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MARCUS, o imortal<br />

Coelho De Moraes 1


MARCUS, o imortal<br />

Direitos <strong>de</strong> Cópia para<br />

Cecília Bacci & Guilherme Giordano<br />

ceciliabaccibscm@yahoo.com.br<br />

menuraiz@hotmail.com<br />

FATECmococa<br />

produtoresin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes@yahoo.com.br<br />

Coleção BROCHURAS & <strong>PDF</strong>s & ESPIRAIS<br />

Revisão e Correções<br />

Professora Ana Maria Zeferino<br />

Capa COELHO DE MORAES<br />

coelhod<strong>em</strong>oraes@terra.com.br<br />

Selo Editorial FATECmococa<br />

Registrado e Catalogado<br />

na Biblioteca Municipal e Mococa<br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mococa<br />

São Paulo<br />

2009<br />

Coelho De Moraes 2


MARCUS, o imortal<br />

UM ENCONTRO COM ALBERTO MAGNUS<br />

Para<br />

Rose Braga<br />

Coelho De Moraes 3


MARCUS, o imortal<br />

OPUS 1<br />

Sim. Eu tenho mais <strong>de</strong> 800 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, mas qu<strong>em</strong> me conhece não pensa<br />

<strong>de</strong>ssa forma. A única coisa que me dá um ar <strong>de</strong> diferença é a bengala com castão <strong>de</strong><br />

prata herdada <strong>de</strong> meus avós, gente escondida <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos arcaicos, quando as nuvens da<br />

Ida<strong>de</strong> nublavam ainda mais todo o conhecimento.<br />

O texto <strong>de</strong> Alberto Magnus chegou às minhas mãos por uma <strong>de</strong>ssas curiosas<br />

coincidências, apesar <strong>de</strong> que eu s<strong>em</strong>pre estive a colecionar objetos que montass<strong>em</strong> uma<br />

m<strong>em</strong>ória secreta dos eventos <strong>de</strong> nossas vidas.<br />

Sim. Os meus oitocentos e vinte e tantos anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> me fizeram r<strong>em</strong>ontar ao<br />

século 13, quando conheci Alberto. Abro tais atas com episódios daquele t<strong>em</strong>po.<br />

Ele andava pelos campos, escrevendo e pesquisando. Pena e nanquim s<strong>em</strong>pre<br />

fizeram parte <strong>de</strong> sua vida, da mesma forma que ervas e púcaros <strong>de</strong> beberagens. Era<br />

incansável.<br />

Alberto Magnus Lucius, eis o seu nome completo. Não me l<strong>em</strong>bro se era 1.245<br />

ou 48. Encontrei-o quando estava <strong>em</strong> Paris e o Mestre terminava <strong>de</strong> anotar um conjunto<br />

<strong>de</strong> escritos após palestrar para Acadêmicos sobre Secreta Mulierum. Um encontro numa<br />

estalag<strong>em</strong> que ren<strong>de</strong>u provas <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s, mas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s inimiza<strong>de</strong>s também.<br />

Algumas <strong>de</strong>ssas levaram a assassinatos. Eu era jov<strong>em</strong>, não mais do que vinte e três<br />

anos, e vinha para estudar as Artes Médicas.<br />

E aí começará a história.<br />

OPUS 2<br />

A epístola preliminar <strong>de</strong> seus trabalhos <strong>em</strong> França, se b<strong>em</strong> me l<strong>em</strong>bro, são<br />

consi<strong>de</strong>rações acerca dos infortúnios da magia para os fracos.<br />

- Caro Marcus – assim ele me chamava – é necessário aceitar o fato <strong>de</strong> que toda a ação<br />

recebe uma reação e aqui não vai nada <strong>de</strong> novo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Hermes Trimegistus.<br />

- Sim, Mestre.<br />

- Portanto, toda vez que um mago interferir no equilíbrio, ou no fluxo, ou ainda interferir<br />

na organização da natureza, haverá uma reação. O mago não é onisciente. Muitas vezes<br />

o mago pensa que po<strong>de</strong> mais do que realmente po<strong>de</strong>.<br />

- Acredito nisso.<br />

- Daí as concepções errôneas <strong>de</strong> Mago Branco e Mago Negro. São valores relativos. Pois<br />

b<strong>em</strong>, caro Marcus, pois b<strong>em</strong>. Ciente disso, o mago <strong>de</strong>ve se preparar mental e fisicamente<br />

para o <strong>em</strong>bate, que na maior parte das vezes não é espiritual, n<strong>em</strong> espectral... mas<br />

puramente somático. O mago po<strong>de</strong> sofrer ações <strong>em</strong> seu corpo que precisa resistir. Se o<br />

corpo estiver enfraquecido a mente não agüentará o <strong>em</strong>bate.<br />

Tais eram alguns dos ensinos <strong>de</strong> Alberto Magnus.<br />

Caminhávamos pelas alamedas cobertas <strong>de</strong> lama, tendo Alberto com o braço<br />

amigavelmente <strong>em</strong> meus ombros, como dois companheiros trovadores e taberneiros. E,<br />

<strong>em</strong> meio a ensinamentos, ele apontava estradas e montes e dizia <strong>de</strong> outras lendas<br />

compl<strong>em</strong>entares aos nossos estudos e aos t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> perseguição obstinada... Ele falou<br />

certa vez sobre Calatin, a qu<strong>em</strong> procuravam por todos o portos da Europa, l<strong>em</strong>brando <strong>de</strong><br />

histórias antigas, portanto, postas <strong>em</strong> dúvida: “- Por aqui passou Calatin, um estranho <strong>de</strong><br />

orig<strong>em</strong> cigana, dos eslavos, que conhecia fragmentos do Oculto e os usava para obter<br />

suas vantagens”. E <strong>em</strong> seguida retornava para as aulas e direcionamentos na senda do<br />

esoterismo. Mas, na verda<strong>de</strong>, o meu respeito s<strong>em</strong>pre continuava imenso pelo Gran<strong>de</strong><br />

Alberto.<br />

Naquela mesma época, um padre originário <strong>de</strong> Antuérpia, um tal master<br />

Wickerscheimer, negociou com Alberto umas palestras <strong>em</strong> Erfurt. Era tar<strong>de</strong> chuvosa e ele<br />

saiu com sua charrete protegida, partindo <strong>em</strong> viag<strong>em</strong>. Fiquei no seu cargo para ministrar<br />

aulas fundamentais aos iniciados no estudo da Pedra Filosofal – assunto <strong>em</strong> que eu era<br />

aprendiz, ainda - seguindo passos do trabalho <strong>de</strong> Tomás <strong>de</strong> Aquino. Uma obra <strong>de</strong>dicada<br />

ao irmão Reinaldo, provavelmente um dos irmãos da Ord<strong>em</strong> dos Irmãos Predicadores.<br />

Nessa oportunida<strong>de</strong> me realizei, permitindo aos alunos um estudo <strong>de</strong> importância<br />

para suas vidas, com base nas lições <strong>de</strong> Hermes, O Três Vezes Gran<strong>de</strong>, O Três Vezes<br />

Mestre, O Três Vezes Mago.<br />

Coelho De Moraes 4


MARCUS, o imortal<br />

Enquanto Alberto esteve fora, pu<strong>de</strong> visitar outras Escolas e participei <strong>de</strong> uma<br />

série <strong>de</strong> reuniões secretas para se <strong>de</strong>cidir, <strong>em</strong> um nível <strong>de</strong> oculto, sobre o fingir-se<br />

ignorar a ambivalência do sagrado e do maldito no domínio religioso, apesar das<br />

evidências claras, mesmo no estudo do Genesis Bíblico. Essas palestras e reuniões se<br />

fizeram sob o manto da noite, pois todos estávamos fugindo dos espiões papistas.<br />

L<strong>em</strong>bro que uma jov<strong>em</strong> muito atenta aos estudos – <strong>em</strong> nosso meio o número <strong>de</strong><br />

mulheres s<strong>em</strong>pre foi maior do que o <strong>de</strong> homens - dizia: “Se a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> crescer e<br />

multiplicar é uma bênção para o hom<strong>em</strong> e a mulher, a primeira maldição só é dada às<br />

mulheres: Multiplicareis o número <strong>de</strong> partos” e hoje, perto <strong>de</strong> oitocentos e trinta anos, eu<br />

vejo que a incapacida<strong>de</strong> da espécie humana para regular sua proliferação é a mais<br />

terrível maldição que paira sobre a humanida<strong>de</strong>.<br />

- A mãe é um mistério – dizia Sonja, a jov<strong>em</strong> que estudava conosco.<br />

- É o aspecto sombrio da mãe, isso <strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre dar à luz, s<strong>em</strong> parar.<br />

- Conseqüências coletivas e materiais... <strong>de</strong>sastres, e falta <strong>de</strong> alimento... por isso os<br />

homens nos culpam. A blasfêmia recai sobre nós e isso é cômodo.<br />

- Mas, Sonja, as civilizações tradicionais...<br />

- ... por causa da menstruação, a substância da mulher aparece como que ligada ao<br />

mundo por uma magia noturna e os padrecos nos impõ<strong>em</strong> responsabilida<strong>de</strong>s por uma<br />

influência espiritual malévola - ela me toca no queixo, gentilmente – o próprio Alberto é<br />

muito severo com isso. Pergunte a ele.<br />

Tive que ouvir e calar. Essas mulheres nos dão lições constantes. Apesar <strong>de</strong><br />

ser<strong>em</strong> providas <strong>de</strong> útero e ser<strong>em</strong> loucas, era evi<strong>de</strong>nte, a cada dia uma nova diretriz<br />

brotava nas reuniões. Sonja li<strong>de</strong>rava essa turma <strong>de</strong> jovens.<br />

OPUS 3<br />

O mensageiro me trás uma correspondência.<br />

Não fosse o nevoeiro da manhã e ele tertia chegado mais cedo, como me disse,<br />

enquanto bebia água das ânforas bentas.<br />

Abro-a. É <strong>de</strong> Alberto . O Lúcius <strong>de</strong> seu nome é a luz que nos ilumina diariamente.<br />

Durante todo aquele dia molhado eu estudara o texto e o coloquei na lista <strong>de</strong><br />

leituras da noite. Eu escrevera para Alberto no sentido <strong>de</strong> elucidar umas dúvidas<br />

pen<strong>de</strong>ntes, principalmente sobre o assunto das mulheres. Os homens se fingiam <strong>de</strong><br />

doutos e pouco perguntavam. Viam que a agilida<strong>de</strong> das moças era tal que os poria para<br />

os cantos escuros da sala <strong>de</strong> estudo. Alberto respon<strong>de</strong>u: “Quanto àqueles que receb<strong>em</strong> a<br />

mulher na comunhão diária, <strong>em</strong> nossa opinião, merec<strong>em</strong> severa censurados: pelo uso<br />

d<strong>em</strong>asiado freqüente que possam fazer <strong>de</strong>la, eles são culpados <strong>de</strong> que a Santa Eucaristia<br />

perca o respeito que lhe é <strong>de</strong>vido. As mulheres têm outra visão da coisa. De resto o<br />

<strong>de</strong>sejo que as mulheres têm da comunhão é mais resultado da sua superficialida<strong>de</strong> do<br />

que <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>voção. As mulheres, no culto, se interessam pela <strong>de</strong>voção à<br />

gran<strong>de</strong> Mãe, ou Deusa. Para elas, a Deusa continua entronizada, enquanto nós, pássaros<br />

<strong>de</strong> Maria, ficamos a adorar o que é simplesmente Maya, ou a ilusão”.<br />

Tar<strong>de</strong>zinha.<br />

- Me dá aqui isso – Sonja tomou a carta <strong>de</strong> minha mão. Fiquei meio constrangido. Ela<br />

percebeu e me <strong>de</strong>u um beijo no rosto. Sonja sorria.<br />

- Gostou do que v<strong>em</strong> escrito?<br />

- É magnífico – Sonja correu para a sala e releu a carta. As mulheres exultaram. Os<br />

homens ficaram com certo ar <strong>de</strong> incredulida<strong>de</strong>. Nesse momento, as portas laterais se<br />

abriram e, após o ranger <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras, vimos o Bispo <strong>de</strong> Montpellier entrar com um<br />

séqüito <strong>de</strong> soldados e outros padres. Várias pessoas se ajoelharam. As mulheres não.<br />

N<strong>em</strong> eu.<br />

- Qu<strong>em</strong> é responsável pela reunião? Mestre Alberto está aqui? – a voz esganiçada do<br />

soldado ecoou na sala. Eu me aproximei.<br />

- Eu sou responsável pelas aulas e essa é uma classe <strong>de</strong> medicina, senhor.<br />

- Medicina... – falou Montpellier, enxugando o rosto molhado <strong>de</strong> suor, apesar do úmido<br />

t<strong>em</strong>po – o estudo da sabedoria <strong>de</strong> Galeno e Hipócrates, pois b<strong>em</strong>. Mas chegamos <strong>em</strong> um<br />

momento <strong>em</strong> que uma <strong>de</strong>ssas... mulheres... falava... e... – olhando para mim – ... elas<br />

têm esse direito?<br />

- O senhor Bispo b<strong>em</strong> sabe que nas classes <strong>de</strong> Mestre Alberto todos são b<strong>em</strong> recebidos...<br />

inclusive...<br />

- Até o clero – disse Sonja, que não se continha. Os soldados se moveram <strong>em</strong> torno do<br />

Coelho De Moraes 5


MARCUS, o imortal<br />

Bispo que a olhou <strong>de</strong> cima abaixo.<br />

- E... o que é que liam, se é que posso saber?<br />

- Líamos uma carta <strong>de</strong> Alberto. Ele está <strong>em</strong> Antuérpia, para estudos – disse eu, tentando<br />

contornar a situação e evitando qualquer tipo <strong>de</strong> confronto. Aquela não era uma boa<br />

hora para isso. Os sinos <strong>de</strong> NotreDame repicaram. O Bispo olhou com estranheza ao<br />

repicar dos sinos. Alguns estudantes se benzeram. O Bispo não se <strong>de</strong>u por vencido e,<br />

observando os bordados da seda <strong>em</strong> seu lenço, que dobrava carinhosamente, disse:<br />

- Cont<strong>em</strong> para mim... o que está escrito na carta – parecia um pedido , mas na verda<strong>de</strong><br />

era uma ord<strong>em</strong>. Peguei a carta das mãos <strong>de</strong> Sonja, fazendo questão <strong>de</strong> colocar a moça<br />

atrás <strong>de</strong> mim, querendo torná-la invisível. Abri a voz e repeti todo seu conteúdo e, à<br />

medida que eu lia, o rosto <strong>de</strong> Montpellier se abria <strong>em</strong> sorriso.<br />

- Ah! Muito sábio o Mestre Alberto – disse o Bispo – muito sábio <strong>em</strong> colocar as mulheres<br />

<strong>em</strong> seu <strong>de</strong>vido lugar. S<strong>em</strong>pre soube que seguia os ensinamentos paulinos. – Senti que<br />

Sonja se movia atrás <strong>de</strong> mim. Ela s<strong>em</strong>pre foi inquieta. O Bispo dava continuida<strong>de</strong> à sua<br />

explanação como se a aula fora <strong>de</strong>le: - Haveria maior paz na Terra se não fosse a<br />

Mulher, que nos leva para o pecado e para a intolerância...<br />

- Não me parece isso o que diz o texto, se me permite o senhor Bispo.<br />

- Não, não permito nada – e os soldados se moveram novamente e me <strong>de</strong>u a impressão<br />

que levavam as mãos ao punho das espadas. Senti que Sonja segurou meu braço – N<strong>em</strong><br />

sei por que um jov<strong>em</strong> como o senhor recebe a permissão para ministrar aulas... Alberto<br />

<strong>de</strong>ve ter se equivocado nesse ponto, ou, qu<strong>em</strong> sabe, trata-se um treino... mas a mim<br />

parece claro o que diz esse texto, seguindo o ensinos <strong>de</strong> Paulo e colocando a Mulher no<br />

seu <strong>de</strong>vido lugar <strong>de</strong> mãe e seguidora do pátrio po<strong>de</strong>r. Nada mais!<br />

- Senhor Bispo – eu disse, mas fui tolhido novamente pelas mãos <strong>de</strong> Sonja, segurando<br />

minha capa.<br />

- Sim...?<br />

- Mais alguma coisa? O senhor gostaria <strong>de</strong> nos ensinar mais alguma coisa? – Montpellier,<br />

com um travo <strong>de</strong> orgulho crispado nos lábios olhou-me e repassou o lenço no pescoço. O<br />

seu anel episcopal brilhou suav<strong>em</strong>ente contra a luz <strong>de</strong> can<strong>de</strong>eiros que tínhamos. Ele<br />

negou com a cabeça. Segundos <strong>de</strong> silêncio. Os estudantes estão mudos. Os soldados<br />

esperam.<br />

O Bispo olha para todos e fixa seu olhar <strong>em</strong> Sonja.<br />

- Evit<strong>em</strong> as reuniões noturnas... ler sob a luz do can<strong>de</strong>eiro faz mal para os olhos... e para<br />

a saú<strong>de</strong> da mente também.<br />

Imediatamente virou-se e partiu com seu séqüito barulhento. Quando a porta bateu,<br />

respiramos com intensida<strong>de</strong>. Sonja me tomou com as mãos segurando meu rosto.<br />

- Pensei que você comentaria o sentido oculto do texto.<br />

- Montpellier nos poria na fogueira.<br />

- Amanhã conversar<strong>em</strong>os sobre isso – ela disse – com todos. Mestre Alberto enviou uma<br />

carta muito radical. Um parágrafo apenas e o texto é <strong>de</strong> uma importância revolucionária<br />

s<strong>em</strong> igual.<br />

- N<strong>em</strong> sei se todos aqui aceitarão esse Tratado <strong>de</strong> Comunhão – eu falei – Acredito que<br />

ter<strong>em</strong>os inimigos entre nós... principalmente os mais enraizados nos dogmas da Fé.<br />

- Os estudantes não foram selecionados <strong>em</strong> testes e provas intensas? – ela perguntou.<br />

- Foram – eu falei – porém, <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados momentos o medo aflora e po<strong>de</strong> haver<br />

<strong>de</strong>sistências. Na verda<strong>de</strong>, as tais provas e testes nunca são <strong>de</strong>finitivos... enquanto houver<br />

estudantes e enquanto Alberto nos fornecer pérolas e novos ensinamentos... a qualquer<br />

momento po<strong>de</strong> haver qu<strong>em</strong> resolva sair e...<br />

- Na verda<strong>de</strong>... as aulas são testes constantes...<br />

- ... e Mestre Alberto testa seus pupilos até o limite máximo do rompimento com os<br />

valores tradicionais... inclusive eu...<br />

- Amanhã <strong>de</strong>bater<strong>em</strong>os... provavelmente ter<strong>em</strong>os mudanças <strong>em</strong> nosso grupo <strong>de</strong><br />

estudantes. Acredito que todas as mulheres estarão do lado <strong>de</strong> Mestre Alberto... e <strong>de</strong> seu<br />

lado também, Marcus. – Sonja disse com convicção expressiva.<br />

Olhei para ela. As luzes dos can<strong>de</strong>eiros e <strong>de</strong> algumas velas piscaram nos seus<br />

olhos. As pessoas se preparavam para sair. D<strong>em</strong>os os últimos cumprimentos e Sonja<br />

partiu <strong>em</strong> sua charrete ao lado <strong>de</strong> mais quatro jovens estudantes. Eu sabia que o Tratado<br />

da Comunhão traria contrarieda<strong>de</strong>s e nos colocaria mais visados ainda ante o po<strong>de</strong>r<br />

papal, tendo Montpellier como braço <strong>de</strong> ferro.<br />

Coelho De Moraes 6


MARCUS, o imortal<br />

Dobrei cuidadosamente os escritos, amarrei-os numa bolsa <strong>de</strong> couro e olhei a<br />

noite cair.<br />

OPUS 4<br />

A lua <strong>de</strong>sapareceu. Nada se via, n<strong>em</strong> nas cida<strong>de</strong>s e n<strong>em</strong> nas matas. Todos<br />

sabíamos que eram noites <strong>de</strong> Lilith atingindo seu máximo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>. Eu sabia que não<br />

veria Sonja durante a s<strong>em</strong>ana toda e, quando a visse novamente, ela estaria um tanto<br />

mudada, lev<strong>em</strong>ente mudada e cansada.<br />

O Sol e a Lua, o macho e a fêmea combat<strong>em</strong>. Um confronto <strong>de</strong> opostos on<strong>de</strong><br />

cada princípio oponente <strong>de</strong>tém o seu oposto.<br />

Há necessida<strong>de</strong> do uso <strong>de</strong> escudos.<br />

Durante noites e madrugadas as mulheres <strong>de</strong>batiam sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

instalar<strong>em</strong> um governo f<strong>em</strong>inino para o mundo. Elas mesmas diziam que o domínio do<br />

dia pertencia aos machos e o domínio da noite pertencia às fêmeas. Dois tipos <strong>de</strong> clareio:<br />

o <strong>de</strong> luz e o <strong>de</strong> fogo.<br />

Excelentes noites. E eram aquelas, antes do sumiço t<strong>em</strong>porário das mulheres,<br />

excelentes noites on<strong>de</strong> ainda tiv<strong>em</strong>os t<strong>em</strong>po para os <strong>de</strong>bates do Tratado da Comunhão.<br />

E isso trouxe o cisma.<br />

- Quanto àqueles que receb<strong>em</strong> a mulher na comunhão... – falava para a escola, como<br />

<strong>de</strong>batedora, Sonja, com sua voz contralto b<strong>em</strong> postada - ... serão os padres ou serão os<br />

que se acoitam com as mulheres?<br />

- Certamente o Tratado <strong>de</strong> Comunhão nos fala dos aspectos do sacramento – opinou o<br />

estudante Borgausen.<br />

- Nada disso – foi a vez <strong>de</strong> Tomasina – esse texto é profano e fala da sexualida<strong>de</strong>.<br />

Àquele que recebe <strong>em</strong> comunhão... não a comunhão com hóstias, a não ser que<br />

cham<strong>em</strong>os nosso aparelho genital <strong>de</strong> animalzinho a ser imolado ao senhor macho –<br />

todos riram. Tomasina s<strong>em</strong>pre teve bom humor. Borgausen fechou o s<strong>em</strong>blante. S<strong>em</strong>pre<br />

foi o mais intolerante.<br />

- Tomasina está certa. A escrita é cheia <strong>de</strong> símbolos e <strong>de</strong> maneira a contentar os<br />

religiosos. Protegendo-nos <strong>de</strong> alguns insanos. Escapando <strong>de</strong> uma interpretação que nos<br />

traga probl<strong>em</strong>as. Viram quando Montpellier concordou com Mestre Alberto? – falei.<br />

- E Mestre Alberto passava uma mensag<strong>em</strong> secreta.<br />

- Mas isso é um sacrilégio duplo. O assunto escrito e a maneira <strong>de</strong> fazê-los passar por um<br />

tipo <strong>de</strong> escrito da Igreja Católica – gritou Cantimpré, filho <strong>de</strong> fidalgos e her<strong>de</strong>iro <strong>de</strong><br />

fortunas, quase se alterando.<br />

- O que o incomoda, Sr. <strong>de</strong> Cantimpré? – perguntei.<br />

- O fato <strong>de</strong> Mestre Alberto ir longe d<strong>em</strong>ais.<br />

- Até on<strong>de</strong> será esse longe d<strong>em</strong>ais? O senhor terá uma medida da distância?<br />

- Até on<strong>de</strong> é permitido ir? – perguntou Tomasina – A distância dos homens será igual à<br />

das mulheres?<br />

- Não vou questionar a doutrina Paulina – resmungou Cantimpré.<br />

- A doutrina Paulina nos manda obe<strong>de</strong>cer ao hom<strong>em</strong> da casa – foi a posição <strong>de</strong><br />

Tomasina, cobrindo-se com seu xale azul, que tinha <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> luas <strong>em</strong> suas várias<br />

formas e faces – Estamos propondo um governo <strong>de</strong> iguais. Excluindo o que chamamos o<br />

“hom<strong>em</strong> da casa”.<br />

- A distância do hom<strong>em</strong> o leva para fora. A distância da mulher a<strong>de</strong>ntra o corpo –<br />

replicou Sonja.<br />

- Amigos – falei – o texto é claro. Mestre Alberto não nega que o casal se ame. Ele<br />

apenas sugere que seja todos os dias para que não se perca o valor <strong>de</strong>ssa comunhão.<br />

- Mas ele não po<strong>de</strong> comparar Santa Eucaristia com sexo – gritou Thorndike.<br />

- É claro que po<strong>de</strong>. Ele t<strong>em</strong> todo o direito.<br />

- O sexo como Santa Eucaristia? – foi a vez <strong>de</strong> Borgausen.<br />

- Sangue, corpo e nossa alma, ou nossa ânima, <strong>em</strong> função do amor <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> e mulher?<br />

Valorizar esse amor?–questionou Sonja.<br />

- O que os preocupa é a mistura dos t<strong>em</strong>as ou o fato <strong>de</strong> usar palavras que normalmente<br />

usamos na Igreja para referendar outras idéias? Digo a vocês que as palavras não são<br />

proprieda<strong>de</strong>s da Igreja. S<strong>em</strong>pre usar<strong>em</strong>os quaisquer palavras para propagar ou explicar<br />

nossas idéias – expliquei.<br />

- E o <strong>de</strong>sejo que as mulheres têm da comunhão é mais resultado <strong>de</strong> sua superficialida<strong>de</strong><br />

do que <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>voção... – Sonja fez uma pausa na sua leitura - ... os<br />

Coelho De Moraes 7


MARCUS, o imortal<br />

senhores <strong>de</strong>veriam agra<strong>de</strong>cer pelas sugestões aqui contidas... são sugestões que<br />

permitirão que homens e mulheres tenham uma vida mais saudável...<br />

- É claro que quer<strong>em</strong>os a comunhão... mas não com um fim <strong>em</strong> si, pois sab<strong>em</strong>os que o<br />

produto <strong>de</strong>ssa comunhão é uma possível gravi<strong>de</strong>z... – esclareceu Tomasina - ... não<br />

pod<strong>em</strong>os querer a comunhão como <strong>de</strong>votas, n<strong>em</strong> como se fosse a nossa condição<br />

obrigatória... quer<strong>em</strong>os a comunhão, sim... mas que não seja nada profundo a ponto <strong>de</strong><br />

nos trazer a gravi<strong>de</strong>z e que não seja o t<strong>em</strong>po todo, <strong>de</strong>svalorizando o que sentimos e nos<br />

pondo <strong>em</strong> riscos <strong>de</strong> concepção...<br />

- Na verda<strong>de</strong> – opinei – a Igreja as quer grávidas, pois o controle é maior e mais eficaz.<br />

De outra forma, quanto maior o número <strong>de</strong> crianças, mais os senhores feudais terão<br />

braços para uso <strong>em</strong> suas terras... isso me parece claro...<br />

- Você está misturando tudo, Marcus, cuidado – foi a opinião <strong>de</strong> Borgausen – vá com<br />

mais calma. Política é uma cousa. Medicina é outra. Religião...<br />

- O engano é <strong>de</strong> vocês. Esses t<strong>em</strong>as todos se misturam. O fato é que isso é real – eu<br />

disse e vi Borgausen, Cantinpré e Thorndike conversar<strong>em</strong> a sós e balançar<strong>em</strong> suas<br />

cabeças <strong>em</strong> <strong>de</strong>saprovação. Por outro lado, as mulheres ampliavam seus discursos e<br />

discutiam ativamente aqueles pontos. Terminamos a noite ali, naquele estado <strong>de</strong> dúvida<br />

que torna a mente um tanto adoentada, sabendo que o assunto ainda merecia muito<br />

<strong>de</strong>bate e, permitindo o caminho das outras idéias que ainda viriam. A partir <strong>de</strong> então não<br />

mais veríamos as mulheres, que se preocupavam com seus afazeres da Lua Nova.<br />

Vimos a charrete <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong>saparecer nas brumas. Cães ladravam. Volta e<br />

meia um vulto passava sobre nossas cabeças e nos surpreendíamos pelo tamanho do<br />

pássaro. A<strong>de</strong>java com força e <strong>de</strong>sprendimento.<br />

Seriam As Aves <strong>de</strong> Aristófanes?<br />

Daquele dia <strong>em</strong> diante, os três rapazes que não concordaram com o discurso <strong>de</strong><br />

Mestre Alberto Magnus não apareceram mais para as aulas. Não estavam no burgo,<br />

tampouco. Na taberna não se ouviu mais falar <strong>de</strong>les e da universida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> moravam,<br />

soube-se que <strong>de</strong>sapareceram s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar vestígios, ou melhor, os únicos vestígios<br />

<strong>de</strong>ixados eram suas roupas e livros que nos pareceram esquecidos nos quartos. A<br />

impressão é que <strong>de</strong>pois daquela noite eles não teriam retornado aos seus aposentos.<br />

Recebi, um dia, uma outra carta, escrita <strong>em</strong> papel pardacento, feito <strong>em</strong> casa,<br />

dizendo que sabiam do para<strong>de</strong>iro dos jovens. Carta s<strong>em</strong> assinatura.<br />

Especialmente naquela s<strong>em</strong>ana os ventos foram mais vigorosos e os animais se<br />

mostravam muito mais irritados. A poeira das ruas era tanta que impedia à pessoa andar<br />

nelas à noitinha.<br />

Minha opinião é que o mundo estava muito barulhento naqueles dias e o que eu<br />

mais ouvia eram gargalhadas esporádicas, perdidas e soltas, trazidas pelo vento... ecos<br />

<strong>de</strong> cavernas e murmúrios <strong>de</strong> árvores.<br />

Sonhava com Sonja, quase s<strong>em</strong>pre. E eram sonhos cálidos.<br />

OPUS 5<br />

A s<strong>em</strong>ana s<strong>em</strong> a presença das jovens era s<strong>em</strong>pre um período diferente. Após a<br />

interferência <strong>de</strong> Montpellier e as idéias expostas, perceb<strong>em</strong>os que Cantimpré e os outros<br />

se mostraram estranhos. Mas, naquela s<strong>em</strong>ana, n<strong>em</strong> a presença <strong>de</strong>les trouxe a relativa<br />

constância dos encontros. Os jovens haviam <strong>de</strong>saparecido completamente com uma<br />

certeza que caía como pedra. As notícias não eram claras. Muito boato e conversa solta<br />

dissipavam-se no interior das casas e albergues, junto a lareiras e círculos <strong>de</strong> pessoas<br />

medrosas.<br />

Todos, na verda<strong>de</strong>, sabíamos para on<strong>de</strong> iam as mulheres, mas notamos que<br />

várias vezes, <strong>em</strong> datas passadas, os três rapazes se ausentavam, no mesmo período,<br />

na s<strong>em</strong>ana negra, preferent<strong>em</strong>ente à noite e saíam com seus cavalos para a floresta.<br />

Da última vez, segundo a carta que eu recebera, eles saíram e la<strong>de</strong>aram carroças<br />

<strong>de</strong> soldados. Ou seja, nessa vez os estudantes pediram reforço policial. A polícia do clero.<br />

Suas manobras <strong>de</strong> espionag<strong>em</strong> pareciam bastante claras. Tirando a coincidência <strong>de</strong> que<br />

se escondiam sob as sombras da Lua Negra, os alunos nunca nos convidavam para essas<br />

investidas.<br />

Em geral, a s<strong>em</strong>ana negra, a s<strong>em</strong>ana s<strong>em</strong> as mulheres, era escolhida por nós,<br />

para experiências <strong>em</strong> laboratórios. Principalmente as experiências alquímicas, b<strong>em</strong> como<br />

estudo dos atributos das ervas e substâncias naturais <strong>de</strong> vários tipos. A busca do po<strong>de</strong>r<br />

oculto que faria uma substancia <strong>de</strong> se tornar curativa. Era até normal que, após a<br />

Coelho De Moraes 8


MARCUS, o imortal<br />

s<strong>em</strong>ana negra, as mulheres, ao voltar<strong>em</strong>, nos trouxess<strong>em</strong> vegetais, minerais e<br />

substâncias orgânicas <strong>de</strong>sconhecidas para novos experimentos e testes variados. Um<br />

grupo compl<strong>em</strong>entava o outro, apesar <strong>de</strong> nunca perguntarmos frontalmente para on<strong>de</strong><br />

elas iam. Isso ficava como um segredo entre nós.<br />

Sabíamos qu<strong>em</strong> eram e o que eram aquelas jovens.<br />

Aumentava o fascínio e isso nos bastava.<br />

Recebi outra epístola <strong>de</strong> Alberto, também. Ele aconselhava, pedia<br />

ve<strong>em</strong>ent<strong>em</strong>ente, que tivéss<strong>em</strong>os cuidado com as idéias expostas, com as idéias que<br />

ainda chegarão e com as pessoas que ouviss<strong>em</strong> tais idéias. Ele nos estimula ao trabalho.<br />

Pe<strong>de</strong> apoio ao trabalho <strong>de</strong> Sonja. Na carta há um alerta, pois há matéria publicada <strong>em</strong><br />

seu nome que não lhe cabe n<strong>em</strong> <strong>em</strong> pensamento n<strong>em</strong> <strong>em</strong> estilo. Ele cita o “Líber<br />

Aggregationis”, por ex<strong>em</strong>plo, e o “De Marabilibus Mundi” que são falsos flagrantes cujo<br />

estilo não acorda com os outros seus escritos. Na verda<strong>de</strong>, são os mais miseráveis livros<br />

produzidos pelo obscurantismo e o autor <strong>de</strong>sses textos n<strong>em</strong> se <strong>de</strong>u ao trabalho <strong>de</strong> imitar<br />

Alberto.<br />

Então, ouvi o barulho <strong>de</strong> carroças entrando no burgo.<br />

- São os dominicanos – gritou Pietro <strong>de</strong> Ferrara.<br />

- Esse pessoal é <strong>de</strong> uma ord<strong>em</strong> nova e já mostra serviço – <strong>de</strong>clarou Alexandrino, o<br />

menor.<br />

- São <strong>de</strong> Toulouse. Essa Ord<strong>em</strong> <strong>de</strong> Dominicanos apareceu <strong>em</strong> 15. É nova mesmo – eu<br />

disse – Fundaram a Ord<strong>em</strong> para a luta contra os albigenses.<br />

- Mas já existiam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1206 – exclamava LaCordaire.<br />

- Não! Engano. O que existia era a Ord<strong>em</strong> Cont<strong>em</strong>plativa das Dominicanas, fundada por<br />

Domingos, o Castelhano.<br />

- Ele foi pessoalmente lutar contra os albigenses? – perguntou Pietro.<br />

- Sim. Após a confirmação da sua Ord<strong>em</strong> por Honório III, ele partiu para o Languedoc<br />

com essa missão – eu expliquei, tendo que aumentar um pouco a voz, pois uma fieira <strong>de</strong><br />

cavalos e carroças passava sob nossas janelas, levantando poeira e afastando a<br />

população. Alexandrino, o Menor, tinha <strong>de</strong>zessete anos e uma curiosida<strong>de</strong> imbatível. Não<br />

tinha família. Des<strong>de</strong> criança vivia na Universida<strong>de</strong> e agora estava cursando conosco. Mas<br />

ainda sabia pouco.<br />

- E qu<strong>em</strong> são esses albigenses? - ele perguntou.<br />

- São da cida<strong>de</strong> Albi, no Sul da França – eu falei.<br />

- São também conhecidos como Cátaros – gritou Pietro, pendurado numa escada e<br />

olhando a rua lá <strong>de</strong> cima. Desceu rapidamente quando o grupo <strong>de</strong> cavaleiros se afastou<br />

a<strong>de</strong>ntrando o burgo.<br />

- E por que os Dominicanos lutaram contra? – perguntou Alexandrino.<br />

- Porque – prontamente me pus a explicar – eles eram seguidores da seita maniqueísta.<br />

Essas idéias vê<strong>em</strong> <strong>de</strong> Maniqueu, <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> persa, e pregam austerida<strong>de</strong> total e proibição<br />

do casamento. As comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fiéis eram dirigidas pelos consi<strong>de</strong>rados puros... ou<br />

cátaros.<br />

- Só isso?<br />

- Os cruzados foram li<strong>de</strong>rados por Simão IV <strong>de</strong> Monfort... – e um sorriso apareceu no<br />

rosto <strong>de</strong> Pietro - ... e esse Simão, pio e católico, saqueou Carcassone e Béziers... os<br />

albigenses foram <strong>de</strong>rrotados <strong>em</strong> Toulouse e Muret.<br />

- E qual é o probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong>ssa seita? Era tão nociva assim? – perguntava LaCordaire – Que<br />

tanto mal po<strong>de</strong>ria trazer para nós?<br />

- Acontece, LaCordaire – retomei a palavra – que Maniqueu explicava a criação do<br />

mundo como que uma luta entre duas forças. A do B<strong>em</strong> e a do Mal. Um princípio<br />

essencialmente bom simbolizado pela Luz. O outro princípio essencialmente mal<br />

simbolizado pelas Trevas – refleti um momento – ... e há qu<strong>em</strong> diga que a Luz existe<br />

apenas para iluminar a escuridão... mas, mesmo para um hábil observador domingueiro,<br />

caos estava no princípio das coisas e dos t<strong>em</strong>pos... escuridão ou trevas já existia <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o começo dos t<strong>em</strong>pos... as trevas vêm na frente.<br />

- Mas... por que se luta contra eles se a Igreja Católica prega o mesma?<br />

- Não. Ela prega que o mundo foi criado pelo princípio essencialmente bom. Os<br />

Maniqueístas afirmam que os dois princípios são as fontes <strong>de</strong> criação do Universo – falei.<br />

- E você b<strong>em</strong> sabe como é que funciona a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento <strong>em</strong> nossas terras,<br />

não é mesmo LaCordaire? – brincou Pietro <strong>de</strong> Ferrara, enquanto folheava displicente<br />

alguns livros.<br />

Coelho De Moraes 9


MARCUS, o imortal<br />

- Agora – eu completava – esta seita v<strong>em</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século terceiro <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Cristo, ou<br />

seja, é tão antiga quanto a Igreja Católica, que nasceu na mesma época. Portanto, há<br />

uma luta por espaço político e por domínio nas searas religiosas.<br />

- E o que os Dominicanos estarão fazendo aqui, hoje?<br />

- Isso eu não sei. Talvez alguma nova missão. Talvez algum foco albigense <strong>em</strong> Paris.<br />

Talvez... – meu pensamento se levou para Sonja e durante alguns momentos eu me<br />

<strong>de</strong>ixei sonhar com a leveza da jov<strong>em</strong> - ... talvez.... procuram algum outro tipo <strong>de</strong><br />

perturbação da fé...<br />

- É melhor retornarmos aos estudos – <strong>de</strong>clarou LaCordaire, após a fria pausa – t<strong>em</strong><br />

muito trabalho pela frente e eu não quero per<strong>de</strong>r minha bolsa.<br />

Em segundos estávamos <strong>de</strong>bruçados sobre a tábua <strong>de</strong> experimentos. Era um<br />

bom grupo. Sentimos a falta <strong>de</strong> Thorndike, Cantimpré e Borgausen, pois eram argutos<br />

estudantes, mas eles já faltaram outras vezes, coinci<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente durante as s<strong>em</strong>anas<br />

negras, como já foi dito. Tínhamos a obrigação <strong>de</strong> manter o trabalho <strong>em</strong> andamento,<br />

apesar <strong>de</strong> tudo. Lição maior era nunca perguntar muito pela vida dos estudantes.<br />

Discrição total.<br />

Há histórias que não pod<strong>em</strong> ser contadas.<br />

Há idéias que não pod<strong>em</strong> ser reveladas. E o véu da noite caiu sobre nós.<br />

OPUS 6<br />

Vento. Gritos. O povo dizia que as almas estavam libertas, mas não falavam<br />

sobre isso muito alto. Então a lua <strong>de</strong>sapareceu. A lua negra se estabeleceu <strong>em</strong> nossas<br />

noites e, junto ao vento, podíamos ouvir uivos alternados com risadas e rasgos <strong>de</strong> pavor.<br />

No começo era a Iniciação. A carne nada valendo, mas mantendo seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> estímulo<br />

e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r; a mente nada valendo também, a não ser que valorizáss<strong>em</strong>os ao extr<strong>em</strong>o os<br />

assuntos da m<strong>em</strong>ória e da sutileza. L<strong>em</strong>brei da fatal história <strong>de</strong> Calatin, o cigano. Um<br />

estr<strong>em</strong>ecimento atingiu meu corpo e por pouco eu não caio, amparando-me nos batentes<br />

da porta <strong>de</strong> carvalho.<br />

Mas, tudo aquilo passou. A s<strong>em</strong>ana teve fim e pela manhã, um sol cálido abriu o<br />

céu. Muita névoa doce. O aroma da floresta era claro e <strong>de</strong>finido, trazendo valores <strong>de</strong><br />

fogueira e carne queimada.<br />

- Aquilo que é <strong>de</strong>sconhecido, <strong>em</strong>bora firm<strong>em</strong>ente baseado sobre o seu equilíbrio, dá<br />

vida.<br />

Virei-me. Era Sonja e as moças. Tomasina, Clara e Beatrix. Cansadas, pálidas,<br />

um tanto alheias, tendo os rostos macilentos, o ar <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> não conseguiu dormir. Havia<br />

certo nervosismo naqueles jovens s<strong>em</strong>blantes.<br />

- Boa dia, moças– vi que sentaram-se nos tamboretes e passaram a brincar com frascos<br />

– parece que vocês traz<strong>em</strong> novida<strong>de</strong>s.<br />

- Marcus, estamos cansadas.<br />

- Isso eu vejo.<br />

- Então fica um pouco calado – disse rispidamente Clara. Elas se entreolharam. Algo<br />

estava errado. Ou muito certo. Talvez o errado fosse eu. Pietro <strong>de</strong> Ferrara não se<br />

conteve:<br />

- Calma, jovens. Marcus não acusou ninguém. Só perguntou. Se quiser<strong>em</strong> que fech<strong>em</strong>os<br />

nossas bocas, assim o far<strong>em</strong>os. Façamos <strong>de</strong> conta que nada ocorreu.<br />

- Marcus – era Sonja – preciso conversar com você. É minha obrigação.<br />

- A hora que <strong>de</strong>sejar.<br />

- Agora, então.<br />

Fomos para a biblioteca. E o que ouvi foi estarrecedor. Ela começava com um<br />

preâmbulo místico, b<strong>em</strong> ao sabor das arengas universitárias. Aprendi com Alberto que<br />

<strong>de</strong>veria ter a máxima paciência. O que podia vir daí era pior do que per<strong>de</strong>r algum t<strong>em</strong>po<br />

com a introdução.<br />

- Em todos os sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> religião <strong>de</strong>ve ser encontrado um sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Iniciação, que<br />

po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finido como o processo pelo qual se chega a apren<strong>de</strong>r sobre aquela Coroa,<br />

aquela sabedoria, o âmago <strong>de</strong>sconhecido. E nós, mulheres, t<strong>em</strong>os o nosso. Você sabe<br />

que quando nos afastamos na Lua Negra, vamos praticar o nosso sist<strong>em</strong>a religioso...<br />

- Sei... não discuto isso.<br />

- Bom. – ela fez uma pausa contun<strong>de</strong>nte como que a refletir e pensar se <strong>de</strong>veria se abrir<br />

- Embora ninguém possa comunicar o conhecimento ou o po<strong>de</strong>r para realizar isto que<br />

Coelho De Moraes 10


MARCUS, o imortal<br />

nós pod<strong>em</strong>os chamar a Gran<strong>de</strong> Obra, é, todavia, possível que os iniciados gui<strong>em</strong> outros,<br />

e nós mulheres t<strong>em</strong>os que ter o maior cuidado com as nossas práticas. T<strong>em</strong>os que<br />

obe<strong>de</strong>cer aos nossos dogmas e, enfim, proteger a nossa integrida<strong>de</strong>, com todas as<br />

forças. – ela assim falava enquanto <strong>de</strong>slizava seus <strong>de</strong>dos sobre a lombada dos livros<br />

inúmeros.<br />

- Todos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> superar seus próprios obstáculos – eu falei.<br />

- Expor suas próprias ilusões. Suas verda<strong>de</strong>s, seus t<strong>em</strong>ores. Porém, outras pessoas<br />

pod<strong>em</strong> ajudá-lo a fazer ambos, como você v<strong>em</strong> fazendo conosco... como o Gran<strong>de</strong><br />

Alberto faz com todos nós... e os Mestres pod<strong>em</strong> tornar-nos completamente aptos a<br />

evitar muitos dos falsos caminhos que não levam a lugar algum.<br />

- Isso tudo t<strong>em</strong> a ver com Cantimpré e os rapazes?<br />

- Sim... infelizmente t<strong>em</strong> – ela disse e um arrepio passou por mim. Imediatamente<br />

l<strong>em</strong>brei das palavras <strong>de</strong> Alberto: “Deve-se assegurar que tudo seja <strong>de</strong>vidamente provado<br />

e testado, pois há muitos que pensam ser<strong>em</strong> Mestres, os quais sequer começaram a<br />

trilhar o Caminho do Serviço, que para lá conduz”.<br />

- Estávamos <strong>em</strong> meio aos trabalhos da nossa Gran<strong>de</strong> Obra. O momento da Iniciação<br />

havia chegado... a s<strong>em</strong>ana era importante d<strong>em</strong>ais... o clima propício... as mulheres<br />

estavam aptas. - Fiz menção para falar, mas ela tapou minha boca com as mãos e<br />

apertou minha boca, quase chorando que estava por dores e anseios <strong>de</strong> sua alma.<br />

- Escuta. Ouve, eu e as meninas rogamos, ouve com atenção: pois apenas uma vez a<br />

Gran<strong>de</strong> Ord<strong>em</strong> bate à porta <strong>de</strong> alguém. E era o nosso momento. Não podíamos permitir<br />

nenhuma interferência. Nenhuma... Ninguém po<strong>de</strong>ria conhecer qualquer uma <strong>de</strong> nós e<br />

sair ileso <strong>de</strong>sse encontro. Até mesmo nós, m<strong>em</strong>bros da Ord<strong>em</strong>, jamais po<strong>de</strong>ríamos<br />

conhecer uma a outra, até que também tivéss<strong>em</strong>os atingido a Maestria.<br />

- Os rapazes seguiram vocês – eu disse. Ela aquiesceu. Escon<strong>de</strong>u o rosto com as mãos.<br />

Balançou a cabeça como se quisesse afastar os pensamentos.<br />

- Um passo irrevogável – ela completou.<br />

OPUS 7<br />

Eu e Sonja nos viramos imediatamente por causa do barulho. Carruagens. Fomos<br />

para o salão das aulas. Todos estavam preocupados. Segui para as janelas <strong>de</strong> vitrais<br />

venezianos e vi um aglomerado entre povo, clérigos e soldados. Traziam carroças e,<br />

sobre elas, corpos. Olhei atônito para meus companheiros. Procurei os olhos <strong>de</strong> Sonja.<br />

Ela acudia suas amigas. Beatrix tinha <strong>de</strong>sfalecido, pois adivinhava algo. Pietro <strong>de</strong> Ferrara<br />

disse que iria ver o que estava acontecendo e partiu. Uma garoa leve começou a <strong>de</strong>scer<br />

sobre a terra das ruas, prejudicando o caminho. Vi Pietro se aproximar e percebi que ele<br />

sentia algo como um choque. Conversou com algumas pessoas. Os cavalos relinchavam,<br />

muitos gritavam, or<strong>de</strong>ns eram dadas e os soldados <strong>de</strong>sapareciam pelas vielas. Quando<br />

notei que um dos militares mais autorizados apontava na direção da Universida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sci<br />

da escada e chamei as mulheres.<br />

- Vocês têm que sair daqui. Já!<br />

- Ir para on<strong>de</strong>? – Sonja perguntou.<br />

- Agora eu não sei. Mas não pod<strong>em</strong> ficar – rapidamente tomava dos objetos das<br />

mulheres e as impelia para a rua, pela porta traseira.<br />

- Explique-se, Marcus – insistiu Alexandrino, o Menor – assim s<strong>em</strong> mais n<strong>em</strong> menos?<br />

- Depois... <strong>de</strong>pois... elas sab<strong>em</strong>... poucos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> saber...<br />

Um barulho terrível me pareceu quando a porta se abriu e Pietro entrou<br />

esbaforido. Seus olhos saltavam das órbitas. O cabelo <strong>em</strong> <strong>de</strong>salinho. Arfava. Tomou da<br />

água e gritou:<br />

- Estão mortos! Thorndike, Cantimpré e Borgausen, estão mortos. Horrivelmente mortos.<br />

- Do que é que está falando ?– disse LaCordaire.<br />

- Mortos. Catimpré está <strong>de</strong>sfigurado, s<strong>em</strong> meta<strong>de</strong> da cabeça, s<strong>em</strong> miolos... Borgausen<br />

t<strong>em</strong> perfurações <strong>em</strong> lugar <strong>de</strong> olhos... parece que a boca foi amarrada com barbante,<br />

costurada... o outro ficou s<strong>em</strong> os m<strong>em</strong>bros, braços, pernas... e sexo...<br />

Olhei para Sonja. Ela olhou para mim e baixou sua cabeça. O trotar dos cavalos<br />

nos acordou do pasmo e corr<strong>em</strong>os <strong>em</strong> direção à rua. Saímos, atarantados, s<strong>em</strong> rumo,<br />

carregando o que podíamos pegar pelo caminho. Empurrei as mulheres para o bosque<br />

que se estendia perto. Elas corriam <strong>em</strong> <strong>de</strong>sabalada carreira.<br />

Coelho De Moraes 11


MARCUS, o imortal<br />

Voltei. Quando entrava <strong>de</strong> volta na Universida<strong>de</strong> notei que os cavalos dos<br />

soldados estavam também lá <strong>de</strong>ntro, <strong>de</strong>struindo tudo <strong>em</strong> redor, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> mesas a vidros e<br />

papéis.<br />

- On<strong>de</strong> estão as bruxas?<br />

- Aqui não há bruxas.<br />

- Vou repetir! On<strong>de</strong> estão as mulheres!?<br />

- Elas partiram há uma s<strong>em</strong>ana e ainda não voltaram – gritei como resposta. O soldado<br />

ao meu lado <strong>de</strong>u-me uma bofetada.<br />

- Há alguns anos, um número <strong>de</strong> manuscritos cifrados foi <strong>de</strong>scoberto e <strong>de</strong>cifrado por<br />

certos estudantes – a voz falava lá do fundo. Era Montpellier. Ele continuou: - Eles<br />

atraíram muita atenção, pois pretendiam <strong>de</strong>rivar <strong>de</strong> certos outros que se diziam<br />

Rosacruzes. – Um sorriso lhe apareceu aos lábios: - Você prontamente enten<strong>de</strong>rá que a<br />

genuinida<strong>de</strong> da afirmação nada importa, sendo tal literatura julgada por si só, não pelas<br />

fontes que lhe são reputadas. Da mesma forma que ocorre lá na rua. Os jovens<br />

estudantes, seus colegas, mortos... <strong>de</strong> maneira audaciosa... e terrível... e me parece,<br />

durante a S<strong>em</strong>ana Negra.<br />

- Não sei do que está falando.<br />

- Claro que não. Deix<strong>em</strong>-no. O nosso probl<strong>em</strong>a é outro. Deix<strong>em</strong> os outros jovens. O<br />

nosso assunto é com as mulheres. Capitão, vá para as ruas. Eu assinarei um edito <strong>em</strong><br />

que pese sobre as cabeças das mulheres a sentença <strong>de</strong> morte.<br />

Após partir<strong>em</strong> eu comecei a procurar. Entre os manuscritos, estava um que dava<br />

o en<strong>de</strong>reço <strong>de</strong> certa pessoa <strong>em</strong> terras germânicas, por nós conhecida como Gertrud von<br />

Bingen. Teria parentesco com Hil<strong>de</strong>gard, a sóror musicista? Descobrimos as cifras e<br />

cânones e citações, além <strong>de</strong> senhas salmodiadas para po<strong>de</strong>rmos escrever para Gertrud e,<br />

<strong>de</strong> acordo com as instruções recebidas, permitir que uma mensag<strong>em</strong> chegasse a Alberto,<br />

por caminhos alternativos.<br />

- Mas, a regra absoluta dos a<strong>de</strong>ptos é não interferir no julgamento <strong>de</strong> qualquer outra<br />

pessoa, qu<strong>em</strong> quer que seja – disse Alexandrino, o Menor, enquanto arrumávamos<br />

nossas roupas e nos preparávamos para partir <strong>em</strong> jornada.<br />

- Não pod<strong>em</strong>os <strong>de</strong>ixar as mulheres sozinhas. T<strong>em</strong>os <strong>de</strong> encontrar um meio <strong>de</strong> auxiliar as<br />

moças <strong>em</strong> sua fuga.<br />

- Elas fizeram aquilo tudo, Marcus? – perguntou LaCordaire.<br />

- Não sei dizer... Os a<strong>de</strong>ptos que já tenham conhecimento suficiente para capacitar a si<br />

mesmos ou aos seus companheiros, certamente formularão um elo mágico <strong>de</strong> proteção a<br />

esses mesmos a<strong>de</strong>ptos. Não concorda?<br />

- Só não pensei que tudo se precipitasse.<br />

- N<strong>em</strong> eu... talvez n<strong>em</strong> Alberto... <strong>de</strong> qualquer forma – falei – corr<strong>em</strong>os perigo<br />

permanecendo aqui.<br />

- Marcus! – Pietro me chamava – <strong>de</strong>vo anunciar que eu formulei um elo mágico... um<br />

elo <strong>de</strong> proteção... Rituais novos e revisados foram <strong>em</strong>itidos, e conhecimento fresco<br />

jorrou <strong>em</strong> correntes... ou <strong>de</strong>lírios e pesa<strong>de</strong>los sobre nossos... companheiros curiosos...<br />

- O que você quer dizer?<br />

- Eles levaram soldados e a milícia burguesa para a reunião das mulheres... os<br />

beneditinos...<br />

- T<strong>em</strong>os que ir <strong>em</strong>bora agora! Pegu<strong>em</strong> o que conseguir<strong>em</strong>...<br />

Saímos a correr.<br />

OPUS 8<br />

“Nós <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os passar por cima dos infelizes <strong>em</strong>bustes que caracterizaram o<br />

período seguinte. Epístolas que pediam a prisão das mulheres por práticas ilícitas corriam<br />

por todo o Reino Franco. Já se provou totalmente impossível elucidar<strong>em</strong>-se esses fatos<br />

complexos. Nós nos contentamos, pois, <strong>em</strong> observar que a morte dos três colegas, por<br />

inépcia e invasão dos segredos alheios, era questão obrigatória. Os rituais foram<br />

elaborados, na noite anterior, <strong>em</strong> plena Lua Nova, apesar <strong>de</strong> bastante eruditos, <strong>em</strong><br />

prolixo e pretensioso contra-senso: as mulheres, segundo Pietro <strong>de</strong> Ferrara, dançavam e<br />

cantavam. Muitas gritavam a olhos vistos, olhos abertos e cabelos soltos. O<br />

conhecimento se provou s<strong>em</strong> valor, mesmo on<strong>de</strong> estava correto. Rodopiavam seus<br />

corpos <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> fogueiras e tanques on<strong>de</strong> se fervia algo. O aroma era anormal e<br />

muitas vezes Pietro estava tonto e <strong>em</strong> estado febril, ma ele tinha sua missão a cumprir.<br />

É <strong>em</strong> vão que pérolas, mesmo que não tão claras e preciosas, sejam dadas aos porcos,<br />

Coelho De Moraes 12


MARCUS, o imortal<br />

dizia o manuscrito. Quando os cavaleiros apareceram, as mulheres gritaram mais. Os<br />

cavaleiros apearam e partiram para o círculo traçado no chão. Foi como se explodiss<strong>em</strong>.<br />

As mulheres gargalhavam.<br />

Ordálios <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo latejavam os corpos <strong>de</strong> todos. Os jovens estudantes<br />

quiseram a todo custo tomar as companheiras e sujeitá-las, sendo impossível que<br />

qualquer um ali falhasse. Candidatos ina<strong>de</strong>quados foram admitidos, por nenhuma razão<br />

melhor do que a <strong>de</strong> sua prosperida<strong>de</strong> mundana. Porém, não se contava com as forças<br />

invisíveis que protegeram os corpos nus das mulheres.<br />

Resumindo. Falharam.<br />

O escândalo surgiu e, com ele, o cisma. Vieram a público os corpos <strong>de</strong>stroçados<br />

dos jovens. O po<strong>de</strong>r estabelecido se prontificou a sair <strong>em</strong> perseguição. Uma gran<strong>de</strong><br />

repulsa contra o estudo se apo<strong>de</strong>rou daquelas cabeças. O povaréu faria o que o po<strong>de</strong>r<br />

religioso mandasse. Deu-se ínicio à caça. Professores foram presos. Não nos quiseram<br />

pren<strong>de</strong>r, mas pediam a cabeça <strong>de</strong> Alberto. Urgia que ele se mantivesse <strong>em</strong> Erfurt, ou<br />

on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse se escon<strong>de</strong>r. E, para tanto, amiga Gertrud, peço que se afaste um pouco<br />

<strong>de</strong> suas flores e procure Alberto. Eu envio essa carta, com zelo e cuidados, Marcus”.<br />

- Apesar <strong>de</strong> ser erudito <strong>de</strong> alguma habilida<strong>de</strong> e um magista <strong>de</strong> notáveis po<strong>de</strong>res, como<br />

vai a sua iniciação? – perguntou-me curioso Alexandrino, enquanto lavávamos nossas<br />

roupas no rio.<br />

- Eu havia caído <strong>de</strong> meu posto original quando conheci Mestre Alberto e, então, eu<br />

estava impru<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente atraindo para mim forças do mal, gran<strong>de</strong>s e terríveis d<strong>em</strong>ais<br />

para que eu suportasse – levantei-me para olhar a bússola e observar as condições do<br />

t<strong>em</strong>po.<br />

- E o que fazer agora?<br />

- Agora comer<strong>em</strong>os – falou Pietro – peguei raízes e um pouco <strong>de</strong> vegetal. Há tubérculos<br />

saborosos também.<br />

- É isso. – continuei - Não sendo ainda um a<strong>de</strong>pto perfeito fui, <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminado<br />

momento, eu tinha sua ida<strong>de</strong>, mais ou menos, lançado pelo Espírito no Deserto, fiquei<br />

lá por sete anos, estudando à luz da razão os livros sagrados e os sist<strong>em</strong>as secretos <strong>de</strong><br />

iniciação <strong>de</strong> outros povos e gentes. Finalmente, foi-me dado certo grau, pelo qual uma<br />

pessoa se torna o mestre do conhecimento e da inteligência, e não mais seu escravo.<br />

- Nesse caso você percebeu a ina<strong>de</strong>quação da ciência, filosofia e religião; e expôs a<br />

natureza auto-contraditória da faculda<strong>de</strong> do pensamento.<br />

- Sim. Tal era a missão – peguei algumas folhas <strong>de</strong> alface e mastiguei <strong>de</strong>vagar. - Fui à<br />

Bretanha, <strong>de</strong>pois à terra dos Celtas e fui admitido, fraternalmente, <strong>em</strong> um t<strong>em</strong>plo<br />

pequeno.<br />

- Não está escrito que as tribulações serão encurtadas? – disse Pietro. Rimos, para<br />

<strong>de</strong>sanuviar nossas mentes.<br />

- Daí, seguindo diretrizes <strong>de</strong> Alberto Magno, resolvi preparar todas os eventos, gran<strong>de</strong>s e<br />

pequenas, para o dia <strong>em</strong> que a Autorida<strong>de</strong> fosse recebida por todos, já que ninguém<br />

sabia on<strong>de</strong> procurar por a<strong>de</strong>ptos mais elevados, mas sabíamos que o verda<strong>de</strong>iro caminho<br />

para atrair a atenção das forças era equilibrar os símbolos, as sagas, os rituais e os<br />

estudos. O t<strong>em</strong>plo – no caso, a Universida<strong>de</strong> - seria construído antes que a divinda<strong>de</strong><br />

pu<strong>de</strong>sse habitá-lo. – Sorvi uma beberag<strong>em</strong> quente fornecida por LaCordaire. – Daí a<br />

vinda <strong>de</strong> todos vocês... mesmo aqueles jovens que morreram.<br />

- Correu-se muito risco. Preparar toda ciência e sabedoria arcanas, escolhendo apenas<br />

aqueles símbolos que foss<strong>em</strong> comuns a todos os sist<strong>em</strong>as e rigorosamente rejeitando<br />

todos os nomes e palavras que supostamente implicass<strong>em</strong> <strong>em</strong> qualquer teoria religiosa<br />

ou espiritual, era avançar d<strong>em</strong>ais na sabedoria <strong>de</strong> nosso t<strong>em</strong>po, não acham? – perguntou<br />

Alexandrino, o Menor, espantado com o conteúdo das informações que eu passava.<br />

- Mas havia dificulda<strong>de</strong>s maiores. A língua, por ex<strong>em</strong>plo – eu disse - Descobrimos que<br />

toda língua t<strong>em</strong> uma história e o uso, por ex<strong>em</strong>plo, da palavra “espírito” implica na<br />

Filosofia Escolástica e nas teorias Hindu e Taoísta significados concernente à respiração<br />

do Ser Humano.<br />

- Dessa forma trabalhamos com enigmas, textos crípticos, in<strong>de</strong>finições, não é ? –<br />

perguntou LaCordaire.<br />

- Exato – eu disse.<br />

- Não, certamente, para velar a verda<strong>de</strong> ao aprendiz, mas para adverti-lo contra<br />

valorizar o que não é essencial.<br />

Coelho De Moraes 13


MARCUS, o imortal<br />

- Então, que ele não assuma precipitadamente o nome <strong>de</strong> um Deus e que não se refira a<br />

qualquer Deus conhecido, mas somente a um Deus que somente ele mesmo conheça.<br />

- E sobre os rituais? – retornou LaCordaire, me oferecendo raízes secas.<br />

- Que eles pareçam implicar <strong>em</strong> filosofia Egípcia, Taoísta, Budista, Indiana, Persa, Grega,<br />

Judaica, Cristã ou Mulçumana. Que se reflita que isto é um <strong>de</strong>feito da linguag<strong>em</strong>; a<br />

limitação literária e não o preconceito espiritual da humanida<strong>de</strong>.<br />

A noite <strong>de</strong>scia e o frio surgia, mormente perto das águas <strong>de</strong> rios e lagos.<br />

Dormiríamos <strong>em</strong> breve.<br />

- A nós agora, interessa uma fuga <strong>de</strong>finitiva. Se possível procurarmos por Sonja e<br />

Alberto. Cada um <strong>de</strong>les se encontra <strong>em</strong> seu próprio perigo.<br />

- E se nós formos as iscas... já pensou nisso? – perguntou LaCordaire.<br />

- Nós laboramos <strong>de</strong>dicadamente para que jamais sejamos levado a perecer sobre esses<br />

pontos; muitos homens santos e justos foram dizimados. Ninguém aceita o diferente,<br />

inda mais se são conhecedores <strong>de</strong> segredos que a natureza escon<strong>de</strong> <strong>em</strong> suas fórmulas.<br />

Assim, todos os sist<strong>em</strong>as visíveis per<strong>de</strong>ram a essência da sabedoria. Para eles, nós<br />

procuramos revelar o <strong>de</strong>sconhecido e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, o profanamos.<br />

- No entanto – disse Pietro, atiçando a pequena fogueira para nos aquecer - há um<br />

t<strong>em</strong>po certo para o repouso e um t<strong>em</strong>po certo para as fugas. É hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso.<br />

- Partir<strong>em</strong>os na madrugada – eu disse. - Já abandonamos lares, posses, mulheres,<br />

filhos, a fim <strong>de</strong> realizar a Obra. Resta, com tranqüilida<strong>de</strong>, calma e firmeza, abandonar a<br />

própria Gran<strong>de</strong> Obra, neste momento.<br />

- T<strong>em</strong> idéia <strong>de</strong> para on<strong>de</strong> vamos? – perguntou LaCordaire.<br />

- Creio que <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os pedir ajuda a Tomás. Tomás <strong>de</strong> Aquino.<br />

- Mas ele é dominicano. E mora longe...<br />

- Alberto também... ad<strong>em</strong>ais Tomás é seu discípulo, como nós...<br />

Virei para meu lado da floresta e pensei <strong>em</strong> outras possibilida<strong>de</strong>s para nossa<br />

fuga. Para não levantar maior atenção sobre nós era preciso que nos escondêss<strong>em</strong>os no<br />

seio dos inimigos. Dormimos.<br />

OPUS 9<br />

Viajar era uma obra tumultuada.<br />

Caminhávamos lentamente encontrando chuva, lama, montes e povos que ora<br />

nos eram <strong>de</strong>licados, ora não nos queriam por perto. Muita vez foi necessário fugir <strong>de</strong><br />

beatos que viam o d<strong>em</strong>ônio <strong>em</strong> nós. Às vezes outras éramos tomados como braços<br />

papais atrás <strong>de</strong> feiticeiros.<br />

Os Franciscanos nos abrigaram <strong>em</strong> acampamentos, agradavelmente. Era gente<br />

hospitaleira, que nada perguntava. Pouco se falava entre eles, na maior parte do t<strong>em</strong>po.<br />

Em outros momentos não paravam <strong>de</strong> falar, como se foss<strong>em</strong> crianças, brincando pela<br />

relva, pelos matos, nadando, o dia se tornando <strong>em</strong> festa.<br />

A ord<strong>em</strong> dos Franciscanos era nova, relativamente nova. O seu fundador havia<br />

morrido há pouco mais <strong>de</strong> vinte anos e fora canonizado <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> 1229, ou 1230. Mas<br />

o fato é que seu ex<strong>em</strong>plo se espalhou pela Europa e muitos filhos <strong>de</strong> gente fidalga se<br />

entregaram à ord<strong>em</strong>, homens e mulheres, <strong>em</strong> sua maioria jovens, criando cismas e<br />

tormentos para os familiares, portanto, a ord<strong>em</strong> tinha seus a<strong>de</strong>ptos, mas era perseguida<br />

pelos ricos, principalmente.<br />

Durante meses vagamos pelas estradas e no fim, olhando para nossa aparência,<br />

já pensávamos que nos havíamos tornado franciscanos também. Nosso aspecto era<br />

terrível, entre maltrapilho e sujo. Sei que não era uma prática normal o banho, mas eu,<br />

LaCordaire, Alexandrino – o Menor, e Pietro <strong>de</strong> Ferrara sabíamos das benesses da<br />

limpeza e do asseio, que nos livraria <strong>de</strong> males e doenças. Esses e outros conhecimentos<br />

nos legavam apelidos dos mais extravagantes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> simples bruxos a doutores e<br />

professores. Era mister alcançar alguma vila hospitaleira e mudarmos nossa imag<strong>em</strong>.<br />

A meta era permanecermos instalados e ministrar matérias comezinhas, como<br />

álgebra, filosofia... aulas gerais, assim teríamos dinheiro.<br />

Era preciso roupas limpas e um ar próspero. Para alcançar as terras <strong>de</strong> Tomás <strong>de</strong><br />

Aquino, aluno do mestre Alberto, ainda havia t<strong>em</strong>po. Mesmo assim, uma s<strong>em</strong>ana<br />

<strong>de</strong>pois, simpósios e <strong>de</strong>bates, algumas conferências nas vizinhanças e visitas a fidalgos<br />

nos foram a<strong>de</strong>quadas. A vila recebeu, então, a visita <strong>de</strong> cavaleiros. Inúmeros. Eram<br />

cruzados. A poeira levantada e o estrondo das patas dos animais assustaram a todos,<br />

porém os soldados não <strong>de</strong>ram atenção a ninguém, permaneceram quietos, apearam<br />

Coelho De Moraes 14


MARCUS, o imortal<br />

rapidamente e procuraram apoio para alojamento e alimentação. Por sorte o comandante<br />

daquela tropa também era fidalgo e <strong>de</strong> boa estirpe. Em princípio, os soldados não<br />

estavam ali para <strong>de</strong>saten<strong>de</strong>r a gente do burgo. Ouvi que o comandante, ou chefe, um<br />

sujeito imenso, apurado, cabelos encaracolados que <strong>de</strong>sciam pelo capacete, passou a<br />

gritar, quando apeou <strong>de</strong>fronte à estalag<strong>em</strong>:<br />

- Had! Essa noite aqui. Quero que mand<strong>em</strong> um t<strong>em</strong>plário na direção das minhas tropas...<br />

já que elas não pod<strong>em</strong> entrar neste burgo.<br />

- A manifestação <strong>de</strong> Nuit – disse LaCordaire - O <strong>de</strong>svelar da companhia do céu. Não sei<br />

se é um cruzado. Mas po<strong>de</strong> ser um dos cavaleiros da Ord<strong>em</strong> do T<strong>em</strong>plo.<br />

- Certamente o comandante t<strong>em</strong> conhecimentos secretos. Mas, ele me parece estranho<br />

com aquele ar cinzento. Provavelmente seus seguidores também. Curioso mesmo era o<br />

aroma pútrido que, repentinamente, se instalou, sutil, no ambiente.<br />

- Esper<strong>em</strong>os que sim. Pelo menos ter<strong>em</strong>os a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conversar com pessoas<br />

que compreend<strong>em</strong> os mistérios. – LaCordaire se aproximou educadamente do cavaleiro<br />

que retirava o manto com a cruz <strong>de</strong> malta nele estampada. - Senhor, seja b<strong>em</strong> vindo.<br />

Posso invadir sua privacida<strong>de</strong> e perguntar se todo hom<strong>em</strong> e toda mulher é uma estrela?<br />

O cavaleiro olhou para LaCordaire e notei que tinha olhos fundos, cinzentos,<br />

muito frios. A pele um tanto esfarinhada como se fosse pulverizada. Os outros cavaleiros<br />

pareciam do mesmo recorte e feitio. Mesmo o sorriso dado <strong>em</strong> seguida não trouxe maior<br />

calor ao s<strong>em</strong>blante <strong>de</strong>le. Era certo que o cavaleiro enten<strong>de</strong>ra a insinuação e, respon<strong>de</strong>u:<br />

- Todo número é infinito; não há diferença.<br />

Era a senha, a palavra velada, o sinal, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aliança. Ele voltou-se<br />

para seus comandados e disse, <strong>em</strong> alta voz: - Senhores. A vila nos será benfazeja. Há<br />

aqui pessoas com as quais po<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os falar e saber mais <strong>de</strong> alguns mistérios. Pelo<br />

menos, os mistérios que me são permitidos saber.<br />

- Ajuda-me, ó senhor guerreiro da Thebas mística, no meu <strong>de</strong>svelar ante as crenças dos<br />

homens! – saudou Alexandrino, o Menor. E compl<strong>em</strong>entou a saudação com um<br />

movimentar <strong>de</strong> corpo, à guisa <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong>: - Sê tu Hadit, meu centro secreto, meu<br />

coração e minha língua!<br />

- Entr<strong>em</strong>os – ele disse – falar<strong>em</strong>os melhor lá <strong>de</strong>ntro. Certamente obter<strong>em</strong>os pousada por<br />

aqui. E, se nada disso <strong>de</strong>r certo, seguir<strong>em</strong>os para a primeira caverna das cercanias.<br />

A noite caiu lentamente. Era uma fria noite <strong>de</strong> Set<strong>em</strong>bro. A brisa cresceu<br />

e a mataria uivou arbitrariamente, enquanto os animais encontravam espaço nos currais<br />

para <strong>de</strong>scanso. Em momentos o manto noturno cobriu as ruelas da vila. Cães últimos<br />

corriam <strong>de</strong>sarvorados <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> outros cães ou cuidados. No interior da estalag<strong>em</strong> a<br />

lareira aquecia o corpo <strong>de</strong> comando da solda<strong>de</strong>sca. Entre eles o cavaleiro T<strong>em</strong>plário que<br />

conhec<strong>em</strong>os, chamava-se Bernard, <strong>de</strong> Clairvaux, oriundo <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> Toulose. No<br />

entanto Bernardo não me era um nome estranho. Ele se aproximou com um caneco <strong>de</strong><br />

vinho quente e sentou-se no tamborete ao lado:<br />

- Há qu<strong>em</strong> acredite que eu não preciso <strong>de</strong> alimento. – sentou-se pesadamente. Um<br />

aroma estranho nos alcançou. E vocês, jovens... Estão longe da sua terra, então!?<br />

- Em fuga - disse eu – Estamos procurando Tomás <strong>de</strong> Aquino. Os dominicanos nos darão<br />

algumas explicações. Tomás po<strong>de</strong>rá nos ser útil.<br />

- Vocês falaram <strong>de</strong> Alberto, o Gran<strong>de</strong>. Ainda vive? On<strong>de</strong> ele está agora?<br />

- Não sab<strong>em</strong>os, na verda<strong>de</strong>. Tinha partido para Erfurt. Talvez hoje esteja <strong>em</strong> Colônia...<br />

talvez tenha voltado para Paris, talvez tenha fugido, também, não sei.<br />

- Talvez... talvez... – Bernard levou a taça aos lábios secos, ressequidos... – talvez... É...<br />

a fuga parece o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> todos. Seu nome é Marcus, não é? Veja, Marcus! Isto foi<br />

revelado por Aiwass, o ministro <strong>de</strong> Hoor-paar-kraat. Há conhecimentos muito secretos<br />

que n<strong>em</strong> mesmo o mais sábio dos padres e sacerdotes versados no conhecimento<br />

hebraico po<strong>de</strong>rá resolver. Nós pod<strong>em</strong>os! Nós ser<strong>em</strong>os perseguidos. Nós ser<strong>em</strong>os<br />

execrados. Nós morrer<strong>em</strong>os.<br />

- Sim! B<strong>em</strong> o sei.<br />

- Entre nós, T<strong>em</strong>plários, por ex<strong>em</strong>plo, veja a contradição: Há grupos papistas e<br />

antipapistas. Há grupos que <strong>de</strong>sejam a eliminação completa dos s<strong>em</strong>itas. Há outros que<br />

apenas <strong>de</strong>sejam propagar as benesses do Santo Graal – bebeu outro gran<strong>de</strong> gole <strong>de</strong><br />

vinho, como se nunca bastasse – e isso tudo nós quer<strong>em</strong>os <strong>de</strong>scobrir. Quer<strong>em</strong>os<br />

<strong>de</strong>bater, buscar, questionar... e esse é o nosso pecado... parece.<br />

- Eu entendo. E para on<strong>de</strong> cavalgam? Oriente?<br />

- Não. Estamos buscando a Igreja <strong>de</strong> Planès. Sei que há lá uma imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Maria da<br />

Coelho De Moraes 15


MARCUS, o imortal<br />

Catalunha e sab<strong>em</strong>os que <strong>de</strong>la jorra límpida água. É para lá que vamos. Não que isso<br />

signifique algo muito apropriado para mim e <strong>em</strong> meu estado. Mas, como clérigo, espero<br />

que tais águas me façam voltar a<strong>de</strong>quadamente ao meu formato original.<br />

Percebi que algumas pessoas, poucas, que andavam pela sala <strong>de</strong> refeição nos<br />

olhavam com certa curiosida<strong>de</strong>. Bernard passou a falar mais baixo. Eu e meus amigos <strong>de</strong><br />

fuga apenas ouvíamos, <strong>em</strong>bevecidos.<br />

- A Igreja está entre os reinos <strong>de</strong> França e Espanha. No alto dos Pireneus. Há registros<br />

guardados <strong>em</strong> Perpignan, registros legais na antiga capital do Reinado <strong>de</strong> Maiorca que<br />

certo aba<strong>de</strong> – Alberich, se não me engano – recebeu a construção diretamente do Rei,<br />

<strong>em</strong> 1180.<br />

Ao pronunciar estas palavras, coincidência ou não, um vento imenso <strong>de</strong>sdobrou<br />

faces <strong>de</strong> janelas e abriu um par <strong>de</strong> portas. Ban<strong>de</strong>iras tr<strong>em</strong>ularam. Velas se apagaram e<br />

Bernard riu e disse:<br />

- É s<strong>em</strong>pre assim. Efeitos especiais dos incorpóreos. Eles nos segu<strong>em</strong>. No começo nos<br />

assustamos um pouco, mas <strong>de</strong>pois, v<strong>em</strong>os que a algazarra não passa disso. Janelas,<br />

ventos, um pouco <strong>de</strong> fogo... Pirotecnia. Estou acostumado, agora – e sorveu um pouco<br />

mais <strong>de</strong> vinho quente – Mas, como eu dizia, é para lá que vou.<br />

- Sei – disse eu – que os mouros estiveram na Europa e foram expulsos por Charles<br />

Martel. Você não está se referindo à Mesquita, está?<br />

- Sim. Estou. Leia isso, Marcus.<br />

Tomei o papel da mão <strong>de</strong> Bernard. Enquanto isso ele se preocupou <strong>em</strong> procurar<br />

lamparinas. Dizia precisar <strong>de</strong> um pouco mais <strong>de</strong> luz...<br />

- Luz! Eu quero luz! A minha alma precisa <strong>de</strong> luz, - afirmou categórico.<br />

Na carta eu vi escrito: - Adorai então o Khabs, e ve<strong>de</strong> minha luz <strong>de</strong>rramar-se<br />

sobre vós! Que meus servidores sejam poucos e secretos: eles regerão os muitos e os<br />

conhecidos. Estes são tolos que os homens adoram; seus Deuses e seus homens são<br />

tolos. Saí , ó crianças, sob as estrelas, e tomai vossa fartura <strong>de</strong> amor! Eu estou acima <strong>de</strong><br />

vós e <strong>em</strong> vós. Meu êxtase está no vosso. Minha alegria é ver vossa alegria.<br />

Olhei para ele e perguntei som evi<strong>de</strong>nte ar <strong>de</strong> espanto e ignorancia: - E daí?<br />

- E dái?! Esse texto t<strong>em</strong> parecença com a maneira muçulmana <strong>de</strong> escrever,<br />

principalmente no Alcorão. Alberich, o célebre Alberich, foi qu<strong>em</strong> traduziu no interior<br />

<strong>de</strong>ssa Mesquita ou Igreja transformada. É sabido que os mouros não <strong>de</strong>struíram as<br />

igrejas e mudavam o interior <strong>de</strong>las sacralizando-as como Mesquitas. Os cristãos <strong>de</strong>veriam<br />

ter inveja da sabedoria <strong>de</strong> fenícios, mouros, persas e asiáticos <strong>em</strong> geral.<br />

- Sim. Eu sei, no entanto, a construção dos Pireneus é claramente cristã. O formato <strong>de</strong>la<br />

é trifoliado, querendo propor a trinda<strong>de</strong> cristã, coisa que os muçulmanos não aceitam.<br />

- Claro, mas os muçulmanos são mais inteligentes e sábios... não acha? – Bernard<br />

perguntou, inclinando a cabeça e esboçando o que me pareceu um sorriso maroto –<br />

Creio que Cruzadas e essas lutas sanguinárias só estão acontecendo por que os Mouros<br />

são obrigados a se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<strong>em</strong>...<br />

- A culpa é dos cristãos – esclareceu LaCordaire.<br />

- Cristão viv<strong>em</strong> <strong>de</strong> culpas... mas, a culpa é mais óbvia se observarmos as ações do<br />

clero...Mais precisamente do papado – <strong>de</strong>clarou Bernard – enquanto abençoam canhões<br />

e navios en<strong>de</strong>reçando-os à mortanda<strong>de</strong>.<br />

Acima <strong>de</strong> nós, o precioso azul celeste. O vento amainava ou era pura impressão.<br />

Cães ladravam e às vezes algo como risadas no ermo.<br />

- É o esplendor nu <strong>de</strong> Nuit; Ela se curva <strong>em</strong> êxtase para beijar os ardores secretos <strong>de</strong><br />

Hadit. O globo alado, o estrelado azul, são meus, Ó Ankh-af-na-khonsu! – <strong>de</strong>clamou<br />

Bernard, olhando para céu, <strong>de</strong>spejando mais um copázio <strong>de</strong> vinho, mas, continuou, como<br />

se não houvesse mais ninguém por ali: - De qualquer forma eu quero encontrar o lugar<br />

antes que as tropas do papa nos encontr<strong>em</strong>. Sei que lá há um túmulo <strong>de</strong> um rebel<strong>de</strong><br />

sarraceno. Esse sujeito ousou tomar uma nobre cristã para esposa. Histórias, eu sei...<br />

- Como sabe disso?<br />

- O nome <strong>de</strong>le era Othman - El Ch<strong>em</strong>i. Ele e seus soldados estavam <strong>em</strong> terreno franco.<br />

Ali conheceram a mulher. Ela se chamava Lampagie, filha do Con<strong>de</strong> Eu<strong>de</strong>s. Othman se<br />

encantou por ela, diz<strong>em</strong> as histórias, ela retribuiu o interesse. O con<strong>de</strong> estava perdido<br />

entre a invasão moura e sua própria incapacida<strong>de</strong>. Permitiu que o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Lampagie<br />

fosse realizado. Morreram por lá. O <strong>em</strong>ir <strong>de</strong>clarou Othman traidor. Lampagie era minha<br />

avó. – Bernard respirou, pelo menos foi um movimento que pareceu um profundo ato <strong>de</strong><br />

sorver os ares, - Agora sab<strong>em</strong> que o sacerdote e apóstolo andam <strong>em</strong> mim, mas<br />

Coelho De Moraes 16


MARCUS, o imortal<br />

também <strong>em</strong> mim está o curioso, o encarregado, aquele que não recebe or<strong>de</strong>ns, aquele<br />

que <strong>de</strong>seja saber se é a parte <strong>de</strong> sangue mourisco que corre <strong>em</strong> minhas veias que me dá<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> tirar fora a cabeça do papa. Othman cobrira sua esposa com um manto que<br />

lhe valeu a alcunha <strong>de</strong> Mulher Escarlate, tendo todo o po<strong>de</strong>r do seu lado.<br />

- L<strong>em</strong>bro que Alberto falou, certa vez, sobre um er<strong>em</strong>itério catalão on<strong>de</strong> foram<br />

encontrados corpos cobertos <strong>de</strong> ouro e jóias. Disse que uma mulher tinha sido retirada<br />

do chão e a supunham princesa árabe. Parece que os vilões carregaram a estátua, pois o<br />

corpo está rígido e negro, e o carregam no verão para uma floresta próxima a uma fonte<br />

qualquer. Depois é levado <strong>de</strong> volta para O<strong>de</strong>ilia ou Lívia, uma antiga construção castelã,<br />

<strong>em</strong> princípio <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro – Pietro <strong>de</strong> Ferrara nos informou ex<strong>em</strong>plarmente. Bernard<br />

esboçou aquilo que costumamos chamar <strong>de</strong> sorriso e falou:<br />

- É isso. É justamente isso que me faz ir atrás. Estamos <strong>em</strong> Set<strong>em</strong>bro. Essa é a época.<br />

Acredito que terei novida<strong>de</strong>s então. Quando entrei para a Ord<strong>em</strong> ela já estava per<strong>de</strong>ndo<br />

sua meta original. Proteger os peregrinos que iriam para Jerusalém. Mas, eu acreditava<br />

ainda nisso. Éramos os Pobres Cavaleiros <strong>de</strong> Cristo. Eu pessoalmente acompanhei<br />

aquele maluco do Francisco <strong>de</strong> Assis <strong>em</strong> sua investida ingênua com os <strong>em</strong>ires, se b<strong>em</strong><br />

que ele n<strong>em</strong> atinasse para o fato. Ele não conseguia me enxergar tsnto que estava<br />

tomado pelas inspirações divinas. Tolices!<br />

- E após? Os muçulmanos retomaram a Terra Santa, não é?<br />

- Sim. Retomaram. Aí a se<strong>de</strong> foi estabelecida <strong>em</strong> Chipre. Com administração <strong>em</strong> França.<br />

Felipe, o Rei <strong>de</strong> França, invejoso, começou a perseguir o Grão Mestre dos T<strong>em</strong>plários,<br />

com medo <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r crescente e influência. Não queríamos obe<strong>de</strong>cer a nenhum<br />

senhor Feudal.<br />

- Mas, por que isso tudo? Que eu saiba os T<strong>em</strong>plários não <strong>de</strong>têm riquezas, n<strong>em</strong> bens,<br />

n<strong>em</strong> nada... – perguntou Alexandrino. Nisso uma porta bateu ruidosamente e legamos o<br />

barulho aos restos <strong>de</strong> vento ou a algum animal perdido.<br />

- Você t<strong>em</strong> razão. Agora, estamos sob perseguição constante. Provavelmente ser<strong>em</strong>os<br />

excomungados. Para mim, tanto faz.<br />

Vimos que era meia–noite. Ninguém mais na estalag<strong>em</strong>. Até o dono fora se<br />

<strong>de</strong>itar, resmungando. Então uma voz e várias vozes passaram a <strong>de</strong>clamar na rua. Havia<br />

um canto triste, enfadonho e soturno. Várias pessoas pediram para que viéss<strong>em</strong>os<br />

dormir, pois as almas já estavam caminhando nas ruas. Olhamo-nos curiosamente. A<br />

música <strong>em</strong> homofonia subia e <strong>de</strong>scia cantando as seguintes frases:<br />

“Queima sobre suas testas, ó esplêndida serpente! Ó, mulher <strong>de</strong> pálpebras<br />

azuis, curva-te sobre eles. Com o Deus e o Adorador eu nada sou; eles não me vê<strong>em</strong>.<br />

Eles estão como que sobre a terra; Eu sou o Céu, e não há outro Deus além <strong>de</strong> mim e<br />

meu senhor Hadit.”<br />

- Meus soldados caminham pelas ruas, - disse Bernard. – Sairei com eles.<br />

Os olhos cinzentos <strong>de</strong> Bernard se apertaram. Ele caminhou para a noite, com<br />

aquele seu passo pesado, aten<strong>de</strong>ndo ao chamado, e acompanhou a multidão <strong>de</strong><br />

pessoas .<br />

OPUS 10<br />

Saímos, também nós, curiosos contumazes, atrás da procissão. Subimos<br />

montes, relvas, caímos <strong>em</strong> charcos, a escuridão não nos assustava, pois sabíamos <strong>de</strong><br />

seus segredos. Os únicos probl<strong>em</strong>as eram buracos e ribanceiras. O perigo estava ali.<br />

A procissão seguia com tochas e cantorias. Vislumbrávamos, na clarida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

archotes, o corpo robusto <strong>de</strong> Bernard e seus soldados. Havia um aroma pestilento<br />

crescendo no ar. Eram nossas referências fugidias. O odor era muito ruim. Não se sabia<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> procedia. Mas, seguíamos céleres e perceb<strong>em</strong>os que a falange se reunia no<br />

interior <strong>de</strong> uma cratera na rocha. Certamente uma gruta. Ninguém a nada nos impedia.<br />

Era como se fizéss<strong>em</strong>os parte da procissão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus primórdios, mas a sugerir pela<br />

roupa das pessoas, eles caminhavam há meses. Entramos na gruta e pisamos um riacho.<br />

Pietro aproveitou para refrescar pés e mentes. De lá <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro uma voz se fazia ecoar<br />

entre pedras e flamas ar<strong>de</strong>ntes.<br />

- Agora, portanto, Eu sou conhecida por vós por meu nome Nuit. Para ele, me farei<br />

conhecer através <strong>de</strong> um nome secreto que darei oportunamente.<br />

- Ele qu<strong>em</strong>? – perguntou Alexandrino.<br />

- Não sei – tive que respon<strong>de</strong>r rapidamente s<strong>em</strong> querer per<strong>de</strong>r nada daquele discurso.<br />

- Posto que Eu sou o Infinito Espaço e as Infinitas Estrelas <strong>de</strong> lá, fazei vós também<br />

Coelho De Moraes 17


MARCUS, o imortal<br />

assim. Que não haja diferença feita <strong>em</strong> vosso meio entre uma cousa e qualquer outra<br />

cousa; pois é daí que nos v<strong>em</strong> a dor. Eu sou Nuit, e minha palavra é seis e cinqüenta.<br />

Então eu vi que alguém se ajoelhou aos seus pés e essa pessoa me parecia<br />

Bernard que foi, imediatamente, tratado <strong>de</strong> profeta. Ele disse:<br />

- Sou seu o profeta e seu o escravo, mas, qu<strong>em</strong> sou eu, e qual será o sinal?<br />

Assim ela lhe respon<strong>de</strong>u, curvando-se, como uma tr<strong>em</strong>eluzente chama <strong>de</strong> azul,<br />

pois <strong>de</strong> azul estava vestida, seus cabelos eram ruivos e seus braços tudo-tocante, tudopenetrante,<br />

suas mãos amáveis, pareciam <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r energia e se enfiaram na terra<br />

úmida, recoberta <strong>de</strong> lodo, fácil <strong>de</strong> manipular, penetrou na terra negra, e seu corpo<br />

flexível se pôs arqueado para o amor, e seus pés macios se afastaram. Não machucando<br />

a nada que se aproximasse, ela disse:<br />

- Tu sabes! E o sinal será meu êxtase, a consciência da continuida<strong>de</strong> da existência, a<br />

onipresença do meu corpo.<br />

Bernard <strong>de</strong> Clairvaux, como um sacerdote respon<strong>de</strong>u àquela tornada <strong>em</strong> Rainha,<br />

mas antes beijou, respeitosamente, suas sobrancelhas <strong>de</strong>nsas, e viu-se que o orvalho da<br />

luz <strong>de</strong>la banhando seu corpo inteiro num doce perfume <strong>de</strong> suor exalava para a caverna<br />

inteira:<br />

- Ó, Nuit, fica no Céu, que seja s<strong>em</strong>pre assim; que os homens não fal<strong>em</strong> <strong>de</strong> Ti como<br />

Uma, mas como Nenhuma; e que eles não fal<strong>em</strong> <strong>de</strong> ti <strong>de</strong> modo algum, posto que tu és<br />

contínua!<br />

Um coro escondido atrás <strong>de</strong> uma pilastra <strong>de</strong> pedras exclamou <strong>em</strong> som único: -<br />

Nada, suspira a luz grácil e encantadora das estrelas, nada e dois.<br />

- Pois eu estou dividida pela graça do amor, para a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> união – disse a ruiva<br />

- Esta é a criação do mundo, que a dor da divisão é como nada, e a alegria da<br />

dissolução, tudo. Por estes tolos dos homens e suas dores não te importes <strong>de</strong> modo<br />

algum. Eles sent<strong>em</strong> pouco; o que é, é balançado por fracas alegrias; mas vós sois meus<br />

escolhidos. – Nisso ela apontou para Bernard. Alguém <strong>de</strong>u a ela uma espada muito<br />

longa, que brilhava como prata, e ela continuou: - Obe<strong>de</strong>cei ao meu profeta! Persegui os<br />

ordálios do meu conhecimento! buscai-me apenas! Então as alegrias do meu amor vos<br />

redimirão <strong>de</strong> toda dor. Isto é assim: Eu o juro pela abóbada do meu corpo; pelo meu<br />

coração e língua sagrados; por tudo o que eu posso dar, por tudo o que eu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

todos vós.<br />

Bernard, sacerdote e profeta, um enigma, caiu <strong>em</strong> um profundo transe ou<br />

<strong>de</strong>smaio e disse à Rainha do Céu!: - Escreve para nós os ordálios; escreve para nós os<br />

rituais; escreve para nós a lei!<br />

- Meu escriba, Ankh-af-na-khonsu – ela respondia, brandido lev<strong>em</strong>ente espada - o<br />

sacerdote dos príncipes, não mudará <strong>em</strong> uma letra este livro; mas, para que não haja<br />

tolice, ele o comentará pela sabedoria <strong>de</strong> Ra-Hoor-Khu-it. Mantras e encantamentos; o<br />

obeah e o wanga; os trabalhos da baqueta e da espada; estes o profeta apren<strong>de</strong>rá e<br />

ensinará.<br />

O coro voltou à carga, salmodiando e caminhando. Nesse momento pu<strong>de</strong> ver<br />

que tais corpos eram <strong>de</strong>scarnados, vivos, porém, <strong>de</strong>scarnados, s<strong>em</strong>idotados <strong>de</strong> alguma<br />

alma transitória. Deles <strong>em</strong>anava o cheiro fétido. Eles clamavam:<br />

- Qu<strong>em</strong> nos chama Thel<strong>em</strong>itas. Pois ali há Três Graus, o Er<strong>em</strong>ita, e o Amante, e o<br />

hom<strong>em</strong> da Terra. Faz o que tu queres, há <strong>de</strong> ser tudo da Lei.<br />

- Deixai esse estado <strong>de</strong> multiplicida<strong>de</strong> – ela completou - multiplicida<strong>de</strong> limitada e<br />

<strong>de</strong>sgosto. Assim com teu todo; tu não tens direito senão fazer tua vonta<strong>de</strong>. Faz isso, e<br />

nenhum outro dirá não. Pois vonta<strong>de</strong> pura, aliviada <strong>de</strong> propósito, livre da se<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

resultado, é toda senda perfeita.<br />

Tr<strong>em</strong>enda quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sinos começou a badalar. Em princípio não sabíamos <strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong> vinham, mas perceb<strong>em</strong>os <strong>de</strong>pois que outros seguidores, como sacerdotes,<br />

carregavam tais sinos e os badalavam s<strong>em</strong> cessar.<br />

- Nada é uma chave secreta <strong>de</strong>sta lei. Sessenta e um os Ju<strong>de</strong>us a chamam; Eu a chamo<br />

oito, oitenta, quatrocentos e <strong>de</strong>zoito – a ruiva clamou <strong>em</strong> altos brados, olhos abertos,<br />

pernas abertas, a espada girando sobre seus ombros. De repente ela parou e olhou<br />

fixamente para Bernard que estava ajoelhado, banhado <strong>em</strong> suor: - Meu profeta é um tolo<br />

com seu um, um, um; não são eles o Boi, e nenhum pelo livro? Ab-rogados estão todos<br />

os rituais, todos os ordálios, todas as palavras e sinais. Ra-Hoor-Khuit tomou seu assento<br />

no Leste ao Equinócio dos Deuses.<br />

Saímos todos. A reunião tinha chegado ao fim. Desligou-se tudo como se nada<br />

Coelho De Moraes 18


MARCUS, o imortal<br />

ali houvesse. A escuridão tomou forma. Movimento e barulho somente. Lá fora notamos<br />

que os <strong>de</strong>scarnados sumiam nas trevas, nas brumas, entre as folhas, <strong>em</strong> silêncio e<br />

enquanto tal se fazia Bernard reapareceu, lépido como s<strong>em</strong>pre, com seu tamanho, e sua<br />

roupa <strong>de</strong> guerra.<br />

- Viram tudo? – perguntou.<br />

- Sim – prontamente respondi.<br />

- É o seguinte: Há quatro portões no palácio que prece<strong>de</strong> a Igreja dos Pireneus; o chão<br />

<strong>de</strong>sse palácio é <strong>de</strong> prata e ouro; lápis-lazúli e jaspe estão lá; e todos os aromas raros;<br />

jasmim e rosa... mas, também estarão por lá os <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>as da morte. Por enquanto esses<br />

<strong>em</strong>bl<strong>em</strong>as são o anel episcopal e a coroa <strong>de</strong> Felipe. Eu <strong>de</strong>vo entrar com minhas hostes<br />

por partes ou <strong>de</strong> uma só vez, atravessando arrevesados portões. Devo ficar <strong>de</strong> pé sobre<br />

o chão do palácio. Se não cumprir à risca o ritual – e Bernard <strong>de</strong>u uma olhada para<br />

<strong>de</strong>ntro da gruta – se não fizer como ela <strong>de</strong>seja ou espera, então, <strong>de</strong>vo receber os<br />

terríveis julgamentos <strong>de</strong> Ra Hoor Khuit!<br />

Concor<strong>de</strong>i <strong>em</strong> parte com Bernard. Mas tínhamos nosso caminho. Ele seguiria o<br />

<strong>de</strong>le.<br />

- Não posso me comprometer a esperá-lo n<strong>em</strong> do Leste n<strong>em</strong> do Oeste. Todas as<br />

palavras são sagradas e todos os profetas verda<strong>de</strong>iros; salvo apenas que eles entend<strong>em</strong><br />

pouco; resolv<strong>em</strong> a primeira meta<strong>de</strong> da equação, <strong>de</strong>ixam a segunda incompleta. Mas, eu<br />

espero, Bernard, que você tenha tudo na clara luz, e algo, apesar <strong>de</strong> n<strong>em</strong> tudo, na<br />

escuridão, que s<strong>em</strong>pre é bom reservar algo para <strong>de</strong>pois.<br />

Multidão <strong>de</strong> cavalos apareceu. Eram os soldados trazendo seus animais e a<br />

montaria <strong>de</strong> Bernard. Ele gritou, esporeando o corcel, que se ergueu nas patas traseiras:<br />

- Invocai-me sob minhas estrelas! Vou atrás do Amor, através da história <strong>de</strong> Othman e<br />

Lampagie, minha ancestral... é a lei, amor sob vonta<strong>de</strong>. Que os tolos não confundam o<br />

amor; pois exist<strong>em</strong> amores diferentes. Existe a pomba, e existe a serpente. Escolha b<strong>em</strong>,<br />

Marcus!<br />

A tropa partiu rapidamente. Desapareceram na noite.<br />

- Acendamos incenso – disse eu para os amigos – escolhamos os <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras resinosas e<br />

gomas; não haverá presença <strong>de</strong> sangue ali. Fomos test<strong>em</strong>unha <strong>de</strong> uma noite sagrada.<br />

- Você acha que <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os retornar para a estalag<strong>em</strong>? – perguntou LaCordaire.<br />

- Não. É melhor que continu<strong>em</strong>os nossa estrada. Ninguém enten<strong>de</strong>ria e não teríamos o<br />

que explicar. Caros amigos, anot<strong>em</strong>os. Pietro, abre o livro e escreve essas minha<br />

citações. São conclusões. Pod<strong>em</strong> ser manifestações.<br />

Pietro tomou <strong>de</strong> folhas dobradas e um carvão que s<strong>em</strong>pre trazia nos bolsos <strong>de</strong><br />

algodão.<br />

- Meu número é 11, como todos os números <strong>de</strong>les que são <strong>de</strong> nós. A Estrela <strong>de</strong> Cinco<br />

Pontas, com um Círculo no Meio, e o círculo é Vermelho. Minha cor é preta para o cego,<br />

mas o azul e o dourado são vistos por qu<strong>em</strong> vê. Também eu tenho uma glória secreta<br />

para eles que me amam.<br />

- Ei! – disse Alexandrino, com ar <strong>de</strong> alegria e atenção positiva – parece aula <strong>de</strong> Alberto.<br />

Sorri e continuei:<br />

- Mas amar-me é melhor que todas as coisas: se sob as estrelas noturnas no <strong>de</strong>serto tu<br />

present<strong>em</strong>ente queimas meu incenso diante <strong>de</strong> mim, invocando-me com um coração<br />

puro, e a chama da serpente ali, tu virás um pouco a <strong>de</strong>itar <strong>em</strong> meu seio. Por um beijo,<br />

tu então há <strong>de</strong> quer dar tudo; mas qu<strong>em</strong> quer que dê uma partícula <strong>de</strong> pó, per<strong>de</strong>rá tudo<br />

nessa hora. Vós reunireis bens e provisões <strong>de</strong> mulheres e especiarias; vós vestireis ricas<br />

jóias; vós exce<strong>de</strong>reis as nações da terra <strong>em</strong> esplendor e orgulho; mas s<strong>em</strong>pre no amor<br />

<strong>de</strong> mim, e então vós vireis à minha alegria. Eu vos or<strong>de</strong>no seriamente a vir diante <strong>de</strong><br />

mim num manto único e coberto com um rico adorno na cabeça. Eu vos amo! Eu anseio<br />

por vós! Pálido ou purpúreo, velado ou voluptuoso, Eu, que sou todo prazer e púrpura, e<br />

<strong>em</strong>briaguez no sentido mais íntimo, vos <strong>de</strong>sejo. Colocai as asas e elevai o esplendor<br />

enroscado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> vós: vin<strong>de</strong> a mim!<br />

- Esplêndido! Mas que conclusão se po<strong>de</strong> tirar?<br />

- Se você se prostrar a mim eu darei todo o reino da Terra. E a resposta é...?<br />

- Não!! – todos gritamos <strong>em</strong> alegria.<br />

- Bernard que me perdoe, mas, a manifestação <strong>de</strong> Nuit está por um fio – eu disse.<br />

Arregaçamos nossas mangas. O sol não tardaria. Vimos que os montes se<br />

pintaram <strong>de</strong> vermelho e pássaros entoaram suas ladainhas matinais. A madrugada<br />

anilada se erguia como um palácio. Lá, b<strong>em</strong> longe, uma gran<strong>de</strong> poeirada se erguia na<br />

Coelho De Moraes 19


MARCUS, o imortal<br />

estrada, atrás dos montes. Eram os soldados <strong>de</strong> Bernard <strong>em</strong> <strong>de</strong>senfreada correria.<br />

S<strong>em</strong> mais d<strong>em</strong>oras reentramos na gruta. Era nossa vez, agora.<br />

OPUS 11<br />

Vasculhamos inteiramente os recônditos das cavernas e nada encontramos a não ser<br />

roupa velha, escudos e tochas apagadas. O cheiro péssimo ainda perdurava por ali.<br />

- Ouçam, amigos, que são pessoas <strong>de</strong> visão! – disse eu, enquanto ouvia minha voz ecoar<br />

nas solidões da gruta – Há, aqui, muita pena <strong>de</strong> dor e r<strong>em</strong>orso. São eventos para<br />

mortos e para qu<strong>em</strong> está morrendo.<br />

- Por que diz isso, Marcus? – perguntava LaCordaire.<br />

- Estas são mortas, estas pessoas; elas não sent<strong>em</strong>. Nós não somos n<strong>em</strong> existimos para<br />

o pobre e triste: os senhores da terra são nossos parentes. Aquela procissão <strong>de</strong> mortos<br />

sinaliza para guerras e combates s<strong>em</strong> fim. Sinaliza para doenças e <strong>de</strong>savenças. É <strong>de</strong> se<br />

perguntar: Deve um Deus viver num cão? Não! Eles se regozijarão, nossos escolhidos:<br />

qu<strong>em</strong> se lamenta, infelizmente, não é nosso.<br />

- O que será nosso, então? – gritou Alexandrino, com um leve tr<strong>em</strong>or na voz, angustiado<br />

pela expectativa.<br />

- Beleza e força, gargalhada e langor <strong>de</strong>licioso, força e fogo são nossos– respondi<br />

prontamente, não s<strong>em</strong> refletir vagamente sobre as alianças que o mundo visível fazia<br />

com o mundo invisível.<br />

- Nós nada t<strong>em</strong>os com o proscrito e com o incapaz – falou Pietro, como que ameaçando<br />

as entida<strong>de</strong>s espirituais com sua voz estentórea. - Que eles, nossos perseguidores,<br />

morram <strong>em</strong> sua miséria. Pois eles não sent<strong>em</strong>. Compaixão é o vício dos reis: pisa sobre o<br />

<strong>de</strong>sgraçado e o fraco: Felipe V está se <strong>de</strong>sfazendo <strong>em</strong> vícios.<br />

- Mas a lei do forte está conosco, Pietro: esta é a nossa lei e a alegria do mundo. O<br />

corpo do Rei <strong>de</strong>ve dissolver-se, ele permanecerá <strong>em</strong> puro êxtase para s<strong>em</strong>pre se for<br />

possível e terá <strong>de</strong> morrer. Conclam<strong>em</strong>os agora. Ajoelh<strong>em</strong>-se, amigos.<br />

Todos começamos a ecoar cânticos e novas elegias com as palavras: Nuit! Hadit!<br />

Ra-Hoor-Khuit! O Sol, Força e Visão, Luz, para os servidores da Estrela e da Serpente.<br />

Das águas a borbulha se fez presente. A caverna pareceu mergulhar <strong>em</strong> sombras<br />

<strong>de</strong>nsas para, <strong>em</strong> segundos, reanimar-se <strong>em</strong> neblinas doces e a cheiro <strong>de</strong> malva e<br />

incensos. Do centro do lago uma cabeça <strong>de</strong> mulher, como a da ruiva, apareceu e falou,<br />

se apresentando:<br />

- Eu sou a Serpente que dá Conhecimento e Deleite e glória brilhante.<br />

Nossos corações se animaram com <strong>em</strong>briaguez. Ela continuou:<br />

- Para me adorar, tomai vinho e drogas estranhas das quais Eu direi ao meu profeta, e<br />

<strong>em</strong>bebedai-vos <strong>de</strong>les.<br />

Nesse momento, l<strong>em</strong>brei-me <strong>de</strong> Bernard com sua caneca <strong>de</strong> vinho quente. Eles<br />

não se feriram <strong>em</strong> nada. A mulher estava <strong>em</strong> êxtase e continuava:<br />

- A exposição <strong>de</strong> inocência é uma mentira. Sejam fortes, ó homens! <strong>de</strong>sej<strong>em</strong>, aproveit<strong>em</strong><br />

todas as cousas <strong>de</strong> sentido e êxtase: não t<strong>em</strong>ais que Deus algum vos negue por isto.<br />

- Vejam! – gritei - estes são graves mistérios; pois há também amigos meus que são<br />

er<strong>em</strong>itas. Agora, será difícil encontrá-los na floresta ou na montanha; certamente o<br />

far<strong>em</strong>os <strong>em</strong> camas <strong>de</strong> púrpura, acariciados por magníficas bestas <strong>de</strong> mulheres com<br />

extensos m<strong>em</strong>bros, e fogo e luz <strong>em</strong> seus olhos, e massas <strong>de</strong> cabelos <strong>em</strong> chamas <strong>em</strong><br />

volta <strong>de</strong>las: é lá que os encontrar<strong>em</strong>os. Encontrar<strong>em</strong>os esses amigos e rebel<strong>de</strong>s no<br />

governo, <strong>em</strong> exércitos vitoriosos, como é o caso <strong>de</strong> Bernard <strong>de</strong> Claivaux.<br />

- Cuidado para que um não force ao outro, Rei contra Rei! – ela disse <strong>em</strong> alto brado.<br />

Amai-vos uns aos outros, com corações ar<strong>de</strong>ntes; nos homens baixos, pisai no violento<br />

ardor <strong>de</strong> vosso orgulho, no dia da vossa ira. Vós sois contra os monarcas, Ó meus<br />

escolhidos! Eu sou a secreta Serpente enroscada a ponto <strong>de</strong> saltar. Se eu levanto minha<br />

cabeça, Eu e minha Nuit somos um. Se eu abaixo minha cabeça e lanço veneno, então<br />

há êxtase na terra, e eu e a terra somos um. Mas vós, escolhidos, levantai e acordai!<br />

Das águas surgiram colunas brilhantes. Muita água levantou <strong>de</strong> seu leito e<br />

escorreu molhando nossos pés. Harmonias sonoras s<strong>em</strong>pre se prontificaram a ecoar<br />

pelos ambientes, ornamentando as vonta<strong>de</strong>s sacramentais. Muita vez nos entreolhamos<br />

paralisados pela magnificência dos brilhos purpúreos. Trombetas silenciosas ressoaram,<br />

s<strong>em</strong> alarido, mas com magnífica harmonia, com timbres cálidos e tranqüilizantes. Música<br />

e ardores da alma s<strong>em</strong>pre estiveram juntos.<br />

- Que os rituais sejam corretamente executados com alegria e beleza! Há rituais dos<br />

Coelho De Moraes 20


MARCUS, o imortal<br />

el<strong>em</strong>entos e festas das estações. Cham<strong>em</strong> o povo para uma festa... Uma festa para a<br />

primeira noite do Profeta e sua Noiva! Anot<strong>em</strong> que eu quero uma festa para os três dias<br />

da escritura do Livro da Lei. Entendam que eu <strong>de</strong>sejo outra festa... uma festa para o<br />

Supr<strong>em</strong>o Ritual, e uma festa para o Equinócio dos Deuses.<br />

Ouvindo tudo aquilo, Pietro passou a escrever <strong>em</strong> seus papéis estudantis, rápido,<br />

valendo-se da experiência <strong>de</strong> escriba. O que ele havia perdido contava l<strong>em</strong>brar após,<br />

apoiando-se na m<strong>em</strong>ória dos amigos.<br />

- Uma festa para o fogo e uma festa para a água; uma festa para a vida e uma festa<br />

maior para a morte! Há morte para os cães. Não te apie<strong>de</strong>s dos caídos! Eu nunca os<br />

conheci. Eu não sou para eles. Eu não consolo: Eu o<strong>de</strong>io o consolado e o consolador. Eu<br />

sou única e conquistadora. Eu não sou dos escravos que perec<strong>em</strong>. Sejam eles danados e<br />

mortos! Amém.<br />

Repentinamente, um azul resplan<strong>de</strong>ceu sobre ela e contrastou bravamente com<br />

seus cabelos avermelhados, tornados <strong>em</strong> tijolo vivo, e havia ouro na luz daquela noiva:<br />

mas o fulgor vermelho estava maior <strong>em</strong> seus olhos; eu via reluzentes lentejoulas, entre<br />

púrpura e ver<strong>de</strong>, coruscando na superfície <strong>de</strong> sua pele.<br />

- Púrpura além da púrpura: esta é a luz mais alta que a visão – disse eu, <strong>em</strong>bevecido<br />

ante a visão da mulher.<br />

- Há um véu: e esse véu é negro – disse LaCordaire, s<strong>em</strong>pre ressabiado. Mas seguiu <strong>em</strong><br />

sua explanação, <strong>em</strong> sua especulação sobre o que via e ouvia: - É o véu da mulher<br />

mo<strong>de</strong>sta; é o véu da lamentação e o pano da morte: nada disto parece ser <strong>de</strong>la.<br />

- Arranca esse espectro mentiroso dos séculos – gritou Alexandrino: - Não esconda os<br />

vícios do mundo <strong>em</strong> palavras virtuosas.<br />

- Estes vícios são meu serviço – disse ela, bruscamente saindo do transe, olhando para<br />

Alexandrino - Vós fazeis b<strong>em</strong>, e Eu vos recompensarei aqui e para o futuro. Atenta pois<br />

receberá a visita <strong>de</strong> súcubos.<br />

Então ela se virou para mim e sua conduta se tornou lânguida, porém me<br />

pareceu honesta, gentil e solidária:<br />

- Não t<strong>em</strong>as, ó profeta, quando estas palavras for<strong>em</strong> ditas, tu não ficarás triste. Tu és<br />

enfaticamente meu escolhido: e abençoados são os olhos sobre os quais tu olhares com<br />

alegria. Mas eu te escon<strong>de</strong>rei sob uma máscara <strong>de</strong> tristeza: aqueles que te olhar<strong>em</strong><br />

t<strong>em</strong>erão que tu sejas caído: mas Eu te ergo – ela levantou os braços – Eiu te erguerei<br />

durante séculos.<br />

De repente, ela ergueu os braços ainda além e pássaros cristalinos voaram pela<br />

abóbada da gruta <strong>em</strong> gorjeios inusitados. Ela gritava para pessoas que estivess<strong>em</strong> além,<br />

como se se tratasse <strong>de</strong> mensag<strong>em</strong> que <strong>de</strong>vesse atravessar véus: - I<strong>de</strong> <strong>em</strong>bora! Todos,<br />

zombadores; apesar <strong>de</strong> vós ri<strong>de</strong>s <strong>em</strong> minha honra, vós não rireis longamente: então,<br />

quando vós estiver<strong>de</strong>s tristes, sabei que eu vos abandonei.<br />

Os pássaros gritavam muito e os ecos retornavam como cachoeira. Enquanto ela<br />

voltava para o seio do lago, imersa <strong>em</strong> uma labareda que rasgava os espaços, eu e os<br />

companheiros <strong>de</strong> jornada nos dirigimos, entre as pedras, para a abertura da gruta.<br />

Exaustos nos <strong>de</strong>itamos na relva coberta <strong>de</strong> orvalho. Havia muito que pensar sobre a<br />

experiência da manhã. No entanto era fácil concluir que havia uma conspiração que<br />

permeava as dimensões do espaço. Gente normal, vislumbradores, entida<strong>de</strong>s variadas e<br />

seres inadmissíveis ao conceito humano teciam relações para uma ação na superfície da<br />

Terra, na superfície visível da vida.<br />

- Sim! não acredito <strong>em</strong> mudanças – eu falei, após alguns instantes - Os reis da terra<br />

serão Reis para s<strong>em</strong>pre: os escravos servirão. Tenho para mim que ninguém há que será<br />

<strong>de</strong>rrubado ou levantado. Tudo prevalecerá como s<strong>em</strong>pre foi.<br />

- Porém, há mascarados que serão servidores – LaCordaire disse, entre haustos e<br />

gran<strong>de</strong>s respirações - Po<strong>de</strong> ser que um mendigo qualquer seja um Rei. Um Rei po<strong>de</strong><br />

escolher sua vestimenta como ele quiser: não há teste certo: mas um mendigo não po<strong>de</strong><br />

escon<strong>de</strong>r sua pobreza.<br />

- Cuidado – foi a vez <strong>de</strong> Pietro <strong>de</strong> Ferrara. Todo o cuidado é pouquíssimo, então. As<br />

relações com as pessoas levarão a cuidados extr<strong>em</strong>os. Qu<strong>em</strong> sabe se, por acaso, não há<br />

um Rei escondido? Qu<strong>em</strong> sabe mesmo entre nós?<br />

- Você fala assim, <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira? - perguntou Alexandrino - Se qualquer um <strong>de</strong> nós é<br />

um Rei, ninguém po<strong>de</strong>rá feri-lo.<br />

- Portanto, golpeia duro e baixo – LaCordaire afirmou, s<strong>em</strong> antes limpar o suor do rosto.<br />

- Você está cansado, LaCordaire... estamos todos cansados – falei – e, <strong>de</strong>vo dizer que na<br />

Coelho De Moraes 21


MARCUS, o imortal<br />

voluptuosa plenitu<strong>de</strong> da inspiração; a expiração é mais doce que a morte, mais rápida e<br />

risonha que uma carícia do próprio verme do Inferno! Pietro! por enquanto escreve... é<br />

melhor escrever palavras doces para os Reis! Seja qu<strong>em</strong> for.<br />

- É! T<strong>em</strong> razão – ele respon<strong>de</strong>u - Há ajuda e esperança <strong>em</strong> outros encantos. A<br />

Sabedoria <strong>de</strong> Alberto diz que <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os ser fortes! Pod<strong>em</strong>os agüentar ardores <strong>de</strong> alegria.<br />

Pod<strong>em</strong>os refinar os êxtases! Mas é preciso exce<strong>de</strong>r! Exce<strong>de</strong>r! O encontro final será<br />

s<strong>em</strong>pre com a Morte.<br />

- Com a Morte?! – perguntei.<br />

- Sim! A Morte! Morte! Você <strong>de</strong>sejará ar<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente a morte. Mas a Morte será proibida<br />

para você.<br />

Quando ele terminou, olhei e vi que estavam dormindo, ressonando e isso me<br />

<strong>de</strong>ixou <strong>em</strong> estado <strong>de</strong> alerta pois acreditava piamente que era a voz <strong>de</strong> Pietro que dizia as<br />

últimas frases. Ele falara claramrne mas já não estava entre nós. Alguém falara por ele.<br />

Mas eles não estavam presentes. Cansados, dormiam a sono solto. Fui para perto <strong>de</strong><br />

Pietro <strong>de</strong> Ferrara e peguei seus apontamentos. Ali se escrevia claramente: “4 6 3 8 A<br />

B K 2 4 A L G M O R 3 Y X 2 4 8 9 R P S T O V A L” uma sucessão <strong>de</strong> letras e números.<br />

“O que significa isto?”, perguntei-me e pus-me a folhear as anotações. Encontrei dados<br />

interessantes, mas nada do que a mulher falara no lago. O texto era outro e dizia:<br />

“Levanta-te, pois nenhum há parecido a ti entre os homens ou Deuses! Levanta-te, ó<br />

meu profeta, tua estatura ultrapassará as estrelas. Eles adorarão o teu nome, quadrado,<br />

místico, maravilhoso, o número do hom<strong>em</strong>; e o nome <strong>de</strong> tua casa 418. O final do<br />

escon<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Hadit; e bênção & adoração ao profeta da amável Estrela!”<br />

Claro estava que muito daquilo era incompreensível, se b<strong>em</strong> que eu me l<strong>em</strong>brava<br />

<strong>de</strong> que a mulher ruiva chamou Bernard <strong>de</strong> profeta, também. Todo aquele texto secreto<br />

me parecia digno <strong>de</strong> observação e terminava com as palavras “Abrahadabra; a<br />

recompensa <strong>de</strong> Ra Hoor Khut é vossa.”<br />

Abrahadabra s<strong>em</strong>pre foi uma palavra para <strong>de</strong>struição.<br />

OPUS 12<br />

Quatro meses se passavam, entrávamos no novo ano. As primeiras notícias, <strong>em</strong><br />

janeiro, que chegavam <strong>de</strong> longe, contavam histórias <strong>de</strong> duas hostes <strong>de</strong> guerreiros<br />

<strong>de</strong>sabalados pelos montes e charnecas. Uma das hostes exalava um pesado fedor por<br />

on<strong>de</strong> passava e acreditavam os povos que se tratavam <strong>de</strong> mortos ambulantes, incluindo<br />

suas montarias. A outra trazia <strong>em</strong> grita absurda pelos vales o nome <strong>de</strong> Calatin, que<br />

também chamavam irmão do Cão. Víbora. Assassino. Tinha a fama <strong>de</strong> invadir povoados e<br />

<strong>de</strong>struir tudo, levando as mulheres para prostituir e os garotos para a escravidão. Com<br />

mensageiros e outros auxílios tiv<strong>em</strong>os a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber que Tomás estava <strong>em</strong><br />

Aquino, na casa paterna. Para lá fomos, então. Foi com ânimo redobrado e imensa<br />

alegria que o encontramos a ler, após sermos atendidos por seus serviçais e seus<br />

parentes. Tomás abriu os braços e nos recebeu a todos <strong>de</strong> uma única vez.<br />

- Que Deus esteja com todos vocês, meus caros. Discípulos <strong>de</strong> Alberto são meus irmãos.<br />

Como foram <strong>de</strong> viag<strong>em</strong>?<br />

As primeiras palavras transcorreram leves, nos apresentamos, falamos das<br />

últimas experiências; Tomás nos instou ao <strong>de</strong>scanso e na manhã seguinte, após as<br />

orações obrigatórias junto a seus parentes, Tomás nos recebeu na biblioteca. A família<br />

<strong>de</strong> barões tinha interesse na cultura sagrada e profana e ficamos abismados com as<br />

obras, manuscritas por doutos <strong>de</strong> todos os t<strong>em</strong>pos, expostas nas fortes armações <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira que eram as estantes da sala. Um pequeno fogo aquecia o ambiente.<br />

- Então os senhores não sab<strong>em</strong> on<strong>de</strong> o mestre se encontra? – ele perguntou.<br />

- Sim! É correto. Os braços da Santa Inquisição parec<strong>em</strong> se ampliar a cada dia. Dessa<br />

vez o alvo foi a Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris, on<strong>de</strong> você estudou – respondi.<br />

- On<strong>de</strong> tive a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer mestre Alberto.<br />

- Mas há notícias <strong>de</strong> que ele saiu <strong>de</strong> Erfurt na direção <strong>de</strong> Colônia. Lá ele ensina e funda<br />

classes.<br />

- Sei que os t<strong>em</strong>pos estão mudados – disse Aquino - quando estudava <strong>em</strong> Paris o<br />

gran<strong>de</strong> probl<strong>em</strong>a era Aristóteles, <strong>de</strong> cujo ensinamento setores da Igreja tentavam nos<br />

afastar.<br />

- Mas o nobre Tomás – dizia Pietro – também foi vítima <strong>de</strong> certa perseguição.<br />

- Sim. Os estudos sobre o conhecimento <strong>de</strong> Gregos e Árabes... um certo confronto com<br />

as posições Cristãs, o pensamento Aristotélico, enfim, trouxeram probl<strong>em</strong>as, mesmo que<br />

Coelho De Moraes 22


MARCUS, o imortal<br />

eu fosse contra os averroístas, como realmente sou... Ou, melhor, tenho uma outra<br />

visão sobre os assuntos. Por isso estou aqui, <strong>em</strong> retiro na casa paterna.<br />

- E os Dominicanos?<br />

- Eles não sab<strong>em</strong> <strong>de</strong> nada e nada opinam. É raro ver um dominicano com um livro nas<br />

mãos. E minha idéia é me <strong>de</strong>dicar ao ensino. Aqui <strong>em</strong> Roccasecca eu posso ficar<br />

tranqüilo e estudar mais. Alberto me <strong>de</strong>u graves incumbências e uma <strong>de</strong>las é <strong>de</strong>strinchar<br />

as idéias sobre a existência e a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. A antiga contenda entre Fé e Razão.<br />

Estou dando do meu melhor sobre o assunto.<br />

- E você t<strong>em</strong> pon<strong>de</strong>rado que...<br />

- Que não po<strong>de</strong> haver conflito algum entre Fé e Razão. – Tomás cortou a fala <strong>de</strong><br />

Alexandrino – para Santo Anselmo... – e Tomás tomou fôlego levando o olhar para o céu<br />

que via através da janela imensa – ... para Santo Anselmo, Deus é perfeito e <strong>de</strong>veria ter<br />

como um <strong>de</strong> seus perfeitos atributos o da existência. Mas eu discordo. Pod<strong>em</strong>os <strong>de</strong>finir<br />

Deus como ser perfeito, mas isso não implica sua existência.<br />

- Mas é uma <strong>de</strong>finição... – disse Alexandrino.<br />

- Sim... mas uma <strong>de</strong>finição é apenas uma idéia. E nada garante que uma idéia possa<br />

existir na realida<strong>de</strong>.<br />

- Mas Aristóteles indica dizer que nada se move por si. E o mundo é dotado <strong>de</strong><br />

movimento – afirmei.<br />

- Exato caro Marcus, por isso eu afirmo que a causa primeira é Deus. O mesmo raciocínio<br />

vale para a causa <strong>em</strong> geral, não acham? – respirando profundamente – no entanto eu<br />

ainda estou pensando sobre isso e... também sei que a via <strong>de</strong> pensamento <strong>de</strong> vocês é a<br />

linha velada que tanto interessava a mestre Alberto, não é mesmo? E...<br />

- ... você, como Dominicano, aceita isso s<strong>em</strong> questionar? – foi a impetuosa pergunta <strong>de</strong><br />

LaCordaire.<br />

- Eu prefiro me calar. Os dominicanos são os que preservam os cânones e sa<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

busca <strong>de</strong> hereges. Eu não aceito isso. Há interesse <strong>de</strong> que essas or<strong>de</strong>ns se enfronh<strong>em</strong><br />

nas Universida<strong>de</strong>s para que o papado tenha total controle das idéias...<br />

- No entanto nada disso adiantou. Pelo menos por ora... é só ver o próprio Tomás e ver<br />

mestre Alberto Magno... – falei.<br />

- Mais ele… do que eu... com maiores probl<strong>em</strong>as... e s<strong>em</strong>pre perseguido... se mestre<br />

Alberto não fosse dominicano já estaria preso, essa é que é a verda<strong>de</strong>, caros amigos –<br />

disse Tomás – eu mesmo fui acusado por Boaventura <strong>de</strong> dialético. Ele dizia que eu e<br />

Alberto e outros prelados éramos do grupo dos dialéticos: “Especular primeiro, <strong>de</strong>voção<br />

<strong>de</strong>pois” – todos rimos – e tudo por culpa do aristotelismo.<br />

- De acordo com o Boaventura – eu disse – filosofia e razão só se justificam como<br />

itinerário da alma até Deus. À razão compete achar no mundo sensível os vestígios das<br />

idéias perfeitas.<br />

- Qu<strong>em</strong> sabe? Po<strong>de</strong> ser que esteja certo. Qu<strong>em</strong> sabe?<br />

- Tomás – mu<strong>de</strong>i o curso da conversa – por que os Dominicanos? Por que a vida<br />

religiosa?<br />

- B<strong>em</strong>, amigos – e ele nos fez sinal para nos sentarmos nas poltronas <strong>de</strong> couro – quando<br />

eu tinha cinco anos meus pais me localizaram no Monastério beneditino <strong>em</strong> Monte<br />

Cassino. Deixei esse Castelo <strong>de</strong> Roccasecca direto para os braços do meu tio, que era<br />

aba<strong>de</strong>, então.<br />

- Aí veio a guerra...<br />

- Sim... Monte Cassino se tornou palco <strong>de</strong> batalha entre as tropas imperiais e o exército<br />

papal. Minha família me fez chegar a Nápoles. Lá conheci os dominicanos. Houve um<br />

rompimento com minha família para me tornar frei. Depois disso, Paris.<br />

- E o encontro com Alberto.<br />

- Exato.<br />

OPUS 13<br />

Passamos muito t<strong>em</strong>po no castelo <strong>de</strong> Roccasecca. Estudamos com Tomás e<br />

visitamos os estábulos da região. Tiv<strong>em</strong>os acesso a livros importantes e a toda obra <strong>de</strong><br />

Aristóteles, inclusive aos livros proibidos pela Igreja, algumas obras salvas do incêndio<br />

por Guilherme <strong>de</strong> Baskerville, e <strong>de</strong>scansávamos das li<strong>de</strong>s intelectuais colhendo frutos nos<br />

pomares al<strong>de</strong>ãos. O período <strong>de</strong> meditação e confinamento a que nos restamos foi, <strong>em</strong><br />

primeiro lugar, <strong>em</strong> respeito à hospitalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tomás e, <strong>em</strong> segundo momento, por<br />

opção para que nossas cabeças pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> repassar os acontecimentos insólitos até<br />

Coelho De Moraes 23


MARCUS, o imortal<br />

aquele momento. Foi nesses momentos que a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Sonja retornou ao meu espírito<br />

e minha preocupação natural se avivou.<br />

Perguntei a Tomás da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obter informações sobre ela. Ele prometeu<br />

que entraria <strong>em</strong> contato com uma série <strong>de</strong> mensageiros e amigos <strong>de</strong> outras paragens.<br />

Muita gente passava por Roccasecca, eu b<strong>em</strong> notei, e através <strong>de</strong>sses viajantes<br />

tentaríamos obter notícias.<br />

- Como eu disse – Aquino afirmava, tentando se escon<strong>de</strong>r do sol daquela manhã sob<br />

uma macieira imponente,– a revelação Cristã e o conhecimento são facetas <strong>de</strong> uma<br />

verda<strong>de</strong> única. E não há conflito <strong>de</strong> uma com a outra.<br />

- Os seres humanos sab<strong>em</strong> alguma coisa quando a verda<strong>de</strong> é imediatamente evi<strong>de</strong>nte –<br />

eu dizia, argumentando claramente.<br />

- Claro. Mas essa verda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> se fazer evi<strong>de</strong>nte se se apelar, imediatamente, para<br />

verda<strong>de</strong>s evi<strong>de</strong>ntes – ele replicava.<br />

- Acreditam <strong>em</strong> alguma verda<strong>de</strong> quando aceitam a verda<strong>de</strong> advinda <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s –<br />

dizia LaCordaire – e se esquec<strong>em</strong> da potencialida<strong>de</strong> individual <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas pessoais.<br />

Não acha?<br />

- Sim. Devo admitir que esse ousado pensamento t<strong>em</strong> seu valor, porém – fez uma pausa<br />

contun<strong>de</strong>nte – ele está exce<strong>de</strong>ndo os limites da nossa época.<br />

- Em outras palavras – entrava na conversa Pietro <strong>de</strong> Ferrara, que até aquele momento<br />

se limitara a comer as maçãs colhidas e tomar suas anotações – o pensamento herético<br />

<strong>de</strong>ve ser impedido imediatamente. Não <strong>de</strong>ve vir a público.<br />

- Sim. Cá entre nós, sim. Principalmente se vier <strong>de</strong> leigos ou estudiosos <strong>de</strong> ciências...<br />

digamos... misteriosas, com sabor secreto evi<strong>de</strong>nte... – Tomás completou – preocupação<br />

que os amigos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ter diariamente. A Fé religiosa é a aceitação das verda<strong>de</strong>s advindas<br />

da revelação divina. Esse é o pensamento que vigora... claro é que Alberto terá mil<br />

argumentos para contrapor a tudo isso... mesmo que dominicano. Aliás, o ser<br />

dominicano permite que Alberto fale o que quer, por enquanto...<br />

- É como essa maçã que hoje você come, Pietro. Um dia ela tirou os humanos do Jardim<br />

do E<strong>de</strong>n, hoje você se alimenta <strong>de</strong>la, inofensivamente, mas, amanhã, po<strong>de</strong> dar algum<br />

boa idéia para alguém... – falei.<br />

- Só se atingir a cabeça da pessoa – brincou Tomás.<br />

- A <strong>de</strong>speito do fato <strong>de</strong> que isso parece fazer com que o conhecimento e fé sejam dois<br />

reinos completamente diferentes... – Alexandrino retomou, curioso.<br />

- Sei que há coisas nas revelações divinas que pod<strong>em</strong> ser conhecidas <strong>em</strong> sua essência<br />

pelo vulgo... pelas pessoas comuns... assim, eu diria, serão “preâmbulos da fé”, incluindo<br />

a existência <strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong> certos atributos seus.<br />

- Entrariam aí a imortalida<strong>de</strong> da alma humana e princípios morais? – perguntei.<br />

- Creio que sim...<br />

- E os princípios morais não teriam variação <strong>de</strong> povo para povo ou os cristãos se<br />

outorgam autorida<strong>de</strong> máxima nessas questões <strong>de</strong> céu e almas e mensageiros dos céus?<br />

- Creio que sim... a primeira assertiva me parece correta, mas, saibam, eu vou <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />

minha batina dominicana até o fim... <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> idéias... é claro... mas sei que<br />

mouros e muçulmanos são também sábios e <strong>de</strong>têm uma parcela po<strong>de</strong>rosa da sabedoria<br />

do mundo. No entanto... – Tomás aproveitou para sentar-se sobre um po<strong>de</strong>roso tronco<br />

caído às margens do riacho. Ao longe camponeses trabalhavam e enviaram um aceno<br />

para nosso grupo, ao que Tomás <strong>de</strong> Aquino respon<strong>de</strong>u, amável – ...no entanto, eu dizia,<br />

o resto daquilo tudo que foi revelado e está incompreensível até para nós estudiosos eu<br />

chamarei <strong>de</strong>... “mistérios da fé”.<br />

- Por ex<strong>em</strong>plo... – Alexandrino perguntou.<br />

- A Trinda<strong>de</strong>, por ex<strong>em</strong>plo. A encarnação <strong>de</strong> Deus <strong>em</strong> Jesus Cristo. A ressurreição e<br />

assim por diante.<br />

- Somente com o po<strong>de</strong>r econômico e militar que a Igreja t<strong>em</strong> ela po<strong>de</strong>rá enfiar isso na<br />

cabeça das pessoas, assim, s<strong>em</strong> mais n<strong>em</strong> menos – disse eu – e mesmo assim, levará<br />

muito t<strong>em</strong>po para que esse tipo <strong>de</strong> idéias se torne algo natural. Encarnação <strong>de</strong> Deus <strong>em</strong><br />

Jesus? Isso é muito difícil <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r... me parece o velho uso <strong>de</strong> tomar sabedoria pagã<br />

e transforma-la <strong>em</strong> sabedoria cristã.<br />

- Claro. Por isso o chamo <strong>de</strong> “mistério da fé”. Ninguém enten<strong>de</strong>, ninguém compreen<strong>de</strong>...<br />

- Mas serve para que a igreja mantenha seu po<strong>de</strong>r e seu braço forte – completou<br />

LaCordaire.<br />

- T<strong>em</strong>o dizer que você t<strong>em</strong> razão.<br />

Coelho De Moraes 24


MARCUS, o imortal<br />

Nisso, nossa atenção se <strong>de</strong>slocou para um serviçal da casa, como um mensageiro<br />

que se aproximava com cartas. Após os pedidos naturais <strong>de</strong> licença ele ofereceu a Tomás<br />

os papéis e se retirou. Após ler rapidamente do que se tratava Aquino disse:<br />

- Cartas do Gran<strong>de</strong> Alberto.<br />

OPUS 14<br />

“Qu<strong>em</strong> é Alberto?<br />

Ele nascera <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> 1200. Sua importância é capital, o que o livra <strong>de</strong> muitos<br />

probl<strong>em</strong>as com as esferas políticas. Tomás <strong>de</strong> Aquino é seu discípulo. Muita gente entre<br />

a Germânia , Espanha e França recebe ensinamentos <strong>de</strong> Alberto, o Gran<strong>de</strong>. Eu, Marcus<br />

<strong>de</strong> Paris, humil<strong>de</strong> aluno, tenho esse privilégio. Todos nós t<strong>em</strong>os. Pietro <strong>de</strong> Ferrara, que<br />

<strong>de</strong>ixou a família riquíssima para ganhar os caminhos da escolástica e mergulhar nos<br />

misteriosos domínios do oculto. Alexandrino, o menor, jov<strong>em</strong> rebel<strong>de</strong> já muitas vezes<br />

preso pelas autorida<strong>de</strong>s e torturado por <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a opção <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento,<br />

após sua última fuga foi dominado por uma força surpreen<strong>de</strong>nte, até hoje inexplicável,<br />

que <strong>de</strong>rrubou com os ombros as pare<strong>de</strong>s da prisão <strong>em</strong> que se encontrava. LaCordaire,<br />

tranqüilo pensador, po<strong>de</strong>roso hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> armas, lutador excepcional que partiu das<br />

milícias parisienses por <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer a ord<strong>em</strong> dada para um massacre contra grupos <strong>de</strong><br />

ju<strong>de</strong>us que habitavam a região da Campânia. Todos amigos e discípulos <strong>de</strong> Alberto<br />

Lúcius.<br />

Mestre Alberto é autorida<strong>de</strong> igualada a Aristóteles, conhecido no planeta inteiro<br />

como Doutor do universal, por uns, e por outros como o Médico Universal, graças a seu<br />

trabalho <strong>em</strong> Ciências Naturais. Títulos que lhe vieram com o t<strong>em</strong>po.<br />

Na carta en<strong>de</strong>reçada a Tomás ele relata que não sairá <strong>de</strong> Colônia. A questão dos<br />

estudos e dos ensinamentos ocultos está estimulando uma revolta por parte <strong>de</strong><br />

segmentos da Igreja e lá ele se encontra <strong>em</strong> certa segurança. Ele sugere cuidados a<br />

Tomás <strong>de</strong> Aquino e o convida para ir a Colônia. Alberto conta que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus estudos <strong>de</strong><br />

Arte <strong>em</strong> Pádua, quando se prontificou a entrar para a ord<strong>em</strong> dos Dominicanos nunca<br />

tinha sido objeto <strong>de</strong> tanta preocupação por parte das autorida<strong>de</strong>s. Soube ele, s<strong>em</strong> atinar<br />

se a informação procedia, que grupamentos <strong>de</strong> clérigos incitaram camponeses à <strong>de</strong>lação<br />

<strong>de</strong> pessoas que estivess<strong>em</strong> <strong>em</strong> contato com o sobrenatural. Queimaram gente nas praças<br />

públicas. As milícias <strong>de</strong> segurança nada fizeram. Um medo se espalha pelas cida<strong>de</strong>s da<br />

Germânia e isso já se torna um mo<strong>de</strong>lo. Uma noite <strong>de</strong>sce sobre a Europa, diz ele.<br />

Alberto relata que <strong>em</strong> Colônia o respeitam com total proprieda<strong>de</strong>. Tanto é que<br />

está abrindo um centro <strong>de</strong> estudos e pe<strong>de</strong> para que seus mais diletos alunos o<br />

acompanh<strong>em</strong>. Tomás <strong>de</strong> Aquino diz que Alberto fala <strong>em</strong> meu nome. Gostaria que eu<br />

estivesse por perto. Diz que há um futuro alvissareiro para mim, se me mantiver no<br />

estudo das artes profundas. Ele ressente da falta <strong>de</strong> mentes abertas para que ele<br />

argumente e discuta sobre as mais recentes interpretações dos escritos Aristotélicos.<br />

Quer fazer isso antes que a Igreja proíba a leitura do mestre grego. Sabe que alguns<br />

prelados se mov<strong>em</strong> e já proibiram a leitura <strong>de</strong> Platão e outros. Um obscurantismo<br />

proposital parece <strong>de</strong>scer sobre todos”.<br />

- É isso – disse Tomás. - Parece que nosso mestre está com muito trabalho e precisa <strong>de</strong><br />

ajuda. Convido a que os senhores, nesta s<strong>em</strong>ana que entra, medit<strong>em</strong> amplamente sobre<br />

o que fazer. Eu tomei minha <strong>de</strong>cisão e vou para Colônia. Os dias <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso e<br />

cont<strong>em</strong>plação se foram. Preciso beber na sabedoria do mestre Alberto, novamente, e<br />

para lá irei.<br />

- Far<strong>em</strong>os isso, Tomás – disse-o <strong>em</strong> nome dos amigos – Tomar<strong>em</strong>os esses últimos dias<br />

para conversarmos sobre o assunto.<br />

- É claro que se quiser<strong>em</strong> permanecer aqui o castelo <strong>de</strong> Roccassecca ficará à disposição.<br />

Mas, não. Partimos todos. Tomás <strong>em</strong> direção da Germânia, levando cartas<br />

minhas a Alberto e eu, com os amigos, <strong>de</strong> volta a Paris, procurando Sonja e Bernard <strong>de</strong><br />

Clairvaux. Nas cartas que enviei para Alberto pedia explicação e luz sobre todos os<br />

eventos pelos quais passamos, mesmo que parecess<strong>em</strong> extraordinários e inacreditáveis.<br />

Pedia para que enviasse correspondência <strong>de</strong> reposta na direção <strong>de</strong> NotreDame, a igreja.<br />

OPUS 15<br />

Em acordo com Burckhardt, as mulheres estavam <strong>em</strong> perfeita igualda<strong>de</strong> com os<br />

homens. Nada mais equivocado. A <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> entre os sexos começava no<br />

nascimento. A maioria das crianças que eram abandonadas era do sexo f<strong>em</strong>inino. Se não<br />

Coelho De Moraes 25


MARCUS, o imortal<br />

eram abandonadas se permitia que morress<strong>em</strong> asfixiadas, por conta <strong>de</strong> amas-secas<br />

assassinas, pagas para isso. A maioria era do sexo f<strong>em</strong>inino, o que prova que as famílias<br />

preferiam filhos a filhas. Ainda assim, as oportunida<strong>de</strong>s educacionais para as moças eram<br />

muito limitadas. A maioria das mulheres não tinha educação alguma. Se tivess<strong>em</strong> alguma<br />

serventia era para se tornar<strong>em</strong> freiras ou eram dirigidas para o casamento. Em geral as<br />

mulheres se tornavam freiras, pois as famílias não podiam arcar com o dote que a<br />

levariam a um casamento.<br />

Como trabalho havia a tecelag<strong>em</strong>, a fabricação <strong>de</strong> velas dos arsenais, ou como<br />

lava<strong>de</strong>iras, ou ainda no trabalho <strong>de</strong> campo, arando e lavrando. Mas, também<br />

cartomantes, curan<strong>de</strong>iras e parteiras – essas, ocupações ligadas à bruxaria.<br />

Além disso, facilmente se encontrava nas estradas as salteadoras armadas.<br />

Mulheres completamente livres e <strong>de</strong>st<strong>em</strong>idas, vestidas <strong>de</strong> homens – certamente por ser<br />

uma vestimenta mais ágil do que preten<strong>de</strong>r roubar coches com vestidos. Raro o<br />

momento do encontro entre mulheres intelectuais, conhecedoras dos segredos<br />

misteriosos da curan<strong>de</strong>ria e do herbalismo e a atitu<strong>de</strong> viril <strong>de</strong> roubar os mais abastados.<br />

Mas é aí que reencontramos Sonja e suas companheira dos antigos estudos <strong>em</strong> Paris. Em<br />

plena Itália.<br />

Tomei conhecimento disso tudo por que nos idos <strong>de</strong> 1252 recebi várias cartas <strong>de</strong><br />

Alberto e Tomás. Eu e os rapazes só conseguimos chegar a Notredame por essa época.<br />

As fugas e <strong>de</strong>saparições eram inúmeras, tomávamos outros caminhos, andávamos <strong>em</strong><br />

círculos, alguns <strong>de</strong> nossos <strong>de</strong>tratatores diziam que andávamos <strong>em</strong> elipses para negar a<br />

harmonia das esferas, enfim, e sabíamos das aventuras e das ações <strong>de</strong>nsas cometidas<br />

por Tomasina, Beatrix, Clara e a querida Sonja. Tirando isso e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> vê-las, o que<br />

me impressionou foram os escritos, que segu<strong>em</strong> abaixo, <strong>de</strong> Alberto sobre o aba<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Clairvaux. O sacristão Perpignan nos entregara as missivas.<br />

“Caro Marcus. Felicida<strong>de</strong>s nas pontas do triângulo.<br />

Causou-me espécie o que você relata sobre Bernard, seu encontro com ele, suas<br />

conversas e o episódio na gruta. Pois b<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> mais <strong>de</strong>longas, <strong>de</strong>vo dizer que Bernard<br />

<strong>de</strong> Clairvaux morreu <strong>em</strong> 1153, portanto há quase c<strong>em</strong> anos. Era um dos doutores da<br />

Igreja francesa, um dos pilares da igreja oci<strong>de</strong>ntal. Mais tar<strong>de</strong> ele se tornou monge<br />

Citerciense e acabou escolhido como aba<strong>de</strong> <strong>de</strong> Clairvaux. Como nós, ele era um teólogo<br />

lutador. Como nós, ele era duro <strong>em</strong> seus pareceres e muita vez <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u com unhas e<br />

<strong>de</strong>ntes as posições da Igreja. Um <strong>de</strong>fensor <strong>de</strong> Reis e Papas. Apesar <strong>de</strong> tudo não rejeitava<br />

o racionalismo na teologia. Como nós, era um professor <strong>de</strong>dicado, porém intensamente<br />

intransigente, <strong>de</strong>fensor da igreja ortodoxa. L<strong>em</strong>bro do Conselho <strong>de</strong> Soisson, quando<br />

conseguiu a con<strong>de</strong>nação dos professores <strong>de</strong> Abelardo, e <strong>de</strong>pois no Conselho <strong>de</strong> Sens.<br />

Hoje sei que foram erros <strong>de</strong> fera tenacida<strong>de</strong>. Conselheiro <strong>de</strong> Papas e Reis, como já disse,<br />

foi proponente ativo para a montag<strong>em</strong> da segunda Cruzada. É <strong>de</strong>le a idéia da ord<strong>em</strong> dos<br />

T<strong>em</strong>plários. Político entre papas e na eleição <strong>de</strong> papas. Policial na persecução <strong>de</strong><br />

esqu<strong>em</strong>as corruptos <strong>de</strong>ntro da igreja. Aquele hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>st<strong>em</strong>ido e s<strong>em</strong>pre l<strong>em</strong>brado por<br />

toda a cristanda<strong>de</strong>. É sua a obra De Diligendo Deo.<br />

Caro Marcus, não se surpreenda ao encontrá-lo por aí. Cuidado com o que ouve<br />

e o que vê. Bernard hoje é um meio, um médium inconsciente, para que as nossas lutas<br />

se mantenham <strong>em</strong> ação. É ao lado <strong>de</strong>le que Sonja está, assaltando nas estradas e<br />

correndo entre guerras e entre povos e cida<strong>de</strong>s. Quando Bernard o encontrou, Sonja<br />

estava entre os soldados, mas recebeu or<strong>de</strong>ns explícitas <strong>de</strong> não se mostrar para você.<br />

Por outro lado, a questão do tal Calatin, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> já lhe contara uma parte da<br />

d<strong>em</strong>oníaca saga, ele está vivo e perdura <strong>em</strong> <strong>de</strong>struições, hoje pela costa sul <strong>de</strong> Espanha.<br />

É um ser vivente normal. Anormal nas suas ações. Ele congrega um exército imenso e<br />

conta-se por aí que traz respaldo dos mouros que estão <strong>em</strong> Jerusalém, mas nisso eu não<br />

acredito. Calatin parece ter nascido do mais voraz dos vulcões... ele exerce um fascínio<br />

absoluto sobre pobres seres s<strong>em</strong> eira n<strong>em</strong> beira e leva a todos <strong>de</strong> roldão <strong>em</strong> suas<br />

façanhas pelas florestas. Sobre Calantin todo o cuidado será pouco.<br />

Sei <strong>de</strong> seu carinho por Sonja. Sei que a menina é afeiçoada ao caro Marcus. Mas,<br />

por enquanto, há que se manter distâncias. Há uma causa <strong>em</strong> jogo e eu <strong>de</strong>vo dizer que<br />

Bernard - morto e vivo – Sonja e você, são componentes <strong>de</strong>sse jogo. Perdoe-me, mas,<br />

d<strong>em</strong>iurgos pod<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>pre modificarão os caminhos da história e da natureza, buscando<br />

um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> paz. É puro cinismo dizer que não se fará nada ou se <strong>de</strong>ixará que a natureza<br />

siga seu rumo. Os homens comuns alteram a natureza com a tecnologia e artifícios que<br />

Coelho De Moraes 26


MARCUS, o imortal<br />

vêm evoluindo a cada dia. O d<strong>em</strong>iurgo altera a natureza <strong>em</strong> suas profundida<strong>de</strong>s<br />

essenciais. Tudo é muito complexo e a vida se consome nisso.<br />

Fica a benção meritória e votos <strong>de</strong> corag<strong>em</strong>.<br />

Alberto Lúcius, <strong>de</strong> Colônia.”<br />

OPUS 16<br />

A impressão que me ficou da carta só me fez acreditar mais que aqueles t<strong>em</strong>pos<br />

eram <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> mudança nas vidas <strong>de</strong> tantos quantos pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> escolher entre abaixar<br />

a cabeça e obe<strong>de</strong>cer ou apren<strong>de</strong>r e seguir <strong>em</strong> frente, mesmo que isso custasse vidas e<br />

talentos.<br />

Comovido, contei tudo aos companheiros. Não se <strong>de</strong>tiveram da nossa<br />

<strong>em</strong>preitada. Dos nossos estudos. Prontificaram-se a caminhar nessa senda do oculto e<br />

quiseram <strong>de</strong>terminar constant<strong>em</strong>ente a disposição <strong>de</strong> enfrentamento que logo chegaria<br />

até nós.<br />

Debat<strong>em</strong>os arduamente sobre Bernard e houve consenso. Se era alguém que se<br />

fazia passar pelo cavaleiro ou, se por essas razões <strong>de</strong> miraculosos aci<strong>de</strong>ntes, era ele,<br />

redivivo, <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> seu Graal particular, não saberíamos. Espantou-me ainda o fato <strong>de</strong><br />

Sonja o acompanhar. Espantou-me a imag<strong>em</strong> da salteadora. A mulher que cavalgava ao<br />

lado <strong>de</strong> seres claramente <strong>de</strong>stroçados, rotos, <strong>de</strong> aspecto <strong>de</strong>plorável, ornada <strong>de</strong> elmos e<br />

armaduras.<br />

- Toma a própria estela da revelação – disse LaCordaire – e coloca-a num t<strong>em</strong>plo<br />

secreto. Vamos atrás <strong>de</strong>sse t<strong>em</strong>plo. É hora <strong>de</strong> agir com mais ciência com as armas que<br />

t<strong>em</strong>os e conhec<strong>em</strong>os. Se não me engano e pelo que entendi, Alberto lhe dá esse aval,<br />

Marcus.<br />

- É. T<strong>em</strong> razão. Esse t<strong>em</strong>plo já está corretamente disposto. Precisamos saber <strong>de</strong> sua<br />

clara localida<strong>de</strong>.<br />

- Talvez seja a tal Igreja dos Pireneus e a aparição, digamos assim, <strong>de</strong> Bernard e os<br />

acontecimentos da gruta sejam sinais... – disse Pietro – O que sei é que a imag<strong>em</strong> do<br />

que é sagrado não <strong>de</strong>sbotará, mas que uma cor milagrosa retornará a ela dia após dia,<br />

caso tom<strong>em</strong>os a ofensiva e acion<strong>em</strong>os os mecanismos secretos do universo.<br />

- Fechar<strong>em</strong>os tudo <strong>em</strong> um vidro trancado como uma prova ao mundo - completou<br />

Alexandrino. Tive que concordar com eles.<br />

- Esta será nossa única prova <strong>de</strong> combate constante. Eu proíbo qualquer argumento<br />

contrário. Conquistar os mecanismos do mundo! Isso bastará.<br />

- Talvez – explicava LaCordaire – seja necessário fazer fácil o exorcismo da casa malor<strong>de</strong>nada<br />

na Cida<strong>de</strong> Vitoriosa <strong>de</strong> Roma. Você mesmo, Marcus, transmitirá isto com<br />

adoração, como o profeta, apesar <strong>de</strong> não gostar da situação como está.<br />

- Saiba que passar<strong>em</strong>os por perigo e tribulação – eu disse.<br />

- Adorar o trabalho pela causa com fogo e sangue – falou LaCordaire com épico olhar.<br />

- Sair para as ruas conclamando as hostes a se posicionar<strong>em</strong> com espadas e lanças –<br />

opinou Pietro. – Tudo isso me parece com os sagrados i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> cavalaria.<br />

- Não vamos tão avidamente nos agarrar <strong>em</strong> promessas; mas não hav<strong>em</strong>os <strong>de</strong> t<strong>em</strong>er<br />

incorrer <strong>em</strong> maldições. Os soldados do Papa estão por toda a parte e muitos se farão<br />

passar por eles – eu falei, subitamente incorporando uma força que não sabia <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

vinha - Nada t<strong>em</strong>er<strong>em</strong>os do todo; não t<strong>em</strong>er<strong>em</strong>os n<strong>em</strong> homens, n<strong>em</strong> Fados, n<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>uses, n<strong>em</strong> coisa alguma. Dinheiro não t<strong>em</strong>er<strong>em</strong>os, n<strong>em</strong> riso da tolice popular, n<strong>em</strong><br />

qualquer outro po<strong>de</strong>r no céu ou sobre a terra ou sob a terra.<br />

- É isso, Marcus! Misericórdia seja fora: malditos os que se apiedam! – gritou Pietro -<br />

Essa estela que traz<strong>em</strong>os e levamos para todos os lados, produzida <strong>em</strong> nossos<br />

laboratórios e sacralizada sob a égi<strong>de</strong> <strong>de</strong> Alberto, ela será chamada Abominação <strong>de</strong><br />

Desolação; conta b<strong>em</strong> seu nome, e será para todos como 718. Um número <strong>de</strong> intensa<br />

magia e prepon<strong>de</strong>rância.<br />

Imediatamente tomei da estela <strong>de</strong> mármore cinzento on<strong>de</strong> escritos variados<br />

eram vistos e sobre ela impus<strong>em</strong>os nossas intenções. Mero simbolismo.<br />

- Levanto a imag<strong>em</strong> da estela para que ela seja direcionada para o Leste – falei, sentindo<br />

que meus braços dormiam e que minha boca se elevava <strong>em</strong> tons e alturas - As outras<br />

imagens serão agrupadas ao meu redor para me suportar<strong>em</strong>: que todas sejam adoradas,<br />

pois elas se juntarão para exaltar nosso trabalho. Eu represento o objeto visível <strong>de</strong><br />

adoração; os outros são secretos.<br />

Imediatamente fiz<strong>em</strong>os pausa <strong>em</strong> nossa disposição e Pietro ficou encarregado <strong>de</strong><br />

Coelho De Moraes 27


MARCUS, o imortal<br />

buscar uma mulher nas ruas, <strong>de</strong> preferência uma que tivesse simpatia pelos trabalhos<br />

secretos. Não d<strong>em</strong>orou muito. Coisa <strong>de</strong> quarenta minutos e retornou com Urraca, mulher<br />

do mestre barbeiro e ela mesma parteira. Uma mulher esguia, cabelos soltos e<br />

ondulados, não mais que vinte e cinco anos, e pediu que ela esperasse sentada <strong>em</strong> um<br />

tamborete, enquanto retomamos a ronda. Pietro se pôs a confeccionar o perfume: uma<br />

mistura <strong>de</strong> farinha e mel e grossas sobras <strong>de</strong> vinho tinto: <strong>de</strong>pois, procurando nos<br />

armários <strong>em</strong> cofre escondido sob o selo <strong>de</strong> Salomão, tomou, então, óleo <strong>de</strong> Abramelin e<br />

óleo <strong>de</strong> oliva, e <strong>de</strong>pois, amoleceu e amaciou com gotas <strong>de</strong> rico sangue fresco. Nesse<br />

momento Urraca se aproximou, abriu as pernas e retirou <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da vagina resíduo <strong>de</strong><br />

sangue menstrual. O melhor sangue era o da lua negra.<br />

- Um momento, disse Pietro – e saiu para a rua, novamente. No retorno trouxe, <strong>em</strong> um<br />

pires <strong>de</strong> barro, mais um pouco <strong>de</strong> sangue. O sangue fresco <strong>de</strong> uma criança. Pietro<br />

passara a lâmina da faca sobre a pele tenra do menino. A criança chorou muito, segundo<br />

ele, por causa do corte <strong>em</strong> seu <strong>de</strong>do, mas logo se calou quando Pietro lhe ofereceu água<br />

fresca e um broche <strong>de</strong> pedras ver<strong>de</strong>s. Em seguida, s<strong>em</strong> pieda<strong>de</strong> alguma, partiu para cima<br />

<strong>de</strong> inimigos <strong>de</strong>clarados. Eram soldados papais e <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les trouxe mais gotas <strong>de</strong><br />

sangue, que ele foi juntando à massa que construía. S<strong>em</strong>pre nos mantínhamos <strong>em</strong><br />

espera. A cada saída <strong>de</strong> Pietro a sensação era <strong>de</strong> que o t<strong>em</strong>po havia parado. Em seguida,<br />

vinha a sensação do perigo. O sangue seguinte tinha que vir <strong>de</strong> algum sacerdote ou<br />

adoradores dos ídolos, comprovadamente ligados aos inquisidores. Por último, o sangue<br />

<strong>de</strong> algum animal.<br />

- Pronto! Peguei todos os sangues necessários.<br />

Assim Pietro pegou da massa, daquela borra sanguínea e queimou: daquilo fez<br />

bolos e comeu alguns. Depois engendrou outro uso; esten<strong>de</strong>u diante <strong>de</strong> mim e acen<strong>de</strong>u<br />

a massa. Logo os perfumes e um mar <strong>de</strong> orações: não d<strong>em</strong>orou muito para que a casa<br />

ficasse cheia <strong>de</strong> besouros, grilos e vagalumes. No momento seguinte matou a todos,<br />

nomeando os inimigos – Papa, Reis, soldados, perseguidores.<br />

- Eles cairão diante <strong>de</strong> nós – disse Pietro, e o suor porejava-lhe a testa - Também<br />

ser<strong>em</strong>os fortes na guerra. Além do mais, que sejam tais insetos mortos guardados<br />

longamente, é melhor; pois eles aumentam nossa força.<br />

- Mas o lugar sagrado será intocado através dos séculos: acredito agora que a busca da<br />

igreja <strong>de</strong> Pireneus seja o caminho correto a seguir – a fumaça se espalhava pela casa e<br />

pessoas já falavam alto do lado <strong>de</strong> fora, questionando o que acontecia no interior.<br />

- Apesar disso, com fogo e espada abri<strong>em</strong>os os caminhos. Ainda assim uma casa invisível<br />

lá permanece, no alto das montanhas, talvez... e permanecerá até a queda do Gran<strong>de</strong><br />

Equinócio.<br />

- O outro profeta po<strong>de</strong> ser você, Marcus, e terá <strong>de</strong> se erguer e trará febre fresca dos<br />

céus; é o que esperamos. – falou laCordaire.<br />

- Uma outra mulher acordará o ardor e adoração da Serpente; talvez seja Sonja...<br />

talvez... outra alma... outro sacrifício manchará a tumba <strong>de</strong> antigos Reis e Papas; outro<br />

rei reinará; então, a noite negra chegará; bênçãos não mais serão <strong>de</strong>rramadas. A noite<br />

<strong>de</strong> Horus.<br />

Inexplicavel, mas com gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a mulher Urraca que estava conosco e doara<br />

seu sangue menstrual passou a falar <strong>em</strong> claro <strong>de</strong>lírio, estampando-se nela a mesma<br />

imag<strong>em</strong> da mulher da gruta, que saía do lago: - Heru-ra-há; Hoor-pa-kraat; Ra-Hoor-<br />

Khut. Ela ainda continuou a falar <strong>de</strong>sbragadamente, apontando o <strong>de</strong>do para mim. Os<br />

olhos estavam esbugalhados e os cabelos grudavam-se na cabeça dominada pelo suor:<br />

- Eu te adoro na canção. Eu sou o Senhor <strong>de</strong> Tebas, e eu o inspirado antevi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

Mentu; auto-sacrificado Ankh-af-na-khonsu. Saúdo o Ra-Hoor-Khuit! Aum! que isto me<br />

preencha! – e imediatamente ela <strong>de</strong>sfaleceu.<br />

Batiam na porta. No início <strong>de</strong> maneira normal, <strong>de</strong>pois, após os gritos, batiam com paus e<br />

socos. A turba gritava lá fora, já com o misto <strong>de</strong> medo e terror daquilo que já n<strong>em</strong><br />

sabiam do que se tratava.<br />

- A luz está <strong>em</strong> mim – eu disse, animado pela visão das luzes e das cinzas - E sua flama<br />

vermelha é como uma espada <strong>em</strong> minha mão para <strong>em</strong>purrar a ord<strong>em</strong>.<br />

- Há uma porta aqui atrás, não muito secreta, mas ótima para <strong>de</strong>termos durante algum<br />

t<strong>em</strong>po esse pessoal – falou rapidamente LaCordaire – é por aqui que sair<strong>em</strong>os.<br />

- Por Bes-na-Maut, <strong>em</strong> meu peito eu bato – a mulher gritou, e se <strong>de</strong>batia alucinada,<br />

socando a si própria. Ela pulava como se estivesse <strong>em</strong> transe e ria e chorava e gritava<br />

pelos animais e pela coleção <strong>de</strong> animais presos nos campos do condado. Alexandrino<br />

Coelho De Moraes 28


MARCUS, o imortal<br />

tentou carregar a mulher Urraca, porém seus movimentos eram intensos d<strong>em</strong>ais. Sua voz<br />

estava se tornando rouca: - Pelo sábio Ta-Nech, eu teço meu encanto. Mostra teu<br />

esplendor-estelar, Ó Nuit! Ó serpente alada <strong>de</strong> luz, Hadit! Habita comigo, Ra-Hoor-Khuit!<br />

Tudo isto, agora, está escrito <strong>em</strong> um livro que eu reputo sagrado, para dizer<br />

como cheguei até esse ponto, até aqui e, <strong>de</strong>vo esclarecer que não seria possível s<strong>em</strong><br />

meus amigos e companheiros <strong>de</strong> senda. Há uma reprodução <strong>de</strong>sta tinta e papel para<br />

s<strong>em</strong>pre guardados <strong>em</strong> lugar seguro - pois nisto está a palavra secreta e não apenas na<br />

língua dos povos sagrados - e o comentário sobre este Livro da Lei será impresso<br />

belamente <strong>em</strong> tinta vermelha e preta sobre a estela, sobre os papéis perfumados e belos<br />

papéis feitos à mão.<br />

-Corre, Marcus, a porta está <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfazendo a machadadas. A mulher fica. Ela não pára<br />

<strong>de</strong> gritar e pesa d<strong>em</strong>ais. – gritou Pietro – O que era para ser feito já foi – e a ma<strong>de</strong>ira da<br />

porta se estilhaçava enquanto tentava-se fazer Urraca entrar nos planos s<strong>em</strong>i-secretos<br />

além das pare<strong>de</strong>s. Nisso ela <strong>de</strong>spertou e facilitou nossa fuga. Do corredor, já com a<br />

pare<strong>de</strong> abaixada e dando-nos t<strong>em</strong>po para ganharmos distância, ouvimos que a porta da<br />

frente <strong>de</strong>sabou <strong>em</strong> estrondo, que a multidão não parava <strong>de</strong> ulular, que as peças da sala<br />

eram <strong>de</strong>struídas e que insetos e besouros e escaravelhos restantes eram pisoteados por<br />

todos e todos bradavam que nos queriam matar, aos bruxos e feiticeiros.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, sentados nos gramados dos campos, já mais leves, presos a um<br />

torvelinho <strong>de</strong> tranqüilida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> pequena fogueira, comíamos um pouco,<br />

recuperando energias corporais e mentais. Eu disse:<br />

- E , para cada hom<strong>em</strong> e mulher que encontrarmos, seja para jantar ou para beber com<br />

eles, esta é a Lei a ser dada. Então eles terão a chance <strong>de</strong> permanecer nesta felicida<strong>de</strong><br />

ou não; isto não é probl<strong>em</strong>a nosso, por fim. Será probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong>les.<br />

- E o trabalho do comentário? – perguntou Pietro, escriba e magista <strong>em</strong>polgado com as<br />

resoluções.<br />

- Isso é fácil - disse Urraca - e Hadit queimando <strong>em</strong> teu coração fará rápida e segura a<br />

tua pena <strong>de</strong> escrever. Não argumente; não converta ninguém; não converse muito! Os<br />

que quer<strong>em</strong> <strong>em</strong>boscar, <strong>de</strong>rrotar, <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser atacados s<strong>em</strong> pena ou rendição.<br />

- É, essa mulher sabe o que fala. De on<strong>de</strong> v<strong>em</strong> tanta palavra, mulher? - perguntou<br />

Pietro, com outras intenções, além <strong>de</strong> saber das origens <strong>de</strong> Urraca.<br />

- Foi o encontro com a Mulher Escarlate. É preciso que tenha cautela!<br />

- Se pena, compaixão e ternura visitar<strong>em</strong> meu coração – ele continuou – eu vou me<br />

permitir <strong>de</strong>ixar meu trabalho, <strong>de</strong> vez <strong>em</strong> quando, para brincar com as velhas doçuras<br />

f<strong>em</strong>ininas.<br />

- Então minha vingança será conhecida. Eu alienarei seu coração, – e Urraca riu, como<br />

leve displicência e certo ardor. Pietro gostou do que viu.<br />

- Parece que minha escolha foi correta. Fui encontrá-la on<strong>de</strong> <strong>de</strong>via.<br />

- Eu me expulsei dos homens: como uma meretriz encolhida e <strong>de</strong>sprezada, eu rastejava<br />

por ruas úmidas escuras e muitas vezes sofri que morria com o frio e com a fome. Agora<br />

vejo que me posso abrir novamente para gozos. Longe da prisão da minha casa. Longe<br />

dos olhos das matronas do burgo.<br />

- Mas que Urraca se erga <strong>em</strong> orgulho! – falou Pietro <strong>de</strong> Ferrara. Que ela me siga <strong>em</strong><br />

meu caminho, se quiser, pois eu a seguirei no <strong>de</strong>la, se ela mo permitir! Que Urraca mate<br />

seu coração, <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento do meu! Que Urraca seja berrante e gozosa! Só não haverá<br />

promessas <strong>de</strong> que Urraca será coberta com jóias e roupas ricas!<br />

- Urraca – ela mesma falou - está, agora, <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> vergonha diante <strong>de</strong> todos os<br />

homens!<br />

-<br />

OPUS 17<br />

O que aconteceu naqueles dias eu escrevi. Tomei dos manuscritos do escriba<br />

Pietro e enviei para Alberto, <strong>de</strong>pois do encontro <strong>em</strong> Paris. Citei Urraca. Nomeada Urraca<br />

<strong>de</strong> Valver<strong>de</strong>, filha <strong>de</strong> ciganos, açougueiros, barneiros e nôma<strong>de</strong>s, mulher ligada aos<br />

po<strong>de</strong>res da baixa magia, e, hoje, componente do nosso grupo <strong>de</strong> viajantes. Vamos aos<br />

Pireneus, se nada nos atrapalhar. Este esboço <strong>de</strong> livro será traduzido para todas as<br />

línguas por quais passamos e <strong>em</strong> cada er<strong>em</strong>itério <strong>de</strong>ixar<strong>em</strong>os uma cópia para que o<br />

futuro encontre os caminhos do sagrado, como estamos vendo e como estamos<br />

seguindo. Sei que, após tudo isso, virá alguém, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu não digo, que <strong>de</strong>scobrirá a<br />

Chave dos mistérios. Então, esta linha traçada é uma chave e este círculo esquartejado<br />

<strong>em</strong> sua falha é uma chave também. E Abrahadabra será sua criança, palavra primeva,<br />

Coelho De Moraes 29


MARCUS, o imortal<br />

explico aqui. Que se não vá – o curioso - não vá atrás disto; pois por isso apenas ele –<br />

curioso puro - po<strong>de</strong> cair. Abrahadabra continua sendo uma palavra <strong>de</strong> perigo.<br />

“Caro Alberto, este mistério das letras está acabado, e eu quero ir para o local<br />

mais sagrado. A procura é intensa. Várias vezes <strong>de</strong>paramos com preconceitos e a<br />

suspeita <strong>de</strong> terceiros sobre nossos trabalhos. Vagamos há cinco anos. Man<strong>de</strong> benesses e<br />

augúrios a Tomás <strong>de</strong> Aquino. Que ele pense <strong>em</strong> nós com carinho. Lentamente estamos<br />

nos inserindo nas mais misteriosas salas e secretos corredores dos enigmas. Torna-se<br />

difícil o relacionamento normal com as pessoas <strong>de</strong> modo geral. Sonhamos com agrupar o<br />

máximo <strong>de</strong> estranhos, como Urraca, mas passam-se os anos e são poucos os que nos<br />

quer<strong>em</strong>.<br />

Eu estou <strong>em</strong> uma quádrupla palavra secreta, a blasfêmia contra todos os <strong>de</strong>uses dos<br />

homens.<br />

Cristãos e muçulmanos nos persegu<strong>em</strong>. Alguns budistas perdidos <strong>de</strong> seus navios<br />

mercantes não se aproximam e n<strong>em</strong> nos carregam. Urraca grita nas noites, enquanto<br />

esbanja seu corpo com os homens. O probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong>la é o novo dogma da Maria inviolada.<br />

Urraca <strong>de</strong>seja que ela seja <strong>de</strong>spedaçada sobre rodas: por sua causa, as mulheres são<br />

<strong>de</strong>sprezadas ao máximo! Sonja é outro ex<strong>em</strong>plo da rebeldia. Também o é pela graça da<br />

beleza e da paixão!<br />

Eu, por mim, <strong>de</strong>sprezo também todos os covar<strong>de</strong>s; soldados profissionais que<br />

não ousam lutar, mas brincam; todos os tolos, <strong>de</strong>sprezo! Não há lei além <strong>de</strong> “faz o que<br />

tu queres”. Há, enfim, um fim da palavra do Deus entronado no assento <strong>de</strong> Ra, aliviando<br />

as vigas da alma. O olho <strong>de</strong> Ra, o triângulo divino, a tría<strong>de</strong> que tudo vê. O olho do sol -<br />

Ra .<br />

Alberto, para todos, ainda, para todos, isto parecerá belo. Sei que o texto po<strong>de</strong><br />

l<strong>em</strong>brar as palavras <strong>de</strong> um louco, mas o mundo está <strong>de</strong> outra forma que não aquela <strong>em</strong><br />

que <strong>de</strong>ixei Paris fugindo dos soldados. Mas há algum sucesso.<br />

Salve! guerreiros gêmeos – Alberto e Tomás, mestre e aluno, sobre os pilares do<br />

mundo! pois o t<strong>em</strong>po está b<strong>em</strong> próximo. Há um esplendor <strong>em</strong> meu nome secreto e<br />

glorioso, que vejo <strong>em</strong> sonhos e não tenho como <strong>de</strong>screver. LaCordaire se faz <strong>de</strong> meu<br />

confi<strong>de</strong>nte. É o mais velho e mais experiente, além <strong>de</strong> me <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> todos os golpes<br />

do <strong>de</strong>stino. A paixão por Sonja. As visões e a interpretação <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>lírios.<br />

Hoje só posso dizer que o final das palavras é a Palavra Abrahadabra. E com ela<br />

eu <strong>de</strong>ixo selar esta carta para que caia <strong>em</strong> suas sábias mãos.<br />

OPUS 18<br />

O t<strong>em</strong>po se foi medido <strong>em</strong> relógios <strong>de</strong> água. Clepsidras brilhantes.<br />

Eu e o grupo estávamos nos reinos italianos quando nos chegou um mensageiro<br />

que conhecia Alberto Magno e po<strong>de</strong> trazer novas. Acolh<strong>em</strong>o-lo na cabana <strong>de</strong> um antigo<br />

rancho franciscano, próximo <strong>de</strong> Rivotorto, b<strong>em</strong> perto <strong>de</strong> Assis. Soub<strong>em</strong>os que Tomás <strong>de</strong><br />

Aquino se tornou mestre <strong>em</strong> teologia e <strong>de</strong>pois estava na Itália, junto à corte papal.<br />

Novamente <strong>em</strong> Paris e <strong>de</strong>pois outra viag<strong>em</strong> para encabeçar os dominicanos com a<br />

formação <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> estudos gerais. Para Tomás, a educação era necessária.<br />

Padres e religiosos, segundo ele, tinham a obrigação <strong>de</strong> saber e saber cada vez mais.<br />

Quanto a Alberto, ele se tornou provincial dos dominicanos, <strong>em</strong> seguida, s<strong>em</strong><br />

per<strong>de</strong>r a noção <strong>de</strong> sua responsabilida<strong>de</strong>, foi tornado bispo <strong>de</strong> Regensburg e pastor<br />

incondicional das Cruzadas. Não sei das relações misteriosas <strong>de</strong>le com Bernard, então.<br />

Foi por essa época que conhec<strong>em</strong>os Siger <strong>de</strong> Brabant, <strong>em</strong> uma <strong>de</strong> suas viagens<br />

para saber dos Averroistas da Sicília.<br />

No entanto, numa noite <strong>de</strong> Nov<strong>em</strong>bro, se não <strong>em</strong> engano no dia 10, um dia que<br />

me pareceu sagrado pela quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sinais que vi nos céus, ouvimos novamente falar<br />

da horda <strong>de</strong> T<strong>em</strong>plários que rondava o continente. Um monge que voltava <strong>de</strong><br />

peregrinação à Terra Santa nos encontrou a tomar sol numa velha abadia perdida na<br />

floresta.<br />

- Bons dias – disse ele - É por aqui que se vai a Roma?<br />

- Esse caminho o levará à Veneza e esse outro a Nápoles. Depois, segue com uma<br />

caravana que sai <strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro para Roma – respondi amavelmente – De on<strong>de</strong> o senhor<br />

v<strong>em</strong>?<br />

- Venho das Ilhas. Mais precisamente da Córsega. Fugindo. Vou para Roma <strong>em</strong> busca <strong>de</strong><br />

consolo e perdão. Matei um padre.<br />

Aquilo assombrou sobr<strong>em</strong>aneira a nós todos que escutávamos.<br />

Coelho De Moraes 30


MARCUS, o imortal<br />

- É. Acho que era padre. Estava à cavalo e trajava uma roupa com a cruz <strong>de</strong> malta. Se<br />

não era um padre era um dos cavaleiros do T<strong>em</strong>plo.<br />

- E quando foi isso? – LaCordaire perguntou, rispidamente. O outro olhou <strong>de</strong> soslaio e<br />

levantou as sobrancelhas, antes <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r:<br />

- Quando eu retornava <strong>de</strong> Jerusalém, na direção da Sicília.<br />

- Mas os T<strong>em</strong>plários estão presentes para proteger os peregrinos... não é isso? –<br />

perguntou Pietro, mais para buscar resposta do que claramente interessado no assunto<br />

ou para tomar qualquer partido.<br />

- Vocês têm água? – o monge pediu.<br />

- Claro que sim... <strong>de</strong>sculpe-nos pela má recepção – <strong>de</strong>i um salto rápido. Fui buscar a<br />

moringa e ainda pu<strong>de</strong> notar que o monge mirava b<strong>em</strong> a todos, cenho franzido, leve<br />

sorriso. Ele falou:<br />

- Obrigado – e sorveu o líquido – isso é certo. Os cavaleiros exist<strong>em</strong> para isso – bebeu<br />

outro gole – mas não exist<strong>em</strong> para amealhar tesouros – bebeu novamente, <strong>de</strong>ssa vez,<br />

muito mais e longamente. A água caiu sobre a sua roupa, – ... e n<strong>em</strong> para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os<br />

interesses do d<strong>em</strong>ônio.<br />

- O senhor po<strong>de</strong> explicar isso melhor? – perguntei. O sol intenso atingia sua testa como a<br />

iluminá-lo para boas palavras e dons.<br />

- Obrigado pela água. Eu sou Feblen. Monge. Porém, <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> fidalga. Seguidor dos<br />

franciscanos. Se estamos nos <strong>de</strong>sfazendo <strong>de</strong> nossos bens terrenos, não posso admitir<br />

que cavaleiros papais entesour<strong>em</strong> as jóias e riquezas <strong>em</strong> troca <strong>de</strong> proteção. Na Sicília<br />

acontece muito disso.<br />

- Você está com a razão, - mas ele pareceu não ouvir.<br />

-Na Ilha há grupos formados que se tornaram protetores das comunida<strong>de</strong>s. Claro está<br />

que têm <strong>de</strong> ser pagos para exercer o ofício que ninguém pediu. E são todos <strong>de</strong> orig<strong>em</strong><br />

T<strong>em</strong>plária.<br />

- Desse jeito estarão <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cendo as or<strong>de</strong>ns da igreja – <strong>de</strong>clarou Pietro.<br />

- Para eles tanto faz. Não é como no passado. Segui muito esses T<strong>em</strong>plários. Des<strong>de</strong> a<br />

época <strong>em</strong> que meus avós os chamavam <strong>de</strong> Pobres Soldados Cristãos. Faz muito t<strong>em</strong>po.<br />

– ele <strong>de</strong>u uma pausa olhando para o céu – Não acham que hoje choverá, não é? Esse<br />

vento me incomoda. E esse calor. Há muita umida<strong>de</strong> no ar.<br />

- E por que o senhor matou um padre ou T<strong>em</strong>plário? Já que o senhor tociu no assunto<br />

vá ate´o fim, – perguntou Alexandrino e o monge ficou olhando para ele, atentamente,<br />

durante segundos, tomando todos lufadas do vento que pareceu se ampliar após ser<br />

mencionado pelo monge.<br />

- Você não é muito jov<strong>em</strong>? Jov<strong>em</strong> d<strong>em</strong>ais para tanta pergunta.<br />

- Tenho vinte e um.<br />

- Estudante? Vocês são estudantes?<br />

- Sim – eu disse – mas por enquanto estamos fora <strong>de</strong> nossa jurisdição, que é Paris. Faz<br />

t<strong>em</strong>po que não retornamos. Somos antigos alunos <strong>de</strong> Alberto...<br />

- Ah! … O Gran<strong>de</strong> Alberto...<br />

- Sim. E também amigos <strong>de</strong> Tomás...<br />

- Tomás <strong>de</strong> Aquino... o doutor... ah!... muito b<strong>em</strong>... logo terão os t<strong>em</strong>plários no seu<br />

encalço também... pena...<br />

- O que quer dizer com isso?<br />

- Quero dizer que os processos da Inquisição estão mais severos, digamos assim... os<br />

padres, os papistas e seus asseclas estão caçando os... como direi... diferentes...e, pelo<br />

visto, vocês estarão nessa lista <strong>de</strong> diferentes... é preciso cuidado. Pensadores... – disse<br />

<strong>de</strong>bochado e ainda riu.<br />

- Parece que a Igreja não quer <strong>de</strong>ixar sequer um aspecto do mundo a ser examinado e<br />

taxado <strong>de</strong> bom ou mal para as pessoas... segundo eles, é claro – disse LaCordaire.<br />

- Correto, meu jov<strong>em</strong> – o monge falou – Magnificência ou miséria, ingenuida<strong>de</strong>, tons<br />

sinistros, tudo passa pelo crivo dos padres... a eles exaspera as grandiosas conquistas do<br />

pensamento humano... – ele passou a mão pela cabeça calva – Mundo com muitos lados<br />

e milhares <strong>de</strong> interpretações está fora da realida<strong>de</strong>, segundo citam os representantes<br />

papistas. A tendência é uma idéia única e uma única direção, com a bênção do papa, é<br />

claro.<br />

- Mas estamos no Mundo velho <strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado os Orientais e Muçulmanos,<br />

S<strong>em</strong>itas... estamos on<strong>de</strong> a civilização herdou uma gran<strong>de</strong> parte da sabedoria grega... a<br />

base <strong>de</strong> nosso pensamento – disse Pietro, anotando tudo e <strong>de</strong>screvendo a todos – e por<br />

Coelho De Moraes 31


MARCUS, o imortal<br />

ser Velho e Pensador a esse mundo se <strong>de</strong>ve resguardar uma boa quantia <strong>de</strong> formalismo,<br />

mas não <strong>de</strong> perseguição.<br />

- Mas o fato é que o senhor matou um padre.<br />

- É. Isso é fato. E sou obrigado a correr para as abas do papa antes que me mand<strong>em</strong><br />

para lá. Pelo menos posso me <strong>de</strong>clarar culpado <strong>de</strong> alguma coisa e pedir perdão –<br />

novamente o vento bateu <strong>em</strong> nossas vestes. Urraca apareceu, carregando roupas e<br />

objetos que ela lavara. Ela e o monge se olharam. Ele estranhou a presença da mulher e<br />

perguntou:<br />

- Qu<strong>em</strong> é? A concubina <strong>de</strong> vocês? Algum tipo <strong>de</strong> escrava?<br />

- Não - adiantei – nada disso. Ela fugiu conosco e é companheira do grupo. Saiba que<br />

nos revezamos no cuidado com o coletivo. Por coincidência, o senhor chegou no turno<br />

<strong>de</strong>la. Alexandrino, por ex<strong>em</strong>plo, é responsável, nesse turno, <strong>de</strong> colher frutas e buscar<br />

pomares. Eu tenho a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pescar. Pietro <strong>de</strong> Ferrara é o escriba e está no<br />

turno <strong>de</strong> segurança, da mesma forma que LaCordaire.<br />

- Sei... sei... – disse o monge, d<strong>em</strong>onstrando que <strong>em</strong> nada daquilo acreditava – <strong>de</strong><br />

qualquer forma, bons dias, minha senhora... – e não <strong>de</strong>sgrudou os olhos <strong>de</strong> Urraca que<br />

lhe retribuiu um sorriso.<br />

- Fale sobre a morte – instigou Lacordaire.<br />

- Está b<strong>em</strong>. Falarei. Mas antes gostaria <strong>de</strong> vinho. Vocês têm? – Ante o espanto <strong>de</strong> todos<br />

o monge ainda concluiu: - Essa água <strong>de</strong> vocês é muito ruim.<br />

- Não – prontamente respondi – Mas t<strong>em</strong>os pão e uvas.<br />

- Não quero. Os Cavaleiros do t<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> Salomão... religiosos, furiosos e guerreiros...<br />

dar<strong>de</strong>javam pelos campos sobre cavalos po<strong>de</strong>rosos. Meu avô, eu dizia, conheceu e acho<br />

que foi um <strong>de</strong>les. Talvez <strong>de</strong> certa importância. Seu nome era Geoffroy. Família <strong>de</strong> Saint-<br />

Omer. Ninguém falava disso lá <strong>em</strong> casa, é b<strong>em</strong> verda<strong>de</strong>. Ele dizia que os teares da<br />

família, apesar <strong>de</strong> trazer<strong>em</strong> riqueza, não po<strong>de</strong>riam tecer alianças com nefastos<br />

anticristãos e que a Terra Santa era nossa... essa coisa toda... e dizia aos gritos...<br />

Resolvi arriscar um nome.<br />

- E Bernard <strong>de</strong> Clairvaux?<br />

- Você sabe sobre ele? O pai dos T<strong>em</strong>plários?! – olhou para mim com estranheza.<br />

- Sim. Que sabe você sobre ele?<br />

- Bom… ele consi<strong>de</strong>rou uma série <strong>de</strong> regras para a ord<strong>em</strong>... a Ord<strong>em</strong> dos Cavaleiros do<br />

T<strong>em</strong>plo... e direcionou-a para um sist<strong>em</strong>a que impunha pobreza, castida<strong>de</strong>... – e olhou<br />

para Urraca enquanto ela retornava – castida<strong>de</strong> e obediência... pelo menos era o que<br />

estava no papel, b<strong>em</strong> manuscrito pelos maiores da Ord<strong>em</strong>. Cousa do século passado, eu<br />

creio.<br />

- Seu avô era o quê, no grupo... que cargo ocupava? – perguntou Pietro.<br />

- Era artesão... Havia capelães, cavaleiros, oficiais <strong>de</strong> apoio... era uma Ord<strong>em</strong> b<strong>em</strong><br />

estabelecida... ainda é... o probl<strong>em</strong>a é que só <strong>de</strong>viam obediência ao papa e nunca às leis<br />

seculares... isso causou transtornos...<br />

- Senhor <strong>de</strong> Saint-Omer, se é que posso assim chamá-lo – <strong>de</strong>vo dizer que encontramos<br />

Bernard, anos atrás... – vi que o monge se espantou com o que disse e um leve sorriso<br />

<strong>de</strong> mofa aflorou-lhe os lábios.<br />

- Vocês o viram?. Isso provaria que Bernard está vivo... ou que vocês estão mortos... e<br />

que eu estou maluco.<br />

- Não! É, verda<strong>de</strong>... , estávamos <strong>em</strong> França ainda e ele estava atrás da Igreja dos<br />

Pireneus...<br />

- É – pareceu aceitar a situação – as coisas estão muito mudadas nesse mundo. Ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po me surg<strong>em</strong> duas linhas <strong>de</strong> caminhos através da pobreza. Franciscanos e<br />

T<strong>em</strong>plários. Um grupo que eu <strong>de</strong>sejo s<strong>em</strong>pre seguir, se <strong>de</strong>stina à pureza <strong>de</strong> valores e<br />

mansidão... à amiza<strong>de</strong>, ao trato do b<strong>em</strong> com a natureza... enquanto isso, o outro grupo<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia uma guerra, mortes e violência com o mesmo propósito <strong>de</strong> luta por tomar<br />

Jerusalém <strong>de</strong> volta, <strong>de</strong>finitivamente, para a cristanda<strong>de</strong>. É po<strong>de</strong> ser por aí... o espírito <strong>de</strong><br />

Bernard ainda está vivo. Entendi a metáfora.<br />

- A questão é a ameaça do reino tradicional da nobreza... – disse eu – Franciscanos<br />

<strong>de</strong>smistificaram e puseram <strong>em</strong> questão a riqueza da Igreja e as posses <strong>de</strong> seus prelados,<br />

levando a que grupos se opusess<strong>em</strong> ao franciscanismo. De outro lado, T<strong>em</strong>plários<br />

levantam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que cavaleiros <strong>de</strong>v<strong>em</strong> se conduzir <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma linha <strong>de</strong><br />

pureza e a única riqueza será, no caso atual, a <strong>de</strong>fesa do santo sepulcro e a guarda <strong>de</strong><br />

peregrinos... qual nobre não quer amealhar suas riquezas e manter privilégios e posses?<br />

Coelho De Moraes 32


MARCUS, o imortal<br />

- Concordo. Daí as contendas.<br />

- Ah!Isso me faz l<strong>em</strong>brar um episódio. T<strong>em</strong>pos atrás. Posso ver ainda hoje... passando<br />

como uma nuv<strong>em</strong> sobre meus olhos. Os cavaleiros <strong>de</strong>scendo a encosta, cobertos <strong>de</strong> um<br />

manto branco com a cruz <strong>de</strong>senhada no peito e nas costas... trovejando os cavalos...<br />

rompendo as barreiras <strong>de</strong> pedras... <strong>de</strong>rrubando choças e pessoas pelo caminho...<br />

armados até os <strong>de</strong>ntes...um mau cheiro absurdo...<br />

- Mau cheiro? – perguntou LaCordaire.<br />

- Sim... essa l<strong>em</strong>brança específica... não todas... mas essa... abomináveis cavaleiros com<br />

cavalos fumegantes... os cavalos pareciam rasgados...Vi que atacavam muitos nobres<br />

aos quais <strong>de</strong>veriam <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r!... Não entendi aquilo. Era uma força militar especializada,<br />

parecia ser b<strong>em</strong> conduzida... seus soldados ministravam as espadas com certeza nos<br />

corpos dos soldados nobres que se dirigiam à Terra Santa. Morriam muitos, aos gritos,<br />

aterrorizados... Nessa noite eu corri muito... cheguei a uma Igreja, tentando escapar da<br />

fúria daqueles insanos mas notei ao chegar, a nave era circular... a igreja toda era<br />

circular... eu percebi que estava <strong>em</strong> uma Igreja dos T<strong>em</strong>plários...<br />

- Quer mais água? – vi que o monge <strong>de</strong> Saint-Omer se comovia.<br />

- Não... obrigado... porcaria <strong>de</strong> água... – seu olhar se perdia no horizonte - percebi que o<br />

formato do ma<strong>de</strong>irame e as bancadas l<strong>em</strong>bravam a coman<strong>de</strong>rias e bancos. Era uma<br />

igreja t<strong>em</strong>plária, s<strong>em</strong> dúvida. Não posso ter errado.<br />

- Hoje os T<strong>em</strong>plários serv<strong>em</strong> <strong>de</strong> banqueiros para os Reis. Muitos grupos T<strong>em</strong>plários<br />

financiam cruzadas. Mais ainda para forçar que mais peregrinos se dirijam à Palestina.<br />

Provavelmente esse ataque dos T<strong>em</strong>plários que o senhor test<strong>em</strong>unhou foi no retorno da<br />

viag<strong>em</strong>, não é...<br />

- Sim... sim... tomando <strong>de</strong> volta o investimento, talvez? Mas e aquela gente estranha, a<br />

solda<strong>de</strong>sca torpe que eu vi? E com eles ainda ia um corpo <strong>de</strong> soldados que me pareciam<br />

mulheres. Um grupo formado apenas por mulheres. Por isso acreditei que <strong>de</strong>lirava. Para<br />

que serve uma mulher?<br />

- Talvez seja o grupo <strong>de</strong> Bernard <strong>de</strong> Clairvaux – vi que ele sorriu, novamente.<br />

- Outra vez isso?<br />

- Outra vez. De qualquer forma, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>, terras e moedas que têm<br />

hoje atrapalham projetos <strong>de</strong> clérigos e nobres por toda a Europa – disse Pietro – para<br />

nós, tanto faz. Afinal ele acumula suas riquezas há quase c<strong>em</strong> anos.<br />

- Acontece – disse eu – que a maior parte <strong>de</strong>sse grupo ligado a Bernard t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong><br />

também entre os soldados hospitalares... – resolvi falar mesmo que causasse espanto <strong>em</strong><br />

Saint-Omer – não acredito que estejam vivos, na acepção da palavra, como nós. A ord<strong>em</strong><br />

dos Hospitalares v<strong>em</strong> do século 11.<br />

- Em Jerusalém cuidavam da saú<strong>de</strong> e das necessida<strong>de</strong>s dos peregrinos, <strong>em</strong> um Hospital<br />

<strong>de</strong>dicado a São João, <strong>em</strong> plena Terra Santa – explicou LaCordaire.<br />

- Regularizaram-se <strong>em</strong> cânones através <strong>de</strong> bula papal no século seguinte, <strong>em</strong> torno <strong>de</strong><br />

13. Seu primeiro mestre e superior foi Gerard <strong>de</strong> Martignes. A partir do sucessor <strong>de</strong><br />

Gerard é que a Ord<strong>em</strong> se tornou ligada aos assuntos militares. Defendia os interesses do<br />

Reino latino <strong>de</strong> Jerusalém – <strong>de</strong>clarou Alexandrino, o menor.<br />

- Pelo visto, vocês sab<strong>em</strong> <strong>de</strong> tudo – falou Saint-Omer.<br />

- Agora que a luta está ferrenha. Todo mundo acha que Jerusalém não sairá mais do<br />

po<strong>de</strong>r dos Muçulmanos. A Europa está mobilizada. Até mesmo as crianças são levadas<br />

para as Cruzadas, crianças <strong>de</strong> doze, treze, quatorze anos... morr<strong>em</strong> aos montes... a<br />

esfera paralela está <strong>em</strong> <strong>de</strong>sequilíbrio... daí Bernard... daí os soldados estranhos... o mau<br />

cheiro... – disse eu e completei – t<strong>em</strong>o revelar que os sepulcros estão abertos... O grupo<br />

<strong>de</strong> Hospitalares, querendo manter seus cuidados e boas ações, também está, <strong>em</strong> parte,<br />

inimiga dos T<strong>em</strong>plários. Há várias dissensões <strong>de</strong> cada lado.<br />

- Creio que tudo se aclara agora, meu caro... quero água agora... – bebeu rapidamente...<br />

sorvia... estava se<strong>de</strong>nto e pareceu meio atormentado, mesmo com o estranho sabor <strong>de</strong><br />

nossa água.<br />

- O que sei é que os Hospitalares proverão os peregrinos fora da Terra da Santa, para<br />

que os que tiver<strong>em</strong> corag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ir para lá sigam com seu risco. Agora – <strong>de</strong>ixei <strong>em</strong><br />

suspense uns instantes – o caso <strong>de</strong> Bernard e seu pessoal é outra coisa...<br />

- Ocorre e cabe <strong>em</strong> outra esfera <strong>de</strong> conhecimento e <strong>de</strong> crenças e <strong>de</strong> pesquisa... caro<br />

Saint-Omer. - LaCordaire veio salvá-lo das más l<strong>em</strong>branças.<br />

- Por isso, achamos que o tal padre que o senhor matou - e ele parou com a moringa na<br />

boca – não era n<strong>em</strong> padre n<strong>em</strong> t<strong>em</strong>plário... e hoje estamos duvidando que fosse algum<br />

Coelho De Moraes 33


MARCUS, o imortal<br />

ser vivo consciente – Sain-Omer olhava estupefato para mim e para os outros<br />

companheiros – provavelmente era um Golén... um morto-vivo elaborado segundo a<br />

Cabala... da mesma forma que Lázaro, retirado dos mortos... um morto-vivo...<br />

- Sab<strong>em</strong>os que Goléns não têm vonta<strong>de</strong> própria – e o monge permanecia com o olhar <strong>de</strong><br />

sabujo perdido. Por fim, falou:<br />

- Está muito boa essa água. Quero mais.<br />

OPUS 19<br />

Dias <strong>de</strong> tensão.<br />

Nunca mais ouvi falar <strong>de</strong> Sonja e meus sonhos se tornaram secos, horrendos,<br />

s<strong>em</strong> formas <strong>de</strong>finidas.<br />

Cantoria sobre Calatin era ouvida pelos campos. Ora um herói. Ora um monstro<br />

s<strong>em</strong> alma.<br />

Urraca perdia vários filhos. Filhos meus e dos outros companheiros. Os <strong>de</strong>sejos sexuais<br />

eram partilhados entre todos e não havia momento n<strong>em</strong> questão que nos fizesse entrar<br />

<strong>em</strong> conflito. Homens e Mulher sabiam que <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser solucionados e, estando o<br />

casal junto e vivendo no mesmo lugar, era natural o enlevo e o prazer.<br />

Mas filhos ela não conseguia reter. Nos primeiros meses, talvez por causa da<br />

dureza da vida nas florestas e <strong>em</strong> burgos menores, fosse impossível a gravi<strong>de</strong>z normal.<br />

Por outro lado, sabíamos que Urraca <strong>de</strong> ValVer<strong>de</strong> fazia uso <strong>de</strong> ervas periodicamente.<br />

Certa <strong>de</strong> que crianças não seriam <strong>de</strong> ajuda alguma naqueles t<strong>em</strong>pos difíceis, melhor não<br />

tê-las. Com certeza ela pensava assim e sabia que uma vez grávida seria <strong>de</strong>stinada a<br />

uma cida<strong>de</strong> maior para ter o filho. Seria dispensada do grupo. Viveria por conta própria e<br />

ela não queria tal <strong>de</strong>stino.<br />

Uma vez aconteceu algo insólito.<br />

A criança veio a nascer. Não havíamos percebido o estado <strong>de</strong> Urraca. Confirmo<br />

que vivíamos muito interiorizados e egoístas e ela <strong>de</strong>u à luz uma criança <strong>de</strong>formada.<br />

Acredito que não tenha sido aquela a única criança que Urraca teve. Acontece que essa<br />

chorou ao nascer e acordou a todos nós. Fui encontrar Urraca no mato, tentando se<br />

escon<strong>de</strong>r com a criança quasímodo. Quando isso aconteceu, longe <strong>de</strong> Itália, estávamos<br />

nas proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Paris, e eu contava encontrar novas sobre Sonja. Na Ilha, numa<br />

noite muito escura, estávamos por perto da Catedral <strong>de</strong> NotreDame, Urraca caminhava<br />

com a criança no colo, mas pretendia <strong>de</strong>ixá-la às portas da Catedral, quando os soldados<br />

do bispo invadiram a praça frontal com ímpetos <strong>de</strong> aprisionar a todos. Sabíamos que<br />

conosco vinham alguns grupos nôma<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ciganos.<br />

Corr<strong>em</strong>os <strong>de</strong>sabalados. Passando sob os pórticos da Igreja <strong>de</strong>dicada a Virg<strong>em</strong><br />

Maria, sob a arcada frontal, vi que a criança escapou dos braços <strong>de</strong>la e rolou pelas<br />

escadas. Um soldado apareceu e <strong>de</strong>scerrou gran<strong>de</strong> pancada na cabeça <strong>de</strong> Urraca e ela<br />

rolou pela escadaria. Ciganos foram presos. Ela escapou. Vimos <strong>de</strong> longe que o soldado<br />

tomara da criança, que provavelmente <strong>de</strong>smaiara, e se limitava a lançá-la para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

um dos poços <strong>de</strong> rua, resolvendo rapidamente o probl<strong>em</strong>a. Mas ele parou. Alguém o<br />

chamava. Era um clérigo, roupa negra, que se dirigia a ele e tomava a criança para si.<br />

Finalizando as formalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> hierarquia, a porta se fechou e tiv<strong>em</strong>os que partir,<br />

mesmo chorando.<br />

Esse foi um dos episódios que tenho conhecimento acerca das crianças<br />

<strong>de</strong>svalidas nascidas <strong>de</strong> Urraca <strong>de</strong> Valver<strong>de</strong>. E assim os anos se passavam, com clareza<br />

estonteante.<br />

Em torno da década <strong>de</strong> setenta, os meus companheiros <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> já me<br />

olhavam com certa diferença. Muitas vezes durante as conversas os assuntos não<br />

acabavam e eu via que todos eles estavam um tanto arredios. Isso me enchia <strong>de</strong><br />

angústia.<br />

Por instâncias do <strong>de</strong>stino, aportávamos <strong>em</strong> uma estalag<strong>em</strong> ampla.<br />

Foi por essa época que encontramos o Inglês. Chegávamos a uma estalag<strong>em</strong>,<br />

com certa preocupação. Depois <strong>de</strong> muita conversa ele se apresentou formalmente e<br />

esclareceu das suas intenções. Era mais um Fra<strong>de</strong> Franciscano advindo das ilhas<br />

britânicas para um encontro com Tomás <strong>de</strong> Aquino.<br />

Como é claro perceber, havia boa diferença entre con<strong>de</strong>s produtores <strong>de</strong> estrume,<br />

com todos o seu dinheiro e brasões alugados, e o <strong>em</strong>pobrecido mas aristocrata con<strong>de</strong> da<br />

casa vizinha. O b<strong>em</strong> sucedido con<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser tão rico quanto Midas, mas tudo isso não<br />

vale <strong>em</strong> sabor quase nada, perto dos senhores <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> fidalga.<br />

Coelho De Moraes 34


MARCUS, o imortal<br />

Ali estava Roger Bacon - conhecido como Doctor Mirabilis, um dos mais famosos<br />

fra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po - recém chegado das ilhas, coberto <strong>de</strong> pó pela jornada através do<br />

continente, que <strong>de</strong>scia do cavalo sorrindo e cumprimentando a todos s<strong>em</strong> distinção, mas<br />

notava-se nele o ar distinto <strong>de</strong> um b<strong>em</strong> formado.<br />

Na estalag<strong>em</strong> tomou uns dos melhores quartos. Os que davam frente para uma<br />

lagoa ampla, que esgueirava por árvores luxuriosas, eram os quartos preferidos e mais<br />

caros. Certos pássaros que eu não conhecia vinham beber ali. Bacon retirou o chapéu e<br />

se <strong>de</strong>liciou com o ar fresco que lhe tocava na quente tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> domingo.<br />

- Marcus...<br />

- Sim, Sr. Bacon.<br />

- Ter<strong>em</strong>os algum serviço religioso hoje à noite?<br />

- Não sei dizer... não t<strong>em</strong>os ligação com ord<strong>em</strong> alguma, na verda<strong>de</strong>... somos cientistas...<br />

- Eu também... quer dizer... sou cientista, mas tenho ligações com o franciscanismo... e,<br />

na verda<strong>de</strong>, procuro Tomás <strong>de</strong> Aquino. Quero conversar com ele sobre minhas idéias<br />

sobre estudos enfáticos sobre <strong>em</strong>pirismo e ao uso da mat<strong>em</strong>ática no estudo da natureza.<br />

- Tomás <strong>de</strong>ve estar na Germânia, ao lado <strong>de</strong> Alberto... – vi que Bacon fez sinal com os<br />

<strong>de</strong>dos, <strong>em</strong> negativa e cofiou barba e bigo<strong>de</strong>, enquanto seu olhar se perdia nas pradarias<br />

à direita.<br />

- Não... marcamos uma data aqui... <strong>de</strong>ve chegar a qualquer momento – e eu fiquei feliz<br />

ouvindo Bacon dizer sobre a imediata vinda <strong>de</strong> Tomás <strong>de</strong> Aquino.<br />

- Muito bom. Os doutores se encontram...<br />

- Tomás é um doutor... eu sou um mero especulador. Espero que Alberto venha<br />

também. Quero apertar as mãos daquele que é conhecido como um novo Aristóteles.<br />

- Há muito que não os vejo.<br />

- Então será o momento dos gran<strong>de</strong>s encontros, não é, Marcus?<br />

- De qualquer forma venho estudando o que os mestres propuseram.<br />

- É... exist<strong>em</strong> passagens interessantes... dignas <strong>de</strong> sérios <strong>de</strong>bates – ele disse, com ar<br />

mais <strong>de</strong> galhofa do que a <strong>de</strong> um <strong>em</strong>pe<strong>de</strong>rnido pesquisador – a síntese que Tomás nos<br />

relata <strong>em</strong> que coisas naturais e coisas reveladas... ou seja... conhecimentos naturais e<br />

conhecimentos revelados, uma meta que os pensadores quer<strong>em</strong> atingir, não me parece<br />

receber agradável recepção <strong>de</strong> coração aberto pela maioria dos... clérigos... pod<strong>em</strong>os<br />

assim dizer, não é caro Marcus?<br />

- Concordo.<br />

- Portanto ele t<strong>em</strong> muito que nos falar e nos fazer acreditar <strong>em</strong> suas elucubrações.<br />

- E seu trabalho? Como é visto nas Ilhas britânicas?<br />

- Bom. Não sei se você sabe, mas eu me <strong>de</strong>dico a uma análise que dá muita ênfase à<br />

mat<strong>em</strong>ática, como já disse, e tenho um apreço muito especial pela experimentação.<br />

Tenho que ver como é que tudo funciona. E tudo t<strong>em</strong> que se mostrar muito claro através<br />

das leis mat<strong>em</strong>áticas. Tenho escrito muito sobre isso – ele fez um sinal ao estalaja<strong>de</strong>iro<br />

que veio dizer que a alimentação estava pronta no salão, lá <strong>em</strong>baixo – Estive <strong>em</strong> Paris<br />

entre 40 e 47...<br />

- Eu saí <strong>de</strong> lá por essa época... fugindo <strong>de</strong> certas perseguições inquisitoriais...<br />

- É... isso ainda continua... – seguimos por <strong>de</strong>scer as escadas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira – eu, por mim,<br />

sigo no estudo. E estou propondo que haja método na investigação dos fenômenos...<br />

n<strong>em</strong> adianta perguntar, pois n<strong>em</strong> sei que métodos... também estudo essa linha <strong>de</strong><br />

conduta, mas é necessário uma regra, uma disciplina para se obter conhecimentos... e<br />

prová-los.<br />

- Na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris...?<br />

- Eu ensinava Filosofia... foi lá que conheci Alberto e suas magníficas idéias sobre a<br />

transubstanciação; ele criptografava os t<strong>em</strong>as e explanações como se foss<strong>em</strong> sobre<br />

relatos ao texto bíblico e na verda<strong>de</strong> estava escon<strong>de</strong>ndo segredos da pedra filosofal –<br />

ele riu abusivamente, enquanto sentava-se à mesa e me cedia lugar. – Ainda b<strong>em</strong> que<br />

ele saiu <strong>de</strong> lá, - disse Bacon.<br />

- Saímos todos á mesma época. Ele veio para Colônia e ficou.<br />

- Bebe um pouco comigo. – Virando-se para o estalaja<strong>de</strong>iro – traga, por favor, mais um<br />

copo e um pouco <strong>de</strong> água...<br />

- Não t<strong>em</strong> como... – disse o hom<strong>em</strong> da estalag<strong>em</strong> - é melhor beber vinho ou algum suco<br />

<strong>de</strong> fruta pois as águas estão contaminadas.<br />

Coelho De Moraes 35


MARCUS, o imortal<br />

- Eles acreditam que certa epid<strong>em</strong>ia que grassa pela região é trazida pela água – eu disse<br />

– mas não é isso. De qualquer forma é melhor ficar com o vinho, que é fraco, ou chupar<br />

frutas sumarentas.<br />

- Isso é bom. É uma maneira <strong>de</strong> imitar o Cristo. Bebendo vinho. Façamos isso. De<br />

qualquer maneira, sente-se. Convers<strong>em</strong>os, Marcus... convers<strong>em</strong>os... – ele rasgou um<br />

pedaço <strong>de</strong> pão, provou, mastigou com insistência e continuou – como eu dizia... fiquei lá<br />

até 47, <strong>em</strong> Paris, <strong>de</strong>pois retornei a Oxford. Recebi muita influência <strong>de</strong> Robert<br />

Grosseteste. Depois ingressei na Ord<strong>em</strong> dos Franciscanos, como b<strong>em</strong> po<strong>de</strong> ver pela<br />

minha roupa, mas não pelos meus hábitos... e essas... digamos, pouca ortodoxia <strong>em</strong><br />

pensamento palavras e obras t<strong>em</strong> me causado muitos dissabores com os superiores. Da<br />

mesma forma que aconteceu com Guilherme <strong>de</strong> Baskerville.<br />

- Parece que estamos no mesmo barco...<br />

- Todos estamos. Você conheceu Grosseteste? Um sujeito parrudo. Forte. Falastrão?<br />

Não!? Para mim um dos maiores, claro que n<strong>em</strong> se aproxima <strong>de</strong> Alberto, no entanto seus<br />

caminhos são diferentes. Mat<strong>em</strong>ático, teólogo, iminente cientista... foi o primeiro<br />

chanceler da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Oxford... é... o sujeito é impetuoso... <strong>de</strong>pois se tornou<br />

bispo <strong>de</strong> Lincoln. Se opôs aos italianos <strong>em</strong> certos aspectos e posições eclesiásticas –<br />

Roger Bacon não parava quieto <strong>em</strong> seu lugar enquanto falava e comia, s<strong>em</strong> per<strong>de</strong>r as<br />

maneiras simpática e amistosas – t<strong>em</strong> certeza que não quer comer?<br />

- Não, obrigado.<br />

- Enfim, um reformador.<br />

- Sei que essa... luta – eu frisei – trouxe probl<strong>em</strong>as com o Rei e com o Papa.<br />

- Sim. Henrique III e o papa Inocêncio. E a questão toda não é Grosseteste, n<strong>em</strong> Tomás<br />

<strong>de</strong> Aquino ou Alberto ou Marcus ou, humild<strong>em</strong>ente, eu... o probl<strong>em</strong>a é um sujeito<br />

chamado Aristóteles... a Igreja está na garganta com esse grego longínquo e... -<br />

sorvendo rapidamente o suco <strong>de</strong> laranjas – nós estamos dando corda para nossa própria<br />

corda nos enforcar... é isso. A escolástica revolucionária é aristotelista.<br />

Pietro <strong>de</strong> Ferrara e LaCordaire entraram para o salão <strong>de</strong> refeições. Haviam se<br />

lavado. Apresento-os a Roger Bacon e nesse momento eu percebo que Bacon também<br />

percebe algo, olhando a eles e a mim, <strong>em</strong> seqüência muito rápida, no entanto nada<br />

disse. Algo <strong>em</strong> nossas feições e atitu<strong>de</strong>s o afetou. Ofereceu o repasto para os amigos.<br />

Eles traziam mais frutas dos campos. Uma coleção <strong>de</strong> morangos silvestres e algumas<br />

raízes, também.<br />

- O senhor esteve pessoalmente com o papa Cl<strong>em</strong>ente? – perguntou LaCordaire.<br />

- Sim... tive a honra... tive a honra <strong>de</strong> que ele me pedisse um trabalho que me <strong>de</strong>ixou<br />

b<strong>em</strong> contente. Foram três obras: Opus Majus, Opus Minus e Opus Tertium. Maior, Menor<br />

e Terceira.<br />

- A da reforma da educação? – LaCordaire, novamente.<br />

- Exato. Vejo que o senhor é um estudioso, e que me honra com isso. Argumentei que o<br />

estudo da natureza por observação e exata medida seria a correta fundamentação para o<br />

conhecimento sobre a criação do mundo. E aí, lógico, propus que o currículo universitário<br />

permitisse as mat<strong>em</strong>áticas, as línguas, a alquimia e outras ciências... especialmente a<br />

óptica. Agora estou escrevendo um compêndio para o estudo da Filosofia e o t<strong>em</strong>a é a<br />

crítica aos métodos aplicados à filosofia e teologia <strong>em</strong> nossos dias... por isso meu pedido<br />

<strong>de</strong> reunião com Tomás e ... espero... Alberto.<br />

- Alberto está vindo? – gritou Pietro.<br />

- Não posso garantir – disse Roger, afastando o prato limpo que <strong>de</strong>ixou com algumas<br />

cascas <strong>de</strong> mamão – Eu o espero também.<br />

OPUS 20<br />

Levaria uma s<strong>em</strong>ana para a chegada dos mestres. Enquanto isso <strong>de</strong>batíamos<br />

alguns assuntos que nos eram importantes com o franciscano Roger Bacon e ele não<br />

dispensava uma conversa acirrada. Volta e meia ele tinha que gritar, furiosamente,<br />

dizendo: “mas eu não estou nervoso e n<strong>em</strong> estou brigando com ninguém... estou sendo<br />

apenas enfático”. E sentava-se para mais uma hora <strong>de</strong> árdua argumentação.<br />

- Tenho um trabalho <strong>de</strong>stacado <strong>em</strong> alquimia, prática que a Igreja con<strong>de</strong>na. Isso eu<br />

exerço <strong>em</strong> segredo. Fui acusado <strong>de</strong> convocar os el<strong>em</strong>entos da natureza...<br />

- E o espelho?<br />

- Disseram que eu criei um espelho que podia revelar o futuro e esculpir um busto capaz<br />

<strong>de</strong> falar. Mas o que eu acho é o seguinte: o trabalho alquímico é como uma horta:<br />

Coelho De Moraes 36


MARCUS, o imortal<br />

mesmo se colh<strong>em</strong>os o que não pretend<strong>em</strong>os, ainda assim ter<strong>em</strong>os melhorado a colheita.<br />

Mas, acredito, consegui alguns feitos interessantes. Sou capaz <strong>de</strong> acen<strong>de</strong>r uma vela.<br />

Nisso caiu a noite.<br />

*<br />

Em torno da estalag<strong>em</strong>, que era muito simples e primitiva apesar <strong>de</strong> confortável<br />

e gran<strong>de</strong>, situava-se uma colônia <strong>de</strong> ciganos on<strong>de</strong> batalha e egocentrismo se<br />

multiplicavam a gosto <strong>de</strong> todos. A cooperação entre eles era resolvida pelo meio<br />

ambiente. As funções climáticas formavam grupos <strong>de</strong> aliados, para preservar<strong>em</strong> o todo<br />

<strong>em</strong> ações conjuntas ou, então, os <strong>de</strong>sagrupava. N<strong>em</strong> se sabe direito como é que<br />

perduravam, aqueles ciganos, pois não havia noite s<strong>em</strong> que morte ou ferimentos foss<strong>em</strong><br />

produzidos. Quando o espectro da morte por inanição – por causa <strong>de</strong> seca ou por chuva<br />

intensa, s<strong>em</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> alimentos – se alastrava e encarava a todos <strong>de</strong><br />

frente, a pura necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> assegurar a existência impelia a socieda<strong>de</strong> a uma ação<br />

cooperativa <strong>de</strong> trabalhos diários – então mortes e ferimentos diminuíam, provavelmente,<br />

equilibrando a balança populacional. É que eles se <strong>de</strong>dicavam ao roubo.<br />

Foi ali que conhec<strong>em</strong>os Andréas Ba<strong>de</strong>n. Cigano barbado vestido <strong>de</strong> couro e muita<br />

jóia pendurada. Um dia voltava para casa, para a tenda que chamava <strong>de</strong> casa. Dizia, ao<br />

chegar, para as suas mulheres, que visitara mais <strong>de</strong> trinta feiras, ao norte <strong>de</strong> Itália e<br />

trazia algumas cabeças cujos <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> ouro não conseguira retirar. Dizia que sofria <strong>de</strong><br />

queimaduras, abrasões provocadas pela sela <strong>de</strong> seu cavalo, após tantos meses fora da<br />

colônia. As mulheres ficaram apreensivas. Trazia, também, braços e pernas <strong>de</strong><br />

cobradores <strong>de</strong> impostos. A cada cida<strong>de</strong> que ia, a cada estrada que tomava, havia<br />

pedágios que exigiam que pagasse impostos para entrar e sair. Não havia dinheiro que<br />

sobrasse. Era necessário um sist<strong>em</strong>a compensatório e ele optou por trazer cabeças e<br />

<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> ouro, jóias ainda presas a braços – junto com os braços – e botas elegantes,<br />

trazidas com as pernas. Tal era Andréas Ba<strong>de</strong>n.<br />

Os mercadores viajantes chegavam pela manhã. Com guardas armados<br />

montaram suas tendas. Coloriam o ambiente acinzentado da manhã fria. Comerciavam<br />

entre si e com a população local.<br />

Traziam objetos exóticos: tafetás, especiarias, sedas, muito couro e pele, muito<br />

perfume. Alguns vinham do oriente e traziam mercadoria característica, como Andreas<br />

Ba<strong>de</strong>n, que carregava utensílios variados, por força <strong>de</strong> uma profissão longínqua, própria<br />

e predominante na família através dos t<strong>em</strong>pos, pois era ferreiros, cal<strong>de</strong>ireiros, produtores<br />

<strong>de</strong> panelas, chaves, pregos, ferramentas, selas, cintos e outros objetos <strong>de</strong> couro. Alguns<br />

eram exibidores <strong>de</strong> feras amestradas, chamados lovares e manushes. Outros ainda, que<br />

eram antigos traficantes <strong>de</strong> cavalos, negociavam com carruagens e barcos, sendo<br />

também exímios comerciantes, mecânicos e lanterneiros, como os ciganos do grupo <strong>de</strong><br />

Calatin. Havia também os que vendiam ouro, jóias, roupas, tapetes, mercadores<br />

ambulantes ou feirantes.evi<strong>de</strong>ntes <strong>em</strong> sua roupag<strong>em</strong> cigana e na cantoria <strong>de</strong> seus<br />

ancestrais. Andréas tocava rabeca e um pouco <strong>de</strong> alaú<strong>de</strong>, por ex<strong>em</strong>plo.<br />

Senhoras e senhores se amontoavam <strong>em</strong> meio a tendas e muitas vezes<br />

<strong>de</strong>sapareciam entre outras que se encontravam fechadas e cujo mercado era o da carne<br />

humana. Era isso que Andreas fazia. Comercializava sexo aos senhores e senhoras dos<br />

burgos, entediados com suas vidas aborrecidas, s<strong>em</strong> cores n<strong>em</strong> valores outros. Dessa<br />

forma cultivava sua coleção <strong>de</strong> cabeças e m<strong>em</strong>bros mais ricos.<br />

Não entendia nada <strong>de</strong> zeros ou divisões. Mas Andréas mantinha um livro <strong>em</strong> que<br />

anotava seus lucros...”O senhor do burgo tal... me esqueci do nome... me valeu <strong>de</strong>z<br />

florins”. Estranhos livros <strong>de</strong> mórbida contabilida<strong>de</strong>.<br />

Alguns diziam que Andréas Ba<strong>de</strong>n tinha parentesco com Calatin, o Raivoso.<br />

Quando Andréas chegou na colônia, voltando <strong>de</strong> sua próspera viag<strong>em</strong>, as<br />

mulheres disseram que uns senhores da Guilda <strong>de</strong> Tapeceiros o esperava. Parece que os<br />

tecidos levados para venda, por parte <strong>de</strong> Andréas, tinham uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fios que a<br />

lei não cont<strong>em</strong>plava e o custo daqueles tecidos estava exorbitando o mercado e os<br />

preços das feiras. Os senhores da Guilda vinham <strong>em</strong> seu encalço para obter<strong>em</strong> uma<br />

compensação por perdas <strong>de</strong> seus próprios tecidos.<br />

- Senhores. N<strong>em</strong> sei quantos fios t<strong>em</strong> os tecidos que vendi. Foram todos roubados <strong>de</strong> um<br />

mercador. A única coisa que fiz foi obter o lucro. Portanto – ante o olhar aterrador <strong>de</strong><br />

todos e isso qu<strong>em</strong> me conta é uma das ciganas <strong>de</strong> Andréas – portanto, se quer<strong>em</strong> tirar<br />

satisfação com alguém, fal<strong>em</strong> com o morto. Deixei-o nas barrancas Brancas, perto <strong>de</strong><br />

Livorno, ao norte.<br />

Coelho De Moraes 37


MARCUS, o imortal<br />

- Já t<strong>em</strong>os probl<strong>em</strong>as com a Igreja, que diz não ser cristão ter lucros, e ainda por cima<br />

t<strong>em</strong>os que lidar com um bastardo <strong>de</strong>sses ciganos – disse um <strong>de</strong>les, que imediatamente<br />

caiu por terra, esfaqueado por Andreas. Os outros senhores da Guilda se armaram, mas<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po quinze outros ciganos tiraram punhais árabes e traçaram <strong>de</strong>senhos no<br />

ar.<br />

- O probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong>ssa gente é não saber lutar e n<strong>em</strong> usar o facão... o outro probl<strong>em</strong>a, o<br />

do mercado, é <strong>de</strong> vocês, cristãos ou não – disse Andréas – e, o nosso probl<strong>em</strong>a já é<br />

outro. O que sei é que há falta <strong>de</strong> terra para todos... pelo menos para nós, expulsos <strong>de</strong><br />

todos as terras <strong>em</strong> que aportamos. Falta dinheiro. Todo mundo, inclusive vocês, se<br />

reg<strong>em</strong> por costumes e tradições. Nós também. - Andréas olhou-os fixamente e<br />

continuou, como últimas palavras – Guard<strong>em</strong> suas armas. Não sairão vivos daqui.<br />

Provavelmente as burras <strong>de</strong> couro que carregam têm muita moeda. Precisar<strong>em</strong>os <strong>de</strong>la.<br />

Esse é o <strong>de</strong>stino.<br />

Ato contínuo, uma coisa que não durou mais do que dois minutos, os senhores<br />

da Guilda <strong>de</strong> Tapeceiros jaziam mortos junto à fogueira.<br />

Apesar disso tudo a colônia não entrava <strong>em</strong> conflito com o estalaja<strong>de</strong>iro, mas<br />

isso foi explicado, pois o estalaja<strong>de</strong>iro s<strong>em</strong>pre se servia <strong>de</strong> alguma ciganas e pagava<br />

b<strong>em</strong>. No entanto, alguns dias mais tar<strong>de</strong>, Alexandrino caiu <strong>em</strong> febres e teve <strong>de</strong>lírios<br />

inesquecíveis. Pústulas e ardências fluíam <strong>de</strong> seu corpo. Ele relatava, gorgolejando, fatos<br />

incompreensíveis e estranhos. Notamos todos que as mulheres, a partir daquele dia,<br />

<strong>de</strong>sapareceram da estalag<strong>em</strong>. No dia anterior, ou melhor, na noite anterior, Alexandrino<br />

tinha por sua vez, <strong>de</strong>saparecido também. Quando retornou estava confirmado <strong>em</strong> males<br />

e miasmas. Ele citava um ritual da prosperida<strong>de</strong>, e, ao mesmo t<strong>em</strong>po falava dos<br />

prazeres e dos gozos com as mulheres. Saltava na cama e gritava na noite. Foram quatro<br />

dias <strong>de</strong> sofrimentos.<br />

Em uma <strong>de</strong>ssas investidas da febre e dos tr<strong>em</strong>ores, encharcado <strong>de</strong> suor, olhos<br />

abertos olhando o nada, ele passava a cantar cantigas profanas claramente provençais.<br />

Observando atentamente a tudo aquilo Roger Bacon sugeriu que usáss<strong>em</strong>os<br />

conhecimentos ocultos. Ele não o faria. Sua obra tinha uma linha que exaltava o fazer do<br />

ser humano comum. Mas ele sabia que versávamos sobre o oculto e sugeriu alguma<br />

coisa que elevasse o ânimo do companheiro. Algo positivo. Algo que o retirasse das<br />

trevas <strong>em</strong> que estava e propôs que trabalháss<strong>em</strong>os naquele caso à luz do dia. Ele e o<br />

estalaja<strong>de</strong>iro garantiram o segredo e a tranqüilida<strong>de</strong>.<br />

LaCordaire insinuou que um traçado estelar <strong>de</strong>ntro do Ritual <strong>de</strong> Prosperida<strong>de</strong>,<br />

coisa já citada pelo próprio Alexandrino, po<strong>de</strong>ria alimentar <strong>de</strong> bons augúrios a alma <strong>de</strong><br />

Alexandrino, que agora chorava.<br />

- Muito b<strong>em</strong> – eu disse - Cuid<strong>em</strong>os disso agora. Us<strong>em</strong>os os ensinamentos do Ritual, com<br />

base no conhecimento Oci<strong>de</strong>ntal... ao menos, suas bases principais – concluí. Em<br />

seguida, Pietro passou a fazer o que chamamos <strong>de</strong> invocação a Júpiter, usando<br />

simbologias romanas. Alexandrino estava inundado <strong>de</strong> suor e Urraca cuidava <strong>de</strong>le com<br />

carinho. Pietro traçou, no chão do último quarto, virado para o sol que nascia, um<br />

Heptagrama - uma estrela <strong>de</strong> sete pontas.<br />

Em seguida, e Roger Bacon anotava <strong>em</strong> seu ca<strong>de</strong>rninho coberto com pele <strong>de</strong><br />

urso o que via e ouvia, s<strong>em</strong> assombros ou qualquer tipo <strong>de</strong> manifestação preconceituosa,<br />

Pietro traçou a estrela na ord<strong>em</strong> indicada, com um bastão. Esse bastão era usado<br />

raramente e não tinha nada <strong>de</strong> especial. Era um pedaço <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira queimada que mais<br />

parecia uma haste grossa <strong>de</strong> carvão. Aliás, a mão <strong>de</strong> Pietro ficou muito preta <strong>de</strong> tanto pó<br />

que saia espontaneamente do bastão. Esse bastão teria efeitos sobre o imaginário<br />

coletivo. Um el<strong>em</strong>ento catalisador <strong>de</strong> atenções. Usou o bastão como b<strong>em</strong> podia usar o<br />

<strong>de</strong>do indicador da mão direita. O efeito s<strong>em</strong>pre é o mesmo.<br />

- É que não t<strong>em</strong>os um <strong>de</strong> ferrite – ele disse para Bacon. O bastão i<strong>de</strong>al é um <strong>de</strong> ferrite,<br />

se pudéss<strong>em</strong>os magnetizá-lo com um ímã – ele explicou, i<strong>de</strong>ntificado com Bacon que a<br />

tudo anotava como ele.<br />

Pietro, então, pediu que todos fechass<strong>em</strong> seus olhos e passass<strong>em</strong> a visualizar<br />

aquela estrela <strong>de</strong>senhada no chão, agora flutuando no ar, <strong>de</strong> maneira a parecer que a<br />

mesma é feita <strong>de</strong> luz. – Uma luz azul-clara – ele pediu e ainda <strong>de</strong>u uma ord<strong>em</strong> a Urraca,<br />

– Vá e pegue incenso. Antes <strong>de</strong> dar continuida<strong>de</strong> vamos alterar nossas consciências com<br />

um pouco <strong>de</strong> incenso – e enquanto ela voltava, – aproveita e traz o pequeno gongo que<br />

LaCordaire trás amarrado <strong>em</strong> sua bolsa. - Ao mesmo t<strong>em</strong>po que retraçava a estrela no<br />

chão, Pietro recitava: “ EL ZARAIETOS PANTOKRATOR”.<br />

Coelho De Moraes 38


MARCUS, o imortal<br />

Naquele momento, passamos a pedir <strong>em</strong> voz baixa, um burburinho assomando o<br />

quarto, no formato <strong>de</strong> uma oração. Após alguns instantes Roger Bacon, já ciente do<br />

caminho ritualístico, acompanhou o murmúrio <strong>de</strong> oração, cujas palavras vinham no<br />

sentido <strong>de</strong> enaltecer as virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Júpiter. Eram pedidos <strong>de</strong> prosperida<strong>de</strong> e volta da<br />

organização e da ação para Alexandrino, o menor.<br />

Passei a tocar o gongo, s<strong>em</strong>pre quatro vezes, pois esse é o número <strong>de</strong> Júpiter.<br />

Houve uma pausa. Alexandrino resfolegava. Pietro salmodiou e <strong>em</strong> seguida<br />

propôs um novo trabalho, mas <strong>de</strong>sta vez usando o Ritual Oriental. Imediatamente Roger<br />

tomou <strong>de</strong> seu pequeno bastão <strong>de</strong> carvão – similar no uso ritual, porém, como escriba, a<br />

fórmula mágica ele b<strong>em</strong> sabia que era outra - e anotou que Pietro <strong>de</strong> Ferrara iniciava a<br />

invocação da <strong>de</strong>usa Lakshmi. Dessa vez lançou-se incenso à base <strong>de</strong> ópio, cujo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

alterar consciências é muito amplo.<br />

- Far<strong>em</strong>os isso, exaltando seus epítetos e seus atributos.<br />

Urraca tomou a dianteira para ajoelhar-se e elevar as mãos à altura das orelhas,<br />

espalmando-as com a concha para <strong>de</strong>ntro e, assim fazendo, falava, monotonamente: “A<br />

radiante. Nascida das águas do mar <strong>de</strong> leite. Presente das águas. A trajada <strong>de</strong> branco.<br />

Filha do lótus. Aquela que é revelada com o lótus. Po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Vishnu. A amada dos céus e<br />

da terra, a amada <strong>de</strong> todos. Aquela cujo hálito é doce. Aquela cujas mãos são róseas<br />

pétalas <strong>de</strong> flor <strong>de</strong> lótus. A exótica. A perfumada. A dourada. A que <strong>de</strong>rrama e provê o<br />

amor. Aquela que <strong>de</strong>rrama e provê boa sorte. A abençoada. A iluminada. A luminosa. A<br />

sorri<strong>de</strong>nte. Aquela que s<strong>em</strong>pre sorri. Aquela <strong>de</strong> cujas mãos chov<strong>em</strong> moedas <strong>de</strong> ouro. A<br />

<strong>de</strong>usa bondosa. A <strong>de</strong>usa da riqueza. a <strong>de</strong>usa da prosperida<strong>de</strong>. A <strong>de</strong>usa do amor. A <strong>de</strong>usa<br />

da fortuna. A afortunada. A próspera.”<br />

Uma rajada <strong>de</strong> vento brando invadiu o quarto. Alexandrino se retorceu<br />

lev<strong>em</strong>ente, mas mostrou um rosto tranqüilo e isso nos <strong>de</strong>ixou felizes. No entanto, Urraca<br />

<strong>de</strong> Valver<strong>de</strong> ainda não terminara sua litania e <strong>de</strong>u vazão aos atributos da <strong>de</strong>usa: “ Beleza<br />

divina da forma, mostrando a perfeição da mulher, presente <strong>em</strong> todas as mulheres.<br />

Muitos colares e jóias com g<strong>em</strong>as coloridas. O lótus, sobre o qual ela está sentada ou <strong>em</strong><br />

pé. Algumas vezes, a <strong>de</strong>usa é secretariada por elefantes, <strong>de</strong> diversas cores: branco,<br />

preto, cinza, rosa, marrom, azul, púrpura, vermelho, laranja , que esparg<strong>em</strong> nela as<br />

águas da "mãe ganga", a mãe natureza.<br />

- Ei! É uma Vênus-Afrodite Indiana – comentou Roger Bacon, virando-se para mim. Eu<br />

assenti. Ele estava surpreso e confiante.<br />

Novo Heptagrama foi <strong>de</strong>senhado, mais incenso foi queimado, o gongo soou sete<br />

vezes, e, <strong>em</strong> seguida, traçou-se o símbolo <strong>de</strong> Vênus após o Heptagrama.<br />

Finalmente, Alexandrino <strong>de</strong>scansou, com um sono profundo.<br />

Por enquanto aquilo bastava.<br />

OPU 21<br />

Finalmente os Mestres chegaram e foi um dia festivo.<br />

Vinham Aquino, Alberto e mais tar<strong>de</strong> outros professores para os <strong>de</strong>bates.<br />

Chegaram no mesmo dia e a estalag<strong>em</strong> tomou ares <strong>de</strong> festa. O estalaja<strong>de</strong>iro persignouse<br />

pois naquele mês a féria seria boa. Um s<strong>em</strong>inário <strong>de</strong> doutos à beira da estrada, longe<br />

<strong>de</strong> olhares espiões. Longe da perseguição dos padres. A estalag<strong>em</strong> se transformou <strong>em</strong><br />

uma universida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> tantos mestres <strong>de</strong> importância vinham dar sua <strong>de</strong>claração e dali<br />

tirar<strong>em</strong> diretrizes para seus trabalhos e suas lutas contra o po<strong>de</strong>r estabelecido e<br />

favorecendo a consecução <strong>de</strong> conhecimento e sabedoria.<br />

No entanto, também estávamos prestes a vivenciar um episódio terrível, envolvendo<br />

Andréas, os ciganos e o cavaleiro-filósofo Siger <strong>de</strong> Brabant.<br />

Alberto e eu conversamos longamente, como que fazendo um relatório dos anos<br />

<strong>de</strong> distância. Apesar <strong>de</strong> uma e outra carta, as informações que recebíamos um do outro e<br />

<strong>de</strong> nossos trabalhos eram esparsas. A estrada, o t<strong>em</strong>po, as preocupações nos trouxeram<br />

a distância.<br />

Ele me contou que Sonja estivera na Germânia, mas, como a maioria <strong>de</strong> nós,<br />

livre pensadores e pesquisadores da natureza, estava fugida e tentava ganhar caminhos<br />

para o oriente. Queria saber <strong>de</strong> mim. Sentia minha falta. Tentara por toda maneira um<br />

contato. Enviara cartas e documentos, mas nada houve que nos encontráss<strong>em</strong>os. Alberto<br />

então sugeriu que as cartas e mensagens foss<strong>em</strong> enviadas para algum lugar neutro e ele<br />

tomou a iniciativa <strong>de</strong> propor. Toda a mala <strong>de</strong> correios seria enviada para a casa <strong>de</strong><br />

Coelho De Moraes 39


MARCUS, o imortal<br />

Aquino, no castelo <strong>de</strong> Rocassecca. Mesmo que d<strong>em</strong>orass<strong>em</strong> para ler as<br />

correspondências, um dia teriam novida<strong>de</strong>s um do outro.<br />

- No menos, isso – disse ele, passando a mão lev<strong>em</strong>ente sobre a testa – Está <strong>de</strong> acordo?<br />

Assenti com a cabeça.<br />

- Muito b<strong>em</strong>. Dessa forma – ele continuou – se po<strong>de</strong>rá também guardar segredos <strong>de</strong><br />

últimas <strong>de</strong>scobertas. O que conversarmos aqui, caro Marcus, será escrito e promulgado<br />

entre nós, com uma cópia que irá para suas mãos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terminado todo o<br />

documento. O que não impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> que anote o que b<strong>em</strong> enten<strong>de</strong>r... será, na verda<strong>de</strong>,<br />

um favor que nos faz.<br />

Concor<strong>de</strong>i, novamente, com a cabeça. Naquele momento os outros monges,<br />

professores e doutos se aproximavam da sala, conversando com certa alegria e contando<br />

fatos e <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> suas terras. Sentaram-se à mesa. Entre eles, Siger <strong>de</strong> Brabant, que<br />

me apertou a mão com uma forte pegada e com ve<strong>em</strong>ência, <strong>de</strong>notando que o sujeito<br />

tinha uma força e tanto.<br />

O estalaja<strong>de</strong>iro fechou o estabelecimento. Com uma pisca<strong>de</strong>la e batendo a mão<br />

numa sacola, com um sorriso ele confirmou que estava b<strong>em</strong> pago por aquela quinzena.<br />

Houve apresentações e fui convidado para participar ativamente do s<strong>em</strong>inário, na<br />

qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aluno <strong>de</strong> Alberto e pesquisador. Pietro <strong>de</strong> Ferrara seria, como s<strong>em</strong>pre, o<br />

escriba principal, enquanto LaCordaire e Alexandrino estariam presentes como ouvintes,<br />

copistas, s<strong>em</strong> direito a opiniões, a não ser que tivess<strong>em</strong> permissão abalizada para isso.<br />

O encontro, como já disse, duraria quinze dias e por sorte eram dias quentes.<br />

Aliás, dias muito quentes e intensos, pois fatos grotescos vieram à tona enquanto<br />

discutíamos gerenciamentos alquímicos e a construções <strong>de</strong> novos sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong><br />

pensamento.<br />

- Sigo o que o Comentador nos diz, como ponto <strong>de</strong> referência para os estudos<br />

Aristotélicos. Graças a ele os árabes tiveram uma clara visão do pensamento <strong>de</strong><br />

Aristóteles. Os muçulmanos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> agra<strong>de</strong>cer a esse professor-filósofo pelo<br />

estreitamento dos laços <strong>de</strong> pensamento com as bases da filosofia oci<strong>de</strong>ntal.<br />

- Isso ficou muito claro – disse um alquimista presente, oriundo do Egito – Mas, nós,<br />

filhos do Nilo, nos interessamos, principalmente, não pelos trinta e oito tratados <strong>de</strong> Ibn-<br />

Ruchd, ou Averróis, como diz<strong>em</strong> vocês, sobre o Comentador... o que nos interessa são<br />

seus trabalhos originais sobre astronomia, física e medicina. Muito mais do que a sua<br />

“Incoerência da incoerência”. O mestre juiz Ibn-Ruchd muito soube aproveitar sua<br />

sapiência <strong>em</strong> Leis para se livrar <strong>de</strong> ser conduzido aos tribunais, também.<br />

- B<strong>em</strong>... cit<strong>em</strong>os como s<strong>em</strong>pre a perseguição... s<strong>em</strong>pre as perseguições contra o que é<br />

novo no pensamento, que havia o Comentador sofrido entre as gentes do Islam –<br />

Alberto cedia um pouco <strong>de</strong> informação e cre<strong>de</strong>nciais ao nosso Averróis – enquanto esteve<br />

sob proteção do califa Abu Yaqub Yusuf, ele estava protegido. Depois da morte do<br />

hom<strong>em</strong> as coisas mudaram. Eis um ponto <strong>de</strong> importância para os nossos <strong>de</strong>bates. Como<br />

manter o trabalho <strong>de</strong> investigação? Como evitar as perseguições? Como publicar o novo<br />

conhecimento, levando a outros estudiosos a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> das idéias? -<br />

Alberto abriu alguns manuscritos, à nossa frente e continuou – Tais são minhas<br />

preocupações... nada disso interessa ao povo inculto... talvez lhes interesse a parte<br />

fantástica e misteriosa dos enigmas... mas e a experiência real e a aplicação objetiva<br />

disso tudo? L<strong>em</strong>br<strong>em</strong>-se <strong>de</strong> que o Califa Mansur o baniu da sua corte por causa <strong>de</strong> seus<br />

conceitos religiosos nada ortodoxos segundo o pensamento Muçulmano. Persegue-se lá,<br />

como cá se persegue.<br />

- Vale dizer que Averróis t<strong>em</strong> mais resposta entre Cristãos e Ju<strong>de</strong>us. A sua maneira <strong>de</strong><br />

pensar, a concordância entre filosofia e religião é que o traz para a nossa pauta <strong>de</strong><br />

discussão – disse Bacon – além <strong>de</strong> retirarmos das experiências <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> cada um<br />

<strong>de</strong>sses nossos antepassados aquilo que os po<strong>de</strong> salvar e aquilo que os po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r –<br />

concluiu.<br />

- Se os senhores permit<strong>em</strong> – eu disse – vejo Averróis como aquele que percebeu nos<br />

filósofos algo dos profetas que ensinam os mesmos princípios que os profetas religiosos,<br />

mas, numa situação <strong>de</strong> profunda subjetivida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> forma mais abstrata.<br />

Os <strong>de</strong>bates se seguiram, passando pela vida <strong>de</strong> Averróis ou Ibn-Rushd e<br />

passando pelos estudos <strong>de</strong> Ibn-Sina ou Avicena. Alternávamos a alimentação frugal com<br />

querelas menores, <strong>de</strong>scansos e s<strong>em</strong>inários outros com exposição das últimas<br />

experiências. Havia entre nós os práticos, os teóricos, os pensadores s<strong>em</strong> escola, vários<br />

Coelho De Moraes 40


MARCUS, o imortal<br />

mestres que expunham suas <strong>de</strong>scobertas, sorvendo opiniões e intercalando argumentos<br />

e <strong>de</strong>fesas <strong>de</strong> teses.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, à noite, quando me recolhia, ouvi barulhos que eram estranhos para<br />

nós que ali já estávamos, e que passaram <strong>de</strong>spercebidos para os recém-chegados. No<br />

entanto, os meus companheiros, <strong>de</strong> cansados, <strong>de</strong>cidiram cair no repouso, pois a manhã<br />

traria novos <strong>de</strong>bates. Eu <strong>de</strong>sci as escadas e caminhei na direção do estábulo. Lá<br />

encontrei Urraca <strong>de</strong> Valver<strong>de</strong> suada, resfolegando sob um hom<strong>em</strong>, mantendo relação <strong>de</strong><br />

sexo com Andréas, o tal cigano. Mas havia outras pessoas com eles, seguravam tochas.<br />

Resolvi que <strong>de</strong>veria partir, mas um tapa estalou e tive que, forçosamente, virar para ver<br />

do que se trava. Urraca havia sido esbofeteada. Mas, <strong>de</strong> repente, uma chuva <strong>de</strong> tapas e<br />

socos caíram sobre ela, por parte dos homens todos. Depois a levaram para fora e<br />

carregaram a mulher para os lados da colônia. Segui-os.<br />

Um lote <strong>de</strong> outras mulheres amarradas já se encontrava perto da fogueira.<br />

Andréas Ba<strong>de</strong>n dava or<strong>de</strong>ns numa língua que eu pouco conhecia. Uma ou outra palavra,<br />

parecida com o latim, era-me <strong>de</strong> entendimento. E o que eu soube daí não me agradou.<br />

As mulheres seriam vendidas. E os compradores eram padres e monges <strong>de</strong> uma abadia<br />

vizinha.<br />

Imediatamente o comboio <strong>de</strong> mulheres foi arrastado pelos campos. Elas<br />

choravam pouco, pois quanto mais chorass<strong>em</strong> mais apanhariam.<br />

Eu não sabia o que fazer.<br />

Retornei e tentei dormir. Na reunião seguinte contei o ocorrido para todos. Não<br />

se sabia o que fazer. Eram homens se<strong>de</strong>ntários. Não afeitos à violência n<strong>em</strong> dos campos<br />

<strong>de</strong> guerra, n<strong>em</strong> dos campos rurais, mas eram homens que lidavam com livros e a<br />

sensibilida<strong>de</strong> só lhes daria r<strong>em</strong>orsos pela inutilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s perante a<br />

injustiça. Sabiam eles que tomadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> tal ord<strong>em</strong> e <strong>em</strong> público significariam,<br />

para eles, s<strong>em</strong>pre a prisão ou a fogueira, e, provavelmente, o fim das reuniões na<br />

estalag<strong>em</strong>.<br />

- Sei que estamos <strong>em</strong> posição ridícula <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto – disse Alberto Magnus – e algo<br />

<strong>de</strong>ve ser feito antes <strong>de</strong> continuarmos com nossos <strong>de</strong>bates doutrinários. Fez b<strong>em</strong>, Marcus,<br />

<strong>em</strong> nos contar. Fez mal, Marcus, <strong>em</strong> esperar até essa manhã chegar. Não sab<strong>em</strong>os o que<br />

po<strong>de</strong> ter acontecido. E po<strong>de</strong> ter acontecido o pior.<br />

- Se me permit<strong>em</strong> – disse Siger <strong>de</strong> Brabant – vou me responsabilizar por esse assunto,<br />

<strong>em</strong> nome <strong>de</strong> todos. Não adianta que venham <strong>em</strong> grupo para essa contenda, que é o que<br />

me parece. Eu já estou acostumado a fugir com meus soldados e lutar <strong>de</strong> arma na mão,<br />

entre a discussão <strong>de</strong> uma doutrina e outra. Se me permit<strong>em</strong>. eu me retiro na direção<br />

<strong>de</strong>ssa colônia. Quero Marcus comigo.<br />

E fui.<br />

Siger <strong>de</strong> Brabant parecia mais soldado do que um mestre filósofo. Empunhava a<br />

espada com <strong>de</strong>streza e o t<strong>em</strong>po que per<strong>de</strong>u foi o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> colocar uma armadura leve e<br />

buscar armamento e selecionar um grupo que partisse conosco. Outros <strong>de</strong> seu grupo<br />

manteriam a segurança da estalag<strong>em</strong>.<br />

Foi por esta época que ouvi alguns trovadores recitar<strong>em</strong> uma história que falava<br />

do hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> Hamelin que levava crianças para fora da cida<strong>de</strong>, invadia com elas uma<br />

montanha <strong>de</strong> pedra e nunca mais os pais davam conta dos filhos. Em algumas paradas<br />

para trocas <strong>de</strong> cavalos se citava o nome <strong>de</strong> Calatin, o Cão. Mas não me consta que<br />

Calatin tocasse flautas ou soubesse cantar qualquer tipo <strong>de</strong> canção. Sua fama se fazia à<br />

base <strong>de</strong> espadas e carreiras <strong>de</strong> cavalos invadindo alguma cida<strong>de</strong> ou fugindo <strong>de</strong><br />

guarnições. Nada mais do que isso.<br />

As patas dos cavalos, <strong>de</strong>rrotando arbustos e pedras soltas, esbatiam, ritmadas no<br />

chão orvalhado, mandando, para os prados, um som <strong>de</strong> colossos percorrendo nuvens.<br />

Siger seguia na frente, cabelos anelados esvoaçando sob o elmo que lhe <strong>de</strong>scia b<strong>em</strong><br />

protetor, cobrindo orelhas e uma parte das espáduas. Qualquer um duvidaria das<br />

qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Siger como professor, mas ele era um dos gran<strong>de</strong>s da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Paris. Sua família era <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> Belga. Um dos mais famosos Averroistas, apesar da<br />

pouca ida<strong>de</strong>.<br />

Aquela crise <strong>de</strong> t<strong>em</strong>peramentos nos levou a batalhas e pequenas lutas.<br />

Não entendi até agora por que Andréas apareceu <strong>em</strong> nosso caminho.<br />

Andréas não enten<strong>de</strong>u como foram aparecer cavaleiros armados <strong>em</strong> seu<br />

caminho.<br />

Coelho De Moraes 41


MARCUS, o imortal<br />

Enfiadas <strong>em</strong> carroças as mulheres já estavam na estrada, cercada por outros<br />

seguidores do cigano. É claro que a nossa chegada foi inesperada. A c<strong>em</strong> metros da<br />

tropa <strong>de</strong> escravagistas Siger disse, fazendo o grupo parar:<br />

- Sabe usar alguma arma, Marcus?<br />

- Nunca uso, mas treinei na Universida<strong>de</strong>, o uso da espada <strong>de</strong> duplo gume.<br />

- Toma. Esta fica com você – ele disse – Vamos nos aproximar dos ciganos – falou para<br />

os companheiros – Tom<strong>em</strong> muito cuidado.<br />

Mas não foi necessário. Os ciganos aceleraram o passo e dispararam a correr <strong>em</strong><br />

direção a uma campina forrada <strong>de</strong> névoa lá para baixo do pequeno vale. Imediatamente<br />

viu-se que outros soldados estavam ali. Eram soldados do clero, provavelmente, à<br />

espera da encomenda.<br />

- Não é a primeira vez – Siger gritava – que encontro essa canalha – e acelerava a<br />

cavalgada – estava já ansioso para fazer algo – a poeira subia molhada sobre nossas<br />

roupas – e essa é a hora.<br />

Nisso eu ouvi: “BRABANT!” – um grito. Uma saudação? Uma palavra <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> <strong>de</strong> carga<br />

<strong>em</strong> nome <strong>de</strong> Siger. Seus comandados gritaram e partiram céleres na direção do outro<br />

grupo e dos ciganos.<br />

Mas eles eram muitos.<br />

No entanto, não parecia. Tamanha a <strong>de</strong>senvoltura <strong>de</strong> Siger e dos soldados. Eu<br />

s<strong>em</strong>pre me via atrás. Meu cavalo parecia n<strong>em</strong> correr. Segurar aquela espada significava<br />

para mim mais a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r do que <strong>de</strong> atacar. Ou ainda, a <strong>de</strong> não<br />

atrapalhar o grupo <strong>de</strong> Brabant.<br />

Pequena pancada <strong>de</strong> chuva piorou o solo, tornando-o <strong>em</strong> lama. O calor estava<br />

insuportável. Densa névoa se estabelecia nos baixios do vale. A visibilida<strong>de</strong> diminuiu.<br />

Então, veio o choque dos grupos. Parecia que duas carroças cheias <strong>de</strong> moedas e baús e<br />

peitorais <strong>de</strong> metal se chocavam <strong>em</strong> estr<strong>em</strong>ecida carreira. Gritos. Clangores <strong>de</strong> lanças e<br />

lâminas. Andréas estava amedrontado, curioso e um tanto aturdido, mas isso durou<br />

pouco. Rapidamente entrou na luta.<br />

Aquele choque durava meia hora. Todos muito hábeis, mas nenhuma morte. Um<br />

dos soldados do lado cigano per<strong>de</strong>u um braço, somente, mas parece que n<strong>em</strong> se <strong>de</strong>u<br />

conta. Lutava com o outro da mesma maneira hábil. Como se tivesse mais uns três.<br />

De repente, uma parada <strong>de</strong> comum acordo.<br />

A carroça com as mulheres estava na lateral, perto da estrada. Os grupos se<br />

separaram como que combinando um <strong>de</strong>scanso, cada um para seu lado. Ouvi que<br />

Brabant falava números e letras para seus comandados. Para mim ele disse: - “Defendase!<br />

E já estará ótimo. Não quero me preocupar com você, Marcus”.<br />

Voltaram à carga.<br />

Dessa vez tudo foi mais rápido ainda, se b<strong>em</strong> que nenhuma morte também <strong>de</strong>sta<br />

vez houvesse ocorrido. Ao perceber<strong>em</strong> que o grupo <strong>de</strong> Siger era compacto e b<strong>em</strong><br />

treinado, como que fulminados por uma única e imediata idéia, os ciganos<br />

<strong>de</strong>sapareceram do campo, ao som <strong>de</strong> uma trompa tocada por um dos homens. Deixaram<br />

a carroça com as mulheres. Solta, enfim, Urraca veio <strong>em</strong> minha direção chorando e<br />

pedindo perdão.<br />

- As mulheres estão muito maltratadas – disse Brabant, escutando ao pé do ouvido o que<br />

um <strong>de</strong> seus comandados dizia – Levar<strong>em</strong>os as mulheres para a abadia, como se foss<strong>em</strong><br />

os ciganos. Quero entrar naquele lugar e vasculhar a podridão local.<br />

Fomos.<br />

Entramos no prédio com facilida<strong>de</strong>. Fomos b<strong>em</strong> recebidos. O aba<strong>de</strong>, vestindo<br />

grossa vestimenta cinzenta nos acolheu com sorrisos e benevolências, mas eu notei<br />

cavalos cansados e suados por perto, o que indicava que alguém, ou algum grupo teve<br />

<strong>de</strong> correr bastante para chegar até ali na nossa frente.<br />

- Exijo alimento, água e roupas para essas mulheres – Brabant disse. Imediatamente<br />

Siger a<strong>de</strong>ntrou à abadia e ninguém manifestou qualquer negativa. Ele se virou para mim:<br />

- Marcus! Aqui amigos e professores estiveram confinados <strong>em</strong> nome do papa para que<br />

recuperass<strong>em</strong> o juízo e negass<strong>em</strong> a sabedoria e o conhecimento – Brabant subia escadas<br />

e entrava <strong>em</strong> salas e procurava algo. Tomou <strong>de</strong> uma tocha, pois os interiores são s<strong>em</strong>pre<br />

muito escuros. Ele continuou: - É claro que per<strong>de</strong>ram as vidas! – e jogou urnas e malas<br />

no chão.<br />

Tomei papéis e rolos que se espalharam.<br />

Coelho De Moraes 42


MARCUS, o imortal<br />

- Veja por si só. Arquivos da Inquisição. O Santo Ofício <strong>de</strong>ve endurecer <strong>em</strong> suas ações -<br />

ele disse- e você sabe que as vítimas ser<strong>em</strong>os nós – Tomou <strong>de</strong> papéis – Olhe! Os padres<br />

<strong>de</strong> França diz<strong>em</strong> que os documentos foram <strong>de</strong>struídos. Não é verda<strong>de</strong>. Eles guardam isso<br />

tudo para algum dia usar<strong>em</strong> contra as famílias e amigos da vítima.<br />

Eu me vi <strong>de</strong>spertado <strong>em</strong> horror e medo. Trinta e oito documentos papais,<br />

secretos e confi<strong>de</strong>nciais, sobre o movimentos dos professores, dos alquimistas, das<br />

bruxas, dos pensadores, dos pedreiros livres, dos t<strong>em</strong>plários, enfim... episódios<br />

dramáticos e obscuros. Papéis cuja orig<strong>em</strong> era a força <strong>de</strong> repressão favorecendo uma<br />

Igreja distante dos ensinamentos cristãos.<br />

- De acordo com informes que tenho, já tombaram oitenta pessoas, entre livrepensadores<br />

e inocentes úteis... assim como o nosso estalaja<strong>de</strong>iro, que <strong>em</strong> troca <strong>de</strong><br />

algumas moedas, reserva sua estalag<strong>em</strong> para um bando <strong>de</strong> conspiradores. Certamente<br />

vai para o co<strong>de</strong>x negro. Mas, <strong>de</strong> acordo com as versões dos papistas, mais <strong>de</strong> c<strong>em</strong><br />

pessoas <strong>de</strong>sapareceram, cr<strong>em</strong>adas ou não. – ele disse, r<strong>em</strong>exendo <strong>em</strong> todas as gavetas<br />

e baús.<br />

- Isso é um absurdo. Olha. Aqui diz que dos cento e <strong>de</strong>z listados, sessenta e cinco teriam<br />

morrido tentando fugir, <strong>de</strong>zenove <strong>de</strong>sapareceram ou foram purificados...<br />

- ... provavelmente <strong>em</strong> meio à fumaça dos atos públicos e fogueiras...<br />

- ...<strong>de</strong>zesseis estavam presos <strong>em</strong> masmorras e abadias. Sete se tornaram padres,<br />

abjurando <strong>de</strong> tudo e dois outros, não suportando a prisão, se mataram.<br />

- Em geral, eles também se refer<strong>em</strong> a “atos piedosos”, quando alguém <strong>de</strong> grupo herético<br />

t<strong>em</strong> que punir a falta <strong>de</strong> seus companheiros. Na verda<strong>de</strong>, Marcus, estamos numa luta<br />

ainda não <strong>de</strong>clarada. Ninguém <strong>de</strong>seja <strong>de</strong>clarar nada, enfim. Qualquer afirmativa ou ação<br />

b<strong>em</strong> <strong>de</strong>lineada po<strong>de</strong> sugerir ato <strong>de</strong> hereges. O braço da Igreja cairá como uma pedra –<br />

concluiu <strong>de</strong> Brabant. Em seguida ele amontoou os documentos encontrados e fez um<br />

fardo. Levaríamos aqueles.<br />

- Conheço car<strong>de</strong>ais– disse ele –que po<strong>de</strong>rão fazer uma revisão <strong>de</strong>sses documentos e,<br />

qu<strong>em</strong> sabe?, preparar um documento final para publicarmos e espalharmos pelas igrejas<br />

e pelos reinos. Há padres que participam ativamente <strong>de</strong> movimentos contra os po<strong>de</strong>res<br />

opressores do papado. Não sei se darão nomes ou se se i<strong>de</strong>ntificarão, pelo menos<br />

enquanto estiver<strong>em</strong> vivos, mas isso pouco importa, agora.<br />

Aju<strong>de</strong>i a carregar os malotes para os cavalos.<br />

- Há também sábios não ligados à Igreja – Siger explicava – que receb<strong>em</strong> ou tomam<br />

para si um título clerical apenas para confundir. Da mesma forma há soldados papais que<br />

se diz<strong>em</strong> professores e sábios com a intenção <strong>de</strong> penetrar nas Universida<strong>de</strong>s e<br />

Monastérios usando nomes falsos. Muito perigosos! – <strong>de</strong>sc<strong>em</strong>os as escadas principais e<br />

logo estávamos beirando os cavalos sob os olhares assustados <strong>de</strong> vários padres.<br />

Pareciam adivinhar que algo não ia mesmo b<strong>em</strong>, mas não ousavam argumentar,<br />

tamanho o t<strong>em</strong>or que Siger <strong>de</strong> Brabant inspirava neles – Liber<strong>em</strong> a carroça das<br />

mulheres! Partamos! – ele gritou e puxou as ré<strong>de</strong>as.<br />

As portas imensas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e ferrolhos se abriram <strong>em</strong> lâminas e saímos para a<br />

estrada <strong>de</strong> pó vermelho. Um leve sol escoava límpido. Pouca bruma e o que havia <strong>de</strong><br />

calig<strong>em</strong> eram apenas as trevas impostas pela terra que as patas dos cavalos<br />

levantavam.<br />

- Marcus!<br />

- Sim, Siger!<br />

- T<strong>em</strong> mais. Tenho ouvido que nesses últimos t<strong>em</strong>pos a ord<strong>em</strong> das milícias papais e dos<br />

seus asseclas t<strong>em</strong>porais, duques e barões, é não fazer prisioneiros e acabar <strong>de</strong> uma vez<br />

com qualquer fonte do Mal. Há episódios terríveis.<br />

Ele contava enquanto mais calmamente seguíamos nosso caminho <strong>de</strong> volta.<br />

Trotávamos.<br />

- Há o caso <strong>de</strong> uma freira <strong>de</strong> nome Caterina Carnesecchi listada como bruxa, feiticeira,<br />

amante do d<strong>em</strong>ônio e muitos outros adjetivos <strong>de</strong>smerecedores. Ela teria cometido um<br />

“ato piedoso” com um padre e nesse caso a acusação era <strong>de</strong> que Caterina teria...<br />

favorecido sexualmente o tal padre... esse era o tal ato piedoso... por coisa tola, até... o<br />

padre Melchior, da Abadia <strong>de</strong> Cornaro teria dito que por estar muito tenso com as<br />

perseguições precisava <strong>de</strong> um “refrigério da alma” e a freira foi instada a diminuir a<br />

tensão do padre. No entanto, o padre morreu nos braços da freira, diz<strong>em</strong>. Em seguida,<br />

ela foi presa e a justiça papal mandou queimá-la. Caterina fugira para a Espanha, mas<br />

uns “dragões” da tropa especial a encontraram <strong>em</strong> uma localida<strong>de</strong> no Languedoque. Ela<br />

Coelho De Moraes 43


MARCUS, o imortal<br />

e outras freiras. Ficou presa seis meses e não <strong>de</strong>ram alimento algum para a mulher a não<br />

ser cô<strong>de</strong>as <strong>de</strong> pão e um pouco <strong>de</strong> água. Quando ela já não falava coisa com coisa<br />

mandaram-na para um tribunal inquisitorial e, - ele sorriu s<strong>em</strong> muita vonta<strong>de</strong> –<br />

concluíram que os <strong>de</strong>vaneios e o falatório s<strong>em</strong> sentido <strong>de</strong> Caterina e outras freiras se<br />

dava por influência dos espíritos do Mal.<br />

- Como você sabe disso tudo?<br />

- Tenho muitos agentes que tentam proteger essas pessoas inocent<strong>em</strong>ente presas.<br />

- E <strong>de</strong>pois? Ela foi morta?<br />

- Foi, mas antes a levaram para uma prisão <strong>em</strong> Paris. Foi levada <strong>em</strong> lombo <strong>de</strong> cavalo.<br />

Escusa-se dizer quer tinha já os cabelos cortados e usava roupa <strong>de</strong> meretriz. Armaram<br />

uma gran<strong>de</strong> fogueira numa praça. Ela ainda perguntou “Essa é a hora <strong>de</strong> aplicar<strong>em</strong> a<br />

justiça?” Ainda conversaram bastante. Ela se sentiu traída. As or<strong>de</strong>ns clericais tinham por<br />

obrigação, segundo ela, <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<strong>em</strong> seus direitos <strong>de</strong> religiosa e mulher.<br />

- Qu<strong>em</strong> contou isso para você foi seu executor?<br />

- Sim. Ele disse que mais além ela perguntou se “havia, enfim chegado a hora da<br />

misericórdia”. Ele respon<strong>de</strong>ra que sim. Era o momento <strong>de</strong> ir para o céu, ele achava.<br />

Nisso, fogueira acesa. Vários soldados a pegaram pelos pulsos e calcanhar e a lançaram<br />

nas chamas crepitantes. Disseram que ela não gritou.<br />

- Duvido.<br />

- Eu também. O fato é que Caterina foi queimada. Mas, n<strong>em</strong> sei se você percebe, há uma<br />

onda mística que ronda as pessoas. Há certa literatura, entre os nobres, que conta<br />

nossas histórias, ampliam os feitos, e, parece que esse escritos, essas brochuras<br />

caminham por aí e faz<strong>em</strong> com que as pessoas sintam nostalgias <strong>de</strong> épocas que nunca<br />

viveram e transbordam <strong>em</strong> paixões... há que se ter cuidado – nisso, Siger <strong>de</strong> Brabant<br />

virou-se com seu cavalo e foi conversar com outros cavaleiros, dar-lhes or<strong>de</strong>ns e<br />

procurar os caminhos corretos para o retorno.<br />

OPUS 22<br />

Passamos a noite na floresta.<br />

Um caçador e mestre <strong>de</strong> lutas hábil como Siger <strong>de</strong> Brabant, permanece atento<br />

aos mínimos <strong>de</strong>talhes. Porventura sua mente lutadora, a faculda<strong>de</strong> filosófica o ajudam<br />

nesse sentido. Vi que ele não <strong>de</strong>scansa. Lí<strong>de</strong>r do grupo, conversou com os soldados que<br />

o acompanhavam e o respeitavam. Or<strong>de</strong>nou que <strong>de</strong>scansass<strong>em</strong>. Em especial a um que<br />

mandou enviar novas à estalag<strong>em</strong>, logo pela manhã. Antes, no entanto, teria o arauto<br />

<strong>de</strong> passar a noite b<strong>em</strong> no maior conforto possível àquelas condições. Siger saiu à tar<strong>de</strong><br />

<strong>em</strong> busca <strong>de</strong> caça. Entrou no mato, enquanto a luz permitia, e viu rastros – eu estava<br />

<strong>de</strong> seu lado e fui observando tudo: choveu durante o período vesperal, por isso nos<br />

atrasamos. Havia pegadas; pequenos galhos rasteiros quebrados; o capim amassado <strong>em</strong><br />

vários pontos; vimos que um pequeno animal havia sido <strong>de</strong>vorado e a carcaça ficou à<br />

mostra, indicando que fora há poucas horas; um gran<strong>de</strong> silêncio no ar, não se ouvia<br />

canto <strong>de</strong> pássaros, n<strong>em</strong> ruídos <strong>de</strong> pequenos outros animais.<br />

Siger supôs que houvesse um javardo por perto. Ele teve, então, que tomar duas<br />

atitu<strong>de</strong>s. Se, por experiência anterior, tivesse certeza <strong>de</strong> que o javardo estava nas<br />

imediações, podia preparar-se para enfrentá-lo ou sabia que caminhos evitar, se não<br />

estivesse <strong>em</strong> condições <strong>de</strong> enfrentamento. Sabia que armadilhas armar, se estivesse<br />

pronto para pegar o animal; sabia como atrai-lo, se quisesse mantê-lo vivo.<br />

Era s<strong>em</strong>pre assim. Siger <strong>de</strong> Brabant se apoiava <strong>em</strong> todos os sinais e signos <strong>de</strong><br />

observação para tomar qualquer <strong>de</strong>cisão. Era na caçada, na luta contra os ciganos e<br />

assim o era nos seus estudos <strong>de</strong> filosofia e ciência proibida. O caçador – Siger <strong>de</strong><br />

Brabant - podia ainda, s<strong>em</strong> muita certeza, afirmar se havia ou não um javardo nas<br />

circunvizinhanças, nas floresta e matas escondidas na tar<strong>de</strong>, nos arredores e, nesse<br />

caso, tomaria uma série <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s para verificar a presença ou ausência do animal;<br />

podia percorrer trilhas, qu<strong>em</strong> sabe?, próprias <strong>de</strong> javalis, corças, cervos e animais<br />

rasteiros; podia examinar com mais argúcia e cuidado as pegadas e o tipo <strong>de</strong> animal<br />

<strong>de</strong>vorado; podia comparar, <strong>em</strong> sua l<strong>em</strong>branças e r<strong>em</strong><strong>em</strong>orações <strong>de</strong> outras caçadas,<br />

situações nas quais esteve presente um javardo bruno e sua presas malcheirosas. No<br />

entanto, após isso tudo, alegr<strong>em</strong>ente, Siger balançou a mão direita, chamando a todos e,<br />

<strong>de</strong> repente, estávamos sentados <strong>em</strong> redor à fogueira, todos, soldados e as mulheres.<br />

Alimentávamo-nos. O javali caíra ante a espada <strong>de</strong> Siger. Devidamente cozido <strong>em</strong> fogo<br />

brando e brilhante <strong>de</strong> óleos e t<strong>em</strong>peros, a carne do animal nos foi a<strong>de</strong>quada. Dizia Siger<br />

Coelho De Moraes 44


MARCUS, o imortal<br />

que oferecia o alimento ao modo da culinária beduína. Só que lá eles usavam carne <strong>de</strong><br />

camelo.<br />

Na manhã seguinte partimos, rapidamente, n<strong>em</strong> b<strong>em</strong> o sol aparecia no horizonte.<br />

No meio do caminho encontramos camponeses que pareciam saber <strong>de</strong> Siger e se<br />

acercaram do grupo.<br />

- Não é o sábio que recebe instruções espirituais através da natureza? – um dos homens<br />

sujos disse, <strong>em</strong> sotaque <strong>de</strong>sconhecido, apontando para Siger. Faz t<strong>em</strong>po que não o<br />

v<strong>em</strong>os. – O hom<strong>em</strong> parecia gritar na pradaria, falando para nós e para seus<br />

acompanhantes, também, amplamente sujos - Certa vez, há muitos anos, encontrei<br />

esse gran<strong>de</strong> senhor chamado <strong>de</strong> Brabant – Siger refreou o cavalo e parou para ouvir o<br />

que dizia o outro – Este senhor <strong>de</strong> Brabant costumava caminhar pelas florestas perto da<br />

Ilha, na França, sorvendo a névoa das manhãs, me parecia.<br />

- Qu<strong>em</strong> é você? – Siger perguntou.<br />

- Não vai se l<strong>em</strong>brar porque não me conhece. Eu era certo brãhmana avadhuta... nos<br />

encontramos no passado... e meu título po<strong>de</strong> significar...<br />

- “Um filósofo santo livre das coisas mundanas” – completou Siger. Agora me l<strong>em</strong>bro. Eu<br />

o vi e me aproximei do avadhuta que andava por ali – virou-se para mim – e este<br />

hom<strong>em</strong> diz que é o mesmo andarilho.<br />

- Sim. Eu vagava <strong>em</strong>bevecido com as gotas <strong>de</strong> orvalho e com as brisas simples que<br />

passavam através das folhagens úmidas.<br />

O tal andarilho não parecia ter medo. Este tal hom<strong>em</strong> avadhuta parecia,<br />

também, muito jov<strong>em</strong> e erudito, muito sábio para sua ida<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> muito sujo. –<br />

Siger <strong>de</strong>sceu do cavalo para falar mais <strong>de</strong> perto com aquela gente. Fiz<strong>em</strong>os o mesmo.<br />

Aproveitei a oportunida<strong>de</strong> para conversar com o estranho pessoal que me pareceu ter o<br />

tipo físico <strong>de</strong> hindus e sacerdotes da Ásia. Siger perguntou:<br />

- Não está ocupado <strong>em</strong> nenhuma ativida<strong>de</strong> religiosa prática? Caminha por estas bandas<br />

como se fosse jardim <strong>de</strong> sua casa? Sabe dos perigos que rondam os caminhos?<br />

O avadhuta olhou para Siger e este <strong>de</strong>u continuida<strong>de</strong> ao rol <strong>de</strong> perguntas:<br />

- Como, tendo uma inteligência extraordinária, está o senhor viajando pelo mundo, s<strong>em</strong><br />

eira n<strong>em</strong> beira, pelo que posso ver <strong>de</strong> suas roupagens e falta <strong>de</strong> limpeza?<br />

- De modo geral, senhor <strong>de</strong> Brabant, os seres humanos trabalham arduamente a fim <strong>de</strong><br />

cultivar religiosida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>senvolvimento econômico, gozo dos sentidos e também<br />

conhecimento da alma, e sua motivação comum é aumentar a duração <strong>de</strong> suas vidas,<br />

adquirir fama e gozar <strong>de</strong> opulência material.<br />

- Em geral, apesar da sua razão, não posso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> dizer, as pessoas <strong>de</strong>sejam a fama,<br />

<strong>de</strong>sejam tornar-se famosas ou aumentar sua riqueza e duração <strong>de</strong> vida através <strong>de</strong><br />

práticas espirituais.<br />

- Muitas pessoas comuns pensam, por ex<strong>em</strong>plo, - eu entrava na conversa com opiniões<br />

<strong>de</strong> estudos antigos e querendo mostrar que tinha certo conhecimento das filosofias<br />

orientais - que o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> yoga <strong>de</strong>stina-se ao aprimoramento da saú<strong>de</strong>, que se po<strong>de</strong><br />

orar à divinda<strong>de</strong> por dinheiro e que o conhecimento espiritual <strong>de</strong>stina-se a aumentar o<br />

prestígio perante a socieda<strong>de</strong>. Portanto, por que é que estão tão sujos assim, já que há<br />

rios e muita chuva para banho? Não é uma incoerência?<br />

Siger <strong>de</strong> Brabant, sinalizando para que todos <strong>de</strong>scess<strong>em</strong> <strong>de</strong> suas montarias e<br />

ficass<strong>em</strong> à vonta<strong>de</strong> para conversar ou não, continuou: - Você, porém, <strong>em</strong>bora capaz,<br />

erudito e eloqüente, não se <strong>de</strong>dica a fazer coisa alguma, n<strong>em</strong> tampouco <strong>de</strong>seja nada,<br />

pelo que se po<strong>de</strong> ver; pelo contrário, parece estupefato como se fosse uma criatura<br />

fantasmagórica. Vocês todos estão longe do que chamamos vida normal e po<strong>de</strong>-se ver<br />

que não têm qualquer contato com o prazer material e que viaja com esse grupo solitário<br />

<strong>de</strong> nôma<strong>de</strong>s. Portanto, por favor, diga, qual é a causa do gran<strong>de</strong> êxtase que sente<br />

interiormente? Igual a vocês apenas os franciscanos. Sei <strong>de</strong> monges e freis e irmãos que<br />

dirigiram ao Oriente para aprendizado das técnicas <strong>de</strong> meditação, como b<strong>em</strong> disse<br />

Marcus, do yoga...<br />

- Às vezes, - dizia o hom<strong>em</strong>, provavelmente, <strong>em</strong> nome dos outros seguidores - pessoas<br />

ignorantes acham que a vida espiritual renunciada é somente para os impotentes,<br />

simplórios, incompetentes nas coisas práticas.<br />

- Os <strong>de</strong>tratores <strong>de</strong> Francisco muitas vezes diziam que a vida religiosa <strong>de</strong>les era um apoio<br />

para qu<strong>em</strong> não é hábil <strong>em</strong> alcançar um status elevado no mundo. Mas Francisco os<br />

l<strong>em</strong>brava que ele mesmo vinha <strong>de</strong> família rica e que <strong>de</strong>ixou tudo <strong>de</strong> lado.<br />

Coelho De Moraes 45


MARCUS, o imortal<br />

- Ou seja – completou o nôma<strong>de</strong> – Ele mesmo fizera sua opção contra a riqueza, e seus<br />

métodos <strong>de</strong> efetuar práticas. Meu querido <strong>de</strong> Brabant, tenho muitos mestres espirituais<br />

nos quais me refugio.<br />

- Provavelmente obtém <strong>de</strong>les alguma compreensão transcen<strong>de</strong>ntal...<br />

- Sim, e agora vagueio pela terra <strong>em</strong> condição <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> liberto.<br />

Soldados e mulheres resolveram se sentar sob umbrosas árvores. A vizinhança<br />

era assim.<br />

A estrada, reta e direta, por on<strong>de</strong> passávamos, fazia sua trilha sob uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

árvores que traziam gran<strong>de</strong> sombra. Mas, mais além podíamos perceber um pequeno rio<br />

que serpeava a localida<strong>de</strong>. Fomos para lá, mas somente eu, Siger e o hom<strong>em</strong>, cujo nome<br />

eu ainda não conhecia.<br />

- Yadu – eis o meu nome. Refugiei-me <strong>em</strong> vinte e quatro gurus e eles me guiam, por<br />

assim dizer, nas sendas do Zend Avesta. Sou como a terra, o ar, o céu, a água, o fogo, a<br />

lua, o sol, o pombo, o píton, o mar, a mariposa, a abelha, o elefante e o “ladrão <strong>de</strong> mel”;<br />

o veado, o peixe, a prostituta Pingalã, a ave kurara, a criancinha, a mocinha, o fazedor<br />

<strong>de</strong> flechas, a serpente, a aranha e a vespa.<br />

- Com certeza – disse Siger, tomando um pouco <strong>de</strong> água do riacho - por estudar as<br />

ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>les você apren<strong>de</strong>u a ciência do eu.<br />

- Sim. Você b<strong>em</strong> sabe do que fala, senhor <strong>de</strong> Brabant. B<strong>em</strong> sabe.<br />

OPUS 23<br />

Estávamos novamente na estrada. Passáramos um burgo <strong>em</strong> chamas e não me<br />

l<strong>em</strong>bro <strong>de</strong>, na vinda atrás dos ciganos, ter passado por estradas similares. Os hindus<br />

ficaram para trás, já entretidos <strong>em</strong> outros assuntos.<br />

- É que nos perd<strong>em</strong>os – disse um dos soldados.<br />

- Como assim? – perguntei. E ele <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros. Brabant veio <strong>em</strong> auxílio.<br />

- Há alteração no equilíbrio do ambiente. Enquanto conversávamos com os nôma<strong>de</strong>s,<br />

com certeza as gentes dos T<strong>em</strong>plários passaram por aqui. Não sente certo ar <strong>de</strong><br />

entranha <strong>de</strong>composta?<br />

- É... agora que você tocou no assunto.<br />

- As névoas são passageiras, mas nos farão rodar e andar <strong>em</strong> círculos. Ficar aqui<br />

também <strong>de</strong> nada adianta. Não quero mais parar.<br />

A impetuosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brabant não tinha freios. Ele or<strong>de</strong>nou que alimentass<strong>em</strong> os<br />

cavalos e que muita água lhes fosse fornecida. Eles seguiriam. O sol já era intenso pelo<br />

meio do dia. O cheiro <strong>de</strong> carne podre aumentou.<br />

- Eu sei que os ciganos agiram <strong>de</strong> má fé, no entanto, as mulheres não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ter<br />

relações com a alquimia e feitiçaria. Isso ajuda <strong>em</strong> muito as inferências invisíveis – ele<br />

disse. Uma pessoa sóbria, mesmo quando molestada por outros seres vivos e, nesse<br />

caso, não tão vivos, <strong>de</strong>ve enten<strong>de</strong>r que seus agressores ag<strong>em</strong> sob o controle <strong>de</strong> alguma<br />

força, s<strong>em</strong>pre, e por isso jamais <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os nos <strong>de</strong>sviar da senda que trilhamos... <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os<br />

nos manter <strong>em</strong> nosso próprio caminho. Eis um princípio <strong>de</strong> magia, caro Marcus... Esta<br />

regra eu aprendi com a terra.<br />

Os cavalos relincharam alvoroçados, pois sentiam a presença <strong>de</strong> outros animais e<br />

outros seres. Prestando muita atenção nas curvas da estrada só podíamos notar que<br />

aves negras cruzavam o caminho, <strong>de</strong> árvore a árvore a sombra se ampliou, apesar do<br />

horário. Urraca se aproximou e pediu para se manter ao meu lado.<br />

- A terra é o símbolo da tolerância – Siger falou, olhando para a mulher, com certo ar <strong>de</strong><br />

qu<strong>em</strong> não po<strong>de</strong> fazer mais nada e percebe que n<strong>em</strong> a mulher po<strong>de</strong>ria, a não ser sofrer<br />

as conseqüências. Montamos e a trote seguimos. O vento ficou mais intenso. Muita areia<br />

atrapalhava os cavalos e nos impediria <strong>de</strong> acertar com os atalhos.<br />

- A Terra será constant<strong>em</strong>ente molestada, caro Marcus, por entida<strong>de</strong>s vivas d<strong>em</strong>oníacas.<br />

Às vezes, florestas <strong>de</strong>nsas são <strong>de</strong>struídas por seres cobiçosos e a superfície da terra é<br />

encharcada pelo sangue dos soldados mortos <strong>em</strong> guerras cruéis. Em nenhum momento<br />

<strong>em</strong> minhas lutas, tenho como meta principal a morte do oponente. Você viu que<br />

travamos um combate e não houve perdas.<br />

- A não ser aquele braço que você tirou do cigano.<br />

- Um <strong>de</strong>talhe... mero <strong>de</strong>talhe <strong>de</strong> l<strong>em</strong>brança, apenas. Ele não fará isso novamente, eu<br />

espero. Pelo menos com aquele braço. Entretanto, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> todos esses distúrbios,<br />

a terra continua a nos fornecer todos os recursos. Dessa forma po<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os apren<strong>de</strong>r a<br />

arte da tolerância, estudando as ativida<strong>de</strong>s da terra.<br />

Coelho De Moraes 46


MARCUS, o imortal<br />

Rumamos <strong>em</strong> corrida louca através do manto <strong>de</strong> pó e folhas que <strong>de</strong>sabavam<br />

sobre nós. Então rolou, perigosamente <strong>em</strong> estrondo, uma pedra enorme, que dilacerou<br />

troncos e outras pedras, arrancou touceiras e matos <strong>em</strong> sua passag<strong>em</strong>. Não paramos e,<br />

por nós, uma saraivada <strong>de</strong> pequenos bólidos veio nos atingir as costas, fazendo com que<br />

os cavalos ficass<strong>em</strong> nervosos e acelerass<strong>em</strong>. Mas Siger não parava <strong>de</strong> falar.<br />

- Uma pessoa <strong>de</strong>ve apren<strong>de</strong>r com a montanha a <strong>de</strong>dicar todos os seus esforços a serviço<br />

dos outros e a fazer do b<strong>em</strong>-estar dos outros a única razão <strong>de</strong> sua existência.<br />

Gran<strong>de</strong>s montanhas sustentam quantida<strong>de</strong>s ilimitadas <strong>de</strong> terra, mas naquele<br />

momento pareceu que estavam líquidas e friáveis, pois jorrava uma enxurrada <strong>de</strong> barro e<br />

lama que brotava dos altos montes à nossa esquerda.<br />

- Percebe, Marcus – Siger gritava entre a poeira que nos ressecava a boca - que, por sua<br />

vez, essa avalanche nos direciona? Que essa t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> areia e folhas mostra o<br />

caminho que <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os seguir? As montanhas também <strong>de</strong>rramam ilimitadas quantida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> água cristalina sob a forma <strong>de</strong> cascatas e rios, e esta água dá vida a tudo. Percebe?<br />

Eu queria sair dali o quanto antes. Urraca <strong>de</strong> ValVer<strong>de</strong>, <strong>em</strong> minha garupa, se<br />

agarrava com força imensurável. Teve um momento que ela me cutucou e apontou as<br />

laterais da estrada, além das árvores e eu pu<strong>de</strong> ver outros cavaleiros que por ali<br />

transitavam.<br />

- Qu<strong>em</strong> são? – ela perguntou, no meu ouvido, ainda gritando.<br />

- Não são os soldados <strong>de</strong> Siger?<br />

- Não!<br />

- Então, eu não sei!<br />

- São os T<strong>em</strong>plários – falou De Brabant e vi que ele acenou para sua milícia, correndo<br />

naquela direção, todos levantando armas, <strong>de</strong>ixando eu e Urraca a sós, na carreira<br />

<strong>de</strong>sabalada <strong>em</strong> meio <strong>de</strong> um nada cercado <strong>de</strong> ventos e terra.<br />

OPUS 24<br />

Em um átimo nosso cavalo <strong>de</strong>spencou na água.<br />

Urraca b<strong>em</strong> se pren<strong>de</strong>u ao meu corpo com unhas e <strong>de</strong>ntes, para não cair da<br />

montaria. Mesmo assim, quando nos livramos do red<strong>em</strong>oinho <strong>de</strong> terra, pedras,<br />

folhas e galhos, nos vimos imersos <strong>em</strong> água abundante, <strong>de</strong> correnteza copiosa.<br />

Nada mais. Em volta um silêncio <strong>de</strong> pedra e uma imobilida<strong>de</strong> incessante.<br />

Subimos para a beira, encharcados e cansados. Juntos dormimos um pouco.<br />

Fiz<strong>em</strong>os uma fogueira para secar roupas e assar alguns milhos. Depois disso veio a noite<br />

e n<strong>em</strong> sinal dos cavalos tanto <strong>de</strong> T<strong>em</strong>plários quanto da milícia <strong>de</strong> Siger.<br />

Quando esfriou, na madrugada, Urraca veio para perto <strong>de</strong> mim e não dormimos,<br />

pois nossos abraços foram mais intensos. Buscas m<strong>em</strong>oráveis. Engalfinhados <strong>em</strong> ardores,<br />

sentíamos pele contra pele e uma união ímpar. Os corpos se esquentavam e eram<br />

solidários. Naquele momento, percebíamos que estávamos ro<strong>de</strong>ados por inumeráveis<br />

objetos materiais que possuíam qualida<strong>de</strong>s boas e más. E nós dois, eu e Urraca, éramos<br />

<strong>de</strong>fensores do prazer imediato e não nos tínhamos, evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, como qu<strong>em</strong> tivesse<br />

transcendido o b<strong>em</strong> e o mal materiais. Na verda<strong>de</strong>, muita vez nos <strong>de</strong>ixávamos enredar,<br />

impondo severo contato com objetos materiais <strong>de</strong> vulto, como nossas loções oleosas<br />

para banho, alimentos que ampliavam a sensação dos corpos, perfumes e loções.<br />

Algum t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>pois nos separávamos, cansados, sobre as roupas jogadas no<br />

chão <strong>de</strong> terra fina. A noite era imperiosa, com estrelas e sombras misteriosas. Era<br />

possível ouvir um canto vindo das lonjuras. Mulheres cantando, entoando hinos e algum<br />

grito. Percebi que a noite era <strong>de</strong> Lua Negra.<br />

- Mas, antes se <strong>de</strong>ve agir como o vento – ela disse.<br />

- O quê? – eu tornei – Não entendi.<br />

- Antes <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os agir como o vento. – Urraca repetiu, com certo sorriso nos lábios<br />

quentes. - Às vezes, o vento sopra através da floresta, transportando fragrâncias <strong>de</strong><br />

frutos e flores. Em outros momentos, o vento queima e reduz a cinzas essa mesma<br />

floresta. – E isso ela dizia como <strong>em</strong> estado <strong>de</strong> fascinação, olhar fixo no céu, o peito<br />

arfando lev<strong>em</strong>ente, os seios amplos agindo como estorvo ao pensamento claro.<br />

Entretanto, o vento nos foi fiel e manteve-se tranqüilo <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> brisas quentes<br />

enquanto nossos corpos se enrodilhavam na grama, perto da fogueira latejante.<br />

Urraca manteve-se apegada a mim e g<strong>em</strong>ia <strong>de</strong>liciada. Eram ativida<strong>de</strong>s<br />

auspiciosas e pouco toleradas pela Igreja e pelo crescente número <strong>de</strong> moralistas,<br />

<strong>de</strong>fensores <strong>de</strong> uma retidão frustrada, permanecendo alheios <strong>em</strong> sua própria natureza.<br />

Coelho De Moraes 47


MARCUS, o imortal<br />

Po<strong>de</strong>-se estar numa cida<strong>de</strong> infernal ou num bosque aprazível. Em ambos os casos <strong>de</strong>vese<br />

experimentar b<strong>em</strong>-aventurança transcen<strong>de</strong>ntal no encontro <strong>de</strong> corpos e nos amores e<br />

isso é <strong>de</strong>finitivo. Portanto, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os apren<strong>de</strong>r com o vento a arte <strong>de</strong> andar pelo mundo<br />

material s<strong>em</strong> apego, mas curvando árvores, acen<strong>de</strong>ndo labaredas, <strong>em</strong>purrando seres<br />

frágeis, levantando folhas e poeira.<br />

L<strong>em</strong>bro que dormi. Dormimos. Uma ou duas horas e <strong>de</strong> repente ouvi gritos<br />

lancinantes. Eu ainda tonto pensei ver mulheres várias enquanto Urraca gania<br />

<strong>de</strong>sesperadamente. Fui puxado pelos braços, mas estava tonto, <strong>de</strong> sono e dos braços da<br />

mulher. Fui <strong>de</strong>positado numa cama <strong>de</strong> palhas e tive minhas roupas arrancadas. Uma<br />

fogueira enorme crepitava no meio da praça <strong>de</strong> árvores. Muitas mulheres nuas e s<strong>em</strong>inuas<br />

dançavam, mas eu não conseguia distinguir faces ou vozes. Elas cantavam<br />

ladainhas febris e tinham certo arroubo <strong>de</strong> enlouquecidas. Elas vinham para cima <strong>de</strong> mim<br />

com <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> cópula. O ruído era intenso e após duas vezes a copular eu cansei e<br />

percebi que elas forçavam a que eu bebesse alguma coisa. Um líquido viscoso que<br />

parecia sangue com outras substâncias <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> láctea. No começo da noite elas me<br />

tomaram várias vezes, mas eu caia <strong>de</strong> cansaço e após o t<strong>em</strong>po necessário elas me<br />

tomavam novamente.<br />

Seguiu assim a noite. Em todas as mulheres eu queria ver o rosto <strong>de</strong> Sonja, mas<br />

não a encontrava. Mera <strong>de</strong>sculpa.<br />

Por fim, acor<strong>de</strong>i e era manhã. Estava sozinho. N<strong>em</strong> Urraca n<strong>em</strong> mulheres,<br />

apenas uma fogueira, ou o que restava <strong>de</strong>la <strong>em</strong> palha e ma<strong>de</strong>ira molhadas, fumegando<br />

sob o orvalho e o frio da manhã.<br />

- Embora o vento po<strong>de</strong>roso sopre nuvens e t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong>s pelo céu – pensei - o céu<br />

jamais se compromete n<strong>em</strong> é afetado por essas ativida<strong>de</strong>s. Mas não é o meu caso.<br />

Tenho que me recompor para pensar e inventariar o que restou <strong>de</strong>ssa noite.<br />

OPUS 25<br />

Três dias <strong>de</strong>pois eu chegava à estalag<strong>em</strong> e a primeira pessoa que encontrei foi<br />

Siger, que ria, sentado <strong>em</strong> um tamborete, livro à mão, olhando para mim. Fez um<br />

cumprimento, lá do alto da sua janela, e entrou para o aposento.<br />

Os amigos estavam preocupados, mas não consegui diminuir-lhes a atenção <strong>em</strong><br />

função da perda <strong>de</strong> Urraca e das mulheres.<br />

Numa rara ocasião como aquela, arrisquei a adverti-los <strong>de</strong> que talvez Siger<br />

soubesse mais do que contou, mas Pietro <strong>de</strong> Ferrara disse que ele não tocara no<br />

assunto, pelo menos entre eles. Já com os amigos doutos, Pietro não saberia afirmar.<br />

LaCordaire explodiu:<br />

- B<strong>em</strong>, eu não quero alguém para me dizer o que é que se po<strong>de</strong> ou não se po<strong>de</strong> fazer,<br />

numa circunstância <strong>de</strong>ssas. Estamos numa encruzilhada <strong>de</strong> pensamento e vertentes...<br />

<strong>de</strong>ve ter um caminho.<br />

- Ninguém aqui é pago para dizer coisa alguma, LaCordaire. Mas, parece claro que<br />

estamos todos à mercê <strong>de</strong> experiências muito estranhas... mesmo para o nível <strong>de</strong> nosso<br />

conhecimento. E é claro, t<strong>em</strong> muita coisa escondida e secreta...<br />

- Isso é b<strong>em</strong> certo – LaCordaire concordou a contragosto.<br />

- Não é somente na negligência aos refinados processos da lei e dos arcanos que os<br />

estudiosos sobrepujaram os cont<strong>em</strong>porâneos da Europa – eu continuei e acabei por<br />

contar o que ocorreu na viag<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> escon<strong>de</strong>r o episódio com Urraca e as outras<br />

mulheres.<br />

- B<strong>em</strong> disseram que as mulheres chegaram muito diferentes <strong>em</strong> <strong>em</strong>oções e sentimentos,<br />

comparando como estavam quando daqui foram – falou Pietro.<br />

- E Siger t<strong>em</strong> algo a ver com isso. Ele ficou <strong>em</strong> conversação com os T<strong>em</strong>plários... pelo<br />

menos com aqueles representantes <strong>de</strong>scarnados. E eu fui tomado pela lascívia e pelo<br />

mistério das mulheres. Quando lutavam, ele substituía a espada com terríveis golpes <strong>de</strong><br />

machado b<strong>em</strong> assentados nos escudos dos inimigos... era um cavalheiro com punhos do<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro.<br />

- Há outro bom ex<strong>em</strong>plo – dizia LaCordaire, enquanto eu me sentava no catre - foi a<br />

briga pelo controle da estrada que atravessa a floresta que t<strong>em</strong>os aqui ao lado da colônia<br />

<strong>de</strong> ciganos. Vi tudo isso que você <strong>de</strong>screve, Marcus. O tal senhor <strong>de</strong> Brabant é muito<br />

po<strong>de</strong>roso com arcos e flechas, também. Parece que uma ligação vital entre estradas e<br />

rios... um sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> transporte que foi disputado por monges e aristocratas da região,<br />

nesses últimos três dias. Um aristocrata inglês chamado Morgan. Morgan mantinha <strong>em</strong><br />

Coelho De Moraes 48


MARCUS, o imortal<br />

suas mãos um dos extr<strong>em</strong>os da estrada, e o outro terminal – o que dava vazão aos rios,<br />

era mantido pelos monges, mas auxiliados pelos ciganos. Tudo aquilo a proteger uma<br />

fortaleza. A fortaleza do Fisher King, como diz<strong>em</strong> por aqui, assim mesmo, <strong>em</strong> inglês.<br />

- A coisa foi resolvida com a entrada <strong>de</strong> Brabant na história. N<strong>em</strong> b<strong>em</strong> chegou e partiu<br />

para aqueles lados, carregando pólvora e uma guarnição maior.<br />

- On<strong>de</strong> ele conseguiu pólvora?<br />

- Não sei... Cada lado – monges e Morgan - colocava barcos, charretes, <strong>em</strong> seu extr<strong>em</strong>o<br />

da estrada ou entrada <strong>de</strong> rio, fazendo com que cada um <strong>de</strong>les parecesse o dono<br />

<strong>de</strong>finitivo das linhas. Então partiram uns contra os outros, como se foss<strong>em</strong> duas<br />

máquinas, a correr<strong>em</strong> uma contra a outra.<br />

No meio do caminho – LaCordaire finalizou a fala <strong>de</strong> Pietro – De Brabant explodiu<br />

tudo e os dois lados ficaram s<strong>em</strong> saber mais o que fazer. Os dois lados eram per<strong>de</strong>dores.<br />

E mesmo <strong>de</strong>pois disso não ce<strong>de</strong>ram; cada um se retirou da luta carregando o melhor que<br />

po<strong>de</strong>, inclusive <strong>de</strong>struindo casas da colônia ou barcos.<br />

- O que vejo é que há um corpo-a-corpo pela supr<strong>em</strong>acia <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados po<strong>de</strong>res,<br />

agora concentrados nesta região. Não é à toa que sumida<strong>de</strong>s da religião, da magia, da<br />

ciência, da filosofia se encontram nessa pequena estalag<strong>em</strong> – falei.<br />

- Só que estão a fazer um barulho terrível e logo chamarão atenção para esse pobre local<br />

– disse Pietro.<br />

- Não há nenhuma trégua a ser pedida ou ser concedida. Até mesmo a pólvora chinesa<br />

teve sua utilida<strong>de</strong> nessa disputa; chegou a ser <strong>em</strong>pregada para eliminar oposições e<br />

d<strong>em</strong>onstrar um po<strong>de</strong>r maior, por parte <strong>de</strong> Siger, o que fez com que os outros grupos<br />

murchass<strong>em</strong> <strong>em</strong> seus i<strong>de</strong>ais.<br />

Isso só parece, caro Pietro. É apenas a imag<strong>em</strong> do que está por baixo. Uma ilusão<br />

construída. Um véu – continuei, após um gole <strong>de</strong> boa água. - Os grupos interessados<br />

estão por toda parte. Já estão por aqui, com espias e falsos amigos. Todo cuidado é<br />

pouco, agora. O papado se mostrou intransigente d<strong>em</strong>ais... teimoso e perigoso d<strong>em</strong>ais;<br />

tive acesso a documentos que mostram que a Inquisição está recru<strong>de</strong>scendo <strong>em</strong><br />

métodos e modos <strong>de</strong> investigação e... persuasão. Enquanto meios menos violentos, tais<br />

como o seqüestro, são notáveis pela engenhosida<strong>de</strong> e pela imoralida<strong>de</strong>. Mas, há<br />

também assassinatos.<br />

- Não é preciso dizer que os padres estão obrigando um e outro a saltar para a<br />

fogueira... por que tratariam o público com reverência ou bonda<strong>de</strong>? Enganar e sugar os<br />

inferiores nesta terra é consi<strong>de</strong>rado algo normal e as confrarias, paróquias, monastérios,<br />

são como um mercado persa... uma casa particular <strong>de</strong> jogos para os ricos, para car<strong>de</strong>ais,<br />

no qual o público faz as apostas <strong>em</strong> indulgências e um lugar no céu... e os po<strong>de</strong>rosos<br />

ajeitam as cartas.<br />

- Qu<strong>em</strong> mais está aí?<br />

- Magos e pensadores árabes – disse Pietro. Alguns já discutiram com Tomás <strong>de</strong> Aquino,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo Averróis e você sabe como Tomás se dirige aos averroístas.<br />

Bateram à nossa porta. Era Siger. Pediu para entrar. Cumprimentou-me, tocando<br />

a testa com os <strong>de</strong>dos, rapidamente, e contou um resumo do resto <strong>de</strong> horas que passou<br />

ao lado dos T<strong>em</strong>plários, dias atrás. Ele afirmou que estados <strong>de</strong> proibição e estados <strong>de</strong><br />

mistérios darão resultados funestos e terríveis naqueles próximos anos. Alberto viria para<br />

falar comigo sobre o assunto.<br />

- Proibido! Inúmeros assuntos proibidos pularão <strong>em</strong> nossos colos <strong>em</strong> breve. O que parece<br />

é a aproximação <strong>de</strong> uma rachadura imensa entre os po<strong>de</strong>res pensantes e a Igreja – Siger<br />

falou b<strong>em</strong> alto. Ele adaptava-se a situações alternativas como um missionário, que na<br />

verda<strong>de</strong> era. Ele, Siger <strong>de</strong> Brabant, <strong>em</strong> uma terra <strong>de</strong> seres primitivos, <strong>de</strong> pensamentos<br />

basais, recusava-se a tornar-se um nativo, preservando sua integrida<strong>de</strong> ao custo <strong>de</strong><br />

estudos, alguma batalha e <strong>de</strong>savenças constantes com os superiores <strong>de</strong> sua ord<strong>em</strong>.<br />

- Muitos o admiram, - eu disse - e mesmo o amam.<br />

- Mas eu não tenho amigos íntimos e n<strong>em</strong> é bom que tenha; não há hom<strong>em</strong> que me<br />

trate apenas pelo primeiro nome, e n<strong>em</strong> serei amado por mulher... assim...<br />

completamente.<br />

- Todo mundo vai pensar duas vezes ao se aproximar, após ver como o senhor De<br />

Brabant maneja o escudo e as armas <strong>de</strong> guerra – disse LaCordaire, s<strong>em</strong>pre com a sua<br />

astuciosa sincerida<strong>de</strong> - Como seria <strong>de</strong> esperar, enfim, o senhor é uma massa <strong>de</strong><br />

excentricida<strong>de</strong>s.<br />

Siger <strong>de</strong> Brabant se retirou, <strong>de</strong>sejando uma boa noite.<br />

Coelho De Moraes 49


MARCUS, o imortal<br />

Passei mais dois dias <strong>de</strong>ntro do meu quarto e só ouvia rumores. Recusei a ler os<br />

relatos das reuniões, que Pietro mantinha <strong>em</strong> livros <strong>em</strong>pilhados junto <strong>de</strong> uma pare<strong>de</strong> <strong>em</strong><br />

seus pacotes originais; e não via sentido <strong>em</strong> arrumar a cama; as cobertas eram puxadas<br />

quando o frio se esgueirava pelo ma<strong>de</strong>irame das pare<strong>de</strong>s; ou para fora nas manhãs mais<br />

quentes. A preguiça era minha meta. Um tanto taciturno, podia sentar-me por longas<br />

horas <strong>em</strong> silêncio quando as visitas – Pietro, LaCordaire e Alexandrino que <strong>de</strong> repente<br />

<strong>de</strong>sapareceu <strong>de</strong> nossas vistas dizendo que passearia nos campos, vinham ansiosas por<br />

relatar os pronunciamentos.<br />

- O senhor <strong>de</strong> Brabant – passei a ouvir, <strong>em</strong> gritos exasperados, uma das vozes que<br />

estavam <strong>em</strong> reunião. Em princípio era para que tudo aquilo fosse sigiloso – O senhor é<br />

um soldado terrível com um machado lidando com as <strong>de</strong>terminações papais.<br />

- Assim o faço, quando as autorida<strong>de</strong>s o exig<strong>em</strong>... – Siger exagerava na explicação – a<br />

Igreja, monsenhor, põe <strong>de</strong> lado as fichas das alminhas que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ir ao céu... as<br />

alminhas que <strong>de</strong> alguma forma <strong>de</strong>viam algum pagamento... faltosos a alguma missa, e<br />

quando as ovelhas foram separadas das cabras ela, a Igreja, como que por aci<strong>de</strong>nte,<br />

misturava as duas novamente, s<strong>em</strong> saber qu<strong>em</strong> pagou ou não as maravilhosas<br />

indulgências.<br />

Percebi que ele era curiosamente sádico, era capaz <strong>de</strong> piadas cínicas misturando<br />

religiosida<strong>de</strong> e ciência, muitas vezes parecendo que não se levava a sério. Fiquei<br />

sabendo <strong>de</strong> uma história sua, <strong>de</strong> t<strong>em</strong>pos passados quando a juventu<strong>de</strong> se expressava<br />

com maior vigor. Siger estudava ainda no s<strong>em</strong>inário... Para livrar-se <strong>de</strong> um fazen<strong>de</strong>iro<br />

que queria a <strong>de</strong>struição do seu convento... tomou, um dia, <strong>em</strong>prestado do fazen<strong>de</strong>iro<br />

um saco que <strong>de</strong>volveu, <strong>de</strong>pois, com um vespeiro <strong>de</strong>ntro, com a seguinte nota: “Mexer<br />

no convento é como abrir esse saco.” Muitas vezes fazia a cena com o papel <strong>de</strong> ser<br />

enigmático, recusando-se a se comprometer com certas i<strong>de</strong>ologias; uma vez pediram<br />

sua opinião sobre um certo texto erudito, ele respon<strong>de</strong>u: "Há uma boa média <strong>de</strong><br />

palavras... creio que <strong>de</strong> quinhentas e trinta e quatro <strong>em</strong> média. A média do autor do<br />

texto é que é baixa." E, o mais estranho, este hom<strong>em</strong> sardônico, muitas vezes<br />

hilariante, comprovadamente guerreiro e comandante, era também muito cativante e<br />

tinha a in<strong>de</strong>finível qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser atraente às mulheres. Diziam, ele não confirmava e<br />

n<strong>em</strong> negava, limitando-se a sorrir, balançando estudadamente cabeça coroada <strong>de</strong><br />

cabelos anelares, que s<strong>em</strong>pre estava envolvido com uma ou outra mulher, e n<strong>em</strong><br />

s<strong>em</strong>pre porque <strong>de</strong>sejava.<br />

- "O que você faz quando uma mulher se atira sobre você, pretextando tomar bênçãos<br />

ou uma conversa sobre teologia?" perguntou uma vez.<br />

OPUS 26<br />

Mais <strong>de</strong>bates.<br />

As discussões se sucediam na s<strong>em</strong>ana e eram árduas. Aprendizes e mestres<br />

conseguiram retirar das mínimas idéias uma vasta complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> t<strong>em</strong>as e diretrizes.<br />

- O que eu sei – dizia Bacon – é que uma nova era se aproxima. Coisas novas se<br />

anunciam ve<strong>em</strong>ent<strong>em</strong>ente nos céus, na terra, entre as pessoas, entre os po<strong>de</strong>rosos...<br />

entre nós. Vou repetir aqui o que Jerônimo disse, quando vislumbrava a invasão e<br />

pilhag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Roma: “A voz fica na garganta e os meus soluços interromp<strong>em</strong> a mim,<br />

enquanto dito essas frases... enquanto perco minha palavras <strong>em</strong> meio ao salgado das<br />

lágrimas... ao ditar estas palavras. Foi conquistada a cida<strong>de</strong> que conquistou o universo.”<br />

Um novo bando <strong>de</strong> visigodos, comandados por um novo Alarico, está invadindo o saber,<br />

construindo novas pontes, enxergando novos túneis... se naquele momento, trezentos e<br />

tantos Jerônimos soluçavam... hoje <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os dar a mão para novas bênçãos e abrir<br />

nossos olhos para esse benéficos invasores.<br />

- Certamente, antes mesmo <strong>de</strong>sse golpe, as fronteiras do Império já estão cada vez mais<br />

violadas por levas <strong>de</strong> migrações <strong>de</strong> vários saberes, conhecimentos bárbaros, anotações e<br />

sabedoria estrangeiras nos impõ<strong>em</strong> discussões mais acaloradas – eu resolvi participar<br />

mais ativamente e fiz questão <strong>de</strong> expor minhas convicções.<br />

- As invasões bárbaras – completou Tomás, com certo <strong>de</strong>sdém.<br />

- Há que se ressaltar que houve um t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a economia e as ações políticas<br />

estavam <strong>em</strong> crescente <strong>de</strong>sorganização – eu falei e percebi que havia atenção – Não<br />

pod<strong>em</strong>os nunca <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado as vitórias e <strong>de</strong>sventuras mundanas. Como essas<br />

ativida<strong>de</strong>s interfer<strong>em</strong> na vida das pessoas. Olh<strong>em</strong> b<strong>em</strong>! Rotas comerciais hoje são<br />

abandonadas, as vilas ganham população, mas o campo recebe gente <strong>de</strong> várias outras<br />

Coelho De Moraes 50


MARCUS, o imortal<br />

povoações e então, as províncias se rebelam.<br />

- Concordo com essa visão, Marcus. O cenário é claro, a divisão do Império <strong>em</strong> Oci<strong>de</strong>nte<br />

e Oriente, tantas vezes realizada e <strong>de</strong>sfeita, vai se impondo <strong>de</strong>finitiva – Alberto Magnus<br />

disse, encostando as pontas dos <strong>de</strong>dos, mão contra mão. – E o antigo Império Romano,<br />

sab<strong>em</strong>os todos, hoje é a Igreja Católica Apostólica Romana, her<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> tudo, para o<br />

b<strong>em</strong> e para o mal. O Oci<strong>de</strong>nte transforma-se, lentamente, <strong>em</strong> um mosaico <strong>de</strong> reinos<br />

que já eram chamados <strong>de</strong> "povos bárbaros" , os invasores bárbaros, como diz Aquino. E<br />

eles vão assimilando <strong>em</strong> suas tradições valores romanos – houve uma pausa <strong>em</strong> que ele<br />

pensava - o cristianismo, se é que pod<strong>em</strong>os chamar o cristianismo <strong>de</strong> valor romano.<br />

- A nossa época se caracteriza como uma era <strong>de</strong> obscurantismo, perseguições, essa<br />

mistura dos místicos e <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong>s disparatadas, s<strong>em</strong> ajustes, s<strong>em</strong> controle – falou<br />

o monge <strong>de</strong> Cister – e não duvido que quando passar tudo isso, os her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> todo<br />

esse pensamento não venham, com arrogância, implantar um novo nascimento das<br />

artes, da literatura, <strong>de</strong> tudo, enfim... sob o domínio <strong>de</strong> reis e lor<strong>de</strong>s, longe do po<strong>de</strong>r das<br />

nossas igrejas benditas.<br />

- Igreja bendita fica por sua conta – replicou Magnus - Essa carga <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo pelo<br />

novo e pela pesquisa não lhe cai b<strong>em</strong>... por cerca <strong>de</strong> mil anos se divulga um esplendor<br />

do mundo greco-romano e seu, digamos, renascimento. E o que t<strong>em</strong>os aqui, se b<strong>em</strong><br />

observarmos? Epid<strong>em</strong>ias tidas como punição divina. Guerras incessantes contra mouros,<br />

contra islâmicos, contra feiticeiros e alquimistas? On<strong>de</strong> a aplicação diária <strong>de</strong> um<br />

conhecimento útil às pessoas? E esse profundo sentimento <strong>de</strong> medo... n<strong>em</strong> a morte<br />

t<strong>em</strong><strong>em</strong> tanto quanto o simples estar vivendo s<strong>em</strong> saber para on<strong>de</strong> ou por quê.<br />

- É impossível ignorar os produtos culturais, mesmo os subvencionados pela própria<br />

Igreja.<br />

- Ela é a principal culpada pelo retrocesso da cultura – gritou Vermont, fazendo balançar<br />

a mesa, estrepitosamente. Vermont era Franciscano e não suportava mais as<br />

perseguições.<br />

- Mas, é também responsável pela conservação <strong>de</strong> quase tudo o que se preservou do<br />

pensamento clássico greco-romano – explicou o cisterciense. No mundo predomina o<br />

campo, e a agricultura <strong>de</strong> subsistência...<br />

- ... os monastérios, esses refúgios rurais on<strong>de</strong> os religiosos, longe da vida mundana,<br />

buscam a purificação da alma – falou <strong>em</strong> tom certamente zombeteiro Siger <strong>de</strong> Brabant.<br />

- Mesmo nesse caso... <strong>de</strong>vo dizer, com todo respeito ao nosso guerreiro... a Igreja<br />

representa sobrevivência da cultura. Ali, os monges, enquanto rezam e trabalham...<br />

- Ora et labora – falou Tomas Aquino b<strong>em</strong> baixinho para o meu lado – esse monge é um<br />

beneditino disfarçado, acredite...<br />

- ...se <strong>de</strong>dicam à religião, à organização do trabalho rural e da cópia, à compilação, à<br />

tradução, ao comentário <strong>de</strong> textos da Antiguida<strong>de</strong>.<br />

- Não pod<strong>em</strong>os esquecer dos árabes... – dizia Bacon – nunca! Para além do mundo<br />

cristianizado, há nas regiões árabes e islâmicas um pensamento filosófico e cientifico.<br />

Não se po<strong>de</strong> esquecer disso!<br />

- O rei é uma pessoa santa – começou o senhor <strong>de</strong> Brabant - assim como a água, porque<br />

está livre <strong>de</strong> toda contaminação. O Rei é amável por natureza, e, ao falar, produz uma<br />

bela vibração, como a da água corrente - . Estava claro que Siger se <strong>de</strong>liciava com a<br />

jocosida<strong>de</strong>.<br />

- O que você que dizer com isso, Siger ? – Tomás perguntou. O Monge <strong>de</strong> Cister olhava<br />

com certa mofa.<br />

- Deixa que eu continue a minha história... Simplesmente por ver, tocar ou ouvir tal<br />

pessoa santa, qualquer ser vivo se purifica, assim como uma pessoa se purifica pelo<br />

contato com a água pura. Deste modo, uma pessoa santa, tal qual um lugar sagrado,<br />

purifica todos aqueles que entram <strong>em</strong> contato com ela, uma vez que s<strong>em</strong>pre canta as<br />

glórias do Senhor. – De repente ele se exaltou – Quer<strong>em</strong> nos fazer enten<strong>de</strong>r que uma<br />

aliança entre papa e rei signifique que o último é santo? Se n<strong>em</strong> o primeiro o é? Essas<br />

alianças serv<strong>em</strong> para eliminar focos <strong>de</strong> pensamentos alternativos e novos... enquanto<br />

seus monges copiam e comentam conceitos da antiguida<strong>de</strong>... t<strong>em</strong>os os árabes com o<br />

conceito puro e vivo para usarmos já... e além do mais... esses comentários, como o<br />

senhor <strong>de</strong> Cister fala, são comentários com certa tendência... dirigidas por superiores que<br />

comentarão <strong>de</strong> acordo com o interesse do papado... Por acaso se esquec<strong>em</strong> o episódio<br />

<strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Baskerville? – ele olhou a todos, principalmente ao monge enquanto<br />

durava o silêncio - Por acaso esquec<strong>em</strong> o lugar <strong>em</strong> que estamos e as influências que<br />

Coelho De Moraes 51


MARCUS, o imortal<br />

t<strong>em</strong>os recebido ao longo <strong>de</strong> todos esses séculos? – ele olha para todos como se estivesse<br />

prestes a <strong>de</strong>sferrar golpes e mor<strong>de</strong>r. Um e outro monge sent<strong>em</strong> arrepios <strong>de</strong> medo. – Isso<br />

que perceb<strong>em</strong> ser uma novida<strong>de</strong>, é, aparent<strong>em</strong>ente, mas só aparent<strong>em</strong>ente a renovação<br />

dos quadros do saber. S<strong>em</strong>pre se centralizou todo o conhecimento na Europa... é comum<br />

dar suporte, por escolha e comodida<strong>de</strong>, nos mais importantes centros urbanos do reino<br />

franco: Lion, Reims, Chartres, Paris. Puro reducionismo!, - ele gritou. – Grave redução! O<br />

fenômeno é muito mais diss<strong>em</strong>inado e suas origens r<strong>em</strong>ontam a outros povos e terras.<br />

Des<strong>de</strong> logo t<strong>em</strong>os a península Itálica, que disputa a primazia não só para as ciências da<br />

medicina e do direito, on<strong>de</strong> o seu pioneirismo e predomínio são inquestionáveis, mas<br />

também para as traduções greco-latinas <strong>de</strong> filosofia helênica e da patrística, além <strong>de</strong><br />

ser<strong>em</strong> daí originários alguns dos mais influentes pensadores <strong>em</strong> todo o processo, como<br />

Anselmo <strong>de</strong> Aosta e Pedro Lombardo, disso não pod<strong>em</strong>os negar. A renovação das<br />

ciências das coisas, as artes do quadrivium e as ciências exatas, <strong>de</strong>pend<strong>em</strong> das<br />

traduções e <strong>de</strong> obras compostas na península Ibérica, região on<strong>de</strong> se realiza a mais<br />

impressionante massa <strong>de</strong> traduções científicas, médicas, filosóficas e religiosas... a partir<br />

<strong>de</strong> qu<strong>em</strong>?... a partir <strong>de</strong> que povo?... a partir do árabe, por um vasto e ainda pouco<br />

conhecido conjunto <strong>de</strong> tradutores não só hispânicos, mas também atraídos um pouco <strong>de</strong><br />

toda a Europa; <strong>de</strong> fato, na Península Ibérica encontramos também itálicos, francos, um<br />

eslavo, germânicos, britânicos e conversos, a traduzir obras do árabe para o latim. Não<br />

cometo aqui erro algum... n<strong>em</strong> <strong>de</strong>sabono o que já sab<strong>em</strong>os e o que haver<strong>em</strong>os <strong>de</strong> saber,<br />

mas não aceito a redução das coisas, n<strong>em</strong> a limitação da sabedoria que outros povos nos<br />

traz<strong>em</strong>... mesmo que <strong>de</strong> outros credos... . Das ilhas britânicas provêm alguns importantes<br />

mestres que já estão <strong>em</strong> Paris e, um ou outro tradutor ativo na península Ibérica, mas<br />

ainda não se <strong>de</strong>staca aí nenhum centro escolar. Da Bretanha, provém um dos mais...<br />

figura das mais <strong>de</strong>stacadas da filosofia: Pedro Abelardo. – Ao ouvir<strong>em</strong> esse nome vários<br />

padres e monges <strong>em</strong>itiram grunhidos <strong>de</strong> horror e <strong>de</strong> ressentimento. - Mas as mudanças<br />

são b<strong>em</strong> visíveis e faz<strong>em</strong>-se sentir um pouco por toda a Europa.<br />

Nisso ele parou e apontou o <strong>de</strong>do <strong>em</strong> riste para todos, para logo <strong>em</strong> seguida<br />

tomar um ar sonhador e poético, retomando a palavra dizendo:<br />

- Uma pessoa santa é como água pura, livre <strong>de</strong> contaminação e capaz <strong>de</strong> purificar todas<br />

as coisas. Assim como a água pura é transparente, a pessoa santa manifesta<br />

transparent<strong>em</strong>ente a Personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu coração. Tais os conceitos<br />

que estão impingindo nas pessoas das vilas e dos campos, que n<strong>em</strong> sab<strong>em</strong> ler e n<strong>em</strong><br />

sab<strong>em</strong> enten<strong>de</strong>r coisa alguma... A divinda<strong>de</strong> do antigo César logo passará para algum<br />

Rei... Reis que já nasc<strong>em</strong> divinos...! Estamos corrompendo as pessoas com essa<br />

baboseira <strong>de</strong> que o amor a Deus é o reservatório <strong>de</strong> toda a felicida<strong>de</strong>, e que elas<br />

buscarão essa felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois que estiver<strong>em</strong> mortas... Tolices! Dev<strong>em</strong>os fincar nosso<br />

pé contra isso. Fazer uma pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteção contra essas atitu<strong>de</strong>s bélicas do<br />

cristianismo e seus representantes...<br />

- O senhor propõe o quê? Tirar o papa <strong>de</strong> Roma? Levá-lo para algum outro lugar e darlhe<br />

umas chineladas?<br />

- Isso não seria mau... mas ele é tido como uma pessoa santa - continuou Siger,<br />

t<strong>em</strong>pestuoso - assim como o fogo, às vezes aparece sob forma oculta e outras vezes se<br />

revela. Para o b<strong>em</strong>-estar ou para o mal-estar das almas que <strong>de</strong>sejam felicida<strong>de</strong> a todo<br />

custo..., uma pessoa santa po<strong>de</strong> aceitar a posição adorável <strong>de</strong> um mestre espiritual e<br />

este mestre espiritual po<strong>de</strong> ser um falso mestre e, assim como o fogo, produzir o pecado<br />

que era já passado <strong>em</strong> sólida promessa <strong>de</strong> futuro pecaminoso... daqueles que adoram,<br />

aceitando as oferendas.<br />

- Andar com as mulheres pelos burgos faz parte <strong>de</strong>sse pecado, senhor <strong>de</strong> Brabant? –<br />

perguntou sorri<strong>de</strong>nte o monge <strong>de</strong> Cister, dono daquele ar característico <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> dá o<br />

cheque-mate.<br />

- Não. É a busca <strong>de</strong> um prazer carnal interessante e humano. As fases da vida material, a<br />

começar do nascimento e culminando na morte, são todas proprieda<strong>de</strong>s do corpo e não<br />

da alma propriamente dita, assim como os aparentes minguar e crescer da Lua não<br />

afetam a Lua <strong>em</strong> si. Se é que me enten<strong>de</strong>... Essas transformações – e nesse momento<br />

Siger <strong>de</strong> Brabant começou a andar pela sala, assim como qu<strong>em</strong> discursa num palco a sua<br />

mais recente poesia - são impostas pelo fluir do t<strong>em</strong>po. O corpo se submete a seis<br />

transformações e os hindus pod<strong>em</strong> me auxiliar nesse pensamento: nascimento,<br />

crescimento, manutenção, produção <strong>de</strong> subprodutos, <strong>de</strong>generação e morte.<br />

- E a sua comparação continua sendo lunática... – disse assim o monge.<br />

Coelho De Moraes 52


MARCUS, o imortal<br />

- Sim. A Lua é minha referência para hoje. A lua dos sabás, a lua satélite, a lua das<br />

esferas celestes, a lua das gran<strong>de</strong>s noites... De forma s<strong>em</strong>elhante, a Lua parece crescer,<br />

diminuir e <strong>de</strong>saparecer. Ora, como o luar é um reflexo lunar da luz do Sol, a Lua não<br />

cresce n<strong>em</strong> diminui; perceb<strong>em</strong>os o reflexo da Lua <strong>em</strong> diversas fases. Quero usar essa<br />

analogia que me parece boa... a alma eterna não nasce, n<strong>em</strong> morre... o corpo material é<br />

certamente uma manifestação efêmera e fantasmagórica da potência externa do Senhor.<br />

- O que é agora... um encontro filosófico se transforma <strong>em</strong> encontro <strong>de</strong> ocultistas... –<br />

disse o monge.<br />

- É mais um dos t<strong>em</strong>as que tratar<strong>em</strong>os nesse encontro.<br />

Vi que ao lado do monge <strong>de</strong> Cister outros pensadores e professores, clérigos ou<br />

não, se agruparam , como uma reação contra o t<strong>em</strong>a obscuro. Parece que tomavam seus<br />

lados para um possível <strong>em</strong>bate terrível.<br />

- A questão da Lua... a questão do hom<strong>em</strong>... os sabás... a alquimia... são caminhos <strong>de</strong><br />

estudos que uma parte gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> nós todos estamos seguindo, se não para usar, pelo<br />

menos para conhecer e po<strong>de</strong>r refletir sobre a matéria, já que povos inúmeros <strong>de</strong> todos os<br />

t<strong>em</strong>pos são <strong>de</strong>positários <strong>de</strong> saberes e ciências similares... Não é por que critico<br />

averroístas e árabes que não vou buscar saber sobre eles. Saber para <strong>de</strong>bater e<br />

argumentar... – falou Tomás.<br />

- Contra inimigos <strong>de</strong> Deus e dos homens...<br />

- Também não me interessam valores preconcebidos... não acredito que o monge <strong>de</strong><br />

Cister venha ao nosso encontro para se vestir <strong>de</strong> uma mente fechada... - replicou Tomás<br />

com certa tranqüilida<strong>de</strong>...<br />

- Sendo a alquimia uma obra do d<strong>em</strong>ônio, ou ao menos um <strong>de</strong>preciável sonho, um gênio,<br />

um doutor, um mestre como Tomás não lhe po<strong>de</strong> dar crédito – disse Vermont, enfiando<br />

as mãos para <strong>de</strong>ntro da bata.<br />

- Tal é, <strong>em</strong> efeito, o fundo pueril e especial das argumentação que vimos recebendo<br />

nesse campo: <strong>em</strong> rigor, eu digo, não se po<strong>de</strong> contestar nada a um autor que quer<br />

d<strong>em</strong>onstrar na mesma obra que n<strong>em</strong> Zoroastro, n<strong>em</strong> Pitágoras, n<strong>em</strong> Plotino, n<strong>em</strong><br />

Porfírio, n<strong>em</strong> Jâmblico, n<strong>em</strong> Jerônimo Cardan, n<strong>em</strong> Geber, n<strong>em</strong> Arnaldo <strong>de</strong> Vilanova,<br />

n<strong>em</strong> o nosso excelso e forte amigo Roger Bacon aqui presente, muito menos Tritêmio,<br />

n<strong>em</strong> se quer... os Reis Magos... nunca haviam sido iniciados <strong>em</strong> qualquer aspecto da<br />

Magia. E o senhor monge <strong>de</strong> Cister, Vermont e estudiosos quer<strong>em</strong> afirmar que tais<br />

homens não serviram para nada, ao longo das nossas histórias e da história do mundo?<br />

- Há um texto <strong>em</strong> que trabalho agora – dizia Tomás - on<strong>de</strong> combato formalmente a<br />

possibilida<strong>de</strong> da transmutação metálica. Mas <strong>de</strong>ixo claro e <strong>em</strong> aberto que aceito discutir<br />

essa possibilida<strong>de</strong>. Aceito a transmutação, <strong>em</strong> si... o fenômeno <strong>em</strong> si... ou não po<strong>de</strong>ria<br />

aceitar a carne no pão, n<strong>em</strong> o sangue no vinho... Tanto que comento a possibilida<strong>de</strong> da<br />

feitura <strong>de</strong> ouro, não como a maioria dos alquimistas aceita, por ação do fogo, mas<br />

acredito, por ação do calor do Sol e nesse caso, não digo do calor do Sol do céu, mas do<br />

enxofre – o Sol na Terra. Não há uma simples transmutação... como se propaga<br />

popularmente... mas há uma complexa transmutação. E é necessária muita paciência<br />

para se chegar ao intento.<br />

- Muita coisa não se <strong>de</strong>ve esquecer – falei – como, por ex<strong>em</strong>plo, um ponto incontestado<br />

e incontestável que é o fato <strong>de</strong> Tomás <strong>de</strong> Aquino ser o mais ilustre discípulo <strong>de</strong> Alberto<br />

Magno. Seria muito difícil e paradoxal querer eximir ao Gran<strong>de</strong> Alberto <strong>de</strong> haver<br />

praticado a Magia e a Alquimia, e seria mais incrível ainda preten<strong>de</strong>r que um mestre do<br />

gabarito <strong>de</strong> Alberto, respeitado por todos, que dá uma importância tão gran<strong>de</strong> à ciência<br />

do mistério, não tivesse ensinado a seu discípulo ao menos umas noções <strong>de</strong>sta mesma<br />

ciência.<br />

- Mas, senhores, - falou Tomás – qual é o verda<strong>de</strong>iro papel da alquimia na nossa época?<br />

Em geral se acredita que é objeto <strong>de</strong> horror, <strong>de</strong> anát<strong>em</strong>a e <strong>de</strong> maldição, <strong>em</strong> mesmo nível<br />

dos malefícios, dos envenenamentos e dos homicídios – Tomás <strong>de</strong> Aquino olhava a todos<br />

com ar professoral e manifestações corporais intensas. Nesse momento a porta se abriu<br />

e Pietro <strong>de</strong> Ferrara entrou, s<strong>em</strong> interromper, vindo para meu lado, dizendo que<br />

Alexandrino estava pior. Tinha <strong>de</strong>lírios e sonambulismos, mas assentou-se para escutar e<br />

fazer o seu papel <strong>de</strong> escriba. Tomás continuava - Nada menos – ele dizia - nada menos<br />

exato. O Tratado da Pedra Filosofal, como cita o comentarista Boaventura Des Periers é<br />

quase um artigo <strong>de</strong> fé <strong>em</strong> nossa era. Somos cont<strong>em</strong>porâneos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s torpezas e<br />

gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>scobertas, senhores.<br />

Coelho De Moraes 53


MARCUS, o imortal<br />

- Não se po<strong>de</strong> citar a todos os autores eclesiásticos que falam <strong>de</strong>sse trabalho com<br />

admiração; content<strong>em</strong>o-nos com recordar a Marbo<strong>de</strong> <strong>em</strong> sua obra De Lapidum ou então<br />

a Jacques <strong>de</strong> Voragine na sua Legenda áurea. Posso citar ainda a Pierre <strong>de</strong> Natalibus no<br />

Catalogus Santorum, que diz, na vida <strong>de</strong> Santa Margarita, que a Pedra po<strong>de</strong> expulsar ao<br />

Maligno. Ou seja, há ações. Há reações. Há uma série <strong>de</strong> aplicações e experimentos já<br />

feitos com a Pedra Filosofal.<br />

- A alquimia – eu interferia novamente – já que se tocou nesse assunto, é entre outras,<br />

uma ciência exata <strong>de</strong> amplo uso <strong>em</strong> nossa época. Ainda que não forme parte entre as<br />

“sete artes”, o seu ensinamento iniciático se dá não menos que a aritmética, a<br />

cosmologia, a física ou a música. Sobre a alquimia há tratados importantes do Mestre<br />

Alberto, como já disse, além <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> Hil<strong>de</strong>gard von Bingen, incluindo a música das<br />

almas e <strong>de</strong> Hucbaldo <strong>de</strong> Saint-Amand, só para citar esses. N<strong>em</strong> se se atribuirá sua<br />

invenção ao d<strong>em</strong>ônio.<br />

Como muita gente passou a falar ao mesmo t<strong>em</strong>po e o barulho ficou<br />

insuportável, Alberto resolveu que naquele dia os <strong>de</strong>bates teriam fim. Havia muito a se<br />

discutir, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os pontos referente à Lua, levantados por Siger <strong>de</strong> Brabant, além da<br />

inesperada intrusão nos campos da alquimia. O assunto brotou espontâneo e o t<strong>em</strong>a<br />

atropelou as datas marcadas. Para finalizar o encontro Alberto disse:<br />

- A ciência que nos conduz ao conhecimento <strong>de</strong>sses fenômenos e ao entendimento <strong>de</strong>les<br />

é a sabedoria por excelência. Isto <strong>de</strong> se falar das fases das sete operações principais da<br />

transmutação se oferece também à meditação sobre obras herméticas quase<br />

<strong>de</strong>sconhecidas.<br />

- Esta frase, gran<strong>de</strong> Alberto, se me permite – diz Cister - me pareceu s<strong>em</strong> sentido...<br />

- Mas saber sobre a Pedra Filosofal é uma das mais elevadas e inspiradas ações que<br />

existe. Portanto, senhores, peço que estud<strong>em</strong> o t<strong>em</strong>a e ach<strong>em</strong> nele o sentido.<br />

Em seguida, Alberto Magnus, <strong>de</strong> pé, elevou prece, com braços abertos, para<br />

espanto <strong>de</strong> vários e citou as seguintes frases:<br />

- Ars Laboriosa Convertens Humiditate Ignea Metalla In Caliditas Humiditas Algor Oculta<br />

Sivitas.<br />

- Cunctipotens Autor Lucis Omnia Regit.<br />

- Author Mundi Omnipotens Rex.<br />

- Iucun<strong>de</strong> Generat Natura Ignea Solis.<br />

- Iu Gehenna Nostrae Ignis Scientiae.<br />

- Aurifica Ego Regina.<br />

- Album Quae Vehit Aurum.<br />

- Trium El<strong>em</strong>entorum Receptaculum Recondo Aurifodinam.<br />

- Separando Venerum Leniter Philosophiis Homogeneam Viscositat<strong>em</strong> Resuscitat.<br />

- Medicinam Ego Rubeam Creo Universal<strong>em</strong> Regiamque In Utero Soli.<br />

- Solus Altiora Laboro.<br />

ALCHIMICHAOS.CALOR.AMOR. IGNIS.<br />

IGNIS.AER.AQVA.TERRA.SVLPHVR.MERCURIUS.SAL<br />

- Estas sentenças darão, <strong>de</strong> alguma maneira, a chave absoluta da Obra que <strong>de</strong>ver<strong>em</strong>os<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar, e acabei <strong>de</strong>sejando que todos os presentes, como o têm feito todos os<br />

estudiosos que chamarei a<strong>de</strong>ptos, tenham o maior êxito <strong>em</strong> suas experiências, se<br />

quiser<strong>em</strong> <strong>de</strong>positar a sua confiança e suas esperanças unicamente <strong>em</strong> Deus.<br />

Alberto Magnus assim finalizou.<br />

OPUS 27<br />

Ao sairmos da reunião Mestre Alberto fez um sinal mostrando que queria<br />

conversar comigo. Era importante e urgente.<br />

Corr<strong>em</strong>os, daí, eu e Pietro, para vermos Alexandrino, mas não o encontramos.<br />

Saímos todos da estalag<strong>em</strong>; a noite cobria os espaços e o véu era espesso.<br />

No retorno, o braço <strong>de</strong> Alberto estava sobre meus ombros e disse-me rapidamente<br />

que Tomás <strong>de</strong>veria dar-me algumas aulas finais sobre a transmutação dos metais e que<br />

isso seria segredo. Os outros estudiosos, pelo que ele vira, não estavam ainda tão aptos<br />

a receber<strong>em</strong> ensinamentos do oculto e t<strong>em</strong>ia que a reunião que ali se realizava pu<strong>de</strong>sse<br />

se dissolver <strong>em</strong> contendas e rixas futuras.<br />

De qualquer forma, eu fiquei à espera <strong>de</strong> Tomás, mas já sabia que nada se daria<br />

enquanto ele não terminasse com suas perorações sobre as escolas antigas, incluindo<br />

Ibn Ruchd e Averróis, para <strong>de</strong>pois a<strong>de</strong>ntrar <strong>em</strong> terrenos do oculto.<br />

Coelho De Moraes 54


MARCUS, o imortal<br />

Eu e Pietro, na mesma noite, saímos para a vila dos ciganos, mas o silêncio ali<br />

imperava, muito fora do normal. Nada obtiv<strong>em</strong>os <strong>de</strong> notícias sobre Alexandrino. Depois<br />

nos <strong>em</strong>brenhamos, com tochas, mata a <strong>de</strong>ntro até umas ruínas on<strong>de</strong> sabíamos que<br />

alguns grupos nôma<strong>de</strong>s se encontravam para dormir e continuar a jornada na manhã.<br />

Das pessoas que se encontravam no local somente uma nos <strong>de</strong>u atenção, mas vimos que<br />

tinha motivações místicas e a conversa foi nessa direção. Mais um avadhuta, um<br />

peregrino pobre e cont<strong>em</strong>plativo.<br />

O avadhuta falou: - A perda <strong>de</strong> um amigo! Quantas coisas nos são dadas e<br />

<strong>de</strong>pois retiradas...<br />

- Alexandrino é um dos aprendizes mais capazes, mas nesses dias ele t<strong>em</strong> suportado<br />

intensa ação do mundo místico... – eu expliquei.<br />

- Uma pessoa aceita toda espécie <strong>de</strong> objetos materiais, ou mesmo almas para cuidar,<br />

<strong>em</strong> carida<strong>de</strong> e, no momento apropriado, quando lhe é solicitada, ela <strong>de</strong>volve os objetos e<br />

as almas s<strong>em</strong> manifestar apego algum. Assim, tanto ao aceitar quanto ao renunciar a<br />

objetos e almas, dos sentidos, é certo, ele não se enreda. Esta é uma lição a ser<br />

aprendida com o Sol. Mesmo quando refletido <strong>em</strong> diversos objetos, o Sol nunca se<br />

divi<strong>de</strong>, n<strong>em</strong> se fun<strong>de</strong> <strong>em</strong> seu reflexo. Apenas aqueles que têm cérebros obtusos<br />

consi<strong>de</strong>rariam o Sol <strong>de</strong>ssa maneira. De forma s<strong>em</strong>elhante, <strong>em</strong>bora a alma se reflita<br />

através <strong>de</strong> diferentes corpos materiais, ela permanece indivisa e não-material. Por isso se<br />

<strong>de</strong>ve ficar atento às experiências e o que ele apren<strong>de</strong>u com diferentes seres vivos e<br />

el<strong>em</strong>entos da natureza material. Jamais <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os entregar-nos a afeição ou preocupação<br />

excessivas com ninguém n<strong>em</strong> coisa alguma, senão passar<strong>em</strong>os a experimentar gran<strong>de</strong><br />

sofrimento, exatamente como aconteceu com certo pombo tolo.<br />

- Acontece, avadhuta, que as relações entre cidadãos oci<strong>de</strong>ntais caminham <strong>em</strong> outra<br />

direção. Em geral tend<strong>em</strong>os a cuidar e ficarmos solidários com os amigos e colegas <strong>de</strong><br />

uma mesma ord<strong>em</strong> – esclareceu Pietro – E me parece que os seus pod<strong>em</strong> passar ao<br />

longe que nada alterará a forma <strong>de</strong> pensamento. N<strong>em</strong> a mínima preocupação?<br />

- Era uma vez um pombo – o avadhuta começou, como se n<strong>em</strong> tivesse prestado atenção<br />

<strong>em</strong> Pietro - que vivia na floresta com uma pomba. Havia construído um ninho <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

uma árvore e ali viveram por vários anos. Os dois pombos eram muitíssimo <strong>de</strong>dicados.<br />

Com os corações atados por afeição sentimental, cada um <strong>de</strong>les atraía o outro com o<br />

olhar, com os movimentos do corpo e com revelações <strong>de</strong> pensamentos íntimos.<br />

Confiando no futuro, eles atuavam como um casal amoroso entre as árvores da floresta,<br />

<strong>de</strong>scansando, conversando, divertindo-se, comendo e tantas outras ativida<strong>de</strong>s. S<strong>em</strong>pre<br />

que <strong>de</strong>sejava algo, a pomba seduzia o pombo com lisonjas e ele, por sua vez, a<br />

satisfazia, fielmente fazendo tudo o que ela queria, mesmo à custa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s<br />

dificulda<strong>de</strong>s pessoais. Dessa forma, ele não conseguia controlar os sentidos na<br />

companhia <strong>de</strong>la. Então vieram os pombinhos. Eles <strong>de</strong>senvolveram muito afeto por seus<br />

filhos e sentiam muito prazer <strong>em</strong> ouvir o som <strong>de</strong> seu arrulho <strong>de</strong>sajeitado. Deste modo,<br />

com amor, eles se puseram a criar os pombinhos recém-nascidos. Ao ver<strong>em</strong> os filhos<br />

assim felizes, os pais também ficavam felizes. Com os corações atados pela afeição<br />

mútua, e completamente confundidas pela energia ilusória <strong>de</strong> Deus, as tolas aves<br />

continuavam a cuidar da jov<strong>em</strong> prole.<br />

O avadhuta fez pequena pausa, olhou para o céu, mediu um árvore, suspirou e<br />

seguiu:<br />

- Certo dia, os dois chefes da família saíram para buscar comida para os filhos. Eles<br />

erraram pela floresta por longo t<strong>em</strong>po. Veio um caçador que levou os pombinhos.<br />

Quando os pombos regressaram, a mãe viu os filhos presos na re<strong>de</strong> do caçador, encheuse<br />

<strong>de</strong> angústia, e, chorando, precipitou-se <strong>em</strong> direção a eles enquanto estes gritavam<br />

chamando-a. Estando presa nas garras da energia ilusória do Senhor, ela esqueceu-se<br />

completamente <strong>de</strong> si mesma e, voando <strong>em</strong> direção a seus filhos <strong>de</strong>samparados, foi<br />

imediatamente presa pela re<strong>de</strong> do caçador. Em seguida, veio o lamento do pombo. Ele se<br />

achava arruinado. Claro que sou um gran<strong>de</strong> tolo e não executei ativida<strong>de</strong>s piedosas<br />

apropriadamente, pensou ele. Não pu<strong>de</strong> me satisfazer nesta vida, n<strong>em</strong> pu<strong>de</strong> satisfazer o<br />

propósito da vida. Minha querida família, que era a base <strong>de</strong> minha religiosida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>senvolvimento econômico e gozo dos sentidos agora está <strong>de</strong>samparadamente<br />

arruinada. Eu e minha esposa formávamos um casal i<strong>de</strong>al. Agora sou uma pessoa<br />

<strong>de</strong>sgraçada vivendo num lar vazio. Minha esposa irá morrer, meus filhos também serão<br />

mortos ! Por que <strong>de</strong>veria eu objetivamente querer viver ? Sinto tanta dor no coração por<br />

Coelho De Moraes 55


MARCUS, o imortal<br />

ter <strong>de</strong> me separar da família que a própria vida passou a ser mera dor para mim. Viu<br />

seus pobres filhos presos na re<strong>de</strong> e à beira da morte.<br />

Vendo-os a lutar pateticamente para se libertar, sua mente <strong>de</strong>sorientou-se e, ao<br />

observá-los <strong>em</strong> <strong>de</strong>sespero, ele próprio caiu na re<strong>de</strong> do caçador. O caçador, tendo assim<br />

capturado o pombo, a pomba e a ninhada, satisfez seu <strong>de</strong>sejo e partiu para sua casa.<br />

Ante nosso olhar atento o avadhuta concluiu: - As portas da liberação estão<br />

inteiramente abertas para qu<strong>em</strong> alcançou a vida humana. Apesar <strong>de</strong> tal oportunida<strong>de</strong>, se<br />

um ser humano simplesmente consagra seu t<strong>em</strong>po à vida familiar, ou a vida entre<br />

amigos, ou a vida <strong>em</strong> grupos e socieda<strong>de</strong>s, como a tola ave <strong>de</strong>sta história, então ele<br />

<strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado como alguém que sobe até um lugar b<strong>em</strong> alto apenas para<br />

tropeçar e cair. Tal é a história <strong>de</strong> seu amigo. Tal me parece a história <strong>de</strong> vocês, se não<br />

tomar<strong>em</strong> atenção e se advertir<strong>em</strong> dos perigos a que estão expostos.<br />

Eu e Pietro <strong>de</strong> Ferrara olhamos um para o outro.<br />

É inevitável que o ser vivo experimente misérias s<strong>em</strong> as ter <strong>de</strong>sejado, pensei.<br />

Tanto o avadhuta quanto Alexandrino po<strong>de</strong>riam passar por momentos <strong>de</strong>sse tipo...<br />

momentos <strong>de</strong> duração muito variável... N<strong>em</strong> se po<strong>de</strong> provar que o avadhuta não<br />

estivesse se escon<strong>de</strong>ndo por <strong>de</strong> trás daquela teoria toda, retirando <strong>de</strong> si as<br />

responsabilida<strong>de</strong>s da solidarieda<strong>de</strong> como Pietro já dissera. Do mesmo modo, eles<br />

po<strong>de</strong>rão experimentar felicida<strong>de</strong> mesmo que a não busque. Caindo, por assim dizer, do<br />

céu, sobre suas cabeças absortas. Assim, uma pessoa <strong>de</strong> discriminação inteligente não<br />

faz esforço algum para obter a felicida<strong>de</strong> material. Tolos pod<strong>em</strong> ir para o céu. Padres<br />

pod<strong>em</strong> ir para o céu... seja lá o que isso signifique.<br />

Na caminhada <strong>de</strong> volta, provavelmente uma píton fugira do acampamento on<strong>de</strong><br />

o hindu avadhuta se encontrava, nas cavernas, por assim dizer. E ela estava à nossa<br />

frente. A esperança é que tal cobra tenha sido alimentada periodicamente e esteja no<br />

seu processo <strong>de</strong> domesticação.<br />

- Se observarmos o que o avadhuta falou talvez <strong>de</strong>vêss<strong>em</strong>os seguir os esforços <strong>de</strong>ssa<br />

cobra e abandonar os esforços materiais e aceitarmos nos manter com o alimento que a<br />

providência proporcione, quer este alimento seja <strong>de</strong>licioso ou insípido, quer muito, quer<br />

pouco...<br />

- Quer sejam professores <strong>de</strong> filosofia perdidos na floresta ou representantes <strong>de</strong> qualquer<br />

seita oculta... – falei mais por brinca<strong>de</strong>ira.<br />

- É – Pietro se resumiu a <strong>em</strong>itir, mas continuou, olhando para a píton - Se <strong>em</strong> dado<br />

momento não conseguirmos saber mais sobre Alexandrino, resta que nos mantenhamos<br />

<strong>em</strong> termos pacíficos, com muita paciência. Pacíficos e materialmente inativos, mantendo<br />

o corpo material s<strong>em</strong> fazer muito esforço, <strong>em</strong> compasso <strong>de</strong> espera, enfim, foi ele qu<strong>em</strong><br />

saiu <strong>de</strong> on<strong>de</strong> estava....<br />

- E se foi carregado contra a própria vonta<strong>de</strong>? – perguntei.<br />

- Olha a píton escorregando pela pedra, <strong>em</strong> movimento movediço e lento. Mesmo que<br />

goze <strong>de</strong> plenas forças, não <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os ativar nossa ansieda<strong>de</strong> e angústia, mas <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os<br />

permanecer s<strong>em</strong>pre atentos aos verda<strong>de</strong>iros interesses da pessoa. Talvez Alexandrino<br />

estivesse farto <strong>de</strong> nós e da comunida<strong>de</strong>...<br />

- Talvez ele estivesse s<strong>em</strong> po<strong>de</strong>res para <strong>de</strong>cidir... Já que o havíamos <strong>de</strong>ixado doente.<br />

- Concordo – Pietro disse – Esper<strong>em</strong>os então que o Senhor o esteja protegendo sob<br />

todos os aspectos. O ex<strong>em</strong>plo da píton é dado para que aprendamos a não <strong>de</strong>sperdiçar<br />

nosso t<strong>em</strong>po inutilmente.<br />

- Contudo – eu falei, enquanto tomávamos a estrada novamente, já que a cobra saiu <strong>de</strong><br />

nossa frente, <strong>em</strong>brenhando-se na mata - não <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os enten<strong>de</strong>r erroneamente que o<br />

objetivo da vida é ficar <strong>de</strong>itado no chão como a píton, ou fazer um espetáculo <strong>de</strong><br />

autoflagelação. A mera renúncia é uma fase imatura <strong>de</strong> compreensão espiritual, por isso<br />

não acredito que o avadhuta vá muito longe com sua teoria, principalmente quando<br />

perceber que a cobra sumiu e ele não t<strong>em</strong> mais espetáculo para fazer no burgo... pelo<br />

menos não com ela.<br />

- Certo. Assim, o ex<strong>em</strong>plo da píton não <strong>de</strong>ve nos estimular a nos tornarmos totalmente<br />

inativos, mas sim a nos tornarmos ativos espiritualmente, e consequent<strong>em</strong>ente inativos<br />

no que diz respeito ao gozo material dos sentidos.<br />

- Apenas para po<strong>de</strong>rmos, naquele momento, pensarmos melhor e tomar a melhor<br />

atitu<strong>de</strong>. Nada mais do que isso – completei.<br />

Coelho De Moraes 56


MARCUS, o imortal<br />

Alexandrino não reapareceu n<strong>em</strong> ao longo da manhã, n<strong>em</strong> durante a tar<strong>de</strong> e<br />

quando a noite caiu Tomás já estava terminando sua peroração sobre as escolas e<br />

métodos <strong>de</strong> trabalho e estudo.<br />

- É por meio dos filósofos árabes que muito do aristotelismo chega ao pensamento do<br />

Oci<strong>de</strong>nte – ele dizia. – Mas, isso não quer dizer que <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os engolir toda a tradução ou<br />

comentário.<br />

- Além disso, as realizações cientificas e técnicas do Islä – mat<strong>em</strong>ática, astronomia,<br />

medicina ou engenharia – já prenunciam os estudos sobre superiores – disse Roger<br />

Bacon, bebericando uma chávena <strong>de</strong> chá. Tomás continuou, agra<strong>de</strong>cendo a contra-gosto<br />

a intromissão do amigo.<br />

- No Oci<strong>de</strong>nte cristão, a acumulação gradativa <strong>de</strong> cópias, traduções e comentários <strong>de</strong><br />

textos antigos criou bases para a formação <strong>de</strong> um pensamento original, é o que percebo.<br />

- Uma nova escola <strong>de</strong> pensamento? – perguntou Pietro.<br />

- Sim. Isso será inevitável. Ganha corpo essa nova escola, e <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os, sobretudo,<br />

fomentá-la nas universida<strong>de</strong>s, s<strong>em</strong> medo, fornecendo t<strong>em</strong>as e pesquisando toda o tipo<br />

<strong>de</strong> fenômeno, trazendo luz aos homens e aos povos.<br />

- O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ssa nova escola, como o egrégio professor nos ensina – falava o<br />

monge <strong>de</strong> Cister - está se valendo, além da Igreja e a sua imposição, da unificação da<br />

fé crista, do <strong>em</strong>prego do latim, que é a língua universal... e isso é correto?<br />

- Eu acredito que sim – respon<strong>de</strong>u Tomás - <strong>em</strong>bora ainda ache restrito o campo <strong>de</strong> ação<br />

<strong>de</strong>ssa nova escola, pois ela alcança pequenos círculos <strong>de</strong> letrados, como nós...<br />

- Sei que Tomás <strong>de</strong>seja que a luz alcance com mais abrangência e eficácia as pessoas...<br />

porventura, as mais diversas regiões do mundo cristão <strong>de</strong>v<strong>em</strong> passar a se comunicar com<br />

rapi<strong>de</strong>z e consciência <strong>de</strong> sua fé, e um representante <strong>de</strong>sse intercâmbio foi, com certeza,<br />

o monge da Bretanha, chamado Alcuíno.<br />

- Sim, mestre Alberto, Alcuíno <strong>de</strong> York, chegou à França a chamado do rei Carlos Magno.<br />

Tinha a missão <strong>de</strong> organizar o sist<strong>em</strong>a educacional do Império. Para isso, ele funda<br />

escolas – s<strong>em</strong>pre ligadas às instituições católicas unificando, para tanto, o conteúdo do<br />

ensino, que compreendia, à maneira romana, as sete artes liberais, isto é, dignas <strong>de</strong> um<br />

hom<strong>em</strong> livre, e aí estava um perigo terrível, motivo <strong>de</strong> amplas perseguições e injúrias:<br />

gramática, retórica e dialética.<br />

- Ou seja – interrompi – aquilo que chamamos <strong>de</strong> trivium...<br />

- Exato, além <strong>de</strong> geometria, aritmética, astronomia e música, ou seja, o quadrivium.<br />

Nenhuma <strong>de</strong>ssas artes, porém, justificava-se por si mesma: elas estavam a serviço da<br />

ciência das ciências, isto é, a teologia, mesmo que Mestre Alberto venha a discordar <strong>de</strong><br />

mim.<br />

- A minha discordância acompanha apenas a linha <strong>de</strong> ação <strong>de</strong> certas personagens <strong>de</strong>ssa<br />

nossa história, <strong>em</strong> função <strong>de</strong> suas raízes e seus pensamentos... por ex<strong>em</strong>plo John Scott...<br />

Na fase <strong>em</strong> que essas escolas lançam suas bases institucionais, a teologia, seguindo o<br />

pensamento <strong>de</strong> Agostinho, é bastante marcada pelo platonismo. João Escotus Erigena é<br />

o principal representante <strong>de</strong>ssa tendência teológica, não negar<strong>em</strong>os isso, e marca<br />

evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente os pontos <strong>em</strong> que me apoio para essa discordância.<br />

Nesse momento, o estalaja<strong>de</strong>iro pediu sua licença e foi aceito alegr<strong>em</strong>ente no<br />

aposento. Trazia mais chávenas com boa hortelã e outras ervas condimentadas,<br />

revitalizando nosso ânimo para a longa noite <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates. Algumas peças <strong>de</strong> porcelana<br />

grosseira passaram <strong>de</strong> mão <strong>em</strong> mão e durante alguns segundos quinze <strong>de</strong>batedores <strong>de</strong><br />

vários lugares passaram a beber e a meditar, silenciosos.<br />

- B<strong>em</strong>, senhores – retomava o senhor <strong>de</strong> Roccasecca – para John Scott b<strong>em</strong> como para<br />

Agostinho, a teologia expressa-se melhor por negações, ou seja, por aquilo que Deus não<br />

é.<br />

- Isso, no entanto, não impe<strong>de</strong> – <strong>de</strong>seja esclarecer D’Espangner, com muito sotaque e<br />

uma certa gagueira nervosa na fala, <strong>de</strong>ixando transparecer uma solenida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inil e<br />

trejeitos <strong>de</strong>licados – a ele, o nosso excelente John, <strong>em</strong> sua obra Da Divisão da<br />

Natureza, <strong>de</strong> <strong>de</strong>duzir logicamente uma Ciência implicada na hierarquia dos seres, ou<br />

"naturezas", como as <strong>de</strong>nomina.<br />

- Concordo. Por isso <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os expor essas idéias e conseguirmos uma linha para nossos<br />

pensamento atuais : primeiro, ele supõe a natureza que cria e não é criada. Deus como<br />

Princípio; <strong>de</strong>pois, a que é criada e que cria; o Verbo, correspon<strong>de</strong>nte às Idéias <strong>de</strong> Platão;<br />

<strong>em</strong> seguida, a que é criada e que não cria o mundo sensível; e, por fim, a que não cria e<br />

não é criada, ou seja, Deus, consi<strong>de</strong>rado finalida<strong>de</strong> última.<br />

Coelho De Moraes 57


MARCUS, o imortal<br />

- O princípio e o fim estão, assim, interligados por uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> seres, que começa <strong>em</strong><br />

Deus e nele termina – explicou Alberto Magnus - Tal sucessão seria a história, cuja<br />

finalida<strong>de</strong>, através dos t<strong>em</strong>pos, é a <strong>de</strong> ser reabsorvida pelo princípio que a iniciou: Deus.<br />

Os homens se moveram <strong>em</strong> suas ca<strong>de</strong>iras, alguns anotaram dados, outros<br />

permaneciam atentos, um e outro d<strong>em</strong>onstrava incredulida<strong>de</strong>.<br />

- A preocupação com as palavras é enorme para mim – dizia Monsieur <strong>de</strong> Vermont. Se a<br />

verda<strong>de</strong> está contida na Bíblia, é preciso saber lê-la, distinguindo o que po<strong>de</strong> ser<br />

entendido no sentido literal do que é apenas simbólico.<br />

- No entanto, nesse caso, não pod<strong>em</strong>os <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado o que os ju<strong>de</strong>us nos reservam <strong>em</strong><br />

termos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ação e interpretação do símbolo, através da Kabalah – concluiu Alberto e<br />

houve certo rumor na sala.<br />

- Por isso, a nova escola se apresenta primeiro como estudo da linguag<strong>em</strong>, <strong>de</strong> que trata<br />

o trivium, para <strong>de</strong>pois examinar a realida<strong>de</strong> das coisas, o quadrivium. Quatro é o número<br />

do sólido e da terra, e das coisas materiais.<br />

- Entre as palavras e as coisas, no entanto, que relação po<strong>de</strong> haver? - perguntou <strong>de</strong><br />

Cister.<br />

- Veja b<strong>em</strong> – exortou Tomás <strong>de</strong> Aquino - A rosa, símbolo <strong>de</strong> perfeição, é também um<br />

nome que sobrevive à morte da própria flor; a palavra fala até <strong>de</strong> coisas inexistentes.<br />

Qual, então, a relação entre o nome e a coisa, a linguag<strong>em</strong> e a realida<strong>de</strong>?<br />

- Mas isso é um verda<strong>de</strong>iro probl<strong>em</strong>a – exclamou <strong>de</strong> Cister.<br />

- Uma questão que irrompe nos corolários do universal – disse Pietro, secundado por frei<br />

Otto da abadia <strong>de</strong> Munz.<br />

- Isso ultrapassa os níveis da gramática e da lógica...<br />

- Sim, torna-se t<strong>em</strong>a da metafísica e da teologia – completou Tomás. - Essa questão t<strong>em</strong><br />

orig<strong>em</strong> numa tradução latina <strong>de</strong> Isagoge, obra <strong>de</strong> Porfirio, <strong>em</strong> que esse discípulo <strong>de</strong><br />

Plotino comenta a lógica <strong>de</strong> Aristóteles. Citarei o que Porfírio diz: "Não tentarei enunciar<br />

se os gêneros e as espécies exist<strong>em</strong> por si mesmos ou na pura inteligência, n<strong>em</strong>, no<br />

caso <strong>de</strong> subsistir<strong>em</strong>, se são corpóreos ou incorpóreos, n<strong>em</strong> se exist<strong>em</strong> separados dos<br />

objetos sensíveis ou nestes objetos, formando parte dos mesmos."<br />

- Diante disso, eu quero dizer – asseverou Alberto Magnus – que t<strong>em</strong>os a obrigação<br />

moral <strong>de</strong> escolher entre duas posições básicas, cada uma comportando uma série <strong>de</strong><br />

variantes, como é fácil aquilatar. Mas essa é a questão: Seguirmos o nominalismo,<br />

<strong>de</strong>fendido por Roscelin <strong>de</strong> Compiegne que consi<strong>de</strong>ra os universais meras palavras s<strong>em</strong><br />

existência real, ou não.<br />

- Universais? – perguntei, e Alberto explicou.<br />

- Universais são termos que <strong>de</strong>signam idéias gerais como "hom<strong>em</strong>" e "animal". Eles não<br />

passariam <strong>de</strong> resultantes da abstração que o intelecto faz a partir da percepção <strong>de</strong> coisas<br />

individuais: ... este hom<strong>em</strong>... este animal.<br />

- E qual a outra senda a se trilhar? – perguntou Pietro.<br />

- A isso se opõe o realismo, que sustenta a existência efetiva dos universais. Essa<br />

existência po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada, à maneira <strong>de</strong> Platão, como anterior e separada <strong>em</strong><br />

relação às coisas, ou então, como presente nas coisas e <strong>de</strong>las inseparável, <strong>de</strong> modo<br />

s<strong>em</strong>elhante à noção aristotélica <strong>de</strong> forma. Mas como pod<strong>em</strong> ver, qualquer caminho que<br />

se siga há mil variantes e <strong>de</strong>scaminhos para ser<strong>em</strong> observados e examinados antes <strong>de</strong><br />

tomarmos uma posição unificada e consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong>finitiva.<br />

- Qual a sua tendência, mestre Alberto – perguntou <strong>de</strong> Cister.<br />

- Estou me i<strong>de</strong>ntificando com a teoria realista, agora muito mais, após estudos<br />

meticulosos das obras <strong>de</strong> Abelardo e Anselmo. São aulas esclarecedoras, mas tudo isso<br />

ainda é apenas minha opinião. Digo que estou <strong>em</strong> fase <strong>de</strong> formar uma opinião. Quero<br />

apren<strong>de</strong>r mais.<br />

- Tomás po<strong>de</strong> abrir esse leque <strong>de</strong> opções falando-nos sobre os dois? – perguntei.<br />

Tomás coçou o pescoço, escolheu anotações, passou os <strong>de</strong>dos longos sobre o<br />

papel e disse: - B<strong>em</strong>, o realismo <strong>de</strong> Anselmo concentra-se na d<strong>em</strong>onstração racional da<br />

existência <strong>de</strong> Deus: a palavra "Deus" indicaria um ser perfeito, o maior <strong>de</strong> todos; mas, se<br />

Deus não existisse, seria preciso supor algo que fosse ainda maior e que tivesse<br />

existência real, pois existir é uma condição <strong>de</strong> perfeição. Então a palavra "Deus" só po<strong>de</strong><br />

indicar um ser realmente existente. Se, <strong>de</strong>sse modo, Anselmo d<strong>em</strong>onstra logicamente a<br />

existência <strong>de</strong> Deus, isso não significa que para ele a razão se sobreponha à fé. Antes, ao<br />

contrário, é porque a fé fornece a verda<strong>de</strong> divina, que torna possível o uso s<strong>em</strong> equívoco<br />

da razão.<br />

Coelho De Moraes 58


MARCUS, o imortal<br />

- Um bom argumento, s<strong>em</strong> dúvida – opinou Monsieur <strong>de</strong> Vermont.<br />

- Uma solução intermediária é sustentada por Pedro Abelardo. Para ele, os universais –<br />

dizia Alberto, pondo-se <strong>em</strong> pé para captar um pouco <strong>de</strong> água do cântaro <strong>de</strong> barro – os<br />

universais só exist<strong>em</strong> no intelecto, mas, ao mesmo t<strong>em</strong>po, mantêm relação com as<br />

coisas particulares na medida <strong>em</strong> que lhes dão significado. Desse modo, é como<br />

significado que os universais subsist<strong>em</strong> às coisas. Abelardo tece tais consi<strong>de</strong>rações, que<br />

<strong>de</strong>ram uma nova direção às investigações lógicas, s<strong>em</strong> as vincular às questões<br />

teológicas. Por outro lado, porém, forneceu para a teologia um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> argumentação<br />

que marcou muito a todos. Um método que confronta duas opiniões contraditórias a<br />

respeito <strong>de</strong> cada questão, para, <strong>de</strong>sse confronto, extrair uma solução satisfatória.<br />

Novamente as anotações foram executadas com uma ou outra dúvida sendo<br />

corrigida. Cister, Vermont e Otto entraram, porém no t<strong>em</strong>a do islamismo e passaram a<br />

sugerir que Tomás se posicionasse. Parecia que construíam uma equipe à parte.<br />

Para Tomás estava claro que, aos povos árabes, o Islã, palavra que significa<br />

"submissão à vonta<strong>de</strong> divina" é muito mais do que uma simples religião.<br />

- É o que lhes dá i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural e o que, durante muito t<strong>em</strong>po, lhes proporcionou<br />

unida<strong>de</strong> política, portanto não é matéria a se <strong>de</strong>dicar s<strong>em</strong> atenção especial. Em torno do<br />

Islã, quero acreditar, gira a história das religiões, é preciso compreen<strong>de</strong>r. Segundo o<br />

Corão, que todos aqui conhec<strong>em</strong>os, livro sagrado do islamismo, a orig<strong>em</strong> do Islã está na<br />

missão que Mohammed teria recebido do anjo Gabriel... o mesmo anjo guardião do<br />

Jardim do É<strong>de</strong>n... o mesmo anjo que expulsou o casal do paraíso... o mesmo anjo<br />

mensageiro do nascimento <strong>de</strong> Emmanuel.<br />

- Ou seja, manifestação através da espiritualida<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> contestação <strong>de</strong> parte alguma –<br />

disse Alberto.<br />

- Mohammed tinha a missão <strong>de</strong> propagar a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Alá, o único Deus verda<strong>de</strong>iro e<br />

criador <strong>de</strong> todas as coisas. A partir daí, Maomé assume a condição <strong>de</strong> Profeta e inicia<br />

sua pregação, que também é uma campanha política, mas pod<strong>em</strong>os ver um s<strong>em</strong> número<br />

<strong>de</strong> similarida<strong>de</strong>s com os hebreus, seus primos e mesmo o messianismo cristão – disse <strong>de</strong><br />

Brabant.<br />

- Essa frase me soa herética, senhor <strong>de</strong> Brabant – foi a opinião <strong>de</strong> Otto. De Brabant<br />

olhou para ele e <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros.<br />

– Mas t<strong>em</strong> coisa pior, se é que você <strong>de</strong>seja saber. O po<strong>de</strong>r militar, por ex<strong>em</strong>plo: <strong>em</strong><br />

torno da fé ele unifica as tribos e os clãs <strong>em</strong> que se dividiam os árabes. Sofre<br />

perseguições que o obrigam a exilar-se, a chamada Hégira, mas contra-ataca,<br />

subjugando aqueles que não aceitam o Islã – Siger sorriu. – Já pensou, Otto, se tivermos<br />

que impor nossas idéias na base da catapulta e do laço? Aí iríamos para Roma, da<br />

mesma forma que Mohammed se instalou <strong>em</strong> Medina e, <strong>de</strong>pois, Meca?<br />

- O fato é que os califas que se seguiram, os profetas, levaram adiante essa obra,<br />

construindo um vasto império que, no século X, já abrangia a Espanha e o norte da<br />

África, esten<strong>de</strong>ndo-se, a leste, até a região do rio Indo – disse eu, no intuito <strong>de</strong> ampliar<br />

as informações sobre aquela gente moura. E continuei: - Essa expansão, no entanto,<br />

não se fez s<strong>em</strong> divergências internas. Dentro do islamismo surgiram seitas dissi<strong>de</strong>ntes,<br />

como a dos xiitas. Além disso, rivalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> todo tipo provocaram o surgimento <strong>de</strong><br />

vários Estados árabes in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Apesar <strong>de</strong> motivados à conquista pelo i<strong>de</strong>al do<br />

jihad, a guerra santa, os muçulmanos, como são chamados aqueles que praticam o<br />

Islãmismo, foram tolerantes com os povos que dominaram. Admitiram outras religiões,<br />

com exceção das que cultuavam ídolos, e se abriram para variadas culturas,<br />

principalmente do pensamento grego e helenístico. Isso significou traduzir para o árabe<br />

diversas obras escritas <strong>em</strong> grego e siríaco: obras <strong>de</strong> filosofia, mat<strong>em</strong>ática e medicina.<br />

Logo passaram a re-elaborar o conteúdo <strong>de</strong>ssas obras e a realizar suas investigações. Da<br />

mesma forma que nós.<br />

- E o Islã trouxe superações – disse Tomás.<br />

- O que o senhor <strong>de</strong>seja dizer é que há neles um pensamento superior? – perguntou <strong>de</strong><br />

Cister, <strong>de</strong>ixando transparecer certa ponta <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto e azedume – Devo l<strong>em</strong>brar que<br />

somos todos cristãos... espero...<br />

- Eu não disse isso, mas pod<strong>em</strong>os dar atenção ao que se segue. Na mat<strong>em</strong>ática, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, a limitação dos gregos – que só conheciam a geometria – foi superada pelo<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da álgebra, <strong>de</strong>senvolvida por Al-Kharezme. Foi também por seu<br />

intermédio que o Oci<strong>de</strong>nte conheceu os algarismos arábicos. Além disso, aos árabes se<br />

<strong>de</strong>ve o <strong>de</strong>senvolvimento da trigonometria, a noção <strong>de</strong> algoritmo, a invenção do número<br />

Coelho De Moraes 59


MARCUS, o imortal<br />

zero e muitas outras realizações.<br />

- Física, astronomia, química, palavra que t<strong>em</strong> a mesma raiz árabe do termo alquimia,<br />

medicina, biologia, geografia, geologia, história: não houve área do conhecimento que<br />

os árabes não tivess<strong>em</strong> investigado, antecipando muitas das <strong>de</strong>scobertas que o Oci<strong>de</strong>nte<br />

reivindica como suas.<br />

- A busca do saber, da ciência, é obrigação <strong>de</strong> todo muçulmano, hom<strong>em</strong> ou mulher, são<br />

as sábias palavras do Profeta Mahommed – disse Siger, olhando para Otto e <strong>de</strong> Cister,<br />

como que afrontando aos dois – o Profeta <strong>de</strong>ixa claro que o <strong>de</strong>senvolvimento do<br />

conhecimento por meios racionais aproxima o hom<strong>em</strong> da sabedoria divina, acaba<br />

incentivando a explosão científica e isso acontece no Islã até os dias <strong>de</strong> hoje... não é à<br />

toa que as Cruzadas estão se materializando e se armando brutalmente há <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong><br />

anos... não somente por causa do Santo Sepulcro ou por causa da Cida<strong>de</strong> Santa...<br />

- Os jogos políticos e da guerra santa estarão s<strong>em</strong>pre presentes – disse Alberto – O fato<br />

é que os sábios muçulmanos encontram no pensamento <strong>de</strong> Aristóteles um instrumento<br />

po<strong>de</strong>roso. Mas a difusão do aristotelismo no mundo islâmico faz-se <strong>de</strong> modo curioso. Os<br />

árabes traduz<strong>em</strong> o conjunto do Corpus Aristotelicum e a este agregam, como se fosse do<br />

mesmo autor, parte <strong>de</strong> Enéadas <strong>de</strong> Plotino, b<strong>em</strong> como textos do neoplatônico Proclo. Por<br />

isso, elaboram uma concepção que mescla o aristotelismo e o neoplatonismo, <strong>em</strong> que o<br />

Uno concebido por Plotino é i<strong>de</strong>ntificado, não s<strong>em</strong> probl<strong>em</strong>as, a Alá. Resta então<br />

investigar a relação entre a Inteligência, ou seja, <strong>de</strong> um lado, e as coisas e o hom<strong>em</strong>, <strong>de</strong><br />

outro.<br />

- Nessa questão – Tomás abria os braços como se abarcasse o céu imenso e todas as<br />

gentes - o aristotelismo fornece a chave. Al-Kindi, do século IX, formula esse probl<strong>em</strong>a:<br />

“como o intelecto humano po<strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r a essência das coisas, se pelos sentidos só é<br />

possível conhecer que elas exist<strong>em</strong>?” A solução encontra-se na Inteligência... que<br />

transceda o intelecto humano e que tenha o conhecimento das essências. É ela que<br />

torna possível o conhecimento, fornecendo ao intelecto humano as essências, ou formas,<br />

e fazendo-o passar da potência ao ato. Ação, movimento... drama. O que sab<strong>em</strong>os é que<br />

Al-Farabi retoma a questão da inteligência. Para ele, há uma hierarquia <strong>de</strong> várias<br />

Inteligências agentes: a primeira <strong>em</strong>ana <strong>de</strong> Deus, a segunda, da primeira, e assim<br />

sucessivamente. A última situa-se na esfera lunar...<br />

- E é aí que retomar<strong>em</strong>os o nosso assunto da Lua, caros amigos... – sorriu<br />

<strong>de</strong>sveladamente o filósofo-cavaleiro <strong>de</strong> Brabant - ... e <strong>de</strong>la prov<strong>em</strong> as formas que tornam<br />

as coisas inteligíveis ao intelecto humano e que lhes dão existência.<br />

- Mas, se a Inteligência agente leva as coisas a ser o que são, fazendo-as passar da<br />

potência ao ato, elas pod<strong>em</strong> adquirir ou per<strong>de</strong>r a existência? – perguntou Monsieur <strong>de</strong><br />

Vermont - Esta não será necessária às coisas, isto é, não faz parte da sua essência... me<br />

parece que ela é apenas contingente.<br />

- Exato! – exclamou Tomás <strong>de</strong> Aquino - Por isso, a existência das coisas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

causa, aquela <strong>em</strong> que a essência e a existência coincidam: Deus. E isso <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os aos<br />

árabes.<br />

- Todos esses t<strong>em</strong>as estão... – eu interferia na pausa que se fez -...estão presentes no<br />

pensamento <strong>de</strong> Ibn Sina, o nosso conhecido Avicena – Vi que Pietro <strong>de</strong> Ferrara,<br />

rapidamente completava toda informação <strong>em</strong> seus escritos: - Ibn Sina, nascido nas<br />

proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Bukhara, e morto perto <strong>de</strong> Hamada.<br />

- O hom<strong>em</strong> foi um sábio dos maiores... analisou uma série <strong>de</strong> doenças, formulou a<br />

hipótese <strong>de</strong> que certas moléstias eram causadas por pequenos organismos presentes na<br />

água e na atmosfera...<br />

- Isso é heresia, meu amigo – quis afirmar o monge <strong>de</strong> Cister. Mas Tomás não ligou para<br />

aquela interrupção.<br />

- Sua obra Canon é leitura obrigatória <strong>em</strong> qualquer ensino <strong>de</strong> medicina na Europa por<br />

muitos séculos.<br />

- Não me preocuparei <strong>em</strong> ler os inimigos...<br />

- É por isso que a mentalida<strong>de</strong> da época é tacanha. Nós damos passos para trás, <strong>em</strong> vez<br />

<strong>de</strong> galgarmos <strong>de</strong>graus que já foram construídos – Tomás elevou a voz.<br />

- A única coisa que agora ouço é uma <strong>de</strong>fesa dos orientais sobre a nossa civilização e<br />

isso é inadmissível. – disse <strong>de</strong> Cister – A nossa inteligência não po<strong>de</strong> ser formada por<br />

pessoas <strong>de</strong> baixo nível e <strong>de</strong> clara raiz d<strong>em</strong>oníaca.<br />

- O senhor está se exce<strong>de</strong>ndo – falou Alberto – Todos aqui partimos do princípio <strong>de</strong> que<br />

não se <strong>de</strong>ve fechar os olhos para o conhecimento alheio, além do mais, está provado<br />

Coelho De Moraes 60


MARCUS, o imortal<br />

que, se não foss<strong>em</strong> esses árabes, o que sab<strong>em</strong>os seria muito pouco.<br />

De Cister pareceu aquietar-se. Passou a mão pela testa e tirou gotas pesadas <strong>de</strong><br />

suor.<br />

- Avicena abarcava todas as áreas do conhecimento. Não pod<strong>em</strong>os <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar <strong>de</strong> suas<br />

afirmações. N<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> estudá-las. E a sua filosofia está aí para acen<strong>de</strong>r luzes.<br />

Avicena, como Al-Farabi, concebe uma série hierarquizada <strong>de</strong> Inteligências agentes, das<br />

quais a última dá a forma à matéria, fazendo com que as coisas sejam o que são; ao<br />

intelecto humano tornam possível o conhecimento. Avicena concorda com Al-Farabi<br />

quanto à distinção entre a essência e a existência, mas acrescenta a essa questão<br />

algumas precisões: para ele há o ser necessário, isto é, aquele que por sua essência não<br />

po<strong>de</strong> não existir.<br />

- Explique melhor, Tomás.<br />

- Nele, a existência e a essência são idênticas – Tomás esperou que Pietro escrevesse,<br />

pacient<strong>em</strong>ente - Há, <strong>em</strong> segundo lugar, o ser possível, que se <strong>de</strong>sdobra <strong>em</strong> dois: o ser<br />

possível por essência é aquele que não po<strong>de</strong> não existir porque a existência lhe é<br />

causada, enquanto o ser puramente possível é o que po<strong>de</strong> vir a existir, contanto que a<br />

existência lhe seja causada. Na linguag<strong>em</strong> aristotélica, o ser necessário é o ato puro; o<br />

ser possível necessário é a potência que se torna ato, mediante uma causa; e o ser<br />

puramente possível, apenas potência. Dai se conclui que o ser necessário é o único que<br />

existe por si, s<strong>em</strong> nenhuma causa, sendo ele próprio a causa <strong>de</strong> tudo o que existe: é<br />

Deus, o único e eterno criador.<br />

E com tais palavras os estudos daquela noite tiveram fim.<br />

OPUS 28<br />

Tomamos nossa sopa na varanda da estalag<strong>em</strong>. LaCordaire, já refeito por um sono<br />

prolongado, compareceu. Estava quente o t<strong>em</strong>po. Estava quente a sopa.<br />

Nisso Alexandrino surge na estrada. Maltrapilho e <strong>em</strong> febre, rindo e gritava alvoroçado: -<br />

Eu quero ser um sábio... um sábio alegre e amável... pelo menos na aparência... não<br />

quero ser grave e pensativo... como os professores – e cuspiu para as janelas da<br />

estalag<strong>em</strong>.<br />

- Calma, Alexandrino, vamos entrar – instou LaCordaire.<br />

- Não quero entrar, coisa alguma... De fato, eu sou como... como o oceano...<br />

insondável... insuperável – Pietro tentou tomar um <strong>de</strong> seus braços mas foi jogado ao<br />

chão – Sou transcen<strong>de</strong>ntal... não posso ser medido... limitado... nunca me perturbo...<br />

nunca! Nunca!... sou como as águas tranqüilas do gran<strong>de</strong> oceano – e Alexandrino<br />

tropeçou, <strong>de</strong>sabando sobre a areia da entrada da estalag<strong>em</strong>.<br />

- Encontrei qu<strong>em</strong> pu<strong>de</strong>sse me oferecer indulgências – ele continuava s<strong>em</strong> que<br />

pudéss<strong>em</strong>os interferir - indulgência sexual para assim per<strong>de</strong>r a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

compreen<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong> espiritual que está além da matéria... não quero saber <strong>de</strong><br />

realida<strong>de</strong> espiritual alguma... quero o gozo... agora...o mais do que suficiente... comida<br />

suficiente para manter-me vivo.<br />

- Alexandrino, on<strong>de</strong> você esteve...? – perguntou LaCordaire<br />

- As mulheres da Lua...<br />

- Explica melhor – Pietro pediu.<br />

- O hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>ve ir <strong>de</strong> porta <strong>em</strong> porta, aceitando apenas um pouco <strong>de</strong> cada visita.... a<br />

ocupação da abelha... tirar o néctar das flores gran<strong>de</strong>s e pequenas... como a abelha a<br />

extrair a essência ou o néctar... aquilo que fluiu das pernas da mulher... a abelha não<br />

per<strong>de</strong> t<strong>em</strong>po tentando levar um arbusto inteiro ou um jardim... essa é a diferença entre<br />

a abelha e o asno – e Alexandrino começou a rir s<strong>em</strong> parar. Gargalhadas que duravam<br />

minutos – o asno... burro!... que carrega carga – <strong>de</strong> repente ele nos olha, mas parecia<br />

transfigurado tanto pela noite quanto pelas lâmpadas <strong>de</strong> querosene – ... a educação... –<br />

e apontou para cima – ... a educação significa tornar-se um asno intelectual que carrega<br />

carga <strong>de</strong> conhecimento... inútil! Inútil!... muito inútil! Seus padres... – Pietro jogou um<br />

bal<strong>de</strong> <strong>de</strong> água no corpo <strong>de</strong> Alexandrino e a poeira se tornou <strong>em</strong> lama - ... aceitar o<br />

essencial...<br />

Então ele parou e dormiu. Foi um custo levá-lo para o quarto. Muita febre fez<br />

que o banháss<strong>em</strong>os para o repouso.<br />

- Precisamos também dormir um pouco ou começar<strong>em</strong>os com <strong>de</strong>lírio – disse Pietro,<br />

guardando sua bolsa e escritos no armário <strong>de</strong> ébano.<br />

Coelho De Moraes 61


MARCUS, o imortal<br />

- Não quero saber disso. Portanto, se os senhores permit<strong>em</strong>, vasculharei essas matas.<br />

Talvez se encontr<strong>em</strong> por aí respostas para explicar esse estado <strong>de</strong> Alexandrino.<br />

E saiu.<br />

Corri atrás <strong>de</strong> LaCordaire. Não sentia sono algum. O mistério me fazia esquecer<br />

qualquer cansaço.<br />

- Partir<strong>em</strong>os na direção <strong>de</strong> lagos e amplas clareiras. São esses os caminhos.<br />

Durante horas andamos <strong>em</strong> direção do brilho da Lua.<br />

- Olha! – ele falou – não me l<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> ver aquela construção. Parece recortada <strong>em</strong> ouro<br />

e mármore.<br />

- Não é uma Igreja e há pessoas na entrada – olhei para trás e era possível ainda<br />

enxergar a estalag<strong>em</strong>, como que perdida entre névoas. Aproximamos-nos da construção<br />

e algumas mulheres a<strong>de</strong>javam seus véus, <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> aromas <strong>de</strong> incensos e aromas <strong>de</strong><br />

flores.<br />

- Serão as mulheres da Lua, como disse Alexandrino?<br />

- Olá! – disse uma <strong>de</strong>las – são amigos do outro? O bêbedo?<br />

- Não sab<strong>em</strong>os <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> está falando.<br />

- Hoje cedo mesmo esteve por aqui um rapaz... tinha bebido muito nas estalagens do<br />

interior e tomou mais <strong>de</strong> nossos líquidos... mas não agüentou... sua moral o repreen<strong>de</strong>u<br />

e ele se tornou alucinado... – ela nos olhou com olhos ver<strong>de</strong>s e sorriu com <strong>de</strong>ntes alvos...<br />

– Quer<strong>em</strong> entrar? Meu nome é Virgínia.<br />

Eu e Lacordaire nos olhamos.<br />

- Para que entrar? – ele perguntou para mim.<br />

- Por que não? Qu<strong>em</strong> sabe... a busca do gozo?<br />

- De on<strong>de</strong> vieram...?<br />

Ela <strong>de</strong>sviou o olhar e fê-lo per<strong>de</strong>r-se nas nuvens.<br />

- Eu vejo que a monarquia da mulher <strong>de</strong>ve se reconduzir a seu fundamento. Manter o<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ntro da casa, do castelo... mesmo que para isso seja preciso enfiar uma faca <strong>em</strong><br />

seu próprio corpo.<br />

Ela não percebeu o jogo <strong>de</strong> olhares entre LaCordaire e eu, tentando enten<strong>de</strong>r do<br />

que ela falava... Uma outra mulher se aproxima.<br />

- Essa é Constância.<br />

- Recebe visitas, Virgínia?<br />

- E você? Já recebeu a visita <strong>de</strong> Julius? Do meu sacerdote?<br />

- Não... você está fora <strong>de</strong> si...<br />

- Para mim os dois passam noites e noites juntos, mas não sei explicar como é que o<br />

sacerdote n<strong>em</strong> chega a sair <strong>de</strong> casa. – Virgínia olha para nós dois e parece irritada,<br />

chegando a cuspir nervosamente, num rompante - Julius diz que é um hom<strong>em</strong><br />

completo, pois t<strong>em</strong> os dois sexos do espírito - mas a raiva <strong>em</strong> Virgínia permanecia.<br />

Imediatamente ela puxou meu braço e ganhamos a casa Ela, agora, parecia<br />

enfraquecida, muda, humilhada. Sentou-me <strong>em</strong> um tamborete <strong>de</strong> peles, perto <strong>de</strong> uma<br />

fonte que existia <strong>de</strong>ntro da casa e disse:<br />

- Julius n<strong>em</strong> se dá conta dos meus probl<strong>em</strong>as... dos meus azares... O hom<strong>em</strong> Julius é<br />

oriundo <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> artesãos <strong>de</strong> Bruges. Uma parte <strong>de</strong>ssa família era <strong>de</strong><br />

farmacêuticos <strong>em</strong>piristas, quase alquímicos, fazendo as vezes <strong>de</strong> médicos, curan<strong>de</strong>iros,<br />

servidores das vilas, que só apareciam por ali a cada dois meses. Julius era artista<br />

plástico e construía estátuas, escultor, e tinha certo sucesso. Suas opiniões liberais<br />

fizeram com que encontrasse magos e feiticeiros, além <strong>de</strong> ter a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar <strong>em</strong><br />

três lugares ao mesmo t<strong>em</strong>po. Nunca sei como faz isso. Talvez n<strong>em</strong> o faça e eu é que<br />

invento. Eu sei que foi no Aereo Lachus que veio a conhecer Constância... ela... como<br />

ninfa... envolta <strong>em</strong> brumas e tintas amarelas, mergulhando seu pincel <strong>de</strong> pele <strong>de</strong> marta<br />

numa palheta pouco expressiva.<br />

Enquanto Virgínia <strong>de</strong>vaneava, eu fui para a janela vi os dois. Contância e<br />

LaCordaire. Caminhavam pela beira <strong>de</strong> um passeio on<strong>de</strong> se espalhava água cintilante.<br />

Constância era muito jov<strong>em</strong>.<br />

- Constância colocou Julius na história <strong>de</strong>positando-o num t<strong>em</strong>po circular; ela s<strong>em</strong>pre<br />

teve esse quê <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong> e serieda<strong>de</strong>. Parece nunca se ofen<strong>de</strong>r.<br />

Vi-me envolvido pelos braços <strong>de</strong> Virgínia. Morena. Mais alta que eu. Cabelos<br />

negros que caiam sobre os ombros e olhos <strong>de</strong> amêndoa fresca. Ela s<strong>em</strong>pre parecia num<br />

estado <strong>de</strong> ferocida<strong>de</strong>. E me abraçou. Mergulhava-me <strong>em</strong> seus pensamentos, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po móveis e fixos, privados <strong>de</strong> todo o ritmo biológico consciente, <strong>de</strong>ixando-me levar<br />

Coelho De Moraes 62


MARCUS, o imortal<br />

por atenções minuciosas. Virgínia ostentava nomes sobre-humanos transmutando-se <strong>em</strong><br />

fada, sibila, feiticeira e, através <strong>de</strong>la, eu comecei a atingir as gran<strong>de</strong>s fases da<br />

cont<strong>em</strong>plação. O calor <strong>de</strong> sua pele excedia o que se podia agüentar... ela era religião...<br />

iniciação a ritos sagrados e últimos. Fui obrigado a me safar daquele abraço e daquela<br />

boca, correndo novamente para a imensa janela <strong>de</strong> vitrais.<br />

Lá <strong>em</strong>baixo, a menina Constância tinha um <strong>de</strong>sejo inenarrável <strong>de</strong> molhar seus<br />

pés no pequeno lago. LaCordaire mantinha-se <strong>em</strong> pé. Constância olhou para o alto e<br />

abanou a mão. LaCordaire fez o mesmo.<br />

- Agora ela está atacando o seu amigo.<br />

- E você está me atacando – só pu<strong>de</strong> ouvir, atrás <strong>de</strong> mim, um riso forçado.<br />

O fato é que Virgínia tinha razão, quanto às atenções <strong>de</strong> LaCordaire por<br />

Constância e vice-versa, mas não conseguia prova consistente alguma. Da mesma forma<br />

que as relações <strong>de</strong> Constância com Julius.<br />

- Somente os mais velhos e maduros têm acesso à mulher e a mulher t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser jov<strong>em</strong>,<br />

obrigatoriamente – ela disse, como qu<strong>em</strong> toma ciência <strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong> uma coisa - Se não<br />

for jov<strong>em</strong>, t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser mulher, na acepção da liberda<strong>de</strong>.<br />

- On<strong>de</strong> está esse Julius, afinal?– perguntei <strong>em</strong> meio a certo t<strong>em</strong>or e curiosida<strong>de</strong>, s<strong>em</strong><br />

tirar os olhos da janela. Eu po<strong>de</strong>ria fugir por ali.<br />

- Dorme. O marido dorme. Às vezes sorri enquanto dorme. E eu me solidarizo com<br />

outras mulheres humilhadas e me transformo <strong>em</strong> diva como Joana do Arco, ou como as<br />

mulheres do Banho. A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> morrer me dá uma fome animal <strong>de</strong> provar que a vida<br />

está <strong>em</strong> mim... n<strong>em</strong> quero esse certo ar intelectual e por pouco não me <strong>de</strong>cido <strong>em</strong><br />

substituir a mater dolorosa da Igreja mais próxima.<br />

Ela não para <strong>de</strong> falar. Ligava um assunto ao outro e eu me perdia nos nexos. O<br />

leve ar suicida lhe dava um espasmo rápido entre os olhos.<br />

- As minhas carícias serão todas suas – ela falou. Estaria eu vagueando pelo espaço <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>vaneio? Esses milhares <strong>de</strong> incensos espalhado pala sala me entorpeciam a cabeça, era<br />

verda<strong>de</strong>. Virgínia se aproximou, pálida e suando como s<strong>em</strong>pre. Das mãos pingavam<br />

gotas quase febris. Ela <strong>de</strong>itou sua mão na minha barriga e, acredito, pensou <strong>em</strong> beijar<br />

minha face mas, s<strong>em</strong> intenção pr<strong>em</strong>editada, virei para outro lado.<br />

- Você é uma chave que se manifesta inconclusa - eu disse. Mas aquela noite não<br />

parecia um momento certo n<strong>em</strong> completo para amar a mulher Virgínia. Eu a <strong>de</strong>sejava,<br />

mas a raiva que se estampava <strong>em</strong> seu rosto era d<strong>em</strong>ais.<br />

- Não antes <strong>de</strong> saber a verda<strong>de</strong> – ela disse, enquanto <strong>de</strong>slizava as mãos para baixo do<br />

meu corpo. Arfei. Desejo, o cansaço do dia e da noite <strong>de</strong> estudos, a preocupação com<br />

Alexandrino, e eu parecia vaguear pela cida<strong>de</strong> dos homens, a cida<strong>de</strong> diabólica como se<br />

fosse um dos t<strong>em</strong>plários, na mão da profetisa.<br />

- Eu me sinto agora como uma vespa, uma formiga, uma abelha rainha, investindo na<br />

minha monarquia particular, formando a mais indiscutível das aristocracias, extirpando a<br />

cabeça do rei e mastigando cuidadosamente sua s<strong>em</strong>ente – e Virgìnia tomou do meu<br />

sexo.<br />

- O que é isso? – gritei, notando que Virgínia me apertava.<br />

- Quero você. Quero agora!<br />

- Claro. Mas precisa me machucar assim?<br />

- Quero mostrar o po<strong>de</strong>r mátrio. Quero <strong>de</strong>terminar o po<strong>de</strong>r fecundante.<br />

- Espera!<br />

- Cale-se! Eu sei que você ocupa vários espaços ao mesmo t<strong>em</strong>po. Igual a Julius. São da<br />

mesma estirpe?<br />

- Eu n<strong>em</strong> sei qu<strong>em</strong> é esse Julius.<br />

- Não levante a sobrancelha assim para mim, já disse! O fato <strong>de</strong> ser fecundável não me<br />

dá virtu<strong>de</strong>s. Não quero ser virtuosa. Eu quero que você me torne a sacerdotisa <strong>de</strong>ssa<br />

cama – Virgínia massageou-me com mais vigor.<br />

- T<strong>em</strong> coisas que não sei se você po<strong>de</strong> ou evita fazer e...<br />

- Não importa mais... você abusará <strong>de</strong> mim... fará tudo o que <strong>de</strong>ve para transformar a<br />

mulher <strong>em</strong> puta... é difícil? – ela perguntou, ácida.<br />

- Não... basta existir um útero e a loucura aparecerá... – falei, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

<strong>de</strong>rramei s<strong>em</strong>ente sobre a mão da mulher. Ela olhou e disse:<br />

- Quero mais... ou você não sairá vivo <strong>de</strong>sse t<strong>em</strong>plo...<br />

- Ah! Que será <strong>de</strong> mim, estando a tal ponto <strong>em</strong> suas mãos?<br />

Coelho De Moraes 63


MARCUS, o imortal<br />

- Que suas fodas me sejam boas e doces, caso contrário eu morro - E arrancou a roupa<br />

inteiramente, <strong>de</strong>itando-se com as ná<strong>de</strong>gas viradas para mim e as pernas abertas - V<strong>em</strong>,<br />

me completa, cospe <strong>em</strong> mim, crava seus <strong>de</strong>ntes na minha bunda... tudo aqui é seu...<br />

- Acredita <strong>em</strong> mim... ainda assim posso ver a beleza <strong>de</strong> seu espírito... – Claro que era<br />

<strong>de</strong>lírio.<br />

Ela, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosa, sussurrou com o rosto enfiado no travesseiro, revendo os seios:<br />

- e... po<strong>de</strong> ver através <strong>de</strong> qual orifício? - avancei com a boca escancarada para <strong>de</strong>ntro<br />

da caverna.<br />

Repentinamente me vi junto <strong>de</strong> LaCordaire e <strong>de</strong> Constância, mas <strong>em</strong> nenhum momento<br />

<strong>de</strong>ixei a cama/altar on<strong>de</strong> submetia o corpo <strong>de</strong> Virgínia aos mais variados modos <strong>de</strong> culto<br />

e adoração.<br />

Constância e LaCordaire se encontravam, ainda, no jardim, lá <strong>em</strong> baixo, entre árvores<br />

frutíferas e uma e outra borboleta notívaga. Tomaram das mãos e vagaram,<br />

mergulhando os pés pelo pequeno lago, gélido lago, on<strong>de</strong> o sereno caía suave.<br />

LaCordaire beijou o rosto <strong>de</strong> Constância.<br />

Constância <strong>de</strong>itou seus lábios sobre a testa <strong>de</strong> LaCordaire, aí ela voltou-se para<br />

mim e disse:<br />

- Está molhado <strong>de</strong> suor.<br />

- Tive que correr para vê-los. Mas n<strong>em</strong> sabia como fazer. Foi repentino.<br />

- Você é um mistério que me fascina, Constância. O que será mais? A cor ou o brilho? –<br />

perguntou um ardoroso LaCordaire.<br />

- Sou como as mulheres do Oriente – ela respon<strong>de</strong>u – Uso somente a cach<strong>em</strong>ira por<br />

cima e, <strong>em</strong> baixo, como você po<strong>de</strong> ver, uma túnica <strong>de</strong> seda. Na verda<strong>de</strong>, não são<br />

vestimentas, mas amigas. Minhas amigas... – e virando-se para mim, com certa atenção<br />

<strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> profundo interesse - Mas você continua com esse suor intenso... diz a<br />

verda<strong>de</strong>...!”<br />

- É que nesse momento estou cavalgando o corpo <strong>de</strong> Virgínia e a penetro com violência...<br />

- Ela s<strong>em</strong>pre negou e <strong>de</strong>sejou isso.<br />

- Isso é bom ou é mal? – eu e LaCordaire perguntamos ao mesmo t<strong>em</strong>po.<br />

- É gostoso... muitas vezes... – respon<strong>de</strong>u sorrindo.<br />

- Espero que ela seja feliz, finalmente – foi o que me veio - Ela não fará nada contra<br />

nós... seu probl<strong>em</strong>a é Julius – eu disse.<br />

- L<strong>em</strong>bra que seu pensamento é pensamento <strong>de</strong> hom<strong>em</strong>... nós qu<strong>em</strong>? - Constância<br />

perguntou e passou a dobrar uma parte da roupa num gesto vago.<br />

- Ela pensa, fala, age <strong>de</strong> outro modo. T<strong>em</strong> gostos diferentes. Repentinamente precipitase<br />

como um aguaceiro <strong>de</strong> t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong>. Ela é uma t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong>. De repente se faz <strong>de</strong><br />

santa, vítima e virg<strong>em</strong>... – eu me calei um instante olhando as pérolas das pedras que<br />

apareciam à superfície da água - Ela respira pelas quatro costelas superiores. Daí aquela<br />

ondulação dos seios numa eloqüência muda. Parece que estou com a boca neles, agora,<br />

e ela se contorce <strong>de</strong> prazer... parece.<br />

- Ela ama <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o fundo das entranhas, por isso não come como nós.<br />

- O que você <strong>de</strong>seja dizer com isso, Constância? – perguntou LaCordaire.<br />

- Ela é a profunda taça do amor. Virgínia t<strong>em</strong> uma linguag<strong>em</strong> à parte que muitas vezes<br />

ela mesma n<strong>em</strong> enten<strong>de</strong>...<br />

- Explique melhor, Constância, pois sinto que minhas forças estão <strong>de</strong>saparecendo – falei<br />

num arroubo.<br />

- A mulher, acima do verbo do hom<strong>em</strong> e do canto do pássaro, possui uma linguag<strong>em</strong><br />

inteiramente mágica... daí o suspiro, o sopro apaixonado... o <strong>de</strong>sespero... a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

morrer .<br />

- Morrer? – perguntei atônito.<br />

- Morrer, sim... ela se entregou para ser morta por você, com seu m<strong>em</strong>bro. O sexo será a<br />

morte <strong>de</strong>la... ela <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>sfalecer, <strong>de</strong>sintegrar-se, fendida por sua espada... assim ela<br />

estará morta... Ela precisa <strong>de</strong>ssa violência... e você está sutil e carinhoso d<strong>em</strong>ais com<br />

ela...<br />

- Sei...-<br />

- A Natureza nos faz feiticeiras. Nasc<strong>em</strong>os fadas. Pelo retorno da exaltação, nasce a<br />

sibila. Pela sagacida<strong>de</strong> e malícia ser<strong>em</strong>os feiticeiras <strong>de</strong> sortilégios, enganando os males. –<br />

Nesse momento, Constância se prepara para entrar nas águas do lago - S<strong>em</strong>pre<br />

quis<strong>em</strong>os as fogueiras... o fogo máximo que nos consumisse - Ela afunda um bocado.<br />

Coelho De Moraes 64


MARCUS, o imortal<br />

Sua roupa se arrasta para as profun<strong>de</strong>zas... lentamente as águas a envolv<strong>em</strong> e<br />

Constância <strong>de</strong>saparece como um perfume.<br />

Eu e LaCordaire observamos a noite e eu, da mesma maneira, voltei num vento,<br />

correndo para o quarto e me vejo penetrando incl<strong>em</strong>ente o corpo <strong>de</strong> Virgínia que jaz com<br />

as pernas abertas e os pés alçados sobre meus ombros, <strong>em</strong> solavancos febris.<br />

A mulher se agitava com um sorriso nos lábios... um pouco <strong>de</strong> saliva veludosa<br />

<strong>de</strong>scia e ela tentava distribuir um pouco <strong>de</strong>ssa saliva para minha boca. A coreografia<br />

excitante acalentava os corpos que rodopiavam sobre o altar-cama. Eu não conseguia<br />

gozar. Virgínia soltava exclamações impiedosas e sagazes. Estava violenta e intrigante. A<br />

cada instante ela gritava para as pare<strong>de</strong>s cobertas <strong>de</strong> veludo azul-marinho: “Fo<strong>de</strong>! Fo<strong>de</strong>!”<br />

e eu, mesmo perdido <strong>em</strong> névoas e alguma dor, recomeçava o <strong>em</strong>bate para não <strong>de</strong>ixar a<br />

mulher s<strong>em</strong> seu prazer. No entanto Virgínia não chegava a lugar algum, também. Mas,<br />

qu<strong>em</strong> as castiga, se castiga. Qu<strong>em</strong> as pune, se pune com todos os ordálios do planeta.<br />

Elas <strong>de</strong>rrubam e <strong>de</strong>stro<strong>em</strong> toda a idéia <strong>de</strong> justiça. Faz<strong>em</strong> isso para negar-se e maldizerse.<br />

Por isso Virgínia se agita, segura meus cabelos, contorce o dorso e se oferece<br />

triunfante.<br />

- Virgínia, você está fervendo... não estará doente?<br />

- Continua e cala a boca!.<br />

- Você está lívida e assustadora.<br />

- Nada disso. Estou no pleno <strong>de</strong> mim! – ela se vira e se abre escancaradamente – Não<br />

per<strong>de</strong> o <strong>de</strong>sejo. Entra agora nessa vulva vermelha. Essa cruel exibição eu queria para as<br />

rivais, percebendo meu completo estado <strong>de</strong> fêmea... – e grunhiu, rosnou, e trouxe-me<br />

para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si.<br />

Assim foi o resto daquela noite.<br />

As estrelas mudaram <strong>de</strong> lugar.<br />

Ventos e brisas entraram e saíram do quarto.<br />

Acor<strong>de</strong>i.<br />

Virgínia parecia admirável pela sua beleza na manhã. Tomava líquido e mastigava<br />

pequenos pães, com sorvos alternados <strong>de</strong> um suco <strong>de</strong> maçã. Eu tentava ler o seu rosto.<br />

- Mas, o perigo é menor sob o olhar <strong>de</strong> todos – ela disse, experimentando os lábios, num<br />

sorriso. - Somos hoje mais nervosos do que jamais o fomos.<br />

- Por que diz isso? – eu perguntei, sinceramente curioso.<br />

- É a impressão que me dá. É tão... fort<strong>em</strong>ente revoltante e forte... refiro a certas<br />

pessoas que prefer<strong>em</strong> sofrer...<br />

- Sofrer?... Mas, Virgínia... quantas vezes você não se precipitou <strong>em</strong> loucuras... você<br />

mesma disse... até perceber que bastava o sexo dos humanos para torná-la <strong>de</strong>usa,<br />

sacerdotisa, meretriz sagrada... sei lá o que mais...- falei asperamente.<br />

- Eu sei... mas aprendi... e quantas <strong>de</strong> nós não aprend<strong>em</strong>? Quantas <strong>de</strong> nós prefer<strong>em</strong><br />

tísicas e apoplexias e pestes... a morte <strong>em</strong> vida... <strong>em</strong> vez da noite cheia <strong>de</strong> gozos e tudo<br />

aquilo que achamos sujo e é na verda<strong>de</strong> a mais pura das <strong>de</strong>lícias... um banho <strong>de</strong><br />

salivas... um banho <strong>de</strong> beijos... um banho <strong>de</strong> esperma? – e ela toma da minha mão para<br />

completar – se sou morena é por que fui queimada pelo calor do seu abraço.<br />

- Pura pieguice – eu disse, s<strong>em</strong> qualquer educação ou cortesia – Tolice pura.<br />

No final, beijamo-nos.<br />

Havia uma névoa no jardim. N<strong>em</strong> a sombra <strong>de</strong> LaCordaire.<br />

Havia luzes filtradas do sol da manhã entre as árvores.<br />

O lago estava calmo, o dia era tranqüilo e próspero.<br />

Ela pediu para que eu me retirasse. Eu me retirei. E nós nos retiramos, cada um<br />

para si mesmo, para permitirmos o idílio.<br />

OPUS 30<br />

Alexandrino escapara.<br />

Pietro estava cansado e dormiu profundamente. O outro estava insano e se<br />

aprovietou.<br />

Eu, LaCordaire e Pietro resolv<strong>em</strong>os sair para a estrada à procura <strong>de</strong> Alexandrino,<br />

o Menor. Falamos com Siger, se interessava ir junto, uma vez que haveria pausa nos<br />

estudos com os professores e todos sairiam para a Igreja do Burgo, para assistir missas e<br />

pregar. Siger <strong>de</strong> Brabant não ia para lugar algum e não quis, também, nos acompanhar.<br />

Disse que vaguearia solitário para conhecer melhor a região.<br />

Coelho De Moraes 65


MARCUS, o imortal<br />

Era madrugada ainda, <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> quatro horas, com certas lufadas <strong>de</strong> vento e<br />

aromas florais nos cercando. Após quilômetros <strong>de</strong> caminhada, com o sol aparecendo<br />

lentamente, encontramos o lago on<strong>de</strong> Constância havia <strong>de</strong>saparecido. Um lago mudado,<br />

s<strong>em</strong> as belezas da noite anterior. A idéia era saber se Alexandrino havia tomado aquele<br />

caminho. Saber se a magia que dominara minha cabeça se apo<strong>de</strong>rara também da do<br />

menor.<br />

Ali podia ser qualquer coisa. Um lago antigo on<strong>de</strong> as raízes da mitologia se<br />

per<strong>de</strong>riam. Podia ser mais espaço místico... Mas, então vi que ali se encontrava uma<br />

pequena ilha. Talvez Constância não houvesse <strong>de</strong>saparecido nas águas, mas apenas<br />

nadado até ali. LaCordaire se recordava b<strong>em</strong> da ilha... uma pequena ilha. Uma<br />

cordilheira, um esporão <strong>de</strong> rocha granítica on<strong>de</strong> o azul se mostrava eloqüente, pouca<br />

vegetação.<br />

- Esteve <strong>em</strong> po<strong>de</strong>r dos ciganos durante vários séculos. Mas <strong>em</strong> 1221 os seus habitantes<br />

fizeram um levante armado, lutaram pela in<strong>de</strong>pendência e ganharam – disse LaCordaire<br />

– foi o que Constância me disse.<br />

- Olh<strong>em</strong>! Ali existe um pequeno c<strong>em</strong>itério – alertou Pietro.<br />

Corr<strong>em</strong>os até o local, on<strong>de</strong> encontramos sepulturas daqueles que tombaram<br />

pela liberda<strong>de</strong>.<br />

- Parece que estiveram recent<strong>em</strong>ente por estas bandas – disse Pietro.<br />

- T<strong>em</strong> que ter alguém morando nas casas e na casa <strong>de</strong> Virgínia e Julius, mas tudo me<br />

parece vazio...<br />

- Ainda hoje <strong>de</strong>positaram flores sobre os túmulos.<br />

- Lá na frente eu vejo mais tumbas. Um outro c<strong>em</strong>itério?<br />

Rapidamente percorr<strong>em</strong>os o espaço entre os dois campos. Um pequeno terreno,<br />

atrás <strong>de</strong> rochas, on<strong>de</strong> os túmulos não têm nome n<strong>em</strong> cruz.<br />

- Há inscrições nas lápi<strong>de</strong>s – eu disse.<br />

- 1200-1202. Aqui jaz<strong>em</strong> criaturas que não são <strong>de</strong>ste mundo – falou LaCordaire, olhando<br />

para nós com certo movimento suspeito <strong>de</strong> boca.<br />

- Por três anos a ilhota viveu no terror.<br />

Nós três. Ao mesmo t<strong>em</strong>po nos viramos para ouvir <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> era a voz. E um<br />

velho caminhava <strong>em</strong> nossa direção, com um cajado, que o mantinha e sustinha, já que<br />

era cego.<br />

- Qu<strong>em</strong> é o senhor?<br />

- Meu nome é Julius.<br />

Sorri para mim mesmo. Ressabiado e curioso. Um tr<strong>em</strong>or atingiu a mim e a<br />

LaCordaire. Mesmo assim falei para o hom<strong>em</strong>:<br />

- Estive aqui ont<strong>em</strong>, passando a noite por estas regiões e me falaram <strong>de</strong> um tal Julius.<br />

- Essa sua noite não foi tão há pouco t<strong>em</strong>po, posso dizer. O medo persiste... ainda<br />

persiste através dos anos... ninguém ousa arar o campo maldito. – o hom<strong>em</strong> bateu o<br />

cajado e procurou lugar para andar e se sentou sobre uma das tumbas - Existe uma<br />

lenda segundo a qual aqui estão sepultados os gigantes, mortos por Hércules. – Ele<br />

tocou lev<strong>em</strong>ente no granito e afagou com um pouco <strong>de</strong> cuidado - Mas é apenas lenda...<br />

Prisão <strong>de</strong> ouvintes incautos... – ele fez uma pausa como se procurasse nos fundos da<br />

m<strong>em</strong>ória - Mas não era daqueles mortos que os habitantes tinham medo. Em 1201, o<br />

aventureiro Monsieur <strong>de</strong> Tournefort se encontrava nesta região e foi test<strong>em</strong>unha da<br />

"gran<strong>de</strong> epid<strong>em</strong>ia". Inexplicável epid<strong>em</strong>ia. Ele disse, naquela ocasião: "A loucura parecia<br />

ter penetrado <strong>em</strong> todas as mentes. Era uma autêntica epid<strong>em</strong>ia, como a raiva ou a<br />

peste. Famílias inteiras abandonavam suas casas e iam viver nos campos ou nos<br />

bosques. Todos se lamentavam do contato com... aquelas pessoas estranhas... Cada um<br />

ostentava, quase com orgulho, as marcas rubras das mordidas. Ao cair das trevas, todos<br />

se abandonavam aos lamentos, aterrorizados ante a idéia da noite que caía”.<br />

- Eu e LaCordaire não vimos nada disso quando aqui estiv<strong>em</strong>os.<br />

- Naquela época... naquele momento... naquele <strong>de</strong>sdobrar <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po e espaço eles ainda<br />

não haviam avançado sobre a cida<strong>de</strong>... e a única coisa <strong>de</strong> que tínhamos <strong>de</strong> nos queixar<br />

era da ávida e dissoluta Virgínia – e eu vi que uma lágrima caia do rosto do velho Julius<br />

- O medo que se impunha sobre a ilha veio com a jov<strong>em</strong> Constância, que <strong>de</strong> louca se<br />

afogou...Qu<strong>em</strong> conversou com ela sabe que ela já não falava coisa com coisa... sua fala<br />

era <strong>de</strong>snorteada e incompreensível... ela dizia ver pessoas <strong>de</strong> outras eras... se<br />

preocupava com suas roupas e tecidos... o jov<strong>em</strong> aqui ao meu lado sabe muito b<strong>em</strong> do<br />

que falo – e o jov<strong>em</strong> ao seu lado era LaCordaire que estava mudo e cabisbaixo.<br />

Coelho De Moraes 66


MARCUS, o imortal<br />

- Que mordidas?<br />

- Eram os sinais das mordidas que apareciam, realmente. Nos seios das mulheres, nas<br />

costas e ombros das crianças,... as crianças sumiam e <strong>de</strong>pois eram encontradas s<strong>em</strong><br />

gota <strong>de</strong> sangue <strong>em</strong> seus corpos... E todos os que sobreviviam experimentavam uma<br />

terrível exaustão. Muitos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum t<strong>em</strong>po – tidos como fortes e robustos –,<br />

morriam.<br />

- Tudo isso durante três anos? – perguntei.<br />

- Sim, <strong>em</strong> três anos houve centenas <strong>de</strong> mortos na ilha, se b<strong>em</strong> que combat<strong>em</strong>os a<br />

epid<strong>em</strong>ia com todos os meios úteis. Pensávamos assim.<br />

- E o que eram tais "meios úteis"? – perguntou Pietro.<br />

- Úteis, mas inoperantes. A lança <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira pontiaguda, fogo <strong>em</strong> tochas... A luz do sol<br />

<strong>de</strong>struía o seu simulacro humano, restituindo-os à poeira do t<strong>em</strong>po. Mas não existiam<br />

freixos na ilha e era necessário mandar os pescadores até as ilhas maiores... eu era um<br />

<strong>de</strong>sses pescadores... dono <strong>de</strong> muitos barcos... saí <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> freixos... para arranjar a<br />

ma<strong>de</strong>ira necessária a fabricação das lanças. Durante o dia, nas casas miseráveis,<br />

homens e mulheres preparavam as armas. Depois, quase no crepúsculo, antes que eles<br />

ressurgiss<strong>em</strong>, os mais corajosos chegavam ao c<strong>em</strong>itério e escavavam sepulturas.<br />

Mais pausas. Significativas pausas.<br />

- Era fácil i<strong>de</strong>ntificá-los... os seus lábios ainda úmidos <strong>de</strong> sangue. Então as lanças os<br />

traspassavam, aniquilando-os... era assim que se tratava para impedir que ressurgiss<strong>em</strong><br />

da tumba e viess<strong>em</strong> atormentar os vivos, exigindo o sangue que haviam perdido, ao<br />

chegar... sabe-se lá <strong>de</strong> on<strong>de</strong>!<br />

O hom<strong>em</strong> parecia cansado, agora.<br />

- Nunca <strong>de</strong>scobriram qu<strong>em</strong> eram? – perguntei – Tinham <strong>de</strong>sejo próprio? Estavam sob<br />

algum comando? Por que essa coisa <strong>de</strong> dormir <strong>em</strong> c<strong>em</strong>itérios?<br />

- Não sei – disse ele rispidamente – não sei! Collin <strong>de</strong> Planalt, um monge estudioso, veio<br />

aqui, <strong>de</strong>pois e disse tratar-se <strong>de</strong> upires, também chamados brucolakhi ou katakhanes...<br />

pessoas mortas s<strong>em</strong> sepultura ... mas, eu não acredito nisso.<br />

- Acredita <strong>em</strong> quê, então? – falou LaCordaires – Viu tanta coisa e não acredita <strong>em</strong> nada, -<br />

já irritado com os modos bruiscos do velho que se chamava Julius.<br />

- Seres reerguidos da morte, goléns, escravos s<strong>em</strong> noção <strong>de</strong> coisas e falando,<br />

caminhando, amedrontando as vilas, tornando a todos fracos, bebendo o sangue <strong>de</strong> cada<br />

um... upires!<br />

- A morte, nesse caso, seria um prêmio ou um castigo? – perguntei.<br />

- Também não sei – e ele se apoiou <strong>em</strong> seu cajado, segurando-o com firmeza inaudita -<br />

A idéia da aniquilação total é pavorosa, assustadora. No caso dos upires tornou-se algo<br />

<strong>de</strong> feliz e tranqüilizador... Por que o <strong>de</strong>sejo da imortalida<strong>de</strong>?<br />

- Essa tendência – falei – po<strong>de</strong> ser a chave do fenômeno <strong>de</strong>sses upires...<br />

- Angústia <strong>de</strong> morrer e fascinação da morte... po<strong>de</strong> ser...; esperança <strong>de</strong> sobreviver e<br />

medo <strong>de</strong> que uma vida corpórea <strong>de</strong>pois da morte signifique danação... po<strong>de</strong> ser...<br />

- Ajunte-se a isso – explicou LaCordaire - o instinto el<strong>em</strong>entar da sobrevivência, com a<br />

sua agressivida<strong>de</strong> e avi<strong>de</strong>z cruéis.<br />

Deixamos o velho Julius a sós e passamos a abrir as sepulturas. Em toda parte<br />

eram <strong>de</strong>scobertos corpos traspassados, s<strong>em</strong>iqueimados, alguns...<br />

- Houve um – o velho disse – que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morto, reapareceu e mor<strong>de</strong>u oito pessoas,<br />

que morreram <strong>em</strong> seguida. Os habitantes da ilha o <strong>de</strong>senterraram e o atravessaram com<br />

uma lança, mas ele ria e escarnecia dos cidadãos. Mesmo morto. Como é que vou<br />

acreditar numa coisa <strong>de</strong>ssas? Resolveram queimá-lo, e levaram-no até o local numa<br />

carreta. Durante o percurso, o cadáver urrou e se <strong>de</strong>bateu. Novamente traspassado,<br />

esvaiu- se numa poça <strong>de</strong> sangue, antes que o fogo o queimasse totalmente.<br />

Olhamo-nos.<br />

E as mulheres? E Virgínia?<br />

Em uma das tumbas encontrei textos rasgados <strong>de</strong> um manuscrito, Saphos<br />

Galante, <strong>de</strong> Paris, e um resto <strong>de</strong> livro <strong>de</strong> autor al<strong>em</strong>ão intitulado De Masticatione et<br />

Sanguine Mortuorum in Tumtllis. Depositei <strong>de</strong> volta. Deixamos o velho com seus<br />

davaneios e fomos para a residência <strong>de</strong> Virgínia. A casa estava limpa e asseada como se<br />

todos tivess<strong>em</strong> partido, <strong>de</strong> imediato, após eu e LaCordaire <strong>de</strong>ixarmos o local na noite<br />

passada. Uma espécie <strong>de</strong> fuga orquestrada.<br />

- O que acha disso, LaCordaire?<br />

Coelho De Moraes 67


MARCUS, o imortal<br />

- Marcus, eu não sei, mas está tudo muito confuso. Sofr<strong>em</strong>os, ont<strong>em</strong>, algum tipo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>lírio? Vagamos à noite? As datas são <strong>de</strong> muito t<strong>em</strong>po atrás... E o velho?<br />

- Mas, é bom l<strong>em</strong>brar que outros grupos não-mortos já estiveram conosco... o pessoal <strong>de</strong><br />

Bernard <strong>de</strong> Clairvaux, l<strong>em</strong>bra?<br />

- Só <strong>de</strong> l<strong>em</strong>brar do cheiro...!<br />

- O que ocorreu por aqui po<strong>de</strong> ser algo parecido – falei. Desc<strong>em</strong>os as escadas <strong>de</strong> trás e<br />

<strong>de</strong>scobrimos outro caminho. Dessa vez ele invadia uma floresta e a<strong>de</strong>ntrava para o <strong>de</strong>nso<br />

mato. Olhei para trás e vi o velho <strong>de</strong>itado sobre a lápi<strong>de</strong>, abraçado a ela.<br />

Decidimos que seguiríamos aquele caminho. No entanto, alcançamos um vilarejo<br />

somente ao meio dia. Muita gente alvoroçada, caminhando alucinadamente, pareceunos.<br />

Os habitantes d<strong>em</strong>onstravam um escasso contato com gente <strong>de</strong> outros burgos...<br />

as estradas eram precárias. Pareciam conservar hábitos, costumes, tradições e<br />

roupagens que falavam <strong>de</strong> uma época antiga.<br />

De repente, vi que traziam uma pessoa. Ela estava morta. Era o filho <strong>de</strong> uma<br />

mulher, que chorava amargamente, uma mulher que, soube <strong>de</strong>pois, era moradora da<br />

ilha... Agonizou por uma noite inteira, s<strong>em</strong> que ninguém fosse socorrê-lo, pois estava <strong>em</strong><br />

uma caverna perdida na serra. Morreu ao amanhecer, pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o encontrar<strong>em</strong>.<br />

Ela, a mãe, gritava <strong>de</strong>sesperadamente: "Quero você vivo, meu filho! Vivo!".<br />

Enterraram-no numa colina arenosa.<br />

Isso nos cansou d<strong>em</strong>ais... Sugeri que fôss<strong>em</strong>os a um albergue e não posso dizer<br />

que fomos b<strong>em</strong> recebidos ou acomodados... Não podíamos ficar muito t<strong>em</strong>po naquele<br />

lugar, no entanto, o pouco t<strong>em</strong>po que ficamos foi <strong>de</strong>finitivo para ver que o filho voltou,<br />

algumas horas <strong>de</strong>pois. A sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> existir era mais forte do que a própria morte.<br />

Eu, Pietro e LaCordaire corr<strong>em</strong>os na direção do alvoroço. A mãe queria abraçar o<br />

filho, ele corria <strong>em</strong> sua direção, a face pálida, olhos perdido, a multidão seguiu a mulher,<br />

aos gritos e parecia que <strong>de</strong>sejava apartá-la do abraço com o filho; e quando se<br />

abraçaram – mãe e filho – ela sorrindo feliz e <strong>em</strong>bevecida pela volta, ele arrancou a<br />

cabeça da mãe e sorveu o sangue aos borbotões, rindo e gritando <strong>de</strong>sbragadamente...<br />

saindo <strong>em</strong> seguida à procura <strong>de</strong> qualquer outro.<br />

As pessoas se horrorizaram e partiram para cima <strong>de</strong>le com paus e pedras... o filho não<br />

ligava e segurava braços e pernas e mordia a todos, arrancando pedaços e trazendo dor.<br />

Voltou para buscar o sangue que havia perdido, com um misto <strong>de</strong> agressão e amor. E<br />

voltou-se para qu<strong>em</strong> amava mais: a mãe.<br />

No momento <strong>de</strong> sua reaparição, alguns habitantes daquele burgo, livres <strong>de</strong> seus<br />

<strong>de</strong>lírios e cegueira tomaram consciência do que <strong>de</strong>veriam fazer.<br />

- Estrangeiro – seguraram meu braço – t<strong>em</strong> alguma opinião para dar?<br />

- Vocês têm que acabar com ele.<br />

- Com que? Pedradas? Qu<strong>em</strong> sabe mordê-lo também?<br />

- Esse tipo <strong>de</strong> gente é s<strong>em</strong>pre um ser infeliz, prisioneiro <strong>de</strong>ssa maldição... um instinto <strong>de</strong><br />

preservação da vida.<br />

- Até agora não me disse nada – o hom<strong>em</strong> falou – e aquela coisa vai acabar com a vila.<br />

- Acredito que será necessário afastar os sentimentos, para o próprio b<strong>em</strong> do doente.<br />

Deve-se fazê-lo voltar ao seu estado normal, fazê-lo voltar à paz. A força que move<br />

aquele pobre corpo atormentado não é uma alma, mas uma mecânica <strong>de</strong> terror – aí eu vi<br />

que estava cercado <strong>de</strong> pessoas com olhos esbugalhados e aterrorizados, pois o upir havia<br />

tomado uma criança e estava sentado no chão da praça mastigando as entranhas da<br />

vítima, à cata <strong>de</strong> sangue – não se po<strong>de</strong> ter dúvida... é necessário <strong>de</strong>struir aquela coisa.<br />

O hom<strong>em</strong> tomou o machado e dividiu o upir ao meio. Depois, cortou a cabeça e<br />

pediu para que levass<strong>em</strong> a cabeça para uma forja, on<strong>de</strong> a metalurgia aquecia metais e a<br />

jogasse ali. O resto foi picotado e lançado ao lago para que os peixes <strong>de</strong>ss<strong>em</strong> cabo do<br />

resto. Então houve silêncio na vila.<br />

- O medo <strong>de</strong> morrer é, <strong>em</strong> todos os t<strong>em</strong>pos, estímulo para a ressurreição – eu disse.<br />

Mas existe outro componente: o ódio.<br />

Partimos para a casa <strong>de</strong> Virgínia. As cortinas leves balançavam com o vento.<br />

Dessa vez tentamos ouvir e perceber qualquer sinal, principalmente o porquê <strong>de</strong><br />

estarmos ali, presenciando aqueles acontecimentos e pareceu que mais uma vez<br />

estávamos <strong>em</strong> um vão <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po e espaço, incompreensível para a maioria das pessoas.<br />

Se surpreen<strong>de</strong> a nós três, imagin<strong>em</strong> aos menos versados no oculto! Teria algo a ver com<br />

os últimos acontecimentos por que passou Alexandrino, o menor? Os homens que tomam<br />

Coelho De Moraes 68


MARCUS, o imortal<br />

conta dos velhos castelos ingleses diz<strong>em</strong> que os fantasmas são s<strong>em</strong>pre almas <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>funtos que <strong>em</strong> vida odiaram e foram odiados. Talvez essa regra não seja diferente<br />

para aqueles... upires, como disse o velho Julius.<br />

- Ouvi histórias turcas, on<strong>de</strong> muitos casos <strong>de</strong> pessoas particularmente más<br />

reapareceram <strong>de</strong>pois da morte para atormentar os vivos – disse Pietro <strong>de</strong> Ferrara,<br />

colocando <strong>de</strong> volta um vaso que estava no chão.<br />

- Fal<strong>em</strong>os do ódio, fal<strong>em</strong>os <strong>de</strong> amor – disse LaCordaire – l<strong>em</strong>brei <strong>de</strong> uma fábula<br />

britânica <strong>em</strong> que um cocheiro <strong>de</strong> nome Mattews se mata <strong>de</strong>baixo das rodas <strong>de</strong> um coche<br />

que ia para Londres. A investigação concluiu que o hom<strong>em</strong> era atormentado por<br />

alucinações. Ele costumava afirmar que a noiva, morta <strong>em</strong> razão da an<strong>em</strong>ia, vinha visitálo<br />

todas as noites, reclamando o sangue necessário "para voltar".<br />

Invadimos cômodos. Visitei o quarto <strong>em</strong> que fiquei com Virgínia. Os lençóis<br />

permaneciam no chão. Desc<strong>em</strong>os escadas para porões e subimos para salões superiores<br />

tentando encontrar chaves que <strong>de</strong>cifrariam os mistérios daquele dia. Pela janela observei<br />

que o velho Julius, alheio a todos, cavava. Tentamos uma apressada classificação mas<br />

na rápida procura não pud<strong>em</strong>os evitar o encontro com uma lápi<strong>de</strong> no meio <strong>de</strong> uma<br />

quarto <strong>de</strong> pedra... Nela estava escrito Lesahor.<br />

- Lesahor sou eu – alguém disse da porta. Isso me fez gelar rapidamente. Depois <strong>de</strong> um<br />

longo e infrutífero silêncio eu me virei e olhei para Lesahor.<br />

- Mas não estou vivo... – levantou a mão como que me pedindo para me manter calmo. -<br />

... não da forma como vocês viv<strong>em</strong>. Há muitas maneiras <strong>de</strong> se estar vivo. Continuo a<br />

fazer as visitas a essas câmaras, apesar do peso da minha lápi<strong>de</strong>. Todas as noites... ando<br />

por aqui para encontrar Virgínia..., e cumprimentá-la.<br />

- O que você fazia? Ou faz! – quis saber Pietro.<br />

- Naquela noite eu vi que você – e apontou para mim – você se <strong>de</strong>itava com Virgínia,<br />

apesar da ausência <strong>de</strong> Julius. Eu o vi, no quarto <strong>de</strong>la... no quarto da senhora, na hora<br />

da minha visita, e tive o prazer... e ao mesmo t<strong>em</strong>po a angústia <strong>de</strong> ver que ela se dava<br />

para outros.<br />

Notei que Lesahor se movia s<strong>em</strong> dificulda<strong>de</strong>, conversando conosco. Parecia fluir.<br />

Quis dirigir-lhe a palavra, mas o hom<strong>em</strong> se <strong>de</strong>spediu, dizendo que tinha muita pressa.<br />

Descobrimos imediatamente a razão da pressa ao levantarmos a lápi<strong>de</strong> e darmos uma<br />

olhada na sepultura <strong>de</strong> Lesahor. O morto estava <strong>em</strong> seu lugar e tinha um aspecto<br />

excepcionalmente b<strong>em</strong> conservado.<br />

- A tar<strong>de</strong> avança, Marcus. Não encontrar<strong>em</strong>os nada por aqui a não ser esses mortos<br />

estranhos e nenhuma pista <strong>de</strong> Alexandrino. A intuição foi mal interpretada – disse<br />

LaCordaire.<br />

- Você t<strong>em</strong> razão.<br />

- E essas aparições, além <strong>de</strong> inúteis para nós, só nos traz<strong>em</strong> cansaço e dissabores.<br />

Descendo as escadas da casa <strong>de</strong> Virgínia encontramos o velho Julius que nos<br />

chamava, acenando lev<strong>em</strong>ente. Levou-nos a uma das sepulturas e fez sinal para que<br />

olháss<strong>em</strong>os. Era Constância. Da mesma forma que Lesahor, tinha o cadáver claro e<br />

límpido, como se tivesse baixado à tumba naquele momento.<br />

- Em 1203, ela foi trazida para cá – ele começou a falar, fazendo menção <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o<br />

olhar opaco nos céus – O magistrado, <strong>de</strong> toga e capelo, foi até o lugar do <strong>de</strong>lito... ou<br />

qualquer lugar. Lá, dirigiu-se à morta, perguntando-lhe três vezes: "Mulher, qu<strong>em</strong> a<br />

matou? A Justiça exige". Depois o magistrado, balançando um sino, disse: "A morta não<br />

respon<strong>de</strong>u". – nisso, Julius, começou a gritar e brandir o cajado por todos os lados como<br />

se domasse ventos - Os juizes <strong>de</strong> Andorra esperam que pelo menos uma vez a morta<br />

responda à pergunta. Os corpos dos não-mortos não respeitam as leis do t<strong>em</strong>po e do<br />

espaço.<br />

Apausa que se fez <strong>de</strong>terminou que partíss<strong>em</strong>os.<br />

- Julius. Nós vamos partir.<br />

- Acredito que interromp<strong>em</strong>os o seu sossego com nossa intromissão <strong>em</strong> suas terras, <strong>em</strong><br />

sua ilha... – disse Pietro.<br />

- Cuidado com a estirpe <strong>de</strong> upires... Cuidado... Muito cuidado... eles se aliam às vorazes<br />

vozes do oculto – o velho disse - Eles formam uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ressurreição. Eles viv<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

todos os t<strong>em</strong>pos e se confund<strong>em</strong> com as pessoas normais.<br />

- Quer vir conosco? – perguntei.<br />

- Não!... eu quero... mas não posso... a minha vida é manter a sentinela sobre esses<br />

corpos... e periodicamente verificar se as lanças continuam enfiadas <strong>em</strong> meio aos ossos.<br />

Coelho De Moraes 69


MARCUS, o imortal<br />

Essa mulher, Constância, uma mulher que foi sepultada com todos os sacramentos.<br />

Quatro dias <strong>de</strong>pois, reapareceu sob a forma <strong>de</strong> um cão que atacava as pessoas e mordialhes<br />

o corpo à procura <strong>de</strong> sangue. O cadáver já foi <strong>de</strong>senterrado várias vezes e<br />

traspassado com a lança <strong>de</strong> freixo. Eu mesmo fiz isso! – e bateu várias vezes o cajado no<br />

chão -, mas cuidado, jovens, muito cuidado. N<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre os upires quer<strong>em</strong> o sangue<br />

para eles. Basta-lhes que o sangue da vítima se perca ou seja explorado por trabalhos<br />

escravos. .<br />

Partimos, enfim.<br />

A tar<strong>de</strong> já se fazia pronta e a noite se apresentava. Tínhamos longa caminhada<br />

pela frente, mas não era a noite n<strong>em</strong> a floresta que nos amedrontava. Mas as<br />

l<strong>em</strong>branças confusas <strong>de</strong> Lesahor, Julius, Constância morta, o episódio da vila da mãe e<br />

do filho... traziam um travo <strong>de</strong> amargura aos nossos corações. Eram sinais. Eram<br />

manifestações cujo significado não alcançávamos. Meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo aquilo podia ser<br />

<strong>de</strong>lírio... alguma erva ou beberag<strong>em</strong> que prováramos... não sei.<br />

- Disso tudo eclo<strong>de</strong> a l<strong>em</strong>brança <strong>de</strong> fatos – falou LaCordaire. A história <strong>de</strong> Kurtiss,<br />

conhecido como Nosferatu da Dinamarca,que cometeu 30 homicídios escandalosos. Na<br />

maior parte eram meninas, que ele seviciava horrivelmente. Kurtiss bebia o sangue <strong>de</strong><br />

suas vitimas, <strong>em</strong> taças <strong>de</strong> cristal, enquanto o corpo jazia <strong>em</strong> seu colo para que ele<br />

espr<strong>em</strong>esse o sangue para as jarras. Gostava <strong>de</strong> crianças.<br />

- Mas Kurtiss era órfão e tinha sido adotado por uma viúva rica e viciada, que o obrigava<br />

a beber sangue <strong>de</strong> ganso – explicou Pietro.<br />

- Sangue <strong>de</strong> ganso... – eu disse baixinho – Para tudo há uma <strong>de</strong>sculpa. E rumamos para<br />

a estrada.<br />

OPUS 31<br />

- V<strong>em</strong>. Quero falar com você.<br />

Levantei-me imediatamente e segui Alberto, pensando que ele fosse questionar<br />

sobre nossa ausência, mas nada disse. O assunto era outro. Fomos até uma árvore <strong>em</strong><br />

frente à estalag<strong>em</strong>. O céu estava nublado. O calor diminuiu. S<strong>em</strong> perda <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po ou<br />

<strong>de</strong>longas ele me <strong>de</strong>u uma pequena caixa.<br />

- Isso é um presente. Uma pedra <strong>de</strong> ouro. Ouro transmutado. Será confiada a você. Po<strong>de</strong><br />

ser uma missão ou não. Fica por tua conta como vai ente<strong>de</strong>r a coisa. Mas assim será se<br />

for <strong>de</strong> teu interesse e for <strong>de</strong> tua vonta<strong>de</strong>. Não há aqui imposições.<br />

- Assim você está me assustando.<br />

- Não é para tanto. Esta obra, a pedra, foi construída durante vinte anos. E agora eu vejo<br />

que há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> guardar os mistérios <strong>em</strong> textos secretos e também junto a<br />

pessoas que os possam <strong>de</strong>senvolver. A nossa época trará muita tristeza para muita<br />

gente. As cabeças estão fechadas e <strong>de</strong>fend<strong>em</strong> interesses mesquinhos. Toma. Guarda.<br />

Peguei a caixinha e a abri. Uma ficha <strong>de</strong> ouro brilhava <strong>em</strong> seu interior. Áspera.<br />

- O que <strong>de</strong>vo fazer?<br />

- Por ora nada. Basta não per<strong>de</strong>r a pedra. Mais tar<strong>de</strong> você perceberá o que lhe<br />

aconteceu. Será boa coisa, por um lado. Po<strong>de</strong>rá ser triste e terrível por outro lado. Mas,<br />

bastará levar a pedra para a boca <strong>de</strong> algum vulcão ou jogá-la ao mar; qualquer coisa<br />

parecida para <strong>de</strong>struí-la e você ficará livre <strong>de</strong> sua influência. Uma <strong>de</strong>ssas influências é a<br />

proteção completa contra males e doenças, conhecidas e <strong>de</strong>sconhecidas. (Alberto sorriu)<br />

É o que todos procuram e não perceb<strong>em</strong> que tais males são das coisas mais naturais <strong>de</strong><br />

corpo <strong>de</strong>sequilibrados com sua natureza. Não é disso que você morrerá.<br />

- E o que mais?<br />

- Não direi... não... não... nada d<strong>em</strong>ais... até po<strong>de</strong>ria falar sobe isso, mas a idéia ficaria<br />

<strong>em</strong> sua cabeça durante toda a sua vida e eu quero que você perceba o que aconteceu<br />

com sua vida, e tomará, a partir daí, a <strong>de</strong>cisão, só isso.<br />

Alberto Magnus, o Mestre da Alquimia. Lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ssa pseudociência on<strong>de</strong> se<br />

transmuta uma base <strong>de</strong> metais <strong>em</strong> ouro. Ouro Alquímico. Simbólico e vivificante. A<br />

Alquimia v<strong>em</strong> da China, mas também do Egito. Daí ele me carregou para andarmos <strong>em</strong><br />

volta da horta que à estalag<strong>em</strong> pertencia e ficava na parte <strong>de</strong> trás da construção, entre o<br />

moinho e o gado.<br />

- S<strong>em</strong>pre cedo á tentação <strong>de</strong> parecer os peripatéticos. Gosto <strong>de</strong> caminhar e falar.<br />

Alberto suspirou, respirou fundo, olhou para a snuvens e s<strong>em</strong> que eu o pedisse<br />

voltou a falar sobre a sua arte: - Na China foi associada ao Taoísmo, portanto sugiro que<br />

estu<strong>de</strong> essa doutrina, antes <strong>de</strong> qualquer coisa. Tomás <strong>de</strong> Aquino está instruído por mim<br />

Coelho De Moraes 70


MARCUS, o imortal<br />

para tomá-lo como aluno durante oito aulas – ele disse. - Em Egito se guardaram como<br />

assuntos confi<strong>de</strong>nciais, por sacerdotes do t<strong>em</strong>plo, os métodos <strong>de</strong> transmutação <strong>de</strong><br />

metais.<br />

- Sei disso.<br />

- Essas receitas se tornaram extensamente conhecidas na acad<strong>em</strong>ia <strong>de</strong> Alexandria.<br />

- Segundo Tomás, a alquimia teve sua base nas habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> artesanato dos egípcios,<br />

misticismo Oriental, na teoria Aristotélica <strong>de</strong> composição <strong>de</strong> matéria. Aristóteles ensinou<br />

que toda a matéria estava composta <strong>de</strong> quatro el<strong>em</strong>entos: água, terra, fogo, e ar. Mas é<br />

só isso?<br />

Novamente aquele sorriso que esocn<strong>de</strong> algo. Eu continuei com meu falatório: -<br />

Segundo sua teoria, materiais diferentes encontrados na natureza teriam proporções<br />

diferentes <strong>de</strong>stes quatro el<strong>em</strong>entos. Por isso, pelo tratamento apropriado, um metal <strong>de</strong><br />

baixo valor po<strong>de</strong>ria mudar-se <strong>em</strong> ouro...?<br />

- Vejo que você t<strong>em</strong> sido um bom aluno, caro Marcus, apesar dos seus mergulhos<br />

freqüentes no mundanismo. B<strong>em</strong>... isso não atrapalha n<strong>em</strong> seus estudos n<strong>em</strong> o seu<br />

<strong>de</strong>stino. Mas preocupe-se <strong>em</strong> saber sobre os Nestorianos. Vá mais fundo no estudo<br />

<strong>de</strong>les. Busque livros e obras do 5º século..., os Nestorianos romperam com a igreja<br />

Ortodoxa oficial no Bizâncio... a Igreja <strong>de</strong> Constantino... o braço <strong>de</strong> Roma <strong>em</strong> nova<br />

roupag<strong>em</strong>... e imigraram para o Oci<strong>de</strong>nte longínquo. Eles traduziram os tratados gregos,<br />

principalmente incluindo aqueles <strong>de</strong> alquimia, <strong>em</strong> seu próprio idioma, o siríaco. Mais<br />

tar<strong>de</strong> entraram <strong>em</strong> contato com os árabes, particularmente os da corte do Califa <strong>de</strong><br />

Bagdad. O resto da história você já sabe.<br />

Enquanto Alberto se retirava eu fui para meu quarto guardar a peça.<br />

Chamei Pietro e LaCordaire e lhes contei o que se passou. Pietro balançou a<br />

cabeça e LaCordaire ficou pensativo. Olharam a peça <strong>de</strong> ouro e não <strong>de</strong>ram nada por ela.<br />

- Uma Pedra Filosofal! – disse enfim Pietro. – De verda<strong>de</strong>? Não sabia que era possível.<br />

- Transmutada <strong>em</strong> ouro! De que metal terá vindo?<br />

- Os alquimistas árabes modificaram o conceito Aristotélico <strong>de</strong> quatro el<strong>em</strong>entos<br />

postulando que todos os metais estavam compostos por dois componentes: enxofre e<br />

mercúrio.<br />

- Sei disso – disse LaCordaire - Também adotaram o conceito dos alquimistas chineses:<br />

uma medicina que po<strong>de</strong>ria fazer um "enfermo", a base, metal <strong>em</strong> ouro e que atua como<br />

uma espécie <strong>de</strong> elixir <strong>de</strong> vida.<br />

- E Gebber... Alberto não disse nada? O famoso ibn Jabir Hayyan, o primeiro?<br />

- Não, não disse nada – eu respondi.<br />

- É o alquimista árabe mais notável e um m<strong>em</strong>bro da seita <strong>de</strong> Ismailiya. Li vários <strong>de</strong> seus<br />

tratados... ele cita al-Razi, um notável médico Persa.<br />

- Os críticos acusam a todos <strong>de</strong> mistificar<strong>em</strong> seus tratados e pensamentos, insuflando aí<br />

uma acusação <strong>de</strong> que tudo era muito nebuloso e cheio <strong>de</strong> superstições... mesmo assim<br />

aceitam que a alquimia árabe <strong>de</strong>scobriu os novos químicos como os álcalis e os<br />

processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>stilação.<br />

- Ouvi tudo. Parece que Alberto já lhe falou das aulas. Está pronto? – era Tomás <strong>de</strong><br />

Aquino que se aproximava pelo corredor. Teria certamente ouvido nossa conversação <strong>de</strong><br />

estudantes.<br />

- Claro que sim.<br />

- E os rapazes? Participarão?<br />

LaCordaire e Pietro confirmaram com a cabeça. Não per<strong>de</strong>raim por nada o<br />

privilégio.<br />

- Muito b<strong>em</strong>. Como tratar<strong>em</strong>os <strong>de</strong> teoria e nenhuma prática não haverá probl<strong>em</strong>as se o<br />

fizermos nas estradas...<br />

- Novamente os peripatéticos..., - falei.<br />

Tomás abriu a boca numa risada alegre e jovial: - Isso mesmo. Aristóteles<br />

conosco... longe <strong>de</strong> ouvidos impiedosos? O que acham? É preciso terminar estas lições. O<br />

t<strong>em</strong>po urge.<br />

- Far<strong>em</strong>os um farnel e aumentar<strong>em</strong>os nosso conforto.<br />

- Perfeito. Então vamos, enquanto ainda o clima é estável e não esfriou <strong>de</strong> uma vez.<br />

OPUS 32<br />

A verda<strong>de</strong> exige que nos libert<strong>em</strong>os das aparências das coisas; exige, portanto,<br />

que nos libert<strong>em</strong>os das opiniões estabelecidas e das ilusões <strong>de</strong> nossos órgãos dos<br />

Coelho De Moraes 71


MARCUS, o imortal<br />

sentidos. Em outras palavras, a verda<strong>de</strong> sendo o conhecimento da essência real e<br />

profunda dos seres é s<strong>em</strong>pre universal e necessária, enquanto as opiniões variam <strong>de</strong><br />

lugar para lugar, <strong>de</strong> época para época, <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> para socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> pessoa para<br />

pessoa. Essa variabilida<strong>de</strong> e inconstância das opiniões provam que a essência dos seres<br />

não está conhecida e, por isso, se nos mantivermos no plano das opiniões, nunca<br />

alcançar<strong>em</strong>os a verda<strong>de</strong>.<br />

Esse aspecto voluntário da verda<strong>de</strong> torna-se <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância com o<br />

surgimento da Filosofia cristã porque, com ela, é introduzida a idéia <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> livre ou<br />

<strong>de</strong> livre-arbítrio, <strong>de</strong> modo que a verda<strong>de</strong> está na <strong>de</strong>pendência não só da conformida<strong>de</strong><br />

entre relato e fato, mas também da boa-vonta<strong>de</strong> ou da vonta<strong>de</strong> que <strong>de</strong>seja o verda<strong>de</strong>iro.<br />

Com a queda <strong>de</strong> Roma, a ciência grega e a filosofia foram rechaçadas da Europa<br />

Oci<strong>de</strong>ntal. Houve, com árabes na Espanha e Sicília, um novo interesse nos filósofos<br />

árabes, nos médicos, e nos estudos científicos. Indiretamente, através do siríaco e árabe,<br />

se traduziram os manuscritos gregos e os latinos nos idiomas europeus. A explicação<br />

sobre Alquimia era incluída nos tratados <strong>de</strong> estudiosos como Arnold <strong>de</strong> Villanova, o nosso<br />

amigo e interessante Roger Bacon, s<strong>em</strong> falar no próprio Alberto. Era nossa<br />

responsabilida<strong>de</strong>, agora, saber dos sist<strong>em</strong>as secretos e ficava a cargo <strong>de</strong> Tomás a nossa<br />

inclusão <strong>em</strong>, pelo menos, mais um capítulo daquele saber.<br />

Tratáramos com Alberto sobre os trabalhos <strong>de</strong> vários alquimistas menores. Eles<br />

não só contiveram e preservaram discrição sobre a teoria mística como também sobre as<br />

receitas práticas mais importantes. Arnold <strong>de</strong> Villanova <strong>de</strong>screveu a <strong>de</strong>stilação <strong>de</strong> vinho;<br />

Roger Bacon <strong>de</strong>u uma receita para a pólvora e ainda escreveu algumas direções para se<br />

construir o que ele chamou <strong>de</strong> telescópio, um objeto para ver coisas ao longe; portanto,<br />

o alquimista se tornou uma figura reconhecível na cena européia, e os reis e nobres e<br />

alguns clérigos apoiaram, mas não s<strong>em</strong>pre, tais alquimistas na esperança <strong>de</strong> aumentar<br />

seus recursos. Frequent<strong>em</strong>ente, s<strong>em</strong> dúvida, os que falharam <strong>em</strong> seu esforço por<br />

produzir o ouro prometido perdiam suas vidas. Mesmo porque dariam suspeita a que<br />

gente <strong>de</strong> alta estirpe estivesse metida com ações do oculto e do mistério.<br />

- Sente-se Marcus. Caros amigos. Vejam que há tocos <strong>de</strong> árvores que servirão <strong>de</strong><br />

banquetas, se assim <strong>de</strong>sejar<strong>em</strong> – disse Tomás <strong>de</strong> Aquino, encostando as palmas das<br />

mãos, juntando os <strong>de</strong>dos e se preparando para falar.<br />

Pietro tomou <strong>de</strong> papéis, como s<strong>em</strong>pre fazia, para suas anotações e como<br />

secretário <strong>de</strong> todas as reuniões. O escriba Pietro <strong>de</strong> Ferrara. LaCordaire encostou-se num<br />

tronco abatido, sobre a relva ver<strong>de</strong>jante.<br />

- Ante as assíduas petições do meu muito querido mestre Alberto, fui instado a ministrar<br />

essas bases e fundamentos das Alquimias e da Pedra Filosofal. Dessa forma, eu me<br />

proponho a <strong>de</strong>screver, <strong>em</strong> breve tratado que dividirei <strong>em</strong> oito capítulos, algumas regras<br />

simples e eficazes para nossas operações, assim como o segredo das verda<strong>de</strong>iras<br />

tinturas; mas, previamente faço três recomendações: Em primeiro lugar, não preste m<br />

muita atenção às palavras dos Filósofos mo<strong>de</strong>rnos ou antigos...<br />

- Mas estamos todos <strong>de</strong>batendo e discutindo nas reuniões na estalag<strong>em</strong> justamente<br />

para...<br />

- Sim... eu sei. Compreendo perfeitamente... porém, trata-se <strong>de</strong> outra coisa, o que aqui<br />

faz<strong>em</strong>os. Lá na estalag<strong>em</strong> a questão é mais procurar caminhos políticos e fraternais para<br />

nossos interesses... portanto... não se <strong>de</strong>ve falar tudo o que se sabe... po<strong>de</strong> não parecer<br />

mas há espiões papais naquele meio... – e ante nossa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> espanto Tomás finalizou<br />

– <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> findar a reunião na estalag<strong>em</strong> cumpre que cuid<strong>em</strong>os muito b<strong>em</strong> <strong>de</strong> nosso<br />

futuro, pois os espiões levarão seus relatórios a qu<strong>em</strong> interessar, lavando as mãos ,<br />

após. Pilatos nos persegue.<br />

Houve uma pausa e ele nos olhava.<br />

- Continu<strong>em</strong>os. Esqueçam <strong>de</strong> tudo, porque a Alquimia consiste plenamente na<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entendimento e na d<strong>em</strong>onstração experimental. Os filósofos, ao querer<strong>em</strong><br />

escon<strong>de</strong>r a verda<strong>de</strong> das ciências, têm falado quase s<strong>em</strong>pre figuradamente. Essa é minha<br />

primeira proposta. Usar as chaves, abrir as portas, <strong>de</strong>cifrar os enigmas, revelar o críptico.<br />

Alguém gostaria <strong>de</strong> comentar algo? – Novamente seu olhar intenso nos atingiu – Não?<br />

Então eu falo sobre minha segunda proposta: Em segundo lugar, e essa proposição t<strong>em</strong><br />

mais a ver com a técnica <strong>em</strong> si: não apreci<strong>em</strong> nunca, n<strong>em</strong> estim<strong>em</strong> a pluralida<strong>de</strong> das<br />

coisas n<strong>em</strong> das operações formadas por substâncias heterogêneas, já que a natureza<br />

não produz nada a não ser por seus análogos e, apesar <strong>de</strong> que cavalo e asno produzam<br />

Coelho De Moraes 72


MARCUS, o imortal<br />

o mulo, não é mais que uma geração imperfeita, como aquela que se po<strong>de</strong> produzir por<br />

azar, excepcionalmente, com várias substâncias.<br />

Ouvimos o cantarolar <strong>de</strong> regatos ao longe, ouvimos o farfalhar <strong>de</strong> folhas nas árvores e<br />

no chão, on<strong>de</strong> um vento singelo quase levou os papéis <strong>de</strong> Pietro<br />

- Em terceiro lugar. Um preceito muito importante nessa nossa vida e para preservação<br />

<strong>de</strong> nossas vidas: não sejam indiscretos. Vigi<strong>em</strong> suas bocas. Tom<strong>em</strong> conta <strong>de</strong> suas<br />

palavras, e como um filho pru<strong>de</strong>nte, não jogu<strong>em</strong> pérolas aos porcos. Tenham s<strong>em</strong>pre<br />

presente <strong>em</strong> seu espírito para que fim <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>ram na obra alquímica. Fiqu<strong>em</strong><br />

seguros <strong>de</strong> que se guardar<strong>em</strong> estas regras que me foram dadas por Alberto Magno, não<br />

terão nada que mendigar aos Reis e aos gran<strong>de</strong>s. Na verda<strong>de</strong>, ocorrerá o contrário. Os<br />

Reis e os gran<strong>de</strong>s cobrirão vocês <strong>de</strong> honras. Não somente Reis mas também Prelados.<br />

Mas atenção! Não socorrerão unicamente às necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosos e mandatários;<br />

muitas vezes fugirão <strong>de</strong>les. Mas também socorrerão às necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> todos os<br />

indigentes, <strong>de</strong> todos os irmãos oprimidos, e o que fizer<strong>em</strong> <strong>de</strong>sta maneira valerá na<br />

eternida<strong>de</strong> tanto como uma oração.<br />

Novamente ele fez uma pausa, olhou para o chão, <strong>de</strong>pois se dirigiu às nuvens e<br />

aos céus, para continuar - Que estas regras sejam pois guardadas no fundo do coração<br />

<strong>de</strong> vocês, com um triplo e inviolável selo, porque <strong>em</strong> meu outro livro, já publicado e<br />

estudado pelas Igrejas e outros discípulos, dado ao vulgo, eu falei como filosofo,<br />

enquanto que aqui, confiado na discrição <strong>de</strong> vocês, revelo segredos escondidos.<br />

OPUS 33<br />

- São palavras <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> santo para a concretização <strong>de</strong> homens santos pelo<br />

Universo – foi dito por Siger <strong>de</strong> Brabant. Nunca sabíamos se ele brincava ou falava sério.<br />

– Tais pessoas, eu e Marcus, encontramos na nossa <strong>em</strong>preitada atrás do cigano. No<br />

retorno nos perd<strong>em</strong>os, mas eu estive com um <strong>de</strong>sses pensadores eruditos <strong>de</strong> orig<strong>em</strong><br />

hindu que parece proliferar<strong>em</strong> nas nossas terras... isso <strong>de</strong>pois do encontro com a<br />

cavalaria <strong>de</strong> Bernard <strong>de</strong> Clairvaux.<br />

Ficou claro que os monges e estudiosos não gostaram da referência a Bernard.<br />

- O Santo Bernard... – <strong>de</strong>sta vez com voz estentórea.<br />

- Bernard está morto – um <strong>de</strong>les disse. Siger sorriu com pesado ar <strong>de</strong> mofa e continuou.<br />

- Um hom<strong>em</strong> santo nunca <strong>de</strong>ve tocar uma jov<strong>em</strong>. De fato, não <strong>de</strong>ve n<strong>em</strong> mesmo <strong>de</strong>ixar<br />

seu pé tocar numa boneca <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira que tenha a forma <strong>de</strong> uma mulher. Através do<br />

contato com o corpo <strong>de</strong> uma mulher, ele será capturado pela ilusão.<br />

- Capturam-se os elefantes nas selvas da seguinte maneira: – disse eu, aplicando um<br />

ex<strong>em</strong>plo sabido por gran<strong>de</strong>s caçadores, - Cava-se um gran<strong>de</strong> buraco que <strong>de</strong>pois é<br />

coberto com grama, folhas e terra. Exibe-se então uma elefanta diante do elefante que a<br />

procurará com <strong>de</strong>sejos luxuriosos e cairá na armadilha.<br />

- Portanto – concluía Siger - o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> saborear a sensação tátil é certamente a causa<br />

<strong>de</strong> ruína <strong>em</strong> nossas vidas e esta é a lição que <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os apren<strong>de</strong>r com essa história do<br />

elefante.<br />

- Por conseguinte, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, não <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os nos <strong>de</strong>ixar enganar pelo<br />

encanto da forma sensual do sexo oposto – opinou Bacon - Não <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os permitir que<br />

nossa mente se perca <strong>em</strong> sonhos luxuriosos <strong>de</strong> prazer sexual.<br />

- Você está certo, caro Roger – disse Siger - Há diversos tipos <strong>de</strong> gozo dos sentidos que<br />

um hom<strong>em</strong> e uma mulher pod<strong>em</strong> <strong>de</strong>sfrutar entre si, incluindo o falar, o cont<strong>em</strong>plar, o<br />

tocar, o intercurso sexual, mas todos eles constitu<strong>em</strong> a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> ilusão através da qual<br />

ficamos <strong>de</strong>samparadamente presos, como animais.<br />

- De alguma sorte, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os nos manter afastados do gozo dos sentidos sob a forma <strong>de</strong><br />

prazer sexual; senão, não será possível que compreendamos o mundo espiritual –<br />

concluiu Bacon – Mas tudo t<strong>em</strong> seu t<strong>em</strong>po e sua hora.<br />

- Esses hindus e árabes! Carregados <strong>de</strong> sabedoria, – disse com sábia entonação e<br />

austerida<strong>de</strong> o conselheiro Nervill – s<strong>em</strong>pre eles!<br />

- Mas olha b<strong>em</strong> – torna Roger Bacon - O califado <strong>de</strong> Córdoba prosperou, tornando- se<br />

logo o principal centro cultural do mundo islâmico, contando com universida<strong>de</strong> e várias<br />

bibliotecas e isso não é motivo para não se dar atenção a todos eles. Córdoba foi a porta<br />

pela qual a ciência e a filosofia árabes ingressaram no Oci<strong>de</strong>nte. Ali nasceu Ibn Ruchd...<br />

- Outra vez esse Averrois... – comentou o monsieur <strong>de</strong> Vermont.<br />

- Sim, afinal seu pensamento e influência <strong>de</strong> certo modo simbolizam a passag<strong>em</strong> do<br />

Oriente ao Oci<strong>de</strong>nte. Enquanto os filósofos árabes do Oriente produz<strong>em</strong>, com certa<br />

Coelho De Moraes 73


MARCUS, o imortal<br />

originalida<strong>de</strong>, uma mescla do aristotelismo e do neoplatonismo, Averróis – que também<br />

foi cadi...<br />

- Cadi? – perguntou Otto, levantando as sobrancelhas.<br />

- ... juíz – explicou Siger.<br />

- ...e médico – esforça-se Bacon para ser claro – Averróis <strong>de</strong>seja restaurar o<br />

pensamento do fundador do Liceu. Escreve numerosos comentários sobre a obra <strong>de</strong><br />

Aristóteles...<br />

- mas, Bacon, eu mesmo já li trabalhos seus criticando esses árabes ou seus seguidores,<br />

como é que agora me v<strong>em</strong> fazer a apologia <strong>de</strong>ssa gente? – perguntou <strong>de</strong> Vermont.<br />

- Por que Averrois também retoma alguns aspectos do pensamento <strong>de</strong> Avicena e <strong>de</strong><br />

outros pensadores árabes. Como eles, estabelece uma sucessão <strong>de</strong> Inteligências, que são<br />

atos puros, motores imóveis e causas do movimento <strong>em</strong> cada esfera do universo. Cada<br />

um <strong>de</strong>sses motores é, a um só t<strong>em</strong>po, conhecimento e conteúdo <strong>de</strong>sse conhecimento,<br />

os quais constitu<strong>em</strong> as formas ou as essências das coisas. Cair<strong>em</strong>os aí numa reflexão<br />

sobre a criação do Universo se substituirmos essa Inteligência por Deus. Se essas<br />

formas provêm da Inteligência, é apenas no sentido <strong>de</strong> que esta é a causa que faz a<br />

matéria passar da potência ao ato, e que torna inteligíveis as coisas sensíveis assim<br />

formadas pela atualização da matéria. Estou citando Aristóteles, literalmente.<br />

- Gostaria que fosse mais claro. – pe<strong>de</strong> Otto.<br />

- Isso significa, a rigor, que as formas não têm existência separada: os universais só<br />

exist<strong>em</strong> nos individuais e só se <strong>de</strong>stacam como resultado da abstração feita pelo<br />

intelecto. Assim pensam eles – explica Alberto. - Sendo assim, a forma, ou a essência, é<br />

própria das coisas individuais existentes, não há sentido <strong>em</strong> separar a essência e a<br />

existência. A coisa é, porque existe: para Averróis, as coisas do mundo sensível, inclusive<br />

o hom<strong>em</strong>...<br />

- ... e a mulher – falou Siger.<br />

- ... e a mulher, têm pleno direito à existência.<br />

- A Igreja não escon<strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sagrado – falou b<strong>em</strong> claro Otto, pedindo apoio a Vermont<br />

com o olhar severo - Ao universo letrado e cristão isso se apresenta como uma<br />

concepção divergente e sólida da teologia que elaboramos até então.<br />

- Evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, a Igreja apressa-se a con<strong>de</strong>nar trechos dos textos aristotélicos. –<br />

levantou a voz Siger <strong>de</strong> Brabant.<br />

- Mas, no âmbito universitário, houve um acordo, entretanto, e a acolhida é boa – eu<br />

disse.<br />

- Mas você e seus colegas estudantes faz<strong>em</strong> parte da casta <strong>de</strong> místicos ocultistas que<br />

não po<strong>de</strong> mais proliferar – vociferou <strong>de</strong> Nervill que era um resumido pedante.<br />

- O <strong>de</strong>senvolvimento das universida<strong>de</strong>s – eu continuei, s<strong>em</strong> dar muita atenção ao<br />

comentário áspero - acompanha o crescimento das nossas cida<strong>de</strong>s. E <strong>de</strong> todo o<br />

conhecimento que <strong>de</strong>la po<strong>de</strong> <strong>em</strong>ergir. Não se po<strong>de</strong> mais negar que nas cida<strong>de</strong>s, vilas e<br />

burgos, a camada ascen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> mercadores e artesãos agrupa-se, agora, <strong>em</strong><br />

corporações <strong>de</strong> ofício para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os interesses <strong>de</strong> cada profissão. Tudo mudou. O<br />

conhecimento <strong>de</strong>ve acompanhar e se ampliar.<br />

- Para mim é mais uma blasfêmia contra o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> organização que a Igreja <strong>de</strong>ve<br />

manter sobre todos os fiéis.<br />

- Infelizmente, para o senhor, caro Otto, as universida<strong>de</strong>s segu<strong>em</strong> o mesmo mo<strong>de</strong>lo:<br />

mestres e estudantes cuidam da administração, cuja autonomia é assegurada por uma<br />

hábil política que neutraliza as interferências do po<strong>de</strong>r local, t<strong>em</strong>poral ou... eclesiástico.<br />

- Aleivosias e <strong>de</strong>st<strong>em</strong>peros! – ele gritou.<br />

- Isso se faz por meio <strong>de</strong> direitos especiais conseguidos diretamente do papa... forças<br />

políticas... forças <strong>de</strong> pressão...<br />

- Por isso o Papa foi obrigado a instituir também a Inquisição, para reprimir as doutrinas<br />

heréticas – Otto firmou sua opinião com o <strong>de</strong>do <strong>em</strong> riste.<br />

- Instrumento <strong>de</strong>ssa política do papado, que a todo custo quer assegurar supr<strong>em</strong>acia<br />

diante dos po<strong>de</strong>res locais, as universida<strong>de</strong>s representam a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento –<br />

disse Alberto Magno - E, por isso mesmo, também se tornam objeto <strong>de</strong> suspeitas. Mas, –<br />

ele levanta os olhos para o teto e eleva seus braços parecendo pedir apoio celestial – e,<br />

<strong>de</strong>vo dar graças a isso, entre liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sconfiança, a universida<strong>de</strong> que mais retirou<br />

forças <strong>de</strong>ssa ambigüida<strong>de</strong> foi a <strong>de</strong> Paris, porque lá estava uma figura central que é o<br />

nosso Tomás.<br />

O grupo prestou mais atenção, porém, antes projetou burburinho espantoso.<br />

Coelho De Moraes 74


MARCUS, o imortal<br />

- Qu<strong>em</strong> analisa as provas da existência <strong>de</strong> Deus elaboradas por Tomás <strong>de</strong> Aquino –<br />

Mestre Alberto continuou, explorando o ambiente e as mentes. Enquanto fala não<br />

permanece no mesmo lugar. Perambula pela sala estalando o soalho com passadas<br />

largas e <strong>de</strong>cididas – qu<strong>em</strong> analisa essas obras t<strong>em</strong> a impressão <strong>de</strong> estar diante <strong>de</strong> um<br />

pensador extr<strong>em</strong>amente racionalista. Mas, acredit<strong>em</strong>, é um engano... um engano.<br />

Tomás é, acima <strong>de</strong> tudo, teólogo e religioso, para qu<strong>em</strong> a filosofia <strong>de</strong>ve servir à fé. Não<br />

no sentido <strong>de</strong> auxiliá-la, mas <strong>de</strong> submeter-se a ela. Para Tomás, quando a fé e a razão<br />

entram <strong>em</strong> <strong>de</strong>sacordo, é s<strong>em</strong>pre esta que se equivoca.<br />

- A Igreja precisa <strong>de</strong> conselheiros, auxiliares, professores e estudiosos... nós enfim... que<br />

a façamos compreen<strong>de</strong>r essa <strong>de</strong>fesa.<br />

- Mas o próprio Tomás <strong>de</strong>ve esclarecer seus pontos – pediu Alberto, dando-lhe a palavra.<br />

Tomás levantou-se e segurou as mãos <strong>em</strong> seu movimento carcterístico. O perfil<br />

recortou-se contra a janela: - Para mim não há conflito entre fé e razão, a tal ponto que<br />

é possível d<strong>em</strong>onstrar a existência <strong>de</strong> Deus.<br />

O grupo relutante se moveu nas ca<strong>de</strong>iras, como se elas estivess<strong>em</strong> a queimar.<br />

- Recuso – ele continuava, - a solução apressada <strong>de</strong> Anselmo, para qu<strong>em</strong> Deus, sendo<br />

perfeito, <strong>de</strong>veria ter como um <strong>de</strong> seus atributos perfeitos o da existência. Eu acredito e<br />

<strong>de</strong>fendo a idéia <strong>de</strong> que <strong>de</strong>finir Deus como ser perfeito ainda não implica sua existência. A<br />

<strong>de</strong>finição é uma idéia, e nada garante que uma idéia possa existir na realida<strong>de</strong>.<br />

- O senhor está blasf<strong>em</strong>ando também – disse <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso, Nervill. A impressão que nos<br />

dava Nervill era a <strong>de</strong> que se preparava para partir. Como se se levantasse e arrumasse<br />

suas coisas, livros, réguas e objetos <strong>de</strong> anotações, essa impresão foi confirmada. Então,<br />

com a mão espalmada, Siger <strong>de</strong> Brabant, eclodiu sobre a mesa e um silêncio se fez,<br />

vagabundo.<br />

- Senhor <strong>de</strong> Nervill... ouçamos o que o senhor <strong>de</strong> Aquino t<strong>em</strong> a dizer, - disse Siger com<br />

lentidão e calma.<br />

Tomás <strong>de</strong>u continuida<strong>de</strong> ao ver que Nervill, baixando a cabeça, sentava-se<br />

pesadamente, com vermelhidão estampada no rosto. Cruzava os braços e olhava para o<br />

lado.<br />

- Não, não estou blasf<strong>em</strong>ando, senhor...<br />

- Sim, está sim... <strong>em</strong> momento algum se po<strong>de</strong> pensar na não existência <strong>de</strong> Deus... <strong>em</strong><br />

momento algum. – Nervill estava nervoso, irritado.<br />

- Homens livres pensam o que quiser<strong>em</strong> e se for<strong>em</strong> procurar algo, mais livres serão... a<br />

inteligência manda que busqu<strong>em</strong>os no Universo as respostas e eu acredito que Deus ali<br />

colocou as perguntas e as respostas. A sua conduta, senhor <strong>de</strong> Nervill, serve apenas para<br />

explorar a carência do analfabeto que vai acreditar <strong>em</strong> tudo que disser<strong>em</strong> para ele. O<br />

meu ponto <strong>de</strong> partida, então, é o mundo sensível. Quero o mundo sensível, não como<br />

Platão. Quero partir daí, pois o vulgo, as pessoas comuns começarão a pensar naquilo<br />

que é fácil <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r... o sensual... o sensível... aquilo <strong>em</strong> que se po<strong>de</strong> tocar... o<br />

mundo percebido pelos sentidos. Todos esses sinais indicam que o mundo é dotado <strong>de</strong><br />

movimento. Mas, segundo Aristóteles, nada se move por si... nada se move sozinho... A<br />

causa do movimento <strong>de</strong>ve ser... causada, posso assim dizer e, se não se quiser esten<strong>de</strong>r<br />

a série das causas ao infinito, o que não explicaria o movimento presente, é preciso<br />

admitir uma causa absolutamente imóvel e primeira:<br />

- ...Deus! – foi a fala espontânea <strong>de</strong> Pietro que se <strong>de</strong>sculpou imediatamente pela<br />

exaltada intromissão.<br />

- Isso mesmo caro Pietro. O mesmo raciocínio vale para a causa <strong>em</strong> geral. As coisas são<br />

ou causa ou efeito <strong>de</strong> outras. Não sendo possível ser causa e efeito ao mesmo t<strong>em</strong>po.<br />

Deve haver, então, ou uma sucessão infinita <strong>de</strong> causas, o que po<strong>de</strong> parecer absurdo, ou,<br />

enfim, uma causa absolutamente primeira e não causada.<br />

- Deus! – diss<strong>em</strong>os eu, Pietro e LaCordaire. Sorrimos um para o outro.<br />

- Os dados dos sentidos – Alberto tomou da palavra - também mostram que as coisas<br />

exist<strong>em</strong> e perec<strong>em</strong>. Isso significa que a existência não lhes é necessária, ou essencial,<br />

mas apenas resta como uma possibilida<strong>de</strong>. Por isso, a existência <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma causa,<br />

exatamente aquela que tenha a existência como essência, uma existência necessária.<br />

- Além disso, o mundo apresenta uma série <strong>de</strong> seres menos ou mais perfeitos, – falou<br />

Tomás <strong>de</strong> Aquino. - Mas como saber o que é mais perfeito do que outro se não houver<br />

um padrão a partir do qual se possam medir os graus <strong>de</strong> perfeição? A hierarquia das<br />

coisas relativas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> então <strong>de</strong> um ser que seja a medida absoluta e eterna da<br />

perfeição. Por fim, essa hierarquia apresenta-se como uma ord<strong>em</strong>, <strong>em</strong> que cada ser<br />

Coelho De Moraes 75


MARCUS, o imortal<br />

cumpre sua finalida<strong>de</strong>: os seres vivos reproduz<strong>em</strong>-se constant<strong>em</strong>ente, e os corpos<br />

s<strong>em</strong>pre buscam o seu lugar natural, mesmo que disso não tenham conhecimento. Se a<br />

finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada ser é assim atingida, <strong>de</strong>ve haver uma Inteligência que conheça e<br />

organize o mundo <strong>de</strong> acordo com sua finalida<strong>de</strong>. Não vejo nisso nada <strong>de</strong> blasfêmia ou<br />

negativa da nossa religião. Entendo a pesquisa e o pensamento como afirmativas da<br />

nossa fé, senhor Otto, senhor Nervill...<br />

- Desse modo, por favor, Tomás, para que compl<strong>em</strong>ente meu escrito – perguntou Pietro<br />

- a razão, por vários meios, se eu não estiver errado, atinge o conhecimento da<br />

existência <strong>de</strong> Deus?<br />

- A razão que d<strong>em</strong>onstra e a fé que revela estão, por isso, <strong>em</strong> acordo, s<strong>em</strong> que entre<br />

elas haja contradição – disse Tomás.<br />

- Ambas são modos diferentes pelos quais se manifesta a mesma e única verda<strong>de</strong> –<br />

completou Alberto. – Não <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os nos <strong>de</strong>ixar levar por preconceitos e intransigências,<br />

senhores, afinal, somos homens <strong>de</strong> fé... Tomás t<strong>em</strong> uma vida <strong>de</strong>dicada ao ensino e<br />

po<strong>de</strong>ria fazer qualquer outra coisa, pois pertence a uma família nobre da cida<strong>de</strong> italiana<br />

<strong>de</strong> Aquino, mas resolveu ingressar na Ord<strong>em</strong> dos Dominicanos. No mesmo ano, tornouse<br />

aluno na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris, e lá já fez sentir a carga <strong>de</strong> sua sabedoria... os<br />

estudos <strong>de</strong> ciência natural. A vasta obra <strong>de</strong> Tomás <strong>de</strong> Aquino é o resultado <strong>de</strong>ssa vida<br />

<strong>de</strong>dicada ao ensino. Os senhores já estão cansados <strong>de</strong> saber pois a fama do mestre <strong>de</strong><br />

Aquino corre pelos ventos. Muitos <strong>de</strong> seus textos são comentários <strong>de</strong> livros da própria<br />

Bíblia, dos santos padres, <strong>de</strong> Aristóteles, que estudamos juntos, e muitos outros autores.<br />

Por isso estamos aqui. Para apren<strong>de</strong>r o novo e o novo, senhores, com esses jovens...<br />

Tomás, Pietro, Marcus... o nobre LaCordaire, que aqui estão... e eu achei que seria<br />

importante, tal tópico, nessa nossa reunião pois os t<strong>em</strong>pos são confusos e muita coisa<br />

po<strong>de</strong> fazer com que não nos vejamos mais... – ele reforçou essa posição com um suspiro<br />

b<strong>em</strong> trabalhado – para tanto eu insisto que estud<strong>em</strong>... tratados e comentários, mesmo<br />

os textos ainda não terminados sobre assuntos mais específicos, que Tomás aborda<br />

s<strong>em</strong>pre com precisão como O Ente e a Essência e Questões Discutidas sobre a Verda<strong>de</strong>.<br />

Por fim, as duas Sumas: a Sumula contra os Gentios é um manual <strong>de</strong> teologia <strong>de</strong>stinado<br />

a converter os muçulmanos, e a Suma Teológica, <strong>em</strong>bora ainda inacabada... Portanto,<br />

pod<strong>em</strong>os sim beber <strong>em</strong> fontes <strong>de</strong> árabes e estrangeiros, mas sab<strong>em</strong>os nos posicionar...<br />

sab<strong>em</strong>os penetrar <strong>em</strong> caminhos outros e sair dali ilesos...<br />

- Tomás s<strong>em</strong>pre levanta polêmicas... s<strong>em</strong>pre – disse Monsier <strong>de</strong> Vermont.<br />

- É... Em todas essas obras predomina a intenção <strong>de</strong> polêmica contra aqueles que, no<br />

enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Tomás, faz<strong>em</strong> mau uso da razão – falou o monge <strong>de</strong> Cister - seja<br />

extrapolando-lhe a competência, seja diminuindo seu valor. E isso me parece intolerável.<br />

Essa arrogância não há <strong>de</strong> levar a nada.<br />

- Em ambos os casos, a fé é a prejudicada, caro monge, - disse Tomás - a razão que se<br />

exce<strong>de</strong> torna-se indiscreta e inva<strong>de</strong> o terreno exclusivo da fé, que são os mistérios<br />

divinos; e a razão <strong>de</strong>sconfiada <strong>de</strong> si recusa-se a tornar acessível a fé aos não-crentes,<br />

consi<strong>de</strong>rando impossível a d<strong>em</strong>onstração da existência <strong>de</strong> Deus. E isso não pod<strong>em</strong>os<br />

permitir. Devo ainda dizer que há um domínio comum à razão e à fé. É, ainda, preciso<br />

d<strong>em</strong>arcar com precisão esse território, para impedir que a razão o ultrapasse e para que<br />

ela possa se <strong>de</strong>senvolver plenamente <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sses limites. Tal domínio é o do ser, que é<br />

<strong>em</strong> primeiro lugar a realida<strong>de</strong> do mundo sensível.<br />

- A razão po<strong>de</strong> conhecê-la, como o prova Aristóteles, – reiterou Alberto. – Porém,<br />

acredito que por hoje, precisamos <strong>de</strong>scansar. E refletir. São nossos últimos dias na<br />

estalag<strong>em</strong>, intercambiando conhecimentos, por isso é preciso cuidado e <strong>de</strong>scanso...<br />

OPUS 34<br />

Pela manhã receb<strong>em</strong>os um recado <strong>de</strong> que <strong>de</strong>veríamos voltar à cida<strong>de</strong> dos upires.<br />

Um bando <strong>de</strong> ciganos que dali fugiam trouxera pedaços <strong>de</strong> pedra e ma<strong>de</strong>ira;<br />

diziam que Alexandrino estava preso na cida<strong>de</strong>la e tal não havíamos percebido por causa<br />

<strong>de</strong> nossa cegueira e luxúria. Após a noite <strong>de</strong> sono, os três partimos para o mesmo local,<br />

mas ele estava diferente outra vez. Era como se a cada vez chegáss<strong>em</strong>os na cida<strong>de</strong> <strong>em</strong><br />

uma época completamente diferente da anterior.<br />

Muita gente entrava e saía pela porta principal. Nada <strong>de</strong> Julius ou qualquer outro<br />

ser. Os visitantes pareciam felizes e a impressão que dava é que uma festa ou festival se<br />

<strong>de</strong>senvolvia. Vasto aroma <strong>de</strong> café se espalhava pelo ambiente. Queimava-se mais um<br />

produto dos árabes.<br />

Coelho De Moraes 76


MARCUS, o imortal<br />

Penetramos na praça. Saímos por ruas enxovalhadas; a multidão era um tapete.<br />

Mas a dúvida <strong>de</strong> que caminho tomar e por on<strong>de</strong> ir para encontrar Alexandrino nos<br />

<strong>de</strong>ixava irritados.<br />

Decidimos que o certo seria ir para a já conhecida casa <strong>de</strong> Virgínia, novamente,<br />

afinal tudo acontecera por aquelas cercanias. E ela estava lá. Casa e Virgínia. Parecia que<br />

nos esperavam.<br />

- Vocês estão atrasados. O amigo <strong>de</strong> vocês está insuportável. Não pára <strong>de</strong> pedir que<br />

mand<strong>em</strong>os mensagens. Mas a hora é imprópria... Cada um <strong>de</strong> vocês entre <strong>em</strong> cada um<br />

<strong>de</strong>sses quartos... você, Marcus, v<strong>em</strong> comigo.<br />

Novamente estava no interior da casa, mas a mulher <strong>de</strong>saparecera. Outras<br />

portas se abriram e eu me vi no meio <strong>de</strong> um salão com um taco <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira na mão. Era<br />

sonho ou <strong>de</strong>lírio, difícil <strong>de</strong> afirmar, como s<strong>em</strong>pre o foi naquelas circunstâncias.<br />

O taco era liso, ma<strong>de</strong>ira b<strong>em</strong> lisa, parecia com as lanças <strong>de</strong> caçar upires, sendo<br />

que o manípulo fincava-se <strong>em</strong> um punho <strong>de</strong> metal que eu sabia só produzir<strong>em</strong> nas<br />

florestas <strong>de</strong> Grunewald, na Alsácia.<br />

Nisso, enquanto música <strong>de</strong> trombetas estridulava no ambiente, uma bola passou<br />

raspando pela minha cabeça. Eu me vi preocupado <strong>em</strong> rebater a bola para b<strong>em</strong> longe.<br />

Do outro lado da sala alguém atirava a pelota, que era uma esfera <strong>de</strong> chumbo<br />

não tratado, <strong>de</strong> 7 cm <strong>de</strong> diâmetro, extr<strong>em</strong>amente polida, <strong>de</strong> modo que a minha<br />

obrigação era <strong>de</strong>sviar o objeto esférico para os cantos do salão forrado <strong>de</strong> espelhos. A<br />

bola <strong>de</strong>veria penetrar <strong>em</strong> sua própria imag<strong>em</strong>... num dos tais espelhos. Depen<strong>de</strong>ndo do<br />

tipo <strong>de</strong> espelho – quadrado, ovalado, elipsói<strong>de</strong>, mercurado, argentado, – eu via que uma<br />

caixa calculadora como um ábaco ia dando pontos e selecionando números... Se o<br />

espelho se quebrasse, os pontos reverteriam para o adversário, que eu não enxergava<br />

qu<strong>em</strong> era, por causa da névoa. Aliás, aí é que entrava a perícia dos jogadores. Fazer<br />

com que a bola se mesclasse à sua própria imag<strong>em</strong> e se fundisse <strong>em</strong> um abraço<br />

platinado. E pontuar. Havia uma platéia que gritava. Eram uivos. Dei, a meu ver, uma<br />

excelente tacada e os aplausos <strong>de</strong>sceram da platéia <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> cascata, alguns, e<br />

como granizo <strong>em</strong> campos <strong>de</strong> milho, outros.<br />

Parece que eu vencera.<br />

O adversário veio me cumprimentar . Um sujeito alto, com roupa <strong>de</strong> corte grego.<br />

Fui levado, s<strong>em</strong> controle, para outro vasto salão repleto <strong>de</strong> alimentos e bebidas.<br />

Auxiliares me tomavam pelos braços. Todos riam. As pessoas se refestelavam e durante<br />

horas Virgínia me abraçou e beijou sobre a mesa. O t<strong>em</strong>po corria <strong>de</strong> imenso e eu me vi<br />

num alvoroço <strong>de</strong> sensações.<br />

Virgínia me falava da resolução dos contrários. Falava como podia, pois minha<br />

língua se enfiava <strong>em</strong> sua boca macia. E todos sab<strong>em</strong>os que essa resolução é a atração<br />

máxima <strong>de</strong> todos os gnósticos. Eu n<strong>em</strong> queria mais saber <strong>de</strong>ssa conversa... não era o<br />

momento. Místico, esotérico e loquaz eu me preocupava com o gozo dos sentido e da<br />

carne. L<strong>em</strong>brei-me <strong>de</strong> Siger. A cor do ambiente mudou três vezes. Azul, opalino, lilás.<br />

- Me larga. É hora. Estamos já atrasados e você não me larga.<br />

- Atrasados para quê?<br />

- O quê? – ela perguntou, enquanto abaixava a túnica <strong>de</strong> linho marroquino.<br />

- Nada... nada. Vamos. Alguma coisa sobre Alexandrino, ao menos?<br />

A manhã prometia <strong>de</strong>lícias, mas ela não me quis mais dar as mãos. Fiz <strong>de</strong> tudo<br />

para não irmos ao t<strong>em</strong>plo. Queria ficar <strong>em</strong> seu quarto... Eu mesmo tinha mais o que<br />

fazer, mas preferia ficar com Virgínia.<br />

Mas, no t<strong>em</strong>plo, que nos esperava, o povo se alvoroçava para ver sacerdotisas<br />

s<strong>em</strong>i-nuas e uma <strong>de</strong>las era Virgínia. O povo. Os moradores do burgo, das vilas, das<br />

cavernas... Besta colossal. Substância-chave, substância-vida <strong>em</strong> que se permitia superar<br />

as contradições da natureza humana. Mas pensar naquilo não ficava b<strong>em</strong> com tanta<br />

estrela para ouvir segredos. E no meu caso, o povo era a chave enigmática para a chama<br />

da liberda<strong>de</strong>.<br />

- Como é que você po<strong>de</strong> ser assim? Ativo e cont<strong>em</strong>plativo ao mesmo t<strong>em</strong>po ?– Virgínia<br />

perguntou e me pareceu lev<strong>em</strong>ente zangada.<br />

- É que sou poeta e filósofo. E <strong>de</strong>pois, essa mudança <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po e espaço... esse<br />

escorregar para dimensão <strong>de</strong>sconhecida tira minha sensação <strong>de</strong> segurança... Tenho<br />

minha linha <strong>de</strong> atuação, mas raciocino livr<strong>em</strong>ente.<br />

Coelho De Moraes 77


MARCUS, o imortal<br />

- É difícil ser sábio e criança, não é? – perguntou – o responsável por essas...<br />

escorregadas, como você disse... é Bernard... e você muito b<strong>em</strong> o conhece. - Fiquei<br />

quieto por alguns instantes. Bernard e seu exército podre.<br />

- Bernard, o morto.<br />

- A última ambição. Ser jov<strong>em</strong> e velho ao mesmo t<strong>em</strong>po. Você não passa <strong>de</strong> um<br />

adolescente, Marcus – ela riu, s<strong>em</strong> marca alguma que l<strong>em</strong>brasse atrasos e esperas, –<br />

inda mais quando o vejo com meu seio <strong>em</strong> sua boca.<br />

O jardim do t<strong>em</strong>plo se abriu aos nossos olhos. Olhei para os arbustos<br />

circunvizinhos e tudo me pareceu calmo. Estátuas colossais, várias fontes <strong>de</strong> água,<br />

árvores frondosas tr<strong>em</strong>ulavam ao sabor do clarão das tochas.<br />

- Aqui está muito escuro – eu disse.<br />

- São as nuvens... e os gases... as fumaças... as trevas... Venha. Vamos para os<br />

aposentos, rapidamente – ela me disse. Entramos passando por algumas pessoas<br />

curiosas que nos olhavam e rumamos para os corredores do palacete procurando<br />

camareiros e auxiliares. De longe eu mergulhava nos cabelos <strong>de</strong> Virgínia e l<strong>em</strong>brava <strong>de</strong><br />

seus aromas. Uma dúvida me alcançava. Por certo nesse momento eram banhados com<br />

mirra e óleos aromáticos recém chegados da Cach<strong>em</strong>ira. O povo, o filtro dos místicos. O<br />

povo, a pedra filosofal dos hermetistas se aglomerava nos <strong>de</strong>graus ocres que se faziam<br />

<strong>de</strong> arquibancadas. O povo, a vida reduzida a seu princípio. O momento esperado tinha<br />

data marcada.<br />

S<strong>em</strong> a túnica, recebi banhos <strong>de</strong> óleos também, mas a meu lado outros homens<br />

recebiam atenção diferenciada. Eunucos masturbavam aqueles senhores, lentamente,<br />

estimulando-lhes <strong>de</strong>sejos e facilitando o culto futuro.<br />

- N<strong>em</strong> todos pod<strong>em</strong> atravessar a porta.<br />

Imediatamente me virei e um daqueles homens que arfavam e resfolegavam<br />

chamou minha atenção.<br />

- Como? Desculpe, mas eu pensava <strong>em</strong> outra coisa – estr<strong>em</strong>eci, pois ele se parecia com<br />

Lesahor. Era Lesahor.<br />

- Des<strong>de</strong> Moisés, todos os magos que viram a Terra prometida não pod<strong>em</strong> atravessar a<br />

porta – ele disse.<br />

- O quê?<br />

- Moisés não teve permissão para entrar na Terra Prometida – repetiu.<br />

- Provavelmente foi <strong>de</strong>sta para melhor – eu falei, e ele me olhou com ar estranho, daí<br />

resolvi completar – Em um bom sentido, é claro. L<strong>em</strong>bra <strong>de</strong> Elias...? o mesmo como um<br />

carro <strong>de</strong> fogo... Hélios... Elias...<br />

- É...talvez... talvez... É um dos nossos mais rasos probl<strong>em</strong>as, – disse com algum<br />

interesse - Mas o povo t<strong>em</strong> uma resposta mais flagrante para isso – falou, retirando o<br />

suor.<br />

- Que eu saiba, sim. Estamos s<strong>em</strong>pre à porta <strong>de</strong>sse povo. Olhando para ele. Dando<br />

ex<strong>em</strong>plos. Enfeitando algumas <strong>de</strong> suas noites com dramas místicos importantes.<br />

- É possível. Não acredito muito nisso. Mas é possível, – Lesahor como que segredava.<br />

- Não acredita...?<br />

- Não. Eu vim do povo. E posso dizer que o povo é meu pai. Há muito obstáculo para<br />

essa..., como direi,... incorporação mágica... a tal da tomada <strong>de</strong> consciência do povo, se<br />

é que me enten<strong>de</strong>...<br />

- Mas você é um dos sacerdotes(!)... o oráculo...<br />

- Sim, sou sacerdote... uma profissão como outra qualquer... às vezes uma profissão <strong>de</strong><br />

fé... se é que me enten<strong>de</strong>, mas cá entre nós... tirando essa parte da preparação que os<br />

eunucos nos conced<strong>em</strong>... o bom mesmo é estar com as mulheres, quando roubamos o<br />

corpo das... castas divas... – ele riu para si mesmo e mostrou <strong>de</strong>ntes amarelos, se b<strong>em</strong><br />

que iguais - ... muito castas!... Eu nasci povo e trago o povo no coração e o povo quer<br />

comer as sacerdotisas... eu faço isso por eles...- riu novamente, – meu sacrifício<br />

pessoal... minha missão especial... <strong>de</strong>rramar esperma nas taças sagradas...<br />

- Comer! – Eu me l<strong>em</strong>brei da inacessível língua <strong>de</strong> Virgínia antes <strong>de</strong> sairmos <strong>de</strong> casa. E<br />

me l<strong>em</strong>brei das reuniões anteriores.<br />

- É. Essa cosmologia da re<strong>de</strong>nção acaba <strong>em</strong> infortúnio, acredite. Tudo isso aqui não<br />

passa <strong>de</strong> espetáculo para o povo gozar. Enquanto ritualizamos, cá entre nós, as<br />

sacerdotisas com nossos pênis sagrados, preste atenção, como o povo, também cá entre<br />

nós, se masturba e faz sexo por todo lado..., o tal do povo. O universo triunfante do liso<br />

Coelho De Moraes 78


MARCUS, o imortal<br />

e do quente, nada mais do que isso – ele me falou enquanto se limpava do óleo <strong>em</strong><br />

excesso.<br />

Um sinal <strong>de</strong> badalo ecoou pelos aposentos e eu estava atônito.<br />

- Vamos. Pega a túnica.<br />

O farto aroma <strong>de</strong> café se esparramava pela nave. Todos bebiam o líquido escuro,<br />

b<strong>em</strong> quente, distribuído à gran<strong>de</strong> por torneiras douradas que saiam das pare<strong>de</strong>s<br />

marmóreas. Por efeito do líquido muitos gritavam e batiam contra o peito. Muita gente<br />

não tinha estofo para beber aquele elixir <strong>de</strong> potência e vigor.<br />

- Durante as s<strong>em</strong>anas que anteced<strong>em</strong> o drama no t<strong>em</strong>plo – Lesahor explicava - era<br />

comum a venda <strong>de</strong> café pelas irmãs-sacerdotisas, às portas da cida<strong>de</strong>. As crianças não<br />

saiam às ruas, pois se tratava da preparação para a s<strong>em</strong>ana da fertilida<strong>de</strong>... a tônica da<br />

nossa cultura. O espírito brota espontâneo como ele realmente é. N<strong>em</strong> todos gostam<br />

disso.<br />

No entanto, um leve amargor me tomou. Um sintoma diferente e novo me<br />

atingia. Meu coração batia como se se precipitasse para explodir.<br />

Enquanto cantavam hinos eu corri dali e cheguei numa espécie <strong>de</strong> sala para<br />

receber água <strong>de</strong> chuvas, uma sala que se abria para os aposentos das mulheres. N<strong>em</strong><br />

sei o que é que faria, ainda, mas a hora chegava. Os corredores eram sinuosos e as<br />

tochas <strong>de</strong> pouco valiam. De sala <strong>em</strong> sala eu tentava vê-las. Em uma sala os<br />

<strong>em</strong>brutecidos pelo tabaco se pegavam <strong>em</strong> tapas no rosto. Noutra sala os idosos se<br />

banhavam <strong>em</strong> rapé – na verda<strong>de</strong> uma mistura <strong>de</strong> ópio e gergelim, – in<strong>de</strong>fesos <strong>em</strong><br />

relação ao ridículo. Mais além, barris <strong>de</strong> vinho e raparigas conturbavam o ambiente com<br />

gritos e danças. Alguns padres vinham se <strong>de</strong>liciar entre coxas jovens, pagas a preço <strong>de</strong><br />

turmalinas.<br />

De repente, eu me vi <strong>em</strong> uma sala abobadada e, ao entrar, estava ao lado <strong>de</strong><br />

Virgínia que achou tudo aquilo muito estranho, mas sorriu.<br />

- Você per<strong>de</strong>u alguma coisa? Encontrou-se com os outros dois? Ou per<strong>de</strong>u a si mesmo,<br />

que é o mais comum? – e riu com as outras.<br />

- Não quero per<strong>de</strong>r você. Vamos <strong>em</strong>bora daqui.<br />

- O que foi? Está diferente. Nunca vi essa dobra <strong>em</strong> sua testa. Você exagerou no café?<br />

Está mais sóbrio.<br />

- Meu discernimento está mais amplo. Mas não quero per<strong>de</strong>r você. A história vai mudar<br />

seus caminhos.<br />

- Tolice, meu querido. Tolice. Estamos prestes a aumentar, a ampliar a consciência local<br />

com a exposição do nosso drama.<br />

- Esqueça isso.<br />

- N<strong>em</strong> me fale uma coisa <strong>de</strong>ssas... é algum enigma?.<br />

- Não há enigmas!! O que há é a prática!! Tudo mentira! – as mulheres que nos<br />

escutavam começaram a rir outra vez, mas eu continuei a puxar Virgínia. Tentei tomar da<br />

sua mão para sairmos, trazendo-a para fora do t<strong>em</strong>plo. Ela não queria. Fez força<br />

contrária e escapuliu com certa violência.<br />

- Ouça como a turba urra, – Virgínia falava tranqüilamente. - Eles nos esperam – o<br />

badalo soou novamente e a gritaria ficou maior. Eu suava. Faltava-me a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

argumentar a<strong>de</strong>quadamente. As mulheres retiravam suas roupas e passavam para outro<br />

aposento, <strong>em</strong> direção à nave central do t<strong>em</strong>plo.<br />

- V<strong>em</strong> comigo, Virgínia, fica comigo somente. A coisa vai esquentar por aqui. – Mas, ela<br />

se limitou a passar o dorso da mão entre as suas próprias pernas e levantar, na minha<br />

direção, <strong>de</strong>dos molhados, quase os esfregando no meu rosto<br />

- Vai esquentar mesmo. Egoísta. Não vê que somos belas damas, hoje representando<br />

meretrizes sagradas?... a mais subida honra! e você quer que eu vá com você. Ficar<br />

somente com você?<br />

- Sim. Mas não é só isso.<br />

- Louco! Lá estar<strong>em</strong>os <strong>em</strong>bebidas <strong>em</strong> café Árabe... o líquido morno das bacias douradas<br />

nos banhando, – Virgínia <strong>de</strong>scalçou as sandálias – discursar<strong>em</strong>os sobre o Serralho, o<br />

penteado à sultana que levamos para ser <strong>de</strong>sfeito nas orgias – ela, negligent<strong>em</strong>ente,<br />

<strong>de</strong>ixou cair uma das alças, que escorregou sobre o ombro. – Qu<strong>em</strong> sabe não falar<strong>em</strong>os<br />

sobre as Mil e Uma Noites? Nós, as huris mo<strong>de</strong>rnas, que dar<strong>em</strong>os seios fartos aos nossos<br />

irmãos sacerdotes e <strong>de</strong>pois nos fartar<strong>em</strong>os com a platéia enlouquecida. Você está é<br />

muito louco!!<br />

Coelho De Moraes 79


MARCUS, o imortal<br />

Vi que meus esforços seriam vãos. O badalo novamente tocou e a última imag<strong>em</strong><br />

que vi foi Virgínia se afastando, <strong>de</strong>ixando resvalar para o chão a túnica <strong>de</strong> seda... suas<br />

ancas on<strong>de</strong>avam... ela transpirava...<br />

Inexplicavelmente eu me encontrei <strong>em</strong> meio a uma luta aguerrida. Estava no<br />

centro da nave, os sacerdotes e sacerdotisas copulavam, mas uma batalha se<br />

<strong>de</strong>senrolava nas arquibancadas. Um grupo armado havia penetrado no t<strong>em</strong>plo. Era o<br />

exército <strong>de</strong> Bernard <strong>de</strong> Clairvaux e o podre <strong>de</strong> suas entranhas se misturava com o aroma<br />

<strong>de</strong> café. Pelo que sei eu estava do lado <strong>de</strong>ste grupo. Desfechei muitos murros e parti<br />

uma série <strong>de</strong> queixos. Não sei como, mas uma espada se ergueu entre minhas mãos. Eu<br />

mal podia erguê-la, <strong>de</strong> tão pesada. Fiz apenas uma investida e <strong>de</strong>rrubei três pessoas,<br />

mas a espada escorregou <strong>de</strong> minhas mãos. Os revoltosos não eram maioria numérica,<br />

mas tinham cavalos, arr<strong>em</strong>edos <strong>de</strong> corcéis grosseiros que cavalgavam aos pedaços,<br />

carregando pedaços <strong>de</strong> seres, e tinham a vonta<strong>de</strong> inumana <strong>de</strong> vencer... a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

vencer, para além da morte... Os guardas do t<strong>em</strong>plo, armados <strong>de</strong> lanças e elmos e<br />

bestas, eram quebrados ao meio. Os casais ritualísticos foram cortados com largas<br />

facas. Rebel<strong>de</strong>s, com marretas, <strong>de</strong>struíam altares e ídolos, <strong>de</strong>rrubavam os vasos e<br />

turíbulos das aras, pisoteavam as oferendas. A batalha. Os rebel<strong>de</strong>s entravam no t<strong>em</strong>plo,<br />

<strong>de</strong> surpresa, e venciam a contenda, pondo, por fim, fogo nas <strong>de</strong>pendências. Todos<br />

partiram, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> arruaça, da mesma forma que chegaram.<br />

Não soube mais <strong>de</strong> Virgínia. Batedores que encontrei e <strong>de</strong>pois, conversando com<br />

Pietro e LaCordaire, disseram que algumas irmãs-sacerdotisas sobreviventes,<br />

<strong>de</strong>sfiguradas umas, queimadas outras, trôpegas enfim, se prostituíam pelos lados das<br />

terras do leste.<br />

Pietro contou que soube que os reis gnósticos, percebendo que os rebel<strong>de</strong>s se<br />

fortaleciam a cada momento, inventaram <strong>de</strong> fugir, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r ninguém. O responsável<br />

por esse traslado <strong>de</strong> mudas <strong>de</strong> plantas cafeeiras foi o cavaleiro <strong>de</strong> Clieux, hipócrita<br />

religioso, que conseguiu transformar as terras papais <strong>em</strong> campos exportadores <strong>de</strong><br />

presos para as Cruzadas, chegando a 50 mil, o número <strong>de</strong> escravos e escravas, lutadores<br />

do B<strong>em</strong>.<br />

Um século atrás, segundo LaCordaire, Clairvaux, ainda vivo, chegara a esse<br />

t<strong>em</strong>plo para <strong>de</strong>struí-lo. Os rebel<strong>de</strong>s retornaram ao t<strong>em</strong>plo, mas já não existia o ritual e<br />

n<strong>em</strong> mais se ouvia falar naquelas histórias <strong>de</strong> putas e eunucos e banhos <strong>de</strong> óleo. Os<br />

rebel<strong>de</strong>s venceram.<br />

Estávamos na estrada e encontramos Julius, o velho, que nos observava, fazendo<br />

sinais no ar..., mas não d<strong>em</strong>os muita atenção, então ele gritou:<br />

- O oráculo!, o oráculo não mais se <strong>de</strong>u à mostra e as pitonisas vendiam seus corpos<br />

para os upires... jurando que era muito bom para afastar formigas <strong>de</strong> plantas tenras,<br />

protegendo os jardins, suas flores e seus frutos. E saibam todos que o chefe dos Upires<br />

não é outro senão Calatin, o Cão Raivoso.<br />

OPUS 35<br />

- Sobre a operação! – falou Pietro, revendo anotações. Sentávamos <strong>em</strong> nossas camas,<br />

cobertos e protegidos do frio, apesar da pequena lareira. Cada um <strong>de</strong> nós carregava sua<br />

terrina <strong>de</strong> sopa <strong>de</strong> ervas. Deixamos Tomás a escrever, após a aula que nos <strong>de</strong>ra e<br />

corr<strong>em</strong>os para o quarto a fim <strong>de</strong> rever apontamentos.<br />

- Como ensinou Avicena <strong>em</strong> sua carta ao rei Assa – relatava Pietro - buscamos obter uma<br />

substância verda<strong>de</strong>ira por meio <strong>de</strong> várias outras intimamente fixadas, substância que ao<br />

ser colocada no fogo, o mantenha e o alimente. E, que seja, ad<strong>em</strong>ais, penetrante e<br />

invasora, que receba o mercúrio e os d<strong>em</strong>ais corpos. – Pietro sorveu um bocado <strong>de</strong><br />

líquido quente e continuou – uma tintura muito verda<strong>de</strong>ira, que tenha o peso requerido e<br />

que sobrepasse por sua excelência a todos os tesouros do mundo.<br />

- Mas, foi também dito que para fazer esta substância – explicava LaCordaire - é preciso<br />

ter paciência, t<strong>em</strong>po e os instrumentos necessários.<br />

- Paciência – eu dizia – eis aí um exercício e tanto para nós três... a nossa impulsivida<strong>de</strong><br />

é nossa mestra e nossa punitiva... basta o ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> ont<strong>em</strong>...<br />

- Sim... mas, segundo Geber, o primeiro, - dizia LaCordaire, novamente - a precipitação<br />

não é obra divina...é obra do diabo, assim aquele que não tiver paciência terá <strong>de</strong><br />

suspen<strong>de</strong>r todo o trabalho.<br />

Suspiramos enquanto meditávamos sobre t<strong>em</strong>po, trabalho e a paciência que não<br />

tínhamos.<br />

Coelho De Moraes 80


MARCUS, o imortal<br />

- T<strong>em</strong>po, porque <strong>em</strong> toda ação natural que resulte <strong>de</strong> nossa arte, o meio e o t<strong>em</strong>po<br />

estão rigorosamente <strong>de</strong>terminados – leu Pietro, levantando algumas folhas.<br />

- Instrumentos, somente os necessários, mas não <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong>, como ver<strong>em</strong>os<br />

mais tar<strong>de</strong>, já que nossa obra se realiza por meio <strong>de</strong> alguma coisa... <strong>de</strong> um vaso, por<br />

ex<strong>em</strong>plo - eu disse, repetindo a Hermes, o três vezes Gran<strong>de</strong>.<br />

- Para mim ficou um pouco obscura a frase seguinte, prest<strong>em</strong> atenção – pediu Pietro <strong>de</strong><br />

Ferrara – “Está permitido se fazer a medicina <strong>de</strong> vários princípios aglomerados; s<strong>em</strong><br />

qualquer erro, não se necessita se não <strong>de</strong> uma matéria, n<strong>em</strong> nenhuma coisa estranha<br />

exceto fermento branco ou roxo”.<br />

- Levar<strong>em</strong>os isso como ponto para discutir com Tomás – eu falei – Afinal, toda a Obra é<br />

puramente natural...- Pietro seguiu no texto, esfregando u’a mão conta a outra.<br />

- Basta observar as diferentes cores, seguindo o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que aparec<strong>em</strong>. Isso tudo está<br />

<strong>em</strong> simbolismos e mistérios. Tomás <strong>de</strong>verá nos passar as chaves disso. Por enquanto,<br />

acredito, será para simples leitura. Ouçam essa! “ No primeiro dia é preciso levantar-se<br />

b<strong>em</strong> cedo para ver se a vinha está <strong>em</strong> flor e se transforma <strong>em</strong> cabeça <strong>de</strong> corvo; <strong>de</strong>pois<br />

passa por diversas cores, entre as quais <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os <strong>de</strong>stacar o branco intenso, porque<br />

justo este é o que esperamos e que nos revela o nosso rei, ou seja, o elixir, o pó simples,<br />

que t<strong>em</strong> tantos nomes quanto coisas exist<strong>em</strong> no mundo”.<br />

Lá fora pássaros noturnos entoavam suas cantigas fúnebres.<br />

Muita vez um grito ou suspiro se fazia ouvir entre litanias <strong>de</strong> monges longínquos.<br />

- Para terminar nossa matéria, magnésia é o mercúrio preparado com a urina <strong>de</strong> crianças<br />

<strong>de</strong> doze anos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o mesmo momento <strong>de</strong> ser <strong>em</strong>itida e que nunca tenha sido usada<br />

para a Gran<strong>de</strong> Obra. Esta se chama vulgarmente <strong>de</strong> Terra <strong>de</strong> Espanha, ou Antimônio,<br />

mas, presta atenção no que vou dizer – e nos l<strong>em</strong>bramos das palavras <strong>de</strong> Tomás <strong>de</strong><br />

Aquino – não quero dizer aqui o mercúrio comum que usam alguns sofistas e que dá<br />

resultados medíocres apesar dos gran<strong>de</strong>s gastos que ocasiona e, se quiser trabalhar com<br />

ele, até po<strong>de</strong>ria chegar à verda<strong>de</strong>, mas gastaria muito mais t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> cocção e digestão.<br />

Mas é melhor seguir ao b<strong>em</strong> aventurado e Gran<strong>de</strong> Alberto, meu mestre, e trabalhar com<br />

a prata viva mineral, já que somente nela está o segredo da Obra. Depois trabalhar a<br />

conjunção <strong>de</strong> tinturas, brancas e roxas, que vêm dos metais perfeitos que, sozinhos, dão<br />

uma tintura perfeita; o mercúrio não comunica esta tintura se não <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> a haver<br />

recebido; por esse motivo, misturando as duas, se mesclarão melhor com ele, com o<br />

mercúrio, e o penetrarão mais intimamente.<br />

- É! Muita paciência para enten<strong>de</strong>r tudo isso! – eu falei.<br />

Opus 36<br />

Novamente, qu<strong>em</strong> é Alberto, o Gran<strong>de</strong>, <strong>em</strong> verda<strong>de</strong>? Nunca sab<strong>em</strong>os?! Ele<br />

mesmo transmuta como as pedras.<br />

Por várias vezes, durante as viagens tive oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar sobre o robusto<br />

Alberto Magno, príncipe dos filósofos. Algumas platéias muito atentas. Outras muito<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosas e cépticas, principalmente pelo fato <strong>de</strong> que Alberto, mestre, lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> papas,<br />

se imiscuía no ocultismo ou na produção da Gran<strong>de</strong> Obra. Diz<strong>em</strong> que escrevia muito e<br />

ocultava muito, também.<br />

Entretanto, foi espantosa a difusão <strong>de</strong> Alberto, das suas obras mais secretas e<br />

difíceis <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r, uma vez que está cercada <strong>de</strong> simbolismos e ro<strong>de</strong>ios para<br />

complicar o entendimento, mas para facilitar a compreensão dos iniciados, como eu<br />

Pietro e LaCordaire, se b<strong>em</strong> que precisáss<strong>em</strong>os <strong>de</strong> Tomás como preceptor.<br />

É claro que essa difusão <strong>de</strong> obras se <strong>de</strong>veu, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte, à auréola <strong>de</strong> lenda<br />

e <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> que ro<strong>de</strong>ou, mesmo ainda <strong>em</strong> vida, Alberto <strong>de</strong> Lauingen, honrado por<br />

todos os intelectuais da sua época com o título <strong>de</strong> O Gran<strong>de</strong>. Autorida<strong>de</strong> que se firmou<br />

<strong>em</strong> todos os domínios da ativida<strong>de</strong> humana, religiosa, intelectual, científica, política,<br />

diplomática, econômica e mesmo mágica.<br />

Repito: Alberto nasceu <strong>em</strong> 1193, <strong>em</strong> Lauingen, repito, e que isso não se afaste<br />

nunca <strong>de</strong> nossas mentes febris... se fosse por mim eu repetiria a biografia <strong>de</strong> Alberto <strong>de</strong>z<br />

vezes seguidas nesses escritos, como um mantra, mas isso não seria <strong>de</strong> bom resultado<br />

para ninguém. B<strong>em</strong>, enfim, ele nasceu às margens do Danúbio, do filho mais velho <strong>de</strong><br />

uma família <strong>de</strong> altos funcionários imperiais, opulentos, mas s<strong>em</strong> pertencer<strong>em</strong> à nobreza.<br />

Em 29, Alberto resi<strong>de</strong> com o seu tio, <strong>em</strong> Pádua, on<strong>de</strong> termina os estudos na<br />

Universida<strong>de</strong>, fundada <strong>em</strong> 1222. Com 37 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, Alberto toma o hábito. Nesta<br />

época, não era consi<strong>de</strong>rado um estudante brilhante, n<strong>em</strong> sequer dotado. Alberto teve<br />

Coelho De Moraes 81


MARCUS, o imortal<br />

dificulda<strong>de</strong>s <strong>em</strong> acompanhar o curso <strong>de</strong> Teologia e esteve prestes a abandonar o<br />

convento. Mas durante um sonho, como ele mesmo precisou, os anjos e a Virg<strong>em</strong> terlhe-iam<br />

aparecido.<br />

Acredito que já falei sobre tudo isso. A m<strong>em</strong>ória me falha, como se quisesse<br />

reprisar os fatos. Meus <strong>de</strong>dos grossos escrev<strong>em</strong> mal. Mas, continuo: Brotam daí as<br />

faculda<strong>de</strong>s intelectuais <strong>de</strong> que se julgava insuficient<strong>em</strong>ente dotado. Des<strong>de</strong> então, Alberto<br />

vai impor-se e mesmo espantar qu<strong>em</strong> o ouvisse pela sua m<strong>em</strong>ória e habilida<strong>de</strong> dialética.<br />

Qu<strong>em</strong> o conheceu não o reconhecia. Sócrates já dizia que o filósofo t<strong>em</strong> que ter<br />

m<strong>em</strong>ória. É necessário ter m<strong>em</strong>ória.<br />

Mais tar<strong>de</strong> Alberto é enviado, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lector, a diversos conventos da<br />

ord<strong>em</strong>, a Hil<strong>de</strong>sheim, Fribourg, <strong>de</strong>pois Regensburg (Ratisbona), on<strong>de</strong> permanece dois<br />

anos.<br />

Após a morte do prior <strong>de</strong> sua ord<strong>em</strong>, Alberto é l<strong>em</strong>brado para postos e<br />

encabeçar capítulos. É tornado lector <strong>em</strong> Estrasburgo. Depois é enviado a Paris, quando<br />

ministra aulas para os jovens que ali ingressam e é on<strong>de</strong> começa a nossa história<br />

propriamente dita. Paris é a capital intelectual do Oci<strong>de</strong>nte. Também já me reportei a<br />

este assunto, acredito.<br />

Uma multidão não habitual <strong>de</strong> auditores assistia aos seus cursos, obrigando-o a<br />

lecionar fora dos edifícios, na praça Maubert, por ex<strong>em</strong>plo. Este sucesso é <strong>de</strong>vido <strong>em</strong><br />

parte ao seu prestígio pessoal, <strong>em</strong> parte ao assunto escolhido : a explicação <strong>de</strong><br />

Aristóteles, no comentário <strong>de</strong> Pedro Lombard.<br />

É fato que ainda <strong>em</strong> 31 a Igreja proibia a explicação pública <strong>de</strong> Aristóteles,<br />

porque os postulados do seu sist<strong>em</strong>a do mundo são contrários ao dogma cristão. Muita<br />

gente acha isso. A gran<strong>de</strong> obra <strong>de</strong> Alberto foi a adaptação a este dogma das obras <strong>de</strong><br />

Aristóteles, que, <strong>de</strong> resto, só eram conhecidas através <strong>de</strong> traduções latinas, realizadas<br />

segundo as cópias árabes fort<strong>em</strong>ente influenciadas por Avicena e Averróis, dois filósofos<br />

neo-platônicos, como não canso <strong>de</strong> dizer nestes textos.<br />

Alberto regressa a Colônia. Organiza o Studium Generale, instituto <strong>de</strong> estudos<br />

superiores. Entre os seus alunos o nosso segundo mestre, Tomás <strong>de</strong> Aquino e, com ele,<br />

Ulrich Engerbert <strong>de</strong> Estrasburgo. O primeiro, vindo do sul da Itália, vai tornar-se o seu<br />

discípulo preferido, seu amigo e continuador da obra filosófica, cujos materiais vai<br />

organizar num sist<strong>em</strong>a coerente, que será a principal forma <strong>de</strong> filosofia cristã daí <strong>em</strong><br />

diante ; Ulrich <strong>de</strong> Estrasburgo, amigo muito íntimo também, <strong>de</strong>dica-se mais ao estudo<br />

das ciências.<br />

Para essa reunião na estalag<strong>em</strong> Ulrich não compareceu, pois substituía Alberto na<br />

direção da ord<strong>em</strong> e nas conversações iniciais para a construção da catedral <strong>de</strong><br />

Estrasburgo.<br />

OPUS 37<br />

- A minha família queria que eu me tornasse um estadista, um militar... nunca pensaram<br />

que eu viesse a ser um fra<strong>de</strong>, muito menos Dominicano. Tive que fugir <strong>de</strong> casa para<br />

po<strong>de</strong>r seguir o que meu coração mandava – e rimos bastante junto às <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong><br />

Tomás. - Meu pai ficou furioso. Mandou seus mais fiéis servidores a Nápoles, para trazerme<br />

<strong>de</strong> volta. Como o superior do convento sabia do plano, n<strong>em</strong> sei como, ele me enviou<br />

a Paris. Inútil: os <strong>em</strong>issários <strong>de</strong> meu pai me alcançaram e me trouxeram prisioneiro.<br />

Tomás pareceu mergulhar na febre daquela época e uma névoa <strong>de</strong> l<strong>em</strong>branças<br />

passou por sua cabeça. Ele reprisava momentos <strong>em</strong> que estava calmamente instalado <strong>em</strong><br />

Roccasseca.<br />

- Escolhi a Ord<strong>em</strong> dos Dominicanos, pois eu não queria ficar trancado numa cela e<br />

afastar-me do mundo. Ao contrário!, o que eu mais <strong>de</strong>sejava era difundir a fé cristã. E os<br />

dominicanos eram os gran<strong>de</strong>s pregadores daquele t<strong>em</strong>po – Tomás andou pela sala, como<br />

s<strong>em</strong>pre, pousando a mão sobre os móveis negros, sobre o espelho, sobre os pequenos<br />

frascos, como se cada objeto o levasse a uma época ou carregasse sua m<strong>em</strong>ória para as<br />

estradas corretas. Muita vez pousou a mão sobre nossas cabeças, s<strong>em</strong> <strong>em</strong>itir qualquer<br />

som, como se nos abençoasse. - Para difundir uma fé, e combater os que não a aceitam<br />

ou <strong>de</strong>la duvidam, os heréticos; o primeiro passo é conhecer os fundamentos <strong>de</strong>ssa fé.<br />

Nada po<strong>de</strong> ficar <strong>de</strong> fora, mesmo que você não concor<strong>de</strong> com outros estudiosos, da<br />

mesma forma que eu luto contra Averroistas , por ex<strong>em</strong>plo, s<strong>em</strong> no entanto me<br />

transformar <strong>em</strong> guerreiro alucinado. Eu estudo Averróis para combatê-lo.<br />

A silhueta <strong>de</strong> Tomás <strong>de</strong>senhou-se contra a janela aberta, por on<strong>de</strong> fina brisa<br />

Coelho De Moraes 82


MARCUS, o imortal<br />

trazia aromas campestres. Ele continuou.<br />

- Estu<strong>de</strong>i <strong>em</strong> Paris, com os gran<strong>de</strong>s teólogos; me tornei professor. Dediquei-me a provar<br />

que Aristóteles não negava a Revelação, tão claramente assim. Em primeiro lugar, a<br />

filosofia <strong>de</strong> Aristóteles não é necessariamente pagã pelo fato <strong>de</strong>le ter nascido antes <strong>de</strong><br />

Cristo, afinal, os gregos, e principalmente Aristóteles, tinham também uma concepção <strong>de</strong><br />

Deus, ou <strong>de</strong> uma divinda<strong>de</strong>. Em segundo: a razão, dada ao ser humano por Deus, não se<br />

choca necessariamente com a fé; se b<strong>em</strong> utilizada, a razão só po<strong>de</strong> conduzir à verda<strong>de</strong>.<br />

E <strong>em</strong> terceiro lugar: a revelação divina orienta a razão e a compl<strong>em</strong>enta. São minhas<br />

conclusões. – Ele nos olhou com um leve sorriso e passou a abrir seus livros – Mas,<br />

vamos seguir nossas aulas e retirar as dúvidas. Vamos lá! Sobre o branco, o roxo e<br />

outros termos da aula anterior. Muito b<strong>em</strong>. Olha Marcus! Os alquimistas estão <strong>de</strong> acordo<br />

sobre o seguinte, dito por Hermes: ”A Alquimia é uma ciência corporal, <strong>de</strong> um e por um<br />

simplesmente composta, conjugando as coisas mais preciosas para conhecimento e<br />

efeito e transmutando <strong>em</strong> um gênero melhor. Tanto serve o ex<strong>em</strong>plo para a mudança<br />

dos corpos e da matéria, como para a transmutação do seu estado espiritual. A maior<br />

das transmutações é a da alma, caros amigos. Em suma. Ninguém, n<strong>em</strong> um animal, nada<br />

po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r sua espécie se não for por meio <strong>de</strong> algo similar, <strong>de</strong> coisas parecidas e da<br />

mesma natureza. Certo?<br />

Concordamos com a cabeça.<br />

- Bom. Nesse caso, procurar<strong>em</strong>os a Pedra Filosofal <strong>em</strong> nenhuma outra parte a não ser<br />

entre as s<strong>em</strong>entes <strong>de</strong> sua natureza. Vale para valores espirituais. É preciso pensar para<br />

que fim e para que uso se quer a Pedra Filosofal.<br />

- E sobre o parágrafo dos Reis? – perguntou LaCordaire.<br />

- B<strong>em</strong>. Ricardo, o Inglês, colocou seu segredo nas mãos do Rei da Inglaterra, que o fez<br />

morrer na torre <strong>de</strong> Londres. Eduardo da Inglaterra não cumpriu a promessa que fez a<br />

Raimundo Lúlio. Outro ex<strong>em</strong>plo, Jacques Coeur apesar <strong>de</strong> ter comunicado o segredo a<br />

Carlos IV não teve mais do que a morte como prêmio e recompensa. Portanto, cuidado<br />

com os Reis. Enfim. São traiçoeiros.<br />

Uma pausa reflexiva nos orientou.<br />

- Cuidado com os po<strong>de</strong>rosos. S<strong>em</strong>pre. Eles olharão além <strong>de</strong> seu corpo.<br />

- Mestre – chamei sua atenção – sobre a obra <strong>em</strong> branco e roxo...<br />

- Nesse ponto, caro Marcus, vale dizer que não se t<strong>em</strong> prestado suficiente atenção à<br />

concordância astrológica do t<strong>em</strong>po necessário para a Gran<strong>de</strong> Obra e isso finda <strong>em</strong> nulo o<br />

esforço <strong>de</strong> muitos alquimistas, que acabam <strong>de</strong>sistindo. Os t<strong>em</strong>pos, a pedra, são precisas<br />

<strong>em</strong> função da Água Filosófica e Astronômica, disse d’Espagnet, se quiser<strong>em</strong> anotar. –<br />

Tomás <strong>de</strong>u-nos uma pausa. - A primeira obra ao Branco <strong>de</strong>ve terminar na casa da Lua;<br />

a segunda, na segunda casa <strong>de</strong> Mercúrio; agora, a obra <strong>em</strong> Roxo, a primeira <strong>em</strong> Roxo,<br />

<strong>de</strong>ve estar na segunda casa <strong>de</strong> Vênus e a segunda ou última <strong>em</strong> Roxo <strong>de</strong>ve terminar na<br />

casa <strong>de</strong> exaltação <strong>de</strong> Júpiter. Por analogia se termina a obra inteira na Páscoa...<br />

- Por analogia <strong>de</strong> quê? – perguntou Pietro.<br />

- Por analogia da ressurreição. L<strong>em</strong>br<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre do significado espiritual da busca da<br />

Pedra Filosofal. Nesse caso o alquimista po<strong>de</strong> usar a imensa energia espiritual que há na<br />

Terra por momentos e t<strong>em</strong>pos da Quaresma. Principalmente na S<strong>em</strong>ana Santa. Uma<br />

quantida<strong>de</strong> imensa <strong>de</strong> energia potencial. Estão seguindo? O alquimista que também<br />

espera ressurreição do Rei Filosófico dirigirá ou usará essa corrente para sua Obra. Ou<br />

seja, o Universo conspira a favor, durante esses t<strong>em</strong>pos.<br />

Nesse ponto Tomás <strong>de</strong> Aquino parou <strong>de</strong> falar e ficou a nos olhar. Olhou para cada<br />

um <strong>de</strong> nós. Sorriu e saiu.<br />

OPUS 38<br />

- Nós chamamos a isso tudo <strong>de</strong> “O Santo Massacre”, - disse Alberto, pon<strong>de</strong>rando com<br />

vigor e certa raiva interpolando suas frases. Ele continuava, como se projetasse no futuro<br />

sua visão arrancando dali profecias: - Os papas <strong>de</strong> todos os t<strong>em</strong>pos farão visitas à Terra<br />

Santa <strong>em</strong> celebração pela passag<strong>em</strong> dos Milênios, das Festas, das Celebrações do<br />

Cristianismo, e serão obrigados a pedir perdão aos ju<strong>de</strong>us e muçulmanos pela Igreja<br />

Católica ter instigado Cruzadas que terminaram por produzir um terrível massacre da<br />

população civil judaica e árabe <strong>de</strong> Jerusalém, por parte dos cavaleiros cristãos.<br />

T<strong>em</strong>plários ou não. Hospitalários ou não. Papistas ou pobres mercenários, o que dará no<br />

mesmo. Terão <strong>de</strong> l<strong>em</strong>brar os lotes <strong>de</strong> crianças que enviaram para lutar contra operosos<br />

soldados, <strong>em</strong> nome do Cristo. Lotes <strong>de</strong> crianças pobres, claro. Filhos <strong>de</strong> vassalos.<br />

Coelho De Moraes 83


MARCUS, o imortal<br />

- Como se davam esses assaltos à Cida<strong>de</strong> Santa?<br />

Alberto parecia ler nas pare<strong>de</strong>s da estalag<strong>em</strong>. Virava páginas invisíveis. Misturava<br />

línguas. Soletrava sentenças inteiras. Traduzia. Seus olhos coruscavam harmoniosamente<br />

enquanto ele viajava <strong>em</strong> seu t<strong>em</strong>po pessoal, per<strong>de</strong>ndo-se e encontrando-se nas<br />

maravilhosas volutas da t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong> onírica <strong>em</strong> que se achava: - "Pelas muralhas e<br />

portas, <strong>de</strong>rrubando, <strong>de</strong>struindo, ou pren<strong>de</strong>ndo fogo no que se lhe opunha, o exército<br />

vencedor penetra então na cida<strong>de</strong>. O ferro s<strong>em</strong>eia por todas as partes a <strong>de</strong>solação e a<br />

morte, o luto e o horror, suas companheiras. O sangue forma lagos ou corre <strong>em</strong> arroios<br />

que arrastam no seu curso cadáveres e moribundos.", dirá o poeta Torquato Tasso <strong>em</strong><br />

sua Jerusalém Libertada.<br />

Nesse ponto Alberto sai, caminha como que <strong>em</strong> visão, igual a João <strong>em</strong> Patmos. O<br />

t<strong>em</strong>perado frio nos pegou, mas o sábio carregava <strong>em</strong> seus movimentos, inventando<br />

ações e jogos como se estivesse <strong>em</strong> uma batalha. O <strong>de</strong>sengonçado <strong>de</strong> seu jeito<br />

professoral nos fez pensar <strong>em</strong> loucura, no entanto mantinha a serenida<strong>de</strong> que nos<br />

amainava os rigores do coração. Alberto Magno grita na estrada:<br />

- "Insondáveis são os <strong>de</strong>sígnios do Senhor!" Assim meditavam os cavaleiros cruzados na<br />

sua marcha pela Palestina <strong>em</strong> junho <strong>de</strong> 1099. Tropel <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> animais <strong>de</strong>sciam os<br />

vales. Algures pássaros entoavam hinos famélicos. O pó do <strong>de</strong>serto secava a pele dos<br />

soldados e irritava os olhos. Des<strong>de</strong> que saíram <strong>de</strong> Alepo, na Síria, <strong>em</strong> direção à Cida<strong>de</strong><br />

Santa, só encontravam pelo caminho, areia, pedra, e chão árido, esturricado. O caminho<br />

coberto por calvas e ossos d<strong>em</strong>onstrava a int<strong>em</strong>perança da ação. O <strong>de</strong>serto parecia<br />

incl<strong>em</strong>ente e grotesco. As montanhas pareciam longínquas e inatingíveis. “Desventurados<br />

e tristes, estávamos todos!”, bradava Alberto na estrada, como a r<strong>em</strong><strong>em</strong>orar antigas<br />

viagens e imagens “O Jordão foi-lhes outra <strong>de</strong>cepção. Tudo que se sonhava com a<br />

leitura do livro Santo <strong>de</strong>saparecia na mirag<strong>em</strong> daquelas poucas águas. Cavaleiros<br />

viajados como Godofredo, Tancredo e Bo<strong>em</strong>ondo, não podiam acreditar que o mais santo<br />

dos homens tinha por ali <strong>de</strong>ixado suas marcas. Eles que conheciam os rios europeus, o<br />

Pó e o Danúbio, largos, fluentes, <strong>de</strong>siludiram-se ao ver<strong>em</strong> a modéstia daquelas lodosas<br />

águas beatas. Paramos, bafejados pelas ondas <strong>de</strong> calor. A quentura do ar nos pegava<br />

pelas costas e lanhava o flanco dos animais como vergastas <strong>de</strong> fogo. No entanto, fora<br />

naquelas águas, dizia a Santa Escritura, que João Batista ungira Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo. Todo se olhavam. Os chefes lançaram espadas e capacetes <strong>em</strong> terra. Muita gente<br />

se sentou <strong>em</strong> pedras e na areia. Choravam. Na expedição vinham ainda, sob o comando<br />

dos barões, uns <strong>de</strong>z mil homens, tendo a fome e a se<strong>de</strong> como irmãs e excelentes<br />

companheiras. Seria mesmo ali, intrigavam-se, que se <strong>de</strong>ra a Encarnação? Tudo mentira<br />

e <strong>de</strong>sconsolo! A fé <strong>de</strong>via perdurar quando a geografia não acrescentava nada ao ânimo?<br />

Confirmava, porém, ser aquele um lugar milagroso, a existência <strong>de</strong> inúmeras capelinhas<br />

erguidas pelos peregrinos que, <strong>em</strong> <strong>de</strong>voção, homenageavam ali antiqüíssimas relíquias.<br />

Olhando para a esquerda era possível divisar uma linha <strong>de</strong> gentes que caminhavam<br />

idôneas e or<strong>de</strong>iras. Pareciam penitentes. Pareciam nôma<strong>de</strong>s <strong>de</strong> outras terras, perdidos<br />

<strong>em</strong> ventre <strong>de</strong> barro sujo. Os pobres passavam e estavam aptos a comprar <strong>de</strong> tudo. Numa<br />

das capelas, pasm<strong>em</strong>, encontramos até uma lasca da Arca <strong>de</strong> Noé! Toda a feira que se<br />

ampliava ao nosso olhar fascinava nossas cabeças doentes <strong>de</strong> febre e sequidão. Mais<br />

espantados ficamos quando nos mostraram on<strong>de</strong> forjaram os cravos que pren<strong>de</strong>ram o<br />

Salvador na cruz! Todo artefato tinha seu valor para pren<strong>de</strong>r o visitante. Era por tais<br />

coisas que vínhamos lutar? Cada uma daquelas pedras <strong>em</strong> seu caminho, asseguravam os<br />

vendilhões, test<strong>em</strong>unhara uma profecia, cada nesga <strong>de</strong> ar quente ouviu um salmo e um<br />

cantar <strong>de</strong> salmo dos antigos profetas, cada entranha na rocha acolhera um Malaquias ou<br />

um Isaias, cada pedaço <strong>de</strong> pano po<strong>de</strong> ter coberto o corpo do Hom<strong>em</strong>-Deus. Não<br />

duvidavam mais, a terra dos Philistins – a Palestina - era o berçário dos iluminados <strong>de</strong><br />

Deus, aquela era sim a Terra Santa”.<br />

“Foi então que se assistiu a uma das mais ímpares revoluções. Incapacitados <strong>de</strong><br />

enfrentamento numa guerra justa e cansados das esperas, à nossa frente, todos<br />

exasperados pela incompetência e paralisia da elite abácida, que se mostrava incapaz <strong>em</strong><br />

fazer frente aos mongóis e aos cristãos, provocaram um movimento ingente. Mal<br />

acreditávamos no que víamos e ven<strong>de</strong>ríamos a alma por água. Os chefes mamelucos<br />

<strong>de</strong>ram um golpe <strong>de</strong> Estado, no Cairo, r<strong>em</strong>ovendo o califa. Caíra uma cabeça para subir<br />

outra com <strong>de</strong>sdém e lamúrias. Os mamelucos eram soldados-escravos <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> turca,<br />

eram estranhos trazidos à força, importados pelos governos árabes para conduzir as<br />

tropas e formar ‘guardas <strong>de</strong> confiança’. Tamanha tolice entre gente tão esclarecida pôs<br />

Coelho De Moraes 84


MARCUS, o imortal<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>rrocada as dinastias reinantes. Nunca lhes havia sido dado qualquer papel político,<br />

a não ser o <strong>de</strong> obe<strong>de</strong>cer servilmente às or<strong>de</strong>ns. E agora eu vejo, pois agora tudo isso<br />

acontece, o t<strong>em</strong>po é real, as mortes se suced<strong>em</strong>, e apoiado pela vitória sobre os mongóis<br />

<strong>em</strong> Ain Jalut, o <strong>em</strong>ir Baibars fundou o sultanato mameluco, injetando ânimo na<br />

população conclamada à jihad, a uma guerra santa contra os infiéis”.<br />

Era uma visão e cessava nesse ponto. Cessava aí a visão <strong>de</strong> Alberto. Ele largouse<br />

por terra, cansado. Resfolegava.<br />

OPUS 39<br />

Enquanto as nuvens caiam no horizonte, uma larga faixa azulada <strong>de</strong> tonalida<strong>de</strong>s<br />

escuras crescia do outro lado; vimos que vinham galope, trazidos pelo vento ou por<br />

golfadas do Inferno, os soldados <strong>de</strong> Clairvaux; manifestaram-se abertamente na noite,<br />

carregando suas almas fétidas. Bernard vinha à frente. Parou a nos olhar. Falou b<strong>em</strong><br />

alto:<br />

- Eu não estava lá, mas as muitas bocas <strong>de</strong> contar ecoam toda a história, - ele <strong>de</strong>sceu do<br />

cavalo pútrido e se aproximou movendo um leve bafio <strong>de</strong> entranhas e sepulcro. -<br />

Finalmente, ao avistar<strong>em</strong> Jerusalém, um êxtase místico acometeu a todos.<br />

Ele contava enquanto prendia o seu cavalo morto/vivo nos galhos das pequenas<br />

árvores.<br />

- O céu parecia <strong>de</strong>sabar <strong>em</strong> torrentes <strong>de</strong> areia <strong>em</strong> torvelinho . De joelhos, o povo, os<br />

soldados e os barões, prostraram-se na frente dos seus muros. Jerusalém se<br />

manifestava. Séculos chamavam aos homens e uma grita imensa fez levantar essas<br />

almas que aqui estão.<br />

Nesse momento Bernard apontou para os soldados podres que o<br />

acompanhavam.<br />

- Lá <strong>de</strong>ntro, alarmado com a chegada daqueles belicosos, o governador egípcio reforçou<br />

as <strong>de</strong>fesas. Mas, era pouco o que podia fazer, contam os relatos. Cida<strong>de</strong> escolada <strong>em</strong><br />

assaltos e sítios, as muralhas <strong>de</strong> Jerusalém eram impressionantes, mas <strong>de</strong>sta vez não<br />

<strong>de</strong>teriam a força da fé dos famintos <strong>de</strong> Deus. Todos esses famintos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo suas<br />

vidas, suas mortes e seus tesouros, que já estavam se amontoando <strong>em</strong> mãos alheias,<br />

banqueiros do novo século. Pedro Er<strong>em</strong>ita, lí<strong>de</strong>r da chusma cristã, sugeriu repetir o<br />

ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> Josué <strong>em</strong> Jericó. De repente, um amontoado <strong>de</strong> vozes <strong>de</strong>sgovernadas se fez<br />

ouvir. Ajudantes do profeta gritavam mais alto ainda, tentando conter os incautos e<br />

<strong>de</strong>st<strong>em</strong>idos soldados. Tocavam trombetas. Batiam nos rostos dos entusiasmados para se<br />

organizar<strong>em</strong>. Os cruzados queriam <strong>de</strong>rrubar as muralhas a toques <strong>de</strong> corneta, enquanto<br />

evocavam o céu <strong>em</strong> piedosa procissão, batendo os pés, fazendo a terra tr<strong>em</strong>er.<br />

Descalços, <strong>em</strong> trajes <strong>de</strong> penitentes, com rosários e ladainhas, os cristãos fizeram várias<br />

voltas ao redor da cida<strong>de</strong>, cravando no chão olhares ímpares <strong>de</strong> fé ardorosa e fome<br />

aguerrida, salmodiando, cantando, dançando como David o teria feito, acreditavam, sob<br />

as vistas zombeteiras dos guardas muçulmanos que, do alto das seteiras, assistiam<br />

espantados àquela inútil rezaria. Não era uma zombaria <strong>de</strong> <strong>de</strong>smerecimento, mas os<br />

muçulmanos tinham ciência <strong>de</strong> que as muralhas eram intransponíveis. Nenhuma pedra<br />

rolou das muralhas, n<strong>em</strong> um tijolo g<strong>em</strong>eu.<br />

Bernard <strong>de</strong> Clairvaux veio até nós, retirando as luvas e <strong>de</strong>ixando à mostra as<br />

mãos <strong>de</strong>scarnadas. Olhou para Alberto, que estava <strong>de</strong>smaiado, como se lesse nele outras<br />

visões. Voltou-se para nós.<br />

- Deram-se conta então, os comandantes surpresos, que lhes faltava ma<strong>de</strong>ira para o<br />

assédio. Estavam <strong>de</strong>spreparados. Sonharam com a facilida<strong>de</strong> da guerra por se sentir<strong>em</strong><br />

os <strong>de</strong>fensores da verda<strong>de</strong> cristã contra o infiel muçulmano. Tiveram a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

esperar os navio. Alguém dissera que o papa enviara <strong>de</strong> Nápoles um carregamento <strong>de</strong><br />

homens e armas e alimentos. Um grupamento <strong>de</strong>stacado e menos tangido pela inércia da<br />

fé <strong>de</strong>sceu ao litoral, mas nada havia ali. Então, tomaram <strong>de</strong> um navio qualquer.<br />

Conseguiram, graças à presteza <strong>de</strong> alguns marinheiros genoveses. Príncipes <strong>de</strong> várias<br />

partes da Itália atracavam na praia e com eles os mastros e o ma<strong>de</strong>irame <strong>de</strong> navios que<br />

se tornariam <strong>em</strong> peças <strong>de</strong> guerra. Construíram então aríetes e torres. Rezando e<br />

praguejando arrastaram-nas para as beiradas dos muros. Houve estr<strong>em</strong>ecimento por<br />

parte dos muslins. O assalto final a Jerusalém <strong>de</strong>u-se no dia 15 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1099. Muita<br />

cabeça rolou, <strong>de</strong> muito peito jorrou sangue negro, muita alma se per<strong>de</strong>u na luta.<br />

Preten<strong>de</strong>-se que foi Bo<strong>em</strong>ondo o primeiro cristão a pôr os pés no alto do fortim. Levava<br />

uma ban<strong>de</strong>ira. Estava imbuído <strong>de</strong> uma fé tenaz. A guarda muçulmana, assustada,<br />

Coelho De Moraes 85


MARCUS, o imortal<br />

recuou. Na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>bandou. Conforme a solda<strong>de</strong>sca cristã se enfiava pelas vielas que<br />

cercavam a Mesquita <strong>de</strong> Omar e a Sinagoga, os homens foram tomados por um furor<br />

homicida e a pior das mortes alcançou muita gente naquele momento terrível.<br />

Bernard fez um sinal para um <strong>de</strong> seus chefes e eles se afastaram para os<br />

campos.<br />

- Os pacíficos habitantes da cida<strong>de</strong>, ju<strong>de</strong>us e muçulmanos, representavam para eles o<br />

d<strong>em</strong>ônio, a impureza, a profanação dos lugares santos. Não houve perdão. Misture o<br />

fanatismo à fé, à fome e à areia do <strong>de</strong>serto e será possível ter uma idéia do que se<br />

passava Os árabes que encontraram no pátio da Gran<strong>de</strong> Mesquita foram exterminados e<br />

caíram sob a espada e as lançadas. A correria era imensa, todos aturdidos e <strong>em</strong> situação<br />

limite, apesar <strong>de</strong> saber<strong>em</strong> que do lado <strong>de</strong> fora das muralhas uma horda <strong>de</strong> cristãos<br />

famintos <strong>de</strong> fé, mas exaltados pela loucura, esperava sua vez. Confiavam todos na<br />

muralha milenar. Aos ju<strong>de</strong>us coube um <strong>de</strong>stino pior. Encerrados no T<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> Salomão,<br />

foram queimados vivos. Não haveria ali compaixão alguma, e eram cristãos. Por isso que<br />

durante milênios a situação dos cristãos foi se tornando pior... Pouparam apenas a vida<br />

do governador egípcio Iftikhar ad-Dawl e dos seus guardas. L<strong>em</strong>bro que me disseram<br />

isso ter sido idéia <strong>de</strong> Raymond <strong>de</strong> Saint-Gilles, um cavaleiro <strong>de</strong> cãs brancas, que<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhava ser cruel com os fracos. Jurara proteção ao mandatário. Os cristãos<br />

fizeram <strong>em</strong> Jerusalém coisa que oscila por volta <strong>de</strong> 40 mil mortos!<br />

E n<strong>em</strong> se pô<strong>de</strong> responsabilizar os chefes pela matança, disseram muitos que<br />

encontrei pelo caminho, enquanto fundava minhas igrejas. Estes tentavam resguardar<br />

uma moral <strong>de</strong>preciada e traumática. Os barões b<strong>em</strong> que tentaram conter a solda<strong>de</strong>sca,<br />

mas ela escapou-lhes ao controle, diz<strong>em</strong>, mas vai saber se é verda<strong>de</strong>. A fúria estava no<br />

domínio. As almas que habitaram os <strong>de</strong>sertos e passaram privações queriam recomporse<br />

a todo custo. Fanatizado, o cristão comum, consi<strong>de</strong>rando-se um vingador celestial,<br />

coisa que lhe foi imputada pelos chefes das Igrejas, virara um animal feroz a qu<strong>em</strong> um<br />

estripamento, uma carótida esguichando, ou a <strong>de</strong>gola dos gentios, parecia a justa<br />

revanche dos tormentos <strong>de</strong> Cristo. Era mister vingar a morte <strong>de</strong> Jesus, principalmente<br />

acabando com os ju<strong>de</strong>us. Qu<strong>em</strong> respirasse era morto. Mataram inclusive os animais<br />

domésticos. Criança era o que havia <strong>de</strong> mais fácil <strong>de</strong> se matar. E, olha que todos eram<br />

cristãos.<br />

- Uns anos antes da catástrofe, - eu disse para Bernard, repetindo o que ouvira falar e o<br />

que lera <strong>em</strong> fragmentos abundantes encontrados <strong>em</strong> Paris, - o poeta árabe al-Maari,<br />

que morrera <strong>em</strong> 1057, tivera a seguinte percepção sobre os homens: separara-os <strong>em</strong><br />

dois grupos: "os que têm cérebro mas não têm religião/ E aqueles que têm religião mas<br />

não têm cérebro".<br />

- O Gran<strong>de</strong> Massacre, - dissera Pietro, - além <strong>de</strong> ter azedado para s<strong>em</strong>pre a relação entre<br />

os cristãos e os muçulmanos, permaneceu como um <strong>de</strong>sses estúpidos altares sacrificais<br />

erguidos pelos homens que têm religião mas não têm cérebro.<br />

- Os cavaleiros cristãos, - eu dava nova contribuição aos pensamentos que trocávamos<br />

naquele momento, - na época da primeira cruzada, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<strong>em</strong> conquistado<br />

Jerusalém no ano 1099, dividiram a região da Terra Santa <strong>em</strong> diversos reinos e,<br />

explorando a fraqueza e os <strong>de</strong>sacertos entre os maometanos, conseguiram firmar-se lá<br />

por algum t<strong>em</strong>po.<br />

- Mas essa situação só durou até que Saladin, um chefe curdo, - completava Bernard, -<br />

conseguiu li<strong>de</strong>rar o povo do Crescente. Em 1174, as forças do Islã passaram a contar<br />

com a extraordinária energia do sultão, <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> curda, Saladin.<br />

Novamente Bernard prestou atenção <strong>em</strong> Alberto que se recompunha após a<br />

visão.<br />

- Saladin pôs fim ao inoperante califado fatímida do Egito, passou a coor<strong>de</strong>nar uma<br />

campanha sist<strong>em</strong>ática contra as bases dos infiéis. A partir <strong>de</strong>le, os dias <strong>de</strong> posse da<br />

cristanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um pedaço da terra sagrada se encerraram. Não era fácil manter<br />

guarnição, n<strong>em</strong> ajuda <strong>de</strong> príncipes cujo dinheiro mudava <strong>de</strong> mão constante ou passavam<br />

<strong>de</strong>finitivamente para as mãos dos T<strong>em</strong>plários, que tinham suas próprias missões.<br />

- E hoje, Monsieur Bernard, - perguntei, - o que acontece hoje?<br />

Ele virou-se para mim como se nunca me tivesse visto e percebi que seu olhar<br />

passava por mim per<strong>de</strong>ndo-se alhures. Era um olhar morto, se b<strong>em</strong> que cinzento. Um<br />

leve brilho perdido, o <strong>em</strong>baçado tomava lugar concreto.<br />

- As tropas do sultão Qalaum mal haviam saído do Cairo quando ele começou a sentir-se<br />

mal. Resolveram acampar <strong>em</strong> Marjat-al-Tin, on<strong>de</strong> o seu filho al-Asrhraf Khalil, foi<br />

Coelho De Moraes 86


MARCUS, o imortal<br />

chamado às pressas à tenda do pai. Ali, ele jurou dar continuida<strong>de</strong> à campanha militar<br />

contra o que restava dos cruzados que ainda ocupavam um pedaço da Terra Santa.<br />

Acredito que sejam estes os <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros movimentos dos cristãos naquelas terras...<br />

<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros movimentos <strong>de</strong> uma longa e dolorosa guerra que, apesar <strong>de</strong> seguidas<br />

tréguas, envolv<strong>em</strong> muçulmanos e cristãos há quase dois séculos.<br />

- Em 1099, conseguiram tomar Jerusalém, massacrando quase toda a infeliz população<br />

muçulmana lá capturada. Se houvesse um mínimo <strong>de</strong> justiça divina e essas atrocida<strong>de</strong>s<br />

não teriam lugar, - falei nervoso, com a frase engatilhada e pronta para <strong>de</strong>scerrar o tiro,<br />

- e , não pára por aí. Em 1100, Balduíno, con<strong>de</strong> <strong>de</strong> E<strong>de</strong>ssa, resolveu proclamar-se rei <strong>de</strong><br />

Jerusalém e os cruzados formaram o Reino Latino, composto por quatro estados nas<br />

regiões oci<strong>de</strong>ntais da Síria, Líbano e Palestina. Po<strong>de</strong>r e terras. Honrarias e força. Nada<br />

mais que vaida<strong>de</strong>.<br />

- Aproximadamente nesta época eu me aliei a Cister, - disse Clairvaux. Por isso o monge<br />

que vocês agüentam nestas reuniões me o<strong>de</strong>ia tanto... <strong>de</strong>scen<strong>de</strong> do antigo aliado senhor<br />

<strong>de</strong> Cister. Apesar <strong>de</strong> sua escassez <strong>em</strong> homens, conseguiram se impor aos nativos graças<br />

às po<strong>de</strong>rosas armaduras, <strong>de</strong>terminação fanática, e a série <strong>de</strong> fortes e castelos que<br />

construíram na área. O aparato <strong>de</strong> força tinha que ser engran<strong>de</strong>cido a todo momento.<br />

Rios <strong>de</strong> moedas <strong>de</strong> ouro, prata e riquezas tinham que ser transportadas e guardadas<br />

para preservar o po<strong>de</strong>r alcançado pelas armas.<br />

Naquele momento Alberto já estava <strong>de</strong> pé, limpava a roupa, tentava alguns<br />

passos ainda titubeantes.<br />

- Para assegurar ainda mais o domínio sobre uma população hostil, permitiram que<br />

mercadores das cida<strong>de</strong>s comerciais italianas lá se instalass<strong>em</strong>, b<strong>em</strong> como criaram as<br />

or<strong>de</strong>ns monacais dos t<strong>em</strong>plários e dos hospitalários, para dar apoio logístico às romarias<br />

incessantes vindas da Europa.<br />

Divididos entre si, os muçulmanos d<strong>em</strong>oraram quase meio século para reagir ao torpor<br />

provocado pela invasão dos odiados franjs, como eram chamados por eles os cruzados. A<br />

cada sucesso dos árabes, mais cristãos <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barcavam nos portos para assegurar a<br />

posse dos lugares sagrados. Depois <strong>de</strong> vitorioso na batalha <strong>de</strong> Hattin, Saladin teve a<br />

honra <strong>de</strong> ser o primeiro lí<strong>de</strong>r islâmico a retomar a cida<strong>de</strong> sagrada <strong>de</strong> Jerusalém ao<br />

expulsar os cruzados <strong>de</strong> lá.<br />

A noite <strong>de</strong>sabava fria e grave. Bernard bateu uma luva contra a mão.<br />

Bernard saiu <strong>de</strong> nossa presença para o encontro dos soldados.<br />

Alberto, recuperado, tr<strong>em</strong>ia um pouco.<br />

Esperamos, <strong>de</strong> encontro à pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> árvores, que os soldados se afastass<strong>em</strong> e<br />

retornamos para a estalag<strong>em</strong>.<br />

OPUS 40<br />

Nos livros V e XXI <strong>de</strong> A República dos Upires, manuscrito no fim do século 11,<br />

Bramilius assume um gran<strong>de</strong> papel na Teoria dos Upires. Entre estas histórias e o estudo<br />

da pedra, eu e os rapazes nos perdíamos <strong>em</strong> sonhos e visões pouco claras. Enquanto<br />

isso Tomás pedia uma pausa nos estudos da Pedra Filosofal, para cuidar <strong>de</strong> Alberto e<br />

<strong>de</strong>bater com ele os últimos eventos, eu, Pietro e LaCordaire, revimos profundamente o<br />

fundamental das doutrinas platônicas.<br />

- Não pod<strong>em</strong>os dissociar os aspectos da religiosida<strong>de</strong> possível <strong>de</strong> Platão e seu estudo<br />

sobre sensações e comportamento, - falou Pietro <strong>de</strong> Ferrara.<br />

- Dentro <strong>de</strong>sse contexto, digo que o b<strong>em</strong> é, no mundo inteligível, <strong>em</strong> relação à<br />

inteligência e ao inteligível, "o mesmo que o Sol no mundo visível <strong>em</strong> relação à vista e o<br />

visível", - completou LaCordaire.<br />

- Para mim é só poesia... Assim, revendo nossa experiência com os upires e as aventuras<br />

com Calatin, o Cão raivoso, lí<strong>de</strong>r da horda <strong>de</strong> ciganos assassinos ligados a Andréa, há<br />

certa dificulda<strong>de</strong> na pesquisa da verda<strong>de</strong> inerente ao ser humano e à natureza notívaga<br />

do morcego; tudo se confun<strong>de</strong>; pois "assim como os olhos dos morcegos reag<strong>em</strong> diante<br />

da luz do dia, assim também a inteligência que está <strong>em</strong> nossa alma se comporta diante<br />

das coisas que, por sua natureza, são as mais evi<strong>de</strong>ntes". São conjecturas, eu sei... pura<br />

poesia. Terá tudo isso algum valor?<br />

LaCordaire disse: - ... mas tais pr<strong>em</strong>issas tornaram-se a base da equação lógica<br />

que <strong>de</strong>s<strong>em</strong>bocou na associação dualista b<strong>em</strong>-luz-dia/mal-trevas-noite. Isso <strong>de</strong>u asas <strong>de</strong><br />

morcego ao Diabo. Em t<strong>em</strong>pos recentes, con<strong>de</strong>nou os upires a viver<strong>em</strong> numa noite<br />

eterna.<br />

Coelho De Moraes 87


MARCUS, o imortal<br />

- Contudo, - opinou Pietro -, estamos aqui conversando <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> mitos ou <strong>em</strong><br />

termos do que vivenciamos no episódio <strong>de</strong> noites atrás? Estamos aqui teorizando <strong>em</strong><br />

geral ou vamos nos basear <strong>em</strong> relatos <strong>de</strong> experiências? Se for a última hipótese, eu<br />

prefiro sair a campo para obter mais dados. Em muita coisa que eu pus os olhos já (ou<br />

não?) creio mais.<br />

- É como se dissesse: “N<strong>em</strong> se aparecer um fantasma aqui na minha frente eu acredito<br />

nele. Vou achar que estou louco e só!”, - brincou LaCordaire.<br />

- É isso. Vamos voltar à floresta, - propus. E saímos.<br />

Meia hora <strong>de</strong> caminhada. Duas horas <strong>de</strong> barco e alguns montes para<br />

alcançarmos uma clareira imensa, cercada por altas construções velhuscas e <strong>de</strong>struídas.<br />

Cheguei à conclusão <strong>de</strong> que o frio da madrugada po<strong>de</strong>ria afetar nossa observação e<br />

fomos cobertos com muitas túnicas.<br />

- Não creio que a luz atue sobre as fibras da estrutura tanto quanto sobre a matéria<br />

intercalar que serve para enrijecer as estruturas corporais <strong>de</strong>sses seres. Até agora só<br />

vimos ex<strong>em</strong>plos fracos e pobres, exceto a lenda <strong>de</strong> Calatin que é na verda<strong>de</strong> a <strong>de</strong> um<br />

monstro e que ainda está vivo. Se é que aquilo é viver.<br />

- Vamos fazer o seguinte. Vamos buscar materializações <strong>de</strong> seres incorpóreos e<br />

provavelmente restabelecer<strong>em</strong>os contatos com os upires, que precisam <strong>de</strong> massa viva...<br />

e não pod<strong>em</strong>os ser nós essa massa viva. Vamos interpor entre nós e os upires, se<br />

estiver<strong>em</strong> por aqui, é evi<strong>de</strong>nte, essa substância fria e viscosa.<br />

- Talvez seja um composto alquímico complexo, - falou LaCordaire, - e <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os ter<br />

cuidado extr<strong>em</strong>o <strong>em</strong> manusear estas formas... você sabe. São pertencentes aos<br />

el<strong>em</strong>entos nervosos do corpo... qualquer luz dissocia as ligações. Altera o tipo <strong>de</strong><br />

substância, da mesma forma que o calor coagula as claras.<br />

- Tenho razões <strong>de</strong> sobra para crer que conseguir<strong>em</strong>os. Sei que a experiência d<strong>em</strong>onstra<br />

que a luz vermelha, principalmente a vermelha, é a menos perturbadora.<br />

Então, na clareira, enquanto o bafio frio e resinoso das folhagens nos alcançava,<br />

LaCordaire, mais apto nas funções <strong>de</strong> captação da massa astral que há <strong>em</strong> nossos<br />

corpos, passou a fazer <strong>de</strong>senhos no chão, a se mostrar <strong>em</strong> transes leves e a vasculhar o<br />

ar com seus maneios e palavras <strong>de</strong> significados in<strong>de</strong>cifráveis. Por fim, uma nuv<strong>em</strong> <strong>de</strong>nsa<br />

se fez e junto a ela alguns vultos se mostraram atarefados.<br />

Um dos vultos, rápido e quase disperso passou a vivenciar a nuv<strong>em</strong> muito rala<br />

que pairava a meia altura <strong>de</strong> nossos peitos. No início, o vulto conseguia assumir formas<br />

vagas, b<strong>em</strong> <strong>de</strong> acordo com a rarefação da nuv<strong>em</strong> e sua coloração clara, b<strong>em</strong> aveludada;<br />

mas, com o t<strong>em</strong>po, o vulto apren<strong>de</strong>u a moldar um corpo. Com o passar do t<strong>em</strong>po as<br />

forças do vulto pareciam aumentar... gradativamente a<strong>de</strong>nsando as formas, que num<br />

primeiro olhar estavam plasmadas como que <strong>em</strong> algodão... aumentaram gradualmente<br />

enquanto que sabíamos que o suor gelado <strong>de</strong> nossas testas escorriam com um pouco <strong>de</strong><br />

nossas forças. Pietro <strong>de</strong> Ferrara cabeceou <strong>de</strong> sono e eu o fiz enten<strong>de</strong>r que seria uma<br />

experiência frustrada, no meio da noite, se ele viesse a dormir. Pietro aprumou-se. Por<br />

fim, o vulto após horas <strong>de</strong> tentativas vãs, conseguiu articular um som, pois a nuv<strong>em</strong><br />

tinha um formato <strong>de</strong> aparelho fonador humano. Já estávamos atingindo as três horas da<br />

manhã quando g<strong>em</strong>idos e tosses eclodiam na lareira provenientes do vulto e <strong>de</strong> seu<br />

aparelho vocal mal usado.<br />

- Não quero a luz!, - foi o que ouvimos pobr<strong>em</strong>ente.<br />

- Por quê?, - perguntou LaCordaire?<br />

- Não posso... não posso mostrar-me sob luz forte.<br />

- E qual a razão disso?<br />

- Isso me aborrece, - ouvimos tosse, como <strong>de</strong> alguém cansado e doente. A voz era fraca<br />

e perdida, na verda<strong>de</strong>. - Já disse que não me é possível suportar a clarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma luz<br />

intensa.<br />

- Você não sabe a razão disso?<br />

- Não sei porque me é impossível.<br />

- Você sabe qual seu nome?<br />

- Sei... e não interessa... só vim para rel<strong>em</strong>brar os gozos do corpo... mas esse corpo é<br />

pobre...<br />

- São extratos <strong>de</strong> nossos corpos...<br />

- Entretanto, - e o vulto arfava como se tivesse asma, - se duvida <strong>de</strong> minhas palavras,<br />

acendam todas as luzes que tiver<strong>em</strong>..., - enquanto falava, do aparelho fonador inicial o<br />

vulto foi tomando forma <strong>de</strong> gente... um tipo estranho... face comprida, cabelos <strong>em</strong><br />

Coelho De Moraes 88


MARCUS, o imortal<br />

<strong>de</strong>salinho, olhos amendoados e amplos... enfim, tinha um traço que nos fez l<strong>em</strong>brar dos<br />

antigos upires... mas, ele continuou: - Previno, porém, <strong>de</strong> que, se me submeter<strong>em</strong> a<br />

essa prova, não voltarei mais... Façam a escolha.<br />

Olhamo-nos. Decidimos tentar a experiência e ver o que suce<strong>de</strong>ria. Perceb<strong>em</strong>os<br />

que houve gran<strong>de</strong> dor e sofrimento. O vulto, já completamente formado e disso nos<br />

arrepend<strong>em</strong>os <strong>de</strong>pois, se colocou <strong>de</strong> pé junto a uma pedra, abriu os braços como se<br />

pedisse cl<strong>em</strong>ência ou pieda<strong>de</strong> e passou a aguardar o que ocorreria. Acendêramos<br />

fogueiras e tochas. Foi extraordinário o efeito produzido sobre o vulto já completamente<br />

pronto, alta estatura, que pobr<strong>em</strong>ente resistiu à clarida<strong>de</strong>. Vimos, <strong>em</strong> seguida, que se<br />

fundia como um boneco <strong>de</strong> cera. Derreteu. Primeiro, os traços fisionômicos sumiram num<br />

red<strong>em</strong>oinho <strong>de</strong> massas monstruosas, que não mais se distinguiam. Os olhos enterraramse<br />

nas órbitas, cavos negros reapareceram, o nariz <strong>de</strong>sapareceu, a testa como que<br />

entrou pela cabeça formando um <strong>em</strong>aranhado <strong>de</strong> fios soltos. A nuv<strong>em</strong> voltava à sua<br />

rarefação e os vultos <strong>de</strong>sapareciam.<br />

- Os upires retiram a energia dos nossos corpos? – perguntou Pietro.<br />

- Por mim, ainda b<strong>em</strong> que essa coisa dissolveu, pois me sentia a cada momento mais<br />

fraco e tonto, - falou LaCordaire.<br />

- Serão todos eles upires?, - disse eu. - Eles subtra<strong>em</strong> a essência do corpo das pessoas.<br />

- Mas foi com nosso consentimento.<br />

- O que teria dito Bramilius sobre isso, Pietro?<br />

- Provavelmente, Bramilius estava ciente das teses que giravam <strong>em</strong> torno das<br />

experiências, mas, pelo que posso enxergar aqui nos textos, ele escolheu não atribuir os<br />

mesmos ônus <strong>de</strong> um fantasma incorpóreo a um upir cujo corpo se mantém intacto.<br />

Parece que a experiência <strong>de</strong> Bramilius foi <strong>de</strong> menor monta que a nossa <strong>de</strong> hoje... ele<br />

apenas imaginou upires que levavam vida noturna por hábito, e l<strong>em</strong>br<strong>em</strong>-se que tiv<strong>em</strong>os<br />

um contato terrível naquela cida<strong>de</strong>la... Mas, não po<strong>de</strong>ria afirmar que se trata <strong>de</strong> malda<strong>de</strong><br />

ou coisas dos mistérios satânicos... po<strong>de</strong> ser apenas necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobrevivência e,<br />

para que isso aconteça, a pessoa que sofre fará tudo...<br />

- Justamente naquilo <strong>em</strong> que você não acredita mais...<br />

- A partir <strong>de</strong> agora eu volto a acreditar no que vi... se b<strong>em</strong> que ainda ache tudo isso uma<br />

loucura...mas, dizia Bramilius, os upires não sofriam nenhuma reação extraordinária<br />

<strong>de</strong>vido ao contato com a luz solar. A prova disso está numa passag<strong>em</strong> do capítulo III, da<br />

República dos Upires, Bramilius diz que passou muitas vezes por vilarejos on<strong>de</strong> residiam<br />

upires majestosos e ele os cumprimentava s<strong>em</strong> segundas intenções, com saudações e<br />

visitas matinais... Parece que espelhos são mais críticos, nesse ponto, provavelmente,<br />

diz Bramilius, por ter<strong>em</strong> a raiz da palavra enfronhada nos meandros da alquimia mental,<br />

com feitiços e encantamentos... Há um capítulo especial sobre o po<strong>de</strong>r do aço, do cobre<br />

laminado, e das superfícies aquáticas límpidas e brilhantes.<br />

- Então, - falei, - os espíritos malignos não são mais po<strong>de</strong>rosos à noite, como quer<strong>em</strong><br />

alguns.<br />

La Cordaire, para não per<strong>de</strong>r a oportunida<strong>de</strong> do humor, retrucou: - O papa anda<br />

muito b<strong>em</strong> durante o dia...<br />

- Contudo, aqui encontramos um vulto sendo <strong>de</strong>struído pelo luz das achas e da fogueira.<br />

Partindo daí, pod<strong>em</strong>os pensar que a exposição ao sol ou à luz, po<strong>de</strong> provocar efeitos que<br />

vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> queimaduras graves, combustão espontânea e até explosão; mais<br />

precisamente quando o upir estiver se envolvendo com a energia plástica dos seres vivos<br />

a sua volta.<br />

- Estou prestes a acreditar <strong>em</strong> coisa mais simples. Há anomalias claras, principalmente<br />

por tratarmos <strong>de</strong> seres que já não viv<strong>em</strong> e <strong>de</strong>sejam expor-se ao mundo vivo, novamente.<br />

As almas <strong>de</strong>sses seres, <strong>de</strong>sses vultos, estão claramente doentes.<br />

- Bom. Acho que por hoje basta. Logo a floresta se iluminará, - <strong>de</strong>clarei.<br />

Saímos, assim, para a estrada, <strong>de</strong> volta.<br />

Últimos lampejos <strong>de</strong> vaga-lumes brilhavam na s<strong>em</strong>i-escuridão entre as árvores.<br />

Ou seriam olhos a nos espreitar?<br />

OPUS 41<br />

Pela manhã, n<strong>em</strong> b<strong>em</strong> chegávamos à estalag<strong>em</strong>, um bando <strong>de</strong> trovadores<br />

apontou na estrada e veio se estabelecer na hospedaria. Estavam visivelmente cansados<br />

da viag<strong>em</strong>. Bebida e alimentação e um pouco <strong>de</strong> pousada. Em troca, cantariam e trariam<br />

as graças da arte e da diversão para todos. Não era s<strong>em</strong>pre que especialistas se<br />

Coelho De Moraes 89


MARCUS, o imortal<br />

apresentavam <strong>em</strong> locais pequenos. Era mister aproveitar. O estalaja<strong>de</strong>iro concordou e<br />

naquela mesma tar<strong>de</strong> as primeiras funções se fizeram no estábulo, adaptado que foi para<br />

tanto. Vizinhos chegavam <strong>de</strong> todos os lados. Os trovadores vinham da Península Ibérica.<br />

De fato a poesia na Península Ibérica era composta e cantada por jograis que, nas ruas<br />

ou na corte, criavam uma arte fascinante. Notícias como estas corr<strong>em</strong> pelos campos<br />

como geniais zéfiros. Estávamos cercados por trovadores, os jograis e as solda<strong>de</strong>iras.<br />

Vinham <strong>de</strong> fuga, tentando escapar das hordas <strong>de</strong> Calatin que, dizia-se, não estava<br />

permitindo que as vilas permanecess<strong>em</strong> <strong>em</strong> pé.<br />

- Que felicida<strong>de</strong> a minha po<strong>de</strong>r contar com gente como esta por aqui!<br />

- Tal é nossa a honra, senhor – disse o mais velho <strong>de</strong>les e provavelmente o Mestrecantor.<br />

- Eu peço, - falava Alberto tomando-lhe do braço, - que nos dê com absoluta precisão os<br />

toques e cantos do Trovadorismo galaico-português. Isso nos trará boas l<strong>em</strong>branças e<br />

boa poesia.<br />

- Com prazer, senhor. O t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se inscreve o Trovadorismo galaico-português me<br />

é muito b<strong>em</strong> gravado na m<strong>em</strong>ória e, <strong>em</strong> sua honra, tecerei trovas e melodias que o<br />

agradarão sumamente. Agradarão a todos, na verda<strong>de</strong>...<br />

O Trovadorismo galaico-português está situado <strong>em</strong> 1196, provável época <strong>em</strong> que<br />

surgiu a cantiga Ora faz ost' sob um certo senhor <strong>de</strong> Navarra, um sirventês político <strong>de</strong><br />

Johan Soarez <strong>de</strong> Pávia, os anais b<strong>em</strong> o contam e muita gente grada também o faz e<br />

registra.<br />

- Mas agora não sei se é o caso <strong>de</strong>sse seu benquisto grupo, - Alberto continuava com sua<br />

petição - há uma lírica galaico-portuguesa, não é Tomás(?), que ce<strong>de</strong> lugar à chamada<br />

galaico-castelhana, e, porventura, ter<strong>em</strong>os o prazer <strong>de</strong> ouvir também esta?<br />

- A nossa trupe <strong>de</strong> viajores, caro senhor, s<strong>em</strong> estar equivocado, e, digo isto por ter<br />

preservado no hoje o previamente conhecido Cancioneiro <strong>de</strong> Baena, t<strong>em</strong> <strong>em</strong> seu<br />

repertório lotes imensos <strong>de</strong> obras <strong>de</strong>ssa riqueza... o senhor e nossos hospe<strong>de</strong>iros, tenho<br />

certeza, se regozijarão com as apresentações.<br />

Alberto pediu <strong>de</strong>sculpas pela intromissão e dirigiu o grupo para o <strong>de</strong>scanso na<br />

estalag<strong>em</strong>. Em seguida continuaram com a conversa. Concordaram numa cantoria<br />

noturna. Uma cantoria que ocupasse tudo aquilo que está contido no Cancioneiro <strong>de</strong><br />

Baena como sendo o corpo da poesia galaico-castelhana, <strong>em</strong>bora houvesse nele textos<br />

muito próximos aos cancioneiros galaico-portugueses.<br />

Tais <strong>de</strong>lícias artísticas e intelectuais foram regadas a porco e vinho no almoço.<br />

Depois, à tar<strong>de</strong>zinha, copázios <strong>de</strong> uvas esmagadas. Na entrada da noite os intrumentos<br />

retirados das carruagens, as saias e roupagens expostas, o encontro <strong>em</strong> si.<br />

Recebíamos com amiza<strong>de</strong> aquele grupo alegre, porém assustado.<br />

De todo modo, à medida que os artistas apresentavam seus cantos e cantorias,<br />

suas poesias e trovas, Alberto nos ia explicando as origens <strong>de</strong>sse ou daquele t<strong>em</strong>a.<br />

Houveram improvisos, também. Louvou-se o estalaja<strong>de</strong>iro e sua família. Em meio a um<br />

não pequeno conjunto <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s relacionadas a viagens e transporte, os trovadores<br />

<strong>de</strong>clinavam a gratidão para com aquele hom<strong>em</strong> que os vinha recebendo e alimentando.<br />

Os trovadores provençais se faziam notar com cantigas <strong>de</strong> amor, cantigas <strong>de</strong> amigo. No<br />

entanto, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado estas discussões complexas <strong>em</strong> <strong>de</strong>talhes e perdidas nas<br />

questões do t<strong>em</strong>po, o que importa ressaltar é que a passag<strong>em</strong> para a noite mais fechada<br />

nos pareceu favorável e feliz; foi um período <strong>de</strong> riqueza indiscutível, que não apenas nos<br />

legou algumas obras <strong>de</strong> beleza incomparável, momentos <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> intensa, livrandonos<br />

um pouco das amargas vicissitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> nossos trabalhos ocultos e das pesquisas<br />

agras que nos acompanhariam para s<strong>em</strong>pre. Cantei com eles a conhecida cantiga <strong>de</strong><br />

Martin Codax: "Ondas do mar <strong>de</strong> Vigo, / se vistes meu amigo? / E ay Deus, se verrá<br />

cedo!", cantiga que me fascina e que agradou a alguns dos visitantes daquela boa hora,<br />

graças a alguns dos maiores poetas <strong>de</strong> nosso t<strong>em</strong>po. Mas qu<strong>em</strong> eram aqueles poetas,<br />

trovadores, saltimbancos <strong>de</strong>sgarrados e <strong>de</strong>svalidos, viajores imersos nas estradas <strong>de</strong><br />

qualquer país? Como viviam, como se formavam?<br />

- Durante muito t<strong>em</strong>po,- disse me um <strong>de</strong>les, quando o argui numa pausa da função, -<br />

acreditou-se que havia três tipos <strong>de</strong> poetas: os trovadores, concebidos como poetas e<br />

compositores <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> nobre; os segréis, também nobres, mas que dispunham <strong>de</strong><br />

poucos recursos, sendo por isso obrigados a lançar mão da poesia e da música como<br />

meio <strong>de</strong> subsistência, - e nesse ponto ele se dobrou sobre si mesmo como que<br />

agra<strong>de</strong>cendo os aplausos e se apresentando, - e os jograis, artistas <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> não<br />

Coelho De Moraes 90


MARCUS, o imortal<br />

nobre, que sobreviviam tocando e cantando as composições dos trovadores e, há aqui<br />

entre nós, vários <strong>de</strong>les. Enfim, agora somos todos irmãos e iguais, essa é a verda<strong>de</strong>.<br />

- E as dançarinas? – perguntei.<br />

- As solda<strong>de</strong>iras, cantoras e dançarinas, nos acompanham solidárias. São fonte <strong>de</strong><br />

inspiração, também, pois são vigorosas e amorosas, se você me enten<strong>de</strong>.<br />

- As fontes para o estabelecimento <strong>de</strong>ssas categorias eram as próprias composições dos<br />

cancioneiros e a Declaração <strong>de</strong> Afonso X, - veio explicar um trovador idoso, que parecia<br />

calejado nas li<strong>de</strong>s <strong>de</strong> viajar e cantar. Essa <strong>de</strong>claração nada mais é do que uma<br />

composição criada com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organizar, se pod<strong>em</strong>os dizer assim, organizar a<br />

nós que somos alheios a esse negócio <strong>de</strong> guildas e invenções parecidas, enfim,<br />

organizar, já que quer<strong>em</strong> dizer <strong>de</strong>ssa forma, as diferentes categorias do mundo<br />

trovadoresco, <strong>de</strong> maneira a separar as camadas inferiores, como os cazurros, por<br />

ex<strong>em</strong>plo.<br />

- Como assim, os cazurros? Qu<strong>em</strong> são esses ?<br />

- Veja b<strong>em</strong>... eu explico, mas não concordo... cazurros são os jograis que faz<strong>em</strong><br />

exibições nas ruas e praças... mas que mal há nisso...? todos faz<strong>em</strong>os o mesmo e nada<br />

há <strong>de</strong> ser menor ou pior, - disse o velho, - organizar! Bah! Qu<strong>em</strong> quer organizar? Eu<br />

mesmo respondo: Qu<strong>em</strong> quer organizar é qu<strong>em</strong> quer controlar.<br />

E, o velho saiu, resmungando suas histórias e bebendo mais vinho.<br />

- Ocorre que, <strong>em</strong>bora as cantigas i<strong>de</strong>ntifiqu<strong>em</strong> o segrel ao jogral, - retomava a conversa<br />

o primeiro dos trovadores, - a Declaração aparent<strong>em</strong>ente o associa ao trovador, ao dizer<br />

que este era qualificado, nas cortes, como segrel. Desta forma, passou-se a consi<strong>de</strong>rar<br />

que o termo trovador não é um substantivo, mas um adjetivo que qualifica um tipo<br />

específico <strong>de</strong> jogral. Quanto ao termo segrel, aparent<strong>em</strong>ente trata-se apenas <strong>de</strong> um<br />

sinônimo para jogral, durante um período <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po específico, especialmente na região<br />

<strong>de</strong> Castela, mas eu não estou ligando para isso. Muito falatório e a nós interessa cantar e<br />

beber... cantar e amar... O fato, meu caro, é que pod<strong>em</strong>os inferir a partir daí o termo<br />

jogral como referência a todos os que ganham a vida realizando espetáculos perante um<br />

público, como aqui neste estábulo alegre e feliz, utilizando os mais diversos recursos: a<br />

música, a literatura, a prestidigitação, as acrobacias... enfim... artistas completos...<br />

Somos os verda<strong>de</strong>iros her<strong>de</strong>iros dos gran<strong>de</strong>s artistas que, na Antigüida<strong>de</strong>, apresentavam<br />

espetáculos <strong>de</strong> mímica e <strong>de</strong>clamações, fosse nas ruas e praças, fosse nos palácios reais...<br />

s<strong>em</strong> escolha <strong>de</strong> público... agradando a todos com a sua arte e não por bajulações... ou<br />

jaculatória.<br />

A noite findou com uma enorme reunião on<strong>de</strong> se apresentaram assadas inúmeras<br />

aves saborosas e o mais encorpado dos vinhos do sul da Itália.<br />

OPUS 42<br />

Na manhã seguinte, Tomás <strong>de</strong> Aquino nos fez cair nas mãos um texto sobre a<br />

Tábua <strong>de</strong> Esmeraldas. Hermes. Mercúrio. O Mensageiro. Ângelus?<br />

O livro nos pareceu um tanto confuso, <strong>em</strong> princípio, mas Tomás explicou que era<br />

um texto <strong>de</strong> iniciação. Algo sobre ele tinha um ar profético, outros momentos nos<br />

pareceu <strong>de</strong> imensa alucinação, falando sobre pessoas que ainda viriam a existir.<br />

- Da lama você colherá o lírio, - disse Tomás.<br />

O texto era pertencente a uma civilização <strong>de</strong>saparecida, segundo um certo URAM, relator<br />

das histórias. Tais civilizações teriam <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado forças fantásticas que perturbaram<br />

os gelos e <strong>de</strong>struíram aquele mundo altamente evoluído.<br />

- Altamente evoluído <strong>em</strong> comparação com qu<strong>em</strong> ou com o quê? Será que o tal Uram<br />

quer dizer <strong>em</strong> relação às gentes do nosso t<strong>em</strong>po? Do t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>le? De modo geral, como<br />

<strong>de</strong>veriam ser as evoluções?<br />

- Olha o que ele fala aqui <strong>em</strong> baixo, Marcus... Traços <strong>de</strong> cultura teriam, contudo,<br />

subsistido por muito t<strong>em</strong>po, explicando certa permanência <strong>de</strong> conhecimentos até nossa<br />

própria civilização. Ou seja, ele v<strong>em</strong> <strong>de</strong> falar <strong>de</strong> civilização muito antiga... Coisa perdida<br />

no t<strong>em</strong>po... Qu<strong>em</strong> estuda isso? Assim, é quase certo que esse URAM teve contato com<br />

os últimos mantenedores dos gran<strong>de</strong>s segredos.<br />

-Terá sido esse URAM o último mágico da antiguida<strong>de</strong>?<br />

O aspecto e as circunstâncias da vida do tal URAM, dizia Tomás, não era o<br />

principal do estudo, mas o que viria <strong>em</strong> seguida. URAM não foi o primeiro, n<strong>em</strong> o último<br />

mago racionalista. Mas foi o último mago <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada época, o último<br />

sobrevivente da Suméria e da Babilônia, o último gran<strong>de</strong> espírito que olhou o mundo e<br />

Coelho De Moraes 91


MARCUS, o imortal<br />

codificou sua sabedoria, <strong>de</strong>ixando um lastro secreto nas pedras, nas areias, nas<br />

escrituras secretas, abordagens, enfim, que começaram a reunir nossa herança<br />

intelectual há pouco menos <strong>de</strong> 10 mil anos.<br />

- Por que chamei-o mago?, - perguntou Tomás <strong>de</strong> Aquino, cruzando os braços e<br />

lançando o rosto para o alto, como se lesse nas folhas do teto. - Porque ele via o<br />

universo inteiro como um enigma, como um segredo que po<strong>de</strong> ser compreendido,<br />

aplicando o pensamento puro a certas provas. Ele pensava que os indícios que pod<strong>em</strong><br />

conduzir à solução do enigma estavam parcialmente no céu e na constituição dos<br />

el<strong>em</strong>entos.<br />

- Isso estaria Bacon fazendo hoje <strong>em</strong> dia... ou seja, URAM podia ser tomado por<br />

experimentador?<br />

- Não... não creio que o termo seja correto, Marcus, mas é correto que <strong>em</strong> certos<br />

documentos e certas tradições que percorreram os t<strong>em</strong>pos, s<strong>em</strong> interrupção, há<br />

evidência bastante que d<strong>em</strong>onstra preocupação na inter-relação entre o que ocorria <strong>em</strong><br />

cima com o que ocorria <strong>em</strong> baixo. - Os dois triângulos <strong>de</strong> Salomão, relacionados – disse<br />

eu, porém Tomás pareceu não me dar ouvidos.<br />

- A base relacionada com as alturas, e as alturas se relacionando com o que está <strong>em</strong><br />

baixo, como uma corrente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras revelações enigmáticas feitas na Babilônia.<br />

Depois <strong>de</strong> URAM, houve uma espécie <strong>de</strong> brecha no conhecimento. Mas, nada pequena...<br />

algo como uma lacuna on<strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> anos... Algo como um hiato da<br />

produção do conhecimento, porém não da aplicação do conhecimento. Hoje v<strong>em</strong>os que<br />

cada vez sab<strong>em</strong>os mais, e procuramos aplicar ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se produz<br />

conhecimento.<br />

- Isso nos faz pensar que haverá uma época que se produzirá mais do que se po<strong>de</strong>rá<br />

aplicar? – perguntou LaCordaire.<br />

- Acredito qu<strong>em</strong> sim, mas não posso afirmar, - respon<strong>de</strong>u Tomás. - A orientação das<br />

nossas pesquisas muda muito e, <strong>em</strong> particular, todos nós t<strong>em</strong>os experiência nisso. A<br />

idéia <strong>de</strong> que o conhecimento implica <strong>em</strong> perigo é uma norma seguida pelos clérigos<br />

papistas e por aqueles que quer<strong>em</strong> manter o mando no mundo... e, como acreditavam<br />

fundamentalmente os alquimistas, está aí uma certeza completamente negligenciada.<br />

- É... Isso me parece claro, - eu disse, - Hoje retornamos a essa atitu<strong>de</strong>. Inúmeros<br />

sábios acreditam que a difusão <strong>de</strong> certos conhecimentos po<strong>de</strong> pôr <strong>em</strong> perigo toda a<br />

humanida<strong>de</strong>. Guardam suas <strong>de</strong>scobertas... apresentam para os po<strong>de</strong>rosos... negociam<br />

liberda<strong>de</strong> por troca <strong>de</strong> informação somente entre duques e reis...<br />

- Assim, nas Universida<strong>de</strong>s, principalmente, se espera um foco <strong>de</strong> resistência contra esse<br />

hábito. - falou Tomás, - No Magus Magister, um texto recente, dos mais fluentes <strong>de</strong><br />

nossa época, diss<strong>em</strong>inado e perseguido por toda parte, <strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro do ano passado, o<br />

textualista que se assinava Professor Barbúlius, um nome falso, evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, cita uma<br />

carta <strong>de</strong> Alberto Magno. Alberto diz que é uma carta real. L<strong>em</strong>os um trecho que dizia: "A<br />

gran<strong>de</strong> maioria da população da Terra consi<strong>de</strong>ra a sabedoria, o modus fazendi, e a<br />

artefatologia como perigos mortais crescentes para sua vida. Sent<strong>em</strong>-se impotentes, à<br />

mercê <strong>de</strong> uma minoria – Reis, Papas, Padres - , como se, numa mesa <strong>de</strong> operações,<br />

estivess<strong>em</strong> entre as mãos, não <strong>de</strong> pessoas que curam, mas <strong>de</strong> irresponsáveis levados<br />

pela curiosida<strong>de</strong> ou, o que é ainda pior , pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> prestígio e promoção... Seria<br />

bom os sábios enten<strong>de</strong>r<strong>em</strong> que estão <strong>em</strong> vias <strong>de</strong> dançar sobre um <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> pólvora.<br />

Os chineses já sab<strong>em</strong> disso". E, acrescenta: "A <strong>de</strong>sculpa habitual dos sábios, segundo a<br />

qual ninguém é obrigado a aplicar as <strong>de</strong>scobertas alquímicas, principalmente, se não o<br />

<strong>de</strong>sejar, não é mais válida... Os sábios chocam-se com responsabilida<strong>de</strong>s inquietantes,<br />

que <strong>de</strong>verão enfrentar cada vez mais".<br />

- Por isso que v<strong>em</strong>os reaparecendo no mundo da sabedoria atual as velhas idéias dos<br />

alquimistas <strong>de</strong> todos os t<strong>em</strong>pos: Conhecimento e moral são associadas e o segredo é às<br />

vezes uma necessida<strong>de</strong> – eu falei, olhando para os meus companheiros <strong>de</strong> estudo.<br />

- Sim. O que está <strong>em</strong> cima é como o que está <strong>em</strong> baixo.<br />

- Mas, no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> URAM, como os alquimistas sabiam que o conhecimento conduziria à<br />

ruína?<br />

- Não, não creio que soubess<strong>em</strong>; é muito comum acharmos que todos s<strong>em</strong>pre têm<br />

certeza do que faz<strong>em</strong> e não é uma verda<strong>de</strong>... vai-se muito às apalpa<strong>de</strong>las, caro Pietro...<br />

age-se como um cego... contudo, o cego s<strong>em</strong>pre t<strong>em</strong> cuidado... essa é a diferença... a<br />

idéia <strong>de</strong>sse perigo parece ter sido uma incógnita. A alquimia é, <strong>em</strong> todo caso, muito<br />

antiga; já existia na China, 4500 anos antes <strong>de</strong> Cristo, por isso Alberto a cita claramente.<br />

Coelho De Moraes 92


MARCUS, o imortal<br />

A Mesa <strong>de</strong> Esmeralda retoma os gran<strong>de</strong>s princípios <strong>de</strong>ssa sabedoria e merece ser citado<br />

por extenso, o t<strong>em</strong>po todo, como venho fazendo. É verda<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> mentira, certo e muito<br />

verda<strong>de</strong>iro: o que está <strong>em</strong>baixo é como o que está <strong>em</strong> cima, e o que está <strong>em</strong> cima é<br />

como o que está <strong>em</strong>baixo, para realizar os milagres <strong>de</strong> uma só coisa.<br />

- E assim, - completava eu, - como todas as coisas provieram e provêm do Um, assim<br />

todas as coisas nasceram da coisa única, por adaptação.<br />

- O Sol é o pai, a Lua é a mãe, o vento a carregou <strong>em</strong> seu ventre, a Terra é a nutriz, -<br />

completou LaCordaire, com viva voz <strong>de</strong> entusiasmo poético.<br />

- O Thel<strong>em</strong>a, a perfeição <strong>de</strong> todo um mundo está aí. Seu po<strong>de</strong>r não t<strong>em</strong> limites sobre a<br />

Terra. Tu separarás a terra do fogo, o sutil do espesso, cuidadosamente, com gran<strong>de</strong><br />

habilida<strong>de</strong>. Ele sobe da terra para o céu, e torna a <strong>de</strong>scer para a terra e reúne a força<br />

das coisas superiores, - finalizou Tomás <strong>de</strong> Aquino, fechando seu livro e pedindo para<br />

que, pelo menos naquela noite, não saíss<strong>em</strong>os, e, assim, completáss<strong>em</strong>os o estudo.<br />

OPUS 43<br />

Dormir.<br />

Foi impossível. Acor<strong>de</strong>i com uma pesada mão arrancando minhas cobertas. O frio<br />

cortante me pegou. Uma voz gritava na escuridão.<br />

- Venham. Quero mostrar uma coisa. E <strong>em</strong> troca disso vocês me ajudarão a pegar<br />

Calatin, o Cão Furioso. – Era Siger, com sua impetuosa audácia e arrivismo s<strong>em</strong> igual.<br />

Retirou-nos da cama e fez-nos na noite gélida tomar <strong>de</strong> cavalos e sairmos na direção que<br />

ele apontava. Olhando para trás vi que nos espreitavam <strong>de</strong> uma janela da estalag<strong>em</strong>.<br />

- Qu<strong>em</strong> é Calatin, afinal? - eu gritava <strong>em</strong> meio ao tropel <strong>de</strong> cavalos. Siger me olhou e fez<br />

sinais como que querendo dizer que mais tar<strong>de</strong> eu saberia. O fato é que corr<strong>em</strong>os muito<br />

e os cavalos já davam mostras <strong>de</strong> cansaço. Fomos <strong>em</strong> disparada pelas campinas até que<br />

uma construção magnífica nos apareceu. Siger pareceu contente. O cavalo trotava,<br />

então, bufando névoa.<br />

- A Igreja não está pronta... n<strong>em</strong> ficará... mas prest<strong>em</strong> atenção nesses traçados... nessas<br />

volutas... prest<strong>em</strong> atenção no que resta dos vitrais... por enquanto sob os archotes mas<br />

pela manhã, quando a luz entrar por eles nunca <strong>de</strong>sejarão sair daqui... Em virtu<strong>de</strong> da<br />

ousadia <strong>de</strong>sses artistas perdidos no t<strong>em</strong>po, mortos talvez, é que estamos aqui, meus<br />

caros estudantes... estamos aqui para arrancar a cabeça <strong>de</strong> Calatin.<br />

- Que po<strong>de</strong>r maravilhoso exerce esta construção, mesmo à noite.<br />

- Sim, - respon<strong>de</strong>u <strong>de</strong> Brabant, mas, as artes bizantina e românica são freqüent<strong>em</strong>ente<br />

esquecidas, <strong>em</strong> razão da espetacularida<strong>de</strong> própria <strong>de</strong>ssas obras. Durante os anos, sei<br />

disso, <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sse estilo arquitetônico e artístico, ainda assim nos<br />

chamarão <strong>de</strong> bárbaros... – Siger olhava para o chão e procurava passadas, pegadas,<br />

traçados e caminhos possíveis - ...provavelmente dirão que tais inspirações terão orig<strong>em</strong><br />

entre os godos... <strong>de</strong> on<strong>de</strong> v<strong>em</strong> Calatin... chefe <strong>de</strong> tribos... assassino e miserável... – Siger<br />

nos olhou e pôs a mão no próprio peito, a título <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong>. - Ele será feliz quando<br />

morrer...<br />

- Aqui não há nada <strong>de</strong> bárbaro, - eu disse, tentando amainar os ânimos <strong>de</strong> Siger, - os<br />

limites cronológicos da arte bárbara estão, provavelmente, perdidos entre os séculos V e<br />

VIII e entram nesse caso, como influências, a arte germânica da Ida<strong>de</strong> do Bronze, a arte<br />

céltica da Ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> La Tène e a arte antiga dos cristãos. – Falei tudo isso e ele n<strong>em</strong> me<br />

pareceu ouvir.<br />

- Estou fort<strong>em</strong>ente inclinado a achar que esse Calatin, animal pérfido, t<strong>em</strong> vínculos com<br />

os germanos antigos, e sua tribo v<strong>em</strong> dominando essas paragens <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Bronze Médio,<br />

- gritou Siger, <strong>de</strong>scendo <strong>de</strong> seu cavalo, amarrando-o a um arbusto e caminhando grado<br />

para os <strong>de</strong>graus da nave..., - belo... muito belo... a arte germânica apresenta<br />

características uniformes, basta ver a presença <strong>de</strong> instrumentos musicais, enfeites<br />

f<strong>em</strong>ininos, jóias, armas, vasos e sepulturas... Mas, o que me <strong>de</strong>ixa terrivelmente irritado<br />

é essa sensação <strong>de</strong> que a obra <strong>de</strong>stinada a Deus foi <strong>de</strong>turpada pelas hordas do abutre<br />

Calatin...<br />

Eu já não sabia se Siger <strong>de</strong> Brabant veio para os <strong>de</strong>bates ou para caçar o infame.<br />

Havia uma predisposição <strong>em</strong> suas palavras. La Cordaire me l<strong>em</strong>bra, naquele momento,<br />

que não havia, entre as tribos germânicas, artesãos especializados.<br />

- A maior parte <strong>de</strong>stes ofícios era praticada como trabalho doméstico e não recorriam às<br />

representações da figura humana. A arquitetura também não era privilegiada pelos<br />

invasores, <strong>de</strong>vido ao nomadismo <strong>de</strong>stes povos. A arte bárbara é individualista.<br />

Coelho De Moraes 93


MARCUS, o imortal<br />

- Você t<strong>em</strong> razão, LaCordaire, mas o que Siger preten<strong>de</strong> aqui ainda é uma incógnita. Sei,<br />

por ex<strong>em</strong>plo que os visigodos <strong>em</strong>pregavam incrustações policrômicas <strong>em</strong> metais,<br />

sobretudo <strong>em</strong> produções ornamentais, - eu disse, - e nesse caso estabelece ligações<br />

entre a arte dos povos germânicos e a futura arte que viria dos godos, segundo os textos<br />

antigos. Parece que o autor do texto, tentando escon<strong>de</strong>r alguma coisa, expõe outra para<br />

que se perca o fio da meada.<br />

- No que sai da boca <strong>de</strong> Siger há um goticismo secreto comum, que consiste na tensão<br />

<strong>de</strong> um jogo <strong>de</strong> forças. Os artistas visigodos, se é que pod<strong>em</strong>os dizer <strong>de</strong>ssa forma,<br />

trabalhavam o metal e a ma<strong>de</strong>ira com motivos geométricos. Os <strong>de</strong>senhos representavam<br />

triângulos e círculos trançados.<br />

- Triângulos e círculos me l<strong>em</strong>bram formatos e códigos <strong>de</strong> um mistério. Pod<strong>em</strong> ser outra<br />

linguag<strong>em</strong> e pod<strong>em</strong> escon<strong>de</strong>r qualquer outra coisa, inclusive manifestações mágicas, -<br />

completou Pietro, atento a tudo. - No entanto, a arte sofreu as conseqüências <strong>de</strong> uma<br />

série <strong>de</strong> invasões, sobretudo na França, on<strong>de</strong> houve gran<strong>de</strong>s movimentos migratórios:<br />

visigodos, francos, celtas, normandos, árabes, invasões pacíficas dos comerciantes sírios,<br />

constituição do império carolíngio, <strong>de</strong>ntre outros, - completou o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> Ferrara, - e é<br />

certamente nessa linha que se escon<strong>de</strong> o pensamento <strong>de</strong> Siger.<br />

- Vocês estão lendo meus pensamentos, por acaso? – gritou Siger lá do fundo, sobre<br />

umas colunas <strong>de</strong>rrubadas, fazendo sua voz ecoar no que restava da madrugada. - Os<br />

povos germânicos já traziam consigo técnicas dos povos nôma<strong>de</strong>s da Ásia oriental e<br />

central, como os citas, sármatas e hunos.<br />

- Calatin po<strong>de</strong> ser um huno, na verda<strong>de</strong>, e com ele virão os segredos <strong>de</strong> um ocultismo<br />

que visa <strong>de</strong>stronar a nossa maneira papista, digamos assim, <strong>de</strong> ver as coisas... Destruir<br />

as igrejas e aniquilar seus artesãos é acabar com a exposição do po<strong>de</strong>r da Igreja...<br />

- Muito b<strong>em</strong>, senhor Pietro <strong>de</strong> Ferrara, concluiu b<strong>em</strong> os seus pensamentos <strong>de</strong>scobrindo o<br />

que vai pela minha cabeça..., - gritou Siger <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da nave e sua voz ecoou ao sabor<br />

<strong>de</strong> mil águas e ventos, - venham para cá. Venham se abençoar nos ares internos da<br />

catedral.<br />

Fomos. As dimensões gigantescas da construção inacabada nos tornaram<br />

maravilhados. Pássaros assustados revoaram com ecos <strong>de</strong> asas revelando <strong>de</strong>svãos<br />

escondidos e sombras centenárias.<br />

- Muito antes do aparecimento <strong>de</strong>ssas catedrais, os primeiros t<strong>em</strong>plos cristãos, surgidos<br />

por volta do século 4, concorriam com as religiões pagãs, - explicava prontamente Siger,<br />

erguendo a tocha ora para ver nossos rostos, ora para abrir espaço nas trevas. - A<br />

antiga arte cristã, um misto das artes oriental e greco-romana, surgiu quando os cristãos<br />

ainda sofriam perseguições violentas. Parece que ainda sinto o aroma do incenso... a<br />

igreja foi usada para os cultos cristãos, mesmo antes <strong>de</strong> seu término, o que é comum...<br />

Mas, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinham os fiéis? De on<strong>de</strong> chegavam as pessoas que ocupavam tais<br />

imensidões <strong>de</strong> salas?<br />

Nisso Siger levantou seu braço e a tocha clareou uma centena <strong>de</strong> pequenas<br />

figuras nos altares <strong>de</strong>scascados...<br />

- Os ícones, por ex<strong>em</strong>plo, que s<strong>em</strong>pre ocuparam lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na arte religiosa,<br />

<strong>de</strong>rivam dos retratos funerários egípcios, provavelmente.<br />

- Carlos Magno preocupou-se com o <strong>de</strong>senvolvimento da arte sacra a fim <strong>de</strong> que esta,<br />

por meio do luxo, encantasse os povos pagãos, - explicou Pietro, versado nesses<br />

estudos, - Assim, a época carolíngia presenciou a multiplicação <strong>de</strong> altares e criptas para<br />

o culto <strong>de</strong> relíquias. Acredito que essa construção venha <strong>de</strong>ssa época <strong>de</strong> amplo processo<br />

<strong>de</strong> cristianização...<br />

- Catolicização forçada, você quer dizer, - disse <strong>de</strong> Brabant. - Na base do ferro e dop<br />

fogo... Mas é isso mesmo... Carlos Magno, impulsionou um novo estilo arquitetônico, o<br />

românico, <strong>de</strong>vido à s<strong>em</strong>elhança com as construções da Roma Antiga... abóbadas...<br />

pilares maciços que as sustentam... pare<strong>de</strong>s espessas com aberturas estreitas usadas<br />

como janelas... isso <strong>de</strong>termina um estilo ou uma escola... – enquanto falava Siger<br />

passava a mão enluvada nas pare<strong>de</strong>s.<br />

Inspirado pela ocasião, Siger propôs que oráss<strong>em</strong>os e que LaCordaire fosse o<br />

mediador das orações. Nós não tínhamos essa manifestação espontânea para a<br />

religiosida<strong>de</strong>, apesar dos nossos mestres ser<strong>em</strong> religiosos, <strong>em</strong> certo termo, e LaCordaire<br />

fê-lo enten<strong>de</strong>r isso...<br />

- Não interessa, - foi a resposta, - use o material que está <strong>em</strong> seu coração. Eu digo<br />

oração e você diz oratória e para mim tanto faz... Contanto que seja coisa na qual<br />

Coelho De Moraes 94


MARCUS, o imortal<br />

acredit<strong>em</strong>os... Vamos criar nesse espaço um clima <strong>de</strong> entusiasmo e <strong>de</strong> busca <strong>de</strong><br />

perfeição... um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> perfeição... não sejamos religiosos... sejamos todos...<br />

platônicos... vamos <strong>em</strong> busca do i<strong>de</strong>al.<br />

Foi assim que durante umas cinco horas participamos <strong>de</strong> um culto para quatro<br />

pessoas <strong>em</strong> que todos contribuímos com nossas aspirações e tiv<strong>em</strong>os a honra <strong>de</strong> receber<br />

<strong>de</strong> LaCordaire as singularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua inteligência. As influências românicas fizeram-se<br />

presentes até mesmo na apropriação dos termos usados nas perorações <strong>de</strong> LaCordaire.<br />

Sua voz ressoava nas abóbadas, tímpanos, arcos, eclodia nas nossas almas e lentamente<br />

perceb<strong>em</strong>os que a manhã se apresentava e que os <strong>de</strong>senhos dos inúmeros vitrais<br />

começavam por se <strong>de</strong>linear na penumbra. No entanto, foram combinadas <strong>em</strong> uma nova<br />

ord<strong>em</strong>, ou seja, <strong>em</strong> um proveito inédito do espaço para que as manifestações ocultistas<br />

se expandiss<strong>em</strong> <strong>em</strong> catarses inéditas.<br />

A abóbada <strong>de</strong> nervuras sobressaia na penumbra com pequenas réstias <strong>de</strong> luz<br />

tr<strong>em</strong>ulando <strong>em</strong> sua superfície. Tal abóbada <strong>de</strong> arestas, românica, assim era chamada<br />

por <strong>de</strong>ixar visíveis os arcos que compõ<strong>em</strong> a estrutura. Isso provava que a influência <strong>de</strong><br />

Carlos Magno passou longe por aqui ou teve alterações com os séculos. O arco ogival,<br />

diferente do arco pleno românico, permitia a construção <strong>de</strong>sse novo tipo <strong>de</strong> abóbada e<br />

também <strong>de</strong> igrejas mais altas. Aquela construção gigantesca d<strong>em</strong>onstrava claramente a<br />

que veio. Atingir os céus como uma nova Torre <strong>de</strong> Babel oficial. Agora se permitia tal<br />

atitu<strong>de</strong>? As ogivas acentuam a impressão <strong>de</strong> altura e verticalida<strong>de</strong>. O cume se per<strong>de</strong> no<br />

escuro da madrugada.<br />

A abadia não almejou a obscurida<strong>de</strong>, na verda<strong>de</strong>. Há uma clara referência ao<br />

uso da luz e a relação entre estrutura e aparência: se, na igreja românica, a luz contrasta<br />

com aquilo que se po<strong>de</strong> tatear nas sombrias e pesadas pare<strong>de</strong>s, nessa outra modalida<strong>de</strong>,<br />

a luz é filtrada através <strong>de</strong>la, permeando-a, absorvendo-a, transfigurando-a. Algo a ver<br />

com sublimação. Algo a ver com vivência da fé, para os cristãos... A verticalida<strong>de</strong> propicia<br />

sensações <strong>de</strong> ausência do peso e da sensação <strong>de</strong> estar colado ao chão. Transformamonos<br />

<strong>em</strong> anjos? Alamos para o céu <strong>em</strong> espírito livre?<br />

Agora que o sol subia <strong>em</strong> <strong>de</strong>slindada carreira, as amplas janelas mostravam<br />

mundos multicoloridos e equilibrados, apesar <strong>de</strong> rachaduras e têmperas vazadas. Acima<br />

dos frisos que <strong>em</strong>olduram o portal central há uma gran<strong>de</strong> janela e, acima <strong>de</strong>sta, outra, a<br />

rosácea que não é mais do que uma gran<strong>de</strong> janela circular enfeitada por vitrais.<br />

Foi aí que nos elevamos e Siger bateu com a espada no chão da Igreja. Era já<br />

hora <strong>de</strong> partirmos. Saímos para a manhã límpida e não havia cansaço algum. A igreja se<br />

tornara nosso motor <strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong> força. A cabeceira da abadia contava com pilares<br />

<strong>em</strong> sua construção... suportes <strong>de</strong> apoio dispostos. Por isso não eram mais necessárias as<br />

grossas pare<strong>de</strong>s para sustentar a estrutura, o que garantiu maior leveza. Imbuídos por<br />

uma energia crescente saímos para os portais fronteiros e o sol nos pegou <strong>de</strong> chôfre<br />

transformando a calma <strong>em</strong> sublime confiança. A nave central era merecedora <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

atenção entre os planejadores <strong>de</strong>stas construções, pois quanto maior a altura <strong>de</strong>sta, mais<br />

intensa seria a luz interior que, combinada aos vitrais, conferia iluminação uniforme a<br />

todo o ambiente. Esse era o jogo visual que experimentamos no alvorecer. Os<br />

i<strong>de</strong>alizadores das catedrais sabiam da luz como el<strong>em</strong>ento místico. Talvez soubess<strong>em</strong> que<br />

a Luz Astral concorreria para o engran<strong>de</strong>cimento da obra. Radiante. Desejosos <strong>em</strong><br />

propiciar caráter divino às construções, os mestres não tardaram <strong>em</strong> buscar a<br />

substituição das pare<strong>de</strong>s por vitrais. Flamejante. Talvez fosse um sonho: Todas as<br />

pare<strong>de</strong>s feitas <strong>de</strong> vidro.<br />

Na fachada os portais laterais eram continuados por torres.<br />

- Vamos! T<strong>em</strong>os o que fazer, - or<strong>de</strong>nou Siger, tomando <strong>de</strong> seu cavalo. Com entusiasmo<br />

juvenil Siger forçou sua montaria no direção do Oeste, para on<strong>de</strong> ele acreditava que<br />

encontraríamos Calatin, o Cão Raivoso.<br />

OPUS 44<br />

Perd<strong>em</strong>os três dias <strong>em</strong> uma aventura que era para durar somente uma noite. A<br />

fome nos atingia <strong>de</strong> jeito, mas, para Siger não pareciater nenhum efeito, tamanha a<br />

<strong>de</strong>senvoltura sobre o cavalo, gritando or<strong>de</strong>ns e controlando a carreira. Os repetidos<br />

retornos mudando bruscamente <strong>de</strong> direção, extenuaram as montarias que foram<br />

substituídos várias vezes. Minhas costas doíam.<br />

Dez quilômetros além encontramos batedores T<strong>em</strong>plários que se dispuseram a<br />

lutar contra Calatin. Fragmentos <strong>de</strong> hostes <strong>de</strong> hospitalários se juntaram a Siger.<br />

Coelho De Moraes 95


MARCUS, o imortal<br />

Incomum mas verda<strong>de</strong>iro. A cada local que aportávamos para <strong>de</strong>scanso, uma vaga <strong>de</strong><br />

interessados se apresentava. Todos <strong>de</strong>sejavam a cabeça <strong>de</strong> Calatin e todos se juntavam<br />

com espadas ou foices ao pequeno exército <strong>de</strong> Siger <strong>de</strong> Brabant. T<strong>em</strong>íamos pelo pior.<br />

Brabant se divertia. Não éramos soldados e, <strong>em</strong> meio a experientes lutadores, os<br />

estudantes po<strong>de</strong>riam se fazer per<strong>de</strong>r. Quatro cavaleiros da Ord<strong>em</strong> Teutônica se<br />

juntaram na altura do Paço <strong>de</strong> La Concor<strong>de</strong>. Meio dia mais e nos <strong>de</strong>paramos com as<br />

quatro torres centrais do Castelo Cinzento – la Tour Gris – que estava sob controle <strong>de</strong><br />

Calatin, bafio do d<strong>em</strong>ônio, e seu irmão, enquanto nas muralhas do sul agrupavam-se os<br />

filhos dos reinos italianos e os soldados genoveses e pisanos.<br />

A balbúrdia crescente das línguas diferentes, <strong>em</strong> gritos e impropérios, trazia<br />

tensões constantes.<br />

- Babel, meu caro. Babel... – sussurrava Siger ao meu ouvido, sorria, enquanto segurava<br />

o cavalo.<br />

Eu acredito que já tenha falado sobre eles, mas o momento era propício para<br />

repetir e consolidar na história e nos séculos o que se passou. Nos cavaleiros incutia-se a<br />

idéia <strong>de</strong> que matar <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> Deus era justificável e <strong>de</strong> que morrer por Ele,<br />

santificável. Parece que o Papa, para po<strong>de</strong>r atingir mais facilmente seus i<strong>de</strong>ais, usou a<br />

mesma filosofia islâmica da Jihad ou guerra santa, mas com uma roupag<strong>em</strong> <strong>de</strong> idéias<br />

cristãs. Na época orginal do aba<strong>de</strong> <strong>de</strong> Clairvaux, apoiado pelo papa, <strong>de</strong>sfilou um discurso<br />

acalorado <strong>em</strong> favor dos Cavaleiros T<strong>em</strong>plários dando-lhes autorida<strong>de</strong> para matar <strong>em</strong><br />

nome <strong>de</strong> Deus:<br />

- "Na verda<strong>de</strong>, os cavaleiros <strong>de</strong> Cristo travam as batalhas para seu Senhor com<br />

segurança, s<strong>em</strong> t<strong>em</strong>or <strong>de</strong> ter pecado ao matar o inimigo, n<strong>em</strong> t<strong>em</strong>endo o perigo da<br />

própria morte, visto que causando a morte, ou morrendo <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> Cristo, nada<br />

praticam <strong>de</strong> criminoso, sendo antes merecedores <strong>de</strong> gloriosa recompensa... aquele que<br />

provoca livr<strong>em</strong>ente a morte <strong>de</strong> seu inimigo como um ato <strong>de</strong> vingança, mais prontamente<br />

encontra consolo <strong>em</strong> sua condição <strong>de</strong> soldado <strong>de</strong> Cristo. O soldado <strong>de</strong> Cristo mata com<br />

segurança e morre com mais segurança ainda... Não é s<strong>em</strong> razão que ele <strong>em</strong>punha a<br />

espada! É um instrumento <strong>de</strong> Deus para o castigo dos malfeitores... Não é s<strong>em</strong> razão<br />

que a espada t<strong>em</strong> o formato da cruz! Na verda<strong>de</strong>, quando mata um malfeitor, isso não é<br />

homicídio... e o cavaleiro é consi<strong>de</strong>rado um carrasco legal <strong>de</strong> Cristo contra os<br />

malfeitores".<br />

Eram também chamados <strong>de</strong> Pobres Cavaleiros <strong>de</strong> Cristo e do T<strong>em</strong>plo <strong>de</strong><br />

Salomão, se b<strong>em</strong> que <strong>de</strong> pobre nada tinham, donos <strong>de</strong> arrecadações <strong>em</strong> ouro e papéis,<br />

na proteção dos ricos peregrinos que iam a Jerusalém. Achei curioso o fato <strong>de</strong> nada<br />

ter<strong>em</strong> negociado com Siger para ajudá-lo na busca <strong>de</strong> Calatin. A Ord<strong>em</strong> fora fundada <strong>em</strong><br />

12 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1118 <strong>em</strong> Jerusalém por Hugo <strong>de</strong> Payens, Cavaleiro <strong>de</strong> Burgúndia, e<br />

Godofredo <strong>de</strong> Saint Omer, parente <strong>de</strong> um dos monges <strong>de</strong>batedores na estalag<strong>em</strong>, ao<br />

lado <strong>de</strong> Aquino e Alberto. Balduíno II, então, era rei <strong>de</strong> Jerusalém, e alojou ambos e<br />

mais sete agregados seus, perto do T<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> Salomão, originando-se daí a<br />

<strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> T<strong>em</strong>plários. Durante nove anos seus m<strong>em</strong>bros <strong>de</strong>dicaram-se somente a<br />

trabalhos sobre o plano metafísico, s<strong>em</strong> participar nos combates e na política. Seria<br />

infantil, para alguns, crer que a Ord<strong>em</strong> do T<strong>em</strong>plo surgiu para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r Jerusalém, ou<br />

para guardar o Santo Sepulcro, ou para proteger os peregrinos. Muita gente que<br />

escreveu sobre isso não acredita nessa versão, mas são obrigados a se contentar<strong>em</strong> com<br />

as conjecturas, pois não pu<strong>de</strong>ram <strong>de</strong>scobrir nenhum documento sobre a possível Missão<br />

Esotérica da Ord<strong>em</strong>.<br />

Aten<strong>de</strong>ndo às or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Siger, centenas <strong>de</strong> engenheiros e sapadores, protegidos<br />

por milhares <strong>de</strong> flechas e projéteis, começaram a minar as torres centrais. A luta árdua<br />

se esten<strong>de</strong>u por toda linha da dupla muralha. As tropas que Siger conseguiu arrebanhar<br />

corpos e cadáveres, apesar <strong>de</strong> <strong>em</strong> menor número do que as hostes <strong>de</strong> Calatin; eram<br />

reforçadas, segundo Siger, pelo po<strong>de</strong>r do Espírito Santo, portanto, eram hostes ávidas <strong>de</strong><br />

sangue, morte e <strong>de</strong>struição... Ao levantar a espada a atenção das tropas era todo Siger.<br />

De repente, às pressas, apresentaram-se <strong>em</strong>ergindo do seio da floresta, rapidamente,<br />

<strong>em</strong> atropelos e poeira, para reforçar a guarnição <strong>de</strong> Siger <strong>de</strong> Brabant, mais <strong>de</strong> 15 mil<br />

cavaleiros e infantes. Ele, s<strong>em</strong>pre aos cuidados conosco, pedia para tomarmos posição ao<br />

seu lado, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo-nos a todo custo. Não poucas vezes seu escudo nos protegeu da<br />

ira dos ciganos, revidando com a ira cristã. Para não parecermos peso morto éramos<br />

responsáveis pelos mantimentos e algum armamento <strong>de</strong> reposição.<br />

Coelho De Moraes 96


MARCUS, o imortal<br />

Uma s<strong>em</strong>ana <strong>de</strong>pois, era maio, flores explodiam <strong>em</strong> cores nas encostas e nos<br />

planos, foi or<strong>de</strong>nado o assalto final, fazendo com que um verda<strong>de</strong>iro mar humano, aos<br />

gritos, se jogasse contra as torres. Depois <strong>de</strong> intensa luta, os cristãos conseguiram<br />

<strong>de</strong>rrubar parte dos muros e se apossaram da porta principal. Um caudal <strong>de</strong> soldados<br />

a<strong>de</strong>ntrou pelas ruelas e paços da cida<strong>de</strong>-fortaleza, dizimando qu<strong>em</strong> encontrasse pela<br />

frente. Siger e alguns notáveis conseguiram atingir barcos <strong>de</strong> fuga e foram <strong>de</strong>cepar<br />

cabeças <strong>de</strong> seguidores <strong>de</strong> Calatin, o Cão Furioso. Ao cair a noite daquele dia, os odiados<br />

ciganos tinham-se rendido, o fogo <strong>de</strong> seus barcos ardia na noite, clareando tudo com um<br />

vermelho sanguíneo b<strong>em</strong> propício ao momento; muitos haviam fugido ou estavam<br />

mortos. Cantos religiosos ornavam a nave noturna.<br />

Nos dias que se seguiram à batalha, as tropas <strong>de</strong> Siger percorreram a zona<br />

costeira pondo <strong>em</strong> fuga os ciganos <strong>de</strong> Calatin, r<strong>em</strong>anescentes <strong>em</strong> outras cida<strong>de</strong>s,<br />

<strong>de</strong>struindo cuidadosamente tudo aquilo que fosse utilizado pelos ciganos caso eles<br />

tentass<strong>em</strong>, algum dia, novamente <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barcar na região. Mas, <strong>de</strong> Calatin, nada!<br />

Nenhuma sombra. Pedaços do corpo <strong>de</strong> seu irmão foram jogados no centro do pátio,<br />

somado a outros tantos pedaços <strong>de</strong> corpos. Chegaram a revirar as hortas, <strong>de</strong>cepar as<br />

árvores frutíferas e <strong>de</strong>smantelar o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> irrigação para tornar impossível a<br />

reconquista. Completavam assim, com tal gesto <strong>de</strong>vastador, o que chamaram <strong>de</strong> De<br />

Expugatione Terrae Sanctae.<br />

- Escut<strong>em</strong> b<strong>em</strong> o que digo, rapazes – gritava Siger <strong>de</strong> Brabant, <strong>em</strong> meio a <strong>de</strong>sabalada<br />

carreira, cortando mato e estradas, - não acredito piamente que esse Calatin seja o Cão<br />

<strong>em</strong> pessoa. N<strong>em</strong> acredito que haja aqui a forja do Mal. Mas, neste momento, irmãos!, a<br />

cabeça <strong>de</strong>sta fera t<strong>em</strong> que rolar para o b<strong>em</strong> das gentes crédulas! Entend<strong>em</strong>?! Eles<br />

representam seus papéis. E nós <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os os nossos. E olha que eles nos ced<strong>em</strong><br />

muita <strong>de</strong>ixa...<br />

Naquela mesma noite, sob o calor das tochas e fogueiras, falamos sobre Bernard.<br />

O fundador da Ord<strong>em</strong> Cisterciense... o patrono dos T<strong>em</strong>plários, por assim dizer. Ele<br />

enviara, lá <strong>em</strong> sua época, uma carta a Hugo <strong>de</strong> Payens pedindo a cooperação da Ord<strong>em</strong><br />

para reabilitar os ladrões e sacrílegos, assassinos, perjúrios e adúlteros, porém que<br />

estivess<strong>em</strong> dispostos a se alistar nas fileiras das Cruzadas pela liberação da Terra Santa.<br />

Alentado assim por um dos mais influentes <strong>de</strong> sua época, Hugo <strong>de</strong> Payens partiu <strong>em</strong><br />

direção do Concílio <strong>de</strong> Troyes, na França, para assegurar o reconhecimento <strong>de</strong> sua<br />

Ord<strong>em</strong> na Europa. Ali, sob o patrocínio e proteção <strong>de</strong> Bernard, apresentou a regra da<br />

irmanda<strong>de</strong>, que seguia até certo ponto a Regra da Ord<strong>em</strong>. Eram or<strong>de</strong>ns irmãs, <strong>de</strong> certa<br />

forma, com auxílio mútuo e ação político-religiosa conjunta. Mas a carta constitutiva da<br />

Ord<strong>em</strong> só lhe foi outorgada <strong>em</strong> 1163 pelo Papa Alexandre III.<br />

- Há umas coisas que não me agradam entre esses T<strong>em</strong>plários, e que eles não nos<br />

ouçam, caros jovens, pois são osso duro <strong>de</strong> roer - segredava Siger. - A seção mais<br />

importante foi a dos Cavaleiros, por sua feição militar. Até aí, tudo b<strong>em</strong>, e graças a eles<br />

houve uma luta generosa e impiedosa. Agora, eles afirmam que juram observar os<br />

preceitos <strong>de</strong> pobreza, castida<strong>de</strong> e obediência, tal qual os m<strong>em</strong>bros das d<strong>em</strong>ais Or<strong>de</strong>ns da<br />

Igreja. - Siger <strong>de</strong>u uma risada. - E eu pergunto, para que?<br />

Em geral eram <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> alta estirpe, os Cavaleiros tinham direito a três<br />

cavalos, a um escu<strong>de</strong>iro e duas tendas. Na verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>notavam nada que indicasse<br />

pobreza. Aceitavam a presença <strong>de</strong> homens casados, mas sob a condição <strong>de</strong> legar<strong>em</strong> à<br />

Ord<strong>em</strong> meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas proprieda<strong>de</strong>s, e não se admitiam mulheres.<br />

- O que é isso, meus amigos? Nada <strong>de</strong> mulheres? - bradava Siger, aproveitando para<br />

observar se não nos seguiam.<br />

Depois vinha um corpo <strong>de</strong> Clérigos, incluindo Bispos, Padres e Diáconos, sujeitos<br />

aos mesmos votos dos Cavaleiros, e que por especial dispensação não rendiam<br />

obediência a nenhum superior eclesiástico ou civil, a não ser o Grão-Mestre do T<strong>em</strong>plo e<br />

ao Papa. As confissões dos irmãos da Ord<strong>em</strong> <strong>de</strong>viam ser ouvidas somente por clérigos<br />

especiais, e assim permaneciam invioláveis os seus segredos. Ou seja, um socieda<strong>de</strong><br />

secretíssima, se b<strong>em</strong> que b<strong>em</strong> treinada. Os Irmãos Servidores, os criados e os artífices...<br />

o Grão-Mestre, o Senescal do T<strong>em</strong>plo, o Marechal como autorida<strong>de</strong> supr<strong>em</strong>a <strong>em</strong><br />

assuntos militares... os Comendadores sob cuja direção estavam as Províncias. Eis aí o<br />

resumo <strong>de</strong>sse corpo <strong>de</strong> soldados <strong>de</strong> Cristo.<br />

- Agora vejam, quanto sangue não <strong>de</strong>rramaram por aqui? E n<strong>em</strong> pegamos o Cão<br />

Raivoso.<br />

Coelho De Moraes 97


MARCUS, o imortal<br />

A influência dos T<strong>em</strong>plários cresceu rapidamente. Combateram valent<strong>em</strong>ente <strong>em</strong><br />

várias Cruzadas, e à mercê dos bens tomados <strong>de</strong> seus inimigos vencidos, ou doados à<br />

Ord<strong>em</strong>, chegaram a ser gran<strong>de</strong>s financeiros e banqueiros internacionais, cujas riquezas<br />

tiveram o seu apogeu agora, enquanto roda o moinho das pessoas que é o t<strong>em</strong>po e nós<br />

estamos aqui, no centro da floresta, lutando ao lado <strong>de</strong> Siger. Os reis da Europa<br />

<strong>de</strong>positavam seus tesouros e riquezas nas arcas dos T<strong>em</strong>plários e, no que não era<br />

incomum ocorrer, pediam até mesmo <strong>em</strong>préstimos à Ord<strong>em</strong>.<br />

- O papel dos T<strong>em</strong>plários na Igreja se po<strong>de</strong> avaliar pelo fato <strong>de</strong> os m<strong>em</strong>bros da Ord<strong>em</strong><br />

ser<strong>em</strong> convocados para participar dos Gran<strong>de</strong>s Concílios da Igreja, tal como o <strong>de</strong> Latrão<br />

<strong>em</strong> 15...<br />

- ... e esse grupo que esteve conosco se dirige a Lyon, para um novo Concílio. Dessa<br />

forma, meus caros, não há dúvida que essa Ord<strong>em</strong> é um dos repositórios da Sabedoria<br />

Oculta, meus jovens, e seus segredos são transmitidos tão-só a alguns <strong>de</strong> seus m<strong>em</strong>bros<br />

selecionados. Não é à toa que falam mal <strong>de</strong>les... <strong>de</strong> Jacques <strong>de</strong> Molay... ligações com<br />

espectros... magia... profanações...<br />

Siger fez sinal para um cavaleiro que se aproximou.<br />

– Estou contando histórias sobre vocês para estes jovens aprendizes... Como andam as<br />

coisas nos dias <strong>de</strong> hoje?<br />

- Eles são cristãos? – o outro foi ríspido.<br />

- Oh! Sim..., - <strong>de</strong>clarou Siger e piscou para mim. – Do tipo que ajoelha reza e faz<br />

contribuições.<br />

O soldado hesitou um tanto e disse, mor<strong>de</strong>ndo as palavras: - Não estão nada<br />

boas.<br />

Ele fazia pausas frequentes, buscando as plavras.<br />

- Há pressões e perd<strong>em</strong>os terreno. Voltei <strong>de</strong> Jerusalém por que fomos <strong>de</strong>rrotados. Depois<br />

da tomada <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> santa pelos Sarracenos... os Muçulmanos que, inclusive, nos<br />

períodos <strong>de</strong> trégua, negociavam conosco, pois acreditavam ser pru<strong>de</strong>nte ter algum<br />

dinheiro para o caso <strong>de</strong> que os avatares da guerra pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> terminar <strong>em</strong> alguma<br />

espécie <strong>de</strong> pacto com os europeus... t<strong>em</strong>o que <strong>em</strong> breve o que chamamos <strong>de</strong> Reino<br />

Latino, caia... nesse caso, o que far<strong>em</strong>os é transferir o Quartel-General da Ord<strong>em</strong> da<br />

Cida<strong>de</strong> Santa para Chipre, e Paris passará à categoria <strong>de</strong> nosso principal centro na<br />

Europa.<br />

- Esses são os planos? Parece que se afigura certo. Você fala como se já soubesse.<br />

- Do jeito que está... Por certo que a <strong>de</strong>rrota das Cruzadas, <strong>de</strong> modo geral e digo <strong>em</strong><br />

função <strong>de</strong> todas elas, perd<strong>em</strong>os, novamente, o túmulo <strong>de</strong> Cristo para as mãos dos<br />

infiéis, e isto está abalando a nossa posição, a nossa moral e a nossa autorida<strong>de</strong>, b<strong>em</strong><br />

assim como das d<strong>em</strong>ais or<strong>de</strong>ns militares. Prevejo um fim brusco e trágico. Os lobos se<br />

aproximam e as hienas afiam seus <strong>de</strong>ntes. O que nos preserva, ainda, é sermos<br />

po<strong>de</strong>rosos e ricos, credores do Papa e da corte da França...<br />

- É... mas isso po<strong>de</strong> ser a perdição <strong>de</strong> vocês, também... o que acha? Sei que os<br />

hospitalários receb<strong>em</strong> preferências por parte do papado.<br />

O cavaleiro balançou a cabeça e alisou a cruz maltada do peito.<br />

- Pensamos nisso, você t<strong>em</strong> razão, Siger <strong>de</strong> Brabant, mas já não é assunto <strong>de</strong> sua<br />

alçada, se me enten<strong>de</strong> e me preserva o respeito por essas palavras.<br />

Siger baixou a cabeça como que compreen<strong>de</strong>ndo. O soldado <strong>de</strong>u a<strong>de</strong>us a todos e<br />

se retirou num trote estudado.<br />

OPUS 45<br />

- O que busca um Alquimista? – perguntava Tomás <strong>de</strong> Aquino. Sabíamos também, a<br />

partir daí, que os dias dos <strong>de</strong>bates finalizavam. Alberto Magno já nos dissera, <strong>em</strong> surdina,<br />

que os ânimos estavam por d<strong>em</strong>ais exaltados e que os monges, professores e doutores<br />

já não se agüentavam mais naquela estalag<strong>em</strong>. Além do mais, havia o perigo da<br />

proximida<strong>de</strong> com a milícia papal.<br />

- Escrevi um opúsculo sobre os trabalhos da Obra. As obras <strong>de</strong> todas as cores.<br />

Relatamos, também, todo o percurso na alquimia até ao presente. Ficaram, no entanto,<br />

muitas coisas por dizer que não tinham contexto, tal como a razão <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> um<br />

alquimista e o que ele procura. Muitos hão <strong>de</strong> pensar que um alquimista é um "fazedor"<br />

<strong>de</strong> ouro, se é que alguma vez o conseguirá fazer <strong>em</strong> toda a sua vida... para se conseguir<br />

isso <strong>de</strong>veria seguir a senda como os nossos gran<strong>de</strong>s Mestres o fizeram com a chamada<br />

Coelho De Moraes 98


MARCUS, o imortal<br />

Pedra filosofal por transmutação direta sobre o mercúrio ou o chumbo, que<br />

test<strong>em</strong>unham e afirmam nos seus tratados.<br />

A estalag<strong>em</strong> estava pequena para todos. Sonhar que se mora numa cida<strong>de</strong> nova,<br />

numa estalag<strong>em</strong> maior, não respon<strong>de</strong>ria a todas as perguntas. O fato é que a alma <strong>de</strong><br />

cada um estava maior que corpo. De fato os mortos habitam <strong>em</strong> algum lugar. Só não<br />

sab<strong>em</strong>os on<strong>de</strong>.<br />

- E são esses relatos, - continuava Tomás, - que nos parec<strong>em</strong> tão sinceros, que nos<br />

motivam a prosseguir s<strong>em</strong> <strong>de</strong>sfalecimento o estudo e a prática da alquimia com vista a<br />

atingir os mesmos objetivos.<br />

Não falei sobre isso mas, a estalag<strong>em</strong> era uma estrutura <strong>de</strong> seis metros por<br />

andar, tendo dois <strong>de</strong>les. A sua parte central era um sala on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>scansava e se<br />

conversava animadamente e era também o refeitório. Não se admitia nesse lugar voz<br />

alteada n<strong>em</strong> violências. Mas o riso era permitido e b<strong>em</strong> vindo. A superfície da sala era<br />

coberta por mesas <strong>de</strong> boa ma<strong>de</strong>ira e muita poltrona <strong>de</strong> couro <strong>de</strong> vaca, obra <strong>de</strong> um<br />

artesão chamado Zamariann que não sabia se vinha da Itália ou <strong>de</strong> terras da antiga<br />

Fenícia. Um certo aroma <strong>de</strong> estábulo perdurava por ali, mas todo mundo admitia que era<br />

o olor <strong>de</strong> um estábulo limpo. Em cada face <strong>de</strong> pare<strong>de</strong> se penduravam quadros e enfeites<br />

numa mistura <strong>de</strong> arte cristã e mourisca. Em breve daríamos a<strong>de</strong>us ao lugar e seus<br />

admiráveis proprietários.<br />

- Não só a transmutação, pois esta é apenas a "prova provada" da verda<strong>de</strong>ira Medicina<br />

universal, razão maior da nossa busca, pelos motivos que mais adiante ver<strong>em</strong>os, -<br />

ratificou o senhor <strong>de</strong> Aquino, - por isso, o que buscamos, não é pois uma eventual<br />

transmutação do mercúrio ou do chumbo <strong>em</strong> ouro. Atualmente, fabricar ouro por<br />

transmutação só teria sentido se fosse <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong>.<br />

A uma ord<strong>em</strong>, os doutos professores, monges e padres se sentavam nas<br />

poltronas e qualquer outro que estivesse no interior da estalag<strong>em</strong> era convidado a se<br />

retirar, pois a reunião teria início. Tal foi o acordo quando a estalag<strong>em</strong> foi alugada. Todos<br />

então tomavam <strong>de</strong> seus ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> anotações e estabeleciam linhas <strong>de</strong> conduta para o<br />

<strong>de</strong>bate, <strong>de</strong>terminante este que Siger pouco seguia. Alberto Magno or<strong>de</strong>nou, como diretor<br />

da reunião, que os vinte senhores less<strong>em</strong> <strong>em</strong> voz baixa as orações do dia, dali retirass<strong>em</strong><br />

inspiração e ânimo.<br />

- Assim, se pretend<strong>em</strong> fazer muito ouro, caros estudantes, o que nunca é aconselhável<br />

pelo que po<strong>de</strong> advir <strong>de</strong> inconveniência e prejuízo, mete c<strong>em</strong> mil onças <strong>de</strong> azougue num<br />

gran<strong>de</strong> cal<strong>de</strong>irão <strong>de</strong> ferro, a fogo forte. Anot<strong>em</strong> rapidamente o que digo, pois não vou<br />

repetir... rápido Pietro, pois é hora <strong>de</strong> mostrar que é um excelente escriba... Quando<br />

estiver quente a fumegar, t<strong>em</strong> já preparada uma onça <strong>de</strong> pó escarlate da quarta<br />

<strong>em</strong>bebeção; envolve-a, então, com cera como uma pequena bola e lança-a sobre o já<br />

citado azougue fumegante. O fumo <strong>de</strong>saparecerá rapidamente. Ativa o fogo e logo se<br />

transformará, parte <strong>em</strong> massa e parte <strong>em</strong> pó <strong>de</strong> ouro amarelo, que fundirá <strong>em</strong> cadinho.<br />

Vazarão <strong>em</strong> massa ou lingote e extrairão <strong>de</strong> todo este mercúrio cerca <strong>de</strong> 99.170 onças <strong>de</strong><br />

ouro puro, <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> insuperável, que utilizarão como achar<strong>em</strong> melhor.<br />

Se nossa hipótese é correta, o encontro na estalag<strong>em</strong> <strong>em</strong> terras francas, além da<br />

maior parte <strong>de</strong> estudiosos francos naquele s<strong>em</strong>inários, pois, por força <strong>de</strong> circunstâncias,<br />

os francos se diziam <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes diretos do Sangue Real, ou seja, quando José <strong>de</strong><br />

Arimatéia recolhe <strong>em</strong> uma taça o sangue <strong>de</strong> Cristo como um símbolo, diz<strong>em</strong> os Francos<br />

que o que José <strong>de</strong> Arimatéia recolhe é o próprio Cristo, trazido para o que seriam terras<br />

futuras <strong>de</strong> França e, é claro, nestas terras o sangue real <strong>de</strong> Cristo daria sua<br />

<strong>de</strong>scendência... Por lambanças como esta é que os francos afirmam s<strong>em</strong>pre que são os<br />

her<strong>de</strong>iros diretos do Trono do Mundo. Tolices, pensava eu!<br />

- Eis, caros estudantes, muito mais ricos que todos os reis, pois possuirão mais do que<br />

eles e do que pod<strong>em</strong> dispor <strong>em</strong> todo o seu reino mundano. Mas não produzam ouro<br />

senão pouco a pouco, com prudência, s<strong>em</strong> revelar nada a ninguém e s<strong>em</strong> confiar jamais<br />

nos outros, - arr<strong>em</strong>atava Tomás. - Fazer uma transmutação com 100.000 onças <strong>de</strong><br />

mercúrio!? Cuidado! Pois é nesse momento que a alma se per<strong>de</strong>.<br />

A t<strong>em</strong>porada chegava ao fim. Algum sinal <strong>de</strong> chuva aparecia no horizonte e<br />

ventos ordinários regavam as campinas com pol<strong>em</strong>.<br />

- Tal quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro, <strong>em</strong> qualquer t<strong>em</strong>po, é muito difícil passar <strong>de</strong>spercebida e,<br />

qu<strong>em</strong> o fizesse e o <strong>de</strong>sejasse ven<strong>de</strong>r, correria gran<strong>de</strong>s perigos inclusive incorrendo <strong>em</strong><br />

penas capitais, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do povo e <strong>de</strong> suas leis, como nos relata Filoctetus <strong>de</strong><br />

Alexandria na Entrada Aberta ao Palácio do Rei Cativo, Capítulo XV. Lerei para vocês:<br />

Coelho De Moraes 99


MARCUS, o imortal<br />

«Os mercadores, os padres <strong>de</strong> todas as horas, os reis e magos, não são tolos, mesmo se<br />

como crianças brincam contigo, <strong>de</strong>bocham e faz<strong>em</strong> oblações ao seu lado, por isso,<br />

mantenha-se alerta dizendo que compram <strong>de</strong> olhos fechados, que nada vê<strong>em</strong> e que se<br />

po<strong>de</strong> vir com toda a confiança; se for<strong>em</strong> até eles, num piscar <strong>de</strong> olhos o <strong>de</strong>nunciarão o<br />

bastante para lançá-lo <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> <strong>em</strong>baraço e na mais completa perseguição.<br />

Calabouços e sepulcros serão seu fim”.<br />

Vários viajantes diziam que uma quantida<strong>de</strong> imensa <strong>de</strong> cavalos e seus <strong>de</strong>vidos<br />

cavaleiros rumavam para aquela estalag<strong>em</strong>. Os relatos variavam. Falavam <strong>de</strong> exército<br />

papal. Diziam <strong>de</strong> soldados a soldo do rei. Comentavam sobre mercenários. Nenhuma<br />

<strong>de</strong>scrição correspondia as certezas. No entanto parecíamos vislumbrar, talvez por força<br />

da sugestão, que poeira vermelha se levantava no horizinte.<br />

- A prata que produzimos graças à nossa ciência é tão fina que não po<strong>de</strong> ser<br />

proveniente <strong>de</strong> nenhum país. Eis a razão por que clamamos o t<strong>em</strong>po todo para que<br />

ligu<strong>em</strong> os valores da prata e o ouro com os valores da alma e da inteligência. A melhor,<br />

que v<strong>em</strong> <strong>de</strong> Espanha, não vale mais que a esterlina das ilhas britânicas e ainda se<br />

apresenta sob a forma <strong>de</strong> peças assaz grosseiras, grossos metais cobertos <strong>de</strong> impurezas,<br />

que são contraban<strong>de</strong>adas, malgrado a interdição das leis dos reinados. Se puser à venda<br />

uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prata pura, você mesmo se traiu; e se fizer uma liga não<br />

sendo ourives, merecerá a pena capital, segundo as leis <strong>de</strong> Inglaterra, Países Baixos, e<br />

<strong>de</strong> quase todos os estados que prevê<strong>em</strong> que toda a alteração <strong>de</strong> título do ouro e da<br />

prata que não seja para aten<strong>de</strong>r à balança do ourives... é passível <strong>de</strong> pena capital se<br />

não é exercida por profissional registrado.<br />

Da Rosa nada falar<strong>em</strong>os agora, digo eu, enquanto mergulho fundo numa<br />

sonhadora e triste l<strong>em</strong>brança <strong>de</strong> Sonja. L<strong>em</strong>brança e sauda<strong>de</strong>. L<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> suas vestes<br />

cândidas. Nas noites ela acendia muitas luzes e tudo fulgurava insopitável. Falava<br />

bastante e recitava po<strong>em</strong>as, somava palavras e entoava cânticos... ela dançava... ria<br />

muito e nossos corações se aqueciam. E quando percebia que não nos agüentávamos<br />

mais <strong>em</strong> nós, ela juntava letras e números e transcendia o encontro. Ia além da tradição.<br />

Mantinha sua pureza. Numes e anjos se juntavam do lado <strong>de</strong> fora da residência e<br />

pareciam humanos. Estávamos felizes.<br />

- Hoje, - explicava calmamente Tomás <strong>de</strong> Aquino, - isto não teria sentido, porque se o<br />

ouro fosse vendido <strong>em</strong> pequenos lingotes <strong>de</strong>vidamente analisados na sua pureza haveria<br />

s<strong>em</strong>pre um comprador interessado. Digo tudo isso, caros jovens, para que não se<br />

percam <strong>em</strong> aventuras funestas. Aconteceu com um irmão, Reinaldo, se b<strong>em</strong> me l<strong>em</strong>bro,<br />

quando quis ven<strong>de</strong>r mais <strong>de</strong> 250g <strong>de</strong> ouro <strong>em</strong> pepitas que trouxe da África. Reinaldo<br />

parecia mais velho do que aparentava. Cabeça toda branca. Chamava muita atenção pois<br />

tocava chalumeau, era exímio instrumentista, e tinha longas e hirsutas barbas brancas.<br />

Ele se dirigiu a uma casa que fora recomendada. Lá disseram que não podiam comprar o<br />

ouro nessas condições e que teria primeiro <strong>de</strong> ser analisado o seu grau <strong>de</strong> pureza,<br />

indicando para isso, uma firma que o po<strong>de</strong>ria fazer. Dirigiu-se Reinaldo à dita firma e até<br />

ajudou o <strong>em</strong>pregado a fundi-lo. Deitou o ouro <strong>em</strong> pepitas num pequeno cadinho usado<br />

pelos ourives e aplicou-se o fogo durante cerca <strong>de</strong> 20 minutos ou mais. Quando o ouro<br />

se fundiu completamente, <strong>em</strong>itia estalidos secos. Admirado o <strong>em</strong>pregado perguntou<br />

porque o ouro fundido <strong>em</strong>itia esses estalidos. Respon<strong>de</strong>u o outro: é o cantar do ouro<br />

puro <strong>em</strong> fusão. S<strong>em</strong>pre foi bonito <strong>de</strong> ver e ouvir!<br />

Quando as persianas balançaram com as rajadas ficou patente que todos teriam<br />

<strong>de</strong> partir <strong>de</strong> imediato.<br />

- Record<strong>em</strong>os b<strong>em</strong>, no entanto, as alusões secretas que Tomás nos dá no dia <strong>de</strong> hoje,<br />

LaCordaire, Pietro... pois nos próximos anos o mundo se tornará <strong>de</strong> cabeça para baixo e<br />

nós ter<strong>em</strong>os responsabilida<strong>de</strong> nisso tudo, - falei. - Não sab<strong>em</strong>os tampouco, com certeza,<br />

se os irmãos da segunda linha tinham os mesmos conhecimentos que t<strong>em</strong>os agora, n<strong>em</strong><br />

que foss<strong>em</strong> admitidos <strong>em</strong> qualquer or<strong>de</strong>nação secreta... como Alberto quis que<br />

fôss<strong>em</strong>os...<br />

- Criptografar as mensagens será obrigatório, - disse Tomás, - e a divisão é clara. Se<br />

caír<strong>em</strong> tais palavras <strong>em</strong> mãos da milícia do Papa, ou <strong>de</strong> Reis e po<strong>de</strong>rosos que faz<strong>em</strong> o<br />

serviço do Mal sobre a Terra, então estar<strong>em</strong>os todos <strong>em</strong> apuros... e a humanida<strong>de</strong><br />

também.<br />

- Não por mim, - falei para o mestre, - pois, na minha maneira <strong>de</strong> ver, o conhecimento<br />

<strong>de</strong>ve ser exposto para todos que quiser<strong>em</strong> usá-lo.<br />

Coelho De Moraes 100


MARCUS, o imortal<br />

- Po<strong>de</strong>rá sofrer com isso, se não souber<strong>em</strong> a qu<strong>em</strong> repassar as informações, disse Tomás<br />

e vi que ele estava apreensivo.<br />

- Isso é verda<strong>de</strong>. Mas <strong>de</strong>ve haver a liberda<strong>de</strong> para fazê-lo.<br />

- Que assim seja, mas saibam que eu muito b<strong>em</strong> acredito que o Mal do mundo está<br />

nesse fato <strong>de</strong> que os governantes, orgulhosos e vaidosos, só o são pois sofr<strong>em</strong> da mais<br />

severa inveja: a inveja do mando, a inveja <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> respeitados, a inveja da sabedoria, a<br />

inveja da beleza e da fama. São pobres que sab<strong>em</strong> <strong>de</strong> suas limitações, mas não aceitam<br />

a situação e quer<strong>em</strong> tomar um lugar no controle do mundo, à força.<br />

Fiz<strong>em</strong>os uma pausa para refletir. Eu pensei sobre estas últimas palavras e tive<br />

que concordar com Tomás. Em seguida ele continuou com a lição, já refeito da<br />

ve<strong>em</strong>ência com que exortou nosso ânimo. Retornou à história <strong>de</strong> Reinaldo.<br />

- Depois <strong>de</strong> b<strong>em</strong> liquefeito, Reinaldo vazou-o com a <strong>de</strong>vida precaução numa pequena<br />

lingoteira. Depois <strong>de</strong> arrefecido pesou-o minuciosamente e entregou um documento<br />

referindo sua posse do ouro para analisar. No outro dia Reinaldo, ingênuo, foi buscá-lo.<br />

A barra <strong>de</strong> ouro tinha sido perfurada dos dois lados, mas não completamente e as aparas<br />

retiradas com a broca vinham junto com o lingote num pequeno saquinho <strong>de</strong> pele <strong>de</strong><br />

camelo. A pureza do ouro era 99,8%, apenas dois décimos aquém do ouro puro.<br />

Reinaldo dirigiu-se à casa anterior para vendê-lo. O proprietário, um ju<strong>de</strong>u, segundo<br />

constou, disse que naquele momento não tinha muita precisão <strong>de</strong> ouro puro, mas que<br />

para não <strong>de</strong>ixar Reinaldo s<strong>em</strong> nada nas mãos, compraria o tal ouro. Feitas as contas,<br />

verificou-se que havia enganos e enganações, e por isso Reinaldo disse-lhe que se<br />

quisesse fazer negócio era para se pagar o ouro ao preço <strong>de</strong> lei do ouro puro,<br />

<strong>de</strong>scontados apenas os dois décimos. Reinaldo disse que o hom<strong>em</strong> ficou a olhar com<br />

espanto porque viu que ele estava por <strong>de</strong>ntro do assunto. O outro concordou e o caso<br />

foi encerrado. Trazia um gran<strong>de</strong> maço <strong>de</strong> notas para pagar <strong>em</strong> dinheiro "vivo". Vendo<br />

isto, Reinaldo não aceitou: “- Dessa forma ainda sou assaltado! Passe uma letra assinada<br />

<strong>em</strong> seu nome”, disse Reinaldo. Então o ju<strong>de</strong>u se admirou, por não querer aceitar o<br />

dinheiro "vivo" e isto me parece claro, pois, <strong>de</strong>ve-se ao fato <strong>de</strong> que qu<strong>em</strong> normalmente<br />

ven<strong>de</strong> ouro é porque precisa <strong>de</strong> dinheiro o que, felizmente, não era o caso <strong>de</strong> Reinaldo.<br />

Ao sono eterno... não escapariam portanto senão aqueles que já <strong>em</strong> vida tinham<br />

sabido orientar sua consciência para um mundo superior, e os estudos da Pedra Filosofal<br />

queriam nos passar esta mensag<strong>em</strong>. Iniciados a<strong>de</strong>ptos, estudiosos da obra secreta estão<br />

no limiar <strong>de</strong>sse ponto. Caminham <strong>em</strong> tal via. Conseguida a recordação, o exame <strong>de</strong><br />

m<strong>em</strong>ória, como diria Plutarco, os irmãos se tornam livres, segu<strong>em</strong> s<strong>em</strong> vínculos e isso<br />

correspondia ao passar por todas as cores da Obra. Coroados celebram os mistérios. Os<br />

que não segu<strong>em</strong> tal senda se lamentam na Terra, esmagados e se revolv<strong>em</strong> no lodo e<br />

nas trevas.<br />

- Enfim, relatei isto para que saibam, rapazes, que há s<strong>em</strong>pre qu<strong>em</strong> está interessado <strong>em</strong><br />

comprar ouro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que lhe traga vantagens e n<strong>em</strong> sequer procura a sua proveniência.<br />

Há apenas uma formalida<strong>de</strong> a cumprir: a completa i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> o ven<strong>de</strong>, nada<br />

mais.<br />

Tomás sentou-se e cruzou as mãos, como fizera repetidas vezes para dar<br />

continuida<strong>de</strong> ou findar sua aula.<br />

- No caso do Irmão Reinaldo, e <strong>de</strong> muitos outros alquimistas, fabricar ouro por<br />

transmutação não teria muito sentido porque a chamada Pedra filosofal t<strong>em</strong> outras<br />

características muito mais interessantes e b<strong>em</strong> mais valiosas que o ouro puro. Posso<br />

repetir o que Évola <strong>de</strong> La Lacrime escreveu: “Os mestres da arte ensinam que o objetivo<br />

dos trabalhos é tríplice. Em primo posto é a Medicina universal, ou pedra filosofal<br />

propriamente dita, sob forma salina, multiplicada ou não, só utilizável para a cura das<br />

doenças humanas, a conservação da saú<strong>de</strong> e o crescimento dos vegetais.”<br />

Houve pausa. E, enquanto escrevíamos meditávamos nas palavras do mestre.<br />

- Se estiver na forma solúvel, <strong>em</strong> qualquer licor espirituoso, a solução toma o nome <strong>de</strong><br />

Ouro potável, <strong>em</strong>bora não contenha o mínimo <strong>de</strong> ouro, porque apresenta uma magnífica<br />

cor amarela e o seu valor curativo e a diversida<strong>de</strong> do seu <strong>em</strong>prego <strong>em</strong> terapêutica faz<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>la um auxiliar precioso no tratamento das afecções graves e incuráveis. Não t<strong>em</strong> ação<br />

sobre metais, salvo sobre o ouro e a prata, aos quais se fixa e dota das suas<br />

proprieda<strong>de</strong>s, mas não serve <strong>de</strong> nada para a transmutação.<br />

Pietro <strong>de</strong> Ferrara olhou para mim e com um sorriso levantou as sobrancelhas,<br />

armando um rosto maroto. Se b<strong>em</strong> entendo meu amigo se l<strong>em</strong>brou <strong>de</strong> um episódio <strong>em</strong><br />

que mulheres várias corriam pelo campo carregando na mão a Arrancadiabo, raízes tais<br />

Coelho De Moraes 101


MARCUS, o imortal<br />

que, segundo elas, arrancavam o diabo do corpo das pessoas e afastavam as<br />

alucinações. Queriam, as tais senhoras, administrar a tal erva a uma jov<strong>em</strong> que se dizia<br />

atormentada à noite pelo diabo. Na verda<strong>de</strong> queriam dar fim à juventu<strong>de</strong> da outra que<br />

namorava todos os homens – os tais diabos - da vila.<br />

- Finalmente, se fermenta a Medicina universal – parecia um cantar mas era apenas a<br />

voz <strong>de</strong> Tomás - sólida, com o ouro ou a prata muito puros. Por fusão direta, obtém-se o<br />

Pó <strong>de</strong> projeção, terceira forma da pedra. É uma massa translúcida, vermelha ou branca<br />

segundo o metal escolhido, pulverizável, própria para a transmutação metálica.<br />

Nova pausa. Tomás perambulou pelo aposento como a procurar na mente se<br />

algo fora esquecido ou olvidado.<br />

- Aqui têm, senhores, pois, a razão porque os alquimistas e os antigos Mestres não<br />

tiveram como principal objetivo o ouro, mas sim a chamada Medicina universal que,<br />

segundo a tradição, permitiria ao ser humano viver <strong>em</strong> perfeita saú<strong>de</strong> para além da ida<strong>de</strong><br />

normal.<br />

Nesse momento eu me l<strong>em</strong>brei <strong>de</strong> Alberto e do presente que ele me <strong>de</strong>ra dias<br />

atrás.<br />

Ele me dava a saú<strong>de</strong> ou uma vida s<strong>em</strong> t<strong>em</strong>ores e doenças. V.I.T.R.I.O.L. –<br />

advertia ele: Visita Interiore Terrae Rectificandoque Invenies Ocultum Lapid<strong>em</strong>, ou seja,<br />

vá ao interior da terra e, seguindo <strong>em</strong> linha reta, <strong>em</strong> profundida<strong>de</strong>, encontrarás a pedra<br />

oculta, a qual, além <strong>de</strong> uma referência à Pedra Filosofal, é um convite à procura do "eu<br />

interior" <strong>de</strong> cada um.<br />

OPUS 46<br />

Nesse t<strong>em</strong>po todo eu não mudava. Era o que me parecia. Enfim, t<strong>em</strong>os boas ou<br />

más impressões <strong>de</strong> nós mesmos. Convivi com muito espelhos e a cada século cada<br />

espelho, um mais t<strong>em</strong>ível e acurado que o outro, dava-me a mesma face.<br />

Os amigos passavam por mim e envelheciam e eu não mudava. S<strong>em</strong>blantes<br />

atormentados me olhavam s<strong>em</strong> ousar qualquer pergunta.<br />

E as piores datas passaram a se avolumar. As datas <strong>em</strong> que os mestres <strong>de</strong>ixaram<br />

nosso convívio para o outro lado do Véu.<br />

- A cultura é uma invenção da criatura humana, - eu falei e meus amigos concordaram. -<br />

Para curar o medo diante do aspecto primário da vida... inventam a cultura, plantam a<br />

civilização e lutam por domesticar a natureza.<br />

- ... A selva <strong>em</strong> que reina Pan, - completou Pietro <strong>de</strong> Ferrara. Eu sorri, ouvindo o<br />

comentário e l<strong>em</strong>brando <strong>de</strong> Alexandrino, o menor, que fora <strong>em</strong>bora um dia s<strong>em</strong> que mais<br />

soubéss<strong>em</strong>os <strong>de</strong>le .<br />

- O “omnia in unum”... segundo Lúlio, que se <strong>de</strong>u muito b<strong>em</strong> na Inglaterra fabricando<br />

ouro para o Rei Eduardo. O curioso é que os dobrões que daí saíram receberam o nome<br />

<strong>de</strong> Raimundo <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> ao sábio, - explicou LaCordaire.<br />

- O ser humano inventou os seus mitos, - recomecei, tendo os olhos perdidos nos<br />

horizontes que se abriam à janela.- Tudo isso para preservar o seu mundo <strong>de</strong> formas e<br />

para tentar preservar a unida<strong>de</strong> do que está <strong>em</strong> baixo e do que está <strong>em</strong> cima, <strong>de</strong> acordo<br />

com Hermes.<br />

- Mas qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rá esses exercícios que pesam sobre a teologia que v<strong>em</strong> ligada a<br />

sist<strong>em</strong>as astronômicos e a doutrinas do movimento?<br />

- A d<strong>em</strong>onstração da existência <strong>de</strong> Deus, - falou Pietro,- é um exercício da razão pura<br />

que po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve transformar-se <strong>em</strong> pieda<strong>de</strong>, mas que, <strong>em</strong> si mesma, é da ord<strong>em</strong> da<br />

ciência e não da religião .<br />

E vinham lá as más notícias.<br />

Devo relatá-las, pois tudo é produto <strong>de</strong>ssa l<strong>em</strong>brança que agri<strong>de</strong> agora, após<br />

tanto t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> imersão <strong>em</strong> meditações e solidão. No entanto, antes, passarei a rever<br />

meus escritos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo e reanotá-los, principalmente no que tiver<strong>em</strong> <strong>de</strong> técnica e<br />

arte, para que esse conhecimento não se perca. Em outro momento abrirei novas<br />

brochuras que ainda trago guardadas...<br />

Os escritos alquímicos, por ex<strong>em</strong>plo, são, ao começo, apenas receitas técnicas<br />

que passavam <strong>de</strong> pais a filhos, no Egito... Só aos “filhos legítimos” e aos “dignos”<br />

po<strong>de</strong>riam ser divulgados. Daí Hermes ou Agathod<strong>em</strong>on – os princípios da transmutação<br />

e o dogma da matéria primeira. Assim a palavra famosa, repetida pelos alquimistas e que<br />

simbolizava a imag<strong>em</strong> da serpente que se mor<strong>de</strong> a cauda, o ouroboros . Quantos<br />

Coelho De Moraes 102


MARCUS, o imortal<br />

tratados não apareceram? E coleções sobre esta arte sagrada: fabricação do ouro, da<br />

prata, das pedras preciosas... Tudo é motivo <strong>de</strong> luta e sangrentas contendas... Busca da<br />

riqueza... Para Festugière a alquimia torna-se um verda<strong>de</strong>iro mysterion, uma ascensão<br />

<strong>em</strong> que a alma sobe os <strong>de</strong>graus da escada mística, com batismo, morte e regeneração,<br />

queda e ressurreição do Primeiro Hom<strong>em</strong>, “spellum”, the spell, dos ingleses, o feitiço...<br />

espelho celeste <strong>em</strong> que a alma se vê na sua natureza.<br />

Contudo, eu divago e faço isso para evitar falar das mortes. Das passagens. Das<br />

travessias.<br />

A ciência aparece como a antítese da magia. Na verda<strong>de</strong> é uma substituta on<strong>de</strong><br />

até mesmo o incompetente po<strong>de</strong> se arrogar doutor. O combate contra a magia ou o<br />

pensamento mágico começa agora, e eu sei, atravessará séculos e abarcará campos tão<br />

diversos como a teologia, a filosofia, a medicina... Em 1267, Boaventura tomou a<br />

palavra na igreja franciscana <strong>de</strong> Paris, misturando o aristotelismo e um conjunto <strong>de</strong><br />

doutrinas, <strong>de</strong> superstições ou <strong>de</strong> práticas mágicas. Grosseteste coloca a astrologia na<br />

primeira fila das ciências e acredita na transmutação dos metais. Depois, Dante junta no<br />

mesmo céu do Paraíso Tomás <strong>de</strong> Aquino, Siger <strong>de</strong> Brabant e Alberto Magno. Não há<br />

incompatibilida<strong>de</strong> entre a Grécia e a Revelação, o averroísmo latino e o intelectualismo<br />

integral entram no mesmo convívio <strong>de</strong> transmutação das idéias. A ciência experimental,<br />

que teve <strong>em</strong> Roger Bacon um dos seus maiores, t<strong>em</strong> uma dívida para com as ciências a<br />

que chama ocultas. O t<strong>em</strong>po abre duas gran<strong>de</strong>s vias para pensar o projeto <strong>de</strong> uma união<br />

secreta do ser humano com a natureza, uma que passando pelo filtro <strong>de</strong> forças<br />

misteriosas, divinas ou d<strong>em</strong>oníacas e <strong>de</strong> procedimentos iniciáticos, abarca a alquimia, a<br />

necromancia e a magia; outra que passa pela <strong>de</strong>scrição rigorosa dos fenômenos, tendo<br />

<strong>em</strong> conta os progressos da técnica e que combate o recurso ao esoterismo.<br />

O corpo humano é um sist<strong>em</strong>a alquímico – idéia revolucionária – e<br />

imediatamente toco na ficha pétrea que Alberto me <strong>de</strong>ra <strong>de</strong> presente um dia e vejo que<br />

os fenômenos se multiplicam <strong>em</strong> mim, oitocentos anos após... Sumiram <strong>de</strong> mim as<br />

doenças, pois se chegou a bom termo a busca das múltiplas modalida<strong>de</strong>s do<br />

<strong>de</strong>sequilíbrio, aniquilando-o. Mas, até quando? Não são uma <strong>de</strong>sarmonia dos humores,<br />

mas dos po<strong>de</strong>res exteriores que agiram sobre mim: o ens astrale, o ens veneni, o ens<br />

naturale, o ens spirituale e o ens Dei. O caminho se abriu para que o olhar mu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

mão – uma mão que a Razão dirige e que, via ciência e técnica, manipula, utiliza, domina<br />

a natureza.<br />

- Acredita que o cristianismo possa <strong>de</strong>ssacralizar o mundo? – l<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> uma noite <strong>em</strong><br />

que Pietro <strong>de</strong> Ferrara, arrumando o fogo para a lareira perguntou, assim, <strong>de</strong> socapa. E<br />

eu disse que não sabia e só podia tirar conjecturas.<br />

- Sei que <strong>de</strong>u-nos o meio <strong>de</strong> transformar <strong>em</strong> técnica a imitação criadora que o rito só<br />

po<strong>de</strong> produzir uma vez. No universo das elites o experimental aparece s<strong>em</strong>pre como<br />

impuro e popular. A alquimia, representa um esforço <strong>de</strong> sacralizar o mundo, sublimar a<br />

vida, talvez, buscar a transcendência, não <strong>de</strong> a reduzir a uma ficção.<br />

Todos eles hoje já <strong>de</strong>sapareceram. Viv<strong>em</strong> na minha m<strong>em</strong>ória, mas isso não é<br />

muito.<br />

Aquino, <strong>em</strong> 1267, tinha ido para Viterbo e trabalhava com o Papa Cl<strong>em</strong>ente IV,<br />

recusando o posto <strong>de</strong> arcebispo <strong>de</strong> Nápoles. Dois anos mais tar<strong>de</strong> retornou a Paris e<br />

aceitou o posto <strong>de</strong> catedrático <strong>de</strong> teologia nos Dominicanos. Sua indicação foi, naqule<br />

momento, muito útil porque ele se forçou a <strong>de</strong>votar toda a sua energia para <strong>de</strong>rrotar a<br />

oposição que havia <strong>em</strong>ergido na universida<strong>de</strong> da Ord<strong>em</strong> dos Mendicantes, <strong>em</strong> particular<br />

dos Dominicanos, com os ensinamentos <strong>de</strong> Aristóteles e a assegurar, com ímpeto e força,<br />

a con<strong>de</strong>nação das idéias controvertidas do teólogo Siger <strong>de</strong> Brabant, mesmo porque<br />

durante os <strong>de</strong>bates na estalag<strong>em</strong> b<strong>em</strong> se viu que Siger era hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a<br />

honestida<strong>de</strong>, mas muito versado nas coisa do mundo... um mundano... e ainda seguidor<br />

dos chamados Averroistas, que advogavam uma forma extr<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Aristotelismo, e com a<br />

qual Siger tinha ampla afeição, <strong>de</strong>fendo-os s<strong>em</strong>pre.<br />

Siger s<strong>em</strong>pre foi polêmico. E não foi por pouca coisa que o assassinaram.<br />

Retornando ao mestre <strong>de</strong> Aquino, renomado, o Papa or<strong>de</strong>nou a ele que<br />

organizasse uma escola <strong>em</strong> Nápoles. Ali <strong>de</strong>u sermões, pregou perante gran<strong>de</strong>s multidões<br />

e continuou o seu trabalho <strong>de</strong> pesquisa para terminar a Summa Theologiae. Muito<br />

doente e exausto do seus incessantes trabalhos, Tomás, assim mesmo, <strong>de</strong>pois, obe<strong>de</strong>ceu<br />

ao pedido do Papa Gregório X <strong>de</strong> participar no Concílio <strong>de</strong> Lyon. Na França, ele teve um<br />

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MARCUS, o imortal<br />

colapso <strong>em</strong> janeiro <strong>de</strong> 1274 e morreu no Monastério Cisterciense <strong>de</strong> Fossanova <strong>em</strong> 7 <strong>de</strong><br />

março.<br />

Siger <strong>de</strong> Brabant, por sua vez, já havia se projetado como o principal<br />

representante do averroismo latino, como tantas vezes já ficou aqui esclarecido, e Siger,<br />

a partir <strong>de</strong> 55, ganhou terreno na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris, especialmente na Faculda<strong>de</strong> das<br />

Artes, on<strong>de</strong> foi professor b<strong>em</strong> cotado por alunos ávidos <strong>de</strong> conhecimento e aventura. E,<br />

histórias, verda<strong>de</strong>iras ou não era o que não faltava ao prolixo Siger. Outros partidários <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>staque foram Boécio <strong>de</strong> Dácia e Bernier <strong>de</strong> Nivelles. Ele, Siger, veio <strong>de</strong> Cordova, da<br />

mesma cida<strong>de</strong> espanhola on<strong>de</strong> nascera Averróis, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>em</strong>igrou para a Bélgica, daí o<br />

cognome Brabant. Foi cônego <strong>de</strong> Liége. Vimos que <strong>de</strong>bateu com Tomás e Alberto.<br />

Coincidiram <strong>em</strong> alguns pontos. Foram díspares <strong>em</strong> outros. Mas permaneceu polêmico. E<br />

Siger <strong>de</strong> Brabant ousou muito. Extenuou a paciência <strong>de</strong> muita gente grada.<br />

Sist<strong>em</strong>aticamente e mais enfaticamente Siger <strong>de</strong> Brabant expõe todo um sist<strong>em</strong>a<br />

aristotélico interpretado segundo o espírito averroísta – o espírito <strong>de</strong> Ibn-Rush. A<br />

novida<strong>de</strong> produziu reação na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Teologia, para a qual retornara Tomás <strong>de</strong><br />

Aquino <strong>em</strong> 1269.<br />

Siger <strong>de</strong> Brabant reencontrou um adversário <strong>de</strong> valor. Os dois gran<strong>de</strong>s homens<br />

do século ergueram ao máximo o esforço <strong>de</strong> inteligência da universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris. Siger<br />

<strong>de</strong> Brabant, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alvoroços e celeumas homéricas, pressões clericais e forças<br />

adversárias <strong>de</strong> calibre, ce<strong>de</strong>u nos extr<strong>em</strong>ismos iniciais e passou a uma posição<br />

mo<strong>de</strong>rada. Criticaram-no por isso , também. Siger fora um <strong>de</strong>ssas pessoas que, não<br />

importa que posição tomam, s<strong>em</strong>pre terão severos críticos prontos a diminuir seu valor.<br />

Quanta vez não lhe <strong>de</strong>ram mérito por coisa que nunca fizera ou por livro que nunca<br />

escrevera ou oração que nunca proferira?<br />

A ação repressiva da Igreja contra o averroismo se manifestou primeiramente<br />

pelo <strong>de</strong>creto do bispo <strong>de</strong> Paris, Etienne T<strong>em</strong>pier, <strong>de</strong> 10 <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1270,<br />

<strong>de</strong>nunciando 13 proposições inovadoras. Continuaram as ações repressivas, até<br />

culminar<strong>em</strong> na con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Siger, <strong>em</strong> 7 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1277. Para Siger, as pessoas se<br />

distingu<strong>em</strong> e se multiplicam apenas pela sua parte sensível. Propunha, também, a<br />

imortalida<strong>de</strong> pessoal, substituída por uma imortalida<strong>de</strong> da raça humana como tal, eterna<br />

como o próprio universo, <strong>em</strong> contraste com a doutrina cristã tradicional. Por inferência<br />

s<strong>em</strong>elhante <strong>de</strong>saparecia também a liberda<strong>de</strong> individual. Diante do pan-psiquismo<br />

averroísta <strong>de</strong> Siger <strong>em</strong> Paris compreen<strong>de</strong>-se a reação das instâncias oficiais. A reação<br />

contra Aristóteles já vinha <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1210 quando o arcebispo <strong>de</strong> Senns o proibia na<br />

universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris. Agora, com a formulação sutil que Siger lhe <strong>de</strong>u, com base <strong>em</strong><br />

Averróis, Aristóteles mereceu novo combate.<br />

Dos meios agostinianos investiu Boaventura, com sermões <strong>em</strong> 1267, <strong>em</strong> Paris,<br />

<strong>de</strong>nunciando o lado herético do movimento.<br />

Do meio dominicano veio a reação contra Siger, <strong>de</strong> Alberto Magno e <strong>de</strong> Tomás <strong>de</strong><br />

Aquino. Este, <strong>em</strong> 1269, estava <strong>de</strong> retorno da corte pontifícia, on<strong>de</strong> se inteirara <strong>de</strong><br />

Aristóteles no original, assistido pelo helenista Moerbeke. Num sermão <strong>em</strong> julho <strong>de</strong> 1270<br />

aos estudantes <strong>de</strong> Saint Jacques, insistiu Tomás no princípio teológico <strong>de</strong> que não pod<strong>em</strong><br />

ocorrer verda<strong>de</strong>s opostas da razão e da fé. Seguidores <strong>de</strong> Siger arrulharam no plenário.<br />

Tomás sorriu, doc<strong>em</strong>ente, pois amava o irmão Brabant e sómente estava no lado oposto<br />

<strong>em</strong> termos <strong>de</strong> idéias, mas não nos interesses da alma.<br />

Reagiu Siger, reformulando <strong>em</strong> parte sua posição. Abandonando a interpretação<br />

averroísta <strong>de</strong> Aristóteles, no que se refere a inteligência, apresentou uma própria, oposta<br />

a <strong>de</strong> Tomás, achando-se mais fiel ao texto do De anima do Estagirita. Estabeleceu Siger<br />

que a alma universal se une ao indivíduo, não pela simples abstração do fantasma<br />

sensível conforme Averróis, n<strong>em</strong> como forma substancial, - que era o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong><br />

Tomás, - mas como forma a operar <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro ut forma intrinsecus operans. Por fim,<br />

numa terceira fase da discussão, Siger <strong>de</strong> Brabant concordou com a doutrina da alma<br />

como forma substancial do corpo, movido pelos argumentos teológicos e filosóficos dos<br />

seus contendores.<br />

O mesmo fez Siger com referência à doutrina da liberda<strong>de</strong>. Conservou,<br />

entretanto, sua visão averroísta do mundo, com as esferas celestes criadas ab aeterno e<br />

necessariamente. Nesta polêmica foi Siger um ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> como o pensador <strong>de</strong>ve agir<br />

com plena liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento e que po<strong>de</strong> mudar s<strong>em</strong>pre que achar novos<br />

caminhos. Mas com a con<strong>de</strong>nação, ele não po<strong>de</strong>ria mais ensinar. Nessa época, muita<br />

gente mandava recados anônimos aconselhando Siger a se calar, <strong>em</strong> troca <strong>de</strong> sua vida.<br />

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MARCUS, o imortal<br />

As perturbações ainda continuaram. Seus partidários, no Natal <strong>de</strong> 1271, por<br />

ocasião da eleição do reitor Alberico, para a Faculda<strong>de</strong> das Artes, eleg<strong>em</strong>-no como<br />

contra-reitor. Propunham um governo paralelo? Ocorrendo dificulda<strong>de</strong>s entre a<br />

universida<strong>de</strong> e o bispo T<strong>em</strong>pier, elas ainda foram agravadas por uma greve escolar, e, é<br />

claro, por culpa e incitação do rebel<strong>de</strong> Siger <strong>de</strong> Brabant.<br />

Em 18 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 77 uma admoestação é enviada <strong>de</strong> Roma a Paris por João<br />

XXI, o conhecido Pedro <strong>de</strong> Espanha, há pouco eleito Papa e logo falecido sob os<br />

escombros <strong>de</strong> um teto <strong>de</strong>sabado. Ninguém cogitou numa possível punição divina. N<strong>em</strong><br />

na ação humana como facilitadora.<br />

A diretriz filosófica pessoal <strong>de</strong> Pedro <strong>de</strong> Espanha era agostiniana. O bispo <strong>de</strong><br />

Paris, Étienne T<strong>em</strong>pier saiu-se, então, com nova con<strong>de</strong>nação, datada <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1277,<br />

voltando ao que eu já disse, con<strong>de</strong>nando 219 teses, atingindo também outros autores. As<br />

con<strong>de</strong>nações favoreceram ao agostinianismo, não somente diante do averroísmo como<br />

também diante do tomismo aristotelizante. Desta vez foi incluída na con<strong>de</strong>nação a tese<br />

da dupla verda<strong>de</strong>, verda<strong>de</strong>ira sob o ponto <strong>de</strong> vista da fé, falsa sob o da razão. Foram<br />

também con<strong>de</strong>nadas como contrárias à ortodoxia teses que, através dos t<strong>em</strong>pos,<br />

persistirão sutilmente entre exegetas, cientistas, filósofos: que há fábulas e coisas falsas<br />

na religião cristã; que a lei cristã impe<strong>de</strong> a instrução ou cultura; que a verda<strong>de</strong>ira<br />

sabedoria é somente a dos filósofos; que não há nada superior do que o exercício da<br />

filosofia; que a felicida<strong>de</strong> se obtém nesta e não na outra vida; que a virtu<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ser<br />

praticada pelos faltos <strong>de</strong> fortuna.<br />

Siger foi assassinado por um secretário <strong>de</strong> confiança.<br />

1280 foi o ano <strong>de</strong> Alberto partir.<br />

Al<strong>em</strong>ão, alquimista, conhecido como "Doctor Universalis". Repito s<strong>em</strong>pre. Alberto<br />

teve um interesse, que durou toda a vida, pelas ciências naturais; foi importante cultor<br />

<strong>de</strong> Aristóteles cuja influência percorre tanto os seus escritos científicos como os seus<br />

escritos religiosos. Logo após a sua morte um número <strong>de</strong> escritos sobre magia começou<br />

a circular com o seu nome. Não há hermetista que não o conheça, e se você é uma<br />

pessoa que se acha muito culta <strong>em</strong> magia e não conhece Alberto, não passa <strong>de</strong> uma<br />

frau<strong>de</strong> para com você mesmo e para todos os outros. Magnus in magia, major in<br />

philosophia, maximus in theologia. Não há dúvida que foi a sua ligação à magia que o<br />

afastara dos altares. O seu Secretum Secretorum, que aparecerá mais tar<strong>de</strong> <strong>em</strong> Veneza,<br />

liga-o ao hermetismo. Circula a Les Admirables Secrets d'Albert le Grand que fala das<br />

virtu<strong>de</strong>s das ervas, das pedras preciosas e animais, métodos contra as pragas, febres<br />

malignas. Talvez um modo <strong>de</strong> se fastar <strong>de</strong> perseguições outras. Na verda<strong>de</strong>, a prática <strong>em</strong><br />

vez da teoria; a ação para auxiliar os pobres do mundo a resolver seus probl<strong>em</strong>as. Há<br />

qu<strong>em</strong> lhe atribua a criação <strong>de</strong> um andrói<strong>de</strong>, um Golém, experimentos que resultaram das<br />

leituras Bíblicas mormente do episódio <strong>de</strong> Lázaro... um autômato dotado do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

falar. Tais assuntos beiravam à magia da Ressurreição e por isso se contava com muitos<br />

inimigos. O milagre <strong>de</strong> transformar o inverno <strong>em</strong> primavera - o jardim <strong>de</strong> Alberto -<br />

aparece ligado ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> metamorfosear a natureza, não é menos comentado.<br />

Tomo as palavras <strong>de</strong> Ulrich Engelbert, cont<strong>em</strong>porâneo <strong>de</strong> Alberto Magnus, que o<br />

chamava <strong>de</strong> o admirável milagre do seu t<strong>em</strong>po: - "Vir in omni scientia a<strong>de</strong>o divinus, ut in<br />

nostri t<strong>em</strong>poris stupor et miraculum congrue vocari possit". Mas a sua vida passou para<br />

a história do comum dos mortais ligada à teologia, ao lado <strong>de</strong> Pedro Lombardo, o Mestre<br />

das Sentenças e Tomás <strong>de</strong> Aquino, seu discípulo, por qu<strong>em</strong> ele chorou admiravelmente<br />

ao pressentir, enquanto rezava uma missa, que o aluno amigo falecera longe dali.<br />

Algumas flores <strong>de</strong> seu campanário <strong>de</strong>ram o sinal. Na elevação da hóstia ele titubeara e<br />

algumas lágrimas <strong>de</strong>sceram incontroláveis. Há qu<strong>em</strong> diga que ouviu sons <strong>de</strong> flauta ruda e<br />

cantos suaves.<br />

Nas suas obras não se vê uma distinta separação entre ciências e filosofia. Não<br />

se consumava a separação entre a cabeça e as mãos, espírito contra matéria, cultura<br />

versus natura. A relação <strong>de</strong> conflito entre razão e fé nasce <strong>de</strong>ssa má divisão, <strong>de</strong>sse mal<br />

entendido. Mas, essa época ainda chegaria.<br />

Alberto compreen<strong>de</strong>u, como poucos, que a tarefa maior da cultura é a tradução,<br />

ou melhor, a inter-tradução. Por isso assumiu a tarefa <strong>de</strong> iniciar os seus cont<strong>em</strong>porâneos<br />

na gran<strong>de</strong> filosofia grega e árabe, tornando Aristóteles inteligível aos Latinos. Verda<strong>de</strong>iro<br />

ato <strong>de</strong> bonda<strong>de</strong> intelectual. O seu método é <strong>em</strong> tudo conforme aos usos universitários:<br />

construir a exposição do texto <strong>de</strong>senvolvendo o seu sentido literal; <strong>de</strong>pois, tomando<br />

recuo, instituir questões dotadas <strong>de</strong> argumentos pró e contra a propósito <strong>de</strong> passagens<br />

Coelho De Moraes 105


MARCUS, o imortal<br />

mais difíceis. O anti-intelectualismo afirmava: o amor vai mais longe do que a intelecção:<br />

ubi <strong>de</strong>ficit intellectus, ibi proficit affectus, dizia Boaventura. A dileção prima sobre o<br />

saber. Hugo <strong>de</strong> S. Victor dizia: amar é ver, o amor é um olho; o amor é conhecimento,<br />

falava S. Victor contra o método racional no domínio teológico. Alberto, no entanto, está<br />

ligado à noção litigiosa <strong>de</strong> teofania (censurada <strong>em</strong> 1241) que dizia: é Deus que v<strong>em</strong> ao<br />

encontro do ser humano segundo um modo a ele adaptado e para o encaminhar para o<br />

conhecimento feliz: "Deus comunica-se a si mesmo para a <strong>de</strong>ificação daqueles que para<br />

ele se voltam". A noção <strong>de</strong> teofania <strong>de</strong>ve enten<strong>de</strong>r-se no registro da iluminação<br />

intelectiva que é constitutiva da graça santificante: o Filho ilumina o intelecto e o Espírito<br />

abrasa o afeto. Nesta vida nós v<strong>em</strong>os Deus <strong>de</strong> costas, confusamente.<br />

Um excesso <strong>de</strong> crise também mata a crise. Quando se retira a liberda<strong>de</strong> da<br />

pessoa, que verda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> esta pessoa preten<strong>de</strong>r alguma vez atingir? A objeção contra a<br />

perda das harmonias do sentimento não é apenas uma reação esotérica.<br />

Alberto é um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sábio. Sua maneira <strong>de</strong> agir e suas criações <strong>de</strong>ntro dos<br />

processos das Obras – e quando falo <strong>de</strong> Obras com “O” maiúsculo me refiro à Alquimia -<br />

provam isso. O contrário da sabedoria é a multiplicação <strong>de</strong> idéias iguais. O sist<strong>em</strong>a das<br />

escolas, da informação e da cultura que se espalha superficial para todos, s<strong>em</strong><br />

questionamentos, permite fabricar seres que se tornam uma cópia conforme uns aos<br />

outros – mímesis grosseira. A sabedoria não se acomoda com a inspeção, o ofício normal<br />

do ver e do b<strong>em</strong> ver, que se esgota ao consi<strong>de</strong>rar o que existe. O acontecimento,<br />

reduzido a um simples traço, é um ruído, que é a exceção da monótona e tranqüilizante<br />

inspeção. O espírito <strong>de</strong>sperta. O pensamento só é diurno e vigilante sob o efeito <strong>de</strong> um<br />

acontecimento.<br />

O Doutor universal é hom<strong>em</strong> do seu t<strong>em</strong>po. Alberto nos dá otimismo e ex<strong>em</strong>plos<br />

a seguir sobre os interesses que tinha acerca da natureza humana, respeitando a<br />

autonomia do mundo, do ser humano, do discurso moral e da Razão. Que ele nos<br />

conceda o Dom do questionamento e do rigor e a graça <strong>de</strong> não substituir a questão pela<br />

tese.<br />

Após essa época, 1280, Pietro <strong>de</strong> Ferrara fora acometido por doenças que não<br />

conseguimos <strong>de</strong>belar ao chegarmos a Jerusalém. N<strong>em</strong> usando minha pedra. Emagrecera<br />

a olhos vistos. Estava fraco. Os sarracenos nos ofereceram seus médicos e métodos <strong>de</strong><br />

cura, porém durante o retorno Pietro teve uma crise que o fez cair na estrada. Era olhar<br />

<strong>em</strong> torno e nada ver, s<strong>em</strong>pre solitários que fomos. Distantes <strong>de</strong> todo lugar. Tiv<strong>em</strong>os que<br />

esperar e orar. Em alguma das estradas poeirentas jaz, Pietro <strong>de</strong> Ferrara, sob um monte<br />

<strong>de</strong> pedras.<br />

LaCordaire, por sua vez, resolveu partir para as Ilhas Britânicas atrás <strong>de</strong> Duns<br />

Scotus e ampliar seus conhecimentos, mas somente após nos instalarmos <strong>em</strong> Paris para<br />

lecionar e pesquisar profundamente os caminhos esotéricos, com os quais ele não mais<br />

quis ter contato algum. Sei que se casou e teve oito filhos com uma her<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> galeses.<br />

LaCordaire se limita a passeios <strong>em</strong> Stonehenge. Escreve para mim uma vez por ano.<br />

Apren<strong>de</strong>u a tocar flauta.<br />

É isso. Os escritos finalizam por aqui. Não há nada mais para contar.<br />

Dou a<strong>de</strong>us agora a todos.<br />

Dou a<strong>de</strong>us ao caro Doctor Angélicus. Tomás <strong>de</strong> Aquino.<br />

Dou a<strong>de</strong>us ao insuperável Siger <strong>de</strong> Brabant, agra<strong>de</strong>cendo por todos os medos e<br />

por toda a ousadia.<br />

Dou a<strong>de</strong>us a Alberto, o Gran<strong>de</strong>. Doctor Universalis.<br />

O século 14 me espera e a fogueira <strong>de</strong> Jacques <strong>de</strong> Molay está aqui na minha<br />

frente, ar<strong>de</strong>ndo, crepitando, queimando o corpo do T<strong>em</strong>plário traído, enquanto ele grita,<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da pira, impropérios e profecias que se concretizarão <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um ano. A<br />

morte do Rei e a morte do Papa. O povo que assiste ao Auto <strong>de</strong> Fé exulta e urra como<br />

animais <strong>em</strong> uma jaula.<br />

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