13.04.2013 Views

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

Bem-vind@! Este é um “livro” - Miguel Vale de Almeida

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Imaginamo-nos outros por <strong>um</strong> bocadinho. Acreditamos que <strong>um</strong>a mudança temporal <strong>é</strong> a<br />

oportunida<strong>de</strong> mágica para o renascimento. Em boa verda<strong>de</strong>, não farei nada do que disse, ou<br />

<strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ser eu mesmo. Juro.<br />

Temporal<br />

(Público, 14.01.96)<br />

Não há volta a dar-lhe: <strong>de</strong> há semanas para cá só andamos preocupados com o tempo. Com o<br />

que se convencionou chamar o “mau” tempo, diga-se. Assaltados por ventos e chuvadas <strong>de</strong><br />

sudoeste, perguntamo-nos que aconteceu ao tão “nosso” anticiclone dos Açores. Se calhar<br />

<strong>de</strong>clarou a in<strong>de</strong>pendência, emigrou para paragens mais suaves e vai <strong>de</strong>ixar-nos com <strong>um</strong> clima <strong>de</strong><br />

causar risota aos povos do Norte da Europa.<br />

Ouvir conversas anónimas sobre o tempo <strong>é</strong> <strong>um</strong> passatempo fascinante que revela <strong>um</strong>a s<strong>é</strong>rie <strong>de</strong><br />

categorias originais. A primeira <strong>é</strong> a <strong>de</strong> que a amn<strong>é</strong>sia social parece ser tão importante quanto a<br />

memória social. A amn<strong>é</strong>sia revela-se no facto <strong>de</strong>, quando as condições meteorológicas se<br />

extremam, ser com<strong>um</strong> ouvir-se dizer que “não se recorda <strong>um</strong>a coisa assim”. É sempre a<br />

primeira vez que acontece. No caso <strong>de</strong>ste Inverno, at<strong>é</strong> po<strong>de</strong> ser que os registos estatísticos<br />

comprovem essa i<strong>de</strong>ia. Tudo bem. Não impe<strong>de</strong>, por<strong>é</strong>m, que se estabeleça esta sensação <strong>de</strong> que<br />

as coisas estão piores que nunca. Daí os medos que logo surgem sobre o efeito <strong>de</strong> estufa ou a<br />

subida do nível dos mares. O tempo extremado <strong>é</strong> a porta <strong>de</strong> entrada para fantasias negativas<br />

sobre o <strong>de</strong>scalabro e a vingança da Natureza. E o esquecimento total da ciclicida<strong>de</strong> – como se<br />

cada Inverno fosse o primeiro das nossas vidas.<br />

Por outro lado, a realida<strong>de</strong> objectiva parece ser mais fraca do que as i<strong>de</strong>ias que se tem sobre ela.<br />

Quer isto dizer que a noção i<strong>de</strong>ntitária <strong>de</strong> que vivemos n<strong>um</strong> clima ameno <strong>é</strong> constantemente<br />

contrariada por horrores meteorológicos: ou calores intensos, como no Verão passado, ou<br />

chuvadas como as <strong>de</strong> agora. Como parecem tristes os turistas que vieram passar o Natal a<br />

Portugal! Ei-los <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> regressarem aos seus climas frios, <strong>de</strong> neve limpa e casas<br />

aquecidas... E, no entanto, continuamos inabaláveis na nossa convicção <strong>de</strong> sermos <strong>um</strong> cantinho<br />

eleito pelos <strong>de</strong>uses, on<strong>de</strong> todos os outros <strong>de</strong>sejam viver.<br />

Quando se ouvem, nas reportagens hist<strong>é</strong>ricas dos telejornais, os camponeses dizendo que a<br />

chuva e a cheia são boas, os urbanos ficam boquiabertos. É que para os portugueses – já quase<br />

todos (sub)urbanos e sem hábitos <strong>de</strong> contacto com a natureza – esta res<strong>um</strong>e-se “ao que vem <strong>de</strong><br />

cima”, sem possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controlo da nossa parte. À parte as vantagens ou <strong>de</strong>svantagens para<br />

a secagem da roupa, o estado do trânsito ou <strong>um</strong> ou outro surto <strong>de</strong> gripes, o “tempo” <strong>é</strong> <strong>um</strong>a coisa<br />

chata que “nos acontece”. Daí cada vez mais – e para tal basta ouvir os locutores da rádio-<br />

classificar-se simplisticamente o tempo como “bom” ou “mau”. Não <strong>é</strong> preciso explicar: toda a<br />

gente sabe que o primeiro <strong>é</strong> “sol/ calor” e o segundo “chuva/frio”. Pessoas como eu, com <strong>um</strong>a<br />

p<strong>é</strong>ssima relação com o calor, não percebem o carácter hegemónico daquelas classificações.<br />

Segue-se a “iliteracia meteorológica”. Não se trata apenas do facto <strong>de</strong> se ter perdido a sabedoria<br />

empírica e/ou adivinhatória dos camponeses em relação ao tempo. Trata-se da incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ler os sinais do tempo por falta <strong>de</strong> cultura geográfica em geral. São poucas as pessoas que<br />

conseguem localizar os pontos car<strong>de</strong>ais n<strong>um</strong> instante; aliás, não se usam em Portugal (ao<br />

contrário, por exemplo, dos EUA) como sinais direccionais; são poucas as que conseguem,<br />

portanto, perceber <strong>de</strong> que direcção vêm os ventos. Ou o que eles significam: que sudoeste <strong>é</strong><br />

tempo <strong>de</strong> chuvadas e temperatura amena, norte <strong>é</strong> sinal <strong>de</strong> c<strong>é</strong>u limpo e frio. E isto para já não<br />

falar das poucas pessoas que conseguem ler <strong>um</strong>a carta meteorológica – no entanto, tão simples<br />

como os sinais <strong>de</strong> trânsito.<br />

O pior <strong>é</strong> que tanto a fantasia do clima ameno, como a ignorância dos sinais do tempo,<br />

favoreceram em Portugal formas <strong>de</strong> construção e hábitos dom<strong>é</strong>sticos absurdos. Já toda a gente<br />

7

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!