anais do xi encontro da epfcl|afcl - brasil - Escola de Psicanálise dos ...
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ANAIS DO XI ENCONTRO DA EPFCL|AFCL - BRASIL<br />
Fortaleza - 2011<br />
1
ANAIS DO XI ENCONTRO DA EPFCL|AFCL - BRASIL<br />
Coor<strong>de</strong>nação Nacional: Sonia Alberti<br />
Georgina Cerquise<br />
Consuelo Pereira <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong><br />
Coor<strong>de</strong>nação Local: Andrea Rodrigues<br />
Sandra Mara Nunes Doura<strong>do</strong><br />
Coor<strong>de</strong>nação <strong>da</strong> Comissão Científica: Lia Carneiro Silveira<br />
Membros <strong>da</strong> Comissão Científica: Alba Abreu<br />
Angélia Teixeira<br />
Andrea Brunetto,<br />
Diego Mautino<br />
Dominique Fingermann<br />
Maria Anita Carneiro Ribeiro<br />
Silvia Amoe<strong>do</strong><br />
Zil<strong>da</strong> Macha<strong>do</strong>.<br />
Diretoria <strong>da</strong> EPFCL-Brasil (2011): Ana Laura Prates (Diretora)<br />
Sandra Berta (Secretária)<br />
Patrocínio:<br />
Apoio:<br />
Beatriz Oliveira (Tesoureira)<br />
Associação <strong>do</strong>s Lojistas <strong>da</strong> Monsenhor Tabosa<br />
2
SUMÁRIO<br />
APRESENTAÇÃO 5<br />
PLENÁRIAS 7<br />
O SINTOMA ENTRE MARX E LACAN 8<br />
ALÍNGUA HISTÉRICA 14<br />
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O NÚCLEO REAL DO SINTHOMA E A EXPERIÊNCIA DO GOZO OUTRO 24<br />
“DAR NA PINTA”: PARECER MULHER COM CORPO DE HOMEM 32<br />
SINTOMA E FANTASIA NA HISTERIA MASCULINA 42<br />
O SINTOMA E O AMOR 50<br />
APOSTAR NO SINTOMA 56<br />
SINTOMA E ESCRITA OU...OS ECOS DO SINTOMA SELVAGEM 64<br />
O LIVRO DE CABECEIRA: DA ESCRITA COMO SINTOMA AO SINTOMA COMO LETRA 74<br />
A SATISFAÇÃO DO FINAL DE ANÁLISE 81<br />
MESAS SIMULTÂNEAS 90<br />
“FAZER UMA ESCOLHA OU PERMANECER NA DÚVIDA?” 91<br />
O QUE MARCÉLIO SABIA 100<br />
REFLEXÕES SOBRE A DIREÇÃO DO TRATAMENTO NA CLÍNICA DA PERVERSÃO 109<br />
A PELE, SUAS MARCAS E O CORPO:FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO E TATUAGEM 117<br />
SINTOMA: RUÍDO DA ALÍNGUA NO CORPO 128<br />
CONSIDERAÇÕES SOBRE O GOZO EM UM CASO CLÍNICO DE PSORÍASE 136<br />
SINTHOME: O REAL DO SINTOMA 146<br />
SINTOMA E FANTASIA FUNDAMENTAL 152<br />
O NOME DO SINTOMA 160<br />
A ARTE É O QUE HÁ DE MAIS REAL 168<br />
OS USOS DO CORPO E A POLÍTICA DO SINTOMA: O CASO DA TRANSFORMAÇÃO CORPORAL 175<br />
O REAL DO SINTOMA: SUA POLÍTICA NA CURA 184<br />
SINTOMA OU FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO? DECIFRA-ME OU TE DEVORO! 195<br />
CONSIDERAÇÕES TOPOLÓGICAS DA PASSAGEM DO SINTOMA AO SINTHOMA 202<br />
UM ADOLESCENTE EM CENA 210<br />
A RELAÇÃO DO SINTOMA COM AS LEIS MORAIS 217<br />
“SINTO QUE NÃO TOM(A)ES” – SOBRE A DESIMPLICAÇÃO SUBJETIVA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA<br />
223<br />
A FUNÇÃO DO ANALISTA E A POLÍTICA DA PSICANÁLISE NA POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE MENTAL 229<br />
OS IMPASSES DA TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E DA TRANSMISSÃO EM PSICANÁLISE 235<br />
ASPECTOS DA RELAÇÃO ENTRE SINTOMA E ANÁLISE 241<br />
PSICOSES ORDINÁRIAS E ATOS VIOLENTOS 246<br />
ENTRE A SÍNDROME E A MÃE: MARCELA 252<br />
O HOMEM CONDUTOR: UM CASO DE HISTERIA MASCULINA? 260<br />
DA ILUSÃO DE COMPLETUDE AO ENCONTRO SIMBÓLICO: A PEREGRINAÇÃO AMOROSA DO SUJEITO<br />
DESEJANTE EM “UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES”, DE CLARICE LISPECTOR 267<br />
SINTOMA, SINTHOME E FINAL DE ANÁLISE 277<br />
3
“IMAGINE O QUE EU NÃO FALARIA SE EU NÃO FOSSE GAGO!”: O QUE FALA ESSA GAGUEIRA? 283<br />
CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA PSICOSE: CASO SCHREBER 287<br />
DE UM SINTOMA NO CORPO A UM SINTOMA ANALÍTICO: UMA CLÍNICA A PARTIR DOS FENÔMENOS<br />
PSICOSSOMÁTICOS 294<br />
A CRIANÇA COMO SINTOMA DOS PAIS EM CASOS DE DISPUTA DE GUARDA 301<br />
PSICANÁLISE E POLÍTICA : O PSICANALISTA COMO SINTOMA DA CULTURA 307<br />
SINTOMA E REPETIÇÃO NA NEUROSE OBSESSIVA 314<br />
O SINTOMA NA ARTE OU A ARTE COMO SINTOMA? 322<br />
ESPAÇO ESCOLA 330<br />
CARTEL: ESPAÇO DE SABER ARTICULADO À POLÍTICA DA PSICANÁLISE 331<br />
O PASSE: A RAZÃO DE UM FRACASSO 340<br />
4
Apresentação<br />
“O sintoma fun<strong>da</strong>mental é a única coisa que faz i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, que é o<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro nome próprio – o que to<strong>da</strong>s as i<strong>de</strong>ntificações fracassam em<br />
fazer. É somente nele que o sujeito po<strong>de</strong> encontrar seu princípio <strong>de</strong><br />
consistência e constitui-lo em resposta à questão <strong>de</strong> entra<strong>da</strong>: o que<br />
sou? Sou este gozo ou, mais precisamente, esta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
amarração entre um <strong>de</strong>sejo impossível <strong>de</strong> dizer tu<strong>do</strong> e um gozo que<br />
fixa uma letra <strong>do</strong> inconsciente” Colette Soler, 10/07/1999.<br />
Se i<strong>de</strong>ntificamos três momentos para a psicanálise: o <strong>de</strong> seu surgimento, <strong>de</strong> sua<br />
releitura e <strong>de</strong> seu objeto a abrir um novo campo, ain<strong>da</strong> assim o sintoma, que estará nos três,<br />
po<strong>de</strong>rá ser um quarto a amarrá-los. O sintoma é a política <strong>da</strong> psicanálise por diferenciá-la<br />
não só <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as outras clínicas mas também como discurso, aparelho <strong>de</strong> gozo.<br />
A psicanálise surge num contexto histórico muito complexo, na pena <strong>de</strong> um gênio<br />
que consegue traduzir o que está absolutamente presente sem que ninguém consiga vê-lo e<br />
transmitir, com suas próprias palavras, o que até então não era possível dizer. Inicialmente é<br />
isso o sintoma: na histeria, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo insatisfeito; na fobia, a angústia <strong>da</strong><br />
castração, e na neurose obsessiva, o direito ao <strong>de</strong>sejo no compromisso com sua proibição.<br />
A psicanálise cresce com o campo <strong>da</strong> fala e <strong>da</strong> linguagem com o qual Lacan po<strong>de</strong><br />
“construir algoritmos mais rigorosos” (Lacan, p. 109, Sem. 21) para articular a obra <strong>de</strong> Freud,<br />
e trazer novamente à cena o que fora recalca<strong>do</strong> na própria psicanálise, cuja situação em 1956,<br />
para retomar somente um <strong>de</strong>sses momentos, se sintomatizava na burocracia <strong>da</strong> formação<br />
psicanalítica, muito distante <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> freudiana.<br />
A psicanálise abre um novo campo, o campo lacaniano, <strong>do</strong> gozo, e novamente o<br />
sintoma comparece, <strong>de</strong>ssa vez como política. Na clínica, isso inclui em seu campo, além <strong>da</strong><br />
neurose, a psicose e mesmo o final <strong>da</strong> análise. Com Joyce e a ciência <strong>do</strong> real, a lógica, os nós,<br />
instrumento que introduz as três dimensões com as quais, em 12 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1974 Lacan<br />
propõe cingir o ponto <strong>do</strong> lugar <strong>da</strong> psicanálise no mun<strong>do</strong>. A psicanálise mesma como sintoma,<br />
observa Lacan em 1974, <strong>do</strong> que não vai bem no real...<br />
Nos seminários mais tardios <strong>de</strong> seu ensino, Jacques Lacan retomou a noção <strong>de</strong><br />
sintoma para lhe atribuir finalmente, a função <strong>de</strong> ano<strong>da</strong>mento, amarração, entre real,<br />
5
simbólico e imaginário o que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter referência com o termo freudiano atribui<strong>do</strong> a<br />
Eros <strong>de</strong> amarrar, ligar, bin<strong>de</strong>n.<br />
O sintoma como nó é quarto, é também o sintoma como o que vem <strong>do</strong> real: o que<br />
claudica, por exemplo, no discurso <strong>do</strong> mestre. Os novos sintomas presentificam o que<br />
claudica no discurso <strong>do</strong> mestre contemporaneo: as to<strong>xi</strong>comanias – que <strong>de</strong>man<strong>da</strong>m drogas<br />
lícitas e ilícitas – como retorno <strong>do</strong> real <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> capitalista; o recru<strong>de</strong>cimento <strong>da</strong><br />
segregação; os transtornos... conforme as novas nomenclaturas sintomatizan<strong>do</strong> a ciência.<br />
O sintoma como o que claudica no discurso <strong>do</strong> mestre inclui o próprio inconsciente<br />
real, o gran<strong>de</strong> campo <strong>do</strong> não saber. A partir <strong>do</strong> que observou nossa convi<strong>da</strong><strong>da</strong> internacional<br />
Colette Soler, ano passa<strong>do</strong> em Buenos Aires, o passe <strong>de</strong>veria ocupar-se disso: na contramão<br />
<strong>da</strong> confusão entre a fantasia e o real <strong>do</strong> inconsciente, a i<strong>de</strong>ntificação ao sintoma implica o<br />
saber-se objeto, ponto <strong>de</strong> vira<strong>da</strong> em relação à repetição.<br />
Sonia Alberti – Diretora <strong>da</strong> EPFCL | AFCL-Brasil<br />
6
PLENÁRIAS<br />
7
O sintoma com Marx<br />
O Sintoma entre Marx e Lacan<br />
Sonia Alberti 1<br />
Praticamente, a ca<strong>da</strong> vez em que Lacan se refere ao sintoma,<br />
estatisticamente se quiserem, po<strong>de</strong>mos dizer a ca<strong>da</strong> <strong>do</strong>is anos em seu<br />
Seminário, ele começa assim: “é importante observar que historicamente não<br />
resi<strong>de</strong> aí a novi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Freud, a noção <strong>de</strong> sintoma, como várias vezes marquei, e<br />
como é muito fácil observar na leitura <strong>da</strong>quele que por esta noção é<br />
responsável, [...] [é <strong>de</strong>] Marx” (1970-‐1, p. 220). Extraí essa citação ao acaso, elas<br />
são inúmeras nos textos <strong>de</strong> Lacan, ain<strong>da</strong> em RSI ele faz essa referência e no<br />
seminário sobre o Sinthome. Já anteriormente, em seu texto “Formulações sobre<br />
a causali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica” (1946) Lacan termina por colocar em série: Sócrates,<br />
Descartes, Marx e Freud como aqueles que “não po<strong>de</strong>m ser supera<strong>do</strong>s, na<br />
medi<strong>da</strong> em que conduziram suas investigações com essa paixão <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelar a<br />
qual possui um objeto: a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” (p.193). É por estarem referi<strong>do</strong>s a esse objeto,<br />
que os <strong>do</strong>is últimos, Marx e Freud, pu<strong>de</strong>ram perceber o quanto a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é<br />
sempre meio dizer e o quanto insiste, justamente, ali on<strong>de</strong> sempre se vela. Por<br />
outro la<strong>do</strong>, também po<strong>de</strong>mos ler em Lacan que “O sintoma tem o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
valor <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Tal observação é associa<strong>da</strong>, por Lacan, com esta outra: “o que<br />
há <strong>de</strong> essencial no pensamento mar<strong>xi</strong>sta é a equivalência <strong>do</strong> sintoma com o<br />
valor <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” (Lacan, 1971-‐2, p. 25).<br />
Assim: para Lacan, tanto Marx como Freud possuem o mesmo objeto: a<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, além disso, para ambos, é o valor <strong>de</strong>sse objeto que equivale ao sintoma.<br />
1 AME , Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -‐ Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro<br />
8
Ou seja: o valor ver<strong>da</strong><strong>de</strong> = valor sintoma, o sintoma em Marx e em Freud. Até aí<br />
pu<strong>de</strong> ir no último trabalho apresenta<strong>do</strong>, em particular em São Paulo quan<strong>do</strong> tive<br />
a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> falar no FCL <strong>de</strong> lá. O que proponho hoje, e será rápi<strong>do</strong>, é um<br />
pequeno avanço: o sintoma entre Marx e Lacan.<br />
Em 1844, época em que Marx estabelece as bases filosóficas para to<strong>da</strong> sua<br />
obra, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> em questão é a <strong>do</strong> sistema capitalista que Proudhon julgava<br />
estar se socializan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais. É no questionamento <strong>de</strong>ssa hipótese <strong>de</strong><br />
Proudhon que encontramos talvez a mais evi<strong>de</strong>nte acepção <strong>do</strong> emprego <strong>do</strong><br />
termo sintoma, por Marx, na maneira como Lacan o marca. Retomemos to<strong>da</strong> a<br />
passagem em Marx:<br />
A diminuição <strong>do</strong> interesse no dinheiro, o que Proudhon consi<strong>de</strong>ra<br />
como a anulação <strong>do</strong> capital e como uma tendência para socializar o<br />
capital é, por essa razão, <strong>de</strong> fato somente um sintoma <strong>da</strong> vitória<br />
total <strong>do</strong> capital <strong>de</strong> giro sobre o <strong>de</strong>sperdício <strong>da</strong> riqueza, isto é, <strong>da</strong><br />
transformação <strong>de</strong> to<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> em capital industrial. É<br />
a vitória total <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> sobre to<strong>da</strong>s as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que<br />
ain<strong>da</strong> são aparentemente humanas, e a total sujeição <strong>do</strong> <strong>do</strong>no <strong>da</strong><br />
proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> à essência <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> – o<br />
trabalho. Certamente, o capitalista industrial também goza. De<br />
forma alguma ele retorna para a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />
não é natural; mas seu gozo é somente um assunto lateral –<br />
recreação – submeti<strong>do</strong> à produção; ao mesmo tempo, é calcula<strong>do</strong> e,<br />
por isso, ele próprio, um gozo econômico. Pois ele o <strong>de</strong>bita <strong>da</strong> conta<br />
<strong>da</strong>s <strong>de</strong>spesas, e o que for <strong>de</strong>sperdiça<strong>do</strong> para seu gozo não po<strong>de</strong><br />
exce<strong>de</strong>r o que será substituí<strong>do</strong> com o lucro <strong>da</strong> reprodução <strong>do</strong><br />
capital. Por isso, o gozo é subsumi<strong>do</strong> ao capital, e o indivíduo que<br />
9
goza é subsumi<strong>do</strong> ao indivíduo que acumula capital. Antes, a<br />
situação era o contrário [o indivíduo que acumulava capital o fazia<br />
para gozar com ele, provocan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sperdício <strong>da</strong> riqueza]. A<br />
diminuição <strong>da</strong> taxa <strong>de</strong> juros [que Proudhon via como uma<br />
diminuição <strong>do</strong> interesse <strong>do</strong> dinheiro] é, portanto, um sintoma <strong>da</strong><br />
anulação <strong>do</strong> capital apenas na medi<strong>da</strong> em que é um sintoma <strong>da</strong><br />
crescente <strong>do</strong>minação <strong>do</strong> capital – <strong>da</strong> alienação crescente [...]. Aliás,<br />
esta é a única maneira <strong>de</strong> o que e<strong>xi</strong>ste afirmar seu oposto (Marx,<br />
1844, tradução e grifos meus).<br />
Não somos economistas para <strong>de</strong>senvolver to<strong>do</strong> esse raciocínio na<br />
articulação com as vicissitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> capitalismo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1844. Efetivamente, no<br />
campo <strong>da</strong> economia, tais observações <strong>de</strong> Marx <strong>de</strong>vem ter ti<strong>do</strong> novas<br />
contribuições com as guina<strong>da</strong>s – para retomar uma expressão que usávamos no<br />
sába<strong>do</strong>, a partir <strong>da</strong>s observações <strong>de</strong> Colette Soler sobre o passe – <strong>do</strong> capitalismo<br />
no século XX. Mas o que me interessa aqui é verificar, na formulação mesma <strong>do</strong><br />
termo em Marx, as razões que levaram Lacan a i<strong>de</strong>ntificar, tantas vezes, a<br />
origem <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> sintoma, em psicanálise, em Marx, o que ocorre <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />
primeiras observações sobre o sintoma em Lacan até as últimas, ou seja, no<br />
contexto <strong>do</strong> Seminário O Sinthoma, entre 1975-‐6.<br />
Se nas primeiras observações então a questão parece articular o sintoma<br />
com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> – razão <strong>de</strong> o sintoma em Freud ser o sintoma em Marx, como<br />
vimos em São Paulo –, por que Lacan se interessa em artiular o sintoma, <strong>do</strong> jeito<br />
que a psicanálise o conceituaria, no Seminário O Sinthoma, com o conceito<br />
inventa<strong>do</strong> por Marx?<br />
10
Retomemos com vagar a passagem li<strong>da</strong>, os comentários <strong>de</strong> Marx sobre as<br />
teses <strong>de</strong> Feuerbach:<br />
1) “A diminuição <strong>do</strong> interesse no dinheiro, o que Proudhon consi<strong>de</strong>ra como a<br />
anulação <strong>do</strong> capital e como uma tendência para socializar o capital é, por essa<br />
razão, <strong>de</strong> fato somente um sintoma <strong>da</strong> vitória total <strong>do</strong> capital <strong>de</strong> giro sobre o<br />
<strong>de</strong>sperdício <strong>da</strong> riqueza, isto é, <strong>da</strong> transformação <strong>de</strong> to<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong><br />
em capital industrial”. Inicialmente, o sintoma é sinal <strong>de</strong> que o capital <strong>de</strong> giro<br />
venceu o <strong>de</strong>sperdício <strong>da</strong> riqueza e, portanto, não corrobora a observação <strong>de</strong><br />
Proudhon, <strong>de</strong> que a diminuição <strong>do</strong> interesse no dinheiro seria sinal <strong>de</strong> que o<br />
socialismo estaria chegan<strong>do</strong>... Ao contrário, diz Marx: em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong><br />
proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser privilegia<strong>da</strong>, surge o capital industrial,<br />
visan<strong>do</strong>, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma sempre maior circulação <strong>da</strong> riqueza, em que o<br />
próprio capital é produtor <strong>de</strong> mais capital.<br />
2) “É a vitória total <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> sobre to<strong>da</strong>s as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que ain<strong>da</strong><br />
são aparentemente humanas, e a total sujeição <strong>do</strong> <strong>do</strong>no <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong><br />
à essência <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> – o trabalho”. O capital que produz mais<br />
capital submete o <strong>do</strong>no <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> ao trabalho pois, para produzir<br />
é preciso trabalhar. Colocar o capital a trabalho. Ao mesmo tempo, Marx já<br />
<strong>de</strong>nuncia aqui o fim <strong>do</strong> humanismo, pois o homem é agora submeti<strong>do</strong> ao capital<br />
que o faz trabalhar para este mesmo capital. Se até então ain<strong>da</strong> havia uma i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> fazê-‐lo para o homem, agora fica claro – já que essa i<strong>de</strong>ia era somente uma<br />
noção que vinha <strong>da</strong>s aparências porque, em essência, a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong><br />
privilegia<strong>da</strong> até então, era somente sustenta<strong>da</strong> pelo trabalho, seu capital – que,<br />
na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, é pelo capital que o homem trabalha. E isso in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> esse<br />
homem ser o proprietário ou o operário, como se vê na frase seguinte:<br />
11
3) “Certamente, o capitalista industrial também goza”. Frase um pouco estranha.<br />
Como assim: “também”? Só posso enten<strong>de</strong>r essa frase quan<strong>do</strong> eu enten<strong>de</strong>r que o<br />
próprio gozo é esse capital que já estava lá apesar <strong>de</strong> vela<strong>do</strong> pelas “quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
aparentemente humanas”.<br />
4) Não é porque no capitalismo industrial há uma diminuição <strong>do</strong> interesse no<br />
dinheiro que esse capitalista estaria retornan<strong>do</strong> para “a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>” que, aliás, <strong>de</strong> natural não tem na<strong>da</strong>, observa Marx <strong>de</strong> quebra.<br />
5) “mas seu gozo é somente um assunto lateral – recreação – submeti<strong>do</strong> à<br />
produção; ao mesmo tempo, é calcula<strong>do</strong> e, por isso, ele próprio, um gozo<br />
econômico. Pois ele o <strong>de</strong>bita <strong>da</strong> conta <strong>da</strong>s <strong>de</strong>spesas, e o que for <strong>de</strong>sperdiça<strong>do</strong><br />
para seu gozo não po<strong>de</strong> exce<strong>de</strong>r o que será substituí<strong>do</strong> com o lucro <strong>da</strong><br />
reprodução <strong>do</strong> capital. Por isso, o gozo é subsumi<strong>do</strong> ao capital [...]”. A economia<br />
<strong>de</strong> gozo, no argumento <strong>de</strong> Marx, se mostra aqui mais uma vez como capital pois<br />
é ele mesmo calcula<strong>do</strong>, como o é o capital que já não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sperdiça<strong>do</strong>. Por<br />
outro la<strong>do</strong>, o mecanismo obsessivo aqui <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>: tanto gozo para tanta<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> substituição com o lucro <strong>da</strong> reprodução <strong>do</strong> capital, <strong>de</strong>nuncia o<br />
quanto esse homem, anula seu <strong>de</strong>sejo.<br />
6) Novo mal-‐estar na civilização: em mal <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> qual o sujeito já<br />
não po<strong>de</strong> usufruir, gozar, “o indivíduo que goza é subsumi<strong>do</strong> ao indivíduo que<br />
acumula capital. Antes, a situação era o contrário” [o indivíduo que acumulava<br />
capital o fazia para gozar com ele, provocan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sperdício <strong>da</strong> riqueza],<br />
pagan<strong>do</strong> o preço para <strong>de</strong>sejar.<br />
7) E então, o grand finale <strong>de</strong> Marx: ao contrário <strong>do</strong> que previa Proudhon, “A<br />
diminuição <strong>da</strong> taxa <strong>de</strong> juros” (que Proudhon via como uma diminuição <strong>do</strong><br />
interesse <strong>do</strong> dinheiro) serve a provocar maior capital <strong>de</strong> giro e “é, portanto, um<br />
12
sintoma <strong>da</strong> anulação <strong>do</strong> capital apenas na medi<strong>da</strong> em que é um sintoma <strong>da</strong><br />
crescente <strong>do</strong>minação <strong>do</strong> capital”. Ain<strong>da</strong> aqui inicialmente, o sintoma é sinal, mas<br />
não só. Ele também amarra o imaginário <strong>do</strong> que havia <strong>de</strong> aparentemente<br />
humano, o simbólico que se contabiliza, com o real <strong>do</strong> incomensurável que é o<br />
trabalho que nessa operação sempre se per<strong>de</strong> enquanto mais valia, na<br />
8) “alienação crescente” pois o próprio gozo que se per<strong>de</strong>, que se aliena, é ele<br />
mesmo o capital a incrementar a produção, gozo a mais ou mais <strong>de</strong> gozar.<br />
9) “Aliás, esta é a única maneira <strong>de</strong> o que e<strong>xi</strong>ste afirmar seu oposto”. Se é<br />
“sintoma <strong>da</strong> anulação <strong>do</strong> capital apenas na medi<strong>da</strong> em que é um sintoma <strong>da</strong><br />
crescente <strong>do</strong>minação <strong>do</strong> capital” é porque <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> presentifica o que não se<br />
goza – e que po<strong>de</strong>mos aqui associar com o impossível <strong>da</strong> relação sexual, <strong>de</strong><br />
outro la<strong>do</strong>, com o gozo a mais, produzi<strong>do</strong> a partir <strong>da</strong>quela per<strong>da</strong>: o Sinthoma e o<br />
real. Sinthoma, portanto, com “th”, reforçan<strong>do</strong> a amarração entre real, simbólico<br />
e imaginário ali on<strong>de</strong> o homem está em mal <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />
MARX, K. (1844) Human Requirements and Division of Labour. Un<strong>de</strong>r the Rule<br />
of Private Property. In Economic and Philosophical Manuscripts of 1844.<br />
Consulta<strong>do</strong> no site:<br />
http://www.mar<strong>xi</strong>sts.org/archive/marx/works/1844/manuscripts/needs.htm<br />
(1845) Thesen über Feuerbach in Marx-‐Engels Werke 3, 534. Consulta<strong>da</strong>s no<br />
site: http://www.mlwerke.<strong>de</strong>/me/me03/me03_005.htm<br />
13
Alíngua Histérica<br />
Jairo Gerbase 1<br />
Sob o título <strong>de</strong> alíngua histérica, escrita com uma só palavra como propõe Lacan,<br />
gostaria <strong>de</strong> justificar nossa hipótese <strong>de</strong> trabalho segun<strong>do</strong> a qual, o campo <strong>da</strong>s neuroses, campo<br />
<strong>do</strong> inconsciente real, é uma espécie <strong>de</strong> território on<strong>de</strong> <strong>do</strong>mina uma língua oficial – alíngua<br />
histérica – <strong>da</strong> qual as outras formas <strong>de</strong> sintoma, especialmente a forma <strong>do</strong> sintoma obsessivo,<br />
correspon<strong>de</strong>m a um dialeto.<br />
Alíngua histérica e dialeto obsessivo<br />
Na introdução <strong>do</strong> caso <strong>do</strong> “homem <strong>do</strong>s ratos” [Notas sobre um caso <strong>de</strong> neurose<br />
obsessiva (1909) v. X] Freud afirma que “A linguagem <strong>de</strong> uma neurose obsessiva, ou seja, os<br />
meios pelos quais ela expressa seus pensamentos secretos, presume-se ser apenas um dialeto<br />
<strong>da</strong> linguagem <strong>da</strong> histeria; é, porém, um dialeto no qual teríamos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r orientar-nos a seu<br />
1 AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campos <strong>do</strong> Fórum Lacaniano – Brasil. Membro <strong>do</strong><br />
Fórum Salva<strong>do</strong>r<br />
14
espeito com mais facili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vez que se refere com mais pro<strong>xi</strong>mi<strong>da</strong><strong>de</strong> às formas <strong>de</strong><br />
expressão a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong>s pelo nosso pensamento consciente <strong>do</strong> que a linguagem <strong>da</strong> histeria.<br />
Sobretu<strong>do</strong>, não implica o salto <strong>de</strong> um processo mental a uma inervação somática —<br />
conversão histérica — que jamais nos po<strong>de</strong> ser totalmente compreensível”.<br />
Esta relação entre alíngua e dialeto po<strong>de</strong> ser estendi<strong>da</strong> às <strong>de</strong>mais formas <strong>da</strong> neurose<br />
inclusive à paranoia se tomarmos por referência o caso <strong>de</strong> Cecília [Caso 5 - Srta. Elisabeth<br />
Von R. (Freud) v.II] no qual ele afirma que “... a histeria tem razão em restaurar o significa<strong>do</strong><br />
original <strong>da</strong>s palavras ao retratar suas inervações inusita<strong>da</strong>mente fortes. Com efeito, talvez seja<br />
erra<strong>do</strong> dizer que a histeria cria essas sensações através <strong>da</strong> simbolização. É possível que ela<br />
não tome em absoluto o uso <strong>da</strong> língua como seu mo<strong>de</strong>lo, mas que tanto a histeria quanto o uso<br />
<strong>da</strong> língua extraiam seu material <strong>de</strong> uma fonte comum...”<br />
Quer dizer que não apenas a histeria, a obsessão, a fobia e a paranoia, mas a própria<br />
língua faz uso <strong>da</strong> alíngua, ou como diria Lacan o objeto <strong>da</strong> lingüística não é a língua, mas<br />
alíngua.<br />
Se me for objeta<strong>do</strong> que Freud também <strong>de</strong>stacou acima que o pensamento obsessivo é<br />
mais pró<strong>xi</strong>mo <strong>do</strong> pensamento consciente, ou que Lacan <strong>de</strong>nominou a neurose obsessiva <strong>de</strong> o<br />
15
princípio <strong>da</strong> consciência [L‘insu-que-sait <strong>de</strong> l‘une-bévue s’aile à mourre, 17/5/1977, Rumo a<br />
um significante novo – IV – Um significante novo] mesmo que me agra<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> elevar a<br />
obsessão à categoria <strong>de</strong> uma neurose exemplar, refutaria que ain<strong>da</strong> assim não faz discurso:<br />
não dizemos, a rigor, discurso obsessivo.<br />
Uma terceira referência a propósito <strong>da</strong> <strong>do</strong>minância <strong>da</strong> alíngua histérica sobre o dialeto<br />
<strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> sintoma po<strong>de</strong> ser encontra<strong>da</strong> na fórmula 9 <strong>do</strong> artigo [Fantasias<br />
histéricas e sua relação com a bissexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> (1908) v.VIII] “(9) Os sintomas histéricos são a<br />
expressão, por um la<strong>do</strong>, <strong>de</strong> uma fantasia sexual inconsciente masculina e, por outro la<strong>do</strong>, <strong>de</strong><br />
uma feminina”.<br />
Trato esta fórmula como um teorema e faço sua <strong>de</strong>monstração traduzin<strong>do</strong> fantasia<br />
sexual inconsciente masculina, primeiramente por significação fálica e, em segui<strong>da</strong> por gozo<br />
fálico [J ], posto que o gozo fálico é aquele que toma por referente (ou significação -<br />
Be<strong>de</strong>utung) o falo; por outro la<strong>do</strong>, traduzo a fantasia sexual inconsciente feminina por<br />
significação tórica e, em segui<strong>da</strong>, por gozo <strong>do</strong> Outro [J ], posto que o gozo <strong>do</strong> Outro é aquele<br />
que toma por referente o furo e que se po<strong>de</strong> mostrar seja através <strong>do</strong> símbolo <strong>do</strong> conjunto vazio<br />
[ ] ou <strong>da</strong> Impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Relação Sexual [IRS]ou ain<strong>da</strong> <strong>do</strong> objeto a.<br />
Freud termina este artigo afirman<strong>do</strong> que “No tratamento psicanalítico é extremamente<br />
importante estar prepara<strong>do</strong> para encontrar sintomas com significa<strong>do</strong> bissexual. Assim não<br />
ficaremos surpresos ou confusos se um sintoma parece não diminuir, embora já tenhamos<br />
resolvi<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s seus significa<strong>do</strong>s sexuais, pois ele ain<strong>da</strong> é manti<strong>do</strong> por um, talvez<br />
insuspeito, que pertence ao sexo oposto. No tratamento <strong>de</strong> tais casos, além disso, po<strong>de</strong>mos<br />
observar como o paciente se utiliza, durante a análise <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s sexuais, <strong>da</strong><br />
16
conveniente possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> constantemente passar suas associações para o campo <strong>do</strong><br />
significa<strong>do</strong> oposto, tal como para uma trilha paralela”.<br />
O significa<strong>do</strong> bissexual <strong>do</strong> sintoma histérico, que nesta fórmula é indica<strong>do</strong> como<br />
sintoma completo, como trabalho acaba<strong>do</strong>, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> seu valor <strong>de</strong> alíngua oficial, <strong>de</strong>vemos<br />
traduzir por significa<strong>do</strong> asexual, posto que sabemos que a outra parte <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> não po<strong>de</strong><br />
se escrever, não haven<strong>do</strong> por isto relação.<br />
Quarta referência, <strong>de</strong>sta vez em L´Étourdit, <strong>de</strong> Lacan, publica<strong>do</strong> no thesaurus:<br />
lalíngua [Lalíngua nos seminários, conferências e escritos <strong>de</strong> Jacques Lacan, organiza<strong>do</strong> por<br />
Dominique Fingermann e Conra<strong>do</strong> Ramos e publica<strong>do</strong> em Stylus 19, OE 492] “... Esse dizer<br />
provém apenas <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> que o inconsciente por ser ‘estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem’, isto<br />
é, como alíngua que ele habita, está sujeito à equivoci<strong>da</strong><strong>de</strong> pela qual ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las se<br />
distingue. Uma língua entre outras não é na<strong>da</strong> além <strong>da</strong> integral <strong>do</strong>s equívocos que sua história<br />
<strong>de</strong>ixou persistirem nela. É a veia em que o real – o único, para o discurso analítico, a motivar<br />
seu resulta<strong>do</strong>, o real <strong>de</strong> que não e<strong>xi</strong>ste relação sexual - se <strong>de</strong>positou ao longo <strong>da</strong>s eras...”<br />
Citação que nos autoriza a atualizar o inconsciente estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem em o<br />
inconsciente real estrutura<strong>do</strong> como alíngua.<br />
Prefiro traduzir lalangue por alíngua que por lalíngua porque apesar <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />
evocar a lalação não permite o equívoco que a primeira conserva.<br />
A objeção <strong>de</strong> que o inconsciente é estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem e <strong>de</strong> que a alíngua<br />
não é uma estrutura <strong>de</strong>ve-se respon<strong>de</strong>r afirman<strong>do</strong> que o inconsciente real estrutura<strong>do</strong> como<br />
alíngua correspon<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> inconsciente como aluvião <strong>do</strong>s mal-entendi<strong>do</strong>s <strong>da</strong> língua.<br />
17
O discurso histérico<br />
Passemos ao discurso histérico que escrevemos <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong> e que po<strong>de</strong>mos ler <strong>de</strong><br />
várias maneiras. Vamos ler esse matema tal como Lacan o leu no texto sobre o senti<strong>do</strong><br />
[Introdução è edição alemã <strong>de</strong> um 1º volume <strong>do</strong>s Escritos, OE 550].<br />
E<strong>xi</strong>ste uma clínica. Ela é inclusive anterior ao discurso analítico, e se o discurso<br />
analítico lhe trouxe alguma luz, isso ain<strong>da</strong> é preciso ser <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>. A clínica é mais antiga.<br />
O que é uma clínica? Não po<strong>de</strong>mos dizer só há uma estrutura clínica, a estrutura <strong>de</strong><br />
linguagem, a estrutura significante, que escrevemos [S( )], porque isso não é uma clínica. A<br />
clínica psicanalítica é o que se diz em uma psicanálise.<br />
Mesmo se <strong>de</strong>duzo <strong>da</strong> afirmação, <strong>da</strong> Bejahung e <strong>da</strong> não-afirmação, <strong>da</strong> Verwerfung, <strong>da</strong><br />
primeira afirmação e <strong>da</strong> primeira não-afirmação, nesse nível ain<strong>da</strong> não há uma clínica, porque<br />
18
estamos no nível <strong>da</strong> gênese <strong>do</strong> julgamento, e nesse nível ou admito ou expulso, nesse nível<br />
que <strong>de</strong>duzo <strong>da</strong> estrutura <strong>de</strong> linguagem e que chamo <strong>de</strong> estrutura <strong>do</strong> sintoma.<br />
Creio que é por esta razão que Lacan afirma que e<strong>xi</strong>ste uma clínica no nível <strong>da</strong>s<br />
formas <strong>do</strong> sintoma. Uma clínica <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> sintoma. É preciso que o sintoma<br />
tome forma, configuração, para que se possa dizer: e<strong>xi</strong>ste uma clínica.<br />
É necessário que o sintoma tome a forma que convém à estrutura <strong>do</strong> sintoma para que<br />
possamos falar <strong>de</strong> clínica. Portanto, a clínica é <strong>da</strong>s formas <strong>do</strong> sintoma, <strong>da</strong>s formas neuróticas<br />
<strong>do</strong> sintoma, que po<strong>de</strong>mos escrever como [Σn] e que sabemos que resultam <strong>da</strong> estrutura <strong>do</strong><br />
recalque, ou <strong>da</strong>s formas que po<strong>de</strong>mos escrever como [Σp], <strong>do</strong> sintoma psicótico, que é outra<br />
forma <strong>do</strong> sintoma e que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> foraclusão ou <strong>da</strong> holófrase.<br />
A holófrase prece<strong>de</strong> a frase. É uma coalescência <strong>do</strong>s <strong>da</strong> frase que suprime o<br />
intervalo próprio <strong>da</strong> neurose, que também se po<strong>de</strong> escrever como e funciona como<br />
19
Um que vai <strong>da</strong> <strong>de</strong>bili<strong>da</strong><strong>de</strong> à psicose. Alíngua é uma holófrase. É um jouis-signes distinto <strong>da</strong><br />
mensagem articula<strong>da</strong>. Um é <strong>do</strong> simbólico o outro é <strong>do</strong> real. Um é pré-verbal o outro é pré-<br />
linguagem. 1<br />
Po<strong>de</strong>mos partir <strong>de</strong> [S( )] e <strong>de</strong>duzir <strong>da</strong>í o discurso histérico; isso torna possíveis as<br />
formas histérica, obsessiva e fóbica <strong>do</strong> sintoma.<br />
Em um esquema como esse, temos, num primeiro nível, a estrutura <strong>da</strong> linguagem, <strong>do</strong><br />
significante e, num segun<strong>do</strong> nível, a estrutura <strong>do</strong> sintoma, que é, por exemplo, o discurso<br />
histérico.<br />
Hoje vou dizer que o discurso histérico é a estrutura <strong>do</strong> sintoma por excelência, <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
que esse discurso operou <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>da</strong> afirmação primordial, operou negan<strong>do</strong> essa afirmação <strong>de</strong><br />
mo<strong>do</strong> veemente, afirman<strong>do</strong>: tenho horror <strong>de</strong> saber disso, que é o que se chama <strong>de</strong> mecanismo<br />
<strong>do</strong> recalque e que permite constituir a estrutura <strong>do</strong> sintoma que atinge um discurso, o discurso<br />
histérico, <strong>do</strong> qual po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>duzir diversas formas <strong>de</strong> sintoma.<br />
De acor<strong>do</strong> com essa concepção, a obsessão e a fobia <strong>de</strong>veriam ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s como<br />
formas <strong>do</strong> discurso histérico, ou tipos <strong>de</strong> sintoma que resultam <strong>da</strong> estrutura <strong>do</strong> recalque. Dessa<br />
maneira gostaria <strong>de</strong> elevar o discurso histérico à estrutura <strong>de</strong> to<strong>do</strong> sintoma ou, pelo menos, à<br />
estrutura <strong>de</strong> to<strong>do</strong> sintoma neurótico e fazer <strong>da</strong> obsessão e <strong>da</strong> fobia formas <strong>do</strong> sintoma<br />
histérico.<br />
1 SOLER, C. O corpo falante. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus, p.27.<br />
20
Dizer que o sintoma obsessivo é uma forma <strong>do</strong> discurso histérico é, no lé<strong>xi</strong>co <strong>de</strong><br />
Freud, dizer que a obsessão é um dialeto <strong>da</strong> histeria, ou que é uma forma inacaba<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
sintoma. Po<strong>de</strong>ríamos usar o lé<strong>xi</strong>co <strong>de</strong> Joyce e dizer que o sintoma obsessivo é um “Work in<br />
progress”, um sintoma em construção, um trabalho em an<strong>da</strong>mento. O sintoma fóbico é<br />
também um “Work in progress”, <strong>da</strong><strong>do</strong> que não sabemos se ele vai se concluir em um sintoma<br />
histérico, em um sintoma obsessivo, ou se vai permanecer, to<strong>da</strong>via como um sintoma fóbico.<br />
Po<strong>de</strong>mos esten<strong>de</strong>r este argumento ao extremo para po<strong>de</strong>r dizer que inclusive a<br />
paranoia uma vez coloca<strong>da</strong> no dispositivo analítico, isto é, uma vez opera<strong>da</strong> a partir <strong>do</strong><br />
discurso <strong>do</strong> analista <strong>de</strong>ve ser hystoriza<strong>da</strong> ou histeriza<strong>da</strong> a fim <strong>de</strong> se tornar sintoma analítico.<br />
Isto parece contrariar o conceito <strong>de</strong> estrutura clínica, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que as estruturas<br />
clínicas não são intercambiáveis. Porém, atenção: não disse que a histeria po<strong>de</strong> virar paranoia,<br />
nem mesmo disse que a paranoia po<strong>de</strong> virar histeria, disse que o paranoico po<strong>de</strong> historizar seu<br />
21
discurso posto que a paranoia é igualmente um fato <strong>de</strong> discurso. O paranoico continuará<br />
paranoico, porém com um discurso histeriza<strong>do</strong>, historiza<strong>do</strong>. Isto, certamente implicará em<br />
uma estabilização.<br />
Talvez possamos tomar como exemplo <strong>de</strong> sintoma em construção o caso <strong>do</strong> Índio.<br />
Trata-se <strong>de</strong> uma “personali<strong>da</strong><strong>de</strong>” anancástica. Um estu<strong>da</strong>nte <strong>de</strong> Engenharia ambiental que se<br />
preocupa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já em proteger o ambiente, por exemplo, reaproveitamento <strong>da</strong> água suja para a<br />
<strong>de</strong>scarga. Suas má<strong>xi</strong>mas: o homem <strong>de</strong>strói o ambiente; o sol vai esfriar; o índio já era artista<br />
muito antes <strong>de</strong> Tarzan... Com quatro anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> perguntou à sua mãe: e quan<strong>do</strong> a água <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> acabar? Ela respon<strong>de</strong>u: não vai acabar. Ele replicou: como não vai acabar se to<strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> usa a água? Desenvolveu uma inibição escopofílica [fobia social] que lhe impôs um<br />
atraso escolar consi<strong>de</strong>rável, uma procrastinação. Para me explicar diz que era uma criança tão<br />
hiperativa que certa vez seu pai foi à escola lhe obrigar a pedir <strong>de</strong>sculpas à professora e aos<br />
22
colegas; morreu <strong>de</strong> vergonha. Seu pai gostava <strong>de</strong> lhe expor ao ridículo: vestir-lhe <strong>de</strong> palhaço<br />
com a cara lambuza<strong>da</strong> em festas juninas; em um carnaval lhe vestiu uma fantasia <strong>de</strong> índio,<br />
sem roupas, sob o argumento irônico <strong>de</strong> que: índio an<strong>da</strong> nu. De mo<strong>do</strong> que acredito que esta<br />
fixão <strong>de</strong> gozo <strong>de</strong>terminou tanto seu sintoma como sua escolha vocacional.<br />
23
Algumas observações sobre o núcleo real <strong>do</strong> sinthoma e a experiência <strong>do</strong><br />
gozo Outro<br />
Elisabeth <strong>da</strong> Rocha Miran<strong>da</strong> 1<br />
O sintoma é, para Freud, uma solução <strong>de</strong> compromisso (Kompromissbildung) entre o<br />
<strong>de</strong>sejo inconsciente e as e<strong>xi</strong>gências <strong>de</strong>fensivas <strong>do</strong> eu. É um sinal e o substituto <strong>de</strong> uma<br />
satisfação pulsional que não po<strong>de</strong> alcançar seu alvo <strong>de</strong> forma direta. É uma mensagem cifra<strong>da</strong><br />
que pe<strong>de</strong> interpretação. Para Lacan, o sintoma en<strong>de</strong>reça<strong>do</strong> ao Outro ganha uma significação.<br />
A “dialética <strong>do</strong> senhor e <strong>do</strong> escravo” elabora<strong>da</strong> por Hegel foi uma referência quan<strong>do</strong> em 1953<br />
no texto “Função e campo <strong>da</strong> palavra e <strong>da</strong> linguagem” Lacan nos dá uma primeira leitura <strong>da</strong><br />
questão <strong>do</strong> sintoma. A partir <strong>de</strong> 1958, no texto “A direção <strong>do</strong> tratamento e os princípios <strong>de</strong><br />
seu po<strong>de</strong>r” (Lacan,1958) ele concebe o inconsciente como ten<strong>do</strong> “a estrutura radical <strong>da</strong><br />
linguagem” (Lacan, 1958: 600). A linguagem, segun<strong>do</strong> Saussure, é plena <strong>de</strong> diferenças e a<br />
sincronia significante inscrita no lugar <strong>do</strong> Outro, longe <strong>de</strong> ser uma plenitu<strong>de</strong> compacta,<br />
contém rupturas. Na seqüência sincrônica <strong>da</strong> linguagem abre-se uma hiância que se revela na<br />
clínica e po<strong>de</strong> ser formaliza<strong>da</strong> graças à teoria lacaniana <strong>do</strong> Outro <strong>do</strong> significante. A<br />
incompletu<strong>de</strong> <strong>do</strong> Outro é um fato <strong>de</strong> estrutura, o que faz Lacan <strong>de</strong>fini-lo como lugar <strong>da</strong> fala,<br />
“lugar <strong>da</strong> falta” (Lacan, 1958: 633).<br />
O recurso <strong>do</strong> sujeito para li<strong>da</strong>r com essa falta é o apelo ao significante Nome-<strong>do</strong>-Pai<br />
concebi<strong>do</strong> como o significante <strong>do</strong> Outro <strong>da</strong> lei inseri<strong>do</strong> no Outro <strong>do</strong> significante. A<br />
significação fálica, produzi<strong>da</strong> retroativamente, está regi<strong>da</strong> pela função paterna, que se<br />
1 AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -‐ Brasil, membro <strong>do</strong> Fórum Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro<br />
24
inscreve no seio <strong>do</strong> Outro, em A. O sintoma se apresenta, neste momento, como metáfora<br />
significante e se constitui em <strong>de</strong>corrência <strong>da</strong> inscrição <strong>do</strong> significante Nome-<strong>do</strong>-Pai. No<br />
entanto, a estrutura <strong>do</strong> sintoma não se limita à estrutura <strong>da</strong> metáfora, já que o sintoma não se<br />
resolve <strong>de</strong> to<strong>do</strong> em uma análise <strong>da</strong> linguagem. O sintoma está enraiza<strong>do</strong> em algo <strong>de</strong> uma<br />
natureza distinta <strong>do</strong> significante, o que se comprova com a teoria <strong>da</strong>s pulsões. A compulsão à<br />
repetição e o gozo participam <strong>da</strong> estruturação <strong>do</strong> sintoma tanto quanto a metáfora significante<br />
surgi<strong>da</strong> <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> Outro.<br />
A lógica <strong>da</strong> enunciação não po<strong>de</strong> encontrar no campo <strong>do</strong> significante seu próprio fun<strong>da</strong>mento.<br />
Não há Outro <strong>do</strong> Outro, visto que to<strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> possui como única garantia<br />
sua própria enunciação. Nenhuma metalinguagem po<strong>de</strong> articular a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> última <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />
Há um significante que marca que ao Outro falta, constituin<strong>do</strong>-o por uma falha e que se<br />
escreve com o matema . A or<strong>de</strong>m simbólica está articula<strong>da</strong> em torno <strong>de</strong> um furo, o que<br />
nos permite consi<strong>de</strong>rar como o matema <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-Pai. Ain<strong>da</strong> que tenha si<strong>do</strong><br />
introduzi<strong>do</strong> para sublinhar a mortificação <strong>do</strong> pai freudiano pelo significante, o Nome-<strong>do</strong>-Pai<br />
encontra-se inseri<strong>do</strong> <strong>de</strong> saí<strong>da</strong> no campo <strong>da</strong> linguagem. A incompletu<strong>de</strong> <strong>do</strong> Outro impe<strong>de</strong> que<br />
consi<strong>de</strong>remos o pai simbólico como o significante mestre (S1). Lacan <strong>de</strong>staca que o pai <strong>da</strong><br />
hor<strong>da</strong> primitiva, cujo <strong>de</strong>saparecimento instaura a lei, não transmite nenhuma mensagem, <strong>de</strong><br />
tal maneira que sua função se iguala a um significante sem significação. A referência a sua<br />
morte vai a favor <strong>do</strong> Outro marca<strong>do</strong> por uma hiância. “O cadáver é um significante, mas o<br />
túmulo <strong>de</strong> Moisés está tão vazio para Freud quanto o <strong>de</strong> Cristo para Hegel. Abraão a nenhum<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is revelou seu mistério” (Lacan, 1960: 833) diz Lacan em 1960. Na única aula <strong>do</strong><br />
25
seminário “Os nomes <strong>do</strong> pai”, Lacan (1963) diz que o sacrifício e<strong>xi</strong>gi<strong>do</strong> por Deus a Abraão<br />
nos faz enten<strong>de</strong>r que a herança <strong>do</strong> pai freudiano resi<strong>de</strong> no complexo <strong>de</strong> castração.<br />
A <strong>de</strong>scoberta freudiana e a lógica matemática levaram Lacan a formular a tese <strong>de</strong> que o<br />
significante Nome-<strong>do</strong>-Pai <strong>de</strong>termina e or<strong>de</strong>na a ca<strong>de</strong>ia significante, regulan<strong>do</strong> o gozo inerente<br />
a ela, gozo limita<strong>do</strong> pela renúncia ao objeto primordial <strong>de</strong> gozo. Essa tese se afirma com as<br />
fórmulas <strong>da</strong> sexuação e com o tardio <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia borromeana no ensino <strong>de</strong><br />
Lacan.<br />
A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> recorrer a essa noção se impõe <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à ine<strong>xi</strong>stência <strong>da</strong> relação<br />
sexual. Uma amarração <strong>da</strong>s três instâncias R.S.I. constitui a topologia mínima capaz <strong>de</strong> captar<br />
a estrutura <strong>do</strong> sujeito e construir a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> para o ser falante. A topologia <strong>do</strong>s nós baseia-se<br />
na idéia <strong>do</strong> furo, já que o <strong>de</strong>sejo só se sustenta em uma falta (Lacan, lição <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong><br />
1975). “A ca<strong>de</strong>ia borromeana é um triplo furo” (Lacan, 1975: 267) que <strong>de</strong>limita o quarto furo<br />
on<strong>de</strong> se aloja o objeto a. Esses furos se presentificam <strong>de</strong> maneiras diversas em ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s<br />
três registros; no registro <strong>do</strong> simbólico, ele aparece como a hiância fun<strong>da</strong>mental, como a<br />
incompletu<strong>de</strong> <strong>do</strong> Outro, como já dissemos, não há Outro <strong>do</strong> Outro, ao Outro falta, ele é<br />
barra<strong>do</strong> em relação ao to<strong>do</strong>; no registro <strong>do</strong> imaginário (Lacan, lição <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1975 e<br />
<strong>de</strong> 10 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1974), para além <strong>do</strong> que a imagem <strong>do</strong> corpo tenta elidir, o furo se faz<br />
através <strong>da</strong> negativização <strong>do</strong> falo (–phi); no registro <strong>do</strong> real, temos a hiância posta às claras<br />
pela não relação sexual, que marca a impossível completu<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser sexua<strong>do</strong>.<br />
Em 1975, Lacan faz uma equivalência entre o Nome-<strong>do</strong>-Pai e a ca<strong>de</strong>ia borromeana.<br />
Esta, como já dissemos, é composta <strong>de</strong> três registros, RSI, que por si só não dão ao humano a<br />
26
estrutura necessária para que ele ace<strong>da</strong> ao falasser (parlêtre) e como tal po<strong>de</strong>r utilizar-se <strong>do</strong><br />
discurso como recurso à falta-ser. É necessário o quarto nó que amarre os três e esse quarto nó<br />
é o Nome-<strong>do</strong>-Pai, que nesta ocasião Lacan faz equivaler ao sinthome. Temos então o objeto a<br />
enquanto puro vazio, marca <strong>da</strong> castração, <strong>da</strong> falta radical constitutiva <strong>do</strong> sujeito aloja<strong>do</strong> no<br />
quarto furo <strong>de</strong>limita<strong>do</strong> pelo RSI. Neste mesmo lugar Lacan situa o sinthome e o Nome-<strong>do</strong>-<br />
Pai.<br />
O sinthome escrito assim em uma nova grafia toma<strong>da</strong> <strong>do</strong> francês antigo é utiliza<strong>do</strong> por<br />
Lacan para <strong>de</strong>signar o conceito <strong>de</strong> sinthoma como quarto nó correlativo ao Nome-<strong>do</strong>-Pai. Para<br />
forjar este novo conceito diz Lacan, foi “preciso reduzir o sinthoma em um grau para<br />
consi<strong>de</strong>rar que ele era homogêneo à elucubração <strong>do</strong> inconsciente” (Lacan, 1976: 134). O<br />
conceito anterior era o <strong>de</strong> uma metáfora estanque, cujo senti<strong>do</strong> era possível <strong>de</strong> se extrair; a<br />
partir <strong>da</strong> indicação <strong>de</strong> 1976, temos um irredutível no sinthoma que se mantém no campo <strong>do</strong><br />
Real, estabelecen<strong>do</strong> “uma coerência entre o sinthoma e o inconsciente [...]. Elemento<br />
necessário <strong>da</strong> estrutura o sinthoma é ancora<strong>do</strong> em um gozo vincula<strong>do</strong> ao <strong>da</strong> fantasia<br />
fun<strong>da</strong>mental. Algo <strong>do</strong> sinthoma escapa ao senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> tal maneira que no final <strong>de</strong> uma análise<br />
resta-nos apenas “saber fazer com seu sintoma” (Lacan, lição <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1976). Se<br />
e<strong>xi</strong>ste um núcleo incurável, resta-nos assumi-lo, o que produz uma modificação <strong>do</strong> sujeito na<br />
relação com seu próprio gozo.<br />
O sinthoma é o real que se faz presente no simbólico, é a e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong> uma marca <strong>do</strong><br />
inconsciente transporta<strong>da</strong> ao simbólico, ele é “é o que as pessoas têm <strong>de</strong> mais real” diz Lacan<br />
(Lacan, 1975: 41), é a comprovação <strong>de</strong> que há inconsciente, é o que testemunha que o<br />
27
inconsciente mor<strong>de</strong>u o real. Logo, po<strong>de</strong>-se falar <strong>de</strong> sinthoma quan<strong>do</strong> há uma marca <strong>de</strong><br />
inconsciente <strong>do</strong> sujeito que se eno<strong>do</strong>u com algo <strong>do</strong> real <strong>de</strong> seu gozo. O sujeito não é só<br />
relativo ao significante, o que realmente lhe dá e<strong>xi</strong>stência, está liga<strong>do</strong> ao real <strong>de</strong> seu gozo, ao<br />
real <strong>do</strong> sexo.<br />
Em Lacan, a posição sexua<strong>da</strong>, a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, tem essencialmente suas raízes no real e<br />
não na relativi<strong>da</strong><strong>de</strong> significante e é, finalmente, a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> feminina que põe sobre o tapete o<br />
laço <strong>do</strong> sexo com o real. No entanto, o problema <strong>do</strong> neurótico não é que o Outro <strong>do</strong> Outro<br />
não e<strong>xi</strong>sta, mas o que e<strong>xi</strong>ste no lugar <strong>da</strong> ine<strong>xi</strong>stência <strong>do</strong> Outro como real. O sujeito tem que<br />
li<strong>da</strong>r com o que e<strong>xi</strong>ste como alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>. Confrontar-se com a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> é confrontar-se com a<br />
questão <strong>do</strong> que e<strong>xi</strong>ste aí on<strong>de</strong> o Outro está barra<strong>do</strong> , é confrontar-se com a ex-sistência.<br />
É na barra coloca<strong>da</strong> sobre o Outro, nesta falta, nesta falha que se articula o lugar <strong>do</strong><br />
gozo. O gozo fálico é limita<strong>do</strong> pelo Um <strong>da</strong> exceção enquanto que o é o lugar no qual<br />
Lacan situa o gozo feminino, outro que fálico, e que está em relação ao la<strong>do</strong> não-to<strong>do</strong>, em<br />
relação a não e<strong>xi</strong>stência <strong>do</strong> Um <strong>da</strong> exceção que seria a mulher se ela e<strong>xi</strong>stisse, logo lugar <strong>da</strong><br />
ex-sistência. O gozo <strong>do</strong> Outro barra<strong>do</strong> conforme Lacan o apresenta em 16 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />
1975 não é o gozo <strong>do</strong> Outro <strong>do</strong> significante, nem o Outro como corpo, mas Outro real, quer<br />
dizer impossível, é o furo abissal e impossível que e<strong>xi</strong>ste no lugar <strong>do</strong> Outro <strong>do</strong> Outro que não<br />
e<strong>xi</strong>ste. É o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro furo <strong>da</strong> estrutura.<br />
O sinthoma é uma resposta à possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> sempre presente <strong>do</strong>s três registros R.S.I. se<br />
confundirem. Resposta que se faz através <strong>do</strong> ser sexua<strong>do</strong>, pois o gozo referi<strong>do</strong> ao objeto a<br />
enquanto per<strong>da</strong> exclui a diferença sexual. O ser sexua<strong>do</strong> se faz através <strong>do</strong> gozo implica<strong>do</strong> na<br />
28
fantasia fun<strong>da</strong>mental e se articula ao núcleo real <strong>do</strong> sinthoma, ao gozo <strong>do</strong> sinthoma. É no<br />
lugar <strong>de</strong> J(A barra<strong>do</strong>) que Lacan inscreve o artifício <strong>do</strong> sinthoma como quarto elemento <strong>da</strong><br />
estrutura, necessário à subjetivação, por impedir que os outros três se confun<strong>da</strong>m.<br />
O final <strong>de</strong> uma análise freudiana é o roche<strong>do</strong> <strong>da</strong> castração, a inveja <strong>do</strong> pênis Penisneid<br />
para as mulheres e o protesto viril para os homens, mas para uma análise lacaniana que vai<br />
além <strong>do</strong> falo, a castração se verifica no como significante <strong>do</strong> gozo feminino, que se trata<br />
<strong>de</strong> dissociar <strong>do</strong> objeto pequeno a <strong>da</strong> fantasia.<br />
A partir <strong>da</strong>í po<strong>de</strong>mos fazer uma diferença entre o gozo <strong>do</strong> sinthoma histérico, que é o<br />
gozo <strong>da</strong> privação <strong>do</strong> phallus e o gozo Outro que Lacan em O Seminário, livro: 20 Mais<br />
ain<strong>da</strong>...faz correspon<strong>de</strong>r ao gozo <strong>de</strong> Deus, como a outra face <strong>de</strong> Deus. O gozo <strong>de</strong> Deus<br />
genitivo subjetivo tem a face <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-Pai e outra face que é o gozo feminino que<br />
<strong>de</strong>man<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> e sempre amor. A <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> amor parte <strong>do</strong> Deus barra<strong>do</strong> e a hiância que<br />
marca o abismo que o Outro representa, faz com que a <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> amor jamais seja<br />
satisfeita. A noção <strong>de</strong> gozo <strong>de</strong> Deus é introduzi<strong>da</strong> por Lacan na falha <strong>do</strong>no borromeo.<br />
Chegar a <strong>de</strong>cantar seu sintoma, chegar ao núcleo real <strong>do</strong> sintoma é uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> se produzir um irreal, que é o objeto pequeno a no fim <strong>da</strong> análise. Em 1969 Lacan no<br />
relatório <strong>do</strong> Seminário, livro15 O ato analítico diz que: é “a partir <strong>da</strong> estrutura <strong>de</strong> ficção pela<br />
qual se enuncia a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que ele –o sujeito- fará <strong>de</strong> seu próprio ser, estofo para a produção<br />
<strong>de</strong> um irreal” (Lacan, 1969, p.372). Irreal que remete ao vazio <strong>de</strong> ser e à estrutura <strong>de</strong> ficção.<br />
Final em que o sujeito chega a tocar a estrutura, cuja chave é o gozo <strong>do</strong> Outro barra<strong>do</strong> J(A<br />
29
arra<strong>do</strong>), hiância que conforme Lacan em O Seminário livro 23 o sinthoma se abre entre<br />
imaginário e o real.<br />
Decantar o sinthoma até as últimas conseqüências é po<strong>de</strong>r verificar que há algo <strong>do</strong><br />
qual nós não po<strong>de</strong>mos gozar e que imputamos à Deus, e neste lugar não há na<strong>da</strong> <strong>de</strong> na<strong>da</strong>.<br />
Se para o neurótico o sinthoma é uma re<strong>de</strong> que o aprisiona na compulsão à repetição,<br />
no final <strong>de</strong> uma análise po<strong>de</strong>-se experimentar um silêncio inominável que liberta e apazigua.<br />
Fica então a questão a ser comprova<strong>da</strong> clinicamente <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> contingencial <strong>de</strong> ao final<br />
<strong>de</strong> análise, ao chegar ao significante <strong>da</strong> falta no Outro se ter a experiência <strong>do</strong> gozo Outro<br />
feminino, na medi<strong>da</strong> em que também é aí em que Lacan o situa. Po<strong>de</strong>-se experimentar o<br />
gozo Outro feminino, sempre que se ocupa a posição feminina e se cai no vazio <strong>de</strong> e<br />
uma <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> se experimentar aí é no momento <strong>do</strong> final <strong>de</strong> uma análise.<br />
Bibliografia<br />
30
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31
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2007.<br />
“Dar na pinta”: Parecer mulher com corpo <strong>de</strong> homem<br />
Georgina Cerquise 1<br />
No tempo inaugural <strong>da</strong> psicanálise, um <strong>do</strong>s critérios para estabelecer-‐se o<br />
diagnóstico <strong>de</strong> histeria era o sintoma conversivo. Freud ampliou o campo <strong>da</strong>s<br />
<strong>de</strong>scobertas e teorizou, em (1893-‐1895), que diferentes fatores sexuais produzem<br />
diferentes quadros <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns neuróticas. Em 1905, o conflito psíquico-‐inconsciente<br />
passa a ser a principal causa <strong>da</strong> histeria, ao introduzir-‐se a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica como um<br />
aporte que favorecia o entendimento <strong>da</strong> sintomatologia <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença. A conversão começa,<br />
então, a ser entendi<strong>da</strong> como uma tentativa <strong>de</strong> realização <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />
Freud avança em sua tese quan<strong>do</strong> pesquisa a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil, postulan<strong>do</strong> que<br />
tanto a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o sujeito liqui<strong>da</strong>r o complexo <strong>de</strong> Édipo quanto a tentativa <strong>de</strong><br />
evitar <strong>de</strong>parar com a castração têm conseqüências: levam o sujeito a uma rejeição <strong>da</strong><br />
sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, conduzin<strong>do</strong>-‐o à neurose histérica.<br />
Caso Clínico: A mãe <strong>de</strong> um jovem <strong>de</strong> <strong>de</strong>zoito anos, em entrevista, pe<strong>de</strong> para que<br />
seu filho seja atendi<strong>do</strong>, alegan<strong>do</strong> uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> aju<strong>da</strong>. Esclarece que ele escolheu o<br />
pior caminho, pois assumiu a homossexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Acrescenta que ela tivera problemas<br />
no parto e que isso ocasionou muitas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> filho. No<br />
perío<strong>do</strong> escolar, custou para ser alfabetiza<strong>do</strong> e “sempre teve a pecha <strong>de</strong> retar<strong>da</strong><strong>do</strong>,<br />
esquisito, inconveniente e e<strong>xi</strong>bi<strong>do</strong>”. Ain<strong>da</strong> não conseguiu concluir o primeiro grau,<br />
apesar <strong>do</strong>s esforços <strong>da</strong> mãe para colocá-‐lo em escolas especiais. No momento <strong>do</strong><br />
1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano – Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum Rio <strong>de</strong> janeiro<br />
32
encaminhamento, estava cursan<strong>do</strong> a sexta série <strong>do</strong> primeiro grau, numa escola<br />
municipal.<br />
A mãe revela que ficou <strong>do</strong>ente durante anos, com uma <strong>de</strong>pressão que lhe jogava na<br />
cama, não ten<strong>do</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong> direito <strong>do</strong>s filhos. Diz também que o alcoolismo <strong>do</strong> mari<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>rrubou-‐lhe e que não teve escolha: man<strong>do</strong>u-‐o embora. Ela interroga-‐se: “Será que isso<br />
que acontece com meu filho é falta <strong>de</strong> pai?” Para o sujeito histérico, há um<br />
reconhecimento <strong>da</strong> falha, <strong>da</strong> impotência <strong>do</strong> pai. Isso não quer dizer que ele <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong><br />
ostentar os títulos simbólicos <strong>de</strong> pai, “mas, como um ex-‐combatente, tem os títulos, mas<br />
está fora <strong>de</strong> combate” (Kaufmann, 1998, p. 249).<br />
O jovem chega atrasa<strong>do</strong> para a sessão, a primeira impressão choca, percebe-‐se um<br />
corpo <strong>de</strong> menino <strong>de</strong> 12 anos em um jovem <strong>de</strong> 18 anos, extremamente magro. Com voz<br />
<strong>de</strong> criança, olhar fugidio, afirma: “Não sei se você percebeu, mas eu sou um gay”. Revela<br />
que já havia feito a sua opção sexual, o que lhe trazia problemas em casa. Costumava<br />
freqüentar boate gay, casa <strong>de</strong> orgia, e que saia com qualquer um, além <strong>de</strong> “baixar<br />
também no Aterro <strong>do</strong> Flamengo”, embora isso fosse reprova<strong>do</strong> pelos amigos. O paciente<br />
explica: “Gosto <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> escan<strong>da</strong>loso, gosto <strong>de</strong> <strong>da</strong>r na pinta; quan<strong>do</strong> chego, eu arraso, não<br />
me incomo<strong>do</strong> que me chamem <strong>de</strong> bichinha quá-‐quá-‐quá” 2 .<br />
A teoria freudiana <strong>de</strong> 1888 postula que nos sintomas <strong>da</strong> histeria po<strong>de</strong> ser<br />
observa<strong>da</strong> uma série <strong>de</strong> distúrbios psíquicos: alterações no curso e na associação <strong>de</strong><br />
idéias, exagero e supressão <strong>do</strong>s sentimentos. As manifestações histéricas têm uma<br />
característica marcante: são sempre exagera<strong>da</strong>s. Percebe-‐se que o jovem tem um<br />
comportamento histriônico. Há, na sua fala, significantes expressivos que dão contorno<br />
<strong>de</strong> um possível diagnóstico <strong>de</strong> histeria: voraz, exagera<strong>do</strong>, escan<strong>da</strong>loso e, em especial,<br />
“<strong>da</strong>r na pinta” – expressão que para ele significa chocar e aparecer, no meio <strong>da</strong> boate,<br />
com roupas diferentes e <strong>da</strong>nças sensuais, sem <strong>da</strong>r bola para ninguém.<br />
2 Alcunha <strong>da</strong><strong>da</strong> aos homossexuais que se e<strong>xi</strong>bem, que são escan<strong>da</strong>losos<br />
33
Chaman<strong>do</strong> atenção pelo ônibus com roupas extravagantes, o jovem atravessa a<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong> em busca <strong>de</strong> boates e lugares on<strong>de</strong> há festas <strong>de</strong> gays, sem levar em conta a<br />
preocupação <strong>da</strong> mãe que lhe adverte sobre a violência <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mesmo assim, ele sai<br />
sem preocupar-‐se com na<strong>da</strong>. “Eu tenho <strong>de</strong> sair, não posso per<strong>de</strong>r tempo, eu não penso<br />
em ficar velho, prefiro morrer a chegar aos trinta anos”. Segun<strong>do</strong> a postulação freudiana,<br />
“a histeria masculina tem a aparência <strong>de</strong> uma <strong>do</strong>ença grave; os sintomas que ela produz<br />
quase sempre são rebel<strong>de</strong>s ao tratamento” (Freud, 1888, p. 95).<br />
Esclarece que sempre vai para o “quarto escuro 3 ” <strong>da</strong> boate e transa com que<br />
estiver ali e que não costuma ficar com ninguém. “Eu não gosto <strong>de</strong> homem, eles não<br />
prestam, esses gays são homens também, isso é a pior raça: são competitivos, querem<br />
sempre <strong>de</strong>rrubar o outro”. Curiosamente, revela: “Gosto mesmo é <strong>de</strong> mulher, elas são o<br />
má<strong>xi</strong>mo, eu procuro imitá-‐las, quero superá-‐las, mas sem cair no ridículo <strong>de</strong> amar sem<br />
ser ama<strong>do</strong>. Percebe-‐se aqui o narcisismo e a i<strong>de</strong>ntificação com as mulheres. Tal qual a<br />
jovem homossexual, ele apresenta uma amargura generaliza<strong>da</strong> pelos homens.<br />
Com muita emoção, o paciente traz para a sessão um pai falho: “Não sei on<strong>de</strong> ele<br />
está, é um alcoólatra”. Rememora sua infância sofri<strong>da</strong>, com a mãe <strong>de</strong>primi<strong>da</strong> e o pai<br />
brigan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa. “Quan<strong>do</strong> eles começavam, eu ia para a rua e fazia sacanagem<br />
com os meninos <strong>da</strong> vila. Era a alegria <strong>da</strong> menina<strong>da</strong>, porque já era um exagera<strong>do</strong>, tinha<br />
uma fila para transar comigo, <strong>de</strong>pois eu sentia nojo e ficava muito triste”.<br />
No “caso Dora”, Freud pontua: “Eu, sem dúvi<strong>da</strong>, consi<strong>de</strong>raria histérica uma pessoa<br />
na qual uma ocasião para a excitação sexual <strong>de</strong>spertasse sensações que fossem,<br />
prepon<strong>de</strong>rante ou exclusivamente, <strong>de</strong>sagradáveis; eu o faria, fosse ou não a pessoa<br />
capaz <strong>de</strong> produzir sintomas somáticos” (Freud, 1905, p. 26). Na tentativa <strong>de</strong> esclarecer<br />
melhor os episódios, a analista pe<strong>de</strong>-‐lhe que <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bre sua fala: “Será que sou assim por<br />
que meu pai não me olhava? Eu tentava chamar atenção <strong>de</strong>le, queria um pai como to<strong>do</strong>s<br />
3 “Quarto escuro” é o local <strong>de</strong> <strong>encontro</strong> em que os gays transam sexualmente. É costumeiro não haver<br />
reconhecimento <strong>do</strong> parceiro. Segun<strong>do</strong> a fala <strong>do</strong> paciente, esse local funciona como um “vale tu<strong>do</strong>”.<br />
34
os meninos tinham. Ele era um homem bêba<strong>do</strong>, um pobre coita<strong>do</strong>, mas eu sempre<br />
<strong>de</strong>fendi meu pai, eu gosto muito <strong>de</strong>le”.<br />
Lacan <strong>de</strong>staca o amor <strong>do</strong> histérico (masculino-‐feminino) pelo pai, apesar <strong>da</strong>s<br />
falhas, acrescentan<strong>do</strong> que o sujeito se coloca como aquele que vai amparar, vai tentar<br />
suprir a incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> paterna. O histérico engendra seu amor ao pai a partir <strong>do</strong> que este<br />
não lhe dá. Na teoria psicanalítica, a histeria articula-‐se, a partir <strong>do</strong> Édipo, com uma<br />
pergunta: Sou homem ou sou mulher? Vale ressaltar que isso está para os <strong>do</strong>is sexos.<br />
Após esse primeiro momento <strong>da</strong> análise, o paciente faltou às sessões por duas<br />
semanas. A analista recebe um telefonema <strong>da</strong> irmã que pe<strong>de</strong>, aflita, para que a família<br />
seja atendi<strong>da</strong>. Na sessão, comparecem a mãe, o paciente e sua irmã. A mãe,<br />
enlouqueci<strong>da</strong>, diz que o paciente ficara <strong>do</strong>ente, com erupções na pele, e que o médico lhe<br />
pedira um exame <strong>de</strong> HIV. Repreen<strong>de</strong> o filho com dureza e chora copiosamente. O jovem<br />
está acabrunha<strong>do</strong> e, até mesmo, apavora<strong>do</strong>, mas tenta disfarçar a angústia: “Não estou<br />
nem aí, seu eu tiver com a “<strong>do</strong>ce 3 “, melhor, eu não quero viver até os trinta anos, não<br />
suporto a idéia <strong>de</strong> envelhecer, <strong>de</strong> ficar com o corpo velho; por isso, aproveito tu<strong>do</strong><br />
agora”. O resulta<strong>do</strong> dá positivo, revelan<strong>do</strong> a presença <strong>do</strong> vírus no rapaz e instalan<strong>do</strong> o<br />
caos familiar.<br />
O paciente chega para a análise com o corpo coberto <strong>de</strong> erupções, pe<strong>de</strong> uma<br />
ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> pouco uso: “Eu peguei sarna, não quero passar isso para seus pacientes”. Sem<br />
falar sobre o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> exame, diz que sua mãe está louca, que sua irmã é<br />
irresponsável porque não cui<strong>da</strong> <strong>do</strong>s filhos. A analista intervém e pergunta o que estava<br />
realmente acontecen<strong>do</strong>. Ele respon<strong>de</strong>, aos gritos e histericamente, que não queria falar,<br />
mas que não podia esquecer e que sabia que iria morrer jovem. Frente a essa atuação, a<br />
analista pergunta-‐lhe diretamente sobre o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> exame. Ele chora, grita, revolta-‐<br />
se e diz que o pior era não po<strong>de</strong>r transar livremente: “Eu estou enterra<strong>do</strong> vivo. Como<br />
po<strong>de</strong> uma pessoa nova como eu ficar sem sexo?”<br />
3 Gíria usa<strong>da</strong> pelos gays para <strong>de</strong>signar o vírus HIV.<br />
35
Completamente transtorna<strong>do</strong> frente aos limites impostos pelo médico, como<br />
<strong>de</strong>fesa, não esboça nenhuma elaboração quanto à <strong>do</strong>ença. Não quer saber <strong>de</strong> na<strong>da</strong> disso,<br />
preocupa-‐se em ser <strong>de</strong>scoberto, em “<strong>da</strong>r pinta”, com o corpo, <strong>de</strong> que estava “pega<strong>do</strong>” 4 .<br />
“Eu não me preocupo em morrer, eu só não quero ficar como um coita<strong>do</strong>, eu prefiro<br />
morrer jovem a ficar velho”. Teríamos aqui o <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramento <strong>da</strong> fantasia “envelhece-‐se<br />
uma criança, ou pinta-‐se uma criança”? O paciente prossegue: “Eu nunca achei que<br />
pegaria a <strong>do</strong>ce, ninguém fala o que tem e vai passan<strong>do</strong> para os outros”<br />
No <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong> análise, o jovem recupera-‐se <strong>do</strong> susto e segue retoman<strong>do</strong> seus<br />
hábitos antigos. É fácil observar que ele não tem nenhum projeto, não pensa em<br />
trabalhar, o estu<strong>do</strong> é só uma facha<strong>da</strong> encobri<strong>do</strong>ra. Ele <strong>do</strong>rme <strong>de</strong> dia para sair na noite.<br />
Interroga<strong>do</strong> sobre os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que <strong>de</strong>ve ter para evitar a contaminação, respon<strong>de</strong><br />
evasivamente e troca <strong>de</strong> assunto. Frente a isso, a analista, como diretriz, chama a mãe<br />
para entrevista.<br />
A mãe revela: “Vivo no inferno, meu filho está com HIV, não consegue estu<strong>da</strong>r, não faz<br />
na<strong>da</strong>, só pensa em futili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Continua arriscan<strong>do</strong>-‐se pela noite, sai sem dinheiro, com<br />
roupas estranhíssimas, que po<strong>de</strong>m provocar a agressão <strong>do</strong>s outros”. Essas roupas são<br />
peças femininas em um vestuário masculino, <strong>do</strong> tipo: calça jeans masculina, bor<strong>da</strong><strong>da</strong> com<br />
paetês e brilhos; blusa cor <strong>de</strong> rosa; botina <strong>do</strong> Exército; anéis <strong>de</strong> caveira com pulseiras <strong>de</strong><br />
miçangas; gargantilhas; cinturão masculino. Cabe aqui citar o Aba<strong>de</strong> <strong>de</strong> Choisy 5 : “Quan<strong>do</strong><br />
alguns homens possuem ou crêem possuir traços belos, que po<strong>de</strong>m inspirar amor, tratam<br />
<strong>de</strong> aumentá-‐los com seus a<strong>do</strong>rnos femininos. Sentem, então, um inexprimível prazer <strong>de</strong> ser<br />
ama<strong>do</strong>” (Choisy, 1985, p. 13).<br />
O jovem revela que a<strong>do</strong>ra “se montar” 6 , e nas boates e festas, <strong>de</strong>staca-‐se com suas<br />
“peças” femininas; sempre que po<strong>de</strong>, <strong>da</strong>nça e se e<strong>xi</strong>be: “To<strong>do</strong>s pensam que eu me drogo,<br />
4 Gíria referente a quem tem o vírus HIV.<br />
5 Referência feita por Lacan, no artigo “A carta rouba<strong>da</strong>” (In: Escritos, 1998), a respeito <strong>de</strong> um homem que se<br />
vestia <strong>de</strong> mulher para amar as <strong>do</strong>nzelas que <strong>de</strong>viam estar vesti<strong>da</strong>s <strong>de</strong> homem.<br />
6 “Montar-‐se” significa vestir-‐se com a<strong>de</strong>reços ou roupas femininas.<br />
36
mas não tem na<strong>da</strong> a ver. Eu só bebo água, porque estou sempre sem dinheiro, bem que<br />
gosto <strong>de</strong> um vinho. Agora, estou compran<strong>do</strong> pinturas e cílios postiços, vou me maquiar<br />
para sair na night”. O que você preten<strong>de</strong>? – in<strong>da</strong>ga a analista. “Parecer uma mulher com<br />
um corpo <strong>de</strong> homem”. Lacan (1985[1955-‐56], p. 204) ressalta que: “nos sintomas<br />
histéricos, é sempre <strong>de</strong> uma anatomia imaginária que se trata”. Cabe aqui uma questão<br />
diagnóstica: No caso, estaríamos diante <strong>de</strong> um <strong>de</strong>smenti<strong>do</strong> <strong>da</strong> castração ou <strong>do</strong> recalque?<br />
De uma neurose ou perversão? Lacan (1956-‐57, p. 121), ao citar a tese freudiana <strong>de</strong> que<br />
a perversão é o negativo <strong>da</strong> neurose, marca a diferença entre o mecanismo <strong>de</strong> um<br />
fenômeno perverso e a perversão categórica, chaman<strong>do</strong> atenção <strong>de</strong> que o mol<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
perversão se forma a partir <strong>da</strong> valorização <strong>da</strong> imagem.<br />
“Você sabe, eu gosto <strong>de</strong> ser homem, mas não gosto <strong>de</strong> homem, eles não prestam. O<br />
único homem que eu amei foi meu pai, mesmo assim ele me aban<strong>do</strong>nou, nunca se<br />
preocupou comigo. Talvez, se ele não tivesse i<strong>do</strong> embora, eu seria diferente”. Por quê?<br />
“Eu acho que não teria coragem <strong>de</strong> <strong>de</strong>cepcioná-‐lo”. Em “A dissolução <strong>do</strong> complexo <strong>de</strong><br />
Édipo”, Freud teoriza que há duas saí<strong>da</strong>s para o complexo <strong>de</strong> Édipo: uma satisfação<br />
ativa, e outra passiva. Na primeira, a criança po<strong>de</strong>ria colocar-‐se no lugar <strong>de</strong> seu pai, à<br />
maneira masculina, e ter relações com a mãe, tal como o pai, sen<strong>do</strong> que este ocuparia um<br />
lugar <strong>de</strong> estorvo. Na segun<strong>da</strong>, a criança po<strong>de</strong>ria assumir o lugar <strong>da</strong> mãe e ser ama<strong>da</strong> pelo<br />
pai.<br />
O paciente agora apresenta o projeto <strong>de</strong> trabalhar como cabeleireiro ou com mo<strong>da</strong>:<br />
“Não sou uma bichinha <strong>do</strong>méstica, não suporto trabalho <strong>de</strong> casa. Também não consigo<br />
apren<strong>de</strong>r na<strong>da</strong> na escola, mas tenho vergonha <strong>de</strong> dizer que ain<strong>da</strong> estou no primeiro<br />
grau”.<br />
O trabalho analítico é difícil porque o paciente falta às sessões, per<strong>de</strong> ou esquece a<br />
hora. Na clínica psicanalítica com a<strong>do</strong>lescentes, o tratamento costuma ser cheio <strong>de</strong><br />
impedimentos e resistências, visto que o jovem interpreta a análise como mais uma<br />
imposição <strong>do</strong>s pais. Apesar <strong>do</strong>s avatares, sempre é possível um trabalho se a<br />
transferência tiver si<strong>do</strong> estabeleci<strong>da</strong>. Nesse caso, o jovem vai e vem, mas sempre retorna<br />
37
<strong>do</strong> ponto on<strong>de</strong> começaram as faltas. Interroga a analista sobre seu saber e investiga<br />
sobre a “lembrança” <strong>de</strong> suas falas: “Não suporto ser esqueci<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> bem que você não<br />
esquece o que eu digo”. O que é isso: ser esqueci<strong>do</strong>/lembra<strong>do</strong>? “Você sabe, isso é uma<br />
<strong>do</strong>r horrível, meu pai esqueceu <strong>de</strong> mim, ele nem me conhece mais. Se eu passar por ele<br />
na rua, não vai me reconhecer mesmo”. A analista pe<strong>de</strong> que o paciente <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bre sua fala<br />
e, choran<strong>do</strong> muito, diz: “Eu vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> homem/meta<strong>de</strong> mulher passo ao largo e<br />
ele po<strong>de</strong> me olhar, mas não vai me ver. Esse gay não é o filho <strong>de</strong>le, quan<strong>do</strong> ele foi embora<br />
eu ain<strong>da</strong> era um menino, eu tinha 10 anos”.<br />
A e<strong>xi</strong>bição <strong>do</strong> jovem paciente faz lembrar o caso <strong>da</strong> “Jovem homossexual”, <strong>de</strong><br />
Freud: junto com sua ama<strong>da</strong>, tenta chamar a atenção <strong>do</strong> pai, e<strong>xi</strong>bin<strong>do</strong>-‐se nas ruas por<br />
on<strong>de</strong> costumava passar. A nostalgia <strong>do</strong> nosso paciente refere-‐se ao na<strong>da</strong> que ele ocupa<br />
no afeto <strong>do</strong> pai, ou seja, mesmo que passe pelas ruas fantasia<strong>do</strong>, chaman<strong>do</strong> to<strong>da</strong> atenção,<br />
o pai não po<strong>de</strong>rá reconhecê-‐lo como filho.<br />
Num segun<strong>do</strong> momento <strong>da</strong> análise, oferece-‐se para trabalhar como aju<strong>da</strong>nte <strong>de</strong><br />
cabeleireiro, mas é reprova<strong>do</strong>, não tem a escolari<strong>da</strong><strong>de</strong> e<strong>xi</strong>gi<strong>da</strong>, e os <strong>do</strong>cumentos<br />
necessários para empregar-‐se. Sofre um abalo com as recusas sociais e com as<br />
advertências <strong>do</strong> médico com relação a sua conduta: ele se coloca em risco <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e po<strong>de</strong><br />
ser mortífero para os outros.<br />
Esse tempo <strong>de</strong> análise foi <strong>de</strong> intensa angústia e <strong>de</strong>sespero. Sem conseguir na<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
que <strong>de</strong>seja e com muitas reclamações, revela uma fantasia: “Tenho vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar<br />
na night, <strong>da</strong>nçan<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> show <strong>de</strong> “drag-‐queen”. Sempre que <strong>da</strong>nço, eu abalo. Gosto<br />
muito <strong>de</strong> palco e, nas boates, fico bem no lugar on<strong>de</strong> posso aparecer. O jovem trabalha<br />
essa idéia e pe<strong>de</strong> aju<strong>da</strong> às suas amigas mulheres. Começa a busca por roupas e<br />
acessórios femininos que lhe possam favorecer nessa empreita<strong>da</strong>. A mãe na<strong>da</strong> sabe<br />
disso, visto que ele escon<strong>de</strong> as roupas. A mãe sempre pergunta e cobra o trabalho, o<br />
estu<strong>do</strong> e lembra que ele tem o vírus. Isso basta para que se <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iem brigas e<br />
agressões verbais ditas na janela para envergonhar a mãe e fazê-‐la parar <strong>de</strong> falar.<br />
38
Nesse momento, a rebeldia se entrelaça com uma concretização <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, pois ele<br />
cava uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> dublar uma música num concurso <strong>de</strong> certa boate gay.<br />
Escolhe, sozinho, uma música e resolve “montar-‐se” <strong>de</strong> “drag-‐queen”, planejan<strong>do</strong> o<br />
show. Trata-‐se <strong>de</strong> uma competição em que o ganha<strong>do</strong>r recebe um prêmio em dinheiro.<br />
Como treinamento, participa <strong>de</strong> uma para<strong>da</strong> gay “monta<strong>do</strong> <strong>de</strong> mulher”.<br />
Escondi<strong>do</strong> <strong>da</strong> mãe, tal qual Anna Ó, ele arma seu “teatro priva<strong>do</strong>’’ durante o dia:<br />
ensaia frente ao espelho a dublagem <strong>de</strong> uma música em inglês, idioma que não <strong>do</strong>mina,<br />
repetin<strong>do</strong> as palavras, sem distinguir seu significa<strong>do</strong>. Há, porém, três significantes <strong>de</strong><br />
que ele se apropria para estabelecer os gestuais <strong>da</strong> mímica: my eyes, my hair, my lips. O<br />
jovem, realmente, dá seu show. Frente às vicissitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, ele tem uma estratégica<br />
histérica: no palco, corren<strong>do</strong> o risco má<strong>xi</strong>mo como to<strong>do</strong>s os jovens costumam fazer, ele<br />
entra em cena com o nome artístico <strong>de</strong> “Ohana”. “En-‐cenan<strong>do</strong>” seu número no começo <strong>da</strong><br />
apresentação, ao sacudir seus cabelos postiços, a peruca cai em pleno palco, já que não<br />
foi <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente presa para agüentar os gestos <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça e <strong>da</strong> mímica 7 . Ohana, em<br />
<strong>de</strong>sespero, fica sobre o foco <strong>do</strong> refletor vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> “drag”, sem a peruca e sem ação.<br />
Vaia<strong>do</strong>, ridiculariza<strong>do</strong>, como um objeto que cai, como um na<strong>da</strong>, ele sai <strong>de</strong> cena e <strong>de</strong>smaia<br />
em pleno palco. “O na<strong>da</strong> e o olhar são aqui duas formas <strong>de</strong> referências ao objeto em que<br />
o sujeito, nesse momento, se fixa” (Alberti, 1995, p. 81). Como resposta a esse embaraço<br />
má<strong>xi</strong>mo, surge a angústia frente ao real impossível <strong>de</strong> simbolizar. O jovem, abala<strong>do</strong>, sem<br />
resistência, pega uma virose, mas seu organismo recupera-‐se e ele volta à análise.<br />
Impacta<strong>do</strong> com os acontecimentos, faz um acting-out: pinta seus cabelos <strong>de</strong> rosa e<br />
tortura a mãe para que lhe dê dinheiro. Ameaçan<strong>do</strong> jogar-‐se pela janela, aos gritos,<br />
quebra uma mesa e sai pela noite. Em análise, confessa: “Saí como uma pantera cor-‐<strong>de</strong>-‐<br />
rosa só para chocar e <strong>da</strong>r pinta <strong>de</strong> gay maluco. “Não pense que esqueci a vergonha que<br />
passei no show”.<br />
7 A estratégia histérica frente ao <strong>de</strong>sejo é torná-‐lo insatisfeito.<br />
39
In<strong>da</strong>ga<strong>do</strong> sobre o que ele pretendia fazer frente ao fracasso, chora e grita: “Eu<br />
preciso trabalhar, achava que era um caminho fácil ser artista e me vestir <strong>de</strong> mulher.<br />
Agora, cai na real, tenho <strong>de</strong> inventar outra coisa”. Após os episódios, toma outra diretriz:<br />
pe<strong>de</strong> aju<strong>da</strong> às suas amigas-‐mulheres e aceita trabalhar numa feira <strong>de</strong> bairro. Corta<br />
couro, pinta cinturões e “chama a freguesia com sua pinta <strong>da</strong>n<strong>do</strong> pinta”, distribuin<strong>do</strong><br />
panfletos em praça, e<strong>xi</strong>bin<strong>do</strong>-‐se, mesmo com roupas <strong>de</strong> homem. Po<strong>de</strong>ríamos pensar que<br />
a fantasia fun<strong>da</strong>mental <strong>do</strong> paciente seria tal qual o dita<strong>do</strong> Bíblico: “Pai, por que me<br />
aban<strong>do</strong>nastes?”. Para a analista, Ohana não engana: em praça pública, faz um apelo <strong>de</strong><br />
reconhecimento ao pai. Talvez pudéssemos pensar que o jovem, neuroticamente,<br />
engendra com seu corpo uma <strong>de</strong>fesa contra o aviltamento <strong>do</strong> pai. Segun<strong>do</strong> Lacan, “só nos<br />
<strong>de</strong>temos nas coisas quan<strong>do</strong> as consi<strong>de</strong>ramos como possíveis. De outro mo<strong>do</strong>,<br />
contentamo-‐nos em dizer: é assim, e nem mesmo procuramos ver que é assim” (Lacan,<br />
1985[1955-‐56], p. 115).<br />
Bibliografia:<br />
ALBERTI, S. – Esse Sujeito A<strong>do</strong>lescente. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relume & Dumará, 1995.<br />
CHOISY, A. – Memorias <strong>de</strong>l Abate <strong>de</strong> Choisy: Vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> mujer. Buenos Aires: Manantial,<br />
1987.<br />
FREUD, S. “Estu<strong>do</strong>s sobre a histeria”. [1893-‐1895]. –In: Obras psicológicas completas,<br />
ESB, v. II. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1977.<br />
__________”Histeria” (1888) v.I. In: op.cit<br />
_____– “Fragmentos <strong>da</strong> análise <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> histeria”. [1905].v. VII In: op. cit<br />
_____– “Psicogênese <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> homossexualismo numa mulher”. [1920]. In: op. cit. v.<br />
XVIII.<br />
_____– “A dissolução <strong>do</strong> complexo <strong>de</strong> Édipo”. [1924]. In: op. cit. v. XIX.<br />
LACAN, J. O Seminário, Livro 3: As psicoses. [1985[1955-‐56]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1985.<br />
40
_____– O Seminário, Livro 4: A relação <strong>de</strong> objeto. [1956-‐1957]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1995.<br />
KAUFMANN, P. – Dicionário <strong>de</strong> psicanálise: o lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> Freud e Lacan. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Zahar, 1986.<br />
41
Sintoma e Fantasia na Histeria Masculina<br />
Andréa Brunetto 1<br />
Ten<strong>do</strong> como referência o artigo <strong>de</strong> Freud sobre “Dostoievski e o parricídio”, “Bate-<br />
se em uma criança” e “O seminário, livro V: as formações <strong>do</strong> inconsciente”, preten<strong>de</strong>-se<br />
apresentar alguns casos <strong>de</strong> histeria masculina e <strong>de</strong>bater como se estruturou a fantasia <strong>de</strong><br />
espancamento e a relação <strong>de</strong>ssa fantasia com o sintoma. Destacaremos um caso em que a<br />
pergunta sobre a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> evi<strong>de</strong>ncia a vertente <strong>de</strong> amor ao pai, que se sobressaiu à<br />
i<strong>de</strong>ntificação.<br />
Em “Bate-se em uma criança”, Freud afirma que a fantasia <strong>de</strong> ser espanca<strong>do</strong> é<br />
uma convergência <strong>do</strong> sentimento com o amor sexual, um substituto <strong>da</strong> relação incestuosa,<br />
proibi<strong>da</strong>. Freud nos apresenta seis casos, <strong>do</strong>s quais a maior parte obsessivos (quatro) e a maior<br />
parte, mulheres. Estabelece três momentos para a construção <strong>da</strong> fantasia. No primeiro, bate-se<br />
em uma criança. Não quer dizer que a criança que constrói a fantasia seja a que apanha. Não<br />
tem importância o sexo <strong>da</strong> criança que apanha nesse primeiro momento. No segun<strong>do</strong>, meu pai<br />
me bate. E no terceiro, fruto <strong>do</strong> recalque, ‘meu pai bate em outra criança, um menino’. 2 Que a<br />
criança que apanha seja <strong>do</strong> sexo masculino, é característica <strong>da</strong> fantasia nas mulheres. Tem<br />
uma variante nos homens.<br />
O que preten<strong>de</strong>mos é apresentar a construção <strong>de</strong>ssa fantasia ‘bate-se em uma<br />
criança’ nos exemplos clínicos <strong>de</strong> homens, com diagnóstico estrutural <strong>de</strong> histeria,<br />
estabelecen<strong>do</strong> certas variações com relação aos exemplos freudianos. Uma questão é se essas<br />
variações têm relação com o diagnóstico estrutural ou refletem a diferença na partilha <strong>do</strong>s<br />
sexos. O que seria seguir Freud. Ele sustenta que a compreensão <strong>da</strong> construção <strong>de</strong>ssa fantasia<br />
1<br />
AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -‐ Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum Campo<br />
Gran<strong>de</strong><br />
2<br />
Freud, S. “Bate-‐se em uma criança”, in: ESB. Vol. XXII. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago Editora, 1976.<br />
42
lhe serve para “avaliar o papel <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> pela diferença <strong>de</strong> sexo na dinâmica <strong>da</strong><br />
neurose”. 3<br />
Os exemplos <strong>da</strong> clínica<br />
Caso 1: Este homem procura a análise, pois tinha rompi<strong>do</strong> com sua analista que tentava<br />
controlá-lo. Apresenta muitos sintomas conversivos e sua posição é <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar a falta <strong>do</strong><br />
Outro. Diante <strong>de</strong> um Outro que espera que ele pague a conta, ele fala não. Assim, seu drama<br />
não é dizer não às <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s freqüentes <strong>de</strong> sua esposa, mas saber por que está com ela, com<br />
essa mulher ‘perdi<strong>da</strong>’, que não sabe quem é e nem o que quer. Por vezes tem os mesmos<br />
sintomas <strong>de</strong> sua mulher: náuseas, enjôos, <strong>do</strong>r <strong>de</strong> estômago. Mas nesse momento sua análise<br />
centra-se na relação com seu orienta<strong>do</strong>r, esse homem ‘quase cruel’ que o criticava como seu<br />
pai o criticava. Quan<strong>do</strong> ele mostrava seus erros, sentia-se incapaz. E enquanto o orienta<strong>do</strong>r<br />
falava, lembrava <strong>de</strong>le próprio, menino ain<strong>da</strong>, fazen<strong>do</strong> as tarefas com o pai e ele lhe dizen<strong>do</strong><br />
‘você vai estu<strong>da</strong>r mais, senão vou te bater’. E atualmente, durante essas orientações, sente um<br />
torpor pelo corpo. Vai para casa, enquanto dirige sente uma leve náusea. Dias atrás, quan<strong>do</strong><br />
entrava em casa, <strong>de</strong>smaiou, acor<strong>do</strong>u segun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>pois, com o corpo <strong>do</strong>í<strong>do</strong> como quem leva<br />
uma surra.<br />
Não apenas com o orienta<strong>do</strong>r ele encena o espancamento paterno prometi<strong>do</strong> em sua<br />
infância, mas tem sintomas que se assemelham aos <strong>de</strong> uma mulher grávi<strong>da</strong>. Ele não fez essa<br />
relação, mas talvez copian<strong>do</strong> os sintomas <strong>de</strong> sua mulher, ensaie uma resposta <strong>do</strong> que ela quer<br />
e ain<strong>da</strong> não sabe: um filho. Como <strong>da</strong>r um filho a uma mulher se sua fantasia está construí<strong>da</strong><br />
para dizer não a to<strong>da</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>do</strong> Outro? E, também, a partir <strong>da</strong> encenação <strong>do</strong>s sintomas <strong>de</strong><br />
sua mulher, coloca sua questão: sou homem ou mulher? Sou capaz <strong>de</strong> procriar? Fazen<strong>do</strong> uma<br />
analogia com o caso clínico <strong>de</strong>scrito por Michael Joseph Eissler, e que Lacan comenta no<br />
Seminário III, as psicoses. 4<br />
3 Ibid, p.239.<br />
4 Lacan, J. “O seminário, livro 3: as psicoses”. Rio <strong>de</strong> janeiro: JZEditor, 1985.<br />
43
Caso 2: È o engana<strong>do</strong>, procurou análise por que se envolveu em um negócio que lhe trouxe<br />
gran<strong>de</strong>s prejuízos financeiros. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> dizia que <strong>de</strong>veria sair disso, que seu sócio não era<br />
confiável, mas não o fez. Apresenta um discurso <strong>da</strong> insatisfação, com tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s, mostra<br />
falhas na analista, que não lhe respon<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve pegar os novos projetos que aparecem e que<br />
conta em suas sessões. Alega que se sua mulher tivesse dito com mais veemência para sair <strong>do</strong><br />
projeto fali<strong>do</strong>, ele teria feito. Não tem lugar no Outro senão sen<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> para trás. É sua<br />
expressão, que tem outro senti<strong>do</strong> e toca na fantasia ‘bate-se numa criança’: bate-se atrás, no<br />
traseiro. Versão, aliás, freqüente, segun<strong>do</strong> Freud. 5 Em uma <strong>da</strong>s vezes comete um lapso e em<br />
vez <strong>de</strong> dizer o nome <strong>do</strong> ex-sócio, fala o <strong>do</strong> irmão. Um irmão violento e cruel – que na<br />
atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> é um criminoso – que lhe batia. Lembra <strong>da</strong>s surras que o irmão lhe <strong>da</strong>va enquanto<br />
tomava banho, nu, levan<strong>do</strong> tapas nas costas e ná<strong>de</strong>gas. Pergunta-se: por que não revi<strong>de</strong>i, se<br />
era maior e mais forte? Entre a sessão que lembra essa cena e a pró<strong>xi</strong>ma, conta à analista que<br />
<strong>de</strong>smaiou no chuveiro.<br />
Caso 3: Um homem que está casa<strong>do</strong> pela segun<strong>da</strong> vez com uma mulher rica e repete com ela<br />
as queixas que sua primeira mulher lhe fazia: você não me valoriza só porque sou mais pobre.<br />
Com a segun<strong>da</strong> mulher <strong>encontro</strong>u a mulher bonita que procurava, pois a anterior era<br />
<strong>de</strong>scui<strong>da</strong><strong>da</strong>. Nesse segun<strong>do</strong> casamento se <strong>de</strong>scontrola e bate na mulher. É essa a queixa que o<br />
trás à análise. Quan<strong>do</strong> se queixa <strong>de</strong> que a mulher não o reconhece, ao mesmo tempo é uma<br />
queixa feminina – “sinto na carne o que minha ex sofria” – e paterna. O pai sofria diante <strong>de</strong><br />
uma esposa, sua mãe, durona, que cui<strong>da</strong>va <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s e não cui<strong>da</strong>va <strong>de</strong>le. O sentir na carne,<br />
<strong>de</strong>staca<strong>do</strong> por uma interpretação <strong>da</strong> analista, é literal, pois durante estas brigas, retorce o<br />
corpo, é como se uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> feminina fosse incorporar e tem <strong>de</strong> fazer força para manter o<br />
<strong>do</strong>mínio. Este sujeito nos mostra o exemplo freudiano <strong>da</strong> mulher que se cobre com uma mão,<br />
com pu<strong>do</strong>r, e se <strong>de</strong>spe com a outra. Quan<strong>do</strong> se <strong>encontro</strong>u, na primeira entrevista, com a<br />
analista, lembrou-se que lhe tinha si<strong>do</strong> vaticina<strong>do</strong> que esta não era a mulher <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>,<br />
encontraria uma mulher bem alta. Alta é o significante qualquer que o pren<strong>de</strong> às entrevista<br />
preliminares.<br />
5 Freud, S. “Bate-‐se em uma criança”, op. Cit., p.<br />
44
Neste segun<strong>do</strong> casamento, com esta mulher aos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong> mãe, vamos dizer assim,<br />
coloca em ato as surras que levava <strong>de</strong>la. É ele que bate na mulher, mas não é tão simples<br />
afirmar em que lugar ele está: sonha que está apanhan<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma mulher mais velha. Ao<br />
contar o sonho diz: não é minha mãe. Fazen<strong>do</strong> essa negativa, há uma suspensão <strong>do</strong> recalque,<br />
embora não uma aceitação <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>. 6<br />
Fazemos referência a essa negativa, pois nestes casos que relatamos, é o mais perto<br />
que um sujeito chega <strong>de</strong> reconhecer o prazer <strong>da</strong> fantasia. Freud afirma que o prazer nessa<br />
fantasia ficará inconsciente, mas em um <strong>do</strong>s casos que <strong>de</strong>screveu, tal não aconteceu. “Esse<br />
homem preservava claramente na memória o fato <strong>de</strong> que costumava empregar a idéia <strong>de</strong> ser<br />
espanca<strong>do</strong> pela mãe com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> masturbação” 7 . Alega que não po<strong>de</strong> explicar isso,<br />
mas esboça uma hipótese: quan<strong>do</strong> a fantasia incestuosa <strong>de</strong> um menino converteu-se na<br />
fantasia masoquista correspon<strong>de</strong>nte, ocorreu uma inversão a mais <strong>do</strong> que no caso <strong>do</strong> menino,<br />
ou seja, a substituição <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> pela passivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Caso 4: É um joga<strong>do</strong>r, um jovem que per<strong>de</strong> muito dinheiro em jogos <strong>de</strong> azar e quan<strong>do</strong> fica<br />
sem dinheiro nenhum, e com dívi<strong>da</strong>s, chama o pai para pagar suas contas, negociar com<br />
pessoas um tanto duvi<strong>do</strong>sas. Diz que seu pai prefere a ele, pois se preocupa mais com ele <strong>do</strong><br />
que com os irmãos. Uma <strong>da</strong>s vezes em que <strong>de</strong>saparece para jogar, e que a família fica<br />
preocupa<strong>da</strong>, é às vésperas <strong>de</strong> uma viagem <strong>do</strong>s pais, algo como um segun<strong>da</strong> ou terceira lua-<strong>de</strong>-<br />
mel. Quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> se resolve, o pai <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> não ir, para cuidá-lo. Sente-se vitorioso, o pai se<br />
<strong>de</strong>dica mais a ele que à própria esposa, sua mãe. Compete com a mãe pela atenção <strong>do</strong> pai, fala<br />
<strong>de</strong>le como, no geral, só as mulheres falam <strong>do</strong> pai, na clínica: com uma <strong>de</strong>man<strong>da</strong> incessante <strong>de</strong><br />
amor ao pai e como um ‘paizinho’ que gosta mais <strong>de</strong>le <strong>do</strong> que <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais. À parte essa<br />
fantasia <strong>de</strong> ser o menininho <strong>do</strong> pai, tem namora<strong>da</strong>s, consegue a ereção e leva a cabo as<br />
relações sexuais. Quem o castiga é a mãe, com sua severi<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas não lembra <strong>de</strong> ser<br />
espanca<strong>do</strong>. Nos homens, estar sen<strong>do</strong> espanca<strong>do</strong> pela mãe é a terceira fase, sucessora <strong>de</strong> ‘estou<br />
6 Freud, S. “A negativa” (1925), in: ESB. Vol XIX. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 296.<br />
7 Freud, S. “Bate-‐se em uma criança”, Op. Cit., p.231.<br />
45
sen<strong>do</strong> espanca<strong>do</strong> pelo meu pai’, correspon<strong>de</strong>, nas meninas, ao ‘vejo um menino sen<strong>do</strong><br />
espanca<strong>do</strong>’.<br />
A fantasia <strong>do</strong> menino é masoquista <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, marca Freud. Ele não <strong>encontro</strong>u<br />
uma primeira fase sádica, como nas mulheres e “<strong>de</strong>riva <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> feminina em relação<br />
ao pai” 8 . Na menina, parte <strong>de</strong> uma situação edipiana normal; no menino, <strong>de</strong> uma situação<br />
inverti<strong>da</strong>, no qual o pai é toma<strong>do</strong> como objeto <strong>de</strong> amor.<br />
Neste último caso, a passivi<strong>da</strong><strong>de</strong> é maior <strong>do</strong> que nos outros. Não há irritabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
contra o pai.. O pai é aquele que “o salva”. Ele “apronta” nos jogos <strong>de</strong> azar, em outras<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, para o pai ir buscá-lo. É um joga<strong>do</strong>r invetera<strong>do</strong>, como Dostoievski, porém sem suas<br />
crises epiléticas – histeroepilepsia, nomeia Freud. Porém esse paciente apresenta uma inibição<br />
motora – cataple<strong>xi</strong>a narcoléptica, segun<strong>do</strong> a psiquiatria - entre acor<strong>da</strong><strong>do</strong> e <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, sente<br />
que sua menta está viva e o corpo morto, passa segun<strong>do</strong>s sem conseguir mexer o corpo. “A<br />
sensação é <strong>de</strong> estar morren<strong>do</strong>, ou já estar morto e não saber”.<br />
Tal como no caso <strong>de</strong> Dostoievski, suas crises tem o valor <strong>de</strong> uma punição 9 . Freud<br />
escreve que essas crises semelhantes à morte – já tinha fala<strong>do</strong> sobre elas na Carta 58 a Fliess –<br />
refletem o seguinte <strong>de</strong>sejo: “Quisemos que outra pessoa morresse; agora somos nós essa outra<br />
pessoa e estamos mortos. Nesse ponto a teoria psicanalítica introduz a afirmação <strong>de</strong> que, para<br />
um menino, essa outra pessoa geralmente é o pai e <strong>de</strong> que a crise constitui assim uma<br />
autopunição por um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> morte contra um pai odia<strong>do</strong>”. 10 E explica que a punição <strong>do</strong><br />
supereu funciona assim: “Você queria matar seu pai, a fim <strong>de</strong> ser você mesmo o pai. Agora<br />
você é seu pai, mas um pai morto”. 11<br />
Nas “crises <strong>de</strong> morte” encena sua vertente <strong>de</strong> ódio ao pai, encena em seu corpo.<br />
Como Antonio Quinet escreve em Histerias, “o histérico oferece seu corpo como cama e mesa<br />
<strong>do</strong> Outro e diz sirva-se! Seu corpo é erogeneiza<strong>do</strong> pelo Outro. O corpo é também a mesa <strong>de</strong><br />
8 Ibid, p. 247.<br />
9 Freud, S. Dostoievki e o parricídio (1928). ESB, vol. XXI. RJ: Imago Editora, 1976, p. 211.<br />
10 Ibid, p. 211.<br />
11 Ibid, p. 214.<br />
46
jogo – citan<strong>do</strong> Lacan <strong>de</strong> Radiofonia - entre o consciente e o inconsciente, entre o senti<strong>do</strong> e o<br />
não-senti<strong>do</strong>, entre a presença recalcante <strong>da</strong> razão e o retorno <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>”. 12<br />
Mas o relacionamento <strong>de</strong> to<strong>do</strong> menino com o pai é ambivalente, o pai é o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntificação. E também por ele se tem amor sexual. A fantasia ‘uma criança é bati<strong>da</strong>’ mostra<br />
isso. E também se tem ternura por ele É isso que permitirá ao menino preservar sua<br />
masculini<strong>da</strong><strong>de</strong>, alega Freud. Lacan afirma que essa virili<strong>da</strong><strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um semblante<br />
ridículo, mas o menino precisará <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntificação metafórica com a imagem <strong>do</strong> pai. Esse<br />
“pequeno macho”, continua Lacan, tem guar<strong>da</strong><strong>da</strong> essa i<strong>de</strong>ntificação, para no futuro sacar seus<br />
<strong>do</strong>cumentos’ 13 .<br />
Toman<strong>do</strong> Dostoievski como um caso clínico, Freud explica um agravante em sua<br />
neurose: uma forte disposição bissexual. Pela ameaça <strong>da</strong> castração, ele, menino, se inclinou<br />
fortemente no senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> feminili<strong>da</strong><strong>de</strong> 14 . “O menino enten<strong>de</strong> que também <strong>de</strong>ve submeter-se à<br />
castração, se <strong>de</strong>seja ser ama<strong>do</strong> pelo pai como se fosse uma mulher.” Dessa maneira, o amor e<br />
o ódio ao pai, igualmente, experimentan repressão, como um homossexualismo latente, dirá<br />
Freud 15 . Enfim, Dostoievski tem, segun<strong>do</strong> Freud, um componente feminino especialmente<br />
intenso. E meu paciente também.<br />
A incompetência <strong>de</strong> bancar o homem para uma mulher<br />
Se a pergunta <strong>do</strong> homem histérico é a mesma que <strong>da</strong> mulher histérica – sou homem<br />
ou mulher? – as respostas <strong>de</strong> sua neurose são mais <strong>de</strong>vasta<strong>do</strong>ras. Essa é a explicação <strong>de</strong> Maria<br />
Anita Carneiro Ribeiro, no artigo “O que é um homem?”. Continuo citan<strong>do</strong>-a: “Na<strong>da</strong> impe<strong>de</strong><br />
que uma histérica frígi<strong>da</strong>, com asco ao ato sexual, a ele se submeta, pensan<strong>do</strong> em outra coisa e<br />
manten<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sejo insatisfeito. Para o homem histérico, entretanto, que é, como homem,<br />
embaraça<strong>do</strong> por esse ‘penduricalho’, como diz Lacan, a falha na performance fálica <strong>de</strong>ixa a<br />
12 Lacan, J. Radiofonia (1970). Outros escritos. RJ: JZEditor, 2003, p. 414.<br />
13 Lacan, J. O seminário, livro V: as formações <strong>do</strong> inconsciente (1957-‐58). RJ: JZEditor, 1998, p. 201.<br />
14 Freud, S. Dostoievki e o parricídio (1928). ESB, vol. XXI. RJ: Imago Editora, 1976, p. 212.<br />
15 Ibid, p. 213.<br />
47
nu, para além <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo insatisfeito, a incompetência <strong>de</strong> bancar o homem para uma mulher.<br />
Na hora em que o <strong>de</strong>sejo pega fogo, não há na<strong>da</strong> a fritar, nenhum peixe fálico em jogo.”<br />
Como diz o Caso 1, o histérico cobra<strong>do</strong> pelos pais, pelo orienta<strong>do</strong>r, pela mulher e<br />
pela ex-analista, “quan<strong>do</strong> estou com minha mulher, na cama, sinto enjôo e náusea”. Que seja<br />
exatamente nessa hora, em que tem <strong>de</strong> mostrar os <strong>do</strong>cumentos, que a fantasia <strong>de</strong> procriação<br />
venha à tona, mostra bem a falta <strong>do</strong> peixe fálico.<br />
Concluin<strong>do</strong> com as questões <strong>do</strong> início<br />
Por que nesse caso clínico, <strong>do</strong> joga<strong>do</strong>r, diferente <strong>do</strong>s outros três, não aparece a<br />
fantasia ‘bate-se numa criança’? O Édipo inverti<strong>do</strong>, no qual o pai é toma<strong>do</strong> como objeto <strong>de</strong><br />
amor, o fez prescindir <strong>da</strong> fantasia ou reflete apenas os limites <strong>de</strong> sua relação com o saber?<br />
É claro que não interpretamos a partir <strong>da</strong> fantasia, fazê-lo seria interpretar a partir <strong>da</strong><br />
“apreensão <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> imaginária <strong>do</strong> sujeito”. O campo propriamente analítico, afirma<br />
Lacan, no Seminário 3: as psicoses 16 é o sintoma. O sintoma <strong>de</strong>sse joga<strong>do</strong>r, que faz <strong>de</strong> seu<br />
corpo mesa <strong>de</strong> jogo <strong>do</strong> significante <strong>do</strong> Outro é que tem uma cor que mostra bem que ele é um<br />
estrangeiro na sua família, um a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, um estrangeiro como o avô. E usa seu sintoma, “essa<br />
satisfação às avessas”, para marcar um lugar no Outro. Ser um a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, um estrangeiro, lhe<br />
<strong>da</strong>rá um lugar no Outro? a Diminuirá seu gozo <strong>da</strong> privação e sua errãncia? Quanto a estas<br />
últimas perguntas, só a aposta <strong>da</strong> clínica, no só <strong>de</strong>pois, po<strong>de</strong>rá respon<strong>de</strong>r.<br />
Referências bibliográficas<br />
Carneiro Ribeiro, M. A. O que é um homem? I Colóquio <strong>da</strong> EPFCL- Fórum Rio: Histeria,<br />
sujeito, corpo e discurso. Julho <strong>de</strong> 2003.<br />
Freud, S. Dostoievki e o parricídio (1928). ESB, vol. XXI. RJ: Imago Editora, 1976.<br />
Freud, S. “Bate-se em uma criança”, in: ESB. Vol. XXII. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago Editora,<br />
1976.<br />
16 Lacan, J. “O seminário, livro 3: as psicoses”. Rio <strong>de</strong> janeiro: JZEditor, 1985, p. 189.<br />
48
Freud, S. “A negativa” (1925), in: ESB. Vol XIX. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago Editora, 1976.<br />
Lacan, J. O seminário, livro V: as formações <strong>do</strong> inconsciente (1957-58). Rj: JZEditor, 1998.<br />
Lacan, J. “O seminário, livro 3: as psicoses”. Rio <strong>de</strong> janeiro: JZEditor, 1985.<br />
Lacan, J. Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.<br />
Quinet. A. Histerias. I Colóquio <strong>da</strong> EPFCL- Fórum Rio: Histeria, sujeito, corpo e discurso.<br />
Julho <strong>de</strong> 2003.<br />
49
O Sintoma e o Amor<br />
Vera Pollo 1<br />
Do sintoma ao sinthoma, Joyce passa <strong>do</strong> fato clínico fun<strong>da</strong>mental ao laço social.<br />
Talvez possamos mesmo dizer, <strong>do</strong> gozo inapreensível àquele que captura leitores. O<br />
primeiro sintoma correspon<strong>de</strong> à posição subjetiva em que ele tanto está “enraiza<strong>do</strong> no<br />
pai”, quanto o renega (Lacan, Sem. 23,p.68). Ao construir um nome próprio, com sua<br />
arte-‐sinthoma, Joyce compensa a carência paterna e se inscreve no laço social.<br />
Nenhum sintoma é, <strong>de</strong> saí<strong>da</strong>, favorável ao laço social. É possível que,<br />
para<strong>do</strong>xalmente, o sintoma paranóico, em que um sujeito se presta a ocupar o lugar <strong>do</strong><br />
i<strong>de</strong>al para to<strong>do</strong> um grupo, seja aquele que se situa mais pró<strong>xi</strong>mo <strong>do</strong> comunicável. Uma<br />
vez que a conversão histérica é analogicamente uma obra <strong>de</strong> arte mal sucedi<strong>da</strong> e o ritual<br />
obsessivo, uma religião particular, quase não é necessário dizer que a natureza <strong>de</strong><br />
ambos é anti-‐social. Uma pequena exceção diz respeito ao sintoma histérico responsável<br />
por algumas loucuras coletivas e cujo <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento foi situa<strong>do</strong> por Freud na<br />
“i<strong>de</strong>ntificação basea<strong>da</strong> no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> colocar-‐se na mesma situação”. (1921/1976, p.135)<br />
Retomemos Joyce. Entre os ensinamentos que Lacan extrai <strong>da</strong> obra joyceana,<br />
po<strong>de</strong>mos situar a constatação <strong>de</strong> que um sintoma po<strong>de</strong> transformar-‐se em sinthoma, no<br />
senti<strong>do</strong> <strong>da</strong>quilo que corrige o nó, o que é prenhe <strong>de</strong> muitas conseqüências. No caso <strong>de</strong><br />
Joyce, há até mesmo um saber servir-‐se <strong>do</strong> sintoma <strong>de</strong> origem, e talvez não seja exagero<br />
dizer que ele não apenas <strong>de</strong>sembaraçou-‐se com seu sintoma, mas fez <strong>de</strong>le um bom uso.<br />
Soler (2001) propõe que i<strong>de</strong>ntifiquemos separa<strong>da</strong>mente seu sintoma-‐gozo em<br />
seu gosto pela letra, e o sinthoma com que ele faz laço social, sua aspiração à fama e ao<br />
reconhecimento social. Em outros termos, que diferenciemos entre o sintoma que<br />
1 AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano-‐ Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro<br />
50
con<strong>de</strong>nsa o traumatismo <strong>de</strong> lalíngua e o sinthoma-‐nome que lhe permite entrar na polis<br />
como Mestre <strong>da</strong>s letras.<br />
Ora, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que Lacan en<strong>de</strong>reçou a Jenny Aubry sua “Nota sobre a criança”, em<br />
1969, fomos conduzi<strong>do</strong>s a pensar a transmissão <strong>do</strong>s pais aos filhos em termos <strong>de</strong><br />
resposta sintomática, a qual, mais <strong>do</strong> que a i<strong>de</strong>ntificação, <strong>de</strong>svela a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />
geração. Isto porque o sintoma implica a relação e não a equivalência. (Morel, 2009,<br />
p.63)<br />
Como o sintoma <strong>da</strong> criança é uma resposta particular ao <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong>s pais que<br />
presidiu seu nascimento, o qual é alimenta<strong>do</strong> pelos sintomas <strong>de</strong>les, os sintomas <strong>da</strong>s<br />
crianças prolongam os <strong>do</strong>s pais, corrigem seus <strong>de</strong>sejos, criam o que era até então<br />
inédito. Nesse caso, estamos bem longe <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação e <strong>do</strong>s egos “eguais”. Porém, na<br />
impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> um sintoma inédito, ain<strong>da</strong> assim um prolongamento<br />
sintomático po<strong>de</strong> unir, como laço <strong>de</strong> amor, duas ou mais gerações <strong>de</strong> uma mesma<br />
família. Eis como Lacan interpreta a relação entre Joyce e sua filha Lucia.<br />
O episódio nos é mais ou menos conheci<strong>do</strong>: trata-‐se <strong>de</strong> uma consulta a Jung, o<br />
qual diagnostica Lucia como esquizofrênica e conclui literalmente que a relação pai-‐<br />
filha, nesse caso, é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação. Em suas palavras: “... A anima <strong>de</strong> Joyce, sua<br />
psychè inconsciente estava tão soli<strong>da</strong>mente i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> com sua filha que, admitir<br />
interditá-‐la, teria si<strong>do</strong> admitir que ele próprio tinha uma psicose latente. Por isso é<br />
compreensível que ele não pu<strong>de</strong>sse ce<strong>de</strong>r. Seu estilo “psicológico” é sem dúvi<strong>da</strong><br />
esquizofrênico, com a diferença, porém, <strong>de</strong> que o paciente comum não consegue evitar<br />
<strong>de</strong> falar e pensar <strong>de</strong>ssa maneira, enquanto Joyce o controlava e, mais ain<strong>da</strong>, o<br />
<strong>de</strong>senvolvia com to<strong>da</strong>s as suas forças criativas, o que explica por que ele próprio não<br />
ultrapassava a linha. Mas sua filha ultrapassou, porque não era um gênio como o pai,<br />
mas uma vítima <strong>de</strong> sua <strong>do</strong>ença.” (cita<strong>do</strong> por Ellmann,1989, p.837)<br />
Para Lacan, é possível observar nas cartas escritas por Joyce que ele consi<strong>de</strong>ra a<br />
filha muito mais inteligente que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e acredita que ela o informa <strong>de</strong> coisas que<br />
51
acontecem com pessoas que sequer conhece. “ Minha esposa e eu” – escreve Joyce – “<br />
vimos centenas <strong>de</strong> exemplos <strong>da</strong> clarividência <strong>de</strong>la”. (Ellmann, p.835) Lacan, que em uma<br />
apresentação <strong>de</strong> pacientes, tivera a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> entrevistar um sujeito que dividia<br />
seu sintoma em <strong>do</strong>is tempos: um primeiro tempo em que sofria <strong>de</strong> “falas impostas” – ou<br />
seja, uma <strong>da</strong>s formas <strong>do</strong> automatismo mental <strong>de</strong>scrito por Clérambault -‐, um segun<strong>do</strong><br />
tempo no qual compreen<strong>de</strong>u que tais coisas lhe aconteciam, porque era um “telepata<br />
emissor”, <strong>encontro</strong>u uma gran<strong>de</strong> semelhança com o sintoma <strong>de</strong> Joyce, porém o segun<strong>do</strong><br />
tempo era sua atribuição à filha <strong>de</strong> alguma coisa que estava no prolongamento <strong>de</strong> seu<br />
próprio sintoma: ele sofria <strong>de</strong> falas impostas, Lucia era telepata. (sem. 23, p.93)<br />
O biógrafo Ellmann relata que Joyce nutria a secreta esperança <strong>de</strong> que a filha<br />
escaparia <strong>de</strong> sua própria treva, quan<strong>do</strong> ele saísse <strong>da</strong> noite escura <strong>do</strong> Finnegans wake.<br />
Jung não foi o primeiro nem o único a notar a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> laço que os unia. Quan<strong>do</strong><br />
recebeu Lucia, ela já passara por inúmeros médicos. Jung teve acesso aos poemas que<br />
sua paciente escrevia e concluiu que ela imitava <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scontrola<strong>da</strong> idéias, fixações<br />
e linguagem que o pai, to<strong>da</strong>via, controlava. Também Paul Léon parece ter afirma<strong>do</strong> o<br />
seguinte: “o Sr. Joyce confia unicamente numa pessoa, e essa pessoa é Lúcia. Qualquer<br />
coisa que ela diga ou escreva é o que o guia.” E, como se não bastasse, o próprio Joyce<br />
confi<strong>de</strong>nciou a uma amiga: “As pessoas falam <strong>da</strong> minha influência sobre minha filha. Mas<br />
e a influência <strong>de</strong>la sobre mim?” (Ellmann, p. 840, 843)<br />
Passemos agora a uma pergunta <strong>de</strong> Lacan: “O que nos indicam as cartas <strong>de</strong> amor<br />
para Nora?” Tu<strong>do</strong> indica que, para os professores <strong>de</strong> literatura, o que mais surpreen<strong>de</strong><br />
nas letras/cartas <strong>de</strong> Joyce é a báscula que as arrasta <strong>do</strong> mais terno lirismo à linguagem<br />
mais crua e obscena. O próprio poeta o percebe e nelas menciona as duas faces <strong>do</strong><br />
sentimento que o liga a Nora: “Há uma parte feia, obscena e bestial, e há uma parte pura<br />
e santa e espiritual.” (1909/1988, p. 38) “Tu me agra<strong>de</strong>ces pelo lin<strong>do</strong> nome que te <strong>de</strong>i.<br />
Sim, queri<strong>da</strong>, ‘minha lin<strong>da</strong> flor agreste <strong>da</strong>s sebes! Minha flor azul-‐marinho encharca<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> chuva!’ é um nome bonito [...] Mas, la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> e no âmago <strong>de</strong>ste amor espiritual que<br />
tenho por ti há também um <strong>de</strong>sejo bestial e bruto por to<strong>do</strong>s os pe<strong>da</strong>cinhos <strong>de</strong> teu corpo,<br />
52
to<strong>da</strong>s as partes secretas e vergonhosas <strong>de</strong>le, pelos cheiros to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>le e por tu<strong>do</strong> que ele<br />
faz [...] Ensinei-‐te a quase <strong>de</strong>smaiar quan<strong>do</strong> ouves minha voz cantan<strong>do</strong> ou murmuran<strong>do</strong><br />
à tua alma a paixão e a tristeza e o mistério <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e ao mesmo tempo ensinei-‐te a fazer<br />
trejeitos in<strong>de</strong>centes com a língua e os lábios [...] meu amor leal, minha colegial travessa<br />
<strong>de</strong> olhar lângui<strong>do</strong>, minha puta, minha amante, tu<strong>do</strong> quanto queiras (minha amantezinha<br />
punheteira, minha putinha fo<strong>de</strong><strong>do</strong>ra!) serás sempre minha flor agreste <strong>da</strong>s sebes, minha<br />
florzinha azul-‐marinho encharca<strong>da</strong> <strong>de</strong> chuva.” Assina<strong>do</strong>: Jim (1909/1988, p.54-‐55)<br />
Curiosamente, Lacan que, no seminário 20, já havia proposto fórmulas tão<br />
límpi<strong>da</strong>s quanto: “O que não é signo <strong>do</strong> amor é o gozo <strong>do</strong> Outro, o <strong>do</strong> Outro sexo [...] <strong>do</strong><br />
corpo que o simboliza” (p.28) e “ O que vem em suplência à relação sexual é<br />
precisamente o amor” (p.62), conclui agora que as coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s letras/cartas <strong>de</strong><br />
amor <strong>de</strong> Joyce a Nora indicam que há uma relação sexual, embora bem esquisita. (sem.<br />
23, p. 81)<br />
Os matemas propostos por Lacan no quadro <strong>da</strong> sexuação <strong>de</strong>ixam ver a relação<br />
homem-‐mulher sob novas luzes: quan<strong>do</strong> um homem abor<strong>da</strong> uma mulher, se ela lhe<br />
serve <strong>de</strong> causa-‐<strong>de</strong>-‐<strong>de</strong>sejo, isso significa que ela está exatamente no mesmo lugar <strong>do</strong><br />
objeto a <strong>de</strong> sua fantasia. Mas este não parece ser o caso <strong>de</strong> Joyce. Suas letras/cartas<br />
testemunham que o sentimento que o enlaçou a Nora nunca a transformou na Dama <strong>do</strong><br />
amor cortês, aquela cujo <strong>encontro</strong> tem algo <strong>de</strong> real, consequentemente <strong>de</strong> traumático e<br />
inassimilável. Nora não é a outra face <strong>do</strong> vampiro, aquela que representa a última tela <strong>da</strong><br />
e<strong>xi</strong>stência, para além <strong>da</strong> qual começa o país <strong>do</strong>s fantasmas. Não é uma morta-‐viva<br />
submeti<strong>da</strong> ao tormento eterno <strong>do</strong> entre-‐duas-‐mortes.<br />
Certa feita Nora comenta a reação <strong>de</strong> Joyce diante <strong>de</strong> um novo vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> festa<br />
que acabara <strong>de</strong> comprar: “Jim achou as costas <strong>de</strong>cota<strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais e <strong>de</strong>cidiu que teria <strong>de</strong><br />
costurar as costas <strong>do</strong> vesti<strong>do</strong>. Naturalmente ele fez pontos to<strong>do</strong>s tortos [...] Queria que<br />
vocês o tivessem visto costuran<strong>do</strong> minha pele e espinha.” (Ellmann, p.830) Ele não<br />
queria que ninguém, além <strong>de</strong>le, sequer olhasse o que quer que tocasse o corpo <strong>de</strong> Nora.<br />
53
Em 22 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1909, escreve-‐lhe em uma carta: “Arrisco-‐me a dizer<br />
somente uma coisa. Dizes que queres que minha irmã te leve <strong>da</strong>qui umas roupas <strong>de</strong><br />
baixo. Por favor, não faças isso queri<strong>da</strong>. Eu não gosto que ninguém, nem mesmo uma<br />
mulher ou uma moça, veja as coisas que te pertencem.” (Cartas, p.53) Menos <strong>de</strong> um mês<br />
antes, ele lhe escrevera; “Tenho an<strong>da</strong><strong>do</strong> in<strong>da</strong>gan<strong>do</strong> sobre um conjunto <strong>de</strong> peles para ti e<br />
se meus negócios correrem bem vou simplesmente afogar-‐te em peles e vesti<strong>do</strong>s e capas<br />
<strong>de</strong> to<strong>da</strong> sorte.”(p.47)<br />
Lacan (2007:93) não sabe ao certo se Joyce escrevia para libertar-‐se <strong>do</strong> parasita<br />
fala<strong>do</strong>r ou, ao contrário, para <strong>de</strong>ixar-‐se invadir por proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m<br />
essencialmente fonêmica <strong>da</strong> fala, isto é, sua polifonia. Mas não duvi<strong>da</strong> <strong>da</strong>quilo que<br />
também percebe e assim formula: no final <strong>da</strong>s contas, ele [o homem] faz amor com seu<br />
inconsciente, e mais na<strong>da</strong> (I<strong>de</strong>m:123).<br />
É possível que as cartas a Nora testemunhem apenas o gozo <strong>de</strong> Joyce com o corpo<br />
<strong>do</strong> Outro simbólico, com as palavras <strong>de</strong> amor, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e <strong>de</strong> repugnância. Como<br />
dissemos acima, elas vão <strong>do</strong> tom mais lírico ao mais abjeto. Em certo senti<strong>do</strong>,<br />
apro<strong>xi</strong>mam-‐se <strong>da</strong> dupla valência <strong>do</strong> objeto a, em sua face narcísico-‐imaginária e em sua<br />
face real. Nesse caso, Joyce teria ama<strong>do</strong> mais a arte <strong>de</strong> escrever, <strong>do</strong> que a mulher <strong>de</strong><br />
carne e osso a quem enviava suas cartas.<br />
Nora não ocupava para ele o lugar <strong>de</strong> mulher-‐sinthoma, alguém que, enquanto<br />
objeto ama<strong>do</strong>, lhe teria servi<strong>do</strong> <strong>de</strong> intermediário para crer nas mulheres em geral. Não<br />
havia mais que uma mulher para Joyce, e este mulher era Nora. Ele a elegera, mas com a<br />
maior <strong>da</strong>s <strong>de</strong>preciações. Eis outra pergunta que Lacan se faz: por que Joyce elegera Nora<br />
com a maior <strong>da</strong>s <strong>de</strong>preciações? (2007:81)<br />
Tu<strong>do</strong> indica que Joyce sabia que, se fazer amor é poesia, em contraparti<strong>da</strong>, o ato<br />
<strong>de</strong> amor correspon<strong>de</strong> à perversão polimorfa <strong>do</strong> macho, pois há um mun<strong>do</strong> entre a poesia<br />
e o ato (Lacan, 1985: 98) Objeto <strong>de</strong> amor, objeto transicional, ou simplesmente objeto <strong>de</strong><br />
um ciúme <strong>de</strong>lirante, o que quer que Nora tenha si<strong>do</strong> preferencialmente para Joyce, este a<br />
54
compartilhou conosco. Sentimo-‐nos os <strong>de</strong>stinatários, entre muitos, <strong>da</strong>s missivas<br />
joycianas.<br />
Referências Bibliográficas<br />
AUBERT, Jacques. “Prólogo a Um retrato <strong>do</strong> artista quan<strong>do</strong> jovem” in Retratura <strong>de</strong> Joyce.<br />
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Aubert no Brasil e outros trabalhos. <strong>Escola</strong> Letra Freudiana, ano XX, n. 28 (2001),<br />
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ELLMANN, Richard. James Joyce. Tradução <strong>de</strong> Lia Luft. São Paulo: Globo, 1989.<br />
GATIAN <strong>de</strong> CLÉRAMBAULT, Gaétan. (1942) “Définition <strong>de</strong> l’automatisme mental’,<br />
Oeuvre psychiatrique, vol. II. Paris: PUF.<br />
JOYCE, James. Um retrato <strong>do</strong> artista quan<strong>do</strong> jovem. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Objetiva, 2006.<br />
-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐ Cartas a Nora Barnacle. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1988.<br />
LACAN, Jacques _ (1956) “O Seminário sobre a carta rouba<strong>da</strong>” ” in Escritos. Rio <strong>de</strong><br />
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-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐ (1946) “Formulações sobre a causali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica” in Escritos. Op.<br />
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-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐ (1975-‐1976) O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />
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SOLER, Colette. “Joyce , martyr <strong>de</strong> la langue” in L’aventure litteraire ou la psychose<br />
inspirée. Paris:Editions du Champ lacanien, 2001, pp.83-‐99.<br />
55
Apostar no Sintoma<br />
Zil<strong>da</strong> Macha<strong>do</strong> 1<br />
Comecemos com Freud. Na conferência Os Caminhos <strong>da</strong> formação <strong>do</strong> sintoma, ele<br />
nos ensina: O sintoma é causa<strong>do</strong> pela força <strong>da</strong> pulsão que ao pressionar por satisfação,<br />
encontra a barreira <strong>da</strong> censura e não po<strong>de</strong> ser realiza<strong>da</strong>. O que há nesse momento é<br />
angústia, o mal-‐estar que força o advento <strong>do</strong> mecanismo <strong>do</strong> recalque. Devi<strong>do</strong> então ao<br />
recalcamento, o <strong>de</strong>sejo que agora é inconsciente regri<strong>de</strong> toman<strong>do</strong> a via <strong>da</strong> fantasia a um<br />
tempo on<strong>de</strong> houve a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se obter satisfação, pois uma coisa que Freud nos<br />
aponta é que o sujeito não abdica jamais <strong>de</strong> um prazer já experimenta<strong>do</strong>. Aí<br />
encontramos os conceitos <strong>de</strong> regressão (o retorno pela via <strong>da</strong> fantasia) e <strong>de</strong> fixação (ao<br />
ponto on<strong>de</strong> houve maior satisfação). Mas o aparelho continua pressionan<strong>do</strong>. A pulsão é<br />
uma força constante que não dá trégua ao sujeito. Há novamente outra tentativa <strong>de</strong><br />
buscar a satisfação, só que <strong>de</strong>sta vez, sob a ação <strong>do</strong> recalque, ela já não é direta. É o que<br />
chamamos “o retorno <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>”. Aí nesse momento o sujeito constrói o sintoma,<br />
uma “formação <strong>de</strong> compromisso” entre o <strong>de</strong>sejo inconsciente, provin<strong>do</strong> <strong>da</strong> pulsão<br />
sexual, e a força <strong>da</strong> censura que ele trata <strong>de</strong> burlar. Constrói assim um substituto que lhe<br />
permitirá encontrar a satisfação <strong>de</strong>seja<strong>da</strong>, ao preço <strong>de</strong> não reconhecê-‐la como tal.<br />
Para Freud, o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma é sexual. E Lacan, no início <strong>de</strong> seu ensino, toma-‐<br />
o por esta mesma vertente. Na “Instancia <strong>da</strong> letra” Lacan diz: “é a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> que o<br />
<strong>de</strong>sejo foi em sua história que o sujeito grita através <strong>de</strong> seu sintoma”. [p. 522]. No<br />
entanto, ao longo <strong>de</strong> seu ensino Lacan fará profun<strong>da</strong>s modificações em sua abor<strong>da</strong>gem<br />
<strong>do</strong> sintoma, o que trará diversas consequências para o dispositivo analítico e à questão<br />
1 AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -‐ Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum Belo<br />
Horizonte<br />
56
<strong>do</strong> final <strong>da</strong> análise, quan<strong>do</strong> ele dirá que o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma é um só: o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
sintoma é o Real. (senti<strong>do</strong> como direção, nos dirá Soler).<br />
Temos então o sintoma como a presentificação <strong>do</strong> retorno <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong> pulsional<br />
teci<strong>do</strong> nas vere<strong>da</strong>s <strong>da</strong> fantasia. É realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos recalca<strong>do</strong>s e infantis e satisfação<br />
pulsional substituta que se sustenta em uma fantasia inconsciente e se articula e se fixa à<br />
gramática pulsional. Assim se dá, portanto, o acesso <strong>do</strong> sujeito à sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>: <strong>de</strong> forma<br />
conflituosa, <strong>de</strong>svia<strong>da</strong> e sintomática. E assim inaugura-‐se o psiquismo na interdição <strong>do</strong><br />
objeto primordial, matriz à qual se dirige originalmente o <strong>de</strong>sejo, que cai sob a barra <strong>do</strong><br />
recalque, colocan<strong>do</strong> o sujeito para sempre à procura <strong>do</strong> objeto perdi<strong>do</strong>. Interdição –<br />
interdicção – inter-‐dito. A sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> humana está fa<strong>da</strong><strong>da</strong> a se realizar necessariamente<br />
através <strong>da</strong>s palavras: gozo fálico.<br />
O sintoma, portanto, pressupõe o compromisso entre a pulsão e a <strong>de</strong>fesa. Ou seja,<br />
ali o sujeito não pô<strong>de</strong> escolher nem uma posição nem outra. Mas em uma escolha<br />
força<strong>da</strong>, ele é compeli<strong>do</strong> a, mesmo assim, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta estrutura, escolher uma posição<br />
<strong>de</strong> sujeito <strong>da</strong> qual, como nos lembra Lacan, sempre se é responsável. Ele escolhe então<br />
não escolher, ele escolhe compor. Pois, ser compeli<strong>do</strong> a escolher, sempre coloca o sujeito<br />
diante <strong>da</strong> castração. Escolher é mais que tu<strong>do</strong> renunciar. É consentir em per<strong>de</strong>r algo. Se<br />
se escolhe A, per<strong>de</strong>-‐se B. Portanto, diante <strong>da</strong> premência a renunciar, a se <strong>de</strong>parar com a<br />
castração, o mecanismo que advém leva-‐o a burlar a escolha. Diante <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> escolher A<br />
ou B, o sujeito escolhe outra posição: escolhe não escolher. Escolhe compor para que<br />
tu<strong>do</strong> permaneça como estava, para continuar com o má<strong>xi</strong>mo possível <strong>de</strong> satisfação. É o<br />
benefício primário <strong>da</strong> neurose – posição <strong>de</strong> satisfação que leva Freud a dizer que “os<br />
sintomas são as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sexuais <strong>do</strong> neurótico”. E leva Lacan a dizer que o sujeito é<br />
sempre feliz.<br />
Ou seja, o aparelho psíquico se arranja justamente aí com a construção <strong>do</strong><br />
sintoma: isso é a neurose. Ninguém escolhe a castração. Escolhe é burla-‐la. E a resposta<br />
que aponta a estrutura é o mecanismo que se usa. [A psicose com a foraclusão nem a<br />
57
leva em consi<strong>de</strong>ração. A perversão com o fetichismo traz um mecanismo que ao mesmo<br />
tempo a reconhece e a nega]. 2<br />
No entanto sabemos que embora to<strong>do</strong> o esforço <strong>do</strong> sujeito seja nesse senti<strong>do</strong> [<strong>de</strong><br />
burlar a castração], isso é impossível pois, no psiquismo, “é a insatisfação que constitui o<br />
componente primordial”, nos diz Lacan 3 . Essa é a nossa condição <strong>de</strong> acesso à<br />
sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Daí vem a má<strong>xi</strong>ma <strong>de</strong> Lacan: “não há relação sexual”, pois ele o diz<br />
textualmente: “a relação sexual só e<strong>xi</strong>ste entre gerações vizinhas”: filhos <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>,<br />
pais <strong>de</strong> outro. Ao fazer a escolha <strong>do</strong> recalque, o sujeito opta pela “não relação sexual”. Ele<br />
opta pela interdição [<strong>do</strong> incesto], pela inter-‐dicção.<br />
Ou seja, o mal-‐estar é <strong>de</strong> estrutura, a falta é o cerne <strong>do</strong> ser falante e o objetivo <strong>da</strong><br />
pulsão não é a captura <strong>do</strong> objeto, é somente contorná-‐lo. É seu retorno em circuito, na<br />
repetição, na procura <strong>de</strong> uma vivência <strong>de</strong> satisfação inscrita no âmago <strong>do</strong> sujeito como<br />
impossível, jamais alcançável. Ou seja, não há solução. Portanto, embora o sujeito seja<br />
“sempre feliz” pois, esteja na posição em que estiver, ele extrai sua cota <strong>de</strong> gozo, “ele não<br />
é [mais feliz] <strong>de</strong> jeito nenhum”, nos lembra Lacan na Entrevista à Imprensa pois, “<strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
quan<strong>do</strong> o verbo se encarna”, nos diz ali, “as coisas começam a ir mal”, levan<strong>do</strong> o sujeito<br />
muitas vezes a sofrer <strong>de</strong>mais. Mas, “sofrer <strong>de</strong>mais é a única justificativa para a<br />
intervenção <strong>do</strong> analista”, nos lembra Lacan no seminário XI 4 .<br />
Assim, chega o sujeito à análise, buscan<strong>do</strong> se aliviar um pouco <strong>do</strong>s sintomas que o<br />
afligem, pois por estrutura, o neurótico acreditar que há um Outro que sabe o que lhe<br />
acomete. Mas ele só quer reparar um pouco a fen<strong>da</strong> que se esgarçou um pouco <strong>de</strong>mais.<br />
Na<strong>da</strong> <strong>de</strong> querer saber <strong>da</strong> castração.<br />
2 Já a escolha <strong>do</strong> tipo clinico [histeria, neurose obsessiva ou fobia], nos diz Freud, tem a ver é com outra coisa – com a<br />
mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa. Lembremos que o roche<strong>do</strong> <strong>da</strong> castração se refere à posição <strong>de</strong> homens e mulheres diante <strong>da</strong><br />
castração. No homem, protesto viril, e na mulher, pênis-‐neid, ou inveja <strong>do</strong> pênis.<br />
3 Da psicanálise em suas relações com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.(p. 354),<br />
4 Seminário XI p. 158<br />
58
Mas, o sujeito po<strong>de</strong> entrar em análise, ele po<strong>de</strong> se tornar dócil ao discurso<br />
analítico e querer saber um pouco <strong>do</strong> que o <strong>de</strong>termina. Aí então sim, ele po<strong>de</strong>rá vir a<br />
consentir com a castração. A meu ver, isso só advém mesmo é ao final <strong>da</strong> análise, ao<br />
consentir com uma per<strong>da</strong> <strong>de</strong> gozo. Assim é que ele po<strong>de</strong> vir a consentir com a escolha <strong>de</strong><br />
A, e consentir com a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> B, ou vice-‐versa. Po<strong>de</strong>r per<strong>de</strong>r -‐ a essa posição, a meu ver,<br />
só o discurso analítico po<strong>de</strong> levar um sujeito. Ao permitir a ele subjetivar a falta, in<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
per<strong>da</strong> à causa <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. Ali on<strong>de</strong> o sujeito po<strong>de</strong> sustentar o <strong>de</strong>sejo como o vazio <strong>de</strong><br />
objeto, puro wunch.<br />
Os outros discursos apontam sempre soluções <strong>de</strong> tamponamento para a falta<br />
estrutural <strong>do</strong> sujeito. Aju<strong>da</strong>m a burlar a castração. Por isso Lacan diz que tu<strong>do</strong> concorre<br />
para a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito, para que tu<strong>do</strong> se mantenha e para que ele se repita. A<br />
tecnociência promete sempre: se não está satisfeito é porque você ain<strong>da</strong> não escolheu C<br />
ou D. E aí o alfabeto é infinito. Sempre há um novo objeto sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> forno. Aquele, sim,<br />
vai te fazer feliz. Felici<strong>da</strong><strong>de</strong> postiça? É a partir <strong>do</strong> consumo ávi<strong>do</strong> <strong>de</strong>sses objetos que<br />
Freud fala no “Mal estar na civilização” que assim, o sujeito chega a se tornar “uma<br />
espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>us <strong>de</strong> prótese (...) coberto por to<strong>do</strong>s os complementos artificiais que lhe<br />
dão ares <strong>de</strong> ser magnífico”.<br />
Mas, Lacan, na conferência à imprensa nos chama a atenção para uma questão<br />
importante: ‘embora essas engenhocas comam a gente, isso acontece porque a gente se<br />
<strong>de</strong>ixa consumir’. E ele nos diz: “por isso não estou entre os alarmistas nem os<br />
angustia<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> nos saciarmos, pararemos com isso, e nos ocuparemos <strong>da</strong>s<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras coisas, ou seja, <strong>da</strong> religião”. Pois, o discurso religioso, ao contrário <strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
ciência, não só promete, esse cumpre a função <strong>de</strong> tamponamento <strong>da</strong> castração ao <strong>da</strong>r<br />
senti<strong>do</strong> a tu<strong>do</strong>. Por isso Lacan diz: “São capazes <strong>de</strong> <strong>da</strong>r um senti<strong>do</strong> a qualquer coisa, até<br />
um senti<strong>do</strong> à vi<strong>da</strong> humana, por exemplo”.<br />
E o futuro <strong>da</strong> psicanálise, nos diz Lacan, <strong>de</strong> maneira enfática, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> que<br />
acontecerá aí nesses discursos. Pois tu<strong>do</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> que o real insista. E <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>,<br />
59
portanto, precipuamente, <strong>de</strong> como o sintoma será trata<strong>do</strong> no próprio dispositivo<br />
analítico. Sabemos <strong>da</strong>s longas análises que foram ao limite <strong>da</strong> interpretação e os efeitos<br />
disso no corpo <strong>do</strong>s analisantes.<br />
Mas o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma é não só o senti<strong>do</strong> sexual, interpretável, aquele que<br />
Lacan no início supunha se resolver por inteiro numa análise linguageira, como ele o<br />
<strong>de</strong>fine em “Função e Campo”. O que vai se <strong>de</strong>puran<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais é seu caráter<br />
imutável, liga<strong>do</strong> ao gozo. “O senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma”, nos diz Lacan em A Terceira, “é o real”.<br />
E Colette Soler nos esclarece que a palavra senti<strong>do</strong> aqui utiliza<strong>da</strong> por Lacan diz respeito<br />
é ao senti<strong>do</strong> como uma direção. O sintoma provém <strong>do</strong> real, ele é causa<strong>do</strong> pelo Real. “O<br />
sintoma é a manifestação <strong>do</strong> real no nível <strong>do</strong>s seres vivos”, reforçan<strong>do</strong> aquilo que Lacan<br />
já dissera no Seminário XI: O sintoma, como as outras formações <strong>do</strong> inconsciente, é um<br />
envelopamento <strong>do</strong> real, não é o próprio real. Pois, “<strong>do</strong> real, somos totalmente<br />
separa<strong>do</strong>s” 5 , justamente “<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a proporção sexual ser escrita”. E<br />
é <strong>da</strong>í que advém a “abundância <strong>de</strong> sintomas”.<br />
Então, se é o sintoma (o que provém <strong>do</strong> real) que leva o sujeito à análise, como a<br />
psicanálise – uma prática cujo instrumento é a linguagem -‐ po<strong>de</strong> operar para tratar o<br />
real em jogo no sintoma? Como ela po<strong>de</strong> operar para levar a análise à sua conclusão?<br />
Aqui então é que Lacan nos esclarece quan<strong>do</strong> ele diz que a única maneira <strong>de</strong> se li<strong>da</strong>r com<br />
o sintoma é pelo equívoco significante. Só assim ele não engor<strong>da</strong>rá <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. Ou seja,<br />
não é pelo senti<strong>do</strong> que o real é atingi<strong>do</strong>. Trata-‐se <strong>de</strong> um trabalho com a linguagem<br />
<strong>de</strong>pura<strong>da</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> – lalíngua -‐ cujo único fun<strong>da</strong>mento é a sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>, a homofonia<br />
significante. Lalíngua é, pois, a linguagem que concerne à experiência <strong>da</strong> psicanálise.<br />
Pela maneira como a língua materna foi escuta<strong>da</strong> e provocou ranhuras no corpo,<br />
foi escrito ali o texto inconsciente. Implica a palavra dita pelo Outro, mas implica<br />
também o escuta-‐<strong>do</strong>r, ou seja, o afeto causa<strong>do</strong> pelo que se escutou. O sintoma se<br />
relaciona então é ao mo<strong>do</strong> pelo qual lalíngua mor<strong>de</strong>u o corpo a partir não só <strong>do</strong> que foi<br />
5 P. 31<br />
60
fala<strong>do</strong> <strong>do</strong>/ao sujeito, mas <strong>da</strong> contingência – e <strong>da</strong> ambigui<strong>da</strong><strong>de</strong> -‐ <strong>do</strong> que foi ouvi<strong>do</strong>, no<br />
<strong>encontro</strong> fortuito que <strong>da</strong>rá a ca<strong>da</strong> um sua singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo. Na Conferência <strong>de</strong><br />
Genebra sobre o sintoma Lacan nos aponta – “aí está a moteriali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> inconsciente”: a<br />
materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> linguageira. É <strong>da</strong> materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> palavra encarna<strong>da</strong>, <strong>de</strong> lalíngua<br />
entalha<strong>da</strong> na carne <strong>do</strong> sujeito que emerge o sintoma. Ele comemora, para além <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o<br />
senti<strong>do</strong>, a saga <strong>do</strong> sujeito na linguagem, o nasce<strong>do</strong>uro <strong>de</strong> sua posição como um falasser.<br />
Aí está o x a que Lacan se refere no seminário RSI quan<strong>do</strong> ele então dirá que “esse x é o<br />
que <strong>do</strong> inconsciente po<strong>de</strong> se traduzir por uma letra” [RSI p. 23]. Letra que marca “o<br />
mo<strong>do</strong> particular <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um gozar <strong>do</strong> inconsciente, na medi<strong>da</strong> em que o inconsciente o<br />
<strong>de</strong>termina”. [RSI p. 37]<br />
No final <strong>de</strong> seu ensino Lacan <strong>de</strong>scobre uma formação <strong>do</strong> sintoma que prescin<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> recalque, que prescin<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma amarração ao inconsciente. Sintoma que, portanto,<br />
tem função <strong>de</strong> suplência ao Real e que é ele mesmo real, articula<strong>do</strong> à letra e ao gozo.<br />
Trata-‐se <strong>do</strong> sintoma que se <strong>de</strong>pura ao final <strong>da</strong> análise. Após to<strong>da</strong> interpretação possível,<br />
até to<strong>da</strong> a <strong>de</strong>codificação pela via <strong>da</strong> linguagem, o sintoma permanece como um caroço <strong>de</strong><br />
real – evento corporal, nos diz Lacan. Ponto zero <strong>da</strong> relação <strong>do</strong> sujeito com a linguagem,<br />
reduzi<strong>do</strong> a seus elementos mínimos, aos restos, às marcas <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s pelo <strong>encontro</strong> <strong>do</strong><br />
sujeito com a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> e ambigui<strong>da</strong><strong>de</strong> significante em lalíngua, teci<strong>do</strong> significante<br />
inscrito a ferro e fogo no corpo como texto inconsciente. Este tipo <strong>de</strong> sintoma, que Lacan<br />
grafa Sinthome, pô<strong>de</strong> ser formula<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> caso Joyce, quan<strong>do</strong> a amarração <strong>da</strong><br />
estrutura pô<strong>de</strong> ser feita fora <strong>da</strong> lógica <strong>do</strong> inconsciente (tributária <strong>do</strong> Nome-‐<strong>do</strong>-‐pai), fora<br />
<strong>da</strong> significação <strong>da</strong> linguagem. Alguns dizem que a partir <strong>da</strong>í po<strong>de</strong>mos prescindir <strong>da</strong><br />
nomenclatura neurose, psicose e perversão, pois o que importa agora é o eno<strong>da</strong>mento<br />
sintomático, não importan<strong>do</strong> mais a estrutura.<br />
Acredito, no entanto, que Lacan se lançou na aventura joyciana para continuar<br />
aquilo que, a meu ver, é o cerne <strong>de</strong> seu ensino: a questão <strong>da</strong> análise e mais<br />
apropria<strong>da</strong>mente falan<strong>do</strong>, a questão <strong>do</strong> final <strong>da</strong> análise e a formação <strong>do</strong> analista. Com<br />
Joyce, ao esclarecer o trabalho <strong>da</strong> psicose, Lacan <strong>de</strong>monstra que ali não há a articulação<br />
61
<strong>do</strong> sujeito ao inconsciente, pois não há o Nome-‐<strong>do</strong>-‐pai. No entanto, o sujeito foi capaz <strong>de</strong><br />
criar um artifício que garantiu o eno<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> estrutura, um Sinthome.<br />
Ou seja, toman<strong>do</strong> o caso Joyce, Lacan pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar como esse sujeito se<br />
sustentou sem o <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>da</strong> psicose por ser capaz <strong>de</strong> criar um sintoma que lhe<br />
fez as vezes <strong>de</strong>ssa função. Mas o que Lacan <strong>de</strong>monstra também é a operação <strong>do</strong> final <strong>de</strong><br />
análise: o sintoma que subsiste para além <strong>da</strong> crença no inconsciente.<br />
Tomar Joyce é verificar em um sujeito que não foi mordi<strong>do</strong> pelo inconsciente –<br />
um “<strong>de</strong>sabona<strong>do</strong> <strong>do</strong> inconsciente”, como aponta Lacan, como ele foi hábil em operar com<br />
a linguagem prescindin<strong>do</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong>, <strong>de</strong>compon<strong>do</strong>-‐a em puro jogo <strong>de</strong> letras e<br />
sons. Ou seja, Joyce trabalhou com a linguagem para além <strong>da</strong> fala com suas significações,<br />
foi ao recurso <strong>da</strong> escrita, à letra, ao ponto on<strong>de</strong> o sintoma já não é mais passível <strong>de</strong> ser<br />
analisa<strong>do</strong>. Joyce mostrou com to<strong>do</strong> o seu trabalho com a letra, saber fazer com isso. Foi<br />
isso que causou sobremaneira o interesse <strong>de</strong> Lacan, pois, como ele o afirma: “que alguém<br />
faça disso um uso prodigioso, interroga por si o que diz respeito à linguagem” 6 .<br />
Ou seja, como o homem, <strong>do</strong>ente <strong>da</strong> linguagem, cativo <strong>do</strong> imaginário que nos leva<br />
ao <strong>de</strong>stino inelutável <strong>da</strong> <strong>de</strong>bili<strong>da</strong><strong>de</strong> mental por sempre <strong>da</strong>rmos senti<strong>do</strong> a tu<strong>do</strong>, po<strong>de</strong> usar<br />
a linguagem justamente no ponto <strong>de</strong> operar com seu osso, com a letra, seu ponto<br />
mínimo, <strong>de</strong> maneira assim, <strong>de</strong>sconecta<strong>da</strong> <strong>do</strong> inconsciente? Isso concerne ao final <strong>da</strong><br />
análise, nos afirma Lacan, e Joyce <strong>de</strong>monstra a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa operação.<br />
O final <strong>de</strong> análise leva o sujeito a modificar sua relação com o inconsciente,<br />
levan<strong>do</strong>-‐o, portanto, a conseguir operar com a linguagem <strong>de</strong> outra maneira. Concerne ao<br />
final <strong>de</strong> análise, então, um efeito <strong>de</strong> escrita.<br />
6 Conf. Joyce, o Sintoma” Sem. 23. p. 162].<br />
62
Pu<strong>de</strong>mos acompanhar o trabalho apresenta<strong>do</strong> por Mario Brito 7 em seu<br />
<strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> passe. Ali quan<strong>do</strong> o sujeito, ao se dirigir às entrevistas <strong>de</strong> passe, per<strong>de</strong> o<br />
passaporte. Ao invés <strong>de</strong> se perguntar: “por que perdi o passaporte, o que isso quer<br />
dizer?, por exemplo, pu<strong>de</strong>r fazer simplesmente uma escrita, como o fez Mario: “ao passe<br />
sem passar por te”.<br />
Sinthome e sintoma se diferenciam então é na maneira pela qual o sujeito na<br />
análise po<strong>de</strong> chegar ao ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>puração, <strong>de</strong> redução <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma ao<br />
irredutível <strong>do</strong> Sinthome. Portanto, nessa redução à letra, ao fonema, o sinthome é a<br />
transmutação <strong>do</strong> sintoma <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> em análise a partir <strong>da</strong> subversão ocorri<strong>da</strong> na<br />
posição <strong>do</strong> sujeito diante <strong>de</strong> seu próprio inconsciente.<br />
O final <strong>da</strong> análise é, portanto, ir ao ponto on<strong>de</strong>, ao se po<strong>de</strong>r prescindir <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>,<br />
ao consentir com a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> gozo, o sujeito pu<strong>de</strong>r “<strong>de</strong>ixar o sintoma ao que ele é, um<br />
acontecimento corporal” e souber fazer (savoir y faire) alguma coisa com o que<br />
comemorou a inscrição <strong>de</strong> lalíngua no leito <strong>de</strong> seu corpo, ali quan<strong>do</strong> justamente ele não<br />
mais acredita no seu inconsciente.<br />
Mas surgirá <strong>da</strong>í um analista se ele continuar acreditan<strong>do</strong> – mais <strong>do</strong> que isso,<br />
aman<strong>do</strong> -‐ o inconsciente. Não mais o seu, mas o inconsciente como estrutura. É aí que<br />
surge o <strong>de</strong>sejo novo, o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analista que o levará ao entusiasmo <strong>de</strong> querer se<br />
oferecer a levar outros até o ponto on<strong>de</strong> ele próprio pô<strong>de</strong> ir em sua análise.<br />
Trata-‐se <strong>de</strong> uma política? Uma política <strong>da</strong> psicanálise. Ali on<strong>de</strong> é a análise em<br />
intensão que fun<strong>da</strong> as bases <strong>da</strong>quilo a que a psicanálise em extensão po<strong>de</strong> vir a trazer ao<br />
mun<strong>do</strong>. A posição ética então é essa: apostar no sintoma.<br />
7 BRITO, Mario. Al passe sin passa-‐por-‐te. Trabalho apresenta<strong>do</strong> no Espaço <strong>Escola</strong> <strong>do</strong> XI Encontro <strong>da</strong> EPFCL|<br />
AFCL-‐Brasil.<br />
63
Sintoma e Escrita ou...os Ecos <strong>do</strong> Sintoma Selvagem<br />
Sandra Leticia Berta 1<br />
É evi<strong>de</strong>nte que, no discurso analítico, só se trata disto, <strong>do</strong> que<br />
se lê e toman<strong>do</strong> como o que se lê para além <strong>do</strong> que vocês<br />
incitaram o sujeito a dizer, que não é tanto, como sublinhei<br />
<strong>da</strong> última vez, dizer tu<strong>do</strong>, mas dizer não importa o quê, sem<br />
hesitar em dizer besteiras. (Lacan, 1973/1985, p.39) 2<br />
Perguntar-me pela escrita <strong>do</strong> sintoma no percurso <strong>de</strong> uma análise levou a anunciar<br />
com título <strong>de</strong>ssa exposição “Sintoma e escrita”.<br />
A questão que me coloco é <strong>de</strong> se temos <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar diferentes mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> escrita <strong>do</strong><br />
sintoma, no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> uma análise. Ou ain<strong>da</strong>: verificar quais as relações possíveis entre<br />
essas diferentes escritas.<br />
Uma vinheta clínica faz contraponto a essa questão. Evoco Lacan em 1973: na análise<br />
há <strong>de</strong> se ter o sentimento <strong>do</strong> risco absoluto. 3 Mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> assinalar o afeto em questão e a<br />
dimensão <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa.<br />
Escrever o sintoma <strong>de</strong>signa neste texto que apresento: <strong>de</strong>finir o sintoma analítico.<br />
Portanto, escrever o sintoma inclui o conceito <strong>de</strong> transferência, ain<strong>da</strong>, inclui o analista como<br />
sen<strong>do</strong> aquele que respon<strong>de</strong> pela posição <strong>do</strong> inconsciente.<br />
Des<strong>de</strong> Freud o sintoma é o estrangeiro que ten<strong>de</strong> a e<strong>xi</strong>lar-se para promover uma<br />
satisfação proibi<strong>da</strong>. Sintoma extraterritorial ao eu. Nome <strong>do</strong> enigma promovi<strong>do</strong> por um<br />
sofrimento que incomo<strong>da</strong> e que perturba pela sua insistência. Ele nos adverte que to<strong>do</strong><br />
sintoma tem um senti<strong>do</strong> sexual, oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trauma e <strong>da</strong> fantasia (reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica)<br />
1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> campo Lacaniano<br />
2 LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ain<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.<br />
3 LACAN, J. (1975 – 1976). El Seminário, libro XXII: el sinthome. Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 45<br />
64
Como se escreve o sintoma na psicanálise?<br />
Estamos a <strong>de</strong>bater que, com Lacan, há duas gran<strong>de</strong>s vertentes que permitem dizer<br />
como se escreve o sintoma, as mesmas enlaçam to<strong>do</strong>s os meandros <strong>do</strong> seu ensino:<br />
Escrever o sintoma como mensagem <strong>do</strong> Outro<br />
A mensagem é o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Outro s(A). Mas sabemos que essa mensagem na<strong>da</strong><br />
mais é <strong>do</strong> que a interpretação <strong>do</strong> sujeito sobre sua e<strong>xi</strong>stência inefável. Nela se articulam: a - O<br />
traumático, entendi<strong>do</strong> como não termos a disposição uma resposta última vin<strong>da</strong> <strong>do</strong> Outro, um<br />
último significante que nos <strong>de</strong>i a resposta <strong>de</strong>finitiva sobre o que somos S( ), nem mesmo<br />
sobre o que queremos, uma vez que a Be<strong>de</strong>utung <strong>do</strong> falo se suporta no significante <strong>da</strong> falta <strong>de</strong><br />
significante (Ф); b - A construção <strong>do</strong> fantasma como resposta cristaliza<strong>da</strong> que eno<strong>da</strong><br />
imaginário e simbólico, como fixação <strong>de</strong>ssa ficção que é a interpretação <strong>do</strong> sujeito sobre o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> Outro promove.<br />
Escrever o sintoma como letra<br />
A escrita <strong>de</strong> uma letra se suporta na questão sobre qual é a função <strong>de</strong>ssa letra. São as<br />
articulações <strong>do</strong>s anos ´70. Em primeiro lugar temos a letra como <strong>de</strong>trito, isola<strong>da</strong> <strong>de</strong> qualquer<br />
quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ten<strong>do</strong> a mesma um estatuto secundário à linguagem. A letra indica: o furo no saber,<br />
a ruptura <strong>do</strong> semblante (significante), artefato a não habitar mais que a linguagem, sem po<strong>de</strong>r<br />
confundi-la com o significante.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, a escrita <strong>da</strong> letra testemunha sobre o furo no saber. A letra tanto limita<br />
o gozo quanto o evoca. Isso que evoca não refere ao furo no saber, mas ao puro exercício <strong>de</strong><br />
uma fala não-sense que leva ao <strong>encontro</strong> <strong>de</strong>sse furo no saber, até seu limite. Enten<strong>do</strong> ser essa<br />
a tese que nos propõe Colette Soler no seu livro Lacan, l´inconscient réinventé 4 quan<strong>do</strong>,<br />
4 SOLER, C. Lacan, l ´inconscient réinventé. Paris: Presses Universitaires <strong>de</strong> France, 2009.<br />
65
evocan<strong>do</strong> Lacan no Prefacio <strong>do</strong> Seminário XI 5 , nos diz que o passe ao real precisa (é minha<br />
leitura <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> Soler) <strong>de</strong> três tempos: 1. A formação <strong>do</strong> inconsciente (lapso). 2. O<br />
inconsciente como espaço <strong>de</strong> significantes associa<strong>do</strong>s livremente, on<strong>de</strong> estão em função o<br />
senti<strong>do</strong>, a historização e o inconsciente – ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. 3. O inconsciente fora-senti<strong>do</strong>, analfabeto<br />
que fez funcionar o significante besta. Nesse terceiro tempo a escrita <strong>do</strong> sintoma é função<br />
reduzi<strong>da</strong> a sua má<strong>xi</strong>ma expressão <strong>de</strong> um gozo - por que não dizê-lo? – estranho, estrangeiro,<br />
mas sem função <strong>de</strong> enigma.<br />
Parece-me que assim posso apreen<strong>de</strong>r o que Lacan nos diz no Seminário RSI, na aula<br />
<strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1975, quan<strong>do</strong> escreve, usan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> formulação matemática f (x), o gozo<br />
<strong>do</strong> inconsciente que se <strong>de</strong>nuncia no sintoma. Isto é: o mo<strong>do</strong> como ca<strong>da</strong> um goza <strong>do</strong> seu<br />
inconsciente. Essa letra que se traduz <strong>do</strong> inconsciente, que é <strong>de</strong>trito; é isola<strong>da</strong> <strong>de</strong> qualquer<br />
quali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa letra tem i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> si a si. Portanto o que se lê <strong>do</strong> sintoma é efeito <strong>da</strong><br />
erosão <strong>da</strong> linguagem. É <strong>da</strong>í que se retira o estatuto <strong>da</strong> escrita nesse contexto, <strong>de</strong> uma letra que<br />
afirma o gozo, fora <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. Por essa razão, essa letra se escreve entre real e simbólico.<br />
Mas ela vem <strong>do</strong> real.<br />
Enten<strong>do</strong> que a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pensarmos as duas vertentes <strong>da</strong> escrita <strong>do</strong> sintoma que<br />
promovem o trabalho <strong>de</strong> transferência po<strong>de</strong> ser extraí<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma frase crucial. Precisamente<br />
porque põe em evi<strong>de</strong>ncia o caminho <strong>do</strong> sintoma, o que faz o cerne <strong>da</strong> sua função. Retomo a<br />
citação:<br />
O que é dizer o sintoma? É a função <strong>do</strong> sintoma, função a se<br />
enten<strong>de</strong>r como o faria a formulação matemática f (x). O que é<br />
esse x? É o que, <strong>do</strong> inconsciente, po<strong>de</strong> se traduzir por uma<br />
letra, na medi<strong>da</strong> em que, apenas na letra a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> si a si<br />
está isola<strong>da</strong> <strong>de</strong> qualquer quali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Do Inconsciente to<strong>do</strong> um,<br />
naquilo em que ele sustenta o significante em que o<br />
5 LACAN, J. Prefácio à Edição Inglesa <strong>do</strong> Seminário XI. In: Outros escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />
Zahar Editor, 2003, PP 567-569.<br />
66
inconsciente consiste, to<strong>do</strong> um é suscetível <strong>de</strong> se escrever<br />
como uma letra. Sem dúvi<strong>da</strong>, seria preciso convenção. Mas, o<br />
estranho é que é isto que o sintoma opera selvagemente. O<br />
que não cessa <strong>de</strong> se escrever no sintoma vem <strong>da</strong>í. (21.01.75) 6 .<br />
A repetição <strong>do</strong> sintoma, o que não cessa <strong>de</strong> se escrever é o que se escreve <strong>do</strong> sintoma,<br />
primeiro selvagemmente, <strong>de</strong>pois f(x). Portanto, essa repetição é em, se mesma, a escrita <strong>do</strong><br />
sintoma. Digamos que há uma ‘linha direta” entre “o que não cessa <strong>de</strong> se escrever”<br />
(necessário) e o f(x) (contingente), segun<strong>do</strong> enten<strong>do</strong>.<br />
afirmação:<br />
Razão pela qual me impactou ler e ouvir o nosso colega Jairo Gerbase, na seguinte<br />
A psicanálise propõe que não há nenhuma participação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
na formação <strong>do</strong> sintoma, pois o <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> um sintoma é um<br />
<strong>encontro</strong> <strong>do</strong> real, isto é, há <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> um sintoma quan<strong>do</strong> o<br />
sujeito <strong>encontro</strong>u algo impossível <strong>de</strong> ser dito, algo inefável. 7 (Gerbase,<br />
A hipótese Lacaniana, inédito)<br />
Há algo <strong>de</strong> selvagem no <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> um sintoma, e é esse operar<br />
selvagemente o qual indica que ai o real está em questão. Por isso há <strong>de</strong> se contornar. Isso não<br />
se suporta. Eis um fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> psicanálise, se me permitem. E, o que é selvagem?: um<br />
mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> escrita. ... Sim, porque no parlêtre isso não se agüenta. Mas, para<strong>do</strong>xalmente, é isso<br />
com o qual o parlêtre goza. O real é o impossível: com isso o parlêtre goza e se civiliza. É<br />
essa minha leitura <strong>da</strong> ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong>, a partir <strong>de</strong>ssas articulações sobre lalangue.<br />
6 LACAN, J. (1975). O Seminário, Livro XXII: RSI, inédito.<br />
7 GERBASE, J. A hipótese Lacaniana, inédito. Cópia gentilmente cedi<strong>da</strong> pelo autor.<br />
67
Lalangue evi<strong>de</strong>ncia o gozo <strong>da</strong> fala: é disso que somos feitos os seres falantes, nossa<br />
carne. Por essa razão não po<strong>de</strong>mos per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista a dimensão “parl” <strong>do</strong> parlêtre. E isso que<br />
está em jogo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, no sintoma. Volto a Lacan <strong>de</strong> 1958 8 . O que ele nos diz: O<br />
SINTOMA FALA. ISSO FALA! Na escrita selvagem há gozo fálico. Gozo que provêm <strong>da</strong><br />
relação <strong>do</strong> simbólico com o real. No sujeito que tem o suporte no parlêtre – INCC – está o<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> conjugar a palavra com esse gozo que se experimenta como parasitário, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à fala<br />
mesma, ou seja, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao parlêtre.<br />
E é por essa razão que na transferência ele - Isso – se põe a falar. Claro que se precisa<br />
<strong>de</strong> um consentimento <strong>da</strong>quele que se queixa para ler no que se ouve <strong>do</strong> “Isso fala”. E vejam<br />
que é nesse ano que Lacan aponta que o sintoma se diferencia <strong>da</strong>s outras formações <strong>do</strong><br />
inconsciente pela repetição. Agora, a questão é que no fun<strong>do</strong> esses enuncia<strong>do</strong>s são indizíveis,<br />
por isso a dimensão Real em questão. Nessa fala há <strong>de</strong> se recortar a potência patogênica <strong>de</strong><br />
enuncia<strong>do</strong>s indizíveis 9 .<br />
Isso posto, consi<strong>de</strong>ro que as análise que dirigimos <strong>de</strong>vem ter presente o sintoma-<br />
selvagem para que f(x) possa se escrever (contingência).<br />
Uma jovem chega ao consultório trazen<strong>do</strong> uma queixa, bem precisa: “meu problema é<br />
que posso estar e não estar ao mesmo tempo. É o que mais faço. Posso passar ao largo, sem<br />
que os outros percebam ou sem que eu mesma perceba o que passa para mim”.<br />
8 LACAN, J. (1957-1958). O Semináro. Livro V: As formações <strong>do</strong> inconsciente. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: Jorge Zahar, 1999.<br />
9 GERBASE, J. A hipótese Lacaniana, inédito. Cópia gentilmente cedi<strong>da</strong> pelo autor.<br />
68
Eis o que inaugura as entrevistas sobre esse sintoma que <strong>de</strong>ci<strong>do</strong> nomear, assim como<br />
ela nos diz: “passar ao largo”. Ela se interroga pelo traço infernal <strong>de</strong>sse ser que se esvai e que<br />
lhe faz acreditar que na<strong>da</strong> vale a pena nesta vi<strong>da</strong>... aliás,que po<strong>de</strong>ria morrer sem <strong>de</strong>ixar <strong>do</strong>res<br />
nem rastos. Passar ao largo.<br />
Num segun<strong>do</strong> momento no qual a analista – ocupa<strong>da</strong> em não sublinhar esse traço<br />
melancólico e, portanto, sintomatizá-lo fazen<strong>do</strong> <strong>de</strong>le mais <strong>do</strong> que posição na estrutura,<br />
ressonância <strong>do</strong> enigma <strong>de</strong> um saber não sabi<strong>do</strong> – retomo, num segun<strong>do</strong> momento que por sua<br />
vez <strong>de</strong>limita a entra<strong>da</strong> em análise, o passar ao largo se associa a uma cena sexual para a qual<br />
ela diz “olha, não <strong>de</strong>i a mínima”. Essa cena traduzia sua primeira relação sexual: não lembra,<br />
entrou e saiu sem saber com quem, menos ain<strong>da</strong> para que.<br />
Esse “não <strong>de</strong>i a mínima” que a analista sublinha, permite que o sujeito recolha <strong>do</strong><br />
tesouro <strong>do</strong>s significantes uma conjunção entre o “não <strong>da</strong>r a mínima” e o “passar <strong>de</strong> largo”.<br />
Mas o inconsciente insiste..... A questão que aparece não é “não <strong>da</strong>r a mínima”, mas o<br />
“Olha”. Na volta <strong>de</strong>sse buraco uma cena com o <strong>encontro</strong> <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> olhar se prioriza, cena na<br />
qual um e<strong>xi</strong>bicionista lhe intercepta na rua, lhe <strong>da</strong>-a-ver o que escolhe como ponto <strong>de</strong> caça-<br />
olhar, e some, provocan<strong>do</strong>-lhe um “ataque <strong>de</strong> angústia”. “Olha, não <strong>de</strong>i a mínima”.<br />
“Encontrei o que tanto temia: o abuso sexual”. Abuso sexual? “As vezes me incomo<strong>da</strong><br />
o olhar <strong>do</strong> meu pai”. Eis a versão <strong>da</strong> obsceni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> pai que se <strong>de</strong>senrola por algum tempo,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong> marco à sua ficção <strong>de</strong> passar ao largo que agora se torna “passar <strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong>”. Ponto<br />
<strong>de</strong> fixão pulsional que liga sintoma e o objeto, promoven<strong>do</strong> as diferentes torções sucessivas<br />
<strong>do</strong>s ditos.<br />
69
Portanto: passar ao largo se vincula com a suspeita <strong>de</strong> passar ao largo para o Outro:<br />
ele não me quer o suficiente, não lhe interesso. Passar ao largo é a interpretação em falso <strong>do</strong><br />
que o sujeito toma <strong>da</strong> mensagem <strong>do</strong> Outro, e é o que faz com que a analizante faça <strong>da</strong> sua<br />
vi<strong>da</strong>, em resposta, um passar ao largo <strong>do</strong> que quer, <strong>do</strong> que busca, <strong>do</strong> que encontra. Por outro<br />
la<strong>do</strong> “passar <strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong>” lhe confronta com o enigma mais obscuro <strong>do</strong> capricho <strong>do</strong> Outro,<br />
e com sua reposta que evoca o fato <strong>de</strong> saber que a pulsão é o eco no corpo <strong>do</strong> fato que há um<br />
dizer.<br />
Primeiro tempo: as entrevistas preliminares. Estar e não estar.<br />
Segun<strong>do</strong> tempo: a entra<strong>da</strong> em análise: passar ao largo toma sua evi<strong>de</strong>ncia no enlace <strong>do</strong><br />
significante com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> sexual, isto é, com o reali<strong>da</strong><strong>de</strong> fantasmática que eno<strong>da</strong><br />
imaginário e simbólico, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> o gozo-senti<strong>do</strong>, que lhe <strong>de</strong>fine: jouissance.<br />
Portanto, entra<strong>da</strong> na transferência e tempo <strong>de</strong> acreditar que a fantasia tem como mira a última<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira. Aqui se enlaça o passar <strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong>.<br />
É ai que a ética <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong> parlêtre <strong>de</strong>ve ser sustenta<strong>da</strong> para não esquecer que há <strong>de</strong><br />
se fartar <strong>do</strong> significante para tocar (atingir?) o real. Fartar-se significa usar <strong>de</strong>la até o abuso,<br />
cansar-se <strong>de</strong>le. Há <strong>de</strong> se fartar <strong>da</strong> fantasia, <strong>do</strong> acúmulo <strong>de</strong> um saber que engor<strong>da</strong> o senti<strong>do</strong>,<br />
almejan<strong>do</strong> atingir a última ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas que fracassa na tentativa, por atingir a ca<strong>da</strong> vez o<br />
furo no saber.<br />
Uma arma contra o acúmulo <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> - o qual por sua vez é o produto <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa<br />
contra a operação selvagem <strong>do</strong> sintoma - encontra-se no equívoco. O memso produz um corte<br />
na repetição. Porque o sintoma é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> necessário, <strong>do</strong> que não cessa <strong>de</strong> se escrever. O<br />
70
grafo <strong>de</strong>monstra a relação <strong>do</strong> sintoma com a fantasia. Se ele repete é lá, no senti<strong>do</strong> imaginário<br />
<strong>da</strong> fantasia que o analizante vai ancorar suas construções e a proliferação <strong>de</strong> senti<strong>do</strong><br />
correspon<strong>de</strong>nte. Uma vez que ali o sintoma fica vizinho <strong>da</strong> mentali<strong>da</strong><strong>de</strong> débil que eno<strong>da</strong><br />
imaginário e simbólico. E é <strong>de</strong>s<strong>de</strong> lá, também, que teremos <strong>de</strong> laborar para que não fique<br />
<strong>de</strong>scansan<strong>do</strong> no limbo <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. Por isso trata-se <strong>de</strong>, nessa proliferação <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, priorizar<br />
o equívoco, l´une bévue.<br />
Essa repetição <strong>do</strong> sintoma, que se <strong>de</strong>fine como necessário, se constata, mais uma vez<br />
na clínica quan<strong>do</strong> essa mulher se implica na sua <strong>de</strong>man<strong>da</strong> e <strong>de</strong>senha o sintoma analítico com<br />
algo inusita<strong>do</strong>, um significante. Diz que outro mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> passar ao largo é sentir-se meio<br />
morta. Desse “meio-morta” se recolhe apenas uma simples falta <strong>de</strong> atenção que põe em risco<br />
seu trabalho, quotidianamente. Nesse frescor <strong>do</strong> início <strong>do</strong> trabalho analítico, retorna e traz<br />
uma lembrança infantil: “Meu pai dizia “mezzo-morto”. Com esse termo – que não e<strong>xi</strong>ste no<br />
português – apontava quan<strong>do</strong> algum paciente estava muito <strong>do</strong>ente, quase morren<strong>do</strong>, cansa<strong>do</strong>,<br />
chapa<strong>do</strong>. “Ele falava isso e eu ria, mas acho que ao mesmo tempo me assustava”. “Mezzo-<br />
morta” é “jogar um pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> fora”, como nesses esquecimentos, lapso <strong>de</strong> atenção.<br />
Lacan, na sua Conferencia <strong>de</strong> Genebra, diz<br />
É absolutamente certo que é pelo mo<strong>do</strong> como alíngua foi fala<strong>da</strong> e<br />
também ouvi<strong>da</strong> por tal ou qual em sua particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>, que alguma<br />
coisa em segui<strong>da</strong> reaparecerá nos sonhos, em to<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> tropeços,<br />
em to<strong>da</strong> espécie <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> dizer. É, se me permitem empregar pela<br />
71
primeira vez esse termo, nesse motérialisme 10 on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> a toma<strong>da</strong><br />
<strong>do</strong> inconsciente – quero dizer que é o que faz com que ca<strong>da</strong> um não<br />
tenha encontra<strong>do</strong> outros mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> sustentar a não ser o que a pouco<br />
chamei o sintoma. 11<br />
Impregnação <strong>do</strong> ser vivo pela linguagem. Mezzo-morta. Uma a<strong>do</strong>lescência na qual sua<br />
pele branca é o que carrega o brilho fálico. “Pele branca, sem sol, com olheiras, a<strong>do</strong>ran<strong>do</strong><br />
passar mal para ficar com a boca branca e a pele <strong>do</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong> roxa”. A<strong>do</strong>rava também a tela <strong>de</strong><br />
Ofélia morta, Nirvana e seu CD Funeral. Isso a leva até um certo limite: bêba<strong>da</strong> <strong>de</strong> álcool,<br />
corta seu braço e termina em um psiquiatra. Tempos <strong>da</strong> sua a<strong>do</strong>lescência que incluem seu pai<br />
<strong>do</strong>ente <strong>de</strong> câncer. Mais um elemento: mezzo-morta estava sua mãe quan<strong>do</strong> paria seus filhos.<br />
Nesse moterialismo resi<strong>de</strong> a toma<strong>da</strong> <strong>do</strong> inconsciente, mezzo-morta, que se manifesta<br />
em to<strong>da</strong> série <strong>de</strong> tropeços: passar ao largo, estar <strong>de</strong>sliga<strong>da</strong>.<br />
Alingua não faz acervo, não acrescenta, mas impregna. O acervo, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>,<br />
fica por conta <strong>da</strong> associação livre. Abre-se, nesse primeiro tempo que indica a iminência <strong>da</strong><br />
entra<strong>da</strong> em análise a partir <strong>de</strong> um significante que lhe representa na história edípica, uma<br />
palavra fora <strong>do</strong> dicionário, uma palavra em equívoco. Uma palavra que contem a marca <strong>de</strong><br />
acontecimento, mas que por sua vez, se oferta como um jogo <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> na transferência a<br />
partir <strong>do</strong> qual a <strong>de</strong>riva <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> – por longo tempo – haverá <strong>de</strong> vir.<br />
10 con<strong>de</strong>nsação <strong>de</strong> mot (palavra) e materialisme (materialismo)<br />
11 LACAN J. (1975). Conferência em Ginebra sobre o sintoma. Copia<strong>da</strong> <strong>da</strong> Biblioteca <strong>do</strong> Campo<br />
Psicanalítico. www.campopsicanalítico.com.br.<br />
72
Se tivermos em mente a pergunta <strong>de</strong> como se escreve o sintoma, ou seja, <strong>do</strong> que ele<br />
opera selvagemente, po<strong>de</strong>remos privilegiar o equívoco para com ele evocar o eno<strong>da</strong>mento <strong>do</strong>s<br />
gozos e incidir nos mesmos. Mas o sintoma-selvagem não se <strong>de</strong>ixa <strong>do</strong>minar totalmente, ele<br />
insiste em se inscrever <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> em evidência o “Gozo opaco, por excluir o senti<strong>do</strong>” 12 . Por<br />
essa razão - enten<strong>do</strong> - na análise operar com a escrita po<strong>de</strong> ser ético, porque ela reduz ao<br />
má<strong>xi</strong>mo o senti<strong>do</strong>. Eis o mo<strong>do</strong> em que temos <strong>de</strong> transformar o sintoma- selvagem em sintoma<br />
analítico. Escrever o fora senti<strong>do</strong> na erosão <strong>do</strong> má<strong>xi</strong>mo <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>.<br />
12<br />
LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 566.<br />
LACAN, J. Prefácio à Edição Inglesa <strong>do</strong> Seminário XI. In: Outros escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />
Zahar Editor, 2003, PP 567-569.<br />
73
O Livro <strong>de</strong> Cabeceira: <strong>da</strong> escrita como sintoma ao sintoma como letra<br />
Ana Laura Prates Pacheco 1<br />
Inicio esse trabalho com uma questão coloca<strong>da</strong> por Lacan no Seminário 23: “O<br />
problema to<strong>do</strong> resi<strong>de</strong> nisso – como uma arte po<strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> maneira divinatória<br />
substancializar o sinthoma em sua consistência, mas também em sua ex-‐sistência e em<br />
seu furo?” (p 38). É com essa inspiração que contarei com o auxílio <strong>de</strong> um filme <strong>de</strong> Peter<br />
Greenway (1996), chama<strong>do</strong> “O livro <strong>de</strong> cabeceira”, para me aju<strong>da</strong> a transmitir como o<br />
conceito <strong>de</strong> letra no último ensino <strong>de</strong> Lacan permitirá a reformulação <strong>do</strong> lugar <strong>do</strong><br />
sintoma na clínica psicanalítica.<br />
Encontramos aqui uma inspiração <strong>do</strong> cineasta na escrita feminina <strong>do</strong> Japão<br />
ancestral, especificamente na obra <strong>de</strong> Sei Shonagon –“Livro <strong>de</strong> Cabeceira” (Makura –<br />
nosôshi) – escrita no ano 1000. Shonagon era uma <strong>da</strong>ma <strong>da</strong> corte imperial japonesa, que<br />
aju<strong>do</strong>u a criar um gênero literário, caracteriza<strong>do</strong> por crônicas na forma <strong>de</strong> diários<br />
íntimo. Escrevia vários poemas/listas, tais como: “Coisas que fazem o coração bater mais<br />
forte” ou “Lista <strong>de</strong> coisas esplêndi<strong>da</strong>s” e experiências eróticas.<br />
No filme <strong>de</strong> Greenway não há nenhuma pretensão realista como a <strong>do</strong> cineasta<br />
japonês Nagesa Oshima, por exemplo, em “O império <strong>do</strong>s Senti<strong>do</strong>s”. Aqui ao contrário,<br />
tu<strong>do</strong> no filme é como a escrita <strong>de</strong> uma Iluminura. Ca<strong>da</strong> imagem, e mesmo a música, são<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>samente <strong>de</strong>senha<strong>do</strong>s, e emaranha<strong>do</strong>s aos caracteres <strong>da</strong> língua japonesa e as<br />
outras línguas que aparecem na tela. Ele comenta: “quis fazer um filme que unisse o<br />
prazer <strong>da</strong> literatura e o prazer <strong>da</strong> carne. Uma <strong>da</strong>s coisas que sempre me fascinou é a<br />
noção <strong>de</strong> que as letras <strong>do</strong> alfabeto japonês são caracteres e significa<strong>do</strong> ao mesmo tempo.<br />
1 AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano – Brasil, Membro <strong>do</strong> Fórum São Paulo<br />
74
Elas são imagens e texto, simultaneamente. Po<strong>de</strong>m ser li<strong>da</strong>s como texto e vistas como<br />
imagens”.<br />
Ora, a relação entre o som e a letra e a imagem está no centro <strong>do</strong> interesse <strong>de</strong><br />
Lacan pela língua japonesa que, segun<strong>do</strong> ele, se alimentou <strong>da</strong> escrita. No texto que<br />
apresentei em Roma – “A letra <strong>de</strong> amor no corpo” – tratei <strong>da</strong> relação <strong>da</strong> letra com o<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro e o real no último ensino <strong>de</strong> Lacan. Não será possível retomar aqui essas<br />
elaborações, mas vou resumir brevemente um aspecto <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate a respeito <strong>do</strong> estatuto<br />
<strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> letra para Lacan, que será fun<strong>da</strong>mental para acompanharmos meu<br />
comentário sobre o filme “O livro <strong>de</strong> cabeceira”.<br />
Trata-‐se <strong>de</strong> in<strong>da</strong>garmos se a advento <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> letra em sua especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
implicaria numa renúncia <strong>de</strong> Lacan à tese <strong>da</strong> primazia <strong>do</strong> significante. Ora, no texto “O<br />
carteiro <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” (Le facteur <strong>de</strong> la verité, 1971), Derri<strong>da</strong> acusa Lacan <strong>de</strong> pertencer à<br />
tradição i<strong>de</strong>alista <strong>da</strong> filosofia oci<strong>de</strong>ntal, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Platão – o privilégio <strong>da</strong><br />
transmissão oral em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> escrita. Se vocês se lembrarem, em várias passagens<br />
<strong>do</strong> Seminário 18, Lacan respon<strong>de</strong> às críticas <strong>de</strong> Derri<strong>da</strong>, bem como em Lituraterra em A<br />
Terceira e no Seminário 24.<br />
Também em seu livro A Farmácia <strong>de</strong> Platão, Derri<strong>da</strong> retoma a distinção entre a<br />
fala e a escrita, a partir <strong>do</strong> Fedro <strong>de</strong> Platão. Tradicionalmente concebe-‐se esse diálogo<br />
como uma con<strong>de</strong>nação <strong>da</strong> escrita, feita por Sócrates contra os sofistas. Platão retoma, no<br />
Fedro, um <strong>de</strong>bate entre os ora<strong>do</strong>res <strong>da</strong> época, a respeito <strong>da</strong> soberania <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong> ou <strong>da</strong><br />
escrita na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> transmissão <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em Fedro, Sócrates conta para seu<br />
discípulo o mito <strong>do</strong> <strong>de</strong>us Theuth, que levou a escrita para o rei Thamous <strong>do</strong> Egito. Esse<br />
lhe pe<strong>de</strong> que <strong>de</strong>clare a utili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tal <strong>de</strong>scoberta: “um conhecimento (máthema) que<br />
terá por efeito tornar os egipcios mais instruí<strong>do</strong>s e mais aptos para rememorar:<br />
memória e instrução ganham seu remédio (phármakon). Respon<strong>de</strong> Thamous: “Tal coisa<br />
tornará os homens esqueci<strong>do</strong>s, pois <strong>de</strong>ixarão <strong>de</strong> cultivar a memória (...). Transmites uma<br />
75
aparência <strong>de</strong> saber, e não a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 2 Com esse mito, Sócrates tenta convencer Fedro<br />
<strong>de</strong> que não se po<strong>de</strong> chegar ao justo, o bom e o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro pela via <strong>da</strong> escrita, já que ela<br />
vaga sem pai, indiscrimina<strong>da</strong>mente. A memória, para Platão, é a compreensão viva <strong>da</strong><br />
alma. Assim “só há sabe<strong>do</strong>ria na alma e nunca em escrituras”. Daí a supremacia <strong>do</strong><br />
conhecimento oral (ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro) em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> escrita (aparência). Ao mesmo<br />
tempo, o lógos é trata<strong>do</strong> como um corpo vivo: “ter um corpo que seja o seu”.<br />
Derri<strong>da</strong> retoma esse mito platônico apresenta<strong>do</strong> no Fedro fazen<strong>do</strong> uma crítica à<br />
tradição platônica oci<strong>de</strong>ntal que preconizaria, segun<strong>do</strong> seu argumento, a<br />
irredutibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> significante e sua primazia em relação à escrita. Po<strong>de</strong>-‐se perceber a<br />
presença constante <strong>de</strong> Lacan como referência oculta, nesse livro. Toman<strong>do</strong> como eixo<br />
uma análise minuciosa <strong>da</strong> escrita como Pharmakón ( a um só tempo veneno e remédio),<br />
Derri<strong>da</strong> inverte, entretanto, seu sinal, apontan<strong>do</strong> positivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s exatamente ali on<strong>de</strong><br />
Platão encontrava seus inconvenientes. Por exemplo, na “ausência <strong>de</strong> pai” na escritura e<br />
sua presença na fala. Lacan é acusa<strong>do</strong> por Derri<strong>da</strong> <strong>de</strong> “formalismo estruturalista”. Há<br />
uma belíssima resposta <strong>de</strong> Lacan a respeito <strong>da</strong> diferença entre forma e estrutura,<br />
apresenta<strong>do</strong> em uma conferência proferi<strong>da</strong> na Bélgica em 26 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1977, que<br />
<strong>de</strong>ixo aqui apenas indica<strong>do</strong>.<br />
Proponho, entretanto, como contraponto, outra leitura <strong>do</strong> Fedro mais coerente com<br />
Lacan, que <strong>de</strong>staca a escrita como ikhnos, o sinal, as pega<strong>da</strong>s, as pistas <strong>de</strong> caminhos já<br />
trilha<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> diálogos vivos que forjaram mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ser 3 . Essa, me parece, é a dimensão<br />
que Lacan almeja <strong>da</strong>r à escrita: nem o simulacro <strong>do</strong> corpo imagem, nem o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />
incorpóreo, nem mesmo a experiência <strong>do</strong> corpo como substância gozante <strong>da</strong> lalíngua,<br />
mas a dimensão <strong>de</strong> cifra <strong>de</strong>ssa experiência <strong>de</strong> gozo. É <strong>do</strong> sintoma como letra que se trata,<br />
na minha leitura, o filme “O livro <strong>de</strong> cabeceira”. Há, evi<strong>de</strong>ntemente, várias leituras<br />
possíveis, especialmente para um filme complexo como esse, mas tomarei a “licença<br />
poética” <strong>de</strong> tomá-‐lo como um caso clínico e dividi-‐lo em alguns recortes:<br />
2 Platão. Fedro. Martin Claret, p. 119<br />
3 Reis Pinheiro, M “Fedro e a escrita”. In: Anais <strong>de</strong> filosofia clássica, vol.2 n. 4, 2008<br />
76
• 1º. recorte: O sintoma que opera <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> selvagem: <strong>do</strong> contingente ao<br />
necessário:<br />
Trata-‐se, inicialmente, <strong>da</strong> letra no corpo como marca <strong>do</strong> gozo, e suas conseqüências<br />
fantasmáticas. Nagiko, a personagem <strong>do</strong> filme, é cria<strong>da</strong> com uma cena que se repete<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a mais tenra infância, no dia <strong>de</strong> seu aniversário: o pai escreve os seguintes dizeres<br />
em seu corpo: Quan<strong>do</strong> Deus fez o primeiro mo<strong>de</strong>lo em barro <strong>de</strong> um ser humano, Ele pintou<br />
os olhos, os lábios e o sexo. Depois, Ele pintou o nome <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> pessoa para que o <strong>do</strong>no<br />
jamais esquecesse. Se Deus aprovou sua criação, Ele trouxe à vi<strong>da</strong> o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> barro<br />
pinta<strong>do</strong>, assinan<strong>do</strong> seu próprio nome. Ao mesmo tempo, a mãe ouvia na vitrola, e cantava,<br />
em man<strong>da</strong>rim, o disco que escutava quan<strong>do</strong> conheceu seu pai. A tia lia para ela, antes <strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>rmir, o livro <strong>de</strong> cabeceira <strong>de</strong> Shonogan. Aos 4 anos, Nagiko vê uma cena sexual entre<br />
o pai, um escritor, e seu editor chantagista: cena fantasmática que cristaliza sua posição<br />
a um só tempo excluí<strong>da</strong> e i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> à posição masoquista <strong>do</strong> pai diante <strong>do</strong> editor: mito<br />
familiar <strong>do</strong> neurótico. Aos 6 anos, jura que terá, um dia, seu próprio “Livro <strong>de</strong><br />
Cabeceira”.<br />
Vemos, então, que o gozo <strong>da</strong> lalingua materna, a letra que cifra esse gozo, a<br />
produção <strong>da</strong>s primeiras i<strong>de</strong>ntificações e a verificação fantasmática estão presentes.<br />
Como afirma Lacan na aula <strong>de</strong> 21/01/1975 <strong>do</strong> Seminário RSI, o sintoma é a função <strong>do</strong><br />
sintoma, no senti<strong>do</strong> matemático. E o x <strong>da</strong> função “é o que, <strong>do</strong> Inconsciente, po<strong>de</strong> ser<br />
traduzi<strong>do</strong> por uma letra”. Mas, segun<strong>do</strong> Lacan, “qualquer um é suscetível <strong>de</strong> se escrever<br />
como letra”. Da contingência <strong>da</strong> cifra <strong>de</strong> “qualquer um que para <strong>de</strong> não se escrever”,<br />
entretanto, opera-‐se, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> selvagem, como ele ensina, algo que passará para a<br />
mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> lógica <strong>do</strong> necessário: “o que não cessa <strong>de</strong> se escrever”. No caso <strong>de</strong> nossa<br />
personagem, é a própria escrita no corpo que ocupa o lugar <strong>do</strong> x na “função sintoma”.<br />
• 2º. Recorte: A fantasia: essa ca<strong>de</strong>ia in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong> <strong>de</strong> significações que se chama<br />
<strong>de</strong>stino:<br />
77
O filme mostra, então, a escrita <strong>do</strong> <strong>de</strong>stino, ou seja, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa <strong>de</strong><br />
Nagiko na tentativa <strong>de</strong> salvar o pai <strong>da</strong> humilhação diante <strong>do</strong> editor. O primeiro mari<strong>do</strong> é<br />
escolhi<strong>do</strong> pelo editor <strong>do</strong> pai, numa “troca <strong>de</strong> favores” aos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong>quela suposta por<br />
Dora entre seu pai e o Sr. K. Trata-‐se <strong>de</strong> um praticante <strong>de</strong> arco e flecha, incapaz <strong>de</strong><br />
reconhecer o valor <strong>da</strong> literatura e <strong>da</strong> escrita que é vital para Nagiko. Na ausência <strong>do</strong> pai,<br />
ela tenta escrever a sau<strong>da</strong>ção ritualística <strong>do</strong>s aniversários no espelho. Seu “Livro <strong>de</strong><br />
cabeceiras” é repleto <strong>de</strong> listas negativas. O mari<strong>do</strong>, inconforma<strong>do</strong>, incen<strong>de</strong>ia seus<br />
escritos. Os papéis são queima<strong>do</strong>s, mas a “substância gozante” resiste ao fogo.<br />
O pai, humilha<strong>do</strong> e subjuga<strong>do</strong> pelo editor, acaba por cometer um suicídio ritual.<br />
Nagiko foge então para Hong Kong e, para manter a tradição <strong>do</strong> pai, obstina-‐se em<br />
encontrar, nos seus amantes, o calígrafo i<strong>de</strong>al, fazen<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu próprio corpo, o papel. O<br />
que importa para ela é o ato <strong>da</strong> escrita, a caligrafia em si: “a palavra significan<strong>do</strong> chuva<br />
<strong>de</strong>veria cair como chuva. A palavra significan<strong>do</strong> fumaça <strong>de</strong>veria cair como fumaça”.<br />
Nagiko repete o <strong>de</strong>stino paterno, fazen<strong>do</strong>-‐se <strong>de</strong> objeto <strong>de</strong> troca sexual, receben<strong>do</strong> como<br />
“mais <strong>de</strong> gozar” a escrita em seu corpo.<br />
Aqui, evi<strong>de</strong>ncia-‐se a montagem fantasmática <strong>do</strong> tipo histérico, sustentan<strong>do</strong> o “pai<br />
castra<strong>do</strong>” pela via <strong>do</strong> sintoma. Sintoma que <strong>de</strong>safia o discurso <strong>do</strong> Mestre, na medi<strong>da</strong> em<br />
que extrai o gozo como mais valia <strong>da</strong> suposta exploração <strong>do</strong> Outro. Sintoma metáfora –<br />
que em sua vertente significante seria passível <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifração, na medi<strong>da</strong> em que<br />
substitui o irredutível <strong>da</strong> fantasia fun<strong>da</strong>mental –, mas que <strong>de</strong>sliza metonimicamente<br />
enquanto tenta correr atrás <strong>da</strong> “ca<strong>de</strong>ia infinita <strong>de</strong> significações”.<br />
• 3º. Recorte: Ser Sintoma e <strong>de</strong>vastação<br />
Ocorre, então, nova contingência, e Nagiko encontra o amor. Se, entretanto, o<br />
<strong>encontro</strong> é contingente, o que produz uma retificação subjetiva é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> ato.<br />
Jerome se recusa a ocupar o lugar <strong>de</strong> Outro expropria<strong>do</strong>r. Ele não se interessa pela troca<br />
que ela lhe oferece. Embora ele conce<strong>da</strong> em escrever em seu corpo a sau<strong>da</strong>ção<br />
ritualística paterna, propõe-‐lhe, em contraponto, uma inversão dialética: que ela passe a<br />
78
escrever em seu corpo. Po<strong>de</strong>mos supor aqui uma passagem <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> ter um sintoma<br />
como f(x) a ser o sintoma <strong>de</strong> um homem.<br />
Agora, a partir <strong>da</strong> convocação <strong>de</strong> Jerome, é ela quem passa a escrever em seu<br />
corpo: “Trate-‐me como a página <strong>de</strong> um livro”. E ela lhe respon<strong>de</strong>: “Agora, serei o pincel,<br />
não só o papel”. A inversão, entretanto, não se dá sem certa escroqueria, certa trapaça,<br />
como brinca Lacan em 1977. Nagiko trama um plano no qual usará o amante para<br />
vingar-‐se com editor. Ele, literalmente, empresta o corpo para portar a letra/carta que<br />
interpelará o Outro obsceno na fantasia. O plano consiste em que Jerome se torne<br />
amante <strong>do</strong> editor, e seduza-‐a através <strong>da</strong> escritura <strong>do</strong> “Livro <strong>de</strong> Cabeceira” <strong>de</strong> Nagiko em<br />
seu corpo. Não é o corpo <strong>de</strong> Jerome que é o fetiche <strong>do</strong> editor, mas a letra ali <strong>de</strong>senha<strong>da</strong>:<br />
“O aroma <strong>do</strong> papel em branco é como o aroma <strong>da</strong> pele <strong>de</strong> um novo amante”. Seriam 13<br />
os livros/poemas escritos no corpo <strong>do</strong> amante.<br />
Quem é, entretanto, engana<strong>do</strong> no “jogo <strong>do</strong> amor”? Para a mulher, o homem po<strong>de</strong><br />
ser uma <strong>de</strong>vastação. Toma<strong>da</strong> pelo ciúme, Nagiko rompe com Jerome e passa ao ato,<br />
voltan<strong>do</strong> a seus amantes. Ain<strong>da</strong> jogan<strong>do</strong> com semblantes, Jerome <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> simular a cena<br />
<strong>de</strong> Romeu e Julieta que, entretanto, torna-‐se real. Jerome morre envenena<strong>do</strong> com a tinta<br />
usa<strong>da</strong> por sua ama<strong>da</strong> para escrever em seu corpo. Eis a face veneno <strong>do</strong> pharmakon..<br />
Numa <strong>da</strong>s cenas mais fortes <strong>do</strong> filme, o editor rouba o cadáver <strong>de</strong> Jerome, e tira a sua<br />
pele para fazê-‐la, literalmente <strong>de</strong> papel. As vísceras e outros pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong> carne vão para a<br />
lixeira. Incrível transmissão em linguagem cinematográfica, <strong>do</strong> que Lacan nos ensina em<br />
Radiofonia: na<strong>da</strong> melhor para representar o corpo simbólico <strong>do</strong> que o cadáver.<br />
• 4º. Recorte: A que<strong>da</strong> <strong>do</strong> Outro e a i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong> Sintoma<br />
Mas, para além <strong>do</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro incorpóreo, há substância gozante. E quanto ao<br />
gozo cifra<strong>do</strong> no sintoma, é preciso com isso se virar, ou, como diz Lacan, “usar isso até<br />
atingir seu real, até se fartar”. (p.16) No filme, o “uso lógico” <strong>de</strong> Nagiko é aquele<br />
necessário para fazer cair o Outro instituí<strong>do</strong> na personagem <strong>do</strong> editor. Através <strong>da</strong> escrita<br />
<strong>de</strong> 13 livros, nos corpos <strong>de</strong> sucessivos amantes, Nagiko consuma seu <strong>de</strong>stino <strong>de</strong><br />
79
vingança no último livro: “O livro <strong>do</strong>s mortos”. Enterra, então, o livro feito com a pele <strong>do</strong><br />
amante e po<strong>de</strong> se separar <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino fantasmático.<br />
O filme acaba em seu 28º. Aniversário, quan<strong>do</strong> o “Livro <strong>de</strong> cabeceira” <strong>de</strong><br />
Shonagon completa 1000 anos. Nagiko diz: “agora posso escrever meu próprio Livro <strong>de</strong><br />
cabeceira”. Na vitrola, toca a música em man<strong>da</strong>rim canta<strong>da</strong> por sua mãe. Seguran<strong>do</strong> nos<br />
braços seu filho, ela escreve, em seu corpo, os mesmos dizeres <strong>do</strong> pai. Como afirma<br />
Lacan: “não há relação sexual, a não ser entre gerações”.<br />
Há alguns comenta<strong>do</strong>res <strong>de</strong>sse filme que vêem nesse final a confirmação <strong>da</strong> idéia<br />
<strong>de</strong> Derri<strong>da</strong> <strong>de</strong> que a escrita é mais ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira porque po<strong>de</strong> prescindir <strong>do</strong> pai. Eu prefiro,<br />
com Lacan, entendê-‐lo pela via <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação ao sintoma: “sintoma como aquilo que se<br />
conhece melhor” (Sem 24). Ou, em outras palavras, tornar o gozo possível através <strong>da</strong><br />
emen<strong>da</strong> entre ser sinthoma e o real parasita <strong>de</strong> gozo (Sem. 23. p. 71). Para mim, o que<br />
“O Livro <strong>de</strong> cabeceira” ensina é que é possível separar-‐se <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> fantasia. E<br />
quanto ao Pai, fiquemos com Lacan: “Por isso a psicanálise, ao ser bem sucedi<strong>da</strong>, prova<br />
que po<strong>de</strong>mos prescindir <strong>do</strong> Nome-‐<strong>do</strong>-‐Pai. Po<strong>de</strong>mos sobretu<strong>do</strong> prescindir com a<br />
condição <strong>de</strong> nos servirmos <strong>de</strong>le”. (Sem. 23, p. 132).<br />
80
A Satisfação <strong>do</strong> Final <strong>de</strong> Análise<br />
Antonio Quinet 1<br />
A satisfação própria ao final <strong>de</strong> análise é o tema que escolhi ao iniciarmos o<br />
cartel 1 <strong>do</strong> passe que agora completa <strong>do</strong>is anos. Essa satisfação, que como tal é<br />
uma forma <strong>de</strong> manifestação <strong>do</strong> real, po<strong>de</strong> ser apreendi<strong>da</strong> no dispositivo <strong>do</strong> passe?<br />
Eis uma pergunta difícil <strong>de</strong> ser respondi<strong>da</strong>, porque o passe é um dispositivo <strong>de</strong> fala,<br />
que é portanto sustenta<strong>do</strong> pelo simbólico <strong>da</strong> linguagem. E<strong>xi</strong>ste uma aporia <strong>da</strong><br />
transmissão <strong>do</strong> ato analítico, que estruturalmente se baseia na dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer<br />
passar algo <strong>de</strong> real pela via <strong>do</strong> significante. No entanto, algo <strong>de</strong>ssa satisfação se<br />
<strong>de</strong>ixa apreen<strong>de</strong>r e passa para o cartel conforme apontei no último Wunsch.<br />
A referência <strong>de</strong> Lacan, extremamente sucinta, que orientou nosso cartel <strong>do</strong><br />
passe, é a <strong>do</strong> Prefácio <strong>da</strong> edição inglesa <strong>do</strong> seminário 11 on<strong>de</strong> escreve sobre uma<br />
satisfação específica: a satisfação <strong>do</strong> final <strong>de</strong> análise. Aliás, ela não só é específica<br />
<strong>de</strong>sse momento <strong>da</strong> análise, como também ela é “a marca” <strong>do</strong> final. 2 Trata-se <strong>de</strong><br />
uma satisfação <strong>do</strong> analisante distinta <strong>da</strong> satisfação <strong>do</strong> sintoma. O sintoma é uma<br />
forma <strong>de</strong> satisfação pois a pulsão se satisfaz no sintoma e isso <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início<br />
quan<strong>do</strong> o sujeito chega com o seu sintoma satisfeito, porém, insatisfeito com a<br />
satisfação que o seu sintoma lhe provoca.<br />
Quan<strong>do</strong> ele entra em análise ele fica satisfeito com a <strong>de</strong>cifração e com o<br />
processo analítico. É a satisfação <strong>da</strong> associação livre, <strong>do</strong> <strong>de</strong>scobrimento <strong>do</strong>s fatos,<br />
1<br />
AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -‐ Brasil, Membro <strong>do</strong> Fórum Rio <strong>de</strong><br />
janeiro<br />
2<br />
Jacques Lacan, Outros Escritos, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.p. 568.<br />
81
<strong>do</strong>s ditos, <strong>da</strong>s fantasias e sua articulação com a ca<strong>de</strong>ia significante <strong>da</strong> sua história. A<br />
satisfação analisante se situa no la<strong>do</strong> <strong>da</strong> busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é a satisfação <strong>do</strong> gaio<br />
saber. Este é o gozo <strong>do</strong> <strong>de</strong>ciframento, satisfação relativa ao saber extraí<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
associação livre. Le gai savoir é uma referência <strong>de</strong> Lacan em Televisão, à poesia<br />
provençal, <strong>do</strong> tema <strong>do</strong> amor cortês, para indicar o manejo significante <strong>da</strong> língua<br />
poética. Em análise correspon<strong>de</strong> à <strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong> inconsciente poeta, espirituoso,<br />
brincalhão que rola e <strong>de</strong>ita e pula na cama elástica <strong>da</strong> língua. O saber que se elabora<br />
na associação livre arranca o sujeito <strong>da</strong> tristeza, pois ele reencontra o fio <strong>de</strong> seu<br />
<strong>de</strong>sejo que estava extravia<strong>do</strong>. Essa satisfação <strong>de</strong> um saber alegre, com brinca<strong>de</strong>iras<br />
<strong>de</strong> linguagem, vai até o final <strong>da</strong> análise.<br />
Em nosso cartel <strong>do</strong> passe, constatamos vários tipos <strong>de</strong> satisfação que o<br />
analisante experimenta que po<strong>de</strong>m ocorrer durante uma análise a começar pela<br />
satisfação terapêutica que correspon<strong>de</strong> ao alívio <strong>do</strong> sofrimento. Em termos<br />
freudianos po<strong>de</strong>mos dizer que se trata <strong>de</strong> uma satisfação liga<strong>da</strong> ao princípio <strong>do</strong><br />
prazer, liberação <strong>da</strong> “libi<strong>do</strong> liga<strong>da</strong>”. Ela po<strong>de</strong> ocorrer quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>saparecimento<br />
<strong>de</strong> certos sintomas e também quan<strong>do</strong> sobrevém momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>salienação <strong>do</strong><br />
Outro, ou seja, a partir <strong>do</strong> momento em que o analisante não se sente mais<br />
submeti<strong>do</strong> a certos ditos <strong>da</strong>s pessoas que ocuparam para ele o lugar <strong>do</strong> Outro, num<br />
exemplo <strong>de</strong> passe, o sujeito que não é mais submeti<strong>do</strong> aos ditos inferiores <strong>do</strong><br />
Outro materno sobre seus órgão genitais. A separação <strong>de</strong>sses significantes operou<br />
uma redução na satisfação <strong>do</strong> supereu quan<strong>do</strong> o sujeito pô<strong>de</strong> dizer não aos<br />
imperativos mortifica<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Outro. Em outros termos, po<strong>de</strong>mos localizar aqui a<br />
satisfação como alívio <strong>de</strong> <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntificação, que não se dá apenas uma vez, mas ao<br />
longo <strong>da</strong> travessia <strong>da</strong> análise, sen<strong>do</strong> que o sujeito às vezes – mas nem sempre –<br />
po<strong>de</strong> localizar no tempo seus efeitos. A satisfação ao longo <strong>da</strong> análise é também a<br />
82
satisfação <strong>da</strong> suspensão <strong>da</strong>s inibições e <strong>da</strong> atenuação <strong>da</strong> angústia, como por<br />
exemplo, num caso <strong>de</strong> passe quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> que<strong>da</strong> <strong>do</strong> objeto olhar.<br />
No Prefácio, Lacan situa o inconsciente no registro <strong>do</strong> real, sob a forma <strong>de</strong><br />
satisfação, em oposição à ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: “a miragem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> qual só po<strong>de</strong> se<br />
esperar a mentira, não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim <strong>da</strong><br />
análise” 3 . Esse fim é, portanto, marca<strong>do</strong> por um “Estou satisfeito com essa<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>! Mesmo que não seja lá muito ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, tá bom! Chega! Não quero mais<br />
verificar a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.” Isso coloca um fim à historisterização – termo<br />
que aponta para o caráter fictício <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> - que o analisante faz <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>, que<br />
po<strong>de</strong> ser compara<strong>do</strong> ao próprio processo analítico.<br />
É também neste texto que Lacan <strong>de</strong>fine o passe como a historisterização <strong>da</strong><br />
análise – a não confundir com a historisterização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que é efetua<strong>da</strong> na análise.<br />
Alguns passantes e mesmo alguns passa<strong>do</strong>res acham – como pu<strong>de</strong> constatar - que o<br />
dispositivo <strong>do</strong> passe é o lugar <strong>de</strong> um resumo <strong>da</strong> historisterização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, mas não é<br />
o que Lacan esperava <strong>do</strong> passe. Às vezes um testemunho é feito mas sobre o que<br />
ocorreu na vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong> que o que foi sua análise. Nesses casos fica difícil o<br />
cartel <strong>do</strong> passe po<strong>de</strong>r constatar algo <strong>de</strong> seu final, pois não foi possível apreen<strong>de</strong>r o<br />
fio condutor <strong>de</strong> uma análise e sua relação com as mu<strong>da</strong>nças na vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> sujeito. No<br />
passe trata-se <strong>da</strong> historisterização <strong>da</strong> análise e a transmissão <strong>da</strong>quilo que permitiu ao<br />
passante ser analista. Nos <strong>do</strong>is casos <strong>de</strong> passe em que houve nomeação foi possível<br />
se apreen<strong>de</strong>r a estrutura e a solução <strong>da</strong> neurose apresenta<strong>da</strong> no final <strong>da</strong> análise e<br />
assim como a relação <strong>de</strong>ssa solução com momentos cruciais ao longo <strong>da</strong> análise e<br />
repercussão <strong>de</strong>sses na vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> sujeito “O passe, diz Lacan, é a verificação <strong>da</strong><br />
3 Jacques Lacan, Outros Escritos, op. cit, p. 568.<br />
83
histohisterização <strong>da</strong> análise absten<strong>do</strong>-me <strong>de</strong> impor esse passe a to<strong>do</strong>s, porque não<br />
há a to<strong>do</strong>s no caso, mas esparsos disparata<strong>do</strong>s”. Essa expressão <strong>de</strong> Lacan aponta<br />
que os analistas não fazem um to<strong>do</strong>, a <strong>Escola</strong> não to<strong>da</strong> . Não é um Outro<br />
reconstituí<strong>do</strong> para o analisante (como se chegou a propor explicitamente na AMP)<br />
que se <strong>de</strong>parou com a falta <strong>do</strong> outro em sua análise. O dispositivo <strong>do</strong> passe não<br />
constitui a <strong>Escola</strong> como um conjunto, nem a instituição que a sustenta – somos<br />
uma coleção <strong>de</strong> “esparsos disparata<strong>do</strong>s”.<br />
Ca<strong>da</strong> passante privilegia um aspecto em sua historisterização <strong>da</strong> análise<br />
assim como também encontramos várias indicações no ensino <strong>de</strong> Lacan <strong>do</strong> que<br />
po<strong>de</strong> acontecer no final <strong>da</strong> análise: a travessia <strong>da</strong> fantasia, a que<strong>da</strong> <strong>do</strong> objeto a, o<br />
<strong>encontro</strong> com a inconsistência <strong>do</strong> Outro, a i<strong>de</strong>ntificação com o sintoma, etc. O<br />
mais difícil é não nos <strong>de</strong>ixarmos influenciar por essas indicações – e isso vale tanto<br />
para os passantes, quanto para os passa<strong>do</strong>res e para o cartel <strong>do</strong> passe – para não<br />
distorcermos o passe e o transformarmos numa verificação <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s<br />
padrões <strong>de</strong> final <strong>de</strong> análise. O passe aponta justamente para o oposto disso: é um<br />
anti-padrão radical.<br />
Quan<strong>do</strong> Lacan diz historisterização – vale lembrar - também é o caso a<br />
caso também: ca<strong>da</strong> um o fará <strong>de</strong> sua maneira, privilegian<strong>do</strong> alguns aspectos <strong>de</strong> sua<br />
análise e não evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> outros. A histohisterização é forçosamente não to<strong>da</strong>.<br />
Não se trata <strong>de</strong> uma elaboração <strong>da</strong> análise, que cabe mais ao cartel <strong>do</strong> passe, que é<br />
o júri, <strong>do</strong> que propriamente falan<strong>do</strong> ao passante, e muito menos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>r. É um<br />
problema quan<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong>r passa a teorizar pois po<strong>de</strong>, assim impedir a passagem<br />
<strong>do</strong> testemunho <strong>do</strong> passante até o cartel <strong>do</strong> passe.<br />
84
“Deixei à disposição, diz Lacan, para testemunhar <strong>da</strong> melhor maneira<br />
possível sobre a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa”. Ao falar sobre ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa, não há uma<br />
<strong>de</strong>squalificação <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. É uma constatação: não se po<strong>de</strong> distinguir totalmente a<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> mentira. O sujeito testemunha <strong>de</strong>ssa ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa. Ele sabe que a<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é mentirosa mas não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Trata-se <strong>da</strong>quilo <strong>do</strong> qual o<br />
passante foi constituí<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong>s significantes <strong>do</strong> Outro e a partir <strong>do</strong>s quais você<br />
fez a suas escolhas, ou seja, aquilo que os gregos chamavam <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, no qual o<br />
sujeito é mais fala<strong>do</strong> <strong>do</strong> que fala, mais agi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que age, etc. Consi<strong>de</strong>rar o <strong>de</strong>stino<br />
como uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa já é uma forma <strong>de</strong> você se <strong>de</strong>salienar <strong>do</strong> Outro, lá<br />
on<strong>de</strong> está inscrita sua história ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, que no entanto, mente – ela mente sobre<br />
o que é o ser.<br />
O que interrompe a busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> na análise não é o esgotamento ou<br />
cansaço e sim o que é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> satisfação. É o momento em que há<br />
transformação <strong>da</strong> valência <strong>do</strong> gozo, <strong>do</strong> gozo que faz sofrer ao gozo que faz fruir. É<br />
você passar <strong>do</strong> gozo trágico ao gozo <strong>do</strong> entusiasmo – afeto lacaniano<br />
imprescindível ao analista. É uma satisfação – que é uma satisfação <strong>de</strong> fim – que<br />
marca um corte na satisfação <strong>da</strong> transferência, na medi<strong>da</strong> em que a busca <strong>da</strong><br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> está vincula<strong>da</strong> à satisfação que o amor <strong>de</strong> transferência promove.<br />
O amor <strong>de</strong> transferência trás uma satisfação: a busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> se dá sob o<br />
signo <strong>de</strong> Eros, nos <strong>de</strong>sfilamentos <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo suporta<strong>da</strong> pela <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> amor que<br />
sempre encontra seus sinais <strong>de</strong> reciproci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Para o sujeito abrir mão <strong>de</strong>ssa<br />
satisfação amorosa, ela <strong>de</strong>ve encontrar uma outra satisfação. Há uma per<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
sofrimento promovi<strong>do</strong> pela análise ao transformar como diz Freud a infelici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
numa miséria banal. Quan<strong>do</strong> se faz essa passagem há uma diminuição <strong>do</strong> valor <strong>do</strong><br />
sofrimento, mas não é uma mu<strong>da</strong>nça: você continua com a miséria, apesar <strong>de</strong> ela<br />
85
estar banaliza<strong>da</strong>. A satisfação <strong>de</strong> fim não é a redução <strong>do</strong> sofrimento que<br />
acompanha a redução <strong>do</strong> sintoma, como propõe Lacan no que concerne a<br />
operação analítica sobre este. Ela é outra coisa, ela marca uma mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong><br />
comuta<strong>do</strong>r, ela não é vincula<strong>da</strong> a alienação significante, e sim à separação em<br />
relação ao Outro.<br />
Em um caso <strong>de</strong> passe, o cartel <strong>de</strong>tecta uma frase <strong>do</strong> testemunho que aponta<br />
para uma conclusão <strong>de</strong> final <strong>de</strong> análise: “Eu sou...”, <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>-cisão <strong>do</strong> ser. Esta afirmação foi possível a partir <strong>de</strong> uma autorização <strong>de</strong> gozo<br />
não mais acompanha<strong>da</strong> <strong>do</strong> afeto <strong>da</strong> vergonha. O sujeito saiu <strong>da</strong> posição <strong>de</strong> ser o<br />
objeto <strong>da</strong> vergonha <strong>do</strong> Outro materno. Essa satisfação correspon<strong>de</strong> ao “sal<strong>do</strong><br />
cínico” <strong>do</strong> gozo permiti<strong>do</strong> 4 , ou seja, sem o Outro. Neste caso, o efeito no gozo se<br />
vincula à pulsão escópica: houve um esvaziamento <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> olhar, que se<br />
expressa em uma fórmula significante cria<strong>da</strong>, pelo sujeito, na qual ele indica não<br />
estar mais na mira <strong>do</strong> Outro. Em outro caso <strong>de</strong> passe, a satisfação que marca o fim<br />
é vincula<strong>da</strong> à criação, a uma invenção própria <strong>do</strong> sujeito e, como tal, <strong>de</strong>svincula<strong>da</strong><br />
<strong>do</strong>s significantes <strong>do</strong> Outro paterno, aos quais ele se encontrava subjuga<strong>do</strong>.<br />
Algumas operações significantes efetua<strong>da</strong>s pelo sujeito atestam a presença <strong>do</strong> fio<br />
condutor <strong>da</strong> análise até sua conclusão final. Assim foi possível averiguar a travessia<br />
<strong>do</strong> sujeito em relação à voz <strong>do</strong> Outro <strong>do</strong> qual ele se separa. A mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> valência<br />
<strong>de</strong> gozo se vincula neste caso à pulsão invocante e à que<strong>da</strong> <strong>do</strong> objeto voz.<br />
No início <strong>do</strong> Seminário 20, Lacan se refere à satisfação <strong>do</strong> seu “não querer<br />
nem saber”, que é a própria expressão <strong>do</strong> recalque. O inconsciente vai<br />
evi<strong>de</strong>ntemente continuar se manifestan<strong>do</strong>, como nossos AE nos mostraram ao<br />
4 Jacques Lacan, 1967.<br />
86
elatarem suas formações <strong>do</strong> inconsciente em Roma e Fortaleza – lapsos e sonhos<br />
durante o procedimento <strong>do</strong> passe. O sujeito sabe que ele não disse tu<strong>do</strong>, mas está<br />
satisfeito não apenas com o que já disse e a que chegou mas também está satisfeito<br />
com seu recalque. “É somente, diz Lacan, quan<strong>do</strong> o seu (“não quero nem saber”)<br />
lhe aparece como suficiente que você... se <strong>de</strong>staca normalmente <strong>de</strong> sua análise”. 5 O<br />
“suficiente” correspon<strong>de</strong> aqui ao que é o satisfatório <strong>do</strong> final <strong>de</strong> análise, a um “é<br />
suficiente, estou satisfeito” – satisfação <strong>do</strong> saber adquiri<strong>do</strong>, mesmo saben<strong>do</strong> que<br />
resta a saber... e, no entanto, está bem assim. E o sujeito <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> estar insatisfeito<br />
com o que sabe e sai contente com isso. Quer também dizer que você está<br />
satisfeito com seu sintoma, ou seja, sua maneira <strong>de</strong> gozar <strong>do</strong> inconsciente, até para<br />
saber li<strong>da</strong>r com ele <strong>de</strong> uma maneira que não seja sofrimento.<br />
A análise po<strong>de</strong> chegar “ao ponto em que o bem-dizer satis-faça”. 6 Eis uma<br />
satisfação <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> análise: ela é relativa ao manejo <strong>da</strong> língua como bem-dizer que<br />
satisfaz o sujeito em se dizer (“eu sou...”) ou dizer seu sintoma (forma <strong>de</strong> gozo).<br />
Nesse termo <strong>de</strong> Lacan, encontramos também o fazer que nos remete ao saber fazer<br />
com o sintoma. Quan<strong>do</strong> o sujeito está no processo analítico ele está no “não basta”<br />
e sempre procura um dizer melhor, um dizer a mais que respon<strong>da</strong> a esse “não<br />
basta”. No final <strong>de</strong> análise o bem-dizer que satisfaz permite o “Basta!”, ou melhor<br />
dizen<strong>do</strong>, ele produz esse “Basta” cuja satisfação marca o final <strong>de</strong> análise. O bem<br />
dizer <strong>do</strong> seu sintoma não ocorre sem a histohisterização que dá conta <strong>da</strong> história <strong>do</strong><br />
seu sintoma, <strong>da</strong> sua fantasia, <strong>da</strong>s ficções secreta<strong>da</strong>s pelo inconsciente durante a<br />
análise, até que se chega ao bem-dizer <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma, ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> um satis-<br />
fazer. Essa satis-fação, é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> real, <strong>de</strong> uma satisfação no fazer. Trata-se <strong>de</strong><br />
5 Jacques Lacan, Seminário 20, Seuil, p. 9.<br />
6 Jacques Lacan, “...Ou pire”, Autres écrits, p. 551.<br />
87
um fazer com seu sintoma. Essa satisfação <strong>do</strong> fazer po<strong>de</strong>mos apro<strong>xi</strong>má-la <strong>do</strong> que<br />
diz Freud <strong>do</strong> que se espera <strong>de</strong> uma análise: po<strong>de</strong>r amar e trabalhar. Parece pouco? Mas<br />
é muito! Eis um fazer <strong>do</strong> real que satisfaz e po<strong>de</strong> por um fim à busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que é sempre mentirosa.<br />
A satisfação <strong>de</strong> final <strong>de</strong> análise está para além <strong>da</strong>quilo que caracteriza o<br />
<strong>de</strong>sejo inconsciente sempre insatisfeito ávi<strong>do</strong> <strong>de</strong> significantes, guloso <strong>de</strong><br />
instrumentos <strong>de</strong> gozo: colares, amantes, carros e ... saber. O fala-a-ser cambia seu<br />
gozar – este novo gozar é um gozar <strong>de</strong>svincula<strong>do</strong> <strong>do</strong> gozo (suposto) <strong>do</strong> Outro. A<br />
que<strong>da</strong> <strong>do</strong> sujeito suposto gozar é a condição <strong>da</strong> satisfação <strong>do</strong> final <strong>de</strong> análise. Não<br />
se trata <strong>da</strong> promessa <strong>de</strong> um gozo-to<strong>do</strong> <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> necessariamente à <strong>de</strong>cepção, ou<br />
seja, não se trata <strong>de</strong> um empuxe-ao-gozo, e sim <strong>de</strong> um gozo que leva em conta a<br />
castração, um gozo castra<strong>do</strong>. Entretanto é um gozo que satisfaz – é um gozo<br />
satisfatório, permiti<strong>do</strong>, em o Outro.<br />
A satisfação <strong>de</strong> fim confere ao gozo uma coloração e vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> que se<br />
opõem ao negror e a mortificação <strong>da</strong> relação <strong>do</strong> significante com o gozo tanto na<br />
carne quanto na mente. Essa satisfação tem várias vertentes:<br />
- a vertente que acompanhou a travessia <strong>da</strong> análise e o <strong>de</strong>saparecimento <strong>do</strong><br />
sofrimento <strong>do</strong> sintoma, <strong>da</strong> suspensão <strong>da</strong> inibição e <strong>da</strong> atenuação <strong>da</strong> angústia, como<br />
testemunhou Sílvia Franco em seus <strong>de</strong>poimentos públicos.<br />
- a vertente que diz respeito á sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>:- o sujeito está satisfeito com sua<br />
maneira <strong>de</strong> gozar sexualmente – é o que pu<strong>de</strong>mos verificar a partir <strong>do</strong> testemunho<br />
<strong>do</strong>s passantes. Ele não está mais nem na insatisfação nem na impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e nem<br />
na metonímia <strong>de</strong>svaira<strong>da</strong> <strong>de</strong> transar com to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O sujeito po<strong>de</strong> enfim<br />
consentir com um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> gozar outrora recusa<strong>do</strong> ou <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>. Essa<br />
88
vertente <strong>da</strong> satisfação sexual é extremamente variável, mas ela sempre traz a paz.<br />
Final <strong>da</strong> guerra: guerra <strong>do</strong>s sexos, guerra consigo mesmo. Evi<strong>de</strong>nte que é uma paz<br />
que não impe<strong>de</strong> nem a batalha nem <strong>de</strong> ir à luta!<br />
- vertente <strong>do</strong> saber. Depois <strong>de</strong> várias voltas em sua história, recor<strong>da</strong>ções,<br />
fantasias e heranças ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> transforma<strong>da</strong>s em sua história, ou seja, após a<br />
historisterização <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong> seu lugar na genealogia, o sujeito se dá por<br />
satisfeito. Ele se dá por satisfeito com o saber construí<strong>do</strong> e satisfeito com a<br />
in<strong>de</strong>cidibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua verificação. Ele se dá por satisfeito com a elaboração <strong>do</strong><br />
saber sobre seu sintoma e <strong>de</strong> seu limite – seu não-querer-saber.<br />
- vertente <strong>de</strong> lalíngua. Nos passes que escutamos no nosso cartel, pu<strong>de</strong><br />
constatar a satisfação linguageira correspon<strong>de</strong>nte ao inconsciente como uma<br />
elucubração sobre lalíngua. Esse inconsciente lalinguageiro é um trabalha<strong>do</strong>r<br />
incansável, como o <strong>de</strong>fine Lacan. Esse trabalho – Arbeit – termo tantas vezes<br />
emprega<strong>do</strong> por Freud – não é um trabalho força<strong>do</strong>, como o trabalho <strong>de</strong> luto,<br />
penoso, sofri<strong>do</strong>. O trabalho <strong>de</strong> lalíngua é – digamos – afreudisíaco! Nesse significante<br />
po<strong>de</strong>mos escutar aí também o gozo dionisíaco. E on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> verificar esse gozo<br />
é na letra <strong>do</strong> sintoma – a maneira como ca<strong>da</strong> um goza “lalinguamente” <strong>de</strong> seu<br />
inconsciente.<br />
89
MESAS SIMULTÂNEAS<br />
90
“Fazer uma Escolha ou Permanecer na Dúvi<strong>da</strong>?”<br />
Rainer Melo 1<br />
"No te pue<strong>do</strong> compreeen<strong>de</strong>r, corazón loco,<br />
yo no pue<strong>do</strong> compreen<strong>de</strong>r como se pue<strong>de</strong> querer <strong>do</strong>s mujeres a la vez y no estar loco,<br />
merezo una explicacion porque es impossible seguir con las <strong>do</strong>s".<br />
(Corazón Loco -‐ Bebo Val<strong>de</strong>z y Diego Cigala)<br />
O caso que ilustra este trabalho é <strong>de</strong> um sujeito (42), casa<strong>do</strong> há 22 anos, que<br />
chega à análise queixan<strong>do</strong>-‐se <strong>de</strong> intenso sofrimento, atormenta<strong>do</strong> pela dúvi<strong>da</strong> em<br />
relação à sua divisão entre duas mulheres que ama, ca<strong>da</strong> uma diferente, perdi<strong>do</strong> na<br />
impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> escolha. Uma, é esposa e mãe, representa segurança; a outra é a<br />
mulher, amor proibi<strong>do</strong>, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> arriscar.<br />
O caso retrata a dúvi<strong>da</strong> sistemática, metódica e estrutural <strong>do</strong> sujeito que se<br />
exprime na vi<strong>da</strong> amorosa, a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir entre a esposa e a outra, ou seja,<br />
a divisão subjetiva exprimin<strong>do</strong>-‐se na divisão <strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> amor. O problema <strong>da</strong> divisão<br />
subjetiva estaria facilmente soluciona<strong>do</strong> se o sujeito fizesse a escolha. A ironia consiste<br />
no fato <strong>de</strong> um homem possuir duas mulheres e, no entanto, continuar insatisfeito.<br />
Freud 1 afirma: “A linguagem <strong>de</strong> uma neurose obsessiva, ou seja, os meios pelos<br />
quais expressa seus pensamentos secretos, presume-‐se ser apenas um dialeto <strong>da</strong><br />
linguagem <strong>da</strong> histeria (...)” Continua: “A variante <strong>da</strong> neurose histérica é a neurose<br />
1 Psicanalista membro <strong>da</strong> EPFCL/ AFCL. Psicóloga. Licenciatura em Psicológia CES/ JF) Pós-Graduação em<br />
<strong>Psicanálise</strong> (CES/JF).<br />
91
obsessiva” 2 . É um pensamento contínuo, em que há uma satisfação libidinal, uma<br />
copulação <strong>de</strong> significantes. As idéias obsessivas que vêm sem cessar, os rituais, são para<br />
evitar que pense. O sujeito, para entrar em análise, é necessário entrar para o discurso<br />
histérico, ou seja, o sujeito precisa ser histeriza<strong>do</strong>.<br />
Caso Clínico<br />
O sujeito se apresenta queixan<strong>do</strong>-‐se <strong>de</strong> se sentir dividi<strong>do</strong> entre sua esposa, <strong>de</strong><br />
origem tradicional e rica, e uma mulher jovem, <strong>de</strong> família simples e pobre, ambas<br />
inteligentes e bonitas. A primeira representa o aconchego familiar, mãe <strong>de</strong> seus filhos e<br />
companheira <strong>de</strong> 22 anos. A outra representa o novo, o <strong>de</strong>safio, o proibi<strong>do</strong>. Ama as duas,<br />
não consegue saber qual a preferi<strong>da</strong>, pois ama ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong> forma intensa.<br />
Teme fazer uma escolha e arrepen<strong>de</strong>r-‐se. As duas cobram uma posição que não<br />
consegue assumir, fica dividi<strong>do</strong>, mente a ponto <strong>de</strong> confundir o que é sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Fica<br />
em circuito fecha<strong>do</strong> <strong>do</strong> qual não consegue sair, mas essa é uma estratégia que utiliza<br />
para manter seu <strong>de</strong>sejo impossível sem fazer uma escolha. É a forma <strong>de</strong> estar sempre em<br />
outro lugar para não correr risco. “O obsessivo usa a manobra covar<strong>de</strong> <strong>de</strong> não correr<br />
riscos, e<strong>xi</strong>min<strong>do</strong>-‐se <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo; se ele não arrisca não goza, e o gozo <strong>do</strong> qual se priva é<br />
transferi<strong>do</strong> ao outro imaginário, que assume como gozo <strong>do</strong> espetáculo” 3 .<br />
Carmen Gallano 4 <strong>de</strong>staca que “a análise é o lugar on<strong>de</strong> o obsessivo po<strong>de</strong> se<br />
<strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seus pensamentos, histerizar-‐se, passan<strong>do</strong> pelo discurso histérico.”<br />
92
Constelação Familiar<br />
Lacan <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a constelação <strong>do</strong> sujeito é forma<strong>da</strong> na tradição familiar pela<br />
narração <strong>de</strong> certo número <strong>de</strong> traços que especificam a união <strong>do</strong>s pais. A constelação<br />
originária que presidiu ao nascimento <strong>do</strong> sujeito, ao seu <strong>de</strong>stino, quase à sua pré-‐<br />
história, as relações familiares fun<strong>da</strong>mentais que estruturam a união <strong>do</strong>s seus pais<br />
mostram ter relação precisa e <strong>de</strong>finível com o que aparece como sen<strong>do</strong> o mais<br />
fantasmático <strong>do</strong> cenário imaginário ao qual chega como solução <strong>da</strong> angústia.<br />
O sujeito (Paul) vem <strong>de</strong> família tradicional. O pai, filho <strong>de</strong> imigrantes que<br />
fizeram fortuna, é professor universitário e empresário. A mãe, fina e educa<strong>da</strong>, pertence<br />
a uma família tradicional, rica e <strong>de</strong> prestigio. Quan<strong>do</strong> jovem, o pai <strong>do</strong> sujeito também<br />
ficara dividi<strong>do</strong> entre duas mulheres, preferin<strong>do</strong> escolher aquela que lhe <strong>de</strong>sse prestigio<br />
na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Esse pai, homem educa<strong>do</strong>, mas autoritário, impunha suas <strong>de</strong>cisões que<br />
eram acata<strong>da</strong>s pela mulher. O sujeito sempre ouviu <strong>de</strong> sua mãe: “A família tem <strong>de</strong> ser<br />
preserva<strong>da</strong> e <strong>de</strong>ve ficar acima <strong>de</strong> qualquer interesse”, dito materno que o sujeito sempre<br />
traz para sua análise e lhe provoca culpa, conflitos e dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s nas suas <strong>de</strong>cisões.<br />
Observa que as duas mulheres com as quais se relaciona são como o pai, autoritárias, e<br />
lhe provocam me<strong>do</strong>, afirma ter “me<strong>do</strong> <strong>de</strong>las como <strong>do</strong> pai.” A lembrança <strong>da</strong>s atitu<strong>de</strong>s<br />
autoritárias <strong>do</strong> pai é trazi<strong>da</strong> para a análise, como no sonho que o sujeito relata, dividi<strong>do</strong><br />
em três níveis: No primeiro nível, no quintal <strong>de</strong> sua casa, há um lugar proibi<strong>do</strong> para<br />
brincar. Mesmo com hesitação, consegue ultrapassar. No segun<strong>do</strong> nível, vê surgir, numa<br />
espécie <strong>de</strong> névoa, um homem, uma mulher e duas crianças. Tenta tocar o homem, que<br />
93
lhe diz: Você não po<strong>de</strong> ultrapassar o limite e me tocar. Sente calafrio, obe<strong>de</strong>ce e não se<br />
apro<strong>xi</strong>ma. Desse segun<strong>do</strong> nível, vê o terceiro nível cerca<strong>do</strong> em fogo, faz o sinal <strong>da</strong> cruz e<br />
o me<strong>do</strong> se esvai. Nas associações, o pai autoritário e o temor, a lembrança <strong>do</strong>s castigos<br />
impostos. Em um <strong>de</strong>les, Paul recusava <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> alimento. To<strong>do</strong>s estão à mesa, o pai<br />
se levanta, coloca o rosto <strong>da</strong> criança <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> prato e, em segui<strong>da</strong>, o <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> pé como<br />
castigo, o rosto sujo, olhan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s à mesa, paralisa<strong>do</strong>. Pergunta<strong>do</strong> sobre a reação <strong>da</strong><br />
mãe nessas ocasiões, respon<strong>de</strong> que ela nunca interferia nas atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> pai. Os ditos <strong>da</strong><br />
mãe estão sempre consigo, afirma.<br />
O obsessivo se mortifica, coloca-‐se no lugar <strong>da</strong> falta <strong>do</strong> Outro, é uma forma <strong>de</strong><br />
salvar o Outro. Não só como a castração <strong>da</strong> mãe, mas a inconsistência <strong>do</strong>s ditos <strong>da</strong> mãe.<br />
Não po<strong>de</strong> pedir na<strong>da</strong>, para não mostrar a sua falta, diferentemente <strong>da</strong> histérica que<br />
<strong>de</strong>man<strong>da</strong> sempre. Se o obsessivo mostra a falta, vai ficar evi<strong>de</strong>nte que ele não é o falo, o<br />
falo como símbolo <strong>da</strong> falta <strong>do</strong> Outro. Aceitar ser o falo é condição para não ce<strong>de</strong>r ao<br />
<strong>de</strong>sejo.<br />
Paul casou-‐se jovem, ain<strong>da</strong> universitário, porque sua namora<strong>da</strong>, Cal, se<br />
engravi<strong>da</strong>ra. Ain<strong>da</strong> hoje “admira sua mulher, acha-‐a lin<strong>da</strong>, sente atração e gosta <strong>de</strong> sexo<br />
com ela”. Tu<strong>do</strong> caminhou bem por alguns anos. Depois Paul começou a sentir “certas<br />
estranhezas”, como o corpo separa<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua cabeça, os pensamentos invadirem o corpo,<br />
as idéias obsessivas, hesitações, dúvi<strong>da</strong>s, ruminações. A partir <strong>da</strong>í, começou interessar-‐<br />
se por outras mulheres, até que <strong>encontro</strong>u a jovem Nina, cuja relação dura há cinco anos.<br />
A esposa, ao saber, resolveu engravi<strong>da</strong>r e o sujeito prossegue com suas hesitações,<br />
94
sentin<strong>do</strong>-‐se culpa<strong>do</strong> e dividi<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> Freud, o que caracteriza o sintoma obsessivo<br />
são as dúvi<strong>da</strong>s, a ruminação e a incerteza.<br />
Paul e o Homem <strong>do</strong>s Ratos<br />
O caso <strong>de</strong> Paul nos remete ao famoso caso <strong>de</strong> Freud, “O Homem <strong>do</strong>s Ratos”, com<br />
o qual verificamos alguma semelhança. No HR, cuja problemática é típica <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong><br />
neurose obsessiva, on<strong>de</strong> aparece a ambivalência afetiva caracteriza<strong>da</strong> por Freud como a<br />
clivagem entre o amor consciente e o ódio inconsciente, aparece essa ambivalência em<br />
relação ao pai e a senhora que ele venera. Desse mo<strong>do</strong> manifesta os sintomas como<br />
forma <strong>de</strong> apreensões obsessivas, me<strong>do</strong> <strong>de</strong> que aconteça algo ruim com a senhora ou que<br />
o pai morra (que já estava morto). No caso <strong>de</strong> Paul vêm sempre o me<strong>do</strong> e as dúvi<strong>da</strong>s. "Se<br />
eu sair <strong>de</strong> casa algo ruim po<strong>de</strong> acontecer com minha mulher e meus filhos. Minha<br />
mulher vai <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> me amar e ficar com outro. E a outra, se eu <strong>de</strong>ixá-‐la? Algo vai<br />
faltar”.<br />
A impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir entre os <strong>do</strong>is objetos <strong>de</strong> amor aparece em um<br />
sonho, no qual o sujeito se vê numa estra<strong>da</strong>, numa encruzilha<strong>da</strong>, on<strong>de</strong> aparecem, <strong>de</strong> um<br />
la<strong>do</strong>, a mulher, mãe <strong>de</strong> seus filhos e, <strong>do</strong> outro, a analista, objeto proibi<strong>do</strong>, algo intocável.<br />
Desse mo<strong>do</strong>, se constitui o analista como objeto causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, constituição essencial<br />
para o estabelecimento <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> analista na experiência psicanalítica e o sujeito<br />
coloca o analista em seu sintoma.<br />
A formação <strong>do</strong> sintoma obsessivo alcança o triunfo quan<strong>do</strong> logra unir a<br />
95
proibição com a satisfação, <strong>de</strong> tal forma que o que fora originalmente um man<strong>da</strong>mento<br />
<strong>de</strong>fensivo, ou uma proibição, adquire a significação <strong>de</strong> uma satisfação, cujo efeito<br />
colabora com esses enlaces artificiosos. Encontramos a ambivalência no conflito<br />
obsessivo entre <strong>do</strong>is impulsos: o <strong>de</strong> ódio e o <strong>de</strong> amor. Freud <strong>de</strong>scobriu que, mesmo na<br />
e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong>sses <strong>do</strong>is opostos, é na presença <strong>do</strong> ódio que se encontra a base <strong>de</strong> ca<strong>da</strong><br />
sintoma obsessivo, como resposta sempre à mão para se <strong>de</strong>frontar com signos <strong>de</strong> que o<br />
Outro não é um <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> gozo.<br />
O sujeito tem sempre a sensação estranha <strong>de</strong> estar e não estar em lugar<br />
nenhum, "fico pulan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> para outro, mentin<strong>do</strong> para não <strong>de</strong>cidir entre a<br />
mulher, esposa rica, e a jovem pobre. Sempre confuso, sob pressão, com a sensação <strong>de</strong><br />
estar assenta<strong>do</strong> numa caixa <strong>de</strong> pólvora pronta a explodir, como nos sonhos se repetin<strong>do</strong><br />
em encruzilha<strong>da</strong>s, driblan<strong>do</strong> a morte.<br />
O sujeito <strong>da</strong> estratégia obsessiva 5 tentará enganar a morte. Para tanto, nunca<br />
estará on<strong>de</strong> se joga o jogo e, por isso, quase na<strong>da</strong> <strong>do</strong> que ocorre lhe interessa, tu<strong>do</strong> o que<br />
realmente importa per<strong>de</strong> o senti<strong>do</strong>. E, em seu lugar, esses pequenos e cotidianos<br />
absur<strong>do</strong>s sintomáticos se eternizam na vã tentativa <strong>de</strong> se preservar, abdican<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>sejo que, por outro la<strong>do</strong>, lhe dá alimento. E sempre adian<strong>do</strong>: mais tar<strong>de</strong>, mais um dia...<br />
Trava-‐se uma luta, constituí<strong>da</strong> <strong>de</strong> idéias contrarias expiatórias que ocupam to<strong>da</strong><br />
sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> mental diurna e noturna. “O obsessivo pensa avaramente. Ele pensa em<br />
circuito fecha<strong>do</strong>. Ele pensa para ele sozinho” 6 . Esse <strong>de</strong>bate permanente opera-‐se em um<br />
clima <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong>s bem sistemáticas, não levan<strong>do</strong> a nenhuma certeza. Surge nessas<br />
96
dúvi<strong>da</strong>s sempre uma interrogação, que gera procuras <strong>de</strong> respostas <strong>de</strong> soluções, sen<strong>do</strong><br />
sempre os resulta<strong>do</strong>s insatisfatórios. O obsessivo não tem me<strong>do</strong> apenas <strong>de</strong> cometer<br />
algum ato grave, imposto a ele por suas idéias, mas <strong>de</strong> tê-‐lo feito <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> inadverti<strong>do</strong>.<br />
“(...) Essa cisalha chega à alma com o sintoma obsessivo, pensamento com o qual a alma<br />
fica embaraça<strong>da</strong>, não sabe o que fazer.” 7<br />
Quinet 8 <strong>de</strong>staca que a obsessão como sintoma é a maneira <strong>de</strong> gozar para um<br />
sujeito, cuja dúvi<strong>da</strong> e a falta <strong>de</strong> certeza impe<strong>de</strong>m seu ato, que é sempre adia<strong>do</strong>. Daí a<br />
obsessão como pensamento se encontra em oposição ao ato. Se o sujeito pensa, o ato<br />
não acontece. Uma análise possibilita que o sujeito fale, ou seja, coloque em palavras o<br />
seu pensamento. É preciso que o gozo passe <strong>do</strong> pensamento para o ato, inverten<strong>do</strong><br />
assim o próprio movimento <strong>de</strong> formação <strong>da</strong> obsessão.<br />
Consi<strong>de</strong>rações<br />
Verificamos no caso apresenta<strong>do</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira batalha entre as idéias, que entram<br />
em conflito e paralisam sua vi<strong>da</strong> mental, angustian<strong>do</strong> e inibin<strong>do</strong> possíveis soluções.<br />
Sabemos que não há respostas para as perguntas <strong>de</strong> Paul, porque as perguntas são<br />
sintomas disfarça<strong>do</strong>s. O sintoma não é para ser respondi<strong>do</strong> e sim para ser trabalha<strong>do</strong> em<br />
análise. Paul precisa <strong>de</strong>scobrir que sua felici<strong>da</strong><strong>de</strong> não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão imediata.<br />
Escolher Nina ou Cal não <strong>de</strong>termina o sucesso <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>. Seu ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro sucesso<br />
consiste em <strong>de</strong>cifrar seu conflito e <strong>de</strong>scobrir os motivos que o levam sempre a uma<br />
encruzilha<strong>da</strong>.<br />
97
Notas<br />
1 FREUD. Um caso <strong>de</strong> neurose obsessiva (1909:160).<br />
2 FREUD. Disposição á neurose obsessiva. Uma contribuição ao problema <strong>de</strong> escolha <strong>da</strong><br />
neurose (1913:395)<br />
3 LACAN. A <strong>Psicanálise</strong> e seu Ensino (1957: 454).<br />
4 GALLANO. Enfermares Del cuerpo Del sexo. Inédito. (2010: s/p)<br />
5 LACAN. <strong>Psicanálise</strong> e seu Ensino (1957:458)<br />
6 LACAN. Conferência <strong>de</strong> Genebra sobre o sintoma (1975:5)<br />
7 LACAN. Televisão (1974:19).<br />
8 QUINET. Zwang und Trieb (1998: 67-76).<br />
Referência Bibliográfica<br />
FREUD, S. (1909) Um caso <strong>de</strong> neurose obsessiva (1909). Imago Editora. Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
1980. Vol X.<br />
FREUD, S.Um tipo especial <strong>de</strong> escolha <strong>de</strong> objeto feita pelos homens (Contribuições à<br />
psicologia <strong>do</strong> amor.(1911). Imago Editora. Rio <strong>de</strong> janeiro. 1980. Vol XI.<br />
FREUD, S. Disposição à Neurose Obsessiva. Uma Contribuição ao Problema <strong>de</strong> Escolha <strong>da</strong><br />
Neurose (1913). Imago Editora. Rio <strong>de</strong> Janeiro. 1980. Vol XII.<br />
FREUD, S. Recor<strong>da</strong>r, Repetir e Elaborar (1914). Imago Editora. Rio <strong>de</strong> janeiro. 1980.<br />
GALLANO, Carmen. Enfermares <strong>de</strong>l cuerpo fuera <strong>de</strong>l sexo: uma clínica <strong>de</strong>l obsessivo<br />
(2010). Roma. 2010. Inédito.<br />
GALLANO, Carmen. Conferência: Estraña el cuerpo. Campo Gran<strong>de</strong>. MS. 2010.<br />
LACAN, Jacques. A <strong>Psicanálise</strong> e seu Ensino. (1957). Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar<br />
Ed. 1998.<br />
98
LACAN, Jacques. O Seminário livro 5: As Formações <strong>do</strong> Inconsciente (1957/1958). Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1999.<br />
LACA.N, Jacques. O Mito Individual <strong>do</strong> Neurótico Lisboa: Assírio e Alvim. 1980<br />
LACAN, Jacques. (1974) Televisão. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.<br />
LACAN, Jacques (1975) Conferência <strong>de</strong> Genebra sobre o Sintoma. Opção Lacaniana. São<br />
Paulo, n.19, 1988.<br />
QUINET, Antonio. Zwang und Trieb (1998). Os <strong>de</strong>stinos <strong>da</strong> Pulsão. Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Kalimeros, p. 67-77. 1998.<br />
VALDEZ, Bebo y CIGALA, Diego. Corazón Loco. CD: Lágrimas Negras.<br />
99
O que Marcélio Sabia<br />
Lia Carneiro Silveira 1<br />
O psicanalista, muitas vezes, recebe na clínica <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s relaciona<strong>da</strong>s a aprendizagem<br />
e que po<strong>de</strong>riam ser en<strong>de</strong>reça<strong>da</strong>s a profissionais diversos como o psicólogo ou o<br />
psicope<strong>da</strong>gogo.<br />
Trata-se <strong>do</strong> momento em que, ao constatar o que enten<strong>de</strong>m como um “déficit <strong>de</strong><br />
aprendizagem”, os pais (ampara<strong>do</strong>s, muitas vezes, pela escola) resolvem procurar um<br />
especialista que possa tratar <strong>de</strong>sse “sintoma”. Para os saberes oriun<strong>do</strong>s <strong>da</strong> psicologia, o que<br />
está em jogo aqui é uma <strong>de</strong>fasagem. O processo <strong>de</strong> aquisição <strong>do</strong> conhecimento, tal como<br />
entendi<strong>do</strong> nas abor<strong>da</strong>gens hegemônicas neste campo: tradição experimentalista, -<br />
behaviorismo – cognitivismo, e até algumas leituras freudiana que se centraram num<br />
fortalecimento <strong>do</strong> Ego) é entendi<strong>do</strong> como a consoli<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s respostas e<strong>xi</strong>tosas<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong>s por um organismo. Essas respostas seriam possíveis <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>, por um la<strong>do</strong>, a uma<br />
bagagem hereditária mínima <strong>de</strong> respostas comuns a espécie, e por outro, a interação com um<br />
“meio” que oferece os estímulos necessários. De qualquer forma, a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> pela<br />
aprendizagem, resi<strong>de</strong> no sujeito <strong>do</strong> conhecimento, o eu, a consciência ou a inteligência.<br />
(LAJONQUIÉRE, 1999)<br />
Quan<strong>do</strong> alguma coisa se interpõe entre o estímulo e a resposta (ou seja, não se alcança<br />
o nível optimum espera<strong>do</strong>), o especialista busca neste mesmo “eu” alguma resposta. Já que<br />
ele é entendi<strong>do</strong> numa lógica organicista e maturacionista, logo, o “<strong>de</strong>feito” só po<strong>de</strong> estar num<br />
<strong>de</strong>sses planos. Ou se trata <strong>de</strong> um problema <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento (algo orgânico ou genético -<br />
corpo) ou interferência <strong>de</strong> algum “aspecto psicossocial” (ambiente familiar <strong>de</strong>sajusta<strong>do</strong>,<br />
maus-tratos, etc.) Seja lá qual for a saí<strong>da</strong> encontra<strong>da</strong>, a intervenção vai ter como objetivo<br />
extirpar o sintoma (déficit <strong>de</strong> aprendizagem) e restaurar no eu a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r.<br />
Estamos no discurso <strong>da</strong> ciência, <strong>do</strong> sujeito cartesiano, <strong>do</strong> saber <strong>do</strong> especialista.<br />
1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> psicanálise <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano-‐ Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum Fortaleza.<br />
100
No entanto, diferentemente <strong>de</strong>ssas profissões, o ofício <strong>da</strong> psicanálise vai <strong>de</strong>marcar<br />
uma diferença radical na forma como po<strong>de</strong>mos acolher as vicissitu<strong>de</strong>s pelas quais um sujeito<br />
passa no seu processo <strong>de</strong> aprendizagem. Também reconhecemos que, nos ditos “problemas <strong>de</strong><br />
aprendizagem” há alguma coisa que emperra, há uma pedra no meio <strong>do</strong> caminho. Po<strong>de</strong> ser<br />
que haja aí, para alem <strong>da</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>do</strong>s pais, um sintoma. Ocorre que sintoma, aqui não é<br />
entendi<strong>do</strong> como um déficit, uma anomalia a ser corrigi<strong>da</strong>. O sintoma, para a psicanálise é um<br />
índice <strong>do</strong> sujeito e <strong>da</strong>s tensões que se revelam entre este e o seu <strong>de</strong>sejo, inconsciente.<br />
O Sintoma na psicanálise<br />
O sintoma já é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>, antes mesmo <strong>da</strong> psicanálise, um importante conceito na<br />
medicina. Com Michel Foucault (1980) vemos como este está conceitua<strong>do</strong> no seio <strong>do</strong> projeto<br />
anatomopatológico <strong>da</strong> medicina, on<strong>de</strong> o sintoma sempre correspon<strong>de</strong> a lesão <strong>de</strong> um órgão,<br />
alteração que precisa ser corrigi<strong>da</strong> para reencaminhar o organismo em direção à normali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
A psicanálise nasce <strong>de</strong> um <strong>encontro</strong>: aquele que se dá entre Freud e o sintoma <strong>da</strong>s<br />
histéricas. Destituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> lugar no saber médico, com Freud o sintoma ganhou estatuto <strong>de</strong><br />
mensagem. Porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um texto que remete ao sexual, ou melhor, a uma falha no sexual.<br />
Alem disso, Freud também afirma que os sintomas neuróticos são resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um conflito.<br />
Na premência constante <strong>da</strong>s pulsões, algo não po<strong>de</strong> ser aceito ou por ser incompatível com o<br />
eu ou por afrontar seus padrões éticos. A libi<strong>do</strong> insatisfeita é obriga<strong>da</strong> a aban<strong>do</strong>nar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
e buscar outras vias <strong>de</strong> satisfação. Daí temos uma outra peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sintoma em Freud. O<br />
sintoma é um acor<strong>do</strong>, uma peça <strong>de</strong> ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> engenhosamente escolhi<strong>da</strong>, com <strong>do</strong>is<br />
significa<strong>do</strong>s em completa contradição mutua. (FREUD, 1916, p.421) Assim, a libi<strong>do</strong><br />
consegue encontrar alguma satisfação, embora seja uma satisfação que mal se reconhece<br />
como tal.<br />
Lacan também se interessou por essa face <strong>de</strong> carta en<strong>de</strong>reça<strong>da</strong> ao Outro (face<br />
simbólica <strong>do</strong> sintoma), mas também soube extrair <strong>da</strong>í a dimensão <strong>de</strong> gozo que o sintoma<br />
presentifica, apontan<strong>do</strong> para uma face real <strong>do</strong> sintoma. No texto intitula<strong>do</strong> “A Terceira”<br />
Lacan (1974, p.24) afirma: o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma é o real, na medi<strong>da</strong> em que ele se atravessa<br />
aí para impedir que as coisas an<strong>de</strong>m, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que elas dão conta <strong>de</strong> si mesmas <strong>de</strong><br />
101
maneira satisfatória. Senti<strong>do</strong> aqui não no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> significação, mas no <strong>de</strong> vetor. Ou seja, o<br />
sintoma é um vetor apontan<strong>do</strong> para a presença <strong>do</strong> real.<br />
O Caso Clínico<br />
Os pais <strong>de</strong> Marcélio, 11 anos, me procuram em Junho <strong>de</strong> 2009 porque, segun<strong>do</strong> os<br />
pais “a professora disse que ele precisava <strong>de</strong> psicólogo”. É muito inquieto, não presta atenção<br />
na aula e briga constantemente com os outros alunos. Alem disso, embora esteja cursan<strong>do</strong><br />
pelo quarto ano consecutivo a terceira série, não consegue ler nem escrever. Trata-se <strong>de</strong> um<br />
caso atendi<strong>do</strong> em um serviço público <strong>de</strong> Fortaleza-CE situa<strong>do</strong> em uma região muito carente<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
O <strong>de</strong>safio nas entrevistas preliminares foi tentar localizar algo na fala <strong>de</strong> Marcélio que<br />
o implicasse para alem <strong>da</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação <strong>do</strong> comportamento en<strong>de</strong>reça<strong>da</strong> a mim pelos<br />
pais e pela escola e que ele parecia en<strong>do</strong>ssar. Falava muito pouco e, nesse pouco, <strong>de</strong>ixa<br />
entrever que acredita que está ali para ser mais comporta<strong>do</strong>, para parar <strong>de</strong> brigar na escola e<br />
pra conseguir apren<strong>de</strong>r. Peço-lhe para me falar sobre isso, “não conseguir apren<strong>de</strong>r” e<br />
<strong>de</strong>scubro que não se trata simplesmente <strong>de</strong> não conseguir, há uma singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> muito<br />
relevante em sua história. Ele diz: eu sabia ler e escrever, mas um dia o colégio caiu. Tive que<br />
ficar em casa por uns meses e quan<strong>do</strong> eu voltei tinha “esqueci<strong>do</strong> <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>”. Suas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
dizem respeito tanto a leitura como a escrita. Também esquece com freqüência <strong>do</strong> que vai<br />
dizer: às vezes a palavra vem reta na minha cabeça mas na hora <strong>de</strong> dizer sai outra coisa.<br />
A passagem que vai permitir a Marcélio sair <strong>da</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>do</strong>s pais para uma<br />
formulação <strong>de</strong> sua própria questão ocorre certo dia em que ele reconhece uma <strong>da</strong>s pacientes<br />
que aten<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> uma <strong>de</strong> suas vizinhas e me pergunta porquê ela está ali. Respon<strong>do</strong> que<br />
as pessoas vem para cá porque tem alguma coisa que as aflige, que as faz sofrer e vem buscar<br />
aju<strong>da</strong>. Pergunto se é o caso <strong>de</strong>le. Ele diz que tem sim, que ele sofre porque esqueceu algumas<br />
coisas e que acha que eu po<strong>de</strong>ria ajudá-lo a lembrar. Outro fato que lhe intriga é que ele, por<br />
diversas vezes, acor<strong>do</strong>u e estava em pé, em frente a gela<strong>de</strong>ira, por exemplo, e não se lembra<br />
como chegou lá.<br />
102
Esse momento foi um marco na direção <strong>do</strong> tratamento pois, enfim, seu en<strong>de</strong>reçamento<br />
à analista começa a se <strong>de</strong>linear. Agora comparece sozinho à sua análise, sempre preocupa<strong>do</strong><br />
em vir “bonito” para a sessão, segun<strong>do</strong> relato <strong>da</strong> mãe.<br />
Percebemos que, para além <strong>de</strong> uma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> alfabetização, o que se verifica no<br />
caso <strong>de</strong> Marcélio é um regressão a uma fase anterior, on<strong>de</strong> algo se fixa no não saber. Para<br />
abor<strong>da</strong>r como isso se dá, é importante tecermos alguns comentários sobre o que a psicanálise<br />
tem a dizer sobre o processo <strong>de</strong> alfabetização.<br />
No texto sobre as afasias, ain<strong>da</strong> num momento pré-psicanalítico, Freud (1915a)<br />
i<strong>de</strong>ntifica o que está em jogo nos diversos momentos <strong>de</strong> aquisição <strong>da</strong> linguagem, num<br />
percurso que vai <strong>da</strong> aquisição <strong>da</strong> fala à aquisição <strong>da</strong> escrita. Apren<strong>de</strong>mos a falar, segun<strong>do</strong> ele,<br />
servin<strong>do</strong>-nos <strong>de</strong> uma linguagem própria; criamos, uma espécie <strong>de</strong> dialeto. Fazemos isso<br />
associan<strong>do</strong> uma imagem sonora <strong>da</strong> palavra (que adquirimos <strong>do</strong> outro) a uma sensação <strong>de</strong><br />
inervação <strong>da</strong> palavra, associan<strong>do</strong> diferentes e estranhos sons <strong>de</strong> palavras a um único som que<br />
nós mesmos produzimos. No processo que se segue, passamos a tentar tornar esse som<br />
produzi<strong>do</strong> o mais pró<strong>xi</strong>mo possível <strong>da</strong> linguagem <strong>do</strong>s outros.<br />
O processo <strong>de</strong> aquisição <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita, envolve, segun<strong>do</strong> Freud, uma reedição<br />
<strong>de</strong>sse processo, um segun<strong>do</strong> esforço <strong>de</strong> associação. Associamos as representações obti<strong>da</strong>s ao<br />
pronunciar ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s letras e, <strong>de</strong>ssas associações, percebemos surgirem novas<br />
representações <strong>de</strong> palavras. Reconhecemos no que aí obtemos o som <strong>da</strong> palavra tal como a<br />
conhecíamos, e então, lemos compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> ele, esse processo é facilita<strong>do</strong> pela<br />
semelhança que há entre o dialeto <strong>do</strong>s primeiros anos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e a linguagem escrita.<br />
Percebemos que há uma pro<strong>xi</strong>mi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre esse dialeto a que Freud se refere e aquilo<br />
que anos mais tar<strong>de</strong> Lacan vai chamar <strong>de</strong> lalangue 2 . Lalangue não é a linguagem, ela é antes<br />
um banho <strong>de</strong> obsceni<strong>da</strong><strong>de</strong> como diz Colette Soler (2010, p.29) ao se referir a esses uns,<br />
essaim 3 , enxame <strong>de</strong> significantes que a criança recebe <strong>de</strong> primeiro gran<strong>de</strong> outro, a mãe.<br />
lalangue, portanto, não é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> simbólico, mas <strong>do</strong> real. A autora nos adverte que não<br />
2<br />
Neologismo cria<strong>do</strong> por Lacan. O termo “lalangue”, faz referencia a “lalação”, primeiros sons emiti<strong>do</strong>s pelo<br />
bebê.<br />
3<br />
Em Frances há uma homofonia entre “essaim”, enxame e “esse uns”, S1, termo que Lacan utiliza para se<br />
referir ao enxame <strong>de</strong> significantes.<br />
103
se trata, portanto <strong>de</strong> aprendizagem, mas <strong>de</strong> impregnação, <strong>de</strong> marcas que a criança recebe: são<br />
termos que excluem o <strong>do</strong>mínio e a apropriação ativa e, portanto, a i<strong>de</strong>ntificação.<br />
Desses sons sem senti<strong>do</strong> alguns vão se <strong>de</strong>positar, sob a forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>tritos, os primeiros<br />
uns sonoros. Segun<strong>do</strong> Soler (2010) é só num a posteriori, tempo <strong>do</strong> <strong>encontro</strong> com o<br />
impossível <strong>do</strong> sexo, que esses uns vão se conectar ao problema <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> sujeito,<br />
especialmente <strong>do</strong> gozo fálico. Aqui não se trata <strong>da</strong> combinatória <strong>do</strong> significante, mas <strong>de</strong>sses<br />
uns erráticos, que se conectam diretamente com o gozo corporal. Nesse litoral que se escreve<br />
entre saber e gozo está em jogo não só a contingência <strong>do</strong> que foi fala<strong>do</strong> pelo outro, mas,<br />
principalmente, a contingência <strong>do</strong> que foi escuta<strong>do</strong>.<br />
Ain<strong>da</strong> durante as entrevistas, fiquei saben<strong>do</strong> (através <strong>do</strong> pai) <strong>de</strong> um acontecimento que<br />
vai retornar várias vezes na fala <strong>do</strong> filho. A família morava em uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> interior: o pai,<br />
a mãe, a filha mais velha e Marcélio filho, então com cerca <strong>de</strong> três anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>. Certo dia, o<br />
pai está beben<strong>do</strong> em um bar e entra numa briga. Vai até em casa, <strong>de</strong>ixa o filho que estava com<br />
ele no momento, pega uma faca e mata o colega com quem discutiu. Persegui<strong>do</strong> pela policia<br />
ele se escon<strong>de</strong> para livrar o flagrante e <strong>de</strong>pois se entrega. Há três anos ficou saben<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua<br />
sentença: cumpriria pena em regime semi-aberto.<br />
Há cerca <strong>de</strong> tres anos também, nasceu a filha mais nova <strong>do</strong> casal. Na fala <strong>da</strong> mãe o pai<br />
aparece como violento e muito ciumento: chegava em casa bêba<strong>do</strong> e obrigava as crianças a se<br />
ajoelharem e escreverem o alfabeto na pare<strong>de</strong>: “ele ficava rin<strong>do</strong>, parecia um louco”. Diz ain<strong>da</strong><br />
que apanhou muito durante a gravi<strong>de</strong>z <strong>do</strong> Marcélio: “será que isso tem a ver com o jeito <strong>de</strong>le<br />
ser hoje?”<br />
Aos poucos, Marcélio começa a me falar sobre sua vi<strong>da</strong> na escola e em casa. Me diz<br />
que tem um irmão que está preso, o Daniel. Essa afirmação me surpreen<strong>de</strong> pois nem a mãe<br />
nem o pai tinham me fala<strong>do</strong> <strong>da</strong> e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong>sse irmão. Fala também que o pai tem mais cinco<br />
filhos com outra mulher que conheceu antes <strong>de</strong> sua mãe. Ain<strong>da</strong> sobre a prisão <strong>de</strong> Daniel, faz<br />
uma relação com seu sintoma e afirma: Ele foi preso, no mesmo dia eu fui pra escola, a tia<br />
man<strong>do</strong>u eu ler e eu não sabia mais. Marcélio briga muito na escola, e ao perguntar o porquê<br />
disso ele me diz que os meninos chamam sua mãe <strong>de</strong> rapariga, e me pergunta o que é isso.<br />
Com o meu silêncio, ele me diz noutra pergunta: rapariga num é moça?<br />
104
Com essas informações novas e conflitantes e como Marcélio continua muito cala<strong>do</strong><br />
durante as sessões, sugiro trabalhar com <strong>de</strong>senhos, ao que ele se mostra muito interessa<strong>do</strong>.<br />
Seguem-se ai várias sessões on<strong>de</strong> ele <strong>de</strong>senha várias pessoas, escreve seus nomes (alguns<br />
corretamente, com uma letra bem capricha<strong>da</strong> – O <strong>de</strong>le, o <strong>do</strong> pai) e outros que ele não<br />
consegue escrever e me pe<strong>de</strong> aju<strong>da</strong> – Daniel e Cibita, uma prima com quem ele gosta <strong>de</strong><br />
brincar) <strong>de</strong>pois me fala sobre o que produziu. Noutras sessões ele recorta as figuras,<br />
formamos arvores genealógicas ou encenamos histórias com os personagens que ele<br />
<strong>de</strong>senhou.<br />
Nesses jogos e <strong>de</strong>senhos o que começa a se <strong>de</strong>linear é a duvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Marcélio sobre<br />
quem é essa família, principalmente sobre esses filho que a mãe teria no interior. Ele diz que<br />
não tem certeza se Daniel é filho ou irmão <strong>de</strong>la, mas acha que são filhos. Ele passa a<br />
investigar isso junto a mãe que explica que eles, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> são seus primos, filhos <strong>de</strong> uma<br />
irmã <strong>de</strong>la.<br />
Outra questão que surge é com relação ao seu nome próprio: “Meu nome é igual ao <strong>do</strong><br />
meu pai e eu não sei porque”, “uma amiga minha falou que esse nome é uma peste”. Certo dia<br />
<strong>de</strong>ixa escapar com um sorriso no rosto que sua mãe (e quase to<strong>do</strong>s na rua) o chamam <strong>de</strong> Bebê<br />
e que ele gosta muito <strong>de</strong> ser chama<strong>do</strong> assim.<br />
Em uma sessão me diz: acho que eu nasci <strong>do</strong>ente, com alguma <strong>do</strong>ença, por que até<br />
meu irmão mais novo sabe mais <strong>do</strong> que eu. Pergunto então: o que você sabe sobre o seu<br />
nascimento? “Eu nasci <strong>da</strong> barriga, me tiraram <strong>de</strong> lá. Tu conhece a novela <strong>do</strong> Zé trovão ? Eles<br />
apostaram uma corri<strong>da</strong>. Se a Ana Raio per<strong>de</strong>sse tinha que <strong>da</strong>r um beijo nele, se ela ganhasse,<br />
num tinha não. Ela per<strong>de</strong>u e eles se beijaram, os cavalos <strong>de</strong>les também, porque tem o mesmo<br />
nome que eles. Pergunto porque ele lembrou disso? Porque foi bom. Acho que é assim, eu<br />
lembro <strong>do</strong> que é bom. O que é ruim eu esqueço”.<br />
Noutra vez, me diz que sua avó man<strong>do</strong>u um reca<strong>do</strong> para seu pai. Os irmãos <strong>do</strong> homem<br />
que ele matou estão queren<strong>do</strong> matar ele. Ele não po<strong>de</strong> ir pescar em... “idubaiu” 4 . A palavra<br />
certa não sai. Ele tenta varias vezes mas automaticamente só sai ‘idubaiu”. Pergunto se ele<br />
quer escrever. Ele escreve: “Dubaiu”. Depois tenta novamente: “Trubaiu”, e me diz: “não é<br />
4 Imagino que ele está fazen<strong>do</strong> referencia ao município cearense <strong>de</strong> Banabuiú.<br />
105
isso. Eu não consigo dizer”. Pe<strong>de</strong> pra ir lá fora perguntar a um vizinho que o acompanhava e<br />
diz: “a palavra certa é Donabuiu”.<br />
Eu marco que ele lembrou <strong>do</strong> buiu, mas esqueceu o Dona. Digo, Dona também é um<br />
nome <strong>de</strong> mulher. Esse significante surge como S1 que articula um enxame, ponto <strong>de</strong><br />
articulação ligan<strong>do</strong>-se a outros uns que apontam para to<strong>da</strong>s as questões <strong>de</strong> Marcélio:<br />
Donabuiú – Banabuiú – ci<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> o pai matou<br />
Dona – significante que aponta para o feminino<br />
Dedina – a mãe chama-se edina, mas ele escreve assim<br />
Daniel – que, como ele mesmo <strong>de</strong>staca, também escreve com D.<br />
Noutra situação me fala <strong>de</strong> uma cena que assistiu. A irmã mais nova, <strong>de</strong> três anos<br />
ain<strong>da</strong> mama e às vezes <strong>do</strong>rme no peito. Certo dia, conta ele, viu o irmão <strong>do</strong> meio <strong>de</strong>itar na<br />
cama, botar o outro peito para fora e mamar.<br />
Percebemos nessa escansão <strong>do</strong> significantes duas questões se colocam no caso:<br />
1- Marcélio se <strong>de</strong>bate com questões que dizem respeito ao enigma <strong>do</strong> sexo:<br />
sua ascendência, a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> materna e a in<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> limites quanto a<br />
isso. A mãe é rapariga? E esses irmãos, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vieram? Po<strong>de</strong>m os filhos<br />
gozar <strong>do</strong> corpo <strong>da</strong> mãe ? porque ela <strong>do</strong>rme? O que po<strong>de</strong> o pai?<br />
2- Seu sintoma, esquecer o que sabia, irrompe por volta <strong>do</strong>s 7 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
num momento em que essas questões se presentificam: nasce a irmã mais<br />
nova, o pai vai ser preso, o irmão é preso.<br />
O que po<strong>de</strong>mos extrair <strong>da</strong>í aponta em primeiro lugar para a atuação <strong>da</strong> pulsão<br />
epistemofílica. Marcélio an<strong>do</strong>u procuran<strong>do</strong> saber, investigan<strong>do</strong> sobre sua origem e a origem<br />
<strong>de</strong>sses irmãos. No texto Leonar<strong>do</strong> Da Vinci e uma Lembrança <strong>de</strong> Sua infância (1910), Freud<br />
afirma que uma fase cheia <strong>de</strong> investigações é freqüente nas crianças pequenas. Elas visam<br />
saber <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vêm os bebês, como eles são feitos? No limite, essas questões apontam também<br />
para a origem <strong>do</strong> próprio sujeitinho: <strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu vim? Por que eu nasci? O que eles querem <strong>de</strong><br />
mim?<br />
Marcélio provavelmente an<strong>do</strong>u procuran<strong>do</strong> essas respostas e, posteriormente,<br />
<strong>encontro</strong>u ao longo <strong>de</strong> sua investigação algum limite <strong>de</strong>sse saber. (Esse limite é estrutural,<br />
106
pois a investigação fatalmente caminha para um ponto impossível <strong>de</strong> dizer e para o<br />
reconhecimento <strong>de</strong> uma falta, principalmente a falta no Outro). Nesse momento, opera o<br />
recalque que, por <strong>de</strong>finição, trata-se exatamente <strong>de</strong> um mecanismo que visa afastar<br />
<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> coisa <strong>da</strong> consciência, manten<strong>do</strong>-a à distancia (FREUD,1915b). Seria seu sintoma<br />
(esquecimento) equivalente ao próprio mecanismo <strong>do</strong> recalque? É o próprio Freud quem nos<br />
respon<strong>de</strong>, ao afirmar que Sintoma e recalque não são a mesma coisa, longe disso, seguem<br />
caminhos <strong>de</strong> formação completamente diferentes, pois o sintoma equivale, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> a um<br />
segun<strong>do</strong> momento, o momento em que algo <strong>de</strong>sse recalca<strong>do</strong> busca acesso à consciência, um<br />
retorno <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>.<br />
Tomemos novamente o caso <strong>de</strong> Marcélio: ele inicia, ain<strong>da</strong> numa fase remota suas<br />
investigações. Desiste <strong>de</strong>las e atribui uma resposta ao enigma como qual se <strong>de</strong>para, Daniel é<br />
meu irmão. Num momento posterior, marca<strong>do</strong> por solicitações escolares, nascimento <strong>de</strong> uma<br />
irmã, prisão <strong>do</strong> Daniel e <strong>do</strong> Pai, algo <strong>de</strong>sse conteú<strong>do</strong> recalca<strong>do</strong> tenta voltar. Vacilan<strong>do</strong> o<br />
recalque, ele faz um sintoma, esquece o que sabia ler, sintoma cujo senti<strong>do</strong>, o vetor, como diz<br />
Lacan é apontar para o mesmo núcleo real com que esbarraram suas pesquisas sexuais, o<br />
impossível <strong>de</strong> saber.<br />
Nesse sintoma <strong>de</strong>svela-se ain<strong>da</strong> a posição <strong>de</strong> gozo <strong>de</strong> Marcélio. Apesar <strong>de</strong> haver<br />
incidência <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-pai, a saí<strong>da</strong> pela i<strong>de</strong>ntificação ao significante paterno é recusa<strong>da</strong> por<br />
ele: “Não gosto <strong>de</strong> ter esse nome, esse nome é uma peste”. Prefere ser chama<strong>do</strong> pelo nome<br />
que recebeu <strong>da</strong> mãe, o Bebê. Continuar a ser o bebê <strong>da</strong> mamãe. Mas esse nome porta a marca<br />
<strong>de</strong> seu gozo, marca <strong>do</strong> impossível <strong>da</strong> relação, pois bebês não sabem ler.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
FOUCAULT, M. O Nascimento <strong>da</strong> clínica. 2 Ed. Tradução <strong>de</strong> Roberto Macha<strong>do</strong>. Forense<br />
Universitária, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1980.<br />
107
FREUD, S. (1910) Leonar<strong>do</strong> Da Vinci e uma lembrança <strong>de</strong> sua infância. v. 11. In: Edição<br />
stan<strong>da</strong>rd <strong>brasil</strong>eira <strong>de</strong> obras completas <strong>de</strong> Sigmund Freud, v. XIV. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago,<br />
1996.<br />
___________. (1915a). O Inconsciente (Anexo C). In: Edição stan<strong>da</strong>rd <strong>brasil</strong>eira <strong>da</strong>s obras<br />
psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud . Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1996., p. 165-209.<br />
____________. (1915b) Recalque. In: Obras psicológicas completas: Edição Stan<strong>da</strong>rd<br />
Brasileira. Vol. XIV. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1996.<br />
____________. (1916) Conferência XXIII – Os caminhos <strong>da</strong> formação <strong>do</strong>s sintomas. In:<br />
Edição. Stan<strong>da</strong>rd <strong>brasil</strong>eira <strong>da</strong>s obras psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud, v. XVI. Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1996, p.419-439.<br />
LACAN, J. A Terceira (1974). Che Vuoi, ano 1, n. 0, Porto Alegre, Cooperativa Cultura<br />
Jacques Lacan, 1986.<br />
LAJONQUIÈRE, L. De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens. Petrópolis, Vozes,<br />
1993.<br />
SOLER, C. O Corpo Falante. Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Stylus, n o 01, maio <strong>de</strong> 2010.<br />
108
Reflexões sobre a direção <strong>do</strong> tratamento na clínica <strong>da</strong> perversão<br />
Maria Lúcia Araújo 1<br />
A idéia a<strong>xi</strong>al <strong>de</strong>ste trabalho é trazer reflexões sobre alguns aspectos em relação à<br />
direção <strong>do</strong> tratamento em sujeitos <strong>de</strong> estrutura perversa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a questão diagnóstica, manejo<br />
<strong>da</strong> transferência e final <strong>de</strong> análise.<br />
Consi<strong>de</strong>ramos que o perverso que procura o analista está na posição em que sente a<br />
angústia <strong>de</strong> castração. Quan<strong>do</strong> chega é porque a <strong>de</strong>fesa não funciona mais e a angústia<br />
transbor<strong>da</strong>. O sujeito vem nos dizer algo que no momento funciona mal e que antes<br />
funcionava bem. Agora funciona mal, até <strong>de</strong> forma perigosa. Está preocupa<strong>do</strong>, e se queixa <strong>de</strong><br />
não po<strong>de</strong>r controlar os impulsos, sabe o que lhe acontece, mas não consegue reagir, portanto<br />
quer aju<strong>da</strong>. Será que nós analistas estamos à altura <strong>de</strong> tal tarefa? Será que sabemos manejar a<br />
transferência na direção <strong>do</strong> tratamento? E como pensar o final <strong>de</strong> análise para a perversão?<br />
São questões que nos inquietam já faz alguns anos. Assim, pensamos que a<br />
preocupação <strong>do</strong> analista em orientar sua clínica a partir <strong>do</strong> diagnóstico estrutural é uma<br />
posição ética, e que po<strong>de</strong> a posteriori ser interpreta<strong>da</strong> como um ato. Além disso, torna-se<br />
fun<strong>da</strong>mental ressaltar que ao prescindir <strong>da</strong> hipótese diagnóstica não temos a mínima condição<br />
<strong>de</strong> dirigir o tratamento, pois tanto o dito como o dizer <strong>do</strong> analisante acabará fican<strong>do</strong> a <strong>de</strong>riva,<br />
a espera <strong>de</strong> um ato que nunca acontece.<br />
1 MARIA LÚCIA ARAÚJO – Psicanalista Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano Brasil,<br />
Membro <strong>do</strong> Fórum <strong>do</strong> Campo Lacaniano - São Paulo. Trabalho apresenta<strong>do</strong> no XI Encontro Nacional <strong>da</strong> EPFCL/IF-<br />
Brasil (2010). araujomalu@uol.com.br<br />
109
Soler em seu curso sobre “A querela <strong>do</strong>s diagnósticos” nos lembra que Lacan mostrou<br />
a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> diagnóstico para sabermos se o sujeito que nos procura po<strong>de</strong> se beneficiar <strong>do</strong><br />
tratamento analítico, pois o saber clínico orienta a ação. Assim, o diagnóstico implica um<br />
julgamento ético, que está longe <strong>de</strong> ser um julgamento <strong>de</strong> saber (SOLER, p.18)<br />
Sen<strong>do</strong> assim, o que nos interessa aqui investigar não é apenas o sujeito perverso que<br />
<strong>de</strong>man<strong>da</strong> análise para saber sobre o dispositivo, já que sua formação o e<strong>xi</strong>ge, mas também<br />
aqueles sujeitos que são trazi<strong>do</strong>s porque correm sérios riscos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e colocam em risco a<br />
vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> outros. Tanto em um caso como no outro as <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s ocorrem quan<strong>do</strong> sobrevêm<br />
sintomas e perturbação no gozo.<br />
No seminário 16 “De um Outro ao outro” Lacan nos convoca a uma toma<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
posição ética dizen<strong>do</strong>: “Tratemos, em nossa elaboração <strong>de</strong> ser rigorosos! O sofrimento tem<br />
sua linguagem [...] O sofrimento é um fato, isto é, encerra um dizer.” (LACAN, p.63)<br />
Dessa forma, nós analistas estamos convoca<strong>do</strong>s a tomar uma posição ética em relação<br />
ao nosso próprio <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> analista. Pois sabemos, que a análise <strong>de</strong> um sujeito perverso se<br />
passa quase que o tempo to<strong>do</strong> no acting–out que se dirige ao Outro. Entretanto, enten<strong>de</strong>mos<br />
que é por essa via que o analista po<strong>de</strong> operar na direção <strong>do</strong> tratamento, ou seja, interpretar o<br />
acting–out, que é feito para a mostração.<br />
Lembremos uma afirmação <strong>de</strong> Lacan que está no seminário 10 “[...] se somos<br />
analistas, logo, ele, o acting-out, se dirige ao analista. Se ele ocupou este lugar, pior para ele.<br />
Ele tem <strong>de</strong> qualquer forma a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> que pertence a esse lugar que ele aceitou<br />
ocupar.” (LACAN, p.136)<br />
110
Outro aspecto que vale a pena ressaltar é que uma forma possível <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo perverso é<br />
a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo, que é uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>cidi<strong>da</strong> <strong>de</strong> gozar realizan<strong>do</strong> sua fantasia. E, que a<br />
per<strong>da</strong> que precisa ser opera<strong>da</strong> no sintoma é a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> gozo.<br />
Contu<strong>do</strong>, salientamos que o <strong>de</strong>sejo perverso não é uma pergunta, mas sim uma<br />
resposta, pois o perverso sabe o que quer e isso se <strong>de</strong>ve a sua petulância perversa, que o faz<br />
convenci<strong>do</strong> <strong>de</strong> saber a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> escondi<strong>da</strong>. Para esse sujeito não há falta, pois o fetiche<br />
sustenta seu <strong>de</strong>sejo.<br />
A perversão se utiliza <strong>de</strong> diversas estratégias para negar a falta no Outro, tais como: o<br />
masoquismo que tem a intenção <strong>de</strong> angustiar o outro, o sadismo que quer produzir a divisão<br />
<strong>do</strong> outro, o e<strong>xi</strong>bicionista que quer mostrar e assustar; o voyer que quer ver surgir o olhar <strong>do</strong><br />
outro. São alguns estilos <strong>de</strong> negar a falta. O que nos faz <strong>de</strong>duzir que há um lugar que o sujeito<br />
ocupa em relação ao <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> Outro, e que há um la<strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo e um la<strong>do</strong> gozo. A tipologia é<br />
uma diferenciação nessa trilha entre <strong>de</strong>sejo e gozo. O sujeito vai crian<strong>do</strong> cenas. Assim o<br />
analista ao fazer a distinção tipológica tem acesso a uma ferramenta fun<strong>da</strong>mental para a<br />
direção <strong>do</strong> tratamento, que vai ajudá-lo nas intervenções on<strong>de</strong> está a fantasia.<br />
Lacan nos adverte que “a fantasia perversa, tem uma proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos agora<br />
<strong>de</strong>stacar.“ [...] há aí uma redução simbólica, que eliminou progressivamente to<strong>da</strong> estrutura<br />
subjetiva <strong>da</strong> situação para <strong>de</strong>ixar subsistir apenas um resíduo, inteiramente <strong>de</strong>ssubjetiva<strong>do</strong> e,<br />
afinal <strong>de</strong> contas enigmático, porque guar<strong>da</strong> a carga - mas a carga não revela<strong>da</strong>, inconstituí<strong>da</strong>,<br />
não assumi<strong>da</strong> pelo sujeito <strong>da</strong>quilo que é no nível <strong>do</strong> Outro a estrutura na qual ele está<br />
engaja<strong>do</strong> até o mais íntimo <strong>de</strong> si.” ( Sem. 4, p.120 ).<br />
111
Ora, o ponto que queremos ressaltar aqui, nesta afirmação <strong>de</strong> Lacan é o significante<br />
“<strong>de</strong>ssubjetiva<strong>do</strong>”, pois assim compartilhamos com o psicanalista Godino Cabas ao comentar<br />
este parágrafo, <strong>do</strong> seminário 4 , on<strong>de</strong> nos indica que “ [...] a tese <strong>de</strong> Lacan é que há uma<br />
proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve ser sublinha<strong>da</strong>: a e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong> uma redução simbólica que tem como<br />
resulta<strong>do</strong> uma <strong>de</strong>ssubjetivação. Enten<strong>da</strong>mos : um processo que equivale a uma anulação, uma<br />
supressão, ou melhor, uma suspensão <strong>da</strong> função <strong>do</strong> sujeito.” “[...] o fantasma perverso<br />
conserva to<strong>do</strong>s os elementos <strong>da</strong> relação significante, mas em curto circuito. E, mais: um curto<br />
circuito no nível <strong>do</strong> sujeito. Sobretu<strong>do</strong>, porque a redução simbólica tem como efeito uma<br />
<strong>de</strong>ssubjetivação.”(CABAS, p.184)<br />
Sen<strong>do</strong> assim, os significantes permanecem em esta<strong>do</strong> puro, mas esvazia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> seu<br />
sujeito. Ocorre que como nos lembra Godino “Esse esvaziamento que emerge como um<br />
corolário coinci<strong>de</strong> com a <strong>de</strong>srealização e a <strong>de</strong>ssubjetivação que caracterizam a passagem ao<br />
ato nas perversões.”<br />
Concor<strong>da</strong>mos com Godino Cabas no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que esse esvaziamento é uma<br />
proposição que já nos foi <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong>, que ao coincidir com a <strong>de</strong>ssubjetivação nos <strong>de</strong>ixa<br />
frente à passagem ao ato.<br />
Além disso, consi<strong>de</strong>ramos que na clínica <strong>do</strong> sujeito perverso esse fenômeno <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ssubjetivação se impõe quan<strong>do</strong> o sujeito transforma a questão <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo em vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
gozo e atua a fantasia na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>; se opon<strong>do</strong> radicalmente à castração e a experiência <strong>da</strong><br />
falta-a-ser. Na perversão o sujeito já se encontra localiza<strong>do</strong> na fantasia e <strong>de</strong>termina a si<br />
mesmo como objeto através <strong>do</strong> fetiche que faz função <strong>de</strong> véu, lugar <strong>da</strong> projeção imaginária.<br />
Nessa estrutura há valorização <strong>da</strong> imagem e redução simbólica <strong>de</strong> to<strong>da</strong> história.<br />
112
Ora, sabemos que o sujeito aparece quan<strong>do</strong> há uma questão e o sintoma quan<strong>do</strong> há<br />
uma solução. Embora falsa essa solução, aparece como uma resposta à angústia <strong>de</strong> castração.<br />
A perversão <strong>de</strong>smente sua falta-a-ser, elegen<strong>do</strong> o fetiche como objeto fun<strong>da</strong>mental<br />
com o qual tampona a castração feminina. Julien salienta que “[...] o fetiche é, portanto, uma<br />
<strong>de</strong>fesa contra a angústia <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>da</strong> mãe, é bem por isso que ele tem a mesma função que a<br />
fobia: colocar uma proteção em posto avança<strong>do</strong> diante <strong>do</strong> perigo <strong>de</strong> ser engoli<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong>sejo<br />
insaciável <strong>do</strong> Outro.” (JULIEN, p.109)<br />
Torna-se, assim, necessário pensar a <strong>de</strong>man<strong>da</strong>, a entra<strong>da</strong> e final <strong>de</strong> análise a partir <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>smenti<strong>do</strong> (verleugnung) <strong>da</strong> castração, levan<strong>do</strong> em conta que precisamos instaurar o sujeito<br />
e não a partir <strong>do</strong> recalque, como ocorre na neurose. Os perversos que chegam à análise se<br />
queixam que há uma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> colocar limite ao próprio gozo, revelan<strong>do</strong> que há uma<br />
conjunção entre a fantasia e o sintoma.<br />
Segun<strong>do</strong> Lacan, “Há neles uma subversão <strong>da</strong> conduta apoia<strong>da</strong> num saber-fazer, o qual<br />
está liga<strong>do</strong> a um saber, ao saber sobre a natureza <strong>da</strong>s coisas, há uma embreagem direta <strong>da</strong><br />
conduta sexual sobre o que é sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, isto é, sua almorali<strong>da</strong><strong>de</strong>.” (Sem.20, p.117)<br />
Além disso, nesta estrutura há uma coincidência <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e gozo e a tentativa <strong>de</strong> fazer<br />
e<strong>xi</strong>stir a relação sexual. O fetiche, que é a prova clínica <strong>da</strong> estrutura equivale ao sintoma na<br />
neurose.<br />
A este respeito, Jacques Lacan e Wladimir Granoff, no texto Fetichismo: o simbólico,<br />
o imaginário e o real afirmam que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1927, Freud, “[...] introduzia-nos no estu<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
fetiche indican<strong>do</strong> que ele <strong>de</strong>veria ser <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong>. Decifra<strong>do</strong> como um sintoma ou uma<br />
mensagem. Ele nos diz mesmo em que linguagem o fetiche <strong>de</strong>ve ser traduzi<strong>do</strong> “Des<strong>de</strong> o<br />
113
início, tal abor<strong>da</strong>gem situa o problema <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> explícito no campo <strong>da</strong> pesquisa <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> na<br />
linguagem e não uma vaga analogia ao campo visual [...]” Dessa forma, “O imaginário é<br />
<strong>de</strong>cifrável somente se traduzi<strong>do</strong> em símbolos.”<br />
Entretanto, quan<strong>do</strong> Lacan avança ao longo <strong>de</strong> seu ensino chega a nos alertar que “A<br />
perversão não é <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> porque o simbólico, o imaginário e o real estão rompi<strong>do</strong>s, mas, sim,<br />
porque eles já são distintos, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que é preciso supor um quarto que, nessa ocasião, é o<br />
sinthoma. (Sem.23, p.21)<br />
Então interrogamos: Será que se trata na perversão <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntificação ao sinthoma?<br />
E o fetiche viria enlaçar os três registros: real, simbólico e imaginário?<br />
Deixemos essas questões em aberto... E pensemos no discurso.<br />
O discurso <strong>de</strong> um sujeito perverso tem mais a função <strong>de</strong> mostração <strong>do</strong> que <strong>de</strong><br />
representação, <strong>do</strong> dito. Como ocorre no “ato obsceno” ele mostra além <strong>da</strong> cena, revela o<br />
prima<strong>do</strong>, ou melhor, o que e<strong>xi</strong>ste aquém <strong>da</strong> palavra – a imagem “[...] como se houvesse um<br />
encurtamento <strong>do</strong> espaço entre a fantasia e o ato. “Na clínica o perverso mostra falan<strong>do</strong>, -<br />
ten<strong>do</strong> o analista como participante <strong>da</strong> cena perversa. As fantasias são encena<strong>da</strong>s. “[...] a<br />
montagem <strong>do</strong> discurso perverso revela um discurso no qual a palavra se torna um instrumento<br />
<strong>de</strong> mostração. O perverso se serve tanto <strong>do</strong> corpo como <strong>da</strong>s palavras. O que ele quer é<br />
mostrar. (QUEIROZ, p.74)<br />
Ora, se o perverso toca algo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> com o fetiche e, além disso, há algo <strong>de</strong><br />
fantasia no fetiche é com esse objeto que vamos operar na direção <strong>do</strong> tratamento.<br />
A psicanalista Márcia Mello, que tem uma gran<strong>de</strong> experiência com a clínica <strong>da</strong><br />
perversão, afirma que “quan<strong>do</strong> rompe o vínculo com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a perversão substitui a<br />
114
fantasia por um ato, atua na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> ain<strong>da</strong> que insista na fantasia inconsciente. A diferença<br />
<strong>do</strong> neurótico é que o perverso faz isso exercen<strong>do</strong> a “vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo” ampara<strong>do</strong> no objeto<br />
en<strong>de</strong>reça<strong>do</strong> ao parceiro; evocan<strong>do</strong> sua presença numa imagem, <strong>da</strong>í a importância <strong>do</strong> fetiche<br />
enquanto imagem encobri<strong>do</strong>ra.” (MELLO, p.102)<br />
Após, essas breves consi<strong>de</strong>rações interrogamos: Será que é possível ao sujeito <strong>de</strong><br />
estrutura perversa, cujo <strong>de</strong>sejo sempre fracassa, por causa <strong>de</strong> sua posição fantasmática que<br />
está sempre em continui<strong>da</strong><strong>de</strong> com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, sair <strong>de</strong>ssa posição? Será que a partir <strong>de</strong> uma<br />
mu<strong>da</strong>nça na posição <strong>de</strong> gozo o sujeito po<strong>de</strong>ria terminar sua análise em direção a um saber<br />
fazer com o <strong>de</strong>sejo?<br />
Ora, sabemos que em to<strong>da</strong>s as estruturas e<strong>xi</strong>ste algo em comum, isto é, to<strong>da</strong>s sem<br />
exceção querem se livrar <strong>da</strong> angustia <strong>de</strong> castração.<br />
Diante <strong>de</strong>ssa constatação, nossa tendência a partir <strong>da</strong> experiência clínica com tais<br />
sujeitos é pensar que na perversão mais <strong>do</strong> que na neurose ou na psicose o sujeito precisa <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analista e sua disposição para escutar a recusa, a verleugnung e suportar a<br />
“conjunção <strong>da</strong> palavra com o corpo no ato <strong>de</strong> dizer”.<br />
To<strong>da</strong>via, consi<strong>de</strong>ramos que é nos <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> guiar pela estrutura que obteremos <strong>de</strong>la<br />
seus efeitos, sem jamais esquecer que a formalização não nos e<strong>xi</strong>me <strong>de</strong> escutar a<br />
singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> sujeito.<br />
Termino com uma citação <strong>de</strong> Jacques Lacan em Radiofonia “Seguir a estrutura é<br />
certificar-se <strong>do</strong> efeito <strong>da</strong> linguagem. A estrutura é apanha<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>í. Daí, isto é, <strong>do</strong> ponto<br />
em que o simbólico toma corpo.<br />
115
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1957), Jorge Zahar Editor, Rio <strong>de</strong> Janeiro,1995. (p.120)<br />
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em 1956- 1957) Jorge Zahar Editor, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1999.<br />
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Recife, 2004. (p.63)<br />
LACAN,J. O seminário Livro 20: mais, ain<strong>da</strong>. (Trabalho original publica<strong>do</strong> em 1972-1973)<br />
Jorge Zahar Editor, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1982 (p.117)<br />
LACAN,J . Outros Escritos, Texto: Radiofonia – Jorge Zahar Editor, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2003.<br />
MELLO, M.L. Gozo e Perversão: Um percurso na teoria <strong>de</strong> Freud com Lacan (tese <strong>de</strong><br />
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QUEIROZ, E.F. A clínica <strong>da</strong> Perversão, Editora Escuta, São Paulo, 2004.<br />
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LACAN, Jacques, texto Radiofonia - 1970, Outros escritos, (p.405), editora Jorge Zahar, Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro, 2001.<br />
116
A Pele, suas Marcas e o Corpo:Fenômeno Psicossomático e Tatuagem<br />
Tatiana Carvalho Assadi 1<br />
Heloísa Helena Aragão e Ramirez 2<br />
“Minha vi<strong>da</strong> é o mar. Surfo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeno e neste momento fui afasta<strong>do</strong> <strong>de</strong>stes instantes <strong>de</strong><br />
prazer por causa <strong>de</strong>sta <strong>do</strong>ença que me invadiu o corpo.... 3 ”<br />
Como as personagens que são convoca<strong>da</strong>s ao mergulho no mar infinito <strong>do</strong> belíssimo<br />
texto <strong>de</strong> Mishima 4 , Leonar<strong>do</strong> sente-se atraí<strong>do</strong> para o mar. Nervoso, somente atinge momentos<br />
<strong>de</strong> calma e contemplação ao escutar as on<strong>da</strong>s <strong>da</strong> maré que se chocam com as minúsculas<br />
partículas <strong>da</strong> areia ou ain<strong>da</strong>, no sublime ato <strong>de</strong> avistar no horizonte os primeiros raios solares<br />
que avisam a hora <strong>do</strong> seu primeiro mergulho.<br />
Ao mesmo tempo são o olhar e o som que o lembram freqüentemente que seu corpo<br />
e<strong>xi</strong>ste e encontra-se a<strong>do</strong>eci<strong>do</strong>. Escuta os estali<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s que rompem sua pele e<br />
produzem vermelhidões espalha<strong>da</strong>s pelos joelhos, pernas e cotovelos e, portanto, são estas<br />
mesmas feri<strong>da</strong>s que ferem sua visão. Olhar seu corpo é insuportável, escutar a explosão <strong>da</strong>s<br />
feri<strong>da</strong>s é amedrontante, sente sua pele em chamas e nomeia-se <strong>de</strong> “carne viva”.<br />
1 Psicanalista. Membro <strong>do</strong> Fórum <strong>do</strong> Campo Lacaniano- SP. Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sintoma e Corporei<strong>da</strong><strong>de</strong>- FCL-SP e<br />
<strong>do</strong> Circuito Ponto <strong>de</strong> Estofo- MC-SP. Pós-<strong>do</strong>utoran<strong>da</strong> em Psicologia Clínica- USP- SP. Bolsista FAPESP.<br />
tatiassadi@uol.com.br<br />
2 Psicanalista. Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>do</strong> Campo Lacaniano-SP e <strong>do</strong> Fórum <strong>do</strong> Campo Lacaniano-SP. Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> Re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Sintoma e Corporei<strong>da</strong><strong>de</strong>- FCL-SP e <strong>do</strong> Circuito Ponto <strong>de</strong> Estofo- MC- SP. Mestre em Psicologia pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> São<br />
Marcos. heloramirez@gmail.com<br />
3 To<strong>da</strong>s as falas em itálico são <strong>do</strong> analisante.<br />
4 Mishima (1987). Morte em pleno verão. Contos. Rocco.<br />
117
Estes são os motivos que levam este jovem a procurar análise <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tentar várias<br />
intervenções para sua afecção <strong>de</strong> pele: a psoríase. Freqüentou médicos, buscou tratamentos<br />
alternativos, espirituais e ou milagrosos que na<strong>da</strong> lhe adiantaram na cura <strong>da</strong> afecção<br />
<strong>de</strong>rmatológica. Restou-lhe a psicanálise como última possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou melhor, ampara<strong>do</strong> pela<br />
fala <strong>de</strong> outrem recebeu a indicação <strong>da</strong> psicanálise como uma direção ao seu mal estar.<br />
Conduzi<strong>do</strong> às primeiras entrevistas com <strong>de</strong>scrédito e mais além, <strong>de</strong>scrença, chega ao<br />
consultório relutan<strong>do</strong> em falar. Não podia acreditar que uma “terapêutica” pela fala pu<strong>de</strong>sse<br />
afetar seu corpo. Deman<strong>da</strong>va uma cura <strong>do</strong> corpo e retornar ao mar, sem se envergonhar <strong>de</strong> sua<br />
pele e <strong>de</strong> seu “corpo marca<strong>do</strong>”, eram seus maiores anseios.<br />
- “Marca<strong>do</strong>? – é uma <strong>da</strong>s primeiras intervenções <strong>da</strong> analista.<br />
- Sou inteiro marca<strong>do</strong>.<br />
- Marca<strong>do</strong>? – novamente uma intervenção.<br />
- Tenho lesões por to<strong>do</strong> corpo que fazem uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho assombra<strong>do</strong>.<br />
Um <strong>de</strong>senho que escama e solta cheiro. Sou como um filme <strong>de</strong> terror”.<br />
É assim que Leonar<strong>do</strong> começa a se apresentar. Reduz-se às <strong>de</strong>scrições e marcas<br />
corporais. Gesticula, aponta os <strong>de</strong><strong>do</strong>s para as partes <strong>do</strong> corpo em que foi invadi<strong>do</strong> pela<br />
psoríase e esbraveja utilizan<strong>do</strong> um vocabulário <strong>de</strong> baixo calão. Mostra a parte inferior <strong>da</strong>s<br />
pernas levantan<strong>do</strong> as calças em uma convocação <strong>do</strong> olhar <strong>da</strong> analista. Ao falar <strong>da</strong>s lesões<br />
nos cotovelos novamente expõe a pele avermelha<strong>da</strong> e, ao dizer <strong>da</strong> psoríase no couro<br />
cabelu<strong>do</strong> ergue as mãos como se estivesse arrancan<strong>do</strong> seus cabelos.<br />
118
Abro um parênteses para dizer que em nossa experiência clinica na Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pesquisa em<br />
Psicossomática (atual Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pesquisa em Sintoma e Corporei<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> Fórum <strong>do</strong> Campo<br />
Lacaniano SP em parceria com a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo) verificamos inúmeras<br />
características que se repetem na fala ou mesmo em gestos <strong>da</strong>queles que nos foram<br />
encaminha<strong>do</strong>s com lesões <strong>de</strong>rmatológicas, por exemplo: o não pu<strong>do</strong>r em mostrar o corpo<br />
invadi<strong>do</strong> por uma lesão ou a vergonha como causa e impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> quebra <strong>do</strong>s laços<br />
sociais ou para além disto, a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> falar sobre sua afecção <strong>de</strong> pele.<br />
Diante <strong>do</strong>s primeiros atendimentos hospitalares com lesões <strong>de</strong>rmatológicas e ampara<strong>do</strong>s<br />
nestas repetições clínicas <strong>de</strong>cidimos escutar as hipóteses relativas ao aparecimento <strong>da</strong>s lesões.<br />
Para nossa surpresa, num primeiro tempo, na<strong>da</strong> era possível dizer sobre o vitiligo, a psoríase<br />
ou mesmo a alopecia 5 . Em trabalho nas entrevistas preliminares os pacientes começavam a<br />
traçar hipóteses para suas lesões, e, como segun<strong>do</strong> tempo, ou conseqüência <strong>de</strong>sta tática, eles<br />
faziam <strong>de</strong>stas hipóteses suas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s absolutas.<br />
E foi <strong>de</strong>sta maneira que aconteceu com Leonar<strong>do</strong>. Suas primeiras lesões apareceram<br />
quan<strong>do</strong> ele era ain<strong>da</strong> uma criança, aos seis anos. Naquela época era briguento e rigoroso com<br />
seus afazeres e como resulta<strong>do</strong> estava sempre <strong>de</strong> “cabeça quente”. Certa vez enquanto<br />
pensava insistentemente sua cabeça esquentou e uma coceira súbita surgiu no couro cabelu<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> on<strong>de</strong> soltaram-se “casquinhas escureci<strong>da</strong>s”. Como remédio para este ar<strong>do</strong>r a mãe, sábia e<br />
protetora, receitou-lhe que esfriasse a cabeça. Explico. Esfriar a cabeça para ela era uma<br />
forma <strong>de</strong> barreira ao pensamento, era preciso mergulhar no mar gela<strong>do</strong> para construir este<br />
5 Estas três lesões <strong>de</strong> pele foram as que trabalhamos nos Hospitais: <strong>Escola</strong> Paulista <strong>de</strong> Medicina-‐SP; Policlínica<br />
<strong>de</strong> Mogi <strong>da</strong>s Cruzes e Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> ABC.<br />
119
dique. Lembra-se que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ste feito tanto a coceira quanto a escamação melhoraram<br />
significativamente 6 . Durante as entrevistas relembrou-se que sua cabeça começou esquentar<br />
porque havia obti<strong>do</strong> uma nota baixa em uma avaliação escrita na escola e como punição pela<br />
indisciplina e irresponsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> teve uma escamação capilar que lhe causava inibição diante<br />
<strong>do</strong>s colegas.<br />
Aos 16 anos, portanto, 10 anos mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter fuma<strong>do</strong> maconha com os amigos<br />
atropelou uma pessoa <strong>de</strong> bicicleta. Sem saber como reagir e com me<strong>do</strong> <strong>da</strong>s conseqüências que<br />
teria que assumir fugiu <strong>da</strong> policia refugian<strong>do</strong>-se nos braços <strong>da</strong> mãe. No mesmo instante que<br />
escapou à punição social sentiu a carne ar<strong>de</strong>r em chamas, como se estivesse queiman<strong>do</strong> e<br />
placas vermelhas se espalharam por algumas regiões <strong>do</strong> seu corpo. Dias <strong>de</strong>pois estas placas<br />
começaram escamar e obteve o diagnóstico <strong>de</strong> psoríase. Sem saber o que este “palavrão”<br />
significava, ingeriu alguns remédios que não se recor<strong>da</strong> quais foram e espalhou pelo corpo<br />
cremes, sen<strong>do</strong> assim, após <strong>do</strong>is meses sua pele voltou ao normal.<br />
Mais um episódio ocorri<strong>do</strong> 10 anos <strong>de</strong>pois. Aos 26 anos, quan<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> namorava, <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> levar sua garota ao aeroporto para uma visita familiar, ele estacionou seu carro em um<br />
posto <strong>de</strong> gasolina se abastecen<strong>do</strong> <strong>de</strong> guloseimas numa pequena loja <strong>de</strong> conveniência. No local<br />
<strong>encontro</strong>u uma amiga <strong>do</strong>s tempos <strong>da</strong> facul<strong>da</strong><strong>de</strong>, trocaram olhares e subitamente sentiu-se<br />
atraí<strong>do</strong> por ela. Instantes <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma pequena conversa dirigiram-se ao motel. Enquanto<br />
faziam sexo Leonar<strong>do</strong> sentiu que algumas regiões <strong>de</strong> seu corpo estavam “rasgan<strong>do</strong> <strong>de</strong> tanto<br />
6 Nota-‐se claramente o efeito <strong>de</strong> sugestão a partir <strong>da</strong> fala <strong>do</strong> outro.<br />
120
calor”, uma coceira intermitente o envolvia e quan<strong>do</strong> foi se vestir verificou novas placas em<br />
seu corpo que rompiam sua pele.<br />
De <strong>de</strong>z em <strong>de</strong>z anos um episódio toma<strong>do</strong> como fora <strong>da</strong> lei, como contravenção moral<br />
aplacavam Leonar<strong>do</strong> que era puni<strong>do</strong> pela psoríase. Sua hipótese era <strong>de</strong> que a <strong>do</strong>ença tomou o<br />
lugar <strong>de</strong> sua “maldição 7 ”.<br />
Em resposta a Vauthier, Lacan, na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), fará<br />
uma essencial consi<strong>de</strong>ração sobre o <strong>do</strong>ente psicossomático que permite <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos na<br />
clinica psicanalítica. Algo acontece com estes sujeitos en<strong>de</strong>reçan<strong>do</strong> à or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> escrito e na<br />
maioria <strong>do</strong>s casos os psicanalistas não sabem lê-lo. “Tu<strong>do</strong> se passa como se algo estivesse<br />
escrito no corpo, alguma coisa que se oferece como enigma...” 8<br />
Foi em 1975 que Lacan sugeriu o tema <strong>do</strong> psicossomático emparelha<strong>do</strong> a idéia <strong>de</strong><br />
signatura, <strong>de</strong> hieróglifo, <strong>de</strong> traço unário. Sobretu<strong>do</strong>, nos <strong>de</strong>bruçamos sobre estas premissas<br />
para abor<strong>da</strong>r a tática <strong>da</strong> psicanálise neste caso clinico apresenta<strong>do</strong> pela lesão <strong>de</strong> órgão, ou<br />
como pronuncia<strong>do</strong> por Lacan em 1966, por uma questão epistemo-somàtica. A in<strong>da</strong>gação<br />
estavam postas: se e<strong>xi</strong>ste um escrito no corpo, <strong>da</strong><strong>do</strong> a não ler, qual a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
analista diante <strong>de</strong>sta clínica?<br />
Pois bem, neste caso em particular um ponto nos surpreen<strong>de</strong>u para além <strong>da</strong> lesão <strong>de</strong> pele.<br />
Contou Leonar<strong>do</strong> que fez to<strong>do</strong> o tipo <strong>de</strong> tratamento, inclusive ingeriu remédio biológico, que<br />
7 Homofonicamente maldição e mal-‐dicção.<br />
8 Lacan, J. (1998) Conferencia em Genebra sobre o sintoma (1975).In Opção Lacaniana n. 23. Dezembro <strong>de</strong><br />
1998. p. 13-‐14-‐ São Paulo.<br />
121
somente é prescrito em casos em que to<strong>do</strong> o corpo <strong>do</strong> paciente é toma<strong>do</strong> pela afecção. Vale<br />
salientar que suas marcas eram localiza<strong>da</strong>s em zonas <strong>de</strong> atrito, tais quais joelhos e cotovelos.<br />
Durante sua a<strong>do</strong>lescência participou <strong>de</strong> muitos campeonatos <strong>de</strong> jiu-jitsu e <strong>de</strong> surfe, tornan<strong>do</strong>-<br />
se um excelente esportista o que o autorizou a muitas viagens e gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> laços<br />
sociais. No entanto, sua vi<strong>da</strong> foi <strong>de</strong>sregra<strong>da</strong> em assuntos sexuais e <strong>de</strong> uso <strong>de</strong> entorpecentes.<br />
Quan<strong>do</strong> iniciou as práticas esportivas disciplinou-se, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> orgias e vícios<br />
freqüentes. Como marco para esta mu<strong>da</strong>nça subjetiva tatuou na pele o mar e um luta<strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />
jiu-jitsu, conseguin<strong>do</strong> eternizar na carne seu amor pelo esporte e sua “salvação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
mun<strong>da</strong>na”.<br />
Com a aparição “<strong>de</strong>la”, como Leonar<strong>do</strong> <strong>de</strong>signou a lesão <strong>de</strong> pele, teve que parar <strong>de</strong> lutar<br />
porque a psoríase seria mais propensa a aparecer quanto maior o atrito <strong>da</strong> pele. Como nenhum<br />
<strong>do</strong>s tratamentos regrediu sua lesão após seus 26 anos optou por a<strong>do</strong>rnar sua pele com<br />
<strong>de</strong>senhos como formas <strong>de</strong> encobrir as manchas vermelhas e escamações <strong>da</strong> pele. Assim, a<br />
pequena tatuagem <strong>do</strong> mar foi ganhan<strong>do</strong> contornos mais <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, espécies diferentes <strong>de</strong><br />
peixes e vegetação surgiram em regiões que a psoríase formava uma bor<strong>da</strong>. Um coqueiro foi<br />
pinta<strong>do</strong> em uma <strong>da</strong>s pernas e um sol em outra. As marcações corporais foram se expandin<strong>do</strong><br />
pela extensão <strong>de</strong> sua pele para tentar compor junto com o <strong>de</strong>senho um cenário que apagaria a<br />
lesão.<br />
Em contraparti<strong>da</strong>, o que Leonar<strong>do</strong> não contava era que a psoríase, como uma “praga”,<br />
aumentou com os contornos <strong>da</strong> tinta colori<strong>da</strong> no órgão pele. Conclusão: ele não sabia mais<br />
122
aon<strong>de</strong> começava sua tatuagem e, tampouco, aon<strong>de</strong> terminava sua psoríase. As marcas foram<br />
se misturan<strong>do</strong> umas às outras ate produzirem uma fusão indiferencia<strong>da</strong>.<br />
Ana Costa em seu livro Marcas Corporais e tatuagens (2003) recorta <strong>do</strong>s textos <strong>de</strong> Lacan<br />
duas passagens em que o ato <strong>de</strong> tatuar é questiona<strong>do</strong>. O primeiro <strong>de</strong>les, e dizemos, não é uma<br />
or<strong>de</strong>m cronológica, surge em Subversão <strong>do</strong> Sujeito e dialética <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> 1966. Ali Lacan<br />
apresenta uma metáfora <strong>de</strong> um escravo que porta uma mensagem tatua<strong>da</strong> em seu couro<br />
cabelu<strong>do</strong>. Sem que soubesse <strong>da</strong> tatuagem, tampouco <strong>do</strong> seu conteú<strong>do</strong> ele transporta a<br />
mensagem que po<strong>de</strong>ria ser sua própria con<strong>de</strong>nação a morte. O comentário <strong>de</strong> Lacan ao<br />
<strong>de</strong>bruçar-se sobre esta passagem diz respeito ao elo <strong>da</strong> pulsão com a tatuagem, <strong>de</strong>ste tanto,<br />
enfatiza o corpo como <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> traços invisíveis e incompreensíveis que po<strong>de</strong>m ser<br />
materializa<strong>do</strong>s e en<strong>de</strong>reçam a uma leitura. Neste senti<strong>do</strong>, estamos diante <strong>de</strong> uma contradição<br />
em relação aos fenômenos psicossomáticos segun<strong>do</strong> o que Lacan nos apresenta na cita<strong>da</strong><br />
Conferência. Estes fenômenos são <strong>da</strong><strong>do</strong>s a “não-ler”. Po<strong>de</strong>-se então levantar uma idéia <strong>de</strong> que<br />
a tatuagem pe<strong>de</strong> um olhar, uma <strong>de</strong>cifração, ou seja, a busca <strong>de</strong> um lugar no amor <strong>do</strong> outro,<br />
pela procura <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cifração <strong>de</strong> traços corporais. Estaria a tatuagem <strong>de</strong> Leonar<strong>do</strong><br />
convocan<strong>do</strong> um senti<strong>do</strong>?<br />
Uma outra citação <strong>de</strong> Lacan, encontra<strong>da</strong> em Os quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong><br />
psicanálise (1964) atrela a tatuagem a uma função erótica. Po<strong>de</strong>ria, <strong>de</strong>ste feito, ser li<strong>da</strong> como<br />
uma encarnação <strong>do</strong> órgão, diferente <strong>do</strong>s cortes e cicatrizes que apontariam para um<br />
masoquismo erógeno. Se tomarmos a tatuagem nesta vertente <strong>de</strong> encarnação, sua impressão<br />
seria a <strong>do</strong> traço unário. E continuan<strong>do</strong> através <strong>de</strong>sta lógica, Lacan comunga, no mesmo<br />
123
seminário, <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong> que o traço unário se marca como tatuagem, como o primeiro <strong>do</strong>s<br />
significantes, operan<strong>do</strong> assim no nível <strong>da</strong> contagem, instituin<strong>do</strong> uma diferença que singulariza<br />
o lugar <strong>do</strong> sujeito.<br />
Captura<strong>da</strong>s por esta construção remetemos o leitor novamente a um pequeno passeio pela<br />
Conferência em Genebra, lugar em que Lacan pontua que no FPS estamos diante <strong>da</strong> lógica <strong>do</strong><br />
número e não <strong>da</strong> letra, <strong>da</strong> contagem e não <strong>da</strong> <strong>de</strong>cifração.<br />
Não preten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong> forma alguma minimizar os estu<strong>do</strong>s sobre a tatuagem, tampouco<br />
reduzi-los a um senti<strong>do</strong> único. Nosso objetivo é articular, se possível for, as duas aparições<br />
corporais, a saber: o fenômeno <strong>de</strong> pele e a tatuagem.<br />
No percurso <strong>de</strong>sta premissa que seguimos as pistas <strong>de</strong> Lacan. Foi em momentos distintos<br />
<strong>de</strong> sua obra que falou sobre o fenômeno psicossomático. Vale-nos capturar um tempo em que<br />
em seu seminário livro 2 ele o articula a uma inscrição ou impressão direta na carne.<br />
Lembremos que estamos diante <strong>do</strong>s anos 55 e 56, quan<strong>do</strong> 20 anos mais tar<strong>de</strong>, portanto em<br />
1975 sua apresentação na conferencia <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> ao sintoma é que a lesão po<strong>de</strong>ria ser toma<strong>da</strong><br />
pela inscrição significante na carne. Uma tradução para esta consi<strong>de</strong>ração é a <strong>de</strong> ocorreria um<br />
curto-circuito no simbólico, ou seja, uma falha <strong>da</strong> função paterna.<br />
Alguns psicanalistas basea<strong>do</strong>s, sobretu<strong>do</strong>, nas concepções feitas por Lacan 9 sobre o<br />
emparelhamento <strong>do</strong> fenômeno psicossomático à <strong>de</strong>bili<strong>da</strong><strong>de</strong> mental e à psicose constroem a<br />
hipótese que nesta formação fenomênica não aconteceria uma holófrase total, mas,<br />
9 Lacan, J. Os quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> psicanálise.seminário: livro XI.<br />
124
especialmente uma holófrase local, situa<strong>da</strong> no par S1S2, impedin<strong>do</strong> o <strong>de</strong>slizamento na<br />
ca<strong>de</strong>ia significante. To<strong>da</strong>via, isto não atestaria a ausência <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, sua foraclusão, o<br />
<strong>de</strong>sejo estaria presente, contu<strong>do</strong>, através <strong>de</strong> sua suspensão. Os significantes, pelo<br />
mecanismo <strong>de</strong>sta holófrase local, estariam congela<strong>do</strong>s, gelifica<strong>do</strong>s, isto quer dizer,<br />
passíveis <strong>de</strong> remontagem a ca<strong>de</strong>ia.<br />
Logo, tocar os fenômenos pela via <strong>do</strong> significante, <strong>da</strong> <strong>de</strong>cifração seria uma operação<br />
impossível e sem ê<strong>xi</strong>to , como foi mostra<strong>do</strong> por Assadi (2010).<br />
Se este escrito <strong>da</strong><strong>do</strong> a não-ler engendra algo <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> número, <strong>da</strong> contagem,<br />
articulan<strong>do</strong> o gozo a metonímia, po<strong>de</strong>mos chegar a conclusão que estamos diante <strong>do</strong> objeto<br />
<strong>da</strong> pulsão em sua relação com o significante isola<strong>do</strong> e não <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia significante.<br />
Algo nos faz questionar que o a<strong>xi</strong>oma o inconsciente estrutura<strong>do</strong> como linguagem,<br />
ten<strong>do</strong> o significante e a interpretação como suas molas propulsoras não são suficientes para<br />
tratar o fenômeno psicossomático. É preciso avançar no ensino <strong>de</strong> Lacan e tomar a lesão<br />
como um gozo especifico que po<strong>de</strong>ríamos apostar ser um gozo Outro, situa<strong>do</strong> na<br />
articulação borromeana entre real e imaginário. Assim neste gozo haveria uma fixação<br />
corporifican<strong>do</strong> a libi<strong>do</strong>, como um significante isola<strong>do</strong> e impresso na carne, fixa<strong>do</strong>.<br />
Po<strong>de</strong>-se concluir que o Fps surge na clinica muito mais como uma resposta <strong>do</strong> que<br />
como um enigma, faz obstáculo a perspectiva <strong>da</strong> elaboração <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>man<strong>da</strong> ao Outro e<br />
traz interrogações sobre a direção <strong>do</strong> tratamento. Vem como um negativo <strong>da</strong> operação <strong>da</strong><br />
extração <strong>do</strong> objeto, concernente a operação <strong>de</strong> incorporação <strong>da</strong> estrutura.<br />
125
No sintoma temos uma mensagem dirigi<strong>da</strong> ao Outro e uma cifra que <strong>de</strong>man<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong>cifração, enquanto que no FPS temos algo escrito no corpo, marca<strong>do</strong> na carne. Mas, a<br />
questão que não faz calar é se tomamos os últimos ensinamentos <strong>de</strong> Lacan, sobretu<strong>do</strong><br />
naquilo que diz sobre o sintoma como acontecimento <strong>de</strong> corpo, tanto o sintoma como o<br />
fenômeno possuem o mesmo estatuto: <strong>de</strong> um fenômeno.Quanto a isto <strong>de</strong>ixamos a questão<br />
para ser construí<strong>da</strong>.<br />
E, quanto a Leonar<strong>do</strong>: culpa, vergonha, punição, lei, dúvi<strong>da</strong>, obediência representavam<br />
seus significantes mestres enquanto que psoríase seu significante isola<strong>do</strong>. Ou melhor, o<br />
que o representava <strong>de</strong> fato como sujeito era ser marca<strong>do</strong>, ser um carne viva- um<br />
escama<strong>do</strong>- substituin<strong>do</strong> seu nome próprio.<br />
Durante a análise algumas rememorações surgiram. Lembrou-se que o irmão sempre<br />
fazia peripécias e ele era quem era “marca<strong>do</strong> na carne” . O pai pegava um chicote <strong>de</strong> cavalo<br />
e o castigava, o irmão o acusava e ele não sustentava pela palavra sua inocência. Como<br />
sempre moraram no litoral passear no mar transformou-se em sua rotina.. Contu<strong>do</strong>, como<br />
tinha a pele muito clara ficava vermelho com o excesso <strong>do</strong> sol e com a tez “escaman<strong>do</strong>, em<br />
carne viva”.<br />
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127
Sintoma: ruí<strong>do</strong> <strong>da</strong> alíngua 1 no corpo<br />
Silvia Amoe<strong>do</strong> 2<br />
“Minha alma tem o peso <strong>da</strong> luz. Tem o peso <strong>da</strong> música.<br />
Tem o peso <strong>da</strong> palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita.<br />
Tem o peso <strong>de</strong> uma lembrança. Tem o peso <strong>de</strong> uma sau<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Tem o peso <strong>de</strong> um olhar...”<br />
(Clarice Lispector)<br />
Po<strong>de</strong>-se dizer que o sintoma é um ruí<strong>do</strong> <strong>da</strong> alíngua no corpo? Dos casos clínicos<br />
oriun<strong>do</strong>s <strong>da</strong> experiência analítica, Freud extrai o conceito <strong>de</strong> sintoma analítico, <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong><br />
para o próprio sujeito e que dá corpo ao corpo <strong>do</strong> ser falante, antes inerte. Como representante<br />
<strong>de</strong> um evento traumático <strong>da</strong> alíngua, <strong>de</strong> fantasias <strong>do</strong> paciente resultantes <strong>de</strong> coisas ouvi<strong>da</strong>s na<br />
infância, o sintoma é um substituto <strong>de</strong> uma satisfação pulsional. Na formação <strong>do</strong> sintoma,<br />
Lacan dá ênfase às coisas ouvi<strong>da</strong>s antes <strong>da</strong> aquisição <strong>da</strong> linguagem, quan<strong>do</strong> a criança ain<strong>da</strong><br />
não tem acesso ao senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> significante, o que <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> a alíngua, cuja impressão sobre<br />
o corpo <strong>de</strong>ixa vestígio que ressurge, <strong>do</strong> real, como ruí<strong>do</strong> no corpo, anuncian<strong>do</strong> o impossível<br />
<strong>da</strong> relação sexual. O sintoma é um evento corporal, solução para a <strong>de</strong>s/or<strong>de</strong>m, divisão causa<strong>da</strong><br />
no ser falante pela alíngua.<br />
Para a psicanálise, os casos clínicos são imprescindíveis. A palavra “caso” vem <strong>do</strong><br />
latim casus, que quer dizer aquilo que cai. Caso é também acontecimento, eventuali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
casuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, situação particular, história, aventura amorosa. Do grego kline, a palavra<br />
1 No presente texto, a<strong>do</strong>tei a tradução proposta por Jairo Gerbase “alíngua” para o neologismo “lalangue”, o<br />
qual mantém, na fala a presença <strong>do</strong> equívoco, que só a escrita explicita.<br />
2 Membro <strong>da</strong> EPFCL – Fórum Natal<br />
128
“clínica” significa leito e, na experiência analítica, po<strong>de</strong>-se dizer, um leito sem barragem, pelo<br />
qual correm as palavras que tentam dizer <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> leito conjugal e <strong>do</strong> leito<br />
eterno, respectivamente a relação sexual e a morte. Inesgotáveis, os casos clínicos <strong>de</strong> Freud<br />
continuam, para to<strong>do</strong>s aqueles que se <strong>de</strong>bruçam sobre a fonte freudiana, jorran<strong>do</strong> no processo<br />
contínuo <strong>de</strong> criação <strong>da</strong> psicanálise.<br />
Mas o que se espera <strong>do</strong> tratamento analítico em relação ao sintoma, já que este é<br />
que sustenta, com substância <strong>de</strong> gozo, o corpo <strong>do</strong> ser falante? O que se po<strong>de</strong> escutar, na<br />
relação analítica – que dispõe precisamente <strong>da</strong> linguagem como instrumento –, <strong>do</strong> eco <strong>de</strong>sse<br />
evento corporal constituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> alíngua, antes <strong>da</strong> linguagem? São as pulsões no corpo, segun<strong>do</strong><br />
Lacan, o eco <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> que há um dizer [...] é preciso que o corpo lhe seja sensível<br />
(1975/1976, p.18).<br />
Para abor<strong>da</strong>r essas questões, preten<strong>do</strong>, com recortes clínicos, seguir alguns <strong>do</strong>s<br />
rastros <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s no divã. A palavra <strong>do</strong> analisante é o meio através <strong>do</strong> qual a psicanálise opera.<br />
É no dito <strong>do</strong> sujeito, sob transferência, que o inconsciente se atualiza, precisamente quan<strong>do</strong> o<br />
sujeito vacila, quan<strong>do</strong> diz ou duvi<strong>da</strong> e, ain<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> não consegue sequer dizer, como mostra<br />
a experiência analítica.<br />
O sujeito A., após ter-se submeti<strong>do</strong> a vários tratamentos para uma <strong>de</strong>rmatite <strong>de</strong><br />
contato, procura análise quan<strong>do</strong> conclui que o saber médico falhara em seu caso. Sobre o<br />
sintoma, ela sabe que se trata <strong>de</strong> uma reação alérgica <strong>da</strong> pele, quan<strong>do</strong> entra em contato com<br />
alguma substância; mas qual substância? A pele coça, formam-se bolhas, que viram feri<strong>da</strong>s,<br />
seca e <strong>de</strong>scama, num ciclo que se repete <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que A. se enten<strong>de</strong> por gente. Ela se queixa:<br />
129
Isso faz com que eu não trabalhe na minha profissão e não tenha relação sexual com ninguém!<br />
E, coçan<strong>do</strong> a pele, passa a discorrer sobre suas impressões: sentia uma sensação estranha <strong>de</strong><br />
satisfação, quan<strong>do</strong> criança, ao escutar o ruí<strong>do</strong> <strong>da</strong>s unhas <strong>de</strong> sua mãe coçan<strong>do</strong> as costas <strong>de</strong> seu<br />
pai. De súbito, ela associa essa lembrança com a satisfação e o ruí<strong>do</strong> que escuta ao coçar as<br />
próprias feri<strong>da</strong>s <strong>do</strong> corpo. Encerro a sessão com a pergunta: Que ruí<strong>do</strong> é esse no corpo? O que<br />
isso quer dizer?<br />
Para que um dito seja ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, é preciso ain<strong>da</strong> que se o diga, que haja nele um<br />
dizer, (1972, O aturdito, p. 449). O sujeito A. diz que a cena tinha uma conotação sexual, que<br />
se expressava nos sussurros que seu pai emitia. As feri<strong>da</strong>s servem, então, como barreira, para<br />
me impedirem <strong>de</strong> tocar ou ser toca<strong>da</strong> por outro corpo? – pergunta. Isso é uma contradição:<br />
não faz senti<strong>do</strong>! – afirma, admitin<strong>do</strong> que gosta muito <strong>de</strong> tocar e ser toca<strong>da</strong>. Mas a pele<br />
<strong>de</strong>s/cama<strong>da</strong> continua a coçar, como se quisesse dizer coisas que não são <strong>do</strong> sujeito, para<br />
cessar a sensação in<strong>de</strong>finível que o pruri<strong>do</strong> provoca e o consequente ruí<strong>do</strong> que causa<br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m.<br />
O sujeito B., por sua vez, sofre com os <strong>de</strong>sarranjos que o acometem ca<strong>da</strong> vez em que<br />
é confronta<strong>do</strong> com uma situação em que tenha que <strong>da</strong>r prova <strong>de</strong> sua virili<strong>da</strong><strong>de</strong>. A pré/tensa<br />
relação sexual, como diz, configura-se como o maior <strong>de</strong>les e, só <strong>de</strong> pensar, a barriga começa a<br />
fazer um barulho estranho, ronca sem parar, culminan<strong>do</strong> numa <strong>de</strong>sinteria que o <strong>de</strong>ixa sem<br />
consistência. Ele se lembra <strong>de</strong> que, quan<strong>do</strong> criança, se excitava quan<strong>do</strong> ficava acor<strong>da</strong><strong>do</strong> na<br />
cama escutan<strong>do</strong> barulhos vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> quarto <strong>do</strong>s pais, e só <strong>do</strong>rmia <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ouvir os roncos <strong>do</strong><br />
pai, quan<strong>do</strong> se assegurava <strong>de</strong> que não haveria mais relação sexual entre eles. Isso o ator<strong>do</strong>ava.<br />
130
Pontuo: Sua barriga também ronca! Como indica Lacan (1975-1976), só é possível liberar<br />
algo <strong>do</strong> sintoma pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no<br />
significante que ressoe (p.18).<br />
No processo <strong>de</strong> associação livre, o sujeito B. <strong>de</strong>ixa entreverem-se alusões às<br />
experiências esqueci<strong>da</strong>s. Esse barulho retorna: Sonhei que tinha relações sexuais com uma<br />
mulher, uma mulher mu<strong>da</strong> – relata. Diz que as mulheres, quan<strong>do</strong> falam o acessam, mas que<br />
nenhuma mulher po<strong>de</strong> acessá-lo por inteiro, senão ele esgarça, como um teci<strong>do</strong>. E acrescenta:<br />
O melhor <strong>encontro</strong> sexual é mesmo no silêncio! O dito encobre um dizer – o real – que ex-<br />
siste no sujeito e que se anuncia assim: não há relação sexual – senão como interdição, no<br />
silêncio. Em Alíngua também é nó, diz Gerbase (2010, p. 65): ain<strong>da</strong> que se possa representar e<br />
discernir os ditos resta sempre algo que não se representa e que não se diz. A palavra falta e<br />
isto é sintoma <strong>do</strong> real.<br />
Sintoma <strong>do</strong> real? De que se trata? Sim, quero a palavra última que também é tão<br />
primeira que já se confun<strong>de</strong> com a parte intangível <strong>do</strong> real (Lispector, 1998, p.12). Seguir o<br />
fio <strong>do</strong> discurso analítico, segun<strong>do</strong> Lacan (1972-1973, p. 61), ten<strong>de</strong> para refraturar, marcar<br />
com uma curvatura própria, a <strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> alíngua.<br />
Retorno às fontes freudianas, aos primórdios, quan<strong>do</strong> Freud concebe o sintoma como<br />
resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma eventuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> história, na qual o sujeito era acometi<strong>do</strong> <strong>de</strong> algo,<br />
inassimilável, que lhe vinha <strong>de</strong> fora – o trauma.<br />
Desconheci<strong>do</strong>s para o próprio sujeito, os sintomas causam sofrimento, ao mesmo<br />
tempo em que expressam a realização <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo, pois resultam <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> gozar <strong>do</strong><br />
131
sujeito. Em lugar <strong>de</strong> modificar o mun<strong>do</strong> externo para a satisfação, a modificação se dá no<br />
próprio corpo <strong>do</strong> sujeito.<br />
Freud (1896, p. 185) constatou que, em qualquer caso e em qualquer sintoma, chega-<br />
se infalivelmente ao campo <strong>do</strong> gozo sexual. Embora a presença <strong>da</strong> significação <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
na etiologia <strong>da</strong>s neuroses, como substituto sexual, já tivesse chama<strong>do</strong> a atenção <strong>de</strong> Freud<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras observações clínicas, naquela ocasião, como ele mesmo disse, ele não<br />
tinha ain<strong>da</strong> aprendi<strong>do</strong> a reconhecê-la como seu <strong>de</strong>stino inexorável, como impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
relação sexual.<br />
Esse não saber que se revela no sintoma, e em outras formações <strong>do</strong> inconsciente,<br />
conduziu Freud a elaborar a hipótese sobre o inconsciente, que Lacan, em seu retorno a Freud,<br />
enunciou como estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem. Com a linguagem, como diz Lispector<br />
(1999, p. 176): Eu tenho à medi<strong>da</strong> que <strong>de</strong>signo – e este é o esplen<strong>do</strong>r <strong>de</strong> se ter uma<br />
linguagem. Mas eu tenho muito mais à medi<strong>da</strong> que não consigo <strong>de</strong>signar. A linguagem é a<br />
matéria-prima, o real é o lugar on<strong>de</strong> vou buscá-la – e como não acho. Posteriormente, Lacan<br />
acrescenta que o inconsciente é estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem nos efeitos <strong>de</strong> alíngua, que<br />
já estão lá como saber, vão bem além <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> que o ser que fala é suscetível <strong>de</strong> enunciar<br />
(Lacan, 1972-1973 p.190).<br />
O sintoma é um evento no corpo (Lacan, 1976, p. 565). Para Lacan, há o corpo<br />
imaginário, o corpo que encontra uni<strong>da</strong><strong>de</strong> com a antecipação <strong>da</strong> imagem corporal, quan<strong>do</strong> a<br />
criança, captura<strong>da</strong> pelo engo<strong>do</strong> especular, fabrica fantasias, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> uma imagem<br />
<strong>de</strong>spe<strong>da</strong>ça<strong>da</strong> <strong>do</strong> corpo até a forma <strong>da</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste. Mas é a linguagem que conce<strong>de</strong> ao ser<br />
132
falante um corpo simbólico, esteja ele vivo ou morto. Com a sepultura, <strong>da</strong> morte emerge o<br />
símbolo que preserva o corpo <strong>do</strong> ser vivente. O simbólico tem, portanto, relação com a<br />
permanência <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o que é humano e <strong>do</strong> próprio homem.<br />
O sintoma, como formação <strong>de</strong> significante, é uma metáfora, construí<strong>da</strong> como uma<br />
frase poética, que vale ao mesmo tempo por seu tom, sua estrutura, seus trocadilhos, seus<br />
ritmos, sua sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tu<strong>do</strong> se passa em diversos planos, e tu<strong>do</strong> é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m e <strong>do</strong> registro <strong>da</strong><br />
linguagem (Lacan, 1953, p.24). Como observa Lacan, os sintomas <strong>de</strong> Dora, caso clínico <strong>de</strong><br />
Freud, são elementos significantes, mas na medi<strong>da</strong> em que sob eles corre um significa<strong>do</strong><br />
perpetuamente em movimento, que é a maneira como Dora aí se implica e se interessa (1956 -<br />
1957, p.149).<br />
Sobre a linguagem, diz Lispector (1999): A linguagem é meu esforço humano. Por<br />
<strong>de</strong>stino tenho que ir buscar e por <strong>de</strong>stino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o<br />
indizível. O indizível só me po<strong>de</strong>rá ser <strong>da</strong><strong>do</strong> através <strong>do</strong> fracasso <strong>de</strong> minha linguagem. Po<strong>de</strong>-se<br />
dizer que a linguagem toca o gozo – o indizível, o <strong>encontro</strong> <strong>do</strong> real como mostra o sonho<br />
paradigmático <strong>do</strong> Homem <strong>do</strong>s lobos: “Sonhei que era noite e que eu estava <strong>de</strong>ita<strong>do</strong> na cama.<br />
[...] De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterroriza<strong>do</strong> ao ver que alguns lobos<br />
brancos estavam senta<strong>do</strong>s na gran<strong>de</strong> nogueira em frente <strong>da</strong> janela. Havia seis ou sete <strong>de</strong>les.<br />
[...] Com gran<strong>de</strong> terror, evi<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> ser comi<strong>do</strong> pelos lobos, gritei e acor<strong>de</strong>i” (FREUD,<br />
1918 [1914], p. 45).<br />
Além <strong>da</strong> sensação dura<strong>do</strong>ura <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que o sonho <strong>de</strong>ixou após o <strong>de</strong>spertar, <strong>do</strong>is<br />
fatores foram <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s pelo paciente: o olhar atento <strong>do</strong>s lobos, como se tivessem fixa<strong>do</strong><br />
133
to<strong>da</strong> a atenção sobre ele, e sua própria imobili<strong>da</strong><strong>de</strong> diante <strong>de</strong>sse olhar. Por trás <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
sonho, e<strong>xi</strong>stia provavelmente uma cena <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>, que ocorrera havia muito tempo.<br />
Em A terceira (1975), Lacan diz que o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma é o real, que retorna sempre<br />
ao mesmo lugar, que não cessa <strong>de</strong> se repetir para impedir o an<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s coisas – uma pedra<br />
no meio <strong>do</strong> caminho. O sintoma segue na contramão <strong>do</strong> projeto i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong> e e<strong>xi</strong>toso <strong>do</strong><br />
sucesso no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s; por outro la<strong>do</strong>, no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> um, <strong>do</strong> singular, as coisas<br />
caminham <strong>de</strong> forma satisfatória. Eis a política <strong>do</strong> sintoma.<br />
A mulher <strong>do</strong> ruí<strong>do</strong> e o homem <strong>do</strong> ronco po<strong>de</strong>m ser nomes próprios, respectivamente,<br />
<strong>do</strong>s sujeitos A. e B., nomes <strong>de</strong> gozo <strong>do</strong> sintoma, i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>res <strong>do</strong> ser falante. Ruí<strong>do</strong> e ronco<br />
são, assim como lobos, significantes <strong>da</strong> alíngua.<br />
REFERÊNCIAS<br />
FREUD, S. A etiologia <strong>da</strong> histeria (1896). In: Edição stan<strong>da</strong>rd <strong>brasil</strong>eira <strong>da</strong>s obras<br />
psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1980. v. 3.<br />
______. História <strong>de</strong> uma neurose infantil (1918 [1914]). In: _____. Edição stan<strong>da</strong>rd <strong>brasil</strong>eira<br />
<strong>da</strong>s obras psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1980. v. 17.<br />
GERBASE, J. Alíngua também é nó, 2010.<br />
LACAN, J. O Seminário – livro 4: a relação <strong>de</strong> objeto (1956-1957). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar,<br />
1995.<br />
______. O Seminário – livro 20: mais ain<strong>da</strong> (1972-1973). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1982.<br />
______. O Seminário – livro 23: o sintoma (1975-1976). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, ?<br />
______. O simbólico, o imaginário e o real (1953). In: Nomes-<strong>do</strong>-Pai. Tradução André Telles.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 2005.<br />
______. Joyce, o Sintoma (1976). In: Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Zahar, 2003.<br />
134
______. A terceira (1975). Inédito.<br />
LISPECTOR, C. Água Viva. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1998.<br />
______. A paixão segun<strong>do</strong> GH. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1999.<br />
135
Consi<strong>de</strong>rações sobre o gozo em um caso clínico <strong>de</strong> psoríase 1<br />
Heloísa Helena Aragão e Ramirez 2<br />
Tatiana Carvalho Assadi 3<br />
“... o que mais e<strong>xi</strong>ste <strong>de</strong> mim mesmo está <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>de</strong> fora, não tanto porque eu o tenha<br />
projeta<strong>do</strong>, mas por ter si<strong>do</strong> corta<strong>do</strong> <strong>de</strong> mim...” (Lacan, 1962-1663) 4<br />
Helena fora indica<strong>da</strong> para fazer análise por outra paciente que também “lutava contra a<br />
psoríase”, uma indicação que passou sem dúvi<strong>da</strong> pela suposição <strong>de</strong> saber uma vez que a analista<br />
estava vincula<strong>da</strong> à coor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> projeto aloca<strong>do</strong> no Instituto <strong>da</strong> Pele (UNIFESP): “Aspectos<br />
Psicológicos <strong>do</strong> Paciente com Vitiligo e Psoríase” liga<strong>do</strong> à Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sintoma e Corporei<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> FCL-<br />
SP. No entanto, nesse primeiro momento a transferência não estava coloca<strong>da</strong> na suposição <strong>de</strong> saber<br />
sobre o sujeito <strong>do</strong> inconsciente, como é <strong>de</strong> se esperar em um caso <strong>de</strong> análise, mas numa suposição <strong>de</strong><br />
saber sobre o objeto psoríase, com o qual Helena convivia há muito mais <strong>de</strong> 30 anos. Tanto foi assim<br />
que pediu à analista a indicação <strong>de</strong> um médico que pu<strong>de</strong>sse ajudá-la a se livrar <strong>de</strong> uma vez por to<strong>da</strong>s,<br />
“<strong>de</strong>ssa coisa horrorosa”, disso que “impregnou seu corpo”. Mostrou-se esperançosa e reanima<strong>da</strong> pela<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um “tratamento novo, mais abrangente” que conciliaria os avanços <strong>da</strong> medicina,<br />
1 O trabalho <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> no Instituto <strong>da</strong> Pele <strong>da</strong> UNIFESP nos colocou em contato com a psoríase, <strong>do</strong>ença <strong>de</strong> pele que no<br />
Brasil atinge mais <strong>de</strong> cinco milhões <strong>de</strong> pessoas. Trata-se <strong>de</strong> uma afecção crônica <strong>de</strong> causa <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong> que po<strong>de</strong> se<br />
apresentar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> formas mínimas com pouquíssimas lesões até a chama<strong>da</strong> psoríase eritrodérmica, na qual to<strong>da</strong> a pele se<br />
encontra comprometi<strong>da</strong>. A forma mais frequente é a psoríase em placas, que se caracteriza pelo surgimento <strong>de</strong> lesões<br />
avermelha<strong>da</strong>s e <strong>de</strong>scamativas na pele. Em boa parte <strong>do</strong>s casos, consi<strong>de</strong>ra-se que fenômenos emocionais estão relaciona<strong>do</strong>s<br />
com o surgimento ou o agravamento <strong>da</strong> psoríase, associa<strong>do</strong> a uma predisposição genética para a <strong>do</strong>ença. O mal estar<br />
geralmente é causa<strong>do</strong> pela coceira e pelo pruri<strong>do</strong> provoca<strong>do</strong>, e, especialmente, nos casos mais severos, pelo aspecto <strong>da</strong>s<br />
lesões.<br />
2 – heloramirez@gmail.com<br />
3 – tatiassadi@uol.com.br<br />
4 LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia[1962-1963]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2005.<br />
136
cuja expectativa era por um fim às feri<strong>da</strong>s <strong>de</strong> seu corpo, mais a aju<strong>da</strong> <strong>da</strong> psicanálise. Lacan em a<br />
Terceira 5 diz e<strong>xi</strong>ste uma expectativa <strong>de</strong> um ê<strong>xi</strong>to <strong>da</strong> psicanálise: “O que lhe pedimos é que ela nos<br />
livre tanto <strong>do</strong> real quanto <strong>do</strong> sintoma”. Mas sabemos, enquanto psicanalistas, que não é <strong>de</strong>ste lugar<br />
que <strong>de</strong>vemos respon<strong>de</strong>r. Foi justamente isso que me fez rever este caso, pensar o que operou e qual<br />
foi o manejo que produziu um efeito terapêutico e reduziu a psoríase à zero. Diferentemente <strong>da</strong><br />
<strong>de</strong>man<strong>da</strong> médica cujo princípio é eliminar o sintoma, para a psicanálise “o sintoma é uma formação<br />
<strong>de</strong> gozo singular <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> ou or<strong>de</strong>na<strong>da</strong> pelo inconsciente” 6 , e atua como ‘solução’ uma vez que<br />
surge na suplência ao “corpo a corpo <strong>de</strong> gozo”. A questão que está posta é “saber se e como a<br />
psicanálise, que opera pela palavra, dá um acesso eficiente a algo <strong>do</strong> corpo que seria real.” 7<br />
O que <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Helena foi subtraí<strong>do</strong> e inscrito no real <strong>do</strong> corpo? Nos primeiros <strong>encontro</strong>s<br />
com o dispositivo <strong>de</strong> análise ela se limitou a <strong>de</strong>screver o longo percurso que trilhou e os <strong>de</strong>talhes <strong>da</strong><br />
sua peregrinação na busca <strong>de</strong> algo que resolvesse sua psoríase. A analista manteve o silêncio durante<br />
boa parte <strong>da</strong>s entrevistas, e que foi interrompi<strong>do</strong> pela a questão: “Pare... Diga-me o que veio fazer<br />
aqui?” Surpresa pela repentina interrupção em sua falação, Helena consegue respon<strong>de</strong>r: “eu sei que<br />
boa parte <strong>do</strong> meu mal tem a ver com minha cabeça. Eu sei que tu<strong>do</strong> tem a ver com o meu emocional.<br />
Eu sei que você po<strong>de</strong> me aju<strong>da</strong>r”. Estabelecia-se aí um reposicionamento <strong>da</strong> analista, o início <strong>de</strong> uma<br />
transferência e uma mo<strong>de</strong>sta implicação com o dispositivo <strong>de</strong> análise.<br />
Foi o choro convulsivo e copioso o quê marcou, <strong>da</strong>í para frente, as entrevistas<br />
preliminares. Ao sentar-‐se na poltrona <strong>do</strong> consultório, invariavelmente, a garganta <strong>de</strong> Helena<br />
5<br />
A Terceira. 7° Congresso <strong>da</strong> Ecole Freudianne <strong>de</strong> Paris, 31/10/1974<br />
6<br />
Soler, C. “Sintoma, Acontecimento <strong>de</strong> corpo” in Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus “O Corpo Falante”. RJ, EPFCL, 2010. (p.31-‐<br />
52)<br />
7<br />
Soler, C. “A psicanálise e o corpo no ensino <strong>de</strong> Jacques Lacan” in Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus “O Corpo Falante”. RJ,<br />
EPFCL, 2010 (p.65-‐91)<br />
137
se embargava impedin<strong>do</strong>-‐a <strong>de</strong> falar livremente. Sua voz se ouvia entrecorta<strong>da</strong> por soluços, sons<br />
e funga<strong>da</strong>s e, muitas vezes apenas grunhi<strong>do</strong>s. Nestes momentos aflitivos esperava-‐se um<br />
tempo para que se recuperasse <strong>da</strong> angústia que a experiência suscitava até que pu<strong>de</strong>sse<br />
articular alguma fala. Em algumas sessões apenas sons, sem senti<strong>do</strong>, nenhuma palavra, não<br />
sabia o que dizer e nem porque o choro aflorava quan<strong>do</strong> estava com a analista. Helena não<br />
compreendia o que se passava, era algo mais forte <strong>do</strong> que ela, alguma coisa que fugia ao seu<br />
controle. Estes episódios me fizeram pensar em algo como uma re-‐atualização <strong>de</strong> lalíngua.<br />
Seria possível? Um som separa<strong>do</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, mas afeta<strong>do</strong>, goza<strong>do</strong> pelo corpo, um som re-‐<br />
atualiza<strong>do</strong> na experiência <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> uma erupção <strong>de</strong> gozo cuja origem aconteceu mesmo<br />
antes <strong>da</strong> fala primeira? Esta é uma questão que merece consi<strong>de</strong>ração maior e que <strong>de</strong>ixo aqui<br />
para futura discussão.<br />
Extraí <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Helena alguns pontos importantes para relatar. Somente agora que<br />
ela estava com quase 60 anos resolvera procurar por uma análise. Vivera to<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> abala<strong>da</strong><br />
pela tristeza. “Sozinha” não tinha com quem contar. Havia muito tempo que sua família se<br />
“acabara”. Hoje só tem um irmão vivo e não consegue se enten<strong>de</strong>r com ele. Mas, sempre foi<br />
assim: “sozinha”! Tinha apenas <strong>de</strong>z anos na época em que sua mãe morrera, foi terrível porque<br />
“ain<strong>da</strong> precisava muito <strong>de</strong>la”. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Helena começou a sentir a falta <strong>da</strong> mãe pelo menos<br />
uns <strong>do</strong>is anos antes <strong>de</strong> sua morte quan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>ença começou a se agravar e a se tornar<br />
insuportável. Ela <strong>de</strong>finhava a ca<strong>da</strong> dia e sua ausência se fazia sentir em presença. Lembra-‐se<br />
que ela gemia e chorava bai<strong>xi</strong>nho e que <strong>de</strong> seu quarto podia ouvir os seus ais e os soluços <strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>r. O vômito e as cuspara<strong>da</strong>s também faziam muito barulho, ficavam ecoan<strong>do</strong> em seus<br />
138
ouvi<strong>do</strong>s ao ponto <strong>de</strong> precisar tapá-‐los para conseguir <strong>do</strong>rmir. Recor<strong>da</strong>-‐se <strong>da</strong> impotência <strong>do</strong> pai<br />
diante <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença <strong>da</strong> mãe e relata uma cena on<strong>de</strong> o vê senta<strong>do</strong> numa ca<strong>de</strong>ira, com as mãos na<br />
cabeça como se a apertasse, choran<strong>do</strong> <strong>de</strong>sespera<strong>do</strong> “feito uma criança. Me <strong>de</strong>u muita pena <strong>de</strong>le,<br />
nunca mais consegui esquecer isso”, diz.<br />
Outras cenas, porém <strong>da</strong>ntescas, povoavam seus pensamentos. Na primeira <strong>de</strong>las, sua mãe<br />
encantrava-‐se senta<strong>da</strong> à beira <strong>da</strong> cama, muito páli<strong>da</strong>, seguran<strong>do</strong> nas mãos um penico cheio <strong>de</strong><br />
sangue. “Ela cuspia sangue. Era um horror”. Aquele foi um perío<strong>do</strong> marca<strong>do</strong> por uma série <strong>de</strong><br />
acontecimentos carrega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>salento e que ficaram para sempre em sua memória. No dia<br />
em que a mãe morreu Helena voltou <strong>da</strong> escola e levou um gran<strong>de</strong> susto. Ao entrar na sala<br />
<strong>de</strong>parou-‐se com o caixão ilumina<strong>do</strong> apenas pelas velas acesas em meio à sala escura. Naquele<br />
tempo era costume velar os mortos em casa e forravam-‐se as pare<strong>de</strong>s com um pano preto<br />
numa <strong>de</strong>monstração <strong>do</strong> luto em que se viam envolvi<strong>do</strong>s os familiares já que o preto era a<br />
representação <strong>do</strong> na<strong>da</strong> <strong>da</strong> ausência e <strong>da</strong> escuridão. Helena disse que foi um “horror” tão gran<strong>de</strong><br />
que ela saiu <strong>da</strong> sala gritan<strong>do</strong> e choran<strong>do</strong>. “O meu pai teve o bom senso <strong>de</strong> não me <strong>de</strong>ixar ir ver o<br />
enterro <strong>de</strong>la”. Helena diz que “o mais impressionante” acontecimento <strong>da</strong>queles tempos foi o<br />
fato <strong>de</strong> que para ela era como se a mãe não tivesse morri<strong>do</strong>. Passou anos mentin<strong>do</strong> para as<br />
colegas <strong>do</strong> colégio, fingin<strong>do</strong> que sua mãe estava viva. Quan<strong>do</strong> alguém perguntava pela mãe ela<br />
tinha sempre uma resposta pronta ou criava uma nova história. Dizia: “minha mãe não gosta;<br />
ou minha mãe não quer que eu fique na rua; minha mãe não <strong>de</strong>ixa; tenho que ir para casa<br />
porque minha mãe tá esperan<strong>do</strong>, etc.”. Deixou <strong>de</strong> participar <strong>da</strong> festa <strong>de</strong> formatura <strong>do</strong> colégio<br />
porque não tinha como apresentar a mãe. Estas lembranças foram, nas sessões, sempre<br />
139
acompanha<strong>da</strong>s <strong>de</strong> muita angústia e comoção. Helena <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>da</strong> analista uma resposta sobre<br />
a razão <strong>de</strong> fazer o que fazia. Porque não dizia que a mãe já estava morta? “Tem <strong>de</strong> haver<br />
alguma razão, sabe eu sinto falta <strong>de</strong>la até hoje. Morrer o pai é difícil, mas a mãe...”<br />
Foram mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos alimentan<strong>do</strong> a fantasia <strong>de</strong> que a mãe estava viva. Uma estratégia<br />
para não sofrer a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> luto. Sem per<strong>da</strong>, não há separação. Foi à concreção imaginária <strong>do</strong><br />
objeto <strong>de</strong> amor perdi<strong>do</strong> que garantiu a Helena sustentar a falta que a mãe lhe fez privan<strong>do</strong>-‐a <strong>de</strong><br />
proteção e amor. A invocação <strong>de</strong>ste espectro assegurava-‐lhe a ilusão <strong>de</strong> que ela estava viva<br />
suprin<strong>do</strong>-‐a, <strong>de</strong>sta forma <strong>do</strong> <strong>de</strong>samparo avassala<strong>do</strong>r. Não era uma visão fantasmagórica no<br />
senti<strong>do</strong> clássico <strong>da</strong> palavra: quimérica e assusta<strong>do</strong>ra que aparece inoportunamente. Ao<br />
contrário era uma fixação, uma obsessão protetora que garantia sua sobrevivência <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-‐lhe<br />
forças para o: “eu aprendi tu<strong>do</strong> na rua, <strong>do</strong> jeito que <strong>de</strong>u, com as amigas”. Levanto aqui a<br />
hipótese <strong>de</strong> que esta não era uma simples falta que se substituiria por algum outro objeto, mas<br />
algo com valor <strong>de</strong> um furo, insubstituível, que fazia <strong>de</strong>saparecer o lugar na combinatória, a falta<br />
no lugar <strong>do</strong> Outro. Helena não conseguiu re-‐atualizar esta falta fun<strong>da</strong>mental, porque não havia<br />
a condição para isso: não tinha ao seu la<strong>do</strong> o Outro <strong>de</strong>sejante. O lugar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre vazio que<br />
não po<strong>de</strong> ser ocupa<strong>do</strong> pela mãe, ela própria impotente, abriga o seu fantasma como forma <strong>de</strong><br />
cerzidura. “É na medi<strong>da</strong> em que a criança <strong>de</strong>scobre que o Outro <strong>de</strong>seja, que po<strong>de</strong>rá, por sua vez,<br />
<strong>de</strong>sejar sob a forma <strong>de</strong> um objeto que lhe retornaria como falta”. 8<br />
Os momentos <strong>de</strong>stas lembranças provocaram efeitos importantes na análise. A primeira<br />
cena, a <strong>do</strong> sangue, certamente faz referência à dimensão <strong>do</strong> real apontan<strong>do</strong> para um objeto não<br />
8 Nasio, J.-‐D., Psicossomática – As formações <strong>do</strong> objeto a. 1993 RJ, JZE .<br />
140
especular próprio <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> feminina. A segun<strong>da</strong> cena mostra o horror à morte irrompi<strong>do</strong><br />
pela presença implacável <strong>do</strong> corpo inerte, sem vi<strong>da</strong>. Cenas que apontam para o real em jogo e<br />
para um gozo específico.<br />
Os primeiros pontos <strong>de</strong> psoríase apareceram nos joelhos e cotovelos logo <strong>de</strong>pois que se<br />
menstruou pela primeira vez. Ficou apavora<strong>da</strong>. Não tinha com quem falar sobre isso. Não sabia<br />
muito bem o que fazer com to<strong>do</strong> aquele sangue. Teve que se “virar” sozinha. Passan<strong>do</strong> o impacto <strong>da</strong><br />
menarca começaram a aparecer os primeiros pontinhos vermelhos, que só a incomo<strong>da</strong>vam pelo fato<br />
<strong>de</strong> coçar. Fez inúmeros tratamentos, passou por <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> médicos <strong>de</strong>rmatologistas e outras opções<br />
alternativas. Por ser um a <strong>do</strong>ença crônica enfrentou diversas crises, <strong>de</strong> maior ou menor amplitu<strong>de</strong> ao<br />
longo <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>. Em <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> ocasião atravessou uma bem forte em que teve sua pele afeta<strong>da</strong><br />
em quase 70%. As lesões estavam muito feias, a pele escamava e coçava sem parar. Como estava<br />
“muito ataca<strong>da</strong>” <strong>da</strong> psoríase, procurou um curan<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> quem havia obti<strong>do</strong> ótimas referências. Ele<br />
lhe ofereceu uma medicação cuja fórmula era composta com uma boa <strong>do</strong>se <strong>de</strong> cortisona. Helena<br />
sabia que a formulação continha a droga, mas não sabia <strong>do</strong>s efeitos colaterais que ela provocava e<br />
fez uso contínuo <strong>da</strong> solução. A psoríase <strong>de</strong>sapareceu no tempo em que usou o remédio. Alerta<strong>da</strong> pelo<br />
farmacêutico que lhe aplicava as injeções e diante <strong>do</strong> inchaço que apareceu em seu rosto parou <strong>de</strong><br />
usar a medicação. O efeito rebote 9 foi imediato, “um horror”, se viu ataca<strong>da</strong> por uma psoríase<br />
extremamente acentua<strong>da</strong>. No entanto, esta experiência foi importante para que conhecesse o efeito<br />
que a cortisona tem <strong>de</strong> “limpar” a pele quase que instantaneamente. Daí para frente Helena passa a<br />
fazer um uso conveniente <strong>do</strong> remédio sempre que tinha um <strong>encontro</strong> com alguém e sua pele estava<br />
9 O efeito rebote é a tendência que um medicamento tem <strong>de</strong> provocar o retorno <strong>do</strong>s sintomas que estão sen<strong>do</strong><br />
trata<strong>do</strong>s. Em casos extremos <strong>de</strong> efeito rebote o reaparecimento <strong>do</strong>s sintomas po<strong>de</strong>rão ser mais graves que no<br />
início <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença.<br />
141
“ataca<strong>da</strong>” besuntava-se com uma poma<strong>da</strong> e se livrava <strong>do</strong> constrangimento <strong>de</strong> sentir a mão <strong>do</strong><br />
companheiro no seu corpo áspero. Estes eram tempos <strong>de</strong> amor quan<strong>do</strong> oferecia seu corpo,<br />
narcisicamente investi<strong>do</strong> ao outro.<br />
Porque privilegiar esta história e o que nesta história foi pinça<strong>do</strong> como fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong><br />
clínica? Seguramente, porque aqui repercute a forma como foi escrita e que se repete quase<br />
que invariavelmente em outros casos que temos atendi<strong>do</strong> no Instituto <strong>da</strong> Pele quan<strong>do</strong> se trata<br />
<strong>de</strong> algo como psicossomática. Foi escrita no corpo, ou melhor, inscrita no corpo, incrusta<strong>da</strong> na<br />
carne em forma <strong>de</strong> lesão, uma linguagem que não passou pela simbolização, uma escrita<br />
hieroglífica, ilegível, in<strong>de</strong>cifrável, mas, que po<strong>de</strong> perfeitamente se revelar, já que fenômeno<br />
psicossomático é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> mostração.<br />
Retoman<strong>do</strong> a teoria, na fun<strong>da</strong>mentação <strong>do</strong> fenômeno psicossomático o que ocorre é uma<br />
incidência <strong>do</strong> significante sobre o corpo em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um fracasso <strong>da</strong> função <strong>do</strong> Nome-‐<strong>do</strong>-‐Pai,<br />
um holofraseamento, permitin<strong>do</strong> que se estruture alguma coisa que é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> letra. S1<br />
cola em S2, sem o intervalo que possibilita a divisão <strong>do</strong> sujeito. Como não e<strong>xi</strong>ste intervalo, não<br />
e<strong>xi</strong>ste também objeto perdi<strong>do</strong>, estilhaços pulsionais. O sujeito é compacta<strong>do</strong> ao objeto. É como<br />
se to<strong>do</strong> o narcisismo se concentrasse nessa “marca que é antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> uma assinatura”... Além<br />
disso, Lacan 10 fala em auto-erotismo sem relação <strong>de</strong> objeto, e precisa, “que a indução<br />
significante, no nível <strong>do</strong> sujeito se passa <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> que não coloca em jogo a afânise”,<br />
10 LACAN, J. (1961) O Seminário. Livro 11 – Os quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> psicanálise. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, JZE, 1973 – 3ªed., p. 215.<br />
142
eferin<strong>do</strong>-‐se a uma espécie <strong>de</strong> bloqueio, “<strong>de</strong> congelamento <strong>do</strong> significante no corpo, um curto<br />
circuito que será responsável pelas manifestações corporais”. 11<br />
Isso significa que o sistema significante per<strong>de</strong> sua consistência, já que um significante não<br />
se remete mais a outro significante. Assim, conforme Nasio 12 “há um objeto, e <strong>de</strong>pois uma<br />
chama<strong>da</strong> significante que não teve resposta significante, mas teve uma resposta <strong>de</strong> objeto. A<br />
psoríase é uma resposta objeto para uma chama<strong>da</strong> significante, um significante remete a uma<br />
psoríase.” Um significante é inventa<strong>do</strong> que não é <strong>do</strong> Outro, é <strong>do</strong> Um, diferente <strong>do</strong>s outros e tem<br />
valor <strong>de</strong> real.<br />
No entanto, o que faz a psicanálise operar diante <strong>de</strong> um acontecimento <strong>de</strong> corpo, cujos<br />
significantes estão encarna<strong>do</strong>s, ou ain<strong>da</strong> qual é a direção <strong>do</strong> tratamento diante <strong>da</strong> toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> corpo<br />
pelo fenômeno? Retomo Lacan 13 : “É por esse viés, pela revelação <strong>do</strong> gozo específico que há na sua<br />
fixação que sempre é preciso visar abor<strong>da</strong>r o psicossomático.” De que gozo específico se trata no<br />
psicossomático? Trata-se <strong>de</strong> um gozo fora <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, um gozo que ex-siste ao senti<strong>do</strong>, um gozo<br />
corta<strong>do</strong> <strong>da</strong> relação com o Outro, auto-erótico, um gozo <strong>do</strong> corpo próprio. Um gozo que nos remete a<br />
uma foraclusão <strong>da</strong> significação fálica, portanto, <strong>do</strong> gozo fálico. No caso em questão vimos,<br />
claramente, a prevalência <strong>do</strong> imaginário sobre o real. Não havia equivalência entre as consistências.<br />
A estratégia foi fazer o sujeito trabalhar na elaboração <strong>do</strong> luto, isto é na simbolização <strong>do</strong> que há <strong>de</strong><br />
mais fun<strong>da</strong>mental: o <strong>de</strong>samparo, o que incindiu no para além <strong>do</strong> horror. Para isso foi necessário, <strong>de</strong><br />
11 Este parágrafo também faz parte <strong>do</strong> artigo A Fantasia Encarna<strong>da</strong>: um estu<strong>do</strong> sobre o fenômeno<br />
psicossomático. Heloísa Helena Aragão e Ramirez & Christian Ingo Lenz Dunker.<br />
12 NASIO. J.-‐D. “Psicossomática” – as formações <strong>do</strong> objeto a. RJ, JZE, 1983.<br />
13 In Conferência em Genebra sobre o sintoma.<br />
143
fato, per<strong>de</strong>r a mãe, o objeto ama<strong>do</strong>, o que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou sessões tão angustiantes. Paralelamente o<br />
sujeito trabalhou com o gozo implica<strong>do</strong> no significante “sozinha” e no laço que isso fazia com a<br />
psoríase, e com a <strong>do</strong>r, já que Helena “sentiu na pele” o aban<strong>do</strong>no. “... pois o que eu chamo <strong>de</strong> gozo,<br />
no senti<strong>do</strong> em que o corpo se experimenta, é sempre <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> tensão, <strong>do</strong> forçamento, <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa e<br />
até mesmo <strong>da</strong> façanha. Incontestavelmente, há gozo no nível em que começa a aparecer a <strong>do</strong>r, e<br />
sabemos que é somente nesse nível <strong>da</strong> <strong>do</strong>r que se po<strong>de</strong> experimentar to<strong>da</strong> uma dimensão <strong>do</strong><br />
organismo que, <strong>de</strong> outra forma, permanece vela<strong>da</strong>.” 14<br />
Mas, Helena não conseguiu sustentar a experiência e vai-‐se embora. Diz para analista:<br />
“chega não agüento mais, não quero mais sofrer, vou parar <strong>de</strong> vir aqui, não estou suportan<strong>do</strong>!”<br />
Restou à analista o sentimento <strong>de</strong> não ter sabi<strong>do</strong> manejar a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente a angústia.<br />
Pouco antes <strong>do</strong> Natal Helena man<strong>do</strong>u notícias por uma amiga. Pediu-‐lhe para me dizer<br />
que estava muito bem, sem angústias e sem a psoríase. Estava “limpa <strong>de</strong> corpo e alma” e que<br />
agra<strong>de</strong>cia aos céus, to<strong>do</strong>s os dias, o tempo em que esteve em análise. Foi bom saber disto. No<br />
entanto, se o paciente melhorou ou não, não é disso que se trata se pensarmos no sintoma<br />
como uma solução inconsciente <strong>da</strong><strong>da</strong> por ca<strong>da</strong> um “diante <strong>do</strong> enigma <strong>do</strong> corpo e seu saber” 15 . No<br />
entanto, penso que o fenômeno psicossomático é um acontecimento <strong>de</strong> corpo diferente <strong>do</strong><br />
acontecimento <strong>de</strong> corpo <strong>da</strong><strong>do</strong> pela via <strong>da</strong> histeria. É um fenômeno <strong>de</strong> corpo é “o <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong><br />
um corpo que em sua essência é silencioso.” 16 Não diz respeito à imisção <strong>do</strong> significante no<br />
corpo, mas a uma fixação, a uma colagem <strong>do</strong> par S1 – S2. “Se evoquei uma metáfora como a <strong>do</strong><br />
14 LACAN, J. 1966, “O Lugar <strong>da</strong> psicanálise na medicina” in Opção Lacaniana n° 32<br />
15 Izcovich, L. O Corpo Sintoma. In Prelúdio para “O Mistério <strong>do</strong> Corpo Falante” maio/2010.<br />
16 I<strong>de</strong>m.<br />
144
congela<strong>do</strong>, é porque e<strong>xi</strong>ste, efetivamente, essa espécie <strong>de</strong> fixação... O corpo se <strong>de</strong>ixa levar para<br />
escrever algo <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> número.” 17 Exatamente por isso é que Lacan recomen<strong>da</strong> tratar o<br />
psicossomático pelo viés <strong>do</strong> gozo. É preciso que o gozo tome um senti<strong>do</strong>. Assim, no manejo <strong>da</strong><br />
clínica com o paciente psicossomático é preciso fazê-‐lo trabalhar para chegar ao “senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
que se trata”, já que ele se encontra profun<strong>da</strong>mente “arraiga<strong>do</strong> no imaginário” e para <strong>da</strong>r<br />
senti<strong>do</strong> ao gozo é preciso que se fale <strong>de</strong>le.<br />
17 Lacan, J. (1975) Conferência <strong>de</strong> Genebra sobre o sintoma In Opção Lacaniana – Revista Brasileira <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong>. São<br />
Paulo, 1998, n°23, p 6-‐16.<br />
145
Sinthome: o real <strong>do</strong> sintoma<br />
Maria <strong>da</strong>s Graças Soares 1<br />
“Sou um apanha<strong>do</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdícios.<br />
Amo os restos como as boas moscas.” Manoel <strong>de</strong> Barros<br />
Neste trabalho, <strong>de</strong> caráter introdutório, tentarei abor<strong>da</strong>r a relação <strong>de</strong> circulari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
entre lalangue, sintoma e sinthome, como o <strong>de</strong>monstra a teoria lacaniana.<br />
Pré-história <strong>da</strong> linguagem no sujeito, lalangue é o tempo no qual o bebê, ain<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong>ita<strong>do</strong> no berço, sofre os efeitos <strong>da</strong> lingua materna, que lhes <strong>de</strong>ixam marcas in<strong>de</strong>léveis no<br />
corpo. Tempo em que a linguagem para ele é ruí<strong>do</strong>, ou rumores humanos, que lhes <strong>de</strong>signa<br />
um lugar no campo <strong>do</strong> Outro, como um sujeito “escuta-<strong>do</strong>r”. Ali, apenas se articulam letra e<br />
gozo.<br />
Com o advento <strong>da</strong> linguagem ele mu<strong>da</strong> para a posição <strong>de</strong> um “fala-<strong>do</strong>r”, que, a<br />
posteriori, <strong>de</strong>ita<strong>do</strong> num divã, po<strong>de</strong>rá se <strong>de</strong>slocar para a posição <strong>de</strong> um “fazer-<strong>do</strong>r” quan<strong>do</strong>,<br />
com a letra <strong>do</strong> alfabeto <strong>de</strong> lalangue escreve seu sinthome.<br />
Na última lição <strong>do</strong> Seminário 20, Lacan diz que lalangue, não é, senão, “rastro <strong>de</strong><br />
gozo on<strong>de</strong> a linguagem cavalga sobre ela”. Daí se concluir ser o significante uma invenção a<br />
partir <strong>de</strong> algo que já está lá para ser li<strong>do</strong>.<br />
1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -‐ Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum <strong>de</strong> Fortaleza<br />
146
A propósito <strong>da</strong> articulação entre lalangue e a construção <strong>do</strong> sinthome, pressupõe-se<br />
que e<strong>xi</strong>ste um meio. Esse meio é o “sintoma” <strong>do</strong> inicio <strong>de</strong> uma análise, que põe em cena o<br />
sujeito “conta-<strong>do</strong>r”, que com seu sintoma , dirige-se ao analista na forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong>.<br />
Sujeito, por que é ele quem fala, mas o quê ele diz é lalangue que fala nele, pois elucubrar<br />
sobre lalangue é o que se faz numa análise.<br />
A propósito <strong>do</strong> sintoma e as transformações conceituais sofri<strong>da</strong>s na teoria, lembremos<br />
que algo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inicio permanece. Em Sintoma, Inibição e Angustia” Freud diz que “<br />
sintoma é gozo”.<br />
Para Lacan, no inicio <strong>de</strong> seu ensino, o sintoma era metáfora, mensagem dirigi<strong>da</strong> ao<br />
Outro, enigma, que uma vez <strong>de</strong>sven<strong>da</strong><strong>do</strong>, tinha efeito <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em “Função e campo <strong>da</strong><br />
fala e <strong>da</strong> linguagem”, embora ele diga, literalmente, que, “está perfeitamente claro que o<br />
sintoma, por ser pleno <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, se resolve por inteiro numa análise linguajeira”, já faz<br />
notar a coe<strong>xi</strong>stência, no sintoma, <strong>do</strong> simbólico e <strong>do</strong> real. Cito Lacan:“ o sintoma é símbolo<br />
inscrito na areia <strong>da</strong> carne e no véu <strong>de</strong> Maia.” O sintoma enquanto símbolo “inscrito”pertence<br />
ao campo <strong>do</strong> simbólico, mas “escrito” sob o véu <strong>de</strong> Maia, não estaria também no campo <strong>do</strong><br />
real? A titulo <strong>de</strong> esclarecimento, a expressão “Véu <strong>de</strong> Maia,” é usa<strong>da</strong> pelos orientais para<br />
dizer que “ver algo sob o véu <strong>de</strong> Maia faz também e<strong>xi</strong>stir o que não e<strong>xi</strong>ste, tamponan<strong>do</strong><br />
assim, a incompletu<strong>de</strong> tão angustiante para o sujeito. Sem ele, sem o véu <strong>de</strong> Maia, constata-se<br />
rapi<strong>da</strong>mente o “na<strong>da</strong>”. Em RSI Lacan confirma isso ao afirmar que já estava na idéia <strong>do</strong><br />
“Discurso <strong>de</strong> Roma” que o inconsciente ex-siste, que ele condiciona o Real.<br />
147
A partir <strong>do</strong> inicio <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1970 Lacan se afasta <strong>do</strong> pensamento estruturalista,<br />
on<strong>de</strong> o simbólico <strong>de</strong>tinha primazia nas estruturas clinicas, para trabalhar com a perspectiva<br />
<strong>de</strong> uma equivalência entre os três registros, e,a estrutura <strong>do</strong> sujeito passa a ser <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>,<br />
pela forma <strong>de</strong> enlaçamento <strong>do</strong> simbólico, <strong>do</strong> imaginário e <strong>do</strong> real: RSI, SIR, IRS.<br />
Ao introduzir a teoria <strong>do</strong>s nós na segun<strong>da</strong> parte <strong>do</strong> seu ensino, o “discurso” ce<strong>de</strong> lugar<br />
à escrita. Enquanto no primeiro se privilegiava a produção <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, na escrita o que<br />
prevalece é o sem-senti<strong>do</strong>. Isso traz mu<strong>da</strong>nças cruciais no manejo <strong>da</strong> transferência, pois<br />
Lacan alerta que “o efeito <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> a se e<strong>xi</strong>gir <strong>do</strong> discurso analítico não é imaginário, não é<br />
também simbólico; é preciso que seja real”. A assertiva anterior <strong>de</strong> que o simbólico faz furo<br />
no real, sofre uma torsão e agora, é o real que faz furo no simbólico. Há um gozo no<br />
significante irredutível à significação. Na clinica, não se trata mais apenas <strong>de</strong> escuta, mas<br />
<strong>do</strong> que se “lê no que se escuta”. Por certo o sintoma está emaranha<strong>do</strong> em lalangue e é <strong>da</strong><strong>do</strong> na<br />
clinica pela repetição.<br />
A teoria <strong>do</strong>s nós constitui a ultima elaboração <strong>de</strong> Lacan sobre o sintoma, chegan<strong>do</strong> à<br />
escrita <strong>do</strong> inconsciente por meio <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia borromeana. Nela o sinthoma surge como o<br />
quarto elemento, que ao enlaçar os três registros - agora equivalentes entre si – produz uma<br />
ca<strong>de</strong>ia bo, e como nos lembra Lacan, “ se há equivalência, não há relação”. À falta <strong>de</strong> relação<br />
sexual, o sujeito respon<strong>de</strong> com o sinthoma: Cito: “ Sinthoma é a resposta que o sujeito<br />
encontra frente ao gozo <strong>da</strong> falta <strong>de</strong> relação sexual”.<br />
148
No Seminário 23, Lacan <strong>de</strong>bruça-se sobre a obra <strong>de</strong> Joyce para teorizar a partir <strong>de</strong><br />
sua escrita. Para ele o escritor irlandês “acaba por ter visa<strong>do</strong> com sua arte, <strong>de</strong> maneira<br />
privilegia<strong>da</strong>, o quarto termo chama<strong>do</strong> sinthoma”.<br />
Artesão <strong>da</strong> literatura Joyce esculpe as palavras a partir <strong>de</strong> artifícios que cria com os<br />
rejuntes e recortes <strong>de</strong> fonemas, rompen<strong>do</strong> com a significação e e<strong>xi</strong>bin<strong>do</strong> o que se po<strong>de</strong> fazer<br />
com “lalangue”. Na conferência que Lacan proferiu no Blooms<strong>da</strong>y <strong>de</strong> 1975, ele batiza o<br />
escritor pelo nome “Joyce, o Sinthoma” por ele ter feito, com sua arte, o sinthome.<br />
Acrescenta: “ o sinthome é puramente o que lalangue condiciona e que o escritor conseguiu,<br />
com sua arte, elevar à potencia <strong>de</strong> linguagem, sem torná-lo analisável”.<br />
Uma breve passagem <strong>do</strong> “Retrato <strong>do</strong> artista quan<strong>do</strong> jovem” torna evi<strong>de</strong>nte as razões<br />
que levaram a Lacan teorizar em cima <strong>da</strong> literatura <strong>de</strong> Joyce. Uma breve passagem <strong>do</strong> livro é<br />
suficiente para nos <strong>da</strong>r essa clareza. Nela, Joyce consegue <strong>de</strong>spir o significante ‘xuxu”<strong>de</strong><br />
to<strong>da</strong> sua significação e reduzi-lo ao “osso”escreven<strong>do</strong> apenas um resto sonoro<br />
“chuuuuuuuuuuu” , on<strong>de</strong> o leitor para lê-la terá que usar apenas a voz , provan<strong>do</strong> que a<br />
linguagem não se reduz apenas a produção <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. Por outro la<strong>do</strong>, a onomatopéia<br />
comum à sua escrita, remete ao mecanismo <strong>do</strong>s sonhos que tem seu ápice em seu ultimo<br />
trabalho “Finegans Wake” – narrativa <strong>de</strong>nsa que se inicia com uma palavra <strong>de</strong> 100 letras para<br />
<strong>de</strong>screver uma que<strong>da</strong>, e que o leitor para lê-la também terá que usar a própria voz como<br />
suporte <strong>da</strong> palavra, articulan<strong>do</strong> a escrita com a função <strong>da</strong> fonação. A partir <strong>de</strong>sses exemplos<br />
<strong>de</strong>nota-se que o texto <strong>de</strong> Joyce é uma escritura.<br />
149
Retornan<strong>do</strong> à função <strong>do</strong> sinthome na estrutura <strong>do</strong> sujeito, parto <strong>da</strong> seguinte questão: o<br />
sinthoma enquanto quarto elo na ca<strong>de</strong>ia borromeana, é próprio à estrutura neurótica? Se a<br />
resposta é afirmativa, como po<strong>de</strong>ria Lacan, pensá-lo em relação à Joyce?<br />
Lacan não diz que Joyce era psicótico. Diz, para usar suas palavras, que Joyce tinha<br />
“o pau um pouco mole”, e por isso precisou <strong>de</strong> sua arte para manter sua firmeza fálica. Sua<br />
arte, para Lacan, é o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro fia<strong>do</strong>r <strong>de</strong> seu falo, pois sem ela ele continuaria a ser um<br />
pobre diabo e não o herói que toma corpo em Stephen Hero, <strong>do</strong> “Retrato...” Sua arte - seu<br />
sinthome – fez funçao <strong>de</strong> S¹ que, ao <strong>da</strong>r força a seu ego, estabiliza sua estrutura ao torna-se o<br />
pai que nomeia. E é claro, observa Lacan, que a arte <strong>de</strong> Joyce é alguma coisa <strong>de</strong> tão particular<br />
que o termo sinthoma é <strong>de</strong> fato o que lhe convém, que enquanto suplência <strong>da</strong> carência <strong>do</strong><br />
nome <strong>do</strong> pai, dá à estrutura <strong>de</strong> Joyce um”ar” <strong>de</strong> neurose.<br />
Na primeira aula <strong>do</strong> seminário sobre Joyce, Lacan afirma ser o complexo <strong>de</strong> Édipo<br />
como tal, um sintoma. É na medi<strong>da</strong> em que o Nome-<strong>do</strong>-Pai é também o Pai <strong>do</strong> Nome, que<br />
tu<strong>do</strong> se sustenta, o que não torna o sintoma menos necessário”.<br />
A fórmula <strong>da</strong> metáfora paterna no primeiro tempo <strong>de</strong> seu ensino nos trás o Nome <strong>do</strong><br />
pai operan<strong>do</strong> como “S²”, em substituição ao <strong>de</strong>sejo <strong>da</strong> mãe; agora ele surge como S1,<br />
significante mestre que tem função <strong>de</strong> nomeação enquanto ato.<br />
Concluin<strong>do</strong>, retorno ao inicio, para me reportar à relação circular entre lalangue,<br />
sintoma e sinthoma, e assim, afirmar que lalangue está lá <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inicio, sen<strong>do</strong> ela a condição<br />
<strong>da</strong> linguagem, e como observa Lacan “o equivoco toma conta <strong>de</strong> nossa lalangue, e o que ela<br />
tem <strong>de</strong> mais picante é o que posso escrever como “mais isso não”. Se diz tu<strong>do</strong>, mas isso não.<br />
150
Posso dizer que O mais isso não, aquilo que <strong>de</strong> lalangue não se po<strong>de</strong> dizer, é o que introduzo<br />
como sinthome.”Um resto, que, mesmo in<strong>de</strong>strutível, reciclável.<br />
Bibliografia<br />
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Joyce, J - Um retrato <strong>do</strong> artista quan<strong>do</strong> jovem – Ed. Objetiva, 2006 – Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Lacan, J – D’Ecolage ( 1980) in Revista <strong>da</strong> Letra Freudiana– nº 0 ano 1: Rio-RJ<br />
______ - La Tercera – Discurso <strong>de</strong> Roma – in Intervenções Y Textos nº 2 – ed. Manatial<br />
Argentina- 1988<br />
_______ - Seminário 18 – “ De um discurso que no fuese <strong>de</strong>l semblante – 1971 – versão <strong>da</strong><br />
Escuela Freudiana <strong>de</strong> Argentina.<br />
_______ - Seminário RSI – 1974/5 – Versão para circulação interna <strong>do</strong> CEF – Recife –PE.<br />
_______ -Seminário 23 – O Sinthoma – Zahar ed.Rio <strong>de</strong> Janeiro – 2007<br />
_______ - Levin,S - Transferência em um análisis Y ca<strong>de</strong>na borromea <strong>de</strong> cuatro nu<strong>do</strong>s – in<br />
Topologia Y Psicanálisis. EFBA – Buenos Aires - 1994<br />
_______ - Função e campo <strong>da</strong> palavra e <strong>da</strong> linguagem ( 1953) in Escritos, Zahar Ed.<br />
Rabinovitch, S. - Les Voix – Collection Point Hors Lingne – Ed. Erès – Paris Fr.<br />
151
Sintoma e Fantasia Fun<strong>da</strong>mental<br />
Soraya Carvalho 1<br />
Partin<strong>do</strong> <strong>da</strong> concepção que o conceito <strong>de</strong> fantasia está subsumi<strong>do</strong> ao conceito <strong>de</strong><br />
sintoma, este trabalho preten<strong>de</strong> esclarecer a relação entre esses conceitos em momentos<br />
distintos <strong>do</strong> pensamento psicanalítico: inicialmente, a partir <strong>da</strong> <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> inconsciente<br />
estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem, produzin<strong>do</strong> o sintoma na sua dimensão simbólica, e,<br />
posteriormente, <strong>do</strong> inconsciente na sua dimensão real, constituí<strong>do</strong> pelos significantes <strong>de</strong><br />
alíngua, produzin<strong>do</strong> o sintoma na sua dimensão real, o sintoma fun<strong>da</strong>mental.<br />
A clínica com histéricas levou Freud a consi<strong>de</strong>rar a e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong> fantasias<br />
inconscientes na vi<strong>da</strong> psíquica, bem como sua importância na formação <strong>do</strong>s sintomas,<br />
concluin<strong>do</strong> ser a fantasia a precursora <strong>do</strong>s sintomas histéricos.<br />
Lacan, por sua vez, em A lógica <strong>da</strong> fantasia 2 , <strong>de</strong>nominou <strong>de</strong> fantasia fun<strong>da</strong>mental a<br />
fantasia inconsciente, propon<strong>do</strong>-lhe a fórmula ($ ◊ a), on<strong>de</strong> reuniu <strong>do</strong>is elementos<br />
heterogêneos, um sujeito e um objeto, o objeto causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, que no Encore 3 foi<br />
diversifica<strong>do</strong> em quatro: objeto seio, objeto fezes, objeto olhar e objeto voz. Para ele, a<br />
fantasia fun<strong>da</strong>mental é um a<strong>xi</strong>oma, uma significação absoluta, um resto aparta<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema.<br />
Esse resto é o caráter real <strong>da</strong> fantasia, que Lacan reduziu a uma frase simbólica. E, se para<br />
Lacan a fantasia é o suporte <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo 4 , e o <strong>de</strong>sejo a essência <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, é possível afirmar<br />
1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano<br />
2 LACAN, J. Seminário, livro 14: a lógica <strong>da</strong> fantasia [1966/67] Inédito<br />
3 LACAN, J. Seminário, livro 20: mais, ain<strong>da</strong>.[1972-‐73]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1982, p. 171.<br />
4 Id, ibid. [1966/67].<br />
152
que a fantasia é a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito, a maneira como ele a organiza; e o <strong>de</strong>sejo ancora<strong>do</strong> na<br />
fantasia, mantém com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> uma pretensa harmonia.<br />
O sintoma, por sua vez, adquiriu diversas <strong>de</strong>finições <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> teoria psicanalítica. Em<br />
Freud, ele foi o retorno <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>, o substituto <strong>de</strong> uma satisfação pulsional. Em Lacan, <strong>da</strong><br />
metáfora à letra, ele obteve <strong>de</strong>finições como: “a maneira que ca<strong>da</strong> um goza <strong>de</strong> seu<br />
inconsciente 5 ”, ou “o que faz e<strong>xi</strong>stir a relação sexual” 6 , e, finalmente, o sintoma como produto<br />
<strong>do</strong>s significantes <strong>de</strong> alíngua 7 . No presente artigo abor<strong>da</strong>remos a fantasia e sua relação com o<br />
sintoma nessas duas últimas acepções.<br />
O SINTOMA FAZ EXISTIR A RELAÇÃO SEXUAL<br />
“A relação sexual não e<strong>xi</strong>ste”, porque a linguagem não dispõe <strong>de</strong> um significante que<br />
represente o gozo <strong>do</strong> Outro sexo, o que levou Lacan a concluir, “A Mulher não e<strong>xi</strong>ste”. A<br />
falta <strong>de</strong>sse significante foi o que Lacan 8 <strong>de</strong>signou como a falha nos nós borromeanos,<br />
responsável por tornar os sexos equivalentes. O sintoma faz suplência à falta <strong>de</strong>sse<br />
significante <strong>do</strong> Outro gozo, S(Ⱥ), ou seja, ao significante <strong>do</strong> Outro sexo, provocan<strong>do</strong> a não<br />
equivalência entre os sexos e fazen<strong>do</strong> e<strong>xi</strong>stir a relação sexual. Para explicar como o sintoma<br />
realiza essa suplência, cito Gerbase em Sintoma e fantasia 9 , on<strong>de</strong> ele propõe uma releitura <strong>do</strong><br />
texto freudiano <strong>de</strong> 1908, “A Histeria e sua relação com a bissexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, mostran<strong>do</strong> como a<br />
fantasia está implica<strong>da</strong> no sintoma, e como ela contribui na sua função <strong>de</strong> amarração. Nesse<br />
artigo Freud afirma que "o sintoma histérico é a expressão simultânea <strong>de</strong> uma fantasia sexual<br />
5 LACAN, J. Seminário, livro 22: RSI, 1975 – Inédito.<br />
6 LACAN, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma, [1975/76]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 98.<br />
7 SOLER, C. Corpo falante Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus, EPFCL, 2010, p.23.<br />
8 Id, ibid, 2007, p. 97.<br />
8 Gerbase, J. Sintoma e fantasia. Inédito<br />
153
inconsciente masculina, e <strong>de</strong> uma fantasia sexual inconsciente feminina, introduzin<strong>do</strong> a<br />
significação bissesexual <strong>do</strong> sintoma. Fazen<strong>do</strong> coincidir o lé<strong>xi</strong>co fantasia com significação,<br />
Gerbase afirma que “Uma fantasia é uma significação fun<strong>da</strong>mental porque é o âmago <strong>do</strong><br />
sintoma, o último senti<strong>do</strong> a que posso reduzir o sintoma, a frase simbólica que o sintoma<br />
expressa”. Deduzin<strong>do</strong> que “uma fantasia sexual inconsciente masculina é uma significação<br />
fálica, e “uma fantasia sexual inconsciente feminina é uma significação não-to<strong>da</strong> fálica, uma<br />
significação não-to<strong>da</strong>”. Desta forma, o autor propõe reescrever esta fórmula freudiana: “O<br />
sintoma histérico é a expressão simultânea <strong>de</strong> uma significação fálica e <strong>de</strong> uma significação<br />
não-to<strong>da</strong>". De mo<strong>do</strong> que o sintoma histérico, mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sintoma por excelência, é composto<br />
pelos <strong>do</strong>is significantes que nomeiam o gozo, o significante fálico, [Φ], ou seja, aquele que se<br />
po<strong>de</strong> escrever e pelo significante <strong>do</strong> Outro gozo, aquele que não se po<strong>de</strong> escrever. Dizer que<br />
não se po<strong>de</strong> escrevê-lo não quer dizer que ele não e<strong>xi</strong>sta.<br />
O sintoma faz e<strong>xi</strong>stir a relação sexual porque ele faz semblante ao significante <strong>do</strong><br />
Outro gozo, e a fantasia, ao possibilitar uma significação <strong>do</strong> Outro gozo e <strong>do</strong> gozo fálico,<br />
au<strong>xi</strong>lia o sintoma na sua função <strong>de</strong> fazer suplência à ine<strong>xi</strong>stência <strong>da</strong> relação sexual. A<br />
fantasia, portanto, colabora com o sintoma, tornan<strong>do</strong> sua tarefa menos “árdua”, na medi<strong>da</strong> em<br />
que o gozo liga<strong>do</strong> à fantasia toma a via <strong>do</strong> prazer, enquanto que, no sintoma, o gozo se<br />
escreve pela vertente <strong>do</strong> <strong>de</strong>sprazer. Por esta razão a fantasia vai se constituir numa recor<strong>da</strong>ção<br />
encobri<strong>do</strong>ra. E assim Gerbase conclui que a fantasia enuncia a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> relação<br />
sexual, enquanto que o sintoma, ao compensá-la, possibilita sua e<strong>xi</strong>stência. O sintoma faz<br />
suplência a essa falta, justamente porque ele traz, em sua essência, na fantasia, a significação<br />
154
a essa falta. “A fantasia é uma significação a essa falta, a esse enuncia<strong>do</strong> – para to<strong>do</strong> falasser<br />
falta um significante, aquele que nomeia o gozo d’Ⱥ Mulher”.<br />
O SINTOMA É UM PRODUTO DE ALÍNGUA<br />
Para enten<strong>de</strong>r o sintoma como produto <strong>de</strong> alíngua, partiremos <strong>da</strong> afirmação <strong>de</strong> Lacan,<br />
o sintoma é um “acontecimento <strong>do</strong> corpo” 10 , afirmação que só po<strong>de</strong> ser explica<strong>da</strong> a parir <strong>da</strong><br />
articulação entre significante e gozo. O significante passa <strong>de</strong> representante <strong>do</strong> sujeito, sígno<br />
<strong>de</strong> sua falta-a-ser à sígno <strong>do</strong> seu ser <strong>de</strong> gozo 11 . Quanto ao gozo, em sua tese inicial, ele é<br />
afeta<strong>do</strong> pela linguagem, operação que produz como efeito, uma subtração <strong>de</strong> gozo. Na tese<br />
posterior, o significante está no nível <strong>do</strong> gozo, o significante é objeto <strong>de</strong> gozo, ele é goza<strong>do</strong>.<br />
Ao juntar esses <strong>do</strong>is elementos heterogêneos, significante e gozo, Lacan provoca uma vira<strong>da</strong><br />
na teoria, e, segun<strong>do</strong> Soler, para acompanhá-la, faz-se necessário partir <strong>da</strong> noção <strong>do</strong><br />
inconsciente forma<strong>do</strong> pelos significantes <strong>de</strong> alíngua, ou seja, o inconsciente em sua dimensão<br />
real. E assim, o gozo, inicialmente afeta<strong>do</strong> pela linguagem, passa a ser afeta<strong>do</strong> pela alíngua, e<br />
o inconsciente, antes estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem, torna-se um saber no nível <strong>do</strong> corpo<br />
substância, saber manifesta<strong>do</strong> pelo sintoma. Isso levou Lacan a consi<strong>de</strong>rar os efeitos <strong>de</strong><br />
alíngua e não mais <strong>da</strong> linguagem, como prioritários e primordiais na formação <strong>do</strong>s sintomas 12 .<br />
Os significantes <strong>de</strong> alíngua tomam o corpo, fixan<strong>do</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo e<br />
produzin<strong>do</strong> o sintoma. A alíngua é forma<strong>da</strong> pelos significantes antes <strong>de</strong> sua apreensão <strong>de</strong><br />
senti<strong>do</strong>, e seus efeitos são os afetos, posto que a alíngua afeta primariamente o gozo 13 . O<br />
10 SOLER, C. Corpo falante Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus, EPFCL, 2010, p.11.<br />
11 Id. Ibid., p.13.<br />
12 Id, ibid., p.15.<br />
13 Id, ibid., p.19.<br />
155
sintoma é constituí<strong>do</strong> numa i<strong>da</strong><strong>de</strong> precoce, antes <strong>da</strong> aquisição <strong>da</strong> linguagem, através <strong>de</strong> uma<br />
combinação entre a alíngua e o <strong>encontro</strong> com o gozo primeiro, entre significante e gozo.<br />
“Diante <strong>do</strong> que é ouvi<strong>do</strong>, o sujeito apreen<strong>de</strong> significantes que ain<strong>da</strong> não dispõem <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>,<br />
restan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa operação, o que Lacan chamou <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>tritos, cacos”. “... os cacos são <strong>do</strong><br />
real, fora <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, sob a forma <strong>do</strong> Um sonoro, recebi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que foi ouvi<strong>do</strong>”. Esses <strong>de</strong>tritos<br />
são os significantes <strong>de</strong> alíngua, que se <strong>de</strong>positam como mal-entendi<strong>do</strong>s, fixan<strong>do</strong> uma<br />
i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo e produzin<strong>do</strong> a matriz <strong>do</strong> sintoma. Entretanto, sabemos com Lacan que a<br />
formação <strong>do</strong> sintoma <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma contingência entre aquilo que é fala<strong>do</strong> pelo Outro e o<br />
que é ouvi<strong>do</strong> pelo sujeito.<br />
Para Soler 14 , dizer que o sintoma não po<strong>de</strong> mais ser compreendi<strong>do</strong> a partir “<strong>da</strong> lógica<br />
<strong>da</strong> linguagem nem mesmo <strong>da</strong> fantasia, mas no nível <strong>da</strong> contingência <strong>do</strong> <strong>encontro</strong>”, contesta a<br />
tese freudiana <strong>de</strong> que as fantasias inconscientes são precursoras <strong>do</strong>s sintomas histéricos. O<br />
sintoma vem <strong>do</strong> real e o inconsciente é re<strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como real, fora <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, liga<strong>do</strong> à alíngua.<br />
Entretanto, ela complementa 15 , que há o inconsciente que permite ser <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong>, e há o<br />
inconsciente real, inapreensível, forma<strong>do</strong> pelo significante real, sem senti<strong>do</strong> e contingente,<br />
que marca o corpo com o saber <strong>de</strong> alíngua. Qual a relação entre a fantasia fun<strong>da</strong>mental e o<br />
sintoma fun<strong>da</strong>mental, aquele forma<strong>do</strong> pelos significantes <strong>de</strong> alíngua?<br />
Freud se referiu à fantasia, como aquilo “que substitui o trauma”, e se o trauma para<br />
Freud é o que não é representa<strong>do</strong>, tem, para Lacan a dimensão <strong>de</strong> real. Então, se a fantasia<br />
14 Id, ibid., p.27.<br />
15 Id, ibid., p.29.<br />
156
substitui o trauma, ela é real e vem ocupar o lugar <strong>do</strong> impossível <strong>de</strong> ser representa<strong>do</strong> 16 . Sen<strong>do</strong><br />
o sintoma uma resposta <strong>do</strong> sujeito frente ao real que é traumático, a fantasia, ao substituir o<br />
trauma, torna-se, juntamente com o sintoma, um recurso <strong>do</strong> sujeito frente ao real. Entretanto,<br />
o conceito <strong>de</strong> trauma <strong>de</strong>ve ser toma<strong>do</strong> em <strong>do</strong>is momentos distintos <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> Lacan. A<br />
princípio o traumático dizia respeito à falta no Outro, ou seja, ao significante <strong>da</strong> falta no<br />
Outro, S(Ⱥ), justamente ali on<strong>de</strong> o sujeito se confrontava com o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> Outro. Diante <strong>da</strong><br />
falta no Outro, é na condição <strong>de</strong> objeto que o sujeito é <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> e convoca<strong>do</strong> a tamponar.<br />
Neste senti<strong>do</strong>, o traumático seria a falta no Outro. A partir <strong>do</strong> <strong>encontro</strong> com o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong><br />
Outro, com o “Che Vuoi?", o sujeito respon<strong>de</strong> com a fantasia, ali on<strong>de</strong> ele se experimenta<br />
como objeto. A fantasia como um recurso <strong>do</strong> sujeito para proteger-se <strong>da</strong> difícil condição <strong>de</strong><br />
objeto que representa no <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> Outro e <strong>da</strong> traumática constatação <strong>da</strong> falta no Outro. No<br />
segun<strong>do</strong> tempo <strong>de</strong> seu ensino, como já foi menciona<strong>do</strong>, Lacan não separou o significante <strong>do</strong><br />
gozo, para ele, significante é gozo e, segun<strong>do</strong> Gerbase 17 , o traumático agora aponta para duas<br />
vertentes: a alíngua traumática e o trauma <strong>do</strong> sexo. O traumático <strong>de</strong> alíngua é ter acesso ao<br />
significante antes <strong>de</strong> se ter acesso ao senti<strong>do</strong>, geran<strong>do</strong> mal-entendi<strong>do</strong>s. A alíngua é real porque<br />
exclui o senti<strong>do</strong>, e é exatamente a anteriori<strong>da</strong><strong>de</strong> lógica <strong>de</strong> alíngua que possibilita o trauma.<br />
Quanto ao trauma <strong>do</strong> sexo, por não haver na linguagem um significante que nomeie o Outro<br />
gozo, um <strong>do</strong>s gozos não po<strong>de</strong> ser escrito no inconsciente, impossibilitan<strong>do</strong> a relação sexual.<br />
Não há relação sexual visto que não é possível estabelecer uma relação biunívoca entre o<br />
16 Gerbase, J. (1987). Fantasia ou fantasma. Falo 1 , p. 50.<br />
17 GERBASE, J. Curso: Être humain, Associação Científica Campo Psicanalítico <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r, 2010.<br />
157
significante fálico, o que se escreve, e o significante <strong>do</strong> Outro gozo, o que não se escreve.<br />
Concluin<strong>do</strong> Lacan 18 , que o traumático é o a (sexo).<br />
Se o sintoma é o que torna possível a relação sexual, o sintoma é uma suplência ao<br />
trauma <strong>do</strong> sexo, na medi<strong>da</strong> em que ele faz semblante ao significante <strong>do</strong> Outro gozo. Quanto<br />
ao traumático <strong>de</strong> alíngua, é também o sintoma que faz suplência ao trauma <strong>do</strong> <strong>de</strong>samparo <strong>do</strong><br />
humano ante a contingência <strong>do</strong> <strong>encontro</strong> com o significante sem senti<strong>do</strong>. O sintoma<br />
respon<strong>de</strong> ao equívoco <strong>do</strong> significante <strong>de</strong> alíngua, fixan<strong>do</strong> no corpo uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo.<br />
Sen<strong>do</strong> a fantasia o que substitui o trauma, como a fantasia po<strong>de</strong> substituir a falta <strong>do</strong><br />
significante <strong>do</strong> Outro gozo, (trauma <strong>do</strong> sexo) e também o efeito produzi<strong>do</strong> pelo equívoco <strong>do</strong><br />
significante <strong>de</strong> alíngua, (trauma <strong>de</strong> alíngua)? O sintoma faz suplência ao trauma <strong>do</strong> sexo e ao<br />
trauma <strong>de</strong> alíngua, e a fantasia, com seu caráter <strong>de</strong> frase, colabora com o sintoma,<br />
substituin<strong>do</strong> o real <strong>do</strong> trauma por uma ficção. Mas, se no final <strong>de</strong> uma análise nos <strong>de</strong>paramos<br />
com o irredutível <strong>do</strong> sintoma, o que acontece com a fantasia? Uma vez que o sujeito se <strong>de</strong>para<br />
com sua essência <strong>de</strong> gozo, ao i<strong>de</strong>ntificar-se ao sintoma, a fantasia per<strong>de</strong> sua função, e o que<br />
surge em seu lugar é um significante novo, a ficção <strong>da</strong> fantasia é substituí<strong>da</strong> por uma criação,<br />
uma invenção <strong>do</strong> sujeito. Freud se refere à fantasia inconsciente como um ponto <strong>de</strong> fixação <strong>de</strong><br />
gozo, e, se para Lacan os significantes <strong>de</strong> alíngua produzem fixação <strong>de</strong> gozo, propomos<br />
pensar que, num “só <strong>de</strong>pois”, a fantasia fun<strong>da</strong>mental seria uma forma <strong>de</strong> sustentar o sintoma,<br />
o sintoma fun<strong>da</strong>mental, e respon<strong>de</strong>r ao trauma <strong>de</strong> alíngua tanto quanto ela o faz no trauma <strong>do</strong><br />
18 Lacan, J. (1978). Seminário, livro 25: o momento <strong>de</strong> concluir. Inédito.<br />
158
sexo. A fantasia fun<strong>da</strong>mental seria uma frase capaz <strong>de</strong> <strong>da</strong>r um senti<strong>do</strong> aos equívocos<br />
produzi<strong>do</strong>s pelos significantes sem senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> alíngua?<br />
159
O Nome <strong>do</strong> Sintoma<br />
Gracia Azeve<strong>do</strong> 1<br />
A filosofia aristotélica <strong>de</strong>senvolveu um sistema próprio, rejeitan<strong>do</strong> a teoria <strong>da</strong>s<br />
i<strong>de</strong>ias e o dualismo platônico. Ao propor sua Metafísica, Aristóteles propõe uma<br />
concepção <strong>de</strong> real que parte <strong>da</strong> substância individual, composta <strong>de</strong> matéria e forma. Os<br />
Estoicos viam nos corpos, as únicas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, aquela que age e aquela que sofre a ação.<br />
O incorpóreo não toca o corpo. A i<strong>de</strong>ia incorpórea é priva<strong>da</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong> eficácia e <strong>de</strong><br />
to<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, não se encontran<strong>do</strong> aí mais que o vazio absoluto <strong>do</strong> pensamento e <strong>do</strong><br />
ser. 1 Fatos ou acontecimentos foram admiti<strong>do</strong>s como causa pelos estoicos. To<strong>do</strong> corpo<br />
se torna causa para outro corpo (quan<strong>do</strong> age sobre ele) <strong>de</strong> alguma coisa incorpórea. São<br />
quatro as espécies <strong>de</strong> incorpóreos: os exprimíveis, o lugar, o vazio e o tempo. Para<br />
Aristóteles a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> lógica é o conceito. A isto os estoicos chamam <strong>de</strong> exprimível.<br />
Acontecimento, som, letra, palavra. O atributo <strong>de</strong> ser significa<strong>do</strong> pela palavra é o<br />
exprimível, o lecton que fica entre o pensamento e a coisa. O lecton “tradiz” um<br />
acontecimento no que este po<strong>de</strong> ser corporifica<strong>do</strong>, trazi<strong>do</strong> à significantização, à cena.<br />
É <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> lecton que Lacan parte, para abor<strong>da</strong>r a “significância” <strong>do</strong> significante.<br />
Cito Lacan em Radiofonia 2 : “O lecton torna legível um significa<strong>do</strong>... Deixo para lá: isso é o<br />
1 Fórum <strong>do</strong> Campo Lacaniano – Recife - IF-EPFCL Brasil – Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong>. Nutricionista. graciazeve<strong>do</strong>@gmail.com<br />
160
que <strong>de</strong>nominei ponto <strong>de</strong> basta, para ilustrar o que chamarei <strong>de</strong> efeito Saussure <strong>de</strong><br />
ruptura <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> pelo significante...”.<br />
Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a origem remota <strong>do</strong> significante no pensamento estoico, Lacan o<br />
coloca como o representante <strong>de</strong> um acontecimento primordial no processo <strong>de</strong> divisão <strong>do</strong><br />
sujeito quan<strong>do</strong>, surge, cai o objeto a para um ser <strong>de</strong> puro gozo. Momento <strong>de</strong> angústia,<br />
frustração, castração simbólica. É o ingresso para o simbólico on<strong>de</strong> a partir <strong>da</strong>í o sujeito<br />
seguirá dividi<strong>do</strong> valen<strong>do</strong>-‐se <strong>do</strong> seu significante mestre tentan<strong>do</strong> recuperar o que foi<br />
perdi<strong>do</strong> na forma <strong>de</strong> objeto causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />
A linguagem é a condição <strong>do</strong> inconsciente. O efeito <strong>de</strong> linguagem só se produz<br />
pela linguística. O discurso <strong>de</strong>sloca-‐se em uma topologia estrutura<strong>da</strong> que <strong>de</strong>termina o<br />
sujeito e seus efeitos.<br />
Na psicanálise o homem na<strong>da</strong> sabe <strong>da</strong> mulher, nem a mulher <strong>do</strong> homem. O falo<br />
faz surgir o significante <strong>da</strong> diferença e o sexual passa a ser a querela <strong>do</strong> significante. O<br />
sujeito atingi<strong>do</strong> pela linguagem percorre o “cristal linguístico”, assim chama<strong>do</strong> por<br />
Lacan, em busca <strong>de</strong> resolver essa diferença que só se resolve pela lógica <strong>do</strong> ou um, ou<br />
outro. A alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> divi<strong>de</strong> o sujeito e o aliena à e<strong>xi</strong>stência <strong>do</strong> Outro.<br />
O simbólico incorpora-‐se ao corpo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e o faz e<strong>xi</strong>stir. È assim que o<br />
incorpóreo tem a ver com o corpo. É incorpora<strong>da</strong> que a estrutura faz o afeto, a partir <strong>de</strong><br />
seus efeitos no ser <strong>do</strong> que é fala<strong>do</strong> e <strong>do</strong> que não é fala<strong>do</strong>, dito <strong>de</strong> algum lugar. O corpo<br />
habita<strong>do</strong> pela fala vira puro cadáver. O sujeito e<strong>xi</strong>stirá enquanto falasser, faltante, Um-‐a-‐<br />
161
Menos, marca<strong>do</strong> pelo significante, sexua<strong>do</strong>. Fazer sexo com as palavras. É assim que a<br />
histérica <strong>de</strong>safia o mestre, <strong>de</strong>smascaran<strong>do</strong> a sua falta, sua incompletu<strong>de</strong>, por estruturar-‐<br />
se a partir <strong>do</strong> vazio. Esse sexo surgi<strong>do</strong>, causa<strong>do</strong> exatamente a partir <strong>de</strong>sse na<strong>da</strong><br />
impossível <strong>de</strong> ser fala<strong>do</strong> e coloca<strong>do</strong> na cena. A linguagem traz à cena o que <strong>do</strong> sujeito<br />
carece <strong>de</strong> ser enterra<strong>do</strong> sob a forma <strong>de</strong> palavras e colocan<strong>do</strong> sua e<strong>xi</strong>stência no corpo,<br />
para ser imaginariamente incluí<strong>do</strong> na ro<strong>da</strong> <strong>do</strong>s vivos. O que o conduz à morte.<br />
A angustia presente no processo <strong>de</strong> divisão <strong>do</strong> sujeito torna-‐se conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
significante que faz e<strong>xi</strong>stir um sujeito por ele representa<strong>do</strong> e, portanto seu refém no que<br />
diz respeito ao gozo. Através <strong>da</strong>s formações <strong>do</strong> inconsciente, através <strong>do</strong> sintoma.<br />
O sintoma é o que vem <strong>do</strong> Real. Há o traço, inscrito para representar o<br />
acontecimento <strong>do</strong> corpo e há o apagamento <strong>do</strong> traço que será representa<strong>do</strong> pelo<br />
significante fazen<strong>do</strong> surgir um falasser. O que <strong>do</strong> significante representará esse falasser<br />
para outro significante será sempre insuficiente para <strong>da</strong>r conta <strong>do</strong> acontecimento. A<br />
mancha on<strong>de</strong> antes era o traço terá sua <strong>de</strong>signação como letra, resto <strong>de</strong> gozo, a ser<br />
sempre um pacote carrega<strong>do</strong> pelo significante que traz à cena o objeto que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ser<br />
<strong>de</strong>composto, <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixa os seus restos que se inscrevem como a pedra no caminho,<br />
o que não cessa <strong>de</strong> não se escrever. O inconsciente real que se serve <strong>de</strong> lalangue.<br />
No campo <strong>da</strong> fala e <strong>da</strong> linguagem se apresenta o sintoma que traz à cena os<br />
efeitos <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong> inconsciente. O que não vai bem para o sujeito surge a partir <strong>de</strong> seu<br />
discurso en<strong>de</strong>reça<strong>do</strong> ao Outro. É <strong>de</strong>ssa fala, <strong>de</strong>sse discurso que a psicanálise se serve<br />
para <strong>de</strong>cifrar o sintoma. O equívoco é com o que se joga na interpretação. Ao esgotar o<br />
162
seu senti<strong>do</strong> é a partir <strong>da</strong> lalangue que opera o ato psicanalítico. Lalangue é resto, é letra<br />
pura, é sem senti<strong>do</strong> com fixação <strong>de</strong> gozo. Quan<strong>do</strong> Lacan fala <strong>de</strong> interpretação está <strong>de</strong> fato<br />
pontuan<strong>do</strong> o limite <strong>do</strong> sujeito em relação ao seu saber. O saber se interpreta, não se<br />
chega a ele através <strong>da</strong> letra. A letra obstrui o saber e impe<strong>de</strong> a sua apreensão. São seus<br />
efeitos que operam na psicanálise.<br />
Em A Terceira 3 (1974), Lacan parte <strong>da</strong> lalangue para introduzir o gozo <strong>do</strong><br />
sintoma. Citan<strong>do</strong> Descartes e seu discurso <strong>do</strong> mestre com o ‘penso logo sou’, ele brinca<br />
com o significante e o transforma em “gossou”. E diz: esse é o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sujeito <strong>da</strong><br />
psicanálise.<br />
Ao usar o nó borromeu como representação esquemática <strong>do</strong> eno<strong>da</strong>mento entre o<br />
real, simbólico e o imaginário, Lacan parte <strong>do</strong> neologismo gossou para ilustrar essa<br />
topologia. On<strong>de</strong> o real é o impossível, é a pedra no caminho, o que não po<strong>de</strong> ser<br />
representa<strong>do</strong>. Ao campo <strong>do</strong> imaginário pertence to<strong>do</strong> o conhecimento. O mun<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />
representações apenas alimenta a ciência e tenta <strong>da</strong>r conta <strong>do</strong> real, que sempre estará<br />
alhures, impossível <strong>de</strong> ser representa<strong>do</strong>. E o simbólico, como a tentativa <strong>de</strong> fazer laço<br />
social, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> o mal-‐estar <strong>do</strong> sintoma que se serve <strong>do</strong> significante e seu objeto a,<br />
<strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> os restos não exprimíveis <strong>do</strong> real.<br />
A psicanálise surgiu <strong>de</strong>sse mal-‐estar, e como tal é um sintoma. As histéricas <strong>de</strong><br />
Freud com seu inconsciente que não entrava em acor<strong>do</strong> com as e<strong>xi</strong>gências <strong>da</strong> civilização<br />
colocaram a psicanálise como o caminho para <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong>ste sintoma. Mas havia um<br />
resto pulsional que o sintoma não dissipava, ao contrário, carregava como se fosse<br />
163
pombo-‐correio, mensageiro <strong>do</strong> gozo. O sintoma é o próprio pretexto <strong>do</strong> gozo, e o sujeito<br />
não po<strong>de</strong> abrir mão <strong>de</strong>le. No má<strong>xi</strong>mo po<strong>de</strong> dissecá-‐lo e saber que há restos sem<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifração. Depois tentar colocar o gozo a serviço <strong>da</strong> criação <strong>de</strong> novos<br />
laços. Saber o que fazer com isso.<br />
É essa a constatação <strong>da</strong> psicanálise, a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma articulação com o<br />
real. O impossível <strong>do</strong> real é condição <strong>do</strong> sujeito e isso não faz negociação. O real se<br />
configura como o início e o fim, última para<strong>da</strong>. E a psicanálise como sintoma <strong>de</strong>sse<br />
mesmo mal-‐estar.<br />
O real retorna sempre ao mesmo lugar, diz Lacan. É vã to<strong>da</strong> tentativa <strong>de</strong> um coito<br />
com o mun<strong>do</strong>. O objeto a, que fen<strong>de</strong> o sujeito e o transforma em <strong>de</strong>jeto ex-‐sistin<strong>do</strong> ao<br />
corpo, é o que há no mun<strong>do</strong>. Como fazer para que esse objeto se torne semblante,<br />
semblante <strong>de</strong> falo? Para o homem isso é mais fácil. Ser objeto a para um homem é a saí<strong>da</strong><br />
para a mulher. Isso po<strong>de</strong> acontecer.<br />
Seio, fezes, olhar e voz. Isso fica no lugar <strong>do</strong> acontecimento para ser fala<strong>do</strong>, busca<strong>do</strong>,<br />
<strong>de</strong>smonta<strong>do</strong> até o osso. Ao falar o sujeito vai produzin<strong>do</strong> seus objetos a partir <strong>da</strong> sua<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. A partir <strong>do</strong>s quatro discursos que fazem laço social Lacan colocou a<br />
estrutura <strong>da</strong> fala dirigi<strong>da</strong> ao outro em um esquema on<strong>de</strong> o significante, a castração, o<br />
saber como gozo <strong>do</strong> Outro, e o objeto a como per<strong>da</strong> surgi<strong>da</strong> <strong>de</strong>sse trajeto <strong>do</strong> discurso,<br />
se articulam simulan<strong>do</strong> as formas <strong>de</strong> posição subjetiva, no que faz laço na cultura.<br />
164
Na busca <strong>do</strong> saber sobre o gozo <strong>do</strong> Outro o sujeito encontra a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que se<br />
constitui pela castração, no discurso <strong>do</strong> mestre. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> chega até on<strong>de</strong> o significante<br />
alcança como representante <strong>de</strong>sse saber constituí<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> real. Dessa forma o<br />
sujeito vai utilizan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o seu acervo significante, que <strong>de</strong>pois ele percebe como um só,<br />
e gasta até chegar aon<strong>de</strong> ele já sabia que não sabia. O saber não sabi<strong>do</strong>.<br />
Resta a letra, o nome próprio on<strong>de</strong> o sujeito olha para o campo <strong>de</strong>vasta<strong>do</strong> e parte<br />
para construir a própria história que já tem nome mas po<strong>de</strong>rá produzir outros<br />
caminhos, novas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A letra faz litoral entre gozo e saber, é o que Lacan<br />
afirma em Lituraterra 4 . O furo no saber como acontecimento produz a letra que faz<br />
bor<strong>da</strong>, linguagem, habita<strong>da</strong> pelo sujeito que fala.<br />
O nome litura quer dizer: rasura, mancha, borrão, apagamento <strong>do</strong> que foi feito. A<br />
letra faz terra marcan<strong>do</strong> o litoral. Produzir a rasura é produzir a meta<strong>de</strong> com que o<br />
sujeito subsiste.<br />
Entre centro e ausência, entre saber e gozo há litoral que po<strong>de</strong> se tornar literal. O<br />
sujeito que fora marca<strong>do</strong> pelo traço que se apaga, passa então a ser representa<strong>do</strong> pelo<br />
significante. Ao se romper o semblante, o sujeito <strong>de</strong>para-‐se com seu gozo que evoca o<br />
real, o acontecimento, o apagamento <strong>do</strong> traço, a mancha. Este é o lugar <strong>da</strong> letra. O<br />
significante está no simbólico.<br />
Singular, próprio, solitário, marca <strong>do</strong> sujeito que o situa em sua própria história.<br />
O nome ancora o sujeito no Um-‐ a-‐Mais <strong>da</strong> cultura. Um lugar que o incluirá na sequência<br />
165
<strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> pelo simbólico. Um lugar <strong>de</strong> repetição, <strong>de</strong> equívocos, <strong>de</strong> gozo. Um<br />
lugar na cena on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>samparo o faz surgir como objeto <strong>do</strong> Outro gozo. O<br />
en<strong>de</strong>reçamento <strong>do</strong> sujeito ao Outro será <strong>do</strong>ravante <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pelo significante,<br />
produzi<strong>do</strong> pelo corte, que representará o objeto perdi<strong>do</strong>.<br />
É a partir <strong>de</strong>sse en<strong>de</strong>reçamento, <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>man<strong>da</strong> surgi<strong>da</strong> a partir <strong>de</strong> uma falta, que<br />
a psicanálise opera, faz cortes, aponta para o significante <strong>de</strong>snu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> , <strong>de</strong>stituin<strong>do</strong> o<br />
discurso <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. A repetição <strong>do</strong> que não po<strong>de</strong> ser simboliza<strong>do</strong> <strong>do</strong> impossível <strong>de</strong> dizer<br />
coloca o sujeito <strong>de</strong> cara com o real, com o gozo <strong>do</strong> inconsciente. O que fazer com esse<br />
gozo, forma <strong>de</strong> sinthome <strong>do</strong> sujeito? Diante <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> inscrever a relação<br />
sexual, como o sujeito po<strong>de</strong>ria nomear-‐se, distinguir-‐se? Lacan fala <strong>do</strong> sinthome em seu<br />
seminário <strong>de</strong> 1975 5 , o quarto nó, como uma resposta <strong>do</strong> Real frente à incompletu<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
relação com o outro sexo, permitin<strong>do</strong> ao sujeito a criação <strong>de</strong> um laço social através <strong>da</strong><br />
i<strong>de</strong>ntificação a seu sinthome.<br />
Para o sujeito a relação sexual nunca e<strong>xi</strong>stiu porque o Um não tem parceiro; o<br />
Um é o lugar <strong>do</strong> zero: serve para fazer surgir o um a um. O Um é o que tentamos dizer. É<br />
o impossível não entra na falta, ou ausência, ou vazio; é sem objeto. A partir <strong>de</strong> um lugar<br />
na ca<strong>de</strong>ia significante o sujeito po<strong>de</strong> ‘se fazer ser’ como afirma Colette Soler 6 . Sair <strong>da</strong><br />
posição narcísica <strong>do</strong> ‘melhor não ser’ e se ocupar <strong>do</strong> próprio <strong>de</strong>sejo reescreven<strong>do</strong> a sua<br />
história a partir <strong>do</strong> nome próprio.<br />
Para que isso seja possível é necessário <strong>de</strong>stituir o Outro <strong>do</strong> lugar que outrora lhe<br />
colocamos. Em um processo <strong>de</strong> análise isso significaria dizer: ‘agora vou arrumar os<br />
166
meus falta-a-ser na mala e vou partir’. Partir com o próprio nome e trabalhar para se<br />
fazer ser partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> menos-‐um (que é o ‘recalque originário’ para Freud e não há ‘to<strong>do</strong>s<br />
os significantes’ para Lacan). O amor <strong>de</strong> transferência pelo sujeito suposto saber se<br />
metamorfoseia em amor <strong>de</strong> transferência <strong>de</strong> trabalho. O sujeito com a sua malinha <strong>de</strong><br />
falta-a-ser passa a trabalhar pela causa <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>sejo a partir <strong>de</strong> sua singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>do</strong><br />
seu saber sobre o impossível <strong>do</strong> real. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> analista agora surge a partir <strong>de</strong> uma<br />
escuta que mu<strong>da</strong> <strong>de</strong> posição. É fican<strong>do</strong> no lugar <strong>de</strong> causa <strong>do</strong> discurso, que o analista po<strong>de</strong><br />
vislumbrar os <strong>de</strong>slizamentos <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> sujeito com to<strong>do</strong>s os seus significantes,<br />
como se fossem bun<strong>da</strong> <strong>de</strong> vaga-‐lume numa noite escura.<br />
Notas:<br />
1. Bréhier, Émile (1908). A Teoria <strong>do</strong>s Incorporais no Antigo Estoicismo. Tradução <strong>de</strong><br />
Alduisio M. <strong>de</strong> Souza. Cópia pessoal, Recife,2008.<br />
2. Lacan, Jacques (1970). Outros Escritos. Radiofonia, Jorge Zahar Ed. 2003.<br />
3. Lacan, Jacques (1974). A Terceira. Tradução <strong>da</strong> Association Lacanienne<br />
Internationale, 2008.<br />
4. Lacan, Jacques (1971). De Um Discurso que Não Fosse Semblante. Sem. 18. Jorge<br />
Zahar Ed. 2009.<br />
5. Lacan, Jacques (1975). O Sinthoma. Sem. 23, Jorge Zahar Ed. 2007.<br />
6. Soler, Colette (1989). A <strong>Psicanálise</strong> na Civilização. Que final para o analista? Contra<br />
Capa Livraria, 1998.<br />
167
A arte é o que há <strong>de</strong> mais real<br />
Sonia Borges 1<br />
“Eu pinto a violência <strong>do</strong> real”, dizia Bacon. Em seu trabalho com os pincéis, Bacon<br />
não dispensa Apolo, mas, serve a Dionísio. Ele próprio reconhece a sua filiação à tragédia<br />
grega, e ao teatro <strong>de</strong> Beckett, trágico mo<strong>de</strong>rno. Nas entrevistas que conce<strong>de</strong>u ao crítico <strong>de</strong> arte<br />
David Sylvester (2007), por mais <strong>de</strong> vinte anos, Bacon <strong>de</strong>screve a gênese <strong>de</strong> suas pinturas,<br />
enfatizan<strong>do</strong> o que po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar como o seu “méto<strong>do</strong>”: pintar sensações. “Pintar<br />
sensações” seria, para ele, uma maneira <strong>de</strong> fazer frente à “violência <strong>do</strong>s clichês”na<br />
constituição <strong>da</strong>s subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s nas formas capitalistas <strong>de</strong> economia. “ Porque a sensação,<br />
afirmava, dirige-se à carne, ao corpo, e menos ao intelecto”( Sylvester, 2007:167). “A arte<br />
abre <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim as válvulas <strong>da</strong>s sensações que me jogam <strong>de</strong> novo à vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma forma<br />
ain<strong>da</strong> mais violenta.” (141) Deleuze, em seu belo livro, “ A lógica <strong>da</strong>s sensações em Francis<br />
Bacon”, recorre à arte <strong>de</strong>ste para <strong>de</strong>senvolver as suas posições filosóficas. A sensação, diz<br />
Deleuze, “é ser – no – mun<strong>do</strong>”: ao mesmo tempo eu me torno na sensação, e alguma cosa<br />
acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro. Em última análise, diz o filósofo, é o<br />
mesmo corpo que dá e recebe a sensação, que é tanto objeto, quanto sujeito.”(2007:142)<br />
Esta critica à visão intelectualista <strong>da</strong> arte se presentifica, antes <strong>de</strong> mais na<strong>da</strong>, por sua<br />
recusa <strong>da</strong> pintura com pretensões <strong>de</strong> ilustração, figuração ou narração: “Gostaria muito, dizia<br />
1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -‐ Brasil<br />
168
ele, <strong>de</strong> fazer o que Valery preconizava: proporcionar, com minha pintura, emoções sem o<br />
tédio <strong>da</strong> comunicação” (Deleuse, ibid, p. 43)<br />
No entanto, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> absolutamente original, é pela via <strong>do</strong> trabalho figurativo, que<br />
Bacon faz a crítica <strong>da</strong> figuração: apresenta figuras, mas <strong>de</strong>sfigura<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>forma<strong>da</strong>s, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> –<br />
se pensar que, sen<strong>do</strong> uma crítica ao realismo, criam um novo realismo. Como ele mesmo<br />
anuncia, “O que quero fazer é <strong>de</strong>formar a coisa, <strong>de</strong>scartar a sua aparência, mas, nesta<br />
<strong>de</strong>formação reconduzi-la ao registro <strong>da</strong> aparência”. (Sylvester, op.cit., p. 83). Nisto está a<br />
radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> e cruel<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Bacon, o materialismo radical que suporta o seu ato<br />
criativo. 3 IMAGENS<br />
O movimento corta<strong>do</strong>, o permanente efeito <strong>de</strong> mutilação, imagens como que<br />
arranca<strong>da</strong>s aos pe<strong>da</strong>ços <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que vão ornamentar. Massas se concentram, <strong>de</strong>pois se<br />
prolongam, figuran<strong>do</strong> corpos contra to<strong>da</strong> lógica anatômica. Corpos histéricos, po<strong>de</strong>ríamos<br />
dizer. A carne mole, informe, inva<strong>de</strong> o universo <strong>da</strong> pintura baconiana. O envelope corporal<br />
não é impermeável, a carne <strong>de</strong>snu<strong>da</strong><strong>da</strong> é ameaça <strong>de</strong> ferimentos, a epi<strong>de</strong>rme se confun<strong>de</strong> com<br />
as vísceras. A torção <strong>da</strong>s figuras, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> ambivalente, remete a excesso e a falta: a<br />
<strong>de</strong>smedi<strong>da</strong> dionisíaca <strong>da</strong> apresentação <strong>de</strong> corpos e carne faz exceção à razão, mas é<br />
contrabalança<strong>da</strong> pela estrutura apolínea, com ares <strong>de</strong> geometria, com que amarra as figuras<br />
(ou o gozo), e que se repete em to<strong>da</strong>s as telas.<br />
Neste trabalho busco abor<strong>da</strong>r, pela via <strong>da</strong> psicanálise, o que chamei <strong>de</strong> méto<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
Bacon, “pintar sensações”. Para isto, tomo como referência principa, <strong>de</strong> Freud, l a “Carta 52”<br />
169
e “Em busca <strong>do</strong> tempo pedi<strong>do</strong>”, <strong>de</strong> Proust”, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tomar este<br />
romance como uma ilustração <strong>do</strong> que Freud nos traz na Carta.<br />
Neste texto, Freud parte <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong> uma estratificação sucessiva <strong>do</strong> psiquismo: O<br />
essencialmente novo, diz Freud, nesta teoria, é a tese <strong>da</strong> “e<strong>xi</strong>stência <strong>da</strong> memória <strong>da</strong><br />
experiência [...]como uma série <strong>de</strong> inscrições sucessivas e coe<strong>xi</strong>stentes [...]Estas impressões<br />
estão no extremo <strong>do</strong> aparelho, e <strong>de</strong>vem ser recupera<strong>da</strong>s, ou não, em inscrições posteriores”.<br />
Com Lacan, po<strong>de</strong>-se pensar nesta escritura como o registro <strong>da</strong> experiência, ou seja, <strong>do</strong> real<br />
tal como cai e marca um ser que recebe o seu impacto, mas, <strong>do</strong> qual não conserva a memória.<br />
Mas, que marcas seriam estas? Impressões assubjetivas, acéfalas, matrizes <strong>de</strong> uma escrita <strong>da</strong><br />
qual o sujeito advirá. Inequívoca manifestação <strong>de</strong> um real originário <strong>do</strong> sujeito, anterior à<br />
simbolização. São marcas inscritas no corpo, ou melhor, na carne, que se tornará corpo, por<br />
obra e graça <strong>de</strong>sta cunhagem. Lacan as compara às pedras <strong>da</strong> loteria a que só o sorteio, ou<br />
seja, a que só o jogo <strong>do</strong>s significantes (Escritos, p. 58). po<strong>de</strong>rá instaurar uma or<strong>de</strong>m.<br />
Em Proust, esta idéia, conforme Brainstein (2007), po<strong>de</strong> ser esclareci<strong>da</strong> nas<br />
<strong>de</strong>scrições minuciosas <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r sobre o que po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar como epifanias<br />
proustianas. O “tempo re<strong>de</strong>scoberto”, <strong>do</strong> último volume <strong>de</strong> sua obra, po<strong>de</strong> ser pensa<strong>do</strong> como a<br />
re<strong>de</strong>scoberta, a recuperação <strong>do</strong> gozo perdi<strong>do</strong>. Gozo ressucita<strong>do</strong> pelo súbito ree<strong>encontro</strong> <strong>de</strong>stas<br />
“marcas e<strong>xi</strong>stenciais ” que se faz acompanhar <strong>de</strong> sensação <strong>de</strong> júbilo:o sabor <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>leine<br />
submersa no chá, uma breve frase musical, a rigi<strong>de</strong>z <strong>do</strong> tato <strong>de</strong> um guar<strong>da</strong>napo engoma<strong>do</strong>, são<br />
impressões sensíveis esvazia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> significação fálica, restan<strong>do</strong> ao artista fazer <strong>de</strong>las letras,<br />
<strong>do</strong>mestican<strong>do</strong> o real.<br />
170
Qual o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>stas experiências sensíveis? Com relação às ma<strong>de</strong>leines, no relato<br />
<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r no romance, em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> momento, surge a pergunta: “De on<strong>de</strong> me teria<br />
vin<strong>do</strong> aquela po<strong>de</strong>rosa alegria? E, <strong>de</strong> súbito a lembrança apareceu: “Aquele gosto era <strong>do</strong><br />
pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>leine <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tê – lo mergulha<strong>do</strong> no chá <strong>da</strong> índia ou <strong>de</strong> tília que, aos<br />
<strong>do</strong>mingos, minha tia Leonie me oferecia quan<strong>do</strong> ia cumprimentá-la em seu quarto” . E, ao lhe<br />
retornar o gosto <strong>do</strong> pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>leine molha<strong>do</strong> no chá, o momento epifanico, com ele<br />
também surge a velha casa on<strong>de</strong> moravam, e com ela to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Combray. Impossível<br />
não pensarna e<strong>xi</strong>gência <strong>de</strong> associação livre no tratamento.<br />
A <strong>de</strong>scrição que Bacon nos oferece <strong>da</strong> gênese <strong>de</strong> suas telas, também nos remete a<br />
esta ressurreição <strong>de</strong> marcas cuja vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> foi apaga<strong>da</strong> pelos processos secundários <strong>de</strong><br />
pensamento. Estas só lhe parecem satisfatórias quan<strong>do</strong> mostram “um tipo <strong>de</strong> imagem<br />
sensorial que faz parte <strong>da</strong> própria estrutura <strong>do</strong> ser e na<strong>da</strong> tem a ver com uma imagem mental”<br />
(160):<br />
Sei que na minha obra, o melhor me veio por acaso – quan<strong>do</strong> fui toma<strong>do</strong> por<br />
imagens que não antecipei. Não sei o que é o inconsciente, mas, há<br />
momentos em que algo emerge em nós. É muito pomposo falar <strong>de</strong><br />
inconsciente, é melhor dizer acaso. Creio na e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong> um caos<br />
profun<strong>da</strong>mente organiza<strong>do</strong>, e na importância <strong>do</strong> acaso. (Sylvester, op.cit.,<br />
p.81)<br />
[...] a única razão para esta irracionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, afirma, é que ela trará muito<br />
mais vigorosamente a força <strong>da</strong> imagem.”<br />
Como exemplo <strong>da</strong> força <strong>da</strong>s sensações e <strong>do</strong> acaso, <strong>de</strong>screve a gênese <strong>de</strong> uma <strong>de</strong> suas pinturas<br />
mais importantes. Ain<strong>da</strong> que lhe ocorresse pintar um pássaro, em gesto rápi<strong>do</strong>, jogou as tintas<br />
sobre a tela, os borrões tomaram uma forma tal que, <strong>de</strong> forma súbita, surgiu-lhe o Papa<br />
Inocêncio,imortaliza<strong>do</strong> em tela <strong>de</strong> Velásquez, mas que na sua surge em nova configuração,<br />
la<strong>de</strong>a<strong>do</strong> por imensas e sangrentas costelas bovinas.<br />
Imagem 4: “Pintura 1946”<br />
171
Essa <strong>de</strong>sfiguração <strong>de</strong> corpos, cabeças, faces, não po<strong>de</strong> ser vista como representação <strong>de</strong><br />
objetos, mas como mostração <strong>de</strong> “velhas” experiências sensíveis: “Não pinto esta<strong>do</strong>s d’alma,<br />
mas, esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ser”, insistia Bacon, numa clara crítica à psicologia <strong>do</strong>s afetos. Para falar<br />
disso, o pintor usa uma linguagem que nos remete à or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> pulsional: “níveis sensitivos”,<br />
“<strong>do</strong>mínios sensíveis”, “or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> sensações”, “sequências moventes”.<br />
Voltan<strong>do</strong> à “Carta 52”, Braunstein postula que o primeiro sistema <strong>de</strong> inscrições é o<br />
Isso <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> tópica, cujas características nos permitem distingui-lo <strong>do</strong> inconsciente que já<br />
seria um <strong>de</strong>ciframento <strong>de</strong>ssa escrita primária <strong>de</strong> marcas <strong>de</strong> gozo. O Isso é o conjunto <strong>de</strong><br />
grafismos, império <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> ser, anterior, pois, à organização subjetiva, sen<strong>do</strong> esta efeito<br />
<strong>do</strong> que, no reino <strong>do</strong> significante, consiste na metáfora paterna. O Outro <strong>da</strong> linguagem e <strong>do</strong><br />
senti<strong>do</strong> vem perturbar, obstaculizar e proíbir o gozo.<br />
Mas, assim sen<strong>do</strong>, para o sujeito habita<strong>do</strong> pela palavra, o que restaria <strong>da</strong>quele real<br />
perdi<strong>do</strong>, empali<strong>de</strong>ci<strong>do</strong> pelos processos psíquicos a que é submeti<strong>do</strong>?<br />
É no sistema <strong>de</strong> alíngua que o gozo é cifra<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> alheio à bateria <strong>de</strong> significantes<br />
com significação convencional, que é o muro que obstaculiza o gozo bloquea<strong>do</strong> nos sistemas<br />
<strong>de</strong> inscrição não <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong>s, impedi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> serem subjetiva<strong>do</strong>s. “A alingua está morta, diz<br />
Soler, mas, vem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Como po<strong>de</strong>, então, esta multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> inconsistente, inapreensível,<br />
se precipitar na letra, única capaz <strong>de</strong> fixar uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo?” (p.19)<br />
Isto que parece tão lacaniano, está já evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> na “Carta 52”. Em resumo, o<br />
sistema chama<strong>do</strong> por Freud <strong>de</strong> signos perceptivos (WZ) é um sistema <strong>de</strong> passagem <strong>de</strong><br />
impressões corporais(W) para uma escritura <strong>de</strong>sorganiza<strong>da</strong>, um ciframento caótico em que<br />
não opera a língua <strong>do</strong>s lingüistas, mas a alíngua, cuja significação não é <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, mas, <strong>de</strong><br />
172
gozo. Matéria prima para que nela opere o significante, ou seja, a bateria <strong>do</strong>s significantes, ou<br />
seja, a bateria <strong>da</strong>s diferenciações e valores que introduz a língua.<br />
Sabemos, pela experiência clínica, que o gozo con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong> à escuta, à or<strong>de</strong>nação em<br />
uma ca<strong>de</strong>ia temporal diacrônica, ou seja, a uma escrita on<strong>de</strong> o caos <strong>do</strong> Isso, no qual o gozo<br />
está cifra<strong>do</strong>, abre-se à <strong>de</strong>cifração pela via <strong>do</strong>s processos primários que já produzem discurso,<br />
carente <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, absur<strong>do</strong>, mas, que já se presta a ganhar senti<strong>do</strong>. O UMBEWUST (UBW),<br />
o inconsciente, é, na Carta 52, <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como uma segun<strong>da</strong> inscrição em que já não primam<br />
as associações por simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas, “outros nexos causais.” O tratamento po<strong>de</strong>, então,<br />
fazer com que o reti<strong>do</strong> em inscrições anteriores seja transferi<strong>do</strong> para novos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> leitura.<br />
O inconsciente se escuta, ain<strong>da</strong> que constituí<strong>do</strong> por palavras avessas ao pensamento em que<br />
pre<strong>do</strong>minam sintaxes lógicas. Para<strong>do</strong>xalmente, o gozo <strong>do</strong> corpo marca<strong>do</strong> apenas po<strong>de</strong> ser<br />
recupera<strong>do</strong> mediante o recurso ao Outro,<br />
Esta possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> releitura <strong>de</strong>stas inscrições primeiras, próprias ao tratamento, a<br />
nosso ver, po<strong>de</strong>ria ser estendi<strong>da</strong>s ao processo <strong>de</strong> criação artística. Guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as diferenças, na<br />
criação, e talvez <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> especial a artística, não se trataria <strong>de</strong> se furar o muro <strong>da</strong> linguagem?<br />
De se furar o muro <strong>da</strong>s convenções, <strong>do</strong>s clichês sociais, única finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> arte, como insistia<br />
Bacon?<br />
Para Braunstein, “arma<strong>do</strong>s com a distinção lacaniana ente prazer e gozo, é difícil não<br />
reconhecer em Freud, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, que o psiquismo está <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pelo gozo, pelo<br />
gozo como perdi<strong>do</strong> e como recuperável.” ( 198), sen<strong>do</strong> possível a sua recuperação, não pela<br />
via <strong>da</strong> nostalgia, mas a partir <strong>de</strong> um <strong>encontro</strong> casual, <strong>da</strong> tiquê, <strong>de</strong> momentos epifânicos, como<br />
173
Proust o <strong>de</strong>screveu. Está aí em jogo a função <strong>do</strong> real. Lacan nos traz também que o real está<br />
além <strong>do</strong> automatón, <strong>do</strong> retorno insistente <strong>do</strong>s signos que nos conduzem ao princípio <strong>do</strong><br />
prazer. O gozo que emerge como ressurreição <strong>do</strong> próprio ser. E não se trata <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
mas, <strong>da</strong> superação/<strong>de</strong>stituição <strong>do</strong> sujeito pelo real, que supõe a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as suas balisas:<br />
as narcísicas e mesmo as <strong>da</strong> fantasia.<br />
As epifanias po<strong>de</strong>m ser pensa<strong>da</strong>s como estes momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>stituição subjetiva, não a<br />
<strong>de</strong>stituição <strong>do</strong> final <strong>de</strong> análise, mas, a experimenta<strong>da</strong> pelos artistas em seu processo <strong>de</strong><br />
criação, quan<strong>do</strong> os objetos se carregam, para eles, <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s ocultos que assumem o caráter<br />
<strong>de</strong> hieróglifos que pe<strong>de</strong>m para ser <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong>s. O sabor <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>leine para Proust, a força <strong>do</strong>s<br />
corpos para Bacon, o matiz <strong>do</strong>s girassóis para Van Gogh, experiências gozosas recupera<strong>da</strong>s<br />
pelos procedimentos artísticos? A criação artística po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>, parodian<strong>do</strong> Proust,<br />
como busca <strong>do</strong> gozo perdi<strong>do</strong>?<br />
Se pu<strong>de</strong>rmos consi<strong>de</strong>rar a criação artística como possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> recuperação <strong>do</strong><br />
gozo perdi<strong>do</strong>, a arte seria, então, para o artista uma escritura <strong>de</strong> si mesmo, mas, sobre a qual<br />
se po<strong>de</strong>ria afirmar o que Lacan disse <strong>do</strong> inconsciente: que nem é, nem não é, pois pertence à<br />
or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> não realiza<strong>do</strong>; é a escritura que cria o sujeito. e ao criá-lo o projeta retroativamente<br />
no tempo, o faz aparecer num passa<strong>do</strong> que nunca e<strong>xi</strong>stiu. E, mais, cria este passa<strong>do</strong> com<br />
aquilo que é recupera<strong>do</strong> como escritura.<br />
174
Os usos <strong>do</strong> corpo e a política <strong>do</strong> sintoma: o caso <strong>da</strong> transformação<br />
corporal<br />
Andréa Franco Milagres 1<br />
Por ocasião <strong>da</strong> IV Jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> Trabalhos <strong>do</strong> Fórum-‐BH, <strong>de</strong>frontei-‐me com algumas<br />
questões a respeito <strong>do</strong>s termos com os quais fizemos nosso convite. Demarcamos uma<br />
hipótese <strong>de</strong> trabalho: há uma política <strong>do</strong> sintoma e no bojo <strong>de</strong>sta, o sujeito faz suas<br />
escolhas. Sabemos que a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> sintoma não traz, em princípio univoci<strong>da</strong><strong>de</strong> e,<br />
po<strong>de</strong>mos, tanto em Freud como em Lacan tomá-‐lo em mais <strong>de</strong> uma vertente, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />
com o momento <strong>da</strong> elaboração <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um. Numa perspectiva freudiana, é possível<br />
primeiramente <strong>de</strong>finir o sintoma como aquilo que nos permite algum acesso à satisfação<br />
proibi<strong>da</strong> -‐ uma solução <strong>de</strong> compromisso. Neste caso, o sintoma seria uma metáfora. É<br />
uma <strong>de</strong>finição clássica em psicanálise, a tal ponto que se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> uma vulgata <strong>do</strong><br />
sintoma: até mesmo o leigo, na banali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana, usa o termo sintoma como<br />
aquilo que há <strong>de</strong> mais íntimo e que o faz sofrer. To<strong>da</strong>via, constata o leigo, estranho<br />
mesmo é que não possa aban<strong>do</strong>ná-‐lo, não possa <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> repeti-‐lo. Não há, portanto,<br />
neurótico que não experimente isso... O que nos permitiria então supor que não só há<br />
uma política <strong>do</strong> sintoma, como esta política é conciliatória. Concilia o impossível <strong>da</strong><br />
satisfação com alguma satisfação possível. Aqui po<strong>de</strong>ríamos dizer que há uma política <strong>do</strong><br />
sintoma, mas também que o sintoma é político.<br />
1 Psicanalista, Membro <strong>do</strong> Fórum-‐BH, Mestre em Psicologia pela UFMG, Professora <strong>da</strong> PUC Minas,<br />
coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Curso <strong>de</strong> Especialização em Clínica Psicanalítica nas Instituições <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> PUC Betim.<br />
175
Ocupan<strong>do</strong>-‐se <strong>de</strong>sta vertente é que a psicanálise talvez tenha inaugura<strong>do</strong> seu laço com o<br />
mun<strong>do</strong>. Sua missão era assim restituir ao sintoma seu lugar <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>cifran<strong>do</strong>-‐o<br />
com a arma <strong>da</strong> interpretação. Tratava-‐se assim <strong>de</strong> <strong>da</strong>r um senti<strong>do</strong> ao sintoma, tal como o<br />
texto homônimo <strong>de</strong> Freud nos indicou: a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> esqueci<strong>da</strong> que retorna no sintoma é<br />
que ele é sempre referi<strong>do</strong> ao sexual. No entanto, a <strong>de</strong>scoberta freudiana conheceu<br />
tortuosos caminhos. A tentação <strong>do</strong>s psicanalistas <strong>do</strong>ravante, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Freud, seria <strong>da</strong>r<br />
senti<strong>do</strong> ao sintoma. O que não se sabia, e para isto foi preciso aguar<strong>da</strong>r Lacan, é que <strong>da</strong>r<br />
senti<strong>do</strong> ao sintoma é como alimentar um pei<strong>xi</strong>nho voraz: sua boca nunca se fecha;<br />
quanto mais o alimentamos, mais ele prolifera... (Lacan, 1975a). É uma outra vertente<br />
para pensar o sintoma: não mais como substituto, mas como índice <strong>da</strong>quilo que vem <strong>do</strong><br />
real. Diante disso, po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar que a política <strong>do</strong> sintoma é concernente a uma<br />
toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> posição, um recurso a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo sujeito para fazer objeção à norma. Nesta<br />
segun<strong>da</strong> vertente, o sintoma é sempre correlato a um coman<strong>do</strong>, no caso, à ditadura <strong>de</strong><br />
um significante mestre.<br />
A civilização contemporânea é agencia<strong>da</strong> por alguns significantes-‐mestres que<br />
não apenas nos representam para outros significantes, mas fun<strong>da</strong>mentalmente afetam<br />
nosso corpo: este <strong>de</strong>ve se mostrar sara<strong>do</strong>, sem <strong>do</strong>bras, barriga chapa<strong>da</strong>, pele estica<strong>da</strong>.<br />
Quase to<strong>do</strong>s nos curvamos a este coman<strong>do</strong>: ser gor<strong>do</strong> ou feio, estar acima <strong>do</strong> peso,<br />
<strong>de</strong>ixar entrever as marcas <strong>do</strong> tempo na pele ou nos cabelos soa como uma afronta aos<br />
i<strong>de</strong>ais partilha<strong>do</strong>s. Assim, como diz Soler (1998b p. 259) “nossa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> fabrica<br />
semblantes a gozar para to<strong>do</strong>s, ain<strong>da</strong> que isto nunca seja inteiramente alcança<strong>do</strong>”. Em<br />
176
ca<strong>da</strong> esquina, clínicas e tratamentos prometem apagar as gran<strong>de</strong>s e as pequenas<br />
diferenças entre os corpos. A norma é Gisele: seu corpo nu e esguio <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>mente<br />
pinta<strong>do</strong> sob o pretexto <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r sandálias nos faz encolher na ca<strong>de</strong>ira quan<strong>do</strong><br />
folheamos a revista. O corpo perfeito <strong>de</strong> Gisele torna-‐se mais que um i<strong>de</strong>al: ele é<br />
persecutório! Na sala <strong>de</strong> espera <strong>do</strong> <strong>de</strong>ntista, folheamos a revista Caras com a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
sôfrega <strong>de</strong> quem procura encontrar algo que torne a celebri<strong>da</strong><strong>de</strong> um pouco mais<br />
simétrica conosco: quem sabe um paparazzi possa flagrar um furinho <strong>de</strong> celulite em<br />
Gisele que a “mulherize”, transforman<strong>do</strong>-‐a em mortal? Enfim, po<strong>de</strong>mos fazer <strong>do</strong> corpo<br />
um sintoma na tentativa <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r positivamente a tais i<strong>de</strong>ais, mas lembro que a<br />
imagem que ilustrava o fol<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nossa IV Jorna<strong>da</strong> não era <strong>do</strong> corpo <strong>de</strong> Gisele: era <strong>de</strong><br />
uma armadura, uma espécie <strong>de</strong> versão <strong>de</strong> Dom Quixote.<br />
Escolhemos tal imagem, pois assim nos pareceu a política <strong>do</strong> sintoma: uma<br />
armadura singular inventa<strong>da</strong> por ca<strong>da</strong> sujeito para respon<strong>de</strong>r aos i<strong>de</strong>ais ou coman<strong>do</strong>s<br />
<strong>da</strong> civilização. Se na política <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> mestre temos uma proposta <strong>de</strong> governança<br />
ou orientação coletiva <strong>do</strong> gozo e a maioria respon<strong>de</strong>, portanto, positivan<strong>do</strong> os i<strong>de</strong>ais, é<br />
preciso lembrar que nem to<strong>do</strong> gozo encontra nesse discurso um abrigo. E<strong>xi</strong>ste um gozo<br />
que não encontra guari<strong>da</strong>, para o qual não e<strong>xi</strong>ste um porto-‐seguro. Há gozos que<br />
interrogam a civilização. Tal questão me veio à mente quan<strong>do</strong> assisti, muito intriga<strong>da</strong>, à<br />
série Tabu América Latina e<strong>xi</strong>bi<strong>da</strong> pela National Geographyc, cujo tema era “Corpos<br />
Transforma<strong>do</strong>s”. A transformação corporal implica uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> técnicas,<br />
procedimentos cirúrgicos e intervenções, cujo objetivo é modificar a aparência para<br />
177
diferenciar-‐se <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais. Dentre as técnicas estão as escarificações, os implantes<br />
subcutâneos e as mutilações.<br />
Creio que não po<strong>de</strong>mos fazer uma generalização a ponto <strong>de</strong> dizer que to<strong>do</strong>s os<br />
que se submetem à transformação corporal teriam as mesmas motivações. To<strong>da</strong>via, os<br />
testemunhos <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>sses sujeitos <strong>de</strong>monstram, numa versão contemporânea, como<br />
o sintoma faz impedimento a que as coisas an<strong>de</strong>m, e por isto Lacan (1975a, p. 84) po<strong>de</strong><br />
dizer que “(...) o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma é o real, o real enquanto se põe em cruz para<br />
impedir que as coisas an<strong>de</strong>m, que an<strong>de</strong>m no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong> si mesmas <strong>de</strong><br />
maneira satisfatória, satisfatória ao menos para o mestre” (...)<br />
Tomemos <strong>do</strong>is casos. O primeiro é <strong>de</strong> Emílio Gonzalez, um profissional <strong>da</strong><br />
transformação corporal que não apenas modifica o corpo <strong>de</strong> terceiros, mas o seu<br />
próprio.<br />
Mantém seu estúdio em Bogotá e preten<strong>de</strong> ficar conheci<strong>do</strong> como o Dr. Freak 2 ,<br />
pois faz justamente aquilo que os médicos rejeitam fazer: “imagina se você pedir ao<br />
médico para cortar sua língua em <strong>do</strong>is: ‘vá procurar um psicólogo, é o que ele lhe dirá”...<br />
2 Literalmente freak quer dizer <strong>de</strong>formação, aberração. Durante o século XIX e mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> XX encontramos na<br />
Europa e nos EUA até o perío<strong>do</strong> entre-‐guerras uma multiplicação <strong>do</strong>s freaks shows nos circos, casas <strong>de</strong><br />
espetáculos e museus <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Tratava-‐se <strong>de</strong> e<strong>xi</strong>bir as <strong>de</strong>formi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e bizarrices <strong>do</strong> corpo humano<br />
como numa aula <strong>de</strong> zoologia: homens-‐tronco, gêmeos siameses, a mulher mais gor<strong>da</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>... O exemplo<br />
mais conheci<strong>do</strong> encontra-‐se no filme “O homem elefante”, <strong>de</strong> David Linch, on<strong>de</strong> o protagonista John Merrick, é<br />
exposto num pequeno circo <strong>de</strong> aberrações para satisfazer a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> escópica <strong>do</strong> público. Na<strong>da</strong> <strong>de</strong> estranho<br />
para a época até que um médico, Dr.Treves, imbuí<strong>do</strong> <strong>de</strong> boa-‐vonta<strong>de</strong> e nascente espírito científico <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />
retirar Merrick <strong>do</strong> circo, <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> com seu ato a estreita relação que será sela<strong>da</strong> <strong>do</strong>ravante entre a<br />
compaixão e a entra<strong>da</strong> no discurso médico. A cultura <strong>do</strong> voyeurismo será então substituí<strong>da</strong> pela observação<br />
178
“Eu sou um transforma<strong>do</strong>r corporal <strong>de</strong> alto gabarito”, “Fiz (este braço) para ser Emílio<br />
Gonzalez, o mais famoso transforma<strong>do</strong>r corporal”. Gonzalez percorre o mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong><br />
seu lega<strong>do</strong> e é com orgulho que fala <strong>da</strong> sua obra: “Eu fiz o braço <strong>de</strong>le há muito tempo.<br />
Um braço espetacular: meu trabalho não se compara ao <strong>de</strong> ninguém”, testemunha<br />
Gonzalez a respeito <strong>do</strong>s implantes subcutâneos que havia feito num “paciente”. Satisfeito<br />
com o resulta<strong>do</strong>, seu paciente comenta: “Meu braço representa um braço único. Se você<br />
apalpar, você nunca vai esquecer, é único”.<br />
Assim, Gonzalez preten<strong>de</strong> fazer seu nome, encarregan<strong>do</strong>-‐se <strong>de</strong> fabricar a<br />
diferença ao acolher em seu estúdio os que não compartilham <strong>da</strong>s vias prescritas pelo<br />
saber <strong>do</strong> nosso tempo. O discurso que orienta e civiliza o gozo numa <strong>de</strong>termina<strong>da</strong><br />
cultura prescreve um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> comportamento para o corpo: um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vestir, <strong>de</strong><br />
an<strong>da</strong>r, <strong>de</strong> apresentar-‐se, até mesmo um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> sentar-‐se à mesa. Por isto, às vezes, os<br />
costumes <strong>de</strong> outras culturas po<strong>de</strong>m nos parecer tão aberrantes.<br />
Se a política é uma tentativa <strong>de</strong> fazer funcionar um “para to<strong>do</strong>s” propon<strong>do</strong> uma<br />
gestão universal <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> gozo, uma a<strong>da</strong>ptação à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve ser<br />
coletiviza<strong>da</strong> -‐ e nisso sem dúvi<strong>da</strong> há uma ditadura -‐ o médico <strong>do</strong>s freaks se coloca <strong>do</strong><br />
la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s contraditores <strong>do</strong> gozo, <strong>da</strong>queles que po<strong>de</strong>riam ser chama<strong>do</strong>s <strong>de</strong> recalcitrantes<br />
com relação à norma.<br />
científica. Na disputa entre o e<strong>xi</strong>bi<strong>do</strong>r e o médico pelo mesmo objeto, o médico levará a melhor. A<br />
<strong>de</strong>formi<strong>da</strong><strong>de</strong> torna-‐se tema <strong>da</strong> observação médica e objeto <strong>de</strong> amor moral.<br />
Conferir texto <strong>de</strong> Jean-‐Jacques Courtine. “O corpo anormal. História e antropologia culturais <strong>da</strong> <strong>de</strong>formi<strong>da</strong><strong>de</strong>”.<br />
In: História <strong>do</strong> corpo: as mutações <strong>do</strong> olhar. O século XX. Petrópolis, RJ, Vozes, 2008.p.253-‐340.<br />
179
O corpo civiliza<strong>do</strong> é, portanto, programa<strong>do</strong> pelo discurso. Ele <strong>de</strong>ve ser dócil a estas<br />
prescrições para entrar nas trocas. Encontramos assim no mun<strong>do</strong> atual o que Colette<br />
Soler (2002, p.100-‐101) chamou <strong>de</strong> “opressão homogeneizante <strong>da</strong> normali<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Esta<br />
autora observa um fato clínico importante: se antes os sujeitos vinham à análise porque<br />
tinham dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> para sustentar sua diferença, e isto os dividia, agora temos também<br />
os sujeitos que chegam para pedir a redução <strong>da</strong> sua diferença, pois querem ser como os<br />
<strong>de</strong>mais: belos como Gisele, bem sucedi<strong>do</strong>s como o chefe, eloquentes e <strong>de</strong>senvoltos como<br />
os artistas <strong>de</strong> telenovela...<br />
Curioso é que Gonzalez au<strong>xi</strong>lia seus “pacientes” a se distinguir, a se fazer ímpar,<br />
face à indiferenciação promovi<strong>da</strong> pela “opressão <strong>da</strong> normali<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Portanto,<br />
encontramos inúmeras maneiras <strong>de</strong> reagir e fabricar o “fora <strong>do</strong> par” para respon<strong>de</strong>r à<br />
“indiferenciação que nossas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s promovem” (SOLER,1990 [1998], p. 289).<br />
To<strong>da</strong>via, Gonzalez não escapa <strong>da</strong> cila<strong>da</strong>: quer fun<strong>da</strong>r a diferença, mas mesmo para isto é<br />
preciso que seja reconheci<strong>do</strong>. Que não seja pela massa, mas pela tribo <strong>do</strong>s freaks. Isto faz<br />
um laço, isto tem um en<strong>de</strong>reço: quer ser o melhor <strong>de</strong>ntre aqueles que promovem a<br />
diferença. Assim, perguntamos se Gonzalez fun<strong>da</strong> um novo S1: não mais “to<strong>do</strong>s belos ou<br />
to<strong>do</strong>s magros”, mas agora “to<strong>do</strong>s diferentes”. Outra tribo, outra ditadura, outro S1, mas<br />
ain<strong>da</strong> S1!<br />
Ao que parece, não po<strong>de</strong>mos mais falar <strong>de</strong> uma política <strong>do</strong> sintoma, senão<br />
políticas <strong>do</strong> sintoma: substituto <strong>de</strong> uma satisfação, índice <strong>do</strong> real, dissi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m,<br />
180
mas também como aquilo que amarra e enlaça à mesma or<strong>de</strong>m que o sujeito crê<br />
protestar contra.<br />
Vejamos outro caso. Trata-‐se <strong>de</strong> Caim, que transformou seu corpo com a aju<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
Gonzalez. Seu corpo é totalmente tatua<strong>do</strong>, tem quatro expansões nos lóbulos, seis<br />
implantes na testa em forma <strong>de</strong> coroa, removeu o umbigo, possui a língua bifurca<strong>da</strong>,<br />
mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z piercings no rosto, mutilou as orelhas para que ficassem em ponta. Seu<br />
objetivo é ficar pareci<strong>do</strong> com o diabo e com o vilão Val<strong>de</strong>mort. Gonzalez não vacila em<br />
acompanhar o projeto <strong>de</strong> seu ‘paciente’: “vou on<strong>de</strong> ele quiser para fazer o trabalho”.<br />
Parece-‐me, to<strong>da</strong>via, que cria<strong>do</strong>r e a criatura tomam aqui rumos diferentes. Seus<br />
projetos com relação ao tratamento <strong>do</strong> gozo diferem. Enquanto Gonzalez, anima<strong>do</strong> pelo<br />
S1-‐ ser “o médico <strong>do</strong>s freaks”-‐ se esforça para encontrar um lugar na civilização ain<strong>da</strong><br />
que seja pelo avesso, Caim faz uma ruptura mais radical. No referi<strong>do</strong> programa, constato<br />
que Caim quase não fala, persegue seu objetivo silenciosamente. Apenas oferece seu<br />
corpo à transformação, mas também a uma subtração. Quanto mais perto <strong>de</strong> seu<br />
objetivo, mais a fazer: é um projeto sem fim, quase como um problema <strong>de</strong> solução<br />
elegante. Para se parecer com o diabo é preciso ficar com menos carne: corta as pontas<br />
<strong>da</strong>s orelhas, a língua, parte <strong>do</strong> nariz. Mas nunca é o bastante: “Quan<strong>do</strong> me olho no espelho<br />
sinto um pouco <strong>de</strong> tristeza porque ain<strong>da</strong> há muitas mu<strong>da</strong>nças a fazer em meu corpo. Mas<br />
sei que é um processo. O importante é que eu me sinta bem com as mu<strong>da</strong>nças que faço.<br />
Des<strong>de</strong> que eu não faça mal a ninguém posso fazer com meu corpo o que eu quiser”.<br />
181
Diferem assim as soluções <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um. Gonzalez <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong> faz força para<br />
contestar o discurso <strong>do</strong>minante, mas mal sabe ele que dá uma volta <strong>de</strong> 360 graus para<br />
voltar ao mesmo lugar. Contesta os i<strong>de</strong>ais, mas fun<strong>da</strong> outro: “to<strong>do</strong>s diferentes”. No fim<br />
<strong>da</strong>s contas <strong>de</strong>nuncia: “somos to<strong>do</strong>s freaks. As mulheres no meu país to<strong>da</strong>s colocam<br />
ná<strong>de</strong>gas, mega-‐seios, peitos imensos...”.<br />
Para terminar, proponho que a diferença entre Gonzalez, o cria<strong>do</strong>r, e Caim, a<br />
criatura, é abissal. Gonzalez, quiçá neurótico, interroga o pai e os i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong>nuncian<strong>do</strong> seu<br />
fracasso em or<strong>de</strong>nar o campo <strong>do</strong> gozo. Ele, to<strong>da</strong>via, au<strong>xi</strong>lia os que não po<strong>de</strong>m contar com<br />
este recurso. Com isso, faz seu nome e ganha seu pão <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> dia. Ele entra nas trocas, e<br />
justamente por isto não está livre....<br />
Quanto a Caim, livre para fazer o que quiser <strong>de</strong> seu corpo, ele propõe à<br />
psicanálise algumas perguntas. A mais importante é por qual razão somos sempre<br />
feu<strong>da</strong>tários <strong>da</strong> imagem, pouco importan<strong>do</strong> em qual estrutura... De Gisele a Caim há um<br />
ponto em comum: nos <strong>do</strong>is casos o corpo é aquilo que se impõe, que se mostra, provoca<br />
arrepios. A bela e a fera. O corpo é esta coisa que carregamos conosco, como uma mala,<br />
às vezes sem alça. Ca<strong>da</strong> um, a seu mo<strong>do</strong>, <strong>de</strong>monstra como o corpo faz leito para o Outro,<br />
como o corpo é propício para fazer sintoma ou sinthome.<br />
Bibliografia<br />
LACAN, J. La tercera (1975a). In: ________________________. Intervenciones y textos 2. Buenos<br />
Aires, Manancial, 2001.<br />
__________. Conferencia em Genebra sobre el sintoma. (1975b).In: __________. Intervenciones<br />
y textos 2. Buenos Aires, Manantial, 2001.<br />
182
SOLER, C. Los ensamblajes <strong>de</strong>l cuerpo. Me<strong>de</strong>lin, Associación Foros <strong>de</strong>l Campo<br />
Lacaniano Me<strong>de</strong>llín, 2002.<br />
_________. O “Corpo falante”. In: Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus n. 1. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Internacional<br />
<strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano-‐<strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo<br />
Lacaniano, 2010.<br />
__________. Os direitos <strong>do</strong> sujeito. In: _______________. A <strong>Psicanálise</strong> na civilização.<br />
Tradução: Vera Ribeiro, Manoel Motta. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Contra Capa Livraria, 1998a.<br />
__________. Incidência política <strong>do</strong> psicanalista. In: ________. A <strong>Psicanálise</strong> na Civilização.<br />
Tradução: Vera Ribeiro, Manoel Motta. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Contra Capa Livraria, 1998b.<br />
183
O Real Do Sintoma: Sua Política Na Cura<br />
Andréa Hortélio Fernan<strong>de</strong>s 1<br />
Em 1975 no Seminário R.S.I., Lacan afirma que to<strong>do</strong> àquele que procura uma análise<br />
o faz por acreditar que o sintoma diz alguma coisa que <strong>de</strong>man<strong>da</strong> ser <strong>de</strong>cifra<strong>da</strong>. Ele também<br />
apresenta o sintoma como o que há <strong>de</strong> mais real em ca<strong>da</strong> um, portanto, neste senti<strong>do</strong>, o<br />
sintoma analítico interroga a não-relação sexual. Surge então, neste mesmo Seminário, outra<br />
afirmação contun<strong>de</strong>nte segun<strong>do</strong> a qual o “Inconsciente é o Real”. O real como aquilo que não<br />
cessa <strong>de</strong> não se escrever, promove a associação livre, trabalho <strong>do</strong> analisante, via transferência.<br />
Logo, nosso trabalho preten<strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r as mu<strong>da</strong>nças nas crenças <strong>do</strong> sujeito que procura uma<br />
análise levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração o real <strong>do</strong> sintoma e sua política na clínica.<br />
O real próprio ao sintoma como aquilo que não cessa <strong>de</strong> não se escrever convoca<br />
mu<strong>da</strong>nças nas crenças <strong>do</strong> sujeito. Acreditar que um sintoma diz alguma coisa está associa<strong>do</strong> à<br />
vacilação <strong>de</strong> outras crenças <strong>do</strong> sujeito, entre elas na religião e na ciência. Com relação à<br />
religião, Lacan diz que “ela é feita para curar os homens, isto é, para que não percebam o que<br />
não funciona” 2 , para recalcar o sintoma. Com relação à ciência, sabemos que a busca <strong>da</strong><br />
cientifici<strong>da</strong><strong>de</strong> termina por foracluir o sujeito por <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rá-lo naquilo em que ele se<br />
presentifica e, isso está articula<strong>do</strong> ao tratamento <strong>da</strong><strong>do</strong> ao sintoma.<br />
1 Psicanalista, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong>, Doutora em Psicopatologia e <strong>Psicanálise</strong> (Paris 7), Profa <strong>da</strong> graduação e pós-‐<br />
graduação <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>da</strong> Bahia. E-‐mail-‐ ahfernan<strong>de</strong>s@terra.com.br<br />
2 Lacan, J., O triunfo <strong>da</strong> religião. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 2005, p. 72.<br />
184
A psicopatologia explicativa, comunicativa e fenomenológica <strong>de</strong> Karl Jaspers seria um<br />
exemplo <strong>da</strong> foraclusão <strong>do</strong> sujeito fomenta<strong>da</strong> pela e<strong>xi</strong>gência <strong>de</strong> cientifici<strong>da</strong><strong>de</strong>. A percepção e a<br />
compreensão orientam a perspectiva jasperiana ao <strong>de</strong>finir o <strong>de</strong>lírio como juízo<br />
patologicamente falsea<strong>do</strong> e incompreensível. A busca <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> aponta para quão distante<br />
estão Jaspers e Lacan que afirma que “o falasser é uma forma <strong>de</strong> exprimir o inconsciente” 3 , e<br />
que, portanto, ao analista interessa o sem-senti<strong>do</strong>.<br />
Longe <strong>de</strong> propor uma hermenêutica <strong>do</strong> inconsciente, Lacan, no Seminário XI, irá<br />
<strong>de</strong>ter-se na interpretação ressaltan<strong>do</strong> o fato <strong>de</strong>la “não está aberta a to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s” 4 já que<br />
“ela mesma é um não-senso”. Para Lacan, “quan<strong>do</strong> se trata <strong>do</strong> inconsciente <strong>do</strong> sujeito” está<br />
em questão “fazer surgir elementos significantes irredutíveis, non-sense, feitos <strong>de</strong> não-<br />
senso” 5 . Temos já aí uma apro<strong>xi</strong>mação <strong>do</strong> inconsciente real, irredutível, feito <strong>de</strong> não-senso.<br />
Se o falasser é como uma forma <strong>de</strong> exprimir o inconsciente 6 , o saber em questão é um<br />
saber sem-sujeito. O inconsciente só po<strong>de</strong> ser abor<strong>da</strong><strong>do</strong> na análise on<strong>de</strong> não é questão <strong>de</strong><br />
lembrar-se <strong>do</strong> que se sabe, mas <strong>de</strong> um “não me lembro mais disso. Não me re<strong>encontro</strong><br />
nisso” 7 . É nisso que o inconsciente interpreta o analisante e faz <strong>de</strong>le seu interprete.<br />
Ain<strong>da</strong> sobre a interpretação, nos anos 70, Lacan diz que ela não é feita para ser<br />
compreendi<strong>da</strong> já que ela <strong>de</strong>ve ser equivoca 8 . É <strong>de</strong>sta forma que a interpretação age na contra<br />
3<br />
I<strong>de</strong>m.<br />
4<br />
Lacan, J., O Seminário – Livro 11. RJ: Zahar, p. 236.<br />
5<br />
I<strong>de</strong>m.<br />
6<br />
Lacan, J., O triunfo <strong>da</strong> religião. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar,2005, p. 72.<br />
7<br />
Lacan, J., “O engano <strong>do</strong> sujeito suposto saber” (14/12/1967). In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 337.<br />
8<br />
Lacan, J., “Conférénces et entretiens <strong>da</strong>ns dês universitaires nord-‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil,<br />
1976, p. 35.<br />
185
corrente <strong>do</strong> efeito <strong>de</strong> tapeação próprio à transferência 9 , apontan<strong>do</strong> para o engano <strong>do</strong> sujeito<br />
suposto que se explicita na pergunta: “o saber que só se revela no engano <strong>do</strong> sujeito, qual<br />
po<strong>de</strong> ser o sujeito que o sabe <strong>de</strong> antemão?” 10 .<br />
Logo, entre o analisan<strong>do</strong> e analista e<strong>xi</strong>stiria uma “divergência <strong>de</strong> suposição” 11 . Do<br />
la<strong>do</strong> <strong>do</strong> analisan<strong>do</strong>, a suposição <strong>de</strong> saber própria <strong>da</strong> transferência, enquanto que <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
analista, o postula<strong>do</strong> <strong>do</strong> sujeito suposto saber caberia ser aboli<strong>do</strong> no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> uma análise.<br />
A divergência <strong>de</strong> suposição aponta para a relação entre saber e crença, no que “três quartos <strong>do</strong><br />
dito saber não são na<strong>da</strong> mais que crenças” 12 .<br />
A relação entre saber e crença, interessou bastante Lacan, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> sessenta 13 .<br />
Nesta época, ele chamava atenção <strong>do</strong>s analistas que tentaram tratar <strong>da</strong> e<strong>xi</strong>stência <strong>do</strong><br />
inconsciente fora <strong>da</strong> psicanálise e, assim <strong>de</strong>ram um tom “tranqüiliza<strong>do</strong>r” 14 <strong>do</strong> inconsciente.<br />
Lacan diz então que irá “no cerne <strong>da</strong> prática que fez empali<strong>de</strong>cer o inconsciente buscar o seu<br />
registro” 15 . À prática <strong>da</strong> análise atrela<strong>da</strong> a <strong>da</strong>r senti<strong>do</strong> ao inconsciente, Lacan promulga<strong>da</strong><br />
seguir a política <strong>do</strong> sintoma no que ele mantém um senti<strong>do</strong> no real que aponta para o ser <strong>de</strong><br />
gozo <strong>do</strong> sujeito.<br />
9<br />
I<strong>de</strong>m, p. 240.<br />
10<br />
Lacan, J., “O engano <strong>do</strong> sujeito suposto saber” (14/12/1967) In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 337.<br />
11<br />
Lacan, J., “A psicanálise. Razão <strong>de</strong> um fracasso” (15/12/1967) In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p.<br />
337.<br />
12<br />
Lacan, J., “Conférénces et entretiens <strong>da</strong>ns dês universitaires nord-‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil,<br />
1976, p. 12.<br />
13<br />
Em especial, nos Seminários <strong>da</strong> Transferência e Os Quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> psicanálise e, também<br />
na Proposição <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1967 como nas conferências proferi<strong>da</strong>s em Roma, no mesmo ano.<br />
14<br />
Lacan, J., “Conférénces et entretiens <strong>da</strong>ns dês universitaires nord-‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil,<br />
1976, p. 25.<br />
15<br />
Lacan, J., “O engano <strong>do</strong> sujeito suposto saber” (14/12/1967) In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 332.<br />
186
É nesta perspectiva que em 1975, Lacan dirá que “O sintoma é real. É a única coisa<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente real, que conserva um senti<strong>do</strong> no real. É por essa razão que a psicanálise<br />
po<strong>de</strong>, se e<strong>xi</strong>ste a chance, intervir simbolicamente” 16 no real.<br />
Para tratar <strong>da</strong> afirmação segun<strong>do</strong> a qual o sintoma é real, é importante nos <strong>de</strong>termos na<br />
orientação clínica <strong>de</strong> Lacan sobre intervir simbolicamente no sintoma. Para tanto surge uma<br />
nova acepção <strong>do</strong> sintoma, o sintoma vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> real, o sintoma como “acontecimento <strong>de</strong> corpo,<br />
que correspon<strong>de</strong> ao saber fala<strong>do</strong>, ao saber fala<strong>do</strong> fixa<strong>do</strong> precocemente” 17 . O sintoma como<br />
encarnação <strong>do</strong> real comporta uma incerteza por, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, permanecer “in<strong>de</strong>ciso entre o<br />
fonema, a palavra, a frase, mesmo to<strong>do</strong> pensamento” 18 . Isto porque “a linguagem, <strong>de</strong> começo,<br />
ela não e<strong>xi</strong>ste”. A linguagem é o que se tenta saber concernentemente à função <strong>de</strong> alíngua” 19 .<br />
Desse mo<strong>do</strong>, o sintoma tem um lugar privilegia<strong>do</strong> entre as formações <strong>do</strong> inconsciente sen<strong>do</strong><br />
imprescindível para que uma <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> análise possa ocorrer.<br />
Numa conferência <strong>de</strong> Lacan na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Yale, o tratamento <strong>da</strong><strong>do</strong> ao sintoma e<br />
ao saber é evoca<strong>do</strong> no percurso <strong>de</strong> uma análise. Nesta conferência, o início <strong>do</strong> tratamento é<br />
<strong>de</strong>scrito como o analista <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> “<strong>de</strong>ixasse guiar pelos termos verbais” 20 . A expressão<br />
“termos verbais” propomos apro<strong>xi</strong>mar <strong>do</strong> significante fora <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia, fora senti<strong>do</strong>, como um<br />
16<br />
Lacan, J., O Seminário – Livro 14. L’insu-‐que-‐sait <strong>de</strong> l’ une bévue s’aile a mourre. Lição <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> março <strong>de</strong><br />
1977, inédito.<br />
17<br />
Soler, C., “De que mo<strong>do</strong> o real coman<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” in Stylus, nº 19. Rio <strong>de</strong> Janeiro: AFCL/EPCL, 2009, p, 23.<br />
18<br />
Lacan, J., O Seminário – Livro 20. RJ: Zahar, p. 196.<br />
19<br />
Lacan, J., O Seminário – Livro 20. RJ: Zahar, p. 189.<br />
20<br />
Lacan, J., “Conférénces et entretiens <strong>da</strong>ns <strong>de</strong>s universitaires nord-‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil,<br />
1976, p. 17.<br />
187
to<strong>do</strong> só, errático, <strong>do</strong> S1( S1( S1(S1 → //S2))) “que soa em francês essaim 21 , um enxame<br />
significante, um enxame que zumbe” 22 e “que garante a uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> copulação <strong>do</strong> sujeito<br />
com o saber” 23 . É importante aqui “conceber que o S2 <strong>de</strong> alíngua é ele próprio composto <strong>de</strong><br />
S1”, e que “o sujeito não virá no nível <strong>de</strong>ste S2” 24 . É assim que Lacan diz que “os efeitos <strong>de</strong><br />
alíngua que já estão lá como saber, vão bem mais longe <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> que o ser falante é suscetível<br />
<strong>de</strong> enunciar” 25 trata-se, portanto, <strong>de</strong> um saber que ultrapassa o sujeito.<br />
A partir <strong>da</strong>í veremos o ensino <strong>de</strong> Lacan <strong>de</strong>marcar que “o significante é causa <strong>de</strong><br />
gozo” 26 e que somente pelo simbólico é possível abor<strong>da</strong>r o sintoma como acontecimento no<br />
corpo. Dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, o sintoma como mo<strong>do</strong> pelo qual o sujeito goza na medi<strong>da</strong> em que<br />
o inconsciente o <strong>de</strong>termina, aponta para o fato <strong>de</strong> que o saber inconsciente “está aloja<strong>do</strong> em<br />
outro lugar, ele está aloja<strong>do</strong> na substância gozante” 27 e aponta para uma fixão <strong>de</strong> gozo própria<br />
ao sujeito. Os uns erráticos que antece<strong>de</strong>m a linguagem conectam-se ao gozo corporal<br />
fazen<strong>do</strong> sintoma, entendi<strong>do</strong> como acontecimento no corpo, por trazerem aos traços <strong>do</strong> gozo<br />
<strong>do</strong> Outro. Como não se po<strong>de</strong> gozar <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> Outro, <strong>da</strong><strong>da</strong> ine<strong>xi</strong>stência <strong>da</strong> relação sexual é<br />
através <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, que algo <strong>do</strong> sintoma po<strong>de</strong> ser toca<strong>do</strong> pela prática <strong>de</strong> falar em<br />
análise.<br />
21<br />
No dicionário Le Robert – essaim significa enxame, exemplo: “groupe d’abeilles d’insectes em vol ou posés.<br />
22<br />
Lacan, J., O Seminário – Livro 20. Mais, ain<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 196.<br />
23<br />
I<strong>de</strong>m.<br />
24<br />
Soler, C., “De que mo<strong>do</strong> o real coman<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” in Stylus, nº 19. Rio <strong>de</strong> Janeiro: AFCL/EPCL, 2009, p. 19.<br />
25<br />
Lacan, J., O Seminário – Livro 20. Mais, ain<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 191.<br />
26<br />
Lacan, J., O Seminário – Livro 20. Mais, ain<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 36.<br />
27<br />
Soler, C., “De que mo<strong>do</strong> o real coman<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” in Stylus, nº 19. Rio <strong>de</strong> Janeiro: AFCL/EPCL, 2009, p. 18.<br />
188
Estan<strong>do</strong> trabalhan<strong>do</strong> o saber inconsciente aloja<strong>do</strong> na substância gozante, para Lacan<br />
“o que há <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>nte no sintoma ... é que se acredita” 28 . Logo, to<strong>do</strong> aquele que<br />
<strong>de</strong>man<strong>da</strong> uma análise acredita que o sintoma diz alguma coisa e basta apenas <strong>de</strong>cifrá-la. O<br />
analista convoca<strong>do</strong> a respon<strong>de</strong>r com o saber faz uma aposta que uma análise se dê, pela<br />
associação livre <strong>do</strong> analisan<strong>do</strong>. O <strong>de</strong>sejo adverti<strong>do</strong> <strong>do</strong> analista está suporta<strong>do</strong> na sua própria<br />
experiência <strong>de</strong> análise que <strong>de</strong>ve tê-lo leva<strong>do</strong> a um ponto <strong>de</strong> ateísmo que não se contradiz.<br />
Nisto o ateísmo po<strong>de</strong> ser apro<strong>xi</strong>ma<strong>do</strong> à questão <strong>do</strong> gozo.<br />
O ateísmo é <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> por Lacan como “a <strong>do</strong>ença <strong>da</strong> crença em Deus” 29 , a crença que<br />
Deus não intervém no mun<strong>do</strong>. Assim to<strong>do</strong>s seriam religiosos, mesmo os ateus que<br />
acreditariam que Deus não tem nenhuma participação quan<strong>do</strong> estão <strong>do</strong>entes. No nível <strong>do</strong><br />
gozo, o analista leva<strong>do</strong> ao ponto <strong>do</strong> ateísmo durável, está adverti<strong>do</strong> que o sujeito neurótico é<br />
leva<strong>do</strong> a <strong>de</strong>legar o gozo ao Outro. Porém, a experiência <strong>da</strong> análise permite ao analista entrever<br />
que esta crença esta pauta<strong>da</strong> no ateísmo, a <strong>do</strong>ença <strong>da</strong> crença em Deus. Isto porque mesmo<br />
sen<strong>do</strong> o gozo o que falta ao Outro, na neurose e o que o torna inconsistente, o neurótico ten<strong>de</strong><br />
a <strong>de</strong>legá-lo ao Outro. Logo, o analista cuja à análise o levou a um ponto <strong>de</strong> ateísmo po<strong>de</strong> levar<br />
um sujeito a formular a seguinte questão: “este gozo, <strong>do</strong> qual a falta faz o Outro inconsistente,<br />
é ele meu?” 30 .<br />
28<br />
Lacan, J., O Seminário – Livro 20. R.S.I. Lição <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1975, p. 24. Inédito.<br />
29<br />
Lacan, J., “Conférénces et entretiens <strong>da</strong>ns <strong>de</strong>s universitaires nord-‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil,<br />
1976, p. 32.<br />
30<br />
Lacan, J., “Subversão <strong>do</strong> sujeito e dialética <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo no inconsciente freudiano” (1957) in: Escritos. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: Zahar, p. 819.<br />
189
É necessário um percurso para que uma análise se dê, e ele está articula<strong>do</strong> àquilo que<br />
faz função <strong>de</strong> real no saber, ou seja, o impossível, a não-relação sexual. Uma análise começa<br />
com um sujeito supon<strong>do</strong> um saber ao analista. Ao analista cabe colocar a <strong>de</strong>stituição subjetiva<br />
em pauta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>da</strong> análise para, assim po<strong>de</strong>r manejar, com a suposição <strong>de</strong> saber a ele<br />
atribuí<strong>da</strong>. O algoritmo <strong>da</strong> transferência mostra o caráter <strong>de</strong> cifra <strong>de</strong> gozo, fora-senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
sintoma que convoca <strong>de</strong>cifração. Através <strong>do</strong> S significante <strong>da</strong> transferência o sujeito apresenta<br />
o sintoma como um “incompreensível corpo estranho a ele próprio e porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um senti<strong>do</strong><br />
obscuro que o representa” 31 . É aí que Lacan vai insistir que “Há Um e na<strong>da</strong> mais”. O Um que<br />
insiste em se escrever pelo viés <strong>da</strong> fala, sob transferência, <strong>de</strong>monstra indiretamente o que não<br />
se escreve 32 , a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever a relação sexual.<br />
A impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> está posta entre o S1 e S2 no discurso <strong>do</strong> mestre, S1 → S2, entre eles<br />
não há relação <strong>da</strong><strong>da</strong> a coalescência entre S1 e S2. O sintoma como o que <strong>de</strong> mais particular em<br />
ca<strong>da</strong> um, interroga a não-relação sexual e cria um intervalo entre S1 e S2, on<strong>de</strong> é possível<br />
situar o sintoma ( ∑ ) que faz e<strong>xi</strong>stir a relação sexual, faz e<strong>xi</strong>stir o discurso. A questão então é<br />
como um significante po<strong>de</strong> ser chama<strong>do</strong> a fazer sinal, a constituir signo 33 , sintoma para um<br />
sujeito.<br />
Lacan afirma que “o saber <strong>do</strong> um, por pouco que posamos dizer disto, vem <strong>do</strong><br />
significante Um” 34 <strong>de</strong> alíngua. E ain<strong>da</strong> que é <strong>da</strong> alíngua que é possível extrair o que é <strong>do</strong><br />
31 Soler, c. “Stan<strong>da</strong>rd e não stan<strong>da</strong>rd” in: Artigos Clínicos. Salva<strong>do</strong>r: Fator, 1991, p. 28.<br />
32 Soler, C., “De que mo<strong>do</strong> o real coman<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” in Stylus, nº 19. Rio <strong>de</strong> Janeiro: AFCL/EPCL, 2009, p. 17.<br />
33 J.Lacan, O Seminário – Livro 20. Mais, ain<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 195.<br />
34 I<strong>de</strong>m.<br />
190
significante 35 . Ao Lacan propor o Um encarna<strong>do</strong>, ele concebe que S2 é composto pelo S1. Do<br />
la<strong>do</strong> <strong>do</strong> S2 está o resto que permanece não <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong>, não-significantizável, indizível, um<br />
saber fala<strong>do</strong> tal qual o Um encarna<strong>do</strong>. O S2 aponta para o que há <strong>de</strong> contingente no ouvir e<br />
põe em marcha to<strong>da</strong> a crença <strong>do</strong> sujeito no sintoma. A ponto <strong>de</strong> Lacan <strong>de</strong>clarar que “o<br />
significante Um não é significante qualquer. Ele é a or<strong>de</strong>m significante, no que ela se instaura<br />
pelo envolvimento pelo qual to<strong>da</strong> a ca<strong>de</strong>ia subsiste 36 .<br />
Para Lacan, a linguagem é feita <strong>de</strong> alíngua. A linguagem “é uma elucubrarão <strong>de</strong> saber<br />
<strong>de</strong> alíngua” 37 . Nesta época, Lacan vai apro<strong>xi</strong>mar o inconsciente <strong>de</strong> alíngua, propon<strong>do</strong> um<br />
inconsciente fora-senti<strong>do</strong>, anterior a linguagem. Segun<strong>do</strong> ele, “é porque há o inconsciente,<br />
isto é alíngua ... que o significante po<strong>de</strong> ser chama<strong>do</strong> a fazer sinal, a constituir signo” 38 , a<br />
fazer enigma, levan<strong>do</strong> ao cúmulo <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. O senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> que o sujeito ignora, o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
que ele não sabe suscita o amor ao saber, ou seja, transferência 39 . É neste contexto que, por<br />
contingência, ou seja, pela fala <strong>do</strong> sujeito em análise, algo po<strong>de</strong> vir a se escrever (S2) e é o que<br />
faz função <strong>de</strong> real no saber, um saber sem-sujeito, um saber que ultrapassa o sujeito e aponta<br />
para algo que cessa <strong>de</strong> não se escrever: o Um <strong>do</strong> gozo, a letra <strong>de</strong> gozo. Aponta, pois, para o<br />
sintoma como o que há <strong>de</strong> mais real em ca<strong>da</strong> um e para o inconsciente real que pelo cúmulo<br />
<strong>de</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Um encarna<strong>do</strong> que faz signo, enigma e leva o sujeito a acreditar que o sintoma<br />
possa ser traduzi<strong>do</strong>.<br />
35 I<strong>de</strong>m, p. 194.<br />
36 I<strong>de</strong>m, p. 197.<br />
37 I<strong>de</strong>m, p. 190.<br />
38 I<strong>de</strong>m, p. 195.<br />
39 Gerbase, J., “O discurso histérico”, curso O diagnóstico na psicanálise e na psiquiatria, inédito, 2010.<br />
191
Ao tratar <strong>da</strong> crença no sintoma, em 1975, Lacan marcará uma distinção entre acreditar<br />
no sintoma (“y croire”) como <strong>do</strong> campo <strong>da</strong> neurose e acreditar nele (“le croire”). Na psicose,<br />
sabemos, as vozes estão lá, o psicótico acredita nelas, <strong>da</strong>í porque Lacan formulou que na<br />
psicose o que foi foracluí<strong>do</strong> no simbólico, retorna no real. Porém, tanto na neurose como na<br />
psicose, o analista <strong>de</strong>verá manejar com a crença no sintoma.<br />
Na psicose trata-se <strong>de</strong> uma crença força<strong>da</strong>. O psicótico sofre o efeito <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia<br />
significante rompi<strong>da</strong> que faz com que a irrupção <strong>de</strong> um significante no real seja<br />
incontestável 40 , por exemplo: “porca”. De acor<strong>do</strong> com Bernard David 41 , o psicótico acredita<br />
na sua alucinação <strong>de</strong> forma re<strong>do</strong>bra<strong>da</strong>, ele utiliza a passagem <strong>da</strong> paciente entrevista<strong>da</strong> por<br />
Lacan que diz ter escuta<strong>do</strong> “porca” para <strong>de</strong>monstrar isso. A crença seria re<strong>do</strong>bra<strong>da</strong> pelo fato<br />
<strong>do</strong> significante “porca” surgi no real e, também, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao fato <strong>do</strong> significante interpretar a<br />
paciente. Este significante quer lhe dizer alguma coisa e, em alguns casos, já diz alguma<br />
coisa, apesar <strong>da</strong> paciente. Em razão <strong>da</strong> não-extração <strong>do</strong> objeto a, está veta<strong>do</strong> à paciente saber<br />
o que é o seu ser <strong>de</strong> gozo, o significante equivale a ela enquanto objeto <strong>de</strong> gozo <strong>do</strong> Outro.<br />
Entretanto, no <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>da</strong> psicose encontramos um percurso que vai <strong>do</strong><br />
acreditar no sintoma e acreditar nele. O significante real “porca” (S2), essa irrupção <strong>do</strong><br />
inconsciente real, <strong>de</strong> um saber sem sujeito, frente a ela a paciente não se vê representa<strong>da</strong> pelo<br />
significante alucina<strong>do</strong>, até aí ela sofre o efeito <strong>do</strong> cúmulo <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> que faz signo e <strong>de</strong>man<strong>da</strong><br />
40 Lacan, J., “De uma questão familiar à to<strong>do</strong> tratamento possível <strong>da</strong> psicose” in: Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar,<br />
p. 542.<br />
41 Bernard, D. “Y croire, les croire” in: Pli, nº 4. Revue <strong>de</strong> Psychanalyse.<br />
192
interpretação. Somente com a formalização <strong>do</strong> <strong>de</strong>lírio que a paciente passa a acreditar nele,<br />
através <strong>da</strong> significação <strong>da</strong> significação.<br />
Na neurose, o sujeito acredita no sintoma e isso o impulsiona na direção <strong>de</strong> uma<br />
elaboração, pauta<strong>da</strong> na transferência. O significante que faz enigma seria real como o<br />
significante no real próprio à psicose, a diferença é que ele não é alucina<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser<br />
encarna<strong>do</strong>, inscrito no corpo, como nos ilustra a histeria. Esse significante é causa <strong>de</strong> gozo e<br />
objeto <strong>de</strong> gozo na medi<strong>da</strong> em que se goza <strong>de</strong>le, porém é um real que po<strong>de</strong> se converter em<br />
simbólico 42 . O tratamento <strong>do</strong> real <strong>do</strong> sintoma pelo simbólico é <strong>do</strong> que se ocupa uma<br />
psicanálise com especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s na neurose e na psicose.<br />
Na psicose e<strong>xi</strong>stiria a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> civilizar o gozo, possibilitan<strong>do</strong> que mesmo na<br />
psicose o sujeito possa fazer laço social. Um exemplo seria Joyce ao conciliar seu gozo<br />
autístico, o gozo <strong>do</strong> Um, ao gozo <strong>da</strong> letra, se impor ao mun<strong>do</strong> como artista fazen<strong>do</strong>-se<br />
promotor <strong>de</strong> seu nome <strong>de</strong> gozo. Os seus livros Retrato <strong>do</strong> artista quan<strong>do</strong> jovem ou Stephen, o<br />
herói, não se trata <strong>de</strong> um herói ou um artista, mas <strong>do</strong> herói e <strong>do</strong> artista que é uma crença <strong>da</strong><br />
mesma or<strong>de</strong>m que a crença <strong>de</strong> Schreber <strong>de</strong> ser A mulher <strong>de</strong> Deus 43 , apontan<strong>do</strong> que ele<br />
acredita nela.<br />
Na análise com neuróticos, teríamos na entra<strong>da</strong>, a crença no sintoma que o liga a<br />
ca<strong>de</strong>ia significante sob transferência e, “na saí<strong>da</strong>, a <strong>de</strong>scrença que o <strong>de</strong>sliga <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia<br />
42 Soler, C., “Les symptômes <strong>de</strong> transfert”, curso inédito <strong>de</strong> 1999.<br />
43 Soler, C., O inconsciente a céu aberto <strong>da</strong> psicose. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 2007, p. 206.<br />
193
significante” 44 . Como já dizemos acreditar no sintoma é acreditar que ele diga alguma coisa.<br />
É nisso que o sintoma interroga a não-relação sexual. Acreditar no sintoma seria como lhe<br />
acrescentar reticências, acreditar que ao S1 po<strong>de</strong> juntar um S2 que faria sintoma retornar <strong>do</strong><br />
real para o senti<strong>do</strong>. Aí está à própria crença no inconsciente. Em contraparti<strong>da</strong>, a i<strong>de</strong>ntificação<br />
com o sintoma presume que o sujeito tenha <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> <strong>de</strong> esperar que a tradução pelas<br />
reticências, <strong>de</strong>ixa-se, pois <strong>de</strong> acreditar, “a letra <strong>do</strong> sintoma resolve o vazio <strong>do</strong> sujeito que<br />
acabou com a questão <strong>do</strong> ser e com a elucubração <strong>de</strong> saber relaciona<strong>da</strong> a ela” 45 .<br />
Por fim, Lacan ao afirmar que “o real, tal como nos falamos <strong>de</strong>le, é completamente<br />
<strong>de</strong>snu<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>”... “porque não é escrito com palavras. E sim com pequenas letras” 46<br />
aponta para o que seria a infinitu<strong>de</strong> <strong>da</strong> análise. Na qual “o sujeito ao acreditar no sintoma,<br />
acredita que o “um” <strong>da</strong> letra po<strong>de</strong> retornar ao “<strong>do</strong>is “ <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia” 47 , e assim alimentar o gozo<br />
<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> atrela<strong>do</strong> ao real <strong>do</strong> sintoma, política cujo manejo o analista é convoca<strong>do</strong> a operar.<br />
44<br />
I<strong>de</strong>m, p. 198.<br />
45<br />
Soler, C., O que Lacan dizia <strong>da</strong>s mulheres. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 198.<br />
46<br />
Lacan, J., “Conférénces et entretiens <strong>da</strong>ns <strong>de</strong>s universitaires nord-‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil,<br />
1976, p. 29.<br />
47<br />
Soler, C., O que Lacan dizia <strong>da</strong>s mulheres. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 197.<br />
194
Sintoma ou Fenômeno Psicossomático? Decifra-me ou te <strong>de</strong>voro!<br />
Roberta Luna <strong>da</strong> Costa Freire 1<br />
Neste trabalho trazemos reflexões, a partir <strong>da</strong> clínica, em torno <strong>do</strong> que po<strong>de</strong> ser<br />
leva<strong>do</strong> em conta - no caso em que se apresenta uma lesão num órgão – para se dizer se se<br />
trata <strong>de</strong> um sintoma ou <strong>de</strong> um fenômeno psicossomático. É possível falar-se <strong>de</strong> sintoma na<br />
psicossomática? Sen<strong>do</strong> a fenomenologia, para Lacan, tributária <strong>do</strong> registro <strong>da</strong> fala, será no<br />
campo <strong>da</strong> linguagem que situaremos nossa questão como uma questão <strong>de</strong> nome.<br />
Segun<strong>do</strong> Soller (2010, p.31), o sintoma é acontecimento <strong>do</strong> corpo, e o corpo se<br />
introduz na psicanálise pelo sintoma. Nesse senti<strong>do</strong>, é com o corpo, enquanto submeti<strong>do</strong> à<br />
or<strong>de</strong>m simbólica - afeta<strong>do</strong> pela linguagem - que é possível esvanecer a diferença, tão cara às<br />
ciências filosóficas, entre mente e corpo. Assim, aponta Garcia-Roza (1936), a dicotomia não<br />
se inscreve como mente-corpo, mas como corpo linguagem/pulsões anárquicas.<br />
Em “Radiofonia” (1970, p.406), Lacan afirma que o corpo simbólico é aquele sobre o<br />
qual o ser que nele se apóia não sabe que é a linguagem que lhe confere,a tal ponto que ele<br />
não e<strong>xi</strong>stiria, se não pu<strong>de</strong>sse falar. Assim, é o corpo fala<strong>do</strong> no divã que pertence à<br />
psicanálise. Corpo <strong>de</strong>sgarra<strong>do</strong> <strong>do</strong> organismo. O corpo <strong>do</strong> qual falamos é o corpo em sua<br />
consistência imaginária e simbólica, e separa<strong>do</strong> <strong>da</strong> carne. Ele, como sintoma, afeta<strong>do</strong> pelo<br />
significante, e<strong>xi</strong>la o gozo e adquire consistência imaginária, prestan<strong>do</strong>-se ao equívoco; ao<br />
1 Psicanalista. Membro <strong>da</strong> EPFCL – Brasil/ AFCL – Fórum Natal<br />
195
passo que o organismo é pulsional, coisa bruta e real. Não há <strong>encontro</strong> com o significante: o<br />
organismo é o não <strong>encontro</strong>.<br />
Como <strong>de</strong>stino <strong>da</strong> pulsão, o sintoma é testemunho <strong>da</strong> pulsão captura<strong>da</strong> pela linguagem,<br />
fazen<strong>do</strong>-a e<strong>xi</strong>lar-se. Ser afeta<strong>do</strong> pelo significante dá ao corpo consistência, a mesma que<br />
Freud atribuiu ao <strong>encontro</strong> entre representação-coisa e representação-palavra.<br />
No texto “O Inconsciente”(1915), Freud refere-se ao afeto e à representação como<br />
representantes pulsionais. Pela ação <strong>do</strong> recalque, o afeto é <strong>de</strong>sloca<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua representação<br />
original, a qual Freud <strong>de</strong>signou como representação coisa, para outra representação. A<br />
apresentação consciente abrange a apresentação <strong>da</strong> coisa mais a apresentação <strong>da</strong> palavra que<br />
pertence a ela, ao passo que a apresentação inconsciente é a apresentação <strong>da</strong> coisa apenas. A<br />
apresentação <strong>da</strong> coisa mais a apresentação <strong>da</strong> palavra dizem respeito à captura <strong>da</strong> pulsão,<br />
impon<strong>do</strong> a esta a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> linguagem. A essa transformação, Freud <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong><br />
representante-representação.<br />
Em termos significantes, a representação palavra seriam os significantes, e a<br />
representação coisa o corpo pulsional. Nesse <strong>encontro</strong>, segun<strong>do</strong> Freud, uma parte fica no<br />
inconsciente e outra na consciência. Portanto, algo se per<strong>de</strong>, isto é, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozar<br />
livremente; o gozo é e<strong>xi</strong>la<strong>do</strong> e “educa<strong>do</strong>”. Em termos lingüísticos, significa a dialética <strong>do</strong> par<br />
S1- S2, no que ele representa o sujeito para um outro significante, o qual o outro<br />
significante tem por efeito a afânise <strong>do</strong> sujeito (Lacan, 1964, p.207)<br />
Contu<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> esse <strong>encontro</strong> entre o afeto e um substituto <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong> não se<br />
estabelece, um quantum <strong>de</strong> afeto fica solto, e o excesso é senti<strong>do</strong> como angústia. Isso<br />
196
significa dizer que o <strong>encontro</strong> entre a representação coisa e a representação palavra não se<br />
efetivou. O afeto franquea<strong>do</strong> se tornará então não simboliza<strong>do</strong>, não encontran<strong>do</strong> uma<br />
linguagem para seu escoamento. Em termos lacanianos, trata-se <strong>de</strong> um excesso <strong>de</strong> gozo, isto<br />
é, <strong>do</strong> real.<br />
Nessa perspectiva, po<strong>de</strong>remos situar a psicossomática: o afeto <strong>de</strong>sgarra<strong>do</strong> <strong>da</strong> escritura<br />
é real; e, como tal, ataca o corpo sem mediação simbólica. Seus efeitos se mostram na marca<br />
impressa no corpo, que, no dizer <strong>de</strong> Lacan, não po<strong>de</strong> ser li<strong>da</strong>. No “Seminário 11”, Lacan situa<br />
a psicossomática, em termos linguisticos, com a fórmula <strong>da</strong> holófrase, na qual não há<br />
intervalo significante. Ele diz que a psicossomática é algo que não é um significante, mas que<br />
mesmo assim, só é concebível pela indução significante, no nível <strong>do</strong> sujeito, se passou <strong>de</strong><br />
maneira que não põe em jogo a afânise <strong>do</strong> sujeito (Lacan, 1964, p.215)<br />
Lacan não <strong>de</strong>signa a psicossomática como estrutura, mas, antes, como efeito <strong>de</strong><br />
linguagem, sen<strong>do</strong>, portanto, um fenômeno, o que nos permite afirmar que um sujeito<br />
neurótico, psicótico ou perverso po<strong>de</strong> apresentar lesões psicossomáticas. Segun<strong>do</strong> Soller<br />
(2010, p11), para gozar é preciso um corpo e não um sujeito. O corpo <strong>de</strong>sgarra<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
organismo, atravessa<strong>do</strong> pelas pulsões.<br />
No senso comum e no discurso especializa<strong>do</strong> <strong>da</strong> psicologia e <strong>da</strong> psiquiatria, a<br />
psicossomática é compreendi<strong>da</strong> a partir <strong>de</strong> um fun<strong>do</strong> emocional – termo <strong>de</strong>scritivo e genérico<br />
que revela a confusão aponta<strong>da</strong> por Freud (1915), quan<strong>do</strong> diz que o fato <strong>de</strong> não se levar em<br />
conta o inconsciente é supor que tu<strong>do</strong> que é mental é consciente. Nesses <strong>do</strong>is campos, quem<br />
tem o saber é o especialista. Satisfeito, o paciente sai com uma receita química <strong>da</strong> consulta <strong>do</strong><br />
197
psiquiatra, ou com uma receita comportamental <strong>da</strong> consulta com o psicólogo e, <strong>de</strong> quebra, sua<br />
<strong>do</strong>ença ain<strong>da</strong> ganha um nome, o nome <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença.<br />
Nesses casos, por exemplo, uma <strong>do</strong>r <strong>de</strong> cabeça é sinal <strong>de</strong> estresse, excesso <strong>de</strong><br />
trabalho, frustração,etc. Esses males são <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s <strong>de</strong> somatização, como resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
influência <strong>da</strong> mente sobre o corpo. Na psicanálise, um sintoma é uma formação <strong>do</strong><br />
inconsciente, um representante linguistico <strong>do</strong> sujeito, um nome que afeta o corpo e o a<strong>do</strong>ece,<br />
uma <strong>do</strong>ença <strong>do</strong> nome, a qual po<strong>de</strong> ser substituí<strong>da</strong> ou <strong>de</strong>sloca<strong>da</strong>. Assim, como sintoma<br />
psicanalítico, precisa ser conta<strong>do</strong>, fala<strong>do</strong>, para dizer a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, sem <strong>de</strong>la saber, apenas pela<br />
emergência <strong>de</strong> seus efeitos. É inapreensível, enigmático, estratégico, joga a parti<strong>da</strong>, na qual a<br />
posição <strong>do</strong> sujeito varia por sua condição <strong>de</strong> estrutura.<br />
Vanessa, 42 anos, chega à sessão <strong>de</strong> psicanálise dizen<strong>do</strong> que sua voz está rouca e<br />
baixa, que está quase sem voz. Conta que ficou assim após uma discussão no trabalho na qual<br />
sua colega lhe gritou e ela respon<strong>de</strong>u em voz baixa. Vanessa diz também que, no dia seguinte,<br />
soube que sua sobrinha fora embora para a França com um estranho que conhecera há pouco<br />
tempo, e, que, ao saber <strong>de</strong>ssa notícia, ficou sem voz. Vanessa foi ao médico, e ele<br />
diagnosticou que ela estava com calo nas cor<strong>da</strong>s vocais. Sua <strong>do</strong>ença ganhou nome, tratamento<br />
específico e localiza<strong>do</strong>.<br />
Ao referir-se à paciente <strong>de</strong> Tausk, Freud ressaltou que os comentários <strong>de</strong>ssa paciente<br />
tinham o valor <strong>de</strong> uma análise. Isso significa dizer que o sintoma psicanalítico é aquele<br />
“tagarela<strong>do</strong>” pelo paciente.<br />
198
Vanessa queixa-se também <strong>de</strong> ter perdi<strong>do</strong> suas digitais, diagnóstico <strong>da</strong><strong>do</strong> pelo médico.<br />
Ela não sabe dizer o porquê, não consegue construir um saber: não há bateria <strong>de</strong> significantes<br />
disponível; <strong>de</strong>le apenas interroga o porquê. Sua questão orbita em torno <strong>da</strong> causali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e não<br />
<strong>do</strong> saber. Ela não supõe um saber sobre ele.<br />
Lacan nos ensina que, na psicossomática, há um gozo localiza<strong>do</strong>, que retorna ao corpo<br />
e induz a lesão; um gozo não <strong>do</strong>ma<strong>do</strong> pelo significante, o qual consiste em um ataque que<br />
<strong>de</strong>ixa sua marca, uma marca que é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> número, o que aponta para um quantum <strong>da</strong><br />
or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cifração. O gozo <strong>de</strong>ixa seu rastro para não ser li<strong>do</strong>; a lesão atesta a sepultura<br />
cava<strong>da</strong> pelo gozo; e o número, o seu epitáfio. O ataque <strong>do</strong> gozo ao corpo e seu <strong>de</strong>voramento<br />
local <strong>de</strong>volvem-lhe o seu estatuto <strong>de</strong> carne, pois cortam na própria carne.<br />
Mas, na prática, consi<strong>de</strong>rar um como sintoma e o outro como fenômeno a que nos<br />
remete? O que ensinam os fenômenos psicossomáticos, a que eles respon<strong>de</strong>m, ou, ain<strong>da</strong>, que<br />
pergunta nos en<strong>de</strong>reçam?<br />
Se o discurso especializa<strong>do</strong> dá nome à <strong>do</strong>ença, po<strong>de</strong>ríamos dizer que, na psicanálise, o<br />
sintoma é a <strong>do</strong>ença <strong>do</strong> nome, e os fenômenos psicossomáticos seriam a <strong>do</strong>ença sem nome.<br />
No “Discurso <strong>de</strong> Genebra” (1975), Lacan disse que a contribuição <strong>de</strong> Freud em<br />
relação ao consciente <strong>da</strong> consciência foi a idéia <strong>de</strong> que “não há necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> saber que se<br />
sabe para gozar um saber”. Ora, Vanessa não sabe, ao dizer que ficou afônica após a<br />
discussão e a notícia. Aliás, na primeira há um dito em excesso, e na segun<strong>da</strong> um excesso <strong>do</strong><br />
dito. Em seu trabalho ela <strong>de</strong>sloca, faz <strong>de</strong>slizarem palavras metonimicamente, o que sabe sobre<br />
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sua rouquidão. Agora, banha<strong>da</strong> pela linguagem, as cor<strong>da</strong>s vocais lesa<strong>da</strong>s tomam valor <strong>de</strong><br />
senti<strong>do</strong>. Talvez possamos consi<strong>de</strong>rar que, diante <strong>da</strong> lesão orgânica, ela constrói um saber.<br />
O sujeito articula-se na ca<strong>de</strong>ia fala<strong>da</strong>, como diz Lacan (1964, p.198): a característica<br />
<strong>do</strong> sujeito inconsciente é <strong>de</strong> estar, sob o significante que <strong>de</strong>senvolve suas re<strong>de</strong>s, suas ca<strong>de</strong>ias<br />
e sua história. Nesse senti<strong>do</strong>, o importante é o que <strong>de</strong> gozo po<strong>de</strong> ser barra<strong>do</strong> pela emergência<br />
<strong>do</strong> saber, o qual só po<strong>de</strong> ser produzi<strong>do</strong> pelo sujeito dividi<strong>do</strong>, divisão, essa, que permitiu o<br />
exílio <strong>do</strong> gozo.<br />
Lacan, no “Discurso <strong>de</strong> Genebra” (1975), concor<strong>da</strong> com o Sr. Vautier quan<strong>do</strong> este<br />
assinala que quan<strong>do</strong> se tem a impressão <strong>de</strong> que a palavra gozo recupera um senti<strong>do</strong> com um<br />
psicossomático, este já não é mais psicossomático. Eis a diferença: há um gozo, <strong>do</strong> qual se<br />
extrai um saber. Há uma nomeação, uma afetação <strong>da</strong> linguagem, uma <strong>do</strong>ença por efeito <strong>do</strong><br />
nome. No segun<strong>do</strong> exemplo, não há nomeação.<br />
Supomos que, no primeiro exemplo tem-se um sintoma e, no segun<strong>do</strong>, um fenômeno<br />
psicossomático. No primeiro, quan<strong>do</strong> Vanessa en<strong>de</strong>reçou sua queixa ao médico, a <strong>do</strong>ença<br />
ganhou um nome: contu<strong>do</strong>, ao en<strong>de</strong>reçá-la ao psicanalista, ela construiu um saber sobre o<br />
nome que a a<strong>do</strong>ecia.<br />
Em relação ao segun<strong>do</strong> exemplo, não po<strong>de</strong>mos furtar-nos a apontar o caráter<br />
emblemático <strong>de</strong>ssa lesão; ou seja, per<strong>de</strong>r as digitais significa per<strong>de</strong>r o que, no registro <strong>da</strong><br />
i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> civil , constitui a marca <strong>da</strong> e<strong>xi</strong>stência singular. Sua lesão ganhou nome, no entanto<br />
não há nome <strong>de</strong> fato que a nomeie. É palavra vazia, sem nomeação que sustente uma história.<br />
Sem nome, sua lesão <strong>de</strong>vora seu ser <strong>de</strong> sujeito, produzi<strong>do</strong> pela não afânise, não representação<br />
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significante, ausência <strong>da</strong> representação-palavra. Devora<strong>da</strong> por sua lesão, ela se situa ante a<br />
questão <strong>de</strong> ter que <strong>de</strong>cifrá-lo, para que possa <strong>de</strong>le livrar-se e, assim, po<strong>de</strong>r representar-se<br />
metonimicamente.<br />
Referências:<br />
FREUD, Sigmund. O Inconsciente. (1915). Obras Completas. Vol XIV. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
IMAGO, 1980.<br />
GARCIA-ROZA, Luis Alfre<strong>do</strong>. O Mal Radical em Freud. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar,<br />
1990.<br />
LACAN, Jacques. Conferência <strong>de</strong> Genebra sobre o sintoma. Mimeo.1975.<br />
______________ O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> psicanálise<br />
(1964). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1998.<br />
______________.Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2003.<br />
SOLER, Colette. O “Corpo Falante”. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus. Rio <strong>de</strong> Janeiro: IF/EPFCL, 2010.<br />
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Consi<strong>de</strong>rações topológicas <strong>da</strong> passagem <strong>do</strong> sintoma ao sinthoma<br />
Conra<strong>do</strong> Ramos 1<br />
Com o objetivo <strong>de</strong> tentar formalizar algumas questões sobre o sintoma, apresento<br />
fragmentos clínicos <strong>de</strong> um caso e, em segui<strong>da</strong>, meu trabalho <strong>de</strong> teorização <strong>do</strong> mesmo.<br />
Um analisante passou seus anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifração em torno <strong>da</strong> relação entre três questões:<br />
o que é ser um filho, o que é ser um pai, e como isso se articulava nos seus laços amorosos e<br />
<strong>de</strong> trabalho. Ele fazia <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> um morrer <strong>de</strong> trabalhar pelo qual repetia o esforço, por um<br />
la<strong>do</strong>, <strong>de</strong> ser reconheci<strong>do</strong> e ama<strong>do</strong> pelo pai cruel e insaciável que teve e, por outro la<strong>do</strong>, um<br />
meio <strong>de</strong> fazer diferente <strong>de</strong> seu pai, toman<strong>do</strong> por filhos aqueles implica<strong>do</strong>s nos efeitos <strong>de</strong> seu<br />
trabalho. Morrer <strong>de</strong> trabalhar era um sintoma que atravessava a sua história significan<strong>do</strong> suas<br />
posições, ora <strong>de</strong> filho, ora <strong>de</strong> pai. Durante anos tomou remédios psiquiátricos por estar sempre<br />
uma pilha <strong>de</strong> nervos. De tanto querer livrar-se <strong>de</strong>sta situação, concluiu que foi por meio <strong>de</strong>la<br />
que se constituiu e que tentava fazer <strong>do</strong> morrer <strong>de</strong> trabalhar uma forma para<strong>do</strong>xal <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Começou a referir-se ao trabalho como uma estranha satisfação que o fazia sentir-se pilha<strong>do</strong><br />
(<strong>de</strong> pilha, bater