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O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

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mandamos?<br />

- Por força, respon<strong>de</strong>u Bartolomeu com segurança.<br />

- É um herói, disse Coelho.<br />

- Não foi sem perigo que cheguei ao meu <strong>de</strong>stino. Da ilha tentaram cortar-me a marcha da embarcação. Mas<br />

eu fiz-me no largo com tão boa hora, que ainda me procuram supondo-me fora da barra, quando eu já fui e já<br />

aqui estou. E que novas nos trazes? Boas ou más? Interrogou Coelho.<br />

- As novas mais importantes <strong>de</strong>vem vir nestas cartas - disse o barcaceiro, entregando ao negociante um<br />

alentado maço <strong>de</strong> papel.<br />

Coelho rasgou com violência o envoltório que reunia em um só volume a sua correspondência, e pôs a<br />

<strong>de</strong>vorá-la.<br />

Entretanto Jeronimo Paes não cessava as indagações sobre o estado do Recife e dos seus habitantes sitiados.<br />

- O que eu sei dizer é que a fome <strong>de</strong>ntro da vila é <strong>de</strong> meter horror, - disse o barcaceiro. Dá-se um vintém por<br />

uma espiga <strong>de</strong> milho e não se encontra. Não há carne <strong>de</strong> espécie nenhuma. De farinha não havia nem um<br />

caroço antes <strong>de</strong> eu lá chegar. Um papagaio já serviu <strong>de</strong> galinha para caldo <strong>de</strong> um doente. O forte da população<br />

é o marisco-pedra, tirado nas coroas quando a vazante as <strong>de</strong>scobre. Mas vosmecê não sabe que perigo corre o<br />

que lá os vai apanhar. Mais <strong>de</strong> cinquenta negras marisca<strong>de</strong>iras tem caído no po<strong>de</strong>r dos pés-rapados que fazem<br />

o cerco da vila. Muito pescador <strong>de</strong> marisco tem morrido <strong>de</strong> tiro.<br />

- E porque não rompem o cerco? Para que servem os que estão <strong>de</strong>ntro? On<strong>de</strong> está o animo <strong>de</strong>ssa gente? Que<br />

faz Mota? Oh que gente! Que gente!<br />

A coisa não é tão fácil como parece. Seu governador João da Mota tem metido a cabeça muitas vezes para<br />

romper o cerco; mas os pés-rapados são muitos; têm toda a vila ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> corpos <strong>de</strong> guarda. Dormem ainda<br />

menos do que tetéu. Estão sempre alerta.<br />

- E que tem feito d. Francisco e o Camarão? Acham cedo ainda para avançar contra os sitiantes?<br />

Ainda não pu<strong>de</strong>ram ser bons em nada. Os pés-rapados cada dia fazem uma das suas pelos caminhos e<br />

engenhos on<strong>de</strong> vão topando gente contraria. Se o cerco durar mais um mês, a vila entrega-se; porque à fome<br />

ninguém resiste. Fome tem cara <strong>de</strong> herege patrão.<br />

Não há <strong>de</strong> ser assim - disse Coelho, atirando sobre a mesa junto à qual estava sentado, as cartas que acabava<br />

<strong>de</strong> ler - não há <strong>de</strong> ser assim. Em poucos dias nós os <strong>de</strong> Goiana havemos <strong>de</strong> romper o assedio e levantar nas<br />

ruas do Recife, livres <strong>de</strong> qualquer embaraço a autorida<strong>de</strong> real, agora vilmente abatida pelos rebel<strong>de</strong>s, já que os<br />

<strong>de</strong> lá não dão acordo <strong>de</strong> si. Aí ten<strong>de</strong>s, Sr. Paes o que me escrevem Mota, Correia Gomes e Simão Ribeiro,<br />

acrescentou dirigindo-se a Jeronimo Paes. Le<strong>de</strong>. Quando acabar<strong>de</strong>s, mandai levar ao provincial esta carta do<br />

padre João da Costa.<br />

E voltando-se para o barcaceiro, perguntou-lhe como por encher o tempo:<br />

- Que mais, Bartolomeu?<br />

Na botica do Rogoberto estava muito povo reunido agora mesmo. Dizia um que seu João da Cunha tem a<br />

fabrica e os moradores na vila para em caso <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> saírem armados contra os mascates. Dizia outro<br />

que Antonio Coelho e seu Jeronimo Paes não têm armas nem dinheiro para dar ao povo que os quiser<br />

acompanhar ao Recife.<br />

- Qual foi o infame pé-rapado que aventurou semelhante aleivosia?<br />

- Quem estava dizendo isto era o Ricardo.<br />

- Ajustaremos já estas contas, disse Paes. Irei à botica para o <strong>de</strong>smentir, falarei ao povo. Isso não se atura. Hão<br />

<strong>de</strong> ver para quanto presto.<br />

- Sim, sim, meu amigo. É da maior conveniência opor à mentira o <strong>de</strong>smentido. Ireis à botica sem falta, não é<br />

assim, Sr. Paes?<br />

- Irei. Porque não? Irei já, agora mesmo - disse o marchante, levantando-se para sair.<br />

- Antes <strong>de</strong> ir<strong>de</strong>s, quero lembrar-vos uma provi<strong>de</strong>ncia. Bem sabeis, Sr. Paes, que sem dinheiro não se fundam<br />

reinos. Vin<strong>de</strong> comigo até cá <strong>de</strong>ntro. Acompanha-nos, Bartolomeu. Quero que vejas com teus próprios olhos as<br />

coisas quais são, a fim que possas com segurança saber quanto são infames os que nos irrogam faltas e<br />

fraquezas que não temos.<br />

- O pavimento inferior era repartido em duas meta<strong>de</strong>s. Para a da frente, na qual estava a loja com todas as suas<br />

<strong>de</strong>pendências, entrava-se pelo lado da rua; para a outra <strong>de</strong>scia-se por uma escada que comunicava com o<br />

primeiro andar por <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um gabinete secreto. Coelho, Paz e Bartolomeu atravessaram esse gabinete,<br />

<strong>de</strong>sceram a escada e chegaram ao pavimento, que se esclareceu à luz <strong>de</strong> um candieirinho <strong>de</strong> prata <strong>de</strong> que se<br />

munira Coelho quando teve <strong>de</strong> <strong>de</strong>scer. O vão ocupava uma quinta parte do prédio. Não tinha portas nem<br />

janelas, nem sequer frestas. Era um como túmulo, sem nenhuma outra comunicação com o ar e o mundo, a<br />

não ser a que se prendia à escada. Espalhados pelo chão viam-se alguns caixões <strong>de</strong> pinho, e encostados a um

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