VJ FEV 091.p65 - Visão Judaica
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10<br />
* Ali Kamel é<br />
jornalista, editor<br />
executivo de<br />
Jornalismo da Globo e<br />
colunista de O Globo. É<br />
muçulmano e neste<br />
artigo publicado em O<br />
Globo escreve sobre o<br />
conflito em Gaza.<br />
VISÃO JUDAICA fevereiro de 2009 Shevat / Adar 5769<br />
GAZA<br />
O povo é responsável por suas escolhas<br />
Ali Kamel *<br />
u acredito em eleições. E acredito<br />
que o povo sempre tem a<br />
capacidade de julgar o que considera<br />
bom para si. Isso não<br />
quer dizer que o povo acerte sempre:<br />
não são poucas as vezes em que<br />
a decisão mostra-se errada no futuro.<br />
Não importa, no momento em que comparece<br />
às urnas, certo ou errado, o povo<br />
é responsável por suas escolhas.<br />
Por que essa conversa? Porque<br />
isso não me sai da mente quando vejo,<br />
chocado, os bombardeios em Gaza. Em<br />
2006, houve eleições para escolha do<br />
primeiro-ministro palestino. Era um<br />
contexto em que os EUA clamavam<br />
pela democratização do mundo árabe.<br />
Quando o Hamas saiu-se vitorioso,<br />
muita gente, diante dos lamentos dos<br />
americanos, riu, dizendo algo assim:<br />
"Ora, não queriam democracia? Agora<br />
o povo vota, escolhe o Hamas e os EUA<br />
lamentam? Então democracia só vale<br />
quando ganham os aliados?" Na época,<br />
escrevi que a simples presença do<br />
Hamas nas eleições mostrava que<br />
aquilo não era uma democracia: porque<br />
democracia não é o regime em que<br />
todas as tendências disputam o voto;<br />
democracia é o regime em que todas<br />
as tendências que aceitam a democracia<br />
disputam o voto. Como o Hamas<br />
prega uma teocracia, um sistema político<br />
que o aceita como legítimo aspirante<br />
ao poder não pode ser chamado<br />
de democracia. Seja como for, tendo<br />
sido democráticas ou não, aquelas<br />
eleições expressaram a vontade do<br />
Giora Becher *<br />
Algumas semanas após o cessar-fogo<br />
unilateral declarado por Israel, a verdadeira<br />
face do controle do Hamas sobre Gaza começa<br />
a se revelar. Apesar dos esforços do grupo<br />
em esconder as provas sobre os eventos, as<br />
evidências dos crimes de guerra praticados por<br />
eles, seu exagero sobre o número de vítimas<br />
civis e danos às propriedades, seu abuso da<br />
ajuda humanitária e sua intimidação aos residentes<br />
de Gaza estão finalmente vindo à tona.<br />
Todos lembramos do choque que sentimos<br />
ao ler sobre mais de 40 pessoas mortas, inclusive<br />
crianças, no ataque israelense à escola<br />
das Nações Unidas no campo de refugiados<br />
de Jabalya. Patrick Martin, do jornal canadense<br />
Globe and Mail, descobriu que não<br />
houve nenhum ataque à escola ou suas instalações.<br />
Ele escreve: "A história como gravada<br />
na memória das pessoas não era bem<br />
acurada. Evidências físicas e entrevistas com<br />
várias testemunhas oculares clarificam tudo.<br />
Enquanto algumas pessoas se feriram por estilhaços<br />
que caíram dentro das instalações,<br />
ninguém na escola foi morto."<br />
Rod Nordland (Newsweek) descreveu um<br />
exemplo de abuso de civis pelos Hamas: "De<br />
povo: observadores internacionais<br />
atestaram que o pleito transcorreu<br />
sem fraudes.<br />
E o que pregava o Hamas na campanha<br />
de 2006? Antes, para entender<br />
o linguajar, é importante lembrar que<br />
o Hamas não aceita a existência do<br />
Estado de Israel, chamado de "Entidade<br />
Sionista". Assim, quando se refere<br />
à "Palestina", o Hamas engloba tudo,<br />
inclusive Israel. Destaco aqui três pontos<br />
do programa eleitoral (na disputa,<br />
o grupo deu-se o nome de "Mudança e<br />
Reforma"): "A Palestina é uma terra<br />
árabe e muçulmana"; "O povo palestino<br />
ainda está em processo de libertação<br />
nacional e tem o direito de usar<br />
todos os meios para alcançar esse objetivo,<br />
inclusive a luta armada"; "Entre<br />
outras coisas, nosso programa defende<br />
a 'Resistência' e o reforço de seu<br />
papel para resistir à Ocupação e alcançar<br />
a liberação. A 'Mudança e Reforma'<br />
vai também construir um cidadão<br />
palestino orgulhoso de sua religião,<br />
terra, liberdade e dignidade; e que, por<br />
elas, esteja pronto para o sacrifício."<br />
Deu para entender? O Hamas propôs<br />
um programa segundo o qual não<br />
há lugar para judeus na "Palestina", o<br />
uso da luta armada deve ser reforçado<br />
para se livrar deles, e os cidadãos<br />
comuns devem estar preparados para<br />
se sacrificar (morrer) pela religião,<br />
pela terra, pela liberdade e pela dignidade.<br />
Havia alternativa? Sim, apesar da<br />
ambiguidade eterna, o Fatah do presidente<br />
Mahmoud Abbas (e, antes, de<br />
Yasser Arafat), na mesma eleição, pre-<br />
A verdadeira face do Hamas<br />
repente houve um terrível estrondo. Foi outro<br />
foguete sendo disparado contra Israel. A rampa<br />
de lançamento móvel estava bem no meio<br />
do apartamento de quatro quartos que estava<br />
cheio de pessoas."<br />
Lorenzo Cremonesi (Corriere Della Sera)<br />
relatou o testemunho da palestina Abdallah:<br />
"Praticamente todos os prédios mais altos em<br />
Gaza que foram alvejados pelos ataques israelenses<br />
tinham rampas lançadoras de foguetes<br />
em seus telhados. Eles as colocaram<br />
perto dos grandes depósitos da ONU, que explodiram<br />
em chamas."<br />
Muitos residentes de Gaza culpam o Hamas<br />
pela perda de vidas e propriedades causada<br />
pelo terrorismo de se esconder entre<br />
a população civil. Entretanto criticam o Hamas<br />
em particular, mas poucos o fazem publicamente,<br />
um gesto que seria equivalente<br />
ao suicídio. Um porta-voz do Fatah, movimento<br />
do presidente Abbas, reportou que<br />
desde o final da guerra mais de cem membros<br />
de seu grupo foram assassinados ou<br />
feridos em Gaza. Louise Michel, comissária<br />
da União Europeia, denunciou durante<br />
sua visita a Gaza: "Eu digo isto intencionalmente<br />
daqui, o Hamas é um movimento<br />
* Giora Becher é embaixador de Israel no Brasil. Publicado no jornal O Globo de 5/2/2009.<br />
gava a saída de Israel dos territórios<br />
ocupados em 1967, a criação de um<br />
Estado palestino com sua capital em<br />
Jerusalém e uma solução para os refugiados<br />
de 1948 com base em resoluções<br />
da ONU, uma agenda que só<br />
parece moderada porque é comparada<br />
à do Hamas. Embora estimulasse e<br />
declarasse legítima a resistência à<br />
ocupação, a novos assentamentos judaicos<br />
e à construção do muro de proteção<br />
que Israel ergue entre a Cisjordânia<br />
e seu território, o Fatah declarava<br />
expressamente: "Quando o imortal<br />
presidente Arafat anunciou em<br />
1988 a decisão do Conselho Nacional<br />
Palestino, reunido naquele ano, de<br />
adotar a 'solução histórica', que se baseia<br />
no estabelecimento de um Estado<br />
independente Palestino lado a lado<br />
com Israel, ele estava de fato declarando<br />
que o povo palestino e suas lideranças<br />
tinham adotado a paz como<br />
uma opção estratégica."<br />
E qual foi a decisão dos palestinos?<br />
Num sistema eleitoral que adota<br />
o voto distrital misto, o Hamas ganhou<br />
tanto no voto proporcional quanto nos<br />
distritos, abocanhando 74 dos 132 assentos<br />
do Parlamento. Ou seja, diante<br />
do desgaste de 40 anos do Fatah, e<br />
das denúncias de corrupção que pairavam<br />
sobre o movimento, os palestinos<br />
deixaram a paz de lado e optaram<br />
pela promessa de pureza divina e dos<br />
foguetes do Hamas. Meses depois,<br />
uma luta interna feroz entre os dois<br />
grupos teve lugar e resultou numa divisão<br />
territorial: o Fatah ficou com a<br />
Cisjordânia, onde a situação é de cal-<br />
terrorista e tem de ser denunciado como<br />
tal", e conclui que "neste momento temos<br />
de nos lembrar da grande responsabilidade<br />
do Hamas pelo conflito em Gaza".<br />
As críticas ao Hamas também vêm de dentro<br />
da mídia árabe. O jornalista Abed Rashed,<br />
diretor da TV El Arabiya, faz menção em seu<br />
artigo de uma mulher em Gaza que ousou,<br />
em um programa ao vivo, dizer que estava<br />
disposta a se mudar para a Cisjordânia, viver<br />
sob o governo do presidente Abbas e que provavelmente<br />
seu desejo é compartilhado por<br />
muitos. Ele escreve que não há ninguém perguntando<br />
aos residentes de Gaza se eles concordam<br />
e aceitam as ações do Hamas, apesar<br />
de serem os primeiros a sofrerem as consequências.<br />
Conclui questionando se o grupo,<br />
que já lutou contra a Fatah no passado,<br />
está agora tentando destruir o povo palestino<br />
na Cisjordânia também.<br />
Nossa aspiração foi e sempre será viver<br />
em paz com os palestinos e os nossos<br />
vizinhos árabes. Nós almejamos isso. Continuamos<br />
a acreditar na solução de dois Estados<br />
e a manter nosso comprometimento<br />
às negociações com a Autoridade Palestina<br />
na busca pela paz.<br />
ma, e o Hamas ficou com Gaza, de<br />
onde continuou pregando o programa<br />
aprovado pelos eleitores: enfrentamento<br />
armado, mesmo tendo consciência<br />
do que isso acarretaria.<br />
Diante disso, dá para dizer que os<br />
palestinos de Gaza são inocentes vítimas<br />
do jugo do Hamas e de uma reação<br />
desproporcional dos israelenses?<br />
Olha, eu deploro a guerra, lamento<br />
profundamente a morte de tanta<br />
gente, especialmente de crianças, vítimas<br />
de uma guerra de adultos. Vejo<br />
as bombas, e fico prostrado, temendo<br />
que o bom senso nunca chegue. Mas<br />
isso não me impede de ver que a guerra,<br />
com suas consequências, foi uma<br />
escolha consciente também dos palestinos<br />
de Gaza. Retratá-los como despossuídos<br />
de todo poder de influir em<br />
seus destinos não é mais uma verdade<br />
desde 2006.<br />
Parecerá sempre simplificação<br />
qualquer coisa que se diga num espaço<br />
tão curto, em que é preciso deixar<br />
de lado as raízes desse conflito e a trama<br />
tão complicada que distribuiu culpa<br />
e vítimas por todos os lados. Mas<br />
não consigo terminar este artigo sem<br />
dizer: para que haja paz, os dois lados<br />
têm de ceder em questões tidas como<br />
inegociáveis, o apelo às armas tem de<br />
ser abandonado, o Estado palestino<br />
deve ser criado ao lado de Israel, cujo<br />
direito a existir não deve ser questionado.<br />
Se isso acontecer, muitos árabes<br />
e israelenses daquela região não<br />
se amarão, terão antipatias mútuas,<br />
mas viverão lado a lado.<br />
Utopia?