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Edição 156 - Jornal Rascunho

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26<br />

<strong>156</strong> • abril_ 2013<br />

brutalidade lírica<br />

sonhos de Trem, de denis Johnson, escapa da simplificação ao recriar um mundo de pobreza e precariedade<br />

:: breno KÜmmeL<br />

brasÍLia – df<br />

Quando não se trata de<br />

um testemunho, parece<br />

que são dois os principais<br />

caminhos trilhados<br />

para falar de pobreza e<br />

das pessoas que convivem ou sofrem<br />

com ela: desprezo (às vezes<br />

tingido de certo tom “analítico”)<br />

ou compaixão, como quem sempre<br />

quer expressar a pena que sente<br />

dessa gente tão coitada. Vivendo<br />

em uma sociedade tão estratificada<br />

como a brasileira, esta categoria<br />

(“os pobres”) é quase uma das bases<br />

da nossa existência mental, e<br />

a literatura não tinha como deixar<br />

de registrar isto: das aparências esporádicas<br />

(geralmente no pano de<br />

fundo) sob o registro da benevolência<br />

senhorial durante o romantismo<br />

ao fascínio científico (na verdade<br />

pseudo-científico) do naturalismo,<br />

até as denúncias esquerdistas/nacionalistas<br />

do regionalismo.<br />

Com a exceção marcante do<br />

maravilhamento brilhante e brilhoso<br />

de Guimarães Rosa, que cai<br />

(ou ascende) para o exótico inventivo,<br />

pode-se dizer que parte<br />

significativa da produção literária<br />

brasileira tem tratado a pobreza<br />

de tal forma que não é necessário<br />

muito esforço para encaixá-la dentro<br />

desta dicotomia do desprezo<br />

(disfarçado) ou da pena. No campo<br />

do contemporâneo, parece que a<br />

forma mais freqüente de se evitar<br />

as armadilhas destas duas simplificações<br />

é a de simplesmente ignorar<br />

a existência de classes que não a<br />

classe média, a não ser para algum<br />

pano de fundo ou para colocar um<br />

personagem principal como vítima<br />

de algum crime.<br />

Desta maneira, Sonhos de<br />

trem, de Denis Johnson, seria um<br />

livro impossível para a literatura<br />

brasileira, e sua leitura sai muito<br />

recomendada não apenas pelas<br />

qualidades mais intrínsecas do<br />

texto, como também pelo choque<br />

de exótico que há de provocar no<br />

leitor brasileiro (algo bastante raro<br />

em se tratando de literatura norte-<br />

-americana, considerando a anglofilia<br />

de nosso mundo editorial).<br />

ameaÇa silenciosa<br />

A ambientação desta curta<br />

novela é o noroeste dos Estados<br />

Unidos no início do século 20, a<br />

expansão ferroviária construindo<br />

um mundo particular que vai se<br />

desfazendo por conta de seu próprio<br />

êxito. Temos a narrativa da<br />

vida de Robert Grainier, homem ao<br />

mesmo tempo comum e incomum,<br />

que vive esta expansão e seu isolamento,<br />

dele mesmo e do desaparecimento<br />

de seu mundo, tudo em<br />

um registro que é completamente<br />

estranho a coitadismos ou ojeriza.<br />

É uma narração que constrói (ou<br />

reconstrói) um mundo inteiro de<br />

precariedade material se abstendo<br />

desses julgamentos consagrados<br />

(e cansados), como quem aponta<br />

para o mundo e diz somente: isto é.<br />

Ou, melhor dizendo, foi.<br />

Além do registro desta pobreza,<br />

outro elemento marcante da narrativa<br />

é se tratar de um passado<br />

relativamente distante, uns últimos<br />

pedaços de oeste selvagem,<br />

uma expansão que se aprimora e<br />

se aperfeiçoa (a rota ferroviária a<br />

ser construída pelo protagonista<br />

no início é uma de atalho, servindo<br />

apenas para melhorar a conexão<br />

entre duas cidades). Um mundo<br />

que vai perdendo aos poucos seu<br />

aspecto de obscuro. A narrativa é<br />

de uma vida difícil, longínqua, um<br />

registro despido de nostalgia simples<br />

mas ciente de que a experiência<br />

humana é feita tanto de nossas<br />

capacidades quanto de nossas incapacidades.<br />

E, assim sendo, o tipo<br />

de experiência de vida ali narrada,<br />

marcada por aquele tipo de precariedade,<br />

não é mais possível.<br />

A natureza desbravada se<br />

apresenta aqui freqüentemente<br />

como ameaça silenciosa, aparentemente<br />

inerte, sua imensidão sempre<br />

reforçando o caráter minúsculo<br />

e fraquíssimo do homem. Não<br />

há acolhimento. Não há expulsão.<br />

Há, contraditoriamente, bonança<br />

e morte, mistério e indiferença. E<br />

não há personagens maravilhados<br />

diante desta paisagem, que é completamente<br />

naturalizada. Um homem<br />

morrer sozinho no meio da<br />

floresta com a perna infecta, um índio<br />

beber demais ao experimentar<br />

álcool pela primeira vez e ter seus<br />

restos espalhados por centenas de<br />

metros ao dormir em cima de um<br />

trilho de trem ou um sujeito ajudar<br />

em um linchamento aparentemente<br />

só porque estava ali do lado sem<br />

nada para fazer — em momento<br />

algum toda esta brutalidade vem<br />

com o descritivo (nem mesmo implícito)<br />

de selvageria, de absurdo,<br />

de denúncia ou repreensão. Há, na<br />

verdade, certo lirismo esquisito,<br />

simples e belíssimo atravessando<br />

toda esta brutalidade, a natural e a<br />

humana, em tudo o que ela tem de<br />

casual e impressionante. Um autor<br />

mais conhecido que se parece com<br />

isto é Cormac McCarthy, mas aqui<br />

não vemos seu tom bíblico/apocalíptico<br />

ou suas figuras extremadas:<br />

tudo aparece mais naturalizado,<br />

e se não estivéssemos falando de<br />

brutalidade, até seria possível<br />

descrever sua iteração aqui como<br />

“mais amena”.<br />

noVa Tônica<br />

Talvez esta diferença de possibilidades<br />

narrativas referentes à<br />

divuLgação<br />

pobreza seja oriunda das diferenças<br />

da própria sociedade estadunidense<br />

em relação à brasileira.<br />

Os mitos do sonho americano (de<br />

progresso material por meio do<br />

trabalho árduo e diligente) e do<br />

self-made man (independência<br />

total do indivíduo) fazem com que<br />

se enxergue pessoas que são pobres<br />

de forma menos separada das<br />

outras classes sociais — como um<br />

estado em que a pessoa se encontra<br />

naquele momento (geralmente<br />

entendido por ser algo de culpa<br />

própria), e não alguém que tem um<br />

tipo de vida e visão de mundo completamente<br />

diferentes, como que<br />

de outra espécie.<br />

Robert Grainier, assim sendo,<br />

torna-se uma figura exótica mais<br />

pela sua subjetividade peculiar, que<br />

tende ao isolamento extremo, e sua<br />

realidade completamente desaparecida,<br />

apagada pelo próprio progresso<br />

que perseguiu, do que pela<br />

sua precariedade material (apesar<br />

de ter sido capaz de adquirir uma<br />

carroça com cavalos, é por meio de<br />

muito trabalho físico e desgastante<br />

que consegue comprar esses bens).<br />

A mim, acostumado com a tônica<br />

sociológica presente em tantos<br />

esforços intelectuais brasileiros historicamente<br />

consagrados, até mesmo<br />

nos de pretensão literária (em<br />

que quase sempre se pode escutar<br />

certo tom de voz calmo de narrador<br />

de documentário), Sonhos de<br />

trem acabou sendo enriquecedor,<br />

ultrapassando o prazer do momento<br />

da leitura. Para além do texto<br />

bem escrito, de certa beleza bem<br />

afiada, com um lirismo ao mesmo<br />

tempo simples e difícil e capacidade<br />

de recriação de um mundo bruto e<br />

sumido, a leitura acabou servindo<br />

para lembrar das possibilidades<br />

que hoje em dia parecem pouco exploradas<br />

na produção literária.<br />

Nota sobre a tradução: ainda<br />

que seja evidente um trabalho<br />

de linguagem por parte do autor,<br />

a tônica da simplicidade facilita a<br />

transposição para outro idioma,<br />

se tratando então de um livro em<br />

que não se perde muito ao ser lido<br />

em tradução competente, como é o<br />

caso da edição brasileira. O tradutor<br />

freqüentemente optou pela clareza,<br />

deixando o texto ligeiramente<br />

menos conciso do que o original:<br />

o que no inglês era apenas “Idaho<br />

Panhandle”, lugar onde a história<br />

é ambientada, virou “estreita faixa<br />

de terra que forma o cabo da frigideira<br />

do mapa de Idaho”, e todas<br />

as outras menções ao Panhandle<br />

voltam a mencionar mapa, faixa<br />

de terra, etc. Nada que possa ser<br />

qualificado como “erro”, mas uma<br />

fórmula menor ou a confiança no<br />

leitor de que este lembraria o que<br />

é o “Panhandle” teria combinado<br />

mais com o espírito do texto.<br />

o auTor<br />

denis johnson<br />

nasceu em 1949, em<br />

munique, e foi criado em<br />

tóquio, manila e Washington.<br />

seu primeiro romance,<br />

angels, de 1983, recebeu<br />

elogios de figuras como don<br />

deLillo, Philip roth e david<br />

foster Wallace, mas foi só<br />

em 1993, com a coletânea<br />

de contos jesus’ son, sobre<br />

uso de drogas, que alcançou<br />

destaque no meio literário<br />

americano. seu romance<br />

Árvore de fumaça ganhou<br />

o prestigioso national book<br />

award. é autor de mais<br />

de quinze livros, entre<br />

romance, poesia, conto,<br />

reportagem e novela.<br />

sonhos de Trem<br />

denis Johnson<br />

trad.: alexandre barbosa<br />

de souza<br />

Companhia das Letras<br />

88 págs.<br />

Trecho<br />

sonhos de Trem<br />

“seis metros acima do rio,<br />

ela pisou numa pedra<br />

solta e, num piscar de<br />

olhos, já estava com a<br />

coluna quebrada nas<br />

pedras lá embaixo. não<br />

sentia as pernas e não<br />

conseguia se mexer. só<br />

conseguiu desatar o nó<br />

da blusa e soltar a criança<br />

para que ela engatinhasse<br />

e seguisse sozinha,<br />

ainda que brevemente,<br />

até a água. a água subiu<br />

e chegou até gladys,<br />

tocando-a parece que por<br />

mera gentileza, até erguêla<br />

e tragá-la consigo, e ela<br />

se afogou.

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