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O Fora de Lugar: reflexões sobre direitos humanos, inquietações e ...

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O <strong>Fora</strong> <strong>de</strong> <strong>Lugar</strong>: <strong>reflexões</strong> <strong>sobre</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, <strong>inquietações</strong> e <strong>de</strong>safios<br />

contemporâneos<br />

Durval Muniz <strong>de</strong> Albuquerque Júnior<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Norte<br />

Neste mundo, já num primeiro olhar percebe-se que algo está<br />

fora <strong>de</strong> lugar. Não se vêem casas nos vales ou nas baixadas.<br />

Todos moram nas montanhas.<br />

Em algum momento do passado, cientistas <strong>de</strong>scobriram que o<br />

tempo flui mais lentamente nos pontos mais distantes do centro<br />

da Terra. O efeito é minúsculo, mas po<strong>de</strong> ser medido por<br />

instrumentos extremamente sensíveis. Assim que o fenômeno<br />

foi constatado, algumas pessoas, <strong>de</strong>sejosas <strong>de</strong> permanecerem<br />

jovens, mudaram-se para as montanhas. Agora, todas as casas<br />

são construídas no Don, no Matterhorn, no monte Rosa e em<br />

outros pontos elevados. É impossível ven<strong>de</strong>r residências em<br />

outros locais.<br />

Muitos não se satisfazem apenas situando suas moradias em<br />

uma montanha. Para obter efeito máximo, constroem suas casas<br />

<strong>sobre</strong> colunas. Os topos das montanhas do mundo inteiro estão<br />

cobertos por casas <strong>de</strong>ste tipo, que à distância parecem um bando<br />

<strong>de</strong> pássaros gordos apoiados <strong>sobre</strong> pernas longas e magras. As<br />

pessoas que <strong>de</strong>sejam viver mais construíram suas casas <strong>sobre</strong> as<br />

colunas mais altas. Com efeito, algumas casas estão a meia<br />

milha <strong>de</strong> altura, equilibrando-se <strong>sobre</strong> suas espigadas pernas <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira. Altitu<strong>de</strong> passou a ser sinal <strong>de</strong> status. Quando uma<br />

pessoa, da janela <strong>de</strong> sua cozinha, precisa olhar para cima para<br />

ver um vizinho, ela tem a certeza <strong>de</strong> que aquele vizinho não<br />

ficará com as juntas enferrujadas tão cedo quanto ela, que ela<br />

<strong>de</strong>morará a per<strong>de</strong>r os cabelos, não terá rugas ainda por muito<br />

tempo, não per<strong>de</strong>rá o ímpeto romântico tão cedo. Da mesma<br />

maneira, uma pessoa que olha para baixo para ver outra coisa<br />

ten<strong>de</strong> a julgar seus ocupantes gastos, fracos e míopes. Alguns se<br />

gabam <strong>de</strong> ter passado a vida inteira nas alturas, <strong>de</strong> ter nascido


na casa mais alta do mais alto pico e <strong>de</strong> nunca ter <strong>de</strong>scido.<br />

Celebram sua juventu<strong>de</strong> diante do espelho e caminham nus em<br />

seus terraços.<br />

Às vezes algum negócio urgente obrigam as pessoas a <strong>de</strong>scerem<br />

<strong>de</strong> suas casas, e elas o fazem apressadamente, correndo aflitas<br />

pelas escadas altas até o chão, <strong>de</strong>pois até uma outra escada ou<br />

até o vale. Concluem seus afazeres e voltam o mais rápido que<br />

po<strong>de</strong>m para suas casas ou para outros lugares altos. Elas sabem<br />

que, a cada <strong>de</strong>grau que <strong>de</strong>scem, o tempo passa com maior<br />

velocida<strong>de</strong> e elas envelhecem um pouco mais rapidamente. No<br />

chão as pessoas nunca param. Elas correm, carregando suas<br />

pastas e sacos <strong>de</strong> compras.<br />

Um pequeno número <strong>de</strong> resi<strong>de</strong>ntes em cada cida<strong>de</strong> pára <strong>de</strong> se<br />

preocupar se envelhece alguns segundos mais rápidos que seus<br />

vizinhos. Essas almas aventureiras costumam <strong>de</strong>scer para o<br />

mundo <strong>de</strong> baixo e ali permanecem durante dias, <strong>de</strong>scansam sob<br />

as árvores que crescem nos vales, nadam prazerosamente nos<br />

lagos localizados em altitu<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> as temperaturas são amenas,<br />

rolam no chão. Quase nunca olham para seus relógios e mal<br />

po<strong>de</strong>m dizer se é segunda ou quinta-feira. Quando os outros<br />

passam por elas e zombam, apenas sorriem.<br />

Com o passar do tempo, as pessoas esqueceram por que razão<br />

mais alto é melhor. Mesmo assim, continuam vivendo nas<br />

montanhas, evitando baixadas ao máximo, ensinando seus<br />

filhos a se afastarem <strong>de</strong> crianças <strong>de</strong> locais <strong>de</strong> baixa altitu<strong>de</strong>. Elas<br />

toleram o frio das montanhas por hábito e valorizam o<br />

<strong>de</strong>sconforto como positivo para sua educação. Elas até mesmo<br />

se convenceram <strong>de</strong> que o ar rarefeito é bom para seus corpos e,<br />

seguindo esta lógica, adotaram dietas especiais, comendo<br />

apenas comidas mais leves. Os anos passaram e a população<br />

acabou ficando tão leve quanto o ar, com os ossos<br />

protuberantes, envelhecida antes do tempo. 1<br />

1 LIGHTMAN, Alan. Sonhos <strong>de</strong> Einstein. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 29-32.


Perdoem-me a longa citação, mas creio que este belo conto escrito por Alan<br />

Lightman, paradoxalmente, como soe fazer a literatura, sintetiza <strong>de</strong> forma magistral o<br />

assunto <strong>de</strong> que trato neste texto e com o qual, como também é comum aos cientistas<br />

sociais, notadamente aos historiadores, terei <strong>de</strong> gastar muito mais palavras para po<strong>de</strong>r<br />

expressar minhas idéias. A proposta que me foi feita é que falasse neste artigo <strong>sobre</strong><br />

<strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, <strong>sobre</strong> <strong>inquietações</strong> e <strong>de</strong>safios contemporâneos nesta área. De saída,<br />

uma certeza: todos saberiam do que se trata o objeto a abordar, todos saberiam o que<br />

quer dizer <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>. Mais ainda, todos, como aqueles habitantes das cida<strong>de</strong>s do<br />

conto <strong>de</strong> Lightman, que sabiam que o alto era melhor, embora tivessem esquecido a<br />

razão, saberiam o que são <strong>direitos</strong> e o que é o humano, saberiam que o humano tem<br />

<strong>direitos</strong>, saberiam que é humano ter <strong>direitos</strong>, que não há <strong>humanos</strong> sem <strong>direitos</strong>,<br />

saberiam que o direito é humano, embora pareça haver <strong>inquietações</strong> e <strong>de</strong>safios em<br />

relação a isto contemporaneamente. O que me caberia tratar aqui seria, portanto, <strong>de</strong>stas<br />

<strong>inquietações</strong> e <strong>de</strong>safios no campo dos <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, que seria o que haveria <strong>de</strong><br />

problemático e passível <strong>de</strong> discussão neste campo. Nem mesmo a idéia <strong>de</strong><br />

contemporâneo mereceria maior comentário ou problematização, por sua obvieda<strong>de</strong>,<br />

como passou a ser óbvio que morar nas alturas fazia as pessoas viverem mais, como era<br />

notório que os <strong>de</strong> baixo envelheciam mais cedo a olhos vistos. Quem ousaria duvidar<br />

<strong>de</strong>stas verda<strong>de</strong>s, aquelas que sustentam qualquer or<strong>de</strong>m social?<br />

Nós já esquecemos que nem sempre existiram <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>. Aliás, nem<br />

sempre existiram não só os <strong>direitos</strong>, mas a humanida<strong>de</strong>. A noção <strong>de</strong> Homem como um<br />

ser universal, como um ser <strong>de</strong> uma só e mesma natureza, portador dos mesmos <strong>direitos</strong><br />

e <strong>de</strong>veres é uma invenção histórica recente, é fruto da emergência da socieda<strong>de</strong><br />

burguesa, da socieda<strong>de</strong> capitalista, da socieda<strong>de</strong> industrial, da socieda<strong>de</strong> liberal, do<br />

pensamento iluminista, é resultado direto da Revolução Francesa e, me parece, nunca<br />

<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> enfrentar <strong>inquietações</strong> e <strong>de</strong>safios. Costumamos por hábito, rotina,<br />

esquecimento tornar óbvio, indiscutível, objetivo, inquestionável o que em dado<br />

momento foi motivo <strong>de</strong> luta, enfrentamento, discórdia, conflito, foi resultado <strong>de</strong> uma<br />

vitória e <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>rrota, representou a hegemonia <strong>de</strong> dadas forças, a institucionalização<br />

<strong>de</strong> dadas verda<strong>de</strong>s, a imposição <strong>de</strong> dados saberes. Assim como em dado momento,<br />

alguns cientistas conseguiram, no conto <strong>de</strong> Lightman, convencer alguns que,<br />

paulatinamente, vieram a se tornar a maioria, da verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> que o tempo passava mais<br />

lentamente quanto mais distante do centro da terra a pessoa estivesse, <strong>de</strong>senvolvendo


para isso até mesmo aparelhos <strong>de</strong> precisão, entre os fins do século XVIII e o início do<br />

século XIX, alguns foram convencidos <strong>de</strong> que o Homem existia e <strong>de</strong> que ele era um ser<br />

<strong>de</strong> <strong>direitos</strong> universais, embora houvesse enormes divergências não só a respeito <strong>de</strong> que<br />

<strong>direitos</strong> se tratava, mas também quem po<strong>de</strong>ria estar englobado na categoria <strong>de</strong> <strong>humanos</strong>,<br />

quem teria ascendido - a obsessão pelo alto na socieda<strong>de</strong> burguesa não é apenas ficção –<br />

à condição <strong>de</strong> Homem, assunto <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates filosóficos acalorados no século XIX,<br />

notadamente a partir do momento em que não só se pôs em questão a nossa condição e<br />

origem divinas, como também, com Darwin 2 , se ressaltou a nossa origem animal, a<br />

nossa condição inumana. Condição animal reafirmada por pensadores como Nietzsche 3 ,<br />

ao colocar os instintos, o corpo, a vida na base <strong>de</strong> qualquer forma <strong>de</strong> pensamento e<br />

Freud 4 , ao tomar o <strong>de</strong>sejo, o sexo, a libido, o inconsciente como anterior à razão e ao<br />

processo <strong>de</strong> socialização, ou mesmo por Engels 5 ao tratar do papel que teve o trabalho<br />

na transformação do macaco em Homem. Em meio ao século do Homem, da Razão e<br />

dos Direitos, insinua-se como uma sombra nosso rosto animal. A nossa inumanida<strong>de</strong><br />

emergia, para horror <strong>de</strong> políticos, moralistas, pedagogos, filósofos, psicólogos, por<br />

todos os lados. Em meio às cida<strong>de</strong>s, cada vez maiores, crescia uma multidão percebida<br />

como monstruosa, como animalesca, como incontrolável, como ingovernável; cresciam<br />

também, não apenas o <strong>de</strong>sprezo, mas o pânico com aqueles que preferiam o baixo, que<br />

tinham atração pela sarjeta, pela terra, pela lama, que preferiam vagar por vales e<br />

riachos e viverem <strong>de</strong> brisa e canto <strong>de</strong> passarinho.<br />

Há entre os que vivem nas alturas, seja econômica, política ou socialmente<br />

falando, curiosos observadores dos <strong>de</strong> baixo, que não evitam olhar para baixo mas que<br />

fazem <strong>de</strong>sta observação atenta a sua profissão: são os profissionais do controle social,<br />

da assistência social, da profilaxia e da higiene, da pedagogia e da polícia, que por<br />

obrigação ou por curiosida<strong>de</strong>, digamos científica, se <strong>de</strong>bruçam, nas janelas <strong>de</strong> suas<br />

casas, laboratórios, bibliotecas, clínicas, consultórios, <strong>de</strong>legacias, universida<strong>de</strong>s,<br />

aca<strong>de</strong>mias, igrejas, para observarem aquelas estranhas criaturas que vagueiam pelos<br />

andares <strong>de</strong> baixo. Nomeados <strong>de</strong> antropólogos ou etnógrafos me<strong>de</strong>m o quanto há <strong>de</strong><br />

<strong>humanos</strong> neles, o quanto se parecem com os plenamente <strong>humanos</strong>, classificando-os<br />

como selvagens, bárbaros, homens naturais, silvícolas, indígenas, nativos, raças<br />

2 DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. 3 vols. São Paulo: Escala, 2005.<br />

3 NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. São Paulo: Escala, 2007.<br />

4 FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1975.<br />

5 ENGELS, Friedrich. O Papel do Trabalho na Transformação <strong>de</strong> Macaco em Homem. São Paulo: Global,<br />

1990.


inferiores, sub-raças. Inventariam as diferenças e as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s em relação àqueles<br />

que têm <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> e que vivem nos andares <strong>de</strong> cima, que têm mais <strong>direitos</strong><br />

quanto mais próximos moram dos picos das montanhas.<br />

Estes profissionais se arriscam, <strong>de</strong> vez em quando, a <strong>de</strong>scer as escadas, o que<br />

chamam <strong>de</strong> fazer pesquisa <strong>de</strong> campo ou pesquisa participativa, tratando, no entanto, <strong>de</strong><br />

permanecerem o menor tempo possível entre os <strong>de</strong> baixo, com os quase-como-eles, com<br />

os, digamos, quase <strong>humanos</strong>, já que assim aconselha a metodologia científica, para<br />

garantia da neutralida<strong>de</strong> e objetivida<strong>de</strong> da ciência. Munidos <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>rneta <strong>de</strong> campo, <strong>de</strong><br />

gravadores, filmadoras ou máquinas <strong>de</strong> fotografar, <strong>de</strong>vidamente vacinados e precavidos<br />

quanto aos perigos que vão enfrentar, buscam escutar as vozes, apreen<strong>de</strong>r os corpos,<br />

anotar os costumes, as crenças, os rituais, as festas, autopsiar estes seres tão próximos e<br />

tão distantes, ao mesmo tempo. Inquietação: eles falam como os <strong>humanos</strong> <strong>de</strong> cima, mas<br />

falam diferente dos que vivem no alto, que, talvez pela rarida<strong>de</strong> do oxigênio, dizem<br />

coisas mais aéreas e abstratas, são capazes <strong>de</strong> alçar suas vozes e seu raciocínio a alturas<br />

inalcançáveis para estes seres terráqueos. Tanto suas falas como as suas idéias parecem<br />

mais pesadas, mais materiais, mais chão, mais terra a terra, às vezes, tão bizarras e<br />

estranhas, tão originais e únicas, que se <strong>de</strong>vem escalar pessoas para tratarem<br />

especialmente <strong>de</strong>las: psicanalistas, psicólogos, sociólogos, lingüistas ou mesmo<br />

folcloristas.<br />

Há o perigo, na permanência <strong>de</strong>morada entre eles, do contágio, da metamorfose,<br />

da empatia, da simpatia, da mistura, da promiscuida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> também se ir <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser<br />

humano e, para piorar, com isso se ir per<strong>de</strong>ndo <strong>direitos</strong>, entre eles, o mais importante <strong>de</strong><br />

todos: o direito <strong>de</strong> subir novamente pelas escadas, o direito <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r mirá-los<br />

novamente <strong>de</strong> cima, em conjunto, objetivamente, como uma totalida<strong>de</strong>, como um<br />

objeto; olhá-los à distância, sem empatia, po<strong>de</strong>ndo emitir, <strong>de</strong>ste lugar quase divino -<br />

afinal Deus também está e olha <strong>de</strong> cima – verda<strong>de</strong>s <strong>sobre</strong> eles, po<strong>de</strong>ndo, inclusive,<br />

confessar na introdução dos seus escritos, que circularão nas alturas do saber, que a<br />

<strong>de</strong>scida a terra dos <strong>de</strong> baixo - quase disseram a <strong>de</strong>scida aos infernos, mas lembraram que<br />

este, segundo Dante 6 , ficava sob a Terra - lhes causou algumas <strong>inquietações</strong> e que<br />

<strong>de</strong>scer significou enfrentarem muitos <strong>de</strong>safios, não só o da aceleração do tempo e da<br />

velhice precoce, mas principalmente o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> não saberem como lidar com seres tão<br />

6 ALIGUIERI, Dante. A Divina Comédia. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.


parecidos, mas tão diferentes. Admitem, entre estupefatos e perplexos, que não só<br />

chegaram a duvidar da humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les, como se puseram, em certo momento <strong>de</strong><br />

angústia e <strong>sobre</strong>ssalto, a duvidar da própria humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les, dado que se pareciam<br />

tanto com eles. Chegou a se fazer a pergunta proibida, aquela que a filosofia oci<strong>de</strong>ntal<br />

vem tentando em vão respon<strong>de</strong>r há séculos: o que é ser humano? O humano é um ser?<br />

De que tipo?<br />

Sabendo que somos a única espécie que se coloca esta questão, ser humano não<br />

seria, justamente, o se perguntar pelo que se é, estando sujeito sempre a múltiplas e<br />

distintas respostas? Ser humano seria fazer perguntas, portanto, seria ter dúvidas,<br />

dúvidas <strong>sobre</strong> seu próprio ser. No entanto, no oci<strong>de</strong>nte mo<strong>de</strong>rno o ser humano foi<br />

fundado <strong>sobre</strong> as certezas. Disse um dos moradores dos picos nevados e frios do<br />

pensamento racional, um pensador dos ares rarefeitos e do <strong>de</strong>sconforto corporal como<br />

ascese necessária para o bem pensar: penso, logo existo 7 , tenho certeza <strong>de</strong> existir ao<br />

pensar, o pensamento é a base da minha certeza <strong>de</strong> que sou um Homem. Mas não<br />

façamos a incômoda pergunta: mas o que é ser um Homem? que cairemos no círculo<br />

tautológico, esbarraremos na aporia: ser Homem é pensar.<br />

Mas será que os <strong>de</strong> baixo não pensam? Devem não pensar, pois se pensassem<br />

saberiam que viver na Terra é estar sujeito ao <strong>de</strong>sgaste do tempo, viver na Terra é estar<br />

sujeito ao envelhecimento e a morte; se pensassem evitariam viver na total<br />

irresponsabilida<strong>de</strong> e alegria em que vivem. Eles ainda riem e cantam, eles ainda per<strong>de</strong>m<br />

horas em idílios amorosos e na fabricação <strong>de</strong> objetos e coisas sem finalida<strong>de</strong>, sem<br />

utilida<strong>de</strong>. Ainda são artistas, ainda dançam mesmo sendo mortais, mesmo per<strong>de</strong>ndo a<br />

juventu<strong>de</strong>. Se pensassem procurariam as alturas, procurariam ascen<strong>de</strong>r, procurariam ser<br />

<strong>de</strong>uses ou anjos, procurariam escalar as montanhas em busca do frio e tranqüilo abrigo<br />

da neve milenar da eternida<strong>de</strong>. Se eles pensassem saberiam ou seriam informados pelos<br />

seus historiadores – claro que pessoas <strong>de</strong> baixo só têm tempo para viverem o presente,<br />

por isso não têm tempo para memórias e não se conhece entre eles um só profissional da<br />

temporalida<strong>de</strong> – que pelo menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVII que se <strong>de</strong>finiu que ser Homem é<br />

pensar, e como o pensar não perece com o tempo, o Homem é imortal, só o inumano<br />

morre, só o animal perece, pois não <strong>de</strong>ixa nada <strong>de</strong> si, não <strong>de</strong>ixa registrado o que pensou.<br />

Claro, que tem aqueles ali em baixo, que não sabemos se pensam, mas mesmo se<br />

7 DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Escala, 2007.


pensarem não se preocupam ou não conseguem registrar suas memórias, não se<br />

preocupam em <strong>de</strong>ixar por escrito, em testemunhar o que pensaram, por isso eles são<br />

mortais, por isso envelhecem, por isso são gastos, fracos e míopes. Míopes, inclusive,<br />

nas formas <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> expressar o pensamento, se é que pensam, se é que<br />

conseguem se expressar.<br />

O Homem que tem <strong>direitos</strong>, inclusive a imortalida<strong>de</strong>, não é qualquer um, é este<br />

Homem do pensamento, é este Homem perpetuado pelo que escreve e diz, é este<br />

Homem do alto, é este Homem da metafísica e do Absoluto. Os homens, os mortais, os<br />

que envelhecem, os que têm história - embora muito mais a sofram do que tenham<br />

consciência <strong>de</strong>la - estes não têm <strong>direitos</strong>, porque não se po<strong>de</strong> atribuir <strong>direitos</strong> universais,<br />

<strong>direitos</strong>, portanto, não sujeitos à corrosão do tempo, a seres que morrem, mudam, se<br />

<strong>de</strong>sgastam, se modificam, se transformam com o tempo. Isso é que é inquietação e<br />

<strong>de</strong>safio: pensar <strong>direitos</strong> para gente torta, para gente pesada, para gente que não faz dieta<br />

para ter uma insustentável leveza do ser 8 , para gente que não tem nem vida e nem<br />

espírito diáfanos, para gente <strong>de</strong> pernas curtas, cujas casas são magras e não têm<br />

equilíbrio, para vidas minoritárias, que sofrem a zombaria, o <strong>de</strong>srespeito, o preconceito<br />

daqueles que os olham do alto do Direito. Aliás, o que os <strong>de</strong> baixo mais temem são<br />

aqueles profissionais que <strong>de</strong>scem as escadas ou as escalam dizendo-se operadores do<br />

direito ou agentes da segurança pública. Com o tempo apren<strong>de</strong>ram até a reivindicarem<br />

os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> quando estes aparecem, dada a violência e o caráter discricionário<br />

com que agem. Na boca <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>stes profissionais, como também <strong>de</strong> alguns<br />

políticos e operadores da mídia, <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> se tornaram um óbice para po<strong>de</strong>r<br />

tratarem e agirem como <strong>de</strong>veriam com estes dissi<strong>de</strong>ntes, com estes marginais, com estes<br />

meliantes, com estes bandidos, com estes assassinos, com estes elementos que teimam<br />

em passear ou mesmo viver nas regiões <strong>de</strong> baixo, nas regiões <strong>de</strong> sombra, nas zonas <strong>de</strong><br />

periculosida<strong>de</strong>, marginalida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>linqüência, estes que teimam em contestar as<br />

verda<strong>de</strong>s dos <strong>de</strong> cima. Eles não sabem que o <strong>de</strong>signativo Homem ou humano não po<strong>de</strong><br />

ser aplicado a eles e que, portanto, não po<strong>de</strong>m reivindicar <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>?<br />

Os cientistas ou filósofos, que no século XVIII, <strong>de</strong>finiram o que é o Homem,<br />

tinham certeza <strong>de</strong> que ele era um só e um mesmo ao longo <strong>de</strong> todo o tempo, ao longo <strong>de</strong><br />

toda a História. Por isso, tanto o Homem como a história do Homem, eram grafados<br />

8 Referência ao livro <strong>de</strong> KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira,<br />

1988.


com letras maiúsculas, pois se tratavam <strong>de</strong> um mesmo ente, uma mesma realida<strong>de</strong>, uma<br />

mesma verda<strong>de</strong> se manifestando ao longo do tempo, se revelando paulatinamente<br />

através do tempo. O Homem, mesmo atemporal, eterno, universal, único, se<br />

manifestava no tempo, se constituía na história e a história, como revelação progressiva<br />

<strong>de</strong> seu ser, como marcha teleológica para sua realização final e absoluta, para seu<br />

encontro <strong>de</strong>finitivo com seu próprio ser, com sua própria essência. O Homem era o ser<br />

do progresso, era o ser do <strong>de</strong>senvolvimento, era um ser da evolução, que caminhava<br />

para um telos <strong>de</strong> perfeição e realização completa <strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s e<br />

potencialida<strong>de</strong>s, já inscritas em germe, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, em seu ser. Este processo <strong>de</strong><br />

revelação do Homem, <strong>de</strong> sua realização plena, era também o processo <strong>de</strong> consecução <strong>de</strong><br />

seus <strong>direitos</strong>, da emergência na história e com ela do império do Direito. A vitória do<br />

Homem, do humano seria a vitória do Direito. A vitória da humanida<strong>de</strong> seria a absoluta<br />

prevalência da lei. A vitória do Homem e do Direito era a <strong>de</strong>rrota da Natureza, era o<br />

domínio e o controle da Natureza pelo Homem, era a total <strong>de</strong>rrota do arbítrio, da<br />

violência, do caos, da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, da imprevisibilida<strong>de</strong> do estado <strong>de</strong> natureza. A vitória<br />

do Homem e do Direito era a vitória da História <strong>sobre</strong> a Natureza, da cultura, da<br />

civilização <strong>sobre</strong> a animalida<strong>de</strong>, <strong>sobre</strong> a inumanida<strong>de</strong>. Como diz Giorgio Aganbem 9 ,<br />

quando um homem per<strong>de</strong> todos os seus <strong>direitos</strong> <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser humano, se torna vida nua,<br />

carne para qualquer açougue, se torna inumano ou se tornaria <strong>de</strong>sumano ao não cumprir<br />

e observar as leis. Por outro lado, ao longo da história, muitas foram as leis, muitos<br />

foram os <strong>direitos</strong> que po<strong>de</strong>m ser apodados <strong>de</strong> <strong>de</strong>sumanos ou inumanos: Karl Marx 10<br />

assim consi<strong>de</strong>rou o direito a proprieda<strong>de</strong> privada: há quem veja na pena <strong>de</strong> morte uma<br />

anomalia do direito.<br />

Mas e se o Homem não for esta unida<strong>de</strong>, este ser homogêneo e semelhante por<br />

natureza, pensado pela filosofia do século XVIII? Como pensar para ele <strong>direitos</strong> que são<br />

homogêneos, semelhantes e universais? Não seria uma violação do direito e, portanto,<br />

uma violência impor <strong>direitos</strong> universais para um ser que não seria universal, mas<br />

múltiplo, diverso e plural? Hoje, os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> justificam não só violências<br />

simbólicas contra minorias e culturas distintas da cultura oci<strong>de</strong>ntal, mas também<br />

legitimam, até, guerras, feitas em nome da universalização <strong>de</strong> <strong>direitos</strong> e valores. Não<br />

po<strong>de</strong>mos esquecer, porque é do esquecimento, como nos <strong>de</strong>ixa entrever o conto <strong>de</strong><br />

9 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. Belo Horizonte: EDUFMG, 2007.<br />

10 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Escala, 2007.


Lightman, que se alimenta e se legitima dada or<strong>de</strong>m social, que o Homem <strong>de</strong> <strong>direitos</strong><br />

constituído no século XIX, embora se proclamasse genérico e universal, era um Homem<br />

com o rosto e o corpo <strong>de</strong> um europeu, branco, masculino, burguês, dito normal. As<br />

relações sociais, as práticas e as verda<strong>de</strong>s que sustentam e naturalizam um dado estado<br />

<strong>de</strong> coisas, tal como aparece no conto acima, se reproduzem por terem sido esquecidas<br />

em seu caráter histórico, em seu caráter social e cultural. Esquecemos que tanto o<br />

Homem, como o Direito são figuras históricas, surgidas em dado momento, em dadas<br />

condições sociais e culturais e que po<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>vem ser permanentemente re<strong>de</strong>scritas. Se<br />

tanto o ser humano, como o ser <strong>de</strong> <strong>direitos</strong> se diz historicamente, se estabelece através<br />

das relações, o humano e o direito <strong>de</strong>vem ser pensados não como substâncias, como<br />

realida<strong>de</strong>s ou concretu<strong>de</strong>s inquestionáveis, mas como conceitos, como noções, como<br />

<strong>de</strong>scrições lingüísticas, como instaurações <strong>de</strong> recortes no mundo da empiria, como atos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>signação, que precisam ser permanentemente questionados, repensados,<br />

re<strong>de</strong>scritos e revistos.<br />

É preciso, notadamente no campo das ciências humanas, nascidas e<br />

possibilitadas pelo emergir <strong>de</strong>sta figura ambígua que é o Homem 11 , por ser ao mesmo<br />

tempo objeto e sujeito <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> conhecimentos, colocarmos permanentemente em<br />

questão as certezas <strong>sobre</strong> o que é ser humano e o que é direito ou não <strong>de</strong>ste humano.<br />

Pensar a <strong>de</strong>finição do humano e do direito como relacional e situado no tempo, no<br />

espaço e na socieda<strong>de</strong>, é relativizar as hierarquias, as divisões e os limites e fronteiras<br />

estabelecidas em nome <strong>de</strong>stas noções, a partir <strong>de</strong>stes conceitos. Devemos pensar que<br />

para a existência do conceito <strong>de</strong> humano ou <strong>de</strong> Homem foi preciso nomear outros seres<br />

ou escolher dadas formas <strong>de</strong> vida biológica ou social como não sendo humanas, como<br />

inumanas, como ainda não humanas. Des<strong>de</strong> a criança, passando pelos selvagens, pelos<br />

homens das colônias, pelos loucos, pelas mulheres, os fanáticos até chegar aos<br />

perversos, aos tarados, aos maníacos, aos criminosos, aos anormais, muitas foram as<br />

figuras que foram esculpidas para encarnarem a animalida<strong>de</strong>, a não humanida<strong>de</strong>, o mal,<br />

o diabólico, o patológico, o inumano. Para se estabelecer sujeitos <strong>de</strong> direito, não só se<br />

excluiu <strong>de</strong>stes <strong>direitos</strong> muitos outros personagens, como se pôs em questão a própria<br />

condição <strong>de</strong> sujeito <strong>de</strong>stes seres, <strong>de</strong>stes corpos, tornados restos, incômodos, para os<br />

quais a socieda<strong>de</strong> reserva apenas o banimento e a exclusão, através da criação e<br />

11 Sobre a relação entre o surgimento do Homem e das ciências humanas ver: FOUCAULT, Michel. As<br />

Palavras e as Coisas. São Paulo: Perspectiva, 1985.


construção <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> segregação, <strong>de</strong> prisão, <strong>de</strong> internamento, <strong>de</strong> punição, <strong>de</strong><br />

correção. Paira <strong>sobre</strong> toda esta população, não apenas a ameaça representada pela perda<br />

<strong>de</strong> <strong>direitos</strong>, inclusive aqueles <strong>de</strong>finidos como fundamentais, como a própria suspeita da<br />

inumanida<strong>de</strong> ou da <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong>.<br />

Quando os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> foram pensados, foram pensados, portanto, o que é<br />

humano e o que é direito, como forma <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar o mundo, <strong>de</strong> não permitir nada, nem<br />

ninguém fora do lugar, inclusive, que a ninguém fosse permitido ficar fora do tempo,<br />

<strong>de</strong>ste tempo dos <strong>direitos</strong>. A ninguém <strong>de</strong>veria ser permitido ser retardatário, romântico,<br />

anacrônico, reacionário. O tempo do Homem e dos <strong>direitos</strong> que era o presente rompia<br />

<strong>de</strong>finitivamente com o passado e, portanto, o superava na busca <strong>de</strong> um futuro pensado<br />

como o ápice <strong>de</strong> um processo ascensional do humano, como os píncaros da glória <strong>de</strong><br />

uma humanida<strong>de</strong> que caminhava para o alto. Este mundo governado pelo Homem <strong>de</strong><br />

<strong>direitos</strong> fundava uma or<strong>de</strong>m da qual estavam abolidos todas as <strong>inquietações</strong> e <strong>de</strong>safios.<br />

Nada estaria fora do lugar, pois os lugares estariam quadriculados e garantidos pelos<br />

códigos, pelas normas, regras e leis que o Homem resolvera criar e obe<strong>de</strong>cer, gerando a<br />

estabilida<strong>de</strong>, a permanência e a certeza que a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m da Natureza não garantia. Se<br />

abrigar sob a sombra generosa da árvore do direito, não era o mesmo que <strong>de</strong>scansar<br />

preguiçosos à sua sombra, como costumam fazer estas gentes dos vales e das terras do<br />

conto <strong>de</strong> Lightman, mas era trabalhar ardorosa e ininterruptamente para o seu império se<br />

expandir e se estabilizar. Apenas sob o império da lei e da or<strong>de</strong>m evitaríamos a<br />

emergência inesperada e atemorizadora do animal que teima em habitar o humano, em<br />

atormentá-lo, em colocá-lo em risco <strong>de</strong> <strong>de</strong>sabamento. Vigiar a fera que habita cada<br />

homem, <strong>de</strong>sentranhá-la, fazê-la falar para <strong>de</strong>la se livrar seria a tarefa entregue não só a<br />

cada homem, mas a certos profissionais preparados para serem domadores <strong>de</strong> bestas, da<br />

besta humana, este oximoro insuportável.<br />

Aos educadores, aos professores caberia nos afastar da condição <strong>de</strong> infantes,<br />

<strong>de</strong>sta inumanida<strong>de</strong> incômoda, aconselhando inclusive as crianças do alto a se manterem<br />

afastadas daquelas que nasceram ou medraram nas regiões mais baixas do social,<br />

selvagens irremediáveis, animais <strong>de</strong>stinados aos reformatórios. A vida seria esta corrida<br />

para longe do inumano, pois se este não tem <strong>direitos</strong> em nossa socieda<strong>de</strong>, se seu único<br />

direito é <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, é renunciar a seu próprio ser, quem vai querer continuar nesta<br />

condição. Embora saibamos que a inumanida<strong>de</strong> nos persegue, nos atormenta, entra ou<br />

sai por todos os orifícios do nosso corpo, se ela se manifesta quando menos se espera, se


todos nós somos um homem dos lobos em potencial 12 , se o <strong>de</strong>vir animal é sempre uma<br />

possibilida<strong>de</strong>, é um pesa<strong>de</strong>lo kafkiano 13 a nos tirar o sono ou a nos levar a ter medo <strong>de</strong><br />

dormir, a ter medo <strong>de</strong> vacilar, <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o controle, a ter medo <strong>de</strong> pirar, medo <strong>de</strong> que a<br />

Razão, que apren<strong>de</strong>mos ser aquilo que nos faz <strong>humanos</strong>, único dique contra a<br />

inumanida<strong>de</strong>, possa <strong>de</strong>ixar passar monstros e fantasmas que em nosso inconsciente nos<br />

lembram a besta que somos ou que nos tornamos em dados momentos, chamemos os<br />

psicólogos, os psiquiatras, os psicanalistas, toda a tribo psi, que habita um dos montes<br />

mais altos em nossa socieda<strong>de</strong> e em nossa sabedoria, pois têm o domínio <strong>sobre</strong> o que<br />

nos tornam verda<strong>de</strong>iramente <strong>humanos</strong>, dominam as subjetivida<strong>de</strong>s, os sentimentos, as<br />

emoções, arrancam <strong>de</strong>las as verda<strong>de</strong>s, mesmo as mais profundas, fazem vir à tona,<br />

aflorar, usando várias técnicas e métodos, o ser do homem e o cristalizam em pequenos<br />

frascos chamados diagnósticos.<br />

Há <strong>inquietações</strong> e <strong>de</strong>safios para uma tribo que dada a sua altura nos saberes<br />

mo<strong>de</strong>rnos, até pelos custos que significam chegar até eles, têm pouca oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

aplicar seus testes <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>, aplicar suas baterias <strong>de</strong> técnicas emocionais ou<br />

afetivas para as pessoas que vivem mais em baixo. Se divertem mesmo é com as<br />

pessoas <strong>de</strong> cima que, mesmo sabendo que o tempo passa mais lento para elas, se<br />

<strong>de</strong>sesperam e têm inúmeros problemas emocionais por investirem na produção <strong>de</strong><br />

subjetivida<strong>de</strong>s muito mais elaboradas, auto-reflexivas, afinal quanto mais alto se vive<br />

mais altos são os questionamentos que se fazem ao ser, ao existir, mais aéreas se tornam<br />

os personagens, mais voláteis as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e as subjetivida<strong>de</strong>s. Quando a dieta física e<br />

mental leva os ossos a saltarem, surgem casos <strong>de</strong> anorexia, bulimia e outros quetais <strong>de</strong><br />

fundo emocional que merecem também a intervenção <strong>de</strong>stes profissionais da matéria<br />

mais sutil que nos habita: a alma.<br />

No entanto, há aqueles que resolvem se nomear <strong>de</strong> psicólogos sociais e <strong>de</strong>scerem<br />

até os subterrâneos do humano e dos <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>. Munidos com instrumentais<br />

técnicos advindos <strong>de</strong> áreas tão heteróclitas como a biologia, a medicina, a sociologia e o<br />

serviço social, quando não adquirindo receitas diretamente das freirinhas que suspensas<br />

pelas asas <strong>de</strong> seus hábitos pairam leves, com suas vozes <strong>de</strong> brisa e seus passinhos <strong>de</strong><br />

ave, nas esferas mais altas do mundo, já muito próximas da entrada do paraíso,<br />

12<br />

Referência a FREUD, Sigmund. História <strong>de</strong> uma Neurose Infantil: o homem dos lobos. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Imago, 1976.<br />

13<br />

Referência a KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo: Ediouro, 1971.


erguendo preces para aqueles seres da baixaria, tentam atuar para pacificar espíritos,<br />

organizar subjetivida<strong>de</strong>s, aliviar dores psíquicas em corpos maltratados, maltrapilhos,<br />

violentados e violentos. Partindo da certeza <strong>de</strong> que estão diante <strong>de</strong> semelhantes, <strong>de</strong><br />

homens, vão ao longo <strong>de</strong> sua experiência profissional questionando quanto <strong>de</strong><br />

humanida<strong>de</strong> há naqueles com quem lidam e o quanto há <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> no que fazem,<br />

no que praticam. Convictos <strong>de</strong> que sua presença cuidadora é um direito humano, se<br />

põem no meio da trajetória a se perguntarem até se têm direito <strong>de</strong> estarem nestes<br />

lugares, propondo questões e soluções para pessoas cujos mínimos <strong>direitos</strong> não são<br />

respeitados. O que fazer em meio a pessoas que habitam favelas, que freqüentam<br />

ambulatórios, postos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> quase nuas, sem <strong>de</strong>ntes, com fome, analfabetas, roídas<br />

por feridas e vermes? O que fazer com todas aquelas cuja maior doença é o abandono, a<br />

solidão causada pela carência econômica e afetiva, doenças epidêmicas entre os <strong>de</strong><br />

baixo, embora endêmicas entre os <strong>de</strong> cima? O que fazer com o cliente abandonado no<br />

leito <strong>de</strong> hospital psiquiátrico, no Caps, por seus próprios familiares? Quem aí não é<br />

humano: o cliente, a família, o psicólogo, que sabe não po<strong>de</strong>r nada <strong>de</strong> efetivo fazer para<br />

minorar o sofrimento subjetivo daquela pessoa? O que é ter direito nestas<br />

circunstâncias? Ter um psicólogo no ambulatório do posto <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> é um direito. Mas<br />

quantos <strong>humanos</strong> freqüentam tais lugares, quantos seres que importam para si, para os<br />

outros como <strong>humanos</strong> vêm até ali? Quantos profissionais da saú<strong>de</strong> chegam ali<br />

consi<strong>de</strong>rando aquela clientela parte da sua mesma humanida<strong>de</strong>? Quantos não se sentem<br />

como os seres do alto do conto <strong>de</strong> Lightman, que olham para estes <strong>de</strong> baixo como casos,<br />

como mais um <strong>de</strong> uma dada espécie, aquela <strong>de</strong> seres que se registram em prontuários e<br />

têm fichas médicas, um certo rebanho <strong>de</strong> seres que adquiriram o mau costume <strong>de</strong><br />

freqüentarem filas e usarem salas <strong>de</strong> espera <strong>de</strong> postos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e hospitais como lugares<br />

<strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, como o único lugar on<strong>de</strong> encontram alguém para partilharem suas<br />

dores físicas e subjetivas.<br />

Vindos <strong>de</strong> outros espaços, vivendo outros tempos, estes profissionais que<br />

<strong>de</strong>scem todos os dias as escadas por obrigações profissionais e recebendo uma<br />

remuneração quase sempre tão etérea como a atmosfera <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vêem, olham e já não<br />

vêem este seres que giram a sua volta, constroem uma crosta que os mantém protegidos<br />

do calor e dos afetos que possam passar nestes lugares e tempos das profun<strong>de</strong>zas do<br />

social. O cinismo se instala como <strong>de</strong>fesa e antídoto à possível contaminação emocional<br />

que possa sofrer ao ter que andar todos os dias entre aqueles que não contam no rol dos


<strong>humanos</strong>. No auge da rotinização e instrumentalização daquilo que fazem e daqueles<br />

para quem fazem, eles po<strong>de</strong>m, por ironia ou <strong>de</strong>boche, se tornar alavancas para levantar<br />

ainda mais alto o profissional médico ou o terapeuta social. O rebanho nosográfico ou<br />

patológico, o rebanho problemático, po<strong>de</strong> ser tangido para o curral eleitoral e o<br />

profissional da saú<strong>de</strong>, que ali chegou como o messias <strong>de</strong> uma boa nova medicamentosa,<br />

terapêutica ou assistencial, po<strong>de</strong> se tornar o messias <strong>de</strong> novos tempos na política, o<br />

profeta populista encarapitado em novos cargos eletivos, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vai continuar a extrair<br />

divi<strong>de</strong>ndos do seu contato diário e benemerente com os quase <strong>humanos</strong>, com aqueles<br />

que mesmo sem <strong>direitos</strong> vão servir como objeto <strong>de</strong> discursos com promessas <strong>de</strong> todas as<br />

garantias e regalias.<br />

Nas socieda<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais, a humanida<strong>de</strong>, o ser humano não passou a significar<br />

um critério <strong>de</strong> hierarquização e <strong>de</strong> exclusão <strong>de</strong> corpos e subjetivida<strong>de</strong>s? Ao invés <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rmos e proclamarmos os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, que me parecem ter sido até hoje<br />

<strong>direitos</strong> para poucos, para aqueles vistos e ditos como <strong>humanos</strong> por os que têm o po<strong>de</strong>r<br />

e ocupam os lugares <strong>de</strong> distribuição da verda<strong>de</strong> e do sentido, não seria o momento <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rmos os <strong>direitos</strong> do inumano? A começar pelos <strong>direitos</strong> dos animais das outras<br />

espécies, das plantas, do próprio planeta, os <strong>direitos</strong> da Natureza, sem a qual não<br />

existiria e não existirá o humano? Não está na hora <strong>de</strong> pormos em questão a hierarquia<br />

que nos coloca como seres do alto em relação aos <strong>de</strong>mais seres da Terra, que são vistos<br />

como menores, como mais insignificantes e, portanto, dispensáveis? Não é por isso que<br />

nos julgamos no direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir e <strong>de</strong>predar a Natureza até chegarmos à situação<br />

ecológica em que nos encontramos? Pois o raciocínio que usamos para tratar das<br />

relações entre os homens e os outros seres da natureza é o mesmo que utilizamos para<br />

tratar das relações entre os homens. Da mesma forma que vemos <strong>de</strong> maneira<br />

naturalizada a hierarquia entre o humano e o inumano, naturalizamos as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e<br />

hierarquias entre os <strong>humanos</strong> a ponto <strong>de</strong> aproximarmos muitos <strong>de</strong>les da condição <strong>de</strong><br />

inumanida<strong>de</strong>. Na Antiguida<strong>de</strong> os escravos eram catalogados no capítulo das bestas<br />

falantes junto com os papagaios. No período mo<strong>de</strong>rno chegou a se discutir se índios e<br />

negros tinham alma, se eram criaturas <strong>de</strong> Deus, se eram <strong>humanos</strong>. Ao longo da história,<br />

as mulheres foram vistas, muitas vezes, como manifestação do diabólico, do não divino,<br />

do não humano. Estando próximas da natureza, da animalida<strong>de</strong>, seriam naturalmente<br />

inferiores aos homens, sendo-lhes negada a condição <strong>de</strong> seres <strong>de</strong> direito em muitas<br />

socieda<strong>de</strong>s, seres que eram tutelados juridicamente. Dominadas pelas paixões,


susceptíveis emocionalmente, frágeis fisicamente, as mulheres seriam uma subespécie<br />

do humano. A criança está sujeita a todos os castigos, é limitada em seus <strong>direitos</strong> por<br />

ainda não ser suficientemente humana, condição que per<strong>de</strong>rá também ao envelhecer. A<br />

revolução nas técnicas <strong>de</strong> reprodução humana e das próteses não fará surgir <strong>humanos</strong><br />

inumanos, andrói<strong>de</strong>s? Acho que estamos <strong>de</strong>ixando a era dos <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> para<br />

entrarmos na era dos <strong>direitos</strong> dos inumanos, a não ser que reformulemos e alarguemos o<br />

conceito <strong>de</strong> humano para que este possa vir a conter o seu oposto, o inumano, o ainda<br />

não humano, o já não humano, o nunca humano. Para alargar o conceito <strong>de</strong> humano é<br />

preciso realizarmos, como já vem se fazendo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Nietzsche 14 , uma crítica radical da<br />

noção <strong>de</strong> Homem e do humanismo que <strong>de</strong>u origem.<br />

É preciso pensarmos que o humano não existiria e não existirá sem o inumano.<br />

Nós nos alimentamos diariamente do inumano e o transubstanciamos em humanida<strong>de</strong>.<br />

Sem ferro, zinco, enxofre, oxigênio, carbono, cálcio não existiria o humano. Sem o<br />

humano, no entanto, muitos <strong>de</strong> novos seres não teriam sido possíveis, como todos<br />

aqueles <strong>de</strong>senvolvidos pela engenharia genética. Por que esta obsessão, este sonho que<br />

tomou conta dos homens em se afastarem da Terra, em se tornarem seres leves,<br />

transcen<strong>de</strong>ntais, metafísicos, em habitarem as alturas do divino, do sagrado, do<br />

conhecimento, do esclarecimento, da verda<strong>de</strong> Absoluta? Por que vivemos renegando a<br />

Terra em busca <strong>de</strong> nos per<strong>de</strong>rmos junto ao céu? Quando falamos em Direito e em<br />

Homem, quase sempre falamos <strong>de</strong> categorias etéreas, abstratas, conceitos que habitam<br />

as nuvens da metafísica. Temos medo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scermos a Terra, on<strong>de</strong> habita a história, a<br />

cruel e perigosa história, aquela que, como disse Nietzsche 15 se reinar irrefreiada po<strong>de</strong><br />

levar a <strong>de</strong>scrença e ao niilismo, pois ela significa o reinado da temporalida<strong>de</strong>, àquilo que<br />

seria a única <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> nosso próprio ser para Hei<strong>de</strong>guer 16 , o estar aí no tempo, o<br />

caráter <strong>de</strong> ser para a morte, para a finitu<strong>de</strong>. Contra esta nossa condição erguemos todas<br />

as fantasmagorias, construímos todos estes castelos que habitam nossos ares, sonhamos<br />

em sermos uno e eterno, sonhamos em termos uma natureza imorredoura, sonhamos em<br />

ser semelhança transhistórica, dissemos termos direito universais, permanentes e<br />

imutáveis. Para falar em <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> só sei fazê-lo assim, não em sua condição <strong>de</strong><br />

conceito, mas em sua condição <strong>de</strong> práticas históricas concretas. O direito só existe<br />

14<br />

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. São Paulo: Escala, 2007.<br />

15<br />

NIETZSCHE, Friedrich. Da Utilida<strong>de</strong> e do Inconveniente da História para a Vida. São Paulo: Escala,<br />

2007.<br />

16<br />

HEIDEGUER, Martin. Ser e Tempo. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1993.


sendo exercido, praticado. O humano se fabrica e se <strong>de</strong>fine a cada dia e em cada relação<br />

e situação. Por isso sinto se os <strong>de</strong>cepcionei. Não sei dizer quais as <strong>inquietações</strong> e os<br />

<strong>de</strong>safios que os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> enfrentam hoje. Me inquieta e me <strong>de</strong>safia muito mais<br />

hoje pensar o que é o direito e o que é ser humano num mundo como este nosso, que<br />

nem mesmo sei se é contemporâneo, pois tal <strong>de</strong>signação dá a enten<strong>de</strong>r que todas as<br />

coisas que estão à nossa volta são <strong>de</strong> nosso tempo, pertencem a uma mesma<br />

temporalida<strong>de</strong>. Advogo que muito do que nos ro<strong>de</strong>ia vem <strong>de</strong> outros tempos, constitui<br />

outras temporalida<strong>de</strong>s que convivem em nosso mundo atual, estas práticas e idéias,<br />

embora atuais, não são contemporâneas, como é o caso das idéias <strong>de</strong> Homem e <strong>de</strong><br />

direito, que discutimos aqui. Assim como os homens no conto <strong>de</strong> Lightman tinham<br />

certeza que viver no alto alongava a vida e esta certeza era contemporânea <strong>de</strong>les todos,<br />

não sabiam que ela havia sido gestada, <strong>de</strong> que ela fora construída, fora fabricada por<br />

homens que tinham vivido em outro tempo, o que fazia <strong>de</strong>sta certeza uma atualida<strong>de</strong>,<br />

mas não uma contemporaneida<strong>de</strong>.<br />

Acho que hoje, como em qualquer época, estão colocados muitos <strong>de</strong>safios para<br />

os homens, com as especificida<strong>de</strong>s que cada época significa, a maior <strong>de</strong>las, <strong>de</strong> se<br />

re<strong>de</strong>finir o que é ser humano num mundo em que o inumano só faz avançar. Chamamos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong> progresso, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIX, a crescente capacida<strong>de</strong> humana<br />

<strong>de</strong> produzir o inumano. A ciência e a tecnologia potencializaram a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

criarmos não só inumanos, como híbridos. Bruno Latour 17 chamou a atenção para o fato<br />

<strong>de</strong> que a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, que quis tudo separar e purificar, inclusive a Razão e o Homem,<br />

só fez aumentar a capacida<strong>de</strong> da criação <strong>de</strong> híbridos, da mestiçagem. Veja o que faz<br />

hoje a engenharia genética. O que são os transgêneros senão manifestações do híbrido?<br />

O que menos conseguimos, na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, foi potencializar a nossa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

criar <strong>humanos</strong>. Talvez seja isso que explique a própria subalternida<strong>de</strong> das ciências<br />

humanas na hierarquia dos saberes, pois estas são as ciências e saberes criadores <strong>de</strong><br />

<strong>humanos</strong>, entendidos como a criação <strong>de</strong> sujeitos, <strong>de</strong> agentes racionais e sensíveis<br />

capazes <strong>de</strong> inventar e reinventar o mundo e a si mesmos. Talvez as psicologias, os<br />

saberes psi sejam importantes tecnologias na produção <strong>de</strong> <strong>humanos</strong>. Mas que <strong>humanos</strong><br />

elas têm criado? Será que suas criações não continuam assombradas por este fantasma<br />

que é o Homem, este ser metafísico, transcen<strong>de</strong>ntal, a-histórico, absoluto?<br />

17 LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Mo<strong>de</strong>rnos. São Paulo: Editora 34, 1994.


Se a produção <strong>de</strong> inumanos implicou em toda a reformulação do direito; se<br />

normas, leis e códigos foram criados para regularem a produção, circulação,<br />

comercialização, consumo, dos inumanos, por que a fabricação <strong>de</strong> novos <strong>humanos</strong> não<br />

implicaria na mudança do direito, na mudança, inclusive, dos valores, mudanças éticas e<br />

morais compatíveis com estas novas formas <strong>de</strong> ser humano que vêm emergindo?<br />

Quando, finalmente, o Conselho Nacional <strong>de</strong> Psicologia proíbe <strong>de</strong> se tratar como<br />

doença, <strong>de</strong> se tentar curar a homossexualida<strong>de</strong>, parece que mais um ser <strong>de</strong>ixa o rol do<br />

inumano, da patologia do humano, para se tornar uma das muitas <strong>de</strong> suas manifestações,<br />

embora a bancada cristã no Congresso ainda pareça ter suas dúvidas a respeito.<br />

Assistimos no Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral divergências <strong>sobre</strong> quando surge uma vida<br />

humana e até mesmo quando e em que condições esta <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser humana. Elas são<br />

questões can<strong>de</strong>ntes para a reformulação dos códigos, dos <strong>direitos</strong>.<br />

Espero que os profissionais da psicologia, das duas regiões brasileiras que, ainda<br />

hoje, mais se <strong>de</strong>finem pela natureza do que pelo humano que nela habita, psicólogos <strong>de</strong><br />

terras <strong>de</strong> floresta e seca, estejam a serviço da produção <strong>de</strong> novos <strong>humanos</strong>, da invenção<br />

<strong>de</strong> novas humanida<strong>de</strong>s, com novos <strong>direitos</strong>. Humanida<strong>de</strong> e ser humano visto e dito em<br />

sua multiplicida<strong>de</strong>, na miría<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas diferenças, reivindicando e exigindo a<br />

multiplicida<strong>de</strong> também dos <strong>direitos</strong>. Fabricar <strong>humanos</strong> com <strong>direitos</strong> a não serem<br />

estereotipados, reduzidos a representantes <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> regional que mais os<br />

humilha e inferioriza <strong>de</strong> que os promove e os valoriza. Ao invés <strong>de</strong> amazônidas e<br />

nor<strong>de</strong>stinos, <strong>humanos</strong>, gente, em toda sua diversida<strong>de</strong>, fragilida<strong>de</strong> e abandono<br />

ontológico. Seres para a morte, que po<strong>de</strong>m fazer da vida felicida<strong>de</strong> se, ao invés <strong>de</strong><br />

estarem o tempo todo lembrando que morrem, se esquecerem disso e rolarem no chão<br />

da vida, com suas asperezas e amenida<strong>de</strong>s, fazendo <strong>de</strong>la luta permanente contra a morte<br />

em vida que é a injustiça, a miséria, a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, a ignorância e a conivência com os<br />

po<strong>de</strong>res que dizem não a vida, que a querem ver per<strong>de</strong>r o viço e o brilho. Não vivam da<br />

e para a doença, vivam da e para a saú<strong>de</strong>, física e subjetiva. Esse <strong>de</strong>ve ser o primeiro<br />

direito do humano: viver, afirmar a vida, afirmar a potência criativa da vida, afirmar a<br />

caráter poético e artístico do humano, ser humano, ser artista, inventar sua vida como<br />

contos e como cantos, pirar com a dádiva <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r habitar o tempo e a ele dar sentidos<br />

novos e infinitos, embora ele seja para nós sempre finito. 12 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2008, que<br />

neste dia comecemos a dar lugar ao fora <strong>de</strong> lugar, lugar ao fora, lugar ao faro para a<br />

potência da vida, para ser vida, para servir, para vir a ser. Lembrando que dos lugares


mais altos costuma-se cair as piores quedas. Deixemos <strong>de</strong> fazer da altitu<strong>de</strong> símbolo <strong>de</strong><br />

status, procuremos nos emparelhar. O mais difícil exercício ético, político e acadêmico<br />

não é <strong>de</strong>scer até o outro, é ombrear com ele. Sejamos almas e corpos aventureiros, pois<br />

só na aventura está a vida do corpo e do pensamento. Na certeza e na rotina está a<br />

morte, mesmo quando estas são vividas nas alturas, com corpinhos jovens e nus a se<br />

exibirem nas janelas, nas passarelas ou nos aquários das aca<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> ginástica.<br />

Pensemos fora do lugar, sejamos fora do lugar, pois não existem lugares privilegiados<br />

nem para os <strong>humanos</strong>, nem para os <strong>direitos</strong>.

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