VÁRIAS HISTÓRIAS Machado de Assis - a casa do espiritismo
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acostuma<strong>do</strong> com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços,<br />
médicos, remédios, ares, to<strong>do</strong>s os recursos e to<strong>do</strong>s os paliativos. Mas<br />
foi tu<strong>do</strong> vão. A <strong>do</strong>ença era mortal.<br />
Nos últimos dias, em presença <strong>do</strong>s tormentos supremos da moça, a<br />
ín<strong>do</strong>le <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> subjugou qualquer outra afeição. Não a <strong>de</strong>ixou<br />
mais; fitou o olho baço e frio naquela <strong>de</strong>composição lenta e <strong>do</strong>lorosa<br />
da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e<br />
transparente, <strong>de</strong>vorada <strong>de</strong> febre e minada <strong>de</strong> morte. Egoísmo<br />
aspérrimo, faminto <strong>de</strong> sensações, não lhe per<strong>do</strong>ou um só minuto <strong>de</strong><br />
agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só<br />
quan<strong>do</strong> ela expirou, é que ele ficou aturdi<strong>do</strong>. Voltan<strong>do</strong> a si, viu que<br />
estava outra vez só.<br />
De noite, in<strong>do</strong> repousar uma parenta <strong>de</strong> Maria Luísa, que a ajudara a<br />
morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velan<strong>do</strong> o cadáver,<br />
ambos pensativos; mas o próprio mari<strong>do</strong> estava fatiga<strong>do</strong>, o médico<br />
disse-lhe que repousasse um pouco.<br />
— Vá <strong>de</strong>scansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei <strong>de</strong>pois.<br />
Fortunato saiu, foi <strong>de</strong>itar-se no sofá da saleta contígua, e a<strong>do</strong>rmeceu<br />
logo. Vinte minutos <strong>de</strong>pois acor<strong>do</strong>u, quis <strong>do</strong>rmir outra vez, cochilou<br />
alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas<br />
pontas <strong>do</strong>s pés para não acordar a parenta, que <strong>do</strong>rmia perto.<br />
Chegan<strong>do</strong> à porta, estacou assombra<strong>do</strong>.<br />
Garcia tinha-se chega<strong>do</strong> ao cadáver, levantara o lenço e contemplara<br />
por alguns instantes as feições <strong>de</strong>funtas. Depois, como se a morte<br />
espiritualizasse tu<strong>do</strong>, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse<br />
momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombra<strong>do</strong>; não<br />
podia ser o beijo da amiza<strong>de</strong>, podia ser o epílogo <strong>de</strong> um livro<br />
adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo <strong>de</strong> maneira<br />
que lhe não <strong>de</strong>u ciúmes nem inveja, mas <strong>de</strong>ra-lhe vaida<strong>de</strong>, que não é<br />
menos cativa ao ressentimento.<br />
Olhou assombra<strong>do</strong>, mor<strong>de</strong>n<strong>do</strong> os beiços.<br />
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver;<br />
mas então não pô<strong>de</strong> mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos<br />
não pu<strong>de</strong>ram conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas<br />
<strong>de</strong> amor cala<strong>do</strong>, e irremediável <strong>de</strong>sespero. Fortunato, à porta, on<strong>de</strong><br />
ficara, saboreou tranqüilo essa explosão <strong>de</strong> <strong>do</strong>r moral que foi longa,<br />
muito longa, <strong>de</strong>liciosamente longa.<br />
Várias Histórias<br />
<strong>Macha<strong>do</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Assis</strong><br />
Trio em Lá Menor<br />
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