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AGOSTINHO ALVES BARBOSA (Bate Asa) - Oktiva

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<strong>AGOSTINHO</strong> <strong>ALVES</strong> <strong>BARBOSA</strong> 1<br />

(<strong>Bate</strong> <strong>Asa</strong>)<br />

COBRADOR<br />

51 ANOS DE TRABALHO<br />

Viação Brasil<br />

Empresa Iracema<br />

Empresa São José<br />

Autoviária São Vicente de Paula<br />

Idade: 76 anos<br />

Nascido em Jaguaruana - Ceará<br />

Esposa: Iracema da Silva Barbosa<br />

Filhos: Francisco, Francisca Neuma, Leuda e Neide<br />

Comecei a trabalhar em umas caminhonetas velhas no Pirambu em 1949. Era<br />

uma dessas empresas miúdas, muito pequena. Depois os transportes foram<br />

aumentando, até que consegui a trabalhar nos ônibus. Sofri muito daí por diante,<br />

até que chegou o ponto de me aposentar.<br />

Então, depois das caminhonetas, fui para as empresas de ônibus. A primeira foi a<br />

Viação Brasil. Depois trabalhei na Empresa Iracema e na Empresa São José, que<br />

o dono era de Maranguape. Depois trabalhei na Autoviária São Vicente de Paulo.<br />

Foi que ali que me aposentei, em 1985, depois de trinta e cinco anos, ganhando<br />

um salário mínimo. Mas não parei de trabalhar e continuei por mais quinze anos<br />

depois de aposentado.<br />

A empresa que fiquei mais tempo foi a Autoviária São Vicente de Paulo, que agora<br />

é Rota Sol. Trabalhei 31 anos ali. Quando eu entrei, a Autoviária se chamava<br />

Viação Brasil e o dono era o Seu José de Paula, que já morreu. Fiquei Viação<br />

Brasil por apenas um ano e pouco. Quando empresa foi vendida para o Sr. Carlos<br />

Albuquerque Lima, eu saí e fui trabalhar nas outras empresas. Só voltei para a<br />

1 Depoimento à Josenira Unias e Ivonilde da Silva, na manhã do dia 09 de janeiro de 2004, na residência do<br />

Sr. Agostinho, em Fortaleza. Transcrito em 29 de janeiro de 2004.


Autoviária 18 anos depois, em 1969. Fiquei até 2000. Eu gostava da empresa,<br />

queria ficar trabalhando, porque ficar mudando, indo de uma empresa para outra é<br />

ruim. Cada empresa tem seu próprio lema, seu próprio sistema de trabalho. Na<br />

Autoviária eu era conhecido, tinha muitos colegas. Trinta e um anos de trabalho<br />

não são moles....<br />

Quando eu cheguei de Jaguaruana para Fortaleza, fiquei andando por aí. Não<br />

tinha emprego. Tentei ser chofer disso e daquilo, mas não deu certo. Então<br />

apareceu essa oportunidade de cobrador e eu fui tentar. Cheguei, falei com os<br />

donos das caminhonetas e eles me deram a vaga. Naquele tempo, você<br />

começava a trabalhar hoje e só saía amanhã. Não tinha horário de saída. Eram<br />

quatro caminhonetas e cada uma delas tinha um dono. Depois de algum tempo,<br />

um dos donos, o Seu José de Paula, comprou quatro ônibus e começou a Viação<br />

Brasil.<br />

O tempo foi passando. Era o dia todo de trabalho em carro velho. Levava chuva,<br />

empurrava o carro para cá e para lá, para cima e para baixo. No fim do dia,<br />

encerrávamos as contas com os donos da empresa ou com seus filhos. Era em<br />

uma sala, um quarto bem reservado. Eles conferiam as contas. Tinha uns mapas,<br />

com o número de passageiros. Então os donos pagavam e a gente continuava a<br />

trabalhar. Se a gente não chegasse para fechar a conta, eles chamavam.<br />

De vez em quando eu dormia na empresa, mas nunca cheguei a morar lá. Dormia<br />

lá porque às vezes era um sufoco! Eu sempre fui de ônibus para o trabalho, mas,<br />

de vez em quando, tinha que ir a pé para a empresa porque não tinha transporte.<br />

Chegava atrasado. Além disso, antigamente, a gente tinha que pagar o ônibus.<br />

Olha, quando eu trabalhava na empresa Iracema, se fosse pegar um ônibus no<br />

Pirambú, tinha que pagar condução para ir à praça. De um tempo para cá, nós<br />

passamos a ter o direito de não pagar a passagem. A prefeitura inventou este<br />

negócio da Secretaria de Transportes e deu direito ao passe livre para nós em


ônibus de qualquer empresa, se tiver crachá. Só a família que não tem esse<br />

direito.<br />

Lembro também da farda, que os cobradores tinham que usar. Sempre teve a<br />

farda. Eu não gostava. A gente ficava visível... O pessoal logo que via: “- Lá vem o<br />

cobrador... Lá vem o motorista!” A gente era logo conhecido. Era uma camisa de<br />

manga cumprida, abotoada. Depois virou camisa de manga curta e melhorou. Eu<br />

só andava fardado, porque era obrigado. Era muito quente e eu ficava enforcado<br />

com a gravata. Depois inventaram uma roupa do tipo da polícia. Aí ficou mais ou<br />

menos melhor... Mas a gravata era o pior mesmo. A gente de gravata... Já viu?<br />

Gravata é para ir a uma loja, para ir ao cinema... Mas dentro de um ônibus?<br />

Andando para cima e para baixo, com aquela gravata enforcando a gente? Ainda<br />

mais com o quepe...<br />

Cheguei a usar o quepe, mas acho que não foram mais do que dois meses! Uma<br />

vez, o quepe caiu e a roda do carro passou por cima. Depois eu não quis mais<br />

outro. Depois liberaram para o negócio de cordão. Mas passou pouco tempo,<br />

porque caiu também e deixou de existir. Hoje, a gente só é obrigada a usar a<br />

camisa: a calça é liberada.<br />

Se a gente não usasse a farda, era punido. Não podia trabalhar. Tinha que<br />

trabalhar com farda no domingo também. Então, trabalhávamos a semana todinha<br />

fardados. Hoje, tem empresa que ainda continua com este sistema trabalhar a<br />

semana toda fardado. E tem outras que liberam o uniforme no final de semana.<br />

Eu saia de manhã e chegava de noite. Ficava o tempo todo de pé e almoçava nos<br />

botecos por aí. As empresas não davam almoço e a gente almoçava nos botecos<br />

no fim da linha. Até hoje o almoço é por conta dos trabalhadores.<br />

Hoje são oito horas de trabalho. A gente toma café na garagem antes de sair e<br />

quando são nove horas, pega um lanche. Nos fim de linha, em toda viagem, a


gente desce, toma água, toma café... Mas às vezes não dá tempo. A gente fica<br />

direto, da hora que pegar até a hora de largar sentado na cadeira. O intervalo do<br />

lanche é quinze minutos. Dá para conversar um pouquinho. Cheguei a ver seis ou<br />

oito colegas lanchando tudo de uma vez.<br />

Algumas empresas pagavam por dia. Não tinha salário. Pagavam por comissão.<br />

Eu cheguei a trabalhar ganhando por comissão, ganhando o dia, sem ter negócio<br />

de salário. O salário chegou há pouco tempo! Agora, todo o mundo tem salário<br />

fixo, tanto motorista como cobrador. Hoje, a gente tem também o crachá, para não<br />

pagar o transporte e algumas empresas dão cestas de fim de ano.<br />

Com o passar dos anos, as empresas começaram a ter sede própria, os<br />

trabalhadores passaram a ter horário, os ônibus a terem roleta. Está um pouco<br />

melhor. Mas no tempo que comecei, era um fracasso! Não tinha nada, nem<br />

borboleta! As borboletas começaram aqui na década de 1960.<br />

Então ficou mais fácil. Antigamente, eu ficava no meio dos passageiros, indo para<br />

cima e para baixo. Eu ia até a porta e voltava com o carro cheio. Passava de<br />

passageiro em passageiro. Como não tinha borboleta, a gente cobrava com<br />

fichas. Tinha que colocar a ficha numa caixa. Na hora de fechar a conta, se<br />

faltassem fichas, tinha empresa que queria descontar do cobrador. Comigo nunca<br />

aconteceu. Uma vez, lá na empresa, eles quiseram colocar esse desconto, mas<br />

ninguém aceitou.<br />

Quando colocaram a borboleta ficou bem melhor. A gente trabalha mais tranqüilo.<br />

Só dá problema quando chega passageiro que quer passar sem pagar. E eu<br />

deixei de ficar em pé. Trabalhava com cadeira e com o dinheiro, que colocava na<br />

gaveta. Antes da catraca, além de cobrar todos os passageiros, eu tinha que<br />

anotar tudo numa prancheta. Anotava a viagem, o horário na ida e na volta – isso<br />

eu fazia mesmo com a catraca. Mas antes, tinha que controlar os passageiros.<br />

Contava e anotava: “- Saí daqui sem nenhum passageiro...” Da praça até ao


terminal eu contava 30 passageiros, só na cabeça. Aí quando chegava lá,<br />

anotava: dez, vinte, trinta, cinco passageiros.<br />

As crianças que eram da altura da borboleta não podiam passar sem pagar. Não<br />

podiam passar por cima e nem por baixo. Tinha até aquelas borboletas duplas,<br />

para dificultar. Então, quem fazia mais raiva nos cobradores eram os pais dos<br />

meninos, quando a gente cobrava a passagem. Eles ficavam discutindo,<br />

chamavam de ladrão, diziam que a passagem não era para nós e sim para os<br />

donos da empresa... e daí por diante...<br />

Com os estudantes era diferente. Dava problema às vezes, quando eles estavam<br />

sem carteira ou com a carteira atrasada. Então, apareciam aquelas desavenças...<br />

Por exemplo: às vezes, um estudante entrava no ônibus com a carteira de um<br />

colega. Eu olhava para fotografia, olhava para a pessoa e via que a fotografia da<br />

carteira era diferente. Então, não podia passar.<br />

E problema de troco, hein? Os estudantes não deixavam nem um tostão. Era uma<br />

briga. Eles ficavam esculhambando com os cobradores: “- Cobrador ladrão!” e<br />

assim por diante. Comigo aconteceram umas duas ou três brigas por causa disso.<br />

Dava muita confusão por causa de troco. Saía briga. E sobrava mesmo era nome<br />

para gente: “-Seu ladrão! Ficou com o troco e não quer dar!” Quando tinha um<br />

dinheiro miúdo, era uma seda, era bom demais.<br />

Eu vi diversas brigas. Quando não tinha troco e a gente ficava com um ou dois<br />

tostões, era uma guerra medonha. Hoje em dia não. Está melhor. Quando a<br />

passagem era oitenta centavos, se o passageiro desse um real e faltassem os<br />

vinte centavos do troco, não tinha confusão, porque era pouco dinheiro. Mas<br />

quando eu comecei, era um sufoco medonho.


Os passageiros aborreciam demais a gente. Às vezes, o motorista parava fora de<br />

parada, porque era bom para ele. Só que da outra vez, ele não parava. Então, o<br />

cobrador levava a bronca do passageiro. Ele dizia que cobrador era isso, era<br />

aquilo...<br />

Eu não tinha muitas amizades com passageiros. Só um pouco, daqueles que<br />

pegavam o ônibus sempre no mesmo horário, todo dia, no mesmo canto.<br />

Tinha também briga de passageiro com passageiro. Mas eu não me metia nisso.<br />

Eles que resolvessem tudo ali, sozinhos. Um dava murro no outro e essas coisas.<br />

Mas eu ficava de fora... Se eles são doidos...<br />

Tiveram alguns acidentes. Por três vezes o meu carro atropelou gente, mas nunca<br />

ninguém morreu. Na última vez, foi a pessoa que atropelou o carro. O rapaz vinha<br />

numa descida de bicicleta, saindo perto do cemitério e nós íamos pela Guilherme<br />

Rocha, próximos do Liceu. Ele era mecânico e veio na rua de uma vez! Aí bateu<br />

no ônibus, quase no meio do ônibus... a bicicleta acabou...<br />

Hoje em dia tem mais acidentes do que antigamente. As batidas de carro<br />

aumentaram muito. Antes, eram apenas umas batidazinhas. Quebrava-se a perna<br />

ou o braço. Se morresse, era só um ou outro. Agora, se tiver uma batida, morrem<br />

sempre duas ou três pessoas! Veja o acidente que aconteceu há pouco, com o<br />

ônibus da Guanabara: morreram 21 pessoas!<br />

O trânsito era mais calmo, mas as estradas eram ruins demais! A de Messejana<br />

então... Era mais de uma hora para sair de Messejana e chegar no Centro. Era na<br />

buraqueira mesmo.<br />

Tinham também os pregos. Antigamente, quando o ônibus quebrava, a gente<br />

ficava esperando que o mecânico fosse lá para ajeitar. Eu e o motorista podíamos<br />

ficar umas duas ou três horas parados, se o prego fosse grande. Ficava no lugar


até virem buscar o ônibus. E sempre foi assim, porque eram poucos carros, e não<br />

tinha outro para substituir o quebrado. Agora não, tem ônibus para substituir...<br />

Sempre tem um ou dois carros de reserva na garagem. Assim, os carros de<br />

reserva podem cumprir os horários. Sempre tem que cumprir os horários dos<br />

ônibus. E mais: hoje em dia, tem o reboque. Deu o prego, a gente liga e o reboque<br />

vai buscar o carro. O conserto é feito na garagem.<br />

O negócio era cobrar as passagens direitinho e não chegar atrasado. Porque<br />

chegar atrasado sempre dá problema: troca de linha, troca de carro... Se você<br />

está em um carro bom, vai para um carro mais velho. Se está em uma linha boa,<br />

vai para uma pior... Muda de horário também. Por isso, eu não gostava quando eu<br />

atrasava. Por exemplo: eu começava a trabalhar às cinco horas, para largar à uma<br />

tarde. Se eu perdesse esse horário, podia ser colocado em outro carro que tivesse<br />

outra pegada para chegar à meia noite. A empresa também exigia que não<br />

bebesse e não fumasse.<br />

A gente trabalhava por escala. Era fixa. Na escala tinha a linha, o número do carro<br />

e o número do cobrador. Era obrigatória, não podia mudar. A cada semana<br />

mudava o motorista que ia com a gente. Mas eu trabalhei muito tempo num carro<br />

só. Aí era só eu e o motorista, o João Amaro... Trabalhei com ele muito tempo, na<br />

linha do Tirol, que hoje em dia não existe mais. Agora é a Leste-Oeste. Trabalhei<br />

muito tempo também com o Oscarito. Uns três ou quatro anos. O Oscarito ainda<br />

está vivo. Eu não tinha reclamação com motorista.<br />

Não tinha dia certo para folga. As folgas eram sempre sábado ou domingo.<br />

Ninguém parava durante a semana. Hoje em dia parece que já tem folga na<br />

semana, mas no meu tempo não tinha.<br />

Apesar de tudo isso, a vida era tranqüila. Mas agora, com este negocio de assalto,<br />

ficou perigosa. Eu já fui assaltado duas vezes. Uma vez, foi na linha do Beira Rio.<br />

Tive sorte, porque levaram só o dinheiro e não fizeram nada comigo. Puxaram o


evólver e disseram: “- É um assalto!” E eu respondi “- Pronto, meu filho. Aí está o<br />

dinheiro. Pode levar!” Depois disso, você tem que ir à delegacia para dar parte. Se<br />

não for, a empresa pode pensar que você ficou com o dinheiro e deu um pouco<br />

para o motorista. Depois faz a baixa, entrega os depoimentos e manda para a<br />

empresa. A empresa não cobra da gente o dinheiro que foi roubado.<br />

O dinheiro graúdo, a gente colocava em um cofre. Quando aparecia uma nota de<br />

cinqüenta reais, ou inteirava setenta ou oitenta reais, eu punha no cofre, para<br />

evitar assalto. Mas, às vezes, até o cofre é assaltado. Os ladrões arrumam a<br />

chave, ou então arrombam o cofre. Chegam até a levar o próprio cofre.<br />

Os cobradores é que tem a responsabilidade pelo dinheiro. E agora, também<br />

pelos vales transporte. Tanto é que só nós podemos prestar as contas no fim do<br />

dia. Motorista só fica na direção.<br />

Eu tinha muitos amigos, muita gente boa. Uma empresa grande tem muita gente<br />

boa. Mas tem muita gente ruim também. Alguns tinham raiva de mim, de outros<br />

quem tinha raiva era eu. Porque você saiba que onde trabalha muita gente,<br />

sempre tem isso. É era coisa banal. Fiz amizades com motorista, com mecânico,<br />

com fiscal... Agora tem fiscal, não é? Mas naquele tempo não tinha fiscal, não. O<br />

trabalho era solto.<br />

Sempre tive uma relação tranqüila com os empresários também. Era simples:<br />

quando eles achavam que o trabalhador não estava bem, eles pagavam e<br />

dispensavam. Só isso.<br />

Quase todos os amigos que fiz na empresa já morreram. Eu conhecia quase<br />

todos, só pelo apelido... pelo nome era difícil. Tinha o Joabe, o Zé Canela, o Bem-<br />

te-vi, o Cearense, o Bacuri e o João Amaro. João Amaro... Esse era meu amigo<br />

mesmo!


Deixe eu contar uma história do João Amaro: Uma vez, ele inventou um negócio<br />

de um romance comigo. Era um cordel que falava da briga de um cobrador com<br />

uma negra... por causa de troco. Só que o cobrador da briga não fui eu. Foi um tal<br />

de Agripino, que trabalhava na Autoviária São Vicente de Paula no tempo em que<br />

eu não estava lá. O João Amaro viu a briga dos dois e, como era metido a poeta,<br />

resolveu escrever... mas não quis colocar o nome dele nem do tal Agripino. Então<br />

colocou o meu. Eu nem vi essa briga...<br />

Todo motorista e todo o cobrador têm apelido. Eu tive um monte. Em cada<br />

empresa era um apelido novo. Me chamavam de urso. Na Empresa Iracema, meu<br />

apelido era “Índio”, porque achavam que eu era parecido com um índio. Em todas<br />

as empresas tem dessas coisas...<br />

Na Autoviária, meu apelido era <strong>Bate</strong> <strong>Asa</strong>. Naquele tempo, a empresa tinha poucos<br />

ônibus. E não tinha nome da empresa escrito na lateral dos ônibus. Então, como o<br />

nome dos ônibus era “<strong>Asa</strong> Branca”, o dono, metido a prosista, uma vez brincou:<br />

“Olhem: o nome do ônibus é <strong>Asa</strong> Branca. Então o nome do cobrador será <strong>Bate</strong><br />

<strong>Asa</strong>”. E por isso ficou.<br />

Eu conhecia muitos cobradores deficientes também. Parece que a Autoviária foi a<br />

primeira empresa que colocou deficientes para trabalhar. Só depois que as outras<br />

empresas colocaram. Tinha muitos, uns vinte cobradores lá. Um deles trabalha no<br />

Jardim Iracema, mas não sei o seu nome. Só sei o número: È 37.<br />

Cada cobrador tem um número. Começa do um até a quantidade de cobradores<br />

que existir. Nesta empresa, eu tive quatro números, porque foi aumentando. Os<br />

números servem para identificar. Fica melhor: por exemplo, se tem dez<br />

cobradores chamados “Raimundo”, pelo número, já da para saber qual é. Tem o<br />

Raimundo de número 10, de número 50 e assim por diante. Na escala vem o<br />

número, não vem o nome.


O número 37 foi o primeiro cobrador deficiente. Ele ainda está lá. Teve outro<br />

também, que mataram lá no Pirambu, no fim da linha. Quem matou foi um<br />

vagabundo. Chegou um rapaz pedindo dinheiro e ele respondeu: “- Rapaz, eu não<br />

já te dei de manhã? Eu já te dei cinqüenta centavos.” E então: “- Já deu, mas eu<br />

quero mais!” Daí “pah”! O rapaz atirou nele. E nem foi preso... Está lá, o<br />

vagabundo. No dia que isso aconteceu, o cobrador tinha sido meu rendeiro. Pegou<br />

o ônibus à uma hora e quando foi três horas aconteceu isso!<br />

Teve um tempo, também, que colocaram as cobradoras mulheres. Na Autoviária<br />

eles colocaram. Mas agora, lá, não tem mulheres mais. Não deu certo. Uma<br />

mulher sair de casa para pegar um ônibus às três horas da manhã é perigoso.<br />

Quando é um horário de mais de cinco horas, fica mais fácil. Por que fazer horário<br />

de meia noite? Mas tem muitas empresas que tem cobradoras.<br />

Eu mesmo, nunca trabalhei em corujão. Ele foi inventado agora. Trabalhei à noite,<br />

mas só até às onze horas ou meia noite. Trabalhei também de madrugada, mas a<br />

partir de quatro horas.<br />

Greves sempre aconteciam. A mais forte durou 11 dias. A paralisação era por<br />

aumento de passagens. Tanto os empresários como o sindicato queriam o<br />

aumento. Quando tinha greve, os passageiros ficavam sem ônibus, ficavam<br />

andando a pé, de carona ou nas caminhonetas. Não deixavam os carros saírem.<br />

Eu passava o dia todo na empresa, para ter direito ao ganho. Mas nós só íamos<br />

trabalhar quando o aumento das passagens acontecesse. Só aí é que o homem<br />

liberava para gente trabalhar. Senão, ficávamos lá.<br />

Eu participei do sindicato desde o ínicio. Nem lembro quando foi... naquele tempo,<br />

nós não tínhamos direito a nada. Era no sindicato que ficava resolvido esse<br />

negócio de greve. A categoria achava que o ganho era pouco, então o sindicato<br />

formava a greve, até que eles cediam. Hoje em dia, o sindicato está bem melhor<br />

organizado.


Para ser um bom cobrador é preciso tratar bem os passageiros, ser educado. Não<br />

é bom andar com muita ignorância. Hoje em dia é mais fácil entrar na Base ou na<br />

Marinha do que entrar em uma empresa de ônibus para ser cobrador. As<br />

empresas querem que o cobrador tenha primeiro e segundo graus, querem que<br />

ele saiba fazer as quatro operações de contas e daí por diante. Antigamente não<br />

tinha nada disso... Eu estudei pouco, só no interior. Depois que vim para cá, não<br />

estudei mais.<br />

Aprendi a ser cobrador foi na vida mesmo. Depois, a Inspetoria inventou que a<br />

gente tinha que tirar uma licença para continuar trabalhando. Depois chegou a<br />

Secretaria de Transportes e nós fizemos cursos. Os cursos da Secretaria eram<br />

bons. Os professores diziam como que era para tratar os passageiros, como era<br />

para cobrar e isso e aquilo.<br />

Eu não sei ler, só escrever o meu nome e fazer algumas continhas nos dedos. Se<br />

eu fosse entrar hoje para trabalhar, não conseguiria. Na empresa onde eu<br />

trabalhava, os estudantes terminavam os cursos e iam pedir vaga de cobrador.<br />

Eles passavam nos testes e ainda tinham que esperar para serem chamados.<br />

Cansei de ver isso acontecer.<br />

Era divertido ir para o trabalho, ganhar dinheiro. Eu gostava de trabalhar... às<br />

vezes a gente fazia especial, para a Companhia das Docas, com turistas. Era um<br />

serviço pela empresa, mas, como a gente saía de manhã e voltava só à tarde,<br />

eles sempre davam umas gorjetas. Essas saídas especiais eram engraçadas...<br />

Quando levávamos para o piquenique, tínhamos que esperar que o pessoal<br />

voltasse das piscinas, dessas coisas... Então ficava a turma todinha lá. Seis, oito,<br />

dez ou doze carros, todos esperando. E a gente ficava com nossas brincadeiras.<br />

As festas que a empresa dava também eram boas. Eles sempre faziam festas em<br />

fim de ano, aniversário da empresa... Levavam cantor... Eu sempre ia e levava a


família. Mas no dia de São Cristóvão, o padroeiro dos motoristas, não tinha festa.<br />

Era trabalho normal.<br />

Quando fizeram os terminais, meu serviço diminuiu. Porque então, a gente só<br />

cobra os passageiros que pegam o ônibus na linha. Ninguém cobra dos<br />

passageiros que embarcam no terminal. A gente trabalha menos e ganha o<br />

mesmo ordenado. Tanto faz passar o dia todo cobrando o passageiro ou<br />

carregando passageiros do terminal. Para os passageiros também foi bom. Com<br />

uma passagem só, eles podem rodar o dia todinho: vão para o terminal, descem,<br />

pegam outro ônibus e só pagam uma passagem.<br />

Agora, depois que inventaram essas borboletas com o GET, tem gente falando<br />

que a profissão de cobrador vai acabar. Mas acho difícil... O motorista teria que<br />

cobrar passagem e guiar. Seria como nesses ônibus pequenos, os microônibus,<br />

onde os motoristas são cobradores também. Duas funções. Isso traz dificuldade e<br />

atrasa a viagem do carro. Porque passa troco, passam três ou quatro passageiros<br />

e só pode continuar a viagem depois que cobrar todos. O motorista não pode sair<br />

guiando e passando o troco ao mesmo tempo.<br />

E outra coisa que melhorou para nós, cobradores, foi a implantação dos vales<br />

transporte: entregou o vale e não tem conversa! Não tem negócio de troco, nem<br />

isso nem aquilo. Já o GET ajudou porque diminuiu a desconfiança do pessoal da<br />

empresa. Não sei se ele foi colocado por isso, mas melhorou cem por cento! Com<br />

o GET, a gente usa só um cartão para trabalhar. Nele, a gente marca os vales<br />

transportes e as carteirinhas de estudante. Por exemplo, dei 400 rodadas: Passou<br />

70 estudantes, passou 80 vales transportes. Depois passo a carteira dos passes<br />

para marcar os passes e aí, é só diminuir. Fica assim: 400 rodadas, com 70<br />

estudantes, 80 vales transportes e 10 passes livres. Diminui esses e só ficam as<br />

passagens inteiras. O resto que passou é tudo inteira.


Tenho um filho que trabalha como cobrador na mesma empresa em que eu<br />

trabalhei, a Autoviária, hoje Rota Sol. Fui eu quem ajeitou para ele conseguir<br />

entrar lá. Mas eu quebrei a cabeça com meu filho lá na empresa! Ele não queria<br />

trabalhar. Na primeira vez, ficou um ano e pouco e pediu para sair. Depois pedi<br />

para o dono para ele voltar.... Ele foi e saiu de novo! Depois mais uma vez! Daí eu<br />

disse: “- Olha, se você sair agora, não conte comigo”. Ele ainda está lá. Vai fazer<br />

onze anos de trabalho. Isso é bom para ele. E não tinha alternativa melhor. Como<br />

eu disse: pelo ganho é um emprego bom. Ganha bem, paga bem e ainda tem<br />

mais este direito de vale transporte.<br />

Cobrador é uma boa profissão. Ganha mais que um salário. Hoje, o cobrador está<br />

ganhando numa faixa de quatrocentos reais. E eu, depois de 31 anos de serviço<br />

na empresa, tinha algumas regalias, principalmente no horário de trabalho. Era<br />

porque eu era muito antigo e sempre fiz tudo o que quiseram. Hoje, se fosse<br />

escolher, eu seria cobrador de novo... pelo ganho, que é bom.<br />

Por outro lado, a vida de cobrador é dura e é cansativa. A vida de motorista<br />

também é... Aliás, quando se trata de transporte coletivo, tudo é difícil. Cobrador é<br />

marcado, motorista é marcado. É uma classe marcada que nem soldado de<br />

polícia.

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