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Edição 18 | Ano 9 | No.2 | 2011 REVISTA - Contemporânea - Uerj

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<strong>REVISTA</strong><br />

<strong>Edição</strong> <strong>18</strong> | <strong>Ano</strong> 9 | <strong>No.2</strong> | <strong>2011</strong>


<strong>REVISTA</strong><br />

<strong>Edição</strong> <strong>18</strong> | <strong>Ano</strong> 9 | <strong>No.2</strong> | <strong>2011</strong><br />

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL<br />

UERJ


CATALOGAÇÃO NA FONTE<br />

UERJ/FCS/PPGCom<br />

Revista <strong>Contemporânea</strong> - Vol. 1, N° 1 (2003)<br />

- . - Rio de Janeiro: UERJ, Faculdade de Comunicação Social, 2003<br />

-<br />

Semestral<br />

E-ISSN <strong>18</strong>06-0498<br />

1. Comunicação - Periódicos. 2. Teoria da informação<br />

-Periódicos. 3. Comunicação e cultura - Periódicos.<br />

4. Sociologia - Periódicos. I. Universidade do Estado do Rio<br />

de Janeiro. Faculdade de Comunicação Social.<br />

Brasil


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO<br />

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES<br />

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL<br />

REITOR<br />

Ricardo Vieiralves de Castro<br />

VICE-REITOR<br />

Maria Christina Paixão Maioli<br />

SUB-REITOR DE GRADUAÇÃO<br />

Lená Medeiros de Menezes<br />

SUB-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA<br />

Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron<br />

SUB-REITORIA DE EXTENSÃO E CULTURA<br />

Regina Lúcia Monteiro Henriques<br />

DIRETOR DO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES<br />

Glauber Almeida de Lemos<br />

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL<br />

DIRETOR<br />

João Luís de Araujo Maia<br />

VICE-DIRETOR<br />

Ricardo Ferreira Freitas<br />

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE JORNALISMO<br />

Fabio Mario Iorio<br />

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE RELAÇÕES PÚBLICAS<br />

Nicolau José Carvalho Maranini<br />

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TEORIA DA COMUNICAÇÃO<br />

Ronaldo George Helal


CONTEMPORÂNEA - EDIÇÃO <strong>18</strong> - VOL.9 Nº2 - <strong>2011</strong><br />

Revista <strong>Contemporânea</strong> (E-ISSN <strong>18</strong>06-0498) é uma publicação acadêmica semestral e interdisciplinar<br />

do Grupo de Pesquisa “Comunicação, Arte e Cidade” do Programa de Pós-Graduação em Comunicação<br />

da UERJ. É dirigida a pesquisadores, professores, profissionais e estudantes (doutorandos, mestrandos,<br />

especialistas, graduados e graduandos) do campo da comunicação e áreas afins. Seu principal objetivo<br />

é publicar textos originais e inéditos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, mas também estudos<br />

teóricos, revisões de literatura que contribuam para o estudo da Comunicação em suas interfaces com<br />

disciplinas afins. Sua proposta editorial vem justamente ao encontro das tendências atuais de integração<br />

e complementaridade entre o campo da Comunicação e as diversas áreas de conhecimento. Além dos<br />

textos acadêmicos e resultantes de pesquisa, propõe-se a publicar trabalhos que reflitam sobre a produção<br />

cultural contemporânea, como ensaios fotográficos, vídeos, documentários e trabalhos artísticos.<br />

CONSELHOS EDITORIAL E CIENTÍFICO<br />

Carlos Alexandre Moreno (UERJ), Christiane Luce Gomes (UFMG), Denise Oliveira Siqueira<br />

(UERJ), Euler David de Siqueira (UFJF), Fátima Régis de Oliveira (UERJ), Fernando do Nascimento<br />

Gonçalves (UERJ), João Luís Araújo Maia (UERJ), Kleber Mendonça (UFF), Mônica Fort (PUC/<br />

PR), Nízia Villaça (UFRJ), Ricardo Ferreira Freitas (UERJ), Ronaldo George Helal (UERJ) e Stéphane<br />

Hugon (Paris V).<br />

EDITOR GERAL<br />

Prof.ª Dr.ª Denise Oliveira Siqueira (UERJ)<br />

REVISÃO E EDIÇÃO EXECUTIVA<br />

Daniela Muzi, Helena Klang, Ramon Bezerra e Thalita Bastos (PPGCom/FCS/UERJ)<br />

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA<br />

Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />

Faculdade de Comunicação Social - PPGC - Mestrado em Comunicação<br />

Revista <strong>Contemporânea</strong><br />

A/C Prof.ª Dr.ª Denise Oliveira Siqueira<br />

Rua São Francisco Xavier, 524/10º andar, sala 10129, Bloco F<br />

Maracanã - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. CEP: 20550-013<br />

Tel.fax: (21) 2334-0757. E-mail: contemporanea.revista@gmail.com<br />

CAPA<br />

Willian Gomes (LCI/FCS/UERJ)<br />

DIAGRAMAÇÃO<br />

Willian Gomes (LCI/FCS/UERJ)<br />

Marcelle Andrade (LCI/FCS/UERJ)<br />

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA<br />

Willian Gomes (LCI/FCS/UERJ)<br />

PROJETO GRÁFICO<br />

Marcos Maurity e Priscila Pires (LCI/FCS/UERJ)<br />

<strong>REVISTA</strong><br />

<strong>Edição</strong> 16 | <strong>Ano</strong> 8 | No.3 | 2010


Dossiê Corpo, Comunicação e mobilidades urbanas<br />

(apresentação)<br />

09<br />

Globalização: As Condições de Mobilidade<br />

<strong>Contemporânea</strong> e as Práticas Turísticas<br />

Vera Guimarães<br />

21<br />

Estratégias Redutoras de Risco Percebido:<br />

Um estudo entre turistas deficientes físicos<br />

Jarlene Rodrigues Reis<br />

37<br />

Vozes da Vila: Espaços e Representações no<br />

entorno da Universidade<br />

Denise da Costa Oliveira Siqueira<br />

Luiza Real de Andrade Amaral<br />

51<br />

“Viagens De Sonho”: Considerações<br />

Teóricas sobre a Lua De Mel<br />

Euler David Siqueira e<br />

Gheysa Lemes Gonçalves Gama<br />

64<br />

Comunicação e Mobilidades Urbanas<br />

Samba Et Funk: Deux Parcours Musicaux<br />

Urbains<br />

Luiza Machado<br />

Iniciação Científica<br />

127<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no<br />

mundo textual renascentista<br />

Júlio Monteiro Altieri<br />

Renan Lúcio Rocha<br />

139<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das<br />

religiosidades contemporâneas - o caso de o<br />

segredo<br />

Marcelle Martins de Souza<br />

77<br />

153<br />

Corpo, envelhecimento e felicidade na<br />

cultura brasileira<br />

Mirian Goldenberg<br />

86<br />

Corpo/cidade – uma corpografia do medo<br />

Marcelus Gonçalves Ferreira<br />

99<br />

114<br />

Corpo e Cidade<br />

Corpo, capoeira e games: traduções de<br />

materialidades e tecnologias<br />

Bruno Soares Ferreira<br />

A narrativa de beleza em anúncios da belle<br />

époque tropical<br />

Gustavo Freire Boaventura<br />

Por um estudo dos vlogs: apontamentos<br />

iniciais e contribuições teóricas de Marshall<br />

McLuhan<br />

Fausto Amaro Ribeiro Picoreli Montanha<br />

SUMÁRIO<br />

<strong>Edição</strong> nº<strong>18</strong><br />

<strong>Ano</strong> IX N.2<br />

Dezembro <strong>2011</strong><br />

A <strong>Contemporânea</strong> é uma revista<br />

online do programa de pós-<br />

-graduação em comunicação da<br />

Universidade do Estado do Rio<br />

de Janeiro, produzida por alunos<br />

e professores com o suporte do<br />

Laboratório de Comunicação Integrada<br />

da Faculdade de Comunicação<br />

Social.<br />

Expediente<br />

Conselho Editorial<br />

Carlos Alexandre Moreno - UERJ<br />

Christiane Luce Gomes - UFMG<br />

Denise Oliveira Siqueira - UERJ<br />

Euler David de Siqueira - UFJF<br />

Fátima Régis de Oliveira - UERJ<br />

Fernando N. Gonçalves - UERJ<br />

João Maia - UERJ<br />

Kléber Medonça - UFF<br />

Mônica Fort - PUC/PR<br />

Nízia Villaça - UFRJ<br />

Ricardo Ferreira Freitas - UERJ<br />

Ronaldo Helal - UERJ<br />

Stéphane Hugon - Paris V<br />

Editor Geral<br />

Prof.ª Dr.ª Denise Oliveira Siqueira - UERJ<br />

Revisão e <strong>Edição</strong> Executiva<br />

Daniela Muzi<br />

Helena Klang<br />

Ramon Bezerra<br />

Thalita Bastos<br />

(PPGCom/UERJ)<br />

Diagramação<br />

Willian Gomes - LCI/FCS/UERJ<br />

Marcelle Andrade - LCI/FCS/UERJ<br />

Capa e Editoração Eletrônica<br />

Willian Gomes - LCI/FCS/UERJ<br />

Projeto Gráfico<br />

Priscila Pires<br />

Marcos Maurity<br />

LCI/FCS/UERJ<br />

Contato:<br />

contemporanea.revista@gmail.com<br />

Site:<br />

www.contemporanea.uerj.br<br />

Copyright <strong>2011</strong> UERJ | FCS | LCI


Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Apresentação<br />

Dossiê Corpo, ComuniCação e mobiliDaDes urbanas<br />

A edição do segundo semestre de <strong>2011</strong> da Revista <strong>Contemporânea</strong> apresen-<br />

ta o Dossiê Temático Corpo, Comunicação e Mobilidades Urbanas. A mobilidade<br />

é trabalhada aqui menos no âmbito das tecnologias digitais e mais próxima da<br />

noção de movimento e de construção de sentidos na cidade. O dossiê divide-se<br />

em duas partes e reúne nove artigos que abordam diversos temas, mas tendo em<br />

comum as mobilidades urbanas em suas diversas formas e relações.<br />

Abrindo a primeira parte do dossiê, a socióloga Vera Guimarães reflete<br />

sobre as novas condições de mobilidade e turismo na contemporaneidade.<br />

Ainda no campo do turismo, Jarlene Rodrigues Reis analisa as estratégias redutoras<br />

de risco entre turistas com deficiência física.<br />

No âmbito da mobilidade e representações na cidade, Denise da Costa<br />

Oliveira Siqueira e Luiza Real de Andrade Amaral analisam um microespaço urbano<br />

localizado em frente à Universidade do Estado do Rio de Janeiro partindo<br />

do entendimento de que a cidade, seus microespaços e ruas são simbolicamente<br />

construídos ao longo do tempo e através dos usos e representações de seus frequentadores;<br />

Euler David Siqueira reflete acerca dos sentidos e significados que<br />

estão em jogo quando pensamos na Lua de mel, compreendendo quais possíveis<br />

imaginários são negociados e compartilhados socialmente quando nos referimos<br />

a este tipo de viagem; e Luiza Machado apresenta as semelhanças de percurso<br />

entre o Funk e o Samba no contexto urbano carioca.<br />

Pensando a relação entre corpo e construção de sentidos, Mirian<br />

Goldenberg analisa o papel do corpo como uma forma de capital e Marcelus<br />

Gonçalves Ferreira discute a existência de um padrão de corporeidade nos corpos<br />

dos sujeitos como resultado do medo e da violência no cotidiano. Levando<br />

a questão do corpo para as tecnologias digitais, Bruno Soares Ferreira busca entender<br />

como o sujeito pode acessar o dispositivo da capoeira utilizando o sistema<br />

sensório-motor por diferentes materialidades. Gustavo Freire Boaventura analisa<br />

alguns aspectos da narrativa publicitária de cosméticos do início do século XX,<br />

que buscava, antes de tudo, educar e disciplinar uma elite.<br />

Apresentação


Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Em Iniciação Científica, reunem-se textos de orientandos de gradua-<br />

ção de professores do PPGCom/UERJ. Pensando a construção de sentidos<br />

em uma perspectiva histórica, Júlio Monteiro Altieri e Renan Lúcio Rocha<br />

discutem as transformações textuais do Renascimento e de que forma suas relações<br />

com a prensa de Gutenberg contribuíram para a difusão do pensamento<br />

moderno; Marcelle Martins de Souza discute como a experiência com o sagrado<br />

foi transpassada pela lógica do mercado; Fausto Amaro Ribeiro Picoreli<br />

Montanha analisa as apropriações e usos da internet a partir de ícones do<br />

Youtube, os chamado vlogs.<br />

A equipe da <strong>Contemporânea</strong> deseja a todos boa leitura!<br />

Apresentação


Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Globalização e mobilidade:<br />

as condições de mobilidade<br />

contemporânea e as práticas<br />

turísticas<br />

Globalization and mobility: the mobility<br />

status of contemporary tourist practices<br />

Vera Guimarães<br />

Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa<br />

Catarina e Professora Adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora<br />

Resumo<br />

As formas pelas quais os indivíduos passam por experiências diversas em torno das<br />

dimensões espaço-temporais têm sido consideradas, por alguns sociólogos contemporâneos,<br />

como dimensões centrais para o entendimento da modernidade contemporânea.<br />

A questão da mobilidade contemporânea também está relacionada, para<br />

alguns autores, às questões de reflexividade. A partir desses aspectos, este trabalho<br />

visa refletir, a partir de algumas perspectivas teóricas, sobre as novas condições de<br />

mobilidade e o turismo.<br />

Palavras-chave: Globalização; mobilidade; turismo.<br />

Abstract<br />

The forms for which the individuals pass for diverse experiences around the timespace<br />

dimensions have been considered, for some contemporary sociologists, as central<br />

dimensions for the understanding of contemporary modernity. The matter of<br />

contemporary mobility is also related, for some authors, to the reflectivity subjects.<br />

From these aspects, this work aims to reflect, from some theoretical perspectives,<br />

about the new conditions of mobility and the tourism.<br />

Keywords: Globalization; mobility; tourism.<br />

Globalização e mobilidade: as condições de mobilidade contemporânea e as práticas turísticas


10<br />

introDução<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Este artigo busca fazer uma reflexão sobre as questões contemporâneas<br />

da mobilidade humana em relação às perspectivas de como a análise sociológica<br />

contribui no entendimento dessa questão, tendo em vista o fenômeno da globalização<br />

e seus reflexos no Turismo 1<br />

A Sociologia, cada vez mais, tem se deparado com um conjunto de<br />

fenômenos associados aos processos de globalização, o que tem suscitado<br />

um repensar do fazer sociológico em termos não só de conceitualização<br />

e método, como também do objeto ou objetos de estudo a serem investigados.<br />

Nesse contexto, embora a sociedade contemporânea esteja mais<br />

interligada, tornando-se mais difícil podermos nitidamente delimitar os<br />

fenômenos sociais, por outro lado continua crescendo a especialização do<br />

campo da Sociologia. É possível se falar, por exemplo, de uma Sociologia<br />

da Globalização para dar conta de um conjunto de processos mais amplos<br />

e interdependentes, e o contexto atual de produção do conhecimento também<br />

nos remete ao questionamento sobre a possibilidade de formulação de<br />

grandes teorias. Frente à complexidade do mundo contemporâneo, há muitos<br />

desafios a serem enfrentados pela Sociologia. Acreditamos que alguns<br />

autores têm contribuído de forma instigante para dar conta de aspectos<br />

relacionados tanto à identificação de novos temas de interesse sociológico e<br />

suas formas de análise, quanto em relação à compreensão da clássica questão<br />

do entendimento da relação indivíduo-sociedade.<br />

Partindo-se dessas considerações, pressupomos que a Sociologia também<br />

tem muito a contribuir no entendimento da subjetividade contemporânea, a<br />

partir da compreensão dos impactos que os processos globais desencadeiam<br />

afetando a vida dos indivíduos de forma bastante particular. Autores como<br />

Giddens e Bauman, entre outros, são exemplos daqueles que, de algum modo,<br />

preocupam-se com essas questões. Desse modo, pretendemos aqui expor um<br />

conjunto de reflexões envolvendo as dinâmicas globais, em especial a questão<br />

da mobilidade contemporânea e do turismo e, ao mesmo tempo, explorar<br />

como essa problemática coloca desafios para as Ciências Sociais.<br />

É possível perceber que alguns sociólogos contemporâneos apontam para<br />

a importância de entendermos o caráter dos deslocamentos contemporâneos,<br />

assim como a de formular novos instrumentos de análise. É nesse contexto que<br />

autores como John Urry referem-se a um “paradigma da mobilidade”, como<br />

proposta para novas análises sobre os novos cenários com os quais nos defrontamos.<br />

Desse modo, focamos nossas reflexões neste trabalho sobre a questão<br />

da mobilidade no contexto de globalização, relacionando-a às dinâmicas do<br />

turismo como tema para compreendermos algumas facetas da sociedade e subjetividade<br />

contemporâneas.<br />

Globalização e mobilidade: as condições de mobilidade contemporânea e as práticas turísticas


11<br />

moDerniDaDe, mobiliDaDe e globalização<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Partindo-se do princípio de que o fenômeno turístico apresenta-se como<br />

importante dimensão da modernidade 2 , podemos perceber uma rede comple-<br />

xa de questões presentes na sociedade atual, muitas das quais não podem ser<br />

problematizadas apenas pelo olhar sociológico. Nesse contexto, a questão das<br />

viagens e do turismo não tem encontrado na Sociologia – e, particularmente,<br />

na América Latina – um espaço de discussão mais consolidado ou mesmo privilegiado.<br />

Por outro lado, a problematização das relações entre espaço-tempo,<br />

questão essencial dos deslocamentos humanos, tem apresentado considerável<br />

importância no entendimento da modernidade e de seus desdobramentos.<br />

Podemos, diante desse contexto, nos referir à análise de Giddens (1991)<br />

sobre as “consequências da modernidade”, ao afirmar que esta apresenta como<br />

característica essencial uma “natureza dinâmica”, na qual uma das fontes de<br />

seu dinamismo seria a relação espaço/tempo3 . A compreensão das relações espaço-temporais<br />

no mundo contemporâneo implicaria, nesse contexto, numa<br />

capacidade tanto das Ciências Sociais de serem “reflexivas”, como na dos próprios<br />

atores sociais também o fazerem. Para Giddens (1991), a ideia de “reflexividade<br />

moderna” implica na possibilidade de examinarmos constantemente<br />

as práticas da vida social moderna e, ao mesmo tempo, reformulá-las “à luz de<br />

informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente<br />

seu caráter” (1991, p.45).<br />

Essa reflexividade deve estar presente na própria Sociologia, a qual teria<br />

um importante papel a desempenhar:<br />

O discurso da sociologia e os conceitos, teorias e descobertas das<br />

outras ciências sociais continuamente ‘circulam dentro e fora’ daquilo<br />

de que tratam. Assim fazendo, eles reestruturam reflexivamente seu<br />

objeto, ele próprio tendo aprendido a pensar sociologicamente. A modernidade<br />

é ela mesma profunda e intrinsecamente sociológica. (Giddens,<br />

1991, p.49).<br />

A reflexividade, dessa forma, não escapa às condições nas quais se configuram<br />

as condições de inserção dos indivíduos no espaço e no tempo. Em<br />

circunstâncias atuais, esses aspectos nos remetem aos processos de globalização,<br />

dimensão inerente à modernidade, como afirma Giddens (1991). A<br />

globalização é definida por ele “[...] como a intensificação das relações sociais<br />

em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos<br />

locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de<br />

distância e vice-versa.” (1991, p. 69). É nesse sentido que, para Giddens, o espaço<br />

se reestrutura onde a “ausência predomina sobre a presença”, passando<br />

a predominar a “ação à distância” (1997).<br />

Globalização e mobilidade: as condições de mobilidade contemporânea e as práticas turísticas


12<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Lash e Urry (1994) também consideram crucial, como característica da<br />

modernidade, o que chamam de “modernização reflexiva”. Eles entendem, nesse<br />

sentido, a reflexividade como tendo uma dimensão não apenas cognitiva ou normativa,<br />

mas também estética. Essa dimensão estética está relacionada ao crescimento<br />

da mobilidade que, ao possibilitar um maior “cosmopolitanismo” 4 , tem<br />

facilitado a organização social da viagem e do turismo.<br />

Desse modo, a reflexividade, a globalização e a mobilidade são questões<br />

entrelaçadas para a análise sociológica contemporânea. Para Giddens,<br />

frente à globalização, a dimensão do “lugar” é reestruturada. Bauman, em<br />

outro sentido (1999), refere-se a uma “concentração da liberdade de se mover<br />

e agir”, onde existem situações nas quais os indivíduos experimentam formas<br />

distintas de relação com o espaço onde se encontram. Consideramos que<br />

elas implicam em sentimentos, pois, ao comparar as noções de “próximo” e<br />

“longe”, Bauman entende que “próximo” é um espaço onde o indivíduo se<br />

sente à vontade, e “longe” é o “[...] espaço que contém coisas sobre as quais<br />

pouco se sabe, das quais pouco se espera e de que não nos sentimos obrigados<br />

a cuidar” (1999, p.20). Cabe considerar que esses aspectos apresentam, para<br />

Bauman, desdobramentos de caráter ético5 .<br />

As dimensões contemporâneas de espaço-tempo também são analisadas<br />

pelo autor através da metáfora da “liquidez” (2001). A ideia de “liquidez”<br />

traduziria a experiência contemporânea da modernidade, no sentido de que os<br />

indivíduos devem lidar, cada vez mais, com situações escorregadias e efêmeras,<br />

numa alusão às características dos líquidos, difíceis de serem retidos, sendo<br />

escorregadios e fluidos. Bauman se utiliza do termo fluidez para representar,<br />

metaforicamente, “o estágio presente da era moderna”.<br />

Ainda se refere aos fluidos como elementos que têm uma relação com<br />

o espaço e com o tempo que não é fixa, posto que não mantêm uma forma<br />

constante e estão sempre aptos a mudá-la. Importa mais, para eles, o tempo<br />

em vez do espaço, o qual preenchem por pouco tempo. Nos sólidos, ao contrário,<br />

o espaço é mais importante. Por sua extrema mobilidade, os fluidos são<br />

associados à ideia de leveza. Afirma Bauman: “Associamos ‘leveza’ ou ‘ausência<br />

de peso’ à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais<br />

leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos” (2001, p. 8).<br />

De acordo com o autor, essa é uma nova etapa da modernidade, mas,<br />

ao mesmo tempo, Bauman se pergunta: “[...] a modernidade não foi ‘fluida’<br />

desde sua concepção?” Ele nos remete ao “Manifesto”, de Marx e Engels 6 ,<br />

através da expressão “derreter os sólidos”, que representa o fato de que o espírito<br />

moderno estava determinado a emancipar a realidade, derretendo os<br />

sólidos, através da “profanação do sagrado”, para romper com a tradição e a<br />

sedimentação. Isso não significaria acabar com os sólidos, mas modificar o<br />

Globalização e mobilidade: as condições de mobilidade contemporânea e as práticas turísticas


13<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

seu caráter e torná-los mais duráveis, administráveis. O derretimento dos sólidos<br />

levou à libertação da economia de tradições políticas, éticas e culturais,<br />

complementa o autor.<br />

Ainda de acordo com Bauman (2001), outra marca da sociedade moderna<br />

diz respeito ao fato de que seus membros são indivíduos, no sentido<br />

da individualização ser um processo de mudanças constantes, significando,<br />

cada vez mais, que a identidade humana passa a ser uma tarefa, não estando<br />

dada e ficando a cargo da responsabilidade dos indivíduos, de seus atos e<br />

resultados. Para ele, a identidade precisa ser constantemente organizada.<br />

Giddens também se atém às questões de identidade ao procurar decifrar<br />

a forma como a modernidade afeta os indivíduos nas sociedades contemporâneas.<br />

Embora a modernidade, do seu ponto de vista, diga respeito<br />

a questões institucionais, estas se entrelaçam com a subjetividade, ou<br />

com o “eu”, nos dizeres do autor (2002). Em contexto de sociedade “pós-<br />

-tradicional”, “modernidade tardia” ou ainda “alta modernidade”, como<br />

se refere Giddens em diferentes momentos, a reflexividade diz respeito à<br />

auto-identidade sendo, nesse sentido, um empreendimento organizado no<br />

qual o “[...] eu alterado tem que ser explorado e construído”. (2002) Afirma<br />

Giddens: “A autoidentidade, em outras palavras, não é algo simplesmente<br />

apresentado, como resultado das continuidades do sistema de ação do<br />

indivíduo, mas algo que deve ser criado e sustentado rotineiramente nas<br />

atividades reflexivas do indivíduo” (2002, p. 54).<br />

Bauman, por outro lado, não se atém a questões de reflexividade no<br />

sentido colocado por Giddens. Organizar a identidade não significa, para<br />

ele, que haja um modo de torná-la fixa. Afirma Bauman (1998) que o eixo<br />

do que denomina “estratégia de vida pós-moderna” é evitar que a identidade<br />

se fixe. Metaforicamente, essa situação é representada por ele pela figura do<br />

turista, afirmando que “A peculiaridade da vida turística é estar em movimento,<br />

não chegar” (p.114).<br />

Ele acrescenta ainda:<br />

Uma palavra de advertência: turistas e vagabundos são as metáforas da<br />

vida contemporânea. (...) Tendo isso em mente, sugiro-lhes que, em<br />

nossa sociedade pós-moderna, estamos todos – de uma forma ou de<br />

outra, no corpo ou no espírito, aqui e agora ou no futuro antecipado,<br />

de bom ou de mau grado – em movimento; nenhum de nós pode estar<br />

certo/a de que adquiriu o direito a algum lugar de uma vez por todas,<br />

e ninguém acha que sua permanência num lugar para sempre é uma<br />

perspectiva provável. (1998, p.1<strong>18</strong>)<br />

Tendo em vista as contribuições aqui trazidas, em particular a partir de<br />

Giddens e Bauman, que nos chamam a atenção sobre aspectos como a identidade<br />

e as condições de mobilidade contemporâneas, traremos a seguir observações<br />

sobre a questão da mobilidade e o turismo como uma de suas dimensões.<br />

Globalização e mobilidade: as condições de mobilidade contemporânea e as práticas turísticas


14<br />

mobiliDaDe e turismo<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

O movimento tem se tornado importante questão para a análise sociológica<br />

em termos dos padrões de mobilidade que estão se configurando. Em<br />

função das dimensões contemporâneas do capitalismo, associadas à velocidade<br />

dos processos de produção e consumo, os deslocamentos humanos também são<br />

afetados, assim como a subjetividade. Desse modo, alguns autores destacam a<br />

questão da mobilidade como eixo importante de investigação da sociedade contemporânea.<br />

Nesse contexto, temos o exemplo do turismo enquanto forma de<br />

lazer, que pode ser inserido na categoria “mobilidade”, fenômeno genérico que<br />

pressupõe várias formas de transporte, deslocamentos diários entre comunidades<br />

(como aqueles relativos ao trajeto casa-trabalho e vice-versa) e outras formas de<br />

viagens, assim como suas diversas inter-relações através de várias formas de comunicação<br />

(Lash e Urry, 1994).<br />

Lash e Urry (1994), ao tratarem dessas questões, destacam que a experiência<br />

moderna paradigmática é aquela da rápida mobilidade frequente,<br />

através de longas distâncias, onde essa mobilidade não é algo que apenas<br />

existe por si mesmo, mas que tem que ser desenvolvida e organizada, isto é,<br />

a mobilidade deve ser socialmente organizada.<br />

Dimensão fundamental desse processo é que, além de seu aspecto social,<br />

faz surtir, portanto, efeitos sociais significativos. As rápidas formas de<br />

mobilidade têm radicais efeitos em como as pessoas de fato experimentam o<br />

mundo moderno na produção da subjetividade. Ainda de acordo com Lash<br />

e Urry (ibid.), esses fatores incluem mudanças na sociabilidade e nas formas<br />

de se apreciar a natureza e outras sociedades.<br />

As novas condições de mobilidade também indicariam a configuração<br />

de um “pós-turismo” associado à presença difusa de signos em todos os lugares<br />

(Urry, 1996). Harvey (1996), ao situar as principais tendências do capitalismo,<br />

também destaca a importância dos signos, ao afirmar que vivemos<br />

numa dimensão da “compressão do tempo/espaço”, na qual se consomem<br />

mais símbolos e imagens do que propriamente coisas ao assimilarmos a publicidade<br />

e a mídia, dimensões especiais nesse contexto.<br />

Ao considerar o turismo como um eixo de representação da sociedade<br />

contemporânea, Bauman (2003) 7 faz uma distinção entre o turismo como metáfora<br />

para a vida contemporânea e o turismo como certo tipo de atividade.<br />

Ao falar de turismo ou turistas como metáforas, o autor refere-se a aspectos da<br />

condição do turista em termos da experiência que implica em se estar em algum<br />

lugar, situações que ocorrem ao mesmo tempo que as pessoas estão inseridas na<br />

companhia de outras, todos os dias, no seu cotidiano, nos lugares em que se vive<br />

ou se trabalha. Essa característica da vida contemporânea é o que Bauman (ibid)<br />

chama de “tourist syndrome”.<br />

A “síndrome do turista” tem como características a perda dos laços com<br />

o lugar (físico, geográfico, social); o que difere da expectativa da “modernidade<br />

sólida”, do tipo “nos encontraremos novamente”. Segundo Bauman, esse tipo de<br />

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expectativa faz as pessoas se esforçarem, elaborarem uma forma de viver e criar<br />

regras, caso contrário, não haveria razão para tal. Ele acrescenta ainda que as regras<br />

só são necessárias quando a relação é durável. O contrário é como os turistas<br />

fazem, ou seja, não ser do lugar faz do turismo uma “boa metáfora”.<br />

A síndrome também está associada a um consumo insaciável, o que<br />

ele (ibid) chama de “grazing behaviour”, uma espécie de comportamento<br />

de pastoreação que assim é explicado: quando as ovelhas estão no prado e<br />

toda a grama é comida não há por que ficarem, então elas se movem ou são<br />

movidas. Isso não quer dizer que os turistas acabam com tudo o que há nas<br />

prateleiras aonde chegam, mas que têm uma saciedade de coisas diferentes.<br />

Seu único propósito é o consumo de uma sensação agradável, e, quando<br />

isso definha, vai-se em busca de outra relação do mesmo tipo que a anterior<br />

(Bauman chama isso de uma “relação pura”). A experiência turística, reforça<br />

Bauman, implica que as relações estabelecidas pelos turistas nos lugares aonde<br />

vão, são frágeis. Por essas questões e muitas outras, o turismo, de acordo<br />

com ele, é um tema válido para a Sociologia.<br />

Retomando-se os temas da “modernidade líquida” de Bauman, o<br />

turista como metáfora da “pós-modernidade” ou “modernidade líquida”<br />

representa a fragilidade das relações contemporâneas, o desolamento, o<br />

descompromisso e a fluidez, nos quais também não há expectativas de futuro<br />

e tampouco há passado.<br />

Ao se utilizar ainda de outra metáfora, identificada por ele pela relação<br />

entre o que chama de “turistas e vagabundos” (Bauman, 1998, 1999), considera<br />

essa relação como dois pólos de um contínuo, onde expectativas estão<br />

depositadas. Ele afirma que não é preciso se mover para ser um vagabundo,<br />

pois, mesmo se ficando no mesmo lugar, o lugar já não é mais o mesmo. Na<br />

análise de Bauman, as possibilidades de mobilidade (deslocamento físico) são<br />

uma questão-chave da experiência moderna, e, dessa forma, na natureza do<br />

turismo está a mobilidade, por isso também o turismo e o turista são metáforas<br />

adequadas para a compreensão dessa realidade.<br />

o paraDigma Da mobiliDaDe em Contexto De globalização e os<br />

proCessos turístiCos<br />

Segundo Hannam, Sheller e Urry (2006), a ordem global é cada vez<br />

mais um entrecruzamento de turistas, trabalhadores, terrroristas, migrantes<br />

etc., o que parece produzir mais uma rede de padrão da vida social e econômica<br />

mesmo para aqueles que não se movem. Bauman (1999), ao analisar<br />

questões da mobilidade contemporânea, também destaca a relação entre uma<br />

crescente mobilidade por um lado e, por outro, o que ele chama de uma “localidade<br />

amarrada”, no sentido de que, para o “mundo dos globalmente móveis”<br />

(Primeiro Mundo) o espaço pode ser virtualmente transposto (no real e no<br />

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virtual), mas para os do segundo mundo, “localidade amarrada”, seu “espaço<br />

real está se fechando rapidamente”, não podem se mover e estão “fadados a<br />

suportar passivamente qualquer mudança que afete a localidade onde estão<br />

presos” (p.96). Ainda de acordo com Bauman (ibid), “a mobilidade tornou-se<br />

o fator de estratificação mais poderoso e mais cobiçado, a matéria de que são<br />

feitas e refeitas, diariamente, as novas hierarquias sociais, políticas, econômicas<br />

e culturais em escala cada vez mais mundial” (p.16).<br />

Questões dessa natureza, segundo Bauman, configuram uma forma<br />

de estratificação que se particulariza na “sociedade pós-moderna de consumo”<br />

associada diretamente ao grau de mobilidade das diferentes classes, o<br />

que implica em “sua liberdade de escolher onde estar”. Assim, uma “imobilidade<br />

forçada” torna-se algo desprezível, resultando em sentimentos de<br />

incapacidade e dor (1999).<br />

Em sentido semelhante, para Hannam, Sheller e Urry (2006), novos lugares<br />

e tecnologias ao mesmo tempo que aumentam a mobilidade de algumas<br />

pessoas e lugares, também aumentam a imobilidade de outras (exemplos das<br />

pessoas que buscam cruzar fronteiras), implicando em estruturas de poder e<br />

posição de raça, gênero, classe etc.<br />

A mobilidade contemporânea, à luz das novas condições sociais, também<br />

implica em questões referentes ao corpo. Os mesmos autores nos lembram<br />

que materiais são transportados pelo corpo de pessoas, de forma aberta ou<br />

clandestina, o que tem consequências sobre várias instituições em termos de<br />

sua reorganização, riscos e laços sociais mais fragéis. O corpo e o lar são transformados,<br />

assim como os espaços públicos e privados, em pequenas e grandes<br />

comunidades. Nesse sentido, a globalização tem reflexos consideráveis sobre a<br />

subjetividade contemporânea.<br />

Podemos aqui retomar Giddens (2005), quando afirma que a globalização<br />

“está afetando nossa vida íntima e pessoal de diversas maneiras.”<br />

Isto porque<br />

as forças globalizadoras penetram dentro de nossos contextos locais,<br />

em nossas casas, em nossas comunidades, através de fontes impessoais<br />

– tais como a mídia, a internet e a cultura popular e através<br />

também do contato pessoal com indivíduos de outros países e culturas<br />

(Giddens, 2005, p.68).<br />

É nesse contexto que autores como Urry se referem à necessidade de<br />

um “paradigma da mobilidade”. O conceito de mobilidade, desse modo,<br />

compreende tanto movimentos de larga escala, como deslocamentos de pequena<br />

escala (pessoas, objetos, capital e informação). Para Hannam, Sheller<br />

e Urry, esses processos têm transformado as Ciências Sociais com novas<br />

questões para discussão e redefinição das fronteiras disciplinares, formando,<br />

desse modo, um novo paradigma no interior das Ciências Sociais, chamado<br />

de paradigma das “novas mobilidades”.<br />

Globalização e mobilidade: as condições de mobilidade contemporânea e as práticas turísticas


17<br />

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Por outro lado, os autores citam algumas autoras feministas que criticam<br />

o referido paradigma por refletir uma “subjetividade masculina burguesa” que<br />

vê a si mesma como cosmopolita, reforçando seu poder. Entretanto, em sua<br />

defesa, eles consideram que nem todos têm a mesma relação com a mobilidade,<br />

podendo-se perceber questões que envolvem o poder e a política.<br />

No quadro das novas mobilidades, as viagens adquirem importante fator<br />

de análise. Hannam, Sheller e Urry (ibid) atestam que, embora a espacialidade<br />

seja uma área reconhecida nas Ciências Sociais, esse campo de conhecimento<br />

tem falhado na compreensão de como as espacialidades da vida social, em geral,<br />

envolvem conflitos reais ou imaginários no movimento de pessoas É nesse<br />

sentido que consideram importante a compreensão das viagens, o que tem sido,<br />

para as Ciências Sociais, uma espécie de “caixa preta” (2006, p.4). Afirmam<br />

que esse é um campo que necessita de melhor teorização e mais pesquisas, em<br />

especial sobre as interdependências entre mudanças nos movimentos físicos e<br />

comunicações eletrônicas. Alertam os autores que sua abordagem sobre a mobilidade<br />

problematiza tanto abordagens “sedentaristas”, que propõem uma visão<br />

estática do lugar, quanto abordagens “desterritorializadas”, que colocam a<br />

mobilidade, fluidez ou liquidez como condição generalizante da globalização.<br />

Ao se referirem a um paradigma das novas mobilidades, os autores entendem<br />

que existem questões centrais como a globalização e desterritorialização<br />

dos estados-nações, entre outros aspectos, mas, fundamentalmente, que<br />

emergem questões sobre as quais são os sujeitos e objetos apropriados para a<br />

investigação social, tendo-se em vista um contexto onde entidades de muitos<br />

tipos estão se modificando e se movendo. Perguntam-se os autores: “Há, ou<br />

deveria haver, uma nova relação entre ‘materialidades’ e ‘mobilidades’ nas ciências<br />

sociais? E como nossa forma de ‘conhecer’ está sendo transformada por<br />

muitos processos que desejamos estudar?” (2006, p.10).<br />

Ao estudarmos certos aspectos do turismo, por exemplo, nos deparamos<br />

com questões dessa natureza. Identificamo-nos com alguns questionamentos<br />

provenientes da Antropologia, como o relato da pesquisa de Rial (2003), em<br />

cadeias de fast-foods, no qual ela se pergunta como agir frente a objetos de<br />

estudo contemporâneos, difíceis de serem demarcados e territorializados. Os<br />

“novos” objetos se encontram em toda parte, sua “[...] presença aparece mais<br />

como temporal do que geográfica”, afirma. Em sua pesquisa, ela associa seu<br />

objeto à efemeridade dos encontros, uma condição que exige uma antropologia<br />

em movimento. Consideramos, nesse contexto, que os turistas, entre outros<br />

tipos de “sujeitos móveis”, aparecem enquanto um “objeto” de estudo desterrritorializado,<br />

o que implica em uma condição de efemeridade, pois não se “é<br />

turista”, mas se “está turista”, em dado tempo e lugar.<br />

Hannam, Sheller e Urry (ibid) consideram temas como migrações e<br />

turismo como extremamente relevantes. Analisar mobilidades envolve consequências<br />

para diferentes pessoas e lugares, sejam em situações em que a<br />

Globalização e mobilidade: as condições de mobilidade contemporânea e as práticas turísticas


<strong>18</strong><br />

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mobilidade é forçada ou onde ela é voluntária. Também há que considerar<br />

o movimento de imagens e de informação. Os autores também consideram<br />

que a noção de lugar deve ser revista, posto que os lugares são costumeiramente<br />

vistos como sendo fixos e separados daqueles que os visitam. Desse<br />

modo, defendem que há necessidade de relacionarmos os lugares e as pessoas<br />

por meio de suas performances. Nessa perspectiva, viajar não é apenas chegar<br />

a um destino, o que faz com que os lugares se insiram, assim, em uma<br />

complexa rede de conexões “‘pelas quais hospedeiros, hóspedes, construções,<br />

objetos e máquinas’ são contingentemente colocados juntos para produzir<br />

certas performances em certas ocasiões” (p.13).<br />

Particularmente, em relação do turismo, Sheller e Urry (2004) se<br />

utilizam do termo “tourism mobilities” para se referirem ao fato de que<br />

muitas formas de mobilidade configuram o turismo, envolvendo pessoas,<br />

objetos, meios de transporte, sistemas de comunicação etc., onde todos<br />

acabam “‘doing’ tourism”.<br />

Nessas circunstâncias, conforme Hannam, Sheller e Urry (2006), tem<br />

ocorrido um maior interesse nas formas pelas quais as coisas estão em movimento,<br />

sendo que o “social” se torna bastante heterogêneo, envolvendo corpos,<br />

máquinas, textos, etc., sendo fundamental reconhecer o que seria – “the materialities<br />

of mobilities”, as quais envolvem o “corpo material como um veículo<br />

afetivo através do qual temos um sentido de lugar e movimento”. (p.14).<br />

Muitas análises têm demonstrado que o significado das viagens também implica,<br />

entre outras coisas, diferentes experiências e performances. Desse modo,<br />

os autores demonstram que tem sido necessário que os métodos de pesquisa, a<br />

exemplo de uma parte da literatura desde os anos 80, empreguem fotografias,<br />

cartões postais, cartas, imagens, guias, souvenirs, objetos etc. Para Sheller e<br />

Urry (2004), turismo envolve também um conjunto de relações, de memórias,<br />

performances, “corpos com gênero e raça, emoções e atmosferas.” (p.1)<br />

A questão da importância do entendimento de performances também<br />

é referida em Crouch (et al, 2001) ao buscar demonstrar que nós vivemos os<br />

lugares não apenas culturalmente, mas também corporalmente. Desse modo,<br />

lugares se tornam significantes através de nosso próprio corpo e dos corpos de<br />

outras pessoas em sua performance do corpo.<br />

ConsiDerações finais<br />

Procuramos, nesta breve reflexão, muito mais trazer à tona um conjunto<br />

de discussões que colocam novos objetos para a reflexão sociológica, nos quais<br />

alguns autores apresentam os desafios com os quais a Sociologia se depara, do<br />

que a proposição de métodos e formas de análise. Buscamos destacar os estudos<br />

de Urry e outros autores em relação à organização de um novo paradigma<br />

de estudos para os novos objetos.<br />

Globalização e mobilidade: as condições de mobilidade contemporânea e as práticas turísticas


19<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Entendemos que, no contexto da sociedade contemporânea, questões<br />

dessa natureza remetem à Sociologia uma série de preocupações a serem consideradas,<br />

como aquelas associadas à comunicação humana e ao uso e representação<br />

dos lugares, tanto em sua dimensão geográfica quanto cultural. Também<br />

colocam para a Sociologia a necessidade de uma maior interação com outras<br />

Ciências Sociais, em especial, com a Geografia e a Antropologia, onde se imbricam<br />

as relações com a espacialidade, com o corpo e as sensações. Portanto,<br />

também se insere nessa discussão a importância do entendimento dos vários<br />

tipos de manifestações entre os indivíduos em contextos sociais de mobilidade,<br />

os quais passam pelo entendimento de questões mais subjetivas.<br />

notas<br />

1 Este artigo foi apresentado, inicialmente, no XIII Congresso<br />

Brasileiro de Sociologia, em Recife, 2007.<br />

2 Esta questão foi discutida, por mim, em Tese de Doutorado (2006)<br />

intitulada – “A Modernidade e os Encontros Turísticos: turistas na<br />

Barra da Lagoa”, sob orientação de Héctor Leis e Carmen Rial/<br />

UFSC.<br />

3 As transformações na relação espaço/tempo são fundamentais na<br />

análise de Giddens (1991) sobre as condições contemporâneas da<br />

modernidade, através da noção de “desencaixe” e seus mecanismos.<br />

4 No sentido dos autores, “a habilidade para experienciar, discriminar<br />

e se arriscar em diferentes naturezas e sociedades, historicamente e<br />

geograficamente” (Lash e Urry, 1994).<br />

5 Em relação a questões de ética e moral na modernidade e pósmodernidade,<br />

em Bauman, ver: Ética pós-moderna (Bauman, 1997).<br />

6 Reflexões sobre a experiência moderna e alusões ao Manifesto de<br />

Marx e Engels, também estão presentes em Marshall (1998).<br />

7 Ver entrevista de Bauman a Adrian Franklin (2003).<br />

referênCias bibliográfiCas<br />

BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997.<br />

BAUMAN, Z. Globalização; as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.<br />

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CROUCH, David et al. Tourist encounters. Tourist Studies. London, v.1 (3),<br />

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Globalização e mobilidade: as condições de mobilidade contemporânea e as práticas turísticas


20<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

FRANKLIN, Adrian. The tourist syndrome: an interview with Zygmunt<br />

Bauman. Tourist Studies. London, v 3 (2), 205-217, 2003.<br />

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.<br />

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.<br />

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GUIMARÃES, Vera M. A modernidade e os encontros turísticos: turistas<br />

na Barra da Lagoa. Florianópolis. 261 p. Tese de Doutorado em Ciências<br />

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HANNAM, Kevin, SHELLER, Mimi, URRY, John. Editorial: mobilities, immobilities<br />

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Disponível em: Acessado<br />

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HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1996.<br />

LASH, Scott, URRY, Jonh. Economies of signs & space. London: Sage<br />

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BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.<br />

São Paulo: Cia das Letras, 1998.<br />

RIAL, Carmen S. Pesquisando em uma grande metrópole: fast-foods e studios em<br />

Paris. In: VELHO, G., KUSCHNIR, K (orgs.). Pesquisas urbanas: desafios do<br />

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URRY, John. O olhar do turista: lazer e viagens nas sociedades contemporâneas.<br />

São Paulo: Studio Nobel, SESC, 1996.<br />

SHELLER, Mimi, URRY, John. Places to play, places in play. In: SHELLER,<br />

M., URRY, J. (ed.).Tourism mobilities: places to play, places in play. London:<br />

Routledge, 2004.<br />

Globalização e mobilidade: as condições de mobilidade contemporânea e as práticas turísticas


Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Estratégias redutoras de risco percebido:<br />

um estudo entre turistas deficientes físicos<br />

Perceived risk reducing strategies:<br />

a study with disabled tourists’<br />

Jarlene Rodrigues Reis<br />

Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca.<br />

Resumo<br />

Neste trabalho, buscou-se identificar as estratégias redutoras de risco mais<br />

relevantes entre turistas com deficiência física. Foram realizadas 10 entrevistas<br />

semiestruturadas com deficientes físicos que costumam viajar. Os resultados<br />

da pesquisa apresentam como maior contribuição um conhecimento<br />

preliminar sobre as percepções de pessoas com deficiência em relação ao<br />

consumo de produtos turísticos.<br />

Palavras-chave: Estratégias redutoras de risco percebido; Turistas deficientes físicos;<br />

Risco Percebido.<br />

Abstract<br />

In this study, we sought to identify strategies for reducing perceived risk more relevant<br />

among tourists with disabilities. Ten semi-structured interviews were conducted<br />

with disabled people who are used to travel. The results show as major contribution<br />

preliminary knowledge about the perceptions of people with disabilities with respect<br />

to the consumption of tourism products.<br />

Keywords: Perceived risk reducing strategies; Disabled tourists; Perceived Risk.<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


22<br />

introDução<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

A Organização Mundial de Saúde estima em 610 milhões o número de<br />

pessoas com algum tipo de deficiência física ou mental no mundo. Cerca de<br />

80% dessas pessoas vivem em países em desenvolvimento como o Brasil. No<br />

país, 14,5% da população apresentam algum tipo de deficiência e, a cada mês,<br />

cerca de 10.000 pessoas se tornam deficientes físicos (NERI; SOARES, 2003).<br />

Os números impressionam, e isso se reflete na visibilidade cada vez maior<br />

desse segmento da população em diversas esferas da dinâmica social, incluindo<br />

setores ligados à prestação de serviços públicos e privados, numa tentativa de<br />

ampliar o acesso dos deficientes aos recursos oferecidos à maioria da população.<br />

O setor de viagens e turismo tem voltado a atenção para temas como<br />

a inclusão e o acesso dos deficientes físicos. Os temas da acessibilidade e da<br />

inclusão não se impuseram apenas ao mercado de turismo, estendendo-se também<br />

à pesquisa científica na área.<br />

Contudo, faltam estudos relacionados à percepção e ao ponto de vista<br />

dos turistas deficientes físicos. Partindo da premissa de que tais turistas<br />

teriam critérios diferentes e percepções diversas durante a escolha de um<br />

destino turístico, convém ressaltar a relevância de pesquisas que se dediquem<br />

à investigação do risco percebido em relação a uma viagem, fator de grande<br />

influência na decisão final sobre um produto. Dessa forma, a percepção de<br />

risco de um turista deficiente merece estudos específicos, em virtude de suas<br />

peculiaridades e da diversidade de fatores que podem representar um “risco”<br />

associado a determinado destino turístico.<br />

Partindo da premissa de que o turista deficiente teria diferentes percepções<br />

de risco durante a escolha de um destino turístico, suas estratégias redutoras<br />

de risco percebido devem, da mesma maneira, assumir nuances específicas.<br />

Esses dois processos – perceber um risco associado a uma experiência e procurar<br />

minimizá-lo – são grandes influenciadores da opção por um produto turístico,<br />

principalmente quando associados às restrições características das deficiências.<br />

Neste estudo, serão consideradas apenas as pessoas com deficiência física,<br />

definida pela Organização Mundial da Saúde como “a alteração completa<br />

ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando<br />

o comprometimento da função física” (OMS, 1989). Tem-se como objetivo<br />

a identificação das formas mais utilizadas e consideradas mais relevantes os<br />

principais atributos geradores de percepção de risco entre turistas deficientes<br />

físicos. Nesse sentido, realizou-se uma série de entrevistas semiestruturadas e<br />

de grupos focais entre turistas deficientes físicos, no sentido de reduzirem incertezas<br />

e aumentarem a segurança da escolha de um destino turístico.<br />

Conhecer a percepção dos turistas deficientes físicos não traz apenas implicações<br />

teóricas, podendo ser muito útil no que diz respeito à elaboração de políticas<br />

públicas e projetos privados de adaptação e acessibilidade para os deficientes.<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


23<br />

perCepção e estratégias reDutoras De risCo<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Raymond Bauer propôs o uso do conceito de risco percebido em<br />

1960, trazendo uma importante contribuição ao estudo do comportamento<br />

do consumidor. O conceito de risco percebido durante o consumo de<br />

produtos e serviços introduziu um novo foco na investigação das experiências<br />

do consumidor, enfatizando a existência de riscos associados a eventuais<br />

opções em questão. Para o autor,<br />

O comportamento do consumidor envolve riscos, no sentido em que<br />

qualquer ação do consumidor irá gerar consequências que ele não pode<br />

antecipar com certeza, e ao menos algumas delas podem ser indesejáveis.<br />

BAUER, 1967, p. 24<br />

A partir dessas primeiras colocações de Bauer, diversos autores procuraram<br />

utilizar o risco percebido como espectro de análise do comportamento<br />

do consumidor, empregando duas dimensões principais envolvidas na decisão<br />

de consumo: incerteza e consequências (BAUER, Op. Cit.). O risco percebido<br />

tem a ver, portanto, com as incertezas geradas pela impossibilidade de prever<br />

as consequências da escolha a ser feita. Há riscos envolvidos durante a escolha<br />

da maioria dos produtos e serviços, existindo uma quantidade mínima de decisões<br />

que não oferecem riscos (COX, 1967).<br />

A sensação de desconforto e de desequilíbrio proporcionada pela percepção<br />

de risco faz com que as pessoas procurem formas de reduzir tal ameaça, ou<br />

ao menos aumentar a certeza do tipo de risco associado a uma escolha. Apesar<br />

disso, não obstante a grande quantidade de publicações sobre risco percebido,<br />

pouco se tem estudado a respeito das estratégias redutoras de risco, especialmente<br />

durante o processo de consumo (MITCHELL; McGOLDRICK, 1996).<br />

Raymond Bauer, no mesmo artigo em que propôs o estudo do risco<br />

percebido no comportamento do consumidor, chamou a atenção para o modo<br />

como as pessoas lidam com os riscos, ressaltando que:<br />

Os consumidores normalmente desenvolvem estratégias de decisão<br />

e caminhos de redução de riscos que os tornam capazes de agir com<br />

relativa confiança e facilidade em situações em que sua informação é<br />

inadequada e as consequências de suas ações são, em nível significativo,<br />

incalculáveis. BAUER, Op. Cit., p. 25<br />

Apesar de não aprofundar o tema, Bauer sugere um direcionamento nos<br />

estudos sobre as situações em que há riscos envolvidos para o consumidor, tornando<br />

necessário tomar atitudes para aumentar o grau de confiança na opção a<br />

ser feita. Quando o risco percebido é superior ao nível de tolerância do consumidor,<br />

ele utiliza medidas de redução do risco a um nível tolerável (COX, Op.<br />

Cit.). Cox ressalta que há situações em que o risco é assumido e que, portanto,<br />

o consumidor não está a todo momento procurando minimizar riscos e incertezas,<br />

embora esse seja o comportamento mais comum.<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


24<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Para Mitchell e McGoldrick (1996), as estratégias redutoras de risco<br />

têm como objetivo diminuir a incerteza inerente ao risco percebido, bem<br />

como reduzir a possibilidade de consequências indesejáveis, sejam elas físicas,<br />

financeiras, de desempenho, sociais, psicológicas ou relativas ao tempo.<br />

Para os autores, há duas possibilidades gerais que merecem destaque na análise<br />

da redução de risco: a primeira consiste no aumento da certeza de que a<br />

compra não resultará em fracasso, e a segunda se refere à redução das consequências<br />

do fracasso possível. As estratégias mais comumente identificadas<br />

pelos pesquisadores se relacionam à procura pelo maior nível de certeza possível<br />

quando se realiza uma escolha. O argumento dos autores se assemelha<br />

à proposição de Cox (Op. Cit.), que também identifica esses dois caminhos<br />

principais na redução de risco percebido, ressaltando que o tomador de decisão<br />

só opta pela segunda possibilidade (redução das consequências do fracasso<br />

e do que “está em jogo”) quando a busca por maior nível de certeza e<br />

segurança na decisão se mostra ineficiente ou inviável.<br />

Cox (Id.) separa as estratégias de redução de risco percebido em duas<br />

categorias: simplificadoras (têm a ver com o alcance de maior grau de clareza<br />

cognitiva por meio da simplificação do ambiente e pela desconsideração de<br />

elementos incongruentes) e clarificadoras (busca de informações com o intuito<br />

de aumentar o conhecimento sobre as opções possíveis durante a decisão).<br />

Roselius (1971), por sua vez, propõe a classificação das estratégias de<br />

resolução de risco em quatro categorias: 1) Redução do risco percebido por<br />

meio da probabilidade de fracasso na escolha ou por meio da redução da<br />

severidade das perdas sofridas caso o fracasso ocorra; 2) Opção por um risco<br />

que possa ser mais bem tolerado em detrimento de um risco maior; 3)<br />

Postergação da decisão, a fim de trocar um tipo de risco por outro mais<br />

tolerável; 4) Tomar a decisão e assumir o risco não eliminado. O autor esclarece<br />

que a redução de riscos está associada às duas primeiras estratégias<br />

citadas. O indivíduo possuiria um repertório de opções de redução de risco,<br />

em que algumas são preferidas em relação às outras. A preferência por certas<br />

estratégias está relacionada a cada tipo de perda que pode ocorrer como consequência<br />

da decisão. Durante a tomada de decisão, o consumidor emprega<br />

as estratégias que julgar mais apropriadas, de acordo com os tipos de riscos<br />

percebidos. Entretanto, a escolha da estratégia mais apropriada nem sempre é<br />

simples, pois algumas vezes não é possível identificar claramente quais meios<br />

serão mais eficientes na redução de certos tipos de risco.<br />

Também na tentativa de elaborar uma explicação teórica sobre os<br />

meios de reduzir os ricos percebidos, Sheth e Venkatesan (1968) afirmam<br />

que o consumidor, embora não possa alterar as consequências do uso de<br />

um produto, é capaz de modificar o nível de incerteza sobre tais consequências,<br />

evitando, inclusive, alternativas cujos resultados sejam considerados<br />

mais aversivos. Segundo os autores, há três meios de redução das incertezas<br />

associadas a um produto ou uma marca: 1) busca de informações de fontes<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


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informais e pessoais, como amigos, familiares e grupos de referência; 2) comparações<br />

pré-compra, que permitem ao consumidor organizar as informações<br />

recebidas e estruturar suas impressões a respeito das opções em questão;<br />

3) referência às imagens de marcas e produtos, que podem gerar relações de<br />

fidelidade. Em casos de inexistência dessas referências de imagem, pode-se<br />

reduzir a incerteza por meio das experiências de compras anteriores. Sheth e<br />

Venkatesan chamam a atenção para a peculiaridade dos processos decisórios<br />

de compras repetitivas, em que as três estratégias citadas ganham dimensões<br />

específicas. Nesses casos, para os autores, a intensidade do uso de meios de<br />

redução de riscos como a busca de informação, a deliberação antes da compra<br />

e a fidelidade à marca é modificada ao longo do tempo. Quanto maior a<br />

experiência e o conhecimento de um produto, por exemplo, mais rotineiro se<br />

torna o processo decisório, diminuindo a procura por informações de fontes<br />

informais e reduzindo em níveis mínimos as comparações pré-compra.<br />

Os autores dedicados ao estudo das estratégias redutoras de risco percebido<br />

têm procurado classificá-las criando “taxonomias” para auxiliar o entendimento<br />

das medidas empregadas pelos consumidores, a fim de diminuir<br />

as incertezas associadas a uma decisão. Mitchell e McGoldrick (Op. Cit.), em<br />

sua síntese sobre as estratégias redutoras de risco percebido, identificaram 37<br />

diferentes categorias encontradas nas publicações sobre o tema.<br />

Os autores destacam que, quando se trata da busca de informações<br />

como forma de reduzir os riscos percebidos, a maioria dos estudos diferencia<br />

as fontes em três categorias diversas: fontes pessoais, não pessoais e outras. A<br />

seguir, são apresentadas as principais estratégias atenuantes do risco percebido,<br />

de acordo com as classificações propostas pela maioria dos autores da<br />

área (MELLO; FALK, 2003):<br />

Busca de informações boca a boca: à medida que aumenta o risco percebido,<br />

cresce a propensão do consumidor à procura de informações boca a boca,<br />

relativas a atributos, facilidades e condições de uso do produto, serviços de<br />

assistência técnica etc. Essa estratégia é a mais citada pelos estudiosos do risco<br />

percebido (MITCHELL; McGOLDRICK, Op. Cit.).<br />

Comprar uma marca bem conhecida: adquirir produtos de marcas reconhecidas<br />

é um método empregado por consumidores que relacionam o renome<br />

da marca ao nível de qualidade oferecida. O consumidor pode imaginar, nesses<br />

casos, que uma grande marca tem uma reputação a zelar, e que não a poria em<br />

risco oferecendo produtos de má qualidade (Id.). Além disso, marcas reconhecidas<br />

são mais populares, o que aumenta as chances de sucesso na escolha, já<br />

que “todos estão usando”. O risco social também é reduzido nessas situações,<br />

em virtude da popularidade da marca e da sensação produzida pelo fato de<br />

“estar de acordo” com o que o grupo social de referência compra e utiliza (Id.).<br />

Busca de informações em comerciais de TV e propagandas impressas:<br />

comerciais de TV e anúncios impressos são ferramentas importantes, pois<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


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Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

informam a população sobre produtos, serviços e estilos de vida. No caso de<br />

impressos, é possível fornecer informações detalhadas sobre o que está sendo<br />

oferecido. Uma vantagem do uso desses meios é sua exposição constante, fazendo<br />

com que o consumidor não necessite de grandes esforços para buscar<br />

as informações neles contidas.<br />

Busca de informações em relatórios ao consumidor: esses relatórios incluem<br />

publicações governamentais, periódicos e editoriais, em que se apresentam<br />

informações sobre a qualidade dos serviços e produtos oferecidos por<br />

uma empresa. São fontes consideradas de grande credibilidade, em virtude<br />

da independência das avaliações publicadas. Essas fontes incluem ainda artigos<br />

e colunas escritas por especialistas.<br />

Lealdade a uma marca: refere-se à compra de uma marca já utilizada<br />

pelo consumidor, e que tenha apresentado desempenho satisfatório.<br />

Diversos estudiosos encontraram correlações positivas entre essa estratégia<br />

e o risco percebido (Id.). Segundo Mitchell e McGoldrick, a lealdade à<br />

marca apresenta variações entre países e culturas diferentes. Em culturas<br />

com fortes tendências tradicionalistas, por exemplo, a lealdade à marca<br />

seria observada com mais frequência.<br />

Busca de informações sobre preços: muitos consumidores associam altos<br />

preços à qualidade elevada, o que pode atenuar o risco percebido durante uma<br />

decisão. Por outro lado, há consumidores que, ao adquirir produtos a preços<br />

reduzidos, conseguem atenuar a percepção de risco financeiro. A busca de informações<br />

sobre preços de produtos e serviços auxilia os consumidores, no<br />

sentido de identificar as opções que oferecem melhor relação custo-benefício.<br />

Busca de informações nas embalagens dos produtos: as informações contidas<br />

em rótulos e embalagens são de grande importância como atenuantes do risco<br />

percebido, principalmente quando se trata da compra de gêneros alimentícios<br />

por consumidores preocupados com a saúde e a qualidade da alimentação.<br />

Estudos concluíram que a busca dessas informações pode reduzir a percepção<br />

de riscos financeiros, sociais e funcionais (Id.).<br />

Compra de produtos que ofereçam testes ou amostras grátis: a experimentação<br />

de um produto antes da compra pode atenuar alguns tipos de risco percebido<br />

(ROSELIUS, Op. Cit.). Tal estratégia é empregada nos setores alimentício<br />

(amostras oferecidas em supermercados), cosmético (amostras de perfumes e<br />

cosméticos distribuídas em lojas e shoppings), automobilístico (test-drive), etc.<br />

Comprar de acordo com as experiências passadas: para Sheth e Venkatesan<br />

(Op. Cit.), um dos processos mais importantes para a compra é a redução de<br />

riscos a partir de experiências passadas do consumidor. A memória de compras<br />

anteriores pode auxiliar o consumidor a discernir entre as alternativas possíveis<br />

e julgá-las com mais facilidade. Além disso, o processo decisório pode ser abreviado<br />

se o consumidor julgar desnecessário de acordo com seus conhecimentos<br />

prévios, e fazê-lo buscar mais informações a respeito das opções disponíveis.<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


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Comprar em lojas com boa reputação: para Roselius (Op. Cit.), a reputação<br />

e a imagem da loja estão entre as três principais estratégias de redução de diferentes<br />

tipos de perdas associadas a uma compra. Entretanto, segundo Mitchell<br />

e McGoldrick (Op. Cit.), a importância dessa estratégia permanece obscura,<br />

principalmente em virtude de diferentes interpretações e definições utilizadas<br />

pelos pesquisadores ao tratarem da imagem de uma loja.<br />

Busca de garantias: o oferecimento de garantias funciona como uma<br />

importante variável de persuasão para as vendas (Id.). Tanto as garantias<br />

contra defeitos de fabricação e problemas no desempenho, como as garantias<br />

de devolução do valor pago caso o consumidor não fique satisfeito têm<br />

o poder de reduzir vários tipos de risco percebido. Além disso, produtos<br />

que oferecem garantias são normalmente associados às ideias de qualidade<br />

e valor (MELLO; FALK, Op. Cit.).<br />

Shopping around: a busca de informações e as comparações entre várias<br />

marcas e lojas diferentes pode ser um grande atenuante de risco percebido,<br />

especialmente se não há conhecimento prévio sobre o produto (MITCHELL;<br />

McGOLDRICK, Op. Cit.). Esse método possui a desvantagem de demandar<br />

tempo e esforços do consumidor, porém tais dificuldades diminuem, à medida<br />

que aumentam os centros de compras, como os shoppings centers das grandes<br />

cidades (MELLO; FALK, Op. Cit.).<br />

O uso de estratégias redutoras de risco percebido é uma importante forma<br />

de minimizar os sentimentos negativos relacionados a uma ação de consumo.<br />

Essas estratégias, como ressalta Roselius (Op. Cit.), variam de acordo com<br />

as preferências individuais e conforme os tipos de risco percebido. Para Manrai<br />

e Manrai, “a dimensão na qual um turista emprega comportamentos de redução<br />

de risco é uma função de suas características pessoais e psicológicas, bem<br />

como de orientações culturais” (MANRAI; MANRAI, 2009, p. 15-16). Dessa<br />

forma, além de elementos do destino a ser escolhido, a percepção de risco<br />

também é influenciada por características pessoais, a exemplo das experiências<br />

prévias como viajante, a fase da vida, o gênero, a nacionalidade, a educação,<br />

a classe social e traços de personalidade, como a busca de certas sensações e a<br />

propensão a alguns tipos de experiência.<br />

No caso de turistas deficientes físicos, presume-se que sua percepção de<br />

risco, bem como as formas de minimizá-la, sejam relacionadas às limitações que<br />

possuem. No intuito de identificar as estratégias de redução de risco percebido<br />

mais utilizadas por deficientes físicos durante a opção por um produto turístico,<br />

realizou-se uma pesquisa de campo, cujos resultados são apresentados a seguir.<br />

minimização De risCo perCebiDo entre turistas DefiCientes físiCos<br />

Neste estudo, buscou-se identificar as estratégias de redução de risco<br />

percebido consideradas mais relevantes por turistas deficientes físicos durante<br />

a escolha de um destino turístico. Dessa forma, procedeu-se com uma pesquisa<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


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de campo de cunho qualitativo, que consistiu na realização de dez entrevistas<br />

semiestruturadas com deficientes físicos que afirmaram viajar com frequência.<br />

O critério não probabilístico de amostragem justifica-se pelos objetivos<br />

da pesquisa, sendo a coleta de dados realizada pelo critério de conveniência.<br />

Segundo Vergara (2000), a utilização desse critério leva à seleção dos elementos<br />

a serem pesquisados de acordo com a facilidade de acesso a eles, em detrimento<br />

de qualquer procedimento estatístico. Nesse contexto, as informações não são<br />

tratadas em termos numéricos, mas de acordo com critérios qualitativos de<br />

análise, o que exige cuidado no que se refere à generalização dos resultados.<br />

A coleta de dados foi realizada entre agosto de 2010 e fevereiro de <strong>2011</strong>, entre<br />

deficientes físicos das cidades do Rio de Janeiro, Niterói e Petrópolis, no Estado<br />

do Rio de Janeiro, e da cidade de Paraisópolis, localidade no Sul do Estado de<br />

Minas Gerais. A seleção dos sujeitos de pesquisa foi feita por indicações de duas<br />

associações ligadas aos deficientes físicos: a Associação Niteroiense dos Deficientes<br />

Físicos (ANDEF) e a Associação Pró-Deficiente de Petrópolis. A existência de uma<br />

deficiência física, bem como experiências preliminares em viagens e turismo foram<br />

os elementos considerados para a seleção dos pesquisados. Os deficientes físicos<br />

participantes da pesquisa viajaram ao menos duas vezes nos últimos dois anos. O<br />

número de entrevistados foi definido por meio da saturação das respostas obtidas.<br />

Durante as entrevistas, os participantes eram motivados a falar sobre<br />

tudo o que consideram ameaças ou preocupações quando pretendem realizar<br />

uma viagem. As falas foram transcritas e os dados foram analisados com<br />

emprego de técnicas de análise de conteúdo. Os dados elementares relativos<br />

ao perfil dos entrevistados podem ser resumidos na tabela abaixo. Os nomes<br />

foram substituídos pela letra E maiúscula, seguida de um número que identifica<br />

a ordem de realização das entrevistas, a fim de facilitar a identificação nas<br />

referências às falas e impressões dos pesquisados.<br />

Tabela 1 – Perfil dos entrevistados<br />

Dados<br />

Gênero<br />

Número de entrevistados Entrevistados<br />

Homens 8 E1, E2, E3, E4, E5, E6, E9, E10<br />

Mulheres<br />

Faixa etária<br />

2 E7, E8<br />

De <strong>18</strong> a 30 anos 5 E1, E3, E5, E6, E7<br />

De 31 a 45 anos 3 E2, E4, E9<br />

De 46 a 60 anos<br />

Tipo de deficiência<br />

2 E8, E10<br />

Amputação 1 E4<br />

Paraplegia 3 E1, E5, E6<br />

Monoplegia 1 E8<br />

Monoparesia 4 E2, E3, E7, E10<br />

Triplegia 1 E9<br />

Fonte: Pesquisa de Campo<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


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Após relatarem os riscos que consideravam mais relevantes, os deficientes<br />

físicos entrevistados foram questionados sobre o modo como agem na tentativa<br />

de aumentar a certeza das decisões relacionadas ao consumo turístico, minimizando<br />

a percepção de risco. A análise dos conteúdos das entrevistas permitiu<br />

destacar três principais formas de reduzir o risco percebido. Nota-se que, em<br />

alguns casos, as categorias previstas nas teorias de base tiveram suas denominações<br />

modificadas, adequando-se ao caso específico do consumo turístico.<br />

1) Busca de informações boca a boca<br />

A busca de informações “boca a boca” revelou-se, nas falas dos entrevistados,<br />

a forma mais utilizada de pesquisa sobre localidades a serem visitadas.<br />

Embora a maioria dos respondentes busque também outras fontes de informação,<br />

a opinião de familiares e amigos é considerada muito segura e confiável.<br />

Para os deficientes físicos consultados, são fundamentais as informações a respeito<br />

das condições de acessibilidade e adaptação:<br />

Igual eu estava te falando dessa viagem que a gente está planejando,<br />

para Aparecida... Minha sogra já foi, minha cunhada já foi, então eu<br />

perguntei como é que é... E eu já sei que lá tem que andar muito...<br />

Então é por isso que eu já não estou cogitando... (E7)<br />

Com certeza... A melhor impressão é a de alguém conhecido, alguém<br />

que sabe, mesmo que indiretamente, as necessidades que você tem.<br />

Claro, leitura vale a pena, a internet vale a pena, mas eu acho que a<br />

principal é a impressão de alguém conhecido. Eu já tive uma amiga<br />

que morou no Japão, ela me falou que seria o melhor lugar para eu conhecer<br />

quanto a acesso, respeito inclusive, que também conta muito, é<br />

diferente... E eu estou louco para ir lá, né... (E6)<br />

Percebe-se ainda uma grande ligação entre a busca de informações com<br />

pessoas conhecidas e a atribuição de uma boa reputação ao local:<br />

A escolha é mais pela fama do local... Vamos dizer, são vários amigos,<br />

aí eles comentam “aquele local é muito bom, eu fui lá”... É pela<br />

declaração de amigos. “Esse local é muito bom, tem muito isso... Tem<br />

muita coisa lá, tem como você conhecer”... Isso ajuda e você se interessa<br />

mais em ir. (E2)<br />

A gente procura saber se é um lugar que vale a pena ir, que as pessoas<br />

comentam que é bom mesmo, né? Porque esse sítio, por exemplo, você<br />

não ouve uma pessoa falando mal do sítio, é sempre bem... (E7)<br />

O entrevistado E9 cita a pesquisa com fontes pessoais como uma forma<br />

de detalhar informações de outras fontes, como a internet:<br />

Vamos supor, se eu fosse para uma cidade do interior, eu iria entrar em<br />

contato com moradores de lá, que conhecessem o local, pra me dizerem<br />

qual seria o local para me acomodar... Ligaria pra lá e procuraria<br />

saber se realmente tem as coisas que eu ia ter necessidade, tipo... Ligar<br />

para saber como é que é a porta, a medida da porta... Pela internet às<br />

vezes tu pega muita coisa que só está ali, só... Não chega a nada mais<br />

(detalhado)... Aí, tu ligando para os moradores... (você consegue informações<br />

mais precisas). (E9)<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


30<br />

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A pesquisa “boca a boca” é utilizada, principalmente, como forma de<br />

saber a respeito da adequação do local às necessidades dos deficientes físicos,<br />

informar-se sobre a reputação do destino e buscar informações mais específicas<br />

e detalhadas em relação às encontradas em outras fontes de pesquisa.<br />

2) Pesquisa na internet<br />

Apesar de ser frequentemente citada como medida redutora de incerteza,<br />

a pesquisa na internet não é prevista como uma estratégia minimizadora de<br />

risco percebido entre os tipos criados pelos estudiosos do risco percebido. Tal<br />

omissão é facilmente compreendida quando se remonta ao período em que boa<br />

parte da base teórica sobre o risco percebido foi constituída – entre as décadas<br />

de 1960 e 1970, quando o uso de computadores pessoais e o acesso a redes<br />

virtuais ainda eram tendências para o futuro.<br />

A internet como ferramenta de pesquisa parece substituir cada vez mais<br />

a busca de informações em anúncios de jornais, revistas e televisão. Quando<br />

se trata do consumo turístico, portais na internet, redes sociais, blogs e banners<br />

virtuais são largamente utilizados na promoção de destinos turísticos, agências,<br />

operadoras, hotéis e companhias aéreas.<br />

Para sete entrevistados, a internet é uma fonte importante de informações<br />

quando se pensa em viajar. São pesquisados preços, condições de acessibilidade,<br />

previsão do tempo e opiniões de pessoas que já foram. A internet<br />

constitui, para boa parte dos respondentes, uma forma de shopping around,<br />

pois o acesso rápido a diversos portais e redes facilita a comparação entre<br />

destinos, fornecedores e preços.<br />

Busco bastante... Sobre local, preço, endereço, tudo. Na internet mesmo<br />

eu comparo, dá para você, sem sair de casa, você conseguir rodar<br />

praticamente o mundo, né? Eu acho que a internet, nesse ponto, ela<br />

ajuda muito a pessoa que tem algum tipo de deficiência sim. A gente<br />

consegue, de repente, ver o local, conseguir comparar tudo sem você<br />

sair de casa. Imagina se não tivesse isso, entendeu? É uma coisa bem<br />

dura, né? (E5)<br />

Geralmente a gente entra muito para ver o clima, o tempo, para a<br />

gente poder ir num dia legal... Sobre o zoológico, a gente procura os<br />

valores... Os lugares também, porque a gente procura saber se vale<br />

a pena mudar o local que a gente vai todo ano para outros lugares,<br />

outros sítios até... (E7)<br />

Mais do que tipos específicos de informação, a internet parece ser um<br />

instrumento valioso na construção de um panorama sobre o local a ser visitado,<br />

com dados gerais que, em alguns casos, são refinados posteriormente por<br />

meio da procura de outras fontes de pesquisa.<br />

3) Visitar sempre os mesmos lugares (“Lealdade a uma marca”)<br />

As viagens regulares a locais já conhecidos são as mais comuns entre os<br />

entrevistados. Alguns elementos já expostos anteriormente influenciam esse<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


31<br />

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comportamento, como a posse de uma casa de veraneio e as viagens motivadas<br />

por visitas familiares. Entretanto, outras associações surgem a partir da análise<br />

das falas dos respondentes.<br />

Boas condições de acessibilidade já experimentadas incentivam a repetição<br />

da experiência:<br />

É, lá é próprio mesmo para pessoas com deficiência... E lá tem toda<br />

a infra-estrutura para deficiente, para cadeirante, então a gente leva<br />

também, né, no nosso ônibus também costuma ter idosos e cadeirantes...<br />

Eles ainda têm descontos ainda... É bem legal. E tem o zoológico<br />

também que a gente faz, eu estava esquecendo, o zoológico do Rio...<br />

Não é uma vez ao ano, de dois em dois anos a gente vai... Mas lá também<br />

cadeirante não paga, né? E ainda tem direito a levar duas pessoas,<br />

e essas duas pessoas que forem acompanhando também não pagam. E<br />

lá também tem todo o suporte, né? (E7)<br />

Costumo repetir sim... Ainda mais quando eu vejo que tem uma facilidade<br />

pra mim... Se eu vejo que tem adaptação, por exemplo... Hoje<br />

em dia eu estou priorizando muito isso, tipo, eu vou a um restaurante<br />

e eu vejo que lá tem um acesso legal, de repente eu volto, entendeu? Já<br />

aconteceu isso. (E5)<br />

Além disso, facilidades já conhecidas na cidade frequentemente visitada<br />

incentivam o retorno, bem como o desejo de conhecer aspectos ainda<br />

inexplorados do local:<br />

Em Iguaba, o pessoal é fora de série... Respeita pra caramba, ajuda...<br />

Os guardas de trânsito já conhecem a gente, já conhecem até o carro,<br />

quando a gente chega, eles já dão tchauzinho... Já conhecem a família<br />

já, é tudo tranquilo. (E10)<br />

Toda cidade, você vai um ano para uma cidade, você conhece uma<br />

parte dela. Você vai no outro ano, você já conhece outro local que você<br />

não viu. E assim vai, você não conhece ela toda de uma vez. (E2)<br />

É possível inferir que as visitas aos mesmos lugares auxiliam também na<br />

redução da percepção do risco de depender de terceiros, já que o conhecimento<br />

prévio de uma localidade facilita o desenvolvimento de práticas e mecanismos<br />

que aumentam a autonomia, como utilizar caminhos considerados adequados,<br />

visitar atrativos sobre os quais já se conhecem as estruturas etc.<br />

Dessa forma, visitar as mesmas localidades por diversas vezes mostra-se,<br />

entre os pesquisados, como uma forma de reduzir a incerteza sobre a viagem,<br />

a partir do momento em que já se conhecem as condições de acessibilidade, os<br />

preços e os padrões de atendimento.<br />

outras estratégias reDutoras De risCo perCebiDo<br />

Foram citadas outras medidas de redução de risco percebido entre os<br />

entrevistados, com menor relevância dentro de suas falas, se comparadas às<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


32<br />

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categorias apresentadas anteriormente. Em ordem decrescente de número de<br />

referências feitas, são elas:<br />

1) Busca de lugares com boa reputação (“Comprar em lojas com boa<br />

reputação”);<br />

2) Busca de informações sobre preços;<br />

3) Comparação;<br />

4) Busca de lugares reconhecidos (“Comprar uma marca bem<br />

conhecida”);<br />

5) Busca de serviços especializados;<br />

6) Busca de informações prévias por telefone;<br />

7) Busca de informações em anúncios e comerciais de TV.<br />

O fato de terem sido declaradas com menos frequência não significa,<br />

contudo, que essas estratégias sejam menos importantes para os entrevistados.<br />

As categorias foram apresentadas aos pesquisados como uma adaptação das<br />

categorias existentes nas vertentes teóricas consultadas ao estudo do consumo<br />

turístico. Entretanto, nas práticas relatadas pelos pesquisados, algumas delas<br />

se encontram embutidas em outras, ou apresentam fortes associações e chegam<br />

a se confundir. É o caso da pesquisa de preços e da comparação, que vários<br />

deles dizem realizar por meio da internet, por exemplo. A busca de lugares com<br />

boa reputação, por sua vez, é fortemente associada às opiniões de familiares e<br />

amigos a respeito do local a ser visitado.<br />

Demais... A primeira coisa que a gente procura é isso (saber o preço)...<br />

A gente procura na internet... Lá em casa funciona 24 horas,<br />

está sempre ligada. A gente pesquisa tudo ali, preços, condições para<br />

cadeirantes... Tem sempre informações ali importantes pra caramba,<br />

ajudam muito. (E10)<br />

Eu gosto de ir para locais que as pessoas dão boas referências, pra eu<br />

estar mais situado com o ambiente. (E2)<br />

Lugares com fama e reconhecimento são os preferidos entre os entrevistados,<br />

em boa parte devido à influência da publicidade e de opiniões de terceiros.<br />

A percepção de risco social pode ser relacionada a essa preferência, mas, apesar<br />

disso, algumas falas demonstram como, na prática, alguns sonhos de consumo<br />

turístico dificilmente são realizados. Ao contrário, a segurança já atribuída em<br />

diversos aspectos aos locais frequentados gera uma espécie de comodismo.<br />

Na verdade, eu gosto de alguns lugares exóticos, mas normalmente<br />

a gente acaba tendo que visitar os pontos mais conhecidos, então eu<br />

acho que prevalece, né? (E6)<br />

Eu até recebo bastante coisas assim, que eu acredito que seja a “tendência”,<br />

entendeu? Minha mãe é agente de viagens, então chega muito<br />

e-mail dela lá sobre cruzeiros, essa parte tipo mais para o Nordeste<br />

também, mas eu não sigo isso não, eu vou para onde... Até pela falta de<br />

tempo, eu acabo sempre viajando aqui mesmo pela região... Eu mesmo<br />

já estou meio sem possibilidades aqui, já conheci quase tudo. (E1)<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


33<br />

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Chama a atenção o fato de os pesquisados não reconhecerem como<br />

tradicionais e famosos os lugares que normalmente frequentam, o que é<br />

curioso, pois a maioria dos locais citados em suas falas consistem em centros<br />

turísticos consolidados, como é o caso da Região dos Lagos, no litoral<br />

do Rio de Janeiro, de Recife e de outras capitais brasileiras, além de alguns<br />

países estrangeiros (México, Holanda, Japão etc.). Ao se referirem a um destino<br />

famoso, as referências mais comuns são países europeus, Fernando de<br />

Noronha e capitais nordestinas.<br />

Por realizarem principalmente viagens organizadas por conta própria<br />

para lugares já conhecidos, a contratação de serviços especializados como<br />

a consultoria de uma agência de turismo não foi declarada como uma prática<br />

entre os entrevistados. A segurança desse procedimento é reconhecida<br />

em dois relatos, relacionados à possibilidade de realização de uma viagem<br />

maior para um local distante:<br />

De repente eu até procuraria... Eu nunca parei para esquematizar uma<br />

viagem distante, mas de repente seria até uma boa, porque poderia<br />

me dar umas dicas melhores. Porque, até então, eu não tenho tanta<br />

noção em relação a isso, de local que tem um acesso. De repente, uma<br />

agência seria bacana. (E5)<br />

Eu ainda não fiz uma grande viagem assim... Pra dizer realmente, se<br />

tivesse que procurar e tudo... Normalmente eu gosto de me organizar,<br />

sempre fiz viagens menores, nada que contasse muito, mas se fosse<br />

uma grande viagem, como por exemplo essa para a Itália que eu penso,<br />

eu acho que eu teria que procurar nem que fosse apenas para informação<br />

primária assim... (E6)<br />

A utilização do telefone como meio de buscar informações para viajar<br />

foi relatada por apenas um dos entrevistados (E9), que disse considerar<br />

importante o contato telefônico, a fim de verificar a existência de condições<br />

adequadas aos deficientes físicos:<br />

Vamos supor, se eu fosse para uma cidade do interior, eu iria entrar em<br />

contato com moradores de lá, que conhecessem o local, pra me dizerem<br />

qual seria o local para me acomodar... Ligaria pra lá e procuraria<br />

saber se realmente tem as coisas que eu ia ter necessidade, tipo... Ligar<br />

para saber como é que é a porta, a medida da porta... “Como é que<br />

vocês fazem, tem acesso para portador de deficiência? Eu sou cadeirante...”.<br />

Inclusive eu fiz isso há pouco tempo... Eu vi o comercial de uma<br />

pousada e eu me interessei em ir para o lugar, mas eu liguei para lá e o<br />

cara falou “ih, cara, para chegar aqui tem uma escada...” (E9)<br />

A grande importância atribuída às pesquisas na internet é um fator que<br />

pode ser relacionado ao uso reduzido do telefone como fonte de informação.<br />

Muitas empresas turísticas oferecem canais virtuais de fácil acesso para a obtenção<br />

de informações, como correio eletrônico, envio de mensagens instantâneas,<br />

comunidades em redes sociais, fóruns virtuais, blogs...<br />

As informações recebidas por meio dos canais de televisão e da publicidade<br />

impressa, por sua vez, parecem ser percebidas como um elemento que<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


34<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

influencia o reconhecimento de lugares considerados famosos e que passam<br />

a fazer parte, algumas vezes, de planos para viagens futuras. Nesse sentido, a<br />

busca de tais informações tem a ver com a redução da percepção de risco social.<br />

Ah, um lugar que eu já vi na televisão e que dizem que é muito lindo,<br />

e outro dia uma pessoa até ganhou uma viagem pra lá, é Porto de<br />

Galinhas, dizem que é muito bonito lá, né? Fernando de Noronha<br />

também... Assim, pelo que eu já vi, eu acho bonito... (E8)<br />

Eu vi o comercial de uma pousada e eu me interessei em ir para o<br />

lugar, mas eu liguei para lá e o cara falou “ih cara, para chegar aqui<br />

tem uma escada...” (E9)<br />

Os dados coletados durante as entrevistas se mostraram esclarecedores<br />

no que se refere à identificação das estratégias de redução de risco percebido<br />

empregadas pelos deficientes físicos. Conforme foi exposto, muitas vezes a deficiência<br />

física influencia diretamente o tipo de informação que se procura e o<br />

meio considerado mais confiável para obtê-la.<br />

ConsiDerações finais<br />

A lacuna deixada por estudos anteriores, referente à percepção e às estratégias<br />

redutoras de risco percebido entre turistas deficientes físicos, permitiu<br />

construir a proposta de estudo deste artigo. O objetivo geral consistiu na identificação<br />

das principais formas utilizadas para minimização de risco percebido<br />

entre turistas deficientes físicos.<br />

Entre os pesquisados, foi possível identificar três formas consideradas<br />

mais relevantes quando se procura atenuar a percepção de risco associado ao<br />

consumo turístico: 1) busca de informações boca a boca; 2) pesquisa na internet;<br />

3) visitar sempre os mesmos lugares. Observa-se, portanto, em equilíbrio<br />

entre formas clarificadoras e simplificadoras de reduzir a percepção de<br />

risco entre os entrevistados. As fontes pessoais se destacam como as consideradas<br />

mais confiáveis, sendo as primeiras referências dos entrevistados quando<br />

se pergunta sobre como diminuir as incertezas e preocupações relativas à<br />

escolha de um destino turístico.<br />

As principais contribuições consolidadas por meio desta pesquisa dizem respeito<br />

à investigação da forma como se comportam os turistas deficientes físicos ao escolherem<br />

um produto turístico, sob o prisma dos meios que empregam para aumentar<br />

a segurança de suas escolhas. As categorias identificadas, bem como os fragmentos<br />

de suas falas, permitem relacionar seu comportamento às limitações que possuem e<br />

aos obstáculos que costumam enfrentar. Dessa forma, quando um deficiente físico<br />

procura informações de fontes pessoais, por exemplo, normalmente dá preferência<br />

aos relatos de pessoas com deficiência, ou de outras pessoas que estejam atentas às<br />

suas necessidades. O mesmo ocorre com a busca de informações direcionadas aos<br />

deficientes físicos na internet e com a procura por lugares já visitados anteriormente,<br />

cuja estrutura turística seja considerada adequada pelo deficiente.<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


35<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

O caráter exploratório do estudo levou à identificação das estratégias redutoras<br />

de risco consideradas mais relevantes pelos pesquisados. Entretanto, a<br />

investigação de outros elementos importantes não faz parte dos objetivos deste<br />

trabalho, como a influência da classe social e da renda na escolha de uma ou<br />

de outra estratégia minimizadora de risco percebido. Futuramente, essa associação<br />

pode ser o alvo de novas pesquisas.<br />

Da mesma forma, estudos de risco percebido podem ser realizados entre<br />

outros tipos de deficientes, como os visuais e auditivos, por exemplo, no<br />

intuito de identificar categorias e atributos relevantes em cada caso, considerando-se<br />

a especificidade de suas limitações. Associações importantes podem<br />

ser realizadas, ainda, entre aspectos pessoais que podem levar o deficiente<br />

físico a se sentir atraído ou repelido por determinadas percepções de risco, a<br />

exemplo do estudo de Dickson e Dolnicar sobre a percepção de risco entre<br />

praticantes de turismo de aventura (2004).<br />

Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


36<br />

referênCias bibliográfiCas<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

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Estratégias redutoras de risco percebido: um estudo entre turistas deficientes físicos


Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Vozes da Vila: espaços e representações<br />

no entorno da universidade<br />

Vila Voices: representations and<br />

spaces in the vicinity of the university<br />

Denise da Costa Oliveira Siqueira<br />

Professora do programa de pós-graduação da FCS/UERJ. Doutora em<br />

Comunicação (ECA/USP); pós-doutorada em Sociologia (Université<br />

Paris-Descartes).<br />

Luiza Real de Andrade Amaral<br />

Mestre em Comunicação (FCS/UERJ); graduada em Comunicação (FCS/UERJ).<br />

Resumo<br />

Este trabalho tem como objetivo estudar usos e representações de um trecho<br />

dos bairros de Vila Isabel e Maracanã situado em frente à Universidade do<br />

Estado do Rio de Janeiro e frequentado por alunos, funcionários e docentes da<br />

UERJ. Para tal, foi realizado um trabalho de campo no trecho em questão, com<br />

caminhadas, observação participante e conversas com moradores e estudantes<br />

da universidade. Esse olhar sobre um microespaço urbano foi fundamentado<br />

com a leitura e estudo de Canevacci e Simmel e levou ao entendimento de que<br />

a cidade, seus microespaços e ruas são inventados, simbolicamente construídos.<br />

Palavras-chave: comunicação; cidade; representações; Vila Isabel.<br />

Abstract<br />

This work aims to study the uses and representations of a portion of the districts<br />

of Vila Isabel and Maracanã situated opposite to the State University of Rio de<br />

Janeiro and attended by students, teachers and employes at UERJ. To do so, it<br />

was done a field research in this space with walkings, participant observation<br />

and dialogues with residents and universitary students. This perspective about a<br />

urban microspace was based on the study of Canevacci’s and Simmel’s texts and<br />

brought us to the understanding that the city, its microspaces and streets are created,<br />

symbolically constructed.<br />

Keywords: communication; city; representations; Vila Isabel.<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


38<br />

introDução<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

A tradução da mensagem urbana é sempre uma traição.<br />

(Canevacci,1993, p.37).<br />

Cidades históricas, políticas, econômicas e artísticas como o Rio de<br />

Janeiro constituem-se de várias vozes, vários tempos e culturas que convivem<br />

no mesmo espaço geográfico-urbano planejado pelo poder público ou ocupado<br />

sem seu aval. Na cidade, em suas regiões administrativas e em seus bairros<br />

coexistem visões de mundo, recordações. Estudar essas micro-cidades dentro<br />

da metrópole é uma forma de buscar entender a própria cidade e suas relações<br />

sociais contemporâneas.<br />

Partindo desse entendimento, este artigo tem como objetivo estudar<br />

um microespaço urbano, um trecho dos bairros cariocas de Vila Isabel e do<br />

Maracanã vizinho à Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Focando os<br />

usos do espaço e as relações de sociabilidade ali construídos, nos perguntamos:<br />

como esse microespaço é conhecido e representado por moradores e pelo<br />

público da universidade que o frequenta? O texto busca refletir sobre como se<br />

dão as relações de comunicação e a tranformação dos usos do espaço nos dias<br />

úteis, dias de descanso e dias de jogo de futebol nesse quarteirão em frente à<br />

universidade e próximo ao estádio do Maracanã.<br />

O microespaço estudado, no início do bairro de Vila Isabel, na fronteira<br />

com o bairro do Maracanã, vem sendo “tomado” há cerca de 40 anos pela<br />

Universidade do Estado do Rio de Janeiro e seu Hospital Universitário Pedro<br />

Ernesto. De frente para a UERJ e para o HUPE, tal quarteirão, conhecido<br />

pelos estudantes universitários como “pentágono do chopp”, tem vida social<br />

movida por seus moradores, por passantes, mas também por um comércio<br />

que atende em grande parte à população universitária e acadêmico-hospitalar<br />

e, nos dias de jogos de futebol, aos frequentadores do estádio do Maracanã.<br />

No âmbito do espaço urbano cada um desses grupos sociais e suas distintas<br />

vozes que se cruzam apontam as necessidades de moradores e frequentadores<br />

assíduos, crianças, idosos, pessoas com deficiência, de trabalhadores e de<br />

quem vem de outras cidades ou países, mas também de quem busca lazer e<br />

comodidade na cidade. Esse ponto de vista foi usado para se fazer uma breve<br />

reflexão sobre esse trecho da cidade.<br />

Em termos metodológicos, realizou-se trabalho de observação participante<br />

do trecho estudado (e também frequentado), com caminhadas ao longo<br />

das ruas e contato com comerciantes, moradores, frequentadores e com<br />

um músico que realiza atividades na área. A observação foi feita sobretudo<br />

à luz das leituras de Simmel, Certeau e Canevacci – autores de pontos de<br />

vista e épocas distintos que têm em comum um olhar para cidade que não se<br />

atém ao planejamento urbano, mas antes leva em conta os atores sociais em<br />

suas relações com o espaço urbano, suas múltiplas vozes e as mudanças que<br />

promovem nos usos de trechos da cidade.<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


39<br />

Vozes e enContros na CiDaDe<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

A cidade é um arranjo de interações entre os mais diferentes indivíduos.<br />

Aglomerado onde é difícil não entrar em contato com o outro – seja pela proximidade<br />

das construções, seja pela complexidade, diversidade e interdependência<br />

das atividades econômicas. Os sujeitos dependem dos outros no espaço<br />

urbano. Assim, a cidade “é um momento, um ponto de conexão ou convergência<br />

de trajetórias, um ponto de atração onde os circuitos se reúnem momentaneamente<br />

e ela se produz precisamente por aí” (CAIAFA, 2007, p. 17).<br />

Para se tornar essa “convergência de trajetórias”, a cidade tem de ser, antes<br />

de tudo, palco de movimentações. O movimento de atração de desconhecidos<br />

(ou outsiders, segundo Caiafa) e a circulação de seus habitantes fazem da<br />

cidade um pólo de fluxos “que vêm de fora e vão criar um nomadismo propriamente<br />

urbano, constituir a cidade como lugar de circulação e dispersão” (Ibid.,<br />

p.1<strong>18</strong>). É neste território de circulações e dispersões que os trajetos de diversos<br />

sujeitos se entrelaçam, fazendo com que entrem em contato com o diferente e o<br />

imprevisível. Estes encontros são, na verdade, formas de produção de sentidos,<br />

que levam ao desenvolvimento da vida social urbana.<br />

O olhar sobre a cidade, contudo, vai depender de quem olha. Grupos<br />

sociais diferentes controem diferentes representações sobre o espaço urbano<br />

e seus usos. Como explica Canevacci,<br />

A cidade se caracteriza pela sobreposição de melodias e harmonias, ruídos<br />

e sons, regras e improvisos cuja soma total, simultânea ou fragmentária,<br />

comunica o sentido da obra. Estou convencido de que, por meio da<br />

multiplicação de enfoques - os “olhares” ou “vozes” - relacionados com o<br />

mesmo tema, seja possível se avizinhar mais a representações do objeto da<br />

pesquisa, que é, neste caso, a própria cidade. (Canevacci, 1993, p.<strong>18</strong>).<br />

Nesse sentido de “olhares” ou “vozes”, de diferentes perspectivas, um<br />

bairro ou um quarteirão pode ser local de residência, de trabalho ou de realização<br />

de serviços. No caso do trecho fronteiriço estudado entre Vila Isabel<br />

e Maracanã, observa-se que, com o passar das décadas – o campus UERJ/<br />

Maracanã data dos anos 70 - vários funcionários e professores da universidade<br />

têm se mudado para a região enquanto alunos montam “repúblicas”<br />

dividindo casas de vila ou apartamentos nas proximidades, transformando<br />

a área próxima à universidade em espaço de moradia para pessoas ligadas à<br />

instituição – uma quase “extensão”. Contudo, os dois bairros, Vila Isabel e<br />

Maracanã, também abrigam outros tipos de trabalhadores; são locais onde<br />

se busca transporte coletivo – táxi, ônibus, trem ou metrô – para chegar e<br />

sair da UERJ ou do HUPE ou, ainda, locais onde se almoça com colegas de<br />

trabalho ou aonde se vai em busca de serviços (médicos ou comerciais).<br />

Assim, por ali transitam olhares de moradores com ou sem vínculo<br />

com a universidade (alunos, professores e funcionários), comerciantes, passantes,<br />

pedintes, moradores de rua. Seu encontro colabora para a construção<br />

daquilo que Canevacci chama de “cidade polifônica”, o que significaria que:<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


40<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

a cidade em geral e a comunicação urbana em particular comparam-<br />

-se a um coro que canta com uma multiplicidade de vozes autônomas<br />

que se cruzam, relacionam-se, sobrepõem-se umas às outras,<br />

isolam-se ou se contrastam; e também designa uma determinada<br />

escolha metodológica de “dar voz a muitas vozes”, experimentando<br />

assim um enfoque polifônico com o qual se pode representar o mesmo<br />

objeto - justamente a comunicação urbana. A polifonia está no<br />

objeto e no método. (Ibid. p.<strong>18</strong>).<br />

As múltiplas vozes para as quais Canevacci chama a atenção se tornam<br />

mais complexas quando se cruzam em encontros com outras vozes distintas<br />

em processos de comunicação. Tais encontros que ocorrem na cidade são o<br />

ponto de partida para os estudos de Félix Guattari sobre subjetividade e singularização.<br />

Para o autor, os encontros podem trazer à tona os modos de se resistir<br />

a processos de produção em série de uma subjetividade que seria “essencialmente<br />

fabricada, modelada, recebida, consumida” (1999, p. 25), para além do<br />

resultado de uma produção em massa. A subjetividade definiria a forma como<br />

observamos o mundo e como organizamos o nosso modo de vida.<br />

Mesmo com a força exercida pelo sistema econômico capitalista,<br />

Guattari afirma que há duas formas de o indivíduo lidar com a subjetividade,<br />

que variam de:<br />

(...) uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete<br />

à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão<br />

e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da<br />

subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização.<br />

(Guattari, 1999, p. 33).<br />

A arte seria uma das esferas nas quais tais processos de singularização,<br />

de criatividade e de escape se dariam. Embora Vila Isabel não seja espaço<br />

especialmente reconhecido de manifestações artísticas contemporâneas e<br />

manifestações de arte urbana, o bairro ainda é relacionado com a música<br />

popular, especialmente o samba. No início do século XX, a região foi conhecida<br />

como espaço de boemia e de residência de compositores como Noel<br />

Rosa e Almirante. Hoje, as calçadas de sua via principal reproduzem pautas<br />

musicais em pedras portuguesas – reforçando a representação do bairro<br />

como espaço para a música. Tal representação é explorada para a realização<br />

de shows de pequeno porte e apresentações musicais, fazendo parte do imaginário<br />

dos que frequentam a região.<br />

Em uma fala que recorre à representação do bairro como espaço de “música”,<br />

o diretor de um bloco carnavalesco que produz bailes na área diz que a<br />

realização de eventos artísticos é uma forma de revitalizar a região, de estabelecer<br />

novos contatos sociais, novas formas de sociabilidade. Na avaliação do músico,<br />

a região poderia ter mais eventos, uma participação maior da prefeitura,<br />

com eventos, festas e mais movimentos musicais. Com isso, haveria<br />

novamente uma interação entre os moradores do bairro, os estudantes<br />

da UERJ e dos que gostam de frequentar Vila Isabel e que reconhecem<br />

na área um dos berços da boemia carioca (relato oral).<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


41<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Essa fala aponta para grupos sociais que participam do cotidiano desta<br />

região de Vila Isabel e que poderiam ser tirados do padrão de comportamentos<br />

subjetivos e não-criativos como caminhar para casa e usar um transporte coletivo<br />

por meio do contato com manifestações artísticas. Desse ponto de vista,<br />

a apresentação musical promoveria outros encontros (novas relações de sociabilidade)<br />

e outras formas de se pensar e usar aquele mesmo espaço/ambiente.<br />

Vila isabel: músiCa, uniVersiDaDe e ViolênCia<br />

Vila Isabel foi o primeiro bairro planejado do Rio de Janeiro, no século<br />

XIX, final do período imperial. Seu projeto foi concebido e realizado<br />

pela Companhia Arquitetônica Vila Isabel e o nome do bairro homenageia a<br />

princesa que assinou a lei da abolição da escravatura no país.<br />

No centro do bairro situa-se o Boulevard 28 de setembro. A avenida foi<br />

uma das primeiras na cidade a ser construída à moda parisiense: duas vias largas<br />

com um canteiro central. Atualmente, o Boulevard 28 de setembro (a data<br />

homenageia o dia do Ventre Livre) é o centro comercial de Vila Isabel. Nele é<br />

possível encontrar restaurantes, bares, padarias, papelarias, igrejas, consultórios<br />

médicos, escolas, cursos de idiomas, academias de ginástica e dança, lojas,<br />

galerias e a quadra da escola de samba que leva o nome do bairro.<br />

Conhecida pela boemia, pelas calçadas com notas musicais e pelas<br />

vilas residenciais, Vila Isabel passou por um processo de desvalorização imobiliária,<br />

assim como por uma decadência econômica e social na segunda metade<br />

do século XX. Nas décadas de 70 e, principalmente, de 80, vilas foram<br />

demolidas para dar lugar a prédios. Nenhuma nova vila foi construída.<br />

Mesmo com as demolições, diversas vilas residenciais foram preservadas<br />

no bairro, entre elas antigas vilas operárias próximas à antiga fábrica de<br />

tecidos Confiança (sobre a qual Noel Rosa se referiu na canção Três apitos<br />

e que, a partir de meados dos anos 80, vem sendo reutilizada como hipermercado).<br />

Com pequenas ruas fechadas e casas iguais dos dois lados, em tais<br />

vilas não há circulação de carros e persiste um forte sentimento de pertencimento<br />

ao espaço comum. Em outra ponta, a substituição de casas de vila por<br />

prédios de apartamentos gerou um aumento da quantidade de moradores e<br />

de carros – muitos novos moradores chegaram.<br />

Paralelamente, ainda nos anos 80, houve a expansão de favelas (no<br />

Morro dos Macacos), a expansão do tráfico de drogas nelas e com ele, o<br />

aumento da violência na região. Assaltos, roubos de carros e tiroteios passaram<br />

a ocorrer no bairro nas décadas de 1990 e 2000. Em áreas como a<br />

do antigo Jardim Zóologico, prédios tiveram suas fachadas perfuradas por<br />

balas perdidas. A violência foi um dos motivo que levou moradores a se<br />

mudar. O Estado, por sua vez, instalou uma nova delegacia de polícia no<br />

bairro, próximo ao quarteirão estudado e à Universidade. Em outubro de<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


42<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

2009, a violência do Morro dos Macacos teve destaque midiático nacional e<br />

internacional quando um helicóptero da polícia militar atingido por tiros foi<br />

derrubado, matando um policial. 1<br />

O receio das consequências da violência faz parte do cotidiano do bairro,<br />

e faz paralelo com a situação de tensão, de nervosismo que Simmel (2007)<br />

apontava como característica das metrópoles. Nesse sentido, o outro, desconhecido,<br />

se torna um “estrangeiro”, possivelmente uma ameaça que poderia<br />

gerar a “secreta aversão, uma distância e uma rejeição recíprocas” às quais se<br />

referiu Simmel (2007, p.23). Esse receio fica claro nas palavras de um estudante,<br />

morador do trecho estudado, em prédio de frente para a universidade que<br />

resume um pensamento sobre o bairro dizendo que “o único problema de Vila<br />

Isabel, na minha opinião, é o Morro dos Macacos. Acho que se a favela sofresse<br />

uma intervenção séria do poder público, a violência diminuiria consideravelmente.<br />

O bairro é excelente em serviços e tranquilo de morar” (relato oral).<br />

Em 2010, o Morro dos Macacos passou a dispor de uma Unidade<br />

Policial de Pacificação, UPP. Como vem acontecendo em vários pontos da<br />

cidade, o bairro viu cair os índices de violência e subir o preço de imóveis e<br />

aluguéis. O comércio também se renovou.<br />

uma Cartografia Do quarteirão<br />

O trecho formado pelos encontros das ruas São Francisco Xavier,<br />

Felipe Camarão, Boulevard 28 de Setembro, Jorge Rudge e Marã é, em<br />

parte, residencial e, em parte, comercial. Nele estão situadas várias vilas. A<br />

maior delas vai da Rua São Francisco Xavier até a Rua Jorge Rudge, cortando<br />

o quarteirão. Até o início dos anos 80 era uma “avenida”, pequena rua<br />

aberta nas duas extremidades para passagem de pedestres. Com as questões<br />

relativas à segurança na cidade, a “avenida” foi gradeada nas duas entradas e<br />

hoje, apenas os moradores podem atravessá-la.<br />

Em 1994, durante um primeiro trabalho de campo no bairro, observou-se<br />

que havia nesse quarteirão, além de prédios e casas residenciais, uma<br />

padaria, um sapateiro, duas quitandas, quatro bares, uma igreja católica,<br />

uma loja de tintas, duas papelarias (uma bem antiga e outra mais recente),<br />

duas bancas de jornal, uma banca de livros usados, três pequenos restaurantes<br />

(sendo dois deles em frente ao Hospital Pedro Ernesto, para atender principalmente<br />

a médicos e funcionários). Havia também uma farmácia e uma<br />

academia de ginástica. Na Rua São Francisco Xavier havia uma Lotérica e<br />

uma loja (mal disfarçada) de Jogo do Bicho. É interessante observar que até<br />

o final dos anos 80, boa parte do comércio da 28 de Setembro e da Jorge<br />

Rudge pertencia a imigrantes portugueses.<br />

Em julho de 2009, observou-se que as antigas quitandas “portuguesas”<br />

foram substituídas por outro tipo de comércio de alimentação: os restaurantes<br />

“a quilo” ou de “prato feito”. Várias mudanças também aconteceram com o<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


43<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

restante do comércio. Agora há na Rua São Francisco Xavier um curso técnico<br />

de enfermagem, duas papelarias, prédios e casas residenciais, uma lotérica, uma<br />

loja em reforma (que mais tarde se tranformaria em um café), duas outras lojas<br />

fechadas, uma loja de colchões, o bar Loreninha, duas lanchonetes, um botequim,<br />

uma pastelaria, a pensão Jaleco (também conhecida como Bar da Cris e<br />

que nos anos 80 situava-se em outra casa, no Boulevard 28 de Setembro), vilas<br />

residenciais. Na Rua Felipe Camarão, há uma casa para realização de eventos<br />

festivos, os restaurates Rio 40º e Planeta do Chopp, uma igreja católica (em<br />

reforma para ampliação) e uma banca de jornal.<br />

Uma das casas que dá de frente para a universidade (que já foi uma churrascaria)<br />

- quase na mesma altura do ponto de ônibus de sentido Zona Sul - tem<br />

aparência de abandono, mas parece ser um depósito de material de comércio<br />

informal (depósito de mercadorias de camelôs). À noite, eventualmente podem<br />

ser vistos caminhões desembarcando material no imóvel. Essa casa não é a mesma<br />

que nos anos 90 funcionava para o “Bicho” – aquela se tornou um “boteco”.<br />

Entre a Rua São Francisco Xavier e o Boulevard 28 de setembro e de<br />

frente para a Rua Felipe Camarão, localiza-se a Praça Maracanã. A pequena<br />

praça, entre dois bairros, possui uma antiga usina elevatória da Cedae (ainda<br />

em funcionamento), um posto da Guarda Municipal, alguns bancos e mesas<br />

de jogos de tabuleiros e quiosques de livros. Ocasionalmente, é realizada<br />

uma feira de artesanato no local. À noite, a praça é tomada por mesas e cadeiras<br />

de plástico do restaurante Planeta do Chopp que, durante os fins de<br />

semana, promove apresentações musicais ou monta telões para exibições de<br />

jogos de futebol considerados importantes.<br />

No Boulevard 28 de setembro estão presentes uma livraria, uma agência<br />

da Caixa Econômica Federal, prédios comerciais, uma loja de utensílios<br />

domésticos e roupa de cama, uma loja de sucos, uma agência do banco de<br />

empréstimos BMG, uma academia, uma farmácia, um bar, um restaurante<br />

(Cantinho dos Médicos) e lanchonetes.<br />

A Rua Jorge Rudge, conhecida por sua ornamentação em época de<br />

Copa do Mundo de futebol, possui uma casa fechada, uma pensão (“comida<br />

caseira”), edifícios residenciais, dois salões de beleza, uma loja de doces, uma<br />

academia, uma casa em obras, uma padaria e bares.<br />

Já a Rua Marã é estritamente residencial. Trata-se de uma pequena rua<br />

de mão única na qual só passa um carro por vez que apresenta casas e alguns<br />

prédios antigos de dois andares. A exceção fica por conta de um Centro<br />

Espírita Oriental, localizado em uma das casas.<br />

Um aspecto importante sobre o quarteirão estudado é a ausência de<br />

espaços vazios, terrenos baldios ou casas sendo demolidas. É um trecho<br />

totalmente construído. Todo espaço é aproveitado, constituindo um local<br />

urbanizado. Para que qualquer nova construção seja feita, alguma parte<br />

atual terá que ser demolida.<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


44<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

A descrição do trecho mostra que comércio da região é voltado para os<br />

frequentadores da universidade e do hospital e que o setor que prevalece é o<br />

de alimentação pronta. A oferta de lugares para refeições e lanches aumentou<br />

expressivamente em comparação com quinze anos antes.<br />

Se o comércio atende aos moradores e trabalhadores da região (em<br />

especial aos funcionários da UERJ e do HUPE), observa-se que em 1994<br />

havia poucas opções de lazer no quarteirão. À noite, não havendo locais<br />

para o encontro além da igreja e suas festas eventuais (Festa Junina e Festa<br />

do Divino Espírito Santo, em dois finais de semana do ano), a vida “social”<br />

(encontros festivos) e “cultural” (artes e espetáculos) se desenvolvia<br />

em outros bairros ou em espaços fechados, nas residências particulares e<br />

nas reuniões nos salões de festas dos prédios.<br />

Em 2009, a situação quase não mudou em termos de opções de lazer.<br />

O quarteirão inicial do bairro de Vila Isabel oferece agora como opção para<br />

encontro mais bares e restaurantes. O estudante da universidade e morador<br />

resume a oferta de lazer no bairro: “como opções de lazer, temos o Iguatemi<br />

(cinema, comida e boas lojas), o Petisco da Vila e o Planeta do Chopp” (relato<br />

oral) . Tais opções são restritas e como se pode refletir, implicam pagamento,<br />

estão ligadas ao consumo e duas delas não ficam no trecho selecionado, mas<br />

em outras partes do bairro.<br />

Esporadicamente há eventos na Praça Maracanã, de frente para o trecho<br />

da Rua Felipe Camarão, ao lado do restaurante Planeta do Chopp: encontros<br />

de blocos carnavalescos, exibição de jogos em telões ou pequenos<br />

shows oferecidos pelo restaurante. Em julho de 2009, por exemplo, a praça<br />

foi palco de apresentações semanais de samba, às sexta-feiras, a partir de <strong>18</strong>h.<br />

Tais opções não são consideradas o bastante para o desenvolvimento<br />

de uma vida artística no bairro segundo os moradores. Ex-aluna da universidade,<br />

uma profissonal de comunicação que reside nas proximidades da<br />

universidade desde 2005, critica:<br />

Não existem opções de lazer aqui. Para lazer somente os cinemas nos<br />

shoppings ou as quadras de escola de samba. O movimento da região<br />

é baseado nos alunos da UERJ e nos jogos no Maracanã. Nos fins de<br />

semana e feriados o movimento diminui muito (relato oral).<br />

A queixa é reforçada pelo músico, estudante da universidade e morador<br />

da região desde criança:<br />

Pois é, tirando os bares, há poucas opções de lazer. Tem o Maracanã,<br />

que é uma paixão do carioca e fica aqui pertinho. Mas não tem tanta<br />

música, ou opções de arte. (...) Hoje em dia vejo mais movimento de<br />

dia do que de noite. De dia há uma circulação de gente da faculdade,<br />

do hospital e do comércio local. E o pico é na hora do almoço. A noite<br />

está meio vazia, sem atrativos. E nos fins de semana a região fica bem<br />

vazia. No carnaval também não há movimento. Tudo se concentra no<br />

Centro e na Zona Sul. (relato oral).<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


45<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

A proximidade com o Maracanã, considerada um dos pontos positivos<br />

pelo músico, é também, muitas vezes, alvo de críticas de outros moradores<br />

da região. Em dias de jogos importantes, como “clássicos” cariocas<br />

ou finais de campeonatos, parte do espaço urbano deixa de ser dos moradores<br />

e se torna estacionamento 2 .<br />

O Estado se mostra presente no local com tomadas de decisão nem<br />

sempre bem acatadas pelos moradores e frequentadores. Com a operação<br />

“Choque de Ordem”, do prefeito Eduardo Paes, a partir de janeiro de 2009<br />

ficou proibida a venda de bebida alcoólica dentro e no entorno do estádio<br />

do Maracanã duas horas antes até duas horas após cada jogo. O objetivo<br />

seria adaptar a cidade a regras internacionais visando à Copa do Mundo de<br />

2014 e a Olimpíada de 2016 3 . Tal iniciativa, por hora, não parece agradar<br />

aos moradores consultados. Com a proibição, a aglomeração de pessoas, os<br />

engarrafamentos e, também, os registros de badernas entre torcidas rivais<br />

que antes costumavam acontecer dentro do estádio e nas ruas imediatamente<br />

próximas, se transferiram para os bairros do entorno, incluindo o<br />

trecho entre o hospital e a universidade 4 .<br />

Tumultos por conta dos jogos de futebol acontecem há décadas na<br />

região no relato dos moradores. Alunos, professores e funcionários da universidade<br />

com atividades no turno da noite precisam se adaptar aos horários<br />

de saídas dos jogos. Em uma dessas ocasiões, em agosto de 2009, professores<br />

e alunos precisaram encerrar suas atividades na universidade devido ao barulho<br />

externo. Na data, seria realizado um jogo importante para o Fluminense.<br />

Fogos de artifícios, gritaria e buzinas eram alguns dos recursos utilizados<br />

pela torcida tricolor horas antes do jogo. Ao sair da universidade, era quase<br />

impossível transitar pela calçada da Rua São Francisco Xavier: todos os bares<br />

e restaurantes estavam lotados e ainda colocavam mesas e cadeiras ao longo<br />

da calçada para acomodar mais gente. Além disso, utilizar o transporte<br />

público também se tornou uma difícil tarefa: com a confusão de torcedores<br />

na rua e o engarrafamento, muitos ônibus não paravam nos pontos. Esta é a<br />

rotina da região em dias de jogo no Maracanã.<br />

Apesar do tumulto nos dias de jogos, o ritmo das ruas Jorge Rudge e<br />

Marã é mais lento do que o das outras três que compõem o trecho em estudo<br />

– trata-se de ruas internas, transversais às vias principais, com menos bares<br />

(e de menor porte) e, consequentemente, menos torcedores que acompanham<br />

as partidas no espaço público.<br />

Nessas ruas, como no restante do quarteirão, a arquitetura é eclética,<br />

nada é muito recente. Há, de modo geral, um certo padrão entre as residências<br />

do trecho. Não há nenhuma casa muito maior que as outras, nem há casas<br />

miseráveis. Também não há prédios muito antigos e nem de luxo. Pode-se<br />

dizer que se trata de um trecho habitado e frequentado pela classe média. As<br />

diferenças são mais nítidas no interior dos espaços do que em suas fachadas.<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


46<br />

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Utilizando a conceituação de Kevin Lynch, este é um trecho que tem<br />

legibilidade, em que as construções parecem ter o uso que realmente têm<br />

O que poderíamos chamar de “imaginabilidade”, esta qualidade que<br />

confere a um objeto físico um forte poder de evocar uma imagem<br />

viva em qualquer observador, pode também ser chamado de legibilidade<br />

ou, talvez, de visibilidade, em seu sentido forte. (Lynch apud<br />

Choay, 1979, p.312).<br />

A legibilidade deixa claro que não há praticamente espaços programados<br />

para o encontro – somente os bancos da praça ocupariam essa função.<br />

As ruas, suas calçadas, seriam o outro espaço público para encontro, embora<br />

nesse caso, uma outra forma de interação, os encontros breves, se desenrole.<br />

Assim, o trecho estudado tem como marca a passagem, mais do que o encontro;<br />

o passar, mais do que o ficar. Nesse sentido, observa-se que apesar de<br />

existir uma praça no local, os encontros demorados entre os transeuntes são<br />

poucos, uma vez que a praça, pequena, pouco arborizada (com pouca oferta<br />

de sombra), é circundada por tráfego intenso, tornando-se lugar de poluição<br />

sonora e do ar, espaço pouco agradável para a conversação.<br />

Ao longo dos meses de observação, poucas foram as vezes que encontramos<br />

pessoas usando a praça como espaço de reunião - exceto durante as<br />

noites em que há espetáculos. As presenças mais comuns são de casais de<br />

namorados, estudantes trocando anotações; idosos que saem para passear<br />

com cães e depois conversam na praça; homens “aposentados” que se encontram<br />

geralmente em torno da hora do almoço para jogar nos tabuleiros de<br />

concreto. Afora essas presenças, é comum passar e ver todos os bancos vazios.<br />

À noite, no entanto, outro tipo de interação surge: a praça torna-se “abrigo”<br />

de moradores de rua – exceto nos dias de shows. Por mais de uma vez, foi<br />

possível presenciar brigas entre estes moradores. Em uma delas, as agressões<br />

físicas foram realizadas por meio de pedradas.<br />

Como confirma uma moradora, ex-aluna da universidade, “O movimento<br />

da região é baseado nos alunos da <strong>Uerj</strong> e dos jogos no Maracanã. Nos<br />

fins de semana e feriados o movimento diminui muito. Por isso, eu aumentaria<br />

a segurança e acrescentaria opções culturais” (relato oral).<br />

A exceção são as grandes festas, como a da Copa do Mundo de Futebol.<br />

Nesse período a Rua Jorge Rudge é fechada para que se assistam aos jogos<br />

do Brasil, em conjunto, na rua. Quem não quiser participar também não<br />

tem opção: música alta e algazarra se estendem noite a dentro. Quem quiser<br />

dormir também não pode. Essa é uma manifestação no espaço público que<br />

interfere no espaço privado: como não há um local próprio para reuniões públicas,<br />

elas acontecem em espaços não apropriados incomodando moradores<br />

das residências ao longo da rua.<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


47<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

No restante do ano o quadro é diferente. As atividades artísticas da<br />

região realizadas em dias comuns não recebem atenção da mídia e, muitas<br />

vezes, não atraem público, o que torna ainda mais difícil a sua realização.<br />

Como pode ser observado na declaração do músico entrevistado: “a gente (o<br />

bloco “Eu, você... E sua mãe também”) sempre tentou fazer algo, mas não<br />

tem mídia ou divulgação” (relato oral).<br />

ConsiDerações finais<br />

Um espaço urbano se torna lugar de acordo com seus usos. Diferentes<br />

horários e dias da semana, em certos espaços, vão ganhar distintos freqüentadores<br />

e usos. Como escreveu Certeau, o espaço está relacionado ao percurso,<br />

a ações espacializantes. “Em suma, o espaço é o lugar praticado. Assim a rua<br />

geometricamente definida por um urbanista é transformada em espaço pelos<br />

pedestres” (Certeau, 1994, p. 201).<br />

Nessa perspectiva, o que para uns é o “pentágono do chopp”, para outros<br />

é local de residência, lugar de passagem, espaço para prestação de serviços.<br />

A presença da Universidade do Estado do Rio de Janeiro na confluência<br />

dos bairros de Vila Isabel e Maracanã, muda o caráter, os usos e públicos da<br />

região. A presença do estádio do Maracanã, com os jogos de futebol, também<br />

altera os usos desse espaço urbano.<br />

Assim, como se dá a tranformação dos usos do espaço nos dias úteis,<br />

dias de descanso e dias de jogo de futebol nesse quarteirão em frente à universidade,<br />

nos bairros de Vila Isabel/Maracanã? Conhecido midiaticamente por<br />

suas representações ligadas ao samba e, posteriormente, à violência urbana,<br />

Vila Isabel é um bairro que passou por intensas mudanças ao longo do século<br />

XX. Essas mudanças se expressam tanto na arquitetura e no planejamento do<br />

bairro quanto nos usos que são dados a seus espaços e em suas possibilidades<br />

comunicativas. As transformações dos usos do espaço nos diferentes dias e<br />

horários tem a ver com todas essas mudanças.<br />

A presença da universidade e de seus públicos no Maracanã, no limite<br />

com o bairro de Vila Isabel, parece se tornar cada vez mais forte. Enquanto<br />

o campus se situa na Rua São Francisco Xavier, estudantes, professores,<br />

funcionários se espalham pelas ruas próximas para fazer suas refeições,<br />

para usar serviços (bancos, consultórios médicos, comércio) ou para morar.<br />

Assumem, assim, mais de um papel: estudantes/profissionais da UERJ e<br />

moradores do bairro, por exemplo.<br />

O trecho fronteira Vila Isabel-Maracanã, mostra-se, dessa perspectiva,<br />

como um espaço híbrido: espaço residencial, comercial, de passagem.<br />

Atende a pessoas que vêm de outras partes da cidade, mas também aos que<br />

residem no entorno da universidade. Concentra um comércio voltado para a<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


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Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

alimentação de quem durante o dia faz refeições na rua: público da universidade,<br />

funcionários, médicos e pacientes do hospital.<br />

Pode-se concluir, então, que a cidade afeta as pessoas, assim como as<br />

pessoas afetam e transformam a cidade. Um certo estado de nervosismo, de<br />

tensão, de stress é inerente à vida no espaço urbano, no aglomerado, na multidão<br />

desconhecida. Ao mesmo tempo, é somente nesse carrefour que também<br />

se tornam possíveis os mais diversificados encontros, as mais variadas visões<br />

de mundo. A cidade, como a rua, é inventada, é simbolicamente construída.<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


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notas<br />

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1 O episódio teve repercussão como pode ser observado no trecho da versão online<br />

do jornal NY Daily News: “Drug dealers shot down a police helicopter, set fire to<br />

five buses and torched a school in Rio de Janeiro in a swarm of violence Saturday<br />

that left two cops dead and four injured, officials said.[...] The gun battle was<br />

sparked by a police operation aimed at clamping down on the drug traffickers who<br />

operate in the Morro dos Macacos slum”. (NYDAILYNEWS.com, 17/10/2009).<br />

2 Conforme descreve uma reportagem: “A cena chamava atenção de quem passava<br />

pelo Boulevard Vinte e Oito de Setembro no último domingo: logo após o<br />

Hospital Universitário Pedro Ernesto, flanelinhas indicavam um local para estacionar.<br />

Era o pátio de Colégio Estadual João Alfredo e dependências de unidades da<br />

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (<strong>Uerj</strong>). Orientados por três homens, que<br />

cobravam R$ 10 pela vaga, cerca de 50 motoristas deixaram seus carros no local<br />

e foram ao estádio Jornalista Mário Filho, o Maracanã, assistir ao jogo entre<br />

Flamengo e Botafogo. (O Globo on-line, 06/05/2009).<br />

3 O secretário municipal de ordem pública, Rodrigo Bethlem já havia declarado<br />

que “Nós temos que começar desde já a nos adaptarmos a esse tipo de regra para<br />

demonstração clara para o mundo que o Rio de Janeiro é capaz sim de ter regras,<br />

de seguir regras internacionais, de sediar eventos como uma Copa do Mundo e a<br />

Olimpíada de 2016 que nós somos fortes candidatos a sediá-la. (O Globo on-line,<br />

26/01/2009).<br />

4 Com o fechamento do estádio para as obras da Copa do Mundo de Futebol (em<br />

2014), esse deixou de ser momentaneamente um problema, pelo menos até a sua<br />

reinauguração.<br />

referênCias bibliográfiCas<br />

CAIAFA, Janice. Aventura das cidades. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.<br />

CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da<br />

comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 1993.<br />

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. Petrópolis,<br />

RJ: Vozes, 1994.<br />

GUATTARI, Felix. Micropolítica: cartografia do desejo. 5ª ed. Petrópolis:<br />

Vozes, 1999.<br />

CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidades. Uma antologia. São<br />

Paulo: Perspectiva, 1979. p.307-319.<br />

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Quando o campo é a cidade: fazendo<br />

antropologia na metrópole. In: MAGNANI, J. E TORRES, Lilian de Lucca<br />

(orgs.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. São Paulo: Edusp,<br />

1996. p. 12-53.<br />

NY Daily News [jornal] – Disponível em: . 17/10/2009. Acesso em <strong>18</strong>/10/2009.<br />

O Globo on-line [jornal] - Disponível em:


50<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

R+ARRUMAR+VAGA+PARA+SECRETARIO+DE+ORDEM+PUBLICA.<br />

html> . 26/01/2009. Acesso em 27/01/2009.<br />

O GLOBO ON-LINE: Disponível em: . 06/05/2009. Acesso em 10/05/2009.<br />

Prefeitura do Rio de Janeiro [órgão municipal]. Disponível em: <br />

SIMMEL, Georg. A metrópole e vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme<br />

(org.). O fenômeno urbano. 2.ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1973.<br />

relatos orais CitaDos:<br />

- Estudante da UERJ, músico, morador desde criança;<br />

- Estudante de pós-graduação da UERJ, morador desde estudante;<br />

- Ex-estudante da UERJ, moradora desde estudante.<br />

Vozes da Vila: espaços e representações no entorno da universidade.


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“Viagens de Sonho”: Considerações<br />

Teóricas sobre a Lua de mel<br />

“Dreams Travel”: Theoretical<br />

Considerations about the Honeymoon<br />

Euler David Siqueira |<br />

Mestre e doutor em sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

e pós-doutor em sociologia pela Université Paris Descartes Sorbonne<br />

(2009-<strong>2011</strong>). É professor e pesquisador do departamento de turismo<br />

e do programa de pós-graduação em ciências sociais da Universidade<br />

Federal de Juiz de Fora..<br />

Gheysa Lemes Gonçalves Gama<br />

Mestre em Ciências Sociais, especialista em Planejamento e Gestão Social e<br />

graduada em Turismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professora<br />

do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Juiz de Fora.<br />

Resumo<br />

O presente trabalho tem por objetivo refletir acerca de alguns dos sentidos e<br />

significados que estão em jogo quando pensamos na Lua de mel, conduzindo<br />

esforços de se avançar na sistematização de um arcabouço teórico sobre o tema.<br />

Conhecida como uma viagem a lazer, na qual o casal vivencia momentos de<br />

intimidade e privacidade mais acentuados do que aqueles vividos em seu<br />

cotidiano, significados diversos são construídos e diferenciam esta modalidade<br />

de turismo. Este artigo encontra sua relevância no fato de inexistir material<br />

de cunho acadêmico que se proponha a pensar sobre a Lua de mel. Deste<br />

modo, o artigo busca, através da reflexão bibliográfica, compreender quais os<br />

possíveis imaginários são negociados e compartilhados socialmente quando<br />

nos referimos à viagem de Lua de mel.<br />

Palavras-chave: Lua de mel; Turismo; Viagens; Ritual.<br />

Abstract<br />

This work aims to reflect on some of the senses and meanings that are at stake<br />

when we think of the honeymoon, leading efforts to advance on the systematization<br />

of a theoretical framework on the subject. Known as a leisure travel, which is<br />

the couple experience moments of intimacy and privacy more pronounced than<br />

those experienced in their daily lives. Different meanings are constructed and<br />

differentiate this type of tourism. This article finds your relevance in the inexistence<br />

of academic material that is proposes to think about the honeymoon. Thus, the<br />

article seeks, through reflection literature, understand what the possible imaginaries<br />

are negotiated and socially shared when referring to the honeymoon trip.<br />

Keywords: Honeymoon, Tourism; Travel; Ritual.<br />

“Viagens de Sonho”: Considerações Teóricas sobre a Lua de mel


52<br />

introDução<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

A construção de um grupo ou coletividade social – isto é, seus contornos<br />

internos e externos, tais como suas fronteiras – também é expressa através de suas<br />

práticas e representações simbólicas, elementos que podem ser observados, coletados<br />

e analisados (GEERTZ, 1978). Algumas práticas culturais, mais do que outras,<br />

são importantes elementos acionados à construção de um grupo social e seu estudo<br />

auxilia a compreensão de como esse mesmo grupo se constitui, como pensa e como<br />

se representa a si mesmo na relação com um outro. Neste sentido as viagens, em<br />

especial as viagens de turismo, sejam elas de quais tipos forem, são práticas revestidas<br />

de significados diversos e a compreensão destes auxilia o conhecimento da vida<br />

social. Assim, as viagens de turismo podem ser pensadas como práticas e representações<br />

que ligam determinados grupos de uma sociedade às diferentes maneiras,<br />

como as identidades são negociadas e articuladas em seu interior.<br />

Seguindo esta lógica, concebemos que as viagens de Lua de mel são ações sociais<br />

dotadas de significados que são atribuídos àqueles que dela participam. Apesar<br />

de hodiernamente existirem novas configurações de casais (como casais do mesmo<br />

sexo, casais sem filhos, casais que moram em casas separadas, casais que moram<br />

juntos sem legalizar a união, seria a “Invenção do Casal”, GOLDENBERG, 2001)<br />

a Lua de mel continua sendo um acontecimento importante para vários grupos sociais.<br />

Ainda que possamos admitir que sentidos diversos sejam atribuídos à prática<br />

do casamento e da Lua de mel pelos indivíduos, é possível vislumbrar um imaginário<br />

sobre a Lua de mel, ou seja, sentidos e significados que são compartilhados<br />

socialmente. Isto quer dizer que há modelos e estereótipos para os atores sociais<br />

de como deve ser uma Lua de mel, ainda que outras perspectivas possam negá-la.<br />

Como prática social, compreendermos os sentidos que são atribuídos à Lua de mel<br />

é uma importante forma de entendermos alguns dos sentidos que o próprio turismo<br />

encontra em uma formação social como a brasileira.<br />

Deste modo, o presente trabalho tem como finalidade refletir acerca de alguns<br />

dos sentidos da Lua de mel, enveredando esforços de se avançar à elaboração<br />

de um arcabouço teórico sobre o tema. Justifica-se a realização desse trabalho uma<br />

vez que nenhum material específico ao tema, de cunho acadêmico, foi encontrado<br />

até o presente momento. O presente artigo reflete o esforço de estabelecer, a partir<br />

de categorias pertinentes ao campo em discussão, possíveis sentidos à noção de<br />

Lua de mel, sendo que a metodologia para construção do mesmo seguirá a revisão<br />

bibliográfica destas categorias que nos ajudaram a pensar sobre essa relação social.<br />

sobre a lua De mel<br />

Mamãe<br />

Eu to em Lua de mel<br />

Eu to morando num pedaço do céu<br />

Como o diabo gosta!<br />

(Lulu Santos, 1984)<br />

“Viagens de Sonho”: Considerações Teóricas sobre a Lua de mel


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Todo desfrute tem permissão, tudo que dá prazer, tentação. O trecho da<br />

música de Lulu Santos revela algumas características da Lua de mel, presentes<br />

no imaginário de uma parte significativa de nossa sociedade. Através dessa<br />

letra da música popular, conhecida em âmbito nacional, podemos ter ideia de<br />

que a Lua de mel é considerada como um momento de prazer, de felicidade,<br />

como uma espécie de paraíso no qual tudo é permitido ou que ao menos não<br />

acarrete à ideia de falta ou pecado.<br />

Em grande parte, a noção embutida nesse discurso é que o exagero é admitido<br />

e até esperado, tudo isso porque a lógica binária que também é hierárquica<br />

(DUMONT, 1991), presente na viagem de Lua de mel, é contrária ao dia a<br />

dia, ao cotidiano, no qual fazemos ou somos submetidos a inúmeras restrições.<br />

Outra característica importante quando tratamos da Lua de mel é a que diz<br />

que se trata de um momento único, que não pode ser novamente experimentado,<br />

ideia esta que é visualizada na expressão: “Lua de mel é uma só”. Então,<br />

estamos diante de uma experiência única e irreversível na vida dos sujeitos que<br />

a vivenciam. Evidentemente, no plano mais concreto da ação, observamos uma<br />

multiplicidade de formas que admitem uma variação incrível do modelo em seus<br />

termos ideais. Em outras palavras, mesmo que a Lua de mel não corresponda ao<br />

modelo ideal, ela oferece um enquadramento coerente aos que a vivenciam.<br />

Entretanto, apesar da Lua de mel ser um acontecimento relevante em<br />

nossa cultura e importante para o turismo, pois movimenta o trade turístico<br />

especializado, onde hoteis, empresas de transporte e de entretenimento se<br />

preparam para atender a este segmento em específico: os casais em Lua de<br />

mel – podendo até ser utilizada como política pública para se evitar divórcio<br />

1 em determinado território. Não há na literatura especializada nenhum<br />

debate teórico com finalidade de compreender este tipo de viagem, o que<br />

pretende então o presente trabalho.<br />

Partimos para duas características inexoráveis que nos auxiliarão na<br />

construção do arcabouço teórico sobre o tema: sabemos que a Lua de mel é<br />

uma viagem de turismo e também que é parte de um ritual. Sendo assim trabalharemos<br />

nas próximas páginas esses conceitos para tentarmos entender um<br />

pouco mais sobre essa importante relação.<br />

“sombra e água fresCa”: as Viagens De turismo<br />

Podemos observar a relevância dos estudos das viagens como partes<br />

constituintes de determinada cultura. Esses estudos procuram dar conta<br />

dos significados que um grupo ou seus membros associam ao ato de viajar<br />

e também a determinados tipos de viagem. Os sentidos atribuídos às viagens<br />

são múltiplos, variando dentro de períodos históricos e de contextos<br />

sociais distintos; em alguns casos podem abranger toda a vida social do<br />

grupo em questão, onde são encaradas como obrigações sociais, como as<br />

viagens “kula” dos trobriandeses, nativos da ilha Trobriand analisada por<br />

“Viagens de Sonho”: Considerações Teóricas sobre a Lua de mel


54<br />

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Malinowski (1978), cuja finalidade era a permuta de artigos de ornamentação<br />

dotados de um forte componente mágico-religioso; e as viagens Ilongot<br />

em Papua Nova Guiné analisadas por Rosaldo (1980), nas quais os jovens<br />

da tribo empreendiam tal viagem com o objetivo de construção de suas<br />

personalidades através de ritos específicos (NERY, 1998).<br />

De outro modo, em especial nas sociedades modernas, as viagens<br />

assumem novas conotações, podendo ser vistas como “viagens de prazer”<br />

(NERY, 1998), ainda que admitamos que não haja uma única maneira<br />

“correta ou verdadeira” de viajar. Em outras palavras, as viagens ou as práticas<br />

turísticas não podem ser encaradas de uma maneira unidimensional,<br />

vide as inúmeras áreas ou campos de estudos que procuram dar conta da<br />

complexidade de tal fenômeno.<br />

Assim, as viagens de Lua de mel, encaradas como viagens de lazer, onde<br />

o casal viaja em seu tempo livre, desobrigado de algumas de suas funções sociais,<br />

com o objetivo de descansar e se divertir, são expressivas de uma maneira<br />

diferente de atribuir sentido ao ato de se viajar. Um dos elementos constitutivos<br />

dessa forma de viagem diz respeito ao tempo de lazer que é o:<br />

Único conteúdo do tempo orientado para a realização da pessoa com<br />

fim último. Este tempo é outorgado ao indivíduo pela sociedade<br />

quando este se desempenhou, segundo as normas sociais do momento,<br />

de suas obrigações profissionais, familiais, sócio-espirituais e sócio-<br />

-políticas. (DUMAZEDIER, 1999, p. 91).<br />

Ainda de acordo com as ideias do sociólogo francês, esse tempo de lazer<br />

não é o resultado de uma decisão puramente individual, mas primeiramente, o<br />

resultado de mudanças de estruturas tais como da economia e da sociedade. O<br />

lazer, contemporaneamente, é um valor social atribuído à pessoa moderna no<br />

ocidente e que se traduz por um direito social, direito desta pessoa de dispor de<br />

um tempo cuja finalidade é a autossatisfação.<br />

A partir das características até então expostas, podemos limitar algumas<br />

categorias que constroem nosso entendimento sobre este tipo específico de turismo,<br />

sendo essas: indivíduo, tempo livre, deslocamento e lazer, corroborando<br />

as pistas de Gastal: “falar em turismo significará fazer referência àquelas pessoas<br />

que saem das suas rotinas espaciais e temporais por um período de tempo<br />

determinado” (GASTAL, 2005, p. 12).<br />

Além disso, o turismo é entendido aqui, acima de tudo, como um fenômeno<br />

social. Nesse sentido o turismo seria, também,<br />

Uma ação social dialética dotada de sentido interno, subjetiva, de um<br />

sujeito que se retira de sua sociedade, permanecendo por um quantum<br />

de tempo não determinado em um outro lugar e que retorna a seu<br />

universo de vida cotidiano transformado através do contato mantido<br />

em um outro local. Turismo, nesse sentido, é uma forma social, cuja<br />

síntese das ações sociais recíprocas daqueles chamados de turistas e<br />

daqueles que os recebem (SIQUEIRA, 2006, p. 4).<br />

“Viagens de Sonho”: Considerações Teóricas sobre a Lua de mel


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É nesse espaço turístico, de encontros e interações, que ocorrem também<br />

as transformações das identidades, tanto de turistas quanto da comunidade receptora,<br />

pois as identidades existem umas em relação às outras, num processo<br />

de inclusão e exclusão, o que Frederick Barth (apud CUCHE, 1999) chamou<br />

de concepção relacional fundamental para a emergência da identidade étnica.<br />

Nesse sentido as práticas turísticas podem ser associadas a processos de negociações<br />

e formações de identidades.<br />

Portanto, podemos considerar que a Lua de mel é uma viagem que<br />

ocorre no tempo livre do sujeito, tempo esse de lazer e que pressupõe que<br />

este se desloca de sua sociedade e ou lugar habitual de moradia, permanecendo<br />

por um período de tempo em outro lugar e que retorna modificado<br />

através da experiência vivida.<br />

rituais e turismo<br />

Partimos então para apresentarmos como estamos compreendendo o ritual.<br />

A relação entre o turismo e o campo do ritual é significativa, uma vez que<br />

ao sairmos de nosso mundo habitual, normal ou ordinário, somos levados a<br />

outros universos de significação de maneira lenta e gradual. Ou seja, a passagem<br />

nunca é imediata, mas, sobretudo, mediada por etapas que admitem um<br />

grau de variação espaço-temporal. Os rituais podem ser considerados eventos<br />

sociais emblemáticos, sendo que em todas as sociedades existem eventos<br />

que são considerados especiais. Para DaMatta (1997) algumas características<br />

dos eventos sociais brasileiros são: primeiro a separação nítida entre o mundo<br />

cotidiano e o outro, chamado de acontecimentos extraordinários, sendo<br />

que a passagem entre um acontecimento e outro é marcada por mudanças no<br />

comportamento dos sujeitos sociais. Outra característica é que, no Brasil, os<br />

eventos extraordinários são segmentados entre eventos previstos e imprevistos<br />

pelo sistema social. Entre os eventos previstos há os acontecimentos altamente<br />

ordenados (como a cerimônia do casamento) e os eventos dominados pela brincadeira<br />

e diversão, como é o caso do carnaval.<br />

O ritual também é um sistema cultural de comunicação simbólica entre<br />

universos de significação que ficam incomunicáveis durante a maior parte do tempo.<br />

Nesse sentido os rituais são especialmente adequados para compreendermos<br />

uma sociedade assim como suas divisões, interdições, seus estereótipos e seus preconceitos.<br />

Peirano (2003) enumera algumas características que auxiliam a entender<br />

os rituais, afirmando que são performativos e definidos em termos nativos.<br />

É através da análise de rituais que podemos observar aspectos fundamentais<br />

de como uma sociedade vive, pensa e se transforma. O ritual é, nesse sentido,<br />

Um fenômeno interessante para análise justamente porque, no longo<br />

processo de reflexão sobre suas características intrínsecas, reconheceu-<br />

-se que ele tem o poder de ampliar, iluminar e realçar uma série<br />

de ideias e valores que, de outra forma, seriam difíceis de discernir<br />

(PEIRANO, 2003, p. 49).<br />

“Viagens de Sonho”: Considerações Teóricas sobre a Lua de mel


56<br />

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Para examinar os processos de sociabilidade, Durkheim (1996) propõe<br />

uma concepção de sociedade que estabelece um vínculo essencial entre<br />

rituais e representações, “rituais e representações formam, à vista disso, um<br />

par indissociável. Mas, para sua sobrevivência é necessário um grupo de<br />

pessoas, uma comunidade moral relativamente unida em torno de determinados<br />

valores” (PEIRANO, 2003, p. 19).<br />

Entre os fenômenos que ilustram as representações sociais das diferentes<br />

sociedades, Durkheim destaca a importância de dois: os símbolos e os<br />

ritos. O autor, a partir de uma teoria dos ritos, examina suas funções e tipos.<br />

Os ritos teriam por função proporcionar a coesão social, mantendo e renovando<br />

o sentimento de pertencimento e participação do indivíduo ao grupo.<br />

Ele distingue três tipos de ritos: os negativos, os positivos e os de expiação.<br />

Desses, o que mais interessa ao nosso trabalho são os ritos positivos, que<br />

tratam de atos de comunhão, como as refeições rituais. Segundo esse ponto<br />

de vista: “Todos esses ritos têm uma função social importante; seu objetivo é<br />

manter a comunidade, acentuar o sentido de participação num grupo, revigorar<br />

a crença e a fé”. (ARON, 2003, p. 515).<br />

O ritual, como um discurso simbólico, destaca alguns aspectos da realidade,<br />

tornando certos elementos do mundo social mais presentes do que<br />

outros. É desse modo que DaMatta (1997) informa que tanto o rito quanto<br />

o mito conseguem colocar em close up coisas do mundo social. Para ilustrar o<br />

autor utiliza um exemplo caro ao nosso trabalho:<br />

Um dedo é apenas um dedo integrado a uma mão, e essa mão a um<br />

braço, e esse braço a um corpo. Mas, no momento em que se coloca<br />

no dedo um anel que marcará o status matrimonial de uma pessoa,<br />

esse dedo muda de posição. Continua a ser um dedo, mas é ao mesmo<br />

tempo muito mais que isso. De fato, esse dedo é agora algo que pode<br />

ser destotalizado e visto como um elemento independente, associado a<br />

um anel e a uma posição social (DAMATTA, 1997, p. 77).<br />

Como se pôde ver colocou-se o dedo em close up e houve uma transposição<br />

de sentidos. O dedo que é visto cotidianamente como integrante de um universo<br />

biológico passa a ser visto como símbolo de um conjunto de relações sociais.<br />

Os rituais, assim, podem ser entendidos como um sistema de comunicação<br />

simbólica, sendo que qualquer tipo de ritual utiliza uma linguagem.<br />

Nesse sentido para Vianna, seguindo o caminho traçado por Leach,<br />

“o ritual está sempre dizendo alguma coisa sobre algo que não é o próprio<br />

ritual” (VIANNA, 1988, p. 58).<br />

A cerimônia do casamento, por exemplo, utiliza variadas linguagens enquanto<br />

ritual, sejam através da linguagem verbal, as palavras proferidas por<br />

uma autoridade religiosa ou legal, ou o discurso de agradecimento dos noivos;<br />

a linguagem corporal, observada pelo vestuário típico da noiva, noivo e convidados;<br />

e também pelos gestos, tais como cortar o bolo, entrelaçar taças para<br />

o brinde e jogar o bouquet da noiva (esses últimos admitindo um grau bem<br />

“Viagens de Sonho”: Considerações Teóricas sobre a Lua de mel


57<br />

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elevado de performance). Portanto, tanto a cerimônia do casamento quanto<br />

a Lua de mel são importantes à mudança de papel e status dos sujeitos envolvidos,<br />

pois revelam, como rituais, aspectos da estrutura social que precisam<br />

ser colocados em destaque e comunicados. São os rituais que permitem a renovação<br />

de valores, reafirmam práticas culturais e resgatam um sentimento<br />

de pertencimento (re)construindo ou (re)negociando identidades, assim como<br />

seus papeis, deveres e obrigações.<br />

Mas o ritual também possibilita o deslocamento de um ponto ou tempo<br />

distinto a outro, instaurando o tempo e o espaço sociais, onde o indivíduo,<br />

Passa de um estatuto social a outro, através de uma série de saltos<br />

descontínuos: de criança a adulto, de solteiro a casado, de doente a<br />

saudável, de vivo a morto. A permanência em cada um dos estatutos<br />

origina um período de tempo social, dotado de duração social, mas a<br />

transição é assinalada pelo ritual, o rito da puberdade, o casamento, o<br />

rito da cura, o funeral, como sendo um intervalo de atemporalidade<br />

social (LEACH, 1992, p. 51, minhas ênfases).<br />

Arnold Van Gennep (1978), que foi um dos primeiros autores a distanciar<br />

o conceito de religião ao estudo do ritual em si, se propôs a uma classificação<br />

dos rituais de acordo com o papel que desempenhavam na sociedade,<br />

estudando os “ritos de passagem”. Os ritos de passagem para Van Gennep<br />

não dependiam da crença em poderes sobrenaturais, simplesmente marcavam<br />

uma mudança na vida ou no status de um indivíduo ou grupo. Esses podem<br />

ser conceituados como “ritos que acompanham toda mudança de lugar, estado,<br />

posição social, de idade” (VAN GENNEP apud TURNER, 1974, p.116).<br />

Outro antropólogo, Victor Turner, trabalha o conceito de ritos de passagem,<br />

ou seja, a passagem entre estados, sendo a noção de estado nos rituais de passagem<br />

como algo que se estende além do status e posição social, englobando<br />

estados mentais, sentimentais e afetivos e “a qualquer tipo de condição estável<br />

ou recorrente, culturalmente aceita” (TURNER, 1974, p.116).<br />

Os rituais de passagem são caracterizados por três fases: 1 - a primeira<br />

em que há a separação, em que o indivíduo ou um grupo se afasta de um ponto<br />

da estrutura social ou de um conjunto de posições socialmente definidas;<br />

2 - a segunda, conhecida como “liminar”, diz respeito ao momento em que o<br />

indivíduo ou grupo não pertencem às classificações que permitem localizá-los<br />

num espaço socialmente definido; é nesse momento em que os indivíduos passam<br />

a ser considerados de algum modo iguais, ou ao menos estruturalmente,<br />

perfazendo uma espécie de comunidade antiestrutural (communitas). 3 – E,<br />

finalmente, a terceira fase que completa a passagem e fecha o ciclo ritual: o sujeito,<br />

agora transformado, dotado de novos atributos simbólicos, regressa a seu<br />

mundo portador de um novo papel social legitimado e sancionado pelo grupo.<br />

Turner (1974) percebe esses rituais de passagem como um momento<br />

de distanciamento do indivíduo da sua estrutura social e, depois, um retorno<br />

com novo status, e destaca duas características importantes desse tipo de<br />

“Viagens de Sonho”: Considerações Teóricas sobre a Lua de mel


58<br />

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ritual: a liminaridade e a communitas. A liminaridade ou fase liminar é o<br />

momento intermediário entre o distanciamento e a reaproximação, momento<br />

no qual as características do indivíduo que está transitando são ambíguas,<br />

como sagradas e profanas. Esse estado liminar é caracterizado também pelo<br />

distanciamento simbólico da estrutura hierárquica da sociedade, distanciamento<br />

ao que ele chama de communitas, modalidade de relação social de<br />

uma área de vida comum. A communitas, para Turner, surge onde não existe<br />

estrutura social, sendo de natureza espontânea e imediata, em oposição à natureza<br />

governada por normas institucionalizada da estrutura social. Assim:<br />

“nos rites de passage os homens são libertados da estrutura e entram na ‘communitas’<br />

apenas para retornar à estrutura, revitalizados pela experiência da<br />

‘communitas’” (TURNER, 1974, p. 157).<br />

O trabalho de Turner, ao estudar a estrutura das peregrinações marianas<br />

na Europa e no México, é lembrado por Calvelli (2006), pois aproxima a experiência<br />

da peregrinação à da “communitas”, já que a peregrinação produz um<br />

espaço simbólico onde regras e valores morais são suspensos temporariamente<br />

em função da comunhão de indivíduos que estão partilhando da mesma experiência.<br />

No entanto, Calvelli conclui que o modelo proposto por Turner não<br />

se confirma etnograficamente. Ao contrário, os trabalhos sobre o tema mostraram<br />

a manutenção das distinções sociais no contexto das peregrinações. Não<br />

obstante, Calvelli chega a uma conclusão relevante para nosso estudo, pois a<br />

não confirmação do modelo de Turner na prática,<br />

Não significa a ausência da ‘communitas’ como uma experiência presente<br />

nas peregrinações, mas chama a atenção para os limites de aplicação<br />

de um modelo fechado e universal em um fenômeno complexo e<br />

variado como a peregrinação, inserida em diversos contextos históricos<br />

e culturais (CALVELLI, 2006, p. 144).<br />

Desse modo, os ritos de passagem marcam mudanças dos papeis sociais<br />

atribuídos aos indivíduos na estrutura social, sendo que essa passagem representa<br />

em muitos casos um renascimento. Para mudar de estado o indivíduo,<br />

primeiramente, distancia-se de sua estrutura social, como se morresse ou deixasse<br />

de existir naquela posição que ocupava na sociedade. Após sua passagem<br />

pelo momento de liminaridade o sujeito volta a ser integrado à estrutura social<br />

ocupando uma nova posição, como se renascesse. Esse momento de liminaridade<br />

exige uma separação tanto física quanto moral, em termos mesmo de<br />

papeis sociais, que Leach chama de marginalidade prolongada,<br />

Exemplos desta situação de marginalidade prolongada, são a Lua de<br />

mel da noiva e o luto da viúva. Estes ritos de marginalização caracterizam-se,<br />

sobretudo, pelo afastamento físico do iniciado em relação<br />

às pessoas comuns. O iniciado é, pura e simplesmente, retirado dos<br />

lugares habituais (LEACH, 1992, p. 112, minha ênfase).<br />

Outra separação que podemos vislumbrar é a de papeis, uma instância<br />

importante da ritualização. Na Lua de mel, por exemplo, o marido e a mulher<br />

estão ali exclusivamente para exercer esse papel social, de marido e mulher,<br />

“Viagens de Sonho”: Considerações Teóricas sobre a Lua de mel


59<br />

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separando de outros, como filho, irmão, empregado etc. Essa separação é vista<br />

por DaMatta (1997) como um caso especial de reforço desses papeis.<br />

Essas características do ritual de passagem podem perfeitamente ser assimiladas<br />

ao casamento e à Lua de mel, já que esses ritos supõem momentos nos<br />

quais indivíduos mudam seu estado e sua posição na estrutura social. Uma pessoa<br />

solteira, após o ritual do casamento e da Lua de mel, retorna casada e em outra<br />

posição perante a sociedade. Desse modo podemos entender esses momentos,<br />

do casamento, em especial da Lua de mel, como momentos de liminaridades,<br />

em que há um distanciamento dos indivíduos da sua vida social habitual, e um<br />

retorno com novo posicionamento social, pleno de novas relações.<br />

A Lua de mel, portanto, supõe momentos especiais, carregados de simbolismos<br />

instauradores de criatividade social, pois o novo sempre pode surgir<br />

à partir de novos rearranjos da estrutura social. Como momento especial, a<br />

viagem de Lua de mel é delimitada por duas oposições; a primeira, contrariamente<br />

ao cotidiano, é marcada pelo inusitado, pelo diferente da rotina do dia<br />

a dia - ainda que haja a expectativa do que virá pela frente - e pelo exagero que<br />

assinala o rompimento com o quadro cotidiano de normas, como dito anteriormente.<br />

A segunda oposição é ao próprio casamento, aqui entendido como<br />

sendo um evento público, com a presença de amigos e familiares, e a Lua de<br />

mel, que é um momento de intimidade e privacidade do próprio casal. Vemos<br />

o quanto essas duas esferas, a pública e a privada, podem se entrelaçar admitindo<br />

brechas, contatos e comunicações.<br />

Para tentarmos entender a Lua de mel no contexto do nosso país, um<br />

documento produzido pela EMBRATUR – Instituto Brasileiro de Turismo<br />

– em 2006 nos servirá como modelo de orientação 2 , pois fornece dados interessantes<br />

à compreensão de nosso estudo. O documento, diga-se de passagem,<br />

não esgota a existências de outras formas e modelos que com ele<br />

competem. Ele tem por objetivo estudar o mercado brasileiro e promover o<br />

Brasil como destino para viagens de Lua de mel. Na verdade, o modelo da<br />

EMBRATUR opera como um modelo ideal prescrevendo estados, situações<br />

e papeis com os quais podemos contrapor a dinâmica da realidade social<br />

repleta de nuances e eventos imponderáveis.<br />

A partir do documento da EMBRATUR, percebemos como alguns dados<br />

apresentados se referem às empresas que prestam serviços para recém-casados<br />

em viagens de Lua de mel. Essas oferecem produtos específicos ao seu público<br />

como roteiros especializados, flores e garrafas de espumante em hoteis; isso tudo<br />

“porque o público a ser atingido é exigente e espera que as expectativas sejam<br />

superadas” (EMBRATUR, 2006, p. 10). A ideia aqui em jogo é a de que se os<br />

especialistas devem planejar as viagens em cada detalhe, nas de Lua de mel essa<br />

exigência é ainda maior, pois há ênfase de ser um momento especial a dois, no<br />

qual nada pode dar errado e deve ser inesquecível. As expectativas sociais ocorrem<br />

de ambos os lados: tanto da empresa que é submetida à tensão sobre o que<br />

“Viagens de Sonho”: Considerações Teóricas sobre a Lua de mel


60<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

esperam os casais, quanto às expectativas dos casais, que encaram sua experiência<br />

como singular e única, devendo ocorrer sem falhas ou problemas.<br />

O documento da EMBRATUR informa ainda sobre o tempo médio das<br />

viagens, em torno de 7 a 12 dias. É interessante observar que apesar de maio<br />

ser o mês das noivas, dezembro e janeiro têm o maior número de casamentos (e<br />

consequentemente de viagens) devido ao período de férias e ao uso que os casais<br />

fazem do décimo terceiro: “Todos planejam e criam seus itinerários com cuidado<br />

e antecedência para realizarem a viagem dos sonhos” (EMBRATUR, 2006, p.<br />

11). Mas, para onde se deslocam os casais em suas Luas de mel? O documento<br />

aponta os destinos mais procurados do mundo pelos brasileiros para sua Lua de<br />

mel: Caribe, África do Sul e Tahiti. E nacionais: Fernando de Noronha, Natal,<br />

Fortaleza, Rio de Janeiro, Maceió, Santa Catarina, Paraná e cidades da Serra<br />

Gaúcha. Observamos que o estado de Alagoas trabalha uma campanha publicitária<br />

toda própria, apresentando-se como a cidade representante oficial da Lua<br />

de mel no país. Outras localidades também trabalham para atrelar seu nome à<br />

viagens de Lua de mel, como o Tahiti, “o centro universal do romance”, e a cidade<br />

canadense de Ontário, “a capital mundial da Lua de mel”.<br />

A motivação da viagem, elemento que aparece sempre articulado à ideia<br />

de um indivíduo autônomo e racional nos moldes descritos por Dumont (1991),<br />

encontra limites justamente à crítica feita pelo mesmo autor. No entanto, isso<br />

não é obstáculo à ideia que se tem do turista como aquele que opta, escolhe e<br />

prefere seu destino e ou seu roteiro segundo única e própria vontade. Assim, a<br />

escolha da viagem de Lua de mel:<br />

Está relacionada à vivência de momentos especiais. Em geral os casais<br />

procuram lugares calmos, como serras, estâncias hidrominerais, ilhas<br />

e praias. Isto se deve ao fato de que o casal que se desloca para uma<br />

viagem de Lua de mel procura por algo diferente, almeja fugir da realidade<br />

do cotidiano, busca qualidade nos serviços oferecidos e infraestrutura<br />

local, para que possam esquecer de tudo e aproveitarem a vida<br />

parelha (EMBRATUR, 2006, p. 13).<br />

O documento apresenta vários dados sobre casamento e sobre as localidades<br />

acima enumeradas e conclui afirmando o quê seria uma característica peculiar dessa<br />

viagem de turismo: a compra é efetuada bem antes de seu consumo. Em outras<br />

palavras, estaria em jogo a ideia de que ela seria uma viagem planejada, portanto, “a<br />

imagem criada no imaginário do turista é de suma importância para que este possa<br />

colocar em seus planos o Brasil como seu destino de visitação” (EMBRATUR,<br />

2006, p. 70, minha ênfase). Em poucas palavras, os elementos que podem e são<br />

acionados à construção de um ou vários imaginários turísticos seriam condições<br />

fundamentais à tomada de posição dos casais sobre o destino de sua Lua de mel.<br />

Contudo, chamamos a atenção de que essa escolha é atravessada pela dimensão<br />

afetiva-sentimental, tamanha a carga simbólica envolvida nessa que é, talvez, o<br />

reflexo da construção de um universo isento de problemas e contradições. Eis que<br />

somos remetidos ao universo do mito e de suas narrativas isentas de contradições,<br />

conflitos e de tudo o mais que rompa com a ideia de um tempo circular.<br />

“Viagens de Sonho”: Considerações Teóricas sobre a Lua de mel


61<br />

ConsiDerações finais<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

A possibilidade de experimentar um tipo de deslocamento espacial e<br />

moral revestido de um poderoso significado mágico-afetivo faz da viagem de<br />

Lua de mel um momento chave à construção da nova identidade de sujeitos,<br />

notadamente àqueles concernentes às camadas médias e que antes se viam<br />

– nos termos de uma ideologia individualista moderna (DUMONT, 1991)<br />

- como entidades autônomas, mas que agora iniciam uma nova fase em suas<br />

vidas. Através do recurso do ritual, recém-casados oriundos de camadas médias<br />

também veem na Lua de mel um tipo de viagem em que a transgressão e a<br />

dimensão da vida privada são intensificadas de modo a provocar uma ruptura<br />

com o mundo cotidiano. Eis que estamos diante da mesma matéria da vida<br />

social dita ordinária com a diferença que queremos chamar a atenção para<br />

expressar algo de importante, mas que não pode passar desapercebido: o novo<br />

casal é agora socialmente autorizado a vivenciar experiências antes “interditas”,<br />

como as de natureza sexual – mesmo que essas experiências tenham sido vivenciadas<br />

antes do casamento e da viagem de Lua de mel. Elas ainda guardam um<br />

valor significativo para o grupo e para os sujeitos envolvidos nela, que agora são<br />

os responsáveis por seus próprios destinos.<br />

A Lua de mel se caracteriza, portanto, como um momento carregado<br />

de significados peculiares representados na ideia do ineditismo, mesmo que os<br />

envolvidos nessa experiência não se encaixem nos modelos ideais “puros”. Em<br />

outras palavras, ideologicamente o fato de já ter sido casado ou de ter mantido<br />

relações sexuais não anula a possibilidade de uma experiência aguardada para<br />

algum momento da vida do sujeito. Isso reveste a viagem de Lua de mel de<br />

sentidos diferentes de uma viagem a lazer: já que é única, deve ser especial e<br />

tudo nela deve acontecer conforme o planejado; deste modo, os momentos de<br />

prazer e deleite, e por outro lado as frustrações, são potencializados.<br />

Compreender as características desta modalidade de turismo, bem como<br />

os sentidos e significados que são negociados pela sociedade que alimenta esta<br />

forma de viagem, auxilia quem trabalha nos bastidores deste momento – planejando<br />

e atuando diretamente na realização da viagem – e também nos estudos<br />

e reflexões do papel do turismo na nossa sociedade.<br />

“Viagens de Sonho”: Considerações Teóricas sobre a Lua de mel


62<br />

notas<br />

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1 No dia 12 de outubro de 2009 foi noticiado que um estado da Malásia,<br />

Terangganu, implantou como política pública o custeamento de uma “2ª Lua de<br />

mel” para casais com problemas conjugais a fim de diminuir o número de divórcios<br />

no local, ”o responsável da secretaria local de Assuntos da Mulher, Ashaari Idris,<br />

explicou que o estado financiará a viagem para os casais que não forem capazes de<br />

resolver seus problemas através de uma fase inicial de terapia, também oferecida<br />

gratuitamente”. Disponível em: http://www.google.com/hostednews/epa/article/<br />

ALeqM5hJQSGPa2d8V0qWdQF9IuQE6gF7ug. Acesso em 12 de outubro de 2009.<br />

2 É interessante também para entendermos como pensa o poder público sobre esse<br />

momento do casal, essa viagem, já que podemos considerar o poder público como<br />

importante ator na construção de imaginários na nossa cultura.<br />

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v.1, n.2, p. 129-147, 2006.<br />

TURNER, Victor W. O processo ritual. Petrópolis: Vozes,1974.<br />

VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.<br />

VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />

Editor, 1988.<br />

“Viagens de Sonho”: Considerações Teóricas sobre a Lua de mel


Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Samba et Funk: deux<br />

parcours musicaux urbains<br />

Samba e funk: dois percursos musicais urbanos<br />

Samba and funk: two urban musical trajectories<br />

Luiza Machado<br />

Bacharel em Comunicação Social – Relações Públicas (UERJ) e mestre em<br />

Estudos Latino-Americanos pela Université de la Sorbonne Nouvelle –<br />

Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine.<br />

Résumé<br />

Quelles sont les similarités entre les parcours du Funk et de la Samba ? Cet<br />

article essaye de montrer les similitudes des trajectoires entre ces deux styles<br />

musicaux urbains cariocas. En plus de leur naissance au sein de la périphérie<br />

de Rio de Janeiro, ces rythmes musicaux gardent de nombreuses autres<br />

caractéristiques en commun. La recherche bibliographique se base sur des<br />

articles ou des ouvrages dont le thème principal est la Samba ou le Funk. Quant<br />

à la méthodologie, trois caractéristiques en commun ont été détachées afin de<br />

les comparer, à savoir: son lieu d’origine ; des sujets des paroles interdites par<br />

la police et, finalement, le rôle des médiateurs culturels qui ont fonctionné<br />

comme des agents qui ont facilité la reconnaissance de chaque rythme. Pour<br />

enrichir l’étude, quelques entretiens avec des acteurs clés ont été réalisés.<br />

Mots Clés: Funk, Samba, Favela, Rio de Janeiro.<br />

Resumo<br />

O que a trajetória do Funk tem em comum com a do Samba? O objetivo do presente<br />

artigo é apresentar as semelhanças de percurso entre esses dois estilos musicais urbanos<br />

cariocas. Além de nascer no seio da periferia do Rio de Janeiro, os dois ritmos<br />

musicais guardam outras características em comum. O referencial teórico utilizado<br />

foi a pesquisa bibliográfica baseada em artigos ou obras cujo tema principal<br />

relacionava-se ao Samba ou ao Funk. Metodologicamente, três características em<br />

comum foram destacadas: o lugar de origem; temas de letras interditadas pela<br />

polícia e, finalmente, o papel dos mediadores culturais que funcionaram como<br />

agentes que facilitaram o reconhecimento de cada um dos ritmos. Para enriquecer<br />

o estudo, algumas entrevistas com atores chaves foram realizadas.<br />

Keywords: Funk, Samba, Favela, Rio de Janeiro.<br />

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Abstract<br />

What are the closeness between the Funk and the Samba? This article attempts<br />

to show the similarities of trajectories between these two urban musical styles.<br />

Besides sharing the same origin in the outskirts of Rio de Janeiro, these two<br />

musical rhythms keep other features in common. The theoretical framework used<br />

was based on bibliographic research articles or books whose main theme was the<br />

Samba or the Funk. Methodologically, three common features were highlighted<br />

in order to compare them: the place of origin, themes of lyrics interdicted by<br />

the police and, finally, the role of cultural mediators who acted as agents that<br />

facilitated the recognition of each rhythm. To enrich the study, some interviews<br />

with key actors were also made.<br />

Keywords: Funk, Samba, Favela, Rio de Janeiro<br />

introDução<br />

Le funk a toujours été la cible de nombreuses critiques de la part<br />

des médias, de la société, mais également des autorités gouvernementales,<br />

qui ont essayé à plusieurs reprises de fermer les bals et d’imposer des lois<br />

contre le mouvement.<br />

Le présent article a pour objectif de montrer que l’ensemble des critiques<br />

subies aujourd’hui par le Funk se retrouvait aussi au début de l’histoire<br />

de la Samba. Pour démontrer cela, nous allons d’abord présenter l’origine de<br />

la Samba, qui comme le Funk, est un rythme né dans les périphéries cariocas<br />

parmi les couches les plus pauvres de la population.<br />

La deuxième caractéristique qui rassemble ces deux rythmes est la forte persécution<br />

qu’ils ont subie. Si les paroles polémiques de la Samba faisaient un éloge à la<br />

vie de «malandro», le Funk aussi à plusieurs paroles de proibidões chassés par la police.<br />

Finalement, le dernier trait entre ces deux genres est le pouvoir du rôle<br />

des « médiateurs culturels» qui ont établi des ponts entre la culture populaire<br />

et la culture des élites. Ces médiateurs culturels ont fonctionné comme des<br />

agents favorables à la reconnaissance de chaque rythme.<br />

Alors que la Samba est depuis longtemps légitimée comme véritable<br />

symbole national, le Funk vient à peine d’être élevé au statut de mouvement<br />

culturel carioca. Si aujourd’hui personne ne s’oppose à l’attribution culturelle<br />

de la Samba, l’histoire nous montre une trajectoire remplie d’amertume. Le<br />

prix de cette légitimité fut élevé et le chemin qui y a mené ressemble en plusieurs<br />

aspects à la trajectoire vécue aujourd’hui par le Funk carioca.<br />

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la périphérie Dans la Samba : le lieu où la CréatiVité n’a pas De limites<br />

Considérée comme l’une des principales manifestations culturelles brésiliennes,<br />

la Samba est un dérivé de la culture africaine. Selon Almeida, «le mot Samba<br />

a toujours été lié aux rituels noirs et a pour origine l’expression ‘Semba’, qui signifie<br />

‘umbigada’ (deux danseurs qui s’entrechoquent au niveau du nombril, qui se dit<br />

‘umbigo’ en portugais), un geste présent dans les danses afro-brésiliennes» (2006,<br />

p.21). Malgré l’apparition de la Samba de Roda dans la région à l’époque rurale du<br />

Recôncavo Baiano (une région du nord-est du Brésil), le rythme s’est vraiment développé<br />

comme expression musicale urbaine de la fin du XIXème, début du XXème<br />

siècle dans la capitale du pays à l’époque, la ville de Rio de Janeiro.<br />

Avec les débuts de l’urbanisation du centre ville, une grande réforme a été<br />

menée par Pereira Passos (maire de Rio de 1902 à 1906), détruisant les habitations<br />

précaires (les cortiços) afin d’améliorer l’hygiène de la ville. La population pauvre qui<br />

y habitait, fut expulsée et s’est délocalisée vers les quartiers à proximité immédiate<br />

des Morro da Conceição, Pedra do Sal, Praça Mauá, Estácio, Saúde et Cidade Nova.<br />

Ces endroits sont devenus les premières « favelas » et ont été un important lieu de<br />

développement de la culture noire brésilienne.<br />

La Samba telle que nous la connaissons aujourd’hui se développe alors dans les<br />

périphéries de Rio de Janeiro et devient une musique distinctive des zones demeurées<br />

en marge de la civilisation, comme le relate Trotta:<br />

Elaborée au sein d’un ensemble social formé majoritairement par des<br />

ex-esclaves et leurs descendants, la Samba a toujours été associée à<br />

un environnement communautaire […] qui était représenté dans le<br />

répertoire par le biais d’une série de symboles qui exprimaient les liens<br />

affectifs de cette partie de la population […]. Le ‘morro’ (la butte), la<br />

‘favela’, le ‘quartier’ occupaient une place de choix dans l’imaginaire<br />

du répertoire de la Samba, formant un univers riche d’auto références<br />

musicales et affectives. (TROTTA, 2006, p. 30).<br />

Ce style fonctionne donc comme le funk, puisque les deux trouvent leur inspiration<br />

dans la revendication de l’origine spatiale. Lopes & Facina (2006, p. 6) ajoutent<br />

que, dans ces musiques, les identités chantées peuvent être perçus comme des<br />

métonymies de la figure du noir dans la ville de Rio, l’identité «favelada ».<br />

N’ayant pas de lieux dédiés à leur musique, tous ceux souhaitant chanter leur<br />

condition de «favelado» à travers la Samba se réunissaient dans les maisons de certains<br />

passionnés, souvent des femmes connues sous le nom de Tias Baianas (Tantes bahianaises),<br />

dont la principale était Tia Ciata. Cette dernière fut à la source du soutien au<br />

rythme carioca, puisqu’un grand nombre de compositeurs se réunissaient pour jouer<br />

chez elle. D’ailleurs, c’est là que la première chanson de Samba (Pelo telefone) est née.<br />

D’après Naves, « sa maison n’était pas seulement décrite comme un abri de grands<br />

sambistas (musiciens ou chanteurs de Samba), mais aussi comme un espace qui réunissait<br />

des personnes importantes de la vie publique » (2006, p. 24). De cette façon,<br />

dans l’intimité des maisons des Tias Baianas, les deux Rio de Janeiro se rencontraient<br />

dans un environnement festif.<br />

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C’est donc dans le quartier de Cidade Nova, chez Tia Ciata, que la première<br />

génération de sambistas est née, comme ce fut le cas de Sinhô (José Batista da Silva)<br />

ou de Donga (Ernesto dos Santos). Cependant, ce n’est qu’à partir de la deuxième<br />

génération de compositeurs, issus du quartier Estácio, que la Samba prend son allure<br />

bohème, dont les thématiques récurrentes étaient les orgies et la « malandragem » 1<br />

carioca. Naves nous raconte comment se déroulaient les compositions des paroles :<br />

Les récits sur la constitution de l’identité du sambista, dans les années<br />

20, décrivent les personnages non seulement comme une sorte de<br />

sous-employés, mais aussi comme ‘malandro’. La proximité du quartier<br />

de l’Estácio avec les zones de prostitution du Mangue [...] permettait<br />

[aux compositeurs] non seulement d’explorer le jeu et la prostitution,<br />

mais aussi de se dédier à l’écriture des Sambas. (NAVES, 2006, p.24).<br />

Au moment où les sambistas commencent à décrire leurs expériences périphériques<br />

en tant que favelados, ils commencent à subir une persécution de l’Etat, situation<br />

qui nous fait penser au quotidien d’un autre style musical: le Funk carioca.<br />

Funk et les zones plus Démunies: une trajeCtoire qui se Croise<br />

Les fêtes Soul ont été à l’origine d’un mouvement d’affirmation de l’identité<br />

noire désormais connu comme le mouvement Black Rio. Il est important de souligner<br />

que le Funk carioca prend sa source dans l’expression du mouvement Black Rio et de<br />

ses fêtes connues sous le nom de Bailes da Pesada.<br />

Au Brésil, ces fêtes ont commencé au début des années 70, grâce à quelques<br />

personnages comme Big Boy, Ademir Lemos, Mister Funky Santos, et Don Filó. Les<br />

DJs Ademir Lemos et Big Boy se sont fait un nom d’abord à la radio et dans la zone<br />

Sud de la ville (zone de résidence des classes moyenne et haute de la société carioca).<br />

Cependant, les bals qu’ils organisaient, se déroulant au Canecão (salle de concert<br />

située dans la Zone Sud) n’ont pas duré longtemps. Leur instigateur Ademir Lemos<br />

revient sur les raisons ayant mis fin à ces fêtes réalisées au Canecão:<br />

Les choses allaient très bien là-bas. Les résultats financiers correspondaient<br />

aux attentes. Cependant, il s’est instauré une limitation<br />

des libertés des gens qui fréquentaient le bal. Les directeurs ont<br />

commencé à imposer des restrictions partout. Mais nous prenions<br />

sur nous, jusqu’au moment où la direction du Canecão a eu l’idée de<br />

faire un concert avec Roberto Carlos. C’était pour eux l’opportunité<br />

d’intellectualiser la maison, ils ne pouvaient pas la perdre, et c’est pour<br />

cette raison que nous avons été invités à en finir avec le bal. (Apud<br />

VIANNA, 1995, p.51).<br />

Par conséquent, les fêtes ont été transférées dans la périphérie de Rio de Janeiro,<br />

où elles ont eu un grand impact sur la jeunesse noire et pauvre. La puissance de ces<br />

bals était si forte que certains participants ont décidé de créer leurs propres « équipes<br />

de son », comme ce fut le cas de Soul Grand Prix (organisé par D. Filó), Revolução da<br />

Mente, Black Power, Atabaque, Uma mente numa boa, entre autres.<br />

Les fêtes 100% Black ont été organisées par Mister Funky Santos, qui a choisi<br />

le club Renascença pour abriter les premiers bals de conscientisation noire. En 1972,<br />

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un autre grand nom de la Soul brésilienne a conquis le public: D. Filó, qui a promu<br />

avec « l’équipe de son » Soul Grand Prix les nuits du Shaft, le nom de la fête faisant<br />

référence au film nord-américain dont le personnage principal était un détective noir<br />

lutant contre la délinquance avec des méthodes peu orthodoxes. Shaft s’est peu à peu<br />

transformé en un symbole de fierté et de conscientisation noire.<br />

Le succès a été si grand que le public était trop nombreux pour le club<br />

Renascença, et les organisateurs ont dû la transférer. C’est au même moment que de<br />

nombreuses « équipes de son » sont apparues et ont commencé à réveiller la curiosité<br />

d’une industrie culturelle carioca naissante et de la presse, qui a surnommé le phénomène<br />

comme le mouvement Black Rio.<br />

Selon Valenzuela Arce (1997, p.144) ces fêtes sont arrivées à leur apogée à regrouper<br />

de dix à quinze mille personnes. Si les débuts des fêtes Soul ont connu ses origines<br />

dans la zone Sud carioca, le rythme Funk, tel que nous connaissons aujourd’hui<br />

s’est développé grâce aux fêtes réalisées dans la périphérie carioca. Cependant, il commence<br />

vraiment à se nationaliser au moment où il monte les favelas.<br />

Des sujets polémiques à la Samba, l’éloge De la malandragem<br />

À Rio, la Samba se développe dans les collines (les morros) à l’abri du regard<br />

de la police. Les sambistas les plus célèbres écrivent des textes qui font l’éloge de la<br />

malandragem, et glorifient cet « art de vivre » propre aux milieux populaires urbains.<br />

L’attitude individualiste du malandro, marquée par une véritable aversion au<br />

travail, est considérée par les autorités comme non conforme aux valeurs de la société<br />

et dangereuse pour l’équilibre de la nation. Ainsi, toutes les activités de malandragem<br />

ont subi une forte répression à cette époque. Jouer de la musique et danser la Samba<br />

(tout comme d’autres rituels afro-brésiliens, comme la capoeira ou le Maxixe), étaient<br />

des activités persécutées par la police de l’époque qui avait pour objectif de donner à<br />

la société une image de propreté et d’ordre.<br />

Le compositeur Cartola atteste dans le récit suivant la situation qu’il a<br />

vécue: « à mon époque, les rodas de Samba étaient souvent dispersées par la<br />

police, vu que la Samba était considérée comme une chose de malandro et de<br />

marginal » (Apud MARTINS, 2006, p.43).<br />

Pour Mattos, « c’est à l’intérieur de la Samba que se construit la mythologie<br />

de la malandragem » (1986, p.36) et c’est cette identité qui est responsable<br />

de la création du symbole d’une culture qui a toujours été à la marge de la société.<br />

Bennegent va encore plus loin et affirme qu’exalter la figure du malandro<br />

est un moyen d’exprimer les différences de classe : « la manière d’être du malandro,<br />

peut être considérée comme une ‘réponse’ de la part d’une population<br />

malmenée, stigmatisée dans la société brésilienne – ou n’y ayant pas de réelle<br />

place –, à un système social marqué par l’inégalité. » (2005, p.3).<br />

Sans entrer dans les détails, il faut tout de même préciser que l’appellation<br />

malandro a connu diverses significations, selon les époques et les franges de la<br />

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population. Alors que la littérature et la musique brésilienne ont participé à<br />

l’élaboration du mythe du « bon malandro » en diffusant l’image de l’anti-héro<br />

qui incarne la liberté, l’indépendance et la non-conformité, les autorités ont<br />

essayé à tout prix d’éviter l’expansion de cette philosophie de vie. D’ailleurs,<br />

selon Claudia Matos (1998), la chasse à la figure du malandro atteint son apogée<br />

dans les années 30, quand l’Estado Novo (le gouvernement de l’époque)<br />

censure les chansons qui faisaient l’apologie de ce style de vie.<br />

S’assumer comme un typique malandro et chanter des paroles d’éloge à<br />

ce type de comportement était très mal vu par l’Etat. Cette thématique perçue<br />

comme très polémique peut être comparée au débat qui entoure certains types<br />

de funk. Reste à savoir si les anciens malandros chantés par la Samba d’hier sont<br />

devenus les nouveaux trafiquants idolâtrés par les Proibidões d’aujourd’hui…<br />

Funkeiros, les malandros D’aujourD’hui?<br />

Le Proibidão est le nom donné aux chansons qui racontent, de façon<br />

réaliste et enthousiaste, des histoires où les trafiquants ont imposé leur pouvoir<br />

contre leurs opposants (la police ou les factions ennemies). Les principales thématiques<br />

trouvées dans les paroles sont : la mort des ennemis ou de dénonciateurs<br />

(dénommés « X9 »), la vénération des factions et de ses leaders, ainsi que<br />

l’incitation à la consommation de drogue.<br />

Au contraire de ce que les médias ont l’habitude de dire, les chanteurs<br />

de funk ne font pas toujours partie du réseau du trafic. La majorité, sont de<br />

simples MCs qui habitent dans les favelas dominées par les factions, mais qui<br />

ont fini par adopter les valeurs du banditisme et ont décidé de rendre un «<br />

hommage » à ces leaders de la communauté.<br />

En effet, la majorité de ces chanteurs affirment qu’ils ne font pas partie des<br />

factions criminelles, et lorsqu’on leur demande pourquoi ils chantent ce type de musique,<br />

ils donnent trois types de réponses.<br />

La réponse la plus fréquente argumente que leurs paroles ne fait que<br />

dresser un portrait de la vie dans la favela, comme le dit Mr Catra « Je ne suis<br />

pas complice du trafic, je suis complice de la favela. Je ne fais pas d’apologie, je<br />

rapporte juste une réalité » (apud ESSINGER, 2005, p. 235). Les MCs Smith<br />

et Frank donnent une réponse très similaire:<br />

MC Smith ne fait pas l’apologie du crime, il ne fait pas l’apologie du<br />

trafic, MC Smith relate ce qui se passe dans la communauté […] Je<br />

ne vais pas chanter que la femme est belle et gracieuse et qu’elle passe<br />

par la place de Copabacana [il fait référence à la chanson de Bossa<br />

Nova Garota de Ipanema]. Au contraire, je dis que le caveirão [véhicule<br />

utilisé par le BOPE, la police d’élite] monte dans la favela, tue des innocents,<br />

tue des travailleurs, et retourne au bataillon en pensant qu’ils<br />

ont tués les bonnes personnes. (Extrait de mon entretien avec MC<br />

Smith réalisé le 13 Novembre 2010)<br />

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Nous sommes nés dans le Complexo do Alemão [un complexe de<br />

favelas à Rio]. Il y a des gens qui habitent à Barra et qui parlent sur la<br />

plage. Ivete Sangalo [une chanteuse née à Bahia], par exemple, parle de<br />

la Bahia. On a commencé à chanter dans la communauté, et ce qu’il<br />

y a dans celle-ci, c’est de la criminalité. (Extrait du reportage véhiculé<br />

par le journal O Globo Online au 16/12/2010).<br />

Les compositeurs du fameux Rap das Armas Junior & Leonardo ont eux aussi<br />

utilisés le même argument : « l’idée était de parler de l’aspect de la favela, mais je me<br />

suis rendu compte qu’il manquait quelque chose et il m’est venu l’idée de faire la liste<br />

des armes des trafiquants » (apud ESSINGER, 2005, p. 236).<br />

Un autre motif donné par les chanteurs est le manque d’opportunité d’écrire<br />

d’autres chansons. Pour eux, le marché du funk impose le contenu des musiques,<br />

comme le racontent Mc Galo et Mc Smith, respectivement:<br />

Nous faisons quelques bonnes paroles, mais les mecs (les équipes de<br />

son) ne veulent pas les passer […] Cela dérange beaucoup les MCs<br />

pour faire des concerts. Les chanteurs font l’apologie du crime parce<br />

que dans les communautés il y a beaucoup de gens qui aiment bien ce<br />

style. Pour ne pas rester sans dates de concerts, ils écrivent ces types de<br />

paroles. (Id., p. 239).<br />

Le truc est le suivant : l’unique façon de gagner ma reconnaissance<br />

professionnelle a été, malheureusement, avec le funk interdit. Je ne<br />

vais pas arrêter de chanter ça, parce que c’est comme le [monde du]<br />

crime, si j’arrête de chanter, d’ici peu, il va en venir dix, vingt pour<br />

prendre ma place. (Extrait de mon entretien avec MC Smith réalisé le<br />

13 Novembre 2010).<br />

La troisième raison évoquée par les MCs est l’influence des trafiquants dans<br />

la vie quotidienne de la favela. Suite à des demandes de leaders du trafic, certains<br />

chanteurs ont enregistré des morceaux qui sont devenus de vrais hits. Le récit de MC<br />

Duda laisse transparaître cette situation:<br />

On habite dans une communauté et dans quelle communauté<br />

aujourd’hui n’y a-t-il pas de trafic ? J’habite dans la favela et dedans il<br />

y a ce leader. Il a écrit des paroles sur l’une de nos musiques et il a demandé<br />

si on pouvait l’enregistrer et on l’a fait. Ce n’était pas une chose<br />

forcée, c’était une demande. On les respectait et on les respecte jusqu’à<br />

aujourd’hui. (apud ESSINGER, 2005, p. 238).<br />

Il existe encore une autre raison à ces paroles du Proibidão, mais les MCs ne<br />

préfèrent pas la commenter, puisqu’ils préfèrent préserver leur image. Néanmoins,<br />

nous savons qu’il existe un financement par le trafic de drogue.<br />

Intentionnellement ou pas, les narcotrafiquants cariocas ont transformé le<br />

funk et les MCs en un véhicule pour la divulgation de leurs idées. Ce style musical<br />

est devenu une source de marketing pour leurs ventes et pour assurer leur pouvoir,<br />

comme il est possible de l’observer dans les paroles suivantes:<br />

Je suis MC Frank<br />

Et je vais vous dire sans hésiter<br />

Je suis fidèle à mon chef<br />

De la Boca (lieu de vente de drogue)<br />

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De la Fazendinha (une favela de Rio)<br />

Je suis Comando Vermelho (Commando Rouge, l’un des groupes de<br />

trafiquants les plus puissants)<br />

Si tu es CV dans l’esprit (CV=Comando Vermelho)<br />

Et que tu te promènes avec un fusil en main<br />

Viens avec moi, l’ambiance est chaude<br />

Et le commando est bien rouge<br />

Guedes (2007, p.76) a bien remarqué que dans l’univers du proibidão, il existe<br />

parmi les MCs une tendance à la victimisation qui va s’accentuer et devenir un alibi<br />

pour toutes les tentatives d’imputabilité sur leur production musicale. Cette position<br />

est renforcée par plusieurs spécialistes (une élite intellectuelle déjà citée auparavant)<br />

qui essayent d’élaborer un discours de défense du funk comme activité de loisir, et ont<br />

une grande difficulté à dénoncer les aspects illégaux du mouvement.<br />

à la reCherChe De la légitimité par les méDiateurs Culturels<br />

Dans la samba<br />

Dans son livre « Le mystère de la Samba », Hermano Vianna raconte la trajectoire<br />

vécue par le rythme et décrit comment celui-ci a réussi à se transformer en<br />

symbole national. Vianna (1995) souligne que le style musical carioca a réussi à atteindre<br />

cette condition grâce à une forte action de certains intellectuels qu’il appelle<br />

les « médiateurs culturels », dont l’objectif principal était de mener des fragments de<br />

la culture populaire au niveau de la « culture d’élite ».<br />

Un grand « médiateur culturel » fut le sambista Noel Rosa, qui organisait<br />

des rencontres entre les compositeurs de la périphérie et les musiciens carioca<br />

des classes moyenne et haute. D’après Naves, « Noel a été l’un des premiers<br />

musiciens blanc de la classe moyenne à monter dans les morros […] et à côtoyer<br />

les sambistas de ces groupes » (2006, p.25).<br />

Toutefois, un épisode est toujours décrit comme le tournant pour l’acceptation<br />

du rythme carioca. Selon Coelho (2005, p.2), en 1926, l’intellectuel Sérgio Buarque<br />

de Hollanda a organisé une rencontre entre le sociologue Gilberto Freyre et les sambistas<br />

Pixinguinha et Donga qui a servi de modèle dans l’invention de la Samba<br />

carioca comme principal signe de la culture brésilienne. Cette rencontre est perçue<br />

comme un symbole du processus de construction d’une identité nationale.<br />

Pour Gomes (2001, p. 526), la rencontre mentionnée ci-dessus fut le lien<br />

pour l’articulation de la Samba comme élément rassembleur de la nationalité,<br />

puisqu’il a permis non seulement sa reconnaissance interne, mais aussi la diffusion<br />

internationale du style musical.<br />

La présence des médiateurs culturels a sans doute eu un rôle de pont<br />

d’échange entre la culture produite dans la périphérie et la culture plus intellectualisée.<br />

Pour Martins (2006, p.76), la non reconnaissance du Funk par<br />

les élites dans les années 90 est exactement due à l’absence de « médiateurs<br />

culturels ». Alors que la Samba a réussi à surmonter l’étape des critiques grâce<br />

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Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

à ceux-ci, le Funk ne va réussir à conquérir ses propres « médiateurs culturels »<br />

que lors de la décennie suivante.<br />

roDas De funk, quanD le rythme renContre ses méDiateurs Culturels<br />

Le funk a toujours été accusé d’être un style apolitique, comme le souligne<br />

Yudice « à Rio, les critiques culturels voient habituellement les funkeiros comme<br />

des personnes aliénées et apolitiques » (1997, p.43). Cependant, la création<br />

de l’APAFUNK a constitué le premier pas vers l’inversion de cette image, créant<br />

une nouvelle identité : le « funk de raiz » (funk de racine), une coproduction entre<br />

certains funkeiros – qui furent exploités et ont disparu de la scène musicale – et<br />

des intellectuels, représentés par des étudiants, des professeurs et des militants de<br />

la gauche. Tous ces nouveaux acteurs vont remettre au bout du jour le rôle de «<br />

médiateurs culturels », qui à l’époque de la Samba avaient établi des ponts entre la<br />

culture considérée comme populaire et les élites.<br />

Pour Lopes, « les funkeiros, en interagissant avec ces sujets (les intellectuels)<br />

ont commencé à construire leur art comme une forme de mobilisation sociale autour<br />

de la revendication et de la promotion de leurs droits » (2010, p.43).<br />

Il est important de souligner que ce rôle de « médiateur culturel » va également<br />

être endossé par certains acteurs de la gauche. Pour ces nouveaux agents,<br />

l’identité funkeira n’était plus perçue comme aliénée, mais au contraire comme<br />

une forme de réponse à l’oppression et à l’exploitation. Ainsi, cette identité fut<br />

insérée dans un contexte plus large de lutte contre le préjugé et contre la discrimination<br />

de la population pauvre et « favelada » de la ville.<br />

L’articulation entre ces deux mondes différents se réalisait lors de ce que<br />

l’on appelle les « Rodas de Funk », des événements où les performances de funk<br />

étaient mises en scène de manière politisée à travers la musique et les discours.<br />

L’expression “roda” rappelle les célèbres “rodas de samba”, qui font référence à<br />

une interaction musicale traditionnelle. En vérité, les artistes qui jouent dans<br />

les « rodas de funk » se désignent comme les « funkeiros de racine » (funkeiros<br />

de raiz) justement pour donner à leur musique le prestige d’être le véritable<br />

Funk Traditionnel. Selon Ortiz, le mot tradition « s’associe au folklore, au<br />

patrimoine, au passé. Il est rare de penser le traditionnel comme un ensemble<br />

d’institutions et de valeurs venus d’une histoire récente, et qui s’impose comme<br />

une tradition moderne » (2000, p.195). Cependant, la tradition moderne a une<br />

histoire, une évolution, elle mélange le passé et le présent, et possède sa propre<br />

manière d’être et ses conceptions du monde. « Elle apparaît ainsi comme un<br />

souvenir d’un moment passé, et sans appartenir au folklore, ou à la culture<br />

populaire, elle sera comprise comme ‘traditionnelle’» (ORTIZ, 2000, p. 213).<br />

L’objectif de l’APAFUNK de se lier à un modèle traditionnel a un sens,<br />

puisque le fait de s’emparer du mot « racine » ou « tradition » légitime sans<br />

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effort leur discours. Ci-dessous, Mc Leonardo essaye d’expliquer quels sont les<br />

objectifs d’une « roda de funk » :<br />

Les ‘rodas’ furent imaginées comme un espace où les artistes, exclus du<br />

marché funkeiro, discuteraient sur leurs droits, sur l’art et la politique,<br />

et échangeraient leurs expériences. Tout cela toujours sur une base<br />

sonore très funk. Il était nécessaire aussi d’être entendu par la société et<br />

d’attirer l’attention de ceux qui ont des préjugés contre le funk. (Apud<br />

LOPES, 2010, p.101).<br />

La première interaction entre les « médiateurs culturels » et les chanteurs<br />

exclus auxquels MC Leonardo fait référence s’est produite lors d’une réunion<br />

chez l’anthropologue Adriana Facina (une figure importante qui a choisi de<br />

favoriser le contact entre les deux mondes):<br />

L’idée était créer une association, pas une ONG ou une coopérative. Nous<br />

avons rédigé le Manifeste. La première fois qu’il a été lu publiquement fut lors<br />

de la première Roda de Funk qui a eu lieu chez Adriana Facina, pour laquelle elle<br />

avait appelé certains membres du PSOL [Partido Socialismo e Liberdade] et de la<br />

gauche militante. J’ai trouvé cela intéressant, parce que je connaissais ces gens<br />

de la gauche et tout le monde avait beaucoup de préjugés contre le Funk, soutenant<br />

qu’il s’agissait d’un discours aliéné. Il est intéressant de noter qu’à partir<br />

de ce moment là, ils y ont reconnu une cause légitime, puisqu’ils ont vu que les<br />

funkeiros étaient des travailleurs comme les autres, dont les droits étaient exploités.<br />

(Extrait de mon entretien avec Adriana Lopes, réalisé le 4 Novembre 2010).<br />

La présence de ces nouveaux acteurs a contribué à la construction d’une<br />

légitimité du mouvement, qui a commencé à pénétrer certains endroits qui<br />

leurs étaient auparavant fermés, comme les universités, les expositions culturelles<br />

2 et les réunions politiques.<br />

En vérité je crois qu’il y a eu une bonne articulation et Adriana Facina<br />

en a été le pont. Ils [les militants de la gauche] ont reconnu dans le funk<br />

une cause légitime de gauche: les travailleurs exploités. Les funkeiros<br />

ont aussi fait des « rodas » dans les campements du MST [Movimento<br />

dos Sem Terra, le Mouvement des travailleurs Sans Terre, militant pour<br />

la réforme agraire] […] Le sujet du funk fut amené à l’intérieur des<br />

universités, non comme objet de recherche, mais pour y apporter son<br />

véritable point de vue. MC Leonardo, par exemple, a participé au cycle<br />

de conférence « Langage et Exclusion » de l’Unicamp [Université de<br />

Campinas] en tant qu’orateur au coté de plusieurs docteurs. (Extrait de<br />

mon entretien avec Adriana Lopes, réalisé le 4 Novembre 2010).<br />

Le producteur culturel Mateus Aragão raconte également l’interaction<br />

entre les funkeiros et le milieu intellectuel et souligne l’importance de certains<br />

personnages de l’élite qui ont lutté en faveur du rythme :<br />

Nous, les gens du Circo Voador, avons commencé à observer Mr. Catra<br />

[l’un des MCs les plus célèbres à Rio] et à l’inviter à participer à notre<br />

cycle de débats […] Le théâtre Casa Grande avait pris feu, et ils nous<br />

ont ensuite appelé pour nous en occuper, nous avons commencé à y<br />

organiser plein d’événements : des débats, du cinéma, de la poésie.<br />

Dans l’un des débats, Catra parlait sur la représentativité et l’identité.<br />

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(Extrait de mon entretien avec Mateus Aragão- l’instigateur de la fête «<br />

Eu amo Baile Funk »- réalisé le 6 Janvier <strong>2011</strong>)<br />

Il y a un personnage très important dans cette histoire qui s’appelle<br />

Diana Pitigliane, c’était une photographe de mode très connue, qui est<br />

déjà décédée. Elle a transformé son cancer en une lutte pour le funk. En<br />

tant que photographe de mode, elle était respectée de tous et ainsi elle<br />

a commencé à rompre les barrières. Elle connaissait les reporters, alors<br />

si l’un d’entre eux faisait un article contre le funk, elle y allait, appelait<br />

la personne et lui demandait un article pour elle [en faveur du funk,<br />

pour contrebalancer]. (Extrait de mon entretien avec Mateus Aragão-<br />

l’instigateur de la fête « Eu amo Baile Funk »- réalisé le 6 Janvier <strong>2011</strong>).<br />

Dans ce nouveau contexte, il est important de souligner que l’interaction<br />

entre les funkeiros exclus de la scène musicale et certains « médiateurs culturels »<br />

sera très importante pour la politisation du funk carioca et les espaces trouvés pour<br />

ces échanges furent les « rodas de funk ». Dans ces réunions alternatives, les acteurs<br />

chantaient des musiques qui n’étaient plus passées à la radio ou dans les médias. En<br />

conclusion, ces manifestations n’étaient pas seulement des endroits de nostalgie,<br />

mais également des lieux de mise en scène du discours de la favela à travers le funk.<br />

ConClusion<br />

Pendant cet article, nous avons essayé d’aborder exactement certaines<br />

caractéristiques que la Samba e le Funk carioca ont en commun. Certes, il<br />

existe d’autres traits de ressemblance, comme la lutte contre le préjugé racial et<br />

social, mais l’objectif ici était de montrer comme la ville peut impliquer dans<br />

la naissance et dans le comportement de ces styles musicaux.<br />

L’actuel député Marcelo Freixo (PSOL) a fait une remarque intéressante<br />

que nous avons essayé de démontrer ici. Selon lui :<br />

Ce qui se passe avec le Funk ressemble beaucoup à ce qui s’est passé<br />

avec la Samba. Au début, les chanteurs ont été jetés en prison car ils<br />

étaient considérés comme des bons à rien, des vagabonds, et maintenant<br />

le Brésil exporte sa propre image à travers la Samba. À mon avis,<br />

l’histoire est en train de se répéter avec le Funk 3 .<br />

À l’image du parcours de la Samba à son époque, aujourd’hui le Funk est<br />

en train de vivre un moment de légitimité, conquis grâce à ses médiateurs culturels.<br />

Autour des « Rodas de Funk » (Rondes de Funk), ces anciens acteurs ont<br />

lutté (et luttent encore) pour une reconnaissance du mouvement en tant que<br />

culture. Leur rêve s’est réalisé sous la forme d’une loi en 2009, une première<br />

conquête, mais qui n’a pas encore assurée le gain de la bataille.<br />

Ainsi, comme le fut la Samba par le passé, le Funk vient d’être élevé par<br />

le gouvernement au rang de mouvement de culture populaire. Etablir le Funk<br />

comme un mouvement culturel fut certes une façon de donner la parole à une<br />

partie de la société et de légitimer son existence, mais il reste à savoir si cet aval<br />

du gouvernement n’est qu’une opération de stratégie politique visant à transformer<br />

le rythme en instrument marketing pour les élections.<br />

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notas<br />

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1 Être « malandro », c’est être malin, rusé, savoir se servir de tout ce qui est à sa<br />

disposition pour en tirer profit. Plus que de la débrouillardise, la « malandragem »<br />

est aussi une représentation particulière de la société dont on rejette en partie le<br />

mode de fonctionnement et les règles qu’elle impose sans les combattre vraiment.<br />

Définition tirée de l’article de BENNEGENT, 2005, p.3.<br />

2 A titre d’exemple, au moment de la rédaction de ce mémoire, en février <strong>2011</strong>,<br />

le consulat de France à Rio de Janeiro proposait une exposition sur l’univers Funk<br />

Carioca.<br />

3 Extrait de l’entretien avec le député Marcelo Freixo pour la chaîne France 5. Vidéo<br />

disponible sur l’URL: http://documentaires.france5.fr/tags/rio-de-janeiro. Dernière<br />

visualisation : 15/03/<strong>2011</strong>.<br />

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Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Corpo, envelhecimento e<br />

felicidade na cultura brasileira<br />

Body, aging and happiness in Brazilian culture<br />

Mirian Goldenberg<br />

Doutora em Antropologia Social e Professora do Departamento de<br />

Antropologia Social e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e<br />

Antropologia do IFCS/UFRJ.<br />

Resumo<br />

Neste texto discute-se o papel do corpo como uma importante forma de capital<br />

(físico, simbólico e social) na cultura brasileira. Busca-se mostrar os traços distintivos<br />

de uma cultura em que o corpo é um elemento crucial na construção de uma identidade<br />

nacional. Pode-se dizer que no Brasil “o corpo” é um capital, talvez um dos mais<br />

desejados pela classe média urbana e outros estratos sociais, que percebem “o corpo”<br />

como um veículo para a ascensão social, e também uma importante forma de capital<br />

no mercado de trabalho, no mercado de casamento e, também, no mercado erótico.<br />

Palavras-chave: Gênero; corpo; cultura brasileira.<br />

Abstract<br />

In this text I discuss the role of the body as an important form of (physical, symbolic,<br />

and social) capital in Brazilian culture. I try to lay out the distinguishing traits<br />

of a culture in which the body is a crucial element in the construction of a national<br />

identity. It can be said that in Brazil the body is a capital, maybe the most desired<br />

one by the urban middle class and also lower strata, which perceive the body as a<br />

fundamental vehicle for social ascension, and also an important form of capital in<br />

the job, spousal, and erotic markets.<br />

Keywords: Gender; body; brazilian culture.<br />

Corpo, envelhecimento e felicidade na cultura brasileira


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Desde 1988 venho realizando inúmeras pesquisas qualitativas e quantitativas<br />

com homens e mulheres na cidade do Rio de Janeiro, comparando os<br />

resultados dessas pesquisas com dados que coletei em outras culturas, particularmente<br />

na Alemanha, Espanha, Suécia e Argentina. Meu foco tem sido as representações<br />

de gênero, casamento, infidelidade, sexualidade, a construção social do<br />

corpo e o envelhecimento na cultura carioca.<br />

O Rio de Janeiro é um lugar especial para se pensar em traços particulares<br />

da cultura brasileira. Um lugar que simboliza um determinado<br />

“espírito brasileiro”, associado à praia, ao sol, ao calor, à informalidade, ao<br />

corpo, à sexualidade, à saúde e a uma natureza privilegiada.<br />

Leila Diniz, objeto de estudo de minha tese de doutorado em antropologia<br />

(GOLDENBERG, 1995), foi e é ainda um ícone desse espírito solar. Com<br />

seu corpo grávido de biquíni na praia de Ipanema, em 1971, Leila é, até hoje,<br />

a melhor representante da revolução feminina ocorrida nas décadas de 1960<br />

e 1970, quando as brasileiras libertaram seu corpo dos papéis tradicionais de<br />

mãe e esposa e inventaram novas formas de ser mulher.<br />

Outro ícone dessa revolução comportamental foi Fernando Gabeira,<br />

que, recém-chegado do exílio no verão de 1980, exibiu o corpo vestindo uma<br />

tanga lilás de crochê na praia de Ipanema. Os corpos de Leila e de Gabeira,<br />

no verão das praias cariocas, mostraram que ser homem e ser mulher no Brasil<br />

nunca mais seria o mesmo.<br />

E o que estes corpos simbolizaram em plena ditadura militar? Liberdade,<br />

em primeiro lugar, e também felicidade, prazer e a busca de criar novas alternativas<br />

de comportamento para os brasileiros e brasileiras.<br />

Nos últimos anos, pesquisando homens e mulheres das camadas médias<br />

do Rio de Janeiro (VELHO, 1981), elaborei uma ideia que venho discutindo<br />

em meus textos, aulas e palestras: no Brasil, o corpo é um verdadeiro capital<br />

(GOLDENBERG, 2007).<br />

Determinado modelo de corpo na cultura brasileira contemporânea é<br />

uma riqueza, talvez a mais desejada pelos indivíduos das camadas médias urbanas,<br />

e também das camadas mais pobres, que percebem seu corpo como um<br />

importante veículo de ascensão social e, também, um importante capital no<br />

mercado de trabalho, no mercado de casamento e no mercado sexual.<br />

Além de um capital físico, o corpo é também um capital simbólico,<br />

um capital econômico e um capital social. No entanto, é preciso ressaltar que<br />

este corpo capital não é um corpo qualquer. É um corpo que deve ser magro,<br />

jovem, em boa forma, sexy. Um corpo conquistado por meio de um enorme<br />

investimento financeiro, muito trabalho e uma boa dose de sacrifício.<br />

Bourdieu (1999) afirmou que os homens tendem a se mostrar insatisfeitos<br />

com as partes de seu corpo que consideram pequenas demais enquanto<br />

Corpo, envelhecimento e felicidade na cultura brasileira


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Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

as mulheres dirigem suas críticas às regiões de seu corpo que percebem<br />

como grandes demais. O autor acreditava que a “dominação masculina”,<br />

que constitui as mulheres como objetos simbólicos, tem por efeito colocá-las<br />

em permanente estado de insegurança corporal, ou melhor, de dependência<br />

simbólica: elas existem primeiro pelo e para o olhar dos outros como objetos<br />

receptivos, atraentes e disponíveis.<br />

Das mulheres, segundo o mesmo autor, se espera que sejam femininas,<br />

ou seja, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou<br />

até mesmo apagadas. Neste caso, ser magra contribui para esta concepção<br />

de “ser mulher”. Sob o olhar dos outros, as mulheres são obrigadas a experimentar<br />

constantemente a distância entre o corpo real a que estão presas, e o<br />

corpo ideal, o qual procuram infatigavelmente alcançar.<br />

No Brasil, onde as praias e a temperatura elevada durante quase todo o<br />

ano favorecem o desnudamento, a centralidade que a aparência física assume<br />

na vida cotidiana é muito mais evidente. A crença de que o corpo é um capital<br />

produz uma cultura de enorme investimento na forma física e, também,<br />

de profunda insatisfação com a própria aparência. Insatisfação que atinge<br />

inúmeros brasileiros e, especialmente, brasileiras.<br />

Com a ideia de que o corpo no Brasil é um verdadeiro capital, é possível<br />

compreender porque as mulheres brasileiras, logo após as norte-americanas,<br />

são as maiores consumidoras de cirurgia plástica estética em todo o<br />

mundo. São preenchimentos faciais, botox, tintura para cabelo, entre outros<br />

inúmeros procedimentos para conquistarem o corpo capital.<br />

Esse corpo capital pode explicar o fato do mercado de cosméticos no Brasil<br />

ser o terceiro do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos e Japão. O<br />

crescimento da indústria de beleza no Brasil é cada vez maior, especialmente com<br />

a entrada das classes C e D com força total no mercado consumidor.<br />

Como aprendemos na antropologia, a cultura brasileira veste o nosso corpo.<br />

Pode-se dizer que no Brasil o corpo é muito mais importante do que a roupa.<br />

No Brasil, particularmente no Rio de Janeiro, o corpo trabalhado,<br />

cuidado, sem marcas indesejáveis (rugas, estrias, celulites, manchas) e sem<br />

excessos (gordura, flacidez) é o único que, mesmo sem roupas, está decentemente<br />

vestido (GOLDENBERG e RAMOS, 2002). Pode-se pensar neste<br />

sentido, que, além do corpo ser muito mais importante do que a roupa, ele<br />

é a verdadeira roupa: é o corpo que deve ser exibido, moldado, manipulado,<br />

trabalhado, costurado, enfeitado, escolhido, construído, produzido e imitado.<br />

É o corpo que entra e sai da moda. A roupa, neste caso, é apenas um<br />

acessório para a valorização e exposição deste corpo capital.<br />

Corpo, envelhecimento e felicidade na cultura brasileira


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Ao analisar algumas das questões da minha pesquisa com 1279 homens e<br />

mulheres das camadas médias cariocas, fiquei surpresa com a recorrência da categoria<br />

“o corpo” nas respostas femininas e masculinas. Por exemplo, ao perguntar<br />

às mulheres: “O que você mais inveja em uma mulher?” Elas responderam:<br />

“beleza em primeiro lugar, o corpo, em seguida, e inteligência em terceiro lugar.”<br />

Quando perguntei aos homens: “O que você mais inveja em um homem?” Tive<br />

como respostas: “inteligência, poder econômico, beleza e o corpo.”<br />

Em outra questão perguntei às mulheres: “O que mais te atrai em um<br />

homem?” Elas responderam: “inteligência e o corpo.” Quando perguntei aos<br />

homens: “O que mais te atrai em uma mulher?” Encontrei: “beleza, inteligência<br />

e o corpo.” O corpo aparece ainda com maior destaque quando perguntei<br />

às mulheres: “O que mais te atrai sexualmente em um homem?” As respostas<br />

foram: “tórax e o corpo.” Para os homens: “O que mais te atrai sexualmente em<br />

uma mulher?” Tive: “bunda e o corpo.”<br />

Também perguntei: “Se você escrevesse um anúncio com o objetivo<br />

de encontrar um parceiro, como você se descreveria?”, “Como você descreveria<br />

o que procura em um parceiro?” Nas respostas, o corpo aparece<br />

seguido de inúmeros adjetivos, tais como: magro, jovem, sexy, sensual,<br />

atraente, gostoso, definido, malhado, trabalhado, sarado, saudável, atlético,<br />

forte, firme e em boa forma.<br />

A cultura brasileira, particularmente a cultura carioca, a partir da valorização<br />

de determinadas práticas, transforma o que é “natural”, o corpo biológico,<br />

em um corpo distintivo (BOURDIEU, 1988): “o corpo” como capital.<br />

Como afirmou Marcel Mauss (1974), é por meio da “imitação prestigiosa”<br />

que os indivíduos de cada cultura constroem seus corpos e comportamentos.<br />

Para Mauss, o conjunto de hábitos, costumes, crenças e tradições - que<br />

caracterizam uma cultura -também se refere ao corpo. Assim, há uma construção<br />

cultural do corpo, com a valorização de certos atributos e comportamentos<br />

em detrimento de outros, fazendo com que haja um corpo típico para cada<br />

sociedade. Esse corpo, que pode variar de acordo com o contexto histórico e<br />

cultural, é adquirido pelos membros da sociedade por meio da “imitação prestigiosa”.<br />

Os indivíduos imitam atos, comportamentos e corpos que obtiveram<br />

êxito e que têm prestígio em sua cultura.<br />

No caso brasileiro, as mulheres mais bem sucedidas e “imitáveis”, as<br />

mulheres de prestígio são atualmente: as atrizes, as modelos, as cantoras e as<br />

apresentadoras de televisão. Todas elas tendo o corpo como o seu principal<br />

capital, ou uma de suas mais importantes riquezas. Por outro lado, os jogadores<br />

de futebol, os atores e os apresentadores de televisão também ocupam<br />

posições de muito sucesso e prestígio em nosso país.<br />

Pode-se dizer que ter “o corpo”, com tudo o que ele simboliza, promove<br />

nos brasileiros uma conformidade a um estilo de vida e a um conjunto de<br />

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normas de conduta, recompensada pela gratificação de pertencer a um grupo<br />

de valor superior. “O corpo” surge como um símbolo que consagra e torna visíveis<br />

as extremas diferenças entre os grupos sociais no Brasil (GOLDENBERG<br />

e RAMOS, 2002). Para aprofundar essa discussão, estou fazendo um estudo<br />

comparativo com mulheres brasileiras e alemãs na faixa de 50 a 60 anos<br />

(GOLDENBERG, 2008).<br />

Em “O Segundo Sexo” (1980), Simone de Beauvoir afirma que por volta dos<br />

50 anos a mulher está em plena posse de suas forças, sente-se rica de experiências.<br />

No entanto, só lhe ensinaram a dedicar-se e ninguém reclama mais sua dedicação.<br />

Inútil, injustificada, contempla os anos sem promessa que lhe restam por viver e<br />

murmura: “Ninguém precisa de mim”.<br />

“A Velhice” (1990), também de Simone de Beauvoir, revela um retrato<br />

cruel do envelhecimento. Ela afirma que já que o destino da mulher é<br />

ser, aos olhos do homem, um objeto erótico, ao tornar-se velha e feia, perde<br />

o lugar que lhe é destinado na sociedade, tornando-se então um monstro<br />

que suscita repulsa e até mesmo medo.<br />

Ao entrevistar mulheres brasileiras que estão envelhecendo, constatei<br />

um abismo entre o poder objetivo que elas conquistaram e a miséria subjetiva<br />

que aparece em seus discursos. Elas conquistaram realização profissional, independência<br />

econômica, maior escolaridade e liberdade sexual, mas se mostram<br />

extremamente preocupadas com o excesso de peso, têm vergonha do corpo e<br />

medo da solidão.<br />

As alemãs se revelam muito mais seguras, tanto objetiva quanto<br />

subjetivamente.<br />

Mais confortáveis com o envelhecimento, enfatizam a riqueza dessa fase<br />

em termos de realizações profissionais, intelectuais e afetivas. Aos 60 anos elas<br />

se sentem no auge da vida, entusiasmadas com projetos profissionais, viagens,<br />

programas culturais etc.<br />

A discrepância entre a realidade e a miséria discursiva das brasileiras, mostra<br />

que aqui a velhice é um problema muito maior, o que explica o sacrifício que<br />

muitas fazem para parecer mais jovens.<br />

A decadência do corpo, a falta de homem e a invisibilidade marcam o<br />

discurso das brasileiras. De diferentes maneiras, elas dizem: “Aqueles olhares<br />

e cantadas tão comuns sumiram. Ninguém mais me chama de gostosa. Sou<br />

uma mulher invisível”.<br />

Curiosamente, as brasileiras que se mostram mais satisfeitas não são as<br />

mais magras ou bonitas, e sim aquelas que estão casadas há anos. Elas têm<br />

“capital marital” (GOLDENBERG, 2008).<br />

Em um mercado em que os homens disponíveis são escassos, principalmente<br />

na faixa etária pesquisada (GOLDENBERG, 2006), as casadas<br />

se sentem poderosas por terem um “produto” raro e valorizado. Aqui, ter<br />

marido também é um capital.<br />

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No Brasil, onde corpo e marido são considerados capitais, o envelhecimento<br />

é experimentado como uma fase de perdas e faltas. Já na cultura<br />

alemã, em que diferentes capitais têm mais valor, a velhice pode ser um momento<br />

de realizações e de extrema liberdade.<br />

As mulheres brasileiras que entrevistei, entre 40 e 50 anos, falaram<br />

principalmente, da decadência do corpo e da falta de homem. No entanto,<br />

para minha surpresa, quanto mais avançava na idade das pesquisadas,<br />

mais aspectos positivos apareciam em seus depoimentos sobre a velhice.<br />

Elas passaram a fazer coisas que sempre desejaram, como dançar, cantar,<br />

viajar, passear, namorar, correr, pintar, nadar, estudar etc. Mais importante<br />

ainda: deixaram de se preocupar com a opinião dos outros e passaram a<br />

priorizar os próprios desejos.<br />

Uma professora aposentada, de 74 anos, disse:<br />

“com a idade eu ganhei duas coisas preciosas: liberdade e maturidade.<br />

Eu me sinto muito melhor hoje, ganhei independência, faço o que eu<br />

quero, não faço o que não gosto, namoro com quem eu quero, beijo<br />

quem eu gosto, faço musculação e pilates, saio, viajo, tomo chopinho,<br />

vou à praia, fiz uma tatuagem há três anos e vou fazer outra... é o<br />

melhor momento de toda a minha vida”.<br />

As brasileiras pesquisadas estão vivendo mais e muito melhor. Dizem<br />

que existem muitos ganhos com o envelhecimento, e não só perdas. As mais<br />

jovens têm muito medo de envelhecer, porém as mais velhas não falam só<br />

sobre doenças, preconceitos e invisibilidade social, mas também sobre felicidade,<br />

prazer e liberdade.<br />

Simone de Beauvoir, em “A Velhice” (1990), refletiu sobre o próprio sofrimento.<br />

Ela escreveu que é normal, uma vez que em nós o outro que é velho, que a<br />

revelação de nossa idade venha dos outros. Ela estremeceu, aos 50 anos, quando<br />

uma estudante americana relatou a reação de uma colega: “Mas então, Simone<br />

de Beauvoir é uma velha!”. A filósofa afirmou que toda uma tradição carregou<br />

essa palavra de um sentido pejorativo – ela soa como um insulto.<br />

No entanto, Simone de Beauvoir sugeriu a possibilidade de uma “bela<br />

velhice”: construir um projeto singular que torne cada indivíduo autorizado<br />

a decidir sobre os seus comportamentos, não de acordo com determinadas<br />

regras, mas segundo sua própria vontade.<br />

No caso das mulheres, em particular, “a última idade” pode representar<br />

uma liberação, já que submetidas durante toda a vida ao marido e dedicadas<br />

aos filhos podem enfim preocupar-se consigo mesmas, escreveu a filósofa.<br />

Entrevistando brasileiras de mais de 50 anos, encontrei esta mesma<br />

ideia. Casadas ou separadas, com filhos ou netos, com namorados ou sozinhas,<br />

trabalhando ou aposentadas, as mulheres com quem tenho conversado<br />

dizem categoricamente:<br />

Corpo, envelhecimento e felicidade na cultura brasileira


83<br />

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“é a primeira vez na vida que me sinto realmente livre. Antes, vivia<br />

para o marido, os filhos, a família. Já cumpri todas as minhas obrigações<br />

sociais e familiares. Agora, posso cuidar de mim, fazer o que<br />

realmente gosto, não dar mais satisfação para ninguém. Posso ser eu<br />

mesma pela primeira vez na minha vida”.<br />

Muitas brasileiras também me disseram que passaram a se sentir invisíveis<br />

depois dos 50. Uma revelou:<br />

“eu sempre fui uma mulher muito paquerada, acostumada a levar cantada<br />

na rua. Quando fiz 50, parece que me tornei invisível. Ninguém<br />

mais diz nada, um elogio, um olhar, nada. É a coisa que me dá a sensação<br />

de ter me tornado velha. Hoje, me chamam de senhora, de tia, me<br />

tratam como alguém que não tem mais sensualidade, que não desperta<br />

mais desejo. É muito difícil aceitar que os homens me tratem como<br />

uma velha, e não como mulher. Na verdade, não acho nem que me<br />

tratam como velha, simplesmente me ignoram, me tornei invisível”.<br />

No entanto, alguns indivíduos não permitem que os outros os tornem<br />

invisíveis. Muitos nunca serão “um velho”, mas homens e mulheres que envelhecem<br />

dando continuidade aos seus projetos existenciais. Continuam cantando,<br />

dançando, criando, buscando a felicidade e o prazer, transgredindo as<br />

normas e os tabus existentes. Mais livres e visíveis do que nunca, são aqueles<br />

que podem ser chamados de ageless, ou “os sem idade”.<br />

Quando penso na “bela velhice”, como propõe Simone de Beauvoir, penso<br />

na geração que foi jovem nos anos 1960 e 1970 e que está começando a envelhecer.<br />

Geração que reinventou a sexualidade, o corpo, as novas formas de conjugalidade,<br />

casamento e família. Geração que teve como prioridade a busca do prazer e da<br />

liberdade sexual, a recusa de qualquer forma de controle e de autoridade e a defesa<br />

da igualdade entre homens e mulheres. Geração que não aceitará o imperativo:<br />

“seja um velho!” ou qualquer outro tipo de rótulo que sempre rejeitou e contestou.<br />

Quando penso em uma forma positiva de envelhecer, penso em homens<br />

e mulheres que nunca foram e nunca serão controlados pelas normas<br />

sociais. São estes indivíduos que se reinventam permanentemente, que podem<br />

nos ensinar sobre a “bela velhice”.<br />

Na Bienal do Livro do Rio de Janeiro de <strong>2011</strong> participei do debate<br />

“Elas não envelhecem mais: as novas velhas”. Comecei discordando do título,<br />

dizendo que no Brasil envelhecemos, sim, e precocemente. Aos 30 anos as<br />

brasileiras já estão preocupadas com fios de cabelos brancos, ruguinhas que<br />

começam a aparecer e quilinhos a mais.<br />

Lembrei que na Alemanha, onde fiquei alguns meses realizando entrevistas,<br />

aos 60 elas não falam dessas questões. Falam do trabalho, da<br />

casa, das viagens e dos projetos. Aqui mesmo antes dos 30, as mulheres só<br />

falam da decadência do corpo e da falta de homem. Ou ainda das faltas dos<br />

seus homens (falta de comunicação, de romance, de carinho, de elogios, de<br />

sexo, de fidelidade etc.).<br />

Corpo, envelhecimento e felicidade na cultura brasileira


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Contei o caso de uma cinquentona magra e bonita que encontrou o<br />

ex-marido sessentão barrigudo, careca e sem alguns dentes. Olhando para<br />

o pescoço dela, ele disse: “Você envelheceu um pouquinho”, para em seguida<br />

acrescentar: “Mas suas mãos continuam jovens”. Traumatizada com o<br />

olhar acusador do ex, ela agora só anda de echarpe para esconder a velhice<br />

retratada no pescoço.<br />

Na Bienal, após um debate sobre a valorização do corpo jovem e<br />

magro em nossa cultura (que fez com que eu criasse a ideia de que o corpo<br />

é um capital), ficou uma pergunta no ar: “como as mulheres poderiam se<br />

libertar dessa prisão?”<br />

Concordei, então, com o subtítulo da mesa: “as novas velhas”. Muitas<br />

mulheres mais velhas conseguem se libertar da ditadura da aparência e se preocupar<br />

mais com saúde, qualidade de vida e bem-estar. Elas tiram o foco do<br />

olhar dos outros, e passam a priorizar o próprio prazer, desejos e vontades.<br />

A grande mudança com o envelhecimento parece ser essa mudança de<br />

foco, de deixar de existir para os outros e passar a ser “eu mesma” pela primeira<br />

vez na vida. É uma verdadeira libertação.<br />

Leila Diniz, se não tivesse morrido aos 27 anos em um acidente aéreo,<br />

teria 66 anos. Fernando Gabeira tem 70 anos. Foram as Leilas e os<br />

Gabeiras da geração dos anos 1960 e 1970 que inventaram novos modelos<br />

de ser homem e de ser mulher no Brasil. E são as novas Leilas e os novos<br />

Gabeiras que estão inventando alternativas mais prazerosas, livres e felizes<br />

de ser homem e de ser mulher nos dias de hoje.<br />

Corpo, envelhecimento e felicidade na cultura brasileira


85<br />

referênCias bibliográfiCas<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

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BEAUVOIR, Simone. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.<br />

BOURDIEU, Pierre. La Distinctión. Madri: Taurus, 1988.<br />

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Brasil, 1999.<br />

GOLDENBERG, Mirian. Toda mulher é meio Leila Diniz. Rio de Janeiro:<br />

Record, 1995.<br />

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corpo como valor. In: Nu & Vestido. Rio de Janeiro: Record, 2002.<br />

GOLDENBERG, Mirian. Infiel: notas de uma antropóloga. Rio de Janeiro:<br />

Record, 2006.<br />

GOLDENBERG, Mirian. O corpo como capital. São Paulo: Estação das<br />

Letras e Cores, 2007.<br />

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Rio de Janeiro: Record, 2008.<br />

MAUSS, Marcel. As Técnicas Corporais. Sociologia e Antropologia. São<br />

Paulo: EPU/EDUSP, 1974.<br />

VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da<br />

sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.<br />

Corpo, envelhecimento e felicidade na cultura brasileira


Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Corpo/Cidade: uma corpografia do medo<br />

Body/City: a bodygraphy of fear<br />

Marcelus Gonçalves Ferreira<br />

Mestrando em Comunicação do PPGC-UERJ e Coreógrafo no Curso de<br />

Direção Teatral da UFRJ<br />

Resumo<br />

Este artigo discute a existência de um padrão de corporeidade na estruturação<br />

dos corpos dos sujeitos na cidade – resultante do medo da violência no<br />

cotidiano e sua espetacularização pela mídia. Foram feitas leituras de estudos<br />

que tratam das modificações arquitetônicas da cidade em função da proteção<br />

e segurançae de como o corpo do cidadão se adapta, molda e atribui fisicidade<br />

às suas vivências. O que o corpo deixa transparecer nos registros de ação e<br />

movimento, tratamos como “corpografia urbana do medo”.<br />

Palavras-chave: corpo; cidade; medo.<br />

Abstract<br />

This article discusses the existence of a pattern ofcorporeality in the structuring of<br />

the bodies of the subjects in the city-resulting from fear of violence in everyday life<br />

and its sensationalism by the media. Readings were made dealing with studies<br />

of the city’s architectural modifications depending on the protection and security<br />

and as the citizen’s body adapts, molds and adds physicality to their experiences.<br />

What the body depicts in the records of action and movement, we treat as “urban<br />

bodygraphy of fear”.<br />

Keywords: body; city; fear.<br />

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o meDo Como DefiniDor De paDrões<br />

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As informações veiculadas pela mídia de massa podem ser definidoras de<br />

tendências e comportamentos (Lima, 2002), fato que gera um grande interesse<br />

acadêmico. Neste texto, discutimos alguns aspectos na relação entre corpo e<br />

cidade a partir da constatação da intensificação da violência urbana, de sua<br />

exploração espetacularizante pela mídia e a consequente influência do medo<br />

resultante deste quadro na organização e estruturação dos grandes centros urbanos<br />

(Amaral, 2007; Freitas e Lessa, 2005). A violência urbana no cotidiano<br />

e sua espetacularização influenciam os comportamentos e ações dos cidadãos<br />

e refletem na arquitetura urbana contemporânea, que tende a se organizar de<br />

acordo com padrões de fuga e isolamento. O objetivo deste estudo é refletir<br />

sobre a possibilidade da existência de um padrão de corporeidade relacionado<br />

ao medo na estruturação dos corpos dos sujeitos das grandes cidades.<br />

Para o desenvolvimento deste estudo, primeiramentediscutimos<br />

como a sensação do medo se apresenta na transformação da arquitetura da<br />

cidade e, posteriormente, refletimos sobre as vivências do cidadão nos espaços<br />

“contaminados” pelo medo, em como elas podem ser definidoras de<br />

uma corpografia urbana específica. Assim, tentamos apontar um possível<br />

caminho de resistência dos corpos dos cidadãos ao se depararem com estruturas<br />

urbanas cerceadoras e espetacularizantes. Questionamos se o que<br />

se apresenta como um ambiente urbano opressor não oferece frestas para o<br />

corpo se expressar e reordenar suas experiências no cotidiano das cidades.<br />

Deste modo, para localizar a problemática das corporeidades na dinâmica<br />

do mundo contemporâneo, partimos dos estudos de Zygmunt Bauman,<br />

Félix Guattari, Massimo Canevacci e Michel Foucault. Utilizamos o conceito<br />

de corpografia apresentado por Paola Berenstein Jacques e Fabiana<br />

Dultra Britto para refletir sobre a relação do corpo e a cidade, associando a<br />

estudos que tratam da violência e das transformações urbanas.<br />

A corpografia urbana é a interação entre o corpo e a cidade<br />

“mesmo que involuntariamente, através da simples experiência urbana.<br />

A cidade é lida pelo corpo como conjunto de condições interativas e o<br />

corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo em sua corporalidade”<br />

(Jacques e Britto, 2008, p. <strong>18</strong>2).<br />

A partir deste entendimento, acreditamos que o contexto social que se<br />

apresenta em relação ao medo da violência condiciona uma vivência do cidadão<br />

neste ambiente e por isso define um efeito, uma grafia específica em seu corpo.<br />

O papel da mídia quanto à espetacularização da violência resulta em<br />

duas situações distintas, uma delas seria a banalização dos atos violentos, tornando-os<br />

corriqueiros e sem importância no dia a dia das pessoas, ou então,<br />

a criação de um estado de alerta coletivo, em que são adotadas posturas de<br />

suspensão das vivências urbanas em favor de experiências seguras. Neste cenário,<br />

o que parece ocorrer também é a apropriação capitalista desta situação<br />

Corpo/Cidade: uma corpografia do medo


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Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

de envolvimento do cidadão com seus temores e, assim, se estabelece mais um<br />

foco de produção e mercado de consumo, o do seguro e da proteção. A mídia,<br />

neste contexto, fortalece a construção dessas representações nas associações<br />

entre violência e pobreza, marcando cada vez mais as desigualdades sociais,<br />

quando, ao mesmo tempo, potencializa a sensação de medo e insegurança com<br />

a exposição diária da violência. Gera assim, um ambiente propício para o cidadão<br />

consumir produtos relacionados ao se proteger. Como esclarece Amaral,<br />

É esse sentimento de vitimização que fortalece o imaginário das<br />

cidades como locais violentos e legitima a adoção de medidas privadas<br />

de segurança e a construção de espaços seguros (shopping centers,<br />

edifícios comerciais e condomínios vigiados, entre outros) que acabam<br />

por segregar o espaço público (Amaral, 2007, p. 128).<br />

Com a legitimação desses locais seguros, observa-se que, por natureza,<br />

eles se tornam excludentes e segregam em diversos níveis, além do físico também<br />

ocorre no nível simbólico, nas diferenças econômicas, raciais e de status<br />

social. Num efeito cíclico e complementar o binômio mídia/mercado na relação<br />

violência urbana/medo acaba rendendo dividendos para alguns e transformando<br />

os espaços públicos em locais de uso restrito ou, sob outro olhar, em<br />

locais controlados e sujeitos ao exercício de poder.<br />

Diante de um cenário urbano envolto em violência cultivamos os temores<br />

de lidar com as diferenças e o desconhecido. Segundo Bauman, como<br />

um sentimento que comanda tanto o comportamento animal quanto o do ser<br />

humano, o medo é “o nome que damos à nossa incerteza: nossa ignorância da<br />

ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la<br />

parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance” (grifos do autor)<br />

(2008, p. 8). O medo resulta, assim, em reações imediatas no organismo<br />

ao enfrentar ameaças e incertezas com comportamentos de fuga, passividade<br />

ou enfrentamento e agressão. Para o autor, no humano conhecemos uma espécie<br />

de “medo derivado”, um medo social e culturalmente elaborado, que se<br />

apresenta como processos mentais estáveis podendo ser descritos como o sentimento<br />

de suscetibilidade iminente ao perigo, o que pode gerar sensação de<br />

insegurança e vulnerabilidade. É com este “medo-derivado” e de propriedades<br />

líquidas que a sociedade urbana convive na contemporaneidade.<br />

De acordo com Bauman, o sujeito “que tenha interiorizado uma visão de<br />

mundo que inclua a insegurança e a vulnerabilidade recorrerá rotineiramente, mesmo<br />

na ausência de ameaça genuína, às reações adequadas a um encontro com o<br />

perigo; o ‘medo derivado’ adquire a capacidade de autopropulsão” (idem, p. 9). A<br />

sensação do medo, neste sentido, é fluida e pode estar totalmente “desacoplada” de<br />

sua origem. As pessoas influenciadas pelas derivações do medo e pelo perigo que<br />

espreita em qualquer espaço, seja físico ou simbólico, reagem no cotidiano instintivamente<br />

com enfrentamento e agressão ou com recuo e aprisionamento, negando<br />

o encontro direto com o mundo. Podemos perceber, neste sentido, que há uma incorporação,<br />

ou seja, uma fisicalização das atitudes de medo nas reações corporais.<br />

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Desta maneira, os dispositivos criados para lidar com o medo na atualidade,<br />

além de interferir diretamente na estética urbanística, que modifica o<br />

comportamento social e a vivência do ambiente pelo cidadão, acaba por reconfigurar<br />

a materialidade, a corporalidade de suas práticas e ações na cidade e<br />

definir um padrão específico de “corpografia do medo” na vida urbana.<br />

sorria, VoCê está senDo filmaDo!<br />

O medo crescente no imaginário das grandes cidades aumenta a necessidade<br />

de proteção e acaba ocorrendo o cerceamento das ações com a restrição<br />

do espaço de uso dos cidadãos. Como solução prática, tornar o ambiente seguro,<br />

além de cercá-lo é também torná-lo controlado. A proliferação dos sistemas<br />

de monitoramento dos espaços, sob vigilância constante, acompanhados da<br />

reformulação da arquitetura com lugares seguros, acaba confinando os indivíduos<br />

e sugerindo na estruturação física dos espaços semelhanças com o modelo<br />

tradicional de prisão desenvolvido por nossa sociedade, embora contraditoriamente,<br />

os indivíduos tenham livre arbítrio para deslocamento. A restrição do<br />

espaço está relacionada ao novo padrão que se estabelece em função do “medo<br />

derivado”, onde o cidadão se isola para se proteger e deixa de relacionar de forma<br />

ampla com o mundo. Assim, o corpo sofre restrições e por isso “correções”<br />

na sua forma de expressão em relação à cidade. O cidadão sofre, neste caso, um<br />

modo de “punição consentida” onde a fuga é a solução.<br />

Neste contexto, embora sejam atribuídas culpabilidades pela origem do<br />

medo na sociedade, elas também ocorrem num nível mais amplo e abstrato. A<br />

vigilância é irrestrita e se espalha nos ambientes e, muitas vezes, não há concretamente<br />

um contraventor que ameaça, todos em potencial podem estar sob<br />

as mesmas regras e punições. Em outras palavras, todos estão subjugados a um<br />

discurso velado, que pode ser traduzido como “cuidado, ande na linha, sorria...<br />

alguém te observa!”, o que é corroborado pelo cidadão com sua adequação às<br />

regras como um procedimento natural de subserviência.<br />

Como mencionado anteriormente, o comportamento de recuo que os<br />

indivíduos apresentam sob a insígnia do medo gera também um reflexo no<br />

corpo da cidade, na estruturação de suas formas arquitetônicas e espaços de<br />

convivência. Ferraz (2010), no estudo intitulado “Arquitetura da violência” 1 ,<br />

reconhece o surgimento de uma nova tipologia funcional e formal na arquitetura<br />

da cidade, consequente de um quadro de medo e exclusão social. De acordo<br />

com a autora, as formas de “habitar” nos grandes centros urbanos (neste<br />

estudo são as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo) têm origem nas desigualdades<br />

econômicas e sociais, que expõe uma forma de exclusão,<br />

(...) de forma polarizada, pela dupla exclusão: a auto-exclusão das elites<br />

nos bairros de alta renda ea exclusão dos miseráveis semacesso à moradia.<br />

Sedeumlado as elites se protegemconfinadasemfortalezasebunkersurbanoscontratandoproteçãoesegurança<br />

particulardetodotipo,opode<br />

rpúblicoseencarregadospobresemiseráveisatravésde políticas públicas<br />

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derepressão, recolhimento e confinamento, para mantê-los fora do<br />

campo de ação e de visão, sob controle, muitas vezes até mesmo legitimando,<br />

pela aprovaçãoveladaoudisfarçada,oupelaomissão,oseuextermí<br />

nio (Ferraz, 2010, p. 2).<br />

O poder discursivo da mídia muitas vezes constrói e agencia as hierarquias<br />

sociais, reforça as desigualdades, e o que poderiam ser “diferenças naturais”<br />

passam a ser oposições sociais. Tal atitude justifica a estigmatização das classes<br />

menos favorecidas economicamente com sua associação à violência e ao crime.<br />

Junto a este fato, o aumento exponencial da insegurança e do “medo derivado”<br />

como nos fala Bauman, justifica o alto empreendimento no mercado de segurança<br />

e proteção. Daí novas concepções e reformulações arquitetônicas, em suas<br />

variadas formas de intervenção com estruturas de proteção nos edifícios, se espalham<br />

nos espaços públicos e privados. O resultado em termos urbanísticos é<br />

que parece que a cidade pós-moderna está voltando às fortalezas da Idade Média.<br />

Ferraz conclui que,<br />

Assim, os moradores dos bairros luxuosos, de um lado social da violência<br />

e do medo, vão “desenhando” um novo padrão funcional e formal<br />

de arquitetura e, consequentemente, de cidade. Como estratégias de<br />

proteção patrimonial são variadas as combinações e apropriações de<br />

linguagens arquitetônicas que produzem e reforçam, por exemplo, o<br />

caráter medieval e/ou carcerário de grande parte dessas construções<br />

(Ferraz, 2010, p. 7).<br />

Desta maneira, com a intenção de proteção e de ter liberdade na privacidade,<br />

o cidadão se enclausura. Como aponta claramente Freitas e Lessa, “paradoxalmente,<br />

esta liberdade se dá entre grades e muros, configurando-se, assim,<br />

uma nova espécie de adaptação do corpo humano em relação à cidade” (2005,<br />

p. 72). Os autores exemplificam o fato com a formação das “ilhas urbanas” na<br />

Barra da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro, onde “o bairro é concebido como<br />

um grande arquipélago, no qual suas ilhas – os condomínios fechados, os shopping<br />

centers e os centros empresariais – são interligados por grandes avenidas<br />

projetadas para se passar em alta velocidade” (idem, p. 71). Configurados como<br />

espaços seguros, são também apartados, onde os cidadãos tentam suprir suas<br />

necessidades com o mínimo de contato com o ambiente exterior.<br />

Neste sentido, quando a cidade se estrutura neste formato, há o dado<br />

arquitetônico e formal que se identifica com as características tradicionais<br />

de confinamento da prisão. De acordo com Foucault (2009, p. 217), a “instituição-prisão”,<br />

onde os processos de dominação ecerceamento utilizam a<br />

penalidade de detenção e são apoiadas em leis e justiça penal, é algo recente<br />

e data dos fins do século XVIII e princípio do século XIX. Este modelo se<br />

apresenta como uma aparelhagem para coibir os indivíduos tornando-os dóceis<br />

e úteis, e este trabalho recai exatamente sobre o corpo. O corpo sofre a<br />

punição direta de sujeições disciplinares, através do enclausuramento, sendo<br />

este um mecanismo de intervenção no movimento do espaço individual.<br />

Todavia, aqui interessa pensar a “forma-prisão” em sua estrutura primária,<br />

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91<br />

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como define o autor, antes mesmo da passagem para a forma institucionalizada,<br />

para assim, comparar estes mecanismos disciplinares com as estruturas<br />

dos espaços públicos de nossa sociedade atual. Assim, para analisar o quadro<br />

atual urbano deve ser levada em conta a definição de Foucault,<br />

A forma-prisão preexiste à sua utilização nas leis penais. Ela se constituiu<br />

fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo<br />

o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e<br />

distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo<br />

e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento<br />

contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em<br />

torno deles um aparelho completo de observação, registro e notações,<br />

constituir sobre eles um saber que acumula e centraliza (idem, p. 217).<br />

Os espaços atuais no aspecto da função não se encaixam nos “moldes<br />

tradicionais” de privação, embora, como salienta Ferraz (2010, p. 7), sofram<br />

as intervenções arquiteturais neste sentido e forcem os indivíduos ao cárcere.<br />

À primeira vista, os cidadãos têm liberdade no ir e vir, mas em essência estes<br />

espaços urbanos apresentam dispositivos, que se assemelham em parte ao modelo<br />

institucional, que submetem os cidadãos aos procedimentos de controle e<br />

punição com o mesmo potencial, senão maiores.<br />

Ao associar este pensamento à reflexão de Bauman (2001) sobre os<br />

“tempos moderno-líquidos” podemos dizer que, nestes tempos, os processos<br />

de docilização se apresentam mais sutis, porém acompanham o raciocínio de<br />

Foucault sobre a eficácia do modelo sobre o rendimento, a visibilidade, a divisão<br />

espacial, o registro e observação dos indivíduos. De maneira mais fluida,<br />

com os processos de espetacularização da vida, da violência e dos espaços para<br />

consumo que as mídias reforçam diariamente, é gerado um fator de coerção e<br />

controle do comportamento dos cidadãos. Sob o medo e o consumo da proteção,<br />

os indivíduos são disciplinados e submetidos a uma performance social<br />

que aponta para uma classificação e rendimento dos corpos. Pode-se dizer<br />

que nas cidades contemporâneas há algo de volátil nos sistemas de controle, o<br />

corpo é docilizado por mecanismos fluidos.<br />

De acordo com Bauman (2001, p. 17), na atualidade o que se apresenta<br />

é uma estrutura “pós-panóptica” de controle, onde o sistema de poder não se<br />

dá mais como antes, como no projeto Panóptico de Jeremy Bentham, onde o<br />

domínio era sobre o espaço e o tempo, com a estratégia de redução e rotinização<br />

da mobilidade. Ao contrário, a forma de controle se tornou “verdadeiramente<br />

extraterritorial”. Não há mais uma torre de controle, “rotinizadores”<br />

e “rotinizados”, em uma relação dual clara de poder. Além de panorâmica e<br />

multidirecional, a estrutura de dominação se apresenta como um olho multifacetado<br />

e em rede, fragmentado nos suportes midiáticos, a cada esquina ou<br />

espaço público ou privado. O que claramente atende a propósitos hegemônicos<br />

e de controle subjugados ao capital e ao consumo.<br />

Esta contradição nos mecanismos que o cidadão busca na tentativa<br />

de proteção, liberdade e fuga da violência, relacionados ao novo padrão da<br />

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urbanização que se estabelece, reflete diretamente nos agenciamentos do<br />

corpo. Observados, controlados, envolvidos por muros, com a redução dos<br />

espaços e acessos, os cidadãos, de fato, são encarcerados, e se esquivam do<br />

convívio com o ambiente e com o novo, reduzindo e transformando seus<br />

movimentos e a relação com o próprio corpo.<br />

paisagem CiDaDe/Corpo ou Corpo-grafia Da CiDaDe?<br />

De acordo com Jacques e Britto (2008, p. <strong>18</strong>7), a cidade e o corpo estão<br />

em um processo interativo de geração de sentido constante, o que implica<br />

“reconhecê-la como fator de continuidade da própria corporalidade dos seus habitantes”.<br />

As autoras quando investigam a cidade como continuidade, colocam o<br />

“corpo e ambiente – natureza e cultura” funcionando em um processo dinâmico<br />

de ajustes, de afetação e contaminação constante. Assim, a experiência da cidade<br />

se inscreve no corpo e o corpo é o meio onde há o trânsito das informações. Esta<br />

grafia corporal resultante é uma corpografia urbana, a própria narrativa da cidade<br />

inscrita, de acordo com o histórico particular de cada vivência.<br />

Pensar a cidade como continuidade expressa uma ideia relacional e de<br />

extensão do corpo e seu ambiente de existência,<br />

Propõe que se pense no corpo como sendo uma síntese dos padrões<br />

sensório-motores que foram selecionados ao longo dos seus processos<br />

relacionais com a cidade, e, a cidade, como sendo a síntese resultante<br />

desses padrões de ação corporal dos seus habitantes. Cada cidade<br />

imprime um comportamento que pode ser rastreado e filtrado em<br />

vocabulário corporal, assim como cada comportamento requer um<br />

tipo de cidade que o acolha (Ahmed e Britto, 2010).<br />

As corpografias, portanto, são o resultado de um corpo em processo<br />

numa experiência espaço-temporal com tudo o que faz parte do seu ambiente<br />

de existência, com suas determinâncias físicas e simbólicas, onde experiências<br />

que “ganharam alguma estabilidade (tornaram-se hábito) como<br />

padrão sensório-motor”.<br />

Neste sentido, o ambiente urbano não é somente um espaço físico para<br />

ser ocupado, mas inversamente, é tido como um “campo de processos” que<br />

atua como fator de configuração e continuidade de corporalidades.<br />

As corpografias permitem tanto compreender as configurações de<br />

corporalidade como memórias corporais resultantes da experiência de<br />

espacialidade, quanto compreender as configurações urbanas como<br />

memórias especializadas dos corpos que as experimentaram. Elas expressam<br />

o modo particular de cada corpo conduzir a tessitura de rede<br />

de referências informativas, a partir das quais o seu relacionamento<br />

com o ambiente pode instaurar novas sínteses de sentido ou, coerências<br />

(Britto, 2010, p. 15).<br />

Ao pensar sobre a relação corpo e espaço, Guattari (1992, p. 153) procura<br />

encaixá-la numa abordagem fenomenológica, refletindo sobre o caráter de<br />

inseparabilidade do corpo/espaço vivido. De acordo com o autor, “a dobra do<br />

Corpo/Cidade: uma corpografia do medo


93<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

corpo sobre si mesmo é acompanhada por um desdobramento de espaços imaginários”,<br />

ou seja, podemos ao mesmo tempo apreender circunstâncias distintas<br />

que representam aspectos de variados pontos de vista como estético, ético,<br />

afetivo..., diante de uma vivência em determinado espaço. O corpo na vivência<br />

do espaço se encontra numa relação cinestésica de completa absorção, onde<br />

há uma articulação dos sentidos na ação numa “relação quase hipnótica”. Há,<br />

portanto, “tantos espaços, então, quantos forem os modos de semiotização e de<br />

subjetivação”. Neste sentido, há tantas corpografias quantas forem as distintas<br />

apreensões do espaço vivido, no sentido das correlações também se remeterem<br />

às representações de um imaginário pessoal da experiência dos indivíduos.<br />

Certeau (1994) diferencia o “lugar” do “espaço”. O lugar “implica uma<br />

indicação de estabilidade”, delimita um campo onde não há possibilidade de<br />

coexistências, está relacionado ao tipo de organização como o mapa, é apenas<br />

paisagem, localidade. Enquanto o espaço está relacionado ao percurso, em<br />

ações espacializantes. “Em suma, o espaço é o lugar praticado. Assim a rua<br />

geometricamente definida por um urbanista é transformada em espaço pelos<br />

pedestres” (Certeau, 1994, p. 201). Desta maneira, a cidade é um campo de<br />

narrativas e se configura como tal a partir dos modos como nos relacionamos<br />

com os espaços e lhes atribuímos sentidos, ou seja, “transformamos lugares em<br />

espaços ou espaços em lugares”.<br />

Os mapas são as cartografias que direcionam os habitantes na cidade,<br />

enfatiza Corrêa (2010, p. 90), e são “uma chave de análise importante ao trabalharmos<br />

com a problemática dos imaginários urbanos, ainda mais quando<br />

a proposta é fazer uma leitura deste imaginário – que é criação incessante –<br />

em relação aos medos relacionados à violência urbana”. Em outras palavras e<br />

aproximando-as das de Certeau, os mapas são organizações arbitrárias simples<br />

de direção e localização no plano da cidade, para mostrar os “lugares”,<br />

mas numa análise mais profunda a cerca do uso destes sentidos e direções<br />

é possível desvendar os significados das atividades expressivas ligadas ao cotidiano<br />

destes “espaços”, quanto aos modos de ocupação ou esvaziamento,<br />

o que pode ser relevante como parte do entendimento do imaginário social<br />

construído relativo aos sintomas do medo.<br />

Para Caiafa (2007, p. 57), a circulação dos pedestres nos espaços urbanos<br />

é que define a habitabilidade da cidade. Portanto, as escolhas arquiteturais<br />

e ocupacionais quanto ao que é público ou privado na cidade definem a<br />

experiência da caminhada ou, em termos mais gerais, os padrões perceptivos<br />

dos pedestres. A autora cita Walter Benjamin, que diferencia o pedestre transeunte,<br />

que “tem seu movimento ditado pela agitação urbana e não frui da<br />

sua caminhada” e o flâneur que “deambula a seu bel-prazer”. Os espaços que<br />

determinam uma experiência urbana de partilha são os públicos, que por ela<br />

são chamados de “espaços de contágio”, que priorizam o pedestre e o transporte<br />

coletivo. A cidade só existe a rigor, quando favorece esses locais de troca,<br />

onde a forma de mobilidade urbana é a situação do pedestre de caminhar pela<br />

Corpo/Cidade: uma corpografia do medo


94<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

cidade, comparada mais para o flâneur que para o transeunte. Para Caiafa<br />

(2007, p. 57), com a figura do flâneur “Benjamin resgata um aspecto criador<br />

na experiência moderna”, mas com a cidade privatizada direcionada para a<br />

propriedade, a “caminhada se tornou a primeira vítima”.<br />

Conclui-se assim, que a experiência urbana está condicionada ao espaço<br />

partilhado coletivamente. Neste sentido, é relevante refletir na atualidade,<br />

se há a experiência do cidadão da fruição dos caminhos e cantos da cidade e<br />

do coletivo. Qual seria o sentido atribuído em residir sem “viver” a cidade,<br />

sem praticá-la ou, por outro lado, somente avistá-la pela janela dos veículos e<br />

elevadores panorâmicos ou dos edifícios espelhados. Possivelmente na cidade<br />

privatizada, a caminhada, como reporta os hábitos do flâneur, já se tornou algo<br />

do passado. Nostalgicamente, são estes os cidadãos que praticavam verdadeiramente<br />

o espaço urbano, se deixando levar ao sabor do vento expondo as sensorialidades<br />

ao ambiente e o contato com o outro, sem medo de experimentá-la.<br />

Paola Berenstein Jacques, sugere uma outra categoria de experienciador<br />

da cidade, o “errante”, para então chegar à conceituação de corpografia.<br />

Para o errante, são sobretudo as vivências e ações que contam, as<br />

apropriações com seus desvios e atalhos, e estas não precisam necessariamente<br />

ser vistas, mas sim experimentadas, com todos os outros<br />

sentidos corporais. A cidade é lida pelo corpo e o corpo escreve o que<br />

poderíamos chamar de uma “corpografia”. A corpografia seria a memória<br />

urbana no corpo, o registro de sua experiência da cidade (Jacques,<br />

2006, p. 119).<br />

A autora sugere que a ação de perder-se do errante é um ato voluntário.<br />

Ocorre mesmo em um lugar conhecido e se dá como a experiência que<br />

“através do erro (e da errância que este erro provoca) realiza uma apreensão<br />

ou percepção espacial diferenciada da sua própria memória local” (2006, p.<br />

121). O perder-se num local conhecido é até mais rico do que o desorientar-<br />

-se num lugar desconhecido. O perder-se leva a um outro estado sensorial<br />

que promove uma reorganização dos referenciais espaciais e possibilita uma<br />

nova/outra percepção do espaço.<br />

A “errância” enquanto vivência possui três propriedades: de perder-se, da<br />

lentidão e da corporeidade. Estas propriedades podem ser consideradas como<br />

resistências ou críticas, pois contrastam com a natureza e tendência hegemônicas<br />

da arquitetura e urbanismo contemporâneos, que buscam “uma certa<br />

orientação (principalmente através do excesso de informação), rapidez (ou aceleração)<br />

e, sobretudo, uma redução da experiência e presença física (através das<br />

novas tecnologias de comunicação e transporte)” (Jacques, 2006, p. 126).<br />

Apoiada nas teorias de Deleuze e Guattari sobre os processos de territorialização,<br />

Jacques (2006, p. 122; 2009, p. 134) aponta ainda que os errantes<br />

trabalham com a desterritorializam, a desorientação e acabam se reterritorializando<br />

através da própria prática da errância. Ao contrário, os urbanistas buscam<br />

a orientação, como nos mapas e na definição dos lugares e dos sentidos,<br />

Corpo/Cidade: uma corpografia do medo


95<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

um não perder-se na cidade, portanto uma territorialização. Em outras palavras<br />

é um caminho curto, objetivo sem reflexões ou riscos.<br />

Diante da atual espetacularização das cidades que se tornam cada<br />

dia mais cenográficas, a experiência corporal das cidades, ou seja, sua<br />

prática ou experiência, poderia ser considerada como um antídoto à<br />

essa espetacularização. O que chamo de espetacularização das cidades<br />

contemporâneas – que também pode ser chamado de cidade-<br />

-espetáculo (no sentido debordiano) – está diretamente relacionado a<br />

uma diminuição da participação mas também da própria experiência<br />

urbana enquanto prática cotidiana, estética ou artística. A redução<br />

da ação urbana pelo espetáculo leva a uma perda da corporeidade,<br />

os espaços urbanos se tornam simples cenários, sem corpo, espaços<br />

desencarnados. Os espaços públicos contemporâneos, cada vez mais<br />

privatizados ou não apropriados, nos levam a repensar as relações entre<br />

urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do cidadão, o que<br />

abre possibilidades tanto para uma crítica da atual espetacularização<br />

urbana quanto para uma pesquisa de outros caminhos pelos urbanistas<br />

errantes, que passariam a ser os maiores críticos do espetáculo urbano<br />

(Jeudy e Jacques, 2006, p. 126).<br />

A corpografia resultante dos habitantes da cidade reflete seus limites<br />

de vivência,seja pela influência de um imaginário do medo ou pela espetacularização<br />

e consumo.Mas, embora a potência das estruturas dominadoras<br />

e cerceadoras se apresente impressa na configuração dos espaços urbanos, os<br />

indivíduos ainda podem encontrar espaços neutros, onde há a possibilidade de<br />

redesenhar um estado dinâmico, de resistência na experiência com a cidade.<br />

Canevacci (2008, p. 35) ao pensar a cidade contemporânea, afirma que<br />

existem zonas de ruptura ou “interstícios” que fazem parte da experiência metropolitana,<br />

os sujeitos criam essas zonas do entre (in between), deixam de vagar<br />

pelos espaços, escapam da sua uniformidade e assim, “criam zonas mutantes<br />

através do próprio transcorrer com um corpo-panorama que somatiza códigos<br />

ainda invisíveis, mas que podem produzir sentidos”. Ou seja, “entre corpos e<br />

interstícios se abrem aberturas desejantes de corpografias” (2008, p. 36). Neste<br />

sentido, numa via de mão dupla, na relação com os interstícios urbanos, o que<br />

o cidadão se defronta, na verdade, é com os espaços intersticiais do próprio<br />

corpo, num processo vivo e recriacional.<br />

Ao adotar este pensamento e atitude em relação à experiência na cidade,<br />

abrem-se espaços para a não sujeição aos processos dominadores. Novas<br />

possibilidades e espaços de reformulação e resistência são gerados, vividos e<br />

corpografados. A cidade resiste no corpo do cidadão não como confinamento<br />

e anulação das suas possibilidades, mas como vivência revigorante e inovadora<br />

apesar dos mecanismos de controle e opressão gerados na sociedade atual.<br />

ConsiDerações finais<br />

Nos grandes centros urbanos, o cidadão está se esquivando do encontro<br />

com o outro e da experiência do espaço. Está perdendo a capacidade de ser “errante”,<br />

pois existe algo que o impele em sentido oposto. Com o medo, derivado<br />

Corpo/Cidade: uma corpografia do medo


96<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

da violência espetacularizada, nossa sociedade urbana vive, contraditoriamente,<br />

encarcerada e exposta em ambientes controlados. A “forma-prisão”, que reporta<br />

a Foucault, persiste como um dado cultural no comportamento urbano e<br />

está impregnada no imaginário social definindo corpos, convivências, comportamentos<br />

e deslocamentos. É visível na cidade, é visível no corpo do cidadão.<br />

Considerando os rumos que a cidade vem tomando, com a prevalência<br />

de uma cultura do medo e do espetáculo, de uma imposição aos “espaços”<br />

urbanos de uma estaticidade como “lugares”, é provável que o flâneur ou o<br />

“errante” sejam categorias em extinção. Mas, as “atitudes de errância”, como<br />

processos de desterritorialização, devem resistir e são necessárias para se reagir<br />

aos processos massificantes da espetacularização da cidade, que se estruturam<br />

como projetos urbanísticos visando atender ao consumo e à segurança.<br />

É certo que atitudes de resistência existem em nossa sociedade. Diversos<br />

são os modos que o cidadão se reformula, se adapta e reage ao meio físico e<br />

suas estruturas simbólicas. Mas vale considerar que, muitas vezes, há uma conivência<br />

e acriticidade na relação com as estruturas de dominação e controle.<br />

Deste modo, o conceito de corpografia urbana serve para entender<br />

o comportamento do cidadão na relação corporal com o espaço urbano.<br />

Quando,de forma consciente, emprestamos dinamicidade e co-afetação aos<br />

agenciamentos entre corpo e ambiente, conferimos grau de liberdade e não<br />

determinância dos fatores controladores e hegemônicos ao comportamento<br />

do cidadão, uma rota de fuga dos processos massificantes e opressivos.<br />

Diante da violência, dos ambientes cerceadores e corretores, o corpo reage,<br />

busca saídas, procura novos modos de expressão. E, com isto, uma atitude<br />

de resistência é reforçada para uma reestruturação dos condicionamentos das<br />

vivências relacionadas ao medo nos espaços da cidade.<br />

Neste sentido, a expressão artística sempre se coloca como um dos recursos<br />

para exposição, crítica e conscientização destes antagônicos mecanismos<br />

sociais. A arte, como sempre, se mostra como um caminho para as transformações.<br />

Pela arte, o corpo e a cidade podem resistir como “espaços intersticiais”,<br />

zonas de ruptura, que praticados com atitudes errantes, des/reterritoralizantes,<br />

potencializam e reconfiguram as corpografias urbanas, possivelmente desvinculando-as<br />

do medo e dos processos dominadores.<br />

Mas para que este processo tenha amplitude social, certamente este movimento<br />

deve passar por um ato volitivo e de conscientização, não apenas solitário,<br />

mas de âmbito coletivo.<br />

Corpo/Cidade: uma corpografia do medo


97<br />

notas<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

1 Grupo de pesquisa ARQVIOL - Arquitetura da Violência, Departamento de<br />

Arquitetura da UFF/RJ, Coordenadora Prof. Dra. Sonia Maria Taddei Ferraz.<br />

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Corpo/Cidade: uma corpografia do medo


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Corpo/Cidade: uma corpografia do medo


Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Corpo, capoeira e games: traduções de<br />

materialidades e tecnologias<br />

Body, capoeira and game: translations<br />

of materiality and technology<br />

Bruno Soares Ferreira<br />

Graduado nas habilitações Jornalismo e Rádio e TV pela Universidade<br />

Federal do Maranhão e Mestrando em Comunicação e Cultura pela<br />

Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.<br />

Resumo<br />

O objetivo desse texto é entender como o sujeito pode acessar o dispositivo<br />

da capoeira utilizando o sistema sensório-motor por diferentes materialidades.<br />

Faremos uma análise tanto do corpo que se apresenta organicamente quanto<br />

em sua forma virtual, através de imagens de síntese que aqui serão representadas<br />

através do game Capoeira Legends: Path to Freedom, lançado em 2009 pela<br />

empresa brasileira Donsoft. Faremos considerações acerca dessa interface<br />

maquínica em relação às características da capoeira que podem ser expressas<br />

pelo corpo através da luta, da dança e do jogo.<br />

Palavras-chave: Agenciamento; Capoeira; Corpo.<br />

Abstract<br />

The objective of this text is to understand how individuals can access capoeira<br />

using their motor-sensitive system by different materialities. We analyze the<br />

body organically and virtually presented through images of synthesis represented<br />

here by the videogame Capoeira Legends: Path to Freedom, released in 2009 by<br />

Brazilian company Donsoft. We’ll dissert about this machine-interface related to<br />

the characteristics of capoeira that can be expressed by the body through the fight,<br />

dance and game.<br />

Keywords: Agency, Capoeira, Body.<br />

Corpo, capoeira e games: traduções de materialidades e tecnologias


100<br />

1 - introDução<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Este texto tem por objetivo analisar alguns agenciamentos existentes na<br />

relação do corpo com a capoeira. Para isso, tomaremos o corpo como uma<br />

mídia, ou seja, como uma interface entre o cérebro e o mundo. Nossa hipótese<br />

é que este corpo orgânico vem conseguindo atualmente realizar alguns<br />

desdobramentos em sua própria corporalidade por meio da tecnologia para<br />

agir virtualmente num ambiente maquínico. Isto nos permite entender como<br />

é possível acessar a capoeira através do game 1 para além desse corpo orgânico,<br />

mantendo algumas de suas características peculiares.<br />

A capoeira por sua vez é entendida como um dispositivo no sentido<br />

empregado por Deleuze (1996), que possui uma historicidade de cerca de 300<br />

anos e que passou por diferentes fases: foi considerada contravenção, depois<br />

esporte e atualmente é considerada patrimônio cultural brasileiro. Ela encerra<br />

um regime de signos que podem ser expressos na contemporaneidade através<br />

de diferentes materialidades para além da organicidade do corpo. Uma forma<br />

de constatar esta nova relação com os signos da capoeiragem é que eles também<br />

estão sendo usados para o consumo de objetos e produtos.<br />

No entanto, partimos do pressuposto que, mesmo em seus desdobramentos,<br />

tudo o que o corpo pode produzir são ações. De acordo com Bergson<br />

(2010), o corpo quando gera um movimento está acionando um processo de<br />

mão dupla, pois o movimento é tanto centrífugo (ação) como também possui<br />

um aspecto centrípeto (representação), advindo em resposta à sua ação.<br />

Dessa maneira, o corpo estabelece através de sua superfície - limite entre<br />

o interior e o exterior - uma relação de atualização da memória, que por sua<br />

vez recobre com uma camada de lembrança a percepção imediata e contrai<br />

uma multiplicidade de movimentos em prol de uma ação útil. Nesse sentido,<br />

entendemos haver conexões entre este agenciamento do corpo com a capoeira<br />

e aquilo que Bergson chamou de sistema sensório-motor. De acordo com Bentes<br />

(2006), o esquema sensório-motor opera uma decomposição do percebido em<br />

função de sua utilidade para nós.<br />

Estas ações são percebidas enquanto signos em consonância com a acepção<br />

de Peirce (1975). Para ele, o signo tem um significado amplo. “Não precisa ser uma<br />

palavra; pode ser uma ação, um pensamento, ou enfim, qualquer coisa que admita<br />

um ‘interpretante’ – isto é, que seja capaz de dar origem a outros signos”. (1975,<br />

p.27). Esta capacidade de originar novos signos é um processo abdutivo. Sobre este<br />

aspecto Santaella (2001) afirma que para Peirce, a abdução é um instinto racional.<br />

“É o resultado de conjecturas produzidas por nossa razão criativa. Ela é instintiva e<br />

racional ao mesmo tempo. Com a palavra ‘instinto’, Peirce quis significar a capacidade<br />

de adivinhar corretamente as leis da natureza.” (p.120)<br />

O diálogo entre esses atores (corpo, capoeira, teorias, práticas, signos,<br />

tecnologias, materialidades, historicidades etc.) nos remete ainda ao conceito<br />

de tradução em relação ao entendimento dos desdobramentos do corpo e suas<br />

Corpo, capoeira e games: traduções de materialidades e tecnologias


101<br />

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ações a partir das imagens técnicas. “Traduzir (ou transladar) significa deslocar<br />

objetivos, interesses, dispositivos, seres humanos. Implica desvio de rota,<br />

invenção de um elo que antes não existia e que de alguma maneira modifica os<br />

elementos imbricados”. (FREIRE, 2006, p.51)<br />

Flusser (2008) afirma que o homem pode agir através de imagens. Desse<br />

modo, buscamos entender através do universo dos games as maneiras pelas quais<br />

o corpo se desdobra em diferentes materialidades e imagens a partir do sistema<br />

sensório-motor e uso de tecnologias para acessar esse dispositivo da capoeira.<br />

Para exemplificar estas relações, utilizaremos o game Capoeira Legends – Path to<br />

Freedom 2 , produzido pela empresa brasileira Donsoft e lançado em 2009.<br />

2 - o Corpo na Capoeira<br />

Imagem 1 - Capoeira na Bahia (década de 1940) - Foto por Pierre Verger<br />

Uma análise abdutiva do corpo em suas possibilidades mais elementares<br />

nos leva a concluir que o cérebro utiliza as diferentes sensorialidades<br />

existentes em sua constituição orgânica para perceber a capoeira, principalmente<br />

a audição, a visão e o tato. Para acessar a capoeira é necessário um<br />

sistema sensório-motor através do qual o cérebro pode atuar dentro das diferentes<br />

possibilidades físicas do corpo: mãos, pés, cabeça, cotovelos, joelhos,<br />

Corpo, capoeira e games: traduções de materialidades e tecnologias


102<br />

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quadril e toda uma mecânica muscular e esquelética além da memória, que<br />

é proporcionada pela materialidade humana. Esta entrada e saída de informações<br />

no corpo nos remete aos movimentos centrífugo (ação) e centrípeto<br />

(representação) realizados pelo sistema sensório-motor.<br />

Nessa perspectiva o corpo é uma mídia. Helena Katz afirma que todo<br />

corpo é corpomídia. Segundo ela, “na mídia que o corpomídia emprega, a<br />

informação fica no corpo, se torna corpo”. Isso significa que a memória da capoeira<br />

pode estar no corpo como um todo, pois o cérebro consegue acessar as<br />

informações em toda sua extensão orgânica, utilizando suas diferentes partes.<br />

Sob este aspecto a capoeira exige toda a materialidade do corpo para a<br />

expressão e realização dos movimentos, que são os signos que compõem a capoeira.<br />

Aú, queixada, cocorinha, ginga, esquiva, banda, benção, meia-lua, rabo<br />

de arraia, chapa, cabeçada são alguns deles, os quais possibilitam a formação<br />

de diálogos a partir das trocas de signos entre os praticantes. Essas trocas são<br />

denominadas transformação na capoeiragem, pois não visam finalizar os movimentos<br />

do outro jogador, mas buscam uma constância na movimentação,<br />

ressaltando os fluxos de signos.<br />

Imagem 2 - Roda de capoeira<br />

Os diálogos fluem através das transformações que vão se estabelecendo,<br />

evidenciando de acordo com o momento um aspecto mais de jogo, de<br />

luta ou de dança. Estas transformações modificam todos os envolvidos no<br />

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103<br />

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dispositivo da capoeira. Por exemplo, um jogador que tenha levado uma ras-<br />

teira pode incentivar os tocadores a cantarem “cai cai bananeira, a bananeira<br />

caiu”, como alusão à queda. Também pode acontecer que um jogador comece<br />

a cantar “devagar, devagar, que é pra não se machucar” num momento<br />

em que o jogo está muito acelerado, entre outras possibilidades de relações<br />

entre o significado das letras e as ações que ocorrem dentro de uma roda de<br />

capoeira. Helena Katz afirma que as informações no corpomídia modificam<br />

não somente o corpo, mas também o ambiente:<br />

As informações encostam-se, umas nas outras, e assim se modificam<br />

e também ao meio onde estão. Vale destacar a singularidade desse<br />

processo, pois transforma todos os nele envolvidos, seja a própria<br />

informação, o corpo onde ela encostou e do qual passou a fazer<br />

parte, as outras informações que constituíam o corpo até o momento<br />

específico do contato com a nova informação, e também o ambiente<br />

onde esse corpo (agora transformado) continua a atuar. E, estando já<br />

transformado, tende a se relacionar com a nova coleção de informações<br />

que passou a o constituir. Então, também altera o seu relacionamento<br />

com o ambiente, transformando-o. Contágios simultâneos em<br />

todas as direções, agindo em tempo real.<br />

Sodré (2002, p.16) afirma que em geral “as culturas costumam definir-<br />

-se pela tônica do soma (corpo) ou do signo (escrita)”. Nesse sentido a expressão<br />

básica da capoeira é soma, é essencialmente corporal. Todavia, ela<br />

também possui escritas como as que são realizadas por meio de instrumentos<br />

musicais, entre outras possibilidades que estão presentes na contemporaneidade.<br />

Esta constatação revela a existência de uma corporalidade que é expressa<br />

tanto por meio da materialidade quanto por signos. Isso nos remete<br />

ainda à ideia de Arkhé, “um saber colado à experiência de um corpo próprio”<br />

(SODRÉ, 1988, p.125) que está em consonância com o sistema sensório-<br />

-motor atuando tanto num aspecto individual quanto coletivo.<br />

2.1 DesDobramentos Do Corpo nos games<br />

Para além de todo maquinário transversal ao uso da tecnologia (cadeiras,<br />

mesas etc), o corpo no game é por um lado o da tônica do soma<br />

descrito anteriormente, porém acrescido de uma interface tecnológica. Esta<br />

interface é composta basicamente por uma tela, um controle (pode ser o<br />

próprio teclado do computador ou um joystick, desenvolvido especificamente<br />

para jogar) e a programação do game.<br />

Todos esses elementos utilizam energia elétrica, que funciona como<br />

um meio para a interface tecnológica ocorrer. Além disso, para acessar o<br />

game é preciso estar conectado à internet e realizar seu download. Tanto a<br />

Corpo, capoeira e games: traduções de materialidades e tecnologias


104<br />

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versão demonstrativa (gratuita) quanto a versão completa do game (comer-<br />

cializada) podem ser adquiridas no site oficial de Capoeira Legends:<br />

Imagem 3 - Tela de entrada do game Capoeira Legends<br />

Percebemos que o game Capoeira Legends promove uma ressigni-<br />

ficação da capoeira. De acordo com Gonçalves (2009) a apropriação e a<br />

ressignificação de objetos, imagens, sons, textos de mídias como fotografia,<br />

cinema, vídeo e, atualmente, computador, internet, celular podem ser vistas<br />

como um processo de produção simbólica que pode nos ajudar a pensar<br />

sobre os modos como os homens “organizam” seu presente. (p.102).<br />

Isso também nos leva a um questionamento sobre os modos como o<br />

corpo consegue enquanto imagem e capaz de gerar ações jogar a capoeira<br />

no game, para além do corpo orgânico. Sobre este aspecto, percebemos<br />

que as características centrífugas e centrípetas da ação ainda permanecem<br />

no game tanto quanto na capoeira real, uma vez que o jogador é uma<br />

imagem que está respondendo aos estímulos com ações em ambos os casos.<br />

Dessa forma, o corpo no ambiente do game é traduzido por meio de<br />

um avatar, ou seja, uma espécie de marionete virtual que o sujeito acessa<br />

para percorrer as narrativas dentro do game. O controle dos movimentos<br />

corporais do avatar é realizado com as mãos através do joystick e com a<br />

visão que o localiza numa cena.<br />

Corpo, capoeira e games: traduções de materialidades e tecnologias


105<br />

2.2 um ambiente Virtual<br />

Imagem 4 - Gunga Za em ação em Capoeira Legends<br />

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O game Capoeira Legends: Path to Freedom é ambientado no Rio de<br />

Janeiro em junho de <strong>18</strong>28. De acordo com o site oficial do game, o objetivo<br />

é guiar o protagonista Gunga Za, guerreiro do Mocambo das Estrelas, para<br />

libertar seus companheiros aprisionados e combater os homens liderados pelo<br />

chefe da guarda imperial Paschoal dos Reis, que é assim descrito:<br />

Branco, descendente de portugueses, muito forte e alto, apesar de sua<br />

aparente idade, Paschoal possui grande influência nos corredores do<br />

poder, além de diversos conchavos políticos com os grandes donos de<br />

engenho de cana e cafeicultores do país. Seus planos ambiciosos visam<br />

um futuro golpe de estado que o tornem o novo Imperador e assim,<br />

governar um Brasil escravocrata e caótico.<br />

Para atingir seu objetivo, Paschoal dos Reis precisará destituir o Major<br />

Nunes Vidigal, que é um personagem real da história brasileira relacionada à<br />

capoeiragem. O Major Nunes Vidigal (1745-<strong>18</strong>43), foi o primeiro brasileiro<br />

nato a ser comandante de forças militares no recém-formado Reino Unido<br />

de Portugal, Brasil e Algarves, quando da chegada da família real portuguesa<br />

no ano de <strong>18</strong>08 à cidade do Rio de Janeiro. O Major Nunes Vidigal foi um<br />

notório perseguidor de capoeiras no período do império, tendo sido ele mesmo<br />

um exímio capoeira.<br />

O enredo de Capoeira Legends possui elos com a realidade e sobreposição<br />

de diferentes tempos e espaços. Há uma mescla entre personagens fictícios<br />

(Gunga Za, Paschoal dos Reis, Tião dos Anjos, etc) com personagens reais,<br />

como o caso do Major Nunes Vidigal e também do Mestre Vuê, (Lavoisier<br />

Moreira de Freitas), que fundou em 2008 a Escola de Capoeira Água de Beber 3 ,<br />

Corpo, capoeira e games: traduções de materialidades e tecnologias


106<br />

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sediada em Petrópolis - RJ e que está presente no jogo como mestre do protagonista<br />

Gunga Za. Importante frisar que o Mestre Vuê foi o consultor sobre a<br />

capoeira da Donsoft, empresa criadora do game, que por sua vez gastou cerca<br />

de R$ 1 milhão de reais e 16 anos para concluir o projeto.<br />

As ações de Capoeira Legends acontecem na superficialidade da tela pela<br />

sincronia da visão e controle manual, que proporciona ao jogador movimentar-se<br />

dentro dos ambientes gerados pelas programações, podendo também<br />

realizar através do avatar diferentes golpes de capoeira como os que são realizados<br />

através do corpo em sua materialidade orgânica, mas com a ativação<br />

de percepções diferentes daquelas. A seguir agrupamos alguns movimentos de<br />

capoeira realizados por Gunga Za dentro do game:<br />

Imagem 5 - Movimentos de capoeira no jogo<br />

Ressaltamos que o sistema sensório-motor utiliza diferentes recursos para<br />

produzir ação na capoeira com o corpo ou através do avatar dentro do game.<br />

No entanto, em ambos casos as ações ocorrem efetivamente, gerando uma<br />

experiência estética da capoeira de características distintas. Isso se deve ao fato<br />

do sistema sensório-motor utilizar diferentes partes do corpo. Por exemplo, se<br />

o jogador deseja realizar um chute como a benção (descrito na figura anterior)<br />

ele precisa utilizar a perna e o equilíbrio do corpo em sua totalidade, enquanto<br />

que o mesmo golpe no game é acionado através do apertar de um botão.<br />

Bentes (2006) afirma que “assim como o movimento real do seu corpo<br />

produz modificações no espaço virtual, um simples deslocamento do globo<br />

ocular ou gestos sutis encontram uma contrapartida no interior desses espaços<br />

simulados”. No caso de Capoeira Legends: Path to Freedom percebemos que<br />

os movimentos de ataque, defesa e esquivas que utilizam o corpo inteiro para<br />

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107<br />

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ocorrer num jogo de capoeira real acontecem no game a partir da sincronia<br />

entre a visão e o tato, representados respectivamente pela tela e pelos apertar de<br />

botões do controle, seja ele teclado ou joystick.<br />

Nesse sentido, Bentes complementa com a afirmação de que “o que assegura<br />

nosso deslocamento no interior da imagem é o deslocamento do nosso<br />

próprio campo visual”. Segundo ela, “trata-se da interação entre ver e agir,<br />

quando podemos misturar imagens do nosso próprio corpo com outras imagens<br />

ou fazer da simples presença do corpo ou de nossa imagem um disparador”.<br />

3 - os signos Da Capoeira Com o Corpo e no game<br />

3.1 Jogo<br />

Do ponto de vista do jogo o que são denominados de movimentos da capoeira<br />

são os signos que acontecem num espaço circular, numa roda. A roda seria<br />

como um tabuleiro do xadrez para a realização da estratégia dos capoeiras. Os<br />

capoeiras buscam a transformação, que é manter a continuidade do jogo, o ritmo<br />

e visão das jogadas sem interromper o fluxo do jogo, de caráter cíclico.<br />

Os movimentos são uma espécie de narrativa - perguntas e respostas<br />

realizadas com o corpo e formando diálogos dentro do jogo, que pelo caráter<br />

estratégico proporciona toda uma diversidade de argumentações, pontuadas<br />

por negaças, gingados, floreios, insinuações, dissimulações, retomadas de assuntos,<br />

piadas, gírias, cacoetes, sotaques, vícios de linguagem etc.<br />

No caso do game as regras para jogar são outras. O aspecto de jogo aparece<br />

não como um diálogo e estratégia entre corpos, mas como um enredo que<br />

o sujeito deve percorrer com a utilização do avatar Gunga Za com o objetivo<br />

de libertar seus companheiros que foram aprisionados. O jogador em Capoeira<br />

Legends está jogando sozinho, ou melhor, jogando com a programação do game<br />

através da interface maquínica, que nesse aspecto funciona como um sujeito que<br />

estabelece possibilidades narrativas. O jogador está trilhando um caminho em<br />

parte já estabelecido. Porém, de acordo com Bentes (2006) este modelo tem uma<br />

margem de invenção, nascida da interação máquina/operador.<br />

Isso nos remete ao pensamento de Benjamin (2010) acerca do narrador.<br />

Quando afirma que “o que separa o romance da narrativa é que ele está essencialmente<br />

vinculado ao livro” (p.201) ele nos remete a uma possível relação<br />

do game com o romance, pois a ação no game acontece desconectada de uma<br />

experiência coletiva que é a experiência tradicional da capoeira, construída no<br />

diálogo com outros praticantes, nos treinos, nas rodas e nas vadiações. Além<br />

disso, “o romancista segrega-se” (Idem). Também gera um indivíduo isolado<br />

“que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes<br />

e que não recebe conselhos e nem sabe dá-los” (Idem).<br />

No entanto, existe no game um aspecto que não é de romance, mas<br />

de narração. Benjamim afirma que “na verdadeira narração, a mão intervém<br />

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108<br />

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decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que<br />

sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito” (p.220). Nesse aspecto, há<br />

uma narração do corpo quando está agindo no game, feita por gestos aprendidos<br />

ao performar um personagem. Para Benjamim, “a alma, o olho e a mão<br />

estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática<br />

(Idem). Esta prática no game é essencialmente uma ação e acontece por meio<br />

do sistema sensório-motor atuando através de uma interface maquínica.<br />

3.2 Luta<br />

O aspecto da luta da capoeira, por sua vez, invoca a defesa pessoal<br />

e ao contrário do aspecto do jogo se constitui numa busca da interrupção<br />

do fluxo de um oponente. Como luta os movimentos são ataques, defesas,<br />

esquivas, negaças, floreios e fintas. A priori a luta não tem por objetivo um<br />

parceiro do jogo, o qual é geralmente uma pessoa que também está treinando<br />

e entre os dois há um processo colaborativo para reforçar o aprendizado<br />

da capoeira ao invés de haver realmente um combate. Sobre esta questão,<br />

Mestre Patinho (Antônio José da Conceição Ramos) afirma que “roda de<br />

capoeira não é lugar para se lavar roupa suja”.<br />

A luta é treinada na capoeira no enfoque do jogo e da dança e destina-se<br />

a ser usada em última instância como defesa pessoal numa situação real, que<br />

acontece no jogo da vida e fora da roda. Quando acontece tem o objetivo de<br />

ser o mais breve possível, evitando desgastes e outros perigos que um prolongamento<br />

desnecessário da luta acometeria.<br />

Em Capoeira Legends o aspecto da luta se baseia na destruição dos<br />

inimigos de Gunga Za. Dentro da programação do game devemos ajudá-<br />

-lo a destruir os oponentes antes que eles o façam primeiro. Não há formas<br />

de argumentação ou de acordos no game, como até poderiam ocorrer na<br />

vida real. Além disso, os excessos dos aspectos violentos são banalizados em<br />

relação à vida humana, uma vez que basta reiniciar a partida quantas vezes<br />

forem necessárias caso o programa consiga destruir Gunga Za antes que<br />

consiga cumprir a missão - ou melhor, antes de o fazermos cumprir a missão.<br />

É notório que Gunga Za tenha que interromper o fluxo dos inimigos que<br />

surgem no decorrer do enredo antes que eles o façam primeiro. Assim, a ação<br />

relacionada ao aspecto luta mantém alguma proximidade com o que poderia<br />

acontecer em realidade. Todavia, o personagem aparece gingando quando<br />

luta, o que não ocorreria numa luta real.<br />

Enquanto no mundo real a expressão de violência contra pessoas costuma<br />

ser administrada através da repressão, este caráter violento representado<br />

pela luta no game é entendido como um entretenimento. Este aspecto também<br />

nos remete às ideias de Foucault (2005) sobre o biopoder. Evidencia duas formas<br />

distintas, mas coexistentes, para estabelecer uma gestão dos corpos que<br />

podem ser expressas pela sociedade da disciplina e a sociedade de controle.<br />

Corpo, capoeira e games: traduções de materialidades e tecnologias


109<br />

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Em relação ao poder exercido através da disciplina, Foucault afirma que<br />

“a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa<br />

multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados,<br />

treinados, utilizados, eventualmente punidos” (p.289). Nesse sentido,<br />

o mais provável é que um capoeira que viesse a produzir violência na sociedade<br />

provavelmente iria ser punido. Poderia inclusive passar uma temporada na prisão<br />

que é o dispositivo de confinamento por excelência.<br />

Por outro lado, a violência que é expressa pelo game nos remete muito<br />

mais a uma sociedade de controle. Na visão de Deleuze (2008 p.223) é uma<br />

sociedade em que o capitalismo não é dirigido para a produção, mas para o<br />

produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Dessa maneira, ao invés de<br />

criar corpos úteis, ao invés de “adestrar para retirar e se apropriar ainda mais<br />

e melhor”. (FOUCAULT, 2004, p.143), o game se apropria da violência para<br />

vender um produto, ou seja, Capoeira Legends: Path to Freedom se apropria da<br />

violência no intuito de vender mais e melhor.<br />

3.3 Dança<br />

A musicalidade da capoeira enfatiza o aspecto da dança, que possui um<br />

passo básico - denominado de ginga - o qual é o estágio preparatório para as<br />

perguntas e respostas do jogo. O ritmo funciona como elo entre o jogo e a luta.<br />

A ginga por si já é um acompanhamento musical utilizando o corpo. Além<br />

disso, também existe uma interface tecnológica expressa por instrumentos musicais<br />

para a realização da parte musical durante a roda.<br />

Costumam ser utilizados diversos instrumentos em uma roda de capoeira:<br />

berimbaus, pandeiros, reco-reco, agogô e atabaque. Porém, a falta de algum<br />

deles ou mesmo ausência de todos eles não chega a inviabilizar a parte musical,<br />

pois o corpo enquanto mídia tem em si a capacidade de produzir música, através<br />

de cantos, assobios, batendo palmas, entre outras possibilidades.<br />

A musicalidade estabelece uma sincronicidade da música com o corpo<br />

na capoeira. De acordo com Jung, “para a sincronicidade, a coincidência dos<br />

acontecimentos, no espaço e no tempo, significa mais que um mero acaso (...)<br />

assim como a causalidade descreve a sequência dos acontecimentos, a sincronicidade<br />

(...) lida com a coincidência dos eventos” (JUNG apud WILHELM,<br />

2004, p.17). Desse modo, cada elemento acontece ligado ao todo, que resulta<br />

em algo maior que a simples soma das partes e que a capoeira bem representa<br />

na ligação que estabelece entre dança, jogo e luta.<br />

Na capoeiragem, esta sincronicidade é percebida especialmente pelo aspecto<br />

musical. É comum se ouvir entre mestres de capoeira que os berimbaus<br />

são os regentes da roda, que eles comandam o andamento dos jogos.<br />

Normalmente o gunga (berimbau grave) inicia no toque de Angola, seguido<br />

pelo médio (berimbau intermediário) que executa o toque de São Bento<br />

Pequeno enquanto a viola (berimbau agudo) faz o toque de São Bento Grande<br />

Corpo, capoeira e games: traduções de materialidades e tecnologias


110<br />

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ou um improviso. Os pandeiros executam a pergunta e resposta, enquanto o<br />

atabaque e o agogô fazem a marcação do tempo e o reco-reco em diálogo com<br />

a viola faz o contratempo. A sincronia entre os diferentes toques de berimbau<br />

com a marcação dos outros instrumentos acontece também em relação ao corpo<br />

dos jogadores e demais participantes de uma roda.<br />

Por sua vez a ginga básica consiste no movimento semelhante ao andar<br />

ritmado sem sair do lugar, seja no sentido direto como no sentido inverso, pode<br />

ser o que os capoeiras chamam de jogo de dentro (sentido direto) ou o jogo<br />

de fora (sentido inverso). Possui três pontos de plano, sendo um deles móvel,<br />

onde podem ser utilizados os pés, as mãos e a cabeça como pontos de apoio.<br />

Em interação com outro capoeira possibilita o diálogo e tal movimentação<br />

em sintonia rítmica produz a figura de uma estrela de seis pontas. Esta figura,<br />

conhecida como Cinco Salomão, Estrela de Salomão, entre outros nomes, é<br />

recorrente na capoeiragem, sendo formada por dois triângulos interligados,<br />

que representam o jogo e sua sincronia.<br />

Imagem 6 - Estrela de Salomão<br />

No caso de Capoeira Legends o aspecto dança assume a forma de uma<br />

ginga robotizada, que acontece quando Gunga Za encontra um inimigo. A<br />

programação da ginga não possui do ponto de vista estético o caráter de uma<br />

coreografia, pois a ação independe do sujeito que controla o avatar. Além disso,<br />

a ginga seria comumente realizada quando relacionada ao aspecto da dança e<br />

do jogo, enquanto que em uma luta não seria normal que um capoeira ficasse<br />

gingando na frente de um adversário.<br />

Do ponto de vista musical, encontramos em Capoeira Legends alguns<br />

sons de floresta (pássaros típicos da fauna brasileira, cachoeira etc.) que funcionam<br />

como ambientação do cenário. O game também possui em alguns momentos<br />

sons incidentais de berimbau e canto. Isso nos remete às ideias de Lévy<br />

(2005) sobre a cibercultura quando afirma que “é cada vez mais frequente que<br />

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111<br />

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os músicos produzam sua música a partir da amostragem (sampling em inglês)<br />

e da reordenação de sons, algumas vezes trechos inteiros, previamente obtidos<br />

no estoque das gravações disponíveis” (p.141). Ele complementa afirmando<br />

que as músicas “são sampleadas, arrancadas de seu contexto original, mixadas,<br />

transformadas e finalmente oferecidas a uma escuta envolvida em uma aprendizagem<br />

permanente” (p.143). É exatamente o que parece ocorrer em relação<br />

à musicalidade da capoeira quando é inserida em um produto como o game.<br />

4 - ConsiDerações<br />

Quando verificamos as linhas que compõem a capoeira nos games, novas<br />

possibilidades são evidenciadas. O sujeito que antes acessava o dispositivo<br />

através do corpo passa a utilizar a tecnologia como uma extensão do cérebro.<br />

De acordo com Bentes (2006) um pioneiro nessa concepção informática para<br />

explicar o funcionamento neurocerebral é Marvin Minsky. “O cérebro e seus<br />

circuitos se aproximam de um modelo rizomático de redes acentradas não hierárquicas<br />

(hipertextos)”. Para Minsky, as tecnologias não apontam para uma<br />

ruptura radical, mas são uma extensão de processos neuronais.<br />

Esta temática é bastante ampla, mas podemos perceber que os sujeitos<br />

contemporâneos estão consumindo a capoeira cada vez por produtos que reforçam<br />

uma identidade cultural, muitas vezes sem sua prática corporal tradicional.<br />

Os filmes, os games e demais produtos feitos com elementos da capoeira<br />

interagem entre si e com outras realidades, cooperando para a transformação<br />

da capoeira na sociedade partindo de novas dinâmicas. Assim, muitas pessoas<br />

jogam um game sobre capoeira, mas nunca jogaram a capoeira, vivenciando<br />

seus elementos apenas a partir de tais produtos. O jogo de destreza corporal entre<br />

dois capoeiras atinge um aspecto virtual, da destreza digital com o joystick.<br />

Finalmente, em relação ao corpo, pudemos verificar que ele é uma imagem<br />

que prevalece em relação a outras imagens, intercalando estímulos recebidos<br />

e movimentos tal qual a acepção “bergsoniana”. Porém, as afecções desse<br />

corpo, representadas pelas percepções internas, sentimentos e sensações são<br />

exclusivas à materialidade orgânica. Todos os desdobramentos do corpo em<br />

imagens digitais acontecem a partir de uma conexão visual e tátil.<br />

Nesse aspecto, o avatar não seria um corpo propriamente dito, antes seria<br />

um objeto sobre o qual é refletida a ação possível do corpo real, que é capaz<br />

de gerar ações, um meio para a ação num ambiente virtual. Todavia a interface<br />

maquínica através da qual este corpo age em um mundo virtual representa um<br />

desdobramento da materialidade desse corpo para além da matéria.<br />

Corpo, capoeira e games: traduções de materialidades e tecnologias


112<br />

notas<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

1 Usaremos no decorrer do texto a diferenciação entre jogo e game, entendendo<br />

o primeiro termo relacionado à capoeira real e o segundo em relação à capoeira<br />

virtual, expressa enquanto jogo eletrônico.<br />

2 www.capoeiralegends.com.br<br />

3 www.aguadebeber.com.br<br />

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Corpo, capoeira e games: traduções de materialidades e tecnologias


Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

A narrativa de beleza em anúncios<br />

da be le époque tropical<br />

The narrative of beauty in advertisings from<br />

the tropical ‘belle époque’<br />

Gustavo Freire Boaventura<br />

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da<br />

Universidade do Estado do Rio de Janeiro.<br />

Resumo<br />

No início do século XX, os cosméticos eram tratados como remédios para<br />

a beleza. A retórica publicitária da época buscava, antes de tudo, educar e<br />

disciplinar um povo/uma elite. Os consumidores, ansiosos por produtos<br />

europeus, eram convencidos a voltarem seu olhar ao consumo de produtos de<br />

beleza e higiene pessoal. Este artigo viaja por essa época a fim de destacar os<br />

aspectos principais da narrativa daquela aurora de um novo século. Trata-se de<br />

um estudo de caso dos anúncios veiculados nas edições nº 320 e 321 da Revista<br />

da Semana, publicadas em 1º e 8 de julho de 1906, respectivamente.<br />

Palavras-chave: Belle époque; Publicidade; Revista da Semana.<br />

Abstract<br />

In the early twentieth century cosmetics were treated as beauty medicines in Brazil.<br />

The rhetoric of advertising of that time mostly sought to educate and discipline the<br />

people. Consumers were eager to European products and they were convinced to<br />

turn their attention to cosmetic and toiletries products. This paper travels through<br />

this time to highlight the main perspective of the narrative from that dawn of<br />

a new century. This is a case study of the ads on issues number 320 and 321 of<br />

Revista da Semana, respectively published on July 1st and 8th, 1906.<br />

Keywords: Belle époque; Advertising; Revista da Semana<br />

A narrativa de beleza em anúncios da belle époque tropical


115<br />

introDução<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Para Georg Simmel (1987), a cidade moderna, sede da economia monetária,<br />

reduziu a individualidade e aumentou a especialização do indivíduo ao<br />

passo em que o dinheiro se referia ao que era comum a tudo, simplificando<br />

as relações e o valor das coisas. Mais ainda, na metrópole a produção se fez<br />

– e se faz – para o mercado e seus compradores inteiramente desconhecidos<br />

(SIMMEL, 1987). Lipovetsky (2005) complementa que as práticas e produtos<br />

de beleza foram democratizados no início no século XX, período no qual a disseminação<br />

dos anúncios nas revistas ilustradas buscava convencer um público<br />

leitor a se tornar consumidor de produtos até então conhecidos apenas pelos<br />

poucos cidadãos que tiveram o privilégio de conhecer outros países.<br />

Em seu ensaio sobre a felicidade no Brasil, Denise Sant’Anna (2010)<br />

observou que até a década de 1920 a maioria dos anúncios de remédios tinha a<br />

forma de desenhos em preto e branco e os discursos eram imperativos e dramáticos.<br />

Ela também observou que o foco dos anúncios era maior nos sintomas e<br />

consequências dos males que nos resultados do tratamento.<br />

A partir de uma abordagem cultural do Rio de Janeiro do início do<br />

século XX, este artigo tem o objetivo de dialogar com a narrativa dos anúncios<br />

de produtos de higiene, perfumes e cosméticos publicados nas edições<br />

nº 320 e 321 da Revista da Semana, de 1º de julho de 1906 e de 8 de julho<br />

do mesmo ano, respectivamente.<br />

a transformação Da Capital Cosmopolita<br />

De sua fundação ao início do século XX, o Rio de Janeiro cresceu organicamente<br />

ao redor da área portuária, nas redondezas do morro do Castelo.<br />

Isso porque os negócios sempre se concentraram nessa região da cidade. No<br />

século XVIII, o porto carioca escoou o ouro e diamante das Minas Gerais. Já<br />

no século XIX, foi a vez do café (NEEDELL, 1993).<br />

A urbanização da cidade era desigual e incompleta. Haviam terrenos alagadiços<br />

e sujos, problemas de falta de água e saneamento, lixos nas ruas. A população<br />

aumentava e, com isso, agravava-se a pobreza e as condições inadequadas<br />

de moradia. Com a falta de uma política de higiene social e de sanitização da<br />

cidade, o Rio de Janeiro do século XIX se transformara em foco disseminador de<br />

doenças e epidemias, como a febre amarela, a varíola, a malária e a tuberculose,<br />

por exemplo (ABREU, 2003). Segundo Glória Kok (2005, p.33), “o ano de <strong>18</strong>91<br />

ficou marcado por ter ocorrido o mais violento surto de epidemias da história da<br />

cidade” e a taxa de mortalidade chegou a 52/1000 habitantes.<br />

Os serviços de saneamento da cidade eram constantemente denunciados<br />

na imprensa (KOK, 2005), mas as epidemias se alastravam nos locais com<br />

maior densidade populacional e de habitações coletivas. A partir da segunda<br />

metade do século XIX, as transformações na cidade se aceleraram. A coleta<br />

A narrativa de beleza em anúncios da belle époque tropical


116<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

regular de lixo, por exemplo, teve início em <strong>18</strong>47. Dez anos depois, foram<br />

implantados o sistema subterrâneo de esgotos, a iluminação a gás e um canal<br />

para tentar controlar os alagamentos da área do mangue (NEEDELL, 1993).<br />

Apesar disso, nessa época o Rio de Janeiro já era visto como uma cidade magnífica<br />

e conferia prestígio a seus visitantes.<br />

Em <strong>18</strong>98, Campos Sales sobe ao poder da república recém-instaurada,<br />

marcando a recuperação da tranquilidade das elites regionais e o início da belle<br />

époque carioca (NEEDELL, 1993). No entanto, no despertar do século XX,<br />

a capital federal estava distante das aspirações de modernização, progresso e<br />

civilização presente no imaginário das elites nacionais.<br />

Após retornar de uma viagem à Argentina em que acompanhou o então<br />

presidente Rodrigues Alves, Olavo Bilac declarou impetuosamente em seus<br />

textos para a Gazeta de Notícias a urgência das mudanças na capital da nova<br />

República (FREIRE, 2003). Assim, diante do evidente contraste entre a sua<br />

“Sebastianópolis” e a “nova capital platina”, o poeta declarou:<br />

“ali assim, a quatro dias de viagem, há uma cidade como Buenos Aires<br />

– e que nós, filhos da mesma raça e do mesmo momento histórico,<br />

com muito mais vida, com muito mais riqueza, com muito mais<br />

proteção da Natureza, ainda temos por capital da República, em 1900,<br />

a mesma capital de D. João VI em <strong>18</strong>08 –, isso é o que dói como<br />

uma afronta, isso é o que revolta como uma injustiça” (BILAC apud<br />

FREIRE, 2003; p. 144)<br />

Atendendo ao clamor da imprensa e da elite, de 1903 a 1906 o prefeito<br />

Pereira Passos teve uma importante missão: “sanear e reformar a capital<br />

federal, empreendendo o que ficaria conhecido como a ‘regeneração’ do Rio<br />

de Janeiro” (KOK, 2005; p.36). Juntamente com o prefeito, o médico-sanitarista<br />

Oswaldo Cruz combateu as epidemias com sucesso (NEEDELL,<br />

1993). Com um custo alto para sua imagem na época, mas que o fez marcar<br />

a história da saúde pública brasileira.<br />

Um episódio especificamente é rememorado sempre que se fala de<br />

Oswaldo Cruz: a Revolta da Vacina, acontecida em 11 de novembro de 1904,<br />

no centro do Rio de Janeiro. O acontecimento foi um ato de revolta contra a lei<br />

aprovada em 31 de outubro de 1904 que tornava obrigatória a vacinação contra<br />

a varíola em todo o território nacional. Em consequência de mais essa atitude<br />

autoritária em prol da higienização da Capital Federal, a cidade se transformou<br />

no palco de um sangrento episódio que teve o apoio tanto de descendentes de<br />

africanos, que acreditavam na cura pelos rituais religiosos, quanto das elites,<br />

que questionavam a eficácia da vacina. A multidão lutou contra a vacina, o<br />

governo e a polícia (PORTO e PONTE, 2003).<br />

De acordo com Jeffrey Needell (1993), naquela época a França e a<br />

Inglaterra representavam a civilização. Para os brasileiros da cidade cosmopolita<br />

não era diferente. No entanto, enquanto a reforma era vista por uns como<br />

progresso e regeneração estética e sanitária, outros a acusavam de considerar<br />

A narrativa de beleza em anúncios da belle époque tropical


117<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

a sociedade um plano e a humanidade uma figura ambulante de geometria<br />

(KOK, 2005). Mesmo assim, a reforma modificava radicalmente a circulação<br />

urbana e gerava novas formas de ocupação e uso do espaço público.<br />

Em apenas um ano e meio, a Avenida Central estendia-se por quase 2<br />

quilômetros, com 33 metros de largura (NEEDELL, 1993). Ela representou<br />

o símbolo maior das reformas de Pereira Passos, que foram além da arquitetura<br />

da cidade. Inspirados nos modelos e valores europeus, a reforma urbana<br />

sufocara costumes e tradições populares, tais como a proibição de vendedores<br />

ambulantes, da venda de miúdos em tabuleiros à mostra, de mendigos, dos<br />

quiosques, dos balões de fogo e das brincadeiras de rua, entre outros.<br />

a belle époque tropiCal<br />

Ali, naquele boulevard circundado de edificações ecléticas que cortavam<br />

as construções coloniais da Cidade Velha foi oficializado o afrancesamento da<br />

sociedade brasileira do século XXI. Segundo Jeffrey Needell (1993), a Avenida<br />

Central é a melhor expressão da belle époque carioca. Uma magnífica paisagem<br />

urbana que passou a embelezar a capital cosmopolita da República. Era um<br />

verdadeiro monumento ao progresso do país.<br />

As reformas do prefeito Pereira Passos mudaram o uso do espaço público.<br />

O novo boulevard tropical transformou-se no espaço principal para o<br />

consumo de artigos importados em lojas luxuosas e elegantes, para exibir os<br />

vestidos confeccionados nas mais belas fazendas francesas à moda francesa ou<br />

inglesa (NEEDELL, 1993). A tendência era ser chic ou smart, dependendo da<br />

procedência do tecido ou do modelo. A sociedade da época empenhou-se na<br />

reprodução da vida francesa. Segundo Alexandre Volpi (2007), o que virava<br />

moda lá automaticamente virava moda aqui. No entanto, a apropriação da<br />

moda europeia na belle époque tropical não combinava com o calor intenso<br />

aqui presente na maior parte do ano.<br />

A arquitetura e o cenário, por sua vez, ajudavam. As fachadas Beaux-<br />

Arts, o consumo dos artigos importados e as edificações da Avenida Central e<br />

adjacências tornaram palpável a fantasia da civilização e da modernidade da<br />

elite carioca. Para Jeffrey Needell (1993), o afrancesamento simbolizava também<br />

a reabilitação do país e de um futuro civilizado.<br />

Na Avenida Central os magazines de luxo vendiam artigos masculinos<br />

e femininos que garantissem a beleza e a elegância (KOK, 2005). A fina flor<br />

da elite carioca esbanjava elegância ao caminhar pelas ruas em meio às lojas de<br />

roupas, charutarias e joalherias da Rua do Ouvidor (VOLPI, 2007). No fim<br />

do dia, as mariposas do luxo do cronista João do Rio – que vagava pelas ruas<br />

da cidade observando e escrevendo sobre a pobreza nela presente – sonhavam<br />

e almejavam os artigos expostos nas vitrines (RIO, 2008; SIQUEIRA, 2004).<br />

Assim, as multidões passaram a aglomerar-se ao longo do novo eixo central da<br />

cidade para festejar, participar ou simplesmente observar aquela nova paisagem<br />

A narrativa de beleza em anúncios da belle époque tropical


1<strong>18</strong><br />

urbana da nova capital republicana.<br />

o rio em reVista<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Seja em oposição ao livro ou pela escrita dinâmica e reflexiva<br />

(VELLOSO, 2010), as revistas se tornaram símbolo da modernidade e um<br />

dos grandes fetiches da elite republicana brasileira naquele Rio de Janeiro do<br />

início do século XX (VOLPI, 2007). Articuladas à vida cotidiana, elas divulgavam<br />

os acontecimentos e estimulavam os desejos de consumo dos leitores<br />

abastados e dos menos afortunados.<br />

As revistas ilustradas desempenharam um papel de mediadoras de saberes,<br />

de práticas sociais e de linguagens (OLIVEIRA, 2010a). Com sua linguagem<br />

nem tão imediata e verossímil quanto os jornais, e nem tão reflexiva quanto<br />

os livros, elas traduziram formas de convívio, aconselharam e apresentaram<br />

jogos, piadas e outras formas de lazer na modernidade (VELLOSO, 2010).<br />

Nas impressões e imagens desses periódicos, havia o predomínio do urbano<br />

(VELLOSO, 2010). Assim, a metrópole moderna pouco a pouco se convertia<br />

em um espetáculo de representação da brasilidade (OLIVEIRA, 2010a).<br />

De forma a cativar os leitores e dar a eles uma noção de pertencimento a esta<br />

nova nação que se erguia na aurora de um novo século.<br />

Vera Lins (2010), ao tratar de três publicações da modernidade, afirma<br />

que as revistas imprimiram imagens da cidade que enfatizavam a velocidade<br />

e o espírito nacional na construção de um universo simbólico. Nas<br />

imagens fotografadas para as revistas ilustradas após os melhoramentos<br />

urbanos emergiam cartões-postais (OLIVEIRA, 2010b). Surgia a Cidade<br />

Maravilhosa, a alcunha ideal para a mais recente coleção de cenários urbanos<br />

de contemplação estética.<br />

O cotidiano urbano vinha acompanhado dos corpos modernos, simultaneamente<br />

sujeitos e objetos de representação pelas revistas ilustradas. Para<br />

Cláudia Oliveira (2010b), o corpo fotografado se tornaria objeto central na<br />

construção de novas normas de conduta e de comportamentos observados no<br />

espaço público. Seguindo o pensamento de Simmel (1987), na metrópole moderna,<br />

a vida pessoal e a vida pública se misturavam. Sendo assim, cada indivíduo<br />

representaria um estrato social, e cada corpo, um contexto social. Dessa<br />

forma, as revistas ilustradas, ao representarem o corpo moderno e o cotidiano<br />

urbano, os tornaram objetos de consumo.<br />

A imagem ideal do homem moderno evocava uma criatura soberba,<br />

rígida e séria. Ao seu lado, a mulher adornada simbolizava seu sucesso e seu<br />

status social, pois o luxo era uma necessidade para a economia em florescimento.<br />

Assim, os corpos modernos aspiravam aos argumentos apresentados<br />

pela publicidade da época, que vendia a beleza, a saúde e a felicidade<br />

(OLIVEIRA, 2010b).<br />

A narrativa de beleza em anúncios da belle époque tropical


119<br />

aquele Domingo De julho<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Segundo Carlos Roberto da Costa (2007), a Revista da Semana circulou<br />

de 20 de maio de 1900 até 1959. O uso de fotografias, caricaturas e textos de<br />

autores consagrados são considerados fatores que fizeram da publicação um<br />

enorme sucesso. O periódico era uma publicação semanal do popularíssimo<br />

Jornal do Brasil (BARBOSA, 2007).<br />

A Revista da Semana foi a principal revista do país até a década de 1940,<br />

quando perdeu a liderança para uma de suas seguidoras lançada em 1928, a<br />

revista O Cruzeiro (COSTA, 2007).<br />

Lançada por Álvaro Teffé, a Revista da Semana fortaleceu a presença da<br />

fotografia na imprensa nacional. Acredita-se que o próprio Álvaro Teffé tenha<br />

ido a Paris buscar equipamentos e aprender as novas técnicas para ensiná-las<br />

nas oficinas do Jornal do Brasil (COSTA, 2007). Eram os primeiros anos do fotojornalismo<br />

brasileiro. Numa cidade em que a maioria da população era analfabeta,<br />

Marialva Barbosa (2007) defende que a imprensa passou a transmitir<br />

sua textualidade por meio das imagens. Um pioneirismo que foi rapidamente<br />

imitado por outros periódicos.<br />

A publicação trazia um resumo claro e preciso dos acontecimentos e as<br />

seções de crítica literária, crônicas, poesias e contos para crianças. Constavam<br />

na revista ainda os crimes reconstituídos em estúdio fotográfico (COSTA,<br />

2007). Na segunda página também eram publicados dois folhetins igualmente<br />

ilustrados (BARBOSA, 2007).<br />

Em virtude de sua grande importância naquele momento e por toda a<br />

primeira metade do século XX, optou-se por estudar a Revista da Semana neste<br />

estudo de caso. A delimitação pela edição nº 320, de 1º de julho de 1906,<br />

figurou-se por ser o início do período após o “bota abaixo” de Pereira Passos.<br />

Portanto, um momento em que as reformas da cidade ocupariam menor espaço<br />

na publicação. Uma época de grande expectativa para o país e para o moderno<br />

consumidor por aqui. Para além da mera análise de apenas uma edição,<br />

a consulta à edição seguinte permitiu comparar e estabelecer um breve paralelo<br />

entre os anúncios veiculados naquele mês de julho de 1906.<br />

Da Definição sanitária<br />

Segundo Denise Sant’Anna (2010), no período que abrange este estudo<br />

dizia-se que os cosméticos eram remédios para a beleza. No entanto, para fins<br />

de classificação dos anúncios estudados, o autor adota a classificação de produtos<br />

proposta na Lei Federal Nº 6360, de 23 de setembro de 1976. Essa lei<br />

define Produtos de Higiene como:<br />

Produtos para uso externo, antissépticos ou não, destinados ao asseio ou<br />

à desinfecção corporal, compreendendo os sabonetes, xampus, dentifrícios,<br />

enxaguatórios bucais, antiperspirantes, desodorantes, produtos para<br />

barbear e após o barbear, estípticos e outros” (BRASIL, 1976)<br />

A narrativa de beleza em anúncios da belle époque tropical


120<br />

A mesma resolução define Perfumes como:<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Produtos de composição aromática obtida à base de substâncias<br />

naturais ou sintéticas, que, em concentrações e veículos apropriados,<br />

tenham como principal finalidade a odorização de pessoas ou ambientes,<br />

incluídos os extratos, as águas perfumadas, os perfumes cremosos,<br />

preparados para banho e os odorizantes de ambientes, apresentados em<br />

forma líquida, geleificada, pastosa ou sólida” (BRASIL, 1976)<br />

Como última definição de interesse, a referida Lei delimita os<br />

Cosméticos como sendo:<br />

o que se anunCiaVa<br />

Produtos para uso externo, destinados à proteção ou ao embelezamento<br />

das diferentes partes do corpo, tais como pós-faciais, talcos, cremes<br />

de beleza, creme para as mãos e similares, máscaras faciais, loções<br />

de beleza, soluções leitosas, cremosas e adstringentes, loções para as<br />

mãos, bases de maquilagem e óleos cosméticos, ruges, blushes, batons,<br />

lápis labiais, preparados antissolares, bronzeadores e simulatórios,<br />

rímeis, sombras, delineadores, tinturas capilares, agentes clareadores<br />

de cabelos, preparados para ondular e para alisar cabelos, fixadores de<br />

cabelos, laquês, brilhantinas e similares, loções capilares, depilatórios e<br />

epilatórios, preparados para unhas e outros” (BRASIL, 1976)<br />

O interior da revista não continha muitos anúncios. Pelo menos nas<br />

duas edições analisadas, eles ficavam praticamente restritos às páginas do suplemento.<br />

Com um ou dois anúncios de página inteira e duas páginas centrais<br />

com vários outros pequenos, no estilo páginas amarelas.<br />

No suplemento da Revista da Semana daquele domingo de julho de<br />

1906, em meio aos anúncios de medicamentos e produtos de higiene pessoal,<br />

perfumaria e cosméticos, flutuava nas mesmas páginas um convite à Loteria<br />

Esperança, prêmio que seria extraído em Niterói “em comemoração a Tomada<br />

a Bastilha”, no dia 14 de julho daquele ano, uma declaração nítida da influência<br />

cultural exercida pela França na sociedade da época. Do total daquele suplemento,<br />

dos 17 anúncios veiculados, sete deles eram de produtos de higiene<br />

pessoal, perfumaria, cosméticos e um medicamento. Os destaques dados aos<br />

textos abaixo – negrito, itálico, aumento de fonte – são dos próprios anúncios<br />

e não do autor. Optou-se também por manter a grafia original dos anúncios.<br />

Na edição analisada, apenas um anúncio foi encontrado: da loção Pilol,<br />

que ocupava toda a página 3636 – naquele período era comum aos periódicos<br />

adotarem a numeração contínua. A imagem exibia duas pessoas, um homem<br />

e uma mulher, sentados à mesa de uma cafeteria ou confeitaria. O homem era<br />

um oficial fardado, com um monóculo no olho direito, enrolando o bigode<br />

com a mão esquerda. Ele tinha um sorriso faceiro no rosto e uma xícara na<br />

mão direita. A mulher, de cabelos feitos, usava brinco de pérola cintilante e um<br />

vestido quadriculado decorado com dois botões de rosas sobre o seio esquerdo.<br />

Ela apoiava o cotovelo direito sobre a mesa. Sua expressão facial era neutra, de<br />

frente para o homem. Abaixo da imagem vinha a legenda:<br />

A narrativa de beleza em anúncios da belle époque tropical


121<br />

O Tenente – ......?<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Ella – Si apezar do seu ar sarcástico, está falando sério, lhe darei a<br />

resposta quando, graças ao Pilol, lhe tenha crescido o cabello, pois os<br />

calvos não me attraem.<br />

Uma caixa de texto no canto superior direito do anúncio trazia o nome<br />

do produto em letras garrafais. Logo abaixo, com letras gradativamente menores,<br />

vinha o valor e, na linha de baixo, os “únicos depositários” e a lembrança<br />

aos interessados de que o produto estava “à venda em todas as perfumarias,<br />

pharmacias, etc”.<br />

O homem aqui, apesar da patente militar, provavelmente não tem o<br />

sucesso reconhecido em seu meio, pois não tem uma senhora elegante ao seu<br />

lado. A mulher, que aparenta ter idade para ser considerada solteirona, recusa<br />

um grande partido, pois ele é calvo. Esse anúncio nos apresenta, dadas as devidas<br />

proporções, a uma categoria de cuidados estéticos que poderia ser classificada<br />

como cosmética corretiva.<br />

A partir do anúncio, a calvície é apresentada como uma insatisfação do<br />

homem moderno. No entanto, o homem contemporâneo ainda apela para o<br />

mesmo método profilático.<br />

O anúncio da Legítima Emulsão de Scott ocupava toda a página dois do<br />

suplemento. Na parte superior apresentava o busto de uma mulher de perfil,<br />

com a legenda “Angelina Ceva”. Logo abaixo, ocupando metade do anúncio,<br />

vinha a chamada principal para o produto centralizada no espaço e, em seguida,<br />

um texto justificado que contava a história da personagem apresentada.<br />

Angelina Ceva da Paz, Bolivia, nasceu delicada e doentia. Na sua infância<br />

viu-se atacada de uma anemia profunda que acabou de aniquilal-a.<br />

Com frequencia se encatarrhoava e as febres não a abandonavam.<br />

Todos os cuidados maternos eram inuteis, se lhe receitavam remedios e<br />

mais remedios e a menina empeorava.<br />

Em tal estado se suspendeu todo o tratamento e por indicação do medico<br />

administrou-lhe a Emulsão de Scott Legitima. Desde o primeiro<br />

frasco se notou uma mudança favorável. A criança começou a adquirir<br />

carnes e forças, seu semblante de amarelado se tornou rosado e actualmente<br />

sua saúde é perfeita.<br />

Não se conhece na historia da medicina um preparado que consegue<br />

tanto benefício ás criaturas doentias como a Emulsão de Scott<br />

Legitima. Quando lhe administra com constancia, os resultados são<br />

maravilhosos e seguros.<br />

É necessario não confundir a Emulsão de Scott Legitima com as imitações<br />

de pacotilha que vendem alguns boticarios. A Legitima de Scott<br />

cura, e as imitações só beneficiam ao boticario que as vende.<br />

A descrição de cura da enferma exemplifica a observação de Denise<br />

Sant’Anna (2010) do poder quase milagroso atribuído aos produtos naquele<br />

período. Segundo ela, milagre e tratamento médico não eram diferentes<br />

A narrativa de beleza em anúncios da belle époque tropical


122<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

no discurso publicitário do início do século XX. Bem como era constante a<br />

presença de um cortejo de sofredores nos anúncios (SANT’ANNA, 2010). A<br />

emulsão de Scott, especialmente se apresenta como benéfica contra todos os<br />

males possíveis, ultrapassando a terapêutica medicamentosa.<br />

E o anúncio prosseguia. Mais abaixo vinha mais um enorme texto salientando<br />

aos consumidores que atentassem para a embalagem na hora de adquirir<br />

seu produto e não levar nenhum além do legítimo. O texto a seguir estava disposto<br />

ao lado direito de uma ampliação da logomarca da Emulsão de Scott:<br />

Cada frasco da Emulsão de Oleo de Figado de Bacalhau que tiver<br />

um que comprar deve procurar que levasse a marca que mostra este<br />

desenho, pois esta marca significa o mesmo que a marca da lei que se<br />

encontra nas joias de prata e de ouro.<br />

Emulsões que não levam esta marca são o mesmo que uma prenda<br />

falsa, dourada ou nickelada, feita de materiaes baratos.<br />

Por fim, o anúncio da Emulsão de Scott trazia a informação que os<br />

consumidores poderiam adquirir o produto nas “pharmacias e drogarias”. Sua<br />

assinatura “SCOTT & BROWNE, Chimicos, Nova York” reforçava a legitimidade<br />

e confiança em produtos de origem estrangeira. Itens tão apreciados<br />

naquele momento cultural brasileiro.<br />

Assim como no caso da Emulsão de Scott, a maioria dos anúncios advertia<br />

os consumidores a tomarem cuidado com as imitações. Destacando duas<br />

práticas de mercado que infelizmente ainda são frequentes na indústria cosmética<br />

nacional atualmente: o plágio e o oportunismo. Contraditoriamente, também<br />

se adjetivava os produtos como “o inimitável”, “o legítimo”, etc. Ora, se<br />

o produto é inimitável, ele não é, então, passível de ser imitado. Nos anúncios<br />

seguintes será recorrente a ressalva do anunciante a atentar para a legitimidade<br />

do produto na hora da compra.<br />

O Xarope Belabarre declarava: “Empregado em fricções sobre as gengivas,<br />

facilita a dentição e suprime todos os accidentes que ella apresenta” e ainda<br />

aconselhava o consumidor latente da época a “exigir o nome DELABARRE,<br />

78 Faubourg St-Dennis, PARIS.”<br />

O Crème Simon deixava claro a todos: “sem rival para amaciar, embranquecer<br />

e avelludar a pelle do rosto e das mãos”, com uma bela imagem de<br />

mulher produzida com coque, vestido de gala e duas rosas (uma nos cabelos e<br />

outra presa ao vestido). Advertia “cuidado com as imitações” e, por fim, ainda<br />

aproveitava para anunciar também o “pó de arroz e sabonete Simon”, todos eles<br />

com a assinatura de “J. SIMON, Paris”.<br />

Os apelos maciez e toque aveludado ainda são amplamente explorados<br />

atualmente. Uma necessidade recorrente que as brasileiras possivelmente<br />

ainda enxergam como benefício para suas peles. O clareamento cutâneo,<br />

por sua vez, foi regulamentado pela Agência Nacional de Vigilância<br />

Sanitária (Anvisa) a partir de 2001.<br />

A narrativa de beleza em anúncios da belle époque tropical


123<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

A Lugolina do Dr. Eduardo França “adotada na Europa e no Hospital da<br />

Marinha”, segundo seu anúncio. Tratava-se de um “remédio sem gordura”, que<br />

prometia “cura eficaz as mollestias da pelle, feridas, empingens, frieiras, suor<br />

dos pés, assaduras, manchas, tinha, sarnas, sardas, brotoejas, etc.” Era vendido<br />

no Brasil na Rua dos Ourives, 114 e na Rua S. Pedro, 90, e fugia ao padrão<br />

esperado da época pois era proveniente de Milão.<br />

Nesse anúncio, mais um exemplo dos remédios para a beleza (SANT’ANNA,<br />

2010). Destaca-se a chamada “remédio sem gordura”, ainda bastante explorada<br />

nos rótulos e anúncios contemporâneos. A grande diferença é a “anglicisação” do<br />

termo, que se tornou oil-free. Principalmente em fotoprotetores.<br />

O Sabão Iris avisava: “aos consumidores do inimitável Sabão Iris que<br />

o verdadeiro só é encontrado nas seguintes casas”, e trazia os nomes das mais<br />

distintas perfumarias do Rio de Janeiro que comercializavam o produto. Seu<br />

último aviso era bastante apelativo: “Este sabão dá como prêmio libras esterlinas,<br />

contidas no mesmo sabão.” A abordagem aqui é a oferta de brindes na<br />

aquisição do produto que, no caso, era o dinheiro corrente no Reino Unido.<br />

Na página quatro do suplemento, vinha um anúncio de página inteira<br />

do Sabonete Reuter, “especial para crianças”. Nele, um homem caricatamente<br />

francês – de boina, bigode e sobrancelhas finas, cílios arqueados para cima<br />

e com trajes escuros (camisa de manga comprida, calça e sapato) – carregava<br />

uma placa do tipo homem-sanduíche com o nome do produto. Do lado direito,<br />

na altura do ombro deste homem, vinha o apelo secundário “embelleza<br />

a cutis”. Na parte inferior do anúncio, aos pés do francês, constava o depositário<br />

brasileiro e o endereço para aquisição do produto no nº 72 da Rua São<br />

Pedro, no Rio de Janeiro.<br />

A princípio, trata-se de um sabonete infantil, mas ao observar a edição<br />

seguinte da Revista da Semana, brevemente descrita no parágrafo seguinte, fica<br />

claro que é um produto para toda a família. Um reforço à característica de<br />

panaceia atribuída aos produtos.<br />

No suplemento da edição seguinte, nº 321, de oito de julho de 1906, os mesmos<br />

anúncios se repetem. A Lugolina do Dr. França, a Legítima Emulsão Scott<br />

com o caso da “formosa criancinha Carmem Neyra” que padecia de “Artritismo”; e<br />

mais um anúncio de página inteira do Sabonete Reuter com os mesmos textos. Só<br />

que dessa vez a imagem era de duas jovens mulheres muito bem vestidas com seus<br />

vestidos floridos e chapéus parisienses. Elas estavam sentadas à mesa, supostamente<br />

lendo a caixa do referido sabonete, pois uma delas tinha uma pequena caixa na<br />

mão esquerda e o olhar de ambas se dirigia para este objeto.<br />

Os produtos na época eram “aprovados pela Junta de Hygiene”, um embrião<br />

do que seria a Secretaria de Vigilância Sanitária e a Anvisa na segunda<br />

metade do século XX, sendo esta última uma autarquia do Ministério da<br />

Saúde instituída em 1998.<br />

A narrativa de beleza em anúncios da belle époque tropical


124<br />

ConsiDerações finais<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Nessa breve análise pode-se constatar que, grosso modo, os anúncios e<br />

os produtos cosméticos mantêm muitas semelhanças com a realidade atual.<br />

Muitos termos usados naquele início de século ainda se repetem nos anúncios<br />

e apelos contemporâneos.<br />

Nesses pouco mais de cem anos, houve a classificação e uma definição<br />

maior dos produtos para a saúde a partir de 1976. Com regulamentação posterior<br />

acerca dos termos e apelos permitidos, somada a mudanças culturais,<br />

houve transformação no modo de se tratar os cosméticos na publicidade. Não<br />

se diz mais que o produto é único, inimitável ou inigualável.<br />

Também não são exploradas características de curas milagrosas dos produtos,<br />

apesar de alguns produtos atuais terem em seus anúncios ou rótulos<br />

afirmações incisivas do tipo “o fim da caspa”, por exemplo.<br />

Fica claro, portanto, o uso da publicidade na tentativa de convencer o<br />

consumidor do início do século XX a utilizar cosméticos, na maioria das vezes<br />

importados da Europa. Primeiro, pelo forte desejo da sociedade da época<br />

em consumir principalmente produtos europeus. Depois, porque ainda viria o<br />

momento da indústria nacional ser instituída e ganhar força na segunda metade<br />

do século. No entanto, essa pesquisa merece mais aprofundamento a fim de<br />

compreender melhor como evoluiu a retórica nesses últimos 100 anos.<br />

A narrativa de beleza em anúncios da belle époque tropical


125<br />

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Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos<br />

no mundo textual renascentista<br />

The printing press, the roman types and the<br />

italic types in the Renaissance textual world<br />

Júlio Monteiro Altieri<br />

Aluno da Faculdade de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio de<br />

Janeiro e bolsista de iniciação científica CNPq.<br />

Renan Lúcio Rocha<br />

Aluno da Faculdade de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio de<br />

Janeiro e voluntário de iniciação científica.<br />

Resumo<br />

Neste artigo, ressaltamos a importância dos tipos romanos e itálicos como<br />

transformações do mundo textual renascentista e também procuramos<br />

demonstrar como sua associação com a prensa de Gutenberg contribuiu<br />

para difundir o pensamento moderno, que se baseava no humanismo, no<br />

racionalismo, na experimentação e na harmonia, entre outros elementos.<br />

Palavras-chave: Renascimento; prensa tipográfica; tipos.<br />

Abstract<br />

In this article, we highlight the importance of roman and italic types as<br />

transformations of the Renaissance textual world and also seek to demonstrate<br />

how their association with the Gutenberg’s printing press contributed to diffuse the<br />

modern thought which was based on humanism, rationalism, experimentation,<br />

harmony and other elements.<br />

Keywords: Renaissance; printing press; typographic types.<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no mundo textual renascentista


128<br />

1 - introDução<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Como um dos períodos mais estudados da história da humanidade, o<br />

Renascimento viu o florescer de uma nova civilização ocidental, moldada a partir<br />

do resgate de valores concebidos lá na Antiguidade. O conhecimento e readaptação<br />

desses valores só foram possíveis graças à releitura de textos praticamente<br />

esquecidos durante todo o período que marca a cultura medieval. Para a difusão<br />

desses valores, a Renascença precisou produzir seus próprios textos.<br />

O mundo textual renascentista se desenvolveu sobre estruturas transicionais.<br />

Lançando mão das mais modernas tecnologias de então, o fazia influenciado<br />

por uma cultura de séculos anteriores. Na tentativa de deixar para<br />

trás um desagradável passado recente e levar adiante as virtudes de um passado<br />

distante, teve nas ferramentas textuais um importante aliado.<br />

A imprensa, associada aos tipos renascentistas são símbolos funcionais<br />

de uma era de transformações que influenciaram o rumo do ocidente.<br />

Pretendemos, assim, abordar dois elementos da produção editorial de grande<br />

importância na história do livro e, consequentemente, na história como um<br />

todo. Elementos que surgiram no conjunto das transformações textuais do<br />

Renascimento, caracterizando-o e perpetuando seus valores.<br />

o moDo De proDução: a passagem Do manusCrito para prensa<br />

A prensa como conhecemos hoje foi produto de um longo processo histórico<br />

e não só do gênio inventivo de Gutenberg. As transformações sociais<br />

que tomaram corpo através dos eventos do Renascimento, do Humanismo, da<br />

Revolução Científica e da Reforma montaram todo um ambiente de demanda<br />

por livros, o qual foi primordial para a busca de uma tecnologia de produção<br />

editorial que substituísse o manuscrito.<br />

Mesmo o formato de livro feito à mão foi essencial para a solidificação de<br />

elementos que constituiriam padrões nos livros até a atualidade, como ilustrações,<br />

a caligrafia com boa legibilidade, as margens, as letras capitulares como<br />

marcas de parágrafos, o colofão, entre outros. Muitas destas características<br />

foram contribuições de diversos estilos de manuscritos que se desenvolveram, e<br />

também da importante reforma Carolíngia, que mesmo com as limitações da<br />

época, resgatou inúmeros manuscritos antigos.<br />

A partir daí temos o impulso inicial para o Renascimento, um movimento<br />

de resgate dos conhecimentos, da filosofia, de aspectos artísticos e valores<br />

da época clássica parcialmente perdidos durante as invasões bárbaras e<br />

a Idade Média. O Renascimento provocou o aumento da procura por obras<br />

eruditas e a circulação de escritos por toda a Europa.<br />

O surgimento de novas universidades e a crescente alfabetização também<br />

foram outros dois processos que garantiram o aumento do público leitor<br />

e da demanda por livros que “se torna insaciável. A classe média letrada<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no mundo textual renascentista


129<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

emergente e os estudantes nas universidades em rápida expansão haviam capturado<br />

do clero o monopólio da faculdade de ler e escrever, criando um novo e<br />

vasto mercado para o material de leitura”. (MEGGS e PURVIS, 2009, p. 91).<br />

A própria Reforma religiosa manifestou-se como força de mudança e<br />

apoio para o desenvolvimento da prensa. Os líderes religiosos reformistas, reconhecidamente<br />

Lutero, encontraram na impressão de tipos móveis uma forma<br />

rápida de publicarem suas teses e idéias reformistas e inflamarem as multidões.<br />

Fato que não só aumentou a demanda nas oficinas impressoras, mas também<br />

popularizou o impresso, pois este agora iria às ruas, afixado em paredes e portas.<br />

“Causas políticas e convicções religiosas eram expostas. Invasões e desastres<br />

eram proclamados. As folhas impressas dobradas evoluíram para folhetos,<br />

tratados e, mais tarde, jornais” (MEGGS e PURVIS, 2009, p.1<strong>18</strong>-119).<br />

A ascensão da classe burguesa como força econômica pungente forneceu<br />

financiamento para a adaptação do setor da produção editorial a esse novo patamar<br />

que o aumento da demanda por livros criava. O próprio Gutenberg só pôde<br />

concluir suas invenções porque, obteve empréstimos de burgueses das cidades de<br />

Mainz e Estrasburgo. Inclusive as cidades de Nuremberg e Veneza, que eram na<br />

época centros burgueses de comércio e da economia européia, transformaram-se<br />

posteriormente também em centros de produção e inovação na área editorial.<br />

Mas para alcançar a estrutura de produção, que daria conta de toda<br />

a demanda gerada pelas mudanças sociais, não bastou apenas investimento<br />

burguês desagregado de qualquer outro fator. Foi preciso que grupos de profissionais<br />

envolvidos no setor organizassem e se especializassem para termos uma<br />

estratificação das funções na produção e regulamentação no comércio, criando<br />

exigências e padrões. Nesse momento de transição, podemos afirmar que os<br />

cartolai assumiram tal função, pois dominaram a produção e venda de livros<br />

manuscritos no início do século XV.<br />

Os papeleiros ou cartolai da Itália renascentista [...] abriram as trilhas<br />

pelas quais iriam passar os impressores. Fabricavam livros em quantidade<br />

e pensando neles de forma especulativa. Anunciavam seus<br />

produtos de forma sistemática e lutavam contra a competição com<br />

estranhos ao ramo, que agiam sem respeitar quaisquer regras, do mesmo<br />

modo que os impressores iriam fazer. Acima de tudo, trabalhavam<br />

com seus empregados e clientes para criar o conjunto dos livros que<br />

mais mereciam ser lidos e visualizar a forma física que eles deveriam ter<br />

(CAVALLO e CHARTIER, 1999, p. 16).<br />

Os possíveis resultados dessa estruturação do setor editorial puderam<br />

ser vistos posteriormente em obras como “O sonho de Polifilo”, “obra-prima<br />

do design gráfico” que, “alcançou uma elegante harmonia entre tipografia e<br />

ilustração que poucas vezes foi igualada” (MEGGS e PURVIS, 2009, p. 132).<br />

Esse livro contém 168 ilustrações xilográficas lineares que, harmonizam com<br />

todo o leiaute, inclusive com os tipos de letras usados.<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no mundo textual renascentista


130<br />

Figura 1<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Para isso foi necessário uma excepcional integração entre os profissionais<br />

da oficina impressora, o designer de tipos, o autor, o artista e o impressor. O manuscrito<br />

foi até meados do século XV a forma predominante na produção de livros.<br />

A técnica do manuscrito era lenta demais e extremamente dispendiosa, podia<br />

custar de quatro a cinco meses de trabalho de um escriba para produzir um<br />

livro de somente 200 páginas, sem contar o alto custo com 25 peles de carneiro.<br />

O material usado poderia ser o pergaminho ou o papel velino, e um livro<br />

grande chegava a exigir o couro de até trezentas ovelhas. Fato que nos leva a<br />

mais um motivo para o sucesso da prensa, que foi a chegada do papel, invenção<br />

chinesa de 105 d.C., a qual alcançou a Europa pelas rotas comerciais das cidades<br />

italianas e diminuiu o custo e o tempo de produção dos livros.<br />

A partir de 1450, com a invenção da prensa e do molde de tipos, os manuscritos<br />

viveram um processo de declínio. Não foram extintos, mas passaram<br />

para segundo plano. Contudo, mantiveram uma posição muito importante,<br />

pois a primeiro momento, influenciaram na forma como seriam editados e<br />

pensados os primeiros livros impressos, os incunábulos, que imitavam propositalmente<br />

a aparência dos seus predecessores.<br />

Nos momentos mais recentes da invenção da prensa, houve muita resistência<br />

ao impresso e aos impressores por toda a Europa. Os protestos vinham dos<br />

escribas, iluminadores e bibliófilos e, até mesmo, de um papa, Júlio II. Os motivos<br />

eram diversos. Alguns temiam por seu nicho de mercado e a manutenção<br />

de sua profissão, outros pensavam o manuscrito como algo superior à tipografia.<br />

Ainda assim, a impressão prevaleceu e reduziu muito o preço de uma<br />

publicação. Consequentemente, supriu a demanda até além do necessário, ao<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no mundo textual renascentista


131<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

ponto de surgirem “bolhas de mercado”, como foi o caso de Veneza, onde das<br />

cem gráficas montadas, somente dez sustentaram-se até 1490.<br />

A velocidade de produção das prensas tipográficas era tão superior ao<br />

dos copistas que<br />

Um homem nascido em 1453, ano em que se deu a queda de<br />

Constantinopla, bem que poderia, em seu quinquagésimo aniversário,<br />

olhar para trás e contemplar uma vida durante a qual haviam sido<br />

impressos cerca de 8 milhões de livros, mais talvez do que todos os<br />

escribas da Europa haviam produzido desde que Constantino fundara<br />

sua cidade, no ano 330 d.C. (EISENSTEIN, 1983, p. 29).<br />

Estabelecida, a prensa acarretou em mudanças no mundo textual e no<br />

mundo social renascentista. A educação inicia sua caminhada para transformar-se<br />

em uma atividade muito mais individual do que comunitária. A maior<br />

acessibilidade aos livros e a ideologia renascentista, refletida no conceito do<br />

“homem renascentista”, estimulavam a busca pelo conhecimento, que não<br />

mais dependia estritamente do sistema de leitura oral e comunitário, centrado<br />

em um indivíduo que interpretava e passava a informação para os outros.<br />

A invenção da prensa tipográfica pode ser considerada como o primeiro<br />

passo em direção à Revolução Industrial, no sentido de ter sido a<br />

“primeira mecanização de uma habilidade manual qualificada” (MEGGS e<br />

PURVIS, 2009, p. 106). Aparecendo talvez, ao lado de invenções importantes<br />

como o tear mecânico, que inventado três séculos depois, diferencia-se<br />

por não depender de força manual.<br />

O movimento da Revolução Científica obteve contribuições essenciais<br />

do advento da impressão. Esta fomentou a publicação de produções científicas<br />

e, portanto, as trocas e o diálogo entre os pensadores e cientistas. Ela também<br />

contribuiu para o ordenamento sequencial e repetível de informações, o pensamento<br />

linear, a lógica e a compartimentalização de informações, que viriam<br />

fundamentar o campo da investigação científica empírica.<br />

No nível das mudanças sociais constatamos um enorme avanço. É<br />

imensurável a contribuição do impresso para o êxito da Reforma, da contra<br />

Reforma, do desenvolvimento do comércio e das nações modernas por meio<br />

da divulgação de seus símbolos nacionais e unificação dos dialetos em línguas,<br />

como o francês, o inglês e o alemão.<br />

Esse pequeno apanhado da inserção da prensa como ferramenta de<br />

produção editorial nos indica o quão esta é importante para o entendimento<br />

do mundo textual renascentista, da história do livro e mesmo, dos meios<br />

de comunicação como um todo, apontando o porquê este foi um período<br />

tão estudado por pesquisadores de renome, dentre eles Elizabeth Eisenstein,<br />

Adrian Johns e Roger Chartier.<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no mundo textual renascentista


132<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Mas o surgimento da prensa não foi o único desdobramento de relevância<br />

na perspectiva do Renascimento, no que diz respeito às mudanças no universo<br />

dos livros. Outros fatores corroboraram com a invenção de Gutenberg<br />

para a construção do mundo textual renascentista. A invenção dos tipos de<br />

letras romano e itálico, desenvolvidos nesta mesma época do surgimento da<br />

prensa, foi um desses fatores, que discutiremos a seguir.<br />

a Contribuição Dos tipos romanos e itáliCos para o munDo<br />

textual renasCentista<br />

Ao lado da importância indiscutível da prensa para o mudo textual do<br />

Renascimento, outro aspecto que merece destaque, na verdade subsequente à<br />

tipografia, é o desenvolvimento de dois grandes estilos tipográficos, o romano<br />

e o itálico, que, junto com outros fatores, harmonizaram os elementos de identidade<br />

renascentista e contribuíram para a formatação de um modelo textual<br />

que influenciaria todos os posteriores.<br />

Durante o período incunabular, que vai da invenção de Gutenberg<br />

até o fim do século XV, os alemães criaram um padrão nacional de texto<br />

construído com tipos de estilo gótico, apresentando um aspecto condensado<br />

e angular, o que dificultava sua legibilidade e deixava-o muito parecido<br />

com o manuscrito. Esses primeiros impressores divulgaram o seu trabalho<br />

por toda a Europa. Trabalhando em Subiaco e, depois, em Roma, Conrad<br />

Sweynheym e Arnold Pannartz projetaram os primeiros tipos de estilo romano,<br />

baseados em letras compostas por escribas italianos. Esses, por sua<br />

vez, as tinham desenvolvido a partir de minúsculas carolíngias do século IX,<br />

encontradas em cópias de clássicos romanos que eles pensavam estar escritos<br />

em letras romanas da época do Império. Ao mesmo tempo, acreditaram que<br />

esta fazia oposição à escrita negra medieval, a escrita dos bárbaros.<br />

Figura 2<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no mundo textual renascentista


133<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Enganaram-se, mas a partir daí desenvolveram de forma importante<br />

a tipografia.<br />

Figura 3<br />

Figura 4<br />

Outro alemão, Johannes de Spira, recebe um monopólio de cinco anos<br />

para imprimir em Veneza. Ali, também estabelece inovadores tipos do estilo,<br />

com letras arredondadas que conferiam uma unidade orgânica à escrita.<br />

Depois dele, nomes como Nicolas Jenson, Griffo, Geoffroy Tory e Claude<br />

Garamond marcaram a tipografia renascentista com contribuições significativas.<br />

Jenson mostrou grande habilidade para alinhar os caracteres nas fontes,<br />

Griffo desenvolveu os primeiros tipos itálicos, Tory desenvolveu uma romana<br />

leve com longas ascendentes e descendentes, e Garamond rompeu com a influência<br />

da caligrafia. A concepção desses novos estilos tipográficos resultou em<br />

uma maior elegância, leveza, clareza e legibilidade.<br />

Figura 5<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no mundo textual renascentista


134<br />

Figura 6<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Um importante erudito dessa época, Aldo Manuzio merece destaque<br />

pelo papel desempenhado na publicação de grandes obras do mundo greco-<br />

-romano. A frente da Imprensa Aldina, incentivou o desenvolvimento de tipos<br />

menores – foi trabalhando para ele que Griffo criou os itálicos -, mais informais<br />

e até mesmo mais bonitos, que se baseavam em estudos aprofundados das<br />

antigas inscrições romanas.<br />

Figura 7<br />

O termo Renascimento, que, a princípio, denotava o período de restauração<br />

e releitura da literatura da Antiguidade Clássica, hoje marca também a<br />

passagem da Idade Média para a Idade Moderna – essa passagem é determinada<br />

por uma série de outros fatores; para fins didáticos, historiadores indicam<br />

a data da queda do Império Bizantino como marco (1453). Esse período de<br />

transição é caracterizado por uma efervescência cultural e, sobretudo, por uma<br />

nova maneira de ver o mundo, um novo comportamento diante da realidade,<br />

por uma sociedade que resgata valores da antiguidade para inseri-los em um<br />

novo contexto histórico.<br />

Os tipos se comportaram, na verdade, como transmissores de valores do<br />

renascimento. Seu formato, suas combinações, sua disposição na página, tudo<br />

isso contribuía para a consolidação de um estilo que buscava romper com a<br />

cultura medieval. Em primeiro lugar, podemos destacar, entre esses valores, o<br />

hedonismo: o prazer da beleza se apresenta em todas as letras renascentistas.<br />

Estas eram desenhadas cuidadosamente, de forma a encantar os olhos de quem<br />

as observava. Depois, o experimentalismo, observado na própria variedade de<br />

formas do mesmo estilo romano. Eram testadas tantas possibilidades quanto<br />

fosse possível, pois só assim seriam alcançadas as formas perfeitas. Já a harmonia<br />

entre as letras é estabelecida de acordo com a harmonia existente entre os<br />

elementos da natureza. A importância da dimensão natural no Renascimento<br />

é aqui exaltada por essa harmonia gráfica.<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no mundo textual renascentista


135<br />

Figura 8<br />

Figura 9<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Na obra mais importante de Tory, o Champ Fleury, a construção geométrica,<br />

passo-a-passo, das letras do alfabeto latino mostra o caráter racionalista<br />

do seu trabalho, onde há uma ordem lógica a ser seguida. Além disso, ao<br />

comparar as proporções das letras às proporções humanas ideais, ele traz para<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no mundo textual renascentista


136<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

a comunicação, para o design mais especificamente, o peso exato da filosofia<br />

humanista em voga.<br />

Assim como o impressor compreendia bem o espírito renascentista, o designer<br />

de tipos também o fazia. Os valores do renascimento eram compartilhados<br />

pelos dois, imprensa e letra, modo de produção e elemento de identidade<br />

caminhavam coesos, o que nem sempre acontece em uma sociedade em transformação.<br />

Talvez o fato de ambos serem forças inovadoras, dentro desse contexto,<br />

tenha possibilitado esse rumo. Se imaginarmos o tipo gótico em meio a toda<br />

experiência renascentista, o seu caráter conservador certamente destoaria do conjunto<br />

de características dessa sociedade. Quanto a isso, o historiador americano<br />

Anthony Grafton afirma que, “desde o primeiro momento, os humanistas viram<br />

a escrita gótica como o sinal externo e visível da ignorância gótica: feia, estúpida<br />

e impenetrável” (CAVALLO e CHARTIER, 1999, p. 10).<br />

Figura 10<br />

Tão perfeita foi a sintonia entre os tipos romanos e itálicos e o<br />

Renascimento, uma vez que, foram moldados pelos valores desse movimento,<br />

que suas inovações, assim como os ideais renascentistas, deixaram um legado<br />

imprescindível para toda a cultura ocidental que se desenvolveu a partir daí.<br />

ConClusão<br />

Diversos são os aspectos que caracterizam o mundo do texto renascentista.<br />

Entre eles estão o modo de produção tipográfica, temática abordada,<br />

as ilustrações peculiares, a diagramação, o design e o tipo de letra utilizado,<br />

intimamente ligado ao próprio Renascimento.<br />

Seria um juízo de valor tentar apontar qual desses elementos é mais representativo,<br />

mas a idéia aqui é mostrar que dentre eles a imprensa e os estilos<br />

tipográficos foram alguns dos alicerces da cultura escrita da Renascença.<br />

Mesmo sendo um dos maiores inventos da história da humanidade, a prensa<br />

precisou associar-se a outros fatores, entre os quais os tipos romanos e itálicos,<br />

para levar a cabo a identidade desse período.<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no mundo textual renascentista


137<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

O surgimento da tipografia está atrelado a uma série de questões, anteriores<br />

e posteriores. Suas consequências transcendem o nível técnico para<br />

influenciar outros desdobramentos. O caso das letras renascentistas é o mesmo,<br />

não havendo razão então para considerarmos apenas o papel da prensa no<br />

mundo textual do Renascimento. Embora nossa tendência seja sempre a de<br />

resumir os aspectos de determinados contextos históricos a um ou outro fator,<br />

a nossa compreensão dos fatos depende do conhecimento de como outros fatores,<br />

menos estudados, se relacionam nas dinâmicas de cada período.<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no mundo textual renascentista


138<br />

referênCias bibliográfiCas<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

CAVALLO, G. e CHARTIER, R. (Org.) História da leitura no mundo ocidental<br />

2. São Paulo: Ática, 1999.<br />

CHARTIER, R. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo:<br />

UNESP e Imprensa Oficial SP, 1998.<br />

CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo:<br />

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CHARTIER, R.; CAVALLO, G. (Org.). História da leitura no mundo ocidental<br />

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MEGGS, P.B; PURVIS, A.W. História do design gráfico. São Paulo: Cosac<br />

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imagens<br />

1 Figura 1: http://mitpress.mit.edu/e-books/HP/hyp000.htm. - Acesso em: 15 de<br />

Julho de 2010.<br />

2 Figura 2: http://www.heraldica-genealogia-facsimiles.es/uploads/facsimiles-liberchronicarum.jpg.<br />

- Acesso em: 16 de Julho de 2010.<br />

3 Figura 3: http://farm2.static.flickr.com/1268/543923471_1d8b4ccae2.jpg?v=0. -<br />

Acesso em: 15 de Julho de 2010.<br />

4 Figura 4: http://personal.us.es/tallafigo/carolina_archivos/image014.jpg - Acesso<br />

em: 16 de Julho de 2010.<br />

5 Figura 5: http://latypeblog.blogspot.com/2007/02/intro-jenson-griffo-arrighi.html.<br />

Acesso em: 16 de Julho de 2010.<br />

6 Figura 6: http://latypeblog.blogspot.com/2007/02/intro-jenson-griffo-arrighi.html.<br />

Acesso em: 16 de Julho de 2010.<br />

7 Figura 7: http://www.crestock.com/blog/icon-of-the-week/the-bembo-typeface-39.aspx<br />

- Acesso em: 15 de Julho de 2010.<br />

8 Figura 8: http://www.imageandart.com/tutoriales/historia_diseno/siglos/primera_<br />

parte/imagenes/02.if - Acesso em: 16 de Julho de 2010.<br />

9 Figura 9: http://www.poltroonpress.com/grabhorn.html. - Acesso em: 15 de Julho<br />

de 2010.<br />

10 Figura10: http://multicms.rdts.de/cgi/bin?_SID=xxx&_bereich=artikel&_<br />

aktion=detail&idartikel=113645&_sprache=paraselene_englisch. - Acesso em: 15<br />

de Julho de 2010.<br />

A prensa, os tipos romanos e os itálicos no mundo textual renascentista


Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

As entrelinhas do consumo<br />

no discurso das religiosidades<br />

contemporâneas:<br />

o caso de O Segredo<br />

The subtext of the consumption in<br />

contemporary religiousness discourse:<br />

the case of O Segredo.<br />

Marcelle Martins de Souza<br />

Graduada em Comunicação Social (habilitação Relações Públicas) pela<br />

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2010)<br />

Resumo<br />

O artigo objetiva demonstrar, a partir da análise do livro O Segredo (2007), como<br />

a experiência com o sagrado foi transpassada pela lógica do mercado, garantindo<br />

a oferta de produtos que combinam, como nesse exemplo, valores pretensamente<br />

científicos a preceitos religiosos na afirmação do discurso de consumo. Para tanto,<br />

discute a transformação nesse cenário e o surgimento do hiper-sincretismo contemporâneo,<br />

sobretudo no universo esotérico.<br />

Palavras-chave: consumo; discurso; esotérico.<br />

Abstract<br />

The article aims to demonstrate through the analysis of the book The Secret (2007),<br />

as experience with the sacred to pass thought by the logic of the market, assuring the<br />

supply of products that blend, as in this example, the principles supposedly scientific<br />

a precepts religious of in affirmation discourse of consumer. For that discusses the<br />

transformation in this scenario and the emergence contemporary hyper syncretism,<br />

especially in the esoteric universe.<br />

Keywords: consumer; spreech; esoteric.<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


140<br />

introDução<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

A razão moderna gerou um rompimento com as linhas tradicionais da religião.<br />

O homem passou a procurar respostas às suas dúvidas no próprio mundo,<br />

percebendo Deus ora como uma resposta pouco clara e até anacrônica sobre o<br />

universo, ora como parte de um discurso repressor, característico da Igreja.<br />

Privações e sacrifício em razão do medo de um castigo eterno perderam<br />

sentido no imaginário social, ao passo que a oportunidade do gozo imediato<br />

oferecida pelo sistema econômico capitalista passou a nortear a conduta dos<br />

indivíduos, que se perceberam cada vez mais senhores de si.<br />

Com a afirmação da experiência do sagrado dentro de uma ética de<br />

consumo (individualista, hedonista e efêmera), foi produzida uma religiosidade<br />

pessoal no qual o saber esotérico apresentou-se como uma forma<br />

simbólico-religiosa adaptável.<br />

A fim de verificarmos essa expressão da religiosidade contemporânea<br />

selecionamos como objeto de estudo o livro O Segredo (Byrne, 2007) e analisamos<br />

de forma quantitativa e qualitativa as palavras que o compõem sob o<br />

contexto da religião e do consumo.<br />

Utilizando como ferramenta de análise os recursos do Office (edição de<br />

texto e planilha de dados), foi feito o levantamento de cada vocábulo, e em<br />

seguida realizada uma classificação por categorias quanto à visibilidade e representatividade<br />

dos termos identificados.<br />

Deste modo, foi possível verificar que a mutabilidade religiosa não é<br />

uma prerrogativa do Esoterismo. Mas, que as religiões, temendo seu arrefecimento<br />

definitivo, mesclam progressivamente o discurso espiritual com<br />

os argumentos típicos da cultura de consumo; transformando a máxima da<br />

busca por uma melhor performance na vida cotidiana em um instrumento<br />

de controle do homem contemporâneo.<br />

o proDuto religião: merCaDorias e fiéis ConsumiDores<br />

O consumo tem um sentido cultural. Trata-se de “um sistema de significação<br />

[…], um código”, de modo que “por meio dele é traduzida boa parte das<br />

nossas relações sociais” (ROCHA, 2006, p.31). Isto significa que nossa vida é<br />

atravessada permanentemente pelo consumo. Nele ocorre uma dupla produção<br />

simbólica; ou seja, tanto as mercadorias quanto os indivíduos recebem novos<br />

significados a partir da relação com os objetos. Neste plano subjetivo é que o<br />

consumo detém poder para transformar toda a prática social.<br />

Observando a questão do tempo percebemos melhor esta questão.<br />

Discutido por filósofos antigos e pensadores atuais, a noção de tempo está<br />

presente em qualquer cultura, variando sua interpretação de acordo com o<br />

contexto. Da Matta (1987), citando E. P Thompson, diz que o tempo foi<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


141<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

“disciplinado” e “universalizado”; isto é, foram criados símbolos reguladores<br />

universais para medi-lo e assim criar a possibilidade de comercializá-lo. Assim,<br />

é possível que seja somente nos países ocidentais que realizaram<br />

a “revolução puritana ou protestante e adotaram integralmente o<br />

capitalismo com sua lógica cultural, que o tempo e o espaço tenham<br />

medidas únicas, coordenadas num sistema também oficial universal de<br />

medidas, fazendo parte de uma ideologia igualmente dominante. (Da<br />

MATTA, 1987, p. 38).<br />

Logo, o tempo como conhecemos é uma construção social que regulariza<br />

o processo natural da vida (do nascimento a morte), definindo o ritmo do<br />

nosso desempenho e da nossa existência. Em sentido contrário ao princípio da<br />

ética protestante que é de não perder tempo - um bem divino - a fim de utilizá-<br />

-lo como mais horas para trabalho, o que se tem é o intento de ‘gastá-lo’ para<br />

o descanso e gozo da vida.<br />

Este gozo na cultura consumista transcende a vida e enxerga na experiência<br />

da morte, fim do tempo para o homem, também uma oportunidade<br />

de mercado. Há desde a possibilidade de tentar adiar a ação do tempo através<br />

de cosméticos, operações e aplicações estéticas até a opção de fazê-lo parar.<br />

Uma destas tentativas, bastante cara por sinal, é a de congelamento do corpo<br />

(principalmente do cérebro) imediatamente após a morte, de modo a aguardar<br />

estudos futuros que descubram a cura da doença que ocasionou o óbito 1 .<br />

Assim, o indivíduo requer para si o controle da vida e da morte. E, neste<br />

sentido, busca certa semelhança com Deus.<br />

Da mesma forma, a religião também recebeu uma investida da sociedade<br />

de consumo e passou a ser mercantilizada, distanciando-se de seu<br />

sentido etimológico, (religare), que significa um sistema solidário de crenças<br />

e práticas relativas a coisas sagradas, em que há modelos próprios de comportamento<br />

individual e coletivo, comprometidos com a transcendência. Como<br />

simples produto, ela passou a atender ao desejo de notoriedade, viabilizado<br />

pela estilização do modo de vida dos indivíduos. Tanto na maneira como o<br />

indivíduo se relaciona com o sagrado, como no conjunto de coisas, materiais<br />

ou não, que esta relação pode oferecer.<br />

Nessa conjuntura, a relação com o sagrado recebe status de nicho mercadológico<br />

e os produtos que originalmente foram criados para a prática espiritual,<br />

passam por uma remodelagem para atender à diversificação de seu público. Caso<br />

das bíblias, que podem ser encontradas em capas de couro ou material flexível,<br />

com páginas em brochura ou em encadernação de luxo, escritas em letra extra<br />

gigante ou narradas em formato mp3. Porém, o que se destaca como grande diferencial<br />

dessa “mercadoria” é a personalização do produto para atender públicos<br />

cada vez mais específicos. Isto é, a bíblia, agora, é categorizada de acordo com o<br />

gênero (homem, mulher), faixa etária (bebês, crianças, adolescentes, jovens) ou<br />

desejo mais imediato do fiel consumidor (estudo, renovação espiritual, vitória<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


142<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

financeira, saúde). Assim, se há desinteresse pelo livro de capa preta e linguagem<br />

rebuscada o mercado inova a fim de assegurar a satisfação de seus clientes.<br />

A segmentação do mercado religioso também se desdobrou nos estilos<br />

musicais. Existem desde os clássicos corais gregorianos, que permeiam o imaginário<br />

religioso tradicional, até as cantigas do Candomblé nas vozes de astros<br />

da MPB, passando pelos instrumentais contemporâneos para relaxamento espiritual<br />

da estética esotérica e pelas agitadas músicas pop do cancioneiro cristão.<br />

Além destas, o movimento gospel aderiu ao rock, axé e funk entre outros<br />

ritmos polêmicos dentro dessa esfera.<br />

Convém elucidar que a assimilação desses ritmos principalmente pela<br />

vertente neopentecostalista do protestantismo, parece ocorrer tanto por um intuito<br />

evangelizador destes grupos (roqueiros, micareteiros e funqueiros) assim<br />

também como uma estratégia de expansão do corpo de membros (consumidores)<br />

abrindo vantagem frente à concorrência.<br />

Sendo assim, cada manifestação cultural contemporânea encontra espaço<br />

para os seus adeptos dentro da religiosidade evangélica, constituindo,<br />

conforme definição dada por Maffesoli (2000), arranjos sociais a partir da<br />

identificação com rituais, símbolos e adereços que expressam valores próprios<br />

das chamadas tribos urbanas. Surfistas, skinheads e góticos, dentre outros grupos,<br />

não somente passam a consumir o produto religião e os seus derivados<br />

(música, moda, espaços), mas, como integrantes destas tribos, oferecem novos<br />

sentidos à expressão da religiosidade contemporânea, fundamentando as igrejas<br />

undergrounds. Basta analisar o comportamento dos góticos cristãos; embora<br />

mantenham suas roupas pretas, acessórios fúnebres, tatuagens, preferência<br />

pela literatura, música e arte clássicas e fascínio por cemitérios, personalizaram<br />

o Cristianismo de acordo com os seus princípios, a fim de consumi-lo sem<br />

perder o sentimento de pertença a sua tribo original.<br />

Outra mercadoria que se destaca nesse mercado é o turismo religioso.<br />

Reunindo interesses de agentes institucionalizados (agências de viagens e redes<br />

hoteleiras), organizações políticas (secretarias de turismo municipais, estaduais)<br />

e religiosas (igrejas, comunidades místicas) o “acesso” à experiência do<br />

sagrado é administrada, a partir da criação de diversos eventos para a vivência<br />

dos turistas. São os centros de religiosidade popular, tais como os das Nossas<br />

Senhoras Aparecida, Lourdes, Fátima que atraem a<br />

circulação de milhares de pessoas, tornando-se passagem de fluxos e<br />

comunicação, desejos, comércio, ritos, etc; tornam-se mais do que<br />

um elemento de fé, crença, de peregrinação e romaria. Transforma-se<br />

num espaço dentro do qual desenrolam-se práticas de deslocamento e<br />

consumo. (SILVEIRA, 2004, p.07).<br />

Visitar a Terra Santa em Israel com parcelas descontadas no cartão de<br />

crédito, realizar a peregrinação a Santiago de Compostela na Europa com<br />

a segurança que um guia turístico pode oferecer ou ainda participar das<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


143<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

homenagens à Iemanjá por ocasião da passagem de ano em frente ao seu<br />

hotel cinco estrelas, promovem uma experiência exótica que combina o espiritual<br />

e o consumo ao mesmo tempo.<br />

Logo, se podemos verificar, na expressão da religiosidade contemporânea,<br />

palavras como: mercado, lucro e, também, concorrência, fica claro que<br />

a experiência do sagrado, nos dias atuais, tomou nuances de produto que o<br />

definem no campo mercadológico, tornando-o atrativo entre tantos outros do<br />

catálogo da cultura de consumo.<br />

Observamos dessa forma que, apesar de a espiritualidade e o misticismo<br />

permanecerem vivos em muitas das tradições religiosas contrariando a razão secularizante,<br />

ocorreu uma banalização dos seus significados mais profundos, que<br />

diluídos em uma teia de religiosidades passou a representar não mais uma aliança<br />

com o divino, mas um meio rápido de alcance dos interesses do próprio indivíduo.<br />

o imaginário religioso<br />

Plural e plástica, a experiência do religioso, adaptada à cultura de consumo,<br />

promoveu a eliminação dos contornos fixos que delineavam as religiões<br />

e exigiam um comprometimento dogmático do praticante. Tornou-se possível<br />

transitar livremente entre as expressões religiosas, inclusive sem a necessidade<br />

de mediações para alcançar sua experiência mística.<br />

Atuando agora como mediador de suas próprias experiências sagradas,<br />

o homem pode construir um novo imaginário religioso, determinando, como,<br />

quando e onde seriam realizados os seus rituais “espirituais” individualizados.<br />

Sem que isto provoque conflitos éticos para si ou para as demais religiosidades<br />

que sustenta. Mitos, deuses, energias coexistem dentro da esfera religiosa<br />

particular, constituindo uma mistura, um hiper-sincretismo em que já não<br />

identificamos bem as partes que o compõem.<br />

Como o Catolicismo new age 2 , a que faz referência Emerson Silveira, em<br />

que se “navega socialmente entre diversos sistemas simbólicos” (2007), nos quais<br />

um católico praticante faz consultas periódicas ao tarot; mas mantêm à sua disposição<br />

um baralho especial - o tarot dos santos -, cujas lâminas reproduzem<br />

figuras de santos e passagens dos ritos católicos. Conforme ele explica, o catolicismo<br />

new age seria “um tipo-ideal, no estilo weberiano, para expressar as múltiplas<br />

formas de combinação de religiosidade encontradas na pesquisa sobre o catolicismo<br />

carismático e suas interconexões com o mundo da mídia e do consumo”.<br />

Essa articulação de elementos espirituais legalizada pela sociedade de<br />

consumo caracteriza não só a mistura de domínios antes incompatíveis da<br />

experiência religiosa, como a possível banalização de seus ícones e ritos. A ação<br />

de “escolha e descarte” do que lhe é mais conveniente com o objetivo de conquistar<br />

uma performance de felicidade e sucesso terrenos, assinala, segundo<br />

Paegle e Filho (2009), o self . Constrói-se, assim,<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


144<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

uma espécie de “quebra-cabeça religioso”, no qual as peças (os elementos<br />

religiosos) são encaixadas conforme a cosmo visão do fiel, podendo<br />

inclusive dissociar as normas oficiais denominacionais da sua conduta<br />

diária, [...] de uma vida privada no sistema cultural de crenças extremamente<br />

individualizado. (2009, p. 215).<br />

Desta forma o sujeito que interpela o divino diretamente ou, mesmo,<br />

que opta pela ciência para determinar seu destino, ganha espaço uma<br />

concepção de ‘deus interior’, em que ele invoca a ‘parte divina’ que crê possuir<br />

para materializar seus desejos. Seja para maior proteção transcendental,<br />

harmonia interna ou com o cosmo, e materialização de riquezas e bens. A<br />

criatura torna-se também criador.<br />

a meDiação Do Consumo no DisCurso esotériCo<br />

Nesse sentido, de todas as perspectivas religiosas contemporâneas, o<br />

Esoterismo parece ser a que melhor assimila esta retórica do deus interior, da<br />

felicidade ao alcance das próprias mãos. Se o neopentecostalismo, através de<br />

igrejas como a Universal do Reino de Deus, traz a idéia de que é possível exigir<br />

de Deus o que é de direito, a vertente esotérica, bastante diversificada, defende<br />

que a força do homem está nele mesmo. Isto não significa recusar Deus como<br />

um outro; apenas o indivíduo contém, em si mesmo, o miraculoso 3 .<br />

À medida que Deus foi “para dentro” do sujeito, ele entendeu que poderia<br />

ter tudo o que quisesse, já que dependia apenas de si mesmo, do “poder de materializar<br />

coisas e ações ou de acrescentar algo mais à realidade [...] inserido no<br />

próprio corpo do ser humano e [...] por ele gerado.” (AMARAL, 2000, p. 122).<br />

Surgem dessa forma, múltiplos produtos, especialmente no campo literário,<br />

que garantem ter a “chave” para a libertação e exploração da potencialidade<br />

do pensamento, a fim de que os indivíduos atinjam seus desejos. Partindo<br />

de um discurso alternativo para solucionar problemas psicossociais, esses livros<br />

classificados como “auto-ajuda”, oferecem uma série de técnicas e exercícios<br />

espirituais capazes de fazer os seus leitores reavaliarem seus credos e investirem<br />

no cultivo de sua autotransformação.<br />

Porém, as idéias difundidas nesses livros não são pensamentos novos.<br />

Utilizando-se tanto dos conhecimentos existentes nas antigas tradições esotéricas<br />

e ensinamentos milenares como também de teorias da ciência atual<br />

que juntos se fundem nos movimentos Nova Era, essa literatura apresenta o<br />

conteúdo destas tradições de forma diluída e adaptável a interesses diversos,<br />

exercendo fascínio sobre as pessoas. Além disso, oferece um meio seguro de<br />

aproximação dos variados discursos, sem que isso implique no envolvimento<br />

do indivíduo com algum grupo ou instituição ou com o objetivo do estabelecimento<br />

de uma verdade universal.<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


145<br />

as entrelinhas De o segredo<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Um fenômeno recente que ilustra esta fórmula que parece atrair as pessoas<br />

é o livro O Segredo (2007), de autoria de Rhonda Byrne. Utilizando a<br />

visão esotérica da força do pensamento (positivo e negativo) conjugado à lei<br />

de atração, o livro promete o alcance de prosperidade financeira, saúde e bem-<br />

-estar a quaisquer pessoas. Sua mensagem de auto-ajuda vendeu, nos primeiros<br />

três meses de lançamento 4 cerca de 1,75 milhão de cópias nos Estados Unidos<br />

da América, sendo igualmente um fenômeno de vendas no Brasil. Sem contar<br />

o sucesso do vídeo homônimo, que impulsionou a publicação do livro tamanha<br />

a visibilidade e assimilação da proposta.<br />

Durante toda a narrativa, encontramos elementos que fundem convenientemente<br />

a concepção New Age com os valores da cultura de consumo<br />

contemporânea. A presença enfática de algumas palavras ao longo do livro<br />

evidencia esse aspecto, ao que realizamos uma análise quantitativa e qualitativa<br />

do discurso apresentado, a fim de aprofundar o conhecimento sobre O Segredo<br />

e compreender a sua retórica sob a visão novaerista.<br />

Assim, foi feito um levantamento de todas as palavras que o compõem<br />

utilizando como ferramenta de análise os recursos do Office (edição<br />

de texto e planilha de dados). Em seguida desenvolvemos uma classificação<br />

em três níveis, buscando evidenciar perspectivas de análise. Cabe observar<br />

que, devido à ausência de instrumentos mais robustos de análise, é possível<br />

a ausência de palavras no rol selecionado, impedindo que tenhamos uma<br />

abordagem efetivamente quantitativa.<br />

níVel i<br />

A disposição hierárquica das palavras seguiu a ordem decrescente, de<br />

acordo com a quantidade de vezes que cada uma delas apareceu na narrativa,<br />

sendo consideradas para efeito de estudo, apenas as palavras que alcançaram<br />

até a centésima colocação dentro dessa classificação 5 .<br />

Tabela 1. Classificação hierárquica decrescente 6<br />

Ord Palavras Qntd Ord Palavras Qntd Ord Palavras Qntd<br />

1 você 1072 35 mundo 84 68 fal+ 49<br />

2 ser 943 36 real+ 80 69 doença, doente 48<br />

3 seu 575 37 haver 79 70 energ+ 47<br />

4 não 491 38 acontec+ 78 71 negativ+ 45<br />

5 poder 456 39 cria+ 78 72 verdade 45<br />

6 pens+ 392 40 saber, sabedoria 78 73 escrev+ 44<br />

7 ter 343 41 dia 77 74 riqueza, rico 44<br />

8 eu 316 42 então 77 75 compr+ 43<br />

9 mais, demais 293 43 mud+ 77 76 depois 43<br />

10 viv+, vida 263 44 nosso 77 77 peso 43<br />

11 quando 241 45 receb+ 77 78 ano 41<br />

12 coisa 236 46 am+ 71 79 livro 40<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


146<br />

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Ord Palavras Qntd Ord Palavras Qntd Ord Palavras Qntd<br />

13 sent+ 231 47 grat+ 71 80 alegr+ 39<br />

14 atra+ 201 48 form+ 66 81 também 39<br />

15 mente, mental 201 49 vez 65 82 conhec+ 38<br />

16 pessoa <strong>18</strong>1 50 exist+ 62 83 cont+ 38<br />

17 Segredo 176 51 muito 62 84 próprio 38<br />

<strong>18</strong> lei 168 52 sempre 62 85 felicidade, feliz 37<br />

19 est+ 153 53 perfei+ 60 86 human+ 37<br />

20 Universo 143 54 assim 59 87 ideal, idéia 37<br />

21 fazer 140 55 moment+ 59 88 dizer 36<br />

22 quer+ 123 56 corpo 57 89 pergunt+ 36<br />

23 meu 119 57 maior 57 90 simpl+ 36<br />

24 bem, benéfico 105 58 visualiz+ 57 91 único 36<br />

25 frequ+ 104 59 agir 56 92 mal 35<br />

26 imag+ 101 60 consci+ 56 93 casa 34<br />

27 pass+ 100 61 nov+ 56 94 dentro 34<br />

28 começ+ 99 62 nós 54 95 fato 34<br />

29 agora 91 63 trazer 54 96 manifest+ 33<br />

30 desej+ 86 64 cert+ 51 97 maravilh+ 33<br />

31 mesmo 86 65 tempo 51 98 transmi+ 33<br />

32 ver 86 66 história 50 99 colo+ 32<br />

33 precis+ 85 67 apenas 49 100 saúde, saudável 32<br />

34 dinheiro 84<br />

Essa ordem classificatória nos permite verificar alguns aspectos relevantes.<br />

O primeiro deles demonstra uma tendência de aproximar o texto do leitor,<br />

identificando-o como o próprio sujeito do livro (para quem foi escrito; a quem<br />

se revela o segredo; aquele que tem direito sobre o poder apresentado). Como<br />

também a prerrogativa de colocá-lo acima dos demais seres, inclusive de Deus,<br />

já que se tornam iguais também na ortografia, escrevendo-se com inicial maiúscula.<br />

Como no exemplo abaixo:<br />

A Terra gira em sua órbita por Você. Nos oceanos, a maré sobe e desce<br />

por Você. Os pássaros cantam por Você. O sol nasce e se põe por Você.<br />

As estrelas surgem por Você. Cada coisa bonita que vê, cada coisa<br />

maravilhosa que vivência, todas estão aí, por Você. Olhe a seu redor.<br />

Nada disso poderia existir sem Você. Não importa quem você pensou<br />

que fosse, agora sabe Quem Você Realmente É. Você é o senhor<br />

do Universo. Você é o herdeiro do Reino. Você é a perfeição da vida<br />

(BYRNE, 2007, p. <strong>18</strong>3).<br />

Outro fator de destaque é a promoção que recebeu o “universo”. Excluindo<br />

às vezes em que o termo apareceu no texto com o valor semântico de geral, global,<br />

universal, foram 143 ocorrências da palavra ‘Universo’, que sofre uma personificação<br />

e passa a representar uma energia, um ser superior que pensa, age, se movimenta.<br />

Contudo, pode ser manipulada de acordo com os pensamentos de cada um:<br />

Quando você tem bons sentimentos, trata-se da comunicação devolvida<br />

pelo Universo dizendo: “Você está tendo bons pensamentos”. De modo<br />

análogo, quando você se sente mal, está sendo informado pelo Universo:<br />

“Você está tendo maus pensamentos”. (BYRNE, 2007, p. 33).<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


147<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

A aposta na capacidade de manipulação do mundo exterior explica a<br />

ênfase dada ao verbo pensar e seus derivados, encontrados 392 vezes no texto.<br />

Entende-se dessa forma que pensar é o ‘segredo’ para uma vida boa e, assim, a<br />

ocorrência de 175 ‘Segredos’ no decorrer do livro é justificada por tratar-se de<br />

algo valioso sendo revelado. Isto é:<br />

O Segredo significa que somos os criadores do nosso Universo, e que<br />

cada desejo que quisermos concretizar irá surgir em nossas vidas.<br />

Portanto, nossos desejos, pensamentos e sentimentos são muito importantes,<br />

porque eles irão surgir. (BYRNE, 2007, p. 113).<br />

De igual forma, observamos que a palavra ‘poder’ e os seus derivados,<br />

ocupando a quinta posição, refletem a capacidade humana de materializar para<br />

si seus próprios desejos, representada no texto através das passagens:<br />

Você é o ímã mais poderoso do Universo! Você contém uma força<br />

magnética dentro de si mais poderosa do que qualquer coisa neste<br />

mundo, emitida por seus pensamentos. (BYRNE, 2007, p. 7).<br />

A lei está refletindo e devolvendo a você exatamente aquilo em que<br />

você está se concentrando. Com esse poderoso conhecimento, você<br />

pode mudar por completo qualquer circunstância e acontecimento em<br />

toda a sua vida, ao mudar seu modo de pensar. (BYRNE, 2007, p. 17).<br />

O indivíduo é instado a buscar o que deseja (“você pode”, “você precisa”,<br />

“você realmente precisa”), a acreditar que pode materializar suas expectativas, inclusive<br />

materiais, usufruindo o que a vida tem de melhor, “porque a prosperidade<br />

[lhe cabe] por direito.” Se o sujeito mentaliza adequadamente, diz O Segredo, “o<br />

Universo dará todas as coisas boas que deseja” (BYRNE, 2007, p. 109).<br />

A afirmação do direito humano de ser feliz se confunde com o princípio<br />

hedonista da sociedade de consumo contemporânea, em que o conceito ocidental<br />

de vida boa parece fundamentar-se na aquisição de bens e no pertencimento<br />

social a que eles podem conduzir.<br />

níVel 2<br />

A partir da classificação inicial, foram identificados os principais termos<br />

antônimos presentes na narrativa e observada a relação dicotômica entre eles.<br />

Para tanto incluímos alguns sinônimos nessa contagem e depois o sentido que<br />

foram empregadas no texto. Vale ressaltar que alguns exemplos listados estão<br />

com a quantidade de palavras igual a zero exatamente porque embora não<br />

apareçam no texto servem aqui para elucidar a análise.<br />

Tabela 2. Palavras antônimas<br />

Palavras Quantidade Palavras Quantidade<br />

não 491 X sim 10<br />

mais 286 X menos 7<br />

segredo <strong>18</strong>3 X revelação 5<br />

felicidade , alegria 76 X tristeza 0<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


148<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Palavras Quantidade Palavras Quantidade<br />

muito 62 X pouco 8<br />

maior 57 X menor 3<br />

nós 54 X eu 316<br />

verdade 45 X mentira 4<br />

riqueza 44 X pobreza 5<br />

mal 35 X bem 105<br />

dentro 34 X fora 19<br />

negativo 45 X positivo 5<br />

vida 249 X morte 2<br />

bonito, belo, beleza 20 X feio 2<br />

hoje 19 X ontem 1<br />

abund+ 31 X escassez 6<br />

grande 23 X pequeno 15<br />

interior , íntimo 17 X exterior, externo 2<br />

ruim/mau 15 X bom 26<br />

máximo 4 X mínimo 0<br />

igual 3 X diferente 12<br />

certeza, certo 51 X dúvida 15<br />

nunca/jamais 32 X sempre 62<br />

nada 31 X tudo 151<br />

ninguém 15 X alguém 20<br />

infinito 9 X finito 2<br />

jovem, juventude 7 X envelhecer, velhice 6<br />

guerra 6 X paz 7<br />

excluir, exclusão 3 X incluir, inclusão 16<br />

longe 1 X perto 1<br />

fácil <strong>18</strong> X difícil, dificuldade 15<br />

Uma rápida observação da Tabela 2 pode imprimir uma conclusão equivocada<br />

sobre o livro, visto que a palavra de maior destaque é ‘não’ (491 vezes),<br />

enquanto o uso do advérbio ‘sim’ ocorreu apenas 10 vezes em toda a narrativa.<br />

O mesmo pode ser dito sobre as palavras ‘negativo’ e ‘positivo’ que aparecem<br />

no texto 45 e cinco vezes, respectivamente.<br />

No entanto, ao analisarmos mais profundamente, percebemos que o elemento<br />

‘não’ é utilizado para afirmar orações que estimulem o indivíduo a realizar<br />

ações certeiras em prol daquilo que almeja, pois “o único motivo por que<br />

as pessoas não têm o que desejam é que elas pensam mais no que não desejam<br />

do que naquilo que de fato desejam. (...) A lei é absoluta, e não existem erros.<br />

(BYRNE, 2007, p. 12) Da mesma forma, o uso de ‘negativo’ se dá no contexto<br />

explicativo sobre os tipos de pensamento, isto é, a ênfase no negativo é para<br />

impulsionar o indivíduo a pensar positivo, como vemos no trecho abaixo:<br />

De fato, são necessários muitos pensamentos negativos e um modo<br />

negativo e constante de pensar para introduzir algo negativo em sua<br />

vida. (...) Se você se preocupa com os seus pensamentos negativos,<br />

você atrairá mais preocupação com eles e os multiplicará. Decida agora<br />

ter apenas bons pensamentos, e, declare para o Universo que todos os<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


149<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

seus pensamentos positivos são poderosos e que quaisquer pensamentos<br />

negativos são fracos (BYRNE, 2007, p. 22).<br />

As demais correlações estão vinculadas às promessas de ganho (sem muito<br />

esforço) oferecidas às pessoas. Todas as palavras que foram identificadas<br />

evidenciam a lógica do discurso que exalta a ‘vida’ (249) e ignora a ‘morte’(2),<br />

instiga o homem para ser ‘maior’(57) e a conseguir coisas ‘grandes’(23), aproveitando<br />

o ‘máximo’(4) dos bens ‘abundantes’(31) do mundo:<br />

Acredite que você é grande, que existe algo de magnífico em<br />

você. Independentemente do que lhe tenha acontecido na vida.<br />

Independentemente do quanto se considera jovem ou velho. No<br />

momento em que você começar a “pensar adequadamente”, começará<br />

a emergir esse algo que existe dentro de você, este poder em seu<br />

íntimo que é maior que o mundo. Ele tomará posse de sua vida. Ele<br />

irá alimentar você, vestir você, proteger você, dirigir você, sustentar sua<br />

existência. (BYRNE, 2007, p. <strong>18</strong>2 - grifo da autora).<br />

Nesse contexto, não há ‘tristeza’, ‘derrota’, ‘miséria’ pois,<br />

Achar que não há o suficiente é ver as imagens externas e julgar que tudo<br />

vem de fora. Se você o fizer, decerto verá escassez e limitação. Você agora<br />

já sabe que nada começa a existir a partir do exterior, que tudo parte do<br />

ato inicial de pensá-lo e senti-lo no íntimo. Sua mente é o poder criativo<br />

de todas as coisas. Logo, como poderia haver escassez? Seria impossível.<br />

Sua capacidade de pensar é ilimitada (BYRNE, 2007, p. 148).<br />

Também observamos que, em todo o texto de O Segredo, simplesmente<br />

inexiste a palavra ‘solidariedade’, embora uma das partes do livro seja denominada<br />

O Segredo para o Mundo. Ao contrário do que o título possa evidenciar,<br />

o capítulo não apresenta uma filosofia de que o homem é responsável em<br />

transformar o mundo em um lugar melhor agora e para as próximas gerações,<br />

quanto ao que se refere ao uso consciente da natureza, por exemplo. Menos<br />

ainda faz alusão ao amor ao próximo pregado pelas religiões onde todos seriam<br />

irmãos e parte do mesmo universo; a questão da ajuda mútua não faz parte do<br />

Segredo. Porém, considera que o melhor plano de ação para mudar o mundo<br />

de catástrofes, miséria e injustiças é fechar os olhos para essas mazelas (a fim de<br />

não correr o risco de atrair tais coisas para si) e concentrar-se em uma realidade<br />

de fartura e bonança para sua própria vida, esse é o segredo para o mundo.<br />

Essa idéia é expressa por Lisa Nichols no livro: “Não é tarefa sua<br />

mudar o mundo nem as pessoas a seu redor. Sua tarefa é se deixar levar pelo<br />

fluxo interior do Universo e celebrá-lo dentro do mundo que existe” (BYRNE,<br />

2007, p.146 - grifo da autora).<br />

Assim, os indivíduos são incentivados a buscar a sua satisfação em primeiro<br />

lugar, e este parece ser o ponto de elo com o Universo, sendo a responsabilidade<br />

de cada homem seu próprio desenvolvimento.<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


150<br />

níVel 3<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

O último nível de análise operou na identificação dos elementos textuais<br />

capazes de justificar a correlação entre o discurso esotérico e a cultura<br />

de consumo, proposta em O Segredo. As palavras destacadas são emblemáticas<br />

em ambos universos.<br />

Esotérico Consumo<br />

Palavras Qntd Palavras Qntd<br />

abenço+ 5 abundância 31<br />

alma 2 bens 8<br />

anjo 1 carro 23<br />

astral 1 cartão 2<br />

céu 5 casa 34<br />

crença 13 catálogo 7<br />

cura <strong>18</strong> cheque 8<br />

Deus 13 competi+ 8<br />

divino 2 compr+ 43<br />

era 3 cont+ 38<br />

espírito 22 corpo 57<br />

fé 19 crédito 1<br />

felicidade, feliz 37 design 1<br />

harmon+ 15 dinheiro 84<br />

louv+ 8 divert+, diversão 14<br />

mágic+ 3 dólar 19<br />

natur+ 24 empreg+ 7<br />

paraíso 1 empresa 12<br />

pedra 5 família, familiares 16<br />

planeta 9 fortuna 1<br />

positivo 5 milh+ 23<br />

reino 2 opulência 4<br />

religi+ 5 prosperidade 20<br />

sagrado 1 relacionamento 10<br />

universal 17 riq+, rico 47<br />

Universo 143 sucesso 19<br />

Total 379 Total 537<br />

Como podemos perceber, é evidenciada uma mensagem comercial em<br />

O Segredo que apregoa a satisfação dos desejos do indivíduo, reduzindo a<br />

visão New Age aos interesses da lógica de consumo, e, por sua vez, descaracterizando<br />

o valor do espírito e da harmonia em favor do material. Observamos<br />

esse aspecto identificando palavras, como ‘cura’ - utilizada <strong>18</strong> vezes – em contraposição<br />

ao radical ‘compr+’, que aparece no texto em 43 passagens. Sendo<br />

a primeira palavra pertencente ao universo esotérico, causa estranheza que<br />

um elemento textual como ‘compr+’(comprar, compras), que não tem uma<br />

relação direta com essa temática, se sobressaia mais que o outro. Semelhante<br />

a esse caso temos a relação entre ‘harmonia’ e ‘abundância’, usadas respectivamente<br />

15 e 31 vezes no livro.<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


151<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Finalizando essa análise, verificamos ainda a relevância do resultado<br />

obtido nesse nível quando relacionado a todo o texto. Dos aproximadamente<br />

804 tipos de palavras identificadas no livro, formando um total de aproximados<br />

11.582 termos utilizados, destacamos 916 palavras equivalentes a 8%,<br />

que representam o discurso de consumo e igualmente o de esoterismo. Desse<br />

total, 4,7 % correspondem ao universo do consumo, enquanto 3,3% referem-<br />

-se ao contexto esotérico, o que demonstra uma tendência desse fenômeno<br />

literário em atender à demanda individualista e hedonista de mercado.<br />

Esse resultado revela que as características do conhecimento esotérico<br />

que o fizeram destacar-se na contemporaneidade, são exatamente uma<br />

edição de sua essência a partir da cultura de consumo. O Ocultismo (uma<br />

das sabedorias presentes no Esoterismo), por exemplo, se caracterizava por<br />

ensinamentos secretos, complexos, transmitidos a poucos escolhidos, dentro<br />

de um regime fechado, disciplinar em suas raízes e que demanda tempo,<br />

remodela-se para um saber diluído, acessível a quaisquer pessoas, de acordo<br />

com uma estrutura aberta e imediatista.<br />

ConClusão<br />

A sociedade contemporânea vive o presente, e o Segredo é: “seja feliz<br />

agora. Sinta-se bem agora.” (BYRNE, 2007, p. 179) O Homem não precisa esperar<br />

para conseguir o gozo que tanto anseia e parece lhe fazer padecer quando<br />

falta. Mesmo porque, cabe somente a ele transformar o seu mundo e em um<br />

curto espaço de tempo: agora.<br />

Participante desse contexto, a doutrina New Age também sofreu um<br />

reducionismo, conforme nos comunica O Segredo. Seu discurso baseado no<br />

merecimento do indivíduo (herdado do universo) em desfrutar uma boa vida,<br />

nada tem a ver com o princípio de harmonia entre o homem e o cosmo, fundamental<br />

na filosofia Nova Era.<br />

Assim, a lógica do discurso de O Segredo pode ser entendida através<br />

de um ciclo constante e ininterrupto, no qual primeiro o indivíduo entra na<br />

sintonia do Universo constituindo o ser (único, perfeito, merecedor), apto a<br />

fazer (atrair, gerar, mudar), a partir dessa conexão, tudo que lhe seja favorável,<br />

permitindo-lhe o ter (conhecimento, riquezas, corpo saudável). Com isso, a<br />

vida espiritual perde espaço para as promessas de realização pessoal e conforto.<br />

Dessa forma, a interferência do consumo promoveu a inusitada mediação<br />

do sagrado pela ciência, enquanto desmistifica alguns preceitos, e dá credibilidade<br />

a outros. Logo, toda a dinâmica religiosa atual feita de releituras,<br />

trânsitos e deslocamentos, não pode ser vivenciada, sem algum tipo de transformação.<br />

O que nos leva a pensar que pode ser que Deus não tenha morrido<br />

como afirmaram alguns filósofos no início do século. Mas foi induzido ao<br />

coma profundo pela contemporaneidade.<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


152<br />

notas<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

1 Matéria da revista Super interessante: Congelamento a longo prazo, edição 2 de<br />

novembro de 1987, disponível em: http://super.abril.com.br/superarquivo/1987/<br />

conteudo_110951.shtml. Acesso em 28/06/10.<br />

2 Uma das múltiplas formas de combinação de religiosidade encontradas na pesquisa<br />

sobre o catolicismo carismático e suas interconexões com o mundo da mídia<br />

e do consumo realizada por Silveira. Ver entrevista no endereço: http://www.<br />

ihuonline.unisinos.br.<br />

3 Os ensinamentos do Tanigushi, filosofia da seita Seicho-no-iê17, pode ilustrar<br />

essa perspectiva ao oferecer a solução para o alcance da prosperidade, sucesso<br />

profissional, relacionamento familiar harmonioso e vida longa - anseios terrenos<br />

pontuais para o desejo do indivíduo de ‘bem-viver’.<br />

4 Janeiro, fevereiro e março de 2007.<br />

5 Foram excluídos os vocábulos das seguintes classes gramaticais: substantivos<br />

próprios (com exceção de Deus), artigos, numerais, pronomes (exceto os pessoais<br />

e possessivos), preposição, conjunção e interjeição.<br />

6 A classificação ortográfica dos termos que aparecem em O Segredo considera<br />

gênero, número, grau e pessoa, relacionando algumas palavras pelos seus radicais<br />

(identificados pelo símbolo + no final do termo).<br />

referênCias bibliográfiCas<br />

AMARAL, Leila. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo na Nova Era.<br />

Petrópolis: Vozes, 2000.<br />

BYRNE, Rhonda. O Segredo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.<br />

DA MATTA, Roberto. A casa e a rua; espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil.<br />

Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.<br />

FAIVRE, Antoine. O esoterismo. São Paulo: Papirus, 1994.<br />

FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo:<br />

Studio Nobel, 1995.<br />

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades<br />

de massa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.<br />

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais - Sociologia do Novo Pentecostalismo no<br />

Brasil. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005.<br />

PAEGLE, Eduardo Guilherme de Moura; FILHO, Eduardo Meinberg de Albuquerque<br />

Maranhão. Mercado e discurso religioso na modernidade líquida. In: Comunicações.<br />

Estudos de Religião, Santa Catarina, v. 23, n. 37, p. 205-216, jul./dez. 2009.<br />

ROCHA, Everardo. Coisas estranhas, coisas banais. In: ROCHA, Everardo et alli<br />

(org). Comunicação, Consumo e Espaço Urbano: novas sensibilidades nas culturas<br />

jovens. São Paulo: Mauad, 2006.<br />

SILVEIRA, Emerson José Sena da. O Catolismo New Age e a Taro dos santos. In:<br />

Revista do Instituto Humanitas Unisinos-Ihu On Line. Disponível no endereço:<br />

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=articl<br />

e&id=2795&secao=307. Acesso em 31/07/2010.<br />

As entrelinhas do consumo no discurso das religiosidades contemporâneas: o caso de O Segredo


Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Por um estudo dos vlogs:<br />

apontamentos iniciais e<br />

contribuições teóricas de<br />

Marshall McLuhan<br />

For a study of vlogs: initial notes and<br />

theoretical contributions of Marshall McLuhan<br />

Fausto Amaro Ribeiro Picoreli Montanha<br />

Graduando em Comunicação Social, com habilitação em Relações<br />

Públicas, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />

Resumo<br />

Com o advento da banda larga, os brasileiros vêm presenciando uma popularização<br />

crescente da internet, o que, consequentemente, acarreta novas apropriações e<br />

usos do meio. Dentro desse contexto de desenvolvimento, vemos a emergência dos<br />

vlogs (ícones do Youtube). Pretendemos, com este artigo, fazer algumas considerações<br />

teóricas sobre esse fenômeno, utilizando-nos principalmente das contribuições de<br />

Marshall McLuhan.<br />

Palavras-chave: Videolog; Meios de Comunicação; McLuhan.<br />

Abstract<br />

With the advent of broadband, Brazilians have been witnessing a growing popularity<br />

of the Internet, which consequently leads to new appropriations and uses of<br />

the medium. Within this development context, we see the emergence of vlogs (Youtube<br />

icons). We intend to do with this article some theoretical considerations on this<br />

phenomenon, using mainly the contributions of Marshall McLuhan.<br />

Keywords: Videolog; Media; McLuhan..<br />

Por um estudo dos vlogs: apontamentos iniciais e contribuições teóricas de Marshall McLuhan


154<br />

introDução<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

Inicialmente, é pertinente salientar que a proposta deste artigo se insere<br />

dentro das pesquisas para o desenvolvimento da minha monografia na<br />

Faculdade de Comunicação Social da <strong>Uerj</strong>. Aqui, procurarei apresentar as primeiras<br />

reflexões, achados estatísticos e os avanços teóricos iniciais do projeto<br />

que surgiu da percepção de uma lacuna nos estudos brasileiros sobre os videologs,<br />

fenômenos da cultura contemporânea. Entendemos que, pela variedade<br />

de conteúdo disponível e pela crescente qualidade visual e técnica dos vídeos,<br />

o vlog e também o Youtube mereçam maior atenção da academia.<br />

É importante esclarecermos também que nomenclatura será utilizada<br />

quando falarmos dessas videografias de si (COSTA, 2009a). Para a escolha<br />

do melhor termo para defini-las, efetuamos uma busca comparativa no site<br />

TwitterVenn 1 para verificar qual seria o termo mais empregado pelos usuários<br />

(do Twitter) para designar esse fenômeno. Como esperávamos, o resultado<br />

pendeu amplamente para “vlog”.<br />

Figura 1: Comparativo entre vlog, videolog e videoblog. Fonte: TwitterVenn<br />

Segundo Burgess e Green:<br />

O vlog (abreviação para ‘videolog’) é uma forma predominante do<br />

vídeo “amador” no Youtube, tipicamente estruturada sobre o conceito<br />

do monólogo feito diretamente para a câmera, cujos vídeos são caracteristicamente<br />

produzidos com pouco mais que uma webcam e pouca<br />

habilidade em edição. Os assuntos abordados vão de debates políticos<br />

racionais a arroubos exacerbados sobre o próprio Youtube e detalhes<br />

triviais da vida cotidiana. (2009, p. 192)<br />

A princípio, este será o conceito de vlog empregado durante o artigo,<br />

feitas apenas algumas considerações. Apesar de inicialmente todo canal de vlog<br />

Por um estudo dos vlogs: apontamentos iniciais e contribuições teóricas de Marshall McLuhan


155<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

possuir um caráter eminentemente amador, com o tempo, há um claro refi-<br />

namento das habilidades de edição e produção dos vídeos, aproximando-se e<br />

confundindo-se com produtos profissionais. O caráter primordial dos vídeos é<br />

realmente o monólogo, ainda que em alguns casos haja a presença de mais de<br />

um “protagonista” 2 , o que, a nosso ver, retira um pouco da essência do vlog (o<br />

relato de apenas uma pessoa em frente à câmera). Os assuntos abordados estão<br />

realmente dentro do espectro variado sinalizado pelos autores no excerto.<br />

Hospedados majoritariamente no Youtube, os vlogs demandam relativamente<br />

poucos recursos, tais como uma câmera de vídeo ou uma webcam e<br />

um computador conectado à internet de alta velocidade. Com efeito, temos a<br />

proliferação de um sem-número de novos produtores de conteúdo audiovisual<br />

para internet. Esse crescimento da importância do usuário, agora também<br />

produtor, foi determinante para a revista americana Time escolher simbolicamente<br />

“Você” (em referência a todos os internautas) como “Personalidade<br />

do <strong>Ano</strong>” de 2006. Interessante notar que há uma clara referência aos produtores<br />

de vídeos, uma vez que o “You” (você, em inglês) aparece dentro de<br />

uma janela do Youtube. Reproduzimos a justificativa oficial para a escolha:<br />

“por tomarem as rédeas da mídia global, por forjarem a nova democracia<br />

digital, por trabalharem de graça e superarem os profissionais em seu próprio<br />

jogo, a personalidade do ano da Time é você” (GROSSMAN3 , apud<br />

SIBILIA, 2008, p.9). Curiosamente, no final desse mesmo ano de 2006, a<br />

própria revista Time elegeu o Youtube como a “invenção do ano”.<br />

Figura 2: Internauta eleito a personalidade do ano. Fonte: Revista Time (2006)<br />

Dessa forma, percebe-se a importância dos videologs no cenário midiático<br />

contemporâneo enquanto meios de comunicação emergentes (ou<br />

Por um estudo dos vlogs: apontamentos iniciais e contribuições teóricas de Marshall McLuhan


156<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

veículos inseridos dentro de um meio maior, qual seja, o Youtube), o que por<br />

si só já demanda estudos mais aprofundados para análise e reconhecimento<br />

de padrões nesses produtos culturais4 . O presente artigo será dividido em<br />

três partes. Na primeira, abordaremos o Youtube, principal suporte para o<br />

armazenamento e visualização dos vlogs, enfocando sua história e as motivações<br />

iniciais dos criadores desse site. Em seguida, traremos a proposta de<br />

“blog com vídeos” de Maria Bethânia, para refletir se os vlogs podem também<br />

ser considerados meios de comunicação (essa discussão é sim, necessária).<br />

Por último, mostraremos como algumas ideias de McLuhan podem ser<br />

utilizadas para entendermos melhor o objeto deste artigo.<br />

youtube: um pouCo De história<br />

Dados do IBOPE/Nielsen de janeiro de <strong>2011</strong> relatam que 29,8 milhões<br />

de brasileiros assistem a vídeos pela internet, o que representa aproximadamente<br />

70% do total de internautas daquele mês. Somente na subcategoria Vídeos/<br />

Filmes, a que nos interessa aqui, por incluir os vídeos assistidos em sites de<br />

compartilhamento de vídeo como o Youtube, foram 28,1 milhões de usuários<br />

únicos. Segundo o Alexia 5 , site de ranqueamento e medição de visitação de<br />

páginas da web, o Youtube é o 4º site mais visitado do Brasil.<br />

Figura 3: Audiência das subcategorias Vídeos/Filmes e Transmissão de Mídia – total de<br />

usuários únicos e audiência comum, em milhões. Fonte: IBOPE Nielsen Online<br />

A popularização da transmissão desses vídeos online foi impulsionada<br />

pela disseminação da banda larga no Brasil 6 . O tempo gasto para<br />

Por um estudo dos vlogs: apontamentos iniciais e contribuições teóricas de Marshall McLuhan


157<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

carregar um arquivo de vídeo na internet de alta velocidade quando comparado<br />

com a conexão discada (aproximadamente 56 kbps de velocidade de<br />

conexão) é revelador dessas diferenças, como nos mostra a tabela da União<br />

Internacional das Telecomunicações 7 .<br />

Figura 4: Pesquisa “The World in 2010”. Fonte: União Internacional das<br />

Telecomunicações<br />

Após essa contextualização inicial sobre os dados de acesso - que é relevante<br />

para entendermos o crescimento da produção e visualização de vídeos<br />

on-line - abordaremos agora especificamente o Youtube.<br />

Há uma lacuna nos estudos sobre esse portal de vídeos, talvez devido<br />

a sua recente criação (em 2005). Contudo, em 2009, ela foi parcialmente<br />

preenchida com o lançamento do livro “Youtube e a revolução digital:<br />

como o maior fenômeno da cultura participativa está transformando a mídia<br />

e a sociedade”, de Jean Burgess e Joshua Green. Além de analisar o<br />

Youtube como empresa de sucesso, os autores se preocupam em contar a<br />

história do site e citar casos de pessoas comuns que, através de seus canais,<br />

conquistaram destaque na grande rede.<br />

O livro se propõe a fomentar o debate e servir de estímulo para pesquisas<br />

futuras mais aprofundadas. Os autores, no decorrer da obra, traçam um estado<br />

da arte sobre os estudos acerca do Youtube. Nesse sentido, delimitam o possível<br />

início de um despertar da academia:Ele acrescenta ainda:<br />

O livro The Television Will Be Revolutionized (A Televisão Será<br />

Revolucionada, 2007), de Amanda Lotz, é um dos primeiros trabalhos<br />

acadêmicos publicados a tratar especificamente do Youtube. Suas considerações<br />

sobre o Youtube foram evidentemente adicionadas em um<br />

momento posterior à conclusão do livro, que foi finalizado no final de<br />

2006, quando o serviço estava apenas começando a receber maior atenção<br />

da imprensa e do meio acadêmico. (BURGESS, GREEN, 2009, p.58<br />

Em outro capítulo do livro, os autores abordam o surgimento do<br />

Youtube, criado por Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim, ex-funcionários<br />

do PayPal (site de serviços de pagamento online) em fevereiro de 2005.<br />

Seu propósito inicial era “eliminar as barreiras técnicas para maior compartilhamento<br />

de vídeos na internet” (BURGESS, GREEN, 2009, p.17).<br />

Daí, o primeiro slogan do site ser: “Your Digital Video Repository” (Seu<br />

Repositório de Vídeos Digitais, em tradução livre). Hoje, com as múltiplas<br />

apropriações feitas pelos usuários, que acabaram subvertendo aquele propósito<br />

inicial, o slogan é “Broadcast yourself” (algo como “Transmita Você<br />

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158<br />

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Mesmo”). Em seu segundo ano de “vida”, com 100 milhões de visualizações<br />

por dia e 65 mil novos vídeos publicados diariamente, o Youtube foi adquirido<br />

pelo Google, o gigante de buscas da internet, pelo valor de US$ 1,65<br />

bilhão. Quatro anos depois, em 2010, sua popularidade disparou e, hoje, já<br />

são 24 horas de vídeos publicados por minuto e dois bilhões de visualizações<br />

por dia (um aumento de quase 2000% em relação a 2006) 8 .<br />

É válido lembrar que, inicialmente, o Youtube era alvo de críticas da<br />

imprensa e da opinião pública por hospedar apenas conteúdo de baixa qualidade<br />

técnica e artística, e também por publicar ilegalmente na rede o conteúdo<br />

de canais de TV e de filmes. Essa visão mudou quando os usuários e<br />

algumas produtoras de vídeo passaram a produzir conteúdo exclusivamente<br />

para o Youtube. O conteúdo ilegal (trechos de programas de TV, de clipes<br />

musicais, de filmes) continua presente, mas vem cedendo espaço às produções<br />

originais (BURGESS, GREEN, 2009). Atualmente, as barreiras à circulação<br />

de conteúdo protegido por direitos autorais são maiores. O Google<br />

vem fiscalizando mais atentamente a veiculação de músicas e vídeos postados<br />

sem a devida autorização dos autores.<br />

Trazendo a discussão para o problema específico do artigo (os vlogs), os<br />

autores do livro também relatam uma pesquisa de 2007, realizada por eles,<br />

com os 4320 vídeos de maior acesso no Youtube (nas categorias Mais Vistos,<br />

Mais Adicionados aos Favoritos, Mais Respondidos e Mais Comentados).<br />

Destes, aproximadamente 50% eram publicados por usuários comuns; e<br />

dentro do universo dos vídeos Mais Comentados, 40% eram vlogs. Esses dados<br />

demonstram o papel proeminente dos vídeos produzidos pelos usuários<br />

já em 2007. Os vlogs também são vistos por Burgess e Green (2009) como<br />

promotores de uma socialização no Youtube, por meio dos comentários de<br />

usuários, o compartilhamento de links e a “troca de visitas” 9 .<br />

Vlog Como meio De ComuniCação<br />

Henry Jenkins, na introdução de seu livro Convergence culture: where old<br />

and new media collide (2006), fala do modelo de comunicação proposto por Lisa<br />

Gitelman 10 (2008), o qual atuaria em dois níveis. De um lado, “um meio é uma<br />

tecnologia que permite a comunicação”; por outro, “é um conjunto de protocolos<br />

associados ou práticas socioculturais que tem crescido em torno da tecnologia”<br />

(JENKINS, 2006, p.14, tradução nossa). Assim, as novas tecnologias, enquanto<br />

ferramentas, são substituíveis, mas os meios, enquanto linguagem cultural,<br />

sobrevivem. O Youtube, por exemplo, pode vir a desaparecer, da mesma forma<br />

como ocorreu com outros grandes portais anteriormente. No entanto, o formato<br />

dos vídeos produzidos por usuários (vlogs), enquanto novas formas de comunicação<br />

continuará presente.<br />

Fizemos essa inserção inicial, pois, recentemente (em meados de março),<br />

um debate esquentou a discussão sobre os meios de comunicação. Conforme<br />

noticiado no jornal O Globo, na matéria “O valor da cultura na internet em<br />

discussão” 11 , a cantora Maria Bethânia recebeu aval do governo para captar R$<br />

1,3 milhão de reais, por meio da Lei Rouanet, para o seu projeto artístico pessoal<br />

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159<br />

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“O Mundo Precisa de Poesia” 12 . A princípio, essa notícia não representaria nada<br />

demais, em se tratando de um projeto para rádio, teatro, cinema ou televisão. O<br />

que despertou a discussão em jornais, revistas e nas redes sociais, foi o fato de o<br />

meio que irá suportar tal ação ser a internet. Os principais argumentos utilizados<br />

pelos críticos para condenar tal proposta foram o valor elevado, que não corresponderia<br />

aos custos reais e o alto cachê cobrado por Maria Bethânia (cerca de R$<br />

600 mil, segundo a matéria). O que particularmente nos interessa dessa questão<br />

é o teor do projeto. “O Mundo Precisa de Poesia” pretendia ser um blog em que<br />

Bethânia postaria diariamente seus vídeos declamando poesias de autores consagrados.<br />

Em outras palavras, ela faria um videoblog.<br />

Mesmo não sendo contemplados originalmente na Lei Rouanet, projetos<br />

criativos para internet surgem cada vez mais e se destacam, mesmo sem suporte<br />

financeiro. A conquista desse polpudo auxílio, à parte o debate criado em torno<br />

da questão, sinaliza que a internet começa a ser vista como um meio de comunicação<br />

com potencial para atingir grande parte da população brasileira. Segundo<br />

pesquisa do IBOPE Nielsen Online 13 , no quarto trimestre de 2010, 73,9 milhões<br />

de pessoas acessaram a internet no Brasil.<br />

Por meio da internet, as pessoas podem acessar o Youtube, onde é possível<br />

consumir cultura de qualidade, e não somente vídeos engraçados, trechos de programas<br />

de TV, clipes musicais e famosos em situações embaraçosas. McLuhan,<br />

ainda que se referisse a outros meios, pode contribuir para entendermos melhor<br />

essas discussões sobre o vlog de Bethânia:<br />

É instrutivo acompanhar as fases embrionárias de qualquer desenvolvimento,<br />

pois em geral elas são muito mal compreendidas – quer se refiram<br />

à imprensa, ao automóvel ou à TV. Justamente porque as pessoas,<br />

no início, não se dão conta da natureza do novo meio, a nova forma<br />

vibra alguns golpes reveladores nos espectadores de olhos mortos-vivos.<br />

(MCLUHAN, 1969, p.281)<br />

Em tempo, vlogs não são produtos culturais novos. Antes de iniciarmos<br />

a pesquisa para este artigo, acreditávamos que os primeiros vlogueiros haviam<br />

surgido entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000. No entanto,<br />

descobrimos que o primeiro videolog foi produzido há 35 anos, como explicaremos<br />

mais adiante. Uma das primeiras notícias sobre vlog publicadas no Brasil<br />

data de novembro de 2004, veiculada na Folha de São Paulo. Ela relata da seguinte<br />

forma o fenômeno que ocorria na internet: “Estimulados pelo acesso à<br />

internet com conexão de banda larga e pela queda dos preços das câmeras digitais,<br />

internautas começaram a incrementar seus blogues com vídeos e criaram<br />

uma nova categoria de diário virtual: os videoblogues” (BARRETO, 2004).<br />

A matéria em nenhum momento cita o Youtube, pois até então esta<br />

não era uma ferramenta disseminada entre os vlogueiros. Eles se utilizavam<br />

de outros recursos, como sites próprios, blogs pessoais, portais exclusivos para<br />

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videologs. A matéria enfatiza as dificuldades enfrentadas por esses “desbravadores”<br />

de um novo formato de produção de conteúdo.<br />

De qualquer forma, acredito que já podemos, sim, encarar a vlogosfera<br />

como um potente meio comunicacional. O’Reilly, inclusive, fala que “a<br />

‘blogosfera’ pode ser pensada como um novo meio de comunicação entre os<br />

usuários” (2006, p.14). Se nos apropriarmos das reflexões de Sarah Thornton,<br />

no quarto capítulo de seu livro Club Cultures: Music, Media and Subcultural<br />

Capital, sobre os três níveis midiáticos que perpassavam o cenário musical<br />

underground londrino nas décadas de 1980/90 (clubes noturnos e raves, principalmente),<br />

podemos entender também o tipo de meio que os vlogs representam.<br />

Acreditamos que, de maneira geral, eles sejam mídias massivas em<br />

potencial de audiência, mídias de nicho se pensarmos o público realmente fiel<br />

a canais específicos (sobre games, autobiográficos, sobre filmes, dentre outros),<br />

e micromídias no que tange ao modo de produção e circulação (passível de ser<br />

realizado por qualquer internauta). Essa nossa análise pode em breve se apresentar<br />

equivocada, mas ela efetivamente reflete o cenário atual.<br />

A título de informação, elencamos alguns artigos brasileiros, não explorados<br />

aqui pelas limitações físicas do artigo, mas que abordam, sob enfoques<br />

teóricos diferentes, aspectos importantes do vlog e do próprio Youtube:<br />

Reis (2009), Costa (2009a, 2009b, 2009c), Arruda et al (<strong>2011</strong>), Oliveira<br />

(2009). Nos EUA, destacamos o trabalho do professor Dr. Michael Wesch, da<br />

Universidade de Kansas, que coordena um grupo de pesquisa sobre etnografias<br />

digitais com foco no Youtube 14 .<br />

mCluhan: uma Contribuição teóriCa para o estuDo Dos vlogS<br />

É difícil pensarmos em um teórico da comunicação atual que tenha<br />

alcançado, ainda em vida, a mesma notoriedade acadêmica, pública e midiática<br />

que Marshall McLuhan obteve. Durante as décadas de 1960 e 1970,<br />

era usual a participação de McLuhan em programas de rádio, talk shows e<br />

outros programas de auditório na TV americana, bem como fica retratado<br />

nas imagens do documentário McLuhan’s Wake. Vemos também como ele<br />

não se iludia com o fato de ser uma celebridade, aliás, nem gostava de usar<br />

essa palavra para descrevê-lo. Simplesmente aproveitava o fato de as pessoas<br />

poderem ter acesso a suas ideias e pensarem por si próprias. Por esse motivo,<br />

aliás, seus conceitos teóricos se tornaram tão populares na época, ainda que<br />

muitos não o tenham captado em sua essência.<br />

O ponto que pretendíamos chegar com essa digressão inicial é que as<br />

ideias de McLuhan, ainda que recebam relativo descrédito no meio acadêmico<br />

atualmente, foram assimiladas pela opinião pública e são utilizadas<br />

muitas vezes como expressões do senso comum, vide o conceito de aldeia<br />

global e o aforismo “os meios como extensão do homem”. Alguns exemplos<br />

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aconteceram recentemente e, por isso, os citaremos abaixo. Eles demonstram<br />

que ainda hoje, McLuhan possui bastante relevância.<br />

Em 1996, em matéria da revista Wired 15 , McLuhan foi declarado o “patrono<br />

da revolução digital”. Já em recente matéria no jornal O Globo 16 , que<br />

abordava as relações de dependência do homem em relação ao gadgets, o nome<br />

de McLuhan voltou mais uma vez a ser lembrado. Coube à professora Karin<br />

Breitman, do Departamento de Informática da PUC-Rio, enriquecer o debate,<br />

lembrando que já nos anos 60, McLuhan alertava para os efeitos dos meios<br />

sobre os sentidos humanos. Em suma, o texto da matéria tratava da menor<br />

demanda de memória que exigimos de nosso cérebro, uma vez que podemos<br />

armazenar todos os nossos dados pessoais e profissionais em artefatos tecnológicos<br />

externos. Ora, isso nada mais é do que o entorpecimento dos sentidos que<br />

um novo meio sempre ocasiona, como já dizia McLuhan (1969).<br />

No documentário A Era do Videogame, veiculado no Discovery<br />

Channel e dividido em cinco episódios de aproximadamente 45 minutos<br />

cada, um dos entrevistados, Ken Perlin, professor de Ciências da<br />

Computação da NYU, utiliza claramente a ideia de McLuhan – os meios<br />

como extensão do homem – mas, talvez por desconhecimento, não oferece<br />

os devidos créditos. Outro exemplo envolvendo essa mesma questão das extensões<br />

do homem permeou toda a “matéria de capa” da Revista Galileu 17 .<br />

Sob o título de “Máquinas que pensam”, a matéria mostrava como as máquinas,<br />

no caso, os supercomputadores, cada vez mais ampliarão o potencial<br />

físico e psíquico do homem no desempenho de suas atividades profissionais<br />

e pessoais. Qualquer semelhança com as ideias defendidas por<br />

McLuhan em seu livro mais famoso, não é mera coincidência.<br />

No que tange ao resgate acadêmico de McLuhan, Erick Felinto, em<br />

seu artigo “Materialidades da comunicação: por um novo lugar da matéria<br />

na teoria da comunicação” (2001) sinaliza para “o recente retorno das menções<br />

a McLuhan na área da teoria da comunicação, após um prolongado período<br />

de quase completo esquecimento” (FELINTO, 2001, p.6). McLuhan<br />

é um autor-instaurador de discurso <strong>18</strong> , nos termos propostos por Foucault<br />

(1992). Dito isto, é sempre válido um retorno a sua obra por meio da reatualização,<br />

que é “a reinserção de um discurso num domínio de generalização,<br />

de aplicação ou de transformação que é para ele novo” (FOUCAULT, 1992,<br />

p.64). A novidade aqui são os vlogs.<br />

Diálogo teóriCo Com mCluhan para o estuDo Dos Vlogs<br />

Uma das proposições de McLuhan diz respeito às influências que um<br />

meio de comunicação recebe de seus antecessores. Nesse sentido, o vlog se<br />

beneficiou de uma cultura participativa e de uma “liberação do polo emissor”<br />

(Lemos, 2003), que já estava presente na internet desde os blogs, fotologs,<br />

Por um estudo dos vlogs: apontamentos iniciais e contribuições teóricas de Marshall McLuhan


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podcasts, fanfictions. Aliás, o próprio fenômeno de vídeos independentes produzidos<br />

por pessoas comuns é mais antigo do que poderíamos pensar. Já na<br />

década de 1970, videoartistas famosos como Yoko Ono, John Cage, Nam<br />

June Paik e Wolf Vostell realizavam suas performances, happenings e festivais<br />

(MORAN, 2010, p.1213-1214). As grandes barreiras, no entanto, eram o alto<br />

custo de uma ilha de edição e a forma de divulgação do conteúdo produzido.<br />

Esses dois obstáculos começaram a ser transpostos com o surgimento do vídeo<br />

digital e com o advento da internet (e suas redes sociais).<br />

Outro ponto convergente em relação à teoria mcluhaniana diz respeito<br />

ao vídeo como uma extensão do homem moderno. McLuhan, em sua obra<br />

mais famosa, Os meios de comunicação como extensões do homem, propõe que<br />

os meios de comunicação atuariam como amplificadores de nossas faculdades<br />

físicas e mentais. Na Enciclopédia Intercom de Comunicação (2010), no verbete<br />

sobre Vídeo, temos a seguinte afirmação:<br />

O vídeo está em toda parte: no âmbito doméstico como memória familiar,<br />

na arte, no entretenimento, em sistemas de vigilância, na nanotecnologia,<br />

na medicina e é claro como extensão do olho humano no<br />

espaço extraterrestre. Quase onipresente, ele se encontra em diversas<br />

áreas de conhecimento. (MORAN, 2010, p. 1211, grifo nosso)<br />

Os vlogs potencializam, assim, a visão e a audição humana ao proporcionarem<br />

múltiplas possibilidades de representação e construção do conhecimento,<br />

principalmente a partir desses dois sentidos. Eles também facilitam<br />

o processo comunicacional ao permitirem uma redução das distâncias, uma<br />

nova relação com o tempo, uma maior difusão de ideias e pensamentos,<br />

criam novos entendimentos e propiciam outra dinâmica para a lógica da<br />

interação humana. Nesse sentido, Woods 19 , segundo Sibilia (2008, p.48),<br />

afirma que “nesse novo contexto, além de mais ‘interativos’, os sujeitos estão<br />

se tornando mais visuais do que verbais”.<br />

De forma complementar, Bruno Costa, doutor em Comunicação pela<br />

PUC/RS, afirma que “as videografias de si podem revelar de modo especialmente<br />

singular como o olho eletrônico da câmera se torna mais um elemento<br />

presente na criação das imagens de si mesmo, faz parte do processo de constituição<br />

dos selves” (COSTA, 2009a, p.208).<br />

Igualmente, para McLuhan (1969), os meios são extensões de nós mesmos<br />

e, ao mesmo tempo, dependem de nós para existir. Sua inter-relação e<br />

evolução começam a funcionar antes mesmo de nos darmos conta desses novos<br />

meios. As condições e as apropriações do vídeo na internet por usuários comuns<br />

são anteriores ao surgimento do Youtube e até mesmo, da nomenclatura vlog.<br />

Aliás, podemos ir além e situar a “estrutura de sentimento” 20 (WILLIAMS,<br />

1997) para os vlogs atuais em um período bem anterior à própria internet.<br />

Ainda que, inicialmente, acreditássemos que os primeiros vlogueiros<br />

haviam surgido entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000,<br />

Por um estudo dos vlogs: apontamentos iniciais e contribuições teóricas de Marshall McLuhan


163<br />

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acabamos descobrindo que o primeiro videolog foi produzido há 35 anos.<br />

Segundo o site de notícias Brainstorm 21 , Sam Klemke 22 , desde os seus 19 anos<br />

(na década de 1970), já fazia vídeos de curta duração, onde relatava seu amadurecimento<br />

pessoal. Klemke produzia seus vídeos como um experimento pessoal,<br />

acima de tudo. Inegável associá-lo aos atuais vlogueiros.<br />

Nos anos 1980, com o vídeo digital e a redução de preço das câmeras,<br />

as filmagens de família aumentam em quantidade e também podem ser consideradas<br />

apropriações do usuário a uma tecnologia nascente. Finalmente, no<br />

início da década de 1990, encontramos um exemplo brasileiro, do que poderia<br />

ser considerado os primórdios de um formato parecido com o vlog atual.<br />

Rafinha Bastos, apresentador do CQC e homem mais influente do mundo no<br />

Twitter 23 , revelou, em entrevista à Revista Info 24 , que já fazia vídeos para internet<br />

no início da década de 1990:<br />

Nos anos 1990, Rafinha [Bastos] mudou-se para os Estados Unidos<br />

para tentar a sorte no basquete profissional. Foi lá que ligou a facilidade<br />

de criação e edição de vídeo como poder de distribuição de conteúdo<br />

na internet. Montou a página do Rafinha, site onde publicava<br />

suas piadas, e começou a fazer sucesso com sátiras de videoclipes [...]<br />

Mas a relação do comediante com a internet vai além do microblog.<br />

No YouTube, divulga trabalhos e publica esquetes. Um deles, a série<br />

sobre os nojos específicos do seu cachorro Walmor, foi visto mais de 2<br />

milhões de vezes.<br />

Na década de 2000, enfim, temos o “boom” dos vlogs, com um aumento<br />

exponencial na quantidade e qualidade dos vídeos produzidos. É difícil precisar<br />

quem primeiro se autointitulou como tal. No Brasil, além de Rafinha<br />

Bastos, um dos primeiros e mais populares vlogueiros talvez tenha sido Ronald<br />

Rios, do canal Com a palavra, Ronald Rios”. Um dado interessante sobre Rios<br />

é que após ser contratado pela MTV para ter seu próprio programa, ele parou<br />

de postar novos vídeos no Youtube.<br />

Atualmente, o grande nome da vlogosfera brasileira é PC Siqueira. Seu<br />

canal MASPOXAVIDA está sempre entre os mais populares e mais comentados<br />

do Youtube. A saudação inicial “Oi, como vai você?”, sempre presente na<br />

abertura de seus vídeos, e a linguagem direta e informal podem ser considerados<br />

convites à conversa, ao estabelecimento de um diálogo, ou seja, marcas<br />

de oralidade. Talvez por isso, é que tenhamos uma grande quantidade de comentários<br />

aos seus vídeos, além de vários vídeos-resposta, veiculados no próprio<br />

Youtube, em concordância e, principalmente, discordando das posições e<br />

atitudes de Siqueira. Da mesma forma, o “Boa noite” de Fátima Bernardes e<br />

William Bonner no Jornal Nacional nos impulsiona quase que a responder esse<br />

cumprimento inicial. Nesse caso, não obstante, a abertura à interação é limitada<br />

e pautada pelo modelo tradicional de comunicação (emissor-mensagem-<br />

-receptor). Com isso, podemos dizer que o canal de PC Siqueira se aproxima<br />

mais de uma cultura oralizada do que o JN.<br />

Por um estudo dos vlogs: apontamentos iniciais e contribuições teóricas de Marshall McLuhan


164<br />

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Mais um ponto em comum com McLuhan é a separação do indivíduo<br />

do grupo que a palavra escrita, e posteriormente a impressa, provocam, e que<br />

se faz presente na estrutura de produção dos vlogs. Por mais que o modo de comunicação<br />

primordialmente utilizado nesses vídeos seja o oral 25 , sua estrutura<br />

remete à mentalidade escrita em dados momentos, principalmente no que se<br />

refere à gestão do tempo e da memória, e ao contexto social (sociedade letrada)<br />

que permeia os produtores dos vídeos. Os discursos produzidos nos vlogs não<br />

se esgotam em um tempo e espaço determinados, assim como ocorre com a<br />

escrita. Essa atemporalidade do vlog, ou seja, a possibilidade de assistir a um<br />

vídeo em qualquer tempo sem perda de sentido e conteúdo é similar ao que<br />

temos com a leitura de um livro. Além disso, o vídeo não é produzido por<br />

uma coletividade, mas, sim, por uma única pessoa, isolada de seu grupo social,<br />

em seu quarto e com uma câmera focalizando, normalmente, seu rosto. Esta<br />

pessoa é a única que tem “a palavra”. A privacidade do quarto, presente desde<br />

a escritura de diários íntimos 26 , ganha mais um uso. Há uma ressignificação<br />

do quarto em si, que deixa de ser apenas um lugar de repouso, para se tornar<br />

cenário para um veículo de comunicação. Essa discussão sobre os modos de<br />

comunicação oral e escrita, presentes nessas “videobiografias” é bem ampla, e<br />

não se encerrará com este artigo.<br />

Os vlogs também se aproximam cada vez mais de pertencerem ao que<br />

McLuhan chamou de aldeia global, isto é, uma retribalização do mundo,<br />

retomando aspectos presentes nas culturas orais. Deve-se ressaltar, no entanto,<br />

que a simultaneidade temporal (ação e reação ocorrendo ao mesmo<br />

tempo), marca da oralidade e característica das sociedades tribais, ainda está<br />

ausente na grande maioria dos vídeos no Youtube, já que eles são gravados.<br />

Não obstante, esse entrave é passageiro, já que o Youtube possui projetos de<br />

transmitir alguns de seus canais de maior sucesso ao vivo. Isso já é feito em<br />

alguns shows 27 e eventos esportivos.<br />

Na reflexão suscitada ainda na introdução sobre qual seria o meio de comunicação,<br />

o Youtube ou o vlog, podemos nos valer da analogia que McLuhan<br />

faz com a luz elétrica. Segundo ele:<br />

ConsiDerações finais<br />

Não percebemos a luz elétrica como meio de comunicação simplesmente<br />

porque ela não possui ‘conteúdo’. É o que basta para exemplificar<br />

como se falha no estudo dos meios e veículos. Somente compreendemos<br />

que a luz elétrica é um meio de comunicação quando utilizada<br />

no registro do nome de algum produto. O que aqui notamos, porém,<br />

não é a luz, mas o ‘conteúdo’ (ou seja, aquilo que na verdade é um<br />

outro meio). (MCLUHAN, 1969, p.23)<br />

As mudanças proporcionadas na era da internet se dão muito rapidamente.<br />

A velocidade das transformações supera de longe todos os outros<br />

meios antecessores (rádio, TV, mídia impressa em geral). Isso, inegavelmente,<br />

Por um estudo dos vlogs: apontamentos iniciais e contribuições teóricas de Marshall McLuhan


165<br />

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gera uma profusão de conteúdo e uma dificuldade na apreensão teórica desse<br />

meio em sua essência. A dificuldade, no entanto, não pode ser encarada<br />

como um impedimento à pesquisa. Pelo contrário, deve ser um estímulo.<br />

Nunca antes um meio pôde ser tão estudado em sua gênese e ao mesmo tempo<br />

em que ocorrem suas transformações. Também é necessário relativizar as<br />

conclusões a que chegamos, evitando determinismos – ainda que neste artigo<br />

tenha sido utilizado um autor dito determinista – e teorias pretensamente<br />

absolutas e fechadas em si mesmas.<br />

Citando Henry Jenkins, creio que está “além das minhas habilidades,<br />

descrever ou documentar completamente todas as mudanças que estão<br />

ocorrendo” (JENKINS, 2006, p.12). No nosso caso, nos referimos às transformações<br />

concernentes aos vlogs e ao próprio Youtube. Esse é, aliás, um<br />

dos pressupostos básicos de qualquer estudo acadêmico envolvendo os novos<br />

media, já que os fluxos de informação e inovação são constantes e em grande<br />

quantidade. Metaforicamente falando, seríamos como pescadores tentando<br />

pescar um cardume com uma simples vara de pescar.<br />

Algumas questões podem ser conjecturadas ao término deste artigo: O<br />

vlog tende a desaparecer com a apropriação de suas características principais<br />

pela TV? Os vlogs tendem a se complexificar, adotando um caráter mais informativo<br />

e comprometido e menos humorístico? O Youtube, graças aos seus usuários,<br />

irá substituir a TV ou será incorporado por ela, sendo apenas um imenso<br />

canal com múltiplas opções de “programas”? As respostas a essas indagações<br />

ainda são uma incógnita, mas proporcionam excelentes reflexões e debates.<br />

Por um estudo dos vlogs: apontamentos iniciais e contribuições teóricas de Marshall McLuhan


166<br />

notas<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

1 Ver: . Acesso em: 8 jun. <strong>2011</strong>. Em tempo, a descoberta desse site foi feita<br />

por meio da Revista Info, n. 304, p. 120, Jun. <strong>2011</strong>.<br />

2 Por exemplo, os “Vagazoides”, onde dois adolescentes opinam sobre os mais<br />

variados temas, principalmente aqueles que afligem a juventude atual (em <strong>2011</strong>,<br />

um dos vlogueiros deixou o canal, que passou então a se chamar “Vagazoide”); e o<br />

“Nerd Office”, dos mesmos criadores do site Jovem Nerd, DeivePazos e Alexandre<br />

Ottoni.<br />

3 GROSSMAN, Lev. Time’s person of the year: you”. In: Time, v.168, n.26, 25 dez.<br />

2006.<br />

4 Marshall McLuhan, citado no documentário “McLuhan’s Wake”, já salientava que<br />

o “truque” para entender os novos meios tecno-informacionais é “reconhecer o<br />

padrão [desse novo meio], antes de ele estar completo”.<br />

5 Fonte: . Acesso em: 8 jun. <strong>2011</strong><br />

6 Segundo dados da Telebrasil (Associação Brasileira de Telecomunicações), os acessos<br />

à banda larga (fixa e móvel) totalizaram 34,2 milhões em 2010 (). Não obstante, apenas 47%<br />

dos municípios brasileiros dispõem desse serviço, segundo dados de abril de 2010<br />

do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – )<br />

7 Pesquisa “The World in 2010” realizada pela ITU-D.<br />

8 Dados extraídos do próprio Youtube. Fonte: . Acesso em: 23 mar. <strong>2011</strong><br />

9 Os produtores de vídeo, como tática de divulgação, visitam os canais do Youtube<br />

de outros usuários esperando uma retribuição dessa visita e, consequentemente,<br />

angariando mais visualizações para o seu próprio canal.<br />

10 Massachusetts: The MIT Press, 2008.<br />

11 MIRANDA, André; VENTURA, Mauro. O valor da cultura na internet em discussão.<br />

O Globo, Rio de Janeiro, 20 mar. <strong>2011</strong>. Segundo Caderno, p. 10.<br />

12 Essa mesma notícia repercutiu também em outras matérias do próprio jornal O<br />

Globo, bem como em outros jornais, sites e revistas brasileiros.<br />

13 Fonte:. Acesso em: 5 maio. <strong>2011</strong>.<br />

14 Ver: < http://mediatedcultures.net/>.<br />

15 WOLF, Gary. The Wisdom of Saint Marshall, the Holy Fool.Wired, Jan. 1996.<br />

Disponível em: . Acesso em: 6 maio.<br />

<strong>2011</strong>.<br />

16 MACHADO, André. É a tecnologia, estúpido! O Globo, Rio de Janeiro, 23 maio<br />

<strong>2011</strong>. Caderno Digital & Mídia, p. 19.<br />

17 AFFARO, Victor. Supercomputadores. As máquinas começam a pensar. Revista<br />

Galileu, São Paulo, n. 238, p. 42-51, maio <strong>2011</strong>.<br />

<strong>18</strong> “Estes autores têm isto de particular: não são apenas os autores de suas obras,<br />

dos seus livros. Produziram alguma coisa mais: a possibilidade e a regra de formação<br />

de outros textos” (FOUCAULT, 1992, p.58).<br />

19 WOODS, Richard. The next step in brain evolution.In: The Sunday Times.<br />

Londres: 9 jul. 2006.<br />

Por um estudo dos vlogs: apontamentos iniciais e contribuições teóricas de Marshall McLuhan


167<br />

Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

20 Segundo Willians (1977, p.133), “The idea of a structure of feeling can be<br />

specificaly related to the evidence of forms and conventions – semantic figures –<br />

which, in art and literature, are often among the very first indications that such a<br />

new structure is forming”.<br />

21 MERIGO, Carlos. Há 35 anos, Sam Menkle começou o primeiro videolog do<br />

mundo. Brainstorm9, maio <strong>2011</strong>. Disponível em: .<br />

Acesso em: 16 maio <strong>2011</strong>.<br />

22 Disponível em: . Acesso em: 16 maio <strong>2011</strong>.<br />

23 Eleito pela revista Times <strong>2011</strong>.<br />

24 POLONI, Gustavo; MAIA, Felipe; CAPUTO, Victor. O Império Nerd contra ataca.<br />

Revista Info, n. 303, p.46-55, maio <strong>2011</strong>.<br />

25 Entendido aqui como a palavra, o gesto, a expressão, o tom da voz.<br />

26 Para um histórico dos diários íntimos, de sua origem até os blogs atuais, ver:<br />

SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro:<br />

Civilização Brasileira, 2004.<br />

27 Em 2010, Simone Pereira de Sá e Ariane Holzbach produziram um artigo que<br />

tem como objeto um evento transmitido ao vivo pelo Youtube e com cobertura<br />

simultânea pelo Twitter.<br />

referênCias bibliográfiCas<br />

ARRUDA, Byanca et al. A Exposição do Jovem na Internet: Um estudo sobre<br />

o caso Felipe Neto. BOCC. Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação,<br />

<strong>2011</strong>. Disponível em: .<br />

BARRETO, Juliano. Internautas incrementam blogues com vídeos digitais.<br />

Disponível em: .<br />

Acesso em: 27 mar. <strong>2011</strong>.<br />

BURGUESS, Jean; GREEN, Joshua. YouTube e a Revolução Digital: como o<br />

maior fenômeno da cultura participativa está transformando a mídia e a sociedade.<br />

São Paulo: Aleph, 2009.<br />

COSTA, Bruno. Personagens de si nas videografias do Youtube. Revista Eco-Pós,<br />

Rio de Janeiro, v.12, n.2, p.206-219, maio-ago. 2009a.<br />

____________. Práticas Autobiográficas <strong>Contemporânea</strong>s: as videografias de<br />

si. Doc On-Line, n. 6, p. 141-157, ago. 2009b. Disponível em: .<br />

____________. Videografias de si. Registros do novo ethos da contemporaneidade.<br />

2009c. 137f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação<br />

e Artes, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.<br />

FELINTO, Erick. Materialidades da comunicação: por um novo lugar da matéria<br />

na teoria da comunicação. Ciberlegenda, Niterói, n. 5, jan. 2001.<br />

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Ed.<strong>18</strong> | Vol.9 | N2 | <strong>2011</strong><br />

FOUCALT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens/Vega, 1992.<br />

JENKINS, Henry. Convergence culture: where old and media collide. New York:<br />

New York University Press, 2006.<br />

LEMOS, André. Olhares sobre a Cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2003.<br />

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem.<br />

Tradução Décio Pignatari. São Paulo: Editora Cultrix, 1969.<br />

MCLUHAN’S WAKE. Direção: David Sobelman e Kevin McMahon.<br />

Produção: Kristina McLaughlin, Michael McMahon. Canadá: National Film<br />

Board of Canada, 2002. Documentário. DVD (94 min.), color, NTSC.<br />

MORAN, Patrícia. Vídeo Experimental (Verbete para Enciclopédia). In:<br />

Enciclopédia INTERCOM de Comunicação. São Paulo: Intercom, 2010. v.1, p.<br />

1213-1214. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. <strong>2011</strong><br />

____________. Vídeo (Verbete para Enciclopédia). In: Enciclopédia<br />

INTERCOM de Comunicação. São Paulo: Intercom, 2010. v.1, p. 1210-1211.<br />

Disponível em: . Acesso<br />

em: 15 mar. <strong>2011</strong><br />

OLIVEIRA, Daniela. Navegando pelo tubo: a comunicação individual de massa<br />

e os vídeos transmitidos pelo usuário comum. 2009. 122f. Dissertação (Mestrado<br />

em Comunicação) – Departamento de Comunicação Social, Pontifícia<br />

Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.<br />

O’REILLY, Tim. O que é Web 2.0 - Padrões de design e modelos de negócios para<br />

a nova geração de software. Disponível em: <br />

PEREIRA DE SÁ, Simone Maria Andrade; HOLZBACH, Ariane Diniz.<br />

#u2youtube e a performance mediada por computador. Revista Galáxia, São<br />

Paulo, n. 20, p. 146-160, dez. 2010.<br />

REIS, Vanessa. O Caso Lonelygirl15 – Charles Sanders Peirce e a Narrativa no<br />

Ciberespaço. Ciberlegenda, Niterói, n. 21,dez. 2009.<br />

SIBILIA, PAULA. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira: 2008.<br />

THORNTON, Sarah. Club Cultures. Hannover: Wesleyan University Press,<br />

1996.<br />

WILLIAMS, Raymond. Marxism and Literature. New York: Oxford University<br />

Press, 1997.<br />

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