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Aqui - Sapo

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Nas horas seguintes,<br />

o comboio parou oito vezes.<br />

Não parou em estações.<br />

Abrandou junto de canaviais,<br />

de pântanos e de florestas e a<br />

locomotiva ficava em silêncio,<br />

detendo-se de supetão. Os<br />

passageiros (...) ainda que<br />

estivessem a falar<br />

animadamente quando<br />

o comboio estava em<br />

movimento, quando parava<br />

tornavam-se lacónicos,<br />

resmungavam e suspiravam.<br />

Habitualmente, este silêncio<br />

tórrido era quebrado por um<br />

grito vindo do lado de fora<br />

das janelas: «Bananas!»


Paul Theroux


O Velho Expresso da Patagónia<br />

Tradução de Nuno Guerreiro Josue<br />

quetzal série serpente emplumada | Paul Theroux


1<br />

O Lake Shore Limited<br />

Era evidente que naquela carruagem de metropolitano um<br />

de nós não ia para o trabalho. Notava-se imediatamente pelo tamanho<br />

da mala. Pode sempre reconhecer-se um fugitivo pela<br />

sua vaga expressão de presunção: parece ter um segredo na boca<br />

— como se estivesse prestes a rebentar um balão. Mas porquê<br />

fazer-me de tímido? Acordara no meu velho quarto, na casa onde<br />

passara a maior parte da minha vida. A neve acamava-se espessa<br />

em volta da casa, e havia pegadas de um lado ao outro do<br />

jardim até ao caixote do lixo. Um nevão acabara de passar,<br />

outro era esperado para breve. Tinha-me vestido e atado os sapatos<br />

com um cuidado maior do que o habitual; deixei uma<br />

penugem no lábio superior preparando um futuro bigode. Apalpando<br />

os bolsos para ter a certeza de que a esferográfica e o passaporte<br />

estavam a salvo, desci as escadas, passei pelo soluçante<br />

relógio de cuco da minha mãe e segui para Wellington Circle<br />

para apanhar o comboio. O frio gélido paralisava, a manhã era<br />

perfeita para partir rumo à América do Sul.<br />

Para alguns, este era o metro para a Sullivan Square, a Milk<br />

Street ou, quando muito, Orient Heights; para mim, era o comboio<br />

para a Patagónia. Dois homens falavam baixo numa língua<br />

estrangeira; havia outros com marmitas com o almoço, malas<br />

e pastas, e uma senhora com um saco enrugado de uma loja, in-


22 Paul Theroux<br />

dicando que ia devolver ou trocar um artigo indesejado (o saco<br />

original emprestando veracidade à incómoda operação). O tempo<br />

gelado tinha alterado os rostos no comboio multirracial: as<br />

faces brancas pareciam ter sido esfregadas com giz cor-de-rosa,<br />

os chineses estavam sem sangue, os negros, cinzentos ou cinza-<br />

-amarelados. Ao amanhecer estavam onze graus negativos,<br />

a meio da manhã estavam doze graus negativos e a temperatura<br />

continuava a cair. O vento frio soprou pela carruagem quando<br />

as portas abriram em Haymarket, tendo como efeito silenciar os<br />

murmúrios dos estrangeiros. Pareciam ser mediterrânicos; ficaram<br />

sobressaltados com a corrente de ar. A maior parte das pessoas<br />

permanecia sentada de forma compacta, braços rentes ao<br />

corpo, as mãos no colo, com os olhos meio fechados, conservando<br />

o calor.<br />

Tinham coisas para fazer na cidade — iam para o trabalho,<br />

às compras, ao banco, rumo ao embaraçoso momento frente ao<br />

balcão das devoluções. Dois tinham volumosos manuais escolares<br />

no colo, e na lombada de um volume que estava na minha<br />

direcção podia ler-se: Introdução Geral à Sociologia. Um homem<br />

lia solenemente os títulos do Globe, outro arranjava os<br />

papéis na sua pasta. Uma senhora dizia à filha pequena para deixar<br />

de dar pontapés e se sentar quieta. Aos poucos, iam saindo<br />

para as plataformas ventosas; depois de quatro estações, a carruagem<br />

estava meio vazia. Regressariam essa tarde, depois de<br />

passarem o dia a falar do tempo. Mas estavam vestidos para<br />

o combater — roupas de escritório por baixo de casacos de esquimó,<br />

luvas, gorros de lã. A resignação estava-lhes estampada<br />

no rosto e, já, indícios de fadiga. Nem um vestígio de entusiasmo,<br />

tudo era habitual e corriqueiro; o metro era a sua rotina<br />

diária.<br />

Ninguém olhava pela janela. Tinham já visto o porto, Bunker<br />

Hill e os cartazes. Nem sequer olhavam uns para os outros.<br />

Os olhares detinham-se a poucos centímetros dos olhos. Ainda<br />

que não lhes prestassem atenção, os cartazes de publicidade colocados<br />

sobre as suas cabeças falavam a estas pessoas. «Necessi-


O Velho Expresso da Patagónia 23<br />

ta de formulários para o IRS?» Por baixo, um jovem com um<br />

casaco cor de ervilha sorria ao ler o jornal e engolia em seco.<br />

«Levante os seus cheques em qualquer parte do Massachusetts.»<br />

Uma mulher, com a pele de um amarelo-acinzentado à hotentote,<br />

abraçou-se ao seu saco de plástico. «Torne-se voluntário nas escolas<br />

públicas de Boston.» Não seria má ideia para o examinador<br />

de mala, de gorro russo, farto de tudo. «Crédito à habitação?<br />

Nós concedemos!» Ninguém levantava o olhar. «Telhados<br />

e beirais. Tire um curso universitário nos seus tempos livres.»<br />

Um restaurante. Uma emissora de rádio. Um apelo para deixar<br />

de fumar.<br />

Os cartazes não estavam a falar para mim. Eram temas locais,<br />

mas eu partia nessa manhã. E, quando se vai, as promessas<br />

dos anúncios publicitários tornam-se inúteis. Dinheiro, universidade,<br />

casa, rádio: deixava-os para trás e, na duração da curta<br />

viagem de Wellington Circle para a State Street, as palavras dos<br />

anúncios tinham-se convertido em mera tagarelice implorante,<br />

como as asneiras de uma língua desconhecida. Podia encolher os<br />

ombros; afastava-me de casa. Além do frio e da luz ofuscante na<br />

neve caída, nada havia de grande significado no meu trajecto,<br />

nada transcendente, excepto que, à medida que chegávamos<br />

à South Station, estava um quilómetro e meio mais perto da Patagónia.<br />

* * *<br />

Viajar é desaparecer, uma incursão solitária por uma estreita<br />

linha geográfica até ao esquecimento.<br />

Que se passou com Waring<br />

desde que deu à sola?<br />

Mas um livro de viagens é o oposto, o solitário que regressa<br />

vaidoso a casa para contar a história da sua experiência com<br />

o espaço. É a forma mais simples de narrativa, uma explicação<br />

que constitui a sua própria desculpa para fazer as malas e partir.


24 Paul Theroux<br />

É movimento ordenado pela sua repetição verbal. Este tipo de<br />

desaparição é elementar, mas poucos regressam silenciosos. Ainda<br />

assim, a convenção é escrever condensando a viagem, começar<br />

— como fazem tantos romances — no meio das coisas, naufragar<br />

o leitor num lugar estranho sem antes o ter ali guiado.<br />

«As formigas-brancas comeram a minha cama de rede», assim<br />

podia começar um livro; ou: «Ali em baixo, o vale da Patagónia<br />

afundava-se em rocha cinzenta, ostentando as suas linhas formadas<br />

em milénios rasgadas por enchentes.» Ou, para escolher<br />

ao acaso as primeiras frases de três livros que tenho ao alcance<br />

da mão:<br />

«Foi quase ao meio-dia de 1 de Março de 1898 que entrei pela<br />

primeira vez no estreito e um tanto perigoso porto de Mombaça,<br />

na costa oriental de África.» (Os Devoradores de Homens de<br />

Tsavo, do tenente-coronel John Henry Patterson.)<br />

«“Bem-vindos!”, anunciava uma grande placa situada ao lado<br />

da estrada à medida que o automóvel completa a sua ascensão<br />

em espiral, do calor das planícies meridionais da Índia até<br />

um frio quase alarmante.» (Ooty Preserved, de Mollie Panter-<br />

-Downes.)<br />

«Da varanda do meu quarto tinha uma vista panorâmica de<br />

Acra, a capital do Gana.» (A quale tribù appartieni?, de Alberto<br />

Moravia.)<br />

A minha pergunta habitual, não respondida por estes livros<br />

de viagens — nem pela maioria —, é: como chegaram lá? Mesmo<br />

sem a sugestão de um motivo, um prólogo é bem-vindo,<br />

uma vez que com frequência o trajecto é tão fascinante quanto<br />

a chegada. Ainda assim, porque a curiosidade implica atraso e o<br />

atraso é visto como um luxo (mas, no fundo, porquê a pressa?),<br />

habituamo-nos a que a vida se limite a uma série de chegadas<br />

e partidas, de triunfos e fracassos, sem nada digno de ser mencionado<br />

no meio. Os cumes são importantes, mas e então as en-


O Velho Expresso da Patagónia 25<br />

costas do Parnaso? Não perdemos a fé em viagens que nos afastem<br />

de casa, mas os textos são escassos. A partida é descrita<br />

como um momento de pânico e de conferência de bilhete numa<br />

sala de aeroporto, ou como um beijo apressado num corredor;<br />

depois, silêncio até: «Da varanda do meu quarto tinha uma vista<br />

panorâmica de Acra, a capital do Gana...»<br />

Na realidade, viajar é outra coisa. Desde o segundo em que<br />

se acorda, está-se a caminho de um lugar estranho, e cada passo<br />

(frente ao relógio de cuco, pela Fulton abaixo até Fellsway) nos<br />

aproxima mais dele. Os Devoradores de Homens de Tsavo é sobre<br />

leões que devoravam trabalhadores indianos da linha de<br />

caminho-de-ferro do Quénia na viragem do século xx. Mas apostava<br />

que haveria um livro mais subtil mas igualmente fascinante<br />

sobre a viagem de barco de Southampton até Mombaça. Seja<br />

por que razão for, o tenente-coronel John Henry Patterson não<br />

o escreveu.<br />

A literatura de viagens tornou-se insignificante; o ponto de<br />

partida padrão, a ridícula vista de nariz colado na janela no interior<br />

inclinado da fuselagem do avião. A piada de abertura, esse<br />

esforço em busca do efeito, é hoje tão familiar, que é quase<br />

impossível parodiá-la. Como é? «Lá em baixo estende-se a verdura<br />

tropical, o vale inundado, a manta de retalhos das quintas<br />

e, à medida que emergimos das nuvens, vejo estradas de terra<br />

batida na direcção das colinas e os carros tão pequenos que pareciam<br />

brinquedos. Demos uma volta ao aeroporto e, ao descender<br />

para aterrar, vi as majestosas palmeiras, as colheitas, os telhados<br />

das barracas, as parcelas quadradas de terrenos unidos<br />

uns aos outros por cercas rudimentares, as pessoas como formigas,<br />

as coloridas...»<br />

Este tipo de conjecturas nunca me pareceu demasiado convincente.<br />

Quando estou num avião a aterrar, fico com o coração<br />

na boca; a minha dúvida — não será a de todos? — é se nos vamos<br />

espatifar. Passo em revista a minha vida, uma breve selecção<br />

de trivialidades patéticas e sórdidas. Então, uma voz diz-me<br />

para permanecer sentado até que o avião pare por completo;


26 Paul Theroux<br />

e, quando aterramos, dos altifalantes irrompe uma versão instrumental<br />

de Moon River. Suponho que se tivesse a coragem de<br />

olhar em volta talvez visse um escritor de viagens a gatafunhar:<br />

«Lá em baixo estende-se a verdura tropical...»<br />

Entretanto, e a viagem? Talvez não haja nada a dizer. Não<br />

há muito a dizer da maior parte das viagens de avião. Qualquer<br />

surpresa é por força desastrosa, assim se define um bom voo pela<br />

negativa: não foi sequestrado, não caiu, não se vomitou, não<br />

chegou atrasado, não se ficou nauseado com a comida. Por isso<br />

se fica agradecido. A gratidão provoca um alívio tal, que a mente<br />

fica em branco, o que é adequado, porque um passageiro de<br />

avião é um viajante no tempo. Ele entra num tubo alcatifado<br />

que cheira a desinfectante e aperta o cinto de segurança para regressar<br />

a casa, ou para partir dela. O tempo é truncado ou, pelo<br />

menos, deformado: o viajante parte de um fuso horário para<br />

emergir noutro. Desde que entra no tubo e, desconfortavelmente<br />

sentado, apoia os joelhos nas costas do assento da frente — desde<br />

o momento da partida —, a sua mente concentra-se na chegada.<br />

Isto é, se tiver no seu juízo perfeito. Se olhasse pela janela,<br />

não veria mais do que a tundra de uma camada de nuvens e, por<br />

cima dela, espaço vazio. O tempo é brilhantemente cego: não há<br />

nada para ver. Por isso há tanta gente que pede desculpa por<br />

apanhar aviões. Dizem: «Na verdade, o que eu gostaria era de<br />

esquecer-me desses jumbos de plástico e subir a um navio de três<br />

mastros e ficar no tombadilho com o vento no cabelo.»<br />

Mas as desculpas são desnecessárias. Um voo de avião pode<br />

não ser uma viagem em nenhum sentido aceite, mas é sem dúvida<br />

algo de mágico. Quem tiver dinheiro para um bilhete, pode<br />

materializar o castelo no penhasco em Drachenfels ou a ilha do<br />

lago Innisfree mediante a simples utilização da correcta escada<br />

rolante, por exemplo, no Aeroporto Logan de Boston. Mas convém<br />

dizer que seguramente há mais estímulo mental, mais viagem,<br />

nesse ascender pela escada rolante do que em todo o voo.<br />

O resto — o país estrangeiro, aquilo que constitui a chegada —<br />

é a rampa de um aeroporto malcheiroso. Se o passageiro consi-


O Velho Expresso da Patagónia 27<br />

dera que viajar é esta espécie de transferência e oferece o seu livro<br />

ao público, o primeiro estrangeiro que o leitor encontra é o<br />

mãozinhas-curiosas do funcionário de alfândega ou o demónio<br />

de bigode do guiché da imigração. Ainda que a vida seja assim,<br />

devemos de qualquer forma lamentar o facto de os aviões nos<br />

terem tornado insensíveis ao espaço; estamos sobrecarregados,<br />

como amantes que envergam armaduras.<br />

Tudo isto é óbvio. O que me interessa é o despertar pela manhã.<br />

O progresso do que me é familiar ao pouco estranho, ao<br />

bastante estranho, ao completamente alheio e, finalmente,<br />

ao extravagante. É o trajecto, não a chegada, que importa; a viagem<br />

e não o desembarque. Como me sentia enganado dessa forma<br />

por outros livros de viagens e como me interrogava, o que<br />

era exactamente o que me negavam, decido experimentar partindo<br />

para o país dos livros de viagens, tanto a sul quanto me levassem<br />

os comboios que partiam de Medford, no Massachusetts;<br />

para terminar o meu livro onde começavam os livros de<br />

viagens.<br />

Não tinha nada melhor para fazer. Estava numa etapa da<br />

minha vida de escritor que me habituara a reconhecer. Acabara<br />

de terminar um romance: dois anos de actividade dentro de quatro<br />

paredes. Procurando outro assunto para escrever, reparei<br />

que, em vez de dar na cabeça do prego, não parava de martelar<br />

em seco. Detestava o frio. Queria um pouco de sol. Não tinha<br />

emprego. Qual era o problema? Estudei alguns mapas e descobri<br />

que havia um caminho contínuo desde minha casa em Medford<br />

até à grande meseta da Patagónia, no Sul da Argentina. Ali, na<br />

cidade de Esquel, acabavam os comboios. Não havia nenhuma<br />

linha para a Terra do Fogo; mas entre Medford e Esquel havia<br />

bastantes.<br />

Foi imbuído deste espírito de vagabundo que subi para<br />

aquele primeiro comboio, aquele que as pessoas apanhavam para<br />

ir trabalhar. Eles desciam; o seu trajecto terminava. Eu ficava;<br />

o meu estava a começar.


28 Paul Theroux<br />

* * *<br />

Na South Station, com a pele enrugada por causa do frio entorpecedor,<br />

apareceram alguns amigos. O vapor surgia de baixo<br />

do comboio, pelo que os meus amigos pareciam materializar-se<br />

entre a neblina, seguidos pelas nuvens da sua própria respiração.<br />

Bebemos champanhe em copos de papel e demos pequenos saltos<br />

para nos mantermos quentes. A minha família apareceu acenando.<br />

Com a excitação, o meu pai esqueceu-se do meu nome;<br />

mas os meus irmãos estavam calmos, um irónico, o outro fitando,<br />

com os olhos semicerrados, um jovem magro na plataforma<br />

e dizendo: «Um pouco de lavanda, Paul... olha, ele vai subir!»<br />

Subi para o comboio e disse adeus aos que tinham vindo<br />

despedir-se. À medida que o Lake Shore Limited se afastava da<br />

plataforma 15, senti-me como se estivesse ainda num estado<br />

provisório, como se todos saíssem pouco tempo depois e eu fosse<br />

o único a ficar no comboio até ao final da linha.<br />

Era uma presunção agradável, mas guardei-a para mim. Se<br />

um estranho me perguntasse onde ia, diria que a Chicago. Em<br />

parte, era uma superstição — parecia-me que daria azar, logo<br />

no início da viagem, revelar o meu destino preciso. Era também<br />

para evitar surpreender quem me perguntasse por um nome absurdo<br />

(Tapachula, Manágua, Bogotá) ou despertar a curiosidade<br />

e desencadear um interrogatório. Em qualquer caso, estava<br />

ainda em casa, tudo me era familiar: as inclinadas traseiras das<br />

casas de pedra avermelhada da cidade, a solenidade ridícula dos<br />

pináculos da Universidade de Boston e, do outro lado do gelado<br />

rio Charles, os campanários brancos de Harvard, que na sua<br />

fragilidade se assemelhavam a tentativas falhadas de torres de<br />

marfim. O ar estava frio e límpido e carregava consigo o grito<br />

do apito do comboio através de Back Bay. Os apitos dos comboios<br />

americanos têm uma mudança de tom agridoce, e o mais<br />

insignificante dos comboios toca essa nota solitária de uma forma<br />

perfeita para os sonhadores que se encontram ao longo dos<br />

carris. É o que em música se chama uma terceira diminuta: Hú-<br />

-uí! Hú-uí!


O Velho Expresso da Patagónia 29<br />

Havia algum trânsito nas estradas salgadas, mas nenhum<br />

peão. Fazia demasiado frio para andar a pé. Os arredores de<br />

Boston pareciam ter sido evacuados: não havia pessoas, todas as<br />

portas e janelas estavam hermeticamente fechadas, e a neve salpicada<br />

de sujidade ia-se empilhando nas ruas vazias e cobria os<br />

carros estacionados. Passámos ao lado de um estúdio de televisão<br />

com fachada de tijolo para parecer uma mansão rústica, um<br />

lago de patos gelado, um armeiro com ameias cinzentas falsas<br />

tão militarmente convincentes quanto as que vêm estampadas<br />

no reverso das caixas de cereais para o pequeno-almoço, que<br />

é preciso recortar com uma tesoura e montar com cola. Conhecia<br />

os nomes destes subúrbios, tinha ali estado muitas vezes,<br />

mas, porque viajava para tão longe, todos os pontos por onde<br />

passávamos me pareciam importantes. Era como se partisse de<br />

casa pela primeira vez, e para sempre.<br />

Ao dar-me conta de como conhecia bem estes lugares, agarrei-me<br />

ao que me era familiar e fiquei com receio de o ceder<br />

à distância. Aquela ponte, aquela igreja, aquele campo. Não há<br />

nada comovente em partir de casa; em vez disso, há uma lenta<br />

acumulação de tristeza à medida que os lugares familiares passam<br />

pela janela e desaparecem para se tornarem parte do passado.<br />

O tempo faz-se visível e move-se com a paisagem. Cada segundo<br />

foi-me mostrado à medida que o comboio avançava,<br />

deixando para trás os edifícios com uma velocidade que me pôs<br />

melancólico.<br />

<strong>Aqui</strong>, em Framingham, tinha onze primos. Havia bangalós,<br />

bosques domesticados e bolsas de gelo nas colinas; neve mais<br />

limpa do que a que tinha visto em Boston. E alguns seres humanos.<br />

Nesta tarde de Inverno, as crianças patinavam encurvadas<br />

numa pista de gelo situada entre prédios degradados. Momentos<br />

depois, atravessávamos uma fronteira de classes: um grande casario<br />

rosado, verde, amarelo e branco, algumas casas com piscinas<br />

cheias de neve. O Lake Shore Limited parou o trânsito na<br />

Main Street, onde um polícia com uma cara inchada, a que<br />

o frio dava a cor de uma salsicha, detinha com luvas que pareciam<br />

garras de urso o fluxo de carros.


30 Paul Theroux<br />

Não me tinha afastado muito. Podia ter saltado do comboio<br />

e muito facilmente regressado a Medford de autocarro. Conhecia<br />

bem estes lugares, mas mesmo assim vi coisas novas: uma<br />

textura diferente na neve suburbana; os afáveis nomes nas fachadas<br />

das lojas — Wally’s, Dave’s, Angie’s — e, repetidamente,<br />

bandeiras americanas, riscas e estrelas esvoaçando sobre bombas<br />

de gasolina, supermercados e jardins. E o campanário de<br />

uma igreja como um pimenteiro. Não me lembrava de o ter visto<br />

antes, mas nunca antes partira tão apressadamente de casa.<br />

A distância da viagem que empreendia permitia-me ficar atento<br />

aos detalhes. Mas as bandeiras intrigavam-me. Eram elas simples<br />

gabarolice de patriotas, um aviso aos estrangeiros ou decorações<br />

para uma festa nacional? E por que razão havia no quintal<br />

sujo daquela casa a cair uma pequena bandeira acenando<br />

lealdade de um mastro? A julgar por estes testemunhos, parecia<br />

uma obsessão americana, uma espécie de adoração de imagens<br />

que eu associava aos espíritos políticos mais primitivos.<br />

A neve reluzia bronzeada pelo Sol poente e nesse momento<br />

via fábricas com a bandeira ondulante a anunciarem os seus<br />

produtos nas suas altas chaminés de tijolo: carnes fumadas<br />

snider, e noutra uma única palavra: envelopes. E, tal como<br />

antes, o armeiro com ameias falsas, uma catedral com pilares<br />

postiços, uma torre sineira sem sino e algumas casas com colunas<br />

que não ofereciam suporte algum aos telhados, puras falsificações<br />

decorativas repetidas num chalé exageradamente adornado.<br />

Não havia qualquer pretensão em negar a falsidade, apenas<br />

uma insistência no fingimento tão comum nos edifícios americanos,<br />

que promoveram a falsificação como algo legítimo nos estilos<br />

arquitectónicos.<br />

E, entre as pequenas cidades fabris — cada vez mais distantes<br />

entre si —, as densas matas escureciam gradualmente e os<br />

troncos dos carvalhos, negros e ameaçadores, tinham a forma de<br />

púlpitos. À medida que nos aproximávamos de Springfield,<br />

a noite caía sobre as colinas nuas e, nos vales nevados, a fosforescência<br />

da grossa capa de neve deslizava na direcção de negros


O Velho Expresso da Patagónia 31<br />

riachos de superfície encrespada por causa da corrente. Desde<br />

que saíra de Boston que a água tinha estado constantemente<br />

presente: lagos e lagoas gelados, rios meio congelados com placas<br />

de gelo nas margens e a água em movimento convertendo-se<br />

em tinta com o crepúsculo. Então, o Sol afundou-se e a luz que<br />

tinha descido pelo céu escorreu pelo buraco por onde o Sol desaparecera,<br />

e os pequenos pontos das janelas que se atravessavam<br />

entre as árvores pareciam fazer-se mais brilhantes. Ao longe,<br />

na estrada, um homem com luvas permanecia só, ao lado da<br />

sua bomba de gasolina, vendo-nos passar.<br />

Pouco depois, estávamos em Springfield. Tinha claras memórias<br />

do lugar, de descer do comboio nessa mesma estação numa<br />

noite de Inverno e de atravessar a larga ponte sobre o rio<br />

Connecticut até à Estrada 91 para pedir boleia o resto do caminho<br />

até Amherst. Também desta vez havia blocos de gelo a flutuar<br />

no rio, e as encostas da mata ao longe, e o mesmo vento<br />

cortante. No meu caso, recordações dos tempos da faculdade<br />

são sempre recordações de carência, de inexperiência, a impaciência<br />

sem alegria que sofri como se fosse pobreza. E ali vivera<br />

algumas tristezas. Mas o movimento da viagem é misericordioso:<br />

antes que pudesse lembrar-me de mais — antes que esta cidade<br />

e este rio me atirassem com uma recordação concreta —,<br />

o comboio apitou e apressou-me à amnésia da noite. Viajávamos<br />

para ocidente, com o troar do comboio abafado pela neve<br />

acumulada nas matas do Massachusetts. Mas, mesmo no escuro,<br />

reconheci-a. Não era a noite opaca, a escuridão ininterrupta,<br />

das terras interiores de um país estrangeiro. Era a escuridão que<br />

apenas confunde os estranhos. Era uma noite habitual para esta<br />

época do ano neste lugar; e aqui conhecia todos os fantasmas.<br />

Era a escuridão de casa.<br />

Continuava sentado no meu compartimento. Ficara atordoado<br />

com o champanhe da South Station e, ainda que tivesse um<br />

exemplar de As Palmeiras Bravas, de William Faulkner, no colo,<br />

não conseguira ler mais do que três páginas. Na contracapa, rabiscara:<br />

«polícia com cara de salsicha», «água que se converte


32 Paul Theroux<br />

em tinta» e «bandeiras». Passei o resto do tempo com a cara<br />

voltada para a janela. Não vi outros passageiros — não olhei.<br />

Não fazia ideia de quem viajava no comboio e no meu estado de<br />

apatia pensei que mais à frente teria tempo de sobra para estabelecer<br />

relações — se não fosse hoje, seria amanhã, em Chicago,<br />

ou no dia seguinte, no Texas. E porque não deixar tudo para<br />

a América Latina ou para outro clima e deixar-me estar sentado<br />

a ler até que o tempo mudasse, para depois ir dar um passeio?<br />

Mas Faulkner era impenetrável; a curiosidade venceu a apatia.<br />

Havia um homem no corredor do vagão-cama (era o único<br />

vagão-cama do comboio; tinha um nome: Orquídea de Prata).<br />

Com o rosto e os antebraços apoiados contra a janela, o passageiro<br />

olhava, imagino, para Pittsfield ou para os Berkshires —<br />

um pequeno bosque de bétulas, branco como papel, abafado<br />

pela noite e pela neve, uma fila de postes semienterrados, as formas<br />

imprecisas de lanternas dos pequenos cedros, e o vidro fosco<br />

com os flocos a imitarem o contorno do vento na janela,<br />

à frente do seu nariz.<br />

— Isto é como o Transiberiano — disse ele.<br />

— Não é nada disso — respondi eu.<br />

Ele piscou os olhos e continuou a olhar. Fui até ao fim da<br />

carruagem, mas senti remorsos de lhe ter respondido de forma<br />

tão brusca. Olhei para trás e vi-o no mesmo sítio, estudando<br />

a escuridão. Era idoso e o que me dissera tinha sido um gesto<br />

amistoso. Fingi também olhar pela janela e quando ele se esticou<br />

e veio na minha direcção — dançando uma espécie de tango para<br />

manter o equilíbrio, como as pessoas no convés de um navio<br />

durante a tempestade —, disse-lhe:<br />

— Na verdade, na Sibéria não há tanta neve.<br />

— Não me diga. — E continuou andando. Pela forma áspera<br />

como me respondeu, imaginei que não queria falar comigo.<br />

Não haveria comida até Albany, altura em que seria atrelado<br />

o comboio da secção de Nova Iorque, com o respectivo vagão-<br />

-restaurante. De forma que fui ao bar e tomei uma cerveja. Enchi<br />

o cachimbo, acendi-o e saboreei a radiante névoa de pregui-


O Velho Expresso da Patagónia 33<br />

çosa reflexão a que o fumo do cachimbo sempre me induziu.<br />

Soprei um casulo de fumo, que ficou suspenso em nuvens à minha<br />

volta, tão reconfortante e denso que a rapariga que entrou<br />

no vagão e se sentou à minha frente parecia espectral, uma<br />

criança perdida na neblina. Pousou três sacos de plástico cheios<br />

sobre a mesa, dobrou as pernas debaixo do corpo, cruzou as<br />

mãos sobre o colo e olhou impávida para a carruagem. A sua intensidade<br />

fez-me ficar alerta. Na mesa ao lado, um homem estava<br />

entretido com um romance de Matt Helm e, perto dele, dois<br />

funcionários do caminho-de-ferro — com as suas ferramentas<br />

— jogavam póquer. Um rapaz ouvia um rádio de onda curta,<br />

mas a sua algazarra era afogada pela algazarra maior do ruído<br />

do comboio. Um homem de uniforme — o revisor — mexia<br />

o café; aos seus pés tinha uma velha lanterna sebosa. Na sua<br />

mesa, uma mulher gorda mordiscava uma barra de chocolate.<br />

Fazia-o com sentimento de culpa, como se receasse que alguém<br />

a qualquer momento lhe gritasse: «Larga isso!»<br />

— Importa-se de não fumar?<br />

Era a rapariga de olhar impávido.<br />

Olhei em volta à procura de um aviso a proibir o fumo. Não<br />

encontrei nenhum. Perguntei-lhe:<br />

— Está a incomodá-la?<br />

— Dá-me cabo dos olhos — respondeu ela.<br />

Baixei o cachimbo e bebi um gole de cerveja.<br />

— Isso é veneno — disse ela.<br />

Em vez de olhar para ela, olhei para os sacos dela.<br />

— Dizem que os amendoins provocam cancro — disse-lhe eu.<br />

Ela fez um sorriso forçado e vingativo na minha direcção<br />

e disse:<br />

— Pevides.<br />

Voltei-lhe a cara.<br />

— E isto são amêndoas.<br />

Considerei a hipótese de voltar a acender o cachimbo.<br />

— E isto são cajus.


34 Paul Theroux<br />

Chamava-se Wendy. O seu rosto era uma oval de inocência,<br />

desprovido de qualquer traço de curiosidade. A sua boniteza estava<br />

tão arredada da minha ideia de beleza como o estava a falta<br />

de graça e, em consequência, não estava nada interessado.<br />

Mas não a podia culpar por isso: é difícil a qualquer pessoa ser<br />

interessante aos vinte anos. Estudava, disse-me, e ia a caminho<br />

do Ohio. Vestia uma saia indiana, botas de lenhador e o peso<br />

do casaco de cabedal fazia com que os seus ombros parecessem<br />

descaídos.<br />

— Que estudas, Wendy?<br />

— Filosofia oriental. Interesso-me pelo zen.<br />

Oh, meu Deus, pensei. Mas ela continuava a falar. Tinha estudado<br />

o Todo, ou talvez o Nada — de qualquer forma, não fazia<br />

o mínimo sentido para mim. Não tinha lido por aí além,<br />

disse ela, e os seus professores eram uma desgraça. Mas ela<br />

pensava que quando fosse ao Japão ou à Birmânia aprenderia<br />

muito mais. Tinha intenção de ficar no Ohio por mais uns anos.<br />

O importante no budismo, disse ela, era que tinha a ver com todos<br />

os aspectos da vida. Tudo o que se faz é budismo. E tudo<br />

o que se passava no mundo também era budismo.<br />

— A política não — disse eu. — Isso não é budismo. É apenas<br />

desonestidade.<br />

— Isso é o que toda a gente diz, mas estão enganados. Tenho<br />

lido Marx. Marx é um pouco budista.<br />

Perguntei-lhe se estava a gozar comigo.<br />

— Marx é tão budista quanto esta lata de cerveja. Mas, de<br />

qualquer maneira, pensei que estávamos a falar de política. É o<br />

oposto do pensamento: é egoísta, fechado, desonesto. É tudo<br />

meias verdades e atalhos. Talvez uns quantos políticos budistas<br />

pudessem mudar isto, mas na Birmânia, onde...<br />

— Olha isto, por exemplo — disse ela, fazendo um gesto na<br />

direcção dos seus sacos de frutos secos. — Sou vegetariana, não<br />

ingiro lacticínios e só como alimentos crus. Se calhar, tens razão<br />

quando dizes que a política é errada. Penso que as pessoas estão<br />

a fazer as coisas erradas... completamente erradas. Comem lixo.


O Velho Expresso da Patagónia 35<br />

Consomem lixo. Olha para eles! — A mulher gorda continuava<br />

a comer a barra de chocolate, ou talvez outra barra de chocolate.<br />

— Destroem-se a si próprios e nem dão por isso. Matam-se<br />

a fumar. Olha o fumo que vai nesta carruagem.<br />

— Parte deste fumo é meu — disse-lhe.<br />

— Dá-me cabo dos olhos.<br />

— Não comes lacticínios — disse —, quer dizer que não bebes<br />

leite.<br />

— Certo.<br />

— E comes queijo? Queijo é bom. E tens de tomar cálcio.<br />

— Os cajus contêm cálcio — disse ela (será mesmo verdade?).<br />

— E ainda por cima o leite provoca mucosidade. O leite<br />

é a causa principal do muco nasal.<br />

— Não sabia.<br />

— Antes, gastava uma caixa de lenços de papel por dia.<br />

— Uma caixa. Isso é muito.<br />

— É o leite. Provocava mucosidade — disse ela —, nem imaginas<br />

como o meu nariz costumava pingar.<br />

— É por isso que o nariz pinga? Por causa do leite?<br />

— Sim! — gritou.<br />

Interroguei-me se ela teria razão. Os narizes dos bebedores<br />

de leite pingam. As crianças bebem leite. Logo, os narizes das<br />

crianças pingam. E os narizes das crianças, de facto, pingam.<br />

Ainda assim, o raciocínio continuou a parecer-me discutível. Toda<br />

a gente pinga do nariz — excepto ela, aparentemente.<br />

— Os lacticínios também dão dores de cabeça.<br />

— Queres dizer que te dão dores de cabeça a ti?<br />

— Sim. Como no outro dia. A minha irmã sabe que sou vegetariana.<br />

Então, faz-me uma beringela com queijo parmesão.<br />

Não sabia que não bebo leite nem como alimentos cozinhados.<br />

Olhei para aquilo. E logo que percebi que tinha queijo e não estava<br />

cru, soube que me ia fazer mal. Mas ela tinha passado o dia<br />

inteiro a preparar aquilo, que podia eu fazer? O engraçado<br />

é que gostei do sabor. Meu Deus, mas que mal me senti depois.<br />

E o meu nariz começou a pingar.


36 Paul Theroux<br />

Contei-lhe que, na sua autobiografia, o Mahatma Gandhi<br />

declarava que comer carne tornava as pessoas lascivas. E, ainda<br />

assim, aos treze anos, uma idade em que a maioria das crianças<br />

americanas se entretinha em equipas da liga infantil de basebol<br />

ou se concentrava a atirar bolinhas de papel e cuspo, Gandhi tinha-se<br />

casado — e ele era vegetariano.<br />

— Mas não foi um casamento a sério — disse Wendy. — Foi<br />

uma espécie de cerimónia hindu.<br />

— O noivado teve lugar quando ele tinha sete anos de idade.<br />

O casamento selou o acordo. Os dois tinham treze anos e começaram<br />

a dar quecas... apesar de eu não estar muito seguro de<br />

que se deva utilizar esta palavra para descrever a forma de fazer<br />

amor do Mahatma.<br />

Wendy ficou a pensar. Decidi tentar de novo. Teria ela, perguntei,<br />

notado algum decréscimo no apetite sexual desde a sua<br />

conversão aos vegetais crus?<br />

— Antes tinha insónias — começou ela — e tinha tonturas...<br />

tonturas a sério. E admito que perdia a cabeça. Acho que a carne<br />

faz com que as pessoas se tornem hostis.<br />

— Mas e o desejo sexual? A luxúria... os desejos... não sei<br />

bem como te explicar.<br />

— Queres dizer, o sexo? Não é para ser violento. Deve ser<br />

suave e bonito. Uma coisa tranquila.<br />

Só se for para os vegetarianos, pensei. Ela continuava a discorrer<br />

no seu tom pedante de estudante universitária.<br />

— Compreendo melhor o meu corpo agora... Agora conheço<br />

o meu corpo muitíssimo melhor... olha, apercebo-me logo se há<br />

uma diferença mínima no meu nível de açúcar no sangue. Sinto<br />

o meu nível de açúcar no sangue a subir e a descer. Sempre que<br />

como algumas coisas.<br />

Perguntei-lhe se alguma vez tinha ficado seriamente doente.<br />

Respondeu que nunca. Teria alguma vez ficado um pouco doente?<br />

A sua resposta foi extraordinária:<br />

— Não acredito em micróbios.


O Velho Expresso da Patagónia 37<br />

Espantoso.<br />

— Queres dizer que não acreditas que os germes existem?<br />

Que são apenas uma ilusão óptica no microscópio? Poeira, pequenas<br />

manchas... coisas assim?<br />

— Não acredito que os micróbios provoquem doenças. Os<br />

micróbios são seres vivos... pequenos seres vivos que não fazem<br />

mal nenhum.<br />

— Como as baratas e as pulgas — disse eu. — Pequenas<br />

e simpáticas criaturas, certo?<br />

— Os micróbios não provocam doenças — insistiu ela. —<br />

A comida é que provoca. Se comes comida má, os teus órgãos<br />

enfraquecem e ficas doente. São os teus órgãos que te fazem ficar<br />

doente. O teu coração, as tuas tripas.<br />

— Mas o que faz com que os órgãos fiquem doentes?<br />

— A má alimentação. Faz com que eles enfraqueçam. Quem<br />

fizer uma boa alimentação, como eu — disse ela apontando para<br />

as suas pevides de abóbora —, não adoece. Como eu nunca<br />

adoeço. Se o meu nariz começa a pingar e se me dói a garganta,<br />

não digo que estou constipada.<br />

— Ah, não dizes?<br />

— Não, é porque comi alguma coisa que me fez mal. Então,<br />

como coisas que me façam bem.<br />

Decidi deixar de lado a interrogação acerca de a doença ser<br />

só corrimento nasal, em vez do cancro ou da peste bubónica.<br />

Vamos aos pormenores, pensei. Que tinha ela comido nesse dia?<br />

— Isto. Pevides, cajus, amêndoas. Uma banana. Uma maçã.<br />

Umas passas. Uma fatia de pão integral... torrada. Se não for<br />

torrada, faz o nariz pingar.<br />

— Estás a declarar uma espécie de guerra aos apreciadores<br />

da boa comida, não?<br />

— Sei que tenho opiniões bastante radicais — disse ela.<br />

— Eu não lhes chamaria radicais — respondi. — São opiniões<br />

petulantes, presunçosas. Egocêntricas, pode dizer-se. O curioso<br />

de se ser petulante, egocêntrico e de se pensar a todo o momento<br />

na saúde e na pureza é que te pode transformar numa


38 Paul Theroux<br />

fascista. A minha dieta, as minhas tripas, o meu eu... é assim que<br />

falam as pessoas de direita. A seguir, dás por ti a defender a pureza<br />

da raça.<br />

— Está bem — reconheceu ela numa pirueta —, admito que<br />

algumas das minhas opiniões são conservadoras. E depois?<br />

— Bom, para começar, à parte as tuas tripas, aí fora há um<br />

mundo muito grande. O Médio Oriente. O canal do Panamá.<br />

No Irão arrancam unhas aos presos políticos. Há famílias que<br />

passam fome na Índia.<br />

A minha tirada teve pouco efeito, fazendo apenas que passasse<br />

para o tema das famílias — possivelmente, porque falei<br />

das famílias indianas que passavam fome. Detestava famílias,<br />

disse. Não podia evitá-lo, detestava-as.<br />

— A palavra família faz-te pensar em quê? — perguntei-lhe.<br />

— Uma carrinha, uma mãe, um pai. Quatro ou cinco filhos<br />

a comer hambúrgueres. São verdadeiramente horríveis e estão<br />

por todo o lado, andam de carro por todos os lados.<br />

— Então, vês as famílias como manchas na paisagem?<br />

— Sim, pois.<br />

Há três anos que estava nesta universidade do Ohio. Durante<br />

esse tempo, nunca tivera um curso de literatura. Mais interessante<br />

ainda, esta era a primeira vez na sua vida que andava de<br />

comboio. Ela gostava do comboio, mas não entrou em detalhes.<br />

Interroguei-me sobre quais seriam as suas ambições.<br />

— Acho que gostaria de fazer qualquer coisa relacionada<br />

com alimentação. Ensinar às pessoas sobre comida. Sobre o que<br />

devem comer. Explicar-lhes porque ficam doentes — era a voz<br />

de um comissário russo; ainda assim, uns instantes mais tarde<br />

acrescentava em tom sonhador. — Às vezes, olho para um pedaço<br />

de queijo. Sei que sabe bem. Sei que vou gostar. Mas também<br />

sei que se o comer me vou sentir mal no dia seguinte.<br />

— É o mesmo que eu penso quando vejo uma enorme garrafa<br />

de champanhe, uma empada de coelho ou um prato de bolinhos<br />

de massa folhada com molho de chocolate quente.<br />

Na altura, não pensei que Wendy fosse realmente louca.<br />

Mas depois, ao recordar a nossa conversa, fiquei convencido de


O Velho Expresso da Patagónia 39<br />

que ela tinha um parafuso a menos. E não mostrava a mais pequena<br />

curiosidade. Contara-lhe de passagem que tinha estado<br />

na Alta Birmânia e em África. Descrevera-lhe a predilecção de<br />

Leopold Bloom pelo «ténue travo a urina» nos rins que comera<br />

ao pequeno-almoço. Demonstrara-lhe alguns conhecimentos de<br />

budismo, dos hábitos alimentares dos boxímanes no Kalahari<br />

e dos primórdios da vida conjugal de Gandhi. Eu era uma pessoa<br />

suficientemente interessante, não era? Mas, durante toda<br />

a nossa conversa, ela não fizera uma única pergunta. Nunca me<br />

perguntou o que eu fazia, de onde vinha ou para onde ia. Quando<br />

não era um interrogatório da minha parte, era um monólogo<br />

da parte dela. Proferindo generalidades com a sua voz doce<br />

e trémula, recolocando as pernas na posição de lótus quando<br />

elas resvalavam, ela era o exemplo acabado de ensimesmamento<br />

total e autopromoção desesperada. Confundira egoísmo com<br />

budismo. Ainda tenho um grande afecto pela candura dos estudantes<br />

universitários americanos, mas ela fazia-me lembrar<br />

quantos eu conhecera a quem era impossível ensinar o que quer<br />

que fosse.<br />

A conversa sobre comida deve ter sido inspirada pelo adiantado<br />

da hora e pela minha fome. Mas estávamos em Albany. Pedi<br />

desculpa e apressei-me no sentido do vagão-restaurante, que<br />

acabava de ser atrelado ao comboio. Os quilómetros seguintes<br />

eram históricos: há cento e cinquenta anos que os comboios percorrem<br />

o trajecto entre Albany e Schenectady, iniciado com<br />

o Mohawk and Hudson Railway, o mais antigo caminho-de-<br />

-ferro da América. Mais à frente, a rota seguida é a do canal do<br />

Eire. O caminho-de-ferro levara à falência o negócio de exploração<br />

de canais e cursos de água navegáveis, ainda que a sua eficiência<br />

tenha sido fortemente disputada por empresas rivais.<br />

Mas os factos eram incontestáveis: na década de 1850, demorava-se<br />

catorze dias e meio a ir de Nova Iorque a Chicago por via<br />

fluvial; de comboio, demorava-se seis dias e meio.<br />

A refeição da Amtrak foi prontamente servida por um empregado<br />

de toalha pendurada no braço. O prego no pão, ao


40 Paul Theroux<br />

qual juntei picante, era a minha vingança contra Wendy e a sua<br />

preferência por alfafa crua. Enquanto comia, um director de<br />

vendas chamado Horace Chick (vendia equipamento fotográfico<br />

para cartas de condução) sentou-se e comeu um hambúrguer.<br />

Era um monologuista, mas inofensivo. Cada vez que queria sublinhar<br />

um assunto, assobiava através da separação dos seus<br />

dentes da frente. Mastigava e tagarelava.<br />

— Os aviões estavam todos cheios. Pfuit. Então tive de apanhar<br />

o comboio. Nunca tinha apanhado este comboio. Fácil.<br />

Pfuit. Três da manhã e estamos em Rochester. Apanho um táxi<br />

até casa. A minha mulher passa-se se eu lhe telefono da estação<br />

às três da manhã. Da próxima vez, levo os miúdos. Posso soltá-<br />

-los. Pfuit. Que corram. Está calor aqui dentro. Gosto do frio.<br />

Dezanove, vinte graus. A minha mulher detesta o frio. Não consigo<br />

dormir. Vou à janela e, pfuit, abro-a. Ela grita comigo.<br />

Acorda e, pfuit, desata aos berros. Quase todas as mulheres são<br />

assim. Preferem quatro graus de temperatura a mais do que os<br />

homens. Pfuit. Não sei porquê. Corpos. Corpos diferentes, termóstatos<br />

diferentes. Se isto é melhor do que conduzir? Mas<br />

é claro que sim! Conduzir! Oito horas, catorze chávenas de café.<br />

Pfuit. Mas este hambúrguer... Sabe a farinha. Eh, se faz favor!<br />

Lá fora havia neve e gelo. Cada candeeiro iluminava o seu<br />

próprio poste e, logo à frente, um círculo de neve — nada mais<br />

que isso. À meia-noite, olhando do meu compartimento, vi uma<br />

casa branca numa colina. Em cada janela havia uma luz acesa,<br />

e estas janelas luminosas faziam com que a casa parecesse<br />

maior, ao mesmo tempo que traíam o seu vazio.<br />

Às duas da madrugada, passámos Syracuse. Estava a dormir,<br />

pois de outra forma teria sido assaltado por recordações. Mas<br />

o nome da cidade no horário da Amtrak, ao pequeno-almoço,<br />

evocou em mim a implacável chuva de Syracuse; um encontro<br />

casual no Orange Bar com o então poeta maldito Delmore<br />

Schwartz; a sala de aulas (o curso de formação do Corpo da<br />

Paz, eu estudava chinyanja) em que ouvi a notícia do assassinato<br />

de Kennedy; assim como a penosa recordação de uma antropo-


O Velho Expresso da Patagónia 41<br />

logista que, não convencida pela minha paixão, teria mais tarde<br />

— embora não como consequência disso — um final violento<br />

quando uma árvore tombou sobre o carro em que viajava, matando-a<br />

a ela e à sua amante, uma professora de ginástica com<br />

quem formara uma ligação sáfica.<br />

Buffalo e Erie também ficaram para trás, o que não era mau.<br />

Não fazia ideia de onde estávamos. Acordara no meu compartimento<br />

e fazia tanto calor que os meus lábios estavam gretados<br />

e sentia as pontas dos meus dedos esfoladas. Mas havia densas<br />

cortinas de vapor entre as carruagens, onde fazia muito frio,<br />

e geada nas janelas do vagão-restaurante. Esfreguei a mão no vidro,<br />

mas não se via quase nada, excepto uma neblina azul-<br />

-acinzentada que envolvia a paisagem numa vaga fluorescência.<br />

O comboio parou e durante alguns minutos nada aconteceu.<br />

Depois, um tronco difuso fez-se visível por entre a neblina. Dele<br />

sangrava uma linha alaranjada que se dilatava, um salpico que<br />

aumentava e manchava a cortiça morta como uma ferida pingando<br />

num penso cinzento. E depois todo o tronco ficou iluminado,<br />

atrás incendiaram-se molhos de erva e, subitamente, árvores.<br />

Em pouco tempo, o fogo de rubi da alvorada reluziu pelos<br />

campos e, quando a paisagem estava acesa — o tronco, as árvores,<br />

a neve —, o comboio retomou a marcha.<br />

— Ohio — disse uma senhora na mesa do lado.<br />

— Não parece o Ohio — comentou o marido, que parecia<br />

desconfortável na sua larga camisa amarela.<br />

Percebi o que ele queria dizer.<br />

— Sim. É o Ohio, sim, senhor. Estamos em Cleveland daqui<br />

a pouco. Cleveland, Ohio — interveio o empregado.<br />

Para lá dos carris, havia uma floresta de ramos gelados,<br />

choupos feitos de geada, como velas e mastros fantasmagóricos<br />

num mar de neve. Os olmeiros e as faias tinham inchado de forma<br />

límpida até se converterem em geladas explosões de renda.<br />

E uma planura de neve varrida pelo vento, com madeixas castanhas<br />

de erva quebrada, enterrada até às pontas. Então, até<br />

o Ohio, coberto de neve, podia ser uma terra de sonho.


42 Paul Theroux<br />

O comboio estava iluminado pelo sol e mais vazio. Não vi<br />

o senhor Chick nem ouvi os seus «pfuit»; e Wendy, a vegetariana,<br />

sumira-se.<br />

Naquele momento — e não estava muito longe de casa —,<br />

pareceu-me que as coisas mais familiares se afastavam de mim.<br />

Na verdade, não tinha gostado de nenhum deles, mas agora sentia-lhes<br />

a falta. Os restantes passageiros do comboio eram estranhos.<br />

Peguei no meu livro. Tinha adormecido a ler na noite anterior;<br />

ainda era As Palmeiras Bravas e era ainda impenetrável.<br />

O que me tinha feito adormecer? Talvez esta frase, ou melhor,<br />

a última parte de uma longa e desordenada frase: «... Era<br />

o mausoléu do amor, era o fedorento catafalco do corpo sem vida,<br />

suportado entre as formas sem olfacto dos imortais insensíveis<br />

exigindo carne antiga.»<br />

Não tinha a certeza do que Faulkner queria dizer com aquilo,<br />

mas pareceu-me uma descrição justa para a salsicha que eu<br />

estava a comer naquela manhã no Ohio. O resto do pequeno-<br />

-almoço foi delicioso — ovos mexidos, uma fatia de presunto,<br />

toranja, café. Anos antes, reparara como os comboios representam<br />

de forma precisa a cultura do país: o país sórdido e miserável<br />

tem caminhos-de-ferro sórdidos e miseráveis, a nação orgulhosa<br />

e eficiente reflecte-se de forma semelhante no seu parque<br />

ferroviário, como é o caso do Japão. Há ainda esperança para<br />

a Índia, porque os comboios são considerados vastamente mais<br />

importantes do que as carroças amacacadas que muitos indianos<br />

conduzem. Os vagões-restaurantes, tinha eu descoberto, dizem<br />

tudo (e se não houvesse vagões-restaurantes, então o país<br />

estava abaixo de qualquer consideração). O quiosque de massa<br />

no comboio da Malásia, o borsch e a má educação no transiberiano,<br />

os arenques fumados e o pão frito no Flying Scotsman.<br />

E aqui, no Lake Shore Limited da Amtrak, analisei o menu do<br />

pequeno-almoço e descobri que podia pedir um Bloody Mary<br />

ou uma vodca com sumo de laranja — um «tónico matinal», tal<br />

como era descrita essa injecção de vodca no meu organismo.


O Velho Expresso da Patagónia 43<br />

Não há outro comboio no mundo onde se possa pedir uma bebida<br />

forte a esta hora da manhã. A Amtrak estava a esforçar-se.<br />

Ao lado da minha torrada estava uma brochura da empresa que<br />

dizia que os próximos duzentos e quinze quilómetros eram perfeitamente<br />

a direito, sem uma única curva. Então, copiei a frase<br />

de Faulkner que antes me mordera nas canelas, sem que nenhuma<br />

viragem brusca do comboio me sacudisse a caneta.<br />

A meio da manhã, o vapor que eu tinha visto antes entre as<br />

carruagens tinha gelado. Cada um dos pequenos corredores<br />

e passadiços fumegava como uma arca frigorífica, cobertos por<br />

complexas crostas de geada e sólidas bolhas de gelo; e com mais<br />

vapor a sair das rachas do isolamento de borracha. Era belo, esta<br />

neve e este gelo, e não menos belo lá fora; mas era também<br />

um estorvo. Já passava das onze horas e ainda não tínhamos<br />

chegado a Cleveland. Onde estava Cleveland? E eu não era<br />

o único que estava baralhado. Para trás e para a frente no comboio,<br />

os passageiros encurralavam os revisores e perguntavam:<br />

«Eh, o que se passa com Cleveland? Dizia que já devíamos lá estar<br />

a esta hora. O que aconteceu?» E, na verdade, Cleveland podia<br />

estar mesmo ali do outro lado da janela, enterrada debaixo<br />

de toda aquela neve.<br />

O meu revisor apoiava-se numa janela coberta de gelo. Queria<br />

perguntar-lhe quanto tempo faltava para chegarmos a Cleveland,<br />

mas antes que eu pudesse falar ele disse:<br />

— Ando à procura do meu agulheiro.<br />

— Aconteceu alguma coisa?<br />

— Oh, não. É que cada vez que passamos por aqui ele atira-<br />

-me uma bola de neve.<br />

— A propósito, onde fica Cleveland?<br />

— Longe. Não sabia que estamos com quatro horas de atraso?<br />

Atrasámo-nos por causa de uma agulha gelada em Eire.<br />

— Tenho de apanhar um comboio em Chicago às quatro<br />

e meia.<br />

— Não vai chegar a tempo.<br />

— Lindo — disse eu, à medida que me afastava.


44 Paul Theroux<br />

— Não se preocupe. Vou telegrafar em Elkhart. Quando<br />

chegarmos a Chicago, pomos tudo na conta da Amtrak. Eles<br />

vão pagar-lhe uma noite no Holiday Inn. Vai ser bem tratado.<br />

— Mas não chego ao Texas.<br />

— Deixe estar, que eu trato de si — disse, ao tocar na viseira<br />

do boné. — Já alguma vez viu neve assim? Meu Deus, é tremendo<br />

— olhou outra vez pela janela e suspirou. — Não imagino<br />

o que poderá ter acontecido ao agulheiro. Provavelmente, ficou<br />

enregelado.<br />

Passaram longas horas até chegarmos a Cleveland e, tal como<br />

na maioria dos atrasos, a lentidão da nossa chegada criou<br />

uma sensação de anticlímax: senti que já lhe tinha dado toda<br />

a atenção que merecia. Nessa altura, a neve já só me aborrecia,<br />

e as casas deprimiam-me — eram bangalós minúsculos não muito<br />

maiores do que os carros estacionados à sua frente. O mais<br />

engraçado foi que a cidade, que ficara sepultada pela tempestade<br />

de neve da semana anterior, que tinha gerado uma cobertura<br />

noticiosa televisiva sobre técnicas de sobrevivência doméstica<br />

(informações — bem recebidas, imagina-se, por exploradores do<br />

Árctico — sobre sacos-cama, calor corporal, formas de manter<br />

a temperatura do apartamento em caso de emergência, como<br />

cozinhar com fornos de campismo e coisas do género), esta cidade,<br />

solidificada debaixo de camadas e camadas de neve, tinha de<br />

recorrer, para se animar, a uma longa reportagem no Cleveland<br />

Plain Dealer sobre a monstruosa ineficácia dos russos no que<br />

diz respeito à remoção de neve. Os russos! Sob o título «Neve<br />

mancha o esplendor de Moscovo», assinada pelo correspondente<br />

em Moscovo, a reportagem começava: «A reconhecida capacidade<br />

moscovita para se desembaraçar da neve foi drasticamente<br />

diminuída este Inverno por uma combinação de erros<br />

burocráticos e fortes nevões inesperados.» Prosseguia no mesmo<br />

tom de satisfação maliciosa: «Aparentemente, o problema não<br />

é a falta de equipamento especial... Este Inverno os residentes<br />

queixam-se amargamente do triste estado das ruas... Ainda assim,<br />

fortes nevões em Dezembro e normas inadequadas de esta-


O Velho Expresso da Patagónia 45<br />

cionamento não parecem desculpa suficiente para que as ruas<br />

permaneçam entupidas várias semanas depois.»<br />

Era a petulância do Midwest. Para se gabarem no Ohio, têm<br />

de falar nos russos. Melhor ainda, falar da Sibéria, à qual, na<br />

realidade, o Ohio se parece bastante no Inverno. Li essa reportagem<br />

em Cleveland. Li o Plain Dealer todo em Cleveland. Ficámos<br />

retidos em Cleveland quase duas horas. Quando perguntei<br />

a razão ao revisor, ele disse-me que era da neve; os carris tinham<br />

vergado por causa do gelo. «Que Inverno tão mau, este.»<br />

Disse-lhe que na Sibéria os comboios andam a horas. Mas<br />

foi um comentário forçado. Eu escolheria Cleveland em vez de<br />

Irkutsk todos os dias do ano; ainda que — isto era óbvio — em<br />

Cleveland fizesse mais frio.<br />

Fui até à cafetaria, pedi um «reconstituinte matinal» e li As<br />

Palmeiras Bravas. Depois pedi outro reconstituinte, e mais outro.<br />

Considerei um quarto, cheguei a pedi-lo, mas desisti. Se tomasse<br />

mais reconstituintes destes, acabava debaixo da mesa.<br />

— O que está a ler?<br />

Era uma mulher com cerca de cinquenta anos, rechonchuda<br />

e sardenta, que beberricava uma lata de água tónica light.<br />

Mostrei-lhe o título.<br />

— Já ouvi falar. É bom? — perguntou ela.<br />

— Tem os seus momentos.<br />

Depois desmanchei-me a rir. Não tinha nada a ver com<br />

Faulkner. Uma vez, num comboio da Amtrak não muito longe<br />

daqui, eu tinha estado a ler um livro sobre o qual ninguém me<br />

perguntara nada; mas que tinha, mesmo assim, gerado um interesse<br />

considerável. Era a biografia de um escritor de contos de<br />

terror, H. P. Lovecraft, e o título Lovecraft tinha levado os restantes<br />

passageiros a acreditar que durante dois dias de viagem<br />

eu não havia tirado o nariz de um livro sobre técnicas sexuais.<br />

Era de Flagstaff, no Arizona.<br />

— Onde vive? — perguntou-me.<br />

— Em Boston.<br />

— A sério? — mostrou-se interessada. — Diga qualquer coisa<br />

para eu ouvir o seu sotaque? Diga lá D-e-u-s.


46 Paul Theroux<br />

— Deus.<br />

Ela bateu palmas, encantada. Era, apesar da sua corpulência,<br />

muito pequena, com uma cara ampla e achatada. Tinha os dentes<br />

tortos, inclinados de uma maneira uniforme, como se tivessem<br />

sido limados. Eu fiquei estupefacto pelo prazer que lhe dera<br />

ao pronunciar aquela palavra.<br />

— Déus — disse ela, imitando-me.<br />

— Como é que você diz?<br />

— Eu digo Deús.<br />

— Tenho a certeza de que Ele percebe.<br />

— Adoro a forma como pronuncia a palavra. Estava neste<br />

comboio há uma semana, seguindo para leste. Atrasámo-nos<br />

por causa da neve, mas foi fantástico. Levaram-nos para o Holiday<br />

Inn.<br />

— Espero que não nos façam o mesmo.<br />

— Não diga isso.<br />

— Não tenho nada contra o Holiday Inn — disse-lhe. —<br />

Mas tenho um comboio para apanhar.<br />

— Toda a gente tem comboios para apanhar. Aposto que<br />

vou para mais longe que você... Flagstaff, lembra-se? — Deu outro<br />

gole na sua água tónica e acrescentou: — No final demorámos<br />

vários dias para ir de Chicago a Nova Iorque. Havia neve<br />

por todo o lado! Havia um rapaz no comboio. Era de Boston.<br />

Estava no banco ao meu lado. — Sorriu e lançou-me uma espécie<br />

de olhar lascivo. — Dormimos juntos.<br />

— Isso é que foi sorte.<br />

— Sei o que está a pensar, mas não foi nada disso. Ele estava<br />

no lado dele e eu estava no meu lado. Mas — ela assumiu um ar<br />

piedoso — dormimos juntos. Mas que experiência. Eu não bebo,<br />

mas ele bebeu o suficiente pelos dois. Já lhe disse que ele tinha<br />

vinte e sete anos? Era de Boston. E durante toda a noite não<br />

parou de me dizer «Meu Déus, és tão bonita», e beijou-me não<br />

sei quantas vezes. «Meu Déus, és tão bonita.»<br />

— Isso foi no Holiday Inn?<br />

— No comboio. Numa das noites — disse ela —, na carruagem.<br />

Foi muito, muito importante para mim.


O Velho Expresso da Patagónia 47<br />

Disse-lhe que parecia ter sido uma experiência muito doce<br />

e tentei imaginá-la, o jovem bêbado com as manápulas em cima<br />

desta mulher rechonchuda e sardenta, enquanto o resto da carruagem<br />

(a cheirar, como sempre acontecia à noite, a peúgas velhas<br />

e sanduíches rançosas) ressonava.<br />

— Não foi só doce. Foi muito importante. Estava muito carente<br />

naquele momento. Era por isso que ia para leste.<br />

— Para se encontrar com esse rapaz?<br />

— Não, não — disse ela irritada. — A minha mãe morreu.<br />

— Os meus sentimentos.<br />

— Recebi a notícia em Flagstaff e apanhei o comboio. Depois<br />

ficámos retidos em Chicago, se é que se pode chamar ao<br />

Holiday Inn ficar retido! Conheci o Jack perto de Toledo... mais<br />

ou menos por aqui, se isto é Toledo — olhou pela janela. —<br />

«Meu Déus, és tão bonita.» Animou-me mesmo. Aconteceu no<br />

meio de tanta coisa.<br />

— Os meus sentidos pêsames. Deve ser bem triste regressar<br />

a casa para um funeral.<br />

— Dois funerais — disse ela.<br />

— O quê?<br />

— Também morreu o meu pai.<br />

— Recentemente?<br />

— Na terça-feira.<br />

Era agora sábado.<br />

— Meu Deus — disse eu.<br />

Ela sorriu.<br />

— Adoro a forma como pronuncia essa palavra.<br />

— Quero dizer, é horrível o que aconteceu com o seu pai.<br />

— Foi um golpe forte. Eu que pensava que ia a casa para<br />

o funeral da minha mãe, mas afinal foi para o funeral dos dois.<br />

«Devias vir mais vezes, amor», dizia-me o meu pai. Disse-lhe<br />

que sim. Flagstaff é bastante longe, mas tenho o meu próprio<br />

apartamento e estou bem na vida. E então ele morre.<br />

— Uma viagem triste.<br />

— E terei de voltar. Não os podiam enterrar. Tenho de voltar<br />

para o funeral.


48 Paul Theroux<br />

— Pensei que já os teriam enterrado.<br />

Ela olhou para mim com severidade.<br />

— Não podem enterrar os mortos em Nova Iorque.<br />

Pedi-lhe que repetisse esta estranha frase, o que ela fez com<br />

o mesmo tom de voz.<br />

— Meu Deus — disse eu.<br />

— Parece o Jack a falar. — Sorriu. Um estranho sorriso com<br />

dentes de avó esquimó.<br />

— Não podem mesmo enterrar pessoas em Nova Iorque?<br />

— O solo está demasiado duro. Está gelado. Não se consegue<br />

cavar...<br />

No rigoroso Inverno de 1978 — pensei eu —, quando o solo<br />

estava demasiado duro para que se enterrassem os mortos, e as<br />

casas mortuárias estavam a transbordar, decidi apanhar o comboio<br />

para as partes mais ensolaradas da América Latina.<br />

A mulher de Flagstaff foi-se embora, mas durante as oito ou<br />

nove horas seguintes, uma e outra vez, na cafetaria, na carruagem<br />

e no restaurante, ouvi a sua voz áspera e monocórdica repetir<br />

pausadamente: «Porque não podem enterrar os mortos em<br />

Nova Iorque.»<br />

Por duas vezes, ao ver-me, disse «Déus!» e riu-se.<br />

A agulha gelada, os carris vergados por causa do gelo, a neve:<br />

estávamos atrasadíssimos e o revisor insistia que eu não devia<br />

guardar esperanças de chegar a tempo de apanhar o comboio<br />

de ligação em Fort Worth. «Você tem tanta sorte quanto<br />

uma destas no Inferno», disse-me ele na estação de Indiana. Segurava<br />

uma bola de neve. Surgira um novo problema. Uma das<br />

rodas tinha sobreaquecido e (acho que apontei isto bem) um fusível<br />

tinha rebentado; um odor gelado a gasolina infiltrava-se<br />

por todo o comboio. Para evitar uma explosão, a velocidade do<br />

comboio foi reduzida para vinte e cinco quilómetros por hora,<br />

e seguimos a este passo de tartaruga até haver oportunidade para<br />

desatrelar do Lake Shore Limited a carruagem avariada. Em<br />

Elkhart, tivemos oportunidade de nos desenvencilharmos da<br />

carruagem em causa, mas a operação demorou um bom pedaço.


O Velho Expresso da Patagónia 49<br />

Enquanto estivemos parados, tudo estava calmo no vagão-<br />

-cama Orquídea de Prata. Só o revisor se mostrava agitado. Explicou<br />

que o vapor estava a gelar e a bloquear os travões. Andava<br />

para trás e para a frente com ares importantes de vassoura<br />

em punho e contou-me que isto era muito melhor que o seu emprego<br />

anterior. Fizera trabalho de secretária numa empresa de<br />

electrónica, «mas prefiro lidar com o público».<br />

— O teu problema — disse outro empregado que viu o revisor<br />

ficar cada vez mais inquieto — é que te irritas antes de ficares<br />

ansioso.<br />

— Talvez. — Bateu com a vassoura no gelo que se acumulara<br />

dentro da porta.<br />

— Não vai ser tão mau quanto a última viagem. Isso é que<br />

foi uma loucura.<br />

— Tenho de pensar nos meus passageiros — disse o revisor.<br />

Meus passageiros. Éramos três no Orquídea de Prata —<br />

o casal Bunce e eu. A primeira coisa que o senhor Bunce me dissera<br />

foi que a família da sua mãe tinha chegado no Mayflower.<br />

O senhor Bunce usava um gorro que lhe cobria as orelhas e duas<br />

camisolas com fecho de correr. Queria falar da sua família e de<br />

Cape Cod. A senhora Bunce disse que o Ohio era muito mais<br />

feio que Cape Cod. O senhor Bunce também tinha linhagem huguenote.<br />

De certa forma, o velho Bunce era um chato atípico.<br />

Segundo a característica normal, os americanos gabam-se da vida<br />

desesperada e da pobreza dos seus antepassados; os do senhor<br />

Bunce foram gente de tremendo sucesso desde o início.<br />

Ouvi-o com toda a paciência de que fui capaz. Podia ser que,<br />

pensei eu, tivesse sido Bunce que eu ofendera no primeiro dia<br />

(«Isto é como o Transiberiano», «Não é nada disso»). Depois,<br />

evitei o casal Bunce.<br />

Ainda em Elkhart, um enorme pânico apoderou-se do Lake<br />

Shore Limited. Agora, toda a gente percebera que iria perder<br />

a ligação seguinte em Chicago. Um grande grupo de raparigas ia<br />

ao Mardi Gras de Nova Orleães. Alguns casais idosos tinham de<br />

apanhar um navio de cruzeiro em São Francisco. Um jovem do


50 Paul Theroux<br />

Kansas comentou que a sua mulher ia pensar que ele tinha fugido<br />

de vez. Um casal negro sussurrava e eu ouvi a rapariga dizer:<br />

«Oh, raios!» Uma das raparigas do Mardi Gras olhou para o relógio<br />

e disse: «Podíamos estar já em plena festa.»<br />

A senhora de Flagstaff, cujos pais tinham acabado de morrer,<br />

conseguiu levantar os ânimos do grupo. Explicou que tinha<br />

viajado há dez dias neste mesmo comboio, viajando na direcção<br />

oposta. Acontecera o mesmo — atrasos, nevões, ligações perdidas.<br />

A Amtrak tinha hospedado todos os passageiros no Holiday<br />

Inn de Chicago e tinha-lhes dado quatro dólares para o táxi,<br />

vales de alimentação e uma chamada telefónica. A Amtrak, disse<br />

ela, faria a mesma coisa desta vez.<br />

A notícia espalhou-se por todo o comboio e, como para demonstrar<br />

as boas intenções da Amtrak, foi anunciado que seria<br />

servida uma refeição gratuita no vagão-restaurante: sopa, frango<br />

frito e gelado de baunilha. Tudo isto apoiava as palavras da senhora<br />

de Flagstaff, agora menos desconsolada, que exclamou:<br />

«E esperem até chegarmos a Chicago!»<br />

Por todo o lado, os passageiros começavam já a gastar os<br />

quatro dólares para o táxi que ainda não tinham recebido.<br />

— Está bem, Ralph — disse um rapaz de cabelo oleoso ao<br />

barman, pondo um dólar sobre o balcão —, vamos embebedar-<br />

-nos.<br />

— Há oito horas que estamos aqui sentados — disse o mais<br />

barulhento de um grupo de três jovens —, nós já estamos bêbados.<br />

— Estou a fazer horas extraordinárias — disse Ralph, o barman,<br />

que começou obedientemente a encher copos de plástico<br />

com cubos de gelo.<br />

Havia outras vozes.<br />

Esta: «Nunca viajes para casa na Primavera. Nunca é a mesma<br />

coisa.»<br />

E mais esta: «Jesus Cristo... era negro. Como um etíope.<br />

Traços de branco e cor negra... As descrições habituais são tretas.»


O Velho Expresso da Patagónia 51<br />

E outra vez: «... porque não podem enterrar os mortos em<br />

Nova Iorque».<br />

Estavam todos, todos eles, terrivelmente contentes. Alegravam-se<br />

com o atraso, entusiasmavam-se com a neve (que começara<br />

a cair de novo) e regozijavam-se com a promessa feita pela<br />

senhora de Flagstaff de uma noite — talvez duas — no Holiday<br />

Inn. Eu não compartilhava da sua alegria nem sentia um particular<br />

afecto por nenhum deles; por isso, quando descobri que<br />

a carruagem que seria desatrelada ficava entre o Orquídea de<br />

Prata e esta gente, disse ao revisor que me ia deitar.<br />

— Acorde-me quando chegarmos a Chicago.<br />

— Talvez não cheguemos antes das nove horas.<br />

— Fantástico — disse eu. Adormeci com As Palmeiras Bravas<br />

sobre a cara.<br />

O revisor acordou-me às nove menos dez.<br />

— Chicago!<br />

Dei um salto e agarrei a minha mala. Enquanto corria pela<br />

plataforma, por entre golfadas de vapor que saíam debaixo do<br />

comboio e davam à minha chegada a aura de mistério e glória<br />

de um filme antigo, nas lentes dos meus óculos cristalizavam<br />

agulhas de gelo que mal me deixavam ver.<br />

A senhora de Flagstaff tinha toda a razão. Deram-me quatro<br />

dólares, abrigo no Holiday Inn e três vales de refeição. Todos os<br />

que perderam os seus comboios de ligação receberam o mesmo:<br />

o casal Bunce, os bêbados desajeitados do bar, o rapaz do Kansas,<br />

as raparigas do Mardi Gras, os parolos que tinham passado<br />

a viagem a dormir nos lugares mais baratos, os reformados a caminho<br />

de São Francisco, a senhora de Flagstaff. Funcionários da<br />

Amtrak vieram ter connosco para nos indicar o caminho.<br />

— Encontramo-nos no hotel — gritou a senhora cujas bagagens<br />

eram dois sacos de plástico.<br />

Não queria acreditar na sua sorte.<br />

— Isto está a custar uma fortuna à Amtrak — disse um parolo.<br />

A neve selvagem, o súbito hotel, Chicago — parecia irreal.<br />

Mas esta irrealidade viu-se ampliada pelos outros clientes do


52 Paul Theroux<br />

Holiday Inn. Eram negros em estranhos uniformes — calças verde-alface<br />

à boca-de-sino, boné com viseira branca e um cordão<br />

dourado; ou uniformes vermelhos, ou brancos, com medalhas,<br />

ou beges com galões prateados nos ombros. Perguntei a mim<br />

próprio se isto seria uma banda de música, ou um regimento de<br />

polícia pop-art? Estes homens (as suas mulheres não usavam<br />

uniformes) eram membros da Leal Ordem das Hastes. Assim<br />

o diziam, em letras pequenas, os distintivos que traziam ao ombro.<br />

Os homens trocavam saudações em forma de hastes, apertos<br />

de mão secretos, e desfilavam com toda a formalidade pelo<br />

átrio do hotel com sapatos brancos, aparentando terem ficado<br />

um pouco aborrecidos com a qualidade de gente que acabava de<br />

irromper por ali adentro. Não houve confrontação. Os passageiros<br />

da Amtrak encaminharam-se para a discoteca Why Not? ou<br />

para o bar Bounty Lounge, enquanto os membros da Leal Ordem<br />

das Hastes permaneciam de pé, saudando-se; permaneciam<br />

de pé, imagino, porque ao sentar-se iriam amarrotar o vinco das<br />

calças.<br />

A piscina estava iluminada e cheia de neve. Nas paredes exteriores<br />

havia palmeiras pintadas a verde. Pareciam plantadas<br />

nos montes de neve. A cidade estava gelada. Havia placas de gelo<br />

no rio. A neve da semana passada estava agora empilhada na<br />

berma da estrada. Havia neve nova nas ruas. E com o nevão<br />

veio uma tempestade de granizo — pequenas pedras de gelo que<br />

tornavam a condução uma tarefa perigosa. No meu quarto,<br />

a Bíblia estava aberta em II Crónicas, 25. Seria uma mensagem<br />

para mim? «Não morrerão os pais pelos filhos, nem os filhos<br />

morrerão pelos pais; mas cada um pagará pelas suas faltas.»<br />

Àmen, pensei. Fechei a Bíblia e tirei o Faulkner da mala.<br />

Por coincidência, Faulkner tinha uma mensagem. «Era Inverno<br />

em Chicago [...] funéreos dias agonizando em néon sobre<br />

os rostos em pétala, emoldurados de peles, das mulheres e das<br />

filhas dos milionários criadores de gado e madeireiros, assim como<br />

as amantes de políticos regressados da Europa [...] os filhos<br />

de corretores londrinos e os cavaleiros de Midland...» Conti-


O Velho Expresso da Patagónia 53<br />

nuou escarnecendo das suas posições sociais, descrevendo depois<br />

como todos partiam para sul desertando as neves de Chicago.<br />

Eram «membros dessa raça que, sem tacto para a exploração<br />

e armados com cadernos de apontamentos, máquinas fotográficas<br />

e estojos de toilette, escolhem passar a temporada da festividade<br />

cristã nas obscuras matas de selvagens».<br />

Não tinha muitas certezas acerca do meu tacto para a exploração,<br />

não tinha máquina fotográfica nem sequer um estojo de<br />

toilette, mas vinte e quatro horas no Holiday Inn, na invernosa<br />

Chicago, convenceram-me que quanto mais cedo chegasse à mata<br />

selvagem, por muito obscura que fosse, melhor.

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