebastian, na época, não conseguia cuidar<br />
273 CLIFFORD, 1994, p. 306.<br />
274 OLINTO, 2007, p. 384.
sozinho da menina, pela fragilidade do momento e pelas obrigações do cargo que ocupava.<br />
Assim, oito anos depois, Mariana, diante do filho morto, faz, novamente, um retorno ao<br />
passado, através das memórias, na ânsia de encontrar forças para amenizar a dor da perda:<br />
106<br />
Mariana segurou a menina, apertou-a com força, pegou num punhado de areia,<br />
jogou-a sobre a bandeira que cobria o morto, de repente soltou um berro, não foi<br />
choro, que nunca chorara, mas berro, ó berro que atravessou o areal, que chegou à<br />
Casa da Água, que fez tremerem as pessoas, ó berro que segurou aquele momento<br />
num único som, ó berro vindo do Piau, da Bahia, do mar sem vento, das mortes em<br />
alto-mar, do sangue da menina que virava mulher, do poço arrancado da terra, ó<br />
berro que vinha do umbigo, da barriga, dos intestinos, e subia por todo o corpo antes<br />
de sair pela boca, ó berro que era berro de velha e de criança, ó berro que era berro,<br />
só berro, ó berro. 275<br />
É nessa situação que a protagonista, brasileira, descendente de africanos, que, há quase<br />
setenta anos, viaja à África pela vontade da avó Catarina, após a morte do filho sente<br />
necessidade de rememorar o passado. As imagens chegam pela importância que a elas foi<br />
conferida, numa conexão entre o passado e o presente, como forma de reter as vivências e<br />
prolongá-las no presente, como uma válvula de escape da realidade, que se mostra tão cruel:<br />
uma mãe enterrando o próprio filho. Quando, na verdade, o que deveria ocorrer é o contrário:<br />
filhos enterrarem os pais, depois de esses ter cumprido a missão na vida. Mas o filho de<br />
Mariana, assim como o próprio pai, morre jovem, tem a vida abreviada, por isso não há o que<br />
celebrar, comemorar, somente lamentar.<br />
Apesar de ter mantido um intenso contato com as pessoas no Brasil em seus negócios,<br />
Mariana nunca deixa a África. Por outro lado, também, nunca esquece o Brasil. Quem refaz o<br />
caminho de volta é a neta, Mariana, filha de Sebastian, muitos anos depois, no terceiro livro<br />
da trilogia Alma da África. Ela filma e fotografa todos os lugares que conhece pelas histórias<br />
da avó que, naturalmente, sente imensa alegria em reconhecer o cenário de sua infância.<br />
Porém, a consciência a respeito do que viveu na África reporta Mariana ao seu presente,<br />
afirmando-lhe os elos com o espaço em que escolheu viver, e com a posição identitária<br />
construída tanto a partir da vivência africana como da memória do Brasil de sua infância.<br />
3.4 Os descendentes de Mariana: a quarta geração<br />
O ser humano é capaz de criar e transformar tudo o que o circunda, construindo sua<br />
vida, moldando seu comportamento e estabelecendo, assim, seu processo identitário. Nesse<br />
275 OLINTO, 2007, p. 386.
contexto, posições, atitudes são assumidas diante do grupo, procurando no convívio com o<br />
outro, na relação social e na troca de experiências formarem uma identidade, que não pode<br />
mais ser considerada fixa e imutável, posto que os deslocamentos e o intercâmbio cultural<br />
encarreguem-se de modificar as relações entre os indivíduos.<br />
Na obra A casa água, os filhos da protagonista, Joseph, Ainá e Sebastian, convivem<br />
desde cedo com a pluralidade de culturas, em razão dos deslocamentos de pessoas entre os<br />
lugares onde transitam: Nigéria, Benin, Zorei, Alemanha, Inglaterra, França. Costumes<br />
africanos, próprios da Nigéria, Benin e do fictício Zorei, coexistem com as tradições<br />
brasileiras, mantidas pelos ex-escravos e seus descendentes que retornam à África, depois do<br />
fim da escravidão. Já os costumes estrangeiros são, de certa forma, impostos em função do<br />
processo colonizatório. Para os habitantes da Nigéria, a metrópole é a Inglaterra; já em Benim<br />
e Zorei, a colonização é feita por franceses e alemães.<br />
Joseph, o filho mais velho, nasce em uma época em que as condições financeiras da<br />
família não são muito boas. Nesse dia, Mariana chama a mãe Epifânia e diz: “Meu próximo<br />
filho não vai nascer em esteira. Vai nascer em cama”. 276 A esteira representa o local onde,<br />
tradicionalmente, os negros dormiam; faz parte da cultura do povo africano. Quando Mariana<br />
pensa em substituí-la por uma cama, demonstra a interação com outras culturas e a<br />
diversidade dos componentes culturais, na comunidade da qual faz parte. Evidencia, ainda, as<br />
influências da colonização inglesa, que estão sendo assimiladas pelo povo nigeriano, bem<br />
como as memórias do Brasil, renascendo nos brasileiros que fizeram a viagem à África.<br />
As lembranças do espaço brasileiro se justificam, pois, no começo da obra, por ocasião<br />
da enchente, tem-se a imagem de Mariana sendo arrancada da cama. Nesse contexto, ela<br />
deseja recuperar esse referencial, trazendo para a realidade a memória do passado, além de<br />
preocupar-se com o conforto da família. Ainá, a segunda filha, nasce em uma cama, conforme<br />
previu Mariana, que, após ter dado muitas aulas particulares, consegue o dinheiro para<br />
adquiri-la. A menina herda o nome africano da bisavó, como uma afirmação da ligação com a<br />
terra africana. Segundo Fábio Leite, o nome revela as “características mais significativas, que<br />
permitem a identificação profunda da essência natural e social do indivíduo”. 277 Além da<br />
identificação formal, é um atributo que estabelece relações significativas entre o sujeito e a<br />
sociedade, sob todos os aspectos, a partir dos valores propostos por ela.<br />
276 OLINTO, 2007, p. 119.<br />
277 LEITE, 2008, p. 69.<br />
107
Posterior à morte do marido de Mariana, nasce o terceiro filho da protagonista:<br />
Sebastian. 278 O menino, diferentemente dos irmãos, que nasceram em casa, na cidade de<br />
Lagos, nasce num hospital, em Aduni, capital de Zorei. Verifica-se então a evolução social da<br />
protagonista, nas condições de nascimento de cada filho: Joseph - esteira, Ainá – cama,<br />
Sebastian – hospital, ao mesmo tempo em que se constata a aceitação dos costumes<br />
estrangeiros.<br />
Joseph, Ainá e Sebastian fazem parte da quarta geração da família, que tem<br />
ascendência africana e brasileira: são bisnetos de uma africana, netos e filhos de brasileiras.<br />
Os dois mais velhos nascem na Nigéria, e o mais novo em Zorei. Assimilam a cultura dos<br />
países que colonizam sua região e acabam estudando, na Europa, nesses mesmos países.<br />
Mesmo morando muitos anos fora da África, eles nunca esquecem as tradições africanas nem<br />
as brasileiras, conservadas e transmitidas pela própria Mariana, como as festas religiosas e as<br />
comemorações. Uma delas é a cerimônia do nome do irmão mais novo, que os filhos mais<br />
velhos da protagonista presenciam:<br />
108<br />
A cerimônia do nome se realizou no mesmo dia. Alguns convidados na sala, Joseph<br />
e Ainá sentados no chão, Epifânia arrumando cadeiras e puxando a mesa, Maria<br />
Gorda, Abigail, D. Zezé, Seu Machado, Seu Alexandre, João das Tábuas, Jerônimo,<br />
quando seu Justino e a mulher chegaram Mariana foi lá dentro e trouxe uma pequena<br />
bacia cheia de água, colocou-a sobre a mesa do centro, Epifânia surgiu com uma<br />
bandeja sobre a qual estavam três pires, um com sal, o segundo com mel e o terceiro<br />
com azeite de dendê. Seu Justino pegou no menino, Mariana sentou-se ao lado dele,<br />
o homem mais velho pôs um dedo na água, molhou com ela os lábios de Sebastian,<br />
dizendo:<br />
- A água é a base de tudo, é a coisa mais importante do mundo, que a vida do<br />
menino seja calma e serena como a água.<br />
Pegou um punhado de sal, passou-a na boca do neto:<br />
- O sal limpa as coisas, que o menino seja limpo e justo.<br />
Apanhou um pouco de mel, esfregou-o nos lábios agora abertos:<br />
- O mel adoça a vida. Que o menino tenha uma vida cheia de doçura e de alegria.<br />
Mergulhou os dedos no azeite dendê:<br />
- O óleo da palmeira é sinal do que comemos. Que durante toda a sua vida o menino<br />
tenha sempre o que comer e que nisto sinta alegria.<br />
Seu Justino fez uma pausa, antes de acrescentar:<br />
- Tu és Sebastian.<br />
Em seguida, cada um que estava na sala, a começar por Seu Justino e Mariana, pôs<br />
na boca, sucessivamente, água, sal, mel e óleo, na hora em que o fazia Mariana<br />
olhou para Sebastian que estava com os olhos pousados na roupa do avô, Joseph e<br />
Ainá foram trazidos por Epifânia até a mesa, participaram também da cerimônia,<br />
depois ficaram contemplando a cara do irmão menor [...] 279<br />
Observa-se, aqui, a importância de certos elementos na cultura africana, mostrando<br />
que a população, mesmo sob o regime do colonizador, tenta conservar costumes. Em Lagos,<br />
278 O marido da protagonista e o filho mais novo chamam-se Sebastian.<br />
279 OLINTO, 2007, p. 173-174.
espaço onde se passa a maior parte da história da obra A casa da água, constata-se a<br />
interferência inglesa na sociedade e, principalmente, na vida de Joseph e Ainá, que moram<br />
nesse lugar, na companhia da avó Epifânia, quando Mariana está na segunda Casa da Água,<br />
em Daomé. Isso se verifica, no momento em que a protagonista pensa no nome do primeiro<br />
filho: Mariana lembra-se de José, por causa de Padre José, com quem conviveu na Bahia.<br />
Porém, o esposo sugere que seja Joseph, já que o menino “vai viver no mundo dos ingleses, é<br />
melhor ficar logo com nome inglês”. 280 Observa-se, também, o domínio inglês nos nomes das<br />
ruas do bairro, onde a família afro-brasileira reside, nos negócios e na linguagem falada:<br />
[...] Mariana perguntou se os dois já sabiam ler, Epifânia explicou:<br />
- Joseph já sabe, mas é muito preguiçoso.<br />
- Que língua ele lê?<br />
- Português e inglês. 281<br />
Essa situação reflete a pluralidade cultural presente no espaço africano, bem como a<br />
ruptura de algumas tradições, a assimilação de outras e a rememoração do acontecido,<br />
evidências da construção de uma identidade cultural híbrida. A memória brasileira, sendo<br />
valorizada, remete o indivíduo ao passado. No entanto, as influências do espaço presente<br />
acabam se sobrepondo:<br />
109<br />
- Quando meu menino ficar maior vai estudar português, mas acho que os meninos<br />
devem estudar inglês também. Eles vão precisar disso para arranjar empregos e lidar<br />
com os ingleses.<br />
Zezé opinou:<br />
- Inglês, eles aprendem conversando com os ingleses e fazendo negócios com eles.<br />
Não é preciso estudar.<br />
- Conversar não basta. 282<br />
Mariana percebe que é necessário preparar-se para conviver com os estrangeiros. A<br />
protagonista não sente de modo profundo a dominação cultural estrangeira, como ela mesma<br />
revela, por ocasião da prisão do filho mais novo, que nunca pensou na independência, pois<br />
nunca se sentiu dependente dos colonizadores. 283 Os filhos crescem imersos na cultura<br />
africana, conhecendo os referenciais brasileiros e aderindo às influências da cultura<br />
estrangeira.<br />
Ao deslocar-se por diferentes territórios como Nigéria, Togo, Benin e Zorei, na<br />
companhia do pequeno Sebastian, Mariana faz com que o menino passe a agregar referenciais<br />
280 OLINTO, 2007, p. 120.<br />
281 Ibidem, p. 174.<br />
282 Ibidem, p. 123.<br />
283 Ibidem, p. 327.
de cada um desses lugares, o que se reflete primeiramente na aquisição de outras línguas.<br />
Assim, o filho começa a pronunciar as primeiras palavras em alemão e francês.<br />
Sebastian é o filho que mais convive com a mãe. Por ser o menor e ter nascido em<br />
uma época em que a protagonista explora novos espaços e expande os negócios, o menino<br />
está sempre em sua companhia. Quando ele está em idade para estudar no estrangeiro,<br />
Mariana decide enviá-lo à França, de forma análoga à decisão anterior de enviar Joseph e<br />
Ainá à Inglaterra.<br />
A deliberação de os filhos estudarem em lugares distintos é tomada mediante<br />
indicações de um senhor que faz previsões para o futuro, a partir do rosário de Ifá. 284 Segundo<br />
ele, os três filhos de Mariana são a mesma coisa, filhos dos mesmos pais, educados da mesma<br />
forma, porém, não se misturam e devem seguir caminhos diferentes: Joseph e Ainá estudam<br />
em Londres. Nasceram em Lagos, que é colonizada pelos ingleses; Sebastian, tendo nascido<br />
em Zorei, colonizado por alemães e franceses, estuda na França.<br />
Vivendo em Londres, em uma das cartas que Joseph envia à mãe, o rapaz menciona<br />
algumas diferenças culturais entre Nigéria e Inglaterra:<br />
110<br />
Mamãe. A bênção. Aqui vai tudo bem. Comecei o terceiro ano de direito e achei as<br />
matérias relativamente fáceis. Há uma diferença entre as leis inglesas e a lei<br />
tradicional das raças que formam a Nigéria de hoje. Acho que um advogado africano<br />
deverá preocupar-se com esse problema que será cada vez mais importante para nós.<br />
Como conciliar, por exemplo, os casamentos poligâmicos ainda permitidos em<br />
certas regiões da Nigéria com o sistema de monogamia da Inglaterra? O dinheiro<br />
não tem dado muito, mas estou recebendo ajuda de um organismo inglês. Tenho<br />
visto Ainá quase todas as semanas. Ela vai bem. Lembranças e abraços para vovó e<br />
toda a família. Joseph. 285<br />
A comparação entre as culturas é inevitável. A exposição à diversidade cultural faz<br />
com que as diferenças emerjam. Nessa situação, o indivíduo hibridizado é influenciado pelos<br />
referenciais que se mostram mais presentes em sua realidade. Nesse caso, Joseph, assim como<br />
os outros filhos, volta-se mais à cultura estrangeira.<br />
festa:<br />
Joseph é o primeiro a retornar à África. Formado em Advocacia é saudado com uma<br />
[...] primeiro havia a bênção de ação de graças na igreja, Padre O'Toole, que se<br />
achava em Lagos desde o último Natal, jogou água benta sobre cada um, a mesa da<br />
comunhão ficou cheia de gente, todos acompanhavam o canto tirado por Maria<br />
284 OLINTO, 2007, p. 188. Ifá é o deus da previsão do futuro. O adivinho jogava ao chão uma bandeja especial e,<br />
através da posição de cada peça do rosário de Ifá, que tem dezesseis peças, e da combinação das posições, tirava<br />
conclusões sobre o futuro, extraindo as respostas.<br />
285 Ibidem, p. 207.
111<br />
Gorda, um raio de sol atravessava o vidro colorido da direita da igreja e ia dar sobre<br />
um santo, Mariana rezou para que o filho fizesse boa carreira, depois da bênção,<br />
Joseph passou minutos na porta da igreja, recebeu abraços, parabéns, viu gente de<br />
que não se lembrava mais, antes de chegar ao sobrado parou na rua para falar com<br />
um grupo de rapazes de longas roupas iorubás, a festa se prolongou pela tarde e pela<br />
noite, num certo momento Mariana puxou com a mão o inglês que acompanhava o<br />
filho na viagem, disse-lhe:<br />
- Vem provar um doce de batata, Adolph.<br />
Joseph achou graça e comentou:<br />
- É bom ir-se acostumando. Todo mundo vai chamá-lo pelo primeiro nome. É a<br />
moda brasileira. Você passa a ser de agora em diante só Adolph. Pode até esquecer o<br />
Twelvetrees. 286<br />
A festa reflete a mistura de costumes. Esses sujeitos africanos hibridizados, quando<br />
realizam suas comemorações, fazem uso de tradições tanto da África, onde vivem, quanto do<br />
Brasil, onde viveram sua avó Epifânia e sua mãe Mariana. Além desses dois espaços, inclui-se<br />
a cultura dos países que colonizaram a África: Inglaterra, França, Alemanha, dentre outros.<br />
Esse intercâmbio cultural demonstra a pluralidade sociocultural desses lugares.<br />
Reconhecer as diferenças culturais é a forma de apreender as práticas culturais e os<br />
valores de procedência estrangeira que ajudam a constituir o espaço africano, estreitando as<br />
fronteiras culturais entre esses países. Mais tarde, formada em Medicina, Ainá também é<br />
recebida com homenagens: a bênção na igreja, a festa no sobrado, os abraços, as conversas,<br />
exatamente como a festa para Joseph. No sobrado, em Lagos, a jovem médica olha pela janela<br />
e diz: “- Quantas vezes vi na memória cada pedaço dessa rua! Ainda bem que está tudo na<br />
mesma”. 287<br />
A sensação de voltar a um lugar e diante dos objetos de outrora, ou das construções,<br />
haver o reconhecimento, é chamada, por Bergson, de reconhecimento de imagens. Para o<br />
teórico, reconhecer por imagens “é ligar a imagem (vista ou evocada) de um objeto a outras<br />
imagens que formam com elas um conjunto e uma espécie de quadro, é reencontrar as<br />
ligações desse objeto com outros que podem ser também pensamentos ou sentimentos”. 288<br />
Essa sensação de Ainá se explica pelo fato de ela manter laços com esse espaço, que,<br />
desde sempre, faz parte de seu cotidiano, e lhe desperta sensações, saudades de um tempo<br />
vivido. No momento em que há o contato físico com esse ambiente, mesmo temporariamente,<br />
as lembranças são despertadas e o tempo parece imóvel. A impressão é de que é possível<br />
voltar o tempo e reviver as mesmas emoções, pois a lembranças das imagens ficaram<br />
guardadas. No entanto, o tempo cronológico não volta. O que retorna são as recordações.<br />
286 OLINTO, 2007, p. 223.<br />
287 Ibidem, p. 278.<br />
288 HALBWACHS, 2006, p. 55.
Segundo Halbwachs, o grau de dificuldade está na particularidade de cada lembrança.<br />
Se for coletiva, o grupo contribui no resgate dessas memórias. Todavia, as individuais,<br />
vivenciadas somente pelo indivíduo, num outro grupo, parece resistirem à evocação. Isso<br />
acontece, pois somente ele participa, em outra comunidade. Essa rememoração é pessoal,<br />
reflete o passado de uma visão particular e não pode ser apoiada pela memória coletiva. 289<br />
Joseph, Ainá e Sebastian, enquanto habitantes do espaço estrangeiro, rememoram a<br />
terra em que nasceram. Por outro lado, quando de volta a Lagos, a realidade é que os demais<br />
habitantes, em sua grande parte, não vivenciaram a Europa. Portanto, as memórias do tempo<br />
vivido na metrópole só podem se tornar visíveis a partir de sua própria evocação, sem a ajuda<br />
da comunidade africana. Nisso diferem das recordações no espaço africano, em que o grupo, a<br />
todo o momento faz, consciente ou não, com que a rememoração aconteça, quer seja através<br />
dos costumes diários, como por meio de roupas, paisagens, construções, rituais religiosos,<br />
gestos e movimentos.<br />
Os três filhos de Mariana retornam com ideias bem distintas. Joseph parece não ter<br />
encontrado suas raízes africanas, na volta a Lagos, e demora a se estabilizar, trabalhar e<br />
constituir uma família. Somente mais tarde, casa-se com Ana, devido à persistência da moça e<br />
de Mariana, que argumenta: “Ouça uma coisa, Ana: os homens têm mais medo da gente do<br />
que nós deles. Não espere que ele convide. Dê a entender a ele que você quer ir”. 290 Mais uma<br />
vez, enfatiza-se a grande força do matriarcado no espaço africano, provando que a mulher,<br />
realmente, é quem conduz o destino da família e se impõe, quando necessário.<br />
A filha Ainá, decidida como a mãe Mariana, começa a realizar um trabalho como<br />
médica no setor de pediatria de Lagos, que a torna conhecida, em pouco tempo, na região. A<br />
princípio não pensa em casar-se, conforme responde à mãe:<br />
112<br />
- De modo algum. Tenho de trabalhar, isto, sim. Só se aparecer um homem<br />
excepcional, mas não aparece. Na Inglaterra, homem comum tinha complexo<br />
comigo, achava que eu era muito avançada. Todos os meus namoros deram em nada.<br />
- Aqui é diferente. Africano gosta de mulher importante. 291<br />
Pelas palavras de Ainá, no continente europeu, os costumes da população não são<br />
semelhantes aos da África, pelo menos no que se refere à posição da mulher na família. A<br />
mulher não tem os mesmos princípios e as mesmas responsabilidades que tem na África. Os<br />
289 HALBWACHS, 2006, p. 66-67.<br />
290 OLINTO, 2007, p. 247.<br />
291 Ibidem, p. 278.
homens europeus têm medo de ser conduzidos por uma mulher. Já o africano, não. Para ele,<br />
uma mulher decidida, com objetivos definidos é motivo de orgulho.<br />
A atitude de Ainá, com relação ao casamento, revela a assimilação da cultura<br />
estrangeira, porque na África, as mulheres casam cedo. O casamento tem por objetivo<br />
principal a maternidade. Por outro lado, demonstra, também, o intercâmbio entre as culturas,<br />
na decisão de trabalhar e construir sua identidade como profissional, antes de construir a sua<br />
própria família, o que, na Nigéria não é comum. A própria mãe, Mariana, casou-se cedo e,<br />
logo em seguida, vieram os filhos.<br />
As comemorações acontecem sempre que algo bom acontece. A volta de Sebastian, da<br />
França, também é bastante festejada. Muita comida e bebida, dentre elas vinho-de-palmeira,<br />
costume típico da região onde Mariana vive, uísque, vinho francês e português, cerveja, além<br />
da cachaça trazida por um navio brasileiro. Também, o bumba meu boi, tradição herdada dos<br />
brasileiros e os orixás dos africanos tomam parte da festa. A diversidade cultural, mais uma<br />
vez, demonstra sua força e interferência, nessa comunidade, que procura compartilhar<br />
ideologias e convenções sociais, numa festa híbrida.<br />
Sebastian prepara-se para ser professor. Com ideais revolucionários, ele preocupa-se<br />
com o destino da África. Torna-se um líder político, presidente de Zorei, e empreende uma<br />
luta em prol da independência do país. Sebastian herda da mãe a coragem de lutar e transpor<br />
obstáculos, diferente dos homens africanos, com quem convive, os quais se costumam a ser<br />
chefiados por uma mulher. Destaca-se pela força e pelo espírito de liderança política<br />
aprendidos com a mãe, em razão da forte convivência com ela.<br />
Com o tempo, Ainá resolve se casar com um advogado iorubano. Alguém que, assim<br />
como ela, também estuda na Europa, mas conserva referenciais da terra natal. Essa atitude<br />
evidencia um apego às raízes, pois tendo convivido com uma variedade cultural enorme, ela<br />
procura em um igual a sua realização pessoal, demonstrando um retorno aos referenciais<br />
africanos. Em outros termos, o contato com a pluralidade cultural transforma Ainá, mas, no<br />
contato com as raízes, os referenciais do passado africano se sobrepõem, já que voltam a fazer<br />
parte da sua realidade.<br />
No decorrer da obra A casa da Água, o trânsito entre a África e a Europa feito por<br />
Joseph, Ainá e Sebastian não constitui uma separação completa, visto que a comunicação é<br />
mantida, através de cartas, e, tanto a ida como a volta são realizadas por vontade própria.<br />
Diferente da época da escravidão, quando a bisavó Catarina foi enviada ao Brasil sem<br />
perspectiva de retorno.<br />
113
De acordo com Mekada Grahan, a filosofia africana engloba um sistema baseado em<br />
valores e normas que são reforçadas por rituais, músicas, danças, contos, provérbios e<br />
metáforas, os quais são postos em prática na criação familiar e educação infantil, nos ritos de<br />
passagem, nas cerimônias de nome, nos nascimentos, nas mortes. A visão africana considera<br />
alguns princípios, dentre eles, a natureza coletiva e individual da identidade na estrutura<br />
familiar. 292<br />
Ainda de acordo com o autor, a natureza coletiva da identidade é expressa no seguinte<br />
provérbio: “I am because we are and because we are therefore I am”. 293 A frase revela o<br />
sentido de pertencimento ao coletivo como parte de um todo. Nesse contexto, insere-se a<br />
família, com a valorização dos parentes biológicos. Na obra A casa da água, Mariana é a<br />
referência para seu grupo e para os filhos, que se constroem como sujeitos a partir do que a<br />
mãe se torna para eles. Assim, todas as atitudes são tomadas com o conhecimento e a opinião<br />
da mãe. O elo que une essa família não se desfaz, pois sempre estão por perto, quando é<br />
necessário.<br />
Há um senso de família ampliada; percebe-se continuidade de Mariana nos filhos, que<br />
a tem como referência, e na neta Mariana, 294 que ela cuida depois da morte da nora, Segui.<br />
Enfim, todos os descendentes da protagonista mantêm um espírito de interação e de<br />
convivência, seja através das relações pessoais ou profissionais.<br />
Quanto a Sebastian, depois de oito anos após a independência de seu país, morre<br />
assassinado, devido a um golpe de estado, deixando a herança para a filha, que mais tarde<br />
continuaria a missão do pai, elegendo-se presidente de Zorei. 295 Ainá, casada, com filho,<br />
continua desenvolvendo seu trabalho como médica, na região em que vive. Joseph,<br />
trabalhando nos negócios da mãe, aumenta sua família, ao lado de Ana, com a chegada dos<br />
filhos.<br />
Os descendentes de Mariana, mesmo seguindo por diferentes caminhos, sempre<br />
estiveram ligados às raízes africanas, herdadas da mãe. Mesmo expostos a uma diversidade<br />
cultural enorme, conservam os referenciais identitários de seus espaços de procedência,<br />
demonstrando que os laços construídos com uma comunidade podem ser preservados, porém<br />
não de forma inalterável. Na verdade, o que ocorre é a retenção das lembranças, que por força<br />
292 GRAHAN, Mekada. African-centred Social Work: Concretising Ethical Principles of Equality and Social<br />
Justice for a New Millenium. In: CHRISTIAN, Mark. Black Identity in the 20 th Century. Great Britain: Hansib<br />
Publications, 2002, p. 137.<br />
293 Ibidem, p. 149. Tradução da autora: Eu sou porque nós somos e porque nós somos eu sou.<br />
294 A filha de Sebastian, filho mais novo de Mariana, recebeu, também, o nome de Mariana.<br />
295 A trajetória de Mariana, filha de Sebastian, é contada no terceiro livro da trilogia “Alma da África”, intitulado<br />
Trono de Vidro.<br />
114
e apelo do momento ressurgem, de modo aleatório. Essa rememoração dos fatos vivenciados<br />
possibilita o entendimento de situações do passado, as quais, mesmo limitadas e influenciadas<br />
por emoções e sentimentos, permitem resgatar aspectos de sua história e de sua comunidade,<br />
e, consequentemente, (re)construir seu posicionamento identitário.<br />
115
CAMINHOS PERCORRIDOS, TRILHAS EM ABERTO<br />
116<br />
Sabemos, no entanto, que a memória vence o<br />
tempo. A memória é o antitempo, o remédio para<br />
as fissuras do tempo, e só na memória palpita uma<br />
possível imortalidade.<br />
Antonio Olinto<br />
A epígrafe é expressiva para a análise de A casa da água, do escritor mineiro Antonio<br />
Olinto, tendo em vista que trata da temática da memória, tão presente nessa obra. A memória<br />
é o meio de (re)construção da identidade do africano diaspórico, que retorna à Nigéria; e do<br />
afro-brasileiro, seu descendente, que o acompanha nessa volta.<br />
A memória, como capacidade de lembrar e evocar o passado, faz com que as<br />
recordações individuais aconteçam, apoiadas nas lembranças de sua comunidade. Assim, no<br />
romance, a memória do Brasil passa a ter uma relação com os fatos que constituem o passado<br />
individual da personagem Mariana, fazendo com que ela assuma um posicionamento diante<br />
do grupo, primeiro na Nigéria, depois em Daomé e Zorei. Por essa razão, Mariana está sempre<br />
negociando a partir de uma série de posições diferentes, cada uma com sua profunda<br />
identificação subjetiva.<br />
A memória associa-se à sensação de pertencimento a um mundo que constitui a<br />
protagonista como sujeito e que deve ser preservado. Recordar é a condição da inclusão da<br />
personagem no espaço e no tempo, mantendo ligação com a tradição e com as experiências, o<br />
que revela a hibridização. Como o tempo não volta e não recupera os fatos vividos, Mariana<br />
necessita desenvolver laços de adaptação aos territórios, onde se insere. Caso contrário, a vida<br />
perde o sentido, como aconteceu com Catarina, quando percebe não haver a recuperação do<br />
espaço idealizado pela sua memória.<br />
A interação com o espaço e a convivência com a comunidade oferecem a possibilidade<br />
de Mariana fixar raízes no território nigeriano. Procura meios de se inserir no lugar, aprender<br />
a língua dos colonizadores ingleses e, mais tarde, franceses e alemães, já em Benin e Zorei. A<br />
protagonista vive a realidade com ajuda das memórias do Brasil e das experiências dos<br />
antepassados, que se apresentam como um referencial para ela, através da partilha de decisões<br />
e das descobertas, bem como nas dificuldades da vida, pois através do contato com o outro,<br />
Mariana vai adquirindo novos posicionamentos identitários.
Em A casa da água, Antonio Olinto produz um romance revelando os valores, os<br />
hábitos, os costumes, as tradições africanas por meio da história de uma família, que transita<br />
em diferentes espaços: no Brasil: Piau, Juiz de Fora, Bahia; na África: Nigéria, Daomé e<br />
Zorei; na Europa: Inglaterra, França, Alemanha. Essas personagens, expostas à diversidade<br />
cultural, acabam agregando referenciais identitários e se hibridizando.<br />
Então, estar em diferentes territórios pode revelar que o entre-lugar é capaz de abrir<br />
caminho à significação de uma cultura, baseada na articulação de um misto de tradições.<br />
Explorar o Terceiro Espaço é o meio de constituir-se, assim como o faz Mariana, que<br />
reconstrói sua posição identitária, já que as identidades devem ser entendidas como estratégias<br />
resultantes de desejos ou interesses de filiação a grupos específicos e, portanto, elas são<br />
sempre passíveis de reestruturação.<br />
Constata-se que Catarina, habitando no espaço brasileiro, passa a conviver com<br />
diferentes culturas, o que acaba influenciando seus hábitos e costumes. Assim, agregando<br />
características desse outro espaço, verifica-se que a identidade cultural não é uma essência<br />
fixa, mas um posicionamento adquirido em função da diáspora. A ex-escrava é a<br />
representação do africano diaspórico, querendo reencontrar suas raízes. Em meio à<br />
diversidade cultural, linguística e religiosa a que está submetida, ainda no Brasil, Catarina<br />
assimila os costumes sem nunca se esquecer de sua história na África. Isso é o que a motiva a<br />
retornar, pensando ser possível o resgate de sua identidade africana.<br />
A exposição de Catarina à diversidade cultural a tornaram um ser híbrido. Por essa<br />
razão, o resgate de sua história africana torna-se mais difícil. Situação diferente é a de<br />
Mariana, sua neta, que aprendeu a cultura africana por vontade, para fixar suas raízes no solo<br />
africano. A protagonista transita por diversos espaços, adquirindo traços culturais das<br />
diferentes culturas a que está em contato. Contudo, mantém viva a memória do Brasil.<br />
Os filhos de Mariana, Joseph, Ainá e Sebastian, morando na Europa, também estão<br />
expostos a uma diversidade cultural, que os hibridiza. Porém, seus referenciais africanos<br />
nunca são deixados de lado. Filhos de uma brasileira, que optou viver naquele continente, eles<br />
nascem na África e, mesmo longe de suas raízes, buscam na companhia dos africanos, os elos<br />
com seu espaço de origem. Por fim, o retorno dos três a sua terra expressa o desejo de<br />
reapropriação de sua história africana.<br />
Assim, as personagens analisadas no romance transitam em um entre-lugar formado<br />
pelas culturas de origem e as adquiridas de forma voluntária ou não. Isso demonstra que tanto<br />
Catarina, quanto Mariana e os filhos constroem sua história a partir dos deslocamentos,<br />
117
assimilando as características de cada espaço, tornando-se um misto de tudo o que vivenciam.<br />
Esse processo de migrações livres e forçadas diversifica as culturas e pluraliza as identidades.<br />
A identidade cultural, como um conjunto vivo de relações, estabelece a comunhão de<br />
determinados valores entre os membros de uma sociedade. Isso faz com que, apoiados nas<br />
lembranças de sua comunidade, as personagens desenvolvam sentimentos de pertencimento e<br />
interação, com os espaços que passam a habitar.<br />
Antonio Olinto escreve um romance que difere da maior parte dos escritos literários<br />
até a primeira metade do século XX. O autor produz A casa da água na década de 60, época<br />
que marcou o início de um discurso voltado à temática negra. Alguns escritores, assim como<br />
Olinto, empenham-se para fazer do texto literário uma produção livre das visões deturpadas<br />
sobre os negros africanos. Para esse escritor, o convívio com o povo africano, durante quase<br />
três anos, foi determinante para criação de um texto sem estereótipos e imagens negativas do<br />
povo africano e afrodescendente.<br />
A análise realizada em A casa da Água, a partir do deslocamento, da memória e da<br />
construção da identidade não se esgota, tendo em vista que uma pesquisa nunca está<br />
terminada. Sempre há o que acrescentar e aprofundar. Assim, muitos caminhos, ainda,<br />
poderão ser trilhados nessa obra, por meio da investigação de vários elementos, como a<br />
linguagem usada pelo autor, que se aproxima da oralidade, pela maneira como é composta; o<br />
narrador, que interrompe a narrativa em terceira pessoa, para colocar-se como personagem; a<br />
diáspora, que compreende a dispersão do povo negro para vários territórios, e o trauma como<br />
consequência; as relações raciais entre os diferentes povos que convivem tanto no Brasil,<br />
quanto na África, mais precisamente na Nigéria e Benin; as relações de gênero e o<br />
homoerotismo; o sincretismo religioso presente nas manifestações culturais da população<br />
negra no Brasil, bem como nos costumes brasileiros, conservados, na África, por esses<br />
habitantes; o matriarcado, que tem na figura da mulher o suporte e a referência da família e da<br />
comunidade; a ancestralidade, como fundamento para as novas gerações africanas, que<br />
buscam a sabedoria e o conhecimento de seus antepassados, por meio da memória.<br />
118
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