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Capítulo 1 - MagicJebb

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Fabian Balbinot<br />

Doença e Cura


© by Fabian Balbinot<br />

Direitos autorais reservados<br />

Revisão: Lena Nascimento de Moraes<br />

Editoração eletrônica: Rafael Porto<br />

Capa: Ulisses Lima<br />

Arquivo digitado e corrigido pelo autor, com revisão final do mesmo,<br />

autorizando a impressão da obra<br />

Editor: Rossyr Berny<br />

Contato com o autor:<br />

E-mail: fabian@livrariadoinfinito.com.br<br />

Para conhecer mais autores da Alcance acesse:<br />

www.youtube.com e procure por Editora Alcance<br />

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />

B172d Balbinot, Fabian.<br />

Doença e Cura / Fabian Balbinot.<br />

Porto Alegre : Alcance, 2010.<br />

256p.<br />

1. Literatura brasileira. 2. Romance de terror. I. Título.<br />

Bibliotecária: Simone da Rocha Bittencourt – 10/1171<br />

ISBN: 978-85-7592-202-6<br />

CDU: 869.0(81)-312.4<br />

CDD: 869.937<br />

Editora Alcance – Rua Bororó, 5 – CEP 91.900-540 – Vila Assunção<br />

Porto Alegre/RS – Fone/Fax: (51) 3307 0221 / 3307 0233<br />

www.editoraalcance.com.br – atendimentoalcance@gmail.com<br />

Contatos MSN: editoraalcance@hotmail.com – Skype: editora.alcance


Agradeço à amiga Marypop pela<br />

renovação de minhas energias literárias e<br />

a “deus” pelo financiamento – sem vocês,<br />

este livro ainda estaria na gaveta.<br />

Dedicado a M. P., aos leitores e<br />

escritores de terror e suspense, e a todas<br />

as outras forças que me permitiram<br />

transformar uma simples ideia em infinitos<br />

horrores e conspirações.


Fabian Balbinot<br />

<strong>Capítulo</strong> 1<br />

– Você fica aqui... até eu voltar – disse o demônio, rindo, lançando<br />

um último e perverso olhar para seu apavorado hóspede antes de fechar a<br />

porta e sumir.<br />

O homem que agora estava trancafiado tinha ares de adolescência<br />

marcados nos traços leves de seu rosto. O cabelo escuro e comprido caía<br />

em seus ombros, misturando-se com os fios bem mais claros das grossas<br />

cordas que apertavam seus braços junto à cadeira onde havia sido amarrado.<br />

Uma mordaça ainda mais apertada tapava sua boca e suas narinas, fazendo-o<br />

sentir continuamente o gosto seco do tecido absorvente.<br />

Não que necessitasse respirar...<br />

Ele estava preso, atado a pés e mãos àquela cadeira grossa e pesada<br />

de madeira. Cabeça baixa, sentia-se humilhado tanto quanto amedrontado.<br />

Sabia não ser pessoa das mais fáceis de se lidar... Sabia não se tratar de uma<br />

pessoa comum, como as outras. Uma pessoa normal.<br />

Não, de normal ele não tinha nada. Conhecia poderes e possuía<br />

capacidades capazes de pôr à prova os nervos do mais corajoso dos mortais.<br />

Capacidades sobrenaturais, por assim dizer. No entanto, suas fantásticas<br />

habilidades de nada valiam, e ele estava ali, atado, imprestável, com os<br />

nervos esfarrapados, a cabeça girando em devaneios improdutivos.<br />

Lembrava das palavras que o recém saído havia dito.<br />

“Sou como vocês”, dissera. “Preciso me alimentar... preciso de<br />

sangue... de um tipo especial de sangue.”<br />

O homem, o demônio, ele vestia trajes antiquados. Uma espécie de<br />

capa preta, algo que lembrava uma cartola em sua cabeça, tudo cheirando<br />

a mofo. Partes visíveis do tecido estavam rasgadas ou descosidas, e a<br />

roupa daquele ente, de tão desbotada e manchada parecera-lhe não só estar<br />

representando um dos trajes típicos do início do século como também ter<br />

sido trazido com exclusividade de tal época.<br />

Um triste ornamento, bastante adequado às características de quem<br />

o vestia, pois o demônio mais parecia ter sido materializado a partir de um<br />

pesadelo: suas carnes davam a impressão de estarem prestes a se descolar em<br />

torno dos ossos, tamanha a flacidez que aí se via. Pele não existia, a não ser uns<br />

restos de cartilagens escuras e mortas, penduradas aqui e ali em mãos de dedos<br />

que eram tão finos quanto possantes. Dedos que o tinham agarrado e imobilizado<br />

sem nenhuma dificuldade, momentos após ter se dado o encontro fatal.<br />

O rosto do demônio, inesquecível como um trauma, erguia-se perante<br />

sua imaginação com abominável frequência. Os olhos soltos, vazados,<br />

porém plenos de vida; o nariz destruído, sem sustentação – um punhado<br />

de carne escurecida e enrijecida, que deixava visíveis as cavidades nasais.<br />

Os nascedouros dos dentes claríssimos à mostra por debaixo da pele seca do<br />

queixo e da mandíbula. Os cabelos secos e quebradiços...<br />

7


“Vocês são as aranhas”, havia dito o demônio, com sua voz tão<br />

seca quanto o seu corpo. “Os outros, os vivos, são as moscas, que vocês<br />

capturam... e eu sou a vespa da terra. Assim como vocês precisam das<br />

moscas... eu preciso de vocês...”<br />

Enquanto falava, havia amarrado-o com surpreendente facilidade.<br />

“Vocês... vocês são a doença dos outros. A doença das moscas... E eu<br />

sou a cura. Sou a doença de vocês!”<br />

O demônio partira, envolto em seu manto esfarrapado de mendigo,<br />

deixando-o ali, neste lugar sombrio, com os ecos de suas últimas palavras,<br />

que tinham força suficiente para continuar reverberando pelas paredes de<br />

sua mente, ecoando talvez pelos séculos afora.<br />

Era uma casa pequena. Tijolos não cozidos à vista, formando paredes<br />

toscas. Teto de tábuas. Chão batido, de terra úmida e barro pisado. Uma<br />

única porta, grande e dupla, constituída de tábuas grossas, como as do teto.<br />

Palha seca e capim espalhados pelo chão. Um cocho de madeira pendurado<br />

de alguma forma em uma das paredes, além da pequena e fraca lâmpada,<br />

suspensa pelo cabo elétrico que a alimentava no ponto mais central do teto,<br />

e que surgia através das divisas das grandes tábuas ao alto. Uma lâmpada<br />

que, mesmo estando desligada, não o impedia de vislumbrar com relativa<br />

facilidade todos os contornos deste estábulo onde fora deixado, imerso na<br />

escuridão da noite.<br />

Enxergar ainda era tão fácil para ele. Ver luz onde só havia<br />

escuridão.<br />

Mas de que isso lhe valia...<br />

Não havia dúvida de que estava em um subúrbio qualquer, ou mesmo<br />

em uma distante zona rural. Sentia resquícios do hálito adocicado do leite;<br />

o cheiro forte, remanescente dos verdadeiros ocupantes deste lugar – vacas<br />

e bois, que deviam encontrar-se muito longe das imediações, afinal, mesmo<br />

concentrando ao máximo sua outrora privilegiada audição não os podia<br />

captar.<br />

Sequer escutava as respirações destes animais. Nem mesmo os insetos<br />

da noite e o som da cidade ao longe podiam ser ouvidos.<br />

Estava sozinho, em um fim-de-mundo qualquer, e por algum motivo<br />

não podia contar com a plenitude de suas habilidades de percepção. Ouvia<br />

como uma pessoa qualquer, o que, para ele, equivaleria a dizer que havia<br />

ficado surdo.<br />

Como tinha vindo parar ali? De alguma forma, era certo. A<br />

inconsciência encarregara-se de nublar alguns pontos cruciais do passado,<br />

deixando umas poucas lembranças para serem examinadas, uns poucos<br />

detalhes a serem interligados pela mente dolorida do cativo, enquanto este<br />

buscava esclarecer os motivos que tinham originado sua agonia.<br />

Conhecera o demônio por acaso, em uma de suas costumeiras<br />

andanças noturnas. Um homem da noite, como ele próprio, vestido a caráter.<br />

8 Doença e Cura


Um outro possível companheiro entre os poucos que conhecera no decorrer<br />

da noite eterna que estava fadado a viver? Via agora que não. Depois de<br />

uma conversa amena entre os dois, que não deixara margem para qualquer<br />

desconfiança, viera o pior. Após a despedida. “Ei, amigo, espere um pouco...”<br />

O cheiro diferente. O sangue sendo oferecido. A fome e o temor repentinos.<br />

E a inconsciência.<br />

Depois disso mais nada.<br />

Até mesmo o sabor inigualável, o cheiro atrativo do sangue vigoroso<br />

do demônio havia se dissipado de sua lembrança.<br />

Agora estava ali. Longe da cidade grande e da agitação mundana da<br />

civilização. Longe da comida fácil. Seco e sem vida, vazio. E perto do dia...<br />

Perto demais do dia.<br />

Pressentindo o perigo, o calor iminente do sol, ele começou a se<br />

debater, lutando contra as amarras que o mantinham naquela cadeira<br />

maldita. Sentiu a cólera crescendo dentro de seu corpo; o frio ardendo em<br />

seus músculos, tornando-os em fibras possantes como cordões de aço. Sua<br />

vista turvou-se, tornando as imagens antes brilhantes, claras como o dia, em<br />

chamas distorcidas de um vermelho vivo. Unhas pontiagudas, semelhantes<br />

a garras, desenvolveram-se nos dedos crispados. Dentes afiados como serras<br />

destruíram a mordaça, liberando um grito agudo que mais parecia o rosnado<br />

de uma besta do inferno.<br />

Fora de controle, a fúria explodindo no peito, o homem ensandecido<br />

começou a balançar a cadeira de um lado para o outro, como um louco<br />

descontrolado faria em um manicômio. Gritava e gemia, os olhos rolando<br />

nas órbitas tal e qual os prêmios das máquinas caça-níqueis dos cassinos que<br />

abundavam no próspero lugar de onde viera. A doença da noite queimando<br />

sua alma. A agonia e o esgar gerando força e poder inumanos. As cordas<br />

rompendo-se aos poucos, influenciadas pelo ritmo frenético do balanço da<br />

cadeira, esmerilhadas pelo atrito com os músculos fortíssimos.<br />

De tanto ser agitada pelos solavancos, a cadeira acabou virando. O<br />

homem metamorfoseado caiu junto, batendo no chão e ganindo como um<br />

cão. A palha suja veio ter com a sua boca, junto de um punhado de terra e<br />

esterco. Raivoso, ele cuspiu a mistura nojenta e gritou outra vez. Voltou a<br />

contorcer-se desesperadamente, afrouxando mais as cordas, gemendo devido<br />

à dor profunda que sentia no peito... no estômago... A dor do poder da noite.<br />

A dor da sede, da esfaima demoníaca.<br />

Quando deu por si, estava livre. Desenlaçou-se das cordas frouxas,<br />

atirando-as para longe. Chutou a cadeira contra uma das paredes, fazendo<br />

uma de suas pernas de madeira quebrar-se com o impacto, o que jogou<br />

pequenas lascas para todos os lados.<br />

O homem metamorfoseado sentiu dores incríveis lacerando sua<br />

barriga e seus músculos. Enxergava tudo vermelho, como se visse sangue<br />

Fabian Balbinot<br />

9


jorrando pelas paredes... uma cascata de sangue translúcido, formando uma<br />

lagoa que cobria o chão inteiro e transbordava, submergindo-o no caos<br />

escarlate e intangível. Parecia que a cabeça ia explodir. A dor da fome e<br />

da sede e da fúria. Os vermes que não conhecia galgando suas entranhas,<br />

arrancando nacos de sua carne centenária. A maldita dor.<br />

Projetou-se como um animal contra a porta dupla de tábuas, que<br />

abriu-se estrondosamente, rebentando a fechadura tosca. Saiu cambaleando<br />

a passos imprecisos, sem ver onde pisava, apoiando-se com as mãos. Uma<br />

ponta aguda penetrou em sua mente, fazendo-o lançar-se ao chão. Apertou<br />

com força as mãos contra o crânio, desejando esfacelá-lo de uma vez por<br />

todas, esmagando os vermes que caminhavam por ali e reduziam seu cérebro<br />

a pó... eliminando a maldita dor.<br />

Tombou de frente, como um executado que cai morto depois de uma<br />

saraivada de tiros, empurrando o rosto contra o chão de barro e capim.<br />

Sorveu da terra molhada pelo sereno, sentindo ânsias pela garganta inteira.<br />

A maldita dor... maldita... maldita maldita maldita!<br />

Levantou-se, gemendo, agonizando. Não ouvia mais nada há tempos,<br />

e agora tampouco podia ver. Urrava de dor e fúria. Sentia a cabeça girar... a<br />

consciência se perder...<br />

... até que tudo ficou escuro.<br />

* * * * *<br />

O homem abriu os olhos. Piscou-os algumas vezes. Instintivamente<br />

levou a mão à testa. Estava em um lugar aberto...<br />

Capim?<br />

... pelo que podia ver. Girou os olhos para os lados, procurando<br />

verificar o que havia pelos arredores. Mato baixo, rasteiro, cercando-o.<br />

Centenas, milhares de folhas finas e compridas oscilavam acima e em redor<br />

de sua cabeça. Flores pequenas misturavam-se às chibatas verdes de capim,<br />

apontando para o alto suas pétalas contraídas.<br />

Devia ser alta madrugada. Era muita sorte que a noite ainda não<br />

tivesse terminado, julgou o homem caído na relva, usando de seus sentidos<br />

refeitos para observar o movimento pelas vizinhanças e determinar o horário<br />

com relativa precisão.<br />

Conseguia ver e ouvir os insetos noturnos dardejando em seus vôos<br />

rápidos ou desengonçados. Havia muitas moscas.<br />

Uma das moscas aproximou-se para pousar em seu nariz. Curiosa,<br />

procurou infiltrar-se logo de uma vez pelo caminho aberto de uma das<br />

narinas.<br />

– BRRRRUFFF! – espirrou o homem, erguendo seu tronco da relva<br />

molhada. – Saia daí! Porcaria... ahh! – grunhiu ele, espantando a mosca com<br />

a mão.<br />

10 Doença e Cura


Sacudiu a cabeça, contrariado, abanando os braços e ocasionando<br />

uma pequena revoada de insetos. Coçou o nariz com o pulso, esfregando-o<br />

furiosamente.<br />

Sapos coaxavam não muito longe.<br />

Não suportava moscas! Não podia sequer vê-las – criaturas<br />

repugnantes. E deixavam a franca impressão de preferirem ele ao invés<br />

de outras tantas iguarias que existiam aos montes por aí. E nunca surgiam<br />

sozinhas, as desgraçadas. Tratavam de trazer toda a família...<br />

Empurrou para trás o cabelo comprido que caía em seu rosto. Sempre<br />

trazia um elástico atrelado na manga de sua camisa para poder amarrá-lo ao<br />

cabelo, porém desta vez, esquecera-se de fazê-lo, devido às circunstâncias<br />

talvez.<br />

Pôs-se a recolher as melenas negras, acomodando-as dentro da gola<br />

de sua jaqueta de couro preto, que já tinha estado bem mais limpa do que<br />

agora, enquanto usava sua visão mais humana e normal para olhar em redor<br />

de onde se encontrava. Viu umas árvores altas, do tipo que espalha para<br />

os lados as suas copas de folhas minúsculas, dando a impressão de que a<br />

imagem que se vê foi distorcida.<br />

Vacas pastavam e algumas dormiam, encolhidas sobre as quatro patas.<br />

Uma rês estava caída de modo diferente, não muito longe. Parecia estar<br />

morta, o que era confirmado pela revoada de moscas que a assediavam.<br />

O homem ergueu-se do capim orvalhado, continuando a revistar<br />

o local em pé. Adiante, além das vacas e bois, das árvores irreais, e da<br />

grande cidade cinzenta, cujos arranha-céus pontudos podiam ser vistos de<br />

longe... bem adiante, atrás dos morros longínquos que oscilavam no fim do<br />

horizonte, lá vinha ele – o sol. Os traços vermelhos, o gradiente escarlate no<br />

tom ebâneo celeste era inconfundível. O homem vestido de preto soube de<br />

imediato o perigo que corria.<br />

Virou-se para trás, conferindo com calma o restante da paisagem.<br />

Sentia leves dores nos ombros, nos braços e na barriga, coisa...<br />

... vermes caminhando pelo seu estômago...<br />

... de pouca importância. Enquanto esfregava as mãos nos músculos<br />

dos antebraços diametralmente opostos, com os braços cruzados, verificou<br />

que apenas a alguns metros de onde estava havia uma casinha pequena, feita<br />

de madeiras e tijolos crus. Aproximou-se.<br />

A porta encontrava-se aberta – uma porta dupla, bastante sua<br />

conhecida, cujo ferrolho estava despregado, inutilizado. Era o pequeno<br />

estábulo, sem dúvida. O lugar onde permanecera amarrado boa parte da<br />

noite – sua visão super poderosa mostrava os pedaços de corda e a cadeira<br />

quebrada caída junto à parede, brilhantes, inconfundíveis, comprovando o<br />

que havia ocorrido. Já tinha ouvido falar de estábulos feitos de madeira por<br />

inteiro, tão pequenos como este. Por que será que tinham feito aquele ali de<br />

madeira e tijolos? Seria aquele um outro sinal dos novos tempos?<br />

Fabian Balbinot<br />

11


A porta foi empurrada por um golpe de vento, e os seus gonzos<br />

enferrujados rangeram em resposta aos seus devaneios.<br />

Saiu andando pela lateral da diminuta e inovadora manjedoura, onde<br />

a luz não poderia atingi-lo. O sol vinha vindo, escaldante, e ele tinha de se<br />

apressar. Olhou com tristeza de volta para a porta dupla. Quebrada do jeito<br />

como estava, não poderia ser fechada. Não ofereceria segurança alguma.<br />

A primeira brisa que soprasse a abriria, expondo todo o interior da construção<br />

aos olhares fogosos do astro-rei, e então ele estaria frito. Além disso, havia<br />

muitas frestas entre as tábuas da porta, e mesmo entre as que formavam<br />

o teto, ele bem podia lembrar. Algumas telhas faltavam, e ele nem queria<br />

imaginar os problemas que iria ter caso despertasse ali no decorrer do dia,<br />

cercado por fachos faiscantes de luz solar, rodeando-o por todos os lados,<br />

prontos para cortá-lo em pedaços como sabres de laser.<br />

Decepcionado, abandonou o pequeno estábulo, acenando<br />

negativamente com a cabeça. Não temia o sol, mas a dor...<br />

... vermes dilacerando seu cérebro...<br />

... não, não podia suportar a dor de uma segunda morte.<br />

Viu adiante uma colina que parecia acabar logo ali, mas que na verdade<br />

abria-se em uma inclinação brusca, formando uma ladeira. Lá embaixo, a<br />

uns cem metros...<br />

Uma casa!<br />

Ele sorriu, aliviado. Uma casa. Uma casa mesmo, de verdade.<br />

Proteção de verdade. Quatro ou mais paredes grossas e um teto de concreto<br />

à prova de sol! Paredes duras, sólidas. Janelas com tampas, e nada de frestas<br />

nas tampas. Nada de fachos penetrando nas frestas. Portas com fechaduras<br />

e chaves, muito fáceis de serem abertas, ou trancafiadas. Talvez até uma ou<br />

mais fontes daquele líquido vermelho e saboroso ao qual costumava chamar<br />

de comida.<br />

Correu pela ladeira, rumando para o pequeno chalé.<br />

Enquanto corria, o vampiro gargalhava ruidosamente. Em seu trajeto,<br />

girava o corpo em graciosos movimentos de dança, fazendo gestos obscenos<br />

que eram dirigidos para o leste nocivo onde o sol amaldiçoado já devia estar<br />

mostrando sua testa fervente, rasgando as montanhas do oriente e os altos<br />

prédios de concreto da cidade grande com suas rajadas de lava luminosa e<br />

escaldante. Morria de rir, e rolava pelo capim de tanta felicidade.<br />

Alcançou a casa afinal. As janelas estavam pregadas com tábuas velhas.<br />

Muitas camadas de tinta descascavam juntas pelas paredes, caracterizando<br />

o esmero com que o chalé fora tratado há muitos anos atrás, e o descuido<br />

que se podia ver agora, devido ao seu abandono. Trepadeiras cresciam,<br />

envolvendo muitas das paredes da velha casa em redes vegetais que muitas<br />

vezes alcançavam as orlas do telhado. Em um determinado ponto, a calha<br />

de escoamento de água que fora afixada nas extremidades do telhado, feita<br />

de zinco e oxidada, havia desabado, distorcida como uma serpente morta<br />

12 Doença e Cura


pelo chão calçado que dava volta em torno da casa. Arbustos nasciam por<br />

entre as pedras do calçamento, enquanto uma única grade, completamente<br />

coberta pela ferrugem, impedia o acesso para um suposto porão escavado<br />

nas fundações do casebre.<br />

O lugar apeteceu o vampiro. Era o esconderijo perfeito, aquele porão.<br />

Lá, gatos, ratos, e outras pragas deviam passar as noites e mesmo os dias<br />

na mais completa escuridão. Se tivesse mais tempo, o visitante certamente<br />

olharia mais a fundo um lugar deste tipo. Porém, hoje, tendo em vista as<br />

circunstâncias...<br />

Andou mais um pouco, até encontrar a frente da casa, que apresentava<br />

uma sacada de aparência pobre, revestida tanto de buracos quanto de azulejos<br />

de pinturas amuadas e cores irreconhecíveis. Dois pilares descascados de<br />

madeira seguravam o teto, que se destacava de modo a cobrir a sacada como<br />

uma última e forçosa medida arquitetônica, buscando exibir um mínimo de<br />

requinte e aconchego. Gramíneas e pestes vicejavam por entre as folgas dos<br />

azulejos.<br />

O homem deteve-se junto à porta. Uma porta comum, solitária,<br />

colocada à esquerda de uma janela de veneziana, segura por algumas tábuas<br />

ali pregadas. Não havia nenhuma tábua bloqueando a porta, mas eram<br />

evidentes os furos no batente de madeira. Três ou quatro tábuas tinham sido<br />

deixadas, sobrepostas, bem ao lado da porta, com montículos de matéria<br />

ferruginosa – o que havia sobrado dos velhos pregos – espalhados em volta<br />

delas.<br />

O homem vestido de preto franziu o nariz, desconfiado. Talvez tivesse<br />

alguém dentro da casa...<br />

Talvez não.<br />

Os raios do sol já enalteciam os morros de uma serra que se distanciava<br />

no oeste, fazendo seus olhos super sensíveis arderem. A noite não passava<br />

de ruínas.<br />

Bateu na porta, afoito, apenas para mostrar respeito aos velhos tabus.<br />

Um dos algarismos que formavam o número da casa desprendeu-se e caiu –<br />

de 31 que era, a numeração sofreu uma queda brusca, transformando-se em<br />

apenas 1, enquanto o algarismo 3, metálico, quicou por duas vezes no piso<br />

de azulejos, e foi sumir no meio do capim, junto à área calçada.<br />

Sem ter tempo para interpretar presságios, o homem inquieto bateu<br />

outra vez na porta. E mais outra.<br />

Irritado, girou a maçaneta, que produziu um ruído áspero. A porta<br />

abriu-se, e ele penetrou na casa.<br />

Sentindo-se mais aliviado por já estar longe do alcance das chamas<br />

mortíferas do sol, o homem vestido de preto fechou a porta, sorridente,<br />

refugiando-se na escuridão. Passou a conferir o local onde se encontrava,<br />

enquanto suas vistas se ajustavam à falta de luz. Viu que estava em uma sala<br />

de visitas abandonada, sem mobília, com uma única passagem que dava em<br />

Fabian Balbinot<br />

13


um corredor. Blocos de argamassa seca caídos das paredes formavam montes<br />

de sujeira em torno destas. Um lugar definitivamente imundo, aquele.<br />

Deu o primeiro passo em direção ao corredor, e parou de repente.<br />

Luz!<br />

Viu com espanto, o reflexo do sol pontilhando as paredes e o piso de<br />

madeira na sua frente. O sorriso sumiu de sua face.<br />

A porta!<br />

A luz... A MALDITA LUZ... em todos os lugares.<br />

Horrorizado, ele piscou e encolheu-se para se livrar dos efeitos<br />

degenerativos do reflexo. Seus olhos ardiam, fogo em brasa.<br />

A PORTA AINDA ESTAVA ABERTA!<br />

Protegendo-se da luz, movido com incrível rapidez por intermédio<br />

do poder de que dispunha, ele virou-se para fechar a porta. Instintivamente<br />

abriu os olhos.<br />

Tudo estava escuro.<br />

A porta continuava fechada, como ele a havia deixado.<br />

“Bem vindo...”, soou a voz do demônio, vinda de trás de si.<br />

Só então ele percebeu que não estava sozinho naquela sala, e que a<br />

luz que vira não passava de uma alucinação.<br />

Súbito, os vermes passaram a se mover mais rápido dentro de seu<br />

estômago.<br />

Ele tombou ao chão, sabendo que era tarde demais para tentar qualquer<br />

coisa.<br />

* * * * *<br />

( As vespas solitárias não vivem em colônias, no entanto, sob<br />

alguns aspectos, são ainda mais interessantes que as vespas sociais...<br />

Alguns tipos costumam fazer seu lar nos ninhos de outros insetos... As<br />

vespas fêmeas, adultas, costumam trabalhar e se sacrificar por sua prole,<br />

mesmo que nunca venham a ver suas crias... A larva de vespa solitária<br />

tem predileção, conforme seu tipo, por uma dada modalidade de inseto,<br />

entre aranhas, besouros, formigas, e outros... Os adultos alimentam-se de<br />

nectar e sucos de frutas, contudo, caçam presas que são picadas por seus<br />

ferrões paralizantes e levadas ainda vivas para a toca... Quando a vespa<br />

adulta consegue reunir um estoque de presas suficientemente grande, ela<br />

deposita um ovo em um dos corpos das vítimas e a seguir fecha o ninho<br />

hermeticamente. Em poucos dias, a larva eclodirá do ovo, encontrando ao<br />

seu dispor um abundante suprimento de alimento fresco...)<br />

Enciclopédia Delta Universal – Adaptado<br />

* * * * *<br />

Ele despertou, sentindo a agitação de um corpo rompendo a paz<br />

do ambiente. Odores pesados exalados por materiais em decomposição<br />

14 Doença e Cura


preenchiam o espaço, deixando o ar denso. Ouviu passos, descompassados,<br />

como os passos de um aleijado, dando voltas, indo de lá para cá, de cá para<br />

lá. E outros ruídos, de coisas sendo... posicionadas... empilhadas?<br />

O vampiro estava caído, entorpecido, sem conseguir mover-se, seu<br />

corpo escorado em um canto qualquer em meio à treva. Piscou com força os<br />

olhos, procurando ajustá-los ao ambiente para poder enxergar o que estava<br />

acontecendo. Apertou as pálpebras uma de encontro à outra, várias vezes,<br />

forçando-as contra os olhos, depois abrindo-os e girando-os. Seus olhos<br />

doíam.<br />

Não conseguia ver nada.<br />

Apenas pôde ouvir uma risada esganiçada e curta, e os mesmos passos<br />

claudicantes, que agora se aproximavam.<br />

– Não adianta tentar ver – disse uma voz nas imediações. – Você está<br />

cego. Mesmo com a luz acesa, tenho certeza que você não está conseguindo<br />

ver nada. É perda de tempo...<br />

Mais passos em falso, afastando-se desta vez. Mais riso. E mais coisas<br />

sendo empilhadas. Lenha... tábuas. Sim, os ruídos eram inconfundíveis.<br />

Tábuas estavam sendo empilhadas em algum lugar ali perto.<br />

Os olhos doíam.<br />

– Ahhh... – o vampiro tentou se concentrar para sair daquele transe,<br />

daquele torpor que o imobilizava e o impedia de usar seus sentidos. Não<br />

obteve sucesso. Seu corpo mais parecia uma pilha de carne sem vida. Notou<br />

que mal e mal podia mover os dedos.<br />

– Não adianta também ficar tentando se mexer – disse a mesma voz,<br />

vinda mais de longe desta vez.<br />

O vampiro reconhecia aquela voz. Tratava-se daquele mesmo homem<br />

disforme que o havia abordado na cidade.<br />

– O efeito do... veneno, isso vai durar ainda muitos dias – concluiu o<br />

demônio.<br />

– V-v-ve... vene... no? – tentou perguntar o vampiro, percebendo que<br />

sua voz, espatifada, cacofônica, refletia o estado moribundo que empestava<br />

seu corpo inteiro. Suas mãos, dedos crispados, elevados no ar, pareciam<br />

dispostas a agarrar uma brisa que não existia.<br />

– É. Veneno, meu caro. É isso mesmo que você ouviu. Podemos<br />

chamá-lo desta forma – a voz tentava soar simpática, o que a deixava ainda<br />

mais tétrica. Horripilante.<br />

Seus olhos doíam, e os vermes não paravam de escaramuçar o seu<br />

estômago. Malditos vermes. MALDITOS!<br />

Desesperado, o vampiro tentou se mexer, enxergar, fazer qualquer<br />

coisa. Contudo, seu corpo continuava dando a impressão de ter finalmente<br />

reencontrado a morte que por tantos anos havia sido adiada, desejoso<br />

inclusive de reconciliar-se com esta.<br />

Se não respira, não vive.<br />

Fabian Balbinot<br />

15


Um ligeiro tremor foi todo o movimento que decorreu de seus<br />

esforços; um reflexo de seus nervos... um calafrio inútil percorrendo sua<br />

espinha de alto a baixo.<br />

“Veneno, meu caro. É isso mesmo que você ouviu.”<br />

Seus olhos... e os vermes... Malditos vermes.<br />

– Sabe de uma coisa – recomeçou a voz do demônio, encoberto pela<br />

penumbra causada pela cegueira. – Sou uma pessoa piedosa, até certo ponto.<br />

Além do mais, ficar observando você se debatendo desse jeito...<br />

Os passos mancos voltaram a soar mais alto, mais próximos.<br />

– Acho que fiquei compadecido com a sua bravura – disse, muito<br />

perto do ouvido do homem agonizante. Tanto o hálito do demônio quanto<br />

seu sotaque irreconhecível recendendo a podridão e morte.<br />

O demônio afastou-se um pouco, ou elevou a cabeça, e riu o seu<br />

riso de bruxa velha, deixando o vampiro, tão acostumado com as vezes do<br />

predador, absolutamente apavorado perante as terríveis perspectivas de ter<br />

se tornado presa.<br />

– Vou lhe contar uma história – prosseguiu o demônio, e levando em<br />

conta os ruídos que este produziu, o vampiro julgou que ele tivesse puxado<br />

uma cadeira ou algo assim, tendo então se sentado. – Você deve ter ouvido...<br />

você deve se lembrar, na primeira vez em que vimos um ao outro, algumas<br />

semanas atrás, quando eu lhe disse que...<br />

Semanas?<br />

– ... eu era a vespa, e vocês eram as aranhas. Acho que você se recorda<br />

disso, não é mesmo?<br />

O vampiro, paralisado, não fez que sim nem que não.<br />

SEMANAS? Tinham se passado semanas desde o primeiro contato?<br />

Mas isso era impossível...<br />

– Bem, não posso dizer que eu seja exatamente como você, afinal uma<br />

aranha nunca é igual a uma vespa, ou a uma mosca. – O demônio riu outra vez,<br />

divertindo-se às custas da própria infâmia, como o vampiro havia feito por<br />

diversas vezes, diante de suas próprias vítimas. – No entanto... Eu conheço<br />

muito bem a sua raça, e por razões que não lhe dizem respeito, também eu,<br />

também a minha raça desenvolveu uma doença da noite, semelhante à que<br />

afeta vocês. Como vocês, também eu vivo de absorver o oxigênio do sangue<br />

dos outros, contaminando gente por aí, espalhando a morte. Como vocês,<br />

eu também destruo as pessoas sem discriminar os inocentes dos culpados,<br />

movido por uma fome semelhante à sua.<br />

O demônio levantou-se do móvel onde havia se sentado, e caminhou<br />

para um lugar não muito distante, que o vampiro não podia ver.<br />

– Velhos tempos... Conheço toda a paranóia de escapar durante o dia<br />

e procurar pobres coitados, ou ricos afortunados e tolos durante a noite.<br />

Vi algumas civilizações surgindo e desmoronando, e algumas culturas<br />

transformando-se em pó de uma noite para a outra, algumas vitimadas<br />

16 Doença e Cura


pelos humanos, outras por gente como você. Vi a própria cultura de nossos<br />

antepassados desfazer-se diante de meus olhos, conforme o tempo e os<br />

séculos se passavam.<br />

Uma pausa. Muito silêncio, atormentando o vampiro. O cri-cri dos<br />

grilos. O coaxar de uma rã entusiasmada. Predadores e presas por todos os<br />

lados, de todos os tamanhos.<br />

Seus olhos... os vermes...<br />

– Não sinto mais esperança, e deixei de ter fé em alguma coisa<br />

há tanto tempo que acabei esquecendo como vem a ser tal sensação –<br />

prosseguiu o demônio. – Peguei doenças, uma após outra... as mais diversas<br />

pestes contagiosas dos homens, sabendo do pouco dano que elas poderiam<br />

me causar, assim como a vocês, afinal... não há dúvida em relação às<br />

extraordinárias capacidades regenerativas dos vampiros, só comparáveis<br />

ao seu apetite insaciável por sangue. Eu, porém, procurei as doenças, as<br />

pestilências, por minha própria vontade. Tenho motivos para tanto, e estes<br />

não vêm ao caso.<br />

Mais passos. O demônio caminhava pelo lugar, e parecia estar<br />

premeditadamente disposto a confundir a debilitada audição do vampiro.<br />

– Vivi tudo isso – sua voz surgiu de um outro lugar, diferente de onde<br />

soavam os passos – e sei, mesmo que seja de um modo diferente do que<br />

ocorre com vocês, o que significa ser imune e estável pelos séculos afora.<br />

Porém, descobri que nem tudo é tão perfeito como parece... Existem tantas<br />

criaturas fascinantes neste mundo. Tantos exemplos de aparente perfeição...<br />

O escorpião, tão poderoso, com seu formidável veneno, capaz de derrubar<br />

um homem com uma picada, e que é feito em pedaços em segundos por um<br />

bando de minúsculas formigas, muito menores do que ele, e tão indefesas que<br />

a própria chuva as destrói... O caranguejo, blindado, possante, um verdadeiro<br />

acampamento para milhares de vermes. E a tarântula, poderosa assassina,<br />

que nem chega a ser páreo para uma única vespa da terra. Aparências, nada<br />

além de aparências.<br />

– Sabe, meu amigo... não existe perfeição, nem segurança, e tampouco<br />

uma garantia. Todos nós fazemos parte de um ciclo, até mesmo os humanos...<br />

e os vampiros. A esta altura, nem mais falar, nem emitir sons você pode... Eu<br />

sei. Tenho certeza. Já vi esta mesma cena acontecendo antes, com diferentes<br />

olhos, em diferentes lugares, através de diferentes realidades. Sei o que<br />

o... veneno faz. Conheço todos os sintomas. Possuo experiência secular no<br />

assunto.<br />

O demônio riu outra vez, e aproximou-se do vampiro. Seus passos<br />

deixavam a impressão de estar vindo de todos os lados.<br />

Os vermes... mexiam-se sem parar pelo seu corpo... despedaçando-o...<br />

fragmentando-o...<br />

– Como as vespas, minha estirpe também tem a sua maneira incomum<br />

de se perpetuar... As larvas das vespas eclodem dos ovos e sugam a vida<br />

Fabian Balbinot<br />

17


das aranhas paralisadas. E muitas aranhas são sacrificadas em troca de uma<br />

única larva, que resultará em uma vespa ainda menor. Aranhas como você,<br />

afinal todos fazemos parte do ciclo. Alguns têm mais sorte do que os outros,<br />

e estão melhor posicionados neste ciclo. Eu tive esta sorte, e hoje sou vespa<br />

adulta.<br />

“Mas... nem todos têm sorte, não é mesmo?”<br />

* * * * *<br />

O homem de cartola e sobretudo rasgado levantou-se. Caminhou<br />

manquitolando e ultrapassou a porta que dava para o lado externo da velha<br />

casa descuidada.<br />

Apreciou a paisagem sombria da noite, tentando em vão respirar o ar<br />

orvalhado trazido pela brisa.<br />

Um pedaço da carne do rosto deformado descolou-se e caiu. Ele não<br />

se importou. Tinha coisas muito mais importantes para fazer. Sabia que o<br />

fim daquela etapa em sua vida estava próximo, e há tempos acostumara-se<br />

a ter a pele e as carnes apodrecendo e caindo de seus membros, de sua face,<br />

e de todo o seu corpo. Sabia muito bem o que devia ser feito para acabar<br />

com o processo degenerativo, assim como tinha plena consciência de quão<br />

temporária e efêmera era tal solução.<br />

Fazia parte do ciclo. E era assim que devia ser.<br />

Fechou a porta da frente. Sem pensar muito, conferiu o material que<br />

trouxera do interior da casa. Algumas tábuas, um saquinho plástico com<br />

velhos pregos, e um martelo, além de sua velha maleta escura e puída,<br />

forrada em couro e pó, onde trazia os preparados, tão necessários a ele, e à<br />

parte que ele representava no ciclo.<br />

Fechou a porta, girando a velha maçaneta redonda. Juntou as tábuas<br />

recolhidas de dentro da casa com as outras que estavam do lado de fora,<br />

empilhando-as todas juntas, e a seguir agarrou um par de pregos do saquinho<br />

plástico e colocou-os na boca. Pegou a primeira tábua da pilha e colocou-a<br />

junto à porta. Devagar, mas de modo firme, resoluto, pôs-se a pregar, uma a<br />

uma, todas as tábuas da pilha na porta, procurando vedá-la, com segurança.<br />

Conferiu o serviço, ao terminá-lo, julgando-o excelente.<br />

Colocou o martelo e o saquinho com os pregos em um esconderijo<br />

improvisado junto à parede frontal do casebre. Pegou sua maleta antiquada<br />

e partiu dentro da noite, sem olhar para trás.<br />

* * * * *<br />

Dentro da casa, em um canto escuro, alguém que já havia sido<br />

humano, de olhos arregalados em um espasmo, sem poder se mexer, sentia<br />

as entranhas se desfazendo aos poucos dentro de seu corpo.<br />

18 Doença e Cura


“Surpresa! Você está morto!<br />

Adivinhe o quê é?<br />

Isso nunca acaba...<br />

Agora você é meu<br />

Eu vou continuar a matá-lo até o fim dos tempos.”<br />

Surprise! You’re Dead! - Faith No More<br />

Fabian Balbinot<br />

<strong>Capítulo</strong> 2<br />

A mulher abriu os olhos.<br />

Piscou algumas vezes. Estava um pouco escuro.<br />

Sentia-se tonta, a vista estava embaçada, as imagens em redor<br />

turvas.<br />

Ouviu alguns ruídos abafados, como coisas que são posicionadas<br />

sobre algum tipo de superfície. A imagem estranhamente familiar de uma<br />

mesa grande, verde, sem contornos, indefinida, foi projetada em sua mente.<br />

Uma imagem que ela não podia vislumbrar de fato.<br />

Conseguia ver apenas um espaço vazio, escuro, cinzento, como uma<br />

parede que começa em um dos cantos da vista e se estende até ter atravessado<br />

todo o campo de visão. Ocupando tudo. De lado a lado, de cima a baixo.<br />

Sentia calor.<br />

Sons de coisas batendo-se, sendo chocadas umas com as outras,<br />

suavemente. Coisas como copos plásticos, caixotes pequenos de madeira<br />

ou papelão, talvez. Sons distantes, amortecidos, difíceis de serem<br />

identificados.<br />

Passos. Sapatos que ela não podia ver. Sapatos pisando o chão. Passos<br />

também suaves, que originavam baques roucos, como que vindos de longe,<br />

contidos, reticentes.<br />

E em alguns momentos...<br />

...<br />

Fazia-se o silêncio.<br />

A mulher sentia sono. Preguiçosas, as pálpebras teimavam em cobrir<br />

suas vistas, descendo devagar como cortinas pesadas que iam tapando a luz<br />

que entrava pelas janelas vinda de fora, obscurecendo ainda mais o pouco<br />

que ela podia ver.<br />

Então, súbito, como se um mecanismo de acionamento elétrico,<br />

automático, tivesse sido ativado, as cortinas das janelas de sua visão<br />

tornavam a subir, rápido, de um golpe. E a jovem mulher despertava outra<br />

vez, como se tivesse levado um choque.<br />

Geralmente, isso ocorria quando o silêncio era rompido, e o som de<br />

passos abafados, coisas batendo-se, sendo chocadas umas com as outras,<br />

recomeçava.<br />

19


Era uma jovem mulher. Sem dúvida, pensou ela.<br />

Sem dúvida...<br />

Misteriosamente, contudo, floreios e mosaicos compostos com as<br />

tintas de sua memória apontavam uma estranha velhice, estranhamente<br />

miscigenada à legítima impressão de juventude que se fazia sentir. Era tão<br />

estranho ser tão jovem, e, ao mesmo tempo, sentir-se tão velha.<br />

Era tão estranho...<br />

Estava tão quente.<br />

Pensou em virar-se de lado na cama, mas sua cabeça não se moveu<br />

sobre o pescoço.<br />

Pensou em virar-se de lado na cama, mas... não se lembrava de estar<br />

de fato em uma cama.<br />

Pensou em virar-se de lado na cama.<br />

Pensou em virar-se de lado...<br />

...<br />

Cortinas baixando. Janelas sendo fechadas. Escuridão. A parede<br />

cinzenta que ia de um ponto ao outro da vista desaparecia, pouco a pouco.<br />

...<br />

Abriu os olhos outra vez. Desta vez ainda com mais força, mais<br />

rápido.<br />

QUERIA ficar acordada.<br />

Em nome de CRISTO, queria ficar acordada!<br />

E acordada ficaria.<br />

Piscou. Piscou e piscou.<br />

Quis esfregar os olhos com os dedos, mas suas mãos não se mexeram<br />

dos pontos onde estavam. Por alguma razão, suas mãos pareceram estar<br />

longe, distantes, além do alcance delas próprias, DELA própria.<br />

Quis mexer os dedos das mãos, mas eles não se mexeram.<br />

Quis mexer os dedos dos pés.<br />

Quis virar-se de lado na cama.<br />

Quis virar a cabeça para ver melhor o que havia do outro lado da sala.<br />

Quis ver a mesa verde, que parecia ser coberta por uma espécie<br />

de feltro, uma espécie de veludo verde coberto de tons escuros e puídos,<br />

projetada por sua memória.<br />

Quis ver os sapatos, ou chinelos, ou tamancos, pés descalços que<br />

fossem, que de vez em quando pisoteavam o chão que ela via em sua mente<br />

como sendo de ladrilhos feitos de cerâmica, uns pretos, outros brancos, uns<br />

do lado dos outros, como os quadros de um tabuleiro de damas.<br />

Quis ver seus próprios pés descalços.<br />

Acima de tudo, quis SENTIR seus pés descalços, como quis sentir<br />

seus dedos das mãos, e movê-los, e tamborilar com eles no cetim do<br />

lençol da cama em que estava, pois era certo que estava em uma cama,<br />

imaginava ela.<br />

20 Doença e Cura


Quis bocejar, mas nem mesmo isso aconteceu.<br />

Onde estava, afinal de contas?<br />

Quis gritar para a pessoa, para AS pessoas, quem quer que fosse<br />

que estivesse empilhando coisas, mexendo em copos, virando líquidos,<br />

caminhando sem parar de lá para cá, para que fosse com urgência para o<br />

inferno, porque aquela barulheira toda, mesmo soando abafada, amortecida,<br />

longínqua, distante, rouca, monótona, enfadonha, entediante, silenciosa,<br />

ensurdecedora... estava deixando-a maluca.<br />

MERDA!<br />

Não conseguia pensar direito. Uma densa neblina a impedia de<br />

raciocinar. Uma cortina de fumaça, gás do sono, veneno, alucinógeno,<br />

narcótico, tirava a sua concentração. Fazendo suas pálpebras pesarem<br />

e descerem devagar como cortinas que iam tapando a luz vinda de fora,<br />

obscurecendo ainda mais o pouco que ela podia ver...<br />

Cortinas pesadas sobre suas vistas. Cortinas de fumaça.<br />

Estava muito quente. Mormacento. Algo a envolvia... uma coisa<br />

mole...<br />

UM TECIDO.<br />

Um tecido envolvia seu corpo... sua cabeça... sua mente...<br />

Tinha de ficar acordada.<br />

Tinha de ficar acordada.<br />

Tinha de ficar acordada.<br />

Tinha de ficar acordada.<br />

Tinha de...<br />

...<br />

* * * * *<br />

A mulher abriu os olhos.<br />

Piscou algumas vezes. Estava claro.<br />

Sentia-se tonta, a vista estava embaçada, as imagens em redor<br />

turvas.<br />

Ouviu alguns ruídos, como coisas que são posicionadas sobre algum<br />

tipo de superfície, e a seguir coisas sendo colocadas dentro de algo, um<br />

invólucro, um saco ou sacola, talvez uma mala.<br />

Passos.<br />

Um assobio. Alguém assobiando uma singela canção, que ela não<br />

conhecia.<br />

Tais ruídos duraram alguns momentos, e foram interrompidos em<br />

um dado instante pelo abrir e fechar de uma porta. Maçaneta sendo girada,<br />

dobradiças rangendo, mais passos, e, para terminar, a porta sendo puxada<br />

com força, batendo como um gongo que anuncia e precede o silêncio.<br />

Apagou-se a luz. Fosse quem fosse que tivesse saído, tinha desligado a<br />

iluminação interna daquele local invisível, pressionando um botão externo.<br />

Fabian Balbinot<br />

21


Estava fresco. Uma brisa suave batia em seu rosto.<br />

Piscou mais algumas vezes, acostumando-se com a escuridão, e em<br />

instantes as imagens foram se tornando mais nítidas.<br />

Viu um tubo de vidro, ou algo semelhante, de relance, à sua<br />

esquerda.<br />

Girou os olhos para a direita.<br />

Percebeu que havia uma lâmina. Uma faca pequena...<br />

SANGUE!<br />

...<br />

A faca estava suja de sangue.<br />

Era sangue. Ela estava certa disso.<br />

Não tinha dúvida alguma. Sentia o cheiro inconfundível, que lhe<br />

despertava o instinto e lhe trazia sede. Suas têmporas se aqueceram, e uma<br />

leve ardência se fez notar em suas gengivas, causando uma coceira rente às<br />

raízes de seus dentes.<br />

Ela tentou lamber as arcadas dentárias, mas não teve muito sucesso.<br />

Por alguma razão, ela não tinha como mexer a língua dentro da boca, pelo<br />

menos não com a força necessária para esfregá-la de encontro às gengivas,<br />

de modo a aplacar a torturante coceira.<br />

Por alguma razão, sua boca estava aberta, o queixo caído.<br />

E ELA NÃO CONSEGUIA FECHÁ-LA!<br />

O tato revelava que existia alguma coisa debaixo de seu queixo, e em<br />

volta, em redor, cercando a parte de baixo de sua cabeça. Algo sólido, duro,<br />

reto. Frio.<br />

Quis mexer os maxilares, mas estes não se moveram um centímetro<br />

sequer. A boca permanecia aberta, paralisada, e a língua repousava em seu<br />

canto, inerte, rodeada pela mandíbula morta.<br />

O máximo que a mulher conseguia fazer com a própria língua, usando<br />

todas as forças de que dispunha, era deslocá-la de um lado para o outro da<br />

boca não mais do que um mísero centímetro.<br />

Um mísero centímetro...<br />

E sua mandíbula sequer se movia. Não havia COMO movê-la.<br />

Girou os olhos, descrevendo alguns semicírculos. Viu o tubo de<br />

vidro, incompleto, indefinido, à esquerda, e em seguida viu a navalha suja<br />

de vermelho.<br />

Sentiu o aroma adocicado do sangue. Podia ser dito que chegava até<br />

mesmo a VER o aroma do sangue. Via a afinidade, o apetite, a estranha ânsia<br />

que o sangue lhe despertava.<br />

Um ímpeto a fez procurar engolir saliva, mas sua boca estava<br />

completamente seca, e apenas agora ela percebia há quanto tempo<br />

encontrava-se paralisada. Uma crosta grossa e dura já tinha substituído a<br />

pele macia dos lábios.<br />

Sua boca parecia a terra agreste dos desertos, assolada pelo estio.<br />

22 Doença e Cura


Percebeu alguns ruídos que vinham de longe, muito longe. Tênues<br />

buzinas de carros e roncos de motor. Estes e outros obscuros sinais de<br />

civilização.<br />

Sem querer, acabou prestando atenção na parede escura, cinzenta,<br />

que se desenrolava em sua frente, como uma inóspita e desértica paisagem.<br />

Movendo os olhos de cima a baixo, de lado a lado, era só o que era possível<br />

ver – uma superfície borrada, indefinida, como uma névoa estática que cobre<br />

o relevo ao longe.<br />

Perto, havia o tubo de vidro, quase escapulindo do alcance da visão.<br />

Um demarcador de fronteira entre a muralha feita de fumaça imóvel, adiante,<br />

e o que ela não podia ver além disso, à sua esquerda.<br />

Perto, do lado oposto, havia a faca.<br />

A lâmina suja de sangue.<br />

Coberta de sangue.<br />

Sangue.<br />

Vermelho.<br />

Limpo.<br />

Vivo.<br />

Móvel.<br />

Glóbulos vermelhos, saltitantes, irrequietos, quentes.<br />

Saborosos.<br />

...<br />

De novo ela sentiu a coceira nas gengivas. Era como se seus dentes,<br />

alguns deles, ganhassem vida própria sempre que seus olhos topassem<br />

com a mácula escarlate na lâmina da faca simples, serrilhada, com cabo de<br />

madeira, do tipo que geralmente pode ser adquirido em jogos de talheres,<br />

nos supermercados que há por aí.<br />

Seus dentes, alguns deles, eles vibravam, oscilavam, de leve, sempre<br />

que ela enxergava o sangue coagulado, estampado na faca.<br />

E ela soube que estes mesmos dentes reagiriam de forma muito mais<br />

agressiva caso este mesmo sangue, já morto, estivesse de fato vivo, com suas<br />

hemácias, linfócitos, leucócitos, plaquetas, glóbulos e corpúsculos, e sabese<br />

lá que outros tipos de partículas, disparando de cá para lá, seguindo os<br />

passos do ritmo dançante da pulsação humana. Soube disso ao ter imaginado<br />

que aquele sangue estava vivo, o que ocorrera há pouco, e quase tinha feito<br />

seus dentes saltarem de sua boca, feito pregos que, ao serem pregados com<br />

força, trespassam o diâmetro todo de uma viga de madeira, perfurando-a e<br />

surgindo, pontudos, agressivos, indomáveis, do outro lado.<br />

Ela sabia que não havia vida naquele sangue, e sabia o motivo pelo<br />

qual seus dentes estremeciam assim que colocava os olhos sobre a faca.<br />

A mulher era um vampiro.<br />

E era apenas natural que seus dentes, tais como pregos afiados,<br />

perfurassem as gengivas, e que, tais como bússolas, apontassem<br />

Fabian Balbinot<br />

23


freneticamente o caminho que seguia para o norte, a terra prometida feita<br />

de carne e sangue.<br />

Era apenas natural que soubesse onde estava e O QUE DIABOS<br />

ESTAVA ACONTECENDO!<br />

Apenas natural.<br />

...<br />

Nada naquele dia, naquela noite, contudo, parecia ser apenas<br />

natural.<br />

Engolir, girar a cabeça por cima do pescoço, virar de lado na cama,<br />

lamber os beiços, tamborilar com os dedos das mãos nos lençóis de cetim,<br />

mexer os dedos dos pés, ver a mesa verde – se é que havia mesmo uma mesa<br />

verde ... o que mais?<br />

O que mais não podia ser feito...<br />

O QUE MAIS ELA NÃO PODIA FAZER NESTE DIA, NESTA<br />

NOITE TENEBROSA, MISERÁVEL?<br />

...<br />

Sentiu uma leve enxaqueca, alfinetes invisíveis espetando em algum<br />

ponto de seu cérebro.<br />

Tinha que pensar. Relembrar fatos. Concentrar-se.<br />

Acessou arquivos que jaziam escondidos nos velhos armários de sua<br />

memória. Revistando os registros, viu fotos imaginárias de uma bela moça,<br />

ela mesma. O corpo pequeno e esquivo, envolto por trapos representando<br />

pobreza em preto-e-branco. A estatura mediana. A dor e a fome.<br />

Quando mortal, fugira de uma casa enorme, verdadeira mansão,<br />

habitada por ela, filha única, e pelo casal que a havia colocado no mundo,<br />

seu pai e sua mãe. Tivera dinheiro, bonecas caras, um quarto gigantesco,<br />

criados, tudo o que uma criança poderia querer.<br />

Só não tivera infância.<br />

Seu pai e sua mãe vivos, políticos, advogados, empresários,<br />

fazendeiros, especuladores, enfim, donos de uma infinitude de posses,<br />

bebiam, brigavam e discutiam durante o tempo em que estivessem juntos<br />

em casa. Agrediam-se verbal tanto quanto fisicamente. E a ignoravam tanto<br />

quanto podiam. Parecia que sequer sabiam de sua existência.<br />

E sequer souberam de sua existência, mesmo quando ela começou a<br />

usar as seringas.<br />

Não se lembrava direito da época, nem da duração da experiência,<br />

mas tinha absoluta certeza de que, se o medo e o tédio, a indiferença e a<br />

tristeza tinham dominado metade de sua vida, as drogas tinham consumido<br />

a parte restante. Ignorada pelos pais, intransigente com os empregados,<br />

ameaçando demiti-los, prendê-los, matá-los, ela havia sido a personificação<br />

cabal de uma impiedosa górgona adolescente. Verdadeira víbora, odiando<br />

a tudo e a todos, acabando com vidas por debaixo dos panos, destruindo a<br />

si própria nos bastidores de um teatro macabro e grandioso de dinheiro e<br />

24 Doença e Cura


escândalos escondidos, escrito, dirigido e interpretado pelos grandes astros<br />

que eram seus pais vivos.<br />

Pais outrora vivos, agora mortos.<br />

Não conheceu seu pai morto.<br />

Conheceu apenas a seringa. Suja de vermelho, velha talvez. Usada<br />

por alguém... Alguém que tinha o poder da morte-vida.<br />

Havia passado dias e noites no escuro, sem poder mais ingerir álcool<br />

ou picar-se, nem cheirar, inalar, aspirar, sorver... atitudes que tinham passado<br />

a ser hábitos naqueles seus últimos anos como viva. Vomitava tudo o que<br />

comesse, bebesse, cheirasse ou que de outras formas insólitas introduzisse<br />

dentro do próprio corpo. Suava, e esperneava, e gritava de dor, e queria se<br />

matar, e também queria matar a todos os que tentavam impedi-la de se matar.<br />

Sofria com queimaduras na pele durante o dia e crises de abstinência noturna,<br />

além de dores profundas e constantes em ambos os períodos. Dores profundas<br />

e constantes de cabeça, nos braços, nas pernas, cólicas, hemorragias, dores<br />

de dente em todos os malditos dentes, febres, quedas de temperatura, dores<br />

de todos os tipos em todas as partes do corpo. Queria matar um por um<br />

todos aqueles médicos, ginecologistas, enfermeiros, pediatras, pederastas,<br />

psiquiatras, psicólogos e psicopatas, e todos os outros FILHOS-DA-PUTA que<br />

tinham sido contratados por seus pais para “lidar com o pequeno problema de<br />

sua filha”, profissionais dedicados, gênios da medicina, porcos desgraçados<br />

que a tinham amarrado, sedado, anestesiado... e ao final de tudo, desistido,<br />

incapazes de resolver o grave problema daquela menina.<br />

Porcos desgraçados, e burros, que não conseguiam acreditar na louca<br />

verdade gritada por uma das criadas, a mais religiosa de todas. “Ela virou<br />

um monstro da noite!”, vociferava a crente, “Cristo Jesus! Ela está comendo<br />

carne crua, e tomando sangue!”<br />

“A pele dela está pegando fogo sempre que ela fica no sol!”<br />

“Os olhos dela mudam de cor!”<br />

“Seus dentes! Os dentes dela estão pontudos, todos eles!”<br />

“Ela está endemoninhada! O diabo está dentro do corpo dela!”<br />

Os médicos e especialistas tinham levado em consideração todas<br />

as frases acima, exceto a última, em seus diagnósticos quanto a uma certa<br />

“patologia rara, não especificada em qualquer literatura especializada”.<br />

A última frase da tal criada tinha sido levada em consideração apenas<br />

pelo seu pai, ao ter este a demitido, taxando-a de louca e retardada.<br />

Ora, demônios... possessão demoníaca, satanismo, o fogo do inferno,<br />

a perda da alma, a danação eterna. Tudo isso é bobagem. Vampirismo é um<br />

mal muito real e natural, uma doença que acaba servindo de cura para todas<br />

as doenças, até mesmo para a morte.<br />

Seu pai tinha até um pouco de razão em ter demitido a empregada.<br />

Não que ele, ou alguém desconfiasse da verdadeira natureza da doença que<br />

acometia a filha.<br />

Fabian Balbinot<br />

25


Descobriram tarde demais que, em suma, não se tratava de uma<br />

doença de fato. Lembrava mais uma espécie de carência, ou abstinência,<br />

fazendo jus a um termo já usado anteriormente.<br />

Abstinência de sangue. Sede de sangue noturna.<br />

“Ela virou um monstro da noite!”<br />

Desnecessário dizer que ela acabou matando pai e mãe, e mais<br />

algumas pessoas.<br />

Bem, na verdade, foram muitas pessoas. Muitas mesmo.<br />

No início, chorava feito louca ao ver os crimes consumados, as mãos,<br />

os dedos estranhamente mais compridos que o normal, os pontos de conexão<br />

entre as falanges incrivelmente inchados, as unhas compridas, a pele pálida.<br />

Os dedos crispados como garras, cobertos de sangue e pedaços de carne,<br />

pele, cabelo.<br />

Os corpos agonizantes estendidos no chão, na lama, na relva, em todo<br />

lugar.<br />

No início, a sede era tamanha que ela chegava a rasgar a carne,<br />

arrancando-a dos ossos, engolindo nacos inteiros. O sangue dos vivos<br />

jorrava pelo chão, coagulando e enlameando tudo. Parecia um monstro<br />

predador voraz de outro planeta. Bastava que visse os vivos, e que estivesse<br />

com sede.<br />

E sempre parecia estar com sede.<br />

Mais tarde, aprendeu a controlar certos aspectos da metamorfose e da<br />

sede, e a aceitar melhor o que havia acontecido. Foi aconselhada e tutorada por<br />

outros membros de sua espécie. Outros doentes. Outros endemoninhados.<br />

Descobriu que era o sangue, e não a carne, que a alimentava de fato,<br />

se bem que isto era o óbvio, desde o princípio. Os livros, a mitologia não<br />

estava errada. Vampiros alimentam-se de sangue, de fato e de direito. Era<br />

ela a louca, a vampira complexada e lunática que não queria acreditar no que<br />

era certo. E por isso, acabou matando muito mais do que devia, e chorando<br />

lágrimas de sangue sobre uma infinidade de cadáveres.<br />

Eles, os doentes endemoninhados, coexistiam em uma sociedade<br />

bastante organizada, regida por condutas e tradições herdadas de outros,<br />

e aperfeiçoadas por eles próprios, no decorrer de séculos e milênios de<br />

evolução. Era uma sociedade constituída por poucos integrantes, que<br />

raramente se encontravam, e que pouco dialogavam. Cada grupo tinha o seu<br />

território de caça, e visitas indevidas de um determinado indivíduo ou grupo<br />

ao território de outrem poderiam ser recebidas com um breve debate, uma<br />

advertência, ou mesmo serem punidas com a morte.<br />

Cartas e manuscritos, muitos dos quais escritos em linguagens<br />

arcaicas, substituíam a palavra falada, que só era empregada em<br />

breves acordos tácitos, quase eternos, os quais estabeleciam fronteiras,<br />

demarcavam territórios, proclamavam repúblicas e erigiam reinos,<br />

redesenhando toda a geografia dos vivos, dividindo países em muitos<br />

26 Doença e Cura


estados e distritos, ou então unificando continentes inteiros sob o domínio<br />

de um único suserano.<br />

Um destes doentes malditos, talvez a pessoa mais bondosa que ela já<br />

havia conhecido durante sua vida inteira, foi quem a auxiliou na morte.<br />

O veterano. Um homem grande, de pele escura e musculatura delgada,<br />

porém saliente.<br />

Ele a havia encontrado em uma noite “daquelas”, ela bem podia se<br />

lembrar. Naqueles tempos, ela estava sendo caçada pela polícia, e muitos<br />

jornais já faziam menção de uma espécie de vampiro em suas manchetes<br />

de capa. “Vampiro ataca novamente”, “O Vampiro da Cidade Tal”, diziam<br />

eles, enquanto outros brincavam com a verdade, usando os recursos do<br />

sensacionalismo barato: “Caça às Bruxas”, “O Estripador está à solta”,<br />

“Cuidado com o Monstro”, “Mulher Demônio é vista outra vez”, etc., e<br />

etc.<br />

Em uma de suas muitas fugas frustradas, em que ela acabou<br />

sendo perseguida por uma numerosa força-tarefa policial, tendo sido<br />

impiedosamente morta com uma dezena de tiros e levada para o necrotério<br />

– pois era muito fácil para ela fingir-se de morta, enganando os vivos – foi<br />

que viu o veterano pela primeira vez.<br />

Assim que ela livrou-se do saco plástico em que seu corpo morto<br />

cravejado de balas havia sido acondicionado, empurrou o compartimento<br />

deslizante do freezer e arrastou-se para fora da câmara congelante, acabou<br />

topando com aquele grande homem, uniformizado, disfarçado de modo a<br />

parecer um funcionário do local.<br />

A princípio assustou-se, e a seguir ameaçou-o, rosnando e gritando.<br />

Foi recebida com um único tapa que a projetou sobre uma mesa móvel,<br />

derrubando ambas e tudo o que houvesse por perto, fazendo um escarcéu<br />

de instrumentos e peças metálicas, além de balas, quicando pelos azulejos<br />

do piso. Isso, e alguns dos ossos da jovem partidos, que acabariam sendo<br />

regenerados mais tarde.<br />

“Siga-me.”, havia dito o homem. Virando-se e partindo pela porta<br />

aberta da saída, onde dois outros homens e uma mulher também uniformizados<br />

jaziam, os pescoços quebrados, os corpos deixados a esmo por aí.<br />

No dia seguinte, os jornais tinham reproduzido em suas manchetes,<br />

cada qual à sua maneira, o “Corpo levado do Necrotério, na calada da<br />

noite”...<br />

A partir de então, sua morte-vida mudou.<br />

O veterano a ensinara muitas coisas.<br />

É claro que, a princípio, ela tentou opor alguma resistência aos<br />

ensinamentos de seu novo mestre. É normal que os jovens sejam assim,<br />

rebeldes.<br />

O veterano era um professor rigoroso, e ela acabava sempre sendo<br />

repreendida por sua rebeldia.<br />

Fabian Balbinot<br />

27


O problema maior que tinha era a natureza um tanto ou quanto cruel,<br />

por assim dizer, de tais reprimendas. Podia ser dito que, “no decorrer de sua<br />

vida como morto”, seu novo tutor havia adquirido alguns conhecimentos um<br />

tanto ou quanto excêntricos a respeito da anatomia do corpo humano. Por<br />

exemplo, era especialmente digna de consideração sua habilidade e destreza<br />

no trato com os ossos, uma vez que ele conseguia deslocá-los e parti-los, por<br />

assim dizer, com sofisticados movimentos de suas grandes mãos, sem causar<br />

nenhum dano maior na pele e nos músculos do paciente.<br />

Doía muito, por assim dizer...<br />

No primeiro ano de convivência com o veterano, a moça era bastante<br />

rebelde, e muitos dos ossos de seu corpo foram partidos, deslocados, e<br />

ocorreu até mesmo a remoção, e posterior devolução de alguns deles. Afinal<br />

de contas, seu mestre vampírico tinha um grande coração, e sempre devolvia<br />

as coisas que dela escondia ao puni-la.<br />

“Ossos SEMPRE regeneram”, dizia ele.<br />

Muito piores eram as punições com fogo, eviscerações e<br />

“inviscerações”, trocas de órgãos, empalações no coração de modo a paralisálo,<br />

estagnando o fluxo do sangue pelo corpo e impedindo os movimentos<br />

– por algum motivo obscuro, vampiros não conseguem se mover caso o<br />

sangue pare de circular pelos seus corpos – além das exposições prolongadas<br />

de partes do corpo à luz solar. Algumas das “tatuagens” que ela tinha nos<br />

braços e pernas tinham sido criadas por intermédio de uma conjunção destas<br />

duas últimas terapias. Ela nem gostava de lembrar dos dias inteiros em que<br />

passara com pequenas áreas do corpo descobertas, sendo continuamente<br />

alvejadas pelos raios do sol, sem que pudesse se mexer ou gritar, em virtude<br />

de um enorme parafuso de madeira ter sido estrategicamente posicionado<br />

em seu coração.<br />

Isso doía muito mais do que ter ossos deslocados, diga-se de passagem.<br />

E deixava marcas.<br />

“Pele queimada de sol NUNCA regenera”, dizia o veterano.<br />

Logicamente, seu mestre empregava estas punições mais severas<br />

apenas nos momentos em que ela fazia coisas muito erradas, como tentar<br />

fugir, ou dizimar algumas dúzias de crianças em um jardim da infância...<br />

Seu mestre era uma pessoa muito boa, e não gostava de aplicar tais<br />

punições. Mas era um mestre na arte punitiva, e lançaria mão de suas aptidões<br />

especiais sempre que se fizesse necessário.<br />

Afinal de contas, ela era uma vampira, e não um monstro assassino<br />

procurado pela polícia de países inteiros.<br />

“Vampiros NUNCA são procurados pela polícia.”<br />

Levou algum tempo, mas enfim a jovem vampira aprendeu como as<br />

coisas funcionavam, e as notícias nos jornais foram se tornando mais amenas.<br />

Ela descobriu que malcriações no mundo dos vivos apenas serviam para<br />

dificultar as coisas, e que o método, a calma, a perseverança e o autocontrole<br />

28 Doença e Cura


eram virtudes que rendiam muito mais sangue, de melhor qualidade, e com<br />

um mínimo dispêndio de energia.<br />

Com perseverança e autocontrole, aliados a um rigoroso treinamento,<br />

passou a dominar as capacidades especiais que a morte-vida havia despertado<br />

em seu corpo. Ouvir sons distantes, e focalizar apenas o que se deseja ouvir.<br />

Encontrar coisas e pessoas através do cheiro. Distinguir a vida da morte,<br />

e perceber o movimento e o calor do sangue dos vivos, mesmo através de<br />

paredes finas. Manipular mentes. Seduzir...<br />

“Vampiros SEMPRE são desejados. Eles NUNCA tomam o sangue<br />

dos vivos à força.”<br />

Passou a frequentar festas e certos eventos sociais menores.<br />

Particularmente, sua maior predileção eram os cassinos. A excitação<br />

correndo solta no ar. As risadas gostosas, os vinhos finos. Os jogos<br />

divertidos, carteados, apostas, pilhas de fichas, a sorte grande... a miséria<br />

em um lance. Os dados rolando, sendo chocados uns contra os outros,<br />

suavemente, sobre a mesa grande, verde, sem contornos, indefinida...<br />

Façam suas apostas!<br />

Cassinos e salões de jogos são ótimos locais de diversão para os<br />

vampiros, uma vez que aliam um ambiente escuro...<br />

“Lugares claros demais NUNCA são bons. Prefira os mais escuros.”<br />

... ao que há de mais corrupto, desagradável, medíocre, mesquinho,<br />

falso, desprezível, hipócrita, em suma, a nata da sociedade humana. Ricaços<br />

afloram com seus carrões conversíveis e negociatas insólitas, desfilando a<br />

pretensão da última moda, e jogando dinheiro para o alto. Enriquecendo ou<br />

empobrecendo um pouco, ou terminando na mais completa miséria da noite<br />

para o dia, em uma única rodada de roleta.<br />

Um excelente ambiente para vampiros sedentos de sangue e de<br />

dinheiro, segundo o veterano, uma vez que vampiros só podem... digamos,<br />

trabalhar à noite. Uma ótima pedida que rendia carteira e barriga cheia,<br />

além de um certo status, bastando para tanto que se soubesse tirar o devido<br />

proveito da situação.<br />

Suas preferências tornaram-se similares às de seu mestre, no concernente<br />

aos locais de repasto. Entretanto, ele tinha uma predileção por vítimas do<br />

sexo masculino que a princípio a deixava constrangida. Ela era uma mulher,<br />

e preferiria transar com homens, caso estivesse viva. Não sentia nenhuma<br />

atração por mulheres, imaginava. Segundo seu mestre, essas opções poderiam<br />

mudar conforme o tempo passasse. Ela descobriu mais tarde, contudo, através<br />

de leitura e pesquisa esporádicas, que o sangue humano masculino tende a<br />

ser rico em certos hormônios tipicamente masculinos, como a testosterona,<br />

substâncias estas cuja produção cessa no organismo transmutado dos vampiros.<br />

Segundo as várias literaturas que tinha consultado...<br />

“Leia e estude SEMPRE. Somos os legítimos herdeiros e mantenedores<br />

do conhecimento e do patrimônio histórico humano.”<br />

Fabian Balbinot<br />

29


... aliadas às próprias convicções, parecia ser natural que a virilidade<br />

física de vampiros do sexo masculino tivesse de ser mantida através de<br />

métodos mais heterodoxos, como a ingestão de hormônios masculinos, que<br />

pareciam ser facilmente encontrados no sangue de homens viris.<br />

Ela só não conseguia entender por que os homens que o veterano<br />

escolhia pareciam ser todos homossexuais...<br />

Mas isso não vem ao caso. A certa altura, ela própria acabou se<br />

alimentando de mulheres. No fim das contas, o sexo de uma presa NUNCA<br />

importa. Vampiros são vampiros, e o que interessa são os litros de sangue,<br />

saborosos litros de sangue, dentro das carcaças humanas.<br />

Sangue vermelho. Quente.<br />

Sangue sujo de álcool era um problema.<br />

Sangue doente, rico em micróbios, bactérias, vírus, os quais a<br />

diferenciada fisiologia vampírica acabava exterminando de pronto,<br />

automaticamente.<br />

“Vampiros NUNCA pegam doenças de humanos.”<br />

Sangue pobre. Hemofílicos. Diabéticos. Anêmicos.<br />

Sangue intoxicado.<br />

...<br />

Sangue sempre vermelho. Sempre quente. Sempre saboroso.<br />

Vermelho.<br />

Diferente do cinza que via agora.<br />

Diferente do negrume do sangue coagulado, salpicado na lâmina da<br />

faca, à sua direita.<br />

...<br />

O que estava acontecendo?<br />

Fechou os olhos, e procurou concentrar-se mais. Manipular o sangue<br />

que ainda havia no corpo. Conclamar as forças, os poderes que o sangue<br />

havia despertado dentro de si, as técnicas ensinadas por seu mestre.<br />

Abriu os olhos, mas a visão não se fez real. As lentes de sangue,<br />

que tudo vêem, não se materializaram. Seus ouvidos não se aguçaram. Sua<br />

mente não transcendeu os limites do corpo. E a pobre mulher continuou<br />

isolada, cercada pelos limites e barreiras superficiais impostas pela carne.<br />

Continuava a ver apenas a névoa estática e cinzenta, escura, e a faca<br />

suja de sangue velho, e também a silhueta do frasco de vidro que quase<br />

sumia de vista.<br />

A visão maleável, os mil olhos do corpo, que em um relance revelam<br />

a imagem de tudo e de todos que possam estar à sua volta... Os ouvidos<br />

do morcego, que de um golpe permitem tocar tudo e todos em uma ampla<br />

área, revelando contornos e superfícies, projetando na imaginação uma<br />

composição tridimensional completa de todo um ambiente... O toque do<br />

espírito, que examina mentes, descobre intenções, sonda auras e mostra as<br />

vítimas mais suscetíveis...<br />

30 Doença e Cura


Nada disso funcionou. Nenhum destes poderes ancestrais. “Tudo e<br />

todos” que pudessem estar em seu redor continuou sendo apenas um vazio<br />

cinza.<br />

E havia algo ainda pior.<br />

Ela fechou os olhos, tentando concentrar-se, evitar o pânico.<br />

O sangue.<br />

Vermelho.<br />

O vermelho do sangue havia desaparecido de seu corpo.<br />

Seu sangue não respondia aos seus comandos.<br />

Seu sangue não pulsava.<br />

Seu sangue não vivia.<br />

E seu corpo...<br />

SEU CORPO PARECIA TER DESAPARECIDO!<br />

* * * * *<br />

A mulher abriu os olhos, assustada.<br />

Piscou algumas vezes. Estava claro, novamente.<br />

Sentia-se tonta, a vista estava embaçada, as imagens em redor<br />

turvas.<br />

Estava fresco. Uma brisa suave batia em seu rosto.<br />

Ouviu um ruído. Uma porta sendo aberta. Dobradiças velhas estalando<br />

e rangendo.<br />

Sons de carros, buzinas, bem ao longe.<br />

Passos.<br />

Passos, botas ou tênis ou sapatos ou pés descalços pisando,<br />

caminhando. Aproximando-se.<br />

Uma voz.<br />

– Ah! Você acordou.<br />

Uma voz rouca, de homem.<br />

Sentiu um toque. Surpresa, percebeu que uma, duas, três... uma série<br />

de coisas pontudas, macias, arredondadas, tateavam sua cabeça...<br />

Dedos?<br />

– Você é o meu troféu...<br />

... tentando agarrá-la. Agarrando, erguendo, elevando, puxando sua<br />

cabeça para cima, e girando-a sobre o pescoço.<br />

PUXANDO SUA CABEÇA PARA CIMA, E GIRANDO-A SOBRE<br />

O PESCOÇO!<br />

Muito... rápido. Rápido demais! Trinta, sessenta, noventa.. cento e<br />

oitenta graus. Meia volta volver!... e mais do que isso. Sua cabeça sendo<br />

completamente deslocada, dando um nó no pescoço!<br />

Instintivamente, a jovem fechou os olhos, sentindo uma espécie de<br />

náusea.<br />

Fabian Balbinot<br />

31


CRISTO JESUS!<br />

...<br />

Concentrar-se. Concentrar-se. Concentrar-se. Ignorar a dor. Ignorar a<br />

dor. Ignorar...<br />

QUE dor?<br />

...<br />

Um solavanco, seguido por um baque. E, novamente, ausência de<br />

movimento.<br />

– Calma, criança! Não tema.<br />

Abriu os olhos de novo.<br />

Sentia-se ainda mais tonta, a vista estava mais embaçada, as imagens<br />

em redor giravam.<br />

E, Deus, como havia imagens ao seu redor.<br />

Piscando algumas vezes, ela viu...<br />

Uma sala, ou um quarto, semi-retangular. Paredes e teto pintadas em<br />

um tom pastel, cor creme, alvo, semelhante ao bege. As superfícies davam<br />

a impressão de estarem sujas em alguns pontos – pensando bem, estavam<br />

sujas em MUITOS pontos, imundas mesmo, e não era impressão não. Tinta<br />

descascando ali. Rachaduras acolá. Tudo encontrava-se em um péssimo<br />

estado de conservação.<br />

Um par de lâmpadas fluorescentes compridas, dispostas em paralelo<br />

uma em relação à outra, em uma armação metálica prateada, bastante<br />

rudimentar, desciam do teto. O suporte estava suspenso...<br />

QUE dor?<br />

... por quatro correntes cinzentas, finas e curtas, com não mais do que<br />

dez centímetros cada. Atrelado entre os elos de uma das correntes estava<br />

um cabo de alimentação elétrica negro, cujo extremo mais alto metia-se por<br />

dentro de um furo grosseiro feito no teto.<br />

As lâmpadas eram bem potentes.<br />

Uma janela de madeira, também bege, trancada. Tampas venezianas,<br />

com suas fasquias cobertas em parte por meia dúzia de largos sarrafos<br />

sem pintura, ali pregados de forma a vedar a janela de dentro para fora,<br />

permanentemente.<br />

Não havia nenhuma parte corrediça na janela, onde são afixados os<br />

vidros, e isto até poderia justificar a brisa suave e fresca em seu rosto, caso<br />

houvesse alguma outra passagem por onde o ar que entrava pudesse sair.<br />

QUE dor? O pescoço... quebrado...<br />

Uma mesa pequena e tosca, de madeira, que não era verde como as<br />

grandes mesas forradas dos cassinos nem tinha nada de suntuoso, estava<br />

posicionada bem para o lado onde seu nariz apontava naquele instante,<br />

debaixo da janela e rente à parede.<br />

Havia coisas sobre a mesa. Muitos objetos, e nenhum deles lembrava<br />

dados, cartas ou fichas de apostas. Frascos de vidro tampados com rolhas,<br />

32 Doença e Cura


ordenados metodicamente, cada qual parecendo ter um tamanho, uma forma,<br />

e estar armazenando um conteúdo diferente do outro. Substâncias em estado<br />

aparentemente líquido, em uma ampla gama de cores, podiam ser vistas nos<br />

frascos.<br />

Também podiam ser vistos tubos de ensaio, bem menores que os<br />

frascos, dispostos em fileiras nos seus suportes característicos, por sobre a<br />

mesinha. Como acontecia com um que outro dos frascos maiores, alguns dos<br />

tubos de ensaio estavam vazios.<br />

Passos.<br />

Um vulto passou caminhando, cruzando a salinha, vindo de um canto<br />

à direita e dirigindo-se para um outro canto, no lado oposto da sala. Os olhos<br />

da jovem acompanharam a pessoa, e ela fez menção de girar a cabeça...<br />

QUE dor? O pescoço... quebrado...<br />

... sobre o pescoço...<br />

QUE PESCOÇO?<br />

... para ver aonde este se dirigia.<br />

O pescoço...<br />

QUE PESCOÇO? CRISTO JESUS, PAI SANTÍSSIMO!<br />

“seu pescoço está em outro lugar...”<br />

... não se mexeu, e a cabeça permaneceu estacionada em seu lugar,<br />

com alguma coisa debaixo de seu queixo, e em redor, cercando, apoiando a<br />

parte de baixo de sua cabeça. Algo sólido, duro, reto. Frio.<br />

– Não adianta tentar se mover – disse a voz de homem que ela já<br />

ouvira antes. – Você não vai conseguir.<br />

O pouco que ela conseguiu ver daquele seu estranho interlocutor<br />

revelou uma indumentária típica de enfermeiro, ou médico. O uniforme<br />

semelhante a um guarda-pó, branco. A máscara branca atada no rosto.<br />

Algo sendo carregado por mãos cobertas com luvas de borracha, uma coisa<br />

estranha.<br />

Uma... mão.<br />

E mais nada.<br />

...<br />

A mulher piscou os olhos, e depois os arregalou.<br />

Uma MÃO!<br />

“sim, uma mão... SUA mão”<br />

Sua boca continuava aberta. Sua língua continuava não podendo se<br />

mexer além de um centímetro, lá e cá, dentro de sua boca. Suas gengivas<br />

continuavam coçando.<br />

QUE PESCOÇO?<br />

UMA MÃO?<br />

Ela queria gritar. Queria se mexer. Queria usar seus poderes. A força<br />

prodigiosa, a velocidade sobrenatural, que o sangue humano concedia.<br />

Queria levantar sair correndo saltar sobre a pessoa que ali estava estraçalhar<br />

Fabian Balbinot<br />

33


seu pescoço seus braços seus ossos seu corpo inteiro sair correndo arrombar<br />

a porta com um chute sumir de vista, tudo isso em cinco segundos, ou até<br />

menos, quem sabe,...<br />

Silêncio. Nenhum som.<br />

“Esqueça.”<br />

... como já tinha feito antes.<br />

Uma MÃO! Ele estava carregando UMA MÃO!<br />

Hã?<br />

“Jamais poderá usar seus poderes de novo.”<br />

O quê?<br />

Alguma coisa estava errada. Seus pensamentos.<br />

“Não, MEUS pensamentos.”<br />

...<br />

“Sei que você está curiosa e quer saber o que está acontecendo...”<br />

Ruídos dilacerando o silêncio.<br />

Coisas sendo puxadas, ou empurradas.<br />

Olhos arregalados, apontando para todos os lados, procurando ver o<br />

que estava acontecendo.<br />

Terror.<br />

Pânico.<br />

Horror.<br />

Nenhuma dor. Nenhuma sensação.<br />

“... mas não há tempo para isso agora.”<br />

Uma voz ecoando dentro de sua cabeça. Suas têmporas latejando.<br />

QUE PESCOÇO?<br />

Ele estava carregando UMA MALDITA MÃO!<br />

“Você saberá, em breve, minha criança.”<br />

Um movimento, brusco.<br />

Toque. Alguma coisa tocando sua cabeça.<br />

Escuridão.<br />

“Por enquanto, é melhor que você durma um pouco.”<br />

...<br />

Escuridão. Abafada escuridão. Algo envolvendo sua cabeça. Um...<br />

tecido... Não... Um saco plástico.<br />

A noite... o dia.<br />

O sono.<br />

A paz.<br />

A quietude.<br />

A inércia.<br />

O esquecimento.<br />

* * * * *<br />

34 Doença e Cura


A mulher abriu os olhos outra vez, e outra, e mais outra.<br />

Estava claro, novamente. Na verdade estava claro demais...<br />

Passou a sentir-se tonta, os olhos começavam a arder, as imagens em<br />

redor iam ficando turvas, pouco a pouco perdiam nitidez.<br />

Estava quente. Vento batia em seu rosto.<br />

Não havia mais ruídos.<br />

Estava surda.<br />

Estava muda.<br />

Estava começando a ficar cega.<br />

E talvez estivesse começando a ficar louca...<br />

... ou talvez já estivesse louca há bastante tempo.<br />

Lembrou-se das palavras ditas por aquele homem misterioso.<br />

Aquela criatura horrenda.<br />

UM OUTRO VAMPIRO?<br />

Lembrou-se de quando sua cabeça estivera coberta por um saco<br />

plástico. Um saco de lixo.<br />

Lembrou-se de como os ruídos tinham estado abafados e as imagens<br />

turvas naquela ocasião.<br />

... apenas um espaço vazio, escuro, cinzento, como uma parede que<br />

começa em um dos cantos da vista e se estende até ter atravessado todo o<br />

campo de visão. Ocupando tudo. De lado a lado, de cima a baixo...<br />

Os passos, as coisas sendo jogadas, chocando-se umas com as outras<br />

como dados em uma mesa de jogo.<br />

Lembrou-se de quando sua cabeça estivera livre. A luz fluorescente<br />

acesa, e depois apagada. A claridade, e depois a escuridão. Olhos<br />

acostumando-se com a escuridão. O frasco de vidro que seus olhos mal e<br />

mal podiam alcançar, à esquerda. A faca coberta de sangue...<br />

“Aquele era o seu próprio sangue...”<br />

... e a estranha névoa cinzenta, escura. Na verdade, a neblina cinzenta<br />

não era nada além de uma das paredes da sala onde ela tinha sido mantida<br />

cativa. Por quanto tempo, nem ela sabia determinar. E o homem...<br />

A criatura.<br />

SERIA UM SER HUMANO?<br />

... não permanecera ali por tempo suficiente para que ela pudesse tê-lo<br />

indagado a respeito.<br />

“Não adianta tentar se mover.”<br />

A faca coberta de sangue coagulado.<br />

“Seu próprio sangue, unido ao meu.”<br />

As memórias de um terrível passado como humana, glorioso como<br />

vampira, retornavam.<br />

Simples passado.<br />

Agora, não passava de uma cabeça separada de um corpo.<br />

O homem misterioso...<br />

Fabian Balbinot<br />

35


A criatura vil, a besta.<br />

UM CAÇADOR?<br />

... havia lhe contado os pormenores mais importantes. Prestara-lhe os<br />

devidos esclarecimentos. Dissera-lhe o que tinha estado acontecendo desde<br />

aquele primeiro dia, em que acordara com sua cabeça embrulhada em um<br />

reles saco de lixo, vendo escuridão e ouvindo sons abafados.<br />

Como o homem justo que dizia ser, a besta maldita dissera-lhe a<br />

verdade.<br />

Uma verdade horrenda, bestial.<br />

NÃO... NÃO ERA UM CAÇADOR...<br />

As memórias voltavam, como ondas frias que são lançadas contra a<br />

costa.<br />

“Alimento-me de sangue, como os integrantes de sua espécie”,<br />

começara ele, “porém minhas origens são diferentes, tanto quanto o tipo de<br />

sangue do qual me alimento.”<br />

“Na verdade, não passo de um simples humano, cujo comportamento<br />

corporal foi alterado devido a algo que muitos poderão classificar como<br />

uma doença bizarra e crônica, mas que eu prefiro qualificar como uma<br />

intervenção divina.<br />

“Alimento-me de sangue, o doce, o reforçado sangue dos vampiros.<br />

“Tudo começou há mais ou menos um ano. Comecei a passar mal,<br />

sentir enjôos e tonturas que comprometiam minha profissão e minha vida<br />

real. Eu era um médico, e cirurgias eram a minha especialidade. Mas,<br />

cirurgias devem ser executadas com destreza e precisão, e a instabilidade<br />

que passou a atacar meu corpo – em particular minhas mãos – colocava<br />

não só minha carreira em perigo, como vidas em jogo.<br />

“Fui obrigado a afastar-me de minha profissão. E mais tarde, eis que<br />

meus familiares me conduziam a um hospital, desta vez como paciente. Outros<br />

médicos, alguns deles meus conhecidos, pessoas de extrema capacidade em<br />

suas funções, pessoas confiáveis... eles fizeram seus exames em meu corpo.<br />

Usaram técnicas avançadas, métodos inovadores, sofisticados aparelhos de<br />

diagnóstico.<br />

“Para nada serviu toda a parafernália eletrônica e o talento dos<br />

mais renomados especialistas. Segundo o que descobri mais tarde, em<br />

duas semanas eu passei ao coma profundo, e logo a seguir estava morto. E<br />

ninguém soube explicar o que havia acontecido comigo.<br />

... uma certa “patologia rara, não especificada em qualquer literatura<br />

especializada”...<br />

“Os relatórios médicos que encontrei após minha morte, ao ter<br />

vasculhado os documentos dos hospitais revelaram o que eu já estava<br />

sabendo: extensos palavreados técnicos, que podem ser simplificados como<br />

constantes paradas cardíacas e fluxo sanguíneo anormal, por assim dizer.<br />

Hemorragias intencionais. Meu sangue saía e entrava dos vasos sanguíneos,<br />

36 Doença e Cura


e atravessava os demais tecidos do corpo, quando bem entendesse. Saía<br />

sangue do corpo o tempo inteiro, pelas fezes, urina, por intermédio de<br />

vômitos, e em alguns casos pelos ouvidos e narinas, e até pela pele. E havia<br />

ainda as crises de febre, seguidas de agudo resfriamento corporal. Dores,<br />

devaneios, o coma. A ausência de infecções.<br />

... Ela está endemoninhada! O diabo está dentro do corpo dela!...<br />

“Há de se convir que não existe prospecto estabelecido na medicina<br />

atual para semelhante série de sintomas. Existem várias doenças cujos<br />

indícios, se somados, acabariam resultando em uma patologia similar,<br />

porém é praticamente impossível que todas venham a ocorrer juntas. Não<br />

há organismo que possa resistir a um fogo cruzado tão intenso, isso sem<br />

contar que muitas doenças apresentam a peculiaridade de anularem-se<br />

umas às outras.<br />

“Não culpo meus colegas, médicos. Eles não teriam subsídios para<br />

definir o mal que me acometia, nem mesmo em parte. E sequer tiveram<br />

tempo para iniciar estudos mais amplos a respeito. Minha família no<br />

mundo dos vivos, sem querer, acabou me ajudando. São bastante religiosos.<br />

Necropsias estavam fora de cogitação, e isso só favoreceu o meu retorno<br />

ao mundo dos vivos.<br />

“Com a dádiva que recebi, não foi difícil sair do túmulo, no cemitério.<br />

No estado em que me encontro, os mortos sempre acabam me ajudando de<br />

alguma forma.<br />

“Enfim, livre, caminhei pelo mundo. Deixei meu país de origem<br />

por estar meu nome ainda envolvido com notícias e processos judiciais<br />

naquele local. Senti alguns remorsos para com minha família, se bem que<br />

o comportamento deles estava persuadindo escândalos e conflitos entre as<br />

éticas médica e religiosa. Não havia tempo nem razão para que sentisse<br />

remorso, ou saudade, quer de crentes moralistas, quer de técnicos e sábios.<br />

Minha nova vida, bem sei, tem hora e local marcado para terminar.<br />

“Passei meses vagando pelo continente, até que encontrei este<br />

lugar, onde pude aliar meus antigos conhecimentos em cirurgia aos<br />

diversos outros que a dádiva me concedeu. Sou a soma de diversas mentes.<br />

Mentes de gênios e de ignorantes, e mesmo as vagas mentes de muitas<br />

criaturas inferiores, mamíferos como ratos, cavalos, cães, gatos, cada<br />

qual com personalidade, sentidos e instintos típicos. Tenho habilidades<br />

incomuns, algumas até sobrenaturais, mas o corpo que atualmente uso<br />

não passa de uma casca, um reservatório para o que realmente importa<br />

– o sangue.<br />

“Sou o sangue, e o sangue é a dádiva. É ele que me permite andar,<br />

respirar, estudar e compreender, mesmo depois de morto. Sim, pois estou<br />

morto. O sangue, a dádiva impede que este corpo se deteriore, por enquanto.<br />

E em troca, este corpo morto trabalha e estuda, visando engrandecer a<br />

dádiva ainda mais.<br />

Fabian Balbinot<br />

37


“A dádiva exige que eu estude, e que eu me alimente, e que permaneça<br />

vivo até o momento em que uma nova transmigração seja necessária. Por<br />

isso, fui escolhido.<br />

“E vocês, os vampiros, são o objeto de meus estudos. E seu sangue<br />

é o fruto de que me alimento, que me faz permanecer vivo, sustentando a<br />

dádiva e permitindo que ela continue sua travessia, sua vida.<br />

“Seres horrendos e sórdidos, mitológicos, são vocês, eu poderia<br />

dizer. Existem pelos séculos afora, roubando a vida de humanos, matando,<br />

destruindo famílias... Sim, eu sei que você é especial, minha criança. Sei que<br />

prefere os lugares onde a maior parte da mesquinhez humana se concentra,<br />

se bem que em minha concepção, herdada pela dádiva, a mesquinhez<br />

humana não exista, assim como a sordidez vampírica. Segundo a dádiva,<br />

humanos são os meios para que ela possa caminhar pelo mundo e aumentar<br />

seus conhecimentos sobre os vampiros. Humanos, e mamíferos terrestres<br />

em geral, e os outros seres de sangue quente, como as aves e os demais<br />

mamíferos, marinhos, saltadores, voadores, também não estão descartados,<br />

apesar do sangue ainda não ter estabelecido contato com nenhum destes.<br />

Os próprios répteis, anfíbios, peixes, todos estes poderão vir a ser acessados<br />

pelo poder dela, dependendo das circunstâncias e do aprendizado. A<br />

necessidade e a adaptabilidade sempre crescente da dádiva dirão quando<br />

tais criaturas poderão ser úteis na jornada em busca de conhecimento... e<br />

de sangue vampírico.<br />

“Sim. Alimento-me do sangue dos indivíduos de sua espécie. Sou<br />

a doença que vocês nunca tiveram, e o estágio que os sucede na cadeia<br />

alimentar. É típico da natureza que predadores tomem conta do ambiente até<br />

que algo maior surja. E vocês foram os maiores predadores que já existiram<br />

sobre a terra. Sua extraordinária imunidade à morte e fantástico poder de<br />

regeneração só servem para elevar ainda mais o grau de importância de sua<br />

extirpe em relação às outras frágeis criaturas do mundo. É absolutamente<br />

notável que uma simples reestruturação protéica a nível molecular possa<br />

transformar corpos vivos em carcaças aparentemente mortas, e desenvolver<br />

tamanha gama de sentidos, habilidades, poderes. É esplêndido – o estágio<br />

seguinte da evolução humana, o estágio seguinte da evolução da Terra.<br />

“Alimentei-me de seu mestre, a quem você conhecia como o veterano.<br />

Alimentei-me também de outros que encontrei pelo caminho, pois, ao menos<br />

por enquanto, sou o único de meu tipo a caminhar pelo mundo, enquanto<br />

vocês perambulam por aí às centenas, aos milhares. Bilhões de humanos<br />

para milhares de predadores vampiros – milhares de vampiros, para mim,<br />

e para a dádiva. Há sempre muitas presas para poucos predadores. É assim<br />

que funciona o ciclo da vida.<br />

A jovem não se lembrava exatamente das palavras que o homem, o<br />

médico, proferira. Mas, mesmo assim, tinha certeza do que tinha ouvido. Quer<br />

fossem essas ou outras, as palavras juntavam-se e em uníssono proclamavam<br />

38 Doença e Cura


a nova e terrível realidade que passava a existir, a qual estabelecia que os<br />

vampiros não mais eram os seres supremos da Terra. Algo maior e mais<br />

poderoso surgira em virtude de novas mudanças protéicas ou por causa de<br />

alterações genéticas, raios gama, mutações, ou quem sabe tudo isso junto,<br />

misturado ao cruel toque divino.<br />

A dádiva profana.<br />

O portador da dádiva dissera que ela era uma das poucas vampiras<br />

que tinham escapado de seu toque mortal. Por ser ainda muito nova, e ainda<br />

possuir certa equivalência entre suas fisiologias humana e vampírica, ela<br />

seria uma cobaia perfeita para uma série de testes. Estudos que deveriam ser<br />

feitos, experiências a serem postas em prática, teorias a se comprovar.<br />

E ele dissera mais.<br />

Mumificado, paralisado, pelo efeito do sangue, da dádiva, seu<br />

corpo fora espetado por agulhas de seringas que inocularam muitos dos<br />

diversos preparados de diversas cores que ela vira nos frascos sobre aquela<br />

pequena mesa de madeira, e sugaram de volta sangue e resultados que<br />

foram depositados em outros frascos, que só fizeram aumentar ainda mais a<br />

variedade de cores da coleção de que faziam parte os primeiros. Amostras<br />

de sua pele, de seu sangue, e de tantos outros tecidos de seu corpo tinham<br />

sido extraídas para serem observadas através do microscópio, e banhadas<br />

em diversas luzes, e queimadas, e misturadas com outras coisas.<br />

Mais tarde, dedos foram amputados, e a seguir membros, e órgãos...<br />

No final, só restou sua cabeça de mulher. Ainda viva, graças às<br />

“mudanças protéicas”, e, certamente, à própria interferência da dádiva.<br />

“Você é o meu troféu...”<br />

A tudo isso a insensível encarnação da dádiva protagonizava e assistia,<br />

enquanto enchia cadernos com suas anotações.<br />

Até o dia em que teve de partir.<br />

Ali, uma cabeça imóvel, ela não sentia forças para esboçar qualquer<br />

reação.<br />

Conseguia apenas lembrar do contato de algo sólido, duro, reto, com a<br />

base de sua cabeça. O frio mármore de uma prateleira, onde sua cabeça havia<br />

sido depositada, tal e qual um objeto ornamental exótico, uma relíquia.<br />

“Você é o meu troféu...”<br />

O Prêmio Nobel absoluto, incontestável, na categoria necrologia.<br />

Segundo o portador, sua cabeça permaneceria ativa por um período<br />

de tempo indefinido. O cérebro não iria parar de funcionar, uma vez que<br />

os complexos sistemas nervosos humanos adquirem uma espantosa<br />

independência no decorrer da mutação vampírica. O cérebro ainda é o<br />

centro do pensamento, mas as demais partes do corpo passam a contar<br />

com inimaginável vitalidade, reagindo a estímulos externos mesmo após<br />

terem sido secionadas e separadas dos centros nervosos principais do corpo.<br />

O cérebro ainda detém o controle da intelectualidade e do raciocínio, e de<br />

Fabian Balbinot<br />

39


tantas outras atividades neurais complexas, tipicamente relacionadas com<br />

o conceito de inteligência, ao passo que algo que poderia ser caracterizado<br />

como um instinto agregário extremo é acionado nos demais tecidos nervosos,<br />

pelo corpo inteiro.<br />

Um dos fatores preponderantes, comprovado nos inúmeros testes que<br />

fizera, era a habilidade de regeneração dos neurônios, dissera o portador<br />

àquela cabeça obediente e inofensiva, outrora uma jovem e poderosa<br />

vampira. As células nervosas vampíricas, quando lesionadas durante os<br />

testes, iniciavam de pronto o processo de reabilitação, sempre auxiliadas<br />

por células e corpúsculos de outros tecidos, ou por outros neurônios. E um<br />

neurônio vampírico, tendo sido seccionado ao meio, logo deu origem a dois<br />

outros, como ocorre com muitos vermes e protozoários.<br />

E a série de descobertas não terminava aí: um relacionamento novo,<br />

e mesmo uma nova atitude, passava a existir a nível celular, com o advento<br />

da metamorfose vampírica. As células dos diversos tecidos passavam a<br />

compartilhar certas funções umas com as outras, o que seria equivalente<br />

a dizer que umas ensinariam às outras os truques e especializações de<br />

cada uma. Um teste em especial com um certo tipo de tecido não nervoso,<br />

que fora isolado e mantido assim por algum tempo, revelou que uma das<br />

células mais centrais do tecido tinha passado a demonstrar funcionalidades<br />

típicas dos neurônios, parecendo coordenar a manutenção e a oxigenação do<br />

tecido como um todo. Em contrapartida, um neurônio isolado recrudescia,<br />

desenvolvendo adaptações em sua membrana e estrutura interna que o<br />

faziam assemelhar-se às células do epitélio.<br />

Isso sem contar que, como costuma acontecer com os vírus, a total<br />

abstinência de alimento oriundo de fontes externas – leia-se “sangue” –<br />

parecia conduzir tais tecidos a uma atitude de redução de atividade cada vez<br />

maior. As células secavam e murchavam, encolhiam de tamanho e passavam<br />

a hibernar, até entrarem em contato com sangue, ou com alguma substância<br />

com características muito semelhantes ao sangue, preferencialmente quente.<br />

Quando isto acontecia, uma explosão de vida agia nas células, que podem<br />

permanecer em torpor por centenas de anos, e ainda assim regenerarem-se<br />

facilmente.<br />

Semelhante versatilidade e independência celular servia para explicar<br />

a quase invulnerabilidade dos vampiros, o fato destes quase não respirarem<br />

– suas células parecem respirar, e muito – e... bem, talvez explicasse também<br />

porque certos vampiros são tão feios – as deformidades, pele caindo do rosto,<br />

o mau cheiro de alguns, que poderia ser resultado de tantas e tão frequentes<br />

compensações orgânicas em suas células.<br />

Era certo dizer que vampiros são organismos versáteis. Colônias de<br />

células interdependentes tanto quanto independentes, incrivelmente ágeis e<br />

maleáveis.<br />

É lógico que sua cabeça só permanecia assim, consciente, em<br />

40 Doença e Cura


decorrência a uma interferência direta da dádiva em sua fisiologia.<br />

Imortalidade nem sempre é sinônimo de consciência.<br />

Muito ainda faltava para ser descoberto.<br />

Qual seria a real função do sangue nos vampiros, e a participação que<br />

o livre tráfego deste pelo corpo, por dentro e fora de veias e artérias, tem na<br />

fisiologia vampírica. Seriam as hemácias tão somente pacotes de nutrientes<br />

e oxigênio lançados como ração às vorazes células do corpo dos vampiros?<br />

E como se explicaria a hipersensibilidade ao calor e à radiação solar, e<br />

aos danos no coração. E a típica pecilotermia... Por que os vampiros tinham<br />

sangue frio?<br />

Faltava muito ainda a ser pesquisado, concluíra o portador.<br />

A cabeça que já fora mulher tentou calcular quanto tempo aquele<br />

cientista maluco desgraçado tinha ficado enchendo seus ouvidos com<br />

aquele monte de teorias e conjecturas sórdidas, que talvez até estivessem<br />

certas, afinal ELA própria havia servido de cobaia aos experimentos. Tentou<br />

calcular também por quanto tempo tinha servido de cobaia, mas apenas um<br />

valor saltava em sua mente, confirmado pelo próprio médico...<br />

“Tudo começou há mais ou menos um ano.”<br />

E tudo acabaria em breve, tinha dito ele. Para ambos.<br />

Ele acabaria. Seu corpo estava com os dias contados, pois a dádiva<br />

não garantia nenhuma espécie de imortalidade, ou durabilidade.<br />

Morto ele, a dádiva escolheria um novo corpo, um novo portador em<br />

que pudesse se manifestar. Este felizardo morreria uma vez, ressuscitaria,<br />

cumpriria a sua etapa na travessia, morreria de novo, e um novo felizardo<br />

surgiria... e assim por diante. Seres vivos, naturais, servindo como invólucros,<br />

como meios, e os ditos seres sobrenaturais, os vampiros, como fins... e como<br />

repasto.<br />

Pois é assim que funciona. É assim a natureza.<br />

Esta é a cadeia alimentar.<br />

Para a jovem, sem corpo, sem nada, restava tão somente observar.<br />

Não podia sequer chorar. As terminações nervosas ligadas às glândulas<br />

lacrimais deviam ter sido atrofiadas quando o seu corpo fora removido.<br />

Não sentia nenhuma dor física. Seus nervos e células malucas e<br />

evoluídas, ligados aos efeitos da dádiva diabólica, deviam estar cuidando<br />

para que isso não pudesse acontecer.<br />

Restava-lhe a mente humana.<br />

Vampiros são cruéis predadores, é o que diz a vasta literatura humana,<br />

toda ficcionista e romântica. Nada mais singelo a ser escrito de parte das<br />

vítimas – os seres humanos, ingênuos e tolos, porém muito criativos.<br />

Nada mais errado. Nada mais impróprio.<br />

Eram os humanos que destruíam a Terra, acabavam com a vida,<br />

guerreavam consigo mesmos e matavam-se por muito menos do que sangue.<br />

Tinham sido os seres humanos que a tinham torturado por tantos anos. Pai e<br />

Fabian Balbinot<br />

41


mãe humanos, irresponsáveis, gananciosos, loucos por um ridículo dinheiro<br />

de papel. Empregados e criados, doutores e farmacêuticos que a enchiam de<br />

drogas lícitas, e traficantes, e os assim chamados amigos interesseiros, e a<br />

mortífera diversão das drogas ilícitas.<br />

Quem a tinha salvo fora o predador, o veterano. As presas era que não<br />

prestavam. Havia presas demais, elas corrompiam o ambiente, e precisavam<br />

ser controladas.<br />

Mas agora, condenada pela sua juventude tanto humana quanto<br />

vampírica, ela voltava a ser uma presa, nas garras de um predador ainda<br />

mais forte e impiedoso.<br />

E isso sequer servia para deixá-la triste. Os centros nervosos que<br />

deviam estar ligados aos pontos do cérebro responsáveis pelas emoções<br />

deviam estar desligados, se é que ainda existiam. Talvez fossem certas<br />

substâncias que algum lugar do corpo que já não tinha devesse estar<br />

produzindo...<br />

Só conseguia sentir um certo desinteresse, algo parecido com<br />

desânimo.<br />

Talvez estivesse morta.<br />

E talvez a morte fosse assim mesmo, estável, lógica, desprovida de<br />

emoção e sentimento.<br />

Talvez fosse apenas um punhado de terminações nervosas atrofiadas,<br />

ou a falta de substâncias e reações químicas pelo corpo.<br />

O corpo... talvez fosse isso que estivesse lhe fazendo falta de<br />

verdade.<br />

Ela queria se mexer, e sair por aí, pela noite. Visitar os lugares de<br />

antes, os cassinos, os bordéis, as boates. Encontrar gente viva, alimentar-se,<br />

matar alguém às escondidas, e depois sumir da vista sem despertar suspeitas.<br />

Enfim, queria divertir-se, como o veterano a tinha ensinado a fazer.<br />

E acima de tudo, queria saciar a sede de sangue que sentia.<br />

E daria tudo para ter tudo de volta...<br />

* * * * *<br />

Perdida em devaneios, a cabeça exposta no balcão ouviu os passos...<br />

as vozes se aproximando, a porta sendo aberta.<br />

– Olha só... aqui também tá aberto. Dá pra entrar – disse a primeira voz.<br />

Vozes de crianças.<br />

Sangue.<br />

– Sim, mas que fedor, blah! – disse uma segunda voz.<br />

– Não tem nenhuma janela? – perguntou a terceira.<br />

– Sei lá – respondeu a primeira, uma voz de menino crescido. O chefe<br />

da turma.<br />

– Está escuro – disse a segunda voz, que era fina, de menina. – E está<br />

42 Doença e Cura


fedendo... – devia ser uma menina muito pequena.<br />

– Cala a boca – resmungou o chefe da turma. – Não tem nenhum<br />

botão pra ligar a luz?<br />

– Sei lá... – disse a terceira voz, o segundo menino.<br />

Sangue.<br />

Sangue novo.<br />

Sangue novo vezes três.<br />

A cabeça exposta no balcão sentiu os dentes vibrarem, vivos, nas<br />

gengivas.<br />

Ela ainda era um vampiro. Ainda conseguia ver o sangue. Ainda tinha<br />

alguns de seus poderes.<br />

E sentia muita fome.<br />

– Achei um botão – continuou o segundo menino. – Opa! Não. Quer<br />

dizer... tem um monte de botões aqui.<br />

O chefe da turma falou um palavrão. Sua voz estava bem mais<br />

próxima da cabeça exposta no balcão do que a voz do segundo menino. –<br />

Aperta um deles!<br />

Ele era impetuoso. A cabeça exposta no balcão viu de longe o<br />

sangue percorrendo o corpo de menino forte, atlético. A coragem mantinha<br />

razoavelmente estável o ritmo das pulsações.<br />

– Já apertou?<br />

– Sim, mas não aconteceu nada – respondeu o segundo menino.<br />

Invisível por trás de uma parede.<br />

– Mas como é burro! – o sangue se acelerou no corpo do chefe da<br />

turma. Ele estava com raiva, e se aproximava mais. – Aperta todos logo de<br />

uma vez!<br />

– Calma – falou o segundo menino.<br />

A luz se acendeu.<br />

Os olhos da cabeça exposta no balcão se fecharam. Ardiam. Depois<br />

de tanto tempo na escuridão, a luz os feria como ácido.<br />

Mas os ouvidos ainda funcionavam.<br />

Passos. Os leves passos das crianças. Passos descompassados,<br />

vacilantes. Passos de alguém que procura, e vasculha.<br />

– Está vazio – a voz do chefe da turma. – Não tem nada aqui.<br />

– Vamos embora. Cheira mal – a voz da menina pequena. Soava<br />

anasalada, como se ela estivesse tapando o nariz com os dedos.<br />

– Vá embora se você quiser, sua medrosa – trovejou a voz do chefe<br />

da turma.<br />

– Não sou medrosa. É que está fedendo demais – justificou a menina<br />

pequena.<br />

– Vou entrar – disse o segundo menino.<br />

Um longo e baixo assobio.<br />

– O que houve? – perguntou o segundo menino, mais próximo.<br />

Fabian Balbinot<br />

43


– Venham aqui ver isso! – sussurrou o chefe da turma, muito perto.<br />

– O quê? – disse a menina pequena, ainda distante.<br />

– Cara... isso aqui é demais – disse o chefe da turma, admirado.<br />

– Deixe-me ver... – falou o segundo menino, tão perto quanto o outro.<br />

– O quê é...<br />

Um grito. Os tímpanos da cabeça exposta no balcão quase explodiram.<br />

Fazia tempo que não ouvia um som tão agudo. As terminações nervosas<br />

funcionavam, afinal.<br />

Apesar de tudo, a cabeça exposta no balcão manteve-se imóvel.<br />

Sequer piscou.<br />

Disciplina e autocontrole. Não podia espantar a presa.<br />

– Seu maricas! Tá com medo, é? – desafiou o chefe da turma.<br />

– C-claro q-que eu estou – respondeu o segundo menino, gaguejando.<br />

– I-isso... isso aí é... uma cabeça.<br />

– Sim, e o que é que tem?<br />

– Uma... uma cabeça de m-mulher.<br />

– O que é que vocês acharam aí? – perguntou a menina pequena,<br />

ainda longe.<br />

– Eu sei que é uma cabeça de mulher, seu burro – falou o chefe da<br />

turma.<br />

– E o que é que você vai fazer com ela? – perguntou, espantado, o<br />

segundo menino.<br />

– Ora. Vou levá-la comigo.<br />

– V-você vai O QUÊ?<br />

– Vou levar. Não está vendo que é falsa? É tipo aquelas coisas dos<br />

filmes, aquelas máscaras...<br />

“Isso... leve-me com você. Estou louca de vontade de conhecê-lo,<br />

menino corajoso.”<br />

– Eu quero ve-e-er – cantarolou a menina pequena, do lado de fora<br />

da sala.<br />

– Mas isso está fedendo. E se for vodu... magia negra?<br />

– Mas como você é chato! Isso é bobagem...<br />

“É. Isso é bobagem. Vodu, magia negra... onde já se viu...”<br />

– ... Isso aqui é só uma cabeça falsa, de mentira. Uma cópia.<br />

– Ah. Tipo uma réplica.<br />

– Deve ser. Onde é que tem um saco plástico... Eu tinha visto um por<br />

aqui, antes...<br />

“Um... saco plástico?”<br />

– O que você vai fazer?<br />

– Vou colocar isso dentro de um saco. Aqui está!<br />

– Ah... Você também está com medo disso daí...<br />

– Deixe de ser bobo! Eu quero é escondê-la do pai e da mãe. Já imaginou<br />

o que eles vão pensar se chegarmos em casa com um troço desses?<br />

44 Doença e Cura


– Eu quero ve-e-e-e-e-er! – Voltou a cantarolar a menina pequena. –<br />

Eu quero, eu quero, eu que-e-ro!<br />

– Manda essa retardada calar a boca – vociferou o chefe da turma, que<br />

também devia ser o irmão mais velho do outro menino.<br />

Mãos rápidas, um pouco trêmulas, pegaram com cuidado a cabeça<br />

exposta no balcão, e a colocaram com cuidado dentro de um saco plástico.<br />

“De novo. Outra vez dentro de um saco...”<br />

– Isso será o meu troféu – riu o chefe da turma.<br />

Depois disso, só se ouvia um único som, que era parecido com o<br />

chiado que se ouve ao se tampar os ouvidos com a concha das mãos.<br />

A mulher, a cabeça dentro do saco plástico apertado sentiu algo que<br />

lembrava um calafrio. Já ouvira palavras semelhantes.<br />

Você é o meu troféu<br />

Sem conseguir se conter, abriu os olhos.<br />

As crianças agora corriam, e sua cabeça balançava dentro do saco<br />

plástico, deixando-a zonza.<br />

As crianças falavam, ainda, mas era difícil distinguir o que diziam<br />

em meio à correria. O plástico batia e reverberava em seus ouvidos e olhos,<br />

deixando-a meio surda. e fazendo-a piscar continuamente.<br />

“Novamente dentro de um saco... Que saco! O que virá agora?”<br />

Mesmo tendo de abrir e fechar os olhos sem parar, a cabeça viu que<br />

as paisagens passavam no caminho dos pequenos.<br />

Após deixarem o quarto, eles seguiram por um corredor escuro.<br />

Desceram escadas.<br />

O cérebro dentro da cabeça parecia prestes a explodir devido ao<br />

interminável sacolejo.<br />

Mas não haveria problema.<br />

Seria ótimo. Sangue de crianças. Sangue novo, de crianças saudáveis,<br />

movidas a chocolates e salgadinhos. Cheias dos hormônios e da saúde típicos<br />

da infância.<br />

Crianças com seus pais. Pais detestáveis, como tinham sido os pais<br />

dela.<br />

Pais que induziriam tais crianças saudáveis no caminho da tristeza e<br />

do vício.<br />

Crianças que deviam ser salvas.<br />

Pais que deviam ser mortos.<br />

Uma hora, o sacolejo iria parar, e então ela iria se regenerar...<br />

Ossos SEMPRE regeneram...<br />

E aí a festa, a bonança iria começar.<br />

Vampiros SEMPRE regeneram...<br />

Ela iria dar um jeito. Encontraria uma solução. Desenvolveria um<br />

poder que impelisse sua cabeça, e a faria singrar os ares.<br />

SEMPRE...<br />

Fabian Balbinot<br />

45


Telecinesia. Telepatia. Tele-seja-lá-o-que-for.<br />

Teria poder novamente, e salvaria aquelas crianças que a estavam<br />

salvando. Salvaria-as de um futuro cruel, tão cruel como fora o seu<br />

passado.<br />

Salvaria aqueles anjos que a estavam levando para...<br />

Um lugar...<br />

... aberto...<br />

Calor.<br />

“O... quê?... Não pode ser...”<br />

“NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOo<br />

oooo...”<br />

...<br />

Vampiros SEMPRE regeneram...<br />

... a não ser quando são queimados pelo sol.<br />

* * * * *<br />

Xiii! Acho que estragou...<br />

frase dita por um menino, ao ver que o brinquedo que trazia dentro de<br />

uma sacola tinha virado poeira<br />

46 Doença e Cura


Fabian Balbinot<br />

<strong>Capítulo</strong> 3<br />

É, meu amigo... a vida tem dessas coisas...<br />

A gente nasce, cresce, envelhece vivendo uma porção de situações<br />

diferentes, descobrindo coisas, vendo o sol nascer e se por no horizonte com<br />

nossos próprios olhos, e no fim das contas, morremos, e outros de nossa<br />

laia nos transformam em um mero ornamento de caixão, um petisco para a<br />

terra engolir, carne, ossos e madeira nobre, podre, tudo desaparecendo no<br />

esquecimento, coberto de humo e minhocas, capim nascendo em cima.<br />

A gente... na verdade, nem todos. Eu não tive essa mesma sorte, ou<br />

azar, o que quer que seja.<br />

Nasci, cresci, envelheci, concordo, como acontece com todo mundo.<br />

Mas...<br />

Vamos aos fatos, caro colega. Eu não sou mais humano. Não sei<br />

mais como se faz para morrer. Morrer de velho, ou de doença, como todos<br />

costumam morrer por aí, e isso faz um bom tempo. Há uns cinquenta ou<br />

sessenta anos que eu vivo durante a noite e morro durante o dia, enterrado<br />

dentro de um caixão, ou de um caixote, ou metido em um porão, enfiado<br />

em algum bueiro... até na própria terra eu já me escondi, virando um nada<br />

e sumindo junto ao solo, para poder dormir e morrer um pouco mais, como<br />

todos os meus parceiros, meus “colegas de profissão” têm o costume de<br />

fazer, todo o santo dia.<br />

Sim, se você é cria desse último século que passou, e nasceu na parte<br />

mais civilizada e capitalista do mundo, é bem provável que você já esteja<br />

sabendo com QUEM você está falando. Qualquer criança de colo do mundo<br />

capitalista reconheceria em um instante o meu modo de vida... Bom, talvez<br />

nem todos. Penso eu que dormir de dia e acordar à noite talvez não sejam<br />

atributos suficientes para distinguir minha “profissão” de tantas outras que há<br />

por aí, no mercado. Posso lhe garantir, caro amigo, que eu não sou um vigia<br />

noturno, apesar de que vigiar, espreitar, espionar, sejam tarefas primeiras<br />

que sou obrigado a desempenhar a cada noite que passa. Você já ouviu falar<br />

de vigias noturnos que dormem em caixões?<br />

Acho que falta um detalhe. O detalhe mais importante.<br />

O sangue...<br />

Descobriu? Sangue, dormir de dia e ficar acordado à noite... O que é,<br />

o que é?<br />

Sim, acertou quem disse que eu sou um vampiro. Não, eu não sou<br />

um médico residente do turno da noite em um banco de sangue – estes<br />

TAMBÉM não dormem em caixões...<br />

Sugamos sangue dos vivos e o transferimos aos nossos respectivos<br />

reservatórios de um modo bem semelhante ao que devem fazer os médicos<br />

em um banco de sangue. Mas, não é a mesma coisa. Não preciso de um<br />

salário todo comprometido pelo pagamento de refeições, despesas, contas,<br />

47


impostos e passagens de ônibus e de taxi para viver. E muito menos de litros<br />

de cafeína para poder ficar horas e horas sucessivas desperto e atento na<br />

escuridão da madrugada.<br />

Meu “emprego” é muito melhor. Meu trabalho é vitalício. É também<br />

estranho e bizarro, mas torna-se muito divertido quando a gente consegue<br />

se acostumar com ele, o que não acontece com todo mundo. Minha<br />

aposentadoria já está garantida, pelos séculos dos séculos, amém.<br />

Como eu disse, sou um vampiro. Uma sanguessuga em formato<br />

humano, tamanho extra-grande. Meu serviço é andar pelas noites, vigiando,<br />

espreitando, espionando. O sangue dos vivos é meu pagamento. A mortevida<br />

é minha aposentadoria – e veja bem: trata-se de uma aposentadoria<br />

saudável. Diferente de outros tantos aposentados mortos-vivos por aí, eu<br />

trabalhei e fiz minha parte durante minha vida toda, e não estou lesando os<br />

cofres públicos de meu país de origem com uma pensão cem vezes maior do<br />

que a que eu realmente mereceria.<br />

Na verdade, não cheguei a ter sequer o direito a uma aposentadoria<br />

como vivo. Sou de épocas distantes, de antes das leis beneficiarem<br />

quem trabalha, mesmo que, hoje em dia, apesar das tantas e quantas leis<br />

promoverem benefícios a quem trabalha de verdade, o esquema ainda é<br />

o mesmo, funciona da mesma forma, e quem trabalhou a vida inteira não<br />

vai conseguir mais do que migalhas no final. A corrupção continua sendo a<br />

característica mais humana que existe. Tudo pode ser arranjado. Quem mais<br />

tem, mais quer, como sempre. Isso faz parte da natureza humana, e nunca<br />

vai mudar.<br />

Bem... Como eu dizia a princípio, a gente nasce, cresce, envelhece e<br />

morre. Comigo não foi bem assim.<br />

Minha vida não era uma vida boa. Trabalhar desde pequeno, criando<br />

calos nas mãos e sendo espancado em casa por pai e mãe, que tomavam turnos<br />

nesta tarefa. Ganhar menos do que o pão nosso de cada dia, e ainda morrer<br />

um pouco por vez, intoxicado, aleijado, envenenado e sem aposentadoria<br />

ou seguro-saúde, sem regalia alguma, vítima da falta de infra-estrutura<br />

típica dos primórdios da Revolução Industrial. Muita gente que, como eu,<br />

nasceu há mais de cem anos saberia relatar o que acontecia naquela época, e<br />

poderiam até acrescentar os tantos detalhes que eu fiz questão de esquecer.<br />

Infelizmente, são poucos os aposentados de mais de cem anos que<br />

ainda há no mundo. A maior parte deles sequer consegue falar.<br />

Minha vida que não era uma vida boa mudou drasticamente, de uma<br />

hora para outra, mais ou menos entre o crescer e o envelhecer, ou entre<br />

o crescer SEM envelhecer e o morrer; entre o pouco de esperança que<br />

minguava e o desespero que só fazia aumentar.<br />

O fato é que me tornei isso que sou hoje, e ainda por cima não morri.<br />

E digo mais: o desespero sumiu por completo, e a esperança... bem, esperança<br />

não é exatamente algo com o que eu tenha o hábito de me preocupar.<br />

48 Doença e Cura


Esperança é um sentimento típico de quem tem a morte pela frente. Podese<br />

até estabelecer uma função matemática, que diz que a esperança é direta<br />

ou inversamente proporcional à aproximação da morte, mas isso depende<br />

muito de cada indivíduo, do dia da semana, de quantos filhos se tem ou da<br />

mulher com quem se esteve na cama ontem, etc. e tal.<br />

Tive tempo para estudar um pouco de matemática, depois que entrei<br />

nessa nova vida. E eu adoro matemática. Dois e dois são quatro. É tudo<br />

exato, por mais complexo que seja. Diferente da esperança, que muitas<br />

vezes não tem lógica, e não parece resultar de cálculo algum.<br />

Não tenho esperança nenhuma. Sou um vampiro. Saio à noite para<br />

caçar quando tenho fome, integrando-me como posso à cada vez mais<br />

estranha e caótica sociedade humana.<br />

Não é muito difícil sair para caçar. As pessoas de sangue quente que<br />

perambulam por aí à noite são todas imbecis, e as que não são fazem questão<br />

de entrar no clube, bebendo até caírem. É um verdadeiro banquete para mim<br />

e para meus colegas de ofício.<br />

Ser um vampiro velho e experiente tem suas vantagens. A gente<br />

aprende alguns truques no trato com o sangue e com a jugular dos outros. Por<br />

exemplo, não é recomendável matar pessoas. Sabe, sugar até o fim. Matar é<br />

pecado, é crime, e dá processo e cadeia. A polícia começa a ficar desconfiada,<br />

a perseguir pessoas e a invadir lugares escuros durante a noite. Os padres<br />

e crentes enlouquecem e passam a querer exorcizar tudo. Exterminadores<br />

de pragas passam veneno pelos lugares. Empresas de demolição colocam<br />

prédios abaixo. Governos declaram guerra e empresas declaram greve.<br />

A economia despenca, a inflação cresce e o mundo inteiro desaba com toda<br />

a sorte de possíveis desdobramentos. E isso tudo pode nos trazer muitos<br />

problemas.<br />

O ideal é sugar um pouco por vez. Eu, de minha parte, consigo viver<br />

bem com meio litro durante cada noite, isso quando encontro-me em uma<br />

temporada estável, em que o repasto é farto e ninguém dentre os vivos<br />

desconfia de nada. Este tipo de situação em que o alimento abunda e a vida<br />

é mansa nem sempre é comum para gente como nós, pobres vampiros. Por<br />

exemplo, a situação pela qual estou passando AGORA não tem nada de<br />

convencional. Isto está me deixando nervoso, tanto que resolvi escrever<br />

para ordenar as ideias e relaxar um pouco. Mas eu prefiro relatar mais<br />

tarde sobre essa situação nova que estou vivendo há alguns dias, mesmo<br />

porque ainda não consigo entender direito tudo o que aconteceu. Preciso<br />

de um pouco mais de tempo para dar prumo ao pensamento e relembrar<br />

todos os acontecimentos, um após o outro. Quem sabe assim eu consiga<br />

elaborar alguma teoria que explique as grandes “perdas” que tive nestes<br />

últimos dias.<br />

Retornemos ao assunto anterior. Diferente de nós, vampiros, o<br />

ser humano convencional é muito estranho, complicado e imprevisível.<br />

Fabian Balbinot<br />

49


E conforme as gerações passam, parece que pior se torna. Os modismos se<br />

sucedem como governos tirânicos, e as pessoas, idiotas que são, incapazes<br />

de reagir contra a tirania, vivem e morrem para se adaptar a eles.<br />

Cerca de um ano atrás eu vi uma garota em um lugar que cheirava<br />

a suor e sexo, e ela estava com um cabelo verde despenteado comprido e<br />

composto em um estranho corte amarrado com laços coloridos em três ou<br />

quatro diferentes pontos, um par de lentes de contato de cores diferentes, e<br />

uma colorida roupa que eu acho que era de palhaço, rebocada de maquiagem,<br />

fedendo a três ou quatro tipos diferentes de perfume e com o hálito impregnado<br />

por diversas outras substâncias, óculos escuros de aros claros mesmo sendo<br />

noite, milhares de pulseiras, anéis e outros tantos penduricalhos, dizendo<br />

com voz e jeito de prostituta estar na última moda.<br />

Suguei seu sangue acre de aguardente, licores e cerveja daquela vez.<br />

Há um mês, mais ou menos, eu vi a mesma garota em um local<br />

diferente, que possuía fragrâncias de requinte, carreira e esnobismo, e ela<br />

estava vestida com um elegante terno feminino e gravata, impecáveis,<br />

cabelo negro curto e cuidadosamente penteado, coberto com uma espécie<br />

de gelatina que servia para fixá-lo, lábios vermelhos de batom, perfume do<br />

mais caro e suave que possa existir, não mais do que algumas gotas nos<br />

pulsos e no pescoço, pouca maquiagem e óculos quadrados com lentes de<br />

em torno de um grau, para miopia. Era uma solenidade nobre, e eu estava lá<br />

por que os bons vampiros conseguem se relacionar com a culta nobreza da<br />

sociedade humana tão ou até mais facilmente do que se relacionam com as<br />

supersticiosas ralés.<br />

Naquela noite, a tal garota me disse com voz de secretária bilíngue<br />

que as modas são passageiras, e que o destino do mundo passava pelos<br />

investimentos em cotas de sociedades anônimas globalizadas, em<br />

debêntures e na área agrícola de base dos países emergentes do terceiro<br />

mundo, entre outras tantas coisas complicadas, especulação, compra e<br />

venda, comodato, alienação fiduciária, estabelecimentos pecuniários e sei<br />

lá mais o quê...<br />

Suguei seu sangue seco de vinho branco e whisky caro, então. E ainda<br />

tomei algumas cédulas de pequeno valor ‘emprestadas’ para pagar o táxi.<br />

Não faço a menor ideia da situação em que tal jovem se encontra<br />

atualmente. Parece que morreu em um acidente de carro.<br />

No fundo, não importa. O que importa é que nem carreira e nem moda<br />

significam muito para nós, vampiros. Isso sem contar que é muito difícil que<br />

venhamos a morrer em acidentes de carro.<br />

Faz muito tempo que eu não bebo sangue humano adulto que tenha<br />

gosto apenas de sangue. Geralmente o sangue das pessoas de hoje em dia<br />

tem o aroma do sucesso na profissão, dos negócios, de fumo de charutos e<br />

álcool importado, ou então tem aquele gosto forte do fracasso e da bebedeira,<br />

da vida jogada fora, de maconha, cocaína e álcool vagabundo.<br />

50 Doença e Cura


Enfim, sangue humano, hoje em dia, sempre tem gosto de álcool<br />

e de fumo ou de outras coisas que se pode fumar ou injetar ou engolir.<br />

Talvez nem mesmo o sangue das crianças ainda apresente um gosto de<br />

sangue de verdade, o que me causa um certo alívio, uma vez que não<br />

tenho o costume de beber sangue de crianças. Tenho o maior respeito pela<br />

mocidade e pela juventude. Nenhuma criança de menos de quatorze anos,<br />

em minha opinião, é responsável por qualquer besteira que venha a fazer.<br />

Sempre há algum adulto metido na história, corrompendo de alguma forma<br />

a inocência juvenil.<br />

Por isso, não molesto crianças. Questão de princípios, sabe.<br />

Percebo o quanto escrever ativa nossas memórias. Não é a área em<br />

que sou um ás, a escrita, ao contrário da memorização, no que sou um<br />

especialista. Mas os tantos anos de vida que se sucedem sem fim e os tantos<br />

textos e livros a que se pode ter acesso durante esse tempo, tudo isso vai<br />

servindo para que pessoas como eu adquiram experiência em diversas áreas,<br />

e a escrita é uma delas.<br />

O problema é que existe esta louca vontade de trocar de assunto, e<br />

escrever um pouco a respeito de tudo. E, hoje em dia, com os computadores<br />

e os apartamentos fechados dos hotéis, em que as diárias exorbitantes<br />

garantem uma certa privacidade, uma criatura criativa como eu sente-se<br />

no direito de escrever um pouco sobre suas mais distantes lembranças. Os<br />

computadores são uma maravilha da tecnologia humana, e aprendendo a se<br />

lidar com eles de forma correta, a facilidade da redação é quase inacreditável,<br />

principalmente para alguém como eu, que veio de uma época e de um lugar<br />

em que um toco de lápis e uma folha de papel eram considerados artigos de<br />

luxo, e que hoje desfruta de algumas habilidades especiais...<br />

Não era essa a ideia que me fez escrever, reviver minhas lembranças,<br />

e ficar falando de assuntos diversos da vida humana.<br />

Na verdade, eu tenho um problema. Um problema que me parece<br />

ser um tanto ou quanto grave, e escrever me faz pensar com calma,<br />

permitindo que eu possa elaborar conjecturas a respeito dos motivos que<br />

deram origem a tal problema, e das soluções que possam ser encontradas<br />

para se lidar com ele.<br />

Pelo menos, eu acreditava que, escrevendo, eu conseguiria pensar<br />

melhor no assunto. Deve ser a dispersão natural das primeiras linhas, coisa<br />

que eu já vi em livros por aí afora, quando o primeiro capítulo descreve<br />

momentos e lugares que nem sempre apresentam algo em comum ou são de<br />

pouca relevância para com o desenrolar da história.<br />

Vou parar por aqui, hoje. Realmente, relendo, o que já digitei revela<br />

o quanto eu desviei do assunto que realmente me interessa. Poderia apagar<br />

tudo o que já escrevi com uma série de toques combinados de teclas, e<br />

realmente o fiz, porém, outros toques, ainda mais simples, fazem-me<br />

voltar no tempo, retornando meu texto ao que era antes. É a magia do<br />

Fabian Balbinot<br />

51


processamento em Gigabytes por segundo, dos backups e da redundância<br />

dos arquivos. A genialidade humana, divina, sempre contrastando com sua<br />

própria corrupção, tão diabólica.<br />

Salvo em discos rígidos de metal sobreposto o que escrevi, alertando<br />

a mim mesmo para que continue amanhã, ou em algum outro dia, evitando<br />

as entrelinhas, indo direto ao assunto – ao problema que, comigo mesmo e<br />

com esta extensão virtual de minha memória, eu quero discutir.<br />

* * * * *<br />

Esta é a segunda noite seguida em que escrevo.<br />

Como nada de muito estranho ou diferente aconteceu de uma noite<br />

para outra, resolvi levar mais a sério o que estou escrevendo. De certa<br />

forma, pretendo apresentar minha pessoa ao estimado leitor. De certa forma,<br />

digo, porque como mandam as normas que regem a conduta dos vampiros,<br />

não posso revelar nomes, nem locais exatos, nem nada que possa conduzir<br />

alguma pessoa de sangue quente, rival ou outro tipo de inimigo a mim ou a<br />

qualquer um dos poucos que comigo costumam se relacionar. De fato, não<br />

posso revelar nada que comprometa a situação de qualquer outro vampiro<br />

existente na face da terra inteira.<br />

Parece ridículo, eu sei, “como mandam as normas que regem a conduta<br />

dos vampiros” é uma das frases mais imbecis que já tive a oportunidade<br />

de ler em toda a minha vida. Soa imbecil, ficção barata do nível menos<br />

verossímil... bem o sei. O parágrafo anterior inteiro está terrível. Mas, por<br />

incrível que possa parecer, é assim mesmo que nossa vida noturna funciona,<br />

há muitos milhares de anos.<br />

Posso garantir, com a experiência de vampiro velho, tarimbado, que há<br />

não mais do que um punhado de regras quase medievais servindo de alicerce<br />

para o funcionamento da sociedade dos vampiros, muito provavelmente<br />

desde o momento em que ela passou a existir. São quatro ou cinco regras<br />

básicas, mandamentos, relativamente simples de se entender, e nem tanto<br />

de se cumprir. Infelizmente, não me é permitido revelá-los a quem quer que<br />

seja que não a outros de minha raça.<br />

“Não matar, não roubar, não cobiçar a mulher do próximo”... é<br />

tudo muito parecido. A diferença é que somos vampiros, e vampiros tem<br />

certas habilidades, certos poderes de super-homem, e nossas regras, nossos<br />

mandamentos, eles tratam principalmente do controle, da contenção de nossos<br />

poderes sobrenaturais. Ou você, amigo de sangue quente que porventura<br />

possa estar lendo isto, realmente acredita que AINDA não teríamos dizimado<br />

com o seu pessoal caso os nossos super-poderes não tivessem um uso restrito<br />

a partir de nossa própria opção?<br />

Muitos predadores da natureza nascem, crescem e desfrutam de seu<br />

ciclo de vida praticamente em meio às suas presas. O louva-a-deus nasce no<br />

52 Doença e Cura


meio da relva, onde está cheio de todos os tipos de outros insetos, dos quais<br />

ele vai se fartar durante boa parte da sua curta vida. Lagartos nascem bem<br />

próximos das cobras de que se alimentam. Crocodilos nascem nos ribeirões<br />

onde praticamente tudo se move e é comestível. Sapos acham comida em<br />

praticamente todos os lugares. Peixes nascem no meio de outros peixes, e<br />

por aí afora.<br />

A diferença que existe é a QUANTIDADE muito menor de predadores<br />

que nascem junto de suas presas. Para cada louva-a-deus que nasce e<br />

permanece vivo, escapando da voracidade de seus próprios irmãos e de<br />

outras coisas ainda piores, podem nascer entre mil e um milhão de possíveis<br />

vítimas, praticamente ao mesmo tempo, no mesmo exato instante em que<br />

nosso querido predador esverdeado sai de seu ovo. E isso tudo dentro de um<br />

espaço de não mais do que um metro cúbico de relva!<br />

Você, mísero humano de sangue quente, duvida que um milhão de<br />

pequenas criaturinhas possa surgir de repente, eclodindo de ovos, ovas,<br />

pupas, casulos, e outros tantos nascedouros, em um espaço tão reduzido?<br />

Humanos são sempre humanos, com sua visão restrita, seu olfato inexistente<br />

e audição ridícula. Caro amigo que lê estas linhas, eu, que já transformei a<br />

mim mesmo em terra e humo para fugir da perseguição tanto de poderosos<br />

inimigos quanto do sol incinerante, posso lhe garantir que a vida é bem<br />

mais intensa e ilimitada do que dão a entender os limitados pares de órgãos<br />

sensores humanos.<br />

Voltando ao assunto, nós, vampiros, também somos predadores. E<br />

posso dizer que a primeira regra que seguimos, como bons predadores, é<br />

a de nascer no meio das presas. Sim, como os louva-a-deus no meio dos<br />

gafanhotos, nascemos junto aos humanos. Somos em uma quantidade<br />

infinitamente menor, apenas.<br />

Não que os poucos nascimentos e o fato de que os incubadouros<br />

de vampiros estejam todos localizados razoavelmente próximos dos<br />

humanos venha a ser uma de nossas regras, um de nossos mandamentos<br />

de existência. Na verdade, como eu disse antes, nossas verdadeiras regras<br />

regulamentam o uso de nossos poderes sobrenaturais, e também nosso<br />

próprio inter-relacionamento, a convivência pacífica entre os vampiros. O<br />

fato de sermos poucos, e de poucos de nós “nascerem” – surgirem, seria<br />

um termo mais adequado – não passa de um golpe de lógica da natureza.<br />

Somos poucos porque QUEREMOS ser poucos. De vez em quando, um<br />

bando de malucos e novatos qualquer sai por aí imaginando que a tal<br />

morte-vida é uma bênção divina, e fazem a besteira de transformar todos<br />

os vivos que aparecem pelos seus caminhos em novos vampiros. Posso<br />

garantir que estes tipos de idiotas duram pouco. Somos, em nossa maioria,<br />

criaturas extremamente territoriais, e costumamos expulsar ou liquidar<br />

nossas próprias crias caso estas não se mudem para um outro terrítório, ou<br />

não nos expulsem ou liquidem antes.<br />

Fabian Balbinot<br />

53


O fato é que não temos tempo e nem paciência para ficarmos discutindo<br />

muito e tentando entrar em acordo a respeito de nossos territórios de caça.<br />

Alguns de nós podem dar cabo de qualquer concorrência com um simples<br />

gesto – por que haveríamos de ficar alimentando intrigas territoriais?<br />

Estou desviando do assunto de novo. Escrever é assim mesmo.<br />

Recomendo a escrita como uma forma de terapia a qualquer um que queira<br />

se distrair e não saiba mais como fazê-lo. Escreva a mão mesmo, em uma<br />

folha, e depois jogue tudo fora ou guarde bem longe da vista de todo mundo,<br />

caso você realmente acredite que jamais poderá vir a ser um escritor famoso.<br />

Mesmo em se considerando a quantidade exorbitante de escritores medíocres<br />

que há publicados por aí – os quais poderiam ter seguido este meu último<br />

conselho, jogando seus ‘trabalhos’ na lata do lixo – o que realmente importa<br />

é libertar a mente, tentando pensar e organizar as ideias na mesma velocidade<br />

em que o lápis desliza pelo papel, ou que os dedos tocam as teclas.<br />

Meus dedos tocam as teclas muito rápido, posso garantir. As ideias<br />

descem da mente para a tela do computador em uma velocidade realmente<br />

surpreendente... ou pelo menos era isso o que costumava acontecer, até<br />

cerca de uns dez dias atrás. Ontem também aconteceu, e eu consegui digitar<br />

as informações que surgiam em minha mente com a fúria espantosa com que<br />

elas iam surgindo. Por sorte, este teclado é especial, coisa de profissional,<br />

capaz de aguentar o tranco. Acho que, se fosse um teclado de segunda mão,<br />

estaria destruído em não mais do que alguns minutos de minha impressionante<br />

digitação turbo! As teclas simplesmente sairiam voando pelos ares...<br />

Hoje, no entanto, a coisa não está acontecendo dessa maneira. Está<br />

tudo muito lento... O poder não se manifesta, e eu não faço a menor ideia do<br />

porquê disso estar acontecendo.<br />

Meus movimentos corporais podem ser incrivelmente rápidos, bastando<br />

que eu assim deseje – essa é a norma. É assim que deveria funcionar, pois sou<br />

um vampiro, e muitos de nós são céleres a ponto de praticamente conseguirem<br />

se teletransportar de um ponto a outro no espaço, de tão rápido que pode se dar<br />

seu deslocamento. Com um mínimo de concentração, esta habilidade pode ser<br />

transferida para uma série de outras atividades, tais como a digitação.<br />

Sou um dos que possui esta habilidade. Consigo me mover muito<br />

rápido, e no caso da digitação, basta que eu consiga estabelecer uma linha de<br />

pensamento sequencial e coerente para que diversas palavras por segundo<br />

sejam arremessadas de encontro à tela, via teclado. Centenas e às vezes<br />

milhares de toques por minuto, em um ritmo não-constante, intercalado<br />

por demoradas interrupções, isso porque o cérebro parece não conseguir se<br />

adaptar por completo à habilidade, e o ritmo lento e instável do raciocínio<br />

acaba servindo como freio para os dedos.<br />

Se não fosse o pensamento, muito mais lento que o corpo durante o<br />

uso da habilidade, tenho certeza que já teria passado não apenas a digitar<br />

como também a viver muito mais rapidamente, longe da compreensão e<br />

54 Doença e Cura


do campo de visão humanos. Uma anomalia cósmica deturpando o espaçotempo,<br />

um paradoxo ambulante...<br />

Como eu disse, hoje, esta habilidade não está funcionando.<br />

Devia estar funcionando, mas, não sei por que, não está.<br />

Sinto-me estranho, digitando devagar. Sou obrigado a pensar várias<br />

vezes no mesmo assunto, até que a linha esteja completa, e toda a ideia tenha<br />

aparecido corretamente na tela. Isso me deixa cansado, extenuado. As ideias<br />

somem muito rápido e não consigo acompanhá-las.<br />

Fora o cansaço, a única coisa que eu sinto é um vazio no peito. Um<br />

vazio que parece se deslocar de um lado para outro, conforme eu tento fazer<br />

uso de minha habilidade de ser rápido.<br />

É muito parecido com a chave de ignição que alguém gira sem parar<br />

em um carro. A pessoa tenta e tenta, inúmeras vezes, mas o carro teima em<br />

não funcionar.<br />

A única diferença é esse vazio... essa estranha sensação se deslocando<br />

de lá pra cá em meu peito, na minha barriga.<br />

Não sinto nada assim desde que eu era vivo, e, sou franco em dizer,<br />

isso me deixa com fome.<br />

Tentarei continuar em um próximo capítulo, em um próximo momento,<br />

com mais clareza, talvez.<br />

Até breve, caro leitor.<br />

Nota: lembrar de apresentar-me ao leitor (não fiz isso ainda).<br />

* * * * *<br />

Eis que aqui me encontro novamente, diante do computador.<br />

Ainda falta algum tempo para o dia clarear.<br />

Alimento. Era isto o que eu necessitava.<br />

Sangue.<br />

Percebo que minhas capacidades extraordinárias de vampiro já estão<br />

novamente ativas, e posso digitar incrivelmente rápido como antes.<br />

Parece que não bebo alguns litros de sangue quente há alguns meses.<br />

Acho até que devo ter matado alguém.<br />

Não que eu realmente me importe com isso. De vez em quando é<br />

necessário. Às vezes a gente perde o controle e acaba cometendo algum<br />

deslize, e algum pobre humano então paga com sua vida para que nos possam<br />

ser concedidas mais algumas noites de calmaria em nossa pós-vida.<br />

São os ossos do ofício de ser um predador. São os ossos do ofício de<br />

ser presa.<br />

E não há nenhuma regra que nos diga “não matarás aquele de quem<br />

te alimentas”, assim como não parece haver semelhante regra para muitos<br />

humanos, traficantes e mafiosos, presidentes de nações, donos de grandes<br />

conglomerados de empresas, banqueiros, esposos machistas...<br />

Fabian Balbinot<br />

55


É lógico que matar pode nos trazer muitos problemas. A imprensa,<br />

a polícia, o acaso, tudo parece conspirar contra alguém que vive à noite e<br />

permanece inconsciente durante o dia, pois é durante o dia que as pessoas<br />

inteligentes trabalham e verificam as pistas e informações que encontraram<br />

durante as noites de busca.<br />

Acho que é por isso que costumamos matar mendigos. Mendigos são<br />

como corvos e abutres para uma sociedade podre e falida como é a sociedade<br />

humana. Meras ratazanas insignificantes que não costumam reagir, vivem de<br />

migalhas, e um tiro certeiro que venha a derrubar um deles não servirá para<br />

mais nada que não seja espantar por alguns instantes o resto do bando.<br />

Mate um mendigo de um modo anônimo e faça um bem para a<br />

sociedade. Caso o seu nome, contudo, venha a aparecer nos jornais, adeus<br />

vida, ou no nosso caso, adeus morte-vida, como queiram os ficcionistas.<br />

Nota (adicionada posteriormente): Não é recomendável que você siga<br />

o conselho acima, caso seja um ser humano normal. Vampiros sabem COMO<br />

matar alguém muito melhor do que humanos normais, e não cometemos<br />

deslizes, nem deixamos pistas – além do mais, NINGUÉM acredita em nós,<br />

mesmo! É de se duvidar que um detetive vá levantar a ficha criminal de uma<br />

pessoa morta há cinco décadas...<br />

Matar um mendigo e aparecer nos jornais como autor da façanha<br />

faz ainda mais bem para a sociedade. Não que isso seja proveitoso para<br />

quem matou o mendigo. Pode ser pior do que ser preso como traficante<br />

de drogas, assassino de aluguel, qualquer coisa. Conheço alguns casos de<br />

antigos colegas meus que não estão mais entre nós por cometerem o erro de<br />

matarem algum indigente e aparecerem nos jornais depois... Mas não estou<br />

disposto a comentar a respeito de meus camaradas tombados no campo de<br />

batalha.<br />

Na verdade, tenho dois assuntos a tratar. Primeiro, vou fazer um<br />

sumário de quem e o que sou. Tenho que me apresentar, mesmo que sem citar<br />

nomes. Colocar alguma que outra referência bibliográfica que indique ao<br />

menos em parte quem foi o responsável por estes escritos que ora transmito<br />

à posteridade.<br />

O segundo assunto diz respeito àquele problema que venho<br />

mencionando durante o andamento destas minhas memórias, e também à<br />

fisiologia típica dessas criaturas que rendem tantos filmes e tantos contos<br />

de ficção: nós mesmos, os vampiros. Pretendo estabelecer uma relação<br />

entre o estado em que meu corpo se encontra hoje e o seu estado normal de<br />

funcionamento. Confesso que não me sinto bem como deveria me sentir, e<br />

isso já vem acontecendo há algum tempo. Minha intenção é forçar a memória<br />

e tentar achar uma explicação, algum deslize que eu possa ter cometido<br />

durante alguma de minhas excursões noturnas.<br />

Sei lá... posso ter pegado alguma doença. Diferente do que os autores<br />

escrevem, vampiros são seres tão vivos quanto quaisquer outros. Pelo<br />

56 Doença e Cura


menos, é nisso que EU acredito, e sou a evidência viva de que posso ter<br />

muito mais razão em minhas conjecturas do que meros autores de prosa<br />

romântica moderna, que quando não sabem do que estão falando, inventam,<br />

ou pior: copiam dos outros autores.<br />

A propósito, caro leitor... Você realmente acredita nos livros e filmes<br />

sobre vampiros?<br />

Lá vou eu novamente escapulir pelas entrelinhas de um assunto<br />

para entrar em outro, que talvez sequer seja relevante. Tentarei ser breve,<br />

e direi apenas o seguinte: é muito provável que nenhum destes autores,<br />

mesmo os mais antigos, tenha sequer se aproximado de um de nós. Somos<br />

corporalmente frios como répteis, concordo, pois temos a habilidade de<br />

controlar ao extremo o fluxo de sangue em nossos corpos – o que significa<br />

que nossos corações não batem, a não ser quando NÓS assim desejamos.<br />

Temos um temor extremo da luz do sol, decerto, porque por um motivo<br />

qualquer a sua luz nos destrói. Talvez isso se deva a algum tipo de radiação<br />

emanada pelos raios solares que nos venha a ser extremamente maléfica...<br />

Não sei explicar o que acontece. O fato é que vampiros são frios, têm uma<br />

temperatura corporal normalmente fria, e não podem ser alvejados pela luz<br />

solar durante longos períodos de tempo, e mais nada.<br />

Cruzes, água benta e quaisquer outros artifícios religiosos não passam<br />

de balela, conversa de pregador que procura convencer os fiéis a deixarem<br />

um tostão a mais na caixinha da igreja em época de desespero.<br />

Estacas? Fogo? Balas de prata? Alho? Espinhos de rosas silvestres?<br />

Água corrente? A benção de Sua Santidade, o Sumo-Pontífice? Não me<br />

faça rir.<br />

Conheço um colega oriental que caminhava em brasas quando era<br />

vivo, e que agora, sendo um vampiro, consegue até mesmo dormir sobre<br />

elas, tamanho o seu controle mental e corporal. Se não me engano, ele vinha<br />

tentando realizar incursões diurnas prolongadas, debaixo de véus e turbantes,<br />

desafiando o calor do sol. Não sei se conseguiu, pois nunca mais o vi, mas<br />

ouvi rumores de que ele ainda está vivo, provavelmente ainda tentando<br />

realizar tal feito. Vampiros não costumam sofrer com a saudade dos amigos<br />

distantes, se é que me faço entender... Além do que somos extremamente<br />

pacientes e determinados, em virtude de nossos tantos e quantos anos de<br />

vida, o que nos credencia a realizar experiências e estudos mais prolongados,<br />

muitas vezes debaixo de condições extremas, e colocando a nós mesmos<br />

como cobaias.<br />

Um de meus amigos mais próximos chega a ingerir alho de vez em<br />

quando. Por ser muito antigo, ele diz que se trata de uma tática que foi<br />

extremamente funcional durante os séculos que se passaram, idade média,<br />

idade contemporânea, quando todo mundo acreditava em fábulas empíricas<br />

como o sol que gira em torno da terra e o alho que funciona como um ótimo<br />

repelente para vampiros. Preso várias vezes como suspeito de vampirismo ou<br />

Fabian Balbinot<br />

57


de bruxaria, o bafo de alho que tinha servia como um dos tantos álibis pouco<br />

convencionais a que costumava se apegar. E pelo visto, tais ardis funcionaram,<br />

pois ele ainda nos acompanha em nossa jornada de sangue e morte...<br />

“Jornada de sangue e morte”, tão romântica que ficou esta expressão.<br />

Talvez eu esteja mesmo habilitado a ser um novelista famoso, mesmo tendo<br />

de permanecer anônimo. Se eu ficar vivo por mais algumas décadas, será<br />

que poderei ver estas minhas linhas se transformando em um best-seller,<br />

virando filme, seriado de TV?<br />

Falando sério, estacas encravadas no coração e uma rajada de balas<br />

de prata no meio dos olhos matam QUALQUER UM! Faça o teste com<br />

seu irmão menor... e caso não queira matá-lo de verdade, use um espinho<br />

de rosa. Posso garantir que uma perfuração na artéria certa pode fazer uma<br />

pessoa vazar muitos litros de sangue. Convenhamos, você está falando com<br />

um especialista no assunto.<br />

Falando ainda mais sério, estacas no coração servem para nos<br />

paralisar, e não para nos matar, se bem que passar alguns anos empalado por<br />

uma estaca pode transformar qualquer um em história.<br />

Temos uma impressionante capacidade regenerativa, e mesmo depois<br />

de mortos, esfacelados, desmembrados, conseguimos restaurar nossos<br />

corpos de um modo muito rápido. Não me pergunte como funciona, porque<br />

eu não saberia responder. Porém, pense duas vezes antes de apontar uma<br />

metralhadora para um vampiro – por mais retalhado que ele venha a ficar, é<br />

bem provável que no dia seguinte você venha a receber a mais indesejada e<br />

inesperada das visitas.<br />

É um assunto extenso, sem fim, a vulnerabilidade, ou a invulnerabilidade<br />

vampírica. Somos uma espécie difícil de ser estudada, e há muito poucos<br />

por aí que conhecem nossas verdadeiras origens. Gente com milênios de<br />

existência. A fonte da juventude em formato humano.<br />

São assuntos sem fim, e uns puxam os outros, na velocidade do<br />

pensamento, que os toques acompanham fazendo as teclas ferverem.<br />

Em segundos, um raciocínio complexo consegue se transformar em uma<br />

dezena de linhas... Melhor parar, e recomeçar abordando um daqueles dois<br />

assuntos que propus comentar, afinal, ainda faltam alguns minutos para o<br />

amanhecer.<br />

Não posso revelar meu nome. Mas posso dizer que sou uma pessoa de<br />

aparência normal, vivo em um apartamento, e durmo em uma cama bastante<br />

confortável durante o dia. Não há problemas com condomínio e nem contas<br />

atrasadas, apesar de eu jamais as ter pago em dia. Na verdade, nunca paguei<br />

conta alguma, em nenhum dos prédios e hotéis em que já pernoitei.<br />

Conhece sugestão e auto-sugestão em se tratando de psicologia? E<br />

hipnose, já ouviu falar? Se sim... então você já consegue fazer uma vaga<br />

ideia do que eu posso fazer com as mentes das pessoas normais que cruzam<br />

meu caminho. Basta que imagine uma hipnose cem vezes mais forte, cem<br />

58 Doença e Cura


vezes mais rápida do que o normal. E, veja só, eu não preciso de nenhum<br />

relógio balançando para lá e para cá. Eu só preciso olhar para a pessoa,<br />

para seus olhos, atraindo-os para mim. Pronto! É como se eu estivesse no<br />

controle. Nada mais é mistério para mim, em relação àquele indivíduo.<br />

E hoje ainda é mais fácil do que antigamente. As pessoas estão com<br />

suas mentes cada vez mais fracas. Não há mais concentração e autocontrole<br />

nessa correria urbana diária que o ser humano moderno criou para si<br />

mesmo, em busca de dinheiro e felicidade. Os seres humanos normais<br />

cada vez mais não passam de vermes sem determinação, preocupados com<br />

banalidades como cumprir a agenda diária e garantir o emprego, ou com<br />

pegar o próximo trem, ultrapassar o carro que está na frente, não borrar a<br />

maquiagem, não deixar que o cabelo fique despenteado do modo ERRADO,<br />

tomar os três comprimidos nos três horários EXATOS que foram prescritos<br />

pelo endocrinologista... Quanta besteira.<br />

Consigo hipnotizar um salão inteiro de humanos de hoje em dia com<br />

um dos olhos fechados e as duas mãos amarradas atrás das costas. Chega<br />

a dar pena. Humanos fodidos... robôs, escravos de seus relógios, de seus<br />

carros, de suas estradas, contas bancárias e empregos.<br />

É por isso que não é bom se meter com crianças. Além de ser<br />

desaconselhado pelas nossas tradições, é líquido e certo que elas se<br />

encontram muito mais VIVAS do que seus pais. Elas ainda acreditam em<br />

bichos peludos com garras e dentes afiados que moram no sótão, ainda<br />

sonham e pensam, mesmo estando cercadas por computadores, videogames,<br />

revistas em quadrinhos, pornografia e informação sem valor em três ou<br />

quatro línguas diferentes. E elas reagem! Suas mentes são maravilhosos<br />

poços de força, derradeiros refúgios para a impetuosidade e determinação<br />

humana. Dominar uma criança de dez anos com um olhar pode ser muito<br />

mais difícil do que manipular mentalmente um banco inteiro de jurados em<br />

um tribunal, encontrando-se no banco dos réus.<br />

Ouça o que lhe digo, você que é vampiro como eu, e é jovem,<br />

sem experiência. Não se meta com crianças... Elas saem dos transes tão<br />

facilmente quanto derrotam o chefão final de um jogo de computador, e não<br />

se desiludem com a mesma sujeição dos adultos. Ao contrário das crianças<br />

do mundo vampírico, que já foram humanos adultos, iludidas que estão<br />

pelos poderes excepcionais que adquiriram, ou simplesmente apavoradas<br />

pela nova situação em que foram lançadas, as crianças humanas podem<br />

se constituir em oponentes formidáveis. Curiosas, abandonam o medo e a<br />

descrença de seus pais e passam a investigar. Coisas acabam vindo à tona<br />

por causa dos pequenos pirralhos humanos. Não mexa com eles.<br />

Contudo, caso queira arriscar, use a lábia. Uma boa conversa funciona<br />

bem melhor com crianças do que qualquer forma de controle mental.<br />

Ah, e não é recomendável transformar crianças em vampiros,<br />

tampouco. Eternas crianças, que nunca crescem nem envelhecem podem se<br />

Fabian Balbinot<br />

59


constituir em uma experiência bastante traumatizante, tanto para si mesmas<br />

quanto para o restante da comunidade.<br />

Retornando ao assunto, moro atualmente em um apartamento, e tenho<br />

um computador com um teclado resistente. Não conheço suas características<br />

técnicas, memória, processamento, etc. e tal, mas sei que é um bom aparelho,<br />

eficiente e compacto.<br />

Considero incrível tanto quanto perigosa essa evolução tão constante,<br />

ininterrupta, a que a humanidade vem se submetendo nas últimas décadas. A<br />

revolução da informática, perigosa faca de dois gumes...<br />

Ao contrário de nós, vampiros, graças a essa intensa transformação<br />

tecnológica que gera novos produtos e duplica capacidades de<br />

processamento de computadores ao passo que diminui pela metade as suas<br />

dimensões, triplicando seus preços, os seres humanos estão tendo de lidar<br />

diariamente com uma carga cada vez maior de informações. O mundo<br />

capitalista inteiro se transformou em uma espécie de gigantesco banco de<br />

memória. As pessoas funcionam como armazéns de dados e procedimentos,<br />

ou como chaves elétricas de liga-e-desliga para tais procedimentos, e a<br />

ânsia de obter rapidez cada vez maior no lidar com tanta informação as<br />

está fazendo viverem apenas esta troca de informação, que não é – em<br />

hipótese alguma – a vida real.<br />

Não sei por que, mas me falta vocabulário e ideias mais concisas para<br />

poder explicar a que me refiro no parágrafo anterior. Em suma, os humanos,<br />

que já eram escravos de seus trabalhos, agora passaram a ser escravos<br />

RÁPIDOS de seus trabalhos. Tenho certeza de que estou generalizando ao<br />

classificar toda uma geração nestes moldes, mas, em meu ponto de vista, é<br />

o que parece estar acontecendo. As máquinas, os bits e o modo de agir estão<br />

ganhando importância maior do que a própria vida.<br />

Como eu disse, ao contrário de nós, vampiros, que vivemos nossa<br />

eternidade com a calma e a paciência dos predadores, a humanidade, ou boa<br />

parte da humanidade, transformou-se em um rebanho de ovelhas apressadas<br />

que contentam-se em pastar em uma aparentemente inesgotável campina de<br />

processos digitais, horários e bom atendimento a clientes, sendo rápidas ao<br />

seguirem o caminho de evolução mais próximo, mas que não teriam a menor<br />

ideia do que fazer caso algo desse REALMENTE errado, cercados que estão<br />

pelas barreiras que seu modo de vida de alta-tecnologia e inovação produziu<br />

ao longo dos anos.<br />

Aposto que uma catástrofe bem grande, ou não tão grande, mas<br />

imprevista, colocaria a humanidade inteira de joelhos.<br />

O dia se aproxima, e eu estou ficando filosófico e piedoso demais. Se<br />

a humanidade inteira for escravizada pela tecnologia, pelo horários e pela<br />

internet, para mim tanto faz. Contanto que o sangue ainda mantenha sua<br />

qualidade...<br />

Hora de ir dormir. Amanhã, continuaremos nossa conversa – pouco<br />

60 Doença e Cura


elucidativa, em meu modo de vista, pois não consigo avaliar o problema que<br />

realmente me aflige, porém divertida e relaxante.<br />

Espero que vampiros não sofram de tendinite, um dos males de nosso<br />

tempo. Pobres humanos imbecis...<br />

* * * * *<br />

Não posso mais esperar.<br />

Estou “lento” de novo.<br />

E estou nervoso.<br />

Aconteceu outra vez.<br />

A falta de habilidades, a falta de controle de minhas capacidades de<br />

vampiro.<br />

NÃO CONSIGO MAIS FAZER AS COISAS QUE OS VAMPIROS<br />

FAZEM!<br />

E o sangue, pulsando de lá para cá em meu peito.<br />

Vamos por partes.<br />

Tenho que lembrar, preciso lembrar...<br />

Acho que foi uns dez ou onze dias atrás. Eu lembro de ter visto o<br />

sangue espalhado pelo chão. Um filete de sangue, vivo, quente, pulsante<br />

como se estivesse atravessando um coração.<br />

Mas estava no chão. No meio do pó e do lixo, em um dos muitos<br />

becos que há pela cidade.<br />

Uma trilha de sangue efervescente, atraente como a perspectiva de<br />

uma possível felicidade eterna, singrando a superfície escura e imunda de<br />

paralelepípedos encaixados uns ao lado dos outros.<br />

Sangue vivo, irresistível. Brilhando como um farol vermelho no meio<br />

da imundície do beco.<br />

Lembro de ter corrido de encontro a ele, a... aquilo... E lembro de têlo<br />

provado. Lembro até mesmo de ter lambido aquela substância adocicada,<br />

deliciosa, alucinante, direto do chão, deitando-me de bruços ao solo, como<br />

um reles animal.<br />

E, a partir daí, não lembro de mais nada.<br />

Acho que foi a partir daquela noite que as coisas começaram a fugir<br />

de meu controle.<br />

Ontem, bem me recordo, saciei meu corpo com sangue. Uns dez litros,<br />

arriscando um palpite, retirados de muitas pessoas diferentes, para não dar<br />

na vista. Em um ritmo de vida vagaroso, propositadamente entediante até,<br />

como o que me propus a levar, dez litros de sangue servem para que eu me<br />

mantenha por até quinze dias, ou mais. Vinte dias até, caso o repasto no<br />

último dia do prazo venha a ser farto e garantido, sem que seja necessário<br />

fazer muito esforço.<br />

Sangue suficiente para passar quinze dias.<br />

Fabian Balbinot<br />

61


E, no entanto, hoje, na noite seguinte, cá estou eu, com o estômago<br />

quase que COMPLETAMENTE VAZIO!<br />

Sim. É isso mesmo, caro amigo vampiro que possa estar lendo estas<br />

linhas, capaz de compreender como geralmente se passa a vida após a<br />

morte.<br />

Estou limpo. Seco. Vazio.<br />

Não deve ter restado nem meio litro de sangue em meu corpo.<br />

E ele fica pulsando sozinho, perambulando de lá para cá, uma criatura<br />

dona de um tétrico livre-arbítrio, longe de minha vontade, dentro e fora de<br />

minhas veias e artérias.<br />

Sinto como se estivesse enlouquecendo. Perdendo o controle.<br />

Esta maldita coisa dentro de mim. Ela retira meus poderes e drena<br />

minha sanidade.<br />

Tentei sair, hoje, no início da noite, camuflado de sombras e falsas<br />

memórias, como sempre faço. Sempre consegui iludir os homens, fazendoos<br />

acreditar que lá não há ninguém quando lá estou eu. Não tenho dinheiro<br />

para pagar diárias de hotel e aluguéis de apartamentos pelo simples fato<br />

de que posso não existir, ou deixar de existir na mente de uma legião<br />

inteira de seres humanos de sangue quente. Não chega a ser invisibilidade,<br />

que alguns amigos meus até conseguem tornar real. Trata-se de sugestão<br />

coletiva, indução ao esquecimento e ao não-reconhecimento de conceitos e<br />

fisionomias, arte na qual já FUI mestre...<br />

Fui. Porque, hoje, isso deixou de funcionar.<br />

Viram-me, em minha saída do prédio.<br />

E também em meu regresso.<br />

O maldito porteiro viu meu rosto e exigiu documentos para registrar<br />

minha primeira diária neste ridículo hotel de terceira-classe.<br />

Sou raposa velha. Tenho minhas armações mundanas, pois a prevenção<br />

é o melhor remédio. Mostrei-lhe documentos forjados, que não costumam<br />

despertar maiores suspeitas nas raras vezes em que sou obrigado a lançar<br />

mão de tal expediente.<br />

Os documentos, como sempre, funcionaram, mas não acredito que as<br />

desculpas que inventei a respeito de minha saída anterior do prédio, “... entrei<br />

apenas para verificar as instalações... para ver se este é um bom lugar para eu<br />

passar a noite e o dia seguintes...”, tenham sido plenamente convincentes.<br />

Tenho medo até mesmo de ficar neste quarto durante o dia que virá.<br />

Não posso garantir que a camareira não venha a invadir o lugar e abrir as<br />

janelas e cortinas, esparramando sol para todos os lugares, incendiando meu<br />

corpo e lançando-me no inferno. Não posso garantir que a camareira ou<br />

algum outro serviçal não venha a relembrar que este quarto existe, e torne a<br />

incluí-lo em seu itinerário de serviço.<br />

Não posso nem mesmo garantir que o mês inteiro em que este<br />

quarto passou despercebido não venha a encher a cabeça de algum dos<br />

62 Doença e Cura


administradores do hotel de suspeitas de que algo muito errado possa ter<br />

acontecido durante este tempo.<br />

Ora, um quarto que permanece desocupado durante um mês inteiro<br />

em um hotel de rotatividade razoável, sem maiores esclarecimentos... preciso<br />

dizer algo mais? Alguém sabe o que está acontecendo?<br />

Não posso dar margem para as suspeitas das pessoas de sangue quente.<br />

A curiosidade diurna de minhas presas pode me trazer muita encrenca.<br />

Encrenca da grossa.<br />

Estou me mudando ainda hoje.<br />

Os planos são simples. Faça planos simples e funcionais quando a<br />

situação estiver muito complicada. Deixe a sofisticação e a elaboração para<br />

quando você venha a estar no controle dos acontecimentos, é o que dizem<br />

os mais sábios.<br />

Os planos são simples. Conheço um local deserto, algumas dúzias de<br />

quarteirões distante daqui. É um prédio semi-demolido, arquitetura barata<br />

de três ou quatro décadas atrás, sito em um terreno que está à venda há anos,<br />

e que há anos não encontra um comprador.<br />

Os frequentadores das vizinhanças do local constituem um grupo<br />

social dos mais adequados que se possa imaginar. Drogados e prostitutas,<br />

mendigos e policiais coniventes, conscientes que estão de que nem mesmo<br />

Deus poderia consertar tamanha miséria munido de um uniforme, um<br />

cassetete e uma pistola calibre 32.<br />

Existe um porão na base daquele velho prédio arruinado. Já estive lá,<br />

em uma de minhas andanças pela cidade. Não faz parte de meu território<br />

atual, bem o sei, mas, creio que não terei problemas em obter alguns favores<br />

temporários, garantias e compensações da ralé de novatos que por lá vive,<br />

em troca de um arrendamento e alguns dias de estadia.<br />

É para lá que eu vou. Não posso mais ficar aqui. É perigoso demais.<br />

Estou suspendendo temporariamente estes meus registros, até que eu<br />

possa encontrar algum novo local para escrever. Tenho ciência, contudo,<br />

que esta estranha doença que se apossou de meu corpo e de meu sangue<br />

merece toda a minha consideração e respeito. Este tipo de malefício que<br />

anula minhas habilidades mais exclusivas pode vir a ser de algum modo<br />

contagioso, de forma que me sinto obrigado a pesquisá-lo e compreendê-lo,<br />

e ir em busca de sua cura.<br />

Tornarei a escrever logo que se torne possível.<br />

Até breve.<br />

* * * * *<br />

Boa noite, querido diário.<br />

O destino tem seus próprios caminhos, e cá estou eu com um<br />

computador novo, onde posso continuar minha narrativa.<br />

Fabian Balbinot<br />

63


Os subúrbios não são tão ruins, nem nunca foram. Existe uma união<br />

bem grande entre todos os vampiros daqui, e uma dedicação, um apoio<br />

irrestrito e incondicional de todos à minha pessoa.<br />

É o que faz o temor.<br />

Não tenho a menor dúvida de que teria sido morto no mesmo instante<br />

em que primeiro pisei estas paragens, não fosse o medo que meus atuais<br />

aliados sentem em relação a mim. Um breve conhecimento de geografia<br />

e da divisão política de castas, típica de nosso sistema vampírico, quase<br />

uma monarquia parlamentarista, levemente anárquico, seguindo os passos<br />

de uma máfia bem organizada... um breve conhecimento da realidade<br />

vampírica desta grande cidade trouxe-me ao seio onde prosperam os piores<br />

dentre todos os vermes de minha raça.<br />

Integrados aos mendigos, diria até mesclados a estes, o povo do<br />

subúrbio industrial vive das migalhas de uma sociedade tão ou mais<br />

sedentária e desajustada do que a dos próprios humanos, com uma única e<br />

brutal diferença: no mundo dos predadores, a sociedade tende a ser ainda<br />

mais injusta e cruel para com os menos capacitados.<br />

Muitos dos que aqui vivem se alimentam do sangue de cães vadios<br />

e ratos nos esgotos. Outros são como os piores traficantes de drogas de<br />

sangue quente, não raro disputando com estes os mesmos espaços, onde<br />

comercializam seus próprios corpos, seu próprio sangue, fornecendo para<br />

seus carniçais humanos, escravos de um interminável círculo vicioso, vida<br />

eterna em troca de dinheiro, armas e algum poder. Existem aqueles que<br />

nem podem sair dos esgotos, tão deformados que são – seres que parecem<br />

sobreviver à base de doenças e de toxinas. Criaturas vis, abutres que sequer<br />

merecem ser chamados de vampiros.<br />

Viver de doenças... Isso faz com que eu me recorde de minha própria<br />

situação.<br />

Tenho cá a minha fama. O pessoal das vizinhanças me conhece e<br />

respeita, pois sabem do que posso ser capaz.<br />

A força de dez homens... a velocidade além do olho humano... o radar<br />

do morcego... o olhar que destrói a mente... o apodrecimento do sangue.<br />

Há um mês, tais truques seriam proezas fáceis de serem executadas.<br />

Hoje, já não tenho tanta certeza quanto a isso.<br />

Estou escrevendo devagar. Sei que posso fazer isso muito mais<br />

rapidamente, mas, não acredito que revelar a extensão de meus poderes, em<br />

um lugar como este, seja uma alternativa sábia. Há olhos perscrutando as<br />

frestas nas paredes, olhos de criaturas que adorariam compartilhar um pouco<br />

de meus poderes, nem que para isso tivessem que me destruir.<br />

Estou escrevendo em outra língua. Um dialeto de um dos mais antigos<br />

idiomas dentre os dez que domino fluentemente. Quem quer que já tenha<br />

tentado rastrear a mente de alguém que consegue pensar em outra língua<br />

sabe que vai entender pouco mais do que se estivesse tentando entabular um<br />

64 Doença e Cura


diálogo com tal indivíduo. As verbalizações são diferentes, e muitas vezes<br />

o modo de pensar deixa de seguir um padrão ao qual possamos atribuir<br />

alguma lógica.<br />

Isso evita que eu tenha que me preocupar com os dois ratos de esgoto<br />

que estão há horas tentando invadir e examinar meu cérebro de fora para<br />

dentro, ocultos de alguma forma na escuridão.<br />

Tenho certeza, a julgar pelos seus próprios pensamentos primitivos,<br />

e pelas tantas vulnerabilidades e falhas no uso de seus poderes telepáticos,<br />

que eles não devem estar entendendo coisa alguma do que estou pensando,<br />

e consequentemente digitando.<br />

Por sorte, a incompreensão dos ignorantes é a chave para a grande<br />

maioria de seus temores. Não necessito de poder vampírico algum para<br />

escrever em outra língua, e deixar meus perseguidores atentos e alertas.<br />

Meus outros textos encontram-se devidamente criptografados, de um<br />

modo que os torna incompreensíveis, até mesmo para mim, graças a um dos<br />

tantos softwares que se pode achar na internet, caso se tenha o conhecimento<br />

necessário, tempo para pesquisar, e as senhas corretas.<br />

Parece-me óbvio que informações a respeito de minhas origens<br />

e reais capacidades acabarão sendo desenterradas pelos pobres tolos que<br />

me espionam, isso depois de um certo tempo, o que talvez demande uma<br />

nova linha de ação defensiva de minha parte. Parece-me ainda mais óbvio<br />

que a boataria e a falta de confirmação a respeito de tais informações vão<br />

servir para multiplicar por dez o tempo que será necessário para depurá-las,<br />

tornando-as em algo realmente útil e confiável.<br />

O medo de meus vizinhos serviu até mesmo para me garantir este<br />

computador minúsculo onde agora escrevo. E um recôndito isolado,<br />

subterrâneo e eternamente escuro – um pequeno escritório, de uma empresa<br />

metalúrgica falida, caindo aos pedaços – onde posso me esconder e viver<br />

calmamente.<br />

Por enquanto, estou seguro. Meus salvo-condutos para uma estadia<br />

prolongada neste cubículo onde tive que me meter são minha sagacidade e<br />

minha inteligência, e não o meu poder sobrenatural.<br />

Não confio mais de todo em meu poder sobrenatural. Não posso mais<br />

confiar.<br />

Há algo em meu peito. Algo dentro de mim. Uma coisa, ou uma<br />

substância, que está removendo meus poderes, um pouco de cada vez, ao<br />

mesmo tempo em que mina as capacidades nutritivas do sangue de que me<br />

alimento, de uma noite para outra.<br />

Estou bem alimentado, agora. Mas, quando acordei, enxergava tudo<br />

vermelho, com a sede de dez de meus irmãos contaminando meu corpo,<br />

incendiando minha mente.<br />

Lembro quase nada do desfecho dos acontecimentos. Devo ter revelado<br />

alguns de meus poderes, como também minha outra face, animalesca e<br />

Fabian Balbinot<br />

65


irracional, nos momentos em que percorri o bairro em busca de muito, muito<br />

sangue.<br />

Sinto-me cheio, quase como se fosse explodir, o que significa que<br />

devo ter matado alguém, talvez duas ou três pessoas. Percebo também que,<br />

de ontem para hoje, o temor de meus vizinhos em relação a mim só fez<br />

aumentar. Só isso justificaria os dois incansáveis espiões.<br />

Não posso reclamar de um efeito colateral que inspire doses ainda<br />

maiores de pavor em meus asseclas temporários e que me permita permanecer<br />

aqui por ainda mais tempo, em relativa segurança.<br />

Contudo, tenho medo de mim mesmo...<br />

Há algo dentro de meu corpo que está comprometendo o ritmo de<br />

meu metabolismo, fazendo-me ingerir, de uma única vez, sangue em uma<br />

quantidade que seria suficiente para me sustentar durante dias. Algo que<br />

deve ser analisado.<br />

Sem contar que muitas mortes podem trazer a polícia para cá... ou<br />

alguém ainda pior – a “polícia” dos vampiros.<br />

Estou pensando em pedir aos meus “amigos” do subúrbio que<br />

extraiam de um hospital ou laboratório qualquer certos acessórios, seringas,<br />

microscópio, tubos de ensaio.<br />

Não tenho a menor ideia do que pode estar acontecendo com meu<br />

sangue. Examiná-lo talvez seja o primeiro passo para colocar um fim em<br />

minhas dúvidas. Posso obter algumas amostras, se me concentrar bastante –<br />

a retirada de sangue de dentro do corpo de um vampiro pode ser muito, mas<br />

muito desagradável mesmo. E trata-se de uma operação de difícil execução,<br />

pois o hábito de um vampiro é tomar o sangue, e não cedê-lo – isto não está<br />

de acordo com nosso modo de ser.<br />

Enfim, há algumas informações que já possuo e que posso ter como<br />

certas.<br />

Em primeiro lugar, tudo começou naquela noite, há exatas treze noites,<br />

quando eu vi a trilha de sangue, espalhada como um fio de lava fervilhante<br />

no chão do beco. Sangue vivo, limpo, vermelho-claro, quase como se dele<br />

se originasse luz. Sangue limpo, no meio da imundície de um beco em nada<br />

melhor do que esta velha toca de rato em que estou vivendo.<br />

Sangue que eu bebi, ludibriado, embevecido por uma necessidade<br />

sobre a qual imaginava até então ter pleno controle.<br />

Ali está a origem do malefício que há três dias vem consumindo meu<br />

sangue, não tenho nenhuma dúvida a este respeito – farei uma visita ao tal<br />

beco, assim que eu consiga reter um mínimo de autocontrole – e de sangue<br />

– em meu corpo...<br />

Três dias em que o sangue de cada noite de véspera simplesmente<br />

desapareceu, evaporou-se no ar. Lembro-me de como estive e de quanto<br />

sangue bebi na noite de ontem, menos do que hoje, mas uma quantidade<br />

razoável, mesmo assim. Lembro-me também da sede com que acordei.<br />

66 Doença e Cura


A sede que só os vampiros conseguem sentir, apenas quando estão precisando<br />

de muito sangue.<br />

A sede bestial, que revela a fera descontrolada que se esconde dentro<br />

de cada um de nós.<br />

O vazio pulsante em meu peito. Como uma bolha minúscula de<br />

sangue, vagando de uma lado para outro, de lá para cá, dentro de meu corpo.<br />

Sangue amotinado, munido de vontade própria...<br />

Isso tudo, a trilha de sangue no beco, o sangue que some do corpo<br />

no decorrer do dia e o vazio, a bolha viva, independente, de sangue em meu<br />

peito, aliado à perda de controle e de confiança em meus poderes hereditários<br />

de vampiro, tudo isso me leva a crer que estou diante de um problema sério,<br />

algum tipo de deficiência imunológica ou genética, que pode comprometer<br />

não apenas a minha sobrevivência como a de toda a minha espécie.<br />

Tornarei a escrever, assim que puder relatar mais informações a<br />

respeito deste mal.<br />

... e assim que consiga ludibriar estas duas pestes que julgam-se no<br />

direito de ficar observando minha mente por cima de meu ombro.<br />

* * * * *<br />

Finalmente consegui reunir forças para voltar a escrever. Passaram-se<br />

dois dias, desde quando escrevi neste meu diário pela última vez.<br />

Sinto que estou perdendo o controle. A concentração é falha, a<br />

mentalização imprecisa.<br />

Perco, a cada dia que passa, o domínio sobre meu próprio corpo, e<br />

ante tal perspectiva, desfaz-se gradualmente também o meu espírito.<br />

Anteontem, defequei. Depois de dezenas de anos, voltei a defecar.<br />

E não se tratava de fezes, mas sim de sangue e diminutos pedaços de vísceras.<br />

Pude sentir o sangue, vivo, dentro de meu ser, locomovendo-se, dotado de<br />

vida própria.<br />

Rebelde, impetuoso sangue. Incita-me ao delírio a simples menção de<br />

relembrar tal acontecimento.<br />

Eis que o sangue tomava conta de meu corpo, espalhando-se por<br />

todos os espaços, inflamando veias e artérias, fustigando as paredes de meu<br />

coração morto-vivo, rompendo o laço da carne, trespassando como navalha<br />

líquida as paredes de cálcio dos ossos.<br />

O sangue vivo, como uma colônia, um enxame de hemácias, leucócitos<br />

e plasma a procurar uma saída, querendo abandonar o interior do corpo.<br />

Percebi o exato momento em que este fenômeno acontecia.<br />

Era dia. Não tenho a menor dúvida quanto a isso. Simplesmente SEI<br />

que era dia, apesar da total escuridão em que jaz meu pequeno dormitório.<br />

Senti como o sangue abandonava meu corpo, escorrendo aos<br />

borbotões por todos os orifícios possíveis. Ouvidos, nariz, boca, ânus,<br />

Fabian Balbinot<br />

67


uretra... ao redor dos olhos, os poros da pele, e mesmo por entre unhas<br />

e dedos. O sangue escorria sem parar. Uma massa de matéria líquida,<br />

consciente, quente, evacuando em disparada desta fria casca em<br />

decomposição que é o meu corpo.<br />

O sangue vazava e fluía, preenchendo meu estômago e minha garganta.<br />

O interior de minha boca já estava submerso com o sangue vivo, tomando-a<br />

com seu peculiar e amargo sabor, bem diferente do adocicado que por tantas<br />

vezes sorvi, extraído das incisões nas tantas carótidas de humanos vivos,<br />

sustentáculos de minha eterna andança.<br />

Minha boca explodiu em vômito, bem me lembro. Incapaz de<br />

suportar a pressão do sangue vivo e amargo, que já escorria pelo nariz e<br />

pelos olhos. Estaria sem minhas vistas, agora, caso não tivesse deixado<br />

a torrente escarlate seguir seu curso. Talvez minha cabeça inteira tivesse<br />

voado pelos ares... Bem sei o que senti. A força incrível do sangue<br />

parasita que golpeava e consumia minha carne, e se esvaía inteiro de<br />

dentro de meu ser.<br />

Cada litro e cada gota, quase tudo se foi, brilhante como lava<br />

fervente de vulcão, disparando pelas orlas da tosca e velha cama metálica<br />

de campanha que tenho utilizado para dormir. Indo para o piso de cerâmica<br />

empoado e ali escorrendo, como se este estivesse inclinado, dirigindo-se<br />

em rápida enxurrada para a saída, passando por debaixo da estreita fresta<br />

da porta de aço, e descontente com o bloqueio que ela representava em seu<br />

caminho, galgando-a, como também à parede, procurando vias de passagem,<br />

infiltrando-se no buraco da fechadura, ultrapassando a janela quebrada que<br />

há no topo da porta, desafiando a lei da gravidade.<br />

O que sei é que, em alguns segundos, o rio de sangue desapareceu<br />

do campo de visão, sumindo por trás da porta pesada, sem deixar vestígios,<br />

sem deixar pistas.<br />

Naquele momento terrível, paralisado como estava, foi que eu percebi<br />

a gravidade de minha situação.<br />

Passei o resto do dia desperto. Atormentado por ilusões e devaneios,<br />

sonhando acordado. Tentando pensar e compreender com que tipo de peste<br />

acabei vindo a me envolver.<br />

Vi coisas paradas e mortas se movimentarem como se estivessem<br />

vivas a cada nova tentativa de usar minhas percepções amplificadas. Tentei<br />

ver além do que podia ser visto e vi coisas sem sentido, que não deveriam<br />

ser vistas.<br />

Tentei sentir e identificar o cheiro do que me cercava e acabei perdendo<br />

o olfato, que foi massacrado pelos tantos odores e aromas que deve haver<br />

pelo universo inteiro.<br />

Tentei ouvir como ouvem os morcegos, e tantos foram os sons que<br />

passaram a golpear meus tímpanos que desejei por um instante ter nascido<br />

surdo.<br />

68 Doença e Cura


Tentei vasculhar o passado e fui assaltado pelos fantasmas de mil<br />

alucinações e de mil mentiras.<br />

Tentei abandonar meu corpo e vagar por aí como espírito apenas para<br />

sentir que minha alma encontra-se lacrada por fortes amarras a um corpo<br />

que parece não mais me pertencer.<br />

Tentei até mesmo usar o dom da transmutação, tornando-me terra,<br />

neblina, fumaça, vapor, qualquer coisa, qualquer material, mineral ou<br />

orgânico, que pudesse me oferecer um mínimo de mobilidade, e tudo o que<br />

consegui foram sensações deprimentes de impotência, e o gosto de fumo e<br />

terra em minha boca.<br />

E senti dor. Tentar usar meus poderes, além de proporcionar resultados<br />

imprevisíveis, ainda consegue me causar dor suficiente para estraçalhar meus<br />

nervos. É como se milhares de estacas pontiagudas trespassassem minha<br />

carne, todas de uma vez, em cada centímetro de meu corpo.<br />

Cada chibatada de agonia lançava-me em um inferno, onde eu era<br />

obrigado a penar e agonizar durante muitos minutos, antes de poder refletir<br />

e tentar novo e falho ardil sobrenatural.<br />

Permaneci paralisado durante o dia inteiro, sem conseguir dormir,<br />

agonizando como um zumbi que não consegue nem viver nem morrer.<br />

Nem mesmo meus impacientes ‘acompanhantes’, os dois vampiros espiões,<br />

tiveram coragem para permanecer observando o triste espetáculo. Isso, ou<br />

não mais os posso sentir, vitimado talvez por mais uma brecha aberta em<br />

meus poderes.<br />

Sentia apenas a sede aumentando na medida em que a consciência<br />

reassumia seu papel sobre a mente, revelando que quase duas dúzias de litros<br />

de sangue tinham simplesmente criado pernas, feito as malas, e se mudado<br />

de meu corpo para fixarem residência sabe lá Deus onde.<br />

Duas dúzias de litros de sangue...<br />

Permaneci paralisado, até que chegou a noite, e o pouco de sangue<br />

que restou, capitaneando as engrenagens e dispositivos de meus nervos e<br />

músculos, permitiu então que eu me movesse, e me dirigisse para mais uma<br />

chacina, em busca do sangue perdido.<br />

Estou em um beco sem saída. Matei de novo, e tenho consciência<br />

de que não foram poucos. A lei dos vampiros, senão a lei humana, logo<br />

irá se manifestar, procurando conter a ameaça que passei a representar à<br />

estabilidade de nossa raça na Terra.<br />

Resta-me dedicar os poucos dias que ainda posso vir a ter de vida<br />

à pesquisa. Tentar manter-me escondido e recluso, escrevendo quando<br />

possível os detalhes de minhas descobertas.<br />

Matei ontem, e matei hoje. Por sorte, neste último dia eu não permaneci<br />

acordado, vendo o mar de sangue fugindo porta afora.<br />

Consigo regenerar as partes de meu corpo que o sangue destrói em sua<br />

fuga, ou durante minhas tresloucadas e sonâmbulas incursões pela cidade em<br />

Fabian Balbinot<br />

69


usca de repasto, mas posso sentir as marcas. Ossos fragmentados, desvios<br />

na coluna, cicatrizes de milhares de açoites dentro e fora do corpo. Nariz<br />

quebrado. Maxilar deslocado.<br />

E dor. Muita dor.<br />

Dor de cabeça. Dor de barriga. Dor no pênis e dor no reto. Dor nos<br />

dedos, nas mãos, nos braços. Dor em todos os lugares.<br />

Dor até mesmo em minha alma...<br />

Não existem dados sobre este tipo de doença. Na verdade não existem<br />

dados sobre doença alguma que possa causar tal sorte de dano à fisiologia de<br />

um vampiro, ou se existem, estão de tal forma bem guardados que talvez até<br />

mesmo a ciência de suas existências veio a se perder.<br />

Gostaria de extrair uma parcela de meu sangue para poder examiná-lo<br />

e tentar descobrir o que me infectou, mas os poucos amigos humanos que<br />

amavam meu sangue e dele se nutriam em troca de meus outrora influentes<br />

favores já não mais respondem aos meus chamados. Seu auxílio seria<br />

necessário para permitir que buscas por certos materiais pudessem ser feitas<br />

pelo mundo dos humanos de sangue quente.<br />

A ciência da era contemporânea não pode ir além das mais empíricas<br />

e pálidas especulações caso não venha a contar com uma série de aparelhos<br />

modernos e sofisticados. E eu tenho medo de pedir aos meus atuais vizinhos<br />

que me obtenham um mísero microscópio retirado de um laboratório químico<br />

infantil, que seja, muito provavelmente pelo mesmo motivo que, pressinto,<br />

eles têm medo de mim.<br />

Pensei em cortar meus pulsos com um fragmento de vidro, mas<br />

percebi que não conseguiria fazer isso. E não foi apenas o medo. Algo me<br />

diz que o sangue que está dentro de mim tem hora e local marcados para sair,<br />

e não será uma mera incisão que irá modificar o rumo de seus planos.<br />

Saí às ruas, após ter me fartado de sangue, ontem à noite. Despertei do<br />

transe psicopata coberto por retalhos de roupas, membros e outros pedaços<br />

de cadáveres frescos. Sangue cobrindo toda a minha pele.<br />

Percebi como a ralé do subúrbio, bando de vampiros desajustados,<br />

olhava de soslaio para minha ‘imponente’ figura, enquanto me dirigia<br />

de volta para a velha fábrica abandonada. Eu, que usurpei posição de<br />

destaque em meio a criaturas tão pérfidas, transformando a mim mesmo<br />

em seu imperador e tirano... a mais hedionda de todas as criaturas de<br />

Deus ou do diabo.<br />

Tudo por causa dessa maldita doença.<br />

Estive no mesmo beco em que meu dilema se originou.<br />

Vasculhei cá e lá, mas não encontrei nenhuma pista, nenhum indício<br />

que pudesse lançar alguma luz a este mistério sombrio que me atormenta.<br />

Vi apenas poeira e lixo sendo atirados longe pelo vento fétido soprado<br />

pela miséria a que, volta e meia, a humanidade de sangue quente relega a si<br />

mesma.<br />

70 Doença e Cura


Tenho planos para entrar em um grande duto de esgoto que vi<br />

próximo ao tal lugar. Teria entrado na mesma noite, caso o dia não estivesse<br />

tão próximo.<br />

Não sei... Parece-me um ponto bastante suspeito. Um excelente<br />

esconderijo para uma pessoa, ou para qualquer outra “coisa” da qual a<br />

moléstia possa ter se originado.<br />

De qualquer forma, a entrada de esgoto é o próximo alvo de minha<br />

investigação – caso eu ainda esteja vivo e consciente na noite que há de vir.<br />

O dia se aproxima, e dormir cedo é a melhor saída. Dormir cedo e<br />

rápido, para não ter que passar pelo que passei dois dias atrás.<br />

Adeus, ou até breve, meu diário.<br />

Eu só espero que o que aqui escrevo seja útil a qualquer um que possa<br />

vir a passar o que estou passando.<br />

* * * * *<br />

Estive lá novamente, no local onde acredito que tudo se originou.<br />

Sinto dores tremendas. É quase impossível suportar. As entranhas<br />

ardem como se fossem banhadas por fogo, e não uma por ínfima quantidade<br />

de sangue.<br />

Preciso me concentrar e narrar o que sei.<br />

Ignorar a dor e tentar compreender o que está acontecendo comigo.<br />

Se você teve a oportunidade de ler os parágrafos anteriores, já deve<br />

estar bem a par do que está acontecendo. Infelizmente não os tenho cá<br />

comigo – estão armazenados no outro computador, em meu antigo refúgio –<br />

mas pretendo reuni-los na primeira chance.<br />

Desnecessário dizer que eu me tornei um assassino ao natural,<br />

e que minha atual existência e comportamento ofendem a reclusão e o<br />

comedimento que são pregados por todos os códigos de conduta vampírica,<br />

mesmo os mais liberais e anárquicos.<br />

Desnecessário dizer que matei de novo nas três últimas noites.<br />

Três genocídios em larga escala, todos próximos aos subúrbios. Bares<br />

e boates locais foram arrasados, e houve invasões em algumas residências.<br />

As informações devem estar em todos os jornais da cidade, do estado,<br />

do país, e não duvido que possam ter sido divulgadas mesmo no exterior.<br />

Quase uma centena de mortos, durante três dias de massacre.<br />

Boletins jornalísticos especiais interrompem a programação de TV<br />

de todos os canais, revelando um que outro pormenor a mais em relação<br />

à tragédia. O caos ronda as autoridades humanas de todas as classes, tanto<br />

políticas e de segurança, quanto sociais e religiosas. Ações de controle,<br />

compromissos de ação imediata, certezas e verdades absolutas são anunciadas<br />

e desmentidas pelos mais diversos chefes de altos escalões das dezenas de<br />

instituições, quaisquer que sejam, que estejam envolvidas com o assunto.<br />

Fabian Balbinot<br />

71


Policiais inquirem ou agridem os civis; civis reagem com contestações<br />

em altos brados e sangue de parentes mortos nas mãos, contra os policiais<br />

e políticos; políticos propõem ridículas e hipócritas medidas paliativas,<br />

ao passo que reclamam da ineficiência do poder público e da polícia, e<br />

condenam os jornalistas; os jornalistas aproveitam o embalo para criticar<br />

com ênfase nos fatos tanto a imoralidade política dos representantes de<br />

município, estado e nação, quanto a ineficiência da polícia, a descrença da<br />

população e o fanatismo do clero; o clero, por sua vez, abraça a população<br />

descrente envolvendo-a em um acalento de preces inúteis e feias cantigas<br />

de fé populares em honra a deuses salvadores que não existem e que não<br />

salvam ninguém, enquanto suas contas bancárias são agraciadas com somas<br />

cada vez mais vultuosas oriundas de doações. Não preciso especular muito<br />

para saber que esta é a crua face da verdade, apesar do canal de TV que ora<br />

assisto exibir apenas o conteúdo da metade inicial do parágrafo anterior.<br />

Desnecessário dizer que uma catástrofe sempre pode ser um motivo<br />

de grande satisfação para os banqueiros que se encontram em outros lados<br />

do país, contando o vil metal.<br />

Desnecessário dizer...<br />

Mudei de local, outra vez. A comoção pública é grande nos arredores<br />

daquela favela onde eu havia me instalado. Os humanos querem culpados, e<br />

vasculham às cegas, nas sombras, procurando evidências, fatos, pistas.<br />

Enquanto isso, a comunidade vampírica, que enxerga nas sombras e lê<br />

o que está escrito no passado, começa a dar seus primeiros passos, não resta<br />

a menor dúvida. O culpado já deve ter sido descoberto há muito tempo, e a<br />

gravidade da situação implica em uma linha de ação que pode originar tanto<br />

o imediato expurgo do mal que coloca em risco as confortáveis posições das<br />

castas na sociedade humana de sangue quente quanto a espera e a espreita.<br />

Tenho que escrever rápido, tanto quanto possível, uma vez que não<br />

possuo mais qualquer controle sobre minha celeridade sobrenatural.<br />

Escrever e divulgar, de alguma forma, aos meus irmãos.<br />

Escrever e divulgar a respeito da peste.<br />

O sangue se esvai durante o dia claro, e ponto final. Não há mais nada<br />

que possa ser mencionado a este respeito, exceto, talvez, o fato de que ele,<br />

o sangue fugitivo, não tem o “hábito”, digamos assim, de se misturar com<br />

qualquer outra substância, quer seja sólida, líquida ou gasosa. Inteligente e<br />

ágil como a minúscula ameba que usa de movimentos rápidos e fluidos de<br />

sua membrana maleável para se aproximar e envolver o germe do qual irá se<br />

alimentar, o sangue segue agrupado, desviando do que quer que possa haver<br />

em seu caminho.<br />

Encontro-me em um local subterrâneo, escondido. Uma das tantas<br />

galerias que pode haver e há por debaixo de uma metrópole tão grande como<br />

esta, compondo um universo escuro soterrado pela história e pelo esgoto.<br />

Um lugar bem distante da correria das pessoas de sangue quente.<br />

72 Doença e Cura


Aqui, em meio ao lixo e à decadência, pude encontrar um refúgio<br />

seguro, pelo menos temporariamente.<br />

Não parece, no entanto, que irei necessitar de um refúgio por muito<br />

tempo...<br />

O que presenciei em minha última visita ao beco e ao duto de esgoto<br />

onde tudo teve início fez-me perceber que talvez minha existência possa ser<br />

encerrada em breve.<br />

Vi coisas que não são naturais, de forma alguma. Coisas que talvez<br />

ultrapassem até mesmo os limites do sobrenatural.<br />

Coisas que me foram explicadas com um rigor científico. De uma<br />

forma impiedosa e convincente.<br />

E vi uma pessoa.<br />

Uma mulher.<br />

Humana. Sangue quente, tanto quanto dois e dois são quatro.<br />

Mas, devo ser organizado, e voltar ao assunto sobre o qual<br />

comentava: o sangue semovente. Mais tarde, pretendo comentar sobre<br />

a estranha mulher humana, que, apesar de estar morta, ainda respira, e é<br />

componente importante, senão essencial, para as tantas e tão diabólicas<br />

maquinações que decerto resultaram nesta pestilência execrável que<br />

vem destruindo meu corpo e roubando meu sangue. E pretendo forçar<br />

a memória ao máximo para transcrever todas as terríveis palavras que a<br />

sinistra figura pronunciou.<br />

Como eu mencionei, o sangue semovente parece não encontrar maiores<br />

dificuldades para abrir caminho em meio às mais diversas substâncias e<br />

superfícies.<br />

Ontem, durante o dia escuro dos esgotos, consegui segui-lo, com<br />

supremo esforço, após ter lutado para me manter desperto, e contra a<br />

agonia indizível que é ter seu sangue extirpado de dentro de suas próprias<br />

entranhas.<br />

Chego a sentir um pouco de pena das pobres vítimas que já suguei<br />

até a morte, mesmo admitindo que nutrir pesar para com o alimento não nos<br />

serve para aplacar a fome, e não vem ao caso.<br />

Passos lentos e claudicantes de aleijado, acompanhei o grande e<br />

comprido glóbulo vivo de sangue em boa parte de seu trajeto, galeria abaixo.<br />

O sangue parece procurar um caminho rumo às profundezas, buscando<br />

seguir os desígnios da gravidade, nem que para isso seja preciso por vezes<br />

desafiá-la.<br />

Vi a massa de material vermelho-claro, notadamente mais claro e<br />

de consistência mais fina do que o sangue humano normal, subdividindose<br />

em grupamentos menores para transpor obstáculos, afunilando-se para<br />

atravessar dutos, subindo por paredes e galgando tetos, e mesmo escorrendo<br />

para o alto, pura e simplesmente lançando-se para cima e escalando o próprio<br />

ar em distorcida e paradoxal correria.<br />

Fabian Balbinot<br />

73


Vi o sangue que não goteja lançar-se em meio à sujeira dos esgotos.<br />

Uma mancha clara e brilhante atravessando a poluição, sem com ela misturarse<br />

em momento algum, em um nado belo, ora espiralado, ora ondulando<br />

como uma grande enguia.<br />

Não pude acompanhar o sangue que saiu de meu corpo além do trajeto<br />

imundo das grandes e profundas galerias de esgoto, onde ele se infiltrou.<br />

Também não faço ideia de qual seja o seu destino final. Aliás, tenho a vaga<br />

impressão de que a bolha de sangue semovente poderia estar simplesmente<br />

fugindo de mim, desviando de minhas tentativas de acompanhá-la através de<br />

caminhos de difícil acesso, até ter decidido se jogar no esgoto, suplantando<br />

a correnteza e dirigindo-se contra esta, corredeira acima.<br />

Não posso afirmar com certeza, mas parecia se tratar de uma rota de<br />

fuga, acidental, e também acidentada.<br />

Isto foi o que vi, acredite você ou não.<br />

Vi a vida se esvaindo de meu corpo, de livre e espontânea vontade.<br />

Vi minha vida fugindo de mim. Por mais inacreditável que possa<br />

parecer.<br />

E não foi só.<br />

Durante aquela mesma noite, lancei mão de meu autocontrole e<br />

agarrei-me à consciência com unhas e dentes, como pude.<br />

Foi a última noite em que me alimentei seguindo minha própria<br />

vontade. Matei, bem o sei. Entretanto, era a minha mente que estava no<br />

comando das ações.<br />

E matar pessoas não é uma atitude das que eu possa considerar<br />

comovente.<br />

Muito mais comovente é ter o domínio sobre nossa consciência. Andar<br />

com passo marcado. Calcular com frieza o melhor momento para agir. Poder<br />

seguir outra vez os instintos e habilidades de caçador, legado maior que o<br />

enlace vampírico nos proporciona.<br />

Ficaria extremamente comovido caso pudesse contar outra vez com o<br />

controle sobre minha existência.<br />

Mas, isso não vem ao caso. O tempo para o dia chegar se aproxima,<br />

a cada movimento dos ponteiros e engrenagens digitais do relógio animado<br />

que me mostra o computador.<br />

Tenho que relatar. Tenho que divulgar o que sei, e o que vi, e dar<br />

minha contribuição para impedir que esta praga se espalhe.<br />

Como mencionei antes, vi uma mulher, no final da noite.<br />

Uma mulher.<br />

Humana. Sangue quente, tanto quanto dois e dois são quatro, usando<br />

dos recursos exclusivos da informática, que permitem que possamos duplicar<br />

e reescrever parágrafos inteiros mediante toques nas teclas certas.<br />

Como eu gostaria de poder usar meus próprios recursos vampíricos para<br />

escrever na velocidade quase automática do pensamento... Tenho absoluta<br />

74 Doença e Cura


certeza que o número das páginas que já foram escritas seria muito maior,<br />

assim como a minúcia das informações que ali estariam disponibilizadas.<br />

Enfim...<br />

Era uma mulher de aparência comum. Nem bela, nem feia. Um pouco<br />

acima do peso, talvez. Cabelo crespo e revolto, castanho-escuro. Uma<br />

mulher bastante comum, posicionada tal e qual peça chave em uma situação<br />

incomum, ou na mais incomum das situações, diria até.<br />

Lembro que, no final daquela noite, anteontem, provavelmente,<br />

penetrei na grande passagem de esgoto semelhante a túnel, próxima do beco<br />

onde tudo começou, e segui caminhando por suas fétidas entranhas, tentando<br />

achar qualquer indício que pudesse me auxiliar na solução deste mistério.<br />

Passados uns quinze ou vinte minutos de caminhada e busca infrutífera,<br />

percebi alguns movimentos justamente no caminho por onde havia vindo.<br />

Passos, e uma voz que sussurrava palavras que eu não podia ouvir.<br />

Os esgotos de uma cidade geralmente apresentam dimensões<br />

proporcionais a esta, e como esta é uma enorme cidade, uma verdadeira<br />

megalópole, pode ser dito que os canais e galerias que pontilham sua base<br />

são realmente monstruosos e gigantescos. Há túneis que poderiam acomodar<br />

frotas inteiras de veículos de grande porte, como caminhões e ônibus, e<br />

escadas verticais de centenas de metros levando para as mais imperscrutáveis<br />

profundezas. Vigas de concreto, espessas como sequóias, às vezes ocas, às<br />

vezes cheias, quadradas ou redondas, sobem para o alto, ou descem para<br />

baixo, perdendo-se no vácuo, cercadas por verdadeira floresta de canos,<br />

tubos e dutos, termostatos, motores e medidores de pressão. Toneladas de<br />

lodo tóxico jazem estáticas em extensos pântanos artificiais imersos na<br />

escuridão, ao passo que enormes cachoeiras de detritos descem de alturas<br />

de muitos andares, em meio a canos e paredes, despejando a interminável<br />

imundície de milhões de pessoas toda de uma vez em um verdadeiro oceano<br />

de veneno, que, apesar de representar valores completamente opostos e<br />

artificiais, ligados à morte, em muito se assemelha ao mundo natural de rios<br />

e matas intocados, em que prospera a vida.<br />

Cito isto, este breve relatório da fisionomia subterrânea da cidade,<br />

para que o leitor possa situar-se, e compreender que, em meio a estes esgotos<br />

em que ora vivo, apesar de muito se ter percorrido, tem-se cada vez mais<br />

consciência de que pouco ou nada se viu do total de sua extensão.<br />

Ouvi os tais passos atrás de mim, e a voz que murmurava, e<br />

imediatamente coloquei-me em estado de alerta. Um instinto fez-me querer<br />

direcionar as percepções, ou ouvir à distância, e em curva, aproveitando<br />

apenas as ondas sonoras certas, que fazem parte dos ruídos que realmente<br />

desejamos ouvir, capturando o ecoar e utilizando-se adequadamente da<br />

ressonância... coisa que apenas vampiros experimentaram, e que apenas nós<br />

podemos compreender. De qualquer modo, a falta de cautela em utilizar de<br />

meus poderes rendeu-me uma série de severas aguilhoadas, como se dezenas<br />

Fabian Balbinot<br />

75


e mesmo centenas de ferrões de vespas tivessem espetado meu cérebro,<br />

todos de uma só vez.<br />

Verguei sobre minhas pernas, e fui ao solo sujo de terra rançosa e<br />

contaminação. A dor era simplesmente insuportável, e passaram-se uns bons<br />

dez minutos antes que eu conseguisse retomar o controle.<br />

Desde então, não represento mais do que a patética figura humana<br />

convencional. Não sou mais do que um reles sanguessuga sem poderes, pois<br />

não ouso mais sequer tentar utilizá-los, tamanho o receio que me consome.<br />

Sinto a pequena bolha de sangue vivo vagando calmamente em meu peito,<br />

ora visitando meu abdome, ora percorrendo meus membros, vasculhando<br />

tudo, tecidos e órgãos, inspecionando, espreitando.<br />

Senti a bolha gigante de sangue maldito romper sua atitude cautelosa<br />

e agir, durante aquela minha última tentativa de usar minhas mais agudas<br />

percepções sonoras. O parasita foi rápido, e subiu até meu cérebro,<br />

atravessando o pescoço através das veias e artérias, e, não satisfeito,<br />

dilacerando a carne, criando suas próprias vias de acesso, de um modo<br />

muito semelhante ao procedimento de fuga da gigantesca bolha de sangue<br />

vermelho-claro, dias antes.<br />

Sim, o parasita foi muito rápido ao penetrar em meu cérebro,<br />

desmanchando conexões neurais e apunhalando minha mente de dentro para<br />

fora, lançando-me ao chão e paralizando-me, incapacitando-me de um modo<br />

como nunca vi estaca ou arte marcial fazer.<br />

Senti que os tecidos do cérebro e do canal perfurado no pescoço eram<br />

regenerados instantaneamente, como é de praxe.<br />

Mas, não ouso mais empregar meus poderes.<br />

Tenho medo. A dor é muito forte, e o parasita continua a patrulhar<br />

minhas entranhas, pronto para agir novamente.<br />

Minha coragem de ser vampiro simplesmente se foi.<br />

Estou à mercê deste mal, e não se engane – estamos todos nós, eu<br />

e você, afortunado de minha espécie que teve acesso a estas linhas, e que<br />

sabiamente soube dar-lhes o devido valor. Estamos mortos há tempos, e<br />

a milênios temos representado o vértice mais elevado de todas as cadeias<br />

alimentares da Terra. Somos intocáveis, mais ardilosos, poderosos e<br />

inteligentes do que todas as outras criaturas que caminham pela superfície<br />

do planeta.<br />

Não temos rival, e nisto acreditamos, por milênios a fio.<br />

Vencemos até mesmo a morte. Somos eternos, o páreo mais duro para<br />

todos os seres, exceto para nós mesmos e para os rigores do ambiente.<br />

Porém, a situação mudou.<br />

O ciclo natural, que é sempre sugere um formato de círculo, e que pode<br />

se fechar em circuito em diversos pontos, estabelecendo leis de dependência<br />

entre umas e outras espécies, finalmente acrescentou mais um degrau na<br />

escada da evolução.<br />

76 Doença e Cura


Choro ao escrever estas linhas, como não choro há décadas. Sintome<br />

como o impotente arauto que anuncia a desgraça, o final do reinado de<br />

prosperidade de um povo, o declínio de uma civilização.<br />

O ser com o qual lidamos, esta nova entidade, não minto quando<br />

admito acreditar que tal ser pode colocar de joelhos toda a nossa raça de uma<br />

só vez, tamanho o poder de que dispõe. Um poder vasto e especializado, que<br />

parece ser todo dedicado à nossa destruição.<br />

Leia, e creia, você que ainda se julga imortal. É pelo bem de nossa<br />

raça e pelo seu próprio bem que passo a descrever, usando deste linguajar<br />

dialético, meu encontro com esta abominação oriunda de todos os maiores<br />

pesadelos de nossa raça milenar.<br />

Leia, e creia. Como amigo e irmão o alerto... Que o destino não permita<br />

que nenhum outro irmão passe pelo que passei, ao que inferno mitológico<br />

algum se compara.<br />

Retomo minha narrativa, cada vez mais próximo à escuridão do dia<br />

subterrâneo, pronto para permanecer escrevendo o quanto seja possível... ou<br />

o quanto venha a me permitir o sangue contaminado pela peste, que se move<br />

e conspira, pronto para, a qualquer tempo, subjugar-me.<br />

Levantei-me, depois da terrível onda de sofrimento que a tentativa de<br />

uso de meu poder auditivo havia provocado. Procurando esquecer a dor, usei<br />

todas as forças que ainda me restavam para ficar de pé, e caminhar, seguindo<br />

a voz de mulher, que ainda pronunciava palavras indistintas.<br />

Em uma das esquinas do caminho rente às “ruas alagadas” – chamoas<br />

assim pois, mesmo tratando-se de largos dutos de rejeitos, assemelhavamse<br />

em muito às ruas estreitas da cidade, apresentando calçadas, por onde eu<br />

podia caminhar, passarelas que permitiam cruzar o lodo corrente, e esquinas,<br />

com direito até mesmo a iluminação – foi que consegui ver seu corpo por<br />

inteiro. A mulher estava vestida com um jaleco branco de enfermeira ou<br />

médica, e parecia estar conversando a esmo, de si para si, como se ouvir a<br />

própria voz lhe proporcionasse algum tipo de prazer.<br />

Já devo ter mencionado, mas não custa repetir que tratava-se de uma<br />

mulher nem gorda e nem magra, nem velha e nem nova, e nem bela. Uma<br />

mulher comum, com grandes óculos de largos aros escuros, em um formato<br />

quase retangular. Se não estou enganado, carregava algo, algum tipo de<br />

frasco.<br />

Como ela não se movia, resolvi aproximar-me. Consegui notar<br />

à distância que se tratava de uma pessoa de sangue quente, o que serviu<br />

igualmente para me despertar o apetite, pois mesmo estando saciado, ante<br />

as circunstâncias desfavoráveis, encontrava-me pronto para dar cabo de<br />

qualquer vítima que se colocasse em meu caminho, e cujo desaparecimento<br />

não viesse a deixar suspeitas.<br />

Algo, contudo, refreava meus ímpetos. A estranheza que me causava<br />

ver uma jovem médica a se aventurar pelos esgotos mais profundos da<br />

Fabian Balbinot<br />

77


cidade era imensa, e fazia-me desconfiar daquela pessoa, mesmo percebendo<br />

o calor e as pulsações em seu sangue.<br />

Não conseguiria de qualquer modo atacá-la, uma vez que, em dado<br />

momento, ela virou-se para mim e mirou-me com os olhos mais tenazes que<br />

já vi em toda a minha vida. Olhos cheios de força, quentes, escaldantes até.<br />

Olhos gelados, imperscrutáveis, inacessíveis, desprovidos de<br />

emoção.<br />

Ainda me causam calafrios aqueles dois olhos onde não se via<br />

emoção alguma, nem medo ou temor, nem prazer, nem nada, tão cheios de<br />

autocontrole que estavam. Tão cheios de poder que chegavam a irradiar uma<br />

espécie de fria incandescência.<br />

Lembro como se fosse agora como aqueles olhos pareceram ter se<br />

aproximado de mim, tornando-se gigantescos, penetrando em minha alma<br />

e vendo através do que sou e do que fui, em um breve relance que fez um<br />

torvelinho de memórias e pensamentos desconexos atravessar minha mente.<br />

Jamais vi olhos tão puros em toda a minha vida, nem mesmo nos<br />

piores e mais cruéis dentre os vampiros, que aprenderam a ser justamente os<br />

mais dissimulados.<br />

Quando consegui romper o transe, vi que estava novamente sozinho.<br />

Percebi que havia estado diante de um predador temível. Algum tipo de<br />

espírito, alguma espécie de demônio havia se apossado do corpo daquela<br />

mulher simples, e controlava sua vontade, foi o que pensei.<br />

Caminhei adiante, procurando retomar a concentração, disposto a<br />

enfrentar tal sorte de entidade, usando dos meios que se fizessem disponíveis.<br />

Demônios menores que se apossam de corpos, seguindo o que diziam as<br />

mais diversas mitologias, são detentores de interessantes conhecimentos<br />

arcanos, que poderiam ser muito úteis para descobrir que mal havia em meu<br />

sangue, pensei eu.<br />

Segui com cautela até o ponto onde a mulher estivera, e vi-a entrar<br />

por uma porta de madeira e metal. Um olhar rápido de seus faiscantes olhos<br />

azuis serviu para congelar meu corpo e espírito por um segundo, após o que<br />

ela sumiu atrás da porta.<br />

Estava apavorado, mas precisava de respostas, e segui seus passos, e<br />

sua voz, pelos corredores escuros que havia atrás daquela porta. Sem poder<br />

usar meus poderes, via a tudo como escuridão pura e simples, de modo que<br />

fui obrigado a tatear para encontrar o caminho.<br />

Após ter tropeçado por escadas e corredores claustrofóbicos, acabei<br />

cruzando uma passagem e chegando em um local iluminado por velhas<br />

lâmpadas incandescentes, que parecia ser uma antiga central de controle<br />

dos esgotos, com dispositivos mecânicos e hidráulicos enferrujados,<br />

aparentemente abandonados.<br />

Uma porta estava aberta logo adiante. E a mulher encontrava-se<br />

parada no meio do caminho.<br />

78 Doença e Cura


E ela tornou a olhar para mim, e o efeito foi o mesmo das outras<br />

vezes, fazendo-me sentir desarmado e incapaz, mas nada foi tão atemorizante<br />

quanto as palavras que ela passou a me falar, as quais tentarei reproduzir de<br />

memória e na íntegra sempre que for possível, sem macular ou distorcer seus<br />

significados, principalmente em trechos de importância capital.<br />

Fique bem claro que não sou capaz de lembrar tudo o que me foi dito,<br />

tamanho o pavor que senti naquele momento. Tenho uma memória excelente,<br />

extraordinária até, que me permite selecionar, por assim dizer, os assuntos<br />

que faço questão de esquecer ou lembrar, e isso remonta do tempo em que<br />

meu sangue era quente, mas também tenho absoluta certeza que qualquer<br />

outro irmão, em meu lugar, talvez não tivesse sido forte o suficiente e viesse<br />

a sucumbir ao terror perante as verdades que me foram apresentadas.<br />

Em primeiro lugar, ela me cumprimentou de forma polida e comedida,<br />

como costumam fazer os maiores vilões, ao apanharem os maiores heróis<br />

em suas engenhosas armações.<br />

Apresentou-se, e a seguir apresentou-me, como se me conhecesse<br />

de longa data, fornecendo detalhes de minha vida como humano, e como<br />

vampiro. Apresentou-se de modo vago, convém ressaltar... “Sou o que sou”,<br />

ou, “sou exatamente o que você busca, e também sou aquilo de que você<br />

foge”, foi o que disse, sem citar nomes ou origens.<br />

“Sou o princípio e o fim de tudo o que o está atormentando.”<br />

Tais palavras, teatrais, exageradas, mas verdadeiras, ficaram<br />

incrustadas em minha lembrança, e dali jamais saíram, e no momento<br />

pareceram ser provas definitivas de que a tal mulher não apenas conhecia<br />

minha doença como também tinha participação em seu desenvolvimento.<br />

Sua relação implícita com a peste acabou sendo comprovada mais tarde, de<br />

forma bem mais direta, de modo que não tenho mais dúvidas a respeito deste<br />

mal e de suas origens.<br />

Ela passou muitos minutos descrevendo meu passado e meu<br />

presente com sua voz calma e agradável, com minúcias tais que fizeram<br />

aflorar memórias que eu julgava há muito enterradas e esquecidas. Chagas<br />

do passado foram tocadas e novamente inflamadas com pinças de pontas<br />

afiadas, e sentimentos particulares foram despertados.<br />

Pensei estar mesmo diante de um demônio transfigurado em corpo<br />

humano, capaz de ler mentes e subjugar o espírito dos fracos, entretanto...<br />

“Não sou o que você pensa que sou. Não sou demônio, ou espírito, e<br />

não estou possuída, mesmo sendo este corpo não mais do que uma simples<br />

casca, uma residência temporária, a qual em breve abandonarei.”<br />

Sentindo que eu me encontrava sob seu controle, a criatura com corpo<br />

de mulher passou a caminhar ao meu redor, tecendo seus comentários.<br />

“Sou algo bastante comum na natureza. Sou o fungo que desmancha<br />

o pão e a semente. Sou o microorganismo que desarma o macroorganismo,<br />

invadindo-o e aniquilando suas defesas, sem que ele possa perceber. Sou a<br />

Fabian Balbinot<br />

79


vespa da terra que ataca e elimina a poderosa aranha. Sou o peixe luminoso<br />

abissal, com sua isca de luz que atrai o pequeno camarão. Sou o vírus de<br />

computador, a ferrugem a destruir a imponência do metal, a decadência e<br />

a entropia, que a tudo desagregam, e que, em nome da ordem transformam<br />

tudo em caos.”<br />

E, após ter feito mais algumas comparações um tanto ou quanto<br />

alegóricas, situando de um modo incerto sua natureza em relação à minha,<br />

ela começou a falar de forma mais sintética, abandonando a filosofia e<br />

explicando a crueza dos fatos.<br />

“Sou a doença que consome seu sangue. Sangue de que me<br />

alimento.”<br />

“Os vampiros sempre foram os maiores dentre todos os predadores<br />

da Terra, e isso é inegável, pois são dotados de habilidades invejáveis no<br />

trato com suas presas mais típicas, os seres humanos, que correspondem<br />

simplesmente às criaturas mais inteligentes e impressionantes que já<br />

existiram neste planeta, páreo apenas para elas mesmas.”<br />

“Ledo engano, pois eis que a humanidade sucumbe não apenas nas<br />

mãos dos poderosíssimos vampiros. Micróbios, vermes, insetos e aracnídeos,<br />

plantas, bactérias, são tantos os exemplos de seres que se aproveitam<br />

das infinitas deficiências do corpo humano e ali armam acampamento,<br />

convivendo em simbiose ou de forma parasítica.”<br />

“O ser humano, como todas as outras espécies de criaturas vivas, é um<br />

vasto campo de repasto e pesquisa para o avanço da natureza. Plantas de espécies<br />

inteiras adaptaram-se em formato e funcionamento, permitindo aos bípedes<br />

pelados cultivarem-nas e consumirem-nas, apenas para terem seu ciclo de vida<br />

ajustado à necessidade de coexistir, tornando-se simbiotas de seus próprios<br />

carrascos. Para plantas, a existência funciona de uma forma diferente, muito<br />

mais estática e plena do que nós podemos conceber. Seus objetivos limitam-se<br />

a existir, absorver o que é útil e integrar-se ao ambiente, ou morrer tentando. A<br />

morte não amedronta uma planta, pois sua maneira particular de sentir o fluxo<br />

do tempo de forma subdividida, que nos é incompreensível, impede que ela<br />

perceba a morte da forma como percebemos. Plantas a tudo reagem, a nível<br />

celular, e a morte que se aproxima fará o galho que caiu viver da forma que<br />

seja possível, célula após célula, até que nenhuma de suas mais infinitamente<br />

minúsculas partículas esteja viva. E então será o fim, e mais nada.”<br />

Bem me recordo das conjecturas ditas pela mulher com roupas sujas de<br />

médico a respeito da fragilidade da raça humana, e de sua visível dependência<br />

de tantas e quantas criaturas vivas, tanto quanto as suas diversas teorias a<br />

respeito destas tantas outras criaturas vivas, plantas e animais, e poderia<br />

narrá-las todas, mas prefiro ater-me ao drama de minha própria espécie.<br />

“Tendo em vista a sujeição da poderosa raça humana ao caos e<br />

à aleatoriedade da natureza, o que faz a raça vampírica pensar que o seu<br />

destino poderia ser diferente?”<br />

80 Doença e Cura


“Todas as criaturas da natureza estão sujeitas aos mesmos ciclos.<br />

As criaturas oníricas, as criaturas diabólicas, fantasmas, espíritos, demônios,<br />

o que é visível e o que não é, todos estão, de um modo ou de outro, presos<br />

ao intransponível ciclo natural que torna uns maiores e relativamente mais<br />

importantes do que os outros.”<br />

“Você mesmo... parece acreditar piamente em um posicionamento<br />

claramente natural, puro e simples resultado de evolução, para a existência<br />

da raça vampírica na Terra. Não é mesmo?”<br />

Sim. Ela podia ler minha mente, e sabia que eu acreditava e sempre<br />

acreditei que vampiros são seres vivos. Diferentes, estranhos, bizarros,<br />

imunes a tantos extremos e incrivelmente vulneráveis a outros. Eu não<br />

precisei acenar com a cabeça para expor minha crença no fato de que mortosvivos<br />

não existem, e que o que realmente acontece é uma metamorfose, uma<br />

transformação, uma evolução que eleva uma criatura ao patamar de vampiro,<br />

eterno sugador de sangue. Tudo o que eu pensava podia ser repetido pela<br />

mulher no todo ou em partes, na medida em que ela julgasse ser necessário<br />

ou importante.<br />

“Sim. É tudo uma questão de reposicionar as moléculas, reestruturar<br />

o DNA e reconstruir a cadeia genética de uma forma um tanto ou quanto<br />

incomum, e pronto: temos os vampiros. Seres praticamente imortais,<br />

com capacidade regenerativa semelhante às das plantas e dos menores e<br />

mais primitivos animais. Some a isso um respeitável apuro em instintos<br />

e sentidos, a estranha maleabilidade de ossos... e dentes, e outras tantas<br />

capacidades de projeção mental, ilusionismo, telepatia e telecinesia, a<br />

locomoção e o movimento que transcendem o que é visualmente perceptível,<br />

a impressionante e inédita metamorfose a nível de modificação molecular...<br />

transformar-se em terra, vapor, fumaça, morcegos, corujas, lobos, ursos, e<br />

outras tantas coisas vivas ou aparentemente mortas... Ah, a habilidade de<br />

sumir nas sombras, ou de solidificá-las...”<br />

“Enfim, some todas as tantas características positivas, inclusive<br />

as diversas outras qualidades que eu esqueci de mencionar, e subtraia as<br />

características negativas, defeitos e deficiências, que não são tantas, mas<br />

ainda assim são consideráveis, e temos o vampiro. O ser supremo e imortal.<br />

O predador perfeito...”<br />

“Acredita mesmo que as infinitas revoluções da natureza responsáveis<br />

pelo surgimento dos vampiros parariam por aí?”<br />

“A natureza é incansável. É a interminável busca por uma química<br />

perfeita, pela combinação ideal, que jamais será alcançada. A natureza é<br />

uma entidade infeliz e descontrolada a procurar desesperadamente pela<br />

felicidade e pelo autocontrole que jamais irá encontrar.”<br />

“Acha mesmo que, tendo se originado a partir da loucura frenética da<br />

natureza, o vampiro jamais teria de se preocupar, e sempre seria o centro das<br />

atenções, o eterno topo da cadeia alimentar?”<br />

Fabian Balbinot<br />

81


Nesse momento, a mulher riu.<br />

Riu histericamente, gargalhando, e teve que puxar uma cadeira que<br />

havia ali em algum lugar, sentando-se para não cair.<br />

“EU sou o atual topo da cadeia alimentar da Terra...”, disse, ainda<br />

rindo.<br />

Passou-se algum tempo antes que ela falasse de novo, voltando a ser<br />

tão gelada e inemotiva quanto antes.<br />

“Isso foi um reflexo de minha humanidade. ‘Rir é o melhor<br />

remédio’...”, disse, e bocejou.<br />

“Apesar de ter uma série de restrições em meu cardápio, sei que<br />

represento o atual topo da cadeia alimentar do planeta. Não sou vegetariana,<br />

e também não estou de regime...”<br />

Ela contornou com as mãos sua pouco esbelta silhueta.<br />

Era para ser uma piada, mas nem ela nem eu conseguimos rir.<br />

Em lugar disso, ela levantou-se da cadeira, e colocou-se em minha<br />

frente. Havia estado caminhando para cá e para lá até então, e agora ficava<br />

frente a frente comigo. Era cerca de dez centímetros mais baixa do que eu.<br />

Mas permaneceu diante de mim com a imponência de uma rainha perante<br />

um de seus menores vassalos.<br />

E seus olhos, afiadas lâminas de gelo novamente miravam os meus, e<br />

minavam minha resistência, meu ímpeto, minha força...<br />

... e controlavam meu sangue!<br />

“Sou o topo da cadeia alimentar”, repetiu, pausadamente, e meu<br />

sangue vibrou a cada sílaba que ela pronunciava.<br />

Ela piscou uma única vez, e o sangue congelou em meu corpo, tornouse<br />

estático, simplesmente parou. E meu corpo inteiro parou junto.<br />

Com um simples olhar, menos do que um gesto, ela havia conseguido<br />

remover toda a vida de meu corpo, e eu sei que poucos dentre os vampiros<br />

que já possuíram esta sensação conseguiram retornar de um longo e tortuoso<br />

encontro com a morte final, pois era como se EU TIVESSE LEVADO COM<br />

UMA ESTACA EM MEU CORAÇÃO!<br />

Sei como funciona a anafilaxia mais particular dos vampiros.<br />

O imediato entorpecimento e paralisia. A imobilidade total do corpo. Não<br />

mais poder reagir. O tempo que passa e o fim que se aproxima, lentamente...<br />

lentamente...<br />

Estacas no coração explodindo corpos de vampiros e transformandoos<br />

em poeira em um segundo são besteira! Nunca ouvi falar de tal situação.<br />

O que acontece de verdade é muito pior.<br />

Impotência e incapacidade eternas. O sangue misteriosamente<br />

apodrece e se esvai. A carne vai murchando, e secando. Ossos se tornam<br />

quebradiços, viram farinha... E isso pode levar meses... “Do pó vieste e ao<br />

pós retornas”.<br />

E foi o que aquela mulher maldita fez comigo, SEM USAR ESTACA<br />

82 Doença e Cura


ALGUMA! Apunhalou meu sangue com seus olhos secos de adagas!<br />

Paralisou minha carne, como já havia feito com meu espírito.<br />

E eu percebi que o processo degenerativo da carne já se iniciava, lento<br />

como sempre, porém bem mais rápido do que era de se esperar que fosse.<br />

Ela tornou a perambular em torno de mim, e retomou seu monólogo.<br />

“É uma habilidade interessante, o ‘olhar da estaca’. Imobiliza o alvo,<br />

e o envia para a morte lenta, caso eu não interfira a tempo. A diferença é<br />

que, no caso de estacas de verdade, a remoção desta e a infusão de sangue<br />

iniciam um processo muito rápido de restauração, que retiram o vampiro<br />

do transe, e repõem de pronto os tecidos afetados de seu organismo e sua<br />

mobilidade. Em meu caso, como não há estacas, não há como removê-las,<br />

não concorda?”<br />

Senti que ela poderia ter rido da mórbida espirituosidade de seu<br />

comentário, mas não o fez.<br />

“Posso fazer isso, e muito mais, nos casos em que meu sangue já<br />

assumiu o controle da vítima. Como é o seu caso...”<br />

“Possuo um tipo diferente de sangue, e você já deve ter visto do que<br />

ele é capaz. Na verdade, minha forma humana não passa de uma carapaça<br />

de carne e membros, um invólucro que me permite tocar e manipular coisas,<br />

e obter conhecimento. É muito conveniente apossar-me de um ser vivo às<br />

portas da morte, e herdar suas predisposições, suas habilidades, e o estudo<br />

adquirido durante uma vida inteira.”<br />

“Tenho preferência por cientistas e médicos. Hematólogos são a melhor<br />

opção, pois quanto mais conhecimentos sobre o sangue eu adquirir, melhor<br />

será... mais descobertas poderei realizar sobre mim mesmo. No entanto, já<br />

abdiquei do conforto e da inteligência humanas, optando por corpos bem<br />

mais ineptos. Cães, ratos, macacos e outros animais de sangue quente... Em<br />

determinados momentos torna-se necessário utilizar o que está à mão.”<br />

“Os últimos cientistas de que me apoderei, que incluem esta influente<br />

figura que agora fala com você, uma anestesiologista de relativa fama, com<br />

algumas especializações marcantes na área cardiovascular, todos têm me<br />

sido de imensa valia, com seus tantos conhecimentos e sua curiosidade<br />

tipicamente humanas. De fato, trago comigo uma bagagem tão considerável<br />

de conhecimentos, anotações e teorias herdadas de tantos especialistas<br />

humanos, que acho que posso considerar a mim mesma como o ser mais<br />

inteligente da Terra.”<br />

“Existe sempre o inconveniente de, de vez em quando, eu necessitar<br />

de um corpo mais rápido, ou mais forte, de animal selvagem e primitivo.<br />

Isso drena meu conhecimento, pois sou obrigada a usar o instinto, e então<br />

tenho que começar minha pesquisa toda de novo assim que um novo corpo<br />

humano surge. E às vezes leva muito tempo antes que um novo corpo<br />

humano venha a ser tomado. São os problemas que todo mundo têm... Afinal<br />

de contas, ninguém é perfeito.”<br />

Fabian Balbinot<br />

83


“Em decorrência disto, criei o hábito de fazer anotações de minhas<br />

descobertas e testes. Sou uma cientista neste instante, e sigo o método<br />

científico da mesma forma que este ser humano de cujo corpo me apossei<br />

costumava fazer quando em vida, e com ainda mais ímpeto, uma vez que<br />

não necessito de alimento e nem tenho necessidade de cumprir horários<br />

ou de digladiar-me contra desejos e emoções. Tenho comigo vários dos<br />

registros científicos importantes que os outros corpos de sábios que já tive<br />

desenvolveram, e outros tantos encontram-se espalhados, arquivados em<br />

locais seguros, alguns dos quais temporariamente esquecidos até mesmo<br />

por mim.”<br />

Pareceu-me óbvio que, naquele momento, a entidade divagava,<br />

inebriada por suas fenomenais capacidades e grandiloquente solilóquio,<br />

mergulhando cada vez mais nas profundezas da paranóia e do delírio.<br />

Mesmo assim, não conseguia me desvencilhar do tal “olhar de estaca”, tão<br />

eficaz quanto me tinha sido dado a entender.<br />

O que aquela especialista falou a seguir se constituiu em longa e<br />

tediosa palestra, a qual pormenorizou os diversos estudos desenvolvidos<br />

pelas várias cascas humanas de que a criatura já tinha se apoderado, grandes<br />

sábios humanos falecidos. Pelo que pude compreender, tais estudos possuem<br />

diversos objetivos menores e um grande objetivo final, que é o de garantir a<br />

subsistência independente da criatura, mas disso falarei mais tarde.<br />

Esta entidade, segundo o que me foi explicado, possui a capacidade<br />

de se apoderar dos corpos dos seres vivos de sangue quente assim que suas<br />

mortes são constatadas, revivendo-os de algum modo e utilizando-se de suas<br />

memórias, sentidos e capacidades intelectuais ou físicas, a isso somando-se<br />

memórias e discernimentos adquiridos durante a estadia em outros corpos.<br />

O corpo escolhido, ao que parece, sobrevive tão somente de seu<br />

próprio ímpeto e do pulsar de seu sangue (que é parte fundamental na trama<br />

– explicarei em seguida a respeito disto), sendo sublimadas suas demais<br />

necessidades, juntamente com as emoções e limitações físicas e mentais.<br />

O resultado é um verdadeiro dínamo de atividade em forma humana ou animal,<br />

capaz de passar semanas e meses apenas agindo, sem parar para dormir ou<br />

comer. Formas humanas, não raro técnicos e cientistas, são dedicadas ao<br />

estudo, obtenção e, principalmente, ao arquivamento de conhecimentos, que<br />

podem então ser encontrados mais tarde, por outras formas humanas, aptas<br />

a compreendê-los, ao passo que as formas animais são utilizadas durante o<br />

deslocamento, em fugas e memorizações de locais, etc. O corpo é o limite,<br />

e este acaba se desintegrando e esvaindo-se em deficiências alimentares,<br />

carências, e falências múltiplas dos mais diversos órgãos, sobrecarregado<br />

pelo excesso de atividade física ou intelectual.<br />

Quando a utilidade de um corpo cessa, este é descartado e<br />

substituído por outro, de um modo que não me foi citado. Há uma grande<br />

rotatividade de corpos. Os seres humanos de maior intelecto detêm de<br />

84 Doença e Cura


igual modo capacidade e durabilidade física relativamente inferiores, e<br />

seus corpos não costumam resistir muito às maratonas de dias e noites<br />

inteiros e consecutivos de experimentação, de forma que um dos objetivos<br />

atuais seria proporcionar, através de fórmulas químicas e remédios, uma<br />

maior resistência a tais corpos. Uma primeira etapa – a imunização às<br />

doenças e até mesmo ao mofo e a certas outras formas de deterioração que<br />

atacam a carne – já havia sido concluída anteriormente, com resultados<br />

excelentes. Outros pontos importantes eram o aspecto visual do corpo<br />

e sua identificação, indispensáveis no convívio social com o restante da<br />

raça humana, que volta e meia tornava-se inevitável, tendo em vista obter<br />

acesso a documentos, arquivos, equipamentos, livros em bibliotecas, dados<br />

em computadores, entre outros – tais antecedentes eram mantidos através<br />

de preparados secretos e de essências aromáticas especiais que disfarçam o<br />

cheiro de matéria orgânica morta, entre outras funções, e de documentos e<br />

certidões muito bem forjados, pois que falsificadores também não deixam<br />

de ser especialistas.<br />

Em seu monólogo, a mulher possuída comentou a respeito de diversos<br />

outros aspectos que não compreendo ou que não julgo importantes, além<br />

da manutenção e da dissimulação dos corpos de que se apodera, portanto,<br />

passarei diretamente ao ponto crucial de sua existência: o seu relacionamento<br />

com os vampiros.<br />

“Sou o topo da cadeia alimentar... e você faz parte de meu cardápio”,<br />

disse-me aquela mulher, e os deuses sabem o quanto tal frase me atemoriza,<br />

desde que a ouvi pela primeira vez.<br />

Sinto medo de continuar a escrever, assim como sinto medo de dormir.<br />

O sangue que não me pertence já se agita em meu peito, indicando tratar-se<br />

de dia claro, lá fora.<br />

O período em que o sangue tornará a fugir de dentro de mim se<br />

aproxima, e tenho certeza que não poderei prosseguir com minha narrativa,<br />

no momento em que o sórdido fenômeno se iniciar.<br />

Tentarei ser rápido.<br />

O que acontece é muito simples, e muito terrível também: de algum<br />

modo, a criatura entra em contato com um ou mais vampiros, que passará a<br />

parasitar, transferindo a eles uma certa quantidade de seu sangue, tal como<br />

aconteceu comigo, no primeiro dia, naquele beco – a insinuante trilha de<br />

sangue fervilhante e irresistivelmente atraente no chão sujo do beco não<br />

passava de vil estratagema, elaborado de forma certeira para permitir a<br />

captura da presa, no caso um vampiro... eu mesmo.<br />

É um líquido belo, claríssimo, que se assemelha a um caldo em brasas,<br />

e inebria a visão, penetrando pelo olfato e nos privando da razão. A isca<br />

perfeita, que atraiu a mim como deve ter atraído a outros. A planta carnívora,<br />

cuja doce e odorífera secreção atrai o inseto para a morte certa é uma alusão<br />

válida, morbidamente adequada para representar tal caso.<br />

Fabian Balbinot<br />

85


Sei o que vi, e o que senti. O sangue mais belo, de aroma mais tentador<br />

e sabor mais agradável que se possa conceber. Como um alucinógeno,<br />

entorpece-nos, destacando-se ao primeiro contato visual. A seguir vem o<br />

cheiro, que invade nossas narinas e corrompe nossa sanidade, contaminando<br />

a vítima com avidez tal que faz com que tudo mais seja esquecido. Já fisgada<br />

pelo aroma, a vítima projeta seu corpo sobre a fonte, provando o sabor<br />

soberbo, inigualável...<br />

... que agora não passa de uma terrível lembrança.<br />

O que aconteceu do momento em que provei da isca de sangue no<br />

chão do beco em diante me é um completo mistério. Não consigo me lembrar<br />

do que vi ou deixei de ver, tão dopado que estive durante um bom tempo.<br />

Despertei não sei quantos dias depois, já contaminado... e condenado.<br />

Condenado, afirmo eu, por razões que se tornam óbvias para qualquer<br />

outro irmão que possa estar lendo este relato, tenha alcançado este ponto, e<br />

possua um mínimo de discernimento. O bom leitor já deve estar imaginando<br />

com a necessária correção QUAL vem a ser o próximo estágio da infecção.<br />

O sangue do predador, após ter penetrado no corpo do vampiro, que<br />

é sua presa principal, não mais o abandona, a não ser na hora da morte,<br />

conforme o que a mulher possuída me disse. Faço minhas novamente as<br />

palavras dela, que a tudo podem explicar com clareza idêntica ao gênio que<br />

expõe em público sua mais nova teoria...<br />

“Meu sangue possui células um tanto ou quanto diferenciadas, além<br />

das costumeiras plaquetas e de uma quantidade muito maior de glóbulos<br />

brancos. Ao invés das hemácias, carregadas de oxigênio e hemoglobina,<br />

estudos realizados por alguns de meus ‘corpos’ antecessores revelaram<br />

que meu sangue carrega um outro tipo de célula bem particular, que possui<br />

um formato alongado, lembrando muito o tipo de bactéria conhecida<br />

como bacilo. Estas células, pelo que os primeiros estudos revelavam,<br />

constituíam-se em um grupamento de vorazes predadores, que necessitavam<br />

de hemoglobina e outras substâncias nutritivas extraídas de hemácias para<br />

sobreviver. Algum de meus colegas batizou-as como ‘glóbulos laranjas’ –<br />

pela cor vermelho-clara e transparência que normalmente apresentam. Em<br />

movimentos rápidos, os glóbulos laranjas atacam e perfuram os centros das<br />

hemácias, atravessando-as tal e qual um bastão que atravessa uma argola.<br />

Tal fato ocorre com diversas hemácias, à base de seis ou sete para cada um<br />

dos glóbulos laranjas, e uma após a outra é perfurada e assimilada. O glóbulo<br />

laranja, então, absorverá tudo o que cada glóbulo vermelho trazia consigo,<br />

integrando-os a si mesmo e fazendo-os simplesmente desaparecerem. No<br />

final do processo, um novo glóbulo laranja surgirá a partir do primeiro.<br />

As tantas experiências e observações feitas comprovaram que este<br />

procedimento de alimentação seguido por reprodução é fixo e considerado<br />

saudável para os ‘glóbulos laranjas’. Não há variações em tal padrão de<br />

comportamento, quando este ocorre.”<br />

86 Doença e Cura


“Porém, existe uma grande rejeição de parte dos glóbulos laranjas<br />

para com o sangue humano ou animal normal. Exames feitos por alguns dos<br />

colegas anteriores a mim revelaram que o glóbulo laranja parece ignorar as<br />

hemácias convencionais, pois em meio ao sangue humano ou animal comum,<br />

o chamado sangue quente, o corpúsculo não parece propenso a atacar nem<br />

a se reproduzir, morrendo depois de algum tempo, ou sendo destruído pelos<br />

leucócitos, até certo ponto displicentes em relação ao invasor.”<br />

“Esta rejeição me faz acreditar em algum tipo de substância<br />

extra que o sangue humano recebe ao ser absorvido pelo organismo<br />

do vampiro, ambiente onde o glóbulo laranja age com potência total,<br />

adotando o chamado procedimento de alimentação saudável, que permite<br />

a reprodução. E esta teoria é a razão atual de minhas pesquisas. Tentar<br />

descobrir, usando VOCÊ como uma de minhas cobaias, por que razão<br />

estas minhas células recusam o sangue quente dos humanos, e preferem<br />

o sangue ‘frio’ dos vampiros, isolando componentes que diferenciem os<br />

diversos tipos de sangue e hemácias, simulando ambientes mistos, enfim,<br />

lançando mão dos procedimentos científicos em busca de soluções para<br />

estas dúvidas.”<br />

Mas, tal pesquisa não poderia se constituir por si só em um trauma<br />

que não fosse temporário. O pesadelo real é muito pior, e acontece em escala<br />

muito mais ampla do que uma simples extração de sangue usada em um<br />

exame de laboratório.<br />

“Meu sangue, após ter penetrado em um corpo de vampiro, procura<br />

anular as defesas, dispersando de alguma forma os anticorpos, agindo<br />

como um tipo de veneno que ocasiona uma paralisia seletiva em todas as<br />

capacidades especiais, típicas de um vampiro, atuando também como um<br />

narcótico que causa grande interferência nos sistemas nervosos central e<br />

periféricos, isso só para citar alguns dos efeitos conhecidos. Você já deve<br />

conhecer a sensação... Os ‘superpoderes’ vampíricos falham, e geram efeitos<br />

colaterais inúteis ou indesejáveis. A isso somem-se as diversas alucinações,<br />

perda de memória, hipertermia e hipersensibilidade à estímulos externos, ou<br />

reações inversas à estas, entre outros tantos transtornos.”<br />

“Meu sangue, por ser uma parte íntegra de meu ser, também me<br />

concede algo que eu caracterizo como um elo de contato mental com as<br />

diversas presas. Isso me permite tanto localizá-las quanto imobilizá-las<br />

e ler suas mentes, entre outras tantas possibilidades que eu prefiro não<br />

mencionar.”<br />

“O estágio final, e mais importante, é a minha alimentação. Você deve<br />

ter percebido que a voracidade típica de minhas células sanguíneas consegue<br />

causar enormes estragos no sangue do vampiro, assimilando as hemácias e<br />

reproduzindo-se logo a seguir, e isso são fatos, comprovados cientificamente<br />

por muitos dos que já me precederam. O que não foi explicado é o que ocorre<br />

em seguida, quando as pobres vítimas, como você, regurgitam o sangue,<br />

Fabian Balbinot<br />

87


durante o dia, e este se move, desafiando leis e conceitos, rumando para um<br />

local de isolamento, por assim dizer... Gostaria de descobrir o que dá esta<br />

mobilidade toda ao sangue, e o porquê deste procedimento de fuga, e é para<br />

isso que estou com você aqui.”<br />

Neste ínterim, cabe um comentário. Parece-me óbvio, agora, um<br />

acontecimento ao qual não dei a menor importância durante aqueles instantes<br />

em que transe e pavor impediam-me de raciocinar com mais clareza. A<br />

mulher possuía um relógio de pulso, e notei que, de quando em vez, durante<br />

seu discurso, ela o observava. Naquele momento da conversa, ela surgiu de<br />

trás de mim carregando caneta e um grande caderno tirados não sei de onde,<br />

com o que fez algumas anotações. Utilizando-se de uma lanterna típica de<br />

médico, lançou luz em meus olhos e dentro da boca, tateando meus dentes, e<br />

novamente anotou os resultados de sua conferência em seu caderno. Estava<br />

de óculos desta vez, e lembrava ainda mais do que antes uma inocente e<br />

benevolente enfermeira.<br />

Não sei o que ela fazia nas diversas vezes em que a perdi de meu<br />

campo de visão, mas alguma experiência estava em andamento, à qual o<br />

tempo cronometrado no relógio de pulso serviu para indicar o término.<br />

O fato é que ela concluiu a entrevista no mesmo instante em que a tal<br />

experiência teve fim.<br />

“Certo. Já tenho parte do que vim buscar...”, comentou, examinando<br />

algumas das páginas do caderno. “Você vai ficar aqui por enquanto.<br />

Aconselho-o a não se dirigir às ruas, pois o sol já vai alto, e eu preciso fazer<br />

mais alguns testes com seu corpo. Não seria adequado perder minha cobaia<br />

principal em um momento tão inadequado...”<br />

Sim. Sou sua cobaia, e os testes que ela fazia, fossem o que fossem,<br />

eram feitos comigo. Terror é o que se sente quando se é um rato de laboratório<br />

nas mãos de um cientista louco e sádico que pode eviscerá-lo da forma que<br />

lhe convier, em nome do conhecimento.<br />

Enquanto dirigia-se para um lugar que não pude identificar, pois<br />

densa neblina passou a turvar minha vista, ela despediu-se, lançando um<br />

conselho final, em tom de ameaça... “Também não recomendo que me siga.<br />

Tenho certos dispositivos naturais de defesa que podem deixar marcas bem<br />

dolorosas na mente, ou no corpo, de quem costuma se atrever a tanto...”<br />

E a anestesiologista louca desapareceu no meio do nada.<br />

Minutos depois, recuperei a mobilidade do corpo, quase que de repente.<br />

Sacudi-me como um animal molhado, desfazendo o torpor e lembrando-me<br />

dos tais ‘olhos de estaca’. Parecia que o sórdido artifício hipnótico perdia<br />

seu efeito.<br />

Dei graças aos deuses por ainda estar vivo, e cambaleei na direção<br />

oposta à que a mulher tinha se dirigido. Segui-la? Sob hipótese alguma!<br />

Ainda não estou louco a ponto de querer lançar-me nas garras da morte<br />

certa.<br />

88 Doença e Cura


Pelo que posso me lembrar, no instante seguinte acabei indo ao solo,<br />

como um reles e patético enfermo, para vomitar todo o sangue que havia<br />

em meu corpo. Mantendo o costume, houve dores fortíssimas e perda de<br />

consciência. Chego a ter dúvidas de que tal sucessão de acontecimentos<br />

tenha ocorrido realmente anteontem. Pode ter sido um dia antes disso... ou<br />

dois.<br />

O fato é que perdi a noção do tempo, pois não sei a que horas despertei,<br />

e nem o que fiz depois de ter despertado. Nem este maldito computador,<br />

cujo relógio por alguma razão teima em voltar para o dia, mês e ano de sua<br />

fabricação a cada vez que o ligo, consegue me dizer que dia é hoje.<br />

Tenho consciência de que posso ter despertado mais de uma vez, tendo<br />

saído do controle, agido de um modo qualquer em busca de alimento, e de<br />

forma insconsciente encontrado um esconderijo qualquer em algum lugar<br />

próximo. Pois é isso que acontece com os vampiros insanos, que perdem a<br />

memória, e o contato com a razão. Não se tem mais ideia do tempo e muitas<br />

vezes acordamos cercados de cadáveres, sabe-se lá onde.<br />

Sim, tenho consciência que o meu fim se aproxima. A loucura é sinal<br />

de morte vindoura para os seres da noite. Não há garantia de existência para<br />

vampiros lunáticos que demonstrem comportamentos bestiais e genocidas.<br />

A organização já deve estar com meu nome marcado, e caso eu não venha<br />

a explodir a mim mesmo em fúria e insanidade, colocando-me em uma<br />

situação sem saída, ELES farão o serviço.<br />

Publicidade negativa é ruim para qualquer tipo de negócio.<br />

Sinto-me desesperado.<br />

Não sei mais o que escrever. Estou certo de que a senha para decodificar<br />

meus relatos poderá ser facilmente descoberta pelos que conheceram meu<br />

passado. Espero que tais textos possam ser úteis.<br />

O que sei é que sou apenas um objeto de testes, e que mais uma vez<br />

o sangue se apronta para abandonar meu corpo. E eu não faço ideia do que<br />

irá acontecer em seguida.<br />

Sinto como se eu fosse uma bomba-relógio prestes a explodir. Não<br />

sou mais vampiro. Não sou nada, nem ninguém.<br />

Melhor parar por enquanto.<br />

Fabian Balbinot<br />

89


“E você vai em frente,<br />

e se vira sozinho,<br />

e desiste sozinho,<br />

e vai pra casa, e chora<br />

e quer morrer”<br />

How Soon is Now? – Morrissey<br />

90 Doença e Cura<br />

<strong>Capítulo</strong> 4<br />

Você é uma boa pessoa.<br />

Uma boa garota.<br />

Foi uma boa garota quando criança, vivendo no interior, e depois, na<br />

escola da cidade grande, em sua adolescência. Era obediente, dedicada e<br />

comportada, apesar de ser um tanto ou quanto reservada.<br />

Tirava notas excelentes em grande parte das disciplinas. Em geral,<br />

excedia a média.<br />

Nunca precisou repetir o ano.<br />

Sim. Você era uma boa garota. Um exemplo.<br />

E, agora, você é uma boa adulta. Uma cidadã respeitável e bem<br />

sucedida, no melhor sentido da palavra.<br />

Independente, você acorda cedo e trabalha bastante. Seus estudos,<br />

esforço e conduta exemplar foram peças chave na obtenção daquele que é o<br />

emprego dos sonhos de muita gente. As duas línguas estrangeiras que você<br />

domina com fluência tanto na escrita como na fala e a relativa perícia no<br />

manuseio dos equipamentos de informática também contribuíram bastante.<br />

Você sabe falar no telefone, é exímia negociadora em reuniões, e escreve<br />

com clareza e consistência.<br />

O estágio, de remuneração baixa, foi curto. O emprego fixo veio logo<br />

em seguida. Seu arrojo e determinação serviram de estopim para convencer<br />

seus chefes de que você seria uma peça-chave, indispensável no esquema.<br />

Assim devia ser, e assim é.<br />

Os negócios vão de vento em popa, e grande parte desse êxito se deve<br />

ao seu talento. Apesar de nova, você tem um futuro brilhante pela frente.<br />

Você tem uma dieta saudável, pratica esporte, não coloca lixo no<br />

chão, paga todas as suas contas em dia – muitas vezes bem antes da data de<br />

vencimento. Está em dia com o fisco...<br />

Você tem muitos amigos, e ajuda quem está necessitado.<br />

De fato, seus amigos a adoram, e não leva muito tempo para que você<br />

conquiste mesmo os desconhecidos com seu tato e simpatia.<br />

Conversar com você é um bálsamo. Sincera e direta, seus convincentes<br />

discursos não respeitam amarras, e seus diversos conhecimentos são<br />

extravasados em bate-papos longos e descontraídos, em que assunto é o que<br />

não parece faltar.


É ótimo estar perto de você.<br />

As pessoas parecem contaminadas com sua energia. Existe um mundo<br />

de harmonia a ser descoberto, e você parece possuir o dom de convencer até<br />

o mais deprimente dos carrancudos de que a vida é uma coisa boa.<br />

Você conversa com pessoas tristes, e as faz sorrir, injetando ânimo<br />

renovado em seus espíritos.<br />

E você sorri ao vê-las, social e empática, feliz com isso tudo.<br />

Satisfeita por ter sabido extrair o melhor de sua vida.<br />

É assim que devia ser.<br />

Era para ter sido... Tudo indo às mil maravilhas.<br />

Mas, em uma certa noite...<br />

A moça caminhava pela noite, no subúrbio da cidade grande.<br />

Possuía um carro de última linha. Nada de especial – um carro<br />

popular. Modelo do ano anterior, comprado em um financiamento de poucas<br />

parcelas, sem juros e com muita negociação. Uma espécie de luxo, em se<br />

comparando ao pouco que muita gente por aí possuía.<br />

Tinha um carro de último tipo, comprado praticamente à vista, mas<br />

naquela noite em especial, aquela jovem preferia andar.<br />

As aulas de natação na academia estavam canceladas devido ao<br />

recesso de fim de ano.<br />

Precisava movimentar seu corpo, manter a forma, e uma boa<br />

caminhada matinal intercalada por uma viagem de metrô no meio do<br />

trajeto de ida ao seu local de trabalho, sito muitos quilômetros além de<br />

sua residência, parecia ser uma opção bastante acolhedora, com o caminho<br />

oposto sendo percorrido de igual forma no turno da noite, ao regressar<br />

para casa. Podia não ser mais barato ocupar duas passagens de metrô ao<br />

invés do combustível que seu carro novo, dos mais econômicos, consumia<br />

no percurso. Mas era muito mais saudável.<br />

Eram muitos quilômetros de metrô e alguns de caminhada – excelente<br />

para manter parte de seu condicionamento atlético até que se desse o retorno<br />

às aulas de natação. Apesar de não ser muito alta, ela não se sentia mal com<br />

o corpo esbelto que tinha.<br />

Precavida, escolhera com cuidado o trajeto que iria fazer a pé,<br />

evitando caminhos escuros e sombrios, dando preferência às zonas mais<br />

densamente povoadas.<br />

E adorava aquela sensação de velocidade que a viagem de metrô lhe<br />

transmitia. A impressão de estar tomando um elevador que anda de lado... os<br />

túneis, as luzes e o entra e sai insano das pessoas. Poder olhar para longe, e<br />

não para a tela de um computador, ou para a parede mais próxima.<br />

Depois do primeiro dia veio o segundo.<br />

E o tempo foi passando.<br />

Fazia uma semana e meia que ela estava indo e voltando do serviço<br />

sem usar seu carro.<br />

Fabian Balbinot<br />

91


Era uma experiência diferente. Andar sozinha. Assim como era<br />

diferente e excitante viver sozinha, sendo dona de sua própria vida já aos<br />

vinte anos.<br />

No início fora difícil, como ela havia previsto. Fizera muitos<br />

cálculos, muita pesquisa, cotando os custos, percebendo os benefícios,<br />

ajustando e medindo entradas e saídas, equilibrando receitas e despesas,<br />

contas de luz, água, telefone, celular, internet, aluguel e condomínio, plano<br />

de saúde, previdência privada, conta corrente, faculdade, as aulas de<br />

natação que adorava, gasolina, víveres essenciais, diversão e supérfluos –<br />

roupas, sapatos, maquilagem, absorventes e outras “coisas de mulher”...<br />

equacionando tudo, como aprendera e ainda vinha aprendendo a fazer em<br />

seus estudos.<br />

Afinal, um denominador comum. Um aluguel nada exorbitante. Gastos<br />

totais compatíveis, e a sobra de uma razoável porcentagem de sua renda,<br />

a qual poderia ser investida de forma a evitar imprevistos, garantindo seu<br />

futuro.<br />

Nenhum erro que pudesse comprometer seus projetos.<br />

Nenhum engano.<br />

Nada poderia dar errado para aquela jovem, as pessoas diziam. Ela<br />

era muito meticulosa e precavida.<br />

E sabia o que estava fazendo.<br />

Mas...<br />

Ela viu a outra mulher pela primeira vez na segunda daquelas suas<br />

viagens de metrô, à noite, quando voltava para casa.<br />

Era uma mulher estranha, segundo seu modo de ver. Cabelos<br />

vermelhos, pintados, quase a ponto de se tornarem roxos, e amarrados<br />

como se fossem palha. Dezenas de colares, pulseiras, tatuagens e piercings<br />

dependurados, amarados, anexados ou mesmo cravados pelo corpo. Sapatos<br />

escuros de couro, de bicos finíssimos, com saltos tão altos que chegavam a<br />

dar vertigem em quem os via, pessimamente ornamentados com pequenos<br />

ponchos de pêlo rosado. Roupas esquisitas, calça muito justa, coberta com<br />

uma blusa enrolada e uma camisa de alças preta e bem ao estilo dos corredores<br />

de maratona, cintas e adereços lá e cá, couro misturado com cetim, nylon<br />

grosseiramente atado ao algodão, tudo indo do preto às cores mais dançantes<br />

sem fazer nenhuma cerimônia, em uma mescla de estilos típica da ralé.<br />

Batom verde, unhas verdes compridas como garras e luminescentes<br />

como faróis. Fileiras de brincos pendendo de cada orelha, em sua maioria<br />

ornamentados por penas, conchas e pequeninas esculturas coloridas e<br />

chamativas. Uma ridícula bolsa branca cheia de desenhos de personagens<br />

infantis debaixo do braço. Uma mochila de nylon azul claro e verde limão<br />

pendurada nas costas, com dúzias de badulaques, dados de jogo, esculturas<br />

de caveiras estilizadas, macacos e coelhos de pelúcia, uma galeria de<br />

besteiras dependuradas ali, em chaveiros.<br />

92 Doença e Cura


A conclusão que chegou ao ter abandonado o trem foi que aquela<br />

mulher mestiça e alta – devia ter um metro e oitenta, sem os sapatos –<br />

era um enorme monumento ao mau gosto. Deu graças a Deus por não ser<br />

assim, enquanto mal podia reprimir um esgar de nojo em relação a toda<br />

aquela falta de bom senso em vestir.<br />

Quando ela a viu pela segunda vez, duas noites depois, em pé,<br />

segurando-se no alto corrimão interno do metrô, conversando com alguém,<br />

bem na sua frente, sua opinião não mudou muito.<br />

Daquela vez, a grande mestiça estava com um visual diferente.<br />

Um mini-vestido branco, feito de algum material sintético e reluzente,<br />

colado ao corpo esbelto, cheio dos volumes que fazem gosto aos homens,<br />

muitos dos quais, aliás, não cansavam de olhar os seios, coxas e bunda<br />

abundantes, fazendo ela própria sorrir de desânimo perante tanta safadeza<br />

– alguns daqueles idiotas só faltavam babar, flutuando como estavam no<br />

balanço do trem!<br />

Os cabelos dela, daquela vez estavam escuros, negros, aparentemente<br />

sem qualquer tintura, e apenas um par de grandes brincos em formato de lua<br />

de metal descia do lóbulo, expondo as orelhas limpas. As unhas pontiagudas<br />

agora estavam pintadas de branco e muita maquilagem podia ser vista em<br />

seu rosto, clareando-o em certos pontos e escurecendo-o noutros.<br />

A bolsa cheia de desenhos era a mesma, e o sapato preto de bico fino<br />

também, e estas pareciam ser as únicas reminiscências do exorbitante traje<br />

de dois dias atrás.<br />

O visual era diferente, de fato, e diria-se que aquela perua até tentava<br />

ser discreta, mas isso não o tornava melhor. Na verdade, a indiscrição até se<br />

elevava, tanto quanto o interesse dos homens.<br />

Ao ter descido do metrô, ficou rindo em silêncio enquanto cogitava<br />

sobre o funcionamento da mente dos homens.<br />

Foi quando lembrou-se de algo que julgou estranho: os vários<br />

brincos de dois dias atrás tinham sido substituídos por um único par, e ela<br />

não pôde perceber nenhuma marca dos diversos furos que devia haver na<br />

orelha daquela exótica mulher. Por que será?<br />

Enquanto caminhava de volta para casa, ficou imaginando diversas<br />

possibilidades para explicar aquele fenômeno. Sem ter tempo de pensar em<br />

coisas inúteis daquele tipo, acabou aceitando a hipótese de os brincos estarem<br />

presos à orelha de outra forma, que não fosse através dos convencionais<br />

alfinetes com presilhas.<br />

Acabou esquecendo do assunto.<br />

Na noite seguinte, viu a mulher novamente, e desta vez não teve como<br />

reprimir seu espanto.<br />

Ali estava, não uma prostituta devoradora de butiques, mas sim uma<br />

mulher de negócios, no mais verdadeiro sentido da palavra.<br />

Fabian Balbinot<br />

93


O cabelo castanho-claro estava preso em um coque tão cuidadoso<br />

quanto a maquilagem, que se espalhava pelo rosto nas raras e primazes<br />

pinceladas oriundas da delicada mão de um artista. O traje quase<br />

masculino – uma espécie de terno curto e cinzento, todo riscado e elegante,<br />

acompanhado de calça e cobrindo uma camisa imaculada e branca em cuja<br />

gola uma gravata repousava, cuidadosamente enrodilhada – transformava<br />

aquela mulher de água em vinho de uma noite para outra, afastando e<br />

turvando a vulgaridade de seus trajes vistos nas noites anteriores, ambos já<br />

enevoados nas lembranças e tolhidos pela repulsa.<br />

Os sapatos sem salto combinavam em tonalidade com as calças e, tal<br />

como a pasta escura de executivo, também eram de extremo bom gosto e as<br />

orelhas sem brincos...<br />

– Você aprecia muito observar o que as pessoas estão vestindo,<br />

não?<br />

A mulher. Ela estava sentada bem à sua frente, no interior do metrô.<br />

Encarando-a. Conversando com ela.<br />

Aquela mestiça!<br />

– É. Principalmente quando as pessoas se... sobressaem em meio à<br />

multidão.<br />

Aquela mulher alta, que agora se vestia com absoluta discrição, não<br />

era negra mas também não era branca, e a moça sentia algo incômodo nesta<br />

mistura de raças. Olhando o rosto anguloso, ela sentia como se estivesse<br />

diante de uma alienígena vinda de terras distantes.<br />

– Realmente. Eu costumo me sobressair, como você disse – comentou<br />

a outra, rindo.<br />

Sua voz denotava absoluta fluência no idioma, pensou a jovem. Isso<br />

talvez se devesse a ela ter nascido em um outro país, sendo obrigada a<br />

migrar muito cedo para estas terras.<br />

Como se tivesse se decidido a tanto em um impulso, a mulher alta<br />

levantou-se e, com um movimento rápido, veio se sentar ao lado da jovem,<br />

que se encolheu um pouco, assustada.<br />

– Calma. Não precisa ter medo. Normalmente eu só mordo os<br />

homens.<br />

A jovem olhou-a de esguelha enquanto ela ajustava o corpo esguio<br />

no assento.<br />

Sentiu-se quase como uma anã se sentiria ao lado de um gigante. Não<br />

que fosse baixa, ou que seu corpo não estivesse em forma... Aquela estranha<br />

mulher era realmente enorme.<br />

– Você é alta, hein! – não teve como reprimir o comentário.<br />

– E você é direta, hein! – respondeu a outra, girando parte de seu<br />

corpo de forma a afastar seu rosto do da jovem, olhando-a com uma<br />

divertida severidade.<br />

Ambas riram.<br />

94 Doença e Cura


– Você sempre se veste daquele jeito? – perguntou a jovem. Ser direta<br />

era uma de suas principais características ao conversar, e isso não mudaria<br />

mesmo que estivesse diante de um ídolo da TV.<br />

– De qual jeito? – gracejou a mestiça. – Visto-me de tantas formas,<br />

dependendo do serviço que eu tenha que prestar.<br />

– Serviço?<br />

– É. Você sabe. Homens.<br />

A moça franziu a testa, fazendo uma careta.<br />

– Não vai me dizer que você...<br />

– Exatamente. Sou uma prostituta. Uma puta. Uma vagabunda de<br />

vida fácil. Chame como quiser.<br />

Ambas se olharam. A primeira com ares do mais absoluto<br />

constrangimento, a face quase ruborizada. A segunda completamente<br />

plácida, confiança no rosto anguloso de estrangeira.<br />

– Puta. Prostituta. Meretriz. É assim que as pessoas chamam minha<br />

profissão. Tem ainda alguns outros nomes, mas pouco importa. Por quê? Há<br />

algum problema nisso?<br />

Até a forma como aquela mulher gigantesca falava era diferente do<br />

que a jovem esperava. Não havia nenhum sotaque, nenhuma gíria ou termo<br />

chulo, que, em seu modo de ver, seria de se esperar em uma pessoa com<br />

aquele tipo de... profissão.<br />

– Na verdade, tem. É... estranho – disse a jovem, olhando para a<br />

frente. – Incomoda-me muito... mas pelo visto não incomoda a você.<br />

– Ora. A vida nem sempre funciona como a gente quer. Mas, posso<br />

garantir que para mim tudo funciona do jeito como EU quero.<br />

– Você quis ser... isso?<br />

– Sim. Eu quis ser isso. Não precisa ter medo de dizer ‘puta’. É só<br />

uma palavra.<br />

– E por que você quis ser... você sabe.<br />

– Não sei. As coisas acontecem. O destino muitas vezes foge do nosso<br />

controle, e o meu fugiu do meu controle há muito tempo atrás... Mas, a gente<br />

acaba se acostumando, e eu acabei tomando gosto pelo... “serviço”.<br />

– Quantos anos você tem?<br />

– Sou bem mais velha do que você. Posso garantir.<br />

– Uns trinta.<br />

– Digamos que eu tenha mais do que trinta.<br />

– Sou mulher. Pode contar, sem problemas.<br />

– Prefiro não contar. Pode ser que um dia você resolva concorrer<br />

contra mim. Se você espalhar minha idade por aí, posso perder clientela.<br />

– Duvido muito. Estou muito bem como estou, obrigada.<br />

– Eu percebi. O que você faz?<br />

E ficaram assim, conversando, a executiva e a meretriz vestida de<br />

executiva, durante o resto da viagem.<br />

Fabian Balbinot<br />

95


A jovem revelou o que fazia, mas não conseguiu saber a idade da<br />

desconhecida. Em compensação, ficou sabendo que a ‘atividade’ que a<br />

outra desenvolvia incluía muitos clientes por assim dizer excêntricos, e isso<br />

implicava em sucessivas mudanças de visual.<br />

O cliente daquela noite exigia ser atendido por uma executiva, e<br />

pagaria muito bem por isso.<br />

Quanto? O bastante, dissera a prostituta, argumentando alegremente<br />

que o segredo era a alma do negócio.<br />

Conversaram e riram, até que, em um dado momento, o ponto em que<br />

a jovem devia descer chegou, e a discussão teve de ser interrompida.<br />

– Foi bom ter conversado com você. Você é durona, mas tem mente<br />

aberta. É uma pena que eu não possa estar aqui amanhã – disse a mestiça<br />

vestida de executiva.<br />

– O pagamento vai ser tão bom assim? – riu a jovem.<br />

– O suficiente – sorriu, satisfeita a outra. – A gente se vê em uma<br />

próxima viagem?<br />

– É provável. Estarei fazendo este percurso durante algum tempo.<br />

Acho que eu também acabei tomando gosto pelo “serviço”.<br />

– Então, até a proxima.<br />

– Tchau!<br />

E a jovem saiu do metrô, feliz por perceber que o preconceito de que<br />

as pessoas tão comumente costumam se armar muitas vezes impede que elas<br />

possam conhecer outras pessoas.<br />

Sentia-se afortunada. Possuía um preconceito visual gigantesco. Na<br />

primeira vez em que viu uma pessoa de cor, um de seus coleguinhas de classe,<br />

quando era criança, teve um ataque de choro, e pensou até em abandonar<br />

os estudos, lembrava-se bem. Era como se o que os olhos lhe mostrassem<br />

fosse peremptório, forçando tiranicamente seu cérebro a aceitar a verdade<br />

vista, o invólucro externo com que cada ser humano havia sido feito, como<br />

sinal posto e incontestável de mácula e de doença.<br />

Sentia-se afortunada por este defeito de ser tão influenciada pelo<br />

que via sempre ter sido contrabalançado por uma mente aberta, por muita<br />

simpatia e pela certeza de que, com muita conversa e descontração, o aspecto<br />

visual ameaçador de muita gente fora posto abaixo, desfeito e soterrado, o<br />

temor instintivo sendo substituído por afeição e confiança.<br />

Sempre acreditara que os olhos traem, e que o que vale para se<br />

conhecer uma pessoa é o contat...<br />

No meio do caminho para casa, lembrou-se de uma coisa que seus<br />

olhos tinham lhe mostrado, e ao que ela não havia dado muita atenção até<br />

agora.<br />

As orelhas da mulher mestiça.<br />

As havia visto, saindo por debaixo do cabelo castanho.<br />

E elas estavam sem brincos.<br />

96 Doença e Cura


Não tinha nenhuma dúvida. Orelhas vazias.<br />

Longe disso ser um problema...<br />

O que a deixava inquieta era o fato de que não havia percebido um<br />

único orifício de pendurar brincos em nenhum lugar naquelas orelhas.<br />

As orelhas da mestiça estavam limpas.<br />

Não tinham nenhuma marca, mesmo com a dúzia de brincos que ela<br />

havia usado na noite em que a vira pela primeira vez.<br />

Santo Deus! Brincos deixam marcas, ou não deixam?<br />

A jovem parou de caminhar. Respirou fundo, e como orgulhava-se de<br />

ser capaz de fazer, tratou de esquecer do assunto.<br />

Dúvidas causam stress. Melhor não tê-las antes de dispor dos meios<br />

para colocá-las à prova.<br />

Era isso o que ela pensava, e também era a chave de seu sucesso.<br />

Quando chegou em casa naquela noite, o pagamento das contas de<br />

luz e telefone, e outras dúvidas que ela tinha como resolver eram as únicas<br />

coisas que ocupavam lugar em sua mente.<br />

Três noites após, passado o fim-de-semana, encontrou-se com a<br />

meretriz de novo.<br />

Novo visual, muito parecido com o visto na noite em que a percebera<br />

pela primeira vez, porém um pouco mais discreto, se é que isso era possível.<br />

Na verdade, as únicas diferenças entre a indumentária daquela<br />

primeira noite, na semana passada, e o traje que via naquele momento<br />

pareciam ser apenas as cores de cabelo, maquiagem e unhas, e uma grossa<br />

pele parda, bege e marrom, que cobria a mulher do pescoço até a cintura.<br />

A mochila cheia de chaveiros e de mau gosto, semi-encoberta pela<br />

vasta manta de pele, a bolsa branca cheia de desenhos e as dúzias de brincos<br />

– item no qual a jovem deteve sua atenção – estavam todos lá, outra vez.<br />

As mesmas dúzias de brincos da primeira vez. Alguns diferentes,<br />

outros iguais. Outros impossíveis de se reconhecer.<br />

Desta vez havia a dúvida, e meios para eliminá-la.<br />

A moça imaginava apenas como poderia fazer isso sem causar nenhum<br />

constrangimento, quando a mestiça, que estava rodeada de pessoas tão ou<br />

mais estranhas do que ela própria, percebendo sua presença, aproximou-se<br />

com um sorriso tão amplo quanto era seu próprio corpo.<br />

– Veja só quem está aqui! Olá, minha amiga empresária! Há quanto<br />

tempo!<br />

O jeitão amistoso era claramente exagerado, e a moça não teve<br />

porque ficar comovida.<br />

– Executiva – corrigiu ela, levantando-se e cumprimentando a outra<br />

de forma bem mais moderada. – Foram só dois dias.<br />

– Você não imagina o que eu consigo fazer em dois dias. Não, em<br />

duas noites, porque eu sinceramente não tenho fôlego algum para passar<br />

o dia acordada. Ei, amigos! Venham cá! Esta aqui é a ‘observadora’ do<br />

Fabian Balbinot<br />

97


metrô! Também conhecida como uma ótima companhia para uma viagem<br />

solitária de trem... Cuidado com o que falam, pois ela é culta e não aceita<br />

gírias e nem comentários de baixo nível.<br />

Foi um teste realmente intenso para a moça, ter que cumprimentar<br />

cinco dos tipos mais esquisitos que já havia visto na vida. Suas noções<br />

preconcebidas, instintivas e visuais dispararam como se fossem um<br />

alarme de incêndio ou um sensor de perigo, e se houvesse um medidor que<br />

contabilizasse tais sensações, o ponteiro teria de fato rompido a escala,<br />

destruindo de vez com o aparelho.<br />

Sem conseguir conter o receio, que quase chegava ao ponto de se<br />

transformar em aversão, nojo puro e simples, ela apertou as mãos de quase<br />

todos aqueles seres fantásticos, fantasiados com todos os tipos de... ‘coisas’<br />

que se pudesse imaginar.<br />

Dois homens e três mulheres. O número perfeito de indivíduos para<br />

se compor uma gangue de sequestradores, disse-lhe seu preconceito.<br />

Um dos homens era negro como ébano, e devia ter mais de dois<br />

metros de altura. Careca. Musculoso. Rosto de aspecto aborígene,<br />

anguloso, marcado por cicatrizes e barba por fazer. Vestido com um colete<br />

esfarrapado, uma calça velha e um par de botas altas de exército, ele estava<br />

praticamente nu, e exibia os longos e fortes braços que acabavam em mãos<br />

enormes, que poderiam ter feito seus pequenos braços de mulher sumirem<br />

com o cumprimento efusivo que deram, apertando juntas a mão da moça.<br />

Poderiam, mas não o fizeram.<br />

O outro homem era baixo e forte. Atarracado debaixo de um sobretudo<br />

e de um chapéu, dava a impressão de ter muita massa muscular – ou muita<br />

banha – debaixo de tanta proteção. Com uma barba esparsa que ia até o<br />

cabelo e um par de enormes óculos escuros, o possante homenzinho de nariz<br />

apertado dava a impressão de ser como um bloco de granito, irremovível.<br />

Sorrindo e revelando um par de dentes caninos posteriores compridíssimos,<br />

que fê-lo parecer ainda mais bestial e cavernoso, tanto como um primata<br />

há pouco evoluído para a forma humana, ele a cumprimentou com uma<br />

mão ainda maior e mais larga que a do primeiro homem, completamente<br />

coberta de pêlos, a qual poderia ter decepado um dos braços da jovem com<br />

um simples puxão.<br />

Poderia, mas não o fez.<br />

A primeira das três mulheres era também negra, e parecia ter herdado<br />

parte das roupas que a mestiça utilizara no segundo dia em que a jovem a<br />

havia visto. Um mini-vestido branco, feito de algum material sintético e<br />

reluzente, colado ao corpo esbelto mas não tão alto, cheio dos volumes que<br />

fazem gosto aos homens, blá, blá, blá e blá, blá, blá. Era a típica prostituta<br />

negra, vestida para rodar a bolsa azul-clara em uma esquina escura. Um<br />

bibelô humano, ávido de ser apalpado e alugado para o prazer por mãos<br />

cheias de dinheiro. Seu abraço foi apertado e longo.<br />

98 Doença e Cura


– Com você eu passaria diversas noites, sem cobrar absolutamente<br />

nada, meu docinho branco – comentou ela, de um modo absolutamente<br />

lânguido e sensual ao final do abraço. – Ah! Eu ficaria mesmo...<br />

Ficaria, mas não o fez.<br />

– Não repare nela – comentou a mestiça alta. – Além de ser uma puta<br />

e negra, ainda é lésbica. É o que há de pior na humanidade inteira.<br />

– Vá tomar no cu... – disse a negra, rindo alto, enquanto se afastava<br />

para dar lugar à segunda mulher.<br />

A segunda mulher era branca e tinha cabelos vermelhos e sardas bem<br />

ao natural em seu rosto gorducho, e também estava vestida naturalmente,<br />

debaixo de um sobretudo que dava a impressão de ser de um material<br />

semelhante a couro e ainda mais espesso que o usado pelo homem-macaco.<br />

Os únicos detalhes a marcarem negativamente seu rosto era o par de grandes<br />

espetos de madeira que rasgavam os lóbulos de suas orelhas e algumas<br />

estranhas marcas em suas mãos. Seu abraço acabou sendo interrompido<br />

logo no início pela mestiça, que afastou a ruiva de perto da jovem.<br />

– Melhor não chegar muito perto dessa aí – recomendou. – Sua<br />

carteira pode sumir em um piscar de olhos.<br />

– Vá tomar no cu... – berrou a ruiva com uma voz rouca, bastante<br />

contrariada, indo ocupar um assento próximo, ao lado da negra. – Você<br />

viu. Essa cadela de merda sempre faz isso. Uma hora eu vou pegar um bom<br />

pedaço de pau...<br />

– Calma. Quem manda você querer aprontar com os afetos dela?<br />

– A negra lésbica confortou a ruiva com um abraço mais apertado do<br />

que o normal, ao que se seguiu um beijo na boca e alguns toques de mão<br />

mais ousados que acabaram abrindo o sobretudo e revelando um pequeno<br />

revólver e alguns canivetes que ali estavam acoplados.<br />

– E quem disse que eu queria... aprontar?<br />

A jovem estremeceu, imaginando com quem havia vindo se meter. A<br />

ruiva era uma ladra, e poderia ter realmente batido sua carteira...<br />

Mas não o fez.<br />

Nisso, a terceira integrante do bizarro grupo transpareceu, imóvel,<br />

agarrada ao corrimão do metrô.<br />

– Bem... – disse a alta mestiça. – Eu menti quando disse que aquela<br />

outra ali era o que há de pior na humanidade. Apresento-lhe o que há de<br />

pior de verdade na humanidade.<br />

Ela apontou para a criatura magérrima que a jovem espantada<br />

admirava agora.<br />

Com um movimento, a mestiça removeu o capuz que cobria o rosto da<br />

mulher, revelando sua face, ato que foi respondido com um olhar medonho<br />

e um rosnado.<br />

– Vá tomar no cu, piranha de merda! – disse uma vozinha esganiçada<br />

de criança.<br />

Fabian Balbinot<br />

99


– Sim, vou. Já estou ficando acostumada...<br />

A pequena e esquálida mulher, ou menina, que se debatia tentando<br />

cobrir o rosto com o capuz que estava amarrado em sua larga blusa tinha dois<br />

olhos enormes, um vermelho – sim, vermelho, provavelmente devido ao uso de<br />

uma lente de contato – e outro azul. Seu rosto era branco como uma folha de<br />

papel, com diversos piercings, agulhas e ferros de todos os tipos ali anexados,<br />

como se fossem grampos e clipes – ora, devia mesmo haver grampos e clipes<br />

de verdade dependurados ali! –, e uma grossa maquilagem preta de mataborrão<br />

demarcando de forma intensa as sua linhas, de forma a ressaltar ainda<br />

mais o aspecto cadavérico da face infantil assustada e desnutrida.<br />

– Não repare. Ela é um depósito de doenças e de vícios, e ainda<br />

tem hipersensibilidade à luz. Estamos tentando curá-la de toda a merda<br />

que ela consome, mas ela não quer nossa ajuda. Só nossa companhia –<br />

disse a mestiça, torcendo o nariz. – Só não sei por mais quanto tempo...<br />

Não vai querer cumprimentá-la. E tenho certeza que ela não vai querer<br />

cumprimentar você.<br />

Novamente protegida pelo capuz, a insólita menina poderia ter<br />

estendido a mão, coberta com uma grossa luva de couro, para cumprimentar<br />

a jovem. Nenhuma parte de seu corpo estava exposta; tudo estava soterrado<br />

por roupas largas bem ao feitio dos skaters, de cima a baixo.<br />

Ela podia ter estendido a mão para cumprimentar a jovem.<br />

Mas não o fez.<br />

E a jovem definitivamente agradeceu aos céus por isso ter<br />

acontecido.<br />

Por sorte, a boca da jovem executiva era um eterno sorriso, e ninguém<br />

teve que reparar na angústia que sentira ao ter tocado – ou apenas visto –<br />

tais indivíduos.<br />

– Nossa parada está chegando – disse a negra, lambendo os beiços.<br />

– Vamos descer e ganhar dinheiro... ou algo mais.<br />

– Eu vou descer mais além – disse a mestiça.<br />

– Então até mais – riu a lésbica, dirigindo-se alegremente para a<br />

porta móvel de saída, quando o trem parou e esta se abriu.<br />

Os outros a seguiram, as outras mulheres quietas e os homens dando<br />

adeus.<br />

– Espero poder encontrar você de novo, docinho branco – gritou a<br />

negra sorridente, já do lado de fora.<br />

A mestiça balançou a cabeça negativamente, sorrindo.<br />

Quando o metrô reiniciou seu movimento, ambas sentaram.<br />

– E então, o que achou do pessoal? – perguntou a mulher alta. –<br />

Admito que é como viver no meio de um zoológico. Cada quarto, uma fera<br />

de uma espécie diferente.<br />

– São... realmente diferentes – comentou a jovem, escolhendo as<br />

palavras.<br />

100 Doença e Cura


A mestiça sorriu.<br />

– Eu sei qual é a sensação. Não precisa ficar tão desconcertada.<br />

Não é todo dia que se conhece uma variedade tão grande de ladrões,<br />

cafetões e prostitutas. Deve ser um horror para você, que nem deve ser<br />

desta cidade. Aposto como você veio de fora, de um lugar calmo, onde todo<br />

mundo é branco, trabalha no campo e fala engraçado – ela fitou a jovem,<br />

inquisitiva.<br />

– Você está certa.<br />

– Eu sabia. E, pela sua cara, aposto que tem algumas perguntas que<br />

você há algum tempo vem querendo me fazer.<br />

– Sim. Tem razão.<br />

– Sou toda sua – disse a mulher alta, levantando-se e mudando para<br />

um assento perpendicular ao que estava a jovem.<br />

A mestiça cruzou as pernas e fez uma pose como se estivesse em um<br />

programa de entrevistas, com uma câmera apontada para sua face.<br />

– Pena que meu tempo é curto. Sabe como é a vida de estrela. São<br />

muitos compromissos na agenda, autógrafos...<br />

A jovem riu, percebendo pelo olhar que a mestiça se referia à parada<br />

onde desceria, que devia estar bem próxima.<br />

– Você... fala de uma forma bastante... sofisticada. Não parece ser<br />

uma...<br />

– Prostituta? Como eu disse na outra noite, sou mais velha do que<br />

você imagina. A vida já me ensinou muitas coisas. E falar bem pode ser<br />

muito útil, dependendo da situação.<br />

– Entendo. Você parece ser bem mais culta do que dá a entender.<br />

– Se eu lhe revelasse meu currículo, você ficaria muito surpresa.<br />

Posso garantir – sorriu a outra.<br />

– Suponho que ficaria. Por que você escolheu esta vida, então?<br />

– Hmmmm... – a mestiça respirou fundo. – É uma pergunta tão simples,<br />

que pode ter muitas respostas, dependendo da situação em que estamos... ou<br />

do nosso humor. Bem, para você eu vou responder da seguinte forma: nós<br />

não escolhemos, e sim somos escolhidos. O destino é o caminho que você<br />

percorre na vida, e mesmo que procure fazer suas próprias escolhas, você<br />

nunca conseguirá desviar do que o destino lhe reserva.<br />

– Não é uma resposta muito... comodista?<br />

– Não sei. É quase certo que sim. Quem sabe? – riu a mestiça,<br />

esticando as pernas e cruzando-as de novo, invertidas. – Vivi muito, e<br />

acreditei em muitas coisas, que foram desmentidas tempos depois. Então,<br />

tive que acreditar em outras coisas nas quais não acreditava antes. A vida<br />

é assim mesmo. Os paradigmas mudam. Por exemplo, agora eu acredito<br />

que se eu não descer na próxima parada, vou perder um cliente dos mais<br />

rentáveis, e também dos mais exigentes em relação a horários.<br />

Ambas se puseram de pé.<br />

Fabian Balbinot<br />

101


– Adeus, minha querida. Como diria o destino, até quando nos<br />

encontrarmos de novo!<br />

– Espere! Tem mais uma coisa que eu gostaria de saber.<br />

– O que é, meu anjo? Cinco segundos de minha agenda lotadíssima<br />

para você. Aproveite!<br />

Ambas sorriram.<br />

– Seus brincos. Você poderia me... emprestar um deles? – inquiriu a<br />

moça, reticente. – Quero comprar um igual.<br />

A mulher alta mirou a jovem, séria, dando a impressão de não ter<br />

acreditado no que havia ouvido.<br />

– Pergunta errada, jovenzinha! Que eu me lembre, estamos em<br />

uma época em que as mulheres vivem imitando umas às outras, mesmo<br />

odiando fazer isso. Copiar o brinco de outra mulher? Nem pensar! Isso é<br />

tremendamente démodé.<br />

A jovem enrubesceu, e ficou cabisbaixa, tentando imaginar o que<br />

dizer. Pelo visto, seu plano para espiar as orelhas daquela meretriz de<br />

linguajar elegante e satisfazer sua dúvida quanto aos furos de brincos que<br />

desaparecem de orelhas tinha ido por água abaixo.<br />

Devia ter pensado melhor no que iria dizer, mas a sucessão de<br />

acontecimentos aliada à presença daqueles cinco bizarros personagens<br />

havia desviado sua atenção, desconcentrando-a.<br />

– Escolha um deles.<br />

A mestiça abaixou-se e empurrou o cabelo para cima, revelando a<br />

orelha limpa, cheirando a alfazema, à jovem.<br />

– O segredo é a alma do negócio. Vamos logo que o trem já está<br />

parando e eu tenho que descer, ou você irá me pagar pelo cliente da noite.<br />

E posso garantir que será um desfalque considerável em seu ordenado de<br />

executiva júnior, ou seja lá o cargo que você esteja ocupando.<br />

– Executiva sênior – disse a jovem, escolhendo um dos sete brincos a<br />

esmo. – Este aqui.<br />

Era um brinco feito com uma espécie de canudo curto e entrelaçado<br />

de metal prateado, que acabava em uma pequena estrela que envolvia e<br />

ornava uma pedrinha de brilhantes, incolor e transparente como água.<br />

Ora, pouco significava qual modelo fosse...<br />

– Nossa! Você é bem rápida, hein! Executiva sênior, assim tão cedo...<br />

Se bem que é tudo a mesma coisa – todos preenchem cargos e apenas um<br />

manda de verdade. Muito bem, deixe-me ver... este aqui, não é?<br />

Com um par de gestos rápidos a mulher removeu o par de brincos,<br />

revelando um par de sulcos profundos em suas orelhas, que a jovem mirou<br />

muito atentamente.<br />

– Ainda bem que não são os mais caros.<br />

– Espero não estar atrapalhando... – disse a jovem, ao receber os<br />

brincos.<br />

102 Doença e Cura


– Este cliente não daria a menor importância mesmo se eu aparecesse<br />

na frente dele vestida como um panda de pelúcia. Na verdade, a roupa é a<br />

primeira coisa de que ele quer se livrar – riu a mestiça, dirigindo-se para<br />

a porta do metrô, que se abria naquele instante. – Mas ele tem uma certa<br />

predileção por perfumes... Minha bolsa está cheia deles.<br />

A elegante e sorridente mulher saltou para fora, virando-se de volta<br />

para a jovem.<br />

– O segredo é a alma do negócio, e eu pouco me importo no que a fez<br />

pedir meus brincos. Mas isso não vai ficar assim... – ela simulava um tom<br />

ameaçador. – Trate de inventar uma justificativa mais convincente! Quero<br />

ouvi-la na próxima vez em que nos encontrarmos.<br />

Divertida, a moça dentro do trem fez um sinal de positivo com a mão.<br />

– Ah! E você me deve um par de brincos! E eu vou cobrar, viu!<br />

Despediram-se, e o metrô partiu.<br />

Foi então que o ar alegre da moça desapareceu.<br />

Seu semblante tornou-se grave e pensativo, enquanto ela olhava o<br />

par de brincos e imaginava coisas.<br />

Todos os sete pares de brincos que se enfileiravam na orelha daquela<br />

enorme mulher eram do tipo que possui um alfinete atravessando a orelha, o<br />

qual suporta a jóia, preso por uma pequena tarraxa de plástico ou metal.<br />

Todos aqueles brincos eram sustentados por furos nas orelhas – ela<br />

estava certa disso.<br />

Nenhum deles tinha qualquer outro tipo de suporte ou presilha.<br />

Não havia engano.<br />

Ao ter escolhido o modelo que agora repousava na palma de sua<br />

mão, a jovem tivera tempo suficiente para observar todos os outros brincos,<br />

e vira os alfinetes e os furos na pele, alguns muito claramente.<br />

E agora? Imaginava ela, enquanto olhava para a jóia e via apenas<br />

seus pensamentos.<br />

Talvez os furos fossem recentes, e os brincos que vira na primeira e<br />

segunda noites não fossem deste tipo, de atarraxar com alfinete.<br />

Talvez isso. Talvez aquilo.<br />

Mesmo sentindo-se perturbada pelas tantas possibilidades, ela<br />

preferiu agir como sempre agia, guardando o par de brincos e todas as<br />

dúvidas que dele advinham dentro de sua bolsa, e realizando seu velho<br />

exercício mental de esquecimento.<br />

Ao descer do metrô, os assuntos que atraíam sua atenção já eram<br />

bem diversos.<br />

Ela continuou com suas viagens de metrô, sem conseguir ver a robusta<br />

mulher mestiça nas noites que se seguiram. Chegou mesmo a arriscar uma<br />

viagem no final de semana, sem ser a trabalho, pretextando para si mesma<br />

uma visita a algum supermercado ou butique do centro, vasculhando vagões<br />

em busca daquela exótica mulher.<br />

Fabian Balbinot<br />

103


Sua mente volta e meia desenhava orelhas cheias de brincos e de<br />

furos que desapareciam quando aqueles eram retirados, o tecido dos lóbulos<br />

sendo regenerado de forma instantânea, e a abstração destes pensamentos<br />

a aborrecia. Era uma pessoa por demais ligada ao concreto, ao real, para<br />

que ficasse tanto tempo com fúteis e efêmeras cogitações.<br />

Até que chegou a última noite.<br />

A noite em que sua vida mudou.<br />

Fazia uma semana e meia que ela estava indo e voltando do serviço<br />

sem usar seu carro.<br />

Quando, naquela noite na metade da semana, deparou com aquela<br />

vasta silhueta ocupando sozinha um dos assentos do metrô, de costas para<br />

ela própria, deixou um sorriso espontâneo aflorar em seus lábios.<br />

Ia já se aproximando da conhecida, passando por entre os poucos<br />

passageiros daquele horário, contente por reencontrá-la com uma indumentária<br />

tão razoavelmente discreta, o cabelo comprido cobrindo as or...<br />

Subitamente, parou, e o sorriso que trazia murchou como uma velha<br />

flor.<br />

Os brincos.<br />

Queria vê-los, mas o cabelo encrespado e longo da outra cobria<br />

tudo.<br />

Imaginando, novamente, ela avaliou com caricatos olhos de raios-X<br />

as muitas possibilidades que se escondiam sob o volumoso cabelo negro,<br />

vendo uma sequência de sete furos ao redor de cada ouvido, e sete pares de<br />

brincos flutuando e se anexando automaticamente, em um passe de mágica,<br />

cada alfinete trespassando a pele da orelha em sua respectiva vaga, apenas<br />

para, em seguida, ver tudo isso desaparecer, uma orelha vazia e limpa, sem<br />

orifício algum que não fosse o auricular, surgindo em seu lugar.<br />

Sacudiu a cabeça e torceu o nariz.<br />

Não era o momento para ter alucinações e imaginar bobagens.<br />

Vendo seu próprio reflexo em uma das janelas do trem, refez o sorriso,<br />

como quem retoca a maquiagem ou o cabelo perante um espelho.<br />

E novamente avançou.<br />

– Olá. Estou feliz em vê-la de nov...<br />

Novamente seu sorriso sumiu.<br />

Encolhida, de cócoras com os pés sobre o assento, a mestiça revelou<br />

um semblante bastante pálido, olhos vazados em lágrimas, quando levantou<br />

a cabeça e a cumprimentou.<br />

– Ah... Olá, pequenina...<br />

Talvez fosse dizer mais alguma coisa, mas preferiu apenas levantar<br />

a mão em um tênue sinal positivo, enfiando a cabeça novamente entre as<br />

pernas.<br />

A jovem não se fez de rogada e sentou-se ao seu lado, colocando uma<br />

mão em sua nuca.<br />

104 Doença e Cura


– Meu Deus, você está gelada. Você está bem?<br />

– Não – a meretriz respondeu sem mover a cabeça, de uma forma<br />

quase inaudível.<br />

– O que é que você tem?<br />

As mãos da outra, cruzadas sobre as canelas, soltaram-se, as palmas<br />

abertas para o alto em um gesto que queria dizer “não faço a menor<br />

ideia”.<br />

Retornaram em seguida para onde estavam acomodadas.<br />

Afagando a conhecida, a jovem olhou em volta sem ver ninguém ou<br />

nada que pudesse ajudá-la.<br />

Ao contrário. Algumas pessoas olhavam de viés para ela, escondendo<br />

semblantes de profunda reprovação atrás de seus jornais e das golas das<br />

jaquetas.<br />

Talvez soubessem o que era aquela mulher. O que ela fazia para<br />

viver.<br />

Preconceito. Sempre, preconceito.<br />

Reconhecendo que estava sozinha em sua atitude de prestar socorro<br />

à companheira, a jovem apertou o abraço, estranhando o frio que vinha da<br />

pele dela. Não entendia muito de medicina, mas a febre por que ela devia<br />

estar passando era mesmo de assustar.<br />

– O que aconteceu? Você está gelada.<br />

Um murmúrio quase inaudível veio em resposta.<br />

– O quê? – respondeu a jovem, ainda indecisa ao que fazer.<br />

A outra afastou os joelhos e levantou a cabeça.<br />

– Eu não faço a menor ideia – disse, desanimada.<br />

– Aonde você está indo?<br />

– Ora... – a meretriz tentou simular alguma naturalidade. – Estou<br />

indo garantir o meu sustento.<br />

A jovem olhou-a, e acabou percebendo como pareciam atraentes,<br />

magnéticos, os dois olhos castanho-claros da mestiça. Chegava a ser difícil<br />

querer desviar o olhar daquele par de pupilas, mesmo com a expressão<br />

doente que sua dona agora transmitia.<br />

De fato, ela devia fazer um enorme sucesso com os homens. Aqueles<br />

olhos flamejantes, aliados à face exótica e ao tamanho e voluptuosidade<br />

do corpo... Era uma mistura realmente explosiva, de inegável atratividade<br />

sexual.<br />

Sentindo-se perdida no meio daqueles olhos, a jovem teve de sacudir<br />

a cabeça para reassumir o controle.<br />

– Coisa nenhuma! Você vai para um hospital.<br />

– Não vou mesmo – disse a meretriz, sem alterar a voz. – Minha<br />

profissão não permite que eu tenha um plano de saúde.<br />

– Você está gelada como um sorvete! – a jovem explodiu em um<br />

barulhento sussurro de indignação.<br />

Fabian Balbinot<br />

105


– Isso... passa. Eu só preciso de alguma coisa... para o estômago.<br />

O trem balançava, as rodas de metal chocando-se com estrépito<br />

reverberante nas junções entre os trilhos.<br />

– Não. Tem um posto médico na próxima parada. Vou descer junto<br />

com você e acompanhá-la até...<br />

– Pode descer sozinha, se quiser.<br />

– Você... você enlouqueceu!<br />

A jovem praticamente gritava em silêncio, procurando deixar seu tom<br />

de voz o mais baixo possível para não atrair a atenção. Em contrapartida, a<br />

mulher alta falava com relativa calma, sem jamais se alterar.<br />

– Eu sei... o que eu tenho. E sei... – ela titubeava – como resolver este<br />

problema. Um remédio para o estômago e isso passa.<br />

– V-você tem certeza?<br />

A mulher doente fez que sim com a cabeça.<br />

Sem forças para insistir, a jovem acabou esticando seu corpo sobre o<br />

assento, recostando a cabeça no revestimento plástico da parede do trem.<br />

A parada próxima à qual havia um posto médico acabou passando e<br />

ficando para trás, junto com outras.<br />

E, afinal, o ponto onde a jovem descia do trem para iniciar sua<br />

rotineira caminhada para casa chegou.<br />

– Tenho que descer.<br />

Quando ela fez menção de se levantar, uma mão grande, forte e fria<br />

agarrou seu pulso.<br />

– Posso ir com você? – perguntou a mestiça, um sorriso desanimado<br />

no rosto.<br />

– Mas...<br />

– Eu menti. Não tenho nenhum cliente em especial hoje.<br />

A jovem mirou-a, tentando imaginar o que ia dizer.<br />

E os olhos das duas mulheres acabaram novamente se encontrando.<br />

Fosse como fosse, ambas desceram do trem, e quando a jovem se<br />

deu conta, já estavam a caminho de sua casa, caminhando pelas calçadas<br />

fartamente iluminadas que tinham sido escolhidas com todo o cuidado por<br />

ela como parte de seu sensato itinerário noturno.<br />

Ela piscou algumas vezes, e, como se saísse de um sonho, ou de um<br />

estado relativamente consciente, percebeu que andava devagar, amparando<br />

o corpo anguloso da meretriz.<br />

Começou a pensar no que diabos estava se metendo.<br />

Estava levando uma prostituta à sua própria casa!<br />

– Você disse que não iria ao posto médico – interrompeu o silêncio<br />

que fazia com que o cri-cri estridente dos gordos grilos do subúrbio se<br />

convertesse em uma intensa gritaria. – Por quê?<br />

A outra nada respondeu.<br />

– Você tem algum... problema de saúde? Tem algo que você está me<br />

escondendo? Algo grave...<br />

106 Doença e Cura


– Sim.<br />

Novamente, silêncio.<br />

Barulho de passos arrastados.<br />

Grilos...<br />

– Que tipo de doença você tem? AIDS?<br />

A outra riu, dando a entender que a insinuação era exagerada.<br />

– O segredo... é a alma do negócio.<br />

Pelo menos ela continuava espirituosa.<br />

E AIDS ela definitivamente não tinha, concordou a moça consigo<br />

mesma.<br />

Afinal, chegaram em casa.<br />

E foi então que a vida daquela jovem acabou.<br />

E uma nova vida começou em seu lugar.<br />

* * * * *<br />

Você é uma boa pessoa.<br />

Não... Na verdade você FOI uma boa pessoa.<br />

Uma boa garota.<br />

Um exemplo.<br />

Uma cidadã respeitável e bem sucedida, no melhor sentido da<br />

palavra.<br />

Você foi, mas não é mais.<br />

Não há mais negócios que vão de vento em popa.<br />

Não há mais êxito, nem talento. Você não é mais jovem, e nem tem<br />

um futuro brilhante pela frente. Mesmo sabendo que é o contrário disso<br />

que irá acontecer, de agora em diante, você sente como se tivesse perdido a<br />

juventude e vê o futuro infindo como a pior de todas as armadilhas.<br />

Era para ter sido tudo diferente... Tudo indo às mil maravilhas.<br />

Mas, um dia algo aconteceu, e você conheceu alguém que não devia.<br />

E sua vida mudou.<br />

Você morreu, e depois renasceu, tornando-se o que é hoje.<br />

E sua vida foi transformada em um permanente inferno.<br />

Você não tem mais uma dieta saudável e nem consegue conversar<br />

com as pessoas. Na verdade, sua dieta é o que pode existir de mais infame.<br />

As contas não param de chegar e sua casa está de pernas para o ar.<br />

Telefone, luz e água foram cortados; sua vaga no emprego dos sonhos<br />

de todas as pessoas civilizadas foi tomada por um incompetente qualquer<br />

da cidade grande, dono de um currículo cheio de mentiras, pois você nunca<br />

mais apareceu para trabalhar; seu carro sumiu da garagem, sabe lá porque, e<br />

você pouco se importa.<br />

Fabian Balbinot<br />

107


Você não precisa mais de nada disso, mesmo que ainda deseje sua<br />

vida anterior de todo o coração.<br />

Não há mais arrojo nem determinação. Seu mundo utópico e<br />

funcional, feito de planos, organização, carreira, dedicação, estudo, deixou<br />

de funcionar. Virou utopia.<br />

Você está morta.<br />

Mesmo que continue podendo caminhar na escuridão, e pegar o metrô<br />

para ir a lugar nenhum, você sabe que morreu, e que seus méritos de nada<br />

mais valem.<br />

E foi naquela noite.<br />

Aquela noite fatídica em que seu preconceito foi vencido pela sua<br />

crença estúpida no coração das pessoas.<br />

A noite em que a prostituta entrou em sua casa, a seu convite, e a<br />

seviciou, matando-a e fazendo de você o que é hoje.<br />

A noite em que você foi jogada no inferno.<br />

Agora, você vive de sangue.<br />

Tem o dom de sentir a presença do sangue, onde quer que ele esteja.<br />

Pode farejá-lo, ouvi-lo, vê-lo percorrendo as paredes de artérias e<br />

capilares.<br />

Pressente seu movimento ao longe e consegue captar sua presença,<br />

até mesmo através das paredes.<br />

Sangue.<br />

Apenas sangue.<br />

Sangue e dentes compridos.<br />

Sangue e sede. Instinto e preconceito.<br />

Descrença.<br />

Novas crenças.<br />

Não há mais dinheiro. Nada mais tem importância.<br />

Alguém virá até sua casa, em breve, para saber o que está acontecendo<br />

e por que as cartas continuam se acumulando na caixa do correio.<br />

Bandidos talvez cheguem primeiro para levar o que sobrou dos<br />

aparelhos eletrônicos.<br />

Você, que foi uma boa pessoa, agora será uma boa memória – este é o<br />

único plano que lhe restou. A única alternativa.<br />

Levou algum tempo até que se acostumasse.<br />

Enxergar na escuridão da noite. Ouvir tudo o que a noite lhe reserva.<br />

O fruto de sua imaginação, afinal, era você própria.<br />

Seu destino passava a ser parte de uma história de ficção.<br />

Seu corpo, morto porém vivo, era não mais do que a materialização<br />

de um excesso de criatividade literária.<br />

Nada mais é real.<br />

Você já conhece lugares mais adequados onde pode se instalar nos<br />

subúrbios, e mesmo no decadente e gigantesco centro da metrópole.<br />

108 Doença e Cura


Todos os lugares são efêmeros como a própria vida.<br />

Nada mais tem importância, exceto talvez deixar uma boa impressão<br />

aos que virão. Aos curiosos. Às pessoas do governo.<br />

À polícia...<br />

Para todos os efeitos, você morreu. Foi sequestrada. Morta durante<br />

um assalto. O corpo foi jogado fora. Sumiu. Deixou de existir.<br />

Uma pessoa de bem, que foi riscada do mapa, vitima do destino.<br />

É assim que devia ter sido.<br />

Mas, em uma certa noite...<br />

Andavam as duas mulheres pelas calçadas iluminadas que existiam<br />

no caminho que ia da estação de metrô até a casa onde a mais jovem delas<br />

vivia.<br />

A mais velha das duas, que também era a mais alta, estava doente, e<br />

andava com dificuldade, amparada pela mais jovem.<br />

A mais jovem era uma executiva, dona de uma carreira e de uma<br />

situação financeira que eram invejáveis, se não excelentes.<br />

A mais velha era uma prostituta, e mais nada se sabia ao seu respeito.<br />

– O segredo... é a alma do negócio.<br />

Ambas andaram em silêncio pelos caminhos iluminados da zona<br />

residencial da cidade grande, ouvindo os grilos e o coaxar de sapos<br />

escondidos em algum lugar da relva.<br />

A mais velha e mais alta das duas mulheres, caso se concentrasse,<br />

poderia até mesmo ver onde estavam tais criaturas.<br />

Infelizmente, algo estava errado com ela, e ela não estava em<br />

condições de se concentrar.<br />

Seu estômago doía, parecendo estar sendo atacado e lentamente<br />

dilacerado por hordas de vermes. Era como se seu peito estivesse prestes a<br />

explodir.<br />

Ela suava a frio, como nunca havia acontecido antes, enquanto a<br />

jovem ao seu lado a conduzia à casa onde vivia.<br />

Aquela mulher mestiça e alta, vinda de terras e tempos distantes,<br />

pensava no que poderia ter feito de errado.<br />

Não tinha alergias, nem doenças...<br />

Não as podia ter.<br />

E isso já fazia muito tempo.<br />

– Eu percebi... – pôs-se a jovem a falar, como se estivesse disposta a<br />

romper o silêncio que há muito predominava entre as duas. – ... eu vi, outro<br />

dia. Uma coisa estranha. Suas... orelhas.<br />

A mulher mais velha soube imediatamente a respeito do que a outra<br />

estava falando.<br />

– Suas orelhas estavam cheias de brincos, em um dia...<br />

Ela, a jovem, estava cansada e ofegava devido ao longo percurso que<br />

tivera feito amparando a outra.<br />

Fabian Balbinot<br />

109


– E no outro, na outra noite, você estava sem brinco nenhum... E o<br />

mais engraçado foi que eu não vi nenhum furo nas suas orelhas naquela<br />

ocasião.<br />

A mulher mais velha, que aparentava ter uns trinta anos, nada<br />

respondeu.<br />

Ela sabia que a mulher mais nova tentava se mostrar amigável,<br />

indo contra suas próprias crenças lógicas, acolhendo-a como a uma irmã<br />

necessitada, ao passo que procurava não levar em conta os indícios que<br />

provavam que algo muito errado estava acontecendo.<br />

Sim. Ela podia ver o coração palpitante da jovem, os batimentos<br />

arrítmicos e apressados. O sangue correndo rápido demais pelo corpo,<br />

ocasionando uma oxigenação incompleta dos tecidos. A febre da<br />

preocupação.<br />

E nada disso se devia ao cansaço.<br />

Aquela jovem era uma bomba relógio de pânico, pronta para<br />

explodir.<br />

E cabia à mulher mais velha tentar impedir isso.<br />

– Tem muitas... coisas que você sequer imagina a meu respeito.<br />

Ela sentiu o próprio sangue reunir-se, descontrolado, usando<br />

seu estômago como se fosse um local de assembléia para suas hemácias<br />

dissidentes.<br />

Dores aguilhoavam seu peito e músculos.<br />

Não adiantava querer nublar a mente da jovem, inserindo pensamentos<br />

bons, como sempre fizera com aqueles que, de um modo muito benevolente,<br />

classificava como seus clientes.<br />

Hipnotizá-la também havia falhado.<br />

O sangue, fonte de seu poder, simplesmente não obedecia suas ordens,<br />

reunindo-se em forma de um piquete a nível celular em sua barriga, fazendo<br />

greve e impedindo o progresso sobrenatural de seu corpo.<br />

Nem mesmo o relativo aquecimento de seu corpo – ilusão bem<br />

convincente que a fazia passar por um ser humano normal – era-lhe possível<br />

reproduzir.<br />

Seu corpo estava gelado, e a jovem fazia o possível para acreditar<br />

que isso era febre.<br />

E o pior de tudo eram as malditas dores...<br />

– Que tipo de coisas? – perguntou-lhe a pequena irmã.<br />

A meretriz tentou ser espirituosa. Estava com fome e morria de dores,<br />

o que tornava uma atitude amável de sua parte para com a jovem em uma<br />

verdadeira provação.<br />

– Muitas coisas. E tem muitas coisas... que eu não vou poder contar<br />

a você nunca. Imagine se você resolve entrar para essa vida... Vai me tirar<br />

os clientes.<br />

Quis rir, mas não conseguiu.<br />

110 Doença e Cura


Até rir doía.<br />

Doía como se houvesse um braseiro de ácido frio incinerando por<br />

dentro as suas tripas.<br />

– Não vou... querer entrar pra esse tipo de vida, jamais.<br />

Sem ter que olhá-la, a mulher mais velha percebeu que os níveis de<br />

ansiedade baixavam no corpo da jovem, reconstruindo o compasso entre<br />

aurículas e ventrículos, dentro do seu coração.<br />

Devia continuar falando. Ignorar as dores, serenando o coração da<br />

jovem e evitando sua fome.<br />

– V-você não imagina o que está perdendo...<br />

– Imagino sim. Doença, incerteza, falta de perspectiva na vida...<br />

– Sexo.<br />

A jovem se conteve.<br />

Do alto de seus vinte anos, jamais tivera um único contato sexual.<br />

Nunca sequer brincara de médico com seus amiguinhos homens, ou<br />

com os primos que raramente via.<br />

Fora educada em uma espécie de livre confinamento, com rigor,<br />

por pais que talvez não tivessem sido bem sucedidos o suficiente na vida,<br />

encontrando na filha única uma derradeira alternativa para compensar os<br />

erros de ambos.<br />

“Nossa filha vai estudar muito e ser uma empresária de respeito, não<br />

é mesmo, meu bem?”<br />

“Mas, mamãe, eu queria ser médica.”<br />

“Ser médico é uma boa profissão, mas você vai acabar tendo que<br />

conviver com todas aquelas pessoas pobres da cidade... todos aqueles<br />

negros cheios de sujeira.”<br />

“Eles são feitos de sujeira, mamãe?”<br />

“Não sei. Talvez fiquem sujos com o tempo, mas se você for médica,<br />

irá pegar uma porção de doenças deles.”<br />

“Eu não quero pegar doenças de negros.”<br />

“É por isso mesmo que você deve ser uma empresária. Empresários<br />

têm médicos que cuidam deles quando eles ficam doentes, e eles nunca<br />

pegam doenças de negros.”<br />

“Vou ter um médico só pra mim se eu for empresária?”<br />

“É claro que vai. Um médico só pra você.”<br />

“E por que eu não posso ser médica e ter um empresário só pra<br />

mim?”<br />

Sua imaginação de criança voava longe.<br />

Voava tanto que subitamente, em um dado momento de sua vida,<br />

sumiu de vista e desapareceu.<br />

E ela, impulsionada pelos pais, tratou de ser o que eles queriam que<br />

fosse: uma empresária de sucesso, ou algo muito parecido.<br />

Sua carreira precoce como executiva progredia, e enquanto tratava<br />

Fabian Balbinot<br />

111


de despir-se dos preconceitos que adquirira na vida pacata de sua infância,<br />

seguia aprendendo, estudando, revelando arrojo e talento.<br />

O conhecimento que ia acumulando parecia gritar contra seus<br />

instintos. Não existia sujeira nas pessoas de cor.<br />

Isso era tudo conversa fiada.<br />

Mas era inegável a repulsa que ela sentia ao amparar aquela mulher<br />

alta, dona de belas e exóticas feições, e de uma ininteligível carga racial<br />

herdada da miscigenação.<br />

E o sexo a que a mestiça se referira. Que importância poderia ter<br />

uma relação deste tipo, que não fosse por amor...<br />

– Sim, eu imagino qual seja o seu ponto de vista. Sexo? Sem amor?<br />

Para quê?<br />

Era como se a mulher alta tivesse lido os pensamentos da jovem, que<br />

preferiu nada responder, apenas lembrando que o estopim desta sucessão<br />

de assuntos fora a pergunta que lhe fizera sobre brincos e furos nas orelhas,<br />

coisa que já não parecia ter a mínima importância.<br />

– No lugar de onde eu vim, os homens ainda hoje costumam ter dúzias<br />

de mulheres, e nesta cidade, a coisa não é muito diferente. O que muda é a<br />

efemeridade dos relacionamentos... e o dinheiro. Aposto que, na sua terra,<br />

o casamento é eterno e indissolúvel, e uma separação é vista como a pior<br />

coisa que pode existir.<br />

A jovem fez de conta que ignorava a insinuação, e nada respondeu,<br />

mesmo sabendo o quanto aquela mulher estava correta.<br />

Mais alguns passos e as duas chegaram à frente de uma casa pequena<br />

e baixa, cuja parede e única janela, coberta por grades, estavam diretamente<br />

unidas à calçada.<br />

– Chegamos – disse a jovem, sem demonstrar emoção.<br />

Uma outra grade separava a pequena sacada da casa e a única<br />

porta de entrada que estava visível da calçada.<br />

A jovem desvencilhou-se do abraço de sua ocasional visitante e sacou<br />

um molho de chaves para abrir a porta da grade, interrompendo de súbito<br />

esta ação.<br />

Como se tivesse visto algo que atraía sua atenção, ela se dirigiu para<br />

a frente da outra parede, mais curta e sem janela, que ficava à esquerda da<br />

abertura gradeada.<br />

– Droga! – resmungou, agachando-se para ver melhor. – Eu odeio<br />

quando fazem isso.<br />

A mulher alta se aproximou dela, descobrindo a “pintura” que fora<br />

feita naquela parede por algum vândalo com um spray de tinta.<br />

Acabou sorrindo ante o teor da mensagem.<br />

“Comi o cu de quem leu”<br />

Quis rir com força, mas evitou fazê-lo. Não queria magoar sua anfitriã<br />

e nem que retornassem as malditas dores no estômago, que, concentrada,<br />

fazia o possível para controlar.<br />

112 Doença e Cura


– Não existe respeito nesta cidade... – a jovem murmurou, cobrindo<br />

o rosto com a mão.<br />

– Não existe respeito em lugar nenhum – concordou a outra, fazendose<br />

de séria. – Nem nunca existiu.<br />

Depois, resolveu ser um pouco mais espirituosa.<br />

– Se fosse comigo, poderia até ser verdade.<br />

A jovem acabou levantando-se, seu olhar encoberto pela penumbra,<br />

indo de volta para a porta gradeada e abrindo-a de uma vez.<br />

Convidou a mestiça a entrar, e estranhou a reticência daquela.<br />

– Não vai entrar?<br />

– Você tem certeza de que quer que eu entre? Você sabe... o que eu<br />

sou?<br />

A jovem sacudiu a cabeça, reprovando a atitude da visitante.<br />

– Sim, sei o que você é. Uma pessoa conhecida doente, precisando de<br />

ajuda. Agora, entre logo, ou teremos que ficar ambas aqui de fora.<br />

A meretriz não se fez de rogada, e entre uma fechadura aqui e outra<br />

ali, ambas se viram dentro de uma casa cuja disposição interna, muito<br />

ampla e iluminada, dava ares de verdade ao tradicional ditame que dizia<br />

“maior por dentro do que por fora”.<br />

Penetraram em uma cozinha simples, mas funcional. Uma lâmpada<br />

fluorescente, quando acesa, revelou um fogão, uma pia, uma geladeira,<br />

uma máquina de lavar louças, um microondas, uma prateleira e um largo<br />

balcão, uma TV, uma mesa e cadeiras, tudo pintado de branco, ou feito de<br />

fórmica com motivos cinzentos lembrando madeira, ou enredado em barras<br />

de metal negro, ou ainda feito de modo a se parecer com o resto da mobília e<br />

se integrar com esta, como era o caso dos eletrodomésticos, todos brancos,<br />

cinza-claros ou pretos. Tudo bastante limpo, revelando pouco uso ou, mais<br />

provavelmente, diligência e esmero nos cuidados com a limpeza de parte da<br />

proprietária.<br />

– Sente-se – disse a anfitriã, passando a vasculhar uma das portas da<br />

prateleira que descia do teto e se dobrava em um V no canto da cozinha, por<br />

sobre a pia e a geladeira. – deixe-me ver se tenho algum tipo de comprimido<br />

para dor ou antiácido em casa...<br />

– Sente-se.<br />

A jovem estranhou o tom de voz autoritário da visitante, e não teve<br />

como evitar dirigir seu olhar para ela.<br />

– Por favor, sente-se – repetiu a mestiça, sendo mais amável desta<br />

vez.<br />

– Mas, você não está com dor no estômago... – inquiriu a dona da casa.<br />

– Sim. Deus sabe como meu estômago dói – lamentou-se a outra,<br />

fechando os olhos e mantendo uma certa gravidade na face, expressão à<br />

qual parecia ter se apegado desde que entrara na casa. – Mas, não vão ser<br />

comprimidos que vão acalmar esta minha dor.<br />

Fabian Balbinot<br />

113


Os olhos da mestiça abriram-se novamente.<br />

Estavam esverdeados!<br />

A jovem arregalou seus próprios olhos ao ver aquilo.<br />

Os olhos daquela mulher tinham simplesmente mudado de cor!<br />

“Sente-se!”<br />

Novamente, aquela ordem, em tom severo.<br />

A voz surgindo no espaço, penetrando nos ouvidos da moça, quase<br />

como se fosse de dentro para fora.<br />

Aquela mulher não havia dito nada – seus lábios sequer tinham se<br />

movido – mas mesmo assim ela percebera sua voz!<br />

Afinal, o que estava acontecendo?<br />

Ainda sentindo o ecoar da voz da estranha visitante dentro de sua<br />

mente, e sem conseguir desviar a visão daquele par de olhos intensos de<br />

pupilas em um vivo e cintilante verde-claro, a dona da casa acabou puxando<br />

uma das cadeiras feitas de barras de metal entrelaçadas e couro forrado,<br />

ali acomodando-se.<br />

Exuberante em sua exótica mistura de cores de olhos e de pele<br />

discrepantes, a mestiça voltou a falar usando os lábios.<br />

– Você perguntou antes a respeito de meus brincos – sua voz soou<br />

séria, intimidante, sem ser seca nem agressiva.<br />

Sem jamais piscar ou desviar o olhar da jovem, a estranha elevou o<br />

cabelo, revelando a orelha.<br />

Não havia nenhum brinco ali.<br />

E nem furos.<br />

O que estava acontecendo?<br />

– Você é bastante observadora. Imagino o quanto deve ter pensado<br />

a respeito do sumiço dos furos de minha orelhas. Mesmo sendo o tipo de<br />

pessoa prática, que não dá muita importância às coisas quando as vê apenas<br />

uma vez, você deve ter tido muitas dúvidas.<br />

A jovem não respondeu.<br />

Mesmo que tivesse algo a dizer, seus lábios pareciam estar sedados,<br />

e não se moviam.<br />

Ela mal e mal conseguia respirar, e a queda em sua pressão arterial<br />

estava lhe causando tonturas.<br />

Não que estivesse paralisada de medo...<br />

Mas estava paralisada. Sem sombra de dúvida.<br />

E não conseguia sequer desviar o olhar daquele par de lindos olhos<br />

de esmeralda.<br />

– Regulei a passagem de sangue pelo seu corpo. Sei qual é a sensação<br />

para as pessoas que possuem problemas com pressão baixa, como é o seu<br />

caso. Mas, não se preocupe, você não vai desmaiar.<br />

O que estava acontecendo?<br />

114 Doença e Cura


– Tenho que aproveitar e empregar meu poder enquanto ele ainda<br />

está ativo. Não sei o que está acontecendo comigo ultimamente... Essas<br />

dores dos infernos... A sensação de impotência... É terrível.<br />

Do que diabos aquela bruxa estava falando?<br />

Por que ela a tinha... enfeitiçado daquela forma?<br />

Deus, ela tinha conhecimento até mesmo de seu problema de pressão<br />

baixa, que nos últimos anos havia deixado de se manifestar, graças a muito<br />

autocontrole, exercícios e correção na dieta.<br />

Afinal, o que estava acontecendo?<br />

– Não. Eu não sou uma feiticeira, como você deve estar imaginando.<br />

Sou coisa bem pior – um vampiro. E como eu havia lhe dito no outro dia,<br />

sou um pouco mais velha do que você imagina. Vim do oriente para este<br />

país, há uns cem anos, e devo ter uns setecentos anos, mais ou menos,<br />

contando os quase trinta anos que eu tinha quando meu falecido mestre me<br />

transformou, e me concedeu a eternidade. Não tenho muita certeza quanto à<br />

minha idade... Com o passar do tempo e a garantia de que não se irá morrer<br />

nunca, a gente acaba deixando de se preocupar com isso. Ah, sem contar<br />

que regenerar furos de brincos nas orelhas é coisa bastante simples para<br />

nós. Vivemos nos regenerando o tempo todo, senão não seríamos imortais.<br />

Vampiro? Pensou a jovem.<br />

Vampiro?<br />

Mas... vampiros não existem!<br />

– Existem, sim – respondeu a mestiça. – Vocês, sangue-quente, é<br />

que acreditam ou não no que desejamos que acreditem. É assim que tem<br />

funcionado, século após século. Saímos do oriente e da fé dos antigos<br />

para habitar as páginas da literatura. Hoje em dia estamos nos filmes e<br />

nas revistas em quadrinhos, nos jogos de videogame, desenhos da TV...<br />

caímos no uso popular. Somos lenda, personagens de conto de fadas, uma<br />

jogada de marketing, e essa é a melhor maneira de nos escondermos da<br />

grande caçada. Não somos mais reais, pois as pessoas não têm mais fé,<br />

não acreditam mais em nada... Somos... uugh!... bichinhos de pelúcia na<br />

estante... Droga! Está começando de novo. Acho que vou ter que afrouxar<br />

um pouco meu controle sobre você...<br />

Ao ouvir estas palavras, a jovem sentiu um alívio imediato. Foi como<br />

se as palavras ditas pela... por aquela aberração tivessem injetado vida ao<br />

seu corpo.<br />

– Deus, como está difícil de fazer isso ultimamente... Mas, acho que<br />

eu conseguirei segurá-la mais um tempo. Você sabe... eu estou com um<br />

problema de saúde. E posso lhe dizer: não estou acostumada a ter problemas<br />

de saúde. Isso não existe no meu mundo. A última infecção que eu peguei<br />

foi há sete séculos, e eu quase morri. É ridículo, você bem pode imaginar –<br />

morrer por causa de uma infecção. No lugar onde vivi, morria-se por muito<br />

menos. Morria-se ao nascer, e dava-se graças a Deus! E quando não se<br />

Fabian Balbinot<br />

115


morria, sofria-se. Era muita dor. Infecções nos enchiam de dor. Um corte<br />

ou uma queimadura eram certeza de infecção e de dor contínua durante<br />

semanas. Gente padecia até de dor de dente, e isso era bem comum.<br />

A jovem viu, mas não pôde acreditar...<br />

Uma lágrima caiu de um daqueles dois belos olhos verdes, descendo<br />

pelo rosto anguloso da criatura.<br />

Mas, ela sequer piscava. O par de olhos continuava iluminando<br />

sua mente e tolhendo sua vontade, mesmo que agora ela pudesse respirar<br />

melhor.<br />

– Sim. A gente também chora. O que há de errado com isso? Eu<br />

choro sempre que lembro do passado, ou quando penso nas pessoas que vi<br />

aparecerem e desaparecerem de minha vida. Muitos de meus companheiros<br />

deixaram de chorar há bastante tempo. Eles dizem que não conseguem<br />

mais sentir pena, nem remorso. Estes são vampiros de verdade. Cruéis<br />

como a imaginação do povo quer que eles sejam. Mas eu não consigo ser<br />

assim... Sou expansiva demais, e, por incrível que possa parecer, tenho<br />

ótimos amigos sangue-quente. Cheguei mesmo a criar alguns companheiros<br />

eternos, apenas por ter me tornado afetivamente muito ligada a eles. Alguns<br />

deles sobreviveram, e andam por aí, e a gente se encontra de vez em quando.<br />

Outros, eu tive que eliminar... Ficaram malucos e causavam problemas,<br />

apareciam em público. Parece que a metamorfose causa muitas mudanças<br />

quando a pessoa deixa de ser um sangue-quente. Acho que tem algo a ver<br />

com mudanças hormonais. Sei lá. Eu sei que muita gente enlouquece ao<br />

virar vampiro, e aí, algum de nós, em geral o responsável pela cria, deve se<br />

livrar dela. É quase como um aborto. O filho nasceu defeituoso, aleijado,<br />

um deficiente débil-mental, que nos enche de nojo. A gente se livra dele,<br />

como muitos sangue-quente fazem com suas próprias crias. Eu... eu odeio<br />

falar sobre isso. Não existe respeito em lugar nenhum...<br />

Outra lágrima, descendo do outro olho verde desta vez.<br />

A jovem não conseguia acreditar no que estava acontecendo, e achou<br />

que poderia estar sonhando. A letargia que sentia, a qual impedia seus<br />

músculos de se mexerem, era muito semelhante à sensação de impotência<br />

que ela já havia sentido nos momentos mais críticos de muitos pesadelos. Em<br />

um dado instante, a ilusão seria quebrada, e ela iria despertar em sua cama,<br />

suando e dando graças a Deus por tudo não ter passado de um sonho.<br />

– Não, menina. Isso não vai acontecer. Talvez você esteja em um<br />

pesadelo... ungh! – pela primeira vez o contato visual entre as duas se<br />

desfez, mas a sensação de alívio que a moça sentiu foi muito breve, pois em<br />

segundos, a... criatura reassumiu o controle sobrenatural sobre sua vontade.<br />

– Mas não vai ser quando despertar que você irá sair dele.<br />

A mestiça encolheu-se na cadeira e soltou um gemido de dor, sem baixar<br />

a cabeça nem piscar seus belos olhos faiscantes como faróis acesos. Sem<br />

poder se mover do lugar, a jovem quase conseguia ver o sofrimento daquela<br />

116 Doença e Cura


ex-conhecida, que agora era sua algoz, a sequestradora de sua alma.<br />

– Eu estou muito... doente. Deve ter sido algo... que eu bebi – a<br />

vampira sorriu e suspirou. – Tenho absoluta certeza que não foi algo que<br />

eu tenha comido... Não como nada há séculos! Bem, não importa mais.<br />

Sinto como se estivesse no fim. Alguma coisa se mexe dentro de meu peito...<br />

de minha barriga. Alguma coisa... contaminou meu sangue. Há dias que<br />

a-acordo no início da... da noite, ou no meio do dia, vomitando sangue. E...<br />

e o s-sangue chega a sair p-p-por todos os malditos buracos de meu corpo.<br />

Deus me ajude!<br />

A jovem assistia arregalada as deformações que aconteciam naquele<br />

belo rosto, enquanto a criatura se lamentava. As cavidades dos olhos<br />

se afundando, originando olheiras profundas e sombrias de um modo<br />

praticamente instantâneo. O queixo projetou-se para a frente, junto com<br />

a mandíbula superior, os ossos moldando-se e aglomerando-se, dando ao<br />

rosto feminino um aspecto bestial, animalesco.<br />

Os enormes dentes surgiram. Dois pares de presas com mais de três<br />

centímetros cada emergiram do nada, projetando-se do alto da mandíbula<br />

de forma a sobreporem os dois caninos e ambos os incisivos mais laterais,<br />

que estavam junto a estes, na arcada dentária superior, enquanto dois pares<br />

um pouco menores apareceram no lado de baixo, também empurrando os<br />

dentes que houvesse pelo caminho.<br />

Ao final do fenômeno, a jovem percebeu estarrecida que a boca<br />

daquela criatura havia se transformado em algo pouco menos contundente<br />

do que uma armadilha de caçar ursos.<br />

– M-meu Deus! – disse a outra, com uma voz que agora era gutural,<br />

praticamente indistinta. – Estou meszzzssmo perdendo o controle. – Você<br />

jamais devia ter visto isso. – O monstro quase não conseguia pronunciar<br />

as palavras, com aqueles dentes enormes impedindo a boca de se fechar.<br />

– Devo... devo impedi-la de ver o que... o que irá acontecer... enquanto...<br />

ainda posso.<br />

De súbito, algo que parecia ser um flash de luz verde foi irradiado<br />

dos olhos da criatura, cegando sua cativa.<br />

No momento em que a jovem gritou foi que a escuridão tomou conta<br />

de sua consciência.<br />

Agora, ela não se lembra de mais nada do que possa ter acontecido<br />

após aqueles instantes em que o terror absoluto se apoderou de seu espírito.<br />

Na verdade, como em um sonho, muito do que ela viu ou sentiu naquela noite<br />

parece ter sido simplesmente apagado da memória, e outras lembranças<br />

parecem ser muito antigas, como registros de um passado distante, de<br />

muitos anos atrás.<br />

O vampiro, a mestiça, ela desapareceu para nunca mais ser vista,<br />

como se de fato sua existência nunca tivesse passado de um pesadelo.<br />

Mas a jovem tinha plena consciência de que algo havia mudado.<br />

Fabian Balbinot<br />

117


Ela não fazia ideia do tempo que se passou desde o acontecimento,<br />

mas a poeira acumulada sobre a mobília não mentia – os dias sobrevieram,<br />

e os ponteiros do relógio de parede, imitação de um relógio-cuco de aspecto<br />

antiquado, pendurado logo na entrada da cozinha, pareciam ter girado<br />

muitas vezes desde aquela noite.<br />

Levantou-se do chão, sentindo que coisas se mexiam em seu peito.<br />

Coisas que lembravam grandes dedos, remexendo suas entranhas.<br />

Ou grandes vermes.<br />

Levou a mão à boca, procurando não vomitar.<br />

Inalou fundo, e acabou tossindo todo aquele oxigênio de volta.<br />

Olhando para o relógio irreconhecível, cujos ponteiros sujos ainda se<br />

moviam, começou a contar o tempo.<br />

Alguns minutos se passaram sem que ela respirasse uma única vez.<br />

Tentou inalar novamente, e sentiu seu corpo inflar de uma forma<br />

incômoda, que a obrigou a soltar o ar outra vez.<br />

Não sabia mais respirar.<br />

Sentia-se mal ao tentar fazê-lo.<br />

O ar fedia e a nauseava, e ela tinha que se controlar pra não sentir<br />

o odor intragável.<br />

Os ponteiros do grande relógio se mexiam sem parar e mostravam<br />

que o avanço do tempo ia contra o fôlego que uma pessoa normal poderia<br />

suportar.<br />

Não. Definitivamente, ela não estava se esforçando para prender a<br />

respiração.<br />

Seus pulmões tinham apenas deixado de funcionar.<br />

O que mais havia acontecido?<br />

Desviou o olhar dos ponteiros sujos e deteve-se por instantes na<br />

geladeira, que parecia estar coberta de pó de cima a baixo.<br />

Quantos dias ela havia passado dormindo, afinal?<br />

Era tanta poeira... Tudo cinzento. Coisa de meses. Talvez até anos.<br />

Aproximou-se da pia, percebendo que mesmo o metal desaparecera<br />

coberto pela crosta de sujeira.<br />

Ao tatear pela superfície metálica, teve uma surpresa!<br />

Ao contrário do que imaginava, seus dedos não ficaram sujos, e o<br />

que ela tocou era pura e simplesmente a própria superfície metálica e lisa<br />

do móvel.<br />

O que estava acontecendo?<br />

Esfregou ambas as mãos no aço inoxidável, espantada, e depois<br />

olhou-as, vendo... poeira, de cima a baixo.<br />

Suas mãos. Seu corpo. Suas vestes.<br />

Tudo estava coberto pela poeira que ela via, mas que não podia<br />

tocar.<br />

O fogão, a pia, a mesa, a prateleira, as paredes, o teto, a lâmpada<br />

que havia no teto, o chão, o vidro da janela.<br />

118 Doença e Cura


Tudo estava cinzento de pó, como se um vulcão tivesse explodido<br />

e expelido sua fumaça negra de detritos, cobrindo sua casa durante o<br />

acontecimento.<br />

O que estava acontecendo?<br />

Tudo estava cinza!<br />

Tudo, inclusive ela mesma.<br />

Sacudiu uma das mãos, querendo expulsar a poeira que a impregnava<br />

de cima a baixo, sem ter nenhum resultado.<br />

Súbito, ela dirigiu sua atenção para a lâmpada no teto, apagada e<br />

coberta do mesmo revestimento de poeira impalpável que soterrava todo o<br />

restante.<br />

Evitando o pânico, esfriando a cabeça e usando o raciocínio, ela<br />

fechou os olhos por breves segundos.<br />

Quando os abriu, virou-se para o vidro da janela.<br />

A luz.<br />

Olhou outra vez para a lâmpada no teto, e depois, de novo, para a<br />

janela.<br />

Tudo coberto com a intocável poeira das ilusões.<br />

A luz! De onde vinha a luz?<br />

A cozinha estava esparsamente iluminada, e mesmo com a cobertura<br />

de poeira, ela podia ver até a parede do corredor que estava além da porta<br />

que unia a cozinha aos outros cômodos da casa.<br />

Piscando algumas vezes, ela procurou se concentrar a fim de<br />

descobrir o que estava errado com aquela luz que não podia vir nem de<br />

fora da casa e nem da lâmpada, pois ambos ESTAVAM COBERTOS COM<br />

AQUELA POEIRA, que não deixava nem mesmo a luz passar.<br />

Virou-se para o interruptor na parede.<br />

Coberto de poeira.<br />

Caminhou, decidida, para ele, e pressionou-o.<br />

Foi como se tivesse levado um choque.<br />

Sua visão ficou turva e enegreceu de repente, fazendo-a cambalear e<br />

fechar os olhos.<br />

Apoiando-se na parede junto ao interruptor, foi abrindo os olhos com<br />

cautela.<br />

A lâmpada estava acesa!<br />

E a poeira havia desaparecido!<br />

* * * * *<br />

Os dias se passaram.<br />

Levou algum tempo para a jovem se acostumar não apenas com a<br />

tal “visão de gato”, com o que podia enxergar no escuro, bem como com<br />

os outros sinistros sintomas que indicavam que sua vida havia sofrido uma<br />

tremenda mudança.<br />

Fabian Balbinot<br />

119


Era divertido poder enxergar, a princípio na mais completa escuridão,<br />

e mais tarde mesmo com uma escuridão parcial.<br />

Via tudo cinza, coberto com aquela estranha poeira, que agora ela<br />

passava a vislumbrar menos como poeira e mais como uma textura. As<br />

imagens recebiam aquela cobertura de pó cinzento, como se o volume das<br />

formas tivesse sido recoberto com um relevo, aplicado a elas através de<br />

computação gráfica.<br />

O fato é que via as coisas no escuro.<br />

Via pessoas, animais, ambientes inteiros.<br />

E as surpresas não se limitavam a isso, pois bastava que forçasse um<br />

pouco a vista para que enxergasse muito além do que sua visão normalmente<br />

poderia alcançar. Era como se um dispositivo de calibragem de distância<br />

tivesse sido incorporado à sua visão. Uma espécie de zoom natural.<br />

Descobriu isso também acidentalmente, quando caminhava pela<br />

noite e, curiosa, tentou ver um objeto que uma mulher retirava de dentro<br />

de sua bolsa.<br />

Forçando a vista, viu que se tratava de um batom, e chegou mesmo<br />

a reconhecer a marca estampada em pequeninas letras de alto relevo no<br />

frasco comprido.<br />

A mulher com o batom estava a meio quarteirão de distância do ponto<br />

onde a jovem se encontrava, e mesmo assim, esta tinha podido ver o pequeno<br />

estojo com a nitidez de quem carrega algo em suas próprias mãos.<br />

Olhos de gato e olhos de binóculo.<br />

E mais tarde vieram os “olhos de viés”, pois ela descobriu que, com<br />

um mínimo de esforço e concentração, poderia antever o que havia pelo<br />

caminho, contornando objetos e paredes, como se sua visão fizesse curvas.<br />

Descobriu esta capacidade em uma outra noite, quando andava pela rua e,<br />

por acaso, viu dois vultos cobertos daquela poeira cinza dentro de um beco<br />

próximo. A sensação que teve foi como se seu pescoço tivesse esticado até<br />

aquele ponto do trajeto, mais de uma dezena de metros adiante de onde se<br />

achava, com sua cabeça girando para vislumbrar o que havia dentro do beco<br />

escuro. Receosa de continuar, pois já tinha tido muitas surpresas em relação<br />

à sua visão nas últimas noites, atravessou a rua e, situando-se frente a frente<br />

com a entrada do beco, projetou seu olhar telescópico, infravermelho,<br />

ultravioleta, ou o que quer que fosse através de suas profundezas, notando<br />

que ali havia mesmo dois sujeitos armados com lâminas.<br />

Uma ligação anônima de um telefone público para o número público<br />

da polícia fê-la sentir-se tal e qual uma verdadeira super heroína, defensora<br />

da ordem pública, logo que os dois assaltantes foram abordados e presos<br />

em ato flagrante por meia dúzia de policiais.<br />

Ser vampiro era isso, então...<br />

E sua audição! Sentia-se quase como se fosse um cachorro, de tanto<br />

que podia ouvir.<br />

120 Doença e Cura


Depois de algumas tentativas frustradas de usar o poder de seus<br />

ouvidos – que quase a deixaram surda – ela passara a desfrutar dos<br />

benefícios de uma audição aguda e certeira. Parecia até que suas orelhas<br />

tinham crescido, e que podiam apontar como se fossem antenas, captando<br />

com ênfase máxima apenas os sons que estivesse disposta a ouvir.<br />

Funcionava mais ou menos como sua visão de longo alcance, e ela<br />

sentia como se seu ouvido tivesse saído de dentro da cabeça, sendo deslocado<br />

de um modo inacreditável até o local de onde se originava o som.<br />

E o interruptor que ativava todas estas suas capacidades de super<br />

herói de filme de ação era a simples curiosidade. A vontade de ver e ouvir.<br />

E o pensar.<br />

E o sentir...<br />

Passou a sentir coisas que julgava serem fruto de sua imaginação.<br />

Talvez devido à frieza a que seu corpo fora submetido em decorrência<br />

de sua nova condição, ela passara a pressentir a presença das criaturas de<br />

sangue quente nos arredores. Em uma escala menor do que o que acontecia<br />

com sua visão e audição, e sem ter qualquer relação com sua curiosidade ou<br />

desejo, o alarme orgânico que era seu próprio corpo costumava disparar,<br />

e ela conseguia sentir quase como se visse o calor e a movimentação das<br />

formas em seu redor.<br />

Seletivo, o novo e impressionante dispositivo sensorial capturava a<br />

movimentação dos corpos, distinguindo-os conforme fossem orgânicos ou<br />

não, quentes ou frios, vivos... ou mortos.<br />

Sentiu em algumas oportunidades a presença de seres que eram<br />

tão frios quanto ela, e muitos destes, parecendo perceberem que tinham<br />

sido detectados, faziam por ocultar-se, desaparecendo do alcance de seus<br />

sensores sobrenaturais.<br />

E uma vez que isso ocorresse, ela nunca mais os encontrava de<br />

novo.<br />

Receosa, ela então procurava se deter nos vivos. Nas criaturas<br />

quentes.<br />

Além do radar, ela percebeu que podia “escutar”, ou “ver” certas<br />

coisas com sua mente caso se concentrasse em uma determinada pessoa ou<br />

bicho por tempo suficiente. Era quase como se fosse um delírio de imagens<br />

e vozes que não conhecia nem conseguia compreender, e como um exame<br />

mais detalhado de cada indivíduo fosse suficiente para atrair verdadeira<br />

torrente destas imagens e sons desencontrados, ela procurava evitar o uso<br />

desta capacidade.<br />

Seus próprios pensamentos, divagações e incertezas em relação ao<br />

que sua vida havia se tornado já eram suficientes para deixá-la tonta. Não<br />

sentia o menor interesse em se afogar na loucura dos outros.<br />

O que mais estava diferente?<br />

Força sobre-humana? Invulnerabilidade? Virar morcego?<br />

Fabian Balbinot<br />

121


Não testou nenhuma destas possibilidades. Na verdade, sequer<br />

conseguiu se preocupar com isso. Ver e ouvir como se seus olhos e ouvidos<br />

pudessem se separar do corpo já era por demais incrível, e o resultado do<br />

emprego de tais técnicas atraía toda a sua atenção.<br />

Havia suas desvantagens, obviamente.<br />

As forças do universo sempre encontram o seu oposto exato, sendo<br />

contrabalançadas, em algum ponto. Aprendera isso em uma aula de física, e<br />

via que o resultado poderia ser aplicado de diversas formas na vida real.<br />

Vida real...<br />

Tinha que beber sangue.<br />

Podia ser sangue quente, morno, frio.<br />

Podia ser sangue de qualquer tipo de mamífero ou ave, e talvez até<br />

mesmo de qualquer criatura vertebrada.<br />

O sangue só não podia estar podre. Algo lhe dizia que ela não poderia<br />

ingeri-lo caso estivesse nessas condições.<br />

Se antes sentiria nojo ao imaginar-se ingerindo sangue, agora era<br />

apenas o sangue podre que lhe causava a mais profunda repugnância,<br />

mesmo que apenas o imaginasse em pensamento.<br />

E se comesse algum tipo de alimento, tinha que regurgitá-lo logo<br />

depois. Não sentia mais nenhum desejo por comidas normais.<br />

Tentou ingerir alguns dos doces e salgados que eram de sua<br />

preferência, mas, decepcionada, achou-os intragáveis e cuspiu-os fora.<br />

A única coisa que lhe atraía era o sangue.<br />

Não urinava nem defecava mais. Não suava, nem menstruava.<br />

E também não encontrava mais nenhum prazer em se masturbar.<br />

Virgindade eterna? Pouca importância tinha.<br />

E havia também o dia.<br />

Sentia saudades do dia... E do sol.<br />

Sentia calor só em pensar no astro rei. Não queria nem saber o que<br />

iria acontecer caso seus raios entrassem em contato com sua pele.<br />

O fogo dos isqueiros e dos palitos de fósforo, a luz das lâmpadas<br />

incandescentes e o calor vermelho das estufas elétricas já a deixavam em<br />

estado de alerta, um pânico diferente de suar frio e dos batimentos cardíacos<br />

acelerados consumindo-a, exigindo que o corpo procurasse refúgio na mais<br />

gélida escuridão.<br />

Enfim...<br />

Os dias se passavam sem que ela pudesse vê-los. E ela costumava<br />

sair durante as noites em busca de seu novo alimento.<br />

No início, nunca teve que matar ninguém e agradecia aos céus por isso.<br />

Passou fome.<br />

Mais tarde, descobriu que, de alguma forma, podia se aproximar de<br />

certas pessoas e tirar “um pouquinho” do que elas tinham.<br />

Um pouquinho de sangue.<br />

122 Doença e Cura


Crianças e bêbados eram mais fáceis, mas o sangue dos bêbados era<br />

terrível de se ingerir. O álcool ardia dentro de seu estômago e fazia com que<br />

tivesse convulsões.<br />

Das crianças ela se aproximava com o que restava de sua simpatia,<br />

e com um algo mais que fazia com que os olhares jamais se desviassem de<br />

seus olhos. Bastava focalizar um olhar e desejar ficar olhando para o par<br />

de olhos em questão para que a mágica se consumasse.<br />

Um gole de sangue de uma criança lhe trazia um prazer indescritível.<br />

O líquido quente descia pelo seu esôfago, e de uma forma que ela não<br />

compreendia, espalhava-se, trazendo-lhe uma sensação de êxtase que lhe<br />

causava frêmitos, fazendo com que estremecesse.<br />

Seu contato com o sangue, como era de se esperar, despertara outras<br />

capacidades entre seus já mirabolantes sentidos.<br />

Passou a identificar as doenças das pessoas ao vislumbrar o sangue<br />

que corria em suas veias. Apesar de parecerem apenas resultados de sua<br />

intuição, eram certeiros seus aconselhamentos para que uma ou outra<br />

pessoa que via pela primeira ou segunda vez procurasse um médico. Podia<br />

mesmo ser dito que salvara algumas vidas.<br />

Enfim...<br />

Eram descobertas atrás de descobertas, e as novidades não paravam<br />

de aparecer.<br />

O tempo agora era seu parceiro, e as semanas e meses se sucediam<br />

no calendário da vida humana típica.<br />

Inebriada com sua nova vida, que pouco ou nada tinha em comum<br />

com a típica vida humana, a jovem nem se recordava da agenda, do que era<br />

corriqueiro em sua vida anterior.<br />

E o resultado de um desleixo tão incomum em uma pessoa tão regrada<br />

quanto ela havia sido começava a se avolumar e mesmo a se abarrotar<br />

através das entrelinhas de sua antiga vida.<br />

Contas e avisos, notificações e cartas diversas iam se aglomerando na<br />

caixa de correio, em sua casa, onde quantidades de poeira passavam a cobrir<br />

a mobília tanto nos momentos de escuridão, em que usava os “olhos de gato”<br />

e via poeira em todos os cantos, quanto quando as luzes estavam acesas, e ela<br />

podia ver poeira de verdade misturada às diversas cores do espectro solar.<br />

Em um dado momento, as luzes que ela não precisava ver deixaram<br />

de se acender quando os interruptores eram acionados. A água que ela não<br />

mais precisava beber deixou de fluir quando as torneiras eram abertas.<br />

O celular e o telefone não mais tocavam com recados de pessoas que ela<br />

queria esquecer e convites para que renovasse seu cartão de crédito. E-mails<br />

a respeito de compromissos não mais foram respondidos. A campainha,<br />

pressionada com insistência por cobradores e curiosos, e mesmo por<br />

amigos, jamais voltou a ser ouvida.<br />

Em um dado momento, a polícia apareceu, vasculhando a casa sem<br />

encontrar nada que não fosse muita bagunça.<br />

Fabian Balbinot<br />

123


Mais um caso sem solução veio à público, e todos pensaram que<br />

mais uma promissora carreira fora interrompida pelo assédio desleal da<br />

violência urbana.<br />

Ela acabou sendo dada como morta, desaparecida. Seu nome foi<br />

riscado da lista telefônica, e das listas de festas e eventos da sociedade,<br />

e mesmo da agenda de algum que outro pretendente entre os seus muitos<br />

conhecidos do trabalho ou das aulas de natação.<br />

A inexistência e o esquecimento apagaram as marcas das lágrimas<br />

de uns poucos parentes e o enterro de um caixão vazio, acompanhado por<br />

uma meia dúzia de leais amigos, acabou servindo para produzir um breve<br />

registro fotográfico em uma triste posteridade, por poucos e em poucos<br />

momentos lembrada.<br />

Era a vida daquela jovem que acabava.<br />

E a vida de uma criatura eterna, jovem para sempre, que começava.<br />

Viva, ela perambulava pela noite, excitando seus sentidos e fazendo<br />

coisas que outrora a deixariam temerosa.<br />

Não sentia frio. Não precisava e nem fazia questão de se preocupar<br />

com suas antigas necessidades como humana, tais como tomar banho, ou ir<br />

atrás de roupas, maquilagem, adornos.<br />

Não menstruava...<br />

Investidas esporádicas a lojas e butiques noturnas em que ninguém<br />

via nada lhe garantiam uma aparência até certo ponto digna.<br />

Ser uma mendiga com vestes em frangalhos não lhe trazia nenhum<br />

benefício, e, pior ainda, afastava o alimento.<br />

O alimento que ela via circulando, abundante, delicioso, efervescente,<br />

no interior daquelas cápsulas ambulantes que eram os seres humanos.<br />

Mudada, deixou de sentir respeito pelos seres humanos, principalmente<br />

pelos adultos. Conforme o tempo passava, mais e mais ela os considerava<br />

imprestáveis, e mais mesquinhos os motivos que os faziam trabalhar durante<br />

turnos ininterruptos, como escravos de seu próprio e ridículo sistema.<br />

A vida que levava antes agora a enchia de repulsa. Carreira, bens<br />

materiais, futuro, tudo tão deprimente. Obsessões sem nenhum sentido.<br />

Fracasso...<br />

Obter dinheiro para obter comida.<br />

Tudo o que importava era o sangue. Alimentar-se, tão somente.<br />

O futuro era o sempre.<br />

A nova carreira, o sucesso exigia um novo comportamento.<br />

E a jovem vampira passou a querer atacar os humanos decrépitos e<br />

assassiná-los na calada da noite.<br />

E foi nessa mesma época que mais alguém surgiu em sua vida,<br />

fazendo-a sofrer uma nova mudança...<br />

* * * * *<br />

124 Doença e Cura


Você é uma boa pessoa.<br />

Você FOI uma boa pessoa.<br />

Ou ao menos pensa que foi...<br />

Uma cidadã respeitável e bem sucedida.<br />

Você foi, mas não é mais.<br />

Talvez nunca tenha sido.<br />

Pelo menos não nos termos convencionais.<br />

Sim, você está confusa.<br />

Não há mais negócios que vão de vento em popa.<br />

Mesmo assim, seus “negócios” vão de vento em popa.<br />

Não há mais êxito, nem talento, e nem necessidade de se ter êxito.<br />

Talentos? Você possui muitos.<br />

Paradoxo?<br />

Quebra de paradigmas?<br />

Você admite que sim.<br />

O futuro infindo se estende em seu futuro como um tapete vermelho<br />

convidando-a para uma grande festa.<br />

Era para ter sido tudo diferente...<br />

Mas, um dia algo aconteceu, e você conheceu alguém que não devia.<br />

E sua vida mudou.<br />

Você morreu, e depois renasceu, tornando-se o que é hoje.<br />

Mas, sua vida não é um inferno.<br />

As contas não param de chegar? Pouco importa.<br />

Você está morta e os registros em papéis, arquivos e bancos de dados<br />

que outrora eram as únicas provas e garantias importantes de que você estava<br />

viva e pagava seus impostos, contribuindo com a soberania de seu adorável<br />

país, começam a se apagar e a desaparecer.<br />

Você não precisa mais de nada disso, e deseja esquecer sua vida<br />

anterior, de todo o coração.<br />

Arrojo e determinação são as únicas coisas que importam. O mundo<br />

utópico e funcional, feito de planos, organização, carreira, dedicação, estudo e<br />

outras tantas convenções que nunca funcionaram deixou de ter relevância.<br />

Você agora vive na utopia.<br />

Você é entropia.<br />

A morte clama seu nome.<br />

Caminhando na escuridão, você sabe que morreu, e que possui novos<br />

méritos, novos poderes e novas convenções, pois as antigas de nada mais<br />

valem.<br />

Você se adapta e se molda à sua nova vida.<br />

Seus olhos e ouvidos agora são instrumentos de precisão quase<br />

cirúrgica. Você enxerga e ouve além, aquém e através.<br />

Você vê o que há na mais densa escuridão e consegue ler as letras<br />

miúdas do jornal que o incauto passageiro sentado no final do vagão do trem<br />

Fabian Balbinot<br />

125


lê, mesmo estando sentada no começo do vagão, ou em outro vagão, com<br />

pessoas e objetos esparramados no meio do caminho.<br />

Você lê o que as pessoas pensam, e chega até mesmo a pensar no<br />

lugar das pessoas, impondo sua vontade a elas.<br />

Você enxerga e escuta movimentos e ruídos de um segundo como se<br />

tais eventos perdurassem por minutos. Em um segundo você consegue se<br />

movimentar tal como se tivesse minutos ao seu dispor.<br />

Você capta imagens do passado apenas tocando em coisas, e consegue<br />

lembrar do que outros olhos viram.<br />

Você pode conversar com cães, gatos e outros bichos, e percebe que a<br />

mente e a inteligência destas singelas criaturas são muitas vezes mais amplas<br />

e abrangentes, e arrojadas, do que as mentes de muitos seres humanos por<br />

aí.<br />

Apesar de não poder se transformar em um morcego, e de não poder<br />

ver mais a luz do sol, você desfruta de suas novas habilidades, e paga o<br />

preço pela nova vida que leva.<br />

Seus negócios são escusos. Os dividendos, duvidosos.<br />

Seu único pagamento é o sangue.<br />

Você precisa de sangue para viver. Não pode ficar sem ele.<br />

Vê e ouve demais, capta coisas demais. Enlouquece. Sente dor, fome,<br />

frio pela eternidade afora.<br />

Apenas um pouco de sangue.<br />

Pagamento à vista.<br />

Um tributo pequeno se em comparação ao benefício. Ao arrojo e à<br />

determinação de sua nova carreira.<br />

Você chorou ao ocasionar a primeira morte, mas agora você ri.<br />

Você é uma free-lancer do sangue, que trabalha sozinha na noite.<br />

Você é a solene proprietária de todas as cotas de sua empresa<br />

macabra.<br />

Humanos são seres mesquinhos e tolos, dotados de poucas percepções,<br />

que os pacientes cães dizem serem fáceis de ludibriar, e que os gatos apenas<br />

aturam.<br />

Humanos são seres fracos, que erigem torres para se protegerem de si<br />

mesmos. Afundam em um vício para se livrarem de outro.<br />

Eles merecem ser sacrificados. Homens de negócios, bandidos,<br />

bêbados, viciados, traficantes, religiosos, pais de família, crianças, velhos...<br />

Todos são mácula que encarde a Terra e precisa ser limpa.<br />

Você sabe disso, e ri, ciente de que seu arrojo e determinação vão<br />

além da capacidade que os próprios humanos tem de identificar a causa dos<br />

crimes, ou de acreditar nela.<br />

Você gargalha, confiante. E sua vida persevera, alimentando-se do<br />

sangue dos outros.<br />

Mercado há de sobra.<br />

126 Doença e Cura


São as vantagens de se trabalhar sozinha e não responder a ninguém.<br />

Mas o destino é um revólver com uma única bala, preparado para a<br />

roleta-russa, ou uma série de dados sendo lançados todos de uma vez.<br />

De vez em quando a bala acerta o alvo, e os dados caem todos<br />

iguais.<br />

Já aconteceu antes, e ao que parece, acontecerá de novo.<br />

E naquele momento em que você se julgava onipotente foi que<br />

novamente alguém invadiu sua vida, e mudou outra vez o seu destino sem<br />

pedir nenhuma licença.<br />

A noite em que você foi jogada novamente no inferno.<br />

Em um dado momento de sua vida, a jovem vampira que perambulava<br />

pela noite, deliciando-se com os diversos prazeres que esta oferecia, perdeu<br />

o controle.<br />

Arrebatada pelo êxtase único que o consumo do sangue humano lhe<br />

propiciava, ela deixou até mesmo de pensar para conseguir o desejado<br />

alimento.<br />

Oferecia-se como prostituta de rua, do mais baixo nível.<br />

A polidez, a pureza, a correção do caráter... a luz. Tudo pelo que<br />

lutara enquanto viva deixara de ter importância.<br />

Tornara-se uma fúria negra, uma soma encarnada dos sete pecados<br />

capitais.<br />

Era estuprada por homens cujo único valor era lhe servirem de<br />

repasto logo em seguida, deixando a virgindade que lutara para manter em<br />

vida escapar pelas vielas sujas das sarjetas da morte.<br />

Possuída pela abrupta necessidade de obter prazer, sugava as<br />

genitálias de seus supostos algozes sexuais, arrancando seus órgãos genitais<br />

a dentadas, oferecendo-lhes uma mistura sinistra e inebriante de deleite,<br />

tortura e morte.<br />

Enquanto os gemidos de prazer dos homens iam se transformando em<br />

berros da mais pura e simples dor, ela rasgava virilhas, extraía as carnes de<br />

pernas e peito, puxava tripas para fora com a boca, roia ossos, mastigava<br />

vísceras, arranhava e lambia, mordia e dilacerava.<br />

A legítima viúva-negra em versão humana. Uma fêmea que consumia<br />

o macho, literalmente, após o ato sexual.<br />

Recolhia as posses do que havia sobrado dos miseráveis, sentindo-se<br />

levemente espantada ao encontrar pedaços destes muitos metros distantes<br />

uns dos outros.<br />

Por fim, conformava-se.<br />

Fome...<br />

O sangue... tudo era válido na busca de sangue. A única coisa que<br />

importava era saciar a fome.<br />

Caminhava então, ébria, pelas ruas e dormia onde fosse escuro o<br />

suficiente.<br />

Fabian Balbinot<br />

127


Ela sentia estar no fundo do poço. E no fundo do poço havia sempre<br />

uma dose de um prazer que ia muito além do que podia ser classificado<br />

segundo os padrões que conhecia.<br />

Certa noite, quase manhã, a jovem despertou em um lugar muito<br />

próximo ao ponto onde cometera outra de suas atrocidades. A comoção que<br />

havia em volta foi suficiente para atrair sua atenção, fazendo-a abandonar<br />

o torpor, apenas para se descobrir cercada por pessoas.<br />

Muitas pessoas, indigentes, pobretões, mendigos e prostitutas,<br />

fazendo muito barulho.<br />

Pessoas que apontavam para ela.<br />

Jogaram-lhe pedras. Cuspiram em suas vestes e empurraram-na para<br />

longe. Surraram-na com pedaços de madeira enquanto ela corria, tentando<br />

fugir do sol vindouro.<br />

Chamavam-na assassina, “filha do demônio”, e gritavam<br />

imprecações.<br />

Muitos nem sabiam direito o que estava acontecendo, mas mesmo<br />

assim embrenhavam-se em meio ao caos, talvez buscando introduzir alguma<br />

emoção em suas vidas medíocres.<br />

A polícia apareceu, espantando o populacho e impedindo o provável<br />

linchamento.<br />

E a jovem e incauta vampira sequer podia imaginar como conseguira<br />

fugir de tamanha confusão.<br />

Mas pôde se lembrar muito bem do que viu e ouviu depois.<br />

Alguém a recolheu do chão, levando-a para algum lugar, em um<br />

instante que representava o limiar entre sua consciência e o completo<br />

esquecimento.<br />

Enquanto era carregada, exaurida, a pobre adormeceu.<br />

E despertou vendo uma lâmpada de luz quente e agressiva, que pendia<br />

de algum lugar no teto baixo.<br />

– Você tem problemas com seu sangue – disse-lhe uma voz de mulher,<br />

vinda de algum lugar.<br />

Semi-desperta, a jovem vampira piscou os olhos, procurando ignorar<br />

a fome crescente e adaptar-se à luz fulgente da lâmpada incandescente, que<br />

pairava um metro acima de sua cabeça e a fazia sentir como se estivesse<br />

com febre.<br />

Elevou o braço, protegendo a vista com a mão daquele pequeno sol<br />

de 60 Watts.<br />

Sentindo dores no pescoço e nas costas, olhou em volta, e percebeu<br />

que se achava em um quarto ou cubículo muito pequeno e apertado.<br />

Pregadas e acopladas umas às outras, sem maiores preocupações<br />

com o acabamento, tábuas de madeira nua e crua de diversos diâmetros,<br />

comprimentos e matizes de marrom e bege constituíam as paredes, bem<br />

podendo estar simplesmente servindo de revestimento a estas.<br />

128 Doença e Cura


Percebeu um estranho volume apertando seus lábios inferiores.<br />

A boca estava aberta, e as grandes presas estavam para fora.<br />

Reprimindo uma exclamação de susto, a jovem vampira concentrou-se,<br />

empurrando mentalmente aqueles dois sabres de marfim de volta para seus<br />

respectivos coldres naturais, rentes ao céu-da-boca, relembrando um certo<br />

personagem que vira em um filme, o qual possuía afiadas adagas de metal que<br />

eram recolhidas em alojamentos embutidos dentro dos próprios braços...<br />

– Devia tomar mais cuidado ao sair pela noite, mocinha.<br />

A voz de mulher, outra vez atiçando sua curiosidade.<br />

Inquieta, ergueu o tórax, empurrando o corpo para trás, acomodando<br />

as costas sobre o grosso travesseiro de penas que até então havia sustentado<br />

sua cabeça.<br />

Onde diabos estava?<br />

Sentada, voltando a proteger a face da luz quente da lâmpada com a<br />

mão, ela percebeu que aquele lugar era realmente minúsculo.<br />

Água que se fazia ouvir ao longe, escorrendo em torrente, parecia<br />

verter de algum canto escondido por ali há séculos, alagando alguns trechos<br />

do chão esburacado de concreto batido, cobertos com diversas camadas de<br />

limo.<br />

O odor de séculos de podridão acumulada penetrava como uma ofensa<br />

em suas narinas. Por sorte, ela não tinha necessidade nenhuma de respirar<br />

– por azar, sua capacidade de captar odores havia sido incrementada dez<br />

vezes.<br />

Sua cama parecia se tratar de não mais do que alguns caixotes de<br />

madeira amontoados de improviso, cobertos com uma série de cobertores<br />

amarrotados.<br />

Uma porta de madeira sem pintura jazia aberta, revelando um mundo<br />

exterior coberto pelo que ela, em sendo ainda humana, chamaria de a mais<br />

densa escuridão.<br />

Foi exatamente por aquela passagem que entrou aquela que devia<br />

ser a mesma mulher que há pouco lhe dirigira a palavra.<br />

Era uma mulher comum. Cabelo castanho-escuro, amarrado em um<br />

coque. Óculos de aros gigantescos, grossos e pesados...<br />

Óculos sem... lentes?<br />

... Brincos pequenos, em forma de pequenos anéis dourados. Calça<br />

jeans surrada e camisa branca, comprida, mais parecendo um jaleco de<br />

enfermeira ou médica...<br />

Um jaleco de enfermeira ou médica... todo manchado de sangue?<br />

... Um par de sapatos amarrotados, cobertos de lama e poeira.<br />

Um olhar bastante atento, incisivo, transformando o belo rosto em<br />

um semblante belicoso, agressivo.<br />

Era a mesma mulher que há pouco lhe dirigira a palavra, e foram<br />

as mesmas palavras que ela proferiu em seguida, enquanto observava a<br />

Fabian Balbinot<br />

129


jovem vampira com um sorriso agudo que parecia representar muito mais o<br />

entusiasmo do caçador ao se aproximar da jaula que acomoda a fera recém<br />

aprisionada do que a simples simpatia da recepção àquele que há pouco<br />

chegou.<br />

– Você tem problemas com seu sangue.<br />

Braços cruzados nas costas, a mulher vestida de enfermeira respirou<br />

fundo, alongando o corpo, enquanto observava a jovem vampira recostada<br />

na parede.<br />

Ela respirava, e seu sangue era tão quente que parecia estar prestes<br />

a entrar em ebulição.<br />

Percebendo que a jovem examinava seu corpo, a mulher vestida de<br />

enfermeira virou-se para algum lugar não específico dentro do quarto, e<br />

passou a falar enquanto dava passos reticentes e examinava o ambiente<br />

como se estivesse procurando alguma coisa.<br />

– Você está com fome, mas infelizmente, não posso alimentá-la. O seu<br />

sangue rejeita o meu, e eu não sei explicar por que isso acontece ou a que<br />

se deve tal... fenômeno.<br />

– D... do que DIABOS você está falando? – gritou a outra em um tom<br />

de voz abaixo do normal.<br />

A mulher vestida de enfermeira parou de procurar o que quer que<br />

tinha estado procurando e aproximou-se da cama tosca, sentando-se em<br />

sua beirada.<br />

– Agora, escute aqui, sua vadiazinha de merda – iniciou a<br />

enfermeira, falando com suavidade contrária à fúria que trazia nos olhos,<br />

faiscantes como brasas debaixo daquela bizarra e pesadíssima armação<br />

de óculos sem lentes. – Eu SEI de tudo o que está acontecendo. SEI que<br />

você é uma ridícula vampira que mal consegue controlar seus poderes<br />

direito, e SEI que você se transformou nisso após ter sido atacada por<br />

uma de minhas vítimas.<br />

A jovem vampira encolheu-se toda, muito mais devido ao susto de se<br />

encontrar indefesa logo após segredos dos quais nem ela própria suspeitava<br />

terem sido revelados de tal forma. Sentia-se à mercê daquela humana<br />

estranha, de belo rosto e olhos flamejantes.<br />

– Oh, você está com medo? – riu a enfermeira. – Coitadinha. Você<br />

percebeu que não estou exatamente indefesa contra você, mesmo meu<br />

sangue sendo quente, não é mesmo? O que tanto a assusta, pobre criança?<br />

São meus olhos de fogo ou seria o fato de eu saber tanto a seu respeito?<br />

A jovem fechou os olhos, evitando o bombardeio cáustico que o olhar<br />

daquela bela mulher que tudo parecia saber a seu respeito causava em sua<br />

mente.<br />

De olhos fechados, escutou o riso da outra reverberando em seus<br />

tímpanos.<br />

Sentia-se indefesa, agredida em sua intimidade, e faminta.<br />

130 Doença e Cura


E a fome a fazia pensar no atraente calor líquido que circulava pelas<br />

veias e artérias de sua adversária.<br />

Mas, aqueles olhos... Era mesmo como se fossem feitos de fogo, como<br />

dois sóis incandescentes.<br />

De repente, fez-se um silêncio de momentos, que foi rompido quando<br />

a outra levantou-se e caminhou para algum lugar que a jovem vampira não<br />

desejou ver.<br />

– Você não vai conseguir me atacar – disse a voz da mulher vestida<br />

de enfermeira, vindo de longe, de fora do quarto, mesclada a novos ruídos<br />

de vidros e outros objetos sendo remexidos, ou partidos. – Eu não consigo<br />

entender o que aconteceu, de fato. Parece que seu sangue humano desenvolveu<br />

algum tipo de resistência, uma espécie de imunidade à assimilação, que<br />

bem pode ter sido ocasionada pela interferência do sangue contaminado<br />

daquela prostituta mestiça e tola que a mordeu. É a primeira vez que um de<br />

meus cativos consegue romper os bloqueios e atacar alguém, transferindo a<br />

herança genética dupla. Bem... Ora, o que é uma gota de antídoto em meio<br />

a um mar de veneno...<br />

A sequência dos ruídos de coisas sendo remexidas tornou-se rítmica,<br />

obedecendo um certo padrão. Era como se aquela indecifrável mulher<br />

estivesse... pegando coisas. Coletando objetos e... e ferramentas, e jogandoos<br />

para dentro de uma ou duas sacolas, ou tão somente derrubando tudo<br />

para que se espatifasse no chão.<br />

Passos descompassados, ranger de molas e barulho de água também<br />

se faziam ouvir.<br />

– Você... não vai... – a enfermeira parecia estar fazendo muita força,<br />

como se estivesse carregando algo pesado – conseguir... UUUNGH!...<br />

me atacar, e eu não vou conseguir fazer com você o que devia ser feito.<br />

Os humanos lá fora são todos imbecis sem amor próprio... Eles são tão...<br />

malfeitos. Tão frágeis os seus sentidos. Sequer perceberam quando me<br />

aproximei e dei sumiço em seu corpo, trazendo-a aqui para baixo. Porém...<br />

Mais ruídos estranhos. Agora eram coisas sendo puxadas.<br />

– Porém... alguém mais percebeu os meus movimentos. Alguém que<br />

pode rastrear VOCÊ até aqui, e que talvez possa rastrear até mesmo a mim.<br />

O que este imbecil não imagina é que já dei um fim nos “capangas” que ele<br />

enviou aqui para baixo. – A voz aproximou-se, gradativamente... – Pobre<br />

tolo, mal consegue dar conta de seus próprios afazeres, e envia seus lacaios<br />

sem mente atrás de um perigo que o faz borrar-se de medo.<br />

A jovem vampira teve seu transe de entorpecimento e pavor<br />

interrompido por uma mão forte, que afastou seus braços e a agarrou pelo<br />

queixo, fazendo-a abrir e arregalar os olhos.<br />

– Não consegui fazer com você TUDO o que eu desejava, mas já<br />

tenho uma dose de seu sangue, e prometo dedicar minha PRÓXIMA VIDA<br />

a estudá-lo!<br />

Fabian Balbinot<br />

131


Os olhos. Brasas fulgurantes. Tochas que incendiavam sua alma!<br />

O rosto da enfermeira... parecia mais velho.<br />

MUITOS ANOS mais velho, como se aquela... criatura... tivesse<br />

saltado dos vinte para os quarenta anos de idade, de um momento para o<br />

outro.<br />

– Sente medo? – A própria voz estava diferente, mais rouca e<br />

encorpada. – Em breve, seus “amiguinhos”, sanguessugas da noite vão<br />

estar por aqui. Eles vão levá-la a algum lugar escuro e imundo e vão fazer<br />

experiências com seu corpo, pois você entrou em contato comigo e saiu<br />

ilesa. – a mão quente apertou seu queixo com mais força, quase a ponto de<br />

romper a pele e estraçalhar a mandíbula. – Quando eles começarem a fazer<br />

isso com você, aí sim você vai ter motivos para sentir medo, afinal... isso<br />

tudo é uma guerra química de informações, e o método deles é bem menos...<br />

científico... do que o meu.<br />

A poderosa mão largou o queixo da moça, e a mulher vestida de<br />

enfermeira, agora uma velha senhora, dirigiu-se para a saída, não sem<br />

antes virar e dizer:<br />

– Eles sequer usam anestesia.<br />

E sumiu gargalhando na escuridão, seus passos e o ruído de coisas<br />

sendo arrastadas desaparecendo debaixo da torrente de água invisível.<br />

À jovem vampira restava encolher-se e chorar, sentindo seu mundo<br />

novamente desmoronar em mórbido silêncio, encoberto pelo repicar<br />

incessante da água que caía em algum lugar e pelo ecoar das gargalhadas<br />

maléficas daquela estranha e poderosa mulher.<br />

* * * * *<br />

Foi então que você, que já foi uma boa pessoa, cidadã respeitável e<br />

bem sucedida, e que tornou-se uma rainha da noite por um breve momento,<br />

foi lançada novamente no inferno.<br />

A jovem vampira estava outra vez desperta.<br />

Em um dado momento de sua vida, ela perambulou pela noite,<br />

deliciando-se com os diversos prazeres que esta oferecia. Até que perdeu<br />

o controle.<br />

Arrebatada pelo êxtase único que o consumo do sangue humano lhe<br />

propiciava, ela deixou até mesmo de pensar para conseguir o desejado<br />

alimento.<br />

Tamanha liberdade lhe trouxe problemas.<br />

Inúmeros problemas.<br />

Sua vida de executiva não passava de mera lembrança, naquele<br />

momento em que ela fazia força para não chorar.<br />

Não queria chorar.<br />

Estava presa.<br />

132 Doença e Cura


Atada com amarras pesadas. O contato das mãos revelava o<br />

centímetro e meio de espessura da corda, grossa como um dedo.<br />

Estava amordaçada com uma forte fita adesiva.<br />

Esta fita era idêntica à que fora colada em seu nariz e ouvidos, de<br />

modo a vedá-los.<br />

Era a mesma fita que cobria, em várias aplicações, todo e qualquer<br />

orifício que houvesse no meio de suas pernas. Ânus, vagina, uretra, subindo<br />

até o umbigo.<br />

A mesma fita que prendia as pontas de suas mãos e pés, lacrando<br />

suas unhas, bem como os bicos de seus seios.<br />

Não queria chorar porque esta mesma fita adesiva cobria seus olhos,<br />

e não havia local para onde as lágrimas pudessem escorrer a partir dali.<br />

Seus olhos já estavam fechados, presos, colados e imóveis devido<br />

à fita, e envoltos em um resto nojento de material pastoso, resultado das<br />

primeiras e últimas lágrimas que deixou rolar ao ter se comovido devido a<br />

sua atual situação.<br />

Não. Não choraria de novo.<br />

Chorar dava fome.<br />

“Eles sequer usam anestesia.”<br />

“Eles”, os vampiros, surgiram naquele pequeno aposento forrado<br />

de tábuas de madeira onde ela havia estado, deitada em uma cama de<br />

caixotes amontoados, não mais do que meia hora depois da mulher vestida<br />

de enfermeira que envelhecia anos com a velocidade de minutos ter<br />

abandonado o local.<br />

Eram homens ágeis vestidos com roupas escuras.<br />

Trajavam paletós negros, gravatas impecáveis e óculos escuros.<br />

Alguns traziam submetralhadoras e outras armas em punho.<br />

Eles falavam pouco.<br />

Não tinham nada a dizer e nem porque mostrarem os dentes<br />

pontiagudos.<br />

Pensar de uns para os outros devia ser o suficiente, imaginou ela<br />

enquanto dois daqueles brutos a agarraram e, sem fazer nenhuma pergunta e<br />

nem atender a seus protestos, conduziram-na para fora do pequeno quartinho.<br />

Mesmo sem pronunciarem palavra, a pecilotermia de seus corpos<br />

dizia à jovem serem aqueles indivíduos seus iguais, fato este que veio a se<br />

comprovar mais tarde.<br />

A última visão que teve foram os torpes e mal iluminados canais de<br />

esgoto da cidade, repletos de ratos e baratas. O ruído de chuva e o odor<br />

cáustico de imundícies mil que ali eram despejadas. Outros vampiros<br />

vestidos como agentes da inteligência nacional revistando a galeria sem fim<br />

que ficava ao lado do quarto onde ela fora acordada.<br />

Em um canto qualquer, viu uma pequena bancada com o que ela<br />

identificou tratar-se de pequenos tubos de vidro e outros instrumentos<br />

Fabian Balbinot<br />

133


químicos, os quais eram meticulosamente recolhidos por dois ou três dos<br />

“agentes”.<br />

Foi nocauteada com um golpe na cabeça em seguida.<br />

E nada mais viu.<br />

E quem disse que ELES não usavam anestesia?<br />

Quando acordou, já estava amarrada, mumificada com fita adesiva<br />

em todos os seus buracos, ensacada em uma embalagem impermeável feita<br />

de algum tipo de plástico grosso e forte, poliestireno ou polipropileno, ou<br />

poli-o-que-quer-que-fosse, encaixotada dentro de uma estrutura semelhante<br />

a um cofre metálico cheio de combinações e de camadas de diversos tipos<br />

de materiais em suas paredes, este confortavelmente alocado no interior de<br />

uma construção de tijolos, pavimentada com um tipo especial de argamassa<br />

absorvente ou repelente de líquidos, o diabo que fosse. Ah, e a casinhola era<br />

recoberta com um composto químico anti-incêndio, também!<br />

Como ela descobrira essa singela receita para remover seu corpo da<br />

realidade conhecida?<br />

Um passarinho havia lhe dito.<br />

Ou um morcego...<br />

A voz que rotineiramente penetrava em sua cabeça, fazendo-a ouvir<br />

e ver e descobrir a que ponto sua vida fora transformada em um inferno,<br />

mais uma vez, lhe era trazida por uma amável imagem de um diminuto e<br />

pitoresco homenzinho-morcego.<br />

Era um processo estranho, que ela aprendeu a compreender<br />

e a identificar, à medida em que tais intervenções em sua mente se<br />

manifestassem.<br />

Eram como memórias que voltavam à tona, vindas do nada, depois de<br />

muito tempo – e o apresentador era sempre o mesmo personagem, fácil de<br />

reconhecer, o caricato e alegre boneco-morcego, que servia mesmo como um<br />

sinal indicativo de que os pensamentos que viriam a seguir não eram seus.<br />

– Você está pronta, amiguinha! – berrava o boneco, de repente, sua<br />

imagem se materializando na mente, vinda do nada. – Lá vamos nós de<br />

novo!<br />

Era sempre assim que começava, e o que vinha após era uma sequência<br />

de imagens, vozes e movimentos, que davam a impressão de ser não mais<br />

do que velhas memórias que voltavam à tona, mas que, na verdade, eram<br />

poder mental, puro e simples, transmitindo mensagens diretamente para sua<br />

mente.<br />

Fora através de uma dessas aparentes memórias implantadas que<br />

lhe eram anunciadas pelo espirituoso morceguinho de pelúcia que ela<br />

descobrira de que se constituíam as diversas camadas e os vários materiais<br />

que compunham sua impenetrável clausura.<br />

– Somos seus amigos! – dizia o bonequinho – E a protegemos de<br />

si mesma e dos monstros que querem pegá-la com o que há de melhor em<br />

134 Doença e Cura


materiais isolantes – imagens distorcidas de seu corpo mumificado vivo<br />

apareciam, sendo sobrepostas em seguida por versões estilizadas de sacos<br />

de lixo pretos, desenhos de cofres de banco, fotos em preto-e-branco de<br />

casamatas de guerra rabiscadas com giz de cera e coladas com fita adesiva,<br />

e, por fim, um gigantesco laço de fita vermelho para presente cobrindo tudo.<br />

Foi-lhe difícil compreender o que tais imagens – as primeiras a que o<br />

morcego serelepe lhe dera acesso – representavam. Era como ver um filme<br />

de terror às avessas, como se fosse uma antítese de seu próprio conteúdo –<br />

terror transformado em humor negro, horror virando malícia, agonia feita<br />

em comédia desvairada.<br />

Mais tarde, bem mais tarde, como se percebendo a natureza direta<br />

da personalidade da jovem e não querendo deixá-la ainda mais alarmada,<br />

o bichinho passou a ser mais sério, por assim dizer, revelando-lhe o que<br />

parecia ser a verdade de um modo mais sucinto.<br />

– Você está atada com isto, ensacada com isso, e presa dentro disto,<br />

disso e daquilo. E não existe modo de se fugir, e nada do que seu corpo<br />

venha a EXPELIR terá como romper todas essas barreiras.<br />

Conforme o tempo que ela não podia medir se passava, a jovem ficava<br />

sabendo de mais detalhes.<br />

O fato de que seu corpo EXPELIA alguma coisa que não podia sair<br />

dali em hipótese alguma era uma novidade que, a princípio, não recebeu a<br />

devida consideração de parte da moça.<br />

Afinal de contas, ela estava presa, atada, amordaçada, sequestrada,<br />

separada da realidade.<br />

E a fome que sentia era terrível.<br />

A fome de sangue.<br />

Ela tentou se debater, inúmeras vezes, nos primeiros momentos.<br />

Talvez durante dias inteiros, ou noites inteiras.<br />

Mas as fitas adesivas que serpenteavam, dando voltas e mais voltas<br />

em torno de seu corpo, suportaram a pressão.<br />

As amarras não se desprenderam, e tampouco o invólucro plástico foi<br />

rompido. Não parecia haver espaço para tanto dentro do pequeno cofre.<br />

Muito tempo se passou antes que o desespero sucumbisse a si<br />

mesmo.<br />

Neste momento ela chorou...<br />

... para nunca mais chorar de novo.<br />

Tendo perdido as energias para se debater e estando completamente<br />

alheia ao tempo, a vampira percebeu em um dado momento, muito mais<br />

tarde, que algo se movia dentro de seu corpo.<br />

A tal coisa que seu corpo deveria EXPELIR.<br />

Atento, o morceguinho de pensamento surgira por intermédio da<br />

sintonia mental que a jovem detinha com seu captor desconhecido, trazendo<br />

a sua versão debochada das novidades:<br />

Fabian Balbinot<br />

135


– Você tem problemas com seu sangue... – aquela velha frase, outra<br />

vez. – Existe uma doença que consome seus glóbulos vermelhos, são pequenas<br />

células invasoras – surgiram animações de células cinzentas com olhos,<br />

braços, caras de mau e grandes malhos, espancando as pobres hemácias<br />

vermelhas de sua corrente sanguínea – que massacram as células de seu<br />

sangue. É por isso que você, de vez em quando, sente como se estivesse<br />

em um barco que balança de lá pra cá, com os líquidos em suas tripas<br />

sendo jogados de um canto para outro. Isso são estes bichinhos, agrupados,<br />

percorrendo seu corpo.<br />

– Você está presa desta maneira para que possamos dar um fim nestes<br />

bichinhos que há dentro de seu corpo – dizia alegremente o morceguinho.<br />

– A ideia é esperarmos que eles fiquem sem sangue para comer e morram<br />

de fome.<br />

Imagens caricatas dos pequenos parasitas passando fome e se<br />

transformando em esqueletos em um deserto interminável, seguidas por<br />

uma placa em que se lia “fim” escrito em grandes letras góticas deram<br />

término ao contato mental daquela ocasião.<br />

E a jovem pareceu compreender imediatamente que seu corpo passara<br />

a servir como um mero campo de batalha para esta guerra microscópica.<br />

Sua fome pouco importava.<br />

Ela era apenas um cenário, um pano de fundo. Luzes e equipamentos<br />

nos bastidores. Câmeras mentais transmitindo tudo via satélite.<br />

Foda-se sua vida! Fodam-se suas ideias!<br />

Foda-se a dor de barriga que sentia! O negócio era exterminar os<br />

pestinhas que rastejavam pelas suas entranhas!<br />

Fosse como fosse, a pobre jovem desmaiou naquele momento, talvez<br />

por não ser capaz de suportar os rigores de tamanha provação.<br />

Talvez tenha sido vítima de um ataque psíquico, e mais nada.<br />

Ela não chorou naquela vez, mesmo sentindo um aperto terrível em<br />

sua garganta.<br />

Não teve tempo.<br />

Dir-se-ia que o desmaio a havia salvado de cobrir os próprios olhos<br />

de meleca pastosa e nojenta criada a partir de lágrimas de desespero que<br />

nada iriam resolver.<br />

Não que seus olhos já não estivessem cobertos de meleca pastosa e<br />

nojenta.<br />

Enfim...<br />

O fato consumado era que seu corpo EXPELIA alguma coisa,<br />

na calada do dia, durante seu sono. E essa substância era expelida por<br />

quaisquer canais que houvesse pelo corpo, desde a boca até os poros.<br />

Não era de todo estranho que ela despertasse tendo de engolir sangue<br />

podre, estacionado em sua boca, ou sentindo como se tivesse mijado ou<br />

cagado nas calças.<br />

136 Doença e Cura


De rainha da noite, fora transformada em uma inválida superpoderosa<br />

de araque.<br />

Coisas do destino.<br />

O morceguinho projetado por telepatia era um bom professor, e ela<br />

descobriu que o processo de execução daquela parasitose era engendrado<br />

mais ou menos da seguinte forma:<br />

Primeiro – o vampiro tem seu sangue invadido pelo sangue<br />

parasita, das formas mais peculiares e... “inocentes” que se pudesse<br />

imaginar, uma vez que duas verdades a respeito do comportamento<br />

do parasita-mãe em relação às suas vítimas – os vampiros – eram<br />

conhecidas e tidas como inquestionáveis: a) vampiros se alimentam de<br />

sangue, de preferência vivo; b) o parasita-mãe fornece sangue vivo, da<br />

melhor qualidade, aos vampiros.<br />

Descobrir e confirmar esta constatação havia custado as vidas<br />

imortais de dezenas de criaturas da noite. Era uma notícia terrível, para<br />

toda a comunidade vampírica – estar à mercê de um organismo dotado da<br />

mais formidável habilidade natural que poderia ter sido concebida para<br />

subjugar vampiros.<br />

Não que as armadilhas naturais que algumas espécies desenvolvem<br />

com a evolução, a fim de atrair, confundir e abater outras espécies que<br />

fazem parte de seu seleto cardápio, constituíssem alguma novidade. Peixes<br />

abissais desenvolveram lâmpadas naturais para que pudessem atrair suas<br />

presas, curiosas em relação à luz. Plantas carnívoras, com o decorrer dos<br />

séculos, se transformaram em verdadeiras usinas automáticas naturais de<br />

extermínio de insetos. A larva de formiga-leão escava sua armadilha natural<br />

em forma de funil escorregadio na terra, abocanhando todo e qualquer<br />

inseto incauto que se atreva a tropeçar no produto de sua engenhosidade<br />

evolutiva.<br />

A natureza inteira é feita de armadilhas e armadilheiros.<br />

Tropece aqui e você morre. Pise ali e você é abocanhado.<br />

Quem diria que os maiores dentre todos os parasitas, os mais poderosos<br />

de todos os predadores, os vampiros, seriam os próximos escolhidos pela<br />

natureza para serem classificados como presas na cadeia alimentar.<br />

E quem diria que o predador escolhido para dar cabo deles<br />

conseguiria ser TÃO eficiente.<br />

Bem. Os próprios vampiros já estavam cientes de suas tantas<br />

vulnerabilidades em relação àquela nova ameaça da natureza.<br />

Isso nos leva a...<br />

Segundo – após o sangue parasita ter penetrado no corpo do vampiro,<br />

os glóbulos invasores – cujo formato, ao ser visto em microscópio, lembra<br />

pequenos bastões semi-transparentes de cor alaranjada – se instalam e<br />

passam a absorver os glóbulos vermelhos sadios que são ingeridos pelo<br />

hospedeiro, durante suas incursões e caçadas noturnas.<br />

Fabian Balbinot<br />

137


As imagens que o morcego-professor lhe mostrou do processo de<br />

assimilação de hemácias sadias por parte dos pequenos bacilos invasores,<br />

revelaram-se semelhantes a “colocar uma camisa de vênus em um vibrador<br />

elétrico”. Os bastões laranjas atacam as células vermelhas, furando-as no<br />

meio e passando a sugar os seus conteúdos, secando-as e matando-as em<br />

seguida. A atuação dos bastonetes é rápida, e, como os glóbulos vermelhos<br />

do sangue costumam andar “em turmas”, muitas vezes diversos deles são<br />

perfurados juntos, de uma só vez.<br />

Incansáveis, os bastões invasores não param de agir até cada um<br />

deles ter destruído pelo menos umas sete hemácias, número que pode variar<br />

para dez hemácias, ou mais, o que significa dizer que dez bacilos laranjas<br />

podem acabar com em média cem glóbulos vermelhos, e dez mil bacilos dão<br />

cabo de umas cem mil hemácias, e por aí vai. Neste ponto, o movimento de<br />

ataque das células invasoras cessa, e é quando passamos para...<br />

Terceiro – envolto pelas “argolas” remanescentes das hemácias que<br />

consumiu, o bastão laranja cumpre uma espécie de rápido ciclo reprodutivo.<br />

Bem nutrido com o que retirou das hemácias, o glóbulo invasor simplesmente<br />

se divide em dois.<br />

Devido à velocidade atordoante com que o ciclo ocorre, há<br />

divergências sobre o que acontece a seguir.<br />

– Alguns de nossos cientistas dentuços dizem que a ação toda<br />

acaba por aí e nenhum dos dois novos bastõezinhos faz mais estrago<br />

nenhum – dissera o eloquente morceguinho, vestido de cowboy, cercado<br />

por uma estonteante sucessão de imagens animadas da divisão celular<br />

dos pequenos parasitas, imagens as quais também se reproduziam,<br />

tornando-se milhares, encolhendo e sobrepondo-se, e transmitindo de<br />

forma eficiente a ideia de que eram muitas reproduções a cada segundo,<br />

mas MUITAS mesmo! – Eles simplesmente ficam por aí, numa boa,<br />

sem fazer nada. Outros de nossos gênios dizem o contrário, que os<br />

novos bastões já saem por aí caçando e dizimando mais uma porção<br />

de glóbulos vermelhos cada um, apenas para se reproduzirem de novo<br />

depois. BANG! BANG!<br />

Quer fiquem parados e quietinhos, quer saiam por aí para aprontar<br />

mais das suas, é sabido que os novos bastões deixam de ser alaranjados e<br />

transparentes, assumindo uma cor mais vermelha e viva, decerto devido ao<br />

banquete prévio de hemácias. E como os glóbulos brancos não parecem ser<br />

um ponto forte da fisiologia sanguínea vampírica, os bastões têm toda a<br />

liberdade para espancar as hemácias que tivemos tanto trabalho em roubar<br />

dos vivos...<br />

Quarto – o último estágio é o mais sério para o vampiro hospedeiro, e<br />

envolve a fuga do sangue corrompido, além de uma série de efeitos colaterais<br />

bastante constrangedores – se não fatais – que passam a se manifestar em<br />

relação à fisiologia vampírica usual devido a esta corrupção.<br />

138 Doença e Cura


A fuga dos parasitas ocorre DE DIA, justamente quando o vampiro<br />

hospedeiro está dormindo. E era exatamente o fluido resultante desta fuga<br />

o que a moça estava terminantemente impedida de EXPELIR de seu corpo.<br />

Por isso as fitas adesivas, as amarras, os sacos plásticos e cofres.<br />

Os agressores microscópicos assumem o controle de todo o fluido<br />

sanguíneo existente, compactando de alguma maneira o sangue, reduzindo<br />

seu volume e aglomerando-o em uma única região do organismo infectado,<br />

normalmente afixando-se em uma área central no tórax ou abdome. O<br />

bloco de sangue que resulta desta ação é então deslocado ao bel prazer dos<br />

invasores, trafegando lá e cá pelas entranhas do hospedeiro enquanto este se<br />

encontra desperto, o que parece ser a causa dos ditos “efeitos colaterais”.<br />

Dores pelo corpo, principalmente dor de barriga, formigamentos,<br />

fraqueza e desânimo são os sintomas mais “humanos” do fenômeno, além do<br />

que existe aquela desagradável sensação de que algo fica a se movimentar<br />

dentro de seu corpo.<br />

Danos mais sérios são percebidos em relação às capacidades únicas,<br />

inerentes aos vampiros.<br />

Os poderes sobrenaturais, características como visão além do<br />

alcance e super-velocidade, força muscular e telepatia são simplesmente<br />

virados pelo avesso!<br />

– Há casos em que o pobre vampiro fica surdo, ou cego – comentava o<br />

esperto morceguinho, submerso em imagens alegóricas que representavam<br />

as mais diversas desgraças já manifestadas em vampiros contaminados.<br />

– Isso quando não acontece o oposto, e a pobre vítima vê perto quando<br />

devia estar enxergando à distância, e vice-versa, ou quando vê o que não<br />

se encontra de fato ali. Ouvir tudo o que acontece, perto e longe, e acabar<br />

maluco com tamanha barulheira também é um sintoma típico.<br />

Muito comum, também, é a imobilidade ou as falhas de movimentação<br />

que acometem o vampiro super-veloz. É só um destes céleres habitantes da<br />

noite cogitar em usar de sua agilidade especial para que escorregue e caia,<br />

as pernas desobedientes lançando-o ao chão.<br />

Certos vampiros perdem o controle de habilidades concernentes ao<br />

uso da mente. Adeptos do ilusionismo são misteriosamente traídos pelas<br />

imagens que criam, as quais muitas vezes são projetadas apenas em suas<br />

próprias psiques, isso quando não deixam de existir nos momentos em<br />

que são mais necessárias ou quando se manifestam de modo aleatório,<br />

desobedecendo a vontade de seus conjuradores.<br />

Vampiros metamorfos chegam a explodir em pedaços devido ao<br />

descontrole de suas habilidades de transformação.<br />

Vampiros resistentes ao fogo entram em combustão espontânea.<br />

Um horror!<br />

E em meio a toda esta insanidade, ocorre a fuga do sangue<br />

parasitado.<br />

Fabian Balbinot<br />

139


– Existem muitos relatos, alguns até escritos, de vampiros doentes<br />

que acordaram em pleno dia, gotejando sangue das orelhas, vomitando<br />

sangue, ou mesmo cagando e mijando sangue – o morcego animado acabou<br />

explodindo em sangue enquanto falava, retornando magicamente em<br />

seguida, para prosseguir com a narrativa. – É sangue para todos os lados!<br />

Em seguida, o sangue escorria para dentro de bueiros, ralos, fendas,<br />

e quaisquer outros orifícios que o levassem para baixo, para a terra, ou<br />

para os esgotos.<br />

Relatos recentes acresceram contornos ainda mais dramáticos a esta<br />

fuga, revelando que este ato de escorrer não dependia de gravidade ou peso<br />

para acontecer.<br />

Um influente ancião, já falecido, revelou em manuscritos ter visto o<br />

sangue que saía de sua boca “gotejar para cima”, pingando e acumulandose<br />

em uma poça surreal no teto, de onde escorreu pela parede, e atravessou<br />

uma fenda da porta.<br />

Outro, em um diário encontrado em meio a documentos abandonados,<br />

comenta ter sido atacado por diversos jatos do sangue em fuga, lançados de<br />

vários pontos da poça viva que galgava uma das paredes de seu esconderijo.<br />

Contundentes como disparos de uma arma de ar comprimido, os jatos eram<br />

fortes o bastante até mesmo para ocasionarem lacerações em sua pele.<br />

Um terceiro membro descreve de forma detalhada ter seguido um<br />

misterioso e ágil ser avermelhado e semi-transparente, em forma de<br />

grande verme, que rastejava pelo chão de seu esconderijo e atravessava<br />

fendas e orifícios, muitas vezes destruindo-os com sua passagem. Tal<br />

criatura subdividia-se em pedaços menores, juntando-se novamente<br />

conforme fosse necessário, evitando assim os obstáculos que houvesse<br />

pelo caminho. De um modo muito peculiar, e sem jamais se misturar a<br />

qualquer tipo de imundície, o ente lançou-se aos borbotões, como uma<br />

pequena corredeira de sangue, atirando-se dentro de um grande canal de<br />

esgoto, onde impulsionou a si mesmo em uma grande e potente espiral,<br />

sumindo para sempre.<br />

Relatos revelam que vermes feitos de sangue expelido por vampiros<br />

habitantes de áreas menos populosas, subúrbios e zona rural, embrenham-se<br />

com extrema rapidez na terra, produzindo túneis de pequena espessura, que<br />

descem algumas dezenas de metros antes de encontrarem um abrupto fim.<br />

Desnorteados, muito próximos da perda total de controle decorrente<br />

do súbito esvaziamento das reservas de sangue de seus corpos, são poucos<br />

os vampiros que conseguem relatar os acontecimentos que se originam a<br />

partir da fuga do sangue corrompido, mesmo porque isto costuma ocorrer<br />

durante o dia, quando estes indivíduos encontram-se inertes.<br />

É notável o número de habitantes da noite que despertam<br />

completamente enlouquecidos, ao cair do sol, com não mais do que algumas<br />

gotas de sangue no corpo, os quais acabam se lançando em uma caça<br />

140 Doença e Cura


frenética, atacando quaisquer vertebrados que venham a cruzar os seus<br />

caminhos.<br />

Não raro, vampiros nessas condições conseguem apenas destruir a<br />

si mesmos.<br />

E aqui cabe um pequeno adendo...<br />

Cinco – as consequências da fuga do sangue, ou “o que acontece a<br />

seguir”.<br />

– Quando acorda, após a fuga do sangue, o vampiro parasitado<br />

geralmente não tem mais do que um centésimo do sangue que havia em<br />

seu corpo na hora em que foi dormir – dizia o morcego, espremendo-se<br />

todo, como se fosse uma esponja seca. – E é bem sabido que uma grande<br />

necessidade de sangue costuma transformar os vampiros em péssimos<br />

vizinhos. Os vários corpos tombados ao seu redor comprovam que o vampiro<br />

em questão está com problemas.<br />

Na falta de dados mais precisos, os relatos do morceguinho revelavam<br />

à incrédula jovem os desfechos dos inúmeros casos de parasitose que já<br />

tinham sido descobertos.<br />

Em uma vasta propriedade no campo, um cidadão influente, dono de<br />

fazendas e de um gosto todo próprio pelo sangue de vacas e cavalos, acabou<br />

atacando uma dúzia de reses antes de ter seu corpo incendiado pelo sol do<br />

meio da tarde.<br />

Um dos dons do fazendeiro era a metamorfose, o que talvez<br />

explique os pedaços de vacas e bois, dilacerados por garras e espalhados<br />

por cerca de três hectares de terreno, cenário este que lançou policiais<br />

e outros fazendeiros humanos vingativos em uma caçada implacável<br />

a todos os bandos de lobos e ursos que houvesse naquele estado, o<br />

que serviu para criar um clima de apreensão a nível mundial e de<br />

inimizade pura e simples para com os ativistas ambientais de todos os<br />

credos e origens.<br />

A metamorfose também poderia explicar a extrema resistência do tal<br />

homem ao sol intenso daquele horário, pois é reconhecido que tamanho<br />

estrago não poderia ter sido concluído em menos de meia hora de frenesi e<br />

loucura absolutas.<br />

No entanto, a metamorfose jamais explicaria a insanidade que lançou<br />

aquele homem à insensatez de uma carnificina tão voraz como aquela, que<br />

fê-lo ignorar a dor das próprias carnes queimando ao sol.<br />

Atualmente, ânimos acalmados, de posse do governo, a fazenda<br />

ainda se encontra fechada e sob interminável e inconclusiva investigação<br />

de policiais federais.<br />

Em um outro caso, fartamente noticiado pelos jornais do país, um<br />

indivíduo respeitável e também respeitado, figura fácil em eventos e festas<br />

sociais, surgiu ensandecido em uma dada noite em uma das festas que ele<br />

próprio ajudara a organizar.<br />

Fabian Balbinot<br />

141


Carregava um caríssimo sabre trazido de um país estrangeiro, com o<br />

que investiu contra a multidão.<br />

Testemunhas disseram que os olhos do playboy estavam vidrados,<br />

enormes, e seu rosto encontrava-se incrivelmente pálido, teso, os músculos<br />

faciais repuxados em um horrível esgar.<br />

Testemunhas declararam terem visto DENTES demais na boca do<br />

homem.<br />

Trinta e sete pessoas foram retalhadas pelo homem insano naquela<br />

noite, antes que os seguranças optassem por agir, descarregando suas armas<br />

em seu próprio empregador.<br />

Muitas destas pessoas tiveram suas carnes rasgadas não por<br />

estocadas de sabre, mas sim por dentadas, segundo o que disseram muitos<br />

dos horrorizados convidados.<br />

Alucinação coletiva? Ou seria um complô das tantas testemunhas,<br />

todas influentes, gente do topo da pirâmide social, objetivando proteger<br />

alguém ou esconder alguma informação ou fato comprometedor?<br />

Os colunistas políticos e de polícia dos jornais passaram semanas se<br />

divertindo com as mais escabrosas alusões e especulações.<br />

Apesar de haver um grande número de fotógrafos na festa, nenhuma<br />

das fotos obtida revelou qualquer indício de que o anfitrião tivesse resolvido<br />

praticar esgrima utilizando-se de alvos reais, justo naquela noite.<br />

Algumas fotos até mostravam uma grande espada flutuando,<br />

levemente fora de foco em razão ao movimento, como se alguém a tivesse<br />

arremessado para longe.<br />

De fato, fotos não eram uma especialidade daquele homem burguês,<br />

sempre sumido em meio aos seus negócios. Uma vasta horda de seguranças<br />

tornava a vida dos paparazzi que quisessem se aproximar dele nas raras<br />

noites em que aparecia em público em verdadeira provação.<br />

Ora, sequer havia fotos do corpo do ricaço!<br />

E os próprios seguranças disseram que tinham visto o corpo inerte,<br />

crivado de balas, ter pegado fogo e desaparecido em pleno ar, logo após o<br />

fuzilamento.<br />

Tempos depois, um jornal dos mais sensacionalistas disparou<br />

excentricidades sobre vampiros e outras baboseiras, sendo prontamente<br />

seguido por outros.<br />

Charges com personagens dentuços foram elaboradas por<br />

cartunistas.<br />

A população riu.<br />

Vampiros não existem, é óbvio.<br />

– Nosso maior problema – dizia o morceguinho, fazendo as vezes<br />

de seu desconhecido interlocutor mental, oculto por trás das paredes de<br />

concreto e aço que isolavam a moça do mundo – é POR QUANTO TEMPO<br />

os vampiros continuarão a não existir...<br />

142 Doença e Cura


– Somos alvos fáceis para esta peste, que nos humilha, transtorna e<br />

expõe. Deixamos de ser poderosos. Perdemos a noção da realidade e nos<br />

transformamos em bestas genocidas, revelando nossa raça de uma maneira<br />

extremamente drástica a um mundo que, para nosso próprio bem, não deve<br />

acreditar em nossa existência.<br />

“E é por isso que você está aqui. Você é a primeira humana de que<br />

temos notícia que sobreviveu ao ataque de um vampiro contaminado. Você<br />

recebeu tanto nossa herança quanto a herança do parasita, tornou-se<br />

uma de nós, e sua fisiologia humana tem se revelado resistente aos efeitos<br />

daninhos da contaminação.”<br />

“É por isso que você está aqui.”<br />

“Você é a cobaia que usaremos para desenvolver o antídoto que irá<br />

curar nossa espécie desta maldita pestilência.”<br />

* * * * *<br />

Você FOI uma pessoa boa, e agora está no inferno.<br />

E o inferno é um paraíso de dor, agonia, vômito e excrementos.<br />

No inferno você está sedada, mas não está sedada o suficiente para<br />

ignorar a dor.<br />

E a dor caminha pelo seu corpo e vasculha suas entranhas, procurando<br />

carnes para morder e nervos para trespassar.<br />

A dor de seu corpo tem um nome. Ela se chama contaminação.<br />

Seu sangue está contaminado pelo sangue de uma outra criatura.<br />

Uma criatura de aparência humana, de cuja fisionomia você consegue<br />

se lembrar sem fazer muito esforço.<br />

Era uma mulher comum. Cabelo castanho-escuro, amarrado em um<br />

coque. Óculos de aros gigantescos, grossos e pesados...<br />

Óculos sem... lentes?<br />

Sim, óculos sem lentes.<br />

Uma mulher humana. Morta.<br />

Um mero disfarce.<br />

Uma adequada roupagem externa para uma criatura sem face, feita<br />

de sangue.<br />

O sangue dos vampiros, seres não-mortos que mantêm você<br />

prisioneira debaixo de apertadas e claustrofóbicas camadas de tecido grosso,<br />

fita adesiva, cordas, tijolos e metal.<br />

Um sangue que agora se digladia dentro de seu corpo, tentando<br />

abandoná-lo, escapulir, fugir, de todas as maneiras possíveis.<br />

De todas as maneiras mais dolorosas possíveis.<br />

Sem querer, você tenta vomitar, e sente a mistura de sabores, sangue que não<br />

é seu, bile e sucos gástricos que seu aparelho digestivo talvez ainda possa produzir,<br />

e coquetéis intragáveis de outras substâncias invadindo sua boca e nariz.<br />

Fabian Balbinot<br />

143


Beco sem saída! Você está amordaçada com fitas adesivas e panos, que<br />

vedam tanto a boca quanto o nariz, criando uma barreira intransponível.<br />

Você não precisa respirar mesmo...<br />

E é obrigada a engolir a sopa viscosa, agridoce. E seu vômito volta<br />

pelo mesmo caminho por onde veio, de volta ao estômago.<br />

Você tenta tossir, com ainda menos êxito.<br />

O peito e a barriga ardem como se estivessem sendo desmanchados<br />

por ácido. A garganta fica submersa em muco e vômito e você sente que a<br />

morte se aproxima.<br />

Sem ter como resistir, você cai inconsciente, sem cair, sustentada pela<br />

parede do pequeno cofre de paredes espessas onde foi trancafiada, em uma<br />

permanente e incômoda posição fetal.<br />

Mas a morte aqui não existe, e você desperta.<br />

Para seu próprio azar, a imortalidade existe, e é um fardo macabro<br />

que você ganhou o direito de carregar.<br />

Seus ouvidos, entupidos de cera e sangue, há tempos nada ouvem, e<br />

você se questiona se os tímpanos lá dentro ainda existem.<br />

Seus membros, braços, pernas, dedos, encontram-se há tanto tempo<br />

acomodados na mesma posição que você nem tem mais certeza de que irá<br />

conseguir se mexer quando sair deste casulo. Como nenhum deles mais<br />

parece obedecer seus comandos, você julga que talvez todos tenham sido<br />

decepados.<br />

Pode ser, afinal você jamais teve seus membros decepados antes para<br />

ter a menor ideia de qual seja a sensação de não mais os possuir.<br />

Talvez, em um momento de breve inconsciência de seu cérebro<br />

anestesiado, alguma das poderosas mentes que vivem a examiná-la do lado<br />

de fora deste esquife onde você foi enterrada viva tenha revelado pertencer a<br />

um corpo. Nem que isso não tivesse levado mais do que os poucos instantes<br />

necessários para que tal corpo usasse de destreza, abrindo os cofres e<br />

desfazendo as amarras, apenas para amputar seus membros e lançá-la<br />

novamente em claustro eterno.<br />

Talvez ninguém tenha feito nada, porque as terríveis e poderosas<br />

mentes que a examinam sem parar pertencem aos assassinos mais frios e<br />

desumanos que se possa imaginar, os quais devem se deliciar com a morte,<br />

principalmente quando esta for lenta e agonizante.<br />

Entregue aos pensamentos e memórias, inclusive aos que não são<br />

seus, injetados em sua mente pelas mentes poderosas lá de fora, você<br />

permanece sem dormir e sem morrer, julgando que tudo não passa de um<br />

sonho. Um pesadelo terrível, bem daqueles que ardem na alma e deixam a<br />

nítida impressão de que se está acordada.<br />

Aí você sente a dor.<br />

E percebe que está viva.<br />

Você é um nervo exposto, com um estômago que regurgita ácido<br />

144 Doença e Cura


dentro de si mesmo. Um intestino que recicla as próprias fezes.<br />

Você é uma invenção do demônio. Uma máquina de gerar dor em si<br />

mesma. O moto-contínuo da agonia. Uma câmara de tortura perfeita.<br />

E em meio ao contínuo e infinito ciclo de reaproveitamento de dores,<br />

vômitos e excrementos em que você vive, você tenta morrer.<br />

Você anseia pela morte.<br />

Eutanásia. Câmara de gás. Cadeira elétrica. Ácido, fogo e enxofre.<br />

Veneno letal, em nome do altíssimo!<br />

E nada disso acontece.<br />

Predestinada pelo poder do inferno, você deve continuar vivendo.<br />

É o que dizem as mentes poderosas e pérfidas que injetam em sua<br />

cabeça pensamentos que não são seus e memórias de coisas que você nunca<br />

viu.<br />

É o que diz a voz do espirituoso morceguinho, boneco de desenho<br />

animado implantado na memória, que sistematicamente invade sua mente,<br />

distraindo você e fazendo com que compreenda da forma mais alegre e<br />

divertida possível como é ser apenas uma cobaia.<br />

E ter que continuar vivendo...<br />

Até o momento em que alguém lá fora decida que a experiência já<br />

acabou.<br />

* * * * *<br />

O tempo passou, lento.<br />

A agonia tornou-se praxe, e houve ocasiões em que você até conseguiu<br />

ignorá-la.<br />

Até que, em um dado instante, você parou de tentar vomitar.<br />

E o sangue inquieto que havia em seu corpo, que mutilava seu corpo<br />

de dentro pra fora, tentando a qualquer custo sair dali, acomodou-se.<br />

A peste deixou de ser peste para se tornar apenas uma lembrança.<br />

O sangue, morto, jazia empoçado, frio e repelente, misturado a algo<br />

que devia ser os retalhos de suas vísceras, dentro de seu corpo.<br />

Nesse mesmo momento, sua mente foi atacada por milhares de<br />

agulhas oníricas, que trespassaram sua consciência e a fizeram cair em um<br />

sono profundo.<br />

A última coisa que você viu foi o morceguinho disparando em você<br />

mesma com uma enorme metralhadora de desenho.<br />

– É hora de dormir, menina!<br />

E a gargalhada histérica do sádico bichinho ficou a ecoar em seus<br />

sonhos...<br />

* * * * *<br />

Fabian Balbinot<br />

145


Você acorda ouvindo ruídos, baques mudos e surdos semelhantes ao<br />

retinir remoto de pancadas de um bastão emborrachado contra um longínquo<br />

e sólido gongo de metal.<br />

Você acorda, mas não consegue abrir os olhos.<br />

Algo os prende, imobilizando as pálpebras.<br />

O mesmo material parece estar agarrando seu rosto inteiro, cobrindo<br />

nariz, ouvidos, boca...<br />

Ansiosa, você tenta girar o rosto, percebendo que ele também está<br />

preso, bloqueado o seu movimento pelo que parece ser um molde rígido.<br />

Os estalos roucos das gongadas desritmadas parecem se aproximar<br />

junto com uma estranha claridade, que, mesmo sem ver, você percebe<br />

através do bloqueio das pálpebras e da mescla de substâncias que as mantém<br />

fechadas.<br />

Tentar se desvencilhar também é inútil, e você começa a acreditar<br />

em coisas e a vislumbrar coisas que só se pode conceber em meio a um<br />

pesadelo.<br />

O pensamento atemorizante, o raciocínio traz as lembranças, que vão<br />

devagar se aglutinando umas com as outras, recriando o palco onde a cena<br />

se desenrola.<br />

Você está presa... amarrada, amordaçada... dentro de um cofre<br />

metálico.<br />

E, de fora de seu corpo, por intermédio das memórias, você vê a si<br />

mesma e começa a reconstruir mentalmente o lamentável estado em que seu<br />

corpo se encontra.<br />

Sacos plásticos como os de lixo, só que muito mais grossos e<br />

resistentes a envolvem dos pés à cabeça.<br />

Cordas e amarras, e rolos de fita adesiva dão inúmeras voltas em redor<br />

de seu corpo, você bem se lembra.<br />

E as lembranças que a ajudam a vislumbrar o provável presente<br />

também a fazem rever o passado que não pode ser mudado.<br />

Sem querer, você tenta vomitar...<br />

Uma mulher comum. Óculos sem lentes.<br />

“Você é a cobaia...”<br />

Muitas destas pessoas tiveram suas carnes rasgadas...<br />

Os poderes sobrenaturais são simplesmente virados pelo avesso!<br />

... um mero campo de batalha nesta guerra microscópica.<br />

Uma vampira.<br />

...<br />

“Você é a cobaia...”<br />

A mágica terrível das lembranças a arremessa de volta à uma realidade<br />

que consegue ser ainda pior do que um pesadelo.<br />

Você percebe que, além dos gongos e batidas, seus ouvidos cobertos<br />

de cera e sangue duro e morto até às beiradas começam a distinguir vozes.<br />

146 Doença e Cura


As vibrações e batidas se tornam sólidas, e seu corpo passa a poder<br />

sentir.<br />

Alguém mexe em seu corpo, e começa a soltá-la.<br />

Tiras são afrouxadas e amarras, desatadas.<br />

Você quer chorar, mas seus olhos estão presos não apenas por fitas<br />

adesivas, mas também por grossas camadas de muco endurecido. Um molde<br />

sólido como lama, máscara de beleza orgânica feita à base de sangue morto<br />

e lágrima, que a impede mesmo de querer mover as vistas, tamanha a dor<br />

que sente ao tentar fazer isso.<br />

Você quer gritar de alegria, mas a boca não se mexe, e isso não se deve<br />

apenas à forte mordaça de fita adesiva. Nervos desregulados e músculos<br />

sedados fizeram com que os movimentos bucais fossem todos inibidos, o<br />

que transformou os sabores todos em um único gosto ácido, gástrico, fel,<br />

que pode não passar de mera ilusão e lembrança, pois mesmo sua língua jaz<br />

morta, seca, e suas mandíbulas parecem de algum modo cimentadas uma à<br />

outra com uma sopa dura e fria, nojenta e viscosa.<br />

Ao tentar sentir os dedos das mãos, você nota que não consegue<br />

mais reconhecer a sensação que se tem ao movê-los. Seus pés não passam<br />

de uma lembrança fugaz, e todo o seu corpo inerte lhe é simplesmente<br />

desconhecido.<br />

Dói até para pensar, mas você sente os golpes, pancadas de bastão<br />

emborrachado contra o gongo de metal, e consegue ouvir as vozes, e sabe<br />

que, agora que o sangue parasita invasor deixou de agir, a libertação está<br />

próxima.<br />

Nada mais de horrível pode acontecer.<br />

O inferno é melhor do que tudo quanto você já passou.<br />

Esta é sua esperança. É a luz no final do túnel.<br />

E você se apega a esta luz, sentindo imensa alegria.<br />

Nada pode ser pior do que tudo pelo que você passou.<br />

Nada...<br />

* * * * *<br />

As vozes baixas que aquela moça ouve esporadicamente falam<br />

pouco.<br />

Murmúrios pronunciam monossílabos que não querem dizer nada.<br />

Mais parecem gemidos e grunhidos.<br />

E nenhuma mensagem importante pode ser extraída de tais sons.<br />

Pois as criaturas que ali estão, a desamarrar os nós que mantém unido<br />

aquele corpo atrofiado, aprenderam há muito tempo a não se expressar<br />

através da voz.<br />

Imagens, visões e símbolos que não podem ser traduzidos ou<br />

compreendidos, exceto pelos pensamentos daqueles que os empregam,<br />

Fabian Balbinot<br />

147


fluem como fachos de luz invisível de uma mente para outra, permitindo<br />

uma espécie de comunicação subjetiva, tanto quanto objetiva.<br />

São três indivíduos, três mentes que se comportam como uma,<br />

seguindo o padrão sobrenatural da espécie, compartilhando uma única<br />

inteligência superior.<br />

Os membros de três criaturas se movem seguindo um mesmo<br />

pensamento, que se espalha pelas três mentes como a neblina que toma o ar.<br />

E a entidade que parece ocupar os três corpos serviçais, solitária,<br />

usando de imagens, visões e símbolos, parece dialogar consigo mesma...<br />

“Desatar os nós...”<br />

“Remover a fita adesiva...”<br />

“Remover os plásticos...”<br />

“A fita é dura... apertada...”<br />

“Cofres já foram removidos...”<br />

“O caixote de madeira estava quebrado...”<br />

“A fita é dura... apertada...”<br />

“Ela deve ter quebrado o caixote de madeira...”<br />

“Desatar os nós...”<br />

“Não há mais sangue venenoso...”<br />

“Morto...”<br />

“Sim...”<br />

“Cofre amassado...”<br />

“Cofres já foram removidos...”<br />

“Ela deve ter quebrado o caixote de madeira...”<br />

“A fita é dura... apertada...”<br />

“Não há mais sangue venenoso...”<br />

“Costelas quebradas...”<br />

“Ela era forte...”<br />

“O caixote de madeira estava quebrado...”<br />

“A fita se rompeu...”<br />

“Morto...”<br />

“Braço quebrado...”<br />

“Cofre amassado... por dentro... amassado...”<br />

“O crânio quebrado...”<br />

“Ninguém resiste a isso...”<br />

“Ela era forte...”<br />

“A fita é dura... apertada...”<br />

“A fita se rompeu...”<br />

“O crânio quebrado... esfacelado...”<br />

“Morto...”<br />

“Sim...”<br />

“O caixote de madeira estava quebrado...”<br />

“Pernas quebradas...”<br />

148 Doença e Cura


“Também...”<br />

“Não há mais sangue venenoso...”<br />

“Desatar os nós...”<br />

“Remover os sacos plásticos...”<br />

“Um braço está inteiro...”<br />

“Ninguém sobrevive a isso...”<br />

“Morto...”<br />

“Sim...”<br />

“Não...”<br />

“Ela era forte...”<br />

“Cofre amassado... por dentro... amassado...”<br />

“O caixote de madeira estava quebrado...”<br />

“Não há mais sangue venenoso...”<br />

“Foi herança da mãe dela...”<br />

“Desatar os nós...”<br />

“Remover os sacos plásticos...”<br />

“Fluidos...”<br />

“Morto...”<br />

“A coluna está partida em dois pontos diferentes...”<br />

“Conseguimos perceber...”<br />

“Fluidos escorrendo pelo chão...”<br />

“Costelas quebradas...”<br />

“Perfuraram ambos os pulmões...”<br />

“Sim...”<br />

“Ela deve ter quebrado o caixote de madeira...”<br />

“Ela era forte...”<br />

“Foi herança da mãe dela...”<br />

“Estamos sujando o piso...”<br />

“Sim...”<br />

“Perfuraram ambos os pulmões...”<br />

“Não importa...”<br />

“Desatar os nós...”<br />

“O intestino está destruído...”<br />

“Sacos plásticos foram removidos...”<br />

“Mais fitas adesivas...”<br />

“O estômago desapareceu...”<br />

“Morto...”<br />

“Não importa...”<br />

“Cofre amassado... por dentro... amassado...”<br />

“Ela se debateu bastante...”<br />

“Sim...”<br />

“Foi herança da mãe dela... PODER da mãe dela...”<br />

“Não importa...”<br />

Fabian Balbinot<br />

149


“A fita é dura... apertada...”<br />

“A barriga explodiu...”<br />

“Sabíamos que isso aconteceria...”<br />

“Fluidos escorrendo pelo chão...”<br />

“Estamos sujando o piso...”<br />

“Ninguém sobrevive a isso...”<br />

“Ela sobreviveu...”<br />

“NÓS sobreviveríamos...”<br />

“Sim...”<br />

“Foi herança da mãe dela...”<br />

“Não importa...”<br />

“Cofre amassado... por dentro... amassado...”<br />

“A pele está saindo junto com a fita...”<br />

“Não importa...”<br />

“O rosto dela... era tão belo...”<br />

“Foi herança da mãe dela...”<br />

“Não...”<br />

“Não há mais sangue venenoso...”<br />

“Morto...”<br />

“Será que ele voltará...”<br />

“Não...”<br />

“Nada sobrevive a isso...”<br />

“Nós desatados...”<br />

“O sangue venenoso...”<br />

“Sentimos medo...”<br />

“Cofre amassado... por dentro... amassado...”<br />

“Não sentimos...”<br />

“Nada sobrevive a isso...”<br />

“A pele está saindo junto com a fita...”<br />

“NÓS sobreviveríamos...”<br />

“A pele e os olhos...”<br />

“Estamos destruindo seu corpo...”<br />

“Não importa...”<br />

“Ainda há testes que precisam ser feitos...”<br />

“A pele e os olhos...”<br />

“Sentimos medo...”<br />

“Não sentimos...”<br />

“NÓS sobreviveríamos...”<br />

“Um globo ocular caiu no chão...”<br />

“Foi herança da mãe dela...”<br />

“Os sacos plásticos foram removidos...”<br />

“Morto...”<br />

“Sim...”<br />

150 Doença e Cura


“Coloque dentro de um dos sacos...”<br />

“Costelas quebradas...”<br />

“O coração sumiu...”<br />

“Nada sobrevive a isso...”<br />

“Não há mais sangue venenoso...”<br />

“Sabíamos que isso aconteceria...”<br />

“O crânio quebrado... esfacelado...”<br />

“O cérebro parece ainda estar inteiro...”<br />

“Coloque dentro de um dos sacos...”<br />

“Ela deve ter quebrado o caixote de madeira...”<br />

“Ela era forte...”<br />

“Morto...”<br />

“Não...”<br />

“O coração sumiu...”<br />

“A pele está saindo junto com a fita...”<br />

“Ela não sobreviveria a tudo isso...”<br />

“Temos certeza...”<br />

“Membros posteriores partidos... em vários pontos...”<br />

“Foi herança da mãe dela...”<br />

“A mãe dela era forte...”<br />

“Morto...”<br />

“Sim...”<br />

“NÓS sobreviveríamos...”<br />

“O cérebro parece ainda estar inteiro...”<br />

“Os sacos plásticos foram removidos...”<br />

“As unhas dos dedos não existem mais...”<br />

“Será que ele voltará...”<br />

“Danos totais em quase todos os órgãos internos...”<br />

“Sentimos medo...”<br />

“Coloque TUDO dentro de um dos sacos...”<br />

“O cérebro parece ainda estar VIVO...”<br />

“Morto...”<br />

“Não...”<br />

“A mãe dela era forte...”<br />

“Não importa...”<br />

“Rebelde, porém forte...”<br />

“A pele está saindo junto com a fita...”<br />

“O sangue venenoso...”<br />

“Sentimos medo...”<br />

“Nada sobrevive a isso...”<br />

“O rosto dela... era tão belo...”<br />

“As unhas foram arrancadas dos dedos...”<br />

“Sentimos medo...”<br />

Fabian Balbinot<br />

151


“Não importa...”<br />

“Ainda há testes que precisam ser feitos...”<br />

“Nada sobrevive a isso...”<br />

“O corpo está todo estraçalhado...”<br />

“Ela se debateu bastante...”<br />

“Nada sobrevive a isso...”<br />

“Sentimos medo...”<br />

“O corpo está todo esfarrapado...”<br />

“Sentimos medo...”<br />

“Coloque TUDO dentro de um dos sacos...”<br />

“Sentimos medo...”<br />

“Sentimos medo...”<br />

“Sentimos medo...”<br />

152 Doença e Cura


“O céu está no chão<br />

O céu não cai do alto<br />

É o claro, é a escuridão<br />

O céu que toca o chão<br />

E o céu que vai no alto<br />

Dois lados deram as mãos”<br />

Dois Rios – Skank<br />

ATO UM<br />

Nota do autor<br />

Fabian Balbinot<br />

<strong>Capítulo</strong> 5<br />

Antes de mais nada, quero me desculpar pelas incontáveis afrontas<br />

que certamente cometi ao escrever este capítulo. NÃO SEI escrever<br />

roteiros teatrais, tampouco considero que isto seja o roteiro de uma peça,<br />

ou deva ser considerado como tal.<br />

Não. Trata-se este texto, na verdade, do fruto de uma liberdade que<br />

tomei, após ter lido o roteiro do espetáculo Testemunha da Acusação, de<br />

Agatha Christie. Movido pela admiração por tal obra e pela ingenuidade<br />

que me é patente, optei por usar de um formato semelhante para descrever<br />

esta etapa da estória, sem medir as consequências, apenas para poder<br />

acomodar da melhor maneira possível seus diversos personagens e<br />

relatos, sem precisar abrir mão dessa minha eterna mania de não nomear<br />

personagens ou cenários.<br />

Peço, portanto, perdão aos roteiristas, teatrólogos, atores, diretores,<br />

e quaisquer outras pessoas que realmente conhecem teatro. Não foi minha<br />

intenção ofendê-los – ou ao teatro – com esta reles imitação.<br />

* * * * *<br />

PERSONAGENS DO ATO UM (seguindo a ordem de entrada no<br />

salão)<br />

Primeiro: HOMEM COM O CRUCIFIXO<br />

Segunda: MULHER AO LADO DO HOMEM COM O CHARUTO<br />

Terceiro: HOMEM COM O CHARUTO<br />

Quarto: QUARTO HOMEM<br />

Quinto: HOMEM CALVO – preside a cerimônia<br />

Sexto: SEXTO HOMEM<br />

Sétimo: HOMEM DE TÊNIS<br />

Oitava: MULHER MUITO ALTA<br />

Nono: HOMEM DE MÃOS FEIAS<br />

Décimo: HOMEM À DIREITA NA MESA<br />

153


CENÁRIO: Um rústico e antigo salão de pedra.<br />

O pano sobe, revelando um pequeno salão retangular bastante<br />

sombrio. As paredes de granito dão a impressão de serem bastante espessas,<br />

e muitas delas estão cobertas de símbolos indecifráveis que lembram<br />

hieróglifos antigos, todos entalhados e esculpidos na própria pedra. Um par<br />

de orifícios quadrados com não mais do que vinte centímetros de diâmetro<br />

pode ser visto ao alto, quase junto ao teto, cada um rente a um dos cantos<br />

superiores da parede à esquerda do cenário.<br />

O piso é feito de largos paralelepípedos de diferentes simetrias,<br />

dispostos regularmente uns ao lado dos outros, lembrando um mosaico tão<br />

escuro que as divisões entre eles são quase impossíveis de serem vistas.<br />

O teto parece se constituir de uma única rocha sólida, empilhada<br />

sobre as paredes. Ali também podem ser vistos alguns sinais entalhados, em<br />

muito menor quantidade se em comparação com as paredes.<br />

Há uma larga mesa de madeira escura e aspecto triangular no centro<br />

do cenário, riquíssima de detalhes esculpidos, tanto no único e largo pé<br />

que a sustenta por inteiro quanto em sua orla, toda coberta de gravuras em<br />

relevo difíceis de se ver devido à escuridão. Um dos ângulos da mesa aponta<br />

para o fundo da sala, ao passo que os outros dois apontam respectivamente<br />

para as paredes laterais. O lado maior do triângulo que é a mesa situa-se<br />

de frente para a platéia.<br />

Uma dúzia de pesadas cadeiras, bem ao estilo da mesa, circundamna,<br />

formando um semicírculo ao redor de seus dois lados menores.<br />

Dois suportes vazios para archotes podem ser vistos no meio das<br />

paredes da esquerda e da direita.<br />

A luz que ilumina o ambiente provém quase toda de um candelabro<br />

amplo, de dez braços, todos tomados por velas de muitos tamanhos, umas<br />

já apagadas, colocado sobre um alto suporte, atrás da mesa, junto à parede<br />

de trás do cenário. A luz da lua penetra no salão pelos dois orifícios no alto<br />

da parede à esquerda. Não há qualquer sinal da existência de luz elétrica<br />

no aposento.<br />

Papéis e canetas se encontram espalhados sobre a mesa, e também<br />

uma maleta.<br />

Há uma reentrância na parede da direita, a qual revela uma porta<br />

de madeira também escura e detalhada, que é aberta, permitindo que<br />

dez pessoas entrem no recinto, em fila indiana. Todas as pessoas que<br />

entram no salão estão em silêncio e têm seus rostos e corpos cobertos<br />

por mantos cinzentos de mangas longas, com capuzes, que vão até<br />

o chão, deixando ver apenas os calçados que tais pessoas usam,<br />

revelando que todas calçam mocassins e sapatos escuros e finos, exceto<br />

a segunda e a oitava pessoas da fila, que usam sapatos femininos de<br />

salto alto. A sétima pessoa usa um par de tênis esportivos listrados<br />

154 Doença e Cura


de preto e branco, bastante maltratados, que contrastam grandemente<br />

com a sisudez do lugar.<br />

O primeiro dos integrantes da fila possui um grande crucifixo que<br />

pende de um colar em volta de seu pescoço por sobre o manto.<br />

Os encapuzados dão a volta por trás da mesa, circundando-a, e vão<br />

puxando as cadeiras e sentando sem cerimônia, o primeiro da fila ocupando<br />

a cadeira mais à esquerda, do ponto de vista da platéia, seguindo a ordem<br />

em que entraram na sala. Ficam vagas, respectivamente a sexta e a última<br />

das doze cadeiras, enumerando a partir da cadeira mais distante da porta.<br />

Sentados, alguns dos membros da assembléia começam a sussurrar<br />

entre si, enquanto outros pegam e observam os papéis da mesa. O homem<br />

de tênis puxa a maleta para perto de si, e a abre, revelando e ativando<br />

um computador portátil, que acende e faz ruídos eletrônicos, e ilumina<br />

parcialmente sua face.<br />

O quinto homem, próximo ao fundo central do cenário, no lado<br />

esquerdo da mesa, levanta-se e remove seu capuz, revelando um rosto<br />

esquálido de idoso. Quase totalmente calvo, seu cabelo se concentra todo<br />

em torno das orelhas, e seu olhar é absolutamente inexpressivo.<br />

O homem pega e organiza alguns dos papéis, ordenando-os e<br />

examinando-os como se fosse fazer um discurso. Olha em redor algumas<br />

vezes, e fala:<br />

HOMEM CALVO: Amigos e colegas, estimados irmãos... É com<br />

muito orgulho... e um certo pesar (olha para a décima segunda cadeira,<br />

vazia) que declaro iniciados os trabalhos do trigésimo primeiro concílio de<br />

famílias...<br />

A voz do velho homem calvo faz-se ouvir em todo o recinto. Todos se<br />

silenciam, e de modo bastante solene, põem-se de pé.<br />

HOMEM CALVO: (baixa as folhas de papel sobre a mesa e eleva<br />

as mãos) Espero que possamos uma vez mais sanar este novo... (titubeia e<br />

procura as palavras no papel à sua frente)... problema. Este novo obstáculo<br />

à sobrevivência de nossa linhagem. Desejo que a inteligência milenar de<br />

nosso povo, nossa cultura e o discernimento peculiar a que sempre fizemos<br />

jus em virtude de nosso renascimento possam predominar em mais este<br />

julgamento, orientando-nos para que sejamos capazes de decidir o melhor<br />

rumo para o... para a situação que ora se apresenta. (pigarreia) Senhoras<br />

e senhores, queiram sentar-se, por gentileza, enquanto refrescamos nossa<br />

memória com um breve resumo dos fatos.<br />

O ancião cala-se e faz um aceno de cabeça, olhando diretamente para<br />

o homem mais à direita na mesa, e retoma seu assento, no que é seguido por<br />

todos os outros.<br />

Após ter insinuado sentar-se, o homem mais à direita se mantém de pé<br />

e saca um pequeno bloco espiral e caneta de algum bolso no interior de seu<br />

manto. Olhando em volta, como se procurasse um microfone, ele finalmente<br />

Fabian Balbinot<br />

155


se apruma e remove seu capuz, revelando uma face juvenil bastante comum<br />

e um cabelo desgrenhado. Ele pigarreia, e inicia seu discurso de forma<br />

bastante nervosa:<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Caríssimos s-senhores e<br />

senhoras... a-ham! Estamos todos aqui reunidos... para darmos início às<br />

solenidades... hum... É com satisfação que dou-lhes as boas-vindas à esta<br />

sessão extraordinária do conselho. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer<br />

à presença de todos e...<br />

O terceiro participante da esquerda para a direita saca um grande<br />

charuto de algum ponto de seu manto, eleva os braços para o ar e esbraveja<br />

com voz grossa e imperativa.<br />

HOMEM COM O CHARUTO: Sem ladainha, por favor! Todos<br />

sabemos porque diabos estamos aqui!<br />

MULHER AO LADO DO HOMEM COM O CHARUTO: Calma...<br />

HOMEM COM O CHARUTO: Calma, o diabo! Se vocês têm<br />

consciência da MERDA que está acontecendo lá fora, EU não faço a<br />

MENOR ideia do que seja! E, diferente de ALGUNS aqui dentro (olha<br />

ameaçadoramente para duas ou três das pessoas do outro lado da mesa),<br />

eu NÃO CONSIGO LER o que se passa na cabeça das pessoas pra saber de<br />

antemão o que esse pateta vai falar em seu estúpido discurso!<br />

HOMEM CALVO: Por favor, controle-se. As formalidades...<br />

HOMEM COM O CHARUTO: (levanta-se e bate com as mãos na<br />

mesa) FODA-SE com as formalidades! Tenho HOMENS MORRENDO em<br />

meu país e não andei dez mil quilômetros e vim até aqui pra ficar ouvindo<br />

bobagens desse tipo!<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: (voz intensa e grave, falando com<br />

calma, pausadamente) Ele tem razão. Ninguém aqui está para brincadeiras.<br />

É um caso grave e urgente, e seria melhor que fôssemos direto ao assunto.<br />

HOMEM COM O CHARUTO: (abre os braços e aponta<br />

desdenhosamente para o homem com o crucifixo) Viram só? Até os burocratas<br />

sentem pressa de vez em quando!<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: (permanece calado).<br />

Todos olham para o homem com o charuto, alguns manifestando<br />

repúdio.<br />

HOMEM COM O CHARUTO: Bando de... (senta-se e movimenta-se<br />

como se estivesse disposto a acender o charuto, mas não o faz). Eu daria a<br />

vida por uma tragada. Pena que já não a tenho mais...<br />

Após alguns segundos de silêncio, em que o homem com o charuto<br />

permanece resmungando de forma inaudível, sendo consolado pela<br />

mulher ao seu lado, o velho homem calvo retoma a palavra, dirigindo-se<br />

novamente ao trêmulo rapaz que segura o bloco com ambas as mãos, de<br />

forma nervosa.<br />

156 Doença e Cura


HOMEM CALVO: (apontando com o braço para o homem mais à<br />

direita na mesa) Por favor, esqueça as formalidades. Partamos direto para<br />

o assunto.<br />

HOMEM COM O CHARUTO: É... (eleva o tom de seus resmungos)<br />

direto ao assunto, seu maldito burocrata de merda...<br />

Segundos depois, percebendo que todos parecem aguardar sua<br />

palavra, o homem de pé pisca algumas vezes e começa a folhear o bloco,<br />

perturbado, indo e voltando pelas páginas, até que pára em uma página<br />

específica, que ele lê e relê rapidamente. Elevando a face e piscando de<br />

forma demorada, ele retoma seu discurso.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Sim... Pois bem. Todos estão...<br />

aqui, hoje, pelo mesmo motivo, que é esse misterioso problema que está<br />

afetando o... rebanho, de uns tempos para cá...<br />

HOMEM COM O CHARUTO: É... misterioooso problema... (falando<br />

baixo, em tom de chacota, balançando a cabeça)<br />

O homem calvo lhe dirige um olhar grave e a mulher ao seu lado<br />

o repreende com um gesto. O homem de charuto dá de ombros e faz uma<br />

careta em resposta.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Hã?... Pois bem. O que sabemos<br />

a respeito deste problema, extraído de nossas... experiências em campo,<br />

revelou que se trata de uma espécie de doença, uma praga que ataca o<br />

sangue. E o sangue que parece ser vulnerável a esta peste é apenas o sangue<br />

dos membros do rebanho, ou seja... NÓS! As... experiências... provam<br />

que o “sangue quente” é imune aos efeitos da moléstia, ou seja, os vivos<br />

parecem possuir aparente imunidade à infecção, se bem que... (folheia uma<br />

página e começa a ganhar fluência no discurso, gesticulando) é sabido que<br />

humanos vivos doentes ou idosos que estejam em estado terminal recebem<br />

especial atenção do microorganismo, que parece estender a vida destes em<br />

troca de certos... Hã?... certos favores. Vou ler a nota que tenho aqui e os<br />

senhores e senhoras poderão compreender melhor como a coisa toda parece<br />

se suceder.<br />

O homem com o charuto debate de forma inaudível com a mulher a<br />

seu lado, elevando as mãos e fazendo uma dramática contagem nos dedos.<br />

A mulher acena, concordando com tudo em silêncio.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: (desdobra um papel ofício colado<br />

em uma das páginas do bloco) Temos alguns registros mais apurados sobre<br />

o que está acontecendo. Este relatório me foi enviado pelo chefe de uma<br />

das famílias ocidentais, que teve sucesso em capturar e pesquisar uma<br />

cobaia ainda viva... ou, melhor dizendo, uma cobaia ainda consciente. A<br />

pessoa em questão era uma mulher nova, com ingresso recente na família<br />

e... Bem... vou ler trechos do relatório para que os senhores possam avaliar<br />

os resultados... em primeiro lugar, dados sobre a paciente. Abre aspas,<br />

(lendo) uma moça nova, idade aparente: 25 anos... iniciada na tradição por<br />

Fabian Balbinot<br />

157


membro ainda não identificado, provavelmente contaminado, com paradeiro<br />

atual desconhecido... sintomas de melancolia, depressão e saudosismo post<br />

mortem, acompanhadas por ataques de esquizofrenia e... (examinando o<br />

documento e procurando resumir o que ali está escrito) diversos outros<br />

sintomas de fobias sociais, estresse pós-traumático, obsessão compulsiva,<br />

agorafobia... entre outros tantos traumas psicológicos, e alguns até físicos...<br />

muitos dos quais se admite terem sido originados a partir da... clausura a que<br />

ela teve de ser submetida para que pudesse ser controlada. Vejamos... Ah!<br />

A jovem foi encontrada presa em um ponto escondido da cidade... (pára de<br />

ler) Parece que foi em um local remoto debaixo dos subterrâneos da cidade,<br />

o que condiz com diversas outras das descrições dos casos que nos foram<br />

relatadas. Ao que parece, o... a anomalia tem o hábito de arrastar os membros<br />

da família aos esgotos, cavernas e outros lugares sombrios, e... seviciá-los<br />

em suas galerias. (retoma o resumo do que está escrito) Bem, a jovem foi<br />

encontrada e capturada neste local e mantida no mais absoluto isolamento,<br />

mentalmente restringida e impedida de ter o menor contato que fosse com<br />

o ambiente externo... (o interlocutor vasculha a folha com os olhos)... ah,<br />

aqui está o final da história: após algumas semanas, já definitivamente<br />

falecida, a vítima foi retirada de seu esquife, e... poucos órgãos restantes,<br />

nenhum intacto... Bem, seus órgãos foram examinados, revelando diversas<br />

escoriações nos tecidos internos...<br />

Uma pausa enquanto o homem em pé passa os olhos por sobre o<br />

texto, piscando-os diversas vezes, escolhendo o que deve ser dito. Neste<br />

ponto, mesmo o homem de charuto encontra-se em silêncio, absolutamente<br />

atento à descrição.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: O que temos aqui é uma... bem, uma<br />

extensa relação das lesões apresentadas pela vítima, e também um relatório<br />

menor, acompanhado de um diagrama, dos meios pelos quais se deu seu<br />

isolamento do mundo externo, o qual cita cofres, fortes fitas adesivas, sacos de<br />

poliestireno, e mais... hmm... uma porção de outros... bem... outros métodos<br />

de aprisionamento, por assim dizer, muitos deles usados em conjunto. As<br />

lesões nos órgãos internos são... (engole em seco, ao passo que seus olhos<br />

saltam pelas linhas, arregalados) bem, são realmente impressionantes, se<br />

me permitem o comentário. Acho que... avaliando o que está escrito aqui,<br />

não estarei mentindo se disser que o interior do corpo dela virou uma espécie<br />

de guisado. (alguns dos integrantes da assembléia exprimem repulsa e<br />

admiração) Nem os ossos escaparam, tendo sido despedaçados em alguns<br />

pontos, fraturados em outros, ou ainda tendo simplesmente sido explodidos<br />

de dentro para fora. Investigações foram feitas sobre o uso de soluções<br />

ácidas e outras substâncias químicas que poderiam ter efeitos semelhantes<br />

se ingeridos por um ser humano, vivo... ou morto, mas os diagnósticos nos<br />

exames finais no corpo não revelaram qualquer tipo de composição química<br />

agressiva ou semelhante.<br />

158 Doença e Cura


O homem vira o papel pelo lado avesso, quase deixando o bloco cair.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: O sangue inerte que restou no<br />

interior do invólucro também foi examinado e foi confirmada a inatividade<br />

de todas as partículas que o compunham. Foi constatada a inexistência de<br />

hemácias, e a coloração do fluido era levemente rósea, quase transparente...<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: (interrompe) Suco de maçã...<br />

Todos viram o rosto para ele.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Perdão, senhor?<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: (impassível) Ouvi falar de um caso,<br />

através de um de meus contatos, em que se extraiu o sangue de uma das<br />

vítimas contaminadas. Foi uma pequena quantidade de material, que foi<br />

guardada em um invólucro hermeticamente fechado. Com o passar do tempo,<br />

o material descoloriu-se e perdeu consistência, e quem fez a apreensão – no<br />

caso um humano vivo – disse que a substância resultante parecia-se muito<br />

com um suco da polpa de algum tipo de fruta... suco de pêra, ou de maçã,<br />

leve, pouco espesso. É lógico que não tenho nenhuma informação quanto ao<br />

sabor do líquido. Prossiga, por favor.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Oh, sim. De fato, parece ser uma<br />

descrição bastante... apropriada. E me parece, de acordo com a descrição<br />

que tenho cá comigo, tratar-se de um... suco bastante insípido, em se<br />

tratando de nosso paladar... (pigarreia duas vezes) Vejamos. O sangue<br />

então foi dado como morto, e as partículas encontradas nas amostras<br />

não revelaram hemácias, mas sim uns poucos leucócitos, plaquetas,<br />

proteínas diversas, albuminas, globulinas, fibrinogênio, etc., etc. Tudo<br />

em quantidade bem abaixo do normal, como é de se esperar do sangue<br />

adquirido a partir de um membro. Tudo aparentemente normal, exceto<br />

pela total ausência dos glóbulos vermelhos e pela presença dos chamados<br />

corpos estranhos: células compridas, levemente amareladas ou alaranjadas,<br />

muito semelhantes ao conhecido bacilo de Koch, que causa a tuberculose,<br />

porém com diâmetro muito maior, mais fino e comprido, partícula esta que<br />

já é conhecida dos senhores, face ao conteúdo dos relatórios distribuídos<br />

anteriormente a cada família... Ah, e, antes que eu me esqueça, convém<br />

citar que todos os corpúsculos encontrados não apresentavam atividade. O<br />

sangue estava morto.<br />

O homem ao lado deste, com sua face quase totalmente coberta, pede<br />

a palavra elevando uma de suas mãos, que se revela ser grande e disforme,<br />

com dedos retorcidos e uma pele que parece estar podre.<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: (falando com uma voz muito seca) E a<br />

coagulação do sangue?<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Hã?... Ah, pois bem... (torna a<br />

vasculhar o texto na folha de ofício) Não há nenhuma menção à coagulação,<br />

ou a hemostasia neste caso em particular, mas... (torna a folhar o bloco)<br />

se não estou enganado, recebi informes que mencionavam justamente estes<br />

Fabian Balbinot<br />

159


fatores... Ah, aqui está. Como todos aqui sabem, a hemostasia é o fenômeno<br />

de resposta do corpo humano à lesão e sangramento de um vaso sanguíneo,<br />

em que os fatores de coagulação, o fator tecidual e o... (o homem com o<br />

charuto parece rosnar) Bem, a coagulação acontece e... cimenta a lesão,<br />

impedindo o vazamento do sangue. Recebi um relatório de uma outra<br />

família, em que um dos membros foi contaminado, e o que se percebeu<br />

foi um desequilíbrio das funções de coagulação. Em um vampir... em um<br />

membro da família, as funções de coagulação e cicatrização seguem um<br />

padrão avançado, destacado pela extrema rapidez de recuperação dos<br />

tecidos, ou pela erradicação completa do corpo, nos casos fatídicos de que<br />

os senhores e senhoras já possuem conhecimento... sol, fogo, certos tipos de<br />

substâncias líquidas ou sólidas, e outros tantos fatores ainda carentes de um<br />

estudo mais completo...<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: (tornando a elevar a mão) E a<br />

coagulação? Fale-nos sobre a coagulação?<br />

O homem à direita da mesa olha para o homem de mãos feias como<br />

se não compreendesse por que ele havia refeito a pergunta. Pisca algumas<br />

vezes, e prossegue, tentando ser mais claro.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Ah... sim... Deixe-me ver... (passa<br />

os olhos sobre o bloco) É tudo... muito pouco específico. Parece que nesse<br />

caso, houve uma desaceleração na coagulação, o que fez com que o indivíduo<br />

contaminado... sangrasse muito em decorrência de ferimentos, mesmo dos<br />

mais leves, os quais não cicatrizavam com a rapidez que nos é peculiar...<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: (interrompendo, elevando a mão,<br />

polegar em riste) Eu vi a coagulação do sangue do demônio.<br />

Uma pausa. Alguns dos membros da assembléia trocam olhares.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Demônio não me parece ser... um<br />

termo adequado, se me permit...<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: Demônio, sim! Estamos diante do ser<br />

que irá subjugar nossa espécie. As lendas não mentem. O alinhamento dos<br />

corpos celestiais indica o início de um ciclo de penúria e destruição.<br />

HOMEM COM O CHARUTO: (elevando os braços para o ar) Era<br />

só o que faltava: um maldito pregador...<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: Vocês todos, ao contrário de meu povo,<br />

viveram a corrupção do sangue, e acomodaram-se à margem da pérfida<br />

sociedade humana, sobrevivendo da impureza do sangue civilizado.<br />

HOMEM COM O CHARUTO: E que culpa nós temos se vocês,<br />

caipiras, preferem tomar sangue de cervos? (lança um sorriso de chacota<br />

para os outros membros)<br />

O homem calvo dirige mais um olhar reprovador ao homem com o<br />

charuto, que reluta, mas ergue as mãos para o alto, sacode a cabeça e<br />

acaba se acomodando.<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: De fato, você tem razão. Os costumes de<br />

160 Doença e Cura


cada povo não estão sob julgamento, mas sim o destino de nossa raça como<br />

um todo. Deixem-me relatar o que vi. (estendendo as mãos e gesticulando<br />

devagar, de um modo solene) Em um momento no qual a lua no céu revelava<br />

desgraça, foi que o demônio surgiu em meio ao nosso povo, invadindo nossa<br />

casa e nos causando dor e apreensão. Ele veio sob a forma de um estigma,<br />

que corrompeu o sangue de muitos dos seres que servem como nossos<br />

enviados. E a corrupção se manifestou em muitos seres da natureza, não<br />

apenas em um único, ao contrário do que se pode julgar a partir dos relatos<br />

de nosso amigo. Os animais, nossos aliados, nos cercaram e nos atacaram,<br />

de forma selvagem, sem responder aos nossos comandos. Foi um terrível<br />

sinal dos céus, mau agouro... Tivemos que matá-los.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Senhor, se me permite a intromissão,<br />

o que isso tudo tem a ver com a coagulação?<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: (eleva a mão, exigindo atenção) Com<br />

enorme pesar, matamos nossos aliados, e o sangue puro das bestas que antes<br />

nos seguiam foi derramado em nosso solo sagrado... e aquele sangue puro<br />

coagulou, e endureceu. Morreu aquele sangue que se esvaía das carcaças,<br />

como tudo o que é vivo morre...<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: (faz uma pausa, unindo as mãos –<br />

quando torna a falar, sua voz está bem mais grave, o tom mais baixo,<br />

quase fúnebre) O tempo passou, e, seguindo nossas tradições, iniciamos<br />

os preparativos para os ritos funerais de nossos serviçais da natureza –<br />

suas mortes, mesmo tendo ocorrido de forma inusitada e blasfema, não os<br />

afastariam do costume ancestral. Um dia apenas havia se passado desde o<br />

momento do massacre, e, enquanto outros membros da família cuidavam<br />

dos preparativos e cumpriam as solenidades, nós, patriarcas, dirigimonos<br />

ao campo de batalha, para recolher e abençoar as bestas, mas mesmo<br />

com tão pouco tempo, não encontramos mais o menor vestígio do sangue<br />

derramado junto aos corpos. As carcaças de nossos aliados estavam<br />

completamente secas.<br />

Mais uma pausa. Os membros da assembléia trocam olhares e<br />

murmúrios espantados.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Hã? Mil perdões, senhor, mas o<br />

que isso significa?<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: (falando pausadamente) Amigos do<br />

conselho... Mesmo com toda a minha experiência de vinte séculos de vida,<br />

eu ainda não compreendo em absoluto a ciência que guia os passos da<br />

civilização... Mas, tenho absoluta certeza de que vi aquele sangue, coagulado<br />

e duro, desaparecer do solo úmido sem deixar o menor rastro, por mais tênue<br />

que fosse, de que estivera ali. Conheço as terras onde minha família vive,<br />

escondida por milênios, e já apalpei cada grão de nosso solo... Senhores do<br />

mundo civilizado, acreditem neste... “caipira”... (ele olha com olhos vazios<br />

para o homem com o charuto) Tenho um mínimo de conhecimento técnico,<br />

Fabian Balbinot<br />

161


e posso dizer que aquele sangue, antes morto, coagulado, frio, REVIVEU e<br />

desapareceu!<br />

Faz-se o silêncio. Alguns membros da assembléia olham para longe,<br />

enquanto outros trocam olhares.<br />

HOMEM CALVO: O senhor tem absoluta certeza de que não restou<br />

nem sequer o menor sinal? Alguma mancha na terra...<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: (impassível) Tenho. Como eu disse,<br />

conheço cada grão daquele solo. Não havia mácula alguma, nem cheiro.<br />

O terreno em volta dos animais mortos estava seco por completo, como se<br />

nenhuma espécie de líquido tivesse ali caído por meses inteiros.<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: O que aconteceu depois?<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: Houve um certo pânico, mas os ritos<br />

funerais foram executados apenas com os corpos. Não poderíamos desmerecer<br />

a tradição, em virtude de um fenômeno que não compreendíamos.<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: E o que leva o senhor a crer que esta<br />

revolta dos seus lacaios animais tenha algo em comum com a moléstia que<br />

estamos discutindo?<br />

Os dois homens trocam olhares gelados, sem nenhuma emoção.<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: Assim como conheço cada grão de<br />

nosso solo, conheço e respeito cada uma das formas de vida que lá habitam.<br />

E conheço cada gota de sangue e seiva que dá vida a tais seres... Sei o cheiro<br />

de cada coisa que nasce, cresce e morre em minha terra. Porém, não conheço<br />

o sangue que havia dentro de nossos aliados, quando estes enlouqueceram<br />

e nos atacaram.<br />

O homem de mãos feias olha em volta e ergue ambas as mãos.<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: Não conheço isto a que os senhores<br />

classificaram como sangue contaminado. Tanto eu quanto meus familiares<br />

não sentimos cheiro de sangue... não vimos sangue em nossos animais<br />

naquela noite. Não havia sangue de verdade em seus corpos, e por isso não<br />

tivemos receio de matá-los, mesmo que isso fosse lamentável. Tínhamos<br />

certeza de que, de algum modo que não compreendíamos, eles já estavam<br />

mortos.<br />

HOMEM CALVO: O senhor quer dizer que não havia sangue nos<br />

animais?<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: Havia ALGO dentro dos corpos de<br />

nossos aliados naquela noite. Mas esse algo não era sangue... Não como<br />

conhecemos. Era algo diferente... algo atraente. Uma isca, um ardil, que<br />

tentava nos atrair para uma cilada, incitando-nos a atacar nossos animais<br />

apenas para consumi-lo, fisgando-nos a alma... (enruga a testa, fecha os<br />

olhos por alguns momentos) Foi extremamente difícil de nos mantermos<br />

lúcidos em meio ao embate.<br />

HOMEM DE TÊNIS: (manifesta-se pela primeira vez, erguendo a<br />

mão, como um colegial) Hã? Lembro de uma história parecida. Ouvi falar<br />

162 Doença e Cura


de um caso em que um cara viu uma trilha de sangue. Era um dos nossos,<br />

e ele estava passando perto de uma passagem de esgoto. Era uma poça de<br />

sangue, quente, vinda do nada. O cara contou que se jogou na poça e lambeu<br />

o chão feito um porco. Ele nunca tinha visto nada igual... Era como curtir um<br />

barato, sabe? (gesticulando) Não tinha como evitar. Dias depois, ele sumiu,<br />

e nunca mais ouvimos falar nele.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Senhor, eu ainda não consigo<br />

compreender o que esse sangue que não era sangue tem a ver com a<br />

coagulação?<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: Aquele líquido coagulou, e depois se<br />

liquefez. Morreu e depois ressuscitou. A coagulação que conhecemos, e que<br />

acontece com o sangue dos vivos, quando este se resfria, não acontece da<br />

mesma forma com nosso sangue, que pode ser restaurado em larga escala<br />

a partir da assimilação de umas poucas gotas de sangue vivo, e nem com<br />

aquele sangue do demônio, que – torno a enfatizar – não era sangue... Não<br />

da forma como conhecemos.<br />

HOMEM CALVO: O senhor insinua que o... demônio... o dono deste<br />

sangue maléfico, por acaso é um de nós?<br />

HOMEM DE MÃOS FEIAS: Não sei o que é, mas seu modo de ser,<br />

pelo que pude ouvir até agora, lembra muito o nosso próprio. Ele é uma<br />

besta. Um caçador, inteligente e poderoso. Um vampiro de vampiros.<br />

HOMEM COM O CHARUTO: (acenando negativamente a cabeça e<br />

sorrindo) Excelente! Estamos fodidos!<br />

Mais alguns segundos de silêncio se passam.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: (pigarreia) Bem...<br />

Ao lado do homem de mãos disformes, uma mulher muito alta levantase<br />

e bate com a mão na mesa com força.<br />

MULHER MUITO ALTA: (exclamando) Não costumo participar<br />

deste tipo de concílio, é só estou aqui porque o assunto é grave! Perdi já três<br />

das minhas irmãs, de uma forma muito suspeita, e sugiro que os senhores<br />

passem a apresentar soluções, ou teremos de agir à nossa própria maneira!<br />

HOMEM CALVO: Por favor, acalme-se, senhora. Temos que discutir<br />

o problema e tentar entendê-lo...<br />

HOMEM COM O CHARUTO: (também se exalta) Puta que pariu!<br />

É sempre a mesma coisa! Viemos aqui, fazemos a porra dessa reunião, e<br />

nunca se chega a nenhuma conclusão que preste! Só que, agora, a encrenca<br />

é real, e tá cheio de gente morrendo por aí! Temos que achar o safado que<br />

está fazendo isso, e enchê-lo de chumbo!<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: M-mas... não fazemos a menor<br />

ideia de quem ou o que venha a ser essa criatura. Ele... isso age de uma<br />

forma... hum... imperceptível para nós. Não temos como detectá-lo até o<br />

momento em que é tarde demais e o estrago já foi feito. E tem o detalhe mais<br />

importante, que ainda nem chegamos a mencionar, que é o dano que o sangue<br />

Fabian Balbinot<br />

163


contaminado causa em nosso próprio sangue, destruindo ou ocasionando<br />

efeitos indesejados em nossas... hã?... nossas capacidades especiais.<br />

HOMEM DE TÊNIS: Pois é... Um de meus amigos acabou pirando<br />

de tanto ouvir. Quer dizer (gesticulando)... o cara ouvia pra caramba, e podia<br />

escutar uma agulha caindo no chão a três quilômetros de distância. Era um<br />

negócio assim, focalizado, como todo mundo aqui deve saber. Mas, de uma<br />

hora pra outra, o cara perdeu o controle. Ele ficou biruta e perdeu a noção<br />

do dia e da noite... Disseram que foi de tanto ouvir, que o cara gritava que<br />

estava enlouquecendo de tanto barulho. (gesticulando e representando)<br />

“Porra! Puta que pariu! Alguém desligue esta barulheira dos infernos!” Na<br />

última vez em que ouvi falar dele, ele estava preso em um quarto, e a única<br />

maneira que o pessoal daquela área achou para acalmá-lo foi jogar sacolas<br />

e mais sacolas de sangue. Ele tomava uma tonelada de sangue por noite e<br />

acordava seco como palha na noite seguinte. O pessoal tinha um contato<br />

bom, e conseguiu extrair muito do banco de sangue daquela cidade, trocando<br />

os registros de entrada e saída, bagunçando com os arquivos, falsificando...<br />

Mas, no fim, deu tudo na mesma, e o cara arrebentou a janela e se atirou na<br />

rua, em pleno dia. Aquele pessoal teve até de mudar de cidade pra não dar<br />

muito na vista... Uma merda só!<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Exatamente! Parece que quem está<br />

contaminado enfrenta, além dessa sede incontrolável, um sério descontrole<br />

de suas capacidades especiais. Os céleres não conseguem mais se mover<br />

com rapidez. Os videntes enlouquecem com suas visões...<br />

HOMEM DE TÊNIS: (dando de ombros e gesticulando) Os<br />

“escutadores” ficam surdos de tanto ouvir...<br />

(A mulher muito alta torna a sentar-se.)<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Hã?... Exatamente. E também<br />

há relatos de certos fenômenos... digamos, extra-sensoriais. Temos dossiês<br />

relatando dois ou três casos ainda mais estranhos. Em um deles, se bem me<br />

lembro, uma força tarefa de membros foi destacada para perseguir alguém<br />

suspeito, e aconteceu algo fenomenal. (aponta para a mulher que está<br />

sentada ao lado do homem com o charuto) Como o incidente se deu em sua<br />

cidade, estou certo que a senhorita pode nos fornecer mais detalhes...<br />

A mulher arregala muito os olhos, e desvia o olhar, observando<br />

apreensiva um por um dos cinco integrantes do conselho que se encontram<br />

sentados diretamente a sua frente.<br />

MULHER AO LADO DO HOMEM COM O CHARUTO: Hmm...<br />

Sim. Eu posso resumir o caso, pois aconteceu em minha área, ao norte do<br />

continente. (pigarreia) Parte do meu pessoal foi destacada para encontrar<br />

um determinado sujeito... (ela olha inquisitiva para o mestre de cerimônias,<br />

que aperta os olhos em sua direção) O que houve?<br />

HOMEM CALVO: Não me parece ser de todo comum que integrantes<br />

da sua família possuam a capacidade de erguer barreiras psíquicas...<br />

164 Doença e Cura


A mulher arregala ainda mais os olhos, e desvia novamente o olhar.<br />

MULHER AO LADO DO HOMEM COM O CHARUTO: Hmm...<br />

Eu... Eu estive aprendendo e praticando... novas habilidades. Estamos em<br />

uma época em que me parece... ser o certo armar-se de todas as defesas<br />

possíveis.<br />

Ela torna a encarar o homem calvo, que após alguns segundos,<br />

afrouxa a sisudez da face e estica os braços à frente.<br />

HOMEM CALVO: Está fazendo um excelente trabalho (ele congratula<br />

a mulher, efusivo)... Completamente impenetrável. Não consigo saber nada<br />

do que você está pensando. Parabéns!<br />

MULHER AO LADO DO HOMEM COM O CHARUTO: Obrigada.<br />

Posso continuar?<br />

O mestre de cerimônias faz um gesto permissivo, e põe-se a escrever<br />

em uma das folhas de papel à sua frente.<br />

MULHER AO LADO DO HOMEM COM O CHARUTO: (gesticula<br />

com uma das mãos, revelando unhas muito compridas) Bem, como eu dizia,<br />

parte do meu pessoal foi destacada para encontrar um sujeito em nossa<br />

cidade. Tínhamos fotos da pessoa, que sabíamos se tratar de um conhecido<br />

repórter local, que também fora investigador de polícia e detetive particular,<br />

e tínhamos também dados, um documento completo sobre suas atividades<br />

recentes, informando que ele havia se recuperado miraculosamente de uma<br />

doença pulmonar em estágio terminal, retornando à ativa, mudando porém<br />

o foco de seu trabalho para pesquisas e ensaios sobre doenças e transtornos<br />

relacionados às funções cardíacas, coisa muito diferente do que ele fazia<br />

originalmente... lidar com bandidos. Com base no que já sabíamos, pois<br />

muitos casos relacionados à peste aconteceram em nossa cidade e arredores,<br />

resolvemos coletar informações sobre o tal indivíduo. Seus amigos disseram<br />

que ele sofrera uma tremenda transformação, deixando de ser a pessoa<br />

sociável que sempre fora para se tornar um indivíduo fechado e recluso,<br />

que não atendia o telefone nem recebia visitas, nem de conhecidos, e vivia<br />

trabalhando em suas pesquisas, dia e noite, sem parar. Ao que parece,<br />

desligou-se até mesmo da própria família. Todos os fatores eram condizentes<br />

com os sintomas conhecidos da moléstia quando esta acomete... os vivos,<br />

sem contar que tal isolamento nos concedia a vantagem de poder interrogar<br />

o repórter sem sermos interrompidos. Em um dado momento, ele fugiu, e foi<br />

perseguido e cercado por nosso pessoal...<br />

A mulher abaixa a cabeça e para de falar.<br />

HOMEM DE TÊNIS: E aí? O que aconteceu?<br />

MULHER AO LADO DO HOMEM COM O CHARUTO: Dez<br />

homens foram vaporizados de uma vez só.<br />

Os demais membros da mesa se comovem.<br />

MULHER AO LADO DO HOMEM COM O CHARUTO: Dez de<br />

nossos melhores homens... Os dois que sobraram disseram que tinham<br />

Fabian Balbinot<br />

165


visto o... sol. E só escaparam por milagre. O detalhe é que a operação foi<br />

executada logo após a meia-noite... e a perseguição aconteceu em uma viela<br />

muito mal iluminada.<br />

O silêncio impera por alguns instantes.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Eu... eu lamento. Não tenho<br />

nenhum relatório sobre esse... essa fatalidade.<br />

HOMEM COM O CHARUTO: Eu já conhecia essa história, pois<br />

ela me contou antes da reunião ter começado... Realmente, terrível. Morrer<br />

queimado de sol em plena noite. Onde o mundo vai parar...<br />

HOMEM DE TÊNIS: Será que não foi algum tipo de equipamento de<br />

iluminação especial? Alguma lâmpada de grande potência?<br />

MULHER AO LADO DO HOMEM COM O CHARUTO: Os<br />

sobreviventes disseram que quando se aproximaram do repórter, ele riu,<br />

falou alguma coisa, e... virou luz.<br />

O homem de tênis assobia, e passa os dedos pelo teclado do laptop.<br />

MULHER AO LADO DO HOMEM COM O CHARUTO: Não<br />

somos exatamente principiantes em nosso serviço. As informações com que<br />

costumamos trabalhar são sempre muito precisas. De fato, o que aconteceu<br />

foi inesperado, completamente além de nossas previsões. Sabíamos ser bem<br />

provável que o repórter em questão fosse o chamado “veículo” humano<br />

mais recente para o deslocamento da moléstia. Entretanto, não tínhamos<br />

como imaginar que o... monstro seria capaz de liberar um ataque de tamanha<br />

contundência. Há, inclusive, relatos de civis humanos, residentes nas<br />

vizinhanças daquela área, os quais declararam terem visto um fulgor forte<br />

e silencioso naquela noite. Saiu até em um dos jornais da cidade em um<br />

primeiro dia, e noutros durante toda aquela semana...<br />

A mulher ao lado do homem com o charuto dá de ombros, sem saber<br />

mais o que dizer, produzindo mais instantes de silêncio.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Eu... bem... eu não imaginava<br />

que o desfecho deste caso tivesse sido assim tão... tão impressionante.<br />

Como disse, não tenho dados sobre os... casos mais recentes. Nos outros<br />

casos de perseguições de que ouvi falar, os fatos não se desenrolaram de<br />

forma tão dramática. Em um deles, se não me engano, uma determinada<br />

pessoa foi perseguida, capturada, e conduzida para ser interrogada em um<br />

local específico. Porém, ao chegarem lá, os captores descobriram que a<br />

pessoa capturada era um reles mendigo, que nada tinha em comum com<br />

o alvo predeterminado. Houve desentendimentos, a princípio, mas, no fim<br />

das contas, chegou-se à conclusão que algum tipo de ilusão ou sugestão<br />

direcionada, extremamente eficaz, foi aplicada aos integrantes do grupo<br />

de captura, turvando suas percepções e fazendo-os crer que a pessoa que<br />

tinham perseguido e sequestrado era realmente o alvo. (pigarreia) Em outro<br />

caso, o fugitivo foi perseguido e... bem... se não me engano, parece que<br />

ele se dividiu em dois, e estes dois se dividiram em mais dois, e... cada<br />

166 Doença e Cura


uma das quatro cópias sumiu por um caminho diferente, o que deixou os<br />

perseguidores espantados e sem saber o que fazer. Ah, e para que ninguém<br />

diga estarmos apenas diante de um ilusionista profissional, o último dos<br />

relatos que me vem à mente cita mais uma perseguição, em que os captores<br />

foram todos... trespassados por afiados estilhaços de madeira. Pelo que me<br />

consta, o indivíduo que estava sendo perseguido daquela vez se deixou<br />

cercar, e explodiu em pedaços de madeira bem reais e pontiagudos, varando<br />

com... hã... pequenas estacas... todo mundo que houvesse em seu redor.<br />

HOMEM DE TÊNIS: Um metamorfo?<br />

HOMEM COM O CHARUTO: Um homem-bomba anti-vampiros...<br />

Suponho que, algum tempo depois de ter se explodido e empalado todos em<br />

seu redor, o filho da puta voltou à ativa.<br />

HOMEM CALVO: É exatamente o motivo de estarmos aqui nesta<br />

noite...<br />

Faz-se mais alguns segundos de silêncio.<br />

MULHER MUITO ALTA: Sim, estamos aqui. E já passou da hora<br />

de começarmos a agir. Tenho certeza que devemos iniciar um combate mais<br />

incisivo a esta praga, e colocar um término em seu avanço.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Mas... mas... são dezenas de relatos,<br />

e quase todos diferem em muitos quesitos uns dos outros. E ainda por cima<br />

deve haver muitos outros casos com desfechos diferentes destes, que não<br />

foram relatados. Não podemos simplesmente iniciar uma caçada às cegas...<br />

HOMEM DE TÊNIS: É. Parece que ainda não sabemos direito o que<br />

estamos enfrentando.<br />

HOMEM COM O CHARUTO: Ótimo! Excelente! Saberemos o que<br />

estamos enfrentando em breve, quando todos estivermos mortos.<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: Não necessariamente... Acho que<br />

existe pelo menos UMA linha de ação que pode ser tomada de imediato.<br />

Uma nova pausa. Todos olham para a face encoberta pelo capuz do<br />

homem com o crucifixo.<br />

HOMEM CALVO: O que você sugere?<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: Tenho certeza que qualquer atitude<br />

de retaliação impensada resultaria em desperdício de homens, portanto,<br />

sugiro que concedamos ao nosso “estimado” parasita uma série muito<br />

especial de refeições...<br />

HOMEM COM O CHARUTO: Refeições? Comida? Do que diabos<br />

você está falando?<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: É simples, e estou certo de que, com<br />

o auxílio de nosso colega hacker aqui presente (ele aponta para o homem de<br />

tênis, diante do laptop), teremos todas as condições de colocar minha ideia<br />

em prática. O plano é bastante simples, porém não faço a menor ideia da<br />

disponibilidade... ou da existência do equipamento necessário para colocálo<br />

em prática, e é por isso que vou precisar da ajuda de nosso amiguinho.<br />

Fabian Balbinot<br />

167


HOMEM CALVO: Equipamento?<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: Sim, equipamento. Vou explicar...<br />

Estamos frente a um parasita, apto a invadir, tomar e inabilitar nossos<br />

sistemas vitais, por intermédio dos mais diversos subterfúgios. Somos presa<br />

fácil para as técnicas deste parasita, as quais sequer conhecemos direito. O<br />

que precisamos fazer é expor alguns de nós, como se fossem iscas, e atrair<br />

o monstro...<br />

HOMEM COM O CHARUTO: (levanta-se, interrompendo o outro,<br />

abrindo os braços e esbravejando, enquanto o encara) Entendi sua jogada,<br />

seu grande safado! Você quer mais vítimas! Já vou avisando que não vou<br />

participar de nada que esse maldito filho da...<br />

HOMEM CALVO: (levanta-se também, e exclama, furioso)<br />

ACALME-SE, senhor! Ou será melhor que abandone esta reunião! E garanto<br />

que, se o senhor sair por aquela porta, SUA família não contará mais com o<br />

auxílio de NENHUMA das famílias que integram este conselho, nem para<br />

resolver este problema, e nem em relação a nenhum outro!<br />

HOMEM COM O CHARUTO: (lança um olhar desafiador ao mestre<br />

de cerimônias) Está me dizendo que, por uma bobagem destas... baniria<br />

minha família do conselho?<br />

HOMEM CALVO: Exatamente. E não creio que seria sábio de sua<br />

parte retirar-se do conselho sem nem ao menos ouvir o que nosso colega tem<br />

a dizer, o que já identifiquei, segundo os pensamentos dele próprio, como<br />

sendo parte de uma solução bastante razoável e que pode vir a ser muito<br />

eficiente para nossos problemas. Aliás... não creio que o senhor realmente<br />

acredite que esta situação e suas implicações sejam mesmo APENAS uma<br />

bobagem.<br />

HOMEM COM O CHARUTO: Hã? (mostrando indecisão) Você já<br />

sabe o que ele vai dizer?<br />

HOMEM CALVO: Muita coisa. É um dos talentos de minha<br />

família...<br />

O homem com o charuto olha em redor, percebendo os semblantes dos<br />

demais membros do conselho, todos parecendo apontar para ele próprio.<br />

HOMEM COM O CHARUTO: (acaba se sentando, contrafeito)<br />

Como eu queria ter essa merda de telepatia...<br />

HOMEM CALVO: (senta-se e dirige-se de volta ao homem com o<br />

crucifixo) Por favor, continue com sua interessante explanação.<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: Certo. Vou ser mais direto, para<br />

evitar polêmica. (passa a falar diretamente com homem de tênis) Suponho<br />

que existam transmissores eletrônicos em tamanho microscópico hoje em<br />

dia, aos quais você deve ter acesso...<br />

HOMEM DE TÊNIS: O quê?... Ah, sim. Temos gente infiltrada em<br />

uma empresa de engenharia eletrônica que vem pesquisando e aperfeiçoando<br />

nanotransmissores moleculares que...<br />

168 Doença e Cura


HOMEM COM O CRUCIFIXO: (interrompe) Existe alguma chance<br />

de que estes nanotransmissores possam ser injetados no sangue de algum<br />

de nós?<br />

HOMEM DE TÊNIS: Hã?... Ao que parece... deixe-me ver... (começa<br />

a digitar no teclado do laptop, que solta bips e zune)... Eu devo ter algum<br />

relatório sobre este projeto guardado por aqui em algum lugar...<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: Verifique esta informação, por favor,<br />

enquanto eu explico aos nossos colegas como funcionará o meu plano.<br />

O homem com o crucifixo se levanta.<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: Não tive muito contato com a tal<br />

moléstia, e sei pouco a seu respeito. Por sorte, a minha parte da família<br />

ainda não sofreu maiores danos em virtude desse mal. Mas, pelo que pude<br />

constatar a partir dos relatos de quase todos os membros aqui presentes, esta<br />

epidemia parece ser de ordem natural. A providência divina, ou a evolução das<br />

espécies, o que quer que seja, optou por incrementar a cadeia alimentar deste<br />

mundo com mais um estágio. Éramos a espécie dominante, aparentemente,<br />

pois tínhamos nossas fraquezas, que ainda podem ser usadas contra nós, o<br />

que nos obriga a sobreviver nas lendas mais obscuras e a agir em silêncio,<br />

na calada da noite. Se surgirmos para o mundo e revelarmos nossa face, não<br />

tenho dúvidas de que seremos erradicados como a uma praga...<br />

O homem de tênis levanta a mão e põe-se a ler o que aparece na tela<br />

do computador portátil.<br />

HOMEM DE TÊNIS: Ao que parece, já existem nanotransmissores<br />

de dois modelos. Um é biodegradável, e tem data de validade... e parece<br />

que vai ter uso medicinal. O outro é permanente, e uma de suas aplicações<br />

prováveis será o rastreio de animais microscópicos... Diabos! É uma tonelada<br />

de falatório técnico, mas ao que parece, os caras querem colocar brincos<br />

e argolas de monitoramento em bichos bem menores do que pinguins e<br />

tamanduás em extinção. Pelo que pude ver, isso pode ser injetado no sangue...<br />

Melhor ainda, DENTRO de células, aos milhões, pois o mecanismo é autoreplicante.<br />

Após penetrar na célula, o sistema se acopla e estabiliza, e passa<br />

a funcionar como uma espécie de escuta molecular, gerando um sinal que...<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: Os nanotransmissores podem ser<br />

infiltrados em nosso sangue e seus sinais podem ser localizados e mapeados<br />

à distância, é isso?<br />

HOMEM DE TÊNIS: Hã?... É. Mas, isso ainda está em fase de<br />

testes...<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: Não vejo qual teste poderia ser<br />

MAIS adequado do que este. Agradeço sua informação. Procure seus colegas<br />

dentro da instituição responsável e providencie uma remessa deste material.<br />

Suponho que também venhamos a necessitar de pessoal treinado e de todo<br />

o equipamento de rastreio, o qual deverá funcionar nos rastreamentos em<br />

áreas de escala global, e não apenas microscópica, obviamente...<br />

Fabian Balbinot<br />

169


HOMEM CALVO: Perdoe-me, mas o senhor parece já estar tratando<br />

da execução do plano, sem que tenhamos sequer chegado a um consenso<br />

quanto à sua viabilidade.<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: Desculpe-me... A rapidez de<br />

raciocínio (sorri pela primeira vez) e a agilidade na tomada de decisões são<br />

um dos talentos de minha família (nota-se um certo sarcasmo no que ele<br />

repete esta frase, olhando para o homem de mãos feias, que sequer esboça<br />

reação). A ideia, como o senhor já deve bem saber, é bastante simples. Já que<br />

a natureza nos traiu e não podemos mais confiar nela, usaremos a tecnologia<br />

para descobrirmos onde a origem de nosso problema se encontra, e quais são<br />

suas fraquezas.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Mil perdões... mas... pelo que<br />

pude compreender, sua intenção é colocar iscas com estas nano... máquinas<br />

infiltradas em seu sangue... para que, assim que o monstro venha a capturálas,<br />

possamos rastreá-las e encontrar a raiz do problema.<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: Exatamente.<br />

Agitação. Os demais membros do conselho passam a confabular<br />

ruidosamente entre si.<br />

HOMEM CALVO: (batendo palmas, de modo a chamar a atenção<br />

dos outros) Por favor, controlem-se, senhores e senhoras. Temos aqui duas<br />

mentes que já possuem o conhecimento necessário a respeito do plano, pois<br />

já faço ampla ideia do que se trata, e uma terceira mente capaz de obter os<br />

meios para colocá-lo em funcionamento (aponta para o homem de tênis).<br />

De fato, temos pouca ou nenhuma informação a respeito deste mal, e não<br />

me parece existir alternativa melhor do que esta para invadirmos o covil<br />

deste nosso... predador natural, explorando seu modo de vida e descobrindo<br />

suas vulnerabilidades, para então, de posse do conhecimento necessário,<br />

partirmos para um contra-ataque mais elaborado e efetivo... (ele olha para a<br />

mulher muito alta e para o homem com o charuto) sem colocarmos nossos<br />

enviados em risco.<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: É o que diz a lógica... Aproxime-se<br />

de seu inimigo. Conheça-o e poderá derrotá-lo.<br />

HOMEM CALVO: Entretanto, (colocando-se de pé) todas as<br />

decisões em um concílio devem ser tomadas em comum acordo de todos<br />

os seus participantes. Mesmo com as permanentes mudanças e avanços que<br />

o tempo nos proporciona, esta antiga formalidade é sábia e será mantida, e<br />

o que for decidido por este patriarcado deverá ser informado também aos<br />

principais representantes das famílias que não puderam se fazer presentes.<br />

E como estamos enfrentando um problema de ordem global aqui, creio que<br />

nem mesmo as... minorias devem ser impedidas de tomar conhecimento de<br />

nossas decisões.<br />

O homem calvo faz um sinal, e todos os demais se levantam de seus<br />

assentos.<br />

170 Doença e Cura


HOMEM CALVO: Existe algum de nós aqui presente que conheça<br />

algum impedimento que possa obstruir a imediata execução das ações aqui<br />

apresentadas? Que tal pessoa se apresente e exponha seus argumentos.<br />

HOMEM À DIREITA DA MESA: Mil perdões... mas... (fala de<br />

forma muito reticente) ocorreu-me algo... Bem... E que garantia podemos<br />

vir a ter de que o tal... equipamento pode ser infiltrado em nosso sangue, sem<br />

causar reações adversas...<br />

HOMEM COM O CRUCIFIXO: (impassível) Parece-me bastante<br />

óbvio que uma série de testes deva ser feita sempre que se tenta realizar algo<br />

novo. Posso afirmar que os testes que se fizerem necessários serão colocados<br />

em prática, antecedendo a ação.<br />

HOMEM CALVO: (após alguns segundos em que ninguém mais se<br />

pronuncia) Alguém mais tem alguma observação a fazer?<br />

Ninguém se manifesta por uma dezena de segundos.<br />

HOMEM CALVO: Excelente. A execução deste plano de infiltração<br />

e recolhimento de informações ficará à cargo de nossos dois amigos, que<br />

passam a ter salvo conduto com ampla liberdade de ação e locomoção,<br />

inclusive através de território inamistoso... (olhando para o homem com o<br />

charuto)<br />

HOMEM COM O CHARUTO: Não precisa se preocupar. Não<br />

iremos nos meter nos negócios de ninguém, principalmente se o resultado<br />

desta merda toda que você pretendem fazer for suficiente para acabar com<br />

as mortes em minhas fileiras.<br />

HOMEM CALVO: Ótimo. Declaro esta etapa emergencial deste<br />

concílio encerrada, e proponho que seja convocada uma nova reunião<br />

extraordinária tão logo as informações que venham a ser obtidas tornem viável<br />

qualquer forma de represália contra nosso inimigo comum. Recomendo que<br />

todos permaneçam aqui no castelo por mais alguns momentos, pois existem<br />

alguns assuntos extra-oficiais que, tenho certeza, são do interesse de todos.<br />

Os participantes do concílio começam a se retirar, exceto o sexto<br />

homem, um dos que não se manifestaram durante toda a reunião, e o mestre<br />

de cerimônias.<br />

Quando todos os demais já saíram, os dois homens trocam palavras.<br />

SEXTO HOMEM: (parecendo ansioso e nervoso) Foi... um...<br />

excelente teatro.<br />

HOMEM CALVO: Deixe-os acreditar no que quiserem.<br />

Os nanotransmissores não deixam de ser uma boa ideia, caso tudo mais<br />

falhe. Eles saberão da verdade mais tarde. Você está pronto?<br />

SEXTO HOMEM: A-acho que sim.<br />

HOMEM CALVO: (colocando a mão sobre o ombro do outro) Limpe<br />

sua mente. Evite SABER do que sabe. Saiba apenas do que foi visto nesta<br />

reunião.<br />

SEXTO HOMEM: Não sabemos se a criatura também pode ler nossa<br />

mente...<br />

Fabian Balbinot<br />

171


HOMEM CALVO: Não pode. Ela se manifesta apenas em humanos,<br />

lembra-se? Tenha confiança, e agora vá.<br />

Relutante, o sexto-homem é conduzido pelo outro para fora da sala.<br />

Por alguns instantes o silêncio predomina na sala.<br />

Aos poucos, um vulto de capuz se ergue das sombras do chão, como<br />

se se materializasse do nada junto à parede do lado oposto à porta.<br />

Retirando o capuz, o QUARTO HOMEM que frequentara a reunião<br />

revela uma vasta cabeleira branca.<br />

Ele coloca a mão no queixo e olha para longe, como se meditasse...<br />

QUARTO HOMEM: Tolos...<br />

Sem olhar para trás, ele escala a parede do canto da sala com grande<br />

facilidade, e seu corpo vai desaparecendo à medida em que ele se mescla às<br />

sombras, desaparecendo de vista.<br />

Cai o pano.<br />

FIM DO ATO UM<br />

ATO DOIS<br />

* * * * *<br />

PERSONAGENS<br />

SEXTO HOMEM A PARTICIPAR DO CONCÍLIO<br />

MULHER COM UM MANTO<br />

CENÁRIO: Um descampado escuro com algumas árvores velhas e<br />

secas, localizado no sopé de um morro. Ao alto, acima e ao longe, vê-se parte<br />

de uma velha edificação, semelhante a um castelo. É noite e os relâmpagos<br />

irregulares que iluminam o céu nublado prenunciam a tempestade.<br />

O pano sobe, revelando o descampado deserto e rochoso, no sopé do<br />

morro irregular em cujo topo se encontra o prédio antigo onde aconteceu<br />

o concílio. Ainda é noite, e raios e relâmpagos iluminam o céu cinzento do<br />

cenário.<br />

Um homem vestido com um manto escuro entra em cena, caminhando<br />

lentamente e olhando para todos os lados, parecendo estar à procura de<br />

alguém.<br />

Ele retira o capuz da cabeça, revelando ser o sexto indivíduo a ter<br />

entrado no salão do concílio, no ato anterior.<br />

Sua face denota um profundo medo, e ele anda de um lado para o<br />

outro com cautela por alguns momentos, sem parar de olhar em volta.<br />

Ouve-se uma voz feminina...<br />

VOZ: Você parece muito preocupado...<br />

172 Doença e Cura


O homem de manto assusta-se, e desvia o olhar para todos os lados,<br />

elevando as mãos em uma atitude defensiva.<br />

Uma mulher adentra a cena pela direita, também coberta por um<br />

manto com capuz escuro que revela apenas sua boca, mãos e braços<br />

invisíveis debaixo do traje monástico.<br />

Ainda em posição defensiva, o homem recua para a esquerda do<br />

palco, procurando manter-se à distância da recém-chegada.<br />

HOMEM: Q-quem é você? (ele empertiga-se, apontando<br />

ameaçadoramente para o vulto) Identifique-se!<br />

MULHER: (caminhando despojadamente até o meio do cenário, onde<br />

permanece ereta, o rosto parcialmente coberto pelo capuz) Ora, deixemos a<br />

infantilidade de lado. Você sabe QUEM eu sou, ou não estaria aqui.<br />

HOMEM: (ainda procurando manter a distância) É... é bem por esse<br />

motivo que eu prefiro ficar longe de... você. Por saber O QUE você é!<br />

MULHER: (rindo) Realmente é muito engraçado você ACHAR que<br />

sabe o que eu sou, quando nem mesmo eu próprio tenho certeza do que sou...<br />

ou do que virei a ser amanhã. Não precisa ficar receoso...<br />

HOMEM: A-ainda t-temos nosso acordo?<br />

MULHER: O qual pretendo cumprir, até o fim.<br />

O homem simula um suspiro de alívio, e passam-se alguns segundos<br />

em que ambos os personagens permanecem em silêncio.<br />

MULHER: Aproxime-se sem temor. Diferente de vocês, eu NÃO<br />

mordo.<br />

HOMEM: Boa... piada (ele anda um ou dois passos para a frente,<br />

receoso).<br />

MULHER: (virando a cabeça para o lado do homem, que se encolhe)<br />

Acredite quando digo que não teria nenhum problema em destruí-lo, mesmo<br />

que quilômetros de distância nos separassem. (ela sorri) Já identifiquei seu<br />

sangue, e posso dominá-lo da forma como eu quiser.<br />

HOMEM: Eu... eu p-pensei q-que tivéssemos um acordo.<br />

MULHER: Já disse que temos (suspirando de tédio, a mulher dirigese<br />

para a direita ao passo que o homem foge para a esquerda, apressado,<br />

cruzando com ela, que se vira bruscamente para ele). Honre sua eternidade<br />

miserável, cumpra sua traição e diga-me o que quero ouvir!<br />

Passam-se mais alguns segundos em que o homem reflete. Por fim,<br />

ele fala.<br />

HOMEM: O... O Conselho decidiu por... por INVESTIGAR mais.<br />

MULHER: Sim, prossiga.<br />

HOMEM: (dando de ombros) E-eles parecem não estar dispostos<br />

a colocar seus esforços a perder. Há muitos interesses em jogo, e para<br />

evitar... novas surpresas, os líderes preferiram adotar uma atitude defensiva<br />

e investigativa, avaliando os... SEUS movimentos, examinando os indícios<br />

que... você vem deixando por onde passa.<br />

Raios iluminam a escuridão.<br />

Fabian Balbinot<br />

173


Passam-se mais instantes em que ninguém se manifesta. Ouve-se o<br />

ribombo de uma sequência de trovões ao longe.<br />

MULHER: Interessante. Conte-me mais.<br />

HOMEM: M-mais? Não há mais o que comentar. Tanto eu quanto os<br />

outros líderes estamos de mãos atadas, e devemos a-apenas reportar qualquer<br />

uma de suas... manifestações... em nosso meio.<br />

MULHER: Houve algum tipo de dissidência?<br />

HOMEM: Dissidência?<br />

MULHER: Sim, algum tipo de discordância. Algum dos líderes se<br />

posicionou definitivamente contrário a esta atitude passiva?<br />

HOMEM: B-bem... houve manifestações de descontentamento de<br />

parte de um ou outro dos membros. Alguns deles prefeririam usar de força<br />

bruta e... caçar você, por bem ou por mal, desafiando a própria morte se<br />

necessário fosse.<br />

MULHER: (sorrindo e se deslocando novamente para a esquerda)<br />

Fúria e medo originam atitudes insensatas.<br />

O homem foge de novo para a direita, muito nervoso, procurando<br />

não se aproximar da mulher.<br />

HOMEM: A-a-alguns reclamaram e d-disseram que era... que era<br />

suicídio ficar apenas espreitando, e até... até exigiram que medidas mais<br />

drásticas fossem tomadas. Alguma espécie de retaliação. Mas, no fim das<br />

contas, chegou-se a um acordo de que seria suicídio de verdade lançar um<br />

contra-ataque contra algo que não conhecemos.<br />

Sorridente, a mulher apenas vira o rosto para o homem, soltando os<br />

braços e revelando as mãos de unhas compridíssimas, e assumindo uma<br />

posição bastante sensual.<br />

HOMEM: (visivelmente intimidado) I-inclusive foi proposto que um<br />

novo concílio seja realizado em... em dois... não, em TRÊS meses! E até<br />

que... esta nova reunião aconteça, as ordens são de aguardar e coletar o... o<br />

máximo de informações possível.<br />

MULHER: Eu fico imaginando... (voltando a cruzar os braços e<br />

reassumindo a atitude monástica, ela se dirige para a frente do cenário)<br />

Como será que sou conhecido em meio aos meus inimigos...<br />

HOMEM: O-o quê?<br />

MULHER: Como sou chamado por vocês, que são minhas presas?<br />

HOMEM: A... a que ponto você quer chegar? Não entendo sua<br />

pergunta...<br />

MULHER: A pergunta é muito simples e até bem ingênua. Como<br />

vocês, que são conhecidos universalmente como vampiros, se referiram a<br />

mim em suas conversas?<br />

O homem baixa a cabeça e coloca a mão no queixo, meditativo, sem<br />

desviar os olhos da mulher.<br />

MULHER: É uma curiosidade que sempre tive interesse em aplacar.<br />

HOMEM: Chamam você de... monstro. Ou de demônio.<br />

MULHER: (declara de forma dramática, elevando um dos braços)<br />

174 Doença e Cura


“Um vampiro de vampiros”. (a voz é a mesma do HOMEM DE MÃOS<br />

FEIAS do primeiro ato)<br />

HOMEM: Sim, lembro de... alguém...<br />

O homem congela, de repente, reconhecendo a fala proferida por um<br />

dos seus colegas de concílio durante a noite.<br />

Luzes iluminam o cenário, e ouve-se a seguir o estrondo dos<br />

relâmpagos.<br />

MULHER: (novamente usando a voz do HOMEM DE MÃOS FEIAS)<br />

“Estamos diante do ser que irá subjugar nossa espécie. As lendas não<br />

mentem. O alinhamento dos corpos celestiais indica o início de um ciclo de<br />

penúria e destruição.”<br />

Com o esgar de horror estampado na face, o homem coloca as mãos<br />

na cabeça e perambula claudicante por trás da mulher que permanece de<br />

braços elevados em uma posição de súplica bastante teatral.<br />

HOMEM: M-maldita... Maldita... (o homem cobre o rosto com uma das<br />

mãos e atira-se ao solo) Você... tinha uma escuta. Por que me usou desta forma<br />

se tinha uma escuta e podia gravar tudo o que se passava no interior da casa.<br />

A mulher deixa os braços caírem, e vira-se para o homem, com um<br />

sorriso de desprezo em relação ao seu desterro.<br />

MULHER: Gravar?<br />

Ela abaixa o pescoço como uma ave de rapina e torna a falar, desta vez<br />

com a voz do HOMEM CALVO, o mestre de cerimônias do ato anterior.<br />

MULHER: “Não me parece ser de todo comum que integrantes da<br />

sua família possuam a capacidade de erguer barreiras psíquicas... Está<br />

fazendo um excelente trabalho... Completamente impenetrável. Não consigo<br />

saber nada do que você está pensando. Parabéns!”<br />

O homem tapa a boca com ambas as mãos e estremece, como se<br />

sentindo muita repulsa.<br />

Ela eleva uma das mãos e remove o capuz, revelando ao homem uma<br />

face conhecida, que faz com que ele se assuste ainda mais. Ele imediatamente<br />

reconhece a jovem que estava sentada ao lado do homem com o charuto na<br />

mesa do concílio.<br />

MULHER: EU sou minha própria escuta.<br />

HOMEM: Em nome de Deus, você é a Rainha do Norte. V-você<br />

esteve sentada ao lado do líder da área ocidental... aquele maldito imbecil<br />

com seu charuto. Jesus!<br />

MULHER: Parabéns. Você está certo, inclusive na descrição de meu<br />

companheiro de mesa.<br />

HOMEM: (voltando a se levantar, coloca as mãos na cabeça,<br />

desesperado) Bruxa... Isto não pode estar acontecendo...<br />

MULHER: Sou um vampiro de vampiros, e estou diante de uma de<br />

minhas presas mais miseráveis, a qual talvez ainda nutra alguma esperança de<br />

que cumprirei minha parte em um acordo no qual ELE não cumpriu a sua...<br />

Fabian Balbinot<br />

175


HOMEM: (olha arregalado para a mulher e depois para longe) Meu<br />

Deus! Você é uma de nós. Você... é um vampiro, como a gente... E, durante<br />

este tempo todo acreditávamos que fosse um tipo de doença... uma peste.<br />

MULHER: (sacode a cabeça com desdém, aproximando-se<br />

rapidamente do homem e agarrando seu pescoço com a mão de unhas<br />

compridas) Certo. Agora é o momento em que devo bancar o vilão e torturar<br />

o mocinho para fazê-lo abandonar o delírio e retornar à realidade.<br />

Apesar de ser cerca de dez centímetros menor do que o homem, ela<br />

o ergue pelo pescoço e, com um único movimento do braço, joga-o sem<br />

dificuldade para o outro lado do cenário, onde ele se estatela depois de voar<br />

por alguns metros.<br />

MULHER: Vamos, retome a consciência logo de uma vez! (ela fala<br />

com desdém, caminhando rumo ao corpo do homem que tenta se levantar e<br />

rastejar para longe) Ainda tenho algum tempo e quero continuar esta nossa<br />

conversa, mas apenas se você estiver lúcido.<br />

Ela o agarra pelo braço e o arremessa para o meio do cenário.<br />

MULHER: Você foi um mau garoto. Mentiu para mim. Mas eu não<br />

vou mentir para você.<br />

Aproximando-se, ela coloca o pé sobre o peito do homem,<br />

empurrando-o para o solo e impedindo-o de se mover.<br />

HOMEM: O QUE VOCÊ QUER? (exclama, consumido pelo horror)<br />

Eu lhe disse a verdade! Estamos investigando você, e é exatamente o que<br />

está acontecendo AGORA!<br />

MULHER: Isto é apenas parte da verdade. Quero ensiná-lo a dizer<br />

a verdade COMO UM TODO quando participa de um acordo que vale sua<br />

vida e que O OBRIGA a dizer a verdade como um todo.<br />

HOMEM: O QUE VOCÊ QUER DE MIM? (exaltado, revelando os<br />

dentes pontiagudos e um par de olhos de cor amarelada, o homem agarra o<br />

pé da mulher, procurando removê-lo de cima de seu peito)<br />

Mantendo-se segura e sem se desequilibrar, quase como se flutuasse,<br />

a mulher usa seu pé livre para chutar com estrépito o queixo do homem,<br />

lançando a cabeça dele para trás, sem retirar o outro pé de cima de seu<br />

peito.<br />

MULHER: (falando calmamente) Quero apenas que você se cale e<br />

cumpra sua sina de me ouvir... e sofrer. Eu sou o único aqui que pode se dar<br />

o luxo de descumprir acordos.<br />

Aplicando mais um chute lateral na face do vampiro, ela desce o pé<br />

de seu peito e passa a caminhar pelo cenário, enquanto ele se contorce.<br />

MULHER: Durante um período muito longo eu tenho invadido e usado<br />

os corpos e as mentes de homens e mulheres brilhantes, herdando a memória e a<br />

capacidade dedutiva destes para investigar e descobrir. Um procedimento difícil de<br />

se realizar, que ainda hoje requer muita estratégia, paciência e um grande dispêndio<br />

de energia para que funcione a contento. Antigamente, há séculos e milênios atrás,<br />

176 Doença e Cura


eu não era mais do que uma colônia de parasitas microscópicos lutando pela<br />

própria sobrevivência em um ambiente hostil, e, graças a uma adaptabilidade e<br />

uma capacidade evolutiva surpreendentes, aqui estou, como sou hoje.<br />

O homem sacode a cabeça, procurando se recuperar do golpe.<br />

Mais relâmpagos são ouvidos ao fundo.<br />

MULHER: De modo diverso do que vocês imaginam, meu objetivo<br />

não é simplesmente me alimentar do sangue anômalo e poderoso dos<br />

vampiros e nem utilizar humanos ou os animais selvagens com quem seus<br />

companheiros de origem aborígene têm grande afinidade como veículo para<br />

possibilitar minhas investidas. Não. Meus objetivos são mais amplos, e<br />

são motivados pela mesma evolução que me fez alcançar este importante<br />

patamar em que atualmente me encontro. Hoje, eu represento o próximo<br />

estágio na evolução, pois minha função na natureza é aglutinar as raças, os<br />

instintos, o conhecimento, em um único ente, em uma única sociedade de<br />

indivíduos, em uma única memória.<br />

HOMEM: Jesus Cristo... (cuspindo sangue no chão)<br />

MULHER: Minha função, (falando despreocupadamente) o objetivo<br />

a que sou impelido por minha própria natureza, pelo que posso compreender,<br />

envolve a assimilação do reino animal terrestre na forma como este atualmente<br />

se encontra, o que possivelmente acarretará a extinção das espécies como são,<br />

as quais passarão a existir apenas como partes de mim perambulando pela terra.<br />

Quando estiver apto a dominar mente e corpo das criaturas mais poderosas<br />

do mundo – os vampiros – poderei utilizar sua vitalidade milenar e espectro<br />

reprodutivo único para tornar-me o que devo ser – um único ser, uma única<br />

mente... uma única raça orgânica de que farão parte todas as raças da terra.<br />

Talvez mais tarde, minha evolução venha a envolver também a assimilação da<br />

vida vegetal, ou meu próprio fim, pois apenas a evolução conhece meu destino,<br />

mas isso não tem importância, assim como são irrelevantes estas palavras que<br />

ora lhe digo... Irrelevantes, porém sempre interessantes traços de orgulho<br />

e exibicionismo. Um simpático patrimônio sentimental que obtive deste<br />

corpo que tomei emprestado. Ninguém precisa saber que o Armagedom está<br />

próximo, mas, certas substâncias químicas produzidas por este cérebro, (ela<br />

aponta para a própria cabeça) que agora me pertence, tornam extremamente<br />

satisfatório gritar aos quatro ventos que o fim vem aí!<br />

De olhos arregalados e dentes à mostra, o vampiro se empurra, de<br />

costas, para longe da mulher de manto, que o observa sorridente.<br />

A mulher puxa um relógio de bolso de algum lugar dentro de seu<br />

capote e avalia seus ponteiros, continuando o discurso.<br />

MULHER: Não sabia que poderia ser tão aprazível divertir-me as<br />

custas do sofrimento dos outros. Como você pode bem imaginar, a maior<br />

parte dos geneticistas e biólogos não se divertem com os desmembramentos<br />

e dissecações de corpos que por vezes são obrigados a realizar – o que os<br />

comove é a possibilidade de obter algum resultado para seus estudos e<br />

Fabian Balbinot<br />

177


experiências. Animais que caçam e matam suas presas para se alimentar<br />

também procuram não experimentar grandes emoções, e suas emboscadas<br />

são sempre preparadas de modo a serem infalíveis, para evitar o stress de uma<br />

nova tentativa. Após todo o tempo em que passei cultivando o auto-controle<br />

e a mais absoluta concentração, mantendo o foco na autopreservação e nos<br />

objetivos de meus estudos, é realmente excitante estar experimentando uma<br />

nova sorte de emoções e desejos.<br />

HOMEM: Você é... louca...<br />

Ela vai caminhando lentamente, acenando a cabeça em negação, até<br />

o vampiro apavorado, que cobre parte da face com o braço.<br />

MULHER: Tsc, tsc, tsc...Pode até ser. Evolução sempre envolve uma certa<br />

dose de loucura. Porém, sinto-me muito bem diante da perspectiva de torturálo<br />

até a morte, repetidas vezes, infinitamente... (ela se abaixa e tenta colocar a<br />

mão na cabeça dele e acariciá-lo, porém ele se desvencilha com um tabefe). De<br />

qualquer forma, diferente de antes, quando fui obrigado a torturar e matar alguns<br />

de vocês em nome da ciência ou da sobrevivência, agora o que me motivaria é<br />

a simples sensação de prazer de ver um ser vivo sofrer. Não faço questão nem<br />

mesmo de tentar entender os desvios e traumas psicológicos que transformaram<br />

esta mente em um poço de loucura tão profundo, mas é simplesmente soberbo<br />

imaginar as milhares de maneiras diferentes... (ela se abaixa de novo e, com<br />

a mão livre, agarra a mão hesitante do vampiro)... com as quais eu poderia<br />

desmembrá-lo. Eu poderia começar arrancando seus dedos...<br />

A mulher começa a apertar os dedos da mão dele. Tomado pelo terror,<br />

o vampiro caído tenta soltar os dedos de forma frenética, sem sucesso.<br />

Ouve-se o estalido de ossos sendo quebrados.<br />

Ele grita de dor.<br />

Após alguns instantes, a mulher solta a mão do vampiro, erguendose<br />

e rindo de forma histérica, enquanto ele se debate segurando a mão<br />

amassada.<br />

MULHER: (gemendo de prazer) Nossa... Estou realmente diante de<br />

algo novo. Tamanho prazer físico e tão indescritível... (ela arfa, como se<br />

tentando recuperar o fôlego)... euforia em infligir dor e sofrimento são...<br />

sensações novas para mim, que se me parecem muito mais com uma espécie<br />

de instinto natural, e não com um trauma psicológico mal resolvido (ela<br />

cobre a face com a própria mão). Prometo que vou providenciar uma forma<br />

de permanecer com este corpo e desfrutar destas sensações... pelo maior<br />

tempo possível. Mas, não devo me preocupar com isso agora...<br />

Ela puxa e confere o relógio de bolso novamente.<br />

MULHER: É chegado o momento...<br />

Devolvendo o relógio ao bolso, ela ergue os braços, olhando para o<br />

castelo ao fundo do cenário.<br />

Alguns segundos se passam...<br />

No solo, o homem a observa com olhos muito arregalados, sem entender.<br />

178 Doença e Cura


MULHER: AGORA!<br />

Diversas explosões acontecem no castelo ao fundo e ao alto do<br />

cenário, iluminando a escuridão tempestuosa da noite, os sucessivos<br />

estrondos que colocam as paredes de pedra abaixo se confundindo com os<br />

relâmpagos que vez por outra dardejam pelo céu.<br />

Ainda de braços elevados e pernas afastadas, virada para o fundo do<br />

cenário, a mulher permanece estática, como se estivesse no auge de uma<br />

cerimônia bastante formal.<br />

No chão, o assustado vampiro se protege das explosões. E grita, no<br />

mais completo desespero.<br />

HOMEM: NÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOO!<br />

Soltando uma gargalhada contínua e sinistra, a mulher cai de<br />

joelhos, ao passo que o homem levanta e cambaleia, grunhindo de agonia<br />

e segurando a mão ferida, em direção ao prédio que se incendeia ao longe,<br />

no fundo do cenário.<br />

MULHER: Posso... sentir... o desterro... a dor. Os corpos<br />

incinerados...<br />

Depois de dar alguns passos, ele também tomba de joelhos e cai para<br />

o lado, virando-se de barriga para cima e cobrindo o rosto com as mãos.<br />

Ele chora copiosamente.<br />

A mulher se coloca de pé e, ainda com os braços estendidos, como<br />

se quisesse abraçar o mundo, ela se vira deixando o castelo envolto em<br />

chamas às suas costas.<br />

MULHER: A... empatia deste corpo é simplesmente fenomenal.<br />

Eu vejo e ouço... a dor (ela fecha os olhos e levanta ao máximo a cabeça,<br />

jogando-a para trás, devagar). LINDA E TERNA DOR! Ouço os lamentos...<br />

sinto o fogo consumindo as carnes... os nervos explodindo em tensão... É...<br />

É ma-ra-vi-lho-so!<br />

HOMEM: Isso... não... pode estar... acontecendo... Não pode.<br />

Elevando os braços e cruzando-os por sobre a cabeça, ela alonga o<br />

pescoço para os lados, espalhando o cabelo comprido.<br />

Por fim, suspira, abaixa os braços e se recompõe, à medida em que o<br />

incêndio vai se propagando pelo prédio ao alto.<br />

MULHER: Você não devia ter me traído... Mesmo me contando parte<br />

da verdade, sei que sua traição foi MUITO além...<br />

No chão, em meio ao pranto, o homem parece começar a rir.<br />

A mulher vira a face para ele, revelando um par de olhos completamente<br />

negros, sem pupilas, íris, e nenhum outro detalhe, como se fossem duas<br />

esferas de chumbo.<br />

MULHER: Ao ter se comunicado com os outros, e denunciado o nosso<br />

encontro, meses ANTES do concílio, você traiu a si mesmo, e a seus amigos.<br />

Como todo mundo já estava sabendo que você seria minha escuta na reunião,<br />

tive tempo suficiente para colocar em prática um novo plano, invadindo o corpo<br />

Fabian Balbinot<br />

179


e a mente desta adorável mulher de longos cabelos (ela balança a cabeça,<br />

fazendo os cabelos negros esvoaçarem), a qual estaria, por consequência de<br />

minha própria vontade, acima de qualquer suspeita durante o evento, integrada<br />

a todos os demais participantes. Tão insuspeita quanto você próprio.<br />

HOMEM: C-cadela! Vo-cê... esteve metida em nosso grupo... o tempo<br />

todo.<br />

Ela vira-se e avança devagar para ele.<br />

MULHER: Você nem imagina o QUANTO e nem há QUANTO<br />

TEMPO. Diversos humanos me servem hoje em dia, são meus braços<br />

e pernas, e muitos deles são polivalentes, servindo como comensais de<br />

sangue. Infiltrados em seus grupos eles não apenas obtêm o sangue do qual<br />

me alimento como também me passam as mais valiosas informações. Seria<br />

trabalhoso dominar um vampiro sem destruí-lo e infiltrar-me entre vocês, um<br />

projeto em que muitas de minhas encarnações humanas, químicos, médicos<br />

e biólogos, vêm trabalhando há bastante tempo. São muitos anos de estudo,<br />

desenvolvimento de substâncias adstringentes e restritivas, além de antídotos,<br />

que impedem vampiros e seus asseclas de reagir e de se auto-destruir ao<br />

manter um contato mais prolongado comigo... uma série de procedimentos<br />

complexos que envolviam muita química e palavreado técnico. Após muitos<br />

testes mal sucedidos, optei por uma outra solução. Um truque, um improviso,<br />

que acabou dando certo. Após o domínio ter sido invadido, foi uma questão<br />

de reconhecer o ambiente, forjar alianças, obter as informações e os mapas<br />

necessários... e colocar as bombas-relógio nos lugares certos.<br />

Debaixo de camadas de nuvens e fumaça, o céu começa a clarear.<br />

MULHER: Tendo conseguido antever e burlar sua traição para<br />

comigo, e participado do encontro, percebi que boa parte dele não passou<br />

de um embuste formal que serviu para ludibriar até mesmo muitos dentre<br />

os participantes. Se não estou enganado, apenas você e dois ou três outros<br />

da alta cúpula tinham consciência que, mesmo que tudo o que se sabia a<br />

meu respeito fosse revelado, nada do que fosse decidido na reunião seria<br />

importante. O plano era despistar, e era bastante engenhoso.<br />

HOMEM: Bruxa mal... dita...<br />

MULHER: Em seguida, após o término da reunião oficial, para<br />

a surpresa dos integrantes do concílio que não sabiam o que estava<br />

acontecendo de verdade, todos fomos convidados a nos dirigir para uma<br />

certa sala, onde vi que havia equipamentos de comunicação. Apenas você<br />

não fazia parte do grupo, e os motivos de sua ausência foram explicados a<br />

todos, pois você seria o canal de contato com o “demônio”. Tive de rebuscar<br />

na memória como os tais equipamentos funcionavam, reconhecendo-os das<br />

lembranças de algumas de minhas encarnações em corpos de especialistas<br />

humanos. Graças a estes conhecimentos, longe da vista de todos, consegui<br />

criar um pequeno contratempo, uma avaria capaz de gerar uma interferência,<br />

impedindo-os de receber a transmissão de imagem e som das escutas QUE<br />

180 Doença e Cura


VOCÊ carrega consigo, o que proporcionaria tempo suficiente para que,<br />

usando de um pretexto qualquer, eu abandonasse a sala e viesse aqui<br />

encontrá-lo, cumprindo minha parte do acordo.<br />

O homem nada mais diz.<br />

MULHER: Não faço ideia da emboscada que havia sido preparada<br />

para mim, e acho que, bem no fundo, a principal intenção do plano seria<br />

recolher o máximo de informações possível sobre meu comportamento,<br />

coisa que infelizmente não aconteceu... Acredito que fui mais bem-sucedido<br />

do que esperava em bloquear os comunicadores. Graças aos fantásticos dons<br />

empáticos que possuo, posso sentir que todos os que estavam naquela sala<br />

desapareceram, exceto eu... e você.<br />

Piscando os olhos de chumbo, satisfeita, a mulher vira-se devagar<br />

para a direita, dando as costas para o homem caído.<br />

MULHER: Não poderia ter sido um resultado mais perfeito. Os<br />

maiores líderes das comunidades vampíricas da Terra estão mortos, todas as<br />

informações a meu respeito que poderiam existir na Fortaleza dos Concílios<br />

foram irremediavelmente perdidas, e a assimilação experimental deste corpo<br />

(ela eleva as mãos em frente ao rosto, examinando-as) foi um sucesso.<br />

Ela vira a cabeça para o homem caído e sorri de modo<br />

maquiavélico.<br />

MULHER: Tudo graças a você e sua traição...<br />

O dia se aproxima e o mesmo vento que sopra as nuvens do céu para<br />

longe atira folhas secas para dentro do cenário.<br />

MULHER: Enfim, sendo (ela se empertiga, e fala com voz solene)<br />

“o único membro de sociedade secreta desconhecida a sobreviver a ataque<br />

fatal com explosivos em fortaleza tida como deserta”, manchete esta que<br />

deverá estar estampada com outras letras em muitas das primeiras páginas<br />

dos jornais do mundo, amanhã, ou depois, devo recolher-me e planejar meus<br />

próximos movimentos.<br />

Fumaça branca começa a brotar em torno do corpo da mulher.<br />

MULHER: Infelizmente para você, não costumo salvar traidores dos<br />

rigores de uma punição adequada. O nascer do sol já é uma realidade fatal<br />

da qual seus limitados poderes telepáticos não poderão fazê-lo escapar...<br />

Adeus, meu amigo.<br />

A fumaça aumenta, e cobre por completo o corpo da mulher, que<br />

desaparece, deixando uma sonora gargalhada repercutir solta no ar.<br />

Ao homem caído, resta gritar de fúria e dor, enquanto a luz do sol<br />

incendeia seu corpo.<br />

Cai o pano.<br />

FIM DO ATO DOIS<br />

Fabian Balbinot<br />

181


“Noite passada, você disse que eu era frio, intocável<br />

Um pedaço solitário de movimento de uma outra cidade<br />

Eu só quero ser livre, sou feliz por estar sozinho<br />

Por que você não fica longe<br />

E me deixa em paz com meus pensamentos?<br />

Apenas um fugitivo, apenas um fugitivo<br />

Estou salvando a mim mesmo...”<br />

Blind Curve – 1) Vocal Under a Bloodlight – Marillion<br />

“If you listen to fools<br />

The mob rules”<br />

Mob Rules – Black Sabbath<br />

182 Doença e Cura<br />

<strong>Capítulo</strong> 6<br />

O homem corria pela escuridão da cidade grande.<br />

Corria sem parar, porque precisava correr.<br />

Não podia parar, de jeito nenhum.<br />

As coisas tinham começado a acontecer. Era como se a vida fosse<br />

uma máquina, com engrenagens, rodas e polias que giravam, impulsionando<br />

umas às outras, através de tiras, ganhando velocidade, fugindo do controle,<br />

sem freios que pudessem interromper o avanço interligado de seus<br />

acontecimentos.<br />

E aquele homem de longos cabelos brancos corria para tentar evitar<br />

certos acontecimentos.<br />

Ele lançava-se de encontro às roldanas da vida, tentando bloquear<br />

seu movimento. Tentando impedi-las de se mover, travar o sistema, puxar<br />

os freios.<br />

Ele fugia, lutando para não ser esmagado pela roda viva do destino.<br />

Era evidente que ele sabia demais, e a longa e incansável série de<br />

fugas servia para evitar também que, antes do momento certo, alguém<br />

acabasse descobrindo o quanto ele sabia.<br />

Estava correndo por uma rua, neste exato momento. Uma rua fria e<br />

molhada, tomada pelo nevoeiro.<br />

Pisou em falso em uma das diversas poças que permeavam as folgas<br />

irregulares entre os paralelepípedos, tropeçando em um buraco profundo<br />

que a água negra manchada por um arco-íris de graxa escondia.<br />

Praguejando e mancando, ele se concentrou, recuperando-se da<br />

torção no tornozelo em um piscar de olhos, quando tornou a correr a toda<br />

velocidade, virando a cabeça para ambos os lados, e penetrando por uma<br />

viela ainda mais escura à sua direita.


Pensando, captando a vida que havia em seu redor, percebeu que se<br />

encontrava longe dos olhares curiosos das pessoas miseráveis e esfomeadas<br />

que habitavam aquela favela. O beco por onde seguia agora era um deserto<br />

povoado apenas por ratos e baratas, que viviam em edificações feitas de<br />

grandes baldes metálicos de lixo, vulcões de sacos plásticos rasgados que<br />

vomitavam pelo chão fluxos lentos e perenes de restos de comida e papel<br />

higiênico lambuzado de estrume e imundície e lagoas de mijo e catarro,<br />

pontilhadas por pequenos barcos de latas de refrigerante, ilhas de restos<br />

de embalagens plásticas, ornamentadas por seringas contaminadas e<br />

preservativos usados.<br />

Uma verdadeira barricada de sacos de lixo, com um metro e meio<br />

de altura surgiu do nada, trancando seu caminho para a frente tal e qual<br />

verdadeira parede de podridão.<br />

Arregalando os olhos e sentindo que os únicos olhos que o observavam<br />

eram os dos ratos que se escondiam nos cantos e fugiam de seu caminho, o<br />

homem apenas teve que pensar para que uma mudança ocorresse no ritmo<br />

de sua corrida.<br />

De repente, tudo se tornou mais lento, e a barricada de lixo contra a<br />

qual se chocaria caso não parasse de correr passou a arrastar-se de encontro<br />

a ele, devagar como se estivesse sendo carregada para cima de seu corpo por<br />

uma horda invisível de lesmas.<br />

Olhando para os lados, para cima e para baixo, com movimentos<br />

de cabeça rápidos que não condiziam com a lerdeza das imagens ao seu<br />

redor, nem com os demais movimentos de seu corpo ou com o vagar lento<br />

e esvoaçante de sua cabeleira branca, que parecia flutuar no ar como se<br />

estivesse submersa na água, o homem levou um milésimo de segundo para<br />

examinar o caminho e avaliar qual seria a melhor alternativa para sobrepujar<br />

o obstáculo que se interpunha ao seu avanço.<br />

No segundo seguinte, que, em seu ponto de vista, correspondia a muitos<br />

segundos, o homem posicionou ambos os pés juntos, a não mais do que um<br />

metro e meio da barreira de latas, abaixou-se, e empurrou o próprio corpo<br />

magicamente para o alto, projetando as pernas para cima e abrindo os braços,<br />

girando e ficando de ponta-cabeça, o corpo inteiro virado para trás, em um<br />

impressionante salto mortal em câmera-lenta, a cabeleira branca roçando o<br />

lixo das latas que passaram devagar, centímetros abaixo de sua cabeça.<br />

A aparente lentidão e graciosidade do movimento permitiu que ele<br />

tivesse uma visão panorâmica e de ponta-cabeça do caminho que ficava para<br />

trás, a rua vazia onde a neblina se tornava mais clara, emoldurada de lado a<br />

lado pelas paredes negras do beco, por onde passou aquele repentino fulgor,<br />

a forma esguia, vestida de trapos brancos, a alva face de aspecto feminino<br />

observando-o com olhos negros e um permanente sorriso nos lábios, um<br />

fantasma que apareceu e sumiu na velocidade de um relâmpago, cruzando a<br />

rua... a materialização de seus piores pesadelos.<br />

Fabian Balbinot<br />

183


Girando 360º no ar durante um momento que durou séculos, ele fez<br />

força para manter a concentração e prosseguir com seu salto, fazendo seus<br />

pés caírem juntos no chão e convertendo um leve escorregão que o impulso<br />

promovera em força cinética, equilibrando-se como um experiente patinador,<br />

e lançando-se novamente em frente, deslizando para continuar a corrida.<br />

A maldita entidade o perseguia. O rosto alegre de mulher oriental, os<br />

olhos semi-cerrados, a boca esticada de orelha a orelha, as vestes compridas<br />

e ondulantes como o corpo de um fantasma... a inacreditável velocidade.<br />

Um maldito lampejo, de um milionésimo de segundo, fora o que ele<br />

vira. Uma imagem em um flash que caçoava de seu poder de mover-se e<br />

pensar vinte vezes mais rápido que o normal.<br />

– Puta, vadia de merda – vociferou ele em uma das dez línguas que<br />

sabia falar.<br />

Pés no chão, correu com a velocidade do vento, cruzando o beco<br />

como se fosse um vendaval, levantando poeira e jornais velhos para o alto.<br />

O problema era que ele sabia demais. Por isso estava sendo perseguido<br />

pela estranha e velocíssima forma espectral.<br />

Enquanto corria na velocidade do som e desviava miraculosamente<br />

dos inúmeros obstáculos que havia pelo caminho, pensava nas coisas que<br />

vira.<br />

Coisas que não quisera ter visto nunca, mesmo sendo o competente<br />

espião que era.<br />

Vira pessoas vivas morrendo, e pessoas mortas morrendo de novo.<br />

E vira os vivos renascerem de uma forma com a qual não estava<br />

habituado.<br />

Sua mente repassava os fatos, folheando-os na memória com a rapidez<br />

de quem espia de relance as páginas de uma revista.<br />

O primeiro caso fora um acidente.<br />

Vislumbrara sorrateiramente, há um ano e meio, mais ou menos,<br />

aquele primeiro homem moribundo, que cambaleava por um beco muito<br />

parecido com este que ele ora percorria, em uma noite gelada de inverno.<br />

O homem havia sido assaltado e atingido por uma série de disparos<br />

dos bandidos, tendo sido abandonado para morrer naquele fim de mundo,<br />

em uma cidade grande demais para ser digna, em um mês branco de neve e<br />

de frio, mas não de esperança.<br />

Um belo repasto, pensara o jovem ancião de cabelos brancos<br />

naquele momento, observando de um local próximo como a vida se esvaía<br />

rapidamente daquela criatura, as luzes de sangue quente que apenas seus<br />

semelhantes podiam ver pingando do corpo do homem e apagando-se ao<br />

entrarem em contato com a neve suja do chão. Um belo repasto e também<br />

um ato de piedade...<br />

Ele soltou-se do velho prédio onde seus pés encontravam-se colados<br />

no alto, atados por sua força de vontade à superfície inferior do estreito<br />

184 Doença e Cura


patamar que destacava sem nenhum requinte um andar do outro. Deixouse<br />

cair como se fosse uma fruta madura que cai de um galho, a cabeça<br />

apontando para baixo e os cabelos como cortinas, balançando furiosamente<br />

com a queda.<br />

Em um segundo, voava. Seus dedos e braços esticando, tornando-se<br />

longos, pés e pernas recrudescendo para assumirem o aspecto de garras,<br />

roupas e agasalhos escuros se transformando em penas, a face alongando-se<br />

e metamorfoseando-se magicamente em um bico agudo e possante.<br />

A ave de rapina girou a imponente cabeça branca, empregando seus<br />

grandes olhos para focalizar com nitidez os movimentos da superfície abaixo,<br />

enquanto descia como míssil os dez andares que separavam o ponto do<br />

prédio de onde se lançara do chão coberto de neve e salpicado de sangue.<br />

Abrindo as grandes asas, a ave iniciou um planar gracioso, metros<br />

acima da neve, circundando a vítima, como se antevisse sua queda, que<br />

aconteceu em seguida.<br />

Algo que o pássaro percebeu, porém, fê-lo guinchar, ruflar as asas e<br />

distanciar-se do corpo caído, alçando vôo para o alto e de volta a um local<br />

seguro.<br />

A atmosfera em volta do corpo se movia de um modo estranho, e a<br />

águia recebeu a estranha movimentação das correntes de ar em suas asas<br />

como um aviso de que algo que não podia ver estava acontecendo.<br />

Pelo visto, alguém chegara antes dela para o jantar.<br />

Mas... quem? Não havia nada visível nas proximidades, exceto o<br />

corpo do homem ferido.<br />

Ao retornar à segurança do prédio e alcançar o alto de uma escada<br />

de metal, três andares acima, o pássaro novamente se converteu em um<br />

homem coberto por agasalhos, que abandonou a visão telescópica do bicho,<br />

substituindo-a por uma série de outros sentidos que lhe conferiam ainda<br />

mais minúcias em relação ao que estivesse acontecendo com aquele corpo<br />

e em seu redor.<br />

Mesmo sendo um viandante solitário e recluso, conhecia muitos de<br />

seus parentes, e tinha conhecimentos suficientes a respeito de grande parte<br />

das fenomenais habilidades de que as criaturas da noite poderiam lançar mão.<br />

Sua própria especialidade, aliás, incluía, além da metamorfose, da capacidade<br />

de desafiar os limites da gravidade, da camuflagem e da velocidade sônica, o<br />

uso extremo dos órgãos do sentidos.<br />

Ele era um sensor ambulante, de fácil configuração, capaz de captar<br />

imagens, sons, vibrações e ondas, luz, calor e escuridão de toda a espécie,<br />

com a rapidez do instinto.<br />

Encoberto por sua habilidade mutatória, que lhe permitia assumir<br />

o aspecto de uma exuberante variedade de animais, ou pelas sombras<br />

ambientes, às quais conseguia se mesclar, ele era uma máquina de espreitar,<br />

que enxergava e ouvia o que estava além do alcance de qualquer outra<br />

Fabian Balbinot<br />

185


criatura. E orgulhava-se de tais capacidades, que além de serem usadas para<br />

garantir seu eterno repasto de sangue, vez por outra também tinham salvo<br />

sua condição imortal.<br />

Naquela ocasião, o vampiro de cabelos brancos concentrou-se no que<br />

via e no que desejava ver, e seus olhos claros foram se tornando escuros,<br />

as pupilas foram se dilatando sem parar, tornando cada olho em uma esfera<br />

negra e reflexiva de aspecto sinistro.<br />

A penumbra cinzenta da noite nevada foi transformada, na visão<br />

do vampiro de cabelos brancos, em uma ciranda de contornos de cores<br />

fosforescentes.<br />

A seguir, as pupilas voltaram a se contrair, tornando-se em meros<br />

riscos horizontais, como os olhos de um réptil ou anfíbio.<br />

Este processo de contração e dilatação das pupilas foi repetido<br />

algumas vezes durante alguns segundos, gerando as mais diversas cores e<br />

níveis de detalhe e nitidez, enquanto o vampiro ajustava os olhos e procurava<br />

focalizar o que queria realmente ver.<br />

Com movimentos leves e bruscos da cabeça, ele esquadrinhava o<br />

cenário que circundava o homem caído, já praticamente sem vida, finalmente<br />

vendo as linhas de calor vermelhas, que lhe despertavam o interesse, cada<br />

vez mais tênues, abandonando o corpo, que rapidamente ia se resfriando e<br />

mudando de cor, do vermelho quente para o laranja morno, e então para o<br />

amarelo, desbotando sem parar à medida que a neve azulada em seu redor<br />

o congelava.<br />

Mãos e pés já tinham desaparecido, submersos no azul da neve gelada,<br />

o calor que desaparecia levando embora consigo as últimas esperanças que o<br />

ser da noite tinha de obter alimento a partir daquela fonte.<br />

Foi quando algo estranho aconteceu.<br />

O homem de cabelos brancos arregalou os olhos quando viu aquele<br />

traço vermelho faiscante como lava de vulcão, que surgia de um ponto<br />

qualquer, próximo dali, e serpeava pelo azul escuro da neve, derretendo-a.<br />

Era sangue, refletiu o vampiro, farejando e absorvendo o distinto<br />

aroma, do alto de seu esconderijo, quase como se pudesse tocá-lo com suas<br />

narinas.<br />

Sangue fervente, borbulhante, quente como o inferno.<br />

Atraente como um beijo. Aromático como os incensos mais puros<br />

das memórias de outrora. Vivo como o palpitante coração de um recémnascido.<br />

Saboroso, delicioso, inigualável...<br />

Inconcebível. Não natural. Errado. Impossível.<br />

Um córrego de sangue que surgia de lugar nenhum e se aproximava<br />

do corpo moribundo, singrando a neve, aquecendo-a, derretendo-a e<br />

perfurando-a em seu avanço.<br />

Escalando-a...<br />

186 Doença e Cura


Naquela ocasião, o vampiro de cabelos brancos e compridos ainda<br />

não sabia o que significava aquele sangue selvagem e fervilhante.<br />

Em segundos, o líquido sobrepujou as barreiras de neve e<br />

alcançou o corpo inerte do homem baleado e – o vampiro custou a<br />

acreditar no que via – pôs-se a invadir a cabeça, penetrando, ao que<br />

parecia, pela boca, nariz e ouvidos, preenchendo o esôfago, estômago,<br />

intestinos, tomando posse de todos os órgãos. E sua visão especializada<br />

revelava que, conforme o sangue cor-de-fogo se alastrava pelo interior<br />

daquele corpo, parecia que o incendiava e consumia de dentro para<br />

fora, ocasionando uma série de pequenas explosões de calor, que<br />

irrompiam destruindo o azul do gelo, substituindo-o por clarões rubros<br />

de fúria escaldante que faziam o moribundo estremecer e contorcer-se<br />

em severos espasmos.<br />

O homem caído passou a se debater como se estivesse sendo<br />

eletrocutado, esperneando e esbravejando, e jogando neve para todos os<br />

lados, seu corpo superaquecido como se ele estivesse sendo cozinhado em<br />

um tonel de água quente.<br />

Repentinamente, o homem parou de espernear, e ficou deitado no chão,<br />

enquanto a trilha de sangue que cortava a neve o abandonava, retornando ao<br />

seu ponto de origem, que o espião no alto da escada de metal identificou<br />

como sendo uma tampa metálica de bueiro entreaberta, por intermédio de<br />

uma nova série de contrações e dilatações de suas vistas.<br />

Tão logo a trilha de sangue de fogo sumiu de vista, bueiro adentro,<br />

o homem caído ergueu-se, elevando o tronco como um zumbi que levanta<br />

da tumba. No instante seguinte, ele estava de pé, a neve no ambiente em<br />

seu redor completamente derretida, vaporizada até, elevando-se para o alto<br />

na forma de sinuosas correntes de ar que o vampiro no alto da escada via<br />

como se fossem traços alaranjados de chamas, boa parte dos quais oriundos<br />

daquele corpo em combustão.<br />

O homem redivivo girou o pescoço para os lados, e acabou elevando a<br />

cabeça para o alto, detendo-se, a face apontando precisamente para a direção<br />

onde o vampiro escondia o próprio corpo na penumbra.<br />

De repente, a visão do homem de cabelos brancos tornou-se turva,<br />

e em seguida surgiram muitas cores que não lhe permitiam distinguir os<br />

contornos das imagens, e após isto as coisas que ele via tornaram-se<br />

cinzentas, e em seguida esverdeadas, para depois ficarem novamente turvas<br />

e sem foco, multicoloridas, cinzentas, repletas de bolinhas faiscantes...<br />

Sentindo-se tonto, ele fechou os olhos, apertando as pálpebras com<br />

força. Deixou as pupilas se contraírem, piscando-as no que procurava<br />

entender como sua disciplina mental pudera ser tão facilmente rompida.<br />

Estava bem claro que algo acontecera com aquele homem lá embaixo,<br />

e que ele o identificara em seu esconderijo, e de alguma forma embaralhara<br />

a precisão de seu contato visual.<br />

Fabian Balbinot<br />

187


Girando os olhos e sacudindo a cabeça para recuperar o controle, ele<br />

mirou novamente a cena que se desenrolava lá embaixo.<br />

Nas cores da visão humana normal, a neve surgia como um extenso<br />

tapete branco irregular, iluminado por fachos das luzes das lâmpadas nos<br />

postes e pelo lusco-fusco da lua cheia semi encoberta pelas nuvens, tapete<br />

que ele vasculhou para encontrar o corpo do ressuscitado, que não mais<br />

estava ali.<br />

Lançando mão de sua visão de calor outra vez, ele percebeu a mesma<br />

frieza azul estendendo-se em todas as direções.<br />

Nenhum sinal de calor.<br />

Nem de trilhas de sangue quente rasgando o chão.<br />

Nenhum traço de um corpo envolto em chamas.<br />

Nada de vapores escaldantes ou de fenômenos sobrenaturais.<br />

O único sinal de calor que havia tingia de laranja a neve na rua do<br />

lado de fora do beco.<br />

O SOL!<br />

Percebendo o perigo a que estava exposto, o vampiro de cabelos<br />

brancos abandonou seu refúgio no alto da escada e sumiu de vista tão rápido<br />

como lhe fosse possível.<br />

Mais tarde, pensaria nas três ou quatro horas em que ficara paralisado<br />

e sem ação, olhando sem ver para o vazio da neve, e despertando do transe<br />

apenas para perceber que o dia clareava no céu.<br />

Pensaria, e sentiria medo.<br />

Mas os dias e noites passariam, e ele acabaria esquecendo do assunto<br />

durante um bom tempo.<br />

* * * * *<br />

O homem corria pela escuridão da cidade grande.<br />

Corria sem parar, porque precisava correr, e não podia parar, de jeito<br />

nenhum.<br />

Pés no chão, ele corria com a velocidade do vento, cruzando aquele<br />

beco escuro como se fosse um vendaval, levantando poeira e jornais velhos<br />

para o alto.<br />

Em um dado ponto, ele projetou-se para o lado, levantando poeira do<br />

chão e sumindo em uma reentrância escura que dividia dois prédios antigos<br />

de aspecto miserável, construídos um ao lado do outro.<br />

Seu poder de camuflagem foi ativado a partir do momento em que ele<br />

entrou em contato com a densa escuridão, fazendo sua forma material sumir<br />

da vista de qualquer um.<br />

Era uma habilidade fenomenal, transformar-se em uma sombra, tornarse<br />

incorpóreo, imaterial, deixar de existir pura e simplesmente, ludibriando a<br />

vista e o tato, e mesmo o faro possante dos animais caçadores.<br />

188 Doença e Cura


Era assim mesmo que a coisa acontecia quando ele conseguia<br />

integrar-se à penumbra. Suas formas tornavam-se intangíveis de um modo<br />

infalível, totalmente contraditório à realidade. Ele estava ali, sem estar. E<br />

o mais interessante era a possibilidade que ele tinha de contra-atacar seus<br />

perseguidores, repentinamente solidificando mãos e braços ofuscados a fim<br />

de golpear os adversários, agarrá-los, envolvê-los, asfixiá-los...<br />

Era mesmo uma habilidade fenomenal.<br />

Porém, sua camuflagem sombria e sobrenatural poderia ser facilmente<br />

desfeita por aquela estranha criatura que o perseguia.<br />

A maldita aberração que se movimentava na velocidade do pensamento,<br />

e que podia atacar sombras com luz.<br />

Ele bem lembrava de seu segundo encontro com o matador de<br />

vampiros. E, ao contrário do que se costuma dizer por aí, sua segunda vez<br />

foi muito mais memorável do que a primeira.<br />

Apesar de, em tempos idos, ter trajado vestes aristocráticas e ter<br />

desenvolvido hábitos bem mais corteses no trato com suas futuras presas, o<br />

vampiro de longos cabelos brancos teve de evoluir e modificar completamente<br />

seu comportamento com o advento da revolução da manufatura humana. Em<br />

um relance, os séculos, que passavam lentos e arrastados, iluminados por velas<br />

e candeeiros, assumiram a intensidade e o compromisso da luz elétrica.<br />

O chão das ruas das cidades do velho mundo, que centenas de anos<br />

antes já havia exalado o odor acre de vômito e dos restos de comida e dejetos<br />

pestilentos despejados descuidadamente pelo populacho através das janelas<br />

das casas, agora fedia a petróleo processado misturado com bosta, mijo, suor<br />

e cerveja fajuta saída de barris e garrafas envasados em série.<br />

O século das máquinas a vapor e dos automóveis barulhentos surgira<br />

de súbito, rápido como uma tempestade, destruindo por completo o requinte<br />

da burguesia e instaurando uma cultura frenética de trabalho, construção<br />

e invenção incessantes, que soterrou a lentidão dos costumes do período<br />

anterior.<br />

Salários, concorrência, mão-de-obra, lei da oferta de da procura,<br />

população geometricamente crescente, prazos, fome... a produção e<br />

o comércio em larga escala exigiam uma dedicação bem maior dos<br />

trabalhadores humanos.<br />

Logo, o tempo livre se tornou um bem cada vez mais escasso. Os<br />

fidalgos pedantes e ricos se transformaram em homens de negócio atrasados<br />

para dezenas de reuniões por semana, estes ainda mais ricos, milionários,<br />

miliardários, doidos varridos soterrados debaixo de quantidades absurdas<br />

de dinheiro que nem mesmo sabiam como fazer para gastar. E os pobres<br />

viraram miseráveis sorumbáticos, e continuaram morrendo de fome e de<br />

doenças, como de costume, amparados por uma catastrófica gama de leis e<br />

garantias que lhes concedia amplo acesso ao trabalho de sol a sol, coisa da<br />

qual tinham passado a viver, dando cabo de toda e qualquer segunda opção.<br />

Fabian Balbinot<br />

189


E toda essa revolução de costumes que contaminou o mundo inteiro<br />

se deu em menos de duas décadas.<br />

Duas décadas em que o vampiro de cabelos brancos teve de se<br />

adaptar e desistir do modo de vida esnobe, recheado de lacaios, regalias e<br />

subserviências que o havia acompanhado até aquele ponto. As monótonas<br />

contas bancárias que possuía, movidas mais à base de fama e eloquência,<br />

esvaziaram vitimadas pelos investimentos e comportamentos estéreis<br />

herdados dos séculos de ócio e bonança, e sua condição nobre deixou de ter<br />

qualquer importância para os novos e sisudos administradores financeiros.<br />

Não foi sem pesar que ele viu-se abandonando o velho mundo,<br />

escondido como clandestino em um daqueles navios de imigrantes de<br />

sangue doente que lhe causava esgares, ele também em busca de novas<br />

oportunidades.<br />

O tempo passou e ele sobreviveu, e evoluiu, passando a caçar suas<br />

vítimas com ações bruscas, sem os circunlóquios de sedução e poesia.<br />

Despertara muitos dos talentos naturais de sua estirpe que tinham<br />

permanecido adormecidos nos tempos em que fora um nobre e desleixado<br />

mandrião.<br />

Aprendera a encarar uma sombra como um esconderijo, de onde podia<br />

saltar sobre qualquer um destes trabalhadores do sol a sol, ignorando as leis<br />

que os protegiam dos acidentes de trabalho, e matando-os sem dar a menor<br />

importância às cláusulas de letras miúdas em seus seguros de vida.<br />

Conseguia saltar das sombras, aplicar o golpe certeiro que ceifaria<br />

a vida de um caminhante incauto, sugar dois a três litros de seu sangue,<br />

lançando-se novamente para dentro da escuridão, tudo isto em uns poucos<br />

e silenciosos minutos. Driblava a selva de pedra e as leis da sociedade pósmoderna<br />

sem deixar pistas.<br />

Passara a infringir até mesmo a regras de seu próprio povo, escapulindo<br />

de punições e angariando poder e influência no mundo das trevas.<br />

Um Deus das Sombras.<br />

Viu o nome escrito com tinta de spray em uma parede imunda, e<br />

passou a empregá-lo em seus pensamentos como um codinome que indicava<br />

seu modo peculiar de agir.<br />

Era insuperável, impossível de ser encontrado quando escondido.<br />

Veloz demais em seu ataque para ser evitado.<br />

O assassino invisível perfeito.<br />

Até o momento em que se deparou novamente com seu maior temor.<br />

Alguma coisa, algo, que era capaz de penetrar suas defesas e impedir<br />

seus ataques.<br />

E, como havia acontecido nas primeiras décadas daquele século, ele<br />

outra vez teve de evoluir para sobreviver...<br />

Era uma noite quente e úmida nos becos daquela grande metrópole,<br />

onde o fedor de diversas composições químicas misturadas empestava o ar.<br />

190 Doença e Cura


Fumaça branca subia das chaminés, e as bocas-de-lobo exalavam o hálito<br />

intenso dos esgotos.<br />

Efêmeras cortinas de neblina surgiam em alguns pontos, desaparecendo<br />

em seguida, cercadas pelas sombras que rasgavam as reentrâncias dos velhos<br />

edifícios. Gente fedorenta vestida de farrapos compartilhava com cães, ratos<br />

e baratas os mesmos espaços debaixo dos viadutos escaldantes, e não raro a<br />

mesma comida.<br />

Era um mundo soterrado pela mais densa escuridão, onde o Deus das<br />

Sombras podia vagar sem jamais ser visto pelos olhos dos mortais.<br />

Sim. Era uma vida indigna de alguém que já havia sido um nobre,<br />

pensava ele enquanto se atocaiava na penumbra de um beco semi-atolado de<br />

lixo de todos os tipos e formatos, pronto para cometer mais um assassinato.<br />

Feliz ou infelizmente, ele não podia simplesmente morrer e<br />

desaparecer, sendo esquecido como parte de um passado não documentado.<br />

A imortalidade que impregnava seu corpo impedia até mesmo que ele<br />

pensasse em se suicidar.<br />

Como um incauto anfíbio, uma risonha criança, mestiça, malcheirosa,<br />

de nariz remelento, cinco ou seis anos, semi-nua, aproximou-se, saltitando<br />

e colando o corpo rente a uma das paredes do beco onde a morte etérea<br />

espreitava como uma serpente de bote armado, escondendo-se ali durante<br />

aquela que seria a última brincadeira que teria com seus pequenos amigos.<br />

Irritado e vingativo com o pouco requinte que o destino lhe reservara,<br />

sentindo nojo daquela criaturinha malfeita de cabelo emporcalhado e pele<br />

cor de fezes, o vampiro distendeu suas garras, arrastando-as pelo solo<br />

irregular, como se seus braços fossem não mais do que uma tinta negra<br />

derramada no chão, de modo a escorrer pelas folgas dos paralelepípedos e<br />

através dos montículos de areia e entulho até integrar-se com a sombra do<br />

menino, alguns metros adiante.<br />

Intangíveis, as mãos de sombra escureceram ainda mais o corpo do<br />

jovenzinho, enroscando-se como suaves feixes de tecido negro em volta<br />

da vítima, as garras etéreas subindo pelo pescocinho e envolvendo a boca,<br />

prontas para se solidificarem e emudecê-lo para todo o sempre.<br />

Quieto, desejoso de não ser encontrado por seus amiguinhos, o menino<br />

raquítico já estava preso no abraço mortal do vampiro, que se preparava para<br />

puxá-lo e estrangulá-lo, quando algo aconteceu.<br />

De repente, uma terrível barulheira se fez ouvir no beco. Tanto o<br />

predador das sombras quanto a pequena presa ouviram os gritos histéricos<br />

de mulheres e crianças e o barulho mais forte de tiros e explosões, que<br />

romperam um certo silêncio mormacento que predominava pelas vielas<br />

sujas.<br />

Sobressaltado com a confusão, o menino desfez o insólito<br />

entrelaçamento de sombras e saiu correndo para o meio do passeio, onde<br />

poderia ver melhor o que estava acontecendo.<br />

Fabian Balbinot<br />

191


Foi recebido por uma ensurdecedora rajada de tiros de grosso calibre<br />

que quebrou vidros, perfurou latas próximas e desmantelou seu corpinho,<br />

lançando pedaços de membros, farelos de crânio, ossos, olhos, tripas e<br />

sangue para trás, esparramando carne pela pedra quente do chão de modo<br />

a compor um mosaico escarlate de vísceras. Vapor saía do sangue quente e<br />

impregnava o ar com seu cheiro.<br />

– ... Merda! Porra! – alguém gritava. – Você enlouqueceu? É só um<br />

maldito guri!<br />

Enfurecido por ter perdido a presa, o vampiro sentiu-se tentado a<br />

interromper aquela comoção, lançando-se com a fúria e a velocidade das<br />

sombras sobre os lunáticos que pareciam estar disparando tiros a esmo,<br />

alvejando gente, paredes e objetos para todos os lados, contudo a cautela e o<br />

receio em relação aos tiros, que poderiam retalhar a ele próprio, impediramno<br />

de se mover.<br />

Um homem vestido com calça e jaqueta jeans em um tom de azul muito<br />

escuro, com uma meia preta servindo de capuz e cobrindo toda sua cabeça,<br />

passou correndo devagar, como se estivesse em câmera lenta, pisoteando com<br />

botas pesadas os miolos e o sangue do menino estraçalhado pelo chão.<br />

Analisando a temperatura e a pulsação diferenciada do sangue do<br />

bandido, o Deus das Sombras imediatamente identificou o fugitivo como<br />

sendo um dos seus, um outro vampiro, que na certa guiava seu passo usando<br />

de sentidos muito mais desenvolvidos do que a visão, pois seu capuz não<br />

tinha nenhum furo para os olhos. No lugar dos furos, havia olhos agressivos e<br />

uma caricata boca de tubarão, repleta de dentes, estampados sobre o tecido.<br />

Um outro indício de sua condição física sobre-humana era a imensa<br />

peça de armamento que o homem-tubarão carregava... uma enorme<br />

metralhadora com quase dois metros de espessas ferragens e cilindros, que<br />

foi girada como se fosse um pedaço de papelão e passou a cuspir fogo pesado<br />

para o lado oposto ao qual o homem se dirigia.<br />

Paredes inteiras foram postas abaixo. Vidros não paravam de explodir.<br />

O chão tremia e os tímpanos do Deus das Sombras pareciam estar prestes a<br />

explodir.<br />

Um poste de luz caiu, levando para baixo a fiação elétrica, e deixando<br />

jorrar uma última chuva de faíscas pela viela ao seu redor, precedendo um<br />

blecaute que escureceu os prédios dos quarteirões próximos e de muitos<br />

outros dos que havia em volta.<br />

A escuridão ampliada era convidativa, mas o homem envolto nas<br />

sombras ainda não tinha certeza do que devia ser feito.<br />

Algo estava muito errado, pensou ele, enquanto via o homem de<br />

capuz preto sair correndo outra vez.<br />

O que estava acontecendo, afinal? Mesmo vivendo como um proscrito<br />

errante, ele conhecia as regras do submundo dos vampiros daquela cidade.<br />

Nada poderia justificar que alguém da família saísse pela cidade demolindo<br />

192 Doença e Cura


paredes e desmembrando pessoas com tiros de uma metralhadora de<br />

helicóptero... Nem mesmo uma ordem direta do senhorio da cidade.<br />

A cortina que separava humanos de vampiros devia ser mantida a<br />

todo custo, evitando as possíveis retaliações dos fanáticos. Vampiros eram<br />

lendas e fábulas, e deviam continuar vivendo como tal, distantes das crenças<br />

e da realidade humanas.<br />

Ele próprio já passara por toda sorte de inconvenientes durante<br />

os períodos em que a humanidade acreditava ter abandonado o<br />

ceticismo, saindo por aí ensandecida, archotes, lanças e intransigência<br />

em punho, caçando bruxas e destruindo mitos, religiões e diferenças.<br />

Nem o Deus humano inventado na antiguidade e espargido aos quatro<br />

ventos como verdade indiscutível faria ideia do que poderia acontecer<br />

caso tal fenômeno se repetisse em uma época na qual um caso crônico<br />

de xenofobia pudesse ser resolvido com o emprego de meia dúzia de<br />

bombas nucleares.<br />

O Deus das Sombras teve seus pensamentos interrompidos quando<br />

mais um homem e uma mulher encapuzados irromperam da poeira e da<br />

fumaça, correndo, tropeçando e praguejando em altos brados. Os capuzes<br />

de meia preta dos dois também tinham pinturas alegóricas no lugar dos<br />

orifícios, o que transformava o homem em um ciclope carrancudo de um só<br />

olho e boca torta com um único dente pontiagudo, ao passo que a mulher<br />

apresentava uma face de mulher mesmo, porém invertida, de ponta-cabeça,<br />

os olhos em baixo, o nariz no meio e a boca em cima.<br />

Os dois novos personagens também estavam vestidos para uma guerra,<br />

e carregavam um pequeno arsenal de pistolas, metralhadoras pequenas,<br />

cartuchos, granadas de mão, facas de combate, e tudo mais que se pudesse<br />

imaginar.<br />

– Porra do inferno! Eu não consigo correr! – berrou a mulher de<br />

rosto invertido, tropeçando e caindo no chão, bem na entrada do beco onde<br />

o vampiro das sombras fazia o possível para que a coisa mais sólida que<br />

houvesse em seu corpo fossem os próprios pensamentos.<br />

– Cala a boca e levanta, sua vagabunda! – gritou o homem de um olho<br />

só, voltando e amparando-a, ao passo que fazia fogo para o lado oposto com<br />

uma metralhadora. – Eu também estou ferrado! Tá todo mundo ferrado! Mas<br />

eu não vou morrer aqui... Ah, não vou mesmo! Já perdemos gente demais...<br />

Venha logo!... Força!<br />

A mulher grunhiu e agarrou o ombro do homem, e tratou de correr,<br />

claudicante.<br />

– Não adianta querer correr! – berrou o homem-ciclope, no ouvido da<br />

parceira. – Estamos travados! A coisa já bloqueou nossa corrida e um monte<br />

de outras coisas...<br />

– Eu... estou ficando cega... – resmungou a mulher. – Tenho que tirar<br />

esse capuz...<br />

Fabian Balbinot<br />

193


– Não vai tirar porra nenhuma! – berrou o ciclope no ouvido dela. –<br />

Quer que esse diabo de merda nos descubra pra foder com todo o plano de<br />

uma vez só? Vamos logo de uma vez...<br />

E ambos saíram correndo aos trambolhões, abandonando a frente do<br />

beco e o campo de visão do Deus das Sombras, que ainda se sentia muito<br />

aturdido para esboçar qualquer reação.<br />

Fosse o que fosse, algo, uma coisa, um diabo de merda, estava<br />

se aproximando daquele bando de guerrilheiros fortemente armados, e<br />

dizimando-os de dentro para fora!<br />

Era muito claro para o vampiro envolto em sombras a quê aquela<br />

mulher se referia quando mencionara não poder correr e estar quase cega.<br />

Fosse o que fosse, a tal coisa estava cancelando os poderes dos vampiros<br />

guerrilheiros, impedindo-os de ver através das superfícies ou de se<br />

movimentar em velocidade supersônica, como muitos podiam fazer...<br />

Alguém berrou ao longe, interrompendo os pensamentos do Deus das<br />

Sombras, e um objeto oval passou voando.<br />

Houve uma explosão, que jogou pedaços de pedra e lixo para todos<br />

os lados e derrubou uma parte da parede esquerda do beco. Uma cortina de<br />

poeira tomou conta de toda a entrada, impedindo que o vampiro encoberto<br />

tivesse qualquer visão do que acontecia fora do beco.<br />

Instintivamente, ele se solidificou e recuou correndo para o interior do<br />

beco, evitando a poeira e pressentindo que o resto daquelas paredes abaladas<br />

poderiam acabar desabando sobre ele. Sua forma etérea era um excelente<br />

ardil de caça, mas em nada servia nos momentos em que uma movimentação<br />

rápida fosse exigida.<br />

Quando ele já estava longe dentro do beco e voltou-se, batendo a<br />

poeira das roupas, para ver o que estava acontecendo, foi que ele viu a luz.<br />

Era uma luz fortíssima, que subia através dos prédios, clareando<br />

mesmo as paredes mais elevadas, e que a nuvem de pó conseguia bloquear<br />

apenas parcialmente.<br />

O fulgor durou não mais do que uma dúzia de segundos, mas foi o<br />

suficiente para que seus olhos lacrimejassem e ardessem como se estivessem<br />

sendo perfurados por espinhos. De repente, sua pele parecia estar em brasas<br />

e ele vergou o corpo e deitou ao solo, protegendo-se instintivamente com<br />

seu capote, acossado por dores fortíssimas.<br />

A luz do sol...<br />

Outra vez, o sol.<br />

O fulgor, o Sol da Meia Noite durou não mais do que uma dúzia de<br />

segundos. Talvez tivesse durado mais tempo, mas o Deus das Sombras não<br />

teve como saber, pois sucumbiu perante a dor que o enlouquecia e tombou<br />

inconsciente.<br />

* * * * *<br />

194 Doença e Cura


Sim. Ele ficou vivo para contar a história.<br />

Devia ter acordado momentos depois, mas não havia mais luz e a<br />

cortina de fumaça já tinha se dissipado.<br />

Saiu de dentro do beco, misturando-se à multidão de curiosos,<br />

surgidos de todos os lados.<br />

A rua se transformara em uma verdadeira baixa de guerra.<br />

Viu uma trilha de restos de corpos de humanos – que bem poderia ser<br />

uma trilha de restos de um único corpo – e escombros para todos os lados.<br />

Ao longe via-se fumaça de inícios de incêndios subindo aos céus.<br />

Um chuvisco fino e quente começou a cair de forma intermitente e o<br />

que restava da poeira assentava rapidamente.<br />

Uma mulher berrava de forma histérica. Ouvia-se o choro contido<br />

de alguns adultos, enquanto uma criança chorava alto em um carrinho de<br />

bebê próximo. Alguém que não chorava praguejou ainda mais alto contra o<br />

governo e contra o destino.<br />

O Deus das Sombras caminhou pela noite, inocente como se fosse<br />

apenas outro transeunte, olhando em volta.<br />

Fez alguma força para conter seu assombro.<br />

Paredes, prédios inteiros tinham desabado com as explosões. Postes<br />

tinham caído. Um hidrante estourado no meio de uma calçada lançava um<br />

gêiser de água para o alto, reforçando a garoa fraca.<br />

Ignorando a fome que ainda sentia, e que era atiçada pela multidão<br />

inquieta ao seu redor, o vampiro dirigiu-se para o ponto onde, após forçar sua<br />

visão de raios X, encontrou, soterrado por pedaços de concreto e ferragens,<br />

o cano óctuplo da grande metralhadora, que o homem-tubarão estivera<br />

carregando durante sua fuga.<br />

Agachado, ele identificou e tateou a extremidade úmida e suja do<br />

canhão e novamente se surpreendeu com a descomunal força física que<br />

devia ter sido empregada para carregar uma massa de metal daquele porte.<br />

E apostava que os humanos ali presentes também se surpreenderiam, o que<br />

certamente teria efeitos muito negativos para toda a população sobrenatural<br />

da cidade.<br />

Ignorando tal problema – o gigantesco armamento estava todo recoberto<br />

de entulho, e, como andarilho que era, ele sempre poderia mudar-se para outros<br />

lugares mais remotos e calmos antes mesmo que aquilo viesse a ser desenterrado<br />

e investigado – ele passou a vasculhar as ruínas naquele ponto, simulando ter<br />

dificuldade para revirar alguns blocos de entulho mais pesados.<br />

Logo, descobriu os restos de uma farda militar, junto dos quais<br />

encontrava-se um daqueles capuzes negros, ainda bastante inteiro, que<br />

ele pegou na mão, verificando não se tratar de uma simples peça de meia.<br />

O tecido todo era composto de uma intrincada barragem de minúsculos<br />

filamentos e componentes eletrônicos, bastante resistentes, os quais ainda<br />

pareciam intactos, mesmo depois de esmagados pelo desabamento.<br />

Fabian Balbinot<br />

195


“Não vai tirar porra nenhuma!”, lembrou-se dos gritos que o ciclope<br />

dirigira à mulher de rosto invertido, quando ela tentou tirar o capuz. “Quer<br />

que esse diabo de merda nos descubra pra foder com todo o plano de uma<br />

vez só?”<br />

O interior do capuz revelava mais uma série de pequenas<br />

funcionalidades, provavelmente comunicadores e visualizadores, e geradores<br />

de interferência e camuflagem, quiçá potencializadores sensoriais e outras<br />

tantas micro-geringonças cuja utilidade real ele desconhecia, mas ousava<br />

supor. Coisas de filme de ficção científica.<br />

Olhando para longe, umidade escorrendo pelo rosto, o vampiro<br />

imaginou que tipo de ameaça poderia fazer com que a alta cúpula vampírica<br />

da cidade fosse obrigada a lançar mão de tecnologia tão avançada.<br />

O sol artificial...<br />

Aquela luz cegava, e queimava, e matava como se fosse um sol de<br />

verdade.<br />

E aquele sangue borbulhante, vivo, que escorrera pela neve,<br />

penetrando pelos orifícios do corpo daquele homem moribundo, que depois<br />

desaparecera.<br />

“Haveria alguma relação entre o sangue e aquela luz?”, pensara ele<br />

daquela vez, cercado por diversas pessoas de sangue quente que observavam<br />

com igual interesse tanto os estragos quanto sua vasta cabeleira branca,<br />

enquanto colocava o capuz do homem-tubarão no bolso, e passava a<br />

procurar por outros retalhos do tal fardamento high-tech que pudesse haver<br />

espalhados por aí.<br />

– Você não pode pegar isso! – posicionada ao alto de uma pilha de<br />

entulho, uma criança, uma menina, armada com um revolver plástico amarelo<br />

berrante, sujo e torto, fazia mira nele. – As provas devem ser deixadas no<br />

local do crime.<br />

Esquecendo-se das dúvidas que tinha, o Deus das Sombras sorriu de<br />

leve e fungou, sacudindo a cabeça e limpando a cara com a mão.<br />

Fez um nó no próprio cabelo, escondendo-o debaixo da gola, e<br />

continuou a vasculhar o chão.<br />

– Mãos ao alto! – berrou a menina, bem letrada nas frases feitas<br />

dos homens da lei dos filmes, do alto de seus nove ou dez anos. – Você<br />

está impedindo a justiça! Você tem o direito de permanecer calado... e pode<br />

chamar seu advogado...<br />

– Sim, eu sei... “senão, o estado vai acabar encontrando um para<br />

você”... – respondeu ele laconicamente, colocando-se de pé. Sacudiu o que<br />

restara da jaqueta recém encontrada do homem-tubarão para tirar a água, e<br />

tentou enfiá-la em algum dos bolsos de seu capote, sem sucesso.<br />

– Largue isso! – exigiu a garotinha, impassível, mesmo diante dos<br />

quase dois metros do homem magro de cabelos brancos, que, de pé, a<br />

suplantava em altura mesmo ela tentando ficar na ponta dos pés no topo do<br />

196 Doença e Cura


pequeno morro de entulho onde estava. – Isso vai ser usado no inquérito e<br />

deve permanecer na cena do crime até que os peritos cheguem! – gritou ela,<br />

incisiva, dedo no gatilho do seu brinquedo.<br />

Algumas pessoas que passavam perto sorriram, demonstrando<br />

simpatia pela ingenuidade intelectualizada da criança. Outras murmuravam<br />

entre si, apreensivas.<br />

Alguém riu alto, como se fazendo pouco daquela catástrofe toda.<br />

Menos pessoas choravam, berravam ou praguejavam naquele<br />

momento, boa parte delas tendo sido levada embora para outros lugares<br />

onde seriam confortadas pelos parentes e amigos.<br />

Homens taciturnos, mãos na cintura, examinavam os danos e<br />

confabulavam murmurando a respeito dos gastos nos consertos.<br />

Escamoteadores procuravam objetos de valor no meio das ruínas,<br />

alguns com grandes bolsos de agasalhos já cheios de coisas que não se podia<br />

ver.<br />

Um grupo de jovens mal encarados perambulava pelo cenário, ora<br />

inquirindo os outros transeuntes, ora fazendo com que estes se dispersassem,<br />

bastando para tal que revelassem os canos das armas que traziam encobertas<br />

debaixo de grossas vestes.<br />

Pessoas debatiam a respeito do ocorrido, expondo opiniões diversas,<br />

não raro rindo. Mulheres oravam de mãos juntas em um canto. Crianças em<br />

grupos corriam curiosas, catando coisas para jogar umas nas outras em meio<br />

aos grandes blocos esfarelados de concreto.<br />

Aquela rua mais lembrava uma feira de comércio de verduras do que<br />

as sobras do meio quarteirão que voara pelos ares.<br />

“… e no tiroteio que aconteceu ano e meio atrás não teve tanta<br />

destruição, mas lembro que morreu bem mais gente, umas quinze pessoas...”,<br />

alguém declarava, gesticulando.<br />

“Esse prédio que caiu tava abandonado... Era fachada pros traficantes.<br />

Já foi tarde...”<br />

“... o senhor é contigo, bendita és tu entre as mulheres...”<br />

“A porcaria do hidrante estourou de novo... Vamos ficar sem água mais<br />

um mês. Quero só ver a desculpa que a prefeitura vai inventar agora...”<br />

“… nem aqueles caras sabem direito o que aconteceu, mas parece que<br />

eles já tão de olho em alguém por aí. É certo que vai ter revide...”<br />

“Olha só o que eu achei ali no fundo. Será que vale alguma coisa?”<br />

“Não aguento mais essa merda. Vou me mudar de volta pra casa dos<br />

meus pais na semana que vem mesmo...”<br />

A comoção era pouca, o desespero comedido, acostumados que<br />

estavam os locais a conviver com a desgraça e o infortúnio, e imitar tamanha<br />

indiferença era algo que o vampiro de cabelos brancos podia fazer sem<br />

grande esforço.<br />

Sem encontrar nenhum bolso grande o suficiente onde poderia meter<br />

Fabian Balbinot<br />

197


a jaqueta militar destroçada, o Deus das Sombras enrolou-a e a colocou<br />

debaixo do braço.<br />

– Parado aí! – berrou novamente a criança, que tinha uma comprida e<br />

desalinhada cabeleira marrom, pele muito branca, que a luz da lua, cada vez<br />

mais visível no céu, tornava ainda mais branca, e olhos enormes e claros.<br />

– Desculpe-me, oficial, mas, em minha humilde opinião, o que você<br />

precisa é de sexo... – disse o homem de cabelos brancos, olhando em redor<br />

para ver se encontrava mais algum objeto interessante.<br />

Um homem grandalhão deu uma gargalhada ali perto.<br />

– Isso é “desatato”! Posso prendê-lo por isso, sabia? Quer que eu leia<br />

seus direitos?<br />

O vampiro virou-se para aquela miniatura de representante da lei à<br />

paisana, que vestia uma calça cor vinho e camisa listrada em um xadrez<br />

de vermelho e branco, olhou para o alto e fingiu um suspiro profundo de<br />

tédio.<br />

Sacudiu a cabeça negativamente, deu um passo e agarrou a criança,<br />

erguendo-a sobre o ombro e levando-a consigo, enquanto ela gritava e<br />

esperneava, respingando água para os lados.<br />

– Ei, olhem todos! Estou raptando uma policial que precisa<br />

urgentemente de sexo! – disse ele, alto, avaliando qual seria a reação de<br />

quem houvesse em redor.<br />

“Pega o sequestrador!”, alguém berrou, rindo.<br />

“Quanto de sexo vai ser o resgate?”, gritou uma corpulenta mulher de<br />

pele escura. “Se for com você, eu pago o dobro!”<br />

Muita gente riu.<br />

Alguns poucos recuaram, sacudindo a cabeça e parecendo<br />

indignados.<br />

Depois de ter caminhado um pouco a esmo, longe das ruínas, usando<br />

as duas mãos, o homem de cabelos brancos removeu a menina de seu ombro,<br />

girando-a de modo que ela desse uma cambalhota no ar antes de colocá-la no<br />

chão. Ela deu um gritinho.<br />

– Faz de novo! – disse a garotinha, morrendo de rir.<br />

O homem alto agachou-se para conversar com ela mais de perto.<br />

– Juro que se você continuar a crescer linda desse jeito, deixo você<br />

me prender e faço “uma porção” de sexo com você.<br />

– Quero um beijo, de língua, senão prendo você AGORA! – declarou<br />

ela, muito dona de si, revólver de brinquedo ainda em punho.<br />

Por tudo o que é mais sagrado, pensou o vampiro, o que mais estas<br />

crianças pós-modernas que assistem muitas horas de televisão por dia iriam<br />

inventar? Quanta precocidade...<br />

– Quando você crescer, lindinha... – ele secou e alisou os cabelos<br />

escuros da pequena. – Eu juro por Deus que mordo você toda, de cima a<br />

baixo. E faço de você minha noiva.<br />

198 Doença e Cura


Já havia jurado coisas piores. Não iria para o inferno por tão pouca<br />

coisa.<br />

Na verdade, nem mesmo acreditava que uma criança tão bela pudesse<br />

crescer e tornar-se adulta em um buraco como aquele. Na certa, morreria de<br />

um modo bem idiota antes de atingir a adolescência.<br />

– UAU! – disse a menina, toda faceira, erguendo-se na ponta dos pés<br />

e agitando os braços. – Assédio sexual. Isso deve dar uns DUZENTOS anos<br />

de cad...<br />

Os olhos do vampiro, que focalizavam diretamente os da criança,<br />

sofreram uma mudança quase imperceptível, a qual foi suficiente para<br />

acalmar os brios da pequena peralta, lançando-a em um transe que duraria<br />

pelos próximos cinco minutos.<br />

– Sim, mestre – disse ela, apática.<br />

No fim das contas, comovido com a simpatia e com a coragem daquele<br />

minúsculo e impetuoso exemplar de ser humano, ele sentiu que realmente<br />

gostaria de vê-la crescer.<br />

Olhou para o rostinho redondo, procurando guardá-lo na mente, e,<br />

depois de dar uma espiada em redor, cheirou-a, beijou-a na bochecha e a<br />

abandonou, passando a mão pela última vez no cabelo desgrenhado antes de<br />

se dirigir para o beco mais próximo.<br />

O cheiro de uma pessoa era uma coisa bastante particular, que ele<br />

conseguia distinguir tão intensamente como se fosse um cão de caça.<br />

Se em uma noite, no futuro, a encontrasse de novo, talvez até<br />

cumprisse seu juramento e a transformasse em sua noiva.<br />

“Sim, mestre”, riu ele. Mesmo hipnotizada, ela conhecia frases feitas<br />

para todas as situações.<br />

Longe da visão do público e das sirenes que prenunciavam a chegada<br />

sempre tardia da polícia, o vampiro fundiu-se às sombras mais escuras do<br />

beco úmido e sumiu sem deixar pistas.<br />

* * * * *<br />

SOL DA MEIA NOITE<br />

FENÔMENO INTRIGA MORADORES<br />

Na madrugada de ontem, moradores de diversos bairros próximos ao<br />

centro da cidade tiveram uma experiência no mínimo intrigante, quando foram<br />

despertos pelo barulho do que pareciam ser tiros e explosões, entre meia noite e<br />

uma hora. Assustados, os moradores correram para fora de suas casas para ver<br />

o que estava acontecendo, quando viram fumaça subindo por trás de prédios<br />

próximos, a qual foi seguida por um grande clarão que durou não mais do que<br />

dez segundos e pôde ser visto dos arredores da cidade. Terminado o clarão,<br />

que deu fim também às explosões, uma multidão de curiosos se dirigiu para<br />

Fabian Balbinot<br />

199


seu ponto de origem, provavelmente situado em algum local entre os diversos<br />

blocos e ruas que fazem divisa entre três dos bairros da zona central-norte da<br />

cidade, e que amanheceram completamente destruídos. “Não fazíamos ideia<br />

do que estava acontecendo. Estamos acostumados com o tiroteio nesse bairro,<br />

pois a prefeitura nunca faz nada pra resolver o problema da violência. Mas,<br />

desta vez o barulho era demais e quando vimos o clarão, pensamos que era<br />

algum tipo de fogo de artifício”, declarou um dos moradores daquela região,<br />

que não quis ser identificado, em entrevista à nossa equipe de reportagem.<br />

“Foi uma barulheira só. Parecia até uma guerra. E aí teve aquele brilho todo.<br />

Eu estava a mais de um quilômetro do lugar, tinha prédios na frente e tudo<br />

mais, mas mesmo assim, tive que tapar a vista. Era como se o sol estivesse<br />

nascendo bem no meio da noite...” Clique aqui e assine para ter acesso a esta<br />

e outras matérias na íntegra, com fotos<br />

* * * * *<br />

Na noite seguinte, após se alimentar, o Deus das Sombras levou o<br />

capuz preto eletrônico com a estampa de boca de tubarão e a jaqueta militar<br />

verde-escura, feita de um tecido também permeado por finíssimas malhas de<br />

cabos eletrônicos, para um de seus “amigos” humanos.<br />

Tratava-se de um pobre escravo, intelectualóide, hacker,<br />

incompreendido gênio da eletrônica e às da espionagem industrial via<br />

internet, perito em criptografia e invasão de sistemas, que costumava se<br />

vangloriar de suas competências ao passo em que se dispunha a fazer de<br />

tudo para segui-lo, tentando tornar-se um vampiro em definitivo sempre que<br />

eles se encontrassem, o que rotineiramente acontecia, a cada vez que um<br />

problema de ordem tecnológica surgisse.<br />

Dizia-se nos arredores que aquele homenzinho solitário era um<br />

pecador e um descrente, e contestava-se sua origem étnica, relacionando-a<br />

ao paganismo.<br />

O vampiro de cabelos brancos não entendia nada de tecnologia e<br />

não dava a menor importância para etnias ou crenças, o que tornava aquele<br />

carniçal em um importante elo em sua pequena corrente de informações.<br />

Um elo forte e firme, totalmente confiável, pelo menos enquanto<br />

continuasse sendo apenas um reles humano, viciado em dinheiro e sangue<br />

de vampiro.<br />

O homem raquítico que recebeu o Deus das Sombras naquele casebre<br />

velho e caindo aos pedaços, de tão magro, parecia ser muito mais alto do que<br />

realmente era, o que o fazia encolher-se ainda mais diante da grande estatura<br />

do outro. Ele começou com sua velha ladainha de descarada adulação, tão<br />

logo acolheu o vampiro em sua casa...<br />

– Você... E-e-eu... Você finalmente v-voltou... – gaguejava ele com sua<br />

voz entre esganiçada e rouca de tanto fumar. – Você s-sabe que sempre será<br />

200 Doença e Cura


em vindo ao meu lar. Acho que eu sempre soube q-q-que você retornaria<br />

para me tornar o que eu realmente mereço ser...<br />

Sem nada dizer, o vampiro penetrou na casa escura e esfumada,<br />

desviando de seu proprietário, e, sem fazer cerimônia, caminhou pelo<br />

curto corredor que lhe era bastante familiar, desviando de monitores de<br />

tubo e de cristal líquido de tamanhos diversos, dos cabos e dos pedaços<br />

de placas de silício colorido que brotavam pelo chão como flores em<br />

um canteiro, dirigindo-se até uma pequena oficina com paredes em que<br />

várias mãos de tinta descascavam juntas, onde entrou, atirando a jaqueta e<br />

o capuz sobre uma mesa iluminada por meia dúzia de pequenas lâmpadas<br />

de suporte, umas mais claras, outras mais escuras. Coisas eletrônicas que<br />

havia sobre a mesa acabaram rolando e caindo no chão, misturando-se<br />

à incomensurável bagunça de peças e cabos elétricos que dominava o<br />

quarto todo.<br />

O homenzinho magrela, que vestia um conjunto de camiseta e<br />

macacão manchados e de cores indistintas, alguns números acima de seu<br />

tamanho, desfez o sorriso assim que viu as duas peças de roupa sobre sua<br />

mesa.<br />

– Acho que eu... eu não trabalho com moda... ainda... – disse, sorrindo<br />

amarelo, seu narigão de tucano refletindo a luz das diversas lâmpadas que<br />

havia no quarto. – Poderíamos ap-p-proveitar a oportunidade e conversar<br />

sobre aquele outro assunto...<br />

Com um gesto, o vampiro lançou ao chão uma pilha de equipamentos<br />

e caixas de papelão que havia em uma cadeira giratória, e ali sentou, cruzando<br />

as pernas compridas.<br />

– Eu realmente odeio quando você faz isso... – sibilou o outro,<br />

acenando negativamente com a cabeça e se aproximando de sua mesa.<br />

O homem com nariz de tucano apanhou o capuz, e percebeu então<br />

que não se tratava apenas de tecido.<br />

– Puta que pariu! – sussurrou ele, aproximando uma das lâmpadas<br />

do tecido negro, enquanto seu olhar ia e voltava entre o capuz e o vampiro<br />

que agora se dedicava a chutar para longe de si o que mais houvesse de<br />

equipamento no chão em seu redor. – O que diabos significa isso? Onde<br />

você arranjou esse troço?<br />

– É o que eu quero que você descubra, homenzinho – disse o Deus das<br />

Sombras, acomodando-se e girando mechas de sua vasta cabeleira branca<br />

entre os dedos.<br />

Piscando muitas vezes, o outro apanhou um pequeno e comprido<br />

monóculo de algum lugar sobre a mesa e posicionou o capuz debaixo de<br />

mais lâmpadas, ajustando-as de modo que pudesse obter o máximo de luz.<br />

Segurando o monóculo em um dos olhos, o técnico examinou o capuz,<br />

mexendo sua cabeça para lá e para cá, como se fosse uma ave de pescoço<br />

razoavelmente comprido.<br />

Fabian Balbinot<br />

201


Sem parar de olhar o capuz, perguntou em tom formal:<br />

– Você p-pretende fazer o que... eu quero que você faça? Acho que já<br />

está mais do que na hora de eu...<br />

– Não – respondeu prontamente o vampiro, que, apesar do olhar sério<br />

e inexpressivo, parecia estar se deleitando, dando voltas e mais voltas sobre<br />

a cadeira. – Você sabe que eu não vou fazer isso enquanto você não estiver<br />

pronto, pois tenho certeza de que nunca mais vou poder contar com seus<br />

serviços a partir do momento em que você se tornar um de nós. Se quiser ser<br />

mordido, procure outra boca...<br />

O magrelo olhou de volta para o visitante por um momento. Segurando<br />

o monóculo com a vista daquele jeito, parecia-se ainda mais com algum tipo<br />

de ave exótica.<br />

– Dois. Não, TRÊS mil... e quinhentos – disse o técnico, aparentando<br />

muito maior confiança e decisão em sua voz, além de alguma revolta,<br />

voltando-se para o capuz negro, que ele agora torcia, virando-o do avesso. –<br />

Nenhum centavo a menos. E acho que vou precisar de umas duas semanas<br />

de prazo pra mexer com isso.<br />

– Terá um mês – disse o vampiro, levantando-se e caminhando a esmo,<br />

sem sequer tentar desviar do mar de peças que havia pelo chão. – Pagarei na<br />

retirada, como de costume, a depender do resultado de sua... pesquisa.<br />

– Mil e quinhentos, na retirada, se eu não descobrir nada... o que<br />

é bastante provável. Isso... isso é coisa que só gente da pesada usa.<br />

Acho que nem o governo tem acesso a esse tipo de hardware... Ah – o<br />

homem com nariz de tucano sacudiu a touca preta, – e quero isso daqui<br />

pra mim.<br />

– Negócio fechado. Não preciso de nenhum capuz bonito de espião.<br />

E não se esqueça: quero nomes e endereços. Baboseiras sobre a tecnologia<br />

com a qual isso foi feito não me interessam. Quero saber de onde isso veio,<br />

quem o usou e por quê. E mais nada. Ah, pensando bem você só fica com o<br />

capuz se resolver o problema. Você sabe... Se meu técnico de estimação não<br />

pode resolver esse problema, tenho que levar as... amostras... para alguém<br />

que possa.<br />

– N-negócio fechado. Acho que, a partir de hoje, estou entrando no<br />

negócio de moda... – ironizou o homenzinho, debruçando-se sobre a jaqueta.<br />

– Feche a porta SEM BATER quando sair.<br />

– Encontro você em duas semanas para saber como a coisa está indo.<br />

– Traga dinheiro... Vou estar me divertindo demais para me preocupar<br />

com outros serviços neste período. Acho que vou deixar até de comer...<br />

O vampiro não respondeu. Apenas fez o caminho de volta, do quarto<br />

escuro para o corredor e daí para a sala de visita, saindo pela porta e batendo-a<br />

com força atrás de si.<br />

Sorriu ao NÃO ouvir os resmungos que eram uma marca registrada<br />

do técnico toda vez que ele saía da casa e batia a porta com força.<br />

202 Doença e Cura


Ao que parecia, seu amiguinho de nariz comprido finalmente<br />

encontrara algo com o que se divertir. Seu interesse transparecia sempre que<br />

ele deixava de gaguejar.<br />

Restava a ele providenciar o dinheiro para o pagamento. Sempre<br />

havia valido a pena confiar no homenzinho esquisito – ele SEMPRE resolvia<br />

aquele tipo de problema.<br />

E naquele caso, os jornais não mentiam, o problema parecia ser<br />

mesmo grande.<br />

“Sol da Meia Noite”... pensara ele, relembrando a manchete que<br />

havia visto na capa de um dos poucos números do diário mais importante da<br />

cidade que havia restado em uma banca de jornais no início da noite.<br />

Aqueles vampiros fardados tinham estado combatendo, ou melhor,<br />

fugindo, de quem havia feito o sol nascer ao avesso, iluminando um punhado<br />

de bairros e deixando a população de cabelos em pé.<br />

Tinha de encontrar os colegas deles, ou superiores, e descobrir o que<br />

estava acontecendo.<br />

* * * * *<br />

O homem corria pela escuridão da cidade grande.<br />

Corria com a velocidade do vento, e não podia parar, de jeito<br />

nenhum.<br />

Em um dado ponto, ele projetou-se para o lado, levantando poeira do<br />

chão e sumindo em uma reentrância escura que dividia dois prédios antigos<br />

de aspecto miserável, sua forma material sumindo da vista de qualquer um<br />

em meio às sombras.<br />

Etéreo, transformado em escuridão, o Deus das Sombras aproveitouse<br />

da camuflagem para ganhar tempo.<br />

Não sabia o quanto o seu disfarce de sombras era efetivo contra a<br />

coisa.<br />

Talvez não tivesse efeito algum.<br />

Talvez o monstro disfarçado de mulher que o perseguia estivesse<br />

apenas brincando, torturando a presa antes de devorá-la, como um predador<br />

impiedoso.<br />

E aquela criatura de fato ERA um predador impiedoso.<br />

Quantos ela já tinha eliminado? Mais de uma centena, contando os<br />

membros da Ralé. Alimentando-se de uns poucos, destruindo os outros das<br />

formas mais terríveis que se poderia imaginar.<br />

Um predador furioso que se deleita com a caçada.<br />

Bem parecido com ele próprio, só que muito pior – pois ELE<br />

PRÓPRIO era a presa naquele momento.<br />

Quantos ela já tinha eliminado longe da vista dele?<br />

Milhares?<br />

Fabian Balbinot<br />

203


Ele precisava torcer para que seu esconderijo de sombras funcionasse<br />

mais uma vez, e precisava descansar, e relembrar, juntar os pedaços, as<br />

informações que sabia, montar o quebra-cabeça e descobrir o que realmente<br />

estava acontecendo.<br />

Tinha que acreditar que seu truque de mesclar-se às sombras<br />

continuava sendo efetivo, mesmo contra... aquilo. Pensar no melhor, apenas<br />

para poder esfriar a cabeça.<br />

Ele havia regressado ao casebre arruinado do técnico com nariz de<br />

tucano com uma semana de antecedência em relação ao prazo estipulado,<br />

levando consigo um substancioso adiantamento da primeira parcela do<br />

serviço, apenas para descobrir que o lugar se encontrava ainda mais<br />

arruinado, e que o homenzinho raquítico não estava mais lá.<br />

A porta havia sido arrombada e encontrava-se solta de seus suportes,<br />

de modo que, quando ele procurou abri-la, ela simplesmente desabou sala<br />

adentro, esmagando o que houvesse pelo piso.<br />

Encontrou tudo revirado. Mesa quebrada e cacos de vidros das<br />

lâmpadas de suporte espalhados, integrados às pilhas de peças, pelo chão.<br />

A testa franzida pela desconfiança, atravessou o corredor e penetrou na<br />

pequena oficina, onde a bancada de trabalho encontrava-se partida em duas, um<br />

pedaço para cada lado. Suas gavetas estavam jogadas sobre o mar de componentes<br />

eletrônicos, que inundavam o piso todo em uma terrível enchente de transistores,<br />

diodos, válvulas, placas esverdeadas e outras tranqueiras. Armários tinham sido<br />

revirados e pedaços de caixas de madeira e de papelão encontravam-se atirados<br />

lá e cá, junto de ferramentas e de umas poucas peças de roupa.<br />

Nenhum sinal do capuz de tubarão, nem da jaqueta militar.<br />

O leve cheiro de sangue.<br />

Sangue adocicado.<br />

Irresistível...<br />

Ele não precisou apurar o ouvido para perceber que sirenes soavam<br />

ao longe, cada vez mais próximas.<br />

Não houve tempo para que o Deus das Sombras procurasse por<br />

qualquer sinal do que havia acontecido com seu esquálido confidente, ou<br />

com o capuz e a jaqueta.<br />

Ele teve de sumir antes da polícia chegar, amaldiçoando a falta de<br />

sorte.<br />

Perdera as únicas pistas que tinha em relação a... o que quer que fosse<br />

que estivesse acontecendo. E perdera também o único contato confiável que<br />

possuía capaz de determinar as origens de tais pistas. Mesmo que ele usasse<br />

com frequência o expediente de procurar um outro especialista em caso de<br />

falhas, para forçar seu colega geek maluco a se dedicar ao máximo em suas<br />

tarefas, não havia nenhuma segunda opção.<br />

Amaldiçoou a própria sorte, e o fato de ter se tornado um solitário<br />

com o passar do tempo.<br />

204 Doença e Cura


Ser um nômade tinha lá as suas vantagens, não precisar responder a<br />

ninguém, ser o dono de seu próprio destino.<br />

Entretanto, também costumava ser o último a saber de certas coisas.<br />

E não saber de certas coisas, ao que parecia, estava se tornando<br />

perigoso para seu futuro.<br />

Algo realmente grande parecia estar acontecendo.<br />

E, mais cedo ou mais tarde, ele também teria de saber do que se<br />

tratava.<br />

Mas, naquele momento, ele havia corrido e se embrenhado às sombras<br />

do caminho, fugindo, mais ou menos como fazia agora.<br />

A diferença é que, naquele momento, o Deus das Sombras ainda não<br />

fazia a menor ideia do perigo que corria.<br />

* * * * *<br />

– Temos a porra de um problema... – gritou o ancião do gueto,<br />

um homem negro, coberto de manchas esbranquiçadas na pele que tanto<br />

poderiam ser vitiligo quanto podridão. De voz alta e forte, com seu semblante<br />

juvenil de alguém que aparentava ter saído há pouco da adolescência, ele<br />

bradava, reduzindo ao silêncio os murmúrios que vez por outra soavam em<br />

meio à centena de vampiros esfarrapados que o ouviam, reunidos em filas a<br />

sua frente. – E é um problema dos grandes. Talvez nunca tenhamos tido um<br />

problema tão grande assim...<br />

“Se você quer saber de algum segredo, há dois caminhos que podem<br />

ser seguidos...”, pensava o Deus das Sombras, confortavelmente instalado,<br />

não mais do que um jogo de sombras rente ao teto de madeira velha e mofada<br />

da igreja abandonada que servia de quartel general provisório para aquele<br />

bando de vampiros dissidentes que era conhecido pelo restante da sociedade<br />

apenas como A Ralé.<br />

– Sim, um problema do caralho. Temos um monte de informação que<br />

o pessoal do esgoto conseguiu pra gente... o pessoal do esgoto que AINDA<br />

ESTÁ VIVO, é claro... Eles foram os primeiros que se ferraram, porque o<br />

nosso problema do caralho tem o hábito estúpido de se mexer principalmente<br />

pelos esgotos...<br />

“Dois caminhos. Ou você se integra com quem conhece o segredo...<br />

ou o espiona. E às vezes, você consegue fazer as duas coisas ao mesmo<br />

tempo...”<br />

Ele sabia que, mesmo dentre os seus semelhantes, apenas alguns<br />

poucos poderiam localizá-lo assim que ele tivesse se camuflado na escuridão.<br />

Identificar um disfarce tão efetivo quanto o seu requeria uma extraordinária<br />

dose de poder sensorial, e outra dose de concentração.<br />

Os membros da Ralé não pareciam dispor nem de uma e nem da<br />

outra.<br />

Fabian Balbinot<br />

205


– O pessoal do esgoto que conseguiu ver o diabo e sobreviver está<br />

aqui com a gente nesta noite. Eles me pediram para dizer que estão SE<br />

BORRANDO de pavor! Não, isso não é uma piada de merda, e não é pra<br />

ninguém rir... Eles perderam seus companheiros. Muitos deles. E também<br />

perderam a porra de seus lares pra essa merda de diabo dos infernos. Logo<br />

eles, que nunca incomodaram ninguém. Eles comem ratos e baratas, que<br />

dizem serem uma praga de verdade, e justo eles são os que primeiro são<br />

currados e tomam nos rabos... Isso está MUITO errado!<br />

A Ralé era a resposta dos indigentes, dos órfãos e dos perdidos ao<br />

domínio político das classes superiores. Vampiros da pior espécie; párias<br />

abandonados e sem origem; loucos, assassinos e degenerados, tanto mental<br />

quanto fisicamente; ex-integrantes de famílias mais dignas, expulsos pelos<br />

seus comportamentos extravagantes; mortos-vivos doentes e pestilentos;<br />

pobretões e execrados... enfim, toda uma seleção do que poderia existir de<br />

pior no mundo sobrenatural compunha a corja que, naquela e em outras<br />

grandes cidades, se fazia conhecer como A Ralé.<br />

– O diabo está nos esgotos, sabe Deus em que parte dos esgotos,<br />

talvez em TUDO o que é lugar, comendo o cu e chupando as tripas de quem<br />

ainda estiver por lá. Ele aparece como um humano indefeso de sangue<br />

quente, que parece estar na hora errada e no lugar errado, ou ele aparece<br />

como a tentação maior, a imagem do paraíso, sangue quente de graça, limpo<br />

e puro, derramado no chão. Uma porra de uma arapuca de sangue! Depois<br />

que caímos na armadilha, o diabo chupa o sangue da gente de fora pra dentro<br />

como um maldito aspirador de pó, ou ferra com a gente enchendo nosso<br />

sangue de bosta, injetando veneno na nossa veia como se fosse uma porcaria<br />

de uma seringa, e o veneno acaba com nossa força e estoura nossos ouvidos.<br />

E aí ele chega e come nosso rabo pelas nossas costas, como se fôssemos as<br />

porras de uns viados...<br />

Havia outros bandos de exilados pelo mundo afora. Basta alguém<br />

deter o poder para que os descontentes se unam e formem um partido de<br />

oposição logo em seguida. Isso parece ser invariável, tanto para os humanos<br />

quanto no mundo das trevas.<br />

– O pessoal do esgoto está apavorado, tal como nós todos... Nosso<br />

inimigo é muito pior do que nossos colegas bichas de sangue azul. E é muito<br />

pior do que os humanos zumbis que vivem na superfície. Nosso inimigo<br />

mexe com nosso sangue e nos deixa tontos e malucos como se tivéssemos<br />

fumado tudo o que existe para se fumar, e ele entra em nossas tripas como um<br />

maldito caralho e drena nosso sangue na calada do dia, e ele nos mata sem<br />

que possamos reagir. Ele queima nosso sangue e derrete nossos miolos. Ele<br />

fode com a gente, todos de uma vez, como se fôssemos um bando de putas e<br />

ele fosse A PORRA DE UM MALDITO CAFETÃO DO INFERNO!<br />

E os exilados concentravam nestes grupos uma grande dose de poder<br />

social. Eles tinham representantes, líderes com voz ativa junto aos mestres<br />

206 Doença e Cura


da burguesia do submundo, mais ou menos como um levante de favelados<br />

armados até os dentes teria poder em relação aos ricaços amedrontados da<br />

mais requintada zona residencial.<br />

– Estamos com medo. Nossos irmãos estão com medo. Os sangueazul<br />

estão com medo. Mas, será que temos que continuar com medo? Até<br />

quando vamos ficar nessa merda? Eu digo a vocês que já passamos por<br />

encrencas piores e sempre... e eu disse SEMPRE!... vencemos! E, quer<br />

saber, seu bando de putas? Vamos vencer de novo!<br />

E, descontando a linguagem chula e os palavrões, os líderes destes<br />

ajuntamentos semi-organizados de vagabundos e miseráveis sabiam<br />

comandar. Traziam seus seguidores na palma da mão, e os guiavam mostrandolhes<br />

qualquer que fosse a luz que queriam que vissem no final do túnel,<br />

principalmente em tempos de caos e pavor. E, como ninguém, inflamavam<br />

seus comandados, substituindo seus medos pela fúria e transformando-os<br />

em guerreiros prontos para a batalha.<br />

– Por que eu sei que vamos vencer de novo? Porquê não temos medo<br />

de perder nosso poder, e nem de ver nossas tripas espalhadas pelo chão. E<br />

não temos medo do Diabo ou de Deus, e vamos comer os rabos dos dois no<br />

próximo café da manhã, se for o caso! NÃO TEMOS MEDO DE NADA E<br />

NEM NUNCA TEREMOS PORQUE SOMOS OS PIORES DO MUNDO<br />

E É DA GENTE QUE O PESSOAL LÁ DE CIMA E O DIABO E MESMO<br />

DEUS DEVEM TER MEDO!<br />

Os vampiros ergueram seus punhos, e gritaram seu apoio. Quem<br />

estivesse sentado se levantou.<br />

– VAMOS VENCER PORQUE NÃO ESCUTAMOS OS BABACAS!<br />

NÃO ESCUTAMOS NINGUÉM E FAZEMOS A COISA TODA DO<br />

NOSSO JEITO! SE VOCÊ ESCUTA OS TOLOS...<br />

“A RALÉ COMANDA!”, a corja toda berrou em uníssono, fazendo<br />

do refrão de uma antiga canção o seu grito de guerra.<br />

– SE VOCÊ ESCUTA OS TOLOS...<br />

“A RALÉ COMANDA!”<br />

Confortavelmente instalado, não mais do que um jogo de sombras<br />

rente ao teto de madeira velha e mofada, o Deus das Sombras sentiu o lugar<br />

inteiro estremecer com a fúria dos gritos.<br />

* * * * *<br />

Sorte daqueles malucos da Ralé que eles não tinham medo de ver<br />

suas próprias tripas espalhadas pelo chão, pois foi exatamente o que viram,<br />

hora e meia depois, enquanto realizavam uma orgia de confraternização,<br />

deleitando-se em blasfemar e profanar o templo, esfolando e sangrando<br />

animais vivos, algumas reses, cães e ratazanas, e outras coisas, três ou<br />

quatro mendigos e punks viciados, que eram ainda piores que animais, mas<br />

Fabian Balbinot<br />

207


que serviam para serem seviciados pela honra de satisfazer a fome de uma<br />

centena de predadores insaciáveis.<br />

Os vampiros da Ralé pareciam um bando de leões que se atiravam sobre<br />

as presas, retalhando-as aos poucos com garras compridas, mordendo-as com<br />

as presas desproporcionais, tortas, que nem se preocupavam em esconder.<br />

Pele se desprendia da carne de bichos e homens à medida que a<br />

evisceração prosseguia.<br />

Eram até certo ponto comoventes para o intruso o desespero das<br />

presas em verem seus próprios órgãos internos caírem no chão, o lamento<br />

quase inaudível de quem teve os pulmões perfurados e arrancados da caixa<br />

torácica, a agonia de quem ainda está vivo para contar a dezena de pedaços<br />

em que seu próprio corpo está lenta e dolorosamente sendo subdividida.<br />

Camuflado na escuridão, o Deus das Sombras observava o massacre.<br />

Naquele momento, preferira ainda não fazer parte de um círculo tão<br />

sanguinário, nem da aparentemente desorganizada revolução que a Ralé<br />

iniciava com aquela cerimônia regada a matança e fúria.<br />

Optara por observar a comoção toda à distância, como faria um bom<br />

espião, coletando informações sobre a tal ameaça, com a qual parecia ter se<br />

defrontado duas vezes.<br />

Decidiria mais tarde com quem deveria juntar forças.<br />

O resultado de sua decisão não poderia ter sido mais benéfico, pois<br />

ele acabou posicionando seu corpo etéreo em um ponto distante no telhado<br />

da capela, em que a luz dificilmente penetrava, de onde poderia usar seus<br />

sentidos aguçados para observar sem ser notado.<br />

Ter se mantido distante da luz, mesmo que fosse sem querer, já havia<br />

salvado sua vida antes, e foi de novo sem querer, por mera cautela, que ele<br />

acabou se salvando de novo.<br />

Pois alguém se infiltrara entre os membros da Ralé.<br />

A coisa.<br />

O diabo.<br />

A vingança de Deus.<br />

O monstro que sugava sangue de vampiros e os amaldiçoava estivera<br />

ali o tempo todo, infiltrado, observando.<br />

O sangue frio demais para ser detectado.<br />

Um verdadeiro morto-vivo, de aparência fria e sangue imóvel,<br />

indetectável, invisível em meio à excitação crescente daquela corja de<br />

baderneiros e lunáticos.<br />

Invisível mesmo para ele, e para seus olhos de águia com raios X, que<br />

tudo viam.<br />

O pavor se apoderou da alma do Deus das Sombras assim que ele<br />

percebeu a mudança abrupta na temperatura do corpo do homem, um no meio<br />

de muitos, a escuridão daquele corpo frio repentinamente se transformando<br />

em uma escaldante e descontrolada caldeira de sangue em ebulição.<br />

208 Doença e Cura


Seus olhos de cobra captaram o calor da transformação, e viram o<br />

cinza sem vida se convertendo de forma abrupta em um escarlate oscilante.<br />

Um vulcão adormecido que voltara à ativa, e explodia como um inferno de<br />

fogo e rocha ardente liquefeita.<br />

Ajustou sua visão, substituindo a captação de ondas de calor pela<br />

máxima nitidez. Fez pontaria para o rosto da pessoa que ora se transformava<br />

e viu...<br />

O NARIZ DE TUCANO!<br />

A troca pela visão telescópica lhe revelou que era aquele seu comparsa<br />

ocasional que estava ali, maltrapilho como todos que integravam a Ralé, com<br />

roupas estranhamente imundas e fedendo tanto que dava praticamente para<br />

ver o cheiro de imundície sendo exalado de seu corpo junto com o calor.<br />

E era o seu corpo delgado e raquítico que estava explodindo em<br />

calor.<br />

Outros perceberam, e, confusos, tentaram se afastar do vulto<br />

incandescente, antes insuspeito, aparentemente um deles próprios, sem<br />

terem tempo sequer de suspeitarem de que era o inimigo que estava ali.<br />

Alguns riram, imaginando que aquele rebuliço todo indicava que a<br />

festa que precedia a caçada havia começado.<br />

Alguns tiveram tempo até de gritar quando o verdadeiro genocídio<br />

começou.<br />

Olhos arregalados, sempre ajustando sua visão de modo a visualizar<br />

um espectro de algumas cores além ou aquém do que um ser humano normal<br />

poderia enxergar, ele viu os feixes de sangue laranja abandonarem a boca<br />

escancarada de seu ex-companheiro metamorfoseado, projetando-se tal e<br />

qual as sete línguas de fogo do apocalipse, trespassando os vampiros que<br />

estivessem próximos com tanta força que, como se fossem pesadas lanças de<br />

metal, chegavam a perfurar dois a três corpos por vez antes de interromperem<br />

seu movimento.<br />

Os corpos daquelas primeiras vítimas começaram rapidamente<br />

a murchar e a se desintegrar, evaporando em brilhos multicoloridos,<br />

debatendo-se e caindo ao solo, como se estivessem sendo atingidos por<br />

violentos choques elétricos.<br />

Com olhos em brasa, o homenzinho franzino avançou, erguendo as<br />

mãos, que iam se desfazendo conforme novos jatos de sangue se projetavam<br />

de seus dedos, perfurando e derrubando quem estivesse na frente como o<br />

chumbo sequencial de uma metralhadora.<br />

A gritaria foi grande, e instaurou-se grande correria, corpos se chocando<br />

lá e cá, os corajosos dispostos a se jogarem sobre a ameaça de aspecto franzino<br />

que os dizimava, ao passo que os covardes tentavam fugir saltando pelas<br />

bancadas de madeira pesada da igreja, subindo pelas paredes.<br />

Atacado, o diabo se protegia e contra-atacava com um vasto arsenal<br />

de contundentes possibilidades, ora lançando potentes jatos de sangue<br />

Fabian Balbinot<br />

209


venenoso, que corroia carnes e ossos como um ácido de impressionante<br />

poder, ora projetando dos dedos estranhas labaredas de cor violácea, que<br />

desfaziam em pó pele e órgãos dos vampiros, mas que misteriosamente não<br />

causavam dano algum às roupas dos seus alvos ou às estruturas de madeira<br />

que havia em volta.<br />

Alguns vampiros passaram a perseguir de forma errática seus próprios<br />

colegas, matando-os e descobrindo em seguida o erro que tinham cometido,<br />

como se tivessem sido tomados por uma loucura momentânea.<br />

Um enorme morto-vivo de aspecto bestial, garras e presas à mostra,<br />

conseguiu saltar de uma parede sobre o monstro, jogando-o ao chão e<br />

arrancando fora sua cabeça, antes de ter suas entranhas derretidas de dentro<br />

para fora por uma série de novas estacas de sangue, erigidas diretamente da<br />

pele do demônio, como os espinhos de um ouriço. O ataque apenas serviu<br />

para gerar um novo inimigo, pois, impelida por uma série de tentáculos<br />

de sangue saídos da boca, nariz e ouvidos, a cabeça decepada passou a<br />

perseguir outras presas, cuspindo ácido ou retalhando com tentáculos feitos<br />

em lâminas quem houvesse pelo caminho.<br />

Os corajosos remanescentes começaram a se organizar, e alguns deles,<br />

em conjunto, arremessaram um comprido banco da igreja de encontro ao<br />

corpo da besta, que foi lançado de encontro à uma das paredes, explodindo e<br />

salpicando tudo com sangue, enquanto a cabeça ambulante era despedaçada<br />

a tiros de diversas armas de fogo.<br />

Não poderiam ter cometido erro maior.<br />

O demônio não precisava de um corpo para combater.<br />

Completamente imóvel em seu esconderijo, o Deus das Sombras<br />

lembrou-se da primeira vez em que vira aquele mesmo sangue escorrendo<br />

sozinho, na neve, muitas semanas atrás, imbuído de um bizarro livre<br />

arbítrio.<br />

Fenômeno semelhante se repetia agora, enquanto os membros<br />

remanescentes da Ralé comemoravam a vitória sobre o mal dos males<br />

disparando tiros para o alto e fazendo muita algazarra.<br />

O sangue que ele agora via como uma série de trilhas rosadas escorria<br />

do corpo e da cabeça esfacelados.<br />

Escorria silencioso, pelo chão.<br />

E subia degraus.<br />

E invadia os corpos dos não mortos, tingindo de rosa o sangue vampiro<br />

que o Deus das Sombras agora enxergava em tons esverdeados.<br />

E subia pelas paredes, evitando a força da gravidade.<br />

E pingava para o alto, criando tresloucadas poças de sangue, de pontacabeça,<br />

no teto.<br />

E se aproximava do incauto bando de vampiros, vindo do alto e vindo<br />

de baixo, e também dos lados, sorrateiro como as dúzias de serpentes da<br />

cabeça de uma górgona.<br />

210 Doença e Cura


Um cheiro agridoce de sangue quente... vivo... delicioso... invadiu<br />

suas narinas, quase fazendo-o desfalecer de desejo.<br />

Ele quis avisá-los, lançar um alerta, mas a balbúrdia de gritos e tiros<br />

era tanta que ele sabia que não seria ouvido a tempo.<br />

“Mentira...”<br />

O cheiro... roubava sua concentração... despedaçava seus sentidos...<br />

“Você quer apenas permanecer vivo... Não tem qualquer vínculo com<br />

aquele bando de foras-da-lei. Não precisa se expor e arriscar-se a ser morto<br />

em um massacre inútil.”<br />

O aroma... causando-lhe tonturas...<br />

“Você sabe que não pode fazer nada...”<br />

Como se pressentisse o perigo de uma armadilha próxima, o vampiro<br />

encoberto pelas sombras virou a face e fechou os olhos no exato instante em<br />

que centenas de filamentos de sangue projetaram-se rápidos como setas, do<br />

alto e de baixo, e de todos os lados.<br />

Não viu as carnes dos vampiros da Ralé serem perfuradas e eles serem<br />

dizimados todos de um vez, todos soltando uma única sequência de gritos,<br />

um coral de horror reverberando pelas paredes do templo, enquanto a voz de<br />

seus pensamentos repercutia em sua cabeça...<br />

“Você não teria a menor chance...”<br />

A... voz... de seus pensamentos?<br />

Ele abriu os olhos e viu o homem de nariz de tucano, ali, ao seu<br />

lado!<br />

– Você poderia ter evitado isso, se tivesse me transformado em um<br />

de vocês – disse o pequeno geek, encarando-o sorridente, de cabeça para<br />

baixo.<br />

O homenzinho estava agachado, acocorado nas frouxas tábuas do<br />

teto, sua cabeça quase encostando nas estruturas e reentrâncias de madeira<br />

que compunham o piso daquele esconderijo, uma espécie de compartimento<br />

improvisado em meio à beleza arquitetônica centenária e gótica daquele<br />

templo.<br />

Seu nariz adunco, enorme e nojento quase encostando na face do<br />

vampiro camuflado...<br />

Estarrecido com a visão, o Deus das Sombras arregalou os olhos e<br />

desconcentrou-se, materializando seu corpo e projetando-se para longe, de<br />

encontro a uma parede, com uma farta dose de pavor torcendo seu rosto.<br />

Imediatamente tapou o nariz com a mão, evitando sentir o hipnótico<br />

aroma, que se intensificou de maneira drástica com sua repentina solidez.<br />

– Olha só, seu velho porco miserável, no que fui me transformar... –<br />

resmungou o homem de cabeça para baixo, esticando os braços e parecendose<br />

muito com algum tipo de gárgula disforme, agachado ao contrário<br />

daquela maneira e com aquele nariz enorme. – Virei a porra de um comedor<br />

de vampiros. E tenho um prazo de validade curto... E foi tudo porque você<br />

Fabian Balbinot<br />

211


deixou me matarem, não quis fazer o serviço completo em mim. Por sorte a<br />

gagueira parou...<br />

Ao invés de responder a indignação do outro com palavras, o Deus das<br />

Sombras preferiu agir, desferindo uma série de pontapés, que atravessaram o<br />

corpo delgado a sua frente, como se ele fosse uma miragem.<br />

O homenzinho de cabeça para baixo riu enquanto sua forma espectral<br />

se desmaterializava, em uma nuvem de fumaça colorida e sua voz deixava<br />

de ser audível para se transformar em uma sequência de pensamentos na<br />

mente de seu agressor.<br />

– Não... eu não estou mais aqui... eu...<br />

“... já era... já estou morto... mas a coisa que me reviveu... aquilo que<br />

vocês conhecem como diabo ou demônio, e que consegue lançar o sol pelas<br />

mãos, o insaciável... ele vai pegar... todos... vocês...”<br />

Ensandecido com a voz que repercutia insistente em sua mente, o Deus<br />

das Sombras rastejou pela passagem no teto da igreja, e projetou-se como<br />

um míssil pela primeira janela que encontrou pela frente, despedaçando-a.<br />

Logo ganhava altura e voava como uma ave de rapina pela noite<br />

afora.<br />

* * * * *<br />

O Deus das Sombras dedicou os dias seguintes a descobrir o que<br />

estava REALMENTE acontecendo, e a fugir sem parar, ambas as tarefas<br />

desempenhadas de forma tal como se seu futuro dependesse disso.<br />

Não tinha certeza de nada, e nem sabia por que fugia, mas um instinto<br />

parecia lhe gritar o tempo todo ao pé do ouvido que lugar algum onde se<br />

metesse era seguro.<br />

As memórias da revolta e do posterior massacre no covil da Ralé, do<br />

sangue semovente penetrando no corpo do moribundo naquela noite gelada,<br />

semanas, meses atrás, dos tiros e explosões no centro da cidade, das visões<br />

dos raios do sol no meio da noite, do sumiço e reaparecimento de seu amigo<br />

espião de nariz de tucano, metamorfoseado e insano, todas as lembranças<br />

eram continuamente remexidas e se misturavam em uma convicção, que lhe<br />

dizia que todos estes acontecimentos apresentavam uma única e abominável<br />

origem, e um terrível desfecho.<br />

Um desfecho que parecia ser inevitável.<br />

Passou a abandonar seus locais de descanso diurno com a mesma<br />

velocidade com a qual os obtinha.<br />

Corria de um local para outro da cidade.<br />

Em semanas, passou a se deslocar de uma cidade para outra.<br />

Renunciou por completo ao pouco apego que lhe restara pela<br />

ostentação e pelo conforto, transformando-se em um cigano sem origem.<br />

Roubava com relativa facilidade o dinheiro ou os bens de que necessitasse.<br />

212 Doença e Cura


A nobreza de outrora não passando de uma lembrança difusa na mente, como<br />

a poeira de um sonho antigo.<br />

Apesar de tudo, mantinha um certo ar de dignidade, pondo-se distante<br />

de mendigos e pedintes, pois sua natureza vampírica impedia tanto seu<br />

envelhecimento quanto que seu corpo assimilasse o aspecto desagradável e<br />

sujo de alguém que vive nas ruas. Sua aparência excêntrica, porém aceitável,<br />

e uma certa dose de persuasão sobrenatural lhe rendiam estadias curtas por<br />

preços bastante razoáveis nas casas de hospedagem que encontrasse em seu<br />

caminho.<br />

No decorrer de sua fuga, ele encontrou ainda mais coisas que<br />

somavam-se aos seus tormentos, moldando uma realidade que, tal qual uma<br />

bola de neve morro abaixo, crescia ainda mais distorcida e catastrófica em<br />

torno da enigmática criatura que parecia ser feita do sangue e das fraquezas<br />

dos vampiros.<br />

Em um dado momento de sua viagem, quando ele já desistira de<br />

investigar e se concentrava apenas em fugir, no campo, próximo de uma<br />

colina e de um pequeno estábulo, ele encontrou uma velha casa abandonada,<br />

onde descansou.<br />

Algumas das janelas estavam cobertas com tábuas velhas e cinzentas,<br />

onde o musgo crescia impune, como se tivessem sido pregadas há dezenas<br />

de anos. A porta da frente havia sido pregada mais recentemente, com<br />

tábuas mais novas que ainda conservavam os tons de marrom. Muitas<br />

camadas de tinta descascavam juntas pelas paredes, recobertas por uma<br />

selva de trepadeiras e arbustos, que nasciam por entre os blocos de pedra<br />

do calçamento, e uma grade enferrujada tentava impedir o acesso para um<br />

suposto porão escavado nas fundações do casebre. Uma tabuleta velha, de<br />

madeira corroída, onde ainda se podia ler “vende-se” se encontrava deitada<br />

junto à relva.<br />

Sem ter tempo para pensar, pois o sol da manhã se aproximava, ele<br />

arrebentou a porta, removendo com um gesto as tábuas que bloqueavam seu<br />

acesso ao interior do móvel.<br />

Acomodando-se no cômodo que julgava ser o mais seguro de todos,<br />

ele dormiu como uma pedra, procurando esquecer tudo o que o atormentava.<br />

O mundo que enfrentasse o novo mal que o ameaçava. Ele precisava apenas<br />

ficar vivo.<br />

Adormeceu logo.<br />

E sequer sonhou.<br />

Em compensação, quando acordou no dia seguinte, viu-se cara a cara<br />

com um pesadelo.<br />

Na pressa de escapulir do sol matutino do início do dia e esconder-se,<br />

ele havia passado rente a algo que não percebera.<br />

Espalhado em um canto, próximo da sala de entrada da casa, o Deus<br />

das Sombras viu um cadáver.<br />

Fabian Balbinot<br />

213


Os caninos protuberantes nos maxilares entreabertos do crânio<br />

tombado logo revelaram que o corpo pertencia a um vampiro. Os ossos dos<br />

membros estavam espalhados, como se tivessem se retesado, esticados ao<br />

máximo. Alguns estavam fragmentados. E os ossos das pernas não estavam<br />

completos, dando a impressão que o corpo fora partido ao meio, seus joelhos<br />

tendo sido ligados diretamente às costelas.<br />

Aproximando-se e aprimorando sua visão, o homem de cabelos<br />

brancos viu o buraco escuro, em meio às tábuas do assoalho, que acomodava<br />

ambos os fêmures, ali cravados como duas colunas, e também a bacia e o<br />

abdome daquele esqueleto ressecado.<br />

Mas...<br />

Havia algo mais.<br />

Um certo aroma lhe revelou que havia sangue ali.<br />

Um certo tipo de sangue...<br />

Ele imediatamente tapou o nariz ao sentir o perigo. Era o mesmo<br />

cheiro inebriante que sentira na capela, durante o massacre.<br />

Afastou-se e puxou com força uma tira do tecido de uma das pernas de<br />

sua calça, improvisando uma máscara que atou com força, cobrindo a face. Em<br />

seguida, rasgou também a outra perna e repetiu o processo, cobrindo a primeira<br />

máscara com uma segunda, que atou atrás da cabeça com ainda mais força.<br />

Ele não compreendia de que forma funcionava sua própria fisiologia<br />

ou a dos outros vampiros, mas sabia que, como se para compensar a<br />

inexistência de um processo respiratório regular, suas narinas possuíam uma<br />

capacidade de captar e identificar odores incrivelmente desenvolvida. Isso<br />

equivalia a dizer que fazia centenas de anos que ele podia sentir os cheiros tal<br />

e qual um cão farejador, como se pudesse ver seus serpenteantes contornos<br />

ou apalpá-los com as mãos.<br />

Ele sabia que aquele cheiro que o inebriava representava grave perigo,<br />

e que precisava se proteger.<br />

Forçando o faro, e sentindo que o aroma entorpecente já não era mais do<br />

que uma mera lembrança, ele tornou a se aproximar do esqueleto, avaliando-o<br />

com olhos que passaram a visualizar os mais diferentes espectros cromáticos.<br />

Colocando-se acima do cadáver, o Deus das Sombras pôde ver<br />

claramente a aberração.<br />

Parcialmente soterrada por terra e cascalho e pelos restos de tábuas<br />

podres que tinham sido arrancadas do assoalho há muito tempo atrás, a parte<br />

encoberta do cadáver ainda vivia.<br />

Pele escura, semi-apodrecida, recoberta por fungos e liquens, revestia<br />

parcialmente pedaços de carne morta e trechos de órgãos avermelhados e<br />

muito vivos, pulsantes.<br />

Fígado e baço, estômago e compridos novelos de tripas, restos de<br />

pulmões e de outras vísceras, ainda cheios de vida, esparramados a esmo na<br />

terra, compunham todo um abjeto emaranhado de tecidos e órgãos.<br />

214 Doença e Cura


Trilhas de formigas e outros insetos atravessavam o amontoado de<br />

entranhas, ignorando-o como se ele fizesse parte do cenário enquanto se<br />

dedicavam a carregar pequenos farelos e sementes para algum ponto distante<br />

debaixo da casa.<br />

Uma lesma gorda e enorme permanecia acomodada no ponto que<br />

correspondia à axila, cercada de carne tanto morta como viva por todos os<br />

lados.<br />

Retalhos de músculos vivos ainda se agarravam aos ossos dos fêmures<br />

e da bacia, horrivelmente deformados, deixando-os visíveis no interior do<br />

buraco. Como pequenas asas, costelas despedaçadas apontavam para longe,<br />

suas pontas trespassando pedaços de pele e carne que a elas se agarravam,<br />

como se procurassem reintegrá-las ao corpo de um modo qualquer, compondo<br />

um repugnante mosaico de regeneração.<br />

O vampiro recuou e fez força para não vomitar e inutilizar sua<br />

máscara.<br />

Talvez tivesse visto algo tão repelente durante sua vida, os amontoados<br />

de cadáveres envenenados da guerra racista de décadas passadas, ou a agonia<br />

dos homens ainda vivos sendo despedaçados por leões ou soterrados por<br />

insetos em antigos jogos mortais regados por vinho e infâmia... Contudo,<br />

jamais vira algo assim tão de perto.<br />

Concentrando-se, ele enxugou com a manga da capa a umidade que<br />

lhe escorria a partir de um dos olhos e voltou a se aproximar do corpo,<br />

agachando-se e examinando-o com mais atenção.<br />

A impressão que ele teve era de que o cadáver havia sido chupado<br />

para dentro daquele buraco, tendo sido estraçalhado durante o processo.<br />

A horrível posição em que o corpo se achava, toda recurvada em uma espécie<br />

de “u” para dentro do buraco, revelava que a coluna devia ter sido partida<br />

em diversos pontos. A dobra no abdome era tão acentuada que as costelas<br />

alcançavam o próprio abdome.<br />

Não havia dúvida que aquelas vísceras todas tinham sido jogadas para<br />

fora do corpo durante aquele processo de... encaixe.<br />

De fato, não havia outra forma de explicar o que ele estava vendo:<br />

aquele pobre infeliz fora espremido por uma força inacreditável que<br />

desrespeitara por completo a rigidez de sua aprimorada fisiologia vampírica,<br />

logo em seguida tendo sido “encaixado” naquele buraco no chão.<br />

O que, por tudo o que havia de mais sagrado, poderia fazer uma coisa<br />

daquelas com um vampiro?<br />

Tateando os ossos secos e mortos, o Deus das Sombras descobriu que<br />

eles se esfarelavam como se não passassem de uma escultura de areia.<br />

Com um pedaço de madeira que achou por perto, ele cutucou as carnes<br />

vermelhas e quentes esparramadas por dentro do buraco, sentindo a pulsação<br />

do sangue que as tornava vivas se alterar devido decerto à sensibilidade ao<br />

contato inesperado.<br />

Fabian Balbinot<br />

215


Deus do céu, ele pensava, revirando as entranhas com o pequeno<br />

bastão... Isso está vivo.<br />

VIVO DE VERDADE... Não como os vampiros.<br />

Quente. Vivo como UM HUMANO.<br />

– Deus do céu...<br />

Remexendo os retalhos de carne e órgãos, ele acabou encontrando<br />

uma finíssima mangueira plástica transparente, tomada por um líquido<br />

vermelho escuro, que atravessava as vísceras e nelas se infiltrava.<br />

Curioso, ele procurou um pedaço de madeira mais forte, pontiagudo<br />

e largo e começou a escavar, removendo terra, insetos e carne, até que<br />

encontrou diversas outras mangueiras e tubos, uns conectados aos outros,<br />

presos por fitas e também unidos a partes do corpo semi-vivo, além de dois<br />

pequenos e estranhos equipamentos de metal, um deles exibindo ponteiros<br />

e mostradores que tanto mais oscilavam quanto mais ele agredisse aquele<br />

organismo com a pá improvisada de madeira.<br />

Por dentro dos tubos escorriam líquidos de diversas cores, uns<br />

azulados, outros vermelhos, espessos, como sangue. Um daqueles líquidos<br />

era de um amarelo vivo e transparente, lembrando urina.<br />

Cansado de ver, o homem de cabelos brancos pôs-se de pé e atirou o<br />

pedaço de madeira dentro do buraco, cobrindo a face molhada de lágrimas<br />

com uma das mãos.<br />

Não. Ele não chorava. Talvez fosse alguma das substâncias que o<br />

cadáver exalava que o tivesse deixado assim.<br />

Talvez fosse o nojo de ver aquele espetáculo bizarro, misto de ciência<br />

e sobrenatural.<br />

Atacado por uma súbita fraqueza, ele cambaleou até a porta.<br />

O calafrio do entendimento lhe acariciava as entranhas, minando<br />

as últimas esperanças que possuía de que toda aquela sucessão de fatos<br />

inexplicáveis que presenciara durante os últimos meses não tivesse nenhuma<br />

relação entre si.<br />

O sangue penetrando no homem na neve.<br />

O sol da meia noite, e os soldados com capuzes impermeáveis até<br />

mesmo ao cheiro.<br />

O sumiço de seu comparsa de nariz de tucano e seu posterior<br />

reaparecimento, que culminou no massacre da Ralé.<br />

E agora, um cadáver mumificado de vampiro, redivivo com a vida<br />

quente dos humanos, conservado por intermédio de aparelhos... e daquele<br />

sangue.<br />

O sangue atraente.<br />

O sangue doce como um beijo.<br />

O sangue que marcava todos estes episódios.<br />

O sangue que, como uma corrente de tinta escarlate, unia todos os<br />

fatos.<br />

216 Doença e Cura


Tudo era parte do mesmo esquema.<br />

Algo que não era ele se movia pelas sombras, na calada da noite, e<br />

também durante o dia.<br />

Algo terrivelmente poderoso, que destruía vampiros como se fossem<br />

vermes.<br />

Algo... inteligente. Algo tão macabro quanto sofisticado, um ente<br />

que fazia experiências, revivendo mortos-vivos intocáveis usando de<br />

sofisticados equipamentos médicos e conhecimentos anatômicos, com a<br />

mesma facilidade com que espatifava colunas vertebrais.<br />

Algo inacreditável, que invadia corpos de humanos, fazendo-os se<br />

reerguerem do chão.<br />

Algo que detinha a luz do sol em suas mãos.<br />

Tomado por um pavor que jamais sentira, o Deus das Sombras saiu<br />

do casebre, removeu a máscara facial improvisada e correu pela noite, como<br />

jamais havia corrido durante o milênio todo pelo qual se estendera sua<br />

vida.<br />

* * * * *<br />

Desde então, parecia que a única coisa que o Deus das Sombras fazia<br />

era correr.<br />

A maldita entidade o perseguia pelos becos imundos daquela cidade<br />

enorme e desconhecida. O rosto alegre e branco de mulher oriental, os olhos<br />

semi-cerrados, a boca esticada de orelha a orelha, as vestes compridas e<br />

ondulantes como o corpo de um fantasma... a inacreditável velocidade...<br />

Em um dado ponto, ele projetou-se para o lado, levantando poeira<br />

do chão e sumindo em uma reentrância escura entre dois prédios antigos,<br />

sua forma material desaparecendo da vista de qualquer um em meio às<br />

sombras.<br />

Etéreo, transformado em escuridão, o Deus das Sombras não sabia o<br />

quanto o seu disfarce de sombras era efetivo contra a coisa.<br />

Talvez não tivesse efeito algum.<br />

Uma risada feminina, esganiçada, ecoando à sua direita... NÃO! À<br />

esquerda... Vinda do alto!<br />

A maldita gargalhada de uma bruxa penetrando em sua mente, vinda<br />

de todos os lados, enlouquecendo-o.<br />

Era certo que seu poder de sumir na escuridão não tinha efeito<br />

algum...<br />

Não havia esperança...<br />

Mesmo assim, ele voltou a se materializar e a correr pelos becos em<br />

alta velocidade, fugindo como louco da risada estridente que o perseguia por<br />

trás e pela frente, por cima e por baixo.<br />

Correndo como louco, ele ainda procurava pensar.<br />

Fabian Balbinot<br />

217


E relembrava do passado.<br />

Com o extermínio do núcleo da Ralé de indigentes – que culminou<br />

no desmantelamento daquela organização também em cidades vizinhas – e<br />

a noção de perigo crescente, restava obter o auxílio das sociedades obscuras<br />

de classe mais elevada.<br />

Como os humanos, os vampiros também se subdividiam em classes<br />

A, B e C. Os seres da noite tinham seus “brancos” e “negros”, seus “crentes”<br />

e “ateus”. E havia também muita segregação entre as diferentes castas e<br />

crenças. E a segregação sempre trazia o ódio, e os conflitos.<br />

A diferença era que não existia um governo real de uma classe dita<br />

superior sobre as outras, mais fracas. E sem um governo real, não havia leis<br />

reais, e isso levava as invisíveis guerras noturnas entre as diferentes famílias<br />

a terem desfechos completamente imprevisíveis.<br />

Na calada da noite, muitas famílias inteiras de nobres foram<br />

exterminadas por integrantes de castas “pobres”, inferiores. Sobrenomes<br />

e tradições inteiras sumiram do mapa em uma única noite de massacre.<br />

Poderes milenares deixaram de existir em um banho de sangue.<br />

Nunca houve um predomínio efetivo de uma espécie de vampiro<br />

sobre as demais. As famílias se aninhavam como serpentes em determinadas<br />

regiões, movendo-se com cautela, aguardando o movimento das outras<br />

famílias, coletando informações, forjando alianças e planejando traições.<br />

E não seria o dinheiro ou as posses mundanas que iriam modificar esta<br />

realidade.<br />

Apesar de ser mais um dos tantos solitários que vagavam por aí, o<br />

Deus das Sombras tinha a aristocracia de sua origem a seu favor, e, sem<br />

muito esforço, ele havia conseguido se integrar a um dos clãs mais antigos<br />

e poderosos desta enorme cidade cujos becos agora percorria em fuga<br />

desabalada.<br />

Sem muito esforço, pois ali também o caos e o pânico predominavam...<br />

Era certo que, em época mais pacífica, ele seria rechaçado e caçado até a<br />

morte, seu desejo de união com um clã de sangue real como aquele sendo<br />

considerado uma blasfêmia imperdoável, mesmo em se levando em conta a<br />

nobreza da sua própria origem.<br />

O medo do desconhecido era uma das poucas forças capazes de<br />

impelir os vampiros de diferentes castas e credos a se unirem.<br />

E a única diferença que havia entre os sangue-azul e os integrantes<br />

da Ralé que tinham sido eliminados na velha capela era que os primeiros<br />

eram bem mais organizados e já faziam uma ampla ideia do que estava<br />

acontecendo.<br />

Ah, e eles tinham acesso a dinheiro e tecnologia, que talvez não<br />

fizessem nenhuma diferença nos enfrentamentos diretos contra outros<br />

vampiros, mas que podiam significar alguma vantagem quando encaravam<br />

o desconhecido.<br />

218 Doença e Cura


A ciência permitia desencovar o que nunca fora visto, descobrindo<br />

suas características, suas forças e suas fraquezas, e o dinheiro servia<br />

para viabilizar este estudo – isso valia tanto para humanos quanto para<br />

vampiros.<br />

E, no caso do tão comentado “anti-vampiro”, ou AV, termos comumente<br />

utilizados para se referir ao caso nos registros de seus mais novos aliados, o<br />

dinheiro sem fim dos vampiros ricaços servira para construir uma silenciosa,<br />

gigantesca e instantânea operação de guerra, ultra-secreta.<br />

Era caso de vida ou morte, e os organizados sangue-azul sabiam<br />

disso.<br />

Passou-se bem pouco tempo para que o Deus das Sombras fosse<br />

levado em alta conta pelos atemorizados patriarcas do clã, sendo incumbido<br />

de utilizar seus poderes para realizar incursões noturnas invisíveis como um<br />

batedor, passando a agir como espião logo em seguida.<br />

Em algumas semanas, ele já havia coletado informações sobre o tal<br />

“anti-vampiro” suficientes para encher um caderno. Também descobrira<br />

algo sobre o “Esquadrão AV”, os soldados de fardamento militar e capuzes<br />

enfeitados, uma tentativa ultra-secreta de encontrar e destruir o monstro<br />

usando os mais avançados recursos tecnológicos e bélicos, boa parte desta<br />

malfadada ação tendo sido testemunhada por ele durante o evento do “Sol<br />

da Meia Noite”, como ficou sendo conhecido.<br />

O Deus das Sombras não apreciava de todo a ciência moderna. Sempre<br />

acreditara que os avanços tecnológicos deviam seguir um ritmo mais lento e<br />

gradual, para que seus resultados pudessem ser assimilados mais facilmente<br />

pelos “meros mortais”. Entretanto, o que se via, de um século para cá, mais<br />

parecia uma corrida de cientistas e inventores velocistas, todos buscando<br />

descobertas e inovações custe o que custar, em interminável competição.<br />

Tendo vivido por mais de mil de anos, os rigores do anacronismo<br />

o afetavam severamente, principalmente nas últimas décadas em que a<br />

evolução da tecnologia mais parecia uma doença que todo mundo era<br />

obrigado a ter.<br />

Os longos saltos do desenvolvimento humano, em seu modo de<br />

ver, não passavam disso mesmo, de longos saltos, que deixavam para trás,<br />

intocados, longos trechos de percurso e história, os quais já começavam a<br />

cobrar o preço por terem sido ultrapassados com tamanho desleixo.<br />

Bem, se o ser humano resolvera abandonar a sobriedade plácida<br />

da vida e do sentimento para embriagar-se com a evolução incessante das<br />

invenções, isso não era problema seu.<br />

Ele também abandonara a vida e o sentimento... há muito tempo<br />

atrás.<br />

E gostaria de permanecer morto, do jeito como estava, ainda por<br />

muito tempo, mesmo que essa morte não fosse considerada como tal pelos<br />

registros de seus aliados sangue-azul, que classificavam o vampirismo como<br />

Fabian Balbinot<br />

219


um estado de letargia, uma pantomima intermediária entre a morte e a vida<br />

causada pela transmissão de um certo tipo de microorganismos.<br />

Lembrava de ter visto relatórios que explicavam de alguma forma<br />

excêntrica até mesmo o inexplicável alongamento dos caninos de quem fosse<br />

vitimado pelo vampirismo, entre tantas outras metamorfoses aparentemente<br />

sobrenaturais. E tudo embasado por intermináveis referências literárias,<br />

testes e experiências. Textos sem fim, que ele sequer ousou compreender.<br />

Humanos, e vampiros, e suas desvairadas correrias em busca de<br />

conhecimento...<br />

Tinha mais o que fazer, mais o que aprender, e o tempo parecia ser<br />

curto.<br />

Lutaria. Aprenderia como medir forças com o inimigo.<br />

Não seria uma aberração evolutiva da natureza que iria privá-lo dos<br />

prazeres de mais algumas, ou várias centenas de anos de imortalidade regada<br />

a sangue.<br />

Pelo menos era nisso que acreditava.<br />

Segundo o que havia descoberto em seus estudos, sua aberração<br />

evolutiva da natureza era uma criatura formidável, constituída por porções<br />

ainda não delimitadas ou quantificadas de sangue e carne que tanto poderiam<br />

agir em conjunto como separadas.<br />

Os diversos relatórios que ele teve a oportunidade de ler e<br />

compreender apontavam o AV como uma colônia de porções independentes<br />

– ou interdependentes – de uma substância líquida de aspecto e consistência<br />

variáveis, porém espetacularmente similares ao sangue de diversos<br />

mamíferos, entre os quais, o homem. Tal fluido possuía o hábito peculiar<br />

de identificar seres vivos moribundos e comatosos, invadindo seus corpos<br />

e assumindo o controle de suas funções fisiológicas, restabelecendo-as ao<br />

máximo de suas capacidades, eliminando ou controlando enfermidades e<br />

infecções, ao passo que aproveitava-se dos conhecimentos e habilidades de<br />

tais indivíduos durante um período de tempo variável, porém curto.<br />

Se seu sangue era indeterminado e informe, e tinha paradeiro e capacidade<br />

de movimentação até então desconhecidos, a “carne” do anti-vampiro podia<br />

ter as mais diversas formas e constituições, seres humanos, cães, ratos,<br />

morcegos, felídeos, gado, entre outros. Mesmo que até o momento tivessem<br />

sido identificadas assimilações apenas de corpos de mamíferos por parte do<br />

organismo, aves de comportamento incomum, resistentes à interceptação<br />

mental de certos vampiros empatas, além de insetos não sociais e vermes que<br />

tinham sido encontrados convivendo em colônias estavam sendo investigados<br />

pelos impiedosos e insistentes estudiosos da organização, em busca de indícios<br />

que pudessem comprovar, e se possível explicar, a assimilação de organismos<br />

em um estágio inicial de morte pela criatura.<br />

Fosse como fosse, a assimilação de cadáveres dos vivos pelo sangue<br />

da criatura era um assunto de pesquisa extenso, e seu estudo parecia ainda se<br />

220 Doença e Cura


encontrar em um estágio inicial, mesmo que já houvesse milhares de folhas<br />

de papel e espaço virtual documentados a respeito do tema.<br />

O anti-vampiro justificava seu nome empregando as mais<br />

impressionantes táticas e estratagemas naturais – e mesmo sobrenaturais,<br />

ou inexplicáveis – para atacar, combater, aprisionar, confundir, ludibriar,<br />

atrair e também evitar vampiros de todos os tipos. O próprio AV merecia ser<br />

classificado como um vampiro que parecia se alimentar apenas de sangue<br />

de outros vampiros, uma vez que seu sangue manifestava uma voracidade<br />

ímpar ao se misturar ao sangue dos não-mortos, assimilando-o de uma<br />

forma que o Deus das Sombras não compreendia de todo, pois os relatórios<br />

ficavam muito técnicos ao tratar deste assunto, embrenhando-se por áreas<br />

médicas, anatômicas e afins.<br />

Os arquivos dos casos de invasões de corpos e ataques que já tinham<br />

sido catalogados eram extensos, e costumavam ser guardados tanto nos<br />

bancos de memória dos modernos e complicados computadores quanto em<br />

armários protegidos, em milhares de folhas de papel impresso, que poderiam<br />

ser consultadas tanto por ele quanto por outros anciões desacostumados às<br />

esquisitices recentes de pressionar sequências de teclas para obter relatos<br />

coloridos em uma tela iluminada de vidro ou plástico negro.<br />

Conquistar o acesso ao extenso arquivo de registros da organização<br />

fora uma tremenda sorte, ao que ele retribuíra com horas a fio de extrema<br />

dedicação e estudo aos papéis que ali havia, completando as horas a fio de<br />

estudo anteriores, quando não tinha permissão alguma e penetrava nas salas<br />

de arquivos usando de meios bem menos lícitos.<br />

Boa parte do que sabia sobre o anti-vampiro se devia muito mais ao<br />

que aprendera pesquisando tais arquivos, diferentes do falatório técnico dos<br />

cientistas em seus relatórios impossíveis de se compreender.<br />

E os diferentes casos registrados em milhares de folhas de papel,<br />

fotos e gravuras, alguns datados de mais de cinquenta anos atrás, falavam<br />

por si sobre os impressionantes poderes da criatura no trato com os vampiros<br />

“convencionais”.<br />

O caso dos soldados mascarados era particularmente interessante, e<br />

ele leu e releu partes do grosso relatório diversas vezes, misturando seus<br />

conteúdos às lembranças do que vira pessoalmente.<br />

Em resumo, uma força-tarefa de emboscada e destruição fora criada<br />

por uma coligação das famílias mais influentes da cidade onde o fato se<br />

sucedera. A milícia era composta por doze componentes, poderosos assassinos<br />

de sangue-frio, e também técnicos e especialistas, todos municiados com<br />

armamentos pesados e de precisão, armas químicas e equipamentos bélicos<br />

e de investigação de campo de última geração.<br />

Sim, seu amigo de nariz de tucano estava absolutamente certo quando<br />

afirmou que os capuzes e as jaquetas repletos de filamentos e micro-componentes<br />

eletrônicos eram coisas “que só gente da pesada” usava. Folheando as páginas<br />

Fabian Balbinot<br />

221


daquele relatório, e de outros a ele ligados, ele descobriu que certos imortais<br />

mais recentes, gênios e mestres desaparecidos, tinham o aparentemente salutar<br />

hábito de dedicar sua morte-vida de forma integral ao estudo e desenvolvimento<br />

de tecnologias, trabalhando juntos em um ritmo incessante, pelos séculos dos<br />

séculos, amém. Aliciados por grandes famílias, recebiam seu pagamento na<br />

forma de uma torrente de sangue e recursos sem fim, e passavam a eternidade<br />

criando ciência e tecnologia pós-contemporâneas, que seus “empregadores”<br />

patenteavam e revendiam ao meio humano externo, ou mantinham para o<br />

próprio usufruto, conforme lhes fosse mais conveniente.<br />

Muitos dos equipamentos que a força-tarefa de eliminação utilizou na<br />

noite em que a pequena guerra explodiu nos bairros centrais daquela cidade<br />

eram itens fora-de-mercado, e o Deus das Sombras não se espantaria se seu<br />

ex-aliado humano não viesse a descobrir nada a respeito deles.<br />

Infelizmente, o resultado da missão fora um completo fracasso, e a<br />

tropa toda, combatentes e técnicos, havia sido eliminada, não sem antes<br />

ter produzido um razoável amontoado de informações confidenciais que<br />

agora encontravam-se armazenadas em áreas que nem mesmo ele conhecia,<br />

decerto sendo examinadas por especialistas dotados de muito cérebro e<br />

pouca emoção, por noites a fio.<br />

Ele se lembrava dos três soldados remanescentes, seres de enorme<br />

poder, fugindo e atirando com armas gigantescas, lançando bombas de<br />

incrível poder destrutivo...<br />

“Porra do inferno! Eu não consigo correr!”<br />

“Não adianta querer correr! Estamos travados! A coisa já bloqueou<br />

nossa corrida e um monte de outras coisas...”<br />

“Eu... estou ficando cega...”<br />

“Tá todo mundo ferrado!”<br />

... e sendo destruídos todos juntos pela luz fatal de um sol que surgira<br />

no meio da noite, iluminando aquela área da cidade e as manchetes de jornais<br />

do mundo inteiro.<br />

Impedir o movimento, bloquear os sentidos.<br />

Recriar a luz do sol...<br />

Outros registros, provenientes de diversas cidades daquele e de outros<br />

países, revelavam ainda mais facetas da abominação, expondo outros de<br />

seus inacreditáveis poderes, entre os quais a erradicação do grupo dissidente<br />

que se autodenominava “A Ralé”, em que a criatura lançara mão do próprio<br />

sangue como arma letal.<br />

Diversos casos além deste revelavam que este mesmo sangue estava<br />

longe de ser indefeso, e que era capaz das mais incríveis proezas, escalando<br />

paredes e pingando para o alto, solidificando-se na forma de tentáculos e<br />

pseudópodos extremamente agressivos ou como estacas perfurantes,...<br />

“Um terceiro membro descreve de forma detalhada ter seguido um<br />

misterioso e ágil ser avermelhado e semi-transparente, em forma de grande<br />

222 Doença e Cura


verme, que rastejava pelo chão de seu esconderijo e atravessava fendas e<br />

orifícios, muitas vezes destruindo-os com sua passagem...”<br />

... resfriando ou aquecendo a temperaturas diametralmente opostas,<br />

incendiando-se em violenta combustão espontânea, explodindo em estilhaços<br />

penetrantes, decompondo-se, etc., etc. e etc.<br />

Casos de vampiros que perdiam o controle e lançavam-se ao solo para<br />

sugar até a última gota de estranhas poças de sangue quente...<br />

“O cara contou que se jogou na poça e lambeu o chão feito um porco.<br />

Ele nunca tinha visto nada igual... Era como curtir um barato, sabe?”<br />

... eram o que mais se via nos registros. E era este o ardil preferido da<br />

criatura – e também o mais eficaz.<br />

O resultado era sempre o mesmo. A invasão do corpo pela vontade do<br />

próprio hospedeiro e a assimilação do sangue deste, com porções do líquido<br />

invasor abandonando o corpo do hospedeiro durante o dia...<br />

“O sangue se esvai durante o dia claro, e ponto final.”<br />

Com a parasitose surgiam os efeitos colaterais... Dores de cabeça<br />

e pelo corpo, e a estranha sensação de se ter “alguma coisa” caminhando<br />

dentro da barriga...<br />

“Sinto dores tremendas. É quase impossível suportar. As entranhas<br />

ardem como se fossem banhadas por fogo...”<br />

... eram alguns dos traumas menos severos e mais suportáveis.<br />

Transtornos, inversões de efeitos ou o completo bloqueio do uso dos poderes<br />

típicos dos vampiros,...<br />

“Não adianta querer correr!...”<br />

“Um de meus amigos acabou pirando de tanto ouvir...”<br />

“Eu... estou ficando cega...”<br />

... alucinações e miragens tão potentes que chegavam a lançar o<br />

indivíduo infectado de encontro aos seus próprios companheiros,...<br />

“Trinta e sete pessoas foram retalhadas pelo homem insano naquela<br />

noite...”<br />

“... uma determinada pessoa foi perseguida, capturada, e conduzida<br />

para ser interrogada em um local específico. Porém, ao chegarem lá, os<br />

captores descobriram que a pessoa capturada era um reles mendigo, que<br />

nada tinha em comum com o alvo predeterminado...”<br />

“... a insanidade que lançou aquele homem à insensatez de uma<br />

carnificina tão voraz como aquela, que fê-lo ignorar a dor das próprias<br />

carnes queimando ao sol...”<br />

... além de alguns efeitos ainda mais graves...<br />

“Braço quebrado...”<br />

“O crânio quebrado... esfacelado...”<br />

“A coluna está partida em dois pontos diferentes...”<br />

“Perfuraram ambos os pulmões...”<br />

“O intestino está destruído...”<br />

Fabian Balbinot<br />

223


“O estômago desapareceu...”<br />

“A barriga explodiu...”<br />

... que culminavam com os ataques diretos da criatura.<br />

Dentre os ataques que tinham sido descritos por testemunhas e que eram<br />

assumidos como modos de ação característicos do anti-vampiro constavam<br />

explosões de sangue solidificado perfurando e contaminando todos em volta<br />

em um raio de mais de 10 metros; explosões inexplicáveis de indivíduos que<br />

estavam sendo perseguidos, cujos corpos fragmentavam-se em centenas de<br />

estilhaços de madeira ou material semelhante, empalando os vampiros que<br />

estivessem em volta; ataques de bandos de mamíferos, como cães e lobos semimortos,<br />

mas muito vivos e ágeis, imunes ao controle mental de animalistas e<br />

capazes de se reerguerem e continuarem lutando tantas vezes quantas fosse<br />

necessário; projeções de labaredas incendiárias e gases ou substâncias tóxicas<br />

ou corrosivas, que afetavam apenas vampiros; leitura mental e ataques psíquicos<br />

que poderiam bem destruir o cérebro da vítima; e por último, a fatídica projeção<br />

de luz, tão destruidora quanto a exposição aos próprios raios solares.<br />

Alguns dos ataques eram mais engenhosos, usando de recursos bastante<br />

mundanos, como a explosão do castelo onde o último Concílio se realizara<br />

– um golpe direto, cuja óbvia intenção seria liquidar os representantes das<br />

famílias que faziam parte do conselho, e do qual ele escapara por pouco.<br />

Fora enviado em segredo pela organização que agora servia, fazendo-se<br />

passar por mais um importante integrante do conselho. A organização temia<br />

pela segurança de seus membros e seu papel na reunião seria apenas escutar,<br />

relatando aos seus superiores o que fosse relevante.<br />

Escondido na escuridão, resolveu fugir após ter ouvido o que lhe<br />

pareceu ser um claro indício de traição, quando, concluída a reunião, dois<br />

dos integrantes da mesa entabularam uma conversa bastante suspeita.<br />

Essa desconfiança foi que o salvou da morte. O castelo inteiro explodiu<br />

algumas horas depois de sua fuga.<br />

Mais tarde, ele veio a descobrir que apenas um dos participantes do<br />

Concílio – um imbecil de charuto que ficou resmungando durante a reunião<br />

toda – era uma figura de real destaque em sua família. Todos os demais<br />

– incluindo ele próprio – não passavam de peões sem maior importância,<br />

gananciosos e ávidos por avançar e tornarem-se peças mais importantes no<br />

elaborado cenário de poder de suas organizações.<br />

Ora, como ele veio a saber mais além, o próprio anti-vampiro estivera<br />

presente ao evento, usando um corpo que até hoje não se sabia com certeza se<br />

fora mesmo de um influente morto-vivo ou apenas de um humano travestido,<br />

camuflado pelo próprio e misterioso poder.<br />

Em um jogo como aquele, os reis eram as últimas peças a serem<br />

movimentadas no tabuleiro – isso era o óbvio, exceto para o inimigo, que<br />

não titubeou em mandar o lugar todo para os ares.<br />

Enfim...<br />

224 Doença e Cura


Era evidente que boa parte das manifestações agressivas do antivampiro<br />

se deviam a uma incrível capacidade de persuasão. Se os vampiros<br />

contaminados eram destituídos de seus poderes e de sua sanidade, a simples<br />

proximidade da criatura era capaz de inundar com miragens a visão dos<br />

membros não contaminados, ou ensurdecê-los, travar seus movimentos,<br />

induzir metamorfoses.<br />

Talvez fosse o medo que a caça tem quando se encontra face a face<br />

com seu caçador que privasse qualquer vampiro da razão.<br />

O anti-vampiro era isto mesmo: o caçador supremo.<br />

A peça que a evolução pregava no que era tido como sobrenatural.<br />

A assombração das assombrações.<br />

O horror máximo.<br />

O terror absoluto.<br />

* * * * *<br />

Desde que descobrira estar muito próximo da encarnação de seus<br />

piores pesadelos, parecia que o vampiro milenar que chamava a si mesmo<br />

de Deus das Sombras só fazia era correr.<br />

Sempre confiando em seus instintos, optara por desertar e abandonar<br />

a agência secreta onde passara os últimos meses infiltrado, recolhendo<br />

informações e trabalhando como espião. Algo lhe dizia que a causa pela qual<br />

aqueles vampiros cercados de recursos e parafernália tecnológica lutavam<br />

estava perdida, e não havia mais nenhum motivo para ficar ali, obedecendo<br />

ordens e seguindo hierarquias inúteis.<br />

Além do mais, ele sentia-se quite com a organização, que o enviara para<br />

morrer em um encontro de famílias que não havia passado de uma fraude.<br />

Ele SABIA o que precisava saber.<br />

E sabia que não havia mais nada a ser feito.<br />

Nada, exceto fugir para bem longe.<br />

Os relatórios não paravam de chegar, de diversos países, em diversas<br />

línguas, do mundo inteiro.<br />

Eram milhares de relatórios. Armários cheios.<br />

Relatórios de vampiros. Relatórios de escravos humanos. Relatórios<br />

de organizações sanitárias humanas. Relatórios militares e relatórios civis.<br />

Relatórios jornalísticos, científicos, policiais e médicos.<br />

Relatórios oficiais e não oficiais, obtidos legalmente ou roubados.<br />

Armários e computadores cheios de relatórios.<br />

Milhares de relatórios e milhares de casos.<br />

Casos de infecções em vampiros, humanos e animais. Casos de<br />

mortes. Casos em que ninguém sabia o que fazer.<br />

Casos e mais casos, acontecendo no mundo inteiro, cada vez mais<br />

rápido.<br />

Fabian Balbinot<br />

225


Ele sabia que estava diante de uma epidemia que já não poderia ser<br />

controlada.<br />

E por isso fugia.<br />

Fugir lhe dava sorte.<br />

Fora assim durante o massacre da Ralé no templo e durante o Concílio<br />

no castelo naquele país do norte.<br />

Fora assim quando vira o corpo destroçado do morto-vivo, meio<br />

morto, meio vivo, recheado de químicas, naquele casebre abandonado.<br />

Fora assim daí por diante.<br />

E era assim agora.<br />

Fugir para não ser pego.<br />

Fugir para não ouvir, não ver, e não enlouquecer.<br />

A maldita entidade o perseguia pelos becos imundos e desconhecidos<br />

daquela cidade enorme. O rosto alegre e branco de mulher oriental, os olhos<br />

semi-cerrados, a boca esticada de orelha a orelha, as vestes compridas e<br />

ondulantes como o corpo de um fantasma... a inacreditável velocidade...<br />

A risada de bruxa, estridente, incessante, vinda de todos os lados.<br />

Ressoando sem parar dentro de sua mente.<br />

Em um dado ponto, ele projetou-se para o lado, levantando poeira do<br />

chão e sumindo em uma reentrância escura entre dois prédios antigos, sua<br />

forma material desaparecendo da vista de qualquer um que fosse normal, em<br />

meio às sombras.<br />

Etéreo, transformado em escuridão, o Deus das Sombras não sabia o<br />

quanto o seu disfarce de sombras era efetivo contra a coisa.<br />

Talvez não tivesse efeito algum.<br />

A risada feminina, esganiçada, ecoando à sua direita... NÃO! À<br />

esquerda... Vinda do alto!<br />

A maldita gargalhada de velha penetrando em sua mente, vinda de<br />

todos os lados, enlouquecendo-o.<br />

Era certo que seu poder de sumir na escuridão não tinha efeito<br />

algum...<br />

Não havia esperança...<br />

Mesmo assim, ele voltou a se tornar visível e a correr pelos becos em<br />

alta velocidade, fugindo como louco da risada estridente que o perseguia por<br />

trás e pela frente, por cima e por baixo.<br />

Correndo como louco, ele ainda procurava pensar.<br />

“Isto está ficando cansativo...”<br />

Era a risada que se convertia...<br />

“Tenho planos para você...”<br />

… em uma série de vozes...<br />

“Você não se sente cansado, querido?...”<br />

... dentro de sua mente...<br />

“QUERO você...”<br />

... todas...<br />

226 Doença e Cura


“Não há como escapar...”<br />

… falando...<br />

“Sou muitos...”<br />

... praticamente...<br />

“Posso vê-lo, senti-lo, tocá-lo...”<br />

... juntas...<br />

“Você prometeu que eu seria SUA!”<br />

Ele acabou assustando-se com uma das vozes, o que fê-lo escorregar<br />

e cair, derrubando latões e caixotes de lixo próximos.<br />

“Você se move rápido demais...”<br />

Outra gargalhada...<br />

Pondo-se de joelhos sem se importar com as poças d’água no chão e<br />

nem com o evidente sarcasmo de vozes em sua mente, o Deus das Sombras<br />

levou as mãos à cabeça, tentando impedir que elas continuassem invadindolhe<br />

a mente.<br />

Cansado de tudo, tomado pelo pavor, ele berrou:<br />

– PARE, PELO AMOR DE DEUS!<br />

“Mas, eu não comecei a fazer nada, ainda, meu querido...<br />

Ahahahahahah...”<br />

– O que você quer de mim?<br />

“Você sabe o que eu quero de todos de sua raça... Você foi um bom<br />

menino e estudou bastante, portanto acredito que pode responder esta<br />

pergunta sem nenhum auxílio...”<br />

Vento.<br />

Passos rápidos ecoando no fundo do beco.<br />

Ele se vira para trás, e só vê as paredes escuras e vazias, e uma lufada<br />

de vento erguendo papéis.<br />

– Maldita puta vagabunda... – ele murmura, prostrando-se ao solo<br />

sem ligar para a lama em sua face.<br />

“Sim, prostituta, meretriz e também rameira... O que você quiser,<br />

meu amor...”<br />

Mais uma risada.<br />

Mais vento e mais passos, vindos de todos os lados.<br />

Vento e passos, ruidosos, ensurdecedores, deixando-o maluco.<br />

– CHEGA! Chega... aaaahhhhh! – gemia ele, balançando a cabeça e<br />

empurrando-se no chão como um lunático preso em uma camisa de força. –<br />

Eu faço o que você quiser... TUDO... o... que... você... desejar...<br />

– Tudo o que eu quiser?<br />

De repente, toda a barulheira em sua mente cessou de um vez, e ele<br />

ouviu apenas aquela vozinha miúda.<br />

Levantou a cabeça e olhou para um lado e depois para o outro.<br />

– Tudo mesmo?<br />

Nenhum ruído. Não mais.<br />

Apenas ouvia a voz de criança.<br />

Fabian Balbinot<br />

227


Uma voz que lhe era de algum modo familiar.<br />

Erguendo o corpo com as mãos, ele olhou para o lado de onde vinha<br />

a voz.<br />

E viu a menina pequena.<br />

A mesma garotinha que vira na noite em que os soldados mascarados<br />

tinham sido destruídos pelo anti-vampiro.<br />

A mesma garotinha, com seus longos cabelos castanhos e olhar<br />

sorridente, vestida com a mesma calça cor vinho e camisa listrada em um<br />

xadrez de vermelho e branco. Desta vez, seu cabelo estava amarrado, uma<br />

trança saindo de cada lado da cabeça, e a roupa que vestia parecia estar<br />

muito velha, encardida.<br />

O revolver de plástico amarelo amassado repousava em sua mão<br />

direita.<br />

– Você vai fazer tudo o que eu quiser?<br />

Enquanto levantava-se devagar, ele não conseguia parar de mirar os<br />

olhos claros, brilhantes, da pequena.<br />

– S... sim... – respondeu ele, como um autômato, sem conseguir se<br />

conter, sua vontade dominada por aquele par de olhos.<br />

“Tudo... o que você quiser.”<br />

Olhos vermelhos... como fogo.<br />

A menina aproximou-se com seus passinhos curtos até ficar muito<br />

pequena perto dos quase dois metros de altura do vampiro, que teve de<br />

inclinar a cabeça para baixo para continuar a vê-la.<br />

... e aos seus olhos de fogo...<br />

– Você disse que iria me tornar sua noiva quando eu crescesse – disse<br />

ela, sorrindo e girando a barriga de lá pra cá, como se brincasse com um<br />

bambolê imaginário.<br />

Entorpecido, ele sequer conseguia piscar, e nem sabia se a voz<br />

que ouvia realmente saía daquela boca pequena que nem parecia estar se<br />

mexendo, ou se tudo não passava de sua imaginação.<br />

– Olha só – ela se exibia, alongando os bracinhos para o alto. – Cresci<br />

muito. Hoje estou enorme, incomensurável. Isso quer dizer que você deve<br />

cumprir sua promessa, e me tornar sua noiva.<br />

Dito isso ela inclinou a cabeça para o lado, mostrando o pescoço.<br />

O Deus das Sombras quase podia ver o sangue quente pulsando na<br />

jugular da menina, e até podia imaginar seu sabor agridoce.<br />

As presas vibravam inquietas em sua boca.<br />

As pálpebras tremiam em um frêmito, e, tonto, ele cambaleou e por<br />

pouco não caiu.<br />

Recuperando parte da consciência, ele apoiou os cotovelos nos<br />

joelhos, fechou os olhos e os ouvidos com as mãos e procurou limpar a<br />

mente.<br />

Aquela menina era...<br />

228 Doença e Cura


– Sou a dona do mundo – cantarolou a pequena. – Você prometeu que<br />

iria me morder toda quando eu crescesse...<br />

Ela era a encarnação do demônio.<br />

E estava ali, tentando-o, provocando-o...<br />

– Você disse que faria sexo comigo. Você prometeu.<br />

... com aquela voz que não saía de dentro de sua mente...<br />

A maldita criatura havia tomado a vida daquela criança inocente,<br />

impregnando o corpo dela com aquele sangue adocicado, fervilhante e<br />

venenoso.<br />

– Eu estou grande, enorme. Sou a maior de todas as criaturas do<br />

mundo...<br />

Era a chance de destruir o mal, de uma vez por todas, e ele se virou,<br />

metamorfoseado, garras de felino em lugar de dedos nas mãos, pronto para<br />

dilacerar as carnes.<br />

Era a chance de salvar aquela pequena criança imaculada, e redimir<br />

uma porção infinitesimal dos pecados daquela sua morte-vida milenar.<br />

Era a chance de salvar a si mesmo...<br />

Bastava que usasse seus poderes, e dilacerasse a aberração com sua<br />

fúria.<br />

A seguir, ignoraria o sangue feito de veneno e lançaria mão de sua<br />

rapidez para sumir daquele beco maldito.<br />

Esconder-se-ia por anos a fio. Mudaria de país. Meter-se-ia na mais<br />

profunda das tumbas até que todo esse pesadelo tivesse terminado.<br />

Podia fazer isso!<br />

Era só virar-se e atacar!<br />

Ele sentiu o toque dos dedos miúdos em sua face.<br />

Só então ele abriu os olhos e parou de imaginar as coisas que seu<br />

corpo estava impossibilitado de fazer.<br />

Percebeu que estava ainda encolhido e que suas mãos não tinham<br />

garras nem ímpetos de destruir a garotinha que o tocava com suavidade.<br />

– Você prometeu que me faria sua noiva... quando eu crescesse –<br />

repetiu ela, com a doçura de uma mulher experiente e sedutora.<br />

Ele mirou novamente aquele par de olhos intensos e viu fogo e lava<br />

pulsando dentro deles.<br />

Suas presas projetaram-se para fora.<br />

Sem poder mais conter o desejo ele lançou-se no pescoço da menina,<br />

que soltou um breve gemido.<br />

Enquanto sugava o sangue feito de veneno do corpo da criança, o Deus<br />

das Sombras chorou, sentindo que sua fuga finalmente chegara ao fim.<br />

Fabian Balbinot<br />

229


“O único valor que a vida tem é o que ela atribui a si mesma.<br />

E esse valor é duvidoso por ser valorização em causa própria.”<br />

O Lobo do Mar - Jack London<br />

230 Doença e Cura<br />

<strong>Capítulo</strong> 7<br />

A luz se acende, revelando um pequeno salão retangular bastante<br />

sombrio. As paredes de rocha dão a impressão de ser bastante espessas,<br />

e muitas delas estão cobertas de símbolos indecifráveis que lembram<br />

hieróglifos antigos, todos entalhados e esculpidos na própria pedra. Quatro<br />

orifícios quadrados com não mais do que vinte centímetros de diâmetro<br />

podem ser vistos ao alto, quase junto ao teto, cada um rente a um dos cantos<br />

superiores, tanto na parede à esquerda quanto na à direita do cenário.<br />

O piso é feito de largos paralelepípedos simétricos, dispostos<br />

regularmente uns ao lado dos outros, constituindo um piso tão escuro que<br />

as divisões entre eles são quase impossíveis de serem vistas.<br />

O teto parece ser feito de uma única rocha sólida, empilhada sobre as<br />

paredes. Ali também podem ser vistos muitos sinais entalhados, porém em<br />

muito menor quantidade se em comparação com as paredes.<br />

Há uma larga mesa de madeira clara e aspecto triangular no centro<br />

do cenário, riquíssima de detalhes esculpidos, tanto no único e largo pé que<br />

a sustenta por inteiro quanto em sua orla, toda coberta de gravuras e enfeites<br />

em alto-relevo. Um dos ângulos da mesa aponta para o fundo da sala, ao<br />

passo que os outros dois apontam respectivamente para as paredes laterais. O<br />

lado maior do triângulo que é a mesa situa-se de frente para a plateia.<br />

Uma dúzia de pesadas cadeiras, bem ao estilo da mesa, circundamna,<br />

formando um semicírculo ao redor de seus dois lados menores.<br />

Dois suportes vazios para archotes podem ser vistos no meio das<br />

paredes da esquerda e da direita.<br />

A luz que ilumina o ambiente provém quase toda de um candelabro<br />

amplo, de dez braços, todos tomados por velas de muitos tamanhos, umas<br />

já apagadas, colocado sobre um alto suporte, atrás da mesa, junto à parede<br />

de trás do cenário. Fachos de luz branca penetram no salão pelos quatro<br />

orifícios no alto das paredes. Não há qualquer sinal da existência de luz<br />

elétrica no aposento.<br />

Papéis se encontram espalhados sobre a mesa, e há também uma<br />

maleta.<br />

Pode ser vista uma reentrância na parede da direita, que revela uma<br />

porta mais escura do que a mesa, também detalhada, feita de uma madeira<br />

no mesmo tom das paredes.<br />

Em um dado momento, tal porta é aberta, rangendo alto em seus<br />

batentes, permitindo que doze pessoas entrem no recinto, em fila indiana. Todas


as pessoas que entram no salão estão em silêncio e têm seus rostos e corpos<br />

cobertos por mantos cinzentos de mangas longas, com capuzes, que vão até o<br />

chão, deixando ver apenas os calçados que tais pessoas usam, revelando que<br />

todas usam mocassins e sapatos escuros e finos, exceto a segunda e a nona<br />

pessoas da fila, que usam sapatos femininos de salto alto. A oitava pessoa<br />

usa um par de tênis esportivos listrados de azul, preto e branco, bastante<br />

maltratados, que contrastam grandemente com a sisudez do lugar.<br />

O primeiro dos integrantes da fila possui um grande crucifixo que<br />

pende de um colar em volta de seu pescoço por sobre o manto.<br />

Os encapuzados dão a volta por trás da mesa, circundando-a, e vão<br />

puxando as cadeiras e sentando sem cerimônia, o primeiro da fila ocupando<br />

a cadeira mais à esquerda, seguindo a ordem em que entraram na sala.<br />

Sentados, alguns dos membros da assembléia começam a sussurrar<br />

entre si, enquanto outros pegam e observam os papéis da mesa. O homem<br />

de tênis puxa a maleta para perto de si, e a abre, revelando e ativando<br />

um computador portátil, que acende e faz ruídos eletrônicos, e ilumina<br />

parcialmente sua face.<br />

O sexto homem, próximo ao fundo central do cenário, no lado esquerdo<br />

da mesa, levanta-se e remove seu capuz, revelando um rosto esquálido de<br />

idoso. Quase totalmente calvo, seu cabelo se concentra todo em torno das<br />

orelhas, e seu olhar é absolutamente inexpressivo.<br />

O homem pega alguns dos papéis espalhados na mesa a sua frente,<br />

ordenando-os e examinando-os como se fosse fazer um discurso. Olha em<br />

redor algumas vezes, e fala...<br />

– Amigos e colegas, estimados irmãos...<br />

* * * * *<br />

… É noite e os relâmpagos irregulares que iluminam o céu nublado<br />

prenunciam a tempestade no descampado deserto e rochoso sito no sopé de<br />

um morro irregular. Pode se ver parte de um prédio antigo semelhante a um<br />

castelo no alto da colina, de onde sai uma espessa fumaça negra.<br />

Um homem vestido com um manto escuro jaz no chão, as mãos na<br />

cabeça, sua face revelando um horror profundo.<br />

Ao seu lado, uma mulher de longos cabelos, também de manto.<br />

A mulher está rindo enquanto olha para o castelo em chamas no topo<br />

do morro. Ela então vira a cabeça para o homem caído e sorri de modo<br />

maquiavélico.<br />

– Tudo graças a você e a sua traição...<br />

O dia se aproxima e o mesmo vento que sopra as nuvens negras de<br />

fumaça do céu para longe atira folhas secas para dentro do cenário.<br />

– Infelizmente, uma das heranças negativas de ser um vampiro é<br />

Fabian Balbinot<br />

231


a total falta de imunidade à luz do sol. Por enquanto, devo me recolher e<br />

abrigar-me em um local seguro...<br />

Fumaça branca começa a brotar em torno do corpo da mulher.<br />

– Infelizmente para você, não costumo salvar traidores dos rigores<br />

de uma punição adequada. O nascer do sol já é uma realidade da qual seus<br />

limitados poderes telepáticos não poderão fazê-lo escapar... Adeus, meu<br />

amigo.<br />

A fumaça aumenta, e cobre por completo o corpo da mulher, que<br />

desaparece, deixando uma sonora gargalhada repercutir solta no ar.<br />

Ao homem caído, resta gritar de fúria e dor, enquanto os raios da<br />

alvorada incendeiam seu corpo.<br />

* * * * *<br />

A peça termina, as pessoas na platéia do grande teatro se levantam<br />

e aplaudem estrepitosamente. Alguns gritam, outros assobiam enquanto os<br />

atores desfilam pelo palco, ora se curvando para agradecer as palmas, ora<br />

aplaudindo também.<br />

Você se levanta para deixar o grande salão, como todos, porém sem<br />

aplaudir. A cor branca de seu cabelo aliada a sua grande estatura o colocam<br />

em destaque no meio da multidão que galga as escadarias rumo às saídas.<br />

Algumas mulheres o olham sem conseguirem disfarçar o desejo.<br />

Você ignora a admiração das mulheres, pega um bonito impresso em<br />

seu bolso, uma sinopse detalhada do espetáculo, e o joga em uma lata de<br />

lixo próxima.<br />

Um desrespeito com a qualidade do impresso, colorido e com gravuras<br />

em relevo e brilhos dourados no título da capa.<br />

Uma ação de cidadania – lixo não deve ser jogado no chão acarpetado<br />

e impecável do prédio pomposo por onde você agora passa.<br />

Tudo é uma questão de opinião. De como se vê as coisas.<br />

Na verdade, não importa.<br />

Faz tempo que muita coisa deixou de ter importância.<br />

Transmitir indiferença para as mulheres que anseiam pelo seu corpo<br />

viril, mesmo agora, quando até o desejo sexual, apagado há séculos, voltou<br />

a fazer parte de sua vida.<br />

Colocar impressos caros no lixo, ou no chão. Aplaudir ou não uma<br />

peça de teatro...<br />

A opinião dos outros que fique com os outros.<br />

Você sabe o que está acontecendo de verdade. O que é real.<br />

Ou pelo menos, uma certa parte do que é real.<br />

Provavelmente a única parte que tem real importância.<br />

Você sai do teatro e vê a noite iluminada, o glamour das placas e dos<br />

cartazes da peça.<br />

232 Doença e Cura


“O Concílio dos Vampiros – Nova Temporada”<br />

Do elenco de quinze integrantes, um ator e uma atriz são<br />

particularmente famosos, e seus nomes são amplamente destacados nos<br />

cartazes, todos impressos a partir de montagens artísticas em que os atores<br />

são expostos tais como se seus perfis tivessem sido pintados em quadros<br />

muito antigos, envoltos em molduras. Os cartazes enfileirados na grande<br />

parede deixam a impressão de que se está passando por uma extensa galeria<br />

de velhos retratos de família.<br />

Uma chuva fina cai.<br />

O nome da autora do roteiro, logo abaixo do cartaz em que sua imagem<br />

aparece pintada em tinta a óleo e cercada por uma moldura oval.<br />

Sua conhecida.<br />

Sua amante.<br />

Sua dona.<br />

Uma completa desconhecida...<br />

Sem se preocupar com a garoa que umedece seus longos cabelos,<br />

você abandona a proteção da marquise do teatro e caminha devagar pela<br />

calçada.<br />

Um carro comprido e cinzento, de vidros totalmente escuros,<br />

aproxima-se e estaciona um pouco adiante de onde você está.<br />

Um carro conhecido, dirigido por uma jovem.<br />

A autora da peça.<br />

Uma mulher que já foi menina e cresceu rápido demais.<br />

Sua amante.<br />

A porta do veículo se abre.<br />

– Entre, amor.<br />

Você pára de caminhar, vira-se para os lados e olha para muitas coisas<br />

sem conseguir ver nada que o agrade ou atraia. Suspira.<br />

– Eu até gostaria de caminhar um pouco... – você apóia o cotovelo<br />

no carro, que se encolhe diante do tamanho e peso de seu corpo. Abaixa<br />

a cabeça e olha para o interior do veículo. – Sozinho, assim. Na chuva,<br />

mesmo.<br />

– Não, meu anjo – diz a voz da bela jovem, dona de grandes olhos<br />

castanho-claros e de longos cabelos marrons e encaracolados, dentro do<br />

veículo. – Você sabe que sempre temos coisas importantes a fazer.<br />

Sua dona.<br />

Você respira fundo e olha para o alto, sentindo as gotículas se<br />

condensarem em sua face.<br />

Depois baixa a cabeça e fica olhando para frente, enquanto passa a<br />

língua pela boca toda.<br />

Você imagina o tipo de coisas que essa jovem mulher quer fazer.<br />

Imagina coisas do seu passado, relembra sensações. Corpos colados.<br />

Sexo e interações carnais...<br />

Fabian Balbinot<br />

233


Você a conhece, e sabe que o que passa pela cabeça dela e de todos os<br />

outros não deve ser nada assim tão excitante.<br />

Por um momento, você vê as imagens das pessoas na calçada,<br />

borradas. Seus olhos perdem o foco, encharcados pelo chuvisco, que parece<br />

aumentar.<br />

Sem ter outra saída, você entra no carro e acomoda-se no assento.<br />

A mulherzinha se aproxima e beija sua face. Ela então lambe sua<br />

bochecha, como se saboreando a umidade que se acumula ali.<br />

Percebendo o seu constrangimento, ela dá uma risadinha, recua e<br />

retoma o volante, pressionando os pedais, movendo a marcha e fazendo o<br />

carro andar.<br />

Sisudo, você a observa manobrando o volante com maestria.<br />

– Você devia aprender... – ela diz, tirando as duas mãos do guidão. –<br />

É bem mais fácil do que parece, ainda mais hoje em dia, com esses carros<br />

modernos, que praticamente andam sozinhos...<br />

“Tenho toda a eternidade para aprender...” você responde apenas em<br />

pensamento, e, ao invés de proferir palavra, ignora tudo o que há em volta<br />

e respira fundo, uma das tantas coisas que reaprendeu a fazer depois de ter<br />

conhecido aquela mocinha aparentemente frágil, meio metro mais baixa do<br />

que você... e de ter sido iniciado por ela no consumo do sangue.<br />

O mesmo sangue antes venenoso, letal, e que agora faz parte de seu<br />

próprio corpo.<br />

Sentindo-se como se fosse uma criatura híbrida, uma montagem<br />

composta de peças diversas e incompatíveis, você recorda as coisas que<br />

aconteceram há algum tempo atrás, revendo seu desespero ao encontrar<br />

a mulher que dirige o carro, ainda uma criança, morta e viva, tomada ela<br />

também pela horrível peste.<br />

Correndo em suas veias juvenis o resultado de uma nova experiência,<br />

a união bem sucedida do sangue do anti-vampiro com sangue humano<br />

em um organismo ainda pleno de vida. O êxito de uma alquimia obscura,<br />

desenvolvida e testada no submundo por um conglomerado cada vez maior<br />

de mentes brilhantes.<br />

Seu fracasso ao vislumbrar a isca de sangue fatal, percorrendo o<br />

interior do corpo da pobre criança. Sua submissão, quando lançou-se<br />

descontrolado, presas brancas e pontudas à mostra, sobre o pescoço da<br />

pequenina, rasgando a pele macia e vendo-a regenerar-se continuamente.<br />

O sangue rebelde, maldito, escapulindo de dentro da jugular, jogandose<br />

vivo em sua boca, inundando sua garganta, em um jorro horizontal<br />

impossível.<br />

As dores que se sucederam àquele contato. Você consegue lembrar<br />

de cada uma delas, ou ao menos daquelas pelas quais passou antes de ter<br />

desfalecido.<br />

234 Doença e Cura


O movimento incessante dentro de seu corpo. A dor invadindo seus<br />

órgãos. A corrosão dos tecidos. As perfurações...<br />

Tremedeiras e espasmos, ali mesmo, junto aos becos imundos daquela<br />

grande metrópole, com a menina-demônio e seus asseclas por testemunha.<br />

Os sangramentos, em seu nariz e ouvidos, de um sangue que tinha<br />

vida própria e escorria para fora por algum orifício, retornando para dentro<br />

do corpo por outro. Um sangue farpado e ácido, que rasgava seus poros e<br />

esfarelava as unhas de seus dedos, singrando suas roupas, unindo-se em um<br />

córrego vermelho, surreal, que escalava seu ventre e tornava a penetrar em<br />

seu interior pela primeira passagem que encontrasse.<br />

Sangue vazando pelos seus olhos, turvando sua vista; sangue jorrando<br />

para e de dentro de sua boca, destruindo-a, dilacerando-a, estilhaçando a<br />

arcada dentária, o septo nasal, a garganta, com a força do refluxo de um<br />

rio caudaloso; sangue rasgando seus músculos, explodindo sua carne com a<br />

força de pesadas pontas de lança; sangue penetrando pelo reto e pelo pênis;<br />

sangue desmembrando-o, destruindo-o...<br />

O desespero da mocinha, ao gritar com a mulher oriental, e outras<br />

pessoas que havia ali perto dela...<br />

“Porra! Ele está MORRENDO! Testem o antídoto, AGORA!”<br />

A inconsciência como uma forma de redenção...<br />

– … e muito em breve, acho que nem mais pedais vai precisar – ela<br />

continua falando coisas que você nem escuta. – Você devia mesmo aprender<br />

a dirigir.<br />

A mulherzinha o olha com ternura.<br />

Sua salvadora, e também a origem de sua condenação.<br />

– E você... – você diz devagar, cabisbaixo – devia aprender a inventar<br />

nomes melhores para seus espetáculos.<br />

A jovem franze a testa, recoloca uma das mãos no volante e pára o<br />

carro em um sinal de trânsito.<br />

A chuva aumenta.<br />

– Não estou entendendo – resmunga ela, enquanto aciona o limpador<br />

de para-brisa.<br />

Você encolhe os ombros e recorda informações e registros encontrados<br />

durante sua busca, tempos atrás. – Sua peça devia se chamar “Jogo dos<br />

Sete Erros”, ou talvez fosse melhor “Jogo dos Setenta Erros”, tantas são as<br />

diferenças em relação ao que aconteceu realmente naquela noite...<br />

– Ah! – ela sorri. – Como estamos detalhistas e espirituosos hoje, não<br />

é mesmo?<br />

Você continua com o olhar absolutamente sério.<br />

O sinal abre. Ouvem-se buzinas. Ela mexe na alavanca do câmbio,<br />

pressiona os pedais com seus pezinhos miúdos de uma forma que você ainda<br />

Fabian Balbinot<br />

235


não se preocupou em aprender, e o carro volta a se deslocar pela larga e<br />

turbulenta avenida central.<br />

– O mundo está uma lama só... – você diz, olhando para o lado. –<br />

Parece que não vai mais parar de chover.<br />

Ela ri. – Sim, estamos detalhistas, espirituosos, e eloquentes. Devo<br />

supor que você gostou da peça.<br />

– Uma merda de uma paródia... – grunhe você, cruzando os braços.<br />

– Ora, veja só! Estamos também sarcásticos hoje – diz a mulher,<br />

rindo.<br />

Você nada diz. Quem cala, consente.<br />

A vida se lhe parece sarcástica, dotada de um humor intragável.<br />

O carro avança pela grande avenida, devagar. A água começa a se<br />

acumular em grandes poças pelas laterais, rente ao passeio.<br />

– Tenho certeza... – ela começa, séria – que, em breve, tudo irá<br />

melhorar...<br />

Mais um sinal fechado, e o veículo pára novamente.<br />

Pessoas atravessam a faixa de segurança apressadamente, molhadas<br />

quase por inteiro, mesmo estando debaixo de seus guarda-chuvas.<br />

Um homem completamente coberto por uma capa de chuva semitransparente<br />

se detém logo além do carro, seu corpo iluminado pelos faróis.<br />

As pessoas passam irritadas, desviando dele. Pode se ver os impropérios<br />

sendo grunhidos pelos lábios de alguns.<br />

Debaixo do capuz, o desconhecido vira o rosto para o carro, lentamente,<br />

revelando um par de óculos embaciados que não deixam ver seus olhos.<br />

A pequena mulher dentro do carro aquiesce com a cabeça, atraindo<br />

tanto sua atenção quanto a do homem parado diante do veículo, que caminha<br />

apressado e vai de encontro à lateral deste.<br />

Com o toque em um botão, o silencioso vidro da porta do motorista<br />

começa a baixar, até sumir por inteiro.<br />

Água da chuvarada, agora um verdadeiro temporal, entra no carro,<br />

molhando o assento e o lado de dentro da porta. A mulher também se molha<br />

bastante, mas não parece se importar.<br />

O homem de nariz estreito e adunco se aproxima e, sem pedir<br />

qualquer permissão, mete a cabeça para dentro do carro, encharcando tudo<br />

ainda mais.<br />

Debaixo das duas lentes arredondadas, ele parece levar não mais<br />

do que um par de segundos para vasculhar todo o interior do veículo,<br />

fazendo com que você se sinta intimidado, coagido, como se um par<br />

de olhos que você não pode ver estivesse perscrutando os pontos mais<br />

profundos de sua alma.<br />

O sangue, até então calmo, movimenta-se dentro de seu corpo.<br />

Mesmo sem imaginar do que possa se tratar aquela situação, você sabe<br />

236 Doença e Cura


que tornou-se um híbrido, uma mistura de raças e de sangues, e a agitação<br />

dentro de suas veias revela que aquele homem é um conhecido, alguém da<br />

família.<br />

Um portador da peste.<br />

Alguém confiável.<br />

Você vira os olhos e encara o pára-brisa, onde os limpadores fazem<br />

um vai-e-vem monótono.<br />

O homem remexe o interior de sua capa, procurando por alguma<br />

coisa, um pequeno embrulho de papel pardo, que ele coloca nas mãos da<br />

mulher dentro do carro.<br />

Por um momento você se recorda do seu velho comparsa, o técnico<br />

com nariz de tucano. Sorrindo, você sente uma certa satisfação pelo destino<br />

ter se encarregado de dar fim àquele seu companheiro. Assim, pelo menos,<br />

ele está à salvo do fim do mundo que deve estar se aproximando...<br />

– Ora, veja só! Estamos também sarcásticos hoje – dizem duas vozes,<br />

uma de homem, desconhecida, e uma de mulher, conhecidíssima, em um<br />

intrigante uníssono.<br />

Sua memória identifica a coincidência, a mesma frase, pronunciada<br />

no mesmo tom, e de pronto você vira a cabeça e os olhos, arregalando-os,<br />

sem saber se deve olhar para a pequena mulher ao seu lado ou para a cabeça<br />

encharcada do estranho homem de óculos, logo acima dela.<br />

Ambos olham para você e parecem sorrir o mesmo sorriso. Não há<br />

dúvida quanto a isso, mesmo com os olhos escondidos por detrás do par de<br />

óculos embaciados do homem de capa.<br />

Você não consegue acreditar no que ouviu. Não pode ser real...<br />

– E estamos amedrontados, e descrentes – dizem os dois, novamente,<br />

com inacreditável sincronismo, como se o tempo da pronúncia tivesse sido<br />

ensaiado por dezenas, centenas de vezes.<br />

Após mais alguns segundos em que um sorriso também espelhado<br />

revela os dentes da mulher e do desconhecido, este torna-se sério novamente,<br />

retirando a cabeça do interior do carro, e sumindo em meio à chuvarada.<br />

Com mais um toque de botão, a mulher fecha o vidro da janela, e em<br />

seguida projeta o corpo para o seu lado, fazendo com que você se encolha.<br />

– Calma! – Ela sorri. – Diferente de vocês, nós NÃO mordemos.<br />

Ainda sorrindo, e olhando fixamente em seus olhos, ela abre o portaluvas<br />

e guarda o pequeno pacote ali dentro.<br />

Você observa, confuso, as coisas dentro do porta-luvas.<br />

– Não consigo entender por que o contato entre os amigos não<br />

funciona com você – diz a jovem, procurando alguma coisa dentro do portaluvas,<br />

sem ter sucesso.<br />

Você vê os objetos que ela remexe.<br />

– Você sabe... esse nosso elo mental. Essa ligação entre os nossos...<br />

Fabian Balbinot<br />

237


que faz com que a gente se entenda de forma mais imediata... Sabe, sem<br />

precisar de palavras – ela continua mexericando no interior do porta-luvas.<br />

– Mas que MERDA! Onde foi que eu coloquei...<br />

Documentos. Frascos. Canetas.<br />

Uma pequena arma de fogo prateada.<br />

– Ah... Pensando bem, foi bem pior com todos os outros vampiros.<br />

Não havia qualquer forma de contato com eles, exceto hipnose e dominação<br />

pura.<br />

Em um dado momento, a jovem desiste do porta-luvas e volta-se<br />

para a porta do carro, de onde retira uma pequena bolsa colorida que estava<br />

metida em um outro compartimento.<br />

Irritada, ela se volta para você – Não consigo entender onde foi<br />

parar...<br />

Ela emudece.<br />

Você está com a pequena arma prateada em sua mão.<br />

O cano apontado para ela. Para seu rosto.<br />

– Não acredito... você não está pensando...<br />

A frase dela nunca termina.<br />

O primeiro tiro.<br />

A bala perfura a bela face de menina quase adulta, destruindo a<br />

mandíbula e atravessando a nuca. O vidro do carro se estilhaça e é banhado<br />

em sangue.<br />

SANGUE!<br />

O maldito sangue do demônio!<br />

Escorrendo do corpo da mulher, da pobre criança, vivo, ardente...<br />

Você cobre o rosto com a mão e vira-se tentando abrir a porta do carro<br />

com a mão que segura a arma.<br />

Você vocifera palavras antigas e horríveis, de idiomas extintos, e é<br />

obrigado a usar a mão que cobre o rosto para abrir a porta.<br />

Pensando apenas em escapar do odor e da cor, da influência do sangue<br />

maligno, você salta do carro e o deixa, correndo para o passeio, a chuva<br />

lavando sua pele e roupas, dos pés à cabeça, como se fosse uma benção.<br />

O homem de capa de chuva que você viu antes surge do nada, bem<br />

na sua frente.<br />

Ele nada diz. Apenas o encara, as mãos dentro dos bolsos da longa<br />

capa, olhos invisíveis, inexpressivos, por trás dos óculos embaciados.<br />

O segundo tiro.<br />

O estranho cai, também sem esboçar reação.<br />

Sangue escorre do buraco de bala no pescoço, tingindo de vermelho e<br />

de fogo ardente a noite cinzenta e fria.<br />

Você corre.<br />

Mete-se no meio do movimento.<br />

238 Doença e Cura


As pessoas no passeio param de caminhar e se viram para vê-lo.<br />

Carros param no meio da avenida. Suas janelas se abrem. Rostos<br />

desprotegidos projetam-se para fora, sendo lavados pela intempérie.<br />

Janelas de prédios e residências são abertas e faces indiscretas surgem<br />

por onde você passa.<br />

Todos parecem querer olhá-lo, apreciando sua fuga.<br />

Todos com os mesmos olhares vazios.<br />

Todos contaminados.<br />

Mortos.<br />

Todos mortos. Como zumbis.<br />

Escravos do sangue.<br />

O terceiro tiro.<br />

Vidros se partem.<br />

A sombra de um curioso some deixando às escuras a janela de um<br />

prédio à sua direita.<br />

Ninguém grita.<br />

O quarto tiro.<br />

Outra figura tomba, desta vez à sua esquerda, na calçada.<br />

Mais gente surge. Parecem persegui-lo, aglomerando-se em seu redor,<br />

por onde você passa.<br />

O quinto, o sexto tiro.<br />

Você grita algo que nem mesmo você entende e tropeça nos dois<br />

corpos que jazem caídos no meio do caminho.<br />

A correria não para. Você precisa escapar do pesadelo.<br />

O oitavo tiro.<br />

Mais um corpo que cai por perto.<br />

O nono, o décimo tiros, e mais dois alvos são derrubados.<br />

Onze, doze, treze, quatorze tiros.<br />

Onze, doze, treze, quatorze mortos.<br />

E as pessoas sem alma, os rebentos do demônio continuam surgindo,<br />

bloqueando seu caminho.<br />

Inexpressivos.<br />

Quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte, vinte e um,<br />

vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro, vinte e cinco, vinte e seis, vinte e<br />

sete...<br />

* * * * *<br />

Você vê os objetos que a jovem mulher de cabelos encaracolados<br />

remexe no porta-luvas do carro, inclinada, o corpo pequeno e elegante<br />

roçando em suas coxas.<br />

Documentos. Frascos. Canetas.<br />

Fabian Balbinot<br />

239


A pequena arma de fogo prateada...<br />

Em um dado momento, ela abandona o porta-luvas e volta-se para a<br />

porta do carro, de onde retira uma pequena bolsa colorida que estava metida<br />

em um outro compartimento.<br />

Irritada, ela se volta para você – Não consigo entender onde foi<br />

parar...<br />

Ela silencia.<br />

Ela vê com olhos arregalados que você está com a pequena arma<br />

prateada em sua mão.<br />

O cano apontado para si próprio, metido dentro da própria boca.<br />

– Não acredito... você não está pensando em...<br />

Você puxa o gatilho, ouve um estouro que o ensurdece, e ainda tem<br />

tempo de ouvir o grito da pequena mulher ao seu lado e de sentir um sabor<br />

estranho em sua boca antes de tudo se apagar.<br />

* * * * *<br />

Você vê os objetos que a mulher de cabelos encaracolados remexe no<br />

porta-luvas do carro.<br />

Documentos. Frascos. Canetas.<br />

Uma pequena arma de fogo prateada.<br />

Em um dado momento, a jovem desiste do porta-luvas e volta-se<br />

para a porta do carro, de onde retira uma pequena bolsa colorida que estava<br />

metida em um outro compartimento.<br />

Seus olhos estão fixos no revólver compacto, feminino.<br />

As possibilidades são evidentes.<br />

A imaginação se solta, constrói e examina os diversos desfechos.<br />

Redenção. Vingança. Fuga.<br />

A chave para a liberdade, para a retomada de sua vida...<br />

Mesmo sem ver, você percebe quando a moça volta o rosto para<br />

você.<br />

Você estremece, e sente quase como se o olhar dela o acariciasse na<br />

nuca com um toque de dedos frios.<br />

Um toque que parece congelar o sangue dentro de seu corpo.<br />

– Você sabe que não vai conseguir usar isso, meu amor...<br />

Um impulso que parece vir de longe tranca sua respiração.<br />

– E mesmo que consiga, não fará a menor diferença.<br />

Enquanto escuta a voz da mulher, séria, tenebrosa, você torna a ficar<br />

sem respirar, até o momento em que sente o peito começar a queimar.<br />

Uma das tantas adequações, das tantas curas a que seu corpo foi<br />

submetido em decorrência do contato com o sangue do demônio.<br />

240 Doença e Cura


– Não existe nenhuma chance de você nos destruir com um<br />

brinquedinho desses...<br />

A respiração. A absorção do oxigênio rarefeito do ar poluído do tempo<br />

presente.<br />

– … nem com nenhum outro.<br />

Uma modificação viciante, um mal necessário, um retorno ao passado,<br />

aos dias de mortalidade de muito tempo atrás.<br />

Um downgrade, quando se é um vampiro e se viveu sem usar os<br />

pulmões durante centenas de anos.<br />

– Você precisa entender que nós, o todo, somos maiores, mais<br />

importantes do que as vontades de um.<br />

Pulmões atrofiados, letárgicos, enfraquecidos, deficientes...<br />

– O todo, a dádiva, é o que importa.<br />

MALDITOS pulmões! Sem fôlego! Queimando... vazios... ar...<br />

oxigênio...<br />

– As individualidades devem ser usadas...<br />

“Preciso respirar, preciso respirar, preciso respirar, preciso<br />

respirar...”<br />

A cabeça querendo explodir.<br />

– … apenas de um modo a fortalecer o todo...<br />

“Preciso respirar, preciso respirar...”<br />

O peito querendo explodir.<br />

– … e você vai ter de aprender a conviver com isso.<br />

A consciência querendo explodir.<br />

“Preciso resp...”<br />

* * * * *<br />

– Tudo não passa de um grande engano... – comenta a mulher ao<br />

volante, rompendo um silêncio que já dura mais de uma hora. – Uma grande<br />

mentira.<br />

Já desperto, você absorve de forma inconsciente o oxigênio do ar,<br />

enquanto relembra com um certo rancor, o cenho franzido, a boca torta, o<br />

nocaute a que foi submetido ao ter sido impedido de respirar, ainda enquanto<br />

trafegavam na cidade.<br />

Olhando através do vidro do carro, o queixo apoiado pelo punho<br />

semi-cerrado, você vê a placidez das árvores de uma paisagem campestre<br />

sendo deixada para trás em meio a uma meia penumbra iluminada pela lua.<br />

– Tudo o que vocês, vampiros e humanos ignorantes, crêem ser a<br />

verdade... – ela vira a face para o entediado passageiro, sorrindo de um<br />

modo maligno.<br />

Os amortecedores do veículo bastante exigidos pela irregularidade da<br />

Fabian Balbinot<br />

241


estrada de chão, e sua mandíbula é repetidamente esmurrada pelo próprio<br />

punho que a sustenta, no sacolejar do trajeto.<br />

Por pouco você não dá uma dentada na própria língua.<br />

– Tudo não passa de uma grande bobagem.<br />

Seus longos cabelos brancos esparramados por cima dos olhos o<br />

irritam até mais do que os comentários obscuros de sua sequestradora. De<br />

cara fechada, você resolve amarrá-los em um rabo de cavalo, metendo-os<br />

para dentro da gola de seu casaco preto.<br />

– Do que diabos você está falando? – você pergunta em um resmungo,<br />

olhando-a de esguelha. A expressão de nojo com que encara a pequena<br />

mulher não tem nada de simulação.<br />

– Comporte-se, menino – diz ela, sem desfazer o sorriso, baixando a<br />

cabeça e tornando a olhar para a frente. – Comporte-se ou terei que castigálo<br />

outra vez.<br />

– Vá tomar no cu... – você grunhe e se vira de novo para a janela.<br />

A mulher ri.<br />

Sorte sua.<br />

Ela não parece ter a real intenção de puni-lo.<br />

Melhor nem imaginar o que ela poderia fazer de diferente para puni-lo.<br />

O que poderia ser pior do que ser forçado por algum tipo de bloqueio<br />

ou influência mental a parar de respirar depois que se reaprendeu a ter a<br />

necessidade de respirar?<br />

Ora, a própria necessidade de respirar, miraculosamente reativada por<br />

ela em um momento de fúria há algumas semanas, já lhe parece ter sido uma<br />

punição bastante exemplar.<br />

– Vocês são engraçados... – recomeça ela, gesticulando com uma das<br />

mãos, mais descontraída. – Acham que sabem das coisas. Acham que basta<br />

investigar um pouco e colocar tudo o que se descobriu ou se deduziu dentro<br />

de uma porção de discos de computador, ou arquivar tudo em livros.<br />

Pedras soltas espocam, atiradas lá e cá pelos pneus, e, já seca, a poeira<br />

começa a querer levantar, iluminada pela lua cheia e clara, meia hora depois<br />

que a chuva cessou.<br />

– Não me importo se você quer ouvir ou não. Vou lhe contar a verdade<br />

que vocês, bípedes burros, não conseguem ver nem admitir, mesmo quando<br />

ela acontece bem debaixo dos seus narizes. Era uma vez...<br />

Você enche os pulmões e solta uma sonora baforejada de desaprovação<br />

pela boca. “É assim, agora? Resolveu começar a me tratar como criança,<br />

sua puta de merda?”<br />

Ela ri outra vez. Uma gargalhada.<br />

– Era uma vez um bando de humanos que pensavam que sabiam das<br />

coisas. E era uma vez um bando de vampiros que eram ainda mais ignorantes<br />

por acreditarem que sabiam mais que os humanos...<br />

242 Doença e Cura


Os faróis iluminam o caminho irregular, que corta o matagal.<br />

Insetos são atraídos pela luz dos faróis e, deslocados pelo movimento<br />

do carro, projetam-se contra o para-brisa.<br />

– Você sabia, senhor mestre espião, que nós já temos mais de trinta<br />

mil ressuscitados espalhados pelo mundo inteiro?<br />

Você não responde.<br />

Faz tempo que muita coisa deixou de ter importância.<br />

O fim do mundo, o apocalipse não tem importância<br />

– É uma gigantesca colônia de trabalhadores, como se fossem<br />

as formigas operárias no formigueiro... A maior parte são cientistas e<br />

estudiosos redivivos de todos os tipos. Químicos e alquímicos, médicos,<br />

anatomistas, físicos, geneticistas, historiadores, arqueólogos, tecnólogos, e<br />

mais sei-lá-o-quê. Nem faço ideia de quantos especialistas temos, e nem<br />

quantas especialidades sejam. E nem preciso ficar pensando nisso. Muitos<br />

deles foram recuperados diretamente dos túmulos ou de necrotérios, outros<br />

ressuscitados “por milagre” no meio dos próprios velórios. Oh, levanta-te e<br />

anda, em nome do teu Deus!<br />

Ela ri de novo, sarcástica.<br />

Com o canto dos olhos você observa o porta-luvas, agora fechado.<br />

O pequeno revólver balançando lá dentro...<br />

– O revólver que você tanto quer está descarregado, baby... Não vai<br />

adiantar nada. E mesmo que estivesse carregado, também não faria diferença<br />

alguma.<br />

Você arregala os olhos por um instante.<br />

Sim, ela sabe o que você está pensando, como você já vem suspeitando<br />

há algum tempo...<br />

Não se trata de mais uma coincidência.<br />

– Por isso sugiro que pare de ter ideias idiotas e fazer planos<br />

mirabolantes que não vão dar certo e me deixe continuar com minha<br />

historinha.<br />

Sua dona.<br />

– Muitos desses ressuscitados, desses zumbis, foram propositadamente<br />

mortos por outros de nossos agentes, e revividos em seguida, apenas para<br />

permitir o acesso imediato do todo às suas proficiências. Sinceramente nem<br />

eu entendo como eles funcionam. São revividos através da química do nosso<br />

sangue e trabalham sem parar, como loucos, por algum tempo, até morrerem de<br />

novo, desta vez em definitivo. Robôs de carne podre, sem mente, mas mesmo<br />

assim, donos dos conhecimentos e talentos que possuíam quando em vida.<br />

“Se não me engano, são uns trinta e cinco ou trinta e seis mil desses<br />

operários... desses mortos-vivos. A contagem pode variar muito rapidamente,<br />

uma vez que a ressuscitação é fácil e o tempo de morte-vida deles é curto.<br />

Trinta e seis mil zumbis e vinte e sete vivos, assim como eu...<br />

Fabian Balbinot<br />

243


Você desloca a cabeça levemente, olhando de esguelha para a moça.<br />

– Pelo visto consegui chamar sua atenção. – Ela vira o rosto para<br />

o seu lado, e sorri de forma autêntica pela primeira vez, desde que usou o<br />

poder de controlar o sangue em seu corpo para quase asfixiá-lo até a morte.<br />

– O número dos que se parecem comigo é fixo. Difícil de variar.<br />

Somos difíceis de ser criados tanto quanto de ser eliminados... – ela tira<br />

a mão do volante, inclina-se para o seu lado, abre o porta-luvas e pega o<br />

revólver – e posso garantir que não é com brinquedinhos frágeis desse tipo<br />

que você vai conseguir acabar com gente do meu nível.<br />

Ela sopra o cano da arma e a joga de volta no compartimento, fechando<br />

o porta-luvas e retomando a direção do veículo.<br />

Você se volta novamente para a janela, desta vez fingindo irritação.<br />

Ela prossegue com sua narrativa, provavelmente tendo consciência<br />

da curiosidade cada vez maior que você está sentindo.<br />

– Ainda não se sabe muita coisa sobre nossa vida, nossa longevidade.<br />

Sim, vivemos muito tempo, mas por sermos um... “fenômeno” recente,<br />

ainda não se sabe quanto podemos durar. O que se sabe é que somos todas<br />

mulheres, e que a primeira de nossa linhagem, nossa matriarca, por assim<br />

dizer, têm mais de quarenta anos de vida nessa condição, e ela mudou muito<br />

pouco desde que se tornou o que é.<br />

“Eu, por exemplo, era uma criança, uma guriazinha, até meses atrás,<br />

e de repente, aconteceu a mudança. Eu recebi a dádiva e meu corpo se<br />

desenvolveu e ficou deste jeito. Alguém me disse que isso se deve ao nosso<br />

jeito de ser, à nossa maneira diferente, mais eficiente, de encarar as coisas.<br />

É como se não tivéssemos tempo a perder com infantilidades, com infância.<br />

Temos de atingir o estágio adulto e mais efetivo de nossa vida o quanto<br />

antes, e permanecer nele tanto tempo quanto for possível.<br />

“Para mim, isso tem sido horrível e gratificante ao mesmo tempo.<br />

Ser forçada a pular estágios, infância, adolescência... Os psiquiatras zumbis<br />

dizem que nós, os vivos, temos este apego, esta... hmmm... esta dificuldade<br />

em abandonar o que sentimos, nossas vidas como pessoas, como seres<br />

humanos. A mania bem humana de querer ser independente, que vai contra<br />

essa merda toda de compartilhar pensamentos e objetivos com todos os<br />

outros integrantes da colônia. No início, cheguei a pensar em me matar.<br />

Parecia que eu estava sendo vigiada em todo o lugar que eu me metia, como<br />

se tivessem câmeras me monitorando até dentro da minha alma. Eu queria<br />

sumir, desaparecer...<br />

“Depois de muita terapia, e de muita ajuda de muitos dos nossos<br />

médicos zumbis, que a esta altura devem estar todos mortos, vi que as tais<br />

câmeras poderiam também servir como microfones. Comecei a separar<br />

os pensamentos que me invadiam a mente, ordená-los, lidar com eles, e<br />

a usar os meus próprios pensamentos para me comunicar com os outros,<br />

244 Doença e Cura


com minhas companheiras. A oriental foi minha primeira parceira, e<br />

me ensinou uma porção de coisas enquanto minhas tetas cresciam<br />

cinco anos em um mês e minha vagina ficava coberta de pêlos pretos<br />

e esquisitos de uma semana pra outra. Foi nessa época, ainda com cara<br />

de criança, que lembrei de você e imaginei sua captura. Testes estavam<br />

sendo feitos – nosso pessoal vive fazendo testes e inventando coisas – e<br />

um tipo de composto químico havia sido desenvolvido. Algo como um<br />

antídoto que poderia imunizar os vampiros e impedir a série de infecções<br />

que o contato com nosso sangue lhes causava. Os primeiros traços de<br />

puberdade já sobrepujavam minha infância e, como mulher, tomada por<br />

uma enxurrada de hormônios, eu o desejava, por isso resolvi arriscar...<br />

No fim, deu certo, o contraveneno foi aprovado e você está imunizado, e<br />

junto comigo, como meu lado humano e sentimental desejava.<br />

“Se os zumbis não sentem nada e agem como robôs, nós, vivas,<br />

somos bem menos objetivas. Mesmo nossa matriarca, fria e áspera como<br />

uma pedra, consegue rir ou demonstrar compaixão de vez em quando, se<br />

fizer alguma força. Ora, já cheguei mesmo a vê-la dançando sozinha, como<br />

uma idiota. Tive de lidar com meus sentimentos, com indecisão, com raiva<br />

e com a impotência de se ter poderes inacreditáveis e não saber como ou<br />

quando usá-los, e mesmo com esse desejo que eu sinto em relação a você. Em<br />

contrapartida, tive de aprender a lidar também com essa estranha sensação<br />

de comunhão, essa incapacidade que os nossos possuem de se agredirem<br />

uns aos outros, ou mesmo de se contradizerem. Isso, essa necessidade<br />

social, esse não-egoísmo, esse desejo intransponível de ir em busca de um<br />

benefício mútuo, de algo que favoreça a todos, de verdade... Garanto que<br />

isso não é coisa que seres humanos naturalmente individualistas saibam ou<br />

possam sentir.<br />

“Monitorei as experiências que foram feitas com você, e usei suas<br />

memórias e as da matriarca para escrever a peça de teatro, considerada<br />

por ela mesma uma ótima manobra de dissimulação, de interação com os<br />

humanos. Na verdade foi uma manobra minha para dissimular meu próprio<br />

desespero. Eu precisava fazer alguma coisa para passar o tempo, que corria<br />

rápido demais – por mais estranho que seja – e tentar conciliar o que restava<br />

da minha antiga vida humana à minha nova vida como parte... do todo...<br />

sem ficar maluca. Tudo era absurdo e enlouquecedor, mas, mesmo assim, a<br />

sensação de comunhão com os demais era como uma droga que me acalmava<br />

e aplacava a fúria e o horror que eu às vezes sentia.<br />

Por alguns instantes, a jovem mulher silenciou, deixando você a<br />

avaliar sua inacreditável aparência de vinte e poucos anos e os não mais que<br />

doze que correspondiam à sua idade real.<br />

O que eram aqueles reflexos debaixo dos seus olhos? Seriam<br />

lágrimas?<br />

Fabian Balbinot<br />

245


O carro continuava balançando, chutando cascalho com os pneus e<br />

fazendo curvas.<br />

Em que fim do mundo tinham vindo parar, afinal?<br />

– Você realmente acreditou naquelas besteiras todas que estavam<br />

escritas nos relatórios da inteligência?<br />

A mão segurando novamente o queixo, você vira o rosto outra vez<br />

para ela. Seu olhar agora reflete apenas tédio.<br />

– Você acredita mesmo que existe um “anti-vampiro”?<br />

É a vez dela deixar de olhar para o caminho cada vez mais pedregoso<br />

e virar o rosto belo e furioso para você.<br />

– Não existe UM “anti-vampiro”. Eu e minhas irmãs, e todos os<br />

ressuscitados, e o sangue venenoso, e tantas outras criaturas que compartilham<br />

suas percepções conosco... nós somos o futuro. Somos o próximo estágio na<br />

escala evolutiva. Nós todos somos o anti-vampiro. Nós todos somos a coisa.<br />

Somos uma nova espécie, uma nova forma de ser. O próximo estágio da vida<br />

na Terra.<br />

“Não existe isso que está escrito nos relatos das casas de espionagem<br />

e inteligência, essa história que o sangue invadiu nossos corpos e nos<br />

dominou, ou nos corrompeu. Não é assim que funciona. Nossa forma<br />

de evolução congrega as diferentes espécies. Dizem que os primeiros de<br />

nossa ninhada foram mamíferos, pequenos roedores, como ratazanas e<br />

esquilos... Sei lá, bichinhos que passaram o gene, a “doença” para animais<br />

maiores, seus predadores, através do sangue. Falam também em aves, e<br />

outros bichos. Realmente não faço a menor ideia de como a coisa evoluiu<br />

dos animais até chegar aos seres humanos, e nem acho que isso tenha<br />

qualquer importância. O que sei é que a inteligência humana nos permitiu<br />

redesenhar nossa própria evolução, e hoje conseguimos nos reproduzir de<br />

forma artificial. Querendo ou não, somos uma colméia, seres sociais, que<br />

vivem para o todo. E aquilo a que chamamos de todo não é uma criatura,<br />

mas sim uma coletividade. Somos...<br />

O veículo balança e a jovem dá diversos giros para lá e para cá no<br />

volante para vencer uma sequência sinuosa de curvas.<br />

Quando o carro estabiliza, você se vê olhando para o vazio.<br />

– Somos uma família – conclui ela.<br />

“E eu gostaria que você fizesse parte dessa nossa família...”<br />

* * * * *<br />

No meio do deserto, dois vultos – você e a pequena jovem que o<br />

acompanhou até ali, e que agora caminha a passos lentos para longe –<br />

aguardam a alvorada que se aproxima.<br />

246 Doença e Cura


“Talvez o mundo não esteja no fim, mas é fato que ele vem<br />

perdendo a graça, e a decência. Tudo o que se vê por aí é feito de lixo e<br />

estrume. Tudo é descartável, imprestável, irrelevante. Os seres humanos<br />

ridículos e mesquinhos, que ampliaram sua ocupação na Terra em dez<br />

vezes durante um século... eles estão destruindo tudo, ambiente, outras<br />

espécies, lugares, inclusive eles mesmos, suas culturas, sua pretensa<br />

sociedade, em troca de uma vida sem sentido, de prazeres fugazes,<br />

confortos e ineptidão, de pressa para se chegar em lugar nenhum, de<br />

crença em ideais controversos e em milagres e deuses que não existem e<br />

que foram inventados apenas para perdoar as extravagâncias da própria<br />

espécie. Há corrupção e decadência em todos os lugares que se olha. A<br />

mentira, o comércio e o logro estão em todo o lugar, nas religiões, nas<br />

políticas, nas leis, nos sistemas. Tudo é torpe, baixo, vil, e não há cura<br />

para os males que a raça humana, que destrói tudo o que toca, vem<br />

espalhando pelo mundo...”<br />

O carro com que se deslocaram até aquele inóspito cenário aguarda,<br />

parado, o motor resfriando, em uma elevação próxima.<br />

Seus cabelos brancos balançam, açoitando seu rosto, enquanto você<br />

se recorda de tudo o que a mulher lhe disse antes de lhe entregar o preparado<br />

e se afastar.<br />

“Tudo isso são os ecos das tantas vozes que inundam minha mente.<br />

Vozes de pobres e ricos, de intelectuais cultos de mentes brilhantes tanto<br />

quanto dos piores entre todos os ignorantes. Minha própria voz não é muito<br />

diferente. Fui criada no gueto, no meio da mais completa imundície, regada<br />

a consumismo, vícios e modismos baratos. Cresci vendo pessoas comprando<br />

roupas feias, pagando para ouvir músicas mal feitas, consumindo cigarros,<br />

bebidas amargas e outros venenos, e tendo carros novos de modelos diferentes<br />

mas que sempre pareciam ser cada vez mais idênticos uns aos outros. Gente<br />

escravizada por estas e outras tantas modas passageiras e caras, buscando<br />

em uma louca e interminável onda de consumo uma felicidade jovial<br />

divulgada como certa por noticiários e anúncios de intervalos comerciais,<br />

que é pura mentira. Pessoas doentes e inúteis mantendo-se vivas às custas<br />

de toneladas de drogas e pessoas sadias tornando-se doentes e inúteis de<br />

propósito, para satisfazer a curiosidade, às custas de umas poucas gramas<br />

de drogas adquiridas com toneladas de dinheiro. Pessoas matando umas às<br />

outras em troca de dinheiro pra acumular, ou para pagar outras pessoas,<br />

apenas pra não serem eliminados por estas, ou mesmo em troca do que<br />

comer, ou por discordâncias e futilidades. Pessoas comprando outras<br />

pessoas em troca de votos ou do seu silêncio. Crimes e leis de enfeite, e<br />

penas de enfeite para crimes reais. Meu mundo na vila pobre parecia mais<br />

com uma espécie de fingimento, e os outros mundos que conheço agora,<br />

herança das milhares de mentes que conheci, não são muito diferentes.<br />

Fabian Balbinot<br />

247


A humanidade inteira é uma grande piada.”<br />

Amassado, o papel pardo que envolvia o pacote que ela recebera do<br />

homem de óculos na cidade é empurrado para longe pelo vento.<br />

Não importa.<br />

Faz tempo que muita coisa deixou de ter importância.<br />

“Tanto para vocês, vampiros, quanto para nós, pouco importam os<br />

males que a praga humana traz para o mundo. O homem que enfrente os<br />

flagelos decorrentes de sua loucura e arque com as consequências de seus<br />

atos desvairados. Até que algo de novo aconteça, vocês continuarão se<br />

alimentando deles e sendo surpreendidos e arrebanhados pelos nossos, na<br />

calada da noite, enquanto o mundo desaba e tudo cai aos pedaços. Somos<br />

ambos predadores, carniceiros uns dos outros, vivemos à espreita, e isso<br />

não vai mudar.”<br />

Você deixa cair um frasco vazio de sua mão, enquanto aguarda os<br />

primeiros raios de um sol que não vê há muito tempo.<br />

O frasco rola pela areia, enquanto gotas de um líquido agridoce<br />

pingam de seu queixo.<br />

“Assim como não foram vocês, sanguessugas, é provável que não<br />

sejamos nós os que irão dominar o mundo e transformar a população<br />

humana em nossos fiéis seguidores, infestando-os com nossos genes e<br />

lobotomizando seus cérebros com nossa influência. Ora, pode até ser que<br />

algo assim aconteça, mas o que sei me faz duvidar disso, pelo menos por<br />

ora. Queremos poder nos alimentar também do sangue humano, e do sangue<br />

de outros seres vivos, assim como queremos desenvolver o sangue que nos<br />

traz vida por vias artificiais, e mais tarde poderemos vir a desejar outras<br />

coisas, ou sermos eliminados. Queremos apenas sobreviver, como qualquer<br />

ser vivo, seguindo nosso instinto. Se espécies inteiras devem ser eliminadas<br />

para que perduremos, que assim seja.”<br />

O líquido preenche seu estômago, atraindo o sangue contaminado<br />

dentro de si como se o sangue fosse a água que se lança de encontro à tampa<br />

aberta de uma pia que esvazia.<br />

“Nós somos UM, e viveremos como um todo, do qual meu lado<br />

humano, sentimental e tolo deseja com alguma avidez que você participe.<br />

Poderemos viver juntos, mesmo não sendo um casal. Não há casais em<br />

nosso jeito de ser. Não há tentativas de relacionamento. Não há flerte, nem<br />

dança, nem bailes com ritmos repetitivos e ensurdecedores que as pessoas<br />

idiotas, drogadas e surdas confundem com música. Para o todo, há apenas<br />

a manutenção da própria espécie por intermédio da caça e da assimilação.<br />

O que nos move é a sobrevivência dos membros, união e convívio de todas<br />

as partes.”<br />

O sol surge lento no horizonte.<br />

Você sabe o que está acontecendo de verdade. O que é real.<br />

248 Doença e Cura


Ou pelo menos, uma certa parte do que é real.<br />

Provavelmente a única parte que tem real importância.<br />

“Foda-se a humanidade, as espécies, o futuro. Meu último querer<br />

humano é ter você, aquele que me despertou, comigo, antes que venha o<br />

esquecimento e apenas a voz da coletividade reste.”<br />

Você sabe o que está acontecendo, e sabe que talvez a experiência não<br />

tenha o resultado esperado pela menina que ainda tenta fingir desejá-lo.<br />

E você sabe que ela também tem consciência do possível fracasso no<br />

resultado de tal experimento.<br />

Você sabe que as mudanças não vão parar por aqui.<br />

O domínio poderá estar apenas começando.<br />

Poderá sim existir a escravidão, o massacre, a extinção. São<br />

possibilidades reais, em se levando em conta a capacidade de autodestruição<br />

humana, e as amplas possibilidades de domínio do anti-vampiro, da nova<br />

espécie, em relação aos vampiros, e a todo o resto.<br />

Espécies mais fortes sempre predominam sobre as mais fracas.<br />

Assim funciona a natureza. O forte permanece, até tornar-se fraco, e<br />

sucumbir.<br />

...<br />

O sol surge imponente, um disco de fogo e luz brotando e crescendo<br />

no horizonte.<br />

Centenas de anos depois, você o encara, corajoso, sentindo seu calor,<br />

sua fúria escaldante que arde e queima sua pele.<br />

Respirando fundo, você fecha os olhos, e torce para que o tormento<br />

seja breve.<br />

Fabian Balbinot<br />

249


250 Doença e Cura<br />

Epílogo<br />

Apesar de ser inverno, e a temperatura estar beirando o zero grau, o<br />

homem magro e calvo encontra-se sentado em sua velha cadeira de praia<br />

reclinável, diante da comprida mesa que ocupa boa parte de seu quarto.<br />

Enquanto termina de devorar os farelos do interior de um barulhento<br />

pacote plástico de batatas-fritas, lambendo o tempero acumulado nos dedos<br />

como se eles próprios fizessem parte do cardápio, ele assiste a um DVD em<br />

sua TV LCD de vinte e poucas polegadas, localizada à esquerda da mesa. Ao<br />

centro, uma tela de computador, também de LCD, com algumas polegadas a<br />

menos que a TV, além de teclado, mouse, e uma série de cabos de USB, com<br />

terminais de diversos formatos, lembrando tentáculos, uns brancos, outros<br />

pretos, surgindo de algum ponto por trás do monitor. À direita na grande<br />

mesa, uma grande impressora do tipo que também tira cópias, e logo a frente<br />

desta, um pequeno laptop branco, com um monitor com MUITAS polegadas<br />

a menos que a TV, desligado.<br />

Imagens de belas mulheres nuas e das partes mais íntimas de belas<br />

mulheres nuas vão sendo intercaladas na tela de descanso do computador.<br />

Por sobre a mesa há outras coisas, canetas, lápis, tesoura, uma espátula<br />

para remover grampos, e outros badulaques de escritório. Pacotes coloridos<br />

e reflexivos de outros tipos de salgadinhos – já devidamente esvaziados –<br />

repousam na frente da TV, ao lado de uma pilha de caixas de DVD, uma<br />

xícara de chá ainda fumegante, quatro controles remotos de diferentes feitios<br />

e tonalidades, uma grossa garrafa térmica plástica, e uma contrastante maçã,<br />

acomodada sobre um lenço vermelho dobrado, todos esses componentes<br />

dispostos de forma a não atrapalharem a visão da TV.<br />

Absorto com o filme, cuja trilha sonora é cuspida em dolby surround<br />

de alto volume pelas grandes caixas acústicas espalhadas pelas prateleiras<br />

e estantes que rodeiam praticamente todo o quarto-escritório, onde algumas<br />

peças de roupa jogadas se confundem com um ora confuso, ora organizado<br />

estoque de mercadorias dispostas em inúmeras caixas de papelão, o homem<br />

magro e calvo sequer cogita relembrar tudo o que passou até chegar àquele<br />

instante sublime que lhe permitiria desfrutar de um filme em DVD em uma<br />

TV boa e não tão barata, com uma aparelhagem de som potente.<br />

Próxima da mesa, uma cama até bem arrumada, coberta de norte a sul<br />

por um grosso cobertor xadrez, a cabeceira disposta junto à única parede que<br />

ainda estava livre do assédio das prateleiras e armários.<br />

Sim, pois o quarto daquele homem magro e calvo é também seu<br />

escritório, seu local de trabalho, e de descanso.<br />

Exceto pelas luzes do filme na TV, das fotos de mulheres na tela do<br />

computador, e dos tantos leds que espocavam lá e cá, no aparelho de som,<br />

nos modems de internet e em outros tantos aparelhos inquietos e cintilantes,<br />

o quarto-escritório está escuro.


Colocando o terceiro pacote de salgadinhos vazio sobre a mesa, o<br />

homem magro e calvo sente a barriga começar a doer. Ele pega a xícara<br />

e toma um comprido gole de chá, sem lembrar que este mesmo quarto,<br />

um pequeno casebre de quatro paredes feito de tijolos à vista pintados de<br />

branco, localizado nos fundos da casa de sua família, já foi um depósito de<br />

quinquilharias, e antes disso uma oficina de costura para sua falecida mãe.<br />

Agarrando e cravando os dentes na maçã, ele sente o sabor adocicado<br />

da polpa contrastando com o sal e os temperos naturais e sintéticos dos<br />

alimentos industrializados. Ele arranca um pedaço da fruta e o mastiga, seus<br />

sucos diluindo os aromas anteriores, as cascas promovendo uma espécie de<br />

limpeza em sua boca e dentes.<br />

Então algo atrai sua atenção, fazendo-o parar de mastigar.<br />

Um ruído, algo ainda mais dolby surround do que os barulhos e vozes<br />

do filme.<br />

Desconfiado, ele estica um braço e agarra um dos controles remotos,<br />

pressionando um botão que baixa o volume do som que o cerca, fazendo<br />

com que o bombardeio de ruídos e vozes do filme se afaste para todos os<br />

lados.<br />

O ruído que vem do lado de fora...<br />

Passos? Batidas?<br />

… torna-se bem nítido.<br />

– Mas que merda...<br />

Com o cenho franzido pela contrariedade, o homem magro e calvo<br />

levanta-se da cadeira e aperta o botão de outro controle remoto, suspendendo<br />

o avanço do filme.<br />

Depois de dar alguns passos em direção a um ponto escuro situado à<br />

esquerda de onde está a TV, ele estica o braço, e o próximo botão que aperta<br />

é o interruptor de luz, que acende as duas compridas lâmpadas fluorescentes<br />

penduradas no centro do teto.<br />

As pancadas no lado de fora cessam assim que a luz é acesa, mesmo<br />

que as grossas cortinas de lona plástica cinzenta impeçam que qualquer luz<br />

atravesse a janela para o lado de fora.<br />

Uma larga porta metálica cinza surge junto com a luz, à esquerda do<br />

interruptor. Uma chave é girada, depois uma maçaneta, e em segundos a<br />

porta está aberta, jogando a luz das lâmpadas para o exterior da casinhola.<br />

Corajoso e senhor de si, o homem magro e calvo cruza a porta e<br />

perambula pelo exterior, pisando na grama que há em frente a sua habitação<br />

provisória, a parede da casa grande a recebê-lo à esquerda, figueiras<br />

desfolhadas e laranjeiras com folhas e frutas maduras à direita.<br />

Longe da potência das duas fluorescentes do quarto, ainda assim a luz<br />

da lua consegue expor as coisas do terreno.<br />

Gatos e gambás além de algumas ratazanas ocasionais sempre tinham<br />

sido visitantes habituais dos arredores daquela sua pequena toca durante o<br />

Fabian Balbinot<br />

251


período da noite, ao passo que, de dia, pássaros de todos os tipos esforçavamse<br />

para dar cabo das frutas das árvores e dos insetos do gramado, fazendo uma<br />

agradável algazarra de tantos pios e trinados quantos se pudesse imaginar.<br />

Nunca se ouviu falar de qualquer outra coisa que pudesse ter entrado<br />

naquele terreno, pelo menos depois que ele se mudara para ali, e seu negócio<br />

maluco de vendas pela internet, feito às pressas como uma forma de protesto<br />

contra uma sucessão de empregos e serviços free-lancer nas mais diversas<br />

áreas, que nunca lhe tinham rendido nada substancioso, começara a dar<br />

resultado. Um cachorro insuspeito, talvez. Ladrões? Não, nunca. A casa da<br />

família na frente, a alta cerca de grade metálica em redor, uma muralha<br />

gigantesca erguida por um vizinho ao lado, e o matagal espesso do terreno<br />

dos fundos funcionavam como verdadeiras barreiras, impedindo o acesso às<br />

dependências de sua pequena fortaleza.<br />

Grilos esfregam as asas, cricrilando invisíveis uns para os outros.<br />

Um cheiro estranho paira no ar...<br />

– Malditos gatos...<br />

Sacudindo a cabeça, o homem magro e calvo vira-se de volta para a<br />

porta iluminada de seu casebre.<br />

Então ele acaba vendo a coisa...<br />

Algo no chão, refletindo a luz da lua.<br />

Escorrendo.<br />

Uma trilha de água, atravessando a estreita calçada que circunda seu<br />

pequeno aposento.<br />

Curioso, ele se dirige...<br />

Cheiro esquisito... gostoso... meio adocicado...<br />

… para a brilhante trilha líquida, agachando-se para examiná-la.<br />

Não é água. Parece ser algo bem mais espesso.<br />

O cheiro... agridoce... mais forte...<br />

Ele olha fixamente o cordão líquido luminoso que...<br />

… tão vivo...<br />

Cheiro de vagina molhada... cheiro de sexo...<br />

... se desloca pelo piso de concreto, e que parece ser tão brilhante...<br />

… incrível...<br />

Deus... o cheiro... enlouquecedor...<br />

…<br />

O sabor...<br />

… inigualável...<br />

...<br />

* * * * *<br />

Próximas dali, em meio às árvores, encobertas por uma carga<br />

sobrenatural de sombras e silêncio que permite que possam ver e ouvir apenas<br />

252 Doença e Cura


uma à outra, duas figuras observam o homem magro e calvo colar o rosto no<br />

chão de cimento e lamber a trilha de sangue de um modo desajeitado, uma<br />

grosseira alegoria de um cão sorvendo a água de uma poça.<br />

Nenhum dos vultos demonstra qualquer emoção.<br />

Se fosse em outra época, talvez um deles sorrisse, sentindo-se<br />

satisfeito, do alto de seus quase dois metros de altura.<br />

Alimentar-se nunca fora tão fácil, ele poderia imaginar, enquanto<br />

amarraria seus longos cabelos brancos em um coque.<br />

Mas os tempos são outros, e hoje, mudado, aquele ser não pensa em<br />

mais nada que não a própria sobrevivência.<br />

A perpetuação do todo, através da dádiva.<br />

A dádiva de sangue, modificada por intermédio de sua própria<br />

influência.<br />

Invisível para o mundo, mas não para ele, a outra entidade encoberta<br />

nas sombras, sua companheira, começa a se deslocar, e sem pestanejar, o<br />

Deus das Sombras a acompanha, o círculo de vácuo seguindo a ambos.<br />

Ele já sabe o que irá acontecer ao humano que se delicia com o líquido<br />

vivo no piso, mesmo antes do dia clarear.<br />

Ele sabe como seu próprio sangue agirá, assimilando e agrupando<br />

célula por célula do sangue quente do desafortunado, abandonando o corpo<br />

seco no final do processo.<br />

Ele sabe também que, ao contrário do que se sucedia aos possantes e<br />

duráveis vampiros, os humanos não apresentavam nenhuma resistência ao<br />

furto de sua vida.<br />

Ao contrário dos vampiros, que se enfureciam, enlouqueciam, e<br />

matavam quem estivesse por perto, os humanos simplesmente morriam.<br />

E era exatamente isso que aconteceria ao pobre coitado que ele e sua<br />

companheira naquele instante abandonavam.<br />

Sua isca de sangue, capaz de atrair humanos, era bem mais impiedosa e<br />

mortal do que a isca de seus antecessores, capaz de atrair apenas vampiros.<br />

Vampiros como ele próprio já havia sido, durante muitos séculos.<br />

Desviando dos obstáculos pelo caminho, o Deus das Sombras se<br />

afasta de mais esta vítima.<br />

São tantos e tantos humanos a empestear o mundo.<br />

Não vai fazer a menor diferença se mais um deles for encontrado<br />

morto devido a uma anemia ou hemorragia no decorrer da noite.<br />

Se fosse em outra época, talvez ele sorrisse diante das tantas ironias<br />

do mundo.<br />

No entanto, nada mais importava para o Deus das Sombras.<br />

Fazia tempo que muita coisa tinha deixado de ter qualquer<br />

importância...<br />

Fabian Balbinot<br />

253


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