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VIL A FRANCÂ, Conde dc —<br />
I). Joio I c a Aliança Jngjc».<br />
1SK4. 4". 300 OS*. .. 1 200.00
D. JOÀO I<br />
E A<br />
ALLIANÇA INGLEZA
D. JOÃO I<br />
E A<br />
ALLIANÇA INGLEZA<br />
INVESTIGAÇÕES HISTORICO-SOCIAES<br />
PELO<br />
CONDE DE VILLA FRANCA<br />
LISBOA<br />
L I V R A R I A F E R R E I R A<br />
132 —Rua Áurea —134<br />
1884
I<br />
I<br />
d<br />
i k. 7<br />
i K'SE" V !:!L<br />
Divida r>- •. cafcçia<br />
H.SÍ6.<br />
335<br />
COIMBRA —IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
AO<br />
I LLUSTRISSL MO E EXCELLENTISSI MO SENHOR<br />
CONSELHEIRO ANTONIO DE SERPA P1MENTEL<br />
KX-MINI8TKO B SBCKKTARIO l)K B.STAÜO DOS KBGOCIOS BXTRANtiKIRO*<br />
TESTEMÜMIO DE ALTO APREÇO E MUITA CONSIDERAÇÃO
L'histoire nc doit êtrc qu'un miroir<br />
d'optiquc, ou sc peigncnt les hommes<br />
et les choses; dc loin, <strong>com</strong>me de pi es.<br />
Henri Martin—Ilistoire de France,<br />
Avertisscment.<br />
A historia da nação portugueza cm suas relações externas<br />
<strong>com</strong> os demais povos desde o <strong>com</strong>eço da Monarchia é aturado<br />
estudo, em que o auetor lida ha diversos annos.<br />
Não lhe permitte a amplidão da obra submettel-a desde<br />
agora a juizo publico. Parte restricta d'esse estudo apresentam<br />
porém algumas das paginas que encella o presente volume.<br />
E seu principal objectivo manifestar que sob o sceptro de<br />
D. João I assumiu <strong>com</strong> relação a Inglaterra phase nova e mui<br />
diversa a política secular d'estes reinos, política geralmente<br />
seguida desde então até os nossos dias.<br />
Não desconhece o auetor o arrojo de prescnlar doutrina<br />
em contradicção ao que ha séculos se tem ininterruptamente<br />
escripto, mas em vez da practica rotineira dc <strong>com</strong>pendiar as<br />
velhas chronicas, e de implicitamente lhes seguir as asserções,
VIII<br />
procurou clle fundamentar sobre monumentos authenticos e<br />
na maxima parte desconhecidos entre nós os momentosos<br />
successos que refere.<br />
Mais procurou o auetor estudar nos documentos contem-<br />
porâneos, e ainda em escriptores extrangeiros, coevos de taes<br />
successos, a origem de muitos d'estes, bem <strong>com</strong>o a sequencia<br />
de outros, é não se poupou a fadigas para tirar a lume notáveis<br />
faclos, ignorados <strong>com</strong>pletamente de nossos chronistas, mas<br />
nem por isso de menos veracidade histórica, nem de menor<br />
alcance para os entendidos. Pelo contrario.<br />
Entre esses factos avultam os minuciosos passos dados<br />
pelos embaixadores do mestre d'Aviz no tracto da missão<br />
quejuneto dacôrte ingleza lhes fôra <strong>com</strong>mettida; ogasalhado<br />
benevolente <strong>com</strong> que em Inglaterra os acolheram tão bem o<br />
soberano e seus ministros, <strong>com</strong>o o duque deLancaster futuro<br />
sogro de D. João I; a vinda a nosso reino de cinco das terríveis<br />
<strong>com</strong>panhiasdeaventureirosquenaquelleseculoassoberbavam<br />
a Europa central; o alistamento a serviço de Portugal de<br />
grande numero de archeiros e homens de armas inglezes,<br />
quando ácerca d'estcs últimos affirmara Fernão Lopes que<br />
nem um só viera; e assim por deante.<br />
Outros curiosos factos que o leitorportuguez não desdenhará<br />
conhecer manifesta ainda o presente escripto. Dentre os mais<br />
salientes podem citar-se: os usos da córtc de D. Affonso V
e as notáveis solcmnidades <strong>com</strong> que ahi foi recebido o extre-<br />
mado cavalleiro de 13orgonha, subdito do duque Filippe e<br />
de sua terceira esposa, a ciosa infanta de Portugal;<br />
A sociedade porlugueza sob o sceptro de I). João II, o<br />
character e a vida intima d'este soberano, minuciosamente<br />
descriptos por viajante contemporâneo que o visitou e conheceu<br />
de perto, analysando-o meudamente;<br />
As magniíicentes sumptuosidades da casa de Lancaster<br />
em Inglaterra e a romantica historia do velho duque, mal<br />
conhecida mesmo cm sua patria;<br />
Um extranho episodio occorrido na juventude de sua filha,<br />
a irreprehensivel Filippa, ao depois rainha de Portugal;<br />
A educação dada a esta princeza, o nome da própria<br />
educadora, e o centro social não mui honesto em verdade<br />
em que desabrocharam os annos juvenis da futura rainha.<br />
Não são menos para notar-se, cuida o auetor, as esplen-<br />
dentes ceremonias, <strong>com</strong> que eram armados os antigos cavai-<br />
loiros; alguns excentricos usos portuguezes em tempos de<br />
I). Pedro I, o rei folgasão que se não avexava de andar pelas<br />
ruas a bailar <strong>com</strong> o seu povo; o sumptuoso jantar do duque<br />
dc Lancaster ao rei de Portugal, seu futuro genro, e o que<br />
este 110 extremo dos dois reinos lhe olíereceu sob a própria<br />
tenda que em Aljubarrota colhera ao rei deCastclla; as múl-<br />
tiplas ceremonias dos banquetes na edade-media, tão alheias<br />
IX
X<br />
a nossos usos; o serviço das mesas e os eníremczes; as bodas<br />
d'a
solemne Iniciado os nossos embaixadores firmaram <strong>com</strong><br />
aquella polencia a denominada alliança mulua, inda lioje<br />
existente.<br />
Até áquelle tempo nenhum aclo de subserviência á Ingla-<br />
terra se havia realisado por parte da nação portugueza. Pelo<br />
contrario.<br />
Aííonso IV, requestado pelo rei inglez Eduardo o grande<br />
para ajustar o casamento de sua filha, a infanta D. Leonor,<br />
<strong>com</strong> o já mencionado duque de Lancaster, filho daquelle rei,<br />
c posteriormente <strong>com</strong> o proprio herdeiro da corôa, o inven-<br />
cível príncipe de Galles (cognominado pelos de seu tempo o<br />
príncipe negro em consequencia da armadura que usava),<br />
teve em tão pouco apreço esta alliança, que na occasião cm<br />
que os embaixadores inglezes chegaram a Lisboa para eííei-<br />
tuarem o consorcio e a<strong>com</strong>panharem até Inglaterra a infanta,<br />
•vieram encontral-a desposada havia cerca de um mez <strong>com</strong> o<br />
rei de Aragão. Este extranho fado provam-no exuberante-<br />
mente os documentos adeante historiados.<br />
1). Fernando, o formoso, <strong>com</strong> quem sobremodo injusta ha<br />
sido por muita vez a historia, alliou-se <strong>com</strong> os inglezes —<br />
não para em suas longínquas terras os ir auxiliar, mas para<br />
virem elles proprios trazer-lhe soccorro a Portugal.<br />
Mais. Apenas chegados a Lisboa, em vez de lhes secundar<br />
XI
XII<br />
Fernando os interesses nacionaes, serviu-se da superioridade<br />
que sobre as forças inimigas lhe dava aquella hoste de au-<br />
xiliares, para conlrahir pazes vantajosas <strong>com</strong> o rei de Cas-<br />
tella,collocando assim em humiliante situação os seusalliados<br />
inglezes, que outra consideração lhe não mereceram, afora<br />
o apresto de navios —e navios castelhanos — para de Por-<br />
tugal os levarem caminho de suas terras.<br />
Ainda mais. No tractado que o ardente esposo de Lconor<br />
Telles celebrara <strong>com</strong> o rei de Inglaterra obrigava-se este a<br />
prestar-lhe, <strong>com</strong>o prestou, soccorro positivo de archeiros e<br />
homens de armas.<br />
Na convenção, que os embaixadores do mestre d Aviz<br />
firmaram em Londres, foi Portugal que ficou obrigado a<br />
servir á sua custa <strong>com</strong> armas, galés c gentes de guerra a<br />
nação ingleza, <strong>com</strong>o elTectivãmente serviu, durante quinze<br />
mezes ininterruptos.<br />
A epocha de D. João I estabeleceu pois, <strong>com</strong>o o leitor vai<br />
verificar, nova e mui diversa política nas relações de Por-<br />
tugal <strong>com</strong> a Inglaterra. Esta política tem sido <strong>com</strong> raras<br />
excepções seguida até agora.<br />
Será acaso a mais consoante aos interesses da nação<br />
portugueza?<br />
Busquemos examinal-o nos capítulos (pie vão seguir-se.
CAPITULO I<br />
SUMMARIO. — D. Fernando entre os soberanos de Portugal. — MÁ ventura.<br />
— A rainha. — A herdeira da coroa. — Integridade da patria. — O rei de<br />
Castella. — Pacto falseado. —Energia do povo portuguez. — O pendao da<br />
independeneia. — Bastardo e padre. — Nobreza c burguesia. — A arraia-<br />
meuda. — A eleição popular. —O mestre d'Aviz. — O reino e Leonor<br />
Tellcs. — Invasão castelhana.—Portugal contra si mesmo. — Defesa.—<br />
Emissários a Inglaterra. — Urgência de auxiliares. — Os nobres e a re-<br />
gente.— O mestre de Santhiago e o chanceller. — Suspeitas. — Missão<br />
a Londres.—Os embaixadores.—Conveniências. — A saneta ordem da<br />
cavallaria.<br />
i<br />
Dentre os soberanos, que em Portugal cingiram coroa,<br />
nenhum foi acaso tão victimado pelo infortúnio, <strong>com</strong>o D. Fer-<br />
nando, o gentil, primeiro do nome.<br />
Idolatrando uma formosa mulher, de subdita 1 elevando-a<br />
1 A rainha I). Lconur Tellcs, tomada a seu marido, João Lourenço da<br />
Cunha, por el-rei Ü. Fernando. Era filha de Martim AfTonso Tello, pri-<br />
vado intimo da rainha D. Maria de Castella, mãe de Pedro o cruel, e morto<br />
por ordem d'este, quando á sahida da cidade de Toro dava o braço a própria<br />
rainha. Esta rainha era filha de AlTonso o de Portugal. Ayala, Chronica<br />
de el-rei D. Pedro, anuo 7.°, cap. 2.°; Mobiliário denominado do Conde<br />
D. Pedro, tit. xxi, nota C, pag. 127, ed. Lavanha.<br />
t
2<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
juncto dc si ao throno, essa. a ser verdade o que rezam<br />
chronicas, retribuiu tão devotados extremos <strong>com</strong> a traição<br />
mais hedionda.<br />
Como á esposa desleal, quiz Fernando á única filha que<br />
dos dois vingara e augurando-lhe felicidade em allianças<br />
múltiplas, foi dal-a ao homem que menos ditosa viria a<br />
tornal-a.<br />
Mais que por esposa e filha estremeci i o rei pela inte-<br />
gridade da patria i . Ferido já de morte pela ; dithisicaque ao<br />
sepulchro o arrojaria, buscou elle nas con ições dc um tra-<br />
ctado 4 salvaguardar até ao extremo a indcpendencia do reino.<br />
Mas esse a quem dera a filha falseou o que havia jurado,<br />
e a indcpendencia que manteve ao reino portuguez foi inva-<br />
dil-o para avassallal-o 5 .<br />
Não o consentiram os povos. Lisboa, Porto, Évora, as prin-<br />
1 A infanta 1). Beatriz nascida em Coimbra (1373) e casada aos onze annos<br />
in<strong>com</strong>pletos <strong>com</strong> I). João 1, rei de Castella. Sanctos, Afonarchia Lusitana,<br />
parte viu, liv. 22.°, cap. (>0.°; Fcrnão Lopes, Chronica de el-rei D. Fer-<br />
nando, cap. 1GD.°<br />
2 Os incessantes esforços de I). Fernando para manter a integridade dc<br />
Portugal manifestaram-se cm todos os seus actos, e sobre todos no celebre<br />
tractado dc Salvatcrra (1383), em que exclui» do throno sua própria filha c<br />
o rei de Castella, passando a corôa ao filho que d'estcs nascesse, quando<br />
chegado a maioridade. Como o rei estrangeiro tinha outro filho que reinaria<br />
em Castella, ficava assim assegurada a autonomia de Portugal. Vejam-se<br />
todos os historiadores.<br />
3 Lc roi Ferrand chéy (tomba) cn langucur qui lui dura plus d'un an, et<br />
mourut. Froissart, Chroniques, liv. III, cap. 3, édition Buchon.<br />
4 O tractado de Salvaterra de Magos, 2 de abril de 1383 em Sousa,<br />
Provas á hislor. gcncal. da casa real, tomo i, doe. n.° 39.°, pag. 290.<br />
Veja-se a nota retro.<br />
b Ayala, Crônica de D. Juan J; Fcrnão Lopes, Chronica dc ü. João I,<br />
ç demais historiadores.
3 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
cipacs cidades proclamaram que o hálito do estrangeiro não<br />
infeccionaria o solo de Portugal l .<br />
Para hastear o pendão da independencia patria urgia<br />
porém escolher homem que sobre os hombros (ornasse tão<br />
oneroso encargo.<br />
Esse homem encontrou-o o patriotismo popular em um<br />
bastardo, um clérigo ligado a votos sacros \ Tal foi á luz da<br />
historia 1). João 1.<br />
0 que cm tempos de 1). Fernando o vira, adstricto ao<br />
acaslellado exílio do mosteiro d'Aviz, ou rara vez appare-<br />
cendo na còrte, e abi recolhido em si mesmo, menosprezado<br />
de cortczãos e do proprio rei \ e simuladamente alheio ao<br />
que em torno de si passava, mal poderia aventurar que ante<br />
os olhos tinha o que ao deante <strong>com</strong> o volver dos aconteci-<br />
mentos viria a tornar-se um dos mais sagazes políticos de<br />
seu tempo, um dos mais pronunciados revolucionários da<br />
cpocha, e lambem um dos mais cumpridos reis que tem<br />
engrandecido o soiio de Portugal.<br />
Contra a vontade da nobreza toda, affrontando a inacção<br />
interesseira da burguezia, assás opulenta já então, e por isso<br />
mesmo egoísta e conservadora, <strong>com</strong>o hoje se diz, o povo<br />
baixo, a arraya-meuda que nada tinha que perder, mas a<br />
1 Lopes, Chronica, ut supra, parte l. 4<br />
2 Portugal se felicita de haber pueslo en el trono á un bastardo y á un<br />
religioso. Lafüentc, Hist. Gen. dc Espaiia, parte II, liv. III, cap. 22.°<br />
3 Tant que le roi 1'crranl vesqui, il ne iit <strong>com</strong>ptc de ce batard, et n'eut<br />
jamais cuidé... que les <strong>com</strong>munautós de son royaume... 1'eussent... pris à<br />
roi. Froissart, liv. 3, cap. xxviu.<br />
4 O ajunetamento dos pequenos povos... chamavam naquclle tempo ar-<br />
raya-meuda. Lopes, Chronica de JJ. João I, parte i, cap. 44.°<br />
*
4<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
quem, talvez <strong>com</strong>o tal, abrazavam ardores de indcpendencia<br />
patria, conferiu o mando ao desajudado mestre d'Aviz sob<br />
a designação de regedor do reino.<br />
Cumpriu-se o inesperado successo a ifi de dezembro 1<br />
do anno da Rcdempção 1383, ou era de César de 1421,<br />
conforme ainda então oílicialmentc sc dizia.<br />
Assim que em seu novo cargo foi investido o regedor<br />
eleito, reconheceu-se em conselho a immediata urgência de<br />
tomar a soldo 2 gentes de guerra para defensão da auetori-<br />
dade nascente, que a principio mui poucos parciaes contava<br />
em todo o reino.<br />
A mór parte deste, quasi todas suas cidades e logares<br />
fortes, haviam alçado pendão pela regente, a formosa Leonor<br />
Telles; e o proprio soberano de Castella, invocando os direitos<br />
de sua esposa, <strong>com</strong>o filha herdeira de I). Fernando, trans-<br />
pozera por fim—em menosprezo dos traclados—a fronteira<br />
de Portugal 3 . Os defensores de Lisboa tinham por tanto de<br />
armar-se contra quasi todo o reino, c ainda contra a mais<br />
poderosa das monarchias, cm que se achava então dividida<br />
a Hespanha christã. Castella, diz judiciosamente a chronica,<br />
era contra Portugal, Portugal contra si mesmo 4 .<br />
Em tal apertura accordou-se no conselho do regedor enviar<br />
1 D. Francisco dc S. Luiz, Estudos sobre a historia dc Portugal, edição<br />
de 1855, tomo único, pag. 224.<br />
* Ordenou o Mestre cõ os do seu Cõsclho q era bè daucr gètcs cm sua<br />
ajuda. Fcrnão Lopes, Chronica dc l). João I, parte l.\ cap. 48.°<br />
1 El-Rey dc Castella violara os trautos entrando no Keyno. Fernão<br />
Lopes, ut supra.<br />
* J-opes, Chronica, parte l.\ cap. xxvi.
21 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
quanto antes a Inglaterra embaixadores 1 para haverem gentes<br />
estrangeiras que por soldo viessem servir na guerra<br />
Mas <strong>com</strong>o no circulo estreitíssimo dos que á sorte do filho<br />
de Theresa Lourenço se haviam associado poderia elle en-<br />
contrar negociadores consoantes á magnitude do alevantado<br />
encargo?<br />
II<br />
Quando a viuva de I). Fernando abandonara Lisboa<br />
alguns dias após a morte do conde Andeiro 3 , seguiram-na<br />
<strong>com</strong>o a regente os altos empregados de justiça e fazenda, e<br />
isso mesmo os fidalgos que acertavam de andar então na<br />
corte.<br />
Primavam entre os mais opulentos senhores o mestre de<br />
Santhiago 1). Fernando Alíonso d'Albuquerque, e entre os<br />
outros o chanceller mór Lourenço Annes Fogaça. Ambos<br />
porém, não decorridos ainda dois mezes após a retirada de<br />
D. Leonor, apresentaram-se em Lisboa ao serviço do mestre \<br />
Excellente acquisiçao eram estes dois proceres em qual-<br />
quer tempo, sobre tudo quando tão poucos se afoitavam a<br />
1 Si ot conscil que il cnvoicroit en Angleterrc... grands messagers et<br />
féablcs. Froissart, Chroniques, liv. m. chap.<br />
2 Que por soldo & á sua votado viesse ajudar cõtra seus imigos. Lopes,<br />
ut supra.<br />
Ferido pelo mestre dWviz, o morto por um dos sons em C de dezembro<br />
de 1383 nos paços d'apar São Martinho.<br />
4 Fcrnão Lopes, toe. cit.
6<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA 1NGLEZA<br />
esposar a causa do isolado regedor, cujo triumpho se repu-<br />
tava ainda então, e de leito parecia, absolutamente impossível.<br />
D. Fernando Aflonso, além de seu nobilissimo sangue,<br />
<strong>com</strong>o filho de D. João Affonso d'Albuquerque, o do ataúde,<br />
e bisneto de el-rei D. Diniz pelo filho d'cste, Affonso Sanches \<br />
possuía avulladas riquezas, havenda-lhe el-rei D. Fernando<br />
doado os bens confiscados ao marido ainda vivo da rainha sua<br />
esposa, João Lourcnço da Cunha, o qual, para vingar-se do<br />
soberano, quizera dar-lhe peçonha para o matarAlém d'isso<br />
era D. Fernando mestre da cavallaria de Santhiago, e<strong>com</strong>o<br />
a tal seguiam-no os esforçados cavallciros da ordem, bem<br />
<strong>com</strong>o todas as villas e castellos que a esta dc juro e herdade<br />
pertenciam.<br />
Lourcnço Annes em qualidade de chanccller do reino<br />
desempenhava um dos mais altos cargos de administração<br />
1 D. João Affonso d'Albuquerque, filho de Affonso Sanches, fora aio e<br />
grande privado de el-rei 1). Pedro o cruel de Castella, que regularmente<br />
governou, em quanto o teve juneto a si. Mas, abandonando D. Pedro a rainha<br />
Branca sua esposa por 1). Maria dc Padilha, I). João, que condemnara<br />
este acto, ajunetou-se aos inimigos do rei. Adoecendo, foi por ordem d'este<br />
envenenado. Era tal porém a sua auetoridade, que os conjurados não o<br />
sobterrando, traziam <strong>com</strong>sigo o corpo, c quando se reuniam em conselho<br />
collocavam o ataúde sobre um alto estrado, ao redor do qual consultavam.<br />
Veja-se Ayala, Crônica dc I). Pedro I dc Castella; Mobiliário do Conde<br />
D. Pedro, tit. vn, n.° 18.°; Lopes, Chronica de I). Pedro I, cap. 17.°;<br />
Lafuente, Ilist. Gen. de Espaiia, parte 2. a , liv. 3.°, cap. xv.<br />
E quando aviaõ de aver conselho... faziaõ nobre estrado de maromaques,<br />
e dc outros panos de ouro, c pnnhaõ o ataude no meyo, e clles ao redor dei.<br />
Nobiliario, tit. vn, n.° 18.°, pag. 35.<br />
^ eja-sc na Ilist. Gen. dc Espaiia o alto conceito que Lafuente formava<br />
d'este estadista, apezar dc ser portuguez, parte 2.\ liv. 3.°, cap. XXII.<br />
2 Real Archivoda Torre do Tombo. Chancellaria dc el-rei I). Fernando,<br />
liv. ii. pag. 45.
7 D. JOÃO I E A ALLIANÇA 1NGLEZA<br />
e jusliça l , cm que naquclles tempos não havia distineção,<br />
<strong>com</strong>o se sabe.<br />
Estes dois corlczãos eram porém feituras da rainha<br />
I). Leonor; isto é: deviam-lhe os cargos que exerciam, e a<br />
que por influencia d'cila haviam subido no reinado de seu<br />
esposo. A demais — D. Fernando AlTonso era cunhado dos<br />
condes de Neiva e de Barcellos, irmãos de Leonor Tellcs 2 .<br />
Ora, nos tempos que iam correndo, em que de um instante<br />
a ontro os homens mudavam, não de princípios, que os não<br />
havia, mas de bandeira, conforme o egoísmo pessoal, e muita<br />
vez os interesses do momenlo lhes segredavam, a presentação<br />
de qualquer potcnlado vindo de campo adverso era obra de<br />
grosso tomo, a que urgia altender, pois do mesmo cargo que<br />
desempenhavam se haviam muitos já valido contra o proprio<br />
governo a que iam acolher-se.<br />
Por estes fados, que não raro se davam, já em Portugal,<br />
já cm Castella, tornava-se a pcrniancncia em Lisboa do mestre<br />
de Santhiago e do chanceller algum tanto suspeitosa \<br />
llesolveu-se pois em conselho do regente 4 que fossem<br />
<strong>com</strong>o embaixadores 5 .<br />
1 Assi <strong>com</strong>o o capcllaÕ hc medianciro antre OEOS e Nós em feito de Nossa<br />
alma, bem assi he o Clanceller antre Nós c os homeês. Orden. Âffons., liv. i,<br />
tit. II.<br />
2 Casaram estes <strong>com</strong> duas irmãs, filhas naturaes de D. João Aflbnso, o<br />
do ataúde, e irmãs de >. Fernando Aflonso. Nobiliario do Conde 1). Pedro,<br />
tit. VII, n.° 18.°, nota F, pag. 35, e tit. xxi, n.° lo.°, nota C, pag. 127.<br />
3 Monarchia Lusitana, parte 8. a , liv. xxm. cap. 14.°<br />
4 Lopes, Chronica, parte 1.\ cap. 48.°<br />
5 Lorsfurentnommés pardólibóralion du Consoil, et... que legrandmaftre<br />
de Saint Jacques et Laurentien Fougasse... iroient cn message cn Angle-<br />
terrc. Froissart, Chroniques, liv. 3.°, chap. xxiv, édition Uuchon.
24 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Mais acertada, quanto á categoria dos indivíduos, não<br />
podia fazer-se escolha f . Uma das relevantes qualidades do<br />
filho de D. Pedro 1 foi a rara perspicacia <strong>com</strong> que soube<br />
conhecer os homens, e aproprial-os conforme as reciprocas<br />
aptidões ás exigencias do momento, ou aos encargos do<br />
serviço.<br />
0 mestre dc Santhiago pela elevação do cargo e altczada<br />
pessoa seria graciosamente recebido na côrte que a muni-<br />
ficcncia do príncipe negro, finado havia pouco, tornara a<br />
mais esplendida da Europa 2 . Lourcnço Annes, outrora em-<br />
baixador a Castella, c á côrte de Paris, havendo abi em nome<br />
de D. Fernando celebrado alliança <strong>com</strong> o duque de Anjou s ,<br />
fóra também sob o mesmo reinado em embaixada luzi-<br />
dissima a Inglaterra, c faliava <strong>com</strong> perfeição a língua fran-<br />
ceza \ predicado assaz raro então num portuguez, c indis-<br />
pensável na côrte britannica, onde aquclle idioma era depois<br />
da conquista de Guilherme, e ainda então, o que exclusiva-<br />
mente se falia va. Confirma esta verdade lima carta familiar<br />
da rainha D. Filippa a seu irmão Henrique IV de Inglaterra,<br />
escripta toda em francez 5 . Encontrou-a no museu britannico<br />
1 A l'avis du conscil de Portugal 011 n'y pouvoil cnvoyer pour le présent<br />
gens qui point mienx sauroient faire la besogne. Froissart, loco citalo.<br />
2 Lingard, Ilist. of England. vol. i. ehap. \i\. Acerca d'estc príncipe,<br />
legitimo herdeiro da coroa inglcza, e um dos primeiros vultos do século xiv<br />
veja-se o que adcanle escrevemos (cap. iv).<br />
3 Lopes, Chronica dc l). Fernando, cap. 97.°<br />
1 Laurenücn Fougasse savoit parlcr três beau franrois et à trait. Frois-<br />
sart, loc. cit.<br />
& A íntegra d'cstc documento pôde ver-se no Caíhalogo dos mss portu-<br />
gueses do museu britannico, por F. F. dc Figanière, pag. 120. e o próprio<br />
documento na Biblinth. Coton. Secoão Vespasiantis. F. 111.
25<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA 1NGLEZA<br />
o illustrado escriptor visconde de Figanière, e oblida venia<br />
reproduzimos aqui o fac simile<br />
Prosigamos.<br />
^ o p c e x w e f í<br />
I | / ]<br />
JLjt<br />
Lourenço Anncs, habituado a manusear já o digesto, já os<br />
livros das decrelaes, e a marcar em sua chancellaria <strong>com</strong> o<br />
regio sello, cuja guarda lhe era confiada, os alvarás outor-<br />
gados pela mercê de el-rei, nunca, depois que para os estudos<br />
havia entrado, largara a talar garnacha, prova authenticá de<br />
que não se entendia muito em matéria de cavallarias. Indo<br />
porém presentar-se na côrte cavalleirosaentão por excellcncia,<br />
e onde os altos funccionarios de justiça pertenciam á saneta<br />
ordem da cavallaria era convinhavel ao objectivo da impo-<br />
nente embaixada, que sob a toga do doutor fulgisse o estoque<br />
de armas do cavalleiro.<br />
Antes por tanto de sua partida mereceu a insigne honra<br />
1 A decifrarão d'estas palavras, cscriptas todas por leltra da rainha, c a<br />
seguinte: Vostre entiere et loyal suer p(hilippc) de pfortugal). A íntegra da<br />
carta encontra-se no fim do volume, Nota A.<br />
2 Eduardo III estatuiu que os juizes nos tribunaes de justiça fossem<br />
crcados cavallciros. Millc, llist. of Chivalry, tomo "2.°, pag. 154. Veja-se<br />
Bucklc, llist. of civi/isq(ion >'n Evqtopd. tomo 2.". cap. 9,"
10<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
de ser por mãos do regente armado cavalleiro, e por maior<br />
solemnidade realisou-se o auto na se calliedral<br />
Peza-nos que a estreita dimensão do presente escripto nos<br />
não soíTra narrar circumstanciadamente as extranhas cere-<br />
monias d'esta solemnidade medieval. Vamos resumil-as.<br />
1 Fcrnão Lopes, Chronica, parte 1/, cap. 48.®
CAPITULO II<br />
SUMMÀRIO.—A edade-media e a cavallaria.— As grandes idèas sociacs.—<br />
Subordinação á egreja. — Como eram armados os cavalleiros. — A vigília.<br />
— O prestito.— No templo. — Dupla usança quando era o rei que dava<br />
a invés ti dura. — Pedro I e o conde de Barcellos. — Des<strong>com</strong>munal appa-<br />
ralo. — A noite semelha o dia. — O rei dançando através das ruas.—<br />
Character especial das danças. —Musicas estrepitosas. — As trombetas de<br />
el-rei D. Pedro.—Um capitão inglez.—Banquete ao povo.—Bois inteiros<br />
assados. — O rei folgasâo c o novel cavallciro. — Os paços do regedor e<br />
o conde Andeiro.—Invasão de inimigos.—Salve-se a patria.—O mestre<br />
na sé cathedra).—O chanceller novel.—Solemnidades da investidura.—<br />
A punhada sobre o pescoço. — O osculo da paz. — Ê cavallciro.<br />
i<br />
Durante a cdade-media era a ordem da cavallaria uma<br />
das primeiras instituições da sociedade Sob o aspecto, não só<br />
militar, senão ainda político e civil, <strong>com</strong>pendiava em si quanto<br />
entre os homens havia de generoso e elevado 2 . Como todas<br />
as grandes idèas que então dominavam, achava-se esta insti-<br />
1 Veja-se ãíémoires sur Vancienne Chevalerie <strong>com</strong>me établissem. polit.<br />
et militairc, par Lacurnc de S." Palayfc.<br />
2 Hcnri Martin, Ilist. de France, tom. 1ehaj). xx. La Chevalerie,
28 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
tuição subordinada estreitamente aos dictames da egreja V<br />
e ás formas solemnes do cullo catliolico. Typo das mais acri-<br />
soladas virtudes cumpria (pie fosse o cavalleiro 2 .<br />
0 que a tal honra aspirava, disposto previamente <strong>com</strong><br />
orações e jejuns, devia na vespera da solemnidade purificar-se<br />
entrando em um banho 3 , que lhe era dado por escudeiros<br />
sob as vistas dos dois padrinhos 4 . Collocado no leito 5 en-<br />
travam os cavalleiros, e estes o vestiam dos melhores panos.<br />
Amigos e parentes aguardavam-no fora para em pompa o<br />
levarem á egreja, onde devia velar as armas. Era imponente<br />
o cortejo, indo todos a cavallo. Na frente os donzeis e filhos<br />
de cavalleiros 6 mui passo, e em duas alas. Seguia o reci-<br />
piendario, descoberta a cabeça conforme o rito 7 , e em meio<br />
dos padrinhos. Logo após iam os que levavam as esporas,<br />
a adarga, a espada e demais armas de olTender. Cavalgavam<br />
então a dois e dois todos os que tinham na ordem o gráu de<br />
cavalleiro. Precediam o prestito musicas de trombetas eata-<br />
bales, sem as quaes não havia festa na edade-media.<br />
1 Tout votre sane devez cspnndrc<br />
Pour la sainte fcglise deflendre.<br />
L'ordene de Chevalerie, pag. 65, édition Méon.<br />
* Leia-sc o interessante trabalho de Mr. Léon Gautier, La Chevalerie<br />
daprès les textes poé fiques du moyen dye. Alli se encontra o codigo da caval-<br />
laria reduzido a dez mandamentos, <strong>com</strong>o o Dccalogo.<br />
3 Dos Cavalleiros, corno c por quem devem ser feitos. Orden. Affons.<br />
liv. 1.*, tit. LXIII, n.° -20.<br />
4 Mandaram os antigos que... des o meo dia cm diante liam-no os Escu-<br />
deiros de banhar c lavar <strong>com</strong> suas maãos. Dos Cavalleiros, ut supra.<br />
s E deital-o no mais aposto leito que poderem haver, ut supra.<br />
* Muntaner, Chroniques, tomo n. cap. 20r».°, édilion linchou.<br />
Estabelccerom que... as cabeçasnoin as tivessem cobertas. Dos Ca>al-<br />
Jeiros, ut supra.
v<br />
® r<br />
D. JOÃO 1 K A ALLIANÇA INGLEZA 13<br />
Collocada sobre o aliar a espada para ser benta, e tomada<br />
dentro do templo a usual refeição de fructa e vinhos, ia o<br />
noviço recitar em joelhos as orações prescriptas 4 , findas as<br />
(juaes, se conservaria de pé ante o altar quanto tempo o soffrer<br />
podesse. Assim lhe era prescripto velar a noite inteira.<br />
Ao primeiro alvor da manhã confessava-se, tomava o sacra-<br />
mento e ouvia missa, limpo de corpo e de espirito. Nas se-<br />
guintes ceremonias variava o rito usado cm Portugal, quando<br />
era o rei que armava os cavalleiros.<br />
Ou o recipiendario caminhava a cavallo <strong>com</strong> o luzimento<br />
já referido até aos paços reaes, e ahi recebia o gráu, ou o<br />
soberano ia á egreja realisar por suas mãos a investidura.<br />
Practiçou-se a primeira forma, quando D. Pedro I creou<br />
conde de Barccllos e armou cavallciro a D. João AlTonso<br />
Tello, denominado nos documentos do tempo o conde velho.<br />
Não resistimos a esboçar algumas curiosas circumstancias<br />
daquella festa. São todas de veracidade authentica.<br />
Na noite em que o futuro conde velou as armas em S. Do-<br />
mingos, foram pelas ruas, que do mosteiro levavam aos paços<br />
do castello, collocados em alas cinco mil homens <strong>com</strong> cirios<br />
accesos, e por meio d elles á deslumbrante claridade que<br />
semelhava o dia andava el-rei D. Pedro <strong>com</strong> muitos fidalgos<br />
c cavalleiros de sua côrte dançando e tomando sabor i .<br />
Extranho espectaculo fóra esse para os nossos dias: um<br />
rei a dançar pelas ruas! Assim <strong>com</strong>o Nero em Roma, des-<br />
pendera o filho de AlTonso IV boa parte da noite.<br />
1 E oni quanto esta Oraçon fezer, hade estar cin giolhos ficados, c todo<br />
al em pcc cm mentre o sofFrer poder. Dos Cavalleiros, ut supra.<br />
2 Lopes, Chronica de D. Pedro I, cap. xiv,
14 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Dançar <strong>com</strong> o seu povo era uma das diversões characlc<br />
risticas do monarcha excentrico. Não raro. quando ao chegar<br />
a Lisboa iam esperal-o os moradores \ mettia-se cm dança<br />
<strong>com</strong> clles percorrendo a cidade, e se lhe escasseava o somno<br />
eil-o a descer de seus paços despertando as gentes e bailando<br />
<strong>com</strong> todos até alta manhã 2 .<br />
Às danças todavia em que naquella noite se retouçava<br />
D. Pedro, além de ao vivo representarem o character do rei<br />
folgasão, tinham lambem origem essencialmente histórica, por<br />
serem as (pie os cavalleiros usavam dançar entre si. quando<br />
algum neophito entrava para a Saneia Ordem 3 . De feição<br />
essencialmente feroz e grotesca, simulavam ellas, ou guerras<br />
ao natural invencionadas <strong>com</strong> broquel e escudo, ou desen-<br />
cadeadas luetas de mouros 4 e de selvagens em <strong>com</strong>bates<br />
singulares, ou geraes refregas.<br />
As musicas que as a<strong>com</strong>panhavam eram outrosim estre-<br />
pitosas e desordenadas 5 . O som rouco e estridente que das<br />
trombetas de prata 0 usavam tirar os músicos de el-rei 1). Pe-<br />
dro, João Matheus e Lourenço Paios 7 , chegaram naquella<br />
1 Lopes, Chronica de el-rei D. Pedro, cap. xiv, edição da Academia.<br />
2 Lopes, ut supra.<br />
3 Lacroix, Moeurs et usages au Moyen age. Jeux, pag. 261.<br />
4 Estas simuladas luetas tinham o nome de òfoi riscas. Eram, diz Lacroix,<br />
essencialmente meridionaes, assim <strong>com</strong>o as selvagens. Só em França as<br />
conheceram 110 anuo de 1458. Em Portugal ficaram desde os mouros.<br />
5 Leurs conccrts ne plurent aucunement à... qui n'étoit pas fait à ccs<br />
sortes de cacophonies. Anciens Mcnwires du XIV siècle sur Duguetclin.<br />
Collection Petilot, tomo 4.°, cap. xix, pag. 376.<br />
6 O som d'estas trombetas estridentes herdaram os portuguezes dos sar-<br />
racenos de Hespanha. Lacroix, Instruments de musique. Moyen age et Re-<br />
nais s., tomo 4.°<br />
7 Lopes, Chronica de D. Pedro l, cap. xiv.
1). JOÃO I K A ALUANÇA INGLEZA 15<br />
era, desmesurada em tudo, a atordoar os ouvidos de estran-<br />
geiros, habituados aliás em suas terras ás demasias do tempo.<br />
As antigas Memórias deDuguesclin por Estouteville( 1387),<br />
copiando a chronica rimada dc Cuvelier, escripta ainda annos<br />
antes, apresentam entre diversas inexactidões uma descripção<br />
curiosa acerca da côrte de Portugal no reinado de D. Pedro I.<br />
Traclando-se dc um dos periodos mais obscuros da nossa<br />
historia social, folgamos de apontar em summula algumas<br />
d aquellas noticias. ICil-as:<br />
«Deposto do throno Pedro o cruel de Castella, e refugian-<br />
do-se em Portugal, procurou o seu successor evitar que o<br />
soccorressem. Nesse intuito enviou a Lisboa o cavallciro<br />
inglez, Sir Malthew Gournay, capitão de uma das celebres<br />
<strong>com</strong>panhias brancas, e filho de Thomaz Gournay, carcereiro<br />
e assassino do infeliz Eduardo IIFoi o inglez graciosamente<br />
acolhido cm Portugal pelo fogoso D. Pedro 1 que á sua<br />
mesa o banqueteou, festejando-o <strong>com</strong> as musicas de seus<br />
menestreis. Atordoaram estas os ásperos ouvidos do capitão 3 ,<br />
1 Sir Malthew Gournay was... son ofThomas, one of the mnrdereres of<br />
Edward II. lie was a soldicr of fortunc, and able and valiant man. Johncs<br />
trad. de Froissart, liv. 11, cap. 24.° nota, pag. OOD.<br />
2 Lc roi le fit asseoir à sa tablc et 1c regala de son mieux. Estoutcville,<br />
Anciens Mémoires, loco citato.<br />
3 Les sons ctoient si «liscordants, qu'ils lui ccorchòrent les oreilles.<br />
Idcm. Sir Malthew Gournay seguindo Henrique dcTrastamara na conquista<br />
dc Castella, passou depois ao serviço do príncipe de Galles contra o mesmo<br />
Henrique, e nas batalhas de Poitiers eXajara practicou bons feitos de armas.<br />
Depois de haver sido governador das Landes em Aquitania, voltou a Por-<br />
tugal <strong>com</strong>o condcstavcl da hoste do conde de Cambridge em 1381, escapando<br />
no mar a grande tempestade. Froissart, liv. i, cap. 160.°, 230.°, 241.°; liv. n,<br />
cap. 50.°; Johncs nota á Irad., liv. II, cap. 24.°; Walsingham, Ilist. brevU,<br />
pag. 247.
J0À0 I E A ALLIANÇA INÜLKZA<br />
e para suavisal-o chamou el-rei dois celebres músicos de<br />
sua camara». Não tinham elles a profissão de guitarristas,<br />
<strong>com</strong>o referem as Memórias. Eram porém de certo os dois<br />
supracitados João Matheus e Lourenço Paios i , únicos que,<br />
segundo Fernão Lopes, tocavam as musicas a que el-rei<br />
dançava não querendo outras Pôde calcular-se o eiíeito<br />
que as des<strong>com</strong>munaes trombetas produziriam nos ouvidos<br />
já excitados do capitão inglez 3 .<br />
Ao romper da manhã, logo após as danças dos cavalleiros,<br />
appareceram grandes tendas armadas no Rocio a par do mos-<br />
teiro dominicano, abrigando altos montes de pão cozido, e<br />
ccntenarcs de tinas cheias de vinho. Ao ar livre fumegavam<br />
bois inteiros assados 4 . Tudo foi distribuído ao povo, em-<br />
1 Com razão censura o sr. Ferdinand Denis o auctor da Chronica rimada<br />
pelas iuexactidões em que acerca de Portugal incorre, <strong>com</strong>o dar a ü. Pedro I<br />
o nome de roi Fagon, etc. Mas quanto aos dois músicos favoritos do rei, a<br />
que a Chronica chama guitarristas, eram estes sem duvida, permitta-nos o<br />
venerando escriptor, os dois celebrados trombetas, que Fernão Lopes tam-<br />
bém cita. Deu-se equivoco de profissão musical, mas não pôde contestar-se<br />
que ha fundo de narração verídica.<br />
2 Estas danças eram a soom dhumas longas trombetas que cstonce hu-<br />
savom sem curando doutro estromento, posto que o hi ouvesse, c se alguma<br />
vez lho queriam tanger, logo se enfadava c dizia que o dessem oo demo, e<br />
que lhe chamassem os trombeiros. Lopes, Chronica de el-rei D. Pedro I,<br />
cap. xiv.<br />
3 Vejam-se: Anciens Mémoires du XIVsiècle, par Estoutcville na Collec.<br />
Petitot, tomo 4.°, cap. xix, pag. 376; Cuvelicr, Chron. de Jiertrand Du-<br />
guetclin; Documents inédits sur l'hist. de France; F. Denis, le Portugal,<br />
pag. 43; Lopes, Chronica de D. Pedro 1, cap. xiv; Santarém, Quadro ele-<br />
ment. Relaç. <strong>com</strong> França, tomo 3.°, pag. 2o.<br />
4 Lopes, Chronica de D. Pedro I, cap. xiv. Era na edade-media trivia-<br />
lissimo o uso de assar bois inteiros. Em Portugal chegou este uso até<br />
D. João II. No convento de Alcobaça havia ainda no momento da extineção
I). JOÃO I K A ALLIANÇA IMiLKZA 17<br />
quanto o rei cruento e tolgasno armava nos seus paços do<br />
caslello o novel cavallciro.<br />
Antigos paços do eastello.<br />
(Mappa dc Lisboa — Lavanha, Viagem
18<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA 1NGLEZA<br />
ferira o conde Andeiro, não se linha por somenos <strong>com</strong> ir,<br />
segundo referimos, á sé cathcdral.<br />
Não havia tendas no rocio, nem viandas se distribuíam<br />
para deliciar o povo. Mais altos cuidados demandava então<br />
a crise terrível em que se achava o reino. Armas de estran-<br />
geiros haviam ousado invadil-o. Cumpria antes de tudo liber-<br />
tal-o salvando a patria.<br />
H •<br />
Restricto séquito a<strong>com</strong>panhava á sé o eleito da nação, que<br />
mui poucos eram ainda então os proceres que seu pendão<br />
mantinham f .<br />
Á falta de bispo, ao «piai por ser castelhano arrancara o<br />
povo dias antes a vida - lançando-o a fundo da mais alta<br />
1 «Os mores do lteyno tem todos da parte da Kainha, a qual nu- quer<br />
muy gran mal por a morte do Conde Johão Fcrnandez & sou certo que me<br />
azará lodo o mal & deshonra por hu quer que poder.» Palavras textuaes<br />
de 1). João, mestre d'A\iz, conservadas por Fernão Lopes, Chron., parlei,<br />
cap. 23.°<br />
2 I)os paços de S. Martinho baixava o povo cm tropcl apenas fora morto<br />
Andeiro. Ao passarem á sé notaram que não rcpicavam os sinos. Enfure-<br />
cidos subiram á torre, onde fora acoitar-se o bispo, e d'ahi o precipitaram<br />
depois de lhe haverem tirado a vida. Os matadores foram: João da Veiga,<br />
Sylveslrc Estcves, procurador da cidade, Estevão Anncs e outros. Elles<br />
próprios o confessaram cm supplica de absolvição dirigida ao papa. Veja-se<br />
Breve de Urbano VI. Gênova, 14 de setembro de 1384 apud Soares da Silva,<br />
tomo iv, c Cunha, Historia ecclcsiastica de Lisboa, parte m, cap. 107.®
I). JOÃO I K A AI.MANCA INGLEZA 19<br />
das Ires torres que então havia na cathedral, <strong>com</strong>o prova a<br />
presente gravura, cópia de um precioso sello que tivemos o<br />
júbilo de encontrar, e que representa a velha só cm tempos<br />
de D. Afonso IV cantou o adayão missa solemne benzendo<br />
a espada.<br />
A só de Lisbou no século xiv.<br />
(Scllo dos armas da cidade cm 13.'»2 —Torre dó lombo.)<br />
1 Na torre tio tombo copiou Sousa, auclor da Historia gcneal., c repro-<br />
duziu no tomo iv, n.° xxxu este precioso seUo, achando-o (já bastante
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Em continente <strong>com</strong>eçou o atilo da investidura. O clianceller,<br />
adcantando-se grave, em meio dos seus mais Íntimos<br />
(entre os quaes sobrelevava cm longas vestes de doutor de<br />
Bolonha o arteiro João das Regras), íoi, seguindo-o todos<br />
os escudeiros presentes, collocar-se em joelhos ante a cadeira<br />
de espaldas que na capella mór da parle do evangelho occu-<br />
pava o filho de Pedro 1.<br />
Feitas pelo regente as perguntas do eslylo, um cavallciro<br />
calçou as esporas ao novel, que segundo a praxe 1 vestia<br />
todas as armas de defender encimadas pelo brial amplo o<br />
deteriorado) em um contracto entre el-rei ea dita camara (gaveta 13, maç. 1,<br />
n." üo"). Por mui curioso reproduzimos o documento em a nota ft no fim do<br />
volume.<br />
Assim <strong>com</strong>o as actuaes armas de Lisboa representam a vinda do corpo<br />
dc S. Vicente, assim este sello symbolisa o mesmo assumpto. Guiado por<br />
um corvo apparccc o corpo do saneto sobre as aguas do Tejo tocando a<br />
cidade. Em torno divisa-se a antiga muralha <strong>com</strong> suas portas e bastiões, e<br />
em meio dc casarias toscas c juneto a São Marlinho avulta a sé, tendo além<br />
das duas torres que ainda hoje existem na fronlaria uma outra construída<br />
a fundo, muito mais alta que as outras duas, e na qual estavam collocados<br />
osViuos, <strong>com</strong>o na estampa claramente se vê.<br />
Ora sendo, conforme assevera Fcrnão Lopes,
1). JOÃO I i: A ALLIANÇA INGLE/.A<br />
largo. Por de sobre esle cingiu-lhe então o mestre estreita-<br />
menle a espada \ e logo lirando-a da bainha, e collocando-lha<br />
na inão, tomou-lhe os juramentos do ritual \ findos os quaes<br />
e dando-lhe uma forte punhada sobre o pescoço 3 , proferiu<br />
as sacramentaes palavras: «Deus te guie a seu saneto ser-<br />
viço. e te deixe cumprir o que promelteste».<br />
Depois beijou-o em signal de fé, de paz e de irmandade 4 .<br />
Ergueu-se então o agraciado, e d entre as cinco naves,<br />
em que então se dividia o vasto templo, percorrendo a quo<br />
ao centro cm lace do altar-mór se dilatava occupada em<br />
duas alas pelos cavalleiros presentes, recebeu de cada um<br />
d ? estes <strong>com</strong> a paz ritual o osculo prescripto \<br />
Estava armado cavalleiro o chanceller do reino. Podia<br />
desassombradamente partir caminho dc Inglaterra.<br />
In, cerrada pela cinclura, e cahindo sobre esta em enormes pregas. Tinha<br />
mangas. I)c Franca importáramos a vcslidnra e o nome, <strong>com</strong>o inda hoje<br />
succedc em muitas pecas de vestir e objeclos de moda. A fôrma do brial,<br />
conforme o usavam os cavalleiros, pôde ver-se em Quicherat, Histoire du<br />
costume cn Francc. cap. vil, pa^. 1 íS. Veja-se o mesmo Quicherat, cap. vi<br />
C VII.<br />
1 «lia dc cingir-lhe a espada sobre o brial que vestir, assy que a cinta<br />
nom seja muito suxa, mas que se chegue ao corpo.» Ordcn.. ut supra. n.°21<br />
2 Eram tres estes juramentos. Podem ler-se no Hcyimento: Dos Cavalleiros<br />
<strong>com</strong>o devem ser feitos, n.° 23."<br />
3 «Deve-lhe dar huma pcscoçada por que estas cousas... lhe venham em<br />
mentes.» Dos Cavalleiros, ut supra. Ordcn.. liv. i, tit. (>3.°, n.° 23.°<br />
• «E depois d'islo o ha de beijar em signal, ele.» Dos Cavalleiros, ut supra.<br />
5 «IO isso meesmo bani de fazer todolos outros cavalleiros que forem em<br />
aqucllc logar.» Dos Cavalleiros, ut supra.
CAPITULO III<br />
SUMMARIO. — Lisboa O as hordcs castelhanas. — Os embaixadores a Ingla-<br />
terra.— Luzimento do mestre de Santhiago. — Nome da nau que o trans-<br />
porta.— As naus na edade-media. — Às galés, verdadeiros vasos de<br />
guerra.—Naus e carracas.— Mercadorias.—O porto dc Lisboa. — Sua<br />
importancia. — O chanceller do reino em uma barca. — Mar dc rosas.—<br />
Ladrões sobre as aguas.—Boa ventura.—A costa britannica.—Plymouth.<br />
— Fraternal acolheita.—A capital de Inglaterra.—Embaixadas de hoje<br />
c as dc outr'ora.— Oricntaes e marroquinas. — A Kussia cxccpçao gra-<br />
ciosa.— Os embaixadores em Londres.—Tomam pousada. — Nome da<br />
hospedaria c db hospedeiro. — O jantar.—Palacio dc João dc Gnunt,<br />
duque dc Lancastcr. — Porque o procuram os representantes de Portugal?<br />
i<br />
No dia 31 do março dc 1384, quando já se aproximavam<br />
de Lisboa as bordes castelhanas a fim de em circulo de ferro<br />
estreitarem a donosa capital, desferiram velas mar cm fora<br />
os embaixadores portuguezes<br />
1 «Parliromdc Lisboa postrimeiro dia dc março.» Lopes, parte 11, cap. 79.°<br />
O chronista, cxacto quanto ao dia do mez, equivocou-sc cm relação á era<br />
designando a dc 1121 correspondente ao anuo de 1383. Ora nesse dia era<br />
\ivo ainda el-rci l>. Fernando. Os embaixadores partiram cffcctivainente<br />
no anuo seguinte 13Hi, quando os castelhanos se aproximavam dc Lisboa.
40 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
0 mcslrc «lo Santhiago, ao qual, <strong>com</strong>o a quem era, se<br />
que cm seus portos acertavam de estancear, ainda quãiub<br />
estrangeiras fossem. Mas os verdadeiros vasos de guerra, os<br />
mais consoantes ás lides marítimas da edade-media. eram<br />
as galés 5 .<br />
Às galés, diz um cscriplor francez de nossos dias 6 . era<br />
o navio de guerra por excellcncia. Quando se procedeu á<br />
1 Froissart, liv. ni, cap. 39.°<br />
2 «Qui va dc tous ventos, et plus siircmcnl que nullc aulrc.» Froissarl,<br />
loc. cit.<br />
3 Doze tinha Porlugal no reinado de I). Fernando. Lopes, Chron. dc<br />
1). Fernando, cap. 91.®<br />
* Tinham então estas palavras significação distincla. «Os navios que som<br />
porá guerra, dizia a ordenação, quando som muitos ajuntados cm hum...<br />
chamam Frota; quando são mais poucos, dizem Armada.» Ordcn. Áffom.,<br />
liv. i, tit. 5í.°, n.° 5.°<br />
3 Anteriormente á invenção da polvora e ao emprego da artilheria no<br />
mar, emprego que alguns aflirmam se deve aos portuguezes, os verdadeiros<br />
navios de guerra eram as galés. Quintclla, Annacs da marinha portugueza,<br />
parte i, Mem. i. pag. (>.<br />
fi Dufourmanlcllc, 1M marinr militaire cn Vrance au <strong>com</strong>mencemcnt de<br />
Ia guerre de cent am, § ,v. Vcja-sc Jal, Archéologie navale.
I). JOÃO r K A ALIJANCA INGLKXA<br />
conquista de Ceuta. I). João I conferiu o mando de Iodas as<br />
naus ao grande infante D. Pedro, mas para si, <strong>com</strong>o logar de<br />
primazia, reservou o capitanear a frota das gales<br />
•])e conslrucrao ligeira,-movidas a remos, e por isso vo-<br />
gando rapidas sem dependencia de vento obedeciam cilas<br />
muito melhor á estratégia Eram os vapores dos nossos<br />
dias.<br />
As naus regiam-se á vela. Altas de amurada, redondas<br />
c pesadas serviam principalmente, <strong>com</strong>o as carracas \<br />
para o carregamento de mercadorias.<br />
As transacções <strong>com</strong>merciaes de Lisboa <strong>com</strong> as principaes<br />
narões eram naquella epoclia importantíssimas. Dc quatro-<br />
centos a quinhentos navios havia habitualmente sobre an-<br />
1 «El-rcy Icuaua a Capitania das gales, & o infante D. lVdro das naus<br />
leuando cada um seu farol pera regimento das outras.» Azurara, Chron. (le<br />
I). João /. parte m, cap. 49.°<br />
2 A galé tinha dois mastros que se abatiam, c uma vela latina em cada<br />
um... Era <strong>com</strong>mummentc dc vinte cinco a trinta bancos <strong>com</strong> dois ou tres<br />
reinos ;c dois ou tres homens a cada um; tinha dc 200 a 250 palmos dc<br />
<strong>com</strong>prido, 30 dc bocca, o 10 dc pontal. Couto, Memórias militares, tomo I,<br />
pag. 278.<br />
3 «A conslrucrao era torpe e defeituosa.» Quintclla, Annacs. lococitalo.<br />
1 As carracas eram de maior bojo que as naus, redondas <strong>com</strong>o estas, e<br />
muito mais <strong>com</strong>pridas e chatas, dilTcrcnçando-se das galés que tinham forma<br />
longa, mas estreita. Navegavam ;i vela. Ducange, Gtossarium, verbo Car-<br />
roça; Dufourmantelle, Mem.. loc. cil.<br />
As carracas portuguezas 1 excediam ás dc todas as outras nações por sua<br />
pujança e corpulencia. Havia-as de quatro pavimentos 2 . As exigências do<br />
nosso <strong>com</strong>mercio <strong>com</strong> o Oriente, c o exclusivo que tínhamos, levaram-nos<br />
á necessidade dc tão desmesuradas construccôes.<br />
1 Jal, Moyen age et Rennais., tomo iv, verbo Marine.<br />
2 «Os grande? carraqucs ont quatro jionts ou ftages.» Fournier,citado por Jal, ut supro,
C)(. D. JOAO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
cora ante os muros da nossa.capital grande parte d'esses<br />
vasos eram naus mercantes, e muitas dc proveniencia ingleza.<br />
A melhor d'estas fretou, <strong>com</strong>o vimos, o mestre dc Santhiago.<br />
11<br />
Lourcnço Annes, cujo séquito menos numeroso reputavam<br />
por isso mais <strong>com</strong>csinho, conlcntara-sc <strong>com</strong> uma barca, onde<br />
entrou <strong>com</strong> os seus<br />
Mar de rosas os levou rola batida, e nem encontro tive-<br />
ram dc piratas, que tantos ladrões, ou talvez mais, diz<br />
o chronista flamengo 3 , havia então no mar, <strong>com</strong>o em terra.<br />
Tres dias tão somente estiveram vendo mar e cco 4 . Ao<br />
quarto avistaram as costas de Cournouailles, e foram por<br />
fim surgir á barra de Plyrnouth Favoravel acolhcita hou-<br />
veram do |)ovo da cidade e de seus regedores. Destes rece-<br />
beram guardas que dos ladrões os defendessem c cavallos<br />
para todos os da numerosa <strong>com</strong>itiva.<br />
1 «Por a grande espessura de mtiylos navios que assi jaziam ante a cidade,<br />
iam os barcos Dalmada a|>ortar a Sanctos... nom podendo marcar per antr'-<br />
ellcs.» Lopes, Chron. dc l). Fernando, prologo.<br />
2 «Embarcarom em dois nauios, o Mestre cm huma não
27 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Não se maravilhe o leitor de haver cada um daquelles<br />
altos funccionarios embarcado em navio dilíerenle.<br />
O embaixador hoje em dia, por grande que seja a nação<br />
que vai represenlar, limita-se, <strong>com</strong>o qualquer mortal, a seguir<br />
viagem na linha férrea que, mais presto o conduza, e nem<br />
sombras de apparalo indica a importancia do personagem.<br />
No tempo a que nos remontamos não era assim. Faustuoso<br />
luzimento presidia a qualquer embaixada, que se <strong>com</strong>punha<br />
muitas vezes de centenares dc pessoas de diversas categorias.<br />
Ainda hoje dão d isso aresto as embaixadas orientaes e<br />
marroquinas. No império da Rússia são também graciosa-<br />
mente oflerccidos ainda agora aos representantes estran-<br />
geiros e suas famílias trens especiacs nas linhas férreas,<br />
quando da capital vão em visita de etiqueta a alguma das<br />
imperiaes rcsidencias l .<br />
Não nos deixaram as chronicas o riu mero, nem a quali-<br />
dade dos (pie seguiam os embaixadores, mas a aquilatar por<br />
outras embaixadas portuguezas esta que descrevemos, deveria<br />
cila ter sido hizidissima. e ainda superior á que a 11 nos antes<br />
havia o proprio chanceller desempenhado em Inglaterra.<br />
A salvamento percorreram o mestre de Santhiago e Lou-<br />
rcnço Annes as noventa e Ires léguas (pie entre Plvmouth e<br />
1 Falia por experieneia própria o auetor d'cstas linhas, havendo tido por<br />
duas vezes a honra de represenlar a sua patria na esplcndcnle côrte de<br />
S. Pctcrshurgo. d'onde passou para a de Madrid.
D. JOÁO I K A ALLIANÇA INüLEZA<br />
Londres medeiam. Chegados á côrle dirigiram-se á ampla<br />
ma de Gracechnrch qne ainda hoje existe e onde enlão<br />
<strong>com</strong> seus estandartes e divisas pintadas a córes campeavam<br />
os principais hotéis da grande capital. Abi tomaram pousada<br />
no hotel do falcão dc que era dono Thomelin de Winchester s .<br />
Curioso episodio de ha cinco séculos!<br />
Acabava justamente de soar a hora de terça (nove da<br />
manhã), a que então era de uso jantar-se cm Inglaterra 1 .<br />
Jantaram os viajantes <strong>com</strong>o é natural, e anhclando por dar<br />
<strong>com</strong>eço ao encargo que lhes fora <strong>com</strong>mettido, encaminha-<br />
ram-se, finda a refeição, ao palacio de Saboia 4 , residcncia<br />
sumptuosissiina do duque de Lancaster quando habitava a<br />
côrte.<br />
Mas porque antes de tudo buscaram este príncipe os<br />
representantes de Portugal ?<br />
Que motivos para tal preferencia se dariam?<br />
1 Esla rua tornara-se já, <strong>com</strong>o c agora, uma das principaes artérias
CAPITULO I\<br />
SCMMARIO.—Joiío de (lauut.—Origem d'cstcnome.—Eduardo III, o grande.<br />
—O príncipe de Galles, assombro do mundo.—Intimidade de João <strong>com</strong><br />
o poeta Chancer.- Seu amor por Branca de Lancaster.—O primeiro duque<br />
embaixador a Portugal. - -Guerra dos cem annos.— AJIianças <strong>com</strong> as<br />
monarcliias de llcspanha.— Casamentos em Castella c Portugal.—João<br />
dc Gaunt c a filha de Afíonso IV.—A infante de Portugal c o herdeiro<br />
da coroa ingleza.—Consorcio ajustado.—Silencio dos historiadores por-<br />
tugueses.— Provas por documentos. — Chegam a Portugal embaixadores<br />
inglczcs para realisarem o casamento.— Portugal frustra Inglaterra.—<br />
Castella e Aragao. Politiea ntilitaria das diversas cortes.—O egoismo.<br />
— AlTonso l\' e o estandarte da pátria.<br />
i<br />
0 duque de Lancaster João dc Gaunt, assim cognominado<br />
em Inglaterra por liaver nascido na cidade de Gand em Flan-<br />
dres era quarto filho do grande rei Eduardo III. e irmão<br />
1 Costumavam então em Inglaterra e outros reinos dar aos príncipes<br />
depois do nome proprio o da terra onde nasciam e eram haptizados. Assim<br />
foi Eduardo III cognominado Eduardo dc Windsor, lticardo II Ricardo de<br />
Rordctis, etc. O duque nasceu em Gand, porque naquclla cidade se achavam<br />
os inglezes, a lim de realisarem a primeira invasao da França durante a<br />
guerra dos cem annos. Gand era então muito maior que Paris, Veja-se<br />
Froissart, liv. i, cap. 123.°
;j() D. JOÁO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
(lo invencível príncipe de Galles, denominado o príncipe<br />
negro cujas heróicas façanhas, assombrando os do seu<br />
tempo. á lhe marcaram na posteridade logar proeminente<br />
entre os mais abalisados pelejadorcs<br />
Conforme em numerosos versos revela o pae da poesia<br />
ingleza, o fecundo Chaucer \ contemporâneo 5 , amigo inse-<br />
parável e por fim cunhado de João de Gaunt, <strong>com</strong>o adeante<br />
se refere, amou este príncipe desde a infancia e ardentemente<br />
a suave Branca sua prima, filha de Henrique de Lancastcr,<br />
t Usava «le armadura negra, para realçando sobre esta a alvura «Ia pcllc<br />
se tornar mais gentil: «t«» sei o(V lhe fairness of Itis <strong>com</strong>ple\i«»n,.and so tu<br />
improve his bonnc mine.» Strickland, Liv cs of llic Queens of Enyland,<br />
[orno n.° 12.°, pag. 590, 4.' cd.<br />
2 «II étoit la fleur «le toute la chevalerie du monde.» 1'roissart, tomo<br />
pag. 420, é«lit. Buchon.<br />
3 Unanimes são nestes geraes en<strong>com</strong>ios os cscriptores de todas as nações,<br />
sobrelevando-se entre estes Lafuente na llist. de Espana.<br />
4 «Laurent Minot, auteur «le poésies sur les guerres «1'Kdouard III. vers<br />
1353 est peut-òtrc le premier poete original en anglais. Mais le plusgraiul<br />
poètc anglais du iMoycn-âgc fut sans <strong>com</strong>paraison GeolTroi Chaucer. Cli.<br />
Nisard,» Lapocsie nationale chez les différents peuples de VEurope. Moyen-<br />
âge, tomo iv.<br />
5 «lie was very early attached to that duke.» Tirwhit. An abstrai!... of<br />
the lifc of Chaucer, Nota I.<br />
r> Diversos foram os poemas consagrados por Chaucer a estes românticos<br />
amores. Podem citar-se: lhe assembly of foules—The <strong>com</strong>plaint of the<br />
Jllach Knight — The bookc of the Dutchessc, or lhe death of lílanch.<br />
Acerca do primeiro poema escreve o seguinte o intransigente Tirwhitt,<br />
para o qual só tem fé o que em documentos se encontra. «Este poema alludc,<br />
<strong>com</strong>o supponho, ao projectado consórcio de João de Gaunt e Branca dc Lan-<br />
castcr, que se cflcctuouem 1359.» Notes on the Canterbury tales vers. 1920.<br />
«A pessoa do desolado cavalleiro negro lhe blach knight representa, diz<br />
Stowc, João de Gaunt, duque de Lancastcr, lamentando a morte da que
31 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
o mais cumprido cavallciro dc Inglaterra \ e o primeiro que<br />
depois do príncipe de Galles leve naqucllc reino o titulo de<br />
duque<br />
Henrique veio a INulugal <strong>com</strong>o embaixador de seu primo, o<br />
grande Eduardo III. depois que este soberano encetando a furi-<br />
bunda lucta, denominada na historia «guerra dos cem annos»,<br />
intentara a conquista da França. A fim de ;» invadir pelo<br />
norte, confederara-se Eduardo <strong>com</strong> a Flandres,caudilhada por<br />
Jacques de Artevelde, e <strong>com</strong> o imperador de Allcmanha Luiz<br />
de Baviera, que lhe conferiu o cargo de. vigário do Império 3 .<br />
Não colhendo, porém, desde logo as vantagens que previra,<br />
resolveu o rei inglez aggredir pelo sul o inimigo, e para em<br />
mais apertado circulo o estreitar, buscou habilmente con-<br />
trahir a venças <strong>com</strong> os diversos Estados, em que se achava<br />
dividida a llcspanha christã.<br />
profundamente amou, e que se julga ser Hranea, a duqueza.» John Stowe,<br />
Notes on lhe poetical icorks of (1. Chaucer.<br />
I)o terceiro poema declara-se auetor o proprio Chaucer, alludiiulo a si<br />
mesmo :<br />
«He<br />
. . . hcke the Death of lilaunch thc Duchesse.» The Icgend of good Women,<br />
prologue, vers. 418.<br />
1 «L'homme le plus ac<strong>com</strong>pli de la cour d'Angleterrc, portoit au degré le<br />
plus éminent Ia bicnfaisance, i, Ia valem et 1'esprit de con-<br />
duite.» Ilume, Ilist. dAnglet., tomo 2.", chap. 4.°, trad. «On l'appclloit<br />
le bon duc.» Hapin, Ilist. d'Angl., tom. ui, liv. x.<br />
2 «llic erat primus dux Laneastrije et ante ipsum non occurrit 1'uisse<br />
duccm, nisi in Cornubia.» Knvghton, Dc evenlibus Angliae, col. 2602.<br />
Os duques foram crcados cm Inglaterra por Eduardo III. Froissart, Chio-<br />
niyues, vol. n. pag. 124, note Buchon.<br />
3 JJarnes. Rapin de Thoyras, tomo iu, liv. x, etc.
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Guerra «le !ão momentosa importancia não ciaria resultado<br />
profícuo sem o concurso dc allianças mulliplices para conlra-<br />
pezar a superioridade que sobre a Inglaterra linha enlão<br />
França l .<br />
A Portugal, Aragão e Castella foi pois enviado <strong>com</strong>o em-<br />
baixador Henrique de LancastcrChegado a Lisboa, á côrlc<br />
de Alíonso IV (1344), iniciou as bases para o consorcio da<br />
infante L). Leonor, filha deste soberano, <strong>com</strong> um dos prín-<br />
cipes inglezes, da mesma fôrma que cm Castella 1 cimentara<br />
a união do herdeiro da coroa, o terrível Pedro o cruel <strong>com</strong><br />
a formosíssima filha de Eduardo III. a mallograda Joanna,<br />
cujas graças a haviam tornado idolo de trovadores e inenes-<br />
treis 4 . Esta união, contractada definitivamente, veio a fros-<br />
trar-se pela tragica morte da princeza (1348) \<br />
1 llapin dc Thoyras, llist. d'Angtclerrc, tom. m, liv. x.<br />
2 Pleno poder dc Eduardo III. Ad tractandum super Alligantias cum<br />
magnífico príncipe Domino Alphonso Porlugalliac et Algarbii rege. Torre<br />
de Londres, 21 dc março de 13íí. Itymer, tomo v, pag. 410.<br />
Ao uso do tempo <strong>com</strong>punham esta missão dois embaixadores. Era o se-<br />
gundo llicardo, conde de Arundcl.<br />
3 Carta de Eduardo III a AlTonso XI de Castella, apud llysing 11 dc<br />
agosto de 1344. Rymer, tomo v, pag. 422.<br />
1 «The beautes and graccs of lhe... princcss Joanna... wcre sucli as to bc<br />
thethemeofeveryminstVel.»Strickland. LivesoftheQueens,tomo 1n."12.°<br />
' Dc Inglaterra partira Joanna desembarcando cm Aquitania. Esperada<br />
cm Hayonna por seu futuro sogro AlTonso XI e pelo proprio noivo, foi<br />
victima da peste negra que então «grassava. No proprio dia em que devia<br />
casar-se na calhedral conduziram-na ahi aquclles príncipes para ser dada<br />
á sepultura. Slrickland, Lircs, tomo i, n.° 12.°, pag. 573. Vejam-se em<br />
llymer, tomo v, pag. 6Í2-44 as cartas repassadas dc tristeza 1 cscriptas por<br />
Eduardo III ao rei e rainha dc Castella, bem <strong>com</strong>o ao infante noivo.<br />
1 De morte funesta Johanoae liliae regis, Burdegalis trarumissac primogênito regi*<br />
Ca. tellac maritamlae. Wcsmnistor, tu dc setembro dc 1 m . llymer, loc. cit.
D. JOÃO I K A AI.LIANÇA INGLEZA 33<br />
II<br />
Desejara também o monarcha inglez que se realisasse o<br />
projcctado consorcio da infante dc Portugal <strong>com</strong> seu filho João<br />
de (idiint, o mesmo a quem dedicamos estas linhas. Nesse<br />
intuito enviou ainda novos embaixadores apenas se lhe<br />
apresentaram os que primeiro haviam partido; mas ou porque<br />
boa acolheila não houvesse a proposta na côrte de Lisboa,<br />
ou pela desproporção das edades, ou por qualquer outra causa<br />
não mencionada pela historia, determinou-se finalmente<br />
Eduardo a sollicitar a mão da infante portugueza para o seu<br />
próprio herdeiro, o invencível príncipe negro<br />
Nenhum de nossos antigos historiadores mencionou este<br />
enlace importantíssimo, e ainda menos se referiu ás variadas<br />
phases da negociação, aliás de vasto alcance para o reino s .<br />
1 As instruções de Eduardo III aos novos embaixadores que enviava<br />
diziam: «Libenter traetare volumus cum domino rege Portugalliae super<br />
matrimônio inter Johannem, lilium nostrum, et liliani dieti regis.» Adambas-<br />
satores, l)e instruetionibus. Sandwiei, 20 de junho de 1345. Hymcr, Voe-<br />
dera, tomo v, pag. 462. Á rainha de Castella. (ilha «le AlTonso IV, escrevia<br />
Eduardo o seguinte: «Ad matrimonium inler Johannem, lilium nostrum<br />
carissimum, et sororem vestiam, inclitam illustris regis Portugalliae filiam<br />
contrahcndum... nos inveniet propensiús inclinatos.» Carta á dieta rainha.<br />
Sandwich, 18 dc junho de 1345. Kymer, tomo v, pag. 462-64.<br />
2 Vejam-se os documentos adeante citados.<br />
3 O visconde dc Santarém limitou-se a extractar sem critério alguns<br />
documentos da collccção dc Kymer omittindo outros, c adulterando por<br />
vezes o próprio extracto. Veja-se Quadro elementar das relações diplomá-<br />
ticas dc Portugal, tomo xiv.<br />
3
3 i D. ioAü 1 t A ALLIANÇA INOLEZA<br />
O noivo era um dos mais eminentes vultos do século XIV,<br />
e a Inglaterra sol) aquellc reinado <strong>com</strong>eçava a subir de importância<br />
entre as nações europeas.<br />
III<br />
Numerosos documentos provam que, além das embaixadas<br />
referidas, enviou Eduardo III a Portugal (novembro dc 1345)<br />
Ires embaixadores 1 e ainda outros (julho de 1347), vindo<br />
estes auctorisados a contractarem definitivamente o casa-<br />
mento da infante <strong>com</strong> o herdeiro da coróa inglcza *, o prín-<br />
cipe negro, bem <strong>com</strong>o a estabelecerem as condições de dote<br />
c arrhas, e o tempo em (pie devia a infante de Portugal ser<br />
levada a Inglaterra :< .<br />
A rainha dc Castella I). Maria, filha de AlTonso IV e irmã<br />
da noiva, tomou parte inuiactiva para o ajuste d esta alliança,<br />
1 Ad regem Portugalliac, De Credentia. Carta a AlTonso 4." acreditando<br />
tres embaixadores para convencionarem sobre o casamento. Westminster,<br />
8 de novembro dc 1345.<br />
Pleno poder aos referidos embaixadores para contractarem o matrimônio<br />
do príncipe dc tialles ou dc um dos outros filhos de Eduardo <strong>com</strong> uma das<br />
filhas de AlTonso 4.° Westminster, ut supra. Kyiner, tomo v, pag. 482.<br />
2 De tractando super matrimônio inter Eduardum primogenitum regis &<br />
Leonoram regis Portugalliae filiam. Pleno poder aos embaixadores Roberto<br />
Slratton, concgo da cathcdral de Chcster, e mestre Ricardo dc Sahaud.<br />
Cerca de Calais, 7 dc julho dc 1347. Rymer, tomo v, pag. 574.<br />
J Dc tractando su|)cr dicto matrimonio & de teinpore, quo dieta Lconora<br />
m Angliam sit transmissa. Outro pleno poder aos mesmos embaixadores.<br />
Data ut supra. Rymer, loc. cit.
D. JOÃO I li A ALUAM-A ÍNGLHZA<br />
<strong>com</strong>o si 1 ve das diversas carlas que lhe dirigiu Kduardo III ! ;<br />
e (jue mui a contento creste monarcha o de seu heroico filho<br />
era oconsorcio prova-o a carta authentica do soberano inglez<br />
ao chanceller de Portugal, Gonçalo Ànnes Hispano Mas<br />
depois dc haver Eduardo escripto esta carta (7 de jullio de<br />
1347) e enviado os últimos embaixadores para eííectuarem<br />
o casamento e a<strong>com</strong>panharem ate Inglaterra a infante, vieram<br />
elles encontral-a cm Lisboa desposada havia mais de um<br />
mez <strong>com</strong> o rei de Aragao, Pedro o ceremonioso \ que, temen-<br />
do-se do rei de Castella e querendo estreitar alliança <strong>com</strong><br />
Portugal, sollicitara de AlTonso IV a mao da infante 5 .<br />
Por sua parte buscando o rei de Castella evitar este con-<br />
1 Ati regi na m Castellae super-., sponsalibus. Sandwich, 18 de junho de<br />
1345. Kymer, v. pag. 462. Ad rcginam Castellae. Wcslminster,13 de agosto<br />
dc 1345. Kymer, v. pag. 477.<br />
Idem. Westminster, 8 de novembro de 1345. Kymer, v. pag. 483.<br />
Idem, idem, 18 dc março «le 1346. Kymer, v. pag. 502.<br />
2 Littera missa regis Portugalliae cancellario. Juxta Calcsiam, 7 de julho<br />
dc 1347. Kymer, Acta, tomo v, pag. 571. Este alto funccionario portugiicz<br />
nâo vem mencionado no catalogo dos chancelleres de Portugal escripto por<br />
Trigoso. A sua existencia é porém indubitavcl mediante o documento supra.<br />
3 «Manda sesMcssagcsau Roy de Portugal ouc (avec) pleine pocr d'aflermer<br />
le dit Mariagc.» Instructioncs super Matrimonio Hispaniae. Westminstcr,<br />
15 de fevereiro de 1348. Kymer, tomo v, pag. 612.<br />
4 Eduardo assignou os plenos poderes a seus embaixadores a 7 de julho,<br />
c a 11 dc junho haviam-se realisado cm Santarém os desposorios da infante<br />
<strong>com</strong> o rei de Aragao. Sousa, Ilist. gencal. da Casa Real, tomo 1.°, liv. 2.°,<br />
cap. 5.°; Zurita, Anales de Aragon, tomo 2.°, lib. 2.°, cap. 6.°<br />
s «Keceando-sc el-rei I). Pedro o 4.° de Aragao de el-rei dc Castella...<br />
querendo conservar a amizade d'elrei de Portugal concertou casamento <strong>com</strong><br />
a infante I). Lconor, filha d'estc soberano.» Nunes de Leão, Chron. de<br />
D. Affonso 4.°, pag. 169, ed. l. â<br />
*
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
sorcio. pedia outrosim a mesma princeza para seu sobrinho,<br />
() infante D. Fernando. 0 embaixador, porém, que era o<br />
celebre I). João AlTonso d'Albuquerque, o do ataúde, chegou<br />
á côrtc porlugucza apenas quarenta e oito horas antes de se<br />
realisar o enlace f . Nada conseguiu por tanto, apezar de ser<br />
sobrinho de AlTonso IV 2 .<br />
A manifesta desconsideração, <strong>com</strong> que pelo rei portuguez<br />
foi tractado o soberano de Inglaterra, desgostou este ao ponto<br />
de mandar ofíicialmente declarar que, se o casamento sc<br />
mallograra, não fôra por sua culpa \ e que só tarde houvera<br />
elle conhecimento d aquellc facto, quando os seus embaixa-<br />
dores voltaram de Portugal \<br />
IV<br />
Km tão intrincado labyrintho de negociações e enlaces é<br />
muito para ver a política utilitaria, que dirigia as diversas<br />
côrtes.<br />
1 Nunes de Leão, Chron. de D. Afonso 4.° — Mn. Lusit., parle vil,<br />
liv. 10.', cap. 9.°<br />
2 Era. <strong>com</strong>o já dissemos, filho de AlTonso Sanches, irmão natural d'csle<br />
rei. e cm Castella senhor d'Alhuqucrquc. I)'ahi vem o appellido ás famílias<br />
que d elle descendem. Nobiliario do Conde I). Pedro. Sousa, llist. gental.,<br />
e outros.<br />
3 «Avant que les dits Messagcs poaint venir ao Roy de Portugal, le dit<br />
Roy avoit inarié sa filie ao Roy d'Aragoun... Si que le Mariagc dc sou Fils,<br />
I e Prince, faiUisl sanz sa coupc.n Inslructioncs super Matriraonio Ilispaniac.<br />
Westminster, 15 de fevereiro dc 13i8. Rymer, tomo v, pag. 012.<br />
< ( l>e quoi... nc feust mye ccrtiíié tant que ore tarde que ses Messagcs<br />
vyndront dc Portugal.» Instructiones, ut supra.
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
0 rei inglez para se fortalecer contra França ajustava<br />
uma «le suas filhas <strong>com</strong> o herdeiro de Castella, e olTcrccia o seu<br />
proprio herdeiro á filha do rei de Portugal, sendo unicamente<br />
por culpa d'este, <strong>com</strong>o vimos, (pie se não realisou oconsorcio.<br />
Aflonso XI, a fim dc isolar o rei dc Aragao, esforçava-se<br />
por estorvar-lhe o casamento <strong>com</strong> a infante portugueza, e<br />
sollicitava-a |>ara seu proprio sobrinho.<br />
Pedro, o ceremonioso, para se precaver contra os arrojos<br />
do castelhano empenhava-sc cm ter por sogro Affonso IV de<br />
Portugal<br />
Este, desconfiado sempre de seu genro AlTonso XI, <strong>com</strong><br />
o qual ainda pouco havia lidara em guerra, preferia, no<br />
intuito dc o collocar entre dois fogos, a alliança do Aragao á<br />
alliança ingleza. Em vez dc elevar a gloria de sua patria,<br />
dando a filha ao heroe d'aqucllas eras, ao vencedor de<br />
Poitiers e Grécy, loi ligal-a ao rei da mais acanhada monar-<br />
chia «le Hespanha, conhecido apenas na historia, alem dc<br />
seu perverso character - por ser o auetor de um ceremonial<br />
de córtc<br />
A política utilitaria foi sempre a mesma.<br />
AlTonso IV manteve ao menos isento de influencia extranha<br />
o estandarte glorioso de AlTonso Iicnriques.<br />
1 «Propuso de confederarse en mui cslrccha amistad cõ clKey dc Portugal<br />
pera en qualquicr succso.» Zurila, Analcs dc Aragon, lib. 2.°, cap. 0.°<br />
2 «Fuè la condicion rtclKey don Pedro lan perversa c inclinada al mal...»<br />
Zurila, lib. viu, cap. 5.°<br />
3 A íntegra d'csta ordenação c contida no precioso códice que se encon-<br />
trava em a sala E da exposição de arte ornamental rcalisada cm Lisboa o<br />
anno passado. Pertencia á collcccão hespanhola.
CAPITULO V<br />
SUMMÀRIO. — João dc Gauní esposa a herdeira de Lancaster. — Nasce Fi-<br />
lippa futura rainha dc Portugal.— Grandezas. — Morte de Branca. — O<br />
duque em Escócia c França. — Com o príncipe negro invade Castella.—<br />
Pedro o cruel.—Vencem a batalha dc Najara.—João caudilhando a<br />
vanguarda. — Pedro restituido a Castella.—fi morlo por seu proprio<br />
irmão. — Desamparo das filhas. — A herdeira e o duque de Lancaster. —<br />
Segundas nupeias.—Ambições dc conquista. — Alto alcance da alliança<br />
<strong>com</strong> Portugal. — Presentam-se os embaixadores.'—Como são recebidos.<br />
I<br />
João dc Gaunt, segundo atraz fôra dicto, amava desde a<br />
infância sua prima, 15rança de Lancaster ! . Mal acolhido a<br />
principio tanto portou juneto da bondosa 3 princcza, que<br />
por fim logrou chamar-lhe sua \ D esta auspiciosa união<br />
1 «Whom hcc intirely lovcd.» John Stowc, Notes on thc Chauccrs Works.<br />
The hooke f)f lhe Dutrhcssc.<br />
2 Chauccr, The hooke of thc fíutchesse. vers. 1243-44.<br />
3 «MadameBlanchc, Ia três honncduchcssedeLancastreavccqucsmadamc<br />
l;i reine Philippc dWngleterre; je ne xis oneques deux meilleures dames.»<br />
Froissart, liv. ui, cap. 32.°<br />
4 Eflfccluou-sc o casamento, obtida dispensa d Papa, em 10 do maio<br />
de 1359. Walsingham, Ilist. brevis. pag. 173.
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
veio ao mundo entre outros filhos uma menina, sobre cuja<br />
fronte a Providencia collocou. andados annos, a coroa de<br />
Portugal.<br />
Por morte do duque e dcMalhilde, sua íillia primogênita<br />
veio clíecti vãmente Branca a herdar a des<strong>com</strong>munal riqucia<br />
da casa dc Lancaster, tornando desfarte seu marido 1111<br />
dos mais opulentos príncipes de Inglaterra, e ainda da chris-<br />
tandade. Mais esplendida corte o cercava, do que a da má-<br />
xima parte dos soberanos da Europa actual.<br />
Não fruiram largo espaço os dois cônjuges a felicidadí<br />
que tão ampla lhes sorria. Na flor da juventude pereceu -1<br />
virtuosa Branca 3 deixando orphfi aos nove annos a lilh;i IJIU.'<br />
estremecia, e nos extremos da dor o marido que idolatrava.<br />
1 Numerosos auetores, e entre esses o visconde de Santarém l , escreveram<br />
que Branca de Lancaster fora filha única. AÍTirmaram outros que fôra pri-<br />
mogênita.— Duplo erro. — Mathilde, a primogênita casou <strong>com</strong> (iuilherme.<br />
conde de Zelandia, filho do imperador Luiz de Bavicra, mas tendo sobro-<br />
vivido apenas um anuo a seu pae (1362) o primeiro duque de Lancaster,<br />
morto de peste (1301), foi por isso Branca a herdeira universal d'aquclla<br />
opulcntissima casa. Veja-se Froissart, liv. i, cap. 470; Knyghton, col.<br />
2625-21»; Rapin, liv. \. pag. 230; ImolT. Hegum Magnae Britar. Ilist.<br />
geneai., cap. m, tal», v.<br />
2 Walsingham, Ilist. brevis. pag. 18í.<br />
«Being a woman verv devout.» Chaucer's A. B. C., nota. Esta poesia<br />
A B C, ou, <strong>com</strong>o então lhe chamavam, «La pricre de Nostre Dame» <strong>com</strong>»'-<br />
çando por cada uma das lettras do alphabcto, foi escripta por Chauccr,<br />
dizem os seus eommentadorcs, a rogo de Branca dc Lancaster romo oração<br />
para seu uso particular.<br />
« Quadro ciem. das rc/aç. diptom. dc Portugnl, tnn.o xiv, prologo ás rei. <strong>com</strong> IngMcrrt.
41 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
II<br />
No cmtanto progredia implacavcl entreInglatma c França<br />
a já mencionada guerra dos ccmannos. Nesta exercitara as<br />
primeiras armas João de Gaunt, tendo sido por seu pac 1<br />
armado cavalleiro (1355). Em incessantes lidas se assigna-<br />
lava, já invadindo por diversas vezes a Escócia e a França,<br />
já atravessando de mão armada todo o lerritorio inimigo<br />
(1370) desde Galais até Hordcus \ já exercendo em nome<br />
de el-rei seu pac o cargo de logar-tenente 3 em Aquitania<br />
e demais possessões inglczas no lerritorio hoje francez<br />
Outro reino experimentou ainda a ardideza incançavel do<br />
duque de Lancastcr.<br />
Pedro o cruel, rei de Castella, fôra expulso do llirono por<br />
seu irmão natural Henrique de Trastamara 5 . Não encon-<br />
trando o ininimo gasalhado em seu tio, Pedro 1 de Portugal,<br />
que arteiramente lhe cerrara as portas da côrtc portugueza<br />
para se não involver na lucta entre os dois irmãos 6 , foi o<br />
1 Knyghton, col. 2008.<br />
2 Sobre esta excursão veja-se Miehelet, llist. de Vrance, li\. vi, cap. 4.°<br />
Walsingham, pag. 187.<br />
5 !)«• Johnne rege Castcllae... capitano gencrale conslilulo, Carla patente<br />
de Eduardo III. Westminster, 12 de junho de 1373. Rymer, tomo v, pag. 13.<br />
4 «Tant cn nostre Uoiaulme dc Francc, <strong>com</strong>e cn Aquitaigne.» Carta,<br />
ut supra.<br />
Ayala, Cron. delltei/ don Pedro e demais historiadores.<br />
fi «Se clUcy escusou de o ver c lhe fazer ajuda.» Lopes, Chron. d'cIRd<br />
l>. Pedro, cap. xxxvm. Veja-se Ayala, Chron. citada; Mariana, llist. gcn.<br />
de Espana, libro XVIII, cap. 8.° Nas antigas Memórias extrahidas das llist.<br />
de Dugucsclin por Estoulevillc (1387) encontra-se que l>. Pedro I recebera
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
castelhano <strong>com</strong> as infantes, suas filhas, demandar o auxilio<br />
(Tcneroso do príncipe de Galles, (pie então governava Aqui-<br />
tania f . Celebrou <strong>com</strong> este um tractado" para <strong>com</strong> o soccorro<br />
das armas inglczas reconquistar o throno, e <strong>com</strong>o refens<br />
deixou em Bayonna as próprias filhas 3 .<br />
111<br />
Invadiram inglezcs a Castella caudilhados pelo lieroe dc<br />
Poiticrs, e por seu irmão o duque de Lancaster (1307).<br />
cm Lisboa o fugitivo, c lhe aconselhara que procurasse o auxilio do prín-<br />
cipe do Galles. Estas asserções discordam da narração feita por Fcrnão Lopes<br />
c Ayala contemporâneos de Estouteville, porem que melhor dc> iam conhecer<br />
os successos que historiavam, por serem naturaes da península. Vide An-<br />
ciens Mcinoircs du XIVsvde: Dugucsclin, na Co 11.I'ctilt, tomo iv, cap. xiv.<br />
«Do Ia \aine tentativo que lit Pi erre aupròs < I < i roi de Portugal pour enobtenir<br />
du sccour.» Veja-se lambem Johncs, Notas a Froissart, trad. ingleza, liv. i,<br />
cap. 23.", pag. 312.<br />
1 Eduardo III havia estabelecido a independência, ou autonomia <strong>com</strong>o<br />
hoje se diz, da Aquitania (1362) sob o sccplro de seu fdho, o príncipe de<br />
Galles <strong>com</strong> a condição de que annualmente pagaria urna onça dc ouro á<br />
coroa ingleza em gracioso tributo de vassallagcm. Veja-se o proprio docu-<br />
mento em Kymer, tomo v, pag. 389. Littera principis Aquitaniae a patre<br />
tenenda. Wcstminster, 19 dc julho dc 1362.<br />
2 Em Bayonna, no caslcllo da cidade, a 9 de fevereiro dc 1366. Este tra-<br />
ctado foi confirmado por outro que se ultimou cm Libourne no convento<br />
dos frades menores em a camara do príncipe a 23 de setembro seguinte.<br />
Kymer, tomo IU, parte ii, pag. 115 c seguintes.<br />
* Tractado dc confederação, ut supra. Kymer, tomo w, parte li, pag. 11o,<br />
Ayala, Crônica dr dnn Pedro. ano 1366, pag. 133; Lafuente, tomo 7.%<br />
P«S. 278.
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Pelejaram e venceram a batalha de Najara (23 de abril),<br />
uma das mais memoráveis do XIV século f . Nobremente se<br />
assignalou abi João de Gaunt capitaneando a vanguarda i .<br />
Esta victoria rcstituiu ao throno castelhano o monarcha des-<br />
pojado. Pouco tempo o logrou todavia.<br />
Auxiliado pelas terríveis <strong>com</strong>panhias de avcnturciros-sal-<br />
teadoressob ornando do celebre Duguesclin, um dos capitães<br />
destas, o bastardo de Trastamara penetrou de novo na asso-<br />
lada Castella, investiu <strong>com</strong> el-rei seu irmão, derrotou-o na<br />
batalha deMonliel, cahi por suas próprias mãos lhe arrancou<br />
a vida depois de lhe haver usurpado a corôa 3 .<br />
Em total desamparo se íicavam entretanto na cidade de<br />
Bayonna as orphãs de el-rei D. Pedro 4 . Fallecida a primo-<br />
gênita, apressou-se João dc Gaunt a contrahir nupcias <strong>com</strong><br />
a immcdiata, I). Constança e desde essa hora invocando<br />
os direitos de sua nova esposa, corno herdeira de 1). Pedro,<br />
resolveu conquistar por torça de armas a corôa dc Castella.<br />
Em tal conjunctura a alliança dos portuguezes, que em<br />
1 Ayala, Crônica, ut supra, ano 1.1(57; Lopes, Chron. dc I). Fernando.<br />
cap. xix; Lafucnte, llist. dc Espana, parte 11, li\. m, cap. 17.°<br />
2 «In prima acic erat dux Lancastriac.» Knvghton, col. :2(>29.<br />
3 «Don Pedro... hubiera acabado con ei bastardo, si Hcrtran Duguesclin<br />
tomando con su hercúlea mano por el pie a don Enrique... nó le hubiera<br />
puesto sobre don Pedro.» Lafucnte, parte II, liv. m, cap. 17.°<br />
4 «Lcsquellcs étoicnt cn la cite dc ttayonnc... toutes égarées, dont on<br />
pouvoit avoir grand pitic.» Froissart, li\. i, cap. 454.°<br />
3 Nasceu I). Constanea cm Castro Xeris ein julho de 1354. Tinha por<br />
tanto dezoito annos quando casou, e seu marido trinta e dois. Veja-se Ayala,<br />
Crônica dcHici/ don Pedro, ano v, cap. 13.", pag. 131.
4() D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
poríiada guerra se achavam <strong>com</strong> aquclle reino, era de s I •<br />
alcance para os inlenlos du ambicioso duque. Foi p0r j! °<br />
que antes de ludo se dirigiram ao seu palácio, <strong>com</strong>o dissj,^<br />
os embaixadores de Portugal. 1 ° s><br />
Pode calcular-se <strong>com</strong>o seriam recebidos.<br />
Entremos no palacio.
CAPITULO VI<br />
SIJMMARIO. — Amplíssimas possessões da casa dc Lancastcr. — O palacio<br />
deSahoia.- Esplendores.- Joiio o bom, rei dc França. — Seu capti-<br />
veiro. — Incêndio. — Uccdilicacão. — Sem rival. — Primeiro renasci-<br />
incuto. — Progressos. — A magnanimidade do duque. — Proteccao aos<br />
grandes vultos. — Chaucer. — O Dantc e líoccacio. — Kroissart. — Frei<br />
João, o primeiro physico dc Inglaterra.—Wicklcf, precursor de Luthcro.<br />
— Tolerancia. — Influencia immensa. — João de Gaunt em Escócia.—<br />
Insurreição cm Inglaterra.— A jacqueríe.— Cem mil revolucionados.—<br />
A egualdadc <strong>com</strong>pleta. — Horrores. — A duque/a e as (ilhas do duque.<br />
— Para Escócia. — O castello de Pontfract. — Desamparo. — Alta noite.<br />
— Sete léguas a pé. — Salvam-se. — Episodio na vida da rainha Filippa<br />
ignorado em Portugal.<br />
i<br />
Por diversas províncias de Inglaterra, e ainda fora. possuia<br />
o duque de Lancastcr innumeros palácios, parques e castcllos,<br />
nolando-se entre oulros o dc Ponlfract, onde fôra degollado<br />
seu lio avô, Tliomaz, conde dc Lancasler 1 que a egreja venera,<br />
<strong>com</strong>o saneio, o de Hcrllord, sob cujas florestas passava Branca<br />
1 «Indulto le elRey dei arrastre y cuerda concediondo misericordioso que<br />
niuricse degollado.» Escosura, llist. constitucional de Inglaterra. libro ir,<br />
cap. 2.°, pag. 251.
62 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
a mor parte do anuo; o dc Heauforl d onde tiraram nume<br />
os filhos do duque c de sua terceira esposa; o dc Leycestcr,<br />
o de Tutteburyo de Richmond, e outros muitos.<br />
Dentre tão allcrosos ediíicios sobrelevava-se em esplendor<br />
e riqueza o que na côrte servia de residencia aos opulentos<br />
senhores de Lancaster. Tinha por nome palácio de Saboia<br />
Banhavam-no em toda a sua extensão as aguas du Tamisa 4 .<br />
au longo de cujas margens se dilatava a grande fachada cm<br />
silio amenissimo juneto a uma das antigas portas da cidade<br />
(lemplc bar) não longe de Wcstminster. llccdilicara-o luxuo-<br />
samente o primeiro duque, tornando-o o mais sumptuoso<br />
palacio de Inglaterra 3 . Como tal fôra escolhido para resi-<br />
dencia du rei de França, João, o bom, durante u seu capti-<br />
veiru em Londres e quando au depois voltou a esta curte 7 ,<br />
onde fallcceu (8 de abril dc i3(>i).<br />
1 O castello de Bcauforl ao sul da França veio á casa dc Lancasler pelu<br />
casamento de Branca (1'Artois <strong>com</strong> Edmundo, conde de Lancaster, avô do<br />
primeiro duque. Bell/. (Lancaster herald), Memoriais o/ lhe most Nobleorder<br />
of lhe Garter, pag. 135. Veja-se lindai Note á Hapin de Ihoyras, Ilist.<br />
dAnglcterre, liv. x.<br />
2 Lingard, l/istory of England, tomo 1.°, pag. 589.<br />
3 Assim chamado por noutr'ora haver pertencido ao conde Pedro dc Saboia<br />
que o doou á confraria de Montjoie. A esta <strong>com</strong>prou-o a rainha Leonor,<br />
esposa de Henrique III que o deu a seu filho Eduardo, o corcunda, conti-<br />
nuando desde então na casa de Lancasler. Veja-se Tindal, Note á Ihistoire<br />
d Anglcterre de Hapin, tomo 3.°, liv. x.<br />
1 Froissart, liv. i, cap. 480.°<br />
• «Mancrio ducis Lancaslriae, tunc pulcherrimo mancrio Angliae.»<br />
Knyghton, De eventibus Angliac, col. -26-27.<br />
b Ihoyras, Ilist. d Anglcterre, livre x. pag. 21
I). JOÃO I K A Al.MANCA INUI.EZA 47<br />
Posteriormente. e apenas quatro annos antes (1335.<br />
2 «Mancrium ducis Lancastriac vocatuin Salwey... non liabcns sibi<br />
simile.» Knyghton, loc. cit.
D. JOÃO I K A Aí-LI ANCA INGLKZA<br />
moderna ponle de Watcrloo ficando de pé tão sómentc a<br />
capeila que, na fôrma da presente gravura, ainda hoje existe<br />
depois de interiormente restaurada e engrandecida por gra-<br />
ciosa iniciativa da actual soberana, a rainha Victoria.<br />
A cape)Io dc Saboia.<br />
Únicos restos do palacio.<br />
(Illustratcd London News, 1843).<br />
ii<br />
Xào eram sós porém a riqueza e a magnificência que então<br />
opulentavam o grandioso edifício. Naquella epocha dcclml-<br />
liçilo social, cm que as trevas dos séculos anteriores <strong>com</strong>e-<br />
çavam a csvaecer-sc, e os progressos do primeiro renascimento<br />
irrompiam sob diversas formas, a grande alma do duque de<br />
Lancaster abraçara-as todas.<br />
De sua mãe. a generosa Filippa dc Hainaut, herdara clle
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
o nobre intuito de apreciar os talentos insignes, e de engran-<br />
decel-os l .<br />
Chaucer, o fundador da poesia nacional, o cmulo condigno<br />
do Dante e dc Boccacio Froissart, o historiador ]>oeta, o<br />
ainda hoje festejado chronisla :t , tinham <strong>com</strong>o própria a casa<br />
dc Lancastcr.<br />
Da mesma honra gozava um pobre frade meridicante, frei<br />
João, só porque a adestrado vigor nos campos de batalha<br />
reunia ser o primeiro physico de Inglaterra \<br />
0 celebre Wicklef, precursor de Luthero, <strong>com</strong>o lhe cha-<br />
maram, condemnado em sua doutrina e repellido geralmente,<br />
1 «Phelippa in conjonclion with her son John duke of Lancastcr<br />
warmly patronized Chaucer.» Strickland, Lives of the Queens, tomo 1.°,<br />
n.° 12.°<br />
Froissart pelo seu talento exerceu durante muitos annos o cargo de escrivão<br />
da camara da rainha Filippa, e a cila olícreceu o primeiro livro dc suas<br />
chronicas. Veja-se o mesmo Froissart, liv. i, cap. 1.°<br />
2 Todos os biographos de Chaucer são unanimes em asseverar esta inti-<br />
midade. Para proval-a basta saber-se que Filippa Kouet, por alcunha a Pi-<br />
carda em conseqüência de haver nascido cm Hainaut sobre as fronteiras da<br />
Picardia, era irmã dc Kattcrina Kouet, governanta das filhas do duque de<br />
Lancastcr, <strong>com</strong> a qual este príncipe casou a final cm terceiras nupeias.<br />
Veja-se Strickland, toe. cit.; Tirwhitt, -l/i abstract of the histórical pas-<br />
sages ofthe lifc of Chaucer; Codwin, Life of Chaucer; Chatcaubriand, Es sais<br />
sur la litterature anglaise; Gomont, Clco/frcy Chaucer, Analyses et fra-<br />
Qmcnts; IJeltz, Memoriais, pag. 154.<br />
3 Pelo que respeita a Froissart diz o seguinte um dos seus mais auetori-<br />
sados biographos: «Froissart depuis 1329 jusqu'à 13G9 passa une partie<br />
considcrablc cn Angletcrre attaché au roi (Edouard III) et à la reine (Phi-<br />
lippe de llainaut) et \i\ait dans une espèce de familiarilé avec les... princes<br />
leurs enfants.» Lacurne de S. u Palaye, Mémoir. de 1'académie des Inscriptions,<br />
tomo x.<br />
1 Knyghton, Dc eventibus Angliae, col.<br />
I
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
encontrava no tolerante príncipe 4 , embora este lhe nãoespo-<br />
zasse os dictames, amizade ininterrupta, e defensão acriso-<br />
lada 2 . O palácio de Lancaster era asylo franqueado sempre<br />
a quantos em scicncias ou artes buscavam avantajar-sc.<br />
Mais. Legitimo soberano de Inglaterra, se chegasse a faltar<br />
o que então reinava 3 , e cuja inaptidão <strong>com</strong>eçava a transpa-<br />
recer. João de Gaunt pelas eminentes qualidades que o engran-<br />
deciam, por sua experiencia c longos serviços a pró da In-<br />
glaterra, era geralmente considerado successor condigno de<br />
Eduardo, o grande. A influencia que sobre os negocios do<br />
reino exercia, tornara-se por tanto immensa.<br />
III<br />
A fim de á sombra de tão ampla influencia poder o duque<br />
de Lancaster negociar, <strong>com</strong>o elYec ti vãmente negociou \ mais<br />
vantajosas tréguas <strong>com</strong> a Escócia achava-se aquelle príncipe<br />
(1381) na fronteira dos dois reinos 5 , quando rebentaram<br />
as sedições que atraz referimos.<br />
1 A tolcrancia dc João dc Gaunt prova-se pelo seguinte facto entre muitos:<br />
Até ao fim da vida teve por confessor frei João Kiningham, frade carmeli-<br />
tano, ao qual dedicava grande estima. Este foi o primeiro que se prestntuu<br />
á arena das contendas escholares contra Wicklef, também mui protegido pelo<br />
duque (segundo vimos). 1'itseus, De rebus Anglicis, liv. i, pag. 56í-o.<br />
2 «Wicklef avoit pour protecteur lc duc de Lancaster, dont l'autorité<br />
nctoitguère moins rcdoutable que cclle du roi.» Thoyras, Ilist. dAnglet.,<br />
liv. x; Knyghton, De eventibus, col. 2G68.<br />
3 Lingard, Uistory of England, tomo i.<br />
4 «Factum est, Dco volente, ut fermarentur trcugac ad instantiam ducis.»<br />
Walsingham, Ilist. brevis, pag. 279.<br />
5 Knyghton, De eventibus, col. 2G40, lin. 30. 4
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Tendo estes alborotos relação directa <strong>com</strong> um facto concer-<br />
nente á vida intima de Filippa, futura rainha de Portugal, e<br />
sendo este facto desconhecido inteiramente entre nós, pois<br />
que nenhuma das antigas chronicas o menciona, julgámos<br />
de interesse historico dar-lhe publicidade. Ao leitor portu-<br />
guez não desagradará a leitura, cremos. Eis o caso.<br />
O povo miúdo, alborotando-se nos condados dc Kent e de<br />
Essex em consequcncia de extorsões <strong>com</strong> que certos exactores<br />
do (isco o opprimiam, arrojou-se furibundo contra a capital,<br />
sendo-lhe abertas as portas (jue então havia sobre a ponte<br />
de Londres (London bridge) Eram mais de cem mil ho-<br />
mens " entrando dc tropel.<br />
Cegos de fúria, practicaram os horrores fáceis de conceber.<br />
O seu brado era (pie, filhos dAdão os homens todos, cumpria<br />
reduzil-os a egualdadc <strong>com</strong>pleta 3 . N'esse intuito arrazavam<br />
quanto encontravam; feriam de morte quantos nobres ou<br />
funccionarios lhes cahiam em mãos, e lançavam fogo aos<br />
mais sumpluosos edifícios, sendo entre os primeiros redu-<br />
zido a cinzas o palacio de Lancastcr.<br />
1 Froissart, liv. 11, cap. 110.°<br />
2 Rapin dc Thoyras, liv. x, pag. 290, 3. 8 cd.<br />
3 «Étant tons enfants d'Adam, il ne devoit y avoir... ni distinetion ni<br />
supériorité, ct tout devoit ètre possédó cn <strong>com</strong>mun.» Wallcy, Noieà VAbregé<br />
historique des actes publies d'Angleterre, tomo 3.°, pag. 563.
100<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
IV<br />
Alienadas <strong>com</strong> lamanhas atrocidades, as filhas do duque<br />
c sua esposa buscaram ir juneto d'elle acolher-se, partindo<br />
açodadas caminho dc Escócia<br />
Entradas no condado de York ao norte de Inglaterra, diri-<br />
giram-se ao caslello de Pontfract, propriedade da casa de<br />
Lancasler, <strong>com</strong>o já referimos. Os de dentro, ao vel-as em tal<br />
conjunclura, recusaram abrir as portas. Renegaram esposa e<br />
filhas do proprio senhor, cuja voz mantinham 2 . Tal era o<br />
terror que então dominava!<br />
Desamparadas assim, retrocederam as princezas «quasi<br />
vexadas, diz o chronista inglez, ao verem-se repellidas de<br />
sua própria casa 3 .»<br />
Era alta noite. Perdidas atravez da densidade das trevas,<br />
as desconsoladas senhoras erraram durante o espaço de sele<br />
léguas sem encontrarem quem d'"cilas se condoesse. Por fim<br />
extenuadas de fadiga poderam ao primeiro clarear da manhã<br />
colher a estrada (pie levava á cidade de Knaresborough, onde<br />
se asylaram até que, debellada a terrível insurreição, volveu<br />
a seus lares o magnanimo duque \<br />
Este notável episodio occorrido na juventude de Filippa<br />
1 Knyghton, De eventibus, col. 2640.<br />
2 Knyghton, loc. cit.<br />
3 «Et quasi a própria domo cum pudore in lassitudine repulsa.» Kny-<br />
ghton, loc. cit.<br />
4 O mesmo chronista.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
de Lancasler, depois rainha de Portugal, era, <strong>com</strong>o dissemos,<br />
ignorado entre nós <strong>com</strong>pletamente. De sua veracidade não<br />
ha porem duvidar, pois (pie o refere historiador mui sizudo,<br />
morador em uma das cidades sujeitas então á casa de Lan-<br />
casler, c contemporâneo do proprio succcsso (pie refere.<br />
Mas em longas divagações fomos engolfando o animo do<br />
leitor. Seja-nos desculpa haverem cilas relação intima <strong>com</strong><br />
factos notáveis da nossa historia.<br />
Colhamos velas. Busquemos os embaixadores, que noatrio<br />
deixámos do palacio dc Lancaster.
CAPITULO VII<br />
Si >FMARIO. — Os embaixadores no palacio dc Lancaster. — A camara do<br />
duque. — À duqueza. — A dor dc enxaqueca. — O chancellcr perito em<br />
francez. —Cartas do mestre d'Aviz.—OfTerlas. —Conquista de Castella.—<br />
Especiarias e vinhos. — O duque c os embaixadores. — Luxuosa barca. —<br />
O Tâmisa. — Os paços de Wcstminster.— O rei dc Inglaterra. — As crc-<br />
denciaes. — Favoravcl acolhimento. — Comitê a jantar. — Três barcas<br />
reaes. — Ranquctc.— A duqueza. — Filippa, futura rainha dc Portugal.<br />
— Retiram-se as senhoras. — Toast inglez. — Os \inhos c os embaixa-<br />
dores.— Volvem as princezas. — Suas donas cdonzellas. — A formosura<br />
ingleza. — Dentre as mais bcllas uma. — Seu nome c situação na casa<br />
dc Lancaster. — Um mysterio de ha cinco séculos.<br />
I<br />
Dc viver muilo mais regular que o de nossos dias eram os<br />
robustos homens da edade-media. Erguidos ao desabrocliar<br />
da aurora, jantavam mais cedo, que hoje á franceza é uso<br />
almoçar. Mui antes de meio-dia <strong>com</strong>eçava-lhes a tarde l .<br />
1 Refere Christina de Pisan que o rei dc França Carlos V jantava ás dez<br />
da manha Em Portugal ainda no tempo dc I). João V o celebre medico<br />
Fonseca lícnriqucs na sua Ancora Medicinal aconselhava que durante o<br />
estio fosse o jantar antes das onze horas, porque o grande calor destroe o<br />
appetitc. Ancora Medicinal, secção u, cap. vf pag. 31.<br />
i «Knviron dix heures asséoit A table.» C. de Pisan, Livre des faitx et bonnes moeurs<br />
du sage roi Charles, cap. xvi, e^/tí. Petitot, tomo v, pag. 278.
100<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Largo espaço tinham pois ante si os nossos embaixadores,<br />
que, segundo dissemos, se dirigiram, finda na pousada a<br />
refeição matutina, ao palacio do duque.<br />
Recebeu-os o filho do grande rei de Inglaterra cm sua<br />
própria camara l . Achava-se alli também a duqueza, livre<br />
naquelle dia da dor de enxaqueca, que não raroaflagellava*.<br />
Em sua pittoresca linguagem deixou-nos Fcrnão Lopes<br />
um curioso retrato do duque de Lancaster. «Era, diz o cln><br />
«nista, homem dc bemícitos membros, <strong>com</strong>prido e direito,<br />
«e não de tantas carnes <strong>com</strong>o requeria a grandeza do corpo...<br />
«de boa palavra, nom muito trigosa 3 , misurado e de boa<br />
«condição. Seria de edade de sessenta annos 4 ».<br />
Nesta apreciação chronologica enganou-se o velho paue-<br />
gyrista, pois quando João dc Gaunt veio a Portugal não tocava<br />
inda os cincoenta 5 .<br />
0 constante lidar nos campos de batalha, paixões insof-<br />
fridas e mal reprimida ambição gastando-lhe a existencia,<br />
haviam-ivo tornado velho antes de tempo.<br />
Era mui parecido <strong>com</strong> el-rei seu pae, e <strong>com</strong>o este 6 de lào<br />
soberano aspecto, que a um simples volver d'olhos impunha<br />
veneração c respeito.<br />
1 «Si entrérent en la chambre du duc dc Lancaslrc oü éloit Ia duchcssc.»<br />
Froissart, liv. 3.°, cap. xxix.<br />
2 «Une petite foiblessc et dc doulcur dc ehcf qui à Ia fois Ia tenoit.»<br />
Froissart, liv. 3.°, cap. xxxix; Variante, edit. Buchon, tomo 10.°, pag. 20o.<br />
3 Apressada.<br />
4 Lopes, Chron. dc 1). João /. parte 11, cap. 89.°<br />
5 Nascera em Gand cm 1340. Imhoff, Histor. gencalog., pars i, caput v,<br />
tab. vn.<br />
6 William líeckford, Charactcrs, or histórica! aneedotes ofall thehngt<br />
and (Juccns of England. pag. 43.
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Assim o experimentaram os embaixadores, apenas entrados<br />
na camara ducal.<br />
Attenta a dignidade da pessoa, fôra deante o mestre de<br />
Santhiago. Como porém Lourenço A mies conhecia bem a<br />
língua franceza, fallon primeiro 1 apresentando as cartas de<br />
crença, (pie do regente levavam.<br />
Recordava este ao duque o propicio ensejo (pie se lhe<br />
oííerecia para conquistar a corôa de Castella, vindo <strong>com</strong> suas<br />
gentes reunir-se aos «pie em Portugal guerreavam o<strong>com</strong>muin<br />
inimigo<br />
Do melhor grado acolheu João de Gaunt os mensageiros,<br />
assegurando-lhes que ao dia seguinte os levaria ao paço a<br />
fim dc apresentai-os a el-rei seu sobrinho 3 .<br />
Não findou a audiência sem que, ao uso do tempo, entrasse<br />
em confeiteiros th; ouro cravejados de pedras preciosas um<br />
esplendente serviço de especiarias 4 e vinho 5 , que generosos<br />
1 «Et pour cc que Laurenticn savoit bien parlcr français, il parla tout<br />
prcmièremcnt.» Froissart, liv. 3.°, cap. xxix.<br />
2 «Que se o duque Dalemcastro por seu corpo vir quisesse ao Ucyno dc<br />
Castella... tinha o tempo muito prestes & todo Portugal em sua ajuda.»<br />
Lopes, parte H, cap. IS.°<br />
3 «Si, dit 1c ducaux messages: nous irons demain devers le roi et vous<br />
ferons toute adresse.» Kroissart, li\. 3.°, cap. xxix.<br />
4 Sol» o nome dc especiarias designavam toda a qualidade dc doces, con-<br />
feitos e amêndoas. l)'cstas faziam então grande uso nas diversas cortes,<br />
<strong>com</strong>o ainda hoje sc praclíca entre nós durante a semana saneta. Veja-se<br />
Duchesnc, llist. d'Angleterre, pag. 778.<br />
5 «Adonc (it le duc venir viu et épiccs, si burent et prirenl congó et puis<br />
rctournèrcnt cc soir à leur hotel.» Froissart, li\. 3.°. cap. xxix.
100<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
e finíssimos os tinha cm sua cava, segundo referimos, o<br />
magnificentc príncipe.<br />
Na manhã seguinte a horas de prima 1 (seis da manhã)<br />
encaminharam-se os embaixadores em gala, a<strong>com</strong>panhados<br />
pelas gentes de sua <strong>com</strong>itiva ao palacio do duque. Ouvira<br />
este já missa, conforme preceito da saneia ordem da caval-<br />
laria e tinha prestes uma de suas mais luxuosas barcas,<br />
toda veludo e sedas, fluetuando á pópa e descendo ate entrar<br />
nas aguas o longo estandarte real de damasco carmesi, bor-<br />
dado a ouro, em (pie o leão de Castella se mesclava coin o<br />
leopardo inglez c as lizcs dc França<br />
Embarcaram cm seguida no ancoradoiro do palacio, cuja<br />
ampla fachada corria, segundo referimos, ao longo doTamisa.<br />
Impedida pelos vigorosos pulsos dos galcotes londrinos,<br />
vestidos de seda vermelha, a barca desliza-se á ílor do rio<br />
vogando rapida até aos paços dc Westminster.<br />
1 «Á lendemain h honre dc prime tous dcux s'en allèrent devers lc duc,<br />
et le trouvèrcnt qui il avoit oui sa messe.» Froissart, loc. cit.<br />
2 «Tout chcvalicr... doit ouir Ia messe chaque jotir.» Sr. Henri Martin,<br />
Ilist. dc France, vol. 1.°, cap. xx. La Chevalerie.<br />
3 «Trazia nas bandeiras... castcllos & lioens, posto que houuesse cu dles<br />
miscladas as armas de Fraca & dc Ingraterra.» Lopes, parte n, cap. 89.°
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
II<br />
Reinava então em Inglaterra, havendo succcdido a Eduardo<br />
o grande, seu neto Ricardo II, filho do legendário príncipe<br />
negro, fallecido antes de haver cingido a corôa.<br />
Contava o rei dezenove annos apenas 4 . Achava-se na<br />
camara estrellada, contígua á grande sala do doccl, <strong>com</strong> a<br />
maxima parte dos do seu conselho<br />
A presença do soberano levou o proprio duque os embai-<br />
xadores 3 . Ajoelhados estes por Ires vezes, segundo a praxe,<br />
então usada, entregaram ascredcnciaes que levavam escriptas<br />
em latim e bom francez 4 . Leu-as Ricardo prazenteiro, c accrc-<br />
scenta a chronica, mui docemente respondeu aos embaixa-<br />
dores: «Bem vindos sois vós em esta terra. Grão prazer nos<br />
causou vossa vinda, e não vos partireis tão prestes sem res-<br />
posta que vos <strong>com</strong>prazerá 5 .»<br />
Acertavam dc estar alli também presentes os condes dc<br />
Canibridgc c de Buckingham, lios de el-rei.<br />
Para mais honrar os embaixadores convidou o duque seus<br />
1 Nascera em Bordcus em I3Gfi. IrnhoíT, Magnac lirilan. líislor. gen ca/.,<br />
cap. v; Walsingham, pag. 181, etc.<br />
2 Froissart, liv. 3.°, cap. xxix.<br />
3 «Le duc de Lancastre les lit enlrer en la chambre du conseil et dit au<br />
roi Monscigncur vcz-ci 1
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
irmãos a jantarc a horas dc nóa (meio-dia) entrando em<br />
suas fulgurantes barcas 2 os Ires príncipes, foram num credo<br />
transportados ao paço ducal dc Saboia. Inútil é dizer que os<br />
embaixadores a<strong>com</strong>panhavam o duque.<br />
Festejou-os este <strong>com</strong> um banquete esplendido 3 , cujas<br />
honras foram feitas pela infante duqueza. Abrilhantavam-no<br />
oulrosim <strong>com</strong> suas graças juvenis c aprimorada educação a<br />
infante 1). Catharina, filha dos duques, e depois rainha dc<br />
Castella 4 , e madame Filippa, que dalli a tres annos viria<br />
adornar a fronte puríssima <strong>com</strong> a corôa dc Portugal.<br />
III<br />
Ao findar o banquete retiraram-se as senhoras conforme<br />
vetusta praclica da sociedade inglcza, c entre os homens<br />
<strong>com</strong>eçou então a usual palestra 5 .<br />
1 Froissart, liv. 3.°, cap. 29.°<br />
2 «Tons y allcrent cn leurs barges par la Tamise.» Froissart, loc. cit.<br />
3 Froissart, ut supra.<br />
4 Foi regente durante a menoridade dc seu filho Henrique III dc Castella,<br />
c parece abusou algum tanto da educação recebida, pois, segundo o respe-<br />
ctivo chronista, corria fama de que se embriagava. «Fcrtur quod temulenta<br />
crat mulicr.» Pcrez de Gusman, Gmerazioncs y Sanblanzas, cap. 3.°,<br />
pag. 581, cd.dc 1779. «Fué, accresccnta o mesmo chronista, alta decucrpo,<br />
muchogrucsa, blanca é colorada é rubia, y en el tallc y menco dei cuerpo<br />
tanto parecia hombre, <strong>com</strong>o muger; fué muy honesta en su persona cfama.»<br />
a Froissart, liv. m, cap. 29.° O toast era usanea mui antiga cm Ingla-<br />
terra. Chamavam-lhe então á franceza «colation». Assim oallirma cscriptor<br />
contemporâneo. «Et quand vint après dincr à la colation.» Lebeau, Chro-<br />
Itique de fíichard II. pag. fi, édition Buchon, tomo 2i.°
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
0 conde de Cambridge durante a sua estada cm Portugal,<br />
quatro annos havia, conhecera muito o mestre de Santhiago<br />
e Lourcnço Anncs \ que já em tempos de D. Fernando exer-<br />
cia. segundo dissemos, o cargo de chanccller do reino.<br />
Desejou o conde, <strong>com</strong>o é natural, informar-se dos successos<br />
occorridos entre Portugal e Castella desde a sua partida<br />
Mais interessado em tudo saber era ainda o duque, pois o<br />
abrazava a idèa de reivindicar um throno. A ambos satis-<br />
fizeram os embaixadores <strong>com</strong> informações amplíssimas<br />
Ao cabo de algumas horas, em (pie a libação dos vinhos<br />
se intermeiava <strong>com</strong> a narração dos embaixadores mui a con-<br />
tento do duque mandou este abrir as portas 5 .<br />
Voltaram as princezas. Seguia-as numeroso cortejo de<br />
donas e donzellas, ostentando o provcrbial esplendor da for-<br />
mosura ingleza. A par de todas sobresahia uma. Não estava<br />
já na primeira juventude. Era tal porém a belleza da physio-<br />
nomia intclligcnle caltiva, etãosenhoril a elegancia do porte,<br />
que sem rival fulgia entre as demais. Havia nome: Katterina<br />
Rouet.<br />
1 «Le <strong>com</strong>te de Cantebrugc connoissoit assez Ic grand mailrc dc Saint<br />
Jacques ct Laurcntien Fougasse, car il les avoil MIS au tcnips passe en Por-<br />
tugal.» Froissart, liv. m, cap. xxix.<br />
2 Froissart, liv. 3.°, cap. xxix.<br />
3 Froissart, loc. cit.<br />
1 «Moult prenoit le duc dc Lancaslrc grand plaisir à ouir Laurcnlicn Fou-<br />
gasse parlcr... dc tout ce qui est avenu entre Castillc et Portugal.» Froissart,<br />
liv. 3.°, cap. xxix.<br />
5 «Alors lit monseigneur le duc de Lancastrc la chambre ouvrir.»<br />
Froissart, loc. cit.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Esta dona, celebrada pelos escriptores contemporâneos<br />
representava então papel iinporlantissimo 110 viver intimo<br />
da casa de Lancaster.<br />
Corramos o véo. Descortine-se um mvsterio de ha cinco<br />
séculos.
CAPITULO VIII<br />
SIMMARIO. — A verdade base da historia.—Vida intima de João de Gaunt.<br />
— Donzellas creadas a par dc Branca. — Uma entre as demais. — En-<br />
cantos.— Suas relações <strong>com</strong> o duque. — Um marido. — Mysterios.—<br />
Ella c a nova duqueza. — Fascinação c ingenuidade. — Laços íntimos.<br />
—Viver no centro da família. — Remorsos. —Confissão publica. — Pro-<br />
testos dc emenda. — O coração supplanta o dever. — A educação c o lar.<br />
— Filippa e a coroa de Portugal. — O desabrochar da existência. — Or-<br />
phandade. — Mulhcr-typo. — Despedem-se os embaixadores. — O hotel<br />
do Falcão. — Grande passo dado. — O regedor de Portugal ante a In-<br />
glaterra.<br />
i<br />
Diga-se a verdade. À verdade, só a verdade em seu in-<br />
exorável rigor é hoje a base sobre que se pode escrever a<br />
historia.<br />
Com os escriptores contemporâneos de João de Gaunt<br />
estudemos a sua vida intima.<br />
Ligada estreitamente se acha esta vida á nossa historia<br />
patria sob o sceptro de D. João 1. Patentear aquella é der-<br />
ramar luz sobre notáveis circumstancias que a esta respeitam.<br />
Dentre as donzellas que ao uso do tempo haviam sido<br />
creadas nos paços do primeiro duque de Lancaster a par de
100<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
sua filha, a singela Branca f , uma havia 2 que ás demais<br />
todas dava matte—Katterina Rouet lhe chamavam.<br />
Nascida no condado dc Hainaul, c na bellcza do rosto<br />
ostentando a suavíssima cor dc pelle que era proverbial nas<br />
formosuras da sua terra educada em Londres, e reunindo<br />
por tanto á vivacidadc quasi franceza 4 a severa <strong>com</strong>postura<br />
das filhas d'Albion, fulgia entre as demais <strong>com</strong>o lypo de<br />
ampla intelligencia c instrucçâo profundíssima 5 . Seu pae<br />
Paon Houct, de profissão arauto segundo uns, c cavalleiro<br />
segundo outros era subdito do condado dc Hainaut, donde<br />
para Inglaterra viera na <strong>com</strong>itiva da rainha Filippa 7 , quando<br />
se realisou o consorcio desta princeza <strong>com</strong> o grande rei<br />
Eduardo 111.<br />
Ardente <strong>com</strong>o seu pae, arrojado c impetuoso <strong>com</strong>o os de<br />
sua raça, vivendo no século em (pie a sensualidade brutal<br />
1 «This lady had bcen of the house hold of the duchess Blanche.» Bcllz<br />
(Lancaslcr herald), Memoriais of lhe most noble Order of the Garter,<br />
pag. loí.<br />
2 Duchesnc, llist. d'Angleterre, liv. xvi, pag. 771.<br />
3 «'lhe brilliant coinplcxion for wich the woincn of her country are cclc-<br />
brated.» Strickland, Liv es of the Queens of Kngland, tomo i, n.° 12.°<br />
1 A família Kouet era do condado dc Hainaut, mas sobre a fronteira da<br />
Picardia. Strickland, pag. 588. Katterina podia assim considerar-se quasi<br />
franceza.<br />
b «Cette Cathcrine de Kuet... fut une dame qui saNoit molt de toutes hon-<br />
ncurs, car dc sa jeunesse, et dc tout son temps, cllc y avoit etc nourne.»<br />
Froissart, liv. iv, cap. oü.°<br />
0 A primeira versão é seguida pelos escriptores inglezes. Froissart e os<br />
que o tòin copiado adirmam que Paon fora cavalleiro. Froissart, loc. cit.;<br />
Duchesnc, llist. d'Angleterre, li\. xvi.<br />
7 Era natural de Hainaut, couio se sabe, e filha do conde Guilherme,<br />
Soberano d'aquellc Estado.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
irrompia sem diques \ não pôde João de Gaunt resistir á<br />
peregrina beldade, <strong>com</strong> a qual forçoso lhe era viver sob o<br />
mesmo tccto.<br />
Amou, e foi amado. Eis o que <strong>com</strong> certeza nos revela a<br />
historia 2 .<br />
E certo ainda que a formosa dama, dada em casamento<br />
a sir Ilugh, ou Owen Swinford, cavallciro do condado de<br />
Lincoln 3 , veio <strong>com</strong> o andar do tempo a separar-se de seu<br />
marido volvendo cm seguida ao palacio de Lancaster 4 , lar<br />
onde <strong>com</strong> a educação recebera segunda vida.<br />
Não cause maravilha ao leitor este proceder da juvenil<br />
esposa. Por mui natural o haverá, se <strong>com</strong>nosco se remontar<br />
ao viver intimo da epocha que buscámos descrever-lhe.<br />
II<br />
A mais escandalosa desenvoltura eivava a sociedade in-<br />
gleza naquclla epocha.<br />
Os escriplores coevos são unanimes em confirmal-o. Um<br />
d ellcs, e sujeito até ao dominio da casa de Lancaster, escrevia<br />
então o seguinte: «Senhoras da mais alta linhagem e formo-<br />
sura vangloriavam-se do seu proprio desregramento. Em<br />
1 Sobre este assumpto consulte-se NValsingham, Ilist. brevis, pag. 279;<br />
Knyghton, De eventibus. col. 2642.<br />
2 «Lui s'en étant enamourc... fut longuement.» Duchesnc, Ilist. dAngle-<br />
terre, liv. xvi.<br />
3 Heltz (Lancaster herald), pag. 15í.<br />
4 «Le chevalier vivant et mort toujours le Duc Jean dc I.ancastrc avoit<br />
aimé et tenu cctte dame Catherine.» Froissart, liv. iv, cap. 50.°<br />
5
8()<br />
I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
turmas de quarenta ou cincoenta, bisarramente vestidas á<br />
guisa de homens, e <strong>com</strong>o estes em cotas de seda a côres<br />
bipartidas, atoxadas por cintas de prata ou ouro, na cabeça<br />
capuzes estreitíssimos, e tão longos que em torno da frente<br />
os cingiam em innumeras voltas, e <strong>com</strong>pridos punbaes pen-<br />
dendo-lhes docollo, corriam os logares, onde seannunciavam<br />
torneios, montadas em fogosos cavallos, e apparentando em<br />
tudo o estupendo apparato de cavalleiros ao entrar era liça.<br />
Antecediam-nas centenares de mancebos tão desregrados<br />
<strong>com</strong>o cilas.» Assim, accrescenta o mesmo escriptor: «dilapi-<br />
davam aquellas senhoras os haveres dos maridos, e em ar<br />
de graça iam maculando os corpos <strong>com</strong> lascivias torpes, roto<br />
o freio da matrimonial pudicicia 1 .»<br />
Em presença deste quadro traçado por mão de contem-<br />
porâneo respeitável, e subdito, segundo dissemos, da casa<br />
de Lancastcr <strong>com</strong>o pode causar maravilha odesaccordo entre<br />
Katterina e seu esposo?<br />
Que motivos porém determinariam a separação dos dois<br />
cônjuges?<br />
Deu-se eííectivamente infidelidade na juvenil esposa, e<br />
recorreria sir Owen ao divorcio, tão <strong>com</strong>mum em a alta<br />
sociedade ingleza naquelles tempos de desmoralisação am-<br />
plissima<strong>com</strong>o acabamos de ver?<br />
1 Knyghton, De eventihus Angliac apud Twysdcn, col. 2612.<br />
2 O divorcio, c em seguida casamento <strong>com</strong> outros conjugcs, eram então<br />
casos mui vulgares cm Inglaterra. A formosíssima Joanna (the fair maid of<br />
Kent'), mãe do soberano então reinante Ricardo II, e que haveria, cila<br />
própria, sido rainha da Grã Bretanha, se não houvera prematuramente fal-<br />
lecido seu terceiro marido, o invencível príncipe negro, foi casada em pri-<br />
» Assim chamada por sua extraordinária bellcza. Era fdba do conde dc Kent c neU de<br />
hduardo I, rei de Inglaterra. ImoíT, Regum Magnae Britanniae hist. gcneal., cap. iv, pag. 20.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Suspeitaria Branca o animogalanteador do marido instável,<br />
c na <strong>com</strong>panheira dc infância descortinaria rival perigosa?<br />
Como em tal extremo solta dos laços conjugaes volveu<br />
Katterina a habitar a casa de Lancaster?<br />
Segredos são esses
^G D. JOÂO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
O duque seu marido e r a — e m antithese <strong>com</strong>pleta a sua irmã,<br />
a leviana Isabel, duqueza de York 2 —alheia a esplendores<br />
mundanos, devota e recolhida 3 . Não a opulcntavam os dotes<br />
consoantes a attrahir o animo phantasioso do guerreiro ar-<br />
dente.<br />
Katterina, pelo contrario, achava-se cm toda a energia da<br />
seducção e dos encantos. A sua physionomia severa e fas-<br />
cinadora, o talento e a instrucção que a abrilhantavam, exer-<br />
ciam absoluto império sobre o impressionável duque \<br />
A demais—Constança creada entre as horridas atroci-<br />
dades da corte de Pedro o cruel, íilba do perverso tresvai-<br />
rado, cujas sevicias assombram ainda boje a posteridade,<br />
era—pobre infante! — por um d'csses contrastes que não<br />
raro apresenta a humanidade, dotada da mais crédula sin-<br />
geleza. Incapaz de mal proceder, julgava os outros por si.<br />
1 Constança nascida cm 1351 tinha menos dezoito annos que o duque<br />
seu esposo. Ayala, Chron. delüey Don Pedro, ano 1354.<br />
2 Filha também de Pedro o cruel de Castella, casaram-n'a em Inglaterra<br />
<strong>com</strong> o conde de Cambridge, depois duque de York. Esta prinçeza veio a<br />
Portugal <strong>com</strong> seu marido na expedição auxiliar ingleza cm tempo d'el-rei<br />
D. Fernando.<br />
Eis o que acerca do seu proceder escrevem os auetores inglezes: «Isabel,<br />
duchess of York second danghter to Pedro the cruel, a lady noted for her<br />
over-fmeness and dclicacy, yet at her dcath showing much penitence for her<br />
pestilent vanities.» Strickland, Liv es, tomo i, pag. 614.<br />
«Isabella first wife of Edmund duke of Vork... much lamentcd for her<br />
youthful wantoness.» Anderson H. Gen. cit. por Johnes, trad. de Froissart,<br />
liv. i, cap. 230.°, pag. 342 nota.<br />
«Domina Isabella ducissa Eboraci... mulier mollis & dclicata, sed in fine,<br />
ut fertur, satis poenitens & conversa.» Walsingham, llist. brevis, pag. 350.<br />
3 «Mulier super foeminas devota.» Walsingham, loc. cit.<br />
4 «Lui s'en étant enamouré 1'avoit entretenue.» Duchesnc, llist. d Angle-<br />
terre, liv. xvi.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Nunca tão dcscurada sinceridade, affirma um severo es-<br />
criptor da epocha, se abrigara em coração de mulher<br />
Mais asada esposa não podia encontrar o amante de Katte-<br />
rina Rouet.<br />
Laços Íntimos os estreitaram 2 . Quatro filhos nascidos<br />
no progredir desta união, duplamente iIlícita, 3 porque se<br />
mantinha sob o mesmo teclo a par de um thoro maculado A ,<br />
vieram a ser posteriormente legitimados pelo rei de Ingla-<br />
terra 5 .<br />
Com a esbelta amante vivia Lancaster em seu proprio<br />
palacio, cm meio de sua mulher c filhas. Embora se guar-<br />
dassem certas exterioridades, se guardadas eram, a verdade<br />
é esta 6 .<br />
Quando porém, assaltado pela insurreição popular, a que<br />
já nos referimos, teve o duque de permanecer cm Escócia,<br />
tão pungentes remorsos o assaltaram 7 ácerca de sua vida<br />
intima, e de no proprio lar c juneto á esposa legitima haver<br />
a que o não era, que em altos brados declarava arrepen-<br />
1 «Mulier super foeminas innocens.» Walsingham, pag. 3o0.<br />
2 «Le ducavoit Iongtemps entretenu cette femme en qualité de maitresse,<br />
et en avoit eu plusicurs enfants.» llapin, Ilist. d'Anglctcrrc, liv. x, pag. 320,<br />
3. 4 edição.<br />
3 Tindall, Notes à ihist. d' Anglctcrrc, loc. cit.<br />
4 «Erat i|>si cum illa slupri vetus consuctudo.» ImofT, Regum Magnac<br />
Britan. Ilist. gen., cap. v.<br />
5 Walsingham, pag. 393. O acto do legitimarão encontra-se em Kymer,<br />
Foedera, tomo m, parte iv, pag. 12(>.<br />
f ' «Concupcsccntia excaccatus, nec Dcum timens, nec homines cru-<br />
bescens, habebat... quandam Katerinam... alienigenam in família cum<br />
uxore sua.» Knyghton, col. 2(512.<br />
7 «IIís cxcogitatis in scipsum, I)co gatiauí sibi inspirante, statim reversus<br />
cst.» Knyghton, loc. cit.
70 D. JOÁO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
der-se 1 confessando publicamente os seus erros 2 . attribuindo<br />
a estes os males que sobre Inglaterra então pesavam, e abor-<br />
recendo. ou antes abjurando as suas relações <strong>com</strong> Katterina 3 .<br />
Item depressa porém regressando á patria. a voz do cora-<br />
ção supplantou a voz do dever. Continuaram as cousas no<br />
mesmo estado.<br />
Assim proseguiam, quando os nossos embaixadores che-<br />
garam a Inglaterra.<br />
III<br />
Apezar da extraordinaria magnificência em (pie esplendia<br />
o palacio de Saboia, apezar das altas qualidades (pie engran-<br />
deciam a alma do generoso duque, o seu lar não era, <strong>com</strong>o<br />
se vê, o mais consentaneo a servir de exemplo, nem o mais<br />
propicio a aprimorar a educação de donzellas.<br />
Outro lar todavia não conheceu, em sua honra o dizemos,<br />
a irreprehensivel Filippa deLancaster até que cingiu a corôa<br />
de Portugal. Sem mãe (pie a dirigisse, sem a educadora na-<br />
tural e amiga que lhe encaminhasse os primeiros passos no<br />
desabrochar da existencia, nem por isso deixou a futura<br />
rainha de ser sobre o throno e fora dellc exemplo a mães<br />
e a esposas, <strong>com</strong>pêndio vivo das mais sublimes virtudes,<br />
mulher-typo, se as ha sobre a terra.<br />
1 «Tunc dux ipse convcrsus ad religionem coepit acctisarc vitam suam<br />
pristinam.» Walsingham, llist. brevis, pag. 270.<br />
2 «Non solum privatis, se
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
IV<br />
Findo o sarai! <strong>com</strong> a usual refeição dc especiarias c vinhos 1<br />
servidos ao redor da salaretiraram-se os embaixadores ao<br />
hotel do falcão 3 , onde, <strong>com</strong>o disséramos, tinham pousada.<br />
A missão (pie lhes fôra incumbida havia dado naqucllc<br />
dia um grande passo.<br />
0 mestre d'Aviz achava-se ofíicialmcnte reconhecido pela<br />
Inglaterra <strong>com</strong>o regente de Portugal.<br />
1 Naqucllc tempo o vinho era presentado cm uma grande copa á pessoa<br />
mais auetorisada que se achava presente, e na mesma copa iam seguida-<br />
mente bebendo, guardadas precedencias, os demais convivas. Não havia,<br />
<strong>com</strong>o hoje, copos para cada um.<br />
2 «Aportcrcnt ccuyers et gens d'oílicc vin et cpiccs. Si burent et prindrent<br />
congé les Portingalois.» Froissart, liv. m, cap. 32.°<br />
3 «Rctournèrcnt à leur hotel au faucon à Londres. Froissart, loc. cit.»
CAPITULO IX<br />
SUMMAHIO.— Os embaixadores.— Propicia estreia.—A protecçao do duque.<br />
—Estada occasional cm Londres.—Invasao dc Escócia.—Ferro e sangue.<br />
— Os representantes dc Portugal e o rei dc Inglaterra. — Caracter dc<br />
Ricardo li. — Seus privados. — Influencia crestes.—Tactica dos nossos<br />
embaixadores.—Àuctorisação para recrutarem gentes.—Sua importancia.<br />
—Situação peculiar da Inglaterra.—França c Escócia.—As luetas inlcs-<br />
tinas.—Sacrifícios por egoísmo.—Inglaterra cm Portugal guerrea França.<br />
i<br />
Representantes de um governo ephemero, e apenas obe-<br />
decido em parle reslricta de acanhado território, haviam os<br />
nossos embaixadores pelo facto dc serem oíTicialmcnle rece-<br />
bidos na còrle ingleza prestado relevante serviço ao poder<br />
que representavam, e facilitado amplamente o bom exilo do<br />
encargo que lhes fôra <strong>com</strong>mellido.<br />
Para lão auspicioso resultado muito importara o valimento<br />
do duque de Lancaster, achando-se este occasionalmcnte em<br />
Londres, o que raro succcdia pela multiplicidade de negocios<br />
que o sobrecarregavam sempre.<br />
Sendo o mais velho dos tios de el-rei, e por lanlo mais<br />
proximo do que nenhum d ? ellcs á successão da coróa, tinha
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
o filho de Eduardo IIÍ, <strong>com</strong>o dissemos, a maxima influencia 1<br />
na administração do Estado, e ainda pouco havia chegara de<br />
França, onde fôra para negociar novas tréguas que deixou<br />
firmadas até outubro d aquelle anno 2 .<br />
Logo em seguida á chegada dos embaixadores deixou o<br />
incançavel duque novamente a côrte (1384). e caudilhando<br />
numerosa hoste, partiu a invadir Escócia. Incendiou-lhe<br />
campinas e florestas, reduziu a cinzas povoas e cidades, e<br />
chegou ate ás portas da capital pondo tudo a ferro e sangue 3 .<br />
Não se repoisavam entretanto os emissários de Portugal.<br />
Sendo-lhes livre o accesso na côrte, aproveitavam-n o tão bem<br />
juncto do soberano, <strong>com</strong>o de seus ministros e privados.<br />
Dezenove annos contava então, segundo referimos, o moço<br />
Ricardo II. e se bem que a principio governavam em seu<br />
nome os (pie da regencia tinham cargo, foi o rei a pouco e<br />
pouco impondo a sua aucloridade, e tornando-a soberana.<br />
Instável, dissipado, amando o fausto mais que nenhum de<br />
seus predecessores \ não possuia elle o alentado espirito que<br />
1 «Dux Lancastriae... inter magnos maximus erat.» Walsingham, llist.<br />
brevis, pag. 317.<br />
2 Escreve Walsingham (historia brevis. pag. 308), que estas tréguas<br />
durariam até ao San João. O documento authcntico, pelo qual foram esta-<br />
belecidas, manifesta o contrario; isto c, que o termo seria o 1dc outubro.<br />
Veja-se Forma treugarum Franciae. Lcnhygham, 26 dc janeiro dc 1381<br />
apud Rymer, Foedcra, tomo vn, pag. 418.<br />
3 Walsingham, loc. cit. Uapin dc Thoyras, llist. d'Angleterre, liv. x,<br />
pag. 3, 3.* edição.<br />
1 Para provar o excesso a que Ricardo II levou o apparato dc sua côrtc<br />
basta dizer-se que duzentos homens dc armas o velavam durante a noite, c<br />
que dez mil pessoas jantavam por dia em seus paços reacs. Stowc apud<br />
ferrario, Arti e costumanze dei Jfritani, tomo vi, pag. 157.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
e essencial attributo para a governação de um grande povo.<br />
Por outra parte orgulho indomável, característico de raça, e<br />
ainda de indole própria, levava-o a formar alta opinião de<br />
si mesmo, desdenhando por tanto os que pelo conselho po-<br />
deriam dirigil-o \ e acolhendo os lisongeiros 2 (pie 011 lhe<br />
favoreciam as paixões c os vícios 3 , ou lhe engrandeciam<br />
méritos (pie não possuía 4 .<br />
II<br />
Eram <strong>com</strong> efieilo os privados que dirigiam o rei. Dentre<br />
os mais íntimos campeava Roberto de Ycrc, conde de Oxford<br />
mancebo ardente, cuja mediocridade <strong>com</strong>pensavam apenas os<br />
dictos de sabor (pie desenfadavam Ricardo 6 . Com grave<br />
escandalo dos outros condes, (pie nenhuma superioridade<br />
lhe reconheciam, foi Roberto elevado depois ao titulo de<br />
marquez (1385), o primeiro que em Inglaterra houve 7 , c<br />
ainda posteriormente ascendeu a duque de Irlanda 8 .<br />
1 «Rex juvenis juvcniun consiliis acquicsccns.» Ypodigma Neustriae,<br />
pag. 535.<br />
2 «Les flatteurs avaient hcaucoup de pouvoir sur lui.» Rapin, liv. x,<br />
pag. 29fí.<br />
3 Walsingham, Ilist. brevis, pag. 324.<br />
4 «Plusicurs nohles d'Angleterre <strong>com</strong>mencèrent à murmurer... qu'il<br />
n'estoit laille que d'estre en chambre aveeques daincs et dainoisclles.» Jean<br />
Lebeau, Chronique de Richard II, édilion Buchon, tomo 24.° (appendicc ás<br />
Chron. dc Froissart).<br />
5 «Par celui etoit tout fait, et sans lui n'ctoit rien fait.» Froissart, liv. iuf<br />
cap. 18."<br />
6 Hapin, Ilist. d'Angl., liv. x. pag. 297.<br />
Knyghton, Dc eventibus, col. 2675, ed. 3.*<br />
8 Rapin, loc. cit.
D. JOAO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Á pcrspicacia dos nossos embaixadores não passava des-<br />
apercebida a influencia d'esle 1 e dos demais privados, mui<br />
superior á que podiam exercer os funccionarios antigos,<br />
por cujas mãos corriam, ou deviam correr, os negocios do<br />
Estado.<br />
O mestre de Santhiago e Lourenço Annes eram então mui<br />
acceitos na brilhante côrte de Londres, onde o primeiro, apezar<br />
de ligado por votos sacros, marcava epocha por seu elegante<br />
porte e fino tratoDas boas relações que um e outro haviam<br />
creado souberam tão a ponto aproveitar-se 3 , que cm poucos<br />
mezes (julho de 1384) obtiveram permissão oflicial de po-<br />
derem tomar d'entrc os homens dc armas c archciros inglezes<br />
todos os que por soldo quizessem vir em soccorro de Por-<br />
tugal 4 .<br />
1 «AU favours passed throngh his hands: acccss to the King could only<br />
be obtained by his mediation.» IJumc, llist. of England, vol. III, chap. XVII.<br />
2 D'csta galantcria apresentou o mestre documento vivo trazendo dc<br />
Inglaterra uma íilhinha (havida cm uma senhora ingleza) por nome Lora,<br />
que, educada nos paços rcacs «le Portugal, veio a despozar-sc <strong>com</strong> o marechal<br />
Gonçalo Vasques Coutinho. Lopes, Chron. dc I). João I. parte 11, cap. 90.°<br />
3 De Lourenço Annes diz Froissart: «Laurénticn Fougasse... bien con-<br />
noissoit les chcvaliers et écuycrs anglois, car il les avoit vus... assez cn<br />
Angleterre; Si leurs faisoit toute la meilleure chère que il pouvoit, et bien<br />
la savoit faire.» Chron., liv. m, cap. 39.°<br />
4 Carta dc Ricardo II ao mestre d'Aviz, regedor de Portugal: «Pcra o<br />
acorrimcnto que a vós & a nossos alliados d'csscs Reynos <strong>com</strong>pridouro era.<br />
Nós outorgámos aos ditos Embaixadores que da nossa parle podessem tirar<br />
homens d'armas frccheiros por seu soldo quantos & quacs lhe prouguesse.»<br />
Importantíssima é esta carta, pois manifesta que o mestre d*Aviz, <strong>com</strong>o<br />
temos referido, fôra ainda antes dc haver empunhado o sceptro officialmcntc<br />
reconhecido pela Inglaterra, e o reino de Portugal considerado <strong>com</strong>o belli-
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Esta auctorisação abrangia não só quaesqucr subditos<br />
inglczes l , senão ainda os que fossem vassallos - (hommes<br />
Iiges) do soberano, e por tanto obrigados a scrvil-o em guerra.<br />
Além d'isso poderia cada um dos auxiliares demorar-se em<br />
Portugal quanto tempo Ilie aprouvesse (quandiu eis placuerit),<br />
e levar cavallos e armaduras<br />
De alta importancia eram estas concessões que os nossos<br />
embaixadores obtiveram então do governo inglez. Para devida-<br />
mente lhes pezar o alcance, importa conhecer a fundo a situa-<br />
ção interna de Inglaterra naquelle ensejo.<br />
III<br />
De um lado a Escócia do outro a França collocavam a<br />
nação britannica entre dois fogos, c em quasi permanente<br />
gerante. Veja-se a traducção integral da carta em Lopes, parte i, cap. 48.°<br />
Não traz data, mas pelo teor vê-se que foi escripta logo depois da concessão<br />
para o recrutamento (28 de julho de 1384).<br />
1 «De ligeis et subditis nostris lot homines ad arma et sagittarios, quos<br />
eis placuerit.» Provisão de Ricardo II. Westminstcr, 28 de julho dc 1381,<br />
apud Rymer, Acta, tomo vn, pag. 436.<br />
2 Vassallo tinha na edade-media significarão mui diversa da que poste-<br />
riormente lhe foi dada. Significava o guerreiro adstriclo <strong>com</strong> juramento a<br />
qualquer potentado que reconhecia por senhor seguindo-o á guerra e do<br />
qual em troco recebera um feudo, ou colhia por anuo quantia determinada:<br />
«Yassallus qui ratione feudi alicui domino lidei Sacramento addictus cst.»><br />
Ducange, Glossarium, verb. Vassaulus. Veja-se Vitcrbo, Elucidaria, pai.<br />
Vassallo.<br />
3 Dc licentia ducendi homines ad arma ad partes Portugaliae. Provisão<br />
de Ricardo II. Westminstcr, 28 de julho de 1384. Rymer, Acta, tomo vn,<br />
pag. 430.
D. JOÂO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
guerra. Por outra parte as luetas intestinas, promovidas pelo<br />
desaccordo entre os privados do rei e seus tios, os filhos de<br />
Eduardo III haviam subido de ponto aggravadas pela insur-<br />
reição da populaça que a exemplo da Jacquerie franceza,<br />
segundo referimos, arrazara o lerritorio, espoliara os grandes,<br />
e ameaçara a vida do proprio monarcha. Em taes circum-<br />
stancias tornava-se altamente nocivo para o governo inglez<br />
cercear o numero de braços que podessem defendel-o.<br />
Se porém aquelle governo, egoista <strong>com</strong>o todo o poder em<br />
Inglaterra, outorgava assim concessões tão momentosas, é<br />
porque estas iam directamente afagar os seus interesses.<br />
Com o monarcha francez achava-se em estreita liança o rei<br />
de Castella, e a Inglaterra mantendo contra este a guerra<br />
em Portugal, guerreava assim indirectamente a corôa de<br />
França.
CAPITULO X<br />
SUMMARIO. — Alistamento em Inglaterra. — Faina dos embaixadores. — As<br />
grandes <strong>com</strong>panhias. — Flagello da Franca. — Km Castella. — Sua deca-<br />
dência.—Seus melhores caudilhos.—Contractam cinco os embaixadores.<br />
—Nomes dos que vieram a Portugal.—Aventureiros c auxiliares.—Pro-<br />
fissões diversas.—Contractos cspcciacs.—Ingcrencia do govenio britan-<br />
nico.— Embargo dc navios para transporte. — Empréstimos a Portugal.<br />
—Caução e seqüestro de portuguezes. — Auxilio e violência.— O direito<br />
internacional na edade-media.<br />
i<br />
Obtida a concessão, faltava ainda encontrar gentes que se<br />
prestassem a sacrificar a vida nas longínquas terras de Por-<br />
tugal. Nova difíiculdade para os embaixadores! Seis mezes<br />
lidaram em superal-a.<br />
Os celebres agrupamentos militares conhecidos na historia<br />
pelo nome de grandes <strong>com</strong>panhias, on <strong>com</strong>panhias brancas<br />
(<strong>com</strong>postas de mercenarios-salteadorcs dc diversas nações<br />
e castas) ( que annos a traz haviam sido o flagello da Fiança,<br />
1 Quando Eduardo III machinou a conquista da Franca, tomou a serviço<br />
quantas gentes quizcrain assoldadar-sc. Eram na maxima parte aventureiros<br />
(le todas as nações. Finda a guerra pelo tratado dc Hrétigny, licaram sem
8()<br />
I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
c levado um bastardo fratricida ao throno de Castella<br />
achavam-se já enlão em decadencia.<br />
Os mais arrojados dc seus capitães, deixada a vida aven-<br />
turosa dos campos c da pilhagem, desempenhavam altos<br />
cargos militares entre as duas nações rivaes 2 . Todavia muitos<br />
caudilhos havia ainda que, trazendo a soldo uni certo numero<br />
de homens de armas e de frccheiros, se alistavam para <strong>com</strong><br />
as respectivas <strong>com</strong>panhias irem fazer guerra onde boa retri-<br />
buição colhessem.<br />
Cinco d'esles capitães e suas gentes foram então contra-<br />
ctados pelos embaixadores portuguezes<br />
A especial attenção invocamos do leitor para os fados<br />
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Chamavam-se aquelles capitães :<br />
Reinaldo Cobham \<br />
Pedro Cressyngham,<br />
Elias Blithe,<br />
Roberto Grantham,<br />
Thomaz Dale 2 .<br />
II<br />
As gentes que trazia cada um daquelles cabos de guerra,<br />
e <strong>com</strong> que se responsabilisava a servir por soldo, eram na<br />
maxima parte residuo das antigas <strong>com</strong>panhias, e aventu-<br />
reiros de diversas nações, que nada tinham que perder 3 .<br />
1 Tinha este nome um dos mais distinetos guerreiros da heróica pleiade<br />
de Eduardo III. Não ousamos aventurar que fosse ellc que veio a Portugal.<br />
Seria acaso filho seu ?<br />
2 Provisão dc Kicardo II, ut supra. Cita Fcrnão Lopes alguns d'estes<br />
capitães, estropeando-lhes porem os nomes: a Cressyngham, chama Trisinga,<br />
a Reinaldo Cobham, Eleisabri e assim por deante. A William de Monfcrrant<br />
adulterando a abreviatura da pronuncia ingleza (Willy) denomina Clilho de<br />
Monferro, c considera-o capitão dc uma das <strong>com</strong>panhias, o que não é exacto.<br />
Este guerreiro, pelejador esforçado, e possuindo o grau de cavallciro, veio<br />
então a Portugal, mas por contracto singular, segundo prova documento<br />
authcntico l . Prestou aqui bons serviços morrendo na batalha de Aljubarrota.<br />
3 «Les trois parts étoient <strong>com</strong>pagnons avcnturcux hors dc tous gages...<br />
qui n'avoicnt qu'à perdre.» Froissart, liv. III, cap. 19.°<br />
1 «Willelmua de Moníerrant milet... ad partes Portugaliae profecturuí, babet litteras de<br />
protectione.ii Provisão de Kicardo II. Westminster, 16 de janeiro de 1385. Rymer, tomo YII,<br />
pag. 454.<br />
6
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Os capitães, seguindo as armas <strong>com</strong>o profissão exclusiva,<br />
exerciam <strong>com</strong> ardidez e perícia o mister da guerra f . O pri-<br />
meiro sobrelevava-se por linhagem e herdado esforço, <strong>com</strong>o<br />
já referimos. Eram Iodos inglezes, e estavam no verdor da<br />
edade 2 .<br />
Além das <strong>com</strong>panhiasassoldadadas que dissemos, provam<br />
os documentos que outra classe de auxiliares conlractaram os<br />
embaixadores porluguezessendo <strong>com</strong>posta de alguns caval-<br />
leiros inglezes e gascões, grande numero de escudeiros e ho-<br />
mens de armas, um pastcleiro, alguns capellistas 4 , dois<br />
1 «Los quels ótoicnt bons hommcs d'armes, et tons étrilés ct usagés à<br />
faire la guerre.» Froissart, liv. III, cap. 19.°<br />
2 Froissart, loc. cit.<br />
3 Super viagio Portugaliae. Dcprotcctionibus. Cartas de Ricardo II a cada<br />
um dos auxiliares individualmente considerando <strong>com</strong>o serviço a elle rei pres-<br />
tado a vinda a Portugal. Westminstcr, 1 de dezembro de 1384.<br />
Idem, idem, 16 de janeiro de 1385. Kymer, tomo VII, pag. 450-454.<br />
4 Este nome ainda hoje dado entre nós aos que em suas lojas vendem<br />
certos ramos de mercadorias (mercery) e modas, tem etymologia essencial-<br />
mente histórica, sc bem que posterior á epocha a que nos remontamos. Juncto<br />
aos paços da ribeira na antiga Lisboa havia a capella real, e em torno d'esta<br />
e debaixo das arcadas do palacio eram arruadas as lojas d'aqucllcs <strong>com</strong>mcr-<br />
ciantcs. D'ahi, por estarem cerca da capella, lhes veio no décimo sexto século<br />
o nome de capellistas 1 que ainda agora conservam.<br />
Os paços da ribeira edificados, <strong>com</strong>o todo.s sabem, por L). Manuel, occu-<br />
pavam grande área a norte e a leste da actual praça do Commercio 2 .<br />
A capella, para a qual sc subia por duas amplas escadarias <strong>com</strong> frente<br />
1 «O nome dc capellistas deriva da localidade em que tinham as suas lojas junto á...<br />
capella, por dentro c por fóra das arcadas.» Ja<strong>com</strong>c Ratton, Recordações sobre occornn-<br />
cias do seu tempo em Portugal, § pag. 305.<br />
2 ChriitovSo Rodrigues de Oliveira, Summario das Noticias de Lisboa em 1555, 2.» ed.,<br />
pag. 124.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
escrivães, Johannes Pykering, clericus, Thomaz Deyster,<br />
clerícus (o visconde de Santarém no Quadro elementar,<br />
para a moderna praça do Pelourinho, chamada então largo do relógio, <strong>com</strong>-<br />
municava <strong>com</strong> o paço por dois arcos sobre a rua hoje do Arsenal<br />
A frontaria do amplo edifício, correndo de leste a oeste, e de norte a sul<br />
ate ao mar, ostentava sobre este um grande torreão, em cujo andar terreo era<br />
a casa da índia 2 . Ante o palacio dilatava-se um extenso largo denominado<br />
«o terreiro do paço» \ nome que ainda agora conserva, não querendo o<br />
publico substituil-o pelo de praça do Commercio que em tempo do marquez<br />
de Pombal lhe foi oHicialincntc dado. Ao sul confrontava o largo <strong>com</strong> um<br />
amplíssimo caes, fundação dc I). Manuel, no proprio local, onde c hoje o<br />
caes das columnas, e desde então chamado «caes da pedra» 4 — denominação<br />
que entre o vulgo ainda não perdeu de todo—. A leste ficava-lhe a alfan-<br />
dega, a casa dos contos, e o terreiro do trigo e a norte corria-lhe, <strong>com</strong>o<br />
dissemos, um lanço do palacio, c casarias irregulares por dc sobre algumas<br />
das antigas portas da cidade. Entrando na principal, que foi derribada por<br />
occasião da vinda de Filippe III a Portugal 6 , entestava-se <strong>com</strong> a praça do<br />
Pelourinho Velho 7 , onde se \iam sentados cm suas mezas os doze escrivães<br />
da cidade escrevendo cartas c petições em serviço do povo 8 . Facto assaz<br />
característico! Ninguém quasi sabia então ler. Menos ainda escrever. Cum-<br />
pria que no interesse geral o fizessem alguns empregados ofTiciaes. lVesta<br />
praça corria para occidente a famosa rua nova 9 , a principal da cidade, e<br />
<strong>com</strong>o tal, centro da moda, do grande tracto dos negocios e do alto <strong>com</strong>mercio.<br />
1 Katton, lot. cit.<br />
2 Frei Nicolau dc Oliveira, Grandezas de Lisboa, tractado ivf pag. 138.<br />
3 Tinha de <strong>com</strong>prido (520 passos e de largo 210. O rocio era então menos espaçoso do<br />
que o terreiro do paço medindo dc largo IoO passos e dc <strong>com</strong>prido iOO apenas. Cbristovfio<br />
Rodrigues, pag. 123; Frei Nicolau, tract. ív, cap. 1.°<br />
4 «Mandou fazer o caes da pedra de Lisboa e taboleiros ao longo da ribeira... tudo de<br />
pedra canto.» Góes, Chron. de D. Manuel, parte iv, cap. i.xxxv. Havia alli também um<br />
grande chafariz, obra do me*mo rei, onde é boje o torreão da alíandega. Veja-se o curiósissimo<br />
mappa do terreiro do paço, e antiga Lisboa, appenso a Lavanlia, Viagem de Fi-<br />
lippe III a Lisboa, pag. 14.<br />
* Lavanha, Viagem, ut supra. Veja-se o mappa sob n.° 12, 13 e 11.<br />
6 Lavanha, pag. 23.<br />
1 Lavanha, pag. 22.<br />
s Christovflo Rodrigues, loc. cit.<br />
9 Tinha de <strong>com</strong>prido 200 passos e de largo 40. ChristovSo Rodrigues, loc. cit.<br />
*
100<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
lomo xiv denomina-os magistrados, o que a Iraducção legi-<br />
tima não <strong>com</strong>poria), um estalajadeiro, dois pelleiros, c muitos<br />
Fulguravam ahi sob amplas arcarias gothicas dando costas ao norte 1 as prin-<br />
cipacs lojas da cidade, entre as quaes a\ ultavam as dos cambistas (riquíssimas<br />
em moedas dc prata c oiro), as dos mercadores nacionacs, e estantes ílorcntins,<br />
inglezes, flamengos e demais extrangeiros. DVsta principal artéria da cidade<br />
destacavam-se para norte cinco ruas 2 , sendo a primeira a rua nova de el-rei<br />
que direita c <strong>com</strong>prida levava ao rocio 3 .<br />
O rocio era então um dos extremos da cidade. Logradouro <strong>com</strong>mum,<br />
servia-se o povo dc parte dVllc cm fornos de tijolo ou sementeiras de<br />
ferregiaes 4 . A outra parte (baldia) era coberta dc urzes c de immundicies.<br />
Poucas semanas antes (dezembro dc 1383) dc haverem para Inglaterra par-<br />
tido os embaixadores do mestre de A\iz fôra sobre aqucllas safaras arrojado,<br />
e ahi <strong>com</strong>ido pelos cães, o cadaver do bispo dc Lisboa D. Martinho, <strong>com</strong>o<br />
a traz referimos.<br />
Não vicejavam arvores na vasta planura, nem a pejavam ainda casas sobra-<br />
dadas, nem edifícios, <strong>com</strong>o os paços dos Estáos ou o hospital de Todos os<br />
Sanctos, construídos mui posteriormente. Apenas a fundo lhe corria a mu-<br />
ralha alevantada por I). Fernando, a qual subindo da porta da Palma (na<br />
actual rua nova d'essc nome pela calcada do jogo da polia ao arco da Graça 6 ,<br />
e seguindo a encosta, descia até á porta dc saneto Antao, cortava ahi a<br />
grande estrada por nome a corredoura 7 (hoje rua de saneto Antao) c ia<br />
trepando pelo monte de S. Roque até á torre de Álvaro Paes. A leste era o<br />
rocio limitado pela cerca c andar terreo do mosteiro de S. Domingos adjuneto<br />
1 Ratton, Recordações sobre occorrencias, loc. cit.<br />
* Lavanha, Viagem de Filippe III, pag. 35.<br />
3 CbristoTío Rodrigues, Summario, pag. 123.<br />
* ««Eram terras devolutas de que o povo sc servia em telhaes e fornos de tijolo por huma<br />
parte, e por outra em sementeira de íerregiaes.» Frei Luiz de Sousa, Ilist. de S. Domingos,<br />
liv. in, cap. XVIII.<br />
5 Edificados pelo infante 1). Pedro quando regente para hospedagem de embaixadores<br />
e alliviar o povo do encargo de aposentadoria.<br />
* Chamavam assim á porta do jogo da pella em consequencia de uma imagem da Senhora<br />
da Graça que alli existia. Sr. Yilhena Barbosa, Fragmentos de um roteiro. Archito Pitto-<br />
resco.<br />
? Frei Luiz de Sousa, loc. cit.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
outros assalariados dc diversas classes e profissões, ou<br />
ainda sem cilas<br />
Tinha cada um d'cstcs auxiliares conlracto especial fir-<br />
mado <strong>com</strong> os embaixadores, e garantido pelo soberano inglcz,<br />
«em cujo obséquio, diz o documento respectivo a cada um<br />
vinham servir em Portugal durante um anno.» O vencimento<br />
era-lhes pago individualmente, ao passo que o soldo para<br />
as <strong>com</strong>panhias recebia-o, <strong>com</strong>o responsável por eslas, o<br />
capitão de cada uma 3 .<br />
Para eííeituar o pagamento de soldos aos capitães 4 nomeou<br />
o governo inglez um <strong>com</strong>missario, Guilherme Newport que<br />
os a<strong>com</strong>panharia a Portugal 5 <strong>com</strong> auetoridade de prender<br />
á ermida
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
os que aos <strong>com</strong>promissos faltassem l . Nomeou também o<br />
mesmo governo outros dois <strong>com</strong>missarios para formarem<br />
o arrolamento dos auxiliares contractados individualmente 2 .<br />
para verificarem se iam armados e guarnidos conforme o<br />
respectivo contracto \ e para sanarem qualquer discórdia,<br />
sc a houvesse reciproca, ou entre alguns daquclles auxiliares<br />
que voluntariamente sc alistavam e os embaixadores que em<br />
nome do seu governo os recebiam por soldo \ Mui re<strong>com</strong>-<br />
mendada era aos dois <strong>com</strong>missarios a prompta realisação<br />
da viagem 5 .<br />
Também, a fim de transportar a Portugal Ioda a expedição<br />
de auxiliares, mandava o rei embargar nos portos de Cor-<br />
nouaillcs e Dcvonshire dentro do prazo de vinte dias quantos<br />
navios inglezes fossem precisos 6 . Extranha forma dc acatar<br />
a liberdade individual e os interesses do <strong>com</strong>mercio!<br />
Finalmente para pagamento dos soldos e outras despesas<br />
inherentes á expedição contractaram os embaixadores <strong>com</strong><br />
diversos negociantes de Londres avultados empréstimos 7 .<br />
1 Carta de llicardo II ao mesmo. Kymer, loc. cit.<br />
2 Dc monstro hominum ad arma |»ro \iagio Portugaliae super\idendo.<br />
llrcvc de Kicardo II. Westminstcr, G dc fevereiro dc 138o. Kymer, tomovii,<br />
pag. 153.<br />
i De monstro hominum ad arma, ut supra.<br />
4 De monstro, ut supra.<br />
5 Ut supra.<br />
r ' «Ad tot naves et marinarios, quot pro passagio... hominum ad arma<br />
et sagittariorum in obséquio nostro versiis partes Portugaliae profccturorum<br />
necessarii fuerint.» Provisão de Kicardo II. De navibus arrestandis pru<br />
viagio Portugaliae. Westminstcr, 8 de janeiro de 1385. Kymer, tomo vil,<br />
pag. 453.<br />
«Muytos hy ouue que lhe emprestarom dinheiros pera paga do soldo<br />
das gentes... assi<strong>com</strong>o Mosse Nicol, Mosse dc Londres, Anriquc Viucmbra,
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Não se teriam porem estes podido rcalisar, se <strong>com</strong>o caução<br />
das sommas adeantadas não houvesse Ricardo II <strong>com</strong> accordo<br />
do seu conselho mandado por duas vezes embargar e se-<br />
questrar todos os navios, c todos os marinheiros portuguezcs,<br />
bem coino todas as mercadorias c mercadores de nosso reino<br />
então existentes ante o almirantado inglez l .<br />
Esta dupla violência contra os bens e as pessoas de um<br />
povo amigo, ao qual se estava prestando auxilio, ó notável<br />
característico de <strong>com</strong>o se entendia e realisava o direito inter-<br />
nacional no século XIV \<br />
caualeiro, que lhe emprestarão Ires mil & quinhentos nobres. E assi outros<br />
mais 5c menos, conforme cada hum podia.» Lopes, parte i, cap. 48."<br />
1 cQuibusdam cerbis de causis, de avisamento consillii noslri vobis<br />
mandamos quòd quascumquc naves et mcrcandisas dc Portugalc infra<br />
Admiratum existentes una cum Mercatoribus, Magistris & Marinariis co-<br />
rundem arrestari, & cos sic sub Aresto salve & honeste custodiri faciatis.»<br />
Hrci( dc Ricardo II. Westminstcr, 23 de janeiro dc 138o. Kymer, tomo vn,<br />
pag. 4oo.<br />
2 Para esclarecimento do leitor cumpre notar os cqui\ocos cm que sobre<br />
este assumpto incorreu o visconde de Santarém, não havendo <strong>com</strong>prehcndido<br />
a doutrina do decreto que determinou o embargo, nem as causas que o<br />
motivaram. Adcantcrcclificamosaqucllcs equívocos, expondo a realidade dos<br />
factos. Veja-se Nota C no fim do volume.
•
CAPITULO XI<br />
SrMMARio. — Embarcam as forças auxiliares. — Dirigem-se ao Porto.—<br />
Dispersão no mar. — A salvamento. — Lisboa, uma nau e a barca.—<br />
Documento contemporâneo.—Sua valia.—Gales castelhanas ante a cidade.<br />
— Peleja marítima. —A barca; esforço britannico. — A nau; dez contra,<br />
uma.—Ardis castelhanos.—Os archciros inglezes.—Victoria.—Computo<br />
da expedição. — A quantidade e a qualidade. — Deposito dos auxiliares<br />
em Évora.—Distribuição mediante a guerra. — Fcrnão Lopes cortesão.<br />
—Estratagemas.—Refutam-11'0 documentos c cscriptores cocvos.—Fora<br />
seguido durante séculos.—A critica de hoje.—Alexandre Hcrculano.—<br />
O romance e a historia. — O >elho chronista perante os nossos dias.<br />
1<br />
Na cidade dc Plymouth, conforme determinação do rei de<br />
Inglaterraajunctaram-sc as <strong>com</strong>panhias e demais auxiliares.<br />
Enibarcando-sc ahi em duas grossas naus inglezas, uma barca<br />
e um navio dc transporte, mandados embargar, <strong>com</strong>o vimos,<br />
pelo governo inglez, desferiu velas a expedição meado março<br />
(1385) dirigindo-se ao Porto 2 .<br />
1 Breve de Kicardo II. De navibus arrestaiidis |»r
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Ou por impericia dos marcantes, ou porque os assaltasse<br />
alguma tempestade equinoxial, derramaram-se cllcs sobre o<br />
Oceano, chegando todavia salvos todos a terra portugueza.<br />
Ao Porto, aonde a expedição se dirigia, <strong>com</strong>o vimos, abicou<br />
somente uma nau. O navio foi surgir a Setúbal, e á barra<br />
de Lisboa aproaram a outra nau c a barca l .<br />
Em documento contemporâneo de subida valia, porque<br />
fóra escripto por testemunha ocular vinte e quatro horas<br />
depois de occorridos os successos que narra vem circun-<br />
stanciadamente descripta a entrada no Tejo destes dois vasos,<br />
bem <strong>com</strong>o a renhida lucta que pelejaram, e venceram até<br />
lograrem lançar ancora á porta do mar sob as muralhas da<br />
capital.<br />
Foi assim:<br />
II<br />
Dez galés castelhanas sitiavam então a cidade de Lisboa.<br />
Ao avistarem a barca ingleza que mui a barlavcnto da nau<br />
singrava já, barra a dentro, partiram a ac<strong>com</strong>mettel-a 3 .<br />
«Os inglezes, diz a chronica, defendendo-se fortemente<br />
«magoavam mui mal ás frechas os das galés, e em pelejando<br />
«approuve ao Senhor Deos que havendo a barca bom tempo<br />
«sahio-se dantre os Castcllãos, e veo poer ancora ante a<br />
«cidade á porta do mar.»<br />
1 Carla do coneyo de Lisboa, ut supra.<br />
2 Veja-se a carta supra. Foi escripta em 3 de abril. A entrada dos navios<br />
inglezes realisara-se na véspera, 2 dc abril, domingo dc Paschoa. Lopes,<br />
Chron. de I). João I, parte li, cap. 4.°<br />
3 topes, loc. cit.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Paliava a nau. Todas as gales dc voga arrancada voaram<br />
então sobre ella. Eram dez contra uma. Á desegualdade do<br />
numero junctaram ainda o ardil da astucia.<br />
Uma galé castelhana, escondendo na respectiva bandeira<br />
as armas nacionacs, c mostrando as quinas para sc fingir<br />
portugucza aproximou-se aos da nau bradando-lhes que<br />
amainassem. Estes tomaram um cabo da galé cuidando ser<br />
portugueza, mas reconhecendo a tempo o engano cortaram<br />
o cabo, e continuaram renhida peleja.<br />
Outra galé castelhana, jogando então de proa, eatraves-<br />
sando-se por barlavento, buscou tolher o passo á nau ingleza.<br />
Esta, singrando de golpe, quebrou-lhe bem cincoenta remos<br />
e passando rapida atravez das demais, que deixou cmmara-<br />
nliadas <strong>com</strong>o num feixe, veio impa vida fundear ante a cidade \<br />
Estava salva! O esforço inquebrantavel dos archeiros inglezes<br />
operara milagres.<br />
Rcalisara-sc esta victoria em domingo dc Paschoa, 2 «le<br />
abril, (1383). De grande imporlancia foi, porque assim con-<br />
servou illcsas as gentes de armas que de Inglaterra vinham,<br />
e «pie desde logo entraram a servir a causa do mestre de<br />
Àviz, que era também a causa da nação portugueza \<br />
th<br />
1 «Fingindosc de Portugal & mostrando as Quinas... tendo as armas de<br />
Castella envoltas.» Carla supra.<br />
2 «A huma galé que se antepoz por a empachar quebrantou bem cin-<br />
qüenta reinos & das outras fez embrulhar £ empachar em hum.» Carta do<br />
conego Gwçalo Domingues, ut supra.<br />
3 Lopes, Chron. de D. João 1.°. loc. cit.<br />
4 Cumpre-nos aqui rectilicar um equivoco em que incorreu Lafuente na<br />
sua Historia geral de llcspanha, parte u, liv. m, cap. 19.° Confundindo<br />
o objectivo d'csta expedirão em auxilio exclusivo dc Portugal, suppoz o
100<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
. III<br />
Segundo testemunha ocular c contemporânea a que nos<br />
temos referido, o conego de Lisboa Gonçalo Domingues,<br />
orçava o total da expedição ingleza por oitocentos pelejadores<br />
entre homens de armas e archoiros l . Quinhentos destes,<br />
conforme escreve Froissart, também contemporâneo, for-<br />
mavam as <strong>com</strong>panhias de mercenários assoldadados, que<br />
atraz descrevemos. O resto, segundo os irrefragaveis docu-<br />
mentos que lambem mencionámos, eram cavalleiros, escu-<br />
deiros, homens de armas, ou aventureiros vindos por conta<br />
própria mediante o respectivo soldo pago polo reino.<br />
Sobre a aulhenticidade dos dois narradores, coevos dos<br />
successos que descrevem, não pode existir duvida. 0 pri-<br />
meiro estava em Lisboa no momento em que chegaram os<br />
inglezes, e escreveu logo no dia immediato ao do desem-<br />
barque. Froissart, conforme adeante mais largamente ex-<br />
notavel escriptor que os inglezes vinham então para manter directamente as<br />
pretenções (to duque de Lancastcr á corôa dc Castella, o que. segundo fica<br />
demonstrado, c claro engano. Vinham exclusivamente, <strong>com</strong>o provámos,<br />
assoldadados pelos embaixadores portuguezes para serviço do reino.<br />
1 Sc bem que ao uso do tempo fora esta expedição auxiliar <strong>com</strong>putada<br />
cm 800 pelejadores, cumpre notar que o seu numero era forçosamente mais<br />
avultado, pois durante a edadc-jiiedia cada homem dc armas representava<br />
tres, ou quatro indivíduos validos, trazendo sempre <strong>com</strong>sigo um para lhe<br />
levar a lança, outro o cavallo, outro para estar juneto d'elle no ardor da<br />
peleja e no caso de queda o erguer, o que o outro não poderia só |»or si<br />
realisar em conscquencia do peso da armadura, etc. Vcja-sc Johnes, .Vo/<br />
a Froissart, trad., liv. i, cap. Ü9.°
D. JOÃO I F, A ALLIANÇA INGLEZA 03<br />
pomos, e elle proprio assevera \ colheu as informações respe-<br />
ctivas a Portugal do bem conhecido cavallciro portuguez João<br />
Fernandes Pacheco testemunha contemporânea, guarda-<br />
inór (pie fôra de I). João I, e que a par «Festo pelejara na<br />
batalha de Aljubarrota.<br />
Mais todavia do que pela quantidade avultavam pela qua-<br />
lidade aquelles auxiliares. Os homens dc armas de Ingla-<br />
terra ostentavam-se cm toda a parte <strong>com</strong>o a flor da caval-<br />
laria do mundo :i . Os seus archeiros eram os mais terríveis<br />
9<br />
pelejadores então conhecidos. A tenacidade inquebrantavel<br />
«1'estes. á certeira pericia <strong>com</strong> quemeneavam os arcos gigan-<br />
teos devera a nação ingleza pouco tempo havia as glorias de<br />
Crécv e de Poiliers.<br />
V<br />
Os (pie a Portugal vieram então de Inglaterra não deslus-<br />
traram por seus actos, antes a par «le nossas aguerridas gentes<br />
mantiveram, o alto nome que haviam universalmente conquis-<br />
tado. Um dos mais distinclos dentre aquelles auxiliares,<br />
William de Monferrant, cavalleiro «le Gasconha, perdeu <strong>com</strong>o<br />
já dissemos, gloriosamente a vida na batalha de Aljubarrota.<br />
Apenas desembarcados os auxiliares inglezes, foram en-<br />
viados para Évora, onde se organisou um deposito militar<br />
de importancia. A proporção que recebiam cavallos, eram<br />
1 Froissart, liv. in, cap. 28.° • •<br />
2 «Si ouvrai sur les paroles ct rclations laitcs ilu gcutil chcvalicr Jean<br />
Ferranl Perccck (Pacheco). Cil m'cnsita et me informa dc toutes les besogues<br />
advenues entre le royaumc dc Gastille, et le royaume de Portugal.» Frois-<br />
sart, Chron., liv. m, cap. 28.°<br />
3 Lingard, Ilistory of England, tomo i, chap. 18.°
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
distribuídos pelo reino, conforme ás exigencias da guerra<br />
mais cumpria l .<br />
III<br />
0 chronista de D. João I, obstinando-se—no desempenho<br />
de seu ollicio cortesão—em sempre engrandecer os actos<br />
do rei. cuja chronica lhe fôra <strong>com</strong>mettida, pretende attenuar<br />
o haver o mestre de Aviz, quando regente do reino, solli-<br />
citado soccorro de extrangeiros. Neste antecipado proposito*<br />
amesquinha quanto possível lhe é a importancia da expedição<br />
auxiliar e os seus eíTeitos; esconde que tivessem vindo ho-<br />
mens de armas, por isso que estes formavam enlão a parte<br />
mais considerável da organisação militar do tempo, e limita-se<br />
a dizer que os embaixadores enviaram algumas gentes de<br />
armas, avcheiros «por a necessidade em que o lieynoestaua»,<br />
e leva a inexactidão ao ponto de aííirmar que estes archeiros<br />
foram poucos \<br />
Ora, os irrefragaveis documentos que apresentamos, e que<br />
nunca haviam sido devidamente analysados, os escriptores<br />
coevos do tempo, a que nos referimos, e de que lambem não<br />
havia noticia, e sobretudo a auetoridade inconciissa de teste-<br />
1 «Estes Ingrezes... receberão logo por mandado Del Rcy soldo & fo-<br />
romse para Euora onde havião dauer bestas para... hirem seruir onde os<br />
mandassem.» Lopes, parte n, cap.<br />
2 «Devemos sempre desconfiar um pouco, escreve o eminente historiador,<br />
sr. Pinheiro Chagas, do velho chronista, porque elle é visivelmente parcial<br />
a favor de I). João I c dos que o ajudaram a subir ao throno.» Hist. dt<br />
Portugal, tomo n, $ in, pag. 63, segunda edição.<br />
J Lopes, Chron. de D. João I, parte i, cap. 48.°
D. JOÃO I F, A ALLIANÇA INGLEZA 95<br />
munha ocular exliibida 110 proprio momento em que desem-<br />
barcaram em Lisboa os auxiliares, provam exuberantemente<br />
o crescido numero d estes, e que não só vieram homens de<br />
armas o (pie Fernão Lopes negava, mas (pie a sua totali-<br />
dade era aproximadamente cgual ao numero dos archeiros.<br />
Do que lica provado conclue-se a premeditada inexactidão<br />
que não raro, e ainda em assumptos de mór gravidade usava<br />
empregar o velho chronista sempre 110 proposilo de exaltar<br />
o rei, cuja vida escrevia por officio. Os nossos historiadores<br />
limitaram-se em invariavcl rotina a copiai-o durante séculos.<br />
Hoje porém a critica scienlifica, a severidade histórica im-<br />
põem <strong>com</strong>o absoluto dever consultar a auetoridade das teste-<br />
munhas presenciaes, ([liando as haja, examinar os escriplos<br />
dos auetores de diversas nações, contemporâneos dos suc-<br />
cessos a «pie se alludc, e sobretudo estudar <strong>com</strong> profundeza<br />
nas entranhas dos documentos a exactidão dos factos. Assim<br />
praclicou entre nós Alexandre Herculano nos quatro volumes<br />
que deixou da Historia de Portugal.<br />
Se houvera o grando historiador continuado em suas pre-<br />
ciosas elucubrações, e se (não pelo romance, mas <strong>com</strong> a his-<br />
toria) houvera chegado aos tempos de D. João I, teria elle,<br />
o pensador profundo, o analysta inflexível, evidenciado <strong>com</strong><br />
a auetoridade da sua voz potente as múltiplas inexactidões,<br />
a fraudulenta lisonja, <strong>com</strong> que por muitas vezes buscou alterar<br />
a verdade o patriarcha dos historiadores portuguezes, mas<br />
1 Cada homem de armas <strong>com</strong>pletamente armado representava quatro<br />
pelejadores, tendo juneto dc si mais tres para o auxiliarem. Veja-se a nota<br />
retro.
00<br />
D. JOÃO I F. A ALLIANÇA INGLEZA 112<br />
que em realidade foi entre nós o mais antigo dos panegy-<br />
ristas oiliciaes, o decano dos aduladores retribuídos, a que<br />
chamaram chronistas.
CAPÍTULO XII<br />
SuMMAitio. — À expedição ingleza e o throno do mestre dWviz.— A sobe-<br />
rania da nação. — Caracter de João I. — Seus actos. — Aljubarrota. —<br />
Alliança ingleza.— Primeiros cuidados.—Os do conselho.— Intervenção<br />
popular na governarão do Estado. — Novos poderes aos embaixadores.<br />
—Crise do governo britannico.—Invasão imminentc.—Aggridem Escoria.<br />
—.Momento de repoiso.—Pcrspicacia dos nossos embaixadores.—í\ o rei<br />
de Portugal reconhecido por Inglaterra.—O parlamento.— Resolve-se a<br />
conquista de Castella.— Subsídios e gentes. — Negociações para alliança<br />
<strong>com</strong> Portugal.— Pede o duque a João 1 navios para o a<strong>com</strong>panharem.—<br />
A luva. — O leopardo inglez, ou o leão castelhano?<br />
i<br />
Quatro dias depois de haver aportado ao Tejo a expedição<br />
ingleza, os Três Kstados da nação representada em cortes na<br />
cidade de Coimbra declararam vago o throno de Portugal, e<br />
para occupal-o elegeram o proprio regente (pie era, <strong>com</strong>o já<br />
referimos, bastardo e padre. Tal se manifestou a vontade,<br />
omnipotente da nação soberana.<br />
Se porém D. João 1 não herdou dircctamente o sceplro,<br />
se algumas condições lhe falleciam para legalmente o em-<br />
punhar, conquistara-o por serviços ininterruptos prestados<br />
á integridade da nação, honrara-o pelo acrisolado esforço<br />
7
GG D. JOÃO 1 E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
<strong>com</strong> que hasteara impávido o pendão da independencia pa-<br />
tria, conseguira-o pela astuta sagacidade <strong>com</strong> que em tão<br />
dilficil conjunctura soubera encaminhal-a ao ponto de <strong>com</strong><br />
apparencias dc legalidade attingir o alvo de suas ambições<br />
ardentíssimas: a posse da corôa.<br />
Rei pelo único direito que a sociedade aclual admitlc hoje.<br />
o bastardo de Thercza Lourenço manteve-se digno da confiança<br />
que cm seu patriotismo depositara a nação, quando<br />
lhe conferira o mando. Vendo em torno dc si, <strong>com</strong>o diz a<br />
chronica, Portugal contra Portugal, e o mais poderoso dos<br />
soberanos, que então reinavam nas diversas monarchias «la<br />
Ilcspanha, prestes a realisar segunda invasão no reino, evocou<br />
de todos os ângulos deste quantas forças poude, e sahiu a<br />
tolher passo a inimigo cinco vezes superior em numero.<br />
Nas campinas de Aljubarrola se encontraram as duas<br />
hostes rivaes. Francezes e Gascões tinha a seu lado aos mi-<br />
lhares o rei dc Castella. Os auxiliarcs contractados em In-<br />
glaterra engrossavam a diminuta hoste portugueza. A perícia<br />
de alguns dos capitães assoldadados, os certeiros golpes de<br />
seus archeiros contribuíram para as immarcessiveis palmas<br />
que nossos avós colheram na grande peleja, uma tias mais<br />
gloriosas que se feriram em toda Ilespanha.<br />
Estreitar a alliança <strong>com</strong> Inglaterra loi um dos primeiros<br />
passos do moço rei, ouvido o conselho, cujos membros as<br />
próprias cortes quizeram desde logo eleger (e elegeram) <strong>com</strong>o<br />
poder ponderantejunetoda iniciativa real. e<strong>com</strong>o intervenção<br />
do grande elemento popular na governação do Estado l .<br />
1 Lopes, Chron. de 1). João 1, parte II, cap. I.
D. JOÃO I F. A ALLIANÇA INGLEZA 99<br />
Esta eleição evitlenceia até que ponto se achava então<br />
coarctada em Portugal a auetoridade do rei. e qual era a<br />
preponderância que pela evolução de séculos, e por trabalho<br />
ininterrupto e acerrimo havia alcançado já a burguezia. Sob<br />
proposta das mesmas cortes foi o conselho <strong>com</strong>posto dos<br />
indivíduos que os povos indigitarain, dentre os quaes o rei<br />
podia escolher \ e de mais quatro cidadãos representando as<br />
cidades dc Lisboa, Porto, Coimbra e Évora. O representante<br />
de Lisboa foi eleito directamente pela capital, sendo os<br />
demais escolhidos pelo soberano d entre Ires cidadãos que lhe<br />
propozera cada uma das cidades referidasCompare-se este<br />
conselho na quasi totalidade electivo <strong>com</strong> o conselho de Es-<br />
tado, feitura exclusiva do absolutismo nos immediatosséculos.<br />
Andados apenas nove dias (15 de abril) depois que o novo<br />
rei cingira a corôa, enviou cllc jdenos poderes aos embai-<br />
xadores que, segundo vimos, se achavam ainda cm Londres,<br />
auclorisamlo-os a negociarem naquella côrte um tractado de<br />
alliança perpetua c confederação reciproca 3 .<br />
II<br />
Não eram o mestre dc Santhiago, nem Lourenço Aunes<br />
homens que descurassem o momentoso encargo que lhes ia<br />
1 «Que dos quatro Estados do Rcyno, que eram Prelados, Fidalgos,<br />
Letrados e Cidadãos, fosse sua mercê dc escolher destes que lhe nomeavam.»<br />
Lopes, loc. cit.<br />
2 Lopes, loco cilalo.<br />
J Tenor mandati, sive procuratorii per Sercnissimum Principem Domi-<br />
num... llegem Portugaliae et Algarbii, etc. Coimbra, lo de abril de 1385,<br />
apud Kymer, tomo vn, pag. 518.<br />
*
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
<strong>com</strong>mcllido. Mas o governo inglez achava-se naquelle mo-<br />
mento em grave crise.<br />
França e Escócia unidas ameaçavam de nova invasão a<br />
Inglaterra. Nesse intuito 1 enviava o monarcha franccz o<br />
celebre almirante João de Vicnne <strong>com</strong> valioso soccorro 2 aos<br />
Escocezes, a fim de pelo norte ac<strong>com</strong>melterem Inglaterra 3 ,<br />
em tanto que o proprio rei caudilhando innumeras gentes<br />
desembarcaria nas costas meridionaes da ilha. «D'est'arlc,<br />
accrescenta um escriptor inglez do tempo, o rei de França<br />
invadiria Inglaterra cm quanto os nossos se achariam em<br />
Escócia empenhados na guerra contra escocezes e fran-<br />
cczes 4 .»<br />
Para conjurar tão iinpendente calamidade evocou a súbitas<br />
Ricardo II as des<strong>com</strong>munaes forças de que dispunham os<br />
poderosos vassallos dc sua corôa, c á lesta de trezentos mil<br />
homens, segundo os chronistas inglezes contemporâneos 5 ,<br />
entrou em Escócia (julho de 1385) para tolher passo aos<br />
inimigos colligados. Não o aguardaram elles, temerosos do<br />
numero. Desviando-sc, foram penetrar cm Inglaterra r> . Não<br />
1 Ford, Sclioti Chronicon, anuo dc 1385. Froissart, liv. 11, cap. 233.°<br />
2 Sc ó cxacto o que escreve Knyghton, as tropas francczas enviadas então<br />
em auxilio de Escócia foram transportadas cm trezentos navios. «Dominus<br />
Johannes, dux Viennae... venit de Francia cum CCC navibus benò onustis<br />
armatorum manu.» Knyghton, col. 2674.<br />
1 Knyghton, loc. cit.; Walsingham, pag. 316; Kapin, tomo IH, liv.<br />
4 «Dum nostri in Scotia bcllo contra Seotos & Gallicos tenerentur.»<br />
Ypodigma Neustriae, pag. 537.<br />
1 Cumpre notar que os historiadores inglezes de enlão usavam muito<br />
exaggerar o numero dos seus exercitos.<br />
ü Knyghton, Walsingham, Ilapin, loc. cit.
8() I), JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
querendo lambem Ricardo por máo aviso de seus privados<br />
sahir-lhcs ao encontro c derrotai-os, conforme aconselhava o<br />
duque de Lancasler, volveu antes de dois mezes 1 á sua capital<br />
(agosto de 1385), não sem haver assolado os territórios que<br />
de mão armada percorrera.<br />
Este momento dc repoiso, raro então na côrte ingleza, foi<br />
habilmente aproveitado pelos nossos embaixadores, que dc<br />
novo buscaram o duque de Lancasler *.<br />
III<br />
A noticia da rola dos Castelhanos em Aljubarrota chegara<br />
a Londres pouco tempo havia 3 . Propicio ensejo era para os<br />
negociadores. A grande victoria vinha assim poderosamente<br />
auxilial-os.<br />
Não era já 1). João 1 o regedor advcnticio imposto pelo<br />
furor das multidões insurreccionadas. Rei eleito pela nação<br />
inteira, c havendo á frente desta derrotado <strong>com</strong>pletamente<br />
o inimigo <strong>com</strong>mum. acabava o soberano portuguez de funda-<br />
mentar sobre vigorosas bases a estabilidade de seu throno,<br />
c a independência dc sua pai ria. Podia por tanto Inglaterra<br />
traclar dignamente <strong>com</strong> a nova potência. Assim o entendeu<br />
a côrte de Londres expedindo desde logo a favor dos nossos<br />
1 Walsingham, Ilist. brevis, pag. 317; Froissart, liv. H, cap. 23o.°;<br />
Lingard, tomo i, cap. xx; Ilume, tomo 11, cap. vi; Ford, tomo xiv,<br />
cap. 49.® c 50.°<br />
2 Lopes, parle n, cap. 80.°<br />
3 Lopes, loco cilato.
D. JOÂO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
representantes o salvo conduclo 1 que era então uso dar-se<br />
aos embaixadores nas diversas cortes onde ficavam acredi-<br />
tados. e que não haviam ate alli obtido o mestre de Santhiago<br />
nem o chanceller, apezar de mui acceitos serem na côrte<br />
ingleza, <strong>com</strong>o disséramos 2 .<br />
Reunira-se o parlamento (5 dc novembro dc 1385) 3 .<br />
0 duque dc Lancaster invocando os direitos de sua se-<br />
gunda esposa á corôa dc Castella, insistiu na opportunidadc<br />
de conquistar aquclle reino \ para o què mui valiosa lhe era<br />
a coadjuvação olTcrecida pelo rei de Portugal 5 .<br />
Dominado já Ricardo II pela influencia dos privados que<br />
ao deante o perderam, e aos quaes de sobra alTrontava a<br />
presença do duque 6 , foi sem reluctancia accordado que par-<br />
tisse este á frente dc luzida hoste de inglezes 7 dando-se-llie<br />
1 Pro ambassatoribus regis Portugaliae. Westminstcr, 20
D. JOÃO I F. A ALLIANÇA INGLEZA<br />
<strong>com</strong>o subsidio mcladc das rendas que o parlamento votara<br />
para aquellc anno 1 , e estabeleccndo-sc previamente alliança<br />
intima <strong>com</strong> a nação portugueza 2 .<br />
Nomeados polenipotenciarios adhoc, c reunidos estes aos<br />
nossos embaixadores, <strong>com</strong>eçaram as negociações 3 .<br />
No cmtanto o duque de Lancastcr enviou um mensageiro<br />
a Portugal pedindo soccorro de navios para a terras da<br />
península o a<strong>com</strong>panharem <strong>com</strong> os seus \<br />
A luva estava lançada. As phalangcs inglezas iriam afinal<br />
medir-se braço a braço <strong>com</strong> os descendentes de Pelaio c dc<br />
Aífonso XI. O Dcos das batalhas decidiria se na mais pode-<br />
rosa das monarchias cm que se achava então dividida<br />
Ilcspanha flucluariam em seus respectivos estandartes o<br />
leopardo inglez. ou o leão de Castella.<br />
1 Rot-parlam. III, 204. Lingard, llist. of England, liv. i, chap. \.<br />
2 Lopes, parle n, cap. 61.°<br />
3 Os plcnipotcnciarios por parle dc Inglaterra eram: Richard Aberl)iiry<br />
c John Clauvavc, cavalleiros, c mestre Ricardo Rouhalc, doutor cm Íris.<br />
Veja-se o proprio Pleno poder (Westminster, 10 dc abril dc 138G) cm Rymer,<br />
tomo vii, pag. 519.<br />
1 Diz Froissart parcccr-lhe que o duque de Lancastcr sollicitara soccorro<br />
dc Portugal por intervenção dos embaixadores porluguczcs, e alTirma que<br />
estes partiram desde logo de Inglaterra. O grande chronista que tantas vezes<br />
narrou <strong>com</strong> exactidão os successos de Porlugal, equivocou-se nestes dois<br />
pontos. O soccorro foi dircctamcnte pedido por um emissário inglez enviado<br />
a l). João I, e que veio encontrar este quando sitiava o castello dc Chaves<br />
Lopes, parte n, cap. 6o. 0 ). Os embaixadores chegaram mexes depois na frota<br />
que á península a<strong>com</strong>panhou o duque de Lancastcr.<br />
103
CAPITULO XIII<br />
SUMMARIO.—Acolhe el-rei o pedido do duque de Lancasler.—EM ia luzida<br />
frola.—O capitão do mar.—Alliança mutua entre Portugal e Inglaterra.<br />
—Tractado cm Londres.— Condições.— DilTcrença das que firmara el -rei<br />
D. Fernando. -Concluem os embaixadores outra convenção.—Suas des-<br />
vantagens para o reino. — desconhecida dc nossos historiadores.—<br />
Astucias dc Fcrnão Lopes. — Portugal a serviço dc Inglaterra. — Mais<br />
condições onerosas.— A reciprocidade ingleza. — Confrontações lesivas.<br />
— Plcnipotenciarios dc I). Fernando c os dc I). João I. — Huscain estes<br />
justificar-se.—Auxilio fictício a Portugal.—Inglezes serviam exclusiva-<br />
mente o duque dc Lancaster.<br />
1<br />
Grão prazer deu a I). João 1 a mensagem que lhe asse-<br />
gurava <strong>com</strong> a presença do duque «le Lancasler 1 auxiliar<br />
valioso contra inimigo, aliás vencido já, e expulso do lerrilorio<br />
pelas armas portuguezas.<br />
Para logo foram esquipadas cm Lisboa 2 seis robustas<br />
galés, e doze naus que sob o mando dc AlTonso Furtado,<br />
1 Lopes, parte 11, cap. G5.°<br />
2 Lopes, loco citato.
100 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
capitão dc mar partiram para Inglaterra, onde causaram<br />
maravilha<strong>com</strong>o adeante referimos.<br />
Proscguindo as negociações cm Londres, c fazendo-se cm<br />
tanto o duque prestes de navios e gentes 3 , concluíram os pleni-<br />
potenciarios ao cabo de alguns mezes (9 dc maio dc 1386)<br />
um mui notável tractado, que foi a base dos que posterior-<br />
mente sc eflcituaram, regulando as relações dc Portugal <strong>com</strong><br />
a Grã-Bretanha 4 . Estabelecia o novo acto diplomático alliança<br />
perpetua c confederação reciproca entre as duas nações, obri-<br />
gando-sc ambas a mutuamente se auxiliarem cm caso de<br />
guerra \<br />
Estas importantes condições que formam ha séculos a base<br />
da alliança anglo-portugucza, mas a (pie por muitas vezes<br />
não tem dado cumprimento os nossos alüados, haviam sido<br />
anteriormente estabelecidas cm tempos dc el-rei D. Fernando<br />
noutro tractado que cm Londres negociaram os seus embaixa-<br />
dores João Fernandes Andciro c Vasco Domingucs, chantre<br />
dc Bragança (lü de junho dc 1373) 6 .<br />
Ha porem uma difierença radical. No tractado de D. Fcr-<br />
1 Sobre este cargo veja-se Nota I) 110 fim do volume.<br />
2 Froissart, liv. m, cap. 32.°<br />
3 Lopes, parte 11, cap. 81.°; Froissart, loc. cit.<br />
4 Reges Portugaliae Confcderatio. Windsor, í) dc maio dc 1386. Kymer,<br />
tomo vn, pag. 515.<br />
J Da íntegra d'cstc tractado existe na torre do tombo o documento «la<br />
chanccllaria ingleza (gnv. 18, nine. 3.°, n.° 25.° e corpo chronol., parlei,<br />
doe. 10.°). No museu britannico, bibliothcca cotoniana c na collccção de<br />
Rymer, loc. cit. está o que os nossos embaixadores s . crra '<br />
O tractado in extenso pódc vcr-sc cm Rymer. Focdera, tomo vil,<br />
pag. 15 e seguintes, e Pumont, tomo II, pag. 00.
D. JOÃO I K A AI. LI ANCA INGLEZA 107<br />
liando obrigavam-se os inglezes a soccorro posilivo expe-<br />
dindo certo numero dc homens de armas e archciros que<br />
viriam, <strong>com</strong>o eílec ti vãmente vieram, a Portugal caudilhados<br />
por um dos tios do proprio rei da Grã-Bretanha, a fim de<br />
auxiliarem e defenderem 1). Fernando e a rainha sua esposa<br />
na guerra contra Castella<br />
Em tempos dc í). João í, quando cm mais renhida lueta<br />
sc achara o reino contra o antigo adversario, não sc estipu-<br />
lava no novo tractado soccorro algum directo da Inglaterra<br />
cm favor do rei de Portugal. Pelo contrario.<br />
No mesmo dia cm que por parte dos embaixadores do<br />
antigo mestre d'Aviz se firmou o referido tractado (0 de maio<br />
de 1380) scllaram clles <strong>com</strong> os plcnipotenciarios inglezes<br />
outra convenção mal conhecida cm Portugal, mas nem por<br />
1 I>c tanto momento é esta condição do tractado que julgámos dever exarar<br />
aqui a traducção na íntegra: «El-rci dc Inglaterra abraçado <strong>com</strong> ternura c<br />
amor <strong>com</strong> os dielos Hei dc Portugal e Rainha D. Lconor, sua esposa, c não<br />
obstante as presentes necessidades dc seu reino, mandará de Inglaterra a<br />
Portugal um certo numero dc soldados, a saber: seiscentos homens de armas<br />
e quatrocentos archciros 1 para auxilio c defesa do Rei e Rainha de Portugal,<br />
a lim dc <strong>com</strong>baterem c resistirem <strong>com</strong> todas as suas forças ás invasões hostis<br />
e tyrannicas dc Henrique, o bastardo, ultimo rei de Castella c Leão, que<br />
injustamente se intitulava pcrtcndcntc á coroa dc Portugal.»<br />
Na grande collccção dc Rymer c omittida esta condição, mas enconlra-sc<br />
no documento authcntico archivado 110 Museu Britannico. Santarém, Quadro<br />
elementar das relações diplom., tomo xiv, pag. í) \; sr. \ iscondc de Figanicrc,<br />
Cathalogo dos manuscriptos portugueses do Museu Britannico, pag. 56, ci-<br />
tando Riblioth. Cottonian. Serie Nero. II. 1. pag. 17.<br />
1 Santarém cscrovc 80 besteiro.'', o que foi equivoco. No documento inglez cncontra-so<br />
•ccrtuni numeram bcll.itorum ad regnum Portugalliac mittcndonim... vidclicct: sexccntos<br />
homines ad arma, ct quadringentos sagitarios,»
108<br />
D. JOÃO I F. A ALLIANÇA INGLEZA<br />
isso menos anthcnlica, nem de menor desvantagem para o<br />
reino E nem iFesta convenção, nem do objcctivo a que se<br />
refere, tractaram jamais os nossos antigos historiadores,<br />
porque inteiramente a desconheceram, limitados cm geral a<br />
copiar Fernão Lopes. Este porém, <strong>com</strong>o é natural, não a<br />
mencionou mui adrede cm sua chronica, pelo invariavel cos-<br />
tume ile adulterar, ou esconder os factos, quando contraria-<br />
vam o seu mister de pancgyrista de D. João 1. Iria acaso<br />
mais longe o arteiro historiador inutilisando o documento<br />
<strong>com</strong>o guarda-mór que era da torre do tombo ? O certo é que<br />
não existe, nem ainda copia, no archivo nacional. Por este<br />
motivo julgamos útil dar-lhe publicidade sendo a primeira<br />
vez (pie a íntegra do documento referido sahe a lume cm<br />
Portugal<br />
Mediante a cilada convenção obrigavam os embaixadores<br />
a sua palria a servir desde o immedialo verão e por seis mezes<br />
Inglaterra 3 <strong>com</strong> dez galés armadas e mantidas (art. l.° e2. v )<br />
á custa do thesouro portuguez 4 .<br />
Ainda mais. Outro artigo (era o 3.°) estipulava que não<br />
realisaudo as nossas galés aquellc serviço ininterruptamente<br />
durante os seis mezes convencionados, repetiriam o mesmo<br />
serviço por outros seis mezes 5 , a <strong>com</strong>eçar em qualquer dos<br />
1 Convontiones cum praefato rege super auxilio pracslando. Windsor, 9<br />
de maio
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA II!)<br />
verões que a Inglaterra indigilasse. domo era entrado já o<br />
mez dc maio. c devia em setembro (art. 2.°) findar o serviço<br />
das galés, é claro que ficaria este durando cm vez de seis,<br />
nove mezes.<br />
Tal era a reciprocidade que nos oulliorgavam os nossos<br />
alliados! 1<br />
parle... regis Angliac inde requisitas fuerint per deccm galeas... per sex<br />
menses faciet deservire.» Conventiones, ut supra.<br />
1 O visconde dc Sanlarem grande collcccionador de documentos, c por<br />
isso mesmo não tendo algumas vezes tempo de profundamente os investigar,<br />
confundiu a ida das naus c galés portuguezas que o duque de Lancastcr<br />
pediu lhe fossem enviadas para o a<strong>com</strong>panharem á península] <strong>com</strong> as dez<br />
galés a que se referia a convenção firmada pelos nossos embaixadores, c que<br />
mui posteriormente partiram, <strong>com</strong>o veremos, cm soccorro de Inglaterra.<br />
Allínnou ainda equivocadamcntc aquellc escriptor que as galés foram para<br />
Inglaterra, a fim dc supprirem a frota inglcza, que a Hcspanha transportou<br />
o duque c o seu exercito.<br />
S
8()<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA II!)<br />
II<br />
Quão pasmosas diflcrenças são ainda para nolar entre<br />
o tractado (pie os embaixadores de I). Fernando sellaram em<br />
Inglaterra, e os cpic abi concluíram os emissários dcD.JoãoI!<br />
A D. Fernando concederam os inglezes, <strong>com</strong>o dissemos,<br />
soccorro eílectivo que rcalisaram vindo um exercito a Por-<br />
tugal caudilhado por um dos tios do proprio rei; c em <strong>com</strong>-<br />
pensação d este auxilio assaz valioso não lhes oulhorgou<br />
1). Fernando concessão alguma, além do projectado consorcio<br />
dc sua filha herdeira <strong>com</strong> um príncipe de Inglaterra, consorcio<br />
que se mallogrou por fim.<br />
Pelo tractado de I). João 1 não conseguiu o reino auxilio<br />
directo da coroa ingleza, e foi pelo contrario obrigado a ser-<br />
vil-a durante o espaço dc dois verões <strong>com</strong> gentes de guerra<br />
e navios armados.<br />
Sob o reinado de D. Fernando em vez de irem em soccorro<br />
de Inglaterra as armas portuguezas. vieram os inglezes em<br />
auxilio cfieclivo de Portugal e do proprio rei.<br />
Em tempos dc I). João I não só foram as galés c gentes<br />
portuguezas servir sem <strong>com</strong>pensação Inglaterra, mas em vez<br />
dos prazos marcados na convenção demoraram-se alli quinze<br />
mezes successivos; o que nem Fcrnão Lopes 1 ousou negar<br />
aííirmaiido aliás hipocritamente que as galés, «COMO d'antes<br />
1 Chron. dc D. João /, parle 11, cap. 127.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
fôra concordado, partiram para Inglaterra por servir a El-<br />
Rey.» O serviço a el-rei sabe o leitor qual era<br />
Mais. As grandes despesas para a vinda a Portugal, e<br />
manutenção do exercito do conde de Cambridgc foram satis-<br />
feitas pelo lhesouro dc Inglaterra 2 .<br />
0 valioso soccorro <strong>com</strong> que a frota portugueza cm tempos<br />
de I). João 1 auxiliou a nação britannica foi, segundo a con-<br />
venção estabelecia, pago integralmente á custa de Portugal 3 .<br />
Ainda mais. No preâmbulo que mediante o uso diplomático<br />
da epocha precedia os artigos da convenção, observavam os<br />
plenipotenciarios que estabeleciam esta <strong>com</strong>o <strong>com</strong>pensação 4<br />
das grandes despesas <strong>com</strong> que Inglaterra ia onerar-se para<br />
a partida do duque de Lancaster em conquista de seus direitos,<br />
1 Sobre este ponto é ainda o chronista desmentido pelo seu contemporâneo,<br />
o inglez Walsingham, dizendo este singelamente que o rei dc Portugal mandou<br />
ao dc Inglaterra seis galés para o auxiliarem c lhe darem conforto contra<br />
seus inimigos, c que estas gales acolhidas <strong>com</strong> bom animo prestaram cxcel-<br />
lcntcs seniços a Londres e a outras cidades dc Inglaterra. Walsingham,<br />
Ilist. brevis, pag. 31S.<br />
2 «Dc mandato regis Angliac solvantur vadia dicto domino Edmundo et<br />
ilietis millc hominibus armorum.» Alligantiarum cum rege et regina Cas-<br />
tellac. Confirmação dc el-rei 1). Fernando ao tractado feito cm Londres <strong>com</strong><br />
o duque dc Lancaster. Extrcmoz, lo dc julho dc 1380. Kymer, tomo vn,<br />
pag. 203.<br />
3 «Regis Portugaliae sumplibus et expensis. Nihil pcnitüs pro dicto ser-<br />
>itio a dicto domino Rege Angliac petendo seu exigendo.» Conventiones,<br />
tit supra.<br />
4 «In re<strong>com</strong>pensationem onerum et expensarum quac... regem Angliac<br />
circa profeclionem... Johannis... ducis I.ancastriac pro conqucstu júris sui...<br />
subirc... opportebit.» Conventiones, ut supra.<br />
II!)
I). JOÃO I E A AM.IANCA INGLEZA<br />
c em soccorro dc Portugal ! . Ora, dc soccorro algum foi a<br />
Portugal csla vinda do duque. Pelo contrario os embaixadores<br />
obrigaram formalmente o reino a servir Inglaterra <strong>com</strong> gentes<br />
c navios por determinado tempo, c em diversos annos, ao<br />
passo (pie os inglezes, máo grado á confederação dc auxilio<br />
mutuo e soccorro cfleclivo que acabavam de firmar <strong>com</strong> Por-<br />
tugal. vieram aqui unicamente em serviço exclusivo do duque<br />
de Lancastcr, c por tanto da corôa inglcza.<br />
Maiores desvantagens pesaram ainda sobre a nação por-<br />
tugueza desde que o filho de Eduardo III no seu proprio<br />
interesse chegou á península a fim de cmprehcnder a con-<br />
quista de Castella.<br />
supra.<br />
Opportunamenle presentaremos ao leitor este novo quadro.<br />
1 «El succiirsu praefali domini regis Porlugaliae.» Convcnliones, ut
CAPITULO XIV<br />
SLMMARIO. — Chega a Plymouth a frota portugueza. — Assombro que pro-<br />
duz.—Ampla struetura de galés e naus.—O Portugal dc hoje c o de<br />
outr'ora. — Duque de í.ancaster e o seu exercito, ílor da cavallaria.—<br />
A<strong>com</strong>panham-n'o esposa e filhas.—Faustoso apparato.—O rei e a rainha<br />
de Inglaterra.—Despedidas reacs.—Partida.—Cento e trinta velas.—Em<br />
Galliza.—Submissão progressiva.—O pendão dc Lancastcr.—Júbilo de<br />
I). João I <strong>com</strong> a chegada do duque.—Embaixadas mutuas.—Accorda-se<br />
encontro immedialo.— Convoca el-rei os principaes do reino.—Antigos<br />
nobres c os que a revolução produzira.—Idcas novas irrompendo.—O tra-<br />
balho aspirando á conquista da sociedade.—A frota portugueza e o Porto.<br />
—Volvem os embaixadores á patria.—Como são acolhidos.<br />
I<br />
Em 30 de junho (1380) abicou a Plymouth AlTonso Fur-<br />
tado <strong>com</strong> a frota de seu mando para, segundo o pedido (pie<br />
ao rei de Portugal dirigira o duque de Lancastcr, seguir este<br />
e os seus a terras de Hcspanha l .<br />
Grande assombro produziu então em Inglaterra a frota<br />
portugueza. Assim o afíirmacscriptor inglez contemporâneo:<br />
«As naus, accrescenta ellc, eram de maravilhosa grandeza c<br />
struetura. Nas galés amplas e robustas, a maior das quaes<br />
1 Knyghton, Dc eventibus, col. 2676.<br />
8
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA II!)<br />
tiravam trezentos romeiros, e a menor conto oitenta, cara-<br />
jieavam tripulações tle vigorosos pelejadores<br />
Quão mudado do (pie era se encontra hoje Portugal! Quão<br />
diversa é a opinião que ora formam de nós os escriptores<br />
extrangeiros!<br />
Cerca dc dois mezes havia que em Plvmoulh se encon-<br />
trava o duque de Lancaslerbuscando reunir as forças que<br />
deviam a<strong>com</strong>panhal-o 3 .<br />
Unanimes são os escriptores contemporâneos em afíirmar<br />
que este exercito ascendia a vinte mil homens 4 ; flor da caval-<br />
laria ingleza<br />
A<strong>com</strong>panhavam o duque sua esposa e filhas, Filippa que<br />
1 «Virorum forlium manu bene refertae. Quarum quacdam cum CCC'<br />
remigibus & minima carum cum ccntum octinginla.» Knyghton, col. 2076.<br />
2 Provisão dc Ricardo II. Dc navibus pro passagio regis Castellae acce-<br />
lerandis. Westminstcr, 23 dc abril dc 1386. Ilymcr, tomo VII, pag. 509.<br />
3 í : . para notar o equivoco cm que incorreu Lafuente dizendo que o duque<br />
de Lancaster se embarcara para llcspanha cm Bristol. Froissart escreveu<br />
Rrisco. D'ahi deduziram diversos auctôres que fôra cm Bristol o embarque.<br />
Sabe-se porém <strong>com</strong>o Froissart c os seus copistas adulteravam os nomes.<br />
Que o duque embarcou em Plymouth provam-n'o, além da provisão supra,<br />
muitos outros documentos colleccionados cm Rymer, e o proprio Knyghton<br />
{col. 2676), contemporâneo.<br />
4 Se bem concordam na totalidade do numero, dificrem aquelles escri-<br />
ptores quanto á especialidade. Knyghton designa dois mil homens de armas,<br />
e oito mil archciros [De eventibus, ctc., col. 2676); Froissart Ires mil<br />
lentas lanças, c Ires mil archciros (Chroniques, liv. III, cap. 32.°), c Fcrnão<br />
Lopes duas mil lanças, c Ires mil archciros, afora outros muitos que nom<br />
contauam (parte n, cap. 83.°).<br />
5 «Le duc de Lancaster avoit porlé en Espagnc la fleur des forces mili-<br />
taires dei'Anglctcrrc.») Humc, Ilist. d Anglcterre, trad. deM.-B..., tomou,<br />
cap. 6.°
I IQ D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
mezes depois cingiria a corôa de Portugal, Isabel, divorciada<br />
de seu marido o conde dcPenbrockec novamente esposada<br />
<strong>com</strong> mossc João deIlolland condestavel daquella hoste, e<br />
irmão, por sua mãe, do soberano então reinante 3 ; c Calhe-<br />
rina que foi posteriormente, <strong>com</strong>o dissemos, rainha de Cas-<br />
tella. Vinha também <strong>com</strong> seu pae madame Joanna, filha na-<br />
tural do duque, c de Katterina Rouct, esposa de Thomaz<br />
Moriaux, um dos marechaes da hoste inglcza 4 .<br />
Seguidas as princezas de Lancastcr por grande numero<br />
de donas c donzellas, entre as quacs se encontraria por certo<br />
<strong>com</strong>o governante que era das filhas do duque, a formosa<br />
Katterina Rouct, ostentavam cilas o extraordinário apparalo<br />
e o faustoso luxo cm que primava então, <strong>com</strong>o é sabido, a<br />
côrtc de Inglaterra. Só crcados ascendiam a mil 5 . Dir-se-ia<br />
que vinham a tranquilla posse dc tluono indisputado, e não<br />
a conquista violenta de terrilorio adverso 6 .<br />
A Plymouth foram pessoalmente despedir-se do duque 7<br />
o rei de Inglaterra, c sua esposa, Anna de Bohemia, deno-<br />
1 Knyghton, col. 2
I IQ D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
minada pelo povo inglez a boa rainha 4 . Ao duque e duqueza<br />
oíTercceram clles então, <strong>com</strong>o a futuros soberanos de Cas-<br />
tella, duas coroas dc oiro 2 .<br />
Finalmente a 9 de julho, entrada a noite 3 , desferiu velas<br />
a grande expedição, <strong>com</strong>posta, segundo auetores contempo-<br />
râneos, dc cento e trinta a duzentas velas \<br />
A 25 aportaram á Corunha, submettendo progressiva-<br />
mente algumas povoações, e entre cilas a cidade de Santhiago.<br />
Muitos senhores alçaram pendão por 1). Gonstança. Quasi<br />
toda Galliza se lhe submetteu por fim 3 .<br />
pae.<br />
A filha de Pedro, o cruel vinha reclamar a herança de seu<br />
Se ainda lhe não ornava a fronte a corôa de rainha, era<br />
i<br />
já obedecida em valiosa porção do dominio castelhano.<br />
1 «Thc pcoplt- of England... Iong hallowcd hor memory by lhe simplc and<br />
expressive appcllation of «good quecn Atine.» Burlon, Irish history, cilada<br />
por Strikland, Livcs of thc Quecns, tomo 1.°, 11. 0 13.°<br />
2 Knyghton, Dc eventibus, col. 2(»7(>.<br />
3 Assaz extranha é a forma porque a expedirão se fez ao mar. Dias havia<br />
que sobre este pesavam as calmarias próprias dc julho. Naquella noite,<br />
porém, dadas trindades, e quando o duque dc Lancaster se achava a ceiar<br />
cm sua galé <strong>com</strong> seu filho, o conde dc Dcrby, depois rei dc Inglaterra, vieram<br />
dizer-lhe que dc repente <strong>com</strong>eçava a soprar vento de scr\ir.<br />
Para logo despediu o duque o proprio filho, c ordenou que a expedição<br />
levantasse ancoras. Assim partiram cm meio da escuridão da noite. Veja-se<br />
Knyghton, De eventibus Angliae, col. 267G.<br />
4 «Erom por todas cento & trinta velas bem armadas 6: <strong>com</strong> muitos man-<br />
timentos.» Lopes, parle 2.", pag. 80. Froissart aflirina que eram duzentas<br />
velas. Liv. iu, cap. 32.°<br />
5 «O duque em Sancliago cobrou logo a cidade & assi polia maior parte<br />
toda a terra de Galliza.» Lopes, parte 2.% cap. 89.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA II!)<br />
II<br />
Mui ledo ficou o rei de Portugal <strong>com</strong> a chegada de tão<br />
poderosos auxiliares l .<br />
Logo ncss'hora se dirigiu ao Porto, c cm continente ex-<br />
pediu dois embaixadores 2 , que ainda em Galliza nos paços<br />
do duque foram encontrar os que esle por sua parte enviava<br />
ao soberano portuguez 3 .<br />
Trocadas aflcctuosas missivas c presentes, que certo não<br />
arruinariam os lhesouros dos dois potentados \ reconheceram<br />
estes a conveniência dc quanto antes se encontrarem, c accor-<br />
dou-sc que o logar das vistas fosse no alto Minho, extremo<br />
dos dois reinos, entre Monção e Melgaço sobre o plaino deno-<br />
minado Ponte de Mouro ": «A ponte de Mouro, escrevia não<br />
«ha ainda muitos annos um de nossos mais amenos histo-<br />
riadores, é um logar dc Portugal acima da praça dc Monção,<br />
«e toma o nome de uma ponte que ahi ha sobre o rio Mouro,<br />
«que vai desaguar sobre o Minho a pequena distancia 6 .»<br />
Para que se realisasse <strong>com</strong> a maximasolemnidadc aquellc<br />
aclo internacional, c fosse o príncipe da Grã-Bretanha rcce-<br />
1 Lopes, parte 11, cap. 90.°<br />
2 Lopes, parte II, cap. 91<br />
3 Froissart, Chron., liv. m, cap. 38.°<br />
4 O presente que el-rei enviou ao duque, á duqueza e ás princezas foram<br />
machos de cór branca mui ligeiros. O duque retribuiu <strong>com</strong> dois falcões pere-<br />
grinos, e dois galgos dc raça inglcza. Froissart, liv. III, cap. 38.°<br />
5 Lopes, parte u, cap. 91.°<br />
S. Luiz, Mcm., tomo único, cd. de 1835, pag. 2fl.
I IQ D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
bido, senão <strong>com</strong>o a alleza da pessoa requeria, ao menos <strong>com</strong><br />
o esplendor <strong>com</strong>patível <strong>com</strong> os acanhados haveres, a quC<br />
estavam então reduzidos os cavalleiros de Portugal depois<br />
da guerra, que havia mais de três annos mantinham, con-<br />
vocou 1). João I os prelados do reino, e isso mesmo os poucos<br />
senhores que neste ainda existiam<br />
Era assim limitado então o numero dos fidalgos de solar,<br />
em conscquencia de haver a maxima parte dos antigos seguido<br />
a voz de Leonor Tellcs, ou tomado armas pelo rei dc Cas-<br />
tella, perdendo até alguns junclo d'este a vida nos campos<br />
de Aljubarrota.<br />
Desejando todavia o monarcha portuguez prescntar-sc<br />
ante os inglezes <strong>com</strong> esplendentc <strong>com</strong>itiva, buscou reunir<br />
d'cntre os seus proceres quantos lhe foi possívele que<br />
poucos faltaram reconhece-se cotejando os nomes dos que<br />
Froissart menciona <strong>com</strong>o vindos ao chamamento de el-rei,<br />
<strong>com</strong> os que nas cortes de Coimbra formavam o braço da<br />
nobreza.<br />
III<br />
Afora esses antigos nobres, outros houve então (<strong>com</strong>o dc<br />
ordinário succedc após as grandes revoluções) que, oriundos<br />
dc baixa condição, vieram por seu trabalho c serviços a<br />
erguer-se a altos cargos c dignidades.<br />
1 «Alguns Senhores... que EIRcy de Portugal tinha <strong>com</strong>sigo... certa-<br />
mente erom mui poucos.» Lopes, parte 11, cap. 30.°<br />
2 «EIRcy teuc conselho dc mandar chamar o condcstabrc e outros d"<br />
Rcyno, c fazer libres pera quando sc ouucsscm dc ver.» Lopes, parte n,<br />
cap. 1)0.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA II!)<br />
Eis <strong>com</strong>o Fernão Lopes se expressava a esle respeito:<br />
«Parece sc levantou outro mundo novo, e nova geração dc<br />
«gentes, porque íillios de homens de baixa condição... por<br />
«seu bom serviço e trabalho neste tempo foram feitos cavai-<br />
«leiros... de guiza que por dignidades humanas & oflicios<br />
«do Reyno montaram tanto ao diante... que hoje em dia...<br />
«são teudos cm gram conta '.»<br />
Sunima importância tem para a nossa historia social estas<br />
justas observações do chronista. Eram as idèas novas irrom-<br />
pendo. Era o trabalho <strong>com</strong>eçando a robustccer de nova seiva<br />
a sociedade, c sobre as ruínas do vetusto edifício da cdade-<br />
media decadente aspirando a conquista que nos séculos<br />
vindouros lograria sem <strong>com</strong>petências.<br />
Satisfeito o encargo dc ate Hcspanha a<strong>com</strong>panhar o duque<br />
de Lancastcr, e desembarcado esle cm Galliza, a frota por-<br />
tugueza desfraldou velas dirigindo-se ao Porto. A seu bordo<br />
regressavam á patria os embaixadores, 1). Fernando AlTonso<br />
d'Albuqucrque mestre de Santhiago, e Lourenço Annes Fo-<br />
gaça, havendo a missão que lhes fôra <strong>com</strong>mettida durado<br />
mais de tres annos 2 , facto rarissimo naquclles tempos, em<br />
(pie não havia, <strong>com</strong>o c sabido, legações permanentes.<br />
Pode calcular-se <strong>com</strong>o os embaixadores seriam recebidos<br />
pelo novo soberano.<br />
O que fazia 110 emtanlo cm Galliza o pretendente á corôa<br />
de João de Castella ?<br />
1 Lopes, parte 1, cap. 113.°<br />
2 «Durarom fora do Ilcino Ires annos Ires mezes e vinte cinco dias.»<br />
Lopes, parte n, caj). 90.°
\<br />
X
CAPITULO XV<br />
SÜMMARIO.—O duque de Lancastcr c a capital da Galliza.—Magnificência<br />
da corte inglcza.—Pousadas vicejantes.—O vinho c os archciros cabidos<br />
pelas estradas.—A reunião dos dois príncipes.—Parte el-rei <strong>com</strong> os seus.<br />
—Ilcunc-se-lhc o grande condcstavcl.—Caminho dc Monção.—Desce o<br />
duque a Mclgaço.—Avistam-se sobre Minho.—A ponte do Mouro.—O<br />
encontro.— Luxuoso apparalo dos inglezes.—A <strong>com</strong>itiva portugueza.—<br />
Jorncas c bordados. — Fustão c ferro. — Contraste honroso. — A rainha<br />
Leonor Tellcs c as vestes de armas.—Arnczes de Aljubarrota e a galan-<br />
teria inglcza.<br />
I<br />
Em Santhiago, vetusta capital da província, estabelecera<br />
provisória côrtc o duque de Lancastcr <strong>com</strong>o rei dc Castella.<br />
Na abbadia se aposentara o intitulado rei <strong>com</strong> sua esposa<br />
e filhas, ostentando a usual magnificência da côrtc brilannica<br />
A cidade do Apostolo, monotona por indolc c hábitos pouco<br />
attinenlcs ao viver do século, tornara-se de repente impro-<br />
visado arremedo de requintado luxo.<br />
Não cabendo todos os barões c senhores da Grã-Bretanha<br />
dentro na povoarão restricta. tomaram pousada pelos vice-<br />
1 «Le duc et la duchessc et leurs deux filies à inaricr, Philippc et Cathé-<br />
rine se logcrent cn 1'abbayc.» Froissart, liv. m, cap. 33,°,
I IQ D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
jantes arredores. Dc ramos dc arvores ede folhagens formavam<br />
graciosas tendas, encantados os inglezes <strong>com</strong> a amenidadedas<br />
campinas, a profusão das flores c a opulencia dos vinhos<br />
Os terríveis archciros, considerados então por sua perícia<br />
os primeiros pelcjadores do mundo, entregavam-se tão desre-<br />
gradamente ao precioso licor, que a maxima parte do tempo<br />
ficavam deitados pelas estradas sem poderem erguer cabeça.<br />
Nem ainda ao dia seguinte havia contar <strong>com</strong> ellcs<br />
Aproximava-se entretanto (fins dc outubro) a hora apra-<br />
zada para a reunião dos dois potentados.<br />
Do Porto sahiu D. João 1 <strong>com</strong> os senhores que a seu<br />
chamamento haviam concorrido 3 . Sempre leal c devotado,<br />
fôra á Ponte da Barca junetar-se ao mona ir ha o mais firme<br />
apoio de seu throno, o grande condcstavel I). Nuno Alvares \<br />
seguindo-o bem corregidos c cncavalgados os escudeiros e<br />
cavalleiros de sua casa 5 .<br />
Reunida a <strong>com</strong>itiva portugueza, partiram caminho dc<br />
Monção 6 .<br />
1 «Et qui nc pouvoit trouver ma i son, il faisoit logc dc fcuillcc de bois<br />
que il coupoit.» Froissart, liv. m, cap. 33.°<br />
2 «Forts vins trouvoicnl ils assez, dont ccs archcrs buvoicnt lant que ils<br />
sccouchoicnt lc plus du lemps i\rcs... ils 11c sc pouvoicnt aider loul lc jour.»<br />
Froissart, loc. cit.<br />
i Lopes, parle 11, cap. 92.°<br />
* Chron. anonyma do Condcstavel, cap. i.vn, edição dc 152o.<br />
5 Lopes, ut supra.<br />
r ' «I.c roi... siwit <strong>com</strong>mc il sut que lc dpc approclioil son pavs, il sc parlit<br />
du Port... ct s'cn \inl... à une villc <strong>com</strong>postc sur lc départcmcnt dc son<br />
royaumc, laqucllc on appcllc au pays Monçon.» Froissart, liv. 111, cap. 38.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Ao mesmo tempo descendo Galliza ale ao mosteiro dc<br />
Gela nova onde as princczas dc Inglaterra ficaram apo-<br />
sentadas, veio o duque de Lancaster c os seus entestar <strong>com</strong><br />
Melgaço<br />
«Dc Melgaço a Monção, escrevia ha quatro séculos o pintor<br />
«chorographo Duarte d Armas, são tres léguas de mui bom<br />
«caminho, c mui aproveitado. Algumas ribeiras (ha) princi-<br />
«palmente huma por onde parte lio termo de Monsão... que<br />
«se chama rio do Mouro e passa-sc por ponte 3 .»<br />
Mui cerca estavam pois os dois alliados.<br />
Km dia de Todos os Sanctos ao desabrochar da manhã<br />
avistaram-se reciprocamente inglezes e portuguezes.<br />
Áqucm Minho costeavam uns e outros em sentido inverso<br />
a tortuosa corrente do poético rio. A leste, vindo d apar Mel-<br />
gaço. baixava <strong>com</strong> os seus o duque dc Lancastcr. Por oeste<br />
ia a cnconlral-o o rei de Portugal. Ante a ponte do Mouro<br />
chegaram ao mesmo tempo \<br />
1 Este insigne mosteiro de benediclinos existia desde o século x. em que,<br />
S. Uozendo, bispo d»' Dumc (cerca de Braga), e neto dc Ilermene^ildo, conde<br />
ile Tuv e Porlucale, o fundara a quatro léguas ao sul dc Orense nas faldas<br />
du monte Laboreiro. Era de ampla e grandiosa fabrica. Vepes, Chron. gener.<br />
dcS. licnito, Centúria v, cap. i; Flores, Espana Sagrada, tomo xvii, trat. 61,<br />
cap. 3.°, pag. 21
124<br />
D. ÍOÂO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
II<br />
Ostentava o príncipe inglez o proverbial apparato da côrte,<br />
cujos cavalleiros eram então no dizer de todos a flor da<br />
cavallaria do mundo l . Rodeavam-n'o, formando o que hoje<br />
chamaríamos o seu estado maior, cincocnta barões c caval-<br />
leiros 2 . sobrelevando-se entre esses seu proprio genro, mosse<br />
João de Ilolland, condestavel da hoste, e irmão <strong>com</strong>o já<br />
referimos dc el-rei de Inglaterra. Seguiam-nos, assaz de vis-<br />
tosos e bem corregidos 3 , trezentos homens de armas, e seis-<br />
ccnlos archciros 4 , montados todos cm cavallos de formosa<br />
estampa c ligeirissimos, <strong>com</strong>o da raça ingleza dc que pro-<br />
vinham 5 .<br />
1 «Ingrcscs som frol da Caualaria do mundo.» í.opcs, parle 11, cap. Í3.°<br />
2 «En sa <strong>com</strong>pagnie... plus dccinquanle barons et chevaliers.» Froissart,<br />
liv. III, cap. 38.° Deve nolar-sc que desde o reinado dc Eduardo I o lilulo<br />
de barão, <strong>com</strong>mum a todos os Senhores que tinham terras da coroa, ficou<br />
rcstricto aos que eram membros do parlamento. Hapin dc Ihoyras, Hist.<br />
d'Angleterrc, tomo III, liv.<br />
3 Lopes, parte II, cap. 92.°<br />
4 Froissart, liv. III, cap. 38.° Os archciros inglezes não pelejavam so-<br />
mente a pé. D'elles havia <strong>com</strong>panhias dc cavallo, c eram as mais terríveis.<br />
5 Dc Inglaterra trouxera o duque embarcados os cavallos do numeroso<br />
exercito que o a<strong>com</strong>panhava l . Havia então um genero de navios adaplado<br />
para o transporte dc cavallos. Chamavam-lhe á franccza «huissier.» Jal, Ar-<br />
ehcologic na cale et glossairc nauliguc; Valbonnais, Pr caves dc l'hisi. du<br />
Dauphinc, pag. o02. O chronista dcS. Luiz descreve assim o embarque dos<br />
cavallos cm a nau que o transportou á Terra-sancta: «El fui ouverte Ia porte<br />
de Ia ncfpour fairc entrer nos Chcvaulx, ceulx que devions mener oullre<br />
i «Furent mis és navires el halleniircs plus de dcux millc chcvaux, les ijuels avoieut<br />
pourvéancc.» Froissart, liv. m, cap. 32.» Veja-se no cap. #2 0 o desembarque d estes ca-<br />
vallos cm Galliza.
I). JOÃO I fc A ALLIANÇA INGLÈZA<br />
Por seu lado tinha o rei de Portugal quinhentas lanças<br />
que o seguiam dc cole e mais as gentes dos prelados, c<br />
dos poucos senhores 2 , (pie então havia no reino, <strong>com</strong>o dis-<br />
semos. Ascendiam por todos a dois mil homens de armas \<br />
0 estado real <strong>com</strong>punha-se dc quarenta pàlafrens \ levados<br />
á dextra, c cobertos de tellizcs bordados <strong>com</strong> as armas e a<br />
tenção do monarcha 3 .<br />
Se bem que superior cm numero era a <strong>com</strong>itiva portu-<br />
gueza, não podia esta nem por sombras rastear o esplan-<br />
dccente apparato, que ostentavam os seguidores do duque<br />
dc Lancastcr.<br />
A riqueza «los trajos, a raça apuradissima dos cavallos, o<br />
brilhantismo de armas c armaduras, cm que o sol refleclia c ,<br />
deslumbravam vistas.<br />
mcr. Et quand tons furent enlrcz, la porte fut recousc ct cslonpcc, ainsi<br />
<strong>com</strong>mc 1'on vouldroit fairc un tonei de vin.» Sirc dc Joinville, llist. de<br />
S. 1 Loy*. edit. Pçtitot, tomo 11, pag. 206.<br />
1 Lopes, parte n, cap. 92.°<br />
2 O titulo dc senhor que tanto malbaratamos hoje dando-o ao primeiro<br />
indivíduo que se encontra, era então tractamcnto exclusivo dos que pos-<br />
suiam senhorio de terras herdadas de avós, ou outorgadas pela mercê de<br />
el-rei. Qualquer outro indivíduo, ainda que superior, er;i simplesmente<br />
tractadopor seu nome, ou appellido. Ycjnm-seasC/imitWtfde Femao Lopes<br />
ou Azurara. O mesmo acontecia em França <strong>com</strong> relação ao titulo de Srigneur.<br />
3 «Com as gentes dos fidalgos podiam ser por todos dois mil.» Lopes,<br />
ut supra.<br />
1 Dava-se então este nome aos cavallos de apparato, ou que eram <strong>com</strong>o<br />
taes levados á dextra. Derivava-se do francez palefroi. derivado também de<br />
par le froi (pelo freio). Litlró, Úictionnaire} Palefroi, tomo 3.°; Bcsche-<br />
relle, idem, tomo u.<br />
* Lopes, ut supra.<br />
6 Froissart, liv. iu, cap. 38.°
1). JOÁO I K A ALLIANÇA INGLKZA<br />
Sobre as colas o braçaes do aço fulgente 1 trajavam òs<br />
inglezes ao uso dc sua côrte, e fluctuando-llies á mercê do<br />
vento, jorneas de vclludo de Florcnça, ou de pannos dc Flan-<br />
dres, chapadas de prata, farpadas de sedas ou bordadas a<br />
ouro. Jorneas, diz cm uma de suas obras o erudito escriptor<br />
d aquelles tempos, el-rei 1). Duarte, eram roupas soltas, assim<br />
<strong>com</strong>o mantões<br />
Com o desmesurado luxo britannico rastejava em perfeito<br />
contraste a restricta parcimônia da <strong>com</strong>itiva portugueza.<br />
Em vez de jorneas c bordados, vestiam os <strong>com</strong>panheiros<br />
do antigo mestre d'Aviz sobre as colas de ferro, pintadas<br />
algumas dVlIas conforme o péssimo gosto do tempo 3 , loudeis<br />
de fustão branco 4 , tendo sobre as costas e o peito chapada<br />
em largo a cruz vermelha de S. Jorge 5 . Muitos dos que eram<br />
da mercê dos fidahjos enxergavam <strong>com</strong>o simples, mas hon-<br />
rada vestidura, as antigas longas de couro atanado, ou pratas<br />
enferrujadas pelo lidar da guerra f \<br />
1 «Os do duque traziam cotas e braçaes <strong>com</strong> jorneas bordadas, e outros<br />
farpadas, assaz dc vistosos c bem corregidos.» Lopes, parte n, cap. 92."<br />
2 El-Rei 1). Duarte, Arte de bem cavalgar toda sela, parte "Í, cap. xviif.<br />
3 Era então mui <strong>com</strong>inum pintarem o ferro das cotas. Assim se encontram<br />
no valiosissiuio códice da torre do tombo «Horas de el-rei D. Duarte»<br />
(estampas do tempo). Veja-se acerca d'este uso Lacroiv, Armurerie, pag. 90.<br />
1 «Entre os apostamentos que assi Icuaua deu a todos os que andauam<br />
<strong>com</strong> elle dc cote... loudeis dc fustam branco <strong>com</strong> cruzes dc san Jorge.»<br />
Lopes, parte 11, cap. 92.° O loudcl dilTcrcnçava-se do brial em não ter<br />
mangas. Horas de el-rci D. Duarte, estampa de S. Jorge.<br />
5 «Cada hum... que da nossa parle for tragua btium signal darmas de<br />
San Jorge largo, hum deante e outro detraz.» Orden. Affonsina, liv. i,<br />
tit. ol.°, § oí.°<br />
1 Chamavam então pratas a certa armadura antiga dc ferro para cobrir
DEGOLAÇÃO DOS INNOCENTES<br />
Miniatura do século xv - Horas dcl rci D. Duarte, Archivo nac. da Torre do Tonbo.
1). JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
fê este gênero
D. JOÃO 1 E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
uma estreita gorra de ferro unida á tesla em forma achatada<br />
posta sobre uma coifa de malha dc ferro Desta haviam<br />
também sido ate alli as armaduras.<br />
D então em deanlc passaram as que protegiam tronco e<br />
braços a ser fabricadas de grossas peças dc ferro batido,<br />
devendo jiolar-sc que já antes iam sendo estas mesmas peças'<br />
gradualmente empregadas <strong>com</strong>o defesa ao resto do corpo 2 .<br />
Realisava-se assim a transição para as armaduras <strong>com</strong>-<br />
pletas de ferro que cm seguida vieram 3 . Estas tornaram-se<br />
muito mais pesadas, mas guardavam muito melhor a vida do<br />
guerreiro \<br />
Foi lambem D. Fernando que cm Portugal encetou esta<br />
innovaçãotomando-a dos francezes assoldadados nas terríveis<br />
<strong>com</strong>panhias, a que já nos referimos, denominadas <strong>com</strong>pa-<br />
nhias brancas, as quaes ao cerco de Lisboa tinham vindo<br />
<strong>com</strong> Henrique II de Castella 5 . A reforma foi radical.<br />
Em vez do gambais, sobre cota estofada e mui longa 6 ,<br />
1 Fernão Lopes, Chron. de D. Fernando, cap. 87.°; Lacroix, Les arts<br />
au Moycn-áge, verb. Armureric.<br />
2 «Ccst à la fin du treiziòmc siòclc que conimcncércnt à paraitre quel-<br />
ques unes des pièccs dc rarmure cn fcr... Les prcmiòrcs pièccs furent<br />
appliquécs sur les jambes, ensuile sur les cuisses, sur les bras, et enfin on<br />
rcmplaça le haubcrt par Ia cuirasse.» F. Saulcy, Le Moyen-uge el la Hen-<br />
naissanee. verb. Armurerie, tomo iv.<br />
: Lacroix, ut supra, pag. 87.<br />
4 «Ccs épaisses cuirasses... ces forteresses mouvantes d'acier font sur-<br />
tout bonncur à Ia prudcnce dc ceux qui s'en alíublaient.» Michctcl, Hitt.<br />
de Franee, tomo m, liv. vi, cap. i.<br />
3 Lopes, Chron. de 1). João I. parle i, cap. 50.°<br />
«Le gambais est 1'ancicn nom français dc la collc rembourree, on plulôt<br />
de la bourre dont cettc colte clait rembourree.» Quicherat, Uistoire du<br />
costume cn France, cap. vi.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 147<br />
usada já em Portugal no tempo de D. Sanclio I, <strong>com</strong>o demonstra<br />
a presente gravura, copia de uma moeda em ouro do mesmo<br />
rei, contendo a sua eíligie authenlica,<br />
Morabitino dc ouro (D. Sancho I)<br />
Bibliothcca Nacional de Lisboa, çjabin. dc mcdal.<br />
veio o jacque estreito e curto A loriga formada a principio<br />
de grossas cscamas de couro, ou de estreitos anneis dc ferro,<br />
c posteriormente entretccida dc malha, foi então substituída<br />
pela cota de ferro massiço unida ao corpo 2 . Em troco da<br />
capellina estabeleceu-se a barbuda, genero de capacete esto-<br />
fado para não molestar a cabeça, c posto dircctamenle sobre<br />
esta <strong>com</strong> forte viscira, a que chamavam cara. Tinha em logar<br />
de coifa ajustado 11111 amplo cabeção dc malha de ferro 3 .<br />
1 «Espècc dc casaquc contrcpointóe qu'011 mctloit par dessus la cuirassc.»<br />
Froissart, liv. 1, cap. 04. 0 O jacque chamado depois jaqucttc, d'onde vem<br />
a actual jaqueta usada pelo nosso povo, era primitivamente uniforme dos<br />
archciros cm Inglaterra. l)'alli passou a França <strong>com</strong>o veste ligeira para<br />
trazer sobre a armadura. Com o tempo veio a ser fabricado dc sedas mui<br />
ricas, tornando-se ás vezes vestidura preciosa. Lacroix, Les arts au Moyen-<br />
dgc, pag. 8G. Veja-se adeante (pag. 135, nota 2. 4 ) o que neste genero possuia<br />
o duque dc Lancaster.<br />
2 As armaduras <strong>com</strong>postas dc anneis de ferro foram importadas em França<br />
c Inglaterra pelos normandos nos séculos ix c xi. As armaduras de malha<br />
de ferro muito mais perfeitas c ligeiras que as outras, e invenção arabe,<br />
vieram do Oriente trazidas pelos cruzados. Saulcy, loco citato.<br />
3 Lopes, Chron. dc D. Fernando, cap. LXXXVII.<br />
9
130<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Em lembrança (Testa armadura, c <strong>com</strong> a sua própria<br />
fôrma creou I). Fernando uma nova moeda (gravura juncta),<br />
a que deu aquellc nome l .<br />
Logo depois, <strong>com</strong> a vinda dos inglezes a Lisboa, appare-<br />
ccram, importados porellcs de França, os bacinetcs cm forma<br />
ponteaguda, c tendo também para garantir o pescoço c braços<br />
um cabeção de malha muito mais curto que o outro, deno-<br />
minado carnal i .<br />
Barbuda<br />
nibliothecn Nacional, loco citato.<br />
Quicherut, llist. da costume, cap. xi.<br />
1 Lopes, loco citato; Sousa, llist. geneal. da casa real. tomo iv, pag. 450,<br />
n.° 8; Sr. Aragão, Descripçõo das moedas portuguesas, tomo i, pag. 17",<br />
est. iv c v.<br />
2 «La cervilicre dc platc ou sphériquc qu'ellc était, devint pointuc à sa
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
149<br />
Eslcs eram os bacinetcs de carnal tanta vez citados por<br />
Fcrnão Lopes, e usados então em toda Europa.<br />
Lisos c desadereçados, dilTeriam muito do antigo elmo<br />
que ostentava ornatos e divisas, e que já então apparecia<br />
unicamente em justas c torneios.<br />
Ainda em sua vida o usara o heroico príncipe negro cnci-<br />
mando-o <strong>com</strong> o famoso leopardo britannico.<br />
Annos depois, e justamente 110 tempo a que nos estamos<br />
referindo, a nação ingleza primava já pela elcgancia que im-<br />
primia no trajar de seus cortcsãos, e que também era para<br />
notar nas armaduras de seus guerreiros<br />
Em taes circumstancias, e mediante o (pie sobre o apu-<br />
rado luxo dos cavalleiros do duque de Lancaster deixamos<br />
referido, não é para causar pasmo se os sectários do antigo<br />
mestre d'Aviz, os acerrimos lidadores de Aljubarrota, de<br />
Valvcrdc e de Trancoso, embora 110 coração lhes pulsassem<br />
brios tantas vezes provados, mas aííeitos havia mais de tres<br />
annos ao constante guerrear dos campos de batalha, não<br />
podiam cm assumptos dc galanteria, e bom gosto servir de<br />
modelo aos elegantes caudilhos da côrte ingleza.<br />
partic superieure, et prit lc nom dc bassinet... Pour proteger le cou on<br />
attachait un tissu dc maillcs dc fer qui retombait sur les épaulcs, et qu'on<br />
appcllait camail.» Lacroix, Les arts, verb. Ârmurerie.<br />
«E nós chamamos agora ás barbudas bacinctes dc carnal.» Lopes, parte 11,<br />
cap. 50.°<br />
1 Horacc de Viel Castcl, Moycn-áge et Rentiaissancc, tomo III, verb. Modes<br />
et costumes.
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Prosigamos porém <strong>com</strong> a narrativa, que a dcscripção das<br />
antigas armaduras momentaneamente interrompera. Vol-<br />
vamos aos piai nos da ponte do Mouro, onde frente a frente<br />
deixaramos os cavalleiros de Inglaterra, e os ardidos segui-<br />
dores do novo rei de Portugal.
CAPITULO XVI<br />
SCMMARIO. — O rei dc Portugal e o duque dc Lancastcr.—Adeanta-se o<br />
primeiro.—Abraçam-se.—As tendas.—Despem-se armas.—O banquete.<br />
—As campinas do Minho.—A mesa real.—As outras.—Inglezes servidos<br />
pelos portugueses. — A tenda dc el-rei de Castella.-O seu oratorio.—<br />
Pcspojos da grande victoria.—Admiração dos inglezes.—Conferências.<br />
—Pacto firmado.—Portugal nada recebeu c dava tudo.—Segundo festim<br />
á portugueza.—Um banquete inglez. — Eclipse. — Magnificência calcu-<br />
lista.—Os banquetes na edade-media.<br />
I<br />
Assim que el-rei enxergou o duque de Lancastcr, que pro-<br />
ximo á ponte do Mouro se adcanlava para vir a encontral-o,<br />
passou galantemente da parte d'além 4 , apressando-se a ser<br />
dentre os dois o primeiro que se aproximasse do outro.<br />
Junctos que foram, pararam de súbito as duas turmas guer-<br />
reiras, examinando-se mutuamente inglezes e portuguezes<br />
<strong>com</strong> a curiosidade que era natural aos que em tão diversas<br />
terras haviam nascido, e por primeira vez sc encontravam.<br />
Os dois príncipes abraçaram-se, c (accrescenta a chro-<br />
nica): «fazendo suas misuras <strong>com</strong> grande prazer e lcdicc,<br />
1 «EIKey quando vio que o Duque assi vinha passou da parte dalem &<br />
accrtarom-se ambos cm huma ladeira.» Lopes, parte H, cap. 92.°
130<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
«estiueram um pouco falando, & deshi passarom sc ácpiem<br />
«do rio, hu EIRcy tinha suas tendas postas & ali sc dcsar-<br />
«marom<br />
Era uso constante entre os guerreiros da edade-media<br />
assim que chegavam a casa, e sobretudo quando se assen-<br />
tavam a <strong>com</strong>er, despir as pesadas armaduras, e por <strong>com</strong>-<br />
modo envergavam sobre o gibão 2 uma longa e larga vesti-<br />
dura, a que chamavam roupa 3 ou mantão \ e que os cobria<br />
todos. O estofo variava segundo os haveres de cada um.<br />
Referem escriptores contemporâneos, que vestes d aquelle<br />
1 Lopes, parte 11, cap. 92.®<br />
1 Do franccz gipon. Conformo costume já então c ainda hoje usado cm<br />
objcctos dc moda, importámos este dc França, c bem assim o nome. Quando<br />
cm meio do século xiv as vestiduras longas usadas até alii foram depois<br />
da horrível peste negra que devastou a Europa (1348) substituídas por vestes<br />
curtas, aliás dc mui extravagantes fôrmas, apparcccu o gibão. Traziam-n'o<br />
immcdiato á camisa. Era aberto pelos lados c estofado. Sobre cllc usavam<br />
o tabardo c o jacke, ou cm guerra as armaduras, llcfcrindo-sc ao condes-<br />
tavcl escreve Fcrnão Lopes: «Aquelle dia sendo já o conde aposentado sc<br />
rccrccco no arraial grande volta... cmlanto que o conde sahio da tenda <strong>com</strong><br />
hum mantom coberto sem outra cousa... & quando chegou hu a volta era,<br />
perdeu o mantom, c ficou cm gibão.» Chron. dc D.João I, parte II, cap. 168.°;<br />
Quichcrat, Ilist. du costume, cap. x; fíaudrillart, Ilist. du luxe, tomo m,<br />
liv. II, cap. 9.°<br />
3 Tomado o nome c a veste do franccz robe, vestidura longa. Littre,<br />
Diclion., verb. liobc. El-rei D. Duarte, Leal conselheiro, pag. *2S5. Da roupa<br />
veio mais ao deante a dcduzir-sc roupão, ainda hoje usado.<br />
4 O mantão também importado dc França c assim o nome (mantcl), era<br />
<strong>com</strong>o um grande capote dos nossos dias. Diflercncava-sc do ferragoulo c<br />
balandrau cm terem estes capcllo c mangas, sendo as do segundo mui largas<br />
á moirisea. Servia para nVIlc se envolverem os guerreiros, quando despiam<br />
as armas ficando em gibão. Ordcn. Affonsina, liv. II, tit. 103.°, n.° 1.°;<br />
Viel Castcl, Moyen-dge, verb. Modes et costumes. Veja-se Lopes, loco citato;<br />
e Lcbeau, Chron. dc llieardo II. edit. Buchon, tomo xxiv, pag. 9.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
153<br />
gênero tinham riquíssimas tanto D. João I <strong>com</strong>o o duque<br />
dc Lancastcr\<br />
Sumptuoso banquete ofíereceu ao reccm-chegado o sobe-<br />
rano de Portugal sob as suas próprias tendas, que á beira do<br />
Minho em meio da campina se dilatavam, diz Froissart,<br />
graciosamente fabricadas de festões e dc folhagens 3 .<br />
A fundo de uma mui real sala 4 , armada na mais espa-<br />
çosa das tendas, c colgada de tapeçarias que representavam<br />
algumas das mais heróicas pelejas, cm que sc haviam extre-<br />
mado os portuguezes 5 , avultava sobre degraus a grande<br />
1 No Leal conselheiro faz el-rei D. Duarte a dcscripção dc uma roupa<br />
que possuía el-rei seu pae, na qual mandara bordar um camello carregado<br />
<strong>com</strong> quatro saccas, allusivo ás quatro virtudes, Leal conselheiro, pag. 285.<br />
Estes bordados nas roupas representando grandes figuras dc leões c outros<br />
animaes, dc homens c mulheres, de rios <strong>com</strong> peixes nadando, dc rochedos<br />
c florestas, tudo cm rccamo, eram então mui freqüentes conforme as extra-<br />
vagantes modas do tempo. Na côrte dc França o rei Carlos VI usava uma<br />
roupa marchetada inteiramente dc andorinhas em orivesaria tendo no bico<br />
bandejinhas de ouro soltas cm numero superior a quatrocentas. Vallet de<br />
Viriville, Isàbeau de fíavière; IJaudrillart, llist. du luxe, tomo ni, liv. li,<br />
cap. xr, n.° 3.°, c liv. m, cap. iv.<br />
2 «Dux Lamastriac... quoddam vestimentum pracciosissimum ipsius,<br />
qua\c jacke vocamus.» Walsingham, llist. brevis, pag. 249.<br />
3 «Avoit on sur les champs fait feuillees ct logis grands et planturcux<br />
dc la partie du roi de Portugal, ct là alia dincr le duc aveeques le roi.»<br />
Froissart, liv. m, cap. 38.°<br />
4 Lopes, parte n, cap. 94.°<br />
5 «El adorno dc Ias salas reales portuguezas sc texia dc bacanas y triunfos<br />
de sus Reyes y vasalos.» Faria y Sousa, Europa portugueza, tomo II,<br />
parte iii, cap. l.° Na casa dos duques do Infantado existia, c por ventura<br />
existirá, uma tapeçaria que el-rei 1>. AlTonso V, quando pertendia a corôa dc<br />
Castella, doou áquella casa.
130<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
mesa, onde cl-rci e o duque sc assentaram a par • sem curmlo<br />
de parte direita nem esquerda, cá indacntom nom era em uso l . •<br />
Seguia-se-lhes na mesa real o arcebispo de Braga, o bispo<br />
do Porto c outro 2 , únicos portuguezes que pela dignidade<br />
do cargo tomaram logar no banquete.<br />
As outras mesas que juneto ás paredes se dilatavam ao<br />
longo destas, conforme uso medieval, eram exclusivamente<br />
occupadas pelos barões c cavalleiros dc Inglaterra 3 , a quem<br />
serviam mediante a etiqueta de então os fidalgos e senhores<br />
de Portugal 4 .<br />
Todo o pavimento segundo estylo do século era juncado<br />
de verduras aromaticas e de flores.<br />
Durou a esplendida refeição 5 até entrada a noite, retiran-<br />
do-se o duque a terra de Galliza, onde acampara frente a<br />
Melgaço.<br />
II<br />
Na manhã seguinte cerca de Monção a fundo do rio foi<br />
armada a grande tenda (pie el-rei de Castella trazia na ba-<br />
talha dc Aljubarrota 6 , e que ahi os vencedores lhe tomaram<br />
1 Lopes, parte 11, cap. 92.°<br />
2 Froissart, liv. 111, cap. 92.°<br />
3 Era só juneto á parede que sc assentavam então os convivas. O outro<br />
lado da mesa ficava livre para o serviço. Vicl Castcl, Vie privee, pag. 368.<br />
4 Lopes, loco cit ato.<br />
h «Lcqucl diner fui tres bcl et bien ordonnc dc toutes choses.» Froissart,<br />
liv. III, cap. 38."<br />
6 «Em outro dia armarom contra fundo do rio huma grande tenda que<br />
fora DclKey de Castella, tomada na batalha real.» Lopes, parte n, cap. 92.°
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
<strong>com</strong> outros notabilissimos objectos, entre os quaes 1 avultava<br />
155<br />
o rico oratorio do particular uso do rei, c inaprcciavcl por<br />
seu valor artístico c archeologico. Offertara-o L). João I á<br />
Senhora da Oliveira de Guimarães 2 , quando áquella villa<br />
fôra em romagem para cumprir voto que fizera antes da ba-<br />
talha de Aljubarrota. Este precioso triptyco admirou-o ha<br />
pouco Lisboa inteira na exposição de arte ornamental, que<br />
tão justamente attrahiu a curiosidade publica 3 .<br />
Maravilha causou aos inglezes a famosa tenda castelhana,<br />
<strong>com</strong>o tropheu recente dc nossas glorias. Nesse intuito haveria<br />
sido alli arteiramente collocada.<br />
Era amplíssima e de rasgada forma Dentro haviam el-rei<br />
c o duque suas camaras c salas ricamente alcatifadas c col-<br />
1 «Muitas jóias dc prata c douro... acharam na lenda DelRey de Cas-<br />
tella.» Lopes, parte n, cap. 46.° L T ma preciosidade salvou-se. Era o proprio<br />
elmo (bacinctc) do rei, cravcjado dc pedras preciosas sobre um circulo dc<br />
oiro. O escudeiro, a cuja guarda estava, ponde cvadir-sc levando-o. Frois-<br />
sart, liv. m, cap. 21.°<br />
2 «EIRcy chegou a Guimarães, hu havia promcttido... & feita sua oraçam<br />
c offcrta... deu muitas esmolas.» Lopes, parte n, cap. 62.°<br />
3 Toda a capclla do rei dc Castella, onde havia preciosos objectos, cahira<br />
cm poder dos portuguzes. D. João I doou diversas peças á collegiada de<br />
Guimarães c outras ao mosteiro de Alcobaça. Entre estas ultimas avulta<br />
o primeiro volume da biblia (até aos prophctas), o qual sc conserva na biblio-<br />
thcca nacional dc Lisboa, vendo-se ainda nas chapas de bronze, que o abro-<br />
xam, abertas cm muitas partes as armas do rei vencido (leões c castellos).<br />
O segundo volume contendo o resto da biblia levara-o <strong>com</strong>sigo o condcs-<br />
tavcl. Sanctos, Alcobaça ülustrada, tit. ix, pag. 218; Lopes, parte 11,<br />
cap. 46.°<br />
4 «On y avoit fait 1c plus bcau logis ct lc plus grand dc jamais.» Frois-<br />
sart, liv. in, cap. 38.°
130<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
gadas de cortinas c tapeçarias Ahi se reuniam desde manhã<br />
os príncipes <strong>com</strong> os de seu conselho 2 para accordarcm as<br />
condições da liga, cm epie iam confederar-se. Sele dias du-<br />
raram as conferências 3 .<br />
Sellado a final o grande acto diplomático, em (pie—de<br />
passagem seja dicto—Portugal nada recebeu dc faclo, e dava<br />
tudo, <strong>com</strong>o adeante pôde ver-se, solcmnisou el-rei o mencio-<br />
nado pacto <strong>com</strong> um novo fcslim, mais esplendido (pie o pri-<br />
meiro, conforme rezam chronicas.<br />
 tenda que fôra do rei de Castella addicionaram outras<br />
para a collocação das mesas \ O grande condestavel exerceu<br />
o cargo de vedor 5 , sccundando-o os principaes senhores que<br />
serviam dc toalha c copa 6 .<br />
No dia seguinte retribuiu o duque de Lancaster a hospe-<br />
dagem portugueza, convidando el-rei c todos os que o a<strong>com</strong>-<br />
panhavam 7 .<br />
O banquete do príncipe inglez deixou eclipsados, <strong>com</strong>o é<br />
natural, os que lhe oflertara o antigo mestre d'Aviz.<br />
Em matérias dc elegancia c luxo não podiam os portu-<br />
! «Et avoit lc duc ct lc roi leurs chambres tendues dc draps, dc courtincs<br />
ct dc tapis.» Froissart, loc. cit.<br />
2 «Alli faziam Elllcy c o duque seus conselhos cada dia.» Lopes, parte n,<br />
cap. 92.°<br />
3 Lopes, parte n, cap. 9i.°<br />
4 Lopes, loc. cit.<br />
5 Lopes, loc. cit.<br />
6 Scr\ir dc toalha era estar juneto das mesas assistindo os convivas.<br />
Servir dc copa era formar parte do cortejo que á sala trazia as iguarias <strong>com</strong><br />
grande apparato. Ilavia por tanto dois grupos distinetos dc servidores.<br />
7 Froissart, liv. m, cap. 38.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 139<br />
guezcs, <strong>com</strong>o provado fica, manter <strong>com</strong>petências <strong>com</strong> a côrte<br />
inglcza, a mais esplendida então da Europa christã.<br />
Demais, o duque de Lancastcr, magnanimo dc condição,<br />
c possuidor dc desconimunacs riquezas, buscava naquella<br />
hora allrahir o animo phantasioso dos castelhanos ostentando<br />
a maxima sumptuosidade.<br />
0 banquete solemnissimo, <strong>com</strong> que festejou o seu conviva<br />
e demais portuguezes, marcou cpoclia entre os historiadores<br />
" do tempo<br />
Busquemos, estudando estes, descrever cm summula a<br />
imponente festa; c sc em sua bcncvolcncia o leitor quizer<br />
seguir-nos atravez das magnificentes ccremonias c deslum-<br />
brantes episodios, <strong>com</strong> que se rcalisavam na edade-media<br />
aquellas solcmnidades, poderá formar aproximada idêa do<br />
que era ha cinco séculos um grande banquete.<br />
1 Violei le Duc, Vic privcc dc la noblesse féodale: Cours, fetes, banqueis,<br />
pag. 3G6.<br />
I
CAPITULO XVII<br />
SUMMIRIO. — O viver das gerações extinctas. — Importancia d'cstc estudo.<br />
—Sua applicaeão em França.— Atrazo em Portugal.—Escriplorcs antigos<br />
c modernos.—A tcnda-palacio.—Giro c sedas.—A grande sala.—A alta<br />
mesa.—Copeiras e credencias.— Preciosidades.—Ar cheiros em guarda.<br />
—Ministreis.—As flores atravez dos séculos.—Adornos progressivos.—<br />
Monumentos dc arte nos banquetes.—Isabel dc Portugal c a côrtc de Bor-<br />
gonha.— As outras mesas.—Commcnsacs portuguezes.—Nomes c cate-<br />
gorias.-Servem-nos os senhores dc Inglaterra. — Profusão c sumptuo-<br />
sidade.<br />
I<br />
Não se haja por demais a descripção minuciosa dc que<br />
vamos occupar-nos. Tudo que possa hoje revelar o crer e<br />
viver das gerações extinctas, os seus usos, hábitos c costumes<br />
é de interesse incontestável perante a historia da sociedade<br />
em suas evoluções progressivas. «O característico do nosso<br />
tempo, escreveu ha pouco um moderno auetor francez, é o<br />
desejo insoffrido dc conhecer os passados séculos, ainda nas<br />
mais especiaes circumstancias da vida publica c particular<br />
de nossos maiores »<br />
1 Le caractcrisliquc dc notre epoque c'cst un désir de plus cn plus grand<br />
(te connaitre les siòcles passes jusque dans les moindres détails dc la vic<br />
publique et privcc dc nos ancêtrcs. Nouvelle rcvue, tome xi\, pag. 931.
142<br />
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
E sc isto se diz cm França em meio de milhares de<br />
escriptos consagrados áquelles assumptos, muito mais neces-<br />
sários devem considerar-se taes estudos em Portugal, onde<br />
mui pouco se sabe, e ainda menos se escreve acerca da vida<br />
intima dos que nos precederam atravez das cdades. Demais,<br />
este banquete do duque dc Lancastcr marcou cpocha, segundo<br />
referimos, entre os escriptorcs do tempo, e ainda entre os<br />
modernos 4 .<br />
Á tenda em que sc rcalisou a esplendente solemnidade<br />
chama Froissart um palacio. Ouro c sedas fulgiam de toda<br />
parte. Salas espaçosas succcdiam-se armadas <strong>com</strong> os riquís-<br />
simos panos, as armas e os bordados da casa dcLancaster*:<br />
«Dirias, prosegue o chronista, que o duque estava em Londres,<br />
ou em algum dos seus sumptuosos castellos de Inglaterra 3 .»<br />
No topo da mais vasta sala junclo á colgadura riquíssima<br />
que formava a parede, c ante um banco 4 , sobre o qual atlrahia<br />
vistas uma alcatifa de Flandres, erguia-se ao cimo de muitos<br />
degraus atapelados a alta mesa, ou mesa travessa, <strong>com</strong>o em<br />
Portugal diziam 5 . Sombreava-a em amplo cortinado um<br />
1 Veja-se entre outros Violei dc T)uc, Vicprivcc et publique dc la féodalilê.<br />
2 «Et ctoient... chambres, ct sallcs toutes parées de 1'armoiric et des<br />
draps de haute licc et dc broderic du duc.» Froissart, liv. m, cap. 3S.°,<br />
continuation.<br />
3 Froissart, loco citato.<br />
4 D'ahi se originou a palavra «banquete.» Veja-se nota ao capitulo se-<br />
guinte, pag. 151 e seg.<br />
à Ainda sc guardava esta fôrma nos refeitorios dos frades, sendo a mesa<br />
travessa occupada pelo principal d'entre cllcs, c pelos convivas mais gra-<br />
duados.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
sobrecco de brocado de ouro <strong>com</strong> as armas de Inglaterra,<br />
França c Castella esquarteladas a seda dc côres.<br />
161<br />
Aos lados sobre copciras gigantcas, ergucndo-se desde o<br />
solo em degraus cobertos de fina tela, ostentava-se entre vasos<br />
c preciosos crystaes riquíssima baixella de prata e ouro,<br />
sendo muitas das peças creste metal ornadas de pedras pre-<br />
ciosas ao uso do tempo f .<br />
Diversas credencias continham os mais delicados vinhos,<br />
fruetas e exquisitas especiarias \<br />
Archeiros de athlctica estatura, pertencentes á guarda<br />
especial do duque, velavam aquellas preciosidades. Armados<br />
de frechas, empunhavam o terrível arco dc seis pés de <strong>com</strong>-<br />
prido 3 .<br />
A fundo da sala avuliavam dois altos estrados. De um<br />
echoavam estrondosos os sons guerreiros de trombetas e<br />
alabalcs. Do outro ministreis e cantores alternavam variadas<br />
musicas.<br />
Todo o pavimento formava, segundo o eslylo já mencio-<br />
nado, um gracioso tapete de verdura natural juncada dc<br />
plantas odoriferas, e das mais bcllas flores 4 .<br />
1 Lacroix, Mocurs et usages, verbo Ameublcment; Mathieu dc Coucy,<br />
Chron., cap. 88.°, pag. 98.<br />
2 Pela dcscripcão que fazemos vê-se a diíTcrcnça entre copcira c crc-<br />
dcncia. Esta é de uso antiquissimo, c ainda hoje serve <strong>com</strong> o mesmo nome<br />
nas egrejas cerca do altar-mór. A copcira c o aparador moderno.<br />
3 Lingard, Ilistonj of England, tomo i.<br />
* Este aprazível uso ainda o auetor foi em sua juventude encontrar na<br />
ilha de S. Miguel, d'onde trouxe, c conserva, as mais gratas recordações.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 162<br />
II<br />
As flores constituíam desde os primeiros séculos adorno<br />
phantasioso das mesas. Encantando os olhos <strong>com</strong> o deslum-<br />
bramento das côres, enebriando os sentidos <strong>com</strong> a suavidade<br />
dos aromas, eram ellas parte integrante dos banquetes na-<br />
quelles tempos de sensualidade em tudo.<br />
A moda foi-se progressivamente desenvolvendo. Nos sé-<br />
culos xn c xni, além de cobrirem a toalha <strong>com</strong> folhas dc rosa,<br />
também de rosas se coroavam os convidados, e coroavam<br />
taças, gomis e copas No século seguinte ainda mais bri-<br />
lhante uso deram ás flores, formando <strong>com</strong> ellas sobre as mesas<br />
apostamentos ao natural, <strong>com</strong>o porlicos, templos c castcllos 2 .<br />
Com as cruzadas veio a moda de coberturas sobre as mesas.<br />
Deixando estas dc ser fabricadas de metaes preciosos 3 , pas-<br />
saram a ser cobertas de tapeçarias c dc tecidos de ouro 4 , a<br />
que cm Portugal chamavam á franccza bancáes.<br />
No século xv mais amplitude foi dada ainda áqucllcs ade-<br />
reços das mesas, executando-sc<strong>com</strong> fôrmas de assucar, fruetas<br />
cobertas, e até gesso colorido, brasões de armas, homens,<br />
animaes e outras figuras, tudo a alto relevo e a côres 5 .<br />
1 Scré, Nourriturcet Cuisine. Moycn-âgcet Rcnnais., tomoi, pag. Í8 vers.<br />
2 Scré, Moxjen-àge ct Rennaissance, loco citato.<br />
3 Ainda quando Pedro o cruel sc evadiu de Castella, avullava entre as<br />
riquezas que levava uma mesa dc ouro cravcjada de pedras preciosas, á qual<br />
sc attribuiam sobrenaturaes maravilhas. Estoutcville, Anciens Mim. de<br />
Duguesclin, cap. xvm, pag. 363, edit. Pctitot, tomo ív.<br />
4 Lacroix, Les arts au Moyen-àge, verb. Amcuhlement, pag. 13 c li.<br />
* Scré, loco citato.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 163<br />
Mciado o século, converteram-se as mesas em perfeitos<br />
monumentos de arte <strong>com</strong> as mais deslumbrantes invenções<br />
em fôrmas des<strong>com</strong>munaes e phantasticas. Ora similavam<br />
vasto templo, onde pessoas vivas representavam mystcrios,<br />
ou cantavam musicas ao som dc orgão c dc repiques de sinos.<br />
Ora em um lago espaçoso de agua natural bordado de cas-<br />
tellos e jardins vogava a todo panno uma nau modelada ao<br />
vivo. Ora uma floresta erguia suas arvores silvestres em meio<br />
da espessura povoada dc animacs ferozes movendo-se <strong>com</strong>o<br />
se vivos fossem. E assim por deante<br />
Em tão esplendentes acccssorios dispendiam-se fabulosas<br />
som mas.<br />
Antes dc <strong>com</strong>eçado o banquete era primordial ccrcmonia<br />
passarem os convivas ante as diversas mesas (que segundo<br />
dissemos corriam ao longo das paredes), a fim de examinarem<br />
as esplendencias dc cada uma 2 . O banquete dado em Lille<br />
(1453) pelo duque de Borgonha Filippe, o bom, e sua ter-<br />
ceira esposa Isabeau 3 de Portugal tornou-se lypo cm seu<br />
gênero \ Sabido é que a mais brilhante côrtc da Europa era<br />
1 Olivicr de la .Marche, Mémoires, tomo 11, cap. 29.°; Mathieu de Coucy,<br />
Chron., cap. 06. 0<br />
Veja-se Baudrillart, llist. du luxe prive ct public, tomom, liv. v, cap. 1,<br />
Les cnlremcts-spcctacles, pag. 477.<br />
2 Olivicr dc la Marche, loc. cit.; Mathieu dc Coucy, Chron., cap. 56.°,<br />
éd. Buchon, tomo 36.°, pag. 100.<br />
3 Assim lhe chamavam ao uso do tempo em Borgonha e França. Vide<br />
Les honneurs de la cour, par Alconor dc Poitiers.<br />
4 Lettrc dc maitre Jehan dc Molcsmc secretaire du duc de Bourgognc<br />
Philippc le bon. clatif à un entremets, ou fètc dc tablc, donné par le duc<br />
A Lille. Doe. inedits sur l'hist. dc France, tomo 4.°, pag. 457; Mathieu dc<br />
Coucy, Chron.; Michelct, llist. dc France, tomo v; Barante, llist des dues<br />
10
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
então a (lc Borgonha, onde <strong>com</strong>o rainha fulgia a gentil filha<br />
de D. João I.<br />
Mal o poderiam cuidar seu avô c seu pae, quando ses-<br />
senta c sete annos antes sc achavam reunidos no banquete<br />
sumpluosissimo também, cuja descripção histórica vamos<br />
fielmente reproduzindo.<br />
III<br />
O centro da mesa real, ou alta mesa, collocada de travez<br />
no topo da sala, segundo o uso, foi <strong>com</strong>o logar de primasia<br />
mediante a etiqueta ingleza offerecido pelo duque de Lan-<br />
caster ao rei dc Portugal l .<br />
Um pouco mais a fundo sentava-se o proprio duque lendo<br />
após si por peregrina dislineção, além dos tres bisposos<br />
dois condcstaveis: mosse João dc Ilolland, irmão de el-rei<br />
de Inglaterra, e D. Nuno Alvares Pereira 3 .<br />
de llourgogne, Lacroix c muitos outros tractaram d'csta sumpluosissima festa.<br />
O que porém mais amplamente a descreveu foi Olivicr dc la Marche em suas<br />
Memórias.<br />
1 «Lc roi dc Portugal au milicu dc la tablc ct lc duc dc Lancaster un<br />
petit au dessous dc lui.» Froissart, liv. III, cap. 38.°, contin.<br />
2 Neste tempo c principalmente em Inglaterra eram já os bispos tractados<br />
<strong>com</strong> muito menor consideração do que no século anterior durante a grande<br />
preponderância do alto clcro. Ainda porém não havia muitos annos o rei<br />
Carlos ^ dc França em um banquete oflcrccido no Louvrc ao imperador<br />
Carlos IV dera ao arcebispo dc Hhcims o primeiro logar acima d'elle rei, c<br />
do proprio imperador. «Premièremcnt sist l'archcvesque de Rcims, ct après<br />
sist 1'cmpcrcur, puis sist lc roi.» Christinc dc Pisan, Livre... du sage roy<br />
Charles, parte III, cap. xu.<br />
3 Froissart, loco citato.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
165<br />
Em pé ante el-rei servia-o de vinho o cavallciro dc sua<br />
côrte Lopo Fernandes Pacheco, filho do terriüco Diogo Lopes.<br />
Ao duque servia outrosim Thierry dc Soumairc, cavallciro dc<br />
Hainaul l .<br />
Ao correr da sala juneto ás paredes latcracs dilatavam-se,<br />
conforme invariavel uso de então, as outras mesas. O ccnlro<br />
da segunda foi em honra das sancías ordens da cavallaria<br />
reservado na falta dos respectivos mestres 2 para o <strong>com</strong>-<br />
mendador-mór servindo de mestre d Aviz, D. frei Fcrnão<br />
Rodrigues de Sequeira, futuro regente dc Portugal 3 . Scguia-<br />
sc-lhe o octogenário Diogo Lopes Pacheco, um dos mais<br />
repellentes caracteres d'aquelles tempos \<br />
Após o desprezível, mas não desprezado conselheiro estava<br />
1 O mesmo auetor.<br />
2 O mestre de Santhiago D. Fernando Affonso fallecera no Porto poucos<br />
dias depois de chegar dc Inglaterra. O mestre de Christus I). Lopo Dias dc<br />
Sousa achava-se doente em Thomar, c o mestre d'Aviz era ainda então o<br />
proprio D. João 1. Lopes, parte n, cap. 90.° c 100.°<br />
3 Era freire na ordem d'Aviz, c <strong>com</strong>o tal mui acceito ao mestre. Apenas<br />
este foi eleito rei contemplou largamente os que na adversidade o haviam<br />
seguido. Como tal foi Fcrnão Rodrigues nomeado <strong>com</strong>mcndador-mór, que<br />
era alto cargo da Ordem. O Mestrado reservou-o por então cl-rei para si.<br />
Foi o primeiro acto que inaugurou o systema de ccntralisação rcaccionaria<br />
estabelecido por I). João I, apenas se viu seguro no throno, c que os seus<br />
succcssores viriam ampliar cm progressiva escala até ao absolutismo puro.<br />
Fcrnão Rodrigues ficou regente do reino, quando vinte e nove annos depois<br />
I). João I partiu para a conquista dc Ceuta.<br />
4 Conselheiro dc AlTonso IV na morte de Ignez dc Castro, cvadiu-sc para<br />
Castella. D'ahi tomou armas contra a patria invadindo-a c atraicoando-a<br />
por mais dc uma vez. Voltou ao reino depois da morte dc D. Fernando, c<br />
foi um dos que as cortes dc Coimbra designaram para o conselho do novo<br />
rei.
130<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
seu filho João Fernandes Pacheco, que annos depois se ma-<br />
cularia lambem tomando contra a patria o serviço de Cas-<br />
tella 4 .<br />
Andados annos, peregrinando por differenles reinos de<br />
Europa a fim de se ir a Prússia guerrear infiéis sob a ordem<br />
theutonica, encontrou clle o celebre Froissart, c lhe Irans-<br />
mittiu, segundo o mesmo chronista refere, as minuciosas<br />
informações que a esle serviram de base para os interessantes<br />
capítulos em que historiou os successos dc Portugal \<br />
Seguiam-se aos Pachecos Vasco Martins de Mello, o velho 3 ,<br />
1 Lopes, parte 11, cap. 109.°<br />
2 Esle encontro
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
167<br />
Lopo Dias d* Azevedo , , Gil Vasques da Cunha, alfcres-mór,<br />
e os principacs senhores de Portugal.<br />
Á terceira mesa presidia o abbade dc Alcobaça, o celebre<br />
D. João de Ornellas 2 , estando após elle o prior dc Sancta<br />
Cruz dc Coimbra 3 , o camareiro-mór João Rodrigues de Sá,<br />
João Gomes da Silva copeiro-mór, Mem Rodrigues de Yas-<br />
concellos que ao depois foi mestre de Santhiago e outros<br />
muitos 4 .<br />
Estas e as demais mesas eram exclusivamente occupadas<br />
por cavalleiros c escudeiros portuguezes servidos uns e outros<br />
Martins a rainha D. Beatriz esposa dc João dc Castella, despediu-se dc seu<br />
serviço, quando o castelhano moveu guerra a Portugal. Vcjam-sc as Chron.<br />
dc I). Fernando e T). João I, por Fcrnão Lopes.<br />
1 Neto de Gonçalo Vasques d'Azevedo que pereceu cm Aljubarrota se-<br />
guindo os castelhanos, c bisneto dc D. Francisco Pires, prior de Sancta<br />
Cruz de Coimbra c de D. Tareja Vasques d'Azevedo, monja 110 mosteiro dc<br />
Lorvão. Arch. nacion. da torre do tombo, legitimação de Gonçalo Vasques<br />
d'Azevedo; Chanccl. de D. Fern., liv. 1, foi. 178; Soares da Silva, Mcnwr.,<br />
tomo 1, cap. xii, pag. 72, c tomo doe. n.° Nobiliario do condc<br />
1). Pedro, tit. o0.°, pag. 227, Nota C, edição Lavanha.<br />
2 Senhor dc quinze villas c dc dois castellos c fronteiro-mór de quatro<br />
portos dc mar. Era grão parcial dc D. João 1, cujo pendão alçara cm todos<br />
os senhorios da ordem. Enviou a Aljubarrota valioso soccorro de homens<br />
dc armas caudilhado por seu proprio irmão Martim d'Ornellas, c deu hos-<br />
pedagem principcsca a el-rei c aos seus cavalleiros, quando depois da victoria<br />
sc dirigiram ao mosteiro dc Alcobaça. As particularidades da hospedagem<br />
podem ver-sc cm Sanctos, Alcobaça illustrada, tit. xi.<br />
3 Era D. Vasco Martins, filho dc Martim Affonso dc Sousa, senhor dc<br />
Bayão, c irmão dc AlTonso Martins, escrivão da puridade de el-rei, e vedor<br />
da rainha 1). Filippa. Frei Nicolau dc Sancta Maria, Chron. dos Conegos<br />
lie gr antes, liv. ix, cap. 23.°<br />
4 Froissart, loco citato.
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
<strong>com</strong> grande ccrcmonial pelos senhores e barões dc Ingla-<br />
terra l .<br />
Pode calcular-se a profusão das iguarias, e a sumptuosi-<br />
dade do bancpicte.<br />
Prosigamos em sua descripçâo.<br />
1 Kroissart, ut supra.
CAPITULO XVIII<br />
SUMMARIO.—Banquetes; origem (Veste nome.—Foram servidos a cavallo.<br />
—Sala des<strong>com</strong>munal.—Franca entrada ao povo.—D. João II e as festas<br />
dc Évora.—O cavalleiro do cysnc. —O rei actor diverte os subditos.—<br />
Rapida transformação.—I). Manuel.—Os autos dc Gil Vicente c os para-<br />
sitas da côrtc. — Proscripção das classes trabalhadoras. — Uma ccia nos<br />
paços de D. João I. — Dádivas trazidas a cavallo.—Serviços das mesas.<br />
—Prcstito á sala. — Prescntação das iguarias. — A côrtc dc Borgonha<br />
modelo para as festas cm Portugal. — O entremes, parte integrante dos<br />
banquetes. — Historia sagrada e profana. — Pantomimas e histriões.—<br />
Justas a cavallo dentro na sala.—Autos cm tablado.—Donas e galantes.<br />
—Danças c mascaradas.—Osjograes; pcricia dos porluguezcs.—O duque<br />
de Lancastcr cm acampamento militar.—Intermédios musicaes.—Grati-<br />
ficação a menestreis c arautos. — A grita do estylo. — Fructas c vinhos,<br />
0 cafc de nossos dias. — Despedida.<br />
I<br />
Era usança invariável durante a edade-media que cm<br />
Iodas as <strong>com</strong>idas dc apparato os convivas, incluindo os que<br />
na mesa do topo occupavam o logar proeminente, se assen-<br />
tassem á mesa cm bancos. Dahi veio ás solemnes refeições<br />
o nome de banquete ainda hoje cm voga.<br />
1 Legrand d'Aussy, Vie privée fies français; Louandrc, Amcublcmcfít<br />
civil ct rcligieux, Moyen-d gc et Rennaissancc, tomo iv; Lacroix, Les arís<br />
au Moyen-âge, pag. 5.<br />
Sendo as mesas collocadas juneto ás paredes c tendo então as cadeiras
JK4 D# JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
1 Om<br />
Também nos brilhantes períodos d'aquclla edade eram as<br />
grandes festas culinarias servidas a cavallo l . Realisavam-se<br />
de ordinário em sala des<strong>com</strong>munal 2 que para esse eífeilo<br />
existia construída no plano térreo dos paços reaes 3 . Quando<br />
a não havia aposta, fabricavam-iva ad hoc.<br />
Assim practicou cm Portugal D. João II mandando ale-<br />
vantar juneto aos paços dc Évora a famosa sala de madeira.<br />
Em Lisboa havia uma permanente nos paços d'Alcaçova 4 .<br />
fôrmas amplíssimas, tornavam-sc os bancos necessidade imperiosa naquellas<br />
solemnidades. Não admitlia, porque não podia admiltir, cxccpção esta regra<br />
geral, <strong>com</strong>o c dado verificar nas Memórias c chronicas dc todos os Estados<br />
durante a edade-media, c posteriormente.<br />
1 Lacroix, Moeurs et usages au Moyen-âge, verb. Nourriture ct cuisine,<br />
pag. 191, 3/ cd.; Baudrillart, tomo m, liv. v, cap. i, pag. 461.<br />
Assim succcdeu cm França na coroação dc Carlos VI e no banquete dado<br />
cm Cambrav pelo mesmo rei para solcmnisar as nupeias dc seus primos, os<br />
filhos do duque dc Borgonha. Froissart, liv. III, cap. 79.°<br />
Das diversas cortes foi progressivamente desapparecendo aquclla usanea,<br />
c veio só a conscrvar-se em Inglaterra na coroação dos reis até Jorge IV.<br />
Buchon, nota a Froissart, tomo ix, pag. 55.<br />
2 «On ne s'étonncpas des dirnensions extraordinaires données aux grandes<br />
salles... lorsqu'on voit qucl était le nombre dc personncs qu'il y fallait<br />
reunir.» Viollct lc Duc, Vie privee dc la fcodalUé françaisc, Diction. du<br />
mobilicr, tomo i, pag. 366.<br />
3 Nesta sala cm Westminstcr cclebravam-se os banquetes da coroação dos<br />
reis. O duque de Lancaster <strong>com</strong> os primeiros do reino serviram a cavallo<br />
a mesa dc Ricardo II por entre innumcra multidão de povo. Walsingham,<br />
Historia brevis, pag. 197, n.° 53.° S. Luiz, querendo solcmnisar a reunião<br />
magna dos grandes vassallos dc sua corôa cm Saumur, festejou-os <strong>com</strong><br />
esplendido banquete, c para local escolheu o mercado publico. Sirc dc<br />
Joinville, Ilist. dc S. 1 Loys, collcct. Pctitot, prcmicrc série, tomo II,<br />
pag. 411.<br />
4 Rezende, Chron. dc D. João II. cap. cxm. Relação da embaixada de<br />
Filippe o bom a Portugal. Auetor anonymo.
BANQÜKTE SOLEM<br />
Tioihl-lcDuc, Dictionnaire du Mobitier, Cours,féics ct banqueis, pag. 3CK), dcuxicmc edition.
D O SÉCULO XIV<br />
c\Z AltC v f " nccionílrios transportam a cavallo as cguarias — O trinchantc oflercce-as de joelhos — Aos dois<br />
rn Í ,rcnl< _ varlctes servem vinhos e egiiarias No alto tribunas para os espectadores— Ao centro<br />
cm lc< l uc — Ante a meza real vac representar se um entremez, vendo se â direita algumas das figuras
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 153<br />
Franca entrada se dava naquelles banquetes ao povo que,<br />
já <strong>com</strong>o espectador, já <strong>com</strong>o actor, era parte integrante em<br />
todas as festividades medicvacs. Ao depois, <strong>com</strong> o renasci-<br />
mento. veio o absolutismo dos reis, o isolamento das côrtes<br />
palacianas, c a proscripção das classes trabalhadoras.<br />
Em Portugal ainda aos cidadãos de Évora franqueou<br />
1). João II livre acccsso nas grandiosas festas, <strong>com</strong> (pie<br />
solemnisava o consorcio de seu único filho, c onde o proprio<br />
monarcha apparccia aos olhos de seus subditos invencionado<br />
no fictício personagem do cavalleiro do cysne.<br />
Não era então o rei que assistia aos cspectaculos. Des-<br />
empenhava o papel dc actor para divertir o seu povo.<br />
Sob o sceptro gravoso dc D. Manuel tudo mudou. Res-<br />
tringidas ficaram as solemnidadesfcstivaes ao interior do paço,<br />
e abi mesmo aos proprios autos dc (lil Vicente concorriam<br />
tão só as damas da rainha, os oíliciaes móres da casa real,<br />
e os parasitas que formavam a côrtc. As demais classes, as<br />
(pie em si continham já as forças vilães da nação, e que ao<br />
deante abarcariam pelo trabalho o dominio da sociedade<br />
inteira, proscrcvera-as mediante as idèas auctorilarias do<br />
tempo o absolutismo exclusivista do rei suspeitoso.<br />
0 mesmo pela evolução que o renascimento ia gradual-<br />
mente operando se dava então nas diversas córles da Europa<br />
citilisada l .<br />
Não fôra assim na quadra que buscamos aqui historiar.<br />
Ainda então o povo a<strong>com</strong>panhava cm as solcmncs festivi-<br />
1 «La royaulé se faisant moins populairc dcviciit plus rctiréc ct plus<br />
solcinncllc. Ellercnfcrmc ses fètcs dans les magnifíques palais, ou les fcmmcs<br />
et les courtisans parés sc livrcnl à de pompeux divertissements loin de tout<br />
mélange populairc.» Baudrillart, tomo ni, liv. v, cap. 2.°, § 2.®
130<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
dades o rei por elle escolhido. Ainda então lhe dava este<br />
ampla entrada em seus paços, c ainda durante a sumptuosa<br />
ceia <strong>com</strong> que na alcaçova dc Lisboa festejava o mesmo<br />
1). João I o consorcio dc sua filha, a infanta D. Isabel duqueza<br />
de Borgonha, foram á sala trazidas a cavallo grandes dadivas<br />
e larguezas, mandadas segundo uso do tempo distribuir pelo<br />
infante D. Duarte herdeiro da coroa aos trombetas c menes-<br />
treis que durante o banquete cnsoavam musicas l . Assim o<br />
refere narração contcmporanca de subido apreço historico,<br />
descrevendo usos mui curiosos da côrtc portugueza naqucllcs<br />
tempos á .<br />
II<br />
As altas solcmnidadcs culinarias dividiam-se então em<br />
grandes serviços, aos primeiros dos quaes chamavam inèls 3 ,<br />
e cm Portugal cobertas \ Cada serviço era nos-paços de reis<br />
1 «Nesta ceia deu o senhor infante primogênito grandes dadivas e lar-<br />
guezas aos frautistas e menestreis, as quaes foram trazidas a cavallo, e alta-<br />
mente publicadas por toda a sala; c tocaram mui concertadamentc as trom-<br />
betas c outros instrumentos.» Relação da embaixada de 1'ilippc o bom a<br />
Portugal para o casamento <strong>com</strong> a infanta D. Isabel. Iiibliothcca Nacional<br />
dc Paris casa dos ms, codicc n.° 11:21o. Santarém, Quadro elem., tomo III,<br />
pag. 43. Veja-sc o anterior capitulo.<br />
2 Encontra-sc a íntegra do notável documento cm Gachard Collcctfon dc<br />
documenls inedits sur ihistoirc de lírigiquc, tomo 2.°, pag. 3 a 91. Veja-sc<br />
a nota supra.<br />
Esta narração, escripta por um dos que a Portugal a<strong>com</strong>panharam os<br />
embaixadores, vem também copiada em Santarém, Quadro elem., loc. cit.<br />
c acha-se na Bibliothcca Nacional dc Paris, <strong>com</strong>o dissemos.<br />
3 «Au xiv sicclc les premiers scrvices d'un repas s'appcllaicnt mèls.»<br />
Lacroix, Mocurs, verb. Xnurriturc, pag. 180.<br />
5 Nos banquetes rcaes era uso cm signal de respeito irem á mesa as
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 177<br />
c príncipes <strong>com</strong>posto dc muitas iguarias, c ao som dc estri-<br />
dentes musicas trazido á sala <strong>com</strong> a maxima solemnidade.<br />
Vinham deante os trombetas, atabales e o corpo dos menes-<br />
treis.Em seguida, porteiros <strong>com</strong> suas massas dc prata. Logo<br />
os passavantes, arautos e reis de armas envergando as cotas<br />
bordadas <strong>com</strong> as armas do reino. Após estes os pagens e<br />
escudeiros. Os altos funccionarios da casa (oíliciacs-móres)<br />
descobertos todos afora o mordomo-mór. Seguiam dois ren-<br />
ques de moços da camara levando em copas des<strong>com</strong>munaes<br />
as iguarias mais des<strong>com</strong>munaes ainda em formas e quanti-<br />
dades.<br />
Chegados ao alto da quadra, c feitas aos príncipes as<br />
mesuras do cstylo, dividiam-se os servidores em turmas apro-<br />
ximando-seás respectivas mesas, e os que a estas especial-<br />
mente assistiam. presentavam as iguarias. A mesma solemni-<br />
dade, que assaz longa era, guardava cada coberta que á sala<br />
vinha l .<br />
Posteriormente foi uso trazerem aquellcs serviços cm<br />
carros artisticamente invcncionados.<br />
Assim se praclicou em Flandres no já referido banquete<br />
de Lille -. O mesmo cm parte viu Portugal nos decantados<br />
festins de 1). João II: «E lo^o A entrada da mesa vevo huma<br />
çj<br />
grande carreta dourada... traziamna dous grandes boys<br />
iguarias cobertas. IVahi veio em Portugal o nome aos diversos serviços.<br />
Adulterada depois a fôrma d*estes, ficou todavia o nome, até que a moda<br />
inda hoje usada veio supplantar o serviço por cobertas. Este existia ainda<br />
no principio do actual século.<br />
1 «Era tamanha ccrcmonia que duraua muito cada vez que hião á mesa.»<br />
Garcia de Rezende, Chron. de I). João II. cap. cxxiv.<br />
2 «Et étoient les piais du rosl chariots ctofés d'or et d'azur.» O. de la<br />
Marche, Mcmoir., pag. 170, edit. Petitot.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 178<br />
assados inteiros <strong>com</strong> as maôs c pés dourados. Os boys<br />
parcciaõ viuos e que andauaõ '.» Extraordinário cm tudo,<br />
o filho de AlTonso V modelou em as apparatosas solemnidades<br />
daquellc banquete, dado por seu tio o .duque de Borgonha,<br />
as grandiosas festas <strong>com</strong> que em Évora celebrou o casamento<br />
de seu único filho 2 . Taes <strong>com</strong>o estas, escrevem os contem-<br />
porâneos, nunca ate então houvera cm toda Hcspanha.<br />
III<br />
Em quanto os convidados saboreavam os manjares; isto é,<br />
entre serviço e serviço, entre mets, representava-se o entremez.<br />
Dalii lhe veio o nome, applicado entre nós <strong>com</strong> o volver dos<br />
tempos a certo gênero faceto de diversões theatraes.<br />
Eram então os entremezes parle integrante dos banquetes<br />
1 Rezende, Chron. dc I). João II, cap. cxxiv.<br />
2 íi a primeira vez que sc escreve esta asserção. Mas quem cotejar as<br />
historias dc la Marche c Coussy <strong>com</strong> as chronicas dc Ruy de Pina c Rezende<br />
encontrará a cxactidão do que aflirmamos. Os entremezes nos paços dc Évora<br />
e a sua fôrma; os momos (mascaradas) cm que os principaes senhores dc<br />
Portugal vinham invcncionados; o gigante no cortejo, precursor das justas;<br />
a grande nau ao natural; o cysnc precedendo o mantenedor, e mil outros<br />
episodios naquellas festas foram exclusiva introducção flamenga. Como o<br />
mantenedor cm Bolonha intitulado: o cavalleiro do cysnc, tomou I). João II<br />
este mesmo nome dc seu tio Adolpho de Clèves. O cysnc cm Évora vogando<br />
nas aguas era <strong>com</strong>o o cysnc de Lille desafiando as justas; c assim por deante.<br />
Houve alguma variação de fôrmas, attenta a diflerença dc costumes entre<br />
as duas nações, c sobre tudo o resguardo tradicional cm que eram na côrtc<br />
portugueza tidas as senhoras. A csscncia porem mantinha-se idêntica.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 179<br />
de apparalo para goso, ou edificação dos assistentes Sym-<br />
bolisavam a principio qualquer facto da historia sagrada, ou<br />
profana, e nesse caso figura vam-no em pantomima 2 os jograes<br />
em meio da sala 3 . Outras vezes era o entremez <strong>com</strong>posto de<br />
justas reacs corridas a cavallo dentro na própria sala do<br />
banquete pelos mais ardidos guerreiros 4 .<br />
Posteriormente vieram os autos representados, não já em<br />
meio da quadra, senão cm tablado ao fundo <strong>com</strong> sccnario e<br />
vestes adequadasTambém as mais nobres donas e galantes<br />
da côrte formavam então danças ou cantatas <strong>com</strong> luzido<br />
esplendor 6 .<br />
Ainda outras vezes fôra o entremez preenchido já porchufas<br />
etregeitos dcchocarreiros chistriões.já por momos de caval-<br />
leiros selvaticamcnlc invcncionados 7 , já pelos jogos de saltar<br />
1 «Cos cnlrcmcts spectacles sont lc plus grand elTort du luxe des festins<br />
dans ccttc sccondc parlic du moyen-àgc.» Baudrillart, tomo III, li\. v, cap. i,<br />
pag. 480.<br />
2 Rcnan, Discours sur Vliistoire des heaux arts en France au xir sièclc,<br />
pag. 292.<br />
3 «Os jograes podem ser considerados <strong>com</strong>o os primeiros actorcs das peças<br />
profanas.» I.ouandre, Moycn-agc ct renaissancc, tomo iv, verb. Théatre,<br />
pag. 90.<br />
4 Assim succcdcu cm Franca por occasião do casamento dc Carlos VI:<br />
«Le roi, diz Froissart, scant à lable... entrerent en la sallc... dcux chcvalicrs<br />
montes aux chevaux, armes dc toutes picces pour lajoute... ct là joutòrent<br />
fortement.» Chron., liv. m, cap. i.<br />
5 01i\icr dc la Marche, Mcinoircs, tomo 11, cap. xix, pag. 157, cd. Pctitot.<br />
6 O mesmo auetor.<br />
: Estas mascaradas grotescas appareccram cm Lisboa nos paços d'alca-<br />
çova durante a ceia solcmnissima a que nos referimos, dada por D. João I.<br />
Diz a Memória retro citada: «Ilouve um que \eio cllc c seu cavallo todo<br />
coberto dc espinhos, <strong>com</strong>o dc porco espirn; outro que veio a<strong>com</strong>panhado dc
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 180<br />
c trepar em cordas 1 por homens das mais desprezíveis classes,<br />
c que aliás sc haviam <strong>com</strong> a summa perícia a que chegara<br />
aquella arte na era a que nos estamos referindo. Portuguezes<br />
houve então que cm tal arte se tornaram insignes.<br />
Como espccimen conceda-nos o leitor que ao voar da<br />
penna lhe presentemos um frisante exemplo. Menciona-o o<br />
celebre Matheus de Coucy exaltando em pleno século xv a<br />
pcricia de um jogral portuguez. Compatriota nosso, embora<br />
humilde, lancemos um volver dc olhos sobre as proezas que<br />
reaiisou ha quatrocentos annos, e que «espantaram a Eu-<br />
ropa,» diz emphaticamenle o experimentado Lacroix \<br />
Eis o caso:<br />
Por Milão acertavam de passar cm missão ao Papa mais<br />
de cinco annos após o rendimento do império byzantino<br />
(1459), embaixadores do faustoso duque de Borgonha Fi-<br />
lippc o bom, marido, <strong>com</strong>o temos referido, dc Isabcau dc<br />
Portugal, filha de I). João I, c — dc passagem seja dicto—<br />
uma das mais ciumentas esposas que tem enfadado o mundo 3 .<br />
sete planetas, cada um figurando segundo sua propriedade. Outros muitos<br />
vieram graciosamente adereçados <strong>com</strong> suas divisas, cada um segundo seu<br />
prazer.» Mss da Bibliothcca Nacional dc Paris supra citado. Gachard,<br />
documents inédits, tomo m.<br />
1 Lopes, parte n, cap. 96.°<br />
2 «Un spcctaclc... dans la villc dc Milan... dont 1'Europc enticre fui<br />
émerveillee.» Lacroix, Moeurs et ttsages, verb. Jeux, pag. 2Í8.<br />
3 «Avoit este la plus soupsonncusc Dame qu'il eust iamais congnuc.»<br />
F. de Commincs, Alcmoircs, liv. i, cap. i.<br />
«Este Duque le dió bastante ocasion a su Duqucsa pera ser sospcchosi-<br />
sima, porque el fué incontinentisimo.» Vitrian traduc. dc Commines, liv. i,<br />
cap. i, cscolio IL<br />
Além de casado por tres vezes teve dezcsctc filhos naturaes. Art dc verifier<br />
les dates, pag. 675. édit. dc 1770.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 159<br />
0 primeiro desses embaixadores era João duque de Clèvcs,<br />
cunhado de Beatriz de Coimbra l , sobrinha da referida du-<br />
queza. c filha do nosso infante D. Pedro, o de Alfarrobeira<br />
Tinha por objcclivo a embaixada libertar Constanlinopla<br />
organisando-se mediante os desejos do Summo Pontífice, que<br />
era o celebre iEneas Silvius (Pio 11), a grande expedição<br />
christã iniciada pelo duque no famoso banquete de Lille.<br />
Reinava então no Milancz o duque Francisco Sforza, o<br />
qual ostentando a mais esplendeu lc hospedagem, agasalhou<br />
os embaixadores, e d entre as contínuas diversões <strong>com</strong> que<br />
os festejou avultava esta do jogral portuguez.<br />
Traclando-se de <strong>com</strong>patriota nosso, não devemos abslcr-nos<br />
de transcrever as próprias palavras do chronista flamengo:<br />
«Icelui duc de Milan fit tendre une corde de travers de<br />
son dit palais environ dc 150 piedsdehauteur et delongueur,<br />
et là fui veu un Portingalois qui monta sur la dite corde, et<br />
chemina sur icclle loul droit, puis alia à rebours, fil les hon-<br />
neurs à genoux, s'assit et se leva sur un pied, dansa sur<br />
icclle corde au son du tabourin, sc pendit à la dite corde,<br />
la tète dessous, et fit sur icclle corde toules les habilites que<br />
lonpourroitdeviser,tellement que lesdamesmuchoientleurs<br />
ycux de grand paour que il ne se tuast 3 .»<br />
1 Davam-lhe este nome na corte dc Flandrcs derivando-o do titulo dc seu<br />
pac, duque de Coimbra. Vcjam-sc O. dc Ia Marche, Coussy c outros escri-<br />
ptores flamengos.<br />
2 Assim chamado cm Portugal depois da sua tragica morte juneto aquelle<br />
rio. F. Luiz de Sousa, Ilist. dc S. Domingos, tomo I.<br />
3 Mathicu dc Coucy, Chroniqucs, cap. 12(i.°, edit. Buchon, tomo 3G.°,<br />
P^g. 318.
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Rclcvc-nos o amor proprio nacional esta digressão, embora<br />
rápida, acerca do obscuro funambulo que extrangeiros cele-<br />
bravam ha quatro séculos, e dc (pie em sua própria terra<br />
não existia até agora o minimo vestígio.<br />
Prosigamos.<br />
Os laços que, segundo notámos, ligavam o duque dc Clèves<br />
á filha do infante 1). Pedro, o de Alfarrubeira, haviam a se-<br />
guinte origem:<br />
Em extremo queria a duqueza de Borgonha ao antigo<br />
regente de Portugal seu irmão, porque, afora a consangüi-<br />
nidade intima que os unia, pedira clle á rainha D. Filippa,<br />
mãe dc ambos, que por morte desta fossem á infanta doadas<br />
as terras que a rainha possuía l .<br />
Morto D. Pedro, confiscados seus bens, c ficando ao des-<br />
amparo a família, a duqueza requereu a D. AlTonso V que<br />
lhe enviasse os filhos dc seu irmão. Superadas certas diífi-<br />
culdadcs, partiram para Flandres (1450-1451) D. Jayme,<br />
D. João c 1). Beatriz \<br />
Acolheu-os a extremosa infanta <strong>com</strong>o pode suppór-se 3 .<br />
e casou a sobrinha <strong>com</strong> Adolpho de Clèves senhor dc Ra-<br />
vastain, irmão do duque embaixador \<br />
1 «O infante I). Pedro disse á rainha: Senhora se vossa mercê fosse a my<br />
parecia bem chamarem a Elllcy & lhe pedirdes que as terras que tendes<br />
haja por bem dalas á Infanta.» Azurara, Chron. de D. João I, parte m,<br />
cap. 42.°<br />
2 Ruy dc Pina, Chron. dc D. Afíonso V, cap. 127.°<br />
3 «Les rcccut le bon duc et Ia duchesse... cn grand pitié dc leur éxil.»<br />
Olivicr dc la Marche, Mémoires, cap. xxn, pag. 57, édition líuchon.<br />
4 Soares da Silva, Memórias dc I). João I. liv. i,*cap. xiv, pag. 373;<br />
Sousa, llist. geneal. da casa real, tomo í; Olivicr dc Ia Marche, Mémoires,<br />
loco citato.
D. JOÃO I E A A LI, t ANCA INGLEZA 104<br />
Eis as causas do parentesco alludido.<br />
Esla princeza, neta de nossos reis, e pelos chronistas<br />
flamengos denominada após o seu casamento Madame de<br />
Ravastain l , foi parte integrante no esplendido banquete dc<br />
Lillc, tendo logar na mesa ducal, c ao serão representando<br />
em 11111 mysterio o papel de caridade 2 .<br />
Neste mysterio entravam doze damas vestidas em cotas<br />
de setim carmesim <strong>com</strong> guarnimentos de finas pellcs, e co-<br />
bertas <strong>com</strong> mantillias redondas dc tela branca á moda de<br />
Portugal \<br />
/<br />
E para notar que um uso porluguez creassc moda na<br />
côrte então a mais elegante da Europa, c cm dia de tal sole-<br />
mnidade.<br />
De passagem notaremos que a practica de sc occultarem<br />
as senhoras sob a veste que as cobria permaneceu em Lisboa<br />
ate ao marquez de Pombal 4 . Na ilha de S. Miguel ainda o<br />
auetor encontrou este uso geralmente estabelecido <strong>com</strong> o<br />
celebre capello.<br />
Volvamos ainda ao interrompido banquete cio duque dc<br />
Lancaster.<br />
1 Teve um único filho, Filippe dc Ravastain, ao qual D. João II dc Por-<br />
tugal arbitrou, <strong>com</strong>o parente, uma tenra de 400:000 rcaes brancos. Archivo<br />
nac. da tone do tombo, livro dos Mistieos, pag. 145. Sousa, Ilist. geneal.,<br />
liv. in, cap. II, § 4.°, c Provas ao livro III, doe. 22.<br />
2 M. dc Coucy, Chron., cap. 88.°; Olivicr dc la Marche, cap. xxix,<br />
pag. 187.<br />
3 «Et avoyent un atour tout rond, à la façon dc Portugal... ct furent<br />
leurs \isagcs couvcrts du volet.» 01i\icr de la Marche, loco citato.<br />
* Ja<strong>com</strong>c Katton, Memórias sobre algumas occorrcncias do seu tempo.<br />
11
130 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
IV<br />
Muitas das diversões culinarias que deixámos descriptas<br />
sob o nome gencrico de entremezes haviam sido opportuna-<br />
mente usadas na magnificente côrte dos reis inglezes. É todavia<br />
para notar que nem todas as que então eram de moda podiam<br />
ter-se eíTcituado, nem as chronieas affirmam que o houveram<br />
sido na solemnidade a que nos reportamos.<br />
O duque, máo grado ao des<strong>com</strong>munal apparato que usava<br />
ostentar, achava-se então mui longe de sua patria, em acam-<br />
pamento militar fora do povoado, e no extremo de duas pro-<br />
víncias extranhas, onde falleciam as victualhas e provisões<br />
das grandes cidades.<br />
0 que porém não ha duvidar é que os intermédios (entre-<br />
mets) do grandioso banquete foram preenchidos <strong>com</strong> estri-<br />
dentes musicas c festins de tangedores e ministreis f ; e que<br />
o numero d'estes subia mui alto prova-o Froissart mencio-<br />
nando que por ellcs e pelos arautos mandou então o duque<br />
distribuir duzentos nobres dc oiro 2 .<br />
Dadivas (Feste genero ao terminar dos banquetes medievaes<br />
eram usança obrigatoria, e realisavam-sc <strong>com</strong> estrondosa<br />
pompa 3 . Assim succedeu então.<br />
1 «Le diner fut grand, et hei, ct bien estoufle dc toutes choses, et y ot<br />
là grand foison dc mcneslricux qui Orent leur méticr.» Froissart, liv. m,<br />
cap. 38.°, continualion.<br />
2 Froissart, loco citato.<br />
3 «Se doit la largcssc crier quand ils sont à diner, quand le segond cours<br />
ct entremais sont servis.» Ms inglez: Du devoir ct dc Vofjkc des hcraulds<br />
apud Ducangc: Dissertations sur Vhistoirc de SLoys du sirc dc Joinville,<br />
collection Petitot, première serie, tomo m, pag. 101.
I). JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 163<br />
Findo o ultimo serviço, a que também, chamavam entre-<br />
mez l , o mordomo-mór da casa de Lancaster, assomando em<br />
meio da sala, precedido por todos os gentis homens e pelas<br />
numerosas classes de varletes c serviçaes, chamou solemnc-<br />
mcnle o primeiro dos arautos inglezes, e entregando-lhe a<br />
dadiva do duque 2 , c cru seguida aproximando-se da mesa<br />
real, onde este sc achava, proclamou em alta voz a genero-<br />
sidade do dador <strong>com</strong> o pregão do estylo 3 .<br />
Em desordenada grita irromperam então os agraciados<br />
soltando o usual brado: largueza, larguezac repetindo-o por<br />
diversas vezes foram assim atroando os ares ao longo da<br />
sala 5 .<br />
Após esta ccremonia essencialmente alheia aos tempos de<br />
hoje, mas inseparável, <strong>com</strong>o dissemos, dos banquetes mc-<br />
1 Este serviço era o mais sumptuoso nos banquetes. Compunham-n'o<br />
cremes e gclcas dc côres <strong>com</strong> as armas do dono da casa c dc outros cm<br />
relevo, faisões, pavões c cysnes <strong>com</strong> as próprias pcnnas ao natural c bicos<br />
c pés guarnccidos dc oiro, c postos cm meio da mesa sobre uma espccic dc<br />
estrados que cm Portugal chamavam pratos montados; designação que ainda<br />
hoje existe. Pichon, Ménagier dc Paris, introduetion; Scré, Moyen-âge et<br />
Rcunais., tomo i, verb. Nourriture et cuisine, foi. XLIII verso; Lacroix,<br />
Mocurs, ctc., verb. Nourriture, etc., pag. 181; Lcgrand d'Aussy, Tieprivéc,<br />
tomo m.<br />
2 «Et doit le grand maitre dc 1'hostel en une aumuchc ou sachet honno-<br />
rable appcller lc hérauld lc plus notablc, ct lui dirc: Vc cy que Monscigncur<br />
vous présente.» Ms inglez, loco citato.<br />
3 O pregão era o seguinte : «Largueza, largueza, largueza do muito alto<br />
c muito poderoso senhor João dc Gaunt, rei dc Castella e Leão, duque dc<br />
Lancaster.» Ms inglez, ut supra.<br />
4 «Tous heraux doivent cricr apres lui largcsse sans dirc antro chosc, ct<br />
en plusicurs licux au long dc la sallc doit estre fait en tcllc manicrc que<br />
chascun Toe.» Ms inglez, loc. cit.<br />
b «Dont ils crioicnt largcsse à plcincs gueules.» Fioissart, loc. cit.
130<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
dicvaes, <strong>com</strong>eçaram os variados serviços do que hoje cha-<br />
maríamos sobre-mesa, c eram não menos de tres \ findos os<br />
quaes, novas especiarias c particulares vinhos foram ainda<br />
presentados aos convivas, depois que estes havendo recebido<br />
agua ás mãos e dado graças sc levantaram das mesas. Em<br />
geral este serviço não o traziam á sala os creados, e por isso<br />
lhe chamavam «serviço de camara» 2 . Era <strong>com</strong>o o café de<br />
nossos dias.<br />
Assim terminou ao cabo de muitas horas o banquete inglez,<br />
c<strong>com</strong> clle a reunião dos dois alliados. Nove dias durara esta.<br />
1 Vinham no primeiro fruetas (cm fôrmas dc altas pyramides), <strong>com</strong>potas,<br />
amêndoas, grangeias, doce dc todas as qualidades. Compunham o segundo<br />
ohreias, fofos, biscoitos ligeiros e vinhos doces. Era formado o terceiro dc<br />
especiarias destinadas a favorecer a digestão c a<strong>com</strong>panhadas dc malvazia c<br />
vinhos aromaticos. Pichon, Ménagier de Paris, introduetion; Lacroix,<br />
Moeurs, etc., verb. Nourriture, pag. 184; Lcgrand d'Aussy, llist. dc la<br />
vic privée des français, tomo m; Serc (Ferdinand), Moyen-dgc et Remais..<br />
verb. Nourriture et cuisine. As obreias c fofos remontam a muitos séculos<br />
dc antigüidade. Havia-os já no século xm. Seré, loc. cit.<br />
2 Ao rei ou á mais qualificada pessoa que alii se achava offcrcciam-n'o<br />
os mais distinetos d'cntrc os presentes. O primeiro trazia a toalha, o se-<br />
gundo o cofre dos doces c confeitos, o terceiro presentava a frueta c o quarto<br />
os vinhos. Assim vieram a practicar annos depois os filhos dc D. João I ser-<br />
vindo o infante I). Duarte no sarau depois do casamento d'este. Veja-se a<br />
interessante carta do infante D. Henrique a seu pae inserta no tomo vi das<br />
Provas á hist. gencal. da casa real, pag. 350 ». Pichon, Ménagier dc Paris,<br />
loc. cit.; Lacroix, Moeurs ct usages au Moycn-dge, verb. Nourriture ct<br />
cuisine, pag. 184.<br />
» «O infante D. Duarte foi servido de vinho e fruita por nós outro?. O infante D. Pedro<br />
levava o pano, e eu o confeitciro, e o infante D. Fernando a fruita c o conde o vinho.» Carla<br />
ut supra. Coimbra, 22 dc setembro dc 1 Íi8. Sousa, Provas, loco citalo.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 165<br />
A Galliza volveu João de Lancasler l . Caminho do Porlo foi<br />
<strong>com</strong> os seus o rei dc Portugal 2 .<br />
A ambos cabia agora o imperioso dever de quanto antes<br />
realisarem as condições do pacto recente a que se achavam<br />
adstrictos.<br />
Em primeiro logar vejamos quaes eram essas condições.<br />
1 Conforme a etiqueta do tempo o condcstavcl D. Nuno Alvares, seguido<br />
dc cem lanças, a<strong>com</strong>panhou largo espaço o duque no seu regresso da fron-<br />
teira portugueza. Froissart, liv. in, cap. 38.°, continuation.<br />
2 Lopes, parte II, cap. 9i.°
CAPITULO XIX<br />
SUMMARIO.—Confederação entre o duque dc Lancastcr c I). João I.—Soc-<br />
corro valiosissimo outorgado por este.—A corôa dc Portugal a I). Filippa.<br />
—As concessões do duque.—Reciprocidade cphcmcra.—A conquista de<br />
Castella c a inacção dos alliados.—El-rei dissimula em casar-se.—Que<br />
motivos?—A lenda do Barbadão.—Dois filhinhos.—Os votos sacros c a<br />
dispensa dc Roma.—Inglaterra cm crise.—Froissart e as tergiversações<br />
dc cl-rci.—Correm os dias.—A palavra dada.—O duque dc Lancastcr<br />
não c o conde de Cambridge.—Solução urgente.<br />
I<br />
Mediante a confederação que nas ribas do Minho acabavam<br />
de firmar os novos alliados obrigara-se I). João I a servir em<br />
continente os interesses do duque de Lancastcr, entrando por<br />
Castella <strong>com</strong> um exercito de duas mil lanças, mil besteiros<br />
e dois mil homens de pó, <strong>com</strong>mandados em pessoa pelo pro-<br />
prio soberano, e «á sua custa mantidos ! .<br />
Mais sc obrigava el-rei a prestar este soccorro valiosissimo<br />
por espaço de oito mezes ininterruptos, e a contrahir immc-<br />
diatas nupeias <strong>com</strong> Filippa de Lancastcr, filha primogênita<br />
do duque 2 .<br />
1 Fernão Lopes, parte 11, cap. 93.°: «Das auenças que Ellley e o Duque<br />
trataram antre si.»<br />
2 Lopes, loc. cit.
1G8<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 190<br />
Por sua parle João de Gaunt a nada se <strong>com</strong>promettia desde<br />
logo. Pelo que respeitava a dote, obrigação imprescriptivcl<br />
dc príncipes que naquelle tempo casavam filhas, nem uma<br />
dobra offerecia. Quanto a soccorro positivo a favor de Por-<br />
tugal, nem uma palavra mencionava no pacto firmado; e a<br />
única reciprocidade <strong>com</strong> que retribuía os vantajosos capítulos<br />
que lhe ficavam assegurados, era a ccdencia de diversas po-<br />
voaçòes de Castella (cerca da raia), quando estas fossem con-<br />
quistadas ao inimigo l . Ephcmera reciprocidade! A conquista<br />
não sc realisou nunca; c Portugal ficou mais outra vez ads-<br />
tricto por gravosas concessões a inglezes, sem que d'ellcs<br />
houvesse logrado a minima <strong>com</strong>pensação. Tal foi á luz dos<br />
documentos o resultado practico da confederação entre o rei<br />
dc Portugal c o duque de Lancastcr.<br />
Ainda assim, sc cm seguida ás avenças que os dois prín-<br />
cipes acabavam de sellar, lhes tivessem clles dado cumpri-<br />
mento entrando sem delongas por Castella, haveriam colhido<br />
facilmente a posse d'aquelle reino, que por derrotas succes-<br />
sivas durante mais de tres annos se achava exhausto de<br />
capitães, e desprovido inteiramente de gentes dc guerra<br />
Mas o duque demorara-se em Galliza cerca de quatro mezes<br />
antes de ir a encontrar-se <strong>com</strong> o rei de Portugal, e este—<br />
máo grado ao concerto que então firmara—não sc apressava<br />
a dar-lhe execução invadindo Castella, e ainda menos curava<br />
de realisar o consorcio pactuado <strong>com</strong> a filha do príncipe<br />
inglez. Mais dc dois mezes passaram ainda por dc sobre os<br />
1 Lopes, loc. cit.<br />
2 Mariana, llist. gen. dc Espana; Lafucnte, parte 11, liv. m, pag. 379,<br />
1, 3 edição.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
191<br />
quatro já decorridos, e o filho de Thercza Lourcnço dissi-<br />
mulava sempre. Saudações reiteradas, palavras melífluas<br />
enviava sem cessar á duqueza e ao duque mas quanto a<br />
csle não curava dc lhe receber a filha por mulher 2 .<br />
II<br />
Que motivos impenderiam para lal procedimenlo, não mui<br />
alheio em verdade ao characler de D. João I? Porque tão<br />
cxlranha rcpugnancia manifestava elle em unir-se á primo-<br />
genita do duque dc Lancaster?<br />
Seria porque esta, em vez da formosura que lhe atlribue<br />
a rotina dos escribas, era realmente feia, <strong>com</strong>o prova o<br />
significativo silencio dc Fernão Lopes, e mais ainda o seu<br />
proprio retrato em alto relevo sobre o tumulo 110 mosteiro<br />
da Batalha?<br />
Seria porque no coração do antigo mestre d'Aviz domi-<br />
nava só a gentil filha de Pero Esteves 3 , alcunhado pela antiga<br />
1 «Si avoit il toujours tenu ct servi lc duc ct Ia duchcssc dc saluts et de<br />
parolcs.» Froissart, liv. m, cap. 52. 0<br />
2 «II s'ctoit un petit dissimule devers lc duc dc Lancastrc dc non sitòt<br />
prendre sa filie pour mouillier.» Froissart, ut supra. Veja-se o mesmo au-<br />
etor, liv. 111, cap. 41.°<br />
3 O animo galantcador do mestre d'A\iz é geralmente conhecido, bem<br />
<strong>com</strong>o as suas relações intimas <strong>com</strong> uma donzcüa moradora em Lisboa (íguez<br />
Pires), da qual teve dois filhos, o primeiro duque de Bragança, c I). Beatriz,<br />
condcssa de Arundcl cm Inglaterra Longo tempo duraram aqucllas intimas<br />
1 Memórias sobre o casamento do primeiro duque dc Brayança, arch. da casa dc Brag.<br />
Soares da Silva, Memórias, tomo iv, doe. xiv, n.° S."
470 D- MÃO 1 E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
lenda <strong>com</strong> o pscudonymo dc Barbadão de Veiros l , á qual o<br />
uniam laços Íntimos, que mais estreitara o nascimento de<br />
dois filhinhos que em Lisboa 2 sc creavam ?<br />
relações, e parece que só <strong>com</strong> o casamento dc el-rei vieram a Onalisar en-<br />
trando Igncz para o mosteiro de Sanctos, onde foi <strong>com</strong>mcndadcira. Poste-<br />
riormente el-rei I). Duarte sendo infante cedeu-lhe os seus paços do Li-<br />
moeiro, onde por algum tempo sc agasalhou <strong>com</strong> a <strong>com</strong>munidadc, em con-<br />
seqüência de estar em ruínas o mosteiro dc Sanctos, o velho. D. Igncz exerceu<br />
largo espaço o cargo de <strong>com</strong>mcndadcira, cm que annos depois, c por idên-<br />
ticos motivos entrou D. Anna de Mendoça, a donosa protegida dc I). João II.<br />
Veio Igncz a fallecer na quinta dWndaluz, pertencente ao duque seu filho.<br />
Veja-se fr. Agostinho dc Sancta Maria, llist. tripartita, trat. 3.°, § xiu;<br />
Soares da Silva, Mem., tomo 1.°, cap. 50.°, ol.°, c tomo 4.°, doe. 14;<br />
Brandão, Monarch. Lusit., parte 5.\ liv. 17.°, cap. 57. 0<br />
1 Esta lenda, aliás vulgarissima, é de todo ponto inexacta. O pae de Igncz<br />
Pires não foi o Barbadão dc Veiros, c mui diversos sentimentos linha do que<br />
a este são attribuidos. Chamava-se Pero Estcvcs da fonte boa c era da<br />
geração dos Folegados de Veiros, onde clTcctivamentc existiu um indivíduo<br />
chamado João Barbadão, mas que nada tinha <strong>com</strong> a família da <strong>com</strong>mcnda-<br />
dcira. A coincidência dos nomes c da naturalidade originaria acaso a fabu-<br />
losa tradição. Pero Esteves veio viver para Lisboa, e no anuo dc 1392 deu-lhe<br />
D. João I umas casas para morar sitas na pedreira 2 , as quacs clle poste-<br />
riormente tomou de aforamento ao mesmo rei, assim <strong>com</strong>o outras 3 , o que<br />
prova a boa harmonia cm que viviam. Vcja-sc Soares da Silva, Mcm., tomo 1<br />
cap. 51.c tomo doe. lí c anncxos.<br />
2 O mais velho, o futuro duque de Bragança, tinha então nove annos.<br />
Nascera nas casas dc Ruy Penteado á porta da Oura, onde vivia sua mãe,<br />
c provavelmente seu avô. Veja-se Memória sobre o nascimento do primeiro<br />
duque de Bragança, S. da Silva, tomo 4.°, doe. 14.<br />
1 Alvará do Marque* de Villa-Rcal a favor dc I.opo Yaz Tolerado, em Lisboa, 28 de<br />
abril de ISO';, apud, Soares da Silva, tomo í.«, doe. l í.<br />
* Alvará dc I). Joào I. Lisboa, 22 dc dezembro dc 1392.<br />
3 Carta de aforamento, passada pelo mesmo rei, cm Bragança, 2í de janeiro. Kra dc<br />
liíâ. Soares da Silva, tomo 4.°, doe. lí, n.°* 4.° c 5.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 171<br />
Seria ainda porque achando-se el-rei—<strong>com</strong>o professo na<br />
ordem d'Aviz — ligado a votos sacros, cm que só ao Papa<br />
era dado dispensar, não havia até então podido obter de Roma<br />
a dispensação sollicitada, e estaria aguardando que esta che-<br />
gasse ?<br />
Diz Froissart que as tergiversações do antigo mestre d'Aviz<br />
em realisar o casamento provinham de não querer elle arris-<br />
car-se a intima liança <strong>com</strong> inglezes, em consequencia das<br />
noticias que lhe haviam soado dc que Inglaterra estava per-<br />
dida 1 pela immediata invasão que 11a grande ilha iam rea-<br />
lisar <strong>com</strong> invencível poder as armas do rei de França, achan-<br />
do-se este prestes já a embarcar-se para a decisiva empresa<br />
Não ousamos aventurar de exacta a asserção do chronista<br />
flamengo; mui consoante é todavia ao charactcr simulado,<br />
interesseiro e calculista do outr'ora regedor do reino.<br />
Como quer que fosse, os dias corriam, e D. João I, typo<br />
constante de aclividade apenas lograra o mando, não dava<br />
nem passo cm negocio que tão de cerca lhe respeitava.<br />
Um pacto porem fôra scllado pelo rei. A sua palavra estava<br />
empenhada; e sc outr ora 1). Fernando rompera o consorcio<br />
que em Inglaterra contraclara para sua filha herdeira, os<br />
tempos corriam já mui outros, as forças inglezas que á pe-<br />
nínsula haviam aportado orçavam ainda por vinte mil pcle-<br />
jadores, e o duque de Lancaster não era o conde de Cambridge.<br />
Que solução teria pois esta pendencia ?<br />
1 «On lui donnait à entendre que Anglctcrrc étoil toute pcrduc.» Frois-<br />
sart, liv. 3.°, chap. 52.° Vcja-sc o cap.<br />
2 Froissart, loco citato.
CAPITULO XX<br />
SUMMARIO.—O duque dc Lancastcr envia a filha ao Porto.—O cortejo.—<br />
Discordancias históricas.—Ayala.—Froissart.—Fernão Lopes.—Atravcz<br />
dc cinco séculos. — DcducçÕes. — Cumpria el-rei o tractado quanto á<br />
guerra.—Hesitações quanto ao casamento.—Pouco cscrupuloso o duque.<br />
—Exigências positivas.— Escreve el-rei ás terras dc seu reino.—Relu-<br />
ctancia.—Divagação ao longo das províncias.— Lisboa, coração c alma.<br />
— No Porto a final.—Vè Filippa por primeira vez.—Afastamento rápido.<br />
— Regresso á ultima hora.—Caso extranho.—Bênçãos sem casamento.<br />
—Repugnancia manifesta.<br />
I<br />
Altivo <strong>com</strong>o os dc sua raça l , ambicioso <strong>com</strong>o os que mais<br />
alto visavam e insoíírido acaso pelos desenganos que cm<br />
Inglaterra o haviam por mais de uma vez salteado, quando<br />
se tractara de casar a filha 3 , o duque de Lancastcr tomou<br />
1 «Ce prince ctait d'unc humeur fiòre et hantainc.» 11 a pi n, Ilistoire de<br />
Angleterre, tomo x, pag. 281, ed. 3. J<br />
2 «Immodcrata et nimis alta semper concupivcrat.» ImofT, Itegum Magnae<br />
lirilan. hist. geneal., caput v, pag. 22.<br />
3 Altos esforços empregara o duque para rcalisar a união de Filippa <strong>com</strong><br />
o herdeiro do duque Alberto dc Bavicra Também se cuidou cm casal-a<br />
<strong>com</strong> o proprio Carlos VI de França 2 .<br />
» Froissart, liv. n, cap. 221." c 222.°<br />
2 «Aussi parle íut dc la GIlc du duc de Lanca>trc qui puis fut reine de Portugal.» Frois-<br />
sart, liv. ii, cap. 127.®
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 174<br />
no cmtanto a resolução tcrminante dc a enviar ao Porlo<br />
instando <strong>com</strong> el-rei por (pie a recebesse em continente l .<br />
Para dc mor auctoridade revestir esta ida da princcza<br />
ordenou seu pae que a a<strong>com</strong>panhassem além dc sua irmã<br />
Madame Joanna e das damas inglczas que lhe designou, o<br />
bispo de Acres e de Jaen capellão-mór, Messire João de<br />
Ilolland, condestavel, Mosse Thomaz Percy, almirante c o<br />
marechal João de Abrecicourt. Eram estes os mais quali-<br />
ficados d'entre os proccres que o cercavam, <strong>com</strong>o o character<br />
oííicial dc cada um evidcnceia. Cerravam o cortejo cem lanças<br />
inglezas e duzentos archciros de cavallo 2 .<br />
Eis <strong>com</strong>o Froissart que tão exacto foi muitas vezes ao<br />
historiar os successos dc Portugal, descreve a entrada de<br />
Filippa na cidade do Porto:<br />
«Ao encontro da juvenil rainha para lhe tributarem preito<br />
«c reverencia, sahiram fora da povoação o bispo do Porto,<br />
«c dc mais prelados que alli acertavam de cstanccar, e bem<br />
«assim os principacs fidalgos: <strong>com</strong>o o conde D. Nuno Alvares 3<br />
«condestavelo conde D. Gonçalo 5 (irmão da rainha<br />
1 Carta de el-rei I). João I adeante transeiipta.<br />
2 Froissart, liv. m, cap. 53.°; Lopes, parte 11, cap. 9i.°<br />
3 Froissart, escreve: le <strong>com</strong>te de Novare, loco citato.<br />
4 A esta dignidade dá Froissart o nome de conde de Escalez suppondo-o<br />
personagem dilTcrcntc dc Nuno Alvares. IJuchon cm nota ao capitulo 53.°<br />
diz singelamente não haver podido reconhecer quem fosse este conde. A ver-<br />
dade 6 que nunca existiu. Froissart tomava dc ouvida cm Flandrcs muitos<br />
annos depois o que lhe referia João Fernandes Pacheco. Este, <strong>com</strong>o c na-<br />
tural, ao nome dc Nuno Alvares accrcsccnlou «condestavel,» e o chronista<br />
pela toada para clle extrangeira tomou conde dc Escalez por condestavel, c<br />
cuidou que em vez de um eram dois indivíduos.<br />
5 Pelas razões supra denomina-o Froissart: le <strong>com</strong>tc d'Angousse adulte-<br />
rando pela toada o nome.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 197 *" V<br />
I /O<br />
«D. Leonor Telles), Lopo Fernandes Pacheco João Fer-<br />
« nandes Pacheco *, Lopo Yasques da Cunha 3 , Vasco Martins<br />
«dc Mello, o velho \ Lopo Dias de Azevedo 5 , Fernão Rodri-<br />
«gues, mestre d'Aviz interino, e outros, indo <strong>com</strong> elles mais<br />
«de quarenta cavalleiros e mós des<strong>com</strong>munaes de innumero<br />
«povo. Precediam-nos donas e donzellas da cidade, c Sodo o<br />
«clero revestido em hábitos proccssionaes 6 .»<br />
«Assim, accrescenta o chronista, foi Madame Filippa con-<br />
duzida ao Porto, e nos paços rcaes aposentada 7 .»<br />
Sobre a causa d'esta vinda, inopinada por ventura dis-<br />
cordam <strong>com</strong>pletamente os escriptores do tempo.<br />
Ayala, o illustrado chronista castelhano, prisioneiro em<br />
Aljubarrota aííirma que a filha de João dc Gaunt viera <strong>com</strong>o<br />
refem dado por seu pae mediante condição do recente tra-<br />
clado (o de ponte do Mouro).<br />
Esta afirmação, impossivcl em verdade perante a critica<br />
histórica, tem sido seguida pelos escriptores hespanhoes desde<br />
Mariana até ao moderno Lafuente.<br />
Froissart pelo contrario assevera que apenas constou que<br />
o rei dc França desistira da invasão projectada 8 , c que por<br />
1 Galop Ferrant Percok segundo o mesmo Froissart, loco citato.<br />
2 Joan Ferrant Percok, loco citato.<br />
3 Le Pounasse de Coingnc, item.<br />
1 l asse Martin de Merlo, item.<br />
5 Le Pondich de Senedc, item.<br />
6 Froissart, loco citato.<br />
7 «Pouzou nos paços do bispo que som muito perto da Sé desse logar.»<br />
Lopes, loco citato. Froissart equivocara-se neste ponto; naquella cidade não<br />
havia paço real.<br />
8 A desistencia do rei de França foi motivada por ser então o mez dc<br />
dezembro, e prevalecerem os conselhos do duque dc Berry dc que em tal<br />
estação não deviam expór-se a afrontar terra e mar. Froissart, liv. ui, cap. 48.°
470<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 198<br />
tanto estava salva Inglaterra, D. João I volvera á intenção de<br />
esposar a princeza de Lancaster, e que as nupeias sc reali-<br />
saram por procuração sendo representante de el-rei o seu<br />
caniareiro-mór João Rodrigues de Sá, o qual, segundo o<br />
ccremonial inglez, foi collocado <strong>com</strong> a noiva sobre o mesmo<br />
leito—acto a que elle mui respeitosamente annuiuCelebrou<br />
a ccrcmonia religiosa o arcebispo dc Braga: «Em seguida,<br />
continua o chronista, foi a princeza enviada a seu marido.»<br />
Fernão Lopes considera a questão mais <strong>com</strong>esinha refe-<br />
rindo que chegada a noticia de que o Papa concedera a dis-<br />
pensa sollicitada, sem <strong>com</strong>tudo vir a bulla, o duque enviara<br />
sua filha ao Porto <strong>com</strong> luzido séquito dc inglezes c porlu-<br />
guezes<br />
Em meio de tão flagrantes conlradicçõcs encontradas nos<br />
proprios escriptores que foram coevos daquclles successos<br />
<strong>com</strong>o podemos hoje atravez da extensão de cinco séculos<br />
descortinar os factos, <strong>com</strong>o realmente occorreram?<br />
Vejamos.<br />
D. João I (pie pelos votos sacros a que sc achava adstricto<br />
pertencia ao estado ecclesiastico, c era portanto inhibido de<br />
tomar esposa, casou eflectivãmente, sem que de Roma hou-<br />
vesse chegado a bulla <strong>com</strong> adispensaçãocanonica. Este faclo<br />
é innegavel, c <strong>com</strong>provam-no documentos e historiadores.<br />
1 «Mcssirc Jcan Kadrigues de Sar... épousa madame Philippc dc Lan-<br />
castre... coramc procurcur du roi dc Portugal... et furent sus un lit cour-<br />
toisernent, ainsi <strong>com</strong>mc epoux ct cpouséc doivent ctrc.» Froissart, liv. III,<br />
cap. 53.° Era esta uma das ceremonias obrigatórias nos casamentos em<br />
Inglaterra. Veja-se Adams, Ilist. of England, liv. 11. cap. 8.°; Malrimonio<br />
presso gli Anglo-Sassoni, apud Fcrrario, 11 costume, etc., tomo vi, pag. 101.<br />
2 Fernão Lopes, parte II, cap. 95.°
1). JOÃO I fc A ALLIANÇA INGLEZA 177<br />
Mediante a esperança de obter essa dispensa còntractara<br />
el-rei seu casamento. Também é isto sem duvida, e cgual-<br />
menle <strong>com</strong>provado.<br />
Havendo o lillio de Tlicreza Lourenço, apenas cingida a<br />
corôa, expedido embaixadores a Roma, noticiaram-lhe estes,<br />
se é cxac to o que Fernão Lopes escreve, que o Papa (Urbano VI<br />
então reinante) concedia adispensa, mas não enviaram abulla,<br />
nem a poderam nunca obter do Pontificc, que morreu sem a<br />
Em tacs circumstancias o rei portuguez buscava cumprir<br />
o tractado no que dizia respeito á guerra de Castella, mas<br />
hesitava na realisação do casamento, e ia progressivamente<br />
adiando a ceremonia. Também estes factos ficam, suppomos,<br />
essencialmente provados.<br />
O que resta unicamente a descortinar c a causa eílicicnte<br />
do adiamento. Rcstricta ao fôro intimo do interessado, só<br />
podemos conjectural-a. Ou a voz da consciência segredava<br />
ao cavalleiro-monge que devia aguardar o documento <strong>com</strong>-<br />
provai ivo da dispensa, sem a qual perpetraria um sacrilégio,<br />
casando-sc, ou eíTectivamente lhe repugnava unir-se a Filippa,<br />
ou não queria aventurar-se a estreitar laços <strong>com</strong> uma potência<br />
no momento em que esta podia ser totalmente avassallada.<br />
Dc que houve tergiversações, c numerosas, não resta duvida.<br />
i<br />
II<br />
Por sua parte o duque de Lancastcr, pouco escrupuloso<br />
cm matérias de consciência, conforme o leitor verificou, c por<br />
ventura não mui devotado aos dictames da côrte de Roma,<br />
12
178<br />
D. JOÁO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
<strong>com</strong>o acorri mo proteclor que fôra do denominado precursor<br />
de Lulhero, enviou a súbitas sua filha ao Porto, c do rei<br />
portuguez exigiu o cumprimento immediato da palavra dada,<br />
a realisação do juramento prestado.<br />
É o proprio D. João I que o aífirma nas seguintes palavras<br />
dirigidas cm circular de 2 de fevereiro (1387) ás cidades<br />
c villas dc seu reino:<br />
«Cremos que bem sabeis <strong>com</strong>o havemos jurado & pro-<br />
«mettido casar <strong>com</strong> a Infanta Dona Filippa, filha dei Rcy<br />
«dc Castella c duque dc Lencastro. E ora estando nós em<br />
«Guimarães prestes pera seguir nosso caminho 1 segundo<br />
«bem sabeis, fomos requerido per o dito Rcy dc Castella seu<br />
«padre (pie a tomássemos por mulher...ante que d'esta terra<br />
«partíssemos \»<br />
Provam as palavras supra que el-rei estava determinado<br />
a entrar por Castella antes de casar-se, mas que cedia ás<br />
ponderações do duque, embora dc modo evidente a demons-<br />
trar a repugnância que o dominava.<br />
Ainda assim, muitos dias permaneceu Filippa na cidade<br />
do Porto, sem que o noivo procurasse ao menos conhc-<br />
ccl-a!<br />
Folgava elle em andar-se vagueando pelo reino, passando<br />
a Alemtejo, demorando-se em Évora, e vindo estar oito dias<br />
em Lisboa 3 , quem sabe se attrahido ainda pela que tantos<br />
annos havia lhe dominara coração c alma!<br />
1 Este caminho era o de Castella que el-rei ia invadir á frente dos seus<br />
sem curar dc casar-se. Lopes, parte 2.', cap. 9o.°<br />
2 Lopes, loco citato.<br />
3 Lopes, parte II, cap. 94.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA 1NÜLKZA I7í><br />
A final dirigiu-se el-rci ao Porto. Viu por primeira vez<br />
Filippa que ainda não vira<br />
Froissart descreve assim o encontro <strong>com</strong> a futura esposa:<br />
«0 rei tomou-a pela mão, beijou-a, beijou outrosim todas as<br />
damas que a a<strong>com</strong>panhavam, c levou-a até á entrada da sua<br />
camara c ahi se despediu. Os senhores despediram-se cgual-<br />
mente das outras damas, e todos se retiraram \»<br />
Em seguida partiu o antigo mestre d Aviz para Guimarães<br />
dcmorando-sc alli até á véspera da septuagesima, ultimo dia<br />
antes de Paschoa cm (pie se dão bênçãos matrimoniacs 3 . Só<br />
naquclla própria tarde sahiu elle para o Porto, andando toda<br />
a noite, e vindo a chegar a esta cidade na própria manhã em<br />
que devia levar sua mulher á egreja 4 !!<br />
Aconteceu então caso extranbo, e por ventura sem exemplo.<br />
Nada mandara el-rei aprestar para a solemnidade do seu<br />
consorcio. Por este motivo receberam os noivos unicamente<br />
as bênçãos. Só passados doze dias é que se realisou o ma-<br />
lrimonio definitivo 5 .<br />
A repugnancia de 1). João I em receber por esposa a filha<br />
1 O duque de Lancaster, quando foi á Ponte do Mouro encontrar D. João I,<br />
deixou, <strong>com</strong>o dissemos, esposa c filhas cm Galliza, para onde voltou findas<br />
as conferências.<br />
2 Froissart, liv. III, cap. 53.° «EIRcy... mandou á Infante suas jóias...<br />
entre as quaes... hum firmai dc ouro, cm que era posto hum galo <strong>com</strong> ricas<br />
pedras, c aljofar maravilhosamente feito, e cila enviou a elle outro em que<br />
era huma Águia bem obrada <strong>com</strong> pedras dc gram valor.» Lopes, parte n,<br />
cap. 94.°<br />
3 Lopes, parte 11, cap. 94.° c 95.°<br />
4 «ElUcy cavalgou esse dia á tarde, & andou toda a noute cm guisa que<br />
andadas aquellasouto léguas amanheceu na cidade.» Lopes, parte u, cap. 95.°<br />
5 Lopes, loco citato.
180 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
do duque dc Lancastcr não podia pois ser mais positiva, mais<br />
terminante, nem mais claramente manifestada. Assaz o provam<br />
as minimas circumstancias, aliás de absoluta veracidade<br />
histórica, que deixamos descriptas.
CAPITULO XXI<br />
StJMMAiuo.—Chegou o dia.—Pompas nupciacs.— Danças c trebelhos.—A<br />
liça para os torneios.—A cidade c a festa.—Poética dcscripção do chro-<br />
nista.—Adorno das ruas.—Verduras e perfumes.—O prestito.—El-rei<br />
e a rainha a cavallo. — O arcebispo primaz das Hespanhas. — Pipias c<br />
trombetas. — As donas cantando atraz dos noivos. — As solteiras. Sole-<br />
dade c esperanças.—Os paços rcacs c a cathedral.—As ondas populares.<br />
—Regularidade no templo.—O cortejo.—Classes cprcccdcncias.—O con-<br />
destavcl mordomo-mór.—Senhores inglezes.—O irmão de el-rei de Ingla-<br />
terra.—A clcrezia.—O gilvaz do arcebispo.— Os noivos sob o pallio.—<br />
Donas em coro.—Matrimônio real.—Os votos e a dispensação cauonica.<br />
—Horas dc provação.—Nos paços dc el-rei.<br />
I<br />
DesaíTrontado dos espessos nevoeiros que do Douro usam<br />
freqüentemente ascender involvendo em seu manto vaporoso<br />
cidade c campinas, amanhecera límpido e risonho o dia 14<br />
dc fevereiro da era de 1425, segundo ainda então, <strong>com</strong>o<br />
dissemos, officialmente sc contava.<br />
A 2 daquelle mez havia, <strong>com</strong>o também disséramos, rece-<br />
bido bênçãos a futura rainha dc Portugal.<br />
Para a definitiva celebração do matrimonio fôra aprasado<br />
o dia 14, afim de haver o tempo indispensável a sc ultimarem<br />
os aprestos consoantes á esplendentc solemnidade. Era uso
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
d'então que as festas nupciaes se realisassem <strong>com</strong> a maxima<br />
pompa Annos depois ia este uso já decahindo 2 .<br />
Todos os ofliciaes da casa de el-rei e os da cidade traba-<br />
lharam afmcadamente na grande obra. Alargaram-se praças,<br />
desempacharam-sc ruas, organisaram-se trebelhos e danças<br />
populares, improvisaram-se matinadas; e mui á pressa no<br />
espaço entre o mosteiro de S. Domingos e a rua do Souto,<br />
que eraentom tudo hortas 3 , abriram uma grande praça, onde<br />
sc armou a liça para as justas c torneios — diversões indis-<br />
pensáveis em qualquer solcmnidade medieval 4 .<br />
Toda a cidade era occupada nos desvairados cuidados da<br />
festa. Ouçamos a pittoresca descripção que desta presenta<br />
o historiador contemporâneo, pintando a vivas côres os usos<br />
do tempo:<br />
«E todo prestes pera aquellc dia partiosc EIRcy á quarta<br />
«feira donde pousava, & foyse aos paços do Bispo, hú pou-<br />
1 «Alors... on entourait Ics ccrémonies nuptialcs d'unluxcinoui.» Viollct<br />
lc Duc, Vie publique de la nóblessc fèodale. Noces. pag. 327.<br />
2 Veja-se a este respeito Fernão Lopes, parte 11, cap. 96.°<br />
3 Lopes, loco citato.<br />
4 Nos princípios da edade-media construíam as liças em feitio circular<br />
a exemplo dos circos romanos. Com o andar dos tempos tornaram-n'as qua-<br />
dradas formando-as dc grossas traves dc madeira, a que chamavam teia.<br />
Esta era de ordinário coberta dc ricos pannos das côrcs do mantenedor,<br />
tendo bordadas, ou estampadas por muitas partes as suas armas c empresa.<br />
Veja-se Philarcte Chaslcs, Moycn-dge et Ilcnnaissance, tomo i, verb. Che-<br />
valerie. Garcia dc Rezende tractando das justas reaes que D. João II man-<br />
teve nas grandes festas dc Évora, diz: «A tèa era coberta dc panos finos<br />
verdes c roxos que erão as côrcs dcIRey, toda dc huma parte e da outra<br />
chea de pelicanos dourados c bordados na tèa... E no cabo... sc pozerão<br />
em mastos muito altos bandeiras muito grandes c muito ricas das armas de<br />
Portugal, etc.» Rezende, Chron. de D. João II, cap. cxxvi.
1). JOÃO I fc A ALLIANÇA INGLEZA 183<br />
«sava a Infante, & á quinta feira foram as gentes da cidade<br />
«juntas cm desuairados bandos dc jogos c danças í per<br />
«todalas praças <strong>com</strong> muitos trebelhos que faziõ. As principaes<br />
«ruas, por hú estas festasauiom de ser, todas crom semeadas<br />
«de desuairadas verduras & cheiros.<br />
«EIRcy sahio daquclles paços em sima de hu caualo<br />
«branco \ cm panos douro Realmente vestidos, & a Raynha<br />
«cm outro tal muy nobremente guarnida: leuauom nas ca-<br />
«beças corôas douro muy ricamente obradas de pedras cS:<br />
«aljofar de grade preço. Os moços dos caualos leuauaõ as<br />
«mais honradas peças q hi erõ de grande preço, não indo<br />
«arredados hum do outro, mas ambos a igual, e todos mui<br />
«bem corregidos, & o Arcebispo leuaua a Raynha de redea.<br />
«Diante liiam pipias e trombetas, & outros muitos instru-<br />
«mentos, tantos que se nom podiom ouuir, donas filhas dalgo<br />
«e isso mesmo da cidade cantauom indo de traz, <strong>com</strong>o lie<br />
«costume de vodas 3 .»<br />
Annotaremos a histórica narração que nos deixou Fernão<br />
Lopes, tão rica de côr local, observando que, segundo usança<br />
1 As danças eram na edade-media condição importante dc todas as festas.<br />
Desde o século xiv ate ao xvi tornaram-se parte integrante de qualquer<br />
solemnidade, a que o povo concorria <strong>com</strong>o espectador. Lacroix, iíoeurs ct<br />
usages, verb. Jcux ct divertissements, pag. 248.<br />
2 Cavallo branco era symbolo dc dominio. Por isso cm festividades pu-<br />
blicas os reis montavam sempre cavallos d'esta côr. Quando Carlos V de<br />
França foi visitado pelo imperador (Carlos IV) mandou-lhe cm presente um<br />
cavallo dc apparato (dextrier) murzclo, a fim de que o imperador não appa-<br />
rcccssc <strong>com</strong> um charactcristico dc dominação, que só elle rei queria ter cm<br />
França. Chrislinc dc Pisan, Livre des faits ct bonncsmocurs du roi Charles V,<br />
cap. 35.°, edit. Pclitot, tomo ív.<br />
3 Lopes, parle n, cap. 96.°
190 D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
do tempo, e o chronista refere, só as senhoras casadas-<br />
nobres eburguezas—iam cantando em côroatraz dos noivos.<br />
As pobres solteiras ficavam-se por setteiras e gelosias a in-<br />
vejar <strong>com</strong> os olhos d'alma não poderem concorrer á solemni-<br />
dade, cm que aliás esperavam ser um dia protagonistas.<br />
II<br />
No limitado espaço que medea entre os paços do bispo c<br />
a egreja da só apinhoava-se cm mó des<strong>com</strong>munal o povo da<br />
cidade, e a caterva de inglezes que dos arraiaes alliados<br />
tinham vindo para ver passar o cortejo<br />
Este assomou por fim ; mas era lanla a gente e lal o aperto,<br />
que entestando <strong>com</strong> a mole <strong>com</strong>pacta mal ponde rompel-a\<br />
Buscaram então os d avante caminhar guardando a fôrma<br />
possível. As ondas populares cresciam porém. Condensa-<br />
vam-se. Tornara-se geral a confusão. Assim, sem poderem<br />
jamais seguirem ordem, chegaram ás portas da cathedral 3 .<br />
Recebidos sob pallio de brocado de oiro, a que pegavam<br />
os vereadores e principaes da cidade em talares garnachas<br />
negras, entraram os reis na egreja. Com a desordem que<br />
fóra ia contrastava a regularidade silenciosa dentro no templo.<br />
O prestilo poude então reger-se caminhando mui passo.<br />
Na deanteira as trombetas c pipias \ Vinham depois os<br />
1 Lopes, parle 11, cap. 91.°<br />
2 Lopes, parte 11, cap. 96.°<br />
3 «A gente era tanta, que sc nom podiom reger, nem ordenar... c assi<br />
chegarom ás portas da Sc.» Lopes, parte II, cap. 96.°<br />
4 «Diante hiam |>i|»ias e trombetas.» Lopes, loco citato.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 18 3<br />
ministreis, e logo os foliões e jograes, classe oííicial que nas<br />
solemnidades regias tinha cm aquelle tempo logar obriga-<br />
torio, immediato aliás a judeus e mouros. Estes, <strong>com</strong>o é<br />
sabido, <strong>com</strong> suas danças guerreiras, e aquelles conduzindo<br />
graves a toura, ou livro da lei, formavam parte dos cortejos<br />
reaes, até que D. Manuel os expulsou do reino. Agora porém<br />
haviam uns e outros ficado além do adro, porque lhes era<br />
defeso, <strong>com</strong>o a infiéis, entrar na egreja. Seguiam os porteiros<br />
<strong>com</strong> suas maças de prata, os arautos os escudeiros e<br />
cavalleiros, os alcaides-mórcs c senhores de terras, o repos-<br />
teiro-mór, Pero Lourcnço de Tavora, o alferes-mór Martim<br />
Vasques da Cunha <strong>com</strong> a bandeira real em funda, o vedor<br />
dc el-rei e seu dedicado amigo Fernão d'Al vares d'Almeida,<br />
os dois vedores da fazenda, João Gil e Martim da Maia.<br />
Como o primeiro na casa real (major domus) vinha então o<br />
grande D. Nuno Alvares Pereira, accumulando as funeções<br />
de condestavel <strong>com</strong> as de mordomo-mór.<br />
Após os ofíiciaes-móres portuguezes seguiam todos os ca-<br />
valleiros e senhores da côrte de Inglaterra, e entre o almi-<br />
rante Thomaz Percv c o marechal Ricardo Burlev 2 cami-<br />
J V<br />
nhava donoso e altivo, <strong>com</strong>o irmão que era de Ricardo II<br />
então reinante, messire João de Ilolland condestavel da hoste<br />
do duque de Lancaster e seu genro. Começava então a des-<br />
lisar-se a numerosa clcrezia que entre outros prelados rema-<br />
tavam <strong>com</strong> suas mitras riquíssimas os bispos do Porto, de<br />
1 Foi D. João I que cm Portugal veio mui posteriormente a estabelecer<br />
os reis d'armas, <strong>com</strong>o c notorio.<br />
2 Este ardido guerreiro foi posteriormente morrer cm Castella ferido da<br />
epidemia que, segundo adeante notamos, causou horríveis estragos na hoste<br />
ingleza. Veja-sc Froissart, liv. m, cap. 81.°
18G D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Acquis c de Jaen e o arcebispo de Braga, o esforçado<br />
D. Lourenço Vicente, ostentando este no gilvaz, que lhe sul-<br />
cava nobremente a face direita, os brios de cavalleiro de<br />
Aljubarrota i .<br />
Sob o já referido pallio de alto preço, ornadas as frontes<br />
dccoróas dealjofar c pedraria, e cm reacs mantos roçagantes<br />
de brocado de oiro, vinham immcdiatamcntc el-rei e a nova<br />
rainha seguidos, conforme era então costume de bodas, pelo<br />
bando das senhoras casadas cantando cm coro, <strong>com</strong>o já<br />
referimos 3 .<br />
0 bispo da diocese, que em pontificai solemne fôra ás portas<br />
da cathedral aguardar os noivos, e dar-lhes água benta,<br />
tomou-os então pelas mãos ante o altar-mór, e por palavras<br />
de presente ratificou o matrimonio. (pie por procuração havia<br />
em Santhiago celebrado o arcebispo de Braga 4 . Em seguida<br />
disse o bispo missa e pregação, não lhe havendo nesta sido<br />
1 Era castelhano. Ilavia nome 1). João de Castro. Seguira a voz de Pedro<br />
o cruel de Castella contra Henrique dc Trastamara. Como tal, foi o mais<br />
auetorisado conselheiro do duque dc Lancastcr cm relação aos ncgocios<br />
peninsulares. Lafucnte, Historia dc Espana, parte 11, liv. m, cap. 19.°<br />
2 Acerca d'cstc ferimento escreveu o arcebispo cm carta dirigida a um<br />
dom Abbadc, que alguns alTirmam ser o de Alcobaça, as seguintes engra-<br />
çadissimas palavras: «Aprouve a Deos c a Sancta Maria ssa Madre que as<br />
ribeiradas do meu gilvaz sejam já vedadas... Eu o sinto bem; cá, sc >icr<br />
cm caiso, já darcy c leuarcy outra pela mesma requesta, & credc vós, bom<br />
amigo, que quem esta pespegou nom levou enxebres, nem irá contar cm<br />
Castella aos soalheiros o cruzamento dc minha cara.» A íntegra d'este in-<br />
teressante documento vem impressa após a parte n da Chronica de I). João I<br />
por Fernão Lopes. O original guardava-se no mosteiro de Alcobaça.<br />
3 Lopes, parte II, cap. 96.°<br />
* Lopes, loco citato; Froissart, liv. m, cap. o3.°
209 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
mui fácil cohonestar <strong>com</strong> os votos postergados a dispensa<br />
que não chegara.<br />
Mediante o ceremonial referido volveram a seus paços o<br />
rei e a nova rainha dc Portugal.<br />
Estava casado o antigo mestre d'Aviz. Hora de provação<br />
teria sidoaquclla para o animo doecclesiastico! Não poderia<br />
clle esquecer os votos perpétuos, a que se adstringira, e dc<br />
que não via ainda documento canonico que o desobrigasse.
Í v<br />
0ê
CAPITULO XXII<br />
SUMMARIO.— Banquete de bodas.— Inglezes c portuguezes.— Nobres c ci-<br />
dadãos.—A burguezia sob um sccplro democrático.—Ceremonial no ser-<br />
viço das iguarias.—Progressista a côrtc de D. João I.—Donas e donzellas<br />
á mesa.—Anomalias.—I). João II c a galanteria cortesã.— D. Manuel,<br />
o cioso.—Proscripcão das senhoras. — Reinados tetricos.—O duque de<br />
Rragança e os seus paços.—O Legado apostólico.—Recepção ác príncipe.<br />
— Herculano. — Uma traducção notável. — A sociedade portugueza no<br />
século xvi.—Banquete cm Yilla-Yieosa.—Continua a proscripcão ao bello<br />
sexo.—A casa do doccl, e as senhoras sentadas no chão.—A rainha I). Ca-<br />
tharina e a infanta I). Maria.—Antithese.—Os dois séculos.—Expansões<br />
de liberdade, c o absolutismo auetoritario.<br />
I<br />
Seguiu-se na grande sala dos paços o usual banquete de<br />
bodas.<br />
Não fatigareraos o leitor <strong>com</strong> repetir as minuciosas cere-<br />
monias d'aquellas solemnidades. Reportando-nos ao que<br />
deixámos escripto annotaremos tão só, que além da alta mesa<br />
para os noivos erguida 110 lopo da sala sob docel riquíssimo,<br />
outras muitas houve ao correr das paredes, onde tomaram<br />
logar inglezes e portuguezes, nobres e também cidadãos â .<br />
As mínimas occorrencias d'aquella epocha demonstram<br />
1 Lopes, parte II, cap. 96.°
18G<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
quão importante era já enlão a classe da burguezia, e quanto<br />
se foi mais engrandecendo sob o sceptro democrático do<br />
bastardo dc Thereza Lourenço.<br />
Exerceu o cargo de mestre-sala das bodas reaes o grande<br />
condestavel, porque o seu amplo espirito abarcava tudo, e<br />
tudo era clle na córtc de D. João I. Por mãos do proprio<br />
D. Nuno Alvares c dos mais auetorisados senhores e caval-<br />
leiros do reino foram as iguarias trazidas ás mesas <strong>com</strong> o<br />
longo cercinonial então usado \ e que já fica referido.<br />
Cumpre-nos aqui registrar um facto extranho.<br />
Não o haja por somenos o leitor, que importante c tudo<br />
que possa revelar-nos a vida intima de nossos avós. Então<br />
por primeira vez em Portugal tiveram as senhoras logar num<br />
banquete.<br />
Via-se já porventura neste progresso a influencia ingleza,<br />
que tanto veio a prevalecer sobre as antiquadas usanças de<br />
nosso reino \<br />
«E que cousa apurou mais a córte DelRey D. João o Pry-<br />
meiro, que a vinda a ella do duque de Alencastre?» pergun-<br />
tava acuradamente o singelo auetor da Côrte na Aldeia 3 .<br />
Poucos annos atraz, quando, vivo ainda el-rei I). Fernando,<br />
o conde de Cambridgc, filho do grande Eduardo III de In-<br />
glaterra, c sua esposa desembarcaram em Lisboa <strong>com</strong> a<br />
1 Lopes, loco citato.<br />
2 «A côrte dc Portugal adoptou muitos usos da córte inglcza.» Santarém,<br />
Quadro elemndar das rei. de Portugal, tomo nv. Introducçâo.<br />
3 Francisco Rodrigues Lobo, Côrte na Aldeia, Dial. xiv, pag. 110. Ao<br />
nosso amigo c mestre visconde dc Castilho, Júlio, devemos a indicação d'csta<br />
nota.
I). FERNANDO, INFANTE DK PORTUGAL, CONDE DE FLANDRES<br />
Prisioneiro na batalha dc Bouvincs c conduzido ás prisões do Louvrc Uma procissão solcmnisando a victona<br />
sac do palacio — l>os campos que avizinham este correm ccifciros e ccifeiras a ver o pre*o — Ao fundo o no<br />
Sena.<br />
{Miniatura das Chronicas dc Hainaut. Ms. do século xv. Bibliothcca de Borgonha, cm Bruxellas.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 18 3<br />
grande expedição auxiliar, houve nos paços dWlcaçova um<br />
esplendido banquete, mas nesse a rainha Leonor Telles con-<br />
vidou á parle a condessa csuas damas, c <strong>com</strong> el-rei jantaram<br />
tão somente o conde e mais senhores inglezes e portuguezes l .<br />
Na própria França, em festa solemnissimadada porS. Luiz,<br />
a rainha Branca de Castella, sua mãe, occupava mesa de<br />
estado dilfcrente do rei, sendo servida, conforme refere o chro-<br />
nista contemporâneo, pelo conde de Bolonha que ao depois veio<br />
a empunhar o sccptro portuguez sob o nome de AlTonso III<br />
Era clle sobrinho de D. Fernando de Portugal conde de Flan-<br />
dres, guerreiro assignalado, e prisioneiro na batalha de Bou-<br />
vines, <strong>com</strong>o o representa a curiosa estampa que reprodu-<br />
zimos.<br />
Com relação aos banquetes em França cumpre-nos ainda<br />
accrescentar, que mui posteriormente, nas próprias nupeias<br />
de Carlos VII todas as damas jantaram <strong>com</strong> a rainha Maria<br />
d'Anjou, c homem nenhum se assentou á mesa 3 .<br />
1 Fernão Lopes, Chron. del-rei I). Fernando, cap. cxxix.<br />
2 «Et si scr\oit à la Royne le conte dc Bouloingnc qui puis fu roi dc<br />
Portingal.» Sirc de Joinville, llist. de SD>ys, Variante, édit. Petitot,<br />
pag. ÍL2. Veja-se Baudrillarl, llist. du luxe, tomo M, liv. II, cap. viu,<br />
§ 1.°, pag. 176.<br />
3 «Au diner toutes les dames dinncrent avec la reine, et nuls homuies n'y<br />
étoienl assis.» Aléonor dc Poiticrs, Les honneurs de la cour.<br />
Este livro, o primeiro que em França estabeleceu as regras do ccremonial,<br />
deve merecer-nos particular apreço, por ser a auetora filha dc uma senhora<br />
portugueza. Tinha esta o nome de Isabel dc Sousa. Era neta de 1). Lopo Dias<br />
dc Sousa, mestre de Christo, c descendente por pae c mãe de D. Aflbnso III<br />
de Portugal. Seguindo a Flandrcs a infanta D. Isabel duqueza dc Borgonha,<br />
<strong>com</strong>o sua dama, casou alli <strong>com</strong> João dc Poiticrs senhor d'Arcis, cm Cham-<br />
t
190 D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Mór progresso manifestava já a côrte dc D. João I no<br />
grande banquete que descrevemos. Importa ainda notar que<br />
a este não concorreram somente senhoras casadas. Também,<br />
c o que mais é, <strong>com</strong> suas graças juvenis o abrilhantaram as<br />
meninas solteiras<br />
Extranhaanomalia a d'aquellas eras! Pois se tractava de<br />
ceremonia nupcial, tinham por incongrucnte que a presen-<br />
ceassem donzellas indo á egreja, e ahi não podia faltar-se ao<br />
respeito devido. Foram ellas porém admittidas ao banquete,<br />
onde era praxe invaríavel dizerem-se por occasião de bodas<br />
as mais desregradas expressões, e certeiros trocadilhos.<br />
Parte destes insolitos usos chegou quasi aos nossos dias.<br />
pagne. Leonor entrou de sele annos ao serviço da duqueza, casando poste-<br />
riormente <strong>com</strong> o visconde dc Fumes.<br />
De sua mãe havia recebido a auetora muitas informações sobre as diversas<br />
ceremonias da côrte, c a própria Isabel dc Sousa as colhera dc Joanna, con-<br />
dessa dc Xamur que tinha um livro, onde todas as circumstancias do cere-<br />
monial franccz eram escriptas. Sobre estes assumptos de etiqueta nada fazia<br />
a infanta portugueza sem previamente a consultar: «Et la duchcssc dc liour-<br />
gogne Isabcau nc faisoit rien dc ccllcs choses que cc ne fut... par Favis dc<br />
M." de Namur, <strong>com</strong>mc j'ouis dire à madame ma mere.» Les honneurs de<br />
la eour dc tíourgogne, par dainc Alconor dc Poiticrs, appcns. ao tomo III<br />
de Lacurnc dc S. u Palayc, Mim. de 1'ancienne chevalerie, édit. dc 1759.<br />
Veja-se Sousa, Ilist. gcneal. da casa real, tomo xu, parte n, cap. vm, § 3.°;<br />
Vallet de Virivillc, Moyen-âge et Rennaissance, tomo III, verb. Cerimonial,<br />
Etiquctte; I.acroix, Moeurs, usages ct costumes au Moyen-âge, verb. Cérc-<br />
monial, pag. 535.<br />
1 «As mezas estavam muiguarnidas... hú era ordenado dc <strong>com</strong>erem fidalgos<br />
e burguezes do lugar & donas & donzellas do paço c da cidade.» Lopes,<br />
parle II, cap. 96.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 193<br />
II<br />
Não sc cuide lodavia que desde aquellc lempo ficasse<br />
ininterruptamente mantida na côrte portugueza a regra de<br />
terem as senhoras logar nos banquetes. Ainda esta graciosa<br />
dcferencia mereceram cilas ao animo grandioso de D. João II,<br />
cuja côrtc manifestam os documentos haver sido uma das<br />
mais louças e galantes de nossa historia Mas D. Manuel<br />
o desconfiado, o cioso por excellcncia, máo grado a serem<br />
então festas e saraus abrilhantados pelas damas da côrtc,<br />
não as queria cm sua mesa. Até nos solemnissimos banquetes<br />
de natal e paschoa, cm (pie o exclusivo senhor do <strong>com</strong>mercio<br />
oriental desenvolvia o mais esplendente apparato <strong>com</strong>endo<br />
em publico, nem a própria rainha collocava a seu lado 2 . A<br />
mesma proscripção das senhoras presencearam os tetricos<br />
reinados de 1). João III c D. Sebastião 3 .<br />
Vivendo este, um Legado pontifício, o cardeal Alexandrino,<br />
sobrinho do Papa Pio V, e por clle enviado á côrtc portu-<br />
gueza em embaixada especial, foi ao atravessar Alemtejo<br />
caminho de Lisboa principescamente aposentado nos paços<br />
1 «Na primeira meza <strong>com</strong>ia o marquez dc Villa-Rcal <strong>com</strong> as senhoras,<br />
donas, e damas, e na da esquerda o arcebispo dc Braga... e pessoas prin-<br />
cipacs que eram muitas, assim homens, <strong>com</strong>o mulheres.» Garcia dc Rezende,<br />
Chron. da vida, etc., cap. cxxiv.<br />
2 Vcja-sc Damião de Goes, Chronica do felicíssimo rei D. Manuel,<br />
parte iv, cap. LXXXIV.<br />
3 El-rei I). Sebastião, <strong>com</strong>o sc sabe, era solteiro, mas a rainha sua avó<br />
não habitava o paço, nem consta que jamais assistisse a banquetes dc appa-<br />
rato.<br />
13
194 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
dc Villa-Viçosa pelo duque dc Bragança, D. João, 1.° do<br />
nome l .<br />
Ao grande Ilerculano devemos a traducção d'esla viagem<br />
do Legado, cscripla em italiano por um dos que o a<strong>com</strong>-<br />
panhavam<br />
É para nós de alto apreço a obra, porque além da ampla<br />
dcscripção das cidades e vil Ias que o Legado ia em sua viagem<br />
percorrendo, c afora a narrativa de muitos usos do reino,<br />
manifesta circumstanciadamente a vida intima da sociedade<br />
portugueza em fins do século décimo sexto.<br />
O grande recebimento feito pelo duque dc Bragança, a<br />
dcscripção do seu palacio c o adorno das salas, o banquete,<br />
o acolhimento original da duqueza ao Legado, o trajar das<br />
senhoras, c muitas outras circumstancias vêm pelo auetor<br />
minuciosamente descriptas. Algumas aqui notamos.<br />
Foi o duque a duas léguas áquem d'Elvas esperar o emis-<br />
sário apostolico 3 , e trazendo-o em grande Estado até ao seu<br />
1 O objcclivo d'esta embaixada era propor a I). Sebastião o seu casamento<br />
na casa de França c uma liga da Christandadc contra o Turco. El-rei annuiu<br />
ás duas propostas, mas nem uma nem outra se rcalisou.<br />
2 Venturino, Viagem a Portugal do cardeal Alexandrino em /57/, trad.<br />
de Ilerculano, Panorama, vol. v, serie 1 .*<br />
3 Eis <strong>com</strong>o o auetor italiano descre\e esta recepção cm verdade curiosa:<br />
«Caminhando por bellos c ferieis campos... encontrámos a distancia dc<br />
duas léguas D. João duque dc líragança, manccbo dc vinte e nove annos,<br />
de medíocre estatura, trigueiro e dc boa côr, \ista curta c de pouco robusta<br />
<strong>com</strong>pleição... Vinha vestido <strong>com</strong> uma capa de panno razo, aboloado o capuz<br />
<strong>com</strong> diamantes c fechos dc ouro... o barrete era develudo <strong>com</strong> fios dc rubins,<br />
diamantes, pérolas couro: as calças eram dc veludo turqui (azul-cscuro)<br />
agaloadas de ouro. Montava cm um cavallo rodado, cavalgando á gineta c<br />
precedido por dois ginetes, que sobre as scllas cobertas dc cscarlata <strong>com</strong>
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 19o<br />
palacio dc Yilla-Viçosa \ oflcrcceu-lhc ao dia seguinte um<br />
sumptuosissimo banquete enriquecido de galantes episodios,<br />
notando-se entre esses sahirem, ao abrir grandes pasteis<br />
franjas de ouro traziam duas malas... também escarlates <strong>com</strong> as armas dc<br />
Sua Excellcncia bordadas em brocado dc ouro.<br />
«Vinham quatro alcaides e quatro meirinhos <strong>com</strong> varas vermelhas... Se-<br />
guia-se a pessoa dc Sua Exccllencia, capós clle duzentos cavalleiros gentis-<br />
homens montados á gineta cm bellissimos cavallos...<br />
«Ao apear-nos á porta do palacio houve grande estrondo de arlilhcria,<br />
soaram os atabalcs tocados por prelos, os pífaros trombetas, tambores e sinos<br />
mostrando extraordinaria alegria.»<br />
1 O palacio, o adorno das salas
190<br />
D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
durante o serviço dc copa, bandos de perdizes e outras aves.<br />
que prasenteiras voavam por Ioda a sala l .<br />
Em o supra mencionado livro encontra-se analyse minu-<br />
ciosa desta refeição esplendida para aquelle século, mas mui<br />
acanhada em relação aos que o haviam precedido Não<br />
desejando fatigar o animo do leitor, e não devendo aliás<br />
regatear-lhe factos (pie revelam o viver social das gerações<br />
passadas, em nota especial os exaramos 3 .<br />
0 (pie nos cumpre aqui notar em referencia ao (pie supe-<br />
riormente dizíamos, c que a este solemnissimo banquete do<br />
duque de Bragança nos seus paços de Villa-Viçosa em pleno<br />
século décimo sexto não <strong>com</strong>pareceu senhora alguma, nem<br />
a duqueza 4 , nem suas filhas, nem sua própria mãe, a infanta<br />
I). Isabel, que desde que enviuvara a a<strong>com</strong>panhava.<br />
Apenas ao dia seguinte viram aquellas senhoras o cardeal<br />
Legado, que juneto á camara ducal na sala do docel rece-<br />
beram sentando-se no chão em um estrado, e em amplo<br />
encolhimento 5 .<br />
Também sentadas no chão receberam dias depois em Lisboa<br />
o mesmo Legado, a rainha I). Calharina (em Enxobregas,<br />
1 «IIouvc a galanteria de sahirem voando perdizes c outras aves ao abrir<br />
os pasteis.» Venturino, loco citato.<br />
2 Era ainda dc cinco cobertas, cada uma dc cinco serviços, afora o ultimo<br />
de fructa,confcitos edoces. Apezar d'isso, os banquetes no século xvi haviam<br />
já decahido extraordinariamente do apparato, ccrcmonial c grandiosos epi-<br />
sodios que outr'ora os revestiam.<br />
3 Veja-se Nota F no fim do volume.<br />
4 Era a senhora I). Calharina, filha do infante I). Duarte e nela dc el-rei<br />
D. Manuel. Foi por esta senhora que herdou a casa dc Bragança o direito<br />
dc suecessão á coroa.<br />
1 «Feitos os cumprimentos ao Legado, o convidaram a scntar-sc em uma<br />
cadeira dc brocado debaixo do docel, c a infanta c a Senhora Calharina
1). JOÃO I fc A ALLIANÇA INGLEZA 197<br />
onde habitava '), e a infanta D. Maria, a elegante cullora<br />
das sciencias e lettras patrias (veja-se Nota II no fim do<br />
volume) nos seus esplendentes paços a par Sanctos-o-novo.<br />
A antiga regente do reino nem docel tinha na sala desador-<br />
nada, e <strong>com</strong>o único movei oflercccu ao Legado para sentar-se<br />
uma cadeira de couro, collocando-sc cila defronte sentada no<br />
chão. Eis o que singelamente refere testemunha ocular que<br />
tantas vezes citamos: «Achámol-a cm pó num aposento des-<br />
ordenado, <strong>com</strong>o o era lodo o palacio... tendo-se cila assen-<br />
tado no chão e o Legado defronte cm uma cadeira de couro,<br />
ambos sem docel \»<br />
Tal fôra a mudança dc costumes (jue após si trazia a<br />
diversidade dos tempos! Que anlithesc entre a liberdade<br />
sorrindo desprctcnciosa c franca sob o sccptro democrata<br />
do rei eleito pelo povo, e o regimen auetoritario c repressivo,<br />
<strong>com</strong> que cm fins do século xvi se achava algemada a socie-<br />
dade portugueza!<br />
As algemas foram-sc ainda cada vez mais estreitando—pelo<br />
menos exteriormente—até á epocha do marquez de Pombal.<br />
Releve-nos o leitor esta digressão momentanea, sc bem<br />
que de todo ponto histórica.<br />
Prosigamos.<br />
no chão sobre um estrado que ficava defronte.» Venturino, loco citato,<br />
pag. 339.<br />
0 trajar das princczas, as damas que as a<strong>com</strong>panhavam, e outras curiosas<br />
circumstancias vejam-se em a Nota G 110 fim do volume.<br />
1 Venturino, Viagem, ut supra; Panorama, tomo 1, serie '2.*, pag. 311.<br />
2 Venturino, loco citalo.
CAPITULO XXIII<br />
SUMXARIO. — Uma digressão. — O viver de nossos avós. Estudo importan-<br />
tíssimo.— 1). João II. — Um >iajantc em sua côrte. — Um cavalleiro dc<br />
Borgonha nos paços de I). AlTonso V.—A juvenil rainha e o regente «Io<br />
reino.—As duas còrtcs.—D. João II na \ ida intima.—Revelação de factos<br />
mui curiosos.—Lisboa tão grande <strong>com</strong>o Londres.—A côrte cm Setúbal.<br />
—Um cozinheiro de el-rei c o bobo da rainha.—Uma cstalagcm.—Au-<br />
diência de el-rei ao viajante.—Presentes. Cem cruzados e dois mouros.<br />
—Os portuguezes dVntão. Seus usos.—As porluguczas. Seus amores.—<br />
Confronto <strong>com</strong> as inglezas c outras. — Os trajos. — Casas e moveis. — O<br />
descobrimento da índia. Transformação na sociedade portugueza.—Ter-<br />
ceiro viajante na córte. — Commcrcianlcs dc Lisboa. Sua opulcncia.—<br />
Aposentos c preciosidades.— As lojas c o <strong>com</strong>mercio da capital.— índia<br />
em Lisboa.—Volvamos ao Porto.<br />
I<br />
Uma digressão ainda. Será restriclissima. Não ousámos<br />
omittil-a, porque revela importantes factos da vida intima<br />
dc nossos avós.<br />
Repetimos. Tudo que a este momenloso assumplo possa<br />
referir-se, e luz derrame sobre o crer c sentir das gerações<br />
que nos precederam, é de immcdiato interesse para a nossa<br />
historia social (tão ignorada inda hoje), c de vasto alcance<br />
para o estudo da civilisação portugueza.
20 í<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Disséramos que fôra a côrtc dc D. João II uma das mais<br />
louçãs c galantes que tivera o reino.<br />
De feito, diversões solcmnissimas nas grandes festividades<br />
do anno, freqüentes corridas dc touros, caçadas c montearias,<br />
certames dc luctadorcs, carreiras dc cavallos em que muitas<br />
vezes tomava parte o proprio rei, saraus e danças cn que<br />
também era clle um dos mais peritos \ occupavam-lhc o<br />
limitado espaço que a aridez dos ncgocios, e a lucta horrivel<br />
que contra os seus mantinha, lhe deixavam livre<br />
Sc todavia sempre grandioso e esplendido se mostrava<br />
cm publico o filho dc AlTonso V, 110 traclo particular pulo<br />
contrario mantinha-se restrido e dcsprctcncioso. Nunca a par<br />
da rainha <strong>com</strong>ia de ordinário, a fim de que, abertas as poilas<br />
da grande sala, assistissem, e á sua mesa disputassem quantos<br />
no paro tinham entrada 3 . Nesses dias, que abrangiam a ma-<br />
xima parte do anno, era essencialmente <strong>com</strong>czinho o appa-<br />
rato real.<br />
Assim o alfirma em narração preciosíssima um viajante<br />
illustrado que, vindo então a Portugal, vio a 1). João II, tra-<br />
ctou-o de perto, e, segundo refere, foi por el-rei convidado<br />
a jantar cá sua própria mesa 4 .<br />
Outra producção notável do século xv 5 historiando a vinda<br />
1 «Foi desenvolto... c singular (lançador cm todalas danças.» Rezende,<br />
Chron. de I). João II. Prefacio.<br />
2 Rezende, loco citato; Ruy dc Pina, Chron. de D. João 11, cap. LXXXII.<br />
3 Garcia dc Rezende, loco citato.<br />
4 Nicolaus vou Popplau, Viagem por Hcspanha e Portugal, trad. do allc-<br />
mão de fins do século xv, apud Liske coUect.<br />
5 Chroniquc du bon Chcvalier .lacgues de Lalain. frerc et <strong>com</strong>pagnon de<br />
l ordre de la Toison d or. par Messirc Georgcs de Chastellain, roi d'armes,<br />
indiciairc des dues de Bourgognc, apud Buchon, collect.. vol. xu.
1). JOÃO I fc A ALLIANÇA INGLEZA 201<br />
a Portugal tio famoso cavallciro dc Borgonha, Jacqucs dc<br />
Lalain nos tempos dc D. Affonso V cm o outomno de 1446 4 ,<br />
analvsa meudamente a côrte (1'este soberano, que então sc<br />
achava cm Évoradescreve a largos traços uma caçada real,<br />
um sarau abrilhantado pelas graças da juvenil rainha que<br />
dançou <strong>com</strong> o grande cavallciro, um banquete nos paços de<br />
S. Francisco, em que o infante 1). Pedro regente do reino 3<br />
dava, segundo a praxe, agua ás mãos ao rei seu sobrinho,<br />
e ainda outras históricas circumstancias. Estas encontram-se<br />
todas adeantc particularmente descriptas \<br />
Por agora, e em seguida ao que acima expozeramos, limi-<br />
1 Fixamos esta data porque perfeitamente a determina a historia de Lalain<br />
<strong>com</strong>binada <strong>com</strong> a chronica dc lluy de Pina e os documentos da chancellaria<br />
de I). AlTonso V no archivo nacional. Chastcllain aflirma que o famoso caval-<br />
lciro fora recebido em Évora depois do mcz dc julho de 14ÍG. Kuy dc Pina<br />
c os documentos da chancellaria provam que cm Évora se achava cfícctiva-<br />
mente naqucllc tempo a côrte, c que só d'alli veio a partir cm princípios de<br />
l i 17 para as Alcaçovas, e ao depois para Santarém. Veja-se Chastcllain,<br />
ut .supra, cap. 37.° e 38.°; Ruy de Pina, Chron. dc D. Affonso V, cap. 87.°<br />
e 89.°, e arch. nac. da torre do tombo, liv. da chancell. de D. Affonso V.<br />
2 Os mesmos escriptores c documentos.<br />
3 Assim que Affonso V <strong>com</strong>pletou quatorze annos, o infante D. Pedro <strong>com</strong><br />
a lealdade cm que era typo junetou côrtcs em Lisboa (janeiro dc 1H6), c<br />
ahi entregou solemncmentc o governo a seu sobrinho perante osTres Estados<br />
reunidos na grande sala dos paços d'Alcaçova. O soberano quiz porem que<br />
o regente continuasse governando, c assim sc conservava, quando o caval-<br />
lciro Lalain esteve cm Portugal. Andados alguns mezes, AlTonso V recon-<br />
siderando, exigiu a entrega do governo que o infante para logo lhe volveu,<br />
seguindo-se os desastrosos successos que vieram a produzir a tragédia de<br />
Alfarrobcira. Kuy dc Pina, Chron. de I). Affonso V, cap. 8G.* c 88.°;<br />
Bibliothcca Nac. de Lisboa, sala dos mss. Cortes do reino, tomo II, pag. 27<br />
doe. do cartorio de Silves; José Liberato F. dc Carvalho, Essai historico-<br />
politique de la constitution ct du gouvernement dc Portugal, cap. iv, pag. 42.<br />
4 Veja-se Nota I no fim do volume.
20 í D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
tamo-nos a transcrever algumas das mais interessantes nar-<br />
rações do viajante que a 1). João II visitara, e <strong>com</strong> seus pro-<br />
prios olhos vira o que assim descreve:<br />
II<br />
* El-rei <strong>com</strong>o um senhor de alta intclligencia contenta-se<br />
<strong>com</strong> quatro, ou cinco pratos á sua mesa; bebe unicamente<br />
agua tirada do poço sem assucar nem especiarias, c passa<br />
sem outra coisa. O príncipe seu filho usa de vinho mesturado<br />
<strong>com</strong> agua, <strong>com</strong>e dos mesmos pratos que seu pac, mas em<br />
separado serviço. Oscreados da mesa que assistem a el-rei<br />
c a seu filho são geralmente em numero dc dez, estão de pé,<br />
collocados por ordem deante da mesa, apoiam sobre esta as<br />
mãos c os ventres, e el-rei, <strong>com</strong>o se fôra senhor humilde,<br />
sofire estas grosserias '.»<br />
«Debaixo da mesa e aos pés de el-rei estão sentados seis<br />
ou oito moços pequenos e a cada lado um para sacudir-lhe<br />
as moscas <strong>com</strong> leques de seda 3 . Entre ellcs reparte el-rei<br />
o seu primeiro prato de frueta, quando não pode <strong>com</strong>cl-o<br />
todo. Se não ha convidados á mesa, não sc serve de facas,<br />
e trinca <strong>com</strong> os dentes, ou parte <strong>com</strong> as mãos o pão, <strong>com</strong>o<br />
1 Tem razão o aiiclor-viajantc; mas para estas grosserias ha attenuante<br />
nas seguintes palavras de Ruy dc Pina: «<strong>com</strong>ia (el-rei) <strong>com</strong> tanto vagar e<br />
detença, que a elle fazia damno, c a todos que sua mesa aguardavam era dc<br />
tanto nojo e cançasso, que sem muyta pena, toda a não podiam soíTrcr nem<br />
aturar.» Pina, Chron. dc I). João II, cap. r.xxxn.<br />
2 Eram os mocos fidalgos Perpctuou-sc ainda durante séculos o mesmo<br />
costume.<br />
Vê-se que este uso existia na côrte já antes da descoberta da índia.
203 D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
faria el-rei de Polonia, ainda que tivesse faca juncto a si l .<br />
O filho dc el-rei usa de uma faca á mesa. São ambos ser-<br />
vidos em pratos e vasos ordinários, <strong>com</strong>o sc fossem príncipes<br />
de uma côrtc de pouca importancia.»<br />
«Naquella côrte existe um costume singular: beijarem a<br />
mão ao rei. •<br />
«A cidade de Lisboa será tão grande <strong>com</strong>o a de Colonia,<br />
ou Londres de Inglaterra 2 .»<br />
«De Lisboa a Satubcr 3 ha seis milhas. Alli encontrei<br />
el-rei de Portugal 4 . A entrada e juncto a uma das portas da<br />
villa pude colher um albergue <strong>com</strong> meus dois crcados na<br />
morada de um sapateiro.»<br />
Continua o auetor narrando (pie d esta casa fôra tirado<br />
por dois olíiciaes do paço que levavam ordem de somente<br />
repartir pelos (pie tinham-aposentadoria regia as pousadas<br />
da villa: Que vindo clle re<strong>com</strong>mcndado a um cozinheiro de<br />
el-rei (allcmão), este cm nada o auxiliara, e que por um bôbo<br />
da rainha, o qual faliava a lingua de Brabantc, lograra por<br />
fim albergar-se no que em Portugal chamam Stallassmn<br />
onde cada qual vive por seu dinheiro, bem ou mal 6 .<br />
1 Alludc o auetor allcmão a uma antiga practica seguida cm Polonia.<br />
2 Facto notável, e que hoje pareceria incri\cl.<br />
3 Setúbal.<br />
1 I). João II achava-se cflcctivamcnte naquelle tempo em Setúbal. Foi<br />
então que matou alli o duque de Vizcu. O auctor-viajanlc entrara cm Por-<br />
tugal, segundo refere, nos fins de julho (1484).<br />
' Estalagcm.<br />
c Entre muitos aecidcptes curiosos menciona o auetor este que lhe sue-
20 í<br />
Ao depois proseguc:<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
«Vendo eu que todos me desprezavam (não querendo que<br />
fosse ao paço) tomei a resolução de apresentar-me eu mesmo<br />
a el-rei ás horas do seu jantar l . Apenas me apercebeu per-<br />
guntou-me por intermédio de um doutor se me haviam desi-<br />
gnado pousada, accrescentando que tivesse paciência, c que<br />
depois de <strong>com</strong>er, S. M. me concederia audiência. Findo <strong>com</strong><br />
cííeito o jantar, el-rei mesmo me levou á sua camara. Alli<br />
proferi o meu discurso deante de el-rei, (pie mo acolheu e<br />
a mim proprio <strong>com</strong> muita graça 2 .»<br />
«El-rei entre todos os seus ó só c único senhor de alto<br />
merecimento.»<br />
«Em todo o tempo da minha rcsidencia (na côrte) man-<br />
dava chamar-me á sua mesa c egreja, c me honrava tanto,<br />
cedeu na estallagem: Deram-lhe alli um quarto para «'11c c os crcados. A meia<br />
noite quando já dormiam, entraram dentro do mesmo quarto moças alegres<br />
a<strong>com</strong>panhadas dc ladrões, c <strong>com</strong>eçaram a bradar: «Quem são es les ladrões<br />
que dormem no nosso quarto?» E logo alli por gosto dYlles o haveriam<br />
despachado, mas calmaram-se, c foram collocar-sc sobre as camas a par<br />
d'cllc e dos crcados, <strong>com</strong>eçando então a jogar os naipes (assim chamavam<br />
então ás cartas) c continuando até de manhã. A mesma ceremonia repetia-se<br />
nas noites seguintes. Popplau, loco citato.<br />
1 Não pareça extranho este facto. I). João II, <strong>com</strong>o atraz fica dieto, <strong>com</strong>ia<br />
em publico abrindo-sc as portas da sala apenas <strong>com</strong>eçava o jantar, c havendo<br />
livre entrada.<br />
2 Era então uso cm todas as córtcs de Europa qualquer indivíduo, adroit-<br />
tido á presença do soberano, dirigir-lhe um discurso, de ordinário mui longo.<br />
D'cssc antiquado uso provém ainda hoje os discursos que pronunciam os<br />
ministros plcnipotcnciarios ao entregar a credencial respectiva.<br />
•
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA m<br />
que á mesa me fazia sentar ao seu lado, e na egreja me<br />
conservava cm pé juncto á sua cadeira.»<br />
«Com este soberano me demorei até á véspera nalivitaíis<br />
Mariae (7 de setembro). Pela manhã me despedi d clle,<br />
accumulado de favores, de passaportes por mar e terra c de<br />
cem cruzados.»<br />
«0 thesoureiro recebeu ordem de <strong>com</strong>prar dois dos me-<br />
lhores mouros (pie se encontrassem, c em nome de S. M.<br />
oflereccu-nros dc presente. Mandei-os vestir desde logo,<br />
porque estavam nús <strong>com</strong>o Dcos os fez. Em sua terra não<br />
precisam vestir-se por causa dos grandes calores. Vivem dc<br />
mistura <strong>com</strong> os animaes l .»<br />
«Os portuguezes são folgasões, c não gostam de trabalhar.<br />
São entre si, c <strong>com</strong> o seu rei (cxccptuando os nobres), muito<br />
mais fieis que os inglezes. Não são tão cruéis, nem desas-<br />
sizados <strong>com</strong>o estes. Em suas <strong>com</strong>idas e bebidas são mais<br />
moderados, porém mais feios. Tem a côr morena c o cabello<br />
negro; usam capas negras e largas, unidas ás costas, <strong>com</strong>o<br />
os Agostinianos; poucas mulheres tem bellas. Parecem estas<br />
mais homens que mulheres, porém <strong>com</strong> olhos negros e for-<br />
mosos; em amores são ardentes <strong>com</strong>o as inglczas, quando<br />
necessitam intima confiança. Penteiam o cabello sem exag-<br />
gerados adornos, e cobrem o peito <strong>com</strong> um laço dc lã, ou <strong>com</strong><br />
um lenço de seda 2 . Deixam olhar livremente para o rosto, e<br />
1 O auetor allcmão designa sob o nome de mouros os negros da costa<br />
d'Africa. Aos mouros denomina pagãos.<br />
2 Ainda hoje N igora este uso nas classes baixas c principalmente no campo.
20 í D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
levam camisa c vestidos degolados ao ponto de que sc llies<br />
pôde ver a melado do seio descoberto. Da cinctura para<br />
baixo vestem muitas saias, o que as torna galantes e tão<br />
volumosas, <strong>com</strong>o nunca vi em outra parte. Não são tão<br />
amaveis <strong>com</strong>o as Lombardas ou as Franeezas.»<br />
«As casas não estão providas de mobília, nem de trastes<br />
de uso doméstico, nem tão limpas, <strong>com</strong>o as das referidas<br />
nações '.»<br />
Até aqui o viajante allemão. Em nome da verdade cum-<br />
pre-nos porém notar que um século adeante, e principalmente<br />
depois de descoberta a índia haviam aqucllas condições da<br />
sociedade portugueza feito radical mudança. Assim o prova<br />
a narração de outro viajante, o illustrado Thiago Sobieski<br />
(pae dc João Sobieski rei dc Polonia), que visitara Portugal<br />
cm 161 i. Diz elle em seu livro:<br />
«Entre os <strong>com</strong>merciantes (de Lisboa) encontram-se for-<br />
tunas fabulosas. No interior de suas casas surprehendcm as<br />
riquezas em lapizes e em pratas. Um <strong>com</strong>merciante portuguez<br />
por nome Dento preparou-me um aposento tão precioso, tão<br />
alcatifado e aromatisado de suavíssimos perfumes, que o<br />
proprio rei de Polonia haveria podido habital-o. Esta casa<br />
possuía preciosidades sem numero c cousas raras das índias.<br />
As lojas e casas de <strong>com</strong>mercio de Lisboa estavam cheias de<br />
similhantes objectos, e ao entrar dentro parecia que sc eslava<br />
vivendo naquelles paizes 3 .»<br />
1 Nicolaus vou Popplau, loco citato.<br />
2 Thiago Sobieski, Peregrinação, Irad. do polaco dc princípios do sc-<br />
culo XVII, apud Liskc, iv.<br />
J T. Sobieski, loco citato.
1). JOÃO I fc A ALLIANÇA INGLEZA 207<br />
Muitas outras circumstancias curiosissimas referem ainda<br />
aquelles viajantes dos seeulos xv e xvn acerca do viver c<br />
sentir da sociedade portugueza nos alludidos seeulos. Fol-<br />
garíamos de cilal-as todas, se espaço houvéramos, e dc sobra<br />
não fôra já o que fica escripto.<br />
Retomemos pois o fio da narração interrompida. Volvamos<br />
aos paços episcopaes do Porto, e sigamos o opulentissimo<br />
banquete <strong>com</strong> que, segundo fica dicto, o vencedor dc Alju-<br />
barrota celebrava—de bom ou máo grado—o auto solcinne<br />
do seu consorcio.
CAPITULO XXIY<br />
SOMMARIO. — Um banquete de nupeias na edade-media.— Entremeies.—<br />
Saltos e volteios.—Jograes portuguezes c mouros.—Danças.—As donas<br />
cantando ao redor da sala.—Dia c noite.—A ceia.—O passeio das tochas<br />
cm festa dc bodas.—Procissão á câmara regia.—As senhoras despem a<br />
noiva.—A<strong>com</strong>panhamento do noivo.—A benção do leito.—A copa nu-<br />
pcial.—O dia seguinte.—Torneios e justas reaes.—Vencedores cextran-<br />
geiros.—Prêmios e presentes.<br />
I<br />
Para aos usos medievaes ser em tudo consoante o ban-<br />
quete de nupeias, cuja descripção encetaramos, também nos<br />
inlcrvallos dos serviços culinários se realisaram entremezes.<br />
Não constaram estes de representações scenicas ou panto-<br />
mimas, nem cantores ou ministreis ensoavam altas musicas.<br />
Jogos variados de lruões e jograes trepando cm cordas e<br />
torneando mesas, preencheram os intermédios Neste jogar<br />
eram, <strong>com</strong>o vimos, insignes os portuguezes, c mais ainda os<br />
mouros agremiados pelas almuinhas deReslello, ou na mou-<br />
raria de Lisboa.<br />
1 «Em quanto o espaço do <strong>com</strong>er durou faziom jogos, á vista de todos,<br />
homens que o bem sabiom fazer, assi <strong>com</strong>o trepar em cordas & tornos dc<br />
mesas & salto real, e outras cousas de sabor.» Lopes, parte 11, cap. 96.°<br />
14
190 D. JOÃO I K A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Sabido é que sendo por lei defeso a mouros e judeus<br />
morar entre christãos, viviam cm bairro separado, no ex-<br />
tremo de cujas ruas havia correntes que as cerravam, quando<br />
tangia o sino da oração (ave marias). «Entre estes mouros,<br />
escreve o auetor do Ensaio sobre os poetas portuguezes, espe-<br />
cialmente da mouraria... havia muitos (pie tomavam o oflicio<br />
de truões, e grangeavam a subsistência fazendo habilidades<br />
e equilibrios pelas praças, ruas e casas particulares cantando<br />
cantigas arabes, o (pie muito divertia os ociosos 4 .»<br />
Em fins do século xv havia em Lisboa um celebre jogral<br />
mouro por nome Zaide, ao qual o poeta do cancioneiro<br />
D. Rodrigo de Monsanto em trovas dirigidas ao conde Prior<br />
do Grato alludia nos seguintes versos:<br />
«Dava tacs saltos, tão alto pulava<br />
Mais alto que Zaide bailando <strong>com</strong> touca 2 .»<br />
Ultimado o banquete nupcial, e levantadas mesas con-<br />
forme o uso do tempo, ergueram-se todos, e desde logo, e<br />
alli mesmo, donzellas e galantes <strong>com</strong>eçaram a dançar 3 , não<br />
mediante o vertiginoso arrôbamcnto das orchestras dc nossos<br />
dias, mas ao simples e cadcnccado som das canções, que as<br />
1 Costa c Sil\a, Ensaio, tomo i, cap. xxvi, pag. 206.<br />
2 Vejam-sc no cancioneiro dc Rezende as trovas do referido poeta, e<br />
Costa c Silva, loco citato.<br />
3 Na maxima parte dos banquetes durante a edade-media os convidados<br />
ficavam na própria sala depois da <strong>com</strong>ida, e nesse intuito levavam os var-<br />
letcs todas as mesas para ficar dcsempachada a sala e <strong>com</strong>eçarem as danças.<br />
Isto sc practicou, segundo refere a chronica, naquclla solemnidade.
D. JOÂÜ 1 K A ALLIANÇA INGLEZA 211<br />
donas sentadas em estrado mui baixo ao redor de toda a sala<br />
cantavam em coro <strong>com</strong> grande prazer<br />
Duraram tacs folganças o resto do dia entrando pela noite<br />
até á ceia. Após esta deu remate ao serão o passeio das<br />
tochas, dança rigorosamente prescripta para noite de bodas 2 .<br />
Cada cavallciro c escudeiro nobre tomou então <strong>com</strong>o par<br />
uma dama, e todos <strong>com</strong> tochas accesas nas mãos 3 procu-<br />
rando cada um apagar a (pie os outros levavam, e evitando<br />
que lhe apagassem a que trazia foram ao som da musica<br />
desfilando em passo harmonico atra vez das salas.<br />
Esta dança, ou antes passeio, era então acto obrigatorio,<br />
<strong>com</strong>o dissemos, cm noite de bodas.<br />
A ceremonia, tão cxtranha a nossos actuaes usos, seguiu<br />
outra mais cxtranha ainda, e não já profana senão sacra.<br />
Era a coróa das solemnidades matrimoniaes na edade-media.<br />
0 arcebispo de Braga empunhando o baculo, <strong>com</strong>o nobre-<br />
mente meneara a espada, c a<strong>com</strong>panhado pelos bispos e<br />
demais prelados, dirigiu-se processionalmente em toda a<br />
1 Lopes, loco citato.<br />
2 Lacroix, Moeurs et usages au Moyen-âge. verb. Jeux et divertissements,<br />
pag. 285.<br />
3 «Chaquc danseur porte en main un long cierge allumé, et a grand soin<br />
d'é\iter que ses voisins ne 1'éleignent en souíTIant dcssíis. Cetle danse, qui<br />
fui usitee jusqu'à la On du seizieme sièelc dans les fètes de eour, était géné-<br />
ralement réservée pour les noces.» Lacroix, Moeurs ct usages. verb. Jeux<br />
et divertissements, pag. 28o.<br />
4 Este uso medieval c ainda agora, <strong>com</strong>o todos sabem, reproduzido<br />
annualmcntc cm Roma ao cabir da noite de terça-feira dc entrudo na di-<br />
versão denominada «Imoccolelti.» O corso c as jancllas que o bordam são<br />
occupados por milhares dc pessoas tendo cada uma d*eslas uma vela na mão,<br />
que procura conservar accesa, e apagar as que os vizinhos tem da mesma<br />
fôrma, fc lueta incessante dc jogos e risos.
20 í<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
pompa do culto catholico aos aposentos regios, a fim de<br />
benzerem o leito nupeial. Precedia-os <strong>com</strong> tochas accesas<br />
toda a <strong>com</strong>itiva dc senhores e cavalleiros, inglezes c portu-<br />
guezes, c todos entraram na camara l .<br />
II<br />
No cmtanto, segundo praxe medieval que chegou quasi<br />
a nossos dias, as senhoras casadas haviam seguido c collo-<br />
cado no leito a nova esposa 2 . Também o noivo, a quem até<br />
á porta a<strong>com</strong>panhara folgasã a turba dc cavalleiros velhos<br />
c moços soltando as desregradas expressões e trocadilhos<br />
consoantes ao dia 3 , sc achava já deitado.<br />
0 arcebispo e demais prelados entrando enlão gravemente<br />
no aposento rezaram sobre os noivos, e os benzeram segundo<br />
costume de Ingraterra 4 .<br />
Também segundo costume de Inglaterra lhes foi logo oííe-<br />
recido precioso vinho do Douro na copa nupeial que ambos<br />
1 «KlHey se foi cm tanto pera sua Camara, & depois dc cca ao serão o<br />
Arcebispo & outros Prelados cõ muitas tochas acesas lhe benzerom a cama<br />
daquellas bençoens, que a Igreja pera tal auto ordenou.» Lopes, parte n,<br />
cap. 96.°<br />
2 «Au soir les dames couchérent la niariéc car à clles appartcnoit 1'oflicc.»<br />
Froissart, liv. h, cap. 229.®<br />
i Estes usos prevaleceram até 1834 em certa classe da sociedade portu-<br />
gueza. Assim que as senhoras casadas haviam despido a noiva, era o noivo<br />
levado cm triumpho pela cohortc galhofeira dos convidados até á porta da<br />
camara, c entrando clle, c cerrando a porta á chave, soltavam os dc fora as<br />
mais certeiras imprecaeões em altos brados. Estes prolongavam-se por longo<br />
espaço.<br />
4 Fernão Lopes, Chron.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
libaram, passando esta de mão em mão aos lábios dos que<br />
presentes eram ! : «E, accrcseenta a chronica, ficando el-rei<br />
<strong>com</strong> sua mulher, forom sc os outros pera suas pousadas.»<br />
Estas ceremonias dc todo ponto alheias a nossos dias,<br />
mas de incontroverso rigor historico, pozeram remate ás<br />
bodas dc D. João I.<br />
Achara-se em laes solemnidades também presente, <strong>com</strong>o<br />
dissemos, o bispo castelhano dc Aquis e de Jacn. Vindo<br />
noutr ora a Portugal <strong>com</strong> o conde de Cambridge em tempos<br />
dc el-rei I). Fernando, havia elle aqui realisado já benção<br />
nupcial idêntica 110 dia, em que o rei portuguez efieituara<br />
nos paços d alcaçova de Lisboa os esponsaes de sua filha<br />
herdeira que oito annos mal contava, <strong>com</strong> o filho do conde<br />
de Cambridge quasi da mesma edade.<br />
As duas crianças haviam durante o acto das bênçãos sido<br />
collocadas 110 mesmo leito, coberto este de uma colxa riquís-<br />
sima, que foi posteriormente dada a el-rei de Castella por<br />
occasião do seu casamento <strong>com</strong> a mesma infanta. «Era, diz<br />
a chronica, havida 110 reino vizinho por mui rica obra, qual<br />
outra hi nom havia \»<br />
Ao dia seguinte a horas dc véspera seguiram-se cm pre-<br />
sença da rainha c dc donas c donzellas inglczas e portuguezas<br />
1 Adams, Ilist. of England. tomo n, cap. viu. Vcja-sc Matrimoniopresso<br />
gli Ânglo-Sassoni, apud Fcrrario, tomo vi; Inghilterra, pag. 100.<br />
2 Lopes, Chron. delrei I). Fernando, cap. cxxx. Esta colxa era dc tape-<br />
çaria negra tendo cm meio, bordadas a pérolas, duas grandes figuras de rei<br />
e dc rainha. A bordadura de redor formavam-n'a arquetes dc aljofar <strong>com</strong><br />
figuras bordadas representando as linhagens dos fidalgos dc Portugal <strong>com</strong><br />
as armas dc cada um, tudo em alto relevo. Lopes, loco citato.
20 í D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
brilhantíssimos torneios c justas, onde, aflirma a chronica,<br />
•justavam c torneavom grandes fidalgos e cavalleiros, e outra<br />
gente nom Ás noites prolongavam-se as mesmas danças<br />
e cantarcs. Por quinze dias duraram estas festas rcaes<br />
Sobre o resultado das justas nada escreveu Fernão Lopes,<br />
mas assegura Froissart (pie foram grandes, fortes c bem jus-<br />
tadas, cabendo os prêmios entre outros a messire Jchan de<br />
Ilolland c a Vasco Martins dc Mello. Segundo o cstvlo olíe-<br />
receu el-rei valiosas dadivas aos extrangeiros que ás suas<br />
bodas haviam concorrido \<br />
Assim, <strong>com</strong> tacs alegrias e folgares, diz o chronista fla-<br />
mengo, foi acolhida festejada c desposada a rainha de Por-<br />
tugal 4 .<br />
1 Lopes, parte 11, cap. 97.°<br />
2 «Por quinze dias... duraram as festas c justas rcaes.» Lopes, loco citato.<br />
3 «Et y ot du roi aux étrangers bcaux dons donnés.» Froissart, liv. m,<br />
cap. 53.°<br />
4 Froissart, ut supra.
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CAPITULO XXV<br />
SUMARIO. — Invasão dc Castclla.—Partem cl-rci c seus cavallciros.—O<br />
duque sobre a fronteira.—Trás-os-Montcs.—Encontram-se.—Yicloria<br />
hypothetica.—Demora perniciosa.—A embriaguez dos ingleses e a ar-<br />
dcncia do clima.—A peste.—Outros flagcllos.—Mortandade horrível na<br />
hoste ingleza.—O rei de Portug.il cm terra inimiga.—Imponentes forras.<br />
— Os alliados e as princezas de Lancaster.—Transpõem a fronteira.—<br />
Tudo foge.—Terror nos inimigos.—Acode-lhes França poderosamente.<br />
— A defesa em Castclla.—Tactica ardilosa. — Carlos V c o duque de<br />
Lancaster.<br />
I<br />
Passara havia muilo o praso capitulado entre João I c o<br />
duque de Lancaster para junetos realisarem a invasão de<br />
Castclla.<br />
Ultimadas as festas, apressou-se el-rei a ir á frente dc<br />
seus cavallciros e homens d'armas reunir-se ao sogro, que<br />
já em Trás-os-Montcs o aguardava cerca da fronteira f .<br />
Oito mezes havia que o duque aportara cm Galliza, seguido<br />
de vinte mil inglezes considerados então, <strong>com</strong>o temos dicto,<br />
os primeiros pelejadores da christandade.<br />
1 Lopes, parte n, cap. 99.®
20 í<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Sc desde logo João de Gaunt unisse a sua ainda então<br />
potentissima hoste á que segundo o tractado dc Ponte do<br />
Mouro devia fazer prestes o rei de Portugal, e se os dois<br />
príncipes sem delonga, mediante o que no mesmo tractado<br />
sc estipulara, entrassem por Castella, haveriam facilmente<br />
colhido, <strong>com</strong>o já fica evidenciado, a conquista d aquelle reino,<br />
que em total carência sc achava então de capitães e gentes<br />
de guerra<br />
Mas a demora do duque em terras de Galliza c Portugal<br />
durante oito mezes de prolongado ocio foi de todo ponto<br />
fatal ao bom êxito de seus designios, dando causa a que os<br />
castelhanos sc fortificassem, e a que lhes chegassem de França<br />
os imponentes soccorros que haviam sollicitado *.<br />
Naquelle diuturno espaço, tão mal baratado pelo filho de<br />
Eduardo III, o abuso dos vinhos e a vchemcncia alcoolica<br />
destes 3 , prostrando-lhe pelas estradas cm contínua embria-<br />
guez homens d armas e archciros 4 , a ardencia do clima alta-<br />
mente nocivo ao temperamento inglez 5 , a peste, a dysenteria<br />
exacerbada <strong>com</strong> o apparecimento do estio 6 , as febres clima-<br />
1 Froissart, liv. III, cap. 78.°; Mariana, Ilist. dc Espaiia; Lafuente,<br />
parte II, liv. III, pag. 379, 1 edição.<br />
2 Froissart, liv. III, cap. 78.°<br />
3 «Les vins ardents ct forts lcur rompoient les letes, ct scchoicnt les<br />
entrailles.» Froissart, loc. cit.<br />
1 «Ccs archcrs buvoicnt tant qu'ils se couchoicnl lc plus du temps ivres.»<br />
Froissart, liv. m, cap. 23.°<br />
1 «Anglois étoicnt là nourris d*ardcur ct dc chalcur.» Froissart, liv. III,<br />
cap. 78.°<br />
6 «IIuus morriom dc pcstclcnca & outros dc corrcnca.» Lopes, parte»,<br />
cap. 100.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
tericas 1 e a malquerença das povoações 2 dizimaram a hoste<br />
do duque ao ponto dc, quando entrou por Castclla, só lhe<br />
restarem seiscentas lanças e seiscentos archciros. Mais de<br />
dois terços dc suas gentes haviam perecido victimas dos<br />
indicados flagellos 3 .<br />
Por sua parte ostentava-se o rei portuguez caudilhando<br />
forças numerosíssimas para a estreiteza do reino, e supe-<br />
riores em quasi o dobro ás que, segundo o tractado de Ponte<br />
do Mouro devia presentar. Obrigara-se el-rei a soccorrcr o<br />
duque seu sogro <strong>com</strong> duas mil lanças, mil besteiros e dois<br />
mil peões. Em vez d isso poz em campo tres mil lanças, dois<br />
mil besteiros e quatro mil peões. Quasi o dobro.<br />
Era a primeira vez que o pendão glorioso do vencedor<br />
entrava terra de inimigos. Devia manifcstar-sc-lhcs temeroso<br />
c grande. Sc em batalha campal o aguardassem, cumpria<br />
que certa fosse contra elles a victoria.<br />
Não sc aíToitaram a tanto os castelhanos.<br />
Reunidas cerca dc Bragança as duas hostes alliadas A , c<br />
a<strong>com</strong>panhado sempre o duque de sua esposa c filhas (á ex-<br />
cepção de Filippa que sendo já rainha de Portugal ficara em<br />
1 «lis mourroient sur lc chcmin dc chaud... avoient... fievres ct frissons<br />
par les grandes chaleurs.» Froissart, loco cituto.<br />
2 «I)'ellcs matauom por esses boscoens óc dcuczas os que achauom andar<br />
buscando manlimento pela terra.» l.opcs, parte 11, cap. 100.°<br />
3 í.opcs, loco citai o.<br />
4 Froissart cm seu invariável costume dc alterar os nomes chama a Bra-<br />
gança Auranche, c Ruchon corrigindo-o incorreu também em equivoco<br />
emendando Auranche por Orensc. A esta cidade em Galliza nunca foi<br />
D. João I.
20 í<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
Coimbra'), transpozcram finalmente portuguezes e inglezes<br />
a fronteira inimiga em fins de março (1387) entrando por<br />
terra de Alcanizes 2 .<br />
Ninguém encontraram que lhes tolhesse o passo. Tudo<br />
ante os adiados havia fugido.<br />
II<br />
Escarmentado pelos anteriores revezes, devancando-lhc<br />
a mente, <strong>com</strong>o visões terríveis, Aljubarrota, os Atoleiros,<br />
Valvcrde e Trancoso, não ousara o rei inimigo sahir ao<br />
encontro dos invasores. Pelo contrario 3 .<br />
A vinda dos inglezes contra Castella atterrara por tal arte<br />
o filho de Henrique de Trastamara, que mal soube que o<br />
duque de Lancaster se determinara a sahir dc Inglaterra<br />
1 Lopes, parte u, cap. 99.°<br />
2 Diz Fcrnão Lopes que os alliados passaram a raia a 25 dc março. fc<br />
equivoco. No dia 26 estavam ainda cm Portugal, pois nesse dia na aldeia<br />
dc Babe, termo dc Bragança, firmaram o duque c a duqueza um acto de<br />
cessão perpetua a D. João I dc quaesquer direitos que podessem haver sobre<br />
os senhorios dc Portugal. Veja-se o respectivo documento em Soares da<br />
Silva, Memórias de el-rei I). João /, tomo iv, docum. xi, pag. 67.<br />
Taes cedencias, c ainda as que menos razão tinham dc ser, tornavam-se<br />
freqüentes naquellas eras. Depois de velha c clausurada a Excellente Se-<br />
nhora cedia as coroas dc Castella c Leão cm favor dc D. João III dc Por-<br />
tugal. A herança não valia o custo do pergaminho que a continha. Existe<br />
o documento original na torre do tombo, gavet. 13, masso 9, c está im-<br />
presso cm Sousa, Provas á hist. genealog. da easa real, tomo II, doe. 13.<br />
1 «EIRcy dcCastcla avisado por la perdida pasada nõ sc queria arriscar...<br />
dc venir a bajalla.» Mariana, Ilist. dc Espaiia, liv. XVIII, cap. 12.°
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 19o<br />
enviou <strong>com</strong> a maxima instancia pedir a França quantos<br />
soccorros podcssem dar-lhe<br />
Partiram d'este reino em continente diversos capitães<br />
caudilhando as terríveis <strong>com</strong>panhias de aventureiros que<br />
enormes estragos vieram ao depois a causar em Castclla e<br />
principalmente na Galliza<br />
A maxima parte dos senhores e cavallciros francczcs<br />
achava-se então ao norte do territorio, dedicados todos, <strong>com</strong>o<br />
atraz fica dicto, á projectada invasão dc Inglaterra. Assim<br />
porém que abortou a grande idèa, concorreram clles dc toda<br />
França cm auxilio dc Castclla e 110 intuito de guerrear os<br />
inglczcs. O proprio Carlos VI então reinante enviou seu tio<br />
o duque de Bourbon <strong>com</strong> duas mil lanças. Chegou tarde 3 .<br />
No cmtanto por conselho dos primeiros capitães francczcs<br />
que ao serviço de João de Castclla foram assoldadar-se, <strong>com</strong>o<br />
referimos, mandara elle arrasar todas as povoações chãs, e<br />
que os habitantes <strong>com</strong> seus haveres e quantos mantimentos<br />
pelos campos se encontrassem os recolhessem nos logares<br />
acastellados 4 .<br />
Ordenara mais o rei inimigo que fossem esses logares<br />
quanto possível fortificados e guarnecidos, não só pelas innu-<br />
meras <strong>com</strong>panhias de aventureiros francczcs que em seu<br />
1 «Et mandoit souvent son élât... en Francc cn priant que on lui volsist<br />
envoyer grands gents d'armcs pour aider à défendre et garder son royaumc.»<br />
Froissart, liv. m, cap. 37.°<br />
2 Froissart, liv. m, cap. 35.°<br />
3 «Et disoient-on que c'étoit per reconfortcr 1c roi d'Espagne, et mcttrc<br />
hors les Anglois dc son pays.» Froissart, liv. m, cap. 50." Vejam-se Ayala,<br />
Lafuentc, Fcrnão Lopes e demais historiadores.<br />
4 Froissart, liv. w, cap. 33-°
2 0 í<br />
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
auxilio iam chegando 4 , senão ainda pelos moradores de Leão<br />
c Castella conccdendo-se o fôro de fidalgo a cada um dos<br />
que em tal conjunctura viesse servir <strong>com</strong> armas c cavallo.<br />
«Tal era o aperto», diz um sezudo escriptor liespanliol \<br />
Tão extranha concessão foi posteriormente confirmada<br />
pelas côrtes de Palcncia (1388).<br />
Rcalisadas as determinações referidas, deixava o caste-<br />
lhano todo o territorio devassado aos inimigos, mas inteira-<br />
mente desprovido de mantimentos 3 .<br />
Realisaria a fome o que não haviam podido lograr as<br />
armas. Era a tactica ardilosa do arteiro filho de João, o bom<br />
Carlos V, o advogado, <strong>com</strong>o zombctcando lhe chamava o<br />
duque de Lancaster \<br />
1 «Et cut là grande chevalerie dc Francc.» Froissart, liv. III, cap. 58.°<br />
2 Mariana, Ilist. gen. dc Espaiia, liv. xvm, cap. x, pag. 31o.<br />
3 «Nous nc les pouvons micux dcconfirc que dc nom <strong>com</strong>battrc.»<br />
«Laira-t-on les Anglois ct les Portingalois allcr ct venir parmi le pays<br />
de Castillc. Ils n'cmportcront pas lc pays quand ils s'cn iront.»<br />
Estes alvitres apresentados no conselho do rei castelhano foram suggc-<br />
ridos pelos famosos capitães Lignac, c de Passac, os quaes removido o pro-<br />
jccto dc invasão á Inglaterra, enviara <strong>com</strong> suas <strong>com</strong>panhias o rei de França<br />
por vanguarda das forças que seguiriam, <strong>com</strong>o effectivamcntc seguiram o<br />
duque dc Bourbon. Froissart, liv. III, cap. 50.° c 58.°<br />
4 A este proposito conta Christine dc Pisan a seguinte aneedota: «En la<br />
prcsencc... du roy d'Anglcterrc cschut à parlcr du roy dc Francc; si v ot<br />
aucuns barons qui distrent que c'cstoit un moult sage princc; dont alors lc<br />
duc dc l.ancastre va dirc «que ce n'estoit que un advocat.» Quant lc roj<br />
Charles ot oy cc conte dire... il respondy en souriant. «Et sc nous sommcs<br />
advocat, nous leur bastirons tel plait dont la scntcnce leur cnnuycra.» Livre<br />
desfaits... du sage roy Charles V, parte ni, cap. xxix, edit. Pctitot, tomo vi,<br />
Pag. 58.
D. JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA 19o<br />
Essa tactica havia eflecti vãmente salvo poucos annos antes<br />
a França inteira depois das assombrosas rotas de Crécv e<br />
Poitiers. Ao mesmo syslema recorria agora o attribulado<br />
senhor de Castclla.<br />
Vejamos entretanto <strong>com</strong>o procediam os alliados que, trans-<br />
posta a fronteira portugueza, pisavam já terra inimiga.
CAPITULO XXVI<br />
SIMMARIO.—Avnnram os alliados.—A festa dc Ramos.—Bcnavcnlc.—Um<br />
mez dc ccrco.—Portas cerradas.—Castclla inabalavel.—Rarcam os in-<br />
glezes.—A peste c o clima.—É! o duque desamparado dos seus. Adoece.<br />
— Incólume a hoste portugueza.—A fome.—Passagem do Douro.—In-<br />
glczcs salvam-se atravez dc Castclla.—Portuguczcs mantém o duque de<br />
Lancaster.—Nobre acção dc 1). João I.—Terror nos castelhanos.—Sua<br />
astucia.—A vinda do duque infruetifera a Portugal.—Propõe-lhe pazes<br />
o castelhano. Condições.—João de Cuunt perdulário.—Acode-lhc el-rei.<br />
—1'ransportam-n'o gales portuguezas. — Seis supprcm cento e trinta.<br />
—A frota de Portugal vai servir Inglaterra.—Convenção opprobriosa.—<br />
Em vez de seis quinze mezes.—Fcrnão Lopes confutado.—Reciprocidade<br />
ingleza.<br />
J<br />
Entrados por Castclla portuguezes e inglczes, sem que<br />
força alguma adversa ousasse tolher-lhes passo, dirigiram-se,<br />
coino dissemos, a terra de Âlcanizes. Partindo cm continente<br />
foram juneto á ribeira dc Tavora pernoitar. Naquellas cer-<br />
canias passaram o dia seguinte, que era festa de Ramos.<br />
Em seguida marcharam; e avançando sempre até Benavento<br />
de Campos (quatorze léguas além do extremo), abi ao cabo<br />
dc dois dias de marcha assentaram arraiaes f .<br />
Era Benavente cidade acastellada, e mui defensável. Du-<br />
1 Lopes, parte u, cap. 100.°
20 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
rante um mez a cercaram. Embalde. Escaramuças quasi<br />
diarias, freqüente correr pontas l , eis o constante lidar, ou<br />
antes desenfadamento exclusivo de siliadores e sitiados.<br />
Nunca estes porém abriram portas aos invasores. Idêntica<br />
reserva guardaram outros logares fortes. Algumas villas c<br />
aldeias chãs que não podiam <strong>com</strong>o laes ter-se em defesa,<br />
eis tudo quanto lograram haver cm mão os alliados.<br />
Nem um só castelhano alçava o pendão dc Lancaster.<br />
Todo o reino mantinha firme a voz dc João de Castclla.<br />
«Ninhuma villa, diz Fcrnão Lopes, nom se movia a receber<br />
o duque por senhor, nem outros logares, nem gentes ne-<br />
nhumas... Todo o reino em hum era contra cllc.» Perdida<br />
devia reputar-se pois a sua causa.<br />
Accrcsce que as relíquias da hoste inglcza que ainda o<br />
a<strong>com</strong>panhavam, eram cada dia mais disimadas pelos íla-<br />
gcllos atraz referidos, c — sobre todos — pelas febres ma-<br />
lignas e pela epidemia reinante 2 .<br />
#<br />
A terrível enfermidade succumbiram muitos dos principaes<br />
senhores de Inglaterra, <strong>com</strong>o o proprio marechal da hoste,<br />
1 Ifavia essencial differença entre correr pontas e escaramuças. Estas<br />
eram refregas accidcntaes mais ou menos violentas que se davam entre<br />
diversos troços de gente inimiga. Correr pontas eram contendas singulares,<br />
<strong>com</strong>o justas, rcalisadas a mão armada entre guerreiros dos dois campos em<br />
espectaculo solcmne, a que uns c outros assistiam, suspensas momentanea-<br />
mente as hostilidades. Estas diversões medievaes occorriam dc ordinário<br />
durante o cerco de qualquer logar fortificado.<br />
2 «Maladic Ies prit. Chaleurs, fievres et froidures les menèrent jusqu'à<br />
la mort.» Froissart, liv. m, cap. 79.°<br />
A epidemia era a terrível peste bubônica. Veja-se Réligieux dc S. 1 Dcnis,<br />
Chron. dc Charles VI, liv. VII, cap. 6.°
225 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
Ricardo Burley Henrique Pcrcy irmão do almirante Thomnz<br />
Percy, o senhor dc Talbot, c centenas de outros. De archciros<br />
c meudas gentes pereceram mais de quinhentos. Causa horror<br />
a dcscripção que destas mortes presentam os escriptores<br />
coctaneos<br />
Os poucos inglezes que iam sobrevivendo á catastrophe<br />
anhelavam por salvar-se desamparando o duque. Isto pra-<br />
cticaram sua própria filha c genro, João de Ilolland condes-<br />
tavel da hoste ingleza. Grande maravilha causou a D. João I<br />
que cm laes momentos volvessem costas ao príncipe sua<br />
filha e o condestavel do seu exercito.<br />
Um e outra, obtido seguro do rei de Castella, atravessaram<br />
este reino caminho de Aquitania 3 .<br />
Conta Froissart que Ilolland, vendo o desbarato a que<br />
haviam chegado os inglezes na península, aconselhara o duque<br />
seu sogro que a todos desse permissão dc se ausentarem,<br />
dissolvendo-se assim dc vez a expedição britannica. Accres-<br />
cenla que. obtida a licença, e ao som de trombetas publicada<br />
por todo o arraial, enviara o irmão de Ricardo II emissários<br />
ao rei de Castella pedindo seguro para os seus atravessarem<br />
aquelle lerritorio, e que, ficando mui contente o rei por se<br />
ver ao abrigo de laes adversarios, concedera sob certas con-<br />
dições o seguro sollicitado.<br />
1 Sobrinho c herdeiro do famoso Simão Burley, um dos privados de<br />
Kicardo II c que maior poder teve cm Inglaterra, sendo a final degollado cm<br />
quanto o sobrinho sc achava nesta guerra de Castella. Froissart, liv. III,<br />
cap. 70.°<br />
2 «Morurcnt dc la morille douze barons d*Anglctcrrc ct bien quatre vingts<br />
chcvalicrs ct plus dc dcux cents ccuycrs, tous gentils hommcs... d'archcrs<br />
cl tclles gens plus dc cinqcents.» Froissart, liv. III, cap. 70.°<br />
3 Walsingham, Historia brevis, pag. 342; Lopes, parte II, cap. 113.°<br />
1M O
Eram as condições:<br />
d. joão i k a alltança ingleza<br />
Que os inglczcs despiriam as armaduras ás porlas de<br />
qualquer cidade 011 villa cm que entrassem, e que jurariam<br />
não mover guerra a Castclla durante cinco annos l .<br />
Sob taes auspícios mais de mil cavallciros c muitos dos<br />
mais distinctos barões de Inglaterra, incluindo o proprio almi-<br />
rante, atravessaram então o territorio inimigo para se colherem<br />
a salvamento.<br />
Os que mais terríveis que leões eram no lidar das batalhas<br />
fugiam agora afracados e temerosos ante os calores e as enfer-<br />
midades 2 .<br />
A final o duque adoeceu também gravemente. Em França<br />
chegaram a dal-o por morto 3 .<br />
Incólume se encontrava cm tanto a luzida hoste dos por-<br />
tuguezes, isentos da infecção c habituados ao clima \<br />
A fome sobreveio <strong>com</strong>o derradeiro ílagcllo 5 . Não encon-<br />
travam já os invasores onde forragear c . O pouco que hou-<br />
1 Froissart, liv. m, cap. 80.° a 82.°<br />
2 «II n'y avoit si preux si riche ni si joly que il ne fut en grand eflfroi<br />
dc lui mème, et qui attcndit autre chosc que Ia mort.» Froissart, liv. iu,<br />
cap. 79.°<br />
3 «Le duc chey en langucur et en maladie... tres pcrillcuse.» Froissart,<br />
liv. ni, cap. 81. Veja-se Duchesnc, Ilist. d'Angleterre, liv. xvi, § 12.°,<br />
pag. 928.<br />
4 tCcux dc Portugal portoient assez bien celtc peine, car ils sont durs<br />
et secs ct faits à l'air dc Castille.» Froissart, liv. m, cap. 79/<br />
4 «Famis acerbitate vigente perierunt.» ltéligicux dc S. 1 Denis, Chron.,<br />
liv. vn, cap. C).°<br />
6 Froissart, liv. m, cap. 79.°
d. joão i k a alltança ingleza<br />
vera csgotara-sc. Os castelhanos haviam encelleirado o<br />
resto l .<br />
Coagidos por força maior, accordaram-se então osalliados<br />
em voltar a Portugal; e porque não j)arecesse que desistiam<br />
da guerra, seguiram outro caminho cortando por sueste sobre<br />
Villalpando. A duas léguas, norte de Çamora, passaram o<br />
Douro, desceram a par de Ciudad Rodrigo, c vieram por<br />
Almeida a entrar no reino 2 .<br />
Foi, <strong>com</strong>o hoje se diria, uma campanha circular.<br />
A hoste ingleza csvaccera-sc, conforme notaramos, sal-<br />
vando-se cada um <strong>com</strong>o possível lhe foi atravez de Castella.<br />
Ficara I). João I <strong>com</strong> o seu lustroso exercito que por meio<br />
do terrilorio inimigo a<strong>com</strong>panhavam lealmente o duque de<br />
Lancaster.<br />
Em defesa d'esle príncipe queria o monarcha portuguez<br />
a todo transe continuar a guerra sómente <strong>com</strong> os seus caval-<br />
leiros c homens darmas. Tão nobre decisão que os nossos<br />
historiadores ignoraram, <strong>com</strong>prova-a o testemunho insuspeito<br />
do chronista inglez contemporâneo 3 . Não a consentiu o<br />
generoso filho de Eduardo III.<br />
Era tal porem o terror que os vencedores de Aljubarrota<br />
infundiam por toda a parte, que não ousaram jamais os cas-<br />
1 «II n'y avoit ni chien, ni chat, ni coq, ni geline (gallinha), ni hommc,<br />
ni femme; tout ctoit gaté, ct desamparé.» Froissart, loco citato.<br />
2 Lopes, parte 11, cap. 110.° c 113.°, e Froissart, liv. III, cap. 79.°<br />
3 «Hex Portugaliae (ait) Anglici vostri... ad hostes rccedunt... vadani<br />
ergo & manus conseram & nullum cx eis in \itam relinquam.» Walsingham,<br />
Hist. brevis, pag. 3Í2.<br />
*
t). joao ij: a alliançá inclezà<br />
iclhanos approximar-se d'cllcs. A respeitosa distancia se iam<br />
conservando, apezar dc lerem já então lorças mui superiores<br />
<strong>com</strong>postas dos numerosos auxiliares francczcs sob o mando<br />
de distinclos capitães, cujo principal cabeça era Olivicr<br />
Duguesclin, irmão do celebre condeslavel d'este nome, fal-<br />
lecido havia poucos annos<br />
A campanha abortara. A astucia do castelhano, desam-<br />
parando o lerritorio máo grado á superioridade das forças,<br />
logrou o que não houvera podido rcalisar sahindo a campo.<br />
A vinda do duque dc Lancaster cm nada aproveitou pois aos<br />
interesses dc Portugal, <strong>com</strong>o asseveraramos.<br />
II<br />
Tornado a nosso reino João dc Gauní accedeu por sua<br />
parte a vantajosos capítulos de paz que lhe foram propostos<br />
pelo rei de Castclla. Com este veio a concertar um tractado<br />
cedendo de suasphantasiosas pretenções á corôa, e cm troco<br />
dando em casamento Catharina, sua filha e de 1). Constança,<br />
ao herdeiro de Castclla. Mais recebeu o duque e sua mulher<br />
valiosas sommas <strong>com</strong>o indemnisação, e uma pensão vitalícia<br />
0 que fica exposto demonstra evidentemente, repetimos,que<br />
da vinda do duque de Lancaster, e da confederação firmada<br />
1 Froissart, liv. m, cap. 79.°<br />
2 A indemnisação foi de scisccntos mil francos, c de quarenta mil a pensão<br />
que annualmentc recebiam. Vejam-se os rcspecti\os historiadores.
229 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
<strong>com</strong> Inglaterra ( ( J de maio 1380) não resullou vantagem<br />
alguma a Portugal.<br />
Pelo contrario.<br />
Cavallciro <strong>com</strong>o os que mais aprimorados eram, ligado ao<br />
príncipe inglez por vínculos dc alíinidade estreitíssima, foi<br />
ainda João I moralmente obrigado a emprestar a seu sogro,<br />
um dos perdulários d aquelle século, sommas consideráveis<br />
cm prata e oiro, de que nunca lhe pediu retribuição, e (pie<br />
nunca provavelmente o duque llie satisfez Além d'isso<br />
prestou-lhe el-rei navios que a terra ingleza o levassem <strong>com</strong><br />
os que ainda o seguiam á .<br />
Sem contar a frota portugueza que de Inglaterra a<strong>com</strong>-<br />
panhara o duque dc Lancasler cm sua vinda á península,<br />
cenlo e trinta velas haviam sido então indispensáveis para<br />
transportar os vinte mil pelejadores (pie lhe obedeciam. Agora<br />
apenas seis galésbastaram para o conduzirem <strong>com</strong> os poucos<br />
que lhe restavam, e iam todos, diz a chronica, mui folgada-<br />
mente 3 .<br />
A estas galés—<strong>com</strong> pesar o mencionamos — dava con-<br />
serva sob o mando dc AlTonso Furtado, capitão do mar \ a<br />
luzida frota <strong>com</strong> que a nação portugueza, mediante a recente<br />
convenção que os seus embaixadores haviam capitulado cm<br />
Londres, <strong>com</strong>o referimos, ficara obrigada a servir á sua custa<br />
1 «Emprestou ao duque assaz dc prata... c dois mil & duzentos nobres...<br />
e nom lhe requcrco dcllo pagamento.» Lopes, parte 11, cap. 118.°<br />
2 Lopes, parte 11, cap. llí). 0<br />
3 Lopes, loc. cit.<br />
4 Lopes, parte n, cap. 112.°
230 D- JOÃO I E A ALLIANÇA INGLEZA<br />
por seis mezes successivos, ou durante dois verões, a Ingla-<br />
terra, quaes a Inglaterra escolhesse.<br />
Eflectivamente a frota portugueza foi servir Inglaterra, e<br />
neste serviço permaneceu, não por seis mezes, não por dois<br />
verões, mas por quinze mezes ininterruptos.<br />
0 arteiro Fcrnão Lopes que mui adrede occultara esle<br />
facto, c que—segundo já notámos — inulilisaria acaso a<br />
íntegra da convenção que o estabelecera, é sobre o mesmo<br />
facto não só <strong>com</strong>pletamente refutado pelo chronista inglcz<br />
Walsingham, seu contemporâneo, aflirmando este que o rei<br />
de Portugal enviara ao de Inglaterra uma frota de seis galés<br />
para o soccorrer c amparar contra os seus inimigos l , mas<br />
ainda ó o proprio chronista portuguez obrigado a refutar-se<br />
manifestamente a si mesmo nas seguintes notáveis palavras:<br />
«AfTonso Furtado se partiu d'aquelle logar (Bayonna) para<br />
Inglaterra por servir a EIRey, <strong>com</strong>o d'antes fôra concordado,<br />
andando por lá espaço de quinze mezes i .»<br />
Ora, as palavras «<strong>com</strong>o dantes fôra concordado» refe-<br />
rem-se á convenção para o serviço das galés á Inglaterra,<br />
convenção que os embaixadores portuguezes haviam naquelle<br />
tempo firmado cm Londres, <strong>com</strong>o dissemos, e que o astuto<br />
chronista nem uma vez mencionou.<br />
0 serviço de el-rei, a que o mesmo chronista alludc, era,<br />
<strong>com</strong>o também dissemos c provámos, c <strong>com</strong>o antes de nós<br />
também disseram e provaram os escriptorcs e documentos<br />
1 «Kcx Portugaliac misit regi Angliac sex Galcyas, ut adjuvarent eum,<br />
ct essent illi sola tio contra hostes suos.» Walsingham, Historia brevis,<br />
pag. 318.<br />
2 Lopes, parte II, cap. 127.°
231 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
que citámos, serviço directo c exclusivo dc homens, armas e<br />
navios portuguezes á Inglaterra durante o espaço de quinze<br />
mezes, a expensas dc Portugal, c sem que na mínima <strong>com</strong>-<br />
pensação nos retribuíssem.<br />
Tacs foram á luz da historia os resultados que nos pro-<br />
vieram então da alliança ingleza. Tal foi a reciprocidade que<br />
nos outorgaram os nossos alliados.<br />
#
CAPITULO XXVII<br />
SUMMABIO.—Retrospecto.—D. João I e a Inglaterra.—Único serviço que<br />
Portugal colheu.—Quaes prestou. Sua importancia.—Valiosos soccorros<br />
ao duque dc Lancaster.—Allianças <strong>com</strong> Inglaterra infruetiferas.—O reino<br />
libertado por esforços próprios.—Portugal jungido á influencia britan-<br />
nica.—A verdade pelos documentos.—Política externa de D. João I.—<br />
Erros.—Continuação ate os nossos dias.—Systcma utilitário dc Ingla-<br />
terra.—Seu proceder <strong>com</strong> Portugal.—Abusos c resultados.—Dilcmma<br />
fatal.—A historia c o volver dos séculos.—Apreciações inexactas.—Con-<br />
seqüências.<br />
I<br />
Quando o regente dc Portugal, a braços <strong>com</strong> diflieuldades<br />
quasi invcnciveis, buscou o auxilio de Inglaterra para fazer<br />
facc a Castella inteira, c ainda aos que no interior do reino<br />
mantinham voz pelo extrangeiro, logrou este reino somente<br />
a concessão temporaria de recrutar por sua conta algumas<br />
gentes inglozas pagas á custa de Portugal.<br />
Esta vantagem, aliás mui inferior ás que cl-rei I). Fer-<br />
nando oblivera no anterior tractado, foi a única em verdade<br />
que da alliança ingleza colheu Portugal sob o governo dc<br />
I). João I.<br />
Em <strong>com</strong>pensação grandes e mui gravosas foram as des-
d. joão i k a alltança ingleza<br />
vantagens <strong>com</strong> que a mesma alliança veio então onerar a<br />
nação portugueza.<br />
Pela convenção que os embaixadores do regente firmaram<br />
em Londres, <strong>com</strong>o largamente referimos, ficou a nação obri-<br />
gada a ir <strong>com</strong> dez vasos armados em guerra soccorrer, a<br />
expensas suas e por seis mezes, ou durante dois verões, a<br />
Inglaterra.<br />
Cumpre notar que este soccorro não sc limitou somente<br />
a seis galés, <strong>com</strong>o aííirmou o chronista inglez atraz citado.<br />
Compunha-o uma frota de dez galés <strong>com</strong>pletamente esqui-<br />
padas e armadas em guerra abrangendo o numero, assaz<br />
valioso para o tempo, dc dois mil trezentos e quarenta<br />
homens entre tripulantes c pelejadores. Assim o prova o<br />
proprio documento olíicial a que nos temos referido, e que<br />
o leitor encontrará integralmente exarado em a Nota E do<br />
presente volume.<br />
Accresce que o oneroso soccorro que assim gratuitamente<br />
prestámos á corôa ingleza foi ainda aggravado <strong>com</strong> a duração<br />
de quinze mezes ininterruptos.<br />
Mais. Pelo artigo 1 da convenção de 9 dc maio (1380)<br />
entre Portugal e a Grã-Bretanha estipulara-se (pie um dos<br />
dois Estados seria obrigado a prestar auxilio c soccorro ao<br />
outro contra todos os que intentassem destruil-o.<br />
Em porfiada guerra <strong>com</strong> Castella se achou durante muitos<br />
annos a nação portugueza, e jamais a Inglaterra além da<br />
concessão feita a Portugal para por conta própria recrutar<br />
algumas gentes, lhe prestou qualquer outro soccorro de es-<br />
pecie alguma.
235 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
Ainda mais. Com o duque de Lancaster concluirá D. Joãol<br />
outro tractado egualmcnte oneroso, obrigando-se a scrvil-o<br />
durante oito mezes consecutivos, e a entrar por Castella <strong>com</strong><br />
imponente exercito capitaneado cm pessoa pelo proprio rei,<br />
c á sua custa mantido.<br />
Mallograda a invasão de Castella e dc regresso ao reino,<br />
foi ainda el-rei moralmente constrangido a emprestar ao sogro<br />
valiosas sommas, c a provel-o—a expensas próprias—de<br />
galés e gentes que a terra ingleza o transportassem <strong>com</strong> os<br />
que lhe restavam.<br />
Importa ainda notar que a alliança <strong>com</strong> o duque dc Lan-<br />
caster, e anteriormente a confederação dc 9 dc maio <strong>com</strong> o<br />
governo inglez, haviam sido estabelecidas, quando já Portugal<br />
inteiro se achava libertado do jugo castelhano, e o inimigo<br />
exhausto de forças para continuar a guerra, cm consequencia<br />
dc ter durante cerca de quatro annos de lueta incessante e<br />
dc contínuas rotas perdido a flor de seus capitães e a quasi<br />
totalidade de seus homens d'armas.<br />
Portugal, j ungido assim á influencia ingleza, c sem dessa<br />
influencia haver logrado vantagem importante, ficara solc-<br />
mnemente obrigado a servir, <strong>com</strong>o elíectivamentc serviu, á<br />
sua custa, por mar c por terra, <strong>com</strong> gentes, armas e navios<br />
os interesses da nação britannica, ou antes o pendão deseus<br />
príncipes. E esta a verdade, verdade amarga, mas colhida<br />
nos irrefragaveis documentos que deixamos historiados.<br />
Uma prcoccupação, terrível cm si, c mais ainda nas con-<br />
seqüências desastrosas que durante séculos sc lhe tem sc-
230 t). joão i e a alliança ingleza<br />
guido, foi então pelo governo de I). João 1 inaugurada <strong>com</strong>o<br />
systema invariavel, mas fatal, na política externa da nação<br />
portugueza.<br />
Apezar de totalmente derrotados, já os castelhanos pelo<br />
sobrenatural esforço de nossas hostes, apezar de aniquilado<br />
<strong>com</strong>pletamente o poderio dc nossos inimigos, e portanto<br />
reduzidos estes á impossibilidade de nos assoberbarem,<br />
apezar de se achar a cruz íloreteada de Aviz íluctuando in-<br />
vencível em toda a extensão dc Portugal e Algarves, e asse-<br />
gurada assim desdeo Minho áfoz do Guadiana a indepcndcncia<br />
da nação c a integridade de seu territorio, presumiram os<br />
conselheiros do antigo regedor do reino que as armas dc<br />
Inglaterra nos dariam auxilio vigoroso para a manutenção<br />
d'essa indepcndcncia, que a sós, c sem o soccorro cfleclivo<br />
de algum outro povo. linhamos denodadamente conquistado<br />
havia pouco, e solidamenle estabelecido.<br />
Esta política dc facilidade, política errada, imprevidente,<br />
antipatriotica, e de todo alheia á que a allivcza dc AlTonsolV<br />
estabelecera, foi sem maduro exame, e ainda mais sem neces-<br />
sidade imperiosa, <strong>com</strong>o acabamos de ver, iniciada cm Por-<br />
tugal pelo filho dc D. Pedro I, que—note-se—era também<br />
o genro do duque dc Lancaster, c o futuro cunhado dc Hen-<br />
rique IV de Inglaterra.<br />
Salvas excepções raras, esta mesma política foi intencional-<br />
mente continuada pelos successores de D. João I ale aos nossos<br />
dias. Tem-se entendido que para a manutenção da indepcn-<br />
dcncia pátria seria maravilhoso escudo a alliança da Grã-<br />
Bretanha.<br />
Por sua parte Inglaterra <strong>com</strong> o tradicional systema utili-
d. joão i e a ai.mano a ingleza 237<br />
tario que lhe o reconhecido, principalmente quando se tracta<br />
de negociar <strong>com</strong>nosco, ou na hora do perigo nos tem — máo<br />
grado á Icttra expressa dos traclados—negado soccorro<br />
abandonando-nos aos recursos proprios, ou se no decorrer<br />
dos séculos algum auxilio nos prestou, foi á custa de dolo-<br />
rosas perdas de lerrilorio nacional, mediante concessões mais<br />
ou menos onerosas, e sempre a troco de maiores ou menores<br />
sacrifícios impostos no momento critico da concessão. Do,<br />
ut des.<br />
Eis o que nos ensina a historia de cinco séculos. Ou des-<br />
amparadosou explorados, tal ha sido—<strong>com</strong> pena o dizemos—<br />
a sorte dos portuguezes em suas seculares relações <strong>com</strong> o<br />
alliado antigo.<br />
II<br />
A historia 6 a mestra da vida.<br />
Sc as gerações que aos tempos de D. João I seguiram<br />
houvessem podido estudar a fundo a natureza das relações<br />
internacionacs, e ate certo ponto dc familia, entre aquelle<br />
soberano e os reis inglezes; se mesmo houvessem tido conhe-<br />
cimento exacto c minucioso das diversas phases porque pas-<br />
saram, e conseqüências (pie foram produzindo aqucllas nego-<br />
ciações estabelecidas pelo genro do duque de Lancasler; sc<br />
Fernão Lopes, o panegyrisla oflicial, tivesse escripto a ver-<br />
dade cm vez de occultal-a; se em vez de occultar a convenção<br />
de Londres e esconder que os embaixadores portuguezes a<br />
haviam sellado rojando a sua pai ria ao serviço de uma nação
238 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
extrangeira, livcsse o mesmo chronista referido estes faclos,<br />
c ainda publicado a própria convenção, <strong>com</strong>o nós outros ao<br />
cabo dc cinco séculos publicamos boje por primeira vez em<br />
Portugal; se, <strong>com</strong>o a conscicncioso historiador cumpria, tivesse<br />
o astuto chronista relatado (pie o povo porluguez, vencedor<br />
glorioso em sua terra que dos castelhanos libertara, fôra após<br />
a victoria, e quando já risco nenhum corria a sua indcpen-<br />
dencia, servir <strong>com</strong> armas, navios e gentes a nação ingleza,<br />
sem obter por este assignalado serviço retribuição especial,<br />
<strong>com</strong>o fica demonstrado; sc ás mencionadas gerações tivesse<br />
alguém dado noticia da tenue concessão que anteriormente á<br />
existencia d'aquelle acto diplomático nos havia sido outor-<br />
gada, c que fôra a <strong>com</strong>pensação única recebida por nós de<br />
Inglaterra, a par dos eminentes serviços que por mar e por<br />
terra c por tantos mezes prestaramos já ao duque de Lan-<br />
caster c ás suas phantasiosas pretenções a um throno, já á<br />
coróa ingleza e á manutenção de seu territorio, é possível,<br />
é natural ate, que essas gerações, predecessoras nossas cm<br />
Portugal no volver de tantos séculos, não tivessem — mais<br />
previdentes, ou melhor avisadas—incorrido durante o curso<br />
de suas relações intcrnacionaes cm alguns dos lamenlosos<br />
factos que a historia severa e imparcial deixou largamente<br />
exarados.<br />
Prosigamos.
CAPITULO XXVIII<br />
SUMMARIO.—Primordios cconomicos da Grã-Bretanha.—A agricultura.—O<br />
inglez na cdade-media. — As pastagens c a cultura da 15.—Venda cm<br />
bruto.— Inglaterra não fabricava ainda.—Flandrcs e Florenca. Tecidos<br />
maravilhosos. — l)c um lado o fabricante, do outro a matéria prima.—<br />
Infância da civilisação inglcza.—Commcrcio. Ext rangei ros privilegiados.<br />
— Escravidão c algemas.—Navegação entorpecida.—Transformação in-<br />
stantanca de Inglaterra.—As industrias. Engrandccimento assombroso.—<br />
Prioridade dos portuguezes.—Asia c America.—Decadencia. Morte.—<br />
llcnascimento após sessenta annos. — Portugal c o antigo alliado. — Pe-<br />
ríodo de contemporisaç.õcs.—Cessão dc territorios.—Bombaim c Tanger.<br />
—Agonia dos sacrificados.—Recusa dos governadores.—Violências in-<br />
glezas.—Inflexibilidade da metropolc. Desmcmbração.—Dòr d'alma.—<br />
A allianca inglcza c novos males.—Mcthvvcn.—1810.—A escravatura.<br />
— Outros tractados c outros factos. — O presente. — Corra-se o vco.—<br />
Julgue a patria.—Auxilio extranho c a indepcndcncia própria.—Nações<br />
pequenas. — Portugal <strong>com</strong>pare-se. — O passado c o futuro. Lição c<br />
exemplo.<br />
I<br />
Quando a política secular, a que nos temos referido, foi<br />
inaugurada pelo neto de Alíonso IV, em <strong>com</strong>pleta antithese<br />
á que adoptara a ríspida inflexibilidade do heroe do Salado,<br />
não era ainda manufactora a Inglaterra. Apenas da agricul-<br />
tura colhia a subsistência.<br />
«Na edade-media, escreve um historiador philosopho, o
d. joão i k a alltança ingleza<br />
excêntrico Michclct, na edade-media o inglez era pouco mais<br />
ou menos o que é hoje: bem mantido, propenso á aclividade,<br />
c guerreiro porque não sabia ser industrial l .»<br />
Em verdade aquelle povo laborioso c agreste, oecupando<br />
então somente parle dc uma ilha, e sobre a outra exercendo<br />
dominio ephcmcro, ainda não fabricava.<br />
Tinha a maxima parte dc seu terrilorio absorvido por<br />
ferazes pastagens alimentando gados innumeros. Davam-lhe<br />
esles as lãs que já então preparava finíssimas, e (pie em mer-<br />
cado nenhum dc Europa tinham rival.<br />
«A crcação do gado lanigero, aííirma um celebre escriptor<br />
allemão, era desde o século décimo terceiro mais florescente<br />
em Inglaterra do que em outro qualquer paiz de Europa\»<br />
As lãs assim cuidadas eram cm continente vendidas á<br />
opulenta Flandrcs, ou á prospera Florença, que as transfor-<br />
mavam nos maravilhosos tecidos, assombro do mundo.<br />
0 produeto agrícola achava-se pois dc um lado do estreito;<br />
do outro o fabricante 3 . A Inglaterra, cuja capital não era<br />
então maior do que Lisboa no século xv 4 , ministrava a ma-<br />
téria prima;outros fabricavam-na, imporlando-lhe depois por<br />
alto preço, c já transformados, os seus produclos originários.<br />
1 IlUtoire de France, vol. 111, liv. vi, cap. i.<br />
2 Schcrcr, Ilist. du <strong>com</strong>mcrcc de toutes les nations, trad. par II. Richclot<br />
cl Vogel, tomo 11, § i\. Les Anglais.<br />
J Michclct, loco citato.<br />
1 Assim o aííirma testemunha ocular d'aquclle século. Veja-se a pag. 203<br />
do presente volume a interessante dcscripção dc Portugal cm 1 ISÍ pelo<br />
viajante allemão Nicolaus von Popplau, que visitou então esle reino.
241 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
Tal situação cconomica não attingia sequer a infancia de<br />
um povo ei vi lisa d o.<br />
Assim, por largos annos se conservou a hoje opulentissima<br />
nação britannica.<br />
Pelo que respeita ao <strong>com</strong>mercio inglez, não se presentava<br />
então este soh mais fagueiro aspecto. Em situação prccaria<br />
se rojava dependente e desajudado, pois que a exportação e<br />
a importação estavam principalmente cm mãos de cxtran-<br />
geiros, e extrangeiros privilegiados, <strong>com</strong>o os Italianos, os<br />
Necrlandezes e os Anseatas.<br />
Com taes privilégios, e só a extrangeiros outorgados, não<br />
podiam de fôrma alguma <strong>com</strong>petir os nacionaes.<br />
Eduardo III quiz abolir estes privilégios odiosos. Em 1353<br />
deu aos inglezes a mesma liberdade de exportar que fruiam<br />
os extrangeiros. Mas tendo o rendimento das alfandegas<br />
diminuído por este facto, retirou a concessão aos naturaes! 1<br />
O <strong>com</strong>mercio algemado d'est'arte, o <strong>com</strong>mercio cscravi-<br />
sado pelo monopolio extrangeiro, c estancando assim em sua<br />
origem um dos mais produetivos mananciaes da riqueza<br />
publica, entorpecia, <strong>com</strong>o não podia deixar de entorpecer,<br />
a navegação.<br />
Taes eram as condições precarias e de summo atrazo cm<br />
que se debatia a nação britannica no periodo a que nos estamos<br />
referindo, quando as armas portuguezas, as suas galés e gentes<br />
foram servir a coróa inglcza.<br />
1 Schercr, loco citato.<br />
16
242 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
Com o volver dos tempos tudo mudou.<br />
Activos, perseverantes, vivendo sob um clima que ao lidar<br />
contínuo os incitava, os inglezes incançaveis até alli no mister<br />
da guerra, foram-se tornando industriaes.<br />
As vantagens, coibidas pela creação do gado lanigero e<br />
pela exportação das lãs, avivando-lbes a sede do lucro c o<br />
ardor da especulação, inspiraram-lhes crescente interesse, já<br />
pelos progressos agrícolas que a olhos vistos se multiplicavam,<br />
já pelo desenvolvimento da industria fabril aproveitando esta<br />
<strong>com</strong>o matéria prima as lãs produzidas no territorio proprio,<br />
em vez dc serem, <strong>com</strong>o até alli, entregues em bruto ao fabri-<br />
cante extrangeiro.<br />
A multiplicidade dos produclos assim creados, o fervor dc<br />
cxportal-os, a decadencia dos Anseatas e seus privilégios, o<br />
exemplo dos portuguezes rasgando o mysterioso seio dos<br />
mares, e para Lisboa transportando, máo grado a Veneza,<br />
o emporio de índia e China, tornaram progressivamente os<br />
inglezes grandes navegadores.<br />
II<br />
Também grandes navegadores haviam sido e mui antes<br />
dos inglezes os filhos de Portugal. Mas ao arrojo <strong>com</strong> que<br />
cnsinaramos ao mundo o caminho do Oriente, ao esforço <strong>com</strong><br />
que havíamos fundado o assombroso império de Asia c dc<br />
America, succcdeu a decadencia rapida, o desanimo progres-<br />
sivo, a morte.
243 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
Como a phcnix renasceu todavia o reino dc Portugal. Ao<br />
leão quebrara as garras <strong>com</strong> que por sessenta annos o lace-<br />
rara. Mas enfraquecido c despojado, ignorante do que pas-<br />
sara c reccioso do que seria o porvir, lançou este reino os<br />
olhos para o já então potentissimo alliado, do qual mediante<br />
seculares <strong>com</strong>promissos aguardava opporluno auxilio.<br />
Não o ensinara a historia, ou antes tinham-lha havia<br />
séculos alterado adrede, e cm parte <strong>com</strong>pletamente escondido.<br />
Á serie dc contemporisaçõcs que tão fatal nos fôra desde<br />
o reinado de 1). Sebastião, e que ainda, restaurado o reino,<br />
continuou submergindo-nos, novo período, e mais desastroso,<br />
sobreveio rcalisando terrível calamidade: a cessão dc terri-<br />
tórios. Asia e África, Bombaim c Tanger attcslam o que<br />
pesarosos referimos.<br />
Dias de luclo, momentos de crucianle padecer foram<br />
aquelles para a nação portugueza sem distineção de classe.<br />
Não queriam os vendidos render-se ao dominador extran-<br />
geiro. Não queriam seus irmãos d aquém mar que se con-<br />
suinmasse o sacrifício, cm que os interesses de todos eram<br />
indistinetamente immolados, em que a patria <strong>com</strong>mum ia<br />
para sempre ficar fatalmente reduzida e desmembrada.<br />
«Os povos, escreveu <strong>com</strong> o bom senso que o distinguia o<br />
rcccntcmcnte fallecido acadêmico sr. Tullio, cm um dos seus<br />
valiosos artigos áccrca de D. Catbarina de Bragança, os povos<br />
sentiram vivamente a entrega de Tanger c Bombaim ! .»<br />
«Grande era a repugnancia, observa também o historiador<br />
1 Archivo Pitíoresco, tomo xi, pag. 212.
d. joão i k a alltança ingleza<br />
brilhantíssimo, e actual ministro da Marinha c Ultramar, o<br />
sr. Pinheiro Chagas, grande era a repugnancia que os por-<br />
tu^uezes tinham em ceder ao extrangeiro as praças conquis-<br />
tadas pelo seu esforço, e testemunhas da sua gloria.»<br />
< A opinião publica era tão contraria á entrega de Tanger<br />
c Bombaim, que a rainha regente depois de ter convocado<br />
as côrtes... deu contra ordem receiando que os procuradores<br />
recusassem sanccionar a entrega das praças l .»<br />
Podíamos accumular as citações.<br />
Ainda uma. O sábio visconde de Santarém, 011 antes o<br />
seu continuador illustrado, Rebello da Silva, censurando equi-<br />
vocadamente, mas nem por isso <strong>com</strong> menos injustiça, <strong>com</strong>o<br />
adeante provamos 2 , o governador da índia, escreveu 110<br />
tomo xviii do Quadro elementar as palavras seguintes:<br />
«A cessão de Bombaim foi a maior calamidade que podia<br />
aflligir os estabelecimentos e o poder de Portugal na índia...<br />
Cedel-a, <strong>com</strong>o cedemos, equivaleu a cortarmos a cadeia dos<br />
nossos estabelecimentos e o poder de Portugal naquella costa,<br />
introduzindo uma poderosa nação maritima mesmo 110 seio<br />
das nossas conquistas 3 .»<br />
Embalde porém se torturava a nação, anhelando porque<br />
a não despojassem de seus territorios.<br />
Quatro longos annos durou a agonia.<br />
1 Sr. Pinheiro Chagas, Historia de Portugal, tomo vi, & 21.°<br />
2 Veja-se Nota K no fim do volume.<br />
3 Quadro elementar, tomo xvm, pag. 2.
245 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
Supplicas, prantos, tergiversações dos victimados, oílicios<br />
dos governadores, observações e recusas (restes, tudo foi em-<br />
balde. A desmcmbração da patria realisou-se l .<br />
Tres governadores simultaneamente recusaram executar<br />
o mandado terrível.<br />
Em Tanger capitaneava um ancião honradíssimo, tão esfor-<br />
çado, <strong>com</strong>o erudito. Era o conde da Ericcira, I). Fernando de<br />
Menezes auetor da historia de Tanger, da vida de D. João 11<br />
(em latim) e de outras obras.<br />
Instado pelo governo da metropole, <strong>com</strong>o elle mesmo refere,<br />
a que entregasse a praça, ollerecendo-se-lhe em troco o titulo<br />
de marquez de Louriçal e outras mercês, recusou formalmente,<br />
resignou o cargo e manteve a honra a .<br />
Ao successor foi promettido o titulo de conde d'Avintcs<br />
para effeituar a cedencia, evitando que se amotinassem os<br />
vendidos, nossos irmãos, cujo crime era quererem continuar<br />
a ser portuguezes 3 . (<br />
0 governador cumpriu. Tanger expiou a culpa da sua<br />
dedicação á metropole.<br />
Na índia eram pela inopinada morte do vice-rei, conde dc<br />
1 Veja-sc acerca dc Tanger o que refere o conde da Ericcira na sua his-<br />
toria d'aquella cidade, liv. III, § 134.° e seguintes. Quanto a Bombaim con-<br />
sultem-se os oílicios do governador, depois vice-rei da índia, Antonio de<br />
Mello c Castro, datados dc 2S de dezembro dc 1 «62 c 8 dc fevereiro dc 166í,<br />
no tomo i\ do Supplcm. n Coll. dos Tratados do sr. Bikcr.<br />
2 Conde da Ericcira, I). Fernando, Historia dc Tangerc, liv. III, $ I:H.°,<br />
pag. 27:2; Sr. Bikcr, Supplcm. á Coll. dos Tratados, ubi supra, nota,<br />
pag. 227.<br />
3 Ericcira, loco citato.
246 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
Sarzedas, governadores simultâneos Francisco de Mello e<br />
Castro e Antonio de Sousa Coutinho l .<br />
Ignorada ainda em Lisboa aquella morte e chamado o<br />
vice-rei á côrte, foi expressamente nomeado outro, de cuja<br />
obedicncia se não duvidava, para entregar Bombaim 2 .<br />
Vendo o nomeado a imporlancia militar e economica da<br />
formosíssima ilha, o seu porto rival do de Lisboa 3 ,co que<br />
perdia o reino se o cedesse, recusou também desempenhar<br />
o encargo para que havia sido expressamente eleito, e <strong>com</strong><br />
esta repulsa aíTirinava desassombrado a el-rei (Alíonso VI)<br />
que «desempenhava o seu dever, mantinha a reputação das<br />
armas portuguezas, c impedia a total destruição do Estado<br />
da índia 4 .»<br />
A tão nobre proceder, a tão patriotico esforço respondeu<br />
a mctropole reiterando a ordem para se entregar Bombaim 3 .<br />
0 governador obedeceu, redarguindo porem que «só a<br />
obedicncia de vassallo podia constrangei-o áquella acção,<br />
/ /<br />
1 Ericcira (D. Luiz), Portugal Restaurado, parte n, liv. iv.<br />
2 «Que para a entrega de Bombaim se tinha resolvido chamar á côrte o<br />
vice-rei da índia, c nomear outro <strong>com</strong> cuja obedicncia o governo podesse<br />
contar.» S. Tullio, I). Catharina dc Bragança, Archivo Piltoresco, vol. xi,<br />
pag. 212.<br />
3 «Vi o porto mais formoso e mais capaz que tem a índia, a que não faz<br />
vantagem esse dc Lisboa.» Carta do governador, depois vice-rei da índia,<br />
Antonio dc Mello e Castro para el-rei sobre a entrega de Bombaim aos in-<br />
glezes. Sccrct. do Gov. de C.oa, liv. das Monções, n.° 28.°; Sr. Bikcr,<br />
Supplem., tomo ix, pag. 232.<br />
1 Antonio dc Mello c Castro, Carta a el-rei, ubi supra.<br />
5 Carta dc el-rei ao vice-rei Antonio de Mello c Castro para se cumprirem<br />
as ordens sobre a entrega de Bombaim, Livro das Monções, n.° 30.°, Sup-<br />
plem. á Coll. dos Tratados, tomo ix, pag. 23o.
247 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
porque antevia os grandes trabalhos que da entrega adviriam<br />
aos portuguezes l .<br />
E do homem que tão patrioticos actos practicava, c <strong>com</strong><br />
tão alcvantada isenção os referia cm taes tempos ao proprio<br />
rei, chegando ate a não cumprir as ordens que d'cstc rece-<br />
bera, disseram os supra mencionados escriptores que não<br />
entregara Bombaim *pelo inqualificável pretexto de serem os<br />
inglezes herejes e não parecer justo ceder-lhes um paiz onde<br />
havia tantos catholicos!»<br />
Lamentando o equivoco de auetores aliás mui conspicuos,<br />
folgamos ao menos <strong>com</strong> que pelos irrefragaveis documentos »<br />
que apresentámos fique exuberantemente justificada a me-<br />
mória de um benemerilo da patria.<br />
Ilonrcmol-o!<br />
III<br />
No instante dc irem ser assim nossos irmãos inmiolados<br />
cm África e Asia, tentaram clles derradeiro esforço appcllando<br />
para a ultima razão dos opprimidos—a revolução.<br />
Em Tanger foi necessaria a maxima puridade, c por fim<br />
o ardil para consummar-se a entrega.<br />
«Se Tanger se revoltasse, escrevia á regente de Portugal<br />
1 «Só a obediência que devo <strong>com</strong>o vassallo poderia forrar-me a esta acção,<br />
por que antevejo os grandes trabalhos que... hão dc nascer aos portuguezes.»<br />
Carta do vice-rei, Antonio de Mello e Castro a el-rei. (ioa, 5 dc janeiro de<br />
166o. Livro das Monções, n.° 31Supplcm. d Coll. dos Tratados, pag. 237.
248 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
o seu embaixador em Londres, o sagaz marquez de Sande,<br />
Vossa Majestade se obrigaria a pagar os gastos da armada<br />
<strong>com</strong> que se fosse cobrar<br />
«Ouviam-se por Ioda a parte os prantos, observa repas-<br />
sado de tristeza o ex-governador conde da Ericeira, e accre-<br />
sccnla: «Parecendo ao governador (I). Luiz d'Almeida) a<br />
occasiâo opporluna, mandou abrir a porta da ribeira aos<br />
inglezes que entrando <strong>com</strong>o se a conquistaram, metteram<br />
grosso presidio no castello, e espalham-se (sic) por toda a<br />
cidade 2 .»<br />
Em J3ombaim os habitantes, veiados pelo dominador,<br />
buscaram também por meios violentos esquivar-se ao jugo<br />
extrangeiro 3 .<br />
Neste importante porto não conquistado pelos inglezes, mas<br />
que lhes era gratuitamente cedido, <strong>com</strong>o vimos, practicaram 1<br />
nossos alliados os mais duros excessos, já contra os soldados<br />
portuguezes, já contra a pessoa do governador da índia, já<br />
contra os proprios habitantes entregando-os aos infiéis, ou<br />
obrigando-os a mudar dc crença, impedindo aos ecclesiasticos<br />
o exercício das funeções religiosas, exigindo dc todos os novos<br />
subditos fidelidade ao governador inglez <strong>com</strong>o senhor do espi-<br />
ritual e temporal, c afora muitas outras violências, arrancando<br />
até dos braços do vice-rei portuguez, <strong>com</strong>o elle proprio refere,<br />
uma criança de peito para ser dada a mouros \<br />
1 Carta do marquez de Sande á rainha 1). Luiza. Londres, 6 dc maio de<br />
1661. Rcbello da Silva, Quadro elementar, tomo XVII, pag. 178.<br />
2 Ericeira, Historia deTangere, liv. m, § 141.°<br />
3 Sr. Bikcr, nota á pagina 269 do tomo ix, Supplem. á Coll. dos Tratados.<br />
4 Carta do governador, depois vice-rei da índia, Antonio de Mello c Castro
249 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
Sob tão negros auspícios feneceu para o domínio da nação<br />
portugueza a pérola do Indostão.<br />
Peior inda em Tanger. Entregue a praça aos alliados,<br />
saquearam estes a cidade; arrebataram dos templos as ima-<br />
gens c vasos sagrados; arrojaram ás praias muitos habitantes<br />
para haverem alojamentos; constrangeram por extorsões innu-<br />
mcras a povoação attonita c os seus seis mil vizinhos a des-<br />
ampararem as propriedades, a perderem bens e alfaias; e a<br />
todos expulsaram para sempre dos lares proprios<br />
Ainda mais. Não convindo aos inglezes a praça africana,<br />
e desattendendo os sacrifícios a que nos submetteramos para<br />
ceder-lha, foram espontaneamente collocal-a cm mãos dos<br />
mouros, menosprezaram assim as instancias que empregá-<br />
vamos para rehavcr a cidade que lhes não servia, e calcaram<br />
aos pés não só os interesses legítimos da nação amiga, senão<br />
ainda os devores de humanidade para <strong>com</strong> os habitantes<br />
perseguidos, arruinados, expatriados 2 .<br />
Carlos II de Inglaterra e sua esposa, D. Calharina de<br />
Portugal, queriam que nos fosse restiluida Tanger. Oppoz-se<br />
o duque de York (depois o infeliz rei Jacqucs II) conside-<br />
rando opprobrio que Inglaterra largasse uma cidade «pie lhe<br />
não convinha manter. Assim se fez 3 .<br />
a el-rei sobre a entrega de Bombaim, (loa, 28 dc dezembro dc 1GG2. Livro<br />
das Monções, n.° 28.°, Supplcm. « Coll. dos Tratados, loco citato.<br />
1 Ericcira, ubi supra, pag. 277.<br />
2 Ericcira, Historia dc Tangcrc, liv. III, § 143.°, pag. 281.<br />
3 Ericcira, ubi supra.
250 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
Tortura cm verdade a alma recordar lão negras scenas dc<br />
nossa historia.<br />
Não pararam todavia inda abi os graves males da nação<br />
portugueza em suas seculares relações <strong>com</strong> o potente alliado.<br />
Ao acto internacional que cm 1661 desmembrou a 1110-<br />
narchia, ou(ros se seguiram essencialmente onerosos. Não<br />
<strong>com</strong>porta o restrictoassumpto d'eslc volume que detidamente<br />
os analyscmos agora. Alguns citamos apenas <strong>com</strong>o sequencia<br />
do que deixamos exposto:<br />
0 tràctado, dicto deMethwen (1703), levantando a pro-<br />
hibição existente sobre a entrada dos pannos e lanificios<br />
britannicos, c abrindo á importação dos mesmos pannos e<br />
lanificios toda a monarchia portugueza, o que arrazou a in-<br />
dustria nacional, e veio a damnificar até a cultura vinícola,<br />
c o seu proprio <strong>com</strong>mercio 1 ;<br />
Outro ignominioso tractado, o dc 1810. admittindo indis-<br />
tinetamente em Portugal e nas suas ainda então importan-<br />
tíssimas colonias do ttrazil, de Asia e África todos os pro-<br />
duetos inglezes <strong>com</strong> o simples direito de 15 % ad valorem,<br />
destruindo assim a existcncia de nossas industrias, votando<br />
á miséria todas as classes de produetores fabris, e obrigando<br />
pela concorrência britannica a fecharem-se as fabricas na-<br />
1 «Esle traelado, escreve o sr. Pinheiro Chagas, foi a nossa <strong>com</strong>pleta<br />
ruína por que nos poz <strong>com</strong>pletamente na depcndcncia industrial da Ingla-<br />
terra, c até mesmo porque, dando vantagens cxccpcionacs ;í cultura dos<br />
vinhos, não foi menos nefasto aos outros ramos da agricultura mais dirccta-<br />
menlc necessários a uui povo.» Sr. Pinheiro Chagas, Historia dc Portugal,<br />
tomo vi.
251 í d. joão i e a alliança ingleza<br />
cionacs, rcsurgidas outrora á voz do marquez de Pombal, c<br />
depois d'elle continuadas;<br />
As graves pendencias sobre o trafico da escravatura, em<br />
que o governo inglez, desattendendo a lealdade dc nossos<br />
esforços c dcsacatando-nos por tantas vezes, chegou a pu-<br />
blicar cm 1839 o famoso bill que cm menoscabo de todo o<br />
direito internacional auetorisava a captura dos navios por-<br />
tuguezes empregados (ou suppostos) no referido trafico, bem<br />
<strong>com</strong>o submcttia ao julgamento dos tribunaes britannicos os<br />
portuguezes c suas propriedades que se encontrassem nos<br />
referidos navios;<br />
(Notaremos rapidamente que uma voz, a mais auetorisada<br />
da Inglaterra, se ergueu então no parlamento a favor da inde-<br />
pendcncia dc Portugal; foi a voz do vencedor de Waterloo.<br />
Disse na camara dos Lords o duque de Wellinglon: «que o<br />
parlamento britannico não podia dar leis aos subditos es-<br />
trangeiros; e que o bill era uma invasão injusta dos direitos<br />
de Portugal, que, a submetter-se, deixaria de ser nação inde-<br />
pendente *.»)<br />
As indemnisações cnormissimas dc 1840, havendo o<br />
governo britannico pago previamente a subditos seus <strong>com</strong><br />
dinheiro nosso reclamações que Portugal não reconhecia, c<br />
exigindo o mesmo governo <strong>com</strong> terminantes ameaças o paga-<br />
mento demais dc mil c trezentos contos dc réis, que em parte<br />
não devíamos, porém que integralmente pagámos;<br />
0 tractado de 1842 modificando o dc 1810;<br />
A intervenção de 1847;<br />
1 Veja-sc sobre esta matéria o interessante escripto do marquez dc Sá<br />
da Bandeira: O trafico dá escravatura c o bill dc Lord Palmerston. Lisboa,<br />
18U).
252 d- joão i e a alliança ingleza<br />
* 0 desamparo na questão Charles et Georges;<br />
E ultimamente, lia pouco ainda...<br />
Corramos o véo. Não profundemos o que ao presente<br />
respeita. Mui recentes são taes datas para que folguemos de<br />
historial-as.<br />
A patria a todos julgará, tomando a cada um a respon-<br />
sabilidade que lhe <strong>com</strong>pete.<br />
Desgraçada a nação que em auxilio extranho fundamenta<br />
a independencia própria.<br />
Se o auxilio se realisa, vergonha é.<br />
Se em esperanças fica, é morte inevitável.<br />
Que os arestos de nossa historia nos aproveitem pois. Que<br />
nos aproveite a historia de outros povos—pequenos em<br />
territorio, grandes pela própria iniciativa e pela sabedoria<br />
de seus governos.<br />
Contemplando os habitantes da Suissa, da Bélgica, da<br />
Hollanda, estudemos a perseverança de uns, a actividadc de<br />
outros, o patriotismo de todos; estudemo-nos também a nós<br />
mesmos; <strong>com</strong>paremos o que somos <strong>com</strong> o que podíamos ser,<br />
<strong>com</strong> o que outros são; de altos <strong>com</strong>mettimcntos colhamos<br />
lições profícuas; aclare-nos o passado o caminho do presente,<br />
e no que está por vir sejam-nos constante exemplo 1). João I<br />
c a alliança inglcza.
NOTAS<br />
\<br />
J
n s r o T - ^ s<br />
A<br />
(Capitulo I, pagina 9)<br />
Carla original da rainha D. Filippa dc Lancaster a seu irmão cl-rci de<br />
Inglaterra, Henrique IV.<br />
«Tres haut ct tres puissant prínce mon sovcrcincmcnt 1 meulx amcc frierc.<br />
«Jc me rc<strong>com</strong>ans a Vaíírc haute noblcssc si hurablemcnt el enlicrcmenl <strong>com</strong>e<br />
«je say ou plus puisse dc tout rnon enticr cucr. Sovcrcyncmcnt desirante<br />
«doicr 2 ct souvent savoir dc Xostre estat ct santié ct en especial de la pros-<br />
«peritee dc Vosfrc tres gentil prrsone si bons plesantes et joieuses novelles<br />
«<strong>com</strong>e vous mesme tres noble prince meulx les savez deviser 3 ou en ascune 4<br />
«manterc souhcider b pur Xastrc sovercyn case 6 ct confort. Et pur ce que<br />
ccjc suy certcine que vous tres volenlters en oiriez semblablement dccca 7<br />
«Vous signifie que 1c Hoy mon Seigneur soverein tous mes enfans voz entiers<br />
«ncpveuz que toutdis * se rc<strong>com</strong>andcnt tres humhlcmcnt a vous ct moy leur<br />
«micro Xostre enticrc suer al fcisancc dycestcs estioms tres tous seins ct<br />
«hettez dc corps 9 Kegracioms nostre crcalctir que tousjours vous veulle<br />
1 extrímement.<br />
* d ou ir.<br />
3 reconnaltrc; parler; dirc.<br />
4 aucunc.<br />
* souhaiter.<br />
6 aise; contontcment. t<br />
: d'ici.<br />
8 toujours.<br />
0 Esta phrasc significa: n feitura desta carta estamos todos de saúde e sãos de corpo.<br />
Hettez significa cm francez moderno: bien portant; dizia-se também hailié; a palavra tres<br />
está no original antes de tous, quando deveria ser o conlrario.
256<br />
notas<br />
«mcntcnir cn cn 1 honcur ct prosporitce sclon Votlrc dcsir. Tres haut et tres<br />
«puissant princc mon sovcrcincmcnt meulx amcc fricrc vous plcsc savoir<br />
«que par monsteur Jchan VViltschirc chcvalcr ct ambassator dc nosfre Cosyn<br />
«lc Conte Da rondei je suy cy enformee, <strong>com</strong>cwt dc par le dit conte a vous<br />
«est duc unquorc 2 une some dor, laqucllc il obligea a vous paicr pur la<br />
«licence que a vos/rc gracicusc segncuric pleust li 3 granticr ct donwer cn<br />
«son non aage 4 qil pcut luy inarier a son talcnt ct cn que licu il vist<br />
«convcnablc a son estat. Et pur cc mon sovereinement meulx aince fricre<br />
«que vous lc savez b/eu qil est ore maricc non pas par son propre mouve-<br />
«ment mes cins 6 par vosírc <strong>com</strong>andcmcnt cn partic al instancc dc moy, Je<br />
«vous supplic pur tant tres noble princc si entíercincnt <strong>com</strong>e jc say plus que<br />
«vous li plesc quíter la dite somwc a ccste ma Rcqucstc issint 7 que jc que<br />
«suy la cause dc sa mariage en parfic puisse cslrc la cause dc la quítancc<br />
«dcl dite sommc. Et si ascunc chose soit es 8 parties dccca 9 que vous<br />
«pourert trouver a plcsir vous mc lc plesc <strong>com</strong>ander ct certificr ct jc lcferay<br />
«a tout mon povotr sans feintise Jc enrpê 10 nostre soverein Scigneur Jhu 11<br />
«qil vous doigne tousjours prosperitcc plcsancc et joyc a tres locngc Durcr 15 .<br />
«Escript cl palcys de luxbon lc iiij' jour dc novembre 13 .<br />
«Vostre cnticre et loyal<br />
«Suer p(hilippc) dc p(ortugal).»<br />
Sr. Figanièrc, Catai, dos mss portugueses existentes no museu britannico,<br />
pag. 1-20, citando Bibliothcca Cotoniana, Vcspasianus, F. m, foi. 17.<br />
1 Repetido no original.<br />
2 encore.<br />
3 lui.<br />
4 Significa provavelmente minoridade.<br />
5 sa volonté.<br />
6 mais plutôt.<br />
7 ainsi; afin.<br />
* cn les.<br />
9 d'ici.<br />
10 entendemos que palavra esta pôde ser; está em abbreviatura.<br />
11 Jésus?<br />
12 longue duree.<br />
u 0 fac-símile de D. Filippa (jue damos no texto deve interpretar-se <strong>com</strong>oseguo:«vosírc<br />
eniiere el loyal suer j>(hilippa) de p(ortugal).»
B<br />
(Capitulo II, pagina 20)<br />
Carla de escambo enlrc el-rei I). Affonso IV e a camara de Lisboa sobre<br />
um campo 110 silio da Oura cedido a el-rei, a fíui de (pie se podesse<br />
fazer taracena para estarem quatro galés.<br />
O sitio da Oura era então um arrabalde dc Lisboa, ficando no extremo<br />
oeste do presente arsenal da marinha c abrangendo o largo do corpo saneio<br />
e vizinhanças.<br />
A tercena, cdificada sobre o terreno então cedido a el-rei, tornou-se o núcleo<br />
das futuras construcçõcs que para o serviço marítimo sc foram fabricando<br />
no volver dos séculos até ao actual edifício, obra do marquez de Pombal.<br />
Prova o documento appenso que, apezar do contracto estabelecido no rei-<br />
nado anterior dc 1). Diniz entre este soberano e o genovez micer Manuel<br />
Pcçanha ou Passano, era então mui restricta a frota portugueza. Não deve<br />
porém causar maravilha este facto, pois quando havia guerra marítima ou<br />
necessidade dc navios, era uso embargarem-se quantas gales de particulares<br />
sc julgassem necessarias armando-as desde logo cm guerra.<br />
Eis a íntegra do curioso documento:<br />
En nouic dc deus amen. Saibham quantos esta carta dcscanbho virem que<br />
Nos Aluaziis e vereadores c procurador do Concelho c o Tessoureiro e ho-<br />
meens boons e mccsteiraaes singularmente e o Concelho da Cidade dc Lixbòa<br />
apregoado c chamado vniuersalmente per pregom spccialmente pera esto,<br />
veendo e consiirando que huum canpo que o dito Concelho ha na dita Cidade<br />
no logo que chamam a Oira, cn no qual canpo nosso Senhor EIRcy Dom<br />
Affonso o quarto sol dc tccr suas Galccs, era conpridoiro do dito Senhor<br />
pera seruiço dc deus c sseu c prol e dclTendimcnto da ssa terra. Outrosy<br />
veendo huum scanbho que o dito Senhor Rcy Dom AlTonso fez <strong>com</strong> o dito<br />
Concelho pelo dito canpo conucm a ssaber que lhi quita pera scnprc a jugada<br />
que o dito Senhor auia do pam que o dito Concelho auia no Alqucidom tcrmho<br />
17
258<br />
N o TAS<br />
da dita Cidade que som en cada huum anno triinta moyos dc pam meiado,<br />
dcrom cm scanbho ao dito Senhor Rey o dito canpo pelas diuisoes que hy<br />
ssom postas de guisa que possam hy flazer Taraccna pera starem quatro<br />
('.alces. E outro si o canpo cm que sccm as casas cm que EIRcy tem a ma-<br />
deira, juntas <strong>com</strong> o muro das Taracenas, e huma casa que lie contra o mar<br />
que fez o almoxarife da Taraccna pera tecr madeira: Que el c todos seus<br />
succcssorcs que depos el veerem aiam os ditos canpos pera sempre c a dita<br />
casa c íTacam deles c cm eles todo aquelo que Ihys aplouger c for sua merece<br />
<strong>com</strong>c dc ssuas próprias possissões. E rrenunciarom todo direito e aucauí<br />
posse c propriedade que eles <strong>com</strong>c Concelho ou <strong>com</strong>e singulares pessoas<br />
auiiam nos ditos canpos c casa, c tiraron nos de sy c poseron 110 por Cor-<br />
poral possissom cm o dito Senhor e cm os seus succcssorcs que depos el<br />
uecrcm. E promclcrom a nunca viinr contra este scanbho e prcmuda<strong>com</strong><br />
per si nem per outrem cn parte nem cn lodo em juizo nem fora dei, aberta-<br />
mente nem seundudamente. E ssc contra cl fossem que todo aqucllo que hy<br />
flosse atemptado contra o dito scanbho e prcmuda<strong>com</strong> fosse nenhuum dc<br />
dereito c que o dito scanbho fosse firme e stauil c valioso pera todo scnpre<br />
so obrigamento dos bceus do dito Concelho que pera esto obrigarom. Feita<br />
a carta na Cidade dc Lixbooa 110 Paaço do Concelho nouc dias de Nouembro<br />
Era de Mill e trezentos c nouccnta annos, testemunhas Johannc anes palha-<br />
uaanaluazildosjccraes c Gonçalostenezpharisseu e Alíonso inartinzaluernaz<br />
aluaziis do crime em a dita Cidade c Joham darrochela e I.ourcnço giraldez<br />
c Affonso perez vereadores c Fernam martinz procurador jccral do Concelho<br />
da dita Cidade c Martim AffonsoTcssourciro do Concelho e Fernam rodriguez<br />
juyz por EIRcy cn na alflandega e Joham AlTonso das rregras e Philipc danicl<br />
Sacador dclRcy e Joham simhom veedor das casas do dito Senhor cm a dita<br />
Cidade c outros muytos homeens boons do dito Concelho. E eu Joham du-<br />
racez Tabclliom dclltey cm a dita Cidade que a esto presente ffoy e a rrogo<br />
c por outorgamento dos ditos homeens boons c Concelho esta carta scrcui<br />
e em ela meu sinal fiz que tal he. = Logar do signa! publico=Joham corrcya<br />
=Joham da rrochcIa= I.ourcnço giraldez=Johanne ancs=<br />
Signal dc sello pendente.<br />
Arch. Nac., Gav. 13, maç. 1, n.° 25.
c<br />
(Capitulo X, pagina 87)<br />
0 visconde de Santarém. Seus equívocos<br />
Notáveis são os equívocos em que o visconde dc Santarém incorreu ao<br />
tractar do embargo feito pelo governo inglez sobre os navios, marinheiros,<br />
mercadorias e mercadores portuguezes. (Quadro elementar, tomo XIY. Re-<br />
lações <strong>com</strong> Inglaterra. Prologó).<br />
Confundindo a doutrina do decreto que motivou aquelle embargo, escreve<br />
o illustrado auetor que «o mestre dc Santhiago representou contra este ter-<br />
rível procedimento, c que para conseguir a rcvocação de tacs medidas fôra<br />
obrigado a prometter cm nome dc Portugal que seriam indemnisados quacs-<br />
quer que tivessem queixa dos mercadores portuguezes.»<br />
Foi tudo justamente o contrario.<br />
O embaixador portuguez não representou, nem podia representar contra<br />
o embargo, porque este se rcalisava exclusivamente cm proveito seu, man-<br />
dando o governo inglez entregar-lhe navios, mercadorias c mercadores, a fim<br />
dc lhe servirem dc penhor, sobre que podesse levantar de emprestimo, <strong>com</strong>o<br />
dc feito levantou, as sommas indispensáveis para os encargos da expedição<br />
a Portugal.<br />
A ordem não teve pois revogação, conforme o auetor suppunha, e nem<br />
podia tcl-a pelas razões que ficam dietas. O que cm provisão ofticial deter-<br />
minou o governo inglez, a rogo por ventura dos interessados, foi: que os<br />
navios, mercadorias c mercadores dc Portugal fossem entregues ao embai-<br />
xador, o qual se responsabilisou a indemnisar qualquer que sobre os refe-<br />
ridos navios, mercadorias ou mcrcadorcs tivesse reclamação.<br />
Eis o documento, que amplamente confirma o que dizemos e, segundo<br />
vulgarmente sc diz, tira todas as duvidas:<br />
SLPER ARKSTATIONK NAVIÜM PORTUGALIAE DB I.NTENDBNDO<br />
Kex, dilcctis sibi, Johanni Polymond, Majori Villae nostrai Suthamptonia?,<br />
& Roberto Rekerton, Servicnti nostro ad Arma, Salutcin.
2g0 notas<br />
Sciatis quòd assignavimus vos, conjunctim, & divisim, ad Arcstandum<br />
& Capiendum omncs Naves dc Portugalia, in quocumque Por tu, seu supra<br />
Marc, infra Ligeantiam nostrain, inventa) fucrint, ac omncs Mercatorcs &<br />
Mcrcandisas Navium praídictarum,<br />
Et cos Johanni de Fernandes, Magistro Sancti Jacobi dc Portugalia, uni<br />
Ambassiatorum & Procuratorum Regis Portugalia?, pro quibusdam certis<br />
causis, Concilio nostro per ipsum Johannem rclatis, deliberandum, qui qui-<br />
dcin Johannes manucepit ad Kespondcndum, dc Na vi bus, Mercatoribus, &<br />
Mcrcandisis supradictis, cuicumquc se conqueri volenti, & dc Arcsto prai-<br />
dicto, tam Kcgi Portugalicc, quàm Communitati ejusdcm ltegni, Nos servare<br />
índempnes;<br />
Ét ideò vobis, super Fide & Ligeantia, quibus nobis tenemini, Injungimus<br />
& Mandamus, quòd circa Pr.xmissa cum omni Diligcntia intendalis, & ca<br />
faciatis & exequamini in forma pradicta;<br />
Damus autem universis
D<br />
(Capitulo XIII, pagina 106)<br />
0 capitão do mar. Suas funcções<br />
O capitão do mar, capitão moor do mar, capitão moor da frota, ou capitão<br />
da frota, que todos estes nomes se encontram nos documentos do tempo, era<br />
cargo immediato ao dc Almirante. Havia este o mando supremo da frota, c<br />
capitaneando-a sahia ao mar nas occasiõcs cm que se dava peleja marítima l .<br />
Quando porém uma frota, ou armada ia barra fóra cm serviço de cl-rci,<br />
era o capitão do mar que sempre a caudilhava. Por este motivo Affonso<br />
Furtado, então capitão do inar, partiu <strong>com</strong> a frota portugueza para de In-<br />
glaterra a<strong>com</strong>panhar até á península o duque de Lancaster cm 13SG, <strong>com</strong>o<br />
dissemos no capitulo xiv. Andado um anno, transportou clle o mesmo duque<br />
c os seus até Bayonna de França, corno também referimos, c d'ahi capita-<br />
neando a expedição de dez galés se foi em soccorro dc Inglaterrra, conforme<br />
a convenção firmada em Londres pelos embaixadores portuguezes, e que<br />
publicada por primeira vez cm Portugal, sahc agora á luz cm a Xota E do<br />
presente volume.<br />
O capitão do mar, em harmonia <strong>com</strong> a instituição d'este cargo, tinha<br />
mando sobre as diversas classes de marítimos, que então na falta absoluta<br />
dc um corpo superior de marinha eram as seguintes:<br />
Patrões, alcaidcs, arraes, petintacs, <strong>com</strong>itrcs, galcotes, marcantes e ma-<br />
rinheiros.<br />
Superintendia também o capitão mor em todas as caravcllas, barcas,<br />
bateis c quaesquer navios assy grandes <strong>com</strong>o pequenos, podendo embargal-os<br />
para serviço dc cl-rci c bem assim tomar por força os marcantes dc qualquer<br />
estado e condição que fossem.<br />
1 «Seu oITicio é mui grande, cá el hade seer Coudilho de todolos navios que som pera<br />
guerrear.» Ordcn. A/fons., liv. i, tit. 5i.°, § B.«—Do Almirante e do que perteence a seu<br />
Oficio.
2G2<br />
NOTAS<br />
Este uso semi-barbaro auctorisava-o a legislação marítima que geralmente<br />
vigorava na Europa medieval.<br />
Veja-se a carta do olíicio dc capitam moor da frota dada por D. João I<br />
a Álvaro Vasques d'Almada (o depois famoso conde d'Avranchcs) em 23 de<br />
julho dc 1423, c Ordm. A/font., liv. i, tit. LV «DO capitam moor do mar.»
E<br />
(Capitulo XIII, pagina 108)<br />
Convenção firmada em Londres pelos embaixadores de Portugal estabelecendo<br />
que de/, galés portuguesas armadas em guerra irão aexpensas dc Portugal<br />
servir gratuitamente a coroa ingleza por seis mezes consecutivos, ou<br />
durante o espaço de dois verões.<br />
ORIGINAL AÜTIIENTICO<br />
Univcrsis Christi fidclibus, ad quos<br />
presentes Litcra; pervencrint, Fcr-<br />
nandus Magister Ordinis Sane ti Ja-<br />
cobiin Kcgnis Portugalia- & Algarbii,<br />
& Laurcnlius Johannes Fogaça Can-<br />
ccllarius Portugaliae, Militcs, Sere-<br />
nissimi Principis
264<br />
NC<br />
sui, Domini Johannis, Dei gratiâ,<br />
Regis Castclla: & Legionis Ducis Lan-<br />
castriíc, pro Conqucstu juris sui &<br />
Succursu prsefati Domini nostri Do-<br />
mini Regis Portugalia;, de praisenti<br />
Anuo, subire necessariò oportebit, cx<br />
certa Scicntia, nominc Domini nostri<br />
prirdicli, Promisimus & Conccssimus<br />
quòd praífatus Dominus noster Rex<br />
Portugalia;, in jEstate próxima jam<br />
instante, inveniet & mittet Domino<br />
Regi Angliíc prsdicto Deccm (ialcas<br />
(ipsius Domini nostri Domini Regis<br />
Portugaliie Sumptibus & Expcnsis)<br />
bene Armatas (videlicet) dc Uno Pa-<br />
trono, Tribus Alealdibus, Scx Arrai-<br />
zis, Duobus Carpcntariis, Octo vcl<br />
Deeem Marinariis, Triginta Balas-<br />
tariis, Centum & Quatcrviginti Rc-<br />
migibus, & Duobus Sutaneis, in qua-<br />
libet Galearum pra>dictarum;<br />
Qua» quidem Gale® ad partes An-<br />
gli® venient, & dicto Regi Anglire,<br />
juxta Voluntatem & Dispositioncm<br />
suam vcl Admirallorum suorum, us-<br />
que ad Fcstum Michaclis próximo<br />
sequens, bene & legaliter sen ire,<br />
Inimicos ipsius destrucrc & dampni-<br />
ficare, totis viribus tenebuntur, ni-<br />
chil penitus pro dicto Scrvitio a dicto<br />
Domino Rege Angliíe petendo seu<br />
exigendo:<br />
Et, in casu quòd, in dieta próxima<br />
/Estatc, dictie Dcccm galc.-c Scrvi-<br />
tium Sex Mcnsium, dicto Regi An-<br />
glia;, Sumptibus ipsius Domini nostri<br />
Domini Regis Portugalia?, non perfe-<br />
ccrint, tunc Dominus noster Rex Por-<br />
A3<br />
glaterra no que respeita á partida d<<br />
seu lllustre Tio I). João por graça dí<br />
Deus Rei de Castclla c Leão Duque dc<br />
Lancaster para a conquista de seu di-<br />
reito c cm soccorro do supramcncio-<br />
nado Senhor nosso, o Senhor I»ei de<br />
Portugal, nós dc scicncia certa, cm<br />
nome de nosso já dicto Senhor PRO-<br />
METTEMOS C CONCEDEMOS QUE O UOSSO<br />
referido Senhor El-Rci de Portugal na<br />
entrada do proximo verão aprestirá<br />
e mandará ao mencionado Senhor Rei<br />
dc Inglaterra (por conta c a cxpcn»as<br />
do proprio Senhor nosso, o Sênior<br />
Rei de Portugal) dez galés bem ;r-<br />
madas a saber: dc um Patrão, ties<br />
Alcaidcs, seis Arracs, dois Carpin-<br />
teiros, oito ou dez Marinheiros, trinta<br />
Besteiros, cento c oitenta Remciros c<br />
dois Sotas (?) cm cada uma das galés<br />
supra mencionadas.<br />
As quaes Galés virão ás partes dc<br />
Inglaterra, c serão teudas a <strong>com</strong> todas<br />
suas forças bem clegalmente scr\ irem<br />
o dicto Rei de Inglaterra destruírem<br />
e damnifícarcm os seus inimigos, con-<br />
forme a sua Vontade c Disposição, ou<br />
dc seus Almirantes atéá festa próxima<br />
futura dc S. Miguel, não pedindo nem<br />
exigindocousa alguma pelo dicto ser-<br />
viço ao dicto senhor Rei de Ingla-<br />
terra.<br />
E no caso em que no dicto proximo<br />
verão as dietas dez galés não pcríizc-<br />
rem durante seis mezes o serviço ao<br />
dicto Rei de Inglaterra a expensas do<br />
mesmo Senhor nosso, o Senhor Rei<br />
dc Portugal, então o supra dicto nosso
tugalicc prícdictus, in alia yEstatc<br />
extunc futura, quandocumquc pro<br />
parte dicli Regis Anglia) indò rcqui-<br />
situs fuerit, per Literas seu Nuncium<br />
ipsius Regis Anglia), per Deecrn Ga-<br />
leas suíTicicnter Armatas, per Sex<br />
Menses, inodo & formâ pradictis,<br />
faciel Deserviri;<br />
Díim tamen príefatus Rex Anglia!<br />
pro tcmpore, excedente dictum Scr-<br />
vitium Sex Mensium, in tolo salis-<br />
faciat príefato Domino nostro Portu-<br />
galiae Regi (vidclicct) juxta Ratam<br />
Millc & Duccntorum Francorum pro<br />
qualibet Galca pro Mcnse:<br />
Et incipicnt <strong>com</strong>putari dicti Sex<br />
Menses dic quâ dc Portu exierint ad<br />
navigandumversus Angliam ex Causa<br />
pracdicta, liccbitque dictis Galeis,<br />
propc finem dictorum Sex Mensium<br />
(vidclicct) intra Quindccim Dies ante<br />
finem eorundem, versus parles suas<br />
próprias libere redire:<br />
Et quamdiü stctcrint Gentes dicla-<br />
rum Galcarum, ad Suniptus & Ex-<br />
pensas dicti Domini nostri Regis Por-<br />
tugalia), in obséquio ipsius Regis An-<br />
glia;, in Parlibus marinis Vicinis ipsi<br />
Regno Anglia), vel düm fucrint in<br />
redeundo versus partes Portugalia)<br />
per Dominum Regem Anglia) dc Fru-<br />
mento, pro Pane cisdcm necessário,<br />
providebitur couípctcntcr usque ad<br />
notas 26o<br />
Senhor El-Rei dc Portugal noutro fu-<br />
turo verão a contar d'aquclla data,<br />
quando quer que por parte do dicto<br />
Rei de Inglaterra seja para isso re-<br />
querido por carta ou emissário do<br />
mesmo Rei dc Inglaterra, fará que<br />
este, segundo o modo c fôrma já men-<br />
cionados, sejaservidoduranteoespaço<br />
dc seis mezes por dez gales sufiicicnte-<br />
mente armadas.<br />
Entretanto porém o referido Rei de<br />
Inglaterra pelo tempo que exceder o<br />
dicto serviço dc seis mezes satisfará<br />
integralmente ao sobrcdicto nosso<br />
Senhor El-Rei dc Portugal, conforme<br />
fica accordado, a somma de mil c du-<br />
zentos francos por cada Galé mensal-<br />
mente.<br />
E <strong>com</strong>eçarão a contar-se os dictos<br />
seis Mezes desde o dia em que as Galés<br />
pela causa já referida largarem da ci-<br />
dade do Porto em navegação para In-<br />
glaterra, c ás dietas galés será outro-<br />
sim permittido regressar livremente<br />
para sua terra quando esteja proximo<br />
o fim dos dictos seis mezes, a saber:<br />
dentro dc quinze dias antes do refe-<br />
rido termo.<br />
E cmtanto que as gentes das dietas<br />
Galés estipendiadas a ex pensas do di-<br />
cto nosso Senhor El-rei dc Portugal<br />
sc acharem cm serviço do mesmo Rei<br />
dc Inglaterra nas aguas adjacentes ao<br />
mesmo Reino dc Inglaterra,ou quando<br />
estiverem de regresso para terras dc<br />
Portugal serão <strong>com</strong>pctcntcmcntc pro-<br />
vidas pelo Senhor Rei dc Inglaterra<br />
dc Trigo para o Pão que lhes seja pc^
266<br />
Summam Quadringcntarum Marca-<br />
rum Sterlingorum;<br />
Bona vcrò mobília & sc moventia<br />
qu«TCiimque (cujiiscumquc gcncris<br />
fucrint seu speciei) qua* per Gentes<br />
dietarum Galearum, dum in Obséquio<br />
dieti Regis Angli®, Sumptibus & Ex-<br />
pensis dieti Domini nostri Regis Por-<br />
tugalia; extiterint, super Inimicos<br />
ipsius Regis Anglia;adquiri contigerit<br />
& luerari, sint ipsius Domini nostri<br />
Regis Portugalia', & Gçntiuin pra-<br />
dietarum ineoncussè, ad disponen-<br />
dum dc cisdcm seeundum consuetu-<br />
dinem in Regno suo usitatam.<br />
Dc Bonistamcn, qua; pcrpmndictas<br />
Gentes adquiri contigerit pro tem-<br />
porc, quo ad Sumptus & Expensas<br />
dieli Regis Anglia; servierint, Tcrtia<br />
Pars ipsius Regis Angliíe crit, & sibi<br />
vcl Dcputatis suis sinc contradictione<br />
quacumque liberabitur:<br />
Proviso semper quòd, si aliquem<br />
vcl aliqnos Duccs Bcllorum vcl Con-<br />
flictuum, seu magnos Capitaneos, dc<br />
Inimicis hujusmodi, per dietas Gentes<br />
capi contigerit, dum stcterint ad Ex-<br />
pensas Principales Regis Angli
prout potcrunt inter sc vel per suos<br />
Dcputatos rationabiliter Convcnirc.<br />
Rona verò (inmobilia, puta Villrc,<br />
Terra», Castra, & Similia) si per Gen-<br />
tes hujusmodi, düm in Obséquio dicti<br />
Regis Angli;c, super Inimicos ipsius<br />
Regis, in aliis Regnis, Tcrris, & Do-<br />
miniis, qua) pra-fatus Rcx Angliíc<br />
Jure petil híereditario, invasa fucrint<br />
& optenta, cidcm Regi Anglia 1 pro-<br />
tinus libcrabuntur absque Condi lione<br />
vel Diflicultate quacumquc:<br />
Nos,insupcr, Ambassiatores Com-<br />
missarii & Procuratorcs Regis Portu-<br />
galia) supradicti, pro dicto Domino<br />
nostro, Promisimus, ac corporaleSa-<br />
cramcntum, ad Sancta Dei EVangclia,<br />
per Nos corporalitcr tacta, Nominc<br />
ejusdcm Domini nostri Regis Portu-<br />
galia supradicti, & in ipsius Animam,<br />
in prxscntia Procuratorum Domini<br />
Regis Anglire pra-dicti, prttstitimus<br />
adfaciendum, tenendum, & <strong>com</strong>plcn-<br />
dum omnia & singula suprascripta,<br />
quatenus pro parte dicti Domini nos-<br />
tri & ejus Nomine superiàs Conccs-<br />
simus & Concordavirnus, benc, fir-<br />
miter, & fidclitcr, sine dolo, maio<br />
ingenio, & fictionc quibuscumquc.<br />
In quorum Tcstimonia Sigilla nos-<br />
tra Própria Prxscntibus apposuimus.<br />
notas 207<br />
sobrcdicta fôrma capturarem os dictos<br />
Cabo ou Cabos, Capitão ou Capitães<br />
podendo aquelles entre si, ou por<br />
seus deputados razoavelmente <strong>com</strong>-<br />
binar-se.<br />
Os bens immovcis porém (a saber:<br />
Villas,Terras, Arraiacs,esimilhantcs)<br />
se da fôrma já referida forem invadidos<br />
c apresados sobre os inimigos do mes-<br />
mo Rei em outros Reinos, Terras c<br />
Dominios, cuja posse o alludido Rei<br />
dc Inglaterra procura haver por seu<br />
direito hereditário, serão para logo<br />
esses bens liberados ao mesmo Rei dc<br />
Inglaterra sem condição nem difíicul-<br />
dade alguma.<br />
Nóspor tanto Embaixadores, Com-<br />
missarios c Procuradores do supra-<br />
dicto Rei dc Portugal, cm nome do<br />
dicto Senhor nosso Havemos promet-<br />
tido c por nosso corpo Jurado aos<br />
Sanctos Evangelhos dc Deus por Nós<br />
corporalmcntc tocados, cm Nome do<br />
mesmo supradicto Senhor nosso El-<br />
Rci dc Portugal,c cm sua própria alma,<br />
na presença dos Procuradores do já<br />
referido Senhor Rei dc Inglaterra, que<br />
serão realisadas, mantidas c <strong>com</strong>-<br />
pletamente satisfeitas todas c cada<br />
uma das supraescriptas condições cm<br />
tudo quanto por parte do dicto Senhor<br />
nosso c cm seu Nome deixámos acima<br />
concedido e concordado bem, firme-<br />
mente, c lealmente, sem dolo, máo<br />
engenho, ou ficção qualquer.<br />
Em testemunho do que scllámos<br />
a presente <strong>com</strong> os nossos scllos pro-<br />
prios.
268 notas<br />
Dat. apud Windesore, Nono Dic Dada cm Windsor, Nono Dia do<br />
Maii, A11110 Domini Milésimo, Tres- Mez dc Maio, Anuo do Senhor, Mil<br />
ccntcsimo, Octogcsimo Sexto, Trezentos oitenta seis.<br />
In Pracsentia,<br />
Vcncrabilium in Christo Patrum,<br />
Dominorum,<br />
WUliclmi Wyntonia,<br />
Johannis Dunolmii,<br />
densis,<br />
Walt cri Covcntrensis & Lichfel-<br />
Episcoporum:<br />
Ac,<br />
Nobilium Virorum,<br />
Dominorum,<br />
Edmundi Ducis Eborum, Patrui<br />
dieti Domini Regis Angliíe:<br />
Willielmi dc Monte Acuto, Sarum.<br />
Iíenrici de Percy, Northumbriaí,<br />
Comi t um:<br />
Et Simonis dc llurlcy Militis, Sub-<br />
camerarii prscfati Domini Hegis An-<br />
gliíe,<br />
Ac,<br />
Dominorum,<br />
Willielmi de Dighton,<br />
Johannis de Wcndlyngburgh,<br />
Canonicorum Ecclesia; Cathcdralis<br />
Sancti Pauli Londonisc,<br />
Et Johannis de h'irkcby Clcrici.<br />
Et Ego Johannes de liouland, Clc-<br />
ricus Carliolensis Dinecesis, Publicus<br />
Apostolicà authoritatc Notarius, pra;-<br />
rnissis omnibus & singulis Tractatis,<br />
field.<br />
Em presença<br />
dos Vcneravcis em Christo Padres,<br />
os Senhores Bispos:<br />
Guilherme, dc Wynton,<br />
João, dc Durham,<br />
Gualtcr, dc Covcntry e de Lich-<br />
E<br />
dos nobres varões,<br />
os Senhores,<br />
Edmundo, Duque dc York, Tio do<br />
dicto Senhor Hei dc Inglaterra<br />
Guilherme de Monte Agudo,<br />
Henrique dc Percy,<br />
Conde de Northumbcrland:<br />
E dc Simão dc Burlcy cavalleiro,<br />
Guarda-roupa do mencionado Senhor<br />
Hei de Inglaterra<br />
E<br />
dos Senhores,<br />
Guilherme dc Dighton<br />
João de Wcndlyngburgh,<br />
Conegos da Egrcja Cathcdral dc<br />
S. Paulo de Londres<br />
E dc João de Kerkcby, escrivão.<br />
E eu João de Bouland Escrivão da<br />
Diocese dc Carlisle, por Auctoridadc<br />
Apostolicà Notario Publico, no su-<br />
pradicto anno da Encarnação do Se-
Juratis, & Concordatis intcr Partes<br />
prícdictas, Sigillorum tamen apposi-<br />
tioni, prout inferius dcscribitur, dum<br />
sic, ut pnemittitur, per dictos Am-<br />
bassatores, Commissarios, & Procu-<br />
ratores agerentur, Anuo Domini ab<br />
Incarnationc supradicto, Indictionc<br />
Nona, Pontificatüs Sanctissimi in<br />
Christo Patris & Domini nostri Do-<br />
mini Urlani di\ inâ Providcntià Papos<br />
ScxtiAnnoNono, Mensc,Die, & Loco<br />
prxdiclis, una cum dictis llcvcrcndis<br />
in Christo Patribus Nobilibus & Tcs-<br />
tibussupradictis 6: infrascriptis.pra;-<br />
sens interfui, caque sic ficri vidi &<br />
audivi, aliunde occupatus, per alium<br />
scribi feci & mcsubscripsi, acSignum<br />
meum apposui pnesentibus consuc-<br />
tum in (idem & Tcstimonium omnium<br />
praemissorum.<br />
Subscqucnter verò, cisdem Anno,<br />
Indictionc, Pontificatu, Mensc (Dic<br />
tamen cjusdcm Mcnsis Décima Sc-<br />
ptimâ) in quadam Camcra, vocata<br />
Camera Stcllata, infra Palatium Re-<br />
gale, Domini nostri Ricardi Regis<br />
Anglije supradicti apud Wcstmonas-<br />
terium, Londonicnsi Dioecese, pr;e-<br />
fati, Femandus & Laurentius, Sigilla<br />
sua Prajsentibus apposucrunt,<br />
Pnesentibus tunc ibidem,<br />
Hcvcrcndis in Christo Patribus,<br />
Dominis,<br />
notas 2G0<br />
nhor, Indicção nona, anno nono do<br />
Pontificado do Sanctissimo cm Christo<br />
Padre c Senhor Nosso, o Senhor Papa<br />
pela ])i\ina Providencia Urbano Sex-<br />
to, 110 Mez, Dia c Logar acima men-<br />
cionados junetamente <strong>com</strong> os dictos<br />
Reverendos cm Christo Padres, No-<br />
bres c Testemunhas sobrcdictas c su-<br />
praescriptas, assisti e fui presente a<br />
todos c cada um dos acima dictos ar-<br />
tigos Traclados, Jurados c Concorda-<br />
dos entre as referidas Partes, menos<br />
á collocação dos sèllos, <strong>com</strong>o adeante<br />
é descripto, se bem que tudo o mais<br />
conformcocxpo$lo,foiassimrcalisado<br />
pelos dictos Embaixadores, Commis-<br />
sarios e Procuradores, c tudo eu vi e<br />
ouvi ser assim feito; c noutra parte<br />
occupado então, tudo fiz por outro<br />
escrever, e subscrevi, c puz nas pre-<br />
sentes o meu costumado signal cm fé<br />
c testemunho dc quanto fica referido.<br />
Em seguida pois nos mesmos Anno,<br />
Indicção, Pontificado, Mez (110 dia<br />
<strong>com</strong>tudo Décimo Septimo do mesmo<br />
Mez) na Camara chamada a Gamara<br />
Estrcllada dentro dos Rcacs Paços dc<br />
nosso Senhor supradicto, Ricardo liei<br />
dc Inglaterra cm Westminstcr, Dio-<br />
cese de Londres, os mencionados<br />
Fernando c Lourcnço sellaram a pre-<br />
sente <strong>com</strong> os seus sèllos.<br />
Presentes sc acharam então,<br />
os Reverendos em Christo Padres,<br />
os Senhores Bispos;
270<br />
Wülielmo WintonicB,<br />
Waltero Covcntria: k Lichfcldia,<br />
Episcopis,<br />
Acaliisinmultitudinc copiosàTcs-<br />
tibus ad Praemissa vocatís spccialitcr<br />
& rogatis.<br />
notas<br />
field,<br />
Guilherme, de Winton,<br />
Gualter, dc Covcntry c de Lich-<br />
E copioso numero de outras Tes-<br />
temunhas para tudo o referido espe-<br />
cialmente convocadas c rogadas.<br />
Ilymcr, Focdtra, tomo VII, pag. 521.
F<br />
(Capitulo XXII, pagina ií)0)<br />
Banquete do duque de Bragança em Villa-Viçosa. Dcscripçào. Serviço da mesa.<br />
Ceremonias.<br />
«Comeu o Legado no dia seguinte em publico do modo seguinte: assen-<br />
tou-se em uma das cabeceiras da mesa depois de ter lavado as mãos, só,<br />
•porque o duque não quiz lavar-se ao mesmo tempo por cortczia. Assen-<br />
tou-se o duque ao pé do Legado... Juncto ao duque ficou I). Jaymc seu<br />
irmão dc edade dc dez annos, após cllc I). Francisco e I). Henrique filhos<br />
do conde de Tentugal vestidos cm tabardos de panno mesclado á moda sol-<br />
dadesca... A mesa estava delicadamente ornada e coberta <strong>com</strong> toalhas dc<br />
bretanha c tela da índia cncrcspadas singularmente. Os manjares eram abun-<br />
dantíssimos e sumptuosissimos, mas postos desordenadamente... c na maior<br />
parte pouco agradaveis... porque lhes deitavam á toa... assucar, canclla, espe-<br />
ciarias c gemas dc ovos cozidos...<br />
As cobertas da mesa foram cinco, cada uma dc cinco serviços, afora o<br />
ultimo da frueta, confcitos e doces <strong>com</strong> a galanteria de sahirem voando per-<br />
dizes c outros passaros ao abrir os pasteis. Durou o jantar por espaço dc<br />
mais dc tres horas.<br />
SERVIÇO DA MESA<br />
A cada coberta que sempre era servida por fidalgos, ou cavallciros, locavam<br />
os alabalcs, Irombelas c adufes mais <strong>com</strong> ruído que <strong>com</strong> suavidade.<br />
Quando o duque bebia, sendo a bebida água pura, segundo costumava,<br />
vinha adeante o mordomo-mór <strong>com</strong> o bastão na mão, c alraz o mcstre-sala<br />
<strong>com</strong> a salva. Dos lados estavam dois creados vestidos dc veludopreto c tabardos<br />
dc panno c canas nas mãos chamados «porteiros.» Seguiam-se oulros dois<br />
chamados «macciros» <strong>com</strong> maças de prata <strong>com</strong> as armas ducacs, c além<br />
d'cslcs mais dois <strong>com</strong> sobrevestes de bl ocado dc ouro cobertas de armas do
272 notas<br />
duque, chamados «reis dc armas,» todos os quaes tendo no meio o «cscanção»<br />
<strong>com</strong> a copa dc ouro e <strong>com</strong> o jarro coberto, estavam dc joelhos tocando entre-<br />
tanto os instrumentos. Repetiu-se esta ceremonia, quando o Legado bebeu.»<br />
Venlurino, Viagem a Portugal do cardeal Alexandrino, trad. de A. Iler-<br />
culano, Panorama, vol. v, pag. 338.
G<br />
(Capitulo XXII, pagina 196)<br />
A senhora I). Calharina duqueza de Bragança e a infanta sua mãe recebem<br />
0 Legado-Apostolico. Trajar das senhoras. Ceremonias do recebimento.<br />
«Depois de missa voltando o Legado ao seu quarto encontrou á porta da<br />
Camara ducal esperando-o cm pé a infanta I). Isabel, filha do defuneto duque<br />
D. Jayme, viuva do infante D. Duarte, filho dc el-rei D. Manuel... Trazia<br />
um vestido preto afogado, coberta quasi toda <strong>com</strong> o manto: é de estatura<br />
alta e direita, de edade dc sessenta annos; ao pé d'ella estava sua filha<br />
I). Calharina duqueza de Bragança, a qual, parecendo-lhe porventura aba-<br />
timento dc sua real grandeza intilular-sc duqueza, sc chama a senhora Ca-<br />
tharina Teria dc edade vinte c nove annos. Trazia vestido de vclludo preto<br />
afogado cheio de espiguilhas galantes dc ouro, rubis c diamantes <strong>com</strong> meias<br />
mangas abertas ao meio <strong>com</strong> rede dc ouro, cabcllo liso c levantado em topete...<br />
<strong>com</strong> um rosiclcr dc diamantes c rubins ao peito de inestimável valor, e pul-<br />
seiras e brincos de grossissimas pérolas. Pegava-lhe na cauda dc uma saia<br />
dc gorgorão branco que trazia por baixo, uma graciosa donzella a<strong>com</strong>pa-<br />
nhada d'outras dez vestidas dc diversas telas e todas do mesmo feitio <strong>com</strong><br />
muitas jóias, além de quatro donas vestidas <strong>com</strong>o a infanta viuva, só <strong>com</strong><br />
a dilTcrença de não serem os >cos tão <strong>com</strong>pridos. Tinha ao pé dc si, de um<br />
lado I). Theodosio seu filho, duque dc Barcellos, de edade dc quatro annos,<br />
c I). Duarte, dc tres, vestidos <strong>com</strong> gibões e calças dc tela bordados de prata,<br />
listrada de vermelho, côr tão louvada do Ariosto, <strong>com</strong> cordões de ouro e<br />
pérolas... Do outro lado estavam as suas duas filhas D. Maria, de sete annos,<br />
e I). Scraphina, dc seis, vestidas dc raso carmesim bordado dc ouro...<br />
Feitos os <strong>com</strong>primentos ao Legado, o convidaram a sentar-se cm uma<br />
cadeira dc brocado de ouro, debaixo do doccl e a infanta e a senhora Catha-<br />
1 Sobre este ponto enganou-se o auetor viajante. Ignorava elle, o que nüo admira, que<br />
em Portugal os filhos ou Gibas de Infantes usam, posposto ao nome, o titulo de Senhor ou<br />
Senhora.<br />
18
274 notas<br />
rina no chão sobre um estrado que ficava defronte. Conversaram algum tempo<br />
estando as damas em pé do outro lado, e o duque assentado á esquerda do<br />
Legado fallando <strong>com</strong> o patriarcha Alexandrino, e os outros prelados c gentis-<br />
homens cm pé no meio da sala.»<br />
Vcnturino, Viagem a Portugal, trad. dc A. Ilcrculano, Panorama, vol. v,<br />
pag. 338 c 339.
H<br />
(Capitulo XXII, pag. 197)<br />
A infanta I). Maria 1<br />
A infanta D. Maria... se mostrava a formosa Minerva, <strong>com</strong> que pode<br />
contender eom devida confiança, assi cm rara gentileza c sotil engenho, <strong>com</strong>o<br />
toda outra sobre humana perfeição.<br />
Jorge Ferreira dc Vasconcellos, Memorial da segunda Tavola Redonda.<br />
cap. xi.vn.<br />
Alta, dc esplendidas fôrmas, elegantíssima, a filha dc I). Manuel, o ven-<br />
turoso c da bondosa, quão infeliz Lconor dWustria, ao depois segunda mu-<br />
lher dc Francisco I dc França, alliava á gentileza majcstalica do porte, deno-<br />
tando grande energia c isenção de caracter, uma formosura suavíssima bem<br />
revelada na alvura da pclle, no azul cclcslc dos olhos \ividos, e na cor loira<br />
dos cabcllos que por dc sobre uma ligeira coifa alcvantando-sc em arredon-<br />
dada frisa ate ás fontes, segundo a moda do tempo, lhe coroavam de ouro<br />
a espaçosa e ampla fronte, onde o talento espontâneo evidentemente se ex-<br />
pandia. Este talento era ainda abrilhantado por muita erudição, incessante<br />
amor ao estudo, e ininterrompido tracto, não já <strong>com</strong> os livros clássicos, senão<br />
ainda <strong>com</strong> os múltiplos cscriplos do tempo considerado, <strong>com</strong>o se sabe, a<br />
edade dc ouro da lilteratura portugueza.<br />
Quasi desde a infancia fôra sua mãe Lconor dWustria, a singela irmã<br />
do imperador Carlos V, destinada para esposa do então príncipe dc Portugal,<br />
primogênito dc el-rei 1). Manuel.<br />
Este porem desconfiado <strong>com</strong>o era dc quantos o cercavam, c rcceioso dc<br />
quedando casa ao príncipe (ao depois I). João III) viesse clle a usurpar-lhe<br />
1 A presente nola é extracto ile um esludo inédito «pie o auetor escreveu acerca desta<br />
infanta, e que espera publicar cm breve.
302 notas<br />
o mando, resolveu subitamente, quando tinha vi\os no\e Olhos e tocava já<br />
os cincocnta annos, casar <strong>com</strong> a própria noiva do seu primogênito!<br />
I.conor d*Áustria, conforme a própria narração de embaixador contem-<br />
porâneo não era bonita: «Madama Lianor, escrevia elle cm fevereiro de<br />
1577 a cl-rci D. Manuel, nom hc muy fermosa, nem lhe podem chamar<br />
feia; teern boõa graça c boom despejo, e parccc-me de condiçam branda e<br />
a>ysada; nom teem boõs dentes c hc pequena dc corpo, c parece o aynda<br />
mais, por que qua nom trazem chapys que pasem daltura de dons dedos;<br />
hc grande dançadeira, e folgua de o fazer 2 .» Até aqui o embaixador. Se<br />
porém os encantos da bclleza não fa\oreciam muito a nova rainha, a sua<br />
physionomia relractava a mais candida bondade 3 . Illudida acerca do prín-<br />
cipe que lhe representavam <strong>com</strong>o deforme c bobo 4 , reconheceu apenas<br />
entrada cm nossa côrte o laço que lhe haviam armado; c <strong>com</strong>parando o<br />
então \icoso manccbo dc dez c seis annos, ao qual estivera promcttida, <strong>com</strong><br />
o varão idoso, a quem violentamente a uniam, não ponde refrear de todo<br />
os impulsos do coração que exteriormente supplantaram as vozes do dever.<br />
Tal c o que pódc colher-se da linguagem reservada, mas unanime dos histo-<br />
riadores contemporâneos. Assim o confirmou também o grande Ilerculano.<br />
Entretanto deu Leonor a seu marido uma lilhinha (8 dc junho de 1521)<br />
que recebendo o nome dc Maria, c a infanta dc que tractamos.<br />
O rei dc Portugal (1). Manuel) zeloso por indole própria, e abrazado por<br />
ciúmes de seu mesmo filho, nem queria vel-o, vivendo desde então cm infernal<br />
supplicio. Ao cabo de tres annos alliviou-o a morte, não extineto ainda o<br />
remorso de haver arrebatado ao filho a mulher que por tantas vezes lhe<br />
designara.<br />
Aturadas relações sc estabeleceram desde então entre os antigos noivos.<br />
Para salvar apparencias afiectou* a principio a rainha viuva querer aco-<br />
Ihcr-se ao mosteiro dc Odivcllas; mas dissuadida pelo novo rei, habitaram<br />
' Pero Corrêa embaixador a Flandres.<br />
2 Carta do supra indicado a el-rei D. Manuel. Bruxcllas, 5 de fevereiro dc 1?>I7. Arcb.<br />
nacional da lorre do tombo, Corpo chronologico, parte 1.*, maç. 21, n.° 26.<br />
a fKléonore sans ètre bclle, avail toute la grace de la bonté.» Mignet, Ricalité de Fran-<br />
çois I el Charles Quint, vol. n, cap. S", pag. 191.<br />
4 «Contava muitos annos depois I). Brites do Mendonça, huma das damas que <strong>com</strong> ella<br />
vinham,... que a bondosa senhora (a rainha) vendo aqui o Príncipe, e espantada do que lhe<br />
tinham dito... dizia para as damas <strong>com</strong> ironia, e ao parecer não sem magoa.» «Este es cl<br />
bovo?» Fr. I.uiz de Sousa, Aanaeí, parte i, cap. iv.
notas 277<br />
dc então cm deante palncios visinhos, embora nunca sob o mesmo tccto; c<br />
quando pelos rebates dc peste sahiu I). João III da capital para além do Tejo,<br />
seguiu-o desde logo a juvenil rainha levando <strong>com</strong>sigo, <strong>com</strong>o é natural, a<br />
filhinha que idolatrava.<br />
No cmtanto, ou para evitar cscandalos, 011 porque (segundo mais con-<br />
forme parece) a graciosa irmã dc Carlos V por seu animo benevolente c<br />
grande caridade se houvesse tornado sympathica á nação portugueza, os<br />
cidadãos dc Lisboa unindo-se cm corpo, e em nome das povoações dc todo<br />
o reino, representaram a el-rei instando-o a que recebesse por esposa a<br />
viuva dc seu pac<br />
Hesitou o perplexo fdho de D. Manuel. As murmurações redobravam<br />
todavia. A côrte propalava-as. O povo repercutia-as. Os embaixadores<br />
extrangeiros — que já então os havia permanentes, do Papa, dc Franca e<br />
dc Castclla — transmittiam-nas encarecidas a seus proprios soberanos.<br />
l T m facto extranho veio ainda <strong>com</strong>plicar, ou antes resolver, tão grave<br />
assumpto.<br />
Sahira cl-rci além do Tejo (de Salvaterra, onde se açoitara da poste)<br />
caminho de Santarém. Seguiu-o, <strong>com</strong>o de costume, a rainha viuva. Ao<br />
chegar a Mugc encontraram abi o embaixador castelhano, Christovão Bar-<br />
roso, o qual cm nome dc seu amo intimou á rainha que parasse, e já não<br />