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artigo - CIAC . Centro de Investigação em Artes e Comunicação

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ACTAS DAS II JORNADAS<br />

DE INVESTIGAÇÃO<br />

DO <strong>CIAC</strong><br />

GABRIELA BORGES<br />

(ORG)


Gabriela Borges (org)<br />

Actas das II Jornadas<br />

<strong>de</strong> <strong>Investigação</strong> do <strong>CIAC</strong>


Borges, Gabriela (org)<br />

Actas das II Jornadas <strong>de</strong> <strong>Investigação</strong> do <strong>CIAC</strong>/ Gabriela Borges - Faro, 2011<br />

122 p. ; 21 x 29,7 cm<br />

ISBN 978-989-8472-05-2<br />

1. <strong>Artes</strong> 2. <strong>Comunicação</strong> 3. <strong>Investigação</strong> 4. Cin<strong>em</strong>a 5. Literacia 6. <strong>Artes</strong> Visuais 7. <strong>Artes</strong><br />

Visuais 8. Teatro 9. Mediterrâneo 10.Título<br />

________________________________________________________________________________<br />

Actas das II Jornadas <strong>de</strong> <strong>Investigação</strong> do <strong>CIAC</strong><br />

____________<br />

Coor<strong>de</strong>nação: Gabriela Borges<br />

Design Gráfico: Isa Mestre<br />

Criação Gráfica: Pedro Leal Filipe<br />

Revisão: Gabriela Borges<br />

____________<br />

Conselho Editorial<br />

Ana Isabel Soares<br />

António Branco<br />

David Antunes<br />

Eugénia Vasques<br />

Gabriela Borges<br />

João Maria Men<strong>de</strong>s<br />

Mirian Tavares<br />

Vítor Reia-Baptista<br />

____________<br />

Março 2011<br />

EDIÇÕES <strong>CIAC</strong><br />

<strong>CIAC</strong>/Universida<strong>de</strong> do Algarve<br />

FCHS, Campus Gambelas 8005-139 Faro<br />

T. 289800900 ext. 7541


ÍNDICE<br />

APRESENTAÇÃO<br />

REPRESENTAÇÕES, NARRATIVAS E LITERACIAS DO MEDITERRÂNEO<br />

Apontamentos sobre a Arte Cont<strong>em</strong>porânea no Mediterrâneo 2<br />

A figuração Cristã contra o Interdito Mosaísta 5<br />

Mediterrâneo: Uma Geografia Emocional 23<br />

Sabina, Salomé no Algarve 32<br />

Existe alguma dimensão Mediterrânica na Literacia dos Media? 38<br />

REPRESENTAÇÕES E LITERACIAS NA COMUNICAÇÃO<br />

O Culto da Mãe e as Metáforas do Cancro da Mama: O Caso <strong>de</strong> Fernanda Serrano 45<br />

Produção <strong>de</strong> um Programa Didáctico no âmbito da Literacia Cin<strong>em</strong>atográfica 54<br />

PROJECTOS DE DOUTORAMENTO<br />

Uma Representação do Espaço Oriental 59<br />

Dissolução e Resistência na voz do Narrador 68<br />

O Estereótipo F<strong>em</strong>inino na Representação Fílmica e Televisiva <strong>de</strong> Elizabeth I 79<br />

Cineastas Europeus nas origens do Maneirismo <strong>de</strong> Hollywood:<br />

André <strong>de</strong> Toth e o caso <strong>de</strong> ‘The Indian Fighter’ 99<br />

PROJECTOS DE INVESTIGAÇÃO DO <strong>CIAC</strong><br />

Principais Tendências do Cin<strong>em</strong>a Português Cont<strong>em</strong>porêneo 107<br />

Encruzilhadas Metodológicas:<br />

da dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever uma «História» da Escola <strong>de</strong> Teatro do Conservatório 108<br />

Projecto <strong>de</strong> <strong>Comunicação</strong> Integrada da <strong>Investigação</strong> <strong>em</strong> <strong>Artes</strong> 112


APRESENTAÇÃO<br />

Em Julho <strong>de</strong> 2010 organizámos na Universida<strong>de</strong> do Algarve as II Jornadas <strong>de</strong> <strong>Investigação</strong> <strong>em</strong><br />

<strong>Artes</strong> e <strong>Comunicação</strong> a fim <strong>de</strong> divulgar junto à comunida<strong>de</strong> académica e ao público <strong>em</strong> geral os<br />

projectos <strong>de</strong> investigação que têm sido <strong>de</strong>senvolvidos por professores, investigadores e alunos<br />

<strong>de</strong> doutoramento do <strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Investigação</strong> <strong>em</strong> <strong>Artes</strong> e <strong>Comunicação</strong>.<br />

Tendo como eixo t<strong>em</strong>ático as Representações, as Narrativas e as Literacias, o evento abordou<br />

estes conceitos no âmbito dos estudos sobre o Mediterrâneo, as <strong>Artes</strong> e a <strong>Comunicação</strong>, tendo<br />

ainda apresentado teses <strong>de</strong> doutoramento e projectos <strong>de</strong> investigação <strong>em</strong> curso nas áreas do<br />

Teatro e Estudos da Performance, <strong>Comunicação</strong>, Estudos Fílmicos e <strong>Artes</strong> Visuais.<br />

Com isso, este livro <strong>de</strong> actas t<strong>em</strong> o propósito <strong>de</strong> dar a conhecer o <strong>de</strong>bate interdisciplinar que<br />

t<strong>em</strong> sido <strong>em</strong>preendido entre os m<strong>em</strong>bros e colaboradores das diversas áreas <strong>de</strong> especialização e<br />

<strong>de</strong> actuação do <strong>CIAC</strong>, tanto do seu pólo na Universida<strong>de</strong> do Algarve como do pólo na Escola<br />

Superior <strong>de</strong> Teatro e Cin<strong>em</strong>a do Instituto Politécnico <strong>de</strong> Lisboa.<br />

Gabriela Borges


REPRESENTAÇÕES, NARRATIVAS E LITERACIAS<br />

DO MEDITERRÂNEO


APONTAMENTOS SOBRE A ARTE CONTEMPORÂNEA<br />

NO MEDITERRÂNEO<br />

Miriam Tavares<br />

The driving force behind my works is my tradition. If it wasn’t for Damascus, I wouldn’t have that<br />

heritage; I wouldn’t be me. Of course, the question r<strong>em</strong>ains: do you have to be a traveller in or<strong>de</strong>r<br />

to be a cosmopolitan?<br />

Marwan<br />

Argan, há uns anos, ao falar do romantismo e do neoclassicismo, dizia que o romantismo só<br />

po<strong>de</strong>ria ser fruto do Norte da Europa e que o neoclassicismo só po<strong>de</strong>ria ser mediterrânico. Porque,<br />

para o urbanista e teórico italiano, a relação que o hom<strong>em</strong> mantém com a natureza <strong>de</strong>termina, <strong>de</strong><br />

alguma maneira a relação que ele manterá com a arte. A natureza sombria, impenetrável e misteriosa<br />

do norte da Europa é reflectida numa arte ensimesmada que beira s<strong>em</strong>pre o abismo, on<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong><br />

busca, sobretudo, o <strong>de</strong>svendamento. Busca dificultada pelo entorno que o envolve e que não facilita<br />

o seu percurso. Já a luz aberta e franca que permeia a arte neoclássica, mostra um hom<strong>em</strong> que<br />

dominou já a natureza à sua volta, que esta já foi convertida <strong>em</strong> cultura e <strong>em</strong> espaço da representação.<br />

A natureza é amena e aprazível, penetrável, não necessita <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendamentos, apresenta-se como<br />

espaço a ser ocupado, não dificulta o caminho. Aliás, o mediterrâneo é o mar, por excelência,<br />

dos caminhos, da fundação da civilização que redundará, séculos <strong>de</strong>pois, na civilização europeia.<br />

Falar <strong>de</strong> arte no mediterrâneo é falar <strong>de</strong> uma parte da arte europeia. Uma parte apenas, porque<br />

a Europa, anos mais tar<strong>de</strong>, tratou <strong>de</strong> expurgar aquilo que era consi<strong>de</strong>rado bárbaro, ou menos<br />

europeu. Expurgou, ou tentou fazê-lo, a arte mais oriental. Decidiu que o caminho europeu era<br />

aquele que representava melhor a i<strong>de</strong>ia que tinham <strong>de</strong> cultura e civilização e chamou a todo o resto<br />

<strong>de</strong> OUTROS. Criou a alterida<strong>de</strong> que distancia culturas e povos, que fecha os caminhos abertos<br />

pelo mar. O outro é aquele que não sou eu, é aquele que não entendo. É aquele tão impenetrável<br />

quanto uma floresta do norte da Europa, mesmo que esteja banhado, como nós mesmos, <strong>de</strong> sol.<br />

Vários são os motivos que levaram a este progressivo afastamento entre povos alimentados<br />

pela mesma bacia e que navegaram as mesmas águas. Durante vários séculos o padrão greco-romano,<br />

convertido <strong>em</strong> cânone, dominou a arte europeia e <strong>de</strong> alguma maneira, <strong>de</strong>terminou a História da Arte<br />

como nós a conhec<strong>em</strong>os. Wollflin fala <strong>de</strong> períodos clássicos e barrocos na história da arte, como um<br />

ciclo que se repetiu por muito t<strong>em</strong>po e que se encerra no limiar do séc. XX. Esta alternância entre<br />

o clássico e o barroco era, no fundo, a alternância entre o cânon e os seus opositores. Entre a regra<br />

e àqueles que a ousaram quebrar. Os historiadores, geralmente, estavam a favor do cânon, da regra.<br />

O berço da arte canónica produziu seu último gran<strong>de</strong> ciclo <strong>em</strong> meados do século XVIII – o<br />

movimento Neoclássico foi o estertor final <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> representação do mundo. Um mo<strong>de</strong>lo<br />

exclu<strong>de</strong>nte e que preten<strong>de</strong>u ser O mo<strong>de</strong>lo. O romantismo instaura, no seio da arte, o <strong>de</strong>lírio. O<br />

sentimento <strong>de</strong> pertença não a um continente simbólico, mas sim a uma nação mais pequena. A uma<br />

nação que precisava ter uma voz própria que se sobrepusesse a que fora imposta durante tanto t<strong>em</strong>po.<br />

O sentimento do romantismo sai do sítio on<strong>de</strong> nasceu e floresce um pouco por todo o lado, aliado<br />

2


ao sentimento e a necessida<strong>de</strong> crescentes <strong>de</strong> uma arte que queria ter também ela a sua própria voz.<br />

É interessante percebermos que durante o Século XIX, o papel que a Itália ocupou na<br />

História da Arte Oci<strong>de</strong>ntal sofre um <strong>de</strong>clínio. A Itália transforma-se num espaço museológico a<br />

ser visitado, e admirado, por aqueles que queriam ainda perpetuar O mo<strong>de</strong>lo. Os outros, distantes<br />

<strong>de</strong>ste apelo canónico, <strong>de</strong>cidiam olhar para outro lado ou para diversos lados ao mesmo t<strong>em</strong>po e daí<br />

surg<strong>em</strong> as vanguardas. A Itália volta a aparecer neste cenário com o Futurismo, dos movimentos <strong>de</strong><br />

vanguarda o que mais apontou para o futuro e que mais ar<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente quis romper com o passado.<br />

De qualquer forma, por mais diversificada e diversa, a vanguarda europeia<br />

continua a ser a vanguarda europeia. Os outros continuam a ser os outros, frequentando,<br />

algumas vezes, como convidados b<strong>em</strong> comportados, algumas obras <strong>de</strong> alguns artistas.<br />

Duas guerras <strong>de</strong>pois, a arte, que faz parte da vida, intrinsecamente, e que não é<br />

uma activida<strong>de</strong> outra ou marginal, incorpora todas as mudanças que o mundo passou<br />

num século tão conturbado. E finalmente vê os discursos alheios ao seu próprio<br />

umbigo atravessar<strong>em</strong> os seus próprios discursos. E <strong>de</strong> repente se dá conta que existe<br />

outra arte. Que exist<strong>em</strong> outras artes e outras maneiras <strong>de</strong> se ver e representar o mundo.<br />

A arte na cont<strong>em</strong>poraneida<strong>de</strong> é uma arte múltipla e pluridiscursiva. São várias as vozes que a<br />

compõ<strong>em</strong>, são vários os discursos. Não é possível falarmos <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo ou cânon. Talvez a falta<br />

<strong>de</strong> cânon seja o mo<strong>de</strong>lo. Mas há algo que une, ou que pelo menos, põe <strong>em</strong> diálogo tudo que se fez ou se<br />

faz <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a segunda meta<strong>de</strong> do século XX: com tantos caminhos abertos, vias, re<strong>de</strong>s, reais e virtuais,<br />

com o esboroamento das fronteiras, físicas e simbólicas, parece que ainda não conseguimos falar a<br />

mesma língua. Que estamos todos juntos e muito próximos mas, simultaneamente, terrivelmente<br />

distantes. E a arte reflecte sobre isto. Primeiro como um espelho e <strong>de</strong>pois como alguém que<br />

pensa e questiona e coloca o <strong>de</strong>do na ferida. Nas feridas. Há uma questão que é fulcral para a arte<br />

nos t<strong>em</strong>pos que corr<strong>em</strong> e que diz respeito a um sentimento <strong>de</strong> pertença: se eu não sou n<strong>em</strong> sou o<br />

outro, qu<strong>em</strong> sou eu afinal? E o espaço é o território on<strong>de</strong> esta questão se expan<strong>de</strong>. O espaço, já<br />

não apenas geográfico e mapeado, é o lugar que <strong>de</strong>fine qu<strong>em</strong> sou, o que <strong>em</strong> mim é meu e o que é<br />

fruto <strong>de</strong> um sentimento comum. O que me liga aos outros? O que me difere? O que me faz ser eu?<br />

Desta maneira o mediterrâneo volta a fazer parte das discussões. Volta a ser um lugar <strong>de</strong><br />

navegações e trocas, <strong>de</strong> encontros. Nicolas Bourriaud disse certa vez que a arte cont<strong>em</strong>porânea não é<br />

um objecto <strong>em</strong> si, é a maneira nova <strong>de</strong> habitar velhos espaços. E são estes velhos e conhecidos espaços<br />

que foram se distanciando que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser novamente visitados. E re-habitados. Por isso a importância<br />

<strong>de</strong> se pensar hoje numa arte do e no mediterrâneo. Uma arte com s<strong>em</strong>elhanças e diferenças, com<br />

consensos e dissensões, mas uma arte que precisa dialogar mais e absorver melhor o outro, que nunca<br />

<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser, apesar da distância, uma outra face <strong>de</strong> nós mesmos. E há que se buscar a completu<strong>de</strong>.<br />

A arte cont<strong>em</strong>porânea do mediterrâneo mais a oriente, como a Turquia, apresenta as<br />

mesmas características da arte europeia “mo<strong>de</strong>lar” – entre os novos e os velhos media, entre<br />

as novas e as velhas técnicas, os artistas visuais procuram re-habitar um espaço aparent<strong>em</strong>ente<br />

conhecido e visitado. E procuram, com a sua arte, estabelecer diálogo entre culturas diversas,<br />

entre diversida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ntro da sua própria cultura, entre modos diferentes <strong>de</strong> se habitar o mundo.<br />

Não há um mo<strong>de</strong>lo preestabelecido, não há uma fórmula única, n<strong>em</strong> um projecto comum. O<br />

que os une entre si, e entre os artistas do lado <strong>de</strong> cá do mediterrâneo, é a afirmação <strong>de</strong> uma<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, é a exploração <strong>de</strong> feridas que foram ocultadas, é, sobretudo, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ter uma voz.<br />

3


Haluk Akakçe, artista turco que vive e trabalha <strong>em</strong> NY, utiliza ícones <strong>de</strong> várias culturas para<br />

falar da relação entre o hom<strong>em</strong> e a tecnologia. Mas, não apenas para fazer uma reflexão sobre<br />

o t<strong>em</strong>a, como muitos outros o faz<strong>em</strong>, a sua i<strong>de</strong>ia é promover uma autêntica fusão dialógica<br />

que produza novos significados. A sua arte é apenas uma das muitas representantes <strong>de</strong> uma<br />

cont<strong>em</strong>poraneida<strong>de</strong> que já percebeu o papel que cabe a arte, e aos artistas, nos t<strong>em</strong>pos que corr<strong>em</strong>:<br />

promover, uma vez mais, o diálogo entre distintas culturas, entre meios diversos, entre lógicas<br />

que aparent<strong>em</strong>ente se repel<strong>em</strong>, mas que necessitam <strong>de</strong> alguém, ou algo, que construa uma ponte.<br />

A obra <strong>de</strong> Gunes Terkol, outro artista turco, que pertence ao Ha Za Vu Zu artist group, é uma fusão<br />

entre técnicas diversas utilizadas para falar da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, ou das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sexuais. Entre um fundo<br />

abstracto e a colag<strong>em</strong> <strong>de</strong> objectos retirados do quotidiano, ele se consi<strong>de</strong>ra um contador <strong>de</strong> histórias.<br />

E com suas histórias preten<strong>de</strong> que o espectador entre na sua obra através <strong>de</strong> suas próprias m<strong>em</strong>órias.<br />

A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> não é apenas do artista, mas daqueles que o vê<strong>em</strong> e que com ele se i<strong>de</strong>ntificam. Mais uma<br />

vez a presença do el<strong>em</strong>ento dialógico que nos r<strong>em</strong>ete, invariavelmente, para uma amplificação do<br />

conceito criado por Bourriaud da estética relacional: a arte só funciona quando habitada e vivenciada.<br />

Artistas como Vahap Avsar cujo trabalho político o obrigou a procurar refúgio fora da<br />

Turquia, reflect<strong>em</strong> outra instância <strong>de</strong> criação da obra dos eternos OUTROS. Por mais diversos<br />

que sejam os trabalhos e as técnicas, todos caminham numa direcção: o possível diálogo. O<br />

possível entendimento que não é a aceitação passiva e pacífica do outro, mas a fusão <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e a<br />

<strong>de</strong>sejada confusão <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e espaços. Navegar já não é preciso. Mesmo sendo necessário.<br />

Navegar po<strong>de</strong> ser a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r-se no e com o outro, <strong>em</strong> outras terras, <strong>em</strong> outros<br />

espaços. Navegar <strong>em</strong> direcção a. Em direcção ao outro, simultaneamente ao passado e ao futuro.<br />

Simultaneamente ao oci<strong>de</strong>nte e ao oriente. O mediterrâneo, como já disse, s<strong>em</strong>pre foi um caminho.<br />

Talvez seja preciso voltar a percorrê-lo. E <strong>de</strong>sta vez, <strong>de</strong>ixar-nos per<strong>de</strong>r um pouco naquilo que<br />

não conhec<strong>em</strong>os e experimentarmos o outro, que faz, mesmo que não queiramos, parte <strong>de</strong> nós.<br />

4


A FIGURAÇÃO CRISTÃ CONTRA O INTERDITO<br />

MOSAÍSTA<br />

João Maria Men<strong>de</strong>s<br />

É possível a uma pessoa, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente do lugar on<strong>de</strong> nasceu e on<strong>de</strong> vive, tornar-se<br />

mediterrânica. A mediterraneida<strong>de</strong> não se herda, adquire-se. É uma distinção, não uma vantag<strong>em</strong>.<br />

Não se trata apenas <strong>de</strong> história ou <strong>de</strong> tradições, <strong>de</strong> geografia ou <strong>de</strong> raízes, <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória ou <strong>de</strong><br />

crenças: o Mediterrâneo é também um <strong>de</strong>stino. Pedrag Matvejevitch, Breviário Mediterrânico, 1987.<br />

1. Dos ídolos da mimesis aos ícones da encarnação<br />

As áreas <strong>de</strong> investigação que recobr<strong>em</strong> o vasto período que vai da arte paleocristã à<br />

Bizâncio pós-iconoclasma e à lenta aurora da Ida<strong>de</strong> Média estão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há muito estabilizadas nas<br />

histórias das artes, têm sido por vezes objecto <strong>de</strong> fecundas abordagens multidisciplinares, e a sua<br />

bibliografia especializada não t<strong>em</strong> parado <strong>de</strong> crescer, hoje morosa mas progressivamente mais<br />

acessível <strong>de</strong>vido à difusão digitalizada <strong>de</strong> parte dos seus documentos. Não sendo nelas especialistas,<br />

o que aqui nos interessou foi a consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> alguns dos seus el<strong>em</strong>entos característicos como<br />

a frontalida<strong>de</strong> retratista, a passag<strong>em</strong> da representação mimética à figuração da encarnação divina<br />

(geradora <strong>de</strong> uma koinè e <strong>de</strong> uma aisthesis próprias), a complexa apresentação, pelas formas<br />

picturais, dos sentidos da parousia cristã, e o modo como a teologia se foi relacionando com elas,<br />

tentando domar e gerir a contradição entre a tendência para o regresso à idolatria via figurações<br />

cristãs e a pesada herança da interdição <strong>de</strong> figurar o divino, vinda da tradição monoteísta.<br />

Cedo ou tar<strong>de</strong>, qu<strong>em</strong> se ocupa <strong>de</strong> artes da imag<strong>em</strong> (pintura, fotografia, cin<strong>em</strong>a...), ou sobre<br />

elas pensa, é confrontado com a questão <strong>de</strong> saber o que se operou no cristianismo, originariamente<br />

her<strong>de</strong>iro da tradição mosaísta e da interdição <strong>de</strong> figurar, para que ele se tenha tornado na principal<br />

máquina figurativa da história daquilo a que chamamos Oci<strong>de</strong>nte, entre o fim da antiguida<strong>de</strong><br />

clássica e o limiar da Ida<strong>de</strong> Média. É uma questão mediterrânica, que se joga entre Jerusalém, Roma<br />

e Bizâncio (ligada ao Egeu pelo mar <strong>de</strong> Mármara), mas também <strong>em</strong> Alexandria com a sua arte<br />

copta e <strong>em</strong> Cartago, Chipre e Creta, e na posterida<strong>de</strong> das paragens <strong>de</strong> Saulo <strong>de</strong> Tarso na Cesareia<br />

e <strong>em</strong> Sídon, Salamina e Antióquia, <strong>em</strong> Rho<strong>de</strong>s, Patmos e Samos, na Galácia, Mísia e Macedónia,<br />

<strong>de</strong>pois pela costa da Tessália até Atenas, e <strong>em</strong> cativeiro a caminho <strong>de</strong> Roma, por Malta e Messina.<br />

Questão a que é impossível escapar, porque, nesse mundo cristão <strong>de</strong> que somos her<strong>de</strong>iros, ela<br />

s<strong>em</strong>pre acompanhou a iconologia e a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> figurar a divinda<strong>de</strong> e por extensão o sagrado<br />

(e seus limites). Questão <strong>de</strong>cisiva, ainda, a um t<strong>em</strong>po figural e narrativa, porque a compulsão<br />

para figurar o Antigo e o Novo Testamentos formatou, <strong>em</strong> boa parte, a história das artes <strong>de</strong>sse<br />

Oci<strong>de</strong>nte cristão, amarrando-se aos textos kerigmáticos fundadores da nova crença, como a<br />

figuração grega e romana se tinham amarrado às suas fábulas, mitos e gran<strong>de</strong>s textos épicos.<br />

5


A tradição mosaísta — herdada <strong>de</strong> Moisés, Ezequiel, Josias, iconoclastas que exprimiram<br />

a reacção do monoteísmo contra a materialização do divino nos ídolos do politeísmo — viu-se<br />

ameaçada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século II e s<strong>em</strong>pre coabitou com a iconofilia popular, mas resistiu até aos séculos<br />

VIII e IX, no iconoclasma <strong>de</strong> Bizâncio. Quando este se extinguiu, cristãos orientais e oci<strong>de</strong>ntais<br />

ultrapassaram “irreversivelmente” o interdito <strong>de</strong> figuração, passando a acarinhar, a proteger e a<br />

acalentar esta última, ao mesmo t<strong>em</strong>po que tentavam, por diversos meios, regulá-la. A prevalência<br />

dos t<strong>em</strong>as bíblicos na pintura do Oci<strong>de</strong>nte cristão só voltaria a ser posta <strong>em</strong> causa pelo regresso<br />

à figuração “clássica” e “humanista” da Renascença, e, ainda aí, <strong>de</strong> forma transitória e matizada.<br />

Didi-Huberman (1) coloca a questão <strong>de</strong> forma expressiva, atento ao seu pendor paradoxal :<br />

“Vir<strong>em</strong>o-nos (...) para esse Oci<strong>de</strong>nte cristão cujo posicionamento face aos objectos figurativos<br />

é, a vários títulos, ex<strong>em</strong>plar. Nenhuma outra cultura produziu tal quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> documentos e <strong>de</strong><br />

monumentos figurados: os iconoclasmas e as <strong>de</strong>struições <strong>de</strong> todos os géneros nunca conseguiram<br />

reduzir essa impressão <strong>de</strong> que o Oci<strong>de</strong>nte viveu, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a aurora da Ida<strong>de</strong> Média, num universo<br />

social e religioso on<strong>de</strong> os homens se moviam sob o olhar, ou mesmo sob a autorida<strong>de</strong>, das miría<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> imagens que iam fabricando com diversos fins — fins que o antropólogo e o historiador<br />

<strong>de</strong>v<strong>em</strong> elucidar tanto quanto possível. A produção e a extraordinária difusão <strong>de</strong>sses objectos<br />

figurativos são tanto mais impressionantes quanto, à partida, se fundaram num ódio às imagens<br />

ou ‘ídolos’ pagãos, e que serviram, enquanto ‘ícones’, <strong>em</strong> questões <strong>de</strong> crença constant<strong>em</strong>ente<br />

expressas <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> não-visibilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> além, <strong>de</strong> Verbo divino... Este duplo paradoxo põe-nos<br />

imediatamente no âmago do probl<strong>em</strong>a: que <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os enten<strong>de</strong>r por figura no mundo cristão? ”<br />

Por outras palavras, o que distingue essa figura do mundo cristão da esmagadora figuração clássica<br />

grega e helenística, dos retratos frontais e das figurações da vida quotidiana nos frescos <strong>de</strong> Pompeia, dos<br />

frescos e baixos-relevos dos sarcófagos romanos — questão tão marcadamente hegeliana, que s<strong>em</strong>pre<br />

pôs <strong>em</strong> jogo a relação entre a manifestação artística e o espírito? O que <strong>em</strong>erge, no mundo cristão,<br />

que não tivesse já surgido antes <strong>de</strong>le? De certo modo, apren<strong>de</strong>mos, com esta questão, a interrogar-nos<br />

sobre as sucessivas mudanças do estatuto ontológico da imag<strong>em</strong>: como difere a fotografia da pintura?<br />

Como difere o cin<strong>em</strong>a da fotografia? Como difer<strong>em</strong> do cin<strong>em</strong>a as imagens feitas <strong>em</strong> computador?<br />

A resposta à primeira questão — o que distingue a figuração cristã, <strong>de</strong> que aqui nos<br />

ocupamos — é, aparent<strong>em</strong>ente, simples: do ponto <strong>de</strong> vista da teologia cristã dos primeiros<br />

séculos, o que <strong>em</strong>erge nessa “nova” iconografia, que teima <strong>em</strong> se impor contra os regressos do<br />

mosaísmo e da iconoclastia, é a “figuração do infigurável”, a “visibilização do invisível”, que<br />

experimenta a passag<strong>em</strong> da representação mimética, con<strong>de</strong>nada por essa teologia porque produz<br />

ídolos, a uma iconografia da encarnação, que já não procura a s<strong>em</strong>elhança retratista com o<br />

mo<strong>de</strong>lo, mas sim a “verda<strong>de</strong>” figural do Verbo feito carne. E, na sua génese, como, precisamente,<br />

sab<strong>em</strong> os historiadores (Küng, 1994) (2), parte <strong>de</strong>ssa “nova” figuração cristã, e sobretudo a<br />

sua discussão, é Oriental, <strong>em</strong>bora ecoando por todo o Oci<strong>de</strong>nte cristão, das cont<strong>em</strong>porizações<br />

da igreja <strong>de</strong> Roma aos radicalismos da Europa carolíngia. As questões (anat<strong>em</strong>izantes e<br />

mortíferas) com ela relacionadas explo<strong>de</strong>m <strong>em</strong> Bizâncio, sob o olhar atento das restantes Igrejas:<br />

“… Se as basílicas constantinianas e os seus mosaicos ainda eram comuns às Igrejas<br />

do Oriente e do Oci<strong>de</strong>nte, os ícones (<strong>em</strong> grego eikôn, ‘imag<strong>em</strong>’) são o resultado <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>senvolvimento especificamente oriental. Este <strong>de</strong>senvolvimento ocorreu sobretudo nos<br />

séculos VII-VIII [segundo outros autores <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século VI ou antes, como ver<strong>em</strong>os, n.a.],<br />

quando as imagens já não <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhavam apenas o papel <strong>de</strong> um piedoso m<strong>em</strong>orial, mas<br />

eram objecto <strong>de</strong> uma veneração cultural: esperava-se <strong>de</strong>las que propiciass<strong>em</strong> o socorro do<br />

santo correspon<strong>de</strong>nte. Na época do Império Romano, toda a veneração <strong>de</strong> imagens era ainda<br />

6


tabu na Igreja (…). Eusébio, por ex<strong>em</strong>plo, banira toda a representação figurada, inclusive da<br />

humanida<strong>de</strong> terrestre <strong>de</strong> Cristo (…). No final do séc. IV, Epifânio <strong>de</strong> Salamina ainda <strong>de</strong>nunciava<br />

o culto das imagens, no qual só via uma nova forma <strong>de</strong> culto dos ídolos” (Küng, 219-220).<br />

Objectar-se-á a Küng que a sua leitura se inscreve numa tradição que menospreza a<br />

importância da arte cristã <strong>de</strong> Roma, essa arte popular nascida da iconografia do Império,<br />

recuperando t<strong>em</strong>as pagãos como as estações do ano (vida para além da morte), a fénix<br />

(ressurreição), os jardins (metáforas do paraíso), o navio, a palma. Fê-lo, primeiro como arte<br />

funerária — pintura nas catacumbas, escultura nos sarcófagos — ilustrando a commendatio animæ,<br />

<strong>de</strong>pois nos baptistérios como o <strong>de</strong> Dura Europos, e isto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> finais do século II e durante<br />

todo o III, on<strong>de</strong> surg<strong>em</strong> figurações do Bom Pastor (Ezequiel, XXXIV, 12; Lucas, XV, 4;<br />

João, X, 11), da Fracção do Pão na última ceia, dos ciclos <strong>de</strong> milagres <strong>de</strong> Cristo e <strong>de</strong> Pedro,<br />

pintados <strong>de</strong> modo ora “naturalista” ora “expressionista”. Tradição que menospreza, ainda, a arte<br />

cristã triunfal do séc. IV, nascida da conversão dos imperadores e da fusão entre pax romana<br />

e pax christiana: a iconografia imperial, centrada na figura majestática do basileus, <strong>de</strong>slocou-se<br />

então para a figuração do Cristo, que surge entronizado, Cosmocreator ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> assessores<br />

(e já não <strong>de</strong> discípulos), a qu<strong>em</strong> trasmite a traditio legis; ou <strong>de</strong> pé, <strong>em</strong>punhando a cruz que<br />

simboliza a sua vitória. Nesse século IV, enquanto a capital do Império muda <strong>de</strong> Roma para<br />

Constantinopla, o vastíssimo programa <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> basílicas, lugares <strong>de</strong> culto, martiria,<br />

baptistérios, financiado por donativos imperiais e da aristocracia recent<strong>em</strong>ente convertida,<br />

propulsiona as artes visuais, encarregadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>corar os novos espaços cristãos, agora triunfantes.<br />

De facto, no seio da orbis romana dos séculos III e IV estabeleceu-se uma koinè artística cristã,<br />

uma linguag<strong>em</strong> comum ao conjunto do Império (pens<strong>em</strong>os na arte copta e nos retratos frontais<br />

<strong>de</strong> Fayum), e on<strong>de</strong> diversas influências regionais <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penham papel constitutivo. Dir-se-ia,<br />

parafraseando Hubert Damish, e por analogia com o conceito foucaultiano <strong>de</strong> epist<strong>em</strong>ê, que entre<br />

Roma e Bizâncio se <strong>de</strong>senvolveu uma aisthesis entendida como “re<strong>de</strong> <strong>de</strong> vínculos estruturais e dos<br />

princípios reguladores, (…) dos meios técnicos (…), dos paradigmas formais e das s<strong>em</strong>elhanças<br />

culturais e i<strong>de</strong>ológicas, na qual se enreda a arte <strong>de</strong> uma época dada”(3). A relevância <strong>de</strong> Bizâncio neste<br />

contexto pren<strong>de</strong>-se com a natureza específica do ícone — objecto <strong>de</strong> culto também ali imposto<br />

pela crença popular — e por ser ali que vieram a extr<strong>em</strong>ar-se, durante o iconoclasma, as questões<br />

teológicas da figuração da divinda<strong>de</strong> : o II concílio <strong>de</strong> Constantinopla <strong>de</strong>ra, <strong>em</strong> 692, indicação<br />

para se figurar o Cristo “<strong>de</strong> acordo com o seu aspecto humano”. Mas essa <strong>de</strong>terminação teológica<br />

reforçou a idolatria popular — entre teologia e culto popular s<strong>em</strong>pre houve um jogo do gato e do<br />

rato — e o conflito sobre a figuração do Deus-Hom<strong>em</strong> ganhou, no mundo bizantino, a maior<br />

amplitu<strong>de</strong> histórica até então conhecida, exigindo a sua solução novas formulações teológicas,<br />

indispensáveis para sustentar a koinè artística e a consistência relativa da crença e suas manifestações.<br />

Tão vulnerável, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio, a tornar-se veículo <strong>de</strong> uma nova idolatria, com<br />

que argumentário veio a “figuração do infigurável”, a “visibilização do invisível”, a tornar-se<br />

idiossincraticamente cristã? A resposta a esta questão foi morosamente construída durante o<br />

iconoclasma bizantino, pelos teólogos iconófilos (João Damasceno, Nicéforo, Teodoro Studita),<br />

cujas doutrinas saíram vencedoras do segundo concícilo <strong>de</strong> Niceia, <strong>de</strong> 787; e a sua chave-mestra<br />

é a seguinte: ao encarnar, o Deus infigurável e invisível tornou-se figura, visível. Como diz Didi-<br />

Huberman (loc. cit., 611), apoiando-se no evangelho <strong>de</strong> João: esse “acontecimento incrível”,<br />

o rochedo sobre o qual se ergueu toda uma crença, a encarnação <strong>de</strong> Deus <strong>em</strong> Jesus Cristo,<br />

tornou-se “na parada (enjeu) absoluta <strong>de</strong> toda a figuração”. No fundamental, toda a questão<br />

está contida no confronto entre dois <strong>de</strong>signativos, ídolo e ícone : ídolo <strong>de</strong>signa a totalida<strong>de</strong><br />

das figurações que prece<strong>de</strong>m a <strong>em</strong>ergência e a socialização do cristianismo como aparelho <strong>de</strong><br />

7


po<strong>de</strong>r; ícone <strong>de</strong>signa a imag<strong>em</strong> que figura a verda<strong>de</strong> da encarnação. Ídolo refere-se às mil formas<br />

enganadoras da aparência ; ícone refere-se à aparição do novo factum que mudou o mundo, a<br />

natureza e o <strong>de</strong>stino da experiência humana. Esta parada retórica, que hoje nos parece limitada<br />

a uma logomaquia el<strong>em</strong>entar, ou a um jogo <strong>de</strong> palavras, estava <strong>de</strong>stinada a inscrever-se, com<br />

numerosos avanços e recuos, na longa duração : o segundo concílio <strong>de</strong> Niceia não pôs termo ao<br />

iconoclasma, e, quando este se extinguiu, seguiram-se, b<strong>em</strong> para além do cisma posterior, séculos<br />

<strong>de</strong> reiteração do argumentário conciliar : Bernardino <strong>de</strong> Siena (apud Huberman, id. ibid.) escreveria,<br />

ainda no séc. XV, na sua língua escolástica, e glosando as razões <strong>de</strong> João Damasceno <strong>em</strong> Bizâncio,<br />

que “o infigurável [se mostrou] na figura (...), o incircunscritível no lugar, o invisível na visão”.<br />

Mas a matriz da doutrina iconófila fora, <strong>de</strong> facto, estabelecida <strong>de</strong> forma<br />

simples pelo evangelho <strong>de</strong> João — o mais tardio dos quatro adoptados pelo cânone<br />

e muito distinto dos três sinópticos que o prece<strong>de</strong>ram (4) —, na sua narrativa da<br />

última ceia, numa passag<strong>em</strong> <strong>de</strong> diálogo entre Jesus e Filipe (João, XIV, 8, 9, 10):<br />

“Filipe disse-lhe: ‘Senhor, mostra-nos o Pai e isso bastar-nos-á’.<br />

Jesus disse-lhe: ‘Há tanto t<strong>em</strong>po que estou convosco e tu não me conheces, Filipe? Qu<strong>em</strong> me viu, viu o Pai.<br />

Como po<strong>de</strong>s tu dizer: ‘Mostra-nos o Pai’? Não acreditas que eu estou no Pai e que o Pai está <strong>em</strong> mim?’ ”<br />

“Qu<strong>em</strong> me viu, viu o Pai”. Qu<strong>em</strong> o viu, viu a consubstancialida<strong>de</strong> na encarnação.<br />

Inumeramente citada através dos t<strong>em</strong>pos para fundar a visibilida<strong>de</strong> do Deus cristão tornado figura<br />

humana, esta passag<strong>em</strong> <strong>de</strong> diálogo da última ceia viria também a reiterar a importância do ver,<br />

do ver e crer , do ver fundador <strong>de</strong> crença, no cristianismo — tão importante como a crença na<br />

ressurreição, diante da visão do túmulo vazio. A prevalência do ver sobre os restantes sentidos<br />

enraíza-se <strong>em</strong> Platão, e <strong>de</strong>smerece a exigência <strong>de</strong> Tomé, o discípulo incrédulo que precisará <strong>de</strong><br />

tocar a chaga, <strong>de</strong> pôr o <strong>de</strong>do na ferida para acreditar. Esse ver é simultaneamente transcen<strong>de</strong>nte<br />

(exige que se veja para além <strong>de</strong>...), mas ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong>pírico e imanente (exerce-se nos<br />

limites da experiência). Transcendência e imanência não mais <strong>de</strong>ixarão <strong>de</strong> se disputar no território<br />

da figuração e do visível: quando <strong>em</strong> 787 Niceia II diz que venerar uma imag<strong>em</strong> é venerar o<br />

protótipo nela figurado, foge à imanência para favorecer a mais conveniente transcendência<br />

(<strong>de</strong>ve venerar-se, através da mediação da imag<strong>em</strong>, o que está para além, por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong>la).<br />

A doutrina b<strong>em</strong> diz “Qu<strong>em</strong> me viu, viu o Pai”, circunscrevendo ao Filho a visibilida<strong>de</strong> do<br />

primeiro. E, <strong>em</strong> Roma, como na arte copta ou <strong>em</strong> Bizâncio, os pintores procuram e encontram,<br />

on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m, as formas <strong>de</strong>ssa nova figurabilida<strong>de</strong> — é esse o seu probl<strong>em</strong>a. Eles sab<strong>em</strong>, como<br />

Praxíteles e os retratistas <strong>de</strong> Pompeia, que tal figurabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da imanência das formas<br />

inventadas, do que fica na materialida<strong>de</strong> da pintura; e que a transcendência é filha <strong>de</strong> uma teologia<br />

aflita, incomodada pela imanência que gera a idolatria. A transcendência é uma poética <strong>de</strong> exegetas,<br />

que faz passar do não-ser ao ser uma interpretação; a imanência é uma poética vinda das tèknai<br />

do artista, que faz passar do não-ser ao ser a obra propriamente dita, na sua materialida<strong>de</strong>. Mas os<br />

dados estão lançados e põ<strong>em</strong> <strong>em</strong> cena uma inextinguível guerra <strong>de</strong> posições on<strong>de</strong> transcendência<br />

e imanência se tornam antagonistas mortais. Cada uma sabe que, per<strong>de</strong>ndo território face à<br />

outra, se arrisca a não ser senão a sétima face do dado que se imobilizou diante do nosso olhar.<br />

À passag<strong>em</strong> da invisibilida<strong>de</strong> à visibilida<strong>de</strong> acrescentava-se, nas mesmas narrativas<br />

evangélicas, a dramaturgia das transfigurações humanas da figura <strong>de</strong> Jesus — do jov<strong>em</strong><br />

que caminha sobre as águas e expulsa os vendilhões do t<strong>em</strong>plo ao corpo martirizado do<br />

crucificado no Gólgota, <strong>de</strong>pois novamente transfigurado pela vitória sobre a morte e tornado<br />

corpo glorioso, luminoso, pronto a regressar ao Pai. Diz ainda Didi-Huberman (id. ibid.):<br />

8


“O que o cristianismo no fundo procurava, nesta parada<br />

paradoxal da figuração, era ultrapassar os <strong>de</strong>uses <strong>de</strong>masiado visíveis<br />

do paganismo greco-latino e o Deus <strong>de</strong>masiado invisível da religião hebraica”.<br />

A narrativa evangélica da transfiguração, por ex<strong>em</strong>plo, exprime b<strong>em</strong> o modo como esses<br />

textos propuseram visualizações seguras da encarnação divina. Em Lucas (9, 29-32), Jesus<br />

tinha subido a montanha para rezar, levando com ele Pedro, João e Tiago. Eis o que se segue:<br />

“E aconteceu que, enquanto ele rezava, o aspecto do seu rosto se tornou outro, e a roupa que<br />

vestia [se tornou] <strong>de</strong> uma brancura fulgurante. E eis que dois homens conversavam com ele: eram Moisés<br />

e Elias, que, aparecidos <strong>em</strong> glória, falavam da partida <strong>de</strong>le e do que ia fazer <strong>em</strong> Jerusalém. Pedro e os<br />

seus companheiros tinham adormecido. Acordando, viram a sua glória e os dois homens junto <strong>de</strong>le”.<br />

Cedo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os séculos III e IV, as figurações do Cristo ou da Virg<strong>em</strong> viram-se acompanhadas<br />

pelas <strong>de</strong> outras personagens das escrituras, e também da <strong>de</strong> santos homens e mulheres que <strong>de</strong>las<br />

não constavam e lhes eram posteriores. Reponhamos a questão: como se tornou o cristianismo na<br />

fábrica proliferante <strong>de</strong> figurações que viria a marcar, na longa duração, as culturas por eles tocadas<br />

ou a ele convertidas? Como vimos, para se operar esse enorme movimento <strong>de</strong> báscula, as figurações<br />

populares do visível e do invisível tiveram <strong>de</strong> ser “<strong>de</strong>sanat<strong>em</strong>izadas” e “salvas”, tiveram <strong>de</strong> viver<br />

um longo rito <strong>de</strong> passag<strong>em</strong>, tiveram <strong>de</strong> ser “baptizadas” e <strong>de</strong> exorcisar a sua con<strong>de</strong>nação inicial,<br />

para passar<strong>em</strong> <strong>de</strong> teologicamente mal-toleradas a sacramentalmente ungidas, para <strong>de</strong>ixar<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser<br />

contra-corrente e se tornar<strong>em</strong> formas dominantes associadas ao culto, indispensáveis ao culto. O<br />

que se passou para que, b<strong>em</strong> antes do iconoclasma, as igrejas bizantinas já pendurass<strong>em</strong> ícones nas<br />

suas colunas e pilares, nas pare<strong>de</strong>s, já os expusess<strong>em</strong> <strong>em</strong> capelas ou no proskinetarion, no coro —<br />

on<strong>de</strong> se punha o ícone do santo do dia? O que se passou antes da vitória da iconóstase, antes <strong>de</strong> as<br />

Deísis monumentais (o Cristo representado entre a Virg<strong>em</strong> e João Baptista), por vezes alargadas<br />

a outras figuras (arcanjos, apóstolos), ou ro<strong>de</strong>adas <strong>de</strong> cenas do Dodécaorton (as doze festas do<br />

ano litúrgico), ou <strong>de</strong> episódios das vidas <strong>de</strong> santos, ter<strong>em</strong> ocupado os interiores dos t<strong>em</strong>plos?<br />

Conceptualmente, a narrativa evangélica do prodígio da encarnação tornara possível a<br />

passag<strong>em</strong> do invisível ao visível. E suscitava outra, ela própria <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente figurável, que<br />

contava o drama do Deus-hom<strong>em</strong> e multiplicava as personagens nele envolvidas — dando<br />

orig<strong>em</strong> a figurações imparáveis da anunciação, da madona com o menino, do baptismo às<br />

mãos <strong>de</strong> João Baptista, da transfiguração, da prédica, da prisão e flagelação, da crucificação, da<br />

pietà, da ressurreição, da ascensão. Todos estes t<strong>em</strong>as picturais não nasceram, naturalmente, <strong>em</strong><br />

simultâneo, antes chamaram naturalmente uns pelos outros, porque eram el<strong>em</strong>entos, episódios<br />

sequenciais da mesma narrativa. Mas, uma vez picturalmente activados, todos e cada um<br />

<strong>de</strong>les não mais <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> se inscrever, ao longo <strong>de</strong> séculos, na ilustração da boa nova, num<br />

mecanismo <strong>de</strong> repetição que revela, a diversos níveis, o seu carácter claramente obsessional.<br />

2. Papel dos acheiropoietos<br />

A tradição fez r<strong>em</strong>ontar a Lucas evangelista as primeiras pinturas <strong>de</strong> ícones, e multiplicou<br />

as referências a imagens <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> miraculosa, ditas acheiropoietos, não feitas pela mão humana,<br />

como na lenda do célebre Mandylion, ou Santa Face <strong>de</strong> E<strong>de</strong>ssa, atribuída ao próprio Cristo,<br />

que teria impresso o seu rosto num pano, entregando-o a um pintor, Hannan, para ser enviado<br />

ao rei Abgar; a imag<strong>em</strong> terá, <strong>em</strong> 544, salvo a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma investida persa. Chegaram até<br />

nós outras histórias <strong>de</strong> acheiropoietos, todas elas dando test<strong>em</strong>unho <strong>de</strong> extraodinários feitos<br />

9


das imagens. Mandylion é, noutra versão, o nome do rosto do Cristo milagrosamente gravado<br />

no véu <strong>de</strong> Verónica (Vera-eikôn, Vera Icona). De um ponto <strong>de</strong> vista conceptual, esta imag<strong>em</strong><br />

do rosto suado e ensanguentado do Cristo a caminho do Calvário, “gravada” no véu <strong>de</strong> uma<br />

virg<strong>em</strong> piedosa, é a matriz <strong>de</strong> toda a figuração icónica cristã, associada à dor, ao sangue e ao<br />

sacrifício, e geradora <strong>de</strong> uma obsessão penitencial, oposta à mimesis diabólica geradora da<br />

libido spectandi, a “pulsão <strong>de</strong> ver” associada ao scandalum. Diz, noutro texto, Didi-Huberman (5):<br />

“Quando Cl<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> Alexandria pronuncia o seu anát<strong>em</strong>a, que parece <strong>de</strong>finitivo, contra<br />

as obras <strong>de</strong> arte — cujo mo<strong>de</strong>lo podia ser a Afrodite <strong>de</strong> Cnido, a célebre escultura <strong>de</strong> Praxíteles<br />

— fá-lo porque a sua beleza torna os homens érôtikoi, servos <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo do corpo, tanto mais<br />

perverso quanto tal <strong>de</strong>sejo se manifesta por uma matéria inerte, feita como um engano, uma mentira<br />

(Protreptico, IV, 57). E quando Tertuliano, no fim do século II, <strong>de</strong>clara idólatra todo o prazer <strong>de</strong> ver ou<br />

<strong>de</strong> ser visto — por ex<strong>em</strong>plo, no teatro — fá-lo porque “toda e qualquer forma, gran<strong>de</strong> ou pequena”<br />

(omnis forma vel formula) é obra do diabo, ou seja, ídolo do paganismo (De idolatria, XXIV, 1-4)”.<br />

Não pintados por mão humana, os acheiropoietos estiveram <strong>em</strong> voga durante mais <strong>de</strong> um<br />

século, e apresentavam a vantag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> parentes das verda<strong>de</strong>s reveladas. Mas a proliferação<br />

<strong>de</strong> artífices nos mosteiros cedo concorreu com os acheiropoietos e os venceu: o mais tardar nos<br />

séculos VI e VII, os ícones já tinham invadido a <strong>de</strong>voção popular, que os exigia e neles se revia<br />

(nos séculos anteriores a igreja ainda fora sobretudo hostil à figuração, pelo menos “oficialmente”,<br />

apesar da importância crescente da arte popular <strong>de</strong> Roma no século III, e da arte triunfal do<br />

século IV, que referimos atrás). Em sintonia com os especialistas da época, Küng confirma que<br />

o culto das imagens fora imposto “a partir <strong>de</strong> baixo”, pela crença popular, e que a teologia, “com<br />

as suas teorias da encarnação <strong>de</strong> Deus <strong>em</strong> Cristo”, que legitimavam e autorizavam a pintura<br />

do divino na sua forma humana, tentou justificar retrospectivamente esse culto e ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po corrigi-lo (loc. cit. 220). Diz ele, referindo-se tanto aos acheiropoietos como às <strong>de</strong>voções<br />

banalizadas e ao dil<strong>em</strong>a teológico da ecclesia, espartilhada entre iconoclastas e iconófilos :<br />

“Negar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representar Cristo equivalia a negar a encarnação (…). Foram<br />

sobretudo os monges que <strong>de</strong>ram orig<strong>em</strong> à nostalgia (…) do povo, que <strong>de</strong>sejava ver e tinha se<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ajuda, que pretendia tocar com os <strong>de</strong>dos na graça e nos milagres. [Porém], propagou-se a crença <strong>de</strong><br />

que certas imagens <strong>de</strong> Cristo (e <strong>de</strong>pois também <strong>de</strong> Maria) tinham uma orig<strong>em</strong> miraculosa e, portanto,<br />

também, po<strong>de</strong>res miraculosos. Atribuíam-se aos ícones milagres <strong>de</strong> todas as or<strong>de</strong>ns: podiam curar<br />

doentes, ressuscitar os mortos, expulsar os <strong>de</strong>mónios, ou até intervir nas guerras, <strong>de</strong>volver as flechas<br />

ao seu lançador e perturbar o funcionamento dos dispositivos do assédio inimigo” (op. cit., 224).<br />

Os ícones já então eram, assim, imagens portáteis que se passeavam <strong>em</strong> procissões,<br />

se levavam <strong>de</strong> viag<strong>em</strong>, <strong>em</strong> peregrinação ou para a guerra, para ali exercer<strong>em</strong> os seus<br />

po<strong>de</strong>res, e que também se expunham nas casas e nas lojas. Além disso, no seu uso<br />

menos excessivo, mantinham viva a m<strong>em</strong>ória <strong>de</strong> um santo, instruíam os fiéis nos gran<strong>de</strong>s<br />

episódios do Antigo e do Novo Testamentos. Diz sobre eles Catherine Jolivet-Lévy (6):<br />

“Investidos, como as relíquias, cujo culto florescia no Oriente, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res sobrenaturais, os<br />

ícones são usados como objectos mágicos. São-lhes atribuídas virtu<strong>de</strong>s benéficas e <strong>de</strong> protecção,<br />

e a distinção entre imag<strong>em</strong> e protótipo (a personag<strong>em</strong> representada) ten<strong>de</strong> a apagar-se. (...) A<br />

multiplicação dos ícones nos séc. VI e VII, o culto cada vez mais fervoroso que lhes é prestado,<br />

ligado à crença na presença quase física da pessoa representada (...), conduz<strong>em</strong> a numerosos<br />

excessos. Desenvolv<strong>em</strong>-se práticas supersticiosas on<strong>de</strong> alguns vê<strong>em</strong> o regresso à idolatria”.<br />

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3. A doutrina <strong>de</strong> Niceia II<br />

D<strong>em</strong>or<strong>em</strong>o-nos, por instantes, no iconoclasma: contra o regresso da idolatria pela mão da<br />

iconografia cristã, os imperadores iconoclastas <strong>de</strong> Constantinopla, apoiados <strong>em</strong> alguns bispos da<br />

Ásia Menor, or<strong>de</strong>nam a <strong>de</strong>struição e interdição das imagens <strong>de</strong> Cristo, da Virg<strong>em</strong> e dos santos<br />

entre 725 e 843 (com um breve intervalo que já referir<strong>em</strong>os) — <strong>em</strong>bora os ícones tenham<br />

continuado a ser feitos clan<strong>de</strong>stinamente no território imperial, ou livr<strong>em</strong>ente no Egipto, Síria,<br />

Palestina. Sab<strong>em</strong>os pouco sobre as motivações históricas do iconoclasma (6) : influência do Islão<br />

e do seu “aniconismo”, do judaísmo s<strong>em</strong>pre próximo, e que varria as figurações divinas (mas não<br />

outras) das suas sinagogas? Manobra <strong>de</strong> controlo <strong>de</strong> tropas estacionadas na Ásia Menor on<strong>de</strong> a<br />

iconoclastia era mais popular, associada a jogos <strong>de</strong> redistribuição <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res na capital? Articulação<br />

circunstancial e complexa <strong>de</strong> todos estes factores? Certo é que o édito <strong>de</strong> 725 do imperador Leão<br />

III con<strong>de</strong>na sobretudo as representações icónicas do Cristo, poupando e exaltando a cruz nua, e<br />

invoca como argumento <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> a con<strong>de</strong>nação dos ídolos por Moisés e outros patriarcas<br />

e profetas. O édito, reprovado <strong>em</strong> Roma e <strong>em</strong> Jerusalém e pelo próprio patriarca Germano,<br />

que abdica, abre a porta a um vasto período <strong>de</strong> perseguições violentas <strong>de</strong> que serão sobretudo<br />

alvo monges pintores e suas or<strong>de</strong>ns monásticas, tratadas <strong>de</strong> idólatras, e que ao longo da crise<br />

<strong>em</strong>igrarão para Chipre, para a Crimeia e para Roma. O que está <strong>em</strong> causa é a superstição herdada<br />

do paganismo, a transformação das imagens <strong>em</strong> objectos mágicos, mas sobretudo a perigosa<br />

indistinção entre a figura pintada e o seu mo<strong>de</strong>lo ou protótipo, que o ícone magicamente torna<br />

presente ou “quase-presente”. O II concílio <strong>de</strong> Niceia restabelece t<strong>em</strong>porariamente o uso das<br />

imagens, relegitimando-as por direito <strong>de</strong> tradição, e porque o seu culto — como explicitam,<br />

incansavelmente, os teólogos iconodulos, ou iconófilos dos séculos VIII e IX — não as t<strong>em</strong> a<br />

elas por objecto, mas sim aos seus mo<strong>de</strong>los (assim se afastando os ícones cristãos dos ídolos do<br />

paganismo). A doutrina <strong>de</strong> Niceia é razoavelmente aceite pelas Igrejas (à excepção da carolíngia),<br />

mas anos <strong>de</strong>pois, <strong>em</strong> 813, o exército traz para o po<strong>de</strong>r um novo imperador vindo da Ásia<br />

Menor, que restabelece o iconoclasma. Entretanto, porém, os teólogos iconófilos tinham fixado<br />

a doutrina da veneração (e não da adoração) dos ícones, dirigida ao protótipo, cuja presença<br />

era garantida pela imag<strong>em</strong>. Recor<strong>de</strong>m-se os termos precisos <strong>em</strong> que o concílio autorizou<br />

<strong>de</strong> novo esse culto, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> pôr termo à querela, que se manteve por mais meio século:<br />

“Em boa verda<strong>de</strong>, quanto mais se olhar frequent<strong>em</strong>ente para estas representações<br />

figuradas, mais os que as cont<strong>em</strong>plar<strong>em</strong> serão levados a recordar-se dos mo<strong>de</strong>los originais, a<br />

aspirar a eles e a test<strong>em</strong>unhar-lhes, ao beijá-los, uma veneração respeitosa [timetikê proskinesis],<br />

s<strong>em</strong> que seja uma adoração [latreia] verda<strong>de</strong>ira segundo a nossa fé, que só convém a Deus e a<br />

mais ninguém. Mas, do mesmo modo que se faz para a imag<strong>em</strong> da cruz preciosa e vivificante,<br />

para os Santos Evangelhos e para os outros objectos e monumentos sagrados, ofertar-se-á<br />

incenso e luz <strong>em</strong> sua honra, segundo o piedoso costume dos antigos. Com efeito, a reverência<br />

prestada a uma imag<strong>em</strong> r<strong>em</strong>onta ao mo<strong>de</strong>lo original [prototypos] (Basílio, o Gran<strong>de</strong>). Todo aquele<br />

que venera uma imag<strong>em</strong> venera nela a realida<strong>de</strong> que aí está representada” (Küng, id. ibid.).<br />

Como sintetiza, por sua vez, Jolivet-Lévy (loc. cit.), <strong>em</strong> termos que revelam<br />

a subsistência do paradigma da representação mimética e da s<strong>em</strong>elhança:<br />

“Ícone e protótipo [ou mo<strong>de</strong>lo] não são da mesma essência, mas estão ligados pela s<strong>em</strong>elhança<br />

[sublinhado nosso]. Da concepção do ícone, reflexo do protótipo e veículo da energia divina, <strong>de</strong>corr<strong>em</strong><br />

as principais características da arte dos ícones: fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a tipos iconográficos consagrados pela<br />

tradição e adopção <strong>de</strong> um estilo hierático, espiritualizado, apropriado a exprimir a presença do sagrado”.<br />

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Küng chama a atenção, <strong>de</strong> passag<strong>em</strong>, para um argumentário néo-platónico vindo <strong>em</strong> apoio da<br />

reconciliação entre teólogos e <strong>de</strong>voção popular, e que estipulou a “participação” da imag<strong>em</strong> no<br />

seu protótipo divino :<br />

“A veneração <strong>de</strong> que se ro<strong>de</strong>ava a imag<strong>em</strong> dirigia-se ao original: ela visava, <strong>em</strong> realida<strong>de</strong>,<br />

Cristo, Maria ou os santos… Explicava-se agora isto <strong>em</strong> linguag<strong>em</strong> platónica: a imag<strong>em</strong> feita<br />

pela mão do hom<strong>em</strong> participava [sublinhado nosso] do seu original divino. Seja como for,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os séculos V-VI, o mundo cristão oriental já não tinha qualquer escrúpulo <strong>em</strong> acen<strong>de</strong>r<br />

velas ou lâmpadas diante das imagens, na igreja ou <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, <strong>em</strong> queimar incenso, <strong>em</strong><br />

beijar as imagens, <strong>em</strong> lavá-las liturgicamente, <strong>em</strong> vesti-las ou <strong>em</strong> ajoelhar-se diante <strong>de</strong>las —<br />

como era usual, noutros t<strong>em</strong>pos, entre os não-cristãos. Qu<strong>em</strong> beija o ícone, diz-se agora, beija<br />

Cristo e os santos <strong>em</strong> si mesmos, cuja potência e graça estão presentes na imag<strong>em</strong>” (id. ibid.).<br />

Argumentando a favor dos ícones contra o iconoclasma, escreveria João Damasceno, cujos<br />

escritos são um contributo maior para a inscrição da cultura iconófila : “Visto que o invisível,<br />

tendo-se revestido da carne, apareceu visível, po<strong>de</strong>s figurar a s<strong>em</strong>elhança do Cristo que se fez<br />

Teofania”. Figurar “a s<strong>em</strong>elhança”: mas com base <strong>em</strong> que protótipo, se <strong>em</strong> Roma se chegara a<br />

pintar o Cristo, no séc. IV, como um jov<strong>em</strong> imberbe <strong>de</strong> cabelos claros e encaracolados (uma das<br />

figurações do Bom Pastor na arte triunfal), e se esse jov<strong>em</strong> imberbe, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s olhos abertos<br />

sobre o mundo, é ainda o “Cristo entronizado” <strong>de</strong> Go<strong>de</strong>sclac, parente <strong>de</strong> Carlos Magno, <strong>em</strong> 781-<br />

783? Para fixar um mo<strong>de</strong>lo e na tentativa <strong>de</strong> o impor, o próprio João Damasceno <strong>de</strong>screveria nos<br />

seguintes termos a figura do Salvador, <strong>em</strong> que alguns dos nossos leitores reconhecerão as imagens<br />

sobrevividas até à catequese da sua infância, e as figurações do Cristo preferidas por Hollywood:<br />

“Estatura elevada, abundantes sobrancelhas, olhos graciosos, nariz b<strong>em</strong> proporcionado,<br />

cabeleira encaracolada, atitu<strong>de</strong> lev<strong>em</strong>ente curvada, tez distinta, barba escura, rosto trigueiro como<br />

o da Virg<strong>em</strong>, <strong>de</strong>dos longos, voz sonora, palavra suave. Extr<strong>em</strong>amente agradável <strong>de</strong> carácter, ele é<br />

calmo, resignado, paciente, cheio <strong>de</strong> todas as virtu<strong>de</strong>s que a razão figura num Deus-Hom<strong>em</strong>” (8).<br />

O teólogo ditava, assim, ao artista, as formas convenientes do que havia a figurar, impondo-lhe o<br />

protótipo inventado mais aconselhável. Na Igreja oci<strong>de</strong>ntal circulou, por seu turno, uma carta apócrifa <strong>de</strong><br />

Lentullus, pró-consul da Palestina, ao Senado <strong>de</strong> Roma, on<strong>de</strong> o Cristo era <strong>de</strong>scrito nos seguintes termos:<br />

“Hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> estatura elevada, <strong>de</strong>lgado, <strong>de</strong> face severa e cheia <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s (...). Cabelos cor<br />

<strong>de</strong> vinho: ca<strong>em</strong>, até às orelhas, <strong>em</strong> anéis sombrios; das orelhas aos ombros, são ondulantes e<br />

brilhantes; dos ombros à cintura, part<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> duas meta<strong>de</strong>s, como o usam os nazarenos. A testa<br />

é alta e pura; o rosto, liso e lev<strong>em</strong>ente avermelhado; o seu porte é doce e carinhoso; o nariz e a<br />

boca são perfeitos; a barba é espessa, da cor dos cabelos; os olhos são azuis claros” (id. ibid.).<br />

A principal excepção à adopção da doutrina <strong>de</strong> Niceia II, é a <strong>de</strong> Carlos Magno, cabeça<br />

da Europa carolíngia, que faz frente aos iconófilos <strong>de</strong> Bizâncio, rejeitando a veneração das<br />

imagens — o que sugere a amplitu<strong>de</strong> da repercussão, <strong>em</strong> todo o mundo cristão dos séculos VIII<br />

e IX, do iconoclasma oriental. Nos termos <strong>de</strong> Didi-Huberman (“Art et Théologie”, loc. cit.):<br />

“Pouco t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>pois, <strong>em</strong> 790, Carlos Magno <strong>em</strong> pessoa fazia explodir um novo imbroglio<br />

teológico-político, recusando as conclusões do concílio <strong>de</strong> Niceia (...) ‘porque não foi com pintura<br />

que o Cristo nos salvou’ (Libri carolini, II, 28). E o bispo Cláudio, <strong>de</strong> Turim, no início do século<br />

IX, levou esta postura ao excesso, mandando <strong>de</strong>struir todas as imagens nas igrejas, mandando<br />

queimar cruzes e con<strong>de</strong>nando o culto das relíquias. [E], caso a caso, a Igreja romana tentava<br />

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eprimir a intransigência iconoclasta, s<strong>em</strong>, porém, elaborar uma verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>fesa teológica da<br />

imag<strong>em</strong> comparável à que os ‘iconodulos’ bizantinos (...) se tinham encarniçado <strong>em</strong> erguer. O<br />

papa, <strong>em</strong> geral, cont<strong>em</strong>porizava, tentava ser ‘realista’ e fazia por impor uma posição intermédia<br />

entre os riscos <strong>de</strong> comportamentos idólatras, por um lado, e as heresias iconoclastas, por outro”.<br />

Se inicialmente o cristianismo herdara a interdição mosaísta das imagens, se um Tertuliano<br />

(155-222), entre outros, exprimiu na sua Cartago, com extr<strong>em</strong>a violência, o ódio ao mundo<br />

visível, o II Concílio <strong>de</strong> Niceia e o Gran<strong>de</strong> Concílio <strong>de</strong> Moscovo, <strong>em</strong> 1666-1667, ainda voltaram<br />

a distinguir a figuração autónoma do Pai, radicalmente inacessível e “fonte” da divinda<strong>de</strong>, e a<br />

do Filho, sua “imag<strong>em</strong>”, mantendo a interdição da primeira. De iconoclasma <strong>em</strong> iconoclasma,<br />

o ícone foi-se rejustificando com base na cristologia: o Deus do Antigo Testamento mantevese<br />

infigurável; o do Novo, o da boa nova, ofereceu aos homens a sua imag<strong>em</strong> encarnada.<br />

As últimas décadas da vigência do iconoclasma são marcadas por menor intensida<strong>de</strong> das<br />

perseguições, pela resistência monástica, pela labirintização “bizantina” da discussão doutrinária<br />

e pelo regresso, <strong>em</strong> crescendo, da <strong>de</strong>voção popular pelos ícones. Assim, entre iconoclastas e<br />

iconófilos, a teologia cristã regulou, <strong>em</strong> parte, os primeiros séculos da figuração iconográfica,<br />

tentando mantê-la próxima da exegese autorizada e ao mesmo t<strong>em</strong>po ce<strong>de</strong>ndo à fome <strong>de</strong> “imagens<br />

santas” da <strong>de</strong>voção popular. Mas, apesar da vitória aparent<strong>em</strong>ente irreversível dos iconófilos, a<br />

questão atravessou gran<strong>de</strong> parte da história da figuração: a Reforma viria a gerar, no séc. XVI,<br />

um novo iconoclasma, <strong>de</strong>sta vez no coração da Europa. Dir-se-á que, na luta dos reformadores<br />

contra Roma e a sua teologia, o combate <strong>de</strong> primeira gran<strong>de</strong>za à corrupção, às indulgências<br />

e ao culto dos santos, mas também ao purgatório, aos sacramentos, ao estatuto da Virg<strong>em</strong>,<br />

relegam para segundo plano a questão das imagens. Mas Lutero proíbe o seu culto (<strong>em</strong>bora<br />

não o seu uso), Zwingli manda-as queimar e o rigorismo <strong>de</strong> Calvino contra elas é inapelável...<br />

4. Agrafag<strong>em</strong> aos nomes<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po, ao socializar<strong>em</strong> consacratoriamente a multidão infinitamente fértil<br />

das figurações <strong>de</strong> santos, situações, episódios narrados nas sagradas escrituras, as “artes<br />

visuais” cristãs, tanto as eruditas como as populares, <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penharam outro papel fulcral no<br />

relacionamento com as verda<strong>de</strong>s reveladas e com os textos sagrados: permitiram alargar o<br />

estreito espaço da sua exegese, exercida na língua policiada dos sucessivos aparelhos sacerdotais e<br />

abrindo, <strong>em</strong> seu torno, espaços <strong>de</strong> alegoria menos controláveis, porque precisamente produziam<br />

imagens, e não mais palavras. Para reduzir<strong>em</strong> as suas figurações, diversas e sucessivas gerações<br />

<strong>de</strong> exegetas tentaram garantir o policiamento do sentido, obrigando as imagens a articular-se<br />

intimamente com os nomes e palavras das escrituras para as ilustrar<strong>em</strong>: <strong>de</strong> facto, por um largo<br />

período que vai até à Renascença, as imagens passam a estar literalmente agrafadas às palavras<br />

das escrituras. Um ex<strong>em</strong>plo forte das margens exploradas pela iconografia menos controlada<br />

pela exegese é a proliferação <strong>de</strong> apocalipses medievos (mas que se mantém até finais do séc. XV<br />

e até mais tar<strong>de</strong>), profusamente ilustrados, sobrecarregados <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos tão <strong>de</strong>lirantes e cifrados<br />

quanto os textos que ilustram, recheados <strong>de</strong> bestiários fantásticos e <strong>de</strong> monstros imaginários.<br />

Essa associação imposta entre palavras sagradas e imagens por sagrar constituiu, assim,<br />

outro motor e outra novida<strong>de</strong> da figuração: o Verbo tinha-se feito carne, as imagens davam<br />

a ver um e outra; as artes visuais cristãs modificaram a legibilida<strong>de</strong> das escrituras a partir <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntro, fundindo-se com elas e interpretando-as, ora <strong>em</strong> aliança com a polícia exegética, ora<br />

furtando-se subrepticiamente a ela, por vezes <strong>em</strong> matérias e representações estritamente<br />

marginais. Como recorda Didi-Huberman (“Puissances...”), S. Boaventura viria, no séc. XIII, a<br />

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consagrar a impressão, po<strong>de</strong>rosamente <strong>de</strong>ixada pelos textos sagrados, <strong>de</strong> que estes são a “floresta<br />

das florestas”, tantas vezes enigmáticos, acroáticos e in<strong>de</strong>cifráveis nos seus quatro sentidos —<br />

historia, allegoria, tropologia, anagogia —, revelados por um Outro ele próprio in<strong>de</strong>cifrável e<br />

pouco cognoscível; as imagens do cristianismo também se impregnaram <strong>de</strong>sses quatro sentidos e<br />

se tornaram elas próprias narrativas, alegóricas, tropológicas e anagógicas para vencer<strong>em</strong> a tradição<br />

do interdito mosaísta, a <strong>de</strong>sconfiança profunda da sua primeira recepção. A aliança entre palavras<br />

e imagens sob a égi<strong>de</strong> e o po<strong>de</strong>r da nominatio, dos nomes, tão característica da figuração cristã<br />

medieval, a Oriente e a Oci<strong>de</strong>nte, é comentada nos seguintes termos por Didi-Huberman (loc. cit.) :<br />

“A exegese tradicional t<strong>em</strong> até diversos termos técnicos, entre os quais o <strong>de</strong> litteratio, para<br />

<strong>de</strong>signar esse incessante trabalho <strong>de</strong> florescimento figural <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> um nome. Alberto o Gran<strong>de</strong><br />

e os seus discípulos, por ex<strong>em</strong>plo, consagraram livros inteiros — entre os quais um De laudibus<br />

beatae Maria <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> duas mil colunas in-quarto — ao elogio figural do nome e das qualida<strong>de</strong>s<br />

da Virg<strong>em</strong>. Também os nomes do Cristo ou da cruz obcecam a exegese e engendram, nela, um<br />

mundo proliferante <strong>de</strong> imagens e igualmente <strong>de</strong> cálculos numerológicos, <strong>de</strong> po<strong>em</strong>as ‘figurativos’,<br />

<strong>de</strong> cantos e <strong>de</strong> gestos rituais. O famoso De laudibus sanctæ crucis, <strong>de</strong> Raban Maur, composto no<br />

séc. IX, é também significativo a este respeito, articulando letras e números, acrósticos e<br />

palíndromos, cores e trajectos geométricos... com o único objectivo <strong>de</strong> invocar o nome <strong>de</strong> Cristo”.<br />

5. Aura, técnica, estética<br />

Dificilmente encontrar<strong>em</strong>os arte mais aurática do que essa que proliferou entre os séculos II<br />

e III e os séculos IX e X, como koinè <strong>de</strong> uma aisthesis partilhada e fruída, no Mediterrâneo oriental,<br />

<strong>em</strong> Roma e no Egipto, nas ilhas gregas e na Síria, até Bizâncio. A começar pela literalida<strong>de</strong> da aura<br />

ou halo circular <strong>de</strong> luz branca que ro<strong>de</strong>ia a cabeça do Cristo Alfa e Ómega (Roma, século IV), e<br />

que <strong>de</strong>pois encontramos nos ícones bizantinos, partilhada pela virg<strong>em</strong>, pelos anjos e santos. Mas,<br />

sobretudo, esta arte manifesta <strong>de</strong> modo quase excessivo a aura benjaminiana (9), “aparição única<br />

<strong>de</strong> um longínquo, qualquer que seja a sua proximida<strong>de</strong>” (einmalige Erscheinung einer Ferne, so<br />

nah sie auch sein mag), ao longo dos séculos <strong>de</strong> história que separam os ícones bizantinos paleocristãos<br />

<strong>de</strong> Andrei Rublev. Tome-se, <strong>de</strong> Benjamin, o ex<strong>em</strong>plo do observador <strong>de</strong> certa ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

montanhas e o sentimento que o assalta durante essa cont<strong>em</strong>plação, e que não se reproduzirá a<br />

não ser por anamnésia <strong>de</strong> uma experiência única. As imagens ou esculturas nascidas mágicas e<br />

<strong>de</strong>pois integradas <strong>em</strong> cultos religiosos, e das quais se esperava que manifestass<strong>em</strong> a divinda<strong>de</strong>,<br />

alimentavam, próximas porque eventualmente se lhes podia tocar, mas longínquas porque<br />

manifestavam uma <strong>de</strong>ida<strong>de</strong> que as ultrapassava, essa ambiguida<strong>de</strong> intrínseca à <strong>de</strong>finição benjaminiana.<br />

Próximas porque abertas à comunicação háptica, táctil. Mas longínquas porque suscitavam a<br />

nostalgia, a melancolia diante do que apenas se ouve longe, diante do que se afastou, diante do<br />

que há-<strong>de</strong> vir mas mais tar<strong>de</strong>, s<strong>em</strong>pre mais tar<strong>de</strong> — uma nostalgia constitutiva da parousia cristã.<br />

Jolivet-Lévy (loc. cit) recorda que a encáustica — mistura <strong>de</strong> pigmentos coloridos <strong>em</strong> cera<br />

<strong>de</strong>rretida — foi a técnica característica dos séculos VI e VII, ce<strong>de</strong>ndo lugar à têmpera — diluição <strong>de</strong><br />

cores <strong>em</strong> água e ovo — a partir do século VIII. O trabalho começava pela selecção da ma<strong>de</strong>ira, sobre a<br />

qual se colava tela e um indumento <strong>de</strong> gesso. O esboço da figura ou da cena era então <strong>de</strong>senhado (e, mais<br />

tar<strong>de</strong>, marcado por incisões), dispondo o pintor <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los on<strong>de</strong> procurar inspiração<br />

(manual <strong>de</strong> Denis <strong>de</strong> Fourna, podlinniks russos). Sobre um primeiro fundo avermelhado aplicava-se<br />

um segundo <strong>de</strong> ouro, e só então se iniciava a pintura propriamente dita. No final, acrescentava-se o<br />

nome do santo ou da cena, aplicava-se um verniz protector, e trabalhava-se eventualmente a moldura<br />

ou o estojo <strong>de</strong> prata, por vezes <strong>de</strong>corados com incrustações <strong>de</strong> esmaltes e pedras preciosas.<br />

Posteriormente associada à relegitimação das imagens consagrada <strong>em</strong> Niceia, estabilizara-<br />

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se também uma estética do ícone, posta <strong>em</strong> evidência, entre outros, por Olivier Clément (10):<br />

“Redução interiorizante das orelhas e da boca, testa dilatada e luminosa, pescoço inchado pelo<br />

Sopro vivificante, rosto tornado ‘todo ele olhos’ (Corpus macarianum), ou seja, pura transparência,<br />

representação s<strong>em</strong>pre frontal (...), tudo indica um ser tornado, a um t<strong>em</strong>po, ‘oração pura’ e puro<br />

acolhimento. (...) O ícone (...) faz surgir, e com certo rigor ‘retratista’, uma presença pessoal; o<br />

simbolismo mostra essa presença e todo o ambiente cósmico <strong>em</strong> seu redor, saturado <strong>de</strong> paz e <strong>de</strong><br />

luz divina. Carnes e roupa são iluminados pela assiste (finas riscas douradas); animais, plantas e<br />

rochas são estilizados segundo uma espécie <strong>de</strong> essencialida<strong>de</strong> paradisíaca; as arquitecturas tornamse<br />

um jogo surrealista [sic], <strong>de</strong>safio celeste ao peso <strong>de</strong>ste mundo. (...) A Jerusalém celeste, ou seja, o<br />

universo transfigurado que o ícone sugere, (...) é iluminado pela glória <strong>de</strong> Deus (...). No ícone, a luz<br />

não provém <strong>de</strong> uma fonte precisa, está por todo o lado s<strong>em</strong> projectar sombras — os iconógrafos<br />

chamam ‘luz’ ao próprio fundo da imag<strong>em</strong>, e toda a realida<strong>de</strong> parece interiormente iluminada”.<br />

Tais traços constitu<strong>em</strong> um novo passo <strong>de</strong> saída do paradigma da representação mimética.<br />

Dir-se-á que o ícone e o seu valor mistérico, e não mimético, é o quase-sacramento da luz e da beleza<br />

divina, mostrando uma nova divino-humanida<strong>de</strong> fundada no Verbo feito carne e que cresce e se<br />

multiplica na comunida<strong>de</strong> dos santos, dos que viram a luz e a ela se entregaram, tantas vezes à custa<br />

do seu próprio martírio. Esta morosa e aci<strong>de</strong>ntada vitória do figural e da figuração no cristianismo<br />

transfigura a imag<strong>em</strong> que os t<strong>em</strong>plos constro<strong>em</strong> <strong>de</strong> si próprios, como diz o mesmo autor (id. ibid.):<br />

“Toda a igreja, com a sua arquitectura, os seus frescos, seus mosaicos, constitui<br />

um gigantesco ícone que está para o espaço como o <strong>de</strong>senrolar da liturgia está para o<br />

t<strong>em</strong>po: ‘céu na terra’, simbolização da divino-humanida<strong>de</strong>, lugar do Espírito on<strong>de</strong> a<br />

carne-para-a-morte se metamorfoseia <strong>em</strong> soma pneumatikon, <strong>em</strong> corporeida<strong>de</strong> espiritual”.<br />

6. O corte com o real mundano<br />

Didi-Huberman salienta, <strong>em</strong> contra-corrente (e é essa a principal originalida<strong>de</strong> da<br />

sua proposta) que o trabalho da figura nessa iconografia cristã não visa a s<strong>em</strong>elhança com o<br />

protótipo ou mo<strong>de</strong>lo, afastando-o, assim, <strong>de</strong> qualquer interpretação mimética. Apoiando-se no<br />

Catholicon, dicionário do dominicano Giovanni Balbi escrito no séc. XIII, ele sugere que figurare<br />

só superficialmente significa representar uma coisa com o seu aspecto natural (forma naturæ); a<br />

um nível mais profundo e essencial, figurare é no Catholicon equivalente a præfigurare e <strong>de</strong>figurare,<br />

porque se trata <strong>de</strong> “transpor ou transportar o sentido [da coisa a significar] para uma outra figura”<br />

(in alliam figuram mutare). Trata-se, assim, <strong>de</strong> “se <strong>de</strong>sviar da coisa para a dar a ver” — e é aí que<br />

ele vê a “poética da encarnação do Verbo”, a poiética, no sentido grego <strong>de</strong> forma <strong>de</strong> produção<br />

que oferece uma passag<strong>em</strong> entre o não-ser e o ser (Damish, 1984) (11), ou uma ponte entre a<br />

potência e o acto. Num exercício <strong>de</strong> reconstrução do que seriam “os <strong>de</strong>z mandamentos (ou<br />

os <strong>de</strong>z constrangimentos) da figura cristã”, Didi-Huberman lista os seguintes procedimentos,<br />

como se, chegado tar<strong>de</strong> ao atelier do pintor <strong>de</strong> ícones mas ainda a t<strong>em</strong>po, lhe recordasse as<br />

exigências que o seu trabalho t<strong>em</strong> <strong>de</strong> satisfazer ( loc. cit., pp. 615-620). Eis, num resumo que<br />

não faz justiça aos argumentos do autor, as <strong>de</strong>z tarefas do iconógrafo segundo Didi-Huberman :<br />

Translatio ou <strong>de</strong>slocação — comparável ao trabalho do sonho <strong>de</strong>scrito por<br />

Freud <strong>em</strong> 1900, e aproximável dos signa translata (signos <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocação) <strong>de</strong> Stº.<br />

Agostinho e do valor tropológico, figural e livre, <strong>de</strong> que falou S. Jerónimo por oposição<br />

às histórias encerradas no seu valor manifesto: historia stricta/tropologia libera.<br />

M<strong>em</strong>oria — Insensível ao t<strong>em</strong>po na sua acepção corrente e à história, a figura cristã constrói-se numa<br />

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t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> e numa m<strong>em</strong>ória ambas virtuais, como nos acontecimentos do Novo Testamento<br />

profetizados pelo Antigo, ou no Ave dito pelo anjo a Maria na anunciação, que inverte o nome Eva,<br />

da mulher responsável pela perda do paraíso, enquanto Maria ia ser a portadora do salvador. De facto,<br />

esta tarefa está intimamente relacionada com a t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> escatológica imposta pela parousia.<br />

Præfiguratio, ou a iminência — Tomás <strong>de</strong> Aquino e Alberto o Gran<strong>de</strong> insistiram <strong>em</strong> que<br />

<strong>de</strong>v<strong>em</strong>os l<strong>em</strong>brar-nos do passado como do futuro: do pecado original como do juízo final,<br />

que estaria iminente. No seu dicionário, Balbi <strong>de</strong>signava esta antecipação por præfiguratio.<br />

Veritas, a verda<strong>de</strong> — A figura refere-se, igualmente, à totalida<strong>de</strong> do t<strong>em</strong>po<br />

da experiência cristã, produzindo uma verda<strong>de</strong> escatológica dogmática, uma<br />

verda<strong>de</strong> que a imag<strong>em</strong> transporta mas que a ultrapassa e só é entendida fora <strong>de</strong>la.<br />

Virtus, o virtual — Esta tarefa <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha-se como se a figura obe<strong>de</strong>cesse ao seguinte<br />

imperativo: “Não representes n<strong>em</strong> digas nada que seja inteiramente compreensível. Indica apenas,<br />

assinala s<strong>em</strong> <strong>de</strong>signar, <strong>de</strong>ixa agir <strong>em</strong> ti a potência do virtual”. Existiria, assim, uma indicação<br />

<strong>de</strong> procura <strong>de</strong>liberada <strong>de</strong> uma expressão pictórica ambígua, ambivalente, que viria a produzir<br />

o seu efeito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as Virgens e arcanjos dos ícones bizantinos até à Gioconda <strong>de</strong> Leonardo.<br />

Defiguratio, diss<strong>em</strong>elhança — “A gran<strong>de</strong> eficácia da figura consistiria menos na representação do<br />

que na perturbação da or<strong>de</strong>m da representação”: na pintura, o menosprezo da s<strong>em</strong>elhança retratista<br />

serve a busca <strong>de</strong> formas essenciais, a<strong>de</strong>quadas à verda<strong>de</strong> escatológica e à situação <strong>de</strong> parousia.<br />

Na exegese, esta <strong>de</strong>sfiguração exprime a diferença entre a imitação que mente (porque <strong>de</strong>ixa<br />

escapar a forma essencial das coisas) e a imitação que diz a verda<strong>de</strong> (novamente escatológica); esta<br />

<strong>de</strong>figuratio po<strong>de</strong> estimular figurações <strong>de</strong>liberadamente metafóricas ou metonímicas, marcadamente<br />

simbólicas: Cristo po<strong>de</strong> ser melhor representado pelo rochedo <strong>de</strong> on<strong>de</strong> Moisés faz jorrar água para<br />

<strong>de</strong>sse<strong>de</strong>ntar o seu povo, do que por um jov<strong>em</strong> barbudo suposto parecer-se com o filho <strong>de</strong> Maria.<br />

Desi<strong>de</strong>rium, o <strong>de</strong>sejo — Se procurava a diss<strong>em</strong>elhança natural, a figura cristã fazia-o<br />

para se projectar na <strong>de</strong>sejada s<strong>em</strong>elhança sobrenatural. É nesse movimento que<br />

reconhec<strong>em</strong>os a função anagógica da figura, o seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> suscitar uma subida para o<br />

alto. As figuras religiosas valeriam mais porque são aparições, do que pela sua aparência.<br />

Præsentatio, apresentabilida<strong>de</strong> — Desprezado o seu valor <strong>de</strong> representação, a figura oferecia uma<br />

presença da mesma natureza que a eucarística, procurando ser mais aparição do que aparência.<br />

Collocatio, a potência do lugar — O espaço <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser natural, transfigura-se e passa a excluir-se da<br />

verossimelhança: a collocatio <strong>de</strong>signa originariamente a operação <strong>de</strong> “pôr duas coisas heterogéneas<br />

no mesmo lugar”, muitas vezes produzindo alegorias: um jardim fechado po<strong>de</strong> figurar, numa<br />

anunciação, o corpo <strong>de</strong> Maria. Com frequência, os objectos dispostos no espaço pictórico on<strong>de</strong> tomam<br />

assento as personagens parec<strong>em</strong> sobrecarregados <strong>de</strong> sentidos simbólicos, ora facilmente entendíveis<br />

mediante chaves correntes <strong>de</strong> significação, ora <strong>de</strong> um exoterismo fechado à compreensão <strong>de</strong>sarmada.<br />

Nominatio, o po<strong>de</strong>r do nome — É a articulação, atrás mencionada, entre palavras<br />

sagradas, ou nomes, e sua figuração, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte imposta pelo aparelho exegético,<br />

mas igualmente saboreada como geradora <strong>de</strong> sentido — numa agrafag<strong>em</strong> dos<br />

nomes às coisas que atravessará as artes visuais cristãs até finais do séc. XV.<br />

Estas <strong>de</strong>sfigurações e <strong>de</strong>slocações, estas virtualizações dos lugares, estas formas <strong>de</strong> exprimir<br />

<strong>de</strong>sejos e <strong>de</strong> fixar prefigurações, põ<strong>em</strong> <strong>em</strong> evidência um trabalho sobre o real que não visa aproximarse,<br />

mas sim afastar-se <strong>de</strong>le, e que contraria quaisquer leituras dos ícones enquanto representações<br />

ou vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> representação do real observado. Mesmo um teólogo e historiador como Küng,<br />

não-especialista <strong>em</strong> artes visuais cristãs, sintetiza, nos seguintes termos, meramente próximos<br />

do bom senso, a missão e as normas que reg<strong>em</strong> o trabalho do pintor <strong>de</strong> ícones (loc. cit., 225):<br />

“Os ícones <strong>de</strong>v<strong>em</strong> reproduzir os arquétipos celestes, os originais divinos. Como os vitrais<br />

multicolores da Ida<strong>de</strong> Média, eles <strong>de</strong>v<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar transparecer o significado eterno das figuras humanas.<br />

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Filósofos russos do século XX apostados <strong>em</strong> reflectir sobre a religião (E.N. Tubetzkoi, P.A. Florenski)<br />

ainda reforçaram mais uma teoria das imagens fort<strong>em</strong>ente marcada pelo platonismo. Esta maneira<br />

<strong>de</strong> ver explica o simbolismo relativamente constante das cores e das formas, dos trajes e dos gestos,<br />

sobretudo do ouro simbólico (amarelo, ocre) que constitui s<strong>em</strong>pre o fundo. Isto também explica que<br />

se opte por uma representação <strong>em</strong> duas dimensões, que po<strong>de</strong> espelhar o original, e, inversamente,<br />

pelo banimento da estatuária, banimento que a arte bizantina respeita escrupulosamente,<br />

s<strong>em</strong> dúvida porque nos primeiros t<strong>em</strong>pos ela fazia l<strong>em</strong>brar <strong>de</strong>masiado os ídolos pagãos”.<br />

7. Relações com a mimesis<br />

Tais consi<strong>de</strong>rações inscrev<strong>em</strong>-se na mais estrita tradição <strong>de</strong> menosprezo da mimesis pela<br />

estética hegeliana (12): interrogando-se sobre se a arte é aparência e ilusão, diz Hegel, salientando que<br />

a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a arte se ocupa é mais elevada que a do mundo corrente, e é criada pelo próprio espírito:<br />

“Não é verda<strong>de</strong>iramente real senão o que é <strong>em</strong> si e para si, a substância da natureza e do<br />

espírito — o que, manifestando-se no espaço e no t<strong>em</strong>po, continua a existir <strong>em</strong> si e para si (...).<br />

Ora, é precisamente a acção <strong>de</strong>ssa força universal que a arte apresenta e faz aparecer. Decerto, essa<br />

realida<strong>de</strong> essencial aparece também no mundo ordinário — interior e exterior — mas confundida<br />

com o caos das circunstâncias passageiras, <strong>de</strong>formada pelas sensações imediatas, misturada com o<br />

arbitrário dos estados <strong>de</strong> alma, dos inci<strong>de</strong>ntes, dos caracteres, etc. A arte separa, das formas ilusórias<br />

e mentirosas <strong>de</strong>ste mundo imperfeito e instável, a verda<strong>de</strong> contida nas aparências, para a dotar <strong>de</strong><br />

uma realida<strong>de</strong> mais alta, criada pelo próprio espírito. Assim, longe <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> simples aparências<br />

puramente ilusórias, as manifestações da arte encerram uma realida<strong>de</strong> mais elevada e uma existência<br />

mais verda<strong>de</strong>ira do que a existência corrente” (Esthét., ed. Bénard, I, p. 17, ed. Jankélévitch, I, p. 26).<br />

(...) A pintura trabalha, é verda<strong>de</strong>, também para os olhos, mas os objectos que ela representa não<br />

são objectos naturais, com a sua extensão, reais e completos; eles tornam-se um reflexo do espírito,<br />

on<strong>de</strong> este não revela a sua espiritualida<strong>de</strong> senão <strong>de</strong>struindo a existência real, transformando-a<br />

numa simples aparência que é do domínio do espírito e a ele se dirige” (B. III, p. 341; J. III p. 208).<br />

Em resposta à questão <strong>de</strong> saber se, como diz<strong>em</strong> muitos, o objectivo da arte é a imitação,<br />

<strong>de</strong>finida como a habilida<strong>de</strong> para reproduzir, com perfeita fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, os objectos naturais tal como<br />

eles se nos oferec<strong>em</strong> no mundo corrente, escreve Hegel noutro momento (ed. B. I, p. 37, ed. J. I, p. 31):<br />

“Tal reprodução é trabalho supérfluo, porque o que v<strong>em</strong>os representado e reproduzido <strong>em</strong><br />

quadros, no palco ou alhures — animais, paisagens, situações humanas — é o que já encontramos<br />

nos nossos jardins, <strong>em</strong> nossa casa ou no círculo mais ou menos estreito dos nossos amigos e<br />

conhecidos. Mais: esse trabalho supérfluo po<strong>de</strong> passar por jogo presunçoso e que fica b<strong>em</strong> aquém<br />

da natureza. Porque a arte é limitada nos seus meios <strong>de</strong> expressão, e não po<strong>de</strong> produzir senão<br />

ilusões parciais, que não enganam senão um sentido; <strong>de</strong> facto, quando a arte se limita ao objectivo<br />

formal da estrita imitação, não nos oferece, <strong>em</strong> vez do real e do que vive, senão a caricatura da vida”.<br />

A respeito da mimesis escreve Damish (loc. cit., 33), reforçando, <strong>em</strong> termos mais<br />

agressivos, o argumentário hegeliano:<br />

“Toda a arte <strong>de</strong> imitação implica frau<strong>de</strong>: frau<strong>de</strong> na mercadoria — as artes imitativas apenas<br />

produz<strong>em</strong> imagens e não autênticas realida<strong>de</strong>s [Sofista, 265b]; frau<strong>de</strong> na produção — a imitação<br />

é apenas um modo <strong>de</strong> produção que não implica passag<strong>em</strong> ao ser, no pleno sentido do termo.<br />

Acrescida da astúcia que lhe é <strong>em</strong>prestada pelo fantástico que joga com o faux-s<strong>em</strong>blant (o falso<br />

que se faz passar por verda<strong>de</strong>iro, o que imita, e cuja possibilida<strong>de</strong> se torna verosímil). Mimesis<br />

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humana, mas que t<strong>em</strong> uma correspon<strong>de</strong>nte divina: a poiesis que produz a totalida<strong>de</strong> dos fenómenos<br />

(que implica, ela própria, a passag<strong>em</strong> do não-ser ao ser) e se reveste dum mecanismo diabólico que<br />

origina os sonhos, os fantasmas, sombras e ilusões <strong>de</strong> óptica, <strong>em</strong> primeiro lugar o reflexo da água<br />

que vitimará Narciso, esse Narciso <strong>em</strong> que Alberti verá o inventor da pintura, fior di ogni arte”.<br />

Mas o Damish que assim se aquece no fogo hegeliano, e sopra nele para o reavivar,<br />

é o mesmo que, a uma pedrada <strong>de</strong> distância, no fôlego seguinte (loc. cit., 35), volta atrás para<br />

repôr a questão central sobre a mimesis, porque, para se mimar o outro, é preciso <strong>de</strong> algum<br />

modo já fazer parte <strong>de</strong>sse outro, o que requer uma s<strong>em</strong>elhança entre imitador e imitado,<br />

e põe <strong>em</strong> jogo a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do primeiro. Que parte do imitado foi inevitavelmente, e por<br />

razões poiéticas, ou seja, pela arte da passag<strong>em</strong> do não-ser ao ser, apropriada pelo imitador?<br />

“A pergunta t<strong>em</strong> certa importância se admitirmos que a mimesis, mesmo<br />

sob a forma <strong>de</strong>gradada <strong>de</strong> uma teoria da imitação, terá regido, comandado,<br />

estruturado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início todo ou parte do campo atribuído às ‘artes’ no Oci<strong>de</strong>nte”.<br />

Distraiamo-nos, portanto, <strong>de</strong>sta aporia, que participa da dúvida <strong>de</strong> Hegel sobre se toda<br />

a arte oci<strong>de</strong>ntal não caiu sob a alçada da representação e da s<strong>em</strong>elhança. Logo a seguir, na<br />

exposição hegeliana on<strong>de</strong> estávamos, surg<strong>em</strong> abruptamente, <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> quase-anedotas, duas<br />

micro-narrativas que são ecos das consi<strong>de</strong>rações sobre a natureza supérflua da mimesis no<br />

argumentário iconoclasta — porque os pintores produz<strong>em</strong> corpos s<strong>em</strong> alma, corpos a qu<strong>em</strong> foi<br />

sonegada a vida — e on<strong>de</strong> ressoa, longinquamente, o <strong>de</strong>sprezo platónico pelo trabalho da pintura:<br />

“Sabe-se que os Turcos, como todos os maometanos, não toleram que se pint<strong>em</strong> ou se<br />

represent<strong>em</strong> homens n<strong>em</strong> outras criaturas vivas. J. Bruce, durante a sua viag<strong>em</strong> à Abissínia,<br />

mostrou a um Turco um peixe pintado; o Turco começou por se espantar, mas <strong>de</strong>pois disselhe:<br />

‘Se este peixe, no Juízo Final, se erguer contra ti e se queixar <strong>de</strong> que lhe <strong>de</strong>ste um corpo<br />

mas nenhuma alma viva, como respon<strong>de</strong>rás tu a tal acusação?’ E também o profeta, como está<br />

dito na Sunna, respon<strong>de</strong>u a suas mulheres Ommi Habiba e Ommi Selma, que lhe falavam das<br />

pinturas dos t<strong>em</strong>plos da Etiópia: ‘Essas pinturas acusarão os seus autores no dia do Juízo’”.<br />

8. A prisão litúrgica<br />

Na tentativa <strong>de</strong> limitar os relacionamentos excessivos com imagens “mágicas”, <strong>de</strong> impedir o<br />

regresso da idolatria e <strong>de</strong> esvaziar a crendice popular no po<strong>de</strong>r dos acheiropoietos e seus sucedâneos,<br />

o segundo concílio <strong>de</strong> Niceia tinha, <strong>em</strong> pleno iconoclasma, <strong>de</strong>cidido que, <strong>de</strong> futuro, competiria aos<br />

bispos e ao clero <strong>de</strong>terminar o que po<strong>de</strong>ria e não po<strong>de</strong>ria ser pintado, assim confinando os pintores <strong>de</strong><br />

ícones a meros executantes e limitando a sua liberda<strong>de</strong> criativa, no que constituiu a primeira tentativa<br />

<strong>de</strong> controlo das artes por um aparelho eclesial cristão. A história posterior dos ícones mostrou<br />

que os artistas conseguiram manter autonomias criativas relativas, apesar dos frequentes regressos<br />

à norma bizantina e à tradição, e à permanência do controlo da arte pelas autorida<strong>de</strong>s eclesiais<br />

ortodoxas, que s<strong>em</strong>pre preferiram a stasis às mudanças dinâmicas. Como salienta Küng (loc. cit. 226):<br />

“…A pintura <strong>de</strong> ícones tornou-se um acto religioso: não somente se reza e jejua antes <strong>de</strong><br />

começar, se benz<strong>em</strong> as cores e os utensílios, como ainda a imag<strong>em</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terminada, é consagrada<br />

no <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> uma cerimónia litúrgica especial, e a Igreja confirma a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da imag<strong>em</strong> e do<br />

seu mo<strong>de</strong>lo. Um ícone apenas é válido se reproduzir o nome do sujeito representado ou uma cena<br />

bíblica. Compreen<strong>de</strong>r-se-á, pois, que os ícones sejam mais do que meros exercícios estéticos (…).<br />

São uma espécie <strong>de</strong> sacramentais, ao lado da proclamação da palavra e da celebração eucarística”.<br />

18


Esta resistência <strong>de</strong> um aparelho eclesial fundamentalmente conservador <strong>em</strong> matéria <strong>de</strong><br />

procedimentos cultuais e litúrgicos ou para-litúrgicos, recorda-nos a força da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> às<br />

formas históricas da realida<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>ntal, no momento <strong>em</strong> que <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os ocupar-nos, a<br />

propósito dos ícones e das artes visuais cristãs, do peso e da influência da metafísica da presença.<br />

9. Presença, transcendência, imanência<br />

Recor<strong>de</strong>mos o que atrás diziámos sobre a “guerra” entre transcendência e imanência :<br />

o que é tornado presente na obra <strong>de</strong> arte figurativa? A presença, suportada pelo argumentário<br />

transcen<strong>de</strong>ntal, é uma segunda “encarnação” no material artístico propriamente dito: na<br />

pedra, no marfim, na ma<strong>de</strong>ira, na tela, nas cores e no <strong>de</strong>senho. Presença do sagrado, presença<br />

quase real <strong>de</strong> um protótipo ausente, presença <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> metafísica superior à realida<strong>de</strong><br />

corrente e criada pelo espírito: a questão da presença atravessa gran<strong>de</strong> parte da história das<br />

figurações e do retrato, e merece que nela nos <strong>de</strong>mor<strong>em</strong>os um pouco mais. A figuração garante<br />

a presença <strong>de</strong> um protótipo ausente e verenado, procurando ser <strong>de</strong>le uma representação fiel<br />

apoiada na s<strong>em</strong>elhança, como doutrinaram os iconófilos reabilitadores da imag<strong>em</strong> dos séculos<br />

VIII e IX? Ou, <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> suscitar a presença fantasmada e espectral “garantida” pelos ícones<br />

bizantinos, <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> participar num exercício aplicado <strong>de</strong> transcendência — o transporte, à<br />

presença do crente, do gran<strong>de</strong> Outro actualmente ausente — antes chama a atenção para si<br />

própria, como parte do real que integra, mostra e exprime, sugerindo que, a haver divinda<strong>de</strong>,<br />

ela está e se revela nas próprias coisas, no mundo, no hom<strong>em</strong> (e no que <strong>de</strong>les é figurado),<br />

sendo-lhes imanente? Num outro texto (13), Didi-Huberman ataca directamente as posições<br />

onto-teológicas que George Steiner <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, nesta matéria, no seu Real Presences (14):<br />

“ O que é tudo, a seus olhos, é a gravida<strong>de</strong> e a constância, como ele diz, <strong>de</strong> uma presença<br />

superlativa, a presença real do sentido ‘pleno’. Steiner não escon<strong>de</strong> a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> restaurar, aqui,<br />

um transcen<strong>de</strong>ntalismo que se exprime <strong>em</strong> reivindicações ‘<strong>em</strong> última análise religiosas’. Não nos<br />

espanta, portanto, que o paradigma [que ele <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>] possa ser o do ícone do culto bizantino e,<br />

mais explicitamente ainda, o do rito eucarístico propriamente dito. (...) Mas é preciso notar que<br />

essa presença, no enunciado per<strong>em</strong>ptório da sua realida<strong>de</strong>, não oferece nada da abertura que<br />

diz oferecer. (...) É b<strong>em</strong> conhecida a operação matricial <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>slocação filosófica ex<strong>em</strong>plar:<br />

ela consistia, exactamente, <strong>em</strong> praticar uma nova abertura do ponto <strong>de</strong> vista, capaz <strong>de</strong> dar a<br />

uma expressão secular como essa da presença real o seu verda<strong>de</strong>iro estatuto <strong>de</strong> fantasma<br />

obsessional. (...) [Ora], a presença nunca se dá enquanto tal, nunca se dá como último ponto<br />

<strong>de</strong> transcendência que o filósofo po<strong>de</strong>ria apanhar <strong>em</strong> voo no ‘éter da metafísica’ ”(p. 155-156).<br />

Que a presença real do representado seja, precisamente, uma das mais persistentes ilusões<br />

da representação mimética, transformada num fantasma obsessional con<strong>de</strong>nado a repetir transhistoricamente<br />

a sua aparição, mostra-o o facto <strong>de</strong> os conteúdos, t<strong>em</strong>as e formas do ícone<br />

bizantino pouco ter<strong>em</strong> evoluído, quanto à normativida<strong>de</strong> que lhes foi imposta, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o segundo<br />

concílio <strong>de</strong> Niceia, como se a história da figuração e a sua estética ali tivess<strong>em</strong> ficado, para s<strong>em</strong>pre,<br />

jurídica e teologicamente congeladas. Observada como se fosse uma operação, regulamentada e<br />

normalizada, <strong>de</strong> atingimento <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s transcen<strong>de</strong>ntes, o trabalho do pintor <strong>de</strong> ícones, tal como<br />

<strong>de</strong>scrito por Steiner, não passaria <strong>de</strong> um exercício <strong>de</strong> hipóstase no sentido pejorativo que, entre<br />

outros sentidos, lhe reconhece o Lalan<strong>de</strong> (15): construção <strong>de</strong> uma “entida<strong>de</strong> fictícia, abstracção<br />

falsamente consi<strong>de</strong>rada como realida<strong>de</strong>, sentido este que se manteve no uso do verbo hipostasiar<br />

(...); mais geralmente, [hipostasiar significa] dar s<strong>em</strong> razão uma realida<strong>de</strong> absoluta ao que não é senão<br />

relativo, como na frase <strong>de</strong> Bergson: ‘A tentação <strong>de</strong>via ser gran<strong>de</strong>, a <strong>de</strong> hipostasiar essa esperança...’ ”<br />

19


Que seres e que mundos são os dos ícones reunidos no mosteiro <strong>de</strong> Sta. Catarina, no Sinai,<br />

dos bustos e das Santas Faces do Cristo, da virg<strong>em</strong> entre S. Teodoro e S. Jorge, ao Cristo reinante,<br />

todos dos séculos VI ou VII, das Madonas da Cl<strong>em</strong>ência (séculos VII ou VIII) à Virg<strong>em</strong> Hodigitria<br />

(século XII) até ao S. Sérgio e às Cenas da vida <strong>de</strong> S. Nicolau (século XIII) à Hospitalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Abraão (fim do século XIV), ou à Transfiguração pintada por Teófano o Grego, a poucos <strong>de</strong>cénios<br />

da queda <strong>de</strong> Constantinopla, para já não falar da enorme obra preservada <strong>de</strong> Andrei Rublev?<br />

O sentido do seu ser e o t<strong>em</strong>po a que esse ser se refere é o da parousia (na acepção <strong>de</strong> espera pela<br />

segunda chegada do Cristo): nesta acepção o t<strong>em</strong>po parou, não é contável, está suspenso, porque o<br />

seu próximo instante é precisamente o final dos t<strong>em</strong>pos, <strong>de</strong>more ele a chegar o que <strong>de</strong>morar; e esse<br />

final dos t<strong>em</strong>pos, esse próximo instante, será a próxima nova realida<strong>de</strong>, que po<strong>de</strong>rá ser alterada e<br />

re<strong>de</strong>finida pela realização das promessas do salvador. Noutra acepção, o seu ser e o t<strong>em</strong>po que se<br />

lhe refere são ousia (substância), ambos <strong>de</strong>terminando, na or<strong>de</strong>m ontológico-t<strong>em</strong>poral, a presença,<br />

sim, mas significando isso que a sua manifestação se refere a um modo <strong>de</strong>terminado do t<strong>em</strong>po, o<br />

presente, para utilizarmos termos <strong>de</strong> Derrida, transportando-os para fora do seu contexto original<br />

(16). Um presente figural trabalhado pelos <strong>de</strong>z atributos <strong>de</strong> Didi-Huberman, liberto da realida<strong>de</strong><br />

corrente e inteiramente concebido para dar forma sustentável à permanência e à persistência <strong>de</strong><br />

um mundo suspenso da t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> escatológica, on<strong>de</strong> passado e futuro são s<strong>em</strong>pre passados<br />

presentes e presentes futuros (Derrida, loc. cit.). O mundo pintado, <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente aurático, é,<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po, o traço, o vestígio, o rasto persistent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong>ixado por essa t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong><br />

escatológica que <strong>de</strong>struiu a ponte que a ligava à t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> do mundo corrente : a t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong><br />

escatológica não é divisível <strong>em</strong> partes, não há relógio que a meça, ela é a duração presentificada.<br />

Essa duração só não é infinita porque contra essa infinitu<strong>de</strong> se ergue a esperança <strong>de</strong> que o final<br />

dos t<strong>em</strong>pos aconteça <strong>de</strong> facto, mas reprogramado pela intervenção do salvador. E neste sentido<br />

po<strong>de</strong>, sim, ser ironicamente assimilada a uma hipóstase tal como a encontrámos no Lalan<strong>de</strong>. Ou,<br />

como diz Derrida, a um simulacro : “Esse rasto não é uma presença, mas sim o simulacro <strong>de</strong> uma<br />

presença que se <strong>de</strong>sloca, se movimenta ou se reenvia para si própria; ela não ocorre propriamente<br />

(n’a pas propr<strong>em</strong>ente lieu), o apagamento pertence à sua estrutura” (op. cit., “La Différance”). Didi-<br />

Huberman, que se refere aos mesmos textos <strong>de</strong> Derrida (Ce que... : 157), conclui do seguinte modo:<br />

“Eis portanto a presença entregue ao apagamento (...). Compreen<strong>de</strong>r-se-á, nestas condições,<br />

que não possamos usar a palavra presença a não ser precisando o seu duplo carácter não real: ela<br />

não é real no sentido que lhe dá Steiner porque não é um ponto <strong>de</strong> completu<strong>de</strong> e <strong>de</strong> transcendência<br />

do ser; e também não é real porque só nos chega trabalhada, espaçada, t<strong>em</strong>porizada, posta <strong>em</strong><br />

traços ou vestígios — e acabamos <strong>de</strong> ver Derrida qualificar tais traços como simulacros”.<br />

Simulacros resultantes, no caso da pintura, e <strong>em</strong> particular no dos ícones bizantinos<br />

e na vasta herança que <strong>de</strong>ixaram, <strong>de</strong> tèknai e procedimentos b<strong>em</strong> precisos (o que pintar<br />

primeiro, que cores e suportes usar, como figurar rostos frontalmente e <strong>em</strong> que posturas<br />

figurar os corpos), tèknai on<strong>de</strong> v<strong>em</strong>os evoluír<strong>em</strong> diferentes “escolas” que as diversificam,<br />

dispersando-se no espaço e no t<strong>em</strong>po, mas inspiradas pelos mesmos princípios e pelos<br />

mesmos fins, e eventualmente usando os <strong>de</strong>z dispositivos repertoriados por Didi-Huberman.<br />

Não cabe aqui a história da evolução artística e das escolas <strong>de</strong> ícones, on<strong>de</strong> seria necessário<br />

<strong>de</strong>stacar o classicismo da dinastia macedónica, a opção, no século XI, por um estilo severo, que<br />

<strong>de</strong>smaterializou e espiritualizou as figuras, a re-humanização do século XII, o refinamento e a<br />

elegância da segunda meta<strong>de</strong> do mesmo século e o nascimento do ícone feito <strong>em</strong> mosaicos; a<br />

escola <strong>de</strong> Chipre do século XIII, com as suas cores mais vivas e uma nova expressivida<strong>de</strong> dos<br />

20


ostos; o período dito dos Paleólogos (1261-1453), durante a qual o ícone é reconhecido como<br />

arte maior e evolui a passo e passo com os murais, e on<strong>de</strong> se acentua a expressão <strong>de</strong> sentimentos<br />

e a concepção do espaço; um novo regresso à austerida<strong>de</strong> e à tradição <strong>em</strong> Bizâncio a partir<br />

<strong>de</strong> 1330; a proliferação <strong>de</strong> ateliers nos Balcãs e na Geórgia; o papel dos pintores gregos e a<br />

importância crescente das escolas russas vindas dos séculos XI e XII (Kiev, Vladimir, Suzdal,<br />

Novgorod), até que Moscovo se tornou, nos séculos XIV e XV, no principal centro <strong>de</strong> produção<br />

<strong>de</strong> ícones, iluminado pela arte <strong>de</strong> Andrei Rublev (1360/70-1430) e Denis (nascido cerca <strong>de</strong><br />

1450). Depois da queda <strong>de</strong> Constantinopla <strong>em</strong> 1453, a escola dominante passa a ser a <strong>de</strong> Creta<br />

(então sob domínio veneziano), que fun<strong>de</strong> a tradição bizantina e a influência italiana. Caída por<br />

sua vez Creta <strong>em</strong> mãos turcas, <strong>em</strong> 1669, os pintores locais espalharam-se pelas ilhas jónicas<br />

(Zante, Corfu, Cefalónia) ou <strong>em</strong>igraram para Veneza. Entretanto, nos Balcãs, manteve-se a<br />

tradição bizantina, sob influência dos gregos e eslavos do monte Athos. E, a partir <strong>de</strong> meados do<br />

século XVI, <strong>de</strong>senvolvera-se uma nova escola na Grécia central, <strong>em</strong> Jannina e nos Meteoros...<br />

É sabido que a secessão cismática do início do século XI acabou por separar Roma e Bizâncio,<br />

e que a tensa koinè, a complexa aisthésis que sobrevivera, no século IV, à mudança da capital para o<br />

Oriente, se cindiu <strong>em</strong> dois mundos. O íman que as ligava per<strong>de</strong>u a sua força <strong>de</strong> atracção, ce<strong>de</strong>ndo<br />

a uma “nova” bipolarida<strong>de</strong>. A coesão relativa esboroou-se e cada uma das suas gran<strong>de</strong>s partes<br />

<strong>em</strong>igrou para diferentes fractais. A pintura nascida do paradigma da encarnação evoluiu <strong>de</strong> forma<br />

progressivamente mais livre a Oci<strong>de</strong>nte, foi liturgizada a Oriente para não po<strong>de</strong>r libertar-se. Entre<br />

os dois mundos subsistiram terras <strong>de</strong> ninguém on<strong>de</strong> a dupla herança pictórica continuou a gerir um<br />

passado <strong>de</strong> miscigenações e <strong>de</strong> influências recíprocas. Mas essa secessão veio acrescentar-se à soma<br />

<strong>de</strong> outras que não pararam <strong>de</strong> se multiplicar no Mediterrâneo até aos nossos dias, tornando toda a<br />

área — a área da oliveira — num puzzle ou num mosaico cuja unida<strong>de</strong> só foi parcialmente garantida<br />

pela sucessão dos impérios regionais. Reconstituir laços a partir dos actuais fragmentos e ruínas<br />

exige uma poética como a <strong>de</strong> Pedrag Matvejevitch, outra vez apostada na passag<strong>em</strong> do não-ser ao ser.<br />

21


NOTAS<br />

(1) Didi-Huberman, G., (1990), “Puissances <strong>de</strong> la figure - Exegèse et visualité dans l’art chrétien”, in Universalis,<br />

Symposium I, pp. 608-621.<br />

(2) Küng, Hans, (1994), Das Christentum. Wesen und Geschitcht, Piper, Munique. Trad. port. (que utilizamos aqui)<br />

O Cristianismo — Essência e História, Círculo <strong>de</strong> Leitores, Braga, 2002.<br />

(3) Damish, Hubert, (1984), “<strong>Artes</strong>”, Enciclopédia Einaudi, INCM, Lisboa, vol. 3, p. 37.<br />

(4) “Introduction à l’évangile et aux épitres johanniques”, in La Bible <strong>de</strong> Jérusal<strong>em</strong>, Paris, Les Éditions du Cerf, 13ª<br />

ed., 1990, pp. 1523-1527.<br />

(5) Didi-Huberman, “Art et Théologie”, in Universalis, Corpus, vol. 3, pp. 65-73.<br />

(6) Jolivet-Lévy, C., (1989), “Icône”, in Universalis, Corpus, vol. 11, pp. 879-883.<br />

(7) Sobre o iconoclasma leia-se Jean Gouillard (1989), “Iconoclasme”, Universalis, Corpus, vol. 11, pp. 885-6.<br />

(8) Citado por Valentine e Jean-Clau<strong>de</strong> Marcadé, in “Représentations du Christ”, Universalis, Corpus, vol.5, pp. 744-<br />

750.<br />

(9) Benjamin, W., (1931), Kleine Gechichte <strong>de</strong>r Photographie, trad. port. <strong>de</strong> Maria Luís Moita “Pequena história<br />

da fotografia”, in Sobre Arte, Técnica, Linguag<strong>em</strong> e Política, Relógio d’Água, Lisboa, 1992; Das Kunstwerk im<br />

Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit (1936-39), trad. port. id. ibid., 1ª ed. <strong>em</strong> francês L’oeuvre d’art à<br />

l’époque <strong>de</strong> sa reproduction mécanisée, trad. port. João Maria Men<strong>de</strong>s, “A obra <strong>de</strong> arte na época da sua reprodução<br />

mecanizada” in Verónica 1, revista do CITECI/<strong>CIAC</strong>, 2009, 2010.<br />

(10) Clément. O., (1989), “Icône”, loc. cit., pp. 884-885.<br />

(11) Damish, Hubert, (1984), loc. cit.: “A poiética, arte da passag<strong>em</strong> ou da <strong>de</strong>miurgia que actua entre o ser e o nãoser”,<br />

p. 31, Lisboa, INCM.<br />

(12) Hegel, Esthétique (1835), trad. C. Bénard, 5 vol., Paris, [s.n.], 1840-1851; trad.. S. Jankélévitch, 4 vol., Aubier,<br />

Paris, 1945.<br />

(13) Didi-Huberman, G., (1992), Ce que nous voyons, ce qui nous regar<strong>de</strong>, Éd. De Minuit, Paris.<br />

(14) Steiner, George, (1989), Real Presences, Faber and Faber, Londres; trad. fr. Réelles Présences, Gallimard, Paris,<br />

1991.<br />

(15) “Hypostase”, in Vocabulaire technique et critique <strong>de</strong> la philosophie, sob a direcção <strong>de</strong> André Lalan<strong>de</strong>, 1ª ed. <strong>em</strong><br />

fascículos no Bulletin <strong>de</strong> la Société française <strong>de</strong> philosophie, 1902-1923, reed. Alcan 1926, 1928, 1932, P.U.F. 1947.<br />

A ed. que usamos aqui é a 16ª, P.U.F., 1988).<br />

(16) Derrida, J., (1968), “Ousia et Grammè”, retomado in Marges <strong>de</strong> la Philosophie, Éd. <strong>de</strong> Minuit, Paris, 1972.<br />

22


MEDITERRÂNEO: UMA GEOGRAFIA EMOCIONAL<br />

David Antunes<br />

La haine, c’est l’hiver du coeur.<br />

(Hugo 138)<br />

É prerrogativa antiga dos reis governar<strong>em</strong> tudo excepto as suas paixões.<br />

(Dickens 600)<br />

Quid est nisi mirabilis insania?<br />

(Agostinho III, 2)<br />

O argumento principal <strong>de</strong>sta conferência começou a formar-se a partir da leitura <strong>de</strong> um<br />

rótulo <strong>de</strong> uma garrafa <strong>de</strong> vinho tinto chileno, Cimarosa, que não posso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> citar, uma vez<br />

que é a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma vida, relativamente a fontes excêntricas. Diz assim: «As colheitas<br />

Cimarosa oferec<strong>em</strong> vinhos das mais prestigiadas regiões do mundo. O Vale Central, entre os<br />

An<strong>de</strong>s e o Oceano Pacífico, é uma região i<strong>de</strong>al para a produção vinícola, <strong>de</strong>vido ao seu clima<br />

mediterrânico. As primeiras uvas cabernet sauvignon foram introduzidas por especialistas franceses<br />

no meio do século XIX.» Não se po<strong>de</strong> dizer que a indicação seja particularmente esclarecedora<br />

relativamente às proprieda<strong>de</strong>s organolépticas <strong>de</strong>ste vinho, mas é inspiradora do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong><br />

uma compreensão geográfica comum, segundo a qual aquilo que <strong>de</strong>fine um <strong>de</strong>terminado lugar<br />

ou a sua importância é algo que originalmente pertence a um outro. Assim, sobretudo para qu<strong>em</strong><br />

nunca foi a Itália, Aveiro é a Veneza <strong>de</strong> Portugal, Amesterdão é a Veneza dos países baixos, aliás<br />

Veneza é uma metonímia geográfica para qualquer cida<strong>de</strong> com canais, uma região da Costa Leste<br />

dos Estados Unidos é formada pelos estados da Nova Inglaterra, ‘reina um espírito canarinho’ na<br />

selecção portuguesa, há um rei criminoso na Dinamarca que se chama Claudius, como se este fosse<br />

um nome verosimilmente dinamarquês, Napoleão Bonaparte <strong>de</strong>clara, a 2 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 1798, ao<br />

povo <strong>de</strong> Alexandria, que «nous sommes les vrais musulmans», e o clima entre os An<strong>de</strong>s e o Oceano<br />

Pacífico, tão propício à produção vinícola <strong>de</strong> castas francesas, é mediterrânico. As razões por que<br />

tal acontece são muitas e não é minha preocupação <strong>de</strong>screvê-las, apenas me interessa a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que<br />

certas coisas e proprieda<strong>de</strong>s supostamente intrínsecas que, julgamos inamovíveis, são no entanto<br />

transaccionáveis, percorrendo distâncias e adoptando lugares ou sendo adoptadas por eles. A<br />

varieda<strong>de</strong> heteróclita dos ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong>via dizer-nos alguma coisa sobre a missão, aparent<strong>em</strong>ente<br />

inglória, <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a vida <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, aspecto que não me interessa e sacrifício que<br />

não estou disposto a correr, mas diz-nos também, e sobretudo, que as dificulda<strong>de</strong>s da <strong>de</strong>scrição se<br />

resolv<strong>em</strong> através da conhecida estratégia que torna o outro no mesmo e que a criação e a interpretação<br />

são sobretudo exercícios <strong>de</strong> redução. O mundo encolhe assim substancialmente, isto é, passa a<br />

ser nosso, como o mare nostrum, dos romanos e <strong>de</strong> Mussolini, e a pretensão <strong>de</strong> que os mapas dos<br />

impérios, ou seja, os seus textos, sejam do tamanho dos impérios, utopia do rigor científico, é uma<br />

missão votada à ruína <strong>de</strong> uns e <strong>de</strong> outros, como sugere Jorge Luís Borges <strong>em</strong> Do rigor <strong>em</strong> ciência:<br />

23


Naquele Império, a Arte da Cartografia conseguiu tal perfeição que o mapa <strong>de</strong> uma só Província ocupava toda<br />

uma Cida<strong>de</strong> e o mapa do Império toda uma Província. Com o t<strong>em</strong>po, esses mapas Desmesurados não satisfizeram<br />

e os Colégios <strong>de</strong> Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia<br />

pontualmente com ele. Menos Dadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes consi<strong>de</strong>raram que esse<br />

dilatado Mapa era Inútil e não s<strong>em</strong> Impieda<strong>de</strong> o entregaram às Incl<strong>em</strong>ências do Sol e dos Invernos. Nos <strong>de</strong>sertos<br />

do Oeste perduram <strong>de</strong>spedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por animais e por Mendigos; não há <strong>em</strong> todo o País<br />

outra relíquia das Disciplinas Geográficas. (223)<br />

E no entanto, se é possível que Aveiro seja a Veneza portuguesa e que Napoleão Bonaparte<br />

seja o verda<strong>de</strong>iro muçulmano, não parece tão transparente a assunção <strong>de</strong> que Veneza seja a Aveiro<br />

italiana e que o clima mediterrânico reclame o Vale Central chileno, entre os An<strong>de</strong>s e o Pacífico,<br />

como região que o <strong>de</strong>fine. Ocorre-me que talvez um dia a única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer Veneza<br />

seja visitar Aveiro e as amenida<strong>de</strong>s do clima mediterrânico existam apenas no Vale Central chileno,<br />

mas isto seria catastrófico para Veneza, para o clima mediterrânico e, já agora, também para Aveiro<br />

e para o Chile. Isto quer dizer que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>scritivo <strong>de</strong> certas coisas ou <strong>de</strong> certas narrativas é maior<br />

do que as suas ambições e que a a<strong>de</strong>são a todas as consequências da <strong>de</strong>scrição seria exactamente<br />

per<strong>de</strong>r esse po<strong>de</strong>r ou capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>screver a si e sobretudo ao outro. Na realida<strong>de</strong>, seria per<strong>de</strong>r<br />

autonomia e existência. Por outro lado, e simplificando um pouco o meu argumento, o que os<br />

ex<strong>em</strong>plos e o contra-ex<strong>em</strong>plo anteriores <strong>de</strong>monstram é que parece haver <strong>de</strong>terminados predicados<br />

i<strong>de</strong>ntificadores <strong>de</strong> lugares ou pessoas (clima mediterrânico, Veneza, macho latino, por ex<strong>em</strong>plo)<br />

que, <strong>em</strong>bora <strong>de</strong>finindo esses lugares e pessoas, os transcen<strong>de</strong>m, quer dizer, são maiores que o<br />

próprio lugar, ou sujeito predicável, tornando-se el<strong>em</strong>entos aglutinadores <strong>de</strong> outros predicados<br />

i<strong>de</strong>ntitários e paradigmáticos <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> outras coisas ou realida<strong>de</strong>s, tornando-se eles<br />

próprios lugares, ou seja, topoi, tópicos. No caso do Mediterrâneo e das culturas mediterrânicas,<br />

para além do que se po<strong>de</strong> dizer no contexto da geografia física e humana e no contexto das suas<br />

manifestações artísticas e narrativas, parece haver uma forte representação espacial e civilizacional<br />

que toma as paixões e as <strong>em</strong>oções humanas como um dos seus topoi fundamentais. Em síntese,<br />

aquilo que vou tentar <strong>de</strong>monstrar é que o Mediterrâneo é fundamentalmente um espaço passional<br />

e que as duas culturas, que provavelmente mais influenciaram o mundo oci<strong>de</strong>ntal, a cultura grega<br />

e o Cristianismo, e à volta do Mediterrâneo se formaram e estabeleceram, tomaram as paixões<br />

e as <strong>em</strong>oções como um dos el<strong>em</strong>entos fundamentais das suas narrativas. Na realida<strong>de</strong>, aquilo<br />

quero acabar por sugerir é que a maior herança que o Mediterrâneo nos legou foi um complexo<br />

tratado das paixões que justifica, entre outras coisas, o modo como nos referimos ao Norte<br />

da Europa e ao Sul e as histórias que acerca <strong>de</strong> um e outro se contam. Com o que acabei <strong>de</strong><br />

dizer esgoto quase por completo e melancolicamente o que tinha a dizer sobre o Mediterrâneo<br />

e passo, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> do argumento apresentado, a centrar-me num estudo sobre o significado<br />

<strong>de</strong> estar apaixonado e ter certas <strong>em</strong>oções. Os ex<strong>em</strong>plos disponíveis são muitos e favorec<strong>em</strong><br />

tanto uma visão positiva das paixões como um entendimento negativo das mesmas. A figura <strong>de</strong><br />

retórica mais comum para <strong>de</strong>screver os estados passionais é o paradoxo e as paixões tanto nos<br />

po<strong>de</strong>m conduzir à perdição do corpo e da alma, como po<strong>de</strong>m assinalar a nossa humanida<strong>de</strong> e<br />

religiosida<strong>de</strong>, tanto nos afastam do conhecimento como são resultado do exercício da racionalida<strong>de</strong><br />

humana, tanto nos impe<strong>de</strong>m a transcendência como nos transportam no êxtase da cont<strong>em</strong>plação.<br />

Como refere Bruno Snell <strong>em</strong> a Descoberta do Espírito, exist<strong>em</strong>, <strong>em</strong> Homero, «para a esfera<br />

da alma sobretudo as palavras psyche, thymós e nóos» (Snell,29). A existência <strong>de</strong> três palavras para<br />

<strong>de</strong>signar aquilo que mais propriamente po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>signar como ‘o conjunto <strong>de</strong> coisas invisíveis<br />

que abandonam ou sa<strong>em</strong> ou findam com o corpo do indivíduo quando este morre’, perdurando<br />

ou não no Ha<strong>de</strong>s, regista apenas, como sugere Snell, a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Homero na consi<strong>de</strong>ração do<br />

hom<strong>em</strong> como um todo coerente formado por uma realida<strong>de</strong> espiritual e física autónoma. Assim, tal<br />

como o hom<strong>em</strong> homérico não t<strong>em</strong> uma visão unificada do seu corpo, consi<strong>de</strong>rando-o sobretudo<br />

24


um conjunto <strong>de</strong> m<strong>em</strong>bros, os melea, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes entre si e <strong>em</strong> relação a uma vonta<strong>de</strong>, que<br />

também habita o corpo que suporta esses m<strong>em</strong>bros, também não existe uma visão unificada da<br />

mente ou da alma e por isso t<strong>em</strong>os as diferentes visões da alma ou órgãos espirituais e anímicos<br />

que acima referi. Aquele que, no entanto, mais parece interessar a Homero é o thymós que <strong>de</strong>signa<br />

a um t<strong>em</strong>po a alma e a respiração, mas sobretudo, na interpretação <strong>de</strong> Snell, o órgão das <strong>em</strong>oções<br />

que «<strong>de</strong>termina igualmente o movimento corporal» (Snell 30), a própria ira e o seu lugar (An<br />

Intermediate 371), pelo que faz sentido dizer-se que o thymos abandona o corpo na morte,<br />

s<strong>em</strong> que no entanto isto queira dizer que continue a existir. Perceb<strong>em</strong>os assim melhor por que a<br />

Íliada começa com «Canta, ó <strong>de</strong>usa, a cólera <strong>de</strong> Aquiles, o Pelida» (Homero I:1), motivo passional<br />

que, dada a sua aparente irrelevância, é naturalmente esquecido <strong>em</strong> prol da dignida<strong>de</strong> épica<br />

da narrativa sobre a mãe <strong>de</strong> todas as guerras, às portas <strong>de</strong> Ílion, e da relevância ética da arethē<br />

guerreira. Mas o facto é que a Íliada é uma epopeia sobre a <strong>de</strong>scoberta do que move o hom<strong>em</strong>,<br />

i. e., do que o põe <strong>em</strong> movimento, a saber: as suas paixões, a cólera <strong>de</strong> Aquiles, que o afasta<br />

da batalha, no Canto I, e a ela o conduz novamente, no Canto XIX, para vingar Pátrocolo, a<br />

impetuosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Agamémnon que «irritado: tinha o coração cheio <strong>de</strong> negra raiva / e os olhos<br />

ass<strong>em</strong>elhavam-se a fogo faiscante» (Homero I: 303-304), a paixão juvenil do belo Páris e o amor<br />

e a corag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Heitor. Este aspecto assinala assim a relação entre a paixão e o movimento<br />

e parece-me justificar o motivo pelo qual passámos a associar paixão e <strong>em</strong>oção, quer dizer,<br />

algo que constitui um movimento e se constitui no processo <strong>de</strong> um movimento, e causa uma<br />

mudança no sujeito. Emocionar-se é mover-se, comover-se, razão pela qual Aristóteles reconhece<br />

aos argumentos patéticos uma importância <strong>de</strong>terminante na eficácia retórica dos discursos:<br />

O orador persua<strong>de</strong> (…) os seus ouvintes, quando eles são levados à <strong>em</strong>oção pelo seu discurso; porque os juízos<br />

que produzimos não são os mesmos se estivermos influenciados pela alegria ou pela tristeza, pelo amor ou pelo<br />

ódio (Retórica I: ii. 5-6)<br />

A par da equação anterior entre paixões e movimento , julgo não ser abusivo<br />

consi<strong>de</strong>rar que, na Íliada, se favorec<strong>em</strong> também as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> que, <strong>de</strong> algum modo, as<br />

paixões se situam para lá da vonta<strong>de</strong> e racionalida<strong>de</strong> humanas e <strong>de</strong> que, também por isso,<br />

pertenc<strong>em</strong> à mesma natureza do sofrimento, como é visível nestes versos que registam<br />

o momento <strong>em</strong> que Aquiles recebe a notícia da morte <strong>de</strong> Pátrocolo, às mãos <strong>de</strong> Heitor:<br />

Assim falou; e uma nuv<strong>em</strong> negra <strong>de</strong> dor se apo<strong>de</strong>rou <strong>de</strong> Aquiles.<br />

Levantando com ambas as mãos a poeira enegrecida,<br />

atirou-a por cima da cabeça e lacerou seu belo rosto. (Homero XVIII: 22-24)<br />

As paixões são pa<strong>de</strong>cimentos, mesmo quando causam prazer, imag<strong>em</strong> cara a toda a literatura<br />

barroca. Nas palavras <strong>de</strong> Santa Teresa <strong>de</strong> Ávila: «Vivo já fora <strong>de</strong> mim, / <strong>de</strong>pois que morro <strong>de</strong><br />

amor, / porque vivo no Senhor, / que me quis só para si. / Meu coração lhe ofereci / pondo nele<br />

este dizer: / Que morro por não morrer» (Antologia 123).<br />

Estes dois aspectos — a relação entre as paixões e a racionalida<strong>de</strong> e a vonta<strong>de</strong>, por um lado, e o<br />

entendimento das paixões como sofrimento, por outro (2) — são <strong>de</strong>terminantes na caracterização<br />

das paixões porque correspon<strong>de</strong>m, grosso modo, à razão pela qual, para Platão, as paixões são factores<br />

<strong>de</strong> perturbação epist<strong>em</strong>ológica e, por conseguinte, <strong>de</strong>v<strong>em</strong> evitar-se todas as situações que a elas<br />

conduz<strong>em</strong>, nomeadamente, a poesia, e à razão pela qual o Sofrimento, a Paixão, a subtracção do<br />

meu <strong>de</strong>sejo, e na realida<strong>de</strong> do meu próprio ser, como condutor da minha vonta<strong>de</strong>, correspon<strong>de</strong>m,<br />

para o Cristianismo, ao momento sublime <strong>em</strong> que a possibilida<strong>de</strong> re<strong>de</strong>ntora da humanida<strong>de</strong> e do<br />

eu, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> o sujeito suportar a Paixão, coexiste com a possibilida<strong>de</strong> da sua queda absoluta,<br />

se o sujeito sucumbir à paixão. O sacrifício e o martírio são, no instante passional, companheiros<br />

25


da tentação e da queda. É a compreensão <strong>de</strong>sta gran<strong>de</strong>za paradoxal que Cristo experimenta, s<strong>em</strong>pre<br />

que é tentado pela sua própria divinda<strong>de</strong>: no <strong>de</strong>serto perante Satanás: «Disse-lhe o diabo: ‘Se és Filho<br />

<strong>de</strong> Deus, diz a esta pedra que se transforme <strong>em</strong> pão.’» (Lc 4: 3), no monte das oliveiras perante si<br />

próprio, como Filho e Pai: «E dizia: ‘Abbá [paizinho], Pai, tudo te é possível; afasta <strong>de</strong> mim este cálice!<br />

Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres.’» (Mc 14: 36), e mais tar<strong>de</strong> na cruz, quando<br />

um dos malfeitores lhe diz: «Não és Tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós também.» (Lc 39).<br />

Não é pois <strong>de</strong> admirar que aquele thymos homérico se torne um fogo, que nos consome<br />

por <strong>de</strong>ntro, uma tumefacção, um tumor, um óvni invisível e autónomo que grassa no interior<br />

do nosso corpo e o leva à sua própria <strong>de</strong>struição ou à transcendência e revelação, uma<br />

máquina passional que, consumindo o sujeito o extravasa também, e adquire a natureza política<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio báquico e mal colectivo , uma força que nos esgota, capaz <strong>de</strong> fazer cair cida<strong>de</strong>s,<br />

apodrecer reinos e sucumbir impérios. Como Susan Sontag refere, a linguag<strong>em</strong> para <strong>de</strong>screver<br />

o cancro recorre a esta <strong>de</strong>scrição das <strong>em</strong>oções para caracterizar o processo canceroso:<br />

É o tumor que dispõe <strong>de</strong> energia, não o paciente; ninguém ‘o’ controla. As células cancerosas, segundo os<br />

manuais, são células que esgotaram o mecanismo que ‘limita’ o crescimento. (O crescimento das células normais<br />

é ‘autolimitado’ através <strong>de</strong> um mecanismo chamado ‘inibição do contacto’.) As células cancerosas, <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong><br />

tal inibição, continuarão a aumentar e a <strong>de</strong>salojar <strong>de</strong> modo ‘caótico’, <strong>de</strong>struindo as células normais do corpo, a sua<br />

arquitectura e funcionamento. (71)<br />

Na realida<strong>de</strong>, a hipersensibilida<strong>de</strong> foi tomada como uma das causas comuns do cancro, pelo que o<br />

seu melhor r<strong>em</strong>édio é o estoicismo:<br />

No século XIX, pensava-se que os doentes <strong>de</strong> cancro tinham apanhado a doença <strong>de</strong>vido à sua hiperactivida<strong>de</strong><br />

e hipersensibilida<strong>de</strong>. Como se estivess<strong>em</strong> cheios <strong>de</strong> <strong>em</strong>oções que tinham <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rar. Como profilaxia contra o<br />

cancro, um médico inglês aconselhava os pacientes a ‘evitar<strong>em</strong> abusar das suas forças e a suportar<strong>em</strong> as agruras da<br />

vida s<strong>em</strong> se alterar<strong>em</strong>; e sobretudo a não ce<strong>de</strong>r à tristeza’. Estes conselhos <strong>de</strong> estoicismo foram agora substituídos<br />

pelos da auto-expressão, indo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o falar nos probl<strong>em</strong>as até ao ‘grito original’. (61)<br />

T<strong>em</strong>os portanto as coor<strong>de</strong>nadas essenciais do entendimento das paixões e a dimensão da sua<br />

influência, a partir <strong>de</strong> duas referências principais, Homero e o Cristianismo. Mas a <strong>de</strong>scrição da etiologia<br />

e funcionamento das paixões e <strong>em</strong>oções humanas ficaria muito incompleta se não consi<strong>de</strong>ráss<strong>em</strong>os<br />

com algum pormenor o entendimento que <strong>de</strong>las faz<strong>em</strong> Platão, que já referi sumariamente, e<br />

Aristóteles, nos quais a questão crucial passa a ser a relação das paixões com a racionalida<strong>de</strong>. A<br />

referência à teoria das paixões <strong>de</strong>stes dois filósofos permitir-me-á terminar com uma reflexão acerca<br />

da relação entre as <strong>em</strong>oções e aquilo que genericamente po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>signar como objectos ficcionais,<br />

aos quais po<strong>de</strong> pertencer uma parte <strong>de</strong> algumas coisas a que hoje também chamamos obras <strong>de</strong> arte.<br />

Para Platão, a discussão acerca das paixões surge ligada fundamentalmente à discussão das<br />

partes da alma, que são três, no Livro IV da República, e às consequências da mimese, no Livro<br />

X. Platão consi<strong>de</strong>ra que as paixões pertenc<strong>em</strong> <strong>de</strong>finitivamente à parte irracional da alma, on<strong>de</strong><br />

localiza também o amor, a fome, a se<strong>de</strong>, os <strong>de</strong>sejos, a concupiscência e «certas satisfações e <strong>de</strong>sejos»<br />

(439d). Curiosamente, Platão atribui um lugar específico na alma à irascibilida<strong>de</strong>, criando assim<br />

uma parte irascível da alma, uma vez que a ira se alia, por vezes, à razão, mas não vai tão longe que<br />

consi<strong>de</strong>re que a ira possa pertencer à alma racional, ou, consoante as circunstâncias, à racional e à<br />

irracional. Assim, a posição <strong>de</strong> Platão é relativamente simples <strong>de</strong> estabelecer: as paixões, <strong>em</strong>bora<br />

potencialmente educáveis (4) , pertenc<strong>em</strong> ao mesmo domínio daquilo que são os epithumiai, os<br />

apetites básicos, essencialmente ineducáveis, dos quais, na verda<strong>de</strong>, o hom<strong>em</strong> é escravo (5) . Esta<br />

situação t<strong>em</strong> consequências profundas no exercício do conhecimento progressivo da verda<strong>de</strong> e, por<br />

conseguinte, no domínio ético, uma vez que para Platão, como para Sócrates, o mal é involuntário<br />

e só po<strong>de</strong> resultar ou da ignorância ou do constrangimento relativamente ao B<strong>em</strong>, portanto tudo o<br />

26


que contribui para uma coisa ou para outra, ou para as duas, t<strong>em</strong> consequências epist<strong>em</strong>ológicas<br />

e éticas irr<strong>em</strong>ediáveis. É esta, a meu ver, a razão fundamental da exclusão necessária da poesia<br />

mimética da república platónica. É justamente porque Platão acredita que a poesia t<strong>em</strong> efeitos, que<br />

po<strong>de</strong>m ser bons ou maus, mas que são necessariamente infundados e <strong>de</strong>ceptivos. Isto é, causam<br />

<strong>em</strong>oções, das quais, no entanto, não são razões, uma vez que se trata <strong>de</strong> mimese e esta provoca ilusões.<br />

Aristóteles, ao contrário do seu mestre, não tinha a poesia <strong>em</strong> tão alta conta, pelo menos<br />

não achava que ela pu<strong>de</strong>sse conduzir e influenciar as paixões dos homens e levá-los a fazer coisas<br />

insensatas. Do mesmo modo, também não achava, a meu ver, que os pu<strong>de</strong>sse educar ou tornar<br />

melhores ou mais felizes, erro comum do ethical criticism cont<strong>em</strong>porâneo, que reclama Aristóteles<br />

como seu patrono quando, na verda<strong>de</strong>, está a ser completamente platónico . Aristóteles acredita<br />

na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidirmos <strong>em</strong> conformida<strong>de</strong> com os nossos <strong>de</strong>sejos e com as nossas crenças<br />

e <strong>de</strong>fine virtu<strong>de</strong> como a disposição correcta ou <strong>de</strong>liberada face às paixões e acções, tendo como<br />

paradigma da nossa conduta o hom<strong>em</strong> pru<strong>de</strong>nte (1107a). A <strong>de</strong>flação dos efeitos da poesia ou<br />

do teatro, coinci<strong>de</strong>nte com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que esses efeitos têm uma localização específica e limitada<br />

no t<strong>em</strong>po, levaram Aristóteles a atribuir aparent<strong>em</strong>ente muita importância ao teatro como<br />

factor <strong>de</strong> pedagogia ética das almas, aspecto que <strong>de</strong>corre evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente do alcance teórico da<br />

Poética, quando, a meu ver, estava apenas a conce<strong>de</strong>r-lhe um espaço relativo, num processo <strong>de</strong><br />

homeostasia política, chamado ‘hom<strong>em</strong> na polis’, que lhe interessava muito mais. Há boas razões<br />

para que, na minha opinião, Aristóteles tenha sido mal lido, isto é, para que tenha sido lido<br />

como se estivesse a propor um programa <strong>de</strong> educação das paixões pelo teatro. Aponto quatro:<br />

i. A inferência habitual e errada que da não-utilida<strong>de</strong> essencial, especialmente ética, <strong>de</strong> uma coisa<br />

<strong>de</strong>corre a não-necessida<strong>de</strong> humana e cívica <strong>de</strong>ssa coisa, pelo que só as coisas que têm uma utilida<strong>de</strong><br />

ética particular, ou às quais se confere essa utilida<strong>de</strong>, é que se apresentam à comunida<strong>de</strong> como coisas<br />

importantes. Este aspecto foi resolvido por Kant na Crítica da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Julgar e parece ser<br />

fundamental na compreensão cont<strong>em</strong>porânea <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte e não cabe aqui ter mais comentário.<br />

ii. A evidência <strong>de</strong> algumas tragédias, sobretudo <strong>de</strong> Ésquilo e Eurípi<strong>de</strong>s, <strong>em</strong> que, <strong>de</strong> facto,<br />

o erro trágico parece <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> uma falta <strong>de</strong> domínio sobre as paixões — é o caso <strong>de</strong> Os<br />

Persas, <strong>de</strong> Ésquilo, <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>ia e As Bacantes, <strong>de</strong> Eurípi<strong>de</strong>s — ou <strong>de</strong> uma anomalia no sentir,<br />

isto é, da apatia — é o caso <strong>de</strong> Hipólito, igualmente <strong>de</strong> Eurípi<strong>de</strong>s, cujo probl<strong>em</strong>a não é não<br />

amar mulheres, mas não amar ninguém, não sentir. Este aspecto conduz naturalmente à<br />

suposição <strong>de</strong> que a tragédia sugere, directa ou indirectamente, um programa educativo<br />

sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> domínio das paixões, ou, como diz Aristóteles, <strong>de</strong> ter a disposição<br />

correcta face às paixões e acções, aspecto que não quero disputar e me parece efectivo.<br />

iii. A posição <strong>de</strong> Aristóteles na Poética segundo o qual «a tragédia é a imitação <strong>de</strong> uma acção<br />

elevada e completa, <strong>de</strong> uma certa extensão, (…) imitação que é feita por personagens <strong>em</strong> acção (…)<br />

e que suscitando a pieda<strong>de</strong> e o t<strong>em</strong>or, opera a catarse apropriada a tais <strong>em</strong>oções» (1449b 24-27).<br />

iv. Um sentido <strong>de</strong>ficiente <strong>de</strong> catarse, conceito que Aristóteles nunca esclarece na Poética e que é<br />

entendido sobretudo como alívio psicológico <strong>de</strong>corrente da expressão <strong>de</strong> <strong>em</strong>oções retidas no indivíduo<br />

e, <strong>em</strong> nome das suas supostas potencialida<strong>de</strong>s educativas, mecanismo psicológico e educativo, a<strong>de</strong>quado<br />

à vida quotidiana, para lidarmos com o s<strong>em</strong>pre ameaçador <strong>de</strong>scontrole da nossa vida passional.<br />

Ora o que os dois aspectos finais não cont<strong>em</strong>plam é que para Aristóteles as <strong>em</strong>oções<br />

são fundamentalmente racionais, i. e., assentam <strong>em</strong> crenças que as justificam e <strong>de</strong>terminam o<br />

seu carácter específico. Na realida<strong>de</strong>, segundo este ponto <strong>de</strong> vista, chorar s<strong>em</strong> porquê é uma<br />

invenção da melancolia romântica, uma preguiça voluptuosa do espírito ou uma patologia<br />

hormonal. Dizer que as <strong>em</strong>oções são racionais não é excluir a formação <strong>de</strong> <strong>em</strong>oções irracionais,<br />

27


é apenas dizer que elas têm causas e razões, admitindo no entanto a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> n<strong>em</strong><br />

s<strong>em</strong>pre as suas causas ser<strong>em</strong> as suas razões. Para Aristóteles, há s<strong>em</strong>pre um porquê, mesmo<br />

que esse porquê não justifique realmente a <strong>em</strong>oção que se verifica e, portanto, ela precise <strong>de</strong><br />

ser corrigida, i. e., esclarecida, ou, por outras palavras, objecto <strong>de</strong> uma catarse, uma correcção<br />

crítica e cognitiva que encerra aquela ocorrência, que encerra a tragédia, que t<strong>em</strong> um princípio,<br />

um meio e um fim, no teatro. A existir algum valor educativo da tragédia, o valor é este: a<br />

experiência da tragédia, incluindo as <strong>em</strong>oções que <strong>de</strong>spoleta, é contida, específica e não é a<strong>de</strong>quada<br />

à vida quotidiana. Como diz Jonathan Lear, no mais influente ensaio sobre catarse que conheço:<br />

O prazer trágico <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> crucialmente da crença <strong>de</strong> que estamos a respon<strong>de</strong>r <strong>em</strong>ocionalmente a uma mimesis <strong>de</strong><br />

eventos trágicos. S<strong>em</strong> esta crença, o prazer trágico é impossível. Por conseguinte, a condição — <strong>de</strong> que a audiência<br />

acredite que os eventos trágicos podiam acontecer-lhe — <strong>de</strong>ve ser interpretada <strong>de</strong> um modo que não sugira que<br />

a pessoa virtuosa, que não sinta pieda<strong>de</strong> e t<strong>em</strong>or na vida quotidiana, está <strong>de</strong> certa maneira a excluir-se <strong>de</strong> uma<br />

resposta <strong>em</strong>ocional a<strong>de</strong>quada à sua situação. É completamente anti-Aristotélico supor que o que sentimos no teatro<br />

é o que <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os sentir na vida real, mas por alguma razão não sentimos. (333)<br />

A pieda<strong>de</strong> e o t<strong>em</strong>or são <strong>em</strong>oções trágicas, e elas não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m essencialmente, como, na<br />

senda platónica, disse Brecht, entre outros, da ilusão, da i<strong>de</strong>ntificação, da <strong>em</strong>patia, da <strong>em</strong>briaguez<br />

dionisíaca ou do entusiasmo, ou como afirmou S. T. Coleridge, <strong>de</strong> uma suspension of disbelief, <strong>de</strong>corr<strong>em</strong><br />

sim da consciência <strong>de</strong> que se está a assistir a uma mimese e não à vida. Em vez <strong>de</strong> ilusão, há sim po<strong>de</strong>r<br />

retórico da imag<strong>em</strong>, do gesto e da acção, que provoca <strong>em</strong>oções que, na realida<strong>de</strong>, não correspon<strong>de</strong>m<br />

a crenças reais, mas há, por esta razão, o retorno crítico da catarse: a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que as minhas <strong>em</strong>oções<br />

só se verificam, porque eu não me i<strong>de</strong>ntifico realmente com o que estou a ver. Se assim fosse, as<br />

respostas indicadas seriam a indignação ou a repulsa, a acção solidária, a fuga, etc. Aristóteles é,<br />

nesta versão, mais brechtiano do que Brecht ele próprio. Assumir que existe ilusão é equivalente<br />

a dizer que um fumador só fuma, por <strong>em</strong>patia com outros fumadores ou porque está iludido <strong>em</strong><br />

relação aos malefícios do tabaco ou por não compreen<strong>de</strong>r os alertas nos maços <strong>de</strong> tabaco, ou que<br />

eu, que até me acho tão elegante e <strong>em</strong> forma, e <strong>em</strong> conformida<strong>de</strong> fico b<strong>em</strong> disposto, apesar <strong>de</strong> olhar<br />

para mim todos os dias e conferir o meu peso periodicamente na balança, estou iludido acerca do<br />

meu olhar e dos dados da minha balança. Num certo sentido, é exactamente o contrário: a razão<br />

por que me acho tão elegante e <strong>em</strong> forma é exactamente porque estou absolutamente certo acerca<br />

da verda<strong>de</strong> nua e crua do meu corpo. Quer isto dizer que a minha crença é racional? Não, mas<br />

também não quer dizer que eu não saiba porque não é, isto é, que eu não saiba porque é irracional.<br />

É claro que esta posição não é confortável — é s<strong>em</strong>pre mais fácil dizer que não me encontrava <strong>em</strong><br />

mim ou que estava iludido — e po<strong>de</strong> levantar alguns probl<strong>em</strong>as éticos — nomeadamente, o facto<br />

<strong>de</strong> fazermos certas coisas que não serv<strong>em</strong> propriamente para nada e on<strong>de</strong> nos acontec<strong>em</strong> coisas<br />

infundas, mas não inexplicáveis —, mas não <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cepção cognitiva, <strong>em</strong> que os sujeitos<br />

se encontram num momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio <strong>em</strong>ocional colectivo do qual <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> a fruição da obra.<br />

Com <strong>de</strong>zoito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e numa cida<strong>de</strong>, poeticamente associada à tragédia da apaixonada<br />

e suicida Dido e do piedoso Eneias <strong>de</strong> cujo <strong>de</strong>sfecho <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>u, segundo Virgílio, a fundação da<br />

cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Roma e, <strong>em</strong> última análise, a configuração política do Império e, portanto, o mundo<br />

Oci<strong>de</strong>ntal tal como hoje o conhec<strong>em</strong>os, o jov<strong>em</strong> Agostinho, confessa mais tar<strong>de</strong> o Bispo <strong>de</strong> Hipona,<br />

que viria a ser S. Agostinho, <strong>de</strong>batia-se entre a luxúria, as paixões e o prazer pelo teatro. Na verda<strong>de</strong>,<br />

agrada-me pensar que Agostinho, que lera os clássicos e certamente a Eneida, mais não fazia que<br />

viver uma parte da vida que Eneias muito provavelmente nunca viveu. Também ele viria a <strong>de</strong>ixar<br />

Cartago, a tentadora, «uma sertã [sartago] <strong>de</strong> amores impuros» (Agostinho III, 1), para encontrar, no<br />

continente europeu, a conversão, a santida<strong>de</strong> e um outro império que então começava a formar-se<br />

da ruína e <strong>de</strong>cadência, também das paixões, do que Eneias começara: o império da cristanda<strong>de</strong>.<br />

Esta seria no entanto outra história, mas o facto é que o Bispo <strong>de</strong> Hipona, mais platónico do que<br />

aristotélico, e imbuído da paixão cristã, sintetiza b<strong>em</strong> os probl<strong>em</strong>as que t<strong>em</strong>os vindo a apresentar<br />

28


e introduz, através da exposição dos seus dil<strong>em</strong>as, aspectos da mo<strong>de</strong>rna discussão à volta das<br />

respostas <strong>em</strong>ocionais à ficção:<br />

Arrebatavam-me os espectáculos teatrais, cheios <strong>de</strong> imagens das minhas misérias e <strong>de</strong> incentivos do fogo das<br />

minhas paixões. Mas o que é que o hom<strong>em</strong> quer sofrer quando cont<strong>em</strong>pla coisas tristes e trágicas que no entanto<br />

<strong>de</strong> modo algum quisera pa<strong>de</strong>cer? Contudo quer o espectador sofrer com elas e todavia este sofrimento é o seu<br />

<strong>de</strong>leite. Que é isto senão uma loucura incompreensível? [Quid est nisi mirabilis insania?] Porque tanto mais nos<br />

comov<strong>em</strong>os com essas coisas quanto menos livre se está <strong>de</strong>sses afectos, se b<strong>em</strong> que, quando alguém as pa<strong>de</strong>ce, se<br />

cham<strong>em</strong> misérias, e quando alguém as compa<strong>de</strong>ce nos outros, misericórdia.<br />

Porém, que misericórdia [po<strong>de</strong> incidir] <strong>em</strong> coisas fingidas e cénicas? [Sed qualis tan<strong>de</strong>m misericordia in rebus<br />

fictis et scenicis?] Porque ali não se provoca a que o espectador socorra alguém, senão que se convida a que<br />

somente se compa<strong>de</strong>ça, favorecendo tanto mais o autor das ficções quanto mais com elas se promove o<br />

sentimento. (III, 2).<br />

Parece que S. Agostinho repete apenas a retórica platónica que justifica a imputação<br />

<strong>de</strong> «loucura incompreensível» à experiência perante o objecto teatral, mas o argumento é<br />

claro relativamente ao facto <strong>de</strong> não haver qualquer ilusão e é justamente por isso que é difícil<br />

explicar e justificar as nossas <strong>em</strong>oções. É portanto outra coisa que procuramos ou quer<strong>em</strong>os<br />

sofrer. Será apenas o próprio sofrimento? Será a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma coisa injustificável<br />

e irracional? Talvez seja, como sugere Stanley Cavell a propósito das personagens <strong>de</strong><br />

Shakespeare, a liberda<strong>de</strong> insana <strong>de</strong> recusar aquilo acerca do qual se conhece s<strong>em</strong>pre a verda<strong>de</strong>.<br />

Nesta conferência, ensaiei um argumento e procurei explicar directamente algumas coisas,<br />

mas tentei também explicar outras coisas, s<strong>em</strong> que nunca as tenha exposto. Refiro apenas quatro<br />

que podiam muito b<strong>em</strong> ser o motivo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma outra geografia: a selecção al<strong>em</strong>ã não<br />

encanta, mas, no fim, ganha o campeonato do Mundo, não preciso <strong>de</strong> imaginar Shakespeare a<br />

viver na Itália, mas é-me impossível conceber a paixão <strong>de</strong> Romeu e Julieta na Escócia, spleen é<br />

intraduzível para Bau<strong>de</strong>laire e melancolia é apenas uma aproximação melancólica, e Cesário Ver<strong>de</strong>,<br />

que acredita que o <strong>de</strong>sejo é um efeito da poesia, diz àquela «gélida mulher bizarramente estranha»:<br />

Não me imagine um doido. Eu vivo como um monge,<br />

No bosque das ficções, ó gran<strong>de</strong> flor do Norte!<br />

E, ao persegui-la, penso acompanhar <strong>de</strong> longe<br />

O sossegado espectro angélico da Morte! (71)<br />

29


NOTAS<br />

(1) Este aspecto regista ainda uma importância supl<strong>em</strong>entar <strong>em</strong> Aristóteles que, na Historia Animalium,<br />

reconhece <strong>em</strong> diferentes passagens a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os animais se <strong>em</strong>ocionar<strong>em</strong>, precavendo-se,<br />

no entanto, contra a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os mesmos possuír<strong>em</strong> uma faculda<strong>de</strong> intelectiva, ou seja, <strong>de</strong><br />

essas <strong>em</strong>oções correspon<strong>de</strong>r<strong>em</strong> a uma activida<strong>de</strong> racional. Não correspon<strong>de</strong>ndo a uma activida<strong>de</strong><br />

racional, elas não são, todavia, uma mera comodida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scritiva do comportamento animal, mas<br />

um produto da fantasia, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir fantasmas, que Aristóteles reconhece aos animais.<br />

Aparent<strong>em</strong>ente os animais <strong>em</strong>ocionam-se perante um estímulo perceptual <strong>de</strong>terminado, um<br />

aparecimento, um fantasma, a visão <strong>de</strong> uma presa ou <strong>de</strong> um predador, por ex<strong>em</strong>plo, que os põe <strong>em</strong><br />

movimento <strong>de</strong> ataque ou <strong>de</strong> fuga e, por isso, as <strong>em</strong>oções dos animais não são <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> crenças,<br />

aspecto importante para Aristóteles que ver<strong>em</strong>os mais à frente, mas são indistinguíveis da própria<br />

imag<strong>em</strong>, aparecimento, que as provoca, i. e., são elas próprias fantasmas: «(…) Aristóteles reservou-se<br />

a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atribuir o aparecimento [appearance] (phantasia) aos animais e é digno <strong>de</strong> menção<br />

o quão frequente “aparecimento” é o termo que ele usa na <strong>de</strong>finição das <strong>em</strong>oções» (Sorabji 57).<br />

(2) Embora referindo-se principalmente à dor física, Fre<strong>de</strong>rico Lourenço diz na Introdução<br />

à sua tradução da Íliada: «A capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentir mais dor que o comum dos mortais<br />

é apanágio do hom<strong>em</strong> homérico. Muitas vezes, <strong>em</strong>bora os homens já tenham dores<br />

suficientes, somos postos perante intervenções divinas que visam intensificar essa dor.» (14)<br />

(3) É neste momento que, para Artaud, nasce o teatro: «Se o teatro essencial se compara à<br />

peste não é por ser contagioso mas por, tal como a peste, ser a revelação, a apresentação,<br />

a exteriorização dum profundo íntimo <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong> latente, por meio da qual todas as<br />

potencialida<strong>de</strong>s perversas do espírito se fixam, quer sobre um indivíduo, quer sobre um povo.» (31)<br />

(4) Esta concessão é o aspecto que permite alguma proprieda<strong>de</strong> ao argumento segundo o<br />

qual, para Platão, as paixões, quando objecto <strong>de</strong> uma educação rigorosa, também têm um<br />

conteúdo cognitivo e avaliativo e por conseguinte partilham da racionalida<strong>de</strong>. Ver a este<br />

propósito e para posições substancialmente diferentes, Alexan<strong>de</strong>r Nehamas, «Pity and fear»,<br />

e Stephen Halliwell, «Pleasure, un<strong>de</strong>rstanding, and Emotion in Aristotle’s Poetics», in Essays<br />

on Aristotle’s Poetics, edited by Amélie O. Rorty, Berkeley, Princeton: Princeton UP, 1992.<br />

(5)Esta é a razão pela qual, para Platão, a escravatura não é um probl<strong>em</strong>a, uma vez que na<br />

realida<strong>de</strong> já todos nós somos escravos dos nossos apetites e paixões. Na realida<strong>de</strong>, a nossa<br />

missão é vermo-nos livres <strong>de</strong>ssa escravatura o melhor possível. Se isso só se verificar, se<br />

nos submetermos a uma espécie <strong>de</strong> sist<strong>em</strong>a esclavagista libertador <strong>em</strong> que somos escravos,<br />

não já dos nossos apetites, paixões e <strong>de</strong>sejos, mas do filósofo governante, então esta<br />

última escravatura — uma escravatura à racionalida<strong>de</strong> — é claramente preferível, uma vez<br />

que «po<strong>de</strong> proporcionar eleutheria [liberda<strong>de</strong>] e resgatar da vergonha» (Nussbaum 408).<br />

(6)Os representantes mais conhecidos são Wayne C. Booth e Martha C. Nussbaum.<br />

30


OBRAS CITADAS<br />

Agostinho. Obras Completas <strong>de</strong> San Agustin II — Las Confesiones. Texto Bilingue. Edición crítica y<br />

anotada por Angel custodio Vega, O. S. A. Madrid: BAC, 1991.<br />

An Intermediate Greek-English Lexicon. Foun<strong>de</strong>d upon Li<strong>de</strong>ll & Scoott’s Greek-English Lexicon.<br />

Oxford: Clarendon Press, 1st edition, 1889.<br />

Antologia da Poesia Espanhola do Siglo <strong>de</strong> Oro — Primeiro Volume Renascimento. Selecção e tradução<br />

José Bento. Lisboa: Assírio & Alvim, 1993.<br />

Aristóteles. The “Art” of Rhetoric. Trans. John Henry Freese. Loeb edition. London, Cambridge,<br />

Mass.: Harvard UP, [1926] 1967.<br />

Artaud, Antonin. «O teatro e a peste». O Teatro e o Seu Duplo. Tradução Fiama Hasse Pais Brandão.<br />

Lisboa: Fenda edições, 1996. 17-32.<br />

Bíblia Sagrada. Franciscanos Capuchinhos. Lisboa: Difusora Bíblica, 2006.<br />

Borges, Jorge Luís. Obras Completas 1952-1972. Vol. II. Lisboa: Círculo <strong>de</strong> Leitores, [1989] 1998.<br />

Dickens, Charles. Os Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Pickwick. Tradução <strong>de</strong> Margarida Vale <strong>de</strong> Gato. Lisboa: Tinta-dachina,<br />

2009.<br />

Homero. Íliada. Tradução Fre<strong>de</strong>rico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2005.<br />

Hugo, Victor. Les Cont<strong>em</strong>plations. Paris: Flammarion, 1995.<br />

Lear, Jonathan. «Katharsis». Essays on Aristotle’s Poetics. Edited by Amélie O. Rorty. Princeton:<br />

Princeton UP, 1992. 315-340.<br />

Lourenço, Fre<strong>de</strong>rico. «Introdução». Íliada. Tradução Fre<strong>de</strong>rico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2005.<br />

7-25.<br />

Nussbaum, Martha. «Shame, separateness, and political unity». Essays on Aristotle’s Ethics. Edited<br />

by Amélie O. Rorty. Berkeley, Los Angeles and London: University of California Press, 1980.<br />

395-435.<br />

Sorabji, Richard. Animal Minds & Human Morals — The Origins of Western Debate. Ithaca, New<br />

York: Cornell UP, 1993.<br />

Snell, Bruno. A Descoberta do Espírito. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, [1975] 1992.<br />

Sontag, Susan. A Doença como Metáfora e A Sida e as Suas Metáforas. Lisboa: Quetzal, 1998.<br />

31


SABINA, SALOMÉ NO ALGARVE<br />

Armando Nascimento Rosa<br />

Proémio (1)<br />

Do mesmo modo que Tchekov insistia <strong>em</strong> ver comédias nos dramas longos que compôs,<br />

também Teixeira Gomes, um ano <strong>de</strong>pois da morte do dramaturgo russo, faz uso <strong>de</strong>ssa lição, nesta<br />

sua filha única para teatro, ao <strong>de</strong>scobrir a fonte do risível <strong>em</strong> tudo o que à comédia humana diz<br />

respeito. Para isso muito contribui o traço <strong>de</strong> caricatura com o qual o autor <strong>de</strong>senha esta galeria<br />

paródica <strong>de</strong> personagens, na província lusitana e algarvia, <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> uma fascinante e perigosa<br />

estrangeira, cujo nome próprio <strong>de</strong> latinas ressonâncias <strong>de</strong>nuncia o espírito pagão e amoral que<br />

a move. Jorge <strong>de</strong> Sena afirmou estarmos perante «uma das peças europeias mais inquietantes<br />

do teatro mo<strong>de</strong>rno» (Sena, 1981: p. 171). Sabina, mais do que filha <strong>de</strong> Hedda Gabler s<strong>em</strong> sinais<br />

suicidários, é sobretudo uma her<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Nietzsche, agindo para além do b<strong>em</strong> e do mal. E o autor<br />

diverte-se a encontrar uma exótica proveniência biográfica para a sua protagonista, que inclui,<br />

antes da boémia parisiense, uma infância brasileira nas selvas do Mato Grosso, tendo por pai um<br />

boticário e alquimista al<strong>em</strong>ão, que lega à filha duas cápsulas <strong>de</strong> veneno mortal, correspon<strong>de</strong>ntes às<br />

pistolas que Ibsen <strong>de</strong>stina à sua Hedda Gabler, filha <strong>de</strong> militar. Cerebral e narcísica como Hedda,<br />

Sabina partilha com ela uma erosão afectiva, ou seja, só se ama a si mesma. Mas não há aqui brumas<br />

escandinavas que a <strong>em</strong>purr<strong>em</strong> para a morte. O sol mediterrânico inunda por inteiro o gozo pela<br />

vida que Sabina celebra, <strong>de</strong>sta vez através <strong>de</strong> uma versão on<strong>de</strong> se procurou libertar o texto daquilo<br />

que Urbano Tavares Rodrigues <strong>de</strong>signou por «<strong>de</strong>smandos lírico-retóricos» (in Teixeira-Gomes,<br />

1987: p. 10), próprios <strong>de</strong> um prosador <strong>de</strong> excepção, seduzido ainda pelo melodrama oitocentista.<br />

Para esta singular amazona, o final da peça faz adivinhar o começo <strong>de</strong> novas aventuras <strong>de</strong><br />

donjuanismo f<strong>em</strong>inino que cada espectador imaginará para ela, <strong>em</strong> enredos que Teixeira Gomes<br />

nos convida a inventar, fazendo-nos a todos cúmplices da sua surpreen<strong>de</strong>nte criação dramática.<br />

1.Este proémio, sob o título Sabina, qu<strong>em</strong> és tu?, foi redigido inicialmente para a folha <strong>de</strong> sala do espectáculo Sabina<br />

Freire, <strong>de</strong> Manuel Teixeira Gomes, numa versão dramatúrgica minha, realizada a convite do encenador Celso Cleto, que<br />

a pôs na cena, numa produção do Dramax, integrada nas com<strong>em</strong>orações do centenário da implantação da República. O<br />

espectáculo foi apresentado no Auditório Municipal Eunice Muñoz, <strong>em</strong> Oeiras, entre 5 <strong>de</strong> Outubro e 12 <strong>de</strong> Dez<strong>em</strong>bro<br />

<strong>de</strong> 2010, com o seguinte elenco <strong>de</strong> intérpretes: Sofia Alves (Sabina Freire); Manuela Maria (Maria Freire); Heitor<br />

Lourenço (Júlio Freire); Vítor <strong>de</strong> Sousa (Doutor Fino); Ricardo Castro (Epifânio); Alberto Villar (Procurador Ferreira);<br />

Igor Sampaio (Padre Correia); Fernando Ferrão (Ministro); Pedro Loureiro (Augusto César); e Rita Cleto (Josefina).<br />

32


«Tanto amou Teixeira Gomes a sua provocante Sabina que não poucas vezes noutras obras a invoca para a fazer<br />

exprimir conceitos que ao sujeito da enunciação po<strong>de</strong>riam caber. De uma costela a arrancou, da sua costela<br />

viajante, sibarítica, imoralista e radicalmente irónica.»<br />

Urbano Tavares Rodrigues, Prefácio a Sabina Freire (1987: p. 8)<br />

Sabina Freire é uma obra cuja singularida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser apreciada a vários níveis. Em<br />

primeiro lugar, trata-se da única peça <strong>de</strong> teatro que Manuel Teixeira Gomes (1860-1941)<br />

escreveu e fez publicar <strong>em</strong> 1905 (data que é, como se vê, anterior <strong>em</strong> alguns anos ao seu<br />

envolvimento político activo durante a I República, que o levará a um curto exercício do<br />

cargo <strong>de</strong> presi<strong>de</strong>nte da República, seguido do seu abandono <strong>de</strong>finitivo do país, rumo à<br />

Argélia).<br />

Mas para além <strong>de</strong> ser a única criação teatral do autor, Sabina Freire constitui também<br />

uma peça ímpar, se comparada com a dramaturgia do seu t<strong>em</strong>po. Em certa medida, ela<br />

manifesta uma clara transição estética epocal, on<strong>de</strong> somos tentados a observar, dado o<br />

confronto entre as suas características intrínsecas e a data da respectiva composição e<br />

edição, a passag<strong>em</strong> <strong>de</strong> test<strong>em</strong>unho dramatúrgico entre séculos, on<strong>de</strong> o séc. XIX se <strong>de</strong>spe<strong>de</strong><br />

anunciando o séc. XX. Conviv<strong>em</strong> na peça duas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> discurso teatral que, cada<br />

uma a seu modo, acusam um passado oitocentista que as alimentou, b<strong>em</strong> como algum<br />

do presente e futuro novecentistas on<strong>de</strong> essas mesmas modalida<strong>de</strong>s irão conhecer novas<br />

abordagens. O melodrama e a comédia sociocrítica são duas linhas <strong>de</strong> comunicação<br />

dramatúrgica que coabitam na operativida<strong>de</strong> cénica da peça. Já <strong>em</strong> 1977, numa breve<br />

reflexão crítica <strong>em</strong> torno da tradução francesa da peça, Osório Mateus avaliava estas duas<br />

coor<strong>de</strong>nadas: «(...) o lugar justo do fascínio e também da dificulda<strong>de</strong> que no texto (...) se<br />

encontram (…) surge-nos no antagonismo que toda a peça edifica entre a comédia <strong>de</strong><br />

costumes <strong>de</strong> que, chefiada pela admirável e hedionda figura <strong>de</strong> D. Maria Freire, se exibe<br />

uma longa teoria <strong>de</strong> personagens (o padre, o doutor, o político, o conquistador, a criadita<br />

palonça) e o melodrama tenebroso e romanesco (menos à Ibsen, talvez, do que o que<br />

vulgarmente se t<strong>em</strong> andado a dizer) centrado nas figuras <strong>de</strong> Sabina e Júlio». (Mateus, 1977:<br />

p. 127)<br />

Esta <strong>de</strong>marcação <strong>de</strong> afastamento que Osório Mateus sugere, entre a peça <strong>de</strong> Teixeira<br />

Gomes e o teatro <strong>de</strong> Ibsen, <strong>de</strong>ntro da linha melodramática i<strong>de</strong>ntificada, parece-me justificarse<br />

bastante mais <strong>em</strong> termos da linguag<strong>em</strong> que o autor <strong>de</strong>senvolve nas cenas <strong>de</strong> diálogo<br />

e/ou monólogo com Sabina e Júlio. É a linguag<strong>em</strong>, mercê dos já citados <strong>de</strong>smandos<br />

«lírico-retóricos», conforme Urbano Tavares Rodrigues os <strong>de</strong>signou, que pontualmente<br />

envelhece esta peça, não fazendo jus à energia expressiva que a construção das personagens<br />

<strong>de</strong> Sabina e <strong>de</strong> Júlio contém. E neste sentido, é Júlio a personag<strong>em</strong> mais prejudicada<br />

com tais <strong>de</strong>smandos. Sob o pretexto <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> um poetastro menor que Teixeira<br />

Gomes preten<strong>de</strong> ferozmente parodiar, exist<strong>em</strong> falas <strong>de</strong> Júlio cuja verbosida<strong>de</strong> pseudolírica<br />

sucumbe ao patético e afasta a peça <strong>de</strong> obras com as quais a mesma peça e seus<br />

habitantes dramáticos também dialogam ou faz<strong>em</strong> pressentir efectivamente; cham<strong>em</strong>-se<br />

eles Strindberg ou We<strong>de</strong>kind, Schnitzler ou Ibsen. Não é <strong>em</strong> vão que a arguta visão crítica<br />

<strong>de</strong> Jorge <strong>de</strong> Sena arrisca esse gesto opinativo, ao afirmar que estamos perante uma das<br />

33


peças europeias mais perturbadoras do seu t<strong>em</strong>po.<br />

Vejamos então algo dos el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> enredo e personagens que a arquitectam. A<br />

acção <strong>de</strong>corre no Portimão do último quartel do séc. XIX, <strong>em</strong> casa da matriarca Maria<br />

Freire, abastada proprietária <strong>de</strong> terras, cuja riqueza material é directamente proporcional<br />

à sua insuportável avareza (supomo-la viúva, <strong>em</strong>bora não haja notícia na peça acerca do<br />

marido morto). Júlio, o filho <strong>de</strong> Maria Freire e <strong>de</strong>sse pai ausente, é um jov<strong>em</strong> lunar, poeta<br />

sensual, psicologicamente frágil e imaturo, que encontrou Sabina, por qu<strong>em</strong> se apaixona<br />

s<strong>em</strong> r<strong>em</strong>édio, numa viag<strong>em</strong> a Paris. Bela, sedutora e cerebral, Sabina é uma mulher felina<br />

e donjuanesca, <strong>de</strong> naturalida<strong>de</strong> brasileira com ascendência al<strong>em</strong>ã por parte do pai; a pátria<br />

<strong>de</strong> um Nietzsche que tão presente está na amoralida<strong>de</strong> cáustica do seu pensamento e<br />

personalida<strong>de</strong>. Júlio trá-la para com ela viver um casamento improvável sob o materno<br />

tecto algarvio. Em torno <strong>de</strong> Maria Freire, gira uma corte <strong>de</strong> personagens, seus visitantes<br />

habituais, que não se <strong>em</strong>ancipam da caricatura cómica e grotesca, mas que acabam<br />

por <strong>de</strong>senhar as linhas <strong>de</strong> comédia sociocrítica que a peça explora, com um sentido <strong>de</strong><br />

oportunida<strong>de</strong> certeira: o Dr. Fino, médico pessoal da anfitriã, inflado pelo ascen<strong>de</strong>nte que<br />

a sua situação profissional lhe proporciona sobre os <strong>de</strong>mais; o Padre Correia, pároco <strong>de</strong><br />

província sobre o qual recai uma virulenta nota anticlerical, retratado como <strong>de</strong>sprovido<br />

<strong>de</strong> quaisquer virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprendimento cristão, além <strong>de</strong> sublinhar o facto <strong>de</strong> viver<br />

<strong>em</strong> explícita mancebia com uma ama que lhe trata do viver quotidiano; o funcionário<br />

Epifânio, caricatura risível <strong>de</strong> galã provinciano, cuja presença atravessa toda a acção da<br />

peça, produzindo alguns dos melhores momentos <strong>de</strong> comédia que esta possui, a começar<br />

pela primeira cena. Numa segunda série <strong>de</strong> visitantes, t<strong>em</strong>os as personagens <strong>de</strong> mais ténue<br />

presença cénica: o sénior Augusto César, que é pouco mais que um eco patético dos<br />

restantes, s<strong>em</strong> individualida<strong>de</strong> que o auto<strong>de</strong>termine; o jov<strong>em</strong> Jozézinho Soares, comparsa<br />

<strong>de</strong> Epifânio, que ambiciona um posto <strong>de</strong> secretário; o procurador Ferreira, compadre <strong>de</strong><br />

Maria Freire, que assessora esta na gestão dos bens, e que somente surge numa curta cena<br />

<strong>em</strong> diálogo com a sua comadre a qu<strong>em</strong> muitos favores <strong>de</strong>ve; e o Ministro, que compõe o<br />

perfil, infelizmente tão comum, do ignorante convencido que ocupa um cargo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

<strong>em</strong> terras lusitanas. O Ministro intervém na acção, protagonizando a única <strong>de</strong>spesa digna<br />

<strong>de</strong> nota que Maria, aparent<strong>em</strong>ente, faz pelo filho, ao promover <strong>em</strong> sua casa um dispendioso<br />

baile <strong>de</strong> recepção a tão ilustre visitante; na esperança <strong>de</strong> que este arranje a Júlio uma<br />

colocação como diplomata numa capital europeia – <strong>de</strong>sejo que é conseguido, mas que<br />

não se concretizará, dado o trágico <strong>de</strong>sfecho da acção <strong>de</strong>sta peça a que o autor chamou<br />

comédia <strong>em</strong> três actos. E quanto a esta classificação genológica, é interessante observar a<br />

convergência, por distintos caminhos, resultante <strong>de</strong>sta reivindicação <strong>de</strong> comédia, por parte<br />

<strong>de</strong> Teixeira Gomes e <strong>de</strong> Tchekov. Em ambos, a risibilida<strong>de</strong> do espectáculo humano impele<br />

à <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> comédia para obras que integram ingredientes trágicos ou manifestamente<br />

dramáticos, que melhor se enquadrariam no <strong>de</strong>nominador da tragicomédia, que lhes é<br />

comum, não obstante o que as distingue. Na elencag<strong>em</strong> das personagens, resta-nos a criada<br />

Josefina, cuja intervenção muito discreta na acção não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> sublinhar a sua contida<br />

rebeldia face à patroa somítica, b<strong>em</strong> como o seu sonho <strong>de</strong> evasão, ao solicitar que Sabina<br />

a leve, na tar<strong>de</strong> da sua partida rumo a Lisboa.<br />

Emoldurado pelas conversas na sala <strong>de</strong> estar da terratenente, com toda esta galeria<br />

<strong>de</strong> figuras, o fulcro da acção posiciona-se no duelo entre Sabina e Maria Freire, um duelo<br />

mediado por Júlio, que acaba por ser a vítima sacrificial do combate. Transplantada num<br />

lugar on<strong>de</strong> é inteiramente estrangeira, o fito <strong>de</strong> Sabina é encontrar modo <strong>de</strong> usurpar a<br />

34


fortuna <strong>de</strong> Maria Freire, que esta afivela s<strong>em</strong> concessões. Para isso, a sua arma possível<br />

é o marido Júlio. Mas este recua aterrorizado quando enten<strong>de</strong> enfim que o objectivo<br />

radical da sua amada t<strong>em</strong>ível é simplesmente assassinar-lhe a mãe por envenenamento. A<br />

partir <strong>de</strong>sse momento, ao perceber que Júlio nunca po<strong>de</strong>rá cumprir o papel que para ele<br />

<strong>de</strong>stinou no seu plano <strong>de</strong> eliminar a sogra, Sabina, a f<strong>em</strong>me fatale, <strong>de</strong>sfaz a ficção do seu<br />

casamento com Júlio, e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixá-lo, partindo sozinha <strong>de</strong> comboio para Lisboa, ao<br />

encontro <strong>de</strong> um antigo amante que a espera na estação do Barreiro. Antes disso porém,<br />

ela t<strong>em</strong> a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> envenenar o chá <strong>de</strong> Maria Freire, mas Júlio ao test<strong>em</strong>unhá-lo<br />

acaba por ser ele a ingerir a bebida. O filho <strong>de</strong> Maria agoniza e morre na presença <strong>de</strong> todos,<br />

confessando que se suicidou <strong>em</strong> consciência, <strong>de</strong>ste modo pretegendo duplamente a mãe (a<br />

qu<strong>em</strong> o chá se <strong>de</strong>stinava) e a mulher <strong>em</strong> fuga, ao forjar o alibi perfeito para esta se evadir<br />

tranquilamente.<br />

Nenhuma das duas mulheres a que ele se imola o chorará: n<strong>em</strong> a sua mãe terrível<br />

Maria Freire, que agra<strong>de</strong>ce a Deus o tê-lo levado, visto que assim a protegeu <strong>de</strong> que ele lhe<br />

venha a ameaçar a fortuna, como her<strong>de</strong>iro que era; n<strong>em</strong> Sabina, que já <strong>de</strong>u por encerrado<br />

este período da sua existência, e preten<strong>de</strong> apenas parar <strong>em</strong> Silves, para do alto do castelo<br />

se <strong>de</strong>spedir do Algarve.<br />

A evocação <strong>de</strong> ecos, paralelismos e analogias dramatúrgicas e/ou mitocríticas é<br />

assinalável, tendo <strong>em</strong> conta a riqueza <strong>de</strong> imaginário que a obra projecta. O próprio autor<br />

sugere, pela boca da protagonista, uma afinida<strong>de</strong> mítica que ela terá com Medusa, que<br />

magnetiza, assusta e petrifica qu<strong>em</strong> a olha, com a sua cabeleira <strong>de</strong> serpentes vivas.<br />

Sabina Freire configura uma representação da mulher como ser atractivo e perigoso,<br />

que oscila entre a misoginia e o en<strong>de</strong>usamento sado-masoquista <strong>de</strong> uma super-mulher<br />

omnipotente, tornada <strong>em</strong> sexo forte por via <strong>de</strong> uma androginia psíquica e comportamental.<br />

De resto, este aspecto é partilhado <strong>em</strong> regimes diversos pela jov<strong>em</strong> Sabina e pela matriarca<br />

Maria Freire; as duas personagens adversárias e as mais po<strong>de</strong>rosas da peça, mas também<br />

as mais ameaçadoras para todos os que as ro<strong>de</strong>iam, cada uma a seu modo. Ambas são<br />

<strong>em</strong>ocionalmente frias, <strong>de</strong> um narcisismo que as torna letais para os outros, mas não para si<br />

próprias. Maria Freire adora a fortuna que amealhou e tudo faz para a ampliar e conservar;<br />

Sabina ama a fortuna que é a sua condição <strong>de</strong> belo espécime humano do género f<strong>em</strong>inino,<br />

guardando intacto o vínculo com a natureza, amoral e selvag<strong>em</strong>. Como escrevia Carlos<br />

Malheiro Dias, no entusiasmado ensaio que publicou aquando da primeira edição da<br />

peça, <strong>em</strong> 1905: «Sabina é ainda a fera branca das cavernas, a troglodita vivendo a lei da<br />

natureza, fazendo o amor como as leoas e tendo os mesmos escrúpulos <strong>de</strong> uma pantera.»<br />

(in Teixeira-Gomes, 1987: p. 192) Mas para além disto, aquilo que distingue esta filha <strong>de</strong><br />

Nietzsche como vencedora, é o facto <strong>de</strong> aliar este primitivismo amoral a uma inteligência<br />

<strong>de</strong> estratega.<br />

Jogando com personagens f<strong>em</strong>ininas <strong>de</strong>terminantes do drama mo<strong>de</strong>rno finissecular<br />

<strong>de</strong> oitocentos, Sabina é já, por ex<strong>em</strong>plo, uma Menina Júlia inteiramente superada, sendo<br />

legível o que Teixeira Gomes cita nela <strong>de</strong> uma Hedda Gabler mas que, no mesmo plano <strong>de</strong><br />

comparação com a Menina Júlia, está longe <strong>de</strong> pensar sequer no suicídio, tal é a solarida<strong>de</strong><br />

hedonista e predadora que caracteriza a energia indomável que ela traz do Novo Mundo<br />

(esse sangue <strong>de</strong> algum avô caboclo misturado com apetites <strong>de</strong> canibal, que Sabina fantasia<br />

<strong>de</strong>scobrir <strong>em</strong> si mesma). Tal como Hedda Gabler, que herdou as duas pistolas <strong>de</strong> um pai<br />

militar, também Sabina recebeu do pai, um boticário e alquimista al<strong>em</strong>ão, duas ampolas<br />

com veneno, que promet<strong>em</strong> dois tipos diferentes <strong>de</strong> morte, uma lenta e outra fulminante.<br />

35


Nesta última, está o ácido cianídrico, a mesma substância que viria a ser utilizada pelos<br />

nazis nas câmaras <strong>de</strong> gás do genocídio, e ainda hoje serve como forma <strong>de</strong> execução <strong>de</strong><br />

con<strong>de</strong>nados à morte <strong>em</strong> alguns estados norte-americanos.<br />

Há duas figuras míticas, uma extra outra intra bíblica, que aproximo <strong>de</strong> Sabina: Lilith<br />

e Salomé. Porque acabo <strong>de</strong> privilegiar a segunda <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento da primeira? Lilith será<br />

à partida uma personalida<strong>de</strong> mítica capaz <strong>de</strong> iluminar aspectos arquetípicos que estão<br />

presentes na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sabina. A primeira mulher <strong>de</strong> Adão, que se rebela contra o jugo<br />

sexual do marido e o abandona, alheia a qualquer <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong>, partindo para o<br />

Mar vermelho na companhia <strong>de</strong> outros seres <strong>de</strong>mónicos como ela; Lilith, que não partilha<br />

da mesma natureza <strong>de</strong> Adão, porque não foi engendrada por Javé com o mesmo barro<br />

adâmico, e que será s<strong>em</strong>pre uma entida<strong>de</strong> nocturna, possessora da psique masculina, capaz<br />

<strong>de</strong> levar os homens à loucura, povoando-lhes os sonhos.<br />

Apesar das tentadoras afinida<strong>de</strong>s, não po<strong>de</strong>mos esquecer que na peça <strong>de</strong> Teixeira<br />

Gomes a figura masculina é sacrificada no altar matriarcal. A morte <strong>de</strong> Júlio afasta o<br />

<strong>de</strong>sfecho dramático <strong>em</strong> relação à fábula mítica <strong>de</strong> Adão e Lilith, já que esta última comporta<br />

o divórcio, a separação, a renúncia à procriação, mas nenhuma morte. É por isso que Salomé<br />

me parece mais propícia a uma g<strong>em</strong>inação mitocrítica, a começar nas iniciais dos nomes<br />

<strong>de</strong> ambos que são comuns a Salomé e a Jokanaan. Júlio não é um profeta, é um poeta; e<br />

a sua <strong>de</strong>pendência pela paixão física que o une a Sabina faz <strong>de</strong>le o contrário do pregador<br />

<strong>de</strong> uma religião <strong>de</strong> ascetismo. Todavia, o seu sacrifício pessoal t<strong>em</strong> algo <strong>de</strong> cristológico<br />

(Cristo morre para glorificar o pai; e Júlio morre para salvar a mãe e, consequent<strong>em</strong>ente,<br />

a mulher), e principia quando os seus padrões <strong>de</strong> conduta moral não aceitam a proposta<br />

<strong>de</strong> Sabina <strong>em</strong> assassinar Maria Freire, <strong>de</strong> modo a herdar<strong>em</strong>-lhe a fortuna <strong>de</strong> imediato. De<br />

um modo análogo, a sentença <strong>de</strong> morte <strong>de</strong> João Baptista <strong>em</strong>erge <strong>de</strong> este rejeitar qualquer<br />

hipótese <strong>de</strong> satisfazer a paixão sensual que Salomé nutre por ele.<br />

Mas Sabina, como já o referi, é uma Salomé cerebral. Conquistas amorosas não faltam<br />

no seu currículo que incluiu momentos, do seu passado boémio <strong>em</strong> França, que po<strong>de</strong>riam<br />

classificar-se <strong>de</strong> prostituição mais ou menos chique. Aquilo que ela cobiça é o po<strong>de</strong>r que os<br />

bens materiais lhe conce<strong>de</strong>riam, se Maria Freire morresse. Mas tal como na narrativa bíblica<br />

que Oscar Wil<strong>de</strong> trouxe para o teatro, também Sabina não obt<strong>em</strong> o que <strong>de</strong>seja. Salomé<br />

amou Jokanaan e apenas po<strong>de</strong> beijar a sua cabeça morta, num acto necrófilo; Sabina <strong>de</strong>sejou<br />

a fortuna <strong>de</strong> Maria e quis assassiná-la, mas apenas conseguiu que o filho <strong>de</strong>la morresse no<br />

fogo cruzado entre ambas as mulheres. Das danças magnetizantes <strong>de</strong> Salomé e Sabina<br />

(várias vezes se alu<strong>de</strong> aos seus dotes <strong>de</strong> dançarina, na peça <strong>de</strong> Teixeira Gomes, que inclui<br />

mesmo um baile no t<strong>em</strong>po dramático), <strong>em</strong>ana um fascínio potencialmente mortífero.<br />

Mas também aqui Teixeira Gomes faz ouvir na cena a sua gargalhada pagã e vitalista:<br />

Sabina esconjura e supera o <strong>de</strong>stino fúnebre da Salomé <strong>de</strong> Wil<strong>de</strong> e parte b<strong>em</strong> viva <strong>em</strong><br />

traje <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> para novas aventuras. Tendo o nome dos Freire no apelido que é título<br />

da peça, isso significa que Sabina está legalmente casada com o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> acaba<br />

por enviuvar. Seguindo o trilho dramático que o autor <strong>de</strong>ixa <strong>em</strong> aberto, po<strong>de</strong>mos mesmo<br />

imaginá-la nos braços do amante francês, que a espera no Barreiro, a solicitar a parte na<br />

herança a que t<strong>em</strong> direito legal, enquanto viúva <strong>de</strong> Júlio Freire. Fora já do t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> acção<br />

abrangido pela peça, é crível supor que Sabina venceu parte do duelo com Maria Freire,<br />

s<strong>em</strong>eando um cadáver <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> pelo caminho, como a Salomé bíblica.<br />

36


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

MATEUS, J. A. Osório. Escrita do Teatro. Amadora: Bertrand, 1977.<br />

SENA, Jorge <strong>de</strong>. Estudos <strong>de</strong> Literatura Portuguesa. Volume I [1946-69]. Lisboa: Edições 70,<br />

1981.<br />

TEIXEIRA-GOMES, Manuel. Sabina Freire. Comédia <strong>em</strong> três actos. Prefácio <strong>de</strong> Urbano<br />

Tavares Rodrigues e posfácio crítico <strong>de</strong> Carlos Malheiro Dias. 4ª edição. Venda Nova:<br />

Bertrand, 1987.<br />

37


EXISTE ALGUMA DIMENSÃO MEDITERRÂNICA NA<br />

LITERACIA DOS MEDIA?<br />

Vítor Reia Baptista<br />

Estando o Grupo <strong>de</strong> Peritos sobre Literacia dos Media da União Europeia a chegar ao fim<br />

dos seus trabalhos, <strong>de</strong> acordo com o plano previsto <strong>de</strong> impl<strong>em</strong>entação <strong>de</strong> uma agenda europeia<br />

para a Literacia dos Media, antevê-se agora um futuro ainda algo incerto quanto à continuida<strong>de</strong><br />

e à abrangência <strong>de</strong>ssa agenda, a qual, seguramente, se irá diversificar progressivamente por t<strong>em</strong>as<br />

<strong>de</strong> incidência mediática e tecnológica mais específicos, mas, <strong>de</strong>sejavelmente, englobando uma<br />

incidência cultural e geográfica também progressivamente mais abrangente e diversificada.<br />

Nesse sentido, dado que uma das preocupações investigacionais do <strong>CIAC</strong> se pren<strong>de</strong> com o<br />

estudo das questões culturais e mediáticas no contexto mediterrânico, resolv<strong>em</strong>os colocar <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

já a Literacia dos Media no contexto mediterrânico como uma questão para reflexão a diferentes<br />

peritos sobre a matéria, perguntando-lhes muito directamente: Is there a Mediterranean cultural<br />

approach to Media Literacy?<br />

De acordo com Susane Ding do programa MEDIA program e da unida<strong>de</strong> para a Literacia<br />

dos Media da Comissão Europeia – Direcção Geral <strong>de</strong> Educação e Cultura, é possível encontrar<br />

diversas linhas <strong>de</strong> acção com uma certa dimensão mediterrânica no âmbito das diferentes iniciativas<br />

da Comissão Europeia no contexto dos MEDIA:<br />

«For example, the Anna Lindh foundation (1) (see; http://www.euromedalex.org/) which is cofinanced<br />

by the European Union. This foundation, inter alia, supports projects like “the waves for<br />

the Mediterranean” which aims at <strong>de</strong>veloping, strengthening and perpetuating Euro-Mediterraneanoriented<br />

radio co-productions and at supporting mobility for young professionals in the sector.<br />

Another programme worth mentioning is “Euromed Audiovisual” which aims at altering and<br />

stimulating dialogue and exchange between people from both shores of the Mediterranean thanks to<br />

pictures and cin<strong>em</strong>a. Also important in this context is our MEDIA Mundus programme that will be<br />

launched in 2011 which has as , inter alia, one operational objective to facilitate the organisation of<br />

events and film literacy initiatives, notably aimed at young audiences, inten<strong>de</strong>d to internationally promote<br />

the diversity of audiovisual works and increase public <strong>de</strong>mand for culturally diverse audiovisual content.<br />

MEDIA Mundus is open for professional from all over the world including the Mediterranean region.<br />

However, double-funding with Euromed Audiovisual is not permitted (2) (see: http://ec.europa.eu/<br />

culture/media/mundus/in<strong>de</strong>x_en.htm)<br />

As we can see from this overview , media literacy is a cross-cutting el<strong>em</strong>ent of various programs and<br />

initiatives that may have different global objectives. Regarding the un<strong>de</strong>rstanding of media literacy and<br />

its measur<strong>em</strong>ent, I would like, again, to point to a current study on “Testing and refining criteria to<br />

assess media literacy levels in all M<strong>em</strong>ber States” (3) (see: http://ec.europa.eu/culture/media/literacy/<br />

studies/in<strong>de</strong>x_en.htm) that might bring up some important information in this context.<br />

Regarding the general cultural approach of the EU for the Euromed region I would refer to the<br />

conclusions of the meeting of Euromed Ministers of Culture in Athens May 2008 which opened the<br />

way for a new Euromed cultural strategy that is currently been <strong>de</strong>veloped (4) (see: http://eeas.europa.<br />

eu/euromed/docs/culture_concl_0508_en.pdf ).»<br />

38


Uma outra especialista da mesma Unida<strong>de</strong> e Direcção da Comissão Europeia, Kjersti Sjaatil,<br />

chama a tenção, <strong>de</strong> modo mais geral para o conjunto <strong>de</strong> políticas e estudos <strong>em</strong> curso no âmbito<br />

da Comissão:<br />

«In 2009 our unit published a set of criteria to be used to measure media literacy levels on European<br />

citizens of all ages. In addition, the Commission has initiated a follow-up study where a consortium will<br />

be looking at the existing criteria from 2009, refine th<strong>em</strong> and then test th<strong>em</strong> in all m<strong>em</strong>ber states and<br />

EEA-countries on “all” age groups.<br />

The study is starting these days and will go on for 10 months. By the end of 2011 the Commission will<br />

report on media literacy levels in Europe:<br />

(5) http://ec.europa.eu/avpolicy/media_literacy/in<strong>de</strong>x_en.htm».<br />

Estas opiniões e listagens <strong>de</strong>, políticas, estudos e perspectivas dão-nos uma panorâmica bastante<br />

razoável da forma como a Comissão Europeia, nomeadamente a sua Direcção Geral para<br />

a Educação e Cultura on<strong>de</strong> se insere a Unida<strong>de</strong> para o Programa MEDIA e para a Literacia<br />

dos Media, encaram esta questão, no entanto, há outras formas <strong>de</strong> enunciar os probl<strong>em</strong>as que<br />

a enformam pelo que importa saber o que os especialistas <strong>de</strong> diferentes países estão a fazer<br />

concretamente e como encaram o assunto.<br />

Estas são as opiniões colhidas junto do UoA NTLab - Laboratory of New Technologies in<br />

Communication, Education and the Mass Media of the Faculty of Communication and Mass Media<br />

Studies da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Atenas, através dos <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> um colectivo <strong>de</strong> investigadores<br />

e professores <strong>de</strong>sta universida<strong>de</strong> (Professor Michael Meimaris; Ass. Professor Dimitirs Gouscos;<br />

Ass. Professor Dimitris Charitos; Research Associate Veroniki Korakidou), cujo porta-voz foi o<br />

Director <strong>de</strong>ste centro <strong>de</strong> investigação, Professor Michael Meimaris:<br />

«Taking into consi<strong>de</strong>ration the multiple contexts of Media Literacy, UoA NTLab is an organization,<br />

which has been active since 1992 in fields of Research and Technological Development, such as digital<br />

communication services, multimedia, hypermedia and virtual reality syst<strong>em</strong>s, machine un<strong>de</strong>rstanding<br />

and synthetic communication, adaptive, personalised and intelligent communication syst<strong>em</strong>s, new media<br />

literacy, visual communication and visual <strong>de</strong>sign, manmachine communication, ergonomics, computermediated<br />

communication, the relation between space and environment in the digital age, digital art,<br />

digital culture and digital civilization, digital games, web content, network communities and participatory<br />

media, journalism and mass media in digital networks, digital technologies in open and distance learning,<br />

digital communication, digital governance and digital innovation applications.<br />

New media literacy is, of course, one of the most important targeted research filelds, within our Lab,<br />

which probably inclu<strong>de</strong>s all the obove mentioned topics. Our methodology here at the UoA NTLab,<br />

with regards to new media literacy, is to follow both hands-on and critical apporaches, while trainig<br />

stu<strong>de</strong>nts and professionals. To our un<strong>de</strong>rstanding, it is equally important, in or<strong>de</strong>r to prepare skilled<br />

professionals for the market, to enable th<strong>em</strong> to think critically of the medium and its context as well. We<br />

also invite professionals frοm the media industry to exhange their specific know-how with our stu<strong>de</strong>nts<br />

and research teams.<br />

Within our Lab, we follow the mo<strong>de</strong>l, where small research teams communicate their i<strong>de</strong>as,<br />

methodologies and processes and create their own outcomes. We also believe, that there are no “hard”<br />

or “soft” sciences and that qualitative research is also necessary and equaly qualifιes as an evaluation<br />

tool. Αs we know, there are ways to objectify qualitative results and in cont<strong>em</strong>porary science, uncertainty<br />

and subjectivity are becoming all the more central questions, par example in math<strong>em</strong>atic research.<br />

Indicative trends towards a possible future approach to “new” media literacy, within our Lab, could be<br />

i<strong>de</strong>ntified by following our research groups.<br />

39


Research groups of the Laboratory of New Technologies in Communication, Education and the Mass Media<br />

currently are:<br />

A. Digital and Reflective Game Based Learning<br />

B. Intelligent Environments’ Manag<strong>em</strong>ent and Content Delivery<br />

C. Mobile Communication and Locative Media<br />

D. Digital Communication Environments, Spatial Interfaces and Virtual Environments<br />

E. Usability and Accessibility<br />

F. El<strong>de</strong>rly, New Digital Media and Intergenerational Learning<br />

G. Health Communication<br />

H. New Media Art<br />

I. Electronic Governance, Digital Deliberation, Civic Media<br />

J. European Master in Arts, Culture and International Manag<strong>em</strong>ent (EMACIM)<br />

Furth<strong>em</strong>ore, the activity record of UoA NTLab inclu<strong>de</strong>s research and technological <strong>de</strong>velopment projects, aca<strong>de</strong>mic<br />

collaboration partnerships, organisation of scientific and cultural events, contribution in the edition of journals and<br />

set-up of digital media, production of educational software, as well as education, training and new media literacy<br />

programs as <strong>de</strong>scribed in the following:<br />

1. Specialised Formation of General and Special Education Teachers and Production of Educational<br />

Material for Mild Mental Retardation, Operational Programme for Education and Initial Vocational Training<br />

2000-2006 (EPEAEK II)<br />

(6) [ http://www.media.uoa.gr/epinoisi ]<br />

2. I<strong>de</strong>ntification and Promotion of Good Practices for Digital Cultural Heritage,Operational Programme<br />

for the Information Society 2000-2006<br />

3. LOcation-based Communication Urban NETwork (LOCUNET), Regional<br />

Operational Programme for Attica 2000-2006 (7) [ locunet.uoa.gr ]<br />

4. Research for Corporate Social Responsibility in Small and Medium Enterprises,<br />

European Commission HERMES Programme<br />

5. Web-Training Game, LEONARDO Programme (8) [ www.e-musicbusinessgame.eu ]<br />

6. Adaptive and Personalised Environments on the Web, PYTHAGORAS Programme<br />

for Reinforcing Research Teams in Universities 2004 – 2006<br />

7. Play2Speak Educational Game, SOCRATES Programme<br />

(9) [ www.exelia.gr/play2speak.html ]<br />

8. Forum for Equality and Social Cohesion, EQUAL EU Initiative (10)<br />

http://www.media.uoa.gr/medialab/in<strong>de</strong>x_eng.html)<br />

Towards an un<strong>de</strong>rstanding of a possible Meditteranean cultural approach in Art-Science theory<br />

and practice, the UoA NT Lab along with the LEONARDO International Society of Arts, Sciences and<br />

Technology and other institutions have foun<strong>de</strong>d YASMIN, a mo<strong>de</strong>rated list for art science technology<br />

interactions around the Mediterranean Rim, which operates on-line since 2005. YASMIN is a network of<br />

artists, scientists, engineers, theoreticians and institutions promoting communication and collaboration<br />

in art, science and technology around the Mediterranean Rim. The list has cuurently more than 1.500<br />

m<strong>em</strong>bers subscribed, from all over the world and is technically supported by the NT Lab (11) { www.<br />

media.uoa.gr/yasmin }.<br />

More specifically, within the perspective of conjunction among Sciences, Arts and New/Old Media,<br />

we recently established a Greek Network of Universities and a working group on Art-Science curricula for<br />

Higher Education. As M<strong>em</strong>bers of LEAF (Leonardo Education and Arts Forum), we hosted the fouding<br />

meeting for the LEAF Greek Network in Athens in February 2010. Following this initiative, we co-<br />

40


organized in collaboration with Ionian University’s Dept. of Audio and Visual Arts, a LEAF International<br />

meeting in Corfu, Greece, on May 29th 2010 with attendance from the Ionian University and from Athens<br />

University (ΕΚΠΑ), as well as representatives from ACROE (Grenoble) and ZKM (Karlsruhe). This<br />

was a small meeting and its main purpose was to prepare a large meeting and other consorted actions of<br />

LEAF in the coming year, where more representatives from Greece could participate and discuss issues<br />

such as curricula, research and aca<strong>de</strong>mic cooperation within LEAF network.<br />

What our working group on art/science curricula is currently focusing on, is building “bridges”<br />

between syst<strong>em</strong>atic methodology on one hand, as used in science epist<strong>em</strong>ology and free expression of<br />

opinion or subjectivity on the other, as found in art creation. In or<strong>de</strong>r to build these “bridges”, the keydifferences<br />

between these two appraches should first be i<strong>de</strong>ntified and then analyzed. Differences of<br />

approach can <strong>em</strong>erge also, between theoretical research and artistic practice, as it has come up from<br />

examples within our experience in aca<strong>de</strong>mic interdisciplinary research.<br />

We have, therefore, <strong>de</strong>fined these “bridges” as “building knowledge processes”, which <strong>em</strong>erge<br />

through interdisciplinary research practice. Our main goal, is currently to <strong>de</strong>velop methodologies, by<br />

studying and evaluating these art/science research processes, as practiced within our Lab, in or<strong>de</strong>r to<br />

foster creativity and innovation, what we believe, that art/science research could, or should be all about.<br />

Moreover, within the perspective of cross-cultural dialogue between East and West and North<br />

and South, a discussion for <strong>de</strong>veloping art/science collaboration methodologies for research and art<br />

creation has <strong>em</strong>erged from the evaluation of e-MobiLArt, a two-year EU project of co-operation between<br />

artists and scientists. European Mobile Lab for Interactive Media Artists (e-MobiLArt) was a project<br />

around the process of collaboratively creating interactive artworks. Its aim was to provi<strong>de</strong> participating<br />

artists and scientists with a multicultural, interdisciplinary context, i<strong>de</strong>al for shared practice. e-MobiLArt<br />

project consisted of a series of events (3 workshops and 2 exhibitions) which took place in five different<br />

geographical locations, in three different EU countries (Greece, Austria, Finland).»<br />

Uma outra perspectiva, ainda vinda da Grécia mas agora mais próxima das abordagens<br />

curriculares da Literacia dos Media, é a que nos foi transmitida por duas especialistas <strong>de</strong> instituições<br />

diferentes mas que trabalham este t<strong>em</strong>a <strong>em</strong> conjunto, as Professoras Evangeli Kourti também da<br />

Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Atenas e Sophie Aslanidou da Escola Superior <strong>de</strong> Educação da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Thessaloniki:<br />

« Malgré le fait que les médias occupent une gran<strong>de</strong> partie du t<strong>em</strong>ps libre <strong>de</strong>s enfants en Grèce <strong>de</strong>puis très<br />

longt<strong>em</strong>ps, l’intérêt et la recherche scientifique sur la relation enfants/jeunes et medias et sur l’éducation<br />

aux medias est très récents. Cette situation s’explique d’une part par les conditions socio-économiques<br />

et politiques du pays lesquelles, jusqu’à la chute <strong>de</strong> la dictature en Grèce, en 1974, n’ont pas favorisé le<br />

développ<strong>em</strong>ent et la maîtrise d’un certain type d’éducation et <strong>de</strong> pensée théorique, <strong>de</strong> méthodologie et <strong>de</strong><br />

recherche telles que les sciences sociales et, d’autre part, par l’arrivée tardive <strong>de</strong> la télévision en Grèce<br />

(1968).<br />

Le chang<strong>em</strong>ent du régime et l’align<strong>em</strong>ent <strong>de</strong> la Grèce sur les autres pays européens après son entrée<br />

à l’Union Européenne, ont favorisé, vers la fin <strong>de</strong>s années 80, le chang<strong>em</strong>ent du contexte <strong>de</strong> la recherche<br />

concernant les sciences sociales. A cette époque, on assiste à un chang<strong>em</strong>ent du paysage audiovisuel grec<br />

par la création <strong>de</strong> plusieurs chaînes et <strong>de</strong>s radios privées. Dans ce contexte, on constate, petit à petit, dans<br />

les années à venir : l’introduction dans les manuels scolaires <strong>de</strong> la langue grecque <strong>de</strong>s chapitres concernant<br />

les medias, la création <strong>de</strong>s départ<strong>em</strong>ents <strong>de</strong> Communication et <strong>de</strong> Mass Médias aux universités d’Athènes<br />

et <strong>de</strong> Thessaloniki et la formation <strong>de</strong>s enseignants à l’informatique. Ce climat a favorisé l’apparition <strong>de</strong>s<br />

initiatives subventionnées par la Communauté européenne ou l’Etat grec concernant l’éducation aux<br />

médias et la recherche sur la relation enfants/jeunes et médias• il s’agit <strong>de</strong> stages <strong>de</strong> formation pour les<br />

enseignants et/ou les jeunes lesquels ont lieu dans le cadre <strong>de</strong> l’école, <strong>de</strong>s municipalités ou même <strong>de</strong><br />

festivals <strong>de</strong> films pour les enfants et les jeunes. Par ailleurs, <strong>de</strong> plus en plus, on assiste à <strong>de</strong> conférences<br />

ou <strong>de</strong> journées d’étu<strong>de</strong>s sur l’éducation aux medias pour les enseignants, les professionnels <strong>de</strong> medias, les<br />

parents et le grand public. Ainsi, dans l’enseign<strong>em</strong>ent supérieur (surtout dans les départ<strong>em</strong>ents d’éducation<br />

et <strong>de</strong> medias) sont introduits <strong>de</strong>s cours d’éducation aux médias.<br />

Ainsi, dans le cas <strong>de</strong> la Grèce, on constate que progressiv<strong>em</strong>ent on commence à légitimer<br />

41


l’enseign<strong>em</strong>ent et la recherche sur les médias tout en développant l’idée que l’on pourrait enseigner avec<br />

les médias en les étudiants pour eux-mêmes. Il s’agit pourtant, même aujourd’hui, d’une conception<br />

restreinte <strong>de</strong> l’éducation aux medias, étant donné que toute action et recherche se limitent uniqu<strong>em</strong>ent au<br />

cadre scolaire et ne concerne pas d’autres populations que celles, par ex<strong>em</strong>ple, <strong>de</strong>s parents, <strong>de</strong>s personnes<br />

âgées etc. Cette attitu<strong>de</strong> reflète la manière dont est conçue <strong>de</strong>puis très longt<strong>em</strong>ps l’éducation en Grèce en<br />

générale, c’est-à-dire, qu’elle doit s’adresser uniqu<strong>em</strong>ent aux jeunes et se limiter dans le cadre <strong>de</strong> l’école.<br />

Actuell<strong>em</strong>ent, ce qui caractérise la situation en Grèce est un intérêt croissant pour l’éducation aux<br />

medias et en même t<strong>em</strong>ps un manque <strong>de</strong> recherche propre sur l’éducation aux medias telle qu’elle est<br />

pratiquée dans le pays par les diverses institutions privées ou publiques. Ceci, en relation avec le fait que la<br />

Grèce se trouve <strong>de</strong>rnièr<strong>em</strong>ent appelée, forcée même, par <strong>de</strong> récentes recommandations européennes, du<br />

jour au len<strong>de</strong>main <strong>de</strong> fois, à promouvoir <strong>de</strong>s actions/pratiques à l’éducation aux medias, pose quelques<br />

questions. On constate, par ex<strong>em</strong>ple, que l’éducation aux medias est <strong>de</strong>venue presque une priorité pour<br />

l’Institut Audiovisuel Hellénique, lequel se montre très actif dans le domaine <strong>de</strong> l’éducation aux medias,<br />

élabore et développe <strong>de</strong>s initiatives dont le but principal est la protection active et passive <strong>de</strong>s enfants<br />

et <strong>de</strong> jeunes à leur exposition aux medias. Il faut donc essayer <strong>de</strong> voir/<strong>de</strong> lire cette politique appliquée,<br />

pas seul<strong>em</strong>ent comme une expression d’individus et <strong>de</strong>s institutions mais comme une expression <strong>de</strong><br />

tendances plus générales, d’ordre sociale, politique et économique. C’est un moment critique, un moment<br />

<strong>de</strong> transition pour un pays comme la Grèce, où on passe « du presque rien au presque tout », et où on<br />

doit s’interroger sur cette transition et les conditions dans lesquelles cette transition s’effectue. Il faut faire<br />

attention à ne pas uniqu<strong>em</strong>ent « importer » <strong>de</strong>s pratiques d’éducation aux medias <strong>de</strong> toute provenance ou<br />

suivre <strong>de</strong> recommandations lesquelles ne peuvent peut être pas s’appliquer à la situation locale. Il y a par<br />

ex<strong>em</strong>ple, une réelle difficulté à travailler avec <strong>de</strong>s enseignants en Grèce à cause <strong>de</strong> la « mauvaise réputation<br />

» qu’ont les media dans le pays, dont les liens très étroits avec les parties politiques sont bien connus. Pour<br />

une gran<strong>de</strong> partie <strong>de</strong>s enseignants, l’école est un lieu sacré, qui représente la vérité alors que les medias<br />

représentent le mensonge, la fiction et souvent la corruption. Il y a bien sûr, <strong>de</strong>s raisons historiques<br />

qui justifient une telle attitu<strong>de</strong>, mais c’est just<strong>em</strong>ent pour cette raison qu’il faut faire <strong>de</strong> recherches et <strong>de</strong>s<br />

interventions sur cette attitu<strong>de</strong>… si on veut faire <strong>de</strong>s actions efficaces sur l’éducation<br />

En Grèce, comme dans plusieurs pays, on constate un discours assez paradoxal concernant le<br />

rôle <strong>de</strong>s medias dans la vie et l’éducation <strong>de</strong>s enfants et <strong>de</strong>s jeunes et par conséquent sur le rôle <strong>de</strong><br />

l’éducation aux medias. D’une part on essaie <strong>de</strong> les protéger et d’autre part on les expose aux médias dans<br />

l’espoir <strong>de</strong> mieux les éduquer. Ceci est très perceptible dans la manière dont on conçoit « digital literacy<br />

», l’éducation numérique. C’est ainsi que pour l’année scolaire 2009-2010, dans le cadre du projet « un<br />

ordinateur portable pour chaque élève », programme commun <strong>de</strong>s ministères d’éducation et <strong>de</strong> finances,<br />

environ 120.000 jeunes inscrits pour la pr<strong>em</strong>ière fois au collège (12 ans en Grèce), provenant <strong>de</strong> tous les<br />

milieux sociaux, ont reçu un cheque <strong>de</strong> 450 euros pour s’acheter obligatoir<strong>em</strong>ent eux-mêmes ordinateur<br />

portable. Aucune étu<strong>de</strong> préalable n’a été effectuée avant <strong>de</strong> commencer ce projet auprès <strong>de</strong>s jeunes <strong>de</strong> cet<br />

âge, ni <strong>de</strong> leurs professeurs, peu formés faut il l’avouer, ou encore <strong>de</strong> leurs parents, qui souvent ignorent<br />

cette technologie. Cette attitu<strong>de</strong>, s<strong>em</strong>ble partager la même philosophie avec ceux qui soutiennent (comme<br />

par ex<strong>em</strong>ple Nicolas Negroponte) que ce qui manque aux enfants ne sont pas les capacités, mais les<br />

opportunités et les ressources et que lorsque les enfants ont accès à ce type d’outils, ils peuvent s’engager<br />

dans leur propre éducation. Cette attitu<strong>de</strong> conçoit l’enfant en tant que « digital native », ignore le fait que<br />

tous les élèves/étudiants/parents n’ont pas la même connaissance et que l’enseign<strong>em</strong>ent doit se centrer<br />

plus sur le contenu que la technologie. Ainsi, dans une certaine mesure, on nie la nécessite <strong>de</strong> l’éducation<br />

aux medias dont le but principal est <strong>de</strong> s’interroger sur qui crée les media et <strong>de</strong> quelle manière, comment<br />

ceux-ci représentent-ils le mon<strong>de</strong> et ils fonctionnent. Pour comprendre l’efficacité <strong>de</strong> cette initiative il<br />

faut une recherche préalable sur le contexte politique, économique et social. On peut aussi s’interroger<br />

sur le rôle que l’on <strong>de</strong>man<strong>de</strong> <strong>de</strong> jouer à l’école dans cette situation et les présupposes théoriques (voire<br />

idéologiques) <strong>de</strong>rrière cette initiative. Peut être, <strong>de</strong>s recherches proches <strong>de</strong> l’approche <strong>de</strong> la sociologie <strong>de</strong><br />

l’éducation pourraient nous éclairer un peu plus sur ce sujet.<br />

La nécessité d’une i<strong>de</strong>ntité cohérente pour l’éducation aux médias en Europe, ainsi que <strong>de</strong>s métho<strong>de</strong>s<br />

d’évaluation transférables et <strong>de</strong>s critères d’évaluation communs pour l’éducation aux médias est évi<strong>de</strong>nts<br />

… mais il faut avant tout faire plus <strong>de</strong> recherches pour voir comment le projet européen est reçu local<strong>em</strong>ent<br />

dans les écoles ou d’autres lieux <strong>de</strong> formation <strong>de</strong> chaque pays m<strong>em</strong>bre.»<br />

42


Por fim, quase <strong>em</strong> jeito <strong>de</strong> síntese, registámos as opiniões <strong>de</strong> um dos especialistas que t<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvido há mais t<strong>em</strong>po um trabalho continuado <strong>de</strong> investigação e <strong>de</strong> formação na área da<br />

Literacia dos Media, juntando assiduamente abordagens <strong>de</strong> características latinas (mediterrânicas e<br />

americanas) com abordagens mais conotadas com os gran<strong>de</strong>s centros europeus <strong>de</strong> investigação e <strong>de</strong><br />

transferência <strong>de</strong> conteúdos quer francófonos, quer anglófonos, o Professor Michel Clar<strong>em</strong>beaux<br />

do CAV <strong>de</strong> Liége:<br />

« 1) My opinion is that there is a Mediterranean mo<strong>de</strong>l of media literacy, as opposed to or compl<strong>em</strong>entary<br />

with an Anglo-Saxon mo<strong>de</strong>l. The Mediterranean context integrates, in my eyes, Spain, Portugal and Italy,<br />

though France being partly a Mediterranean country se<strong>em</strong>s to escape the “mo<strong>de</strong>l” (and i am not going<br />

to alu<strong>de</strong> to north Africa because i’ve not got much knowledge about their attitu<strong>de</strong> to media literacy...).<br />

But i would also like to integrate in the Mediterranean mo<strong>de</strong>l Latin America which not only linguistically<br />

but also culturally is quite close. I would say the same about North America and the Anglo-Saxon mo<strong>de</strong>l.<br />

Roughly speaking of course.<br />

2) Each mo<strong>de</strong>l, according to me, relies on outstanding institutions. “Comunicar” in Hueba, Faro University<br />

and (probably) Cath.University of Milano. Whereas the Anglo-Saxon mo<strong>de</strong>l relies on the BFI, OFCOM,<br />

Nordicom, Austrian Ministry of Education, ...<br />

3) As being nearer to “Comunicar” and the “Agua<strong>de</strong>d team”, i often i<strong>de</strong>ntify the Mediterranean mo<strong>de</strong>l<br />

with their media education/literacy activities. You see how subjective i am...<br />

4) To make it short, I think the Mediterranean mo<strong>de</strong>l nearer to a media/communication than a<br />

media/information concept. And as such nearer to educational values and objects.The concept<br />

“educommunication” arises from such a choice and scenes as such rooted in social and political concerns<br />

and priorities, which doesn’t appear to be the case in my so-called Anglo-Saxon mo<strong>de</strong>l.<br />

But, … , this is a real university thesis which claims and implies scientific bases and a large sampling of<br />

fields activities... I also would like to add that any mo<strong>de</strong>l is <strong>de</strong>eply linked with people, individuals, either<br />

teachers, or researchers, or mere “practitioners”, they shape the mo<strong>de</strong>l, orientate it, and finally become<br />

the mo<strong>de</strong>l. David Buckingham, Geneviève Jacquinot, Jacques Piette, José-Manuel Tornero, are among<br />

th<strong>em</strong>...».<br />

Tomando nossas as palavras finais <strong>de</strong> Michel Clar<strong>em</strong>beaux, só nos resta <strong>de</strong>senvolver todos<br />

os esforços investigacionais ao nosso alcance para que mais e melhor investigação, individual e <strong>em</strong><br />

equipa, se possa <strong>de</strong>senvolver <strong>em</strong> torno das dimensões culturais, críticas e criativas da Literacia dos<br />

Media na região mediterrânica, <strong>de</strong> modo a contribuir para um maior conhecimento e domínio das<br />

suas possíveis especificida<strong>de</strong>s.<br />

(Sobre os trabalhos do <strong>CIAC</strong> nesta matéria, ver:<br />

(12) http://www.ciac.pt/science.php e http://www.revistacomunicar.com ).<br />

NOTAS<br />

(1) Ver http://www.euromedalex.org/<br />

(2) Ver http://ec.europa.eu/culture/media/mundus/in<strong>de</strong>x_en.htm<br />

(3) Ver http://ec.europa.eu/culture/media/literacy/studies/in<strong>de</strong>x_en.htm<br />

(4) Ver http://eeas.europa.eu/euromed/docs/culture_concl_0508_en.pdf<br />

(5) Ver http://ec.europa.eu/avpolicy/media_literacy/in<strong>de</strong>x_en.htm<br />

(6) Ver http://www.media.uoa.gr/epinoisi<br />

(7) Ver locunet.uoa.gr<br />

(8) Ver www.e-musicbusinessgame.eu<br />

(9) Ver www.exelia.gr/play2speak.html<br />

(10) Ver http://www.media.uoa.gr/medialab/in<strong>de</strong>x_eng.html<br />

(11)Ver <strong>em</strong> www.media.uoa.gr/yasmin<br />

(12)Ver <strong>em</strong> http://www.ciac.pt/science.php e http://www.revistacomunicar.com<br />

43


REPRESENTAÇÕES E LITERACIAS NA<br />

COMUNICAÇÃO


O CULTO DA MÃE E AS METÁFORAS DO CANCRO<br />

DA MAMA: O CASO DE FERNANDA SERRANO<br />

Merja <strong>de</strong> Mattos-Parreira<br />

O conceito <strong>de</strong> doença e <strong>de</strong> doenças específicas é, por essência, histórico e mutante. Quer<br />

isto dizer que a pessoa doente não foi objecto <strong>de</strong> representações idênticas no passado n<strong>em</strong> foi<br />

necessariamente representada <strong>de</strong> igual modo <strong>de</strong>ntro da mesma cultura e no mesmo t<strong>em</strong>po histórico.<br />

Pelo contrário, ela foi e continua a ser construída na sua especificida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> cada representação,<br />

por meio <strong>de</strong> conceitos <strong>de</strong> significação escolhidos para momentos particulares. Nesse sentido os<br />

instrumentos dos media exerc<strong>em</strong> um papel fundamental nos processos culturais que constro<strong>em</strong><br />

tanto a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> doença como a <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Daí que, naturalmente, também não sejam permanentes<br />

e homogéneos os significados atribuídos ao cancro da mama, que tratarei especificamente neste<br />

trabalho.<br />

O meu argumento teórico principal no que toca à construção da doença é, <strong>em</strong> primeiro<br />

lugar, o facto <strong>de</strong> ela ser um conceito relacional e <strong>de</strong> ser construída sobre a noção <strong>de</strong> diferença(1).<br />

Na verda<strong>de</strong>, tal como qualquer outra activida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> sentido, a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> doença<br />

constrói a realida<strong>de</strong> e os sentidos e interpretações <strong>de</strong>la <strong>de</strong>correntes e produz efeitos concretos<br />

<strong>em</strong> cada um <strong>de</strong> nós. Uma vez que a doença e a saú<strong>de</strong> são constructos sociais, simultaneamente<br />

inscritos numa cultura e num t<strong>em</strong>po históricos, ambas transmit<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre valores.<br />

Assim se compreen<strong>de</strong> historicamente que as razões atribuídas à doença tenham sido muito<br />

diversas e que tanto ela como a saú<strong>de</strong> tenham s<strong>em</strong>pre sido tomadas como conceitos morais (2) .<br />

O cristianismo medieval, por ex<strong>em</strong>plo, interpretava-a numa lógica <strong>de</strong> causa-efeito entre doença e<br />

pecado, tendo a cura o fim da salvação da alma (3) . De resto, a <strong>de</strong>sfiguração e a doença física eram<br />

não raro encaradas como manifestação do carácter psicológico, <strong>de</strong> modo que o eu íntimo podia<br />

ser percepcionado através do eu exterior. Um ex<strong>em</strong>plo ilustrativo <strong>de</strong>sse facto são as personagens<br />

“más” dos filmes <strong>de</strong> gansters dos anos 30 do século passado e o seu protótipo clássico, representado<br />

pela personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Ricardo III na peça homónima <strong>de</strong> William Shakespeare; uma figura corcunda,<br />

coxa, baixa, i.e., um corpo <strong>de</strong>feituoso que funciona como metáfora do mal.<br />

Graças à análise cultural e histórica das metáforas da doença, Susan Sontag (1977, 1990)<br />

apresentou-nos a figura esteticizada e individualista do génio romântico do século XIX. Tratavase,<br />

na sua perspectiva, <strong>de</strong> uma figura“espiritualmente refinada” pela tuberculose, uma doença dos<br />

pulmões, nunca revelando as partes impróprias e até obscenas do corpo humano, como o peito<br />

ou o recto. Associada ao ambiente <strong>de</strong>gradado, <strong>de</strong> privação e pobreza , a tuberculose era justificada<br />

por frustrações para certos tipos <strong>de</strong> carácter. A um nível metafórico, especialmente na literatura,<br />

a tuberculose era associada a pessoas excessivamente passionais e a doença atacava os indivíduos<br />

alegadamente marcados pelo excesso passional, artístico e sensorial. A literatura romântica <strong>de</strong><br />

oitocentos está, por isso, cheia <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrições da morte <strong>de</strong> jovens atraentes, s<strong>em</strong> sintomas <strong>de</strong> doença<br />

e reveladores <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> pacífica e graciosa. Daí a multiplicação, na indústria cin<strong>em</strong>atográfica,<br />

<strong>de</strong> imagens <strong>de</strong> raparigas, jovens e pálidas, cujo corpo sofre uma <strong>de</strong>terioração vagarosa e grácil, a<br />

raiar brandamente a morte. Na verda<strong>de</strong>, todas elas são versões <strong>de</strong>rivadas da Dama das Camélias,<br />

oriunda da peça homónima <strong>de</strong> Alexandre Dumas, <strong>de</strong> 1852, e da heroína da ópera <strong>de</strong> Giacomo<br />

Puccini, La Bohème (1896), que se replicou sucessivamente até ao filme <strong>de</strong> Baz Luhrmann, Moulin<br />

Rouge (2001).<br />

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Claro que a beleza da fragilida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina não era apenas associada a vítimas da tuberculose.<br />

Essa aparência simbolizava a absoluta pureza moral e mental. O i<strong>de</strong>al f<strong>em</strong>inino da burguesia<br />

oitocentista construi-se, afinal <strong>de</strong> contas, sob a base da vulnerabilida<strong>de</strong> física, o que tornava não<br />

natural qualquer imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> mulher po<strong>de</strong>rosa e enérgica. O físico do tuberculoso transformou-se,<br />

portanto, numa virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejada, mesmo s<strong>em</strong> correspon<strong>de</strong>r a uma doença real(5) . A tuberculose<br />

foi intensamente promovida como manifestação <strong>de</strong> uma sensibilida<strong>de</strong> superior, ainda que, num<br />

estádio avançado, ela <strong>de</strong>teriore a condição física, num grau comparável ao do cancro. De igual modo,<br />

a dor e a agonia inerentes àquela doença foram ignoradas e i<strong>de</strong>alizadas nas suas representações,<br />

enquanto ela foi incontrolável pela Medicina, por ser <strong>de</strong> difícil cura e <strong>de</strong>sconhecida nas suas<br />

causas.<br />

Debelada a calamida<strong>de</strong> da tuberculose no século XX (não obstante o advento do HIV e da<br />

SIDA), a tuberculose é simbolicamente substituída pelo cancro como doença assustadoramente<br />

perversa e misteriosa. Contrair cancro passou, previsivelmente, a ser explicado por tipologias <strong>de</strong><br />

personalida<strong>de</strong> e outras justificações psicológicas. Enquanto a tuberculose atingia indivíduos hipersensíveis<br />

e talentosos, o cancro surge associado a gente miserável e obscura, <strong>em</strong> especial a pessoas<br />

que reprim<strong>em</strong> os sentimentos <strong>de</strong> ódio (Sontag, 1977: 20) (6) .<br />

Vinte anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Susan Sontag, Jackie Stacey seguiu a reflexão acerca das metáforas do<br />

cancro <strong>em</strong> Tetralogies. A Cultural Study of Cancer (1997), Stacey i<strong>de</strong>ntificou a persistência da i<strong>de</strong>ia do<br />

cancro como sintoma <strong>de</strong> uma psique individual. Em Inglaterra, porém, essa percepção nunca foi<br />

tão forte como nos Estados Unidos, on<strong>de</strong> a ênfase cultural se t<strong>em</strong> tradicionalmente centrado nos<br />

valores da esperança e do individualismo. Também na Finlândia são comuns as histórias <strong>de</strong> heróis<br />

atingidos pelo cancro e por sentimentos <strong>de</strong> culpa, justificados pelo cancro da mama. É por essa<br />

razão que Marjo Kaartinen, da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Turku, <strong>de</strong>senvolveu uma pesquisa sobre a história<br />

do cancro da mama, permitindo-lhe afirmar o seguinte:<br />

Espero que os resultados da minha investigação tragam consolo às pessoas do nosso t<strong>em</strong>po. Hoje <strong>em</strong> dia, a<br />

doente <strong>de</strong> cancro é facilmente culpabilizada, acusada <strong>de</strong> maus hábitos <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> tabagismo. Talvez seja um<br />

alívio verificar que o cancro também existia antigamente e que atingia todo o tipo <strong>de</strong> pessoas; até aquelas que<br />

levavam uma vida boa e saudável (7). Jornal Kirkko ja Kaupunki, 07.05.2007<br />

A actriz e mo<strong>de</strong>lo Fernanda Serrano, <strong>de</strong> 35 anos, que foi operada ao cancro da mama<br />

na Primavera <strong>de</strong> 2008, e cujo caso teve uma vasta cobertura mediática, pelo contrário, nunca é<br />

representada nos media portugueses como sendo responsável por ter imposto a si própria a condição<br />

<strong>de</strong> doente. Ao contrário do que habitualmente acontece nos media britânicos e finlan<strong>de</strong>ses com<br />

casos s<strong>em</strong>elhantes, os media portugueses representam-na como vítima <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stino terrífico.<br />

Creio b<strong>em</strong> que po<strong>de</strong> encontrar-se no processo histórico da Reforma protestante uma<br />

explicação para essa diferença. Convém não esquecer que a principal reivindicação <strong>de</strong> Lutero<br />

contra o Catolicismo era recusar o contacto do crente com Deus s<strong>em</strong>pre mediado (até aí) pela<br />

figura do padre . A primeira medida para atingir este objectivo foi tornar a Bíblia legível por todas<br />

as pessoas, promovendo com isso a literacia e as línguas vernáculas(9) . Em consequência, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que o/a crente esteja <strong>em</strong> contacto directo com Deus (10) , ele/a torna-se activa e plenamente<br />

responsável por (ou até culpado/a <strong>de</strong> (11) ) todas as suas acções.<br />

De acordo com o sociólogo Max Weber, o <strong>de</strong>senvolvimento do capitalismo está estreitamente<br />

ligado ao ascentismo puritanto e à repressão das vonta<strong>de</strong>s próprias. No seu trabalho s<strong>em</strong>inal A<br />

Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904), Weber <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que o protestantismo ascético<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhou um papel central no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma ética, afim do i<strong>de</strong>al burguês, que<br />

conduziu à valorização da vida prática e a mais produção e acumulação <strong>de</strong> lucro, como expressão<br />

da graça <strong>de</strong> Deus. Diz Weber: “The Puritan wanted to work in a calling” (1992: 181):<br />

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This worldly Protestant asceticism (…) acted powerfully against the spontaneous enjoyment of possessions; it<br />

restricted consumption, especially of luxuries. On the other hand, it had the psychological effect of freeing the<br />

acquisition of goods from the traditionalistic ethics. It broke the bonds of the impulse of acquisition in that it not<br />

only legalised it, but (in the sense discussed) looked upon it as directly willed by God. i<strong>de</strong>m: 170-171<br />

No entanto, como nos mostraram os teóricos dos Estudos Culturais, a produção e o consumo<br />

(12) são apenas dois dos cinco momentos do circuito cultural , sendo eles inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes uns<br />

dos outros. S<strong>em</strong> consumo, nunca haveria produção. Por isso, numa activida<strong>de</strong> produtiva ascética,<br />

po<strong>de</strong> acrescentar-se a acção <strong>de</strong> consumo auto-gratificante. Logo, mais uma vez, o contexto<br />

cultural é aqui <strong>de</strong>terminante, articulando-se com o conceito <strong>de</strong> homo faber, na medida <strong>em</strong> que a<br />

ética puritana abriu caminho às agradáveis activida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> consumo e ao homo lu<strong>de</strong>ns.<br />

Importa também sublinhar que se <strong>de</strong>ve saber como consumir <strong>de</strong> um modo a<strong>de</strong>quado. Por<br />

ex<strong>em</strong>plo, no contexto das instituições educacionais, esse consumo só é maximizado pelo capital<br />

cultural (14) , termo pertencente ao dicionário proposto por Pierre Bourdieu. Ora, como é óbvio,<br />

a saú<strong>de</strong> e o t<strong>em</strong>po são parte integrante do capital cultural. Hugh Mackay ajuda a ver essa questão:<br />

Consumption is the articulation of a sense of i<strong>de</strong>ntity. Our i<strong>de</strong>ntity is ma<strong>de</strong> up by our consumption of goods –<br />

and their consumption and display constitutes our expression of taste. So display – to ourselves and to others – is<br />

largely for symbolic significance, indicating our m<strong>em</strong>bership of a particular culture. As Bourdieu puts it, taste<br />

classifies the classifier. Mackay, 1997: 4<br />

O aspecto mais apelativo da teoria <strong>de</strong> Bourdieu é, na minha óptica, a conexão explícita<br />

entre os conceitos <strong>de</strong> habitus e gosto – quando o gosto é compreendido na perspectiva clássica,<br />

formulada pela Antiguida<strong>de</strong> grega, da estética dos cinco sentidos humanos:<br />

Taste, the propensity and capacity to appropriate (materially or symbolically) a given class of classified, classifying<br />

objects or practices, is the generative formula of life-style, a unitary set of distinctive preferences which express<br />

the same expressive intention in the specific logic of each of the symbolic sub-spaces, furniture, clothing,<br />

language or body hexis. Bourdieu, 1977: 173<br />

Através do conceito <strong>de</strong> gosto, Bourdieu é capaz <strong>de</strong> evitar diversas armadilhas da discussão<br />

sobre o valor da distinção entre manifestações das cultura erudita, popular e <strong>de</strong> massas . A<br />

sociologia da cultura <strong>de</strong> Bourdieu tenta encontrar respostas para a questão <strong>de</strong> ‘qu<strong>em</strong> produz o<br />

quê, como e porquê” – questões essas que são do foro das funções sociais da cultura. Volto, <strong>de</strong><br />

novo, às suas palavras:<br />

Taste classifies, and it classifies the classifier. Social subjects, classified by their classifications, distinguish<br />

th<strong>em</strong>selves by the distinctions they make, between the beautiful and ugly, the distinguished and the vulgar, in<br />

which their position in the objective classification is expressed or betrayed. Bourdieu, 1984: 6<br />

Retomando o t<strong>em</strong>a da tuberculose, é importante dizer que ela ganhou as suas metáforas <strong>de</strong><br />

sensibilida<strong>de</strong> e espiritualida<strong>de</strong> a partir da imag<strong>em</strong> da alma e da espiritualida<strong>de</strong> tradicionalmente<br />

ligada ao aparelho respiratório e aos pulmões (Sontag, 1977: 16-20). Á s<strong>em</strong>elhança da cabeça<br />

humana que integra o cérebro, os olhos e a boca, os pulmões pertenc<strong>em</strong> à parte superior, ao corpo<br />

espiritualizado. Já o cancro ataca quase s<strong>em</strong>pre a parte inferior (e, portanto, mais <strong>em</strong>baraçosa) do<br />

corpo, pelo que é escondida – como o peito, o cólon, os intestinos, os testículos, a bexiga, etc.<br />

(16) . Apesar <strong>de</strong> ambas ser<strong>em</strong> consi<strong>de</strong>radas doenças da paixão, há uma gran<strong>de</strong> diferença entre<br />

elas. A tuberculose é uma variante da doença do amor, da f<strong>em</strong>me fatale, enquanto o cancro resulta<br />

da repressão sexual, <strong>de</strong> uma insuficiência passional, <strong>de</strong> uma incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exprimir ódio. Daí<br />

que tenha sido difícil ligar o cancro às metáforas <strong>de</strong> uma imag<strong>em</strong> refinada, romântica ou lírica da<br />

morte, o que a tuberculose representou anteriormente (17) .<br />

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Embora a tuberculose tenha sido consi<strong>de</strong>rada(18) e o cancro ainda seja hoje consi<strong>de</strong>rado,<br />

num certo sentido, uma doença misteriosa, experienciada como uma invasão impiedosa e secreta,<br />

rumo à morte, os seus campos <strong>de</strong> significado metafórico são <strong>de</strong> género diverso. Metaforicamente,<br />

o cancro não é uma doença do t<strong>em</strong>po (como a tuberculose), antes uma doença do espaço:<br />

Its principal metaphors refer to topography (cancer spreads, proliferates, is diffused, tumors are surgically excised),<br />

and its most drea<strong>de</strong>d consequence, short of <strong>de</strong>ath, is the mutilation or amputation of part of the body. Sontag,<br />

1977:14<br />

O cancro consome o indivíduo; o corpo é invadido por uma força militar estrangeira e é lenta<br />

e secretamente corrompido até à morte. As metáforas da guerra são dominantes nas <strong>de</strong>scrições<br />

do cancro. As células cancerosas, como as células terroristas, ocupam lugares secretos <strong>em</strong> partes<br />

r<strong>em</strong>otas do corpo (as metástases). A quimioterapia como um contra-ataque militar funciona como<br />

uma bomba no campo <strong>de</strong> batalha: felizmente não mata os bons (ou seja, o doente); <strong>em</strong> vez disso<br />

só atinge a célula terrorista.<br />

Hoje <strong>em</strong> dia não é inteiramente verda<strong>de</strong>ira a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Susan Sontag feita sobre o cancro,<br />

no anos 70, cortando esta doença com a aura <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> heróica e <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> superior,<br />

previamente inscrita na tuberculose. Mesmo se o cancro não ganhou uma representação romântica,<br />

é quase s<strong>em</strong>pre tido como uma história heróica, nos jornais e especialmente nas revistas, séries<br />

televisivas e filmes. Na linha <strong>de</strong> Clive Seale (2002: 174-177), que estudou histórias jornalísticas<br />

sobre cancro, a estrutura narrativa é a seguinte: <strong>de</strong>scoberta do tumor, medo, angústia e vitória<br />

sobre a doença, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se ter aprendido algo com ela – inclusive, ela transforma o doente num<br />

novo ser humano . É justamente essa estrutura que v<strong>em</strong>os plasmada na representação da doença<br />

da actriz Fernanda Serrano:<br />

Com certeza, já não sou a mesma Fernanda Serrano. Neste momento, sinto-me mais vulnerável <strong>em</strong>ocionalmente.<br />

Estou mais intolerante com as pessoas que não merec<strong>em</strong> o meu respeito e mais tolerante com aqueles que amo<br />

e admiro, e apetece-me passar mais t<strong>em</strong>po com eles. (...). Por vezes faz<strong>em</strong>os investimentos e planos a longo<br />

prazo. Com isto, aprendi que o importante é o aqui e o agora, o fazer o dia <strong>de</strong> hoje ser o mais feliz e estar s<strong>em</strong>pre<br />

com um sorriso. Estar feliz é importante. Conferência da imprensa convocada pela Fernanda Serrano, 12 <strong>de</strong><br />

Nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2008<br />

Defendo que a representação do cancro da mama <strong>de</strong> Fernanda Serrano, formulada nos<br />

media portugueses, é uma mistura <strong>de</strong> características inscritas nas imagens tanto da tuberculose<br />

quanto do cancro porque a figuração da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da actriz é dúplice: <strong>de</strong> um lado, é uma figura<br />

trágica, enquanto vítima sofredora associada por ela própria à imag<strong>em</strong> e à vida dolorosa e<br />

atribulada <strong>de</strong> Frida Kahlo (21) ; do outro, representa uma figura jov<strong>em</strong> e bela, um corpo esbelto<br />

(22) . – Na verda<strong>de</strong>, o corpo externo que assume o papel principal (à custa do corpo ‘interno’) é<br />

sintomático da nossa era cultural, dominada pela aparência e pela representação. Na cultura do<br />

consumo, é uma falha moral apresentar um corpo com linhas impróprias, na medida <strong>em</strong> que revela<br />

inércia e <strong>de</strong>sleixo, moralmente reprovável. Esse é, <strong>em</strong> suma, o corpo-mercadoria, um objecto <strong>de</strong><br />

representação sujeito a práticas rígidas que mo<strong>de</strong>lam e formatam o corpo(23) .<br />

Há que consi<strong>de</strong>rar ainda um terceiro el<strong>em</strong>ento na figura da doença <strong>em</strong> Fernanda Serrano:<br />

a combinação com o culto católico da mãe. Ao contrário das culturas <strong>de</strong> matriz protestante,<br />

nas culturas católicas, a mãe <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha um papel <strong>de</strong> relevo na dinâmica social e familiar, não<br />

apenas por ser<strong>em</strong> marcadas pelas partidas e ausências prolongadas dos homens mas também pela<br />

força do culto mariano. No caso <strong>em</strong> estudo, torna-se por <strong>de</strong>mais evi<strong>de</strong>nte a forma como os media<br />

dão ênfase ao tópico da maternida<strong>de</strong>, evitando qualquer opção alternativa ou tonalida<strong>de</strong>s mais<br />

complexas na representação da doença <strong>de</strong> Fernanda Serrano.<br />

Estão aqui <strong>em</strong> causa dois acontecimentos essenciais: primeiro, a actriz <strong>de</strong>scobriu o nódulo<br />

que <strong>de</strong>pois veio a revelar-se cancerígeno, no dia seguinte ao nascimento do segundo filho . Depois,<br />

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quando soube que estava grávida do terceiro filho, ainda durante os tratamentos finais do cancro <strong>de</strong><br />

mama (à revelia dos conselhos dos médicos (25) ), Fernanda Serrano nunca pôs a hipótese <strong>de</strong> fazer<br />

um aborto; nunca tal opção é sequer mencionada . Mais uma vez, ironicamente, a representação<br />

da vida real <strong>de</strong> Fernanda Serrano é interseccionada pela vida ficcional dos seus papéis <strong>de</strong> actriz.<br />

L<strong>em</strong>bre-se o que ela <strong>de</strong>clarou apenas dois meses antes do anúncio da terceira gravi<strong>de</strong>z:<br />

“Não existe esta impossibilida<strong>de</strong> (<strong>de</strong> voltar a engravidar). Mas nos próximos dois anos não é aconselhável fazê-lo.<br />

Adoro ser mãe, mas não é algo <strong>em</strong> que pense. No final da novela [da estação <strong>de</strong> televisão privada TVI] Queridas<br />

Feras, a minha personag<strong>em</strong>, a Mónica, teve um cancro da mama e acabou <strong>de</strong> forma feliz: ela ficou curada e acabou<br />

grávida... Neste momento, não penso <strong>em</strong> mais filhos. A seu t<strong>em</strong>po se verá. Preciso <strong>de</strong> dar toda a minha atenção<br />

aos meus dois filhos pequeninos.” Conferência da imprensa convocada pela Fernanda Serrano, 12 <strong>de</strong><br />

Nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2008<br />

Tal como s<strong>em</strong>pre, a tendência dos media (sobretudo os media sensacionalistas, cuja existência<br />

e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vendas têm como base o <strong>de</strong>staque <strong>de</strong> figuras públicas) é a <strong>de</strong> transmitir valores<br />

culturais <strong>de</strong> estagnação e conservadorismo, <strong>em</strong> vez dos <strong>de</strong> mudança e progresso social (27) .<br />

Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser curioso cruzar este tratamento do caso <strong>de</strong> Fernanda Serrano, apoiada<br />

nas suas <strong>de</strong>clarações públicas, com o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> António Lobo Antunes, quando este foi<br />

entrevistado t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma cirurgia a um cancro do estômago: Eu agora tinha a morte<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim. E é horrível estar grávido da morte (Visão, 27.09.2007). Note-se como Lobo Antunes<br />

faz a conexão metafórica entre cancro e gravi<strong>de</strong>z. Tal figura retórica ecoa a posição iluminista <strong>de</strong><br />

Immanuel Kant (1798), segundo o qual “passions are cancers for pure practical reason and often<br />

incurable”; elas são também “unfortunate moods pregnant with many evils” (apud Sontag, 1977:<br />

42).<br />

Será supérfluo afirmar que a mesma doença merece tratamento diferente consoante o género<br />

do doente. No caso do género f<strong>em</strong>inino, enfatiza-se o medo <strong>de</strong>la perante a doença e a capacida<strong>de</strong><br />

que ela possui para a transformação. No início, logo <strong>de</strong>pois da <strong>de</strong>tecção do tumor, <strong>de</strong>screv<strong>em</strong>-se<br />

as pressões que a mulher sente. A seguir, ela é <strong>de</strong>finida como <strong>em</strong>ocionalmente forte e capaz <strong>de</strong><br />

passar por uma mutação pessoal. Como consequência do cancro, ela torna-se numa nova pessoa.<br />

Uma característica recorrente nestas histórias é a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> a mulher partilhar a sua experiência<br />

com outras mulheres e ajudá-las a ultrapassar a doença. Concluindo, a história da mulher conta<br />

uma história heróica (Seale, 2002:181).<br />

Em contraste, as narrativas do género masculino segu<strong>em</strong> um padrão diferente. No caso do<br />

hom<strong>em</strong>, o doente é marcado pela imutabilida<strong>de</strong>. O hom<strong>em</strong> caminha <strong>em</strong> direcção à normalida<strong>de</strong>,<br />

volta à sua vida anterior. Sublinha-se a sua <strong>de</strong>terminação e serenida<strong>de</strong> estóica. Vejamos a entrevista<br />

supracitada <strong>de</strong> António Lobo Antunes à Visão:<br />

Jornalista: Teve medo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a mão?<br />

Lobo Antunes: S<strong>em</strong>pre senti esse medo e agora senti-o ainda mais. Tinha imenso medo que a operação, para além<br />

<strong>de</strong> me tirar o cancro, me tivesse tirado a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever. Não sei por que bulas, uma vez que aquilo estava<br />

nos intestinos...<br />

Jornalista: E <strong>de</strong>pois, foi ganhando confiança?<br />

Lobo Antunes: A pouco a pouco, fui aumentando o número <strong>de</strong> horas <strong>de</strong> escrita e, hoje, já estou no meu ritmo<br />

normal.<br />

Não esqueçamos, que “[it is] not suffering as such that is most <strong>de</strong>eply feared, but suffering<br />

that <strong>de</strong>gra<strong>de</strong>s”, como refere Susan Sontag, (1990:125), a concluir a reflexão acerca das doenças<br />

enquanto metáforas. Sontag perpectiva um t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que as pessoas já não atribuam a culpa aos<br />

males próprios e que o doente não tenha <strong>de</strong> tornar-se <strong>em</strong> “outro” (28) : aquele que t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser<br />

t<strong>em</strong>ido, analisado, posto à parte, invadido, para finalmente alcançar a <strong>de</strong>sejada cura. É por isso<br />

que Sontag dá um sentido dignificante àquele que se encontra nas margens da condição humana.<br />

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Bourdieu, Pierre (1984) Distinction: a Social Critique of the Judg<strong>em</strong>ent of Taste. Cambridge, Mass:<br />

Harvard University Press.<br />

Bourdieu, Pierre (2001) ‘Os três estados do capital cultural’ In: Nogueira, M. A.; Catani, A. (orgs.)<br />

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du Gay, Paul, Hall, Stuart, Janes, Lina, Mackay, Hugh, Negus, Keith (eds.) (1997) Doing Cultural<br />

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Visão. 27 <strong>de</strong> Set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2007.<br />

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Sites:<br />

http://fama.sapo.pt<br />

https://www.kirkkojakaupunki.fi/?newsid=5195&<strong>de</strong>ptid=127&languageid=3&NEWS=1<br />

NOTAS<br />

(1)É indiscutível que a diferença é central para a existência <strong>de</strong> sentidos no circuito cultural. A formulação <strong>de</strong><br />

oposições binárias implicam uma excessiva simplificação porque há s<strong>em</strong>pre qu<strong>em</strong> assuma a posição do po<strong>de</strong>r<br />

e a sua contínua negociação, sendo ambos os aspectos omnipresentes <strong>em</strong> toda a activida<strong>de</strong> linguística. Aliás, só<br />

construímos os sentidos do mundo (l<strong>em</strong>bre-se o dialogismo <strong>de</strong> Bakhtine) e <strong>de</strong> nós próprios (por ex<strong>em</strong>plo, a<br />

perspectiva psicanalítica) no e pelo diálogo com os outros.<br />

(2)Qualquer doença que era tida como misteriosa e t<strong>em</strong>ível seria compreendida do ponto <strong>de</strong> vista moral como um<br />

contágio, uma doença infecciosa, uma violação do tabu. Importa l<strong>em</strong>brar, com Susan Sontag, que “[a]s long as a<br />

disease is treated as an evil predator, not just a disease, most people with cancer will be <strong>de</strong>moralised by having cancer.<br />

The solution is to <strong>de</strong>-mythicize the disease” (1977:5). E eventualmente, no fim, livrarmo-nos <strong>de</strong>ssas metáforas da<br />

doença, quando já conseguimos enfrentar o mal.<br />

(3)Assim se compreen<strong>de</strong> que a gula fosse entendida como a causa da epilepsia, a luxúria, da febre, o ódio, da loucura,<br />

o orgulho, da obstipação, e assim por diante.<br />

50


(4)Para Sontag, o cancro cont<strong>em</strong>porâneo é, pelo contrário, “a disease of middle-class life, associated with affluence, with<br />

excess; rich countries have the highest cancer rates, resulting from life-style options – food, stress – and something in the<br />

environment – city-life.” (1977:15).<br />

(5)E ainda continua a ser. Basta pensar nos distúrbios alimentares do mundo cont<strong>em</strong>porâneo e a magreza da própria<br />

Fernanda Serrano. Aliás, Fernanda Serrano tinha acabado <strong>de</strong> fazer uma lipo-aspiração para apresentar a peça sobre a vida<br />

probl<strong>em</strong>ática e tumultuosa <strong>de</strong> Frida Kahlo, intitulada Viva la Vida, <strong>de</strong> Humberto Robles, quando soube que estava grávida<br />

do terceiro filho.<br />

(6) À s<strong>em</strong>elhança <strong>de</strong> outros países <strong>de</strong> cultura protestante, o povo finlandês é <strong>em</strong>ocionalmente <strong>de</strong>scrito pela sua frieza, o<br />

que justifica a reacção do corpo que <strong>de</strong>senvolve doenças físicas como a hipertensão ou o cancro, enquanto povos tidos<br />

como saudáveis do ponto <strong>de</strong> vista <strong>em</strong>ocional reag<strong>em</strong> com normalida<strong>de</strong> através da psique, ao manifestar<strong>em</strong> tristeza e ao<br />

lidar<strong>em</strong> criativamente com as crises. Cf. infra nota 7.<br />

(7) A tradução é da minha responsabilida<strong>de</strong>. Transcrevo <strong>de</strong> seguida o texto original, <strong>em</strong> finlandês: “Toivon, että minun<br />

tutkimukseni tulokset voisivat tuoda lohtua nykyajan ihmisille. Nykyisin syöpään sairastunutta helposti syyllistetään,<br />

moititaan huonoista elintavoista ja taivastellaan tupakoinnista. Ehkä on helpottavaa huomata, että syöpää on ollut ennenkin<br />

ja kaikenlaisilla ihmisillä. Niilläkin, jotka ovat eläneet hyvin ja terveesti.” Site: https://www.kirkkojakaupunki.fi/?newsid=5<br />

195&<strong>de</strong>ptid=127&languageid=3&NEWS=1<br />

(8) É por isso abolido o po<strong>de</strong>r supr<strong>em</strong>o do Papa e da hierarquia eclesiástica, <strong>em</strong> cujo seio são promovidos a entronização<br />

<strong>de</strong> santos e o culto mariano.<br />

(9) Claro que também Gutenberg teve um papel crucial na massificação protestante da literacia com a invenção da<br />

imprensa.<br />

(10) No protestantismo, não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> intermediários entre Deus e o crente, o que na religião católica se traduz<br />

no relevo do padre e na instituição sist<strong>em</strong>ática <strong>de</strong> santos.<br />

(11) As culturas católicas são comummente <strong>de</strong>finidas como culturas do pecado e as protestantes, como culturas da culpa.<br />

(12) Curiosamente, segundo Susan Sontag, as metáforas do cancro têm orig<strong>em</strong> na incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a socieda<strong>de</strong> regular<br />

as formas <strong>de</strong> consumo: “Our views about cancer and the metaphors we have imposed on it are an instrument for the<br />

large insufficiencies of our culture (f.ex. shallow attitu<strong>de</strong> towards <strong>de</strong>ath) (…) for our inability to construct an advanced<br />

industrial society which properly regulates consumption.” (1977: 84).<br />

(13) Para a teoria da articulação cultural da Escola <strong>de</strong> Birmingham, um circuito cultural consiste nas etapas da representação,<br />

regulação, i<strong>de</strong>ntificação, produção e consumo.<br />

(14) Para Bourdieu (1979, tradução portuguesa 2001), a noção <strong>de</strong> capital cultural surge da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r as<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho escolar dos indivíduos, oriundos <strong>de</strong> diferentes grupos sociais. A sua sociologia da educação<br />

caracteriza-se pela diminuição do peso do factor económico, <strong>em</strong> comparação com o peso do factor cultural, na explicação<br />

das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s escolares.<br />

(15) Não é ocasional que Terry Eagleton (2000:115) formule a seguinte pergunta: “Culture is habitus, in Pierre Bourdieu’s<br />

term, but it is also, contradictorily, the most finely self-reflective existence of which we are capable. (…) the very word<br />

inclu<strong>de</strong>s both organic growth and the active tending of it. (…) How can culture be at once what we don’t need to think<br />

about, and the finest fruits of our consciousness?” Penso que, através da noção <strong>de</strong> gosto (aesthetikon, <strong>em</strong> grego), acima<br />

apresentada, se po<strong>de</strong> articular as propostas críticas <strong>de</strong> Bourdieu e Eagleton.<br />

51


(16) No livro Metaphors We Live By (1980), Lakoff e Johnson <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que as metáforas espaciais <strong>de</strong> orientação,<br />

apresentadas <strong>em</strong> pares contrastivos (alto/baixo, interior/exterior, à frente/atrás), nos ajudam a organizar as<br />

experiências, como se elas existiss<strong>em</strong> num espaço a três dimensões. Assim, “health is up, illness is down”. Dou<br />

ex<strong>em</strong>plos: estou <strong>em</strong> alta, no céu, <strong>de</strong> cabeça erguida, por oposição a estou <strong>de</strong> rastos, <strong>em</strong> baixo, arrasado. Ao justapor<br />

e comparar a tuberculose e o cancro, Sontag secunda a teoria cognitive <strong>de</strong> Lakoff e Johnson, baseada na postura<br />

vertical da vida humana.<br />

(17) A tuberculose é uma doença da alma, enquanto o cancro é uma doença do corpo; i.e., “body is just a body”<br />

(Sontag, 1977:19).<br />

(18) Explicava-se a tuberculose na sua ligação a certo tipo <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>. Essa explicação <strong>de</strong>sapareceu<br />

progressivamente, quando, por fim, ela foi compreendida como resultado <strong>de</strong> uma bactéria e um antibiótico <strong>de</strong> cura<br />

foi inventado.<br />

(19) O cancro t<strong>em</strong> o seu paralelo na cultura cyberpunk; o cancro é um ataque <strong>de</strong> células invasoras e mutantes, mais<br />

fortes do que é normal, contra células saudáveis do corpo.<br />

(20) As histórias cont<strong>em</strong>porâneas <strong>de</strong> cancro também implicam o uso <strong>de</strong> linguag<strong>em</strong> do <strong>de</strong>sporto: uma batalha, uma<br />

vitória, a corag<strong>em</strong>, a competição, o round, a <strong>de</strong>rrota. Embora as histórias não atribuam o cancro a <strong>de</strong>feitos do<br />

doente, é ainda assim uma jornada psicológica <strong>em</strong> direcção à solução final (Seale, 2000:180-181).<br />

(21) Nos cartazes da peça Viva la Vida que Fernanda Serrano não chegou a estrear, como previsto, no Casino<br />

Lisboa, vê-se todo o cuidado que o maquilhador pôs na recriação das sobrancelhas e do buço, marcantes na figura<br />

<strong>de</strong> Frida. O toque <strong>de</strong> jóias, ao estilo da civilização maia, e o lenço cor-<strong>de</strong>-rosa completam o look final. A actriz surge,<br />

pois, como um autêntico clone da mexicana. Em Outubro <strong>de</strong> 2008, Fernanda Serrano anunciou ter finalizado os<br />

tratamentos contra o cancro <strong>de</strong> mama, <strong>de</strong>scoberto <strong>em</strong> Fevereiro <strong>de</strong>sse ano. Num discurso bastante <strong>em</strong>ocionado,<br />

a actriz falou da sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> voltar ao trabalho o mais rapidamente possível e <strong>de</strong> interpretar Frida Khalo,<br />

consi<strong>de</strong>rada por si uma mulher ex<strong>em</strong>plar. “Tinha um <strong>de</strong>sejo forte, uma espécie <strong>de</strong> mania, <strong>de</strong> querer fazer uma peça<br />

sobre a Frida Khalo. Sou uma Fridamaníaca. Felizmente consegui adquirir os direitos do espectáculo Viva la Vida<br />

para Portugal.”, afirmou ela. (Vanessa Amaro <strong>em</strong> http://fama.sapo.pt, 17 <strong>de</strong> Dez<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2008)<br />

(22) Aos 64 anos, <strong>em</strong> 2002, também a cantora e actriz Simone <strong>de</strong> Oliveira teve um cancro da mama. Tal facto não<br />

a tornou uma heroína mediática; por a própria só ter revelado a doença após a cura e por se tratar <strong>de</strong> alguém idoso.<br />

Depois da experiência <strong>de</strong> doença cancerosa, Simone publicou um livro sobre o assunto, intitulado Nunca Ninguém<br />

Sabe (Dom Quixote, 2003).<br />

(23) O conceito <strong>de</strong> corpo é intensamente explorado no campo dos Estudos Culturais. A orientação mais comum<br />

sobre o corpo é ter um corpo (having a body): i.e., uma espécie <strong>de</strong> disjunção entre corpo e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, como quando<br />

se t<strong>em</strong> um cancro; ser o corpo (being the body): i.e., o corpo é invisível por não ser probl<strong>em</strong>ático; e fazer o corpo<br />

(doing the body): i.e., o nosso contexto sócio-cultural <strong>de</strong>termina certas técnicas corporais adquiridas, como gestos,<br />

formas <strong>de</strong> locomoção, magreza, bronzeado, etc.<br />

(24) ”Um dia, <strong>de</strong>pois do nascimento da minha filha Laura, <strong>em</strong> Fevereiro passado, <strong>de</strong>tectei um nódulo. Nunca<br />

imaginei que seria aquele o diagnóstico, mas a verda<strong>de</strong> é que fiquei bastante alerta. Depois <strong>de</strong> amamentar, fiz uma<br />

ecografia mamária seguida <strong>de</strong> biópsia. Uma s<strong>em</strong>ana <strong>de</strong>pois, foi-me diagnosticado cancro <strong>de</strong> mama.” (Conferência<br />

da imprensa convocada pela Fernanda Serrano, 12 <strong>de</strong> Nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2008 <strong>em</strong> http://fama.sapo.pt)<br />

Ainda na fase <strong>de</strong> controlo da doença e s<strong>em</strong> saber se está curada - o que só se confirmará <strong>em</strong> 2013, conforme<br />

mandam as regras médicas - Fernanda Serrano acaba <strong>de</strong> anunciar a sua terceira gravi<strong>de</strong>z (Vanessa Amaro <strong>em</strong> http://<br />

fama.sapo.pt, 15 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 2009).<br />

(26) Na capa da revista Nova Gente, <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 2009, <strong>de</strong>staca-se uma imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Fernanda Serrano com o<br />

filho Santiago, <strong>de</strong> 4 anos, ao lado <strong>de</strong> duas pequenas fotografias do “marido com a filha e a mãe <strong>de</strong>la, a sua maior<br />

ajuda”. O texto é o seguinte: Fernanda Serrano sacrifica-se pelos filhos. Gran<strong>de</strong> exclusivo: Fernanda Serrano –<br />

Como t<strong>em</strong> enfrentado a gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> risco.<br />

52


(27)Mais ainda, durante a época fascista <strong>em</strong> Portugal, a maternida<strong>de</strong> era valorizada para garantir a sucessão e a continuida<strong>de</strong>:<br />

<strong>de</strong> acordo com o l<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Salazar, “a guerra é para os homens o que a maternida<strong>de</strong> é para as mulheres”, cada um <strong>de</strong>les<br />

cumprindo o seu <strong>de</strong>stino biológico.<br />

(28) Nas palavras <strong>de</strong> Simone <strong>de</strong> Oliveira a propósito da sua experiência <strong>de</strong> cancro da mama: “Se me pediss<strong>em</strong> para contar a<br />

história <strong>de</strong> uma mulher a qu<strong>em</strong> foi diagnosticado um cancro da mama, falaria <strong>de</strong>ssa pessoa com o mesmo distanciamento<br />

com que falo <strong>de</strong> mim, quando conto a minha história. Ainda hoje me custa acreditar que me tenha acontecido a mim.<br />

Logo a mim...” (2003:5).<br />

53


PRODUÇÃO DE UM PROGRAMA DIDÁCTICO NO<br />

ÂMBITO DA LITERACIA CINEMATOGRÁFICA<br />

Ana Luísa Gonçalves<br />

Actualmente somos actores num cenário invadido pelas mensagens dos media, com<br />

conteúdos informativos através <strong>de</strong> texto, som e imag<strong>em</strong> transmitidos através <strong>de</strong> diferentes tipos<br />

<strong>de</strong> comunicação: televisão, cin<strong>em</strong>a, ví<strong>de</strong>o, sítios Web, rádio, jogos ví<strong>de</strong>o e comunida<strong>de</strong>s virtuais.<br />

Desta forma, pelo facto da presença dos meios <strong>de</strong> comunicação e das tecnologias ser constante<br />

na vida do indivíduo, torna-se necessário falar <strong>de</strong> uma literacia mediática, ou neste caso concreto <strong>de</strong><br />

uma literacia cin<strong>em</strong>atográfica. Por outro lado, ainda que estes continu<strong>em</strong> a ser meios fundamentais<br />

para o conhecimento e a compreensão do mundo, é notório que a sua forma <strong>de</strong> consumo está a<br />

mudar.<br />

No caso concreto dos mais jovens, é consensual um consumo <strong>de</strong> forma indiscriminada<br />

<strong>de</strong> todo o tipo <strong>de</strong> mensagens, sejam elas provenientes dos meios tradicionais ou dos meios mais<br />

recentes (Internet, tel<strong>em</strong>óvel, etc.). S<strong>em</strong> possuir conhecimentos sobre a linguag<strong>em</strong> audiovisual,<br />

acabam por <strong>de</strong>sconhecer as estratégias persuasivas e manipuladoras que se escon<strong>de</strong>m nos<br />

bastidores <strong>de</strong> um ecrã.<br />

Em relação ao meio cin<strong>em</strong>atográfico, os filmes permit<strong>em</strong>-nos uma visão sobre o mundo,<br />

<strong>de</strong>spertam <strong>de</strong>sejos, influenciam-nos nas nossas atitu<strong>de</strong>s e percepções perante a realida<strong>de</strong> e<br />

contribu<strong>em</strong> ainda, para a construção da nossa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. No caso dos mais novos, o cin<strong>em</strong>a<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha um papel fundamental, uma vez que lhes permite adquirir inúmeros conhecimentos<br />

(escola paralela). Fazendo referência a Manvell (1978: 153), o cin<strong>em</strong>a exerce uma gran<strong>de</strong> influência<br />

nas nossas atitu<strong>de</strong>s e perante a nossa forma <strong>de</strong> estar na vida. Este meio <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha um papel<br />

importante na formação das pessoas, uma vez que influencia os estilos <strong>de</strong> vida, on<strong>de</strong> valores e<br />

mo<strong>de</strong>los são propostos e consumidos pelos espectadores <strong>em</strong> geral, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente da faixa<br />

etária (Ballesta e Guardiola, 2001: 11).<br />

Por conseguinte, não existindo uma literacia cin<strong>em</strong>atográfica, torna-se complicado, por vezes,<br />

para este público adoptar uma atitu<strong>de</strong> crítica e reflexiva, não sendo capaz <strong>de</strong> fazer uma leitura e uma<br />

interpretação daquilo que, <strong>de</strong> forma passiva, cont<strong>em</strong>pla, per<strong>de</strong>ndo-se <strong>de</strong>sta forma, o contributo<br />

para a formação <strong>de</strong> cidadãos equilibrados, capazes <strong>de</strong> expressar a sua própria opinião a partir das<br />

informações disponíveis. Segundo Aparici (2004), «já não é suficiente saber ler e escrever códigos<br />

linguísticos para compreen<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong>. Aquele indivíduo que não tenha os instrumentos para<br />

<strong>de</strong>scodificar as mensagens dos meios po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificado como um novo tipo <strong>de</strong> analfabeto».<br />

Na educação para os media, consi<strong>de</strong>rando o caso concreto do cin<strong>em</strong>a, preten<strong>de</strong>-se<br />

disponibilizar as ferramentas necessárias para ensinar as crianças e os jovens a interpretar e a<br />

produzir as suas próprias mensagens. Nomeadamente, preten<strong>de</strong>-se que adquiram os conhecimentos<br />

essenciais, adquirindo noções el<strong>em</strong>entares <strong>de</strong> leitura e escrita, centradas numa perspectiva cultural<br />

<strong>de</strong> cidadania e <strong>de</strong> técnica, permitindo-lhes ser capazes <strong>de</strong> analisar <strong>de</strong> forma crítica o que consom<strong>em</strong>.<br />

No que diz respeito à utilização do cin<strong>em</strong>a no contexto educativo, este é utilizado na maioria<br />

das vezes pela sua componente lúdica, como uma forma <strong>de</strong> entretenimento, acabando por ficar<br />

esquecida a componente educativa, que para nós profissionais da educação, po<strong>de</strong>ria ser utilizada<br />

54


para motivar os alunos que cada vez mais se interessam e viv<strong>em</strong> <strong>em</strong> função do mundo da tecnologia<br />

e do virtual. Neste sentido, como refere Pinto (1988: 27), a educação para os media «não po<strong>de</strong> ser<br />

reduzida ao uso dos meios enquanto tecnologias ao serviço do processo <strong>de</strong> ensino-aprendizag<strong>em</strong>»,<br />

verificando-se que consiste na forma mais frequente <strong>de</strong> utilização.<br />

No âmbito educativo, a educação para os media preten<strong>de</strong> que os alunos sejam capazes <strong>de</strong><br />

controlar <strong>de</strong> forma autónoma o uso que faz<strong>em</strong> dos meios e das tecnologias da informação e da<br />

comunicação, através <strong>de</strong> pautas <strong>de</strong> análise e <strong>de</strong> uma proposta pedagógica a<strong>de</strong>quada, <strong>de</strong>vendo<br />

ser capazes <strong>de</strong> adoptar uma atitu<strong>de</strong> reflexiva e activa perante as mensagens mediáticas que<br />

receb<strong>em</strong> dos respectivos meios. Enquanto profissionais da educação e no caso <strong>de</strong> fracassarmos<br />

na formação audiovisual dos alunos, contribuir<strong>em</strong>os para que estes <strong>de</strong>senvolvam visões <strong>de</strong> si<br />

mesmos manipuladas por outros, cujos valores e atitu<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>rão não estar <strong>em</strong> concordância com<br />

a sua verda<strong>de</strong>ira forma <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> estar (Tyner and Lloyd, 1995: 15).<br />

Educar as crianças e os jovens no sentido <strong>de</strong> os tornar espectadores críticos e reflexivos,<br />

constitui um dos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>safios do sist<strong>em</strong>a educativo, permitindo-lhes o ser capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>scodificar<br />

<strong>de</strong> forma consciente as mensagens audiovisuais com que se <strong>de</strong>frontam diariamente. Para além<br />

disso, no caso específico da linguag<strong>em</strong> cin<strong>em</strong>atográfica, esta po<strong>de</strong> ser uma valiosíssima ferramenta<br />

na formação moral e humanística dos alunos, ou seja uma verda<strong>de</strong>ira escola <strong>de</strong> ética.<br />

Ainda que não haja, no contexto português, uma integração formalizada da alfabetização<br />

cin<strong>em</strong>atográfica no currículo escolar, será importante referir os diferentes níveis <strong>de</strong> exploração<br />

didáctica do cin<strong>em</strong>a no contexto educativo: apren<strong>de</strong>r com o cin<strong>em</strong>a (o cin<strong>em</strong>a como recurso e<br />

auxiliar didáctico para o ensino e a aprendizag<strong>em</strong>); conhecer e interpretar o cin<strong>em</strong>a (o cin<strong>em</strong>a<br />

como objecto <strong>de</strong> estudo – análise crítica) e criar com o cin<strong>em</strong>a (o cin<strong>em</strong>a como técnica <strong>de</strong> trabalho<br />

criativo e expressivo).<br />

Face a um contexto que r<strong>em</strong>ete para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma literacia mediática, nomeadamente<br />

sobre o meio cin<strong>em</strong>atográfico, resolv<strong>em</strong>os proce<strong>de</strong>r à elaboração <strong>de</strong> um programa didáctico<br />

sobre a linguag<strong>em</strong> cin<strong>em</strong>atográfica, que fosse aplicado <strong>em</strong> Portugal, aos alunos do Ensino Básico,<br />

concretamente <strong>em</strong> turmas <strong>de</strong> 4º e 6º anos, com o objectivo principal <strong>de</strong> utilizar esta linguag<strong>em</strong>,<br />

como uma nova forma <strong>de</strong> alfabetização, a qual po<strong>de</strong>rá ser uma mais valia na <strong>de</strong>scodificação das<br />

mensagens audiovisuais, contribuindo num futuro próximo, para uma mudança <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> face<br />

ao audiovisual. Neste trabalho <strong>de</strong> investigação, pretendia-se através da aplicação do programa<br />

didáctico, ensinar e apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong> forma crítica e reflexiva a linguag<strong>em</strong> cin<strong>em</strong>atográfica, permitindonos<br />

verificar até que ponto os conhecimentos, hábitos e atitu<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>riam modificar-se, a partir <strong>de</strong><br />

um tratamento planificado <strong>de</strong> reflexão e <strong>de</strong> análise dos conteúdos e da linguag<strong>em</strong> cin<strong>em</strong>atográfica,<br />

<strong>em</strong> contexto <strong>de</strong> sala <strong>de</strong> aula e neste caso na disciplina <strong>de</strong> «Área <strong>de</strong> Projecto».<br />

Fazendo referência ao Programa Didáctico e aos seus componentes (Ca<strong>de</strong>rno do Aluno,<br />

Guia Didáctico e dvd), é importante assinalar que num primeiro momento antes da sua aplicação,<br />

estes três el<strong>em</strong>entos foram submetidos a uma avaliação prévia por um grupo <strong>de</strong> avaliadores, <strong>de</strong><br />

forma a que as indicações e sugestões <strong>de</strong>stes, permitiss<strong>em</strong> constatar se o respectivo Programa<br />

po<strong>de</strong>ria contribuir ou não, para a «alfabetização cin<strong>em</strong>atográfica» com os alu¬nos do Ensino<br />

Básico.<br />

Em relação à apreciação global realizada pelos avaliadores sobre o Programa Didáctico,<br />

<strong>de</strong>staca-se o facto <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado um material atractivo, <strong>de</strong> fácil consulta, bastante útil como<br />

texto informativo; além disso através <strong>de</strong>ste o aluno po<strong>de</strong> adquirir conhecimentos, procedimentos e<br />

valores a<strong>de</strong>quados às suas necessida<strong>de</strong>s como cidadão do mundo do audiovisual e consequent<strong>em</strong>ente<br />

da socieda<strong>de</strong> da informação e da comunicação e finalmente, tendo como ponto <strong>de</strong> partida o meio<br />

cin<strong>em</strong>atográfico, um meio por excelência bastante motivante, permitirá o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />

competências básicas que facilitarão a aprendizag<strong>em</strong> crítica e significativa dos alunos.<br />

Vejamos, então, alguns dos aspectos conclusivos que os dados traduziram relativamente à<br />

experimentação do Programa Didáctico no contexto <strong>de</strong> sala <strong>de</strong> aula.<br />

55


•Em relação ao visionamento da ficha técnica do filme, a maioria dos alunos <strong>de</strong>sconhecendo a<br />

sua importância e finalida<strong>de</strong>, referiram que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> concluída a projecção do filme, imediatamente<br />

abandonam a sala. No entanto, <strong>de</strong>pois da aplicação do Programa, po<strong>de</strong>-se verificar com base nos<br />

resultados, que alguns <strong>de</strong>les manifestaram outra opinião <strong>em</strong> relação a esta questão, verificando-se<br />

pelo menos alguma sensibilização, não querendo dizer que adopt<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre uma nova postura no<br />

futuro.<br />

•Actualmente e contrariamente ao que se po<strong>de</strong>ria pensar, não se <strong>de</strong>dica muito do t<strong>em</strong>po<br />

livre a ver cin<strong>em</strong>a através dos suportes tradicionais, facto este justificativo pelo crescimento da<br />

tecnologia digital e concretamente da Internet. Assim, as novas tecnologias da informação e<br />

comunicação têm multiplicado diariamente as suas possibilida<strong>de</strong>s, permitindo uma panóplia <strong>de</strong><br />

imagens <strong>em</strong> movimento, inclusivé <strong>de</strong> pequenas curtas-metragens, para as quais será necessária<br />

uma alfabetização cin<strong>em</strong>atográfica, contribuindo <strong>de</strong>sta forma, para que as crianças e os jovens<br />

adopt<strong>em</strong> uma postura crítica e reflexiva face a estas.<br />

•Em toda esta fase <strong>de</strong> experimentação do Programa Didáctico, pu<strong>de</strong>mos observar o interesse<br />

e a motivação que trouxe uma t<strong>em</strong>ática como esta, a alfabetização audiovisual, no contexto<br />

educativo, concretamente a todos os sujeitos participantes. O carácter inovador <strong>de</strong> estes novos<br />

conteúdos, aplicados no contexto português, permitiram uma nova dinâmica na área curricular<br />

não disciplinar «Área <strong>de</strong> Projecto», fomentando nos alunos uma intervenção bastante participativa,<br />

autónoma e consciente. O factor motivação esteve s<strong>em</strong>pre presente, o que prova a dinâmica activa<br />

e participativa nas aulas. Por outro lado, s<strong>em</strong>pre que existiam momentos <strong>em</strong> que era discutido<br />

<strong>de</strong>terminado assunto sobre esta t<strong>em</strong>ática, gran<strong>de</strong> parte dos alunos participava contribuindo para<br />

uma análise crítica <strong>em</strong> torno do meio cin<strong>em</strong>atográfico, o que fora bastante enriquecedor. Com<br />

efeito, relativamente à interacção dos alunos na aula, <strong>de</strong>senvolveu-se um ambiente <strong>de</strong> trabalho<br />

autónomo e <strong>de</strong> cooperacão, o que contribuiu para a implicação dos alunos <strong>de</strong> uma forma dinâmica.<br />

•Em relação aos professores, verificou-se através <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas atitu<strong>de</strong>s que estes<br />

<strong>de</strong>monstram <strong>de</strong>streza e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adaptação a novas situações. Nesta linha, observouse<br />

ainda que a maioria se preocupou <strong>em</strong> planificar a sua activida<strong>de</strong> didáctica, para além das<br />

respectivas estratégias <strong>de</strong> trabalho (organização dos grupos <strong>de</strong> trabalho, elaboração <strong>de</strong> fichas, etc.)<br />

e inclusivamente, alguns <strong>de</strong>les chegaram a <strong>de</strong>senvolver alguma activida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pesquisa sobre esta<br />

t<strong>em</strong>ática.<br />

•Relativamente ao índice <strong>de</strong> melhoria no <strong>de</strong>senvolvimento da «alfabetização cin<strong>em</strong>atográfica»,<br />

este é um el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> difícil quantificação, e para além disso, o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> intervenção ocorreu<br />

durante um curto período <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po, como foi o caso da aplicação do Programa Didáctico, <strong>em</strong> seis<br />

meses e exclusivamente <strong>em</strong> âmbito escolar. Desta forma, ainda que dificilmente se possa afirmar<br />

que se produziu uma aprendizag<strong>em</strong> significativa <strong>de</strong>sta alfabetização, po<strong>de</strong>r-se-á afirmar, que a<br />

aplicação <strong>de</strong>ste Programa Didáctico permitiu principalmente o <strong>de</strong>senvolvimento do conhecimento<br />

do meio cin<strong>em</strong>atográfico, <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados procedimentos e estratégias para o visionamento <strong>de</strong><br />

cin<strong>em</strong>a, como por ex<strong>em</strong>plo, a importância e o objectivo da existência da ficha técnica, entre outros.<br />

Face ao exposto, pensamos que se produziram algumas mudanças nas percepções das crianças<br />

relativamente ao significado <strong>de</strong>sta nova t<strong>em</strong>ática. Neste sentido, são <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar comentários<br />

como: «...eu gosto das aulas <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a, pois estuda-se como funciona o mundo do cin<strong>em</strong>a»; «...<br />

quando quiser ver um filme, já vou ter atenção à ida<strong>de</strong> e saber o género a que pertence»...<br />

•Os alunos <strong>de</strong>pois da experimentação do Programa consi<strong>de</strong>ram que são manipulados, uma<br />

vez que exist<strong>em</strong> interesses subjacentes à projecção <strong>de</strong> um filme, b<strong>em</strong> como a toda a indústria<br />

cin<strong>em</strong>atográfica. Outro dos pontos a <strong>de</strong>stacar, trata-se <strong>de</strong> que já compreen<strong>de</strong>ram a importância<br />

<strong>de</strong> interpretar um filme, pois permite-lhes <strong>de</strong>scobrir as mensagens que o autor do filme quer<br />

transmitir. Por último, consi<strong>de</strong>rámos pertinente fazer referência a um dos comentários dos<br />

professores, sujeitos da aplicação, <strong>em</strong> que é notória uma evolução entre o momento inicial e<br />

56


o final da aplicação do Programa Didáctico: «...relativamente a esta parte final da aplicação do<br />

Programa, há que referir que a realida<strong>de</strong> é completamente diferente da inicial, quer na percepção<br />

dos conteúdos por parte dos alunos, quer na forma <strong>de</strong> apresentação dos mesmos por parte dos<br />

professores».<br />

A elaboração <strong>de</strong> materiais curriculares especialmente <strong>em</strong> novas t<strong>em</strong>áticas, como é o uso do meio<br />

cin<strong>em</strong>atográfico nas aulas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ponto <strong>de</strong> vista crítico –cineliteracy–, po<strong>de</strong>rá ser um el<strong>em</strong>ento<br />

chave, não apenas para que as crianças e os jovens interactu<strong>em</strong> com o meio cin<strong>em</strong>atográfico com<br />

uma atitu<strong>de</strong> inteligente, activa e crítica, mas também como uma forma <strong>de</strong> motivação para outras<br />

disciplinas, permitindo contribuir para o sucesso <strong>em</strong> geral do processo ensino-aprendizag<strong>em</strong>.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

APARICI, R. (2004). Educación para la comunicación en ti<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> neoliberalismo. Consultado<br />

<strong>em</strong> Set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2005 <strong>em</strong> www.rebelion.org/medios/040415ra.htm<br />

BALLESTA, J. & GUARDIOLA, P. (2001). Escuela, familia y medios <strong>de</strong> comunicación. Madrid:<br />

CCS.<br />

MANVELL, R. (1978). O filme e o público. Lisboa: Aster.<br />

PINTO, M. (1988). Educar para a comunicação. Lisboa: Estudos do Ministério <strong>de</strong> Educação <strong>de</strong><br />

Portugal, Comissão <strong>de</strong> Reforma do Sist<strong>em</strong>a Educativo.<br />

TYNER, K. E LLOYD, D. (1995). Apren<strong>de</strong>r con los medios <strong>de</strong> comunicación. Madrid: La Torre.<br />

57


PROJECTOS DE DOUTORAMENTO


UMA REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO ORIENTAL<br />

Emília Pieda<strong>de</strong><br />

Em 2002 foi editado o livro 30 Anos com o Cin<strong>em</strong>a Português, numa colaboração entre o IPC, o<br />

IPACA e o ICAM. Constam <strong>de</strong>sta obra produções fílmicas entre 1974 e 2001. Trinta e dois filmes,<br />

entre documentários, curtas e longas metragens, têm por t<strong>em</strong>a os territórios do Oriente on<strong>de</strong> os<br />

portugueses estabeleceram a sua presença <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVI, e outros territórios orientais. A<br />

questão da relação da cultura portuguesa com o Oriente é, por razões históricas, nomeadamente a<br />

longa duração do império português, objecto <strong>de</strong> estudo numa perspectiva pós-colonial, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

Eduardo Lourenço publicou, <strong>em</strong> 1978, O Labirinto da Sauda<strong>de</strong> – Psicanálise do Destino Português.<br />

O orientalismo português como expressão literária r<strong>em</strong>onta a Camões e a autores dos<br />

séculos XVII e XVIII, e vai até aos t<strong>em</strong>pos mo<strong>de</strong>rnos, período <strong>em</strong> se registou uma forte expressão<br />

orientalista na Literatura portuguesa, por ex<strong>em</strong>plo na obra <strong>de</strong> Camilo Pessanha, António Patrício<br />

e sobretudo Fernando Pessoa. Os estudos cont<strong>em</strong>porâneos como os <strong>de</strong> Margarida Calafate<br />

Ribeiro e Ana Paula Ferreira na área <strong>de</strong> Estudos <strong>de</strong> pós-Colonialismo, ou, na vertente psicanalítica,<br />

<strong>de</strong> Eduardo Lourenço, assim como na imagologia e Literatura Comparada <strong>de</strong> Álvaro Manuel<br />

Machado, <strong>de</strong>stacaram a existência <strong>de</strong> uma formação psico-social mitificante dos territórios<br />

orientais, sobretudo aqueles on<strong>de</strong> a presença portuguesa existiu, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Renascimento. Em 1983,<br />

na obra Do Oci<strong>de</strong>nte ao Oriente, estabelece a existência <strong>de</strong> uma “apropriação literária <strong>de</strong> um mito<br />

espacial <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época áurea dos Descobrimentos, o <strong>de</strong> um Oriente longínquo que nos <strong>de</strong>finiu”<br />

(1).<br />

Margarida Calafate Ribeiro e Ana Paula Ferreira organizaram um volume <strong>de</strong> ensaios cujo<br />

título é Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário Português Cont<strong>em</strong>porâneo, editado <strong>em</strong> 1993. São textos<br />

exactamente sobre a condição da cultura portuguesa, relativamente às facetas do imperialismo<br />

português e as suas marcas in<strong>de</strong>léveis, enquanto existia o império e quando ele findou.<br />

Eduardo Lourenço, na obra acima mencionada, caracterizando o estado da cultura<br />

portuguesa, refere-se à “mitificação assombrosa <strong>de</strong> natureza histórico-cultural” (2) cristalizada <strong>em</strong><br />

obras literárias referentes aos territórios do Oriente.<br />

Edward Said, no momento inaugural das reflexões sobre pós-colonialismo, <strong>de</strong>fine a nova<br />

perspectiva sobre o Oriente:<br />

“[O Oriente]é menos um dado da Natureza do que uma produção do hom<strong>em</strong>, a que<br />

<strong>de</strong>nominei geografia imaginativa. (…) o Oriente e o Oci<strong>de</strong>nte são factos produzidos por seres<br />

humanos, e, como tal, <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser estudados enquanto componentes do mundo social e não do<br />

mundo divino ou natural.” (3)<br />

Também Michel Foucault, numa conferência sobre a importância da percepção do espaço<br />

na nossa era, cria o termo heterotopia, para <strong>de</strong>signar o espaço geográfico real (diferente da utopia)<br />

sobre o qual uma cultura projecta noções e afectos, concebendo esse espaço como <strong>de</strong>scontínuo,<br />

oposto ao espaço vulgar, familiar. O Oriente é, na cultura portuguesa, uma heterotopia, por razões<br />

históricas. Said fala, no mesmo sentido, do orientalismo, afirmando que é feito <strong>de</strong> “suposições<br />

i<strong>de</strong>ológicas, imagens e fantasias sobre uma região do mundo” (4).<br />

59


No século XX, Realismo e Naturalismo, Neo-Realismo, Realismo Ético, Surrealismo e<br />

Existencialismo foram as correntes, vindas sobretudo <strong>de</strong> França, que se distanciaram da i<strong>de</strong>ologia<br />

imperialista, cultivaram novas formas, <strong>em</strong> prosa e poesia, e sendo um el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> resistência<br />

ao regime. António José Saraiva e Óscar Lopes comentam o <strong>de</strong>smoronamento da colocação<br />

colonialista na Literatura: “Esgotada a mistificação exotista, assiste-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a última guerra ao<br />

surto <strong>de</strong> uma literatura que encara <strong>de</strong> um modo mais crítico, quer a aclimatação do europeu, quer<br />

as relações entre colonos e nativos” (5). Mais recent<strong>em</strong>ente a Literatura <strong>de</strong>sconstrói o i<strong>de</strong>ário<br />

salazarista e colonialista, por ex<strong>em</strong>plo na obra <strong>de</strong> Lobo Antunes, entre outros autores.<br />

O império português cessou <strong>de</strong> existir <strong>em</strong> 1999, com a transmissão da administração do<br />

território <strong>de</strong> Macau para a China. Um pouco t<strong>em</strong>po antes e um pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ste evento final,<br />

foram feitos quatro filmes e uma série sobre territórios orientais on<strong>de</strong> os portugueses estabeleceram<br />

uma presença no período imperial. O primeiro foi A Ilha dos Amores, <strong>de</strong> Paulo Rocha. Este filme<br />

foi escrito nos anos 70. Filmado <strong>em</strong> Portugal, <strong>em</strong> Macau e no Japão, esta obra só estreou (excepto<br />

por uma mostra na Cin<strong>em</strong>ateca), <strong>em</strong> 8 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1991, no Fórum Picoas. Em 1996 saiu o filme<br />

Os Olhos da Ásia <strong>de</strong> João Mário Grilo, filmado <strong>em</strong> Nagazaky e Macau. Em 1999 Luís Filipe Rocha<br />

realizou Amor e Dedinhos <strong>de</strong> Pé, filmado <strong>em</strong> Macau. No mesmo ano, José Carlos <strong>de</strong> Oliveira fez a<br />

série para televisão O Dragão <strong>de</strong> Fumo, realizada <strong>em</strong> Macau e na China. Em 2002 o jov<strong>em</strong> realizador<br />

Ivo Ferreira estreia o seu filme Em Volta. As filmagens foram feitas <strong>em</strong> vários países orientais e <strong>em</strong><br />

Macau.<br />

A questão do lugar, da função e da estética da produção fílmica portuguesa e a sua i<strong>de</strong>ologia<br />

nos anos 60-70 originou uma irreprimível e recorrente indagação com o objectivo <strong>de</strong> estabelecer<br />

“uma ou mais linhas caracterizadoras da Sétima Arte Portuguesa, como se a busca <strong>de</strong>ssa eventual<br />

portugalida<strong>de</strong> fosse condição sine qua non para a a<strong>de</strong>quada compreensão e contextualização <strong>de</strong><br />

cada objecto cin<strong>em</strong>atográfico do nosso país” (6), na opinião <strong>de</strong> M. do Rosário Lupi Bello. Havia,<br />

segundo esta autora, uma tendência para fazer do cin<strong>em</strong>a o lugar <strong>de</strong> uma permanente reflexão<br />

sobre o próprio país e a própria cultura, conferindo assim, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, ao nosso cin<strong>em</strong>a, um traço<br />

i<strong>de</strong>ntitário marcadamente auto-reflexivo. Parece ser certo que o cin<strong>em</strong>a <strong>em</strong> Portugal cumpre uma<br />

função social <strong>de</strong> enorme importância relativamente ao que há <strong>de</strong> profundo na cultura portuguesa,<br />

tanto no início do Novo Cin<strong>em</strong>a como no tardio final do império português, que durante tanto<br />

t<strong>em</strong>po foi el<strong>em</strong>ento i<strong>de</strong>ntitário, consolador e simultaneamente traumático e imobilizante.<br />

Margarida Calafate Ribeiro sublinha que, <strong>de</strong> maneira diferente <strong>de</strong> outros impérios, o<br />

português só terminou na era pós-mo<strong>de</strong>rna, e que esse facto teve consequências i<strong>de</strong>ológicas<br />

<strong>de</strong> muitas maneiras, e assim, igualmente, consequências na área da estética. Os movimentos<br />

vanguardistas do início do século XX, apesar da sua crítica radical, conservam um pensamento<br />

fort<strong>em</strong>ente ontológico: <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> radicalmente, fort<strong>em</strong>ente, uma noção do que é e simultaneamente<br />

criaram um interdito do que não é novo. Na era pós-mo<strong>de</strong>rna a noção <strong>de</strong> progresso para o novo<br />

não aconteceu, e a noção <strong>de</strong> História como narrativa das conquistas civilizacionais foi enfraquecida<br />

por uma diss<strong>em</strong>inação <strong>de</strong> Histórias – instalou-se uma dissolução da categoria <strong>de</strong> novo, <strong>de</strong> uma<br />

História unificada, e que seguiria s<strong>em</strong>pre um movimento no t<strong>em</strong>po para coisas novas e s<strong>em</strong>pre<br />

melhores, um progresso civilizacional para o futuro. O pós-mo<strong>de</strong>rnismo é também pós- historicida<strong>de</strong>.<br />

A História cont<strong>em</strong>porânea não é só a que diz respeito aos anos cronologicamente mais próximos<br />

<strong>de</strong> nós; é, <strong>em</strong> termos mais rigorosos, a história da época <strong>em</strong> que tudo, mediante o uso dos novos<br />

meios <strong>de</strong> comunicação, sobretudo a televisão, ten<strong>de</strong> a esbater-se no plano da cont<strong>em</strong>poraneida<strong>de</strong><br />

e da simultaneida<strong>de</strong>, produzindo também <strong>de</strong>sse modo uma <strong>de</strong>s-historicização da experiência.<br />

Para Gianni Vattimo, a nossa era é a era da verda<strong>de</strong> não- metafísica; o discurso instaurador<br />

dos fundamentos positivos históricos e vivenciais <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo tanto metafísico-religioso como<br />

científico, <strong>de</strong>u lugar, na área da estética, à abertura à hermenêutica, à verda<strong>de</strong> da arte e ao mo<strong>de</strong>lo da<br />

retórica. Esta condição cultural seria a correspon<strong>de</strong>nte a um enfraquecimento do ser, da <strong>de</strong>finição<br />

do que é, <strong>em</strong> termos filosóficos totalizantes. Vattimo sublinha que, <strong>de</strong>correndo <strong>de</strong>ssa condição<br />

60


geral, há uma liberação inerente no pós-mo<strong>de</strong>rnismo estético, inimigo <strong>de</strong> um cânon. Depois <strong>de</strong><br />

alguns anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a instauração do pós-mo<strong>de</strong>rnismo estético, po<strong>de</strong>mos constatar alguns critérios<br />

e traços mais significativos da estética pós-mo<strong>de</strong>rna: associação às novas possibilida<strong>de</strong>s do<br />

simbólico postas à disposição pela técnica; secularização; presença <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos das estéticas do<br />

passado, prática que surgiu no início do pós-mo<strong>de</strong>rno <strong>em</strong> Arquitectura. Mattei Calinescu comenta<br />

a qualida<strong>de</strong> do retorno do passado no pós-mo<strong>de</strong>rnismo no âmbito <strong>de</strong>sta arte:<br />

“Os pós-mo<strong>de</strong>rnos tomaram o rumo oposto [aos mo<strong>de</strong>rnos], ou seja, aquele <strong>de</strong> <strong>de</strong>sunificar e<br />

<strong>de</strong>ssimplificar a nossa imag<strong>em</strong> do passado. Fundamentalmente pluralista, o historicismo da arquitectura<br />

pós-mo<strong>de</strong>rnista reinterpreta o passado numa multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caminhos, que vão do afectuosamente<br />

lúdico até ao ironicamente nostálgico, e incluindo tais atitu<strong>de</strong>s ou disposições como irreverência<br />

humorística, homenag<strong>em</strong> oblíqua, recolhimento <strong>de</strong>voto, citação satírica e o comentário paradoxal.”<br />

Po<strong>de</strong>mos também nomear: ironização dos géneros literários, poética da citação, da<br />

ambiguida<strong>de</strong> constitutiva; capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pôr <strong>em</strong> discussão o seu próprio estatuto; abandonando<br />

a estética das vanguardas do início do século XX, a sua especifida<strong>de</strong> e pureza, o pós-mo<strong>de</strong>rno<br />

apresenta uma arte <strong>de</strong> contaminações, mélange <strong>de</strong> artes, <strong>de</strong> géneros, e um ambiente estético geral<br />

heterogéneo. Outra característica <strong>de</strong> fundo é o nivelamento ontológico entre a realida<strong>de</strong> e o<br />

simulacro; barroquismo, hermetismo. E, muito relevante para o presente trabalho:<br />

“Po<strong>de</strong>ríamos interrogar-nos, também, dada a direcção dos discursos que marcam o compasso da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />

sobre a reaparição <strong>de</strong>stes t<strong>em</strong>as do recurso aos mitos, aos arquétipos, que nos vêm agora, digamos, <strong>em</strong> toda a inocência”.<br />

Zigmut Bauman no mesmo sentido, escreve: “Se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> as<br />

artes procurass<strong>em</strong> os caminhos da representação do “sublime”, o que por sua natureza <strong>de</strong>safia a<br />

representação, a procura do sublime pelos artistas mo<strong>de</strong>rnos moldaria uma “estética nostálgica”:<br />

eles postulariam o não-representável apenas como um “conteúdo ausente”. Os artistas pósmo<strong>de</strong>rnos,<br />

por outro lado, lutam por incorporar o não-representável na própria apresentação.”<br />

Quatro filmes e uma série sobre os territórios do império português, num momento <strong>em</strong> que<br />

a interdição vanguardista já não pesava sobre o passado n<strong>em</strong> o não-novo. O 25 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1974, a<br />

entrada <strong>de</strong> Portugal na comunida<strong>de</strong> europeia, modificaram a socieda<strong>de</strong> e a cultura portuguesa. No<br />

entanto, Eduardo Lourenço exprimiu espanto por todas estas mudanças se passar<strong>em</strong> s<strong>em</strong> drama.<br />

Os mitos são <strong>de</strong> per se recorrentes. De facto, os filmes e a série, dados os t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong> que foram<br />

feitos, e as suas características, autorizam que se pense ruma relação ao evento traumático- o fim do<br />

Império, que gerou uma presentificação melancólica do império mítico, através <strong>de</strong> representação<br />

fílmica.<br />

O primeiro dos filmes, A Ilha dos Amores começou a ser pensado no momento <strong>de</strong><br />

estabelecimento da estética pós-mo<strong>de</strong>rna. A representação do mito do Oriente nos filmes e na<br />

série teria então uma dupla justificação: a presença da referida formação psico-social, o mito do<br />

Oriente, que ten<strong>de</strong> a expressar-se e representar-se; por outro lado, a estética vigente permite a<br />

representação do que da or<strong>de</strong>m mental, do sublime, do arquétipo; é permitido representar o mito,<br />

que per<strong>de</strong>u a antiga serieda<strong>de</strong> pesada, na era e i<strong>de</strong>ologia que já não crê <strong>em</strong> ontologias radicais,<br />

fortes (pensiero <strong>de</strong>bole, segundo Vattimo); o passado trágico per<strong>de</strong>u força. Po<strong>de</strong>mos então evocá-lo,<br />

com genuína melancolia, com genuíno afecto, encarar a sua efectiva existência, e, simultaneamente,<br />

transformá-lo <strong>em</strong> estilo. A colocação do sujeito pós-mo<strong>de</strong>rno permite pensar a existência do<br />

Mito e a consciência <strong>de</strong> que é Mito, mas também se po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rá-lo sob a lógica <strong>de</strong> Mito ou<br />

Verda<strong>de</strong>. A proposição: é; pa<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> fraqueza ontológica. Encontramos na cultura portuguesa,<br />

<strong>em</strong> Fernando Pessoa/Álvaro <strong>de</strong> Campos, uma das mais expressivas colocações do sujeito pósmo<strong>de</strong>rno<br />

– O poeta é um fingidor/finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/a dor<br />

que <strong>de</strong>veras sente.<br />

61


Que médium po<strong>de</strong>ria ser, novamente, o lugar dos traumas e consolos <strong>de</strong> uma cultura que<br />

se liga tão i<strong>de</strong>ntitariamente ao cin<strong>em</strong>a? Para Massimo Canevacci, antropólogo do cin<strong>em</strong>a, o<br />

filme po<strong>de</strong> representar qualquer momento cultural da história do hom<strong>em</strong> no espaço e no t<strong>em</strong>po,<br />

com um envolvimento da percepção muito superior às anteriores formas <strong>de</strong> narração. E o que<br />

é da or<strong>de</strong>m da imag<strong>em</strong> preten<strong>de</strong> não apenas capturar, mas também ser a realida<strong>de</strong>, mesmo do<br />

puramente mental, do que é conceptual, que se transmuta, reificado <strong>em</strong> imag<strong>em</strong>.<br />

Assim, o filme A Ilha dos Amores apresenta uma composição <strong>de</strong> enchevêtr<strong>em</strong>ent: uma montag<strong>em</strong><br />

vertical <strong>em</strong> que coexist<strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos do maravilhoso <strong>de</strong> Camões, dos po<strong>em</strong>as <strong>de</strong> Ku Yuan, poeta<br />

chinês do século IV-III AC, sobrecarregando os el<strong>em</strong>entos mitopoéticos das duas culturas,<br />

tornando o espaço hipermítico; diferentes t<strong>em</strong>pos aproximam-se; há cenas <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong><br />

discurso reflexivo, bastante herméticos; el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong>, superfícies transparentes; cenas<br />

<strong>em</strong> Lisboa <strong>em</strong> cuja composição as personagens são filmadas <strong>em</strong> reflexão <strong>em</strong> espelhos, alguns <strong>de</strong><br />

formas da arquitectura do Barroco, espaços tornados simbólicos como a sala dos quadros do<br />

Museu <strong>de</strong> Artilharia <strong>de</strong> Lisboa. O filme Os Olhos da Ásia constrói uma representação do espaço<br />

da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nagazaky ten<strong>de</strong>nte à indistinção entre uma representação realista e o sonho, eleva<br />

el<strong>em</strong>entos naturais a el<strong>em</strong>entos primordiais; o Amor e Dedinhos <strong>de</strong> Pé torna o espaço <strong>de</strong> Macau<br />

numa evocação da era colonial no período barroco, construído a partir dos códigos pictóricos<br />

<strong>de</strong> Caravaggio e Vermeer, e ainda reforçando os traços feéricos e míticos das dois personagens<br />

principais, sobretudo o protagonista masculino, que foi aproximado ao mito <strong>de</strong> Don Juan; a série<br />

O Dragão <strong>de</strong> Fumo mostra a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Macau numa narrativa <strong>de</strong> filme <strong>de</strong> acção, mas também,<br />

visivelmente, numa homenag<strong>em</strong> à cida<strong>de</strong> <strong>em</strong> si; Ivo Ferreira viaja pelo Trópico <strong>de</strong> Capricórnio,<br />

inquirindo pessoas aleatoriamente sobre o que é o amor, num filme cujo recorte mostra um<br />

Oriente belo e exótico, e evoca a faceta trágica dos Descobrimentos.<br />

O realizador João Mário Grilo apresenta uma intentio auctoris muito clara no que concerne à<br />

sua colocação sobre o espaço oriental. Escreve:<br />

“Os Olhos da Ásia” é um filme sobre a intolerância, sobre o seu aspecto irracional, inumano, int<strong>em</strong>poral. Po<strong>de</strong>ria<br />

ser um filme sobre Auschwitz ou sobre a Praça Tiananmen, sobre as gran<strong>de</strong>s máquinas repressivas do mundo<br />

mo<strong>de</strong>rno. Mas escolh<strong>em</strong>os a violência religiosa do Japão do século XVII, porque parecia ser algo <strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plar na<br />

história <strong>de</strong> uma fé (oci<strong>de</strong>ntal) caída <strong>em</strong> <strong>de</strong>sgraça no cenário exótico que é o Oriente, <strong>em</strong> Nagasaki, precisamente,<br />

on<strong>de</strong> o probl<strong>em</strong>a da intolerância adquire uma ressonância mítica e brutal.” (11)<br />

Destaca-se no seu texto a percepção do espaço oriental como sendo <strong>de</strong>scontínuo<br />

relativamente a outros espaços. Irracional, inumano, int<strong>em</strong>poral, são qualida<strong>de</strong>s projectadas sobre o<br />

Oriente, sobre Nagazaky; lá, o realizador encontra, por ser o Oriente, uma ressonância mítica.<br />

A questão que a seguir surge é a da construção da representação do mítico. Que processos da<br />

poética fílmica representam o espaço mítico? Como representa João Mário Grilo o espaço oriental,<br />

a anunciada ressonância mítica? Uma análise do filme po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>stacar os processos fílmicos estéticoformais<br />

que concretizam a intenção <strong>de</strong>clarada.<br />

A seguir ao genérico <strong>de</strong> Os Olhos da Ásia v<strong>em</strong>os uma citação <strong>de</strong> Walt Whitman:<br />

“Incessant<strong>em</strong>ente baloiça o berço que liga o passado ao presente.” Esta citação inicial introduz o<br />

motto da estória. Tal motivo, a possibilida<strong>de</strong> da repetição do passado, t<strong>em</strong> como t<strong>em</strong>a a intolerância.<br />

A matéria ficcional é o <strong>de</strong>stino, na ida<strong>de</strong> adulta, <strong>de</strong> quatro rapazes japoneses cristianizados pelos<br />

Jesuítas, que viajaram para Roma e outras cida<strong>de</strong>s da futura Itália, Lisboa e Espanha, para mostrar<br />

a força do catolicismo no Oriente. A narrativa centra-se na tortura e morte <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les, Julião<br />

Nakaura, que, por ter recusado abjurar da fé cristã, foi torturado e morto pelas autorida<strong>de</strong>s<br />

japonesas.<br />

O filme abre com uma íris, mostrando o mar, só mar <strong>em</strong> todo o ecrã. Também só ver<strong>em</strong>os<br />

o mar como última imag<strong>em</strong> do filme. Viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ida, viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> regresso: a obra está para lá do<br />

mar.<br />

62


No início do filme, os jovens, Mâncio, Martinho, Miguel e Julião, banham-se no mar, sa<strong>em</strong><br />

da água e vão pelo areal, contentes por ir ver Roma. Um <strong>de</strong>les menciona o perigo <strong>de</strong> o barco<br />

naufragar, e outro <strong>de</strong>les diz que “Deus ao mar o perigo e o abismo <strong>de</strong>u, mas nele é que espelhou<br />

o céu”. Trata-se <strong>de</strong> uma citação <strong>de</strong> Fernando Pessoa, na sua Mensag<strong>em</strong>. Seguindo a proposta da<br />

citação que serve <strong>de</strong> motto ao filme, Os Olhos da Ásia balança entre o passado e o presente, criando<br />

– fazendo sair do berço - a representação da intolerância num t<strong>em</strong>po não linear, um t<strong>em</strong>po outro.<br />

Dos rapazes prestes a partir, passamos a Julião e Martinho, já adultos, conversando um<br />

pouco mais adiante, na mesma praia. A passag<strong>em</strong> t<strong>em</strong>poral foi feita da seguinte maneira: há um<br />

travelling <strong>em</strong> velocida<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre igual, paralelo á linha do mar na praia, da esquerda para a direita do<br />

ecrã; os rapazes começam a correr, da esquerda para a direita, mais velozes do que o movimento<br />

da câmara, e assim <strong>de</strong>saparec<strong>em</strong> do ecrã, à direita. O espectador vê a areia passar e a câmara chega,<br />

s<strong>em</strong>pre no mesmo movimento, a Martinho e Julião, <strong>em</strong> adultos. Os passos dos dois personagens<br />

acompanham a velocida<strong>de</strong> da câmara enquanto falam com <strong>de</strong>sgosto da expulsão dos cristãos, da<br />

diminuição dos convertidos, do perigo <strong>de</strong> ser cristão no Japão; os dois terminaram a sua fala e há<br />

um corte. O realizador exprimiu com este recurso cin<strong>em</strong>ático a mesma i<strong>de</strong>ia do motto, e da citação<br />

t<strong>em</strong>poralmente <strong>de</strong>sfasada <strong>de</strong> Pessoa. Um movimento constante e ininterrupto ligou o passado<br />

(Julião, Mâncio, Miguel e Martinho na juventu<strong>de</strong>) ao presente (50 anos <strong>de</strong>pois), homogeneizando<br />

o t<strong>em</strong>po passado e futuro, na apresentação t<strong>em</strong>ática da obra que se vai <strong>de</strong>senvolver. Após o corte,<br />

Julião e Martinho, e outros, enviam, num barco, para o mar, o corpo <strong>de</strong> um cristão que morreu.<br />

Comentam amargamente que têm <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r os funerais dos cristãos e mencionam a morte <strong>de</strong><br />

Mâncio. Ficamos também a saber, pela conversa entre os dois (didascálicas) que Miguel Chijiwa<br />

abjurou da fé cristã, dizendo que o Deus cristão é um <strong>de</strong>mónio. Martinho previne Julião que,<br />

permanecendo <strong>em</strong> Nagazaky, fica nas mãos <strong>de</strong> Miguel, que vai pressionar Julião para fazer o<br />

mesmo.<br />

Este segmento é um prelúdio, antes dos créditos iniciais. A narrativa localiza-se situa-se<br />

t<strong>em</strong>poralmente na actualida<strong>de</strong> e mostra as estátuas dos quatro rapazes, numa praça <strong>de</strong> Nagazaky.<br />

Ouvimos os pensamento <strong>de</strong> uma mulher, Jane Powell (Geraldine Chaplin) a lastimar que aqueles<br />

rapazes, aqueles príncipes, tenham sido esquecidos. Também revela que regressou a esta cida<strong>de</strong><br />

<strong>em</strong> busca da sua infância. Saber<strong>em</strong>os logo a seguir que chega a Nagazaky, como representante da<br />

Comissão Europeia para combinar a produção e apresentação da Ópera “The Forgotten Boys” (12).<br />

Há uma panorâmica da cida<strong>de</strong> e Jane vai ver, num museu, os retratos dos rapazes e o <strong>de</strong>creto<br />

do shogun (funcionário militar e administrativo) que proibiu a fé cristã no Japão.<br />

Novo segmento narrativo. O que primeiro v<strong>em</strong>os é uma pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> pedra, uma janela e<br />

sobre isto, uma cortina <strong>de</strong> chuva. Esta imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma dupla cortina, pedra e água, enche todo<br />

o ecrã, ecoando a visão do mar a encher o ecrã, no início do filme. O shogun, Mataza<strong>em</strong>on, na<br />

sua casa, é informado da notícia <strong>de</strong> que Julião tinha sido finalmente preso. Um corte é seguido<br />

da imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma pare<strong>de</strong> filmada <strong>de</strong> perto, no interior da cela, on<strong>de</strong> estão padres aprisionados,<br />

entre eles Cristóvão Ferreira; é mostrada, do interior, a janela ocupando o ecrã. O ponto <strong>de</strong> vista<br />

do espectador está no interior da prisão. V<strong>em</strong>os Julião Nakaura ser lançado no chão da cela, que<br />

é uma divisão escura iluminada através da janela que foi mencionada. Por esta janela longa na<br />

horizontal, entra uma faixa <strong>de</strong> luz que se projecta na pare<strong>de</strong> oposta. Este cenário terá a função<br />

<strong>de</strong> axis mondi. A lista <strong>de</strong> luz estará s<strong>em</strong>pre presente e a iluminação não revela o ciclo circadiano.<br />

Esta cela é o centro: há, durante o filme, eventos plurit<strong>em</strong>porais e pluriespaciais. Mas os eventos<br />

centrais localizam-se quase todos na cela. Os episódios fora <strong>de</strong>la e noutros t<strong>em</strong>pos, suce<strong>de</strong>m-se,<br />

mas a visão da cela com a sua lista <strong>de</strong> luz é o ponto que nunca muda. Todos os episódios retornam<br />

a este lugar. Os cristãos esperam a provação. Perguntam-se qu<strong>em</strong> vai resistir, qu<strong>em</strong> vai abjurar,<br />

qu<strong>em</strong> não resistirá à tortura e qu<strong>em</strong> morrerá pela fé cristã. Cristóvão Ferreira fala a Nakaura das<br />

suas dúvidas. Pergunta-se como saber se Deus quer que morram por ele. Fala do silêncio <strong>de</strong> Deus.<br />

Julião tenta, com as suas palavras, convencer Ferreira <strong>de</strong> que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> morrer por amor <strong>de</strong> Deus.<br />

63


Durante a conversa, Nakaura posicionou-se no lado direito do ecrã, com a cabeça no vértice<br />

direito ao alto; Ferreira está <strong>de</strong>itado, com a cabeça no vértice baixo do lado esquerdo do ecrã. A<br />

faixa <strong>de</strong> luz omnipresente está no vértice direito alto, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> Julião Nakaura dirige as palavras<br />

para Cristóvão Ferreira, que as recebe no vértice oposto, como se a lista <strong>de</strong> luz oblíqua trouxesse<br />

as palavras <strong>de</strong> Julião para a cabeça <strong>de</strong> Ferreira, <strong>em</strong> baixo.<br />

Voltamos à era actual, à com<strong>em</strong>oração da ida dos rapazes para a Europa. Jane Powell discursa<br />

sobre o projecto da ópera.<br />

Novamente na cela, estamos com os prisioneiros. Continuam a rezar e conversam sobre as<br />

torturas que irão enfrentar. Alguns acham que talvez não sejam capazes <strong>de</strong> resistir; outros duvidam,<br />

achando que talvez Deus não se importe. Depois <strong>de</strong> corte, estamos perante a imag<strong>em</strong> muito forte<br />

<strong>de</strong> um hom<strong>em</strong>, um camponês japonês cristão s<strong>em</strong>i-nu, amarrado a um tronco, e fustigado pela<br />

neve. O camponês tinha anunciado que vira Santa Maria e vai morrer. Julião é novamente levado<br />

a Mataza<strong>em</strong>on, que não conseguiu <strong>de</strong>mover o padre. Miguel Chijiwa tinha estado do outro lado<br />

da porta, a ouvir a conversa entre Julião e o shogun. O antigo cristão tentou convencer Julião a<br />

afastar-se do cristianismo, por causa da família <strong>de</strong> Miguel. Trocam razões, e Julião resiste. V<strong>em</strong>os,<br />

<strong>em</strong> plano <strong>de</strong> pormenor, um olho <strong>de</strong> tigre que se po<strong>de</strong> abrir, como uma íris, por um olho humano.<br />

O funcionário japonês afastou o enfeite <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira da pare<strong>de</strong>, para test<strong>em</strong>unhar a conversa dos<br />

dois antigos companheiros. Estes procedimentos enquadram-se numa linha diegética evocando o<br />

t<strong>em</strong>a do ver.<br />

A sequência seguinte volta ao presente. Jane assiste a um trecho da ópera e fala com Ishito.<br />

São mostradas vistas da cida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna. Jane pensa na sua infância, l<strong>em</strong>bra uma amiga <strong>de</strong><br />

brinca<strong>de</strong>iras infantis, que nunca mais viu, julgando que provavelmente teria morrido com a queda<br />

da bomba atómica. Há um fragmento <strong>de</strong> um filme da época mostrando a cida<strong>de</strong>, após a queda da<br />

bomba: grupos <strong>de</strong> crianças vagueiam <strong>em</strong> grupo, comendo coisas que apanham no chão.<br />

Jane prepara-se para dormir a sua última noite <strong>em</strong> Nagazaky. Vêmo-la pensativa a olhar<br />

pela janela. Os pensamentos <strong>de</strong> Jane são fragmentos <strong>de</strong> notícias da televisão, mostrando o chefe<br />

da seita Aum Shinrikyo. A narrativa no t<strong>em</strong>po actual reata-se mostrando Jane pensativa, e a seguir<br />

<strong>de</strong>itada, a dormir, enquanto ouvimos uma música que sugere que sonha. Como se fosse um sonho<br />

<strong>de</strong>la, um curtíssimo plano mostra uma mão cegando Julião com um pau <strong>em</strong> brasa. A música<br />

marca fort<strong>em</strong>ente este momento e o ecrã fica branco e logo imediatamente preto. Assim, a seguir<br />

ao branco que muitas vezes exprime morte ou uma circunstância trágica, há um corte e estamos<br />

numa sala na casa do Shogun. V<strong>em</strong>os Julião com uma faixa <strong>de</strong> pano a cobrir-lhe os olhos e Miguel<br />

muito triste e amargurado, porque Nakaura foi cegado. A passag<strong>em</strong> <strong>de</strong> sequência é feita segundo o<br />

procedimento <strong>de</strong> elipse: a imag<strong>em</strong> da queima dos olhos <strong>de</strong> Julião é o sonho <strong>de</strong> Jane. Na realida<strong>de</strong><br />

do filme, esse acto não é visto. Há um procedimento elíptico: não v<strong>em</strong>os o segmento elidido na<br />

narração, só aparecendo as consequências do acto <strong>de</strong> cegar Julião, quando v<strong>em</strong>os a faixa que lhe<br />

cobre os olhos. Assim, o acto <strong>de</strong> cegar Julião foi transposto para o sonho. Mais uma vez o realizador<br />

fun<strong>de</strong> dois t<strong>em</strong>pos, dois espaços, e, neste caso também, dois níveis <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>. Também estes<br />

procedimentos nos levam ao motto, aqui apresentado como inscrição onírica miniatural: espaços<br />

e t<strong>em</strong>pos diversos são homogeneizados e, neste caso, níveis <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>: o sonho (fílmico) e a<br />

realida<strong>de</strong> elidida (fílmica).<br />

Segue-se a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um regato num jardim <strong>de</strong>serto, correndo do ponto <strong>de</strong> vista do lugar<br />

do espectador <strong>em</strong> direcção à mediana do ecrã alto. O regato marca um caminho, no chão <strong>de</strong><br />

pedra. A imag<strong>em</strong> do regato é uma marca diegética, <strong>em</strong> eco da janela com chuva, e eco do mar.<br />

Outro corte e v<strong>em</strong>os Julião, s<strong>em</strong>pre com os olhos tapados com uma faixa <strong>de</strong> pano, e Miguel, que<br />

se mostra muito perturbado e <strong>em</strong>ocionado com a cegueira do companheiro. Julião admite que<br />

po<strong>de</strong> vir a morrer às mãos <strong>de</strong> Miguel. Este respon<strong>de</strong>-lhe que, pelo contrário, quer salvá-lo. Miguel<br />

conduz Julião a um tatami on<strong>de</strong> está <strong>de</strong>itado um bebé, explicando que é o seu neto, e põe perto<br />

do bebé uma selha com água, justificando que a água seria para aliviar o menino, que teria febre.<br />

64


Os dois homens amimam o menino e Miguel diz que vai buscar a mãe da criança. Dirige-se para<br />

a porta da divisão, faz correr a porta e fecha-a, fingindo que saía, mas ficando realmente <strong>de</strong>ntro<br />

da divisão, imóvel e calado, a observar. Julião baptizou o bebé, com a água da selha, dando-lhe<br />

o nome <strong>de</strong> Mâncio. Pouco <strong>de</strong>pois Miguel correu a porta como se tivesse regressado e os dois<br />

amimam o menino. Ver e não ver são reaparições evocativas ao longo <strong>de</strong> todo o filme.<br />

A água novamente - água do baptismo, nesta cena - além <strong>de</strong> el<strong>em</strong>ento diegético e expressivo,<br />

transmutou-se, pela repetição e coerência, <strong>em</strong> el<strong>em</strong>ento simbólico, ganhando ao longo do filme<br />

uma carga mítica.<br />

Depois <strong>de</strong> uma sequência <strong>em</strong> que Jane que vai a um museu <strong>de</strong>dicado aos cristãos no Japão,<br />

voltamos à cela. Os prisioneiros sab<strong>em</strong> que estão prestes a ser levados para as torturas. Miguel<br />

Chujiwa atravessa um jardim <strong>de</strong> gravilha, dirige-se á prisão e entra na cela. Tenta convencer Julião<br />

a retratar-se, diz-lhe que ainda não é tar<strong>de</strong> para evitar o que está para vir. Argumenta que Julião vai<br />

morrer por uma mensag<strong>em</strong> que ninguém vê, pois ninguém virá test<strong>em</strong>unhar o seu sacrifício. Fala<br />

da nova tortura, que “faz per<strong>de</strong>r a vonta<strong>de</strong> e a razão”. Nakaura não mudou <strong>de</strong> resolução e Miguel<br />

sai, zangado e pesaroso. V<strong>em</strong>os <strong>em</strong> seguida a preparação da tortura por soldados japoneses, num<br />

<strong>de</strong>scampado, durante a noite. Novamente na cela, soldados levam Julião, Cristóvão Ferreira e<br />

António <strong>de</strong> Souza. Sequência seguinte: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> corte, o espectador enfrenta um caminho no<br />

campo <strong>de</strong>serto, <strong>de</strong> erva rasteira, <strong>de</strong>spojado <strong>de</strong> todo outro el<strong>em</strong>ento, minimal, uma imag<strong>em</strong> pura,<br />

não um caminho vulgar, mas O Caminho. E esse caminho aponta para o fora <strong>de</strong> cena, para o lugar<br />

do espectador. O caminho enquanto el<strong>em</strong>ento para o além, para uma realida<strong>de</strong> Outra, no teatro da<br />

tragédia que ali se vai cumprir. Tal como na imag<strong>em</strong> do regato, t<strong>em</strong>os perante nós um caminho<br />

que envolve o espectador. Está configurado <strong>de</strong>ste modo: no meio do ecrã, ao alto, está o vértice<br />

que a vista percepciona como a maior lonjura; o caminho abrange todo a largura do lado do ecrã<br />

baixo, abrangendo todos os que vir<strong>em</strong> este filme. Há um corte e v<strong>em</strong>os os prisioneiros e soldados<br />

dirigindo-se para o lugar da provação. A câmara fita o chão.Corte, e é <strong>de</strong> manhã. Julião, Cristóvão<br />

Ferreira e António <strong>de</strong> Souza são suspendidos <strong>de</strong> cabeça para baixo, amarrados, e com a cabeça e o<br />

tronco <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> buracos no chão. O padre António <strong>de</strong> Souza morre <strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po. Cristóvão<br />

Ferreira renegou a fé cristã. Viveu ainda 20 anos no Japão e tornou-se budista. Julião não abjurou<br />

e morreu pela tortura ou pelo fogo, pois as autorida<strong>de</strong>s, vendo que não cedia mesmo estando já<br />

muito mal, não ce<strong>de</strong>u. Por um momento, na cena da tortura, os paus da estrutura <strong>em</strong> que Julião<br />

tinha estado pendurado coinci<strong>de</strong>m com os lados esquerdo e direito do ecrã, <strong>de</strong> frente para o<br />

espectador, envolvendo-o no que se está a passar no ecrã. Situamo-nos, nós, espectadores, no<br />

limiar do evento mostrado.<br />

Miguel tinha muitas vezes sido test<strong>em</strong>unho <strong>de</strong> tudo o que se passou, por vezes escondido.<br />

Quando Nakaura ficou cego, Miguel l<strong>em</strong>brou-lhe que ia ser morto para nada, já que ninguém<br />

estaria presente no martírio. Sulinhou que não haveria test<strong>em</strong>unho da fé <strong>de</strong> Nakaura para ganhar a<br />

conversão <strong>de</strong> outros japoneses. De facto, Miguel viu, escondido, tudo o que se passou no campo<br />

da tortura. Quando as chamas estavam muito altas e os soldados se foram <strong>em</strong>bora, Miguel saiu<br />

do escon<strong>de</strong>rijo. Olhou o fogo algum t<strong>em</strong>po, <strong>de</strong> costas para nós. Depois voltou-se para nós, a cara<br />

e um pouco do peito, colocando-se no ponto central do ecrã baixo. Fita--nos directamente com<br />

expressão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> dor e a seguir fecha os olhos, ficando assim até um corte. Miguel foi assim<br />

o test<strong>em</strong>unho dos eventos e das acções <strong>de</strong> Nakaura. Ele foi os olhos da Ásia relativamente aos<br />

eventos da História: a ida <strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntais, nomeadamente a companhia <strong>de</strong> Jesus, para impor a religião<br />

católica, e a sua ambição <strong>de</strong> um mundo inteiro cristianizado. Simultaneamente, foi test<strong>em</strong>unho da<br />

violência das autorida<strong>de</strong>s japonesas.<br />

Uma das i<strong>de</strong>ias que corrobora a intentio auctoris <strong>de</strong>clarada por João Mário Grilo é a estruturação<br />

dos segmentos relativos ao motivo e ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> intolerância. São apresentados vários casos: os<br />

japoneses foram intolerantes relativamente à opção religiosa dos cristãos; a teimosia e intolerância<br />

<strong>de</strong> todo um movimento europeu relativamente à cultura dos outros povos, que eram olhados<br />

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com o olhar imperialista e autocentrado; a queda da bomba atómica, e a indiferença e intolerância<br />

perante os inocentes japoneses mortos na guerra; intolerância dos m<strong>em</strong>bros da seita Aum<br />

Shinrikyo, perante os que não partilhavam das suas crenças e intenções. Os oito prisioneiros são<br />

uma espécie <strong>de</strong> casos particulares representando ex<strong>em</strong>plos diferentes e variados relativamente<br />

ao conceito <strong>de</strong> bom cristão: um reage com corag<strong>em</strong> e fé inabalável; outro t<strong>em</strong> muito medo mas<br />

não renega e acaba por morrer; outro já foi torturado e já passou a prova; mesmo o pescador<br />

japonês é um dos casos. Em termos aristotélicos, são concreções <strong>de</strong> um conceito, a Intolerância. A<br />

narrativa contém a t<strong>em</strong>ática do ex<strong>em</strong>plo: Julião Nakaura é, <strong>de</strong> um certo ponto <strong>de</strong> vista, o da igreja,<br />

o perfeito cristão. Cristóvão Ferreira era, segundo uma personag<strong>em</strong> da actualida<strong>de</strong>, um padre, o<br />

anti-ex<strong>em</strong>plo. Miguel Chijiwa é um cristão que se afasta muito do conceito, ou i<strong>de</strong>al. Cada um<br />

<strong>de</strong>les aproxima-se ou afasta-se mais do mo<strong>de</strong>lo perfeito.<br />

Há no filme um número <strong>de</strong> eventos-imag<strong>em</strong> que concretizam o que é a intolerância, eventos<br />

que somos levados a agrupar, <strong>em</strong>bora essas manifestações não tenham entre si nada <strong>de</strong> comum.<br />

São elas, antes <strong>de</strong> mais nada, a prisão, tortura e morte dos cristãos japoneses no séc. XVI e,<br />

também a teimosia mortal dos que preten<strong>de</strong>ram espalhar a religião cristã como única verda<strong>de</strong>ira.<br />

A bomba atómica; as acções da Aum Shinrikyo. São “casos particulares” que concorr<strong>em</strong> para<br />

ex<strong>em</strong>plificar uma i<strong>de</strong>ia: a intolerância <strong>em</strong> si. Há nesta estrutura narrativa aquilo que foi prometido<br />

na intentio auctoris: esta é uma história ex<strong>em</strong>plar, um filme sobre a violência da intolerância “no<br />

seu aspecto irracional, inumano, int<strong>em</strong>poral”. Se não na esfera da razão, do humano, n<strong>em</strong> no<br />

t<strong>em</strong>po vulgar, on<strong>de</strong>? Num espaço-t<strong>em</strong>po que, na cultura portuguesa já possui, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />

XVI, uma “ressonância mítica”, “no Oriente”, nas próprias palavras do realizador. Este filme fazse<br />

sobre ex<strong>em</strong>plos, que convocam a intolerância <strong>em</strong> si. Os ex<strong>em</strong>plos correspon<strong>de</strong>m/constro<strong>em</strong>se<br />

através <strong>de</strong> uma mostração <strong>de</strong> imagens, segundo o conceito. Esses ex<strong>em</strong>plos são imagens que<br />

nenhuma relação têm entre si. Dentre os processos formais cin<strong>em</strong>áticos a<strong>de</strong>quados a este tipo <strong>de</strong><br />

representação, o sintagma <strong>em</strong> Chaveta, accola<strong>de</strong>, - termo <strong>de</strong> Christian Metz- é uma estrutura fort<strong>em</strong>ente<br />

análoga á estruturação contida no filme: “O sintagma <strong>em</strong> chaveta consiste <strong>em</strong> uma série <strong>de</strong> breves<br />

evocações concernentes a eventos relevando <strong>de</strong> uma mesma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s (…) nenhum<br />

daqueles factos é tratado com a amplidão sintagmática a que podia preten<strong>de</strong>r; fica-se pelas alusões<br />

porque é só o conjunto se <strong>de</strong>stina a ter <strong>em</strong> conta pelo filme.”<br />

Marie-Thérèse Journot <strong>de</strong>fine:No quadro da gran<strong>de</strong> sintagmática <strong>de</strong> Metz, o sintagma <strong>em</strong><br />

chaveta (accola<strong>de</strong>) é constituído por uma montag<strong>em</strong> que apresenta planos s<strong>em</strong> relação cronológica<br />

n<strong>em</strong> alternância, mas que evocam globalmente a mesma i<strong>de</strong>ia.<br />

Os Olhos da Ásia é, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte, estruturado, na sua variabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> t<strong>em</strong>pos e espaços, por<br />

aquela forma cin<strong>em</strong>ática.<br />

O filme acaba mostrando Cristóvão Ferreira vestido com trajes japoneses, ao lado <strong>de</strong><br />

uma mulher japonesa, ambos sentados na pose tradicional, na divisão <strong>de</strong> uma casa, evocando a<br />

representação das gravuras japonesas antigas. Ouvimos a voz <strong>de</strong> Ferreira: “Eram palavras, Julião,<br />

eram palavras”. A câmara move--se para uma janela da casa <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se vê o mar, e no movimento<br />

da câmara, saímos para o mar, que ocupa todo o ecrã. Terminou a estória, uma estória ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong><br />

mar, uma ilha fílmica.<br />

Como vimos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira imag<strong>em</strong> do filme, o ecrã cheio <strong>de</strong> mar, o el<strong>em</strong>ento aquático,<br />

t<strong>em</strong> um papel expressivo e simbólico. Na cena da morte <strong>de</strong> Julião, o fogo, também ele, enche<br />

totalmente o ecrã por uns instantes. Na cela, quando os prisioneiros estão a preparar-se para<br />

ser<strong>em</strong> levados para o campo da tortura, rezam missa. V<strong>em</strong>os as mãos <strong>de</strong> dois <strong>de</strong>les colocar no<br />

chão <strong>de</strong> terra da cela dois pauzinhos <strong>em</strong> cruz, e seguidamente rezaram missa. A luz sublinha esta<br />

cruz feita sobre a terra, apesar <strong>de</strong> existir na uma espécie <strong>de</strong> mesa na cela. A janela é um el<strong>em</strong>ento<br />

expressivo <strong>de</strong> marcar as acções ou eventos. A luz que jorra <strong>de</strong>la é in<strong>de</strong>finida. Nunca v<strong>em</strong>os a porta<br />

exterior da prisão, que está s<strong>em</strong>pre escura. Luz e ar vêm <strong>de</strong>sta janela, s<strong>em</strong>pre presente. Esta forma<br />

<strong>de</strong> tratar a luz, o ar, o fogo e a água po<strong>de</strong> interpretar-se, no tratamento consistente que vimos no<br />

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filme, como um processo <strong>de</strong> elevar estes el<strong>em</strong>entos naturais a el<strong>em</strong>entos num nível simbólico,<br />

mítico, num espaço que já é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> longa data, na cultura que o produziu, mítico, <strong>de</strong>scontínuo a<br />

todo o outro espaço – uma heterotopia.<br />

NOTAS<br />

(1)Machado, Álvaro Manuel, Do Ooci<strong>de</strong>nte ao Oriente, – Mitos, Imagens, Mo<strong>de</strong>los, Editorial Presença, Lisboa,<br />

2003 p. 11<br />

(2) Lourenço, Eduardo, O Labirinto da Sauda<strong>de</strong>, 2001, Gradiva, Lisboa p39<br />

(3) Said, Edward, <strong>artigo</strong> Orientalismo Revisto, in Heloísa Buarque <strong>de</strong> Hollanda Pós-Mo<strong>de</strong>rnismo e Política, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, Editora Rocco,1992, tradução <strong>de</strong> Heloísa Barbosa p 252.<br />

(4) Said, Ibi<strong>de</strong>m, p252<br />

(5) Saraiva, António José e Lopes, Óscar, História da Literatura Portuguesa, 1975, Porto Editora, pp1129-30<br />

(6) Bello,A Implusão do Cin<strong>em</strong>a Português: Duas Faces da Mesma Moeda, s/d, Internet http://www2.let.uu.nl/<br />

solis/PSC/P/PVOLUMETHREEPAPERS/BELLO-P3.pdf<br />

(7) Calinesco, Mattei, As 5 faces da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, editora Vega,1999 p 247<br />

(8) Scarpetta, Guy, L’Ímpureté, ed. Bernard Grasset, 1989, p17<br />

(9) Bauman, Zygmunt “O Mal-Estar da Pós-Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, Jorge Zahar Editor, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1998, pp132-133<br />

(10) Obra Poética e <strong>em</strong> Prosa, ed. António Quadros, Porto, Lello & Irmão, 1986, p 57<br />

A colocação do sujeito pós-mo<strong>de</strong>rno está presente com clareza também nas seguintes passagens: E vós, coisas<br />

navais, meus velhos brinquedos <strong>de</strong> sonho!/ Compon<strong>de</strong> fora <strong>de</strong> mim a minha vida interior!/Quilhas, mastros e velas,<br />

rodas <strong>de</strong> l<strong>em</strong>e, cordagens/ (…) Se<strong>de</strong> vós os frutos da árvore da minha imaginação,/t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> cantos meus, sangue<br />

nas veias da minha inteligência,/Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,/Fornecei-me metáforas<br />

imagens, literatura,/Porque <strong>em</strong> real verda<strong>de</strong>, a sério, literalmente, minhas sensações são um barco <strong>de</strong> quilha pró ar,/<br />

Minha imaginação uma âncora meio submersa,/Minha ânsia um r<strong>em</strong>o partido,/E a tessitura dos meus nervos uma<br />

re<strong>de</strong> a secar na praia/(…)Todo o vapor ao longe é um barco <strong>de</strong> vela perto./Todo o navio distante visto agora é um<br />

navio no passado visto próximo” Poesias <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos, Edições Ática, s/d pp 170,171<br />

(11)In http://www.madragoafilmes.com/sites/osolhosdaasia/nota.html<br />

(12) Obra real, da autoria <strong>de</strong> Monao Shibata (música) e Edward Ishita (texto), sobre os meninos que foram a Roma,<br />

exibida no Japão e na Europa, incluindo Portugal.<br />

(13) Christian Metz, La gran<strong>de</strong> syntagmatique du film narratif, conferência <strong>de</strong> 2 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1966, Pesaro (Itália),<br />

Deuxième Festival du Cinèma –Nouveau.<br />

(14) Journot, Vocabulário <strong>de</strong> Cin<strong>em</strong>a, p 23 edições 70, Lisboa, 2005, tradução <strong>de</strong> Pedro Elói Duarte<br />

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DISSOLUÇÃO E RESISTÊNCIA NA VOZ DO<br />

NARRADOR<br />

Lúcia Ramos<br />

“The writer who invents a story invents also the teller of that story. And the one who tells a<br />

story invents his listener. They have invented Spontini, and Spontini has invented me. And now<br />

I must try to reinvent all of th<strong>em</strong> once more.”<br />

Spontini<br />

Introdução<br />

São múltiplas e com orig<strong>em</strong> <strong>em</strong> diversas áreas, as influências que po<strong>de</strong>m recair sobre a<br />

narrativa e as categorias que a compõ<strong>em</strong>. Acreditar que esta – e salientamos a narrativa literária<br />

ficcional - se manteria inalterável, imune a qualquer influência colocar-nos-ia perante a hipótese<br />

<strong>de</strong> uma imutabilida<strong>de</strong> ou limite. Nesta perspectiva, vale a afirmação <strong>de</strong> Gilles Deleuze e Felix<br />

Guattari, conquanto o livro não seja imag<strong>em</strong> do mundo faz, todavia “rizoma com o mundo”,<br />

ocorrendo uma “evolução a paralela do livro e do mundo” (1) .<br />

Vários autores têm assinalado transformações na narrativa, notando e salientando as<br />

diferenças. Ao estudar as inovações é possível mostrar como alterações formais aparent<strong>em</strong>ente<br />

alheias à construção literária têm um efeito importante na construção e estatuto das obras (2) . Em<br />

1967, John Barth escandalizou a crítica literária com seu ensaio “A literatura do esgotamento(3)”<br />

<strong>de</strong>finindo esta como a exaustão das formas e modos artísticos através da história humana, ou<br />

seja, sugerindo que as convenções artísticas estão sujeitas a ser<strong>em</strong> subvertidas, transcendidas,<br />

transformadas, ou até mesmo a mobilizar<strong>em</strong>-se contra si próprias a fim <strong>de</strong> gerar um trabalho novo<br />

e vivo.<br />

Walter Benjamin apontara para o que acreditava ser o <strong>de</strong>finhar da arte <strong>de</strong> narrar principalmente,<br />

dizia, <strong>de</strong>vido à extinção daquilo que afirmava ser o lado épico da verda<strong>de</strong>(4) ; por seu lado, <strong>em</strong><br />

1954, Wolfgang Keyser advertia que se <strong>de</strong>ixarmos <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o narrador como a pessoa que<br />

conta a história, o romance estaria con<strong>de</strong>nado. A <strong>de</strong>speito dos avisos, a narrativa não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ver<br />

surgir largo conjunto <strong>de</strong> narradores não humanos, n<strong>em</strong> os textos <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> revelar a recusa <strong>em</strong><br />

persistir no acordo mimético que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há séculos <strong>de</strong>termina a ficção convencional.<br />

Cada vez mais, os bancos <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória, os bytes, o ví<strong>de</strong>o e outros meios tecnológicos <strong>de</strong><br />

informação, se afirmam como transmissores privilegiados <strong>de</strong> transmissão e armazenamento da<br />

informação. E no que diz respeito à narrativa, as discussões acerca do impacto do hipertexto,<br />

especialmente na narrativa <strong>de</strong> ficção, têm merecido especial atenção. Estudos recentes <strong>de</strong> George<br />

Landow, David Bolter ou Michael Joyce, <strong>de</strong>monstraram interesse <strong>em</strong> observar o hipertexto não<br />

apenas como um processo <strong>de</strong> escrita, mas como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> análise textual compelindo novas<br />

perspectivas <strong>de</strong> práticas textuais (5) . Um diálogo entre os estudos literários e os estudos do<br />

hipertexto po<strong>de</strong>rá trazer contribuições a ambos os campos.<br />

Como hipertexto referimo-nos a uma escrita referencial, um texto que se bifurca. Conjunto<br />

<strong>de</strong> documentos organizados <strong>de</strong> forma não linear que estabelec<strong>em</strong> entre si uma re<strong>de</strong> complexa<br />

<strong>de</strong> relações associativas. A sua organização é explicitamente não sequencial e não hierárquica. A<br />

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palavra hipertexto é <strong>em</strong>pregue num sentido alargado para se referir não apenas ao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> texto<br />

que está na base da internet, caracterizando-se principalmente por uma sucessão e ramificação <strong>de</strong><br />

conexões, mas também no sentido que a palavra converge a partir do seu prefixo grego hiper-<br />

que r<strong>em</strong>ete para a superação <strong>de</strong> limites, <strong>de</strong> linearida<strong>de</strong> e lógica referencial, possibilitando tanto a<br />

representação do pensamento humano como o processo <strong>de</strong> produção e colaboração.<br />

Com o hipertexto, o texto ganha múltiplas vozes, múltiplos autores num espaço comum<br />

<strong>de</strong> criação, <strong>de</strong>sterritorializado. O restrito território do livro é ampliado para um universo cujas<br />

fronteiras, s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> mutação, já não são <strong>de</strong>finidas por limites físicos ou conceptuais, mas antes<br />

<strong>em</strong>erg<strong>em</strong> num campo <strong>de</strong> linguagens on<strong>de</strong> a autorida<strong>de</strong> do autor e do conteúdo são provisórias e<br />

contingentes. Para Stuart Moulthroup(6) a <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong> discursos não lineares coloca o hipertexto<br />

na alvorada <strong>de</strong> uma nova era, observando não só alterações epist<strong>em</strong>ológicas provocadas pelas<br />

tecnologias do hipertexto electrónico, mas a distinção que se estabelece entre o texto impresso e<br />

o texto electrónico.<br />

Quando a partir da referência a Beckett “Que importa qu<strong>em</strong> fala, disse alguém disse, que<br />

importa qu<strong>em</strong> fala”, Michel Foucalt (7) afirma que a escrita se basta a si mesma, talvez não<br />

imaginasse que o cânone literário voltaria a perguntar com redobrada insistência, “qu<strong>em</strong> fala?”. A<br />

diferença – que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser significativa – é que a questão já não t<strong>em</strong> o seu foco na figura do<br />

autor como entida<strong>de</strong> concreta anterior ao livro, mas antes sobre a entida<strong>de</strong> abstracta <strong>em</strong>issora dos<br />

vários enunciados. Noções como “stream of consciousness” ou “autonomous interior monologe”<br />

distinguidos por Dorrit Cohn, mostraram o interesse perante estas personificações da mente.<br />

Todavia, a questão já ultrapassa a distinção entre narrador e autor e outro <strong>de</strong>sassossego se anuncia.<br />

Tradicionalmente, o narrador seria omnisciente e omnipresente e sabia mais sobre as personagens<br />

que elas próprias. E à força <strong>de</strong> o ser, qualquer <strong>de</strong>svio era reconhecido e i<strong>de</strong>ntificado, os seus limites<br />

i<strong>de</strong>ntificados. O leitor, seguro da sua interpretação, não precisava <strong>de</strong> participar n<strong>em</strong> recriar o texto.<br />

Para Gérard Genette, contar uma história forçar-nos-ia escolher por um narrador que fosse uma<br />

personag<strong>em</strong> (interior ou exterior) da história. Mas, o “eu” e/ou o “tu” narrativos mostram-se mais<br />

esquivos, às vezes efémeros.<br />

O narrador po<strong>de</strong> assumir-se como narratário ou leitor da história; às vezes habita várias<br />

histórias com pouco (ou mesmo nada <strong>em</strong> comum), s<strong>em</strong>elhante a eternos e incansáveis viajantes<br />

entre storyworlds, como propõe David Herman (8) . O narrador na primeira pessoa não t<strong>em</strong><br />

necessariamente <strong>de</strong> se ass<strong>em</strong>elhar a um ser humano com todos os seus <strong>de</strong>feitos e virtu<strong>de</strong>s.<br />

Po<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os l<strong>em</strong>brar narradores que são notas <strong>de</strong> banco, animais, crianças pequenas, máquinas ou<br />

até minotauros(9) . Uns revelam-se ambíguos, alguns pouco competentes, outros completamente,<br />

insanos. De entre estes po<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os apontar Septimus Smith <strong>de</strong> Virginia Wolf, Benjy <strong>de</strong> William<br />

Falkner ou Charles Kimbote <strong>de</strong> Vladimir Nabokov.<br />

Se à escola narrativa tradicional caberia ostentar um narrador capaz <strong>de</strong> dominar as acções,<br />

situações e categorias narrativas com (alguma) segurança e objectivida<strong>de</strong>, à narrativa mo<strong>de</strong>rna<br />

cabe <strong>de</strong>smistificar essa pretensa segurança. Emerge uma prosa que apresenta enredos cujas etapas<br />

<strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>c<strong>em</strong> a qualquer or<strong>de</strong>namento linear e favorec<strong>em</strong> o <strong>de</strong>sm<strong>em</strong>bramento do narrador <strong>em</strong><br />

múltiplas dimensões <strong>de</strong> consciência. Anatol Rosenfeld consi<strong>de</strong>ra lícito a supressão do narrador,<br />

na medida <strong>em</strong> que este colocaria sob uma certa or<strong>de</strong>m o discurso, quando é precisamente a<br />

or<strong>de</strong>m que está a ser questionada. L<strong>em</strong>bra, contudo, que o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> objectivida<strong>de</strong> originou uma<br />

leitura tão minuciosa dos pensamentos por parte da personag<strong>em</strong> que o todo <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ser<br />

representado.<br />

A resposta <strong>de</strong> muitos escritores a que nos habituámos a <strong>de</strong>nominar por pós-mo<strong>de</strong>rnos à<br />

percepção <strong>de</strong> que o real não é significante por si mesmo, afirma-se como uma estética <strong>de</strong> autoreflexivida<strong>de</strong>,<br />

uma forma <strong>de</strong> ficção que investiga o próprio processo <strong>de</strong> significação ou produção<br />

<strong>de</strong> sentido. Parodiando as convenções literárias – como omnisciência do narrador – os ficcionistas<br />

enfatizam o papel <strong>de</strong>sses procedimentos na construção <strong>de</strong> sentido. Ao fazer-se outro representando-<br />

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se, o autor cria-se como singularida<strong>de</strong> ou subjectivida<strong>de</strong> s<strong>em</strong> sujeito, puro agenciamento <strong>de</strong> uma<br />

relação <strong>de</strong> forças que é o acontecimento. A mistura entre factos biográficos e dados literários<br />

reforça a impressão <strong>de</strong> relato verídico por estar a utilizar factos verosímeis para a construção da<br />

personag<strong>em</strong>. Po<strong>de</strong>r-se-á supor que a motivação para a escolha <strong>de</strong> um autor para figurar como<br />

personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um romance seja, tanto fornecer o efeito <strong>de</strong> real, como estabelecer um jogo<br />

metalinguístico e intertextual. A transmutação da personag<strong>em</strong> <strong>em</strong> autor ou, num sentido inverso,<br />

a do escritor <strong>em</strong> personag<strong>em</strong> ficcional, possui bases e princípios <strong>de</strong> composição comuns no que se<br />

refere à elaboração da ficção, ao modo <strong>de</strong> narração e à montag<strong>em</strong> do texto. A radicalização <strong>de</strong>sse<br />

processo não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> recair também sobre a noção <strong>de</strong> personag<strong>em</strong> (10).<br />

É neste <strong>em</strong>aranhado <strong>de</strong> questões que se <strong>de</strong>senvolve a narrativa Spontini.<br />

A criação <strong>de</strong> Pfitz<br />

A nossa indagação surge no seguimento do projecto encetado e <strong>de</strong>senvolvido na tese <strong>de</strong><br />

doutoramento, enquanto estudávamos o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> espacialização da estrutura narrativa, numa<br />

aproximação entre as noções da teoria da Literatura e as novas tecnologias <strong>de</strong> produção e leitura<br />

textual, nomeadamente hipertexto, cibertexto, ou navegação <strong>em</strong> re<strong>de</strong>(11) . Para a prossecução<br />

<strong>de</strong>ste objectivo inspirámo-nos no romance Pfitz <strong>de</strong> Andrew Crumey(12) que conta a história <strong>de</strong><br />

um príncipe que no seu <strong>de</strong>sejo pela imortalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> criar uma cida<strong>de</strong> inteiramente nova e cuja<br />

perfeição representa uma “reaction to the meaningless cruelty of the world”(13). Após várias<br />

tentativas, surge Rreinnstadt, cida<strong>de</strong> perfeita e puramente conceptual.<br />

Enquanto nos esforçávamos para <strong>de</strong>slindar as diversas facetas por que se <strong>de</strong>senvolvia<br />

espacialmente Pfitz e íamos sendo obrigados a (<strong>de</strong>s)estruturar as diversas narrações que o<br />

constitu<strong>em</strong>, uma pergunta teimosamente se interpunha: “Qu<strong>em</strong> é?” Qu<strong>em</strong> é este príncipe que<br />

um dia <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> procurar a imortalida<strong>de</strong> construindo cida<strong>de</strong>s: será o prisioneiro da torre, narrativa<br />

contada na terceira pessoa ou a personag<strong>em</strong> central do nosso romance, num relato auto-biográfico<br />

ou, ainda, uma invenção dos habitantes <strong>de</strong> Rreinnstadt; qu<strong>em</strong> são o con<strong>de</strong> Zelneck e o seu criado Pfitz<br />

que se dirig<strong>em</strong> à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rreinnstadt,: serão personagens-habitantes inventadas para preencher<br />

os mapas que abundam no gabinete do cartógrafo Schenck ou constituirão o centro nefrálgico<br />

<strong>de</strong>sta narrativa, numa transposição <strong>de</strong> Jacques le Fatalist et son maïtre <strong>de</strong> Denis Di<strong>de</strong>rot. Qu<strong>em</strong> são<br />

Author e Rea<strong>de</strong>r que disputam o melhor lugar a partir do qual obterão uma visão panóptica da<br />

viag<strong>em</strong> do con<strong>de</strong> Zelneck e Pfitz até Rreinnstadt, e cujas falas se divi<strong>de</strong>m entre a <strong>de</strong>fesa do tradicional<br />

mimetismo <strong>de</strong>scritivo e o reconhecimento da sua inutilida<strong>de</strong>. Por fim, qu<strong>em</strong> é Vicenzo Spontini cuja<br />

voz dilacerada e fraccionada procura, tal como nós, saber qu<strong>em</strong> é. Po<strong>de</strong>rá ser o nosso príncipe, ou<br />

um dos autores inventados; po<strong>de</strong>rá ser a personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma das histórias <strong>de</strong> Pfitz, ou, um dos<br />

muitos habitantes <strong>de</strong> Rreinnstadt.<br />

Spontini questiona-se constant<strong>em</strong>ente sobre a sua existência; mais, sobre a verosimilitu<strong>de</strong> do<br />

seu pensamento. A conhecida frase <strong>de</strong> René Descartes, filósofo do Século VIII (t<strong>em</strong>po cronológico<br />

<strong>de</strong> Pfitz) “Cogito, Ergo Sum”, encontra nesta personag<strong>em</strong> lugar formidável para o seu absurdo: nada<br />

é garantido – n<strong>em</strong> a existência n<strong>em</strong> os pensamentos. Se eu penso, questiona Spontini, <strong>de</strong>vo existir;<br />

mas se eu penso que existo, existirei <strong>de</strong> facto ou apenas penso que existo. Dito <strong>de</strong> outra forma,<br />

po<strong>de</strong>r-se-á existir in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> o pensarmos? Estas são algumas das interrogações <strong>de</strong>sta<br />

personag<strong>em</strong>. Com Spontini, a frase <strong>de</strong> Descartes po<strong>de</strong>ria ser refeita para Dubito, Forsam Sum. Uma<br />

narração dividida entre a sensação <strong>de</strong> enclausuramento e a certeza <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> a si mesmo se observa,<br />

adivinhando-se as múltiplas dimensões <strong>em</strong> que se po<strong>de</strong>rá dividir.<br />

70


Narração Spontini<br />

A narração Spontini singulariza-se por os capítulos intercalar<strong>em</strong> parágrafos com caracteres<br />

regulares e parágrafos com caracteres <strong>em</strong> itálico (14) ; entre estes, o discurso também varia,<br />

<strong>de</strong>nunciando uma possível mudança da voz <strong>em</strong>issora. Nos parágrafos <strong>em</strong> itálico, predomina o<br />

discurso na primeira pessoa, invariavelmente atormentada, queixando-se aprisionada ora “in a<br />

nest of vipers” ora “in the interior of a cold body”. Po<strong>de</strong>ríamos supor tratar-se <strong>de</strong> uma sensação<br />

<strong>de</strong> clausura psicologicamente apreendida se no segundo parágrafo não se referisse explicitamente<br />

a “my cell”. A voz que apresenta o grafismo irregular interroga-se sobre o que antes foi dito, mas<br />

também sobre as suas <strong>em</strong>oções e sobre o seu esforço “to recall the <strong>em</strong>otions with which I wrote<br />

th<strong>em</strong>.(15) ”<br />

A criação <strong>de</strong> Vicenzo Spontini<br />

Na narração Spontini po<strong>de</strong>ríamos supor que os diferentes grafismos seriam indicadores da<br />

presença <strong>de</strong> duas personagens ou até <strong>de</strong> duas vozes que se opõ<strong>em</strong> numa espécie <strong>de</strong> dialogismo<br />

doentio; todavia, para encontrarmos algumas pistas, ter<strong>em</strong>os <strong>de</strong> observar com atenção quando<br />

diz “It almost feels as if I wrote these words myself, as if they do not come from that other one<br />

(the darker one). (16) ” Ainda no mesmo parágrafo, insiste “It almost feels as if it was I who<br />

thought those words, as if it were I myself who held an entire kingdom in being through no more<br />

than the power of belief.(17) ” A probl<strong>em</strong>atização da nossa narrativa aumenta exponencialmente<br />

quando perceb<strong>em</strong>os que nela os limites tradicionalmente impostos pela categoria do narrador são<br />

ultrapassados. É que Spontini é um escritor inventado por um comité autoral: aí estão os autores<br />

dos autores e dos livros <strong>de</strong> Rreinnstadt.<br />

Nesta cida<strong>de</strong>, os livros e os seus autores são criados por comités <strong>em</strong> que participam<br />

vários intervenientes, <strong>de</strong> várias profissões: Biógrafos, Antropólogos Copistas, Cartógrafos e até<br />

Patologistas. Os livros resultam da imaginação e <strong>em</strong>penho <strong>de</strong> vários funcionários. Primeiro, “he is<br />

created by Biography – that´s where everyone starts. And at some point in his early life, it becomes<br />

clear that he will be called to a literary vocation.” Nesta fase, tudo o que existe são algumas datas,<br />

a maior parte, provisórias. A essência do autor, aquilo que o distinguirá dos <strong>de</strong>mais, só surge nos<br />

seus livros: “He is what he writes (18) ”, dirão. Todo o processo <strong>de</strong> criação autoral <strong>em</strong> Rreinnstadt<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta comissão, mesmo que todos os livros e todas as histórias tenham um leitor na sua<br />

orig<strong>em</strong>: “First invent your Rea<strong>de</strong>r, then your Author will naturally <strong>em</strong>erge”. Pouco interessa que<br />

este habitante-personag<strong>em</strong>-autor-inventado seja o resultado e confluência <strong>de</strong> várias pessoas. Nada<br />

interessa, apenas a escrita: “We are all the servants of literature. Whithout it, we are nothing”. Até<br />

à concretização do romance muito acontece, às vezes imprevistos pois “it contains something of<br />

each of us, and yet something else as well (19). Num momento <strong>de</strong> luci<strong>de</strong>z, Spontini dirá ser uma<br />

“colony of writers” e que “these are all different man”.<br />

Todos <strong>de</strong>positam parte <strong>de</strong> si na criação dos Aphorismos <strong>de</strong> Spontini. Mas o projecto <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

cedo revelou falhas inultrapassáveis e contradições irreconciliáveis. Todos acreditam que um<br />

livro “should converge onto something; it should focus somewhere”, mas resultado foi um<br />

“process without any prospect of resolution, or hope of completion.” As diversas comissões<br />

e <strong>de</strong>partamentos não se enten<strong>de</strong>m, a discórdia instala-se e um a um, todos <strong>de</strong>mit<strong>em</strong>-se das<br />

suas funções. Os responsáveis pela criação <strong>de</strong>ste autor que não existe, habitante <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong><br />

igualmente inexistente, confessarão: “What we were discovering was not a single author, but a<br />

whole collection of voices without any common th<strong>em</strong>e. (20) ”<br />

Eis que Spontini como que largado à sua sorte, <strong>de</strong>scobre-se capaz <strong>de</strong> possuir vida própria.<br />

Mesmo que esta seja a reunião das m<strong>em</strong>órias e <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> cada um dos seus criadores. O primeiro<br />

71


gesto <strong>de</strong>sta personag<strong>em</strong>-autor ou personag<strong>em</strong>-metáfora-<strong>de</strong>-autor é revoltar-se contra o seu<br />

<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> personag<strong>em</strong> e tentar escapar à sua morte: “I run through dark streets, still pursued<br />

by those who would seek to write me, to correct me, to unwrite me and erase a half-formed<br />

thought. (21) . Personag<strong>em</strong> con<strong>de</strong>nada a repetir todos os gestos da sua existência (que <strong>de</strong> cor<br />

conhece) e <strong>de</strong>sesperada por escapar ao seu <strong>de</strong>stino pré-escrito. Personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um livro que revive<br />

todas as vezes que é lido dirá atormentado, ” it is enough and I can stand no more.(22) ” Spontini<br />

é autor, pois foi criado para <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhar essa função <strong>em</strong> Rreinnstadt, mas também é narrador<br />

porquanto conta a sua (versão) da história. Por fim será personag<strong>em</strong> interligando-se entre as<br />

<strong>de</strong>mais, contribuindo para a<strong>de</strong>nsar a trama narrativa e dissipar certezas.<br />

Várias são as hipóteses que po<strong>de</strong>ríamos avançar para a presença <strong>de</strong> Vicenzo Spontini. Po<strong>de</strong><br />

ser o nosso príncipe construtor <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s enclausurado nas masmorras <strong>de</strong>ste reino <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

ter sido “ almost bankrupted by it.(23) ” Spontini, dirá a certa altura, “It may have been another<br />

person, another Prince, who walked in that church. (24) ” Po<strong>de</strong>rá ser a criação dos habitantes <strong>de</strong><br />

um reino que consi<strong>de</strong>ram insípido e <strong>de</strong>sconsolado, <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> criar a sua história. Na orig<strong>em</strong><br />

mítica <strong>de</strong>ste reino fabuloso (re)criam um príncipe <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> atingir a imortalida<strong>de</strong> cujo maior<br />

<strong>de</strong>sejo é a construção da sua cida<strong>de</strong> perfeita(25) . Esta “great city of the imagination”, contrasta<br />

claramente com a “humble, mundane city (small, imperfect and inconsequential)”, e os autores<br />

resultam s<strong>em</strong>pre da interligação <strong>de</strong> vários organismos pois nenhum autor po<strong>de</strong>ria igualá-lo na<br />

genialida<strong>de</strong> singular <strong>de</strong> louco criador.<br />

Talvez sejamos forçados a aceitar que <strong>em</strong> Pfitz a verda<strong>de</strong> não existe; apenas pontos <strong>de</strong> vista.<br />

Talvez Spontini, seja “l’homme orchestre” do Neveu <strong>de</strong> Rameau, <strong>de</strong> Denis Di<strong>de</strong>rot (26) , capaz <strong>de</strong><br />

fazer falar a uma só voz os diferentes instrumentos - tal como um romance dialógico -, po<strong>de</strong>ndo<br />

ainda ser, se não o maestro da orquestra, a própria orquestra <strong>em</strong> que os instrumentos se reún<strong>em</strong><br />

para, como afirma um dos seus criadores, “working together to invent the works of a certain<br />

author”. Em última instância Spontini po<strong>de</strong>rá ser a “central brain-structrure” ponto fulcral na<br />

biblioteca <strong>de</strong> Rreinnstadt, capaz <strong>de</strong> fazer da Cida<strong>de</strong> Enciclopédia, a gran<strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> Organismo que<br />

gradualmente ganha mais consciência <strong>de</strong> si (27).<br />

De colónia a colonizador<br />

A hipótese <strong>de</strong> que um texto narrativo po<strong>de</strong>rá comportar múltiplas vozes foi explorada por<br />

Mickaïl Bakhtin formalizando-a no Dialogismo, ao reflectir sobre o reconhecimento <strong>de</strong> múltiplas<br />

vozes capazes <strong>de</strong> se unir<strong>em</strong> numa única voz compósita. Esta po<strong>de</strong>rá <strong>em</strong>ergir da ironia, mas<br />

também da intra/intertextualida<strong>de</strong>, aquando da paráfrase ou citação. Falamos <strong>de</strong> romances <strong>em</strong><br />

que “the word became the arena of conflict between two voices.(28) ”<br />

A linguag<strong>em</strong> nunca é inocente e cada palavra t<strong>em</strong> uma segunda m<strong>em</strong>ória que a r<strong>em</strong>ete aos<br />

seus significados antece<strong>de</strong>ntes. Os modos discursivos – histórico, teórico e/ou ficcional – forçam<br />

a reflexão sobre o enunciado e o objecto <strong>de</strong> enunciação. Para urdir estes estratos no enredo é<br />

necessário elaborar um tipo específico <strong>de</strong> escrita que abandone a função <strong>de</strong> pura representação<br />

da realida<strong>de</strong> e torne mais palpável o aspecto discursivo do aparato narrativo. O procedimento da<br />

escrita como fonte inesgotável <strong>de</strong> questionamento do seu mundo, do seu texto e <strong>de</strong> si.<br />

A aventura <strong>de</strong> Spontini não termina no momento intrincado da sua criação, mas perdura e<br />

entrelaça-se por entre as restantes narrações que compõ<strong>em</strong> Pftz. Nesta perspectiva, Spontini não<br />

é apenas colónia, nicho <strong>de</strong> autores, mas também colonizador(30). A sua presença influencia o<br />

<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Zelneck e Pfitz, <strong>de</strong> Leopold e <strong>de</strong> Weissblatt e da sua mulher. Também influencia Sckenck<br />

e Estrella. Se Spontini afirma ser colónia <strong>de</strong> autores, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser colonizador e influenciar o<br />

<strong>de</strong>stino das restantes personagens.<br />

Da mesma forma que a personag<strong>em</strong> se questiona sobre as suas palavras e o pensamento<br />

que as origina, a narrativa <strong>de</strong>bruça-se sobre si própria, num jogo que intercala a própria imag<strong>em</strong><br />

72


e aspectos da realida<strong>de</strong> exterior – mesmo que uns e outros <strong>de</strong>rivam <strong>de</strong> uma mente perturbada.<br />

Também a fragmentação da narrativa coincidirá com a evolução do processo <strong>de</strong> esboroamento do<br />

cosmos ficcional. As profusões imagéticas são rápidas, <strong>de</strong>sconexas e fragmentadas. Os cortes na<br />

narrativa e, até, a ausência <strong>de</strong> uma linha t<strong>em</strong>poral contínua permit<strong>em</strong> a construção <strong>de</strong> um t<strong>em</strong>po<br />

ilusionista, irreal anacrónico, mas também a <strong>de</strong>sestruturação da realida<strong>de</strong> e a sua reconstrução,<br />

assumindo novas significações e instaurando novas realida<strong>de</strong>s. Com este movimento, Pfitz tanto<br />

questiona saberes e regras referentes ao saber literário, como a escrita a leitura; saliente-se, a<br />

voz <strong>em</strong>issora. O que parece ser fundamentalmente novo não é apenas a apresentação t<strong>em</strong>ática<br />

(seja através <strong>de</strong> uma alegoria ou da afirmação teórica <strong>de</strong>sta subversão, numa personag<strong>em</strong>), mas a<br />

assimilação <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong> na própria estrutura da narrativa. À afirmação <strong>de</strong> que a sua obra <strong>de</strong>verá<br />

ficar para s<strong>em</strong>pre incompleta e não ser mais que “an amalgam of the various tastes, styles and<br />

interests ” (31), Spontini acrescentará que “any person is in fact an infinity of individuals”, cada<br />

uma “an infinity of stories. ” (32)<br />

Duas linhas i<strong>de</strong>ológicas <strong>de</strong> interpretação textual se <strong>de</strong>bat<strong>em</strong>: as que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a importância<br />

<strong>de</strong> uma presença corpórea na voz <strong>em</strong>issora para a compreensão do texto e as que nos advert<strong>em</strong> para<br />

a sua redundância. Nesta última hipótese, Spontini reclama <strong>de</strong>sesperadamente pela sua existência<br />

e corporeida<strong>de</strong>. A única garantia é a contínua consciência da morte, “He will die young, yet live<br />

forever. I shall grow old, and then be obliterated and forgotten. ”(33)<br />

O narrador que antes seria o todo-po<strong>de</strong>roso da criação literária, passa a ser percebido como<br />

expositor <strong>de</strong> múltiplas escrituras, todas <strong>em</strong> diálogo. A leitura é o lugar para on<strong>de</strong> o significado,<br />

móvel e instável é encaminhado e on<strong>de</strong> os textos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente da sua natureza, adquir<strong>em</strong><br />

o seu sentido. A <strong>em</strong>ergência dos novos media – cin<strong>em</strong>a, televisão, internet – ao propor novas<br />

realida<strong>de</strong>s – hipertexto, cibertexto, network, interface – levam-nos <strong>de</strong> regresso às questões da autoria<br />

e voz <strong>em</strong>issora.<br />

A questão é tortuosa e entrelaça o texto numa perspectiva ainda mais inquietante quando é<br />

no seu interior que é colocada. O narrador, ao mesmo t<strong>em</strong>po que se submete às regras também<br />

as <strong>de</strong>sacredita, criando um segundo eixo narrativo no qual o processo <strong>de</strong> escrita é discutido <strong>de</strong><br />

forma incorporada na trama ficcional. Na ambiguida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste quadro tudo será uma farsa, uma<br />

encenação permeada <strong>de</strong> ironia. Desfaz-se o autor na negação e retratação <strong>de</strong> tudo o que aparentou.<br />

No habilidoso jogo arquitectónico <strong>de</strong>stas estruturas <strong>em</strong> que o narrador envolveu a personag<strong>em</strong>autor<br />

e o este o narrador-personag<strong>em</strong>-autor, não se permite a atitu<strong>de</strong> passiva <strong>de</strong> um leitor ingénuo,<br />

mas antes a activida<strong>de</strong> estruturadora dum leitor competente, i<strong>de</strong>al ou mo<strong>de</strong>lar, <strong>de</strong> um super-leitor<br />

disposto a respon<strong>de</strong>r às inesgotáveis questões técnico-formais ou sócio-existenciais <strong>em</strong>ergentes<br />

da segurança do romance. Da aparência inicial aparent<strong>em</strong>ente ingénua, cresce e <strong>de</strong>senvolvese<br />

o romance para revelar um final <strong>de</strong> arquitectura inusitado e um questionamento <strong>de</strong>nso da<br />

consistência ficcional.<br />

No final, <strong>de</strong> Spontini dir-se-á que morreu doido e que <strong>de</strong>ixou apenas uma obra, incompleta,<br />

intitulada os Aphorisms of Vicenzo Spontini (34).<br />

Narrativa metáfora hipertexto<br />

Somos colocados perante a questão <strong>de</strong> saber se Pfitz po<strong>de</strong>ria conduzir-nos à convicção<br />

<strong>de</strong> estarmos perante uma narrativa transformada; especificamente, se a estrutura narrativa e a<br />

voz narradora <strong>de</strong>v<strong>em</strong> alguma influência ao mo<strong>de</strong>lo hipertexto. O advento do “computer and the<br />

astonishing sophistication achieved by our electronic communications media have together turned<br />

a ranged of isolated changes into something syst<strong>em</strong>ic (35). ” Pfitz incita a inúmeras interrogações.<br />

À s<strong>em</strong>elhança do museu <strong>de</strong> Rreinnstadt, o hipertexto é o livro s<strong>em</strong>pre inacabado com as<br />

suas “ever-growing ramifications of the network of corridors and passageways” levando-nos por<br />

“countless redrafting of the interior plans and drawings”(36). Também à s<strong>em</strong>elhança da criação<br />

73


dos livros <strong>em</strong> Rreinnstadt, as páginas <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> são construídas por vários autores: <strong>de</strong>signers,<br />

projectistas gráficos, programadores, entre outros. De um autor único surge um sujeito colectivo,<br />

uma reunião <strong>de</strong> consciências produtoras <strong>de</strong> conhecimento. Construído na soma <strong>de</strong> muitas mãos,<br />

o hipertexto cont<strong>em</strong>porâneo é, a seu modo, uma versão da polifonia ansiada por Bakhtin – uma<br />

possibilida<strong>de</strong> para o diálogo entre as diferentes vozes, e negociação dos sentidos.<br />

Spontini não narra uma história, antes divaga, reflecte, <strong>de</strong>duz. A sua narração também não<br />

ocupa lugar primordial no conjunto da obra, porquanto mistura-se e (entre)interliga-se com as<br />

restantes. Somos confrontados com a divagação <strong>de</strong> uma escrita que a todo o momento nos afasta<br />

do centro e retarda o avanço da(s) acção(ões). Torna-se assim a escrita por <strong>de</strong>svios, <strong>de</strong>lirante,<br />

labiríntica. A escrita tece o romance e constrói a teia on<strong>de</strong> autores e leitores são convidados a<br />

entrar, como se <strong>de</strong> um labirinto se tratasse.<br />

Existe certo consenso <strong>de</strong> que a estrutura do hipertexto pouco diferencia do texto impresso.<br />

A gran<strong>de</strong> inovação estaria mesmo relacionada com a liberda<strong>de</strong> criativa que o meio electrónico<br />

proporciona, já que se trata basicamente <strong>de</strong> um texto marcado por um sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> r<strong>em</strong>issivas.<br />

Posso ler uma narrativa largamente hipertextual s<strong>em</strong> que o fluxo narrativo apresente uma<br />

estrutura não-linear, mas antes que a sua interpretação, no conjunto do romance, permita tanto<br />

às personagens diversos finais, como ao leitor, mais do que uma versão. A nossa narrativa não<br />

resulta da simulação <strong>de</strong> uma navegação hipertextual n<strong>em</strong>, tampouco, será uma narrativa ergódica,<br />

pelo menos tal como é apresentada por Arseth Aspen, cuja leitura obriga o leitor a diversos<br />

movimentos físicos na prossecução da história. Emerge, sim, um romance como metáfora <strong>de</strong> uma<br />

construção hipertextual <strong>de</strong>monstrando – se tal fosse necessário – a vitalida<strong>de</strong> da narrativa perante<br />

os <strong>de</strong>safios trazidos pelas novas tecnologias <strong>de</strong> informação, escrita e leitura.<br />

Conclusão<br />

Uma das gran<strong>de</strong>s lições da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é a <strong>de</strong> que noções como real, autêntico e verda<strong>de</strong>iro<br />

são construções da linguag<strong>em</strong> – conceitos virtuais revestidos <strong>de</strong> uma aura. A multi-referencialida<strong>de</strong><br />

do narrador na prosa mo<strong>de</strong>rna vai colocar <strong>em</strong> causa o que Anatol Rosenfeld <strong>de</strong>signara por visão<br />

<strong>em</strong> perspectiva, caracterizada pela captura do mundo a partir da soberania do sujeito.<br />

Em Pfitz, não exist<strong>em</strong> certezas. As personagens que se distribu<strong>em</strong> por diversos núcleos<br />

ora são o resultado da invenção <strong>de</strong> outras personagens, ora são os habitantes <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>, tão<br />

irreal quanto elas. O espaço e o t<strong>em</strong>po estão ausentes <strong>de</strong> quaisquer coor<strong>de</strong>nadas; Spontini, que se<br />

reconhece como o mais diverso <strong>de</strong> todos os autores, afirma estar enclausurado numa cela, mas<br />

também ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> altas colunas, arcos e s<strong>em</strong>i-arcos; ou, ainda, no cimo <strong>de</strong> uma alta torre. Do<br />

t<strong>em</strong>po, apenas a sensação <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>rá existir um futuro, mas este bifurcar-se-á infinitamente e<br />

é capaz <strong>de</strong> oferecer tantas possibilida<strong>de</strong>s como as veredas por que se distribui, “each one existing<br />

only for a moment, or co-existing within a single fragile location (37)”.<br />

Muitos dos estudos relacionados sobre a voz (ou vozes) narrativas e que nos falam sobre<br />

“speakability ” (38) vêm acompanhados por uma aura <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia com que se tentam justificar.<br />

O hipertexto, todavia, po<strong>de</strong> tornar a “artistic personality ”(39) num mo<strong>de</strong>lo meramente técnico,<br />

<strong>de</strong>stituído do manancial teórico <strong>de</strong> afirmação. O dispositivo electrónico, mecânico e mecanizado,<br />

<strong>de</strong>ssacraliza a voz <strong>em</strong>issora. É precisamente contra a <strong>de</strong>ssacralização e <strong>de</strong>spersonalização da sua<br />

voz que luta Spontini. A <strong>de</strong>finição do referencial teórico e conceptual justifica-se pela contribuição<br />

das teorias do hipertexto como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> conhecimento dinâmico, híbrido e<br />

relacional.<br />

Parte da singularida<strong>de</strong> da voz narrativa Spontini resi<strong>de</strong> tanto na <strong>de</strong>spersonalização como na<br />

super-personalização, que faz com que seja possível esta personag<strong>em</strong>-autor tornar-se também<br />

personag<strong>em</strong>-leitor dos seus textos. Entre a dispersão e diss<strong>em</strong>inação “being cornered by the<br />

language” subsiste a convicção <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> todos existe. Uma figura, um reflexo “in<br />

74


the ill-<strong>de</strong>fined region between one image and the next in an endlessly <strong>de</strong>scending multiplicity of<br />

reflections”.<br />

Vicenzo Spontini não <strong>de</strong>siste da unida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>safia a pluralida<strong>de</strong> e dirá “again and again, like an echo<br />

multiplied in<strong>de</strong>finitely between parallel wall:<br />

This is where the story ends.<br />

This is where the story ends.”<br />

NOTAS<br />

(1) Gilles Deleuze, Felix Guattari, Rizoma . Tradução <strong>de</strong> Rafael Godinho. Lisboa, Colecção Alfinete,/8, Assírio &<br />

Alvim, 2004; p.25.<br />

(2) Umberto Eco assegura que não <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os t<strong>em</strong>er da chegada <strong>de</strong> novos meios tecnológicos, pois que estes não<br />

tornam necessariamente os anteriores obsoletos: “The car goes faster than the bicycle, but cars have not ren<strong>de</strong>red<br />

bicycles obsolete and no new technological improv<strong>em</strong>ent can make a bicycle better than it was before.” , in Umberto<br />

Eco, “From Internet to Gutenberg”, lecture presented at The Italian Aca<strong>de</strong>my for Advancced Studies in América,<br />

Nov<strong>em</strong>ber, 12, 1996, in http://www.hf.ntnu.no/anv/Finnbo/tekster/Eco/Internet.htm (15/Set/2003). Site<br />

consultado <strong>em</strong> Junho 2010.<br />

(3) John Barth, “The Literature of Exhaustion” apud Malcolm Bradbury, The novel today: Cont<strong>em</strong>porary writers<br />

on mo<strong>de</strong>rn fiction, Manchester, University Press ND, 1977; p.70.<br />

(4) Walter Benjamin, “Le Conteur”, in Oevres III . Traduit d l’all<strong>em</strong>an<strong>de</strong> par Maurice <strong>de</strong> Gardillac, Reiner Rochitz<br />

et Pierre Rusch. France, Collection Folio/Essais, Édition Gallimard, 2000.<br />

(5) Em 1945, Vannevar Bush anuncia no <strong>artigo</strong> “As We May Think” as i<strong>de</strong>ias centrais sobre a nova articulação da<br />

informação. Vanevar Bush, físico e mat<strong>em</strong>ático, dirige durante a II Guerra Mundial um vasto grupo <strong>de</strong> cientistas<br />

no domínio das aplicações militares e rapidamente se apercebe <strong>de</strong> que “There is growing mountain of research.<br />

But there is increased evi<strong>de</strong>nce that we are being bogged down today as specialization” e que “publication has been<br />

exten<strong>de</strong>d far beyond our present ability to make real use of the record.“ Este cientista concluiu que o pensamento<br />

humano opera por associações: com um it<strong>em</strong> na sua posse, move-se rapidamente para o próximo que lhe é sugerido<br />

pela associação <strong>de</strong> pensamentos, <strong>de</strong> acordo com uma intrincada teia <strong>de</strong> trilhos transmitida pelas células do cérebro.<br />

Cf., Vannevar Bush, “As We May Thing”, <strong>artigo</strong> disponível <strong>em</strong> http://www.theatlantic.com/doc/194507/bush/4<br />

Site consultado <strong>em</strong> Agosto 2007.<br />

(6) Stuart Moulthroup, “Rizoma y Resistencia – El hipertexto y el soñar com uma nueva cultura” apud Georges<br />

Landow, Teoria <strong>de</strong>l Hipertexto, Barcelona, Paidós, 1997; pp. 339-361.<br />

(7) Micheal Foucault, O Que é o autor? . Tradução <strong>de</strong> António Fernando Cascais, Lisboa, Colecção Passagens,<br />

Edições Vega, 1970; p. 34.<br />

(8) David Herman, Story Logic – Probl<strong>em</strong>s and Possibilities of Narrative, Nebraska-United States, University of<br />

Nebraska, 2004.<br />

(9) Para Mieke Bal o narrador é “the linguistic subject, a funtion and not a person.” Mieke Bal, Narratology –<br />

Introdution to the Theory of Narrative, Toronto, University of Toronto Press, 1985; p. 119.<br />

(10) Des<strong>de</strong> o século XIX, a personag<strong>em</strong> v<strong>em</strong> gradativamente <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser um pólo centralizador, um tipo ou até<br />

mesmo uma caricatura, <strong>em</strong> que estariam resumidas as características <strong>de</strong> uma classe social ou <strong>de</strong> uma profissão, por<br />

ex<strong>em</strong>plo. Deixa também <strong>de</strong> se caracterizar como o herói probl<strong>em</strong>ático <strong>em</strong> conflito com o mundo, abrindo espaço<br />

para o anti-herói comum, passivo e in<strong>de</strong>feso, mergulhado num universo fragmentado e s<strong>em</strong> sentido, para que <strong>de</strong>sse<br />

universo a narrativa passar a ser então o lugar on<strong>de</strong> se inscreve essa percepção: “os atos, os projetos, o passado<br />

das personagens contam menos do que as pulsões, as imagens, as impressões <strong>de</strong> que é constituído cada instante <strong>de</strong><br />

sua vida”. In Roland Bourneuf e Réal Ouellet, O Universo do Romance. Tradução <strong>de</strong> José Carlos Seabra Pereira .<br />

Coimbra, Livraria Almedina, 1976; p. 278.<br />

75


(11) Uma perspectiva intensamente <strong>de</strong>vedora do <strong>artigo</strong> “Spatial Form in Mo<strong>de</strong>rn Narrative” <strong>de</strong> Joseph Franck. Cf.:<br />

Joseph Frank,”The Spatial Form in Mo<strong>de</strong>rn Literature”, in The I<strong>de</strong>a of Spatial Form, New Brunswick and London,<br />

Rutgers University Press, 1991.<br />

(12) Andrew Crumey, Pfitz, UK, Dedalus, 1995.<br />

(13) I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m.; p.9.<br />

(14) A utilização <strong>de</strong> diferentes grafismos para diferenciar as vozes narrativas não constitui uma novida<strong>de</strong>. L<strong>em</strong>br<strong>em</strong>os<br />

o conhecido romance <strong>de</strong> William Faulkner, O Som e a Fúria. Mais recent<strong>em</strong>ente, o argumento original do filme<br />

M<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> Jonathan Nolan, publicado na revista Esquire Magazine com o título “M<strong>em</strong>ento Mori” apresenta-nos<br />

dois discursos graficamente diferentes: um <strong>em</strong> itálico, outro com tipo <strong>de</strong> letra regular. Nos primeiros, o narrador<br />

dirige-se ao protagonista utilizando a 2ª pessoa do singular, no segundo, é utilizada a 3ª pessoa do singular. Na<br />

adaptação cin<strong>em</strong>atográfica, <strong>de</strong> Christopher Nolan, manteve-se esta distinção, optando-se por intercalar imagens a<br />

preto e branco com imagens a cores.<br />

(15) Pfitz, p. 56.<br />

(16) Pfitz, p. 58.<br />

(17) Pfitz, p. 58.<br />

(18) Pfitz; p.80. Sublinhado nosso. A afirmação, que termina um longo parágrafo é per<strong>em</strong>ptória “He is what he<br />

writes” o que quererá dizer que <strong>em</strong> Rreinnstadt será a escrita que melhor <strong>de</strong>screve os seus autores. Seja ela ficcional<br />

ou não.<br />

(19) Pfitz; pp.80-81.<br />

(20) Pfitz; p.98.<br />

(21) Pfitz; p.147.<br />

(22) Pfitz; p.147.<br />

(23) Pfitz, p. 13. Vários parágrafos <strong>de</strong>screv<strong>em</strong> a intervenção dos m<strong>em</strong>bros do Departamento do Tesouro e das<br />

Finanças do reino colocando limites aos <strong>de</strong>vaneios do nosso príncipe.<br />

(24) Pfitz, p.56. Itálico nosso.<br />

(25) Somos inevitavelmente impelidos para os versos <strong>de</strong> Fernando Pessoa “O mito é o nada que é tudo. (…) Em<br />

baixo, a vida, meta<strong>de</strong> / De nada, morre.” in Fernando Pessoa, “Ulisses”,in Mensag<strong>em</strong>, in Antologia Poética <strong>de</strong><br />

Fernando Pessoa, Lisboa, 2ª Edição Biblioteca Ulisseia <strong>de</strong> Autores Portugueses, 1995; p. 36.<br />

(26) Não <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os olhar com <strong>de</strong>sconfiança para a presença <strong>de</strong> Di<strong>de</strong>rot nesta nossa aventura: o con<strong>de</strong> Zelneck e seu<br />

criado Pfitz serão, sob muitos aspectos uma dupla comparável a Jacques le Fatalist et son maïtre.<br />

(27) Pfitz; p. 17<br />

(28) Mickaïl Backtin 1973, p.106, apud Mark Curri (Ed.) Metaficion, New York, Longman, Critical Rea<strong>de</strong>rs, 1995;<br />

p.43.<br />

(29) Roland Barthes, “Pour une psycho-sociologie <strong>de</strong> l’alimentation cont<strong>em</strong>poraine”. Annales, Nº.5, Set.-Out. 1961:<br />

p. 982.<br />

76


(30) A chamada <strong>de</strong> atenção para a ambiguida<strong>de</strong> do terno “colónia” surgiu no seguimento <strong>de</strong> uma questão colocada<br />

aquando das II Jornadas <strong>CIAC</strong>. Confrontada com a necessida<strong>de</strong> precisar sobre o seu sentido, <strong>de</strong>scobriram-se outras<br />

leituras, <strong>em</strong>ergiram novas hipóteses.<br />

(31) Pfitz; p. 121.<br />

(32) Pfitz; p. 121.<br />

(33) Pfitz; p.143.<br />

(34) Obra duplamente incompleta e fragmentária pois aforismos são pequenos textos, adágios, axiomas, pequenas frases<br />

fragmentadas.<br />

(35) Sven Birkerts, The Gutenberg Elegies – The Fate of Reading in a Electronic Age, New York, Faber and Faber Inc.,<br />

2006; pag. 15.,<br />

(36) Pfitz; p. 16.<br />

(37) Pfitz; p. 121.<br />

(38) Andrew Gibson, Towards a Postmo<strong>de</strong>rn Theory of N€€€€arrative, Edinburg, Edindurg, University Press, 1996;<br />

pp.143-178<br />

(39) I<strong>de</strong>m; ibi<strong>de</strong>m; p. 171.<br />

77


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ROSENFELD, Anatole, Texto / Contexto, Colecção Debates, Editora Perspectiva, 1985.<br />

78


O ESTEREÓTIPO FEMININO NA REPRESENTAÇÃO<br />

FÍLMICA E TELEVISIVA DE ELIZABETH I<br />

Liliana Lopes Dias<br />

Por <strong>de</strong>finição a palavra “estereótipo”, aplicada à sociologia, pressupõe uma concepção rígida,<br />

simplificada, e estandardizada <strong>de</strong> pessoas, grupos ou instituições. A i<strong>de</strong>ia que se t<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado<br />

sujeito é muitas vezes pré-concebida e não aplicável a todos os casos. É, frequent<strong>em</strong>ente, uma<br />

generalização injusta, falaciosa, distorcida, e ofensiva. A concepção do estereótipo f<strong>em</strong>inino baseiase<br />

<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ias pré-concebidas do que é o comportamento a<strong>de</strong>quado para o sexo f<strong>em</strong>inino, assim<br />

como <strong>em</strong> construções simbólicas <strong>de</strong> f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong>. Todavia, estas concepções variam <strong>de</strong> acordo<br />

com a cultura, religião, classe social e época <strong>em</strong> que a figura f<strong>em</strong>inina se insere. As mulheres que<br />

não se submet<strong>em</strong> ao comportamento consi<strong>de</strong>rado a<strong>de</strong>quado pela socieda<strong>de</strong> são tomadas como<br />

atípicas; com comportamentos <strong>de</strong> género anómalos.<br />

No século XVI, Elizabeth I foi consi<strong>de</strong>rada atípica por não se ter submetido àquilo que era<br />

esperado <strong>de</strong>la enquanto mulher: casar e produzir her<strong>de</strong>iros. A socieda<strong>de</strong> do século XVI era patriarcal<br />

<strong>em</strong> estrutura e comportamento: baseada no princípio <strong>de</strong> primogenitura masculina. A mulher <strong>de</strong>via<br />

ser subserviente ao pai, irmãos, e mais tar<strong>de</strong> ao marido. A figura masculina encarregava-se <strong>de</strong><br />

todos os assuntos ligados ao dinheiro, negócios e organização, enquanto a função da mulher<br />

era cuidar da casa e dos filhos. As mulheres eram vistas como inferiores aos homens, inclusive<br />

intelectualmente, <strong>de</strong>masiado <strong>em</strong>ocionais, fracas, libidinosas e incapazes <strong>de</strong> controlar os seus<br />

<strong>de</strong>sejos. No caso <strong>de</strong> Elizabeth, o seu estatuto exonerava-a <strong>de</strong> algumas características e <strong>de</strong>feitos<br />

f<strong>em</strong>ininos, porém esperava-se que ela seguisse os pareceres dos seus conselheiros. No entanto,<br />

Elizabeth era vulnerável a ataques à sua reputação, especialmente por ser uma mulher solteira(1).<br />

A construção da imag<strong>em</strong> da Rainha Virg<strong>em</strong> foi, assim, uma maneira <strong>de</strong> suprimir este tipo <strong>de</strong><br />

rumores. A estranheza que o reinado <strong>de</strong> Elizabeth levantava não era tanto pelo facto <strong>de</strong> ser mulher,<br />

mas por insistir <strong>em</strong> permanecer solteira. Alguns (2) , particularmente homens, acreditavam que ter<br />

uma mulher como chefe <strong>de</strong> estado era uma abominação, contudo estes homens eram apenas uma<br />

minoria da população, e a subida <strong>de</strong> Elizabeth ao trono inglês foi pacífica. Todavia, esperava-se que<br />

ela casasse e transferisse o seu po<strong>de</strong>r régio para o marido, enquanto ela se encarregaria <strong>de</strong> assuntos<br />

mais domésticos. Porém, a rainha não cumpriu aquilo que a socieda<strong>de</strong> do seu t<strong>em</strong>po esperava<br />

<strong>de</strong>la. Ela quebrou o estereótipo f<strong>em</strong>inino da sua época. Não se sabe porque ficou solteira(3), se<br />

foi sua escolha pessoal, o resultado <strong>de</strong> questões politicas(4), ou somente uma fatalida<strong>de</strong>. Quando<br />

já tinha sido posta <strong>de</strong> parte a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Elizabeth se casar(5) , ela reinventou a sua imag<strong>em</strong>,<br />

tornando-a cada vez mais simbólica e po<strong>de</strong>rosa. De certo modo, Elizabeth reformulou a teoria dos<br />

“Dois Corpos do Monarca”(6) ; ela aniquilou o corpo pessoal e tomou, pelo menos visualmente,<br />

apenas o corpo simbólico, divino e imortal.<br />

O mito <strong>de</strong> Elizabeth atravessou os séculos, sendo convocado <strong>em</strong> situações históricas<br />

particulares. A imag<strong>em</strong> da rainha reapareceu s<strong>em</strong>pre que o contexto histórico, económico, e social<br />

a convocou: como expressão <strong>de</strong> nostalgia <strong>de</strong> uma Era Dourada; <strong>em</strong> situações que possibilitavam<br />

analogias com os acontecimentos do reinado <strong>de</strong> Elizabeth ou com a sua vida; ou na tentativa <strong>de</strong><br />

associar o carácter ou feitos dos monarcas cont<strong>em</strong>porâneos ao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> um monarca perfeito,<br />

Elizabeth. Nos séculos XX e XXI Elizabeth foi rel<strong>em</strong>brada no cin<strong>em</strong>a e na televisão <strong>em</strong> épocas<br />

79


<strong>em</strong> que era possível estabelecer analogias entre os acontecimentos da época isabelina e o contexto<br />

histórico dos séculos XX e XXI. Por ex<strong>em</strong>plo, no final dos anos 30 e início dos anos 40 <strong>em</strong> Fire over<br />

England (1937), The Private Lives of Elizabeth and Essex (1939), ou The Sea Hawk (1940) Elizabeth foi<br />

posicionada contra a opressão e tirania, numa clara referência ao regime nazi. Nos anos 50 a rainha<br />

foi novamente representada no cin<strong>em</strong>a <strong>em</strong> Young Bess (1953) e The Virgin Queen (1955) <strong>em</strong> resposta<br />

à recente subida ao trono da rainha Elizabeth II. Recent<strong>em</strong>ente, <strong>em</strong> 2007, o realizador Shekhar<br />

Kapur (2-3) admitiu, <strong>em</strong> entrevista, que o seu filme Elizabeth: The Gol<strong>de</strong>n Age continha referências<br />

ao extr<strong>em</strong>ismo religioso, comparando a Inquisição Espanhola ao terrorismo talibã. Por outro lado,<br />

estes e outros filmes evi<strong>de</strong>nciam características sociais da sua época <strong>de</strong> produção, nomeadamente<br />

o lugar da mulher na socieda<strong>de</strong> anglo-americana(7) . Posto isto, Elizabeth é representada, no<br />

cin<strong>em</strong>a e na televisão, <strong>de</strong> acordo com os parâmetros <strong>de</strong> f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong>, e função e lugar da mulher<br />

na socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> cada década. É possível observar uma clara evolução da representação Elizabeth<br />

entre os anos 30 do século XX e a primeira década do século XXI. Esta evolução da personag<strong>em</strong><br />

da rainha <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da evolução social da mulher, e, especialmente, como a “solteirona” é vista pela<br />

socieda<strong>de</strong>.<br />

As primeiras duas décadas do século XX foram <strong>de</strong>finidas como a Era Progressista marcada por<br />

uma evolução da imag<strong>em</strong> e função da mulher na socieda<strong>de</strong> norte americana. Durante a Primeira<br />

Guerra Mundial, enquanto uma gran<strong>de</strong> percentag<strong>em</strong> da população masculina era recrutada para a<br />

guerra, as mulheres eram aceites <strong>em</strong> <strong>em</strong>pregos antes exclusivamente masculinos. Alguns trabalhos<br />

passaram mesmo a ser exclusivamente f<strong>em</strong>ininos, como por ex<strong>em</strong>plo o ensino, enfermag<strong>em</strong>,<br />

secretariado, ou as operações telefónicas. As mulheres passaram, assim, a participar activamente<br />

na socieda<strong>de</strong>, inclusive <strong>em</strong> áreas como a política ou cultura. Para além disto, os anos 20 marcaram<br />

uma evolução dos direitos da mulher, sendo o mais importante <strong>de</strong>les todos: o direito <strong>de</strong> voto.<br />

As mulheres <strong>de</strong>sta altura eram muitas vezes retratadas com cabelo curto e saias curtas, a fumar<br />

e dançar <strong>em</strong> público, e com <strong>em</strong>pregos. Foi também nesta década que as mulheres começaram a<br />

usar calças pela primeira vez. Porém, esta imag<strong>em</strong> apenas se aplicava a uma porção da socieda<strong>de</strong>,<br />

nomeadamente branca, jov<strong>em</strong>, e <strong>de</strong> classe média. Outra porção f<strong>em</strong>inina lutava para manter os<br />

seus papéis <strong>de</strong> mães e profissionais. Estes dois grupos, <strong>de</strong> mulheres, que trabalhavam fora <strong>de</strong> casa,<br />

formavam, nos anos 20, quase 50 por cento da população f<strong>em</strong>inina. Contudo, a prosperida<strong>de</strong> e<br />

frivolida<strong>de</strong> dos anos 20 acabou <strong>de</strong>vido à Gran<strong>de</strong> Depressão iniciada com a queda da bolsa <strong>de</strong><br />

valores <strong>em</strong> 1929, e os efeitos da crise duraram até finais dos anos 30 e início dos anos 40. Uma das<br />

estratégias dos Estados Unidos para fazer face à crise foi a proibição, <strong>em</strong> mais <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> dos seus<br />

estados, <strong>de</strong> contratar mulheres casadas, uma vez que elas iriam tirar vagas <strong>de</strong> trabalho aos homens.<br />

Era imperativo que a população masculina estivesse <strong>em</strong>pregada, não só porque era a única fonte<br />

<strong>de</strong> sustento familiar, mas também para evitar que os homens se envolvess<strong>em</strong> <strong>em</strong> questões políticas,<br />

e fomentass<strong>em</strong> a discórdia política, ou a anarquia. Neste contexto, a Gran<strong>de</strong> Depressão reforçou<br />

comportamentos <strong>de</strong> género tradicionais, e voltou a relegar a mulher, especialmente a casada, para<br />

o trabalho do lar.<br />

Nesta década a indústria do cin<strong>em</strong>a sofreu gran<strong>de</strong>s alterações com a entrada <strong>em</strong> vigor do<br />

Código <strong>de</strong> Produção Cin<strong>em</strong>atográfico, ou Código Hays, <strong>em</strong> 1930, muito <strong>em</strong>bora só tenha sido<br />

efectivamente aplicado <strong>em</strong> 1934. Um dos princípios do Código era a protecção da santida<strong>de</strong> do<br />

casamento e do lar. Anormalida<strong>de</strong>s como o adultério, sexo ilícito, ou homossexualida<strong>de</strong> não podiam<br />

ser explícitas ou justificadas, e não podiam ser apresentadas como opções atractivas, segundo o<br />

Código. Uma vez que o Código pretendia proteger e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o princípio do casamento, é natural<br />

que a imag<strong>em</strong> da mulher solteira não fosse exortada n<strong>em</strong> apresentada como uma opção viável e<br />

natural. Desta forma, o cin<strong>em</strong>a reforçou a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o lugar da mulher era junto dos filhos e a<br />

cuidar da casa.<br />

No cin<strong>em</strong>a dos anos 30, nomeadamente no melodrama, há três gran<strong>de</strong>s tipos <strong>de</strong> personagens<br />

f<strong>em</strong>ininas segundo Haskell (160-161): mulheres extraordinárias, mulheres comuns, e mulheres<br />

80


comuns que se tornam extraordinárias. No primeiro caso inser<strong>em</strong>-se representações <strong>de</strong> figuras,<br />

fortes, <strong>de</strong>terminadas, po<strong>de</strong>rosas. O segundo caso comporta retratos <strong>de</strong> mulheres comuns, passivas,<br />

muitas vezes vítimas. No último grupo figuram personagens que, muito <strong>em</strong>bora no início pareçam<br />

comuns e fracas, suportam todas as vicissitu<strong>de</strong>s, superam-nas e tornam-se mulheres extraordinárias.<br />

O t<strong>em</strong>a principal <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> filmes é o sacrifício: mulheres que se sacrificam pelos filhos, ou os<br />

filhos para b<strong>em</strong> <strong>de</strong>les; mulheres que sacrificam o casamento por amor, ou o amor pelo casamento,<br />

ou o amor para b<strong>em</strong> da pessoa que amam; e, finalmente, mulheres que sacrificam a carreira por<br />

amor, ou o amor pela carreira. Nestes filmes a “solteirona” po<strong>de</strong> apresentar quatro características<br />

básicas, segundo Deborah J. Mustard (4): mulher atípica, digna <strong>de</strong> pena, fracassada, e suspeita.<br />

Uma mulher é atípica porque não t<strong>em</strong> filhos, e provavelmente n<strong>em</strong> os quer. Esta mulher não<br />

segue o que a socieda<strong>de</strong> espera <strong>de</strong>la, e se a norma é ser-se casado então este tipo <strong>de</strong> mulher viola a<br />

norma. A mulher solteira é digna <strong>de</strong> pena, porque é vista como se vivesse apenas superficialmente,<br />

logo a sua vida não t<strong>em</strong> sentido. Uma mulher é fracassada porque nunca consegue ter um gran<strong>de</strong><br />

amor, é aborrecida, patética, e com uma existência solitária. A “solteirona” é suspeita porque é<br />

intrigante, por ser difícil compreen<strong>de</strong>r por que escolheu esse tipo <strong>de</strong> vida.<br />

Nos anos 30, Elizabeth foi apresentada <strong>em</strong> Mary of Scotland (1936) <strong>de</strong> John Ford, Fire over<br />

England (1937) <strong>de</strong> William K. Howard, e <strong>em</strong> The Private Lives of Elizabeth and Essex (1939) <strong>de</strong><br />

Michael Curtiz s<strong>em</strong>pre submetida a tipologias f<strong>em</strong>ininas. Em Mary of Scotland a personag<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

Elizabeth, interpretada por Florence Eldridge, contrasta com a <strong>de</strong> outra rainha, Mary, rainha da<br />

Escócia, interpretada por Katharine Hepburn. Elas são duas mulheres completamente diferentes:<br />

Elizabeth é um dos vilões, enquanto Mary é a vítima in<strong>de</strong>fesa. Elizabeth é solteira, fria, calculista,<br />

ambiciosa, dissimulada, todos os seus movimentos são políticos, nunca pessoais, e inveja Mary.<br />

Na Escócia, Mary é vítima <strong>de</strong> homens ambiciosos e manipulada por eles, é ingénua, não t<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

qu<strong>em</strong> confiar, e não é respeitada pela sua corte, n<strong>em</strong> levada a sério como rainha. Mary é f<strong>em</strong>inina,<br />

por vezes até <strong>de</strong>masiado, tanto que borda enquanto trata <strong>de</strong> assuntos <strong>de</strong> estado. Mary aceita casarse<br />

por pressão, no entanto não se casa com o hom<strong>em</strong> que ama. De acordo com a subdivisão<br />

t<strong>em</strong>ática <strong>de</strong> Haskell, Mary sacrifica-se, no caso <strong>de</strong>ste filme, três vezes. Primeiro, sacrifica o amor<br />

que sente por Bothwell para se casar com o hom<strong>em</strong> que todos acham a<strong>de</strong>quado para ela. Segundo,<br />

sacrifica-se pelo filho para segurança <strong>de</strong>ste. Finalmente, sacrifica a sua vida por aquilo <strong>em</strong> que<br />

acredita. Elizabeth é maldosa: fica satisfeita com os probl<strong>em</strong>as e das <strong>de</strong>sgraças <strong>de</strong> Mary. Quando<br />

Elizabeth recebe notícias <strong>de</strong> que Mary já t<strong>em</strong> um filho e <strong>de</strong> que a Escócia t<strong>em</strong> um her<strong>de</strong>iro<br />

da coroa, ela reage violentamente, não porque a Escócia t<strong>em</strong> um her<strong>de</strong>iro, que possivelmente<br />

herdará também Inglaterra, mas porque Mary t<strong>em</strong> algo que ela não t<strong>em</strong>. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, o<br />

nascimento <strong>de</strong> James rel<strong>em</strong>bra Elizabeth do seu falhanço enquanto mulher, e é disto mesmo que<br />

Mary acusa Elizabeth quando as duas se confrontam. Elizabeth acusa Mary <strong>de</strong> ser uma ameaça<br />

para ela só por ter nascido, pois Mary já nasceu com título, enquanto Elizabeth teve <strong>de</strong> lutar e<br />

sofrer pelo po<strong>de</strong>r, e acusa Mary <strong>de</strong> ser um falhanço porque abandonou o reino por amor. Apesar<br />

se tudo Mary diz que nunca trocaria <strong>de</strong> lugar com Elizabeth, e faria tudo novamente, pois foi<br />

mais feliz <strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po do que Elizabeth algumas vez o será. Mary acusa Elizabeth <strong>de</strong> n<strong>em</strong><br />

sequer ser uma mulher, ou <strong>de</strong> ser um falhanço como mulher. No fim do encontro Mary vence<br />

este confronto ao compreen<strong>de</strong>r que Elizabeth s<strong>em</strong>pre a t<strong>em</strong>eu e continua a t<strong>em</strong>ê-la, pois se a<br />

executar jamais se redimirá, e será reprovada pela acção. Mary acusa Elizabeth <strong>de</strong> só lá ter ido<br />

por medo, e, especialmente, para conseguir assegurar o seu po<strong>de</strong>r, ao exigir que Mary renuncie à<br />

reivindicação do trono inglês <strong>em</strong> troca <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>. Mary recusa-se a recuar e a renunciar aquilo<br />

<strong>em</strong> que acredita, mesmo que morra, ela confia que vencerá Elizabeth, pois James herdará não só<br />

o trono da Escócia como o <strong>de</strong> Inglaterra. Neste confronto Mary verbaliza as atitu<strong>de</strong>s e ponto <strong>de</strong><br />

vista dos anos 30: Elizabeth é caracterizada como sendo menos mulher porque é solteira e não<br />

t<strong>em</strong> filhos, e se rege por sentimentos e atitu<strong>de</strong>s normalmente associadas aos homens <strong>de</strong> negócios:<br />

como a frieza, a ambição, e o calculismo. Neste sentido Mary é mais f<strong>em</strong>inina do que Elizabeth<br />

81


não só por se reger pelos sentimentos, mas porque se casou e gerou um filho. No fim, Elizabeth<br />

falhou não só enquanto mulher, mas também enquanto soberana, pois não foi capaz <strong>de</strong> assegurar<br />

a sucessão ao trono inglês. Tudo o que conseguiu e todos os sacrifícios <strong>de</strong> Elizabeth foram <strong>em</strong><br />

vão.<br />

Em Fire over England Elizabeth é apresentada <strong>de</strong> forma superficial: apenas as suas características<br />

<strong>de</strong> governante se <strong>de</strong>stacam, enquanto a sua personalida<strong>de</strong> e pessoa são apagados. Aliás, a<br />

personag<strong>em</strong> principal do filme não é a rainha mas Michael, o herói da história. A representação<br />

da rainha foca o seu “corpo político” e não o pessoal, sendo, neste caso apresentado o mito,<br />

o ícone, e não a pessoa <strong>de</strong> Elizabeth. Ela é extraordinária, não do ponto <strong>de</strong> vista humano mas<br />

político. O filme aponte breves particularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Elizabeth, contudo estas não chegam para a<br />

avaliar como pessoa, ou para conseguir <strong>de</strong>terminar abordagens sociais. Elizabeth é brev<strong>em</strong>ente<br />

<strong>de</strong>scrita como caprichosa, e gosta <strong>de</strong> chamar e <strong>de</strong>ter as atenções masculinas. Sente r<strong>em</strong>orsos por<br />

ter mandado executar a sua prima Mary, rainha da Escócia, mas é capaz <strong>de</strong> mostrar cl<strong>em</strong>ência.<br />

O filme aponta, no entanto, um <strong>de</strong>talhe que irá constar <strong>em</strong> inúmeros filmes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esta altura:<br />

Elizabeth não consegue aceitar a sua imag<strong>em</strong> envelhecida, seja por vaida<strong>de</strong>, seja por ternura <strong>de</strong><br />

quando era jov<strong>em</strong>. No entanto, não é uma característica resultante <strong>de</strong> concepções f<strong>em</strong>ininas e/ou<br />

da época; baseia-se na história <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>terminada altura da sua vida, Elizabeth, mandou retirar<br />

todos os espelhos do palácio, pois não se suportava ver neles a sua imag<strong>em</strong> envelhecida.<br />

The Private Lives of Elizabeth and Essex é o ex<strong>em</strong>plo perfeito, do ponto <strong>de</strong> vista t<strong>em</strong>ático, do<br />

filme típico dos anos 30: Elizabeth t<strong>em</strong> que fazer um sacrifício, uma escolha difícil que irá afectar<br />

o resto da sua vida. Ela t<strong>em</strong> que escolher entre a carreira e o amor. Elizabeth não é extraordinária,<br />

n<strong>em</strong> é uma rainha heróica, mas uma mulher infeliz, solitária, insegura, neurótica, e frustrada porque<br />

não cumpriu o seu objectivo enquanto mulher: casar e ter filhos. No fim, acaba por <strong>de</strong>scobrir que<br />

o po<strong>de</strong>r, e todo o t<strong>em</strong>po que <strong>de</strong>dicou à carreira foi <strong>em</strong> vão, pois a única coisa que dá sentido<br />

à vida é o amor. Neste sentido, o filme exprime a visão dos anos 30 <strong>de</strong> que a mulher só será<br />

inteiramente feliz se tiver uma família para cuidar, caso contrário acabará sozinha, amarga e infeliz.<br />

A rainha é, assim, marcada pelo estigma da “solteirona”, sendo o ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> uma trajectória a<br />

não seguir. Elizabeth é insegura quanto à sua aparência e obcecada pela sua juventu<strong>de</strong> perdida,<br />

possivelmente por estar apaixonada por um hom<strong>em</strong> mais jov<strong>em</strong>, e t<strong>em</strong>er que ele tome consciência<br />

disso e acabe por rejeitá-la(8) , por isso ela tenta compensar com roupas e ornamentos. Todavia,<br />

a imag<strong>em</strong> da rainha torna-a tão exagerada que chega a ser grotesca. A sua linguag<strong>em</strong> corporal,<br />

nomeadamente o andar <strong>de</strong>sajeitado, os gestos ru<strong>de</strong>s, e os tiques constantes, <strong>de</strong>riva da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que<br />

uma mulher solteira, a <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhar um cargo tipicamente masculino e <strong>de</strong> topo, t<strong>em</strong> algum <strong>de</strong>svio<br />

comportamental, ou, como Mustard o tipifica, é suspeita porque é diferente, e foge à norma do<br />

que são as expectativas e características f<strong>em</strong>ininas nos anos 30. Essex verbaliza como a socieda<strong>de</strong><br />

do século XVI, e a dos anos 30 encaram uma mulher num lugar <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Ele acredita que o sexo<br />

<strong>de</strong> Elizabeth a torna uma governante menos capacitada, e enfraquece a autorida<strong>de</strong> régia. Segundo<br />

ele, Elizabeth é <strong>de</strong>masiado sentimental, uma característica tipicamente f<strong>em</strong>inina, mesmo na guerra.<br />

Em contraste, ele preferiria, se fosse rei, governar heroicamente, guiado pelos seus instintos <strong>de</strong><br />

guerreiro, ainda que isso fosse perigoso. Elizabeth por seu turno tenta, ao longo da história, lutar<br />

contra os seus instintos f<strong>em</strong>ininos, pois ela é primeiro rainha e só <strong>de</strong>pois mulher. Ela sacrifica a<br />

sua natureza f<strong>em</strong>inina pelas suas obrigações e responsabilida<strong>de</strong>s. Ela sente-se dividida e verbaliza<br />

a sua fragmentação, metaforicamente representada por um espelho partido, num solilóquio que<br />

resume os seus sentimentos e a explica a trajectória da personag<strong>em</strong>:<br />

To be a queen is to be less than human. To put pri<strong>de</strong> before <strong>de</strong>sire. To search men’s hearts for ten<strong>de</strong>rness, and<br />

find only ambition. To cry out in the dark for one unselfish voice, and hear only the dry rustle of papers of state.<br />

To turn to one’s beloved with stars for eyes, and have him see behind th<strong>em</strong> only the shadow of the executioner’s<br />

block. A queen has no hour for love. Time presses, events crowd upon her. And for a shell, an <strong>em</strong>pty, glittering<br />

husk, she must give up all that a woman holds most <strong>de</strong>ar. (9)<br />

82


A personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Davis sente que a sua condição régia a aniquila enquanto mulher, pois<br />

as questões <strong>de</strong> estado estão antes das questões pessoais. Para cumprir as suas obrigações ela t<strong>em</strong><br />

que <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado os seus <strong>de</strong>sejos, o amor, e a aspiração <strong>de</strong> ter uma família. O seu trabalho é tão<br />

intenso, solitário e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> eventos externos e questões políticas, que ela não t<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po<br />

para o amor. As suas atenções estão apenas focadas para o b<strong>em</strong>-estar do seu povo. Ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, ela admite que amar uma rainha é um fardo <strong>de</strong>masiado pesado e arriscado, tanto que é<br />

difícil encontrar aquela voz altruísta. Ela refere-se a si como uma concha vazia e reluzente, e é assim<br />

que ela é representada no filme, perfeitamente visível pelo uso <strong>de</strong> vestidos <strong>de</strong> tecidos brilhantes e<br />

jóias. A sua imag<strong>em</strong> é só encenação, vazia, s<strong>em</strong> um objectivo prático, estéril. Ela parece <strong>de</strong>sejável<br />

<strong>de</strong>vido a esta aura reluzente, mas também pelo cargo que <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha. Na realida<strong>de</strong>, Essex sentese<br />

atraído não tanto pela mulher, mas pelo po<strong>de</strong>r que ela <strong>de</strong>tém, e ela t<strong>em</strong> consciência disso. Ela<br />

acredita que se casasse com Essex ele tomaria o po<strong>de</strong>r, como seu marido, e ela tornar se-ia uma<br />

mulher comum, e per<strong>de</strong>ria todo o interesse e o amor <strong>de</strong>le. Aliás, é pela impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ela ser<br />

uma mulher comum que a relação dos dois não vinga. Elizabeth parte o espelho porque este lhe<br />

rel<strong>em</strong>bra a sua ida<strong>de</strong>, e porque lhe l<strong>em</strong>bra a sua natureza f<strong>em</strong>inina não funcional e disfuncional. O<br />

espelho recorda-lhe, igualmente, a sua realida<strong>de</strong> e a impossibilida<strong>de</strong> do seu amor. Durante todo o<br />

filme, Elizabeth evi<strong>de</strong>ncia um conflito interior entre ser uma mulher e rainha. Ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />

mantém uma relação <strong>de</strong> amor ódio com Essex: ela ama-o, mas o<strong>de</strong>ia-o porque ele a faz sentir<br />

vulnerável e dividida entre o que sente por ele e as suas obrigações <strong>de</strong> chefe <strong>de</strong> estado. Da mesma<br />

forma, ele o<strong>de</strong>ia-a porque ela o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter mais po<strong>de</strong>r na corte, mas ama-a porque ela <strong>de</strong>tém<br />

o po<strong>de</strong>r que ele ambiciona. Elizabeth po<strong>de</strong> ser confiante relativamente a assuntos <strong>de</strong> estado,<br />

mas é insegura <strong>em</strong> relação ao amor, não conseguindo confiar na genuinida<strong>de</strong> dos sentimentos<br />

<strong>de</strong> Essex. Elizabeth t<strong>em</strong> uma trajectória infeliz, pois não é capaz <strong>de</strong> confiar <strong>em</strong> Essex, dar-lhe o<br />

seu amor, per<strong>de</strong>r o po<strong>de</strong>r e tornar-se uma mulher comum. Ela não consegue prescindir da sua<br />

ambição e da sensação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, mas, acima <strong>de</strong> tudo, pensa que ninguém é capaz <strong>de</strong> gostar <strong>de</strong>la<br />

pela mulher que é, e não pelo cargo que <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha. Neste sentido, do ponto <strong>de</strong> vista dos anos<br />

30, ela é uma mulher que acumula todas as características nomeadas por Deborah J. Mustard:<br />

atípica, digna <strong>de</strong> pena, fracassada, e suspeita. Elizabeth é atípica porque não cumpre aquilo que a<br />

socieda<strong>de</strong> esperava <strong>de</strong>la: casar e ter filhos. Ela é digna <strong>de</strong> pena porque jamais se irá perdoar por<br />

ter mandando executar Essex, quando ela po<strong>de</strong>ria ser muito feliz com ele, se tivesse corag<strong>em</strong><br />

para rescindir do po<strong>de</strong>r. Fracassada porque acaba sozinha, alheada <strong>de</strong> todos, infeliz, e amarga.<br />

Finalmente, suspeita porque não se percebe por quê ela simplesmente não entregou o po<strong>de</strong>r a<br />

Essex, para que ambos pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> ser felizes, é estranho, não faz sentido, e, no fim, Elizabeth<br />

causou a sua própria infelicida<strong>de</strong>.<br />

Nos anos 40 (10) repetiu-se o mesmo fenómeno ocorrido durante a Primeira Guerra<br />

Mundial. Com os homens fora a combater, as mulheres acabaram por preencher esferas antes<br />

tradicionalmente masculinas, nomeadamente no trabalho, tomando <strong>em</strong>pregos. Porém, com o<br />

fim da Segunda Gran<strong>de</strong> Guerra as mulheres retornaram para o seu lugar <strong>de</strong> esposas e mães, e<br />

reforçaram-se os valores familiares. Nesta época começava a ser aceitável que as mulheres solteiras<br />

trabalhass<strong>em</strong>, mas ainda se esperava que a <strong>de</strong>terminada altura elas se casass<strong>em</strong> e voltass<strong>em</strong> para a<br />

sua domesticida<strong>de</strong>. Assim, as mulheres solteiras que <strong>de</strong>tinham <strong>em</strong>pregos eram vistas com alguma<br />

reprovação, pois elas ocupavam postos <strong>de</strong> trabalho que po<strong>de</strong>riam ser dos chefes <strong>de</strong> família e, logo,<br />

eram uma ameaça à instituição familiar.<br />

O cin<strong>em</strong>a evi<strong>de</strong>ncia estas perspectivas. É frequente encontrar <strong>em</strong> filmes <strong>de</strong>sta década<br />

mulheres <strong>de</strong> carreira representadas negativamente como egoístas e <strong>de</strong>sequilibradas por ter<strong>em</strong><br />

sacrificado o amor e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir uma família. A televisão expressa também aquilo<br />

que a década consi<strong>de</strong>ra o i<strong>de</strong>al f<strong>em</strong>inino: as mulheres são acima <strong>de</strong> tudo donas <strong>de</strong> casa. Durante<br />

a guerra, as t<strong>em</strong>áticas <strong>de</strong> eleição dos filmes são histórias <strong>de</strong> amor trágicas e vidas violentamente<br />

83


alteradas pela guerra. Depois da guerra, imperam os melodramas psicológicos, on<strong>de</strong> as mulheres<br />

solteiras são, frequent<strong>em</strong>ente, psicóticas, e <strong>em</strong>ocionalmente e psicologicamente torturadas.<br />

The Sea Hawk (1940) <strong>de</strong> Michael Curtiz, produzido durante a guerra, ainda que nesta<br />

altura os Estados Unidos ainda não fizess<strong>em</strong> parte do conflito, <strong>de</strong>monstra a t<strong>em</strong>ática comum da<br />

época. O filme conta a história <strong>de</strong> amor <strong>de</strong> Geoffrey Thorpe e <strong>de</strong> Doña Maria, separados pela<br />

animosida<strong>de</strong>, que mais tar<strong>de</strong> se transformará <strong>em</strong> guerra, entre Espanha e Inglaterra. Elizabeth é<br />

uma mulher e governante extraordinária: é prática, profissional, politicamente astuta, digna <strong>de</strong><br />

respeito, e admirável. Contudo, antes <strong>de</strong> o espectador a conhecer, ela é <strong>de</strong>scrita negativamente.<br />

No início ela é acusada <strong>de</strong> ser “estéril”, e, mais tar<strong>de</strong>, diz<strong>em</strong> que ela se gosta <strong>de</strong> cercar <strong>de</strong> beleza<br />

na esperança que esta seja contagiosa. Mais tar<strong>de</strong>, os marinheiros comentam que Thorpe não t<strong>em</strong><br />

corag<strong>em</strong> para falar com mulheres, ainda que não aconteça quando ele fala com Elizabeth, porque<br />

é como falar <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> para hom<strong>em</strong>. Do ponto <strong>de</strong> vista dos outros ela é estranha, não é digna <strong>de</strong><br />

pena, n<strong>em</strong> fracassada, mas é atípica e suspeita. Ela não <strong>de</strong>monstra vonta<strong>de</strong> <strong>em</strong> casar ou ter filhos,<br />

n<strong>em</strong> se parece interessar por nenhum dos homens que a ro<strong>de</strong>ia. Na verda<strong>de</strong>, como ela o refere,<br />

se tiver <strong>de</strong> escolher entre amar um hom<strong>em</strong> ou reger um hom<strong>em</strong>, ela prefere regê-lo e ficar com o<br />

ceptro. Esta representação <strong>de</strong> Elizabeth parece ter ultrapassado as hesitações que a personag<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong> Bette Davis apresentava <strong>em</strong> 1939. A personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Flora Robson <strong>em</strong> The Sea Hawk parece<br />

estar b<strong>em</strong> resolvida e resignada com aquilo que escolheu para si, tanto que, ao contrário do que<br />

aconteceu com as representações anteriores <strong>de</strong> Elizabeth, e voltará a acontecer, esta Elizabeth não<br />

t<strong>em</strong> ciúmes das suas aias ou da felicida<strong>de</strong> dos outros. Do ponto <strong>de</strong> vista político, Elizabeth recusase<br />

a mandar construir uma frota <strong>em</strong> antecipação do conflito com Espanha, não por falta <strong>de</strong> visão<br />

política ou militar, mas por prudência administrativa e económica. Ela não quer gastar recursos<br />

para construir uma armada que po<strong>de</strong>rá não ser necessária. Quando as relações entre Espanha e<br />

Inglaterra chegam a uma situação crítica, Elizabeth prefere não provocar Espanha, não por medo<br />

mas porque se preocupa com o seu povo. Inevitavelmente, a situação torna-se insustentável, e<br />

ainda que não queira entrar na guerra, t<strong>em</strong> <strong>de</strong> o fazer pelo seu povo e por todo o mundo:<br />

[…]when the ruthless ambition of a man threatens to engulf the world, it becomes the sol<strong>em</strong>n obligation of all<br />

free men to affirm that the earth belongs not to any one man, but to all men […] we shall now make to meet the<br />

great armada that Philip sends against us. (11)<br />

Muito <strong>em</strong>bora Elizabeth seja inicialmente comentada negativamente, esta representação heróica<br />

acaba por equilibrar a representação da rainha. Em relação a todas as outras interpretações<br />

<strong>de</strong> Elizabeth até à década <strong>de</strong> 40, esta, e a <strong>de</strong> Fire over England, são as mais favoráveis à rainha<br />

provavelmente porque <strong>em</strong> ambas ela é apresentada como a personalida<strong>de</strong> história, o mito, logo<br />

menos humanizada, exactamente o contrário do que acontece <strong>em</strong> The Private Lives of Elizabeth and<br />

Essex.<br />

Os anos 50 continuaram a visão <strong>de</strong> que o lugar da mulher é como dona <strong>de</strong> casa e mãe. Ainda<br />

a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mulheres <strong>em</strong>pregadas tenham baixado logo a seguir à Segunda Guerra Mundial,<br />

<strong>em</strong> 1950 a percentag<strong>em</strong> <strong>de</strong> mulheres com <strong>em</strong>prego estava novamente a subir, à rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> um<br />

milhão por ano. Em 1956, 30 por cento da população f<strong>em</strong>inina <strong>de</strong>tinha um <strong>em</strong>prego, e um quarto<br />

das mulheres casadas trabalhavam fora <strong>de</strong> casa. Todavia, os meios <strong>de</strong> comunicação (jornais, <strong>artigo</strong>s<br />

<strong>de</strong> revistas, a rádio e a televisão) encorajavam as mulheres a voltar para o lar, para a sua função<br />

<strong>de</strong> esposas e mães. Nos liceus americanos o livro da disciplina <strong>de</strong> Economia do Lar (“Home<br />

Economics”) continha um ensaio intitulado “Como ser uma boa esposa” (“How to be a good<br />

wife”). As regras para ser uma boa esposa, segundo o ensaio eram: ter o jantar preparado assim<br />

que o marido chegasse do <strong>em</strong>prego; estar bonita e fresca; arrumar tudo; preparar as crianças para<br />

o jantar; eliminar todos os barulhos da casa, incluindo manter os filhos calados; não o aborrecer o<br />

marido com probl<strong>em</strong>as e queixas; ter uma bebida preparada, e oferecer-se para lhe tirar os sapatos<br />

pô-lo confortável; ouvi-lo e nunca falar primeiro; nunca se queixar da pouca atenção que ele lhe<br />

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dá, e compreen<strong>de</strong>r a pressão e stress <strong>em</strong> que ele vive. O gran<strong>de</strong> objectivo da esposa seria, assim,<br />

tornar a casa num lugar <strong>de</strong> paz e or<strong>de</strong>m on<strong>de</strong> o marido pu<strong>de</strong>sse relaxar o corpo e o espírito.<br />

As séries <strong>de</strong> televisão mais populares <strong>de</strong>sta altura como “I Love Lucy” ou “Father Knows<br />

Best” retratavam os valores familiares tradicionais. “I Love Lucy” conta a história <strong>de</strong> uma dona<br />

<strong>de</strong> casa cujo sonho é ser artista, enquanto o seu marido quer que ela seja apenas uma dona <strong>de</strong><br />

casa comum. Na tentativa <strong>de</strong> concretizar o seu sonho ela mete-se invariavelmente <strong>em</strong> sarilhos dos<br />

quais o marido a t<strong>em</strong> <strong>de</strong> salvar. No cin<strong>em</strong>a observa-se um fenómeno s<strong>em</strong>elhante com retratos<br />

convencionais <strong>de</strong> homens e mulheres largamente i<strong>de</strong>alizados. Mas, também se verificam abordagens<br />

diferentes: o que acontece às pessoas e famílias não tradicionais, que não se encaixam na norma.<br />

O cin<strong>em</strong>a mostra histórias <strong>de</strong> famílias e pessoas disfuncionais, famílias com valores <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes,<br />

heróis atormentados psicologicamente, e histórias <strong>de</strong> amor tortuosas. Para a população jov<strong>em</strong><br />

criou-se um mercado especialmente orientado com símbolos <strong>de</strong> rebeldia novos e excitantes, como<br />

as personagens do anti-herói ou anti-heroína, interpretados por actores como James Dean, Paul<br />

Newman, Marlon Brando, Ava Gardner, Kim Novak, ou Marilyn Monroe.<br />

A representação <strong>de</strong> Elizabeth no cin<strong>em</strong>a é igualmente marcada por esta concepção <strong>de</strong> heróis<br />

psicologicamente marcados e <strong>de</strong> famílias disfuncionais, observável <strong>em</strong> filmes como Young Bess<br />

(1953) <strong>de</strong> George Sidney, e The Virgin Queen (1955) <strong>de</strong> Henry Koster. Nestes filmes Elizabeth não<br />

cumpre as expectativas do seu sexo porque não po<strong>de</strong> ou não vale a pena. Por outro lado, ambos os<br />

filmes aparec<strong>em</strong> <strong>em</strong> resposta a uma situação histórica específica. Em 1952 o Reino Unido perdia<br />

o seu rei, George VI, e subia ao trono sua filha Elizabeth II. As comparações entre Elizabeth<br />

I e Elizabeth II não tardaram. Alguns filmes rel<strong>em</strong>bram a época <strong>de</strong> Elizabeth e os seus feitos,<br />

na expectativa que o reinado <strong>de</strong> Elizabeth II se ass<strong>em</strong>elhe ao da sua homónima <strong>em</strong> gran<strong>de</strong>za e<br />

prosperida<strong>de</strong>.<br />

Young Bess conta a história <strong>de</strong> Elizabeth <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o berço até o dia <strong>em</strong> que se torna rainha. Através<br />

da história <strong>de</strong> vida e evolução da personag<strong>em</strong>, o filme tenta explicar as razões para o percurso <strong>de</strong><br />

Elizabeth. A história <strong>de</strong> amor falhada entre Thomas Seymour e Elizabeth, e a relação <strong>de</strong>la com<br />

seu pai serv<strong>em</strong>, assim, para explicar por que razão Elizabeth nunca se terá casado, entre outras<br />

escolhas que terá feito. Logo nos títulos iniciais é estabelecido que Elizabeth é extraordinária: na<br />

época que Elizabeth nasceu, crescer e tornar-se grandiosa era um milagre(12) . Elizabeth é uma<br />

criança obstinada, <strong>de</strong>sconfiada, solitária, marcada pela instabilida<strong>de</strong> da sua situação <strong>de</strong> princesa,<br />

ora legítima, ora ilegítima, e pelos <strong>de</strong>stinos da sua mãe e madrastas. Elizabeth é a “ovelha negra”<br />

segundo seu pai, e a relação <strong>de</strong>la com ele é difícil e distante, tanto que ela n<strong>em</strong> se parece comover<br />

quando ele está a morrer. Depois da morte <strong>de</strong> Henry ela consegue compreen<strong>de</strong>r finalmente a<br />

situação <strong>de</strong>le: no fundo era um hom<strong>em</strong> solitário, e Elizabeth t<strong>em</strong> medo <strong>de</strong> se tornar igual a seu<br />

pai, o que acaba por acontecer. Elizabeth é constant<strong>em</strong>ente ofendida pelos seus inimigos através<br />

<strong>de</strong> ataques à reputação <strong>de</strong> sua mãe, Anne Boleyn, sendo mesmo negativamente comparada à<br />

progenitora. Sob interrogatório, Elizabeth <strong>de</strong>monstra medo, inicialmente, mas <strong>de</strong>pois encontra<br />

corag<strong>em</strong> e eloquência para se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, e, até mesmo, incriminar os seus acusadores. Relativamente<br />

ao amor, Elizabeth abdica dos seus sentimentos, sacrifica e renuncia o seu amor, pela felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Thomas e Catherine, sua madrasta. Quando Elizabeth sobe ao trono anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Seymour ter<br />

sido executado, ela já se transformou no ícone, com uma imag<strong>em</strong> rígida, austera, vestida <strong>de</strong> negro.<br />

Segundo sugere o filme, ela é assim porque per<strong>de</strong>u o seu gran<strong>de</strong> amor, é incapaz <strong>de</strong> voltar a amar,<br />

ass<strong>em</strong>elhando-se à imag<strong>em</strong> típica da “solteirona” <strong>de</strong> que Deborah Mustard fala no seu ensaio:<br />

roupas escuras, enfadonhas, retrógradas, e com o cabelo preso.<br />

The Virgin Queen retrata Elizabeth I negativamente. Ela é irascível, amarga, <strong>de</strong> t<strong>em</strong>peramento<br />

t<strong>em</strong>pestuoso, por vezes s<strong>em</strong> razão aparente, e t<strong>em</strong> ciúmes da felicida<strong>de</strong> alheia. Para além <strong>de</strong> tudo<br />

isto, não t<strong>em</strong> visão <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>dora, e acredita que a aventura é para os tolos(13) , por esse motivo<br />

ela conce<strong>de</strong> relutant<strong>em</strong>ente apoio monetário a Raleigh para este mandar construir uma frota e<br />

explorar o Novo Mundo. Ainda assim, ela t<strong>em</strong> planos para reter Raleigh na corte e mandar outra<br />

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pessoa no lugar <strong>de</strong>ste. De acordo com o filme, o futuro <strong>de</strong> Inglaterra e das suas colónias na<br />

América do Norte não é o resultado da visão da rainha, mas do corajoso Raleigh que <strong>de</strong>safiou a<br />

soberana. Ele mudou o curso da história e proporcionou um futuro glorioso para o seu país, não<br />

Elizabeth. A rainha só aceita financiar a viag<strong>em</strong> atraída pelo ouro e riquezas que o Novo Mundo<br />

promete. Deste ponto <strong>de</strong> vista, Elizabeth é gananciosa. Bette Davis volta a representar uma<br />

mulher pouco graciosa: é <strong>de</strong>sajeitada a andar, e, por vezes, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>coro, esquecendo-se que é uma<br />

senhora. A sua imag<strong>em</strong> é <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte para uma mulher <strong>de</strong>, supostamente, 48 anos (14) . Elizabeth<br />

parece não conseguir lidar com a sua ida<strong>de</strong>, tanto que quando as suas jovens aias são substituídas<br />

por outras mais velhas ela não as suporta, provavelmente porque estas últimas lhe faz<strong>em</strong> l<strong>em</strong>brar<br />

da sua ida<strong>de</strong>. Henry Koster explora igualmente a razão por que Elizabeth terá ficado solteira. Em<br />

conversa com a sua aia, Beth, a rainha explica que quando tinha 18 anos os seus médicos ter-lheiam<br />

dito que ela não podia ter filhos, no entanto Elizabeth não se diz triste porque Inglaterra já<br />

foi suficiente para ela tomar conta (15) Por esta razão Elizabeth nunca teve intenção <strong>de</strong> se casar,<br />

uma vez que não podia ter filhos, e seria só por essa razão que ela casaria. Ela parece resignada<br />

<strong>em</strong> tomar conta do seu país <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> um filho. As constantes e intermináveis negociações <strong>de</strong><br />

casamento não eram mais do que diplomacia para manter França do lado <strong>de</strong> Inglaterra.<br />

Aqui, como <strong>em</strong> outros filmes, Elizabeth t<strong>em</strong> ciúmes das suas aias especialmente por elas<br />

ser<strong>em</strong> jovens e bonitas. Quando Bess conta a Elizabeth que está grávida <strong>de</strong> Raleigh, Elizabeth<br />

reage amargamente, <strong>de</strong>speitada, venenosamente, com <strong>de</strong>sdém e <strong>em</strong> tom <strong>de</strong>preciativo. Este facto<br />

indica que para além <strong>de</strong> Elizabeth ter inveja da beleza, juventu<strong>de</strong>, felicida<strong>de</strong>, e impregnabilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Beth, ela também tinha um interesse amoroso <strong>em</strong> Raleigh, apesar <strong>de</strong> saber que ele não sente o<br />

mesmo por ela. Ainda que Elizabeth tenha <strong>de</strong>monstrado durante o filme a sua natureza caprichosa,<br />

dominante, por vezes até cruel, no fim ela aceita que Raleigh vá para o Novo Mundo com Beth.<br />

A rainha mostra benevolência e compaixão pelo casal e pela criança que ambos esperam ao<br />

evitar que eles sejam executados, pois revê-se naquela situação. Ela rel<strong>em</strong>bra que também ela<br />

foi vítima da mesma cruelda<strong>de</strong>, quando seu pai mandou executar sua mãe•. Assim, como <strong>em</strong><br />

The Private Lives of Elizabeth and Essex, Elizabeth termina sozinha entre os seus papéis <strong>de</strong> estado.<br />

Em retrospectiva a representação que Koster faz <strong>de</strong> Elizabeth, como mulher e chefe <strong>de</strong> estado, é<br />

bastante <strong>de</strong>preciativa. Como mulher ela é digna <strong>de</strong> pena, como governante ela nunca é vista a lidar<br />

com assuntos políticos, económicos ou religiosos, ou a tomar nenhuma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, para além<br />

<strong>de</strong> financiar a viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Raleigh, mas o mérito é todo <strong>de</strong>le.<br />

Os anos 60 são uma década <strong>de</strong> quebra <strong>de</strong> valores tradicionais e <strong>de</strong> contestação social e<br />

estudantil, incluindo o Movimento dos Direitos Civis, do qual muito dos m<strong>em</strong>bros eram mulheres,<br />

e o Movimento para a Liberação das Mulheres(17) . Em adição a isto, uma das primeiras acções<br />

do Presi<strong>de</strong>nte Kennedy foi criar uma comissão presi<strong>de</strong>ncial para o estatuto da mulher. Este<br />

fenómeno afectou o lugar das mulheres na socieda<strong>de</strong>, que cada vez mais estavam envolvidas<br />

neste tipo <strong>de</strong> contestação para fazer ouvir a sua voz e exigir os seus direitos. Em 1963 saia uma lei<br />

(18) nos Estados Unidos que estipulava que homens e mulheres a fazer exactamente o mesmo<br />

trabalho tinham <strong>de</strong> ser r<strong>em</strong>unerados exactamente da mesma forma, para acabar com diferenças<br />

<strong>de</strong> or<strong>de</strong>nados arbitrárias entre os dois sexos. No ano seguinte saia outra lei (19) que proibia a<br />

discriminação <strong>de</strong> mulheres <strong>em</strong> <strong>em</strong>presas com 25 ou mais <strong>em</strong>pregados. Em 1967 uma or<strong>de</strong>m<br />

executiva presi<strong>de</strong>ncial proibia os contratadores do governo fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> distinguir mulheres <strong>de</strong><br />

homens na contratação. Com cada vez mais mulheres <strong>em</strong>pregadas (cerca <strong>de</strong> 43 por cento <strong>em</strong><br />

1969), o governo e a socieda<strong>de</strong> dos Estados Unidos começaram as olhar para a força <strong>de</strong> trabalho<br />

f<strong>em</strong>inina como um recurso inexplorado, importante para a economia e <strong>de</strong>senvolvimento do país.<br />

O cin<strong>em</strong>a <strong>de</strong>monstrava igualmente uma atitu<strong>de</strong> contestatária e <strong>de</strong> comentário político e social. O<br />

fim do Código Hays permitia igualmente que assuntos antes dissimulados foss<strong>em</strong> agora tratados<br />

explicitamente nos filmes. Na televisão, assistia-se ao surgimento <strong>de</strong> séries <strong>de</strong> humor, sobrenaturais<br />

ou <strong>de</strong> ficção científica. Nesta década Elizabeth esteve afastada do cin<strong>em</strong>a, mas muito presente na<br />

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televisão por ex<strong>em</strong>plo <strong>em</strong> Kenilworth (1967), The Queen’s Traitor (1967) ou mesmo num episódio<br />

da popular série Doctor Who. Aliás a televisão foi o meio por excelência para apresentar Elisabeth,<br />

sendo o maior meio <strong>de</strong> entretenimento <strong>de</strong>sta década, e a competir furiosamente com o cin<strong>em</strong>a.<br />

Com a aplicação das leis que protegiam as mulheres, nos anos 60, estas passaram a ter uma<br />

vida mais facilitada e condições mais justas, especialmente no local <strong>de</strong> trabalho. Contudo, n<strong>em</strong><br />

todas as leis funcionavam como seria <strong>de</strong> esperar. Apesar da lei <strong>de</strong> 1963 estipular salários iguais,<br />

<strong>em</strong> 1970 a força <strong>de</strong> trabalho f<strong>em</strong>inina era paga 45 por cento menos que os homens, e tinha<br />

mais dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong> subir na carreira. Em 1979, pela primeira vez, haviam mais mulheres nas<br />

universida<strong>de</strong>s americanas do que homens. Foi nesta década que o exército dos Estados Unidos<br />

da América teve pela primeira vez uma mulher general. Enquanto, no final da década, Margaret<br />

Thatcher se tornava Primeira ministra do Reino Unido.<br />

Por<strong>em</strong>, nesta década, as gran<strong>de</strong>s estrelas <strong>de</strong> bilheteira eram homens, e as personagens<br />

principais f<strong>em</strong>ininas quase <strong>de</strong>sapareceram do ecrã, à excepção das mulheres-objecto, on<strong>de</strong> a<br />

f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong> era exacerbada e explorada. Quando as personagens f<strong>em</strong>ininas apareciam no ecrã<br />

apresentavam-se <strong>em</strong> conflito, infelizes na sua domesticida<strong>de</strong>, e atraídas pela i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência.<br />

Donas <strong>de</strong> casa que ansiavam liberda<strong>de</strong> e admiravam aquelas mulheres que tinham optado por uma<br />

carreira, enquanto estas últimas eram igualmente infelizes por se sentir<strong>em</strong> incompletas por não<br />

ter<strong>em</strong> tido filhos. A maternida<strong>de</strong> era aquilo que supostamente faria uma mulher verda<strong>de</strong>iramente<br />

completa. De acordo com isto, havia dois tipos <strong>de</strong> mulher: a dona <strong>de</strong> casa, feliz ou frustrada, e a<br />

mulher que não se pren<strong>de</strong>, e que adora a sua in<strong>de</strong>pendência e o seu trabalho. Elizabeth insere-se<br />

nesta última categoria. A representação da monarca foi, assim, afectada por estas novas tendências<br />

na série Elizabeth R <strong>de</strong> Ro<strong>de</strong>rick Graham e Richard Martin, e no filme Mary, Queen of Scots <strong>de</strong><br />

Charles Jarrott, ambos <strong>de</strong> 1971.<br />

A ascensão do f<strong>em</strong>inismo e a afirmação do potencial f<strong>em</strong>inino convocavam uma figura<br />

f<strong>em</strong>inina forte no ecrã. Elizabeth R mostra o percurso difícil <strong>de</strong> uma mulher <strong>de</strong>terminada que é capaz<br />

<strong>de</strong> ascen<strong>de</strong>r ao lugar mais alto e po<strong>de</strong>roso da hierarquia social, ser rainha. Des<strong>de</strong> o início é dada<br />

uma razão para o facto <strong>de</strong> Elizabeth se recusar casar. Ela rejeita a i<strong>de</strong>ia porque associa o casamento<br />

à morte, <strong>em</strong> resultado do que aconteceu à sua mãe e madrastas. Segundo ela, a confiança e o<br />

amor resultam inevitavelmente <strong>em</strong> morte. Os seus medos são o resultado <strong>de</strong> traumas da infância,<br />

logo a sua incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> casar e ter filhos não t<strong>em</strong> a ver com questões físicas ou biológicas,<br />

mas com um impedimento psicológico, que ela jamais resolverá. Porém, ela mantém negociações<br />

<strong>de</strong> casamento e, a <strong>de</strong>terminada altura, parece ter intenções <strong>de</strong> se casar com o duque <strong>de</strong> Alençon.<br />

Porém, o medo sobrepõe-se aos seus sentimentos ternos pelo duque, e à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se casar.<br />

Ela só t<strong>em</strong> intenção <strong>de</strong> casar se houver uma necessida<strong>de</strong> pr<strong>em</strong>ente, e se for para o b<strong>em</strong> do reino.<br />

Ela sente-se dividida enquanto mulher e soberana: como rainha ela quer e precisa casar, mas como<br />

mulher não o <strong>de</strong>seja. Os seus conselheiros sab<strong>em</strong> que ela jamais casará, ainda que seja imperativo,<br />

mas eles confiam nela, na sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança, na sua experiência. No entanto, também<br />

é insegura como mulher, especialmente sobre as marcas que o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>ixou nela. Ela <strong>de</strong>seja ser<br />

novamente jov<strong>em</strong> e lamenta-se <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>dicado a sua vida ao estado e ao b<strong>em</strong>-estar do seu povo<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>trimentos dos seus <strong>de</strong>sejos. Elizabeth não parece, no entanto, obcecada com as implicações<br />

<strong>de</strong> não casar ou ter filhos, talvez apenas preocupada. Em contraste com outros filmes, o percurso<br />

da rainha não t<strong>em</strong> um resultado trágico, n<strong>em</strong> causa uma morte interior, que a transformaria numa<br />

mulher infeliz, nostálgica, solitária por não ter cumprido a sua função f<strong>em</strong>inina. Ela não casou por<br />

ter perdido a oportunida<strong>de</strong> para isso, <strong>de</strong>vido a negociações fracassadas, ou por não estar preparada<br />

para casar. O facto <strong>de</strong> ela ficar solteira não a diminui como mulher. No Palácio do Escorial Felipe<br />

II confessa a sua admiração pela rainha assim como a do Papa:<br />

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His Holiness always writes of her with admiration, even as he urges her <strong>de</strong>ath upon me. He sends me a<br />

million crowns to drag her from her throne, yet calls her one of the greatest Princes in the Christendom. He speaks<br />

of her courage and my timidity; of her wit and my dull piety [...] I too have been dazzled by her brilliance.(20)<br />

Este comentário estabelece o po<strong>de</strong>r e a respeitabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Elizabeth, assim como a sua<br />

excepcionalida<strong>de</strong>. Ela é t<strong>em</strong>ida e respeitada pelos seus inimigos.<br />

A relação <strong>de</strong> Elizabeth com Essex quebra o estereótipo da solteirona impressionada e<br />

atraída por um hom<strong>em</strong> mais jov<strong>em</strong>, cheio <strong>de</strong> vida, e sedutor, usado <strong>em</strong> Fire over England, The<br />

Private Lives of Elizabeth and Essex, ou The Virgin Queen. Nesta série Essex é um jov<strong>em</strong> arrogante<br />

e impulsivo, mas Elizabeth precisa <strong>de</strong>le porque o povo gosta <strong>de</strong>le e porque ele a enche <strong>de</strong> elogios<br />

e promove a sua beleza, enquanto a ajuda a construir o mito <strong>de</strong> Gloriana. No entanto, a figura<br />

mítica da rainha é completamente <strong>de</strong>smontada para expor uma mulher idosa e frágil. Isso serve<br />

para mostrar a verda<strong>de</strong>ira figura régia, <strong>de</strong>smistificar a figura efabulada da monarca, e, obviamente,<br />

para <strong>de</strong>monstrar a proximida<strong>de</strong> do fim do reinado, assim como a <strong>de</strong>cadência da linhag<strong>em</strong>, sendo<br />

Elizabeth o símbolo <strong>de</strong> uma era expirante. A morrer, ela percebe perfeitamente o que a sua morte<br />

implica. Pelas suas últimas palavras (21) percebe-se que ela t<strong>em</strong> noção que a dinastia Tudor vai<br />

cair, e que ela não fez nada para o evitar, pois não produziu um her<strong>de</strong>iro. Elizabeth morre ro<strong>de</strong>ada<br />

<strong>de</strong> gente. Assim, o final <strong>de</strong>sta série é completamente distinto dos <strong>de</strong> The Private Lives of Elizabeth<br />

and Essex, The Virgin Queen, ou Young Bess. Na última cena do filme <strong>de</strong> Curtiz a personag<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

Bette Davis acaba sozinha, numa sala escura, atormentada pelo que fez e o que não viveu. Em<br />

The Virgin Queen ela volta a sua atenção nos papéis <strong>de</strong> estado, enquanto Raleigh e Bess part<strong>em</strong><br />

para o Novo Mundo para uma nova vida e ela Elizabeth fica na mesma, sozinha com os seus<br />

pensamentos. Em Young Bess a rainha é vista na varanda a acenar para os seus súbditos, mas longe<br />

<strong>de</strong>les e inalcançável, estéril para o amor, e, logo, sozinha para s<strong>em</strong>pre. Por outro lado, Elizabeth<br />

R termina com a morte pacífica da governante. Ela não é a sombra <strong>de</strong> uma mulher arrependida,<br />

mas <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> teve uma vida cheia, completa. Ela não é diminuída porque escolheu não casar e<br />

ter filhos. Enquanto, a maior parte das interpretações <strong>de</strong> Elizabeth se focam nas suas relações<br />

românticas e diminu<strong>em</strong> o po<strong>de</strong>r politico e a força <strong>de</strong> carácter da rainha, Elizabeth R consegue<br />

fazer o oposto, ao concentrar-se <strong>em</strong> Elizabeth como uma lí<strong>de</strong>r ex<strong>em</strong>plar. Ela é um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

vida para as mulheres dos anos 70 e mesmo 80, ao escolher ter tido uma carreira <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> uma<br />

vida doméstica. Na verda<strong>de</strong>, tanto Elizabeth como a actriz Glenda Jackson(22) foram mo<strong>de</strong>los<br />

<strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong> carreira.<br />

Ao contrário do que acontecia no filme Mary of Scotland, <strong>em</strong> Mary, Queen of Scots as duas<br />

rainhas, Mary e Elizabeth, são retratadas <strong>de</strong> forma mais equilibrada: n<strong>em</strong> Mary é tão fraca, n<strong>em</strong><br />

Elizabeth tão má. Aqui, a rainha inglesa não é <strong>de</strong>scrita negativamente porque é solteira, n<strong>em</strong> Mary<br />

é tratada como a vítima inocente. As duas estão <strong>em</strong> pé <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> e perceb<strong>em</strong>-se claramente as<br />

motivações <strong>de</strong> ambas. Na verda<strong>de</strong>, no final Elizabeth surge como o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> rainha, e a <strong>de</strong>sgraça<br />

<strong>de</strong> Mary advém do facto <strong>de</strong> não seguir o ex<strong>em</strong>plo da sua homóloga <strong>em</strong> Inglaterra. Mary é mimada,<br />

e está habituada aos confortos da corte francesa. Quando parte <strong>de</strong> França, ela já t<strong>em</strong> intenções <strong>de</strong><br />

reclamar o trono inglês, pois acredita que t<strong>em</strong> é a verda<strong>de</strong>ira her<strong>de</strong>ira (23) . Mary parte cheia <strong>de</strong><br />

esperança que tudo será fácil e que será recebida na Escócia com pompa, numa cerimónia <strong>de</strong> luxo.<br />

A rainha inglesa é inteligente e sagaz, e conhece b<strong>em</strong> os meandros da política, estando s<strong>em</strong>pre um<br />

passo à frente dos outros. Elizabeth é solteira mas é feliz e parece apaixonada por Leicester. Porém<br />

recusa casar-se porque o acha ambicioso e sabe que ele quer ser rei. Ela t<strong>em</strong>e que ele tome o po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong>la uma vez rei. Em The Private Lives of Elizabeth and Essex Elizabeth <strong>de</strong>monstrava este medo, que<br />

po<strong>de</strong>ria ser infundado. Aqui, tomando como ex<strong>em</strong>plo o percurso <strong>de</strong> Mary, po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar-se<br />

que Elizabeth fez a escolha mais sensata. Elizabeth admite que lhe podia ter acontecido o mesmo<br />

que aconteceu a Mary se tivesse casado com Leicester. Quando Mary chega à Escócia percebe<br />

que o seu irmão ilegítimo preten<strong>de</strong> reinar <strong>de</strong> facto o país, e Mary apenas reinará <strong>em</strong> teoria. Face<br />

a isto, ela pensa que para se livrar da influência do irmão terá <strong>de</strong> se casar, mas acaba fazê-lo<br />

88


com um hom<strong>em</strong> pior do que o irmão, que quer po<strong>de</strong>r, t<strong>em</strong> uma vida dissoluta, está doente, e<br />

é politicamente inapto. Apesar <strong>de</strong> Elizabeth ter apresentado propositadamente Dudley a Mary,<br />

sabendo que ela se apaixonaria por ele, a culpa da situação <strong>em</strong> que Mary se encontra é somente<br />

<strong>de</strong>la. Mary <strong>de</strong>ixou-se levar pela beleza e charme <strong>de</strong> Dudley s<strong>em</strong> saber que tipo <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> era.<br />

Mary é <strong>de</strong>masiado <strong>em</strong>otiva, manipulável, politicamente ingénua, e insensata. Elizabeth é forte, e<br />

sabe <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se. Mary cometeu o erro que Elizabeth soube evitar. Ao ser <strong>de</strong>stituída do trono<br />

Mary foge para Inglaterra com esperança <strong>de</strong> conseguir tomar o trono <strong>de</strong> Elizabeth. Para Mary o<br />

trono <strong>de</strong> Inglaterra parece ser mais aliciante do que o seu, pois ela <strong>de</strong>testa a Escócia e a gente <strong>de</strong><br />

lá. Mas a ambição da rainha escocesa é a sua <strong>de</strong>sgraça. Ao contrário <strong>de</strong> Mary of Scotland, neste filme<br />

Elizabeth não o<strong>de</strong>ia Mary s<strong>em</strong> razão, n<strong>em</strong> t<strong>em</strong> inveja <strong>de</strong>la, tudo o que faz é para se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r com<br />

antecedência. A execução <strong>de</strong> Mary é baseada igualmente nesta medida precaucional: enquanto<br />

Mary for viva os seus apoiantes católicos tentarão assassinar Elizabeth. No entanto, a rainha<br />

inglesa recusa-se a levar Mary a julgamento, sente pena <strong>de</strong>la e sabe perfeitamente que a sua morte<br />

terá repercussões. Elizabeth chega mesmo a encontrar-se com a sua rival a fim <strong>de</strong> fazer algo para a<br />

tentar poupar, mas Mary está <strong>de</strong>cidida a tornar-se mártir. No fim do encontro Elizabeth comenta<br />

a falta <strong>de</strong> sensatez política <strong>de</strong> Mary (24): se a rainha da Escócia tivesse tanta inteligência política<br />

quanto t<strong>em</strong> <strong>em</strong>otivida<strong>de</strong> e corag<strong>em</strong> o <strong>de</strong>sfecho seria o oposto. Assim, como <strong>em</strong> The Private Lives<br />

of Elizabeth and Essex, The Virgin Queen, ou Young Bess, Elizabeth termina sozinha no seu trono a<br />

chorar a morte <strong>de</strong> Mary. Não é claro por que motivo foi escolhido este <strong>de</strong>sfecho, talvez queira<br />

dizer que Elizabeth teve que viver com a escolha que fez <strong>em</strong> relação a Mary, e que se terá s<strong>em</strong>pre<br />

lamentado a sua execução, ainda que o tenha feito para se preservar.<br />

Nos anos 80 e 90 meta<strong>de</strong> da população activa era f<strong>em</strong>inina, no entanto ainda existiam<br />

diferenças <strong>de</strong> salários entre mulheres e homens, assim como mais facilida<strong>de</strong> para os homens subir<strong>em</strong><br />

na carreira. Alguns trabalhos continuavam ainda a ser consi<strong>de</strong>rados exclusivamente f<strong>em</strong>ininos,<br />

como por ex<strong>em</strong>plo o ensino, especialmente no primeiro ciclo, enfermag<strong>em</strong>, secretariado, ou a<br />

indústria têxtil e <strong>de</strong> confecção, entre outros. As mulheres casavam-se mais tar<strong>de</strong> do que nos anos<br />

60, e tinham menos filhos, tendo aumentado também o número <strong>de</strong> crianças nascidas fora do<br />

casamento. Os casamentos tornaram-se menos previsíveis e menos duradouros.<br />

Os anos 80 iniciam uma tendência, fílmica e televisiva, que irá <strong>de</strong>senvolver-se na década<br />

subsequente: retratar mulheres reais, comuns, <strong>de</strong> maneira mais crua, e s<strong>em</strong> brilhos(25). As<br />

histórias são cada vez mais realistas, com menos príncipes encantados, e s<strong>em</strong> contos <strong>de</strong> fadas. Nas<br />

duas últimas décadas do século XX, a representação <strong>de</strong> mulheres no cin<strong>em</strong>a e televisão t<strong>em</strong> se<br />

tornado cada vez mais complexa. Já não exist<strong>em</strong> aqueles dois tipos <strong>de</strong> mulheres, a dona <strong>de</strong> casa<br />

e a profissional, mas a fusão e gradações entre os dois mo<strong>de</strong>los: mulheres casadas com filhos e<br />

uma carreira, solteiras com filhos e carreira, solteiras com carreira, etc. As “solteironas” já não<br />

são figuras infelizes ou grotescas, mas mulheres normais e que po<strong>de</strong>m perfeitamente ser felizes,<br />

mesmo que não se cas<strong>em</strong> ou tenham filhos. Contudo, é frequente encontrar filmes que retratam<br />

mulheres com carreiras <strong>de</strong> sucesso, mas que, a <strong>de</strong>terminada altura, acabam por pôr tudo <strong>em</strong> causa,<br />

reformulam os seus objectivos <strong>de</strong> vida, e assum<strong>em</strong> outro tipo <strong>de</strong> comportamento, mais activo, até<br />

mesmo violento. Muitas vezes elas acabam por se contentar com menos do que aquilo que s<strong>em</strong>pre<br />

aspiraram.<br />

O mesmo acontece <strong>em</strong> Elizabeth (1998) <strong>de</strong> Shekhar Kapur: ainda que tenha sonhado com<br />

um príncipe encantado e um casamento perfeito, após se <strong>de</strong>siludir amorosamente, ela transformase<br />

e <strong>de</strong>siste <strong>de</strong> ser feliz amorosamente. Antes <strong>de</strong> ascen<strong>de</strong>r ao trono, Elizabeth parece ser uma<br />

rapariga comum: ela dança, diverte-se, e é facilmente seduzida por Robert Dudley. Em conversa<br />

com Dudley, Elizabeth põe <strong>de</strong> lado a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> casar com o seu cunhado recent<strong>em</strong>ente<br />

viúvo, não pelas circunstâncias, mas porque se ela casasse com ele os dois iriam estar s<strong>em</strong>pre<br />

separados, cada um a reger o seu país e s<strong>em</strong> se ver<strong>em</strong>. Esta visão <strong>de</strong>monstra a sua imaturida<strong>de</strong> e<br />

ingenuida<strong>de</strong> relativamente aos casamentos reais, nos quais a necessida<strong>de</strong> política tinha priorida<strong>de</strong><br />

89


sobre o amor. Apesar da sua posição, ela sonha com um casamento <strong>de</strong> conto <strong>de</strong> fadas. Nesta<br />

altura, não parece compreen<strong>de</strong>r o que é ser rainha, n<strong>em</strong> das responsabilida<strong>de</strong>s e perigos que isso<br />

implica, por isso ela fica maravilhada com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ser obe<strong>de</strong>cida, idolatrada e celebrada na<br />

poesia e na música. Assim que se torna rainha, Elizabeth t<strong>em</strong> que enfrentar a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter um<br />

reino para administrar, um país à beira da bancarrota, s<strong>em</strong> meios <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, e diversas ameaças ao<br />

seu reinado, especialmente Mary Stuart. Nesta altura as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Elizabeth são obliteradas<br />

<strong>em</strong> favor do b<strong>em</strong>-estar do reino; ela já não é a mulher, mas a encarnação do governo. De acordo<br />

com Burghley, agora que ela é rainha, o seu corpo e a sua pessoa já não são seus, pertenc<strong>em</strong> ao<br />

estado(26). Assim, o seu corpo político aniquilou o pessoal. Posto isto, todos os seus movimentos,<br />

até mesmo os mais íntimos, passam a ser vigiados e escrutinados constant<strong>em</strong>ente.<br />

Elizabeth não está preparada para reger o país ou lidar com os resultados negativos das<br />

suas <strong>de</strong>cisões: confrontada com as consequências da guerra com a Escócia, ela fica <strong>de</strong>sesperada e<br />

<strong>de</strong>sorientada. A sua insegurança e arrependimentos resultam <strong>de</strong> más <strong>de</strong>cisões e faz<strong>em</strong>-na duvidar<br />

da sua capacida<strong>de</strong> para reinar. Completamente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos conselheiros, ela precisa <strong>de</strong> ouvir<br />

todas as opiniões <strong>de</strong>les para tomar uma <strong>de</strong>cisão, e, mesmo assim, não t<strong>em</strong> a certeza se é a <strong>de</strong>cisão<br />

certa. Na prática, ela não t<strong>em</strong> po<strong>de</strong>r, pois os conselheiros e bispos controlam e manipulam o reino<br />

e a nova rainha. Walsingham é a verda<strong>de</strong>ira força por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> Elizabeth. Ele manipula tudo e<br />

todos à volta da rainha. S<strong>em</strong> ele ela não consegue alcançar aquilo que <strong>de</strong>seja. Ele orienta-a e dá<br />

lhe segurança, e ela consegue momentaneamente esquecer os medos, e revelar a sua eloquência e<br />

astúcia, qualida<strong>de</strong>s atribuídas à rainha histórica.<br />

Mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> subir ao trono, Elizabeth continua a comportar-se juvenilmente e<br />

irresponsavelmente, s<strong>em</strong> escon<strong>de</strong>r os sentimentos que t<strong>em</strong> por Dudley. Todos na corte, e fora <strong>de</strong>la,<br />

sab<strong>em</strong> do romance, e os rumores mancham a reputação da rainha. Após <strong>de</strong>siludir-se amorosamente,<br />

Elizabeth reinventa-se e transforma-se numa imag<strong>em</strong> icónica, ao estilo dos makeovers das revistas<br />

f<strong>em</strong>ininas. À s<strong>em</strong>elhança da mulher que está a ser preparada para a execução no início do filme,<br />

ou como acontecia com no ingresso <strong>em</strong> or<strong>de</strong>ns religiosas, o corte do cabelo da rainha funciona<br />

como um processo <strong>de</strong> purificação, e a perda <strong>de</strong> uma parte <strong>de</strong>la. Assim como a mulher queimada<br />

na fogueira no início, Elizabeth é uma mártir: ela sacrifica o seu corpo e a sua vida amorosa pelo<br />

reino e para adquirir respeito. Casada com Inglaterra(27) , Elizabeth torna-se fria, dura como uma<br />

estátua, como se, ao renunciar o amor e ao tomar controlo sobre a sua vida, parte <strong>de</strong>la tivesse<br />

morrido. Esta perda <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> é a consequência directa do po<strong>de</strong>r supr<strong>em</strong>o. O percurso <strong>de</strong><br />

Elizabeth sugere que é impossível ter tudo: ter sucesso amoroso e politico.<br />

Elizabeth contrasta com as outras duas mulheres do filme: Mary Tudor, sua irmã, e Marie <strong>de</strong><br />

Guise. Elizabeth é insegura, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, ingénua, aparent<strong>em</strong>ente fraca, mas feliz, solta, saudável,<br />

colorida, impetuosa, até mesmo infantil. Mary, a sua irmã, t<strong>em</strong> uma imag<strong>em</strong> negativa, gótica,<br />

obscura, não t<strong>em</strong> filhos, é doente psicológica e fisicamente, invejosa, amarga, violenta, repressiva,<br />

fanática religiosa e o símbolo <strong>de</strong> um reinado s<strong>em</strong> futuro, violento e <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte. Mary Tudor é aquilo<br />

<strong>em</strong> que Elizabeth se podia ter tornado. Ao contrário, Marie <strong>de</strong> Guise é forte, segura, sexualmente<br />

livre, <strong>de</strong>terminada, heróica, uma rainha guerreira. Enquanto, Marie <strong>de</strong> Guise sai da segurança do<br />

seu castelo para o campo <strong>de</strong> batalha, Elizabeth chora pateticamente <strong>em</strong> frente ao retrato <strong>de</strong> seu<br />

pai por não saber o que fazer. Contudo, os dois mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> rainhas são negativos. Mary Tudor é<br />

profundamente infeliz no seu casamento s<strong>em</strong> amor e s<strong>em</strong> filhos. A liberda<strong>de</strong> sexual <strong>de</strong> Marie <strong>de</strong><br />

Guise e a <strong>de</strong>terminação <strong>em</strong> <strong>de</strong>rrotar Elizabeth levam-na, no final, à morte. Assim, para Elizabeth,<br />

e especialmente para o espectador, sexualida<strong>de</strong> significa morte ou traição: Marie <strong>de</strong> Guise morre<br />

<strong>de</strong>vido à sua vida sexual liberal, e a vida e reino <strong>de</strong> Mary Tudor é <strong>em</strong> vão pois as suas relações<br />

sexuais não dão frutos. Assim, é sugerido que Elizabeth consegue sobreviver por renunciar à<br />

sua sexualida<strong>de</strong>, e adoptar um mo<strong>de</strong>lo f<strong>em</strong>inino maior; o da Virg<strong>em</strong> Maria. Ao negar uma visão<br />

reverencial <strong>de</strong> Elizabeth, Shekhar Kapur apresentou a última rainha Tudor como um ser humano<br />

falível, sujeita a paixões, medos, <strong>de</strong>sejos, inseguranças, <strong>de</strong>sespero, uma mulher comum com um<br />

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<strong>de</strong>stino triunfante.<br />

Shakespeare in Love (1998) <strong>de</strong> John Mad<strong>de</strong>n mostra uma rainha envelhecida, mas com muita<br />

experiência <strong>de</strong> vida. Ela parece <strong>de</strong>siludida com o amor. A personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Judi Dench assiste a<br />

uma peça e diverte-se durante as partes cómicas, mas quando a peça se torna mais lírica ela dorme.<br />

Segundo esta cena, ela não parece ter interesse ou paciência para historias <strong>de</strong> amor. Isto faz mais<br />

sentido quando ela refere que os dramaturgos não ensinam nada sobre o amor, pois faz<strong>em</strong>-no<br />

parecer bonito, engraçado, ou lascivo, mas não o consegu<strong>em</strong> mostrar como verda<strong>de</strong>iro . Uma<br />

vez que a sua aparição no filme é efémera, é impossível <strong>de</strong>terminar por que motivo ela sente e<br />

<strong>de</strong>monstra tal <strong>de</strong>silusão com o amor. Estes dois filmes dos anos 90 acabam por apresentar uma<br />

razão por que Elizabeth nunca se casou: ela <strong>de</strong>siludiu-se com o amor, e isso foi <strong>de</strong>cisivo para se<br />

tornar uma gran<strong>de</strong> governante.<br />

Nesta primeira década do século XXI, as mulheres parec<strong>em</strong> ser mais livres e mais<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do que alguma vez foram, no entanto, isto não quer dizer que não possam haver<br />

recuos, como, aliás, a história já mostrou existir<strong>em</strong>. No entanto, é difícil ter uma visão clara e<br />

distanciada dos acontecimentos e dos padrões sociais, fílmicos e televisivos <strong>de</strong>sta década, por ser<br />

tão recente. No que diz respeito à representação <strong>de</strong> Elizabeth, parece que existe uma tendência,<br />

talvez iniciada por Kapur <strong>em</strong> 1998, para mostrar a rainha <strong>de</strong> uma maneira mais complexa. Neste<br />

início do novo século, Elizabeth é apresentada como uma mulher comum, com sentimentos e<br />

<strong>de</strong>sejos absolutamente normais, por vezes falível e propensa a cometer erros, o que não a impe<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ser uma chefe <strong>de</strong> estado brilhante. Ela não t<strong>em</strong> que abandonar forçosamente a sua f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong><br />

para se transformar num ícone, num mito, ela é ambos.<br />

A série Elizabeth I (2005) <strong>de</strong> Tom Hooper foca os dois gran<strong>de</strong>s romances <strong>de</strong> Elizabeth:<br />

primeiro Robert Dudley, e, mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong>ste, Robert Devereux, Earl of Essex.<br />

Elizabeth e Dudley comportam-se como um casal que está junto há muitos anos. Ela confia<br />

cegamente nele, e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> das opiniões <strong>de</strong>le. Mesmo que não tenha a mesma visão que ele, ela<br />

segue o conselho. Porém os dois não se casam, pois no caso <strong>de</strong>la o casamento é uma <strong>de</strong>cisão<br />

política e não sentimental. Por esse motivo ela t<strong>em</strong> <strong>de</strong> se casar com o duque <strong>de</strong> Anjou, mas é<br />

apenas uma transacção <strong>de</strong> negócios. No entanto quando ela conhece o duque fica impressionada<br />

com a aparência <strong>de</strong>le, e mostra-se interessada nele, tanto que ela até enfrenta a sua corte, e quase<br />

os obriga a gostar <strong>de</strong> Anjou. Ela que casar com ele, e talvez seja esta a última oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

casar com um hom<strong>em</strong> do seu estatuto, e ter filhos:<br />

You all know my mind! Could there be any more security for my reign and my realm than that I should marry and<br />

have a child and continue the line of my father, King Henry VIII? Have I not been told by you and you and you that<br />

I should do as other women do, and get me an heir? […] Do you imagine I do not want a child? Do you imagine I do<br />

not have the <strong>de</strong>sire to hold a babe in mine arms? Am I so unnatural to you by virtue of my exalted position? Now<br />

I have at last found a man that is both royal and to my liking, may I not…? Am I ma<strong>de</strong> of stone, gentl<strong>em</strong>en? (29)<br />

Ela t<strong>em</strong> aspirações e sentimentos como as pessoas comuns, mas não t<strong>em</strong> uma posição<br />

comum, ele é rainha, e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser uma mulher feliz <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> dos seus súbditos, não<br />

<strong>de</strong>la. Por esse motivo, ela t<strong>em</strong> que <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> casar com Anjou.<br />

Neste filme Elizabeth não é muito diferente <strong>de</strong> Mary da Escócia. Ambas acreditam que os<br />

reis são nomeados por Deus, mas as suas opiniões diverg<strong>em</strong> <strong>em</strong> relação às obrigações do soberano.<br />

Mary acredita que o rei <strong>de</strong>ve ser venerado e servido pelo povo, enquanto Elizabeth acredita que<br />

o rei t<strong>em</strong> o único objectivo <strong>de</strong> servir o povo. No fim do encontro das duas rainhas, Elizabeth<br />

percebe que elas estão na mesma situação, prisioneiras do t<strong>em</strong>po, e espera que a morte <strong>de</strong> uma<br />

<strong>de</strong>las não seja a única maneira <strong>de</strong> comprar a liberda<strong>de</strong> da outra. Em filmes como Mary of Scotland<br />

ou Mary Queen of Scots a infertilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Elizabeth contrasta com a fertilida<strong>de</strong> e f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Mary. O confronto das duas está, à partida, perdido por Elizabeth pois, no fim, Mary ganhará a<br />

contenda: o seu filho herdará o reino <strong>de</strong> Elizabeth. Na série Elizabeth I nenhuma das duas ganha,<br />

91


Elizabeth não t<strong>em</strong> her<strong>de</strong>iro, e Mary t<strong>em</strong> um filho mas este não se interessa por ela, está sozinha.<br />

A relação <strong>de</strong> Elizabeth e Essex parece uma reacção a uma crise <strong>de</strong> meia-ida<strong>de</strong>. Ela apaixonase<br />

pela juventu<strong>de</strong> e beleza <strong>de</strong> Essex, e por associação ele fá-la sentir jov<strong>em</strong> e bonita. Esta relação<br />

po<strong>de</strong>rá ser a causa das inseguranças <strong>de</strong> Elizabeth quanto à sua aparência. Provavelmente ela t<strong>em</strong>e<br />

que Essex perceba que ela já não é jov<strong>em</strong>, e que exist<strong>em</strong> na corte mulheres muito mais bonitas<br />

e sensuais que ela. Por esse motivo, a rainha é incapaz <strong>de</strong> se olhar ao espelho, e <strong>de</strong>testa que as<br />

suas aias estejam mais bonitas que ela seja pela roupa ou pela aparência. Ela precisa <strong>de</strong> Essex, dos<br />

elogios, <strong>de</strong> saber que ainda é capaz <strong>de</strong> seduzir um hom<strong>em</strong>, especialmente um mais jov<strong>em</strong> que<br />

ela. Quando ela o provoca e é correspondida parece rejuvenescida, esquece a sua posição, ainda<br />

que lhe seja l<strong>em</strong>brada s<strong>em</strong>pre que Essex tenta aproveitar-se da relação para conseguir alguma<br />

vantag<strong>em</strong>. Mas, a felicida<strong>de</strong> da rainha é incompatível com a sua posição, e s<strong>em</strong> po<strong>de</strong>r ela t<strong>em</strong>e<br />

que nenhum hom<strong>em</strong> se interesse por ela, à s<strong>em</strong>elhança da personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Bette Davis do fim dos<br />

anos 30. Mas se ela acredita nisto então está consciente <strong>de</strong> que o interesse que Essex t<strong>em</strong> por ela<br />

é baseado no po<strong>de</strong>r que ela lhe po<strong>de</strong> proporcionar. Apesar disso, ela apaixona-se completamente<br />

por Essex, <strong>de</strong> uma maneira quase obsessiva e possessiva, ao ponto <strong>de</strong> esquecer a sua posição e<br />

<strong>de</strong> se comportar <strong>de</strong> maneira adolescente, passional, e ridícula para a sua ida<strong>de</strong>. Ela protege Essex<br />

<strong>em</strong> todas as situações, perdoa-lhe tudo, dá lhe tudo o que ele pe<strong>de</strong>, e, ele abusa disso. Esta relação<br />

<strong>de</strong> Elizabeth e Essex faz a rainha parecer uma mulher patética, por não querer perceber o tipo<br />

<strong>de</strong> interesse que Essex t<strong>em</strong> por ela e não reagir. Aquilo que ela t<strong>em</strong>ia, que se interessass<strong>em</strong> por<br />

ela pelo po<strong>de</strong>r e não pela pessoa que é, acaba por acontecer e ela <strong>de</strong>ixa-se levar. Isto serve para<br />

<strong>de</strong>monstrar que Elizabeth é uma mulher comum, que comete erros, que consegue ser cruel e<br />

compassiva ao mesmo t<strong>em</strong>po, manipulável, que é levada pelos sentimentos <strong>em</strong> contraste com a<br />

fria e racional Elizabeth <strong>de</strong> Mary of Scotland, das intocáveis soberanas <strong>de</strong> Fire over England ou The<br />

Sea Hawk, ou das rainhas <strong>de</strong>siludidas com o amor e com a vida <strong>de</strong> The Virgin Queen, Young Bess ou<br />

Shakespeare in Love.<br />

Na série The Virgin Queen (2005) <strong>de</strong> Coky Giedroyc, Elizabeth é extr<strong>em</strong>amente inteligente,<br />

astuta, justa, eloquente, racional, corajosa, rebel<strong>de</strong>, orgulhosa, uma negociadora nata e gran<strong>de</strong><br />

estratega e lí<strong>de</strong>r, mas quando provocada consegue ser vingativa e venenosa. Ela t<strong>em</strong> medo <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>terminadas ocasiões, mas levanta a cabeça, enche-se <strong>de</strong> corag<strong>em</strong> e enfrenta as adversida<strong>de</strong>s.<br />

Em relação ao amor, ela parece estar apaixonada por Robert Dudley. Ainda que saiba que ele<br />

é casado, e tenha consciência das suas ambições, não consegue evitar envolver-se com ele. Mas<br />

Dudley pertence à sua vida privada e, quando estão a lidar com questões <strong>de</strong> estado, ela exige<br />

que ele a respeite como rainha. Ela não compreen<strong>de</strong> por que t<strong>em</strong> <strong>de</strong> casar se é uma monarca<br />

inteligente e t<strong>em</strong> talento para reinar, e, para além disso não quer ser subjugada por um marido. Ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po, está apaixonada por Dudley e recusa-se a ouvir falar <strong>em</strong> casamento. Mas repensa<br />

a sua situação e traça uma estratégia: manter negociações <strong>de</strong> casamento por diplomacia, mesmo<br />

que não tenha intenções <strong>de</strong> casar. Mais tar<strong>de</strong>, acaba por <strong>de</strong>cidir casar com o duque <strong>de</strong> Anjou, pois<br />

quer forjar uma aliança forte e ter filhos para provar a todos que não é estéril, mas agora parece<br />

que são os súbditos que não quer<strong>em</strong> que ela case. Ela não parece dividida entre as obrigações e o<br />

amor, na realida<strong>de</strong> ela acredita que é como duas faces <strong>de</strong> uma mesma moeda, <strong>de</strong> um lado a mulher<br />

e o corpo pessoal, do outro a rainha e o corpo político, mas a rainha comanda a mulher.<br />

Após a doença, Elizabeth afasta-se um pouco <strong>de</strong> Dudley, talvez pela insegurança causada<br />

pelas marcas que a varíola <strong>de</strong>ixou na sua face. Esta insegurança faz com que ela comece a utilizar<br />

maquilhag<strong>em</strong> branca e a usar o cabelo preso (enquanto as suas aias são obrigadas a usar roupas <strong>de</strong><br />

cores discretas para não a ofuscaram) e cria, assim, a imag<strong>em</strong> da Rainha Virg<strong>em</strong>. A sua insegurança<br />

também parece aparecer <strong>em</strong> relação ao que fazer com Mary Stuart, pois não sabe <strong>em</strong> qu<strong>em</strong><br />

acreditar: os conselheiros diz<strong>em</strong>-lhe que Mary é culpada <strong>de</strong> traição, enquanto Mary assegura a<br />

Elizabeth, por carta, que não o é. Depois <strong>de</strong> ter mandado executar Mary, Elizabeth apercebe-se<br />

do seu erro, <strong>de</strong>masiado tar<strong>de</strong>.<br />

92


No último episódio com Elizabeth já muito envelhecida, o po<strong>de</strong>r e imag<strong>em</strong> da rainha parec<strong>em</strong><br />

já muito <strong>de</strong>sgastados, assim como ela mesmo admite, “Gloriana is but a ghost in my people’s<br />

m<strong>em</strong>ory.”(30) Mas ela é, <strong>em</strong> contrapartida, a imag<strong>em</strong> da sabedoria, e sabe perfeitamente que<br />

aqueles que a ro<strong>de</strong>iam só lá estão por ambição, e não por lealda<strong>de</strong> à rainha como era antigamente.<br />

Aqueles que a ro<strong>de</strong>iam, especialmente a geração mais jov<strong>em</strong> vêm-na igualmente como uma<br />

“relíquia do passado”, como Essex lhe chama, e não a respeitam. Elizabeth havia dito num ponto<br />

anterior da história que existia apenas “[…] a thin line between respect and ridicule” (31) , isso<br />

agora é bastante visível, pois n<strong>em</strong> as jovens aias a respeitam quando bisbilhotam as suas coisas ou<br />

se ri<strong>em</strong> enquanto ela dança. No entanto, isso não acontece com o povo, que, <strong>em</strong> última instância,<br />

se recusa a rebelar contra a sua rainha.<br />

Ao contrário <strong>de</strong> filmes como The Private Lives of Elizabeth and Essex, The Virgin Queen, ou<br />

a série Elizabeth I, a rainha não mostra interesse romântico por um hom<strong>em</strong> mais jov<strong>em</strong>. Ela<br />

aproxima-se <strong>de</strong> Essex porque revê Dudley nele. Apesar <strong>de</strong> ele tentar a todo o custo seduzi-la para<br />

daí extrair lucros, ela trata-o como um filho, e, pacient<strong>em</strong>ente, tolera a sua rebeldia. Ele funciona<br />

como um filho adoptivo para Elizabeth, o que recai no estereótipo da “solteirona” enquanto “mãe<br />

social”(32) . No fim, ela é forçada a tomar uma atitu<strong>de</strong> relativamente à traição <strong>de</strong> Essex, e ele é<br />

executado. A morte <strong>de</strong> Essex é um duro golpe para a rainha, pois é como se per<strong>de</strong>sse o que lhe<br />

restava <strong>de</strong> Dudley, e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, um filho. Após a morte <strong>de</strong> Essex ela <strong>de</strong>finha, fica senil e<br />

<strong>de</strong>mente. Ela acaba como a sua irmã, s<strong>em</strong> her<strong>de</strong>iros, doida, obcecada com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a quer<strong>em</strong><br />

matar. À espera <strong>de</strong> morrer ela recorda toda a sua vida, ro<strong>de</strong>ada pelos conselheiros e aias. Ela t<strong>em</strong><br />

uma morte triste, mas teve uma vida relativamente feliz e preenchida.<br />

À s<strong>em</strong>elhança do anterior filme <strong>de</strong> Kapur, ou mesmo das séries Elizabeth I e The Virgin<br />

Queen, <strong>em</strong> Elizabeth: The Gol<strong>de</strong>n Age (2007) a rainha é pressionada para conceber um her<strong>de</strong>iro, mas<br />

ela não está interessada nisso, não porque não queira casar, mas porque sonha com um príncipe<br />

encantado, misterioso, vindo <strong>de</strong> terras distantes. No fim do último filme <strong>de</strong> Kapur ela renunciava<br />

completamente o amor, no entanto, neste filme, ela, ainda que mantendo a sua vida celibatária,<br />

interessa-se por Raleigh e <strong>de</strong>seja-o. Uma vez que não po<strong>de</strong>, ou não quer, ter uma relação física<br />

com ele, para não comprometer o seu estatuto ou reputação, a relação entre os dois permanece<br />

apenas platónica, à excepção <strong>de</strong> um beijo a ser rapidamente esquecido. No entanto, a relação entre<br />

os dois é intensa, e estão claramente fascinados um pelo outro. A relação entre Elizabeth e Raleigh<br />

torna-se mais complexa com a introdução <strong>de</strong> uma terceira pessoa, Bess, a aia <strong>de</strong> Elizabeth. No<br />

entanto, estas duas figuras f<strong>em</strong>ininas funcionam como uma. Segundo Kapur (4), elas são partes<br />

<strong>de</strong> uma só pessoa: Bess é o corpo mortal, Elizabeth o espírito. Quando Raleigh chega à corte e as<br />

seduz, ele separa os dois el<strong>em</strong>entos, para que a rainha possa evoluir e tornar-se espiritual e eterna.<br />

Esta separação é visível através das cores dos vestidos das duas personagens f<strong>em</strong>ininas. Elas usam<br />

as mesmas cores até ao ponto <strong>de</strong> confronto, quando Elizabeth <strong>de</strong>scobre que Bess e Raleigh têm<br />

uma relação amorosa e casaram s<strong>em</strong> o seu consentimento. Bess torna-se finalmente um indivíduo;<br />

<strong>de</strong>sassociada da rainha. Noutro nível, Bess e Raleigh são indivíduos sombras(33) <strong>de</strong> Elizabeth. Eles<br />

são aquilo que a rainha não po<strong>de</strong> ter ou ser, mesmo que <strong>de</strong>sejasse. Raleigh faz aquilo que Elizabeth<br />

sonhava fazer, ser um hom<strong>em</strong> para po<strong>de</strong>r explorar os mares, terras <strong>de</strong>sconhecidas, e ter aventuras;<br />

ele é livre e t<strong>em</strong> uma vida excitante. Bess t<strong>em</strong> e faz aquilo que Elizabeth não po<strong>de</strong> como mulher,<br />

e Elizabeth admite isso: “I envy you, Bess. You’re free to have what I cannot have. You’re my<br />

adventurer.”(34) Tal como eles, Walsingham faz aquilo que Elizabeth não t<strong>em</strong> corag<strong>em</strong> para fazer<br />

politicamente. Estas três personagens, Bess, Raleigh, e Walsingham, <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Elizabeth, ao tornar<strong>em</strong> as qualida<strong>de</strong>s humanas da rainha mais perceptíveis. Eles humanizam-na ao<br />

apresentar<strong>em</strong> as qualida<strong>de</strong>s da governante ao espectador, ou ao provocar<strong>em</strong> situações engraçadas.<br />

Eles tornam Elizabeth mais normal, comum, através do seu companheirismo, interacção, e<br />

lealda<strong>de</strong>(35) . Elas mostram-na mais humana, e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, exaltam a excepcionalida<strong>de</strong> e<br />

divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Elizabeth. No fim do filme, o preço da sua posição significa a perda dos amigos.<br />

93


Assim como no anterior filme <strong>de</strong> Kapur, os gran<strong>de</strong>s passos políticos não t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

Elizabeth, mas noutras pessoas, ainda que lhe possam servir <strong>de</strong> inspiração. Enquanto <strong>em</strong> Elizabeth<br />

a rainha <strong>de</strong>pendia dos conselhos sábios <strong>de</strong> Walsingham e William Cecil, na sequela ela <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Walsingham, apesar <strong>de</strong> já não o seguir cegamente, e do doutor Dee. O doutor Dee, um astrólogo<br />

e alquimista que parece <strong>de</strong>cifrar os sentimentos e ansieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Elizabeth, e é ele que lhe dá<br />

inspiração para <strong>de</strong>rrotar a Invencível Armada espanhola.<br />

A personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Blanchett é insegura relativamente ao amor e a questões <strong>de</strong> estado. Na<br />

verda<strong>de</strong>, segundo o doutor Dee, o amor enfraquece-a enquanto lí<strong>de</strong>r, pois distrai-a e ofusca o<br />

seu discernimento. Ela só <strong>de</strong>monstra a sua força raras vezes: quando confronta o hom<strong>em</strong> que<br />

a tenta assassinar, quando discute com o <strong>em</strong>baixador espanhol, ou quando vai para a frente <strong>de</strong><br />

batalha <strong>em</strong> Tilbury. No entanto, <strong>em</strong> todas as vezes que se mostra forte, a sua atitu<strong>de</strong> é apenas uma<br />

representação <strong>de</strong>sesperada, enquanto interiormente está completamente aterrada. Ela é insegura<br />

igualmente quanto ao amor e à sua aparência. Ela acredita que ninguém a ama como pessoa ou<br />

mulher, <strong>em</strong> resultado <strong>de</strong> ser uma rainha. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, lamenta-se sobre a sua juventu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>svanecida(36) e o <strong>de</strong>clínio da sua aparência. A cont<strong>em</strong>plação do seu corpo <strong>de</strong>spido po<strong>de</strong> ser<br />

interpretada como a sua observação <strong>de</strong> um corpo s<strong>em</strong> furtos, e a envelhecer. A representação<br />

que Kapur faz <strong>de</strong> Elizabeth nos seus dois filmes é porventura a mais ingénua, passional, fraca,<br />

frágil, insegura, romântica, frustrada e nostálgica alguma vez feita, e também a mais complexa<br />

<strong>em</strong>ocionalmente e psicologicamente.<br />

Nas imagens finais <strong>de</strong> Elizabeth: The Gol<strong>de</strong>n Age, a rainha torna-se a entida<strong>de</strong> mítica e imortal.<br />

A batalha que ela travou não foi apenas contra Espanha mas contra o mal: uma batalha divina.<br />

Mas foi, também, uma batalha interna, entre os seus sentimentos. No fim ela transcen<strong>de</strong> tudo,<br />

inseguranças, frustrações, e medos, e torna-se verda<strong>de</strong>iramente divina, <strong>de</strong>ífica. A metamorfose <strong>de</strong><br />

Elizabeth fica completa. Quando ela visita Raleigh e Bess, o seu corpo é mantido num patamar à<br />

parte das outras personagens, numa posição ligeiramente elevada e ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> luz, como um ser<br />

superior, abençoado, especial. Quando articula as palavras finais Elizabeth afirma-se como o ser<br />

histórico, mítico, grandioso, e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, assegura que foi esse o caminho que escolheu. “I<br />

am called the Virgin Queen. Unmarried, I have no master. Childless, I am mother to my people.<br />

God give me strength to bear this mighty freedom. I am your Queen. I am myself.” (37)<br />

Nesta década as mulheres têm sido retratadas no ecrã <strong>de</strong> uma maneira cada vez mais<br />

complexa, diversificada, e mais livre, assim como a representação <strong>de</strong> Elizabeth o sugere. Esta<br />

imag<strong>em</strong> cada vez mais humana e livre das personagens aproxima as mulheres ficcionais das reais,<br />

e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, quebra o estereótipo f<strong>em</strong>inino há muito estabelecido. Segundo este novo<br />

padrão, po<strong>de</strong>r-se-á admitir que as mulheres <strong>de</strong>ste século po<strong>de</strong>m almejar uma carreira <strong>de</strong> topo s<strong>em</strong><br />

abandonar a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> per<strong>de</strong>r a sua humanida<strong>de</strong>.<br />

94


NOTAS<br />

(1) Veja-se o caso dos rumores que a davam como amante <strong>de</strong> Robert Dudley, Earl of Leicester, e mãe dos seus<br />

filhos, mantidos <strong>em</strong> segredo, ou mesmo assassinados pela própria Elizabeth.<br />

(2) Como John Knox, um clérigo Protestante escocês e lí<strong>de</strong>r da Reforma Protestante, e os seus apoiantes que se<br />

opunham radicalmente à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> regidos por uma mulher. Knox <strong>de</strong>monstrou verbalmente a sua oposição<br />

<strong>em</strong> The First Blast of the Trumpet Against the Monstrous Regiment of Women (1558), claramente referindo-se à<br />

rainha Mary da Escócia e a Mary I <strong>de</strong> Inglaterra.<br />

(3) Esta questão t<strong>em</strong> intrigado inúmeros autores que têm tentado compreen<strong>de</strong>r por quê Elizabeth permaneceu<br />

solteira, dando as mais diversas opiniões e teorias. As teorias po<strong>de</strong>m dividir-se <strong>em</strong> duas linhas principais: Elizabeth<br />

nunca teve intenção <strong>de</strong> casar, mas utilizou a sua condição a seu favor, estabelecendo alianças políticas; ou, por uma<br />

ou duas ocasiões, esteve <strong>de</strong>cidida a casar-se, mas não o fez por fatalida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>stino ou por questões políticoreligiosas.<br />

(4) Note-se que Elizabeth, apoiada pelos seus conselheiros, usou as propostas e negociações <strong>de</strong> casamento para<br />

concretizar múltiplas alianças políticas, como aliás era costume entre as casas reais da época, porém ela nunca<br />

chegou a finalizar nenhuma <strong>de</strong>las. Este artifício fez com que durante anos Elizabeth evitasse maiores conflitos e<br />

mantivesse a paz, especialmente com Espanha.<br />

(5)Por já ter ultrapassado da ida<strong>de</strong> para ter filhos, per<strong>de</strong>ndo o casamento uma gran<strong>de</strong> parte da sua finalida<strong>de</strong>.<br />

(6) Segundo a teoria medieval da autorida<strong>de</strong> divina do rei, o monarca possui dois corpos: um pessoal, comum,<br />

mortal; e outro político, divino, imortal, e que pertence ao estado.<br />

(7) Note-se que a socieda<strong>de</strong> a que se refere este ensaio é a anglo-americana. Igualmente, o estereótipo f<strong>em</strong>inino aqui<br />

tratado r<strong>em</strong>ete s<strong>em</strong>pre para uma realida<strong>de</strong> anglo-americana, da qual faz<strong>em</strong> parte os filmes e séries aqui comentados.<br />

(8) Porém, Bette Davis nesta altura com 31 anos dificilmente passa por uma mulher <strong>de</strong> 63 anos, a ida<strong>de</strong> que<br />

Elizabeth t<strong>em</strong> na história. A diferença <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>s entre Elizabeth e Essex foi reduzida provavelmente para não ferir<br />

susceptibilida<strong>de</strong>s.<br />

* Todas as traduções são da exclusiva responsabilida<strong>de</strong> da autora.<br />

(9) “Ser rainha é ser-se menos que humana. Pôr o orgulho antes do <strong>de</strong>sejo. Procurar no coração dos homens<br />

ternura, e encontrar apenas ambição. Clamar no escuro por uma voz altruísta, e ouvir apenas o ruído <strong>de</strong> papéis <strong>de</strong><br />

estado. Olhar o amado com os olhos cheios <strong>de</strong> esperança, e ele ver <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>les a sombra do cepo do carrasco.<br />

Uma rainha não t<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po para o amor. O t<strong>em</strong>po pressiona, e os acontecimentos suce<strong>de</strong>m-se. E, por uma concha,<br />

uma casca vazia, reluzente, ela t<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> tudo o que uma mulher mais preza.” Todas as traduções são da<br />

exclusiva responsabilida<strong>de</strong> da autora.<br />

(10) Em 1939, no caso do Reino Unido, e, <strong>em</strong> 1941, no caso dos Estados Unidos da América.<br />

(11) “ […] quando a ambição impiedosa <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> ameaça apo<strong>de</strong>rar-se do mundo, torna-se a obrigação<br />

solene <strong>de</strong> todos os homens livres <strong>de</strong> afirmar que a terra não pertence a um hom<strong>em</strong>, mas a todos os homens […]<br />

prepar<strong>em</strong>o-nos para ir ao encontro da gran<strong>de</strong> armada que Philip enviou contra nós.”<br />

(12) “Born at a time when heads were falling around her like cabbage-stalks, to grow up at all was an achiev<strong>em</strong>ent;<br />

to grow up to greatness was a miracle.”<br />

(13) ‘Adventure is for the brainless’.<br />

(14) Um público que tenha visto The Private Lives of Elizabeth and Essex e The Virgin Queen facilmente se esquecerá<br />

que cronologicamente o segundo filme representa um momento anterior ao do primeiro. A confusão advém do<br />

facto <strong>de</strong> Bette Davis interpretar uma mulher com o dobro da sua ida<strong>de</strong> no filme <strong>de</strong> Michael Curtiz, mas não ter sido<br />

envelhecida pela caracterização. Para além disso, também não podia ser envelhecida para não chocar a audiência<br />

com o seu romance com jov<strong>em</strong> Essex. Assim po<strong>de</strong> ser entendido equivocadamente que a história <strong>de</strong> The Private Lives<br />

95


of Elizabeth and Essex acontece primeiro do que a <strong>de</strong> The Virgin Queen, e <strong>de</strong> que Elizabeth <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter perdido o<br />

seu gran<strong>de</strong> amor, Essex, no filme <strong>de</strong> Michael Curtiz não volta a repetir o mesmo erro e executar Raleigh. Contudo,<br />

é ao contrário.<br />

(15) “When I was eighteen, my physicians told me I could never bear a child. I am glad. England was child enough<br />

for me.”<br />

(16)“Civil Rights Mov<strong>em</strong>ent”.<br />

(17) “Women’s Liberation Mov<strong>em</strong>ent”.<br />

(18) “Equal Pay Act of 1963”.<br />

(19) “Civil Rights Act of 1964”.<br />

(20)“Sua Santida<strong>de</strong> escreve s<strong>em</strong>pre sobre ela com admiração, mesmo quando me encoraja a matá-la. Ele manda-me<br />

um milhão <strong>de</strong> coroas para a arrastar do trono, no entanto diz que ela é um dos maiores Príncipes da Cristanda<strong>de</strong>.<br />

Ela fala da corag<strong>em</strong> <strong>de</strong>la e da minha timi<strong>de</strong>z; da sua presença <strong>de</strong> espírito e da minha religiosida<strong>de</strong> enfadonha […]<br />

Eu também já me <strong>de</strong>slumbrei pela genialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la.”<br />

(21) ‘All the fabric of my reign, little by little, is beginning to fall…I am tied. I am tied. And the case is altered with<br />

me’<br />

(22) Glenda Jackson <strong>de</strong>dicou-se à política, e é m<strong>em</strong>bro do parlamento <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1992.<br />

(23) Pois Elizabeth, <strong>de</strong> acordo com a Igreja Católica, é ilegítima.<br />

(24) “Madam, if your head had matched your heart, I would be the one awaiting <strong>de</strong>ath.”<br />

(25) A série Blackad<strong>de</strong>r II (1986) é prova disso: Elizabeth é obtusa, mimada, fútil, por vezes cruel, infantil, inútil como<br />

monarca, e ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> idiotas.<br />

(26) “Her Majesty’s body and person are no longer her own property, they belong to the State.”<br />

(27) Elizabeth diz a Lord Burghley “I am married to England”, <strong>em</strong> resposta à pressão constante <strong>de</strong> <strong>de</strong>ste para que<br />

ela se casasse.<br />

(28) “Playwrights teach nothing about love, they make it pretty, they make it comical, or they make it lust. They<br />

cannot make it true.”<br />

(29)“Todos me conhec<strong>em</strong>. Po<strong>de</strong>ria haver mais segurança para o meu reinado e para o meu reino se eu casasse e<br />

tivesse uma criança e continuasse a linhag<strong>em</strong> do meu pai, o Rei Henry VIII? Não me foi dito por si, e por si, e por si<br />

que eu <strong>de</strong>veria fazer como as outras mulheres, e ter um her<strong>de</strong>iro? […] Vocês pensam que eu não quero uma criança?<br />

Vocês pensam que eu não tenho o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> segurar um bebé <strong>em</strong> meus braços? Serei tão estranha aos vossos olhos<br />

pelo meu estatuto elevado? Agora finalmente encontrei um hom<strong>em</strong> que é real e <strong>de</strong> que gosto, e não posso…? Serei<br />

feita <strong>de</strong> pedra, senhores?”<br />

(30) “Gloriana é apenas um fantasma na m<strong>em</strong>ória do meu povo.”<br />

(31) “[…] uma linha fina a separar o respeito do ridículo”<br />

(32)Vd. Mustard 2.<br />

(33) Kapur (4) <strong>em</strong>prega a expressão “shadow selves” para <strong>de</strong>finir a relação críptica entre Elizabeth e Bess.<br />

(34) “Eu invejo-te Bess. Tu és livre para ter aquilo que eu não posso ter. Tu és a minha aventureira.”<br />

(35) Vd. Custen 161-165.<br />

96


(36) Ainda que Cate Blanchett apareça s<strong>em</strong> marcas visíveis <strong>de</strong> envelhecimento, mesmo interpretando uma rainha<br />

com 55 anos.<br />

(37) “Chamam-me Rainha Virg<strong>em</strong>. Solteira, não tenho dono. S<strong>em</strong> filhos, sou mãe do meu povo. Deus me dê forças<br />

para suportar esta grandiosa liberda<strong>de</strong>. Eu sou a vossa rainha. Eu sou eu.”<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Cott, Nancy F. No Small Courage: A History of Women in the United States. Oxford: Oxford University Press, 2000.<br />

Haskell, Molly. From Reverence to Rape: The Treatment of Women in the Movies. 2nd ed. Chicago: University of Chicago<br />

Press, 1987.<br />

Custen, George F. Bio/Pics: How Hollywood Constructed Public History. New Jersey: Rutgers UP, 1992.<br />

REFERÊNCIAS ELECTRÓNICAS<br />

Hoover, Tracey. “The Good, the Bad, and the Beautiful: The Influence of Gen<strong>de</strong>r I<strong>de</strong>ologies in Films of the 1940s<br />

and 1950s” Paper presented at the annual meeting of the American Sociological Association, TBA, New York, 11<br />

Aug. 2007. 4 Jun. 2010. Web. 22 Jul. 2010. .<br />

Kapur, Shekhar. Entrevistado por Deborah Day. “Director Shekhar Kapur Deepens the Myth.” Pr<strong>em</strong>iere. 2008.<br />

Web. 2 Set. 2008 .<br />

Mustard, Deborah J. “Spinster: An Evolving Stereotype Revealed Through Film”. Journal of Media Psychology 4<br />

(Winter 2000). 20 Jan. 2000. Web. 27 Jun. 2010. .<br />

FILMOGRAFIA<br />

Elizabeth I. Real. Tom Hooper. Act. Helen Mirren, Jer<strong>em</strong>y Irons, Hugh Dancy, Patrick Malahi<strong>de</strong>,<br />

Ian McDiarmid, e Toby Jones. 2005. Company Pictures, 2006. Série.<br />

Elizabeth R. Real. Ro<strong>de</strong>rick Graham, Richard Martin, Donald McWhinnie, Clau<strong>de</strong> Whatham,<br />

and Herbert Wise. Act. Glenda Jackson, Ronald Hines, Robert Hardy, Daphne Slater, Rosalie<br />

Crutchley, e Jason K<strong>em</strong>p. 1971. BBC, 2006. Série.<br />

Elizabeth. Real. Shekhar Kapur. Act. Cate Blanchett, Geoffrey Rush, Christopher Eccleston,<br />

Joseph Fiennes, Richard Attenborough, Fanny Ardant, Eric Cantona, Vincent Cassel, e Kathy<br />

Burke. 1998. Polygram Filmed Entertainment, 1999. Filme.<br />

Elizabeth: The Gol<strong>de</strong>n Age. Real. Shekhar Kapur. Act. Cate Blanchett, Geoffrey Rush, Clive Owen,<br />

Rhys Ifans, Jordi Mollà, Abbie Cornish, e Samantha Morton. Universal Pictures, 2007. Filme.<br />

Fire over England. Real. William K. Howard. Act. Flora Robson, Raymond Massey, Leslie Banks,<br />

Laurence Olivier, Vivien Leigh, Morton Selten, e Tamara Desni. 1937. London Film Productions,<br />

2002. Filme.<br />

Mary of Scotland. Real. John Ford. Act. Katherine Hepburn, Fredric March, Florence Eldridge,<br />

Douglas Walton, e John Carradine. RKO, 1936. Filme.<br />

Mary, Queen of Scots. Real. Charles Jarrott. Act. Vanessa Redgrave, Glenda Jackson, Patrick<br />

97


McGoohan, Timothy Dalton, e Nigel Davenport. Universal Pictures, 1971. Filme.<br />

Shakespeare in Love. Real. John Mad<strong>de</strong>n. Act. Gwyneth Paltrow, Joseph Fiennes, Geoffrey Rush, Colin<br />

Firth, Ben Affleck, e Judi Dench. Universal Pictures, 1998. Filme.<br />

The Private Lives of Elizabeth and Essex. Real. Michael Curtiz. Act. Bette Davis, Errol Flynn, Olivia <strong>de</strong><br />

Havilland, Donald Crisp, Alan Hale, Vincent Price, e Henry Stephenson. 1939. Warner Bros. Pictures,<br />

2005. Filme.<br />

The Sea Hawk. Real. Michael Curtiz. Act. Errol Flynn, Brenda Marshall, Clau<strong>de</strong> Rains, Donald Crisp, e<br />

Flora Robson. Warner Bros. Pictures, 1940. Filme.<br />

The Virgin Queen. Real. Coky Giedroyc. Act. Anne-Marie Duff, Tom Hardy, Hans Matheson, Ian Hart,<br />

Dexter Fletcher, Kevin McKidd, Daniel Evans, Joanne Whalley, e Sienna Guillory. BBC, 2005. Série.<br />

The Virgin Queen. Real. Henry Koster. Act. Bette Davis, Richard Todd, Joan Collins, Jay Robinson,<br />

Herbert Marshall, Dan O’Herlihy, Robert Douglas, Romney Brent, e Lisa Daniels. 1955. Twentieth<br />

Century Fox, 2006. Filme.<br />

Young Bess. Real. George Sidney. Act. Jean Simmons, Stewart Granger, Deborah Kerr, e Charles<br />

Laughton. 1953. MGM, 1994. Filme.<br />

98


CINEASTAS EUROPEUS NAS ORIGENS DO<br />

MANEIRISMO DE HOLLYWOOD:ANDRÉ DE TOTH E<br />

O CASO DE ‘THE INDIAN FIGHTER’<br />

Jorge Carrega<br />

Des<strong>de</strong> muito cedo a indústria <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a norte-americana atraiu alguns dos melhores<br />

cineastas do velho continente. Contudo, foi após a ascensão <strong>de</strong> Hitler ao po<strong>de</strong>r <strong>em</strong> 1933 que se<br />

registou o maior êxodo <strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong> profissionais <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a para os EUA.<br />

Entre os milhares <strong>de</strong> refugiados europeus que rumaram a Hollywood, <strong>de</strong>staca-se um<br />

conjunto <strong>de</strong> realizadores e argumentistas germânicos que vinham <strong>de</strong>senvolvendo as suas carreiras<br />

na indústria <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a al<strong>em</strong>ã e nos estúdios da UFA, a maior e mais mo<strong>de</strong>rna estrutura <strong>de</strong> produção<br />

cin<strong>em</strong>atográfica europeia durante as décadas <strong>de</strong> 1920 e 1930.<br />

Fritz Lang, Max Ophuls, Curtis Bernhartd, Robert Siodmak, Edgar G. Ulmer, Fred<br />

Zinn<strong>em</strong>ann, Henry Koster, Douglas Sirk e Billy Wil<strong>de</strong>r, viram-se forçados a abandonar a<br />

Al<strong>em</strong>anha <strong>de</strong> Hitler, assumindo <strong>em</strong> poucos anos uma posição importante na indústria <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a<br />

americana(1) .<br />

Hollywood vivia então a sua era dourada, produzindo anualmente largas centenas <strong>de</strong> longasmetragens<br />

graças a um sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> produção integrado no qual produtores executivos como Irvin<br />

Thalberg, Darryl Zanuck, Hal B. Wallis e David O’ Selznick exerciam um controle quase absoluto<br />

sobre os aspectos criativos do filme.<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento do sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> produção dos estúdios foi acompanhado pela criação<br />

<strong>de</strong> um estilo narrativo e formal que se tornaria sinónimo do cin<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Hollywood. O chamado<br />

estilo clássico obe<strong>de</strong>cia a princípios clássicos <strong>de</strong> progressão dramática e caracterizava-se por uma<br />

forte continuida<strong>de</strong> visual e narrativa, baseada num estilo <strong>de</strong> montag<strong>em</strong> “invisível” que ocultava os<br />

mecanismos <strong>de</strong> realização e facilitava uma maior i<strong>de</strong>ntificação do espectador com os protagonistas.<br />

Com a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial no final <strong>de</strong> 1941, Hollywood viu-se<br />

privada <strong>de</strong> alguns dos seus melhores talentos. Realizadores como Frank Capra, John Ford,William<br />

Wyler, John Huston e George Stevens, actores como James Stewart, Henry Fonda e Clark Gable,<br />

e mesmo produtores como Darryl F. Zanuck <strong>de</strong>ram o seu contributo para o esforço <strong>de</strong> guerra.<br />

A perda <strong>de</strong> talentos tão importantes, numa época <strong>em</strong> que o cin<strong>em</strong>a constituía a principal<br />

fonte <strong>de</strong> entretenimento dos norte-americanos, proporcionaria boas oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho a<br />

muitos dos profissionais <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a europeus que encontraram refúgio nos EUA.<br />

Oriundos <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> histórico-cultural completamente distinta dos seus colegas norteamericanos,<br />

os cineastas al<strong>em</strong>ães introduz<strong>em</strong> no cin<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Hollywood uma sensibilida<strong>de</strong> estética<br />

expressionista, adquirida no contacto com as vanguardas artísticas europeias e uma formação<br />

teatral adquirida nos palcos <strong>de</strong> Viena e Berlim on<strong>de</strong> a maioria havia trabalhado como actores,<br />

encenadores ou dramaturgos.<br />

Estes dois el<strong>em</strong>entos seriam <strong>de</strong>cisivos no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um estilo cin<strong>em</strong>atográfico<br />

maneirista que se distinguia do cin<strong>em</strong>a clássico <strong>de</strong> Hollywood, por um introduzir uma visão<br />

mais pessimista do mundo e adoptar um visual estilizado e auto-consciente que priviligiava os<br />

movimentos <strong>de</strong> câmara.<br />

99


Mas a influência germânica no cin<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Hollywood não po<strong>de</strong> ser reduzida ao trabalho realizado<br />

pelos cineastas al<strong>em</strong>ães. Esten<strong>de</strong>-se igualmente a um conjunto <strong>de</strong> realizadores austro-húngaros<br />

cuja sensibilida<strong>de</strong> estética e cultural revelava enormes afinida<strong>de</strong>s com a cultura e o cin<strong>em</strong>a al<strong>em</strong>ão.<br />

É o caso <strong>de</strong> Andre De Toth, Otto Pr<strong>em</strong>inger, Charles Vidor, Rudolph Maté, Fred Zinn<strong>em</strong>an,<br />

Berthold Viertel e Richard Oswald, que nasceram <strong>em</strong> cida<strong>de</strong>s como Budapeste, Cracóvia e Viena<br />

<strong>de</strong> Áustria.<br />

Influenciados pelo cin<strong>em</strong>a expressionista al<strong>em</strong>ão, e no caso <strong>de</strong> Zinn<strong>em</strong>an pelo realismo<br />

s<strong>em</strong>i-documental <strong>de</strong> Robert Flaherty, os realizadores austro-húngaros partilhavam com os seus<br />

colegas al<strong>em</strong>ães uma forte ligação ao meio teatral, a qual está na orig<strong>em</strong> <strong>de</strong> um estilo visual baseado<br />

na mise-en-scène que quando transposto para o cin<strong>em</strong>a se traduzia numa acentuada estilização dos<br />

cenários e da iluminação, tendo <strong>em</strong> vista a obtenção <strong>de</strong> efeitos dramáticos, assim como uma<br />

preferência pelos movimentos <strong>de</strong> câmara, a profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> campo e o long take <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento<br />

da montag<strong>em</strong>.<br />

Com o agravamento da situação política europeia e o aproximar da segunda guerra mundial,<br />

os cineastas austro-húngaros, seguiram o ex<strong>em</strong>plo dos seus colegas al<strong>em</strong>ães e procuraram novas<br />

oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho <strong>em</strong> Hollywood, contribuindo <strong>de</strong>sse modo para as alterações estéticas e<br />

formais que se registaram no cin<strong>em</strong>a norte-americanos das décadas <strong>de</strong> 40 e 50 do século XX.<br />

André De Toth e o caso “The Indian Fighter”<br />

André De Toth nasceu <strong>em</strong> Budapeste <strong>em</strong> 1912. Após concluir os estudos superiores iniciou<br />

uma breve carreira como dramaturgo no meio teatral da capital húngara, sendo rapidamente<br />

atraído pela indústria <strong>de</strong> cin<strong>em</strong>a do seu país.<br />

Em 1940, o realizador partiu para Inglaterra para colaborar nas produções do seu compatriota<br />

Alexan<strong>de</strong>r Korda, mas com o agudizar da II Guerra Mundial, <strong>de</strong>cidiu imigrar para os EUA, on<strong>de</strong><br />

chegou <strong>em</strong> 1943, sendo contratado pela Columbia Pictures <strong>de</strong> Harry Cohn.<br />

Ao longo da década <strong>de</strong> quarenta, De Toth <strong>de</strong>senvolveu a sua carreira <strong>em</strong> produções <strong>de</strong> série<br />

B como Dark Waters (1944), Ramrod (1947), Pitfall (1948) e Slattery’s Hurricane (1949), obras <strong>em</strong> que<br />

o cineasta revelava uma sensibilida<strong>de</strong> expressionista e um estilo visual dinâmico que favorecia os<br />

movimentos <strong>de</strong> câmara.<br />

Em 1947, graças ao mestre John Ford, André De Toth teve a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar o<br />

seu primeiro western. “Ramrod” é um filme adulto no qual o realizador <strong>de</strong>senvolve uma narrativa<br />

psicologicamente complexa, mais próxima do film-noir do que das estafadas convenções do<br />

género.<br />

Com Ramrod (1947) e o tardio Day of the Outlaw (1959), André De Toth <strong>de</strong>u o seu contributo<br />

a um dos mais curiosos subgéneros do cin<strong>em</strong>a americano, o western-noir. Juntamente com os<br />

seus colegas europeus, Fritz Lang e Jacques Tourneur e os americanos William Wellman e Raoul<br />

Walsh, De Toth participou num processo <strong>de</strong> experimentação t<strong>em</strong>ática e formal que transformou<br />

o Western <strong>de</strong> Hollywood no final da década <strong>de</strong> 1940 e início dos anos 50, contribuindo <strong>de</strong>sse<br />

modo para o amadurecimento <strong>de</strong> um género que o crítico e teórico André Bazin classificou como<br />

“o cin<strong>em</strong>a americano por excelência” (2).<br />

Em 1951, o cineasta húngaro iniciou uma frutuosa colaboração com Randolph Scott, que<br />

se esten<strong>de</strong>ria por seis westerns <strong>de</strong> série B, produzidos pela Scott-Brow, a companhia produtora do<br />

actor.<br />

Com Man in the Sadle (51), Carson City (52), The Stranger Wore a Gun (53), Thun<strong>de</strong>r Over the<br />

Plains (53), Riding Shotgun (54) e The Bounty Hunter (54), André <strong>de</strong> Toth antecipou o aclamado<br />

ciclo <strong>de</strong> filmes realizados por Bud Boeticher entre 1956 e 1960, introduzindo t<strong>em</strong>as adultos e<br />

personagens psicologicamente complexas num género que procurava renovar as suas tradicionais<br />

100


fórmulas narrativas . (3)<br />

Foi precisamente o trabalho <strong>de</strong>senvolvido pelo realizador com o actor Randolph Scott que<br />

chamou a atenção <strong>de</strong> Kirk Douglas, uma das maiores estrelas <strong>de</strong> Hollywood durante a década<br />

<strong>de</strong> 1950. Douglas, que acabara <strong>de</strong> lançar a sua própria companhia produtora, <strong>de</strong>cidiu jogar pelo<br />

seguro e escolheu um western com argumento <strong>de</strong> Ben Hecth e Frank Davies, para a sua estreia<br />

enquanto produtor, <strong>de</strong>cidindo convidar De Toth para dirigir, The Indian Fighter (4) .<br />

O filme conta a história <strong>de</strong> Johnny Hawks, um guia <strong>de</strong> caravanas conhecido por ter combatido<br />

os índios antes da guerra civil americana. Após alguns anos <strong>de</strong> ausência, Hawks regressa ao<br />

território do Oregon conduzindo uma nova caravana <strong>de</strong> colonos, e inicia uma relação <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong><br />

com o chefe Red Cloud com qu<strong>em</strong> estabelece um acordo com vista a garantir que os colonos<br />

brancos possam atravessar o território dos índios Sioux <strong>em</strong> paz.<br />

Os esforços das duas personagens centrais, Johnny Hawks e Red Cloud, serão no entanto<br />

comprometidos pela ganância <strong>de</strong> dois colonos brancos que matam um índio quando este recusa<br />

fornecer-lhes informações sobre a localização <strong>de</strong> uma mina <strong>de</strong> ouro, <strong>de</strong>spoletando um conflito<br />

que obriga Hawks a servir <strong>de</strong> mediador entre os oficiais da cavalaria americana e os Sioux, com<br />

vista a evitar um confronto sangrento entre as duas partes.<br />

Johnny Hawks é um personag<strong>em</strong> complexo. Profundamente marcado pela participação na<br />

guerra civil americana, o “caçador <strong>de</strong> índios” apren<strong>de</strong>u a respeitar a cultura dos nativos americanos,<br />

tudo fazendo para evitar conflitos entre os Sioux e os colonos brancos.<br />

A afinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Hawks com o modo <strong>de</strong> vida dos índios resulta igualmente no início <strong>de</strong> uma<br />

relação amorosa com a filha <strong>de</strong> Red Cloud, Onahti, com a qual <strong>de</strong>senvolve uma cumplicida<strong>de</strong> que<br />

para além <strong>de</strong> amantes torná-los-á aliados da mesma causa.<br />

No final, conseguida a paz entre brancos e índios, os colonos part<strong>em</strong> para novos territórios<br />

mas Johnny Hawks escolhe ficar com Onahti e a sua tribo. Em vez <strong>de</strong> optar por uma relacionamento<br />

com Susan Rogers, uma das mulheres que viajavam na caravana, Hawks prefere viver entre os<br />

nativos, recusando aquilo a que os homens brancos chamam civilização.<br />

The Indian Fighter <strong>de</strong>staca-se claramente da esmagadora maioria dos westerns americanos da<br />

década <strong>de</strong> 1950 pela sua abordag<strong>em</strong> t<strong>em</strong>ática. Ao construir uma narrativa <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> um cowboy<br />

que revela uma gran<strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong> moral com os índios e procura manter a paz entre estes e os<br />

brancos, o filme introduz no western americano uma nova perspectiva sobre as relações entre os<br />

dois povos .<br />

A esmagadora maioria dos westerns produzidos <strong>em</strong> Hollywood ao longo das décadas <strong>de</strong><br />

1930 e 1940 apresentavam os nativos americanos como perigosos selvagens que constituíam o<br />

maior obstáculo ao <strong>de</strong>stino civilizacional dos colonos brancos e uma ameaça à família branca-cristã.<br />

Pelo contrário, The Indian Fighter recusa a i<strong>de</strong>ologia imperialista presente <strong>em</strong> tantos westerns <strong>de</strong>ste<br />

período e assume uma posição revisionista segundo a qual o respeito pelas diferenças culturais é<br />

único caminho para a paz entre os povos.<br />

Ainda que não tenha sido possível efectuar uma análise do argumento original do filme<br />

é provável que o realizador tenha introduzido algumas alterações com vista a estabelecer uma<br />

aproximação entre a narrativa <strong>de</strong> The Indian Fighter e o universo literário do escritor al<strong>em</strong>ão Karl<br />

May.<br />

Esta possibilida<strong>de</strong> ganha maior consistência se, para além da experiência <strong>de</strong> André De Toth<br />

enquanto argumentista, levarmos <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>ração a seguinte afirmação do cineasta numa longa<br />

entrevista concedida a Anthony Sli<strong>de</strong>(6) :<br />

“A.Sli<strong>de</strong>: I gather you visited the United States a couple of times in the 1930’s. Why?<br />

A.D.Toth: Karl May - his books on the American West influenced me.”<br />

101


A obra do escritor al<strong>em</strong>ão Karl May (1842-1912) constitui, portanto, um el<strong>em</strong>ento<br />

fundamental para compreen<strong>de</strong>rmos o filme <strong>de</strong> André De Toth.<br />

May foi um dos mais populares escritores europeus do final do séc. XIX, autor <strong>de</strong> um<br />

conjunto <strong>de</strong> livros <strong>de</strong> aventuras cuja acção se situava no Oeste americano.<br />

Originalmente publicados durante a década <strong>de</strong> 1890, Winnetou vols. I, II e III, e Old<br />

Surehand I, II e III, gozaram <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> popularida<strong>de</strong> entre os finais do século XIX e meados do<br />

século XX, motivando inclusive um ciclo <strong>de</strong> adaptações cin<strong>em</strong>atográficas no início da década <strong>de</strong><br />

1960 (7) .<br />

Nas suas obras sobre o Oeste americano, Karl May narra as aventuras do chefe Apache<br />

Winnetou e do seu gran<strong>de</strong> amigo, Old Shatterhand, um pioneiro germânico que funcionava como<br />

alter-ego do próprio autor. Ambas as personagens lutam corajosamente pela paz, utilizando as<br />

suas invulgares capacida<strong>de</strong>s físicas e intelectuais para evitar conflitos entre os colonos brancos e<br />

os índios.<br />

Profundamente enraizada no movimento romântico do séc. XIX, a obra literária <strong>de</strong> Karl<br />

May t<strong>em</strong> no mito do bom selvag<strong>em</strong> uma das suas principais componentes i<strong>de</strong>ológicas, revelando<br />

igualmente uma sensibilida<strong>de</strong> pacifista e proto-ecologista.<br />

Entre as principais influências literárias <strong>de</strong>ste autor encontra-se a obra <strong>de</strong> James Fennimore<br />

Copper e alguns trabalhos <strong>de</strong> carácter antropológico produzidos por exploradores al<strong>em</strong>ães que<br />

visitaram o continente americano durante as primeiras décadas do séc. XIX.<br />

Segundo Christopher Frayling, é provável que estes trabalhos tivess<strong>em</strong> constituído não<br />

só uma fonte <strong>de</strong> inspiração como um valioso instrumento <strong>de</strong> pesquisa quando May, que então<br />

cumpria uma pena <strong>de</strong> prisão, começou a escrever as suas histórias sobre o Oeste Americano (8) .<br />

A influência <strong>de</strong> James Fennimore Cooper (1789-1851) na obra do escritor al<strong>em</strong>ão é<br />

particularmente visível na relação <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> fraternal que une Old Shatterhand e Winnetou, <strong>em</strong><br />

tudo s<strong>em</strong>elhante ao relacionamento que o autor norte-americano estabelece entre Natty Bumpo<br />

e Chingachgook, as duas personagens principais das famosas Leatherstocking Tales (1827-1841).<br />

Nestes livros, tal como na obra <strong>de</strong> May, os dois protagonistas tudo faz<strong>em</strong> para evitar ou minimizar<br />

conflitos entre colonos e índios.<br />

A proximida<strong>de</strong> t<strong>em</strong>ática que se verifica entre The Indian Fighter e a obra <strong>de</strong> Karl May, po<strong>de</strong>rá ter<br />

tido orig<strong>em</strong> na obra <strong>de</strong> James Fennimore Copper e na influência <strong>de</strong>ste autor sobre os argumentistas<br />

do filme, Ben Hecht e Frank Davis. No entanto, levanta-se igualmente a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ben<br />

Hecht ter sido directamente influenciado pela obra <strong>de</strong> May, uma vez que o argumentista norteamericano<br />

foi correspon<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> guerra <strong>em</strong> Berlim entre 1918 e 1919.<br />

A influência cultural europeia que caracteriza The Indian Fighter, não se manifesta apenas<br />

<strong>em</strong> termos t<strong>em</strong>áticos mas também na própria dimensão visual do filme. Com efeito, é provável<br />

que ao escolher as paisagens ver<strong>de</strong>jantes do Oregon para as filmagens do filme, André De Toth<br />

tenha tido como objectivo principal a recriação <strong>de</strong> uma visão específica do Oeste americano que<br />

se encontra presente na obra <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> pintores centro-europeus <strong>de</strong> meados do séc. XIX<br />

e cujos trabalhos terão influenciado o próprio Karl May (9) .<br />

Uma análise atenta da obra <strong>de</strong> artistas como Albert Bierstadt, Karl Ferdinand Wimar e Carl<br />

Bodmer, revela-nos uma visão estética do Oeste americano marcadamente romântica. Este “olhar<br />

europeu” contrasta com o Oeste presente na obra <strong>de</strong> importantes artistas norte-americanos como<br />

Fre<strong>de</strong>ric R<strong>em</strong>ington, Charles Russell e Charles C. Schreyvogel, cujo estilo naturalista fort<strong>em</strong>ente<br />

influenciado pelo impressionismo os distinguia claramente da estética romântica dos artistas da<br />

aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Dusseldorf e da chamada Escola do Rio Hudson.<br />

Foi precisamente esta visão estética europeia do Oeste americano que influenciou a obra <strong>de</strong><br />

André De Toth, nomeadamente westerns como Springfield Riffle (1952), The Indian Fighter (1955) e<br />

Day of the Outlaw (1959), cuja acção se situa <strong>em</strong> paisagens montanhosas e <strong>de</strong>nsamente florestadas,<br />

por vezes cobertas <strong>de</strong> neve e on<strong>de</strong> nunca faltam rios e quedas <strong>de</strong> água.<br />

102


O Oeste recriado por André De Toth <strong>em</strong> The Indian Fighter distingue-se da textura visual que<br />

caracterizou a maioria dos westerns americanos realizados entre as décadas <strong>de</strong> 1930 e 1960. De<br />

facto, com raras excepções, realizadores como John Ford, Henry Hathway, Delmer Daves, Bud<br />

Boeticher e John Sturges adoptaram a obra <strong>de</strong> R<strong>em</strong>ington, Russell e Schreyvogel como referência<br />

estética dos seus filmes.<br />

Ao contrário <strong>de</strong> Albert Bierstadt, Charles Wimar, Carl Bodner e Thomas Moran, que<br />

concentram a sua atenção na i<strong>de</strong>alização das paisagens naturais do Oeste e no modo <strong>de</strong> vida<br />

dos nativos americanos, na obra <strong>de</strong> R<strong>em</strong>ington, Russell e Schreyvogel predominam as paisagens<br />

s<strong>em</strong>i<strong>de</strong>sérticas do Nevada, Arizona, Novo México e Texas, assim como episódios da vida nas<br />

cida<strong>de</strong>s fronteiriças.<br />

Com efeito, os artistas norte-americanos do final do séc. XIX, cont<strong>em</strong>porâneos <strong>de</strong> Karl<br />

May, revelam uma clara preferência por situações <strong>de</strong> acção dramática e por vezes violenta, <strong>em</strong> que<br />

a cavalaria americana, o cowboy e o seu cavalo assum<strong>em</strong> o protagonismo principal.<br />

Trabalhos como Ten<strong>de</strong>rfoot (1900), Roping a Grizlly (1903) e A Quiet Day in Utica (1907) <strong>de</strong><br />

Charles Russell, An Unexpected En<strong>em</strong>y (1900) e Attack at Dawn (1904) <strong>de</strong> Charles C. Schreyvogel<br />

ou The Alert (1888), The Quest (1901), e Figth for the Water Hole (1903) <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>ric R<strong>em</strong>ington,<br />

contrastam na sua dinâmica visual e na atenção <strong>de</strong>dicada a momentos <strong>de</strong> acção dramática, com a<br />

sensibilida<strong>de</strong> romântica dos pintores europeus e dos americanos da Escola do Rio Hudson, que<br />

encaram o Oeste americano como um local idílico no qual o hom<strong>em</strong> branco e o índio po<strong>de</strong>m<br />

viver <strong>em</strong> harmonia com a natureza.<br />

Esta relação do hom<strong>em</strong> com a natureza encontra-se presente <strong>em</strong> todo o filme e muito<br />

particularmente na sensualida<strong>de</strong> que caracteriza as diversas cenas <strong>de</strong> amor entre Hawks e Othani,<br />

a filha <strong>de</strong> Red Cloud, s<strong>em</strong>pre protagonizadas no interior do rio que <strong>de</strong>u o nome ao título francês<br />

La rivière <strong>de</strong> nos amours, e que funciona como leito dos amantes, num western que Patrick Bureau<br />

<strong>de</strong>finiu como “um dos mais belos po<strong>em</strong>as panteístas que o western nos ofereceu.”(10)<br />

Precursora da corrente revisionista que transformou o mais americano dos géneros<br />

cin<strong>em</strong>atográficos durante a década <strong>de</strong> 1960, The Indian Fighter é uma obra i<strong>de</strong>ologicamente próíndia,<br />

pacifista e proto-ecologista(11) , que antecipa o ciclo <strong>de</strong> westerns europeus adaptados<br />

da obra <strong>de</strong> Karl May no início dos anos 60, mas também westerns mo<strong>de</strong>rnos produzidos por<br />

Hollywood como A Man Called Horse (1970), Little Big Man (1970) e Jer<strong>em</strong>iah Johnson (1972).<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista formal, o filme <strong>de</strong> André De Toth distanciou-se igualmente do classicismo<br />

que caracterizava os seus colegas norte-americanos e <strong>em</strong> particular <strong>de</strong> figuras maiores do género<br />

como John Ford, Henry King, Howard Hawks e Henry Hathaway. O cineasta húngaro adopta<br />

um estilo maneirista, construído sobre uma estética do cin<strong>em</strong>ascope que prefere o plano geral ao<br />

close-up e utiliza a panorâmica, os movimentos <strong>de</strong> câmara e o long take, para criar um estilo visual<br />

simultaneamente cont<strong>em</strong>plativo e ambíguo que permite ao espectador uma maior liberda<strong>de</strong> na<br />

leitura do texto filmico e, como tal, na construção do seu significado.<br />

Ao abordar os t<strong>em</strong>as do Oeste americano com uma sensibilida<strong>de</strong> centro-europeia, André<br />

De Toth criou uma obra invulgar que subverteu o mo<strong>de</strong>lo estético e narrativo que caracterizava o<br />

western clássico <strong>de</strong> Hollywood. Deste modo, The Indian Fighter (1955), constitui um dos ex<strong>em</strong>plos<br />

mais significativos do papel <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhado pelos cineastas europeus na introdução <strong>de</strong> um conjunto<br />

<strong>de</strong> alterações estéticas e formais que transformaram o cin<strong>em</strong>a americano entre o final dos anos 40<br />

e o início dos anos 60 do século XX.<br />

103


NOTAS<br />

(1) Salvo raro excepções, a maioria dos realizadores al<strong>em</strong>ães e austríacos que <strong>em</strong>igraram para os EUA eram ju<strong>de</strong>us.<br />

(2) Bazin, André, O que é o cin<strong>em</strong>a? pág. 231-242.<br />

(3) Isto não significa que não continuasse a existir público para os western tradicionais, como se comprova pela<br />

popularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> westerns televisivos como Cheyenne, Davy Crockett e Bonanza. Todavia, foi precisamente a<br />

concorrência da televisão um dos factores que obrigou Hollywood a mo<strong>de</strong>rnizar o western, tornando-o mais adulto.<br />

(4) The Indian Fighter estreou nos EUA <strong>em</strong> Dez<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1955 e no ano seguinte <strong>em</strong> Portugal com o título: Johnny<br />

Hawks, o Caçador <strong>de</strong> Índios.<br />

(5) Apesar <strong>de</strong> Delmer Daves com Broken Arrow (1950) e Robert Aldrich com Apache (1954), se ter<strong>em</strong> antecipado<br />

a André De Toth numa nova abordag<strong>em</strong> das relações entre índios e brancos, filmes como The Indian Fighter (1955)<br />

constituíram excepções à regra no western americano dos anos 50.<br />

(6) De Toth, André e Sli<strong>de</strong>, Anthony, De Toth on De Toth - Putting the Drama in front of the Camera, pág. 32.<br />

(7) Na primeira meta<strong>de</strong> dos anos 60 a obra <strong>de</strong> Karl May foi adaptada ao cin<strong>em</strong>a <strong>em</strong> mais <strong>de</strong> uma dúzia <strong>de</strong> coproduções<br />

al<strong>em</strong>ãs, jugoslavas e italianas que gozaram <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> popularida<strong>de</strong> entre os espectadores europeus.<br />

(8) Frayling, Christhopher, Spaghetti Westerns- Cowboys and Europeans from Karl May to Sergio Leone, pág. 103-<br />

117.<br />

(9) É muito provável que Karl May tenha utilizado como fontes <strong>de</strong> pesquisa para o seu trabalho literário obras<br />

como Reise in das innere Nord- Amerikas, um livro ilustrado pelo pintor suíço Karl Bodmer, que acompanhou o<br />

explorador al<strong>em</strong>ão, príncipe Maxmilian of Wied-Neuwied, nas suas viagens ao longo do rio Missouri.<br />

(10) Patrick Bureau, citado por Bertrand Tavernier no Prefácio <strong>de</strong> Fragments- Portraits from the Insi<strong>de</strong>,1994.<br />

(11) Numa das cenas iniciais do filme, o chefe Red Cloud afirma que os prospectores <strong>de</strong> ouro são responsáveis pela<br />

poluição dos rios e a <strong>de</strong>struição da natureza.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

Bazin, André, (1992), O que é o cin<strong>em</strong>a? Lisboa, Livros Horizonte.<br />

Casper, Drew (2007), POSTWAR HOLLYWOOD: 1946-1962, Blackwell Publishing.<br />

Cowie, Peter (2004), John Ford and the American West, N.Y, Harry N. Abrams.<br />

Frayling, Christopher (1998), Spaghetti Westerns: Cowboys and Europeans from Karl May to Sergio Leone<br />

(revised edition), London-New York, I.B Tauris.<br />

De Toth, André (1994), Fragments - Portraits from the Insi<strong>de</strong>, London-Boston, Faber and Faber, 1994.<br />

De Toth, André e Sli<strong>de</strong>, Anthony (1996), De Toth on De Toth: Putting the Drama in Front of the Camera,<br />

London-Boston, Faber and Faber.<br />

104


Fujiwara, Chris (2008), The World and it’s Double-The life and Work of Otto Pr<strong>em</strong>inger, N.Y, Faber and Faber.<br />

Hirsch, Foster (1981), Film Noir: The Dark Si<strong>de</strong> of the Screen, Da Capo Press.<br />

May, Karl (2006), Winnetou: A Novel, Continuum Impacts.<br />

Philips, Gene D. (1998), Exiles in Hollywood- Major European Film Directors in America, London, Lehigh<br />

University Press.<br />

Lusted, David (2003), The Western, Essex, Pearson Education.<br />

Sarris, Andrew (1996), The American Cin<strong>em</strong>a: Directors and Directions 1929-1968, Da Capo Press.<br />

Outras fontes <strong>de</strong> consulta:<br />

http://www.albertbierstadt.org/ - Acedido a 15/01/2011<br />

http://www.allmovie.com/ - Acedido a 15/01/2011<br />

http://www.cmrussell.org/meet - Acedido a 15/01/2011<br />

http://www.fre<strong>de</strong>ricr<strong>em</strong>ington.org/ - Acedido a 15/01/2011<br />

http://www.karl-may-stiftung.<strong>de</strong>/museum/engl/may.html - Acedido a 15/01/2011<br />

http://www.wikipedia.org/ - Acedido a 15/01/2011<br />

105


PROJECTOS DE INVESTIGAÇÃO DO <strong>CIAC</strong>


PRINCIPAIS TENDÊNCIAS NO CINEMA PORTUGUÊS<br />

CONTEMPORÂNEO<br />

João Maria Men<strong>de</strong>s<br />

Está concluída a primeira parte do projecto <strong>de</strong> investigação “Principais tendências no cin<strong>em</strong>a português<br />

cont<strong>em</strong>porâneo”, <strong>de</strong>senvolvido no âmbito do <strong>CIAC</strong> e financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Nesta<br />

primeira parte tratou-se <strong>de</strong> apurar, a partir <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> entrevistas a realizadores e produtores cin<strong>em</strong>atográficos,<br />

quais os traços mais característicos do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> projectos para Cin<strong>em</strong>a no Portugal cont<strong>em</strong>porâneo,<br />

dando particular atenção à primeira década do século XXI, <strong>em</strong>bora alargando o objecto da análise à década anterior,<br />

e tendo <strong>em</strong> conta que, habitualmente, o discurso produzido sobre o “cin<strong>em</strong>a português cont<strong>em</strong>porâneo” se<br />

refere a um período mais vasto, que se inicia com a geração do “Cin<strong>em</strong>a Novo” — nos anos 60 e 70 do séc. XX.<br />

O projecto nasceu no Departamento <strong>de</strong> Cin<strong>em</strong>a da ESTC, com o objectivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver investigação<br />

especializada a partir <strong>de</strong> um núcleo formado por alunos da Licenciatura <strong>em</strong> Cin<strong>em</strong>a e do Mestrado <strong>em</strong><br />

Desenvolvimento <strong>de</strong> Projecto Cin<strong>em</strong>atográfico, a que se juntaram professores investigadores m<strong>em</strong>bros do<br />

<strong>CIAC</strong> e convidados. Foram entrevistados cerca <strong>de</strong> 40 realizadores e produtores portugueses ou trabalhando<br />

<strong>em</strong> Portugal, partindo da seguinte hipótese <strong>de</strong> trabalho: a “cultura organizacional” do cin<strong>em</strong>a português<br />

cont<strong>em</strong>porâneo parece contribuir mal para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> práticas comuns que tenham <strong>em</strong> vista a<br />

excelência dos objectos a produzir; mas é possível melhorar as metodologias mais partilhadas do <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> projectos cin<strong>em</strong>atográficos com vista a uma subida <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> dos filmes, s<strong>em</strong> quebra da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e<br />

dos valores positivos <strong>de</strong>sse mesmo cin<strong>em</strong>a — i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e valores que será necessário <strong>de</strong>finir e <strong>de</strong>screver.<br />

As entrevistas a realizadores <strong>de</strong>stinaram-se a estabelecer o corpus observacional <strong>em</strong>pírico mas são,<br />

<strong>em</strong> si mesmas, produto da investigação programada. Foram feitas com base num “guião” <strong>de</strong> geometria<br />

parcialmente variável, na tentativa <strong>de</strong> apurar um “padrão” <strong>de</strong> procedimentos característicos das teknai<br />

cin<strong>em</strong>atográficas tal como elas são maioritariamente praticadas <strong>em</strong> Portugal — se é que po<strong>de</strong>mos<br />

utilizar, nesta matéria, com rigor, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “padrão”. Estas entrevistas foram integralmente gravadas<br />

e posteriormente transcritas, tendo-se reduzido a oralida<strong>de</strong> nelas contida, mas s<strong>em</strong>, <strong>em</strong> nenhum caso,<br />

modificar ou alterar o sentido exacto <strong>de</strong> cada uma das respostas produzidas. Em alguns casos, dada a sua<br />

extensão, as gravações não foram transcritas na íntegra, preservando-se, no entanto, na sua transcrição,<br />

todas as respostas atinentes aos objectivos da investigação e ao “guião” que orientou as entrevistas.<br />

A esse corpus <strong>de</strong> entrevistas juntou-se um conjunto <strong>de</strong> ensaios t<strong>em</strong>áticos que com ele se<br />

articulam, e que integram a pesquisa produzida, b<strong>em</strong> como um conjunto <strong>de</strong> conclusões. Um arquivo<br />

documental relativo a t<strong>em</strong>as abordados na investigação compl<strong>em</strong>enta os materiais agora concluídos.<br />

Equipa que <strong>de</strong>senvolveu o projecto: Coor<strong>de</strong>nador: João Maria Men<strong>de</strong>s (<strong>CIAC</strong>/ESTC). Investigador<br />

convidado: Jacques L<strong>em</strong>ière (Université <strong>de</strong> Lille). Investigadores séniores: Ana Isabel Soares (<strong>CIAC</strong>/UALg),<br />

José <strong>de</strong> Matos-Cruz (ESTC), Vítor Reia-Baptista (<strong>CIAC</strong>/UALg). Equipa <strong>de</strong> investigação (<strong>CIAC</strong>/ESTC): Carlos<br />

Pereira, Jorge Jácome, Marta Simões, Miguel Cipriano, Vanessa Sousa Dias. Colaboradores (ESTC): Ágata Pinho,<br />

André Gil Mata, António Câmara, David Cortegaça, Fátima Chinita, Guilherme Trinda<strong>de</strong>, Hel<strong>de</strong>r Moreira, Joana<br />

Beleza, José Moeda (<strong>CIAC</strong>/UALg), José Rato, Jorge <strong>de</strong> Sá Gouveia, Levi Martins, Lídia Queirós, Luís Falcão,<br />

Marco Amaral, Paulo Leite, Pedro Vaz Simões, Rosário Oliveira, René Alan. Invocados: António Reis, João César<br />

Monteiro, José Álvaro Morais. No arquivo documental sobre Pedro Costa: Jacques Rancière, Kieron Corless,<br />

Miguel Gomes, Nicolas Azalbert, Pedro Costa, Peter Bradshaw, Ryland Walker Knight, Shigehiko Hasumi.<br />

Livro disponível <strong>em</strong>: http://www.ciac.pt/publications.php?i=4<br />

107


ENCRUZILHADAS METODOLÓGICAS:<br />

DA DIFICULDADE DE ESCREVER UMA «HISTÓRIA»<br />

DA ESCOLA DE TEATRO DO CONSERVATÓRIO<br />

Eugénia Vasques<br />

1.<br />

A «história do teatro» <strong>em</strong> Portugal é, cientificamente falando, um campo probl<strong>em</strong>ático <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

a sua orig<strong>em</strong> oitocentista. Com efeito, a primeira «história <strong>de</strong> teatro» foi publicada entre 1870-71,<br />

por Teófilo Braga, um «polígrafo» positivista acusado <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> critérios <strong>de</strong> escolha e <strong>de</strong> falta <strong>de</strong><br />

preparação nas muitas áreas que foi cultivando nos seus numerosos escritos.<br />

Mas para Teófilo Braga a «história <strong>de</strong> teatro» era, então, uma ramificação natural da Literatura<br />

e os quatro volumes sobre história do teatro que produziu -- História do Teatro Português. Vol. I -<br />

Vida <strong>de</strong> Gil Vicente e sua Escola – Século XVI; Vol. II – A Comédia Clássica e as Tragicomédias –<br />

Séculos XVI e XVII; Vol. III - A Baixa Comédia e a Ópera – Século XVIII; Vol. IV - Garrett e os<br />

Dramas Românticos – Século XIX (Porto, Imprensa Portuguesa, 1870-1871) – estavam inseridos<br />

numa História da Literatura Portuguesa. Esta incursão portuguesa pela «História do Teatro», <strong>de</strong><br />

recorte positivista, ficou isolada no t<strong>em</strong>po e no teste à sua metodologia tentativa.<br />

A proposta seguinte <strong>de</strong> uma «história do teatro» entre nós foi da autoria <strong>de</strong> uma investigadora<br />

italiana, ao t<strong>em</strong>po funcionária do Instituto Italiano <strong>em</strong> Lisboa, Luciana Stegagno Picchio. A sua<br />

História do Teatro Português foi publicada, <strong>em</strong> italiano, e <strong>em</strong> Itália, <strong>em</strong> 1964 e a sua tradução e<br />

publicação portuguesas viram a luz na editora Portugália, <strong>de</strong> Lisboa, <strong>em</strong> 1969. Luiz Francisco<br />

Rebello, advogado, dramaturgo e polígrafo, dá à estampa a primeira versão da sua História do<br />

Teatro Português, no ano anterior, <strong>em</strong> 1968, <strong>em</strong> Lisboa (Europa-América). Duarte Ivo Cruz,<br />

formado <strong>em</strong> História e filho do Director do Conservatório (entre 1939 e 1971), o maestro Ivo<br />

Cruz, arrisca uma Introdução à História do Teatro Português no Século XX (Lisboa, Guimarães<br />

Editora), <strong>em</strong> 1969, uma Introdução à História do Teatro Português - O Ciclo do Romantismo<br />

(Do Ju<strong>de</strong>u a Camilo), <strong>em</strong> 1983 (com reimpressão? 88??) e, na editora Verbo, <strong>em</strong> 2001, arrisca, uma<br />

vez mais, uma História do Teatro Português, global mas fragmentada por t<strong>em</strong>as e diferenciados<br />

pontos <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> escritos <strong>de</strong> circunstância, que mereceria o apodo crítico <strong>de</strong><br />

«estória» (cf. Oliveira e Ferreira, p. 348), pela sua ausência <strong>de</strong> método historiográfico e critérios<br />

científicos. Embora, ainda que noutro sentido, Collingwood, citado por Hay<strong>de</strong>n White, dissesse<br />

que o historiador era sobretudo um contador <strong>de</strong> estórias…<br />

Todas esta «histórias <strong>de</strong> teatro», posteriores a 1960, assentam na Literatura Dramática como<br />

orientação, ainda que Stegagno-Picchio levante a questão no seu prefácio, sublinhando que não<br />

po<strong>de</strong>ria ter avançado numa história do espectáculo e da encenação porque a “vida do espectáculo<br />

é objecto da crónica ou da história dos costumes [figurinos?], ligadas à cor e às anedotas locais. E<br />

aí o «estrangeiro» sente <strong>de</strong>veras os seus limites. . .” (p. 14). Acrescenta a seguir que, ainda assim,<br />

não se limita a fazer uma história da Literatura Dramática já que “os textos que serviram para a<br />

construção <strong>de</strong>ste edifício foram s<strong>em</strong>pre consi<strong>de</strong>rados na sua dimensão teatral, e não puramente<br />

literária.” (p. 15)<br />

108


2.<br />

Se a «história do teatro» <strong>em</strong> Portugal ou «português» -- questão i<strong>de</strong>ológica – ostenta, até à<br />

data, mesmo assim, uma mão cheia <strong>de</strong> tentativas que só difer<strong>em</strong> realmente entre si pelo rigor mas<br />

não gran<strong>de</strong>mente pela metodologia histórica <strong>em</strong> que assentam, já a história institucional do teatro<br />

entre nós é muito menos afortunada. Até aos anos 2000, e não falando <strong>de</strong> breves ou extensas<br />

monografias sobre Companhias e Teatros <strong>de</strong> referência, muitas produzidas <strong>em</strong> anos recentes, só<br />

os mais antigos teatros públicos ostentam bibliografia historiográfica.<br />

O Teatro S. Carlos foi por duas vezes alvo <strong>de</strong> tratamento historiográfico (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

Benevi<strong>de</strong>s, Mário Moreau, médico e melómano, publicou, <strong>em</strong> 1999, O Teatro <strong>de</strong> S. Carlos: Dois<br />

Séculos <strong>de</strong> História, Lisboa, Hugin).<br />

O Teatro D. Maria II foi alvo <strong>de</strong> uma história <strong>em</strong> 1950, História do Teatro Nacional D. Maria<br />

II, <strong>em</strong> dois volumes – na sequência da celebração do seu centenário <strong>em</strong> 1946 --, da autoria do<br />

historiador, arquivista do Nacional e olissipógrafo, Gustavo <strong>de</strong> Matos Sequeira ().<br />

A metodologia <strong>de</strong>sta ampla e única história do Teatro Nacional D. Maria II assenta, tal como<br />

a do S. Carlos, na lógica <strong>de</strong> uma arquivística sist<strong>em</strong>ática, não existindo, contudo, qualquer texto da<br />

autoria <strong>de</strong> Gustavo <strong>de</strong> Matos Sequeira a falar da natureza do seu trabalho. Em jeito <strong>de</strong> informação<br />

prévia, diz-se que “o Senhor José <strong>de</strong> Matos Sequeira, fiel-arquivista do Teatro Nacional D. Maria<br />

II. . .[foi essencial colaborador] não só no fornecimento <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> trabalho, mas ainda com<br />

a autoria das relações dos artistas e das peças representadas no teatro, e <strong>de</strong> todos os índices da<br />

obra” (s/p) e o Ministro da Educação, que assume o cargo da publicação atrasada <strong>de</strong>sta história<br />

com<strong>em</strong>orativa, afirma <strong>em</strong> «Nota Introdutória» sobre a obra, ter ela sido “or<strong>de</strong>nada e escrita pelo<br />

ilustre hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> letras e <strong>de</strong> teatro, Senhor Gustavo <strong>de</strong> Matos Sequeira, historiador dos mais<br />

competentes e mestre, por todos reconhecido, na arte <strong>de</strong> escrever” (s/p), o que não é exagero<br />

pois o autor ostentava, à data, <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> escritos historiográficos sobre vasta matéria patrimonial<br />

construída, literária, geográfica – com um livro publicado, <strong>em</strong> 1934, sobre o Mediterrâneo --,<br />

dramática, etc..<br />

3.<br />

Estas são, <strong>em</strong> suma, as histórias -- <strong>de</strong>signadas como «histórias» -- que se fizeram do Teatro<br />

e <strong>de</strong> teatros. Em nenhum <strong>de</strong>stes trabalhos encontra o/a investigador/a, contudo, uma sólida linha<br />

<strong>de</strong> referência a uma metodologia adoptada. Encontra, isso sim, muito trabalho, muita informação<br />

acumulada ao longo <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> aturado labor arquivístico e encontra a validação <strong>de</strong> fontes que, se<br />

informais, ostentam <strong>de</strong>sacerto <strong>de</strong> informações.<br />

Posto isto, propor, individualmente, um estudo <strong>de</strong> historiografia factual <strong>de</strong> uma instituição<br />

<strong>de</strong> ensino do teatro, a Escola <strong>de</strong> Teatro do Conservatório <strong>de</strong> Lisboa – instituição mais ampla<br />

que abrange, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua orig<strong>em</strong>, o ensino da Música, do Teatro, da Dança e sobre a qual não<br />

existe qualquer análise <strong>de</strong> conjunto, existindo, <strong>em</strong> termos académicos, somente dois estudos, não<br />

publicados, sobre parte do percurso da Escola <strong>de</strong> Música -, é, à partida, um contra-senso. Ainda<br />

por cima, <strong>de</strong>pois da lição <strong>de</strong> Brau<strong>de</strong>l, no seu Meditérranéan, que repudia a «histoire évén<strong>em</strong>entiellle»<br />

ou história dos factos!<br />

Como proce<strong>de</strong>r, então, num trabalho isolado e individual e num tão escasso espaço t<strong>em</strong>poral<br />

como o dos projectos do <strong>CIAC</strong> financiados pela FCT?<br />

Pois b<strong>em</strong>: proce<strong>de</strong>r <strong>de</strong> modo pragmático, tendo <strong>em</strong> vista objectivos funcionais. E procurar mo<strong>de</strong>los<br />

<strong>de</strong> referência. Nova surpresa! As histórias dos Conservatórios <strong>de</strong> Teatro rareiam na Europa e nos<br />

Estados Unidos!<br />

Encontrou-se, datado <strong>de</strong> 1986, um estudo francês celebratório, esquálido mas recente,<br />

intitulado Deux Siècles au Conservatoire National D’Art Dramatique (Paris, CNSAD), da autoria <strong>de</strong><br />

Monique Sueur, um título espanhol, da autoria <strong>de</strong> Javier Martin Santos, dos anos 70 (Cien<br />

109


Años <strong>de</strong> Historia <strong>de</strong>l Conservatorio <strong>de</strong> Valencia, Conservatorio Superior <strong>de</strong> Musica y Esculea <strong>de</strong> Arte<br />

Dramatico <strong>de</strong> Valencia, 1979), inacessível, alguns trabalhos brasileiros <strong>de</strong>dicados sobretudo aos<br />

Conservatórios <strong>de</strong> Música – como, por ex<strong>em</strong>plo, sobre o Imperial Conservatório do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro (1841-1890) e <strong>de</strong> Siqueira Baptista, Do Conservatório à Escola <strong>de</strong> Música: Ensaio Histórico, R. <strong>de</strong><br />

J., Cida<strong>de</strong> Universitária, UFRJ, 1972 -- e uma bibliografia mais extensa, francesa, mas igualmente<br />

sobre o ensino da Música, sobretudo dos séculos XVIII e XIX que constitu<strong>em</strong>, aliás, um mo<strong>de</strong>lo<br />

para os estudos posteriores.<br />

Toda a bibliografia estrangeira consultada <strong>de</strong>nota a mesma oposição <strong>de</strong>tectada na bibliografia<br />

portuguesa: ou se trata <strong>de</strong> obras historiográficas <strong>de</strong> teor arquivístico e documental ou <strong>de</strong> obras<br />

assentes na literatura dramática. Notoriamente, n<strong>em</strong> a História, lato senso, n<strong>em</strong> a Sociologia e<br />

outras disciplinas <strong>de</strong> uma História Social e Política ou <strong>de</strong> Mentalida<strong>de</strong>s cont<strong>em</strong>porâneas se têm<br />

interessado pela vida probl<strong>em</strong>ática das velhas instituições pioneiras do ensino formal do teatro.<br />

4.<br />

Como v<strong>em</strong>, então, sendo construída esta particular pesquisa quase solitária que finalmente<br />

intitulei, cautelosamente, não «História», mas, corrigindo passos iniciais A Escola <strong>de</strong> Teatro do<br />

Conservatório (1839-1901): Contributo para uma História do Conservatório <strong>de</strong> Lisboa? Num primeiro<br />

momento, que durou vários anos, <strong>de</strong> 1998 a 2006, foram acumulados documentos e informação<br />

relativos à evolução da Escola <strong>de</strong> Teatro do Conservatório <strong>de</strong> Lisboa. Depois, chegámos a uma<br />

visão panorâmica da sua vida que, num primeiro volume, se balizaria, cronologicamente, <strong>em</strong> dois<br />

acontecimentos-charneira: o falhado Plano da Reforma Geral dos Estudos, <strong>de</strong> 1834, redigido por<br />

Almeida Garrett (cujo conteúdo específico se terá perdido mas do qual a criação do Conservatório<br />

<strong>de</strong> Arte Dramática é uma directa sequência) e o plano <strong>de</strong> reorganização do Conservatório Real<br />

<strong>de</strong> Lisboa e a sua Escola <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> 1901. Num segundo volume, seria estudado o período<br />

seguinte, que se fixou entre aquele ano <strong>de</strong> início do século XX e 1971, ano do Plano <strong>de</strong> Reforma<br />

do Ensino, coor<strong>de</strong>nado por Maria Madalena Perdigão, a pedido do então Ministro da Educação,<br />

José Veiga Simão. O historial dos anos restantes do século XX e XXI ficaria reservado para<br />

trabalho posterior <strong>em</strong> equipa.<br />

Este 1º volume abarca, então, ainda que s<strong>em</strong> exaustivida<strong>de</strong>, cerca <strong>de</strong> cento e <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong><br />

um percurso pedagógico carregado <strong>de</strong> vicissitu<strong>de</strong>s e interrupções, ou seja, cerca <strong>de</strong> quarenta anos<br />

intermitentes <strong>de</strong> funcionamento no <strong>de</strong>curso do século XIX – já que a instituição só estará no<br />

activo, mas s<strong>em</strong> continuida<strong>de</strong>, entre 1839-48, 1861-1885 e 1885-1892 – e cerca <strong>de</strong> setenta anos no<br />

<strong>de</strong>curso do século XX.<br />

5.<br />

A metodologia a adoptar neste trabalho t<strong>em</strong>-nos provocado muitas dúvidas e hesitações,<br />

avanços e recuos. Até este momento, conseguimos fazer confluir duas dimensões principais<br />

<strong>de</strong> observação: a apresentação, <strong>em</strong> narrativa simples, da legislação estatal produzida sobre a<br />

Escola <strong>de</strong> Teatro e a análise dos materiais institucionais que, ainda que dispersos e incompletos,<br />

chegaram até nós, espalhados por várias instituições e locais como o <strong>de</strong>spedaçado Arquivo do<br />

velho Conservatório. Estes materiais, que incluímos nas fontes formais, foram consultados,<br />

principalmente, no arquivo histórico da Escola Superior <strong>de</strong> Teatro e Cin<strong>em</strong>a (Livro 1º <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>ns<br />

do Director 1914-1972; Livro <strong>de</strong> Posses nº 17; selecção, resumo e dactilografia <strong>de</strong> documentos<br />

do Arquivo do Conservatório Real <strong>de</strong> Lisboa 1836-1870, correspondência, mapas <strong>de</strong> frequência,<br />

documentação administrativa vária), no importante arquivo do Conservatório Nacional do<br />

Ministério da Educação e, relativo à Correspondência do Conservatório com o Reino, na Torre<br />

do Tombo.<br />

Com esta dimensão <strong>de</strong> observação documental cruza-se, inevitavelmente, uma dimensão<br />

110


sociológica que se vai construindo através da <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> indicadores (ainda que dispersos e <strong>de</strong><br />

natureza diversa) referentes ao impacto do ensino da Escola <strong>de</strong> Teatro na dignificação da vida e<br />

estatuto social dos actores e, principalmente, das actrizes, matéria prioritária no primeiro volume<br />

<strong>de</strong>sta investigação. Os referidos indicadores estão patentes <strong>em</strong> documentos, éditos ou inéditos, <strong>de</strong><br />

natureza formal ou informal, sobretudo do Arquivo do Teatro Nacional D. Maria II.<br />

6.<br />

Este estudo exploratório assenta na convicção, política e sociológica, <strong>de</strong> que, como tantos<br />

autores e autoras, fora <strong>de</strong> Portugal, têm referido sobre o século XIX (1) , ainda que para realida<strong>de</strong>s<br />

sócio-culturais diferentes das nossas, também o teatro português do século XIX foi, <strong>de</strong> algum<br />

modo, “a f<strong>em</strong>inized realm” (Cox, p. 36). Tentar-se-á ir mostrando essa realida<strong>de</strong> escondida<br />

através <strong>de</strong> uma particular atenção à f<strong>em</strong>inização da Escola <strong>de</strong> Teatro mas, igualmente, através do<br />

<strong>de</strong>svendamento do papel diferenciado das mulheres na profissão teatral (cf. também Vasques,<br />

2003, pp. 152-153). Encontrar<strong>em</strong>os, então, actrizes que traduziram, escreveram, dirigiram grupos<br />

e Companhias, romperam com os estereótipos artísticos e sociais, e, se b<strong>em</strong> que não cont<strong>em</strong>os<br />

no nosso teatro com uma Elizabeth Vestris (2) , que ousou e teve po<strong>de</strong>r para mudar técnicas<br />

e conceitos <strong>de</strong> trabalho, a verda<strong>de</strong> é que é, actualmente, reflexo <strong>de</strong> profunda iliteracia cultural<br />

estudar o cânone teatral, o romântico ou outro, ignorando o ocultado papel das mulheres na sua<br />

construção ou probl<strong>em</strong>atização.<br />

NOTAS<br />

(1)Cf., por ex<strong>em</strong>plo, Margaret J. M. Ezell, citada por Cox, p. 28, referindo-se às dramaturgas<br />

inglesas do século XIX.<br />

(2)Lucia Elizabeth Bartolozzi (1797-185), bailarina e <strong>em</strong>presária inglesa, é consi<strong>de</strong>rada uma<br />

renovadora das práticas cénicas, particularmente da “criação” da primeira representação<br />

cenográfica <strong>de</strong> uma sala, <strong>em</strong> três dimensões, e criadora <strong>de</strong> uma concepção <strong>de</strong> treino que incluía<br />

ensaios mais longos e <strong>de</strong> pormenor.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Braga, Teófilo, História do Teatro Português. Vol. I - Vida <strong>de</strong> Gil Vicente e sua Escola – Século XVI; Vol. II – A<br />

Comédia Clássica e as Tragicomédias – Séculos XVI e XVII; Vol. III - A Baixa Comédia e a Ópera – Século XVIII;<br />

Vol. IV - Garrett e os Dramas Românticos – Século XIX, Porto, Imprensa Portuguesa, 1870-1871.<br />

Burke, Peter (org), [1991] A Escrita da História: Novas Perspectivas, São Paulo, UNESP, 1992; 5ª reimpressão.<br />

Cruz, Duarte Ivo, Cruz, Introdução à História do Teatro Português, Lisboa, Guimarães, 1983.<br />

Jenkins, Keith, Re-Thinking History with a New Preface and Conversation with the Author by Alun Munslow,<br />

London, Routledge, 1991.<br />

Oliveira, F. Matos <strong>de</strong> e J. A. Ferreira, “Estórias do Teatro Português”, Colóquio/Letras, nº 157-8, 2000, pp,<br />

348-352<br />

Rebello, Luiz Francisco, História do Teatro Português, Lisboa, Europa-América, 1968.<br />

Silva, Joaquim, Penna e J. B. Damasco, História Geral, S. Paulo, Cª Editora Nacional, 1972.<br />

Stegagno Picchio, Luciana, História do Teatro Português, Lisboa, Portugália, 1969. Vasques,<br />

Vasques, Eugénia, Mulheres que Escreveram Teatro no Século XX <strong>em</strong> Portugal, Lisboa, Colibri, 1998.<br />

WHITE, Hay<strong>de</strong>n, “O Texto Histórico como Artefato literário”, Trópicos do Discurso, São Paulo, Edusp, (s/d).<br />

111


Projecto <strong>de</strong> comunicação integrada da<br />

investigação <strong>em</strong> artes<br />

Gabriela Borges<br />

O projecto <strong>de</strong> comunicação integrada da investigação <strong>de</strong>senvolvida no <strong>CIAC</strong> foi elaborado<br />

com o propósito <strong>de</strong> criar um conceito <strong>de</strong> comunicação científica das artes, que cont<strong>em</strong>pla a divulgação<br />

dos resultados da investigação e das activida<strong>de</strong>s do centro e tendo como foco principal a utilização<br />

das ferramentas disponibilizadas pelos meios digitais e pela Internet.<br />

Uma proposta <strong>de</strong> comunicação institucional(1) constituída pela criação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

visual do centro, o estacionário, a criação <strong>de</strong> uma página na internet (2) , <strong>de</strong> uma brochura <strong>de</strong><br />

apresentação do centro, <strong>de</strong> uma newsletter trimestral, da revista científica Verónica e do Ciclo <strong>Artes</strong><br />

e <strong>Comunicação</strong>.<br />

Além disso, foi <strong>de</strong>senvolvido o projecto <strong>de</strong> investigação transdisciplinar Cross Media, Mixed<br />

Media <strong>em</strong> Novas Tecnologias da Informação e <strong>Artes</strong> Performativas. Este t<strong>em</strong> como principal objectivo<br />

o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma plataforma multimédia <strong>de</strong> divulgação científica <strong>em</strong> que a arte, a<br />

comunicação e a tecnologia são postas <strong>em</strong> diálogo a partir dos resultados obtidos pelos projectos<br />

<strong>de</strong> investigação dos dois grupos <strong>de</strong> investigação do Ciac: Teatro e Estudos da Performance e<br />

Estudos Fílmicos, <strong>Comunicação</strong> e <strong>Artes</strong> Visuais.<br />

Sendo assim, este <strong>artigo</strong> t<strong>em</strong> o intuito <strong>de</strong> dar a conhecer o processo <strong>de</strong> concepção e criação<br />

da comunicação integrada que v<strong>em</strong> sendo <strong>de</strong>senvolvida no Ciac. Partilhamos a opinião <strong>de</strong> que<br />

o centro <strong>de</strong>ve criar uma imag<strong>em</strong> institucional forte e credível que afirme a relevância das artes<br />

enquanto um campo <strong>de</strong> investigação científica e promova o reconhecimento da importância da<br />

investigação artística aplicada.<br />

<strong>Comunicação</strong> institucional<br />

O primeiro passo para o <strong>de</strong>senvolvimento da comunicação institucional do Ciac foi a criação<br />

da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> corporativa do <strong>Centro</strong>, que procurou explorar as cores <strong>de</strong> tons quentes, que variavam<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tons <strong>de</strong> rosa e vermelho até o castanho. O logótipo, como po<strong>de</strong> ser observado abaixo,<br />

apresenta um tipo <strong>de</strong> letra arredondada que t<strong>em</strong> o intuito <strong>de</strong> proporcionar uma comunicação<br />

directa da imag<strong>em</strong> do centro, i<strong>de</strong>ntificando não apenas a sigla como o próprio nome, dado que se<br />

mostrou necessário por se tratar do lançamento <strong>de</strong> uma imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> marca.<br />

112


O estacionário conta com a aplicação do logótipo a fim <strong>de</strong> criar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da imag<strong>em</strong> da<br />

marca sendo constituído por papéis <strong>de</strong> carta, cartões <strong>de</strong> visita, envelopes, cartões <strong>de</strong> cumprimentos,<br />

capas <strong>de</strong> documentos, blocos <strong>de</strong> notas e também a brochura <strong>de</strong> apresentação do centro (3).<br />

Papel <strong>de</strong> Carta, envelope e cartão <strong>de</strong> cumprimentos<br />

Bloco <strong>de</strong> Notas e pasta<br />

113


A brochura <strong>de</strong> apresentação(4) funciona como um instrumento <strong>de</strong> divulgação do Ciac <strong>em</strong><br />

eventos e activida<strong>de</strong>s científicas. Fornece informação sobre as linhas <strong>de</strong> investigação, a formação<br />

avançada, os investigadores, as publicações e plataforma multimédia.<br />

A página na internet (5) foi criada com o intuito <strong>de</strong> dar a conhecer a estrutura organizativa, a<br />

produção científica e as activida<strong>de</strong>s do centro. Apresenta um layout simétrico, que reflecte as cores<br />

da marca e aposta na forma rectangular <strong>em</strong> contraposição ao logótipo que apresenta uma forma<br />

arredondada. A informação está organizada numa linguag<strong>em</strong> simples, directa e b<strong>em</strong> resumida, a fim <strong>de</strong><br />

permitir uma leitura rápida. É <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar que a navegabilida<strong>de</strong> foi uma das preocupações durante o<br />

processo <strong>de</strong> criação a fim <strong>de</strong> facilitar o acesso rápido aos dados por parte do usuário. É publicada <strong>em</strong><br />

duas línguas: português e inglês, a fim <strong>de</strong> atingir um público mais alargado. O público-alvo do site é<br />

composto tanto pelos m<strong>em</strong>bros e colaboradores do Ciac, alunos, entida<strong>de</strong>s parceiras e público <strong>em</strong> geral<br />

como também pelos avaliadores externos que compõ<strong>em</strong> os painéis <strong>de</strong> avaliação da FCT.<br />

Os menus do site permit<strong>em</strong> divulgar todas as activida<strong>de</strong>s do centro e fornec<strong>em</strong> as informações<br />

mais relevantes <strong>de</strong> forma ágil e estruturada. O menu principal na parte superior da página conta com<br />

os seguintes campos: qu<strong>em</strong> somos, objectivos, investigação, produção científica, formação avançada,<br />

activida<strong>de</strong>s e contactos. O menu secundário lateral apresenta os campos procurar, agenda, notícias,<br />

publicações, newsletter, links e ainda terá a inserção <strong>de</strong> um banner para direccionar o usuário para a<br />

plataforma multimédia, como po<strong>de</strong> ser observado na imag<strong>em</strong> abaixo:<br />

Site do <strong>CIAC</strong> (www.ciac.pt)<br />

Brochura <strong>de</strong> Apresentação<br />

114


No campo notícias, que é a home page da página, são anunciadas as activida<strong>de</strong>s mais significativas<br />

<strong>de</strong>senvolvidas no centro, enquanto o campo agenda dá a conhecer todas as activida<strong>de</strong>s científicas<br />

realizadas pelos m<strong>em</strong>bros do Ciac. Em publicações po<strong>de</strong>-se encontrar as actas dos encontros científicos<br />

b<strong>em</strong> como os livros publicados pelos m<strong>em</strong>bros do Ciac, seja <strong>em</strong> parceria com editoras ou edições<br />

próprias.<br />

Os submenus disponibilizam informações <strong>de</strong>talhadas, tais como: No campo qu<strong>em</strong> somos encontrase<br />

a informação sobre a comissão executiva, a comissão científica e a comissão <strong>de</strong> acompanhamento,<br />

além dos resultados das avaliações trienais. No campo objectivos encontram-se os objectivos gerais do<br />

centro, assim como os objectivos específicos para o período 2009-2011. No campo produção científica<br />

encontram-se as linhas e os grupos <strong>de</strong> investigação e no campo activida<strong>de</strong>s estão disponibilizadas as<br />

activida<strong>de</strong>s multidisciplinares e integradas, b<strong>em</strong> como as activida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> extensão.<br />

Na avaliação da actuação da página fornecida pelo Google Analytics(6), po<strong>de</strong>-se verificar que no<br />

período <strong>de</strong> Dez<strong>em</strong>bro 2009 a Dez<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2010 o site recebeu 5 678 visitas que tiveram orig<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

48 países diferentes, <strong>de</strong>ntre eles <strong>de</strong>stacam-se Portugal (com 4749 visitas), Brasil, Espanha, Reino Unido,<br />

Bélgica e Estados Unidos.<br />

No período analisado o site teve mais <strong>de</strong> 25 mil páginas visualizadas e uma taxa <strong>de</strong> rejeição <strong>de</strong><br />

45% (7). Consi<strong>de</strong>rando que uma boa taxa <strong>de</strong> rejeição <strong>de</strong>ve encontrar-se entre os 30% a 40%, a taxa do<br />

Ciac é consi<strong>de</strong>rada boa se analisarmos o tipo <strong>de</strong> site (leitura s<strong>em</strong> metas <strong>de</strong>finidas) e o t<strong>em</strong>po médio <strong>de</strong><br />

visita. Neste caso, o t<strong>em</strong>po médio <strong>de</strong> visitas é <strong>de</strong> 3 minutos e as novas visitas representam cerca <strong>de</strong> 62%.<br />

Do total <strong>de</strong> visitas, cerca <strong>de</strong> 4500 utilizaram o idioma português e 1000 o idioma inglês.<br />

Mais <strong>de</strong> 50% das visitas provém dos motores <strong>de</strong> busca, sendo que a palavra Ciac ou outras<br />

relacionadas representam 35% das buscas. Estes números indicam que o usuário já conhecia previamente<br />

o Ciac, caso contrário teria chegado ao site por meio <strong>de</strong> outras palavras <strong>de</strong> busca.<br />

Os websites <strong>de</strong> referência enviaram 1 384 visitas através <strong>de</strong> 134 origens diferentes, <strong>de</strong>ntre elas<br />

<strong>de</strong>stacam-se ualg.pt (312), facebook.com (147), proximofuturo.blogspot.com (114), ext-minds.com<br />

(59), estc.ipl.pt (48), <strong>de</strong>v.labworks.<strong>de</strong> (46), google.pt (42), intermediarte.org (37) e w0.mail.sapo.pt (35).<br />

A newsletter, criada com a mesma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> visual, é enviada trimestralmente para os m<strong>em</strong>bros e<br />

colaboradores do centro assim como para uma mailing list com mais <strong>de</strong> mil contactos, incluindo alunos<br />

dos dois pólos do Ciac e instituições parceiras. O intuito da newsletter é comunicar as activida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>senvolvidas pelo Ciac, a produção científica <strong>de</strong> m<strong>em</strong>bros e colaboradores e convidar o público <strong>em</strong><br />

geral para participar nos eventos do <strong>Centro</strong> (8) .<br />

Newsletter do <strong>CIAC</strong> (http://www.ciac.pt/newsletter_archive.php)<br />

115


A revista científica Verónica será uma publicação s<strong>em</strong>estral do Ciac a ser lançada <strong>em</strong> 2011<br />

que contará com as seguintes secções: dossiê t<strong>em</strong>ático, t<strong>em</strong>as livres, resenhas, teses e entrevista.<br />

Os dossiês t<strong>em</strong>áticos são organizados com o intuito <strong>de</strong> aprofundar uma questão ou um conjunto<br />

<strong>de</strong> probl<strong>em</strong>áticas sobre um t<strong>em</strong>a específico. Os <strong>artigo</strong>s enviados pelos autores à revista são<br />

submetidos ao processo <strong>de</strong> peer review por pareceristas <strong>de</strong> renome internacional (9).<br />

Revista Científica Verónica (www..revista.ciac.pt)<br />

O Ciclo <strong>Artes</strong> e <strong>Comunicação</strong> (10) foi criado com o intuito <strong>de</strong> divulgar as publicações<br />

científicas do Ciac, <strong>em</strong> especial, mas não exclusivamente, os livros da colecção <strong>Artes</strong> e Media, uma<br />

parceria do centro com a Editora Gradiva. Até o presente foram realizados dois eventos no Pátio<br />

<strong>de</strong> Letras <strong>em</strong> Faro.<br />

<strong>Comunicação</strong> científica das artes<br />

O projecto Cross Media, Mixed Media <strong>em</strong> Novas Tecnologias da Informação e <strong>Artes</strong> Performativas t<strong>em</strong><br />

como objectivo divulgar a investigação científica <strong>de</strong>senvolvida no Ciac e explorar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

se <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>r um diálogo entre as artes, a comunicação e a tecnologia utilizando as potencialida<strong>de</strong>s<br />

da Internet.<br />

Na primeira fase do projecto foi elaborada uma plataforma multimédia que serve como<br />

um banco <strong>de</strong> dados que divulga os resultados dos projectos do Ciac. A sua criação teve o intuito<br />

<strong>de</strong> garantir a sua funcionalida<strong>de</strong> e navegabilida<strong>de</strong>, por um lado, b<strong>em</strong> como a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> visual do<br />

centro, s<strong>em</strong> contudo <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> trabalhar com aspectos criativos e lúdicos.<br />

Porém, é <strong>de</strong> ressaltar ainda que esta plataforma <strong>de</strong>ve actuar não apenas como um banco<br />

<strong>de</strong> dados mas também como um estímulo à investigação artística aplicada a partir das novas<br />

linguagens que surg<strong>em</strong> com o <strong>de</strong>senvolvimento da tecnologia digital.<br />

A questão <strong>de</strong> fundo que se coloca neste projecto está relacionada com a criação <strong>de</strong> intersecções<br />

e interlocuções entre a teoria e a prática, tanto artística quanto comunicacional. Em termos <strong>de</strong><br />

fundamentação teórica, a concepção da plataforma baseou-se num extenso levantamento das<br />

plataformas multimédia disponíveis na Internet e nos estudos sobre os bancos <strong>de</strong> dados e a<br />

linguag<strong>em</strong> dos novos media <strong>de</strong>senvolvidos por Lev Manovich.<br />

Os bancos <strong>de</strong> dados já exist<strong>em</strong> há muitos anos, mas a sua potencialida<strong>de</strong> foi particularmente<br />

explorada com o advento dos meios digitais. Ao permitir o acesso à informação <strong>de</strong> uma forma<br />

pontual e não linear, os meios digitais estimularam o <strong>de</strong>senvolvimento dos bancos <strong>de</strong> dados, que<br />

116


acabaram por se tornar numa forma <strong>de</strong> expressão intrínseca a estes meios. Sendo assim, a internet<br />

tornou-se num terreno fértil para o uso <strong>de</strong> bancos <strong>de</strong> dados existentes e para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />

novos bancos, com a ressalva <strong>de</strong> que <strong>em</strong> relação ao formato, muitos <strong>de</strong>les significam apenas hiperligações<br />

para outras páginas.<br />

Manovich (2001: 218) argumenta que o banco <strong>de</strong> dados é a principal forma <strong>de</strong> expressão cultural<br />

na era do computador, representando o mundo como uma lista <strong>de</strong> itens que nunca são or<strong>de</strong>nados. Os<br />

bancos <strong>de</strong> dados são <strong>de</strong>finidos como uma colecção estruturada <strong>de</strong> dados que permite a busca rápida,<br />

cujos dados po<strong>de</strong>m ser recuperados facilmente pelo computador. Pela sua natureza aberta, os bancos<br />

<strong>de</strong> dados po<strong>de</strong>m ser alimentados frequent<strong>em</strong>ente com novas informações, além <strong>de</strong> <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>r<strong>em</strong> uma<br />

nova forma <strong>de</strong> estruturar a nossa experiência no mundo que nos ro<strong>de</strong>ia.<br />

In<strong>de</strong>ed, if after the <strong>de</strong>ath of God (Nietzsche), the end of grand Narratives of Enlightenment (Lyotard), and the arrival<br />

of the Web (Tim Berners-Lee), the world appears to us as an endless and unstructured collection of images, texts, and<br />

other data records, it is only appropriate that we will be moved to mo<strong>de</strong>l it as a database. But it is also appropriate that<br />

we would want to <strong>de</strong>velop a poetics, aesthetics and ethics of this database. (Manovich, 2001: 219).<br />

No sentido <strong>de</strong> reflectir sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolver uma poética, uma estética e uma<br />

ética dos bancos <strong>de</strong> dados, como afirma Manovich, este projecto, que conta com duas fases, elaborou<br />

a seguinte proposta, não <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ter <strong>em</strong> conta o que já tinha sido <strong>de</strong>senvolvido <strong>em</strong> termos <strong>de</strong><br />

comunicação institucional. A primeira fase, que tinha como objectivo a elaboração do banco <strong>de</strong> dados,<br />

está completa e a segunda fase que prevê a construção <strong>de</strong> narrativas digitais multimédia será <strong>de</strong>senvolvida<br />

<strong>em</strong> 2011-2012.<br />

Procurando manter a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> visual do Ciac, o conceito criativo que norteia a criação da<br />

homepage da plataforma está associado aos objectos usados pelos artistas das áreas do teatro, do cin<strong>em</strong>a,<br />

das artes visuais, da literatura, da televisão e do documentário, os quais se encontram espalhados no<br />

espaço da página e permit<strong>em</strong> que o usuário, ao mover o rato, aceda aos dados por meio das diversas<br />

hiperligações. Foram <strong>de</strong>finidos campos e categorias para organizar estes dados. Os campos <strong>de</strong>finidos<br />

foram obras, autores, projectos, banco multimédia e equipamentos culturais e as categorias são as<br />

diferentes áreas mencionadas acima, as quais concern<strong>em</strong> os trabalhos <strong>de</strong> investigação do Ciac.<br />

A criação da homepage procurou compor uma inter-relação entre el<strong>em</strong>entos, aparelhos e<br />

instrumentos antigos e actuais, ilustrativos e estilizados, a fim <strong>de</strong> cont<strong>em</strong>plar tanto a investigação<br />

histórica quanto cont<strong>em</strong>porânea e comunicar a importância <strong>de</strong>ste diálogo para a reflexão <strong>de</strong>senvolvida<br />

pelo <strong>Centro</strong>. A caixa, que se encontra no campo inferior esquerdo, foi criada para transmitir a mensag<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong> que continha todos estes el<strong>em</strong>entos que se encontram agora espalhados pela página, como se fosse<br />

uma caixa <strong>de</strong> trabalho <strong>em</strong> que o artista guarda todas as suas ferramentas, i<strong>de</strong>ias e pertences. Por outro<br />

lado, a hiperligação da caixa t<strong>em</strong> o intuito <strong>de</strong> permitir ao usuário o acesso directo, mais rápido e menos<br />

lúdico a todos os projectos <strong>de</strong> investigação.<br />

Plataforma Multimédia do <strong>CIAC</strong> (www.crossmediaplatform.ciac.pt)<br />

117


Portanto, o acesso à plataforma é realizado por meio <strong>de</strong> hiperligações que direccionam o<br />

usuário para cada um <strong>de</strong>stes campos e categorias. Uma vez que o usuário interage com a primeira<br />

interface passa a ter acesso não apenas aos dados específicos do campo através do qual ace<strong>de</strong>u,<br />

mas também a um menu com os seguintes campos: projectos, obras, autores, banco multimédia<br />

e equipamentos culturais, o qual está subdividido <strong>em</strong> categorias e filtros. Os campos projectos,<br />

obras e autores estão subdivididos nas categorias teatro, cin<strong>em</strong>a, artes visuais, literatura, televisão<br />

e documentário. O campo banco multimédia está organizado <strong>de</strong> modo inverso aos campos<br />

mencionados anteriormente; apresentando as categorias fotografia, ví<strong>de</strong>o, áudio e texto e os<br />

filtros teatro, cin<strong>em</strong>a, artes visuais, literatura, televisão e documentário. O campo equipamentos<br />

culturais apresenta as categorias casas <strong>de</strong> cultura, bibliotecas, teatros, galerias <strong>de</strong> arte e cineteatros.<br />

Cada categoria permite também o acesso por or<strong>de</strong>m alfabética e pelo filtro formatos. As categorias<br />

cin<strong>em</strong>a e televisão estão subdivididas nos formatos ficção, entrevista, registo documental, crítica<br />

e outros. A categoria artes visuais está subdividida nos formatos pintura, escultura, animação,<br />

instalação, ví<strong>de</strong>o arte, fotografia e outros.<br />

O campo projectos, como foi explicado, permite o acesso directo aos seguintes registos<br />

dos projectos <strong>de</strong> investigação do <strong>CIAC</strong>: título, coor<strong>de</strong>nação, equipa <strong>de</strong> investigação, resumo,<br />

objectivos, metodologia, resultados, <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>talhada, parceiros, b<strong>em</strong> como aos recursos<br />

disponibilizados pelo banco multimédia.<br />

O campo obras disponibiliza registos com informações gerais para todas as categorias, tais<br />

como, título da obra, banco multimédia e palavras-chave; e informações mais específicas para cada<br />

uma <strong>de</strong>las. Para a categoria artes visuais encontramos os registos autor, ano, local <strong>de</strong> exposição,<br />

equipamentos culturais. Para as categorias audiovisuais encontramos as seguintes registos: título<br />

da obra, realizador, ano <strong>de</strong> exibição e equipa técnica. Para a categoria teatro encontramos os<br />

registos sinopse, encenador, autor, elenco, ano, locais <strong>de</strong> representação e equipa técnica e para a<br />

categoria literatura encontramos os registos sinopse, autor, ano <strong>de</strong> publicação, excertos e editora.<br />

O campo autores disponibiliza as seguintes informações: nome, biografia, fotografia, datas<br />

<strong>de</strong> nascimento e falecimento, local, obras, mais <strong>em</strong> para hiperligações externas ao site, banco<br />

multimédia e palavras-chave.<br />

O campo banco multimédia agrega todos os campos, categorias e filtros construídos para<br />

a plataforma e apresenta os recursos ví<strong>de</strong>o, audio, fotografia e texto, disponibilizando a produção<br />

audiovisual e textual do centro. Sendo assim, o usuário po<strong>de</strong> navegar pelos registos a partir dos<br />

caminhos que já tinham sido sugeridos pelos campos projectos, autores e obras, ou directamente<br />

pelas categorias do banco multimédia, que está organizada <strong>em</strong> or<strong>de</strong>m alfabética.<br />

Plataforma Multimédia do <strong>CIAC</strong> (www.crossmediaplatform.ciac.pt)<br />

118


A informação disponibilizada <strong>em</strong> cada um dos campos é a seguinte:<br />

Ví<strong>de</strong>o: título do ví<strong>de</strong>o, realização, elenco, ano, equipa técnica, palavras-chave, hiperligação ao ficheiro<br />

<strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o e ligações (para ace<strong>de</strong>r aos dados referentes ao mesmo projecto na plataforma).<br />

Fotografia: título do álbum, fotografia da capa, legenda por cada foto, autor, palavras-chave, equipa<br />

técnica e ligações.<br />

Áudio: título, ano, realização, palavras-chave, hiperligação ao ficheiro <strong>de</strong> áudio, equipa técnica e ligações.<br />

Texto: título, equipa <strong>de</strong> investigação, resumo, palavras-chave, mais <strong>em</strong> para as hiperligações externas,<br />

ligações e anexos.<br />

O campo equipamentos culturais apresenta as seguintes informações: nome do local, fotografia,<br />

morada, activida<strong>de</strong>s, banco multimédia e palavras-chave.<br />

No menu lateral direito o usuário po<strong>de</strong> ace<strong>de</strong>r através <strong>de</strong> hiperligações uma página que apresenta<br />

uma nuv<strong>em</strong> interactiva com as palavras-chave, assim como a uma página <strong>de</strong> busca avançada no site do<br />

Ciac e do Google e também à lista dos investigadores do Ciac, organizados por or<strong>de</strong>m alfabética. Po<strong>de</strong><br />

partilhar os conteúdos do site utilizando as ferramentas <strong>de</strong> partilha disponíveis na Internet, tais como<br />

facebook, twitter, <strong>de</strong>licious, youtube, RSS, entre outras.<br />

Com o intuito <strong>de</strong> oferecer uma componente lúdica, o site permite que o usuário mova todas as caixas<br />

<strong>de</strong> textos <strong>em</strong> cada um dos campos <strong>de</strong> entrada <strong>de</strong> dados, estas caixas voltam ao seu lugar <strong>de</strong> orig<strong>em</strong><br />

uma vez que o usuário prima o botão circular que se encontra ao lado do menu superior, como po<strong>de</strong><br />

ser observado abaixo.<br />

Plataforma Multimédia do <strong>CIAC</strong> (www.crossmediaplatform.ciac.pt)<br />

119


A estrutura da plataforma foi <strong>de</strong>senvolvida pela bolseira <strong>de</strong> investigação Isa Mestre sob a minha<br />

coor<strong>de</strong>nação e a concepção gráfica pela artista gráfica Margarida Maltinha da agência DCB Design.<br />

Os ví<strong>de</strong>os disponíveis no banco multimédia estão a ser realizados pelos alunos Nuno Fernan<strong>de</strong>s, Jorge<br />

Felício e Isa Mestre.<br />

Os conteúdos da plataforma foram preparados pelos coor<strong>de</strong>nadores dos projectos <strong>de</strong> investigação,<br />

b<strong>em</strong> como pelos seus respectivos bolseiros e a inserção <strong>de</strong> conteúdos é feita pela aluna Isa Mestre.<br />

Para finalizar enumeramos abaixo os projectos <strong>de</strong> investigação disponibilizados pela plataforma<br />

até o momento:<br />

Os ensinos <strong>de</strong> escrita para o ecrã (métodos e experiências comparados)<br />

Disponível <strong>em</strong> http://www.crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=56&n=-Osensinos-<strong>de</strong>-escrita-para-o-ecrã-(métodos-e-experiências-comparados)<br />

A 2: <strong>em</strong> Cena: Estudo <strong>de</strong> Parâmetros <strong>de</strong> Qualida<strong>de</strong> para a Análise <strong>de</strong> Programas da Televisão<br />

Pública Portuguesa<br />

Disponível <strong>em</strong> http://www.crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=65&n=A-2:-<strong>em</strong>-<br />

Cena:-Estudo-<strong>de</strong>-Parâmetros-<strong>de</strong>-Qualida<strong>de</strong>--para-a-Análise-<strong>de</strong>-Programas-da-Televisão-Pública-<br />

Portuguesa<br />

ALGARTE<br />

Disponível <strong>em</strong> http://www.crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=54&n=ALGARTE<br />

Apartheid Blues<br />

Disponível <strong>em</strong> http://www.crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=47&n=Apartheid-<br />

Blues<br />

Cena & Texto<br />

Disponível <strong>em</strong> http://www.crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=59&n=Cena-&-<br />

Texto<br />

Cross Media, Mixed Media <strong>em</strong> Novas Tecnologias da Informação e <strong>Artes</strong> Performativas<br />

Disponível <strong>em</strong> http://www.crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=48&n=Cross-<br />

Media,-Mixed-Media-<strong>em</strong>-Novas-Tecnologias-da-Informação-e-<strong>Artes</strong>-Performativas<br />

Estratégia e Literacia <strong>de</strong> Actores Amadores<br />

Disponível <strong>em</strong> http://crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=60&n=Estratégia-e-<br />

Literacia-<strong>de</strong>-Actores-Amadores<br />

Euromeduc<br />

Disponível <strong>em</strong> http://crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=52&n=Euromeduc<br />

Jornais Cin<strong>em</strong>atográficos Portugueses<br />

Disponível <strong>em</strong> http://crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=50&n=Jornais-<br />

Cin<strong>em</strong>atográficos-Portugueses<br />

Linguagens <strong>de</strong> Encenação e Interpretação<br />

Disponível <strong>em</strong> http://crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=58&n=Linguagens-<strong>de</strong>-<br />

Encenação-e-Interpretação<br />

120


Main trends: Novas & velhas tendências do cin<strong>em</strong>a português cont<strong>em</strong>porâneo<br />

Disponível <strong>em</strong> http://crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=64&n=Novas-&-velhastendências-do-cin<strong>em</strong>a-português-cont<strong>em</strong>porâneo<br />

O Actor Permanente: o personag<strong>em</strong> como um fluxo <strong>de</strong> mudanças<br />

Disponível <strong>em</strong> http://crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=62&n=O-Actor-<br />

Permanente:-o-personag<strong>em</strong>-como-um-fluxo-<strong>de</strong>-mudanças<br />

Plataforma Internacional <strong>de</strong> Divulgação Científica<br />

Disponível <strong>em</strong> http://crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=51&n=Plataforma-<br />

Internacional-<strong>de</strong>-Divulgação-Científica-<br />

Qualida<strong>de</strong> e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: um estudo comparativo dos canais públicos europeus<br />

Disponível <strong>em</strong> http://crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=57&n=Qualida<strong>de</strong>-e-<br />

I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>:-um-estudo-comparativo-dos-canais-públicos-europeus<br />

Thesaurus <strong>de</strong> Narrativas Ficcionais do Mediterrâneo<br />

Disponível <strong>em</strong> http://crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=49&n=Thesaurus-<strong>de</strong>-<br />

Narrativas-Ficcionais-do-Mediterrâneo<br />

Transcriações: literatura e meios audiovisuais<br />

Disponível <strong>em</strong> http://crossmediaplatform.ciac.pt/projectos_<strong>de</strong>talhe.php?i=53&n=Transcriações:literatura-e-meios-audiovisuais<br />

NOTAS<br />

(1) Foi contratada a agência DCB Design Lda. para <strong>de</strong>senvolver o trabalho sob a minha coor<strong>de</strong>nação. www.dcb<strong>de</strong>sign.pt/<br />

(2) www.ciac.pt.<br />

(3) Disponível <strong>em</strong> http://www.ciac.pt/brochura/brochura.html.<br />

(4) http://www.ciac.pt/brochura/brochura.html<br />

(5) www.ciac.pt<br />

(6) Relatório s<strong>em</strong>anal fornecido pela DCB Design.<br />

(7) Taxa <strong>de</strong> rejeição é a porcentag<strong>em</strong> <strong>de</strong> visitas <strong>de</strong> páginas únicas ou visitas nas quais o usuário sai do<br />

site na página <strong>de</strong> entrada (<strong>de</strong>stino).<br />

(8) http://www.ciac.pt/newsletter_archive.php.<br />

(9) www.revista.ciac.pt. Em estudo.<br />

(10) Material <strong>de</strong> divulgação criado pela bloco D <strong>Comunicação</strong>. www.blocod.com.<br />

121


COMISSÃO ORGANIZADORA DAS II JORNADAS DO <strong>CIAC</strong><br />

Coor<strong>de</strong>nação: Gabriela Borges<br />

António Guerreiro<br />

Isabel Afonso<br />

Pedro Filipe<br />

CONTACTOS<br />

<strong>CIAC</strong>/Universida<strong>de</strong> do Algarve<br />

FCHS, Campus Gambelas 8005-139 Faro<br />

Contacto | Dr. António Guerreiro | T. 289800900 ext. 7541<br />

secretaria.ualg@ciac.pt<br />

<strong>CIAC</strong>/Escola Superior <strong>de</strong> Teatro e Cin<strong>em</strong>a<br />

Avenida Marquês <strong>de</strong> Pombal, 22 B 2700-571 Amadora<br />

Contacto | Dra. Margarida Saraiva | T. 214989400<br />

secretaria.estc@ualg.pt<br />

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