O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
<strong>de</strong>scobriu ao longe um vulto acocorado á beira <strong>de</strong> uma das covas que apareciam no vasto tabuleiro <strong>de</strong> areia.<br />
Encaminhou-se para ai, saboreando com antecipada sofreguidão o prazer da projetada vingança.<br />
VIII<br />
O vulto era o moleque, já então quase negro feito, que lhe tinha posto os cachorros em cima àquela fatal noite.<br />
Lourenço reconheceu-o logo: nem foi preciso para isto esforço, visto que uma vez por outra o estava vendo,<br />
ora entrar, ora sair do sitio.<br />
- Que está você fazendo ai? perguntou ele, com voz <strong>de</strong> senhor arrogante e provocadora.<br />
Benedicto voltou-se espantado, e por única resposta, vendo quem a ele se dirigia, proferiu estas palavras:<br />
- Que quer saber? É da sua conta?<br />
E com gestos e meneios <strong>de</strong> quem fazia pouco caso do visitante, <strong>de</strong>ixou-se ficar na mesma posição em que se<br />
achava, a saber, <strong>de</strong> cócoras á beira da cova, e <strong>de</strong> costas voltadas para o seu interlocutor.<br />
Veja lá como fala - retorquiu Lourenço, aproximando-se. Não foi você quem me botou aqui há tempos os<br />
cachorros em cima como se eu fosse alguma raposa au maracajá? Foi você mesmo, que nunca mais sua cara<br />
me saiu da lembrança.<br />
- Fui eu mesmo - respon<strong>de</strong>u Benedicto. E que tem que fosse? É você meu senhor, ou meu pai para vir falarme<br />
assim? Ora vá fazer seus balaios e suas gaiolas, e <strong>de</strong>ixe-me sossegado, que eu não faço conta <strong>de</strong> você.<br />
- Este negro está enganado comigo, retorquiu Lourenço, como se dirigisse a terceiro. Então você acha que eu<br />
havia <strong>de</strong> esquecer aquele <strong>de</strong>saforo? Eu não sou <strong>de</strong> Goiana, sou do Pasmado; e se faço gaiolas e cestos, é para<br />
não fazer facas <strong>de</strong> ponta. Agora, quanto a dizeres, negro, que não me levas em conta, isto é coisa que é mais<br />
fácil <strong>de</strong> dizer do que mostrar.<br />
A esse tempo Lourenço achava-se já pertinho <strong>de</strong> Benedicto, e este estava <strong>de</strong> pé. As vistas <strong>de</strong> um cruzavam-se<br />
com as do outro como floretes manejados por dois inimigos, peritos no jogo, e curtidos no rancor.<br />
De repente o olhar <strong>de</strong> Benedicto se perturba, e ele, <strong>de</strong> negro, que era, faz-se fulo. Pali<strong>de</strong>z mortal cobriu-lhe a<br />
face, há pouco retinta como carvão. Tinha <strong>de</strong>scoberto o facão, que Lourenço trazia e em cuja larga folha se<br />
refletia a clarida<strong>de</strong> do dia.<br />
Lourenço aproximou-se mais do seu antagonista.<br />
- Se és homem, disse ele, em atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem estava mete não mete o facão no rapaz - repete as palavras que<br />
há pouco disseste.<br />
- Você então quer brigar comigo <strong>de</strong>verás? Ora <strong>de</strong>ixe-se disso. O que passou está passado.<br />
O que passou comigo não está passado, não, negro mofino e sem vergonha. Eu só sinto não encontrar também<br />
aqui os outros dois tições - teu pai e tua mãe - para dar a vocês todos um ensino <strong>de</strong> mestre com a folha <strong>de</strong>ste<br />
facão. Mas não há <strong>de</strong> faltar ocasião.<br />
Benedicto, que não era bom, encarou novamente com Lourenço, como quem sentia voltar-lhe o animo que<br />
fugira um momento. Tinha-lhe lembrado um recurso, que ele passou imediatamente a pôr em pratica.<br />
- Você diz tudo isto porque tem ai um facão na mão; se não fosse ele, não tinha barbas para o dizer. Mas ainda<br />
estando com esse ferro e não tendo eu arma nenhuma, não faço conta <strong>de</strong> você, quanto mais meu pai e minha<br />
mãe. E para que fique sabendo, <strong>de</strong> uma vez por todas, que eu não me lembro <strong>de</strong> suas valentias, vou dizer-lhe<br />
uma coisa: se tiver o atrevimento <strong>de</strong> passar outra vez <strong>de</strong> noite por junto do poleiro, tenha certeza <strong>de</strong> que lhe<br />
hei <strong>de</strong> pôr os cachorros, como fiz da outra vez.<br />
Ainda bem não tinha Benedicto finalizado esta inocente ameaça, quando Lourenço atirava para longe o facão.<br />
- Para te quebrar os beiços, negro, eu não preciso <strong>de</strong> arma.<br />
Era o que Benedicto queria; seu adversário estava <strong>de</strong>sarmado. Então investiu contra ele como fera.<br />
Aparentemente, Benedicto representava ser mais forte do que Lourenço. As ceroulas azuis arregaçadas até aos<br />
joelhos, <strong>de</strong>ixavam á mostra pernas musculosas, que acusavam gran<strong>de</strong> força física. O negro mesmo tinha<br />
consciência <strong>de</strong> sua robustez; do seu tope nenhum morador <strong>de</strong> quatro léguas em redondo lhe era superior. Por<br />
isso, tendo lá para se que podia com Lourenço, atirou-se sobre ele no pressuposto <strong>de</strong> o <strong>de</strong>rrubar e pôr <strong>de</strong>baixo<br />
dos pés logo ao primeiro ímpeto.<br />
Nunca porém uma falsa crença teve mais pronta e estrondosa <strong>de</strong>silusão. Agarrar-se com Lourenço foi o<br />
mesmo que se agarrar com um touro bravo. Mal sabia ele que, além da imensa força física, <strong>de</strong> que nunca<br />
supôs possuidor, tinha Lourenço meneios, jeitos e passos que o habilitavam a dar em terra com o mais<br />
corpulento animal. Em um instante o trêfego rapaz atirou o negro, não sobre a areia, mas <strong>de</strong>ntro da cova<br />
próxima, on<strong>de</strong> havia um abismo <strong>de</strong> fogo, parte ainda em chamas, parte já em carvões, mas ainda vivos e