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FACULDADE<br />

DE DIREITO<br />

FA A P - J U R I S<br />

F U N D A Ç Ã O A R M A N D O A LVA R E S P E N T E A D O<br />

Vo l u m e 5 – j a n e i r o a j u n h o / 2 0 11<br />

ISSN 2175-2230<br />

<strong>rev</strong>ista juris da<br />

FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO<br />

Rua Alagoas 903 - Higienópolis<br />

São Paulo, SP - Brasil<br />

Desde 1947


Revista Juris da Faculdade de Direito, Fundação Armando Alvares Penteado.<br />

Volume 5 - janeiro a <strong>junho</strong>/2011 – São Paulo: FAAP, 2010<br />

Penteado.<br />

Semestral<br />

ISSN 2175-2230<br />

1. Direito – Periódicos. I. Faculdade de Direito, Fundação Armando Alvares<br />

CDD 340<br />

CDV 34


Apoio Institucional da FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO<br />

Conselho de Curadores da FAAP<br />

Presidente: Sra. Celita Procopio de Carvalho<br />

Integrantes:<br />

Sra. Maria Christina Farah Nassif Fioravanti<br />

Dr. Benjamin Augusto Baracchini Bueno<br />

Dr. Octávio Plínio Botelho do Amaral<br />

Dr. José Antonio de Seixas Pereira Neto<br />

Embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima<br />

Diretoria Executiva<br />

Diretor Presidente: Dr. Antonio Bias Bueno Guillon<br />

Diretor Tesoureiro: Dr. Américo Fialdini Jr.<br />

Diretor Cultural: Prof. Victor Mirshawka<br />

Assessoria Administrativa e Financeira:<br />

Dr. Sérgio Roberto de Figueiredo Santos e Marchese<br />

Assessoria de Assuntos Acadêmicos:<br />

Prof. Raul Edison Martinez<br />

Diretoria da Faculdade de Direito<br />

Diretor: Prof. Álvaro Villaça Azevedo<br />

Vice-Diretor: Prof. José Roberto Neves Amorim<br />

Comissão Editorial<br />

Editor: Prof. Rui Carvalho Piva<br />

Assistente: Milene D. Mussi Krueger<br />

Bibliotecária: Marilena Coscia<br />

Conselho Editorial<br />

Álvaro Villaça Azevedo<br />

José Roberto Neves Amorim<br />

Rui Carvalho Piva<br />

Antonio Cezar Peluso<br />

Carlos Blanco de Morais<br />

Carlos Eduardo de Abreu Boucault<br />

Cláudio Salvador Lembo<br />

Diego Corapi<br />

Eneida Gonçalves de Macedo Haddad<br />

Enrique Ricardo Lewandowski<br />

Fernando Facury<br />

Jorge Miranda<br />

José Geraldo de Sousa Junior<br />

Luiz Edson Fachin<br />

Manoel Gonçalves Ferreira Filho<br />

Marcos Fábio de Oliveira Nusdeo<br />

Maria Helena Diniz<br />

Maria José Constantino Petri<br />

Maria Lígia Coelho Mathias<br />

Mario Julio de Almeida Costa<br />

Sebastião Luiz Amorim<br />

Zeno Veloso<br />

Direitos e Permissão de Utilização<br />

Todos os <strong>direito</strong>s reservados. A reprodução de qualquer parte<br />

desta <strong>rev</strong>ista será permitida mediante prévia autorização.<br />

A reprodução indevida estará sujeita às penalidades<br />

p<strong>rev</strong>istas na legislação pertinente.<br />

Publicação Semestral<br />

Solicita-se permuta<br />

Tiragem:<br />

3000 exemplares<br />

Dados para correspondência:<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito<br />

Rua Alagoas, 903 – Prédio 2 – Térreo<br />

Higienópolis – SP - CEP: 01242-001<br />

Fone: (11) 3662-7339<br />

E-mail: pesquisa<strong>direito</strong>@faap.br<br />

http://www.faap.br/faculdades/<strong>direito</strong>


Editorial<br />

A sociedade brasileira está efetivamente inquieta. A construção do conceito de casamento permanece<br />

inacabada. As pessoas em sociedade, os seus representantes para elaboração das leis, os intérpretes do<br />

desejo dessas pessoas contido nas leis e os Magistrados aplicadores dessas leis conforme os desejos<br />

sociais nela contidos nem bem assimilaram a decisão do Supremo Tribunal Federal proferida no mês de<br />

maio, reconhecendo a possibilidade do reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo, e<br />

já surgiu o novo desafi o.<br />

Casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mais especifi camente, entre dois homens.<br />

Três dias antes do fechamento desta quinta edição da Revista JURIS, em 27 de <strong>junho</strong> de 2011, o Juiz<br />

Corregedor de Jacareí, em sentença inédita, mandou registrar o casamento de Luiz André e José Sérgio.<br />

Vale a pena conferir o inteiro teor da sentença, reproduzido nas Questões Polêmicas desta edição.<br />

Na ent<strong>rev</strong>ista, um brinde especial para os leitores da Revista e um privilégio para todos os envolvidos com<br />

esta edição. Momentos especiais da trajetória profi ssional e da vida do nosso Professor, o ilustre e sempre<br />

transparente Mario Luiz Sarrubbo, Diretor da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.<br />

Ainda em torno das homoafetividades, já no espaço reservado para os artigos, estamos oferecendo a vocês<br />

a palavra sempre segura, experiente e formadora de opiniões do ilustre Professor Álvaro Villaça Azevedo,<br />

que nesta edição vem acompanhado dos argumentos muito bem construídos pela recém graduada Marcella<br />

Corrêa Marques Gonçalves dos Santos em seu trabalho de conclusão de curso aqui na FAAP, a respeito da<br />

adoção por casais homoafetivos.<br />

Este Editor repercutiu matéria de sua autoria sobre a conveniência de privilegiar comportamentos de fazer<br />

e de não fazer no cumprimento das prestações alimentícias.<br />

Os Professores Edson Ricardo Saleme, Silvia E. Barreto Saborita, Fabiano Carvalho e Maurício Bunazar<br />

produziram e repercutiram informações jurídicas de qualidade em seus bem elaborados artigos.<br />

Ainda nos artigos, uma verdadeira e sempre desejada “invasão” dos alunos dos Cursos de Pós-Graduação<br />

em Direito da FAAP. De São Paulo, tratando de assuntos de sustentabilidade ambiental, orientados pela<br />

Professora Juliana Cassano Cibim, os especialistas Carla Lupinacci Poças, Daniela Fonzar Poloni, Lívia<br />

Menezes Pagotto e Luís Paulo Agostino de Magalhães Duprat. De Ribeirão Preto, esc<strong>rev</strong>endo sobre<br />

o tema ainda não resolvido das reservas fl orestais, orientado pelos Professores Marcelo Godke Veiga<br />

e Rui Carvalho Piva, o especialista Gil Donizeti de Oliveira. Ainda de Ribeirão, o especialista Renan<br />

Posella Mandarino, que concluiu o Curso de Direito Penal e Processual Penal, esc<strong>rev</strong>eu sobre liberdade<br />

provisória e o crime de tráfi co ilícito de entorpecentes.<br />

Sobre jurisprudência, estamos publicando um acórdão muito bem elaborado pelo nosso Professor e digno<br />

integrante da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda , Alexandre Naoki Nishioka,<br />

a respeito de imposto de renda de pessoa física incidente sobre recursos oriundos do exterior para aplicação<br />

em atividades de agenciamento e manutenção de estagiários junto aos clubes de futebol brasileiros.<br />

Com dupla colaboração nesta edição, o Professor Fabiano Carvalho produziu interessante resenha do<br />

livro de Didier e Zaneti sobre Processo Civil.<br />

Completando as questões polêmicas, o nosso culto e ilustrado Professor Marcio Pestana nos faz um<br />

irrecusável convite à refl exão em torno da inconstitucionalidade de dispositivo da Emenda Constitucional<br />

30, decidida pelo Supremo Tribunal Federal.<br />

Finalizando, as nossas sugestões de leitura. Lá temos Vanda Amorim, com o seu comovente “Deus não<br />

abandona”, Jeffrey Hollender e Bill Breen com as suas pós-modernas recomendações contidas no “Muito<br />

além da responsabilidade social”, a deliciosa seleção que Paulo Fendler preparou sobre “Os melhores<br />

diálogos do cinema” e as peripécias do nosso Imperador Pedro I e sua esfuziante Marquesa de Santos<br />

manifestadas nas cartas selecionadas por Paulo Rezzutti. Boa leitura.<br />

Rui Carvalho Piva<br />

Editor


Mario Luiz Sarrubbo<br />

<strong>rev</strong>ista juris da<br />

União Homoafetiva<br />

Alvaro Villaça Azevedo<br />

FACULDADE<br />

DE DIREITO<br />

FA A P - J U R I S<br />

Ano I / Vo l u m e 5 / S ã o Pa u l o - 2 0 1 1<br />

Sumário<br />

ENTREVISTA<br />

I. ARTIGOS<br />

Comportamentos de fazer e de não fazer na prestação alimentícia<br />

Rui Carvalho Piva<br />

Sustentabilidade nos Hoteis de selva da Amazônia<br />

Edson Ricardo Saleme e Silvia E. Barreto Saborita<br />

A função do relatório no Julgamento Colegiado. Manifestação do princípio do contraditório<br />

Fabiano Carvalho<br />

Taxonomia da sanção civil: para uma caracterização do objeto da responsabilidade civil<br />

Maurício B. Bunazar<br />

O Design e o Desenvolvimento de Produtos Sustentáveis<br />

Carla Lupinacci Poças<br />

A solidariedade na responsabilização por danos ambientais<br />

Daniela Fonzar Poloni<br />

Da reserva legal florestal – desmatamento lícito e ilícito e suas repercussões<br />

Gil Donizeti de Oliveira<br />

07<br />

09<br />

24<br />

30<br />

35<br />

39<br />

43<br />

48<br />

55


Mudanças climáticas e florestas: histórico das negociações, impasses e perspectivas em relação<br />

à implementação de mecanismos de REDD<br />

Lívia Menezes Pagotto<br />

Projetos voluntários de REED no Brasil como alternativa viável na luta para salvaguardar a<br />

biodiversidade amazônica e o bem estar dos povos da floresta<br />

Luís Paulo Agostino de Magalhães Duprat<br />

Adoção por casais homoafetivos<br />

Marcella Corrêa Marques Gonçalves dos Santos<br />

Liberdade Provisória e o crime de tráfico ilícito de entorpecentes: uma análise crítica sob a ótica<br />

do princípio da “presunção de inocência”<br />

Renan Posella Mandarino<br />

II. Jurisprudência<br />

Acórdão da 1.ª Turma Ordinária da 1.ª Câmara Superior de Recursos Fiscais do Ministério da<br />

Fazenda Imposto sobre a renda de pessoa física. Omissão de rendimentos<br />

Pesquisa e Apresentação: Alexandre Naoki Nishioka<br />

III. Resenha<br />

DIDIER JR., Fredie e ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo.<br />

6ª edição. Salvador: JusPodivm, 2011.<br />

Fabiano Carvalho<br />

IV. Questões Polêmicas<br />

Decisão judicial converte em casamento a união estável entre duas pessoas do sexo masculino<br />

Apresentação: Rui Carvalho Piva<br />

Emenda Constitucional inconstitucional: um convite à reflexão<br />

Apresentação: Marcio Pestana<br />

Deus não abandona<br />

Vanda Amorim<br />

Muito além da responsabilidade social<br />

Jeffrey Hollender E Bill Breen<br />

Os melhores diálogos do cinema<br />

Paulo Fendler<br />

Titília e o Demonão<br />

Paulo Rezzutti<br />

VI. Sugestões de leitura<br />

64<br />

73<br />

82<br />

90<br />

101<br />

110<br />

113<br />

117<br />

119<br />

120<br />

121<br />

122


ENTREVISTA COM O DIRETOR DA ESCOLA SUPERIOR DO<br />

MINISTÉRIO PÚBLICO DE SÃO PAULO<br />

Estimado Professor Mario,<br />

Ginásio , Colégio, início da adolescência (momento<br />

especial da vida das pessoas), futebol, corridas, a<br />

Faculdade de Direito, o “filho” Mario Luiz, o “pai”<br />

e o “marido” Mario Luiz, o Promotor de Justiça, os<br />

acidentes aéreos, a Escola Superior do Ministério<br />

Público de São Paulo e o ofício arte do educador. Como<br />

vem sendo tudo isso na vida dessa pessoa especialmente<br />

transparente que é V. Exa.?<br />

Em primeiro lugar, gostaria de manifestar a minha<br />

alegria por ter a oportunidade de compartilhar com os<br />

amigos alguns aspectos de minha vida profissional e<br />

pessoal.<br />

Acho que todos percebem um determinado aspecto<br />

de minha personalidade: gosto de viver e vivo intensamente<br />

todos os momentos profissionais, com amigos, com a<br />

família e assim por diante.<br />

Essa característica trago comigo desde a infância.<br />

Vivi intensamente a minha infância e de forma saudável<br />

e feliz. Fui criado e até hoje moro no bairro de Moema,<br />

em São Paulo. Na minha infância, tive a oportunidade de<br />

aproveitar as melhores características do bairro, até então<br />

predominantemente residencial e muito próximo do parque<br />

do Ibirapuera, local que considero como “a minha praia” e<br />

onde vivi bons momentos na infância, seja jogando futebol,<br />

seja andando de bicicleta com amigos.<br />

Como disse, vivo intensamente e, obviamente, vivi<br />

as incertezas e agonias do início da adolescência também<br />

intensamente. A insegurança, o medo de ser deixado de lado<br />

pelo grupo, o início do interesse pelas colegas, o primeiro<br />

beijo, o primeiro namoro, foram anos intensos mas que<br />

Mario Luiz Sarrubbo<br />

terminaram felizes, pois consegui superar essa insegurança<br />

e acho que me tornei um jovem saudável e equilibrado.<br />

Consegui ultrapassar a escapar das armadilhas que vinham<br />

pela frente, como o cigarro, a bebida e as drogas, que já<br />

naquela época se apresentavam aos adolescentes de forma<br />

constante.<br />

Um grande aliado, desde a infância, foi o esporte.<br />

A grande paixão pelo futebol, a vontade de estar em forma<br />

e fazer parte do time, sempre me mantiveram longe das<br />

drogas, do álcool e do cigarro. Acho que esse foi o grande<br />

mote para uma adolescência também saudável. De um<br />

“sofrível” mas apaixonado “lateral <strong>direito</strong>”, troquei o<br />

futebol pelas corridas por um verdadeiro “acidente”. Já<br />

Promotor de Justiça, jogando futebol num domingo de<br />

páscoa, quebrei o tornozelo, me submeti a uma delicada<br />

cirurgia e o retorno aos esportes passou pela corrida que<br />

nunca mais abandonei. Ao contrário, com a idade, larguei o<br />

futebol (mas não o Palmeiras – outra paixão) e me dediquei<br />

às corridas. Hoje, com muito orgulho, já participei de sete<br />

maratonas completas, mais de vinte meias-maratonas e<br />

cerca de cinqüenta provas menores de dez quilômetros. Sou<br />

apaixonado pelas corridas, pois me mantém equilibrado<br />

não só no aspecto físico, mas principalmente no emocional.<br />

O Direito surgiu na minha vida quase por acaso.<br />

Desde criança pensava em ser engenheiro. As dificuldades<br />

com a matemática e a pouca afinidade com o desenho,<br />

fizeram com que eu mudasse completamente o foco. Aliás,<br />

essa mudança aconteceu num momento interessante. Eu<br />

estava na 7ª série (ainda era o ginásio) e fui “convocado”<br />

para um “júri” na escola. Deveríamos debater a “pena<br />

de morte”. Atuei como promotor, defendendo a pena de<br />

morte e me apaixonei pelo <strong>direito</strong> e especificamente pela<br />

promotoria. Prestei vestibular e fui aprovado no Mackenzie,<br />

7


onde vivi os “cinco” dos melhores anos da minha vida.<br />

Claro que freqüentei de tudo...até mesmo as aulas....mas<br />

é claro que os momentos inesquecíveis foram os vividos<br />

na “atlética”, na política acadêmica e nas então famosas<br />

“festas”....Fui a todas, aproveitei mesmo e é por isso que<br />

digo aos alunos da FAAP...não percam o “eu to dentro” ou<br />

qualquer outra festa...aproveitem pois os anos passam e a<br />

responsabilidade chega.<br />

A família sempre foi e sempre será o grande eixo<br />

de minha vida. Ela é tão importante, mas tão importante,<br />

que meus pais moram numa rua e em cada esquina dessa<br />

rua estão os três filhos. Eu e minhas duas irmãs. Moramos<br />

muito próximos e, obviamente, estamos sempre juntos,<br />

como uma típica família italiana, com muitas brigas mas,<br />

principalmente, com muito amor. Acho que o momento é<br />

de devolução, ou seja, tento devolver aos meus pais tudo o<br />

que me proporcionaram na vida.<br />

Se a família é o eixo, o grande dilema é conciliar<br />

vida pessoal (corridas), profissional (Ministério Público<br />

e Magistério) e familiar. Estou casado há 17 anos com a<br />

Simone e temos dois lindos filhos, o Luis Felipe (13 anos)<br />

e o Pedro Henrique (10 anos). Tenho feito isso, modéstia<br />

à parte, com sucesso. Posso dizer que estou vendo os<br />

meus filhos crescerem. Viajo muito (em função do cargo<br />

que exerço atualmente no MP – Escola Superior) mas não<br />

economizo em telefonemas, abuso do Skype (pois é preciso<br />

ver) e tenho o costume de fazer pelo menos uma refeição<br />

em casa. Se não posso jantar, venho almoçar e vice-versa.<br />

Por outro lado, faço questão de levar as crianças para a<br />

escola. Minhas aulas na FAAP são marcadas para o início<br />

da manhã justamente para conciliar essa atribuição. Sou<br />

amigo dos meus filhos, mas não esqueço que, antes de<br />

amigo, sou pai. Procuro impor os limites e conscientizá-los<br />

para as responsabilidades. A mensagem é: família, estudo<br />

e esporte são as coisas mais importantes. Aliás, quando<br />

corro as maratonas faço sempre uma homenagem aos meus<br />

filhos. Na linha de chegada, após 42 km, grito o nome dos<br />

dois e afirmo a possibilidade de superação do ser humano.<br />

O Ministério Público, por outro lado, é a grande<br />

paixão. Nunca fui um aluno brilhante, então tive que<br />

estudar muito para conseguir vencer o concurso de ingresso.<br />

Fiz carreira rápida, assumi como promotor substituto<br />

de Araçatuba e fui titular em Queluz, Itaquaquecetuba,<br />

Mauá e, já na capital, o 1.º Promotor Criminal Regional<br />

do Jabaquara. Esse cargo foi emblemático em minha<br />

vida. Abrangendo a região do Aeroporto de Congonhas,<br />

trabalhar como Promotor de Justiça em pelo menos dois<br />

grandes acidentes aéreos. O de 1996 (com o Fokker 100<br />

da TAM – 99 mortos) e mais recentemente o de 2007 (com<br />

o Airbus A-320 da mesma empresa – com cerca de 199<br />

mortos).<br />

Experiência profissional marcante, com grande<br />

pressão da mídia e da sociedade por resultados e,<br />

principalmente, por conta da convivência muita próxima<br />

com os familiares dessas vítimas. O trabalho junto a policia<br />

8<br />

civil, as dificuldades com o Judiciário e o envolvimento<br />

emocional com as associações de familiares das vítimas,<br />

foram marcas que nunca mais sairão da minha vida. Obtive<br />

sucesso no caso de 2007, pois formulei acusação contra<br />

11 (onze) pessoas. No entanto, mesmo em 1996, quando<br />

arquivei o inquérito por falta de provas, nunca abandonei<br />

as associações de familiares das vítimas. Tratei-os com a<br />

devida atenção e carinho e, até hoje, tenho amizade com<br />

alguns deles.<br />

Mais recentemente fui premiado pelo Ministério<br />

Público com minha eleição para exercer o cargo de<br />

Diretor da Escola Superior do Ministério Público. Vivo,<br />

sem dúvida, um momento profissional muito feliz, pois<br />

consegui conciliar as duas atividades que mais gosto, o<br />

magistério e o Ministério Público. O ensino, a formatação<br />

dos cursos e, principalmente, o convívio com os Promotores<br />

de Justiça recém ingressados, são para mim uma grande<br />

alegria. Sinto que sou útil, que posso fazer algo para<br />

aperfeiçoar o trabalho do Promotor. Essa satisfação, que<br />

todos os apaixonados pelo Magistério têm, é a mais bela<br />

remuneração de nossas vidas. Nos confere, com certeza,<br />

um sabor especial ao nosso dia a dia.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


União Homoafetiva<br />

ALVARO VILLAÇA AZEVEDO<br />

Doutor em Direito, Professor Titular Aposentado de Direito Civil, Regente de Pós-Graduação e ex-Diretor da Faculdade<br />

de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Professor Titular de Direito Romano, de Direito Civil e ex-Diretor da<br />

Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo; Professor Titular de Direito Romano<br />

e Diretor da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo; Advogado e exconselheiro<br />

Federal e Estadual, por São Paulo, da Ordem dos Advogados do Brasil; Parecerista e Consultor Jurídico.<br />

Resumo: O trabalho tem início com a apresentação do conceito de união homoafetiva ou homossexual e uma atraente<br />

análise de colocações feitas por Platão a respeito 1 da busca que o homem sempre fez da sua outra metade correspondente,<br />

daí eventualmente resultando práticas homossexuais. Segundo o autor, ainda não se fazia referência a casamento entre<br />

pessoas do mesmo sexo, com a finalidade de constituir família. Mas, ao abrir o tema da união homossexual na legislação<br />

estrangeira, a questão central do trabalho foi assim colocada: muitos países já admitem o casamento entre pessoas do<br />

mesmo sexo. Depois de analisar detidamente a evolução do assunto na sociedade e na legislação brasileiras, o autor<br />

reconhece a dinâmica do Direito de Família e a possibilidade de seu regramento especial vir a ser estabelecido fora do<br />

Código Civil, no Estatuto das Famílias.<br />

Palavras-chaves: União homoafetiva. União homossexual. Casamento.<br />

1. Conceito<br />

União homoafetiva ou homossexual é a convivência<br />

pública, contínua e duradoura entre duas pessoas do mesmo<br />

sexo, com o intuito de constituição de família.<br />

O relacionamento homossexual vem existindo em<br />

diversas civilizações, desde os primórdios da sociedade.<br />

Esses relacionamentos homoafetivos foram<br />

frequentes nas sociedades gregas e romanas. Existiram na<br />

Ásia e em tribos africanas, como também nas Américas,<br />

principalmente em comunidades norte-americanas 2 .<br />

Nas sociedades gregas, lembre-se da obra de<br />

Platão 3 , em que se discute sobre o Deus Eros onde se refere<br />

o “grotesco da forma esférica do homem primitivo (antes<br />

de os deuses o terem dividido em dois, com medo de que<br />

a sua força titânica pudesse assaltar o céu, e quando ainda<br />

possuía quatro pernas e quatro braços sobre os quais se<br />

deslocava a grande velocidade, como sobre pás giratórias),<br />

vemos expressa, com a profundidade da fantasia cômica<br />

de Aristóteles, a idéia que até agora buscamos em vão nos<br />

discursos dos outros. O eros nasce do anseio metafísico de<br />

Homem por uma totalidade de Ser, incessível para sempre<br />

à natureza do indivíduo. Este anseio inato faz dele um mero<br />

fragmento que, durante todo o tempo em que leva uma<br />

existência separada e desamparada, suspira por se tornar a<br />

unir com a metade correspondente” 4 .<br />

Vê-se nítida a idéia de uma metade buscando a<br />

outra metade de um mesmo e único ser. Aí patenteada, a<br />

meu ver, a essência da união homossexual.<br />

Contudo, não descobri em minhas pesquisas<br />

que, nessa época, ou na antiguidade, além da prática<br />

homossexual, houvesse casamento entre o mesmo sexo,<br />

constituindo família, situação bem recente, no século XX,<br />

como mostrarei adiante.<br />

2. União Homossexual na Legislação Estrangeira<br />

Muitos países já admitem o casamento entre o<br />

mesmo sexo 5 .<br />

Informa Federico R. Aznar Gil 6 que alguns países<br />

europeus, como a Dinamarca, Noruega e Suécia, já<br />

aprovaram leis que equipararam, praticamente, as uniões<br />

homossexuais ao casamento heterossexual, com algumas<br />

restrições, como é o caso da proibição das adoções.<br />

Na Dinamarca, desde 1984, essa matéria vem<br />

sendo estudada por comissões, e, a partir de 1986,<br />

1 Wikipédia, a enciclopédia livre, disponível em: . Acesso em 30.05.2010.<br />

2 Werner Jaeger, Paidéia, A formação do Homem Grego, Ed. Martins Fontes, São Paulo, trad. do grego por Artur M. Parreira, 4ª edição, março de 2001, O Banquete de Platão, p. 732..<br />

3 In O Banquete, 191 A, 192 B e seguintes, 192 E e 193 A, Platão, O Banquete, L&PM Pocket, trad. do alemão por Donaldo Schüler, reimpressão de janeiro de 2011 da 1ª edição de agosto de 2009, pp.<br />

63 a 65 e 67; rodapé 6, p. 123: Alcebíades menciona que Sócrates se sente atraído por jovens belos, frequentes em seu círculo de discípulos.<br />

4 Le Contrat d’Union Civile et Sociale, Rapport de Législation Comparée, Divisão de Estudos de Legislação Comparada do Serviço dos Negócios Europeus do Senado francês, publicação do Senado<br />

francês, outubro de 1997, com 16 páginas; Tereza Rodrigues Vieira, O casamento entre pessoas do mesmo sexo, no <strong>direito</strong> brasileiro e no <strong>direito</strong> comparado. Repertório IOB de Jurisprudência, nº 14/96,<br />

3/12240, p. 250-55, jul. 1996, especialmente p. 252; Federico R. Aznar Gil, Las uniones homosexuales ante la legislación eclesiástica, especialmente item 2.b – Legislación europea, Revista Española de<br />

Derecho Canonico, da Universidad Pontificia de Salamanca, nº 138, v. 52, p. 157-190, jan./jun. 1995; publicações de <strong>rev</strong>istas e de jornais, em geral.<br />

5 Op. cit., p. 161.<br />

6 Federico R. Aznar Gil, Op. cit. p. 161-162.<br />

9


foram concedidos alguns <strong>direito</strong>s patrimoniais às uniões<br />

civis homossexuais, que foram legalizadas em 1989,<br />

reconhecendo-se, assim, os “casamentos entre pessoas do<br />

mesmo sexo”.<br />

A Lei dinamarquesa nº 372, de 1º de <strong>junho</strong> de 1989,<br />

da parceria homossexual registrada, que teve início de<br />

vigência em 1º de outubro do mesmo ano, presc<strong>rev</strong>e, em<br />

seu item 1, que “duas pessoas do mesmo sexo podem ter<br />

sua parceria registrada”. Cuidando desse registro, no item<br />

2, estabelece que “a parte 1, seções 12 e 13 (1), e cláusula<br />

1 da seção 13 (2) da Lei sobre Formação e Dissolução<br />

de Casamento devem ser aplicadas, igualmente, para o<br />

registro de parceiros”, que só será possível se ambos ou um<br />

dos parceiros tiverem residência permanente na Dinamarca<br />

e nacionalidade dinamarquesa.<br />

Essa lei foi de iniciativa do Parlamento dinamarquês,<br />

que colocou a Dinamarca como primeiro país a adotar essa<br />

espécie de legislação.<br />

Esclareça-se que a mesma lei, em seu item 2 (3),<br />

deixou o procedimento desse registro a ser regulamentado<br />

pelo Ministério da Justiça, o que, parece, não ocorreu, até<br />

o presente.<br />

Quanto aos efeitos legais desse registro, assentase,<br />

em destaque, que a parceria registrada deve produzir<br />

os mesmos efeitos legais que o contrato de casamento,<br />

devendo ser aplicadas aos parceiros as mesmas disposições<br />

que se aplicam aos esposos, com exceção da Lei de<br />

Adoção, que não se aplica aos parceiros; também não se<br />

aplica a estes a cláusula 3 das seções 13 e 15 da Lei de<br />

Incapacidade e Guarda; bem como as disposições de outras<br />

leis dinamarquesas que se refiram a um dos cônjuges e de<br />

tratados internacionais, a não ser que concordem os outros<br />

países participantes.<br />

Quanto à dissolução da parceria, aplicam-se<br />

similarmente as disposições, ali indicadas, da Lei sobre<br />

Formação e Dissolução do Casamento e da Lei de<br />

Administração da Justiça.<br />

A Lei sobre Formação e Dissolução do Casamento,<br />

a Lei de Herança, o Código Penal e a Lei de Tributos<br />

Hereditários foram emendadas, com a introdução da<br />

parceria registrada, pela Lei nº 372, de 1º de <strong>junho</strong> de 1989,<br />

com início de vigência em 1º de outubro de 1989.<br />

Destaque-se, nesse passo, a emenda às seções 9 e<br />

10 da citada Lei do Casamento. Na seção 9, para constar<br />

que “uma pessoa que tenha contratado, anteriormente,<br />

casamento ou que participe de uma parceria registrada,<br />

não pode contrair casamento enquanto o casamento ou a<br />

parceria anterior existir”. Na seção 10, cuida-se de questão<br />

patrimonial, que proíbe a contratação de casamento, por<br />

quem tenha sido casado ou parceiro, antes da divisão, ou<br />

do início dela, perante a Corte, da propriedade conjunta.<br />

Só não se aplica tal disposição se os interessados se uniram<br />

10<br />

sob regime da separação total de bens ou quando uma<br />

isenção de divisão for concedida, em casos especiais, pelo<br />

Ministro da Justiça.<br />

Preceito semelhante é o da Lei de Herança, que<br />

determina a divisão dos bens comuns antes de novo<br />

casamento ou registro de parceria (item 2).<br />

No tocante ao Código Penal dinamarquês, emendouse<br />

sua seção 208, para constar como crime a contratação<br />

de parceria registrada por quem já for casado ou parceiro<br />

(prisão até três anos), entre outras especificações com<br />

alterações de penalidades.<br />

A Noruega acompanhou a Dinamarca, aderindo a<br />

essa situação em 1993, quase em posição idêntica, pela Lei<br />

nº 40, de 30 de abril, que teve início de vigência em 1º<br />

de outubro desse mesmo ano. A lei norueguesa, entretanto,<br />

permite que os parceiros possam partilhar da “autoridade<br />

parental” (poder familiar ou pátrio poder), o que a lei<br />

dinamarquesa proíbe.<br />

O Parlamento sueco, ao seu turno, reconheceu o<br />

partenariat desde 1º de janeiro de 1995, quando teve início<br />

de vigência a Lei de 23 de <strong>junho</strong> de 1994, oficializando<br />

as uniões entre o mesmo sexo. A responsável pela Lei de<br />

Parceria, na Suécia, foi Barbro Westerholm e, em 1995,<br />

já estavam oficializadas quase mil uniões. Destaque-se,<br />

entretanto, que o Consulado da Suécia, em Paris, não está<br />

autorizando uniões homossexuais. Registre-se, entretanto,<br />

que, na França, em 1993, concedeu-se a homossexual o<br />

<strong>direito</strong> de se beneficiar do seguro social de seu parceiro.<br />

Essa lei sueca baseou-se em trabalhos da comissão<br />

parlamentar, constituída em 1991, contendo quase os<br />

mesmos dispositivos da lei dinamarquesa; entretanto, a lei<br />

sueca possibilita a intervenção do juiz, para o registro da<br />

união, facultativamente, mas exige, obrigatoriamente, essa<br />

intervenção em caso de ruptura da mesma união.<br />

De mencionar-se que, dos países escandinavos, só<br />

a Finlândia não aderiu à legislação da união registrada<br />

de pessoas do mesmo sexo. Houve um projeto de lei, no<br />

Parlamento finlandês, em maio de 1996, que foi rejeitado<br />

em setembro de 1997.<br />

Na Holanda, em 1991, foram criados registros em<br />

alguns municípios, possibilitando que fossem registradas<br />

uniões homossexuais, como acontecera em algumas<br />

cidades norte-americanas, como São Francisco 7 , sendo<br />

certo que, em 16 de abril de 1996, elaborou-se projeto de<br />

uniões entre pessoas do mesmo sexo, com 70% da opinião<br />

pública a favor.<br />

Dá-nos conta o Cfemea 8 de que, na Holanda, houve o<br />

“casamento” oficial de dois casais de lésbicas, tornando-se,<br />

em fevereiro de 1998, “os primeiros casos de casamento<br />

civil legal entre parceiros do mesmo sexo” nesse país, cuja<br />

lei que permite a união civil entre homossexuais teve início<br />

de vigência em 1º de janeiro de 1998.<br />

7 Jornal do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, Cfemea, Brasília, ano 6, nº 61, p. 2, fev. 1998.<br />

8 Casamento gay é aprovado na Argentina, in estadao.com.br/vida, http://www.estadao.com.br/noticia_imp.php?req=not_imp582050,0.php, em 2 de agosto de 2010. Por Ariel Palacios, correspondente<br />

em Buenos Aires – O Estado de S. Paulo.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


“Um dos casamentos foi da cantora Sugar Lee<br />

Hoper e a companheira dela. A união legal entre gays na<br />

Holanda não é exatamente o mesmo que um casamento.<br />

Os parceiros não podem adotar crianças, nem as lésbicas<br />

podem ser artificialmente inseminadas.”<br />

Essa lei encontra suas origens no projeto de lei do<br />

Ministro da Justiça, adotado pelo Parlamento Holandês em<br />

julho de 1997, que permite aos casais homossexuais, que<br />

não podem se casar, bem como aos casais heterossexuais,<br />

que não querem casar-se, registrar sua união.<br />

A lei holandesa, diferentemente das escandinavas,<br />

não apresenta qualquer registro obrigatório no tocante à<br />

nacionalidade dos parceiros.<br />

Em 12 de setembro de 2000 o Parlamento holandês,<br />

por sua Câmara Baixa, aprovou projeto que possibilita que<br />

pessoas do mesmo sexo contraiam matrimônio. A lei, Bill<br />

nº 26672 ingressou na Câmara Alta, para ser promulgada a<br />

partir de janeiro de 2001. E o foi.<br />

Na Islândia, o Parlamento adotou um projeto do<br />

Governo, em 4 de <strong>junho</strong> de 1996, possibilitando a duas<br />

pessoas do mesmo sexo registrar sua união, tendo tido a lei<br />

início de vigência em 27 desse mês e ano.<br />

Essa lei islandesa guarda as mesmas disposições da<br />

lei dinamarquesa, possibilitando, também, que os parceiros<br />

possam partilhar a “autoridade parental”.<br />

Permitem, também, o casamento entre pessoas do<br />

mesmo sexo, entre outros, os Países Baixos, em 2001,<br />

sendo legal na Bélgica, no Canadá, na África do Sul, na<br />

Espanha, e nos estados americanos de Massachusetts e<br />

Connecticut, Iowa, Vermont, Maine, New Hampshire.<br />

Em 1998, a Alemanha ampliou os <strong>direito</strong>s aos<br />

casais que vivem juntos e em 2002 registrou o primeiro<br />

divórcio legal de homossexuais, no tribunal de instância de<br />

Oldenbourg, no norte do país.<br />

Destaque-se que, no estado americano da Califórnia,<br />

a Suprema Corte, em 27 de fevereiro de 2004, negou pedido<br />

do procurador geral Billy Lockyer para anulação de mais<br />

de 3.500 casamentos gay e suspensão de outros.<br />

No Reino Unido, a Lei de Associação Civil, que<br />

permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, teve<br />

início de vigência em 5 de dezembro de 2005, com 1.200<br />

cerimônias marcadas nas Prefeituras, na Irlanda do Norte,<br />

na Escócia, na Inglaterra e em Gales.<br />

Em 11 de fevereiro de 2010, Portugal aprovou a<br />

lei que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo<br />

sexo (Decreto nº 9/XI), na Assembléia da República, sem<br />

<strong>direito</strong> a adoção.<br />

Antes de promulgar a lei, em 17de maio de 2010,<br />

o Presidente da República Anibal Cavaco Silva enviou o<br />

diploma para o Tribunal Constitucional de modo cauteloso,<br />

para análise da constitucionalidade de seus artigos. O<br />

acórdão desse Tribunal, pela constitucionalidade dessa Lei,<br />

foi publicado em 28 de abril de 2010.<br />

Essa lei alterou a redação do art. 1.577º do Código<br />

Civil, definindo o casamento como “o contrato celebrado<br />

entre duas pessoas que pretendem constituir família<br />

mediante uma plena comunhão de vida”.<br />

Em 15 de julho de 2010, ao seu turno, a Argentina<br />

transformou-se no primeiro pais da América Latina a<br />

autorizar o casamento entre homossexuais.<br />

A aprovação da Lei pelo Senado, após 14 horas de<br />

duros debates, deu-se por 33 votos a favor, 27 contra, com 3<br />

abstenções. Os demais Senadores ausentaram-se, entre eles<br />

o ex-presidente Carlos Menem. Essa Lei fora aprovada na<br />

Câmara dos Deputados em maio de 2010.<br />

A votação provocou divisões no governo e na<br />

oposição, sendo certo que muitos Senadores governistas se<br />

opuseram à posição da Presidente da República, Cristina<br />

Kirchner, favorável à lei, que segundo ela foi “um marco” 9 .<br />

Ressalta-se, ainda, que, na América Latina, o<br />

Uruguai conta com lei de união civil, mas não engloba<br />

todos os <strong>direito</strong>s, podendo os uruguaios adotar filhos, mas<br />

não se casar.<br />

Com a nova lei argentina conferiu-se o <strong>direito</strong> de<br />

herança entre os homossexuais como também o <strong>direito</strong> de<br />

adotar filhos, registrados em nome de ambos, o de pagar<br />

impostos como casal, de pedir crédito utilizando a renda<br />

dos dois, podendo ser incluídos no plano de saúde do outro.<br />

Registre-se, nesse passo, que, desde 15 de dezembro<br />

de 1973, por decisão da American Psychiatric Association<br />

e, depois, de outras organizações internacionais, a<br />

homossexualidade foi excluída do rol das doenças mentais,<br />

também nas publicações da Classificação Internacional de<br />

Doenças.<br />

Desde 1991, a Anistia Internacional considera<br />

violação dos <strong>direito</strong>s humanos a proibição da<br />

homossexualidade.<br />

Melhor união homoafetiva do que união estável<br />

Do mesmo modo, ainda que se cogite de mera<br />

convivência, no plano fático, entre pessoas do mesmo sexo,<br />

não se configura a união estável e sim a união homoafetiva<br />

autônoma.<br />

Realmente, desde que foram conferidos efeitos ao<br />

concubinato, até o advento da Súmula 380 do Supremo<br />

Tribunal Federal, sempre a jurisprudência brasileira teve<br />

em mira o par andrógino, o homem e a mulher.<br />

Com a Constituição Federal, de 5 de outubro<br />

de 1988, ficou bem claro esse posicionamento, de só<br />

reconhecer, como entidade familiar, a união estável entre o<br />

homem e a mulher, conforme o claríssimo enunciado do §<br />

3º do seu art. 226 10 .<br />

Entretanto o art. 226 não é taxativo em relacionar os<br />

9 Com entendimento contrário, Maria Berenice Dias (União homossexual, o preconceito e a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, nº 8, p. 147) conclui: “Um Estado Democrático de Direito,<br />

que valoriza a dignidade da pessoa humana, não pode chancelar distinções baseadas em características individuais. Injustificável a discriminação constante do § 3º do art. 226 da Constituição Federal,<br />

bem como inconstitucional a restrição das Leis n os 8.971/94 e 9.278/96, que regulamentam a união estável, ao se referirem somente ao relacionamento entre um homem e uma mulher.” Cita a autora,<br />

lastreando seu entendimento, decisões da Justiça gaúcha (Op. cit., principalmente p. 131-36).<br />

10 Álvaro Villaça Azevedo, Estatuto da Família de Fato, Ed. Atlas, São Paulo, 3ª edição, 2011, p. 240.<br />

11


modos de constituição de família, sendo mais fácil admitir<br />

que, atualmente, a união homoafetiva foi reconhecida no<br />

âmbito do Direito de Família, sendo perfeitamente viável<br />

incluí-la no rol do art. 226, citado, como uma categoria<br />

autônoma. Já disse que o Estado não pode mencionar<br />

na Constituição de modo taxativo, como o povo deve<br />

constituir sua família. Por essa razão essa relação do art.<br />

226 da Constituição Federal é meramente enunciativa 11 .<br />

Muito citada foi a decisão do Juiz José Bahadian,<br />

da 28ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, na ação<br />

promovida contra o espólio de um pintor e iniciada em 17<br />

de maio de 1988. Nesse processo, reconheceu-se <strong>direito</strong><br />

do companheiro sob<strong>rev</strong>ivo, em razão do falecimento<br />

do outro, após dezessete anos de convivência, à metade<br />

do patrimônio por eles amealhado. Patenteou-se, então,<br />

a existência de sociedade de fato entre os conviventes e<br />

de um patrimônio criado por seu esforço comum. Esta a<br />

decisão de primeiro grau.<br />

Pondere-se, nesse caso, que esse <strong>direito</strong> à metade<br />

do patrimônio do companheiro falecido estava assegurado<br />

por testamento deste, assinado em 1985, <strong>rev</strong>ogado por<br />

outro testamento, firmado pelo testador quando já estava<br />

internado, em estado grave, no Memorial Hospital de New<br />

York, conforme atestaram algumas testemunhas, e que não<br />

estaria ele na plena capacidade de entendimento dos fatos;<br />

tudo segundo ampla divulgação, à época, pela mídia.<br />

Em grau de apelação, no Tribunal de Justiça<br />

do Estado do Rio de Janeiro, em 8 de agosto de 1989,<br />

unanimemente, por sua 5ª Câmara Cível, sendo relator o<br />

Desembargador Narcizo A. Teixeira Pinto 12 , decidiu-se<br />

esse caso, como demonstra a ementa oficial:<br />

“Ação objetivando o reconhecimento de sociedade<br />

de fato e divisão dos bens em partes iguais. Comprovada a<br />

conjugação de esforços para formação do patrimônio que se<br />

quer partilhar, reconhece-se a existência de uma sociedade<br />

de fato e determina-se a partilha. Isto, porém, não implica,<br />

necessariamente, em atribuir ao postulante 50% dos bens<br />

que se encontram em nome do réu. A divisão há de ser<br />

proporcional à contribuição de cada um. Assim, se os fatos<br />

e circunstâncias da causa evidenciam uma participação<br />

societária menor de um dos ex-sócios, deve ser atribuído<br />

a ele um percentual condizente com a sua contribuição.”<br />

Como visto, nesse julgado reconheceu-se, tãosomente,<br />

a sociedade de fato, entre sócios, e não união livre<br />

como entidade familiar. Deixou evidenciado esse acórdão<br />

que a mesma Câmara, em outra decisão, em que foi relator<br />

o Desembargador José Carlos Barbosa Moreira, evidenciou<br />

que<br />

“‘o benefício econômico não se configura apenas<br />

quando alguém aufere rendimentos, senão igualmente<br />

quando deixa de fazer despesas que, de outra maneira,<br />

teria de efetuar’ (Apelação Cível 38.956/85). E assim<br />

11 Jurisprudência brasileira cível e comercial. Juruá, Curitiba: União Livre, 1994, nº 173, p. 206-9.<br />

12 RT 742/393.<br />

13 Reflexos jurídicos das uniões homossexuais. Jurisprudência Brasileira, Juruá, 1995, Separação e Divórcio II, 176/95-107, especialmente p. 107.<br />

14 Apud Euclides Benedito de Oliveira, Direito de herança entre homossexuais causa equívoco. Jornal Tribuna do Direito, p. 12, abr. 1998.<br />

12<br />

deve ser, porque o esforço comum, que caracteriza a<br />

sociedade de fato, pode ser representado por qualquer<br />

forma de contribuição: pecuniária ou através da doação<br />

de bens materiais, ou ainda por meio de prestação de<br />

serviços. Este, sem dúvida, o sentido que o Código Civil<br />

brasileiro, ao definir o contrato de sociedade, empresta à<br />

locução ‘combinar esforços ou recursos para lograr fins<br />

comuns’ (art. 1.363). Como é de primeira evidência, a<br />

expressão ‘esforços ou recursos’ abrange todas as formas<br />

ou modalidades de contribuições para um fim comum”.<br />

O citado art. 1.363 do Código Civil de 1916 corresponde<br />

atualmente ao art. 981 do Código Civil.<br />

E se conclui nesse mesmo decisório que,<br />

“por maior que tenha sido a contribuição do apelado<br />

à obra do pintor, não se pode conceber que tenha sido<br />

equivalente à que deu o próprio criador dos quadros. E,<br />

não tendo sido iguais as cotas de contribuição, não podem<br />

ser iguais, como pretende o recorrido, os quinhões na<br />

partilha. A participação na divisão deve ser proporcional à<br />

contribuição para criação ou aquisição dos bens”.<br />

Daí a redução do percentual estabelecido na<br />

sentença, de 50% para 25% do patrimônio adquirido pelo<br />

esforço comum.<br />

Também o Tribunal de Justiça do Estado de Minas<br />

Gerais, por sua 2ª Câmara, em 3 de dezembro de 1996,<br />

sendo relator o Juiz Carreira Machado 13 decidiu que “a<br />

união de duas pessoas do mesmo sexo, por si só, não gera<br />

<strong>direito</strong> algum para qualquer delas, independentemente do<br />

período de coabitação”.<br />

Nesse caso, ainda, foi negada indenização por<br />

dano moral, reivindicada pelo companheiro sob<strong>rev</strong>ivo,<br />

ao pai do falecido, vítima de Aids, malgrado tivesse esse<br />

sob<strong>rev</strong>ivente “assumido assistência ao doente, expondo-se<br />

publicamente, em face da omissão” desse genitor, “a quem<br />

não pode ser atribuída culpa pela enfermidade” contraída<br />

por seu filho.<br />

Lembra, ao seu turno, Rainer Czajkowski 14 que<br />

existe, em torno do tema uniões homossexuais, “uma forte<br />

carga negativa, de ordem moral e mesmo religiosa na sua<br />

avaliação”; por esse motivo, para que isso seja evitado, e<br />

“na medida em que o relacionamento íntimo entre<br />

duas pessoas do mesmo sexo pode ter efeitos jurídicos<br />

relevantes, é mais razoável que se faça uma abordagem<br />

jurídica e técnica da questão, e não uma análise moral,<br />

porque esta última, além de ser excessivamente subjetiva,<br />

concluirá pela negativa de qualquer efeito útil”.<br />

Pondere-se, nesse ponto, que, provada a sociedade<br />

de fato, entre os conviventes do mesmo sexo, com aquisição<br />

de bens pelo esforço comum dos sócios, está presente o<br />

contrato de sociedade, reconhecido pelo art. 1.363 do<br />

Código Civil de 1916 (atual art. 981), independentemente<br />

de casamento ou de união estável, pois celebram contrato<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


de sociedade as pessoas que se obrigam, mutuamente, a<br />

combinar seus esforços pessoais e/ou recursos materiais,<br />

para a obtenção de fins comuns.<br />

Registre-se, nesse ponto, a celeuma em torno de<br />

uma decisão unânime do Superior Tribunal de Justiça,<br />

de sua 4ª Turma, sendo relator o Ministro Ruy Rosado de<br />

Aguiar 15 que, na verdade, não atribuiu <strong>direito</strong> de herança<br />

a homossexual, mas reconheceu <strong>direito</strong> à partilha de<br />

bens adquiridos, pelos parceiros, em decorrência de sua<br />

colaboração comum.<br />

Do mesmo modo, foi normal a decisão unânime<br />

da Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado<br />

de São Paulo, sendo relator o Desembargador Dirceu de<br />

Mello 16 de 31 de julho de 1997, quando se entendeu deferir<br />

a guarda de criança a homossexual, constatando-se que<br />

essa circunstância, naquele momento, não era obstáculo<br />

à medida, dada a provisoriedade da natureza da guarda,<br />

que pode ser <strong>rev</strong>ogada a qualquer momento, ante qualquer<br />

desvirtuamento na formação psicológica da criança.<br />

Entendeu-se que era dificultoso, à época, colocar a criança<br />

sob cuidados de uma família substituta.<br />

Registre-se, finalmente, decisão de 20 de agosto<br />

de 1998, da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª<br />

Região-RS, por unanimidade, sendo relatora a Juíza Marga<br />

Inge Barth Tessler 17 , que não reconheceu união estável<br />

entre pessoas do mesmo sexo, ante a vedação do § 3º do art.<br />

226 da Constituição Federal; todavia, admitindo a inclusão<br />

de parceiro como dependente de outro, em plano de saúde.<br />

E isto, ante os princípios constitucionais da liberdade,<br />

da igualdade e da dignidade humana. Acentua-se, nesse<br />

julgamento, que estão preenchidos os requisitos exigidos<br />

pela lei para a percepção do benefício pretendido:<br />

“vida em comum, laços afetivos, divisão de despesas.<br />

Ademais, não há que se alegar a ausência de p<strong>rev</strong>isão<br />

legislativa, pois antes mesmo de serem regulamentadas<br />

as relações concubinárias, já eram concedidos alguns<br />

<strong>direito</strong>s à companheira, nas relações heterossexuais. Tratase<br />

da evolução do Direito, que, passo a passo, valorizou<br />

a afetividade humana abrandando os preconceitos e as<br />

formalidades sociais e legais”.<br />

Até, então, quando a união homossexual não<br />

era reconhecida como apta à constituição de família, os<br />

parceiros deviam acautelar-se com realização de contratos<br />

escritos, que esclarecessem a respeito de seu patrimônio,<br />

principalmente demonstrando os bens que existiam<br />

ou que viessem a existir, em regime de condomínio,<br />

com os percentuais estabelecidos ou não. Se for o caso,<br />

para que não esbarrem suas convenções no <strong>direito</strong><br />

sucessório de seus herdeiros, devem realizar testamentos<br />

esclarecedores de suas verdadeiras intenções. Podem,<br />

ainda, os parceiros adquirir bens em nome de ambos, o que<br />

importa condomínio, em partes iguais, ou com menção dos<br />

respectivos percentuais.<br />

Todos esses julgados dos nossos Tribunais não<br />

reconheceram a união homoafetiva porque se basearam,<br />

estritamente no dispositivo constitucional da união estável,<br />

quando poderiam ter considerado a união homoafetiva,<br />

como modo autônomo de constituição de família como<br />

considerado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal,<br />

albergado no art. 226 da Constituição Federal, como<br />

dispositivo genérico.<br />

Projeto Marta Suplicy e seu substitutivo na Câmara<br />

dos Deputados<br />

4.1 Generalidades<br />

A então Deputada Federal Marta Suplicy apresentou<br />

o Projeto de Lei nº 1.151, de 1995, que objetiva a disciplinar<br />

a “união civil entre pessoas do mesmo sexo”.<br />

Como bem pondera a autora desse Projeto 18 , não<br />

se pode mais negar a existência de relações homossexuais<br />

e as diferentes formas de expressão da sexualidade, no<br />

Brasil e em outros países, sendo necessário “garantir<br />

<strong>direito</strong>s de cidadania sem discriminar as pessoas devido à<br />

sua orientação sexual”.<br />

E continua dizendo que seu projeto<br />

“não se refere ao casamento, nem propõe a adoção<br />

de crianças ou a constituição de família. Simplesmente<br />

possibilita às pessoas homossexuais que vivem juntas<br />

o <strong>direito</strong> a herança, p<strong>rev</strong>idência, declaração comum de<br />

imposto de renda e nacionalidade. Basicamente, <strong>direito</strong>s<br />

jurídicos para pessoas que pagam impostos e hoje são<br />

ignoradas pela sociedade. (...) A sociedade nos educa para a<br />

heterossexualidade como sendo esta a única forma correta e<br />

aceita de viver a sexualidade”.<br />

Instalou-se uma Comissão Especial na Câmara<br />

dos Deputados, para apreciar esse projeto, presidida pela<br />

Deputada Maria Elvira, tendo como relator o Deputado<br />

Roberto Jefferson.<br />

Prestando depoimento nessa Comissão, Luiz<br />

Edson Fachin 19 sugeriu a substituição do termo união por<br />

outro mais adequado. O relator dessa Comissão entendeu<br />

correta essa sugestão, substituindo a palavra “união” por<br />

“parceria”.<br />

Esse jurista paranaense , esc<strong>rev</strong>endo sobre a<br />

convivência de pessoas do mesmo sexo, em outubro de<br />

1996, conclui seu artigo, ponderando que<br />

“humanismo e solidariedade constituem, quando<br />

menos, duas ferramentas para compreender esse desafio<br />

15 JTJ-Lex 198/121.<br />

16 DJU de 20/11/98, p. 585.<br />

17 O sol e a peneira. Manchete. Rio de Janeiro: Bloch, p. 98, 6 jul. 1996.<br />

18 Luiz Edson Fachin, Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo. RT 732/47-54, especialmente p. 52-53.<br />

19 A Comissão Especial destinada a apreciar e proferir parecer sobre o Projeto de Lei nº 1.151, de 1995, que “disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo e dá outras providências”, em reunião,<br />

opinou contra os votos dos Deputados Jorge Wilson, Philemon Rodrigues, Wagner Salustiano, e, em separado, dos Deputados Salvador Zimbaldi e Severino Cavalcanti, pela constitucionalidade,<br />

juridicidade e técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação, deste, com substitutivo, com complementação de voto, nos termos do parecer do relator. Participaram da votação nominal os Deputados<br />

Marilu Guimarães, Roberto Jefferson, Lindberg Farias, Maria Elvira, Jorge Wilson, Severino Cavalcanti, Salvador Zimbaldi, Tuga Angerami, Jair Meneguelli, Sérgio Carneiro, Fernando Lyra, Fernando<br />

Gonçalves, Fernando Gabeira, Wagner Salustiano, Philemon Rodrigues e Marta Suplicy. A documentação relativa ao projeto encontra-se reproduzida no Apenso deste livro, a final.<br />

13


que bate às portas do terceiro milênio com mais intensidade.<br />

Reaprender o significado de projeto de vida em comum é uma<br />

tarefa que incumbe a todos, num processo sacudido pelos<br />

fatos e pela velocidade das transformações. Em momento<br />

algum pode o Direito fechar-se feito fortaleza para repudiar<br />

ou discriminar. O medievo jurídico deve sucumbir à visão<br />

mais abrangente da realidade, examinando e debatendo os<br />

diversos aspectos jurídicos que emergem das parcerias de<br />

convívio e de afeto. Esse é um ponto de partida para desatar<br />

alguns ‘nós’ que ignoram os fatos e desconhecem o sentido<br />

de refúgio qualificado prioritariamente pelo compromisso<br />

socioafetivo”.<br />

O relator desse projeto, Deputado Roberto Jefferson,<br />

votando por sua constitucionalidade e o aprovando, no<br />

mérito, nos termos do substitutivo pelo mesmo relator<br />

oferecido e, adiante, por nós analisado, entende que “negar<br />

aos homossexuais os <strong>direito</strong>s básicos surgidos” de sua<br />

“parceria equivale a repudiar os princípios constitucionais”,<br />

a saber, “a dignidade da pessoa humana; a justiça e a<br />

solidariedade entre os homens; a não-discriminação de<br />

qualquer espécie; e o respeito aos <strong>direito</strong>s humanos”.<br />

O Parecer da Comissão Especial não foi unânime,<br />

mas entendeu pela constitucionalidade e pela aprovação<br />

do projeto, com as alterações do Substitutivo e da mesma<br />

Comissão.<br />

Cumpre destacar, neste passo, primeiramente, o<br />

entendimento contrário do Deputado Salvador Zimbaldi:<br />

“A desmoralização que se quer legalizar; o<br />

desmantelamento da família, com a instituição desta<br />

aberração contrária à Natureza, que criou cada espécie com<br />

dois sexos, afronta os mais comezinhos princípios éticos<br />

da sociedade brasileira. Ao regulamentar tão estapafúrdia<br />

situação, sem mesmo fazer-se uma pesquisa, consultando<br />

a população sobre a viabilidade desta legalização, o<br />

legislador está indo abalroar a consciência coletiva de<br />

nossos cidadãos. Com a criação deste novo estado civil de<br />

‘emparceirados registrados’ estar-se-á lançando a balbúrdia<br />

nos meios jurídicos, além da imoralidade atentatória aos<br />

nobres princípios da comunidade, e isto tão-somente<br />

para beneficiar uma minoria. A lei assim como o Estado<br />

brasileiro são laicos, bem o sabemos, entretanto não<br />

podemos violentar o nosso povo, impingindo-lhe algo que<br />

repudia.”<br />

Ao seu turno, com seu voto também contrário ao<br />

Projeto, manifestou-se o Deputado Severino Cavalcanti,<br />

sendo, adiante, destacados alguns trechos de seus<br />

comentários.<br />

Primeiramente, quanto aos “<strong>direito</strong>s dos<br />

homossexuais”, declara ambígua a palavra “<strong>direito</strong>”, no<br />

Projeto, comentando:<br />

“O que existe, por pior que seja, não pode ser negado<br />

que exista, mas isto não lhe confere automaticamente um<br />

<strong>direito</strong> a essa existência. O fato de existir o crime não lhe<br />

outorga <strong>direito</strong> de existência. Assim, uma situação que<br />

existe de fato, não pode passar, por esta simples razão, a<br />

uma situação de <strong>direito</strong>. Este só lhe é conferido em razão<br />

14<br />

de atributos próprios que se conformem com a lei natural<br />

e a lei positiva.”<br />

Depois, no tocante à referida “segurança na prática<br />

da homossexualidade”, anota:<br />

“O projeto quer eliminar assim uma certa vergonha,<br />

um salutar sentimento de culpa, que poderiam levar a uma<br />

mudança de vida, a uma continência sexual sustentada pela<br />

graça, mesmo conservando a tendência desviada. Pois Deus<br />

nunca falta àqueles que sinceramente desejam cumprir sua<br />

lei e pedem o seu auxílio. O projeto, pelo contrário, leva<br />

os culpados a uma certa tranqüilidade dentro do pecado,<br />

eliminando assim, quase completamente, a possibilidade de<br />

conversão.”<br />

Acrescenta ainda o Deputado que o “caráter<br />

profundamente rejeitável do projeto” é o de albergar<br />

“um tríplice atentado contra a lei moral” (nos campos<br />

individual, social e institucional) e o de “atrair a cólera<br />

divina sobre o Brasil”, mostrando a posição da Igreja<br />

Católica, concluindo:<br />

“Uma lei que promove, favorece e estimula a prática<br />

de atos contra a natureza está em contraste total com a lei<br />

natural. Portanto, não deve ser considerada como lei, mas<br />

sim como corrupção da lei. E, enquanto tal, ser repudiada e<br />

combatida; e jamais apoiada, acatada ou tolerada.”<br />

Ressalte-se, nesse estágio, que a votação desse<br />

projeto, sobre a união civil de pessoas do mesmo sexo,<br />

não ocorreu na sessão da Câmara do dia 4 de dezembro de<br />

1997, por falta de quorum. A autora do projeto pedira para<br />

que fosse esse retirado de pauta, temendo a forte oposição<br />

existente à época. Todavia, insistiam, os contrários a esse<br />

projeto, em que ocorresse sua votação.<br />

Em 1998 deveria ter sido votado esse projeto, em<br />

sessão extraordinária da Câmara, mas não foi, ante ameaça<br />

muito forte, principalmente por Deputados católicos e<br />

evangélicos, de que seria boicotado o projeto de ajuste fiscal.<br />

O projeto sob estudo continua, portanto, sem<br />

andamento, ante esses fatos de acirrada oposição a ele e o<br />

temor de sua autora de uma derrota.<br />

4.2 Análise do Projeto de Lei nº 1.151/95 e de<br />

seu Substitutivo<br />

Nessa trilha, passaremos à análise dos artigos do<br />

Projeto de Lei nº 1.151, de 1995, da Câmara dos Deputados,<br />

e de seu Substitutivo, adotado pela Comissão Especial,<br />

datado de 10 de dezembro de 1996.<br />

Partirei dos artigos do aludido Substitutivo, que<br />

melhorou a redação do Projeto originário, acrescentando<br />

alguns dispositivos de real importância.<br />

Assim, no art. 1º assegura-se a duas pessoas do<br />

mesmo sexo o reconhecimento de sua “parceria civil<br />

registrada”, objetivando, principalmente, a salvaguarda de<br />

seus <strong>direito</strong>s de propriedade e de sucessão hereditária.<br />

Essa parceria constitui-se mediante registro em<br />

livro próprio nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas<br />

Naturais (art. 2º) com a apresentação dos documentos dos<br />

interessados enumerados no § 1º: declaração de serem<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


solteiros, viúvos ou divorciados; prova de capacidade<br />

civil absoluta, por meio de certidão de idade ou prova<br />

equivalente; e escritura pública de contrato de parceria<br />

civil. O § 2º incluído no Substitutivo repete a necessidade<br />

de que se registre a parceria, conforme caput do mesmo<br />

artigo. O § 3º estabelece a impossibilidade de alteração do<br />

estado civil dos contraentes, na vigência do contrato de<br />

parceria.<br />

Esse § 3º é de extremo rigor, porque corrobora<br />

que o pretendido registro, em livro próprio, no Cartório<br />

de Registro Civil, mencionado no caput do artigo, não é<br />

só para valer contra terceiros, mas cria, perigosamente,<br />

um novo estado civil, que não pode ser alterado sem a<br />

extinção do contrato de parceria civil registrada. Esse<br />

estado civil nem os conviventes possuem, na união estável,<br />

que é reconhecida constitucionalmente como forma de<br />

constituição de família.<br />

Vê-se, claramente, que, existindo constituição desse<br />

estado civil de parceiro ou de parceria, sua desconstituição<br />

judicial pode levar muito tempo, sobrecarregando o Poder<br />

Judiciário de ações e de processos dessa ordem. Mesmo<br />

em caso de morte do parceiro, deverá existir processo<br />

judicial para que, seguramente, constate-se esse fato, para<br />

que possa ser, por decisão do juiz, desconstituído o estado<br />

civil, no competente Registro.<br />

Os ônus que se vão criar, com isso, e os sérios danos<br />

à comunidade podem ser antevistos; principalmente se os<br />

parceiros se separarem de fato, sem qualquer providência<br />

judicial, constituindo novas parcerias de fato.<br />

Entendo a preocupação do pré-legislador em<br />

amparar, de certo modo, as parcerias homossexuais;<br />

entretanto, essa situação de fato, como é a união estável<br />

entre homem e mulher, ficará assoberbada com esses<br />

excessos de formalismo, a que o povo brasileiro não está<br />

acostumado.<br />

Admito que o registro desses contratos, como<br />

defendi a ideia na união estável, é salutar e de alta relevância<br />

na salvaguarda de <strong>direito</strong> de terceiros; mesmo criando<br />

novo estado civil, de parceiro civil ao lado do estado civil<br />

de solteiro, de casado e de divorciado. Nesse caso, deve<br />

também admitir-se o estado de separado judicialmente<br />

(hoje modificação do estado de casamento) e o estado de<br />

convivente ou companheiro, em relação à união estável<br />

entre homem e mulher.<br />

A criação de estado civil novo criará muitos<br />

problemas jurídicos à sua desconstituição, mormente com<br />

relação às situações de fato, com regulamentação legal dos<br />

efeitos jurídicos da convivência, seja na união estável, seja<br />

na parceria civil.<br />

Sugiro, pois, ao legislador que leve em conta essas<br />

observações, para admitir o registro do contrato de parceria<br />

entre o mesmo sexo, como também propus à união estável<br />

em meu projeto, vetado, nesse ponto, pelo Presidente da<br />

República, mas tão-somente para valer contra terceiros.<br />

Cria-se, assim, no clima de liberdade da convivência<br />

homossexual, como pretende a então Deputada Marta<br />

Suplicy, também um clima de responsabilidade e de justiça,<br />

relativamente a essa união, ainda que sem a criação de um<br />

novo estado civil, só alterável com a intervenção do Poder<br />

Judiciário.<br />

O registro será feito, então, só para valer contra<br />

terceiros. Aliás, nesse ponto, chego à conclusão de que o<br />

registro mais eficaz é o que se realiza na Circunscrição<br />

Imobiliária, em que a averbação das situações jurídicas<br />

convivenciais é mais importante, enquanto não houver um<br />

cadastramento geral das pessoas, que esteja informado em<br />

todo o sistema registral. Tudo, para que se evitem alienações<br />

de imóveis, por um dos parceiros, em detrimento do outro<br />

ou de terceiros, malgrado exista registro do contrato de<br />

parceria, no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais.<br />

Ao seu turno, o art. 3º do Substitutivo e do Projeto<br />

dá caráter solene ao contrato de parceria registrada, o qual<br />

deverá ser lavrado em Ofício de Notas, pactuado livremente,<br />

mas devendo versar sobre “disposições patrimoniais,<br />

deveres, impedimentos e obrigações mútuas”.<br />

Se houver disposição expressa no contrato, suas<br />

regras podem operar retroativamente para contemplar<br />

patrimônio comum, formado anteriormente à união (§ 1º,<br />

no Substitutivo; parágrafo único, no Projeto).<br />

Inseriu-se no Substitutivo o § 2º desse mesmo art.<br />

3º, pelo qual ficam proibidas disposições sobre adoção,<br />

tutela ou guarda de crianças ou de adolescentes, em<br />

conjunto, mesmo que sejam filhos de um dos parceiros.<br />

Tal providência foi importante para que se evitem traumas<br />

de caráter psíquico, principalmente para que não surjam<br />

na sociedade filhos, ou crianças, ou adolescentes que<br />

se mostrem só com pais ou só com mães. Sim, porque a<br />

autora do projeto de lei, embora tenha manifestado posição<br />

contrária à adoção pelos parceiros, a proibição da utilização<br />

desse instituto jurídico não se fez, expressamente, em seu<br />

texto de pré-legislação.<br />

Anote-se que o Projeto originário p<strong>rev</strong>ia, nos incisos<br />

I e II de seu art. 4º, a extinção desse contrato de parceria<br />

pela morte de um dos parceiros ou por decreto judicial.<br />

Essa decisão, certamente, ocorrerá em caso de rescisão<br />

desse contrato, com descumprimento culposo de qualquer<br />

de suas cláusulas ou de dispositivos legais, atinentes a essa<br />

união, que é a infração contratual, p<strong>rev</strong>ista no inciso I do<br />

art. 5º do Substitutivo e do Projeto, ou, ainda, em caso de<br />

denúncia (resilição unilateral), quando a um dos parceiros<br />

não mais convier a convivência. Neste último caso, quando<br />

houver alegação, por um dos parceiros, de desinteresse na<br />

continuidade da união, conforme p<strong>rev</strong>isto no inciso II do<br />

art. 5º do Substitutivo e do Projeto.<br />

Nesse ponto, o Substitutivo, mantendo, em seu art.<br />

4º, esses dois incisos, do art. 4º do Projeto, inclui, ainda, um<br />

terceiro, para possibilitar, também, essa extinção contratual,<br />

por consentimento das partes, desde que homologado pelo<br />

juiz. Aqui, então, p<strong>rev</strong>ista a figura da resilição bilateral ou<br />

distrato, em que os parceiros manifestam o desejo de se<br />

separarem, perante o juiz, que homologará esse acordo<br />

15


escrito, verificando se foram cumpridos os requisitos legais<br />

e contratuais. Aliás, o Projeto já p<strong>rev</strong>ia, no § 1º de seu<br />

art. 5º, a possibilidade de requererem, de comum acordo,<br />

consensualmente, as partes a homologação judicial da<br />

extinção de sua união civil.<br />

Mesmo incluindo o aludido inciso III em seu art.<br />

4º, o Substitutivo mantém o mencionado § 1º, agora como<br />

parágrafo único de seu art. 5º, que, de modo repetitivo,<br />

assegura esse requerimento das partes, consensualmente,<br />

amigavelmente, pleiteando a homologação judicial da<br />

extinção de sua parceria registrada.<br />

Desse modo, atualmente, esse Substitutivo<br />

possibilita a referida extinção contratual por morte ou por<br />

via judicial, litigiosa ou amigável.<br />

Ocorrendo a mencionada extinção contratual, a<br />

sentença que declarar extinta a parceria deverá conter a<br />

partilha dos bens dos parceiros, nos moldes do contrato dos<br />

interessados (art. 6º do Projeto e do Substitutivo).<br />

Assinale-se que o art. 7º do Projeto foi eliminado,<br />

e exigia a averbação do registro da constituição ou da<br />

extinção da união civil, nos assentos de nascimento e de<br />

casamento das partes.<br />

O art. 8º do Projeto, ainda, instituía como crime<br />

de ação pública, condicionada à representação, “manter o<br />

contrato de união civil”, referido no aludido Projeto, “com<br />

mais de uma pessoa, ou infringir o § 2º do art. 2º”, punível<br />

com pena de detenção de seis meses a dois anos.<br />

Essa proibição de parceria civil com mais de uma<br />

pessoa, do art. 8º, foi reformulada, no Substitutivo, em seu<br />

art. 7º, sendo nulo de pleno <strong>direito</strong> o contrato que se fizer<br />

nesses moldes, ou, ainda, quando houver infração ao § 2º<br />

do art. 2º do mesmo Substitutivo (falta de registro desse<br />

contrato no Registro Civil de Pessoas Naturais).<br />

Estabelece-se, ainda, no parágrafo único desse<br />

art. 7º que a infração mencionada em seu caput implica<br />

cometimento de crime de falsidade ideológica, sujeitando<br />

o infrator às penas p<strong>rev</strong>istas no art. 299 do Código Penal.<br />

O intuito do pré-legislador foi, em verdade, o de<br />

proibir a existência de dois ou mais contratos simultâneos<br />

de parceria civil; não, propriamente, o de proibir a<br />

existência dessas várias uniões, o que seria impossível.<br />

Desse modo, pode alguém, na prática, ter vários<br />

parceiros, o que é impossível de proibir, como acontece<br />

com o casamento e o concubinato impuro, ou seja,<br />

adulterino ou incestuoso; como pode ocorrer o mesmo com<br />

a união estável (concubinato puro) e o concubinato desleal<br />

(em concorrência com o primeiro).<br />

Essas situações ocorrem na sociedade<br />

independentemente do que queira, ou não, o legislador. O<br />

que este pode coibir é o duplo registro civil.<br />

Todavia, para tentar impedir um registro, ante<br />

eventual existência de uma parceria civil, com escritura não<br />

registrada, é que o Substitutivo, sob cogitação, instituiu o<br />

20 Álvaro Villaça Azevedo. Bem de família, com Comentários à Lei 8.009/90, Ed. Atlas, São Paulo, 6ª edição, 2010, p. 191.<br />

16<br />

crime de falsidade ideológica para os parceiros que venham<br />

a registrar uma parceria, tendo omitido a existência de<br />

parceria civil ou de registro de escritura anterior. O crime,<br />

portanto, consiste nessa omissão e não na manutenção de<br />

duas ou mais parcerias.<br />

Tenha-se presente, ainda, que, existindo registro de<br />

uma parceria anterior, o próprio Cartório Civil impedirá o<br />

registro de outra escritura. O difícil será, eventualmente,<br />

acusar registro anterior, se não houver cadastramento do<br />

registro das parcerias.<br />

No art. 8º do Substitutivo (9º do Projeto) alteram-se<br />

os arts. 29, 33 e 167 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de<br />

1973 (Lei de Registros Públicos).<br />

O art. 29, no qual constam os atos que se fazem<br />

registrar no Registro Civil de Pessoas Naturais, fica<br />

acrescido do inciso IX, que autoriza, também, o registro<br />

dos “contratos de parceria civil registrada entre as pessoas<br />

do mesmo sexo”. No § 1º desse artigo, que cuida das<br />

averbações, fica autorizada a averbação da “sentença<br />

que declarar a extinção da parceria civil registrada entre<br />

pessoas do mesmo sexo”.<br />

No art. 33, referido, inclui-se em seu inciso III<br />

o livro E, para “registro de contratos de parceria civil<br />

registrada entre pessoas do mesmo sexo”.<br />

Finalmente, no art. 167, que menciona as atribuições<br />

relativas ao Registro de Imóveis, fica acrescido o item 35<br />

(deverá ser item 37, porque, atualmente, já existe o item 35,<br />

que foi inserido pela Lei nº 9.514, de 20-11-97, bem como<br />

o item 36, acrescentado pela Lei nº 9.785, de 29-1-99; o<br />

item 35 atual refere-se ao registro da alienação fiduciária<br />

em garantia de coisa imóvel e o item 36 cogita da imissão<br />

provisória na posse do Poder Público ou de entidades<br />

delegadas, para a execução de parcelamento popular em<br />

favor das classes de menor renda), de seu inciso I, pelo<br />

qual, além da matrícula, será feito o registro<br />

“dos contratos de parceria civil registrada entre<br />

pessoas do mesmo sexo que versem sobre comunicação<br />

patrimonial, nos registros referentes a imóveis ou a <strong>direito</strong>s<br />

reais pertencentes a qualquer das partes, inclusive os<br />

adquiridos posteriormente à celebração do contrato”.<br />

Acrescenta-se, ainda, no inciso II desse art. 167,<br />

em seu item 14, a averbação, também, das sentenças de<br />

extinção de parceria civil registrada entre pessoas do<br />

mesmo sexo ao lado das “sentenças de separação judicial,<br />

de divórcio, de nulidade ou anulação do casamento”,<br />

sempre que, em qualquer delas, “nas respectivas partilhas<br />

existirem imóveis ou <strong>direito</strong>s reais sujeitos a registro”.<br />

O art. 9º do Substitutivo (art. 10 do Projeto) institui,<br />

como bem de família, o imóvel próprio e comum dos<br />

contratantes de parceria civil registrada, tornando-o<br />

impenhorável, nos moldes da Lei nº 8.009, de 29 de março<br />

de 1990.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


Essa Lei nº 8.009/90, que regulamenta o bem<br />

de família, só considera como tal o “imóvel residencial<br />

próprio do casal ou da entidade familiar”. Comentando<br />

esse dispositivo legal, já ponderei 20 que<br />

“um dos requisitos a que se constitua, em bem de<br />

família, esse mesmo imóvel é que deva ser de propriedade<br />

do casal, ou da entidade familiar. (...) Todavia, nada impede<br />

que esse imóvel seja de propriedade de um dos cônjuges,<br />

se, por exemplo, não forem casados pelo regime de<br />

comunhão de bens. O mesmo pode acontecer com um casal<br />

de conviventes, na união estável, ou com os integrantes de<br />

outra entidade familiar, sendo um só deles proprietário do<br />

imóvel residencial, em que vivem. Basta, assim, que um dos<br />

integrantes do lar seja proprietário do imóvel residencial, a<br />

constituir-se em bem de família”.<br />

Como resta evidente, tal dispositivo de prélegislação<br />

desvirtuaria, à época, a lei analisada; pois na parceria civil<br />

registrada não existia intuito de constituição de família,<br />

não existindo lar, o que impediria a existência do bem de<br />

família. Entretanto, se tal dispositivo vingasse, teríamos,<br />

aí, uma exceção, em completa dissonância com a Lei nº<br />

8.009/90. Sim, porque o bem de família só pode existir no<br />

âmbito desta.<br />

Atualmente, não haverá qualquer óbice, ante tal<br />

dispositivo, pois o Supremo Tribunal Federal já reconheceu<br />

a união homoafetiva como uma das formas de constituição<br />

de família.<br />

Ao seu turno, os arts. 10 e 11 do Substitutivo<br />

simplificam os textos dos arts. 11 e 12 do Projeto.<br />

Assim, o art. 10 insc<strong>rev</strong>e o parceiro como<br />

beneficiário do Regime Geral de P<strong>rev</strong>idência Social, como<br />

dependente de seu parceiro segurado, desde que esteja<br />

registrado o contrato de parceria civil; extinto este, cancelase,<br />

automaticamente, essa inscrição de beneficiário.<br />

Melhor o texto do Substitutivo, porque prescinde<br />

da inclusão, nos §§ 3º e 2º, respectivamente, dos arts. 16<br />

e 17 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, de matéria<br />

relativa à parceria civil, com a da união estável; também no<br />

tocante ao cancelamento dessas união e parceria, com o da<br />

inscrição do cônjuge, na situação p<strong>rev</strong>ista no mencionado<br />

§ 2º do art. 17 da citada lei.<br />

Do mesmo modo, no art. 11 do Substitutivo (art.<br />

12 do Projeto), desde que comprovada a parceria civil, o<br />

parceiro será considerado beneficiário da pensão p<strong>rev</strong>ista<br />

no inciso I do art. 217 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro<br />

de 1990, que disciplina o regime jurídico dos servidores<br />

públicos civis da União, das autarquias e das fundações<br />

públicas federais.<br />

O art. 12 do Substitutivo (art. 13 do Projeto) p<strong>rev</strong>ê<br />

a necessidade de a Administração Pública, estadual,<br />

municipal e do Distrito Federal disciplinar, por legislação<br />

própria, os benefícios p<strong>rev</strong>idenciários de seus servidores<br />

que tenham relacionamento de parceria civil registrada<br />

com pessoa do mesmo sexo.<br />

Por sua vez, o art. 13 do Substitutivo, como o art. 14<br />

do Projeto, concede <strong>direito</strong>s sucessórios aos contratantes<br />

de parceria civil registrada, nos moldes da Lei nº 8.971, de<br />

28 de dezembro de 1994, relativa à união estável. Todavia,<br />

o aludido art. 13 do Substitutivo adapta, em quatro incisos,<br />

os casos de sucessão dos conviventes aos dos parceiros.<br />

Assim, o parceiro sob<strong>rev</strong>ivente, desde que não firme<br />

novo contrato de parceria civil registrado, terá <strong>direito</strong> ao<br />

usufruto da quarta parte dos bens de seu parceiro falecido,<br />

se este tiver filhos; bem como ao usufruto da metade<br />

desses bens se não houver filhos, ainda que sob<strong>rev</strong>ivam<br />

os ascendentes do mesmo falecido (incisos I e II).<br />

Entretanto, se o parceiro falecido não deixar descendentes<br />

e ascendentes, terá o sob<strong>rev</strong>ivente <strong>direito</strong> à totalidade da<br />

herança (inciso III). Ressalte-se, nesse ponto, que esses três<br />

incisos são adaptações dos três primeiros incisos do art. 2º<br />

da Lei nº 8.971, de 28 de dezembro de 1994, já citada.<br />

Como acontecia, à época, presentemente, em<br />

matéria de união estável, quanto ao aludido inciso III, se<br />

editado esse, continuará a existir o absurdo de estarem<br />

alijados da herança os colaterais do falecido, relativamente<br />

aos bens adquiridos pelo parceiro, morto, antes de constituir<br />

a parceria civil registrada e os adquiridos, a título gratuito,<br />

durante a união.<br />

O inciso IV desse art. 13 do Substitutivo, sob exame,<br />

é a adaptação do art. 3º da mencionada Lei nº 8.971/94<br />

(relativa à união estável). Por ele, se os bens deixados<br />

pelo parceiro falecido tiverem resultado de atividade com<br />

a colaboração comum do sob<strong>rev</strong>ivente, terá este <strong>direito</strong><br />

à metade desse patrimônio. Nesse passo, está presente a<br />

regra de condomínio na aquisição de bens comuns, sem<br />

menção de cota condominial; pois, se essa for estipulada<br />

em contrato escrito ou no documento, mesmo, de aquisição,<br />

deverá ser respeitada.<br />

O art. 14 do Substitutivo, tratando da matéria<br />

cogitada no art. 15 do Projeto, modifica a situação, nesse<br />

p<strong>rev</strong>ista, para pior. Realmente, pois esse art. 14 procura<br />

incluir novo inciso, no art. 454 do Código Civil, que<br />

trata, exclusivamente de curatela de cônjuge interdito,<br />

não separado judicialmente; nesse caso, o curador será<br />

o outro cônjuge. Na falta deste, os três parágrafos, que<br />

seguem, escalonam os pais do interdito; na falta desses,<br />

o descendente maior, mais próximo, precedendo ao mais<br />

remoto; na falta dessas pessoas, o curador escolhido pelo<br />

juiz.<br />

Resta evidente que, não sendo a parceria civil<br />

registrada considerada casamento entre o mesmo sexo,<br />

não há como misturar seu tratamento legislativo com<br />

matéria matrimonial. Por isso que, relativamente a essa<br />

modificação, melhor seria que permanecesse indene o art.<br />

15 do Projeto Marta Suplicy, que assentava que, em caso de<br />

“perda da capacidade civil” de qualquer um dos parceiros,<br />

teria o outro a “preferência para exercer a curatela”.<br />

O art. 15 do Substitutivo refere-se ao conteúdo do<br />

art. 16 do Projeto, objetivando nova redação ao art. 113<br />

da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, que cuida da<br />

situação jurídica do estrangeiro no Brasil. Nesse artigo<br />

da apontada lei, no capítulo que trata das condições<br />

17


da naturalização, menciona-se que o prazo mínimo de<br />

residência, para concessão da naturalização, ou seja,<br />

quatro anos imediatamente anteriores a esse pedido,<br />

fixado no art. 112, III, pode ser reduzido, se o parceiro<br />

estrangeiro tiver contrato de parceria civil registrada com<br />

pessoa de nacionalidade brasileira. A posição do Projeto é<br />

a de incluir a matéria no inciso I do referido art. 113 (“ter<br />

filho ou cônjuge brasileiro” e “companheira de união civil<br />

entre pessoas do mesmo sexo, brasileiro ou brasileira”.<br />

Essa redação, além de não ser boa, implica, mais uma<br />

vez, a mistura de matéria matrimonial com parceria civil<br />

registrada, que não é casamento. Melhor, portanto, a<br />

posição do Substitutivo, que acrescenta o inciso VI, nesse<br />

art. 113, do seguinte teor: “ter contrato de parceria civil<br />

registrada com pessoa de nacionalidade brasileira”).<br />

O Substitutivo incluiu dois artigos, 16 e 17, estes,<br />

sim, de grande utilidade e alcance social.<br />

O art. 16 reconhece aos parceiros o “<strong>direito</strong> de<br />

composição de rendas para aquisição de casa própria”, bem<br />

como todos os <strong>direito</strong>s relacionados com “planos de saúde<br />

e seguro de grupo”.<br />

Como resta evidente, os parceiros podem somar<br />

suas economias, para possibilitar, esse somatório, a<br />

aquisição de sua moradia, que ficará garantida, como visto,<br />

como bem de família, caso essa exceção exista na futura<br />

lei. Também, o plano de saúde e de seguro de grupo, feito<br />

por um, beneficiará o outro.<br />

Finalmente, o art. 17 do Substitutivo admite aos<br />

parceiros a inscrição, um do outro, como dependentes para<br />

efeitos de legislação tributária, já que vivem em sociedade<br />

de fato, com ganhos e gastos comuns. Aplicam-se, assim, a<br />

eles as deduções tributárias.<br />

Os dois últimos artigos do Substitutivo, 18 e 19<br />

(arts. 17 e 18 do Projeto), cuidam, respectivamente, do<br />

início de vigência, na data em que for publicada a lei, e da<br />

<strong>rev</strong>ogação de disposições em contrário.<br />

Todos esses <strong>direito</strong>s, p<strong>rev</strong>istos nesses Projeto e<br />

Substitutivo, estão atualmente admitidos por julgados<br />

de nossos Tribunais ou na esfera Administrativa, com o<br />

selo de reconhecimento da decisão do Supremo Tribunal<br />

Federal, a final, comentada.<br />

5. Situação atual no Brasil<br />

Importante notar, inicialmente, que a Instrução<br />

Normativa do INSS/DC nº 25, de 7 de <strong>junho</strong> de 2000,<br />

estabelece, por força de decisão judicial, procedimentos<br />

a serem adotados para a concessão de benefícios<br />

p<strong>rev</strong>idenciários ao companheiro ou companheira<br />

homossexual 21 .<br />

18<br />

Desse modo, por essa Instrução, a pensão por morte<br />

e o auxílio reclusão podem ser requeridos por companheiro<br />

ou companheira homossexual, com fundamento nas rotinas<br />

disciplinadas no Capítulo XII da Instrução Normativa<br />

INSS/DC nº 20, de 18 de maio de 2000 (art. 2º).<br />

A comprovação da “união estável e dependência<br />

econômica” deverá ser feita mediante os seguintes<br />

documentos:<br />

“I – declaração de Imposto de Renda do segurado,<br />

em que conste o interessado como seu dependente; II<br />

– disposições testamentárias; III – declaração especial<br />

feita perante tabelião (escritura pública declaratória de<br />

dependência econômica); IV – prova do mesmo domicílio;<br />

V – prova de encargos domésticos evidentes e existência<br />

de sociedade ou comunhão nos atos da vida civil; VI –<br />

procuração ou fiança reciprocamente outorgada; VII –<br />

conta bancária conjunta; VIII – registro em associação<br />

de classe, onde conste o interessado como dependente do<br />

segurado; IX – anotação constante de ficha ou livro de<br />

registro de empregados; X – apólice de seguro da qual<br />

conste o segurado como instituidor do seguro e a pessoa<br />

interessada como sua beneficiária; XI – ficha de tratamento<br />

em instituição de assistência médica da qual conste o<br />

segurado como responsável; XII – escritura de compra e<br />

venda de imóvel pelo segurado em nome do dependente;<br />

XIII – quaisquer outros documentos que possam levar à<br />

convicção do fato a comprovar” (art. 3º).<br />

E completa o art. 4º:<br />

“Para a referida comprovação, os documentos<br />

enumerados nos incisos I, II, III e IX do artigo anterior,<br />

constituem, por si só, prova bastante e suficiente, devendo<br />

os demais ser considerados em conjunto de no mínimo três,<br />

corroborados, quando necessário, mediante Justificação<br />

Administrativa – JA.”<br />

Resta evidente que a enumeração do art. 3º não é<br />

taxativa, sendo também clara a importância aos documentos<br />

referidos nos incisos I, II, III e IX desse mesmo artigo. As<br />

outras provas ali mencionadas são muito fracas, ainda que<br />

em grupo de três, como a prova do mesmo domicílio, da<br />

procuração ou fiança reciprocamente outorgada ou conta<br />

bancária conjunta (dois estudantes de uma república podem<br />

apresentar dita documentação, sem serem homossexuais).<br />

O que se deve ter em conta é a convivência e a dependência<br />

econômica.<br />

Estudando a situação atual da matéria relativamente<br />

à união homoafetiva no Brasil, Flávio Tartuce e José<br />

Fernando Simão 22 mostram a existência de duas correntes.<br />

Pela primeira, a união homossexual não constitui<br />

entidade familiar, configurando uma sociedade de fato,<br />

aplicando-se a ela o Direito das Obrigações, para a solução<br />

dos seus problemas. O parceiro é sócio devendo aplicar-se<br />

21 Publicada no DOU nº 110-E, de 8-6-2000, p. 4 (em que se cogitava só de pensão por morte), e republicada no DOU nº 111-E, de 9-6-2000, p. 88 (em que se inclui, também, auxílio reclusão),<br />

fundamentada na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0.<br />

22 Direito Civil, Direito de Família 5, Ed. Gen e Ed. Método, São Paulo, 5ª ed., 2010, pp. 308 a 310.<br />

23 Direito Civil, op. cit., 6ª edição, 2011, p. 320.<br />

24 STJ, REsp 502.995-RN, 4ª Turma, rel. Min Fernando Gonçalves, j. em 26.04.2005; REVJUR vol. 332; STJ, REsp 148.897-MG, RSTJ 110/313, RT756/117, Lex STJ, vol. 108, agosto 1998/235, in<br />

RJTAMG; STJ, REsp 773.136 – RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª turma, j. em 10.10.2006, DJ de 13.11.2006, p. 259 (esforço comum); TJMG, processo 1.0024.04.537121-8/002, 12ª Câm. Cív., rel. Des.<br />

Domingos Coelho, j. em 24.05.2006; TJ GO, CNC 994-3 /194 (200701327426) – Goiânia, 2ª Seção Cív., rel. Des. Carlos Escher, DJE de 29.10.2007; casos citados por Tartuce e Simão, 5ª edição, ob.<br />

cit., 2010, pp. 307 e 308.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


quanto ao prisma patrimonial a regra do esforço comum,<br />

com aplicação da Súmula 380 do Supremo Tribunal<br />

Federal.<br />

Os parceiros, nessa situação, não podem adotar,<br />

a não ser individualmente, não podendo se valer, um do<br />

outro, de seguro saúde e de alimentos.<br />

Só haveria afeto e não um núcleo familiar.<br />

Citavam esses autores, como integrantes dessa<br />

primeira corrente, Maria Helena Diniz, Sílvio de Salvo<br />

Venosa, Inácio de Carvalho Neto e Álvaro Villaça<br />

Azevedo. Os mesmos autores, já em 2011 23 , ressalvam que<br />

Álvaro Villaça Azevedo, filiado a essa primeira corrente,<br />

“conforme apontado em palestras e exposições, o Mestre<br />

das Arcadas mudou de posição, filiando –se agora à<br />

segunda corrente”<br />

Ressalte-se, nesse ponto, o posicionamento<br />

jurisprudencial quanto a esse primeiro entendimento, em<br />

inúmeros casos 24 .<br />

Destaquem-se, mais, julgados que admitem partilha<br />

de bens entre companheiros homossexuais, desde que<br />

comprovado o esforço comum na aquisição patrimonial 25 .<br />

Concedeu-se, ainda, a condição de herdeiro<br />

ao companheiro sob<strong>rev</strong>ivo, na ausência de herdeiros<br />

sucessíveis, sendo nomeado inventariante 26 .<br />

Por outro lado, fundado em precedentes<br />

jurisprudenciais, o Tribunal de Justiça do Rio Grande<br />

do Sul aplicou, por analogia, à união homoafetiva os<br />

princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana<br />

e da igualdade e os do Código Civil atinentes à união<br />

estável 27 .<br />

Decisão que merece destaque, do Tribunal de<br />

Justiça de São Paulo 28 , fundada em precedente do STJ 29 ,<br />

assentou que o Tribunal de Justiça reconhecendo “um<br />

relacionamento levado a sério por mulheres resolvidas”,<br />

“impede que o falso moralismo bloqueie práticas<br />

afirmativas de inclusão dos parceiros ao regime dos<br />

benefícios das relações heterossexuais, como os proventos<br />

de aposentadoria”.<br />

Esclareço, de minha parte, que tenho entendido<br />

possível, ante a prova da parceria homoafetiva, poderem<br />

os parceiros usufruir, um do outro, dos benefícios<br />

p<strong>rev</strong>idenciários: seguro saúde e pensão junto ao INSS post<br />

mortem .<br />

Sempre tenho dito a meus clientes homossexuais<br />

para lançarem-se como companheiros na carteira de<br />

trabalho, declaração que tem fé pública, até prova em<br />

contrário, para fazerem jus aos mencionados benefícios<br />

p<strong>rev</strong>idenciários.<br />

Aconselho-os, também, a fazerem contratos escritos<br />

e/ou testamentos, para regularem o regime condominial de<br />

seu patrimônio.<br />

Lembre-se, ainda, de Jurisprudência que não admite<br />

que o parceiro figure como dependente em plano de saúde 30<br />

ou possa pleitear alimentos 31 .<br />

Também não se admitiu habilitação de herdeiro e<br />

meeiro em inventário de companheiro homossexual, sendo<br />

o <strong>direito</strong> sucessório restrito a união de homem e mulher 32 .<br />

Pela segunda corrente mencionada, a união<br />

homoafetiva é entidade familiar, devendo-se aplicar, por<br />

analogia, a ela, as regras da união estável, considerandose<br />

a proteção que se deve à pessoa, em face do princípio<br />

constitucional da dignidade da pessoa humana.<br />

Defende esse entendimento Maria Berenice Dias,<br />

que considera meramente exemplificativa a enumeração<br />

dos parágrafos do artigo 226 da Constituição Federal de<br />

1988.<br />

Em abono a essa segunda corrente, decidiu o<br />

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sendo relatora a<br />

Des. Maria Berenice Dias 33 , entendendo que a ausência de<br />

lei específica sobre o tema não implica ausência de <strong>direito</strong>.<br />

Destaque-se que a corregedoria geral da justiça do<br />

Rio Grande do Sul, considerando o parecer 006/2004 do<br />

Conselho da Magistratura, promoveu a inclusão de um<br />

parágrafo único no art. 215 da CNNR-CGJ (Consolidação<br />

Normativa Notarial Registral), para possibilitar aos que<br />

vivem em comunhão afetiva o registro de documentos que<br />

digam respeito a tal relação. A Medida foi publicada no<br />

Diário da Justiça de 3 de março de 2004.<br />

De registrar-se, nesse passo, que o Tribunal Superior<br />

25 RT 849/379.<br />

26 TJSP, AI 6.337.424.100-SP, 4ª Câm. de Dir.Priv., rel. Des. Teixeira Leite, j. em 25.06.2009.<br />

27 Apel. cív. 70.005.488.812, rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. em 25.06.2003, in RBD Fam 31/92.<br />

28 Apel. cív. 478.576-4/4, rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. em 01.02.2007; em sentido contrário TJSP, Apel. cív. 994.093.422.625 – Americana, 7ª Câm. de Dir. Priv., rel. Des. Luiz Antônio Costa, j.<br />

em 16.12.2009; TJRS, Apel. cív. 70.026.584.698, 7ª Câm. Cív., rel. Des. José Conrado de Souza Júnior, pub. no DO de 05.06.2009, in RBDFS10/167, in Milton Paulo de Carvalho Filho, Código Civil,<br />

cit., p. 1.984.<br />

29 STJ, REsp 395.904-RS, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. em 13.12.2005, publ. no Dj de 06.02.2006.<br />

30 TJRJ, Apel. cív. 2005.001.44730, rel. Des. Jessé Torres, 2ª Câm. Cív., j. em 23.11.2005, in Tartuce e Simão ob. cit., 5ª ed. p. 304.<br />

31 TJRJ, Apel. cív. 2007.001.04634, rel. Des. Marcos Alcino A. Torres. 16ª Câm. Cív., j. em 24.04.2007, in Tartuce e Simão ob. cit. 5ª ed. pp. 304 e 305.<br />

32 RT 812/220 (Ag In 266.853.4/8, TJSP, 4ª Câm, rel. Des. Rebello Pinho, j. em 28.11.2002, v.u.; no mesmo sentido TJRJ, Apel. 10.704/2000, 3ª Câm, rel. Des. Antonio Eduardo F. Duarte, DORJ de<br />

03.05.2001, j. em 07.11.2000.<br />

33 Apel. cív. 70009550070, 7ª Câm. Cív., j. em 17.11.2004, in Boletim IBDFAM nov./dez./2008, Jurisprudência e Nota, p. 11, com voto vencido do Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves.<br />

34 Eleições 2004, http://noticias .terra.com.br/eleições2004/interna/0, OI394809-EI 2542,00. html, de 01.10.2004. Art.14, “7º- São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes<br />

consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos<br />

seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”.<br />

35 TJRS, Apel. cív. 70012836755, 7ª Câm. Cív., rel. Des. Maria Berenice Dias, j. em 21.12.2005; TJRS, Emb. Infr. 70006984348, 4º Grupo de Câm. Cív., rel. Des. Maria Berenice, j. em 14.11.2003; TJRS,<br />

Apel. cív. 70005345418, 7ª Câm. Cív., rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. em 17.12.2003; in Tartuce e Simão, o.c., p. 306, 5ª edição.<br />

36 TJMG, ACi com ReeNec 1.0024.06.930324-6/001-Belo Horizonte, 7ª Câm. Cív., rel. Des. Heloisa Combat, j. em 22.05.2007, v.u.; TJRJ, Apel. cív. 2005.001.34933, 8ª Câm. Cív., rel. Des. Letícia<br />

Sardas, j. em 21.03.2006; in Tartuce e Simão, o. c., pp. 306 e 307, 5ª edição.<br />

37 TJSP, CC 170.046.0/6, Ac. 3571525-SP, Câm. Especial, rel. Des. Maria Olívia Alves, j. em 16.03.2009, DJESP de 30.06.2009.<br />

38 REsp 820.475-RJ, 4ª Turma, rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, sendo rel. para o acórdão o Min. Luis Felipe Salomão, j. em 02.09.2008; no mesmo sentido TJRS, Apel. cív. 70.023.812.423, 8ª Câm.<br />

Cív., rel. Des. Rui Portanova, j. em 02.10.2008.<br />

39 STJ, Ag . Reg. no Ag. 971.466-SP, 3ª Turma, rel. Min. Ari Pargendler, j. em 02.09.2008.<br />

19


Eleitoral, por seu pleno, reconheceu o relacionamento<br />

homossexual de candidata à Prefeitura da cidade de Viseu,<br />

no estado do Pará, com a atual prefeita dessa localidade,<br />

para declará-la inelegível em face do art. 14 da Constituição<br />

Federal de 1988, cassando o registro dessa candidata 34 .<br />

Principalmente o Tribunal de Justiça do Rio Grande<br />

do Sul vem admitindo a união homoafetiva com os mesmos<br />

elementos da união estável, constituindo uma célula<br />

familiar, para ser reconhecida 35 . Havendo outros Tribunais<br />

que, também, admitem essa união, como o de Minas Gerais<br />

e do Rio de Janeiro 36 , com aplicação analógica das regras da<br />

união estável e sob fundamento do princípio constitucional<br />

da dignidade da pessoa humana.<br />

Sob os mesmos fundamentos, julgou o Tribunal de<br />

Justiça de São Paulo, reconhecendo a união homoafetiva,<br />

para fins p<strong>rev</strong>idenciários 37 .<br />

Caso muito importante e citado é o do Superior<br />

Tribunal de Justiça 38 que admite que a lei ao possibilitar a<br />

união estável entre homem e mulher, não proibiu a união<br />

entre dois homens ou duas mulheres, desde que tenha os<br />

mesmos requisitos daquela união.<br />

A união homoafetiva, gerando <strong>direito</strong>s analógicos<br />

à união estável permite seja incluído o companheiro<br />

dependente em plano de assistência médica do outro 39 ,<br />

devendo haver partilha de bens adquiridos pelos parceiros,<br />

com <strong>direito</strong> recíproco a alimentos, sendo o feito julgado em<br />

varas de família 40 .<br />

Registre-se, ainda, a proposição do Governador do<br />

Estado do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2008, junto ao<br />

Supremo Tribunal Federal, de uma Ação de Arguição de<br />

Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 132-<br />

RJ) 41 , no sentido de aplicar-se às uniões homoafetivas o<br />

regime das uniões estáveis. Nesse pedido, alegou-se a<br />

violação de preceitos fundamentais constitucionais, como<br />

o <strong>direito</strong> à igualdade (art. 5º, caput), o <strong>direito</strong> à liberdade,<br />

do qual resulta a autonomia da vontade (art. 5º, inciso<br />

II), o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º,<br />

inciso III) e o princípio da segurança jurídica (art. 5º,<br />

caput). Em seu pedido o Governador relata as dificuldades<br />

do Estado na concessão administrativa a homossexuais<br />

de licenças em razão de doenças de pessoa da família e<br />

de auxílio doença e assistência médico hospitalar, entre<br />

outros posicionamentos. Tudo com parecer favorável da<br />

Advocacia geral da União, para anulação das decisões do<br />

TJRJ, à época de lavra de José Antonio Dias Tofolli, hoje<br />

Ministro do Supremo Tribunal. Em 2009, a Procuradoria<br />

Geral da República ajuizou outra ADPF (178-DF) 42 , com o<br />

mesmo objetivo, convertida na ADI 4.277-DF, que foram<br />

20<br />

julgadas procedentes recentemente pelo Supremo Tribunal<br />

Federal e que são adiante analisadas.<br />

Restava, então, evidente a tendência de nossos<br />

Tribunais à consideração da união homoafetiva como<br />

instituto do Direito de Família, admitindo-se por analogia<br />

o preceituado nos arts. 1.725 e 1.790 do Código Civil, com<br />

a admissão em tese do regime patrimonial da comunhão<br />

parcial de bens, salvo contrato escrito, e do recebimento<br />

de herança pelo companheiro supérstite, quanto aos bens<br />

adquiridos onerosamente durante a união.<br />

Daí a possibilidade de adoção pelo casal<br />

homossexual, como admitido pelo Tribunal de Justiça do<br />

Rio Grande do Sul por decisão pioneira de 05 de abril de<br />

2006 43 .<br />

Em 02 de setembro de 2008, admitiu o Superior<br />

Tribunal de Justiça a possibilidade jurídica do pedido de<br />

reconhecimento de união homoafetiva.<br />

A Quarta Turma desse Tribunal determinou que<br />

a Justiça Fluminense retomasse o julgamento de ação<br />

requerida por homossexuais, que tinha sido julgada sem<br />

análise do mérito. O julgamento foi de 3 votos a 2, com<br />

o voto de desempate do Ministro Luís Felipe Salomão.<br />

Os Ministros Pádua Ribeiro (relator) e Massami Uyeda<br />

votaram a favor do pedido, que fora também negado<br />

pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e os Ministros<br />

Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Júnior que<br />

entenderam que a Constituição Federal só permite união<br />

estável entre homem e mulher como entidade familiar 44 ,<br />

conforme noticiado.<br />

Essa citada notícia destaca, ainda, que o <strong>direito</strong><br />

patrimonial de casais do mesmo sexo não é novidade<br />

no STJ, mencionando-se jurisprudência sobre várias<br />

situações: <strong>direito</strong> do parceiro receber metade do patrimônio<br />

obtido pelo esforço comum 45 ; <strong>direito</strong> de receber pensão<br />

p<strong>rev</strong>idenciária por morte do companheiro falecido 46 ;<br />

colocação de dependente em plano de saúde 47 .<br />

Havia toda uma tendência de nossos Tribunais, a<br />

considerar a união homoafetiva no âmbito do Direito de<br />

Família, com os benefícios de união estável.<br />

Ressalte-se, atualmente, no âmbito da segunda<br />

corrente analisada, o projeto de lei apresentado pelo<br />

Deputado Sérgio Barradas Carneiro, elaborado pelo<br />

IBDFAM, conhecido como Estatuto das Famílias (Proj. de<br />

lei 2.285, de 2007).<br />

Esse projeto mostra uma tentativa válida de criar o<br />

Estatuto próprio do Direito de Família, destacando-o dos<br />

livros, que compõem o Código Civil.<br />

Todavia, no que se refere à matéria relativa às<br />

40 TJRS, Apel. cív. 70.021.908.587, 7ª Câm. cív., rel. Des. Ricardo Raupp Ruschel, j. em 05.12.2007.<br />

41 In Flávio Tartuce e José Fernando Simão, ob. cit., p. 309, 5ª edição.<br />

42 Idem<br />

43 Apel. cív. 70013801592 – Bagé, 7ª Câm. Cív., r. o Des. Luiz Felipe Brasil Santos, com a participação dos Desembargadores Maria Berenice Dias (Presidente) e Ricardo Raupp Ruschel.<br />

44 Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?noticias&noticia=2636, em 04.09.2008.<br />

45 STJ, REsp 148897, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, de 1998.<br />

46 STJ, REsp 395904, 6ª Turma, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa j. em 13.12.2005; ver, ainda, decisão do STF, deferindo <strong>direito</strong>s p<strong>rev</strong>idenciários ao parceiro homossexual, Origem Pet 1984-RS, rel.<br />

Min. Marco Aurélio, publ. no DJ de 20.02.2003, j. em 10.02.2003; recentemente o STJ estendeu esses <strong>direito</strong>s p<strong>rev</strong>idenciários à p<strong>rev</strong>idência privada, REsp 1.026.981-RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, j.<br />

em 04.02.2010.<br />

47 STJ, REsp 773136, rel. Min. Humberto Gomes de Barros.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


uniões homossexuais, foi ela vetada em todo projeto, pois<br />

considerada não integrante do Direito de Família. Tudo<br />

para que o projeto fosse aprovado.<br />

O art. 68 desse projeto reconhece a união<br />

homoafetiva entre duas pessoas do mesmo sexo, que<br />

mantenham convivência pública, continua, duradoura e<br />

com o objetivo de constituição de família, como entidade<br />

familiar, aplicando-se, no que couber, as regras relativas à<br />

união estável, incluindo-se a guarda e convivência com os<br />

filhos, adoção de filhos, <strong>direito</strong> p<strong>rev</strong>idenciário e o <strong>direito</strong> à<br />

herança.<br />

Nota-se, assim, a tendência negativa do Poder<br />

Legislativo, que reluta em não admitir a entidade familiar<br />

composta de convivência de pessoas do mesmo sexo.<br />

Essa resistência vem sendo sentida, principalmente<br />

a partir do projeto de lei apresentado pela então Deputada<br />

Marta Suplicy (PL 1.151, de 1995), atrás analisado.<br />

Desse modo, já pelas decisões mencionadas do Poder<br />

Judiciário, a respeito desse relacionamento homoafetivo,<br />

percebe-se que esse Poder Judiciário passou além do Poder<br />

Legislativo, admitindo, amplamente, a consideração dessa<br />

união familiar entre o mesmo sexo.<br />

Os ministros do Supremo Tribunal Federal vinham<br />

mostrando entendimento a favor do reconhecimento dessa<br />

união homoafetiva, com todos os <strong>direito</strong>s que dela decorrem<br />

como o relativo à adoção de crianças e à concessão de<br />

pensionamento, conforme noticiado 48 .<br />

Ressalta essa notícia, ainda, que há falta de sintonia<br />

nas decisões dos tribunais estaduais e de juízes dos 26<br />

Estados e do Distrito Federal, apresentando divergências<br />

sobre o tema. Daí a possibilidade de unificação do assunto<br />

mediante súmula editada por essa Suprema Corte.<br />

Tenha-se presente, também, que a Procuradoria<br />

Geral da Fazenda Nacional (PGFN) deu parecer favorável<br />

à consulta de uma servidora pública, solicitando a inclusão<br />

de sua companheira como dependente para efeito de<br />

dedução do Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF).<br />

Esse parecer foi aprovado pelo Ministro da Fazenda, Guido<br />

Mantega, tendo força normativa por toda a administração<br />

federal. Desse modo, a partir do dia 2 de agosto de 2010,<br />

o (a) contribuinte que tiver relação estável homossexual<br />

de mais de cinco anos poderá incluir seu parceiro ou sua<br />

parceira como dependente na declaração do Imposto sobre<br />

a Renda da Pessoa Física, podendo fazer as retificações nas<br />

declarações apresentadas nos últimos cinco anos (desde<br />

2006) 49 .<br />

Como visto, até este ponto, foram ressaltados<br />

importantes julgamentos a favor do reconhecimento da<br />

união entre homossexuais como entidade familiar.<br />

Já, então, dizia eu 50 , não havia como fugir-se à<br />

realidade.<br />

6. Posição atual do Supremo Tribunal Federal<br />

Em 05 de maio de 2011, o Plenário do Supremo<br />

Tribunal Federal, em ocasião histórica, julgou duas<br />

ações diretas de inconstitucionalidade (Arguição de<br />

descumprimento de preceito fundamental – ADPF nº 132 –<br />

RJ e outra conexa – ADI nº 4.277), relativas à apreciação<br />

de uniões homoafetivas, em que se discutiu a interpretação<br />

legitimadora do art. 1.723 do Código Civil, em face da<br />

Constituição Federal, permitindo a declaração de sua<br />

incidência também sobre a união de pessoas do mesmo<br />

sexo, com convivência pública, continua e duradoura, com<br />

o intuito de constituição de família. Ações já anteriormente<br />

mencionadas, respectivamente ajuizadas pela Procuradoria<br />

Geral da República e pelo Governador do Rio de Janeiro,<br />

Sérgio Cabral.<br />

O julgamento foi pela procedência das ações,<br />

admitindo a união de pessoas do mesmo sexo como<br />

entidade familiar, nos termos do acórdão, que está para ser<br />

publicado.<br />

Por essa procedência votaram a favor dez Ministros:<br />

o Relator Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski,<br />

Carmen Lúcia, Marco Aurélio, Celso de Mello, Luiz Fux,<br />

Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie e Cezar<br />

Peluso; isso porque o Ministro José Antonio Dias Toffoli<br />

não votou em razão de impedimento, por ter dado parecer<br />

favorável à anulação das decisões do TJRJ, à época, pela<br />

Advocacia Geral da União.<br />

Embora não tendo sido disponibilizados todos os<br />

votos, o que pude observar é que eles reconhecem a união<br />

homoafetiva como entidade familiar, vendo o art. 226 da<br />

Constituição Federal não em numerus clausus, mas com<br />

texto dispositivo (não taxativo), admitindo <strong>direito</strong>s à pensão<br />

alimentícia e p<strong>rev</strong>idência, à herança de bens adquiridos em<br />

comum e à adoção conjunta.<br />

Aplicam-se à união homoafetiva como entidade<br />

familiar “as regras do instituto que lhe é mais próximo,<br />

qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos<br />

aspectos em que são assemelhados, descartando-se aqueles<br />

que são próprios da relação entre pessoas de sexo distinto,<br />

segundo a vetusta máxima ubi eadem ratio ibi idem jus,<br />

que fundamenta o emprego da analogia no âmbito jurídico”<br />

(voto do Ministro Ricardo Lewandowski).<br />

O Ministro relator Carlos Ayres Britto fundamentou<br />

seu voto no art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal, que<br />

proíbe toda discriminação em virtude de sexo, raça, cor,<br />

idade, ou por quaisquer outras formas.<br />

O Ministro da Defesa, Nelson Jobim, informou, no<br />

dia 6 de maio, seguinte a esse julgamento, que os <strong>direito</strong>s<br />

dos militares que convivem em parceria do mesmo sexo,<br />

serão garantidos pelas Forças Armadas, como no caso de<br />

pensão em caso de morte. 51<br />

48 Notícia de O Estado de São Paulo, por Mariangela Gallucci, na edição de 22 de agosto de 2009 (sábado), A28, no item Vida & Sociedade.<br />

49 Notícia por Adriana Fernandes, da Agência de O Estado de São Paulo, Economia & Negócios, http://economia.estadao.com.br/noticias/not_29873.htm, em 3 de agosto de 2010.<br />

50 Álvaro Villaça Azevedo, Estatuto da Família de Fato, Ed. Atlas, São Paulo, 3ª edição, 2011, p. 455.<br />

51 Conforme Boletim IBDFAM, maio/<strong>junho</strong> de 2011, p. 6.<br />

21


7. Minha atual posição<br />

Com todas as decisões que se originaram de<br />

nossos Tribunais a culminar com o julgamento recente<br />

de nosso Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a<br />

união homoafetiva como entidade de <strong>direito</strong> de família<br />

equiparando-a em certas regras, analogicamente, com a<br />

união estável, admitiu-se uma realidade social brasileira<br />

e mundial, que vem acontecendo e da qual não podemos<br />

fugir.<br />

Assim, também o meu enfoque sobre a matéria<br />

sofreu alguma alteração, que merece ser, nessa feita,<br />

esclarecido.<br />

A proteção que sempre dediquei à união homoafetiva<br />

como sociedade de fato sofre uma transformação a<br />

considerá-la atualmente como união de caráter familiar.<br />

Assim aconteceu, também, porque o posicionamento social<br />

mudou, colocando em ostentação a convivência de pessoas<br />

do mesmo sexo que existia em verdadeiro anominato.<br />

Não pode o jurista fugir à realidade.<br />

O mero comportamento homossexual que sempre<br />

existiu na humanidade, mostra-se, atualmente, como<br />

núcleos familiares, que merecem o respeito da sociedade,<br />

que, em principio, mostra-se hostil a essa convivência,<br />

como em outras situações mostrou-se no passado.<br />

Assim aconteceu, com o repúdio à ideia do divórcio<br />

e com a convivência concubinária pura (não incestuosa e<br />

não adulterina), em que viviam pessoas desquitadas aos<br />

olhos críticos da sociedade, principalmente as mulheres que<br />

sofriam discriminações sociais pela sua condição de serem<br />

desquitadas e mal vistas como de mal comportamento.<br />

Restos de um machismo que agoniza atualmente,<br />

depois do reconhecimento paulatino dos <strong>direito</strong>s da mulher,<br />

principalmente a partir da Lei nº 4.121, de 27 de agosto de<br />

1962, conhecida como Estatuto da Mulher Casada.<br />

No tocante ao concubinato puro, muito lutei pela<br />

sua defesa, que culminou com a publicação de minha tese<br />

intitulada do Concubinato ao Casamento de Fato, publicada<br />

um ano e meio antes da Constituição Federal de 1988.<br />

Com esforço meu muito grande junto ao Relator da<br />

Constituinte, então Senador Bernardo Cabral, foi incluído<br />

o concubinato puro (como era por mim chamado) no texto<br />

da mesma Constituição, no § 3º de seu art. 226, com o<br />

nome de união estável.<br />

O anteprojeto de lei que elaborei na aludida tese<br />

foi utilizado como Projeto de Lei, nº 1.888 de 1991, pela<br />

Deputada Beth Azize, com o apoio constante do grupo<br />

CFEMEA, de Brasília, e que se transformou na Lei nº<br />

9.278, de 10 de maio de 1996.<br />

52 Álvaro Villaça Azevedo, Estatuto da Família de Fato cit., p. 240.<br />

22<br />

Depois, a matéria foi incorporada ao Código Civil,<br />

tendo a união estável recebido o respeito e a aprovação de<br />

nossa sociedade, que reprovara, antes, a união concubinária<br />

pura.<br />

Atualmente, a grande defesa da união homoafetiva é<br />

sua equiparação à união estável, que acolhe especificamente<br />

a convivência heterossexual.<br />

A consideração atual de que as regras da união<br />

estável devem ser aplicadas analogicamente à união<br />

homoafetiva foi o entendimento do Supremo Tribunal<br />

Federal ao interpretar o art. 1.723 do Código Civil, diante<br />

dos casos concretos que foram apresentados à decisão.<br />

Todavia, além dessa interpretação da Corte<br />

Suprema, é melhor encarar a união homoafetiva como um<br />

instituto jurídico autônomo dentro do contexto enunciativo<br />

do art. 226 da Constituição Federal, já que esse Tribunal<br />

Supremo considerou essa convivência como entidade de<br />

Direito de Família.<br />

Bem apreendeu esse espírito o Ministro Ricardo<br />

Lewandowski quando referiu em seu cuidadoso e profundo<br />

voto, meu entendimento 52 : “Nesse sentido, aliás, observa o<br />

Professor Álvaro Villaça Azevedo que: “(...) a Constituição<br />

de 1988, mencionando em seu caput que a família é a ‘base<br />

da sociedade’, tendo ‘especial proteção do Estado’, nada<br />

mais necessitava o art. 226 de dizer no tocante à formação<br />

familiar, podendo o legislador constituinte ter deixado de<br />

discriminar as formas de constituição da família. Sim<br />

porque ao legislador, ainda que constituinte, não cabe dizer<br />

ao povo como deve ele constituir sua família. O importante<br />

é proteger todas as formas de constituição familiar, sem<br />

dizer o que é melhor”.<br />

Desse modo, enquanto não for a matéria objeto da<br />

legislação própria, a união homoafetiva irá recebendo a<br />

proteção como se fosse união estável, com os beneplácitos<br />

dos arts. 1.723 a 1.725.<br />

Não poderão, entretanto, os companheiros<br />

homoafetivos converter sua união em casamento, nos<br />

moldes do art. 1.726 do Código Civil, a não ser que seja<br />

entendida a posição do Supremo Tribunal Federal, como<br />

equiparação total das duas uniões. Ai, então, o Supremo<br />

Tribunal Federal estará autorizando essa conversão,<br />

criando assim, o casamento homoafetivo por conversão,<br />

suprindo a legislação competente pelo Poder Legislativo.<br />

Muitos juízes vem, atualmente, sob interpretação<br />

desse julgado pelo Supremo Tribunal Federal, admitindo<br />

a conversão de uniões homoafetivas em casaemtno, com<br />

aplicação analógica do art. 1.726 do Código Civil, como<br />

uma decisão em São Paulo e outra em Brasília.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


Se, de futuro, o Poder Legislativo for levado a<br />

admitir no Brasil o casamento entre pessoas do mesmo<br />

sexo, aí minha sugestão é de que se siga o exemplo<br />

português, alternando-se os textos do Código Civil na<br />

parte relativa ao casamento civil, acrescentando-se ao<br />

lado da palavra “cônjuge” o vocábulo “companheiro”; ao<br />

lado da locução “homem e mulher” a expressão “cônjuges<br />

e companheiros”, esta última palavra também após a<br />

expressão “marido e mulher”.<br />

Como exemplo, o art. 1.511, ficaria assim redigido:<br />

“O casamento ‘Civil’ estabelece comunhão plena de vida,<br />

com base na igualdade de <strong>direito</strong>s e deveres dos cônjuges<br />

‘e dos companheiros’”; o art. 1.514, seria redigido: “O<br />

casamento civil realiza-se no momento em que ‘duas<br />

pessoas’ manifestam, perante o juiz, a sua vontade<br />

de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz ‘as’ declara<br />

‘casadas’”; o art. 1.517, teria o seguinte texto: “As pessoas<br />

com 16 (dezesseis) anos podem casar-se exigindo-se<br />

autorização de ambos os pais ou de seus representantes<br />

legais, enquanto não atingida a maioridade civil”; e assim<br />

por diante.<br />

Isso, se não preferir o legislador admitir no novo<br />

Estatuto das Famílias, o restabelecimento de seu art. 68<br />

(que foi retirado do projeto de lei nº 2.285, de 2007, criado<br />

pelo IBDFAM, e apresentado pelo Dep. Sérgio Barradas<br />

Carneiro (PT/BA).<br />

Eis a íntegra do art. 68 desse Estatuto: “É<br />

reconhecida como entidade familiar a união entre duas<br />

pessoas do mesmo sexo, que mantenham convivência<br />

pública, contínua, duradoura, com o objetivo de<br />

constituição de família, aplicando-se, no que couber, as<br />

regras concernentes à união estável. Parágrafo único.<br />

Entre os <strong>direito</strong>s assegurados, incluem-se: I – guarda e<br />

convivência com os filhos; II - a adoção de filhos; III –<br />

<strong>direito</strong> p<strong>rev</strong>idenciário; IV – <strong>direito</strong> à herança”.<br />

Como o Direito de Família é dinâmico e muda<br />

rapidamente com o progresso e com o comportamento da<br />

sociedade, é viável que ele se destaque do Código Civil,<br />

para ser continuamente adaptado segundo as necessidades<br />

sociais. Um Estatuto, fora do Código Civil, este com<br />

normas mais duradouras, como o Estatuto da Criança e do<br />

Adolescente, o Estatuto da disposição do próprio corpo, o<br />

Estatuto do Idoso, o Estatuto do Consumo etc.<br />

Abstract: The work begins with the presentation of the gay<br />

marriage concept and a compelling analysis of placements<br />

made by Platão about the search that man has always done<br />

its corresponding other half, thus eventually resulting in<br />

homosexual practices. According to the author, has not<br />

made reference to marriage between persons of the same<br />

sex, in order to raise a family. But when he open the issue<br />

of gay marriage in the foreign law, the central question of<br />

this study was well placed: many countries now recognize<br />

marriage between same sex. After carefully analyzing the<br />

evolution of matter in society and the Brazilian legislation,<br />

the author recognizes the dynamics of family law and the<br />

possibility it become established outside of the Civil Code,<br />

in the Statute of Families.<br />

Key words: Union of same sex. Gay marriage. Marriage.<br />

23


Comportamentos de fazer e de não fazer na prestação alimentícia<br />

RUI CARVALHO PIVA<br />

Doutor em Direito. Coordenador de Pesquisa da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP.<br />

Editor da Revista FAAP JURIS. Professor de Direito Civil dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de<br />

Direito da FAAP em São Paulo e São José dos Campos. Professor de Direito Ambiental do Curso de Pós-Graduação em<br />

Direito do Agronegócio da FAAP em Ribeirão Preto.<br />

Resumo: O presente artigo tem o objetivo de destacar a importância dos comportamentos de fazer e de não fazer no<br />

cumprimento da prestação alimentícia, como complemento do cumprimento dessa obrigação por meio de prestação<br />

pecuniária. Para justificar a proposta aqui apresentada, foram analisados os seguintes aspectos: o simbolismo contido<br />

na palavra alimento, a expressão familiar e o afeto contidos na prestação alimentícia, a Psicologia, o Direito e o<br />

comportamento das pessoas, o pensar, o sentir e o agir humanos, o <strong>direito</strong> subjetivo e o agir do ser humano, o afeto<br />

envolvido no comportamento familiar da prestação alimentícia, localização e compreensão do instituto jurídico dos<br />

alimentos no Código Civil Brasileiro e modalidades das obrigações e a prestação alimentícia.<br />

Palavras-chaves: Família. Obrigação. Pensão alimentícia. Afeto. Comportamento humano.<br />

1. O simbolismo contido na palavra alimento repercutem duas percepções humanas transportadas para as<br />

leis: o <strong>direito</strong> à vida e o <strong>direito</strong> ao bem estar advindo da<br />

No seu mais tradicional significado gramatical,<br />

alimento é toda substância que, ingerida por um ser vivo,<br />

prática da solidariedade.<br />

lhe dá sustento e nutrição, possibilitando-lhe a vida.<br />

É por este motivo que, em determinado momento<br />

Ao ser utilizada no plural, além de indicar uma flexão das relações sociais, bastava para as pessoas que o <strong>direito</strong><br />

de número, a palavra alimentos ganhou um significado assegurasse a vida biológica. A penalidade p<strong>rev</strong>ista<br />

simbólico, ou seja, recursos considerados indispensáveis para quem matar alguém foi uma das expressões mais<br />

ao sustento de quem, estando impossibilitado de os prover, consagradas destas percepções. A obrigação familiar de<br />

deles necessitar para suprir a obtenção de alimentação, disponibilizar alimento para seus integrantes foi outra.<br />

habitação, vestuário, assistência médica e educação, dentre A evolução da expectativa das pessoas em relação à<br />

outras necessidades. Referidos recursos são devidos por vida ampliou as exigências sociais incorporadas pelo <strong>direito</strong><br />

pessoas mencionadas na lei e ligadas por laços familiares a no sentido de assegurar a efetivação dessa expectativa.<br />

quem estiver impossibilitado de provê-los.<br />

Assim, não basta somente viver. Será necessário<br />

Qual o motivo deste significado simbólico? O que viver bem, com dignidade. Não basta mais somente o<br />

teria levado as pessoas a utilizar a palavra alimentos, ou “prato de comida”, o alimento. Será necessário acrescentar<br />

seja, aquilo que se come para poder viver, com o significado nas p<strong>rev</strong>isões da lei a exigência do atendimento a outras<br />

ampliado de comida, estudos, lugar para morar, roupas necessidades.<br />

para vestir e assim por diante?<br />

A sociedade exigiu e as leis elaboradas pelos órgãos<br />

Respostas a estas perguntas, a partir de uma legislativos competentes atenderam a exigência. Além da<br />

verificação moral e ética das relações entre as pessoas substância que dá sustento ao ser humano vivo, ou seja,<br />

na sociedade, podem permitir interpretações das palavras além do alimento, será preciso disponibilizar habitação,<br />

contidas nas p<strong>rev</strong>isões legais sobre alimentos e dos fatos vestuário, assistência médica, educação e assim por diante,<br />

que concretizam estas p<strong>rev</strong>isões as mais próximas possíveis a quem necessitar.<br />

dos desejos desta sociedade contidos, mas não expressos Para não haver dúvidas quanto ao alcance desta<br />

na lei.<br />

exigência, é permitido entender que a doutrina jurídica<br />

A necessidade de “um prato de comida” como utilizou-se da força da expressão inicial contida na palavra<br />

pressuposto de vida e a solidariedade humana contida na alimento para identificar <strong>direito</strong> de morar, vestir-se, ter<br />

atitude espontânea de tantas pessoas no sentido de não atendimento médico, estudar e assim por diante.<br />

deixar “faltar um prato de comida” a quem dele necessitar, Desta maneira, alimentos passaram a significar<br />

24<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


comida, moradia, roupa, escola e hospital.<br />

E o dever de disponibilizar moradia a quem dela<br />

necessite e não tenha meios para tanto um dever tão<br />

exigível como a alimentação. Igualmente em relação ao<br />

dever de disponibilizar escola, roupas, atendimento médico<br />

e, em palavras conclusivas, tudo aquilo que for necessário<br />

para uma vida digna.<br />

Para que o sistema legal atenda com efetividade<br />

os desejos da sociedade contidos nos textos das leis,<br />

as expressões alimentos e vida digna deverão ser<br />

compreendidas como conceitos jurídicos indeterminados,<br />

cujo verdadeiro alcance será verificado em cada caso<br />

concreto submetido à apreciação do Poder Judiciário.<br />

Conheça ou <strong>rev</strong>eja as seguintes manifestações de<br />

nossos Tribunais sobre o assunto alimentos e identifique<br />

nas mesmas o reconhecimento das sugestões acima.<br />

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo<br />

520.319-4/2-00. Agravo de Instrumento.<br />

Des. José Roberto Neves Amorim<br />

Alimentos provisórios. Obrigação imposta aos<br />

avós. Impossibilidade. Ausência de prova a respeito<br />

da incapacidade financeira dos próprios genitores.<br />

Condenação dos demais parentes autorizada apenas em<br />

caráter excepcional. Precedentes jurisprudenciais. Decisão<br />

mantida.<br />

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de<br />

Janeiro.<br />

2009.002.21492. Agravo de Instrumento.<br />

Julgamento: 28/08/2009.<br />

Des. Marília de Castro Neves - Décima Câmara<br />

Cível.<br />

Agravo de Instrumento. Alimentos. Fixação dos<br />

provisórios em valor justo e razoável. Atendimento do<br />

binômio necessidade-possibilidade. Valor ora determinado<br />

se mostra adequado para atender as necessidades da<br />

alimentanda, até que seja concluída a fase de cognição, onde<br />

será apurado o valor mais consentâneo com a realidade e a<br />

efetiva necessidade das partes envolvidas. Recurso a que se<br />

nega seguimento na forma do artigo 557 caput do Código<br />

de Processo Civil.<br />

Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.<br />

2009.035378-8. Apelação Cível. Julgamento:<br />

06/08/2009.<br />

Des. Eládio Torret Rocha – Quarta Câmara Cível.<br />

Havendo alteração na situação financeira das partes<br />

ou qualquer outra justificativa plausível para majoração,<br />

diminuição ou extinção da obrigação alimentar, é possível a<br />

<strong>rev</strong>isão do encargo, nos moldes do art. 1.699 do Código Civil.<br />

Todavia, como bem ensina o art. 1.694, §1º do Código Civil,<br />

os ALIMENTOS devem ser fixados na proporção das<br />

necessidades do alimentando e dos recursos econômicofinanceiros<br />

do alimentante. Recurso improvido.<br />

Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso.<br />

140340. Habeas Corpus. Julgamento: 29/04/2009.<br />

Des. Maria Helena G. Póvoas – Segunda Câmara<br />

Cível.<br />

É legítima a decretação da prisão civil do alimentante<br />

inadimplente que não paga dívida correspondente às 3<br />

(três) últimas parcelas cobradas em ação de execução de<br />

alimentos, bem como pelas prestações alimentícias não<br />

pagas no curso do processo. A ausência ou não de condições<br />

financeiras do Paciente para o cumprimento da obrigação<br />

alimentar foge à esfera de cognição do habeas corpus.<br />

A expressão familiar e o afeto contidos na prestação<br />

alimentícia<br />

2.1. A Psicologia, o Direito e o comportamento das<br />

pessoas<br />

* A partir de textos construídos pelo autor em sua<br />

tese de doutorado mencionada na bibliografia.<br />

A psicologia é uma disciplina que tem por objeto a<br />

alma, a consciência ou os eventos característicos da vida<br />

animal e humana, nas várias formas de caracterização<br />

de tais eventos, com o fim de determinar sua natureza<br />

específica. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário..., p. 809).<br />

Prosseguindo na conceituação acima, Nicola<br />

Abbagnano esclarece que esses eventos podem ser<br />

considerados como puramente mentais (fatos da<br />

consciência) ou como eventos objetivamente observáveis<br />

(comportamentos), delimitando o campo da psicologia aos<br />

fenômenos característicos dos organismos animais, em<br />

especial o homem.<br />

É certo identificar nesses comportamentos humanos<br />

que resultam de uma escolha processada na consciência,<br />

objeto de estudo da psicologia, os mesmos comportamentos<br />

humanos objeto do estudo do <strong>direito</strong>, enquanto fatos<br />

jurídicos humanos voluntários, ou seja, acontecimentos<br />

que dependem da vontade e do comportamento humanos,<br />

p<strong>rev</strong>istos em lei, em decorrência dos quais nasce, modificase,<br />

extingue-se ou subsiste uma relação jurídica, a categoria<br />

básica do <strong>direito</strong>, que é um vínculo entre pessoas que incide<br />

sobre bens.<br />

É certo, ainda, que esses comportamentos, quando<br />

resultado de uma vontade conscientemente processada em<br />

25


um ambiente familiar afetivo, tendem a resultar em ações<br />

adequadas, prestigiadas pela ordem jurídica e úteis para as<br />

pessoas que integram o meio social em que eles ocorrem,<br />

ações estas desejáveis para os fins do <strong>direito</strong> enquanto<br />

técnica da coexistência humana.<br />

O pensar, o sentir e o agir humanos<br />

Estas são as três áreas da estrutura das pessoas.<br />

Consideremos o pensamento como a atividade<br />

do intelecto em geral, ou seja, a faculdade de pensar ou<br />

uma técnica particular de pensar. Esta atividade é distinta<br />

da sensibilidade e da atividade prática. Quando estamos<br />

pensando, somos sabedores do que acontece em nós. O<br />

pensamento representa as coisas que estão fora de nós.<br />

Nicola Abbagnano (Obra citada, p. 751) refere-se<br />

a Platão, que dizia: quando a alma, que é o princípio da<br />

vida, da sensibilidade e das atividades espirituais, pensa,<br />

ela está discutindo consigo mesma por meio de perguntas<br />

e respostas, afirmações e negações. Quando, mais tarde,<br />

decidimos a respeito disto, a alma chegou a uma opinião,<br />

ou seja, pensamos.<br />

Em outra área da estrutura das pessoas, encontramos<br />

o sentimento, que é a fonte das emoções, o princípio dos<br />

afetos (sentimentos ternos de adesão por alguém) e das<br />

afeições (sentimentos amorosos em relação a alguém).<br />

Aceitar o sentimento como uma fonte autônoma de<br />

emoções significa reconhecer que a subjetividade humana<br />

não se reduz a um conjunto de elementos objetivos e não<br />

está sujeita a modificações passivas produzidas por esses<br />

elementos (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário..., p. 874).<br />

Este reconhecimento caracteriza os primórdios da filosofia<br />

moderna.<br />

Na última destas áreas da estrutura das pessoas,<br />

vamos encontrar considerar o agir, que é sinônimo de<br />

comportamento, de atitude, ou seja, é toda resposta do ser<br />

humano a estímulos uniformes que sejam objetivamente<br />

observáveis por qualquer meio, que inclui a antecipação de<br />

pensamentos, sentimentos e escolha. É a face externa das<br />

pessoas, informada por processos internos de pensamentos<br />

e sentimentos.<br />

Com estes esclarecimentos, podemos avaliar a base<br />

racional e sentimental dos comportamentos das pessoas que<br />

concretizam p<strong>rev</strong>isões contidas na lei, ou seja, podemos<br />

avaliar a base racional e sentimental dos fatos jurídicos.<br />

O <strong>direito</strong> subjetivo e o agir do ser humano<br />

Popularmente, o <strong>direito</strong> é confundido com o<br />

conjunto das leis vigentes.<br />

26<br />

Porém, a verdadeira denominação deste conjunto de<br />

normas jurídicas vigentes é <strong>direito</strong> objetivo.<br />

Cada uma delas representa um imperativo<br />

autorizante (TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na<br />

ciência do <strong>direito</strong>, p. 43), uma autorização, uma permissão<br />

para ter, não ter, fazer ou não fazer alguma coisa e também<br />

autorização para pleitear junto aos órgãos competentes a<br />

reparação do dano causado pelo comportamento de alguém<br />

que descumpra o que nelas estiver estabelecido.<br />

Esta autorização ou permissão dada por meio de<br />

normas jurídicas denomina-se <strong>direito</strong> subjetivo, também<br />

conhecido como o poder que advém da norma.<br />

Conforme Maria Helena Diniz (Curso de <strong>direito</strong><br />

civil brasileiro, 1 v., p. 14), os comportamentos importam<br />

em significativa expressão de subjetivismo, que percorrem<br />

um itinerário psíquico onde se distinguem os momentos da<br />

solicitação (o cérebro recebe o estímulo do meio exterior),<br />

da deliberação (pensamentos e sentimentos atuam sobre o<br />

acontecido) e da ação (a pessoa toma uma atitude).<br />

É a propósito da deliberação comportamental acima<br />

referida, quando tomada em função de permissões dadas por<br />

meio de normas jurídicas que envolvem deveres impostos a<br />

integrantes da família em relação a prestações alimentícias,<br />

que vamos tecer as considerações que seguem.<br />

2.2. O afeto envolvido no comportamento familiar<br />

da prestação alimentícia<br />

O <strong>direito</strong> não é só uma coisa que se conhece, é<br />

também uma coisa que se sente (BARRETO, Tobias.<br />

Introdução ao estudo do <strong>direito</strong>, p. 38).<br />

É certo afirmar que o senso jurídico é um fato<br />

psicológico de observação quotidiana, que se manifesta<br />

pelo sentimento do próprio <strong>direito</strong> e pelo sentimento<br />

daquilo que é o <strong>direito</strong> alheio.<br />

Segundo Tobias Barreto (Obra citada), o sentimento<br />

do próprio <strong>direito</strong> é uma das bases do caráter e o sentimento<br />

do <strong>direito</strong> alheio uma das fontes da virtude. Assim, quem é<br />

justo sente, além do próprio, o <strong>direito</strong> dos outros e procede<br />

de acordo com tal sentimento.<br />

A família, reconhecida atualmente como base da<br />

sociedade brasileira, sempre representou, ao longo da<br />

história de toda a civilização, uma fonte inesgotável de<br />

senso jurídico marcado pela preponderância da virtude<br />

em relação ao caráter, ou seja, no ambiente familiar, a<br />

percepção do <strong>direito</strong> do outro p<strong>rev</strong>alece em relação ao<br />

<strong>direito</strong> próprio.<br />

É este desprendimento que proporcionou a sólida<br />

construção social e jurídica dos contornos da maternidade,<br />

da paternidade e da fraternidade.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


Isto é assim porque a sustentação racional e<br />

sentimental do comportamento familiar vem marcada por<br />

uma insistente necessidade de acolher e conciliar posições<br />

conflitantes das pessoas que a integram, constatação esta<br />

que faz das atitudes originárias do ambiente familiar<br />

quotidiano um permanente exercício de ponderação,<br />

equilíbrio e compreensão de anseios opostos, mas<br />

harmonizáveis. Um permanente exercício da virtude.<br />

O que significa essa virtude?<br />

De modo bastante amplo, significa uma capacidade<br />

qualquer, uma excelência, seja qual for a coisa ou o ser a<br />

que pertença.<br />

Ela pode ser entendida como uma capacidade em<br />

geral, como uma capacidade do ser humano ou como uma<br />

capacidade moral do ser humano.<br />

Neste último sentido, que é o que interessa para os<br />

propósitos da identificação de uma especial característica<br />

do <strong>direito</strong> subjetivo quando exercido pela família, a virtude<br />

designa uma capacidade uniforme e continuada do ser<br />

humano, uma vez que esta capacidade exercida uma vez,<br />

isoladamente, constitui somente um ato moral e não uma<br />

virtude.<br />

Assim concebida, a virtude pode compreender<br />

(ABBAGNANO, Nicola. Obra citada, p. 1003: 1) a<br />

capacidade de realizar uma tarefa ou função; 2) o hábito<br />

ou disposição racional; 3) o sentimento ou tendência<br />

espontânea; 4) o esforço.<br />

Tal aptidão, a virtude, só pode estar sustentada em<br />

bases afetivas e, sob o aspecto da afetividade, a instituição<br />

familiar é inigualável. Berço do caráter, a família vem se<br />

constituindo numa indispensável presença.<br />

Se localizarmos esta presença em relação às atitudes<br />

que uma família pode tomar em face das autorizações que<br />

a norma jurídica lhe concede, certamente poderemos ficar<br />

na expectativa de atitudes adequadas, ou seja, atitudes<br />

prestigiadas pela ordem jurídica.<br />

Se identificarmos estas atitudes como exercício<br />

de <strong>direito</strong>s subjetivos e imaginarmos os membros família<br />

incentivados a exercê-los com virtude no cumprimento de<br />

prestações alimentícias, certamente poderemos pensar em<br />

maior efetividade do <strong>direito</strong> aos alimentos.<br />

Localização e compreensão do instituto jurídico dos<br />

alimentos no Código Civil Brasileiro<br />

O Código Civil Brasileiro disciplinou os<br />

assuntos relativos aos alimentos nos artigos 1.694 a<br />

1.710, posicionando-o no Título II do Livro IV, assim<br />

identificando-o como um Direito Patrimonial, diversamente<br />

dos assuntos relativos ao casamento e às relações de<br />

parentesco, p<strong>rev</strong>istos no Título I, na condição de Direitos<br />

Pessoais.<br />

As p<strong>rev</strong>isões legais básicas do Código Civil relativas<br />

aos alimentos constam do artigo 1.694 e seus parágrafos,<br />

como seguem:<br />

Artigo 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou<br />

companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que<br />

necessitem para viver de modo compatível com a sua<br />

condição social, inclusive para atender às necessidades de<br />

sua educação.<br />

§ 1.º. Os alimentos devem ser fixados na proporção<br />

das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa<br />

obrigada.<br />

§ 2.º. Os alimentos serão apenas os indispensáveis à<br />

subsistência, quando a situação resultar de culpa de quem<br />

os pleiteia.<br />

Estruturado nestas p<strong>rev</strong>isões básicas, o Código<br />

estabelece regras complementares que podem ser assim<br />

resumidas:<br />

Os alimentos serão fornecidos por quem pode, em<br />

benefício de quem precisa e não tem condições de provêlos;<br />

A obrigação de prestar alimentos é recíproca<br />

entre ascendentes e descendentes, de qualquer grau, e<br />

subsidiária, na medida em que os de graus mais distantes<br />

somente poderão ser convocados a prestá-los quando os de<br />

graus mais próximos não puderem, total ou parcialmente.<br />

Isto significa que se trata de obrigação divisível;<br />

A obrigação dos descendentes se impõe somente na<br />

falta de ascendente em condições de prover os alimentos<br />

e, na falta de uns e outros, estão obrigados os irmãos,<br />

germanos ou unilaterais;<br />

Os alimentos estabelecidos podem ser cancelados e<br />

o seu valor pode sofrer aumento ou diminuição conforme<br />

ocorra alteração nas condições de quem os provê ou de<br />

quem os recebe;<br />

A obrigação de prestar alimentos é transmissível<br />

causa mortis, mas o <strong>direito</strong> aos alimentos extingue-se com<br />

a morte do credor;<br />

A obrigação alimentícia poderá estar representada<br />

por uma prestação de dar (dinheiro) ou pelo oferecimento<br />

de hospedagem e sustento;<br />

A culpa de um dos cônjuges na separação judicial<br />

litigiosa é fator excludente da obrigação de prover<br />

alimentos por parte do cônjuge inocente, mas se o culpado<br />

necessitar e não tiver parentes em condições de assumir<br />

a obrigação nem aptidão para o trabalho, o outro deverá<br />

assegurar-lhe, se puder, o mínimo indispensável;<br />

Filho havido fora do casamento pode pleitear<br />

alimentos do pai;<br />

27


O <strong>direito</strong> a alimentos pode não ser exercido, mas é<br />

irrenunciável, insuscetível de cessão, de compensação e de<br />

penhora;<br />

Casamento, união estável, concubinato e<br />

procedimento indigno do credor em relação ao devedor de<br />

alimentos fazem cessar a obrigação;<br />

O novo casamento do cônjuge devedor não extingue<br />

a obrigação constante de sentença de divórcio.<br />

As modalidades das obrigações e a prestação<br />

alimentícia<br />

Direito das obrigações é o conjunto de disposições<br />

legais que regulam relações jurídicas de ordem patrimonial,<br />

que têm por objeto prestações do devedor em proveito do<br />

credor.<br />

Obrigações são relações jurídicas de caráter<br />

transitório, mediante as quais uma pessoa fica obrigada<br />

a dar, fazer ou não fazer alguma coisa economicamente<br />

apreciável em proveito de outra.<br />

A relação jurídica obrigacional vincula as pessoas<br />

do devedor e do credor transitoriamente, porque é da sua<br />

natureza o propósito de lhe dar cumprimento, levando-a à<br />

extinção. Ela é passageira.<br />

As modalidades básicas das obrigações, como se<br />

vê no conceito acima, são as obrigações de dar (entregar<br />

ou restituir coisa), fazer e não fazer. Elas podem assumir<br />

outras modalidades secundárias, como dar uma coisa ou<br />

outra (obrigação de dar alternativa), entregar um animal<br />

de raça para a prática de esportes (obrigação de dar<br />

indivisível), ministrar um curso em várias aulas (obrigação<br />

de fazer divisível), pagar toda a dívida mesmo sendo dois<br />

os devedores (obrigação de dar solidária), não se instalar,<br />

durante certo tempo, com atividade comercial concorrente<br />

nas proximidades da atividade transmitida a terceiro<br />

(obrigação de não fazer) e assim por diante.<br />

Prestação é o comportamento humano capaz de<br />

levar ao cumprimento da obrigação e, como se depreende<br />

do que ficou dito acima a respeito das modalidades básicas,<br />

trata-se de um comportamento que assumirá o caráter de<br />

entregar ou restituir alguma coisa, fazer alguma coisa<br />

ou não fazer alguma coisa, conforme seja a natureza da<br />

obrigação assumida.<br />

A propósito, no seu significado jurídico, coisa é<br />

tudo o que existe na natureza, com exceção do ser humano,<br />

que possa servir de objeto a uma relação jurídica.<br />

Ajustando a apresentação dos conceitos acima<br />

ao assunto objeto do presente item (as modalidades das<br />

obrigações e a prestação alimentícia), podemos assumir<br />

28<br />

que prestação alimentícia é o comportamento capaz de<br />

levar ao cumprimento do dever de prestar alimentos, ou<br />

seja, do dever de prover de comida, estudos, lugar para<br />

morar, roupas para vestir e assim por diante, a pessoa que<br />

necessitar destes bens e estiver impossibilitada de assumir<br />

as suas obtenções.<br />

O nosso Código Civil, como dito anteriormente,<br />

estabeleceu que a obrigação alimentícia poderá estar<br />

representada por uma prestação de dar (dinheiro) ou,<br />

somente se o beneficiário for menor, pelo oferecimento,<br />

além de outras necessidades pecuniárias designadas como<br />

sustento, de hospedagem, que pode caracterizar obrigação<br />

de fazer, sempre que entendermos hospedagem somente<br />

como oferta de serviços de instalação e acolhimento do<br />

beneficiário na casa onde mora o devedor da prestação.<br />

Como se vê, a preferência do legislador pelo<br />

cumprimento da obrigação alimentícia por meio de uma<br />

prestação de dar, ou seja, de entregar coisa economicamente<br />

apreciável e de expressão pecuniária, foi escancarada.<br />

Em sentido contrário, pergunta-se: seria<br />

possível e recomendada a utilização mais freqüente de<br />

comportamentos de fazer e de não fazer para o cumprimento<br />

da prestação alimentícia?<br />

Sim, deve ser a resposta. Tanto para prestação de<br />

fazer como de não fazer.<br />

O comportamento de fazer pressupõe um<br />

envolvimento maior da pessoa que vai prestar alimentos.<br />

Pelo menos, a parcela não pecuniária da prestação. Imagine<br />

o filho cumprindo a prestação alimentícia devida ao pai por<br />

meio de dois comportamentos. Um, de dar, representado<br />

pela disponibilização do dinheiro necessário para prover as<br />

necessidades pecuniárias. Outro, de fazer, representado, por<br />

exemplo, pelo comportamento de levar o pai às consultas<br />

médicas regulares, ali permanecendo ou retornando para<br />

apanhá-lo.<br />

O comportamento de fazer para cumprimento<br />

da prestação alimentícia pode assumir incontáveis<br />

contextualizações: pai médico atendendo consultas<br />

periódicas de filho credor de alimentos, filho massagista<br />

atendendo mãe com dores regulares, irmão professor<br />

ministrando aulas de reforço para irmão estudante, exmarido<br />

médico fazendo aplicação regular de botox na região<br />

dos olhos de ex-mulher portadora de distonia (espasmos<br />

musculares involuntários), mãe separada indo buscar filho<br />

na escola de inglês, ex-mulher devedora de alimentos para<br />

ex-marido com deficiência física indo ao supermercado<br />

fazer as compras, ou seja, atendendo a parte pecuniária e<br />

a não pecuniária da prestação alimentícia devida ao exmarido,<br />

neto indo mensalmente ao cinema com o avô que<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


não mais dirige carros. E assim sucessivamente, em um rol<br />

de p<strong>rev</strong>isões que pode conter as mais diversas de desejadas<br />

hipóteses de enriquecimento da qualidade da prestação<br />

alimentícia.<br />

Por sua vez, a adoção do comportamento de não<br />

fazer para cumprir a parte não pecuniária da prestação<br />

alimentícia também pressupõe um envolvimento maior<br />

da pessoa que vai prestar alimentos. E traz qualidade à<br />

prestação.<br />

É certo que em determinadas situações a aproximação<br />

entre prestador e beneficiário de prestação alimentícia<br />

se torna praticamente impossível, em decorrência dos<br />

conflitos que levaram à caracterização do débito alimentar.<br />

Mas, estas dificuldades não devem justificar a<br />

ausência de empenho na adoção de comportamentos<br />

de fazer e de não fazer no cumprimento da prestação<br />

alimentícia.<br />

Bibliografia<br />

Abstract: This article aims to highlight the importance of<br />

doing and not doing behaviors in compliance to alimony,<br />

in addition to the fulfillment of this obligation through<br />

monetary benefit. To justify the proposal presented<br />

here, we analyzed the following aspects: the symbolism<br />

contained in the word food, the familiar and affection<br />

provision contained in the alimony, psychology, law and<br />

people’s behavior, thinking, feeling and acting human, the<br />

subjective right and acting of human beings, affect family<br />

behavior involved in the provision of alimony, location<br />

and understanding of the legal institute of alimony in the<br />

Civil Code of the obligations and procedures and providing<br />

support.<br />

Key words: Family. Obligation. Alimony. Affection.<br />

Human behavior.<br />

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.<br />

BARRETO, Tobias. Introdução ao estudo do <strong>direito</strong>. São Paulo: Landy, 2001.<br />

DINIZ, Maria Helena. Curso de <strong>direito</strong> civil brasileiro. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, 1 v.<br />

PIVA, Rui Carvalho. Tese de Doutorado. PUC/SP. 2003.<br />

TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do <strong>direito</strong>. São Paulo: Saraiva, 2001.<br />

29


30<br />

Sustentabilidade nos Hoteis de selva da Amazônia<br />

EDSON RICARDO SALEME<br />

Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Professor dos Cursos de Mestrado em Direito Ambiental da UEA e<br />

da UNISANTOS. Professor dos Cursos de Graduação da FAAP e da UNIP.<br />

SILVIA E. BARRETO SABORITA<br />

Mestranda em Direito Ambiental pela UNISANTOS. Professora de Pós-Graduação da FAAP em Direito Público. Membro<br />

ativo da Associação do Centro Vivo.<br />

Resumo: O desenvolvimento sustentável deveria ser o norte de todo o empreendimento que se queira implantar e possa<br />

trazer alguma espécie de impacto ao ambiente. Pelo sistema constitucional e legal (Lei 6938/81), as entidades federativas<br />

podem exigir de todas as atividades potencialmente poluidoras a respectiva licença ambiental.Este artigo pretende<br />

informar como o Hotel Ariaú, localizado no complexo das ilhas Anavilhanas, na circunscrição de Manaus, Amazonas,<br />

no Rio Negro, logrou, após sucessivas tentativas, adequar-se às especificações dos órgãos ambientais em termos de<br />

transformação de resíduos sólidos e líquidos. Esta pesquisa será do tipo bibliográfica. Aqui se buscará, por meio de<br />

entendimentos doutrinários, um equacionamento do problema em questão, a fim de tornar inteligíveis os pontos debatidos<br />

no desenvolvimento do estudo. Também será analisado o Estudo de Impacto Ambiental que deu azo à licença que<br />

viabilizou a finalização da obra. Os autores apresentaram este estudo no XIV Congresso Ibero americano de Urbanismo,<br />

com o apoio da FAAP.<br />

Palavras-chaves: Sustentabilidade – Hotéis de Selva – Amazônia – Turismo<br />

1 – Introdução<br />

O objeto do trabalho será a questão da<br />

sustentabilidade e licenciamento dos hotéis situados<br />

na Floresta Amazônica, o bioma consistente no maior<br />

depositário de biodiversidade do Planeta. Será focada<br />

a atenção no Hotel Ariaú, situado no Arquipélago de<br />

Anavilhanas, no Município de Novo Airão, Estado do<br />

Amazonas. Aqui se observarão os avanços obtidos pelo<br />

estabelecimento após a adoção de medidas destinadas à<br />

sustentabilidade e apoio à comunidade indígena local.<br />

As normas brasileiras de proteção ao meio ambiente têm<br />

estreitado cada vez mais as exigências para ocupação de<br />

áreas naturais.<br />

Com a finalidade de proteção desse ecossistema<br />

amazônico, editou-se a Lei nº 9982/2000, criadora do<br />

Sistema Nacional de Unidade de Conservação da Natureza<br />

(SNUC). Importante também o cumprimento das regras<br />

da Lei nº 6938/1981, que estabelece a necessidade de<br />

licenciamento ambiental para obras de grande impacto.<br />

Um dos grandes problemas atualmente existentes<br />

é como manter os hotéis de selva em um meio ambiente<br />

protegido. Os hoteleiros do mundo e sobretudo da Amazônia<br />

reconhecem o valor das práticas ambientais responsáveis.<br />

Certamente, a gestão ambiental correta é imposta como<br />

condição para manutenção da licença do hotel.<br />

Essa gestão envolve planejamento, organização,<br />

orientação dos diversos atores envolvidos na administração<br />

de recursos humanos e sua correta manutenção. O artigo<br />

trará os detalhes de aplicação de práticas ambientais<br />

sustentáveis no hotel Ariaú e como logrou ser reconhecido<br />

como um dos mais responsáveis da região por aplicar<br />

tais práticas. Isso sem falar do apoio que presta às<br />

comunidades indígenas locais, propiciando medicamentos<br />

educação e integração social. Certamente, o sistema<br />

normativo existente disponibiliza ao empresário fórmulas<br />

e métodos que o induzem a se manter interado dos padrões<br />

de sustentabilidade, como mecanismo capaz de atrair<br />

cada vez maior número de turistas, sobretudo aqueles<br />

preocupados com a causa ambiental. Deve o empresário<br />

manter-se em padrões legais e práticas adequadas criados<br />

por pesquisadores de ecoturismo para melhor condução<br />

da exploração desses hotéis, tal como existe no “guia de<br />

planejamento e gestão de ecoturismo” elaborada pela<br />

Ecoturismo Society dos Estados Unidos da América.<br />

2 – Práticas brasileiras em prol da sustentabilidade.<br />

No Brasil, o Decreto n° 84.017, de 21.09.1979, foi<br />

um dos primeiros atos legislativos em prol da proteção<br />

de parques nacionais brasileiros. Referidas áreas foram<br />

definidas como “áreas geográficas extensas e delimitadas,<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


dotadas de atributos naturais excepcionais, objeto de<br />

preservação permanente, submetidas à condição de<br />

inalienabilidade e indisponibilidade no seu todo”.<br />

Apenas com a publicação da Lei n° 6.938, de<br />

31.08.1981, houve tratamento da questão ambiental de<br />

forma mais abrangente. Essa Lei dispõe sobre a Política<br />

Nacional de Meio Ambiente – PNMA, e cria o Sistema<br />

Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA. Entre seus<br />

precípuos princípios está a proteção dos ecossistemas, com<br />

a preservação de áreas representativas (artigo 2°, inciso<br />

IV). Uma das maneiras de proteção desses ecossistemas<br />

foi a criação de espaços especialmente protegidos (art. 9°,<br />

inciso VI). Entre referidos espaços estão as UC – Unidades<br />

de Conservação da Natureza.<br />

Essa mesma Lei de Política Nacional do Meio<br />

Ambiente, nº 6.938/81, também estabeleceu em seu artigo<br />

2°, VIII, entre seus princípios, a recuperação de áreas<br />

degradas. Após relacionar os objetivos da política nacional,<br />

referiu-se à restauração dos recursos ambientais (art. 4°,<br />

VI) e a imposição de penalidades ao poluidor e ao predador.<br />

Assim como consignou a prioridade de se recuperar<br />

prejuízos e danos eventualmente causados (art. 4°, VII).<br />

Essa restauração refere-se à reparação também p<strong>rev</strong>ista no<br />

artigo 225, § 1°, inciso I da Constituição brasileira, tudo de<br />

modo a garantir o meio ambiente equilibrado a todos.<br />

Após a instituição da PNMA e, como não havia lei<br />

federal que regulamentasse a matéria, o Conselho Nacional<br />

de Meio Ambiente – CONAMA – editou a Resolução n°<br />

11, de 3.12.1987, cujo objeto seria a criação de um sistema<br />

de Unidades de Conservação, que foram propriamente<br />

tratadas na Lei nº 9985/2000. O art 7º dessa Lei estabeleceu<br />

que as unidades de conservação integrantes do SNUC<br />

dividem-se em dois grupos, com características específicas:<br />

unidades de proteção integral e as de uso sustentável.<br />

As primeiras estabelecem um sistema de preservação da<br />

natureza, admitindo apenas seu uso indireto, bem como de<br />

seus recursos naturais. Nas segundas existe a possibilidade<br />

de compatibilizar o uso da natureza com o uso sustentável<br />

de parcela de seus recursos naturais.<br />

3 – Projetos e planos relacionados ao Hotel Ariaú<br />

O hotel não é recente no cenário amazônico.<br />

Possui, desde sua concepção, planos e projetos destinados<br />

não somente à integração dos hóspedes com a natureza,<br />

mas também relacionados às comunidades tradicionais e<br />

outros campos, a exemplo do tratamento a preservação<br />

dos animais por meio da bototerapia 1 . Além disso existem<br />

ações e iniciativas ambientais selecionadas para o segmento<br />

da parte operacional e administrativa do Hotel Ariaú, de<br />

maneira a contribuir com a empresa no atendimento aos<br />

novos requisitos ambientais, agregando valor às suas ações<br />

junto ao seu mercado.<br />

Exigiu-se do hotel, por meio do órgão ambiental<br />

estadual encarregado da autorização daquele ente<br />

federativo, o IPAAN – Instituto de Proteção Ambiental<br />

do Estado do Amazonas, que se tomasse o maior número<br />

de medidas mitigadoras de impacto em suas áreas de<br />

sua influência. Foram levantados os principais pontos<br />

de controle e medidas de proteção ambientais levando<br />

em conta a publicação do IHEI – International Hotels<br />

Environment Initiative, sobretudo porque, doravante, seria<br />

prática necessária e obrigatória aos demais hotéis de selva<br />

da região.<br />

A pesquisa realizada incluiu uma descrição da<br />

evolução das questões ambientais levantadas na fiscalização<br />

realizada pelo IPAAM no mês de fevereiro/2009 e as<br />

principais soluções de problemas no hotel, as alternativas<br />

apresentadas foram classificadas em dois tipos:<br />

Alternativas Tipo A: refere-se a iniciativas<br />

associadas as ações ambientais comuns, como consumo<br />

de água, energia e uso de produtos que agridem o meio<br />

ambiente.<br />

Alternativas tipo B: mudança do comportamento<br />

ambiental nos modelos de gestão do Hotel, associando<br />

aos objetivos e metas ambientais que poderão assegurar o<br />

sucesso ao empreendimento/ambiente.<br />

Observa-se que, em países economicamente<br />

desenvolvidos e de grande potencial paisagístico, o número<br />

de iniciativas relacionadas com a preservação ambiental<br />

provenientes do segmento hoteleiro vem crescendo<br />

exponencialmente. Isso se torna um diferencial competitivo<br />

muito significativo em relação às empresas hoteleiras<br />

brasileiras, cujas iniciativas ambientais só agora começam<br />

a despertar o interesse dos empresários desse setor com as<br />

precauções que deveriam ser tomadas há tempos. 2<br />

Nesse sentido, a ABIH – Associação Brasileira da<br />

Indústria de Hotéis lançou o Programa de Responsabilidade<br />

Ambiental Hóspedes da Natureza que tem como objetivo<br />

ajudar o segmento hoteleiro e preparar-se para atender<br />

os requisitos ambientais que já vêm sendo exigidos pelos<br />

sistemas internacionais de reservas, tais como o American<br />

Express, Wagon Lits Cook e outros.<br />

3.1 - Objetivos do Plano de Gerenciamento<br />

Identificar os resíduos sólidos gerados nos processos<br />

de operação do hotel e eliminar o risco de contaminação do<br />

solo, água, ar, fauna e flora local, por meio do gerenciamento<br />

dos resíduos líquidos de lavagem e tratamento de efluentes<br />

sanitários e formas de controle;<br />

Mitigar e reparar qualquer dano encontrado;<br />

Inserir e difundir práticas na atividade do hotel,<br />

um plano de Educação Ambiental promovendo ações<br />

1 Terapia complementar de tratamento de saúde para pessoas com necessidades especiais. Disponível em : http://anadelfs.blogspot.com/2011/01/bototerapia-hotel-ariau-manaus-am.html, consultada<br />

em 20.04.2011.<br />

2 Disponível no site, consultado em 20-4-2011. http://www.teclim.ufba.br/site/material_online/monografias/mono_maria_a_de_a_macedo.pdf<br />

31


que envolvam Hotel, Comunidade, Poder Público,<br />

fornecedores, funcionários e hóspedes;<br />

Estimular e viabilizar projetos que estimulem<br />

fornecedores para o desenvolvimento de embalagens<br />

e produtos compatíveis à gestão ambiental do Hotel,<br />

diminuindo a produção de resíduos sólidos;<br />

Conscientização dos Novos Hóspedes da Natureza<br />

e principalmente da população nativa permanente, para<br />

usufruir, dentre outros, da fauna e flora local de forma<br />

sustentável.<br />

3.2 Experiências Reais<br />

O maior estado-membro brasileiro é o Amazonas.<br />

Nele está a famosa Floresta Amazônica, não somente<br />

importante pela sua biodiversidade, mas por sua fauna e<br />

flora, muito diversificadas. Também aí está situada a maior<br />

bacia hidrográfica do Planeta formada pelo Rio Negro e<br />

Rio Amazonas.<br />

Nas palavras de Ozório Fonseca, a evolução<br />

biogeoquímica da Terra fez com que a maior diversidade<br />

biológica do Planeta surgisse em nosso País. “A Natureza<br />

proporcionou essa situação privilegiada e cabe a nós a<br />

tarefa de gerenciar esse recurso natural, que só tem sentido<br />

se for usado para o bem da espécie humana”. 3<br />

O Arquipélago de Anavilhanas, formado por cerca<br />

de 400 ilhas e localizado a cerca de 40 quilômetros de<br />

Manaus (AM), é um dos parques nacionais brasileiros.<br />

É Unidade de Proteção Ambiental e parte integrante da<br />

Reserva da Biosfera da Amazônia Central 4 . A lei que o alça<br />

à categoria de parque foi sancionada pelo então presidente<br />

da República no final de outubro de 2008. 5<br />

Anavilhanas é o segundo maior arquipélago<br />

fluvial do mundo, situado no rio Negro, no município de<br />

Novo Airão, estado do Amazonas. As inúmeras ilhas que<br />

compõe sua formação alongada estão incólumes e com a<br />

cobertura da floresta tropical amazônica. Esse complexo<br />

insular forma uma rede de canais que representam uma<br />

experiência única quanto à ambientes fluviais no mundo<br />

e na Amazônia. Observa-se nesse trecho do Rio Negro um<br />

comprimento especial de 60 km, que abriga uma estação<br />

ecológica estadual de Anavilhanas 6 .<br />

O Hotel de Selva Ariaú, localizado na margem<br />

esquerda do Rio Ariaú, é um dos maiores e mais antigos<br />

empreendimento de ecoturismo da Amazônia . Ainda, nas<br />

palavras de Ozório Fonseca, o turismo é apontado como<br />

fundamental na perspectiva do desenvolvimento regional,<br />

pois além de propiciar entrada de recursos, aproxima povos<br />

32<br />

e gera intercâmbios proveitosos do ponto de vista social e<br />

cultural. 7<br />

A altitude média do Município de Iranduba,<br />

próximo a Capital do Amazonas, nos termos da sondagem<br />

do CODEAMA (1992), é de aproximadamente 30 (trinta)<br />

metros acima do nível do mar. O terreno da superfície é de<br />

30 metros acima do nível do mar. Compõe o terreno local<br />

de terraços, planícies e restingas de inundação ou várzeas,<br />

que estão sujeitas a alagação periódica durante as cheias. 8<br />

O Hotel, inaugurado em 1986, foi construído sobre<br />

palafitas nas copas das árvores. As habitações seguiram<br />

o modelo local de casas de selva, com escadas para nelas<br />

ingressar. Existem 8 torres minuciosamente escolhidas<br />

de forma a se ter privilegiada visão da Selva e sua flora e<br />

fauna. O empreendimento está compreendido na unidade<br />

de conservação estadual, a 6 km de distância do Parque<br />

Nacional de Anavilhanas.<br />

4 – Normas e Atos Reguladores<br />

A gestão ambiental é proveniente da necessidade<br />

de se ordenar as atividades humanas, a fim de que haja o<br />

menor impacto possível no ambiente. Essa gestão iniciase<br />

com a escolha da melhor técnica a ser empregada, o<br />

cumprimento dos dispositivos legais vigentes e a alocação<br />

adequada de recursos financeiros e humanos.<br />

A forma empresarial de gestão é aquela destinada<br />

as organizações, instituições e empresas. Pode ser<br />

definida como sendo um conjunto de políticas e práticas<br />

administrativas e operacionais que levam em consideração<br />

a saúde, a segurança das pessoas, a proteção do meio<br />

ambiente por meio da eliminação ou minimização de<br />

impactos e danos ambientais decorrentes do planejamento,<br />

a implantação e operação, entre outros atos relacionados<br />

ao estabelecimento do projeto .<br />

Da mesma forma, entende IBAÑEZ, nos termos da<br />

jurisprudência constitucional espanhola que “a ordenação<br />

territorial deve fixar os destinos e usos do espaço físico<br />

ou em sua totalidade, assim como ordenar e distribuir<br />

valoradamente as ações públicas sobre o território e<br />

infra estruturas, reservas naturais, extensões ou áreas de<br />

influência dos núcleos de população, comunicações etc.” 9<br />

Com o objetivo de recuperar os impactos ambientais<br />

decorrentes dos resíduos sólidos, o Hotel de Selva Ariaú<br />

elaborou um Plano de Recuperação de Área Degradada<br />

– PRAD, de forma a se estabelecer critérios técnicos<br />

capazes de mitigar danos naquela área. O PRAD levou em<br />

consideração as normas do Código Florestal, Lei 4771/65,<br />

3 FONSECA, Ozório José de Menezes. Amazonidades. Manaus: Gráfica e Ed. Silva, 2004, p. 22.<br />

4 Atualmente, de acordo com a visitação turística da região, dera ela ter caráter educativo, conforme determina o antigo Plano de Manejo da Unidade, que se encontra em processo de atualização. As áreas<br />

abertas aos visitantes são restritas. Vide informação completa disponível no site: http://www.icmbio.gov.br/o-que-fazemos/visitacao/ucs-abertas-a-visitacao/32-parques-nacionais/212-parque-nacionalanavilhanas.<br />

Consultado em 20-4-2011.<br />

5 A Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável aprovou, o Projeto de Lei 6409/05, do Senado, e se transformou a Estação Ecológica de Anavilhanas, no Amazonas, em Parque Nacional<br />

de Anavilhanas. A estação ecológica é uma unidade de conservação da natureza cuja área é representativa de um ecossistema e é destinada à realização de pesquisas científicas básicas e aplicadas de<br />

Ecologia, à proteção do ambiente natural e ao desenvolvimento da educação conservacionista.<br />

6 Decreto n.º 86.061 de 02.06.1981.<br />

7 Op. Cit. Página 149.<br />

8 http://www.amazonia.org.br/guia/detalhes. Extraído em 16.09.2010.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


a Lei 7754/89, que estabelece medidas de proteção de<br />

florestas nas nascentes dos rios, a Lei 6938/81, sobre<br />

o Sistema Nacional do Meio Ambiente, a Lei 9605/98,<br />

que trata dos crimes ambientais e a Lei 11284/2006, que<br />

dispõe sobre a gestão de florestas públicas para produção<br />

sustentável, entre outros diplomas normativos.<br />

Foram tomadas as seguintes medidas, nos termos do<br />

relatório técnico:<br />

DIAGNÓSTICO AMBIENTAL – Indicador<br />

da situação ambiental da área de influência direta e<br />

indireta, sobretudo em seus aspectos físicos (geologia,<br />

geomorfologia, pedologia e climatologia, biológicos (fauna<br />

e flora) e ações antrópicas.<br />

AVALIAÇÃO DE IMPACTOS AMBIENTAIS –<br />

Análise das externalidades negativas e das possibilidades<br />

de mitigação de impactos por meio da identificação,<br />

quantificação e qualificação. O diagnóstico de causas e<br />

efeitos realizados por meio de levantamento de técnicos<br />

especializados capazes de relacionar impactos resultantes<br />

das atividades propostas garantindo, desta maneira, a<br />

implantação do projeto que teve aprovação governamental.<br />

SOLUÇÕES AMBIENTAIS - Os impactos<br />

ambientais foram mitigados a partir da seguinte sequência<br />

de atos: limpeza e análise do solo, preparo, abertura de<br />

covas e <strong>rev</strong>egetação por meio do plantio de espécies<br />

nativas.<br />

PECULIARIDADES DA MITIGAÇÃO DE<br />

IMPACTO NO SOLO – Coletaram-se amostras de solo<br />

com o objetivo de, por meio delas, expostas aos resíduos<br />

ali descartados, investigar a melhor forma de recuperação<br />

a ser implementada.<br />

Os instrumentos empregados no processo de<br />

licenciamento ambiental para avaliação dos impactos<br />

ambientais– o EIA – Estudo de Impacto Ambiental e o<br />

RIMA – Relatório de Impacto Ambiental, formas criadas<br />

pela Lei 6938/81 (art. 9º, III), são de relevante importância<br />

para a p<strong>rev</strong>enção e precaução dos riscos ambientais<br />

associados ao turismo e à construção de unidades na<br />

selva. Além de avaliar os impactos presentes também<br />

observam aqueles que futuramente podem ocorrer e causar<br />

degradação ou dano ambiental. Todos esses instrumentos<br />

propõem medidas mitigadoras dos impactos p<strong>rev</strong>istos.<br />

O licenciamento ambiental, nas palavras de<br />

MILARÉ 10 , “constitui importante instrumento de<br />

gestão do ambiente, na medida em que, por meio dele, a<br />

Administração Pública busca exercer o necessário controle<br />

sobre as atividades humanas que interferem nas condições<br />

ambientais, de forma a compatibilizar o desenvolvimento<br />

econômico com a preservação do equilíbrio ecológico.”<br />

Aspecto que merece comentário são os itens<br />

relativos às questões ambientais que envolvem os meios<br />

de hospedagem em ambientes selvagens. A Ecoturismo<br />

Society dos Estados Unidos criou um chek list para melhor<br />

aproveitamento das instalações (2003). As propostas não<br />

substituem levantamentos técnicos especializados capazes<br />

de melhor avaliar os impactos causadores de degradação.<br />

Elas apenas sugerem medidas, diretrizes e padrões capazes<br />

de preservar as características ecológicas de cada local. 11<br />

Todas as fontes foram consultadas a fim de subsidiar<br />

o processo de licenciamento do hotel e suas atividades<br />

turísticas. Desde a concepção.<br />

6 – Planos de Negócios<br />

9 IBAÑEZ, Santiago Ganzález-Varas. Urbanismo y ordenacion del território Navarra: Ed. Aranzadi.2004, página 27<br />

10 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. São Paulo: Ed. RT, 2009, página 420.<br />

11 Disponível em: www.ecotourism.org, acessada em 20-04-2011.<br />

12 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de <strong>direito</strong> ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010, páginas 112-117.<br />

Todos os negócios a ser objeto de turismo<br />

ecológico devem contar com profundo estudo ambiental<br />

e possuir Estudo de Impacto Ambiental elaborado por<br />

especialistas capazes de gerar opiniões conclusivas acerca<br />

da possibilidade ou não da viabilidade do negócio. Tecem<br />

considerações capazes de indicar quais seriam as formas<br />

mitigadoras de impacto ambiental e possíveis medidas<br />

mitigadoras a serem aplicadas em vista da observância dos<br />

princípios da sustentabilidade e da p<strong>rev</strong>enção.<br />

Também devem ser respeitados os itens listados pela<br />

International Ecoturism Society, que estabelecem critérios<br />

a serem seguidos por todos os empresários de ecoturismo e<br />

que também queiram desenvolver atividades na selva.<br />

O hotel em estudo também buscou formas de cuidar<br />

dos botos vermelhos, da população local e da preservação<br />

da área que ocupa.<br />

Nesse sentido, pode-se estar diante de situação em<br />

que haja um dilema entre p<strong>rev</strong>enção e precaução, a qual<br />

se inclinaria pela inviabilização de atividade que pudesse<br />

redundar em degradação ir<strong>rev</strong>ersível. Nas palavras de<br />

FIORILLO, seria despiciendo pretender desenvolver uma<br />

diferenciação entre tais princípios. Na verdade, ambos<br />

os princípios se <strong>rev</strong>elam em preceito fundamental, pois<br />

os danos ambientais são, em sua maioria, ir<strong>rev</strong>ersíveis e<br />

irreparáveis. Trata-se de um “megaprincípio ambiental”,<br />

adotado na Constituição de 1988. Não se quer com isso,<br />

sublinha o autor, inviabilizar a atividade econômica, mas<br />

somente excluir o poluidor que ainda não constatou a<br />

escassez dos recursos ambientais. 12<br />

A aprovação de emissão de licença ambiental do<br />

hotel em análise se <strong>rev</strong>elou lastreada em extenso estudo<br />

local com possíveis impactos e necessárias medidas<br />

mitigadoras. Certamente, o impacto é inegável. A própria<br />

existência humana já gera essa conseqüência. Porém,<br />

as medidas adotadas vão ao encontro dos modernos<br />

tratamentos dados aos empreendimentos turísticos em<br />

áreas protegidas e sua fiscalização é permanente, conforme<br />

pronunciamento do proprietário do estabelecimento.<br />

33


7 – Conclusões<br />

A Região Amazônica é rica em recursos naturais.<br />

Ainda mantém praticamente incólume sua estrutura,<br />

mesmo diante da devastação causada pelas reiteradas<br />

queimadas, extração clandestina de madeira e uso como<br />

pasto para criação de gado.<br />

A exploração de recursos naturais deve possuir<br />

licenciamento ambiental regulamentado pela Lei 6938/81,<br />

também objeto de diversas resoluções do CONAMA, órgão<br />

ambiental brasileiro pertencente ao SISNAMA – Sistema<br />

Nacional do Meio Ambiente. As licenças necessárias, cuja<br />

natureza jurídica é de autorização, foram devidamente<br />

obtidas e o empreendimento tem capacidade para se manter<br />

em funcionamento de maneira sustentável. Na verdade, o<br />

empreendimento deve enquadrar-se nos planos nacionais,<br />

regionais e locais de planejamento, inserindo-se de<br />

maneira adequada no planejamento ecológico econômico,<br />

no plano diretor local, entre outros destinados a garantir a<br />

sustentabilidade e a manutenção das espécies locais.<br />

O hotel Ariaú tem como objetivo propiciar a seus<br />

hospedes a possibilidade de um contato e integração direta<br />

com o ecossistema em que se insere. Seus apartamentos são<br />

basicamente construídos nas copas das árvores, bem acima<br />

do nível do Rio Negro, de forma sustentável; também<br />

propiciam estudos com terapias alternativas, assim como<br />

ocorre com os botos cor-de–rosa e mantém comunidades<br />

tradicionais com medicamentos e suprimentos, além de<br />

propiciar empregabilidade para a população local.<br />

A fiscalização pode gerar a cassação da licença<br />

ambiental, na hipótese do beneficiário não empregar os<br />

recursos indicados no respectivo EIA. Portanto, agentes<br />

ambientais estão a todo tempo observando possíveis<br />

degradações ambientais provenientes do empreendimento.<br />

Isso já obrigou o empresário a adquirir moderno sistema<br />

de filtragem e transformação de resíduos líquidos e<br />

sólidos. Isso também o obrigou a manter materiais<br />

determinados em embalagens biodegradáveis, além de<br />

outras obrigatoriedades impostas e necessárias a plena<br />

manutenção do ecossistema local.<br />

34<br />

Bibliografia<br />

Os hotéis de selva na Amazônia estão crescendo<br />

em número e qualidade. A inspeção tem sido cada vez<br />

mais rígida, de forma a gerar maior segurança aos que lá<br />

estão e também assegurar o mínimo de impacto ambiental.<br />

Existem ainda alternativas capazes de auxiliar a população<br />

local (índios), sem contar com a geração de trabalho,<br />

hospital e transporte até a capital.<br />

As atividades ecoturísticas devem obedecer a<br />

um grande número de exigências estabelecidas por<br />

normas ambientais, a fim de evitar um impacto local<br />

desproporcional. Isso, inclusive, com a limitação do<br />

número de hospedes, restrições no emprego de animais<br />

para finalidades terapêuticas, indicação determinada do<br />

local indicado para passeios ecoturísticos, inclusive com<br />

especificação de caminhos determinados para viabilizar<br />

visitas locais, sem deterioração de áreas incólumes, tudo<br />

em prol da proteção do ambiente e da biodiversidade.<br />

Abstract: Sustainable development should be north of<br />

the whole enterprise that wish to implement and can bring<br />

some sort of impact on the environment. Constitutional and<br />

legal system (Law 6938/81), the federations may require<br />

of all potentially polluting activities its environmental<br />

license. This article aims to inform as Ariaú Hotel, located<br />

in the complex of islands Anavilhanas, in the district of<br />

Manaus, Amazonas, Rio Negro, succeeded, after several<br />

attempts to adapt to the specifications of the environmental<br />

agencies in terms of processing of solid and liquid waste.<br />

This research will be of type literature. Here we seek,<br />

through doctrinal understandings, a solution of the problem<br />

at hand in order to make intelligible the points discussed<br />

in the development of the study. It also will analyze the<br />

environmental impact study that gave rise to the license<br />

that allowed the completion of the work. The authors<br />

presented the study at the XIV Latin American Congress of<br />

Urban Planning, with support from FAAP.<br />

Key words: Sustainability – Jungle lodges – Amazônia -<br />

Tourism<br />

IBAÑEZ, Santiago Ganzález-Varas. Urbanismo y ordenacion del território Navarra: Ed. Aranzadi.2004.<br />

MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. São Paulo: Ed. RT, 2009.<br />

FONSECA, Ozório José de Menezes. Amazonidades. Manaus: Gráfica e Ed. Silva, 2004<br />

Sites consultados<br />

http://www.aquathought.com . Extraído em 16.09.2010.<br />

http://www.dolphinassistedtherapy.com. Extraído em 16.09.2010.<br />

http://www.ariau.tur.br/ Extraído em 16.09.2010.<br />

http://www.amazonia.org.br/guia/detalhes. Extraído em 16.09.2010.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


A função do relatório no Julgamento Colegiado.<br />

Manifestação do princípio do contraditório<br />

FABIANO CARVALHO<br />

Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Professor da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado -<br />

FAAP. Advogado.<br />

Resumo: O texto examina a função do relatório no julgamento colegiado e sua relação com o princípio do contraditório,<br />

concluindo que o desprezo por esse importante elemento da decisão colegiada constitui grave equívoco, por violar o<br />

princípio fundamental do contraditório, podendo repercutir no sucesso da interposição dos recursos de estrito <strong>direito</strong><br />

(especial e extraordinário).<br />

Palavras-chaves: Relatório – Órgão Colegiado – Princípio do contraditório<br />

1. Em regra, 1 razões de política legislativa impõem<br />

que os recursos, incidentes e causas de competência<br />

originária dos tribunais sejam julgados por órgãos<br />

colegiados.<br />

Não por outro motivo, afirma-se que, em matéria<br />

de recursos, o princípio da colegialidade domina e rege o<br />

Direito Processual pátrio. 2<br />

O termo colegiado diz respeito a uma forma de<br />

atuação jurisdicional, representado pelo conjunto de<br />

pessoas com igual poder, que, reunidas em sessão de<br />

julgamento, compartilham os fatos do processo na tomada<br />

de uma decisão. Essa decisão aparece no processo como<br />

“expressão de uma vontade unitária”. 3<br />

Com efeito, as expressões “câmara” e “turma”<br />

designam os órgãos colegiados mas não são sinônimas<br />

desses. De acordo com a melhor doutrina, “o órgão<br />

colegiado é composto pelo número de juízes que a lei ou o<br />

regimento interno indicar. Nem sempre todos os juízes que<br />

compõem órgão colegiado julgam a causa. Turma julgadora<br />

é a fração do órgão colegiado composta pelos juízes que<br />

efetivamente julgarão a causa. Numa câmara composta por<br />

cinco juízes, por exemplo, a turma julgadora de apelação<br />

será composta por apenas três deles; em sua composição<br />

plena (cinco juízes), essa mesma câmara julgará, por<br />

exemplo ação rescisória, embargos infringentes etc.” 4<br />

Nesse sentido, a palavra turma tem o mesmo<br />

significado de câmara. Na generalidade dos casos,<br />

normalmente, Turma é a denominação empregada nos<br />

Tribunais Superiores e nos Tribunais Regionais Federais;<br />

câmara é utilizada nos Tribunais dos Estados.<br />

Há outras expressões que simbolizam os órgãos<br />

colegiados, como, v.g., plenário, órgão especial, seções,<br />

grupo de câmaras, câmaras reunidas etc.<br />

O órgão colegiado opõe-se ao órgão singular,<br />

também chamado de monocrático, por seu conjunto, isto<br />

é, pela reunião de manifestações singulares, que se unem<br />

ou se agregam para formar uma decisão unitária (acórdão).<br />

O pronunciamento do órgão colegiado, diferentemente do<br />

singular, forma-se progressivamente, de acordo com as<br />

manifestações de cada juiz que participa do julgamento.<br />

A formação do pronunciamento do órgão colegiado,<br />

marcado pela mesma natureza e objeto, é ato complexo,<br />

porque se forma pela co-participação de mais de um<br />

integrante do órgão, em momentos sucessivos. Isso não<br />

significa que o pronunciamento de cada membro do órgão<br />

não possa variar (v.g. não unanimidade no julgamento,<br />

fundamento do voto divergente).<br />

Barbosa Moreira ensina que “é evidente que, num<br />

determinado instante do procedimento de votação, os<br />

pronunciamentos de todos os votantes hão de ter idêntico<br />

objeto, sob pena de somarem-se quantidades heterogêneas,<br />

o que não permite chegar a nenhuma conclusão válida.<br />

Ou todos se estão manifestando acerca de preliminar, ou<br />

todos acerca do mérito. Não é concebível que, na mesma<br />

etapa, um (ou alguns) votem quanto à preliminar e outro<br />

(ou outros) quanto ao mérito.” 5<br />

Assim compreendido, o pronunciamento do órgão<br />

colegiado se completa com o término da manifestação de<br />

cada um dos seus integrantes no momento da sessão de<br />

julgamento.<br />

1 A exceção é o julgamento unipessoal, nas situações delineadas nos arts. 120, parágrafo único, 527, I, 531, 544, § 4º, 557, caput, e § 1º-A, todos do CPC.<br />

2 José Frederico Marques, Instituições de <strong>direito</strong> processual civil, vol. IV, p. 7. Neste sentido parece ser a posição de Athos Gusmão Carneiro, Recurso especial, agravos e agravo interno, p. 227/228.<br />

3 Cf. Calamandrei, Instituiciones de derecho procesal civil, vol. 2, p. 29. Sobre a função do colegiado v., com proveito, G. Zagrebelsky, “Colegialidad”, in Principios e votos. El tribunal constitucional<br />

e la política, p. 62-70<br />

4 Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery, Código de processo civil comentado, p. 927.<br />

5 Direito aplicado II, p. 126. No mesmo sentido: “Afigura-se nulo o aresto em que um dos integrantes do colegiado vota em preliminar, sem que os outros o façam, e não vote sobre o mérito, ao contrário<br />

dos restantes desembargadores, em julgamento de apelação.” (TJRJ, 1º Gr. de Câms. Civs., Emb. Infr. 4.139/90, rel. Des. Humberto Manes, apud Alexandre de Paula, Código de processo civil anotado,<br />

vol. 2 p. 2323).<br />

35


A decisão proferida pelo órgão colegiado recebe<br />

a denominação de acórdão 6 , cuja estrutura, na essência,<br />

não se difere da sentença. Todo acórdão, além da ementa 7<br />

– nota distintiva da decisão singular -, conterá de forma<br />

ordenada e lógica: relatório, fundamentação e dispositivo.<br />

Com o foco no presente trabalho, apesar de não<br />

receber objeto de maiores reflexões, o relatório é peça<br />

fundamental para o adequado julgamento do órgão<br />

colegiado.<br />

2. De início, é preciso considerar que o relatório é<br />

parte integrante do acórdão, como é da sentença. 8<br />

Sob o prisma do valor, o relatório transmite a<br />

certeza e a segurança de que todas as alegações das partes<br />

e as provas produzidas no processo foram apreciadas pelo<br />

órgão julgador, caracterizando-se “condição primordial do<br />

prestigio e autoridade do órgão julgador, sinal patente do<br />

cumprimento de um dever precípuo.” 9 .<br />

No campo da ética “serve o relatório, ainda,<br />

para mostrar que o juiz leu o processo e fixou-lhe as<br />

circunstâncias capitais. Bem haver estudado a causa é uma<br />

das condições para bem julgar”. 10<br />

Do ponto de vista da publicidade, o relatório<br />

divulga, para qualquer um que o leia, o que foi debatido<br />

do processo.<br />

Na generalidade dos casos, o relatório é ato de<br />

gabinete e consequência do estudo do processo promovido<br />

pelo relator. 11 Enquanto ato processual, o relatório é<br />

essencialmente escrito. Na sessão de julgamento, o<br />

relator dará oralidade ao relatório para expor os “fatos”<br />

que interessam à cognição do colegiado. 12 É importante<br />

destacar que “o relator não fica adstrito, na exposição oral,<br />

à pura repetição do que consta do relatório escrito: pode<br />

acrescentar pormenores esclarecedores e deve, se for o caso,<br />

proceder a retificações ou suprir omissões relevantes”. 13<br />

Em virtude da dinâmica da sessão de julgamento do<br />

colegiado, em algumas hipóteses, o Código de Processo<br />

Civil 14 e os regimentos internos dos tribunais 15 determinam<br />

que o relator faça prévia distribuição do relatório. Nada<br />

impede que essa providência, independentemente de<br />

imposição legal ou regimental, possa ser tomada pelo<br />

relator, mormente nos casos de maior complexidade,<br />

porquanto impõe aos demais integrantes do colegiado o<br />

36<br />

conhecimento antecipado dos relevantes “fatos” que serão<br />

necessários para a tomada da decisão.<br />

O conteúdo do relatório e sua exposição oral são<br />

de suma importância, visto que delimita objetivamente<br />

as questões jurídicas sobre as quais o órgão colegiado<br />

discutirá e decidirá.<br />

Formalmente, o relatório deverá equacionar<br />

cuidadosamente todos os “fatos” necessários à cognição do<br />

colegiado.<br />

Daí por que a melhor doutrina acentua que é<br />

necessário que a exposição do relator “contenha todos os<br />

dados relevantes, dispostos em ordem que lhes facilite a<br />

apreensão e a memorização, sem contudo perder-se em<br />

minúcias fatigantes que desviem a atenção do essencial. A<br />

exposição é puramente objetiva. Desc<strong>rev</strong>e o relator os fatos<br />

que deram origem ao pleito, como os tenham narrado as<br />

partes, e mais os que, verificados no curso do processo, se<br />

<strong>rev</strong>istam de interesse para o julgamento”. 16<br />

O objeto da exposição resume-se nos fatos<br />

relevantes, tais como “afirmações relevantes das partes, no<br />

que tange às questões de fato ou de <strong>direito</strong>, mas incertas ou<br />

controversas” 17 , e provas produzidas no curso do processo.<br />

Além disso, o relatório “deve ser uma narrativa<br />

imparcial do que consta dos autos, sem que da mesma<br />

se deve ou se possa vislumbrar o voto do seu subscritor<br />

a respeito da controvérsia em qualquer de seus pontos.<br />

Serve, apenas, para orientar os demais juízes, evitando a<br />

leitura do processo por todos seus pares, que causaria ainda<br />

maior perda de tempo”. 18<br />

Desse modo, ao expor o relatório em sessão de<br />

julgamento, relator “não deve antecipar sua opinião,<br />

nem adotar tom de crítica ou aprovação a qualquer ato<br />

ou pronunciamento das partes ou, sendo o caso, de outro<br />

órgão judicial que antes haja funcionado no processo” 19<br />

Em particular, no julgamento colegiado dos<br />

recursos, a praxe forense <strong>rev</strong>ela que, em sua exposição<br />

oral, o relator habitualmente reporta-se ao relatório<br />

constante da decisão recorrida. Embora essa prática não<br />

seja aconselhável, principalmente nos casos de maior<br />

complexidade, se tal técnica for empregada, impõe-se<br />

ao relator o dever de reproduzir o relatório 20 da decisão<br />

recorrida, com o acréscimo das razões do recurso. Não será<br />

possível adotar semelhante procedimento quando se tratar<br />

6 Equivocada a conceituação do art. 163 do CPC (“Recebe a denominação de acórdão o julgamento proferido pelos tribunais”), já que os tribunais também proferem decisões unipessoais (ex vi legis<br />

art. 521, I, 531, 541 c/c 544, 557, todos do CPC). Nesse sentido, v. nosso Poderes do relator nos recursos, p. 57. O equívoco foi corrigido pelo Anteprojeto do NCPC (art. 159. Recebe a denominação<br />

de acórdão o julgamento colegiado proferido pelos tribunais).<br />

7 Art. 563 do CPC, art. 862 do NCPC.<br />

8 Cf. Sergio Bermudes, Comentários ao código de processo civil, vol. VII, 2ª edição, Revista dos Tribunais, 1977, p. 364-365.<br />

9 João Monteiro, Theoria do processo civil e commercial, 5ª edição, Typographia Academica, 1936, p. 571.<br />

10 Mario Guimarães, O juiz e a função jurisdicional, Forense, 1958, p. 342.<br />

11 Art. 549. Distribuídos, os autos subirão, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, à conclusão do relator, que, depois de estudá-los, os restituirá à secretaria com o seu “visto”.<br />

12 Art. 554. Na sessão de julgamento, depois de feita a exposição da causa pelo relator (...). Negrão-Gouvea-Bondioli anotam importante precedente do STJ, segundo o qual “tratando-se de procedimento<br />

sumaríssimo [sumário], em que inexiste <strong>rev</strong>isão, o relator da apelação não haverá de, necessariamente, lançar o relatório nos autos, ao pedir dia para julgamento. poderá fazê-lo<br />

oralmente, em sessão, sendo trazido depois para os outros, integrando o acórdão” (Resp 3725/RJ, rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ 17.9.1990).<br />

13 Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V, 15ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 2010, p. 666-667. No mesmo sentido: Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo<br />

Civil, t. VIII, 2ª ed., <strong>rev</strong>. e atualização legislativa de Sergio Bermudes, Forense, Rio de Janeiro, 2000, p. 213.<br />

14 Assim, por exemplo, nos casos de julgamento de multiplicidade de recursos especiais com fundamento em idêntica questão de <strong>direito</strong> (art. 543-C, §6º, do CPC).<br />

15 Por exemplo, o RISTF, cujo art. 87 dispõe: Aos Ministros julgadores será distribuída cópia do relatório antecipadamente: RISTF: art. 250 c/c art. 273 (também na ACO). I – nas representações por<br />

inconstitucionalidade2 ou para interpretação5 de lei ou ato normativo federal ou estadual; atual dispositivo da CF/1988: art. 102, I, a, §§ 1º e 2º, c/c art. 103, incisos e § 1º a § 4º. Norma não p<strong>rev</strong>ista na<br />

CF/1988. Lei n. 9.868/1999: art. 9º, caput (distribuição de cópia do relatório). II – nos feitos em que haja Revisor; RISTF: parágrafo único do art. 243 c/c art. 23, III (AP) – art. 262 c/c art. 23, I (AR) –<br />

art. 268 c/c art. 23, II (RvC). III – nas causas avocadas; Norma não p<strong>rev</strong>ista na CF/1988. IV – nos demais feitos, a critério do Relator. RISTF: art. 21, X (quando pede dia), XIV (quando apresenta em<br />

mesa) e § 3º (no Pleno ou na Turma).<br />

16 Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V, 15ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 2010, p. 666-667.<br />

17 Araken de Assis, Manual dos recursos, 2ª edição, Revista dos Tribunais, 2008, p. 287.<br />

18 Alcides Mendonça Lima, Introdução aos recursos cíveis, 2ª edição, Revista dos Tribunais, 1976, p. 374-375<br />

19 Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V, 15ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 2010, p. 666-667.<br />

20 Sergio S. Fadel assinala que, nesses casos, o relator deverá ler as considerações do relatório da decisão recorrida “por ocasião da sessão de julgamento, para conhecimento dos demais membros do<br />

tribunal” (O processo nos tribunais, Forense, 1981, p. 296).<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


de processos e incidentes de competência originária dos<br />

tribunais, porquanto, supere-se o truísmo, o relatório será<br />

feito pela primeira vez, em estrita observância ao art. 458,<br />

II, do CPC.<br />

Outra prática que se sujeita aos riscos de um<br />

julgamento nulo, e tem sido absolutamente reiterada,<br />

ao menos em alguns julgamentos do Tribunal de Justiça<br />

do Estado de São Paulo, é a solicitação do relator para<br />

dispensá-lo da leitura do relatório em sessão de julgamento,<br />

para manifestar diretamente seu voto. Esse comportamento,<br />

ressalvados os casos de teses repetitivas, a princípio,<br />

desnatura a função do julgamento colegiado.<br />

O relatório omisso, obscuro ou contraditório<br />

invariavelmente comprometerá a decisão do colegiado.<br />

Para evitar um julgamento comprometido por um relatório<br />

viciado, essas falhas podem ser corrigidas antes da sessão<br />

julgamento, competindo ao <strong>rev</strong>isor, nos feitos em que<br />

houver, sugerir ao relator o complemento ou a retificação<br />

do relatório. Essas solicitações podem ser feitas durante a<br />

sessão de julgamento por qualquer magistrado ou mesmo<br />

pelo advogado, que deverá usar da palavra pela ordem 21 ou,<br />

ainda, pelo membro do Ministério Público.<br />

Via de regra, antes da sessão de julgamento, a<br />

parte poderá acessar o relatório e da sua leitura constatar<br />

equívocos ou omissões que podem conduzir o órgão<br />

colegiado a praticar graves injustiças. Essas inexatidões<br />

podem ser sanadas pela sagacidade do advogado mediante<br />

apresentação de memoriais e/ou durante a sustentação oral,<br />

atraindo a atenção dos demais julgadores. Posteriormente<br />

ao julgamento, a via adequada para suprir essas falhas no<br />

relatório será opor embargos de declaração.<br />

A esse propósito, é preciso discutir quais são as<br />

conseqüências jurídicas para as hipóteses de não haver<br />

relatório no acórdão ou, existindo relatório, esse for<br />

deficiente.<br />

Por ser elemento indeclinável, imperativo e<br />

integrativo do pronunciamento colegiado, que lhe imprime<br />

juridicidade, constituindo premissa para a fundamentação e<br />

dispositivo do acórdão, a falta de relatório enuncia nulidade<br />

absoluta, “ainda que não cominada expressamente pelo<br />

Código”. 22-23<br />

Exclusivamente sob a perspectiva da decisão<br />

unipessoal (sentença), a doutrina considera que o relatório<br />

defeituoso pode não gerar nulidade “desde que, pelo exame<br />

da fundamentação, seja possível constatar que o juiz<br />

examinou todos os fatos e os apreciou devidamente”. 24<br />

No entanto, esse entendimento não pode ser<br />

aplicado indistintamente para o julgamento colegiado. Isso<br />

porque, à exceção dos casos em que figura o <strong>rev</strong>isor, os<br />

demais integrantes do colegiado não têm contato algum<br />

com o processo antes do julgamento, confiando unicamente<br />

na exposição dos fatos pelo relator. Sem a transmissão<br />

adequada dos fatos processuais, é forçoso concluir que<br />

comprometido estará o debate e a decisão do grupo.<br />

No contexto do princípio do contraditório, o relatório<br />

qualifica-se como elemento intrínseco ao acórdão, por<br />

constituir elemento desse ato, mas com feição extrínseca,<br />

porquanto os fatos que compõem o relatório são discutidos<br />

em sessão de julgamento, formando, progressivamente, o<br />

julgado.<br />

Ainda sob a ótica do princípio do contraditório,<br />

ao transmitir em sessão de julgamento todos os fatos<br />

relevantes do processo, o relator mostra-se como sujeito<br />

colaborador do processo e compromete-se a proporcionar<br />

verdadeiro debate entre os demais integrantes do órgão<br />

colegiado, tornando possível a formação qualitativa do<br />

acórdão, a ensejar maior confiança e segurança às partes. 25<br />

Assim, a exposição dos fatos que ocorreram no<br />

processo, de forma defeituosa, limita o contraditório no<br />

órgão colegiado, compromete o “modelo cooperativo”<br />

do processo civil 26 e, em última análise, põe em risco o<br />

“processo justo”. 27<br />

Finalmente, é preciso notar que o relatório poderá<br />

ser aditado para constar a realização ou renovação do ato<br />

processual destinada a reparar nulidade sanável (art. 515,<br />

§ 4º, do CPC) ou, ainda, para constar a diligência efetuada<br />

posteriormente ao início do julgamento, necessária à<br />

decisão colegiada (art. 560, ambos do CPC).<br />

3. O vício no relatório poderá repercutir no sucesso<br />

da interposição dos recursos de estrito <strong>direito</strong><br />

(especial e extraordinário).<br />

É bastante conhecida e firme a jurisprudência<br />

do STF e do STJ, segundo a qual, diante da exigência<br />

constitucional, para que ocorra o julgamento dos recursos<br />

extraordinário ou especial, “faz-se consideradas as<br />

premissas fáticas e jurídicas do acórdão impugnado”. 28<br />

No caso de recurso especial interposto com<br />

fundamento no art. 105, III, “c”, da CF, sob pena de não<br />

conhecimento, a divergência jurisprudencial há de ser<br />

comprovada, impondo-se esse ônus ao recorrente, que<br />

deverá demonstrar as circunstâncias que identificam ou<br />

assemelham os casos confrontados, com indicação da<br />

similitude fática e jurídica entre eles. Para que isso ocorra,<br />

é “indispensável a transcrição de trechos do relatório e<br />

do voto dos acórdãos recorrido e paradigma, realizandose<br />

o cotejo analítico entre ambos, com o intuito de bem<br />

caracterizar a interpretação legal divergente”. 29<br />

Nesse contexto, é preciso notar que as premissas<br />

fáticas e jurídicas somente constarão do acórdão se,<br />

em sessão de julgamento, forem relatados todos os<br />

21 Art. 7º, X, Lei n. 8.906/1994.<br />

22 Alcides Mendonça Lima, Introdução aos recursos cíveis, 2ª edição, Revista dos Tribunais, 1976, p. 374-375.<br />

23 Historicamente os tribunais sempre interpretaram dessa forma: nula é a decisão “que omite o relatório, ou o faz incompleto, pois sem esse requisito não se sabe o que decidiu, a final, o juiz, nem como<br />

ele chegou à conclusão do julgado, se a premissa não foi exposta” (Rev. Forense 246/394).<br />

24 Grinover-Fernandes-Gomes Filho, As nulidades do processo penal, 6ª ed., Revista dos Tribunais, 1999, p. 208.<br />

25 Antonio do Passo Cabral sustenta que o contraditório impõe deveres ao juiz – e no contexto do presente trabalho, ao relator. Nas palavras do professor da UERJ, o primeiro dever do magistrado é<br />

“instalar e promover verdadeiro contraditório judicial sobre as questões discutidas no processo, o que poderíamos denominar de dever de engajamento” (Nulidades no processo moderno, Forense, 2009,<br />

p. 234).<br />

26 V. Fredie Didier Jr., Fundamentos do princípio da cooperação no <strong>direito</strong> processual civil português, Coimbra Editora, 2010, p. 46-50; Daniel F. Mitidiero, Colaboração no processo civil, Revista dos<br />

Tribunais, 2009, p. 134-140<br />

27 Sobre interseção do contraditório com o processo justo, à luz dos <strong>direito</strong>s fundamentais, v. Marinoni-Mitidiero, Contraditório e motivação das decisões judiciais, in Direitos fundamentais no Supremo<br />

Tribunal Federal – balanço e crítica, Coord. Daniel Sarmento e Ingo W. Sarlet, Lumen Juris, 2011,p. 562-563.<br />

28 STF, AgReg no RE 471170, rel. Min. Marco Aurélio, j. 7.4.2009; STJ, AgRg na MC 17535/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 17.12.2010.<br />

29 STJ, REsp 448442/MS, rel. Min. Herman Benjamin, DJ 24.9.2010.<br />

37


acontecimentos relevantes que ocorreram durante o curso<br />

do processo, pois, somente assim, o órgão colegiado<br />

julgador poderá discuti-los e qualificá-los juridicamente.<br />

No entanto, caso o relator não transmita<br />

adequadamente os “fatos” essenciais para o julgamento<br />

colegiado e não seja estimulado a complementar seu<br />

relatório, dificilmente a parte recorrente alcançará êxito<br />

com a interposição de recursos extraordinário e/ou especial<br />

contra acórdão constituído por relatório defeituoso,<br />

porquanto, esses recursos, certamente motivarão premissas<br />

fáticas que não estão na decisão do tribunal e muito<br />

provavelmente não serão conhecidos.<br />

4. Conclusão<br />

O exposto é suficiente para justificar a importância<br />

do relatório para os julgamentos colegiados. O desprezo<br />

38<br />

Bibliografia<br />

por esse importante elemento da decisão colegiada constitui<br />

grave equívoco, por violar o princípio fundamental do<br />

contraditório.<br />

Abstract: The paper examines the function of the report<br />

at trial and his collegial relationship with the principle of<br />

contradiction, concluding that the neglect of this important<br />

element of collegial decision is a grave mistake, for<br />

violating the fundamental principle of the contradictory<br />

and may reflect the success of bringing of strict right<br />

resources (special and extraordinary).<br />

Keywords: Report - College Board - Contradictory<br />

principle.<br />

ASSIS, Araken de. Manual dos recursos, 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 287.<br />

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Direito aplicado II: pareceres, 1ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2000.<br />

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao código de processo civil, vol. V, 15ª edição, Rio de Janeiro:<br />

Forense, 2010, p. 666-667.<br />

BERMUDES, Sergio. Comentários ao código de processo civil, volume VII: arts. 496 a 565, 2ª edição. São Paulo:<br />

Revista dos Tribunais, 1977.<br />

CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2009.<br />

CALAMANDREI. Piero. Instituiciones de derecho procesal civil, vol. 2. Depalma, 1943.<br />

DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no <strong>direito</strong> processual civil português. Coimbra<br />

Editora: 2010, p. 46-50.<br />

FADEL, Sergio S. O processo nos tribunais, 1ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 296.<br />

FERNANDES, Antônio Scarance; GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades do<br />

processo penal, 6ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.<br />

FREDERICO MARQUES, José. Instituições de <strong>direito</strong> processual civil, 2ª edição, vol. IV. Rio de Janeiro: Forense,<br />

1963.<br />

GOMES FILHO, Antônio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance. As nulidades do<br />

processo penal, 6ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.<br />

GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. As nulidades do<br />

processo penal, 6ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.<br />

GUIMARÃES, Mario. O juiz e a função jurisdicional, 1ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1958.<br />

MENDONÇA LIMA, Alcides. Introdução aos recursos cíveis, 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p.<br />

374-375.<br />

MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil, t. VIII, 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.<br />

213.<br />

MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 134-140.<br />

____ MARINONI, Luiz Guilherme. Contraditório e motivação das decisões judiciais, in Direitos fundamentais no<br />

Supremo Tribunal Federal – balanço e crítica, Coord. SARMENTO, Daniel. e W. SARLET. Ingo. Lumen Juris, 2011,<br />

p. 562-563.<br />

MONTEIRO, João. Teoria do processo civil e comercial, vol. 1, 5ª edição. São Paulo: Typographia Academica, 1936.<br />

NERY JR, Nelson. e ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Código de processo civil comentado e legislação extravagante,<br />

9ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.<br />

ZAGREBELSKY, Gustavo. “Colegialidad”, in Princípios e Votos, El tribunal constitucional e La política. Madri,<br />

Espanha: Trotta, 2008.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


Taxonomia da sanção civil: para uma caracterização do objeto da<br />

responsabilidade civil<br />

MAURÍCIO B. BUNAZAR<br />

Mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco-USP. Professor de Direito Civil.<br />

Advogado.<br />

Resumo: Para esclarecer qual é o objetivo da responsabilidade civil, o autor do presente trabalho jurídico analisa aspectos<br />

da responsabilidade jurídica, localiza a responsabilidade civil no sistema, elabora a taxonomia da sanção civil identificando<br />

as suas espécies “sentido amplo” e “sentido estrito” e conclui que só haverá responsabilidade civil em sentido estrito nas<br />

hipóteses em que ocorrer ato ilícito e conseqüência insuportável ou ato lícito e conseqüência insuportável, pois só estas<br />

possuem o constante necessário (ainda que nem sempre suficiente) para deflagração da estrutura de responsabilização<br />

civil senso estrito: o dano-injusto.<br />

Palavras chaves: Responsabilidade. Responsabilidade civil. Taxonomia. Sanção civil.<br />

Introdução<br />

Este trabalho almeja responder a uma pergunta:<br />

qual o objetivo da responsabilidade civil?<br />

A pergunta é singela e a resposta aparentemente<br />

simples: a indenização.<br />

No entanto, esta resposta não mais pode ser dada<br />

sem justificativa, pois vários dos partícipes que formam o<br />

complexo sistema jurídico, seja como órgãos de input ou<br />

output 1 , têm buscado ampliar aquele objetivo por meio da<br />

inclusão de uma função punitiva à responsabilidade civil.<br />

O problema é que tal ampliação é feita sem<br />

considerações sistemáticas e, com raríssimas exceções,<br />

quase que numa inocente busca por uma “justiça”<br />

demagógica.<br />

O que visamos aqui, então, é apenas reforçar<br />

aquela resposta simples e, para tanto, buscaremos, sem<br />

pretensão de esgotamento, inventariar, dentro do ambiente<br />

normativo do Código Civil de 2002, as várias espécies de<br />

sanção, com o que, cremos, aclararemos o real objeto da<br />

responsabilidade civil.<br />

1. Responsabilidade jurídica<br />

A responsabilidade jurídica é o produto das normas<br />

jurídicas que tratam do dever imposto a alguém de responder<br />

(= arcar com as conseqüências normativamente impostas)<br />

pelos efeitos de atos próprios, atos de terceiro e fato de<br />

animais e coisas, normas estas que uma vez incidentes,<br />

conferem ao sujeito de <strong>direito</strong> o status de responsável, cuja<br />

antítese é o status de irresponsável.<br />

A responsabilização jurídica é a responsabilidade<br />

jurídica – potência – em movimento (ato), ou seja, é o<br />

resultado da deflagração do funcionamento da estrutura<br />

jurídica de imputação de conseqüências aos sujeitos.<br />

Sob esse ponto de vista e tendo sempre claro que a<br />

divisão em campos, áreas ou ramos do <strong>direito</strong> é puramente<br />

didática, a responsabilidade jurídica pode ser fundamento<br />

para responsabilização penal (= responsabilização<br />

jurídica com conseqüências pré-estabelecidas por normas<br />

qualificadas como de <strong>direito</strong> penal) e/ou administrativa<br />

(=responsabilização jurídica com conseqüências préestabelecidas<br />

por normas qualificadas como de <strong>direito</strong><br />

administrativo) e/ou civil (responsabilização jurídica com<br />

conseqüências pré-estabelecidas por normas qualificadas<br />

como de <strong>direito</strong> civil).<br />

Cuidaremos, apenas, da responsabilidade e<br />

responsabilização jurídica civil.<br />

2. Responsabilidade civil: uma abordagem em<br />

sentido em sentido amplo e em sentido estrito<br />

Se a responsabilidade jurídica é o produto das<br />

normas jurídicas que tratam do dever imposto a alguém<br />

de responder pelos efeitos de atos próprios, atos de<br />

terceiro e fato de animais e coisas, podemos dizer que a<br />

responsabilidade jurídica civil especializa-se em razão de<br />

tais normas pertencerem ao ordenamento jurídico civil 2 .<br />

Chamaremos, então, de responsabilidade civil em<br />

sentido amplo à responsabilidade jurídica que decorra de<br />

normas pertencentes ao ordenamento jurídico de <strong>direito</strong><br />

civil.<br />

1 Sobre a complexidade do sistema jurídico e a interação entre seus elementos componentes, confira Antonio Junqueira de Azevedo, O <strong>direito</strong> como sistema complexo e de 2º ordem; sua autonomia. Ato<br />

nulo e ato ilícito. Diferença de espírito entre responsabilidade civil e penal. Necessidade de prejuízo para haver <strong>direito</strong> á indenização na responsabilidade civil. in. Pareceres de Direito Privado. São<br />

Paulo. Ed. Saraiva, 2004, p. 25 –37.<br />

2 Reitere-se que essa divisão em ramos ou, aqui, ordenamentos é artificial, porém útil à exposição.<br />

39


Dentro deste universo, procederemos à taxonomia<br />

da sanção no Código Civil, para, ao final, ligarmos a<br />

responsabilidade civil em sentido estrito à sua sanção<br />

própria, qual seja a consistente na imposição do dever de<br />

indenizar o dano injusto.<br />

3. Taxonomia da sanção no Código Civil 3<br />

Buscaremos classificar, sob o critério exclusivo da<br />

forma de anatematização da situação jurídica insuportável,<br />

a sanção dentro do universo do Código Civil e, para tanto,<br />

valer-nos-emos da ideia geral de sanção e de exemplos de<br />

sanção retirados daquele universo.<br />

A sanção é classicamente entendida como a resposta<br />

que o ordenamento jurídico dá à sua violação 4<br />

Essa resposta impõe-se objetivamente, é dizer,<br />

independentemente de qualquer juízo de valor sobre a<br />

forma ou razão da violação do ordenamento jurídico 5 .<br />

Com efeito, o próprio sistema jurídico elenca quais<br />

as formas de sua violação e qual a resposta que dará em<br />

cada caso. O fato da violação em si é objetivo, porém a<br />

forma pela qual ocorreu pode ou não sê-lo<br />

Explicamos: o sistema jurídico pré-determina quais<br />

situações jurídicas não tolera e as sanciona a seu modo.<br />

Essas situações jurídicas intoleráveis podem consistir numa<br />

conduta (ação – ato ou atividade-, ou omissão) e/ou num<br />

resultado. O sistema jurídico, em cada caso, desc<strong>rev</strong>erá<br />

abstratamente a situação jurídica intolerável- é dizer, darlhe-á<br />

os contornos (ou, em linguagem ponteana, desc<strong>rev</strong>erá<br />

seu suporte fático) – e a forma de, uma vez verificada no<br />

mundo fenomênico, anatematizá-la.<br />

Disso resulta que o suporte fático cuja concreção no<br />

mundo fenomênico ensejará a sanção poderá ser composto<br />

segundo um dos seguintes modelos:<br />

(i) após a valoração negativa de uma conduta<br />

causadora de um resultado intolerável (dano injusto<br />

causado por conduta culposa ou dolosa);<br />

(ii) após a valoração negativa de um resultado com<br />

abstração da valoração da conduta que o ensejou (dano<br />

injusto por atividade lícita, por exemplo, dever de indenizar<br />

o terceiro que sofra dano injusto quando do exercício de<br />

conduta encoberta pela excludente da ilicitude do estado<br />

de necessidade);<br />

(iii) após apenas a valoração negativa da conduta<br />

com abstração de qualquer resultado (certos casos de abuso<br />

do <strong>direito</strong>, por exemplo, alguém constrói obra animado<br />

40<br />

exclusivamente pelo fim impedir a incidência do sol sobre<br />

o prédio vizinho. É possível que seja condenado a desfazer<br />

a obra antes mesmo que haja um dia de sol, ou seja, antes<br />

que sua conduta produza o resultado).<br />

Destarte, vejamos quais as sanções impostas pelo<br />

Código Civil.<br />

Podemos arrolar, repita-se, sem pretensão exaustiva,<br />

as seguintes sanções no Código Civil:<br />

(i) Sanção consistente na invalidação de ato<br />

jurídico em sentido estrito ou negócio jurídico 6 .<br />

Exemplos: artigos 166 e 171.<br />

(ii) Sanção consistente na perda de uma posição<br />

jurídica ativa (sanção caducificante 7 ).<br />

Exemplos: Parágrafo único do artigo 33 ( “se<br />

o ausente aparecer e ficar provado que a ausência foi<br />

voluntária e injustificada, perderá ele, em favor do<br />

sucessor, sua parte nos frutos e rendimentos”); artigo<br />

150 (dolo bilateral. Perde-se tanto a posição jurídica ativa<br />

de pleitear a anulação quanto a posição jurídica ativa de<br />

exigir indenização); artigo 446 (“mas o adquirente deve<br />

denunciar o defeito ao alienante nos trinta dias seguintes<br />

ao seu descobrimento, sob pena de decadência”); artigo<br />

583 (“Se, correndo risco o objeto do comodato juntamente<br />

com outros do comodatário, antepuser este a salvação dos<br />

seus abandonando o do comodante, responderá pelo dano<br />

ocorrido, ainda que se possa atribuir a caso fortuito, ou<br />

força maior”. No caso, haverá perda da posição jurídica<br />

ativa de alegar ocorrência de caso fortuito ou força maior);<br />

artigo 1.255 a contrario (se agiu de má-fé, perde a posição<br />

jurídica ativa de exigir a indenização); artigo 1.638 (perda<br />

do poder familiar); artigo 1.814 (indignidade); artigo<br />

1.992 (sonegados) etc.<br />

(iii) Sanção consistente na imposição do dever<br />

de imputação patrimonial a título de pena (multa em<br />

sentido estrito).<br />

Exemplos: artigos 939 e 940; parágrafo único do<br />

artigo. 1.258 (“pagando em décuplo as perdas e danos,<br />

o construtor de má-fé)”; parágrafo 2º do artigo 1.336;<br />

artigo 1.337.<br />

(iv) Sanção consistente na imposição do dever de<br />

fazer ou não-fazer algo sem que necessariamente tenha<br />

ocorrido ou antes que ocorra dano injusto.<br />

Exemplos: artigo 12 (“exigir que cesse a ameaça”);<br />

artigo 20 (“....poderão ser proibidas, sem prejuízo da<br />

indenização, ....ou se se destinarem a fins comerciais”. A<br />

proibição não exige dano algum no caso de ser propaganda<br />

3 A base para essa classificação é a obra de Pontes de Miranda , mais especificamente o Tomo 2 , p. 193 e seguintes do seu Tratado de Direito Privado. No entanto, diferentemente do jurista, que parte do<br />

fato ilícito, partiremos da resposta do ordenamento jurídico à sua violação, pois não há correspondência necessária entre a ilicitude do fato e a sanção.<br />

4 Não ignoramos a existência da chamada sanção premial, mas dela não cuidaremos, pois nosso objetivo, neste estudo, é investigar respostas a situações indesejáveis, e não técnicas de estímulo a certos<br />

comportamentos. Para conhecimento da ideia de sanção premial, remetemos à obra de Norberto Bobbio Da Estrutura à Função. São Paulo: Manole, 2006.<br />

5 Aqui há que se ter cuidado para não confundir o conseqüente (imposição da sanção) com o antecedente (o que levou à imposição da sanção).<br />

6 José de Oliveira Ascensão constrói interessante raciocínio para negar que a invalidação é sanção. Confira O Direito. Ed. Almedina: 2005<br />

7 Pontes de Miranda fala em atos ilícitos caducificantes, ensinando que “os atos ilícitos caducificantes são aqueles atos culposos que, contrários a <strong>direito</strong>, têm como eficácia jurídica (= irradiação de<br />

conseqüências jurídicas) a caducidade. Os elementos contrariedade a <strong>direito</strong> e culpa é que os diferenciam das outras espécies de caducidade. Porque caducidade é eficácia (Tratado de Direito Privado,<br />

Tomo 2, p. 205. Sem negrito no original.). Veja que Pontes inclui no suporte fático do ato ilícito com eficácia caducificante a culpa, quando há casos em que há ilícito caducificante (= ato ilícito com<br />

sanção caducificante) em que o elemento culpa é irrelevante e, se há, sobeja. Pense-se, por exemplo, na figura p<strong>rev</strong>ista no artigo 446 do Código Civil.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


comercial); artigo 1.277; artigo 1.280 (tanto não há dano<br />

que o artigo fala em caução pelo dano iminente); artigo<br />

1.302; artigo 1308 (“suscetíveis de produzir infiltrações<br />

ou interferências prejudiciais ao vizinho”. Note que não<br />

se exige a infiltração ou interferência prejudicial, basta a<br />

possibilidade de uma ou outra).<br />

(v) Sanção consistente na imposição do dever de<br />

fazer algo a título de indenização.<br />

Exemplos: artigos 186 e 187 combinados com o<br />

927; e parágrafo único do 927; artigo 929; artigo 932.<br />

Todas as modalidades de sanções acima referidas<br />

encontram-se no campo daquilo que, para fins expositivos,<br />

resolvemos chamar de responsabilidade civil em sentido<br />

amplo.<br />

A responsabilidade civil em sentido estrito, no<br />

entanto, tem como única sanção a consistente no dever de<br />

indenizar (v), vejamo-la.<br />

4. Responsabilidade civil em sentido estrito<br />

No campo da responsabilidade civil, a que<br />

chamamos responsabilidade civil em sentido estrito, existe<br />

uma norma implícita a partir da qual estrutura-se todo o<br />

esquema de imputação do dever de indenizar.<br />

Essa norma pode ser descrita de modo lógicoformal<br />

da seguinte forma: se for causado dano injusto,<br />

haverá obrigação de indenizar.<br />

A causação do dano injusto é o pressuposto; a<br />

obrigação de indenizar é a conseqüência.<br />

A partir dessa norma hipotética, podemos aclarar<br />

quais as questões próprias da responsabilidade civil em<br />

sentido estrito e, conseqüentemente, avaliar as possíveis<br />

soluções oferecidas pela doutrina e jurisprudência.<br />

Entendemos que, entre várias outras possíveis, são<br />

fundamentais à responsabilidade civil em sentido estrito as<br />

seguintes questões: (i) quais danos são injustos; (ii) quem<br />

causou o dano qualificado como injusto; (iii) quem deve<br />

indenizar; (iv) que é indenização ( =o que enche a fórmula<br />

dogmática indenização, ou o que é necessário pra que se<br />

considere indene a situação jurídica que apresentava danoprejuízo).<br />

Todos esses problemas podem e devem ser<br />

resolvidos pelo sistema jurídico, desde que encarado em<br />

uma visão material, e não puramente formal 8 .<br />

O problema (i) é puramente sistemático, pois é o<br />

sistema jurídico que, via de regra por exclusão, determinará<br />

quais são os danos justos. É dizer, em regra o sistema<br />

jurídico impõe a reparação dos danos-prejuízos sofridos,<br />

mas em algumas hipóteses determina que aquele que o<br />

sofreu o suporte. Pense-se, por exemplo, no dano-prejuízo<br />

estético sofrido por um criminoso ao ter sua prisão efetuada<br />

por um policial em estrito cumprimento do dever legal.<br />

O problema (ii) em regra é resolvido com dados do<br />

mundo fenomênico, o que não significa que a solução não é<br />

sistemática, afinal é o sistema jurídico que predeterminará<br />

quais dados do mundo fenomênico devem ser considerados<br />

pelo intérprete.<br />

Pensemos na seguinte hipótese: uma pessoa física<br />

conduz um cão bravio, que vem a morder um pedestre.<br />

No caso, a causação física do dano injusto foi levada a<br />

efeito por um não-sujeito de direto e a solução jurídica será<br />

sempre a atribuição da autoria da causação (em sentido<br />

jurídico) a um sujeito de <strong>direito</strong>, ou seja, com superação da<br />

realidade fenomênica.<br />

Ademais, esse sujeito de <strong>direito</strong> a quem foi<br />

imputada a causação jurídica do dano não necessariamente<br />

será quem arcará com a indenização, por exemplo, se o cão<br />

estivesse sendo conduzido por um menor sob autoridade e<br />

companhia dos pais<br />

O problema (iii) é também sistemático na<br />

medida em que o sistema jurídico é livre para eleger a<br />

quem imputará a responsabilidade pela reparação ou<br />

compensação dos danos-prejuízos injustos, não tendo de<br />

buscar identidade com a realidade fenomênica, embora<br />

possa fazê-lo e normalmente o faça. Pense-se, por exemplo,<br />

na pré-exclusão de alegação de fato exclusivo de terceiro<br />

positivada pelo artigo 734 do Código Civil.<br />

O problema (iv) é também sistemático, já que é o<br />

sistema jurídico que confere ao julgador as balizas (por<br />

exemplo, artigo 944, caput e parágrafo único do Código<br />

Civil) para determinar como o responsável anatematizará o<br />

dano-prejuízo injusto.<br />

Tais balizas podem ser mais precisas, como ocorre<br />

no dano patrimonial; ou mais tênues, no caso do dano<br />

moral. Porém, de forma alguma se pode confundir uma<br />

baliza tênue com ausência de baliza. O que há no caso<br />

do dano moral ou do dano ambiental extrapatrimonial,<br />

por exemplo, é uma maior discricionariedade do juiz<br />

na apreciação da existência e extensão do dano, o que,<br />

conseqüentemente, repercutirá na forma e/ou montante da<br />

indenização.<br />

Notemos que o juiz deve se ater ao dano-prejuízo,<br />

vale dizer, primeiro verificará sua ocorrência, depois<br />

sua extensão (artigo 944 do Código Civil) e com base<br />

exclusivamente em critérios fornecidos pelo sistema<br />

jurídico (por exemplo, parágrafo único do artigo 944 do<br />

Código Civil e parágrafo único do artigo 928 do Código<br />

Civil) fixará a forma e/ou montante da indenização.<br />

Com base no que expusemos, podemos desc<strong>rev</strong>er<br />

possíveis situações jurídicas com repercussão para o<br />

ordenamento jurídico civil, para, ao final, delimitarmos com<br />

precisão qual o campo de incidência da responsabilidade<br />

civil em sentido estrito.<br />

8 Sobre uma visão de sistema jurídico material, remetemos ao nosso O duplo tratamento legal do bem de família e suas repercussões práticas, Direito de Família e Sucessões. Temas atuais, coordenação<br />

de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Flávio Tartuce e José Fernando Simão, São Paulo, Ed. Método, 2009.<br />

41


42<br />

Assim é possível que haja:<br />

I- Ato ilícito e conseqüência insuportável:<br />

Conduta culposa (ato ilícito) causadora de dano<br />

injusto (conseqüência insuportável); abuso do <strong>direito</strong><br />

(ato insuportável) e dano injusto alheio (conseqüência<br />

insuportável).<br />

II- Ato lícito e conseqüência suportável:<br />

(i) sem prejuízo para ninguém: Transporte de pessoas<br />

(ato lícito) com extinção do contrato pelo cumprimento<br />

(conseqüência suportável);<br />

(ii) com dano prejuízo – justo – para alguém: reação<br />

em legítima defesa (ato lícito) causadora de dano estético<br />

ao agressor (conseqüência suportável).<br />

III- Ato lícito e conseqüência insuportável (danoprejuízo<br />

injusto):<br />

Ato em exercício de estado de necessidade (ato<br />

lícito) com dano-prejuízo a patrimônio do não-agressor<br />

(conseqüência insuportável).<br />

Atividade criadora de risco, porém estimulada pelo<br />

Estado inclusive com incentivos fiscais (ato lícito) com<br />

dano-prejuízo ambiental (conseqüência insuportável).<br />

Bibliografia<br />

IV- Ato ilícito sem conseqüência:<br />

Conduta culposa sem causação de qualquer danoprejuízo.<br />

Partindo dessas hipóteses, podemos afirmar<br />

que só haverá responsabilidade civil em sentido estrito<br />

nas hipóteses I e III, pois só estas possuem o constante<br />

necessário (ainda que nem sempre suficiente) para<br />

deflagração da estrutura de responsabilização civil senso<br />

estrito: o dano-injusto.<br />

Abstract: To clarify what is the purpose of civil liability, the<br />

author of this paper examines legal aspects of legal liability,<br />

civil liability is located in the system, draw up a taxonomy<br />

of the civil penalty identifying their species “broad sense”<br />

and “strict sense” and concludes that there will be liability<br />

only in the strict sense occur in cases in which tort and<br />

consequence unbearable or intolerable act lawfully and<br />

consequence, because only they have the constant need<br />

(though not always sufficient) condition for the outbreak of<br />

civil liability structure of strict sense : the damage-unfair.<br />

Key words: Responsibility. Liability. Taxonomy. Civil<br />

penalty.<br />

ASCENSÃO, José Oliveira. O Direito. Lisboa. Ed. Almedina: 2005.<br />

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Pareceres de Direito Privado. São Paulo. Ed. Saraiva: 2004.<br />

BUNAZAR, Maurício. O duplo tratamento legal do bem de família e suas repercussões práticas, Direito de Família<br />

e Sucessões. Temas atuais, Coordenação de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Flávio Tartuce e José Fernando<br />

Simão, São Paulo. Ed. Método, 2009.<br />

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado - Tomo II, 3º ed. Rio de Janeiro. Ed.<br />

Borsoi, 1970.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


O Design e o Desenvolvimento de Produtos Sustentáveis<br />

CARLA LUPINACCI POÇAS<br />

Arquiteta graduada em São Paulo. Fez curso em Design, pelo Instituto Europeu de Design (IED) em Milão.<br />

Pós-graduação em Meio Ambiente Desenvolvimento Sustentável e Questões Globais pela Fundação Armando Álvares<br />

Penteado (FAAP) em São Paulo. Atua nas áreas de arquitetura promocional criando projetos para implantação no<br />

varejo, coordenação no setor de eventos institucionais e faz parte do grupo de trabalho multidisciplinar “Nossa Terra”,<br />

ministrando palestras em educação ambiental com foco em sustentabilidade nas empresas.<br />

Resumo: O trabalho compreende o desafio de discutir o desenvolvimento de produtos sustentáveis por meio do panorama<br />

da evolução do design e seu processo criativo. O design segue como uma possibilidade para a inovação, pois interfere<br />

na concepção do produto, em seu ciclo de vida e no modelo de produção industrial. Importante hoje é tentar promover<br />

mudança na cultura do consumo, estilo de vida e comportamento social com a inserção da variável ambiental. Neste<br />

contexto destaca-se a relevância da adoção de abordagens interdiciplinares do design, bem como nos serviços oferecidos<br />

a sociedade, criando produtos que se adéqüem ao conceito de sustentabilidade em sua visão mais ampla, considerando as<br />

dimensões culturais, econômicas, políticas, tecnológicas, ambientais e sociais.<br />

Palavras-chave: Consumo. Sustentabilidade. Design. Produtos sustentáveis.<br />

Desenvolvimento<br />

Introdução<br />

O objetivo deste artigo é tratar da concepção do<br />

desenvolvimento de produtos sustentáveis.<br />

O design vem desempenhando um papel<br />

fundamental no processo de criação dos produtos, por<br />

meio da determinação do material utilizado em sua<br />

confecção/fabricação e especificação da possibilidade<br />

de reaproveitamento, minimizando assim, o impacto<br />

ambiental.<br />

A relação do homem com o meio ambiente vem se<br />

transformando ao longo do tempo. A utilização dos recursos<br />

naturais na produção de novos produtos aumenta cada vez<br />

mais, principalmente a partir da <strong>rev</strong>olução industrial e do<br />

crescimento populacional.<br />

Nos últimos 30 anos, a sociedade vem, aos poucos,<br />

se conscientizando dos limites do planeta e da necessidade<br />

de reconstrução de uma nova ordem econômica, pois o<br />

cenário de degradação no meio ambiente está cada vez mais<br />

preocupante.<br />

O sistema econômico baseado na demanda de bens de<br />

consumo, industrializados e constantemente renovados, atua<br />

de forma implícita e imediata na exploração dos recursos<br />

naturais. Hoje, podemos identificar os impactos das atividades<br />

humanas e suas conseqüências na economia.<br />

Mudar a forma de consumo faz parte do processo<br />

de pensar e trabalhar o ecodesign, ou seja, integrar o<br />

desenvolvimento sustentável na concepção dos bens,<br />

produtos e serviços. Essa mudança exige uma alteração<br />

de comportamento da sociedade de consumo, ou seja, para<br />

uma sociedade que dita o bom uso desses produtos.<br />

Os produtos devem ser concebidos de outra maneira,<br />

redefinindo-os e reavaliando a sua utilização e a sua<br />

necessidade, aliviando o peso da entrada desses produtos<br />

na economia do planeta. Diante dessa interferência que<br />

é universal, as propostas devem ser pensadas em escala<br />

humana planetária.<br />

Os bens produzidos pelas empresas são a principal<br />

razão para o desafio de mudança na cadeia produtiva<br />

por meio do aprimoramento tecnológico e da oferta de<br />

alternativas criativas.<br />

A produção de objetos de nosso dia a dia deve<br />

mudar, pois não se trata de produzir menos e sim produzir<br />

diferente, de outro modo: imaginar objetos eficientes e<br />

de uso simples, onde o seu final de vida esteja p<strong>rev</strong>isto e<br />

controlado.<br />

A sustentabilidade tem um conceito dinâmico,<br />

considerando a constante expansão da sociedade e o<br />

desenvolvimento.<br />

Este artigo abordará dois conceitos básicos<br />

e contextualização histórica do tema para melhor<br />

entendimento.<br />

B<strong>rev</strong>e Histórico<br />

O século XX testemunhou o mais rápido avanço<br />

tecnológico de nossa história e também com isso as maiores<br />

degradações ao meio ambiente.<br />

43


O aumento da produtividade após a <strong>rev</strong>olução<br />

industrial, o acúmulo de capital e a utilização da máquina a<br />

vapor representaram um domínio humano sobre a natureza e<br />

seus recursos, permitindo empregar tecnologia para realizar<br />

as tarefas que antes só podiam ser realizadas manualmente,<br />

aumentando a quantidade de recursos utilizados.<br />

A <strong>rev</strong>olução industrial e a geração de energia foram<br />

acontecimentos que mudaram o século XX, influenciaram no<br />

processo de desenvolvimento industrial e na forma com que a<br />

sociedade se relacionava com o comércio e com o consumo.<br />

Foi a partir de então que o consumo se intensificou<br />

exigindo dos fabricantes um maior uso de matéria-prima.<br />

Naquela época não se pensava em limites, limites para uso<br />

dos recursos naturais.<br />

A idéia era extrair cada vez mais para se desenvolver<br />

e isso significava a expansão das cidades, do consumo e da<br />

economia. Havia uma associação direta entre consumo e<br />

crescimento.<br />

A história mostra que a crescente escassez de<br />

recursos naturais é uma preocupação periódica, onde há<br />

relatos de p<strong>rev</strong>isões alarmantes que vêm sendo feitas há<br />

vários anos.<br />

No século XVIII, Thomaz R. Malthus p<strong>rev</strong>iu que<br />

uma catástrofe de fome atingiria a sociedade devido à<br />

grande taxa de crescimento, que era superior à capacidade<br />

de produção da época. Outro exemplo, que um século<br />

depois W Stanley Jevons p<strong>rev</strong>iu que as reservas de carvão<br />

na Inglaterra esgotariam em poucos anos. Foi então que<br />

em 1972 o Clube de Roma publicou o relatório “Limites<br />

do Crescimento”, onde fez uma p<strong>rev</strong>isão das principais<br />

reservas naturais.<br />

Essa problemática, por exemplo, foi lembrada na<br />

Convenção de Estocolmo, em 1972, e na Convenção do<br />

Rio de Janeiro, em 1992.<br />

O desequilíbrio na natureza começa a ser percebido<br />

e foi nesse momento que a sociedade e órgão públicos<br />

começaram a perceber que a degradação ambiental e o<br />

risco de colapso, realmente existiam. A sociedade avançava<br />

de forma desigual. A pobreza era um sinal da crise em um<br />

mundo que estava ficando cada vez mais globalizado.<br />

Nesse panorama da Conferência Rio 1992, as<br />

entidades expõem os relatos sobre o desenvolvimento e a<br />

sustentabilidade, sugerindo o que se deve amparar para as<br />

comunidades e pessoas. Foi ressaltadaa ainda a conservação<br />

da biodiversidade e dos processos naturais que regulam e<br />

mantém a vida na terra.<br />

A sociedade precisa encontrar o equilíbrio para<br />

manter a capacidade de produzir insumos, alimentos e<br />

energia. A idéia de um desenvolvimento sustentável faz<br />

com que se reflita sobre a forma de produção e de consumo,<br />

sobre como contribuem para mudar a vida cotidiana de seu<br />

usuário e as condições de vida no planeta, encontrando<br />

inspirações comuns nos valores do desenvolvimento<br />

sustentável.<br />

A relação entre o crescimento econômico e utilização<br />

dos recursos naturais ainda é um desafio, uma vez que os<br />

44<br />

recursos naturais são limitados.<br />

Por isso, a criação de novos produtos com design<br />

sustentável e inovação social será tratada aqui.<br />

O Design<br />

O conceito de design influencia a nossa sociedade<br />

e os novos conceitos que surgiram a partir da preocupação<br />

em contribuir e defender uma nova idéia. O design com<br />

viés sustentável sugere um formato para a criação dos<br />

produtos por meio da diminuição do impacto na produção,<br />

consumo e destinação final, ou seja, do seu ciclo de vida.<br />

O designer tem um papel importante na<br />

transformação da sociedade. É ele que pensa as novidades<br />

que afetarão o modo de vida dos consumidores, seja de<br />

produtos e aplicações ou serviços.<br />

Victor Papanek acreditava em um designer<br />

concentrado em três fatores: no homem, na ecologia e na<br />

ética, e ainda, acreditava que o que importa dessa profissão<br />

é a relação com as pessoas (KAZAZIAN, 2005, p.13-25).<br />

Dessa forma, a função do designer pode ser<br />

entendida como aquela que liga o que é possível tecnica<br />

e tecnologicamente ao que é ecologicamente necessário.<br />

Papanek aponta, inclusive, o crescimento da demanda<br />

por profissionais especialistas e intermediários culturais,<br />

capazes de produzir novos bens e fornecer as interpretações<br />

necessárias sobre seu uso (KAZAZIAN, 2005, P. 13-25).<br />

A atuação do designer como influenciador de<br />

uma nova forma de pensar e agir, uma nova atitude é<br />

importante. Ele é responsável pela concepção do projeto<br />

e responsável pela maneira e pela forma como que deverá<br />

ser usado. Júnior e Platcheck (2010) exemplificam isso no<br />

texto seguinte:<br />

A velocidade e a dinâmica imposta pelo mercado,<br />

que pode vir de clientes, concorrentes ou a indústria,<br />

exige uma flexibilidade muito grande e salienta a<br />

necessidade de dominar as várias formas de buscar<br />

e atingir o sucesso de um produto em um espaço de<br />

tempo o mais curto possível.<br />

A tecnologia minimizou o tempo de desenvolvimento<br />

de um produto, mas a pesquisa e a metodologia<br />

necessárias para conhecer o desejo do cliente e do<br />

empresariado ainda são compiladas, na sua grande<br />

parte, pela intuição do designer que usa dados<br />

levantados, tendências e procedimentos técnicos<br />

assegurando assim o caminho escolhido para o<br />

projeto e minimizando riscos dos investimentos<br />

aplicados.<br />

Os profissionais de Design assim como os<br />

empresários devem ser os principais condutores<br />

da mudança em curso e da quebra de paradigma<br />

de extração de recursos naturais para outro mais<br />

evoluído e sustentável.<br />

Essa mudança dos paradigmas deve ocorrer tanto<br />

nos processos de produção como nos produtos<br />

finais, não se restringindo apenas ao cumprimento<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


das leis, mas, aproveitando os benefícios e<br />

oportunidades que a proteção ambiental pode<br />

proporcionar através da colaboração de empresas<br />

e, conseqüentemente, do crescimento da produção<br />

de produtos ecologicamente eficientes através da<br />

aplicação do Ecodesign, o que certamente trará<br />

benefícios e oportunidades às empresas.<br />

É dentro desse contexto, que o Ecodesign deve ser<br />

assumido como um desafio que as empresas, mais<br />

cedo ou mais tarde, terão de assumir e, para o qual,<br />

deverão preparar-se desde logo.<br />

Empresas que buscam o design sustentável<br />

Os seres humanos e suas empresas têm algo em<br />

comum: produzem detritos. No entanto, na natureza, o que<br />

é detrito para uma espécie é alimento para outra. Assim a<br />

natureza está sempre reciclando. É o que deveriam buscar<br />

as empresas que almejam ser sustentáveis. Estas empresas<br />

deveriam estabelecer sistemas de produção cujo objetivo<br />

final é gerar zero resíduo (ALMEIDA, 2002).<br />

A geração zero de resíduos é “[...] uma aproximação<br />

da produção limpa pela redução máxima do conjunto de<br />

outputs e a venda das emissões restantes a outras empresas<br />

como matérias secundárias” (KAZAZIAN, 2005, p. 52).<br />

Dever-se-ia buscar um aproveitamento completo. Atitudes<br />

como essa podem garantir um tempo necessário, para que<br />

seja realizada a transição até uma sociedade sustentável.<br />

Os sistemas industriais complexos de hoje (aqueles<br />

que não se preocupam com a gestão ambiental), sob o<br />

aspecto da organização e da tecnologia, são a principal<br />

força de degradação ambiental. Por isso devem-se repensar<br />

as tecnologias e instituições sociais, para aproximar<br />

os projetos humanos e os sistemas ecologicamente<br />

sustentáveis.<br />

Uma comunidade sustentável é feita de tal maneira<br />

que sua economia, seus negócios, suas tecnologias e suas<br />

estruturas físicas não entrem em conflito com a capacidade<br />

de suporte dos recursos naturais. Diferentemente da forma<br />

atual de produção que é insustentável dos pontos de<br />

vista social e ecológico, e por isso inviável a longo prazo<br />

(CAPRA, 2002).<br />

Assim, na sociedade sustentável os fabricantes<br />

deverão oferecer produtos ecologicamente corretos,<br />

com alternativas socialmente aceitáveis e favoráveis<br />

ao ambiente, para que este não seja sobrecarregado<br />

(MANZINI; VEZZOLI, 2005).<br />

A sustentabilidade deverá ser uma nova forma de<br />

pensar mundial. Para a qual é necessária a mudança de<br />

atitude das nações, instituições, indivíduos e principalmente<br />

das empresas.<br />

Sendo assim, empresas também devem assumir<br />

seu novo papel, diferenciando-se do que vem sendo feito<br />

até hoje. Tornando-se parte da solução, promovendo a<br />

ética e agindo como atores sociais importantes na cadeia<br />

produtiva.<br />

1 Disponível em http://www.mbdc.com/detail.aspx?linkid=1&sublink=6. Acesso em 14 nov 2010.<br />

Do berço ao berço: um novo olhar para o design e<br />

para a forma de produção<br />

O arquiteto americano William McDounough e o<br />

químico alemão Dr. Michael Braungart foram os idealizadores<br />

do conceito Cradle to Cradle 1 (Conceito do berço ao berço).<br />

Em1995, começaram um movimento no cenário verde,<br />

mudando os paradigmas da época. Apresentaram projetos<br />

realmente inovadores. Eles desencadearam uma <strong>rev</strong>olução<br />

no design e na forma de conceber o produto. Começaram a<br />

analisar a composição química dos objetos, evidenciando a<br />

possibilidade de <strong>rev</strong>erter os resíduos gerados em alimento,<br />

estimulando um ciclo de vida circular e não linear,<br />

entendendo a terra como um sistema inteiro e o lixo como<br />

alimento (McDOUNOUGH e BRAUNGART, 2009).<br />

Eles sugerem um modelo para o conceito do<br />

berço ao berço (C2C). A idéia consiste na eliminação de<br />

resíduos por meio de projetos diferenciados, propondo<br />

o design sustentável baseados nas leis da natureza,<br />

podendo transformar a economia de consumo em<br />

uma ação regenerativa. A proposta C2C sugere criar,<br />

redesenhar os produtos e ingredientes para se tornarem<br />

nutrientes, permitindo dessa forma, que produtos antigos<br />

se tornem matéria-prima para novos produtos e serviços<br />

(McDOUNOUGH e BRAUNGART, 2009, p. 3-16).<br />

Segundo McDounough, o planejamento do berço ao<br />

berço (C2C) oferece o mesmo fluxo cíclico da natureza,<br />

por meio de ciclos regenerativos, proporcionando projetos<br />

e produtos totalmente positivos ao meio ambiente. Dessa<br />

forma, o produto, em vez de poluir, pode se tornar agente<br />

purificador do ar, da terra e da água, utilizando materiais<br />

seguros e sadios, reabastecendo o meio ambiente com essa<br />

matéria-prima sendo eternamente reaproveitada.<br />

Esse novo conceito vai além da modernização ou<br />

diminuição dos efeitos industriais. Reflete sobre a forma<br />

de pensar o produto em diferentes abordagens fugindo das<br />

convencionais.<br />

O planejamento do berço ao berço (C2C) poderá<br />

ser uma estratégia útil para essa transição, fazendo uso de<br />

alguns de seus conceitos que defendem o uso da energia<br />

eficiente para a fabricação dos produtos, pensando na<br />

reciclagem dos materiais e na diminuição do consumo,<br />

tendendo a reduzir os impactos que hoje são gerados<br />

pela sociedade. Não impede, no entanto, de interferir na<br />

natureza, mas propõe uma interferência consciente. Por<br />

exemplo: a reciclagem de carpetes, pode reduzir o consumo,<br />

porém, caso o forro contenha PVC em sua composição, o<br />

que na maioria das vezes acontece, o produto irá para o<br />

aterro e poderá se transformar em um resíduo perigoso ao<br />

ecossistema e também a nossa saúde.<br />

Os critérios do planejamento do berço ao berço<br />

(C2C) estimulam uma economia circular, na qual o setor<br />

industrial produz os materiais considerando sua composição<br />

as questões químicas, a energia limpa e a geração de<br />

45


esíduos, itens estratégicos para a proposta do sistema<br />

de ciclo fechado do berço ao berço (McDOUNOUGH e<br />

BRAUNGART, 2009).<br />

A estrutura C2C vem evoluindo na última década. Da<br />

teoria para a prática, novos projetos têm sido implantados<br />

por meio da adoção do conceito do berço ao berço.<br />

No setor industrial, já esta se adotando uma nova<br />

forma de conceber os produtos, considerando a matériaprima<br />

como nutriente, da mesma forma como ocorre<br />

na natureza. O resíduo de um organismo circula pelo<br />

ecossistema, tornando-se alimento para outros seres vivos.<br />

Nesse movimento cíclico da natureza não há desperdícios<br />

ou resíduos (MBDC, 2010).<br />

Alguns nutrientes biológicos e técnicos já estão<br />

sendo comercializados. Por exemplo, o tecido da empresa<br />

Climatex Lifecycle, que é uma mistura de lã livre de<br />

resíduos e pesticidas e rami cultivado organicamente,<br />

tingido e processado inteiramente sem toxinas. Todo o<br />

seu processo de fabricação e insumos foi desenvolvido<br />

em função da segurança humana e ecológica, respeitando<br />

o metabolismo biológico. Como resultado, temos todos os<br />

retalhos do tecido sendo transformado em feltro e utilizado<br />

por agricultores como matéria vegetal para o cultivo de<br />

flores e frutas retornando, dessa forma, os nutrientes ao<br />

solo (McDOUNOUGH e BRAUNGART, 2009, p. 101-<br />

114).<br />

O novo conceito de produto e de serviços que<br />

podem ser oferecido pelas empresas à sociedade pode<br />

mudar totalmente o estilo de consumo, na medida em que<br />

os materiais utilizados retornem ao meio ambiente como<br />

nutrientes. Tornam-se reutilizáveis por meio de um sistema<br />

com a qualidade ainda maior e sem toxinas. A reciclagem<br />

será ascendente, ou seja, teremos produtos melhores e um<br />

sistema de produção mais inteligente e saudável gerando<br />

segurança (McDOUNOUGH e BRAUNGART, 2009, p.<br />

101-114).<br />

Os resíduos gerados podem se tornar alimento para<br />

o solo e animais, eles retornam para a natureza de uma<br />

forma diferente, mais respeitando o modelo circular da<br />

natureza, onde não ha desperdícios (McDOUNOUGH e<br />

BRAUNGART, 2009, p. 101-114). Pensando dessa forma o<br />

consumo de produtos não tóxicos e que sirva de nutrientes,<br />

o ato de consumir conscientemente fará parte do ciclo de<br />

vida do produto e também da economia.<br />

O conceito C2C vai além dos conceitos<br />

anteriormente estudados, pois seu objetivo não é reduzir os<br />

impactos negativos (ecoeficiencia) 2 , e sim aumentar seus<br />

impactos positivos (ecoeficacia) 3 . Por isso, é necessário<br />

conhecer os processos produtivos que são seguros ao<br />

metabolismo biológico e refletir sobre esse processo no<br />

metabolismo técnico industrial. Para isso, é necessário<br />

criar o produto considerando seus componentes químicos<br />

46<br />

e projetá-lo pensando na recuperação e reaproveitamento<br />

contínuos integrando os produtos consumidos ao meio<br />

ambiente e com responsabilidade social (MBDC, 2010).<br />

C2C defende alguns princípios referentes à energia,<br />

água, e responsabilidade social, são eles:<br />

- Eliminar o conceito de resíduo. “Lixo é alimento” 4 :<br />

Produtos com o ciclo de vida circular e seguros para a<br />

saúde humana e ao ambiente, podendo ser reutilizados<br />

perpetuamente através de técnicas e metabolismo biológico.<br />

Criar e participar de um sistema de coleta par recuperar o<br />

valor desses materiais após o seu uso.<br />

- Alimentação com energia renovável. “Usar receita<br />

solar”: maximizar a utilização de energia solar.<br />

- Sistema naturais de respeito. “Celebrar a<br />

diversidade”: gerenciar o uso da água para maximizar a sua<br />

qualidade promovendo ecossistemas saudáveis respeitando<br />

os impactos locais.<br />

A aplicação do modelo C2C elimina o conceito<br />

de resíduo e sugere que os resíduos sejam alimentos/<br />

nutrientes, desde que em sua composição não contenham<br />

substancias tóxicas à saúde ou à natureza. Considera a<br />

saúde ambiental e humana; as características dos materiais<br />

ao longo de seu ciclo de vida; a reciclagem dos produtos/<br />

biodegrabilidade; a eficácia da recuperação e reciclagem<br />

dos produtos; o uso de energias renováveis, a gestão da<br />

água e a responsabilidade social (McDOUNOUGH e<br />

BRAUNGART, 2009, p. 101-114).<br />

Finalizadas as etapas de avaliação do material, de<br />

desenvolvimento do produto, a próxima etapa é efetuar a<br />

certificação dos produtos para ser comercializado de forma<br />

controlada.<br />

Os conceitos de desenvolvimento e crescimento<br />

econômico estavam sendo questionados e as empresas<br />

começaram a entender a necessidade de <strong>rev</strong>er os seus<br />

valores e a sua missão na sociedade.<br />

Foi neste contexto que nasceram alguns conceitos<br />

que englobavam as empresas, as pessoas, a natureza e os<br />

lucros. O aumento da população mundial traz o aumento<br />

da necessidade de consumo.<br />

Os conceitos propostos firmam-se na atitude<br />

emergencial de diminuir o consumo, usar novamente e<br />

reciclar. A partir daí o papel do designer deixava de ser<br />

estético e técnico para ser social. A transformação deve<br />

dar-se na concepção do produto. Ele tem que “nascer”<br />

de forma que não agrida o meio ambiente e a saúde das<br />

pessoas. Deve ser reaproveitado em todo o seu ciclo de<br />

vida, e não deve haver desperdício ou resíduos.<br />

Nasce, então, uma nova vertente: o conceito do<br />

berço ao berço, que propõe um modelo cíclico de produção<br />

e consumo.<br />

2 Ecoeficácia - 
A estratégia de “sustentabilidade” de minimizar danos aos sistemas naturais, reduzindo a quantidade de resíduos e poluição atividades humanas geram [Fonte:<br />

Disponível em http://www.mbdc.com/detail.aspx?linkid=1&sublink=26. Acesso em 14 nov 2010].<br />

3 Ecoeficiência - A estratégia de MBDC para criar uma indústria humana que seja seguro, rentável e de regeneração, produção, ambiental e social de valor econômico [Fonte:<br />

Disponível em http://www.mbdc.com/detail.aspx?linkid=1&sublink=26. Acesso em 14 nov 2010].<br />

4 Lixo é alimento - Um princípio dos sistemas naturais e MBDC que elimina o conceito de resíduo. Nesta estratégia de design, todos os materiais são vistos como valiosos,<br />

continuamente circulando em circuito fechado de íon produto, utilização e reciclagem [Fonte: Disponível em http://www.mbdc.com/detail.aspx?linkid=1&sublink=26. Acesso em 14<br />

nov 2010].<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


Conclusão<br />

O design tem a missão de aperfeiçoar os objetos<br />

e sua utilidade. Diz Elisabeth Laville que o design é um<br />

ato político de repensar os nossos modos de produção e<br />

consumo.<br />

A criatividade e as habilidades do designer servem<br />

como ferramenta para modificar o processo de inovação<br />

social e tecnológica na forma de produzir e entender o<br />

produto, promovendo soluções na concepção e em seu<br />

ciclo de vida.<br />

Devemos também adotar a ética de vida sustentável.<br />

As pessoas devem reavaliar seus valores e alterar seu<br />

comportamento, promovendo valores que apóiem esta ética,<br />

educando a sociedade de modo que as atitudes necessárias<br />

sejam vastamente compreendidas e conscientemente<br />

disseminadas para as gerações futuras.<br />

Deste modo a evolução do design e sua evolução<br />

estão direcionadas para um futuro sustentável, onde os<br />

produtos são criados fazendo parte do todo. A matéria<br />

prima é reintegrada à natureza, promovendo o equilíbrio<br />

do nosso planeta.<br />

Por fim, o desenvolvimento sustentável não<br />

será atingido se não ocorrer uma mudança radical nos<br />

Bibliografia<br />

processos criativos e produtivos. Assim como nos<br />

aspectos quantitativos e qualitativos do consumo. A<br />

junção das verdadeiras necessidades do homem com as<br />

necessidades do planeta efetiva-se na essência do processo<br />

de desenvolvimento sustentável.<br />

Abstract: The research involves the challenge to discuss<br />

the development of sustainable products through the<br />

analyzes of the evolution of design and his creative process.<br />

The design follows as a possibility for innovation because<br />

it interferes in the product design, in its life cycle and in<br />

industrial production model. Important today is trying to<br />

promote change in the culture of consumption, lifestyle<br />

and social behavior with the insertion of the enironmental<br />

variable. In this context stresses the importance of the<br />

adoption of interdisciplinary work of design approaches,<br />

as well as the services offered the society, creating products<br />

that suit the concept of sustainability into their broader<br />

view, considering the cultural dimensions, economic,<br />

political, technological, environmental and social.<br />

Key words: Consumer. Sustainability in business.<br />

Cycles of design. Sustainable products. Cradle to cradle<br />

concept.<br />

A CARTA DA TERRA. Valores e princípios para um futuro sustentável. Disponível em: . Acesso em 18.set 2010.<br />

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VEIGA, Jose Eli da. Desenvolvimento sustentável, o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamound 2005.<br />

47


48<br />

A solidariedade na responsabilização por danos ambientais<br />

DANIELA FONZAR POLONI<br />

Graduada em Direito pela Universidade Mackenzie. Pós-graduada em Direito Contratual pela PUC/SP e em Meio<br />

Ambiente e Desenvolvimento Sustentável pela FAAP/SP. Atua como advogada na área de meio ambiente empresarial.<br />

Resumo. Este artigo aborda o instituto da solidariedade na reparação por danos causados ao meio ambiente, partindo do<br />

conceito de poluidor trazido pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, passando pela responsabilidade ambiental<br />

civil, onde se investigam as teorias acerca do risco e do nexo de causalidade, até chegar ao instituto da solidariedade.<br />

Palavras-Chaves: Responsabilidade ambiental, poluidor indireto, responsabilidade objetiva, teoria do risco criado, teoria<br />

da causalidade adequada, solidariedade.<br />

1. A Responsabilidade Ambiental<br />

Em se tratando de responsabilidade ambiental,<br />

é imprescindível dizer que uma conduta lesiva ao meio<br />

ambiente pode ter desdobramento em três esferas,<br />

concomitantemente: na administrativa, na civil e na penal,<br />

conforme preconiza o art. 225, §3º da Constituição Federal.<br />

Esta tríplice responsabilização não implica, no entanto, em<br />

bis in idem 1 :<br />

O art. 225, § 3º da Constituição Federal, ao<br />

preceituar que as condutas e atividades lesivas ao meio<br />

ambiente, sujeitarão seus infratores, pessoas físicas ou<br />

jurídicas, a infrações penais e administrativas, independente<br />

da obrigação de reparar os danos causados, consagrou a<br />

regra da cumulatividade das sanções, até mesmo porque,<br />

como visto, as sanções penais, civis e administrativas, além<br />

de protegerem objetos distintos, estão sujeitas a regimes<br />

jurídicos diversos. 2 (grifo do autor)<br />

Apesar de ser conhecida como a “Lei dos Crimes<br />

Ambientais”, a Lei 9.605/98 tratou de cuidar também das<br />

infrações administrativas, as quais são apuradas em sede<br />

de procedimento administrativo, portanto, extrajudicial,<br />

conduzidos pelos próprios órgãos integrantes do SISNAMA<br />

(Sistema Nacional do Meio Ambiente), designados no art.<br />

6º da Lei 6.938/81. Tais órgãos são dotados de poder de<br />

polícia 3 , que lhes outorga legitimidade e competência para<br />

fiscalização e aplicação de infrações administrativas em<br />

caso de descumprimento da legislação ambiental.<br />

A responsabilidade administrativa atribuída àqueles<br />

que cometem uma infração ao meio ambiente pode ser<br />

tratada pelos entes da federação: União, Estados, Distrito<br />

Federal e Municípios, seguindo a regra da competência<br />

concorrente definida pela Constituição Federal, em seu<br />

art. 24, inciso VI, para fins de legislação acerca da matéria<br />

ambiental.<br />

Os processos administrativos podem correr<br />

paralelamente, mas o pagamento da multa nas unidades<br />

federadas implica o não-pagamento da multa federal. Esse<br />

artigo pode conduzir ao favorecimento do réu – pessoa<br />

física ou jurídica -, pois as multas pagas nos Estados,<br />

Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser<br />

menores do que a cominada pela União. 4<br />

A despeito de a legislação pátria ter adotado<br />

a responsabilidade objetiva para apurar as infrações<br />

administrativas contra o meio ambiente, no momento da<br />

análise da penalidade aplicável ela considera elementos da<br />

responsabilidade subjetiva 5 .<br />

Neste sentido dispõe o art. 3º, §2º do Decreto<br />

6.514/08 que seja considerada a negligência, que é um dos<br />

elementos da culpa, ou dolo para fins de aplicação da pena<br />

de multa simples nos casos em que o autuado, uma vez<br />

advertido, deixe de cumprir com as exigências do órgão<br />

fiscalizador ou quando opuser embaraços à fiscalização.<br />

O art. 14, §1º da Lei 6.938/81 estabeleceu a<br />

responsabilidade civil em matéria ambiental ao dispor que<br />

incide ao agente poluidor a responsabilização administrativa<br />

1 O termo em latim bis in idem significa que ninguém poderá ser julgado ou punido mais de uma vez pelo mesmo fato. Ele tem aplicação nas diversas esferas da responsabilização, a saber, civil,<br />

administrativa (ambiental, tributária, etc.) e criminal. Na esfera ambiental, ele é tratado no art. 76 da Lei 6.938/81, que assim dispõe: “Art. 76 – O pagamento de multa imposta pelos Estados, Municípios,<br />

Distrito Federal ou Territórios substitui a multa federal na mesma hipótese de incidência.”<br />

2 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 57.<br />

3 O Código Tributário Nacional define em seu art. 78: “Considera-se poder de polícia a atividades da Administração Pública que, limitando ou disciplinando <strong>direito</strong>, interesse ou liberdade, regula a prática<br />

de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas<br />

dependentes de concessão e autorização do Poder Público, à tranqüilidade publica ou ao respeito à propriedade e aos <strong>direito</strong>s individuais ou coletivos.”<br />

4 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 18 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 332.<br />

5 “Na responsabilidade objetiva é desnecessária a demonstração da conduta do agente (dolo ou culpa). Todavia os seguintes requisitos são indispensáveis na verificação de aludida responsabilidade: 1) o<br />

ato; 2) o dano; 3) o nexo de causalidade entre o ato e o dano.” (FIORILLO, op. cit., p. 62)<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


e penal, sem prejuízo da reparação dos danos causados.<br />

Ocorre que, diferentemente das responsabilidades<br />

administrativa e penal, as quais se apegam na análise da<br />

tipificação da conduta do poluidor, para a responsabilidade<br />

civil é imprescindível que esta conduta tenha gerado um<br />

dano ambiental.<br />

Embora ainda seja motivo de divergência entre<br />

a doutrina, pode-se concluir que o Direito Brasileiro<br />

adotou a teoria da responsabilidade objetiva no que tange<br />

à reparação dos danos ambientais. Não entra, portanto, na<br />

análise do elemento subjetivo da conduta (dolo ou culpa),<br />

mas sim na existência de uma conduta lesiva, um dano<br />

ambiental e um nexo de causalidade entre um e outro.<br />

O sistema de responsabilidade civil trazido<br />

pelo Código Civil de 2002 ajudou a consolidar a teoria<br />

da responsabilidade objetiva em matéria ambiental,<br />

abandonando a teoria da responsabilidade subjetiva,<br />

largamente difundida no século XVIII entre os países<br />

civilistas que tiveram por base o Código Napoleônico 6 .<br />

Neste sentido, é clara a regra do art. 927 e seu parágrafo<br />

único, que o causador do dano é obrigado a repará-lo<br />

independentemente de culpa.<br />

Dentre as grandes dificuldades encontradas no que<br />

diz respeito à apuração da responsabilidade civil por danos<br />

ambientais, as principais esbarram na comprovação do<br />

dano e delimitação da sua extensão (especialmente quando<br />

se trata de dano moral ambiental 7 ). Como definir quem é<br />

o poluidor e delimitar sua responsabilidade, por exemplo,<br />

em uma situação onde diversas indústrias dispuseram, por<br />

anos, resíduos das mais variadas naturezas em um mesmo<br />

aterro clandestino?<br />

O paradigma tradicional da responsabilidade civil<br />

pressupõe a possibilidade do autor definir de maneira clara<br />

e precisa, quase matemática, a estrutura quadrangular<br />

dano-nexo causal-causador-vítima. 8<br />

2. Conceituando o Poluidor<br />

A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente<br />

(6.938/81) assim conceitua o poluidor:<br />

Art. 3º – Para os fins p<strong>rev</strong>istos nesta Lei, entende-se<br />

por:<br />

IV – poluidor, a pessoa física ou jurídica, de <strong>direito</strong><br />

público ou privado, responsável, direta ou indiretamente,<br />

por atividade causadora de degradação ambiental (grifo<br />

nosso)<br />

Ao classificar como poluidor aquele que direta ou<br />

indiretamente contribuiu para a atividade causadora do<br />

dano ambiental, o legislador lançou mão de um conceito<br />

indeterminado, que, assim como as cláusulas gerais ou<br />

normas abertas, dependem de interpretação doutrinária,<br />

diálogo das fontes, análise jurisprudencial, enfim, de um<br />

exercício profundo de hermenêutica jurídica para a atuação<br />

no caso a caso. 9<br />

Em que pese o conceito de poluidor ser aberto, o<br />

que permite uma gama de interpretações, deve o Operador<br />

do Direito agir com cautela, evitando colocar “na mesma<br />

cesta” todos os sujeitos que, ainda que remotamente,<br />

tenham vínculo ao evento danoso, para que não que se<br />

banalize o instituto, de forma a enveredar para a aplicação<br />

desmedida da deep pocket doctrine (doutrina do bolso mais<br />

fundo):<br />

Deep Pocket doctrine é um jargão forense que<br />

busca dar solução para aos casos nos quais existem muitas<br />

responsabilidades solidárias e dificilmente se pode chegar à<br />

definição sobre “quão responsável é cada responsável”. Os<br />

tribunais, com vistas a não deixar que a vítima permaneça<br />

sem os devidos ressarcimentos, escolhem aquele que é o<br />

mais saudável financeiramente e transferem para ele toda<br />

a responsabilidade econômica decorrente da indenização. 10<br />

A doutrina estrangeira utiliza o termo non-polluter<br />

para se referir aos sujeitos que tem contra si atribuída a<br />

responsabilidade civil, porém o dano ambiental não tem<br />

correlação direta com as atividades por eles desenvolvidas.<br />

Neste sentido, os casos onde houve reconhecimento da<br />

responsabilidade ambiental do non-polluter são tidos como<br />

exceção ao princípio do poluidor-pagador.<br />

Ao tratar do assunto, o advogado e professor<br />

holandês Lucas Bergkamp cita como exemplo de nonpolluters<br />

os proprietários, arrendantes, financiadores,<br />

industrializadores, geradores de resíduos, etc. e conclui o<br />

texto dizendo que é injusta a responsabilização ambiental<br />

6 “Tradicionalmente, como já foi visto acima, o fundamento da responsabilidade é a culpa. O Código Napoleão, que é considerado como o grande monumento da ordem jurídica liberal, consagra<br />

amplamente a culpa como o elemento central de toda responsabilidade. É o Code Civil o reconhecimento e o coroamento de uma nova racionalidade que se afirmou, tendo como seu epicentro o indivíduo<br />

e a sua vontade que, desde então, ocupam o papel central na cena jurídica.<br />

(...)<br />

No Direito brasileiro, a responsabilidade é um antigo instituo jurídico. O Código Civil brasileiro sofreu grande influencia da doutrina contida no Código Napoleão, fundando a responsabilidade na idéia<br />

de culpa e em todos os conceitos ideológicos subjacentes à referida subjetivação. A matéria, no Código está tratada ao longo de dois artigos; no artigo 43, está regulada a responsabilidade das pessoas<br />

jurídicas de Direito público:<br />

“Art. 43. As pessoas jurídicas de <strong>direito</strong> público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado <strong>direito</strong> regressivo contra os<br />

causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.” ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9 ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. p. 203-204.<br />

7 Poluição Ambiental. Ação Civil Pública formulada pelo Município do Rio de Janeiro. Poluição consistente em supressão da vegetação do imóvel sem a devida autorização municipal. Cortes de árvores<br />

e inicio de construção não licenciada, ensejando multas e interdição do local. Dano à coletividade com a destruição do ecossistema, trazendo conseqüências nocivas ao meio ambiente, com infringência,<br />

às leis ambientais, Lei Federal 4.771/65, Decreto Federal 750/93, artigo 2º, Decreto Federal 99.274/90, artigo 34 e inciso XI, e a Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, artigo 477. Condenação<br />

a reparação de danos materiais consistentes no plantio de 2.800 árvores, e ao desfazimento das obras. Reforma da sentença para inclusão do dano moral perpetrado a coletividade. Quantificação do<br />

dano moral ambiental razoável e proporcional ao prejuízo coletivo. A impossibilidade de reposição do ambiente ao estado anterior justificam a condenação em dano moral pela degradação ambiental<br />

prejudicial a coletividade. Provimento do recurso. (Apelação Cível n. 2001.001.14586 –TJRJ – 2ª. T – Relatora Desembargadora Maria Raimunda T. de Azevedo – DJ 07/08/2002)<br />

8 BENJAMIN, Antonio Herman V. Responsabilidade Civil pelo Dano Ambiental. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: ano 1998, n. 9. p. 12.<br />

9 A cláusula geral, portanto, exige do juiz uma atuação especial, e através dela é que se atribui uma mobilidade ao sistema, mobilidade que será externa, na medida em que se utiliza de conceitos além do<br />

sistema, e interna, quando desloca regramentos criados especificamente para um caso e os traslada para outras situações. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das<br />

cláusulas gerais. Revista de Direito Renovar, n. 18, p. 11-19, set./dez. 2000. p. 11<br />

10 ANTUNES, op. cit., p. 208<br />

49


destas pessoas, as quais não causaram a poluição e tampouco<br />

tinham mecanismos para p<strong>rev</strong>eni-la. Complementa<br />

relatando como sendo inviável a responsabilização<br />

ambiental nestas situações. 11<br />

Um clássico exemplo nesta mesma seara, ocorrido<br />

nos Estados Unidos, é o caso do Love Canal onde o agente<br />

de crédito imobiliário foi responsabilizado civilmente pela<br />

construção de habitações sobre solo contaminado. 12 A<br />

responsabilização das instituições financeiras é o exemplo<br />

mais estudado atualmente no que tange à responsabilidade<br />

ambiental do poluidor indireto, ou seja, aquele que<br />

indiretamente contribuiu para a ocorrência do dano 13 .<br />

3. A Responsabilidade Objetiva e as Teorias do Risco<br />

Quando foi publicada, a Lei 6.938/81 trouxe grande<br />

inovação ao sistema jurídico da responsabilidade civil<br />

ambiental:<br />

A promulgação da Lei n. 6938/81 (Lei da Política<br />

Nacional do Meio Ambiente) foi um divisor de águas no<br />

Direito Brasileiro. Não só porque, pela primeira vez, o País<br />

ganhava um sistemático arcabouço legal de sustentação<br />

a uma política nacional do meio ambiente, mas também<br />

porque, numa penada só, o legislador resolveu dois<br />

desafiadores problemas jurídicos: a) a irresponsabilidade,<br />

de fato, do poluidor – já que a base da responsabilização,<br />

nos termos do Código Civil, era ora baseada em culpa (art.<br />

159), ora vinha objetivada, mas limitada no seu universo<br />

de aplicação (os <strong>direito</strong>s de vizinhança dos arts. 554 e<br />

555) – e b) o acanhado modelo de implementação judicial<br />

(=legitimação para agir) nos casos de dano ambiental. 14<br />

No que tange ao risco, parte dos autores entende<br />

que a responsabilidade objetiva adotada pelo <strong>direito</strong><br />

brasileiro em questões ambientais está calcada na teoria<br />

do risco integral, enquanto outra parte entende que está<br />

no risco criado. A principal diferença entre elas é que a<br />

responsabilidade objetiva alicerçada na teoria do risco<br />

integral p<strong>rev</strong>ê a obrigação de indenizar a partir da existência<br />

50<br />

do dano e do nexo causal, não se admitindo excludentes<br />

de qualquer natureza. Já na teoria do risco criado são<br />

admitidas algumas excludentes: 15<br />

Conclusões: à semelhança do que ocorre no âmbito<br />

da responsabilidade objetiva do Estado, é que, no Direito<br />

positivo pátrio, a responsabilidade objetiva por danos<br />

ambientais é o da modalidade do risco criado (admitindo<br />

as excludentes da culpa da vítima ou terceiros, da força<br />

maior de do caso fortuito) e não a do risco integral (que<br />

inadmite excludentes), nos exatos e expressos termos<br />

do § 1º do art. 14 da Lei n.º 6.938/81, que, como vimos,<br />

somente empenha a responsabilidade de alguém por danos<br />

ambientais, se ficar comprovada a ação efetiva (atividade)<br />

desse alguém, direta ou indiretamente na causação do<br />

dano. (grifo nosso)<br />

Segundo Paulo Bessa, a responsabilidade por risco<br />

integral não pode ser confundida com a responsabilidade<br />

por fato de terceiro, não sendo admissível que um<br />

empreendimento que tenha sido vitimado por fato de<br />

terceiro passe a responder pelos danos causados por<br />

este. 16 Tal distinção é de extrema relevância no que tange<br />

à internalização dos fatores negativos ao meio ambiente,<br />

preconizado pelo princípio do poluidor pagador, uma vez<br />

que seguindo a teoria do risco integral, todo e qualquer<br />

risco conexo ao empreendimento deverá ser integralmente<br />

internalizado pelo processo produtivo. Já para a teoria<br />

do risco criado, dentre todos os fatores de risco,<br />

procura vislumbrar apenas aquele que, por apresentar<br />

periculosidade, é efetivamente apto a gerar as situações<br />

lesivas, para fins de imposição de responsabilidade. 17<br />

Segundo Antonio Herman Benjamin, o <strong>direito</strong><br />

brasileiro abriga a responsabilidade civil objetiva baseada<br />

na teoria do risco integral, a qual encontra seu fundamento<br />

na “idéia de que a pessoa que cria o risco deve reparar os<br />

danos advindos de seu empreendimento. Basta, portanto,<br />

a prova da ação ou omissão do réu, do dano e da relação<br />

de causalidade”, não aceitando, por tais motivos, as<br />

excludentes de fato de terceiro, de culpa concorrente da<br />

11 BERGKAMP, Lucas. Liability and environment. The Hague: Kluwer Law International, 2001. p. 331<br />

12 No Direito Brasileiro ainda não se consolidaram julgados neste sentido. No entanto, já se reconhece a solidariedade do agente financeiro pela solidez e segurança da obra. “A obra iniciada mediante<br />

financiamento do Sistema Financeiro da Habitação acarreta a solidariedade do agente financeiro pela solidez e segurança.” (Resp nº 51.169 RS – STJ – CC Turma – Relator Ministro Ari Pargendler – DJ)<br />

13 Vide Lei 6.938/81, Art. 12; Decreto 99.274/90, Art. 23; Lei 8.974/95 e Lei 11.105/05. Por força da latente preocupação com o crescimento do desmatamento da Amazônia, que é inclusive atribuído ao<br />

desenvolvimento de atividades pecuárias e agrícolas na região, foi publicada a Resolução 3.545 do Conselho Monetário Nacional, de 03/05/2008, que instituiu a avaliação de aspectos ambientais para<br />

o financiamento de atividades agropecuárias nos municípios integrantes do Bioma Amazônia em instituições oficiais de crédito ou bancos privados que sejam agentes financeiros de créditos públicos.<br />

Além disto os contratos de financiamento também deverão conter cláusula p<strong>rev</strong>endo que, em caso de embargo do imóvel no qual as atividades serão desenvolvidas, a liberação das parcelas seja suspensa<br />

até regularização ambiental do imóvel, e se esta não ocorrer em até 12 (doze) meses, o contrato será considerado vencido antecipadamente.<br />

14 BENJAMIN, op. cit. p. 12<br />

15 “No mesmo sentido, lê-se em Alvino Lima – Culpa e Risco, Ed. Rev. Tribs., 2ª ed. atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval, 1998, p. 320: “A responsabilidade pelo dano ecológico, à vista do<br />

disposto no art. 14 da Lei n.º 6.938/81, na conformidade da jurisprudência atual, é objetiva, pois “obriga o poluidor a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados<br />

por sua atividade, independentemente de existência de culpa.<br />

Portanto, em cada caso concreto, haverá de existir a prova de dois pressupostos indispensáveis: a existência do dano ambiental e seu nexo causal com a ação ou omissão do pretenso responsável que seja<br />

a causa eficiente do evento capaz de gerar o prejuízo a ser indenizado”.<br />

Fica, assim, definitivamente, demonstrada, que, em virtude do texto expresso da Lei n.º 6.938/81, a responsabilidade pelo dano ambiental, é fundada na teoria do risco criado e não na do risco integral.”<br />

(MUKAI, Toshio. Responsabilidade objetiva por dano ambiental com base na teoria do risco criado. 2003, p. 8)<br />

16 ANTUNES, op. cit., p. 206<br />

17 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Considerações sobre o Nexo de Causalidade na Responsabilidade Civil por Dano ao Meio Ambiente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, ano 8, n. 32,<br />

p. 86<br />

18 BENJAMIN, op. cit., p. 41<br />

19 Código Civil. Art. 393. Parágrafo Único – O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.<br />

20 MACHADO, op. cit., p. 378-379<br />

21 GRIZZI GRIZZI, Ana Luci Limonta Esteves; BERGAMO, Cyntia Izilda; HUNGRIA, Cynthia Ferragi; CHEN, Josephine Eugenia. Responsabilidade civil ambiental dos financiadores. Rio de<br />

Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 24<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


vítima, de caso fortuito ou de força maior. 18<br />

Paulo Affonso Leme Machado, ao tratar da<br />

responsabilidade civil e caso fortuito e força maior 19 , cita<br />

José de Aguiar Dias, pontuando que a caracterização do<br />

caso fortuito e de força maior deve ser procurada não no<br />

evento em si, posto que este é um fato necessário, mas sim<br />

em seus efeitos, os quais poderiam ou não ser evitados ou<br />

impedidos, de forma a afastar ou não a responsabilidade<br />

ambiental na esfera civil. Neste sentido, em se tratando da<br />

responsabilidade objetiva, deverá ser “analisada a ausência<br />

de p<strong>rev</strong>isão e tomada de medidas para evitar os efeitos do<br />

fato necessário”. 20<br />

Trazendo os conceitos acima à questão da<br />

responsabilidade dos entes financeiros, Ana Luci Grizzi<br />

aponta que na busca do nexo de causalidade entre a conduta<br />

do ente financiador e o dano ambiental, não se deve vincular<br />

a responsabilidade objetiva com a teoria do risco integral<br />

da atividade, sob pena de se causar transtornos ao sistema<br />

financeiro, com retração das concessões de crédito. 21<br />

Em se tratando de responsabilidade civil ambiental,<br />

há que se avaliar a questão sob o prisma do princípio do<br />

poluidor pagador e do art. 393, parágrafo único do Código<br />

Civil, que se apega à possibilidade de evitar ou impedir<br />

os efeitos do fato. Assim, deve-se perquirir quanto à<br />

p<strong>rev</strong>isibilidade do fato (e aqui faz-se referência expressa<br />

ao princípio da p<strong>rev</strong>enção e da precaução) e se estava ao<br />

alcance do sujeito a tomada de medidas possíveis e eficazes<br />

para impedir ou evitar os efeitos negativos do evento<br />

danoso e ele não o fez.<br />

4. O nexo de causalidade entre a conduta e o dano<br />

ambiental<br />

O nexo causal é o elo que une a conduta do agente<br />

poluidor ao dano ambiental. É através dele que se pode<br />

concluir quem foi o causador do dano. Sem o nexo causal<br />

não há responsabilidade civil. 22<br />

Dentre as diversas teorias existentes acerca do<br />

nexo causal, destaca-se a teoria da causalidade adequada,<br />

segundo a qual se deve levar em consideração, dentre<br />

todas as condições que concorreram para o evento danoso,<br />

somente aquela que, em concreto e em abstrato, era a mais<br />

adequada a produzir o resultado 23 . Isto significa dizer que:<br />

(...) entre as diversas causas que podem ter<br />

condicionado a verificação do dano, aquela que, numa<br />

perspectiva de normalidade e adequação sociais, apresente<br />

sérias probabilidades de ter criado um risco socialmente<br />

inaceitável, risco esse, concretizado no resultado danoso. 24<br />

A teoria da causalidade adequada se contrapõe à<br />

22 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 67<br />

23 Ibid., p. 70<br />

24 STEIGLEDER, op. cit., p. 91<br />

25 CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 68<br />

26 Ibid., p. 70<br />

chamada teoria da equivalência dos antecedentes, também<br />

conhecida por teoria da condição sine qua non ou teoria<br />

da equivalência das condições. Esta teoria preceitua<br />

que, se várias condutas ou condições concorreram para o<br />

mesmo evento, todas se equivalem. Não se investigando,<br />

portanto, qual teve maior relevância ou foi mais ou menos<br />

adequada ou eficaz. “Condição é todo antecedente que não<br />

pode ser eliminado mentalmente sem que venha a ausentarse<br />

o efeito”. 25<br />

Em havendo diversos sujeitos que potencialmente<br />

podem ser classificados como responsável por um dano<br />

ambiental, como é o caso do poluidor indireto, parece<br />

adequado que se aplique a teoria da causalidade adequada,<br />

buscando-se no nexo causal quão determinante foi sua<br />

conduta, comissiva ou omissiva, para a ocorrência do<br />

dano ambiental, sendo admitida a aplicação também das<br />

excludentes de responsabilidade, como caso fortuito, força<br />

maior e fato de terceiro, com respaldo na teoria do risco<br />

criado e do art. 393 do Código Civil.<br />

De fato, o que esta ciência demonstrou,<br />

irrefutavelmente, é que para aferir a responsabilidade civil<br />

pelo acidente, o juiz deve retroceder até o momento da<br />

ação ou da omissão, a fim de estabelecer se esta era ou<br />

não idônea para produzir o dano. A pergunta que, então,<br />

se faz é a seguinte: a ação ou omissão do presumivelmente<br />

responsável era, por si mesma, capaz de normalmente<br />

causar o dano?<br />

Tal pergunta é a conseqüência desde princípio: para<br />

se estabelecer a causa de um dano é preciso fazer um juízo de<br />

probabilidades. Portanto, se se responde afirmativamente,<br />

de acordo com a experiência da vida, se se declara que a<br />

ação ou omissão era adequada a produzir o dano, então,<br />

este é objetivamente imputável ao agente. O juízo de<br />

probabilidades ou p<strong>rev</strong>isibilidade das conseqüências é<br />

feito pelo juiz, retrospectivamente, e em atenção ao que<br />

era cognoscível pelo agente, como exemplar do tipo do<br />

homem médio. 26<br />

5. A aplicação do Instituto da Solidariedade<br />

Diante do conceito aberto que a legislação brasileira<br />

deu à figura do poluidor, inserindo tanto o causador direto<br />

quanto o indireto, e considerando situações comumente<br />

encontradas onde há pluralidade de sujeitos potencialmente<br />

responsáveis pela reparação de um dano ambiental, como o<br />

exemplo do aterro clandestino mencionado anteriormente,<br />

deve-se assumir que na teoria da responsabilidade objetiva<br />

e do risco integral da atividade, tende a ser reconhecida a<br />

solidariedade pelos danos ambientais:<br />

51


O modelo jurídico-ambiental, portanto, não só<br />

aproveita a solidariedade do Direito Civil clássico,<br />

como a amplia, dando-lhe feições peculiares. Nada mais<br />

justo, sendo o Direito Ambiental uma disciplina jurídica<br />

de crise a exigir, por isso mesmo, notáveis e urgentes<br />

aperfeiçoamentos no organograma da responsabilidade<br />

civil. Nessa linha, “é de particular relevância o princípio<br />

da solidariedade, que historicamente correspondia ao da<br />

fraternidade, consagrado pela Revolução Francesa de<br />

1789. O que não se pode admitir é o réu alegar, como<br />

eximente, “o fato de não ser só ele o degradador, de serem<br />

vários, e não se poder identificar aquele que, com seu obrar,<br />

desencadeou – como gota d’água – o prejuízo”. 27 (grifo do<br />

autor)<br />

Ocorre que consoante o art. 265 do Código Civil,<br />

a solidariedade não se presume, resultando de lei ou da<br />

vontade das partes. Assim sendo, exceto se convencionado<br />

entre os interessados, em momento algum a legislação<br />

ambiental tratou de atribuir solidariedade por reparação<br />

aos danos causados ao meio ambiente. Não se pode<br />

simplesmente tomar o conceito aberto de poluidor trazido<br />

pelo art. 3º, IV da Lei 6.938/81, que determina que é<br />

responsável aquele que direta ou indiretamente contribui<br />

para o evento danoso, e combiná-lo com o art. 952 do<br />

Código Civil, o qual p<strong>rev</strong>ê que havendo mais de um autor da<br />

ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação.<br />

O Decreto 6.514/08 estabelece expressamente a<br />

responsabilidade (administrativa) ambiental de todos os<br />

entes da cadeia produtiva por cultivos ou produção em áreas<br />

embargadas 28 , punindo com multa de R$ 500 por quilograma<br />

ou unidade, aquele que adquire, intermedeia, transporta ou<br />

comercializa produto ou subproduto produzido sobre área<br />

objeto de embargo (art. 54). Tratou o legislador de estender<br />

os efeitos lesivos do desmatamento ilegal não apenas ao<br />

produto obtido diretamente do desmatamento, no caso a<br />

madeira originada das florestas, mas também aos produtos<br />

obtidos indiretamente na área desmatada, como, por<br />

exemplo, aos animais (no caso leia-se gado) ali criados e os<br />

frutos ali cultivados (como lavouras de soja, milho, arroz,<br />

cana, etc.). Seria uma aplicação da máxima que acessório<br />

que acompanha o principal, no caso, os efeitos negativos<br />

do dano ambiental perpetrado no terreno acompanhando<br />

52<br />

todos os bens produzidos sobre ele.<br />

Poder-se-ia pensar que se trata de aplicação da<br />

responsabilidade solidária entre todos estes stakeholders<br />

(atores envolvidos) pela conduta daquele que diretamente<br />

praticou o desmatamento ilegal. No entanto, não se pode<br />

perder de vista que a Lei 6.839/81 dispõe que a sanção<br />

administrativa é aplicável sem prejuízo da reparação dos<br />

danos causados. Portanto, a responsabilidade estabelecida<br />

aqui é de caráter administrativo e não civil. Além disto, o<br />

legislador individualizou as condutas (desmatar, adquirir,<br />

intermediar, transportar e comercializar). Logo, não se trata<br />

de solidariedade entre os sujeitos.<br />

Outra situação largamente difundida onde se verifica<br />

a co-responsabilização ambiental ocorre na aquisição<br />

de imóveis rurais sem reserva legal. Os tribunais 29 já<br />

consolidaram o entendimento de que na compra e venda<br />

de imóveis rurais sem reserva legal, fica o adquirente<br />

responsável pela reparação do dano ambiental, que, neste<br />

caso é tratado como propter rem 30 . Faz sentido sim atribuir<br />

ao comprador a responsabilidade administrativa pela<br />

infração de não averbar reserva legal, afinal, tal obrigação<br />

recai sobre o proprietário, tenha ele adquirido o imóvel<br />

com ou sem reserva legal (artigos 48 e 55 do Decreto<br />

6.514/08). No entanto, não cabe impor ao adquirente de<br />

um imóvel sem reserva legal a obrigação por reparação por<br />

dano ambiental, sem que haja comprovação da existência<br />

de dano ao meio ambiente e sem que seja avaliada em que<br />

medida a conduta do proprietário contribui para tanto.<br />

Corroborando o entendimento acima, cabe trazer<br />

à tona a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei<br />

12.305/10), que atribui aos diversos sujeitos envolvidos<br />

na cadeia dos resíduos sólidos uma responsabilidade<br />

compartilhada, porém individualiza as suas condutas, não<br />

tratando um como solidariamente responsável por uma<br />

conduta imputada a outrem:<br />

Art. 3º. XVII - responsabilidade compartilhada<br />

pelo ciclo de vida dos produtos: conjunto de atribuições<br />

individualizadas e encadeadas dos fabricantes,<br />

importadores, distribuidores e comerciantes, dos<br />

consumidores e dos titulares dos serviços públicos de<br />

limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para<br />

minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados,<br />

27 GOLDENBERG; ITURRASPE apud BENJAMIN, op. cit. p. 38<br />

28 O embargo a que se refere este artigo consiste na penalidade administrativa imposta pela autoridade ambiental, conforme p<strong>rev</strong>isto no artigo 16 do mesmo Decreto.<br />

29 Recurso especial. Faixa ciliar. Área de preservação permanente. Reserva legal. Terreno adquirido pelo recorrente já desmatado. Impossibilidade de exploração econômica. Responsabilidade<br />

objetiva. Obrigação propter rem. Ausência de prequestionamento. Divergência jurisprudencial não configurada. As questões relativas à aplicação dos artigos 1º e 6º da LICC, e, bem assim, à possibilidade<br />

de aplicação da responsabilidade objetiva em ação civil pública, não foram enxergadas, sequer vislumbradas, pelo acórdão recorrido. Tanto a faixa ciliar quanto a reserva legal, em qualquer propriedade,<br />

incluída a da recorrente, não podem ser objeto de exploração econômica, de maneira que, ainda que se não dê o reflorestamento imediato, referidas zonas não podem servir como pastagens. Não<br />

há cogitar, pois, de ausência de nexo causal, visto que aquele que perpetua a lesão ao meio ambiente cometida por outrem está, ele mesmo, praticando o ilícito. A obrigação de conservação é<br />

automaticamente transferida do alienante ao adquirente, independentemente deste último ter responsabilidade pelo dano ambiental. Recurso especial não conhecido. (REsp 343.741-PR – 2ª T. – STJ<br />

– rel. Min. Franciulli Netto – DJU – 07.10.2002) (grifo nosso)<br />

30 “A obrigação propter rem é aquela em que o devedor, por ser titular de um <strong>direito</strong> sobre uma coisa, fica sujeito a uma determinada prestação que, por conseguinte, não derivou da manifestação expressa<br />

ou tácita de sua vontade. O que faz o devedor é a circunstância de ser titular do <strong>direito</strong> real, e tanto isso é verdade, que ele se libera da obrigação se renunciar a esse <strong>direito</strong>.” (RODRIGUES, Sílvio.<br />

Direito Civil – Parte Geral das Obrigações. Vol. 2. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 105). No caso dos danos ambientais, a afirmação final desta premissa é relativa, posto que ainda que transfira a<br />

propriedade, o causador do dano, ainda que não mais na posse ou propriedade do bem, continua responsável por ele.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


em como para reduzir os impactos causados à saúde<br />

humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de<br />

vida dos produtos, nos termos desta Lei;<br />

Conclusão<br />

Os princípios de Direito Ambiental do<br />

desenvolvimento sustentável, do poluidor-pagador, da<br />

p<strong>rev</strong>enção e da precaução estão na base de sustentação<br />

da responsabilidade ambiental. Da conjugação destes<br />

princípios pode-se concluir que o foco da responsabilidade<br />

ambiental deve residir nas ações que antecedem o dano e<br />

não naquelas que o sucedem, pois sendo o meio ambiente<br />

composto por elementos da natureza, sobre os quais o<br />

ser humano não tem plenos poderes de ingerência, é<br />

praticamente impossível trazê-lo ao status quo ante. Assim,<br />

a responsabilização para reparar um dano ambiental fica<br />

adstrita a uma remediação de algo já consumado, cujos<br />

efeitos negativos já foram exteriorizados no meio ambiente,<br />

resumindo-se, na maioria das vezes em compensação de<br />

caráter pecuniário.<br />

Foi por intermédio da Lei 6.938/81 que a<br />

responsabilidade civil em matéria ambiental passou a<br />

ser objetiva, bastando, portanto a existência do dano e<br />

do nexo de causalidade com a conduta do agente, não se<br />

perquirindo se este agiu com culpa ou não. Sendo o risco o<br />

principal elemento da responsabilidade objetiva, passou-se<br />

a discutir, então, qual seria a natureza deste risco em sede de<br />

responsabilidade ambiental. Não é pacífico o entendimento<br />

doutrinário acerca da adoção pelo Direito Brasileiro pela<br />

teoria do risco integral ou do risco criado.<br />

Sendo o desenvolvimento sustentável um dos<br />

pilares do Direito Ambiental e também do desenvolvimento<br />

econômico, ambos constitucionalmente tutelados, em se<br />

tratando de responsabilidade civil do causador indireto do<br />

dano ambiental, a aplicação da teoria do risco integral pode<br />

trazer grande insegurança jurídica às relações econômicas.<br />

Mais adequado seria a aplicação da teoria do risco criado,<br />

posto que esta admite a aplicação das excludentes da<br />

responsabilidade, como o ato de terceiro, o caso fortuito<br />

e a força maior, que são fatos sobre os quais alguém que<br />

esteja vinculado de forma remota à atividade não tem como<br />

evitar ou impedir.<br />

Adicionalmente a isto, no que tange à busca do nexo<br />

de causalidade entre a conduta do poluidor indireto e o dano<br />

ambiental, há que se verificar quão relevante foi ela para a<br />

ocorrência do dano ou não, conforme preceitua a teoria da<br />

causalidade adequada. Desta forma, dois patamares podem<br />

ser estabelecidos, trazendo o causador indireto do dano<br />

para, pelo menos, uma co-responsabilidade subsidiária,<br />

pois, de outra forma, ter-se-á a aplicação da figura da<br />

solidariedade, colocando o responsável direto pela conduta<br />

danosa e o poluidor indireto em pé de igualdade, no que<br />

tange à reparação. Responsabilidade compartilhada não<br />

implica em solidariedade.<br />

É certo que o modelo econômico capitalista, baseado<br />

no liberalismo e na Revolução Industrial, propulsionou a<br />

corrida pelo desenvolvimento a qualquer custo, trazendo,<br />

sim, prejuízos ao meio ambiente, como a poluição do ar<br />

e das águas e o uso desenfreado dos recursos naturais.<br />

De outro lado, não se pode ignorar que a Constituição<br />

Federal, em seu art. 170, preconiza a busca do equilíbrio<br />

entre a ordem econômica e o respeito ao meio ambiente,<br />

tal qual a Declaração do Rio de Janeiro de 1992 sobre<br />

Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. É neste<br />

sentido que o operador do Direito deve estar muito atento<br />

para compreender que o desenvolvimento sustentável é a<br />

conjugação dos interesses econômicos com os interesses<br />

ambientais e buscar sempre o equilíbrio entre um e outro,<br />

pois se o desenvolvimento há que ser sustentável, a<br />

sustentabilidade, por sua vez, só tem sua razão de ser se<br />

existir o desenvolvimento.<br />

Abstract: This article ascertains the co-responsibility for<br />

environmental damages, as to the legal definition on the<br />

Brazilian National Environment Act, the indenminfication<br />

for environmental damages, evaluating the theories with<br />

regard to the activity created risk and the causation nexus,<br />

and finally the solidarity.<br />

Key words: Environmental liability, non-polluter liability,<br />

strict liability, actitivity created risk theory, last chance<br />

theory.<br />

53


54<br />

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Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


Da reserva legal florestal – desmatamento lícito e ilícito e suas repercussões<br />

GIL DONIZETI DE OLIVEIRA<br />

Advogado. Especialista em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direito do Trabalho pela UNIFRAN e em Direito do<br />

Agronegócio pela FAAP. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDAGRO).<br />

Resumo. Este trabalho tem como objetivo o estudo de aspectos controvertidos do instituto da reserva legal florestal,<br />

notadamente no que se refere ao que chamaremos de desmatamento lícito ou ilícito, questões que se <strong>rev</strong>elam de suma<br />

importância para o desdobramento das suas conseqüências na esfera jurídica do <strong>direito</strong> do particular.<br />

Palavras-chaves: Reserva legal. Reserva legal florestal. Limitações e restrições ambientais. Limitações e restrições<br />

administrativas. Desmatamento lícito. Desmatamento ilícito. Código Florestal.<br />

Do Direito de Propriedade<br />

O estudo do instituto da reserva legal florestal passa,<br />

necessariamente, pela análise do <strong>direito</strong> de propriedade.<br />

Por sua vez, não se pode falar do <strong>direito</strong> de propriedade sem<br />

uma prévia abordagem histórica deste instituto. Conforme<br />

menciona Maria Helena Diniz 1 , citando Theodor Sternberg,<br />

“impossível seria a análise dos problemas jurídicos sem a<br />

observância do seu desenvolvimento através dos tempos.”.<br />

O desenvolvimento da civilização acabou por<br />

suavizar o caráter individualista e absolutista do <strong>direito</strong><br />

de propriedade. A plenitude do <strong>direito</strong> de propriedade na<br />

pessoa do titular do domínio foi relativizada em prol do<br />

interesse da coletividade.<br />

Embora as restrições ao <strong>direito</strong> de propriedade<br />

sejam mais sentidas no Brasil a partir de recentes leis, com<br />

destaques para a Constituição Federal de 1988 e o atual<br />

Código Civil (2002), é de fácil constatação, na análise<br />

da evolução histórica do instituto, que desde as mais<br />

remotas civilizações o <strong>direito</strong> de propriedade vem sofrendo<br />

alterações em prol da coletividade e do bem comum, em<br />

contraposição ao caráter absoluto e individualista que por<br />

muito tempo reinou entre os diferentes povos e civilizações.<br />

Mesmo no <strong>direito</strong> romano, de início, não havia uma<br />

sistematização do <strong>direito</strong> de propriedade, como leciona<br />

Luiz Antônio Rolim 2 . Nesta fase da civilização, conforme<br />

noticiam muitos doutrinadores, p<strong>rev</strong>alecia o <strong>direito</strong><br />

de propriedade coletivo, embora esta informação seja<br />

contestada por alguns pela inexistência de informações<br />

seguras que levem a esta conclusão. Arimatéia 3 (2003, p<br />

18) sintetiza esta divergência quando diz que “A ciência do<br />

Direito ainda não solucionou a questão polêmica de saber<br />

se a propriedade nasceu coletiva ou individual”.<br />

1 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – p 105<br />

2 ROLIM, Luiz Antônio. Curso de Direito Romano – p 187.<br />

3 ARIMATÉIA, José Rodrigues. O Direito de Propriedade. P 18<br />

Na propriedade individual desenhada a partir<br />

da propriedade coletiva que reinou nos primórdios da<br />

civilização, a relação entre o dono e a coisa <strong>rev</strong>elavase<br />

como um DIREITO ABSOLUTO e EXCLUSIVO,<br />

exercido em função do titular do domínio e sem limites<br />

ou restrições de qualquer ordem que fosse, de forma que o<br />

titular do domínio tinha o mais amplo e irrestrito campo de<br />

atuação no exercício de seu <strong>direito</strong>, enfeixando o conjunto<br />

de poderes conhecidos como jus utendi, o jus fruendi e o jus<br />

disponend ou abutend, respectivamente, o <strong>direito</strong> de usar,<br />

gozar e de reaver a coisa de quem quer que injustamente a<br />

possua.<br />

Afirma-se que o Código de Napoleão de 1804<br />

teria sido a primeira manifestação clara da submissão da<br />

propriedade às regras impostas pelo estado em favor do<br />

interesse coletivo. O interesse coletivo, não no sentido de<br />

restaurar a propriedade coletiva que muitos acreditam ser<br />

a origem do <strong>direito</strong> de propriedade, mas sim no sentido de<br />

sobrepor o interesse coletivo e o bem comum ao interesse<br />

particular do proprietário. Nesta nova ordem de valores, as<br />

restrições ambientais ao <strong>direito</strong> de propriedade se <strong>rev</strong>elam<br />

a todo o momento.<br />

Na fase atual, não mais se discute se o interesse<br />

coletivo se sobrepõe ou não ao individual, questão já<br />

superada, mas sim quais os limites que devam ser impostos<br />

ao particular em prol da comunidade da qual ele faz parte<br />

e quais as conseqüências jurídicas, no campo do <strong>direito</strong><br />

do particular, destas limitações a ele impostas. O espírito<br />

individualista do século XIX, que também reinou no início<br />

do século XX, é rompido pelo princípio da sociabilidade,<br />

da função social da propriedade.<br />

55


Guilherme Calmon Nogueira Da Gama 4 , abordando<br />

não apenas a função social no <strong>direito</strong> de propriedade, mas<br />

também em todo o <strong>direito</strong> civil, nos dá uma boa idéia do<br />

significado da função social, a saber:<br />

O sentido da expressão da função social deve<br />

corresponder à consideração da pessoa humana não<br />

somente uti singulus ou uti civis, mas também uti socius.<br />

Neste contexto, a doutrina da função social emerge como<br />

uma matriz filosófica apta a restringir o individualismo,<br />

presente nos principais institutos jurídicos, face aos<br />

ditames do interesse coletivo, a fim de conceder igualdade<br />

material aos sujeitos do <strong>direito</strong>. Trata-se de uma transição<br />

do individualismo para a sociabilidade.<br />

O homem vive no ambiente natural, necessitando<br />

dos recursos nele existentes para sob<strong>rev</strong>ivência da sua<br />

espécie, inclusive das futuras gerações. É necessário<br />

conservar o meio ambiente como um bem comum, visando<br />

a qualidade da vida, seguindo aqui os termos empregados<br />

pelo legislador constituinte, emergindo daí, como menciona<br />

Rui Carvalho Piva 5 “uma nova ordem de interesses que o<br />

<strong>direito</strong> protege”.<br />

A Constituição Brasileira de 1937 foi a primeira a<br />

abordar de maneira expressa a função social da propriedade<br />

privada. A Constituição atual não faz referência expressa<br />

às limitações administrativas. Entretanto, o princípio<br />

implícito da supremacia do interesse público, de um lado,<br />

e a enunciação da função social da propriedade (art. 5.º,<br />

XXIII e art. 170, III, ambos da CRFB/88), de outro, estão<br />

a indicar os fundamentos para qualquer tipo de intervenção<br />

do Estado na propriedade, inclusive das limitações<br />

genéricas.<br />

Para melhor compreensão da natureza das restrições<br />

impostas ao particular pelo instituto da reserva legal<br />

florestal, é preciso definir o <strong>direito</strong> de propriedade na<br />

legislação pátria. Nas palavras de Caio Mário da Silva<br />

Pereira 6 , “Não existe um conceito inflexível do <strong>direito</strong> de<br />

propriedade” tamanha é a divergência entre os conceitos<br />

apresentados pelos diferentes estudiosos e das mais<br />

diversas ciências que se debruçam sobre tema. A verdade é<br />

que a propriedade mais se sente do que se define, como diz<br />

o mesmo autor,.<br />

Historicamente, embora sob censura, é comum os<br />

autores se referirem ao Código de Napoleão como a primeira<br />

tentativa legal de definição do <strong>direito</strong> de propriedade<br />

(MONTEIRO, 1990, p. 88; PEREIRA, 1990, p. 71), que o<br />

definiu como sendo “O <strong>direito</strong> de gozar e dispor das coisas<br />

de maneira mais absoluta, desde que delas não se faça o<br />

uso proibido pelas leis e regulamentos”.<br />

O nosso Código Civil atual não dá o significado<br />

de <strong>direito</strong> de propriedade, o que também se verificava na<br />

legislação pátria <strong>rev</strong>ogada através da leitura do artigo 524<br />

56<br />

daquele diploma 7 . No Código atual, a matéria é tratada<br />

no artigo 1.221, que repetindo a preferência do legislador<br />

de 1916, optou por relacionar os <strong>direito</strong>s decorrentes e<br />

atribuídos ao proprietário.<br />

De maneira geral, à mingua de uma definição mais<br />

perfeita, os autores preferem a definição da propriedade<br />

como sendo o <strong>direito</strong> de usar, gozar e dispor da coisa, e<br />

reivindicá-la de quem injustamente a detenha, o que não<br />

torna difícil concluir que o legislador brasileiro optou por<br />

adotar a mesma postura dos doutrinadores e de outras<br />

legislações.<br />

A questão principal advinda dos atributos do <strong>direito</strong><br />

de proprietário, antes e principalmente hoje, fixa-se na<br />

forma de usar e gozar deste <strong>direito</strong>, vale dizer, quais são<br />

os seus limites, pois que os <strong>direito</strong>s de usar e gozar já não<br />

são absolutos. As limitações são de toda ordem, pública<br />

ou privada, em prol da coletividade ou de outro indivíduo,<br />

decorrentes de lei ou de contrato.<br />

Do <strong>direito</strong> adquirido do particular em face do<br />

interesse comum<br />

A ordem jurídica de qualquer Estado democrático<br />

tem como uma das bases mais sólidas o princípio da<br />

segurança jurídica. Aliás, o Estado de Direito tem este<br />

princípio como base maior, concedendo aos cidadãos<br />

das mais diversas e diferentes classes sociais proteção e<br />

estabilidade das relações entre as pessoas e entre estas e o<br />

próprio Estado. A proteção do <strong>direito</strong> adquirido, da coisa<br />

julgada e do ato jurídico perfeito, constitui importante<br />

instrumento para a manutenção da segurança jurídica e a<br />

estabilidade nas relações entre os jurisdicionados.<br />

Em face desta segurança jurídica, na hipótese de<br />

mudança na legislação, os atos praticados sob a égide da<br />

lei anterior produzirão os efeitos segundo os termos da<br />

lei <strong>rev</strong>ogada. Neste contexto, é possível visualizar, desde<br />

já, que aquele que promoveu o desmatamento lícito, vale<br />

dizer, de acordo com a lei vigente à época da abertura<br />

da terra, não pode ter o mesmo tratamento dado àquele<br />

que promoveu a abertura da terra em contrariedade à lei<br />

vigente, embora seja certo que ambos devam se submeter à<br />

nova ordem legal. Isto não significa que o <strong>direito</strong> não possa<br />

ser objeto de restrições e limitações futuras em prol da<br />

coletividade e que estas limitações tragam conseqüências<br />

como, por exemplo, <strong>direito</strong> de indenização do particular<br />

que agiu licitamente.<br />

Desta forma, ao lado da conclusão de que não<br />

existe o <strong>direito</strong> adquirido do particular em face do interesse<br />

comum, concluímos também que as normas que impõem<br />

restrições ambientais de toda ordem aos particulares, entre<br />

elas o instituto da reserva legal, qualificam-se como normas<br />

4 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Função Social no Direito Civil. P. 3<br />

5 PIVA, Rui Carvalho. Bem Ambiental. P 109.<br />

6 PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil. P. 64<br />

7 Art. 524 do Código Civil de 1916. “a lei assegura ao proprietário o <strong>direito</strong> de usar, gozar e dispor de seus bens e de reavê-los de quem injustamente os possua.”<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


de interesse da coletividade e, portanto, não existe o <strong>direito</strong><br />

adquirido do particular na manutenção da exploração das<br />

terras.<br />

Quando não é possível a p<strong>rev</strong>alência do <strong>direito</strong> do<br />

particular, a questão se resolve no campo do <strong>direito</strong> de<br />

indenização. Falamos, doravante, do <strong>direito</strong> de indenização<br />

deste particular, já que esta é a única alternativa que resta à<br />

sociedade para, ainda que de forma indireta, compensar o<br />

particular dos prejuízos que sofreu a partir do sacrifício de<br />

seu <strong>direito</strong> em prol de toda a coletividade representada pelo<br />

Estado, a quem cabe arcar com este prejuízo.<br />

Diz-se que não há qualquer prejuízo ao proprietário<br />

particular, quando as restrições são de ordem geral e<br />

não prejudicam o exercício do <strong>direito</strong> de propriedade de<br />

forma substancial ou que atinja os atributos do <strong>direito</strong> de<br />

propriedade. A questão principal é de se saber quando<br />

existe para ele o <strong>direito</strong> de indenização, ou seja, a partir de<br />

que grau a intervenção é passível de indenização.<br />

Percebam que existem limitações e restrições que<br />

são inerentes ao próprio <strong>direito</strong> de propriedade e, conforme<br />

já dito, sempre existiram mesmo quando reinava entre os<br />

diferentes povos o caráter individualista e absolutista do<br />

<strong>direito</strong> de propriedade, ainda que de forma menos sensível<br />

(Ex: colocação de placas de identificação de nome das ruas<br />

no prédio particular, recuo nas construções, abertura de<br />

janelas, proibição de determinadas culturas agrícolas em<br />

regiões determinadas). Não é difícil imaginar que, vivendo<br />

em sociedade, é impossível que este <strong>direito</strong> seja absoluto,<br />

diante da infinidade de possibilidades de hipóteses de<br />

confronto entre os interesses dos particulares entre si e com<br />

a própria coletividade.<br />

Evolução histórica da proteção legal da flora no<br />

Brasil<br />

Historicamente, conforme nos relata Ozório Vieira<br />

Dutra 8 , verificamos que nas Ordenações Afonsinas (1.500),<br />

vigentes após o descobrimento do Brasil e editadas pelo<br />

Rei Dom Afonso IV, havia a tipificação do corte de árvore<br />

frutífera como crime, proibição que foi mantida nas<br />

Ordenações Manuelinas 1521 e nas Ordenações Filipinas<br />

de 1850, mas que <strong>rev</strong>elava uma preocupação com a<br />

alimentação e não com os recursos naturais.<br />

Na Carta Régia de 13.03.1797, segundo menciona<br />

Osny Duarte Pereira citado por Américo Luís Martins da<br />

Silva 9 , aquela norma “declarou a propriedade real sobre<br />

todas as matas e árvores à borda da Costa, ou de rios que<br />

desemboquem imediatamente no mar, e por onde jangadas<br />

se possam conduzir as madeiras cortadas até o mar”.<br />

Através da Lei nº 1.507, de 26.06.1867, foi instituída a<br />

servidão sobre terrenos marginais aos rios navegáveis.<br />

8 DUTRA, Ozório Vieira. Reserva Legal. P. 15.<br />

9 SILVA, Américo Luiz Martins. Direito do Maio Ambiente e dos Recursos Naturais. P. 81.<br />

10 SILVA, Américo Luiz Martins. Direito do Maio Ambiente e dos Recursos Naturais. P. 82<br />

Pouco antes da vigência da lei anteriormente<br />

colacionada, havia sido editada a Lei 601 de 18.09.1850,<br />

conhecida como Lei das Terras, que tinha como um dos<br />

objetivos conter a destruição de terras públicas, conforme<br />

menciona Ruy Cirne Lima, citado por Américo Luís<br />

Martins da Silva 10 , que “dispunha que a aquisição de terras<br />

somente poderia ser feita por compra e venda, ao tempo<br />

em que proibia expressamente a aquisição prescritiva<br />

(usucapião) de tais terras e declarava ser crime a sua<br />

posse desautorizada.”.<br />

Ainda no século XIX, o Brasil passou por duas<br />

Constituições. A de 1824, do Brasil Império e a de 1891,<br />

que veio logo após a proclamação da República. Nenhuma<br />

delas trouxe qualquer disposição da proteção ou da<br />

exploração da flora no Brasil. Somente com a edição do<br />

CÓDIGO CIVIL de 1916 é que iniciamos a edição de leis<br />

próprias desta natureza, mas com uma clara omissão do<br />

legislador no que se refere à proteção da flora no Brasil.<br />

Os anos que se sucederam à instalação da “Nova<br />

República” foram importantíssimos para a inauguração<br />

da legislação ambiental. Conforme lembra Ozório Vieira<br />

Dutra 11 o Código Florestal de 1934 é fruto de idéia nascida<br />

em 1920 do presidente Epitácio Pessoa, que criou naquele<br />

ano uma subcomissão para elaborar o anteprojeto do que<br />

seria o primeiro Código Florestal do Brasil, que trouxe o<br />

mais polêmico artigo instituindo a chamada “quarta parte”,<br />

que consistia na reserva obrigatória de vinte e cinco por<br />

cento de vegetação nativa existente em cada propriedade<br />

rural. Constitui ele o ponto principal para o estudo do<br />

instituto da reserva legal, pois que antes da sua vigência,<br />

não havida qualquer regulamentação ou restrição quanto<br />

à utilização do solo e à preservação da flora no Brasil.<br />

O “golpe militar de 1964” inaugurou uma nova<br />

ordem política, e porque não dizer, também econômica e<br />

social. É sob esta nova ordem política que, no ano seguinte<br />

(1965), surge um novo Código Florestal, que ingressou no<br />

ordenamento jurídico através da Lei n° 4771 de 15/09/1965.<br />

Basicamente, seus objetivos seguiam a mesma linha do seu<br />

antecessor, mas trouxe algumas inovações e acabou por<br />

trazer novas restrições e limitações ambientais quanto à<br />

ocupação e exploração do solo, bem como no que se refere<br />

à proteção da flora.<br />

Extinguiu as quatro tipologias de áreas protegidas<br />

anteriormente, conforme p<strong>rev</strong>ia o Código de 1934,<br />

substituindo-as por quatro outras novas: Parque Nacional<br />

e Floresta Nacional (anteriormente categorias específicas),<br />

as Áreas de Preservação Permanente (APP) e a Reserva<br />

Legal (RL).<br />

Se na versão de 1934 a polêmica maior se resumia<br />

na quarta parte, que proibia o desmatamento total da área<br />

pelo proprietário, no novo Código de 1965 ficou claro o<br />

objetivo do legislador de transferir para o particular o ônus<br />

da proteção da flora no Brasil, cujos termos serão melhores<br />

57


analisados oportunamente, até mesmo porque, a versão<br />

original e que teve vigência por algum tempo, não trouxe<br />

as restrições hoje existentes.<br />

A edição da Lei 6.938/1981 (Política Nacional do<br />

Meio Ambiente) e de outras posteriores acabaram por mudar<br />

de forma drástica o Código Florestal de 1965, bem como<br />

para produzir, de fato, uma legislação ambiental eficaz e<br />

com fortes traços de intervenção do domínio do particular<br />

em face do bem comum. Sob<strong>rev</strong>eio a promulgação da<br />

Constituição Brasileira de 1988, com abordagem direta<br />

da questão ambiental, fixando e estabelecendo a nível<br />

constitucional as diretrizes do <strong>direito</strong> ambiental e a função<br />

social da propriedade.<br />

A Lei 7.803/1989 alterou o Código Florestal para<br />

introduzir nele a exigência de averbação da reserva legal<br />

junto à matrícula do imóvel, obrigação até então inexistente,<br />

e fez outras alterações no Código Florestal de 1965. A<br />

Medida Provisória 2.166-67/2001, introduziu inúmeras<br />

alterações no Código Florestal e impôs ao particular ônus<br />

de toda a ordem, sendo ela, ao lado dos Códigos Florestais<br />

de 1934 e de 1965, as fontes legais mais importantes a<br />

serem analisadas neste trabalho. O Novo Código Civil<br />

(2002) estabelece de maneira minuciosa as características<br />

da função social da propriedade, acentuando as restrições,<br />

limitações e a função social da propriedade.<br />

Da reserva legal florestal no Código de 1934 e<br />

anteriormente a ele<br />

Esta foi a redação dada pelo legislador de 1934 ao<br />

então polêmico artigo 23 do Decreto Federal nº 23.793/1934<br />

(Código Florestal), sendo, também interessante a<br />

transcrição do disposto no seu artigo 24:<br />

Art. 23. Nenhum proprietário de terras cobertas<br />

de matas poderá abater mais de três quartas partes da<br />

vegetação existente, salvo o disposto nos arts. 24, 31 e 52.”<br />

(Grifei)<br />

§ 1º O dispositivo do artigo não se aplica, a juízo<br />

das autoridades florestas competentes, às pequenas<br />

propriedades isoladas que estejam próximas de florestas<br />

ou situadas em zona urbana. (Grifei)<br />

§ 2º Antes de iniciar a derrubada, com a<br />

antecedência mínima de 30 dias, o proprietário dará ciência<br />

de sua intenção à autoridade competente, afim de que esta<br />

determine a parte das matas que será conservada.<br />

Art. 24. As proibições dos arts. 22 e 23 só se referem<br />

à vegetação espontânea, ou resultante do trabalho feito por<br />

conta da administração pública, ou de associações protetoras<br />

da natureza. Das resultantes de sua própria iniciativa, sem<br />

a compensação conferida pelos poderes públicos, poderá<br />

dispor o proprietário das terras, ressalvados os demais<br />

dispositivos deste código, e desapropriação na forma da<br />

lei. (Grifei)<br />

11 DUTRA, Ozório Vieira. Reserva Legal. P. 16<br />

12 MORAES, Luis Carlos Silva de. Código Florestal Comentado. P. 32.<br />

58<br />

Observa-se, desde já, que a norma se refere a terras<br />

cobertas (“terras cobertas de matas”), ou seja, a proibição<br />

alcançou apenas o desmate e a exploração de terras cobertas<br />

com matas ou cobertura florestal existentes no momento da<br />

vigência da norma, vale dizer, não eram objeto do citado<br />

artigo as terras já exploradas, mas somente aquelas com<br />

cobertura, e desde que as matas não fossem resultantes da<br />

iniciativa do proprietário.<br />

Sob outro aspecto, a par da inexistência de qualquer<br />

disciplina quanto às terras já abertas, leia-se desmatadas,<br />

além do novo limite de 75% (3/4), e da não imposição de<br />

qualquer penalidade ao proprietário que desmatou além<br />

daquele limite, existia até mesmo a p<strong>rev</strong>isão de indenização<br />

quando se tratava de florestas particulares (art. 24).<br />

Da reserva legal florestal no Código Florestal de<br />

1965 e alterações posteriores<br />

Se o Código Florestal de 1934 não trouxe grandes<br />

mudanças, a não ser a instituição da chamada quarta-parte,<br />

o Código de 1965, que lhe sucedeu, já não teve esta mesma<br />

timidez, trazendo inúmeros artigos disciplinando com<br />

maior abrangência a questão ambiental no Brasil, inclusive<br />

com a introdução da área de preservação permanente (APP),<br />

conforme menciona Luis Carlos da Silva de Moraes 12 .<br />

Embora mais amplo, é possível dizer que no seu<br />

artigo 1º, o novo Código também tem a mesma sinalização<br />

daquele que substituiu, ou seja, disciplinar a proteção<br />

das florestas existentes. De forma quase que invariável,<br />

as disposições deste novo Código sempre trabalham no<br />

sentido de proibição de exploração ou de supressão de<br />

florestas existentes.<br />

O artigo 18, por sua vez, é ainda mais claro ao<br />

indicar que o objeto das normas do novo Código eram as<br />

florestas e matas existentes. Tanto assim é verdade que<br />

p<strong>rev</strong>ê, na hipótese de florestamento ou reflorestamento de<br />

preservação permanente, o próprio poder público poderia<br />

tomar esta providência, mediante, entretanto, o pagamento<br />

de indenização se estas áreas já estiveram sendo exploradas<br />

pelo proprietário. Eis o teor na íntegra desta norma:<br />

Art. 18. Nas terras de propriedade privada, onde<br />

seja necessário o florestamento ou reflorestamento de<br />

preservação permanente, o Poder Público Federal poderá<br />

fazê-lo, se não o fizer o proprietário.<br />

§ 1º Se tais áreas estiverem sendo utilizadas com<br />

culturas, de seu valor deverá ser indenizado o proprietário.<br />

É possível, portanto, concluir, que embora o<br />

novo código tenha imposto uma restrição ainda maior ao<br />

proprietário na exploração do solo, a questão das terras já<br />

exploradas e que não constavam com coberturas florestais<br />

nos parâmetros estabelecidos no novo Código, tal como<br />

ocorreu com a legislação anterior, não foi objeto de<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


disciplina na nova legislação, ou seja, o novo código tinha<br />

como objetivo tão somente a normatização da abertura<br />

de novas áreas, leia-se novos desmatamentos, não se<br />

preocupando coma situações já consolidadas.<br />

Importante observar que o novo código, ao<br />

estabelecer os diversos percentuais p<strong>rev</strong>istos no artigo 16,<br />

menciona limite mínimo para reserva legal (20% aliena<br />

“a”) e limite máximo para a derrubada de florestas (30%<br />

alínea “b”). Este detalhe é importante porque não foi<br />

estabelecido um percentual fixo para a reserva legal, mas<br />

sim um parâmetro mínimo.<br />

Se o Código Florestal de 1934 foi um marca<br />

no estabelecimento de limitação ao desmatamento<br />

na exploração de futuras áreas, a MP 2.080/2000,<br />

posteriormente convertida na MP 2.167/2001 13 , a partir<br />

desta conversão e dos termos de sua nova redação, se<br />

traduz no ponto central de toda a celeuma jurídica que se<br />

instaurou acerca da reserva legal florestal.<br />

A obrigação do proprietário particular de ter a<br />

reserva legal florestal em seu imóvel, de acordo com os<br />

parâmetros legais (art. 16), nasce com a edição da MP 2.167<br />

de 13/06/2001, portanto, na vigência da atual Constituição<br />

Federal e somente 67 (sessenta e sete) anos após a vigência<br />

da primeira lei que instituiu a reserva legal florestal no<br />

Brasil (Código de 34).<br />

Reserva legal Florestal extra propriedade<br />

Uma das diferenças da reserva legal florestal do<br />

instituto das APP’s é que enquanto esta tem localização<br />

definida na própria lei que a criou, aquela pode ser definida<br />

pelo proprietário em qualquer área dentro do imóvel<br />

(sujeita a aprovação pelo órgão ambiental), por exclusão,<br />

por óbvio, nas áreas de APP’s.<br />

Embora tanto o Código de 1934 quanto a versão<br />

original do Código de 1965 não tenha trazido a hipótese de<br />

reserva legal florestal extra propriedade, ou seja, em outro<br />

imóvel, o artigo 44 deste último, com a redação que lhe deu<br />

a MP 2.166/01, trouxe esta possibilidade. Portanto, para os<br />

imóveis com área de reserva inferior ao fixado legalmente,<br />

a partir daquela MP tornou-se possível a formação da<br />

reserva florestal em outro imóvel. Este permissivo é para a<br />

regularização do imóvel rural e não para abertura de novas<br />

áreas.<br />

Da exploração econômica da reserva legal florestal<br />

É proibido o corte raso das árvores que<br />

compõem a reserva legal florestal. Corte raso é o termo<br />

técnico que significa cortar na base todas as árvores de<br />

uma determinada área, mas existe a possibilidade da sua<br />

exploração econômica (art. 2º do artigo 16 do Código<br />

Florestal) 14 , possibilitando ao proprietário que obtenha<br />

proveito econômico da área de reserva, mediante o corte<br />

seletivo da madeira. Contudo, este proveito econômico é<br />

muito pequeno.<br />

A pesquisadora Maria do Carmo Ramos Fasiaben<br />

da Unicamp, em sua tese de doutorado sobre o “Impacto<br />

econômico da reserva legal florestal sobre diferentes tipos<br />

de unidade de produção agropecuária”, orientada pelo<br />

professor Ademar Romeiro, do Instituto de Economia da<br />

Unicamp, fazendo um mapeamento dos remanescentes de<br />

vegetação nativa nas unidades de produção agropecuárias,<br />

conforme matéria veiculada no Jornal da Unicamp 15 ,<br />

edição de 30/08/2010 a 12/09/2010, chegou à conclusão<br />

que, dependendo da opção ou não pela exploração, bem<br />

como da cultura e das diferentes técnicas empregadas,<br />

existe uma sensível redução na renda total propiciada pelo<br />

imóvel, que varia de acordo com a cultura explorada e as<br />

técnicas empregadas entre 13% e 17%, sem contar o longo<br />

período de aplicação de recursos, até que haja o início do<br />

corte das primeiras árvores.<br />

Estas informações confirmam uma constatação<br />

que salta aos olhos mesmo do leigo, qual seja, a de que a<br />

recomposição da reserva legal florestal para aqueles que já<br />

haviam promovido a exploração da terra antes da vigência<br />

de qualquer proibição, impõe ao proprietário particular não<br />

apenas um ônus altíssimo, mas também prejuízos que se<br />

perpetuam pela perda do rendimento do imóvel.<br />

Da situação jurídica das áreas já exploradas antes dos<br />

Códigos Florestais de 1934 e 1965. Dever de recompor e<br />

averbar a reserva legal florestal<br />

Tratando-se de normas que impõem restrições<br />

aos <strong>direito</strong>s dos particulares em prol do interesse comum,<br />

considerando a evolução legislativa das normas que<br />

regulam a reserva legal florestal, e, considerando, ainda,<br />

os aspectos históricos que envolvem a exploração das<br />

terras no Brasil, é preciso que se faça a todo o momento<br />

uma consideração da situação da terra do particular nos<br />

momentos das sucessivas alterações que sofreram o<br />

instituto.<br />

Esta ilicitude ou licitude do ato de explorar o<br />

solo com cobertura florestal, somente é possível verificar a<br />

partir da consideração de duas premissas básicas. Normas<br />

ambientais vigentes nos diferentes períodos da história do<br />

Brasil e o momento no qual houve a abertura das áreas,<br />

para que se possa, a partir da consideração da legislação<br />

vigente naquele momento, estabelecer se a conduta do<br />

proprietário particular foi lícita ou ilícita.<br />

A primeira dificuldade com que nos deparamos é a<br />

<strong>rev</strong>elação de quando foi aberta a terra, que é imprescindível<br />

para a formulação do raciocínio ao qual nos propomos. O<br />

13 Ainda não votada até hoje.<br />

14 Técnicas de condução, exploração e reposição praticadas de forma sustentável visando manter a proteção e o uso sustentável da vegetação nativa e obter benefícios econômicos<br />

15 http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/agosto2010/ju473pdf/Pag03.pdf<br />

59


proprietário particular, certamente, não contará com prova<br />

documental, já que o instituto da prescrição acaba por<br />

desobrigar o arquivo de documentos de tantos anos atrás.<br />

A princípio poderíamos imaginar que voltamos ao<br />

início, pois se não houver prova de que a terra foi aberta<br />

antes do Código Florestal de 1934, ou até mesmo do<br />

Código Florestal de 1965, se o imóvel não era coberto por<br />

matas, a ilicitude seria presumida. Contudo, a história nos<br />

fornece subsídios que ajudam a resolver esta questão sem<br />

maiores dificuldades, além da existência de norma jurídica<br />

que resolve a questão.<br />

Primeiro porque, historicamente, à exceção de<br />

alguns estados cujo desenvolvimento se deu de maneira<br />

mais tardia, na maioria dos estados brasileiros a exploração<br />

da terra já havia se consumado antes mesmo do início do<br />

século XX, portanto, milita em favor do proprietário destas<br />

regiões a PRESUNÇÃO de que a terra foi aberta antes da<br />

vigência do primeiro Código Florestal. Ademais, o estado<br />

de <strong>direito</strong> consagra o princípio da inocência e da licitude<br />

dos atos, salvo se houver reconhecimento em sentido<br />

diverso em processo legal.<br />

Contudo, é na própria lei ambiental que encontramos<br />

elementos que demonstram a licitude ou ilicitude da<br />

abertura das terras no Brasil. Reportamos-nos à norma<br />

esculpida no artigo 37 do Código Florestal de 1965 (versão<br />

original), que normalmente passa despercebida por aqueles<br />

que analisam o instituto da reserva legal. Eis o teor daquela<br />

norma:<br />

Art. 37. Não serão transcritos ou averbados no<br />

Registro Geral de Imóveis os atos de transmissão “inter<br />

vivos” ou “causa mortis”, bem como a constituição de ônus<br />

reais, sobre imóveis da zona rural, sem a apresentação da<br />

certidão negativa de dívidas referentes a multas p<strong>rev</strong>istas<br />

nesta Lei ou nas leis estaduais supletivas, por decisão<br />

transitada em julgado.<br />

Embora o Código Florestal de 1965 tenha sofrido<br />

inúmeras alterações, esta norma mantém-se com a mesma<br />

redação até os dias atuais. Portanto, a partir desta norma,<br />

e considerando que todas as terras registram inúmeras<br />

alienações e onerações de toda ordem desde o período<br />

de vigência do primeiro Código Florestal, bastando para<br />

esta constatação uma análise da cadeia dominial a partir<br />

dos arquivos do registro público, é possível concluir que,<br />

se houve o registro de títulos translativos ou até mesmo<br />

qualquer outro ônus real, é porque o imóvel não foi objeto<br />

de nenhum auto de infração ambiental, notadamente no<br />

que se refere à regularidade da reserva florestal, pois que<br />

do contrário, teriam sido tomadas as medidas competentes<br />

pelo Estado visando a recomposição da reserva legal<br />

16 http://www.terra.com.br/<strong>rev</strong>istadinheirorural/edicoes/61/artigo156948-1.htm<br />

17 Milaré, Édis. P. 753.<br />

60<br />

florestal da área autuada.<br />

Quanto à aplicação da nova lei a situações já<br />

consolidadas, Fábio de O. Luchési defende que os<br />

proprietários de imóveis “tinham o <strong>direito</strong> de praticar<br />

o desmatamento na forma então regrada pela lei, e, se<br />

o fizeram, esse fato passou a constituir uma situação<br />

correspondente a <strong>direito</strong> adquirido. Como já referido,<br />

nenhuma regra de <strong>direito</strong> há que permita que a lei nova<br />

retroaja para impor aos particulares obrigação em<br />

contrário a <strong>direito</strong> que exerceram, ou que pudesse apagar<br />

os efeitos da lei que incidiu sobre fato verificado sob o seu<br />

império”. (RT-800 - <strong>junho</strong> de 2002 - 91º Ano - pág. 132).<br />

Neste sentido também é o posicionamento do Ministro<br />

Marco Aurélio de Mello do STF (Revista Dinheiro Rural,<br />

edição de nº 61, de novembro de 2009 16 ).<br />

Em sentido diverso é a doutrina de Paulo de Bessa<br />

Antunes, citado por Édis Milaré 17 , que comunga do mesmo<br />

entendimento, para quem a nova obrigação imposta aos<br />

proprietários particulares alcança também aqueles que<br />

promoveram a abertura da terra anteriormente, ainda que<br />

em conformidade com a legislação vigente à época.<br />

Embora com sensível inclinação para a<br />

confirmação da aplicação imediata da lei a todas as<br />

situações, e ao que nos parece em caráter ir<strong>rev</strong>ersível, ainda<br />

é possível encontrar na jurisprudência recentes decisões<br />

em sentido contrário (TJMG Ap. Cível 1.0694.08.046421-<br />

7/001 – in Boletim AASP 2698, p. 1897). O STJ, por sua<br />

vez, confirma o seu entendimento pela aplicabilidade<br />

imediata, ainda que se trate de terras abertas antes das<br />

restrições (RMS 18.301/MG - REsp 821.083/MG).<br />

De nossa parte, não poderíamos nos furtar à<br />

obrigação de dar o nosso entendimento e a contribuição<br />

sobre a matéria. Contudo, preferimos levar ao leitor uma<br />

visão inicial sobre a posição da doutrina e da jurisprudência.<br />

Outro não poderia ser o nosso entendimento senão a<br />

de que a aplicabilidade é imediata e alcança qualquer<br />

situação, inclusive as terras já abertas em conformidade<br />

com a legislação vigente quando da abertura. Isto decorre<br />

da própria natureza da norma ambiental, que dada a<br />

supremacia do interesse coletivo, não se coaduna com a<br />

manutenção do <strong>direito</strong> do particular em detrimento de toda<br />

a coletividade.<br />

Do <strong>direito</strong> de indenização das áreas já exploradas e<br />

do ônus da recomposição da reserva legal florestal<br />

Embora sujeito à nova legislação, isto não significa<br />

que o particular deva arcar com o ônus da recomposição<br />

da reserva legal quando promoveu a abertura da terra de<br />

forma lícita e em conformidade com a legislação vigente<br />

à época da exploração da terra. Outra questão diferente,<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


também, é o <strong>direito</strong> de indenização deste particular pela<br />

diminuição do proveito econômico do imóvel decorrente<br />

da transformação de área agricultável em área de mata.<br />

A remoção da cobertura florestal de determinada<br />

área deve ser tida como lícita quando naquele momento<br />

inexistia norma que impedia o desmatamento, enquanto que<br />

ilícito será aquele feito em desconformidade com a lei da<br />

época. Considerando que as limitações nos desmatamentos<br />

somente vieram com os Códigos Florestais de 1934 e<br />

1965, podemos afirmar, sem margem de dúvida, que todos<br />

os desmatamentos ou supressões de vegetações nativas<br />

ou naturais ocorridas antes da vigência do primeiro ou do<br />

segundo Código Florestal (1934 e 1965), dependendo do<br />

tipo de vegetação suprimida, devem ser tidas como lícitas.<br />

A questão, como já dito, é que vivemos numa<br />

sociedade caracterizada pela observância dos <strong>direito</strong>s<br />

individuais, entre eles o <strong>direito</strong> de propriedade e a justa<br />

indenização àquele que foi privado de um bem particular<br />

ou que sofreu restrição ou limitação nos seus <strong>direito</strong>s em<br />

prol de toda a comunidade. Não cabe a este particular arcar<br />

com ônus sozinho, mas tão somente na medida certa e<br />

juntamente com todos os membros da sociedade.<br />

O Professor Rui Carvalho Piva 18 , que tem uma<br />

excelente definição de bem ambiental, identificou o<br />

principal ponto de divergência existente no <strong>direito</strong> de<br />

indenização do particular, que varia de acordo com o<br />

grau de intervenção da atividade estatal no seu <strong>direito</strong>.<br />

Se o <strong>direito</strong> é integralmente suprimido, como no caso de<br />

desapropriação, ou quando há perda do objeto do <strong>direito</strong>,<br />

é pacífico o entendimento do <strong>direito</strong> de indenização do<br />

particular. Entretanto, quando o particular conserva o<br />

<strong>direito</strong> ou o bem, mas sofre restrição no seu exercício em<br />

alguns de seus aspectos em prol de interesses difusos e<br />

coletivos é que surge o problema, pois que, regra geral, as<br />

restrições e as limitações acompanham o próprio <strong>direito</strong>.<br />

A reserva legal florestal não se traduz em<br />

desapropriação, nem mesmo indireta, porquanto que o<br />

proprietário não apenas conserva a posse e a propriedade do<br />

bem, mas também lhe é permitido a exploração econômica<br />

da área. Por outro lado, não se traduz na limitação de<br />

ordem geral que não gera indenização, na medida em<br />

que seus efeitos ultrapassam aqueles tidos como normais<br />

e suportáveis pelo proprietário, tirando-lhe, de forma<br />

substancial, o exercício de um ou mais dos atributos de seu<br />

<strong>direito</strong>. De forma geral, o argumento de que o proprietário<br />

conserva a posse e o domínio do bem não se presta para<br />

negar-lhe o <strong>direito</strong> à indenização em caso de limitação<br />

imposta pelo estado.<br />

Tanto a doutrina quanto a jurisprudência não<br />

18 PIVA, Rui Carvalho. Bem Ambiental. P 123.<br />

19 STJ – 2º T. - AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1.103.185 - SC (2008/0217310-5) 09/06/2009.<br />

20 ARIMATÉA, José Rodrigues. O Direito de Propriedade. Limitações e Restrições Públicas. P. 160.<br />

21 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D23793.htm<br />

enfrentaram de forma satisfatória e objetiva a questão<br />

relativa ao <strong>direito</strong> de indenização do proprietário particular<br />

que, tendo aberto a terra quando lhe era lícito, se vê<br />

obrigado a suportar o ônus da recomposição da reserva<br />

legal e ver diminuído seu proveito econômico na área. Esta<br />

falta de abordagem direta deste assunto deve-se muito mais<br />

à maneira que este tema foi abordado até o momento do<br />

que à omissão do judiciário.<br />

Desta forma, de nossa parte entendemos que as<br />

ações dos particulares devam ser no sentido de não apenas<br />

buscar a indenização pela redução do proveito econômico,<br />

mas também para que o Poder Público arque com o<br />

ônus da implantação da reserva legal nos imóveis cujo<br />

desmatamento tenha sido lícito. Esta indenização deve ser<br />

prévia e justa, tal como p<strong>rev</strong>ista na Constituição, ou seja,<br />

primeiro o particular deve ser indenizado, para depois ser<br />

implementada a restrição ambiental. A jurisprudência dos<br />

tribunais é no sentido que, se o <strong>direito</strong> de propriedade é<br />

posterior à própria legislação que impôs a limitação, não<br />

há que se falar em <strong>direito</strong> a indenização 19 .<br />

José Rodrigues Arimatéa 20 , abordando as<br />

implicações jurídicas das restrições ambientais no <strong>direito</strong><br />

do particular e partir de decisões do Supremo Tribunal<br />

Federal, traz uma importante colaboração para análise do<br />

tema, a saber:<br />

Releva notar, ainda as implicações jurídicas, pois o<br />

proprietário estará diante do esvaziamento econômico da<br />

propriedade, o que lhe ensejaria o <strong>direito</strong> de indenização.<br />

Aliás, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do<br />

Recurso Extraordinário nº 134.297.8-SP, em 13.6.95,<br />

relatado pelo Ministro José Celso de Mello Filho, disse<br />

que: “Incumbe ao Poder Público o dever constitucional<br />

de proteger a flora e de adotar as necessárias medidas<br />

que visem a coibir práticas lesivas ao equilíbrio<br />

ambiental. Esse encargo, contudo, não exonera o Estado<br />

da obrigação de indenizar os proprietários cujos imóveis<br />

venham a ser afetados, em sua potencialidade econômica,<br />

pelas limitações impostas pela Administração Pública”.<br />

A decisão foi tomada em um caso de criação de reserva<br />

florestal, mas o argumento é aplicável também aos casos<br />

de reserva legal.<br />

Por fim, para aqueles que ainda não se<br />

convenceram do <strong>direito</strong> de indenização do proprietário<br />

particular que agiu licitamente, é possível encontrarmos<br />

nos próprios Códigos Florestais (1934 e 1965), normas<br />

que garantiam o <strong>direito</strong> de indenização daquele que havia<br />

promovido a abertura das terras em épocas passadas.<br />

61


O Código de 1934 classificou no seu artigo 3º as<br />

florestas existentes em protetoras, remanescentes, modelo<br />

e de rendimento. No artigo 4º definiu as áreas florestais<br />

consideradas protetoras, o que hoje mais se assemelha a<br />

áreas de APP’s. As remanescentes foram definidas no artigo<br />

5º, como sendo os parques públicos ou as de espécies de<br />

interesse biológico.<br />

Expostas estas premissas, é possível analisar o<br />

disposto nos artigo 11, 12 e 13 (texto original), os quais,<br />

já naquela época asseguravam ao proprietário particular<br />

atingido pela limitação, o <strong>direito</strong> de indenização. Estas<br />

foram as redações originais 21 destes artigos (sic):<br />

Art. 11. As florestas de propriedade privada,<br />

nos casos do art. 4º, poderão ser, no todo ou em parte,<br />

declaradas protectoras, por decreto do governo federal,<br />

em virtude de representação da repartição competente,<br />

ou do conselho florestal, ficando, desde logo, sujeitas ao<br />

regime deste código e à observância das determinações<br />

das autoridades competentes, especialmente quanto ao<br />

replantio, à extensão, à oportunidade e à intensidade da<br />

exploração.<br />

Paragrafo único. Caberá ao proprietário, em tais<br />

casos, a indenização das perdas e damnos comprovados,<br />

decorrentes do regimen especial a que ficar subordinado.<br />

Art. 12. Desde que reconheça a necessidade ou<br />

conveniencia, de considerar floresta remanescente, nos<br />

termos deste codigo, qualquer floresta de propriedade<br />

privada, procederá o governo federal ou local, à sua<br />

desapropriação, saIvo se o proprietario respectivo se<br />

obrigar, por si, seus herdeiros e successores, a mantel-a sob<br />

o regimen legal correspondente.<br />

Art. 13. As terras de propriedade privada, cujo<br />

florestamento, total ou parcial, attendendo à sua situação<br />

topographica, for julgado necessario pela autoridade<br />

florestal, ouvido o conselho respectivo, poderão ser<br />

desapropriadas para esse fim, se o proprietario não<br />

consentir que tal serviço se execute por conta da fazenda<br />

publica, ou se o não realizar elle proprio, de accôrdo com<br />

as instrucções da mesma autoridade.<br />

§ 1º Caso o proprietario faça o florestamento, terá<br />

<strong>direito</strong> às compensações autorizadas pelas leis vigentes.<br />

A leitura do artigo 4º, como já falamos, nos remete<br />

ao que hoje conceituamos como área de preservação<br />

permanente (APP), pois que se refere à conservação do<br />

regime de águas, a evitar erosão, a fixar dunas, etc. Com<br />

a entrada do primeiro Código Florestal elas passaram a<br />

ser consideradas florestas protetoras e, se localizadas em<br />

propriedade particular, através dos artigos 11, 12 e 13,<br />

foram assegurados aos proprietários particulares o <strong>direito</strong><br />

de indenização.<br />

62<br />

No Código Florestal de 1965 (vigente), a norma<br />

correspondente encontra-se esculpida no artigo 18, que<br />

também garante não apenas o <strong>direito</strong> de indenização do<br />

particular, mas também que o Poder Público deverá fazer<br />

o reflorestamento, se acaso assim não optar o particular. O<br />

texto legal, que não sofreu nenhuma alteração, é claro neste<br />

sentido:<br />

Art. 18. Nas terras de propriedade privada, onde<br />

seja necessário o florestamento ou o reflorestamento de<br />

preservação permanente, o Poder Público Federal poderá<br />

fazê-lo sem desapropriá-las, se não o fizer o proprietário.<br />

§ 1° Se tais áreas estiverem sendo utilizadas com<br />

culturas, de seu valor deverá ser indenizado o proprietário.<br />

§ 2º As áreas assim utilizadas pelo Poder Público<br />

Federal ficam isentas de tributação. (Grifei)<br />

Com a exposição contida neste tópico, concluímos<br />

e esperamos ter demonstrado que o proprietário que<br />

promoveu a abertura lícita das terras tem <strong>direito</strong> de<br />

indenização referente à diminuição do proveito econômico<br />

do bem decorrente da limitação ou restrição ambiental que<br />

passou a sofrer o imóvel com o advento de novas leis, e que<br />

o poder público deve arcar com todos os custos relativos à<br />

recomposição da reserva legal.<br />

Do projeto de alteração do Código Florestal<br />

Embora este b<strong>rev</strong>e estudo tenha como objeto as<br />

normas vigentes, com estudo subsidiário das normas já<br />

<strong>rev</strong>ogadas, não poderíamos deixar de abordar neste trabalho<br />

a existência do projeto de lei em trâmite no Congresso<br />

Nacional e que tem como objeto proposta de alteração do<br />

Código Florestal, porquanto que estas alterações provocam<br />

sensíveis e importantes alterações neste diploma legal.<br />

As alterações mais importantes e relacionadas ao<br />

tema em estudo dizem respeito à manutenção da exploração<br />

das terras já abertas, tratamento diferenciado para a<br />

pequena propriedade, o cômputo das Áreas de Preservação<br />

Permanente no cálculo do percentual da Reserva Legal, a<br />

instituição dos Programas de Regularização Ambiental –<br />

PRA que deverão dispor sobre a adequação dos imóveis<br />

rurais ao Código Florestal. Os Estados também passarão a<br />

legislar quanto às APP’s já exploradas.<br />

Importante observar que, diferentemente do que tem<br />

sido divulgado pela imprensa, o fato da área estar sendo<br />

explorada e aberta antes de 22/07/2008 não dispensará<br />

o proprietário da regularização e da recomposição nos<br />

percentuais estabelecidos no Código Florestal, mas<br />

apenas lhe garante a manutenção da exploração até que<br />

seja promulgado o PRA e haja adesão do produtor a ele<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


para, através de uma das formas p<strong>rev</strong>istas, regularização a<br />

reserva florestal.<br />

O artigo 15 restabelece uma norma do Código<br />

Florestal que teve vigência até a edição da MP 2.166/2001,<br />

possibilitando ao proprietário, apenas para efeito de<br />

regularização e não de abertura de novas áreas, o cômputo<br />

das áreas de APP’s na reserva legal florestal.<br />

O artigo 49 valida o que se convencionou chamar<br />

neste trabalho de desmatamento lícito, dispensando da<br />

regularização da reserva legal o proprietário rural que<br />

provar que promoveu a abertura em consonância com a<br />

legislação vigente à época da abertura da terra. Embora<br />

pareça resolver o problema, a verdade é que, ao atribuir<br />

o ônus da prova ao particular, cria um novo, porquanto<br />

Bibliografia<br />

que esta prova, a nosso ver dispensável se inexistir auto de<br />

infração lavrado contra o produtor (princípio da inocência),<br />

trará inúmeras discussões.<br />

Abstract: This paper aims to study the controversial<br />

aspects of the institution of the legal reserved forest,<br />

notably regarding what we call in this paper as lawful and<br />

unlawful deforestation, which are very important issues<br />

related to the development of its consequences in the legal<br />

field for the rights of an individual.<br />

Key words: Reserved forest. Legal reserved forest.<br />

Environmental laws and regulations. Administrative<br />

laws and regulations. Lawful deforestation. Unlawful<br />

deforestation. Forestry Code.<br />

ARIMATÉA, José Rodrigues. O <strong>direito</strong> de propriedade: limitações e restrições públicas. Franca: Lemos e Cruz Livraria<br />

e Editora, 2003.<br />

DINIZ, Maria Helena. Curso de <strong>direito</strong> civil brasileiro: <strong>direito</strong> das coisas. 22. Ed. São Paulo, Saraiva, 2007.<br />

DUTRA, Ozório Vieira. Reserva Legal. São Borja: Editora Conceito, 2009.<br />

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (org.). Função social no <strong>direito</strong> civil. São Paulo: Editora Atlas. 2007.<br />

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.<br />

MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.<br />

MORAES, Luíz Carlos Silva da. Código florestal comentado. 4. ed. São Paulo: editora Atlas, 2009.<br />

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. Vol IV.<br />

PIVA, Rui Carvalho. Bem Ambiental. São Paulo: Editora Max Limonad, 2000.<br />

ROLIM, Luiz Antônio. Instituições de <strong>direito</strong> romano. São Paulo: RT, 2000.<br />

SILVA, Américo Luís Martins. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais. São Paulo; Ed. Revista dos<br />

Tribunais, 2005. v. 2.<br />

63


64<br />

Mudanças climáticas e florestas: histórico das negociações, impasses e<br />

perspectivas em relação à implementação de mecanismos de REDD<br />

LÍVIA MENEZES PAGOTTO<br />

Pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces) da Fundação Getulio Vargas. Mestranda em<br />

Environmental Governance pela Universidade de Freiburg (Alemanha). Bolsista do DAAD pelo programa<br />

Postgraduate course with special relevance to developing countries. Especialista em Meio Ambiente,<br />

Desenvolvimento Sustentável e Questões Globais pela FAAP. Graduada em Ciências Sociais pela PUC-SP.<br />

Resumo: Este artigo pretende debater os desafios que se colocam na discussão contemporânea sobre a adoção dos<br />

mecanismos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD), por meio de uma análise<br />

do contexto de seu surgimento e das perspectivas reais de sua adoção. Os mecanismos de REDD surgiram como um<br />

dos instrumentos de mitigação das conseqüências danosas causadas pelas mudanças climáticas em todo o planeta. A<br />

bibliografia utilizada foi reunida essencialmente a partir de documentos online, extraídos de sites oficiais e fontes primárias.<br />

Concluiu-se que as iniciativas de REDD podem resultar em um duplo benefício, que contribui de forma significativa<br />

para o desenvolvimento sustentável: a mitigação dos efeitos das emissões de Gases de Efeito Estufa na atmosfera e a<br />

conservação e uso sustentável dos recursos florestais, por meio da contenção do desmatamento e da degradação florestal.<br />

Palavras-Chave: Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Questões Globais. Mudança do Clima. Emissões por<br />

desmatamento. Florestas. Desmatamento. Degradação ambiental. Conservação Florestal.<br />

Introdução<br />

As alterações climáticas são a questão central do<br />

desenvolvimento humano para a nossa geração. Com<br />

desenvolvimento pretende-se, em última análise, expandir<br />

o potencial humano e fomentar a liberdade humana.<br />

As pessoas procuram desenvolver capacidades que as<br />

possibilitem fazer escolhas e ter uma vida que valorizem.<br />

As alterações climáticas ameaçam corroer a liberdade<br />

humana e limitar o poder de escolha.<br />

(PNUD, Relatório de Desenvolvimento Humano<br />

2007-2008)<br />

Este artigo 1 pretende apresentar ao leitor uma visão<br />

geral dos desafios, impasses, oportunidades e perspectivas<br />

relacionados à construção de um consenso sobre a definição,<br />

as formas de implementação e o futuro das iniciativas de<br />

Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação<br />

Florestal (REDD).<br />

Os mecanismos de REDD foram propostos em<br />

meio a discussões sobre o regime climático internacional<br />

em sua relação com o acelerado processo de desmatamento<br />

e degradação florestal, fenômenos responsáveis por um<br />

grande volume de emissões de Gases de Efeito Estufa<br />

(GEE). Hoje, as iniciativas de REDD não têm importância<br />

somente na mitigação das emissões de GEE – que provocam<br />

o aquecimento global –, mas podem também contribuir<br />

para o desenvolvimento sustentável 2 , propiciando a<br />

conservação da biodiversidade, dos recursos hídricos e<br />

de solo, e o respeito ao patrimônio histórico e cultural dos<br />

povos da floresta.<br />

Ao longo da década dos 1990, as emissões<br />

provenientes do desmatamento chegaram a 5,8 bilhões de<br />

toneladas de carbono ao ano, respondendo assim por 18%<br />

do total das emissões globais do período (IPCC, 2007, p.<br />

36).<br />

A agenda internacional do meio ambiente e a<br />

questão florestal<br />

O Direito Internacional do Meio Ambiente rege as<br />

questões relacionadas às florestas desde a década de 1990. O<br />

assunto foi abordado de forma mais significativa na agenda<br />

de negociações da Conferência das Nações Unidas sobre<br />

Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD) 3 realizada em<br />

1992, na cidade do Rio de Janeiro. Nesta ocasião, não foi<br />

aprovada uma convenção sobre florestas, mas foi aprovada<br />

1 Este artigo é derivado da monografia apresentada pela autora no curso de pós-graduação lato sensu “Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Questões Globais”, da FAAP, em fevereiro de 2011.<br />

2 O conceito de desenvolvimento sustentável adotado tem referência no Relatório Brundtland, documento intitulado “Nosso futuro comum” e finalizado em 1987 pela Comissão Mundial sobre Meio<br />

Ambiente e Desenvolvimento. De acordo com o relatório, desenvolvimento sustentável é “o desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das<br />

gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades”. Disponível em . Acesso em 12dez. 2010.<br />

3 Durante a Conferência (também conhecida por Rio 92, Eco 92 e Cúpula da Terra), foram aprovados os seguintes acordos: i) Agenda 21 (um programa para ação global para todas as áreas do<br />

desenvolvimento sustentável), disponível em < http://www.un.org/esa/dsd/agenda21/>; ii) A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e; iii) a Declaração de Princípios sobre as<br />

Florestas (um documento com princípios sobre gestão, conservação e desenvolvimento sustentável das florestas, disponível em ).<br />

Além disso, foram assinadas duas Convenções legalmente vinculantes: i) a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas e ii) a Convenção sobre a Diversidade Biológica, disponível em . Acesso em 07ago. 2010.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


a Agenda 21 - um dos principais resultados produzidos<br />

pela Conferência - com um capítulo específico sobre<br />

desmatamento 4 (Capítulo 11, Seção II – “Combatendo o<br />

desmatamento”).<br />

Também durante a CNUMAD, foi aprovada a<br />

Declaração de Princípios sobre Florestas. Este documento<br />

é genérico e não legalmente vinculante, mas representa<br />

um “primeiro consenso global sobre florestas” (UNITED<br />

NATIONS, 1992d). No texto, a questão florestal<br />

é “relacionada a um amplo espectro de questões e<br />

oportunidades ambientais e de desenvolvimento, incluindo<br />

o <strong>direito</strong> ao desenvolvimento com bases sustentáveis”.<br />

A CNUMAD resultou ainda em outro compromisso<br />

internacional de extrema relevância: a Convenção<br />

sobre Diversidade Biológica. Esse documento trata da<br />

biodiversidade global de forma abrangente, incluindo entre<br />

as suas preocupações a questão dos recursos florestais e de<br />

seu uso sustentável.<br />

Em 2000, a Organização das Nações Unidas<br />

(ONU) estabeleceu os conhecidos Objetivos de<br />

Desenvolvimento do Milênio (ODM), a serem atingidos até<br />

2015. Para alcançar suas metas, o ODM de nº 7 (“Garantir a<br />

sustentabilidade ambiental”) sugere o uso de um indicador<br />

específico sobre florestas, desmatamento e sua relação<br />

com o aquecimento global (“Reduzir o desmatamento<br />

para diminuir as emissões de gases de efeito estufa”).<br />

A segunda meta do mesmo ODM trata do problema nos<br />

seguintes termos: “reduzir a perda de diversidade biológica<br />

e alcançar, até 2010, uma redução significativa na taxa de<br />

perda” 5 (UNITED NATIONS, 2010).<br />

Por fim, em sua reunião de 2007, a Assembléia<br />

Geral da ONU, por meio de sua Resolução 62/98 6 ,<br />

estabeleceu quatro objetivos relativos às florestas, a serem<br />

alcançados também até 2015. Esses objetivos são:<br />

(i) <strong>rev</strong>erter a perda da cobertura florestal no mundo<br />

por meio de manejo florestal sustentável, incluindo<br />

proteção, restauração, florestamento e reflorestamento 7 , e<br />

aumentar os esforços para p<strong>rev</strong>enir a degradação florestal;<br />

(ii) fortalecer benefícios econômicos, sociais e ambientais<br />

baseados nas florestas, incluindo a melhoria nos meios<br />

de vida das populações delas dependentes; (iii) aumentar<br />

significativamente a área de proteção florestal no mundo<br />

e as áreas de manejo florestal sustentável, assim como a<br />

proporção de produtos provenientes de manejo florestal<br />

sustentável 8 (UNITED NATIONS, 2008).<br />

No ano de 2010, 31% da área total da cobertura<br />

terrestre era ocupada por florestas. Do total da cobertura,<br />

36% eram caracterizados como florestas primárias<br />

(florestas com espécies nativas sem sinais de atividade<br />

antrópica e/ou sistemas ecológicos significativamente<br />

alterados), 57% como florestas naturalmente regeneradas<br />

e 7% como florestas plantadas (FAO, 2010, p. 5).<br />

As razões propulsoras do desmatamento são<br />

diversas. Atualmente, o principal motivo para a conversão<br />

de florestas em áreas desmatadas é a abertura de novas<br />

áreas para culturas agrícolas, devido à demanda por<br />

comida, ao interesse por determinadas terras férteis e<br />

também aos conflitos ligados a <strong>direito</strong>s de propriedades<br />

rurais. Além disso, a ocupação antrópica com finalidades<br />

de assentamento humano, construção de infraestrutura e<br />

mineração também provoca o desmatamento (FAO, 2010,<br />

p. 3).<br />

A degradação florestal também pode ser provocada<br />

por diferentes razões e, dependendo de sua gravidade,<br />

pode induzir um processo de desmatamento. Mais uma<br />

vez, a ação antrópica é a principal dessas causas, incluindo<br />

(i) a exploração exarcebada das florestas por meio, por<br />

exemplo, do corte de madeira erroneamente praticado e;<br />

(ii) incêndios reincidentes. Causas naturais, como pestes e<br />

doenças, também podem causar a degradação florestal.<br />

A redução de áreas florestais por desmatamento<br />

e degradação florestal provoca conseqüências graves,<br />

como (i) a diminuição de diversidade biológica; (ii) a<br />

perda de recursos (madeireiros e não-madeireiros); (iii) a<br />

desestabilização dos serviços ambientais (conservação do<br />

solo e dos recursos hídricos, por exemplo) e; (iv) o aumento<br />

das emissões de carbono na atmosfera, provocado pela<br />

perda da capacidade de armazenar e seqüestrar carbono, e<br />

também porque há a soltura de GEE na atmosfera devido à<br />

queima das florestas (FAO, 2010, p. 4) 9 .<br />

Admite-se que as funções florestais sejam,<br />

principalmente (i) conservação da biodiversidade; (ii)<br />

regulação dos ciclos hidrológicos; (iii) abrigo para a fauna;<br />

(iv) proteção dos solos e dos recursos hídricos; (v) produtos<br />

madeireiros e não-madeireiros e; (vi) conservação dos<br />

modos de vida das populações indígenas e tradicionais<br />

e do patrimônio e dos valores histórico e cultural (FAO,<br />

2010). Além disso, entre os serviços ambientais prestados<br />

pelas florestas, há aqueles que estão relacionados ao<br />

ciclo do carbono e à capacidade da “floresta em pé” de<br />

contribuir para a estabilização do clima e a desaceleração<br />

de sua mudança. O incentivo econômico para promover<br />

a conservação das florestas e a redução das emissões de<br />

carbono está cada vez mais relacionado, uma vez que hoje<br />

4 O texto ressalta a importância dos recursos florestais “tanto para o desenvolvimento como para preservação do meio ambiente global”, por sua potencialidade de geração de empregos, amenização da<br />

pobreza e fornecimento de produtos valiosos.<br />

5 Para informações sobre os ODM, acessar < http://www.un.org/millenniumgoals/>. Acesso em 02maio 2010.<br />

6 Disponível em . Acesso em 01nov. 2010.<br />

7 Florestamento: é a conversão diretamente induzida pelo homem de terreno que não foi floresta por um período de pelo menos pelo menos 50 anos para floresta, através da plantação, semeadura, ou<br />

promoção induzida pelo homem de fontes naturais de sementes. Reflorestamento: é a conversão diretamente induzida pelo homem de terreno não florestal para terreno florestal da plantação, semeadura,<br />

ou promoção induzida pelo homem de fontes naturais de sementes, em terreno que foi floresta, mas que foi convertido para não floresta.<br />

8 Tradução da autora. Original disponível em . Acesso em 03fev. 2010.<br />

9 A título de exemplo do impacto dos efeitos do desmatamento na biodiversidade, a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), um dos documentos resultantes da Rio-92, estima que a aceleração<br />

do desmatamento e a conversão das florestas para outros usos tem forte impacto na biodiversidade mundial e contribui para a redução do número de espécies em cerca de 30% ou mais, retalhando, por<br />

exemplo os corredores ecológicos utilizados por diversas espécies para migração e deslocamento (UNITED NATIONS, 1992b).<br />

65


é reconhecido que o desmatamento é uma das principais<br />

causas para o aquecimento global. O Banco Mundial<br />

aponta que 1,6 bilhões de pessoas no mundo dependem, em<br />

algum nível, das florestas para a sua sob<strong>rev</strong>ivência (UNEP;<br />

FAO; UNFF apud WORLD BANK, 2009, p. 14).<br />

Mudanças climáticas e o setor florestal<br />

Entre as suas várias funções, as florestas<br />

desempenham papel fundamental no contexto climático<br />

mundial. Se mantidas em pé e conservadas, elas preservam<br />

sua capacidade de capturar e armazenar carbono; se sofrem<br />

desmatamento e degradação florestal, há emissão de gás<br />

carbônico provocada pela queima ou por sua debilidade<br />

em capturar este gás, contribuindo para o aumento de GEE<br />

na atmosfera. Sabe-se que atualmente 18% das emissões<br />

globais de GEE são provenientes do desmatamento e da<br />

mudança do uso do solo (IPCC, 2007, p. 36).<br />

A principal iniciativa da ONU, que disciplina a<br />

questão climática, é a Convenção-Quadro das Nações<br />

Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC 10 ). Assinada<br />

em 1992, durante a Rio 92, entrou em vigor em 1994.<br />

Desde 1995 são realizadas anualmente as Conferências<br />

das Partes (COP) para discutir os progressos e entraves dos<br />

objetivos da Convenção.<br />

A CQNUMC dividiu as suas Partes signatárias em<br />

dois grupos: países do Anexo I e países não pertencentes<br />

ao Anexo I. Segundo o texto (UNITED NATIONS, 1992c,<br />

Artigo 4.2), os países listados no Anexo I, isto é, nações<br />

desenvolvidas e em transição para uma economia mercado,<br />

comprometem-se a, entre outras atividades, a adotar<br />

políticas nacionais e medidas de mitigação da mudança<br />

do clima por meio do estabelecimento de limites para a<br />

emissão de GEE, individualmente ou em cooperação com<br />

outras Partes.<br />

Para os países não Anexo I – em desenvolvimento<br />

– ficou definido que devem implantar programas nacionais<br />

de mitigação e elaborar seus respectivos inventários<br />

nacionais de emissões de carbono.<br />

O Protocolo de Quioto 11 é o mais importante<br />

instrumento da CQNUMC. Formulado em 1997 durante a<br />

COP-3, entrou em vigor em julho de 2001 e estabelece para<br />

os países desenvolvidos (Anexo I) metas e compromissos<br />

relativos à redução das emissões de GEE (UNFCCC, 1997,<br />

Artigo 25.1) em pelo menos 5% no primeiro período de<br />

compromisso – 2008 e 2012–, em comparação com níveis<br />

verificados no ano de 1990 (UNFCCC, 1997, Artigo<br />

3.1).<br />

66<br />

Para que as Partes da Convenção atinjam<br />

suas metas de redução de emissões de GEE até 2012, o<br />

Protocolo de Quioto estabeleceu os chamados mecanismos<br />

de flexibilização, permitindo aos países alcançarem parcela<br />

de suas metas por meio de transações de créditos de carbono<br />

relacionadas a ações realizadas fora de seu território 12 .<br />

Um deles, o Mecanismo de Desenvolvimento<br />

Limpo (MDL), foi pensado para estimular a redução<br />

de emissões de uma forma economicamente viável<br />

para os países do Anexo I que não conseguem alcançar<br />

domesticamente sua meta de redução de emissões de GEE.<br />

Eles passam a poder recorrer à compra de créditos de<br />

carbono derivadas de projetos locais realizados em países<br />

em desenvolvimento, desde que seus projetos contribuam<br />

para redução ou captura de emissões de GEE nestes<br />

locais e assim também impulsionem um desenvolvimento<br />

sustentável.<br />

Um dos tipos de projetos aceitos são as ações de<br />

florestamento e reflorestamento em áreas degradadas<br />

(incluído nas iniciativas de MDL durante a COP-7,<br />

realizada em 2001, por meio do Acordo de Marraquesh)<br />

(UNFCCC), de forma restrita ao mercado obrigatório de<br />

carbono 13 (LAMY; MERTENS; MOUTINHO, S/d, p. 6).<br />

As emissões evitadas de desmatamento foram excluídas da<br />

regulamentação do MDL (mecanismo baseado em projetos)<br />

principalmente por que haveria “risco de vazamento ou<br />

leakage (emissões evitadas em um determinado lugar<br />

acabam ocorrendo em outro)” Além disso, poderia haver a<br />

“super oferta de créditos, o que jogaria o preço do crédito<br />

de carbono para baixo” (MONZONI, 2009).<br />

Paralelamente ao mercado obrigatório de<br />

carbono, existe um mercado voluntário. Este é aplicado<br />

nas negociações de créditos de carbono realizadas por (i)<br />

empresas que não possuem metas atreladas ao Protocolo<br />

de Quioto e, por isso, são consideradas ações voluntárias e;<br />

(ii) governos locais que, por iniciativa própria, resolveram<br />

reduzir suas emissões. O mercado voluntário possui<br />

participação de 3% no cenário global de carbono.<br />

A redução de emissões de carbono causadas pelo<br />

desmatamento e pela degradação florestal em países em<br />

desenvolvimento (REDD) foi criada como iniciativa nãooficial<br />

e paralela às negociações no âmbito do Protocolo<br />

de Quioto, colocando-se em alguns mercados voluntários<br />

de crédito de carbono, como o Chicago Exchange e o<br />

Voluntary Carbon.<br />

10 United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC, sigla em inglês). Informações disponíveis no site . Versão em português disponível em . Acesso em 23jul. 2010.<br />

11 O Protocolo de Quioto pode ser lido na íntegra nos seguintes sites: , para o texto em português, e ,<br />

para o texto em inglês. Acesso em 04jun. 2010.<br />

12 São três os principais mecanismos de flexibilização: Emission trading, Joint implementation e Clean Development Mechanism (CDM, sigla em inglês, ou Mecanismo de Desenvolvimento Limpo –<br />

MDL), definido no Artigo 12 do Protocolo. Para as negociações entre países do Anexo I, podem ser aplicados o ET ou o JI.<br />

13 Decisão 11/CP.7, elaborada na COP-7 em 2001 na cidade de Marraquesh. Disponível em . Acesso em 13set. 2010.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


Histórico das negociações dos mecanismos de REDD<br />

A criação de um mecanismo de incentivo à redução<br />

de emissões provenientes de desmatamento em países em<br />

desenvolvimento foi discutida, pela primeira vez, em 2005,<br />

durante a COP-11 realizada em Montreal, no Canadá.<br />

Encabeçada pelos países Papua Nova Guiné e Costa Rica 14<br />

e motivada pelo aumento do desmatamento mundial, a<br />

proposta foi apoiada por um grupo de países, entre eles o<br />

Brasil. À época, o mecanismo restringiu-se à redução de<br />

emissões provenientes somente do desmatamento, sendo<br />

chamada assim de REDD.<br />

Para dar andamento à proposta resultante da COP-<br />

11, os países interessados na iniciativa comprometeramse<br />

a elaborar contribuições nacionais relativas ao<br />

funcionamento do REDD e apresentá-las nos próximos dois<br />

anos. Desde então, o Órgão Subsidiário de Assessoramento<br />

Científico e Tecnológico da Convenção-Quadro das<br />

Nações Unidas sobre Mudança do Clima (SBSTA, sigla em<br />

inglês 15 ) encarregou-se pela compilação dos documentos<br />

apresentados neste período.<br />

Na COP-12, realizada em 2006 no Quênia, o<br />

aspecto da degradação florestal foi incorporado à questão<br />

de RED, principalmente para contemplar a realidade dos<br />

países africanos, que usualmente realizam mais corte raso<br />

de árvores do que a retirada total da vegetação original 16 .<br />

Assim um novo “D” foi incorporado à sigla, tornando-se<br />

esta “REDD”.<br />

No ano seguinte, foi estabelecido o Plano de Ação<br />

de Bali 17 . Por meio deste documento, foi estabelecido que<br />

medidas nacionais e internacionais deveriam ser tomadas<br />

visando, entre outras ações, a<br />

Criação de políticas e incentivos positivos com<br />

relação a questões referentes à redução de emissões<br />

provenientes do desflorestamento e da degradação<br />

florestal nos países em desenvolvimento; e o papel da<br />

conservação, do manejo sustentável das florestas e do<br />

aumento dos estoques de carbono das florestas nos países<br />

em desenvolvimento 18 (UNFCCC, 2007a). [Tradução da<br />

autora]<br />

Com o intuito de especificar a questão relativa à<br />

REDD, foi desenvolvido um outro documento – a Decisão<br />

2/CP.13 19 – que reuniu as resoluções a respeito do tema.<br />

Denominada “Reducing emissions from deforestation in<br />

developing countries: approaches to stimulate action”,<br />

esta Decisão reconhece (i) a contribuição das emissões<br />

provenientes do desmatamento e da degradação florestal<br />

para as emissões antrópicas de Gases de Efeito Estufa; (ii)<br />

a degradação florestal como fator gerador de emissões; (iii)<br />

a realização de ações já em andamento que objetivam a<br />

redução do desmatamento e a promoção da manutenção e<br />

conservação de estoques de carbono florestais em países<br />

em desenvolvimento; (iv) a necessidade da disponibilidade<br />

de recursos p<strong>rev</strong>isíveis e constantes para financiar as ações<br />

de combate ao desmatamento e à degradação florestal; (v)<br />

que as necessidades das comunidades locais e indígenas<br />

devem ser consideradas no desenvolvimento de projetos<br />

REDD; entre outros.<br />

Com base nestes reconhecimentos, a Conferência<br />

convidou, por meio da mesma decisão, as Partes da<br />

Convenção a (i) intensificarem os esforços para reduzir as<br />

emissões provenientes do desmatamento e da degradação<br />

florestal de forma voluntária; (ii) apoiarem – se assim o<br />

puderem – a capacitação e assistência técnica, facilitarem<br />

a transferência de tecnologia especialmente nos campos<br />

do monitoramento e reporting das emissões derivadas do<br />

desmatamento e da degradação florestal; (iii) analisarem<br />

possibilidades de ações e empreenderem esforços para lidar<br />

com os vetores do desmatamento em âmbito nacional; (iv)<br />

mobilizarem recursos para apoiar os esforços de redução<br />

das emissões derivadas do desmatamento e da degradação<br />

florestal; utilizarem as diretrizes de relato mais recentes;<br />

(vi) solicitarem ao SBSTA um programa de trabalho sobre<br />

questões metodológicas; entre outros (UNFCCC, 2007b).<br />

É importante notar que os aspectos de conservação,<br />

manejo sustentável e aumento dos estoques de carbono<br />

das florestas são incluídos nestas decisões, o que significa<br />

mais um avanço em relação à amplitude que os projetos de<br />

REDD podem potencialmente atingir. Desta forma, a sigla<br />

REDD tornou-se REDDplus, ou REDD+ 20 .<br />

Depois desta série de resoluções firmadas<br />

desde a COP-13, as partes da CQNUMC desenvolveram<br />

intenso trabalho de reflexão e elaboração de propostas e<br />

encaminhamentos até a COP-15 21 .<br />

14 Estes dois países fazem parte e tiveram o apoio da Coalizão das Nações com Florestas Tropicais, organização intergovernamental que reúne diversos países em desenvolvimento com florestas tropicais.<br />

Informações disponíveis em < http://www.rainforestcoalition.org/eng/>. Acesso em 11out. 2010.<br />

15 Além do Subsidiary Body for Scientific and Technological Advice, órgão dedicado aos assuntos científicos e tecnológicos da CQNUMC, existe o Subsidiary Body for Implementation (SBI, criado para<br />

auxiliar na avaliação e cumprimento das decisões da Convenção.<br />

16 Informação disponível em . Acesso em 02out. 2010.<br />

Existe uma diferença entre a perda de estoque de carbono ocorrida por desmatamento em uma floresta intacta e uma floresta já ambientalmente degradada. Esta última floresta, por sua degradação, possui<br />

menos carbono armazenado.<br />

17 O Plano de Ação ou Mapa do Caminho de Bali foi a principal decisão da COP-13 (2007). O documento objetivou intensificar o ritmo de implementação da CQNUMC, principalmente por causa<br />

dos resultados apresentados pelo IPCC em seu Quarto Relatório de Avaliação (disponível em ). O documento definiu temas que<br />

deveriam ser discutidos e acordadas até a COP-15. O Mapa do Caminho de Bali na íntegra está disponível em . Acesso em 12jul. 2010.<br />

18 Disponível em disponível em . Acesso em 12jul.2010.<br />

19 Disponível em . Acesso em 10out. 2010.<br />

20 Hoje, algumas instituições já discutem a “versão REDD++”, que pressupõe a inclusão de atividades de florestamento e reflorestamento. Entretanto, como a discussão é bastante preliminar, esse ponto<br />

não será abordado neste trabalho.<br />

21 Informações completas sobre as reuniões e decisões da COP-15 estão disponíveis no endereço eletrônico . Acesso em 09out. 2010.<br />

67


As resoluções pactuadas entre as Partes<br />

durante a COP-15 no que diz respeito especificamente<br />

a REDD+ (Sessão 6) foram apresentadas no Acordo de<br />

Copenhague 22 . Nele, há o reconhecimento do papel crucial<br />

das reduções de emissões derivadas do desmatamento e<br />

da degradação florestal, e ainda a necessidade de reforçar<br />

as remoções de GEE pelas florestas. Além disso, o texto<br />

afirma a necessidade de incentivos positivos para as ações<br />

de redução de desmatamento e degradação florestal e a<br />

inclusão imediata de ações de conservação e manejo de<br />

florestas (REDD+), de forma a mobilizar capital financeiro<br />

nos países desenvolvidos (UNFCCC, 2009a).<br />

O financiamento para que países em<br />

desenvolvimento realizem ações de REDD+ também<br />

está p<strong>rev</strong>isto no Acordo de Copenhague (Sessão 8, junto<br />

com ações de mitigação, adaptação, desenvolvimento e<br />

transferência de tecnologia e construção de capacidades).<br />

Para tanto, os países desenvolvidos devem reforçar seus<br />

compromissos de prover novos e adicionais recursos – o<br />

Copenhagen Green Climate Fund, alcançando a somatória<br />

de US$ 30 bilhões para o período entre 2010 e 2012, e a<br />

mobilização de US$ 100 bilhões até 2020 para encaminhar<br />

projetos, programas, políticas e outras atividades em países<br />

em desenvolvimento.<br />

Assim, apesar de não ter sido estabelecido um<br />

acordo legalmente vinculante ao final da COP-15, as<br />

discussões sobre REDD+ avançaram de forma expressiva<br />

no que diz respeito à inclusão no mecanismo de ações<br />

de conservação e manejo florestal. Em documento<br />

não consensuado, produzido ao final da conferência 23 ,<br />

iniciativas de REDD+ foram contempladas (as resoluções<br />

foram negociadas por todos os países, mas não houve<br />

acordo por consenso, sendo finalizado, assim, uma “draft<br />

decision”). O texto diz que os países em desenvolvimento<br />

devem contribuir por meio de ações de mitigação no setor<br />

florestal que envolve as seguintes atividades: (i) redução<br />

de emissões oriundas de desmatamento; (ii) redução de<br />

emissões oriundas de degradação florestal; (iii) conservação<br />

de estoques de carbono florestal; (iv) manejo sustentável<br />

de florestas e; (v) intensificação dos estoques de carbono<br />

florestal (UNFCCC, 2009c).<br />

É importante ressaltar que as iniciativas de<br />

REDD+, de acordo com a decisão, são voluntárias, devem<br />

ser implementadas conforme as capacidades de cada<br />

país e ser consistentes com as metas de desenvolvimento<br />

sustentável nacionais e com as respectivas necessidades<br />

de adaptação, promover o manejo sustentável das florestas<br />

68<br />

e ser integradas às Ações de Mitigação Nacionalmente<br />

Apropriadas (NAMAS) 24 .<br />

Além disso, é pressuposto na implementação de<br />

ações de REDD+ a sua complementaridade em relação<br />

aos programas florestais nacionais, a governança florestal<br />

transparente e efetiva, o respeito pelos conhecimentos e<br />

<strong>direito</strong>s dos povos indígenas e tradicionais, a participação<br />

ampla das partes interessadas e a consistência das ações em<br />

relação à conservação da biodiversidade.<br />

Outro importante documento relacionado aos<br />

resultados da COP-15 diz respeito à questões metodológicas<br />

para atividades relacionadas à iniciativas de REDD+ 25 . A<br />

decisão requisita junto aos países em desenvolvimento e<br />

que são Partes da CQNUMC a (i) identificar vetores do<br />

desmatamento e da degradação florestal e que resultam<br />

em emissões de GEE e os meios para encaminhá-los; (ii)<br />

identificar atividades nacionais que promoveram a redução<br />

de emissões e o aumento de remoções e estabilização<br />

de estoques de carbono florestal; (iii) utilizar os guias e<br />

diretrizes mais recentes do IPCC para estimar as emissões<br />

florestais antrópicas de GEE e; (iv) estabelecer, de acordo<br />

com a capacidade e circunstâncias nacionais, sistemas<br />

robustos e transparentes de monitoramento das áreas<br />

florestais nacionais.<br />

Impasses, perspectivas e desafios para a<br />

implementação de mecanismos de REDD<br />

As vantagens e oportunidades derivadas de ações<br />

de REDD vêm sendo apontadas de forma recorrente, e elas<br />

se resumem principalmente a: (i) combater o aquecimento<br />

global a um menor custo; (ii) promover incentivos à<br />

conservação da biodiversidade; (iii) garantir a proteção aos<br />

<strong>direito</strong>s dos povos indígenas e comunidades tradicionais<br />

que vivem e dependem das florestas, melhorando suas<br />

condições socioeconômicas e valorizando seu papel de<br />

agentes históricos que tem contribuído para a conservação<br />

da floresta em pé (IPAM).<br />

Entretanto, tão importante quanto os pontos<br />

positivos é a consideração dos principais desafios para<br />

a implementação de iniciativas de REDD. Eles são<br />

vinculados a dois aspectos principais: metodológicos e<br />

políticos (FARIA, 2010, p. 105, apud ALVARADO &<br />

WERTZ-KANOUNNIKOFF, 2007, p. 10).<br />

As questões metodológicas envolvem os seguintes<br />

pontos: adicionalidade, abrangência territorial, vazamento,<br />

linha de base, monitoramento e financiamento. O aspecto<br />

político está relacionado ao caráter complementar que<br />

22 O principal resultado da COP-15 foi o Acordo de Copenhague, documento não legalmente vinculante, cujas determinações incluíram, entre outros pontos, um acordo entre as partes a respeito da<br />

necessidade de realização de ações a fim de limitar o aumento da temperatura até em 2oC. Disponível em . Acesso em 05out. 2010.<br />

23 Draft decision -/CP.15: Policy approaches and positive incentives on issues relating to reducing emissions from deforestation and forest degradation in developing countries; and the role of<br />

conservation, sustainable management of forests and enhancement of forest carbon stocks in developing countries. Disponível em .<br />

Acesso em 10out. 2010.<br />

24 As NAMAS (da sigla em inglês Nationally Appropriate Mitigation Actions) são iniciativas direcionadas aos países em desenvolvimento, com o objetivo de intensificar as ações nacionais de mitigação<br />

e adaptação no contexto das mudanças climáticas. As NAMAS incluem iniciativas de REDD, e esta ação pode ser aplicada no Brasil, por exemplo, já que este país é florestal e a maior parte de suas<br />

emissões é derivada do desmatamento e mudança no uso do solo. Assim, se o Brasil adotar iniciativas de REDD, estará assumindo compromissos com a alteração do perfil de suas emissões de GEE<br />

“atacando” justamente a sua maior fonte doméstica emissora de GEE.<br />

25 Recomendações do SBSTA – Draft decision [-/CP.15]: Methodological guidance for activities relating to reducing emissions from deforestation and forest degradation and the role of conservation,<br />

sustainable management of forests and enhancement of forest carbon stocks in developing countries. Disponível em . Acesso em 03jan. 2011.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


as ações de REDD devem ter em relação aos esforços<br />

domésticos de redução de emissões no âmbito dos<br />

países em desenvolvimento, visando ao investimento em<br />

tecnologias limpas.<br />

Além destes dois pontos, é preciso destacar os<br />

aspectos sociais e de desenvolvimento que as iniciativas<br />

de REDD precisam considerar, principalmente no que diz<br />

respeito à participação dos atores locais na governança e na<br />

construção de políticas e projetos de REDD.<br />

No contexto dos projetos de REDD, a efetividade<br />

das ações e a remuneração a elas atreladas têm fundamento<br />

na diminuição dos fluxos de CO2 das florestas para a<br />

atmosfera, de forma a reduzir as emissões derivadas<br />

do desmatamento (FATHEUER, S/d apud UNION OF<br />

CONCERNED SCIENTISTS).<br />

Este ponto dialoga com a questão da adicionalidade<br />

que deve ser comprovada na elaboração, implementação e<br />

monitoramento das iniciativas de REDD, ou seja, “referese<br />

à necessidade de assegurar que projetos resultarão em<br />

reduções de emissões incrementais, que não teriam sido<br />

alcançadas na ausência do projeto” (FARIA, 2010, p.<br />

112). Assim, se não há benefício adicional e relacionado<br />

à mitigação do aquecimento global no que diz respeito<br />

ao fluxo de carbono das florestas, não há razão para que<br />

esta medida seja incluída nas negociações de REDD<br />

(FATHEUER, S/d apud UNION OF CONCERNED<br />

SCIENTISTS).<br />

Outra questão está relacionada à abrangência<br />

territorial das ações de REDD. Isto significa questionar se<br />

somente ações nacionais serão validadas ou se iniciativas<br />

subnacionais também poderão fazer parte dos projetos.<br />

Um dos riscos relacionados a este fator diz respeito à<br />

“falta de articulação e sinergia entre projetos que sejam<br />

implementados de forma isolada e de políticas nacionais<br />

e internacionais para aplicar o mecanismo REDD+ com<br />

critérios padronizados” (IPAM). A eventual desarticulação<br />

pode acarretar principalmente um impacto com<br />

conseqüências diversas: o vazamento (ou “transferência<br />

do desmatamento”, ou leakage, em inglês) das emissões<br />

de carbono de uma região de um projeto de REDD para<br />

outra região sem projeto, dentro do território nacional ou o<br />

vazamento das emissões do país de um programa de REDD<br />

para outro país vizinho sem programa. Neste cenário, “o<br />

problema em questão é realocado, tanto no espaço quanto<br />

no tempo, não sendo resolvido” (FARIA, 2010, p. 114).<br />

A necessidade de estabelecimento de linhas<br />

de base com metodologia bem definida, que “podem ser<br />

baseadas em uma extrapolação estática de tendências de<br />

desmatamento passadas, ou em um modelo de projeções<br />

futuras de desmatamento”, são igualmente importantes.<br />

Também conhecidas como business as usual (BAU), as<br />

linhas de base “mostram as tendências de emissões que<br />

ocorreriam se nenhuma ação fosse tomada” (FARIA, 2010,<br />

26 Créditos comprados para atingir a reduções de emissões que não puderam ser alcançadas internamente.<br />

p. 111).<br />

Mais um desafio é o estabelecimento e a<br />

implementação de um sistema de monitoramento,<br />

relato e verificação (MRV) das emissões evitadas por<br />

meio de projetos de REDD. São três os pontos críticos<br />

para monitorar as reduções de emissões de carbono no<br />

setor florestal: (i) “as estimativas de mitigação variam<br />

significativamente de acordo com as características<br />

específicas do ecossistema natural”; (ii) “há incerteza sobre<br />

a absorção de carbono em florestas maduras e como esta<br />

pode ser alterada pelas mudanças climáticas” e; (iii) “o<br />

desmatamento e a degradação podem ocorrer a qualquer<br />

momento no tempo (devido a fenômenos naturais ou à<br />

atividade humana), <strong>rev</strong>ertendo a redução das emissões de<br />

carbono através da liberação para a atmosfera dos GEE<br />

que foram removidos e estocados anteriormente” (FARIA,<br />

2010, p. 113). Este terceiro fenômeno é conhecido como o<br />

risco de não-permanência”.<br />

Outra questão pendente para que a negociação<br />

sobre REDD avance é a definição do financiamento.<br />

Estão na pauta de negociações atuais duas alternativas:<br />

financiamento baseado em mercado ou financiamento<br />

baseado em fundos (VIANA, 2009).<br />

Se os mecanismos de REDD puderem, futuramente,<br />

gerar créditos de carbono no âmbito dos compromissos do<br />

Protocolo de Quioto, limites para a compra dos mesmos<br />

por parte dos Países Anexo I deveriam ser criados, a fim de<br />

que estes sejam forçados a implementar medidas nacionais<br />

de redução de emissão de GEE. O financiamento formatado<br />

com base no modelo de fundos pode impulsionar, por<br />

parte dos Países Anexo I, suporte financeiro aos países em<br />

desenvolvimento para que estes possam executar suas Ações<br />

Nacionalmente Apropriadas (NAMAS), transformando o<br />

seu modelo de desenvolvimento. Por outro lado, mercados<br />

obrigatórios são preferidos porque garantiriam fluxos de<br />

financiamento de longo prazo, contínuos e p<strong>rev</strong>isíveis, em<br />

contraste com o financiamento voluntário.<br />

No âmbito do aspecto político, muitos acreditam<br />

que o apoio às iniciativas de REDD como mecanismo<br />

global de mercado deve ocorrer de acordo com duas<br />

cláusulas principais: “limites na proporção de offset26 para<br />

os países desenvolvidos e limite de absorção individual<br />

de créditos para os grandes países florestais, como o<br />

Brasil” (GOLDEMBERG, 2010, p. 23). Estas medidas<br />

visam estimular o desenvolvimento e a implementação de<br />

tecnologias limpas nos países em desenvolvimento.<br />

As questões sociais e de desenvolvimento atreladas<br />

à implementação de ações de REDD podem implicar em<br />

impactos positivos e negativos, dependendo do modo<br />

como são implementados (um dos impactos negativos pode<br />

se dar no âmbito da governança florestal, com ações de<br />

corrupção, por exemplo). De qualquer maneira, os maiores<br />

desafios dizem respeito às seguintes questões: Quais são as<br />

69


questões sociais e de desenvolvimento a serem incluídas?<br />

Quais grupos incluir? Como incluir os <strong>direito</strong>s mais<br />

substantivos dos atores envolvidos, tais como <strong>direito</strong> a terra<br />

e <strong>direito</strong>s de acesso a recursos florestais? Como o processo<br />

de verificação pode ser estruturado? Quais instituições<br />

estão aptas a implementar sistemas de MRV para questões<br />

sociais e de desenvolvimento (REDD-net, 2010)?<br />

Complementarmente às questões supracitadas,<br />

existe a “falta de garantia da participação dos povos<br />

indígenas e comunidades tradicionais na construção<br />

de política e projetos de REDD+”. Este ponto está<br />

intrinsecamente atrelado à questão da governança de<br />

implementação e gestão de projetos de REDD. As florestas<br />

são vulneráveis às ações ilegais (comércio ilegal, crimes,<br />

corrupção e conflitos) e ao desmatamento, uma vez<br />

que possuem fraca governança e políticas ineficazes de<br />

planejamento, de uso e de conservação. O destino das<br />

florestas mundiais e dos <strong>direito</strong>s de quem nelas vive depende<br />

de efetiva governança e de processos participativos, o que<br />

inclui negociar com atores públicos e privados e reforçar<br />

instituições, leis e políticas florestais (UNEP; FAO; UNFF<br />

apud Rametsteiner, 2009, p. 58).<br />

Conforme visto, a implementação de mecanismos<br />

de REDD é política e tecnicamente complexa. São várias<br />

as questões ainda pendentes de resolução e que seguem<br />

sob debate no âmbito dos encontros da CQNUMC e<br />

das iniciativas paralelas para alcançar um acordo que<br />

determinará a incorporação ou não das iniciativas no<br />

segundo período de compromisso do Protocolo de Quioto 27 .<br />

Contribuição das iniciativas de REDD para o<br />

desenvolvimento sustentável<br />

As alterações climáticas serão um dos fatores<br />

que irão definir as perspectivas de desenvolvimento<br />

humano 28 durante o século XXI. Através do seu impacto na<br />

ecologia, precipitação, temperatura e sistemas climáticos,<br />

o aquecimento global afetará diretamente todos os países<br />

(PNUD, 2007, p. 24 e 31).<br />

A implementação de projetos de REDD pode<br />

significar, potencialmente, múltiplos impactos e benefícios.<br />

Os pontos de impasse e desafios que estiveram em discussão<br />

até o presente, principalmente durante a COP-15, indicam<br />

que as partes envolvidas nas negociações dos mecanismos<br />

de REDD estão buscando uma configuração que contemple<br />

três principais dimensões: a sustentabilidade ambiental,<br />

social e econômica.<br />

No que diz respeito à dimensão ambiental, as<br />

resoluções caminham para mecanismos que façam parte,<br />

em primeiro lugar, dos esforços globais de redução das<br />

emissões de GEE, mitigando os efeitos do aquecimento<br />

global, mas que também sejam instrumentos voltados para<br />

70<br />

a proteção da biodiversidade e a melhoria da governança<br />

florestal.<br />

A dimensão social é igualmente importante na<br />

medida em que viabiliza a permanência das comunidades<br />

dependentes das florestas em seus territórios, garantindo<br />

<strong>direito</strong>s a terra e aos recursos locais. Ao mesmo tempo, esta<br />

dimensão proporciona a preservação das características<br />

culturais e de organização social das populações locais,<br />

contribuindo para a preservação do patrimônio histórico e<br />

cultural da humanidade.<br />

Por fim, a dimensão econômica pode implicar<br />

na geração de renda para as comunidades envolvidas na<br />

conservação florestal, viabilizada por meio de projetos de<br />

REDD, uma vez que, com os <strong>direito</strong>s à terra e aos recursos<br />

naturais locais garantidos, as populações conseguem<br />

desempenhar suas atividades econômicas, tais como o<br />

extrativismo e o manejo sustentável. Adicionalmente, a<br />

eventual repartição dos valores oriundos dos créditos de<br />

carbono gerados via projetos de REDD pode significar uma<br />

renda adicional aos habitantes das áreas em questão. Assim,<br />

a geração de renda contribui para a redução da pobreza, um<br />

dos outros “co-benefícios” decorrentes da implementação<br />

de mecanismos de REDD (CIFOR, S/d., p. 7).<br />

Tendo em vista essas dimensões, mostra-se<br />

evidente a intrínseca relação entre os múltiplos benefícios<br />

decorrentes das iniciativas de REDD e o desenvolvimento<br />

sustentável. A conservação e a redução do desmatamento<br />

e da degradação florestal contribuem diretamente para o<br />

cumprimento de dois compromissos, e suas respectivas<br />

metas, assumidos por grande parte dos países do mundo:<br />

a Convenção sobre Diversidade Biológica e a Convenção-<br />

Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.<br />

Da mesma forma, as medidas de REDD<br />

constituem-se como uma das estratégias de implementação<br />

e viabilização de um dos pontos abordados pela Agenda<br />

21, voltado ao combate ao desmatamento. À época<br />

da elaboração da Agenda, “o papel das florestas como<br />

sorvedouros e reservatórios nacionais de gás carbônico”<br />

(UNITED NATIONS, 1992a, cap. 11) já era reconhecido,<br />

ao lado de seus múltiplos papéis, funções e recursos. Estes<br />

são apontados como essenciais ao desenvolvimento –<br />

pois implicam na geração de empregos e na diminuição<br />

da pobreza - e à preservação do meio ambiente global<br />

(UNITED NATIONS, 1992a, cap. 11).<br />

Conclusão<br />

A definição da estrutura de funcionamento de<br />

mecanismos de REDD e as conseqüentes iniciativas de<br />

implementação são consideradas ações de alta relevância<br />

no contexto global, principalmente sob a perspectiva de<br />

determinados aspectos.<br />

27 Uma referência para aprofundamento nos desafios da implementação do mecanismo de REDD+ é a seguinte: Realising REDD+: national strategy and policy options. CIFOR. Edited by Arild<br />

Angelsen. 2009. Disponível em < http://www.cifor.cgiar.org/>. Acesso em 13out. 2010.<br />

28 De acordo com RDH 2007-2008, “O desenvolvimento humano diz respeito às pessoas. Diz respeito ao alargamento do seu leque de escolhas e das suas liberdades essenciais – o seu potencial<br />

humano – de modo que lhes seja permitido viver uma vida que valorizem. Para o desenvolvimento humano, o poder de escolha e a liberdade significam mais do que uma mera ausência de restrições“<br />

(PNUD, 2007, p. 24).<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


O primeiro deles está relacionado diretamente aos<br />

propósitos iniciais da elaboração dos projetos de REDD,<br />

ou seja, a busca por mecanismos e ferramentas para mitigar<br />

os efeitos das mudanças climáticas e reduzir as emissões<br />

de Gases de Efeito Estufa na atmosfera. No que tange ao<br />

setor florestal, uma série de pesquisas vem alertando para a<br />

importância da conservação e uso sustentável das florestas<br />

e ressaltam o papel do ciclo de carbono (do qual as florestas<br />

fazem parte) para o equilíbrio climático global. Conforme<br />

apresentado, as florestas em pé possuem a propriedade de<br />

captura e o armazenamento de CO2, o que mitiga a emissão<br />

deste gás para a atmosfera e contribui para a redução do<br />

fenômeno de aquecimento global.<br />

O segundo aspecto remete ao desmatamento<br />

e à degradação florestal e dialoga diretamente com<br />

a propriedade das florestas mencionada acima. O<br />

desmatamento e a degradação florestal provocam emissões<br />

de GEE na atmosfera, contribuindo intensamente para a<br />

totalidade de gases que provocam a mudança do clima.<br />

Além disso, as duas atividades possuem implicações no que<br />

diz respeito à conservação da biodiversidade, das diversas<br />

propriedades e serviços ambientais intrínsecos às florestas<br />

e das populações que nelas vivem e que delas dependem.<br />

Assim, verifica-se um duplo benefício obtido<br />

por meio da implementação de iniciativas de REDD<br />

– a contribuição para a redução de emissões de GEE na<br />

atmosfera e a conservação da biodiversidade, por meio<br />

da contenção do desmatamento e da degradação florestal<br />

– e múltiplos benefícios adjacentes que, em seu conjunto,<br />

contribuem de forma significativa para o desenvolvimento<br />

sustentável.<br />

As decisões acordadas durante a COP-13, realizada<br />

em 2007, impulsionaram a inclusão dos mecanismos de<br />

REDD nas futuras negociações no âmbito da Convenção-<br />

Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. De<br />

Bibliografia<br />

fato, os principais avanços vieram nos anos seguintes,<br />

especialmente em 2009, no período que antecedeu à COP-<br />

15 e ao longo da própria Conferência. Entretanto, alguns<br />

entraves sobre funcionamento dos mecanismos ainda<br />

precisam ser resolvidos. Eles estão ligados a questões<br />

como financiamento, verificação e monitoramento dos<br />

créditos de carbono gerados, governança, comprovação de<br />

adicionalidade, abrangência territorial, entre outros.<br />

Há uma tendência de que esses entraves sejam<br />

resolvidos nos próximos anos, uma vez que a definição<br />

de instrumentos de mitigação das emissões de GEE<br />

vinculados ao setor florestal - a exemplo das iniciativas de<br />

REDD – é considerada fundamental, inclusive nos cenários<br />

mais otimistas de efeitos das mudanças climáticas globais.<br />

Abstract: This article intends to discuss the challenges<br />

facing the contemporary discussion on the adoption of<br />

mechanisms for Reducing Emissions from Deforestation<br />

and Forest Degradation (REDD), through an analysis<br />

of the context of its appearance and the real prospect of<br />

its adoption. REDD mechanisms have emerged as a key<br />

instrument for mitigating the harmful consequences caused<br />

by climate change across the planet. The bibliography<br />

was gathered mainly from online documents, taken from<br />

official websites and primary sources. We conclude that<br />

REDD initiatives can result in a double benefit, which<br />

contributes significantly to sustainable development,<br />

mitigating the effects of emissions of greenhouse gases in<br />

the atmosphere and the conservation and sustainable use of<br />

forest resources through the containment of deforestation<br />

and forest degradation.<br />

Key words: Environment, Sustainable Development<br />

and Global Questions. Climate. Change. Deforestation<br />

emissions. Forests. Deforestation. Forest Degradation.<br />

Forest Conservation.<br />

ALVARADO, L. X. R.; Wertz-Kanounnikoff, S. Why are we seeing “REDD”? An analysis of the international debate<br />

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72<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


Projetos voluntários de REED no Brasil como alternativa viável na luta<br />

para salvaguardar a biodiversidade amazônica e o bem estar dos povos<br />

da floresta<br />

Uma análise do Projeto da RDS do Juma.<br />

LUÍS PAULO AGOSTINO DE MAGALHÃES DUPRAT<br />

Bioquímico graduado pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas e Bioquímica Oswaldo Cruz. Especialista em Meio<br />

Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Questões Globais pela Faculdade de Direito da FAAP. Atua no ramo de<br />

Pesquisa Clínica, tendo envolvimento com a área ambiental através de participação no grupo de trabalho multidisciplinar<br />

“Nossa Terra”, em ONG de preservação ambiental e militância online.<br />

Resumo: Estimativas recentes <strong>rev</strong>elam que a biodiversidade da Amazônia pode corresponder a metade da existente no<br />

planeta, riqueza que salvaguarda uma série de serviços ambientais e processos biológicos vitais. A síntese das determinações<br />

enunciadas na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) apresenta a ampliação do<br />

debate sobre florestas e a perspectiva de geração de um instrumento de Redução de Emissões por Desflorestamento<br />

e Degradação Florestal (REDD), dentro da UNFCCC, que recompense economicamente os países com grandes áreas<br />

de florestas preservadas. Enquanto as negociações sobre REDD são discutidas entre as partes, várias iniciativas de<br />

implantação de projetos voluntários sub-nacionais estão se difundindo pelo mundo, gerando benefícios climáticos,<br />

ambientais e sociais, bem como servindo de aprendizado para outros potenciais projetos decorrente de um futuro acordo<br />

internacional. Este artigo teve como objetivo trazer a temática das florestas dentro e fora do espaço das negociações<br />

internacionais sobre mudanças climáticas e seus potenciais benefícios para a biodiversidade e para as comunidades da<br />

Floresta Amazônica à luz do Projeto da RDS do Juma, localizado no município de Aripuanã, Amazonas. O trabalho<br />

conclui que a implementação de projetos voluntários de REDD pode ser uma ferramenta eficaz para a preservação da<br />

biodiversidade e da dignidade dos povos da Amazônia. Não obstante, deve-se buscar um acordo internacional que suceda<br />

o Protocolo de Quioto, o qual viabilize a operacionalização de um esquema de REDD em escala nacional de forma<br />

equitativa e que favoreça a integralidade dos benefícios proporcionados pela proteção das florestas.<br />

Palavras-Chaves: Meio Ambiente. REDD. Desflorestamento. Degradação florestal. Projeto Juma. Biodiversidade.<br />

Comunidades locais.<br />

Introdução<br />

Neste último século, a humanidade experimentou<br />

um crescimento exponencial da população global,<br />

acompanhado de um boom econômico decorrente da<br />

exploração exaustiva dos recursos naturais do planeta.<br />

Hoje, os impactos resultantes de décadas de exploração<br />

energética baseada na queima de combustíveis fósseis<br />

estão colocando em risco o futuro da do homem, já que<br />

tais atividades antrópicas emissoras de Gases de Efeito<br />

Estufa (GEEs) ampliam a capacidade de absorção de<br />

energia da atmosfera e acentuam o fenômeno do Efeito<br />

Estufa, mecanismo responsável pelo aquecimento global<br />

que se evidencia atualmente. Estudos mostram que apesar<br />

da queima de combustíveis fósseis ser a principal causa da<br />

intensificação do Efeito Estufa, as emissões decorrentes de<br />

desflorestamento, degradação florestal e outras mudanças<br />

no uso da terra contribuem aproximadamente com 17%<br />

das emissões globais anuais de GEEs e 28% das emissões<br />

globais de dióxido de carbono (CO 2 ) (IPCC, 2000, 2007;<br />

UNFCCC, 2009, 2011).<br />

O histórico das decisões proferidas no âmbito da<br />

Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do<br />

Clima (UNFCCC) assinala que o debate sobre as florestas<br />

vem se ampliando, focando-se cada vez mais no combate<br />

ao desmatamento dos países em desenvolvimento.<br />

Fundamentada no conceito de Pagamentos por Serviços<br />

Ambientais, há a tendência de elaboração de um<br />

mecanismo de Redução de Emissões por Desflorestamento<br />

e Degradação Florestal (REDD), em comum acordo entre<br />

as Nações, que recompense economicamente os países<br />

com grandes áreas de florestas preservadas.<br />

Enquanto as negociações sobre REDD com o<br />

fim de estabelecer um protocolo dentro da UNFCCC<br />

são discutidas entre as partes, várias iniciativas de<br />

implantação de projetos voluntários sub-nacionais - como<br />

73


o da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS)<br />

do Juma – difundem-se pelo mundo e geram benefícios<br />

sócio-climático-ambiental diretos, bem como servem de<br />

aprendizado para potenciais projetos sob<strong>rev</strong>indos de um<br />

futuro acordo internacional.<br />

O valor intrínseco das florestas<br />

As florestas desempenham uma insubstituível<br />

função na regulação do clima da Terra, fato esse que se<br />

deve por elas serem responsáveis por cerca de metade<br />

do reservatório de carbono terrestre. Somente a Floresta<br />

Amazônica - representando 21% da área de florestas<br />

tropicais - corresponde a 11% do estoque terrestre de<br />

carbono do mundo. Este quadro aponta para a importância<br />

da abordagem de combate ao desflorestamento e à<br />

degradação florestal para a mitigação das alterações<br />

climáticas (UNFCCC, 2009).<br />

74<br />

O Food and Agriculture Organization (FAO)<br />

define o desflorestamento como: “A conversão de floresta<br />

para outro uso da terra ou a redução a longo prazo da copa/<br />

cobertura abaixo do limiar mínimo de 10%”(FAO, 2007,<br />

p. 8). Se o teto arbóreo é reduzido abaixo deste limiar, o<br />

desmatamento é caracterizado. Visando uma harmonização<br />

conceitual e sintetizando definições controversas podese<br />

caracterizar a degradação florestal como a redução da<br />

cobertura do dossel e/ou estocagem de floresta - através<br />

da exploração madeireira, fogo, extração de lenha para<br />

uso combustível, além de outros eventos – até o limite de<br />

90% (limite de caracterização de uma floresta). Entendese,<br />

assim, que até 90% de uma floresta pode ser desmatada<br />

antes dela ser considerada desmatada (FAO, 2009)<br />

Fonte: INPE, 2010.<br />

Figura 11 (foto) Padrões de degradação florestal por extração de madeira observados em imagens realçadas. A) Degradação de intensidade moderada, área em regeneração após exploração madeireira,<br />

pátios ainda evidentes; B) Degradação de intensidade alta, exploração madeireira ativa, grande proporção de solo exposto; C) Degradação de intensidade leve, evidência de abertura de estradas de acesso.<br />

A degradação das florestas e dos solos são problemas<br />

graves, particularmente nos países em desenvolvimento.<br />

Em 2000, a área total de florestas degradadas e terras<br />

florestais em 77 países tropicais foi estimada em cerca de<br />

800 milhões de hectares. A deterioração da floresta é uma<br />

das principais fontes de GEEs, apesar de sua importância<br />

não ter sido estimada em escala global. Em algumas regiões<br />

as emissões provenientes deste processo são tão, ou mais,<br />

importantes do que as de desmatamento (FAO, 2009 p.7).<br />

Não somente em sua inestimável função climática,<br />

contudo, reside a importância das florestas. Além de<br />

prestarem diversos serviços ecológicos as florestas<br />

tropicais também abrigam a maior riqueza em espécies do<br />

planeta e sua manutenção propicia o benefício adicional de<br />

preservar o habitat de diversas comunidades biológicas do<br />

planeta. Cobrindo apenas 7% da área de solo da Terra elas<br />

abrigam incríveis 70% das espécies terrestres e, igualmente,<br />

grandes proporções de espécies endêmicas. A maior parte<br />

dos desmatamentos ocorre em florestas tropicais de alta<br />

biodiversidade, como as que existem no Brasil, e a redução<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


daqueles vai além do combate às mudanças climáticas,<br />

mas redundam em menor perda de habitat para centenas de<br />

milhares de espécies (UNFCCC, 2006).<br />

Por fim, os recursos florestais, alem de prover<br />

serviços ambientais e produtos valiosos para o homem,<br />

sustentam diretamente os meios de vida de 90% da 1,2<br />

bilhões de pessoas que vivem em extrema pobreza. As<br />

comunidades locais dependem das florestas como fonte de<br />

combustível, alimento, medicamento e abrigo. A pobreza<br />

e a pressão populacional podem levar à perda inexorável<br />

da cobertura florestal, mantendo as pessoas presas em um<br />

ciclo perpétuo de miséria, comprometendo seu combate<br />

(GCP, 2009, p. 12).<br />

A evolução do REDD no âmbito da UNFCCC<br />

Apesar da incontestável importância dentro da<br />

vigente crise ambiental, as atividades relacionadas ao uso<br />

da terra ou a mudança em seu uso (Land Use, Land Use<br />

Change and Forestry – LULUCF) - nas quais as ações<br />

florestais estão inseridas - passam por um difícil processo<br />

de discussão e consenso no âmbito internacional das<br />

negociações climáticas. A crescente preocupação acerca<br />

dos problemas provenientes do aquecimento global gerou<br />

um processo de negociação internacional, objetivando<br />

estabilizar as concentrações de GEEs na atmosfera em<br />

nível que reduziria o risco da influência antrópica no<br />

sistema climático.<br />

As negociações, a princípio, direcionaram-se ao<br />

estabelecimento de metas diferenciadas entre as nações<br />

que historicamente mais contribuíram para a questão -<br />

metas que foram consolidadas no Protocolo de Quioto em<br />

1997. Este, apesar de firmar que determinadas atividades<br />

florestais devessem atender ao compromisso de redução de<br />

emissões de GEEs, não fez nenhuma referência explícita às<br />

atividades de LULUCF, no que diz respeito ao Mecanismo de<br />

Desenvolvimento Limpo (MDL) - um dos três mecanismos<br />

oferecidos pelo Protocolo como opção de mitigação. Em<br />

2001 o Acordo de Marrakesch estabeleceu que, no âmbito<br />

do MDL, os créditos de carbono poderiam ser adquiridos via<br />

projetos de remoção de GEEs por sumidouros, limitados,<br />

entretanto, a projetos de aflorestamento e reflorestamento.<br />

Conforme definido no próprio acordo, aflorestamento<br />

refere-se à conversão direta - induzida pelo homem - de<br />

terra que não foi florestada por um período de pelo menos<br />

50 anos em terra florestada. Reflorestamento, por sua vez,<br />

relaciona-se à conversão diretamente induzida pelo homem<br />

de terra não-florestada, mas que em momento anterior já<br />

fora florestada, em terra florestada. Posteriormente, em<br />

2003, foram definidas as regras para a inclusão destas<br />

atividades no MDL (UNFCCC, 2010).<br />

Somente em 2005, na COP-11 em Montreal, a partir<br />

de uma proposta elaborada pela Papua Nova Guiné, as<br />

florestas passaram a receber maior atenção nas deliberações<br />

sobre alterações climáticas devido ao seu papel estratégico<br />

fundamental de mitigação. A idéia básica apresentada<br />

por trás do conceito de Redução de Emissões por<br />

Desmatamento e Degradação (REDD) é a de que os países<br />

que estão dispostos e possuem condições de reduzir as<br />

emissões por desmatamento deveriam ser recompensados<br />

financeiramente (KAROUSAKIS, K., 2009, p. 10).<br />

A maior decisão para estimular ações de redução<br />

de emissões por desflorestamento e degradação florestal<br />

em países em desenvolvimento, no entanto, foi adotada<br />

pelas Partes durante a COP-13 em Bali, Indonésia (2008),<br />

ocasião em que avanços significativos foram obtidos para a<br />

inclusão de florestas no Regime Internacional do Clima. A<br />

Conferência em questão culminou com a adoção do Roteiro<br />

de Bali (Bali Road Map), um conjunto de futuras decisões<br />

que representariam as várias direções essenciais a serem<br />

seguidas na busca de alcançar a estabilização climática.<br />

O Roteiro de Bali inclui o Plano de Ação de Bali (Bali<br />

Action Plan) que objetiva direcionar as Partes a negociar<br />

um instrumento legal pós-2012 que considere possíveis<br />

incentivos financeiros para ações de mitigação focadas em<br />

florestas nos países em desenvolvimento (TNC-IDESAM,<br />

2009, p. 13; UNFCCC, 2010).<br />

O tema REDD foi um dos assuntos mais discutidos<br />

no período de dois anos entre Bali e Copenhagen (COP<br />

15, 2009). O âmbito do REDD foi, a partir de então,<br />

ampliado e seu conceito expandido para incluir também a<br />

conservação, o manejo florestal sustentável e o aumento<br />

dos estoques de carbono, coletivamente designado por<br />

“REDD-plus”. (KAROUSAKIS, K., 2009, p. 10). Com<br />

relação a “Aumento das Reservas Florestais de Carbono”<br />

entende-se atividades de aflorestamento e reflorestamento.<br />

Sobre o tema “Gestão Sustentável das Florestas” o foco da<br />

discussão centrou-se na distinção das ações consideradas<br />

como mantenedoras dos estoques de carbono, como forma<br />

de garantir a inexistência de degradação florestal a longo<br />

prazo e de assegurar a manutenção dos estoques de carbono.<br />

A abrangência das atividades que devem ser consideradas<br />

em um futuro esquema de REDD dentro da UNFCCC<br />

(desflorestamento, degradação, conservação e valorização<br />

do estoque) é referido como “escopo do mecanismo” e<br />

até hoje é um aspecto metodológico controverso (TNC-<br />

IDESAM, 2009 p. 16, 17).<br />

Em 2009, pelo Acordo de Copenhague - documento<br />

de caráter não vinculativo - finalmente os países<br />

reconheceram a importância da redução das emissões<br />

geradas pelo desmatamento e pela degradação das florestas,<br />

bem como a necessidade de promover “incentivos” para<br />

financiar ações pertinentes com a utilização de recursos de<br />

países desenvolvidos (UNFCCC, 2009, p. 1).<br />

75


O histórico das negociações mostra, pelo exposto,<br />

uma tendência de estabelecimento de um mecanismo de<br />

Redução de Emissões por Desflorestamento e Degradação<br />

Florestal (REDD) que recompense economicamente os<br />

países com grandes áreas de florestas preservadas. Até<br />

o momento, contudo, dúvidas quanto à permanência do<br />

carbono estocado nas florestas, quanto à quantificação dos<br />

estoques de carbono nas diferentes formações florestais e<br />

quanto a outros diversos aspectos metodológicos são os<br />

principais entraves científicos para se incluir integralmente<br />

a questão florestal em um mecanismo dentro da Convenção.<br />

Projetos voluntários de REDD<br />

Com o amadurecimento da discussão sobre o<br />

REDD outras considerações, fora a questão do carbono,<br />

vêm sendo incorporadas. A tendência do debate sinaliza<br />

para uma abordagem mais integrada, que foque o problema<br />

das emissões de GEE em um cenário mais amplo, já que<br />

a conversão e a degradação dos ecossistemas florestais<br />

além de acarretarem alterações climáticas originam,<br />

também, perdas sociais, de biodiversidade e de funções<br />

ecossistêmicas fundamentais. Esse contexto gera<br />

oportunidade ímpar aos países detentores dessas reservas<br />

florestais, como o Brasil, que podem obter grande ganho<br />

para a sua biodiversidade através da redução da perda de<br />

carbono, uma vez que muitos ecossistemas que são grandes<br />

em estoque de carbono são também em biodiversidade,<br />

particularmente nas regiões tropicais.<br />

A complexidade dos procedimentos e metodologias<br />

do registro de projetos florestais no contexto de Quioto<br />

somada a falta de concretização de um esquema REDD<br />

dentro da Convenção-Quadro das Nações Unidas para<br />

Mudanças Climáticas, no entanto, tem forçado a ida do<br />

Setor Florestal para o Mercado Voluntário de Carbono.<br />

Enquanto as negociações sobre REDD são discutidas<br />

entre as partes, várias iniciativas bilaterais e multilaterais,<br />

tanto pública quanto privada, de implantação de projetos<br />

76<br />

voluntários sub-nacionais estão se difundindo pelo mundo,<br />

antecipando-se a qualquer decisão de âmbito internacional.<br />

Projetos voluntários de REDD, embora marginais<br />

ao âmbito dos mercados oficiais de carbono, promovem<br />

benefícios sócio-ambiental originados da preservação<br />

florestal e redução de emissões e têm fornecido valiosos<br />

subsídios ao enfrentar aspectos metodológicos centrais<br />

relacionados à quantificação de carbono, monitoramento,<br />

adicionalidade (ou seja, se as reduções de emissões<br />

obtidas como resultado de um projeto são adicionais<br />

ao que teria ocorrido no business-as-usual contrafactual),<br />

permanência e deslocamento de emissões. Esses<br />

problemas são basicamente semelhantes aos defrontados<br />

pelos projetos florestais do MDL, o que ressalta o valor<br />

desses programas para a dinâmica de inclusão de outras<br />

modalidades relacionadas ao setor de LULUCF em um<br />

acordo pós-2012.<br />

Adicionalmente, além de aprendizado técnicometodológico,<br />

estimulam a criação de uma capacitação<br />

institucional em países com frágil estrutura políticogovernamental<br />

e que aspiram estabelecer um esquema<br />

REDD em escala nacional. Por terem abrangência local e<br />

sub-nacional, esses projetos pilotos podem ser instituídos de<br />

forma muito mais rápida, evitando inúmeros e complexos<br />

trâmites institucionais, jurídicos, administrativos e<br />

financeiros necessários à construção de um projeto de<br />

magnitude nacional dentro de um mecanismo da UNFCCC.<br />

Na América do Sul 17 projetos REDD já estão<br />

em estágio avançado de implantação e estão distribuídos<br />

em seis países: Bolívia (01), Brasil (07), Equador (01),<br />

Guatemala (03), Paraguai (01) e Peru (04). Juntos somam,<br />

aproximadamente, 14,8 milhões de hectares de floresta<br />

tropical - área equivalente a 3,5 vezes o território da<br />

Dinamarca – e visam evitar a emissão de cerca de 522.7<br />

milhões de toneladas de CO 2 : equivalente a mais da metade<br />

das emissões totais anuais do setor de transporte na União<br />

Européia (TNC-IDESAM, 2009, p. 75, 76).<br />

Tabela 2 Características dos principais projetos de REDD na America Latina<br />

País<br />

Brasil<br />

Projeto<br />

Juma<br />

Ecomapuá<br />

Duração<br />

44<br />

20<br />

Custo de implementação<br />

(US$)<br />

24,000,000<br />

23,597,968<br />

Custo de geração<br />

(US$/tCO ) 2<br />

0,13<br />

3,93<br />

Acre 15 25,000,000 4,00<br />

Transamazonia 10 15,427,499 4,92<br />

Ecuador<br />

Guatemala<br />

SocioBosque<br />

Biosfera Maia<br />

7<br />

20<br />

560,000,000<br />

80,000,000<br />

2,95<br />

4,00<br />

Paraguai Mbaracaiu 35 22,750,000 1,75<br />

Peru Madre de Dieus 20 47,000,000 6,31<br />

TOTAL 1,022,775,467<br />

Fonte: TNC – IDESAM, 2009<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


Quanto ao perfil das instituições proponentes de<br />

projetos REDD destaca-se a expressiva participação dos<br />

governos - presentes em 61% deles – fato decorrente de<br />

grande parte dos referidos projetos ser realizada em terras<br />

públicas ou áreas protegidas e legalmente geridas pelos<br />

governos.<br />

A média de vida dos projetos é de 21 anos, variando<br />

de 07 anos para o Programa SocioBosque no Ecuador a 44<br />

anos para o Projeto Juma. O custo total de implantação dos<br />

oito projetos listados é de US$1.022,775.467, com custo<br />

médio por tCO 2 de US$3.49/tCO 2 e (± 2.21). Verificouse<br />

grande variação de custo na geração de tais projetos,<br />

tanto entre países quanto entre projetos num mesmo país,<br />

oscilando entre o valor mínimo de US$0.13/tCO 2 e o<br />

máximo de US$6.27/tCO 2 . Esta alta variância é explicada<br />

por ampla gama de fatores que são determinantes para<br />

definir o custo de implementação de cada projeto, como:<br />

contexto da pressão de desflorestamento, posse da terra<br />

(pública, privada, comunitária, território indígena, áreas<br />

de proteção etc..), escopo da atividade, localização, acesso<br />

e instituições participantes. A combinação destes fatores é<br />

determinante para definir os custos de cada projeto REDD<br />

(TNC-IDESAM, 2009, p. 75, 76).<br />

Cerca de 5 bilhões de dólares já foram oferecidos<br />

por governos de todo o mundo para projetos de REDD<br />

entre os anos 2010-2012. Para dar credibilidade às reduções<br />

de emissões oferecidas por tais mercados, alianças<br />

ambientalistas, participantes financeiros e organizações<br />

de apoio criaram padrões de acreditação com o fito de<br />

garantir benefícios climáticos e ambientais tanto para a<br />

biodiversidade quanto para os povos locais.<br />

Segundo estudo realizado por Nepstad, D. (2008),<br />

um programa plausível de REDD que reduza próximo a<br />

zero o desmatamento na totalidade da Amazônia brasileira,<br />

em um período de dez anos, teria um custo anual inicial<br />

de US$72 milhões atingido US$531 milhões no décimo<br />

ano. Um projeto desta dimensão evitaria a emissão de 1,4<br />

bilhões de toneladas de carbono durante uma década a um<br />

custo total de US$3.4 bilhões (US$0,7/Tonelada de CO 2 ).<br />

A ONG The Nature Conservacy (2009) identificou<br />

e classificou sete projetos REDD em fase avançada de<br />

implantação no Brasil. Dentre eles o Projeto de RED da<br />

Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Juma<br />

foi o primeiro do Brasil - segundo no mundo - a ser validado<br />

pelo CCB, na modalidade de Redução de Emissões do<br />

Desmatamento (RED). Dado seu caráter pioneiro, sua<br />

avançada fase de implantação, sua considerável área e<br />

seu potencial tanto para redução de emissões quanto para<br />

a conservação da biodiversidade de uma área da Floresta<br />

Amazônica rica em vida selvagem, acredita-se que possa<br />

ser um modelo representativo para futuros projetos REDD<br />

na referida floresta.<br />

O projeto de REED da RDS do Juma<br />

A Reserva de Desenvolvimento Sustentável do<br />

Juma foi criada pelo Governo do Amazonas, através<br />

do Decreto 26.009 de julho de 2006, em uma área de<br />

589.612,8 hectares no município de Novo Aripuanã, que<br />

representa 14,3% do montante territorial deste município.<br />

Encontra-se a 227,8 km ao sul da cidade de Manaus,<br />

próxima à zona urbana de Novo Aripuanã. Seu objetivo é<br />

conter o desmatamento de cerca de 329.483 hectares de<br />

floresta tropical e suas respectivas emissões - cerca de<br />

189.767.027,9 toneladas de CO 2 -protegendo, ao mesmo<br />

tempo, suas espécies do risco de extinção e a qualidade<br />

de vida de centenas de famílias. Espera-se alcançar tais<br />

objetivos através da criação e implantação de uma Unidade<br />

de Conservação em uma região do Estado do Amazonas<br />

de grande tensão pelo uso da terra e passível de ser quase<br />

totalmente desmatada se p<strong>rev</strong>alecer as práticas correntes.<br />

(AMAZONAS, 2006; IDESAM, 2009 p. 8, 10).<br />

Reserva, na margem direita da foz do Rio Aripuanã<br />

(Figura 17)<br />

77


Fonte: IDESAM, 2009.<br />

Figura 17 (mapa) Localização da área de creditação do Projeto de RED da RDS do Juma, mostrando também a BR-319, AM-174 e BR-230 e o município de Novo Aripuanã, Manicoré e Apuí.<br />

O governo do Estado do Amazonas estabeleceu<br />

a RDS do Juma em 2006 e sua concretização é parte de<br />

uma ampla estratégia iniciada em 2003 pelo Estado,<br />

objetivando a contenção do desmatamento e promoção<br />

do desenvolvimento sustentável através da valorização<br />

dos serviços ambientais prestados pelas florestas. Estudos<br />

baseados em modelos que projetam um ambiente mais<br />

quente e seco para a Amazônia p<strong>rev</strong>êm alterações climáticas<br />

78<br />

que prenunciam um futuro sombrio para a região – no<br />

qual tanto a biodiversidade quanto os povos muito podem<br />

perder. Esta p<strong>rev</strong>isão somada à de perda de grandes áreas<br />

de floresta até 2050 - em um cenário business as usual –<br />

devido, dentre outras pressões, a anunciada pavimentação<br />

das estradas BR-319 e AM-174 pelo Governo Federal,<br />

influenciou fortemente o governo do Amazonas na criação<br />

da Reserva. Estradas na Amazônia representam fortes<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.<br />

.


ameaças tanto à fauna quanto à integridade ecossistêmica<br />

em geral, fatos estes já bem documentados. A reconstrução<br />

da abandonada rodovia BR-319 será critica e favorecerá a<br />

Fonte: IDESAM, 2009. (baseado em dados do modelo SimAmazônia I).<br />

Figura 24 (mapa) Desmatamento Projetado no Estado do Amazonas para o ano de 2050 considerando o cenário convencional (BAU).<br />

A perda da cobertura florestal implica não só<br />

na perda de biodiversidade e de habitat da fauna como<br />

também dos serviços ambientais fornecidos pela floresta. A<br />

comparação das perspectivas “sem projeto” e “com projeto”<br />

mostra um grande ganho deste segundo cenário, o qual ao<br />

propiciar recursos necessários para garantir a manutenção<br />

e o desenvolvimento sustentável, poderá evitar a perda<br />

de 62% da área florestada da RDS do Juma até o ano de<br />

2050, assim como favorecer concretamente a conservação<br />

da quase totalidade dessa área, além de outros benefícios<br />

diretos à biodiversidade e às comunidades locais.<br />

A RDS do Juma foi a primeira reserva a ser<br />

implantada após a criação e aprovação da Lei da Política<br />

Estadual de Mudanças Climáticas (PEMC-AM) e do<br />

Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUC-<br />

AM), que forneceram o arcabouço legal necessário para<br />

a realização de projetos desse gênero no Amazonas.<br />

Sua criação e implementação efetiva, no entanto, só foi<br />

possível graças à efetivação de um mecanismo financeiro<br />

de geração de créditos de carbono oriundos da Redução<br />

de Emissões do Desmatamento – RED planejado<br />

pelo governo deste Estado. A rede de hotéis Marriott<br />

International está financiando o projeto com investimentos<br />

anuais de US$500 mil durante os quatro primeiros anos;<br />

receitas provindas de seus hóspedes, que são convidados<br />

migração do “arco do desmatamento” para dentro de áreas<br />

da floresta ainda intocadas (IDESAM, 2009 p.7-8, 40-41).<br />

a neutralizar as emissões de carbono decorrentes da sua<br />

hospedagem através da contribuição de US$1 por noite.<br />

Assim, os recursos financeiros oriundos dos créditos<br />

deverão ser dirigidos a promoção tanto da manutenção dos<br />

benefícios climáticos de redução de emissões de GEEs pelo<br />

desmatamento quanto de melhorias sócio-ambientais e<br />

iniciativas voltadas para a pesquisa científica e inventários<br />

da riquíssima biodiversidade da Reserva.<br />

A obtenção de créditos de carbono, oriundos da<br />

redução de emissões do desmatamento, criará condições para<br />

atrair investidores e trazer ao estado os recursos financeiros<br />

necessários à geração de políticas fortes e permanentes de<br />

controle e monitoramento de desmatamento, estabelecendo<br />

um caráter financeiro auto-sustentável para a conservação,<br />

melhoria nas condições de vida das comunidades locais,<br />

além de reforçar o cumprimento das leis (IDESAM, 2009<br />

p.7-8, 40-41).<br />

Conclusão<br />

Apesar da recente implantação do Projeto de RED<br />

da RDS do Juma, há a expectativa de que a preservação<br />

da área e os cuidados e atenção dados à biodiversidade e<br />

às comunidades locais quando da concepção do mesmo,<br />

contribuirão significativamente para a preservação da sua<br />

79


fauna e flora respeitando os povos quem vive na região. Fora<br />

os ganhos diretos para a biodiversidade e para a população<br />

local, o Projeto ainda poderá cooperar na geração de<br />

conhecimento e experiência em diversos aspectos técnicos,<br />

servindo, assim, de embasamento tanto a outros programas<br />

voluntários de REDD quanto para auxiliar na consolidação<br />

de um futuro esquema de REDD dentro das negociações<br />

climáticas internacionais. Seu efeito emblemático,<br />

igualmente, poderá repercutir positivamente na sociedade<br />

e nas decisões políticas nacionais e internacionais.<br />

As características físicas da área do projeto somada<br />

às condições político-econômico-social em comum com<br />

outras regiões do estado do Amazonas poderão desenhar um<br />

valioso panorama das dificuldades e potencialidades de um<br />

programa de REDD na Amazônia. Entender, igualmente,<br />

como está sendo tratada a biodiversidade dentro do projeto<br />

trará sinalizações sobre a validade do mecanismo como<br />

ferramenta para a proteção da biodiversidade da Floresta<br />

Amazônica.<br />

Adicionalmente, apesar de seu caráter<br />

exclusivamente voluntário - já que as reduções de<br />

emissões dele decorrentes não podem ser usadas para<br />

compensar emissões, nem contabilizadas como parte de<br />

metas obrigatórias governamentais ou daquelas firmadas<br />

em tratados internacionais - o Projeto Juma ainda<br />

poderá contribuir para a concretização de outras metas e<br />

programas tanto nacionais quanto internacionais. Suas<br />

emissões evitadas vêm ao encontro das metas de redução<br />

p<strong>rev</strong>istas no Programa Nacional de Mudanças Climáticas,<br />

assim como a preservação de sua área poderá concorrer<br />

para os objetivos de Tratados, como o da Convenção da<br />

Diversidade Biológica, o da Convenção para Combate<br />

à Desertificação e outros programas de conservação de<br />

espécies.<br />

Contrapondo-se aos potenciais benefícios do<br />

Projeto, citados acima, os mesmos podem ter seus efeitos<br />

minimizados ou até anulados se não buscar sua integração<br />

a um contexto mais amplo de compromissos nacionais<br />

e internacionais de preservação ambiental. Os projetos<br />

de REDD voluntários, por não se alinharem a nenhuma<br />

política nacional de contabilização de emissões, permitem<br />

o efeito de vazamento nacional e internacional, ou seja, o<br />

desmatamento evitado por um projeto específico pode ser<br />

deslocados para outros locais (dentro ou até mesmo fora<br />

do país) e suas conseqüentes reduções de emissões seriam,<br />

assim, anuladas. Esse efeito o comprometeria quer na<br />

redução nacional de emissões de CO 2, quer na garantia de<br />

beneficio da biodiversidade.<br />

O Projeto de REDD da RDS do Juma, a exemplo de<br />

outros projetos dessa natureza, possui um grande potencial<br />

de geração de benefícios, porém, é imprescindível a busca<br />

de um acordo internacional que suceda o Protocolo de<br />

Quioto que viabilize a operacionalização de um esquema<br />

de REDD em escala nacional e minimize, ou até elimine,<br />

80<br />

as chances do efeito de vazamento, assim como p<strong>rev</strong>ina<br />

o aumento global da temperatura a níveis que venham<br />

comprometer a permanência da floresta Amazônica.<br />

Tal situação favoreceria a integridade dos benefícios<br />

proporcionados por este e outros futuros projetos de REDD.<br />

Abstract: Recent estimates show that the biodiversity<br />

of the Amazon can match the existing half of the planet,<br />

safeguarding a rich variety of environmental services and<br />

biological processes vital to the Earth. The summary of<br />

the determinations set out in the Framework Convention<br />

of the United Nations on Climate Change (UNFCCC)<br />

presents a strengthening of debates on forests and the<br />

prospect of creating an instrument of Reducing Emissions<br />

from Deforestation and Forest Degradation (REDD)<br />

within the UNFCCC that economically reward countries<br />

with large forest areas preserved. While negotiations<br />

on REDD are discussed between the parties, several<br />

initiatives to implement sub-national volunteer projects are<br />

spreading throughout the world, generating direct climate,<br />

environmental and social benefits as well as serving as a<br />

lesson for other potential projects arising from a future<br />

international agreement. This article aims to bring the<br />

issue of forests within and outside the area of international<br />

negotiations on climate change and its potential benefits<br />

for biodiversity and the communities of the Amazon<br />

rainforest in the light of the Juma Project, located in the<br />

municipality of Aripuanã Amazonas. The paper concludes<br />

that the implementation of REDD volunteer projects can<br />

indeed be an effective tool for preserving biodiversity and<br />

the dignity of the peoples of the Amazon. Nevertheless,<br />

an international agreement to succeed the Quioto protocol<br />

should be sought, making the operation of a reed scheme<br />

possible on a national scale in a fair way that promotes the<br />

full benefits provided by forest protection.<br />

Key-words: Environment. REDD. Deforestation.<br />

Forest Degradation. Juma Project. Biodiversity. Local<br />

communities.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


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81


82<br />

Adoção por casais homoafetivos<br />

MARCELLA CORRÊA MARQUES GONÇALVES DOS SANTOS<br />

Graduada em Direito pela Fundação Armando Alvares Penteado. Estagiária da Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª<br />

Região.<br />

Resumo: Atualmente, em razão das inúmeras crianças e adolescentes que se encontram em instituições para menores<br />

e o número de pleitos de adoção por casais homoafetivos, tem-se realizado uma interpretação integrada das legislações<br />

concernentes à adoção, do art. 226 da Constituição Federal, bem como dos arts. 4º e 5º da LICC. Isso para justificar que,<br />

diante da intenção implícita das normas, que visam à tutela de qualquer família, independentemente de sua constituição,<br />

bem como do interesse social, há a possibilidade de um casal formado por pessoas do mesmo sexo atender os princípios<br />

da proteção integral à criança e ao adolescente e do melhor interesse da criança ao receber em seu seio familiar um filho.<br />

Palavras-chaves: Adoção. Casais homoafetivos. Constituição Federal. LICC. Tutela. Interesse social. Princípios.<br />

1. Introdução<br />

Na sociedade atual, em que existe uma mudança<br />

de valores com relação ao conceito de família, não<br />

podemos considerar correto negar aos casais homoafetivos<br />

o exercício ao <strong>direito</strong> a parentalidade. Também não se pode<br />

deixar de atender uma necessidade social, que é a adoção<br />

de crianças e adolescentes que se encontram em situação de<br />

abandono, justificada na lacuna presente no ordenamento<br />

jurídico pátrio que não contempla expressamente as uniões<br />

homoafetivas.<br />

Faz-se, então, necessária a utilização de uma<br />

interpretação mais moderna com base nos valores atuais<br />

da sociedade, nos princípios consagrados em nossa Carta<br />

Maior, na legislação vigente e no atendimento aos bons<br />

costumes, justificando sua titularidade ao <strong>direito</strong> à adoção.<br />

2. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana<br />

Kant considerou que a “lei universal é a lei<br />

moral”. Assim, ética e <strong>direito</strong> se aproximam, conduzindo<br />

a normatização do princípio da dignidade humana, que<br />

no sistema jurídico brasileiro vem se colocando como o<br />

primeiro dos princípios e matriz da Constituição.<br />

Desde 1988, está instituído, entre outros, o princípio<br />

do respeito à dignidade da pessoa humana, fazendo da<br />

pessoa o fundamento e o fim da sociedade e do Estado.<br />

Dessa forma, todas as normas constitucionais assim como<br />

o restante da ordem jurídica deverão ser interpretadas à luz<br />

deste princípio.<br />

A procura pelo exercício da parentalidade por pares<br />

homossexuais demonstra a existência de fato social que,<br />

agregado ao princípio da dignidade da pessoa humana e<br />

ao princípio da igualdade, no atual Estado Democrático de<br />

Direito, aponta para a necessidade de dar força normativa<br />

aos princípios da Constituição Federal e aos <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais.<br />

Nota-se que, em razão do <strong>direito</strong> à homoparentalidade<br />

estar vinculado à formação da identidade do ser humano em<br />

sua busca pela realização pessoal e felicidade, este deverá<br />

ser analisado de acordo com o princípio da dignidade da<br />

pessoa humana.<br />

Sendo assim, a dignidade humana é princípio que<br />

unifica e centraliza todo o sistema normativo,<br />

assumindo especial prioridade, 1 principalmente<br />

quando se está diante de questões que suscitem<br />

respostas, por envolver, de um lado, o exercício da<br />

maternidade/paternidade e, de outro, a possibilidade<br />

de crianças e adolescentes possuírem um ambiente<br />

de afeto e respeito, que assegurem a primazia de<br />

pessoas em desenvolvimento. 2<br />

3. O princípio da igualdade e a orientação sexual<br />

“Um dos princípios estruturantes do regime geral<br />

dos <strong>direito</strong>s fundamentais é o princípio da igualdade.” 3<br />

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948,<br />

em seu artigo 1º, consagrou a idéia de igualdade entre os<br />

homens. Após esta idéia ser consagrada universalmente<br />

pela referida Declaração, as constituições pátrias trouxeram<br />

o princípio da igualdade para seus textos.<br />

1 PIOVESAN, Flávia apud MOSCHETTA, Sílvia Ozelame Rigo. Homoparentalidade: <strong>direito</strong> à adoção e reprodução humana assistida por casais homoafetivos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 118.<br />

2 MOSCHETTA, Sílvia Ozelame Rigo. Homoparentalidade: <strong>direito</strong> à adoção e reprodução humana assistida por casais homoafetivos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 118.<br />

3 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 424.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


Para a igualdade formal, a norma jurídica deverá<br />

ser aplicada em cada caso concreto como está expressa,<br />

sem levar em conta as qualidades ou situações de seus<br />

destinatários.<br />

Essa face do princípio da igualdade, como traz<br />

Roger Raupp Rios, busca a igualdade entre as pessoas<br />

“mediante a universalização das normas jurídicas em face<br />

de todos os sujeitos de <strong>direito</strong>” 4 . Dessa forma, quanto à<br />

orientação sexual, as normas deverão ser aplicadas sem<br />

qualquer distinção entre homossexuais e heterossexuais.<br />

Em razão das várias formas de discriminação e<br />

preconceito, foram positivados no texto constitucional,<br />

em seu art. 3º, IV, como um dos objetivos da República<br />

Federativa do Brasil, critérios proibitivos de diferenciação,<br />

tais como a vedação de preconceitos em razão de origem,<br />

raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de<br />

discriminação.<br />

Apesar da Constituição não trazer de forma expressa<br />

o critério proibitivo de discriminação por orientação<br />

sexual, a vedação de discriminação ainda é possível, uma<br />

vez que pode ser encaixada na parte final do art. 3º, IV<br />

da Constituição Federal, garantindo tanto a igualdade entre<br />

os heterossexuais e homossexuais como a possibilidade de<br />

adotarem livremente sua orientação sexual.<br />

É possível ainda considerar que esse tipo proibitivo<br />

está englobado na proibição de discriminação por sexo,<br />

visto que é “uma hipótese de diferenciação fundada no<br />

sexo da pessoa para quem alguém dirige seu envolvimento<br />

sexual [...]”. 5<br />

Devido à interface material do princípio da<br />

igualdade, um tratamento desigual será aplicado somente<br />

às situações que possuam uma justificativa racional para<br />

tanto. Esta regra também é aplicada para situações que<br />

envolvam a orientação sexual do sujeito, justificando<br />

apenas a desigualdade de tratamento quando houver<br />

uma razão lógica. Do contrário, p<strong>rev</strong>alecerá o tratamento<br />

igualitário.<br />

Nesse diapasão, qualquer desigualdade de<br />

tratamento despendido daquele aplicado aos heterossexuais<br />

que decorram exclusivamente da orientação sexual e<br />

fundamentada seja na discriminação ou na utilização<br />

do preconceito a homossexuais ofenderá o princípio<br />

constitucional da dignidade da pessoa humana, tornandose<br />

inconstitucional por ferir a ordem constitucional e<br />

democrática.<br />

Dessa forma:<br />

A questão não pode ser vista por outro prisma,<br />

senão o isonômico, quando pares homoafetivos<br />

que desejam o exercício da parentalidade, atendido<br />

o melhor interesse da criança ou adolescente,<br />

buscam o estabelecimento de vínculos paternomaternofiliais<br />

na maternidade/paternidade que,<br />

no caso, se concretiza por meio da adoção ou<br />

reprodução humana assistida. 6<br />

4. Família Constitucionalizada: Pluralidade das<br />

Formas de Família<br />

Além de se fundar nos princípios da dignidade da<br />

pessoa humana e igualdade, a possibilidade de adoção<br />

pelos casais homoafetivos se baseia fundamentalmente na<br />

transformação sofrida pela família.<br />

As transformações operadas na sociedade brasileira<br />

durante o século XX repercutiram enormemente nas<br />

relações jurídicas de Direito de família e apresentam, neste<br />

início de século XXI, inovações fundamentais nas famílias<br />

jurídicas. 7<br />

Diante dessas transformações, nota-se que no<br />

mundo contemporâneo o modelo tradicional de família,<br />

constituído pelo matrimônio entre um homem e uma<br />

mulher, foi deixado para trás, dando vez ao surgimento das<br />

famílias plurais.<br />

As constituições brasileiras sempre retrataram as<br />

etapas históricas do País, inclusive no que diz respeito<br />

ao <strong>direito</strong> de família. A Constituição Federal de 1988,<br />

com base no consagrado princípio da dignidade humana<br />

e considerando como supremos objetivos a liberdade,<br />

justiça e solidariedade, atribui à família uma função<br />

social, constituindo-se como uma comunidade de afeto<br />

e mútua ajuda, buscando a tutela da pessoa humana, em<br />

suas dimensões existenciais e socioafetivas, eliminando<br />

discriminações e diferenciações.<br />

Uma marcante transformação foi instituída com a<br />

expansão da proteção do Estado à família, tais como:<br />

a) a proteção do Estado alcança qualquer entidade<br />

familiar, sem restrições;<br />

b) a família, entendida como entidade, assume<br />

claramente a posição de sujeito de <strong>direito</strong>s de<br />

obrigações;<br />

c) os interesses das pessoas humanas, integrantes<br />

da família, recebem primazia sobre os interesses<br />

patrimonializantes;<br />

d) a natureza socioafetiva da filiação torna-se<br />

gênero,abrangente das espécies biológica e não<br />

biológica;<br />

e) consuma-se a igualdade entre os gêneros e entre<br />

os filhos;<br />

f) reafirma-se a liberdade de constituir, manter<br />

e extinguir entidade familiar e a liberdade de<br />

planejamento familiar, sem imposição estatal;<br />

g) a família configura-se no espaço de realização<br />

pessoal e da dignidade humana de seus membros. 8<br />

4 RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual: a homossexualidade no <strong>direito</strong> brasileiro e norte-americano. São Paulo: R. dos Tribunais, 2002, p. 129.<br />

5 Ibidem, p.133.<br />

6 MOSCHETTA, Sílvia Ozelame Rigo. Homoparentalidade: <strong>direito</strong> à adoção e reprodução humana assistida por casais homoafetivos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 121.<br />

7 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de <strong>direito</strong> de família: guarda compartilhada à luz da Lei n. 11.698/08: família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas,<br />

2008, p. 20.<br />

8 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 35.<br />

83


A Constituição Federal vigente passa a reconhecer<br />

o status de família às outras formas de entidade familiar e<br />

não só àquelas constituídas pelo instituto do matrimônio.<br />

Assim, deu também especial proteção à união estável, em<br />

seu art. 226, parágrafo 3º, que compreende a existência da<br />

união entre homem e mulher, devendo a lei facilitar sua<br />

conversão em casamento e a comunidade formada por<br />

qualquer um dos pais e seus descendentes, também chamada<br />

de família monoparental, em seu art. 226, parágrafo 4º.<br />

Apesar de essas entidades familiares estarem<br />

p<strong>rev</strong>istas de forma expressa no texto constitucional,<br />

por serem as mais comuns, devem ser encaradas como<br />

exemplificativas, uma vez que existe a presença de família<br />

em situações diversas.<br />

A família, como p<strong>rev</strong>isto no art. 226 da CF, é a<br />

base da sociedade, merecedora de proteção estatal. No<br />

entanto, apesar de trazer de forma expressa três tipos de<br />

entidade familiar, não trouxe nenhuma norma de exclusão<br />

a outros possíveis modelos de constituição, uma vez que o<br />

destinatário da proteção do Estado é a instituição família e<br />

não suas espécies.<br />

84<br />

Como exposto, várias são as possibilidades de<br />

formação familiar, o que evidencia a crise da<br />

tradicional família patriarcal e o surgimento de<br />

novos núcleos familiares ainda ignorados pelo<br />

Estado, mas cada vez mais frequentes e aceitos pela<br />

sociedade neste início de século XXI. 9<br />

5. Adoção por Casais Homoafetivos: Possibilidade<br />

Jurídica<br />

Atualmente, o instituto da adoção é regido tanto<br />

pelo Código Civil de 2002 como pelo Estatuto da Criança<br />

e do Adolescente. O atual Código Civil determina pela<br />

aplicação subsidiária do ECA às adoções dos maiores de<br />

18 anos. Assim, os principais requisitos para adoção tanto<br />

de menores como para de maiores de 18 anos são comuns.<br />

A seguir serão analisados os requisitos da adoção à<br />

luz de sua possibilidade por casais homoafetivos.<br />

5.1 Da colocação em família substituta homoafetiva<br />

O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao dispor<br />

em seu art. 29 sobre a colocação em família substituta,<br />

determina que “não se deferirá colocação em família<br />

substituta a pessoa que <strong>rev</strong>ele, por qualquer modo,<br />

incompatibilidade com a natureza da medida ou não<br />

ofereça ambiente familiar adequado”.<br />

Sobre esse requisito para o exercício da colocação<br />

em família substituta, ressalta Luiz Carlos de Barros<br />

Figueiredo 10 que cada pleito seja de guarda, tutela ou<br />

adoção, partindo do princípio de que o legislador se<br />

utilizou de uma fórmula ampla e impositiva de análise,<br />

deverá o caso ser acompanhado e estudado por uma equipe<br />

técnica conjuntamente com o promotor de Justiça e o juiz,<br />

levando-se em conta suas peculiaridades para análise de<br />

cada caso concreto, a fim de verificar seu enquadramento<br />

ou não na vedação legal.<br />

Com a aplicação dessa metodologia em que vários<br />

olhares fazem a análise do mesmo caso, torna-se impossível<br />

a generalização ou mesmo a instituição de um rol taxativo,<br />

definindo o que é ou não um ambiente familiar adequado.<br />

Mesmo assim, podem-se exemplificar algumas situações<br />

que se encaixam nessa vedação, dando uma direção àquele<br />

que for interpretar a norma, servindo de base para a análise<br />

do caso concreto.<br />

Como exemplo, temos o art. 19 do próprio ECA,<br />

ao dispor sobre o <strong>direito</strong> da criança e do adolescente à<br />

convivência familiar e comunitária, in verbis:<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.<br />

Art. 19. Toda criança ou adolescente tem <strong>direito</strong><br />

a ser criado e educado no seio da sua família e,<br />

excepcionalmente, em família substituta, assegurada<br />

a convivência familiar e comunitária, em ambiente<br />

livre da presença de pessoas dependentes de<br />

substâncias entorpecentes.<br />

Torna-se, portanto, inaceitável diante de<br />

manifestação expressa do legislador que criança ou<br />

adolescente seja colocada em família substituta em que<br />

haja presença de pessoas dependentes de substâncias<br />

entorpecentes, como, por exemplo, viciada em drogas ou<br />

alcoolista.<br />

O referido autor ainda traz outros exemplos, como:<br />

Pessoas com antecedentes criminais, especialmente<br />

se tiveram como vítimas crianças/adolescentes ou<br />

se foram abusadores sexuais, não são indicadas<br />

para serem adotantes [...]. Agressores de parentes<br />

próximos (esposa, filhos, pais etc.) [...] também<br />

devem ter seus pleitos indeferidos. 11<br />

Nessa linha de raciocínio, o artigo 6º estabelece<br />

a hermenêutica básica do Estatuto da Criança e do<br />

Adolescente, ao determinar que “levar-se-ão em conta<br />

os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem<br />

comum, os <strong>direito</strong>s e deveres individuais e coletivos, e<br />

a condição peculiar da criança e do adolescente como<br />

pessoas em desenvolvimento”. Dessa forma, a sistemática<br />

adotada pelo ECA foi o da proteção integral à criança e<br />

ao adolescente, vistos como pessoas em desenvolvimento<br />

com <strong>direito</strong> à proteção integral.<br />

9 DINIZ, Maria Aparecida Silva Matias. Adoção por pares homoafetivos: uma tendência da nova família brasileira. Disponível em . Acesso em 20<br />

fev. 2011.<br />

10 FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para homossexuais. 1ª ed., 9ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2010, p. 78.<br />

11 FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para homossexuais. 1ª ed., 9ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2010, p. 80.


Com base no art. 29, já apresentado, pode-se<br />

concluir que tanto a criança como o adolescente não devem<br />

ser colocados em família substituta, caso esta não lhes<br />

ofereça ambiente propício e adequado ao seu crescimento<br />

e desenvolvimento físico, psíquico e social. É possível que<br />

qualquer pessoa queira e possa pleitear a adoção, uma vez<br />

que não existe total vedação a quem quer que seja, inclusive<br />

em razão de sua orientação sexual.<br />

5.2 Documentação necessária: o art. 197-A e o casal<br />

homoafetivo<br />

Para que o candidato à adoção se habilite, deverá<br />

apresentar uma série de documentos que estão elencados<br />

no art. 197-A do ECA, com redação dada pela Lei nº<br />

12.010/09.<br />

Será analisado igualmente o pedido formulado, seja<br />

por um casal homoafetivo, seja por um casal heterossexual.<br />

Em primeiro lugar será verificada a competência do juízo<br />

e o atendimento às exigências referentes à documentação<br />

e peças instrutórias. Em seguida, será feita a observação e<br />

a análise do ambiente familiar quanto a sua adequação ao<br />

caso, conforme p<strong>rev</strong>isto no art. 29 do ECA.<br />

De uma forma geral, todos os incisos do referido<br />

artigo podem ser atendidos por qualquer casal homoafetivo,<br />

inclusive o inciso III que dispõe: “cópias autenticadas<br />

de certidão de nascimento ou casamento, ou declaração<br />

relativa ao período de união estável”. Isso porque, como<br />

entende Enézio de Deus Silva Júnior 12 , o período da união<br />

homoafetiva estável poderá ser atestado, por exemplo, por<br />

escritura pública declaratória de união estável, expedida<br />

em favor de casais homoafetivos em todo o País pelos<br />

cartórios.<br />

5.3 Arts. 42 e 43 do ECA e a possibilidade da adoção<br />

biparental homoafetiva<br />

Nenhuma vedação é apresentada em relação<br />

à adoção biparental homossexual, seja no ECA ou<br />

no atual Código Civil, com redação dada pela Lei de<br />

Adoção, seguindo, dessa forma, o norte trilhado pela<br />

nossa Constituição Federal, que veda a discriminação de<br />

qualquer natureza, inclusive em razão de sexo que inclui o<br />

preconceito com base na orientação sexual.<br />

No entanto, é sustentada por muitos a ideia da<br />

inviabilidade da adoção por pares do mesmo sexo em<br />

decorrência do parágrafo 2º do art. 42 do ECA, com<br />

redação dada pela Lei nº 12.010/2009. Neste é p<strong>rev</strong>isto ser<br />

indispensável para adoção conjunta que os adotantes sejam<br />

casados ou mantenham união estável, definida pelo art.<br />

1.723 do Código Civil como a entidade familiar formada<br />

por homem e mulher configurada na convivência pública,<br />

contínua e duradoura, e estabelecida com o objetivo de<br />

constituição de família.<br />

Reforçando esse pensamento, observa o juiz<br />

Titular da 2ª Vara da Infância e da Juventude do Recife,<br />

Luiz Carlos de Barros Figueirêdo, que se manifesta pela<br />

impossibilidade absoluta da concessão de adoção a favor<br />

de casais homossexuais, sob o argumento de que:<br />

A Constituição Federal em seu art. 226, parágrafo 3º<br />

reconhece como Entidade Familiar a união estável<br />

entre homem e mulher, o que já representa enorme<br />

avanço social se comparado com a legislação<br />

anterior que apenas valorizava o casamento civil<br />

e só dele emanavam <strong>direito</strong>s a respeito de filiação,<br />

patrimoniais etc., o que levava a que basicamente<br />

todas as inovações neste campo fossem fruto<br />

de construções jurisprudenciais, que paulatina e<br />

lentamente eram incorporadas à normativa interna.<br />

De toda sorte, por mais estável que seja, a união<br />

entre dois homens ou duas mulheres não encontra<br />

amparo no atual ordenamento jurídico brasileiro. 13<br />

Defendendo essa mesma posição, está Márcia<br />

Lopes de Carvalho, que, ao responder sobre a possibilidade<br />

de adoção por um casal homossexual, alegou que “nossa<br />

legislação ainda não permite casamentos homossexuais,<br />

então a adoção teria de ser feita por um membro do par,<br />

como solteiro.” 14<br />

Contrariamente, os que defendem a possibilidade<br />

de adoção biparental homoafetiva, valem-se de uma<br />

interpretação sistemática da matéria, uma vez que, o<br />

art. 226 da Constituição Federal deve ser compreendido<br />

de forma exemplificativa, aplicando uma interpretação<br />

ampliada das entidades familiares existentes e protegidas<br />

pela norma fundamental, “o que permite reconhecer a<br />

união homoafetiva como espécie de entidade familiar”. 15<br />

Sobre essa sistemática o MM. Juiz Sérgio Luiz<br />

Kreuz, da Vara da Infância e Juventude de Cascavel no<br />

Estado do Paraná, em decisão 16 que julgou procedente<br />

a adoção por casais homoafetivos, salientou que o novo<br />

modelo de família se estrutura nas relações de afeto, amor<br />

e igualdade, e que o texto constitucional não exclui outras<br />

formações familiares existentes, além daquelas expressas,<br />

destinando ao gênero família a titularidade da proteção<br />

estatal e não às suas espécies de constituição. O que<br />

acarreta a identificação da união homoafetiva do caso em<br />

tela como uma verdadeira família, merecedora de proteção<br />

estatal.<br />

Assim, ao se reconhecer a união homoafetiva como<br />

entidade familiar, Enézio de Deus Silva Júnior 17 , entende<br />

12 SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 115.<br />

13 FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para homossexuais. 1ª ed., 9ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2010, p. 94.<br />

14 CARVALHO, Márcia Lopes de apud FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para homossexuais. 1ª ed., 9ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2010, p. 95.<br />

15 TORRES, Aimbere Francisco. Adoção nas relações homoparentais. São Paulo: Atlas, 2009, p. 114.<br />

16 BRASIL. Vara da Infância e da Juventude. Proc. 0016380-68.2010.8.16.0021, j. 26.07.2010. Disponível em . Acesso em 15<br />

mar. 2011.<br />

17 SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 114.<br />

85


ser perfeitamente cabível o uso expresso da analogia<br />

disposto no art. 4º da LICC como instrumento de integração<br />

legislativa. Sustenta que, perante a omissão de norma<br />

expressa sobre as uniões homoafetivas e pela similitude<br />

com a união estável, é possível a aplicação da legislação<br />

concernente a esta entidade familiar “aos pleitos de pares<br />

do mesmo sexo, atribuindo-lhes todo o plexo de <strong>direito</strong>s<br />

familiares – inclusive, para efeito de adoção em conjunto<br />

de crianças, adolescentes e até de maiores (de 18 anos)”. 18<br />

Assim, a carência de lei não acarreta na inexistência<br />

do <strong>direito</strong> à adoção por casais homoafetivos, uma vez que<br />

o próprio ordenamento jurídico traz na LICC em seus arts.<br />

4º e 5º formas de integração legislativa para solucionar os<br />

casos de omissão. Deve-se ressaltar que omissão não é o<br />

mesmo que vedação. Em nenhum momento há qualquer<br />

tipo de vedação á adoção biparental homoafetiva. O que<br />

existe é uma omissão.<br />

Para Paulo Lôbo 19 o art. 1.622 do CC não pode<br />

limitar a adoção conjunta aos cônjuges e companheiros,<br />

uma vez que a Constituição Federal em seu art. 227, §§ 5º<br />

e 6º, ao tratar da adoção, não traz qualquer impedimento<br />

para que pares do mesmo sexo, que vivam sob uma relação<br />

afetiva, possam adotar a mesma criança.<br />

Na prática temos sentença 20 proferida pela MM.<br />

Juíza Monica Labuto Fragoso Machado, da 1ª Vara Regional<br />

da Infância, da Juventude e do Idoso do Rio de Janeiro, que<br />

entende que não há em qualquer momento referência no<br />

art. 42 do ECA, que seria a união estável entre homem e<br />

mulher que asseguraria a adoção conjunta. Dessa forma,<br />

para o reconhecimento da união estável como entidade<br />

familiar, há a necessidade da presença de estabilidade,<br />

publicidade e a afetividade com o intuito de constituir<br />

família. Sustentou ainda, que a união homoafetiva somente<br />

não foi destacada pelo art. 226 da Constituição Federal<br />

como entidade familiar, mas que em nenhum momento foi<br />

excluída expressamente.<br />

Maria Berenice Dias 21 se manifesta, alegando<br />

que ocorrendo a falta de qualquer impedimento, deverá<br />

p<strong>rev</strong>alecer o princípio consagrado no art. 43 do ECA, que<br />

admite a adoção quando se fundar em motivos legítimos,<br />

bem como apresentar reais vantagens ao adotando. Neste<br />

sentido, é legítimo o interesse na adoção de uma família<br />

ainda que constituída por pessoas do mesmo sexo, tendo<br />

em vista a preocupação do legislador em garantir o bemestar<br />

do adotando, não havendo motivo algum para deixálo<br />

fora de um lar, constatando-se a existência de reais<br />

vantagens a quem não tem ninguém.<br />

Atendendo ao art. 43 supracitado e ao art. 227 da<br />

Constituição Federal que visam atender ao princípio da<br />

86<br />

proteção integral ao adotando, possibilitando reais garantias<br />

de convivência familiar atrelado ao afeto necessário para<br />

o desenvolvimento equilibrado e saudável, reserva-se<br />

especial preocupação no atendimento ao princípio do<br />

melhor interesse da criança e do adolescente, princípio este<br />

norteador da adoção.<br />

Dessa forma, na falta de qualquer impedimento<br />

ou vedação para a adoção biparental homoafetiva, deverá<br />

p<strong>rev</strong>alecer sempre o princípio da proteção integral à criança<br />

e ao adolescente, o princípio do melhor interesse da criança<br />

e ainda o seu <strong>direito</strong> com prioridade à convivência familiar<br />

garantido no art. 227 da Constituição Federal.<br />

Assim, evidencia-se que o magistrado “na aplicação<br />

da lei (...), deve, antes mesmo de se apegar demasiadamente<br />

a normas formais, perscrutar os superiores interesses<br />

do menor.” 22 Para corroborar, traz Enézio de Deus Silva<br />

Júnior 23 que o magistrado não é auto-suficiente para<br />

constatar a realidade fático-ambiental na qual o adotando<br />

será inserido, mas “só a leitura atenta e personalizada de<br />

cada pretensão, pela equipe técnica, Promotor de Justiça<br />

e o Juiz da Infância, é capaz de assegurar a boa aplicação<br />

da lei ao caso concreto.” 24<br />

5.4 Estágio de convivência na adoção homoafetiva<br />

É determinado pelo ECA em seu art. 46 que “a<br />

adoção será precedida de estágio de convivência com<br />

a criança ou adolescente, pelo prazo que a autoridade<br />

judiciária fixar, observadas as peculiaridades do caso”.<br />

Isso porque, a criança ou adolescente, por se encontrar em<br />

processo de desenvolvimento, “necessita de um estágio<br />

de convivência com o(s) adotante(s), que possibilite a<br />

aproximação afetiva, a investigação do Juizado sobre<br />

aquela ambiência familiar, além da certeza da decisão<br />

pela adoção.” 25<br />

Como ressalta Enézio de Deus Silva Júnior 26 , a equipe<br />

multiprofissional constituída por psicólogos e assistentes<br />

sociais elaboram laudos e pareceres em decorrência do<br />

acompanhamento do estágio de convivência, não tomando<br />

a orientação sexual dos postulantes como fator isolado<br />

que sirva para demonstrar o preparo ou despreparo para<br />

maternidade/paternidade.<br />

Esses laudos e pareceres técnicos possuem<br />

suma importância na formação do convencimento do<br />

magistrado e, contrariamente ao que se possa imaginar,<br />

tem demonstrado que a orientação sexual dos requerentes<br />

não é um elemento suficiente para inabilitar uma pessoa<br />

ou casal para as funções familiares ou para a educação de<br />

crianças e adolescentes.<br />

18 Idem.<br />

19 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 91.<br />

20 BRASIL. 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso do Estado do Rio de Janeiro. Processo nº 2009. 202.020.729-8. j. 25/05/2010. Disponível em www.<strong>direito</strong>homoafetivo.com.br/uploads_<br />

jurisprudencia/671.pdf. Acesso em 15 mar. 2011.<br />

21 DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito & a justiça. 4. Ed., ver., atual. e ampl. São Paulo: R. dos Tribunais, 2009, p. 213.<br />

22 BANDEIRA, Marcos apud SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá Editora, 2010, p. 117.<br />

23 SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 117.<br />

24 FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros apud SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 117.<br />

25 SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 115.<br />

26 Ibidem, 116.<br />

Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/<strong>junho</strong>. 2011.


5.5 A problemática da adoção por falso solteiro<br />

homoafetivo (ou monoparental)<br />

Alguns casais homoafetivos têm suas petições<br />

iniciais indeferidas, sob o argumento de impossibilidade<br />

jurídica do pedido, não sendo aceitos nos cadastros<br />

de adoção, impossibilitando a realização do estudo<br />

psicossocial.<br />

Diante dessa dificuldade para o deferimento da<br />

adoção a casais homoafetivos, eles têm se orientado pela<br />

adoção por um deles, escolhendo qual adotará formalmente<br />

como falso solteiro. No entanto, concedida a adoção, o<br />

adotado passará a conviver com o parceiro do adotante,<br />

que certamente exercerá as funções parentais. Mesmo<br />

que na prática esse filho tenha dois pais, ele somente<br />

poderá desfrutar do <strong>direito</strong> de alimentos, benefícios<br />

p<strong>rev</strong>idenciários ou sucessórios exclusivamente daquele<br />

que o adotou, causando enorme prejuízo.<br />

Assim, quando da separação dos parceiros, ou se<br />

ocorrer a morte do que não é legalmente o genitor,<br />

não pode o filho pleitear qualquer <strong>direito</strong> daquele que<br />

também reconhece como verdadeiramente sendo<br />

seu pai ou sua mãe. E mais: falecendo o adotante, o<br />

adotado resta órfão, não havendo qualquer vínculo<br />

com quem não é o pai ou mãe registral. 27<br />

Para corroborar com o explicado, o MM. Juiz<br />

Sérgio Luiz Kreuz, em decisão proferida no Estado do<br />

Paraná, afirma:<br />

A adoção, por ambos os requerentes,o beneficia<br />

na medida em que a situação jurídica será muito<br />

mais próxima da realidade, já que ambos exercem<br />

a paternidade, a criança os trata como seus pais<br />

e terá dois responsáveis para todos os efeitos da<br />

vida civil. Embora menos relevante, não se pode<br />

deixar de considerar que também sob a perspectiva<br />

patrimonial será beneficiado. Será herdeiro dos<br />

dois requerentes, terá <strong>direito</strong> a pensão alimentícia<br />

em caso de eventual separação, <strong>direito</strong> de receber<br />

visitas, além de se vincular, para todos os efeitos,<br />

com as famílias extensas de ambos. 28<br />

Dessa forma, considerando que a ausência de<br />

lei reconhecendo determinado <strong>direito</strong>, não significa a<br />

impossibilidade jurídica do pedido, o juiz não deve se<br />

escusar de julgar uma causa, uma vez que a própria Lei de<br />

Introdução ao Código Civil e o Código de Processo Civil<br />

impõe ao juiz o dever de julgar mesmo quando haja lacuna<br />

na lei.<br />

Assim: não havendo proibição expressa para<br />

adoção por casais homossexuais no <strong>direito</strong> brasileiro; e sua<br />

semelhança com a união estável, o juiz, segundo Enézio de<br />

Deus Silva Júnior 29 , deverá ter bom senso e realizar uma<br />

interpretação extensiva e sensata sobre a possibilidade da<br />

adoção, para que pelo menos a inicial seja acolhida, para<br />

que o acesso aos resultados do estágio de convivência para<br />

análise do estudo psicossocial seja possível de ser realizado<br />

por multiprofissionais habilitados tecnicamente para<br />

realização de investigação do ambiente emocional familiar,<br />

a subjetividade e a dinâmica da vinculação homoafetiva<br />

com o adotando.<br />

5.6 Outros contra-argumentos quanto à<br />

possibilidade de adoção biparental homoafetiva<br />

Outros argumentos são utilizados para sustentar a<br />

impossibilidade da adoção por casais homossexuais. Entre<br />

eles há quem afirme sobre a possibilidade da orientação<br />

afetivo-sexual dos pais influenciar no desenvolvimento<br />

afetivo do filho, tornando-os também homossexuais. Há<br />

ainda quem sustente sobre possíveis prejuízos causados ao<br />

adotando em razão da falta de referência paterna e materna,<br />

bem como pelo peso do preconceito consequente de sua<br />

convivência social, afetando sua estrutura psíquica.<br />