15.04.2013 Views

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

V<br />

Foi para esse ninho <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>sta felicida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> paz nunca perturbada, que Francisco levou consigo o trêfego<br />

Lourenço, infeliz fruto <strong>de</strong> união reprovada, precozmente apodrecido nas dissoluções da povoação, pobre <strong>de</strong><br />

instrução, rica porém <strong>de</strong> misérias e maus exemplos.<br />

Relatar aqui miudamente as malda<strong>de</strong>s, os atentados cometidos pelo menino, entregue, até bem pouco tempo<br />

atrás, á torpe licença; rememorar os esforços usados para o reprimir e corrigir, por Francisco e Marcelina, que<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia <strong>de</strong> sua chegada não lhe faltaram com bons conselhos e as mais saudáveis lições <strong>de</strong> moral, fora<br />

longo e fastidioso encargo.<br />

Imagine uma criatura humana com entranhas <strong>de</strong> tigre; na mão o pau ou a faca prestes para ofen<strong>de</strong>r ou ferir a<br />

quem estava perto, a pedra para atirar contra quem estava longe; sempre a saltar e a correr pelo caminho, a<br />

trepar nas arvores novas, primeiro que nas arvores idosas por serem mais fáceis <strong>de</strong> quebrar-se com o peso do<br />

corpo as primeiras do que as ultimas; imagine um ente essencialmente malévolo que cortava, por gosto <strong>de</strong><br />

fazer mal, os gerumusinhos ainda na erva, arrancava as batatas ver<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>spedaçava os maturis, queimava as<br />

cercas, quebrava as pernas ás aves domesticas que se achavam a seu alcance quando ele entrava em seu furor;<br />

enfim imagine o espirito mais diabólico, o coração mais duro, a constituição mais forte aos doze anos <strong>de</strong><br />

ida<strong>de</strong>, que tereis, não o retrato tirado pelo natural, mas apenas a miniatura <strong>de</strong> Lourenço quando chegou ao<br />

Cajueiro.<br />

Ao cabo <strong>de</strong> um ano a luta continuada <strong>de</strong> dois sexos, dois gênios, duas ida<strong>de</strong>s diferentes, representadas por<br />

Marcelina e Lourenço, tinha trazido notável alteração ao natural e aos costumes <strong>de</strong> ambos. Marcelina estava<br />

cansada <strong>de</strong> lutar; as faces se lhe alquebraram; com pouco se irritava. Por felicida<strong>de</strong>, porém, Lourenço dava<br />

mostras <strong>de</strong> achar-se menos duro, manos indiferente aos castos sentimentos, menos insensível aos afetos<br />

plácidos do lar, menos forte para fazer mal, e já propenso ao trabalho e á pratica do bem.<br />

Luta insana e titânica fora essa, mas tão gloriosa para a parte vencedora, como proveitosa para a vencida.<br />

A mãe mais amorosa, paciente e discreta teria que invejar àquela mulher ignorante e rústica o esforço que, em<br />

sua benevolência, empregava em domesticar o animo da fera metido no coração da criatura humana, que ela<br />

adotará por filho.<br />

Aquela mulher era digna do estudo das mães <strong>de</strong> família, e <strong>de</strong> ser por elas imitada. Era o mo<strong>de</strong>lo vivo da mãe<br />

pobre, boa e virtuosa.<br />

- É meu filho, dizia Marcelina consigo mesma. Porque não hei <strong>de</strong> ter para ele amor e brandura? Que tem que<br />

me dê muito que fazer encaminha-lo para o bem? Muito custa a gente acertar com o bom caminho; mas<br />

querendo-se ir por ele, ou tendo-se quem sirva <strong>de</strong> guia para ai, chega-se ao fim sempre. Hei <strong>de</strong> amolecer a<br />

natureza <strong>de</strong> pedra <strong>de</strong>ste menino; hei <strong>de</strong> o fazer bom, ainda que eu fique má e dura <strong>de</strong> coração contra minha<br />

vonta<strong>de</strong>.<br />

Quem souber que o maior <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Marcelina era Ter um filho, facilmente compreen<strong>de</strong>rá os impossíveis que<br />

ela vencia para fazer Lourenço digno dos seus afetos grandiosos.<br />

As palavras que, no momento <strong>de</strong> chegar com Lourenço da povoação, Francisco dissera á sua mulher,<br />

apresentando-lho, <strong>de</strong>ram logo a esta a conhecer a gran<strong>de</strong> obra em que tinha <strong>de</strong> empenhar suas gigantescas<br />

forças.<br />

- Não pedias todo santo dia um filho a Deus? Pois aqui tens um que ele te enviou e está já em condições <strong>de</strong> te<br />

fazer companhia e ajudar, quando eu não estiver na terra. Achei-o rasgado, sujo, <strong>de</strong>samparado, obrando ações<br />

feias, <strong>de</strong> todos <strong>de</strong>sprezado e odiado. Lembrou-me o teu <strong>de</strong>sejo, compa<strong>de</strong>ci-me da criança <strong>de</strong>sviada do bom<br />

caminho, tomei-a para nós, e aqui t’a entrego. Se apren<strong>de</strong>r a trabalhar, a ajuntar, e a fazer bem, <strong>de</strong> muito nos<br />

po<strong>de</strong>rá servir, porque é forte como uma onça.<br />

Lourenço estava hediondo. Os cabelos tinha-os imundos e crescidos, as unhas terrosas, os pés cortados das<br />

pedras e dos vidros dos quintais e esterquilínios por on<strong>de</strong> <strong>de</strong> noite andava em busca do alheio.<br />

Sobre o corpo, que sendo <strong>de</strong> cor branca, se apresentava enegrecido do pó e das imundices em que se espojava,<br />

como cão, e sobre as quais dormia como porco, trazia, não roupa, mas pútridos e repugnantes andrajos.<br />

- On<strong>de</strong> achou você este menino? perguntou-lhe Marcelina, não sem espanto do que via e não esperava.<br />

- Achei-o por ai além; não precisa saber on<strong>de</strong>. Toma-o á tua conta, limpa-o, trata <strong>de</strong>le.<br />

Não tem pai nem mãe? Po<strong>de</strong>remos te-lo por nosso, sem risco <strong>de</strong> o per<strong>de</strong>rmos ou <strong>de</strong> que alguém o venha tirar<br />

<strong>de</strong> nosso po<strong>de</strong>r quando já estiver não como bicho, mas como gente?<br />

- Não tenhas receio <strong>de</strong> que haja quem o queira, Marcelina. Todo o Pasmado entregou-mo para ficar aliviado e<br />

livre <strong>de</strong>le. Tu não sabes <strong>de</strong> quanto é capaz este menino endiabrado que nos está ouvindo sem dizer uma<br />

palavra sequer, passado <strong>de</strong> raiva e em termos <strong>de</strong> arrebentar. Enfim, para encurtar a historia, basta que eu te<br />

diga que pelo que me fez em tão curta jornada, tive muitos ímpetos <strong>de</strong> o ir <strong>de</strong>ixar outra vez no lugar on<strong>de</strong> o

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!