15.04.2013 Views

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

objeto <strong>de</strong>las. Este objeto era Saturnino, o qual, posto não sentisse por ela gran<strong>de</strong> inclinação, antes se<br />

inclinasse mais para Marianinha, se sentia inevitavelmente arrastrado pela gentileza franca, pelos requebros<br />

feiticeiros, pelos ditos engraçados, e especialmente pelos agrados da rapariga.<br />

Sempre que Saturnino pensava em sua condição obscura - a condição do cargueiro, do almocreve sem eira<br />

nem beira - não podia ser indiferente aos afetos <strong>de</strong> sua prima, a qual, quando por outra coisa não fosse, tinha o<br />

direito <strong>de</strong> aspirar, por seus belos olhos, a um casamento mais vantajoso. Bernardina porém não encaminhava<br />

seus pensamentos para o terreno árido e escabroso das condições sociais. Tinha amor a seu primo, e este amor<br />

apagava, no conceito <strong>de</strong>la, as diferenças pessoais e nivelava a sua condição e a <strong>de</strong> seu primo. O certo é que o<br />

alho que ela plantara ao pé do <strong>de</strong> sua irmã, amanheceu com o caule <strong>de</strong> fora e como pendoado; o nome que<br />

ouviu publicar no momento <strong>de</strong> se acen<strong>de</strong>r a fogueira, principiava pela letra inicial do <strong>de</strong> Saturnino. E para<br />

coroar as suas esperanças, achou o grão <strong>de</strong> arroz que ela meteu em um dos três pedaços em que dividira o<br />

bocado <strong>de</strong> feijão por ocasião do jantar, não no que tinha escondido na soleira da porta do fundo não no do<br />

meio, mas no da frente. Não havia pois que duvidar. S. João dizia que ela se casaria, não dai a três ou a dois<br />

anos, mas no próprio ano presente.<br />

Seriam oito horas quando Joaquina começou a distribuir pelos hospe<strong>de</strong>s, em tigelinhas <strong>de</strong> barro, a canjica<br />

saborosa.<br />

Marianinha, esquecida do que lhe acontecera por ocasião <strong>de</strong> oferecer a Lourenço a cajuada, adiantou-se para o<br />

servir, corada e tremula. Deste vez não houve formal recusa como da outra: Lourenço recebeu a tigela e<br />

esvaziou-a em poucos instantes; mas, levantando-se imediatamente, pegou do chapéu, e encaminhando-se<br />

para a porta, disse:<br />

Vou-me embora, minha gente. A festa está muito boa, mas vem muita chuva, e eu tenho ainda <strong>de</strong> levar minha<br />

mãe do engenho para o Cajueiro. Entrei para me recolher da neblina, e ia-me esquecendo da minha obrigação.<br />

Ó xentes! Disseram do lado umas rapariguinhas das vizinhanças que tinham chegado minutos antes. Já vai tão<br />

cedo?<br />

Que é isso, Lourenço? Perguntou Victorino colando-se em frente do rapaz, como quem queria embargar-lhe o<br />

passo. Estás gracejando, ou falas sério?<br />

- Falo sério, seu Victorino. Vou-me embora.<br />

- Ora, <strong>de</strong>ixa-te disso. Hoje é noite <strong>de</strong> S. João.<br />

- Por isso mesmo. Minha mãe está esperando por mim, e não é bonito que eu me <strong>de</strong>ixe ficar aqui a divertir-me<br />

quando ela está com os olhos no caminho para me ver chegar. E Francisco ainda não voltou da viagem a<br />

cida<strong>de</strong>?<br />

Até eu sair para a vila, ela não tinha chegado. Mas prometeu que havia <strong>de</strong> vir comer conosco milho assado<br />

hoje <strong>de</strong> noite.<br />

Pois então, se tens esta certeza, para que semelhante pressa? Assim que ele chegar, virá logo até cá.<br />

- Ele não sabe que eu estou aqui.<br />

- A comadre lhe há <strong>de</strong> dizer logo, e ele há <strong>de</strong> vir. Fica, rapaz. Precisamos <strong>de</strong> ti para cantares.<br />

- Não posso, seu Victorino.<br />

As filhas do almocreve, compreen<strong>de</strong>ndo o perigo em que se achavam, <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r tão boa perna para a<br />

folgança, como era Lourenço, espontaneamente uniram seus pedidos ao do pai.<br />

- Fique, Lourenço, fique, disse Bernardina.<br />

- Deixe-se <strong>de</strong> escusas, acrescentou Marianinha timidamente.<br />

Estas e outras instancias e intervenções <strong>de</strong>terminaram afinal o rapaz a mudar <strong>de</strong> resolução, e a satisfazer aos<br />

rogos gerais.<br />

Tratou-se então <strong>de</strong> principiar logo o samba. Esta provi<strong>de</strong>ncia era aconselhadas pelo interesse comum. Era o<br />

meio <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r os hospe<strong>de</strong>s a casa. Além disso não faltava nada para começar a dança. Uma das primeiras<br />

violas do lugar - o Chico Pedro; uma das primeiras vozes - Lourenço; os melhores dançadores - Nicolau e<br />

Roberto, estavam todos ali. Não faltava aguar<strong>de</strong>nte, nem milho ver<strong>de</strong>, nem bolos. As raparigas mostravam-se<br />

bem dispostas, e algumas até impacientes por verem formar-se a roda. A fogueira dava estalidos festivos. O<br />

tempo prometia limpar. O concurso dos convidados engrossava cada vez mais. Enfim, em menos <strong>de</strong> um<br />

quarto <strong>de</strong> hora, bateu o pinho, e rompeu o samba <strong>de</strong> gosto.<br />

Lourenço, tendo tomado uma pouca da cana, temperou a guela e soltou sua gran<strong>de</strong> voz ao pé do violeiro,<br />

enquanto Bernardina, Mariquinha, as filhas da Bernarda, os sobrinhos do velho Cosme, o Manoel João, o<br />

Jacinto da Luzia e muitos outros caiam na roda por sua vez, tripudiando, fazendo recortes e negaças com o<br />

corpo, atirando embigadas na forma do imemorial estilo.<br />

O canto <strong>de</strong> Lourenço era monótono como o dos sambistas em geral, mas a letra variava e tinha as graças<br />

naturais das composições do povo.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!