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O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

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senti-me <strong>de</strong> repente assaltado <strong>de</strong> treme<strong>de</strong>iras tão fortes que não sei como não vim do cavalo em terra; estava<br />

pesteado. Felizmente, alguns passos adiante, havia uma casa na beira do caminho, e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la vi lume<br />

aceso. Pedi agasalho, o qual não se fez esperar. As moradoras, que me conheciam <strong>de</strong> ver-me passar todo dia<br />

pela porta, acolheram-me com as maiores atenções. Era uma mãe com sua filha, ambas viuvas. Não só<br />

durante o período agudo da enfermida<strong>de</strong>, mas durante a convalescença, que foi longa, nunca resfriou o zelo<br />

<strong>de</strong>las. A filha era nova e mui gentil. Enfim, Marcelina, quando voltei um mês <strong>de</strong>pois à minha casa, levava<br />

comigo dois inimigos cruéis, uma paixão e um remorso. O primeiro <strong>de</strong>stes inimigos pu<strong>de</strong> vencer, pretextando<br />

cansaço e fraqueza, e voltando ao convento; o segundo porém nunca mais saiu <strong>de</strong> minha consciência; há <strong>de</strong><br />

baixar comigo à sepultura. Só Deus sabe, Marcelina, se esse crime não chamou sobre minh’alma a<br />

con<strong>de</strong>nação eterna.<br />

- Deus tem sempre o perdão para os bons.<br />

E eu fui bom? Fui pusilânime e réprobo. Tempos <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> minha cela, recebi uma carta. Aquela que<br />

me fizera cair e que eu arrastara em minha queda, tinha sido mãe e pedia-me que olhasse por ela e pelo filho.<br />

A velha tinha falecido, <strong>de</strong>ixando a filha só no mundo, com o testemunho vivo do meu crime. Nos primeiros<br />

tempos olhei <strong>de</strong> longe pela infeliz e pelo fruto do nosso amor fatal; mas sabendo <strong>de</strong>pois que ela se havia<br />

<strong>de</strong>smandado em sua vida, faltou-me generosida<strong>de</strong> para continuar-lhe os meus auxílios. Todavia, eu não perdia<br />

<strong>de</strong> vista esses entes com os quais o <strong>de</strong>stino me pren<strong>de</strong>ra por inquebrantáveis ca<strong>de</strong>ias. Quando ela se mudava<br />

<strong>de</strong> uma terra para outra, como muitas vezes aconteceu, eu achava sempre no novo lugar pessoa <strong>de</strong> minha<br />

confiança a quem recomendar a criança que, ren<strong>de</strong>ndo a homenagem <strong>de</strong>vida à <strong>de</strong>cência, eu dizia ser ligada<br />

comigo por parentesco remoto. Essa pessoa era o vigário ou outro qualquer sacerdote. Um dia recebo uma<br />

carta em que o vigário da freguesia, on<strong>de</strong> a mulher e o menino estavam ultimamente residindo, me informava<br />

da morte da mãe e do abandono do filho. A carta fora retardada, <strong>de</strong> sorte que quando me chegou às mãos,<br />

mais <strong>de</strong> um ano tinha <strong>de</strong>corrido <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua data. Sendo-me então mais fácil tomar o menino à minha conta,<br />

não só pelo falecimento daquela que a ele tinha melhor direito do que eu, mas pela minha secularização, corro<br />

ao ponto em que o <strong>de</strong>via encontrar, impaciente por ver e conhecer aquele que na forma <strong>de</strong> espinho eu trazia<br />

incessantemente na consciência. Oh que amargas <strong>de</strong>silusões não foram as minhas, quando aí cheguei! O<br />

menino tinha no lugar as mais tristes tradições que se po<strong>de</strong>m imaginar, e, para cúmulo do meu <strong>de</strong>sgosto, mão<br />

<strong>de</strong>sconhecida o tirará violentamente, posto que com satisfação <strong>de</strong> todos os moradores.<br />

- Meu Deus! Que está dizendo, seu padre? inquiriu Marcelina, abalada e confusa <strong>de</strong>stas noticias, que caiam<br />

em seu espirito na forma <strong>de</strong> raios <strong>de</strong> luz.<br />

- Tu sabes o resto, Marcelina.<br />

- Eu, eu?<br />

- Sim. Não te lembras do que fiz quando, <strong>de</strong> volta do engenho, entrei em tua casa?<br />

- Já me não lembro, seu padre.<br />

- Pois lembro-me eu. chamei Lourenço para junto <strong>de</strong> mim, meti-o entre as minhas pernas e abracei-o . Ah! era<br />

a primeira vez que eu via meu filho. Seu filho! Pois Lourenço é seu filho, seu padre! exclamou a cabocla,<br />

fazendo gestos e meneios, que acusavam intenso e súbito prazer. Oh! meu Deus, como eu sou feliz!<br />

As lagrimas saltavam dos olhos <strong>de</strong>la, mas não eram <strong>de</strong>sacompanhadas; o padre também chorava.<br />

- Feliz foi Lourenço, feliz fui eu, disse ele. se não foras tu, alma privilegiada, mãe perfeita, honra das<br />

mulheres, brilho do lar, se não foras tu, o que seria <strong>de</strong>sse menino que vivia como animal imundo na povoação<br />

con<strong>de</strong>nada? Mas... estou ouvindo o rumor <strong>de</strong> passos. É talvez Lourenço que se aproxima. Mu<strong>de</strong>mos <strong>de</strong><br />

assunto. Não te esqueças, Marcelina, do que me prometeste. Não reveles a ninguém a minha fealda<strong>de</strong> moral.<br />

Ninguém saberá o que vosmecê acaba <strong>de</strong> contar, menos Francisco. Francisco? Tens razão. A Francisco,<br />

primeiro instrumento da Provi<strong>de</strong>ncia para a mudança radical do <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Lourenço, po<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>ves referir<br />

toda esta historia. Agora uma ultima palavra. Retiro-me <strong>de</strong>ste lugar sem saber para on<strong>de</strong> vou. Se eu vier a<br />

morrer antes <strong>de</strong> terminada esta guerra, que me aparta <strong>de</strong> vocês contra a minha vonta<strong>de</strong>, logo que tiveres<br />

noticia, faze Lourenço senhor do seu próprio segredo e entrega-lhe este papel, que ele <strong>de</strong>ve apresentar às<br />

justiças. Não é meu testamento, é a doação que lhe faço, <strong>de</strong> meu sitio e <strong>de</strong> todas as terras que me pertencem.<br />

- O padre Antonio entregou a Marcelina o papel a que se referira. Era tempo. Lourenço entrava para dizer que<br />

seus serviços já não eram necessários no sitio.<br />

- - Por <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro, quero dar-te um conselho, Marcelina, disse o padre levantando-se. Ao que parece, está<br />

projetado um ataque ao engenho. Devem passar por aqui os assaltantes, e natural é que tentem algum <strong>de</strong>sacato<br />

a vocês, por se vingarem das relações que Francisco mantém com o sargento-mór. Por isso pru<strong>de</strong>nte me<br />

parece que não pernoitem aqui por estes tempos. No engenho, on<strong>de</strong> há mais força, <strong>de</strong>ve haver mais segurança.<br />

Seu padre tem razão, respon<strong>de</strong>u Marcelina.<br />

- Mas no engenho é que eles têm se<strong>de</strong>, observou Lourenço.

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