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Sarah Dunant – O Nascimento de Vênus (pdf)(rev

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SARAH DUNANT<br />

O <strong>Nascimento</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Vênus</strong><br />

Tradução <strong>de</strong><br />

Ana Luiza Dantas Borges<br />

EDITORA RECORD<br />

RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO<br />

2005


Outras obras da autora publicadas pela Editora Record<br />

Marcas <strong>de</strong> nascença (Coleção Negra)<br />

Sob minha pele (Coleção Negra)<br />

Transgressões<br />

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE<br />

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.<br />

<strong>Dunant</strong>, <strong>Sarah</strong><br />

D93n O nascimento <strong>de</strong> <strong>Vênus</strong> / <strong>Sarah</strong> <strong>Dunant</strong>; tradução <strong>de</strong> Ana<br />

Luiza Dantas Borges. - Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 2005.<br />

Tradução <strong>de</strong>: The birth of Venus<br />

ISBN 85-01-06993-0<br />

1. Ficção inglesa. I. Borges, Ana Luiza Dantas. II. Título.<br />

CDD - 823<br />

05-1093 CDU- 821.111-3<br />

Título original inglês:<br />

THE BIRTH OF VENUS<br />

Copyright © <strong>Sarah</strong> <strong>Dunant</strong> 2003<br />

http://groups.google.com.br/group/digitalsource


À minha mãe, Estelle, e às minhas filhas Zoe e Georgia.


Prólogo<br />

NINGUÉM A VIRA NUA ATÉ A SUA MORTE. Era uma norma da or<strong>de</strong>m que<br />

as irmãs não olhassem o corpo humano, nem o seu próprio nem o <strong>de</strong> qualquer<br />

outra pessoa. Uma quantida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> pensamentos era <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada<br />

por essa observância. Sob as dobras serpeadas <strong>de</strong> seus hábitos, cada religiosa<br />

usava uma camisa <strong>de</strong> algodão comprida, peça que nunca tiravam, nem mesmo<br />

quando se lavavam, <strong>de</strong> modo que funcionasse como uma tela e parte <strong>de</strong> um pano<br />

para se enxugarem, assim como camisola. Essa camisa era trocada uma vez por<br />

mês (mais no verão, quando o ar estagnado da Toscana as banhava <strong>de</strong> suor), e<br />

havia instruções minuciosas do procedimento correto: como <strong>de</strong>viam manter os<br />

olhos firmemente fixados no crucifixo acima <strong>de</strong> sua cama enquanto retiravam os<br />

paramentos. Se alguma permitisse que seu olhar se <strong>de</strong>sviasse para baixo, o<br />

pecado era assunto para o confessionário e, portanto, não para história.<br />

Corria um boato <strong>de</strong> que quando a Irmã Lucrezia tinha entrado para o<br />

convento, havia levado consigo uma certa vaida<strong>de</strong> juntamente com sua vocação<br />

(seu dote para a igreja, diziam, incluía uma arca <strong>de</strong> núpcias prodigamente<br />

<strong>de</strong>corada, cheia <strong>de</strong> livros e quadros propícios aos cuidados da Polícia Suntuária).<br />

Mas aqueles eram tempos em que a irmanda<strong>de</strong> estava propensa a tais aci<strong>de</strong>ntes<br />

<strong>de</strong> ofensa e fausto, e, a partir da reforma do convento, as normas se tornaram<br />

mais estritas. Nenhum dos habitantes atuais teria como se lembrar <strong>de</strong> algo tão<br />

remoto, exceto a Reverenda Madre, que havia se tornado uma noiva <strong>de</strong> Cristo<br />

por volta da mesma época que Lucrezia, mas que há muito virará as costas a tal<br />

mundanismo. Quanto à Irmã Lucrezia, nunca falou <strong>de</strong> seu passado. De fato, em<br />

seus últimos anos <strong>de</strong> vida, havia falado muito pouco. De que era pia, não havia a<br />

menor dúvida. E assim como seus ossos se recurvaram e se grudaram com a<br />

ida<strong>de</strong>, a sua pieda<strong>de</strong> e modéstia tinham se fundido. De certa maneira, era natural.<br />

Mesmo que tivesse sido tentada pela vaida<strong>de</strong>, que superfície teria encontrado<br />

para nela se refletir? O convento não tinha nenhum espelho, as janelas, nenhum<br />

vidro, até mesmo o lago <strong>de</strong> peixes nos jardins tinha sido projetado com uma<br />

fonte no meio, lançando uma saraivada <strong>de</strong> chuva para impedir qualquer<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> narcisismo na superfície da água. É claro que mesmo nas<br />

or<strong>de</strong>ns mais puras, alguma transgressão seria inevitável, e havia tido vezes em<br />

que algumas das noviças mais sofisticadas haviam sido pegas consi<strong>de</strong>rando,<br />

sub-repticiamente, seu retrato miniaturizado nas pupilas dos olhos <strong>de</strong> seus<br />

presbíteros. Mas quase sempre este <strong>de</strong>saparecia quando a imagem <strong>de</strong> Nosso<br />

Senhor se assomava maior.


A Irmã Lucrezia parecia não ter olhado diretamente para ninguém fazia<br />

muitos anos. Havia passado cada vez mais tempo em <strong>de</strong>voção em sua cela, seus<br />

olhos enuviados com a ida<strong>de</strong> e o amor por Deus. Quando sua doença se agravou,<br />

teve <strong>de</strong> ser absolvida do trabalho manual, e enquanto as outras estavam<br />

trabalhando, ela podia ser encontrada nos jardins ou na horta <strong>de</strong> ervas que<br />

cultivara ocasionalmente. Na semana anterior à sua morte, tinha sido vista ali<br />

pela jovem noviça, Irmã Garmilla, que havia se alarmado ao se <strong>de</strong>parar com a<br />

freira anciã não sentada no banco, mas estendida sobre o chão <strong>de</strong> terra, o corpo<br />

sob o hábito distendido com o tamanho do tumor, sua touca posta <strong>de</strong> lado e a<br />

face virada para os raios <strong>de</strong> sol <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>. Esse <strong>de</strong>spojamento era uma<br />

violação flagrante das regras, mas nessa época, a doença tinha penetrado tão<br />

fundo e a sua dor era tão evi<strong>de</strong>nte, que a Reverenda Madre não conseguiu se<br />

<strong>de</strong>cidir a discipliná-la. Depois, quando as autorida<strong>de</strong>s tinham partido e o corpo,<br />

finalmente, sido levado, Carmilla espalhara o boato que repercutia daquele<br />

encontro pela mesa do refeitório, contando como o cabelo <strong>de</strong>sgrenhado da freira,<br />

livre da touca, tinha refulgido como um halo cinza ao redor <strong>de</strong> sua cabeça, e<br />

como seu rosto se iluminara <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>; só que o sorriso, que brincava em<br />

seus lábios, tinha sido mais <strong>de</strong> triunfo do que <strong>de</strong> beatificação.<br />

Naquela última semana <strong>de</strong> sua vida, quando a dor emanou em ondas cada<br />

vez mais profundas, arrastando-a em sua contracorrente, o corredor do lado <strong>de</strong><br />

fora <strong>de</strong> sua cela começou a cheirar a morte; um aroma fétido, como se a sua<br />

carne já estivesse se <strong>de</strong>compondo. O tumor tinha crescido tanto e se tornado tão<br />

doloroso que ela não conseguia mais se sentar na cama. Introduziram médicos<br />

na igreja, até mesmo um <strong>de</strong> Florença (a pele podia ser exposta para aliviar o<br />

sofrimento), mas ela recusara todos eles e não dividira sua agonia com ninguém.<br />

A protuberância permaneceu não somente coberta como completamente<br />

oculta. O verão, então, as oprimia, e o convento fervia <strong>de</strong> dia e abafava â noite,<br />

e, ainda assim, ela ficava <strong>de</strong>itada sob o cobertor, completamente vestida. O<br />

volume do hábito das religiosas era <strong>de</strong>senhado <strong>de</strong> modo a escon<strong>de</strong>r qualquer<br />

indício <strong>de</strong> forma ou curva feminina. Cinco anos antes, no maior escândalo que<br />

atingira o convento <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os corruptos velhos tempos, uma noviça <strong>de</strong> quatorze<br />

anos, vinda <strong>de</strong> Siena, ocultara nove meses <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z tão perfeitamente que só<br />

foi <strong>de</strong>scoberta quando a irmã da cozinha se <strong>de</strong>parou com vestígios <strong>de</strong> secundinas<br />

no canto da a<strong>de</strong>ga e, temendo serem as entranhas <strong>de</strong> algum animal<br />

semi<strong>de</strong>vorado, procurou até encontrar o pequenino corpo intumescido, afundado<br />

com o peso <strong>de</strong> um saco <strong>de</strong> farinha em um tonel <strong>de</strong> vinho da comunhão. Da<br />

garota, não havia sinal. Quando questionada <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>smaiado, pela<br />

primeira vez, durante as matinas, um mês antes, a Irmã Lucrezia confessou que<br />

o caroço em seu seio esquerdo havia surgido há algum tempo, a sua energia<br />

maligna Bolsando contra sua pele como um pequeno vulcão. Mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o


começo foi inflexível, <strong>de</strong>clarando que não havia nada a ser feito. Depois <strong>de</strong> um<br />

encontro com a Reverenda Madre, que fez com que essa se atrasasse para as<br />

vésperas, não se tocou mais no assunto. Afinal, a morte era uma escala<br />

temporária em uma viagem mais longa, o que, em uma casa <strong>de</strong> Deus, era algo<br />

que, mais do que temido, <strong>de</strong>veria ser recebido com prazer. Em suas últimas<br />

horas, ela foi ficando cada vez mais ensan<strong>de</strong>cida <strong>de</strong> dor e febre. As fortes<br />

concocções <strong>de</strong> ervas não lhe provocavam nenhum alívio. Enquanto, antes,<br />

suportara seu sofrimento com coragem, era, agora, ouvida uivando noite a<strong>de</strong>ntro<br />

como um animal, um som <strong>de</strong>sesperado que assustava <strong>de</strong>spertando as jovens<br />

freiras nas celas próximas. Junto com o uivo, ouviam-se palavras esporádicas,<br />

gritadas em explosões em staccato ou sussurradas como versos <strong>de</strong> uma oração<br />

<strong>de</strong>svairada; latim, grego e toscano, tudo junto em uma pasta verbal espessa.<br />

Finalmente, foi levada por Deus em uma manhã, quando mais um dia<br />

abafado <strong>de</strong>spontava. O padre que fora ministrar os ritos finais tinha-se ido e ela<br />

estava só com uma das irmãs enfermeiras que contou como, no momento em<br />

que sua alma partia, o rosto <strong>de</strong> Lucrezia havia se transformado miraculosamente,<br />

as linhas gravadas pela dor se <strong>de</strong>sfazendo, <strong>de</strong>ixando a pele lisa, quase<br />

translúcida; um eco da jovem e <strong>de</strong>licada freira que chegara às portas do<br />

convento trinta anos antes.<br />

A morte foi anunciada formalmente no ofício das matinas. No entanto, por<br />

causa do calor (a temperatura nos últimos dias tinha <strong>de</strong>rretido a manteiga na<br />

cozinha), acharam necessário enterrar o corpo <strong>de</strong> dia. Era costume do convento<br />

conce<strong>de</strong>r a toda irmã que partia a dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um corpo limpo, assim como<br />

uma alma imaculada e vesti-la em um hábito novo; um vestido <strong>de</strong> noiva para a<br />

noiva que finalmente se unia ao seu marido divino. Esse ritual era realizado pela<br />

Irmã Magdalena que administrava a farmácia e ministrava os remédios<br />

(recebendo uma dispensa especial para ver o corpo físico na mais divina das<br />

ocasiões), auxiliada por uma freira mais jovem, a Irmã Maria, que acabaria por<br />

assumir a tarefa. Juntas, lavavam e vestiam o corpo, <strong>de</strong>pois o <strong>de</strong>itavam na capela<br />

on<strong>de</strong> permanecia por um dia, enquanto o resto do convento prestava seus<br />

respeitos. Mas nessa ocasião seus serviços não foram solicitados. Irmã Lucrezia,<br />

parece, tinha feito um pedido especial antes <strong>de</strong> morrer: que o seu corpo<br />

permanecesse intocado, no hábito em que ela servira ao Senhor por todos esses<br />

anos. Era, no mínimo, um pedido incomum — houve comentários entre as irmãs<br />

se isso <strong>de</strong>veria ser qualificado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobediência —, mas a Reverenda Madre o<br />

havia sancionado e não seria contestado se não fossem as notícias, também<br />

recebidas nessa manha, da erupção <strong>de</strong> uma epi<strong>de</strong>mia na al<strong>de</strong>ia vizinha.<br />

O convento era separado do vilarejo <strong>de</strong> Loro Ciufenna por uma cavalgada<br />

vigorosa, embora a velocida<strong>de</strong> da pestilência se igualasse à das patas <strong>de</strong><br />

qualquer cavalo. O primeiro sinal se manifestara, aparentemente, há três dias,


quando o filho <strong>de</strong> um fazen<strong>de</strong>iro tinha sido acometido por febre e erupção <strong>de</strong><br />

bolhas pelo corpo, que se tornaram imediatamente purulentas, e ele,<br />

extremamente agitado. Morreu dois dias <strong>de</strong>pois, quando seu irmão mais novo e<br />

o pa<strong>de</strong>iro vizinho foram infectados. Soube-se que o menino estivera no convento<br />

na semana anterior, para fazer a entrega <strong>de</strong> farinha e legumes. A sugestão foi<br />

que a doença do Diabo teria se originado aí, e que a irmã que acabara <strong>de</strong> morrer<br />

era a sua transmissora. Apesar <strong>de</strong> a Madre Superiora não ter tempo para rumores<br />

ignorantes e ser capaz <strong>de</strong> elaborar a logística da marcha da infecção tão rápido<br />

quanto a mulher do lado, cabia-lhe manter-se em bons termos com o vilarejo, do<br />

qual o convento <strong>de</strong>pendia para muitas coisas, e era inegável o fato <strong>de</strong> que a Irmã<br />

Lucrezia tinha morrido com febre e com muita dor. Se ela fosse uma<br />

transmissora, a crença comum ditava que a pestilência permaneceria nas suas<br />

roupas, escapando, <strong>de</strong>pois, pela terra e voltando a contaminar. Tendo perdido<br />

oito irmãs para uma infecção alguns anos antes, a Reverenda Madre, preocupada<br />

não somente com a reputação do estabelecimento como também com o seu<br />

<strong>de</strong>ver em relação a seu rebanho, com pesar passou por cima do último <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

Lucrezia e or<strong>de</strong>nou que suas roupas fossem retiradas e queimadas e o corpo<br />

<strong>de</strong>sinfetado antes <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>stinado ao solo sagrado.<br />

O corpo da Irmã Lucrezia ficou estendido sobre a cama. A rigi<strong>de</strong>z da<br />

morte, com o atraso, já infectava seus membros. As duas irmãs trabalharam<br />

nervosamente e rapidamente, usando luvas <strong>de</strong> jardinagem, a única proteção que<br />

o convento podia oferecer contra a contaminação. Tiraram os alfinetes da touca<br />

e a puxaram do pescoço. O cabelo da freira morta estava achatado na cabeça<br />

com o suor, embora sua face permanecesse serena, aveludada como um pêssego,<br />

um lembrete daquela tar<strong>de</strong> na horta <strong>de</strong> ervas. Desabotoaram o hábito nos ombros<br />

e o abriram na frente cortando-o, retirando o material, que o suor do sofrimento<br />

transformara em uma crosta. Foram especialmente cuidadosas com a área ao<br />

redor do tumor, on<strong>de</strong> o hábito e a camisa embaixo tinham se fundido com a pele.<br />

Durante a sua doença, essa parte <strong>de</strong> seu corpo era tão doída que as irmãs, ao<br />

cruzarem com ela no claustro, se afastavam para evitarem até mesmo roçar em<br />

seu corpo e a fazerem gritar. Era estranho vê-la tão silenciosa agora, enquanto,<br />

in<strong>de</strong>licadamente, puxavam com força a meta<strong>de</strong> da elevação <strong>de</strong> pano e pele<br />

ensopados, do tamanho <strong>de</strong> um melão pequeno e mole ao toque. Não se<br />

<strong>de</strong>spregou com facilida<strong>de</strong>. No fim, a Irmã Magdalena, que tinha uma força em<br />

seus <strong>de</strong>dos ossudos que contrariavam a sua ida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>u um puxão violento e o<br />

material se esgarçou do corpo, trazendo junto o que parecia ser o tumor inteiro.<br />

A velha freira ofegou quando a massa <strong>de</strong> tecido <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>u-se em sua<br />

mão enluvada. Olhando <strong>de</strong> volta para o corpo, seu espanto aumentou. On<strong>de</strong> o<br />

tumor tinha estado, a superfície da pele estava curada: nenhum ferimento,<br />

nenhum sangue ou pus, nenhuma supuração. A malignida<strong>de</strong> fatal da Irmã


Lucrezia <strong>de</strong>ixara seu corpo ileso. Era certamente um milagre. E se não fosse<br />

pelo fedor insuportável na pequena cela, elas teriam se ajoelhado ali mesmo em<br />

reconhecimento à magnanimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Mas o fato era que o cheiro parecia<br />

ficar cada vez mais forte com o tumor retirado. Voltaram, portanto, a atenção<br />

para a própria malignida<strong>de</strong>.<br />

Liberto do corpo, estava na mão da irmã, um saco <strong>de</strong> tumor distendido,<br />

exsudando, <strong>de</strong> um lado, um líquido preto, como vísceras apodrecidas, como se<br />

as próprias entranhas da boa irmã tivessem, <strong>de</strong> alguma maneira, vazado <strong>de</strong> seu<br />

corpo para o tumor. Magdalena reprimiu um gemido. O saco escorregou <strong>de</strong> sua<br />

mão e estatelou-se no piso <strong>de</strong> pedras, estourando com o impacto e espalhando<br />

um líquido e sangue meio coagulado pelo chão. No meio daquela mixórdia<br />

distinguiram formas: espirais negras e nacos <strong>de</strong> sangue, intestinos, órgãos, na<br />

verda<strong>de</strong>, vísceras. Embora se fizesse anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a velha freira trabalhara na<br />

cozinha, ela já tinha visto o bastante <strong>de</strong> carcaças dissecadas para saber a<br />

diferença entre restos humanos e animais.<br />

A Reverenda Irmã Lucrezia não tinha morrido, ao que parecia, <strong>de</strong> um<br />

tumor, mas das vísceras <strong>de</strong> uma bexiga <strong>de</strong> porco que aplicara a si mesma.<br />

A <strong>rev</strong>elação já teria sido chocante o bastante sem o que veio a seguir. Foi<br />

Maria quem a localizou: o traçado prateado na pele do cadáver serpenteando a<br />

ponta do ombro, tornando-se, gradativamente, mais espesso sobre a clavícula até<br />

<strong>de</strong>saparecer por baixo do que restava da camisa. Dessa vez, a freira mais jovem<br />

tomou a iniciativa, cortando e rasgando a camisa com um único movimento, até<br />

o corpo se expor nu sobre a cama.<br />

De início, não compreen<strong>de</strong>ram o que estava diante <strong>de</strong> seus olhos. A carne<br />

exposta <strong>de</strong> Lucrezia era alva como a pele <strong>de</strong> mármore da Madona no altar<br />

secundário da capela. O corpo estava velho, a barriga e seios flácidos pela ida<strong>de</strong>,<br />

mas com pouca gordura adicional, o que significava que conservara o suficiente<br />

<strong>de</strong> sua figura para que a imagem mantivesse suas proporções. Quando a linha<br />

pintada se espessava na clavícula, ganhava mais forma e substância,<br />

arredondando-se na forma <strong>de</strong> um rabo até assumir a forma do corpo <strong>de</strong> uma<br />

serpente, <strong>de</strong> cor ver<strong>de</strong> prateada e tão real que, ao <strong>de</strong>slizar sobre o seio, podia-se<br />

jurar que se via o movimento <strong>de</strong> seus músculos ondulando por <strong>de</strong>baixo da pele.<br />

Próximo ao mamilo direito, enrolava-se em volta da aréola escurecida antes <strong>de</strong><br />

escorregar do seio e atravessar o estômago. Então, quando imergia em direção à<br />

virilha, a forma como que se horizontalizava, preparando-se para a cabeça da<br />

serpente. A ida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sbastara o que havia sido um pêlo púbico espesso em<br />

espirais irregulares e finas. Portanto, o que teria sido invisível, a não ser para um<br />

pesquisador insistente, agora estava evi<strong>de</strong>nte.<br />

No ponto em que o corpo da serpente transformava-se em sua cabeça, em<br />

vez do crânio reptiliano, havia a forma mais suave, mais redonda do rosto <strong>de</strong> um


homem: a cabeça jogada para trás, os olhos fechados como se em êxtase, e a<br />

língua, comprida como a <strong>de</strong> uma serpente, projetando-se <strong>de</strong> sua boca para baixo,<br />

na direção da abertura do sexo <strong>de</strong> Irmã Lucrezia.


PARTE UM<br />

CONVENTO DE ST. VITELLA,<br />

LORO CIUFENNA,<br />

AGOSTO DE 15 2 8<br />

O Testamento <strong>de</strong> Irmã Lucrezia


Um<br />

HOJE, RELEMBRANDO, VEJO MAIS como um ato <strong>de</strong> orgulho do que <strong>de</strong><br />

gentileza o fato <strong>de</strong> meu pai, naquela primavera, ter trazido com ele, do Norte, o<br />

jovem pintor. A capela em nosso palazzo havia sido concluída recentemente e,<br />

por alguns meses, ele procurara o par <strong>de</strong> mãos certo para executar os afrescos do<br />

altar. Não que Florença não tivesse artistas o bastante. A cida<strong>de</strong> estava<br />

impregnada do cheiro <strong>de</strong> tinta e da garatuja da pena nos contratos. Havia<br />

momentos em que não se podia andar nas ruas por medo <strong>de</strong> cair em algum<br />

buraco ou lodaçal <strong>de</strong>ixado pela constante construção. Todos que tinham dinheiro<br />

estavam ansiosos por exaltar Deus e a República, criando oportunida<strong>de</strong>s para a<br />

arte. O que eu ouvia, <strong>de</strong>scrito ainda hoje como a Ida<strong>de</strong> do Ouro, era<br />

simplesmente a moda do dia. Mas eu era jovem então e, como muitos outros,<br />

<strong>de</strong>slumbrada com o Festival.<br />

As igrejas eram o melhor <strong>de</strong> tudo. Deus estava no reboco aplicado nas<br />

pare<strong>de</strong>s, pronto para os afrescos: histórias dos evangelhos tornados carne para<br />

qualquer um com olhos <strong>de</strong> ver. Somente aqueles que olhavam viam também<br />

algo mais. Nosso Senhor po<strong>de</strong> ter vivido e morrido na Galiléia, mas a sua vida<br />

foi recriada na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Florença. O Anjo Gabriel levou a mensagem <strong>de</strong> Deus a<br />

Maria sob os arcos <strong>de</strong> uma loggia brunelleschiana, os Reis Magos conduziram<br />

procissões pela região rural da Toscana e os milagres <strong>de</strong> Cristo se realizaram no<br />

interior dos muros da cida<strong>de</strong>, os pecadores e os doentes em roupas florentinas e<br />

a massa <strong>de</strong> testemunhas juncada <strong>de</strong> rostos públicos: uma hoste <strong>de</strong> dignitários <strong>de</strong><br />

queixo quadrado, nariz gran<strong>de</strong>, olhando do alto dos afrescos para as suas<br />

réplicas reais nos bancos da frente.<br />

Eu tinha quase <strong>de</strong>z anos quando Domenico Ghirlandaio completou seus<br />

afrescos para a família Tornabuoni, na capela central <strong>de</strong> Santa Maria Novella.<br />

Lembro-me bem, porque minha mãe me disse para não me esquecer."Tem <strong>de</strong> se<br />

lembrar <strong>de</strong>ste momento, Alessandra", disse ela. "Essas pinturas trarão muita<br />

glória à nossa cida<strong>de</strong>." E todos que as viram acharam que sim.<br />

A fortuna do meu pai, na época, crescia do vapor dos tonéis <strong>de</strong> tintura nas<br />

ruelas <strong>de</strong> Santa Croce. O cheiro <strong>de</strong> cochinilha ainda me <strong>de</strong>sperta recordações<br />

<strong>de</strong>le chegando em casa do empório, os restos <strong>de</strong> insetos <strong>de</strong> lugares estrangeiros,<br />

esmigalhados, incrustados em suas roupas. Na época em que o pintor foi viver<br />

conosco, em 1492 — lembro-me da data porque Lorenzo <strong>de</strong> Medici morreu<br />

nessa primavera —, o apetite florentino por tecidos vistosos nos tornara ricos.<br />

Nosso palazzo, recentemente concluído, ficava no lado leste da cida<strong>de</strong>, entre a<br />

gran<strong>de</strong> Catedral <strong>de</strong> Santa Maria <strong>de</strong>l Fiore e a igreja <strong>de</strong> Sant'Ambroglio. Erguia-


se em quatro andares ao redor <strong>de</strong> dois pátios internos, com seu próprio pequeno<br />

jardim murado e espaço para o negócio <strong>de</strong> meu pai no andar térreo. Nosso<br />

brasão adornava os muros externos, e apesar do bom gosto <strong>de</strong> minha mãe refrear<br />

gran<strong>de</strong> parte da exuberância resultante do dinheiro recente, todos sabíamos que<br />

era apenas uma questão <strong>de</strong> tempo até nós, também, estarmos posando para os<br />

nossos retratos evangélicos, se bem que particulares.<br />

A noite em que o pintor chegou está nítida como uma gravura em minha<br />

memória. É inverno e as balaustradas <strong>de</strong> pedra estão cobertas <strong>de</strong> gelo quando<br />

minha irmã e eu, em nossas camisolas <strong>de</strong> dormir, colidimos na escadaria,<br />

<strong>de</strong>bruçando-nos para observar os cavalos chegarem no pátio principal. É tar<strong>de</strong> e<br />

a casa está adormecida, mas a chegada <strong>de</strong> meu pai é motivo <strong>de</strong> celebração, não<br />

simplesmente por seu retorno em segurança, como também porque, entre os<br />

cestos com amostras, havia sempre um tecido especial para a família. Plautilla já<br />

está fora <strong>de</strong> si <strong>de</strong> excitação, pois estando noiva, só pensava em seu enxoval e<br />

dote. Meus irmãos, por outro lado, são notados por sua ausência. Apesar do bom<br />

nome e tecidos elegantes <strong>de</strong> nossa família, Tomaso e Luca vivem mais como<br />

gatos selvagens do que como cidadãos, dormindo durante o dia e caçando à<br />

noite. Nossa escrava doméstica, Erila, reservatório <strong>de</strong> todas as fofocas, diz que<br />

eles são a razão por que mulheres <strong>de</strong> bem nunca <strong>de</strong>vem ser vistas nas ruas<br />

<strong>de</strong>pois que anoitece. Não obstante, quando meu pai <strong>de</strong>scobrir que não estão em<br />

casa, vamos ter problemas.<br />

Mas ainda não. Por enquanto, todos estamos maravilhados com aquele<br />

momento. Archotes iluminam o ar quando os cavalariços acalmam os cavalos,<br />

seu resfôlego lançando vapor no ar gelado. Meu pai está <strong>de</strong>smontando, o rosto<br />

tisnado, um sorriso tão redondo quanto uma cúpula quando ergue o rosto para<br />

nós, <strong>de</strong>pois para minha mãe que <strong>de</strong>sce a escadaria para recebê-lo, seu robe <strong>de</strong><br />

veludo vermelho amarrado em volta <strong>de</strong> seu peito e seu cabelo solto, caindo em<br />

suas costas como um rio dourado. Há barulho, luz e a doce sensação <strong>de</strong><br />

segurança por toda parte, mas não partilhada por todos. Escarranchado no último<br />

cavalo está um rapaz magricela, seu manto enrolado em volta <strong>de</strong> seu corpo como<br />

uma peça inteira <strong>de</strong> tecido, o frio e a fadiga da viagem fazendo-o tombar<br />

perigosamente à frente, na sela.<br />

Lembro-me <strong>de</strong> quando o cavalariço aproximou-se <strong>de</strong>le para pegar as<br />

ré<strong>de</strong>as e ele <strong>de</strong>spertou com um susto, suas mãos agarrando-as como se temesse<br />

um ataque, e meu pai tendo <strong>de</strong> ir até ele e acalmá-lo. Eu estava, então, muito<br />

cheia <strong>de</strong> mim para perceber como <strong>de</strong>via ter sido estranho para ele. Eu ainda não<br />

sabia como o Norte era diferente, como a umida<strong>de</strong> e o sol pálido mudavam tudo,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a luminosida<strong>de</strong> do ar até a luz da nossa alma. E claro que eu não sabia que<br />

ele era um pintor. Para mim, era apenas mais um criado. Meu pai, porém, tratouo<br />

com atenção <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo: falando com ele em um tom <strong>de</strong> voz tranqüilo,


ajudando-o a <strong>de</strong>smontar e escolhendo um cômodo separado, no pátio dos<br />

fundos, como seus aposentos.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, quando meu pai <strong>de</strong>sembrulhou a tapeçaria flamenga para a<br />

minha mãe e abriu o tecido <strong>de</strong>licado, todo bordado, branco como leite, para nós<br />

("As mulheres <strong>de</strong> Rennes ficam cegas cedo servindo à beleza <strong>de</strong> minhas filhas"),<br />

nos contou como o encontrara, um órfão levado ao mosteiro à beira do mar ao<br />

norte on<strong>de</strong> a água ameaça a terra. Como o seu talento com uma pena tinha<br />

dominado qualquer senso <strong>de</strong> vocação religiosa, e, portanto, os monges o tinham<br />

empregado como aprendiz <strong>de</strong> um mestre, e quando ele retornou, como prova <strong>de</strong><br />

gratidão, tinha pintado não apenas a própria cela, mas as celas <strong>de</strong> todos os outros<br />

monges. Foram essas pinturas que impressionaram meu pai, que <strong>de</strong>cidiu<br />

oferecer-lhe, imediatamente, a tarefa <strong>de</strong> glorificar a nossa capela. Embora eu<br />

<strong>de</strong>va acrescentar que, apesar <strong>de</strong> conhecer tecido, meu pai não era um gran<strong>de</strong><br />

perito em arte, e suspeito que sua <strong>de</strong>cisão tenha sido muito mais ditada pelo<br />

dinheiro, pois sempre teve bom olho para uma barganha. E o pintor? Bem, como<br />

meu pai colocou — não havia mais celas para pintar e a fama <strong>de</strong> Florença como<br />

a nova Roma ou Atenas da nossa era, sem dúvida o incitaria a vê-la com os<br />

próprios olhos.<br />

E assim, o pintor foi morar na nossa casa.<br />

Na manhã seguinte, fomos à Santíssima Annunziata agra<strong>de</strong>cer o retorno<br />

seguro <strong>de</strong> meu pai. A igreja fica do lado do Ospedale <strong>de</strong>gli Innocenti, o hospital<br />

<strong>de</strong> crianças enjeitadas, on<strong>de</strong> mulheres jovens colocam seus bebês bastardos<br />

sobre a roda para as freiras cuidarem <strong>de</strong>les. Ao passarmos, imagino o choro dos<br />

bebês enquanto a roda no muro gira para <strong>de</strong>ntro, para sempre, mas meu pai diz<br />

que somos uma cida<strong>de</strong> caridosa e que existem lugares, no Norte selvagem, em<br />

que encontramos bebês no meio do lixo ou flutuando, como <strong>de</strong>stroços <strong>de</strong><br />

naufrágio, rio abaixo.<br />

Sentamo-nos juntos nos bancos do centro. Acima <strong>de</strong> nossas cabeças,<br />

pen<strong>de</strong>m gran<strong>de</strong>s maquetes <strong>de</strong> navios doadas por aqueles que tinham sob<strong>rev</strong>ivido<br />

a naufrágios. Meu pai esteve em um certa vez, embora na época não fosse rico o<br />

bastante para encomendar um memorial na igreja, e nessa sua última viagem<br />

sofreu apenas enjôos. Ele e minha mãe sentavam-se eretos como varas e dava<br />

para sentir sua mente na magnanimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Nós, os filhos, somos menos<br />

santos. Plautilla continua estouvada, com o pensamento em seus presentes,<br />

enquanto Tomaso e Luca parecem que prefeririam estar na cama, embora a<br />

reprovação <strong>de</strong> meu pai os mantenha alertas.<br />

Quando retornamos, a casa cheira a comida <strong>de</strong> feriado — a doçura da<br />

carne assada e molhos condimentados <strong>de</strong>scendo em espirais pelas escadas, da<br />

cozinha lá em cima até o pátio embaixo. Comemos quando a tar<strong>de</strong> se transforma<br />

em noite. Primeiro agra<strong>de</strong>cemos a Deus, <strong>de</strong>pois nos empanturramos: frango


cozido, faisão assado, truta e massas frescas, acompanhados <strong>de</strong> pudim <strong>de</strong><br />

açafrão e creme <strong>de</strong> ovos com cobertura <strong>de</strong> calda <strong>de</strong> açúcar queimado. Todos<br />

estão com sua melhor disposição. Até mesmo Luca segura o garfo direito,<br />

embora seja possível perceber seus <strong>de</strong>dos cocando para pegar o pão e passá-lo<br />

no molho.<br />

Eu já me sinto fora <strong>de</strong> mim <strong>de</strong> tanto entusiasmo só em pensar em nosso<br />

novo hóspe<strong>de</strong>. Pintores flamengos são muito admirados em Florença por sua<br />

precisão e espiritualida<strong>de</strong> sutil.<br />

— Então, ele vai pintar nós todos, pai. Vamos ter <strong>de</strong> posar para ele, não<br />

vamos?<br />

— De fato. Ele também veio para isso. Tenho certeza <strong>de</strong> que ele nos<br />

apresentará uma bela recordação do casamento <strong>de</strong> sua irmã.<br />

— Nessa caso, ele me pintará primeiro! — Plautilla está tão feliz que<br />

cospe pudim <strong>de</strong> leite na toalha da mesa. — Depois Tomaso que é o mais velho,<br />

<strong>de</strong>pois Luca e, então, Alessandra. Nossa!, Alessandra, você vai estar ainda mais<br />

alta quando chegar a sua vez.<br />

Luca ergue os olhos do prato e sorri largo com a boca cheia, como se essa<br />

fosse a piada mais espirituosa que ele tivesse ouvido. Mas acabo <strong>de</strong> chegar da<br />

igreja e estou repleta da boa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus para com toda a minha família.<br />

— Ainda assim, é melhor ele não <strong>de</strong>morar <strong>de</strong>mais. Soube que uma das<br />

noras da família Tornabuoni tinha morrido <strong>de</strong> parto quando Ghirlandaio <strong>rev</strong>eloua<br />

no afresco.<br />

— Esse risco você não corre. Tem <strong>de</strong> conseguir um marido antes. — Do<br />

meu lado, o insulto <strong>de</strong> Tomaso é sussurrado e só eu posso ouvi-lo.<br />

— O que disse,Tomaso? — A voz <strong>de</strong> minha mãe é tranqüila, mas incisiva.<br />

Ele assume a sua expressão mais angelical.<br />

— Eu disse que estou morrendo <strong>de</strong> se<strong>de</strong>. Passe a jarra <strong>de</strong> vinho, irmã<br />

querida.<br />

— É claro, irmão. — Pego a jarra e quando a movo em sua direção, ela<br />

escorrega <strong>de</strong> minhas mãos e o líquido <strong>de</strong>rramado respinga em sua túnica nova.<br />

— Ah, mãe — explo<strong>de</strong> ele. — Ela fez <strong>de</strong> propósito.<br />

— Não fiz!<br />

— Ela...<br />

— Filhos... filhos... seu pai está cansado e estão, todos os dois, fazendo<br />

muito barulho.<br />

A palavra "filhos" surte efeito em Tomaso e ele se cala, carrancudo. No<br />

intervalo que se seguiu, o som da boca aberta <strong>de</strong> Luca mastigando tornou-se<br />

enorme. Minha mãe mexeu-se, impaciente, em sua ca<strong>de</strong>ira. Nossas maneiras<br />

sobrecarregavam-na profundamente. Assim como na jaula, o domador <strong>de</strong> leão<br />

usa um chicote para controlar o seu comportamento, minha mãe tinha


aperfeiçoado O Olhar. Usa-o agora em Luca, mas ele está tão absorto no prazer<br />

<strong>de</strong> sua comida que, hoje, é preciso um chute meu por <strong>de</strong>baixo da mesa para que<br />

ele preste atenção. Somos a obra da vida <strong>de</strong> minha mãe, seus filhos, e ainda há<br />

tanto a fazer conosco.<br />

— No entanto — disse eu quando parece que já po<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong> novo —<br />

mal posso esperar para conhecê-lo. Oh, ele <strong>de</strong>ve estar muito grato a você, papai,<br />

por tê-lo trazido. Assim como nós estamos. É uma honra e o nosso <strong>de</strong>ver, como<br />

uma família cristã, cuidar <strong>de</strong>le e fazer com que se sinta em casa em nossa gran<strong>de</strong><br />

cida<strong>de</strong>.<br />

Meu pai franze o cenho e troca um rápido olhar com minha mãe. Esteve<br />

longe muito tempo e, sem dúvida, tinha-se esquecido <strong>de</strong> como a sua filha caçula<br />

dizia o que lhe passava na cabeça.<br />

— Acho que ele é capaz <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> si mesmo, Alessandra — disse ele,<br />

com firmeza.<br />

Percebo o aviso, mas muita coisa está em jogo para me <strong>de</strong>ter agora.<br />

Respiro fundo.<br />

— Ouvi dizer que Lorenzo o Magnífico consi<strong>de</strong>ra tanto Botticelli que o<br />

faz comer à sua mesa.<br />

Faz-se um b<strong>rev</strong>e silêncio. Dessa vez, O Olhar silencia a mim. Baixo os<br />

olhos e me concentro <strong>de</strong> novo em meu prato. Do meu lado, sinto o sorriso<br />

afetado <strong>de</strong> triunfo <strong>de</strong> Tomaso.<br />

Mas é verda<strong>de</strong>. Sandro Botticelli senta-se, realmente, à mesa <strong>de</strong> Lorenzo<br />

<strong>de</strong> Medici. E o escultor Donatello costumava andar pela cida<strong>de</strong> em uma túnica<br />

escarlate recebida <strong>de</strong> Cosimo, avô <strong>de</strong> Lorenzo, por sua contribuição à República.<br />

Minha mãe contou-me várias vezes como em garota o via, saudado por todos, as<br />

pessoas abrindo passagem para ele — embora isso pu<strong>de</strong>sse ter tanto a ver com<br />

seu péssimo gênio como com seu talento. Mas o fato triste é que apesar <strong>de</strong><br />

Florença estar cheia <strong>de</strong> pintores, nunca conheci nenhum, Apesar <strong>de</strong> a nossa<br />

família não ser tão rigorosa quanto outras, as chances <strong>de</strong> uma filha solteira se<br />

encontrar na companhia <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> qualquer tipo, muito menos artesãos,<br />

eram extremamente limitadas. Evi<strong>de</strong>ntemente, isso não impediu que os<br />

conhecesse em minha mente. Todos sabem que há lugares na cida<strong>de</strong> em que<br />

existem oficinas <strong>de</strong> arte. O gran<strong>de</strong> Lorenzo, ele próprio fundou uma <strong>de</strong>las e<br />

encheu seus cômodos e jardins <strong>de</strong> esculturas e pinturas <strong>de</strong> sua coleção clássica.<br />

Imagino um edifício repleto <strong>de</strong> luz, o cheiro das cores como um ensopado<br />

fervendo, o espaço tão infinito quanto a sua imaginação.<br />

Meus próprios <strong>de</strong>senhos a ponta <strong>de</strong> prata, até agora, têm sido<br />

laboriosamente riscados em blocos <strong>de</strong> buxo, ou a carvão sobre papel, quando<br />

consigo encontrá-lo. Destruí a maior parte, achando-a sem valor, e os melhores<br />

estão bem escondidos (cedo ficou claro para mim que os bordados com ponto <strong>de</strong>


cruz <strong>de</strong> minha irmã seriam mais elogiados do que qualquer um <strong>de</strong> meus<br />

esboços). Portanto, não faço a menor idéia <strong>de</strong> se sou capaz ou não <strong>de</strong> pintar. Sou<br />

como Ícaro sem asas, mas o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> voar é muito forte em mim. Acho que<br />

sempre estive em busca <strong>de</strong> um Dédalo.<br />

Eu era então jovem, como sabem: estava para completar quinze anos. O<br />

estudo mais preliminar <strong>de</strong> matemática <strong>rev</strong>elaria que eu tinha sido concebida no<br />

auge do verão, época nada auspiciosa para o começo <strong>de</strong> uma criança. Durante a<br />

gravi<strong>de</strong>z, quando a cida<strong>de</strong> estava tumultuada <strong>de</strong>pois da conspiração <strong>de</strong> Pazzi,<br />

correu um boato <strong>de</strong> que minha mãe tinha visto matanças e violência nas ruas.<br />

Uma vez, escutei por acaso uma criada sugerindo que a minha obstinação talvez<br />

fosse resultado <strong>de</strong>ssa transgressão. Ou po<strong>de</strong>ria ter sido a ama-<strong>de</strong>-leite a quem<br />

tinham me enviado. Tomaso, que sempre foi rigoroso com a verda<strong>de</strong> quando<br />

essa contém rancor, contou que ela foi processada <strong>de</strong>pois por prostituição,<br />

portanto quem sabe que humores e lascívia suguei em seus seios. Embora Erila<br />

diga que ele só fala assim por inveja, que é a sua maneira <strong>de</strong> se vingar <strong>de</strong> mim<br />

pelos milhares <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfeitas infligidas na sala <strong>de</strong> aula.<br />

Quaisquer que sejam as razões, quando tinha quatorze anos, eu era uma<br />

menina diferente, mais qualificada para o estudo e discussão do que para a<br />

submissão. Minha irmã, que era <strong>de</strong>zesseis meses mais velha do que eu e tinha<br />

começado a sangrar um ano antes, estava comprometida com um homem <strong>de</strong> boa<br />

família e já tinha, até mesmo, havido uma conversa <strong>de</strong> uma relação<br />

semelhantemente ilustre para mim (à medida que a nossa fortuna aumentava,<br />

aumentavam as expectativas <strong>de</strong> meu pai em relação ao meu casamento), apesar<br />

da minha intratabilida<strong>de</strong> emergente.<br />

Nas semanas seguintes à chegada do pintor, minha mãe ficou atenta a<br />

mim, mantendo-me fechada no estúdio ou ajudando no guarda-roupa <strong>de</strong><br />

casamento <strong>de</strong> Plautilla. Mas, então, ela foi chamada a Fiesole, à casa <strong>de</strong> sua<br />

irmã, que tinha sofrido muito com o parto <strong>de</strong> um bebê muito gran<strong>de</strong> e precisava<br />

do conselho <strong>de</strong> uma mulher. Ela partiu <strong>de</strong>ixando instruções estritas <strong>de</strong> que eu<br />

<strong>de</strong>veria começar meus estudos e fazer exatamente o que meus tutores e minha<br />

irmã mais velha mandassem. E concor<strong>de</strong>i com tudo, apesar <strong>de</strong> não ter a intenção<br />

<strong>de</strong> obe<strong>de</strong>cer.<br />

Eu já sabia on<strong>de</strong> encontrá-lo. Como uma república ruim, nossa casa louva<br />

virtu<strong>de</strong>s publicamente, mas recompensa o vício privadamente e fuxicos sempre<br />

podiam ser conseguidos por um preço, embora, nesse caso, Erila o fez <strong>de</strong> graça.<br />

— ...dizem que não há nenhum. Ninguém sabe nada. Ele fica sozinho,


come em seu quarto e não fala com ninguém. Mas Maria diz que o viu andando<br />

<strong>de</strong> lá para cá no pátio, no meio da noite.<br />

E <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>. Ela soltou meu cabelo e fechou as cortinas para que eu<br />

<strong>de</strong>scanse, e está para sair do quarto quando se vira e olha diretamente para mim.<br />

— Nós duas sabemos que você está proibida <strong>de</strong> visitá-lo, certo?<br />

Confirmo com um movimento da cabeça, meus olhos na ma<strong>de</strong>ira<br />

entalhada da armação da cama: uma rosa com tantas pétalas quanto minhas<br />

pequenas mentiras. Há uma pausa na qual eu gostaria <strong>de</strong> pensar que ela encara<br />

minha <strong>de</strong>sobediência com simpatia.<br />

— Estarei <strong>de</strong> volta para acordá-la em duas horas. Descanse bem.<br />

Espero até o sol aquietar a casa e então <strong>de</strong>sço furtivamente a escadaria e<br />

atravesso para o pátio dos fundos. O calor já a<strong>de</strong>re às pedras e a sua porta está<br />

aberta, supostamente para <strong>de</strong>ixar entrar alguma brisa. Atravesso, em silêncio, o<br />

pátio crestado e entro.<br />

O interior está obscurecido, os dardos da luz do dia tecendo partículas <strong>de</strong><br />

pó no ar. É um pequeno cômodo melancólico com apenas uma mesa e ca<strong>de</strong>ira e<br />

uma série <strong>de</strong> vasilhas em um canto, e uma porta entreaberta que se conecta com<br />

uma câmara interna menor. Abro mais a porta. A escuridão é profunda e meus<br />

ouvidos agem antes <strong>de</strong> meus olhos. A sua respiração é longa e regular. Ele está<br />

<strong>de</strong>itado sobre um catre do lado da janela, a sua mão largada sobre papéis<br />

espalhados. Os únicos homens que vi dormindo são meus irmãos e seu ronco é<br />

<strong>de</strong>sarmonioso. A <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za <strong>de</strong>ssa respiração me perturba. O meu estômago se<br />

aperta com o som, fazendo me sentir a intrusa que sou e fecho a porta atrás <strong>de</strong><br />

mim.<br />

Em contraste, o outro cômodo agora está mais claro. Em cima da mesa,<br />

está uma série <strong>de</strong> papéis amassados e rasgados: <strong>de</strong>senhos da capela extraídos das<br />

plantas dos construtores, rasgados e sujos com marcas <strong>de</strong> alvenaria. Do lado,<br />

pen<strong>de</strong> um crucifixo <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, esculpido grosseiramente, mas que causa<br />

impressão, com o corpo <strong>de</strong> Cristo caindo tão pesadamente da cruz que se sente o<br />

peso <strong>de</strong> sua carne pen<strong>de</strong>ndo dos pregos. Embaixo, alguns esboços, mas quando<br />

os pego, a pare<strong>de</strong> em frente chama minha atenção. Duas figuras, pela meta<strong>de</strong>: à<br />

esquerda, um anjo esguio, asas <strong>de</strong> penas leves como a fumaça ascen<strong>de</strong>ndo em<br />

ondas atrás <strong>de</strong>le, e do outro lado uma Madona, seu corpo artificialmente alto e<br />

esguio, flutuando espectral-mente livre, seus pés bem acima do solo. Aproximome<br />

para olhar melhor. O chão está espesso com tocos <strong>de</strong> velas enfiados em<br />

poças <strong>de</strong> cera <strong>de</strong>rretida. Será que dorme durante o dia e trabalha à noite? Isso<br />

talvez explique a figura suavizada <strong>de</strong> Maria, seu corpo esten<strong>de</strong>ndo-se na luz<br />

bruxuleante <strong>de</strong> uma vela. Mas ele teve luz suficiente para avivar sua face. Sua<br />

aparência é do Norte, seu cabelo bem puxado para trás para mostrar uma testa<br />

larga, <strong>de</strong> modo que a sua cabeça me lembra um ovo pálido perfeitamente


<strong>de</strong>lineado. Ela está com os olhos arregalados na direção do anjo e sinto, nela,<br />

uma excitação nervosa, como uma criança que tivesse recebido um presente e<br />

não conseguisse enten<strong>de</strong>r perfeitamente a sua boa sorte. Apesar <strong>de</strong> não se<br />

mostrar tão segura com o mensageiro <strong>de</strong> Deus, há uma tal alegria em sua<br />

atenção que é quase contagiosa. Faz-me pensar em um esboço que estou<br />

trabalhando, da Anunciação, e meu rosto se ruboriza <strong>de</strong> vergonha diante da<br />

minha inépcia.<br />

O barulho é mais como um resmungo do que quaisquer palavras. Ele <strong>de</strong>ve<br />

ter-se levantado da cama silenciosamente, pois quando me viro, ele está em pé à<br />

porta. O que me lembro <strong>de</strong>sse momento? O seu corpo é longo e magricela, sua<br />

camisa está amarrotada e rasgada. O seu rosto é largo sob um emaranhado <strong>de</strong><br />

cabelo preto comprido, e ele é mais alto do que me lembro da primeira noite, e,<br />

<strong>de</strong> certa maneira, mais selvagem. Ele está imóvel, sonolento, e seu corpo tem o<br />

cheiro forte <strong>de</strong> suor seco. Estou acostumada a viver em uma casa com o ar<br />

perfumado <strong>de</strong> rosas e flor <strong>de</strong> laranjeira. Ele cheira a rua. Realmente acho, até<br />

esse momento, que acreditava que os artistas vinham, <strong>de</strong> certa forma,<br />

diretamente <strong>de</strong> Deus, e, portanto, tinham mais do espírito e menos <strong>de</strong> homem.<br />

O choque <strong>de</strong> sua condição física varre qualquer coragem que me restava.<br />

Ele está em pé, piscando por causa da luz, e, então, <strong>de</strong> repente, cambaleia na<br />

minha direção, arrancando os papéis da minha mão.<br />

— Como se at<strong>rev</strong>e?<br />

— Sou a filha do seu protetor, Paolo Cecchi — grito quando ele me<br />

empurra para o lado.<br />

Ele parece não escutar. Corre para a mesa, pegando os esboços restantes,<br />

murmurando sem parar:<br />

— Noli tangere... noli tangere.<br />

É claro. Há um fato que meu pai esqueceu <strong>de</strong> nos contar. O nosso pintor<br />

cresceu entre monges e, enquanto seus olhos po<strong>de</strong>m atuar aqui, seus ouvidos<br />

não.<br />

— Não toquei em nada — vocifero aterrorizada. — Só estava olhando. E<br />

se quer ser aceito aqui, terá <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a falar a nossa língua. Latim é a língua<br />

<strong>de</strong> padres e eruditos, não <strong>de</strong> pintores.<br />

Minha resposta incisiva, ou talvez a força do meu latim fluente, cala-o.<br />

Ele fica paralisado, o corpo tremendo. É difícil saber qual <strong>de</strong> nós dois está mais<br />

apavorado. Eu teria fugido se não fosse o fato <strong>de</strong> que, no outro lado do pátio, vi<br />

a criada <strong>de</strong> quarto <strong>de</strong> minha mãe saindo da <strong>de</strong>spensa. Tenho aliados nos<br />

aposentos dos criados, mas também tenho inimigos e Angélica há muito tempo<br />

tem dado provas <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong>. Se sou <strong>de</strong>scoberta é impossível imaginar o ultraje<br />

que causará na casa.<br />

— Po<strong>de</strong> estar certo que não danifiquei seus <strong>de</strong>senhos — digo


apidamente, ansiosamente, para evitar outra explosão. — Estou interessada na<br />

capela. Vim simplesmente ver como seu trabalho estava se <strong>de</strong>senvolvendo.<br />

Ele murmura algo <strong>de</strong> novo. Espero que repita o que disse. Leva muito<br />

tempo. Finalmente, ergue os olhos para mim, e quando o encaro, me dou conta,<br />

pela primeira vez, <strong>de</strong> como é jovem — mais velho do que eu, sim, mas<br />

certamente poucos anos mais velho — e <strong>de</strong> como a sua pele é branca e pálida. É<br />

claro que sei que terras estrangeiras engendram cores estrangeiras. A minha<br />

Erila é preta, queimada pelas areias do <strong>de</strong>serto da África do Norte, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ela<br />

veio, e naqueles tempos, era possível encontrar vários matizes <strong>de</strong> pele nos<br />

mercados da cida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> tanto que Florença era um ponto <strong>de</strong> atração para o<br />

comércio. Mas essa brancura é diferente, passa a sensação <strong>de</strong> pedra úmida e céu<br />

sem sol. Um único dia sob o sol florentino certamente enrugaria e queimaria a<br />

sua superfície <strong>de</strong>licada.<br />

Quando ele finalmente fala, parou <strong>de</strong> tremer, mas o esforço foi gran<strong>de</strong>.<br />

— Eu pinto a serviço <strong>de</strong> Deus — diz ele, com o ar <strong>de</strong> um noviço<br />

<strong>de</strong>clamando a litania que lhe ensinaram, mas que não foi totalmente<br />

compreendida. — E estou proibido <strong>de</strong> falar com mulheres.<br />

— Realmente — digo, ofendida pelo tom pretensioso. — Isso talvez<br />

explique por que quase não faz idéia <strong>de</strong> como pintá-las. — Lanço o olhar para a<br />

Madona alongada na pare<strong>de</strong>.<br />

Mesmo no escuro, posso sentir como as palavras o feriram. Por um<br />

instante, acho que ele po<strong>de</strong> me agredir <strong>de</strong> novo, ou romper suas regras e me<br />

respon<strong>de</strong>r, mas, em vez disso, ele se vira e, agarrando os papéis, cambaleia <strong>de</strong><br />

volta ao quarto, batendo a porta.<br />

— A sua grosseria é tão grave quanto a sua ignorância, senhor — gritei<br />

para ele, para dissimular minha confusão. — Não sei o que apren<strong>de</strong>u no Norte,<br />

mas aqui, em Florença, nossos artistas apren<strong>de</strong>m a celebrar o corpo humano<br />

como um eco da perfeição <strong>de</strong> Deus. Faria bem se estudasse a arte da cida<strong>de</strong><br />

antes <strong>de</strong> se arriscar a rabiscar em suas pare<strong>de</strong>s.<br />

Numa agitação hipócrita, saio do aposento para a luz do sol, sem saber se<br />

a minha voz atravessou a porta.


Dois<br />

— SETE, OITO, VIRAR, DAR UM PASSO, uma volta... não... não, não...<br />

Alessandra. .. Não. Você não está prestando atenção à marcação do compasso.<br />

O<strong>de</strong>io meu professor <strong>de</strong> dança. Ele é pequeno e perverso como um rato, e<br />

anda como se estivesse segurando algo entre os joelhos, embora tenha-se <strong>de</strong><br />

admitir que, na pista, ele é melhor representando a mulher do que eu, seus<br />

passos perfeitos, suas mãos tão expressivas quanto borboletas.<br />

A minha humilhação já seria terrível o bastante mesmo sem o fato <strong>de</strong> que,<br />

na aulas <strong>de</strong> preparação para seu casamento, Plautilla e eu tenhamos <strong>de</strong> dançar<br />

com Tomaso e Luca. O repertório é gran<strong>de</strong> e precisamos <strong>de</strong>les como parceiros<br />

ou uma <strong>de</strong> nós duas teria <strong>de</strong> fazer o papel do homem, e apesar <strong>de</strong> eu ser a mais<br />

alta, também sou a mais <strong>de</strong>sastrada e quem mais precisa das aulas. Felizmente,<br />

Luca é tão <strong>de</strong>sajeitado quanto eu.<br />

— E Luca, você não ajuda nada só ficando aí. Precisa pegá-la e conduzi-la<br />

à sua volta.<br />

— Não posso. Seus <strong>de</strong>dos estão sujos <strong>de</strong> tinta. De qualquer jeito ela é alta<br />

<strong>de</strong>mais para mim.<br />

Parece que cresci <strong>de</strong> novo. Se não na realida<strong>de</strong>, então na imaginação do<br />

meu irmão. E ele vai chamar a atenção <strong>de</strong> todos para isso, para que todos riam<br />

<strong>de</strong> como isso me torna <strong>de</strong>selegante na pista <strong>de</strong> dança.<br />

— Não é verda<strong>de</strong>. Estou exatamente do mesmo tamanho que na semana<br />

passada.<br />

— Luca tem razão. — Tomaso não per<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> usar as palavras<br />

como dardos contra mim. — Ela cresceu. É como tentar dançar com uma girafa.<br />

— A gargalhada <strong>de</strong> Luca o incita. —Verda<strong>de</strong>. Até os olhos agora se parecem.<br />

Vejam... essas bolsas fundas e pretas com pestanas grossas como buxo.<br />

E embora chocante, também é engraçado, <strong>de</strong> modo que até o professor,<br />

que é pago para ser cordial conosco, não consegue conter o riso. Se eu não fosse<br />

o alvo, também riria, pois é inteligente o que disse sobre meus olhos. Todos<br />

tínhamos visto a girafa, é claro. Tinha sido o animal mais exótico que a nossa<br />

cida<strong>de</strong> já possuiu, um presente do sultão <strong>de</strong> não sei on<strong>de</strong> para o gran<strong>de</strong> Lorenzo.<br />

Vivia com os leões na casa dos bichos, atrás do Palazzo <strong>de</strong>lla Signoria, mas<br />

<strong>de</strong>sfilava em dias festivos, quando era levada à cida<strong>de</strong> do convento <strong>de</strong> freiras<br />

para que aquelas mulheres <strong>de</strong>votas casadas com Deus pu<strong>de</strong>ssem ver o prodígio<br />

<strong>de</strong> Sua mão na natureza. A nossa rua ficava no caminho para o convento, que se<br />

localizava no lado leste da cida<strong>de</strong> e, mais <strong>de</strong> uma vez, ficamos à janela do<br />

primeiro andar e observamos seu progresso atordoado, suas pernas vacilando


sobre o pavimento <strong>de</strong> pedras arredondadas. E tenho <strong>de</strong> admitir que seus olhos<br />

realmente se pareciam um pouco com os meus; fundos e escuros, gran<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>mais para o seu rosto e fimbriados <strong>de</strong> um buxo <strong>de</strong> cílios. Apesar <strong>de</strong> eu não ser<br />

tão estranha e tão alta a ponto <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ser comparada com ela.<br />

Houve um tempo em que um insulto como esse me faria chorar. Mas, à<br />

medida que ficava mais velha, a minha pele se enrijecia. Dançar é uma das<br />

muitas coisas em que eu <strong>de</strong>veria ser boa e não sou. Ao contrário <strong>de</strong> minha irmã.<br />

Plautilla move-se pela pista como água e canta como um canário, enquanto eu,<br />

que posso traduzir latim e grego mais rápido do que ela ou meus irmãos o lêem,<br />

sou <strong>de</strong>sastrada na pista <strong>de</strong> dança e tenho a voz <strong>de</strong> um corvo. Mas juro que se<br />

pintasse a escala o faria em um piscar <strong>de</strong> olhos: uma folha dourada brilhante<br />

para as notas agudas, caindo para tons <strong>de</strong> ocre e vermelho até o púrpura e o azul<br />

mais escuro.<br />

Mas hoje, sou salva <strong>de</strong> mais tormentos. Quando o professor começa a<br />

cantarolar as notas iniciais, as vibrações em seu pequeno nariz ressoando como<br />

uma mistura <strong>de</strong> marimbau com uma abelha raivosa, batem estrondosamente na<br />

porta principal, lá embaixo, e <strong>de</strong>pois há uma polvorosa <strong>de</strong> vozes e a velha<br />

Ludovica entra na sala, bufando e sorrindo largo.<br />

— Senhora Plautilla, chegou. O cassone <strong>de</strong> casamento chegou. A senhora<br />

e sua irmã Alessandra são chamadas ao quarto <strong>de</strong> sua mãe imediatamente.<br />

E então minhas pernas <strong>de</strong> girafa me levaram mais rápido do que as <strong>de</strong>la <strong>de</strong><br />

gazela. Há certas compensações em ser um varapau.<br />

Um caos, a confusão é total. A mulher na frente do grupo está<br />

cambaleando, uma mão agitando-se freneticamente à frente como se para se<br />

firmar. Ela está seminua, sua combinação diáfana ao redor das pernas, o pé<br />

esquerdo <strong>de</strong>scalço no piso <strong>de</strong> pedra. Em contraste, o homem do seu lado está<br />

completamente vestido. Tem uma perna particularmente bela e um gibão <strong>de</strong><br />

brocado ricamente bordado. Se olhamos com atenção, localizamos pérolas<br />

tremeluzindo no tecido. Seu rosto está perto do <strong>de</strong>la, os braços firmes ao redor<br />

da sua cintura, os <strong>de</strong>dos retesados para melhor segurarem seu corpo pen<strong>de</strong>nte.<br />

Apesar <strong>de</strong> haver violência na pose, há também graça, como se pu<strong>de</strong>ssem estar,<br />

também, dançando. À direita, um grupo <strong>de</strong> mulheres, elegantemente vestidas,<br />

abraçadas. Alguns dos homens já se infiltraram nesse grupo; um tem a mão no<br />

vestido <strong>de</strong> uma mulher, outro, os lábios tão perto dos <strong>de</strong>la que certamente estão<br />

se beijando. Reconheço um dos tecidos <strong>de</strong> riscas douradas <strong>de</strong> meu pai na sua<br />

saia e nas mangas elegantemente fendidas. Volto a atenção para a garota na<br />

frente. Ela é muito bonita para ser Plautilla (ele não se at<strong>rev</strong>eria a <strong>de</strong>spi-la, não é<br />

claro?), mas seu cabelo solto é mais louro do que o das outras, uma


transformação <strong>de</strong> cor pela qual minha irmã daria a vida para conseguir. Talvez<br />

tenha a intenção <strong>de</strong> que o homem seja Maurizio. Nesse caso, o retrato é uma<br />

peça flagrante <strong>de</strong> louvor à sua perna. Por algum tempo, nenhum <strong>de</strong> nós diz nada.<br />

— É uma obra impressionante. — A voz <strong>de</strong> minha mãe, quando<br />

finalmente se faz ouvir, é calma, mas não dando margem à divergência. — Seu<br />

pai vai ficar contente. Honra a nossa família.<br />

— Oh, é magnífico — gorjeia Plautilla, feliz, do seu lado.<br />

Eu não tenho tanta certeza. Acho a coisa toda, <strong>de</strong> certa maneira, vulgar.<br />

Para começar, a arca do casamento é gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais, parecendo mais um<br />

sarcófago. Apesar <strong>de</strong> ter uma certa <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, o estuque e a ornamentação são<br />

tão elaborados — não há espaço nenhum que não esteja coberto com folha <strong>de</strong><br />

ouro —, que enfraquecem o prazer da arte. Estou surpresa por minha mãe ter-se<br />

<strong>de</strong>ixado iludir <strong>de</strong>ssa maneira, embora, mais tar<strong>de</strong>, tenha percebido que o seu<br />

olhar era sutil, muito bem treinado para ler tanto a nuança <strong>de</strong> status quanto<br />

estética.<br />

— Isso me faz pensar se não <strong>de</strong>veríamos ter empregado Bartolommeo di<br />

Giovanni para a capela. Ele é muito mais experiente — cismou.<br />

— E muito mais caro — disse eu. — Papai teria sorte se conseguisse ver o<br />

altar pronto antes <strong>de</strong> morrer. Soube que ele quase não completou esta a tempo. E<br />

a maior parte <strong>de</strong>la foi pintada por seus aprendizes.<br />

— Alessandra! — ganiu minha irmã.<br />

— Oh, use os olhos, Plautilla. Veja quantas mulheres estão exatamente na<br />

mesma posição. É óbvio que as usaram para praticar <strong>de</strong>senho.<br />

Embora, mais tar<strong>de</strong>, achasse que Plautilla teve <strong>de</strong> me suportar durante a<br />

nossa infância, no momento tudo o que ela dizia parecia tão trivial ou idiota que<br />

também parecia natural eu espicaçá-la. E igualmente natural ela reagir.<br />

— Como po<strong>de</strong> dizer isso? Como po<strong>de</strong>? Ah! Mas mesmo que fosse<br />

verda<strong>de</strong>, não consigo imaginar alguém notando esse <strong>de</strong>talhe a não ser você.<br />

Mamãe tem razão, é muito bom. Certamente gosto muito mais do que se tivesse<br />

sido a história <strong>de</strong> Nastagio <strong>de</strong>gli Onesti. O<strong>de</strong>io a maneira como os cães a<br />

encurralam. Mas estas mulheres são bonitas. E suas roupas, perfeitas. A garota<br />

na frente é impressionante, não acha, mamãe? Soube que em toda arca <strong>de</strong><br />

casamento que Bartolommeo faz, há sempre uma figura que é baseada na noiva.<br />

Acho que é comovente como ela parece estar quase dançando.<br />

— Exceto que não está dançando. Está sendo violada.<br />

— Eu sei disso muito bem, Alessandra. Mas se você se lembra da história<br />

das sabinas, elas foram convidadas a um banquete, que se transformou em<br />

violação, que elas aceitaram com resignação. Esse é o propósito <strong>de</strong>ssa pintura. A<br />

cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Roma nasceu do sacrifício das mulheres.<br />

Pensei em respon<strong>de</strong>r, mas percebi o olhar <strong>de</strong> minha mãe. Mesmo em


particular, ela só tolerava discussões até um certo nível.<br />

— In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do tema, acho que temos <strong>de</strong> admitir que ele fez um<br />

excelente trabalho. Para a família toda. Sim, até mesmo para você, Alessandra.<br />

Estou surpresa que ainda não tenha percebido a sua própria figura na pintura.<br />

Olhei <strong>de</strong> volta para a arca.<br />

— Minha figura? On<strong>de</strong> me vê ali?<br />

— A garota do lado, à parte, envolvida em uma conversa tão séria com o<br />

rapaz. Admira-me como a sua conversa <strong>de</strong> filosofia parece manter a sua mente<br />

em coisas superiores — disse ela tranqüilamente. Baixei a cabeça admitindo a<br />

alfinetada. Minha irmã olhava fixamente a pintura, <strong>de</strong>satenta à nossa conversa.<br />

— Então, já <strong>de</strong>cidimos — a voz <strong>de</strong> minha mãe, clara e firme. — E uma<br />

bela peça. Devemos rezar para que o protegido <strong>de</strong> seu pai sirva à família meta<strong>de</strong><br />

tão bem.<br />

— Como vai indo o pintor, mamãe? — perguntei, passado algum tempo.<br />

— Ninguém o viu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que chegou.<br />

Ela relanceou os olhos para mim, rispidamente, e pensei em sua criada no<br />

pátio. Não, certamente não. O encontro tinha acontecido há semanas. Se ela<br />

tivesse me visto, eu teria sabido antes.<br />

— Acho que não tem sido fácil para ele. A cida<strong>de</strong> é ruidosa e<br />

<strong>de</strong>sagradável em comparação ao silêncio <strong>de</strong> sua abadia. Ele teve febre. Mas já se<br />

recuperou e pediu autorização para estudar algumas das igrejas e capelas da<br />

cida<strong>de</strong> antes <strong>de</strong> continuar com seus projetos.<br />

Baixei os olhos para evitar que ela percebesse a chama <strong>de</strong> interesse.<br />

— Ele po<strong>de</strong>ria ir conosco à missa — disse eu, como se pouco me<br />

interessasse. — De on<strong>de</strong> ficamos, ele teria uma visão melhor <strong>de</strong> alguns afrescos.<br />

Ao contrário <strong>de</strong> algumas famílias que freqüentavam somente uma igreja,<br />

nós éramos conhecidos por espalharmos nossos favores pela cida<strong>de</strong>. Isso tanto<br />

oferecia a meu pai a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver quanto <strong>de</strong> Florença estava usando seus<br />

tecidos mais recentes, quanto permitia à minha mãe se <strong>de</strong>leitar com a arte assim<br />

como comparar os sermões. Embora eu duvi<strong>de</strong> que qualquer um dos dois<br />

admitisse isso.<br />

— Alessandra, sabe muito bem que isso não seria conveniente.<br />

Provi<strong>de</strong>nciei para que fosse sozinho.<br />

A conversa tendo se <strong>de</strong>sviado <strong>de</strong> seu casamento, Plautilla tinha se<br />

<strong>de</strong>sinteressado e estava sentada na cama, passando as mãos sobre as cores do<br />

arco-íris do tecido, pondo-o sobre o peito ou colo para ver o efeito.<br />

— Oh, oh... Tem <strong>de</strong> ser este azul para o vestido. Tem <strong>de</strong> ser este. Não<br />

acha, mamãe?<br />

Viramos as duas para Plautilla, gratas, cada uma à sua maneira, pela<br />

interrupção. Era realmente um azul extraordinário, trespassado com o que


pareciam luzes metálicas. Embora um pouco mais claro, me lembra o<br />

ultramarino que os pintores usam para a roupa <strong>de</strong> Nossa Senhora, o pigmento<br />

cuidadosamente purificado do lápis-lazúli. A tintura do tecido é menos preciosa,<br />

mas não menos especial para mim, especialmente por seu nome: Alessandrina.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, como filha <strong>de</strong> um comerciante <strong>de</strong> tecidos, eu sabia mais<br />

do que a maioria sobre essas coisas, e sempre fui curiosa. Contam que quando<br />

eu tinha cinco ou seis anos, pedi a meu pai que me levasse ao lugar "<strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

vêm os cheiros". Era verão — disso me lembro —, perto <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> igreja e<br />

praça à margem do rio. Os tintureiros formaram uma favela só <strong>de</strong>les, as ruas<br />

escuras e apinhadas <strong>de</strong> barracos, muitos oscilando na beira da água. Havia<br />

crianças para tudo que é lado, seminuas, respingadas <strong>de</strong> lama e raiadas da cor<br />

dos tonéis que mexiam. O capataz do trabalho do meu pai parecia o Diabo:<br />

partes <strong>de</strong> seu rosto e braços estavam enrugados on<strong>de</strong> a água fervendo o<br />

queimara. Outros, eu me lembro, tinham rabiscado padrões em suas peles,<br />

<strong>de</strong>pois esfregado corantes diferentes nos ferimentos, <strong>de</strong> modo que seus corpos<br />

eram marcados <strong>de</strong> sinais brilhantes. Pareciam-se com uma tribo <strong>de</strong> uma terra<br />

paga. Apesar <strong>de</strong> seu trabalho manter a cida<strong>de</strong> cheia <strong>de</strong> cores, eram as pessoas<br />

mais pobres que eu já vira. Até mesmo o mosteiro que <strong>de</strong>u seu nome ao distrito,<br />

Santa Croce, abrigava franciscanos, que escolhem as áreas mais miseráveis on<strong>de</strong><br />

construir suas igrejas.<br />

O que meu pai sentia em relação a eles eu nunca soube. Embora fosse<br />

muito severo com meus irmãos, ele não era um homem insensível. Os livrosrazões<br />

<strong>de</strong> sua firma incluíam uma conta em nome <strong>de</strong> Deus, por meio da qual ele<br />

dava esmolas generosas a instituições <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, e, em anos recentes, tinha<br />

financiado duas janelas <strong>de</strong> vitrais na nossa igreja <strong>de</strong> Sant'Ambrogio. Certamente<br />

o salário que pagava não era pior do que o <strong>de</strong> qualquer outro comerciante. Mas<br />

não lhe cabia minorar a pobreza. Em nossa gran<strong>de</strong> República, o homem faz a<br />

própria fortuna com a graça <strong>de</strong> Deus e trabalho árduo, e se outros não eram tão<br />

afortunados, o problema era <strong>de</strong>les, e não seu.<br />

Ainda assim, algo <strong>de</strong> sua miséria <strong>de</strong>ve ter-me infectado durante essa<br />

visita, pois apesar <strong>de</strong> crescer ansiando pelas cores do armazém, também não me<br />

esquecia dos cal<strong>de</strong>irões, do vapor emitido pelo calor, como cal<strong>de</strong>iras do inferno<br />

on<strong>de</strong> ferviam pecadores. E não pedi para voltar lá.<br />

Minha irmã, entretanto, não tinha essas imagens para anuviar o prazer do<br />

pano e, nesse momento, estava mais interessada em como o azul po<strong>de</strong>ria<br />

complementar a protuberância <strong>de</strong> seus seios. Às vezes, acho que quando chegar<br />

a sua noite <strong>de</strong> núpcias, ela vai sentir mais prazer com a sua camisola do que com<br />

o corpo <strong>de</strong> seu marido. Eu me pergunto o quanto isso incomodará Maurizio. Eu<br />

só o vi uma vez. Pareceu um sujeito robusto o bastante, com alguma capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> rir e força, mas não <strong>de</strong>monstrou pensar muito. Bem, é claro que assim <strong>de</strong>ve


ser melhor. O que sei eu? Parecem satisfeitos um com o outro.<br />

— Plautilla, por que não <strong>de</strong>ixamos isso, por enquanto? — disse minha<br />

mãe calmamente, afastando os tecidos e suspirando levemente. — A tar<strong>de</strong> está<br />

particularmente quente hoje e um pouco <strong>de</strong> sol no seu cabelo po<strong>de</strong> clareá-lo para<br />

um tom muito bonito. Por que não vai para o terraço com seu bordado?<br />

Minha irmã ficou confusa. Apesar <strong>de</strong> se saber que jovens elegantes se<br />

estragavam regularmente ao sol, na tentativa vã <strong>de</strong> transformar t<strong>rev</strong>a em luz,<br />

essa era uma vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que suas mães supostamente não teriam conhecimento.<br />

— Oh, não fique tão surpresa. Já que fará isso in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do que penso,<br />

parece mais fácil eu dar a minha bênção. De qualquer jeito, em b<strong>rev</strong>e não terá<br />

mais tempo para esses preciosismos.<br />

Minha mãe tinha adquirido, recentemente, o hábito <strong>de</strong> dizer coisas <strong>de</strong>sse<br />

tipo: como se, <strong>de</strong> alguma maneira, toda a vida natural para Plautilla fosse<br />

terminar com seu casamento. A própria Plautilla parecia achar essa perspectiva<br />

excitante, embora tenho <strong>de</strong> confessar que a mim <strong>de</strong>ixava em pânico. Ela emitiu<br />

um b<strong>rev</strong>e ganido <strong>de</strong> <strong>de</strong>leite e se agitou pelo quarto à procura <strong>de</strong> seu chapéu <strong>de</strong><br />

sol. Quando o encontrou, levou um tempo interminável para ajustá-lo, puxando<br />

o cabelo para fora, pelo buraco no meio, para se certificar <strong>de</strong> que seu rosto<br />

estivesse na sombra enquanto o cabelo ficasse exposto ao sol. Depois, segurou<br />

as saias e saiu rapidamente. Se alguém tentasse pintar a sua saída, teria <strong>de</strong> lançar<br />

faixas <strong>de</strong> seda ou gaze ao redor <strong>de</strong> seu corpo para sugerir o vento em seu<br />

movimento rápido, como eu tinha visto alguns artistas fazerem. Ou isso ou lhe<br />

dar asas <strong>de</strong> pássaros. Observamos Plautilla sair. Tive a impressão <strong>de</strong> que isso<br />

<strong>de</strong>ixou minha mãe triste. Levou um momento antes <strong>de</strong> se virar para mim, o que<br />

significa que apreendi o brilho em seus olhos tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais.<br />

— Acho que vou junto com ela. — Levantei-me da ca<strong>de</strong>ira.<br />

— Não seja ridícula. Você o<strong>de</strong>ia sol, Alessandra, e, <strong>de</strong> qualquer maneira,<br />

seu cabelo é negro com as asas <strong>de</strong> um corvo. Seria melhor tingi-lo, se quisesse<br />

clareá-lo, o que duvido.<br />

Percebi seus olhos <strong>de</strong>slizarem para meus <strong>de</strong>dos sujos <strong>de</strong> tinta, e os dobrei<br />

rapidamente.<br />

— E quando foi a última vez que cuidou das suas mãos? — A minha<br />

aparência era uma das muitas coisas em mim que a punham à prova, — Oh,<br />

você é impossível. Mandarei Erila nesta tar<strong>de</strong>. Limpe-as antes <strong>de</strong> se <strong>de</strong>itar, está<br />

ouvindo? E agora espere aqui. Quero falar com você.<br />

— Mas mamãe...<br />

— Espere!


Três<br />

PREPAREI-ME PARA O SERMÃO. Quantas vezes eu tinha estado nessa<br />

situação? Nunca resolveríamos isso, ela e eu. Eu quase morri ao nascer. Ela<br />

quase morreu me dando à luz. Por fim, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dois dias <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> parto,<br />

eu fui tirada com fórceps, nós duas gritando o tempo todo. O mal causado ao seu<br />

corpo significou que não teria mais filhos. O que, por sua vez, queria dizer que<br />

ela me amava tanto pela minha pequenez quanto por sua perda da fertilida<strong>de</strong>, e<br />

muito antes <strong>de</strong> ela começar a ver algo seu em mim, o vínculo entre nós duas já<br />

era muito forte. Certa vez lhe perguntei por que eu não tinha morrido, como<br />

tantos outros bebês <strong>de</strong> que tinha ouvido falar. "Porque Deus quis assim. E<br />

porque ele lhe <strong>de</strong>u uma curiosida<strong>de</strong> e um espírito que a fizeram <strong>de</strong>terminada a<br />

sob<strong>rev</strong>iver, aconteça o que acontecer."<br />

— Alessandra, você já <strong>de</strong>ve saber que seu pai começou a conversar com<br />

possíveis maridos.<br />

Senti meu sangue gelar ao ouvir essas palavras.<br />

— Mas como... eu ainda nem sangro! Ela franziu o cenho.<br />

—Tem certeza?<br />

— Como você não saberia? Maria verifica minha roupa. É um fato que<br />

dificilmente eu po<strong>de</strong>ria escon<strong>de</strong>r.<br />

— Ao contrário <strong>de</strong> outras coisas — e a sua voz era tranqüila. Ergui os<br />

olhos. Mas não havia sinal <strong>de</strong> que ela prosseguiria. — Sabe que a protegi<br />

durante muito tempo, Alessandra. Não posso continuar fazendo isso para<br />

sempre.<br />

Falou com tal gravida<strong>de</strong> que quase me assustou. Olhei para ela<br />

procurando uma orientação sobre como continuaríamos essa conversa, mas ela<br />

não me <strong>de</strong>u nenhuma.<br />

— Bem — disse eu, com mau humor —, me parece que se não queriam<br />

que eu fosse assim, não <strong>de</strong>veriam ter permitido.<br />

— E o que po<strong>de</strong>ríamos ter feito? — replicou ela, <strong>de</strong>licadamente. —<br />

Afastá-la dos livros, tirar suas penas <strong>de</strong> você? Castigá-la por isso? Você foi<br />

amada <strong>de</strong>mais cedo <strong>de</strong>mais, filha. Não receberia bem esse tipo <strong>de</strong> tratamento. De<br />

qualquer maneira, sempre foi tão obstinada. No fim, pareceu mais fácil mantê-la<br />

ocupada enviando-a aos preceptores <strong>de</strong> seus irmãos. — Ela <strong>de</strong>u um suspiro. Ela<br />

<strong>de</strong>via ter-se dado conta <strong>de</strong> que a solução tinha-se <strong>rev</strong>elado tão embaraçosa<br />

quanto o problema. — Em vez <strong>de</strong>les, foi você que se mostrou tão entusiasmada.<br />

— Não creio que eles agra<strong>de</strong>ceriam por isso.


— É porque você ainda tem <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r o po<strong>de</strong>r da humilda<strong>de</strong> — disse<br />

ela, <strong>de</strong>ssa vez mais rispidamente. — Como discutimos antes, essa <strong>de</strong>ficiência<br />

fica muito visível em uma jovem. Quem sabe, se você passasse tanto tempo<br />

rezando quanto passa estudando.<br />

— Foi assim com você, mãe? Ela riu.<br />

— Não, Alessandra. No meu caso, minha família pôs um ponto final em<br />

qualquer tentação <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>.<br />

Ela raramente se referia à sua infância, mas todos nós sabíamos as<br />

histórias: como as crianças, meninos e meninas, tinham sido educadas juntas por<br />

or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> um pai escolástico comprometido com a erudição. Como o seu irmão<br />

mais velho tinha sido educado para se tornar um gran<strong>de</strong> erudito, protegido pelos<br />

Medici e vivendo <strong>de</strong> seu patronato, isto possibilitou às irmãs fazerem bons<br />

casamentos com comerciantes que aceitaram sua instrução fora do comum<br />

quando convencidos por seus dotes generosos.<br />

— Quando eu tinha a sua ida<strong>de</strong>, era ainda menos aceito uma jovem<br />

possuir tal cultura. Se não fosse a fama <strong>de</strong> meu irmão, eu talvez tivesse<br />

problemas para encontrar marido.<br />

— Mas se o meu nascimento foi vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, então você sempre<br />

esteve <strong>de</strong>stinada a se casar com papai.<br />

— Oh, Alessandra. Por que sempre faz isso?<br />

— Faço o quê?<br />

— Leva seus pensamentos para mais longe do que precisam ou <strong>de</strong>vem ir.<br />

— Mas é a lógica.<br />

— Não, filha. Essa é a questão. Não é lógico. O que você faz é mais<br />

audacioso: questionar coisas tão profundas e coerentes na natureza <strong>de</strong> Deus. De<br />

qualquer maneira, essa lógica humana é imperfeita para compreendê-las.<br />

Eu não disse nada. A tempesta<strong>de</strong>, que não me era <strong>de</strong>sconhecida, passaria<br />

mais rápido se eu não contestasse.<br />

— Não acho que tenha aprendido isso com seus preceptores. — Ela <strong>de</strong>u<br />

um suspiro, e eu senti que a sua exasperação comigo era intensa, embora ainda<br />

não soubesse por quê. — Deve saber que Maria encontrou <strong>de</strong>senhos em uma<br />

caixa <strong>de</strong>baixo da sua cama.<br />

Ah, então era isso. Sem dúvida ela tinha se <strong>de</strong>parado com eles quando<br />

buscava panos escondidos, sujos <strong>de</strong> sangue. Revi a caixa em minha mente,<br />

tentando p<strong>rev</strong>er aon<strong>de</strong> sua raiva ia cair.<br />

— Ela está convencida <strong>de</strong> que você <strong>de</strong>ve ter perambulado pela cida<strong>de</strong> sem<br />

uma acompanhante.<br />

— Oh! Mas isso é impossível. Como eu po<strong>de</strong>ria? Ela nunca me per<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

vista.<br />

— Ela diz que há esboços <strong>de</strong> edifícios que ela nunca viu e imagens <strong>de</strong>


leões <strong>de</strong>vorando um menino na Piazza <strong>de</strong>lla Signoria.<br />

— E daí? Ela e eu saímos juntas no feriado. Você sabe disso. Todos<br />

vimos os leões. Antes <strong>de</strong> matarem o bezerro, um domador ficou na jaula com<br />

eles, que não o tocaram. Então, alguém nos contou, talvez Erila, como um<br />

menino tinha entrado na jaula um ano antes, quando todos tinham ido para casa,<br />

e sido morto. Maria com certeza se lembra disso. Ela <strong>de</strong>smaiou com a notícia.<br />

—Talvez. Mas o fato é que ela sabe que você não po<strong>de</strong>ria ter <strong>de</strong>senhado<br />

tudo isso ali mesmo.<br />

— É claro que não. Fiz alguns esboços <strong>de</strong>pois. Mas eram horríveis. No<br />

fim, tive <strong>de</strong> copiar os leões <strong>de</strong> uma imagem no Livro das horas. Embora eu<br />

tenha certeza <strong>de</strong> que seus membros não estão corretos.<br />

— Qual era a lição?<br />

— O quê?<br />

— A lição. No Livro das horas... em que havia os leões.<br />

— Bem... Daniel? — respondi <strong>de</strong> maneira pouco convincente.<br />

— Lembra-se da imagem, mas não da lição. Oh, Alessandra. — Ela<br />

sacudiu a cabeça. — E os edifícios?<br />

— São da minha cabeça mesmo. Quando eu teria tempo para <strong>de</strong>senhá-los?<br />

— disse calmamente. — Simplesmente juntei pedaços do que me lembrava.<br />

Ela me olhou fixo por um instante e não sei bem se eu ou ela sabíamos o<br />

que ela estava sentindo. Ela tinha sido a primeira a reconhecer a minha<br />

facilida<strong>de</strong> com a pena, quando eu era tão pequena que eu própria mal percebia<br />

isso. Aprendi sozinha a <strong>de</strong>senhar copiando todas as pinturas votivas na casa e,<br />

durante anos, a minha paixão foi um segredo entre nós duas, até eu ter ida<strong>de</strong><br />

suficiente para apreciar a natureza da discrição. Para meu pai, uma coisa era ser<br />

indulgente com uma criança precoce no esboço ocasional da Virgem, outra, bem<br />

diferente, era ter uma filha crescida tão obcecada que vasculhava a cozinha atrás<br />

<strong>de</strong> ossos <strong>de</strong> frango para moê-los e obter pó <strong>de</strong> buxo ou rêmiges <strong>de</strong> gansos para<br />

uma dúzia <strong>de</strong> penas <strong>de</strong> esc<strong>rev</strong>er novas. A arte podia ser um caminho para Deus,<br />

e também um distintivo para um comerciante, mas <strong>de</strong> jeito nenhum um<br />

passatempo para uma jovem <strong>de</strong> boa família. Recentemente, Erila tinha-se<br />

tornado minha cúmplice. O que minha mãe achava, eu não fazia mais idéia. Dois<br />

anos antes, quando eu estava tropeçando na habilida<strong>de</strong> com a ponta <strong>de</strong> prata —<br />

o estilo tão pontiagudo e duro que não <strong>de</strong>ixa espaço para erros do olho ou da<br />

mão —, ela havia pedido para ver minhas tentativas. Tinha-as examinado por<br />

algum tempo, <strong>de</strong>pois as <strong>de</strong>volvido sem dizer uma palavra. Uma semana <strong>de</strong>pois,<br />

encontrei uma cópia do Tratado sobre a técnica, <strong>de</strong> Cennino Cennini, na arca<br />

<strong>de</strong>baixo da minha cama. Minha mão tornou-se muito mais firme <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, se<br />

bem que nenhuma <strong>de</strong> nós se referiu <strong>de</strong> novo ao presente.<br />

Ela <strong>de</strong>u um suspiro.


— Muito bem. Não vamos mais falar sobre isso — fez uma pausa. —<br />

Tenho outra coisa a dizer. O pintor pediu para fazer um esboço seu.<br />

E senti uma pequena explosão em alguma parte <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim.<br />

— Como eu disse, ele visitou igrejas. E com o que viu, está pronto para<br />

prosseguir. Ele já fez o retrato <strong>de</strong> seu pai. Eu estou ocupada <strong>de</strong>mais com o<br />

casamento <strong>de</strong> Plautilla para per<strong>de</strong>r tempo com ele agora, <strong>de</strong> modo que ele tem <strong>de</strong><br />

se voltar para as crianças. Pediu que você fosse a primeira. Suponho que você<br />

não faça idéia do motivo, estou certa?<br />

Olhei diretamente para ela e sacudi a cabeça. Po<strong>de</strong> parecer estranho, mas<br />

isso fez uma gran<strong>de</strong> diferença para mim na época, não usar palavras para mentir<br />

para ela.<br />

— Ele instalou um estúdio provisório na capela. Disse que tem <strong>de</strong> vê-la<br />

no fim da tar<strong>de</strong>, que essa é a luz correta. Insistiu muito nisso. E você levará<br />

Lodovica e Maria junto.<br />

— Mas...<br />

— Não tem o que discutir, Alessandra. Levará junto as duas. Você não<br />

estará lá para distraí-lo nem <strong>de</strong>bater pontos mais importantes da filosofia<br />

platônica. Em cujo tema acho que, <strong>de</strong> qualquer maneira, haveria uma diferença<br />

<strong>de</strong> linguagem.<br />

E embora suas palavras fossem severas, o tom era mais gentil, o que fez<br />

eu me sentir <strong>de</strong> novo à vonta<strong>de</strong>. O que, evi<strong>de</strong>ntemente, significou que eu<br />

calculara errado o risco. Mas com quem mais eu po<strong>de</strong>ria conversar sobre isso,<br />

quando o assunto se tornava tão iminente?<br />

— Sabe, mamãe. Tenho esse sonho às vezes. Devo ter tido umas cinco ou<br />

seis vezes.<br />

— Espero que seja algo pio.<br />

—Na verda<strong>de</strong>, é. Sonho... bem, sonho que, por mais estranho que pareça,<br />

não me caso com ninguém. Em vez disso, você e papai <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m que <strong>de</strong>vo ir para<br />

esse convento...<br />

— Oh, Alessandra, não seja boba. Você não tem aptidão para um<br />

convento. As regras a encarquilhariam rapidinho. E claro que sabe disso.<br />

— Não... sim, mas, mas no meu sonho, esse convento é diferente. Nesse<br />

convento, as freiras po<strong>de</strong>m celebrar Deus <strong>de</strong> maneira diferente...<br />

— Não, Alessandra Cecchi. Não vou dar atenção a isso. Se acha que o seu<br />

mau comportamento nos obrigará a mudar <strong>de</strong> opinião em relação a um marido<br />

está muito enganada.<br />

Pronto, ali estava o começo <strong>de</strong> sua raiva, como o jato <strong>de</strong> uma fonte quente<br />

emergindo da terra.<br />

— Você é uma criança teimosa e, às vezes, extremamente <strong>de</strong>sobediente, e<br />

apesar do que eu disse, gostaria <strong>de</strong> tê-la refreado cedo, porque isso não fará bem


a nenhuma <strong>de</strong> nós. — Deu um suspiro. — No entanto, acharemos uma saída.<br />

Usarei a palavra <strong>de</strong> que temos falado com freqüência. Dever. O seu <strong>de</strong>ver com a<br />

família. O seu pai agora é um homem rico, com um registro <strong>de</strong> serviço público<br />

para o estado. Ele tem dinheiro para um dote que nos honrará e dará prestígio.<br />

Quando ele encontrar o homem certo, você se casará com ele. Está claro? É a<br />

melhor coisa que uma mulher po<strong>de</strong> fazer, casar-se e ter filhos. Não vai <strong>de</strong>morar<br />

a saber disso. — Levantou-se. —Venha. Chega <strong>de</strong> falar sobre isso. Tenho muito<br />

o que fazer. Seu pai falará com você quando tivermos feito uma escolha. Então,<br />

<strong>de</strong>pois disso, não acontecerá nada por algum tempo. Por algum tempo — repetiu<br />

baixinho. — Mas <strong>de</strong>ve saber que não posso mantê-lo conversando para sempre.<br />

Agarrei o ramo da oliveira sofregamente.<br />

— Nesse caso, faça com que escolha alguém que, pelo menos,<br />

compreenda — eu disse e olhei diretamente em seus olhos.<br />

— Oh, Alessandra... — Ela sacudiu a cabeça. — Não sei se isso será<br />

possível.


Quatro<br />

FIQUEI EMBURRADA DURANTE TODO O JANTAR, punindo Maria com<br />

meus silêncios e indo cedo para o quarto, on<strong>de</strong> puxei uma ca<strong>de</strong>ira e a firmei<br />

contra a porta, e remexi na arca do meu guarda-roupa. Era importante guardar<br />

tesouros em vários lugares. Se uma única parte for <strong>de</strong>scoberta, restará outra.<br />

Enrolado sob minhas combinações, no fundo da arca, estava um <strong>de</strong>senho, <strong>de</strong><br />

tamanho natural, a bico-<strong>de</strong>-pena sobre papel <strong>de</strong> cor clara.<br />

Para esse, a minha primeira obra consistente, eu tinha escolhido o<br />

primeiro estágio da Anunciação. Nossa Senhora é pega <strong>de</strong> surpresa pelo Anjo, e<br />

seu espanto e aflição se <strong>rev</strong>elam na maneira como suas mãos volteiam seu corpo<br />

e seu torso se contorce, como num vôo, como se os dois, ela e Gabriel,<br />

estivessem sendo puxados por fios invisíveis para perto e para longe um do<br />

outro. É um tema popular, em parte porque a força do movimento dos dois é um<br />

<strong>de</strong>safio para o bico-<strong>de</strong>-pena, mas me i<strong>de</strong>ntifico com ele principalmente por<br />

causa da inquietação flagrante <strong>de</strong> Nossa Senhora — embora os últimos estágios<br />

<strong>de</strong> submissão e graça sejam os que meus preceptores sempre me impusessem<br />

para estudo espiritual.<br />

Para o cenário, eu tinha usado o meu próprio quarto suntuoso, o marco da<br />

janela atrás para enfatizar a perspectiva. Foi, eu acho, uma boa escolha. A<br />

maneira como o sol atravessa o vidro em uma <strong>de</strong>terminada hora do dia é tão bela<br />

que nos faz acreditar que Deus realmente é conduzido em seus raios. Uma vez,<br />

fiquei horas esperando o Espírito Santo se <strong>rev</strong>elar para mim; os olhos fechados,<br />

minha alma aquecida na luz, o sol como um raio <strong>de</strong> santida<strong>de</strong> perfurando minhas<br />

pálpebras. Mas, em vez da <strong>rev</strong>elação divina, tudo o que consegui foi o baque da<br />

batida do meu coração e a coceira incessante da picada <strong>de</strong> um mosquito.<br />

Continuei obstinadamente — e, agora, me recordo disso quase com excitação —<br />

não beatificada.<br />

Mas a minha Madona é mais merecedora. Ela está ascen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> seu<br />

trono, as mãos erguendo-se, como pássaros nervosos, para se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r do vento<br />

impetuoso provocado pela chegada <strong>de</strong> Deus, a virgem jovem, perfeita,<br />

perturbada enquanto orava. Tomei todo o cuidado com o vestuário dos dois<br />

(embora gran<strong>de</strong> parte do mundo estivesse fechada para mim, pelo menos os<br />

tecidos e a moda eu podia estudar à vonta<strong>de</strong>). Gabriel está usando uma camisa<br />

comprida do tecido <strong>de</strong> algodão mais caro <strong>de</strong> meu pai, a sua cor creme suave<br />

caindo dos ombros em milhares <strong>de</strong> pregas minúsculas, juntando-se frouxamente<br />

na cintura, o material leve o bastante para acompanhar a velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus<br />

membros. Fiz Nossa Senhora muito elegante, as mangas com fenda no cotovelo


para mostrar sua camisa projetando-se, a cintura alta e enfaixada, e sua saia <strong>de</strong><br />

seda caindo em uma cascata <strong>de</strong> pregas em volta <strong>de</strong> suas pernas e pelo chão.<br />

Quando o esboço estivesse pronto, começaria a trabalhar o sombreado e<br />

os claros, usando diversos graus <strong>de</strong> solução <strong>de</strong> nanquim e uma aguada <strong>de</strong><br />

alvaia<strong>de</strong> aplicada com pincel. Erros nesse estágio não serão facilmente<br />

corrigidos, e a minha mão está instável por causa da minha gran<strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong>.<br />

Estava me tornando <strong>de</strong>cididamente mais simpática ao empenho dos aprendizes<br />

nas oficinas <strong>de</strong> Bartolommeo. Para me dar um pouco <strong>de</strong> tempo, estava<br />

preenchendo os azulejos do chão no plano mais afastado para praticar a minha<br />

perícia com a perspectiva, quando a maçaneta da porta se moveu e a ma<strong>de</strong>ira<br />

bateu na ca<strong>de</strong>ira.<br />

— Ainda não... — puxei um lençol da cama e o joguei sobre o <strong>de</strong>senho.<br />

— Não estou... vestida.<br />

Uma vez, alguns meses antes, Tomaso tinha-me <strong>de</strong>scoberto ali e<br />

"aci<strong>de</strong>ntalmente" <strong>de</strong>rrubado a garrafa <strong>de</strong> óleo <strong>de</strong> linhaça, que uso para fazer<br />

papel fino para esboços, em um pilão com pó <strong>de</strong> alvaia<strong>de</strong> que Erila tinha<br />

conseguido para mim na loja do boticário. O silêncio <strong>de</strong> Tomaso foi comprado<br />

ao preço <strong>de</strong> minhas traduções dos poemas <strong>de</strong> Ovídio que ele tinha dificulda<strong>de</strong><br />

em fazer. Mas agora não era Tomaso. Por que per<strong>de</strong>ria a noite me atormentando<br />

quando podia estar se embonecando para as mulheres das ruas, com seus sapatos<br />

<strong>de</strong> salto alto, chamando a atenção dos rapazes. Dava para escutá-lo lá em cima,<br />

as tábuas rangendo sob seus pés enquanto, sem dúvida, p<strong>rev</strong>aricava sobre que<br />

cor <strong>de</strong> meia combinaria melhor com a sua nova túnica que o costureiro acabara<br />

<strong>de</strong> entregar.<br />

Desenganchei o espaldar da ca<strong>de</strong>ira e Erila entrou, com uma tigela em<br />

uma das mãos e uma pilha <strong>de</strong> bolos <strong>de</strong> amêndoa na outra. Ignorando o <strong>de</strong>senho<br />

— apesar <strong>de</strong> ser minha cúmplice, é melhor para ela fingir que não —,<br />

acomodou-se na cama, distribuiu os bolos e puxou minhas mãos, mexendo a<br />

massa <strong>de</strong> limão e açúcar e a aplicando, bem espessa, em minha pele.<br />

— Então. O que aconteceu? Maria <strong>de</strong>latou você?<br />

— Mentiu, isso sim. Ai... Cuidado... me cortei aí.<br />

— Estão horríveis. Sua mãe disse que se não estiverem brancas até<br />

domingo, vai obrigá-la a usar luvas <strong>de</strong> camurça durante uma semana.<br />

Deixei-a trabalhar por algum tempo. Adoro a sensação <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>dos nas<br />

palmas <strong>de</strong> minhas mãos, e gosto mais ainda do fabuloso contraste <strong>de</strong> sua pele<br />

preto-azeviche contra a minha, se bem que sempre exija muito do meu<br />

suprimento <strong>de</strong> carvão quando a <strong>de</strong>senho.<br />

Ela diz que não se lembra <strong>de</strong> nada <strong>de</strong> sua terra natal na África do Norte,<br />

exceto o fato <strong>de</strong> o sol ser maior e as laranjas, mais doces. A sua história po<strong>de</strong>ria<br />

ser o material <strong>de</strong> um Homero mo<strong>de</strong>rno. Ela foi levada a Veneza com sua mãe,


quando tinha, ela acha, cinco ou seis anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, e vendida no mercado <strong>de</strong><br />

escravos a um mercador florentino cujos negócios tinham falido quando per<strong>de</strong>u<br />

três navios que vinham das índias. Meu pai a adquirira como pagamento <strong>de</strong> uma<br />

dívida. Eu ainda era um bebê quando ela chegou e ficou encarregada <strong>de</strong> cuidar<br />

<strong>de</strong> Plautilla e <strong>de</strong> mim, às vezes, o que era mais fácil do que o trabalho manual<br />

que logo a <strong>de</strong>struiria. Tinha uma inteligência sutil misturada com bom senso, e<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a minha mais tenra infância, tanto era capaz <strong>de</strong> me disciplinar quanto <strong>de</strong><br />

me divertir. Acho que minha mãe viu nela a resposta para as suas orações,<br />

quando se tratava <strong>de</strong> moldar a sua filha especial, e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, tornou-se<br />

minha. Mas, na verda<strong>de</strong>, ninguém era dono <strong>de</strong> Erila. Embora, pela lei, ela fosse<br />

proprieda<strong>de</strong> do meu pai e ele pu<strong>de</strong>sse fazer o que quisesse com ela, Erila sempre<br />

manteve uma in<strong>de</strong>pendência e um movimento secreto como os <strong>de</strong> um gato,<br />

errando pela cida<strong>de</strong> e trazendo os boatos que corriam como frutas frescas e<br />

fazendo dinheiro com a sua venda. Era a minha melhor amiga na casa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

me lembro <strong>de</strong> mim mesma, e meus olhos e ouvidos em todos os lugares a que<br />

não podia ir.<br />

— Então. Conseguiu?<br />

— Talvez sim, talvez não.<br />

— Oh, Erila! — Mas eu sabia que não <strong>de</strong>via pressioná-la. Ela <strong>de</strong>u um<br />

sorriso largo.<br />

— Agora, aí vai uma boa. Hoje, enforcaram um homem na Porta di<br />

Giustizia. Um assassino. Cortou a amante em pedacinhos. Depois <strong>de</strong> ele se<br />

balançar por meia hora, o baixaram e o colocaram na carroça da morte, on<strong>de</strong> ele<br />

voltou a se sentar e se queixou <strong>de</strong> muita dor na garganta, e pediu um copo <strong>de</strong><br />

água.<br />

— Não! O que eles fizeram?<br />

— Levaram-no para o hospital, on<strong>de</strong> está sendo alimentado com pão<br />

molhado no leite, até po<strong>de</strong>r engolir <strong>de</strong> novo e ser enforcado <strong>de</strong> novo.<br />

— Não! O que a multidão fez?<br />

Ela <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros.<br />

— Gritaram, ficaram instigando-o aos berros. Mas então, um dominicano<br />

gordo, com uma cara <strong>de</strong> pedra-pomes, apareceu com um sermão sobre como<br />

Florença era uma fossa tão cheia <strong>de</strong> perversida<strong>de</strong>s que os celerados floresciam<br />

enquanto os bons sofriam.<br />

— Mas e se não fosse um celerado? Quer dizer, e se isso fosse um<br />

exemplo da misericórdia infinita <strong>de</strong> Deus, mesmo para os pecadores mais<br />

torpes? Oh, queria estar lá para ver! O que você acha?<br />

— Eu? — riu. — Acho que o carrasco <strong>de</strong>u o nó errado. Pronto, acabei. —<br />

Segurou minhas mãos, examinando sua obra. Estavam limpas pela primeira vez<br />

em dias, as unhas reluzindo e rosas, porém o quanto mais branca estava a minha


pele era difícil dizer.<br />

— Tome. — De seu bolso, pegou um pequeno frasco <strong>de</strong> tinta nanquim<br />

(que meus irmãos usavam em seus estudos, durante um mês, e que se acabavam<br />

em meus <strong>de</strong>senhos em uma semana) e um pincel fino <strong>de</strong> pêlos brancos <strong>de</strong><br />

arminho, <strong>de</strong>licados o bastante para acrescentar os claros ao rosto e roupa <strong>de</strong><br />

Nossa Senhora. Joguei meus braços em volta do seu pescoço.<br />

— Humm. Tem sorte. Eu os consegui baratos. Mas só os use <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

domingo. Ou serei eu a ficar encrencada.<br />

Depois que ela se foi, fiquei pensando no homem e no laço, e em como alguém<br />

podia distinguir a misericórdia divina <strong>de</strong> um nó mal dado, ou se seriam a mesma<br />

coisa. Pedi perdão a Deus para o caso <strong>de</strong> esses pensamentos serem impuros,<br />

<strong>de</strong>pois recorri à Virgem para interce<strong>de</strong>r em meu favor, para fazer minha mão<br />

mais firme para capturar a sua bonda<strong>de</strong> no papel. Eu ainda estava acordada<br />

quando Plautilla abriu o dossel e se arrastou para a cama, exalando o cheiro forte<br />

<strong>de</strong> óleo para cabelo, generosamente aplicado para neutralizar o ressecamento<br />

pelo sol. Disse sua oração a meia voz, uma litania rápida que parecia mais sobre<br />

palavras do que sentimentos, não obstante, perfeita, <strong>de</strong>pois se acomodou, me<br />

empurrando para o lado para ficar com a maior parte da cama. Esperei até sua<br />

respiração ficar regular e a empurrei <strong>de</strong> volta ao lugar.<br />

Depois <strong>de</strong> algum tempo, ouvi uma multidão <strong>de</strong> mosquitos. O cheiro do<br />

seu óleo estava em toda parte, como mel para a abelha. P<strong>rev</strong>alecia sobre os<br />

incensos <strong>de</strong> ervas pendurados no teto. Estendi a mão para pegar o frasco <strong>de</strong><br />

citronela que guardava <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> meu travesseiro e a passei em minhas mãos e<br />

rosto.<br />

Zzzz.... zzzz... zap. Um mosquito pousou no pulso branco e roliço <strong>de</strong><br />

minha irmã. Observei-o se acomodar confortavelmente, antes <strong>de</strong> mor<strong>de</strong>r sua<br />

pele. Imaginei-o sugando seu sangue como um gran<strong>de</strong> gole <strong>de</strong> água, <strong>de</strong>pois se<br />

soltando <strong>de</strong> seu corpo, zumbindo janela afora, voando através da cida<strong>de</strong> até a<br />

casa <strong>de</strong> Maurizio, on<strong>de</strong> entraria em seu quarto, <strong>de</strong>scobriria uma parte <strong>de</strong> seu<br />

corpo exposta, penetrando fundo em sua pele, e o sangue dos dois amantes seria<br />

misturado instantaneamente. O po<strong>de</strong>r da idéia foi quase insuportável, mesmo se<br />

tratando <strong>de</strong> dois simplórios como Plautilla e Maurizio. Mas se isso fosse<br />

possível — e tendo feito um estudo <strong>de</strong> mosquitos, me parecia que sim —, quer<br />

dizer, o que isso seria senão o nosso sangue? Quando os matamos no começo da<br />

noite, seus corpos não passavam <strong>de</strong> manchas pretas, embora, <strong>de</strong>pois,<br />

respingassem o mais vermelho dos sumos vermelhos — se esse tipo <strong>de</strong> coisa<br />

fosse possível, então, certamente, po<strong>de</strong>ria também ser feito <strong>de</strong> maneira volúvel.<br />

Havia mil janelas na cida<strong>de</strong>. Quantos homens velhos gotosos, incompatíveis, já


teriam misturado seu sangue com o meu? Isso me fez pensar <strong>de</strong> novo que se eu<br />

tivesse <strong>de</strong> ter um marido, queria um que viesse a mim não com uma bela perna,<br />

pérolas e brocado, mas na forma <strong>de</strong> um cisne, as asas impetuosas batendo como<br />

uma nuvem <strong>de</strong> tempesta<strong>de</strong>, como em Zeus e Leda. E se ele fizesse isso, eu<br />

realmente o amaria para sempre. Mas só se ele <strong>de</strong>ixasse que eu o <strong>de</strong>senhasse<br />

<strong>de</strong>pois.<br />

Como acontecia quase sempre em noites assim, a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meus<br />

pensamentos me manteve acordada até, por fim, eu escorregar para fora dos<br />

lençóis e sair do quarto.<br />

Adoro a nossa casa no escuro. Há tanta negritu<strong>de</strong> e a sua geografia interna<br />

é tão complexa, que aprendi a medi-la em minha mente; sabendo on<strong>de</strong> encontrar<br />

as portas e em que ângulos é necessário virar para evitar partes intrusas <strong>de</strong><br />

móveis ou escadas inesperadas. Às vezes, <strong>de</strong>slizo <strong>de</strong> um cômodo a outro,<br />

imagino que estou lá fora, na cida<strong>de</strong>, os seus becos e esquinas se <strong>rev</strong>elando<br />

como uma elegante solução matemática em minha mente. Apesar das suspeitas<br />

<strong>de</strong> minha mãe, nunca an<strong>de</strong>i pela cida<strong>de</strong> sozinha. É claro que houve momentos<br />

em que escapei das garras <strong>de</strong> uma acompanhante para <strong>de</strong>scer uma rua lateral, ou<br />

me <strong>de</strong>morar em uma barraca do mercado, mas nunca por muito tempo e sempre<br />

à luz do dia. Nossas raras excursões ao anoitecer para festivais ou missa<br />

mostram um lugar ainda completamente <strong>de</strong>sperto. Como a sua atmosfera po<strong>de</strong><br />

mudar quando as tochas se apagam, não faço idéia. Erila era escrava e, ainda<br />

assim, sabia mais da minha cida<strong>de</strong> do que algum dia chegarei a saber. Tenho<br />

tantas chances <strong>de</strong> viajar ao Oriente quanto percorrer sozinha as ruas à noite. Mas<br />

posso sonhar.<br />

Abaixo do pátio principal há um poço <strong>de</strong> escuridão. Desço a escadaria.<br />

Um dos cães ergue um olho sonolento quando eu passo, mas há muito tempo ele<br />

já se acostumou com minhas andanças noturnas. Os pavões <strong>de</strong> minha mãe no<br />

jardim ameaçavam mais. Não somente tinham a audição mais aguçada, como<br />

seus ganidos pareciam um coro <strong>de</strong> almas no inferno. Despertá-los significava<br />

<strong>de</strong>spertar todo mundo.<br />

Empurrei a porta do salão <strong>de</strong> inverno. Senti os azulejos encerados e<br />

macios sob meus pés. A nova tapeçaria pendia como uma sombra pesada e a<br />

gran<strong>de</strong> mesa <strong>de</strong> carvalho, orgulho e alegria <strong>de</strong> minha mãe, estava posta para<br />

fantasmas. Enrosquei-me no peitoril da janela e <strong>de</strong>slizei o ferrolho com cuidado.<br />

Dali, a casa dava para a rua e, ali, eu podia ficar observando a vida noturna. As<br />

tochas em seus gran<strong>de</strong>s cestos <strong>de</strong> ferro no muro iluminavam a frente da casa.<br />

Era um sinal da recente riqueza do bairro, a existência <strong>de</strong> casas ricas o bastante<br />

para iluminarem os retardatários a caminho <strong>de</strong> casa. Eu tinha ouvido histórias <strong>de</strong><br />

como, em noites sem lua, nas partes mais pobres da cida<strong>de</strong>, pessoas morriam ao<br />

cair em buracos na pavimentação <strong>de</strong> pedras, ou se afogavam em valetas


transbordantes. Se bem que a sua cegueira <strong>de</strong>via estar agravada pelo vinho.<br />

Sem dúvida, a vista <strong>de</strong> meus irmãos estaria, nesse momento, enfraquecida.<br />

O que lhes faltava em visão, compensavam com barulho, a sua gargalhada<br />

embriagada atingindo as pedras do calçamento e ricocheteando em um eco<br />

exagerado nas janelas acima. Às vezes, a algazarra acordava meu pai. Mas não<br />

havia essa excitação nessa noite, e minhas pálpebras começavam a se fechar<br />

quando reparei em algo lá embaixo.<br />

Do lado da nossa casa, emergiu uma figura na rua principal, o corpo<br />

b<strong>rev</strong>emente iluminado no clarão das tochas. Era comprido e magro, com um<br />

manto o envolvendo apertado, mas a sua cabeça estava exposta, e percebi aquele<br />

lampejo <strong>de</strong> alvura em sua pele. Era ele. O nosso pintor estava saindo para a<br />

noite. Veria muito pouca arte a essa hora. O que minha mãe tinha dito? Que ele<br />

estava achando a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sagradável em comparação à quietu<strong>de</strong> da abadia.<br />

Talvez essa fosse a sua maneira <strong>de</strong> aspirar o silêncio, mas havia algo em seu<br />

andar, a cabeça baixa, <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r no escuro, que sugeria mais<br />

propósito do que atmosfera.<br />

Eu estava dividida entre curiosida<strong>de</strong> e inveja. Era simples assim?<br />

Envolve-se em uma capa, acha a porta certa e simplesmente sai para a noite. Se<br />

andasse rápido, estaria na catedral <strong>de</strong> Santa Maria <strong>de</strong>l Fiore em <strong>de</strong>z minutos.<br />

Depois, cruzar pelo Batistério e seguir a oeste, em direção a Santa Maria<br />

Novella, ou para o sul, para o rio, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> podia-se ouvir o som dos pequenos<br />

sinos das mulheres. Outro mundo. Mas eu não gostava <strong>de</strong> pensar nisso,<br />

lembrando-me <strong>de</strong> sua Virgem, tão plena <strong>de</strong> graça e luz que mal podia manter os<br />

pés no chão.<br />

Acomo<strong>de</strong>i-me para observar até que voltasse, mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma hora<br />

mais ou menos fiquei com muito sono e, não querendo arriscar ser encontrada<br />

ali pela manhã, subi <strong>de</strong> volta ao meu quarto. Deslizei para baixo do lençol,<br />

notando, com uma satisfação inclemente, como a mordida no pulso <strong>de</strong> Plautilla<br />

começava a inchar. Enrosquei-me ao redor <strong>de</strong> seu corpo quente. Ela bufou,<br />

como um cavalo, um pouco queixosa, e continuou a dormir.


Cinco<br />

EM SEU ESTADO CRU, O ESPAÇO tinha pouco <strong>de</strong> Deus. Ele havia isolado<br />

uma pequena parte da nave em que o sol se filtrava pela janela lateral, batendo<br />

direto em uma ampla faixa dourada. Ele está sentado à sombra, do lado <strong>de</strong> uma<br />

pequena mesa sobre a qual há cartão, pena e tinta, e alguns bastões afiados <strong>de</strong><br />

carvão.<br />

Entro <strong>de</strong>vagar, com a velha Lodovica atrás <strong>de</strong> mim. Maria tinha sido<br />

acometida por um grave ataque <strong>de</strong> indigestão. Acreditem quando digo que,<br />

embora eu <strong>de</strong>sejasse que ela ficasse muito doente nesse dia, não tive nada a ver<br />

com a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comida que ingeriu ou o enjôo conseqüente. Em<br />

retrospecto, isso me fez pensar em como Deus age por meios estranhos. A<br />

menos que, como o nó errado do carrasco, não acreditem que tenha sido sua<br />

obra.<br />

Ele levanta-se quando entramos, seus olhos fixos no chão. Lodovica, sua<br />

ida<strong>de</strong> fazendo-a sofrer <strong>de</strong> gota, retardou nossa chegada e eu já pedi uma ca<strong>de</strong>ira<br />

confortável para que ela se sente perto. Nessa hora do dia, é questão <strong>de</strong> minutos<br />

até que ela adormeça, e <strong>de</strong>pois certamente se esqueça <strong>de</strong> que adormeceu. Ela é<br />

<strong>de</strong> uma ajuda inestimável para mim nesses momentos.<br />

Se ele se lembra do nosso encontro, não <strong>de</strong>monstra. Com um gesto, indica<br />

uma pequena plataforma na luz, com uma ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> espaldar alto,<br />

em um ângulo tal que a linha dos nossos olhos não se cruzem. Subo, consciente<br />

<strong>de</strong> minha altura. Acho que estamos nervosos um com o outro.<br />

— Posso me sentar?<br />

— Como quiser — ele murmura, ainda sem me olhar diretamente.<br />

Assumo uma pose que vi nas mulheres nos retratos em capelas, as costas eretas,<br />

cabeça erguida, mãos cruzadas no colo. Não sei o que fazer com os olhos.<br />

Durante algum tempo, olho diretamente à frente, mas a visão é monótona e<br />

<strong>de</strong>svio o olhar para a esquerda, on<strong>de</strong> posso ver a meta<strong>de</strong> inferior <strong>de</strong> seu corpo. O<br />

couro no fundo <strong>de</strong> sua meia, percebo, está muito gasto, mas a forma <strong>de</strong> sua<br />

perna é boa, se bem que um pouco longa <strong>de</strong>mais. Como as minhas. Enquanto<br />

estou ali, começo a perceber seu cheiro, muito mais forte <strong>de</strong>ssa vez: um cheiro<br />

<strong>de</strong> terra, misturado com um azedume, quase algo apodrecido. Isso me faz pensar<br />

no que teria feito na noite anterior, para estar com esse mau cheiro. Claramente<br />

não se lava o bastante — isso era algo que já tinha ouvido meu pai comentar a<br />

respeito dos estrangeiros —, mas prestar atenção nisso agora eliminaria qualquer<br />

chance <strong>de</strong> conversarmos. Resolvo <strong>de</strong>ixar esse assunto para Plautilla. O fedor<br />

certamente a <strong>de</strong>ixará irritada.


O tempo passa. Está quente ali, sob o sol. Olho <strong>de</strong> relance para Lodovica.<br />

Ela levou um bordado que está em seu colo. Baixa a agulha e nos observa por<br />

um tempo, mas, na verda<strong>de</strong>, nunca <strong>de</strong>monstrou muito interesse por arte, nem<br />

mesmo quando sua vista era boa o suficiente para apreciá-la. Penso em contar<br />

<strong>de</strong>vagar até cinqüenta, e em trinta e nove, ouço sua respiração rugir em seu<br />

peito. No silêncio da capela, ela ressoa como um gran<strong>de</strong> gato ronronando. Virome<br />

para olhar para ela e <strong>de</strong>pois para ele.<br />

Na luz <strong>de</strong> hoje, posso examiná-lo melhor. Para um homem que passou a<br />

noite vagando pela cida<strong>de</strong>, parece muito bem. Seu cabelo está escovado e é<br />

comprido <strong>de</strong>mais para a moda florentina atual, porém é basto e sedoso, a sua tez<br />

ainda mais pálida em contraste com a sua cor. É alto e magro, como eu, o que<br />

não é tão negativo em um homem. Os malares são largos e seus olhos são<br />

amendoados, dando uma impressão quase marmórea, ver<strong>de</strong>s acinzentados<br />

salpicados <strong>de</strong> preto, que me fazem lembrar o olhar <strong>de</strong> um gato. Ele é diferente <strong>de</strong><br />

todos os homens que já vi. Nem mesmo sei dizer se é bonito, se bem que isso<br />

talvez seja por causa da maneira como está sempre voltado para <strong>de</strong>ntro. Afora<br />

meus irmãos e meus preceptores, ele é o primeiro homem que vejo <strong>de</strong> tão perto e<br />

sinto meu coração bater forte <strong>de</strong>ntro do meu peito. Pelo menos sentada, me<br />

pareço menos com uma girafa. Se bem que não estou certa que ele note. Apesar<br />

<strong>de</strong> estar olhando para mim, não parece me notar. Desloca-se <strong>de</strong>licadamente ao<br />

redor do estrado, riscando o cartão, intermitentemente, com o carvão, cada traço<br />

atento, pensado, resultado <strong>de</strong> uma comunhão singular entre o olho e a mão. É<br />

um tipo <strong>de</strong> silêncio vibrante com que estou familiarizada. Penso em todas as<br />

horas que passei em uma concentração intensa, meus <strong>de</strong>dos dobrados ao redor<br />

<strong>de</strong> um pedaço afiado <strong>de</strong> carvão, tentando capturar a cabeça <strong>de</strong> um cão<br />

adormecido na escada ou a feiúra estranha <strong>de</strong> meu próprio pé <strong>de</strong>scalço, e isso me<br />

torna mais paciente do que seria <strong>de</strong> outra maneira.<br />

— Minha mãe disse que teve febre — falo, por fim, como se fôssemos<br />

parentes conversando há uma hora e que só tivessem se calado nesse mesmo<br />

segundo. Quando fica claro que não vai respon<strong>de</strong>r, penso em trazer à baila as<br />

suas andanças noturnas, mas não sei o que dizer. O som <strong>de</strong> seu carvão persiste.<br />

Volto os olhos para trás, para enfocar a pare<strong>de</strong> da capela. O silêncio agora é tão<br />

profundo, que começo a achar que ficaremos ali para sempre. Mas Lodovica vai<br />

acabar <strong>de</strong>spertando e será tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais...<br />

— Sabe, pintor, se quer ter sucesso aqui, tem <strong>de</strong> falar um pouco. Mesmo<br />

com mulheres.<br />

Seus olhos se movem rapidamente para um lado, <strong>de</strong> modo que eu saiba<br />

que compreen<strong>de</strong>u as palavras, mas que mesmo sendo eu a dizê-las, parecem<br />

cruas <strong>de</strong>mais e me sinto envergonhada. Passado um tempo, me mexo na ca<strong>de</strong>ira,<br />

mudando <strong>de</strong> posição. Ele pára, esperando que eu me imobilize <strong>de</strong> novo. Faço um


pouco <strong>de</strong> barulho. Quanto mais tento ficar imóvel, mais me sinto <strong>de</strong>sconfortável.<br />

Estico-me mais. Ele espera <strong>de</strong> novo. Somente agora fico alerta à possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> malícia. Se ele não fala, então não me sento como <strong>de</strong>veria. Ao parar, ergo<br />

minha mão esquerda até a frente do meu rosto, obscurecendo, <strong>de</strong>liberadamente,<br />

sua visão. Mãos. São sempre difíceis. Ossudas e carnudas ao mesmo tempo. Até<br />

mesmo nossos maiores pintores têm problemas com elas. No entanto, ele volta a<br />

<strong>de</strong>senhar rapidamente; <strong>de</strong>ssa vez riscando <strong>de</strong> maneira tão insistente que me<br />

<strong>de</strong>ixa com a maior vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter um papel.<br />

Depois <strong>de</strong> algum tempo, fico farta do meu fracasso e volto a pôr a mão no<br />

colo, flexionando os <strong>de</strong>dos para cima até ficarem como patas <strong>de</strong> uma aranha<br />

monstruosa sobre minha saia. Observo as juntas se tornarem brancas e vejo uma<br />

única veia latejar <strong>de</strong> encontro à pele, Como o corpo é estranho, tão cheio <strong>de</strong> si.<br />

Quando eu era mais jovem, tivemos uma escrava tártara, um caráter impetuoso,<br />

que sofria acessos; quando a acometiam, caía rígida no chão com espasmos, a<br />

cabeça se jogando para trás com tal ímpeto que seu pescoço retesava e esticava<br />

até parecer o <strong>de</strong> um cavalo, e seus <strong>de</strong>dos arranhavam o chão. Uma vez, saiu<br />

espuma <strong>de</strong> sua boca e tivemos <strong>de</strong> colocar algo entre seus <strong>de</strong>ntes para que ela não<br />

engolisse a língua. Luca, que agora acho que sempre esteve mais interessado no<br />

Diabo do que em Deus, acreditava que ela era possuída por um <strong>de</strong>mônio, mas<br />

minha mãe dizia que ela estava doente e <strong>de</strong>via <strong>de</strong>scansar para se recuperar. Meu<br />

pai ven<strong>de</strong>u-a, mais tar<strong>de</strong>, embora eu não tenha certeza <strong>de</strong> se ela era inteiramente<br />

honesta em relação à sua saú<strong>de</strong>. Mesmo que fosse doença, passaria facilmente<br />

por possessão. Se alguém pintasse Cristo expulsando <strong>de</strong>mônios, ela seria um<br />

mo<strong>de</strong>lo perfeito.<br />

Lodovica está roncando alto. Seria preciso um trovão para acordá-la. E<br />

agora ou nunca. Levanto-me.<br />

— Posso ver o que fez?<br />

Sinto seu corpo enrijecer. Percebo que quer escon<strong>de</strong>r o papel, mas<br />

também sabe que não seria apropriado. O que po<strong>de</strong> fazer? Pegar seu material e<br />

fugir? Agredir-me <strong>de</strong> novo? Se fizesse isso, logo se veria em uma mula <strong>de</strong> volta<br />

ao ermo norte. E por trás <strong>de</strong> todo o seu silêncio, não acho que seja um idiota.<br />

A minha coragem me abandona na beirada da mesa. Ele está tão perto,<br />

que posso ver a barba cerrada escura, e seu cheiro doce rançoso se torna mais<br />

penetrante. Faz-me pensar em <strong>de</strong>cadência e morte, e me lembro <strong>de</strong> sua violência<br />

na outra vez. Relanceio os olhos, apreensivamente, para a porta. O que<br />

aconteceria se alguém entrasse? Talvez ele esteja pensando a mesma coisa. Com<br />

um gesto <strong>de</strong>sajeitado, ele empurra o <strong>de</strong>senho sobre a mesa, com a face para<br />

cima, <strong>de</strong> modo que eu possa vê-lo sem me aproximar ainda mais.<br />

O cartão está cheio <strong>de</strong> esboços: um estudo <strong>de</strong> minha cabeça, <strong>de</strong>pois partes<br />

<strong>de</strong> meu rosto, meus olhos, minhas pálpebras semicerradas, com uma expressão


entre tímida e maliciosa. Não me adulou como, às vezes, faço com Plautilla,<br />

para comprar seu silêncio quando ela posa para mim, mas, em vez disso, sou eu<br />

mesma, viva com malícia e nervos, como se não pu<strong>de</strong>sse falar, mas tampouco<br />

ficar calada. Ele já me conhece mais do que eu o conheço.<br />

E então, ali estão os esboços <strong>de</strong> minha mão em meu rosto, palma e costas,<br />

meus <strong>de</strong>dos circundando pequenas colunas <strong>de</strong> pele viva. Da natureza para a<br />

página. A sua perícia me <strong>de</strong>ixa atordoada.<br />

— Oh — eu digo, e há dor, assim como assombro, em minha voz. —<br />

Quem lhe ensinou isto?<br />

Olho <strong>de</strong> novo para os meus <strong>de</strong>dos, os <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e os <strong>de</strong>senhados. E, mais<br />

do que qualquer outra coisa, quero ver como ele faz isso, observar a maneira<br />

como cada traço tem início na página. Só por isso eu correria o risco <strong>de</strong> me<br />

aproximar mais. Olho para o seu rosto. Não é arrogância, é timi<strong>de</strong>z que o<br />

mantém tão calado. Como será ser tão tímido a ponto <strong>de</strong> ter dificulda<strong>de</strong> em<br />

falar?<br />

— Deve ser difícil para você aqui — digo calmamente. — Acho que se<br />

estivesse no seu lugar, sentiria sauda<strong>de</strong>s da minha terra.<br />

E como não esperava que ele respon<strong>de</strong>sse, sinto um leve arrepio ao<br />

escutar a sua voz, que é mais macia do que me lembro, se bem que mais sombria<br />

do que seus olhos.<br />

— E a cor. De on<strong>de</strong> vim tudo é cinza. Às vezes, não se consegue dizer<br />

on<strong>de</strong> o céu acaba e o mar começa. A cor torna tudo diferente.<br />

— Oh, mas certamente Florença é como <strong>de</strong>via ser no passado. Isto é, a<br />

Terra Santa, on<strong>de</strong> viveu Nosso Senhor. Todo este sol. É o que os cruzados nos<br />

contam. Suas cores <strong>de</strong>vem ter sido tão luminosas quanto as nossas. Você <strong>de</strong>via<br />

ir, um dia, ao armazém <strong>de</strong> meu pai. Quando as peças <strong>de</strong> panos são concluídas e<br />

empilhadas, é como atravessar um arco-íris.<br />

Percebo que este <strong>de</strong>ve ter sido o discurso mais longo que já escutou <strong>de</strong><br />

uma mulher. Sinto o pânico surgindo nele <strong>de</strong> novo, e me lembro <strong>de</strong> sua<br />

rusticida<strong>de</strong> antes, da maneira como seu corpo inteiro tinha tremido diante <strong>de</strong><br />

mim.<br />

— Não <strong>de</strong>ve se preocupar por mim — falei sem pensar. — Sei que falo<br />

muito, mas só tenho quatorze anos, o que faz com que eu seja uma criança e não<br />

uma mulher, por isso, possivelmente, não posso lhe fazer mal. E além disso,<br />

gosto tanto <strong>de</strong> arte quanto você.<br />

Estendo minhas duas mãos e as ponho sobre a mesa, entre nós, abrindo os<br />

<strong>de</strong>dos livremente sobre a ma<strong>de</strong>ira, <strong>de</strong> modo a haver tensão e relaxamento na<br />

pose.<br />

— Já que está estudando mãos, talvez queira registrá-las em repouso. São<br />

mais fáceis <strong>de</strong> ver do que em meu colo. — E acho que minha mãe teria


aprovado a humilda<strong>de</strong> em minha voz.<br />

Fico bem quieta, os olhos baixos, esperando. Percebo o cartão <strong>de</strong>slizar<br />

para fora da mesa e um lápis ser pego do meu lado. Quando ouço seu som na<br />

página, arrisco erguer os olhos. Só consigo vê-lo <strong>de</strong> relance, mas é o bastante<br />

para observá-lo tomar forma: <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> minúsculos traçados fluidos<br />

transbordando sobre a página, sem tempo para pensar ou refletir, sem respirar<br />

entre o ver e o fazer. É como se ele estivesse lendo minhas mãos por baixo <strong>de</strong><br />

minha pele, construindo a imagem pelo avesso.<br />

Deixo-o trabalhar por alguns instantes. O silêncio entre nós parece, agora,<br />

mais <strong>de</strong>scontraído.<br />

— Mamãe disse que você visitou nossas igrejas. — Ele assentiu com um<br />

movimento <strong>de</strong> cabeça sutil. — De que afrescos gostou mais?<br />

A mão pára. Observo seu rosto.<br />

— Santa Maria Novella. A Vida <strong>de</strong> João Batista — diz com firmeza.<br />

— Ghirlandaio. Oh, sim, Capella Maggiore é uma das maravilhas da<br />

cida<strong>de</strong>.<br />

Ele faz uma pausa.<br />

— E... <strong>de</strong> outra capela na outra margem do rio.<br />

— Santo Spirito? Santa Maria <strong>de</strong>l Carmine?<br />

Ele confirma, com a cabeça, o segundo nome. É claro. A Capela <strong>de</strong><br />

Brancacci no convento das carmelitas. Minha mãe orientou-o bem, sem dúvida<br />

usando suas relações e o status <strong>de</strong>le como monge leigo para lhe conseguir<br />

acesso a áreas geralmente esquecidas.<br />

— Os afrescos da vida <strong>de</strong> São Pedro. Oh, eles são muito consi<strong>de</strong>rados<br />

aqui. Masaccio morreu antes <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r concluí-los, sabe. Ele tinha vinte e sete<br />

anos. — Percebo que esse fato lhe causa impressão. — Fui levada lá uma vez,<br />

quando era criança, mas mal me lembro. Do que mais gostou?<br />

Ele franze o cenho como se a pergunta fosse difícil <strong>de</strong>mais.<br />

— Há duas cenas do Jardim do É<strong>de</strong>n. Na segunda, quando são expulsos,<br />

dão e Eva estão chorando... não, mais... estão gemendo, enquanto são banidos.<br />

Nunca tinha visto uma tristeza assim pela perda da graça <strong>de</strong> Deus.<br />

— E o <strong>de</strong> antes da Queda? Estão tão alegres quanto estão tristes <strong>de</strong>pois?<br />

Ele saco<strong>de</strong> a cabeça.<br />

— A alegria não é tão forte. Veio da mão <strong>de</strong> outro pintor. E a serpente<br />

pen<strong>de</strong>ndo da árvore tem o rosto <strong>de</strong> uma mulher.<br />

— Oh, sim, sim. — Balanço a cabeça, nossos olhos se encontrando, e por<br />

enquanto, ele está interessado <strong>de</strong>mais para <strong>de</strong>sviá-los. — Minha mãe me contou.<br />

Embora não exista nenhuma evidência nas escrituras para tal representação.<br />

Mas a menção do Diabo em mulher o faz retrair-se <strong>de</strong> novo e ficar em<br />

silêncio. Os riscos recomeçam. Relanceio os olhos para o cartão. De on<strong>de</strong> teria


vindo esse talento? Seria mesmo uma dádiva divina?<br />

— Sempre teve essa habilida<strong>de</strong>, pintor? — perguntei baixinho.<br />

— Não me lembro. — E a sua voz é um murmúrio. — O padre que me<br />

ensinou disse que nasci com Deus nas minhas mãos, para compensar a minha<br />

falta <strong>de</strong> pais.<br />

— Oh, estou certa <strong>de</strong> que ele tinha razão. Sabe, em Florença, acreditamos<br />

que a gran<strong>de</strong> arte é o estudo <strong>de</strong> Deus na natureza. Essa é a opinião <strong>de</strong> Alberti,<br />

um <strong>de</strong> nossos eruditos mais importantes. Também Cennini, o artista. Seus<br />

tratados sobre pintura são muito lidos aqui. Tenho cópias em latim, se você<br />

quiser... — E apesar <strong>de</strong> saber que esse conhecimento é uma maneira <strong>de</strong> me<br />

mostrar, não consigo resistir. — Alberti diz como a beleza da forma humana<br />

reflete a beleza <strong>de</strong> Deus. Embora, é claro, ele <strong>de</strong>va essa compreensão, em parte,<br />

a Platão. Mas você também não <strong>de</strong>ve ter lido Platão. Se quer ser notado aqui, em<br />

Florença, não po<strong>de</strong> ignorá-lo. Apesar <strong>de</strong> ele não ter conhecido Cristo, tem muito<br />

a dizer sobre a alma humana. A compreensão que os antigos tinham <strong>de</strong> Deus é<br />

uma das gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>scobertas florentinas.<br />

Minha mãe, se estivesse aqui, teria levado as mãos à cabeça com a minha<br />

falta <strong>de</strong> modéstia, tanto em relação a mim mesma, quanto à minha cida<strong>de</strong>, mas<br />

sei que ele está prestando atenção. Posso afirmar isso pela maneira como sua<br />

mão se <strong>de</strong>tém sobre a página. Acho que ele falaria mais se Lodovica não tivesse<br />

bufado alto, <strong>de</strong> repente, sinal <strong>de</strong> que estava para acordar. Nós dois nos<br />

imobilizamos.<br />

— Bem — digo rapidamente, recuando. —Talvez <strong>de</strong>vamos parar agora.<br />

Mas posso voltar para você praticar sobre as minhas mãos, se quiser.<br />

Mas quando larga o cartão sobre a mesa, e vejo o <strong>de</strong>senho, percebo que<br />

ele já havia apreendido tudo o que precisava.


Seis<br />

PEGUEI CÓPIAS DE ALBERTI e Cennini na minha arca e as coloquei sobre a<br />

cama. Eu não po<strong>de</strong>ria me separar <strong>de</strong> Cennini. Dependia <strong>de</strong>le para tudo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

caimento dos panos até as cores, que não conseguia misturar. Mas Alberti podia<br />

ficar com ele.<br />

Tentei fazer <strong>de</strong> Erila minha mensageira, com a oferta <strong>de</strong> um lenço<br />

vermelho <strong>de</strong> seda.<br />

— Não.<br />

— Como po<strong>de</strong> dizer não?Você adora esta cor. E ela adora você.<br />

— Não.<br />

— Mas por quê? É simples. Basta <strong>de</strong>scer e dar a ele. Sabe qual é o quarto<br />

tanto quanto eu.<br />

— E se a sua mãe <strong>de</strong>scobrir?<br />

— Não vai <strong>de</strong>scobrir.<br />

— Mas se <strong>de</strong>scobrir. Saberá que isso é seu e que foi levado por mim. E<br />

me esfolar viva.<br />

— Não é verda<strong>de</strong>. — Eu não sabia o que dizer. — Ela... ela vai<br />

compreen<strong>de</strong>r nós duas fazemos isso pela arte. Que a nossa relação não tem outra<br />

intenção senão agradar a Deus.<br />

— Ah! Não é o que a velha Lodovica diz.<br />

— O que quer dizer? Ela estava dormindo. Não podia ver nada. —Agora<br />

ficou calada, mas eu tinha falado <strong>de</strong>mais e ela começou a rir. — Oh, Erila,<br />

trapaceira. Ela não disse nada.<br />

— Não. Mas você sim.<br />

— Conversamos sobre arte, Erila. Falo sério. Sobre as capelas e igrejas, as<br />

cores ao sol. Ele realmente tem Deus em seus <strong>de</strong>dos. — Interrompo-me. — Se<br />

bem que suas maneiras são terríveis.<br />

— É isso o que me preocupa. Vocês dois têm muito em comum.<br />

Mas, apesar <strong>de</strong> tudo, ela levou.<br />

Os dias seguintes foram frenéticos. Enquanto minha mãe e as criadas<br />

organizavam o guarda-roupa <strong>de</strong> Plautilla, ela passava horas intermináveis<br />

preparando a si mesma, clareando o cabelo e branqueando a pele, até parecer<br />

mais um fantasma do que uma noiva. A próxima noite que fui à janela, era tar<strong>de</strong>;<br />

lembro-me disso porque Plautilla estava <strong>de</strong> tal modo agitada que levou horas<br />

para dormir, e escutei os sinos <strong>de</strong> Sant'Ambrogio baterem a hora. O pintor


apareceu quase que imediatamente, vestido na mesma capa, enroscada à sua<br />

volta, <strong>de</strong>slizando para o escuro com a mesma passada <strong>de</strong>terminada. Mas <strong>de</strong>ssa<br />

vez, eu estava igualmente <strong>de</strong>terminada a esperá-lo. Era uma noite clara <strong>de</strong><br />

primavera, e o céu, um mapa completo <strong>de</strong> estrelas, <strong>de</strong> modo que quando, mais<br />

tar<strong>de</strong>, o trovão ressoou, fiquei sem saber <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinha. O raio que o<br />

acompanhou traçou um ponto <strong>de</strong> cruz gigantesco no céu.<br />

— Uau!<br />

— Eia!<br />

Vi-os quando dobraram a esquina, meus irmãos e seus comparsas, como<br />

uma gangue <strong>de</strong> piratas instáveis em terra firme, dando tapinhas e abraços uns<br />

nos outros, ao cambalearem rua abaixo. Recuei da janela, mas Tomaso tem<br />

olhos <strong>de</strong> falcão e ouvi seu assobio insolente, o que usa para chamar os<br />

cachorros.<br />

— Olá, irmãzinha? — Sua voz retumbou do calçamento <strong>de</strong> pedras. —<br />

Irmãzinha!<br />

Coloquei a cabeça para fora e sibilei para ele ficar calado. Mas estava<br />

bêbado <strong>de</strong>mais para enten<strong>de</strong>r,<br />

— Uau! olhem para ela, rapazes! Um cérebro tão gran<strong>de</strong> quanto o interior<br />

<strong>de</strong> Santa Maria <strong>de</strong>l Fiore. E a cara <strong>de</strong> um traseiro <strong>de</strong> cachorro.<br />

A sua volta, seus amigos latiram, aprovando sua piada.<br />

— Fale baixo ou papai po<strong>de</strong> ouvi-lo — falei com veemência, simulando a<br />

minha mágoa com a raiva.<br />

— Se ouvir, você terá mais problemas do que eu.<br />

— On<strong>de</strong> esteve?<br />

— Por que não pergunta ao Luca? — Mas Luca não estava conseguindo<br />

ficar em pé sem ajuda. — Nós o encontramos com as mãos nos peitos <strong>de</strong> pedra<br />

<strong>de</strong> Santa Catarina, vomitando as tripas em seus pés. Provavelmente seria preso<br />

por blasfêmia se não o tivéssemos achado primeiro.<br />

O clarão do raio seguinte iluminou o céu como a luz do dia. O trovão e o<br />

acompanhou estron<strong>de</strong>ou perto, não apenas uma, mas duas vezes, a segunda<br />

realmente ensur<strong>de</strong>cedora, como se o solo, abaixo <strong>de</strong>le, tivesse se partido. É claro<br />

que todos sabíamos <strong>de</strong>ssas coisas: a maneira como, às vezes, a terra po<strong>de</strong> se<br />

partir e o Diabo capturar algumas almas perdidas pelas fendas. Fiquei em pé<br />

com um terror súbito, mas já tinha acabado. Lá embaixo, eles estavam<br />

igualmente assustados embora simulassem o medo com gritinhos e um horror<br />

afetados.<br />

— Uau! um tremor <strong>de</strong> terra! — berrou Luca.<br />

— Não. Disparo <strong>de</strong> canhão. —Tomaso estava rindo. — É o exército<br />

francês vindo pelos Alpes para conquistar Nápoles. Que perspectiva gloriosa!<br />

Pense nisso, irmã. Violações e pilhagem. Soube que franceses grosseiros estão


loucos para <strong>de</strong>florar virgens da nova Atenas.<br />

No jardim aos fundos da casa, os pavões tinham começado a ganir <strong>de</strong> uma<br />

maneira que <strong>de</strong>spertava até os mortos. Na rua, surgiu um clarão <strong>de</strong> luz. O pintor<br />

teria <strong>de</strong> esperar. Atravessei a sala e subi a escada em segundos. Ao escorregar<br />

para a cama, ouvi a voz <strong>de</strong> meu pai irada, lá embaixo.<br />

Na manhã seguinte, a casa estava alvoroçada com as notícias. Como, <strong>de</strong><br />

madrugada, um raio atingira a clarabóia do gran<strong>de</strong> domo <strong>de</strong> Santa Maria <strong>de</strong>l<br />

Fiore, rompendo um bloco <strong>de</strong> mármore e o lançando ao chão com tamanha força<br />

que meta<strong>de</strong> espatifou-se atravessando o telhado e a outra meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>rrubando<br />

uma casa próxima, embora, milagrosamente, nada tivesse acontecido com a<br />

família.<br />

Mas o pior estava por vir. Nessa mesma noite, Lorenzo o Magnífico,<br />

erudito, diplomata, político e o cidadão e benfeitor mais nobre <strong>de</strong> Florença, jazia<br />

em sua vila em Careggi, incapacitado pela gota e dor no estômago. Quando<br />

soube do que acontecera na cida<strong>de</strong>, mandou investigarem como a pedra tinha<br />

caído, e quando lhe informaram, fechou os olhos e disse: "Estava vindo por aqui.<br />

Vou morrer hoje à noite."<br />

E assim, aconteceu.<br />

A notícia abalou mais a cida<strong>de</strong> do que qualquer tempesta<strong>de</strong>. Na manhã seguinte,<br />

meus irmãos e eu estávamos sentados em um gabinete abafado, enquanto nosso<br />

professor <strong>de</strong> grego gaguejava palavras sobre o discurso fúnebre <strong>de</strong> Péricles, suas<br />

lágrimas correndo e <strong>de</strong>rramando-se nas páginas do manuscrito especialmente<br />

copiado, e apesar <strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>bocharmos <strong>de</strong> seu tom lúgubre, sei que, na hora,<br />

até Luca se comoveu. Meu pai encerrou o expediente por aquele dia e, dos<br />

aposentos das criadas, ouvi Maria e Lodovica em prantos. Lorenzo <strong>de</strong> Medici<br />

tinha sido o cidadão mais importante da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> antes <strong>de</strong> eu nascer, e a sua<br />

morte fez soprar um vento frio na vida <strong>de</strong> todos nós.<br />

Seu corpo foi trazido do mosteiro <strong>de</strong> San Marco para a noite em que os<br />

cidadãos mais nobres tiveram permissão para vê-lo. Minha família foi uma<br />

daquelas que fez a peregrinação. No interior da capela, o ataú<strong>de</strong> estava tão no<br />

alto que mal consegui olhar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le. O corpo estava vestido mo<strong>de</strong>stamente,<br />

como convém a uma família que, apesar <strong>de</strong> governar Florença privadamente,<br />

havia sempre tentado <strong>de</strong>monstrar o contrário em público, e o semblante sereno,<br />

sem sinal das agonias do estômago que diziam ter sofrido no fim (e para as quais<br />

Tomaso fez intrigas dizendo que seu médico receitara pérolas e diamantes<br />

pulverizados. Mais tar<strong>de</strong>, os que não gostavam <strong>de</strong>le diriam que morreu<br />

engolindo o que restava <strong>de</strong> sua riqueza particular, <strong>de</strong> modo que a cida<strong>de</strong> não<br />

pusesse as mãos nela). Mas a minha principal recordação é como ele era feio.


Apesar <strong>de</strong> eu ter visto seu rosto em <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> medalhões, era muito mais<br />

impressionante pessoalmente: a maneira como seu nariz achatado <strong>de</strong>scia quase<br />

até seu inferior e o queixo se projetava como um promontório em um rochoso.<br />

Como fiquei assombrada, Tomaso cochichou em meu ouvido que a sua<br />

feiúra era o seu próprio afrodisíaco, atraindo mulheres tomadas pela luxúria, e os<br />

seus poemas <strong>de</strong> amor incendiavam o coração feminino mais gélido. A sua visão<br />

me fez pensar <strong>de</strong> novo naquele dia em Santa Maria Novella, quando minha mãe<br />

tinha chamado a atenção para como a gran<strong>de</strong> capela <strong>de</strong> Ghirlandaio ficaria na<br />

história. E como esse era claramente um momento <strong>de</strong>sse tipo, virei-me e me<br />

<strong>de</strong>parei com ela no meio da aglomeração, pegando-a <strong>de</strong>sp<strong>rev</strong>enida, e vi suas<br />

lágrimas fulgindo como gotas <strong>de</strong> cristal à das velas. Eu nunca a tinha visto<br />

chorar antes, e agora isso me perturbou mais do que o corpo morto.<br />

O mosteiro <strong>de</strong> San Marco, on<strong>de</strong> o corpo jazia, havia sido o retiro preferido<br />

avô <strong>de</strong> Lorenzo, e a família tinha gasto uma fortuna com doações para o local.<br />

Mas o seu novo prior tinha-se excluído como um pensador in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />

irritando-se com os Medici, por promoverem as obras <strong>de</strong> eruditos pagãos sobre a<br />

palavra <strong>de</strong> Deus. Alguns disseram que ele tinha-se recusado a dar absolvição a<br />

Lorenzo em seus últimos momentos <strong>de</strong> vida, mas eu acho que isso eram rumores<br />

vulgares, do tipo que se espalha como fogo por uma multidão em uma tar<strong>de</strong><br />

quente. Certamente, nesse dia, o Prior Girolamo Savonarola limitou-se às<br />

palavras mais respeitosas: pregando um sermão apaixonado sobre a<br />

transitorieda<strong>de</strong> da vida em comparação à eternida<strong>de</strong> da graça Deus, e nos<br />

exortando a viver cada dia usando os óculos da morte, <strong>de</strong> modo a não sermos<br />

tentados pelos prazeres terrenos e, portanto, estarmos sempre prontos para o<br />

nosso Salvador. Nos bancos, houve muitos movimentos <strong>de</strong> cabeça concordando,<br />

se bem que eu <strong>de</strong>sconfie que aqueles que podiam se dar ao luxo voltavam ao<br />

cheiro da boa comida e boa vida. Sei que nós sim.<br />

Como a nossa família e a futura família <strong>de</strong> Plautilla apoiavam<br />

<strong>de</strong>claradamente os Medici, o casamento foi adiado. Minha irmã, que nunca foi<br />

alguém voluntariamente reservada e cujo sistema nervoso estava à beira <strong>de</strong><br />

colapso, vagava pela casa com a cara tão branca quanto um lençol e um humor<br />

tão negro quanto o Demônio do Batistério.<br />

Mas isso não foi o pior. A morte <strong>de</strong> Lorenzo <strong>de</strong>sestruturou a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

várias maneiras. Nas semanas seguintes, Erila trazia todo tipo <strong>de</strong> história cruel:<br />

como dois dos leões, o símbolo da nossa gran<strong>de</strong>za, tinham brigado e matado um<br />

ao outro na jaula atrás da Piazza <strong>de</strong>lla Signoria um dia antes <strong>de</strong> sua morte e<br />

como, no dia seguinte, uma mulher enlouquecera durante a missa em Santa<br />

Maria Novella, disparando pela nave lateral gritando que um touro selvagem a<br />

estava perseguindo com seus chifres em chamas, ameaçando fazer o edifício<br />

<strong>de</strong>sabar em cima <strong>de</strong> todos eles. Muito tempo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> a levarem embora, as


pessoas disseram que continuaram a ouvir seus gritos ecoando na nave.<br />

Mas o pior <strong>de</strong> tudo foi o corpo da jovem encontrado, no período <strong>de</strong> vigília<br />

<strong>de</strong> Santa Croce, no brejo entre a igreja e o rio, uma semana <strong>de</strong>pois.<br />

Erila <strong>de</strong>sc<strong>rev</strong>eu o fato com todos os <strong>de</strong>talhes sangrentos para mim e<br />

Plautilla enquanto estávamos no jardim com nossos bordados, sob a sombra da<br />

pérgula, giestas amarelas à nossa volta e o perfume <strong>de</strong> lilás e lavanda tornando o<br />

mau cheiro da história menos pior.<br />

— ...o corpo estava tão putrefeito, a carne fora dos ossos. O sentinela teve<br />

<strong>de</strong> tampar o nariz com panos canforados para procurá-lo. Dizem que ela estava<br />

morta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a noite da tempesta<strong>de</strong>. Quem quer que tenha feito isso, nem mesmo<br />

a enterrou direito. Ela estava em uma poça <strong>de</strong> seu próprio sangue, e os ratos e<br />

cachorros a tinham atacado. Meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu estômago tinha sido <strong>de</strong>vorado e<br />

havia marcas <strong>de</strong> mordidas por toda parte.<br />

A proclamação que leram mais tar<strong>de</strong> na praça do mercado dizia que ela<br />

tinha sido violentamente atacada e invocava o perpetrador a se apresentar em<br />

nome <strong>de</strong> sua própria alma e a boa reputação da República. O fato <strong>de</strong> jovens<br />

serem violadas e, às vezes, morrerem por isso era uma verda<strong>de</strong> triste mas<br />

conhecida na cida<strong>de</strong>. O Diabo penetra nos corações <strong>de</strong> muitos homens através<br />

<strong>de</strong> seus órgãos sexuais, e tais ultrajes só provavam a eficácia <strong>de</strong> tradições que<br />

mantinham homens e mulheres respeitáveis tão estritamente separados até se<br />

casarem. Mas esse crime foi diferente. Pois, segundo Erila, o dano causado tinha<br />

sido tão terrível, seus órgãos sexuais cortados e arrancados, que não se tinha<br />

certeza se o responsável tinha sido um homem ou um animal.<br />

Diante do horror do que aconteceu, não surpreen<strong>de</strong>u ninguém que, meses<br />

<strong>de</strong>pois, a notícia tenha caído das tábuas raiadas <strong>de</strong> chuva e sido pisada por<br />

porcos e cabras, e que ninguém tenha-se apresentado para confessar um ultraje<br />

que <strong>de</strong>ixou tal mancha na alma da cida<strong>de</strong>.


Sete<br />

O CASAMENTO DE PLAUTILLA, QUANDO FINALMENTE aconteceu, foi<br />

a confirmação dos tecidos <strong>de</strong> meu pai e da fortuna da nossa família. Sempre que<br />

penso nela, é nesse dia. Está sentada na sala <strong>de</strong> recepção, vestida para a<br />

cerimônia. É cedo, a luz suave e agradável, e o pintor foi chamado para uma<br />

última sessão, para capturá-la para a futura <strong>de</strong>coração <strong>de</strong> nossas pare<strong>de</strong>s. Ela<br />

<strong>de</strong>via estar cansada (tinha passado quase a noite toda em claro, apesar da poção<br />

sonífera que minha mãe lhe <strong>de</strong>ra), mas a sua aparência é <strong>de</strong> quem acaba <strong>de</strong> se<br />

levantar dos campos elísios. O seu rosto é redondo e suave, a pele<br />

fabulosamente clara, embora o ruge da excitação ilumine as bochechas. Seus<br />

olhos são claros, as bordas internas cintilando e vermelhas como romãs em<br />

contraste com o branco, seus cílios nem espessos <strong>de</strong>mais nem escuros <strong>de</strong>mais —<br />

nada <strong>de</strong> buxo — e suas sobrancelhas cheias no meio, <strong>de</strong>pois afiladas, como o<br />

traço <strong>de</strong> um pintor, em direção ao nariz e orelhas. Sua boca é pequena, e faz um<br />

beicinho, como o arco do cupido, e seu cabelo, ou o que po<strong>de</strong> ser visto <strong>de</strong>le sob<br />

as flores e jóias, reflete o seu admirável envolvimento com a indolência, e uma<br />

porção <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>s passadas ao sol.<br />

O seu vestido está na última moda: <strong>de</strong>cote festonado, mostrando sua carne<br />

roliça e o tecido flamengo <strong>de</strong>licado, e astucioso, <strong>de</strong> meu pai, que já recebeu<br />

inúmeras encomendas; suas anáguas macias e cheias como asas <strong>de</strong> anjos, <strong>de</strong><br />

modo que quando ela passa <strong>de</strong>slizando, ouve-se o material suspirar pelo chão.<br />

Mas é o vestido por cima que emociona pela beleza. É feito da melhor seda<br />

amarela, a tonalida<strong>de</strong> do açafrão mais brilhante cultivado especialmente para a<br />

tintura nos campos ao redor <strong>de</strong> San Gimignano, e a saia é bordada, não<br />

grosseiramente como as que vemos na igreja, que tentam competir com o pano<br />

do altar, mas sutilmente, <strong>de</strong> modo que as flores e os pássaros parecem se<br />

entrelaçar através do bordado.<br />

Nessa roupa, minha irmã está tão adorável que, se <strong>de</strong>vemos acreditar em<br />

Platão, ela <strong>de</strong>veria refulgir <strong>de</strong> bonda<strong>de</strong>, e, certamente, está mais bonita do que<br />

nunca, nessa manhã, quase flutuando <strong>de</strong> excitação. Mas apesar <strong>de</strong> querer seu<br />

retrato registrado, é extremamente impaciente para ficar posando por tanto<br />

tempo. Com todos os outros na casa ocupados, sou levada como companhia e<br />

acompanhante para diverti-la, enquanto, no outro lado da sala, as mãos do pintor<br />

se movem firmemente sobre o cartão.<br />

É claro que estou tão interessada nele quanto nela. Todos na casa<br />

receberam túnicas novas para celebrar o dia, e ele parece bonito, embora não<br />

particularmente à vonta<strong>de</strong> na roupa. Está mais gordo (a nossa cozinha é famosa)


e é minha imaginação ou mantém a cabeça um pouco mais erguida? Nossos<br />

olhos se encontram quando entro e penso ter percebido, até mesmo, um sorriso,<br />

mas nesse, <strong>de</strong> todos os dias, ele também <strong>de</strong>ve praticar a humilda<strong>de</strong>. A única<br />

coisa que não mudou é a sua mão, concentrada como sempre, cada linha<br />

tornando-a mais viva, marcando o tecido com números, para que saiba que cores<br />

acrescentar <strong>de</strong>pois.<br />

O que ele faz em suas noites fora <strong>de</strong> casa, ainda não faço idéia. Até<br />

mesmo minha rainha das fofocas não me disse nada. Na casa, continua um<br />

solitário, evitando a companhia dos outros, só que agora o vêem como<br />

arrogante, em vez <strong>de</strong> doente, colocando-se acima <strong>de</strong>les, o que, consi<strong>de</strong>rando-se<br />

seu status <strong>de</strong> artista da família, é, evi<strong>de</strong>ntemente, apropriado. Só muito <strong>de</strong>pois,<br />

percebo que não é tanto a arrogância que o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar quanto o fato <strong>de</strong> não<br />

saber o que dizer. As crianças criadas em mosteiros, na companhia <strong>de</strong> adultos,<br />

apren<strong>de</strong>m melhor do que a maioria das pessoas o po<strong>de</strong>r da solidão e a disciplina<br />

pura, mas severa, <strong>de</strong> falar somente com Nosso Senhor.<br />

Vislumbro seu olho e percebo que sua mão muda para mim. Mas a minha<br />

imagem não está em suas instruções e a sua atenção me faz corar. Como irmã<br />

mais nova, é importante que eu não ofusque a noiva, embora a chance <strong>de</strong> isso<br />

acontecer seja muito pequena. Apesar dos ungüentos <strong>de</strong> minha mãe, minha pele<br />

é tão escura quanto a da minha irmã é clara, e, recentemente, meu corpo <strong>de</strong><br />

girafa começou a se <strong>de</strong>senvolver <strong>de</strong> uma maneira que toda a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Erila<br />

em apertar o espartilho e as grossas pregas do <strong>de</strong>senho do costureiro não<br />

conseguem escon<strong>de</strong>r. Ele não tem tempo <strong>de</strong> me concluir. A sala é, subitamente,<br />

invadida por pessoas e estamos sendo apressadas. No pátio abaixo, os portões<br />

principais são abertos e Erila e eu observamos Plauülla ser levantada e colocada<br />

sobre o cavalo branco, seu vestido, arrumado <strong>de</strong> modo a fluir como um lago<br />

dourado à sua volta, e a arca do casamento, erguida sobre os ombros dos<br />

cavalariços (Erila diz que é preciso tantos homens quantos carregaram o ataú<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Lorenzo) e, assim, tem inicio o cortejo para a casa <strong>de</strong> seus sogros.<br />

Ao <strong>de</strong>sfilarmos pelas ruas, uma multidão se aglomera, o que causa um<br />

prazer especial a meu pai, pois sabe que a nossa fortuna aumenta fomentando<br />

nas mulheres o <strong>de</strong>sejo pelos tecidos e que <strong>de</strong>zenas das famílias mais abastadas<br />

<strong>de</strong> Florença, todas ansiando por belos panos, nos aguardam na casa <strong>de</strong> Maurizio.<br />

A fachada <strong>de</strong> seu falazzo foi <strong>de</strong>corada com tapeçarias especialmente<br />

alugadas para a ocasião. No pátio interno, o banquete <strong>de</strong> casamento está disposto<br />

sobre mesas compridas armadas sobre cavaletes. Se meu pai é o mestre dos<br />

panos, seus parentes afins rivalizam com a comida. Não há um animal sequer<br />

<strong>de</strong>ntro dos limites <strong>de</strong> caça <strong>de</strong> Florença que não tenha perdido pelo menos um<br />

membro <strong>de</strong> sua família para o forno nesse dia. A melhor iguaria é a língua <strong>de</strong><br />

pavão assada, e consi<strong>de</strong>rando como seus primos guincham em nossa casa, não


consigo sentir muita pena <strong>de</strong>sses. Sinto mais pena das rolinhas e camurças, os<br />

dois sendo muito menos gloriosos mortos do que vivos, se bem que o cheiro <strong>de</strong><br />

sua carne condimentada é suficiente para fazer os velhos babarem sobre seus<br />

gibões <strong>de</strong> veludo. Junto com a caça, há as aves domésticas, frango e galinha<br />

cozidos, seguidas <strong>de</strong> vitela, ura rim inteiro assado e uma gran<strong>de</strong> torta <strong>de</strong> peixe<br />

temperado com laranjas, noz-moscada, açafrão e tâmaras. São tantos os pratos<br />

que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo, dá para sentir o cheiro dos arrotos tanto quanto o da<br />

comida. É claro que esse excesso culinário é oficialmente reprovado. Florença,<br />

como todas as boas cida<strong>de</strong>s cristãs, tem leis para limitar o luxo. Mas assim como<br />

todo mundo sabe que a arca <strong>de</strong> casamento <strong>de</strong> uma mulher é uma maneira <strong>de</strong><br />

escon<strong>de</strong>r das autorida<strong>de</strong>s o seu excesso <strong>de</strong> jóias e tecidos suntuosos, o banquete<br />

que acompanha a cerimônia é privado. Na verda<strong>de</strong>, não é raro ver as pessoas,<br />

cujo trabalho é fiscalizar o cumprimento da lei, se empanturrando com os outros<br />

glutões, embora o que o novo prior <strong>de</strong> San Marco faria com tal hipocrisia e<br />

<strong>de</strong>cadência é melhor nem pensar.<br />

Depois da comida, vem a dança. Plautilla é uma noiva genuína nesse<br />

momento, faz um movimento majestoso com a mão em um convite com tal<br />

coquetismo sutil que me <strong>de</strong>ixa, <strong>de</strong> novo, extremamente insegura com a minha<br />

própria falta <strong>de</strong> jeito. Quando ela e Maurizio conduzem a Bassa Danza Lauro,<br />

composição <strong>de</strong> Lorenzo (e a sua própria <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong>, dançada tão<br />

pouco tempo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua morte), é impossível tirar os olhos <strong>de</strong>la.<br />

Eu, em contraste, sou <strong>de</strong>sastrada. Em um dos volteios mais complexos,<br />

me perco completamente e só sou salva quando meu parceiro do momento<br />

sussurra em meu ouvido os próximos passos. Quando me recupero, meu<br />

salvador, um homem bem mais velho, me encara com firmeza durante o<br />

próximo movimento, me guiando, e quando nos entrelaçamos pela última vez —<br />

me orgulho dizer que com uma certa elegância —, ele me faz uma <strong>rev</strong>erência e<br />

fala tranqüilamente:<br />

— Diga-me, é melhor <strong>de</strong>stacar-se em grego ou na dança? — diz ele antes<br />

<strong>de</strong> se virar a tempo <strong>de</strong> fazer a corte à garota do meu lado.<br />

Como somente a minha família conhece tão intimamente meus <strong>de</strong>feitos, e<br />

meus irmãos, em particular, que são <strong>de</strong>speitados <strong>de</strong>mais para usá-los como<br />

intrigas, sinto-me corar, <strong>de</strong> repente envergonhada. Minha mãe, é claro,<br />

acompanhou todo o encontro como um falcão. Antecipo uma repreensão em seu<br />

olhar, mas ela simplesmente olha para mim por um instante, e logo para o outro<br />

lado.<br />

A festivida<strong>de</strong> prossegue noite a<strong>de</strong>ntro. As pessoas comem até sentirem<br />

dificulda<strong>de</strong> em andar, e o vinho flui como o Arno em época <strong>de</strong> cheia, <strong>de</strong> modo<br />

que muitos homens se tornam ru<strong>de</strong>s. Mas o que dizem uns aos outros, não posso<br />

contar, pois sou banida para uma das salas no andar <strong>de</strong> cima, com duas damas <strong>de</strong>


companhia e uma dúzia <strong>de</strong> outras garotas da minha ida<strong>de</strong>. A segregação <strong>de</strong><br />

moças solteiras nesses momentos é um costume aceito (as flores ainda em botão<br />

<strong>de</strong>vem ser protegidas <strong>de</strong> qualquer advento intempestivo do verão), mas<br />

recentemente a lacuna entre mim e as outras garotas parece maior do que a nossa<br />

ida<strong>de</strong>, e, nessa noite, quando olho a festa lá embaixo, juro que será a última vez<br />

que serei um observador e não um participante.<br />

E tinha razão, embora ainda não soubesse o preço disso.<br />

Para minha surpresa, senti sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Plautilla. No começo, a extensão <strong>de</strong><br />

lençóis brancos e a minha soberania absoluta sobre o que tinha sido o nosso<br />

quarto me <strong>de</strong>u prazer. Mas logo a cama começou a parecer gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais sem<br />

ela. Eu não mais ouviria seu ronco nem me entediaria com sua conversa. Sua<br />

tagarelice, apesar <strong>de</strong> trivial ou chata, tinha sido a tela <strong>de</strong> fundo da minha vida<br />

por tanto tempo, que eu não conseguia imaginar como seria o silêncio. A casa<br />

começou a ecoar à minha volta. Meu pai estava viajando <strong>de</strong> novo, e com a sua<br />

ausência, meus irmãos ficavam na rua com mais freqüência. Até mesmo o pintor<br />

tinha ido para uma oficina perto <strong>de</strong> Santa Croce, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria praticar a arte do<br />

afresco, que precisaria para o altar. Com o professor certo e meu pai<br />

financiando, compraria a sua admissão na Guilda <strong>de</strong> Médicos e Boticários, sem<br />

o que nenhum pintor podia trabalhar oficialmente na cida<strong>de</strong>. Só pensar nessa<br />

promoção já me fazia sofrer <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s.<br />

Quanto ao meu próprio futuro, minha mãe manteve sua palavra e não se<br />

falou imediatamente <strong>de</strong> negociações <strong>de</strong> casamento. A cabeça do meu pai estaria<br />

em outras coisas quando ele retornasse. Até mesmo eu podia ver que na esteira<br />

da morte <strong>de</strong> Lorenzo a geometria <strong>de</strong> influência na cida<strong>de</strong> tinha começado a<br />

mudar. Florença estava alvoroçada com especulações sobre até on<strong>de</strong> Piero <strong>de</strong><br />

Medici era capaz <strong>de</strong> substituir seu pai, e se não, se os inimigos da família<br />

conseguiriam, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tantos anos <strong>de</strong> repressão, apoio suficiente para fazer a<br />

balança pen<strong>de</strong>r para o seu lado. Apesar <strong>de</strong>, na época, eu conhecer pouco <strong>de</strong><br />

política, era impossível não perceber o veneno jorrando do púlpito <strong>de</strong> Santa<br />

Maria <strong>de</strong>l Fiore. O Prior Savonarola, recentemente, crescera mais do que a sua<br />

igreja em San Marco, e, agora, pregava seus sermões semanais em uma catedral<br />

cada vez mais cheia. O santo fra<strong>de</strong>, ao que parecia, estava em contato direto com<br />

Deus, e quando olhavam juntos para baixo, para Florença, viam uma cida<strong>de</strong><br />

corrompida pelo privilégio e vaida<strong>de</strong> intelectual. Depois <strong>de</strong> tantos anos<br />

<strong>de</strong>vaneando durante os sermões cheios das escrituras, mas nenhum fervor,<br />

percebi sua língua <strong>de</strong> fogo enfeitiçando. Quando reprovava Aristóteles ou Platão<br />

como pagãos cujas obras solapavam a verda<strong>de</strong>ira igreja enquanto suas almas<br />

apodreciam no fogo eterno, havia argumentos que eu estava preparada para


contestar, mas somente <strong>de</strong>pois que a sua voz não estivesse mais zumbindo nos<br />

meus ouvidos. Ele tinha uma paixão que se parecia com a possessão, e pintava<br />

imagens do inferno que gelavam o nosso sangue <strong>de</strong> horror com cheiro <strong>de</strong><br />

enxofre.<br />

O que tudo isso significou para os futuros planos <strong>de</strong> meu casamento é<br />

difícil dizer, mas claramente tinha <strong>de</strong> me casar. Na visão <strong>de</strong> Savonarola <strong>de</strong>ssa<br />

cida<strong>de</strong> árida e maculada, virgens corriam mais perigo do que nunca antes —<br />

bastava pensar na pobre garota cujo corpo tinha sido <strong>de</strong>struído por luxúria e<br />

<strong>de</strong>ixado para os cães <strong>de</strong>vorarem nas margens do Arno. Meus irmãos, que<br />

permaneceriam solteiros até a faixa dos trinta anos, quando supostamente<br />

estariam sóbrios o bastante para se tornar maridos, tendo arruinado só Deus sabe<br />

quantas criadas virgens, resolveram me atazanar, <strong>de</strong>bochando da questão do<br />

casamento.<br />

O encontro casual, <strong>de</strong> que me lembro, aconteceu no verão, <strong>de</strong>pois do<br />

casamento. A casa estava <strong>de</strong> novo cheia, meu pai ocupado com os negócios <strong>de</strong><br />

sua última viagem, e o pintor, recém-chegado <strong>de</strong> seu aprendizado ab<strong>rev</strong>iado,<br />

trancado em seus aposentos, concentrado em concluir os <strong>de</strong>senhos para a capela.<br />

Eu estava em meu quarto, um livro aberto no colo, minha mente ocupada pelas<br />

maquinações <strong>de</strong> como visitá-lo, quando Tomaso e Luca, fanfarrões, passaram<br />

por mim. Estavam vestidos para sair, mas o novo feitio <strong>de</strong> túnica, acima da coxa,<br />

caía melhor para a perna <strong>de</strong> Tomaso do que para a <strong>de</strong> Luca, que usava o tecido<br />

do meu pai com toda a elegância <strong>de</strong> um touro castrado. Tomaso, em contraste,<br />

tinha olho para a moda e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito cedo, caminhava como se o mundo<br />

estivesse olhando para ele e aprovando o que via. A sua vaida<strong>de</strong> era tão patente<br />

que me dava vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> rir, mas tinha experiência suficiente para saber que era<br />

melhor não <strong>de</strong>bochar <strong>de</strong>le. Ele já havia me mostrado muito sangue no passado.<br />

— Alessandra, querida — disse ele, fazendo uma <strong>rev</strong>erência zombeteira.<br />

— Veja, Luca, a nossa irmã está lendo mais um livro! Que encantadora. E tão<br />

mo<strong>de</strong>sta. Mas é melhor ter cuidado, apesar <strong>de</strong> os maridos gostarem <strong>de</strong> mulheres<br />

submissas, que mantêm a cabeça baixa, às vezes você terá <strong>de</strong> erguer os olhos<br />

para eles.<br />

— Perdão. O que disse?<br />

— Eu disse que você será a próxima. Não é, Luca?<br />

— A próxima a quê?<br />

— Falo eu ou você?<br />

Luca <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros.<br />

— A dar umas trepadinhas — disse ele, fazendo isso soar como algo que<br />

o cozinheiro faz na cozinha. Se por um lado eram lentos em apren<strong>de</strong>r a<br />

gramática grega, por outro, meus irmãos tinham um talento para a gíria <strong>de</strong> rua<br />

mais recente, que usavam sempre que minha mãe não estava por perto.


— Dar trepadinhas? Por favor me diga, Luca, o que é isso?<br />

— É o que Plautilla anda fazendo. — Sorriu arreganhando os <strong>de</strong>ntes,<br />

referindo-se ao fato <strong>de</strong> que a nossa irmã, recentemente, iluminara a casa ao<br />

anunciar a sua gravi<strong>de</strong>z precoce e a promessa <strong>de</strong> um her<strong>de</strong>iro varão.<br />

— Pobre irmãzinha. — A simpatia <strong>de</strong> Tomaso é pior do que seu <strong>de</strong>sprezo.<br />

— Ela não lhe disse como é? Bem, vejamos. Só posso falar pelos homens. Em<br />

um estupro seria como... dar a primeira chupada em um melão suculento.<br />

— E o que faz com a casca?<br />

Ele riu.<br />

— Depen<strong>de</strong> <strong>de</strong> quanto tempo quer que dure. Mas talvez você <strong>de</strong>vesse<br />

fazer ao seu precioso pintor a mesma pergunta.<br />

— O que ele tem a ver com isso?<br />

— Você não sabe? Oh, querida Alessandra, achei que você sabia tudo.<br />

Pelo menos é o que nossos preceptores sempre nos dizem.<br />

— Só dizem isso em comparação a vocês — retorqui sem conseguir me<br />

conter. — O que está dizendo sobre o pintor?<br />

E estou muito ansiosa, o que lhe dá uma vantagem.<br />

Ele me faz esperar.<br />

— O que estou dizendo é que o nosso aparentemente <strong>de</strong>voto artistinha<br />

tem passado suas noites bisbilhotando as favelas florentinas. E não está lá para<br />

pintar. Não é, Luca?<br />

Meu irmão mais velho balança a cabeça concordando, seu rosto gordo<br />

com um sorriso tolo.<br />

— Como você sabe?<br />

— Porque o encontramos, por isso.<br />

— Quando?<br />

— Na noite passada, esgueirando-se pela ponte velha.<br />

— Falaram com ele?<br />

— Sim, perguntei aon<strong>de</strong> tinha ido.<br />

— E?<br />

— Ele parecia o pecado em pessoa, e respon<strong>de</strong>u que estava "respirando o<br />

ar noturno".<br />

—Talvez estivesse.<br />

— Oh, irmãzinha. Você não tem idéia. O homem estava um trapo. O rosto<br />

parecia o <strong>de</strong> um fantasma, e estava todo sujo. Positivamente estava fe<strong>de</strong>ndo. O<br />

cheiro <strong>de</strong> xota barata. — Apesar <strong>de</strong> eu nunca ter ouvido a palavra antes, percebei<br />

pela maneira como a proferiu que <strong>de</strong>via ser alguma coisa torpe, e enquanto eu<br />

tentava não <strong>de</strong>monstrar isso, ele me chocou com o <strong>de</strong>sprezo em sua voz. —<br />

Portanto, é melhor ter cuidado. Se ele pintá-la <strong>de</strong> novo, mantenha seu manto<br />

bem fechado em volta do seu corpo. Ele po<strong>de</strong> querer mais do que o seu retrato.


— Contou a mais alguém sobre isso?<br />

Ele sorri.<br />

— Se eu o entreguei? Por que faria isso? Acho que ele provavelmente<br />

pinta melhor com uma boa prostituta do que com uma dieta <strong>de</strong> evangelhos.<br />

Quem foi mesmo aquele artista <strong>de</strong> que você gosta tanto? O que violou a freira<br />

que posou para a sua Madona.<br />

— Fra Filippo — respondi. — Ela era muito bonita. E ele se ofereceu para<br />

se casar com ela <strong>de</strong>pois.<br />

— Só porque os Medici o obrigaram. Aposto que o velho Cosimo teve um<br />

bom <strong>de</strong>sconto no preço do retábulo.<br />

Estava evi<strong>de</strong>nte que Tomaso herdara um pouco da sagacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meu pai<br />

para os negócios.<br />

— Então que acordo fez com o pintor em troca do seu silêncio, Tomaso?<br />

Ele riu.<br />

— O que você acha? Fiz com que prometesse dar a mim e a Luca bonitas<br />

pernas e testa larga. A nossa beleza para a posterida<strong>de</strong>. E dar a você um lábio<br />

leporino. E encurtar sua perna, para explicar você dançando.<br />

Embora eu esperasse por isso, a sua cruelda<strong>de</strong> ainda me chocava. Sempre<br />

acontecia nesse momento da nossa discussão: a sua necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me punir<br />

pelas humilhações no gabinete <strong>de</strong> estudo, a minha recusa <strong>de</strong> ser espezinhada. Às<br />

vezes, acho que a trajetória <strong>de</strong> toda a minha vida se <strong>de</strong>senvolveu em minhas<br />

batalhas com Tomaso. Cada vez que eu vencia, também perdia, <strong>de</strong> certa forma.<br />

— Oh, não me diga que feri seus sentimentos! Se você soubesse...<br />

estamos lhe fazendo um favor, não estamos, Luca? Não é fácil encontrar marido<br />

para uma garota que cita Platão, mas que tropeça no próprio pé. Todo mundo<br />

sabe que você vai precisar <strong>de</strong> toda a ajuda que pu<strong>de</strong>r.<br />

— É melhor tomarem cuidado, todos os dois — eu disse <strong>de</strong> modo<br />

ameaçador, engrossando a voz para ocultar minha mágoa. —Vocês acham que<br />

po<strong>de</strong>m fazer o que querem. Que o dinheiro do papai e o nosso brasão lhes<br />

autorizam isso. Mas se abrirem os olhos, verão que as coisas estão mudando. A<br />

espada da ira <strong>de</strong> Deus está se erguendo sobre a cida<strong>de</strong>. Ele move-se<br />

silenciosamente pelas ruas, à noite, e vê que erros cometem.<br />

— Uau, fala igualzinho a ele — ri Luca, nervosamente. Sou boa em<br />

interpretar as vozes quando quero.<br />

— Você ri agora — viro-me para ele, olhando fundo em seus olhos, como<br />

vi Savonarola fazer, do púlpito. — Mas estará chorando muito em b<strong>rev</strong>e. O<br />

Senhor enviará peste, inundação, guerra e fome para punir os infiéis. Aqueles<br />

que se cobrem com a retidão serão salvos, o resto sufocará no vapor do enxofre.<br />

Por um momento, juro que até mesmo meu irmão pateta po<strong>de</strong> sentir o<br />

calor do inferno.


— Não lhe dê ouvidos, Luca. — Tomaso é mais difícil <strong>de</strong> assustar. — Ele<br />

é um louco. Todo mundo sabe disso.<br />

— Nem todo mundo, Tomaso. Ele sabe pregar e cita bem as escrituras.<br />

Devia escutá-lo um dia.<br />

— Ah... começo a escutar, mas, então, minhas pálpebras começam a<br />

pesar...<br />

— Porque você ficou na rua até altas horas da noite. Olhe para trás <strong>de</strong><br />

você e veja o efeito que ele causou naqueles que dormiam em suas próprias<br />

camas. Seus olhos estavam abertos como hóstias. E acreditaram nele. —<br />

Percebo que Luca, agora, presta atenção.<br />

— Guerra? Fome? Inundação? Vemos o Arno nas ruas ano sim ano não, e<br />

se a safra é fraca, o povo passará fome <strong>de</strong> novo. Não tem a ver com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Deus.<br />

— Sim, mas se ele prediz isso e acontece, as pessoas associarão as duas<br />

coisas. Pense no Papa.<br />

— O quê? Ele diz que um homem velho e doente vai morrer, e quando<br />

morre, todos o chamam <strong>de</strong> profeta. Eu pensava que fosse necessário mais do que<br />

isso para impressioná-la. De qualquer jeito, você <strong>de</strong>veria ser a mais preocupada.<br />

Se por um lado ele suspeita da erudição em um homem, por outro, acredita que<br />

o Diabo resi<strong>de</strong> nas mulheres. Acha que as mulheres não <strong>de</strong>veriam nem mesmo<br />

falar... Pois, se ainda não se esqueceu, irmãzinha, foi Eva que usou as palavras<br />

para enganar Adão...<br />

— Por que sempre que há vozes altas na casa são vocês dois? — Minha<br />

mãe surge no quarto, vestida para viajar, Maria e outra criada correndo atrás,<br />

carregando um conjunto <strong>de</strong> malas <strong>de</strong> couro. — Brigam como dois arruaceiros. É<br />

um insulto escutá-los. O senhor <strong>de</strong>veria não atormentar a sua irmã, e você,<br />

Alessandra, é uma <strong>de</strong>sgraça para o seu sexo.<br />

Nós todos baixamos a cabeça para ela. Enquanto baixava a minha, cruzei<br />

o olhar com Tomaso e ele pensou no meu pedido. Ainda havia momentos em<br />

que a nossa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ajudar um ao outro era tão gran<strong>de</strong> quanto nossas<br />

diferenças.<br />

— Mamãe querida, nos perdoe, estávamos simplesmente discutindo<br />

religião — disse ele com um charme que <strong>de</strong>spiria certas mulheres, mas que era<br />

inútil com minha mãe. — Até on<strong>de</strong> <strong>de</strong>vemos dar atenção aos recentes sermões<br />

do bom fra<strong>de</strong>?<br />

— Oh... — ela emitiu um suspiro irritado.—Espero que meus filhos<br />

obe<strong>de</strong>çam à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus sem as palavras <strong>de</strong> Savonarola para instigá-los.<br />

— Mas certamente não concorda com ele, não é mamãe? — eu disse com<br />

um tom urgente. — Isto é, ele acha que o estudo dos antigos é uma traição à<br />

verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo.


Ela pára e me olha fixo, meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua mente em outras coisas.<br />

— Alessandra, rezo todos os dias para que você encontre uma maneira <strong>de</strong><br />

se satisfazer questionando menos e aceitando mais. Quanto a Girolamo<br />

Savonarola, bem, é um homem santo que acredita no reino dos céus — franziu o<br />

cenho. — Ainda assim, me pergunto se Florença teria realmente necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um frei <strong>de</strong> Ferrara para <strong>rev</strong>elar-lhe a sua alma. Se temos <strong>de</strong> ouvir más notícias, é<br />

melhor que sejam ditas por alguém da nossa própria família. Como agora — <strong>de</strong>u<br />

um suspiro. — Tenho <strong>de</strong> ver Plautilla.<br />

— Plautilla? Por quê?<br />

— Algum problema com o bebê. Ela me chamou. Provavelmente passarei<br />

a noite lá, mandarei um recado por Angélica. Alessandra, você vai parar <strong>de</strong><br />

discutir e se aprontar para o professor <strong>de</strong> dança, que, aparentemente, ainda<br />

acredita que milagres sejam possíveis. Luca, você vai para seus estudos, e<br />

Tomaso fica e fala com seu pai quando ele chegar. Ele está na reunião do<br />

Conselho <strong>de</strong> Segurança na Signoria, e é provável que chegue tar<strong>de</strong>.<br />

— Mas mãe...<br />

— O que quer que tenha planejado para esta noite, Tomaso, po<strong>de</strong> esperar<br />

até seu pai retornar. Está claro?<br />

E meu bonito irmão, que sempre tem resposta para tudo, ficou calado.


Oito<br />

FIQUEI ACORDADA ATÉ TARDE, COMENDO PUDIM <strong>de</strong> leite surrupiado<br />

da <strong>de</strong>spensa — o nosso cozinheiro me adorara por causa <strong>de</strong> meu apetite, e esse<br />

tipo <strong>de</strong> furto era visto apenas como a forma mais sincera <strong>de</strong> lisonja — e jogando<br />

xadrez com Erila, para fofocar. Era o único jogo em que sempre a vencia. Em<br />

dados e cartas, ela era um mestre do jogo, embora eu <strong>de</strong>sconfie que a sua maior<br />

habilida<strong>de</strong> estivesse em trapacear e não no jogo em si. Nas ruas, provavelmente<br />

po<strong>de</strong>ria fazer uma fortuna, embora jogar fosse um dos pecados sobre os que<br />

Savonarola, do púlpito, estaria insuflando fogo.<br />

Quando cansamos <strong>de</strong> jogar, fiz com que me ajudasse a misturar bem o<br />

nanquim diluído e posasse para mim no vestido <strong>de</strong> seda da Madona em minha<br />

Anunciação. Coloquei a can<strong>de</strong>ia do seu lado esquerdo <strong>de</strong> modo que as sombras<br />

criadas se aproximassem do efeito da luz do dia. Tudo o que eu sabia <strong>de</strong>ssas<br />

técnicas vinha <strong>de</strong> Cennini. Embora estivesse morto havia muito tempo, era o<br />

professor <strong>de</strong> quem eu podia me aproximar mais, e o estudava com a <strong>de</strong>dicação<br />

<strong>de</strong> uma noviça às escrituras. Seguindo o seu ensinamento da drapejaria, usei a<br />

aguada mais carregada para criar a parte mais escura da sombra, <strong>de</strong>pois fui<br />

tornando-a mais suave até atingir a parte <strong>de</strong> cima das dobras, on<strong>de</strong> acrescentei<br />

uma risca <strong>de</strong> alvaia<strong>de</strong> diluído, <strong>de</strong> modo que o sulco do pano parecesse capturar o<br />

brilho da luz. Mas, apesar <strong>de</strong> isso dar à roupa <strong>de</strong> Nossa Senhora uma certa<br />

profundida<strong>de</strong>, percebia que era grosseiro, mais um artifício do pincel do que<br />

uma expressão da verda<strong>de</strong>. Minhas limitações me <strong>de</strong>ixavam em <strong>de</strong>sespero.<br />

Enquanto eu fosse meu mestre e meu aprendiz ao mesmo tempo ficaria sempre<br />

presa à re<strong>de</strong> da inexperiência.<br />

— Oh, fique quieta, não consigo capturar a prega, se você se mexe. —<br />

Você <strong>de</strong>via experimentar ficar aqui como uma pedra. Meus braços vão cair <strong>de</strong><br />

tanta dor.<br />

— Isso é por causa da velocida<strong>de</strong> com que movia suas peças <strong>de</strong> xadrez. Se<br />

estivesse posando para um pintor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> teria <strong>de</strong> bancar a estátua por horas.<br />

— Se eu estivesse posando para um pintor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, estaria com a bolsa<br />

cheia <strong>de</strong> florins.<br />

Sorri.<br />

— Estou surpresa que não a tenham apanhado nas ruas. Você brilha tanto<br />

quando o sol está em você.<br />

— Ah! E em que história encaixariam a minha pele?<br />

Recordando isso, queria ter tido coragem <strong>de</strong> pintá-la como a minha<br />

Madona, só para capturar esse lustre do carvão negro. Havia, na cida<strong>de</strong>, aqueles


que achavam a sua cor estranha: viravam-se e a olhavam embasbacados,<br />

divididos entre fascínio e repulsa, quando voltávamos juntas da igreja. Mas ela<br />

não se alterava, sustentando o olhar <strong>de</strong>les até que <strong>de</strong>sviassem os seus primeiro.<br />

Para mim, a sua cor era gloriosa. Houve vezes em que eu não conseguia evitar<br />

que meu pincel traçasse uma linha <strong>de</strong> alvaia<strong>de</strong> em seu braço, só para admirar o<br />

contraste entre a luz e o escuro.<br />

— E o nosso pintor? Mamãe disse que os afrescos da capela serão sobre a<br />

vida <strong>de</strong> Santa Catarina da Alexandria. Haverá bastante espaço para você lá. Ele<br />

nunca pediu que posasse?<br />

— Minha figura feita pelo Garoto Magrela? — olhou para mim<br />

atentamente. — O que você acha?<br />

— Eu... eu não sei. Acho que ele tem bom olho para beleza.<br />

— Um monge jovem também tem medo disso. Para ele, sou somente uma<br />

cor que quer capturar.<br />

— Então, acha que ele é inacessível às mulheres?<br />

Ela bufou.<br />

— Se for, será o primeiro que conheço, Ele é rígido <strong>de</strong> pureza.<br />

— Nesse caso, me pergunto por que você toma tantas precauções para me<br />

manter longe <strong>de</strong>le.<br />

Ela me encarou por um momento.<br />

— Porque nas mãos certas, a inocência po<strong>de</strong> <strong>rev</strong>elar mais armadilhas do<br />

que a experiência.<br />

— Bem, isso mostra o quanto você sabe — eu disse, triunfante por ter,<br />

pela primeira vez, uma história a contar que ela <strong>de</strong>sconhecia. — Pelo que soube,<br />

ele passa as noites com mulheres cujas almas são mais escuras do que a sua pele.<br />

— Quem lhe disse isso?<br />

— Meus irmãos.<br />

— Bah! Eles não distinguem o próprio traseiro do cotovelo. Tomaso ama<br />

a si mesmo exageradamente, e quando se trata <strong>de</strong> um corpo <strong>de</strong> mulher, Luca não<br />

é capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir um corvo em uma tigela <strong>de</strong> leite.<br />

— Você fala assim, mas me lembro <strong>de</strong> quando ele a olhava bastante<br />

interessado.<br />

— Luca! — e riu. — Só tem estômago para pecar quando já entornou<br />

meio barril <strong>de</strong> ale. Quando está sóbrio, sou uma criação do Diabo.<br />

— E é. Pare <strong>de</strong> se mexer! Como posso captar a sombra certa se você a<br />

muda?<br />

Depois, quando ela já tinha ido embora, senti um latejar em minha barriga<br />

que ia e vinha em um ritmo irregular, embora não <strong>de</strong>sse para saber até que ponto<br />

seria por causa do excesso <strong>de</strong> pudim <strong>de</strong> leite. O calor do verão era capaz <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>rreter o cérebro. Pensei em Plautilla. Estaria sentindo a dor <strong>de</strong>la? Ela <strong>de</strong>via


estar com quatro, cinco meses no máximo, <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z. O que isso queria dizer?<br />

Entre as fofocas <strong>de</strong> Erila e a grosseria <strong>de</strong> meus irmãos, eu provavelmente sabia<br />

mais sobre o ato do sexo do que a maioria das garotas da minha ida<strong>de</strong>, mas para<br />

cada fato havia um pequeno mar <strong>de</strong> ignorância e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um bebê<br />

era um <strong>de</strong>les. Ainda assim, a ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> minha mãe foi o bastante para que eu<br />

soubesse que era grave. A dor voltou como um punho apertando meus<br />

intestinos. Levantei-me e pus-me a andar para ver se a aliviava.<br />

Não conseguia tirar o pintor da cabeça. Pensava em seu talento, na<br />

maneira como captara as minhas mãos em repouso, como as fizera parecer<br />

tranqüilas, como se estivessem cheias da alma. Então o vi atravessar<br />

cambaleando a Ponte Vecchio com a turma do meu irmão espalhada à sua<br />

frente. E por mais que tentasse, não conseguia equiparar as duas imagens. Mas,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das dúvidas <strong>de</strong> Erila, o fato <strong>de</strong> ele ter estado lá era profundamente<br />

incriminatório. A velha ponte tinha uma péssima reputação: os açougues e<br />

fabricantes <strong>de</strong> velas com seus interiores semelhantes ao útero e o cheiro forte <strong>de</strong><br />

cera fervendo e carne apodrecendo pairando na rua. Mesmo durante o dia, havia<br />

cachorros e mendigos por toda parte, farejando restos ou vísceras, enquanto, à<br />

noite, dos dois lados da ponte, a cida<strong>de</strong> se estilhaçava em um labirinto <strong>de</strong> vielas<br />

on<strong>de</strong> o escuro escondia todo tipo <strong>de</strong> pecado.<br />

As próprias prostitutas eram bastante cautelosas. Havia normas <strong>de</strong> como<br />

<strong>de</strong>viam se conduzir. Os sinos que carregavam e as luvas que usavam eram tanto<br />

a lei quanto acessórios <strong>de</strong> sedução. Porém, também essa era uma lei cumprida<br />

com brandura. Como com a Polícia Suntuária, havia uma diferença, aceita, entre<br />

o espírito e a letra. Erila sempre vinha para casa com histórias sobre como<br />

mulheres abordadas por fiscais por estarem usando peles ou botões <strong>de</strong> prata se<br />

esquivavam da multa com o uso astucioso da semântica: "Oh, não, senhor, isso<br />

não é pele, é um novo material que apenas se parece com pele. Estes? Não são<br />

botões. Não há casas <strong>de</strong> botões, está vendo? São presilhas. Presilhas? Sim, <strong>de</strong>ve<br />

ter ouvido falar <strong>de</strong>las. Certamente Florença é a maravilha do mundo, para ter<br />

coisas mo<strong>de</strong>rnas assim, não é?" Mas pelo que se dizia, essa esperteza não<br />

funcionava com alguns dos novos oficiais. A pureza estava voltando a entrar na<br />

moda e a autorida<strong>de</strong> cega estava recuperando a visão.<br />

Eu só tinha visto uma cortesã uma vez. A Ponte alle Grazie tinha sido<br />

fechada por danos causados por uma enchente, e tivemos <strong>de</strong> atravessar na Ponte<br />

Vecchio. Era fim <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>. Lodovica caminhava na frente <strong>de</strong> Plautilla e <strong>de</strong> mim,<br />

com Maria atrás <strong>de</strong> nós. Passamos por uma loja aberta, lembro-me que era uma<br />

loja <strong>de</strong> velas, sombria em seu interior, mas com uma janela nos fundos que dava<br />

para o rio, o pôr-do-sol atrás. Uma mulher estava sentada em silhueta, seus seios<br />

nus e, aos seus pés, um homem ajoelhado com a cabeça entre suas saias, como<br />

se em adoração. Ela era adorável, seu corpo iluminado pelo crepúsculo e, nesse


momento, ela virou a cabeça em direção à rua e tenho certeza <strong>de</strong> que me viu<br />

olhando. Sorriu e pareceu tão... bem, tão segura <strong>de</strong> si... Só sei que me senti tão<br />

excitada e perturbada que tive <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar o olhar. Mais tar<strong>de</strong> pensei em sua<br />

beleza palpável. Se Platão tivesse razão, então como seria possível uma mulher<br />

sem nenhuma virtu<strong>de</strong> ter tal aparência? A amante <strong>de</strong> Filippo Lippi pelo menos<br />

tinha sido uma freira que servia Deus quando foi chamada para ser a sua<br />

Madona. E, <strong>de</strong> certa maneira, continuou servindo a Deus <strong>de</strong>pois, pois a sua<br />

imagem convidava os outros rezar. Oh, ela era linda. Seu rosto iluminou <strong>de</strong>zenas<br />

<strong>de</strong> outros quadros <strong>de</strong>le: olhos claros, serenos, assumindo o seu fardo com<br />

gratidão e graça. Eu gostava mais <strong>de</strong>la do que da Madona <strong>de</strong> Botticelli. Embora<br />

Fra Filippo tivesse sido seu professor, ele tomara uma mo<strong>de</strong>lo diferente, uma<br />

mulher que todos sabiam ser a amante <strong>de</strong> Giuliano <strong>de</strong> Medici. Depois <strong>de</strong><br />

conhecer seu rosto, o víamos em toda parte: em suas ninfas, seus anjos, suas<br />

heroínas clássicas, até mesmo em suas santas. A Madona <strong>de</strong> Botticelli era como<br />

pertencesse a todo mundo que a olhasse. A <strong>de</strong> Fra Filippo pertencia somente a<br />

Deus e a si mesma.<br />

Meu estômago começou a doer <strong>de</strong> novo. Minha mãe mantinha uma<br />

garrafa <strong>de</strong> liquore digestivo no baú <strong>de</strong> remédios em seu quarto <strong>de</strong> vestir. Talvez<br />

eu tomasse um pouco, aliviasse a dor. Saí do meu quarto e <strong>de</strong>sci, em silêncio,<br />

um lance <strong>de</strong> escada, mas ao me virar em direção aos aposentos <strong>de</strong> minha mãe,<br />

algo me chamou a atenção, uma linha <strong>de</strong> luz tremeluzindo por baixo da porta da<br />

sala da capela à minha esquerda. A capela era proibida criados, e com minha<br />

mãe e meu pai fora <strong>de</strong> casa, só podia ser uma pessoa. Não me lembro mais se<br />

esse pensamento me fez hesitar ou me instou a prosseguir.<br />

Dentro, uma onda <strong>de</strong> luz <strong>de</strong> vela ilumina a pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> trás do altar, mas<br />

imediatamente a luz se contrai, <strong>de</strong>pois eclipsa-se completamente, quando a<br />

última vela é coberta. Espero, <strong>de</strong>pois fecho aporta atrás <strong>de</strong> mim, <strong>de</strong>ixando-a,<br />

<strong>de</strong>liberadamente, ranger, antes <strong>de</strong> batê-la. Quem quer que eu fosse, até on<strong>de</strong> lhe<br />

diz respeito, tornara a sair.<br />

Ficamos no escuro por um tempo interminável, o silêncio tão completo<br />

que quando engulo ouço o som da minha saliva <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> meus ouvidos. Por<br />

fim, um ponto <strong>de</strong> luz on<strong>de</strong> as velas tinham estado. Observo quando o acen<strong>de</strong>dor<br />

ocultado ilumina um pavio, <strong>de</strong>pois outro e mais outro, até a pare<strong>de</strong> do fundo<br />

ficar repleta <strong>de</strong> línguas da cor laranja e ele entrar em foco, seu corpo alto e<br />

magro <strong>rev</strong>elado no interior do semi-círculo <strong>de</strong> luz.<br />

Dou os primeiros passos na sua direção. Meus pés estão <strong>de</strong>scalços e tenho<br />

prática em andar à noite. E, ao que parece, ele também. Sua cabeça se ergue<br />

abruptamente, como um animal sentindo um perfume noturno.<br />

— Quem está aí? — E a sua voz é áspera o bastante para alterar a batida<br />

do meu coração, se bem que sei que é assim por medo e não por raiva.


Ando até a beira da luz. O clarão das velas lança sombras em sua face e<br />

seus olhos cintilam, um verda<strong>de</strong>iro gato no escuro. Nenhum <strong>de</strong> nós dois está<br />

vestido apropriadamente. Ele está sem túnica, a camisa <strong>de</strong> baixo aberta, <strong>de</strong> modo<br />

que posso ver a aresta <strong>de</strong> sua clavícula e a pele macia embaixo, pérola brilhante<br />

na luz <strong>de</strong> vela. Sou uma figura <strong>de</strong>sajeitada e paralisada em uma camisola<br />

amassada, o cabelo solto, caindo nas costas. O mesmo cheiro rançoso <strong>de</strong> que me<br />

lembro da sessão para o retrato pesa no ar à nossa volta. Exceto que agora sei <strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong> vem. Como meu irmão o chamou? Fedor <strong>de</strong> xota barata? Mas se Erila tem<br />

razão, como um homem com tanto medo <strong>de</strong> mulheres po<strong>de</strong> sentir tal atração? E<br />

se ele veio aqui para se confessar?<br />

— Vi a luz da vela do corredor. O que está fazendo?<br />

— Estou trabalhando — fala rispidamente.<br />

Agora, atrás <strong>de</strong>le, posso ver o cânone preso na pare<strong>de</strong> leste do altar, um<br />

<strong>de</strong>senho em tamanho natural do afresco, com um pequeno esboço, <strong>de</strong> modo que<br />

possa ser transferido para a pare<strong>de</strong> em carvão. Com o que tanto sei em teoria ele,<br />

agora, está, <strong>de</strong> fato, familiarizado. Seu novo conhecimento me dá vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

chorar. Sei que não <strong>de</strong>via estar aqui. Seja ele libertino ou não, se somos<br />

encontrados juntos, nossas vidas serão separadas para sempre. Mas a minha<br />

fome e a minha curiosida<strong>de</strong> superam meu medo e passo por ele para melhor ver<br />

o <strong>de</strong>senho.<br />

Ainda posso vê-lo agora: a glória <strong>de</strong> Florença evocada em cem traços<br />

hábeis a bico-<strong>de</strong>-pena, no segundo plano, dois grupos <strong>de</strong> pessoas, cada grupo em<br />

um lado, olhando para baixo, para uma maça no chão sobre a qual está o corpo<br />

<strong>de</strong> uma garota. Esses espectadores são maravilhosos; homens e mulheres reais<br />

da cida<strong>de</strong>, suas personalida<strong>de</strong>s em seus rostos, ida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, serenida<strong>de</strong>,<br />

obstinação sucessivamente. A sua pena etérea <strong>de</strong>sceu à terra. Mas a sua jornada<br />

é perceptível na garota. Ela atrai nosso olhar imediatamente. Não somente<br />

porque é o ponto <strong>de</strong> fuga na composição, mas por causa <strong>de</strong> sua extrema<br />

fragilida<strong>de</strong>. Com as obscenida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Tomaso zunindo em minha cabeça, não<br />

consigo evitar imaginar on<strong>de</strong> ele encontrou o mo<strong>de</strong>lo. Talvez só as procure para<br />

pintá-las. Existiam prostitutas tão jovens? Que ela é uma garota ainda, e não<br />

uma mulher adulta, é óbvio; sob sua camisola, po<strong>de</strong>-se perceber seus seios<br />

brotando, e há uma angularida<strong>de</strong> canhestra em sua constituição física, como se a<br />

feminilida<strong>de</strong> estivesse chegando cedo <strong>de</strong>mais. Mas o mais impressionante em<br />

relação ao seu corpo é a sua completa inércia...<br />

— Oh. — E estou falando antes <strong>de</strong> dar a mim mesma permissão. —<br />

Apren<strong>de</strong>u um bocado em nossa cida<strong>de</strong>. Como faz isto? Como eu posso saber<br />

que ela está morta? Quando olho para ela, isso está tão claro. Mas quais são as<br />

linhas que me dizem isso? Mostre-me. Sempre que <strong>de</strong>senho corpos, não consigo<br />

distinguir entre sono e morte. Várias vezes parecem simplesmente <strong>de</strong>spertos


com os olhos fechados.<br />

Pronto. Saiu finalmente. Espero que ria na minha cara, ou mostre <strong>de</strong>sdém<br />

<strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> outras maneiras. O silêncio aumenta e estou tão assustada quanto<br />

quando estávamos no escuro.<br />

— Tenho <strong>de</strong> lhe dizer que isto que não é uma confissão perante Deus,<br />

senhor, pois Ele já sabe — digo calmamente. — Mas é uma confissão diante o<br />

senhor. Portanto, po<strong>de</strong>ria respon<strong>de</strong>r alguma coisa?<br />

Olho além <strong>de</strong>le, para o escuro da capela. É um lugar tão bom quanto urro<br />

qualquer. Suas pare<strong>de</strong>s certamente escutarão coisas piores nos anos que virão.<br />

— Desenha? — pergunta baixinho.<br />

— Sim. Sim. Mas quero fazer mais. Quero pintar. Como o senhor faz. —<br />

De repente parece ser a coisa mais importante do mundo contar-lhe. — É algo<br />

tão terrível assim? Se eu fosse um garoto e tivesse talento, eu já teria sido<br />

aprendiz <strong>de</strong> um mestre. Assim como o senhor foi. Então, eu também saberia<br />

como iluminar estas pare<strong>de</strong>s com tinta. Mas, em vez disso, estou presa nesta<br />

casa, enquanto meus pais me procuram um marido. No fim, comprarão um com<br />

um bom nome e irei para a sua casa, dirigir a sua casa, ter filhos, e <strong>de</strong>saparecer<br />

no tecido da sua vida, exatamente como um fio <strong>de</strong> linha colorida em uma<br />

tapeçaria. Nesse meio-tempo, a cida<strong>de</strong> estará cheia <strong>de</strong> artistas construindo<br />

glórias a Deus. E eu nunca saberei se po<strong>de</strong>ria ter feito a mesma coisa. Mesmo<br />

que eu não tenha o seu talento, pintor, tenho o seu <strong>de</strong>sejo. Tem <strong>de</strong> me ajudar.<br />

Por favor.<br />

E sei que ele compreen<strong>de</strong>u. Não ri, nem me rejeita. Mas o que po<strong>de</strong> dizer?<br />

O que alguém po<strong>de</strong>ria me dizer? Sou tão arrogante, mesmo em meu <strong>de</strong>sespero.<br />

— Se precisa <strong>de</strong> ajuda, <strong>de</strong>ve, então, pedi-la a Deus. É um assunto entre a<br />

senhora e Ele.<br />

— Oh, já pedi. E Ele me enviou o senhor. — Seu rosto <strong>de</strong>svia-se da luz da<br />

vela, <strong>de</strong> modo que não consigo ver sua expressão. Mas sou jovem e ansiosa<br />

<strong>de</strong>mais para suportar seu silêncio por muito tempo. — Não enten<strong>de</strong>? Somos<br />

aliados, o senhor e eu. Se eu quisesse lhe fazer mal, po<strong>de</strong>ria ter contado a meus<br />

pais como me atacou naquela primeira tar<strong>de</strong>.<br />

— Exceto que acho que pecou tanto contra a proprieda<strong>de</strong> como eu em<br />

relação à senhora, naquele dia — replica calmamente. — Como fazemos agora,<br />

estando aqui juntos. — E se põe a preparar suas coisas para apagar as velas e<br />

vejo tudo isso escapulindo <strong>de</strong> mim.<br />

— Por que me <strong>de</strong>spreza tanto? Porque sou mulher? — Respiro fundo. —<br />

Pois me parece que apren<strong>de</strong>u bastante com elas em outros aspectos. — Ele pára,<br />

embora não se vire nem <strong>de</strong>monstre <strong>de</strong> outra maneira admitir minhas palavras. —<br />

Isto é... refiro-me à garota na maca. Eu me pergunto quanto pagou para ela<br />

posar.


Agora ele se vira e olha para mim, e sua face está lívida à luz <strong>de</strong> vela. Mas<br />

não consigo mais me conter.<br />

— Sei o que faz à noite, senhor. Observei-o <strong>de</strong>ixando a casa. Falei com<br />

meu irmão Tomaso. Acho que meu pai não ficaria feliz ao <strong>de</strong>scobrir que o pintor<br />

da sua capela passa as noites freqüentando prostitutas nas favelas da cida<strong>de</strong>.<br />

Nesse momento, acho possível que ele chore. Apesar <strong>de</strong> Deus estar em<br />

seus <strong>de</strong>dos, ele é extremamente ina<strong>de</strong>quado quando se trata <strong>de</strong> lidar com a<br />

astúcia da nossa cida<strong>de</strong>. Como <strong>de</strong>ve ter-lhe sido <strong>de</strong>cepcionante chegar na nova<br />

Atenas e <strong>de</strong>scobri-la tão torpe e com tantas tentações. Talvez Savonarola, afinal,<br />

tivesse razão. Talvez realmente tivéssemos nos tornado mundanos <strong>de</strong>mais para o<br />

nosso próprio bem.<br />

— Não enten<strong>de</strong> nada — diz ele e sua voz soa carregada <strong>de</strong> dor.<br />

— Tudo o que peço é que veja o meu trabalho. Que me diga o que acha,<br />

sem mentir. Se fizer essa coisa tão simples não contarei a ninguém. Mais ainda...<br />

eu o protegerei contra o meu irmão. Ele po<strong>de</strong> ser bem mais cruel do que eu e...<br />

Nós dois ouvimos. O ruído da porta central abrindo-se lá embaixo. O<br />

mesmo arrepio <strong>de</strong> horror nos percorreu e sem pensar, nos pusemos a apagar as<br />

velas à nossa volta. Se alguém entrasse agora... O que eu tinha na cabeça para<br />

assumir um risco <strong>de</strong>sse?<br />

— Meu pai — sussurrei quando o escuro nos engolfou. — Ele estava em<br />

uma reunião na Signoria.<br />

Como esperado, ouvi sua voz, chamando da escada, e, então, mais<br />

próxima, uma porta se abriu. Tomaso <strong>de</strong>ve ter adormecido esperando por ele.<br />

Suas vozes se misturam e, <strong>de</strong>pois, outra porta se fecha. Silêncio.<br />

Do lado, no escuro, o ponto vermelho <strong>de</strong> seu acen<strong>de</strong>dor refulge como um<br />

vaga-lume. Estamos tão perto um do outro que sua respiração roça minha<br />

bochecha. O seu cheiro me cerca, quente e azedo, e sinto uma náusea repentina<br />

no buraco do estômago. Estendo a mão e toco na pele em seu peito. Dou um<br />

passo atrás como se ele tivesse me queimado, e <strong>de</strong>rrubo uma vela no pavimento<br />

<strong>de</strong> lajes. O barulho é terrível. Um momento antes e...<br />

— Vou primeiro — digo quando recupero o equilíbrio, e minha voz soa<br />

ríspida <strong>de</strong> medo.<br />

— Fique aqui até ouvir a porta fechar.<br />

Ele assentiu com um resmungo. Um bruxuleio <strong>de</strong> luz <strong>de</strong> vela aparece do<br />

lado do acen<strong>de</strong>dor, com seu rosto iluminado acima. Tínhamos feito um acordo?<br />

Não faço idéia. Recuo rapidamente para a porta. Quando a alcanço, olho para<br />

trás e vejo sua figura em uma silhueta ampliada na pare<strong>de</strong>, enquanto ele tira o<br />

papel da pare<strong>de</strong> do altar, seus braços estendidos como um homem crucificado.


Nove<br />

DE VOLTA AO MEU QUARTO, o som das vozes <strong>de</strong> meu pai e meu irmão<br />

ecoaram pela escada <strong>de</strong> pedra, vindo do gabinete lá embaixo. A dor no meu<br />

estômago voltou, <strong>de</strong> modo que mal consegui me manter ereta. Deixei a<br />

discussão terminar e saí <strong>de</strong> novo, agora <strong>de</strong>terminada a alcançar o baú <strong>de</strong><br />

remédios <strong>de</strong> minha mãe.<br />

Mas eu não era a única lá em cima, on<strong>de</strong> eles não <strong>de</strong>veriam estar. Tomaso<br />

estava <strong>de</strong>scendo a escada com tanta discrição quanto a <strong>de</strong> um touro ferido. Mas,<br />

pelo menos, ele estava tentando. Esforçava-se tanto em pisar no ar que esbarrou<br />

direto em mim, <strong>de</strong>pois pareceu culpado como se tivesse pecado ao aprumar o<br />

corpo. Tudo isso significava que eu tinha algo negociar.<br />

— Alessandra! Por Deus, que susto me <strong>de</strong>u — disse ele em um sussurro<br />

dissonante. — O que está fazendo aqui?<br />

— Ouvi você e papai discutindo — menti com tranqüilida<strong>de</strong>. — Isso me<br />

acordou. Aon<strong>de</strong> está indo? Está quase amanhecendo.<br />

— Eu... tenho <strong>de</strong> ver alguém.<br />

— O que papai disse?<br />

— Nada.<br />

— Teve notícias <strong>de</strong> Plautilla?<br />

— Não, não. Não recebemos nenhuma notícia <strong>de</strong>la.<br />

— Então do que estavam falando? — Seus lábios apertaram-se. —<br />

Tomaso? — eu disse, um pouco ameaçadora. — O que você e papai estavam<br />

falando?<br />

Lançou-me um olhar frio, como se para mostrar que apesar <strong>de</strong> ele<br />

perceber a barganha, essa rendição particular não lhe causaria muito <strong>de</strong>sgosto.<br />

— Há problemas na cida<strong>de</strong>.<br />

— Que tipo <strong>de</strong> problemas?<br />

Ele fez uma pausa.<br />

— Sério... O vigia noturno <strong>de</strong> Santo Spirito encontrou dois corpos.<br />

— Corpos?<br />

— Um homem e uma mulher. Assassinados.<br />

— On<strong>de</strong>?<br />

Ele respirou fundo.<br />

— Na igreja.<br />

— Na igreja! O que aconteceu?<br />

— Ninguém sabe. Foram encontrados hoje <strong>de</strong> manha. Estavam estendidos<br />

embaixo dos bancos. Suas gargantas tinham sido cortadas.


— Oh! — Mas havia ainda mais. Pu<strong>de</strong> perceber isso em seus olhos. Deus<br />

me aju<strong>de</strong>, pois embora eu não preten<strong>de</strong>sse isso, meus pensamentos se<br />

extraviaram para o corpo da garota todo mordido por cães. — O que mais?<br />

— Os dois estavam nus. E ela tinha algo enfiado em sua boca — disse ele<br />

sinistramente, <strong>de</strong>pois se interrompeu, como se já tivesse falado <strong>de</strong>mais. Franzi o<br />

cenho para mostrar que não compreen<strong>de</strong>ra. — Era o pau <strong>de</strong>le.<br />

Observou a minha confusão, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>u um b<strong>rev</strong>e sorriso sinistro e baixou<br />

a mão para segurar o próprio escroto.<br />

— Enten<strong>de</strong>u agora? Quem quer que os matou, cortou o pau <strong>de</strong>le e meteu<br />

na boca da mulher.<br />

— Oh! — Sei que <strong>de</strong>vo ter parecido uma criança, pois, nesse momento,<br />

me senti <strong>de</strong> novo uma criança. — Oh, quem faria uma coisa <strong>de</strong>ssas? Em Santo<br />

Spirito!<br />

Mas nós dois sabíamos a resposta. O mesmo louco que havia cortado em<br />

pedaços o corpo da garota do lado da igreja Santa Croce.<br />

— Foi disso que a reunião tratou. A Signoria e o Conselho <strong>de</strong> Reunião<br />

<strong>de</strong>cidiram remover os corpos.<br />

— Removê-los? Quer dizer...<br />

— Para que sejam encontrados fora da cida<strong>de</strong>.<br />

— Foi isso que papai lhe disse hoje à noite?<br />

Ele assentiu.<br />

Mas por que ele teria feito aquilo? Se preten<strong>de</strong>m manter tal horror em<br />

segredo, não <strong>de</strong>viam ficar contando às pessoas. Especialmente a rapazes como<br />

Tomaso que passavam meta<strong>de</strong> da sua vida nas ruas. Rapazes que podiam ficar<br />

em perigo se mudassem seu comportamento... A dor no meu estomago<br />

obviamente aturdia meu cérebro.<br />

— Mas... por que removê-los? Quer dizer, se foram encontrados lá, não<br />

veriam...<br />

— O que está acontecendo, Alessandra? Você fica burra à noite? — Deu<br />

suspiro. — Reflita. A profanação provocaria uma <strong>rev</strong>olta.<br />

Ele tinha razão. Provocaria. Apenas algumas semanas antes, um rapaz<br />

tinha sido encontrado lascando pedaços das estátuas nos nichos do lado <strong>de</strong> fora<br />

da igreja <strong>de</strong> Orsanmichele e quase não escapara com vida <strong>de</strong>pois que a ralé o<br />

pegara. Erila disse que ele havia sido afetado pela loucura, mas Savonarola tinha<br />

<strong>de</strong>ixado a cida<strong>de</strong> nervosa em relação a tal blasfêmia e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um julgamento<br />

sumário, o carrasco o <strong>de</strong>spachara três dias <strong>de</strong>pois com menos violência, embora<br />

com um senso mais limitado <strong>de</strong> cerimônia. Um sacrilégio como esse ofereceria,<br />

agora, uma boa munição para o frei. Quais eram mesmo suas palavras para<br />

Florença? Quando o Diabo governa uma cida<strong>de</strong>, sua consorte mais famosa é a<br />

luxaria e, portanto, o mal prolifera até não restar mais nada a não ser


imundície e <strong>de</strong>sespero.<br />

Senti-me tão nauseada e amedrontada que tive <strong>de</strong> fingir o contrário.<br />

— Sabe, Tomaso — disse eu com um risinho —, há irmãos que<br />

protegeriam sua irmã mais nova <strong>de</strong>ssas histórias.<br />

— E há irmãs que passam seus dias <strong>rev</strong>erenciando seus irmãos.<br />

— Mas que diversão elas seriam para você, po<strong>de</strong> me dizer? — perguntei<br />

baixinho. — Certamente, elas o aborreceriam.<br />

Pela primeira vez, enquanto olhávamos um para o outro, me perguntei<br />

como teriam sido nossas vidas se não tivéssemos sido moldados como inimigos.<br />

Ele <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros e fez menção <strong>de</strong> passar por mim.<br />

— Não po<strong>de</strong> sair agora. Não sabendo do que sabe. Po<strong>de</strong> ser perigoso.<br />

Ele não disse nada.<br />

— Era por isso que você e papai estavam brigando, não era? Ele o proibiu<br />

<strong>de</strong> sair?<br />

Ele sacudiu a cabeça.<br />

— Tenho um encontro, Alessandra. Tenho <strong>de</strong> ir.<br />

Respirei fundo.<br />

— Quem quer que ela seja, você po<strong>de</strong> esperar.<br />

Olhou para mim na obscurida<strong>de</strong> por um instante e, então, sorriu.<br />

— Você não enten<strong>de</strong>, irmãzinha. Mesmo que eu pu<strong>de</strong>sse, ela não po<strong>de</strong>.<br />

Por isso, boa noite. — Disse isso calmamente e fez o movimento para se afastar.<br />

Pus a mão em seu braço.<br />

— Tenha cuidado.<br />

Deixou-a ali por um momento antes <strong>de</strong> erguê-la <strong>de</strong>licadamente. Eu estava<br />

prestes a dizer mais alguma coisa, ou só imaginei que sim. Ele recuou.<br />

— Deus, Alessandra, o que aconteceu? Você se feriu.<br />

— O quê?<br />

— Olhe, está sangrando.<br />

Baixei os olhos. A frente da minha camisola estava com uma mancha<br />

escura recente.<br />

E <strong>de</strong> repente tudo fez sentido. Não era a dor <strong>de</strong> Plautilla que eu estava<br />

sentindo, mas a minha própria. Tinha acontecido. O momento que eu mais temia<br />

na minha vida. Senti um ardor <strong>de</strong> vergonha como febre. Meu rosto ficou quente<br />

e pus as mãos sobre a camisola, amarfanhando-a entre meus <strong>de</strong>dos até a mancha<br />

<strong>de</strong>saparecer. E enquanto fazia isso, senti um fio <strong>de</strong> líquido escorrer da parte<br />

interna da minha coxa.<br />

Tomaso, é claro, percebeu tudo. Senti-me ainda mais enjoada com o terror<br />

ante a perspectiva <strong>de</strong> sua vingança. Mas, em vez disso, ele fez algo <strong>de</strong> que nunca<br />

me esqueci. Inclinou-se para mim e tocou na minha bochecha.<br />

— Pois é — disse ele, quase gentilmente —, parece que, agora, nós dois


temos segredos. Boa noite, irmãzinha.<br />

E passou por mim, <strong>de</strong>scendo a escada, e percebi a porta, lá embaixo, fechar-se<br />

sem fazer ruído. Fui para a cama e senti meu sangue correr.


Dez<br />

MINHA MÃE CHEGOU EM CASA ANTES <strong>de</strong> qualquer um <strong>de</strong> nós termos<br />

levantado. Ela e meu pai comeram a portas fechadas. Às <strong>de</strong>z horas, Erila me<br />

acordou para dizer que eu era chamada em seu gabinete. Quando viu o sangue,<br />

me lançou um sorriso malicioso, mudou os lençóis e me trouxe pano para<br />

colocar <strong>de</strong>ntro da roupa <strong>de</strong> baixo.<br />

— Nem uma palavra — eu disse. — Enten<strong>de</strong>u? Nem uma palavra até eu<br />

mandar.<br />

— Então é melhor que seja logo. Maria vai <strong>de</strong>scobrir pelo cheiro a<br />

qualquer momento.<br />

Erila vestiu-me rapidamente e me apresentei. Na mesa <strong>de</strong> jantar, encontrei<br />

Luca, os olhos congestionados, se empanturrando <strong>de</strong> pão e geléia. Estava<br />

nauseada <strong>de</strong>mais para comer. Ele me olhou carrancudo, eu o olhei carrancuda.<br />

Meus pais estavam esperando. Tomaso chegou alguns minutos <strong>de</strong>pois. Apesar<br />

<strong>de</strong> ter trocado as roupas, estava com a cara <strong>de</strong> quem não tinha se <strong>de</strong>itado.<br />

O gabinete <strong>de</strong> meu pai ficava no fundo <strong>de</strong> seu mostruário do lado do<br />

palazzo, aon<strong>de</strong> as mulheres da cida<strong>de</strong> levavam seus costureiros para escolher os<br />

tecidos lançados recentemente. O lugar cheirava a cânfora e outros sais<br />

suspensos em incensórios para espantar as traças, e a fragrância impregnava sua<br />

sala. Essas áreas eram, geralmente, proibidas a nós, crianças, principalmente a<br />

Plautilla e a mim, e é claro que justamente isso fazia com que eu gostasse mais<br />

<strong>de</strong>las. Do pequeno escritório forrado <strong>de</strong> pergaminhos, meu pai dirigia um<br />

pequeno império <strong>de</strong> comércio por toda a Europa e partes do Oriente. Além <strong>de</strong> lã<br />

e algodão da Inglaterra, Espanha e África, ele importava muitas das tintas <strong>de</strong><br />

diversas cores; cinabre e realgar do Mar Vermelho, cochinilha e oricello do<br />

Mediterrâneo, noz-<strong>de</strong>-galha dos Bálcãs e, do Mar Negro, pedra-ume para fixálas.<br />

Quando o pano ficava pronto, as peças <strong>de</strong> fazenda que não se a<strong>de</strong>quavam à<br />

moda florentina voltavam aos navios para alimentarem os mercados suntuosos<br />

nos países <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vieram. Quando hoje me recordo, acho que meu pai vivia<br />

com o peso do mundo em seus ombros, pois apesar <strong>de</strong> prosperar, sei que havia<br />

momentos em que as notícias não eram boas; quando a perda <strong>de</strong> um navio em<br />

tormentas ou pirataria chegava à sua sala à noite, e minha mãe nos fazia andar<br />

na ponta dos pés no dia seguinte para não acordá-lo. Certamente, em minhas<br />

lembranças, ele sempre está com seus livros-razões ou cartas, contabilizando as<br />

colunas <strong>de</strong> lucro e prejuízo, e enviando comunicados aos mercadores, agentes e


fabricantes <strong>de</strong> tecidos que viviam em cida<strong>de</strong>s cujos nomes eu mal sabia<br />

pronunciar, às vezes em lugares on<strong>de</strong> não acreditavam que Jesus Cristo era filho<br />

<strong>de</strong> Deus, embora seus <strong>de</strong>dos gentios percebessem beleza e verda<strong>de</strong> suficientes<br />

em um fardo <strong>de</strong> panos. Tais cartas partiam diariamente <strong>de</strong> nossa casa como<br />

pombos-correios, assinadas, seladas e envolvidas em panos à prova <strong>de</strong> água,<br />

protegidas da chuva, esmeradamente copiadas e arquivadas em caso <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>nte<br />

ou perda na estrada.<br />

Com um negócio <strong>de</strong>ssa monta sobre si, não admira que meu pai não<br />

tivesse muito tempo para assuntos domésticos. Mas nessa manhã, ele parecia<br />

particularmente cansado, seu rosto empapuçado e sulcado como eu nunca vira<br />

antes. Era <strong>de</strong>zessete anos mais velho do que minha mãe, e, nessa época, <strong>de</strong>via<br />

estar na faixa dos cinqüenta. Era rico e bem conceituado, e tinha sido duas vezes<br />

escolhido para cargos oficiais menores, o mais recente sendo sua função no<br />

Conselho <strong>de</strong> Segurança. Se tivesse usado sua influência <strong>de</strong> modo mais<br />

estratégico, po<strong>de</strong>ria ter-se promovido mais rapidamente, porém, apesar <strong>de</strong> sua<br />

sagacida<strong>de</strong> nos negócios, era um homem simples, com mais aptidão para o<br />

transporte <strong>de</strong> tecidos do que para a política. Acho que amava seus filhos e sabia<br />

chamar a atenção <strong>de</strong> Tomaso e Luca, quando seus comportamentos exigiam.<br />

Mas, <strong>de</strong> certa maneira, ficava mais à vonta<strong>de</strong> em suas fábricas do que em casa.<br />

A sua educação tinha sido a suficiente para o comércio — seu pai fizera isso<br />

antes <strong>de</strong>le — e não possuía o conhecimento nem falava tão bem quanto minha<br />

mãe. Mas podia dizer se a cor em uma peça <strong>de</strong> fazenda estava irregular com um<br />

simples olhar, e sempre sabia que tom <strong>de</strong> vermelho mais agradaria às mulheres<br />

quando o sol brilhasse. Desse modo, o seu discurso nessa manhã foi longo, para<br />

ele, e suspeito que minha mãe tenha-lhe dado muita atenção.<br />

— Primeiro, tenho boas notícias. Plautilla está bem. Sua mãe passou a<br />

noite lá, e ela se recuperou.<br />

Minha mãe aprumou o corpo, as mãos cruzadas no colo. Há muito tempo<br />

ela aperfeiçoara a arte da aquiescência feminina. Se não a conhecesse, acharia<br />

que não estava sentindo nada.<br />

"Mas há outras notícias, que logo saberiam por rumores, e por isso<br />

<strong>de</strong>cidimos que seria melhor serem informados em casa."<br />

Lancei um olhar a Tomaso. Meu pai falaria <strong>de</strong> mulheres nuas com pênis<br />

na boca? Com certeza não.<br />

"A Signoria reuniu-se durante toda a noite porque acontecimentos atuais<br />

no estrangeiro afetam a nossa segurança. O rei da França chegou ao Norte,<br />

li<strong>de</strong>rando um exército para conquistar a sua reivindicação do ducado <strong>de</strong><br />

Nápoles. Destruiu a frota napolitana em Gênova e assinou tratados com Milão e<br />

Veneza. Mas para prosseguir em direção ao Sul, tem <strong>de</strong> atravessar a Toscana, e<br />

enviou mensageiros para pedir o nosso apoio à sua reivindicação e segurança


para o seu exército nessa travessia."<br />

Percebi no sorriso afetado <strong>de</strong> Tomaso que ele sabia mais do que me<br />

contara. Mas é claro que as mulheres não têm estrutura para a política.<br />

— Então, vai haver combate? — os olhos <strong>de</strong> Luca cintilaram como<br />

medalhões <strong>de</strong> ouro. — Soube que os franceses são guerreiros ferozes.<br />

— Não, Luca. Não haverá luta. Há mais glória na paz do que na guerra —<br />

respon<strong>de</strong>u meu pai asperamente, sem dúvida ciente <strong>de</strong> como a <strong>de</strong>manda <strong>de</strong><br />

tecidos elegantes diminuía durante um conflito. —A Signoria com o conselho <strong>de</strong><br />

Piero <strong>de</strong> Medici ofereceu neutralida<strong>de</strong>, e não apoio para a sua reivindicação.<br />

Desse modo, <strong>de</strong>monstraremos força combinada com prudência.<br />

Se o nome <strong>de</strong> Piero fosse dito seis meses antes, provavelmente teria<br />

acalmado todos nós, mas até eu sabia que a sua reputação havia <strong>de</strong>caído <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

morte <strong>de</strong> seu pai. Corriam rumores <strong>de</strong> que ele tinha problemas em assumir sua<br />

posição sem se queixar ou se irritar. Como po<strong>de</strong>ria ter o encanto ou malícia para<br />

negociar com um rei que não precisava exaltar a nossa cida<strong>de</strong>-estado, que podia<br />

simplesmente entrar e esmagá-la sob seus pés?<br />

— Bem, se <strong>de</strong>positamos nossas esperanças em Piero, po<strong>de</strong>mos abrir os<br />

portões hoje e dar-lhes as boas-vindas.<br />

Meu pai <strong>de</strong>u um suspiro.<br />

— E que linguarudo lhe disse isso, Tomaso?<br />

Tomaso <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros.<br />

— Estou dizendo que a Signoria tem fé no nome Medici. Não há mais<br />

ninguém que inspire tal grau <strong>de</strong> respeito a um rei estrangeiro.<br />

— Bem, acho que não <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>ixá-los passar. Acho que <strong>de</strong>vemos<br />

combatê-los — disse Luca, como sempre ouvindo, mas sem escutar nada.<br />

— Não, não vamos combatê-los. Conversaremos com eles, faremos<br />

acordos, Luca. A sua batalha não é conosco. Será um acordo entre iguais.<br />

Talvez, até mesmo, nos dêem algo em troca.<br />

— O quê? Acha que Carlos vai lutar por nossos interesses e pôr Pisa em<br />

nossas mãos? — Eu nunca tinha visto Tomaso discutir com tanta veemência na<br />

frente <strong>de</strong> meu pai. Minha mãe olhava severamente para ele, mas ele não percebia<br />

ou não queria perceber. — Vai fazer simplesmente o que quiser. Ele sabe que só<br />

precisa ameaçar para que a nossa República <strong>de</strong>sabe como um castelo <strong>de</strong> cartas.<br />

— E você é um garoto querendo falar como homem e se tornando cômico<br />

— disse meu pai. —Até ter ida<strong>de</strong> para discutir esses assuntos, faria melhor<br />

guardando essas opiniões traiçoeiras para si mesmo. Não as ouvirei nesta casa.<br />

Irradiou-se um b<strong>rev</strong>e silêncio, quando <strong>de</strong>sviei meus olhos dos dois. Então,<br />

Tomaso disse, mal-humorado:<br />

— Muito bem, senhor.<br />

— E se vierem mesmo? — perguntou Luca, distraído. — Entrarão na


cida<strong>de</strong>? Vamos permitir que cheguem a isso?<br />

— Isso é algo a ser <strong>de</strong>cidido quando soubermos mais.<br />

— E Alessandra? — perguntou minha mãe, com calma.<br />

— Querida, se os franceses nos atacarem, Alessandra será enviada ao<br />

convento, com todas as outras jovens da cida<strong>de</strong>. Os planos já foram discutidos. ..<br />

— Não — <strong>de</strong>ixei escapar.<br />

— Alessandra...<br />

— Não. Não quero ser mandada para longe daqui. Se...<br />

— Você vai fazer o que eu achar que tem <strong>de</strong> fazer — disse meu pai e,<br />

agora, com o tom <strong>de</strong> voz irritado. Não estava habituado a esse grau <strong>de</strong> rebelião<br />

na família. Mas ele tinha-se esquecido <strong>de</strong> como tínhamos crescido, então.<br />

Minha mãe, mais pragmática e sensata, simplesmente baixou, <strong>de</strong> novo, os<br />

olhos para suas mãos cruzadas e disse baixinho:<br />

— Acho que antes <strong>de</strong> prosseguirmos, <strong>de</strong>vem saber que seu pai tem outras<br />

notícias.<br />

Entreolharam-se e ela sorriu sutilmente. Ele aceitou, grato, a sua<br />

orientação.<br />

— Eu... é possível que num futuro próximo, eu seja convocado para<br />

honrar o cargo <strong>de</strong> Priore.<br />

Um dos membros do Conselho dos Oito. Uma honra realmente, embora<br />

seu conhecimento <strong>de</strong> tal elevação fosse prova <strong>de</strong> que o processo <strong>de</strong> seleção era<br />

corrupto. Hoje, pensando retrospectivamente, ainda sinto o orgulho em sua voz<br />

ao comunicar isso. De tal modo que teria sido ru<strong>de</strong> até mesmo pensar que, em<br />

época <strong>de</strong> uma crise como essa, a cida<strong>de</strong> seria melhor servida por homens mais<br />

sábios e mais experientes. Pois admitir isso, teria significado também admitir<br />

que alguma coisa estava seriamente errada no Estado e não acho que algum <strong>de</strong><br />

nós, nesse momento, até mesmo Tomaso, quisesse ir tão longe.<br />

— Pai — disse eu, quando ficou claro que nenhum dos meus irmãos<br />

falaria —, o senhor honra a nossa família com essa notícia. — E fui ajoelhar-me<br />

a seus pés e beijar a sua mão, <strong>de</strong> novo uma filha submissa.<br />

Minha mãe relanceou os olhos, <strong>de</strong> modo aprovador, para mim quando me<br />

levantei.<br />

— Obrigado, Alessandra — disse ele. — Eu me lembrarei disso se e<br />

quando assumir meu lugar no governo.<br />

E quando sorrimos um para o outro, não consegui evitar pensar naqueles<br />

corpos chacinados e todo o sangue que teriam <strong>de</strong>ixado sob os bancos <strong>de</strong> Santo<br />

Spirito, e em como Savonarola po<strong>de</strong>ria usá-los contra a cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> a ameaça<br />

<strong>de</strong> uma invasão estrangeira tornava-o, agora, um profeta ainda maior aos olhos<br />

do povo.


Minha mãe está sentada à janela <strong>de</strong> seu quarto. Por um momento, acho<br />

que talvez esteja rezando. Des<strong>de</strong> que me lembro, ela tinha uma maneira <strong>de</strong> ficar<br />

só com seu silêncio que dava a impressão <strong>de</strong> que estava ausente, Mas se é<br />

pensamento ou oração que ocupa a sua mente, não posso afirmar e não tenho<br />

coragem <strong>de</strong> perguntar. A porta, observando-a, vejo como ainda é bela, embora já<br />

tenha passado da juventu<strong>de</strong> e a sua beleza mostre-se mais frágil na ríspida luz da<br />

manhã. O que estará sentindo quando a sua família está escapando <strong>de</strong> seu<br />

controle e a sua primeira filha vai se tornar mãe? Há triunfo por tê-la conduzido<br />

a salvo ou se pergunta o que será <strong>de</strong> você agora que ela se foi? É uma sorte ela<br />

ainda ter a mim com que se preocupar.<br />

Esperei até notar a minha presença, o que fez sem se virar.<br />

— Estou muito cansada, Alessandra — disse ela calmamente. — Se não<br />

for importante, prefiro que espere até mais tar<strong>de</strong>.<br />

Respirei fundo.<br />

— Quero que saiba que não irei para um convento.<br />

Ela franziu o cenho.<br />

— Essa <strong>de</strong>cisão ainda é remota. Mas se tiver <strong>de</strong> ser assim, fará o que seu<br />

pai mandar.<br />

— Mas você mesma disse...<br />

— Não! Não estou falando disso agora. Ouviu o que o seu pai disse. Se os<br />

franceses vierem, e isso ainda não é certo. Então, a cida<strong>de</strong> não será um lugar<br />

seguro para moças.<br />

— Mas ele disse que não viriam como inimigos. Se houver um<br />

armistício...<br />

— Ouça — disse ela com firmeza, virando-se, por fim, para mim. — Não<br />

é da conta das mulheres saber sobre questões <strong>de</strong> Estado. E você, em particular,<br />

só aumentará seus problemas se <strong>de</strong>monstrar que sabe. O que não significa que<br />

<strong>de</strong>va ser idiota, privadamente. Nenhum exército ocupa uma cida<strong>de</strong> sem ter<br />

alguns direitos sobre ela. E quando soldados estão na guerra, não são cidadãos,<br />

são somente mercenários, e jovens virgens são as que correm risco. Você irá<br />

para um convento.<br />

Respirei fundo.<br />

— E se eu me casasse? Deixaria <strong>de</strong> ser virgem e teria a proteção <strong>de</strong> um<br />

marido. Estaria a salvo, então.<br />

Ela olhou fixo para mim.<br />

— Mas você não quer se casar.<br />

— Não quero ser mandada embora.<br />

Ela <strong>de</strong>u um suspiro.<br />

—Você ainda é jovem.


— Somente em anos — repliquei. Por que, pensei, sempre tem <strong>de</strong> haver<br />

conversas? Uma que as mulheres têm quando há homens presentes e outra<br />

quando estão sozinhas? — Em outros aspectos, sou mais velha do que os eles.<br />

Se eu tiver <strong>de</strong> me casar para ficar, então é o que farei.<br />

— Oh, Alessandra. Isso não é razão suficiente.<br />

— Mamãe — disse eu. — De qualquer jeito, tudo mudou. Plautilla se foi.<br />

Estou em guerra com Tomaso e Luca vive perplexo em sua confusão. Não o<br />

estudar para sempre. Talvez isso signifique que eu esteja pronta. — E nesse<br />

segundo, realmente acho que acreditava naquilo.<br />

— Mas sabe que não está pronta.<br />

— Agora estou — disse eu bruscamente. — Comecei a sangrar na noite<br />

passada.<br />

— Oh. — Suas mãos ergueram-se e <strong>de</strong>pois baixaram em seu colo, como<br />

sempre faziam quando ela tentava manter o controle. — Oh. — E, então, ela e se<br />

levantou, e percebi que também estava chorando. — Oh, filha querida — disse<br />

ela e me abraçou. — Minha querida, minha criança querida.


Onze<br />

COM CARLOS E SEU EXÉRCITO NA fronteira toscana e o pânico rondando<br />

os portões da cida<strong>de</strong>, Florença refugiou-se na igreja.<br />

Havia tanta gente em Santa Maria <strong>de</strong>l Fiore nesse domingo, que a<br />

multidão se <strong>de</strong>rramava escada abaixo. Minha mãe disse que nunca tinha visto<br />

tanta gente reunida para a missa, mas a minha impressão era a <strong>de</strong> que estávamos<br />

esperando o Juízo Final. Ao erguer os olhos para o domo, senti, como sempre,<br />

uma vertigem repentina, como se a sua escala <strong>de</strong>sequilibrasse a mente. Meu pai<br />

dizia que o prodígio <strong>de</strong> Brunelleschi ainda era assunto na Europa — como uma<br />

estrutura tão gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria ter-se erigido sem a ajuda das tradicionais vigas <strong>de</strong><br />

apoio. Ainda hoje, quando imagino o final se aproximando, penso em Santa<br />

Maria <strong>de</strong>l Fiore ocupada pela massa <strong>de</strong> <strong>de</strong>votos erguendo-se das covas, o domo<br />

animado pelas batidas das asas dos anjos. No entanto, esperava que o Juízo Final<br />

cheirasse melhor, já que, nesse dia, o mau cheiro <strong>de</strong> tantos corpos pairava no ar<br />

como uma névoa <strong>de</strong> incenso fétido. Várias mulheres mais pobres já tinham<br />

<strong>de</strong>smaiado, pois, aparentemente, as mais <strong>de</strong>votas tinham começado a jejuar sob<br />

as or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Savonarola, para conduzir a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> volta a Deus. Seria preciso<br />

mais tempo para as ricas <strong>de</strong>sfalecerem, se bem que notei que tinham sido<br />

repreendidas cautelosamente: não era hora <strong>de</strong> correrem o risco <strong>de</strong> ser culpadas<br />

<strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>.<br />

Quando subiu ao púlpito, o lugar murmurava com <strong>de</strong>voção. Mas, então,<br />

com a sua chegada, impôs-se um silêncio mortal. Foi a suprema ironia da época<br />

que o homem mais feio <strong>de</strong> Florença fosse também o homem mais pio. Havia<br />

uma convicção em sua eloqüência que quando pregava esquecia-se <strong>de</strong> seu corpo<br />

anão, <strong>de</strong> seus pequenos olhos penetrantes e o nariz recurvo como o bico <strong>de</strong> uma<br />

águia. Ele e seu arquiinimigo Lorenzo, juntos, teriam sido material para<br />

gárgulas. Quase era possível imaginar um díptico em que seus perfis se<br />

confrontavam, os narizes tão pronunciados quanto suas personalida<strong>de</strong>s, a cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Florença, o campo <strong>de</strong> batalha dos dois, no segundo plano. Mas quem<br />

arriscaria essa pintura agora? Quem se at<strong>rev</strong>eria a encomendá-la?<br />

Seus inimigos diziam que ele era tão pequeno que, para aumentar seu<br />

tamanho, ficava em pé sobre livros, traduções <strong>de</strong> Aristóteles e dos clássicos que<br />

seus monges lhe buscavam, <strong>de</strong> modo que seus pés pu<strong>de</strong>ssem saqueá-los. Outros<br />

afirmavam que usava um banquinho <strong>de</strong> sua cela, uma das poucas peça <strong>de</strong><br />

mobília que se permitia ter em uma vida <strong>de</strong> extremo ascetismo. Dizia-se que era<br />

a única cela em San Marco que não continha um quadro religioso, <strong>de</strong> tal modo<br />

<strong>de</strong>sconfiava do po<strong>de</strong>r da arte para arruinar a pureza da fé, e que aplacava


qualquer <strong>de</strong>sejo da carne açoitando a si mesmo diariamente. Apesar <strong>de</strong> sempre<br />

ter havido aqueles na igreja com apetite por flagelação, esse tipo <strong>de</strong> refinamento<br />

do sofrimento não atraía a todos. Pensando retrospectivamente, acho que nós,<br />

florentinos, sempre fomos um povo mais interessado no prazer do que na dor, se<br />

bem que, em momentos <strong>de</strong> crise, o medo gera seu próprio <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

autopunição.<br />

Ele ficou, por um momento, em silêncio, suas mãos agarrando-se à beira<br />

da pedra, os olhos esquadrinhando a gran<strong>de</strong> multidão à sua volta.<br />

— Está escrito que o Prior <strong>de</strong>ve acolher com prazer seu rebanho. Mas<br />

hoje não os acolherei assim. — A voz emitida começou como um sussurro,<br />

aumentando seu volume a cada palavra até ocupar a Catedral e erguer-se à<br />

abóbada da cúpula. — Pois hoje, lotam a casa <strong>de</strong> Deus só porque o medo e o<br />

<strong>de</strong>sespero lambem seus pés como as chamas do inferno, e porque anseiam por<br />

re<strong>de</strong>nção.<br />

"Por isso vieram a mim. A um homem cujo próprio <strong>de</strong>smerecimento é<br />

compensado somente pela generosida<strong>de</strong> do Senhor ao fazê-lo seu porta-voz.<br />

Sim, o Senhor se <strong>rev</strong>elou a mim, Ele me conce<strong>de</strong> a bênção <strong>de</strong> sua visão e<br />

<strong>de</strong>svenda o futuro. O exército que espera em nossa fronteira foi profetizado. É a<br />

espada que vi pen<strong>de</strong>ndo sobre a cida<strong>de</strong>. Não há fúria como a fúria <strong>de</strong> Deus. 'Eles<br />

lançarão sua prata nas ruas e o ouro será removido: toda a prata e ouro não<br />

conseguirão salvá-los no dia da ira do Senhor! E Florença jaz como uma<br />

carcaça repleta <strong>de</strong> moscas no caminho em chamas <strong>de</strong> sua vingança."<br />

Mesmo para aqueles que conheciam bem as escrituras era difícil perceber<br />

os pontos <strong>de</strong> ligação. Agora, ele transpirava, o capuz para trás, o nariz movendose<br />

<strong>de</strong> cá para lá, como um gran<strong>de</strong> bico bicando par dais. De início, quando<br />

começou a pregar, dizia-se que a sua voz era fraca e ofegante. Que durante seus<br />

sermões, velhas adormeciam e os cachorros uivavam na porta da igreja. Mas<br />

agora, ele encontrara sua voz e ela ressoava como um trovão. Os gregos talvez<br />

chamassem isso <strong>de</strong> <strong>de</strong>magogia, mas havia mais do que isso. Ele falava para todo<br />

mundo; em sua pieda<strong>de</strong>, o pecado era um gran<strong>de</strong> aplanador, <strong>de</strong>struindo o po<strong>de</strong>r<br />

e a riqueza. Sabia como misturar essa mensagem com o fermento da política.<br />

Por isso os privilegiados o temiam tanto. Mas esses pensamentos vieram <strong>de</strong>pois.<br />

No momento, simplesmente o escutávamos.<br />

De seus paramentos, tirou um pequeno espelho. Ergueu-o para a multidão.<br />

Em um certo ângulo, captou a luz <strong>de</strong> uma vela e a enviou girando pela igreja.<br />

— Está vendo isso, Florença? Ergui um espelho para a sua alma e o que<br />

ele mostrou? Decadência e podridão. Esta, que já foi uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, agora<br />

<strong>de</strong>rrama mais imundície por suas ruas do que o Arno quando inunda. "Não entre<br />

na senda dos corrompidos e não penetre o caminho dos homens maus." Mas<br />

Florença tampou os ouvidos às palavras <strong>de</strong> Deus. Quando cai a noite, a besta


começa a andar e a batalha por sua alma começa.<br />

Do meu lado, senti Luca se mexer em seu lugar. Na sala <strong>de</strong> estudos, os<br />

únicos textos pelos quais mostrou interesse foram os que falavam <strong>de</strong> guerra e<br />

<strong>de</strong>rramamento <strong>de</strong> sangue. Se tivesse luta com quem quer que fosse o inimigo,<br />

ele ia querer estar lá.<br />

— Em cada viela escura em que a luz <strong>de</strong> Deus foi apagada, há pecado e<br />

violação. Lembrem-se do corpo <strong>de</strong>spedaçado daquela jovem pura. Há ultraje e<br />

sodomia. "Extinga sua impureza, Senhor, e que seus corpos renunciem ao<br />

pecado em tormento no fogo eterno". Há luxúria, há fornicação. "Os lábios <strong>de</strong><br />

mulheres estranhas insinuam-se como favo, mas seu fim é mais amargo que<br />

absinto, afiado como uma espada <strong>de</strong> dois gumes. Seus pés <strong>de</strong>scem à morte e<br />

seus passos controlam o inferno."<br />

Até mesmo Tomaso estava prestando atenção, o mimado Tomaso, cuja<br />

aparência atraía as mulheres como pirilampos à chama da vela. Qual a última<br />

vez em que pensara em inferno? Bem, estava pensando agora. Percebia-se isso<br />

em seus olhos. Apesar <strong>de</strong> toda a sua <strong>de</strong>spreocupação costumeira, o pensamento<br />

<strong>de</strong>sses corpos mutilados e a ameaça <strong>de</strong> um exército francês nos portões da<br />

cida<strong>de</strong> estavam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le nesse momento. Olhei para seu rosto, intrigada com<br />

essa nova ansieda<strong>de</strong>. Ele sentiu meu olhar e, fazendo uma carranca para mim,<br />

baixou a cabeça.<br />

Quando fez isso, outro rosto no lado <strong>de</strong> lá do ajuntamento <strong>de</strong> pessoas<br />

entrou em foco acima do <strong>de</strong>le; um homem olhava diretamente para mim com um<br />

brilho em seus olhos. Pareceu-me imediatamente familiar, mas precisei <strong>de</strong> um<br />

momento para reconhecê-lo. Claro, o casamento <strong>de</strong> Plautilla. O homem que<br />

falara do grego e, <strong>de</strong>pois, me ajudara nos passos <strong>de</strong> dança. Quando nossos<br />

olhares se encontraram, ele me saudou com um ligeiro movimento da cabeça, e<br />

achei ter percebido um b<strong>rev</strong>e sorriso em sua face. Sua atenção ostensiva<br />

confundiu-me e <strong>de</strong>sviei o olhar para o púlpito.<br />

— Perguntem a si mesmos, homens e mulheres <strong>de</strong> Florença, por que Deus<br />

fez o exército francês marchar contra nós? Para mostrar que a nossa cida<strong>de</strong><br />

esqueceu-se da mensagem <strong>de</strong> Cristo. Uma cida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>slumbrou com o ouro<br />

falso, que colocou a erudição acima da pieda<strong>de</strong>, a chamada sabedoria dos pagãos<br />

acima da palavra <strong>de</strong> Deus.<br />

"Quando o rio da fúria <strong>de</strong> novo jorrou sobre nós, do corpo da igreja ouviuse<br />

um lamento <strong>de</strong> vozes, uma espécie <strong>de</strong> coro <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero. 'Vejam, porque não<br />

temeram meu conselho, rirei <strong>de</strong> sua calamida<strong>de</strong>', disse o Senhor. 'Escarnecerei<br />

quando seu medo chegar com a <strong>de</strong>solação, quando a <strong>de</strong>struição chegar como<br />

um furacão e quando a aflição e angustia caírem sobre vocês, eu não<br />

respon<strong>de</strong>rei'. Oh, Florença. Quando abrirá os olhos e retornará ao caminho <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>us?


O gemido ficou mais alto. Pu<strong>de</strong> até mesmo ouvir o ruído grave<br />

começando na garganta <strong>de</strong> Luca. Olhei <strong>de</strong> novo para o homem. Ele não estava<br />

prestando atenção a Savonarola. Ele continuava a olhar para mim.


Doze<br />

QUATRO DIAS DEPOIS, OS CORPOS MUTILADOS do homem e da mulher<br />

foram encontrados além dos muros da cida<strong>de</strong>, em um olivedo à margem da<br />

estrada, entre Florença e a al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Impruneta.<br />

Como o clima estava quente há muito tempo, espalhou-se o medo da<br />

estiagem e <strong>de</strong> a safra ser arruinada, e a igreja, então, organizou uma procissão<br />

para levar a estátua milagrosa <strong>de</strong> Nossa Senhora <strong>de</strong> Impruneta até a cida<strong>de</strong> para<br />

preces e uma missa. Se Deus estivesse irritado com Florença, talvez <strong>de</strong>sse<br />

ouvidos à intercessão <strong>de</strong> Nossa Senhora. Mas quando a procissão foi reunindo<br />

mais e mais gente no caminho para os portões da cida<strong>de</strong>, retardatários se<br />

extraviaram do caminho entrando nos campos — e foi assim que um menino se<br />

viu vagando na orla <strong>de</strong> um vinhedo e localizou carne ensangüentada sob as<br />

vinhas. Se eu fosse meu pai no Conselho <strong>de</strong> Segurança, teria perguntado quem<br />

tinha sido o idiota que permitira o transporte dos corpos para um local tão óbvio,<br />

mas, evi<strong>de</strong>ntemente, ninguém disse nada.<br />

Como o crime fora cometido fora dos muros da cida<strong>de</strong>, não era um caso<br />

estritamente florentino, <strong>de</strong> modo que não houve proclamações na Praça da<br />

Cida<strong>de</strong>. Ainda assim, a noticia dos assassinatos se espalhou como praga. A<br />

mulher era uma prostituta e o homem seu cliente, e seus corpos estavam<br />

fe<strong>de</strong>ndo, os ferimentos tomados por larvas <strong>de</strong> insetos. A nossa não era uma<br />

cida<strong>de</strong> escrupulosa. Se a mulher tivesse sido processada por licenciosida<strong>de</strong>, uma<br />

multidão sadia teria se reunido para assistir seu nariz ser cortado. Essas mesmas<br />

pessoas provavelmente tinham visto tripas espalhadas em nome da justiça antes,<br />

mas o castigo blasfemo nessa violência atingiu-as imediatamente, e fez as<br />

sombrias profecias do Frei ecoarem <strong>de</strong> novo. Que homem faria uma coisa<br />

<strong>de</strong>ssas? Tinha sido um ato <strong>de</strong> tal <strong>de</strong>pravação, que seria mais fácil interpretá-lo<br />

como retribuição: o Diabo levantou-se do inferno e movia-se furtivamente pelas<br />

ruas reivindicando, antecipadamente, o que era seu.<br />

Em casa, meu pai nos reuniu <strong>de</strong> novo para relatar como os emissários<br />

franceses tinham vindo e ido, carregados <strong>de</strong> presentes e promessas aduladoras <strong>de</strong><br />

neutralida<strong>de</strong>, mas nenhum salvo-conduto. Seria o bastante ou Carlos teria<br />

coragem <strong>de</strong> invadir a Toscana? Tudo o que podíamos fazer era esperar. E o calor<br />

continuava. A intercessão <strong>de</strong> Nossa Senhora, ao que parecia, não era o bastante.<br />

Fiquei em meu quarto. A minha Anunciação estava terminada, mas não<br />

fiquei satisfeita com o resultado. O <strong>de</strong>sconforto <strong>de</strong> Nossa Senhora tinha sido<br />

bem apreendido e o Anjo tinha certa verve em seus movimentos, mas seu mundo<br />

era monocromático e meus <strong>de</strong>dos ansiavam por cor. Antes, eu fazia o melhor


que podia com a alquimia caseira. Usava gemas <strong>de</strong> ovos surrupiadas da cozinha<br />

(o meu amor por merengue era lendário com o cozinheiro) que, misturadas ao<br />

alvaia<strong>de</strong>, produziam um tom próximo ao da pele. Eu tinha feito o meu próprio<br />

preto com o pó <strong>de</strong> cascas <strong>de</strong> amêndoas queimadas e juntado fuligem da can<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> óleo <strong>de</strong> linhaça, e, uma vez, tinha até mesmo forjado um tom razoável <strong>de</strong><br />

ver<strong>de</strong>te <strong>de</strong>itando vinagre forte em tigelas <strong>de</strong> cobre. Mas foi um alvoroço na<br />

cozinha, quando as tigelas foram <strong>de</strong>scobertas manchadas e <strong>de</strong>sfiguradas, e a<br />

qualida<strong>de</strong> da tinta que produzia era ineficaz. De qualquer jeito — que histórias<br />

se podia ilustrar usando preto, branco e ver<strong>de</strong>?<br />

Fazia quase uma semana do meu encontro casual com o pintor na capela.<br />

Operários tinham começado a erigir os andaimes, para que ele <strong>de</strong>sse início ao<br />

trabalho. Não podia esperar mais. Chamei Erila.<br />

Des<strong>de</strong> a notícia do sangramento, ela estava excitada por minha causa.<br />

Depois <strong>de</strong> selecionado um marido para mim, ela ficaria numa casa em que a sua<br />

patroa seria a patroa, e a sua nova influência não teria limites. Tinha muito mais<br />

apetite <strong>de</strong> vida do que muitos escravos, Se bem que a sua condição não tinha<br />

sido tão cruel para ela quanto para outros. Havia casas em que, quando ficasse<br />

mais mulher, se aproveitariam <strong>de</strong>la — a cida<strong>de</strong> estava cheia <strong>de</strong> escravas <strong>de</strong><br />

barrigão que serviam seus patrões tanto na cama quanto na sala <strong>de</strong> jantar —,<br />

mas o meu pai não era assim e, apesar <strong>de</strong> Luca ter tentado a sorte, ela o havia<br />

rechaçado com uma tapa na orelha. Tomaso, até on<strong>de</strong> eu sabia, nunca a<br />

incomodara. Ele tinha excessivo respeito por sua vaida<strong>de</strong> para empreen<strong>de</strong>r algo<br />

que não o levasse à vitória.<br />

— E quando encontrar o pintor, o que direi a ele?<br />

— Pergunte-lhe quando posso entregá-los. Ele vai saber o que isso quer<br />

dizer.<br />

— E você sabe? — disse ela rispidamente.<br />

— Erila, por favor. Simplesmente faça isso por mim, uma vez. Não resta<br />

muito tempo.<br />

E embora me censurasse com seus olhos, ela foi e, mais tar<strong>de</strong>, quando<br />

voltou, me disse que ele estaria no jardim na manhã seguinte bem cedo.<br />

Agra<strong>de</strong>ci-lhe e disse que tinha <strong>de</strong> ir pessoalmente.<br />

Levantei-me ao alvorecer. O cheiro <strong>de</strong> pão assado pairava no ar e meu<br />

estômago cantou <strong>de</strong> fome. O jardim no pátio dos fundos era a gran<strong>de</strong> alegria <strong>de</strong><br />

minha mãe. Ainda era novo, a vegetação <strong>de</strong> apenas meia dúzia <strong>de</strong> verões, mas<br />

meu pai o havia abastecido <strong>de</strong> plantas trazidas <strong>de</strong> sua vila, <strong>de</strong> modo a parecer<br />

maduro. Havia um broto <strong>de</strong> figueira, uma romãzeira, uma nogueira, uma série <strong>de</strong><br />

buxos trespassados com murta aromática, uma horta <strong>de</strong> ervas fértil o bastante<br />

para servir às cozinhas com boa quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> salva, menta, alecrim, saião e<br />

manjericão, e flores coloridas que mudavam com as estações. Minha mãe, com


propensão à doçura platônica, achava que os jardins estavam perto <strong>de</strong> Deus, e<br />

estava sempre exaltando as virtu<strong>de</strong>s da contemplação para o <strong>de</strong>senvolvimento da<br />

mente. Eu o usava, principalmente, para copiar arbustos e flores, cuja varieda<strong>de</strong><br />

era suficiente para povoar uma dúzia <strong>de</strong> cenas separadas da Anunciação e<br />

Nativida<strong>de</strong>.<br />

No entanto, havia um inconveniente. Minha mãe acrescentara às plantas a<br />

vida selvagem: pombos com asas aparadas e seus queridos pavões, dois galos e<br />

três galinhas. Eles reservavam seu respeito, até mesmo afeição, somente para<br />

ela. Conheciam seus passos, e quando chegava, geralmente com um saco <strong>de</strong><br />

sementes, os galos corriam para ela. Depois <strong>de</strong> comerem, os pavões afastavamse<br />

empertigados, exibindo suas asas para ela. Eu os odiava, tanto a sua vaida<strong>de</strong><br />

quanto a sua cruelda<strong>de</strong>. Uma vez, quando era mais jovem e estava encantada<br />

com suas cores, tentei fazer carinho em um e ele me mor<strong>de</strong>ra. Des<strong>de</strong> então, seus<br />

bicos foram tema <strong>de</strong> meus pesa<strong>de</strong>los. Quando pensava nos corpos no campo ou<br />

na jovem coberta <strong>de</strong> mordidas <strong>de</strong> animais, não conseguia evitar imaginar o que<br />

bicos <strong>de</strong> pavões teriam feito com seus olhos.<br />

Mas nessa manha, encontraram outra presa. O pintor estava sentado no<br />

banco <strong>de</strong> pedra, um conjunto <strong>de</strong> pincéis e uma dúzia <strong>de</strong> potes minúsculos <strong>de</strong><br />

tinta misturada do seu lado. Na sua frente, os pavões bicavam sementes<br />

lançadas, suas caudas obstinadamente fechadas e caídas atrás <strong>de</strong>les, e ele os<br />

observava atentamente. Mas quando me viram, um <strong>de</strong>les emitiu um ganido<br />

irritado, e sua plumagem explodiu em uma dança <strong>de</strong> ameaça, enquanto me<br />

atacava.<br />

— Ah... não se mexa — disse ele, segurando os pincéis, suas mãos<br />

agitando-se sobre os potes, misturando as cores em sua mente antes <strong>de</strong> atingirem<br />

seus <strong>de</strong>dos.<br />

Mas a minha paralisia era verda<strong>de</strong>ira.<br />

— Por favor! — disse eu. Agora estava na sua vez <strong>de</strong> me ver aflita. Ele<br />

olhou-me fixamente por um momento, preso entre o pincel e o meu pânico,<br />

então pegou um pouco <strong>de</strong> semente na bolsa e a esten<strong>de</strong>u, emitindo um ruído<br />

estranho do fundo da garganta. A ave jogou a cabeça como reconhecendo, e se<br />

dirigiu, literalmente se pavoneando, para a sua mão estendida.<br />

— Não precisa ter medo <strong>de</strong>les. São inofensivos.<br />

— Isso é o que você pensa. Ainda tenho a cicatriz em minha mão que<br />

prova o contrário. — Fiquei observando-o. Era preciso um certo espírito para<br />

<strong>de</strong>ixar essas aves comerem <strong>de</strong> sua mão. Minha mãe e ele eram as únicas pessoas<br />

que eu tinha visto conseguir isso. — Como consegue? É tão injusto Deus ter-lhe<br />

dado <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> Fra Angélico e o toque <strong>de</strong> São Francisco.<br />

Ele manteve os olhos no animal.<br />

— No mosteiro, cabia a mim a tarefa <strong>de</strong> alimentar os animais.


— Não <strong>de</strong>sse tipo — murmurei.<br />

— Não — disse ele, os olhos fixos na plumagem ultrajante. — Nunca<br />

tinha visto estas criaturas antes. Embora tenha ouvido histórias.<br />

— Por que precisa pintá-los? Não acho que Santa Catarina comungasse<br />

com animais.<br />

— Asas <strong>de</strong> anjos — disse ele enquanto o pequeno bico cruel ficava <strong>de</strong> lá<br />

para cá na sua mão. — Para a Assunção no teto do altar. Preciso <strong>de</strong> penas.<br />

— Nesse caso, tem <strong>de</strong> tomar cuidado para que os seus anjos não eclipsem<br />

Deus. — E ao dizer isso, pensei em como era fácil para nós conversar <strong>de</strong>ssa<br />

maneira, como se a divergência no escuro da capela tivesse sido <strong>de</strong>struída pelo<br />

sol da manhã. — O que você usava no Norte?<br />

— Pombos... gansos e cisnes.<br />

— É claro. Seu Gabriel branco. — E <strong>rev</strong>i as asas ondulantes do afresco<br />

cru em seu quarto. Mas ele estava adquirindo fluência na cor. Eu via isso em<br />

suas mãos. O que eu não daria para ter minhas unhas cobertas com tantos tons?<br />

O pavão tendo beliscado o bastante, afastou-se lançando-me um último insulto<br />

ao me ignorar. O ar luminoso da manha ainda estava entre nós, meu anseio tão<br />

fresco quanto o orvalho nas folhas. Ele tornou a pegar seu pincel, eu me<br />

aproximei.<br />

— Quem mistura suas tintas, pintor?<br />

— Eu.<br />

— É difícil?<br />

Ele sacudiu a cabeça, seus <strong>de</strong>dos movendo-se rápido.<br />

— No começo, talvez. Agora, não.<br />

Eu sentia meus <strong>de</strong>dos cocando <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> tocar nas cores, a ponto <strong>de</strong><br />

ter <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r meus próprios pulsos do meu lado.<br />

— Posso dizer o nome <strong>de</strong> cada tom em cada muro <strong>de</strong> Florença, e sei a<br />

receita <strong>de</strong> uns doze <strong>de</strong>les. Porém mesmo que eu conseguisse os ingredientes, não<br />

teria um ateliê on<strong>de</strong> misturá-los nem tempo só meu, sem supervisão. —<br />

Interrompi-me. — Estou tão cansada <strong>de</strong> bico-<strong>de</strong>-pena. Dá um matiz sem vida e<br />

tudo que capto parece, <strong>de</strong> certa maneira, melancólico.<br />

Dessa vez, ele ergueu o olhar para mim e nossos olhos se encontraram. E,<br />

como na capela, juro que ele enten<strong>de</strong>u. O rolo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos queimava a palma <strong>de</strong><br />

minha mão. Dentro estava a minha Anunciação e uns doze outros escolhidos<br />

tanto por sua ambição quanto precisão. Era agora ou nunca. Senti o medo no<br />

suor <strong>de</strong> minhas mãos, e isso fez com que eu fosse mais ida com ele do que<br />

pretendia. Eu os estendi para ele.<br />

— Não quero tato, enten<strong>de</strong>? Quero a verda<strong>de</strong>.<br />

Ele não se mexeu, e no silêncio que se seguiu, percebi ter estragado algo<br />

que nascia entre nós, mas eu estava nervosa <strong>de</strong>mais para saber como comportar


<strong>de</strong> outra maneira.<br />

— Desculpe. Não posso julgá-los para você — replicou calmamente. —<br />

do o que posso fazer é o meu próprio trabalho.<br />

Embora não falasse <strong>de</strong> modo grosseiro, suas palavras foram como o bico<br />

pavão atacando minha alma.<br />

— Então meu pai enganou-se quanto ao seu talento. E será sempre um<br />

aprendiz e nunca um mestre. — A minha mão continuava estendida. Deixei os<br />

papéis no banco, ao seu lado. — A sua opinião ou a sua reputação. Não me<br />

<strong>de</strong>ixa escolha, pintor.<br />

— E que escolha me resta? — E <strong>de</strong>ssa vez, ele não <strong>de</strong>sviou o olhar. Seus<br />

lhos assim permaneceram por muito tempo, muito além da poli<strong>de</strong>z, até que fui<br />

eu que baixei os meus.<br />

No extremo do jardim, Erila apareceu. Para salvar as aparências, virei-me<br />

para ela, se bem que soubesse que tinha ficado nos vigiando.<br />

— O que está fazendo? — mu<strong>de</strong>i para italiano. — Estava me<br />

espionando...<br />

— Oh, senhora, por favor não me repreenda — disse ela humil<strong>de</strong>mente,<br />

sua docilida<strong>de</strong> flagrantemente falsa. — Sua mãe a está procurando.<br />

— Minha mãe! A esta hora? O que lhe disse?<br />

— Que estava no jardim <strong>de</strong>senhando folhas.<br />

— Oh! — virei-me para ele. — Oh, você tem <strong>de</strong> ir — disse eu em latim.<br />

— Rápido. Ela não po<strong>de</strong> encontrá-lo aqui comigo.<br />

— E suas folhas?<br />

Seu italiano estava melhorando. Pegou um pedaço <strong>de</strong> carvão. O arbusto<br />

laranja <strong>de</strong> minha mãe cresceu sob seus <strong>de</strong>dos, a fruta tão pesada que era possível<br />

senti-la pronta para cair. Quando me <strong>de</strong>u o papel, eu não sabia se ria ou chorava.<br />

Ele juntou suas tintas e as colocou na bolsa do seu lado. Depois pegou o feixe <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senhos e também o pôs na bolsa.<br />

— Não vou me chatear com o que disser — gritei para ele. —Apenas não<br />

minta para mim.<br />

O pão fresco do cozinheiro foi perfeito com compota <strong>de</strong> marmelo. Comi <strong>de</strong>mais<br />

enquanto minha mãe mostrava-se, extraordinariamente, nervosa, e bebia<br />

somente vinho com água. A carta chegara cedo com um mensageiro, embora ela<br />

certamente já <strong>de</strong>vesse saber do que se tratava: minha irmã Plautilla tinha<br />

convidado a família e amigos para uma pequena reunião. O bebê <strong>de</strong>veria nascer<br />

em alguns meses e estava na hora <strong>de</strong> exibir todas as belas peças <strong>de</strong> cama e roupa<br />

adquiridas em preparação para o evento. Não <strong>de</strong>i muita atenção. Minha mãe, por<br />

outro lado, parecia não fazer outra coisa senão pensar sobre isso. Mandou Erila


arrumar meu cabelo e separar uma seleção <strong>de</strong> meu guarda-roupa<br />

antecipadamente.<br />

— Se não aprová-lo, é melhor encontrar uma boa razão rapidamente —<br />

disse Erila, com a boca cheia <strong>de</strong> grampos, e pren<strong>de</strong>u meu cabelo para trás, com<br />

os pesados pentes <strong>de</strong> pérolas.<br />

— O que quer dizer?<br />

— Quando foi a última vez que se arrumou tanto para visitar sua irmã?<br />

Separou o segundo anel <strong>de</strong> cabelo com a pinça quente e olhamos no<br />

espelho quando ele se enrolou do lado <strong>de</strong> meu rosto. Por um segundo, os dois<br />

ficaram em perfeita simetria, então o esquerdo <strong>de</strong>sceu resolutamente mais baixo<br />

que seu parceiro.<br />

Quando minha mãe me viu, nem mesmo tentou escon<strong>de</strong>r sua ansieda<strong>de</strong>.<br />

— Oh, querida. Seu cabelo é tão escuro, não é? Talvez <strong>de</strong>vêssemos usar<br />

uma tintura. Mas acho que po<strong>de</strong>mos nos sair melhor com a sua roupa. Vamos<br />

ver. O dourado ainda está na moda, mas acho que seu pai aprovaria mais uma <strong>de</strong><br />

suas sedas brilhantes. O vermelho brasil das índias Orientais combina bem com<br />

a sua tez.<br />

Meu pai, que eu me lembre e apesar <strong>de</strong> acreditar na eficácia <strong>de</strong> vestir o<br />

que produzia, nunca fez nenhum comentário sobre o meu guarda-roupa.<br />

— Não acha muito suntuoso? — disse eu. — Não queremos provocar a<br />

ira dos <strong>de</strong>votos nas ruas.<br />

— O pregador ainda não governa a cida<strong>de</strong> — retorquiu minha mãe, e acho<br />

que foi a primeira vez que escutei um tom <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdém em relação a ele. — Ainda<br />

po<strong>de</strong>mos nos vestir como queremos, no que diz respeito à família. O tom cai<br />

bem em você. E ponha algo em seu rosto. Talvez um toque <strong>de</strong> pó branco para<br />

suavizar sua cútis. Erila po<strong>de</strong> fazer isso por você, se não per<strong>de</strong>r tanto tempo<br />

fofocando.<br />

— Mamãe — disse eu —, se por acaso isso é para um homem, então o<br />

melhor seria escolher um que seja cego. Assim não enxergará meus <strong>de</strong>feitos.<br />

— Oh, minha querida, você está enganada. Você é adorável. Adorável. Há<br />

um gran<strong>de</strong> viço e brilho em seu espírito.<br />

— Sou inteligente — disse eu irritada. — Não é a mesma coisa. Como já<br />

me disseram muitas vezes.<br />

— E quem lhe disse isso? Não Plautilla, foi? Ela não é tão cruel.<br />

Hesitei.<br />

— Não, não Plautilla.<br />

— Tomaso.<br />

Dei <strong>de</strong> ombros.<br />

Ela refletiu sobre isso.<br />

— Seu irmão tem uma língua ácida. Talvez tivesse sido melhor não tê-lo


como inimigo.<br />

— Eu não fiz nada — respondi mal-humorada. — Para ele é fácil se sentir<br />

ofendido.<br />

— Bem, não importa. Quando se trata <strong>de</strong> coisas importantes o sangue é<br />

mais espesso que a água — disse ela com firmeza. —Vamos pensar nos sapatos.


Treze<br />

PLAUTILLA PARECIA UM NAVIO COM AS velas <strong>de</strong>sfraldadas. Até seu<br />

rosto estava rechonchudo. Parecia que ia <strong>de</strong>saparecer <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua própria<br />

carne. Seu cabelo per<strong>de</strong>ra a cor alourada. Não havia tempo para pintá-lo agora.<br />

Com esse corpo, provavelmente não conseguia mais ir até o telhado. Mas não<br />

parecia se incomodar. Estava gorda e plácida, como um animal atolado em um<br />

poço. Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais para se mover. E fazia muito calor.<br />

Fomos os primeiros a chegar. Minha mãe levou frutas e amêndoas<br />

cristalizadas e Plautilla nos mostrou o quarto recém-<strong>de</strong>corado. Havia novas<br />

tapeçarias na pare<strong>de</strong> e, na cama, lençóis bordados a mão, com o emblema da<br />

família e <strong>de</strong>bruado em toda a volta. O berço do bebê estava do lado, forrado com<br />

uma colcha <strong>de</strong> damasco branco, com a franja dourada e prateada. A arca <strong>de</strong><br />

casamento estava em um lugar <strong>de</strong> honra, as sabinas dançando, parecendo<br />

vigorosas <strong>de</strong>mais para o calor que fazia. A lascívia dos homens se tornava<br />

indolente nesses períodos? Certamente uma criança concebida no auge do calor<br />

era consi<strong>de</strong>rada suspeita; alguma coisa a ver com a quentura duplicada do ar e a<br />

luxúria, mas, então, eu não tinha ida<strong>de</strong> bastante para ter recebido as explicações<br />

sigilosas <strong>de</strong>ssas coisas. Sem dúvida, uma educação estava por vir.<br />

Fiquei sabendo por Tomaso que Maurizio tinha apostado 30 florins contra<br />

400 que o bebê seria menina. Dessa maneira seu <strong>de</strong>sapontamento seria<br />

compensado pelo que ganhasse, se bem que duvido que cobrisse o que tinha<br />

pago por todos os acessórios. Tudo estava <strong>de</strong> acordo com a moda: vinhos<br />

brancos para a futura mamãe e um par <strong>de</strong> pombos novos para <strong>de</strong>pois do parto,<br />

porque sua carne era <strong>de</strong> fácil digestão. Ouvia-se as aves arrulhando, sem<br />

saberem <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino, no pátio embaixo. A parteira foi contratada, começara a<br />

procura <strong>de</strong> uma ama-<strong>de</strong>-leite apropriada, e o quarto estava mobiliado com peças<br />

<strong>de</strong> bom gosto; pequenos quadros e estátuas religiosos, <strong>de</strong> modo que durante o<br />

trabalho <strong>de</strong> parto, Plautilla olhasse somente coisas belas e assim aprimorasse a<br />

beleza e caráter da criança. Fiquei impressionada. Maurizio, tem-se <strong>de</strong> admitir,<br />

havia feito tudo que a rolinha gorda <strong>de</strong> sua mulher po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>sejar.<br />

— Mamãe me disse que o pintor fez a salva do parto — acrescentou ela,<br />

sem fôlego, quando chegamos ao fim <strong>de</strong> seu inventário. — Disse que está<br />

maravilhosa. Pedi o jardim do Amor <strong>de</strong> um lado e um tabuleiro <strong>de</strong> xadrez do<br />

outro. Maurizio gosta <strong>de</strong> jogar — disse ela, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>u um risinho <strong>de</strong> menina.<br />

Eu também diria coisas assim quando estivesse casada? Olhei para a<br />

minha irmã gorducha e feliz com urna espécie <strong>de</strong> horror. Ela sabia tão mais do


que eu. Como eu po<strong>de</strong>ria lhe perguntar?<br />

— Não se preocupe — disse ela, cutucando meu braço com um ar<br />

conspiratório. —Agora que está sangrando, vai compreen<strong>de</strong>r muito em b<strong>rev</strong>e —<br />

fez uma careta. — Embora eu <strong>de</strong>va lhe dizer que não se parece nada com ler<br />

livros.<br />

Então como é? Eu queria saber. Conte. Conte-me tudo.<br />

— Machuca? — perguntei, como se não fosse <strong>de</strong>liberado.<br />

Ela franziu os lábios e olhou para mim, saboreando o momento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />

— É claro — disse simplesmente. — É assim que sabem que você é pura.<br />

Mas passa. E então, não é tão ruim. De verda<strong>de</strong>. — E, olhando para ela, achei<br />

que falava sério, e pela primeira vez, percebi que minha irmã fútil e tola talvez<br />

tivesse encontrado, realmente, algo que podia fazer bem na vida. Isso me <strong>de</strong>ixou<br />

contente por ela, e ainda mais aterrorizada por mim mesma.<br />

Nossa conversa foi interrompida com a chegada <strong>de</strong> mais convidados.<br />

Amigos da família, todos trazendo pequenas oferendas. Plautilla movia-se entre<br />

eles rindo e sorrindo. Então o senhor se juntou a nós.<br />

Estava usando uma capa <strong>de</strong> veludo cor <strong>de</strong> vinho, mais bonita do que a que<br />

usava na igreja, e que meu pai <strong>de</strong>finitivamente aprovaria. Pareceu mais velho do<br />

que das outras vezes em que o vira, mas a luz do dia é mais cruel do que a luz <strong>de</strong><br />

velas e óleo. Ele me viu assim que entrou, mas primeiro cumprimentou minha<br />

mãe. Eu a vi cruzar as mãos e dar-lhe toda a atenção. Supostamente, não era a<br />

primeira vez que se encontravam. Eu estava surpresa? Sabe, ainda não sei ao<br />

certo. Alguém me disse, muito <strong>de</strong>pois, que sempre reconhecemos as pessoas que<br />

farão diferença na nossa vida na primeira vez que pomos os olhos nelas. Mesmo<br />

que não gostemos nada <strong>de</strong>las. E eu o havia notado. Assim como ele a mim. Que<br />

Deus nos protegesse. Peguei Plautilla em uma <strong>de</strong> suas rodadas pela sala e a<br />

imprensei contra a pare<strong>de</strong> mais próxima, ou tanto quanto sua barriga permitia.<br />

— Quem é ele?<br />

— Quem?<br />

— Plautilla, não posso beliscá-la como fazia. Po<strong>de</strong>ria entrar em trabalho<br />

<strong>de</strong> parto e não suportaria ouvir seus berros. Mas quando o bebê nascer, posso<br />

beliscá-lo com impunida<strong>de</strong>, já que levará anos até po<strong>de</strong>r me culpar.<br />

— Alessandra!<br />

— Então. Quem é ele?<br />

Ela <strong>de</strong>u um suspiro.<br />

— Seu nome é Cristoforo Langella. Vem <strong>de</strong> uma família nobre.<br />

— Estou certa que sim — disse eu. — Então por que estaria interessado<br />

em mim?<br />

Mas não houve tempo para mais comentários. Ele já saíra do lado <strong>de</strong><br />

minha mãe e estava vindo na nossa direção. Plautilla se soltou <strong>de</strong> mim e


atravessou a sala sorrindo. Fiquei rígida e examinei meus pés, minha postura<br />

<strong>de</strong>safiando todas as normas <strong>de</strong> charme e feminilida<strong>de</strong>.<br />

— Senhora — disse ele, fazendo uma ligeira <strong>rev</strong>erência —, acho que<br />

ainda não fomos formalmente apresentados.<br />

— Não — murmurei, lançando-lhe um olhar <strong>de</strong> relance. Havia rugas<br />

fundas ao redor <strong>de</strong> seus olhos. Pelo menos ele sabe rir, pensei. Mas po<strong>de</strong> fazer<br />

isso comigo? Voltei a olhar para o chão.<br />

— Como estão seus pés hoje? — perguntou em grego.<br />

—Talvez <strong>de</strong>vesse perguntar-lhes diretamente — respondi-lhe com uma<br />

voz que me lembrou meus acessos <strong>de</strong> raiva em pequena. Sentia minha mãe me<br />

observando, querendo que eu me comportasse. Apesar <strong>de</strong> ela não estar ouvindo<br />

o que acontecia, conhecia os movimentos <strong>de</strong> meu rosto o suficiente para<br />

distinguir sarcasmo <strong>de</strong> aquiescência.<br />

Ele fez outra <strong>rev</strong>erência, <strong>de</strong>ssa vez abaixando-se mais e se dirigindo à<br />

bainha do meu vestido.<br />

— Como estão, pés? Devem estar aliviados por não haver música —<br />

interrompeu-se. Ergueu os olhos e sorriu. — Nós nos vimos na igreja. O que<br />

achou do sermão?<br />

— Acho que se fosse pecadora teria sentido o cheiro <strong>de</strong> óleo fervendo em<br />

mim.<br />

— Então tem sorte <strong>de</strong> não ser. Acha que tem muitos que o ouvem e não<br />

sentem o cheiro?<br />

— Não muitos. Mas acho que se eu fosse pobre, ouviria os gritos vindo<br />

primeiro dos mais ricos.<br />

— Humm. Acha que ele prega rebelião?<br />

Refleti um pouco.<br />

— Não. Mas acho que prega a ameaça.<br />

— É verda<strong>de</strong>. No entanto eu o ouvi expressar sua irritação com todos, não<br />

apenas os ricos e os amedrontados. Ele consegue ser muito crítico da igreja.<br />

— Talvez a igreja mereça.<br />

— Realmente. Sabe que o nosso Papa atual tem uma imagem da Madona<br />

pintada acima da entrada <strong>de</strong> seu quarto? Só que ela tem o rosto <strong>de</strong> sua amante.<br />

— Verda<strong>de</strong>? — disse eu, momentaneamente seduzida por tal intriga<br />

superior.<br />

— Oh, sim. Dizem que sua mesa geme sob o peso <strong>de</strong> tantos pássaros<br />

canoros assados, que a floresta ao redor <strong>de</strong> Roma agora está silenciosa, e que<br />

seus filhos são bem-vindos na casa, como se o pecado não fosse pecado. Mas<br />

errar é humano, não acha?<br />

— Não sei. Acho que o confessionário é para isso.<br />

Ele riu.


— Sabe dos afrescos <strong>de</strong> Andréa Orcagna no refeitório <strong>de</strong> Santa Croce?<br />

Balancei a cabeça.<br />

— Ele pinta o Juízo final com cabeças <strong>de</strong> freiras entre os <strong>de</strong>ntes do Diabo.<br />

E Satã parece estar sofrendo <strong>de</strong> indigestão <strong>de</strong> tantos chapéus cardinalícios que<br />

engoliu.<br />

E, contra a vonta<strong>de</strong>, comecei a rir baixinho.<br />

— Diga-me, Alessandra Cecchi. Gosta da arte da nossa bela cida<strong>de</strong>?<br />

— Oh, eu a adoro — repliquei. — E o senhor?<br />

— Também, muito. Por isso as palavras <strong>de</strong> Savonarola não gelam meu<br />

sangue.<br />

— Não é um pecador? — perguntei.<br />

— Pelo contrário. Peco freqüentemente. Mas acredito no po<strong>de</strong>r do amor e<br />

da beleza como uma rota alternativa para Deus e a re<strong>de</strong>nção.<br />

— Segue os antigos?<br />

— Sim — respon<strong>de</strong>u com um sussurro afetado. — Mas não diga a<br />

ninguém, porque a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> heresia está se tornando mais abrangente a cada<br />

minuto.<br />

E por mais ingênua que fosse, achei sua maneira conspiratória excitante.<br />

— Seu segredo está seguro comigo — disse eu.<br />

— Sabia que estaria. Mas me diga... que <strong>de</strong>fesa se <strong>de</strong>veria apresentar<br />

quando o nosso monge maluco faz a preleção sobre como mulheres velhas<br />

analfabetas sabem mais sobre a fé do que todos os pensadores gregos e romanos<br />

juntos?<br />

— Deveria ser-lhe entregue uma cópia <strong>de</strong> Defesa da poesia, <strong>de</strong><br />

Boccaccio. Sua tradução dos contos dos <strong>de</strong>uses clássicos <strong>rev</strong>ela somente as<br />

virtu<strong>de</strong>s mais cristãs e verda<strong>de</strong>s morais.<br />

Ele recuou e olhou para mim, e juro que não percebi errado a admiração<br />

em seus olhos.<br />

— Eu tinha ouvido falar que você era bem filha da sua mãe.<br />

— O que não é muito conforto para mim, senhor. O meu irmão gosta <strong>de</strong><br />

dizer a todo mundo que quando ela me carregava <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si, viu violência nas<br />

ruas e isso me aterrorizou em seu útero.<br />

— Então o seu irmão é cruel.<br />

— Sim. Mas, ainda assim, po<strong>de</strong> ser franco.<br />

— Ainda assim. Nesse caso, ele cometeu um erro. A senhora gosta dos<br />

estudos. Não há nada <strong>de</strong> errado nisso. São somente os clássicos ou também<br />

aprecia os nossos escritores?<br />

— Acho que Dante Alighieri é o maior poeta que Florença já produziu.<br />

— Ou produzirá. Nisso não há como discordarmos. Po<strong>de</strong> recitar a Divina<br />

comédia?


— Não toda! — respondi. — Só tenho quinze anos.<br />

— Ainda bem. Se pu<strong>de</strong>sse recitá-la toda, ainda estaríamos aqui no<br />

Segundo Advento — olhou-me por um momento. — Soube que a senhora<br />

<strong>de</strong>senha.<br />

— Eu... quem lhe disse isso?<br />

— Não precisa ficar tão nervosa comigo. Eu já lhe confiei meu segredo,<br />

lembra-se? Só mencionei isso porque estou impressionado. Não é um fato<br />

comum.<br />

— Nem sempre foi assim. Na antigüida<strong>de</strong>...<br />

— Eu sei. Na antigüida<strong>de</strong>, a filha <strong>de</strong> Varro, Maria, foi celebrada por sua<br />

arte — sorriu ele. — A senhora não é a única a estar familiarizada com Alberti.<br />

Embora ele, então, não pu<strong>de</strong>sse saber que o nosso Paolo Uccello tinha uma filha<br />

que trabalhava na oficina <strong>de</strong> seu pai. Era chamada <strong>de</strong> o pardal menorzinho —<br />

fez uma pausa. —Talvez, um dia, me mostre seu trabalho. Gostaria que isso<br />

acontecesse.<br />

Um criado apareceu oferecendo frutas cristalizadas e vinho. Ele pegou<br />

uma taça e a esten<strong>de</strong>u a mim. Mas o feitiço se <strong>de</strong>sfizera. Ficamos em silêncio<br />

por um tempo, cada um olhando para um lugar. O silêncio foi-se tornando, se<br />

não incômodo, bastante intenso. Então, ele disse com a voz calma que tinha<br />

usado na dança:<br />

— Alessandra, sabe por que nos conhecemos hoje aqui?<br />

Senti um enjôo. É claro que <strong>de</strong>veria respon<strong>de</strong>r não, como minha mãe teria<br />

me ensinado. Mas o fato é que eu sabia. Como po<strong>de</strong>ria não saber?<br />

— Sim — respondi. —Acho que sim.<br />

— Isso seria aceitável para você?<br />

Ergui os olhos para ele.<br />

— Não sabia que meus sentimentos seriam levados em consi<strong>de</strong>ração.<br />

— Bem, são. É por isso que lhe faço essa pergunta.<br />

— É gentil, senhor. — E percebi que corei.<br />

— Não. Não mesmo. Mas gostaria <strong>de</strong> pensar em mim como alguém justo.<br />

Nós dois somos peixes estranhos neste mar. O tempo <strong>de</strong> lutar sozinho está se<br />

encerrando. Fale com sua mãe. Sem dúvida nos veremos <strong>de</strong> novo.<br />

Afastou-se e, logo <strong>de</strong>pois, partiu.


Quatorze<br />

HÁ MUITAS COISAS QUE O RECOMENDAM, Alessandra. Seus pais estão<br />

mortos. De modo que você será a dona <strong>de</strong> sua própria casa. Ele é bem-educado.<br />

Esc<strong>rev</strong>e poesia e é um perito e patrono da arte.<br />

Minha mãe estava agitada <strong>de</strong>mais para manter as mãos no colo. Eu tinha<br />

tido uma noite e um dia que tinham me <strong>de</strong>ixado ainda mais ansiosa.<br />

— Parece que é o partido mais <strong>de</strong>sejado na cida<strong>de</strong>. Por que ainda não se<br />

casou?<br />

— Acho que está esc<strong>rev</strong>endo alguma coisa e concentra todas as suas<br />

energia nisso. Mas seus dois irmãos morreram recentemente sem <strong>de</strong>ixarem<br />

her<strong>de</strong>iros. O nome é importante e ele precisa preservá-lo.<br />

— Ele precisa <strong>de</strong> um filho.<br />

— Sim.<br />

— E por isso precisa <strong>de</strong> uma esposa.<br />

— Sim. Mas acho que também po<strong>de</strong> querer uma.<br />

— Não quis antes.<br />

— As pessoas mudam, Alessandra.<br />

— Ele é velho.<br />

— Mais velho, é verda<strong>de</strong>. O que nem sempre é um <strong>de</strong>feito. Achei que<br />

você, <strong>de</strong> todas as pessoas, compreen<strong>de</strong>ria isso.<br />

Fiquei olhando os entalhes na ma<strong>de</strong>ira do escabelo. Era <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> e o resto<br />

da casa estava adormecido. A nossa loggia no alto da casa recebia a pouca brisa<br />

que o clima oferecia e suas pare<strong>de</strong>s estavam pintadas <strong>de</strong> um ver<strong>de</strong> que lembrava<br />

o da natureza. Porém mesmo aí, estava quente <strong>de</strong>mais para refletir. Geralmente,<br />

passávamos essa época do ano no campo, na fazenda <strong>de</strong> meu pai. Nossa<br />

presença na cida<strong>de</strong> era o sinal mais marcante <strong>de</strong> sua ansieda<strong>de</strong> cívica.<br />

— O que acha <strong>de</strong>le, mamãe?<br />

— Alessandra, não o conheço muito. A família é boa, nesse aspecto seria<br />

o preten<strong>de</strong>nte mais digno. De resto, tudo o que posso dizer é que ele a viu no<br />

casamento <strong>de</strong> Plautilla e há algumas semanas procurou seu pai. Ele não faz parte<br />

do nosso círculo. Ouvi falar que apesar <strong>de</strong> abraçar a erudição, não se envolve<br />

com a política. Mas é culto e sério, e consi<strong>de</strong>rando-se a tensão do momento, isso<br />

po<strong>de</strong> ser conveniente. Afora isso, ele é quase tão estranho para mim quanto para<br />

você.<br />

— O que falam <strong>de</strong>le? O que diz Tomaso?<br />

— Seu irmão fala mal <strong>de</strong> todo mundo. Se bem, que curiosamente, agora<br />

que penso nisso, não falou nada <strong>de</strong> negativo a seu respeito. Não estou certa se o


conhece. Mas, Alessandra, o homem tem quarenta e oito anos. Terá vivido até<br />

agora, disso não se tem dúvidas.<br />

— Homens vivem, mulheres esperam.<br />

— Oh, Alessandra. Você é jovem <strong>de</strong>mais para parecer tão velha — disse<br />

com a mesma voz com que tinha acalmado milhares <strong>de</strong> minhas tormentas. —<br />

Não é nenhuma tragédia. Verá como fazê-la atuar a seu favor. Ele talvez goste<br />

da própria companhia tanto quanto você gosta da sua.<br />

— Então será um casamento baseado na ausência?<br />

— E não menos satisfatório por causa disso. Você sabe que há coisas que<br />

ainda não enten<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> achar difícil acreditar nisso.<br />

Sorrimos uma para a outra. O pacto havia sido forjado antes. Às virtu<strong>de</strong>s<br />

que eu não tinha — a lista era comprida: silêncio, obediência, modéstia, timi<strong>de</strong>z<br />

—, ela faria vista grossa privadamente, contanto que não a humilhasse em<br />

público. Tinha me ensinado o melhor que podia. E eu tinha tentado. Mesmo.<br />

Eu me perguntei se essa era a conversa que mãe e filha pretendiam ter<br />

antes do casamento, e se sim, quando chegaríamos à noite <strong>de</strong> núpcias. Tentei<br />

saltar o gran<strong>de</strong> hiato em minha mente. Vi-me acordando em uma cama estranha,<br />

do lado <strong>de</strong> um homem estranho, abrindo meus braços para saudar mais um dia...<br />

— Quero Erila como parte do meu dote — eu disse.<br />

— Você a terá. Ele terá seus próprios escravos, mas estou certa que olhará<br />

favoravelmente tudo que a faça se sentir em casa. Quando falou com seu pai, foi<br />

muito solícito em relação a isso.<br />

Houve uma longa pausa. Fazia muito calor. Meu cabelo estava úmido <strong>de</strong><br />

suor e a minha pele, como se alguém tivesse borrifado água quente nela. Nas<br />

ruas, já se falava que isso também era um castigo <strong>de</strong> Deus: que Ele tinha<br />

imobilizado as estações para nos mostrar a extensão <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sgosto. Tudo o que<br />

eu queria era me banhar, <strong>de</strong>pois me <strong>de</strong>itar na cama, e esboçar o gato que estava<br />

esparramado sobre a colcha, indolente <strong>de</strong>mais para se mover. Por minha própria<br />

vonta<strong>de</strong>, a minha vida estava para ir pelos ares e eu me sentia quase cansada<br />

<strong>de</strong>mais para me importar.<br />

— Então, está dizendo que está tudo <strong>de</strong>cidido, Alessandra? — perguntou<br />

minha mãe calmamente.<br />

— Não sei. Parece tão rápido.<br />

— A <strong>de</strong>cisão foi sua. Seu pai diz que se os franceses estão vindo,<br />

chegarão em um mês. Haverá pouco tempo, então, para a cerimônia.<br />

— No entanto, achava que o principal do casamento era permitir que<br />

provássemos nosso status para o resto <strong>de</strong> Florença. Agora, não teremos muito<br />

tempo para isso.<br />

— É verda<strong>de</strong>. Embora, na situação atual, seu pai ache que não é algo<br />

ruim. Acho difícil acreditar que você realmente queira <strong>de</strong>sfilar pelas ruas, com


todo mundo olhando, tendo sido escovada e enfeitada durante semanas antes. —<br />

E, por um segundo, pensei em como era assustador viver sem a única pessoa que<br />

me conhecia quase tão bem quanto eu mesma, mesmo que ela nem sempre<br />

admitisse isso.<br />

— Oh, mamãe. Se eu pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>cidir, preferiria ficar aqui, ler meus<br />

livros, pintar meus quadros e morrer solteira. Mas... — disse com firmeza — sei<br />

que não posso, e portanto já que terei <strong>de</strong> aceitar alguém, po<strong>de</strong> muito bem ser ele.<br />

Acho que ele será... — busquei a palavra — bem, ele será gentil. E se eu estiver<br />

enganada, ele é velho, morrerá logo e ficarei livre.<br />

— Oh, não fale isso nem brincando — sua voz foi dura. — Ele não é tão<br />

velho e você <strong>de</strong>ve saber que não há liberda<strong>de</strong> na viuvez. Seria melhor que se<br />

habituasse com o convento <strong>de</strong>s<strong>de</strong> agora.<br />

Olhei para ela. Essa já havia sido uma opção para ela?<br />

— Sabe que continuo a ter aquele sonho — falei dando um suspiro. —<br />

Sobre o lugar on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rei fazer tudo o que quiser. Enquanto agra<strong>de</strong>ço a Deus<br />

pelo privilégio.<br />

— Se esse convento existisse, Alessandra, meta<strong>de</strong> das mulheres da cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sejariam ir para lá — disse ela com mordacida<strong>de</strong>. — Então, está <strong>de</strong>cidido?<br />

Ótimo. Vou dizer a seu pai. Acredito que seu futuro marido estará igualmente<br />

preparado para a antecipação da cerimônia. Não teremos tempo <strong>de</strong> encomendar<br />

um cassone, o que significa que teremos <strong>de</strong> conseguir uma arca <strong>de</strong> segunda mão<br />

ou usar uma que passe <strong>de</strong> um para o outro na família. Se ele perguntar, tem<br />

preferência por algum tema da pintura?<br />

Refleti um pouco.<br />

— Não me importa qual, contanto que não seja aquela garota triste na<br />

história <strong>de</strong> Nastagio, perseguida por cães e estripada. Que tenha algo na arte para<br />

se olhar — retornei ao quarto estranho em uma casa estranha e, <strong>de</strong> repente, toda<br />

a minha coragem pareceu se esvair. — Quando eu me casar, e tiver ido embora<br />

daqui, com quem vou conversar? — perguntei e ouvi minha voz falhar.<br />

Ela foi pega <strong>de</strong> surpresa e percebi que também a comovera.<br />

— Oh, minha querida Alessandra, conversará com Deus. Como<br />

certamente <strong>de</strong>ve fazer. Lá será mais fácil, porque ficará só. E Ele escutará.<br />

Como Ele escuta. Como Ele me escutou. Ele a ajudará a conversar com seu<br />

marido. Desse modo, você se tornará uma boa esposa e uma boa mãe. Não<br />

haverá só sofrimento. Eu lhe prometo — fez uma pausa. — Eu não <strong>de</strong>ixaria que<br />

isso acontecesse com você. — E acho que, até on<strong>de</strong> lhe coubesse, ela realmente<br />

acreditava nisso.<br />

Ela falou com meu pai naquela noite, e o contrato <strong>de</strong> consentimento entre<br />

nossas famílias foi redigido naquela semana, com a cláusula <strong>de</strong> que os requisitos<br />

do dote seriam cumpridos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mês e o casamento celebrado e


consumado no mesmo dia.<br />

O que estava bem, pois cinco dias <strong>de</strong>pois da nossa conversa, Carlos VIII <strong>de</strong>u a<br />

Florença a sua resposta à oferta <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong>. Tendo atravessado a fronteira<br />

da Toscana, marchou para a fortaleza <strong>de</strong> Fivizzano, saqueou a cida<strong>de</strong> e<br />

massacrou toda a guarnição.<br />

Na Catedral, a congregação se lamentou sob a língua <strong>de</strong> Savonarola:<br />

— Olhem para Florença, o flagelo começou, as profecias estão sendo<br />

cumpridas. Não sou eu, mas Deus que vaticinou. Deus, que está conduzindo os<br />

exércitos. A Espada <strong>de</strong>sceu... Já está chegando. Já.


Quinze<br />

SÓ VOLTEI AVER MEU FUTURO marido na manhã do nosso casamento.<br />

Foram dias terríveis. O governo estava à beira do colapso e o fatalismo pairava<br />

como uma nuvem escura e pesada <strong>de</strong> tempesta<strong>de</strong> sobre a cida<strong>de</strong>. Piero <strong>de</strong><br />

Medici conclamava Florença a se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, mas até mesmo seus seguidores<br />

mais íntimos o estavam abandonando e falando, abertamente, em negociar com<br />

o inimigo. Meu pai estava ansioso, mas a convocação para o governo não<br />

aconteceu. A influência dos Medici estava <strong>de</strong>caindo tão rapidamente que logo<br />

seria a própria ruína estar associado a eles.<br />

Finalmente, no fim <strong>de</strong> outubro, Piero <strong>de</strong>ixou a cida<strong>de</strong> com sua comitiva<br />

pessoal e se dirigiu ao acampamento francês.<br />

No gabinete <strong>de</strong> estudos, nosso tutor nos fez rezar por seu retorno a salvo.<br />

Do púlpito, Savonarola pregava, abertamente, a boa acolhida a Carlos,<br />

aclamando-o como um instrumento <strong>de</strong> Deus para salvar a alma <strong>de</strong> Florença e<br />

<strong>de</strong>nunciar Piero como um Medici covar<strong>de</strong>, cuja família tinha <strong>de</strong>struído nossa<br />

República pia. A cida<strong>de</strong> apreensiva vibrava <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong>. Três dias antes, meu<br />

pai tinha chegado em casa com notícias <strong>de</strong> uma proclamação da Signoria <strong>de</strong> que,<br />

se o exército francês entrasse na cida<strong>de</strong>, algumas casas seriam usadas como<br />

alojamentos. Um mensageiro apareceu e marcou com giz uma cruz em tantas<br />

portas que era como se a peste nos tivesse atacado <strong>de</strong> novo. Como com a<br />

pestilência, riqueza e influência não ofereciam nenhuma proteção. Tanto a<br />

minha antiga casa como a nova foram escolhidas. Se os franceses realmente<br />

viessem, sua chegada marcaria meu primeiro papel como anfitriã em minha casa<br />

<strong>de</strong> casada.<br />

Todo dia, ouvia-se a história <strong>de</strong> mais uma família <strong>de</strong>spachando suas<br />

filhas, na verda<strong>de</strong>, às vezes, até mesmo, suas mulheres, à segurança dos<br />

claustros, se bem que ouvi minha mãe murmurar, um dia em que o pânico<br />

dominava:<br />

— Quando um exército estrangeiro invasor respeitou a santida<strong>de</strong> dos<br />

muros <strong>de</strong> um convento?<br />

E a data do meu casamento, 26 <strong>de</strong> novembro, aconteceria em menos <strong>de</strong><br />

duas semanas.<br />

O calor finalmente havia dado uma trégua no dia anterior e a chuva<br />

chegara. Sentei-me à minha janela, meus bens ao meu redor, observando a água<br />

suja correr pelas sarjetas, me perguntando se isso também seria um plano <strong>de</strong><br />

Deus para lavar a cida<strong>de</strong>. Erila ajudou-me a arrumar o baú.<br />

— Tudo isso está acontecendo muito rápido.


— Sim — disse eu, encontrando seu olhar. — Isso a preocupa?<br />

Ela sacudiu ligeiramente os ombros.<br />

—Talvez não precisasse aceitar o primeiro que oferecessem.<br />

— Oh, é mesmo. Deixei uma fila aguardando do lado <strong>de</strong> fora? Ou<br />

preferiria me ver recitando o rosário em uma cela úmida no ermo da região?<br />

Podia ter pedido para levá-la comigo também para lá.<br />

Ela não disse nada.<br />

— Erila? — esperei. — Ele será seu dono também. Se sabe <strong>de</strong> alguma<br />

coisa que eu não sei, é melhor me dizer agora.<br />

Ela sacudiu a cabeça.<br />

— Nós duas já fomos vendidas. Só nos resta tirar o melhor proveito disso.<br />

Senti como se minha vida estivesse escorrendo como areia em uma<br />

ampulheta, e logo não haveria tempo. Não tinha recebido nenhuma mensagem<br />

do pintor. Seu silêncio era como uma dor que eu tentasse ignorar, embora, às<br />

vezes, na cama, quando o calor estava insuportável, eu me visse sucumbindo e,<br />

então, eu voltava ao frescor da capela, a sua pele perolada na luz <strong>de</strong> vela, ou ao<br />

ar fresco do jardim ao amanhecer, observando seus <strong>de</strong>dos sob<strong>rev</strong>oando o papel,<br />

fascinada pela maneira como as asas dos anjos se <strong>de</strong>senvolviam sob seu toque.<br />

Nessas noites, eu dormia mal e <strong>de</strong>spertava ensopada <strong>de</strong> um suor frio e quente ao<br />

mesmo tempo.<br />

Decidi que a franqueza era o melhor método <strong>de</strong> enganar e pedi a<br />

permissão <strong>de</strong> minha mãe para visitar a capela, já que eu partiria em b<strong>rev</strong>e. Ela<br />

estava ocupada <strong>de</strong>mais para me acompanhar e, é claro, havia menos necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> damas <strong>de</strong> companhia agora. Erila seria o suficiente.<br />

A capela estava transformada. O altar era meta<strong>de</strong> um canteiro <strong>de</strong> obras,<br />

meta<strong>de</strong> a gruta <strong>de</strong> um feiticeiro: havia andaimes e vigas fixadas para criarem<br />

uma série <strong>de</strong> passagens e plataformas em cada altura, ascen<strong>de</strong>ndo até o alto das<br />

pare<strong>de</strong>s, e no meio, um fogaréu que enchia o ar <strong>de</strong> fumaça. Acima, bem<br />

retesada, havia uma gra<strong>de</strong> que parecia <strong>de</strong> arame grosso preto, cuja sombra era<br />

lançada pela luz das chamas no teto abobadado. O pintor tinha sido içado para o<br />

alto, no espaço. Estava suspenso perto da superfície do telhado e estava absorto,<br />

traçando as linhas da gra<strong>de</strong> <strong>de</strong> sombras no teto. Ao completar uma, gritava para<br />

que os homens, embaixo, afrouxassem ou apertassem a corda para movê-lo <strong>de</strong><br />

um lado para o outro, para <strong>de</strong>ntro e fora do calor.<br />

Erila e eu ficamos observando, paralisadas. Ele estava tão concentrado e<br />

era tão hábil, como uma aranha bamboleando e tecendo uma teia tosca, mas<br />

perfeitamente geométrica. Movia-se rápido, fazendo o máximo que podia para<br />

evitar o calor das chamas. Uma pare<strong>de</strong> já mostrava figuras esboçadas, pintadas<br />

na sinópia vermelho-terrosa, prontas para o reboco. No solo, um garoto,<br />

provavelmente não mais velho do que eu, trabalhava a uma mesa com a moleta e


o almofariz, triturando a tinta para o esboceto. Quando o trabalho do afresco<br />

tivesse realmente início, haveria mais <strong>de</strong> um, mas por enquanto ele era<br />

suficiente. Lá <strong>de</strong> cima, o pintor o chamou. O garoto olhou na nossa direção e<br />

parou o que estava fazendo para ir ao nosso encontro.<br />

Fez uma <strong>rev</strong>erência.<br />

— O mestre diz que não po<strong>de</strong> parar agora. O fogo chamuscará o teto se<br />

ar<strong>de</strong>r por tempo <strong>de</strong>mais, por isso ele tem <strong>de</strong> concluir a gra<strong>de</strong> esta tar<strong>de</strong>.<br />

— O que ele está fazendo? — sussurrou Erila, claramente horrorizada<br />

com o espetáculo.<br />

— Oh, está traçando a gra<strong>de</strong> no teto para ter pontos <strong>de</strong> referência para o<br />

afresco — respon<strong>de</strong>u o menino, animadamente. Olhei para ele. Seu rosto estava<br />

enfarruscado, mas seus olhos brilhavam. Em que ida<strong>de</strong> sentira, pela primeira<br />

vez, a comichão em seus <strong>de</strong>dos?<br />

Erila <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros, tão confusa quanto antes.<br />

— A curva do telhado é enganosa quando o pintamos — expliquei. — É<br />

impossível avaliar a perspectiva corretamente. As linhas da gra<strong>de</strong> o ajudarão a<br />

manter seu <strong>de</strong>senho original. Seu esboço terá as linhas sobrepostas, como um<br />

mapa, para que, então, ele possa transferir a imagem inteira, com exatidão, <strong>de</strong><br />

um para o outro<br />

O garoto dar<strong>de</strong>jou-me seu olhar. Devolvi-lhe o mesmo olhar. Não discuta<br />

comigo, diziam meus olhos. Li e sei mais do que você um dia saberá sobre isso,<br />

mesmo que seja você e não eu que acabará cobrindo nossos tetos com visões do<br />

paraíso.<br />

— Então, vá dizer ao seu mestre que o observaremos e esperaremos por<br />

ele — disse eu sem alterar a voz. —Talvez possa nos trazer algumas ca<strong>de</strong>iras.<br />

Ele pareceu um pouco assustado, mas não disse nada, caminhando<br />

<strong>de</strong>pressa <strong>de</strong> volta ao altar e procurando ca<strong>de</strong>iras a<strong>de</strong>quadas. Quando empurrava<br />

duas pelo chão, o pintor gritou para ele e ele se viu hesitando entre duas or<strong>de</strong>ns,<br />

por um instante. Gostei <strong>de</strong> ver que o pintor venceu e ele as largou no meio da<br />

sala e voltou ao trabalho. Erila foi pegá-las.<br />

Passou-se quase uma hora antes <strong>de</strong> ele <strong>de</strong>scer. O combustível era palha,<br />

barata e caprichosa, <strong>de</strong> modo que inflamava em segundos. Ele gritou uma ou<br />

duas vezes quando as chamas subiram alto <strong>de</strong>mais, e os operários a baixaram, e<br />

a fumaça o fez tossir. Eu tinha ouvido falar em insultos terríveis nesse estágio,<br />

<strong>de</strong> modo que a habilida<strong>de</strong> dos que içavam tinha <strong>de</strong> ser tão gran<strong>de</strong> quanto a do<br />

pintor. Por fim, ele fez sinal para que o <strong>de</strong>scessem. A corda rodopiou ao <strong>de</strong>scer<br />

ao chão. Ele quase caiu dos arreios e se estatelou no chão, tossindo<br />

incontrolavelmente, expelindo catarro, que cuspia em gran<strong>de</strong>s porções, enquanto<br />

lutava para recuperar o fôlego. Seria possível uma mulher fazer esse tipo <strong>de</strong><br />

coisa? A filha <strong>de</strong> Uccello <strong>de</strong>ve ter pintado partes <strong>de</strong> panejamento em a Casa <strong>de</strong>


Maria Madalena, mas não <strong>de</strong>ve ter sido içada aos céus abobadados. Os homens<br />

atuam, as mulheres aplau<strong>de</strong>m. Eu estava começando a per<strong>de</strong>r a fé. Do púlpito,<br />

Savonarola agitava nos mandando <strong>de</strong> volta para casa. Corriam rumores <strong>de</strong> que<br />

ele, em b<strong>rev</strong>e, só pregaria para homens, e se os franceses chegassem, as<br />

mulheres que não estavam protegidas nos conventos seriam escondidas atrás <strong>de</strong><br />

portas trancadas. Que Deus nos protegesse.<br />

Sentou-se ereto com a cabeça nas mãos, <strong>de</strong>pois olhou para o outro lado da<br />

capela e nos viu ainda esperando. Levantou-se, alisando as roupas o melhor que<br />

podia, e veio em nossa direção. Parecia diferente, <strong>de</strong> certa maneira, como se seu<br />

corpo tivesse ficado mais forte com o seu andar <strong>de</strong> aranha, a timi<strong>de</strong>z anterior<br />

absorta no trabalho. Erila levantou-se para encontrá-lo, tornando-se uma barreira<br />

entre mim e ele. Seu rosto estava mais escuro do que o <strong>de</strong>la e o seu cheiro era<br />

doce e <strong>de</strong> queimado, como se nele houvesse algo da confiança do Diabo.<br />

— Não posso parar agora — sua voz soou dissonante com a fumaça. —<br />

Preciso tanto da luz do dia quanto do fogo.<br />

— Você está louco — disse eu. — Vai se machucar.<br />

— Não, se trabalhar rápido o bastante.<br />

— Oh! Meu pai tem espelhos que usa para tornar a luz <strong>de</strong> vela mais<br />

intensa quando trabalha à noite. Vou pedir que lhe man<strong>de</strong> um.<br />

Ele fez uma <strong>rev</strong>erência.<br />

— Obrigado.<br />

Do altar, os operários fizeram uma pergunta e ele respon<strong>de</strong>u em um<br />

dialeto claro.<br />

— O seu italiano está melhorando.<br />

— O fogo acelera a aprendizagem. — E no meio do encardido <strong>de</strong> seu<br />

rosto, a sombra <strong>de</strong> um sorriso.<br />

O silêncio impôs-se.<br />

— Erila — disse eu —, por favor <strong>de</strong>ixe-nos a sós por um instante.<br />

Ela relanceou os olhos para mim, furiosa.<br />

— Por favor. — Porque não sabia que outra coisa dizer.<br />

Ela lançou-lhe um olhar feroz, <strong>de</strong>pois baixou os olhos e afastou-se em<br />

direção ao altar, os quadris balançando como fazia, às vezes, quando queria que<br />

os homens olhassem para ela. O garoto não tirava os olhos <strong>de</strong>la, mas o pintor<br />

não reparou.<br />

— Você os viu?<br />

Ele confirmou com um ligeiro movimento da cabeça, mas não pu<strong>de</strong> ler<br />

nada em seus olhos, pois estavam congestionados <strong>de</strong>mais por causa da fumaça.<br />

Ele olhou <strong>de</strong> volta, apressadamente, o fogo...<br />

— Então, se não for agora, quando? Vou partir daqui a alguns dias.<br />

— Partir? Para on<strong>de</strong>?


Estava claro que ele não sabia.<br />

— Vou me casar. Não sabia?<br />

— Não — fez uma pausa. — Não, não sabia.<br />

O seu isolamento era tão profundo que o resguardava até mesmo das<br />

intrigas da criadagem.<br />

— Então, talvez também não saiba que a nossa cida<strong>de</strong> está sendo<br />

ameaçada por invasores. E que o Diabo está nas ruas, assassinando e mutilando.<br />

— Eu... eu ouvi histórias, sim — gaguejou, e sua confiança pareceu<br />

abandoná-lo por um momento.<br />

— Vai à igreja? Então <strong>de</strong>ve tê-lo escutado pregar.<br />

E <strong>de</strong>ssa vez ao assentir com a cabeça, não me olhou nos olhos...<br />

— Deve tomar cuidado. O Monge colocaria um livro <strong>de</strong> orações on<strong>de</strong> o<br />

seu pincel <strong>de</strong>veria estar. Eu...<br />

Mas Erila estava agora <strong>de</strong> volta, do meu lado, a sua língua estalando <strong>de</strong><br />

irritação. Seu trabalho era cuidar para que eu fosse entregue pura a meu marido<br />

na noite <strong>de</strong> núpcias, e não seria, a essa altura, frustrada por meus planos secretos<br />

com um artesão.<br />

Respirei fundo.<br />

— Quando, pintor? Hoje à noite...?<br />

— Não — e sua voz foi áspera. — Não, hoje à noite não posso.<br />

—Tem outro compromisso? — <strong>de</strong>ixei a pergunta no ar. —Amanhã então?<br />

Hesitou.<br />

— Depois <strong>de</strong> amanhã. A gra<strong>de</strong> estará pronta e o fogo apagado.<br />

Do altar, um dos homens chamou. Ele fez uma <strong>rev</strong>erência, virou-se e<br />

afastou-se. De on<strong>de</strong> estávamos, já podíamos sentir o calor das chamas.


Dezesseis<br />

É CLARO QUE O ESPEREI. Estava atrasado, saindo <strong>de</strong>pois que as tochas se<br />

apagaram, e se a janela aberta não estivesse aberta, não teria escutado a porta<br />

lateral ranger e não o teria ent<strong>rev</strong>isto caminhar apressado no escuro. Quantas<br />

vezes o seguira em minha imaginação? Era bastante fácil. Conhecia cada passo e<br />

pedra irregular até a Catedral e, ao contrário da maioria das garotas da minha<br />

ida<strong>de</strong>, não tinha medo do escuro. Que mal po<strong>de</strong>ria acontecer a alguém com os<br />

olhos <strong>de</strong> gato como os meus?<br />

Tinha passado o entar<strong>de</strong>cer me atormentando com imagens <strong>de</strong> minha<br />

própria bravura. Tinha permanecido, <strong>de</strong>liberadamente, vestida para não <strong>de</strong>sistir.<br />

Dentro <strong>de</strong> alguns dias, eu estaria presa à vida <strong>de</strong> outra pessoa, em uma casa e<br />

parte da cida<strong>de</strong> das quais não tinha o mapa, e portanto a minha querida liberda<strong>de</strong><br />

noturna teria acabado. No banco do meu lado, estava um dos chapéus <strong>de</strong><br />

Tomaso que eu surrupiara <strong>de</strong> seu quarto <strong>de</strong> vestir. Tinha passado horas<br />

experimentando-o, <strong>de</strong> modo que sabia exatamente como usá-lo <strong>de</strong> maneira que<br />

fosse impossível verem meu rosto. É claro que havia minhas saias, mas podia<br />

escondê-las em uma das capas mais compridas <strong>de</strong> meu pai, e andando rápido no<br />

escuro, só seria vista se me encontrasse com... com o quê? Uma luz? Uma<br />

figura? Um bando <strong>de</strong> homens...? Interrompi os pensamentos. O meu jogo era<br />

elaborado, um pacto que fizera comigo mesma. Se eu ia me casar e ser enterrada<br />

viva, então não <strong>de</strong>veria morrer sem ver um pouco do meu Oriente. Eu <strong>de</strong>via isso<br />

a mim mesma. E se o Diabo estava lá fora, certamente teria pecadores mais<br />

graves para castigar do que uma garota que <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cia a seus pais para respirar<br />

o ar noturno e reter uma lembrança da liberda<strong>de</strong>.<br />

Desci a escadaria e atravessei o pátio <strong>de</strong> trás, on<strong>de</strong> a porta dos<br />

empregados dava para a rua lateral. Geralmente, estaria aferrolhada por <strong>de</strong>ntro a<br />

essa hora da noite, mas ele assumiu o risco, <strong>de</strong>ixando-a assim, sem ferro-lho, ao<br />

sair. Se alguém <strong>de</strong>spertasse e <strong>de</strong>scobrisse... Eu podia, percebi, arruinar a sua<br />

vida simplesmente empurrando o ferrolho <strong>de</strong> volta. Em vez disso, saí para seguilo.<br />

Dei um passo para fora. A porta ainda estava aberta atrás <strong>de</strong> mim. Fecheia,<br />

<strong>de</strong>pois empurrei-a para ter certeza <strong>de</strong> que se abriria.<br />

Esperei alguns instantes que meu coração se aquietasse.<br />

Quando me senti mais calma, <strong>de</strong>i meia dúzia <strong>de</strong> passos no escuro. A porta<br />

dissolveu-se no escuro atrás <strong>de</strong> mim. Porém, ao mesmo tempo, meus olhos<br />

começaram a funcionar melhor. Havia uma lua tênue, suficiente para <strong>rev</strong>elar as<br />

pedras do calçamento diretamente à minha frente. Forcei-me a avançar. Quinze,


agora, vinte passos. Depois trinta. Até o fim <strong>de</strong> uma rua e o começo da outra. O<br />

silêncio era mais profundo do que o escuro. Já tinha quase alcançado a esquina<br />

seguinte quando ouvi um arranhar do solo e algo esbarrou na bainha do meu<br />

vestido. Ofeguei involuntariamente, embora soubesse que <strong>de</strong>veria ser um rato. O<br />

que o Frei tinha dito? Como o manto da noite <strong>rev</strong>elava os parasitas da cida<strong>de</strong>.<br />

Como <strong>de</strong>rramavam a luxuria, como veneno, nas veias dos homens. Mas por<br />

quê? Se a impureza dos homens podia ser oculta, o olho <strong>de</strong> Deus supostamente<br />

seria capaz <strong>de</strong> enxergá-la tão nitidamente no escuro? Po<strong>de</strong>ria esbarrar em<br />

qualquer um? Eram as prostitutas mulheres comuns que ficavam até tar<strong>de</strong> na<br />

rua? Uma idéia ridícula. Ainda assim, senti um calafrio <strong>de</strong> medo como gelo em<br />

meu coração.<br />

Respirei fundo algumas vezes. O cheiro <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> misturava-se com o<br />

ranço fétido <strong>de</strong> urina e comida podre. Os florentinos <strong>de</strong>ixavam suas marcas nas<br />

ruas como gatos. Savonarola lutava por pureza quando a <strong>de</strong>cadência e sujeira<br />

estavam por toda parte à nossa volta. Mas eu não me <strong>de</strong>ixaria intimidar. Meus<br />

irmãos, que eram estúpidos e ru<strong>de</strong>s, percorriam o escuro da cida<strong>de</strong> toda noite<br />

sem aci<strong>de</strong>ntes. Eu simplesmente imitaria sua confiança e caminharia até o<br />

Domo, e <strong>de</strong> lá, até o rio. Depois retornaria. Não tão longe que me per<strong>de</strong>sse, mas<br />

longe o bastante para quando minhas filhas me procurassem com fantasias <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong>, eu po<strong>de</strong>r dizer-lhes que não havia nada a temer, assim como nada a<br />

acrescentar. Era simplesmente a mesma cida<strong>de</strong> sem iluminação.<br />

Agora, a rua era mais larga. An<strong>de</strong>i mais rápido, meus sapatos batendo no<br />

calçamento irregular, o manto <strong>de</strong> meu pai varrendo o chão à minha volta. On<strong>de</strong>,<br />

me perguntei, o pintor estaria agora? Eu tinha esperado um pouco antes <strong>de</strong><br />

segui-lo. Certamente ele já teria atravessado a ponte. Quanto tempo levaria para<br />

ir e vir? Dependia do que fizesse nesse ínterim. Mas não ia pensar nisso agora.<br />

Quando virei a esquina à minha frente, me <strong>de</strong>parei com a curva do gran<strong>de</strong><br />

domo, mais negra do que a noite, alcançando o céu. Quanto mais me<br />

aproximava, mais improvável tornava-se seu tamanho, como se a cida<strong>de</strong> toda se<br />

curvasse sob sua sombra. Quase a imaginava se erguendo do solo diante <strong>de</strong><br />

meus olhos, ascen<strong>de</strong>ndo lentamente como um gran<strong>de</strong> pássaro preto acima das<br />

casas, do vale, em direção aos céus; uma ascensão <strong>de</strong> tijolos e pedras<br />

assinalando o milagre final <strong>de</strong> sua construção.<br />

Mantive minhas fantasias à distância quando atravessei a praça<br />

rapidamente, a cabeça baixa. Passei o Batistério e segui pela rua para o sul,<br />

passando pela igreja <strong>de</strong> Orsanmichele, seus santos olhando para mira <strong>de</strong> seus<br />

nichos. Durante o dia, o mercado ali enchia-se <strong>de</strong> comerciantes <strong>de</strong> panos e das<br />

mesas <strong>de</strong> baeta ver<strong>de</strong> dos banqueiros e agiotas, suas vozes altas misturando-se<br />

com o ruído do ábaco. Quando o negócio do meu pai estava começando, ele<br />

tivera uma tenda ali, e eu tinha ido uma vez visitá-lo com minha mãe,


maravilhando-me com a agitação e barulho. Ele tinha ficado muito feliz em me<br />

ver, e me lembro <strong>de</strong> que afun<strong>de</strong>i a cara nos veludos, a filha <strong>de</strong> um aspirante a<br />

comerciante, orgulhosa e mimada. Mas agora o lugar estava <strong>de</strong>serto, com<br />

sombras escuras sob os arcos.<br />

— Está muito tar<strong>de</strong> para ficar na rua, pequeno mestre. Seus pais sabem<br />

on<strong>de</strong> está?<br />

Imobilizei-me. A voz <strong>de</strong>nsa como melado veio <strong>de</strong> alguma parte no fundo<br />

do escuro. Se eu retornasse po<strong>de</strong>ria alcançar a praça do Batistério em alguns<br />

momentos. Mas virar-me <strong>de</strong>nunciaria meu medo.<br />

Vi a figura <strong>de</strong> um monge emergir da noite, um homem gran<strong>de</strong> em vestes<br />

escuras <strong>de</strong> dominicano, a cabeça coberta por seu capuz. Apressei o passo.<br />

— Não há lugar em que possa se escon<strong>de</strong>r e que Deus não o veja, senhor.<br />

Tire o chapéu e me mostre sua face. — A sua voz agora soou ríspida. Mas eu<br />

estava quase na esquina e suas palavras me perseguiram quando submergi no<br />

escuro. — Isso, corra para casa, menino. Não <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> usar sua capa no<br />

confessionário para que eu saiba a quem dar a penitência.<br />

Tive <strong>de</strong> engolir um bocado para a saliva voltar à minha garganta. Distraíme<br />

concentrando-me no mapa em minha cabeça. Virei à esquerda e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

novo. O beco era alto e estreito. Eu <strong>de</strong>via estar perto da catedral quando ouvi a<br />

risada e percebi a sombra <strong>de</strong> dois homens emergindo do escuro à minha frente.<br />

Meu sangue gelou. Andavam <strong>de</strong> braços dados, tão absortos um com o outro que,<br />

por um instante, não <strong>de</strong>ram com a minha presença. Se eu retornasse, esbarraria<br />

com o frei e não havia ruas laterais entre eles e mim. Quanto mais rápido<br />

andasse, mais rápido tudo teria terminado.<br />

Um localizou-me antes do outro. Tirou o braço da cintura <strong>de</strong> seu<br />

companheiro e <strong>de</strong>u um passo em minha direção. Em segundos, o outro o seguiu,<br />

até os dois caminharem, <strong>de</strong>liberadamente, em minha direção com o espaço <strong>de</strong><br />

somente alguns pés entre eles. Baixei a cabeça até o chapéu <strong>de</strong> Tomaso cobrir<br />

inteiramente meu rosto e apertei o manto contra o corpo. Ouvi, mais do que vi,<br />

eles se aproximarem. Eu respirava com dificulda<strong>de</strong> e o meu sangue rugia em<br />

meus ouvidos. Estavam do meu lado antes que eu tivesse tempo <strong>de</strong> pensar, um<br />

<strong>de</strong> cada lado. Quis correr, mas tive medo que isso os provocasse. Curvei os<br />

ombros e contei os passos mentalmente.<br />

Quando me alcançaram, ouvi suas vozes sussurrarem como sons <strong>de</strong><br />

animais à minha volta, sibilantes e ameaçadores: "tchuc, tchuc, chuc, hiss, tchuc,<br />

chuc, hisss." Depois, risinhos afetados, quase femininos. Tudo o que pu<strong>de</strong> fazer<br />

foi não gritar. Ao passarem, senti seus corpos roçarem o meu. Então, <strong>de</strong> repente,<br />

tinham <strong>de</strong>saparecido. Ouvi suas risadas estri<strong>de</strong>ntes e confiantes, maliciosas, e<br />

quando olhei para trás, vi os dois juntos <strong>de</strong> novo, como água correndo, os braços<br />

dados, a brinca<strong>de</strong>ira esquecida, já absortos em seus próprios assuntos.


Eu estava segura, mas o restante <strong>de</strong> minha coragem tinha-se <strong>de</strong>sintegrado<br />

sob a tensão. Esperei até ficarem fora <strong>de</strong> vista, virei-me e corri para casa. Com<br />

os passos menos seguros, tropecei nas pedras e quase me estatelei no chão. Por<br />

fim, a fachada rústica do nosso palazzo surgiu à minha frente, com seu santuário<br />

da Virgem dando as boas-vindas a viajantes cansados, e corri o que faltava até a<br />

entrada. Quando a porta fechou-se atrás <strong>de</strong> mim, senti minhas pernas ce<strong>de</strong>rem.<br />

Idiota, garota idiota. Eu tinha percorrido uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> ruas e voltado correndo<br />

para casa, apavorada com os primeiros sinais <strong>de</strong> vida. Não tinha coragem,<br />

nenhum espírito. Merecia ser trancafiada. O Diabo po<strong>de</strong> levar os impru<strong>de</strong>ntes,<br />

mas os bons certamente morrerão <strong>de</strong> tédio. Tédio e frustração.<br />

Senti as lágrimas chegando, inquietação e fúria misturadas. Levantei-me<br />

do chão e estava na meta<strong>de</strong> do pátio quando ouvi a porta se abrir <strong>de</strong> novo.<br />

Ocultei-me nas sombras. Tinha <strong>de</strong> ser ele. A porta fechou-se, <strong>de</strong>ssa vez, m fazer<br />

ruído, e escutei o som do ferrolho sendo corrido. Por um segundo, houve<br />

silêncio, <strong>de</strong>pois passos abafados atravessando o pátio. Esperei até ele estar quase<br />

diretamente à minha frente. Ele respirava ofegante. Talvez também tivesse<br />

corrido. Se eu ficasse parada, ele talvez passasse por mim me notar. Por que eu<br />

fazia isso? Porque tinha sido tão covar<strong>de</strong>? Para provar a mim mesma que eu não<br />

só falava como agia? Ou quem sabe não era uma grosseria ainda maior: a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver alguém tão assustado quanto eu?<br />

— Divertiu-se?<br />

Apareci falando. Ele <strong>de</strong>u um pulo com o susto e ouvi alguma coisa cair,<br />

um ruído surdo, como o <strong>de</strong> um objeto duro batendo no chão. Pareceu mais aflito<br />

com a queda disso do que com a minha presença, abaixando-se e tateando<br />

nervosamente o chão à sua volta. Mas eu chegara lá primeiro. Meus <strong>de</strong>dos<br />

fecharam-se sobre a capa áspera <strong>de</strong> um livro. Nossas mãos se encontraram. Ele<br />

retirou a sua instantaneamente como se o contato o tivesse queimado. Empurrei<br />

o livro para ele, que o pegou.<br />

— O que está fazendo aqui — sussurrou.<br />

— Vigiando você.<br />

— Por quê?<br />

— Já disse. Quero a sua ajuda.<br />

— Não posso ajudá-la. Não enten<strong>de</strong>? — E ouvi o medo em sua voz.<br />

— Por quê? O que tem lá fora? O que você viu?<br />

— Nada. Nada. Afaste-se <strong>de</strong> mim.<br />

E empurrou-me para o lado, se levantando e tropeçando. Mas tínhamos<br />

feito barulho <strong>de</strong>mais e uma voz ressoou do escuro, <strong>de</strong> algum lugar próximo ao<br />

pátio, nos paralisando.<br />

— Calem-se, seja lá quem forem. Vão fornicar em outro lugar. Permaneci<br />

agachada no escuro. A voz sumiu e, após alguns segundos, 02ouvi-o se afastar


aos tropeções. Esperei até tudo ficar em silêncio, e então, usei minhas mãos para<br />

me levantar. Ao fazer isso, encontrei algo no solo, um papel que <strong>de</strong>via ter caído<br />

do livro. Agarrei-o e atravessei, em silêncio, o pátio, subindo a escada dos<br />

criados em direção ao corpo principal da casa.<br />

Quando na segurança do meu quarto, procurei, <strong>de</strong>sajeitadamente, a<br />

lamparina. Levou algum tempo para seu fulgor tornar-se vivido o bastante para<br />

eu ver.<br />

Desdobrei o papel e o alisei sobre a cama.<br />

Tinha sido rasgado pela meta<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo que a imagem estava dividida<br />

ao meio, mas era possível entendê-lo. Era parte do corpo <strong>de</strong> um homem, pernas<br />

e a maior parte do torso nus, o papel rasgado on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria ser o pescoço. Os<br />

traços <strong>de</strong> giz eram grosseiros e crus, como se não tivesse tido muito tempo para<br />

captá-lo, mas o que mostrava era inesquecível. Da clavícula até a virilha, o<br />

corpo tinha sido aberto por um único ferimento profundo feito a faca, a carne<br />

escamada como a da carcaça <strong>de</strong> um animal na tenda do açougueiro e as<br />

entranhas puxadas para fora, expostas.<br />

Minhas mãos foram à minha boca para abafar o gemido e ao fazer isso,<br />

senti o cheiro em meus <strong>de</strong>dos: o mesmo mau cheiro doce <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência que seu<br />

corpo exalava no dia da sessão do retrato na capela: uma sessão que, ra me<br />

lembrava, tinha acontecido <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mais uma <strong>de</strong> suas excursões noturnas pela<br />

cida<strong>de</strong>. E assim, eu soube que o que o nosso artista <strong>de</strong>voto fazia as suas noites<br />

tinha mais a ver com morte do que com sexo.


Dezessete<br />

PASSARAM-SE APENAS ALGUMAS HORAS ATÉ os gritos nas ruas me<br />

acordarem. Tinha adormecido completamente vestida, o papel na mão. A<br />

lamparina ainda ardia e o céu estava raiado <strong>de</strong> faixas rosas. Alguém batia na<br />

porta principal do palazzo. Vesti um robe sobre a roupa e encontrei meu pai<br />

<strong>de</strong>scendo a escadaria.<br />

— Volte para a cama — disse ele concisamente.<br />

— O que está acontecendo?<br />

Mas ele me ignorou. Embaixo, no pátio, um criado já tinha selado seu<br />

cavalo. Vi minha mãe parada no patamar, com seu robe.<br />

— Mãe?<br />

— Seu pai foi chamado. Piero <strong>de</strong> Medici chegou e está na Signoria.<br />

É claro que não havia como voltar a dormir <strong>de</strong>pois disso. Como não havia<br />

outro lugar melhor, guar<strong>de</strong>i o papel com meus próprios <strong>de</strong>senhos já arrumados<br />

em minha arca <strong>de</strong> casamento. Pensaria no que fazer com ele mais tar<strong>de</strong>. No<br />

momento, havia assuntos mais urgentes. Lá embaixo, Tomaso e Luca estavam<br />

para partir. Encontrei minha mãe e a segui até seu quarto para lhe implorar,<br />

embora soubesse que não adiantaria.<br />

— Uma vez, me disse que a história tem <strong>de</strong> ser registrada. Estávamos<br />

juntas na capela <strong>de</strong> Ghirlandaio e você me disse essas palavras. Agora está<br />

acontecendo algo ainda mais importante em nossa cida<strong>de</strong>. Não temos permissão<br />

<strong>de</strong> testemunhá-lo?<br />

— Está fora <strong>de</strong> questão. Seu pai diz que Piero chegou à cida<strong>de</strong> com uma<br />

espada na mão e homens o seguindo <strong>de</strong> perto. Haverá <strong>de</strong>rramamento <strong>de</strong> sangue e<br />

violência. Mulheres não <strong>de</strong>vem assistir a esse tipo <strong>de</strong> coisa.<br />

— Então, o que fazemos? Sentamo-nos e bordamos nossas mortalhas?<br />

— Não seja melodramática, Alessandra. Não fica bem em você. Sim,<br />

po<strong>de</strong> costurar, se quiser. Se bem que seria melhor se rezasse. Por si mesma e<br />

pela cida<strong>de</strong>.<br />

O que se podia dizer? Eu não sabia mais o que era certo. Tudo o que antes<br />

parecia seguro e certo estava se <strong>de</strong>sfazendo diante dos meus olhos. Os Medici<br />

tinham governado a nossa cida<strong>de</strong> por cinqüenta anos. Mas, durante todo esse<br />

tempo, nunca haviam levantado armas contra o Estado. Na melhor das hipóteses,<br />

Piero era um mau político, e na pior, um traidor. Tomaso tinha razão. A<br />

República estava <strong>de</strong>smoronando como um castelo <strong>de</strong> cartas. No que daria tudo<br />

isso? O que seria <strong>de</strong> toda essa glória, riqueza e erudição. Savonarola estaria<br />

certo? Toda a arte do mundo não conseguiria impedir um exército invasor.


Teriam sido nossos pecados e nosso orgulho que nos haviam levado a isso?<br />

Minha mãe ocupou-se com a casa.<br />

Ao <strong>de</strong>scer a escadaria, encontrei Erila escapulindo.<br />

— Falam <strong>de</strong> <strong>de</strong>rramamento <strong>de</strong> sangue nas ruas — disse eu. — Devia ter<br />

cuidado. Minha mãe diz que lá fora não é, agora, lugar para mulheres.<br />

— Eu me lembrarei disso — disse ela, sorrindo largo enquanto puxava o<br />

manto ao redor da cabeça.<br />

— Oh, me leve com você — sussurrei quando ela se afastava. — Por<br />

favor. .. — E sei que me ouviu, pois a vi hesitar antes <strong>de</strong> se apressar em direção<br />

à porta.<br />

Fiz vigília em minha janela. Logo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> meio-dia, o gran<strong>de</strong> sino da Signoria<br />

começou a bater. Nunca o tinha escutado antes, mas sabia o que era. Como meus<br />

preceptores chamavam? La Vacca: a vaca, pois seu tom era melancólico e grave.<br />

Mas apesar <strong>de</strong> seu nome ser cômico, seu som indicava o fim do mundo, pois só<br />

ressoava em momentos <strong>de</strong> crises mais graves: uma convocação dos cidadãos <strong>de</strong><br />

Florença para se reunirem na Piazza <strong>de</strong>lla Signoria, pois o governo estava sob<br />

ameaça.<br />

Minha mãe chegou correndo e se juntou a mim na janela. As pessoas já se<br />

dirigiam em massa às ruas. Agora, ela estava tão agitada quanto eu. Por um<br />

instante, achei que estivesse doente <strong>de</strong> tão abatida.<br />

— O que é isso? Ela não respon<strong>de</strong>u.<br />

— O que é? — insisti.<br />

— Não o escuto há tanto tempo — disse ela vagamente. Sacudiu a cabeça<br />

como se para clarear os pensamentos. — Tocaram no dia do assassinato <strong>de</strong><br />

Giuliano e o ataque a Lorenzo, na Catedral. A cida<strong>de</strong> ficou alvoroçada. Por toda<br />

parte, pessoas gritavam — interrompeu-se e percebi que fazia um esforço para<br />

prosseguir. Pensei em suas lágrimas súbitas diante do corpo <strong>de</strong> Lorenzo. Quem<br />

ela era na época? — Eu... eu a carregava em meu ventre e no momento que os<br />

sinos dobraram senti você se mexer violentamente. Provavelmente, queria estar<br />

assistindo a tudo também. — E sorriu ligeiramente.<br />

— O que você fez? — perguntei, lembrando-me das histórias <strong>de</strong> sua<br />

transgressão.<br />

Ela fechou os olhos.<br />

— Fui para a janela, exatamente como você.<br />

— E?<br />

— E vi a ralé arrastar um dos assassinos, o padre <strong>de</strong> Bagnone, pelas ruas<br />

até o cadafalso. Vertia sangue <strong>de</strong> on<strong>de</strong> o tinham castrado.<br />

— Oh. — Então era verda<strong>de</strong>. Eu tinha me virado no ventre <strong>de</strong> minha mãe


por medo e horror. Afastei-me da janela sem pensar. — Então nasci monstruosa<br />

por causa do choque.<br />

— Não. Você não é monstruosa, Alessandra. Apenas curiosa. E jovem.<br />

Como eu era — fez uma pausa. — Se isso faz com que se sinta melhor, eu não<br />

fiquei tão chocada ou assustada, quanto triste por ele. Ninguém <strong>de</strong>veria sofrer<br />

tanta dor e terror... Sei o que dizem sobre essas coisas, mas tenho pensado muito<br />

nisso <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aquele dia, e acho que se lhe transmiti alguma coisa no útero foi a<br />

compaixão pelo sofrimento do homem.<br />

Sentei-me do seu lado e ela pôs os braços em volta <strong>de</strong> mim.<br />

— O que vai acontecer conosco, mamãe? — perguntei. Ela <strong>de</strong>u um<br />

suspiro.<br />

— Não sei. Receio que Piero não tenha nem perspicácia nem po<strong>de</strong>r para<br />

salvar o governo, embora ainda possa salvar a sua própria vida.<br />

— E os franceses?<br />

— Seu pai disse que estão a caminho. Piero fez um acordo humilhante<br />

que lhes conce<strong>de</strong> a liberda<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong>, a fortaleza <strong>de</strong> Pisa e um gran<strong>de</strong><br />

empréstimo para os cofres <strong>de</strong> guerra <strong>de</strong> Carlos.<br />

— Tanto assim! Como pô<strong>de</strong> fazer isso? Quando chegarão?<br />

— É só uma questão <strong>de</strong> dias. — Ela olhou para mim, quase como se<br />

estivesse me vendo pela primeira vez. — Acho que seu casamento <strong>de</strong>veria se<br />

realizar mais cedo do que pensávamos, Alessandra.<br />

Como sempre, foi Erila que trouxe as notícias. Era tão tar<strong>de</strong> que acho que,<br />

até mesmo, minha mãe estava preocupada, e <strong>de</strong>ssa vez, não teve coragem <strong>de</strong> me<br />

mandar para o meu quarto.<br />

— Piero <strong>de</strong>sapareceu, senhora. Reuniu seus homens e fugiu da cida<strong>de</strong>.<br />

Quando a Signoria leu os termos do acordo que ele fez, o expulsaram. Mas ele<br />

recusou-se a sair da praça e seus homens tiraram as espadas. Foi quando o sino<br />

dobrou. Deviam ter visto a multidão. Meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Florença estava lá em questão<br />

<strong>de</strong> minutos. Votaram para formar um novo governo imediatamente. A primeira<br />

coisa que fizeram foi exilá-lo e oferecer dois mil florins por sua cabeça. Voltei<br />

pela Via Tornabuoni. O Palácio dos Medici já está sitiado. Lá fora, parece em<br />

guerra.<br />

Então, os acontecimentos tinham provado que Savonarola estava certo. A<br />

espada estava sobre nós.<br />

Levantei-me às seis horas da manha. Recusei Maria e, nesse dia especial, pu<strong>de</strong><br />

fazer como queria. Erila vestiu-me e enfeitou meu cabelo. Estávamos exaustas.<br />

Era a minha segunda noite sem dormir. No pátio, os cavalariços estavam<br />

atrelando os cavalos e um grupo <strong>de</strong> homens que meu pai empregara como


guardas estava sendo alimentado nas cozinhas. Meta<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong> ainda estava<br />

nas ruas, e corriam boatos <strong>de</strong> pilhagem no Palácio dos Medici. Ninguém<br />

imaginaria um dia <strong>de</strong> casamento assim.<br />

Avaliei-me no espelho. Não tinha havido tempo para meu marido prover<br />

meu novo guarda-roupa, como era costume, portanto tive <strong>de</strong> me virar com o<br />

meu. Nos últimos meses, eu tinha crescido muito para o meu melhor brocado<br />

carmesim, mas ainda assim, estava estufada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, mal conseguindo mover<br />

meus braços <strong>de</strong> tão justas estavam as mangas. Nenhum sinal das <strong>de</strong>slumbrantes<br />

saias <strong>de</strong> seda e a pele pálida <strong>de</strong> minha irmã. Eu não tinha nem beleza nem<br />

elegância. Mas, <strong>de</strong> qualquer maneira, essa não era uma hora para retratos <strong>de</strong><br />

família orgulhosa. Ainda bem. Como me sentaria calmamente em frente a um<br />

homem cuja pena noturna captara pele fatiada e os contornos <strong>de</strong> entranhas<br />

expostas? Senti náuseas só em pensar.<br />

— Xii... fique quieta, Alessandra. Não consigo pren<strong>de</strong>r as flores no lugar<br />

se fica se sacudindo <strong>de</strong>sse jeito.<br />

A culpa não era <strong>de</strong> eu me contorcer, mas sim por estarem murchas. Flores<br />

<strong>de</strong> ontem para a noiva <strong>de</strong> hoje. Encontrei seu olhar no espelho. Ela não sorriu e<br />

sei que estava assustada também.<br />

— Erila...?<br />

— Psiuu... Não há tempo para isso agora. Ficaremos bem. É um<br />

casamento, não um funeral. Lembre-se <strong>de</strong> que foi você que preferiu isso ao<br />

convento.<br />

Mas acho que ela estava sendo ríspida só para manter o ânimo elevado, e<br />

quando viu minhas lágrimas, me abraçou. Quando terminou o cabelo, se<br />

ofereceu para dar uma escapada e buscar algumas castanhas assadas e vinho<br />

para mim. Só quando estava saindo me lembrei do encontro marcado com o<br />

pintor para mais tar<strong>de</strong> naquele mesmo dia.<br />

— Diga-lhe... — Mas o que havia para dizer? Que eu estaria longe da casa<br />

do meu pai enquanto ele passava as noites no meio fétido da morte e estripação<br />

sangrenta? — Diga-lhe que agora é tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais. — E era.<br />

A porta abriu-se logo <strong>de</strong>pois que ela saiu, e Tomaso ficou no umbral,<br />

como se receasse chegar mais perto. Continuava com suas roupas da noite<br />

anterior.<br />

— Como está lá fora, irmão? — perguntei sem modular a voz, olhando<br />

para o espelho.<br />

— Como se a invasão já tivesse acontecido. Estão arrancando os timbres<br />

dos Medici <strong>de</strong> todos os edifícios e pintando no lugar o signo da República.<br />

— Estaremos seguros?<br />

— Não sei.<br />

Ele tirou a capa e enxugou o rosto com ela.


— Imagino que não esteja vestido para o meu casamento — disse eu,<br />

quase feliz por ter um motivo para espicaçá-lo. — Não fará nenhuma conquista<br />

com tanta sujeira. Se bem que eu ache que a lista <strong>de</strong> convidados ficará um tanto<br />

reduzida pelas circunstâncias.<br />

Ele sacudiu os ombros levemente.<br />

— Seu casamento — repetiu baixinho. — Parece que sou o único que<br />

ainda não lhe <strong>de</strong>u parabéns — fez uma pausa e olhamos um para o outro no<br />

espelho. — Você está... bonita.<br />

E era tão incongruente ouvir até mesmo um elogio tão simples <strong>de</strong> sua<br />

boca que não consegui controlar o riso.<br />

— Bem o bastante para dar uma trepadinha, quer dizer?<br />

Ele franziu o cenho, como se a minha crueza o aborrecesse. Aproximou-se<br />

mais para me ver diretamente, sem o reflexo no espelho.<br />

— Ainda não sei por que fez isso.<br />

— Fiz o quê?<br />

— Aceitou casar-se com ele.<br />

— Para ficar longe <strong>de</strong> você, é claro — disse eu, mas ele, <strong>de</strong> novo, não<br />

reagiu. Eu <strong>de</strong>i <strong>de</strong> ombros. — Porque eu teria uma morte lenta em um convento e<br />

aqui não tenho vida. Talvez com ele eu consiga uma.<br />

Pigarreou ligeiramente, como se a resposta não tivesse adiantado.<br />

— Espero que seja feliz.<br />

— Espera?<br />

Ele hesitou.<br />

— Ele é um homem culto.<br />

— É o que ouvi falar.<br />

— Acho... acho que lhe dará a liberda<strong>de</strong> que você <strong>de</strong>seja.<br />

Franzi o cenho. Parecia algo que minha mãe dissera.<br />

— E o que o faz pensar assim?<br />

Ele <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros.<br />

— Você o conhece, não?<br />

— Um pouco.<br />

Sacudi a cabeça.<br />

— Não. Mais do que um pouco, eu acho. — E claro. Tanta coisa tinha<br />

acontecido, que eu não tinha refletido direito. Com quem mais ficaria sabendo<br />

<strong>de</strong> meus estudos e minha pintura? Quem mais lhe daria tal munição?<br />

— Foi você que falou <strong>de</strong> mim para ele, certo? — disse eu. — Sobre o<br />

grego. E meu <strong>de</strong>senho. E a dança.<br />

— A sua dança fala por si, e o seu conhecimento, irmã, bem, o seu<br />

conhecimento é lendário. — E um lampejo do antigo Tomaso estava <strong>de</strong> volta, a<br />

faca enfiada fundo no sarcasmo.


— Diga-me, Tomaso. Por que sempre brigamos?<br />

— Porque... — interrompeu-se. — Porque... não me lembro do resto.<br />

Dei um suspiro.<br />

— Você é mais velho do que eu, tem mais liberda<strong>de</strong> do que eu, mais<br />

influência, até mesmo dança melhor — fiz uma pausa. — E é bem mais bonito.<br />

— Ele não disse nada. — Ou certamente se olha mais vezes no espelho —<br />

acrescentei rindo.<br />

Ele <strong>de</strong>veria ter rido <strong>de</strong> volta. Havia uma oportunida<strong>de</strong> para isso. Mas<br />

continuou sem dizer nada.<br />

— Bem — eu disse baixinho —, talvez fosse bom não fazermos as pazes<br />

agora. Isso nos chocaria <strong>de</strong>mais e o mundo já está cheio <strong>de</strong> coisas chocantes.<br />

Não havia mais nada a dizer, mas ele continuou lá, <strong>de</strong>morando-se.<br />

— Falo sério, Alessandra. Você está realmente bonita.<br />

— Estou pronta — corrigi. — Embora não tenha tanta certeza. De<br />

qualquer jeito... Na próxima vez que nos encontrarmos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> hoje, serei<br />

uma esposa e Florença será uma cida<strong>de</strong> ocupada. Você podia fazer outra coisa<br />

que não criar briga nas ruas por algum tempo. Po<strong>de</strong> ser atingido pela ponta <strong>de</strong><br />

uma espada francesa.<br />

— Então, em vez disso, <strong>de</strong>vo ir visitá-la.<br />

— Será sempre bem-vindo na minha casa — disse eu formalmente. Eu me<br />

perguntei quanto tempo levaria para a palavra <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> soar estranha em minha<br />

boca.<br />

— Nesse caso, irei com freqüência — fez uma pausa. — Apresente meus<br />

eitos a seu marido.<br />

— Sim.<br />

Agora sei, é claro, que a conversa o <strong>de</strong>ixou mais incomodado do que a<br />

mim.<br />

***


Não se po<strong>de</strong>ria chamar aquilo <strong>de</strong> cortejo nupcial.<br />

Eu montada a cavalo, porém mal era vista por causa dos guardas ao meu redor, e<br />

ninguém nas ruas parou para admirar meu vestido. A cida<strong>de</strong> estava apreensiva.<br />

Havia grupos <strong>de</strong> homens comprimindo-se nas esquinas e, quando chegamos à<br />

Catedral, fomos parados e recebemos or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> seguir por outro caminho<br />

enquanto a praça diante da igreja era isolada.<br />

Mas o isolamento não estava concluído e, por uma brecha, tive uma visão<br />

clara.<br />

Havia uma figura caída na escada do Batistério, seu corpo encurvado<br />

contra as portas esculpidas <strong>de</strong> Ghiberti. Um manto cobria sua cabeça, mas pela<br />

extensão <strong>de</strong> sua perna e as cores <strong>de</strong> sua roupa era obviamente um jovem.<br />

Po<strong>de</strong>ria estar adormecido <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma noite <strong>de</strong> bebe<strong>de</strong>ira, se não fosse a poça<br />

<strong>de</strong> sangue negro que escorria, como uma corrente <strong>de</strong> água, <strong>de</strong> <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> seu<br />

corpo.<br />

O cavalariço incitou meu cavalo a avançar, mas o cheiro <strong>de</strong> sangue <strong>de</strong>ve<br />

ter entrado em suas narinas, pois, <strong>de</strong> repente, recusou-se, bufando, suas patas<br />

batendo nas pedras do calçamento. Segurei-me na sela, olhando o cadáver. E<br />

enquanto eu olhava, o manto escorregou e vi um rosto <strong>de</strong>sfigurado,<br />

ensangüentado, a cabeça quase totalmente separada do torso, e um buraco on<strong>de</strong><br />

havia sido o nariz. Acima <strong>de</strong>le, as portas contavam a história do Anjo <strong>de</strong> Deus<br />

<strong>de</strong>tendo a mão <strong>de</strong> Abraão no Sacrifício <strong>de</strong> Isac. Mas ali, não houve tal<br />

misericórdia. Mais um corpo mutilado do lado <strong>de</strong> mais uma igreja. Savonarola<br />

estava certo: Florença estava em guerra consigo mesma e o Diabo circulava pela<br />

cida<strong>de</strong> durante as horas noturnas.<br />

O cavalariço puxou a cabeça do cavalo e continuamos o nosso caminho.


Dezoito<br />

O PALAZZO DE MEU MARIDO ERA velho e com muitas correntes <strong>de</strong> ar, e<br />

um cheiro <strong>de</strong> umida<strong>de</strong> das pedras. O meu instinto em relação à lista <strong>de</strong><br />

convidados <strong>rev</strong>elou-se correto. Não foi somente o tempo que a reduzira, mas<br />

uma apreensão em relação a lealda<strong>de</strong>s passadas. Com o governo mudando <strong>de</strong><br />

mãos não convinha ser visto em um casamento da velha guarda, e meu pai,<br />

embora não tivesse sido tão proeminente quanto gostaria, certamente estava<br />

comprometido. Não posso dizer que isso me preocupava. Que necessida<strong>de</strong><br />

tínhamos <strong>de</strong> espectadores? A cerimônia foi simples e b<strong>rev</strong>e. O notário estava<br />

mais agitado do que nós, olhando por cima do ombro sempre que se ouvia um<br />

grito ou barulho vindo da rua. Mas cumpriu seu <strong>de</strong>ver, supervisionando a<br />

assinatura dos contratos e a troca <strong>de</strong> anéis entre nós dois. Na pressa, meu marido<br />

não tivera tempo <strong>de</strong> mandar comprar os presentes, mas tinha feito o que podia, e<br />

acho que minha mãe ficou tocada com o pequeno broche <strong>de</strong> âmbar que ele lhe<br />

<strong>de</strong>u, herança <strong>de</strong> sua mãe. Para Luca, havia um cantil para bebida, e para<br />

Tomaso, um cinto <strong>de</strong> prata, que achei bonito, com promessas <strong>de</strong> mais coisas<br />

para todos <strong>de</strong>pois.<br />

Enquanto a crise abalava a cida<strong>de</strong>, o interior da velha casa <strong>de</strong> Cristoforo<br />

era silencioso e refinado. Suas maneiras eram calmas e durante toda a cerimônia<br />

tratou-me com uma atenção cortês, mais como uma conhecida do que uma<br />

esposa, mas é claro que, então, eu era exatamente isso. Achei tranqüilizadora<br />

essa sua maneira, como se fosse prova <strong>de</strong> sua franqueza, assim como <strong>de</strong> sua boa<br />

vonta<strong>de</strong>. Ficamos lado a lado, e como ele era bastante alto, não tive <strong>de</strong> me<br />

curvar como precisava fazer com tantos outros homens. Ele estava com boa<br />

aparência, melhor do que a minha, tenho <strong>de</strong> admitir. Quando ele era mais jovem,<br />

arrisco dizer que <strong>de</strong>veria ter sido um homem extremamente atraente, e apesar<br />

das rugas e da tez rosada, havia ainda uma beleza pálida que chamava a atenção.<br />

Depois da cerimônia, houve uma refeição simples <strong>de</strong> frios, gelatina <strong>de</strong><br />

porco e lúcio assado recheado <strong>de</strong> passas. Nada parecido a um banquete <strong>de</strong><br />

casamento, mas pela cara do meu pai, podia dizer que os vinhos da a<strong>de</strong>ga eram<br />

superiores. Depois <strong>de</strong> comermos, houve dança e música no salão <strong>de</strong> inverno.<br />

Plautilla arquejou e suou algumas voltas, mas a sua graça <strong>de</strong> gazela tinha<br />

<strong>de</strong>saparecido com o tamanho <strong>de</strong> sua barriga. Quando meu recente marido me<br />

conduziu no Balli Rostiboli, não caí nem perdi os passos <strong>de</strong> nenhuma dança.<br />

Minha mãe observava em silêncio. Meu pai, do seu lado, fingia um certo<br />

interesse, mas a sua mente estava em outras coisas. Tentei imaginar o mundo<br />

através <strong>de</strong> seus olhos. Ele tinha construído toda a sua vida baseada no progresso


da sua família e na glória do estado. Agora, suas filhas estavam dispersas, seus<br />

filhos selvagens nas ruas, a República em crise e o exército francês a um dia <strong>de</strong><br />

marcha. Enquanto estávamos ali, dançando como se não houvesse nada melhor a<br />

fazer.<br />

As festivida<strong>de</strong>s encerraram-se cedo, <strong>de</strong> acordo com o toque <strong>de</strong> recolher.<br />

Minha família <strong>de</strong>spediu-se me abraçando e abraçando meu marido. Minha mãe<br />

beijou-me solenemente na testa, e acho que falaria algo mais, porém não olhei<br />

em seus olhos. Eu estava nervosa e disposta a culpar todo mundo, menos a mim<br />

mesma, pela minha situação.<br />

— Tem <strong>de</strong> ser corajosa — ela tinha me dito apressadamente nessa manhã<br />

ao verificar meu vestido, sem tempo para todas as instruções. — Ele sabe que<br />

você é jovem e terá cuidado. A noite <strong>de</strong> núpcias po<strong>de</strong> machucar um pouco. Mas<br />

acabará logo. É uma gran<strong>de</strong> aventura, Alessandra. Mudará a sua vida, e acredito<br />

que, se você aceitá-la, ela lhe dará uma tranqüilida<strong>de</strong> e uma satisfação que <strong>de</strong><br />

outra maneira o futuro talvez lhe negasse.<br />

Não estou certa <strong>de</strong> que ela acreditasse nisso. Quanto a mim, estava tão<br />

distraída que nem mesmo escutava direito.<br />

— Então, Alessandra Langella, o que faremos agora, você e eu?<br />

Ele inspecionava o que tinha restado. O silêncio <strong>de</strong>pois da música foi<br />

alarmante.<br />

— Não sei.<br />

Sabia que ele estava percebendo meu nervosismo. Serviu-se <strong>de</strong> mais um<br />

drinque. Oh, por favor, não fique bêbado, pensei. Até mesmo eu, ignorante<br />

como era, sabia que, na noite <strong>de</strong> núpcias, o marido não <strong>de</strong>via procurar sua<br />

recente esposa com uma luxúria incontrolável (e não havia sinal <strong>de</strong> nada<br />

parecido com isso; na verda<strong>de</strong>, a única vez que ele me tocara <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a cerimônia<br />

tinha sido durante a dança) nem embriagado. Quanto às outras proibições, bem,<br />

sem dúvida eu as conheceria durante a noite.<br />

— Talvez <strong>de</strong>vêssemos explorar um interesse mútuo por enquanto.<br />

Gostaria <strong>de</strong> ver um pouco <strong>de</strong> arte?<br />

— Oh, sim — disse eu, e acho que meu rosto <strong>de</strong>ve ter-se iluminado,<br />

porque ele riu com a minha inépcia como alguém riria da excitação <strong>de</strong> uma<br />

criança. Lembro-me <strong>de</strong> ter pensado, nesse momento, que ele parecia ser um bom<br />

homem e que, quando nos tornássemos marido e mulher, po<strong>de</strong>ríamos voltar a<br />

conversar como tínhamos feito na casa <strong>de</strong> Plautilla, e passar o tempo livre<br />

sentados um do lado do outro lendo e estudando questões da mente, como um<br />

irmão que nunca tive. E assim, embora o estado pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>smoronar à nossa<br />

volta, conservaríamos algo da antiga Florença <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós, e portanto, <strong>de</strong> todo


esse horror po<strong>de</strong>ria sair algo bom.<br />

Ao subirmos a escadaria, percebi que ia ficando mais frio.<br />

A sua coleção <strong>de</strong> esculturas ficava no segundo andar. Ele lhe havia<br />

<strong>de</strong>dicado toda uma sala. Havia cinco estátuas: dois sátiros, um Hércules com<br />

músculos como cordas nodosas sob uma pele <strong>de</strong> mármore, e um Baco<br />

memorável, cujo corpo, embora <strong>de</strong> pedra, parecia mais carnudo do que o meu.<br />

Porém, o mais belo era o jovem atleta: um rapaz nu, seu peso sobre o pé, seu<br />

torso torcido preparado para o lançamento do disco que ele segurava na mão<br />

direita em concha. Tudo em seu corpo transmitia flui<strong>de</strong>z e graça, como se<br />

Medusa o tivesse capturado no exato segundo antes <strong>de</strong> pensamento e ação se<br />

conectarem. Certamente, até mesmo Savonarola teria se comovido com ele.<br />

Esculpido muito tempo antes <strong>de</strong> Cristo, havia uma divinda<strong>de</strong> palpável em sua<br />

perfeição.<br />

— Gosta <strong>de</strong>le?<br />

— Oh, sim — ofeguei. — Gosto muito. É <strong>de</strong> quando?<br />

— Ele é mo<strong>de</strong>rno.<br />

— Não. Ele é...<br />

— Clássico? Sei, é um erro esperado. Ele é a prova <strong>de</strong> meu lado filisteu.<br />

— O que quer dizer?<br />

— Comprei-o em Roma. De um homem que jurou que tinha sido<br />

<strong>de</strong>senterrado na ilha <strong>de</strong> Creta dois anos antes. O torso conserva as marcas <strong>de</strong><br />

terra e fungos. Vê os <strong>de</strong>dos partidos na mão esquerda? Paguei uma fortuna por<br />

ele. Quando o trouxe para Florença, um amigo com ligação com o jardim <strong>de</strong><br />

esculturas dos Medici disse-me que era obra <strong>de</strong> um jovem artista. A cópia <strong>de</strong><br />

uma peça que havia pertencido a Cosimo. Aparentemente, não era a primeira<br />

vez que tal ilusão tinha acontecido.<br />

Ergui os olhos para o jovem. Podia-se imaginá-lo virando a cabeça para<br />

nós, sorrindo à <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> sua própria frau<strong>de</strong>. No entanto, um sorriso<br />

encantador.<br />

— O que você fez?<br />

— Parabenizei o artista e fiquei com a estátua. Acho que vale o que quer<br />

que eu tenha pago por ela. Venha. Tenho coisas que acho que vão interessá-la<br />

ainda mais.<br />

Levou-me a uma sala menor. De um armário trancado, tirou uma linda<br />

taça <strong>de</strong> malaquita e dois vasos <strong>de</strong> ágata, restaurados por ourives florentinos, em<br />

pe<strong>de</strong>stais dourados com seu nome gravado na parte <strong>de</strong> baixo. Em seguida, abriu<br />

uma pequena gaveta <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira marchetada, <strong>rev</strong>elando um conjunto <strong>de</strong> moedas<br />

romanas e jóias. Mas o seu verda<strong>de</strong>iro troféu ele <strong>de</strong>ixou por último: um gran<strong>de</strong><br />

portfólio que colocou cuidadosamente sobre a mesa à minha frente.<br />

— São ilustrações <strong>de</strong> um texto aguardando serem anexadas a um livro.


Po<strong>de</strong> imaginar a glória que trarão quando o livro estiver concluído?<br />

Tirei-as com cuidado, uma por uma, até umas doze <strong>de</strong>las se disporem em<br />

seqüência sobre a mesa. O pergaminho era fino o bastante para eu ver a escrita<br />

atrás, mas não precisei ler as palavras para saber <strong>de</strong> que livro se tratava. Os<br />

esboços a nanquim mostravam vislumbres do paraíso: uma Beatriz<br />

sublimemente <strong>de</strong>licada guiando Dante pela mão por um bando <strong>de</strong> espíritos<br />

minúsculos, em direção ao Ente Supremo acima.<br />

— Paradiso.<br />

— Exato.<br />

— E há também o Purgatoro e o Inferno?<br />

— É claro.<br />

E <strong>rev</strong>i canto por canto. À medida que os <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong>sciam para o inferno,<br />

tornavam-se mais complexos e selvagens; alguns <strong>de</strong>les proliferavam figuras<br />

nuas atormentadas por <strong>de</strong>mônios, outros capturavam homens paralisados em<br />

estruturas <strong>de</strong> árvores ou violados por serpentes. Embora conhecesse Dante, a<br />

minha imaginação nunca teria produzido tal rio ondulante <strong>de</strong> imagens para<br />

acompanhar as palavras.<br />

— Oh! Quem fez isto?<br />

— Não reconhece o estilo?<br />

— Não vi tanta arte quanto você — repliquei calmamente.<br />

— Tente este — procurou na pilha e retirou um canto do Paradiso, no<br />

qual os cachos do cabelo <strong>de</strong> Beatriz ondulavam ao redor <strong>de</strong> sua face com a<br />

mesma exuberância das dobras <strong>de</strong> sua roupa sobre seu corpo. Em seu rosto,<br />

meta<strong>de</strong> recatado, meta<strong>de</strong> sereno, percebi o indício <strong>de</strong> uma amante mais<br />

calculista, que atraía para si todos os tipos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos dos homens.<br />

— Alessandro Botticelli?<br />

— Muito bem. Ela é <strong>de</strong> fato a sua Beatriz, não acha?<br />

— Mas... mas quando ele <strong>de</strong>senhou estas imagens? Eu não sabia que tinha<br />

ilustrado a Divina Comédia.<br />

— Oh, o nosso Sandro tem um amor por Dante quase tão gran<strong>de</strong> quanto o<br />

que tem por Deus. Se bem que soube que está mudando sob as invectivas das<br />

palavras <strong>de</strong> Savonarola. Foram feitas alguns anos atrás, <strong>de</strong>pois que ele retornou<br />

<strong>de</strong> Roma. De início, foram um trabalho <strong>de</strong> amor, não uma encomenda, apesar <strong>de</strong><br />

ele sempre ter tido um patrono. Elas lhe tomaram muito tempo. E como vê,<br />

permanecem inacabadas.<br />

— Como chegaram a você?<br />

— Ah, infelizmente sou apenas seu guardião. Guardo-as para um amigo<br />

que anda ocupado com política e teme que sua coleção possa se tornar<br />

vulnerável à violência <strong>de</strong> fora.<br />

E claro que eu estava curiosa para saber a que amigo se referia, mas ele


não disse mais nada. Pensei em minha mãe e meu pai, em como, apesar <strong>de</strong> ela<br />

ser mais inteligente do que ele <strong>de</strong> várias maneiras, havia todo um tipo <strong>de</strong> coisas<br />

que ele não partilhava com ela, e sobre o quê ela não fazia perguntas. Sem<br />

dúvida, eu logo saberia on<strong>de</strong> ficavam as fronteiras.<br />

Voltei aos esboços. A viagem pelo Paradiso era graciosa, até mesmo<br />

profunda, mas a minha atenção era continuamente atraída <strong>de</strong> volta ao Inferno.<br />

Essas páginas fervilhavam <strong>de</strong> sofrimento e tristeza: corpos afogando-se em rios<br />

<strong>de</strong> sangue, exércitos <strong>de</strong> almas perdidas precipitando-se na eternida<strong>de</strong>,<br />

perseguidos pelo fogo, enquanto Dante e Virgílio, em algumas das ilustrações<br />

vestidos com cores vibrantes, caminhavam ao longo <strong>de</strong> um precipício <strong>de</strong> rocha<br />

tocados pelas chamas.<br />

— Diga-me, Alessandra — falou meu marido, olhando por sobre o meu<br />

ombro —, por que acha que o inferno sempre fascina mais do que o paraíso?<br />

Relembrei todas as pinturas e afrescos que eu tinha visto, didáticos em seu<br />

horror: diabretes acocorados com asas e garras <strong>de</strong> morcego, <strong>de</strong>vorando carne<br />

humana e mastigando ossos. Ou o próprio Diabo, seu gran<strong>de</strong> corpo <strong>de</strong> animal<br />

coberto <strong>de</strong> pêlo, enchendo a boca <strong>de</strong> pecadores que gritavam, como se fossem<br />

cenouras. Comparadas com essas, que imagens eu me lembrava do céu? Hostes<br />

<strong>de</strong> belas santas e anjos em fileiras cerradas, unidos em uma serenida<strong>de</strong> sem<br />

palavras.<br />

— Talvez porque nós todos sentimos dor — repliquei. — Enquanto é<br />

mais difícil para nós enten<strong>de</strong>rmos o sublime.<br />

— Ah? Vê o sublime como o oposto <strong>de</strong> dor? E o prazer?<br />

— Acho... acho que o prazer é uma palavra fraca <strong>de</strong>mais para união com<br />

Deus. Certamente o prazer é um conceito terreno. É o que acontece quando se<br />

ce<strong>de</strong> à tentação.<br />

— Exatamente — riu. — Então o sofrimento do inferno nos lembra o<br />

prazer terreno. Uma associação potente, não acha? Porque nos lembra vida.<br />

— Embora também <strong>de</strong>vesse nos lembrar pecado — eu disse, com<br />

gravida<strong>de</strong>.<br />

— Infelizmente, sim — <strong>de</strong>u um suspiro. — Pecado. — Se bem que não<br />

pareceu muito entristecido pelo pensamento. — Os dois <strong>de</strong>vem crescer juntos,<br />

como a hera ao redor da cortiça.<br />

— A que lugares vai, senhor? — perguntei, mas a gravida<strong>de</strong> tinha<br />

<strong>de</strong>saparecido e eu me perguntava como seria se, na próxima vez, eu usasse a<br />

palavra marido.<br />

— Eu? Oh, vou aon<strong>de</strong> posso encontrar a melhor companhia.<br />

— E vai em busca <strong>de</strong> intrigas ou filosofia?<br />

Ele sorriu.<br />

— De filosofia, é claro. Que a eternida<strong>de</strong> seja dos eruditos clássicos.


— Ah, então, já está <strong>de</strong>squalificado. Pois essas gran<strong>de</strong>s mentes<br />

permanecem no limbo, já que nasceram antes do nascimento do verda<strong>de</strong>iro<br />

Salvador. E apesar <strong>de</strong> não sentirem dor, sofrem do <strong>de</strong>sespero gerado por não<br />

terem esperança <strong>de</strong> transcendência. Até mesmo o purgatório lhes é negado.<br />

Riu.<br />

— Muito bem. Mas <strong>de</strong>vo dizer que pressenti seu ardil. É meu o crédito <strong>de</strong><br />

tê-lo provocado em você. — E, evi<strong>de</strong>ntemente, quando ele disse isso, me peguei<br />

estranhando o prazer da nossa conversa e como, se ele tivesse razão, isso em si<br />

tornava esse prazer um candidato ao pecado. — Mas eu acrescentaria —<br />

prosseguiu ele — que se Dante será o nosso Virgílio na vida após a morte,<br />

então, estou certo que concordaremos com a existência <strong>de</strong> lugares no inferno<br />

on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> encontrar bons companheiros <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates. No intervalo dos<br />

tormentos, os pecadores são capazes <strong>de</strong> alguns discursos perspicazes.<br />

Ele e eu estávamos mais perto um do outro, agora, uma centena <strong>de</strong> corpos<br />

nus na ponta dos nossos <strong>de</strong>dos. O Inferno <strong>de</strong> Dante tinha uma elegante simetria<br />

metafísica: para cada pecado, a tortura contrária. De modo que glutões sofriam a<br />

fome eterna, ladrões que não sabiam distinguir seus bens dos bens dos outros,<br />

metamorfoseados em cobras e serpentes, e pecadores consumidos pelo calor da<br />

luxúria eram soprados em um vôo eterno pelos ventos <strong>de</strong> labaredas, sem alívio<br />

para o comichão que ardia por mais que o cocassem.<br />

Mas ali estávamos nós examinando-os: marido e mulher, o nosso <strong>de</strong>sejo<br />

santificado pelo ato do casamento. Se tivesse <strong>de</strong> haver contato físico entre nós,<br />

po<strong>de</strong>ria ser, em vez <strong>de</strong> pecado, um <strong>de</strong>grau para a divinda<strong>de</strong>. Nós dois tínhamos<br />

lido nosso Marsilio Ficino. Vinculum Mundi: o amor unindo toda a criação <strong>de</strong><br />

Deus, Platão e o cristianismo em uma alegre união. O ato físico do amor entre<br />

homem e mulher era, portanto, o primeiro <strong>de</strong>grau em uma escada que po<strong>de</strong>ria<br />

levar a uma união extática final com o Ente Supremo. Eu, que tão<br />

freqüentemente sonhara com a transcendência, sentia agora uma sensação<br />

escorregadia em meu útero, uma mistura <strong>de</strong> dor e prazer.<br />

Talvez tivesse, afinal, a mão <strong>de</strong> Deus nisso tudo. Se meu marido até então<br />

escolhera a luxúria ao amor, certamente a minha pureza po<strong>de</strong>ria trazer a nós dois<br />

a salvação. Por nossas mentes, talvez <strong>de</strong>scobríssemos nosso corpo, e por meio<br />

do nosso corpo, aspiraríamos a Deus.<br />

— On<strong>de</strong> conheceu meu irmão? — perguntei. Pois se o nosso seria um<br />

encontro <strong>de</strong> almas, eu precisaria saber.<br />

Ele fez uma pausa.<br />

— Acho que sabe on<strong>de</strong>.<br />

— Em uma taberna?<br />

— O quanto isso a choca?<br />

— Não muito — respondi. — Esquece-se <strong>de</strong> que morei com ele por muito


tempo. Sei que não sai <strong>de</strong>sses lugares.<br />

— Mas ele é jovem — fez uma pausa. — Eu não tenho nenhuma<br />

<strong>de</strong>sculpa.<br />

— Não é da minha conta o que fez antes <strong>de</strong> mim — disse eu, e fiquei<br />

satisfeita com a minha própria resignação.<br />

— Como coloca isso <strong>de</strong> maneira doce. — E sorriu.<br />

Sim, pensei. Mulheres o achariam atraente. Embora tivesse presença, não<br />

as perseguia. Consi<strong>de</strong>rando-se a maneira incessante como a luxúria atrai alguns<br />

homens, percebi como isso seria a sua própria e sutil sedução.<br />

Ficamos em silêncio. Acho que nós dois sabíamos que tinha chegado a<br />

hora. Apesar <strong>de</strong> sua cortesia, <strong>de</strong>sejei que me tocasse. Um contato simples: um<br />

roçar <strong>de</strong> roupas ou mãos se encontrando ao pegar o pergaminho. Embora<br />

pu<strong>de</strong>sse querê-lo mais puro, tinha necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu conhecimento agora.<br />

Bocejei.<br />

— Está cansada? — disse ele imediatamente.<br />

— Um pouco. Foi um longo dia. — Então vamos nos retirar. Vou chamar<br />

a sua escrava. Como ela se chama?<br />

— Erila.<br />

— Erila. Ela po<strong>de</strong> ajudá-la a se aprontar. Assenti com a cabeça, achando<br />

difícil falar nesse momento, tal era a pressão na minha traquéia. Movi-me para o<br />

lado, concentrando-me nas pinturas, enquanto ele tocava a campainha. Os<br />

corpos do Inferno estavam à minha volta, se contorcendo e cambaleando em<br />

recordações selvagens <strong>de</strong> prazer. Esse era um homem em casa, nu. Como sua<br />

mulher, eu teria a vantagem <strong>de</strong> seus anos <strong>de</strong> experiência. Sim, podia ter sido<br />

pior.<br />

Primeiro, ela tirou meus sapatos, removendo da parte interna da sola o florim <strong>de</strong><br />

ouro que minha mãe tinha colocado para trazer à minha união riqueza e<br />

fertilida<strong>de</strong>. Ao segurá-lo, receei, por um instante, que me fizesse chorar, tanto<br />

isso era o símbolo do meu lar perdido. Depois, ela <strong>de</strong>sfez os cordões e pisei para<br />

fora do vestido, e tirei minha camisa até ficar nua diante <strong>de</strong>la. Minha camisola<br />

<strong>de</strong> casamento estava sobre a cama. O quarto estava o e, como eu tremia, a minha<br />

pele se arrepiou como uma galinha <strong>de</strong>penada. Ela ficou com o vestido nos<br />

braços, me examinando. Vestia-me <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que eu era pequena, e tinha observado<br />

as mudanças em meu corpo ano após ano. Agora, nós duas nos perguntávamos<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> tinham vindo o espessamento dos quadris e o pêlo púbico que brotava.<br />

— Oh, minha senhora — disse ela, tentando ser <strong>de</strong>licada e falando em<br />

tom <strong>de</strong> gracejo. — Olhe só para você... um pêssego maduro.<br />

Contra a vonta<strong>de</strong>, ri.


— Acho que mais gorda do que qualquer outra coisa. Estou estufada<br />

como uma bexiga doente.<br />

— É a carne que vem e vai com a lua. Mas lhe cai bem. Esta pronta.<br />

— Oh, você também não, Erila. Já ouvi o bastante <strong>de</strong> Tomaso. A única<br />

coisa que mudou em mim é que, agora, sangro que nem um porco espetado.<br />

Afora isso, sou a mesma <strong>de</strong> antes.<br />

Ela sorriu.<br />

— Não é a mesma. Guar<strong>de</strong> minhas palavras.<br />

De novo, <strong>de</strong>sejei que ela tivesse sido minha mãe. Então, po<strong>de</strong>ria lhe<br />

perguntar tudo o que não sei e que podia salvar minha vida ou, pelo menos, a<br />

minha dignida<strong>de</strong> durante as próximas horas. Mas já era tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais. Agarrei a<br />

camisola e a vesti pela cabeça. O pano <strong>de</strong> seda ia até o chão, o lucro <strong>de</strong> meu pai<br />

acariciando meus quadris e pernas <strong>de</strong>snudos. Nele, eu parecia quase graciosa.<br />

Sentei-me enquanto ela soltava meu cabelo. Era tão espesso e <strong>rev</strong>olto que<br />

quando os últimos grampos foram tirados, caiu pesado por minhas costas.<br />

— É como um rio <strong>de</strong> lava negra — disse ela quando começou a escová-lo<br />

e <strong>de</strong>sembaraçá-lo.<br />

— Mais um ninho <strong>de</strong> corvos em disputa.<br />

Ela <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros.<br />

— De on<strong>de</strong> vim, a cor é linda.<br />

— Oh! Então posso ir viver nesse país também? Tenho uma idéia ainda<br />

melhor. — Peguei-a olhando no espelho. — Por que não fica com ele em meu<br />

lugar nesta noite? Verda<strong>de</strong>. É perfeito. Vai estar escuro, <strong>de</strong> modo que ele nunca<br />

notará a diferença. Mal trocamos vinte palavras. Não, pare <strong>de</strong> rir. Falo sério.<br />

Você é quase tão rechonchuda quanto eu. Contanto que ele não fale grego na<br />

hora, vai ser simples.<br />

Sua risada sempre fora contagiante e, por um tempo, não conseguimos<br />

parar. Se nos ouvisse, o que pensaria? Respirei fundo, prendi o ar e fechei os<br />

olhos. Quando os abri, ela sorria para mim.<br />

— Acha que sou jovem <strong>de</strong>mais para isso, Erila? — perguntei<br />

ansiosamente.<br />

— Já tem ida<strong>de</strong> bastante.<br />

— Quando aconteceu com você?<br />

Ela franziu os lábios.<br />

— Não me lembro.<br />

— Verda<strong>de</strong>?<br />

— Não — fez uma pausa. — Eu me lembro.<br />

Dei um suspiro.<br />

— Pelo menos, me dê algumas dicas. Por favor. Diga-me o que fazer.<br />

— Não faça nada. Se fizer, vai fazê-lo pensar que já fez isso antes, e ele


pedirá o contrato <strong>de</strong> volta.<br />

E nós duas rimos <strong>de</strong> novo.<br />

Ela fez seu serviço, arrumando o quarto, pegando meu vestido <strong>de</strong><br />

casamento e pondo na sua frente diante do espelho, com um sorriso secreto e um<br />

gesto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdém. Ficaria melhor nela do que ficara em mim. Quando ela<br />

conseguir a liberda<strong>de</strong> ou um marido, o que vier primeiro, lhe darei um dote<br />

assim: algo majestoso que combine com essa pele aveludada e a cabeleira<br />

crespa. Que Deus proteja esse homem.<br />

— O que me disse certa vez? Antes do casamento <strong>de</strong> Plautilla... Que não<br />

era tão ruim quanto tirar um <strong>de</strong>nte, mas que podia ser doce...<br />

— Como a corda <strong>de</strong> cima vibrando em um alaú<strong>de</strong>.<br />

Eu ri.<br />

— E que poeta disse isto?<br />

— Este — respon<strong>de</strong>u ela apontando entre as pernas.<br />

— Que tal... como a primeira chupada <strong>de</strong> um melão suculento?<br />

— O quê?<br />

— Foi o que o meu irmão Tomaso disse.<br />

Ela <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros.<br />

— Seu irmão não sabe nada disso — disse ela séria.<br />

— Então, ele finge bem.<br />

Mas ela tinha parado <strong>de</strong> brincar.<br />

— Vamos. Chega — disse ela, alisando minha camisola e acabando meu<br />

cabelo. — Seu marido está esperando.<br />

— E on<strong>de</strong> você vai estar? — perguntei, um pouco agitada.<br />

— Lá embaixo com as outras escravas. On<strong>de</strong>, tenho <strong>de</strong> admitir, é úmido e<br />

mais frio do que a casa <strong>de</strong> seu pai. Você não é a única que precisa se aquecer na<br />

nova casa. — Mas ela ainda sentia pena <strong>de</strong> mim. — Você vai ficar bem — disse<br />

e pegou em minha bochecha. — Não vai matá-la. Pare <strong>de</strong> pensar. Mulheres<br />

inteligentes não morrem disso. Não se esqueça.


Dezenove<br />

ESCORREGUEI PARA DENTRO DOS LENÇÓIS BORDADOS, com cuidado<br />

para que a camisola ficasse bem esticada. De meu marido, não havia sinal.<br />

Esperei. Um dia antes eu nem mesmo sabia como era o interior <strong>de</strong>ssa casa. Em<br />

uma hora eu saberia tudo o que não sabia agora. Uma hora seria suficiente?<br />

Verda<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> todos os comentários, eu não sabia <strong>de</strong> nada.<br />

A porta abriu-se. Ele ainda estava vestido. Parecia que ia sair e não vir<br />

para a cama. Ele foi até a mesa on<strong>de</strong> uma jarra <strong>de</strong> vinho havia sido <strong>de</strong>ixada e<br />

serviu duas taças. Por um instante, não tive certeza se ele tinha me visto.<br />

Aproximou-se e sentou-se na cama.<br />

— Olá — disse ele. Senti o cheiro <strong>de</strong> vinho em seu hálito. — Como está<br />

se sentindo?<br />

— Bem. Talvez um pouco cansada.<br />

— Como diz, foi um longo dia. — Ele bebeu um gole do vinho e<br />

esten<strong>de</strong>u-me a outra taça. Recusei com um movimento da cabeça. — Devia<br />

beber — disse ele. — Vai relaxá-la. — Achava, nesse momento, que estava<br />

relaxada. Ou tão relaxada quanto conseguiria. Mas fiz como mandou. O gosto<br />

era diferente, mais forte do que o vinho com que eu estava acostumada. Eu tinha<br />

comido pouco no jantar, do qual já se tinham passado horas. O líquido queimou<br />

ao <strong>de</strong>scer por minha garganta. Senti-me levemente tonta. Relanceei os olhos<br />

para ele por cima do copo. Estava olhando para o chão, como se sua mente<br />

estivesse em outra coisa completamente diferente. Pôs a taça sobre a mesa.<br />

Certamente, ele parecia um pouco inseguro. Se eu não fosse a sua primeira<br />

virgem, com certeza era a primeira esposa virgem.<br />

— Está pronta? — disse ele.<br />

— Como?<br />

— Sabe o que vai acontecer agora, certo?<br />

— Sim — repliquei, baixando os olhos e corando, contra a vonta<strong>de</strong>.<br />

— Ótimo.<br />

Aproximou-se mais e afastou o lençol, dobrando-o cuidadosamente ao pé<br />

da cama. Sentei-me em minha camisola <strong>de</strong> seda com os <strong>de</strong>dos dos pés brotando<br />

da bainha. Por alguma razão me fizeram lembrar <strong>de</strong> Beatriz, seus pequenos pés<br />

<strong>de</strong>scalços voando em direção a Deus sob os traços alegres do nanquim <strong>de</strong><br />

Botticelli. Mas Dante a amara <strong>de</strong>mais para ter contato carnal com ela.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, havia também o fato <strong>de</strong> ele ser marido <strong>de</strong> outra pessoa. O que<br />

Erila tinha dito? Pare <strong>de</strong> pensar... mulheres inteligentes não morrem disso.<br />

Ele pôs a mão em minha perna, tocando em minha pele através da seda, e


seu toque foi viscoso. Deixou-a ali por um tempo. Depois, usando as duas mãos,<br />

ergueu o tecido <strong>de</strong> minha camisola e foi dobrando-o, cuidadosamente, para<br />

cima, até minhas pernas ficarem expostas até quase o sexo. Agora, quando a sua<br />

mão foi até a minha panturrilha, tocou diretamente na pele. Engoli em seco,<br />

observando seus <strong>de</strong>dos, e não seu rosto, tentando impedir que meu corpo se<br />

enrijecesse. Ele traçou uma linha sobre o meu joelho e minha coxa, até a beira<br />

da camisola erguida, então levantou-a mais, até meu pêlo começar a se expor,<br />

tão negro ou mais que meu cabelo. Plautilla teria tingido ali também? Agora era<br />

tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais, pensei freneticamente. Meu instinto me dominaria <strong>de</strong> novo. Eu<br />

tinha sido instruída à modéstia por tempo <strong>de</strong>mais para que a <strong>de</strong>scartasse tão<br />

subitamente. Ele tirou as mãos e ficou me examinando, por um instante. Parecia<br />

que havia algo errado. Como se algo não o agradasse. Mas se era eu ou ele, eu<br />

não sabia dizer. Pensei em suas estátuas: a carne <strong>de</strong> mármore suave, tão perfeita,<br />

tão jovem. Talvez ele estivesse constrangido com as imperfeições <strong>de</strong> meu<br />

acanhamento e sua ida<strong>de</strong>.<br />

— Não vai se <strong>de</strong>spir? — perguntei. E para a minha aflição, minha voz<br />

soou infantil<br />

— Não será necessário — respon<strong>de</strong>u, quase inflexivelmente. Ocorreu-me<br />

a imagem repentina da cortesã e o homem com a cabeça enterrada em seu colo.<br />

E senti enjôo. Eu me perguntei se ele me beijaria agora. Certamente esse era o<br />

momento. Mas não beijou.<br />

Em vez disso, foi mais para a beirada da cama e com uma mão começou a<br />

<strong>de</strong>sabotoar seu gibão. Quando sua roupa ficou solta, enfiou a mão <strong>de</strong>ntro e pôs<br />

seu pênis para fora, <strong>de</strong>ixando-o flácido em sua mão. Fiquei paralisada, em<br />

pânico, sem saber se olhava ou não. É claro que eu tinha visto pênis antes, nas<br />

estátuas, e, como toda as garotas muito novas, tinha ficado perplexa com sua<br />

feiúra esquelética e, ao mesmo tempo, confusa com como uma coisa tão<br />

parecida a uma lesma e murcha podia crescer e se tornar uma arma dura o<br />

bastante para penetrar em um buraco da mulher. Agora, embora não conseguisse<br />

olhar, também não conseguia afastar os olhos. Por que ele não se <strong>de</strong>itava? Erila<br />

tinha dito que havia várias maneiras <strong>de</strong> um homem e uma mulher fazerem isso,<br />

mas eu não reconhecia essa. Ele fechou o punho em volta e começou a puxar e<br />

acariciar, a mão subindo e <strong>de</strong>scendo no membro, com um movimento regular, <strong>de</strong><br />

certa forma rítmico. A outra mão jazia inerte sobre minha perna.<br />

Observei pasma. Ele parecia entrar em transe. Não olhava mais para mim.<br />

Parecia olhar para si mesmo, seus olhos semicerrados e sua boca semi-aberta, e<br />

emitia ruídos como pequenos grunhidos. Depois <strong>de</strong> algum tempo, tirou sua mão<br />

<strong>de</strong> mim e também a usou em si mesmo. Relanceou os olhos para mim uma vez,<br />

mas estavam vidrados, e apesar <strong>de</strong> eu achar que estava sorrindo, seus <strong>de</strong>ntes<br />

estavam ligeiramente expostos, mais como uma careta. Tentei sorrir também,


mas o pânico aumentava tanto em mim, que tenho certeza <strong>de</strong> que ele o percebia.<br />

Senti minhas pernas colarem uma na outra.<br />

Ele agora fazia com mais força, e sob seus <strong>de</strong>dos, o pênis começou a<br />

inflar. "Ah... ah..." Ele <strong>de</strong>u uma série <strong>de</strong> arquejos, semelhantes a uma risada, e<br />

olhou para baixo.<br />

— Assim está melhor — murmurou, agora, respirando com arquejos mais<br />

longos.<br />

Ajeitou-se mais para cima da cama, em minha direção, sem parar <strong>de</strong><br />

mexer em seu pênis, para mantê-lo rijo. Soltou uma mão para pegar algo no<br />

armário do lado. Era um frasco <strong>de</strong> vidro azul, <strong>de</strong> boca larga. Manuseou<br />

<strong>de</strong>sajeitadamente sua tampa e, então, pôs os <strong>de</strong>dos <strong>de</strong>ntro, retirando uma<br />

substância clara. Passou-a sobre o membro, <strong>de</strong>pois molhou sua mão <strong>de</strong> novo no<br />

frasco e se moveu na minha direção. Me retraí involuntariamente.<br />

— Não se mexa — disse rispidamente. Fiquei imóvel. Seus <strong>de</strong>dos<br />

enfiaram-se por meu pêlo, tateando a abertura. O ungüento era gorduroso e<br />

gelado, tão gelado que me fez gritar.<br />

— Não machuca — disse ele, ofegando. — Ainda não fiz nada. Sacudi a<br />

cabeça, tremendo.<br />

— Está frio — disse eu. — Está frio. — E tentava não chorar. Ele <strong>de</strong>u<br />

uma gargalhada. Ri também <strong>de</strong> puro terror.<br />

— Oh, Deus, não ria agora, senão todo meu trabalho irá por água abaixo<br />

— disse ele imediatamente, e recomeçou a se friccionar. A risada entalou na<br />

minha garganta.<br />

— Você é virgem, certo?<br />

— Sim.<br />

— Então, vou romper o hímen. Será mais fácil quando eu meter <strong>de</strong>ntro.<br />

Enten<strong>de</strong>u?<br />

Assenti com a cabeça. O que ensinavam às jovens? "Virtu<strong>de</strong> é dote mais<br />

valioso do que dinheiro." Mas tal conselho não era nenhum conforto agora. Não<br />

esclarecia em nada a terrível confusão se <strong>de</strong>senrolando <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim.<br />

Ele começou a <strong>de</strong>slizar dois <strong>de</strong>dos para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim. E logo antes <strong>de</strong><br />

fazer isso, percebi um arrepio atravessar seu rosto. Dessa vez, ele não conseguiu<br />

escon<strong>de</strong>r sua aversão. Então empurrou para <strong>de</strong>ntro. Gritei. Doeu: uma dor<br />

escaldante, dilacerante, como o corte <strong>de</strong> uma camada da pele. Pensei em <strong>de</strong>ntes<br />

sendo arrancados, mas não percebi nenhum sinal do alaú<strong>de</strong>.<br />

— Boa menina — murmurou, a voz engrolada. — Boa menina. Pronto. —<br />

Empurrou mais uma vez e mais uma vez gani, embora mais baixo <strong>de</strong>ssa vez,<br />

porque senti menos dor. — Boa menina — repetiu. Senti como se falasse com<br />

um animal, um cachorro ou um gato em trabalho <strong>de</strong> parto. Ele retirou a mão <strong>de</strong><br />

mim e notei uma camada turva <strong>de</strong> sangue em seus <strong>de</strong>dos. Também notei que seu


pênis começou a se curvar. — Droga — disse ele, e agora, usou as duas mãos<br />

para puxá-lo. — Droga. — E era como se sentisse raiva.<br />

Quando o trouxe <strong>de</strong> volta à vida, trepou em cima <strong>de</strong> mim, ajeitando-se um<br />

uma posição em que seu pênis ficava sobre o meu sexo, e se mexeu e tentou<br />

encaixá-lo em mim. Começou a amolecer assim que tocou em mim, mas ele o<br />

enrijeceu com seus <strong>de</strong>dos e, finalmente, conseguiu enfiá-los junto com o<br />

membro. Mas apesar <strong>de</strong> minha pele virgem ter sido rompida, eu não tinha<br />

abertura suficiente nem estava lubrificada o bastante para o seu tamanho. A<br />

transgressão <strong>de</strong> minha mãe tinha me <strong>de</strong>formado, afinal, e gritei <strong>de</strong> novo, só que<br />

<strong>de</strong>ssa vez, não consegui parar <strong>de</strong> chorar. Ele empurrou mais. Fechei meus olhos<br />

bem apertados, como uma criança esperando o perigo passar, e senti um rubor<br />

<strong>de</strong> vergonha percorrer meu corpo, escuro e atordoado. Mas ele estava ocupado<br />

<strong>de</strong>mais para prestar atenção em mim agora.<br />

Empenhava-se com afinco, grunhindo, enfiando e blasfemando baixinho.<br />

"Maldição... droga..." E mesmo com dor, o senti inflando <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim. Ele<br />

retirou o <strong>de</strong>do e impulsionou mais, sua respiração muito ofegante, como um<br />

cavalo bufando com o esforço para subir a colina com uma carga pesada no<br />

lombo. Abri os olhos e vi seu rosto em cima <strong>de</strong> mim, os olhos virados, uma<br />

careta como a <strong>de</strong> uma caveira, cada músculo retesado e impelindo com força,<br />

como se fosse romper. De repente, um resfôlego e um grito, e o senti amolecer<br />

<strong>de</strong>ntro e fora, e um líquido quente escorreu por entre as minhas pernas, enquanto<br />

ele saía <strong>de</strong> mim e rolava pesadamente para o outro lado da cama, arquejando<br />

sem ar, como um homem salvo quando se afogava. Ficou <strong>de</strong>itado recuperando o<br />

fôlego, uma meta<strong>de</strong> sua ria, a outra ofegava.<br />

Estava terminado. Eu tinha sido possuída, Erila tinha razão. Não tinha<br />

morrido disso. Mas do Vinculum Mundi não havia sinal.<br />

Depois <strong>de</strong> um tempo, levantou-se e atravessou o quarto. Por um instante,<br />

achei que ia embora. Mas foi até a mesa, on<strong>de</strong> estava a jarra <strong>de</strong> água e um pano.<br />

Ficou meio <strong>de</strong> lado para mim, limpando-se e pondo o pênis <strong>de</strong> novo para <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> sua roupa. Parecia já ter-me esquecido. Deu um longo suspiro, como se para<br />

<strong>de</strong>ixar qualquer lembrança disso para trás, e quando virou-se, estava novamente<br />

calmo, e juro que parecia, <strong>de</strong> certa forma, satisfeito consigo mesmo.<br />

Ver-me <strong>de</strong>ve tê-lo alarmado. Sei que continuava chorando. Doía muito<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim para que eu conseguisse fechar as pernas, <strong>de</strong> modo que baixei a<br />

camisola e curvei-me para puxar o lençol, estremecendo ao me mover, e<br />

percebendo a mancha rosada espalhando-se como a minha vergonha no lençol<br />

branco <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> mim.<br />

Ele examinou-me por um instante, <strong>de</strong>pois encheu dois copos e bebeu um<br />

longo trago. Veio até a cama e esten<strong>de</strong>u o segundo para mim.<br />

Recusei com a cabeça. Não podia olhar para ele.


— Beba — disse ele. — Vai ajudá-la. Beba. — E a sua voz, embora não<br />

in<strong>de</strong>licada, era firme e impedia qualquer contestação.<br />

Peguei o copo e bebi <strong>de</strong> um gole. Mas o líquido alcançou minhas lágrimas<br />

e engasguei, tossindo violentamente. Ele esperou o acesso se reduzir.<br />

— De novo.<br />

Fiz o que mandou. Minha mão estava tremendo tão violentamente que<br />

<strong>de</strong>rramei um pouco do líquido no lençol. Mais sangue vermelho por toda parte.<br />

Mas <strong>de</strong>ssa vez, o líquido atingiu seu objetivo, enviando um rio <strong>de</strong> calor por<br />

minha garganta até meu estômago. Ele ficou me observando atentamente.<br />

Passado algum tempo, ele disse:<br />

— Basta — e tirou o copo <strong>de</strong> minha mão, colocando-o sobre a mesinha <strong>de</strong><br />

cabeceira. Deitei-me nos travesseiros. Ele olhou para mim por um momento,<br />

<strong>de</strong>pois se sentou na cama. Acho que <strong>de</strong>vo ter-me retraído.<br />

— Você está bem? — disse ele. Assenta com a cabeça.<br />

— Ótimo. Então, quem sabe, não po<strong>de</strong> parar <strong>de</strong> chorar? Não a machuquei<br />

tanto assim, machuquei?<br />

Sacudi a cabeça. Reprimi o soluço que ia saindo. Quando tive certeza que<br />

o controlava, disse:<br />

— Vou ter um bebê... agora?<br />

— Deus, tomara que sim. — Riu. — Porque não acredito que um <strong>de</strong> nós<br />

queira passar por isso <strong>de</strong> novo. — E acho que percebeu meu rosto ficar lívido,<br />

porque sua risada se interrompeu abruptamente e ele olhou bem para mim.<br />

— Alessandra?<br />

Mas eu ainda não conseguia olhar em seus olhos.<br />

— Alessandra — disse ele, mais calmo <strong>de</strong>ssa vez. E acho que foi aí que<br />

percebi que havia algo errado. Ainda mais errado do que o que já tinha<br />

acontecido entre nós. — Eu... Está me dizendo que não sabia?<br />

— Sabia o quê? — eu disse e, para meu horror, o pranto recomeçou. —<br />

Não sei do que está falando.<br />

— Estou falando <strong>de</strong> mim. Estou perguntando se sabia a meu respeito.<br />

— Sabia o que a seu respeito?<br />

— Oh, meu Deus. — E agora ele afundou a cabeça nas mãos, <strong>de</strong> modo<br />

que eu mal pu<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o que falou em seguida. — Achei que sabia, achei que<br />

você sabia <strong>de</strong> tudo. — Ergueu os olhos. — Ele não lhe contou?<br />

— Quem não me contou? Não sei do que está falando — repeti impotente.<br />

— Ahh. — E agora estava com raiva, uma raiva violenta que me assustou.<br />

— Eu não o agrado? — perguntei, e fiquei surpresa com a forma como<br />

minha voz soou submissa.<br />

— Oh, Alessandra — gemeu. Inclinou-se e fez menção <strong>de</strong> pegar minha<br />

mão, mas eu estava tremendo e a retirei. Ele não tentou <strong>de</strong> novo. Por um


instante, ficamos unidos pela confusão e <strong>de</strong>sespero. Então, ele falou mais calmo,<br />

porém com firmeza.<br />

— Escute. Tem <strong>de</strong> ouvir isso. Está prestando atenção?<br />

E <strong>de</strong> repente tudo pareceu tão importante. Balancei a cabeça assentindo,<br />

apesar do tremor.<br />

— Você é uma jovem esplêndida. Tem a mente <strong>de</strong> um florim recémcunhado<br />

e um corpo jovem macio. E se os corpos macios <strong>de</strong> mulheres jovens<br />

fossem o que eu <strong>de</strong>sejo, então, sem dúvida, eu <strong>de</strong>sejaria você. — Fez uma pausa.<br />

— Mas não <strong>de</strong>sejo.<br />

Deu um suspiro.<br />

— O décimo quarto canto. "O <strong>de</strong>serto era uma extensão seca <strong>de</strong> areia<br />

espessa ar<strong>de</strong>ndo... Muitos rebanhos <strong>de</strong> almas nuas vi chorando<br />

<strong>de</strong>sesperadamente, cada grupo sofrendo uma penalida<strong>de</strong> diferente... Algumas<br />

estendiam-se <strong>de</strong> costas, enquanto outras — o maior número — vagava, nunca<br />

parando, dando voltas e voltas.<br />

"E sobre toda essa areia e terra gran<strong>de</strong>s flocos <strong>de</strong> fogo caíam lentamente,<br />

regularmente... e sem uma trégua a dança <strong>de</strong> mãos <strong>de</strong>sventuradas prosseguia,<br />

do lado <strong>de</strong> cá, do lado <strong>de</strong> lá, afugentando as chamas carnais que caíam."<br />

Enquanto ele falava, eu podia ver as ilustrações, os corpos masculinos<br />

torturados, marcados pela queimadura incessante <strong>de</strong> sua carne.<br />

— Prefiro Dante a Savonarola — prosseguiu ele. — Mas o nosso monge<br />

talvez seja o mais explícito dos dois. "E assim, os sodomitas <strong>de</strong>vem ar<strong>de</strong>r no<br />

inferno, que é bom <strong>de</strong>mais para eles pois sua perfídia <strong>de</strong>strói a própria<br />

natureza!"<br />

— Fez uma pausa. — Enten<strong>de</strong> agora?<br />

Engoli em seco e anuí com um movimento da cabeça. Depois <strong>de</strong> dito,<br />

como não compreendê-lo? É claro, eu tinha ouvido falar disso. Quem não tinha?<br />

Histórias grosseiras e piadas grosseiras. Porém, ainda mais que a fornicação<br />

comum, isso tinha sido mantido afastado das crianças como o mais torpe dos<br />

pecados dos homens: execrável para a pureza da família e a honra <strong>de</strong> um estado<br />

<strong>de</strong>voto. Então, meu marido era um sodomita. Um homem que rejeitava as<br />

mulheres preferindo o Diabo na pele <strong>de</strong> outros homens.<br />

Mas se era verda<strong>de</strong>, então aí é que não fazia sentido mesmo. Por que ia<br />

querer fazer o que tinha acabado <strong>de</strong> fazer? Por que se forçaria a algo que lhe<br />

causava tanta aversão, como eu percebera tão claramente em seu rosto?<br />

— Não entendo — eu disse. — Se é assim, então por que...<br />

— Por que me casei com você?<br />

— Sim.<br />

— Oh, Alessandra. Use esse seu cérebro jovem e perspicaz. Os tempos<br />

estão mudando. Você ouviu o veneno que vaza <strong>de</strong> seu púlpito. Estou surpreso


com que não tenha percebido as caixas <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncias nas igrejas. Houve um<br />

tempo em que só se encontravam alguns nomes ali, a maioria já conhecida da<br />

Polícia Noturna, e uma vez que dinheiro suficiente mudas-se <strong>de</strong> mãos, tudo seria<br />

perdoado e esquecido. A sua própria maneira, éramos os salvadores da cida<strong>de</strong>.<br />

Um estado cheio <strong>de</strong> rapazes esperando esposas <strong>de</strong>senvolve uma certa tolerância<br />

pela luxuria que não inunda os hospitais <strong>de</strong> crianças enjeitadas <strong>de</strong> bebês não<br />

<strong>de</strong>sejados. De qualquer jeito, Florença não era a nova Atenas do Oci<strong>de</strong>nte?<br />

"Pois não é mais. Agora, não vai <strong>de</strong>morar para que sodomitas queimem na<br />

terra antes <strong>de</strong> queimarem no inferno. E melhor que os rapazes sejam discretos, e<br />

os mais velhos serão os primeiros a serem apontados e humilhados,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> seu status ou riqueza. Savonarola apren<strong>de</strong>u seu ofício com São<br />

Bernardino: 'quando vir um homem adulto em boa saú<strong>de</strong> ainda solteiro,<br />

consi<strong>de</strong>re-o um sinal maligno'."<br />

— E então você precisava <strong>de</strong> uma esposa para <strong>de</strong>sviar a atenção — eu<br />

disse calmamente.<br />

— Assim como você precisava <strong>de</strong> um marido para encontrar a liberda<strong>de</strong>.<br />

Parece-me uma troca justa. Ele me disse...<br />

— Ele? — e meu coração sentiu-se nauseado com a palavra. Olhou fixo<br />

para mim.<br />

— Sim. Ele. Está me dizendo que ainda não sabe?<br />

Mas é claro que eu sabia.<br />

Era, como quase tudo em nossa bela cida<strong>de</strong>, um assunto <strong>de</strong> família,<br />

Tomaso. Meu irmão bonito e idiota. Só que agora, era eu a idiota. Tomaso que<br />

gostava tanto <strong>de</strong> vagar pelas ruas, à noite, com belas roupas, que chegava tantas<br />

vezes impregnado <strong>de</strong> sexo e do prazer da conquista. Pensando bem, tinha havido<br />

vezes que eu <strong>de</strong>veria ter percebido em seu coquetismo mais o <strong>de</strong>sejado do que<br />

aquele que <strong>de</strong>sejava. Como eu podia ter sido tão cega? Um homem que falava<br />

<strong>de</strong> trepadas e tavernas, mas tratava as mulheres com tal <strong>de</strong>sdém que mal<br />

conseguia proferir a palavra boceta, que ficava entalada em sua garganta.<br />

Tomaso, o meu irmão bonito, adulador, a quem nunca faltavam roupas<br />

novas e caras, ou mesmo cintos <strong>de</strong> prata especiais no casamento <strong>de</strong> sua irmã. E o<br />

vi me olhando fixo no espelho nessa manhã — era realmente o mesmo dia? —<br />

embaraçado pela primeira vez com o que quer que não conseguia dizer.<br />

— Não — falei. — Ele não me disse.<br />

— Mas ele...<br />

—Talvez tenha subestimado o quanto meu irmão não gosta <strong>de</strong> mim.<br />

Ele <strong>de</strong>u um suspiro, esfregando o rosto com as mãos.<br />

— Não creio que seja tanto não gostar quanto, <strong>de</strong> certa maneira, temer.<br />

Acho que se apavora com a sua inteligência.<br />

— Coitadinho — disse eu. E nesse segundo, até mesmo eu percebi o


Diabo na minha voz.<br />

É claro. Quanto mais sabia, mais as coisas se encaixavam: o estranho que,<br />

quando dançou comigo, possuía informações íntimas tanto sobre a minha<br />

<strong>de</strong>selegância quanto o meu grego. O júbilo <strong>de</strong> Tomaso na noite que viu sangue<br />

em minha roupa e percebeu uma maneira <strong>de</strong> salvar seu amante e vingar-se da<br />

sua irmã ao mesmo tempo. A manhã na igreja, quando ele curvou a cabeça ao<br />

ouvir as acusações <strong>de</strong> Savonarola e eu tinha cruzado os olhos com Cristoforo<br />

que olhava diretamente para mim. Exceto, é claro, que não era para mim. Não. O<br />

ligeiro sorriso luminoso <strong>de</strong> adoração tinha sido reservado para o meu irmão. O<br />

meu estúpido, bonito, bajulador, vaidoso, vulgar, perverso irmão.<br />

Recomecei a chorar.<br />

Ele teve compaixão bastante para não tentar me conter. Ficou observandome,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um tempo, esten<strong>de</strong>u a mão. E, <strong>de</strong>ssa vez, <strong>de</strong>ixei que cobrisse a<br />

minha.<br />

— Desculpe. Não pretendia que fosse assim.<br />

— Não <strong>de</strong>via nunca ter confiado que ele me contaria — disse, quando, por<br />

fim, consegui respirar. — Que mentiras ele inventou a meu respeito?<br />

— Só disse que isso seria bom para nós dois. Que você queria liberda<strong>de</strong><br />

mais do que um marido. Que faria qualquer coisa para consegui-la.<br />

— Ele estava certo — repliquei baixinho. — Só que não qualquer coisa.<br />

Ficamos ali por mais um tempo. Na noite lá fora, percebemos o som <strong>de</strong><br />

gritos, homens correndo pelas ruas, <strong>de</strong>pois um grito pungente súbito <strong>de</strong> dor, que<br />

trouxe <strong>de</strong> volta a visão horripilante do rapaz à <strong>de</strong>riva em seu próprio sangue às<br />

portas do Batistério. Florença tinha-se virado contra si mesma, e a segurança<br />

<strong>de</strong>saparecera para sempre.<br />

— Apesar <strong>de</strong> meus pecados, <strong>de</strong>ve saber que não sou um homem mau,<br />

Alessandra — disse ele <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo.<br />

— E aos olhos <strong>de</strong> Deus? Não teme as areias escaldantes e as tempesta<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> fogo?<br />

— Como dissemos, pelo menos no inferno, haverá uma lembrança do<br />

prazer — fez uma pausa. — Ficaria surpresa com quantos <strong>de</strong> nós existem. As<br />

maiores civilizações da antigüida<strong>de</strong> encontraram transcendência no eu do<br />

homem.<br />

Estremeci.<br />

— Perdoe-me a vulgarida<strong>de</strong>, Alessandra. Mas é melhor que me conheça.<br />

Pois teremos <strong>de</strong> passar o tempo juntos.<br />

Levantou-se para encher seu copo <strong>de</strong> novo. Observei-o atravessar o<br />

quarto. Agora, a sua beleza cansada e elegância estudada pareciam, <strong>de</strong> certa<br />

maneira, importunas. Por que não percebera antes? Estaria tão absorta em mim<br />

mesma que não era capaz <strong>de</strong> interpretar os sinais à minha volta?


— Quanto ao Juízo Final — continuou —, bem, correrei os riscos. Nessas<br />

mesmas areias escaldantes estão blasfemadores e usurários, e os piores<br />

tormentos estão reservados para eles, Acho que mesmo que nunca tivesse<br />

<strong>de</strong>sejado sentir o gosto <strong>de</strong> rapazes jovens, ainda assim o céu não seria para mim.<br />

Pelo menos, terei o conforto <strong>de</strong> partilhar as chamas com companheiros<br />

pecadores. E estarei em companhia religiosa. Acredite, se esse exército <strong>de</strong><br />

sodomitas não estivesse constantemente em fuga, aposto que veria uma hoste <strong>de</strong><br />

cabeças tonsuradas entre seus membros.<br />

— Não!<br />

Sorriu.<br />

— Para alguém sofisticado, Alessandra, você é encantadoramente<br />

ingênua.<br />

Se bem que não por muito mais tempo, pensei. Olhei para ele. Agora não<br />

<strong>de</strong>monstrava repugnância, seu humor e boa vonta<strong>de</strong> tinham voltado e não<br />

consegui <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong>, <strong>de</strong> novo, gostar <strong>de</strong>le um pouquinho.<br />

— Pelo menos não po<strong>de</strong>rá alegar que a relutância <strong>de</strong> sua mulher o levou a<br />

isso — eu disse calmamente. Ele pareceu aturdido. — O sodomita <strong>de</strong> que Dante<br />

fala no canto <strong>de</strong>zesseis. Ele não diz algo parecido? Não me lembro <strong>de</strong> seu nome.<br />

— É claro. Luca Rusticci. Um homem <strong>de</strong> nenhum mérito público, fosse<br />

ele qual fosse. Rumores sugeriam que foi comerciante e não um erudito. —<br />

Sorriu. —Tomaso tinha dito que me encontraria uma esposa que conhecia a<br />

Divina comédia tão bem quanto eu — baixei os olhos. — Desculpe. Seu nome a<br />

faz sofrer.<br />

— Sob<strong>rev</strong>iverei — repliquei calmamente. Mas senti lágrimas quentes<br />

espetarem por trás <strong>de</strong> meus olhos.<br />

— Espero que sim. Odiaria ser a causa da morte <strong>de</strong> um intelecto tão doce.<br />

— Sem falar em sua perfeita cortina <strong>de</strong> fumaça.<br />

Ele riu.<br />

— Bem-vinda <strong>de</strong> volta. Gosto mais <strong>de</strong> sua sagacida<strong>de</strong> do que da<br />

comiseração <strong>de</strong> si mesma. Você é uma jovem notável, sabia? — olhei para o<br />

meu marido e me perguntei como teria sido se seus elogios tivessem aquecido<br />

meu corpo tanto quanto minha mente. — Talvez esteja na hora <strong>de</strong> falarmos<br />

sobre o futuro. Como lhe disse, agora a casa é sua. A sua biblioteca, a sua arte.<br />

Com exceção <strong>de</strong> meu gabinete, po<strong>de</strong> fazer o que quiser com ela. Isso faz parte<br />

da barganha.<br />

— E você?<br />

— Não vou incomodá-la com freqüência. Em público, <strong>de</strong>veremos ser<br />

vistos em alguns eventos <strong>de</strong> estado, se, <strong>de</strong> fato, ainda houver um estado com<br />

in<strong>de</strong>pendência suficiente para organizá-los. Exceto isso, estarei fora gran<strong>de</strong> parte<br />

do tempo. Isso é tudo o que precisa saber.


— Ele virá aqui? — perguntei. Olhou-me fixamente.<br />

— Ele é seu irmão. Como membro da família, seria natural — sorriu ao<br />

proferir a última palavra. — A verda<strong>de</strong> é que a cida<strong>de</strong> não é mais tão segura<br />

quanto antes — fez uma pausa. — Digamos que virá algumas vezes. Mas não<br />

por enquanto.<br />

— Você é hábil — disse eu.<br />

Ele <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros.<br />

— O homem tem <strong>de</strong> controlar seus escravos como um tirano, seus filhos,<br />

como um rei e...<br />

— Sua mulher, como um político — concluí a frase por ele. — Não estou<br />

bem certa se era isso que Aristóteles tinha em mente.<br />

Ele riu.<br />

— De fato. Quanto ao resto, bem, isso cabe a você. Você escolhe. Não<br />

<strong>de</strong>ixe que isso <strong>de</strong>strua a sua vida, Alessandra. Ficaria surpresa com o que<br />

acontece nos quartos <strong>de</strong> nossa cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vota. Esses casamentos funcionaram<br />

antes. De qualquer maneira, você não ia querer ser como os outros. Se a minha<br />

atenção a sobrecarregasse com uma dúzia <strong>de</strong> filhos, você afundaria sob as ondas.<br />

Dê-me um único her<strong>de</strong>iro e a <strong>de</strong>ixarei em paz para sempre — fez uma pausa. —<br />

Ao seu próprio prazer. Bem, isso também é da sua conta. Tudo o que peço é que<br />

seja discreta.<br />

Baixei os olhos para as minhas mãos. Dentro <strong>de</strong> mim doía menos que elas,<br />

embora permanecesse uma queimação mais funda. Como saber se havia um<br />

bebê no útero? O meu próprio prazer? O que eu mais queria na vida?<br />

— Vai me <strong>de</strong>ixar pintar?<br />

Ele sacudiu os ombros.<br />

— Já disse. Po<strong>de</strong> fazer o que quiser. Anuí com um movimento <strong>de</strong> cabeça.<br />

— E quero ver os franceses — disse eu com firmeza. — Refiro-me a vêlos<br />

<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Quando o exército <strong>de</strong> Carlos entrar na cida<strong>de</strong>, quero estar lá, na<br />

rua, testemunhando enquanto a história é feita.<br />

Ele fez um pequeno gesto.<br />

— Muito bem. Assim será. Sem dúvida, vai ser uma entrada triunfal.<br />

— Irá comigo?<br />

— Não acho que seria seguro se não fosse.<br />

O silêncio se impôs entre nós, ainda que seu nome ressoasse em toda<br />

parte.<br />

— E Tomaso?<br />

— Você e eu somos marido e mulher. Será apropriado sermos vistos<br />

juntos — hesitou. — Falarei com Tomaso. Ele vai enten<strong>de</strong>r.<br />

Baixei os olhos para que não visse a chama <strong>de</strong> prazer que se acen<strong>de</strong>ra<br />

neles.


— E então? Mais algum pedido, minha mulher?<br />

— Não... — fiz uma pausa — meu marido.<br />

— ótimo — levantou-se da cama. — Mando chamar a sua escrava?<br />

Sacudi a cabeça. Ele inclinou-se e, por um segundo, achei que me beijaria<br />

na testa, mas, em vez disso, passou os <strong>de</strong>dos, levemente, em minha bochecha.<br />

— Boa noite, Alessandra.<br />

— Boa noite.<br />

Saiu do quarto, e alguns momentos <strong>de</strong>pois, ouvi as portas principais da<br />

casa se abrirem e se fecharem atrás <strong>de</strong>le.<br />

Após algum tempo, a sensação <strong>de</strong> queimação entre as pernas esfriou e me<br />

levantei para me limpar. Doeu um pouco ao andar, e minha pele estava áspera<br />

on<strong>de</strong> o líquido ressecara em minha coxa, mas sua meticulosida<strong>de</strong> tinha poupado<br />

minha camisola <strong>de</strong> manchar, e a senti macia ao andar.<br />

Lavei-me cuidadosamente, apavorada <strong>de</strong>mais para examinar meu corpo.<br />

Mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar a camisola baixar, passei as mãos sobre o corpo, só para<br />

sentir a seda em minha pele. E dos meus seios e quadris, meus <strong>de</strong>dos<br />

extraviaram-se em direção à minha fenda. E se ele tivesse realmente me rasgado<br />

ali e, agora, houvesse um ferimento que não mais cicatrizasse? Minha mãe e sua<br />

irmã, as duas haviam sido rasgadas por bebês gran<strong>de</strong>s. Isso já teria acontecido<br />

comigo?<br />

Hesitei, <strong>de</strong>pois aproximei mais minha mão, separando meus <strong>de</strong>dos e<br />

<strong>de</strong>scobrindo que o médio <strong>de</strong>slizara mais facilmente para <strong>de</strong>ntro do meu sexo. E<br />

ao fazer isso, a ponta do meu <strong>de</strong>do esbarrou com uma pequena protuberância <strong>de</strong><br />

carne exposta, que quando eu toquei, provocou um arrepio por meu corpo. Senti<br />

minha respiração acelerar e movi <strong>de</strong> novo meu <strong>de</strong>do, cuidadosamente, por ela.<br />

Eu não podia afirmar se a sensação era <strong>de</strong> prazer ou dor, mas me fez suspen<strong>de</strong>r a<br />

respiração e ficar tremendo. Foi assim que o pênis me machucara, expondo cada<br />

terminação nervosa na boca <strong>de</strong> meu sexo?<br />

A quem po<strong>de</strong>ria perguntar? A quem eu po<strong>de</strong>ria contar o que tinha<br />

acontecido entre nós? Retirei rapidamente a mão, meu rosto ruborizado ao<br />

lembrar a vergonha, Mas a minha curiosida<strong>de</strong> era maior do que a dor e, <strong>de</strong>ssa<br />

vez, ergui a camisola, antes <strong>de</strong> meus <strong>de</strong>dos vagarem <strong>de</strong> volta, procurando o<br />

lugar. Na parte interna da minha coxa, um fio <strong>de</strong> sangue aguado, rosa como o<br />

céu ao alvorecer, parecia um bico-<strong>de</strong>-pena em minha pele. Acompanhei-o até<br />

meu pêlo púbico e a ternura <strong>de</strong> minha carícia fez com que as lágrimas<br />

retornassem aos meus olhos. Dobrei o <strong>de</strong>do <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim e, quando esbarrei<br />

com aquilo, parecia uma escoriação. Toquei o ponto sensível e, então, pressionei<br />

mais, preparando-me para mais dor. Pareceu intumescer sob o meu toque e o


que aconteceu foi uma sensação tão agradável que arquejei alto, e me curvei<br />

ligeiramente. De novo, pressionei a ponta do <strong>de</strong>do. Aconteceu novamente, e<br />

mais outra vez, como uma série <strong>de</strong> ondulações rápidas na superfície da água, até<br />

tudo que consegui fazer foi me apoiar na mesa próxima, receando per<strong>de</strong>r o<br />

equilíbrio enquanto ofegava, tão perdida estava no prazer da minha dor.<br />

Quando terminou, minhas pernas estavam tão fracas que tive <strong>de</strong> me sentar<br />

na cama. Havia uma sensação estranha <strong>de</strong> perda, quando não senti mais e, para a<br />

minha surpresa, me vi chorando <strong>de</strong> novo, embora não saiba por quê, pois acho<br />

que não mais sentia tristeza.<br />

Não <strong>de</strong>morou e a ansieda<strong>de</strong> foi <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada. O que seria <strong>de</strong> mim agora?<br />

Tinha <strong>de</strong>ixado minha casa, a minha cida<strong>de</strong> estava em rebuliço e eu recém-casada<br />

com um homem que não suportava a visão do meu corpo, mas que <strong>de</strong>sfalecia ao<br />

pensar no corpo <strong>de</strong> meu irmão. Se tivesse sido escrito como um conto moral, eu,<br />

provavelmente, seria sacrificada agora, morrendo <strong>de</strong> vergonha e tristeza, <strong>de</strong><br />

modo que meu marido fosse levado à penitência e Deus.<br />

Fui até a arca do casamento, um monstro <strong>de</strong> coisa que um dia pertencera à<br />

mãe <strong>de</strong> meu marido. Havia sido carregada <strong>de</strong> lá para cá, <strong>de</strong> sua casa para a<br />

minha e, <strong>de</strong>pois, por fim, novamente <strong>de</strong> volta nessa tar<strong>de</strong> (e para a satisfação <strong>de</strong><br />

meu pai, era tão pesada quanto a da minha irmã, embora sua riqueza fosse<br />

pesada em livros e não sedas e veludos). Tirei do fundo o livro <strong>de</strong> orações <strong>de</strong><br />

minha mãe, no qual ela e eu tínhamos <strong>de</strong>cifrado as letras pela primeira vez<br />

quando eu mal sabia falar. O que ela tinha me dito naquele dia em que o<br />

governo caíra? Que quando eu estivesse só, na casa <strong>de</strong> meu marido, acharia mais<br />

fácil conversar com Deus. E que a nossa conversa me tornaria uma boa esposa e<br />

uma boa mãe.<br />

Ajoelhei do lado da cama e abri o livro <strong>de</strong> orações. Mas logo eu, a quem<br />

as palavras vinham tão facilmente, não consegui pensar quais usar nesse<br />

momento. O que Deus e eu tínhamos a nos dizer? Meu marido era um sodomita.<br />

Se não era a minha própria arrogância que tinha me levado àquilo, então era o<br />

meu <strong>de</strong>ver levá-lo à justiça para o bem <strong>de</strong> sua alma assim como o da minha. No<br />

entanto, se o expusesse, eu poria abaixo toda a casa da luxúria junto com ele e,<br />

apesar <strong>de</strong> odiar meu irmão, como po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>struir a minha própria família<br />

durante esse processo? A vergonha certamente mataria meu pai.<br />

Não. A verda<strong>de</strong> era que eu tinha atraído isso para mim e, enquanto o seu<br />

castigo seria a inexistência da salvação, o meu seria ter <strong>de</strong> conviver com isso.<br />

Guar<strong>de</strong>i o livro <strong>de</strong> volta na arca. Eu e Deus estávamos além das palavras.<br />

Chorei um pouco mais, mas a noite exauriu todas as minhas lágrimas, e<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo, eu me refugiei em um conforto mais seguro, procurando<br />

no fundo, <strong>de</strong>baixo das roupas e livros, on<strong>de</strong> tinha escondido meus <strong>de</strong>senhos e<br />

nanquim.


Passei o resto da minha noite <strong>de</strong> núpcias na busca da arte. E <strong>de</strong>ssa vez.<br />

minha pena fluiu, como a chuva, com facilida<strong>de</strong> e espontaneida<strong>de</strong>, e me<br />

proporcionou um prazer sereno. Embora quem visse a imagem que se<br />

<strong>de</strong>senvolvia sob minha pena, pu<strong>de</strong>sse achar que fosse um sinal da minha<br />

estranheza com Deus.<br />

No papel à minha frente, uma jovem vestida com uma bela seda jazia<br />

tranqüila em sua cama, observando quando o homem sentava-se do seu lado,<br />

com o gibão <strong>de</strong>sabotoado e seu pênis exposto em suas mãos. A sua expressão<br />

era <strong>de</strong> dor e êxtase, como se, naquele momento, o divino o tivesse penetrado,<br />

levando-o à beira da transcendência.<br />

Foi, mesmo que seja eu a dizê-lo, o <strong>de</strong>senho mais verda<strong>de</strong>iro que fiz<br />

durante algum tempo.


PARTE DOIS<br />

Carlos VIII e seu exército entraram em Florença em 17 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong><br />

1494. Apesar <strong>de</strong> a história lembrá-lo como um dia <strong>de</strong> vergonha para a<br />

República, nas ruas, parecia mais um cortejo cívico do que uma humilhação.<br />

O caminho <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Porta San Frediano sobre o rio, passando a Catedral <strong>de</strong><br />

Santa Maria <strong>de</strong>l Fiore, com seu gran<strong>de</strong> domo, até o Palácio Medici, estava<br />

apinhado <strong>de</strong> gente. E no meio daqueles que se consi<strong>de</strong>ravam espectadores <strong>de</strong>sse<br />

momento solene estava o recentemente unido casal Langella: Cristoforo, erudito<br />

e cavalheiro, e sua <strong>de</strong>licada mulher Alessandra, filha mais nova da família<br />

Cecchi que, orgulhosa <strong>de</strong> seu casamento, atravessava, <strong>de</strong> braço com seu marido,<br />

a multidão, seus olhos brilhando como cristal lapidado, enquanto absorvia a cor<br />

vibrante das ruas à sua volta, até chegarem à praça da Catedral, on<strong>de</strong> ele teve <strong>de</strong><br />

segurá-la firme ao passarem pela massa, em direção a uma arquibancada <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira construída apressadamente <strong>de</strong> encontro a um muro.<br />

Ah, ele <strong>de</strong>u dois florins a um homem embaixo (um preço ultrajante, mas<br />

Florença era uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comércio mesmo em tempos <strong>de</strong> crise), e marido e<br />

mulher subiram e se instalaram na última fila, <strong>de</strong> modo a terem uma visão não<br />

somente da fachada da Catedral, como também da estrada abaixo em que, em<br />

uma hora, Florença testemunharia a chegada <strong>de</strong> seu primeiro, e certamente<br />

único, exército <strong>de</strong> conquista.<br />

E, <strong>de</strong>sse modo, meu marido cumpriu sua palavra.


Vinte<br />

ELE CHEGARA EM CASA ESSA MANHA, enquanto Erila e eu <strong>de</strong>sfazíamos<br />

a arca, com pausas ocasionais para espiar pela janela a onda <strong>de</strong> pessoas fluindo<br />

em direção à praça, e como não veio imediatamente, enviou uma mensagem por<br />

seu criado, dizendo que eu não me preocupasse: não estava per<strong>de</strong>ndo nada, já<br />

que tinha informações seguras <strong>de</strong> que o Rei e seu exército eram po<strong>de</strong>rosos, mas<br />

estavam tão exaustos, que seguiam morosamente em direção à cida<strong>de</strong>, e que só<br />

chegariam praticamente ao entar<strong>de</strong>cer.<br />

Suas notícias eram tão recentes que até mesmo Erila ficou impressionada.<br />

O que era ótimo, pois ela e eu estávamos um pouco perdidas em nosso novo<br />

papel <strong>de</strong> patroa e criada nessa casa sombria e ventosa.<br />

Nossa comunicação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a noite <strong>de</strong> núpcias havia sido muda. Eu tinha<br />

<strong>de</strong>senhado esboços até o amanhecer e dormido até muito tar<strong>de</strong> e, como não é <strong>de</strong><br />

admirar, ela confundiu o meu sono tão longo com um sinal <strong>de</strong> energia nupcial.<br />

Quando me perguntou sobre minha saú<strong>de</strong>, respondi que estava bem, e baixei os<br />

olhos, <strong>de</strong>ixando claro que não queria falar nisso. Oh, eu teria dado qualquer<br />

coisa no mundo em troca <strong>de</strong> lhe contar. Estava precisando <strong>de</strong>sesperadamente <strong>de</strong><br />

uma confi<strong>de</strong>nte e, até então, acho que lhe contava tudo o que me acontecia. E os<br />

segredos que eu tinha eram pequenos e rebel<strong>de</strong>s, inofensivos a qualquer um,<br />

menos a mim mesma. Apesar <strong>de</strong> sermos próximas, ela era uma escrava e até<br />

mesmo eu percebia que, consi<strong>de</strong>rando-se tal tentação, as forças da intriga<br />

po<strong>de</strong>riam se <strong>rev</strong>elar mais potentes do que a sua lealda<strong>de</strong>. Ou, <strong>de</strong> qualquer<br />

maneira, essa era a <strong>de</strong>sculpa que tinha dado a mim mesma ao <strong>de</strong>spertar naquela<br />

tar<strong>de</strong> em minha cama <strong>de</strong> casada, meus esboços espalhados à minha volta. Talvez<br />

a verda<strong>de</strong> fosse que eu mal suportava lembrar o que tinha acontecido, muito<br />

menos partilhá-lo com outra pessoa.<br />

Por isso, quando Cristoforo veio até nós, sentadas à janela, arrumando<br />

lençóis e observando a multidão, ela já tivesse razão para <strong>de</strong>sconfiar. E, então, se<br />

levantou e saiu sem nem mesmo olhar para ele. Ele esperou até a porta se fechar<br />

atrás <strong>de</strong>la para falar.<br />

— Ela é muito íntima, a sua escrava?<br />

Assenti com a cabeça.<br />

— Fico feliz. Porque lhe fará companhia. Mas acho que não lhe conta<br />

tudo, certo?<br />

Era uma pergunta e uma afirmação ao mesmo tempo.<br />

— Não — repliquei. — Não conto.<br />

No silêncio que se seguiu, ocupei-me em dobrar minha roupa, meus olhos


submissos, dirigidos ao chão. Ele sorriu como se, <strong>de</strong> fato, eu fosse a sua amada<br />

esposa, e esten<strong>de</strong>u o braço para mim, e, assim, <strong>de</strong>scemos a escada e saímos para<br />

a rua.<br />

Se eu tivesse sido o Rei <strong>de</strong> França, teria ficado muito satisfeito com o impacto<br />

<strong>de</strong> sua entrada em seu novo estado vassalo. Embora tivesse punido meus<br />

generais por não darem início à nossa marcha triunfal antes. Pois quando chegou<br />

na praça, o sol tinha quase se posto, o que significa que havia menos luz para<br />

fazer refulgir a armadura dourada ou iluminar o gran<strong>de</strong> dossel dourado seguro<br />

acima <strong>de</strong>le por cavaleiros e sua escolta. O sol se pondo também fez com que, ao<br />

<strong>de</strong>smontar e subir a escadaria da Catedral, mal fosse visto pela massa, se bem<br />

que <strong>de</strong>sconfio que outra razão também tenha concorrido para isso: para um rei,<br />

possuía, inesperadamente, uma estatura muito baixa, especialmente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>smontar <strong>de</strong> seu gran<strong>de</strong> cavalo negro, escolhido, sem dúvida, porque o fazia<br />

parecer mais alto do que era.<br />

Certamente esse foi o único momento em que os volúveis florentinos<br />

acenaram em seu entusiasmo servil diante <strong>de</strong> seu soberano invasor. Em parte<br />

porque, quando o pequeno Rei atravessou a entrada da nossa gran<strong>de</strong> Catedral,<br />

mancava como um homem <strong>de</strong>formado, o que, <strong>de</strong> certa maneira, era <strong>de</strong>vido a<br />

seus pés extraordinariamente gran<strong>de</strong>s em proporção ao resto <strong>de</strong> seu corpo. Isso<br />

não foi muito antes <strong>de</strong> toda Florença saber que o Conquistador enviado para<br />

absolver nossos pecados era, <strong>de</strong> fato, um anão com seis <strong>de</strong>dos em cada pé. Sinto<br />

prazer em dizer que eu fui um dos muitos na multidão que espalhei o rumor pela<br />

praça, naquele dia. E, portanto, aprendi um pouco <strong>de</strong> como a história é escrita.<br />

Embora nem sempre exata, po<strong>de</strong>-se participar <strong>de</strong> como é feita.<br />

Apesar das intrigas, era impossível não se ficar estarrecido com o<br />

espetáculo. Já era tar<strong>de</strong> quando o Rei <strong>de</strong>ixou a praça e os gritos <strong>de</strong> "Viva<br />

Fraucia" ascen<strong>de</strong>ndo como um coral das vésperas, e foi acolhido em segurança<br />

no Palácio Medici. Florença continuou vibrando com a chegada da infantaria e<br />

da cavalaria. Havia tantos cavalos que o ar ficou impregnado <strong>de</strong> seu estrume,<br />

triturado nas pedras do calçamento pelas armas da artilharia empurradas atrás<br />

<strong>de</strong>les. Mas o mais impressionante eram os arqueiros e besteiros: milhares e<br />

milhares <strong>de</strong> camponeses armados. Eram tantos que pensei que a França, agora,<br />

talvez fosse um país <strong>de</strong>fendido somente por suas mulheres, até meu marido me<br />

explicar que a maioria do exército não era francesa, mas composto por<br />

mercenários contratados para a campanha, caros como no caso da Guarda Suíça,<br />

muito baratos como os guerreiros da Escócia. E fiquei feliz com que não fossem<br />

esses os homens que se alojariam em nossa casa, pois nunca vira nada como<br />

eles: gigantes do Norte, com gran<strong>de</strong>s cabeleiras cor <strong>de</strong> palha e barbas tão


vermelhas quanto as tintas <strong>de</strong> meu pai, tão emaranhadas <strong>de</strong> sujeira que não dava<br />

para enten<strong>de</strong>r como seus arcos não ficavam presos nelas ao serem disparados.<br />

A invasão durou onze dias. As tropas que se alojaram em nossa casa se<br />

comportaram bem: dois cavalheiros da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Toulouse com seus criados e<br />

comitiva. Jantamos com eles na noite seguinte à sua chegada, expondo a melhor<br />

baixela e faqueiro <strong>de</strong> meu marido — embora não fizessem idéia <strong>de</strong> como usar os<br />

garfos que tinham à frente — e me trataram com <strong>de</strong>ferência, beijando minha<br />

mão e comentando a minha beleza, o que me fez achar que eram cegos ou<br />

mentirosos, e como enxergavam como pegar a jarra <strong>de</strong> vinho, concluí a segunda<br />

hipótese. Soube, mais tar<strong>de</strong>, por Erila, que seus criados tinham as mesmas<br />

maneiras <strong>de</strong> porcos à mesa, mas que, exceto por isso, mantinham suas mãos<br />

quietas; instruções <strong>de</strong>vem ter sido dadas ao exército como um todo, porque nove<br />

meses <strong>de</strong>pois, não houve nenhuma epi<strong>de</strong>mia óbvia <strong>de</strong> bebês franceses enjeitados<br />

na roda do Ospedale <strong>de</strong>gli Innocenti, embora <strong>de</strong>scobríssemos, mais tar<strong>de</strong>, outra<br />

dádiva <strong>de</strong> sua cortesia ocasional, que nos causaria mais sofrimento do que<br />

algumas almas extras na terra.<br />

Durante o jantar, falaram com paixão <strong>de</strong> seu Rei e da glória <strong>de</strong> sua<br />

campanha, mas quando se <strong>de</strong>scontraíram mais, confessaram uma certa sauda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> casa e cansaço em relação a como a provocação <strong>de</strong> guerra os levaria para<br />

longe. O <strong>de</strong>stino final era a Terra Santa, mas era possível ver que ansiavam mais<br />

por conhecer Nápoles, on<strong>de</strong> lhes disseram que as mulheres eram lindas em sua<br />

cor morena e a sua riqueza estaria à sua disposição. Quanto à gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong><br />

Florença, bem, eram homens <strong>de</strong> batalhas e não <strong>de</strong> arte, e apesar <strong>de</strong> a galeria <strong>de</strong><br />

arte <strong>de</strong> meu marido causar-lhes impressão, mostraram-se mais interessados em<br />

on<strong>de</strong> podiam comprar roupas novas. (Soube <strong>de</strong>pois que havia aqueles que<br />

fizeram pequenas fortunas com a invasão, reprimindo seu patriotismo em favor<br />

<strong>de</strong> seus bolsos.) Para ser justa, um dos cavaleiros falou com entusiasmo sobre a<br />

maravilha da Catedral e pareceu interessado quando lhe disse que encontraria<br />

uma estátua dourada <strong>de</strong> São Luís, o santo padroeiro <strong>de</strong> seu país, realizada pelo<br />

nosso gran<strong>de</strong> Donatello, acima da porta da fachada <strong>de</strong> Santa Croce. Mas se ele a<br />

procurou ou não, não sei. O que sei é que comeram e beberam muito nesses<br />

onze dias, pois o cozinheiro mantinha o registro da quantida<strong>de</strong> consumida, já<br />

que o acordo <strong>de</strong> trégua incluía que o exército pagaria a sua manutenção.<br />

De início, a cida<strong>de</strong> se apresentou sob a luz mais favorável para impressionar<br />

seus conquistadores. Uma representação especial da Anunciação foi apresentada<br />

em San Felice, e meu marido conseguiu lugar para nós dois, uma façanha


consi<strong>de</strong>rável, já que não havia nenhum outro partidário dos Medici na<br />

congregação. Em criança, eu tinha sido levada, uma vez, a um evento como esse<br />

no mosteiro das carmelitas, e me recordava <strong>de</strong> nuvens diáfanas estendidas pela<br />

nave da igreja, e <strong>de</strong> como, em um certo momento, um coro <strong>de</strong> meninos tinha<br />

sido <strong>rev</strong>elado suspenso no meio <strong>de</strong>las, vestidos como anjos, um <strong>de</strong>les tão<br />

obviamente aterrorizado que, quando todos começaram a cantar, ele berrou tão<br />

alto, que teve <strong>de</strong> ser baixado.<br />

Nesse dia, também havia meninos vestidos <strong>de</strong> anjos em San Felice, mas<br />

nenhum <strong>de</strong>les gritou. A igreja foi transformada. Uma cúpula tinha sido<br />

construída como um segundo telhado e pendurada nas vigas acima da nave<br />

central, o seu interior pintado <strong>de</strong> um azul bem escuro, com uma centena <strong>de</strong><br />

pequeninas luzes suspensas, <strong>de</strong> modo que parecia que olhávamos o céu noturno<br />

estrelado. Nos céus, ao redor <strong>de</strong> sua base, estavam doze anjinhos cintilando em<br />

plintos. Mas isso foi o mínimo. Quando chegou o momento da Anunciação, uma<br />

segunda esfera girando foi baixada, carregando oito anjos, agora meninos mais<br />

velhos, e <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la, outra esfera com o último anjo, e mais velho, Gabriel. E<br />

ao <strong>de</strong>scer, ele movimentou suas asas fazendo tremeluzir à sua volta uma miría<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> luzes, como se trouxesse para baixo as estrelas do céu.<br />

Enquanto ficava mais assombrada do que Maria, meu marido me fez olhar<br />

<strong>de</strong> novo para cima e reparar como cada esfera <strong>de</strong> anjos po<strong>de</strong>ria ser uma lição<br />

enfatizada <strong>de</strong> perspectiva: a maior na parte inferior movendo-se para a menor no<br />

alto. Desse modo, podíamos apreciar não somente a glória <strong>de</strong> Deus, mas<br />

também a perfeição das leis da natureza e o domínio <strong>de</strong>las por nosso artista.<br />

Disse-me que esse cenário elaborado tinha sido a invenção <strong>de</strong> ninguém menos<br />

do que o famoso Brunelleschi, seu segredo transmitido ao longo dos anos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

a sua morte.<br />

Apesar <strong>de</strong> não haver registro do que o Rei da França achou <strong>de</strong> tudo isso,<br />

sei que nós, florentinos, ficamos extremamente impressionados e orgulhosos. No<br />

entanto, quando hoje me lembro, acho difícil distinguir entre minha alegria com<br />

o espetáculo e o prazer mais sereno gerado pela erudição <strong>de</strong> meu marido e a<br />

maneira como me ensinava a olhar mais fundo coisas que, <strong>de</strong> outra maneira, eu<br />

teria perdido. Nessa noite, quando voltamos pelas ruas cheias <strong>de</strong> gente, guioume<br />

pelo cotovelo, <strong>de</strong> modo que nos movemos como dois peixes luzidios por um<br />

mar <strong>rev</strong>olto. Ao chegarmos em casa, ficamos conversando, durante algum<br />

tempo, sobre tudo a que assistíramos, e ele me acompanhou ao meu quarto, on<strong>de</strong><br />

me beijou no rosto e agra<strong>de</strong>ceu a companhia, antes <strong>de</strong> se retirar ao seu gabinete.<br />

Deitada na cama, pensando em tudo o que tinha visto, quase acreditei que a<br />

minha liberda<strong>de</strong> tinha valido qualquer sacrifício que eu tivesse feito por ela. E<br />

que Cristoforo, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do que po<strong>de</strong>ria fazer no futuro, tinha realizado um<br />

começo honesto em nossa barganha.


Nos dias que se seguiram, o governo ficou ocupado trocando elogios com<br />

o Rei e sancionando um tratado que fez a ocupação parecer um convite,<br />

oferecendo-lhe um gran<strong>de</strong> empréstimo para o cofre <strong>de</strong> sua guerra, supostamente<br />

em agra<strong>de</strong>cimento por não ter saqueado a cida<strong>de</strong>. Apesar <strong>de</strong> os oficiais serem<br />

corteses uns com os outros nas ruas, a atmosfera exacerbou-se rapidamente, e<br />

alguns pretensos jovens guerreiros começaram a jogar pedras nos invasores, que,<br />

em troca, <strong>rev</strong>idaram com a espada e, <strong>de</strong>ssa maneira, mais ou menos uma dúzia<br />

<strong>de</strong> florentinos foram mortos. Não exatamente um massacre, ou mesmo uma<br />

resistência gloriosa, mas um lembrete, pelo menos, do espírito que tínhamos<br />

perdido. Consciente <strong>de</strong> que sua boa acolhida estava se diluindo e aconselhado<br />

por Savonarola, <strong>de</strong> que Deus o acompanharia se partisse rápido, Carlos<br />

mobilizou seu exército e partiram no fim <strong>de</strong> novembro, com bem menos<br />

cerimônias e gente saudando-os — o que <strong>de</strong>ve ter tido alguma coisa a ver com o<br />

fato <strong>de</strong> que partiam sem pagar suas dívidas —, inclusive os nossos bons nobres<br />

<strong>de</strong> Toulouse. Mentirosos até o fim.<br />

Dois dias <strong>de</strong>pois, meu marido, que dormira em casa durante todo esse<br />

período, um cavalheiro, para a segurança <strong>de</strong> sua esposa, também partiu.<br />

Sem ele e nossos invasores, o palazzo pareceu, repentinamente, frio e<br />

austero. As salas ficaram escuras, as almofadas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira das portas<br />

manchadas pelo tempo, as tapeçarias roídas por traças e as janelas pequenas<br />

<strong>de</strong>mais para <strong>de</strong>ixar entrar muita luz. E porque tive medo <strong>de</strong> que a minha solidão<br />

me lançasse em um poço <strong>de</strong> autocomiseraçao, na manhã seguinte acor<strong>de</strong>i Erila<br />

ao amanhecer e, juntas, saímos para testar nas ruas a nova liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> minha<br />

vida <strong>de</strong> casada.


Vinte e Um<br />

O CORPO NA PONTE SANTA TRINITA <strong>de</strong>notava tanto loucura quanto o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sangue. Pendia em um pilar do lado da pequena capela e, quando os<br />

monges o <strong>de</strong>scobriram, os cachorros já o haviam <strong>de</strong>vorado pela meta<strong>de</strong>. Erila<br />

disse que seria uma misericórdia se ele já estivesse morto quando o estriparam,<br />

se bem que fosse difícil saber com certeza, já que mesmo que tivesse gritado<br />

quando seus intestinos tinham-se <strong>de</strong>strinchado, a mordaça em sua boca teria<br />

abafado o pior <strong>de</strong> seus gritos. Os animais <strong>de</strong>viam ter chegado logo após a partida<br />

do assassino, pois quando chegamos lá — as notícias alcançaram o mercado<br />

logo <strong>de</strong>pois das primeiras clarida<strong>de</strong>s, tudo o que tivemos <strong>de</strong> fazer foi nos <strong>de</strong>ixar<br />

levar pela corrente —, o que restava <strong>de</strong> suas entranhas já estava no calçamento.<br />

Os vigias haviam afugentado os cachorros, embora os mais selvagens<br />

continuassem rondando, as cabeças baixas, barrigas agachadas, em posição <strong>de</strong><br />

bote, fingindo <strong>de</strong>sinteresse, as patas crispadas com energia. A certa altura,<br />

quando o ajuntamento aumentou, um <strong>de</strong>les passou como um raio, abocanhando<br />

um pedaço <strong>de</strong> tripa antes <strong>de</strong> um chute <strong>de</strong>rrubá-lo, uivando e sem largar sua<br />

presa, no meio da ponte. Os vigias foram quase tão ru<strong>de</strong>s com a multidão, mas<br />

foi em vão a tentativa <strong>de</strong> afastá-la. Erila nos manteve atrás, seu braço bem preso<br />

ao meu. Apesar <strong>de</strong> achar a minha curiosida<strong>de</strong> alarmante, sua atitu<strong>de</strong> protetora<br />

tinha mais a ver com o problema que po<strong>de</strong>ria lhe causar do que com qualquer<br />

medo <strong>de</strong> sua parte — se estivesse sozinha, já teria aberto caminho até a frente.<br />

Quanto a mim, bem, é claro que a visão <strong>de</strong>sse corpo <strong>de</strong>stroçado virou meu<br />

estômago — eu tinha vivido tão protegida na casa <strong>de</strong> meus pais, que nunca vira<br />

uma execução pública —, mas me forcei a superar o choque.<br />

Não tinha ido tão longe na busca <strong>de</strong> minha liberda<strong>de</strong> para correr<br />

choramingando para casa ao primeiro sinal <strong>de</strong> sangue ou violência. De qualquer<br />

maneira, apesar da <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za do meu sexo, eu era realmente curiosa, se curiosa<br />

é a palavra certa...<br />

— Não percebe, Erila? — disse-lhe com urgência — Este é o quinto.<br />

— O quinto o quê?<br />

— O quinto corpo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a morte <strong>de</strong> Lorenzo.<br />

— O que quer dizer? — disse ela, estalando a língua. — Pessoas morrem<br />

nas ruas todos os dias. Só que você estava com a cabeça enfiada <strong>de</strong>mais nos<br />

livros para notar.<br />

— Não <strong>de</strong>ssa maneira. Pense bem: a garota em Santa Croce, o casal em<br />

Santo Spirito, cujos corpos foram <strong>de</strong>slocados para Impruneta e, <strong>de</strong>pois, o rapaz<br />

do lado do Batistério três semanas atrás. Todos mortos <strong>de</strong>ntro ou do lado <strong>de</strong> uma


igreja e todos mutilados <strong>de</strong> uma maneira terrível. Tem <strong>de</strong> ter uma relação.<br />

Ela riu.<br />

— Que tal pecado? Duas putas, um cliente, um sodomita e um proxeneta.<br />

Talvez estivessem, todos eles, a caminho do confessionário. Pelo menos, quem<br />

quer que tenha feito isso salvou os monges <strong>de</strong> ouvirem <strong>de</strong>mais.<br />

— O que quer dizer? Você o conhece?<br />

— Todo mundo o conhece. Por que acha que tem tanta gente aqui?<br />

Marsilio Trancolo. O que quiser, Trancolo consegue para você. Ou conseguia.<br />

Vinho, dados, mulheres, homens, garotos. Tinha um estoque <strong>de</strong> todos eles,<br />

prontos para o preço certo. O cáften mais proeminente <strong>de</strong> Florença. Soube que<br />

fez serão nas duas últimas semanas, mantendo os estrangeiros abastecidos. Bem,<br />

agora estará em boa companhia no inferno, com certeza. Ei! — gritou, dando um<br />

safanão em um homem que tinha nos empurrado em sua ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> chegar<br />

mais para a frente. — Veja lá on<strong>de</strong> põe as mãos, seu escroto.<br />

— Então tire essa carne preta do caminho — gritou ele, também<br />

empurrando-a. — Puta. Não precisamos <strong>de</strong> mulheres da cor do Diabo em nossas<br />

ruas. Cuidado por on<strong>de</strong> anda ou será a próxima na sua faca.<br />

— Não antes <strong>de</strong> suas bolas serem penduradas do lado do timbre dos<br />

Medici — resmungou enquanto me empurrava para fora do ajuntamento.<br />

— Mas Erila...<br />

— Não tem nada <strong>de</strong> mas. Eu lhe disse, isto não é lugar para uma dama. —<br />

Agora, ela estava irritada, por isso ficava difícil distinguir sua preocupação <strong>de</strong><br />

seu medo. — Se sua mãe <strong>de</strong>scobrir, manda me enforcarem no pilar do lado<br />

<strong>de</strong>sse aí.<br />

Conseguiu nos levar para fora da ponte. A multidão se reduziu ao longo<br />

do rio, <strong>de</strong>pois aumentou <strong>de</strong> novo quando chegamos à Piazza <strong>de</strong>lla Signoria. Nos<br />

dias seguintes à partida dos franceses, a praça tinha ficado cheia <strong>de</strong> cidadãos<br />

ansiosos por votar no novo governo, com Savonarola seu governante, apesar <strong>de</strong><br />

não oficialmente. Agora, seus partidários realizavam sessões pomposas na<br />

Prefeitura, formulando novas leis, por meio das quais esperavam transformar a<br />

cida<strong>de</strong> ímpia em cida<strong>de</strong> pia. Das câmaras do conselho, teriam uma vista geral da<br />

ponte <strong>de</strong> Santa Trinita. Ter uma aula sobre o castigo do Diabo tão perto<br />

concentraria suas mentes, <strong>de</strong> maneira esplêndida, na tarefa que tinham pela<br />

frente.<br />

Nos dias que se seguiram, Erila foi ficando impaciente com a minha fome <strong>de</strong><br />

rua.<br />

— Não posso passar fora todas as horas do dia com você. Tenho trabalho<br />

a fazer na casa. E o mesmo teria você se tem <strong>de</strong> ser a patroa. — É claro que


continuava zangada comigo por manter segredo sobre a minha noite <strong>de</strong> núpcias<br />

e <strong>de</strong>scontava sua raiva <strong>de</strong> maneira sutil, mas intensa. Ela não era a única. Os<br />

criados, agora, me olhavam <strong>de</strong> maneira estranha. Nos primeiros dias <strong>de</strong> meu<br />

casamento, tinha <strong>de</strong>sempenhado o papel da esposa, indagando sobre as contas e<br />

dando or<strong>de</strong>ns a quem quer que escutasse. Mas a minha falta <strong>de</strong> confiança me<br />

traiu, e uma casa que fora administrada durante anos sem uma patroa, não<br />

aceitou documente minhas intervenções infantis. Havia vezes em que quase<br />

podia ouvi-los rindo às minhas costas, como se soubessem do jogo <strong>de</strong> mau gosto<br />

para manter a reputação <strong>de</strong> meu marido.<br />

Para afastar o <strong>de</strong>sespero, eu me refugiava na biblioteca. Sob a loggia, no<br />

último andar, longe da umida<strong>de</strong> ou inundação, era o único cômodo da casa que<br />

me oferecia realmente um conforto. Devia haver quase uma centena <strong>de</strong> volumes<br />

ali, remontando, em alguns casos, ao começo do século. O mais extraordinário<br />

era uma cópia das primeiras traduções <strong>de</strong> Platão, realizadas por Ficino,<br />

encomendadas pelo próprio Lorenzo <strong>de</strong> Medici, ainda mais importante por eu<br />

encontrar <strong>de</strong>ntro uma <strong>de</strong>dicatória em uma letra sofisticada.<br />

Para Cristoforo, cujo amor pela erudição é quase tão gran<strong>de</strong> quanto<br />

seu amor pela beleza.<br />

A data era 1477, o ano anterior ao meu nascimento. Como a assinatura era<br />

uma obra <strong>de</strong> arte em si mesma, quem mais po<strong>de</strong>ria tê-la escrito senão o próprio<br />

Lorenzo? Fiquei olhando para a tinta. Se Lorenzo estivesse vivo, seria quase da<br />

mesma ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meu marido. O conhecimento <strong>de</strong> meu marido <strong>de</strong> sua corte era<br />

maior do que eu tinha me dado conta antes. Se ele voltasse para casa, teríamos<br />

muito a conversar sobre isso.<br />

Li alguns capítulos do texto, fascinada por sua proveniência, mas sinto-me<br />

envergonhada ao admitir que, enquanto alguns meses antes, a sabedoria nele<br />

contida possivelmente tivesse me <strong>de</strong>slumbrado, agora, tais volumes <strong>de</strong> filosofia<br />

apresentavam um certo ar <strong>de</strong> homens velhos; veneráveis, mas tendo perdido a<br />

energia para influenciar um mundo que se distanciava <strong>de</strong>les.<br />

Dos livros, voltei-me para a arte. Certamente a evocação <strong>de</strong> Botticelli <strong>de</strong><br />

Dante ainda inspirava. Mas o gran<strong>de</strong> armário em que meu marido guardava o<br />

porta-fólio estava trancado e quando chamei seu criado e pedi a chave, ele negou<br />

que soubesse on<strong>de</strong> estava. Foi a minha imaginação ou ele sorriu afetado ao me<br />

dizer isso?<br />

Trouxe-me notícias melhores uma hora <strong>de</strong>pois.<br />

— Tem uma visita, senhora.<br />

— Quem é?<br />

Ele sacudiu os ombros.


— Um cavalheiro. Não disse o nome. Está esperando lá embaixo.<br />

Meu pai? Meu irmão? O pintor? O pintor... Senti meu rosto ruborizar e<br />

levantei-me rapidamente.<br />

— Conduza-o à sala.<br />

Ele estava em pé à janela, olhando para o outro lado da rua estreita, para a<br />

torre em frente. Não nos víamos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a noite na véspera <strong>de</strong> meu casamento, e<br />

se minha mente chegou a pensar nele <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, eu o tinha apagado com tanta<br />

firmeza quanto as velas do altar eram extintas <strong>de</strong>pois da missa. Mas agora, <strong>de</strong><br />

novo em sua presença, senti-me estremecer quando se virou para mim. Não<br />

parecia bem. Tinha voltado a emagrecer e sua tez, sempre pálida, estava da cor<br />

<strong>de</strong> queijo <strong>de</strong> cabra, e estava com olheiras. Suas mãos estavam escuras,<br />

manchadas <strong>de</strong> tinta, e vi que segurava um rolo <strong>de</strong> papéis envolvido em<br />

musselina. Meus <strong>de</strong>senhos. Tive dificulda<strong>de</strong> em respirar.<br />

— Seja bem-vindo — eu disse, instalando-me cuidadosamente em uma<br />

das ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> meu marido. — Quer sentar-se?<br />

Emitiu um b<strong>rev</strong>e ruído, que interpretei como uma recusa, já que<br />

permaneceu em pé. O que fazia com que nós dois ficássemos tão nervosos<br />

quando juntos, cada um mais acanhado do que o outro? O que Erila tinha me<br />

dito certa vez sobre os perigos da inocência serem mais graves do que os do<br />

conhecimento? Exceto, certamente, que eu <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> ser inocente. E quando<br />

pensei nas entranhas do homem estripado em seus esboços noturnos, percebi<br />

que, <strong>de</strong> uma maneira ou <strong>de</strong> outra, ele também já não o era.<br />

— É casada — disse, por fim, sua timi<strong>de</strong>z, <strong>de</strong> certa forma rabugenta, <strong>de</strong><br />

volta como escudo.<br />

— Sim, sou.<br />

— Nesse caso, espero não incomodá-la.<br />

Sacudi os ombros.<br />

— Por que incomodaria? Agora, meu tempo é meu. — Mas não consegui<br />

tirar os olhos do rolo em sua mão. — Como está a capela? Já começou?<br />

Ele assentiu com a cabeça.<br />

— E? Está indo bem?<br />

Gaguejou alguma coisa que não ouvi direito. Depois disse:<br />

— Eu... eu trouxe os <strong>de</strong>senhos — e esten<strong>de</strong>u-os, <strong>de</strong>sajeitadamente.<br />

Quando estendi minha mão para pegá-los, senti que tremia ligeiramente...<br />

— Você os viu?<br />

Ele anuiu com um movimento da cabeça.<br />

— E?<br />

— Entenda, não sou um juiz... mas acho... acho que tanto seu olhar quanto<br />

sua pena anseiam pela verda<strong>de</strong>.<br />

Tive um sobressalto, e apesar <strong>de</strong> saber que é uma blasfêmia, senti-me, por


um instante, Nossa Senhora na Anunciação, ouvindo notícias <strong>de</strong> uma magnitu<strong>de</strong><br />

tal que invocava tanto o terror quanto a alegria.<br />

— Oh, você acha? Então, vai me ajudar?<br />

— Eu...<br />

— Oh, não percebe? Agora estou casada. E meu marido, que só <strong>de</strong>seja o<br />

meu bem-estar, dará, eu sei, permissão para você me instruir, me mostrar<br />

técnicas. Talvez eu pu<strong>de</strong>sse, até mesmo, assisti-lo na capela. Eu...<br />

— Não, não! — E seu alarme foi tão veemente quanto a minha excitação.<br />

— Não é possível<br />

— Por que não? Sabe tantas coisas, sabe...<br />

— Não. Não enten<strong>de</strong>. — A sua veemência me <strong>de</strong>teve. — Não posso lhe<br />

ensinar nada. — E o seu horror era tanto que parecia que eu acabara <strong>de</strong> lhe<br />

propor um ato <strong>de</strong> uma in<strong>de</strong>cência escabrosa.<br />

— Quer dizer não po<strong>de</strong> ou não quer? — eu disse friamente, olhando<br />

diretamente em seus olhos.<br />

— Não posso — resmungou, <strong>de</strong>pois repetiu em voz mais alta, com uma<br />

pausa maior entre as palavras, como se as proferisse para si mesmo assim como<br />

para mim. — Não posso ajudá-la.<br />

Não consegui respirar direito. Ter tanto tão perto e <strong>de</strong>pois per<strong>de</strong>r tudo...<br />

— Entendo. Bem... — levantei-me, orgulhosa <strong>de</strong>mais para <strong>de</strong>ixar que<br />

percebesse a gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong> minha aflição. — Sem dúvida, você tem o que fazer.<br />

Demorou-se por um momento, como se tivesse algo mais a dizer, <strong>de</strong>pois<br />

se virou e se dirigiu à porta. Mas, ali, se <strong>de</strong>teve.<br />

— Eu... tem mais uma coisa.<br />

Esperei.<br />

— Naquela noite... na noite anterior ao seu casamento, quando nós...<br />

quando a senhora estava no pátio...<br />

Mas embora soubesse o que ele ia dizer, estava com muita raiva para<br />

ajudá-lo.<br />

— Sim, e daí?<br />

— Deixei cair algo... um pedaço <strong>de</strong> papel. Um esboço. Agra<strong>de</strong>ceria se<br />

pu<strong>de</strong>sse tê-lo <strong>de</strong> volta.<br />

— Um esboço? — E minha voz foi ficando distante. Assim como ele<br />

<strong>de</strong>struíra minhas esperanças, faria o mesmo com ele. — Receio que não me<br />

lembre. Talvez se me dissesse o que era exatamente.<br />

— Era... nada. Isto é, nada importante.<br />

— Mas importante o bastante para querê-lo <strong>de</strong> volta?<br />

— Só porque... foi feito por um amigo. E eu... tenho <strong>de</strong> <strong>de</strong>volvê-lo.<br />

Era uma mentira tão óbvia — a primeira e, talvez, a única, que eu o ouvira<br />

dizer —, que não se at<strong>rev</strong>eu a me olhar enquanto falava. O pedaço <strong>de</strong> papel


asgado surgiu na minha frente: o corpo do homem cortado do pescoço até a<br />

virilha, suas entranhas expostas como no gancho <strong>de</strong> um açougueiro. Só que<br />

agora, é claro, tinha um companheiro em minha mente: o proxeneta mais famoso<br />

da cida<strong>de</strong> enforcado no pilar da capela, os cachorros abocanhando suas tripas.<br />

Apesar <strong>de</strong> o corpo prece<strong>de</strong>r semanas do outro, a evisceração era praticamente<br />

idêntica. As palavras <strong>de</strong> meu irmão ecoaram em minha mente. "O seu precioso<br />

pintor estava um trapo, a cara <strong>de</strong> fantasma e manchas por toda parte." Um rosto<br />

macilento e olhos congestionados podiam ser sinais não somente <strong>de</strong> um homem<br />

que andava pelas ruas à noite, mas também <strong>de</strong> alguém que, mesmo quando se<br />

<strong>de</strong>itava, não conseguia dormir.<br />

— Sinto muito — minhas palavras, uma fria homenagem às suas. — Não<br />

posso ajudá-lo.<br />

Por um momento, permaneceu imóvel. Depois, se virou e ouvi o som da<br />

porta se fechando atrás <strong>de</strong>le. Fiquei sentada com o rolo <strong>de</strong> papéis em meu colo.<br />

Passado algum tempo, eu os ergui e joguei para o outro lado da sala.


Vinte e Dois<br />

TIVE MUITO POUCO TEMPO PARA PENSAR sobre isso. Meu marido<br />

retornou alguns dias <strong>de</strong>pois, no prazo friamente calculado. Os Sermões <strong>de</strong> Natal<br />

<strong>de</strong> Savonarola <strong>de</strong>veriam ter início na manhã seguinte e os <strong>de</strong>votos <strong>de</strong>veriam ser<br />

vistos indo à igreja, tendo dormido com suas esposas e não com suas ou seus<br />

amantes.<br />

Até mesmo preocupou-se em me levar a dar uma volta nessa mesma noite,<br />

para que fôssemos vistos juntos em público. Há tanto tempo sonhava com isso:<br />

andar pelas ruas nessa hora mágica, entre o crepúsculo e a noite, a vida da<br />

cida<strong>de</strong> iluminada pelo pôr-do-sol. Mas embora a luz fosse bela, as ruas, <strong>de</strong> certa<br />

forma, ficavam opacas. Havia menos gente do que eu imaginava e quase todas<br />

as mulheres que vi estavam com o rosto coberto por um véu e — para um olho<br />

nutrido com os tecidos reluzentes <strong>de</strong> meu pai — vestidas <strong>de</strong> uma maneira<br />

sombria, enquanto as que estavam <strong>de</strong>sacompanhadas mantinham a cabeça baixa,<br />

concentradas em chegar logo em casa. A certa altura, sob a loggia na Piazza<br />

Santa Maria Novella, passamos por um rapazola com um manto elegante e um<br />

chapéu com penas que, achei, tentou chamar a atenção <strong>de</strong> meu marido, mas<br />

Cristoforo baixou o olhar imediatamente e me afastou, e logo o <strong>de</strong>ixamos para<br />

trás. Quando chegamos em casa, já escuro, a cida<strong>de</strong> estava quase vazia. O toque<br />

<strong>de</strong> recolher mental estava causando tanto impacto quanto qualquer nova lei. Era<br />

uma gran<strong>de</strong> ironia eu ter negociado minha liberda<strong>de</strong> justamente quando não<br />

restara nenhuma Florença para eu explorar.<br />

Nessa noite, sentamo-nos juntos na sala <strong>de</strong> estar ventosa, aquecidos por<br />

uma lareira atiçada com lenha <strong>de</strong> murta, discutindo negócios <strong>de</strong> estado.<br />

Apesar <strong>de</strong> um lado meu, magoado, querer puni-lo por sua ausência, a<br />

minha curiosida<strong>de</strong> era gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais, e a sua companhia interessante <strong>de</strong>mais<br />

para que eu conseguisse resistir por muito tempo. Acredito que o prazer era<br />

mútuo.<br />

— Temos <strong>de</strong> chegar cedo para garantir um bom lugar. Aposto com você,<br />

Alessandra, a menos que isso em si seja agora ilegal, que a Catedral estará<br />

superlotada amanhã.<br />

— Iremos para ver ou sermos vistos?<br />

— Como muitos, suspeito, uma mistura das duas coisas. É um prodígio<br />

como, <strong>de</strong> repente, os florentinos se tornaram um povo tão <strong>de</strong>voto.<br />

— Também os sodomitas? — perguntei, orgulhosa da minha coragem em<br />

usar a palavra.<br />

Ele sorriu.


— Acho que sente um prazer rebel<strong>de</strong> em proferir a palavra alto. Mas<br />

sugiro que a elimine <strong>de</strong> seu vocabulário. As pare<strong>de</strong>s têm ouvidos.<br />

— O quê? Acha que os criados trairiam seu próprio patrão?<br />

— Acho que quando oferecem a liberda<strong>de</strong> a escravos em troca <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>nunciar seus senhores, então Florença se tornou uma cida<strong>de</strong> da Inquisição,<br />

sim.<br />

— É o que dizem as novas leis?<br />

— Entre outras coisas. Os castigos por fornicação se tornam severos. Para<br />

sodomia, muito mais ainda. Para os mais jovens, açoite, multa e mutilação. Para<br />

os pecadores mais velhos e mais experientes... a empalação.<br />

— Empalação! Meu Deus. Por que essa diferença?<br />

— Porque, minha mulher, os rapazes são consi<strong>de</strong>rados menos<br />

responsáveis por seus atos do que os mais velhos. Exatamente como as virgens<br />

<strong>de</strong>floradas são consi<strong>de</strong>radas menos culpadas do que seus sedutores.<br />

Então, a insolência e sedução <strong>de</strong> Tomaso seriam classificados como<br />

menos danosos do que o <strong>de</strong>sejo silencioso <strong>de</strong> meu marido por ele. Embora ele<br />

fosse do meu sangue, a verda<strong>de</strong> cruel era que eu me importava menos com o seu<br />

bem-estar do que com o do homem que o <strong>de</strong>sejava.<br />

—Você tem <strong>de</strong> tomar cuidado — eu disse.<br />

— Pretendo tomar. Seu irmão quer saber se está bem — acrescentou,<br />

como se lendo meus pensamentos.<br />

— O que lhe respon<strong>de</strong>u?<br />

— Que seria melhor ele lhe perguntar pessoalmente. Mas acho que teme<br />

vê-la.<br />

Ótimo, pensei. Espero que ele fique tremendo em seus braços. Fiquei<br />

chocada com a imagem, que não me permitira formar antes. Tomaso nos braços<br />

<strong>de</strong> meu marido. Então, o meu irmão era a esposa. E eu... Bem, o que eu era?<br />

— Tem sido monótono com a casa tão vazia — disse eu, por fim.<br />

Ele ficou em silêncio. Nós dois sabíamos o que estava para acontecer.<br />

Savonarola podia policiar à noite, mas, no fundo, tudo o que queria era tornar os<br />

pecados ainda mais sombrios.<br />

— Se preferir, não precisa vê-lo.<br />

— Ele é meu irmão. Se vier à nossa casa, seria estranho eu não recebê-lo.<br />

— E verda<strong>de</strong>. — Ele estava olhando fixamente o fogo, as pernas esticadas<br />

à sua frente. Era um homem educado, culto, que tinha mais inteligência em seu<br />

mindinho do que meu irmão em todo seu corpo macio e afetado. Que lascívia<br />

era essa que o fazia arriscar tudo com sua consumação? — Creio que não tem<br />

novida<strong>de</strong>s para mim, tem?<br />

Oh, mas eu tinha. Nessa mesma tar<strong>de</strong>, tinha sentido dores agudas em meu<br />

útero, mas ao invés <strong>de</strong> um bebê prematuro, eu tinha dado à luz um fluxo <strong>de</strong>


sangue. Mas não sabia como dizer isso, portanto simplesmente sacudi a cabeça.<br />

— Não. Nenhuma novida<strong>de</strong>.<br />

Fechei os olhos e vi, <strong>de</strong> novo, meu <strong>de</strong>senho da nossa noite <strong>de</strong> núpcias.<br />

Quando tornei a abri-los, ele estava me olhando atentamente, e juro que a<br />

pieda<strong>de</strong> tinha um quê <strong>de</strong> afeição.<br />

— Soube que tem usado a biblioteca em minha ausência. Espero que ela<br />

lhe agra<strong>de</strong>.<br />

— Sim — repliquei, aliviada por estar <strong>de</strong> volta ao terreno firme da<br />

erudição. — Encontrei um volume <strong>de</strong> Platão, traduzido por Ficino, com uma<br />

<strong>de</strong>dicatória para você.<br />

— Ah, sim. Louvando meu amor pela beleza e erudição — riu. — Hoje é<br />

difícil imaginar que houve um tempo em que nossos governantes acreditavam<br />

nessas coisas.<br />

— Então foi Lorenzo, o Magnífico? Você realmente o conheceu!<br />

— Um pouco. Como a <strong>de</strong>dicatória sugere, ele gostava que seus cortesãos<br />

fossem homens <strong>de</strong> bom gosto.<br />

— Ele... ele sabia sobre você?<br />

— O que... sobre minha sodomia, como você gosta <strong>de</strong> dizer? Não havia<br />

muita coisa que Lorenzo não soubesse sobre aqueles que o circundavam. Era um<br />

estudante da alma dos homens, tanto quanto <strong>de</strong> seus intelectos. Você ficaria<br />

fascinada por sua mente. Estou surpreso que sua mãe não lhe tenha falado <strong>de</strong>le.<br />

— Minha mãe?<br />

— Sim. Quando o irmão <strong>de</strong>la estava na corte, ela ia, às vezes, visitá-lo.<br />

— Ia? Conheceu-a na época?<br />

— Não, eu estava, bem... ocupado com outras coisas. Mas a vi algumas<br />

vezes. Ela era muito bonita. E tinha um quê do espírito e erudição do irmão<br />

quando se manifestava. Ela era muito apreciada, me lembro. Não lhe contou<br />

nada disso?<br />

Sacudi a cabeça. Em toda a minha vida, ela nunca tinha dito uma única<br />

palavra. Guardar esse tipo <strong>de</strong> segredo <strong>de</strong> sua própria filha? E isso me fez pensar<br />

<strong>de</strong> novo em sua história <strong>de</strong> ter visto os assassinos <strong>de</strong> Medici arrastados pelas<br />

ruas, afogando-se no sangue <strong>de</strong> sua própria castração. Não é <strong>de</strong> admirar que o<br />

horror tenha me atingido em seu útero.<br />

— Então espero não ter falado <strong>de</strong>mais. Soube também que pediu as<br />

chaves do armário. Sinto <strong>de</strong>sapontá-la, mas acho que o manuscrito será levado<br />

em b<strong>rev</strong>e.<br />

— Levado? Para on<strong>de</strong>?<br />

— De volta a seu dono.<br />

— Quem é ele? — E como meu marido não respon<strong>de</strong>sse: — Se acha que<br />

não sei guardar seus segredos, senhor, então escolheu mal sua mulher.


Ele sorriu com a lógica.<br />

— Seu nome é Piero Francesco <strong>de</strong> Medici, que já foi patrono <strong>de</strong> Botticelli.<br />

É claro. O primo <strong>de</strong> Lorenzo, o Magnífico, e um dos primeiros a fugir<br />

para o acampamento francês.<br />

— Consi<strong>de</strong>ro-o um traidor — eu disse com firmeza.<br />

— Pois então é mais tola do que pensei. — E sua voz foi ríspida. — Devia<br />

refletir mais quando falar, mesmo aqui. Escute bem: não vai <strong>de</strong>morar para que<br />

todos aqueles que apóiam os Medici temam por suas vidas. Além disso, você só<br />

conhece meta<strong>de</strong> da história. Há razão suficiente para a sua <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong>. Quando<br />

seu pai foi assassinado, as proprieda<strong>de</strong>s do filho foram <strong>de</strong>ixadas aos cuidados <strong>de</strong><br />

Lorenzo, que extorquiu dinheiro <strong>de</strong>las, quando a fortuna do banco dos Medici<br />

<strong>de</strong>clinou. O ressentimento <strong>de</strong> Piero Francesco não é <strong>de</strong> admirar. Mas ele não é<br />

um homem mau. Na verda<strong>de</strong>, como patrono da arte, a história po<strong>de</strong> colocá-lo do<br />

lado do próprio Lorenzo.<br />

— Não vi nada que ele tivesse dado à cida<strong>de</strong>.<br />

— Isso porque ele guarda para si mesmo. Mas a sua vila em Cafaggiolo<br />

tem pinturas <strong>de</strong> Botticelli que o próprio artista <strong>de</strong>ve se arrepen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ter cedido.<br />

Há um painel em que Marte jaz vencido por <strong>Vênus</strong>, prostrado com tal langui<strong>de</strong>z,<br />

que não se po<strong>de</strong> dizer se foi a sua alma ou o seu corpo que ela acaba <strong>de</strong><br />

conquistar. E, então, tem a própria <strong>Vênus</strong>, ascen<strong>de</strong>ndo das ondas, nua em uma<br />

concha. Já ouviu falar nela?<br />

— Não. — Minha mãe tinha me falado, uma vez, sobre um conjunto <strong>de</strong><br />

pinturas da lenda <strong>de</strong> Nastagio que ele realizara para um casamento, e como<br />

todos que as viam ficavam maravilhados com os <strong>de</strong>talhes e vida que<br />

transmitiam. Mas, assim como minha irmã, eu resistia às histórias <strong>de</strong> mulheres<br />

<strong>de</strong>spedaçadas por melhor que fosse o artista. — Como ela é, a sua <strong>Vênus</strong>?<br />

— Bem, não sou nenhum especialista em mulheres, mas penso que você a<br />

acharia o abismo entre a visão <strong>de</strong> arte platônica e a savonarolana.<br />

— Ela é bela?<br />

— Bela, sim. Porém é mais do que isso. Ela é a união do clássico e do<br />

cristão. Sua nu<strong>de</strong>z é mo<strong>de</strong>sta, embora a sua serieda<strong>de</strong> seja jocosa. Ela convida e<br />

resiste ao mesmo tempo. Até mesmo o seu conhecimento do amor parece<br />

inocente. Se bem que imagino que a maioria dos homens que a olham pensam<br />

mais em levá-la para a cama do que para a igreja.<br />

— Oh! Daria qualquer coisa para vê-la.<br />

— Deve torcer para que ninguém a veja por algum tempo. Se notícias a<br />

sua existência se tornassem comuns, o nosso pio Fra<strong>de</strong> quase que certamente iria<br />

querer <strong>de</strong>struí-la junto com seus pecadores. Vamos esperar que o próprio<br />

Botticelli não se sinta obrigado a cedê-la ao inimigo. Pelo sei, ele já está<br />

propenso ao Partido dos Simulados.


— Não!<br />

— Oh, sim. Acho que ficaria surpresa com o número <strong>de</strong> nossas gran<strong>de</strong>s<br />

figuras que o seguiriam. E não som ente os artistas.<br />

— Mas por quê? Não entendo. Estávamos construindo uma nova Atenas,<br />

mo po<strong>de</strong>m suportar vê-la ser <strong>de</strong>rrubada?<br />

Ele olhou fixo para o fogo, como se a resposta pu<strong>de</strong>sse estar lá.<br />

— Porque — disse, por fim — em seu lugar, esse monge louco e<br />

inteligente oferecerá a visão <strong>de</strong> outra coisa. Algo que fala diretamente a todos os<br />

homens e não somente aos ricos ou aos inteligentes.<br />

— E que coisa é essa?<br />

— A construção da Nova Jerusalém.<br />

Meu marido, que parecia ter sempre sabido que estava <strong>de</strong>stinado ao<br />

inferno, buscava esse momento com certa tristeza. E eu sabia que ele tinha<br />

razão.


Vinte e três<br />

TANTOS FORAM OS CRIADOS QUE PEDIRAM para ir ao sermão na manhã<br />

seguinte que quase não restou nenhum para guardar a casa. Essa foi uma história<br />

repetida pela cida<strong>de</strong>. Um ladrão esperto po<strong>de</strong>ria ter levado carroças <strong>de</strong> riquezas<br />

nesse dia, se bem que seria preciso que tivesse um estômago forte para pecar<br />

nesse momento — como se aproveitar do escuro <strong>de</strong>pois da crucificação <strong>de</strong><br />

Cristo para bater carteiras da multidão.<br />

Enquanto os pobres se vestiram com sua melhor roupa, os ricos dobraram<br />

suas golas <strong>de</strong> pele para <strong>de</strong>ntro e se certificaram <strong>de</strong> que suas jóias estivessem bem<br />

ocultas, para não contrariarem a Lei Suntuária. Antes <strong>de</strong> sairmos, Erila e eu<br />

inspecionamos uma à outra, para evitar qualquer coisa dúbia ou frívola que<br />

pu<strong>de</strong>sse se <strong>rev</strong>elar por <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> nossas capas. A nossa modéstia <strong>rev</strong>elou-se<br />

não ter sido suficiente. Ao atravessarmos a praça em direção à Catedral, ficou<br />

claro que havia algo errado. O lugar estava lotado <strong>de</strong> gente e havia vozes iradas,<br />

intermediadas do som <strong>de</strong> mulheres chorando. Mal alcançamos a escada, nosso<br />

caminho foi bloqueado por um homem corpulento usando roupa rústica.<br />

— Ela não po<strong>de</strong> entrar — disse ele, ru<strong>de</strong>mente, a meu marido. —<br />

Mulheres são proibidas.<br />

E havia uma tal agressão em sua voz que, por um momento, me perguntei<br />

se ele não saberia algo mais sobre nós, o que fez meu sangue gelar.<br />

— Por que isso? — perguntou meu marido, calmamente.<br />

— O Frei prega no edifício do Estado Pio. Tais assuntos não são para os<br />

ouvidos <strong>de</strong>las.<br />

— Mas se o estado é pio, o que po<strong>de</strong>ria dizer que fosse capaz <strong>de</strong> nos<br />

ofen<strong>de</strong>r? — repliquei em voz alta.<br />

— Mulheres não entram — repetiu ele, me ignorando e se dirigindo a meu<br />

marido. — O assunto <strong>de</strong> governo é para homens. Mulheres são fracas e<br />

irracionais e <strong>de</strong>vem se conservar em obediência, castida<strong>de</strong> e silêncio.<br />

— Bem, senhor — eu disse —, se as mulheres são <strong>de</strong> fato...<br />

— A minha mulher é um repositório <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> exemplar — os <strong>de</strong>dos <strong>de</strong><br />

Cristoforo beliscaram uma linha <strong>de</strong> pele sob minha manga. — Não há nada que<br />

nem mesmo o nosso mais diligente Prior Savonarola pu<strong>de</strong>sse instruí-la que ela já<br />

não pratique naturalmente.<br />

— Então, é melhor que vá para casa cuidar dos afazeres domésticos, e<br />

<strong>de</strong>ixe os homens com seus negócios — disse ele. — E seu véu não <strong>de</strong>veria ter<br />

nenhuma barra e cobrir seu rosto apropriadamente. Agora, este é um estado <strong>de</strong><br />

virtu<strong>de</strong> simples, sem se misturar com caprichos <strong>de</strong> homens ricos.


Seis meses antes, ele seria açoitado por seu <strong>de</strong>sacato, mas hoje, sua<br />

insolência era tão segura que não havia o que replicar. Ao me virar, vi a mesma<br />

cena sendo representada em uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> pontos nos <strong>de</strong>graus à nossa volta:<br />

cidadãos proeminentes sendo humilhados por essa nova e ru<strong>de</strong> beatice. Era fácil<br />

ver como funcionava: com os ricos sendo tratados com soberba, os pobres<br />

tinham menos razão para venerá-los. E me ocorreu, não pela última vez, que se<br />

esse era realmente o começo da Nova Jerusalém, então cheirava a algo mais do<br />

que uma <strong>rev</strong>olução espiritual.<br />

Meu marido, no entanto, que percebera isso tão claramente quanto eu,<br />

sabiamente optou por não se sentir ofendido. Ao invés disso, virou-se e sorriu<br />

para mim.<br />

— Minha querida esposa — disse ele com um carinho estudado e uma<br />

linguagem frívola. — Vá para casa com Deus e reze por nós. Eu a encontrarei<br />

mais tar<strong>de</strong> e relatarei o que foi dito, se for dito, que a afete.<br />

Fizemos uma <strong>rev</strong>erência e nos separamos como dois atores em uma<br />

versão <strong>de</strong> má qualida<strong>de</strong> dos contos <strong>de</strong> Boccaccio, e ele <strong>de</strong>sapareceu no interior<br />

cavernoso.<br />

Ao pé da escada, Erila e eu nos vimos no meio <strong>de</strong> uma multidão <strong>de</strong> mulheres<br />

divididas entre <strong>de</strong>voção e indignação por sua exclusão. Reconheci algumas que<br />

minha mãe talvez consi<strong>de</strong>rasse suas iguais, mulheres educadas e <strong>de</strong> recursos.<br />

Depois <strong>de</strong> algum tempo, um grupo <strong>de</strong> garotos, o cabelo cortado bem curto e<br />

vestidos mais como penitentes do que adolescentes, surgiram e começaram a nos<br />

arrebanhar e impelir para a orla da praça. Pareceu-me que usavam a <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong><br />

sua santida<strong>de</strong> para nos espicaçar e humilhar como nunca po<strong>de</strong>riam ter feito<br />

antes.<br />

— Por aqui. — Erila agarrou-me e empurrou-me para o lado. — Se<br />

ficarmos aqui, nunca entraremos.<br />

— Mas como po<strong>de</strong>mos? Há guardas em toda parte.<br />

— Sim, mas nem todas as portas são para os ricos. Com sorte, terão<br />

escolhido capangas menos importantes para pessoas menos importantes.<br />

Segui-a para fora da multidão e <strong>de</strong>mos a volta na Catedral até<br />

encontrarmos uma porta em que o fluxo <strong>de</strong> pessoas era menor, mas impelido<br />

com tal força que era impossível para os sacristãos na entrada controlarem todos<br />

os que avançavam para <strong>de</strong>ntro. Ao forçarmos o caminho, ouvimos o som do<br />

interior se avolumar. Parecia que Savonarola tinha aparecido no altar e, <strong>de</strong><br />

repente, a compressão se tornou mais pesada e o impulso mais rápido, quando as<br />

gran<strong>de</strong>s portas da Catedral começaram a se fechar.<br />

Lá <strong>de</strong>ntro, Erila me puxou rapidamente para trás, <strong>de</strong> modo que nos


pressionássemos no espaço entre a segunda porta <strong>de</strong> tela e a pare<strong>de</strong> da igreja.<br />

Um pouco mais cedo e alguém teria nos localizado. Um pouco mais tar<strong>de</strong> e não<br />

teríamos entrado. Relanceei, furtivamente, os olhos pela massa <strong>de</strong> corpos e<br />

percebi que não éramos as únicas mulheres a <strong>de</strong>safiar a proibição, pois não<br />

<strong>de</strong>morou e houve uma gran<strong>de</strong> comoção à esquerda, e uma mulher velha foi<br />

levada, com brutalida<strong>de</strong>, para fora, os homens vaiando enquanto ela passava.<br />

Mantivemos a cabeça baixa, confundindo-nos com a obscurida<strong>de</strong> do interior.<br />

Quando o serviço chegou ao sermão, a Catedral inteira ficou em silêncio<br />

quando o pequeno Monge subiu ao púlpito. Seria a primeira vez em que pregaria<br />

publicamente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a formação do novo governo. Apesar <strong>de</strong> isso não aumentar a<br />

sua estatura (se bem que, <strong>de</strong> qualquer maneira, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu estava, não pu<strong>de</strong>sse<br />

vê-lo), havia, certamente, lhe insuflado mais força. Ou talvez, fosse, <strong>de</strong> fato,<br />

Deus. Ele falava com tal familiarida<strong>de</strong> sobre Ele...<br />

— Bem-vindos, homens <strong>de</strong> Florença. Hoje, nos reunimos para um gran<strong>de</strong><br />

evento. Assim como a Virgem dirigiu-se a Belém preparando-se para a chegada<br />

<strong>de</strong> nosso Salvador, a nossa cida<strong>de</strong> dá os primeiros passos na estrada que a levará<br />

à re<strong>de</strong>nção. Regozijem-se, cidadãos <strong>de</strong> Florença, pois a luz está à mão.<br />

Uma agitação <strong>de</strong> aprovação percorreu a multidão.<br />

"A viagem começou. A nau da salvação zarpou. Estive com o Senhor<br />

nestes dias, buscando a Sua orientação, pedindo a Sua indulgência. Ele não saiu<br />

do meu lado, dia e noite, enquanto, prostrado diante Dele, aguardava suas<br />

instruções. 'O, Deus', gritei. 'Conceda esse nobre <strong>de</strong>ver a outro. Que Florença<br />

conduza a si mesma por esse mar <strong>rev</strong>olto e que eu retorne ao meu porto<br />

solitário.' 'É impossível', respon<strong>de</strong>u o Senhor. 'Você é o navegador e o vento<br />

sopra as velas. Agora não há como voltar atrás'."<br />

Mais bramidos ao redor <strong>de</strong>le, <strong>de</strong>ssa vez mais altos, incitando-o a<br />

prosseguir, <strong>de</strong> modo que não consegui <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pensar em Júlio César que toda<br />

vez que recusava a coroa, instigava o populacho a oferecê-la <strong>de</strong> novo a ele, cada<br />

vez com mais fervor.<br />

"'Senhor, Senhor', eu Lhe disse, 'rezarei se assim <strong>de</strong>vo. Mas por que<br />

preciso interferir no governo <strong>de</strong> Florença? Não passo <strong>de</strong> um simples monge.'<br />

Então, o Senhor disse com uma voz terrível: 'Preste atenção, Girolamo. Se tornar<br />

Florença uma cida<strong>de</strong> santa, sua santida<strong>de</strong> será construída sobre alicerces mais<br />

profundos. Um governo <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira. Essa é a sua tarefa. E embora<br />

possa temê-la, estarei com você. Quando você falar, serão minhas palavras que<br />

fluirão em sua língua. E portanto a t<strong>rev</strong>a será penetrada, até não haver nenhum<br />

lugar on<strong>de</strong> os pecadores possam se escon<strong>de</strong>r.'<br />

'Mas nunca interprete mal a severida<strong>de</strong> da jornada. O tecido está<br />

apodrecido, <strong>de</strong>vorado pelo absinto da luxúria e da cobiça. Até mesmo aqueles<br />

que se crêem pios <strong>de</strong>vem ser levados à justiça: aqueles homens e mulheres da


igreja que bebem meu sangue em cálices <strong>de</strong> ouro e <strong>de</strong> prata, e dão mais<br />

importância ao cálice do que a mim, <strong>de</strong>vem reapren<strong>de</strong>r o significado da<br />

humilda<strong>de</strong>. Aqueles que adoram <strong>de</strong>uses falsos por meio <strong>de</strong> línguas pagas <strong>de</strong>vem<br />

ter suas bocas seladas. Aqueles que atiçam o fogo da carne <strong>de</strong>vem ter a luxúria<br />

extinta... E aqueles que olham os próprios rostos antes do meu, <strong>de</strong>vem ter seus<br />

espelhos quebrados e seus olhos virados para <strong>de</strong>ntro para verem a mácula <strong>de</strong><br />

suas próprias almas...'<br />

'E nessa gran<strong>de</strong> obra, os homens li<strong>de</strong>rarão. Pois já que a corrupção do<br />

homem teve início com a corrupção da mulher, assim sua vaida<strong>de</strong> e fragilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>vem ser guiadas por mãos mais fortes. O estado verda<strong>de</strong>iramente pio é aquele<br />

em que as mulheres ficam atrás <strong>de</strong> portas trancadas e a sua salvação repousa na<br />

obediência e silêncio.'<br />

'Assim como a nata do cristianismo vai à guerra para reconquistar minha<br />

Terra Santa, a gloriosa juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Florença sairá às ruas para travar o combate<br />

contra o pecado. Serão o exército dos <strong>de</strong>votos. O próprio solo cantará com seus<br />

passos. E os fracos, os jogadores, os fornicadores e os sodomitas, todos aqueles<br />

que alar<strong>de</strong>iam minhas leis sentirão a minha ira.' Assim o Senhor me falou. E<br />

assim obe<strong>de</strong>ço. Glória ao Seu nome. Assim na terra como no céu. Glória ao<br />

nosso grandioso trabalho <strong>de</strong> construir a Nova Jerusalém."<br />

E juro que se não era Deus, não sei quem estava <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, pois<br />

realmente parecia um homem possuído. Senti um arrepio percorrer meu corpo e,<br />

naquele momento, pensei em rasgar meus <strong>de</strong>senhos e pedir o perdão e a luz <strong>de</strong><br />

Deus, embora o anseio fosse provocado pelo medo e não por qualquer alegria da<br />

salvação. No entanto, enquanto sentia isso e a congregação levantava-se e o<br />

exaltava em uníssono, lembrei-me também do som que se erguia na praça Santa<br />

Croce no dia da competição anual <strong>de</strong> futebol, e da maneira como os homens na<br />

multidão bramiam sua aprovação a cada vez que se <strong>rev</strong>elava uma habilida<strong>de</strong> ou<br />

agressão repentina.<br />

Virei-me para Erila para ver como ela tinha sido afetada, e ao fazer isso,<br />

ergui levemente minha cabeça, exatamente no momento que o homem na minha<br />

frente escolheu para mudar o peso <strong>de</strong> seu corpo e melhor ver o púlpito. E, <strong>de</strong>sse<br />

modo, seu olhar <strong>de</strong> viés encontrou-se com o meu e percebi, instantaneamente,<br />

que tínhamos sido <strong>de</strong>scobertas. Um sussurro foi-nos dirigido, e Erila, mais<br />

afinada com a velocida<strong>de</strong> da violência masculina do que eu, me agarrou e puxou<br />

pelo ajuntamento até alcançarmos a fenda na porta e nos lançarmos para fora,<br />

seguras, mas tremendo, na fria luz do sol <strong>de</strong> uma manhã clara <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro na<br />

Nova Jerusalém.


Vinte e quatro<br />

ENQUANTO SAVONAROLA PREGAVA a sua cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vota, Erila e eu<br />

tomamos as ruas. A idéia <strong>de</strong> viver atrás <strong>de</strong> portas cerradas com somente a<br />

reclusão e <strong>de</strong>voção como companhia me fizeram gelar <strong>de</strong> medo. Mesmo sem a<br />

mancha dos pecados <strong>de</strong> meu marido, eu fracassaria em todos os testes que o<br />

Deus <strong>de</strong> Savonarola me aplicasse, e tinha arriscado <strong>de</strong>mais para, agora, penetrar<br />

resignadamente na escuridão.<br />

Quase todos os dias, íamos ao mercado. Embora as mulheres pu<strong>de</strong>ssem<br />

ser uma tentação nas ruas, o trabalho das compras e cozinha tinha <strong>de</strong> continuar a<br />

ser feito e, se o véu era espesso o bastante, ficava difícil saber quem era curiosa<br />

e quem era obediente. Não sei como está hoje o Mercato Vecchio <strong>de</strong> Florença,<br />

mas, na época, era uma maravilha: um circo <strong>de</strong> sensações. Como tudo o mais na<br />

nossa cida<strong>de</strong>, estava marcado pelo tumulto da subsistência, mas isso também lhe<br />

conferia a sua vivacida<strong>de</strong> e estilo. No interior da praça, havia loggias elegantes,<br />

arejadas, cada uma construída e <strong>de</strong>corada para os produtos que vendia. De modo<br />

que, sob os medalhões com retratos <strong>de</strong> animais, estavam os açougues, e sob os<br />

peixes, os peixeiros, competindo pela atenção das narinas com os pa<strong>de</strong>iros,<br />

curtidores, ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> frutas, e uma centena <strong>de</strong> barracas <strong>de</strong> comida<br />

fumegante, on<strong>de</strong> era possível se comprar qualquer coisa, <strong>de</strong> enguia ensopada ou<br />

lúcio assado, fresquinho do rio, a pedaços <strong>de</strong> carne <strong>de</strong> porco recheados <strong>de</strong><br />

alecrim e fatiados, pingando seu sumo do espeto. Era como se todos os aromas<br />

da vida — levedo, temperos, morte, <strong>de</strong>cadência — tivessem sido, todos eles,<br />

jogados juntos em uma gran<strong>de</strong> caçarola. Não vi nada que se comparasse a isso, e<br />

durante aqueles primeiros dias do inverno escuro do reinado <strong>de</strong> Deus em<br />

Florença, era como se tivesse tudo o que mais <strong>de</strong>sejasse e temesse per<strong>de</strong>r.<br />

Todo mundo tinha alguma coisa a ven<strong>de</strong>r, e aqueles que não tinham nada,<br />

vendiam o seu nada. Não havia nenhuma loggia para os mendigos, mas eles<br />

faziam ponto ainda assim — nos <strong>de</strong>graus das quatro igrejas que se erguiam<br />

como sentinelas ao redor da praça. Erila dizia que havia mais mendigos <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que Savonarola tinha assumido o controle. Mas se era porque havia mais penúria<br />

ou mais <strong>de</strong>voção e, portanto, mais expectativa <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, era difícil saber. Mas<br />

o que realmente me chamou a atenção foi o lutador. Estava em pé em um plinto<br />

perto da entrada oeste da praça e já se formara um ajuntamento à sua volta. Erila<br />

disse que já o conhecia há muito tempo, que, antes <strong>de</strong> ser um charlatão, tinha<br />

sido lutador profissional que enfrentava todos os que se apresentavam na parte<br />

<strong>de</strong> águas rasas e lamacentas do rio. Naquele tempo, ele tinha um agente que<br />

fazia as apostas por ele, e sempre havia muita gente gritando para os


competidores, que tropeçavam e resmungavam na areia movediça preta, até os<br />

dois lados emergirem parecendo Diabos. Contou-me, <strong>de</strong>pois, que o tinha visto<br />

enterrar a cabeça <strong>de</strong> um homem tão fundo na lama, que este só conseguiu indicar<br />

que se rendia agitando os braços.<br />

Mas tais espetáculos haviam sido construídos com base no jogo e, nas<br />

águas das novas leis, ele não tivera outra opção a não ser <strong>de</strong>scobrir outra<br />

maneira <strong>de</strong> usar seu corpo magnífico. Estava nu até a cintura, o frio fazendo com<br />

que sua respiração exalasse fumaça. A parte superior do torso parecia-se mais<br />

com a <strong>de</strong> um animal do que com a <strong>de</strong> um homem, seus músculos tão<br />

proeminentes e grossos que o seu pescoço lembrou-me imediatamente o <strong>de</strong> um<br />

touro. Fez-me pensar no Minotauro e seu ataque ao gran<strong>de</strong> Teseu no centro do<br />

labirinto. Mas a sua era uma aberração diferente da natureza.<br />

Sua pele havia sido untada até refulgir, e em seus braços e peito havia a<br />

pintura (se bem que qual tinta conseguiria a<strong>de</strong>rir a uma pele humana tão<br />

untada?) <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> serpente. E quando flexionou os músculos, fazendo a<br />

pele ondular, suas curvas grossas ver<strong>de</strong>s e pretas cintilaram e colearam ao longo<br />

<strong>de</strong> seus braços e por seu torso. Foi uma imagem monstruosa e mágica. Fiquei<br />

fascinada. A ponto <strong>de</strong> abrir caminho <strong>de</strong> maneira grosseira, até estar diretamente<br />

embaixo <strong>de</strong>le.<br />

A sofisticação <strong>de</strong> minhas roupas chamou a atenção para a minha bolsa, e<br />

ele curvou-se na minha direção.<br />

— Observe com atenção, jovem senhora — disse ele —, embora talvez<br />

tenha <strong>de</strong> erguer o véu para ver melhor o prodígio.<br />

Puxei o véu para o lado, e ele sorriu largo para mim, uma lacuna larga<br />

como o Arno entre os dois <strong>de</strong>ntes da frente, <strong>de</strong>pois esten<strong>de</strong>u os braços na minha<br />

direção, <strong>de</strong> modo que, <strong>de</strong>ssa vez, quando a serpente rastejou, foi tão perto que eu<br />

po<strong>de</strong>ria tocá-la.<br />

— O diabo é uma serpente. Cuidado com os pecados ocultos no prazer<br />

dos braços <strong>de</strong> um homem.<br />

Agora, Erila puxava a manga <strong>de</strong> meu vestido, mas a afastei.<br />

— Como fez isso em seu corpo? — perguntei ansiosamente. — Que tintas<br />

usou?<br />

— Ponha um pouco <strong>de</strong> prata na caixa e lhe direi. — A serpente pulou para<br />

cima <strong>de</strong> seu ombro.<br />

Remexi na bolsa e joguei meio florim na caixa. Ficou ali, refulgindo no<br />

meio do cobre opaco. Erila <strong>de</strong>u um suspiro afetado diante <strong>de</strong> minha credulida<strong>de</strong><br />

e tirou a bolsa da minha mão, metendo-a <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu corpete para mantê-la<br />

segura.<br />

— Diga-me! — falei. — Não po<strong>de</strong> ser tinta. Então, é tintura?<br />

— Tintura e sangue — respon<strong>de</strong>u ele, sombriamente, agachando-se <strong>de</strong>


modo a ficar realmente perto para ser tocado, perto o bastante para eu ver a<br />

película <strong>de</strong> suor e óleo sobre a sua pele, e sentir o cheiro rançoso <strong>de</strong> seu corpo.<br />

— Primeiro corta-se a pele, pequenos cortes, snip, snip, snip, <strong>de</strong>pois, um por<br />

um, fura-se nas cores.<br />

— Oh, dói?<br />

— Bem... Gritei como um bebê — replicou ele. — Mas uma vez iniciado,<br />

não os faria parar. E, assim, a minha serpente fica mais bonita e graciosa a cada<br />

dia. A serpente Diabo tem um rosto <strong>de</strong> mulher, sabia? Para tentar os homens. Na<br />

próxima vez que entrar na faca, vou pedir que lhe dêem as suas feições.<br />

— Arch! — A voz <strong>de</strong> Erila, agredindo com <strong>de</strong>sdém. — Não dê atenção.<br />

Ele só quer outra moeda.<br />

Mas a afastei.<br />

— Sei quem fez isso — disse eu rapidamente. — Foram os tintureiros <strong>de</strong><br />

Santa Croce. Você foi um <strong>de</strong>les, não foi?<br />

— Fui — respon<strong>de</strong>u ele, e me olhou mais atentamente. — Como soube<br />

disso?<br />

— Vi os padrões em suas peles. Fui lá, uma vez, quando era criança.<br />

— Com o seu pai. O mercador <strong>de</strong> panos — disse ele.<br />

— Sim! Sim!<br />

— Agora me lembro. Era pequena e mandona e metia o nariz em tudo.<br />

Ri alto.<br />

— Isso mesmo! Realmente se lembra <strong>de</strong> mim!<br />

Erila, impaciente, falou alto:<br />

— Já lhe tirei a bolsa, seu cabeça-dura. Não conseguirá mais moedas.<br />

— Não preciso do seu dinheiro — resmungou. — Ganho mais agitando<br />

meus braços do que você nas ruas, <strong>de</strong>pois que escurece, quando não se tem<br />

como distinguir sua cor do escuro da noite. — E voltou a atenção para mim. —<br />

Sim, agora me lembro. Lembro-me <strong>de</strong> que usava roupas elegantes e <strong>de</strong>ssa cara<br />

feia amassada... mas ainda assim, não tinha medo <strong>de</strong> nada.<br />

Registrei suas palavras como uma pequena punhalada. Devo ter recuado,<br />

mas sua cara se aproximou.<br />

— Mas vou lhe dizer uma coisa. Eu não a achei feia. Não, <strong>de</strong> jeito<br />

nenhum. Achei-a bastante sensual. — E ao dizer isso, fez a serpente on<strong>de</strong>ar<br />

languidamente na minha direção, ao mesmo tempo passando a língua nos lábios<br />

até a ponta se projetar e sacudir para mim. Foi um gesto lascivo tão flagrante<br />

que senti meu estômago virar com repugnância. Afastei-me rapidamente e abri<br />

caminho até Erila, que já estava fora do ajuntamento, enquanto ouvia a sua<br />

gargalhada grosseira ressoando acima <strong>de</strong> minha cabeça.<br />

Ela estava tão irritada com a minha <strong>de</strong>sobediência que, por alguns<br />

instantes, não falou comigo. Mas quando a multidão diminuiu, parou e virou-se


para mim,<br />

— Está bem?<br />

— Sim — respondi, mas acho que era óbvio que não estava. — Sim.<br />

— Talvez agora entenda porque as senhoras, ao saírem, levam<br />

acompanhantes. Não se preocupe com ele. Seus dias estão contados. Quando o<br />

novo exército <strong>de</strong>scobri-lo, será enforcado tão rapidamente que suas duas<br />

serpentes ficarão flácidas <strong>de</strong> terror.<br />

Mas não consegui ficar indiferente nem à beleza <strong>de</strong> seu corpo nem à<br />

verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas observações sobre mim.<br />

— Erila? — parei-a <strong>de</strong> novo.<br />

— O que é?<br />

— Sou mesmo tão feia que ele me reconheceu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> todos esses anos?<br />

Ela fungou e me puxou, abraçando-me forte.<br />

— Ah, não foi <strong>de</strong> sua feiúra que ele se lembrou. Foi <strong>de</strong> sua coragem. Que<br />

Deus nos proteja, isso ainda a machucará mais do que sua aparência jamais<br />

conseguirá.<br />

E assim, ela me conduziu pelas ruas estreitas, até em casa.<br />

Mas nessa noite não consegui tirar sua pele da minha cabeça. Dormi mal, os<br />

músculos da serpente comprimindo meus sonhos em pesa<strong>de</strong>los, até acordar<br />

transpirando, lutando para tirá-la do meu corpo. A camisola estava ensopada e<br />

fria sobre minha pele. Tirei-a e fui cambaleando até a arca, pegar outra. Na<br />

pouca luz vinda das tochas lá fora, percebi o reflexo da parte <strong>de</strong> cima <strong>de</strong> meu<br />

torso no pequeno espelho polido na pare<strong>de</strong> almofadada. A visão da minha nu<strong>de</strong>z<br />

manteve-me ali por um momento. O meu rosto estava tomado por sombras<br />

pesadas, e minhas curvas capturavam o escuro sob meus seios. Pensei em minha<br />

irmã no dia <strong>de</strong> seu casamento, brilhando com a confiança <strong>de</strong> sua beleza e, <strong>de</strong><br />

repente, não suportei o contraste. O charlatão tinha razão. Não havia nada em<br />

mim que <strong>de</strong>leitasse o olhar. Eu era tão feia que os homens se lembravam <strong>de</strong> mim<br />

só por minha feiúra. Era tão feia que até mesmo meu marido me achava<br />

repugnante. Lembro-me da <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Eva feita pelo pintor, quando ela foge<br />

do Paraíso, gritando nas t<strong>rev</strong>as, envergonhada <strong>de</strong> sua própria nu<strong>de</strong>z. Ela também<br />

tinha sido cortejada por uma serpente, sua língua bifurcada perfurando sua<br />

inocência enquanto seus anéis extinguiam a vida <strong>de</strong> sua presa. Voltei para a<br />

cama e me enrosquei. Depois <strong>de</strong> algum tempo, meu <strong>de</strong>do <strong>de</strong>sviou para a minha<br />

fenda, buscando conforto em meu corpo, que ninguém mais daria. Mas agora a<br />

noite estava plena <strong>de</strong> pecado e meus <strong>de</strong>dos recearam o prazer que podiam<br />

<strong>de</strong>scobrir e chorei até adormecer com a minha solidão como companhia.


Vinte e Cinco<br />

AO LONGO DAS SEMANAS SEGUINTES, DEUS e o Diabo acertaram<br />

contas nas ruas da cida<strong>de</strong>. Savonarola pregou diariamente, enquanto gangues <strong>de</strong><br />

rapazes apareciam como guerreiros da nova igreja, castigando os florentinos por<br />

sua falta <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> e mandando as mulheres para casa, or<strong>de</strong>nando que se<br />

conservassem recatadas.<br />

Minha irmã Plautilla, por outro lado, que sempre tivera o talento das<br />

aparências, escolheu esse momento para se superar. Erila acordou-me ao<br />

amanhecer na manhã <strong>de</strong> Natal, com a notícia.<br />

— Chegou um mensageiro da casa <strong>de</strong> sua mãe. Sua irmã <strong>de</strong>u à luz uma<br />

menina, esta noite. Sua mãe está com ela e nos visitará ao voltar para casa.<br />

Minha mãe. Não a via <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o meu casamento seis semanas antes. Apesar<br />

<strong>de</strong> ter havido momentos em minha vida em que o seu amor tinha sido estrito e<br />

implacável, não existia ninguém mais que percebesse tão bem minha<br />

perversida<strong>de</strong> e cuidasse tanto <strong>de</strong> mim, apesar ou, até mesmo, por causa disso.<br />

Mas agora, essa mesma mulher tinha um passado que a ligava a meu marido e<br />

um filho que tramara a ruína <strong>de</strong> sua própria irmã. Quando ela chegou, nessa<br />

tar<strong>de</strong>, eu me sentia, <strong>de</strong> certa maneira, com receio <strong>de</strong> vê-la. A minha fragilida<strong>de</strong><br />

não era auxiliada pelo fato <strong>de</strong> meu marido ter partido na noite anterior e ainda<br />

não ter retornado.<br />

Recebi-a na sala <strong>de</strong> estar, como faria uma boa esposa, embora a sala<br />

parecesse fria e sem amor em comparação com a que ela mobiliara com tanta<br />

graça. Levantei-me quando ela entrou e nos abraçamos. Depois que nos<br />

sentamos, examinou-me com seu olho <strong>de</strong> lince.<br />

— Sua irmã manda um beijo. Está prosa como um pavão e com excelente<br />

ânimo. O bebê também está com boa voz.<br />

— Graças a Deus — eu disse.<br />

— De fato. E você, Alessandra? Parece bem.<br />

— Estou.<br />

— E seu marido?<br />

— Também está bem.<br />

— Sinto não vê-lo.<br />

— Sim... Mas ele <strong>de</strong>ve chegar logo.<br />

Ela fez uma pausa.<br />

— Então, as coisas entre vocês estão...<br />

— Magníficas — completei com firmeza. Observei-a registrar a<br />

interrupção e tentar <strong>de</strong> novo. — A casa é muito silenciosa. Como passa o


tempo?<br />

— Rezo — respondi. — Como você sugeriu. E para respon<strong>de</strong>r à sua<br />

próxima pergunta, ainda não estou grávida.<br />

Ela sorriu para a minha ingenuida<strong>de</strong>.<br />

— Bem, isso não me preocupa. Sua irmã foi mais rápida do que muitas,<br />

em relação a isso.<br />

— O bebê saiu fácil?<br />

— Mais fácil do que você — respon<strong>de</strong>u gentilmente, e a referência ao<br />

meu nascimento foi, eu sei, uma tentativa <strong>de</strong> me abrandar em relação a ela. Mas<br />

não surtiu efeito.<br />

— Maurizio será um homem rico, hoje.<br />

— De fato. Se bem que, sem dúvida, ele preferiria um menino. — Ainda<br />

assim. Apostou 400 florins em uma menina. Nenhum her<strong>de</strong>iro, mas um bom<br />

começo para um dote. Vou falar com Gristoforo para fazer o mesmo. Quando<br />

chegar a minha hora.<br />

E fiquei satisfeita comigo mesma por essas palavras, pois soaram muito<br />

próximas da maneira como uma esposa falaria.<br />

Minha mãe olhou fixo para mim.<br />

— Alessandra?<br />

— Sim — disse eu animada.<br />

— Está tudo bem, minha querida?<br />

— É claro. Não precisa mais se preocupar comigo. Estou casada, não se<br />

esqueça.<br />

Ela fez uma pausa. Ela queria dizer mais, mas percebi que ficara<br />

<strong>de</strong>sconcertada com essa jovem frágil, senhora <strong>de</strong> si, que estava sentada à sua<br />

frente. Deixei o silêncio aumentar.<br />

— Por quanto tempo ficou na corte, mãe?<br />

— O quê?<br />

— Meu marido compartilhou suas lembranças do tempo <strong>de</strong> Lorenzo, o<br />

Magnífico. Contou como toda a corte tecia louvores à sua beleza e sagacida<strong>de</strong>.<br />

Acho que se a tivesse agredido fisicamente, ela não teria se surpreendido<br />

tanto. Certamente nunca a vira esforçar-se <strong>de</strong>ssa maneira para encontrar as<br />

palavras certas.<br />

— Eu... não... Nunca vivi na corte. Simplesmente visitei... algumas<br />

vezes... quando era jovem. Meu irmão me levava. Mas...<br />

— Então conhecia meu marido?<br />

— Não. Não... quer dizer, se ele estivesse lá, talvez o tivesse visto, mas<br />

não o conheci. Eu... tudo isso foi há muito tempo.<br />

— Ainda assim, me admira que nunca tenha falado nisso. Logo você que<br />

sempre se mostrou tão entusiasmada para que apreciássemos a história. Achou


que não nos interessaria saber?<br />

— Foi há muito tempo — repetiu. — Eu era muito jovem... não muito<br />

mais velha do que você agora.<br />

Exceto nesse exato momento, em que me senti realmente muito velha.<br />

— Meu pai também estava na corte? Foi assim que o conheceu? — Pois<br />

me parecia claro que se meu pai mantivesse relações sociais com gente tão<br />

importante, nós, como seus filhos, nunca pararíamos <strong>de</strong> escutar a história.<br />

Não respon<strong>de</strong>u, e percebi uma mudança em sua voz, enquanto se<br />

recompunha.<br />

— O nosso casamento aconteceu <strong>de</strong>pois. Sabe, Alessandra, embora a sua<br />

paixão pelo passado seja admirável, acho que <strong>de</strong>veríamos falar sobre o presente<br />

— interrompeu-se. — Tem <strong>de</strong> saber que seu pai não está bem.<br />

— Não está bem? Como?<br />

— Está... sob gran<strong>de</strong> tensão. A invasão e as mudanças que aconteceram<br />

em Florença o afetaram muito.<br />

— Pensei que tivesse feito bons negócios com isso. Pelo que soube, a<br />

única coisa que os franceses estavam dispostos a pagar era por nossos tecidos.<br />

— Sim. Só que seu pai recusou-se a ven<strong>de</strong>r para eles. — E ao ouvir isso,<br />

amei-o ainda mais. — Receio que sua recusa o marque como um homem da<br />

oposição. Espero que isso não nos cause sofrimento no futuro.<br />

— Mas ele <strong>de</strong>ve saber que não será mais chamado à Signoria. O nosso<br />

gran<strong>de</strong> salão do governo ficará, a partir <strong>de</strong> agora, repleto <strong>de</strong> Simulados — eu<br />

disse usando a expressão para os seguidores <strong>de</strong> Savonarola. Ela pareceu<br />

alarmada. — Não se preocupe. Não uso essas palavras em público. Meu marido<br />

mantém-me informada das mudanças na cida<strong>de</strong>. Como você, fiquei sabendo das<br />

novas leis: contra o jogo e a fornicação — fiz uma pausa. — Contra a sodomia.<br />

Mais uma vez minhas palavras a <strong>de</strong>ixaram sem fôlego. Pu<strong>de</strong> perceber<br />

isso. O silêncio entre nós se a<strong>de</strong>nsou. Não podia ser. Minha própria mãe teria<br />

<strong>de</strong>ixado acontecer algo assim...<br />

— Sodomia — repeti. — Um pecado tão grave que só recentemente<br />

compreendi o seu significado. Mas acho que minha educação nesses assuntos foi<br />

um tanto <strong>de</strong>ficiente.<br />

— Bem, isso não é algo que uma boa família precise notar — disse ela, e<br />

agora se mostrava tão frágil quanto eu. Nessas palavras, a enormida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua<br />

traição ficou clara para mim e, apesar <strong>de</strong> mal acreditar, senti tanta raiva que<br />

ficou difícil permanecer na mesma sala que ela. Levantei-me, dando a <strong>de</strong>sculpa<br />

<strong>de</strong> que tinha trabalho a fazer. Mas ela não se mexeu.<br />

— Alessandra — disse ela.<br />

Olhei para ela tranqüilamente.<br />

— Minha criança querida, se está infeliz...


— Infeliz? Por quê? O que po<strong>de</strong>ria haver no meu casamento que me<br />

fizesse infeliz? — continuei olhando para ela.<br />

Ela levantou-se, <strong>de</strong>rrotada por minha agressão.<br />

— Seu pai gostaria que você aparecesse. Ele anda muito abatido por causa<br />

dos negócios. O nosso estado não é o único que está tumultuado, e o excesso <strong>de</strong><br />

política é ruim para o comércio. Acho que o distrairia um pouco ser visitado por<br />

sua filha preferida — disse ela <strong>de</strong>licadamente. — Assim como a mim.<br />

— Mesmo? Pensei que a casa estivesse cheia dos meus irmãos, agora que<br />

estamos ficando mais severos com os <strong>de</strong>satinos dos rapazes.<br />

— Bem, é verda<strong>de</strong> que Luca mudou suas maneiras — disse ela. — Na<br />

verda<strong>de</strong>, receio que Savonarola tenha conseguido um novo a<strong>de</strong>pto em seu irmão.<br />

Tem <strong>de</strong> estar ciente disso ao lidar com ele. E Tomaso... — interrompeu-se e<br />

percebi um certo tremor em seu corpo. — Bem, não temos visto muito Tomaso<br />

recentemente. Acho que isso é outra coisa que preocupa seu pai. — E ela baixou<br />

os olhos.<br />

Ela já estava à porta e eu continuava sem dizer nada, quando se virou.<br />

— Ah, ia me esquecendo. Trouxe-lhe algo. Do pintor.<br />

— Do pintor? — E senti a dor familiar começar e se enroscar em meu<br />

estômago. Se bem que tinha havido tanto drama em nossa vida que eu não<br />

pensava nele há algum tempo.<br />

— Sim — tirou algo <strong>de</strong> sua bolsa: um pacote embrulhado em musselina<br />

branca. — Deu-me isto esta manhã. É o seu presente <strong>de</strong> casamento. Acho que<br />

ficou aborrecido por não o termos contratado para a arca, embora seu pai tenha<br />

lhe explicado que não houve tempo para isso.<br />

— Como ele está?<br />

Deu <strong>de</strong> ombros.<br />

— Começou os afrescos. Mas só po<strong>de</strong>remos vê-los quando estiverem<br />

prontos. Ele trabalha <strong>de</strong> dia com ajudantes e, à noite, sozinho. Só sai <strong>de</strong> casa<br />

para ir à missa. É um rapaz estranho. Eu não lhe disse mais <strong>de</strong> cinqüenta<br />

palavras em todo esse tempo que está conosco. Acho que ele se ajusta mais ao<br />

seu mosteiro do que à nossa cida<strong>de</strong> mundana. Mas seu pai continua a acreditar<br />

nele. Esperemos que seu afrescos sejam tão bons quanto a sua fé.<br />

Interrompeu-se. Talvez esperasse ter abrandado meu silêncio com a<br />

promessa <strong>de</strong> mais novida<strong>de</strong>s. Mas continuei sem fazer nada que a ajudasse e,<br />

portanto, me abraçou e saiu.<br />

A sala ficou mais fria com a minha nova solidão. Não me permiti pensar<br />

no que acabara <strong>de</strong> saber, porque senão certamente cairia em um abismo <strong>de</strong> dor<br />

do qual nunca mais emergiria. Em vez disso, concentrei-me no presente do<br />

pintor.<br />

Desembrulhei-o com cuidado. Sob a musselina, pintado a tempera sobre


um painel <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, mais ou menos do tamanho <strong>de</strong> uma Bíblia gran<strong>de</strong>, estava<br />

um retrato <strong>de</strong> Nossa Senhora. A cena era vibrante com uma paleta do sol<br />

florentino e o <strong>de</strong>talhe no segundo plano mostrava elementos da cida<strong>de</strong>: o gran<strong>de</strong><br />

domo, as perspectivas complexas <strong>de</strong> suas loggias e praças e uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

igrejas. No centro, estava a Virgem, suas mãos (mãos tão bem pintadas)<br />

dobradas <strong>de</strong>licadamente em seu colo e seu halo dourado brilhando para o<br />

mundo, <strong>de</strong>finindo-a como a mãe <strong>de</strong> Deus.<br />

Isso era claro. Menos claro era o momento <strong>de</strong> sua vida que ele escolhera<br />

para captá-la. Sua juventu<strong>de</strong> era primordial, e a maneira como olhava<br />

audaciosamente para além do olhar do observador <strong>de</strong>ixava claro que estava<br />

olhando para alguém. No entanto, não havia nenhum sinal <strong>de</strong> um anjo ansioso<br />

trazendo-lhe boas-novas e nenhuma dança ou bebê dormindo trazendo-lhe<br />

alegria. Seu rosto era comprido e cheio, cheio <strong>de</strong>mais para ser bonito, e sua pele<br />

nada tinha da pali<strong>de</strong>z consi<strong>de</strong>rada elegante, mas apesar <strong>de</strong> sua aparência, havia<br />

algo nela, uma gravida<strong>de</strong>, uma certa intensida<strong>de</strong>, que nos fazia olhá-la duas<br />

vezes.<br />

Ao examiná-lo <strong>de</strong> novo, <strong>rev</strong>elou-se mais uma coisa. Maria era menos uma<br />

suplicante do que uma contestadora: havia questionamento em seus olhos, como<br />

se ainda não compreen<strong>de</strong>sse satisfatoriamente ou aceitasse tudo o que estava<br />

sendo exigido <strong>de</strong>la. E que sem compreen<strong>de</strong>r, era possível que optasse por não<br />

obe<strong>de</strong>cer.<br />

Em resumo, havia uma espécie <strong>de</strong> rebelião nela, o que nunca eu vira em<br />

uma Madona antes. Mas apesar <strong>de</strong> sua transgressão, eu a conhecia bem. Porque<br />

seu rosto era o meu.


Vinte e Seis<br />

FIQUEI ACORDADA ATÉ TARDE, MINHA MENTE entre a culpa <strong>de</strong> minha<br />

mãe e a transgressão do pintor. Como ela tinha sido capaz <strong>de</strong> tal traição? No que<br />

ele estaria pensando ao criar essa obra? Fiquei à janela <strong>de</strong> meu quarto olhando a<br />

cida<strong>de</strong> que me era mais proibida agora do que quando era virgem na casa <strong>de</strong><br />

meu pai e me perguntei sobre a jornada da minha vida que havia me levado <strong>de</strong><br />

tanta esperança para um tamanho <strong>de</strong>sespero. Ah sentada percebi os primeiros<br />

flocos <strong>de</strong> neve precipitando-se do escuro. E como era raro nevar na cida<strong>de</strong>,<br />

fiquei, mesmo contra a vonta<strong>de</strong>, observando <strong>de</strong>slumbrada. Foi assim que assisti<br />

à chegada da gran<strong>de</strong> nevasca.<br />

A tempesta<strong>de</strong> grassou por duas noites e dois dias, a neve carregada pelo<br />

vento era tão espessa que à luz do dia era difícil até mesmo enxergar o outro<br />

lado da rua. Quando, finalmente, cessou, a cida<strong>de</strong> estava transformada: as ruas<br />

mais parecidas com as linhas <strong>de</strong> contorno da região rural, com <strong>de</strong>pressões e<br />

dunas que soterraram várias casas até o primeiro andar, e a chuva tinha-se<br />

transformado, <strong>de</strong> tal forma, em gelo pen<strong>de</strong>ndo da beirada dos telhados, que<br />

Florença parecia ter sido pendurada com cortinas <strong>de</strong> cristais em cascatas. Era tão<br />

bonito que quase po<strong>de</strong>ria ter sido obra <strong>de</strong> Deus; uma visão para celebrar a nossa<br />

nova pureza. Embora outros dissessem ser um sinal <strong>de</strong> que Nosso Senhor tinhase<br />

unido a Savonarola e, não conseguindo extinguir o pecado com calor, Ele,<br />

agora, tentava eliminá-lo com o frio.<br />

O clima tornou-se a nossa vida por algum tempo. O rio congelou o<br />

suficiente para as crianças construírem fogueiras em sua superfície e os balseiros<br />

foram os primeiros a passar fome quando os florentinos apren<strong>de</strong>ram a andar<br />

sobre a água. Anos antes, quando eu era pequena e houve uma tempesta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

neve violenta o bastante para cobrir a cida<strong>de</strong>, as pessoas tinham ido para a rua<br />

fazer esculturas <strong>de</strong> neve e um dos aprendizes da escola <strong>de</strong> escultura <strong>de</strong> Lorenzo<br />

tinha erigido um leão como símbolo <strong>de</strong> Florença no jardim do Palácio Medici.<br />

Era tão vivo que Lorenzo abriu os portões para que os cidadãos o vissem. Mas,<br />

agora, não houve tais preciosismos. No fim do dia, quando escurecia, a cida<strong>de</strong> ia<br />

ficando tão silenciosa que a impressão era a <strong>de</strong> que as pessoas tinham congelado<br />

na paisagem. A casa <strong>de</strong> meu marido era cheia <strong>de</strong> correntes <strong>de</strong> ar, o que fazia<br />

parecer que estávamos na rua, embora eu saiba que isso é uma coisa idiota a se<br />

dizer, pois algumas pessoas realmente morreram em suas casas, enquanto nós<br />

pelo menos tínhamos lareiras que queimavam à frente das nossas pernas ao<br />

mesmo tempo que <strong>de</strong>ixavam nossas costas gélidas.<br />

Na segunda semana, a neve tornou o gelo preto e ficou tão perigosa que


ninguém saía <strong>de</strong> casa a não ser que fosse estritamente necessário. A t<strong>rev</strong>a do<br />

inverno começou a filtrar-se em nossas almas. Parecia que duraria para sempre.<br />

Os dias quase não tinham luz, e ainda assim eram terrivelmente longos, e a<br />

impaciência crescente <strong>de</strong> meu marido por estar separado <strong>de</strong> meu irmão era tão<br />

flagrante que passou a dominar a sua poli<strong>de</strong>z e ele começou a se afastar <strong>de</strong> mim,<br />

ficando em seu gabinete até altas horas da noite. A sua ausência me aborreceu<br />

mais do que eu gostaria <strong>de</strong> admitir. Então, certa manha, apesar do tempo, saiu <strong>de</strong><br />

casa e não retornou à noite.<br />

Mas se ele podia sair, eu também podia. Deixando um bilhete para Erila,<br />

no dia seguinte saí sozinha para visitar minha irmã.<br />

Nas ruas, o ar estava tão frio que, ao respirar, tínhamos que inspirar pouco<br />

ar, para que não cauterizasse nossas narinas. As pessoas andavam <strong>de</strong>vagar, toda<br />

a atenção concentrada em on<strong>de</strong> se punha os pés. Alguns carregavam sacos <strong>de</strong><br />

terra — terra e arenito — que espalhavam como trigo à sua frente. O sal teria<br />

adiantado mais, porém era uma mercadoria valiosa <strong>de</strong>mais para ser <strong>de</strong>sperdiçada<br />

nas pisadas <strong>de</strong> alguém. Eu não tinha nenhum dos dois e, conseqüentemente, meu<br />

caminho era traiçoeiro, e apesar <strong>de</strong> a distância entre as duas casas não ser<br />

gran<strong>de</strong>, minhas saias se rasgaram e ficaram pretas antes <strong>de</strong> eu percorrer cem<br />

metros.<br />

Plautilla recebeu-me espantada, mas com os braços abertos, fazendo-me<br />

sentar do lado do fogo e falando sem parar da ousadia e tolice <strong>de</strong> sua precipitada<br />

irmã mais nova. Sua casa era tão diferente da minha. Era menor e construída<br />

mais recentemente, <strong>de</strong> modo que havia menos rachaduras que <strong>de</strong>ixassem o frio<br />

entrar, mas havia também mais lareiras e aquela agitação incessante <strong>de</strong> família,<br />

que me fazia lembrar tão afetuosamente da minha infância. Em contraste com<br />

meu nariz em carne viva e minha cara contraída, ela parecia confortável e<br />

aquecida, se bem que, tem-se <strong>de</strong> admitir, parecia quase tão gorda sem o bebê<br />

quanto com ele.<br />

Apesar do prodígio <strong>de</strong> seu senso <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>, a nativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> minha<br />

irmã tinha sido claramente muito menos humil<strong>de</strong> do que a <strong>de</strong> Nossa Senhora.<br />

Em sua <strong>de</strong>fesa, podia-se argumentar que, como seu confinamento havia<br />

coincidido com a invasão, Plautilla não aparecia em público há algum tempo e<br />

ninguém a havia informado como as coisas tinham mudado. Não obstante, se a<br />

Polícia Suntuária resolvesse fazer uma visita ao quarto do seu bebê, retirariam a<br />

maior parte das roupas e mobília e a jogariam nas ruas. Felizmente não<br />

havíamos chegado a isso. Ainda.<br />

Deixou-me segurar minha pequena sobrinha chorona e enrugada que,<br />

obedientemente, berrou em meus braços até a ama-<strong>de</strong>-leite pegá-la e fixá-la em<br />

seu peito, on<strong>de</strong> fartou-se como um cor<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong> modo que dava para ouvi-la<br />

sugando e engolindo avidamente, enquanto Plautilla ficava em um silêncio


echonchudo e sereno, repleto <strong>de</strong> seu triunfo e mamilos macios.<br />

— Agora entendo que as mulheres são feitas para isso — falou com um<br />

suspiro. — Se bem que gostaria <strong>de</strong> que Eva houvesse nos poupado um pouco da<br />

agonia do parto. Não imagina a dor. Acho que é pior do que a estrapada. Deus<br />

<strong>de</strong>monstrou gran<strong>de</strong> misericórdia por Nossa Senhora ao aliviá-la <strong>de</strong>sse fardo. —<br />

Pôs outro doce em sua boca. — Mas olhe só para ela. O tecido creme <strong>de</strong> papai<br />

não fez os cueiros mais lindos? Olhe bem para o que você <strong>de</strong>ve estar ansiando<br />

por viver. Ela é uma criação muito maior do que todas as suas garatujas, não<br />

acha?<br />

E concor<strong>de</strong>i, embora Plautilla só a tivesse carregado três ou quatro vezes<br />

durante a minha visita e passado o resto dos dias organizando a bagagem que<br />

acompanharia o bebê e a ama ao campo, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma semana, não percebi que<br />

diferença significativa ela faria em sua vida. Quanto a Maurizio, bem, pelo que<br />

pu<strong>de</strong> perceber nos b<strong>rev</strong>es momentos em que estivemos juntos, pareceu-me mais<br />

aborrecido do que qualquer outra coisa com toda aquela história. Mas, enfim, os<br />

homens do estado tratavam <strong>de</strong> assuntos mais importantes do que bebês. E ela<br />

não passava <strong>de</strong> uma menina.<br />

— Mamãe disse que você estava bem, mas cada vez mais mo<strong>de</strong>sta. Devo<br />

dizer que parece um pouco sem trato.<br />

— Sim, sem trato — disse eu. — Mas o mundo está ficando cada vez<br />

mais sem trato. Estou surpresa que não tenham lhe contado.<br />

— Oh, por que eu <strong>de</strong>veria sair <strong>de</strong> casa? Tenho tudo <strong>de</strong> que preciso aqui.<br />

— E <strong>de</strong>pois que ela se for? O que vai fazer então?<br />

— Vou arrumar as coisas e, quando estiver <strong>de</strong>scansada, faremos outro —<br />

disse ela com um sorriso pudico. — Maurizio não vai <strong>de</strong>scansar enquanto não<br />

tiver um bando <strong>de</strong> meninos para conduzir a nova República.<br />

— Boa sorte para ele — disse eu. — Se os tiver rapidamente, po<strong>de</strong>rão se<br />

tornar os novos guerreiros <strong>de</strong> Deus.<br />

— Sim. E por falar em guerreiros, viu Luca recentemente?<br />

Sacudi a cabeça.<br />

— Bem, vou dizer uma coisa. Ele está mudado. Veio ver Illuminata há<br />

dois dias. Não adora este nome? Como uma nova luz no céu. Ele disse que era<br />

um nome a<strong>de</strong>quado ao nosso tempo e essa bênção era o fruto do meu útero. —<br />

Ela riu. — Imagine só o nosso Luca usando essa linguagem. Mas a sua<br />

aparência era horrível. Seu nariz estava azul do frio da patrulha das ruas. Teve o<br />

cabelo todo cortado, como o <strong>de</strong> um monge. Mas ouvi dizer que há, entre os mais<br />

jovens, alguns que se parecem realmente com anjos.<br />

Mas aposto que espicaçam como Diabo, pensei, lembrando-me do grupo<br />

na praça. Lancei um olhar <strong>de</strong> relance para a ama, que tinha os olhos fixos em<br />

Illuminata que, por sua vez, a olhava <strong>de</strong> volta sem nem mesmo piscar. Seria ela


também uma partidária do novo estado? Era difícil saber o que se podia dizer na<br />

frente <strong>de</strong> quem nesses dias.<br />

— Não se preocupe — sussurrou Plautilla, percebendo meu olhar. — Ela<br />

não é <strong>de</strong> Florença. Mal enten<strong>de</strong> o que dizemos.<br />

Mas percebi um pequeno lampejo em seus olhos encapuzados que me fez<br />

acreditar no contrário.<br />

— Adivinhe o que me trouxe <strong>de</strong> presente <strong>de</strong> parto. Um livro com os<br />

sermões <strong>de</strong> Savonarola. Imagine só! Direto da impressora. Estão sendo<br />

impressos agora. Três novas tipografias foram abertas na Via <strong>de</strong>i Librai nos<br />

últimos meses, ele disse, todas <strong>de</strong>dicadas às novas palavras. Lembra-se <strong>de</strong><br />

quando mamãe dizia que era vulgar comprar livros produzidos por meios<br />

mecânicos? Que a meta<strong>de</strong> da beleza das palavras estava... — gaguejou.<br />

— Nos traços das penas que as copiavam — completei. — Porque os<br />

copistas acrescentavam seu amor e <strong>de</strong>voção ao texto original.<br />

— Oh. Você sempre se lembra <strong>de</strong> tudo. Bem, não é mais assim. Até<br />

mesmo cavalheiros hoje imprimem livros. Soube que é a moda. Imagine só.<br />

Assim que dizem as coisas, elas estão em nossas mãos. Aqueles que não sabem<br />

ler po<strong>de</strong>m ter alguém que os leia para eles. Não admira que tenha seguidores tão<br />

<strong>de</strong>votos.<br />

Embora ela pu<strong>de</strong>sse ser facilmente distraída pelas agitações da moda,<br />

minha irmã não era idiota, e acho que se tivesse estado em uma igreja escutando<br />

a paixão <strong>de</strong> suas palavras, também <strong>de</strong>veria ter sentido um certo medo, assim<br />

como admiração. Mas os prazeres do casamento e da maternida<strong>de</strong> estavam<br />

amolecendo seu cérebro.<br />

— Você tem razão — disse eu calmamente. — Ainda assim, se fosse<br />

você, esperaria algum tempo antes <strong>de</strong> lê-lo para Illuminata.<br />

Vi a ama <strong>de</strong>sviar o olhar ligeiramente, tirando o bebê do seio por um<br />

momento, <strong>de</strong> modo que seus gritos indignados interrompessem,<br />

momentaneamente, a conversa. Durante o resto <strong>de</strong> minha estada, não mencionei<br />

o assunto <strong>de</strong> novo.<br />

Quando cheguei em casa, alguns dias <strong>de</strong>pois, o gelo estava <strong>de</strong>rretendo.<br />

Na esquina <strong>de</strong> nossa rua, o <strong>de</strong>gelo tinha exposto o corpo <strong>de</strong> um cachorro<br />

semicongelado, sua barriga aberta e suas tripas negras <strong>rev</strong>ivendo enquanto as<br />

primeiras larvas <strong>de</strong> insetos sob<strong>rev</strong>iviam ao frio. Não po<strong>de</strong>ria dizer se o mau<br />

cheiro era <strong>de</strong> vida ou <strong>de</strong> morte. Minha casa também cheirava diferente. Como se<br />

um animal estranho a tivesse penetrado. Ou então, porque eu tinha localizado o<br />

cavalo <strong>de</strong> Tomaso amarrado do lado do <strong>de</strong> Cristoforo no pátio. Os dois<br />

brilhavam <strong>de</strong> suor, aguardando próximos um do outro, como companheiros, que


o cavalariço acabasse <strong>de</strong> escová-los. O garoto interrompeu sua tarefa para me<br />

cumprimentar com um rápido balançar da cabeça. Devolvi seu cumprimento<br />

também com um movimento da cabeça. Por que tinha tanta certeza <strong>de</strong> que ele já<br />

tratara assim dos dois animais muitas vezes antes?<br />

Erila veio ao meu encontro antes <strong>de</strong> eu chegar ao meu quarto. Esperei que<br />

ela me repreen<strong>de</strong>sse por minha ausência, mas, em vez disso, recebeu-me com<br />

uma alegria quase exagerada.<br />

— Como está sua irmã?<br />

— Gorducha — respondi. — Em mais <strong>de</strong> um sentido.<br />

— E o bebê?<br />

— É difícil dizer. Estava coberto <strong>de</strong> vômito <strong>de</strong> leite. Mas tinha voz. Acho<br />

que sob<strong>rev</strong>iverá.<br />

— Seu irmão está aqui. Tomaso. — E era minha imaginação ou ela estava<br />

me olhando intensamente?<br />

— Mesmo? — disse casualmente. — Quando ele chegou?<br />

— Um dia <strong>de</strong>pois que partiu — replicou ela, e sua casualida<strong>de</strong> estudada<br />

pareceu tão real quanto a minha. Então ela também sabia? Sempre soubera?<br />

Todo mundo sabia menos eu?<br />

— On<strong>de</strong> estão agora?<br />

— Acabaram <strong>de</strong> chegar <strong>de</strong> uma cavalgada. Eu... eu acho que estão na sala<br />

<strong>de</strong> estar.<br />

— Talvez você <strong>de</strong>vesse avisá-los <strong>de</strong> que cheguei. Não... não, pensando<br />

bem, irei avisá-los eu mesma. — Passei por ela e subi rapidamente a escada<br />

antes <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a coragem, sentindo seus olhos fixos às minhas costas. No dia<br />

seguinte à minha partida. O <strong>de</strong>sejo patente <strong>de</strong> meu marido fez com que me<br />

envergonhasse <strong>de</strong>le. E <strong>de</strong> mim mesma.<br />

Empurrei a porta calmamente. Tinham se instalado confortavelmente. A<br />

mesa do jantar ainda estava posta, com um bom vinho aberto e o ar pesado com<br />

o cheiro dos condimentos. Parecia que a cozinha os tinha tratado <strong>de</strong> maneira<br />

esplêndida. Estavam em pé diante da grelha aberta, perto do fogo e próximos um<br />

do outro, embora não se tocando. Para um olho <strong>de</strong>satento, seriam dois amigos<br />

partilhando o calor do fogo, mas tudo que consegui sentir foi a força entre eles,<br />

saltando como a faísca <strong>de</strong> energia entre dois pedaços <strong>de</strong> lenha queimando.<br />

Tomaso, agora, estava vestido menos ostentosamente, claramente<br />

preocupado com as novas leis, embora me parecesse que seu rosto bonito<br />

estivesse ficando um tanto gordo. Estava para completar vinte anos. Não<br />

exatamente uma ida<strong>de</strong> adulta, mas ida<strong>de</strong> bastante para lhe garantir punições<br />

mais severas. Ontem mesmo, Plautilla tinha contado histórias <strong>de</strong> como, em<br />

Veneza, homens mais jovens con<strong>de</strong>nados por sodomia tinham, regularmente,<br />

seus narizes cortados: um castigo <strong>de</strong> prostitutas, condizente com seu status


afeminado e arquitetado para arruinar sua vaida<strong>de</strong>? Tinha-me feito compreen<strong>de</strong>r<br />

o significado da mutilação do rapaz na escada do Batistério, no dia do meu<br />

casamento. Em todos os meus anos <strong>de</strong> conflito com Tomaso, nunca nutrira<br />

pensamentos tão cruéis em relação a ele, e me apavorou o fato <strong>de</strong> abrigá-los<br />

agora.<br />

Ele foi o primeiro a me ver, encontrando meus olhos por sobre o ombro <strong>de</strong><br />

meu marido. Tínhamos passado a vida atormentando-nos mutuamente: ele, a<br />

mula com o coice rápido, eu, o mosquito, criando meia dúzia <strong>de</strong> bolhas<br />

vermelhas em um golpe ou outro.<br />

— Olá, irmã — disse ele, e juro que seu triunfo tinha um quê <strong>de</strong> medo.<br />

— Olá, Tomaso. — E percebi que minha voz <strong>de</strong>via estar estranha, pois<br />

mal consegui ter fôlego para proferir seu nome direito.<br />

Meu marido virou-se imediatamente, afastando-se <strong>de</strong> seu amante e se<br />

dirigindo a mim no mesmo movimento maneiroso.<br />

— Minha querida. Bem-vinda <strong>de</strong> volta. Como está sua irmã?<br />

— Gorducha. Em mais <strong>de</strong> um sentido. — Bendito po<strong>de</strong>r da memória.<br />

Seguiram-se alguns passos <strong>de</strong> dança confusos enquanto nos<br />

acomodávamos na sala, Cristoforo em uma ca<strong>de</strong>ira, eu em outra, e Tomaso em<br />

um pequeno canapé do lado: marido, mulher e cunhado, um grupo familiar<br />

encantador da elite mais culta <strong>de</strong> Florença.<br />

— E o bebê?<br />

— Muito bem. — Houve uma pausa. Qual era a gran<strong>de</strong> sabedoria <strong>de</strong><br />

Savonarola quando se tratava <strong>de</strong> mulheres? Depois da obediência, a maior<br />

virtu<strong>de</strong> da mulher é o silêncio. Mas para ser uma esposa <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, eu teria <strong>de</strong><br />

ter um marido <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.<br />

— Plautilla sente sua falta — disse eu a Tomaso. — Disse que é o único<br />

que não a visitou.<br />

Ele baixou os olhos.<br />

— Eu sei. Tenho andado ocupado.<br />

Retirando os enfeites supérfluos <strong>de</strong> suas roupas, com certeza, pensei, e<br />

percebi que usava o cinto <strong>de</strong> prata do casamento. Isso foi como um soco em meu<br />

estômago.<br />

— Mas estou surpresa com que saia tanto. Achava que a cida<strong>de</strong> seria<br />

menos atraente para você, nestes tempos.<br />

— Bem... — lançou um rápido olhar a Cristoforo. — Na verda<strong>de</strong>, eu<br />

não... — sua voz foi sumindo com um leve dar <strong>de</strong> ombros, obe<strong>de</strong>cendo às<br />

instruções que claramente recebera para ser indulgente comigo.<br />

O silêncio retornou. Olhei para o meu marido. Ele olhou para mim. Sorri,<br />

mas ele não <strong>de</strong>volveu o sorriso.<br />

— Tomaso contou como estão esvaziando os conventos — disse ele com


andura —, removendo toda arte que não se conforma à sua visão <strong>de</strong> <strong>de</strong>cência e<br />

todo ornamento ou veste suntuosa <strong>de</strong>mais.<br />

— O que ele vai fazer com toda a riqueza confiscada? — perguntei.<br />

— Ninguém sabe. Mas não ficarei surpreso se começarmos a sentir o<br />

cheiro <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira queimada <strong>de</strong>ntro em b<strong>rev</strong>e.<br />

— Ele não se at<strong>rev</strong>eria, certo?<br />

— Acho que não é uma questão <strong>de</strong> se at<strong>rev</strong>er. Ele po<strong>de</strong> fazer o que quiser<br />

contanto que tenha o povo do seu lado.<br />

— E o que resta da coleção dos Medici? — perguntei. — Ele a <strong>de</strong>struiria?<br />

— Não. E mais provável que sugira que seja leiloada.<br />

— Para <strong>de</strong>pois fazer um inventário <strong>de</strong> todos os que a adquiriram — eu<br />

disse mordazmente. — Você terá <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rar sua ânsia <strong>de</strong> adquirir mais beleza,<br />

Cristoforo, ou nos veremos excluídos por outras razões.<br />

Ele assentiu com um leve movimento da cabeça, reconhecendo a sensatez<br />

da minha lógica. Relanceei os olhos para Tomaso.<br />

— E qual é a sua opinião sobre a atitu<strong>de</strong> do nosso Fra<strong>de</strong> em relação ao<br />

Renascimento? — perguntei, ansiosa por expor a sua superficialida<strong>de</strong>. — Estou<br />

certa que a questão ocupa sua mente continuamente. — Ele lançou um olhar<br />

mal-humorado. Não me <strong>de</strong>spreze, pensei. Você feriu mais em toda a sua vida do<br />

que foi ferido.<br />

— Então — prossegui, <strong>de</strong>pois que ficou claro que não respon<strong>de</strong>ria —,<br />

soube que Luca a<strong>de</strong>riu aos guerreiros <strong>de</strong> Deus. Vamos torcer para que você não<br />

tenha feito um inimigo nele.<br />

— Luca? Não. Ele simplesmente gosta <strong>de</strong> exércitos. Nunca o viu nas ruas<br />

nos velhos tempos. Gosta <strong>de</strong> brigar. Se não vai combater franceses, vai combater<br />

pecadores. É aí que sente prazer.<br />

— Bem, todos nós o conseguimos em lugares diferentes — fiz uma pausa.<br />

— Mamãe disse que você nunca está em casa — <strong>de</strong> novo, fiz uma pausa. Dessa<br />

vez, mais longa. — Ela sabe sobre você, não sabe?<br />

Ele pareceu alarmado.<br />

— Não. Por que diz isso?<br />

— Porque é essa a impressão que ela dá. Talvez Luca tenha sentido a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> confessar em seu nome.<br />

— Já disse. Ele não me trairia — replicou soturnamente. — De qualquer<br />

maneira, ele não sabe o suficiente.<br />

Ao passo que eu sim, pensei. A temperatura entre nós estava se elevando.<br />

Podia senti-la como vômito na minha garganta. E podia sentir o meu marido, o<br />

nosso marido, ficando ansioso no outro lado da sala. Tomaso lançou-lhe outro<br />

olhar, <strong>de</strong>ssa vez mais óbvio, um olhar que <strong>de</strong>notava indolência e conspiração,<br />

suor e <strong>de</strong>sejo. Enquanto eu falava <strong>de</strong> bebês e cueiros, eles tinham ficado se


acarinhando na gloriosa segurança <strong>de</strong> minha ausência. Talvez essa fosse, agora,<br />

a minha casa, mas nesse momento eu era a intrusa. Isso me <strong>de</strong>ixou louca <strong>de</strong> dor.<br />

— Mas tem <strong>de</strong> admitir que há uma certa simetria: um filho vai para Deus<br />

enquanto o outro, para o Diabo. A sorte <strong>de</strong>les foi as filhas terem se casado.<br />

Como <strong>de</strong>vem ter ficado <strong>de</strong>liciados quando sugeriu o meu preten<strong>de</strong>nte, Tomaso<br />

— disse eu tranqüilamente, mas não menos perversamente.<br />

— Oh, e você, é claro, era tão inocente — disse ele, rápido como um ímã<br />

se pren<strong>de</strong>ndo no metal. — Talvez se eu tivesse tido uma irmãzinha mais doce, as<br />

coisas tivessem sido diferentes.<br />

— Ah — virei meu corpo <strong>de</strong> modo a ler os sinais <strong>de</strong> aviso que eu recebia<br />

<strong>de</strong> meu marido. — Então foi assim que aconteceu. Você nasceu uma alma pura<br />

pronta para voar a Deus e esta garota vil chegou e humilhou-o tanto, por você<br />

não conseguir dar-se ao trabalho <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r nada, que o fez se voltar contra<br />

todas as mulheres. Portanto ela colocou-o no caminho da sodomia.<br />

— Alessandra — a voz <strong>de</strong> Cristoforo atrás <strong>de</strong> mim soou calma. Quase não<br />

a ouvi.<br />

— Eu lhe disse que não ia adiantar — disse Tomaso, com rancor. — Ela<br />

não perdoa.<br />

Sacudi a cabeça.<br />

— Oh, acho que é mais culpado <strong>de</strong>sse pecado do que eu, senhor — disse<br />

eu friamente, e senti o controle me escapando. — Sabe que falamos <strong>de</strong> você,<br />

Cristoforo e eu? Ele não contou? Na verda<strong>de</strong>, com freqüência. Sobre como é<br />

bonito. E estúpido.<br />

Percebi meu marido levantar-se da ca<strong>de</strong>ira.<br />

— Alessandra — disse ele, <strong>de</strong>ssa vez mais severamente.<br />

Mas eu não podia parar agora. Era como se uma represa tivesse rebentado<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim.<br />

Virei-me para ele.<br />

— É claro que não usamos essas palavras exatamente, não é, Cristoforo?<br />

Mas cada vez que o faço pensar ou rir com algum comentário erudito ou uma<br />

observação <strong>de</strong> arte, em vez <strong>de</strong> com um gesto afetado ou um tremor dos cílios...<br />

cada vez que percebo seus olhos se iluminarem com o prazer <strong>de</strong> nossa conversa,<br />

e a sua mente se <strong>de</strong>svia por um momento <strong>de</strong> seu corpo... então, penso em como<br />

marquei uma pequena vitória. Se não para Deus, pelo menos, para a<br />

humanida<strong>de</strong>.<br />

Oh, mas eu não queria que fosse assim. Eu tinha imaginado isso tudo tão<br />

diferente: como eu seria amável e espirituosa, sorriria e renovaria a confiança e,<br />

assim, aos pouquinhos, os atrairia para uma conversa em que eu, tranqüila e<br />

sutilmente, exporia a vaida<strong>de</strong> frívola <strong>de</strong> meu irmão, enquanto observava os<br />

olhos <strong>de</strong> meu marido brilhar com um orgulho involuntário diante <strong>de</strong> minha


inteligência e humor.<br />

Mas não consegui. Porque, é claro, o ódio, ou talvez fosse amor, não era<br />

assim.<br />

Observei-os olharem para mim, um misto <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sdém em seus<br />

olhos, e, <strong>de</strong> repente, tudo escapou <strong>de</strong> mim: minha imprudência, minha coragem,<br />

minha confiança monstruosa, escorrendo do ferimento que, me dava conta<br />

agora, infligira a mim mesma. Acho que, nesse momento, eu até me uniria aos<br />

Simulados, se pu<strong>de</strong>ssem aliviar a dor.<br />

Levantei-me e senti que estava tremendo. Os olhos <strong>de</strong> meu marido<br />

estavam frios e ele me pareceu mais velho subitamente, ou talvez fosse<br />

simplesmente o contraste com o pleno <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> Tomaso.<br />

— Desculpe, meu marido — disse eu, olhando diretamente para ele. —<br />

Parece que me esqueci do meu lado <strong>de</strong> nosso trato. Perdoe-me. Vou para o meu<br />

quarto. Seja bem-vindo, irmão. Espero que goste <strong>de</strong> sua estada.<br />

Virei-me e caminhei para a porta. Cristoforo observou-me ir. Não me<br />

seguiu. Ele podia ter dito alguma coisa. Mas não disse. Quando fechei a porta,<br />

imaginei-os se unindo com um longo e doce suspiro, enlaçando-se e se fundindo<br />

como os ladrões e serpentes em Dante, <strong>de</strong> modo que eu não conseguisse mais<br />

distinguir meu irmão <strong>de</strong> meu marido. E causei a mim mesma mais mal com a<br />

ternura e violência da imagem.


Vinte e Sete<br />

ELA ABRIU A PORTA E FICOU no extremo do quarto, e até mesmo em<br />

minha histeria, percebi que estava com receio <strong>de</strong> entrar. O que me assustou<br />

ainda mais, pois nunca sentira medo <strong>de</strong> mim, nem mesmo quando eu era criança<br />

e agira da maneira mais mesquinha com ela.<br />

— Vá embora, Erila — gritei, enterrando a cabeça na coberta.<br />

Mas isso só fez com que se <strong>de</strong>cidisse. Atravessou o quarto e subiu na<br />

cama comigo, e pôs seus braços em volta <strong>de</strong> mim. Empurrei-a.<br />

— Vá embora.<br />

Ela ficou.<br />

— Você sabia. Todo mundo sabia e, ainda assim, você não me contou.<br />

— Não! — <strong>de</strong>ssa vez, agarrou-me até que eu olhasse para ela. — Não. Se<br />

tivesse sabido, a <strong>de</strong>ixaria fazer isso? Deixaria? É claro que não. Eu sabia que ele<br />

era libertino. Que fodia on<strong>de</strong> podia. Isso eu sabia. Mas os homens o enfiam em<br />

tudo que é tipo <strong>de</strong> buraco quando não há outra coisa disponível. Isso é comum, e<br />

sua mãe e eu erramos se a protegemos tanto a ponto <strong>de</strong> você não saber disso.<br />

Mas esses mesmos homens geralmente mudam <strong>de</strong> um para o outro em um piscar<br />

<strong>de</strong> olhos. Portanto, sim, fo<strong>de</strong>m um homem, se uma mulher não estiver<br />

disponível. E assim que é. Talvez não seja como o seu Deus mandou ser, mas é<br />

assim. — Havia algo na violência <strong>de</strong> sua linguagem que me fez sentir melhor.<br />

Ou, pelo menos, me fazer prestar atenção. — Mas, para a maioria, tudo isso<br />

acaba quando se casa. Os rapazes ressecam e as mulheres se ume<strong>de</strong>cem para<br />

eles. Ou, pelo menos, para os filhos. Por isso achei, talvez porque quisesse<br />

achar, que seria a mesma coisa com ele. E nesse caso, por que lhe contar? Só<br />

teria tornado essa primeira noite ainda pior.<br />

A primeira noite. Mulheres inteligentes não morrem disso. Mas não íamos<br />

discutir isso agora.<br />

— E Tomaso? — perguntei, reprimindo os soluços. — Sabia sobre ele?<br />

— Corriam rumores — falou com um suspiro. — Mas ele gosta <strong>de</strong> fazer<br />

troça. Podia ser tudo simplesmente parte <strong>de</strong> seus jogos. Talvez eu <strong>de</strong>vesse ter<br />

prestado mais atenção. Mas não os dois. Eu não sabia nada disso. Se houvesse<br />

comentários, eu certamente os teria ouvido, e não ouvi.<br />

— E minha mãe?<br />

— Oh, Deus nos perdoe, sua mãe não sabia.<br />

— Oh, ela sabia! Ela conheceu Cristoforo na corte, quando era jovem. Ele<br />

disse que a viu lá.<br />

— E daí? Ela era uma garota. Devia saber ainda menos <strong>de</strong>ssas coisas do


que você. Como pô<strong>de</strong> pensar uma coisa <strong>de</strong>ssas <strong>de</strong>la? Isso partiria seu coração.<br />

Em vez do <strong>de</strong>la, partira o meu.<br />

— Bem, se ela não sabia, agora sabe. Pelo menos sobre Tomaso. Vi isso<br />

em seu rosto.<br />

Erila sacudiu a cabeça.<br />

— Bem, muitos segredos <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser segredos. Parece que os<br />

Simulados são bons fuxiqueiros também. Pelo que an<strong>de</strong>i sabendo, até o<br />

confessionário <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser seguro. Provavelmente Luca, o novo anjo <strong>de</strong> Deus,<br />

falou alguma coisa.<br />

Era o fim <strong>de</strong> Tomaso como juiz <strong>de</strong> caráter.<br />

— Mas... se ninguém sabia... quer dizer, como você <strong>de</strong>scobriu?<br />

— Vivo aqui, não se esqueça — e fez um gesto para as pare<strong>de</strong>s.<br />

— Eles sabem?<br />

— É claro. Po<strong>de</strong> ter certeza <strong>de</strong> que se ele não pagasse tão bem, eles não<br />

seriam os únicos. Gostam <strong>de</strong>le. Apesar <strong>de</strong> seus pecados — fez uma pausa. — E<br />

você também. Isso é o pior <strong>de</strong> tudo.<br />

Ela ficou comigo até eu dormir, mas a dor tinha penetrado meus sonhos e,<br />

nessa noite, a serpente voltou a atormentar, O olhar malicioso do charlatão era a<br />

boca do Diabo, a serpente nascendo <strong>de</strong>la, colorida e sibilando uma raiva lasciva,<br />

me comprimindo e amaldiçoando até eu <strong>de</strong>spertar gritando, embora eu ache que<br />

a minha voz só ressoasse no meu sono, pois a casa estava mortalmente<br />

silenciosa à minha volta.<br />

O catre <strong>de</strong> Erila, do lado da porta, estava vazio. O escuro gritava em meus<br />

ouvidos. Quase dava para ouvir o farfalhar da serpente <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le. A minha<br />

pele estava úmida do suor do medo. Eu estava abandonada em uma casa <strong>de</strong><br />

pecado e o Diabo vinha me pegar. Forcei-me a levantar e acen<strong>de</strong>r a lamparina.<br />

As sombras se retraíram para os cantos do quarto, projetando-se ali como uma<br />

maré montante. Remexi com <strong>de</strong>sespero em minha arca, tirando, lá do fundo,<br />

meus <strong>de</strong>senhos, carvão e penas. A oração nos chega <strong>de</strong> várias formas. Se dormir<br />

trazia o Diabo, e os pecados <strong>de</strong> meu marido roubavam minhas palavras, então<br />

ficaria acordada e tentaria rezar a Deus por meio <strong>de</strong> minha pena, invocando a<br />

imagem <strong>de</strong> Nossa Senhora para que interce<strong>de</strong>sse por mim.<br />

Minhas mãos estavam tremendo quando peguei o fragmento <strong>de</strong> carvão.<br />

Fazia semanas que não o usava e suas pontas estavam rombudas. Encontrei a<br />

lâmina envolvida em um pedaço <strong>de</strong> pano <strong>de</strong> meu pai, e comecei a afiar a ponta,<br />

o som da raspagem sutilmente familiar. Mas a semi-escuridão e a umida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

meus <strong>de</strong>dos me <strong>de</strong>ixavam <strong>de</strong>sajeitada e a lâmina escorregou, <strong>de</strong> repente, fazendo<br />

um sulco comprido em minha mão, indo até a parte <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> meu braço.<br />

O sangue jorrou instantaneamente, brilhante contra a pele <strong>de</strong>scorada, uma<br />

vibração <strong>de</strong> cor que nenhuma tintura conseguiria captar. Olhei fascinada a linha


se espessar, espalhando-se por meu braço até começar a pingar no chão. Qual foi<br />

a história que Tomaso me contou certa vez? Sobre um louco na prisão que havia<br />

aberto as próprias veias para esc<strong>rev</strong>er o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> sua inocência nas<br />

pare<strong>de</strong>s, e <strong>de</strong> como, quando começou, não conseguiu parar, e o encontraram no<br />

dia seguinte, exangue, encarquilhado no canto, as pare<strong>de</strong>s cobertas com palavras<br />

pretas endurecidas. Que histórias eu po<strong>de</strong>ria contar agora, se encontrasse a cor<br />

certa para elas? O pensamento me fez estremecer. O sangue escorria mais rápido<br />

agora. Tinha <strong>de</strong> estancá-lo como Erila havia me ensinado, Mas ainda não.<br />

Peguei o pequeno prato <strong>de</strong> cerâmica usado para as ervas do ungüento, usado no<br />

cabelo no verão, e o pus <strong>de</strong>baixo do ferimento. As gotas fundiam-se em minha<br />

pele e caíam abundantes e encorpadas no prato. Não <strong>de</strong>morou para que<br />

formassem uma poça rasa. O líquido da vida (a tinta <strong>de</strong> Deus). Precioso <strong>de</strong>mais<br />

para o papel. A dor logo viria. Precisaria <strong>de</strong> pano para atar bem o ferimento.<br />

Mas o pano da lâmina era pequeno <strong>de</strong>mais e as outras peças <strong>de</strong> roupa muito<br />

preciosas. Tirei a camisola pela cabeça. Eu a usaria. Dali a pouco... Primeiro<br />

tenho <strong>de</strong> escolher o pincel; aquele do pêlo mais espesso <strong>de</strong> arminho, sua ponta<br />

grossa como raio <strong>de</strong> sol. Meu corpo encarou-me no vidro polido. Vi <strong>de</strong> novo a<br />

serpente se movendo nos braços tintados do charlatão, o sol <strong>de</strong>stacando seu<br />

colear. A luz da lamparina, minha pele estava perolada com o suor. Meu marido<br />

e meu irmão estariam entrelaçados até agora, sôfregos com a luxúria. Eu nunca<br />

sentiria o que eles estavam sentindo. Meu corpo permaneceria uma terra<br />

estrangeira para mim, não mapeada e intocada. Ninguém para acariciar a minha<br />

pele ou se maravilhar com a sua beleza. Molhei o pêlo <strong>de</strong> arminho no sangue e<br />

com um movimento floreado, tracei uma linha fria e úmida do meu ombro<br />

esquerdo até meus seios. A cor ficou como uma ban<strong>de</strong>ira escarlate em minha<br />

pele.<br />

— ...em nome <strong>de</strong> Deus...<br />

Ela me segurou imediatamente. O prato estilhaçou-se no chão, o sangue<br />

espalhando-se.<br />

— Largue-me!<br />

Ela arrancou o pincel da minha mão, segurando firme meu braço acima do<br />

cotovelo, erguendo-o com força, seus <strong>de</strong>dos como um torno apertando minha<br />

pele, fazendo pressão para <strong>de</strong>ter o fluxo.<br />

— Deixe-me, Erila — gritei <strong>de</strong> novo, e minha voz soou aguda e irada.<br />

— Não. Você ainda está nas garras do sonho. Fez com que se agitasse e<br />

gemesse tanto que fui buscar algo para você beber — e agarrou a camisola com<br />

a outra mão e se pôs a amarrá-la forte em volta do ferimento.<br />

— Ai! Está me machucando. Deixe-me em paz, já disse, estou bem.<br />

— Oh, sim, tão bem quanto uma louca.<br />

E tampouco parecia tão bem, pois nós duas podíamos escutar a minha


isada, embora houvesse muito pouco do que rir. Vi seus olhos se escancararem<br />

com o choque ao me puxar contra si, abraçando-me tão forte, que mal consegui<br />

respirar.<br />

— Estou bem, estou bem — repeti várias vezes enquanto a risada<br />

transformava-se em lágrimas e a dor do corte me penetrava como ferro <strong>de</strong><br />

marcar, oferecendo-me algo mais po<strong>de</strong>roso contra o que lutar do que<br />

autocomiseração.


Vinte e Oito<br />

DEPOIS DESSA NOITE, FIQUEI DOENTE por algum tempo. Erila estava tão<br />

preocupada que tirou do quarto minhas lâminas e pincéis, até que o <strong>de</strong>svario me<br />

abandonasse. Eu dormia muito e perdi o apetite por comida, assim como pela<br />

vida. O ferimento inchou e supurou e provocou febre. Erila cuidou <strong>de</strong> mim com<br />

ervas e cataplasmas até a pele tornar a se juntar e a cura ter início. Mas <strong>de</strong>ixou<br />

uma cicatriz que passou do vermelho raivoso a uma linha branca alteada que<br />

tenho ainda hoje. E durante o tempo todo, cuidou <strong>de</strong> mim com a ferocida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um cão do inferno nos portões, <strong>de</strong> modo que quando meu marido veio perguntar<br />

por minha saú<strong>de</strong>, mais tar<strong>de</strong> naquele primeiro dia, ouvi suas vozes altercarem no<br />

lado <strong>de</strong> fora do quarto, mas nem por um momento tive dúvida <strong>de</strong> qual dos dois<br />

venceria.<br />

Depois, quando minha calma reconquistou sua confiança e meu senso <strong>de</strong><br />

humor foi restaurado o bastante para ouvir seus gracejos, perguntei-lhe o que<br />

tinha acontecido entre eles e ela representou a cena, divertindo-me: ele, o<br />

velhaco, assumindo atitu<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>pois atormentando e ameaçando, ela a escrava<br />

negra, meta<strong>de</strong> bruxa, contando histórias <strong>de</strong> partir o coração e o súbito aborto<br />

sangrento.<br />

E era uma mentira tão <strong>de</strong>slavada que a achei quase agradável.<br />

— Não disse isso!<br />

— Por que não? Ele quer um filho. Está na hora <strong>de</strong> saber que não vai<br />

consegui-lo fo<strong>de</strong>ndo seu irmão.<br />

— Mas...<br />

— Nada <strong>de</strong> mas. Pelo que você me disse, ele fez um trato. Que o cumpra.<br />

Se gosta do cheiro <strong>de</strong> cu, o problema é <strong>de</strong>le. Tomaso é apenas a sua puta nas<br />

horas vagas. Você é a dona da casa. E é melhor ele tratá-la como tal.<br />

— O que ele disse?<br />

— Oh... que não fazia idéia, que lamentava e... blá, blá, blá. Eles nunca<br />

sabem o que dizer sobre isso. A primeira menção <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> sangue, e até<br />

mesmo os que gostam <strong>de</strong> boceta ficam constrangidos.<br />

— Erila! — ri. — A sua linguagem é pior do que a <strong>de</strong> Tomaso. Ela <strong>de</strong>u <strong>de</strong><br />

ombros.<br />

— Pelo menos, meu comportamento é melhor. Vocês, "madames", não<br />

sabem da missa a meta<strong>de</strong>. Deviam ouvir as coisas que dizem <strong>de</strong> vocês. Ou que<br />

se colocam sob suas aureolas, os olhos erguidos para o céu, ou que mastigam<br />

maçãs na cara <strong>de</strong>les e ostentam o pentelho. Nem mesmo sei se eles sabem qual<br />

preferem. O melhor que po<strong>de</strong> fazer é escolher quando mudar <strong>de</strong> fantasia. — Ela


sorriu largo para mim. — Minha mãe costumava dizer que, na nossa terra, havia<br />

<strong>de</strong>uses bastante para as mulheres terem pelo menos um do seu lado, enquanto a<br />

sua religião tem três em um, e todos são homens. Até mesmo o pássaro.<br />

E foi uma maneira tão ir<strong>rev</strong>erente <strong>de</strong> <strong>de</strong>sc<strong>rev</strong>er o Espírito Santo que me vi<br />

pren<strong>de</strong>ndo o riso.<br />

— Acredito que ela não falasse essas blasfêmias em público.<br />

Ela <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros.<br />

— E se falasse, quem se importaria? Esquece-se <strong>de</strong> que, segundo as leis<br />

da escravatura, ela não tinha alma a ser salva.<br />

— E então? Ela morreu pagã?<br />

— Ela morreu no cativeiro. Isso era tudo o que tinha importância para ela.<br />

— Mas você vai à igreja, Erila — disse eu. — Sabe as orações tanto<br />

quanto eu. Está me dizendo que nunca acreditou?<br />

Ela baixou os olhos.<br />

— Cresci com outra língua, sob outro sol — replicou. — Acredito no que<br />

preciso acreditar para sob<strong>rev</strong>iver.<br />

— E quando for livre? Isso mudará as coisas?<br />

— Falaremos disso quando acontecer.<br />

Embora nós duas soubéssemos que estar do meu lado contra ele não era a<br />

maneira <strong>de</strong> acelerar a liberda<strong>de</strong>.<br />

— Bem — disse eu —, acho que quaisquer que sejam os segredos em seu<br />

coração, Deus os verá e saberá que é uma boa pessoa, e a julgará com carinho.<br />

Ela olhou para mim.<br />

— E que Deus é esse? O seu ou o do monge?<br />

E ela tinha razão. Quando eu era criança, tudo parecia tão simples. Tinha<br />

havido um Deus, que, apesar <strong>de</strong> ter a voz <strong>de</strong> um trovão quando com raiva,<br />

também tinha amor suficiente para me aquecer à noite quando eu lhe falava<br />

diretamente. Ou assim me parecia. E quanto mais eu aprendia e mais complexo<br />

e extraordinário o mundo se tornava, mais profunda a Sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aceitar<br />

meu conhecimento e se regozijar comigo. Pois qualquer que fosse a realização<br />

do homem, vinha, antes <strong>de</strong> mais nada, a Dele. Mas isso <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> parecer<br />

verda<strong>de</strong>iro. Agora, as maiores realizações do homem pareciam estar em<br />

oposição direta a Deus, ou a esse Deus, o que agora governava Florença. Esse<br />

Deus era tão obcecado pelo Diabo que parecia não ter tempo para a beleza ou<br />

maravilha, e todo o nosso conhecimento e arte estavam con<strong>de</strong>nados como<br />

simplesmente outro lugar on<strong>de</strong> o mal se escon<strong>de</strong>r. Portanto eu não mais sabia<br />

que Deus era o verda<strong>de</strong>iro: somente o que falava mais alto.<br />

— Tudo o que sei é que não quero viver com um Deus que a man<strong>de</strong>, ou<br />

mesmo meu marido, para o inferno sem escutar primeiro a sua versão da história<br />

— disse eu calmamente.


Ela olhou para mim afetuosamente. Você sempre foi terna, mesmo em<br />

pequena quando tentava ser dura. Por que se importa com ele?<br />

— Porque... porque, <strong>de</strong> certa maneira, não acho que ele tenha controle<br />

sobre isso. E porque... — fiz uma pausa. Acreditava realmente no que estava<br />

para dizer? — Porque, <strong>de</strong> certa maneira, acho que ele se importa comigo.<br />

Ela sacudiu a cabeça como se, <strong>de</strong> fato, fôssemos uma raça estrangeira que<br />

não fazia sentido para ela.<br />

— Embora eu não saiba se tem valor, talvez tenha razão — fez uma pausa<br />

e, então, se levantou e me esten<strong>de</strong>u a mão.<br />

— O que é?<br />

— Tem uma coisa que <strong>de</strong>ve ver. Eu estava esperando o momento certo.<br />

E me conduziu para fora do meu quarto escuro e cavernoso, pelo patamar<br />

<strong>de</strong> pedra até um quarto menor, que, em outra casa, estaria reservado para ser o<br />

quarto <strong>de</strong> um bebê.<br />

Tirou uma chave do bolso e a introduziu em um ca<strong>de</strong>ado pesado, e a porta<br />

se abriu.<br />

Na minha frente, uma oficina recém-montada: uma mesa e uma pia <strong>de</strong><br />

pedra com alguns bal<strong>de</strong>s do lado, e sobre a mesa perto da janela, uma série <strong>de</strong><br />

garrafas, caixas e pequenos pacotes, todos etiquetados, do lado <strong>de</strong> conjuntos <strong>de</strong><br />

pincéis <strong>de</strong> tamanhos variados. Perto, uma lousa <strong>de</strong> pórfiro para o moedor e dois<br />

gran<strong>de</strong>s painéis <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira prontos para a aguarelha e a imprimadura e as<br />

camadas <strong>de</strong> tinta.<br />

— Ele mandou trazerem quando você estava doente. E eu trouxe isto da<br />

sua arca — apontou para o manuscrito, cheio <strong>de</strong> orelhas, do livro <strong>de</strong> Cennini,<br />

sobre cujas páginas eu tinha <strong>de</strong>rramado lágrimas tão amargas por me oferecer<br />

conhecimento sem os meios para transformá-lo em tinta. — Trouxe o certo?<br />

Assenti com a cabeça, sem conseguir falar, e fui até a mesa, abrindo<br />

algumas das caixas, <strong>de</strong>slizando meus <strong>de</strong>dos nos pós: o preto espesso, o amarelo<br />

veemente do açafrão toscano, e o jenolim escuro com os ver<strong>de</strong>s prometidos <strong>de</strong><br />

uma centena <strong>de</strong> árvores e plantas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um fragmento <strong>de</strong> rocha. O impacto<br />

<strong>de</strong> tantas cores foi como a primeira luz do sol na cida<strong>de</strong> gélida <strong>de</strong>pois da neve.<br />

Percebi em meu rosto um sorriso, e também lágrimas.<br />

Se não podíamos ter amor, meu marido e eu, pelo menos eu teria a<br />

alquimia.<br />

Lá fora, o gelo <strong>de</strong>rretia e transformava-se em fonte enquanto eu preparava um<br />

banquete <strong>de</strong> cores, meus <strong>de</strong>dos ficando calosos com o moedor e escuros com as<br />

manchas <strong>de</strong> tinta. Havia tanto a apren<strong>de</strong>r. Erila ajudava-me, medindo e<br />

misturando os pós e preparando a superfície da ma<strong>de</strong>ira. Ninguém nos


incomodava. À nossa volta, a casa dirigia a si mesma, e se havia comentários,<br />

não seriam certamente mais danosos do que os pecados já sem controle. Precisei<br />

<strong>de</strong> praticamente cinco semanas para transferir a minha Anunciação para o painel<br />

<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. A minha vida passou a ser absorvida pelas pregas sinuosas das saias<br />

<strong>de</strong> Nossa Senhora (nenhum lápis-lazúli, mas um matiz <strong>de</strong> azul resultante da<br />

mistura do índigo com o alvaia<strong>de</strong>, o ocre escuro dos ladrilhos do piso e um halo<br />

com folha <strong>de</strong> ouro para o meu Gabriel, em contraste luminoso com o escuro em<br />

volta da moldura da janela além). No começo, minha mão estava muito menos<br />

firme nas pinceladas do que com a pena, e a minha falta <strong>de</strong> jeito me fez, às<br />

vezes, entrar em <strong>de</strong>sespero, mas, aos poucos, a minha confiança foi aumentando,<br />

o bastante para, quando estava terminado, querer começar <strong>de</strong> novo. E, <strong>de</strong>ssa<br />

maneira, esqueci a dor e a loucura <strong>de</strong> meu irmão e meu marido, e me curei.<br />

Por fim, minha curiosida<strong>de</strong> retornou e comecei a contestar meu exílio<br />

auto-imposto. Erila <strong>de</strong>sempenhou bem seu papel, me trazendo fofocas, como<br />

uma mãe pássaro regurgitando alimento em seus filhotes até estarem fortes o<br />

bastante para capturar a sua própria presa.<br />

Ainda assim, a nossa primeira saída juntas me chocou. Foi no fim da<br />

primavera, quando a cida<strong>de</strong> estava sombria com a sua própria <strong>de</strong>voção. A batida<br />

dos saltos das prostitutas tinha sido substituída pelo dique das contas do rosário,<br />

e os únicos garotos nas ruas estavam lá para salvar as almas, pelo meio que<br />

fosse. Na praça, passamos por uma gangue <strong>de</strong>les exercitando sua marcha:<br />

crianças <strong>de</strong> oito, nove anos na milícia <strong>de</strong> Deus, encorajadas por seus pais, que<br />

Erila disse estarem comprando fardos <strong>de</strong> pano branco para fazerem suas vestes<br />

angelicais. Até mesmo os ricos tinham suavizado sua maneira <strong>de</strong> se vestir, <strong>de</strong><br />

modo que a paleta da cida<strong>de</strong> tinha branqueado, tornando-se monocromática.<br />

Estrangeiros que passavam pela cida<strong>de</strong> para fazer comércio e negócios ficavam<br />

perplexos com as mudanças, embora não pu<strong>de</strong>ssem <strong>de</strong>cidir se estavam<br />

realmente testemunhando o reinado <strong>de</strong> Deus na terra ou alguma coisa mais<br />

sinistra.<br />

O Papa, parece, não tinha essas dúvidas. Enquanto Florença <strong>de</strong>fendia a<br />

pureza, Erila contou os rumores <strong>de</strong> que o Papa Borgia tinha instalado a sua<br />

amante no Palácio do Vaticano e estava distribuindo a dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> car<strong>de</strong>al<br />

como doces a crianças. Quando parou <strong>de</strong> fazer amor, começou a fazer a guerra.<br />

O rei francês e seu exército fartaram-se em Nápoles e, exaustos para a Terra<br />

Santa, retornavam para o norte. Mas Alexandre VI não era Papa <strong>de</strong> sofrer a<br />

humilhação <strong>de</strong> uma segunda ocupação, mesmo que temporária, e tinha levantado<br />

um exército a partir <strong>de</strong> uma liga <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s-estados para expulsá-los <strong>de</strong> volta à<br />

casa com o rabo entre as pernas.<br />

Com uma exceção. De seu púlpito na Catedral, Savonarola <strong>de</strong>clarou<br />

Florença isenta <strong>de</strong> tal obrigação. O que era o Vaticano a não ser uma versão


mais rica e mais corrupta dos conventos e mosteiros que ele prometera purgar?<br />

Durante aquelas longas noites em que a cida<strong>de</strong> havia se congelado e antes <strong>de</strong> a<br />

luxúria <strong>de</strong> Cristoforo levá-lo <strong>de</strong> casa, ele e eu tínhamos conversado muito sobre<br />

esse conflito. Como a <strong>de</strong>voção agressiva <strong>de</strong> Savonarola não somente ameaçava o<br />

estilo <strong>de</strong> vida do Papa, como também a própria estrutura da igreja. A glória <strong>de</strong><br />

Deus não estava apenas no número <strong>de</strong> almas salvas, mas na influência exercida,<br />

no po<strong>de</strong>r das construções e da arte, na maneira como dignitários estrangeiros<br />

olhavam admirados as pinturas pelos muros da Capela Sistina. Mas tal<br />

maravilha precisava <strong>de</strong> renda para ser sustentada, e nenhum prior corcunda e<br />

com um nariz <strong>de</strong> falcão, incitando a autoflagelação, teria como consegui-la.<br />

Era o único <strong>de</strong>safio que talvez o <strong>de</strong>tivesse. Nos últimos meses, a oposição<br />

em Florença tinha <strong>de</strong>smoronado como casas <strong>de</strong> barro quando havia enchente. Eu<br />

mal podia acreditar. Como uma antiga or<strong>de</strong>m podia ser eliminada tão<br />

facilmente? Cristoforo tinha, então, dito algo sensato: assim como havia aqueles<br />

que temiam e odiavam Savonarola, mas que nada fariam para <strong>de</strong>tê-lo porque seu<br />

po<strong>de</strong>r era muito gran<strong>de</strong>, tinha havido pessoas que tinham sentido o mesmo em<br />

relação aos Medici, homens que tinham acreditado genuinamente que aquela<br />

ditadura benigna — apesar <strong>de</strong>, ou até mesmo por causa <strong>de</strong> suas glórias — tinha<br />

exaurido a força republicana e a pureza <strong>de</strong> Florença. Mas quando um estado é<br />

tão confiante, é preciso homens violentos e estúpidos para resistirem contra ele.<br />

A dissensão, argumentou ele, era uma arte melhor conduzida nas sombras.<br />

No entanto, mesmo as sombras tinham-se silenciado. A Aca<strong>de</strong>mia<br />

Platônica, antes o orgulho e a alegria da nova erudição, tinha-se <strong>de</strong>sintegrado,<br />

um <strong>de</strong> seus expoentes, Pico Della Mirandola, era um franco partidário <strong>de</strong><br />

Savonarola, aguardando fazer seus votos, e Erila disse que corriam rumores <strong>de</strong><br />

que homens <strong>de</strong> famílias tão leais quanto os Rucellai estavam pen<strong>de</strong>ndo para as<br />

celas em San Marco.<br />

Essa intriga fez-me pensar <strong>de</strong> novo em minha própria família.<br />

A nova moda da brancura daria pouco trabalho aos tonéis <strong>de</strong> tintura <strong>de</strong><br />

Santa Croce. Lembrei-me das crianças à margem do rio, com suas pernas finas e<br />

peles <strong>de</strong>coradas. Tire a cor do tecido e tirará a comida da boca dos<br />

trabalhadores. Apesar <strong>de</strong> toda a igualda<strong>de</strong> que Savonarola pregava, ele tinha<br />

pouco conhecimento das maneiras como os pobres ficam mais ricos sem a<br />

carida<strong>de</strong>. Essa também foi uma observação <strong>de</strong> meu marido. Tenho <strong>de</strong> admitir<br />

que havia vezes, durante nossas conversas, em que eu pensava no bem que ele<br />

teria feito ao estado se tivesse sido uma pessoa mais interessada em política do<br />

que no contorno dos traseiros dos rapazes. Pois é, em meu rancor, estava, até<br />

mesmo, apren<strong>de</strong>ndo a linguagem <strong>de</strong> meu irmão.


Mas no fim, o que feria os tintureiros feria também meu pai, pois apesar<br />

<strong>de</strong> viver melhor do que seus operários, nem mesmo seus ganhos durariam para<br />

sempre.<br />

"Seu pai gostaria que você aparecesse. Ele tem andado muito abatido por<br />

causa dos negócios... Acho que o distrairia um pouco ser visitado por sua filha<br />

preferida", tinha dito minha mãe.<br />

Mesmo que ela tivesse me ofendido, eu não podia esquecer meu pai. E<br />

assim que comecei a pensar neles, é claro que também pensei no pintor e em<br />

como teríamos muito mais o que partilhar agora que eu começara a manejar o<br />

pincel...


Vinte e Nove<br />

OS ANTIGOS CRIADOS ME DERAM AS boas-vindas, como se eu fosse a<br />

filha pródiga retornando a casa. Até mesmo Maria, com seus olhos redondos e<br />

brilhantes e mente pequena, pareceu feliz em me ver. Sem dúvida, a casa ficara<br />

mais silenciosa com a minha partida. Posso ter sido um problema, mas também<br />

significava vida. Também eu <strong>de</strong>veria estar diferente <strong>de</strong> alguma maneira. Todos<br />

que me viram disseram o mesmo. Acho que meu rosto mudou com a doença, a<br />

sua forma começando a mostrar mais as maças do rosto. Perguntei-me o que<br />

meu pai diria — sua filha caçula com o rosto <strong>de</strong> mulher e não mais <strong>de</strong> menina.<br />

Bem, teria <strong>de</strong> esperar para saber. Ele e minha mãe estavam na estação <strong>de</strong><br />

águas e era improvável que retornassem antes <strong>de</strong> algumas semanas. Eu <strong>de</strong>veria<br />

ter enviado uma mensagem avisando que iria.<br />

A casa pareceu-me estranha, como um lugar que eu visitara somente em<br />

sonho. Maria disse-me que Luca estava em casa almoçando, eu gostaria <strong>de</strong><br />

juntar-me a ele? Fiquei à entrada da sala <strong>de</strong> jantar. Ele estava recurvado sobre o<br />

prato, enchendo seu rosto. Para um anjo, ele parecia horrível. Plautilla tinha<br />

razão, o corte <strong>de</strong> cabelo era um <strong>de</strong>sastre: fazia seu rosto parecer enorme, como<br />

uma saliência <strong>de</strong> rocha porosa, os buracos na pele salpicados como cacimbas<br />

minúsculas na superfície. Ele estava mastigando com a boca aberta e dava para<br />

ouvir o ruído da comida sendo esmagada.<br />

Fui até a mesa e me sentei do seu lado. Às vezes é melhor conhecer seu<br />

inimigo.<br />

— Olá, irmão — disse eu sorrindo. — Mudou suas roupas. Não sei se o<br />

cinza é uma cor que lhe fica bem.<br />

Ele fez uma carranca.<br />

— Estou <strong>de</strong> uniforme, Alessandra. Deve saber que, agora, sou do exército<br />

<strong>de</strong> Deus.<br />

— Oh, isso é uma gran<strong>de</strong> coisa. Mas acho que, ainda assim, <strong>de</strong>veria laválo<br />

<strong>de</strong> vez em quando. Quando o branco fica sujo <strong>de</strong>mais acaba ten<strong>de</strong>ndo ao<br />

preto.<br />

Refletiu sobre as palavras por um momento, separando o sarcasmo do<br />

significado. Se eu recebesse um florim pelo tempo perdido em lições esperando<br />

Luca chegar a um lugar que eu já <strong>de</strong>ixara, seríamos uma família mais rica do<br />

que somos hoje.<br />

— Sabe <strong>de</strong> uma coisa, Alessandra? Você fala <strong>de</strong>mais. Será a sua danação.<br />

A nossa vida não passa <strong>de</strong> uma curta caminhada para a morte e os que prestam<br />

atenção ao som da própria voz, em vez da palavra do Verda<strong>de</strong>iro Cristo,


apodrecerão no inferno. Seu marido veio com você?<br />

Sacudi a cabeça.<br />

— Pois então, você não <strong>de</strong>veria estar aqui. Conhece as novas leis do nosso<br />

estado <strong>de</strong>voto tanto quanto eu. Mulheres sem seus maridos são recipientes <strong>de</strong><br />

tentação e <strong>de</strong>vem ficar atrás <strong>de</strong> portas trancadas.<br />

— Oh, Luca — disse eu. — Se pelo menos você tivesse essa facilida<strong>de</strong><br />

para se lembrar <strong>de</strong> coisas que importam.<br />

— É melhor que tome cuidado com a sua língua, irmã. O Diabo está na<br />

sua falsa erudição e a levará às chamas mais rápido do que uma mulher pobre<br />

que nada sabe a não ser os Evangelhos. Agora, os seus preciosos antigos são<br />

uma casta <strong>de</strong> proscritos.<br />

Nunca vira meu irmão tão fluente. Ainda assim, ele estava impaciente<br />

para transformar as palavras em atos. Pu<strong>de</strong> perceber seus punhos apertando-se<br />

sobre a mesa. A sua cruelda<strong>de</strong> comigo em criança sempre fora mais física do<br />

que a <strong>de</strong> Tomaso. E, <strong>de</strong> certa maneira, mais maliciosa. Minha mãe nunca o<br />

pegava em flagrante e os machucados só apareciam <strong>de</strong>pois. Tomaso estava<br />

certo. Ele sempre tinha sido um brigão violento. A única diferença era que,<br />

agora, sentia-se menos <strong>de</strong>vedor <strong>de</strong> seu irmão mais velho. Embora os problemas<br />

que a sua mudança <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> nos causaria ainda estivessem por vir.<br />

Levantei-me da mesa, meus olhos dirigidos ao chão.<br />

— Eu sei — eu disse com doçura. — Desculpe, irmão. Irei me confessar<br />

quando voltar para casa. Pedir perdão ao Senhor.<br />

Ele me olhou fixamente, <strong>de</strong>sconcertado com minha submissão repentina.<br />

— Hummm. Muito bem. Se pedir com humilda<strong>de</strong> bastante, Ele a<br />

perdoará.<br />

Antes <strong>de</strong> eu chegar à porta, sua cara estava <strong>de</strong> volta no prato.<br />

Quando perguntei sobre o pintor, Maria mostrou-se perturbada.<br />

— Não o vemos mais. Ele vive na capela.<br />

— O que quer dizer com vive na capela?<br />

Ela sacudiu ligeiramente os ombros.<br />

— Quero dizer... que ele agora vive lá. O tempo todo. Nunca sai.<br />

— E os afrescos? Estão terminados?<br />

— Ninguém sabe. Ele mandou os aprendizes embora no mês passado —<br />

fez uma pausa. — Eles pareciam ansiosos por partir.<br />

— Mas... achei que ele freqüentava a igreja. Que tinha se tornado um<br />

seguidor. Foi o que minha mãe me disse.<br />

— Eu... eu não sei disso. Acho que ele costumava ir à igreja. Mas agora<br />

não. Ele não sai da capela <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o <strong>de</strong>gelo.


— Des<strong>de</strong> o <strong>de</strong>gelo? Mas isso foi semanas atrás. Por que meu pai não fez<br />

nada?<br />

— O seu pai... — interrompeu-se. — O seu pai não tem sido ele mesmo.<br />

— O que quer dizer?<br />

Ela relanceou os olhos para Erila.<br />

— Eu... eu não posso dizer mais nada.<br />

— E minha mãe?<br />

— ...bem... está cuidando <strong>de</strong>le. E ainda há Tomaso e Luca. Ela não tem<br />

tempo para tratar dos comerciantes. — Maria, assim como Lodovica, nunca<br />

tinham sido do tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a elevação da arte. Muita confusão por causa <strong>de</strong><br />

alguns rabiscos coloridos. O melhor era dizer suas orações com os olhos<br />

fechados e não <strong>de</strong>ixar sua imaginação atrapalhar.<br />

— Por que ela não me pediu ajuda? — eu disse calmamente, já sabendo a<br />

resposta. Sim, tinha pedido, mas eu estava com tanta raiva que a afastei.<br />

Maria estava olhando para mim, esperando para saber o que eu ia fazer.<br />

Todos tinham me visto como o bebê da família; precoce, talvez, porém incapaz<br />

<strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> mim mesma, muito menos <strong>de</strong> outra pessoa. O que teria acontecido<br />

que me mudara tanto? Nem eu mesma sabia.<br />

— Vou vê-lo — disse eu. — On<strong>de</strong> estão as chaves?<br />

— Não adiantam. Ele tranca por <strong>de</strong>ntro.<br />

— E a outra entrada, a da sacristia? — A mesma coisa.<br />

— E a comida?<br />

— Deixamos o prato do lado <strong>de</strong> fora uma vez por dia.<br />

— Na porta principal ou na da sacristia?<br />

— Na sacristia.<br />

— Como ele sabe que está lá?<br />

— Nós batemos.<br />

— E ele sai?<br />

— Não enquanto houver alguém. O cozinheiro esperou, uma vez. Mas ele<br />

não apareceu. Agora, ninguém dá mais importância. Temos outras coisas a<br />

fazer.<br />

— Então, ninguém o tem visto?<br />

— Não. Mas à noite, às vezes, ele faz ruído.<br />

— Como assim?<br />

— Bem, não sei, mas Lodovica, ela não dorme bem, disse que o ouve<br />

chorar.<br />

— Chorar?<br />

E ela <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros, como se não lhe coubesse dizer mais nada.<br />

— E os garotos? Tentaram alguma coisa?<br />

— O senhor Tomaso quase nunca está em casa. E o senhor Luca... bem,


suponho que ache que ele está na igreja.<br />

O que, suponho, <strong>de</strong> certa maneira ele realmente estava.<br />

Na cozinha do andar <strong>de</strong> cima, o cozinheiro mostrou-se fleumático em<br />

relação ao assunto. Se o homem não queria comer, não queria comer. Nos<br />

últimos quatro dias, a comida não tinha sido tocada.Talvez Deus o estivesse<br />

alimentando. Afinal, João Batista tinha vivido <strong>de</strong> gafanhotos e mel durante<br />

quarenta dias.<br />

— Mas aposto que não era tão gostoso quanto a sua torta <strong>de</strong> pombo —<br />

disse eu.<br />

— A senhora sempre comeu bem — ele sorriu largo. — Aqui ficou muito<br />

silencioso sem a senhora.<br />

Permaneci por alguns instantes observando seus <strong>de</strong>dos cortando uma<br />

<strong>de</strong>zena <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> alho mais rápido do que um agiota separando as moedas.<br />

Minha infância passara-se toda ali, nos aromas e gostos <strong>de</strong>ssa cozinha: pimenta<br />

preta e vermelha, gengibre, cravo, açafrão, cardamomo e a doçura pungente do<br />

nosso manjericão moído. Um império <strong>de</strong> comércio sobre o cepo.<br />

— Prepare-lhe um prato com algo especial — disse eu. — Alguma coisa<br />

cujo aroma lhe dê água na boca. Talvez ele hoje sinta fome.<br />

— Talvez esteja morto.<br />

Ele não disse isso cruelmente, e sim <strong>de</strong> um modo banal. Relembrei a<br />

magnanimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meu pai com o pintor quando ele chegou naquela noite <strong>de</strong><br />

primavera há tanto tempo. Lembrei-me da excitação que todos sentimos: um<br />

artista <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> vivendo sob o nosso teto, capturando a nossa família para a<br />

posterida<strong>de</strong>. Todos tínhamos visto isso como sinal do prestígio da família, uma<br />

<strong>de</strong>claração do nosso status, nosso futuro. Agora, isso parecia passado.<br />

Deixei Erila e os outros criados na cozinha, mexericando com o<br />

cozinheiro, e <strong>de</strong>sci a escada, atravessei o pátio do fundo, até os aposentos do<br />

pintor. Não tinha idéia do que estava procurando. O trajeto foi dominado pela<br />

lembrança <strong>de</strong> mim mais jovem, a garota pulando na minha frente, saindo<br />

furtivamente da casa principal durante o calor da sesta para enfrentar o recémchegado<br />

em seu quarto, com seu entusiasmo e curiosida<strong>de</strong> sem limites. Que<br />

conselho eu lhe daria hoje? Não conseguia mais ver em que ponto tudo tinha<br />

começado a dar errado.<br />

A porta do seu quarto estava fechada, mas não trancada. Dentro, a<br />

atmosfera era bolorenta, um bafejo <strong>de</strong> negligência no ar. As figuras exuberantes<br />

do Anjo e Maria na pare<strong>de</strong> da câmara externa tinham escamado o reboco sem<br />

preparo, como uma relíquia <strong>de</strong> uma época mais antiga. A mesa sobre a qual ele<br />

mantinha seus esboços estava vazia e o crucifixo <strong>de</strong>saparecera da pare<strong>de</strong>. No<br />

interior do quarto, a cama era um chumaço <strong>de</strong> palha com um pano encardido<br />

jogado em cima. Seus poucos pertences tinham ido com ele para a capela.


Não sei se teria me incomodado com o bal<strong>de</strong>, se não fossem as manchas<br />

<strong>de</strong> fuligem em cima. Estava no canto quando me virei para sair, e, <strong>de</strong> início,<br />

achei que as marcas po<strong>de</strong>riam ser algum tipo <strong>de</strong> pintura tosca: uma massa <strong>de</strong><br />

sombras escuras espiraladas subindo pela pare<strong>de</strong>, continuando no teto. Mas<br />

quando me aproximei e coloquei minha mão sobre elas, minha palma ficou<br />

coberta <strong>de</strong> fuligem, e, portanto, dirigi minha atenção para o bal<strong>de</strong> posicionado<br />

embaixo.<br />

O fogo não tinha conseguido <strong>de</strong>struir o crucifixo. Embora ele estivesse<br />

partido em duas partes, a ma<strong>de</strong>ira não fora atingida pelo fogo, e era difícil dizer<br />

se ele o teria quebrado primeiro e <strong>de</strong>pois tentado incinerá-lo, ou se, irritado pelo<br />

fracasso das chamas, o teria tirado e batido na pare<strong>de</strong>. A cruz estava quebrada<br />

em dois lugares e as pernas <strong>de</strong> Cristo tinham-se partido, os pregos ainda presos<br />

nos pés. A parte superior do torso pendia dolorosamente do T da cruz. Segurei-o<br />

com cuidado. Mesmo danificada, a escultura tinha paixão.<br />

Parte da razão para não ter-se inflamado foi o fogo no fundo do bal<strong>de</strong> não<br />

ter sido forte o bastante. Ele o atiçara com papel, mas <strong>de</strong>satentamente, as folhas<br />

muito juntas para permitir a entrada <strong>de</strong> ar. A impressão era <strong>de</strong> pressa com aquilo<br />

tudo, como se alguma coisa ou alguém estivesse beliscando seus calcanhares.<br />

Com as mãos em concha, retirei os restos carbonizados. As páginas no fundo se<br />

<strong>de</strong>sfizeram em minhas mãos, pedaços <strong>de</strong> cinzas soltando-se e flutuando no ar<br />

como neve cinza, seu conteúdo perdido para sempre. Mas as páginas mais em<br />

cima estavam apenas parcialmente queimadas ou, em alguns casos,<br />

simplesmente carbonizadas nas bordas. Levei-as para a câmara externa, on<strong>de</strong><br />

havia mais luz, e as coloquei <strong>de</strong>licadamente sobre a mesa.<br />

Eram <strong>de</strong> dois tipos: <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> mim e <strong>de</strong>senhos dos corpos.<br />

Os meus estavam em toda parte, esboços para a Madona, a minha face<br />

repetida uma, duas dúzias <strong>de</strong> vezes, variações do mesmo olhar grave, irônico,<br />

que eu não reconhecia como meu, creio que, em parte, porque nunca fiquei tão<br />

quieta e silenciosa para mim mesma. Ele tinha procurado o ângulo certo para a<br />

minha cabeça, o ponto focal <strong>de</strong> interesse fora do quadro, e, em um dos <strong>de</strong>senhos,<br />

eu olhava diretamente para o observador. Uma questão <strong>de</strong> somente alguns graus<br />

no <strong>de</strong>svio dos olhos, mas o efeito tinha sido enorme. Essa jovem parecia tão —<br />

sei lá — tão agressiva, quase como se estivesse <strong>de</strong>safiando o observador, ao<br />

invés <strong>de</strong> o estar acolhendo. Acho que se o rosto não fosse o meu, seu olhar seria<br />

quase impróprio.<br />

Depois, vieram os corpos. Primeiro, o homem sem estômago, que eu já<br />

tinha visto; uma meia dúzia <strong>de</strong> esboços com suas entranhas mais expostas. Em<br />

seguida, outro torso: esse tinha sido estrangulado, o corpo jazia no solo, como se<br />

tivesse acabado <strong>de</strong> ser morto, a tira ainda enterrada em seu pescoço, e o rosto<br />

intumescido e ferido, com um rastro do que po<strong>de</strong>ria ter sido fezes pingando por


suas pernas.<br />

Depois disso, havia as mulheres. Uma era velha, <strong>de</strong> novo nua, os<br />

músculos <strong>de</strong> sua barriga frouxos e vergados, do lado, com um braço dobrado<br />

sobre a cabeça, como se tentasse se proteger da morte. Havia ferimentos por<br />

todo seu corpo, e o outro braço estava em um ângulo estranho, o cotovelo<br />

apontando para o lado errado, como uma boneca quebrada. Mas foi a mais<br />

jovem a que mais me assustou.<br />

Estava estendida <strong>de</strong> costas, nua, e eu já a tinha visto também. Seu corpo<br />

era o da jovem <strong>de</strong>itada no <strong>de</strong>senho para o afresco da capela. Estava sobre uma<br />

maca esperando o milagre <strong>de</strong> Deus que a levantaria dos mortos. Mas ali não<br />

haveria essa ressurreição. Pois nesses esboços, além <strong>de</strong> estar morta, ela estava<br />

mutilada. Seu rosto tinha sido captado em um ricto <strong>de</strong> agonia e terror, e toda a<br />

parte inferior <strong>de</strong> seu estômago estava aberto e exposto. No meio da mixórdia <strong>de</strong><br />

pedaços e sangue, estava a forma pequena, mas inconfundível, <strong>de</strong> um feto<br />

prematuro.<br />

— O cozinheiro disse que a comida está pronta, senhora Alessandra. A voz <strong>de</strong><br />

Maria fez meu coração chocar-se em minha caixa torácica.<br />

— Eu... estarei lá em um instante — disse eu, metendo apressadamente as<br />

folhas <strong>de</strong> papel em minhas saias.<br />

Lá fora, ao sol, Maria e Erila ficaram me esperando. Erila lançou-me um<br />

olhar claramente <strong>de</strong>sconfiado. Recusei-me a olhar para ela.<br />

— O que <strong>de</strong>scobriu lá? — perguntou quando subíamos a escada estreita<br />

que levava à porta da sacristia, ela seguindo na frente, segurando a ban<strong>de</strong>ja.<br />

— Bem... alguns esboços, só isso.<br />

— Espero que saiba o que está fazendo — disse ela <strong>de</strong> maneira<br />

impu<strong>de</strong>nte. — Meta<strong>de</strong> da criadagem acha que está enrolado em seu próprio<br />

carvão. Disseram que passou quase todo o inverno <strong>de</strong>senhando as carcaças dos<br />

animais que jogavam fora. Na cozinha, acham que ele tem olhos do Diabo.<br />

— Talvez — disse eu. — Mas, ainda assim, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixá-lo morrer<br />

<strong>de</strong> fome.<br />

— Bem, contanto que saiba que não entrará lá sozinha.<br />

— Não tem problema. Ele não vai me machucar.<br />

— E se estiver enganada? — disse ela com firmeza, virando-se para mim<br />

quando chegamos ao topo da escada. — E se tem alguma coisa errada com a sua<br />

cabeça? Viu-os nas ruas. Deus em excesso provoca febre cerebral. Só porque a<br />

seduziu com seu pincel não significa que não seja perigoso. Sabe que acho? Que<br />

não é da sua conta. Agora você tem uma casa sua e problemas o bastante para<br />

ocupar um exército. Deixe isso para outra pessoa. Ele é só um pintor.


Estava assustada por mim, é claro, lembrando-se da noite da minha<br />

própria loucura quando, por um instante, meu sangue tinha-se tornado a minha<br />

tinta. E porque ela não era nenhuma idiota, a minha Erila, levei em consi<strong>de</strong>ração<br />

o que disse. É claro que o sofrimento e o terror <strong>de</strong>sse rosto jovem tinham saído<br />

da página e se aferrado ao meu cérebro. Que ela e os outros tinham sido pintados<br />

da vida real não havia sombra <strong>de</strong> dúvida. Ou da morte. Mas a verda<strong>de</strong>ira questão<br />

era on<strong>de</strong> ele tinha estado quando um estado se transformara no outro. Pensei <strong>de</strong><br />

novo no misto <strong>de</strong> pânico e doçura nele. Relembrei meu sarcasmo com ele<br />

naquele primeiro dia e a sua reação <strong>de</strong> fúria <strong>de</strong>sajeitada. Lembrei-me também <strong>de</strong><br />

sua <strong>rev</strong>elação lenta e tímida, quando posei para ele, e a maneira como falou <strong>de</strong><br />

Deus introduzindo-se em suas mãos quando era criança. De alguma maneira eu<br />

sabia que, por mais perdido e louco que pu<strong>de</strong>sse estar, não me faria mal.<br />

E quanto à minha própria casa? Bem, não havia como me aquecer lá. Eu<br />

era uma forasteira. Seria melhor para mim perseguir companheiros com as<br />

mesmas idéias para aliviar a minha solidão.<br />

— Eu sei o que estou fazendo, Erila — disse com uma <strong>de</strong>terminação<br />

tranqüila. — Chamo-a, se precisar. Prometo.<br />

Ela estalou a língua, como sempre fazia, mania que eu adorava, pois dizia<br />

tanto com tão pouco, e soube que ele <strong>de</strong>ixaria eu ir.<br />

Ela pôs a ban<strong>de</strong>ja perto da entrada, <strong>de</strong> modo que o cheiro da carne<br />

recentemente preparada passasse por <strong>de</strong>baixo da ma<strong>de</strong>ira. Isso trouxe <strong>de</strong> volta o<br />

eco <strong>de</strong> mil manhãs da minha infância, quando jejuava para a missa, sentindo-me<br />

culpada porque o prospecto do corpo <strong>de</strong> Deus em minha língua era menos<br />

excitante do que o aroma da carne assada que vinha da cozinha quando eu<br />

chegava em casa. Como seria senti-lo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dias sem comer, eu não podia<br />

sequer imaginar.<br />

Recuei e fiz um sinal para ela.<br />

Ela bateu com força.<br />

— Sua comida está aqui — disse com uma voz retumbante. — O<br />

cozinheiro disse que se não comê-la, vai parar <strong>de</strong> enviá-la. E pombo assado,<br />

legumes com ervas e uma jarra <strong>de</strong> vinho. — Ela bateu <strong>de</strong> novo. — É a última<br />

chance, pintor.<br />

Então, fiz outro sinal, e ela começou a <strong>de</strong>scer ruidosamente, pisando<br />

pesado nas pedras. Embaixo, parou e olhou para mim.<br />

Esperei. Por um tempo, nada aconteceu. Então, finalmente, ouvi um ruído<br />

<strong>de</strong> pés se arrastando em algum ponto atrás da porta. A tranca estalou e a porta<br />

abriu-se um pouquinho. Uma figura maltrapilha saiu e curvou-se para pegar a<br />

ban<strong>de</strong>ja.<br />

Dei um passo à frente, saindo das sombras, exatamente como tinha feito<br />

naquela noite, quando seus <strong>de</strong>senhos se espalharam pelo chão. Tinha-se


assustado comigo então, e agora <strong>de</strong> novo. Recuou e tentou fechar a porta, mas<br />

estava segurando a ban<strong>de</strong>ja em um ângulo estranho, e a sua coor<strong>de</strong>nação motora<br />

parecia ter <strong>de</strong>saparecido. Cravei meu pé na abertura e comecei a forçar minha<br />

entrada. Ele empurrou <strong>de</strong> volta, mas embora fosse eu que estivera doente, ele<br />

estava com menos forças, e a porta ce<strong>de</strong>u com meu peso. Quando ele cambaleou<br />

para trás, e a ban<strong>de</strong>ja e seu conteúdo voaram, e um arco <strong>de</strong> vinho tinto borrifou<br />

as pare<strong>de</strong>s. A porta bateu atrás <strong>de</strong> mim.<br />

Nós dois estávamos <strong>de</strong>ntro.


Trinta<br />

ELE DEIXOU A BANDEJA ONDE TINHA CAÍDO, no escuro, e afastou-se,<br />

às apalpa<strong>de</strong>las, como uma barata, passando pela sacristia até o corpo da capela.<br />

Peguei o prato e salvei o que pu<strong>de</strong> da comida. O vinho per<strong>de</strong>ra-se como tinta <strong>de</strong><br />

pare<strong>de</strong>.<br />

Então, fui para perto <strong>de</strong>le.<br />

O cheiro ali <strong>de</strong>ntro era terrível, excremento e urina. Mesmo quando não se<br />

come, continua-se <strong>de</strong>fecando e urinando, pelo menos durante algum tempo.<br />

Receosa com on<strong>de</strong> pôr meus pés, hesitei até meus olhos se acostumarem com o<br />

escuro. O altar estava isolado, o andaime ainda no lugar, mas lonas e papéis por<br />

toda parte. As mesas estavam dispostas em or<strong>de</strong>m: pó <strong>de</strong> tinta, moletas e<br />

almofarizes, pincéis, tudo preparado. Do lado <strong>de</strong>les, estava um gran<strong>de</strong> espelho<br />

côncavo semelhante ao que meu pai tinha em seu gabinete, que melhor refletia o<br />

que restava da luz do dia, quando a sua vista turvava. Em outro canto, havia<br />

outro bal<strong>de</strong> com uma tampa <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira improvisada. Presumi que o cheiro<br />

viesse <strong>de</strong> lá.<br />

Estava mais frio do que o resto da casa. E úmido, o tipo <strong>de</strong> umida<strong>de</strong> que<br />

parece filtrar-se da pedra, quando não há corpos humanos para aquecê-la. Ele<br />

havia sido criado no meio da pedra e da luz fria. O que meu pai tinha dito sobre<br />

ele? Que havia pintado todo o espaço à sua volta, até não restar nenhuma pare<strong>de</strong><br />

vazia. Mas agora não. Não ali. Ah, afora o altar isolado, não havia nada. Eu me<br />

perguntei <strong>de</strong> novo o que haveria por trás das lonas.<br />

Agora, eu o vi. Estava sentado, recurvado, em um canto <strong>de</strong> uma pare<strong>de</strong>.<br />

Não estava olhando para mim. Parecia não estar olhando para nada. Parecia um<br />

animal acuado pelo caçador. Aproximei-me bem <strong>de</strong>vagar. Apesar <strong>de</strong> minhas<br />

palavras corajosas, eu estava apavorada. Erila tinha razão. Com tanta religião lá<br />

fora, a loucura santa estava aumentando: pessoas que viviam tanto com Deus,<br />

que não mais sabiam conviver com os humanos. Esbarrávamos com elas nas<br />

ruas, às vezes, falando sozinhas, rindo, chorando, sua vulnerabilida<strong>de</strong> vibrando<br />

como um halo à sua volta. Para a maioria, eram almas benignas, como eremitas<br />

perdidos. Mas não. Quando Deus inflamava-se <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>las, podiam se tornar<br />

muito assustadoras.<br />

Parei a alguma distancia à sua frente. A Madona com o meu rosto e os<br />

corpos com as entranhas expostas <strong>de</strong>semaranhando-se entre nós. Quando abri a<br />

boca, ainda não sabia que palavras emitiria.<br />

— Sabe como o chamam na cozinha? Uccelino. Passarinho. Como o<br />

pintor, em <strong>rev</strong>erência ao seu talento, mas também porque têm medo <strong>de</strong> você.


Acham que espera a noite cair para voar pela janela. O cozinheiro está<br />

convencido <strong>de</strong> que é por isso que não come a sua comida. Porque achou uma<br />

melhor em outro lugar. Sente-se ofendido, como qualquer bom cozinheiro se<br />

sentiria.<br />

Não <strong>de</strong>u sinal <strong>de</strong> que me ouvia. Balançava-se ligeiramente, abraçando a si<br />

mesmo, as mãos enrascadas sob as axilas, os olhos fechados. Cheguei mais perto<br />

<strong>de</strong>le. Não parecia justo, estando tão mais no alto que ele. Sentei-me no chão,<br />

sentindo a pedra fria pelas pregas <strong>de</strong> meu vestido. Ele parecia tão sozinho e<br />

solitário, que quis aquecê-lo com a companhia das palavras.<br />

— Quando eu estava crescendo e só se falava da beleza da cida<strong>de</strong>,<br />

contava-se uma história sobre um artista que trabalhou para Cosimo <strong>de</strong> Medici.<br />

Fra Filippo era o seu nome — e falei com a voz suave e tranqüila, como me<br />

lembrava que Erila fazia para me adormecer em pequena. — Você viu seu<br />

trabalho. Ele pintou a sua Madona com tal serenida<strong>de</strong> que a impressão é que ele<br />

molhava o pincel no próprio Espírito Santo. Afinal, ele era um monge. Mas não.<br />

O nosso bom irmão estava tão cheio <strong>de</strong> pensamentos carnais que interrompia a<br />

sua pintura e errava pelas ruas, a qualquer noite, abordando qualquer mulher que<br />

o aceitasse. O gran<strong>de</strong> Cosimo <strong>de</strong> Medici ficou tão frustrado, tanto por suas<br />

pinturas ficarem inacabadas quanto por seus pecados, creio eu, que passou a<br />

trancá-lo em seu estúdio à noite. Mas na segunda manhã, encontrou a janela<br />

aberta, os lençóis amarrados um no outro, e Fra Filippo tinha <strong>de</strong>saparecido.<br />

Depois disso, <strong>de</strong>volveu-lhe a chave. O que quer que Filippo precisasse fazer<br />

para a sua arte, ele aceitaria, mesmo que não compreen<strong>de</strong>sse ou aprovasse.<br />

Fiz uma pausa. Apesar <strong>de</strong> nada óbvio ter-se modificado nele, percebi que<br />

estava escutando. Eu podia senti-lo em seu corpo.<br />

— Ter um fogo <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si torna-se difícil às vezes. Acho que faz<br />

com que a pessoa se comporte <strong>de</strong> maneira incompreensível. Depois que passei<br />

por uma crise terrível, me perguntei por que tinha feito certas coisas. É que<br />

pareceram necessárias no momento. E eu não tinha talento algum. Não<br />

comparado ao seu.<br />

Percebi que todo o seu corpo tremia. Tinha havido momentos — como na<br />

primeira tar<strong>de</strong> em seu quarto — em que a sua simples presença física tinha me<br />

feito tremer, mas não <strong>de</strong>ssa maneira. Esse era um tipo diferente <strong>de</strong> medo. Pus o<br />

que sobrara do jantar entre nós e empurrei o prato para ele.<br />

— Por que não come um pouco? Está gostoso.<br />

Ele sacudiu a cabeça, mas seus olhos piscaram. Ainda não estava<br />

preparado. Tive um rápido vislumbre <strong>de</strong> seu rosto. Sua pele era do mesmo<br />

branco da cerâmica Della Robbia. Lembrei-me <strong>de</strong>le rastejando pelo teto,<br />

enrubescido pelo calor das chamas, enquanto esboçava a gra<strong>de</strong> que se tornaria o<br />

paraíso. Tinha bastante energia e visão então. O que acontecera com o paraíso?


— Provavelmente falei mais com você do que com qualquer outra pessoa<br />

nesta casa — disse eu. — No entanto ainda nem sei seu nome. Tem sido "o<br />

pintor" há tanto tempo, que é assim que penso em você. Não sei nada <strong>de</strong> você.<br />

Exceto que tem divinda<strong>de</strong> em seus <strong>de</strong>dos. Mais do que eu jamais terei. Senti<br />

tanta inveja <strong>de</strong> você que acabei sem perceber seu sofrimento. Nesse caso, sinto<br />

muito.<br />

Esperei. Nada.<br />

— Está doente? É isso? A febre voltou?<br />

— Não — e falou tão baixo que quase não o ouvi. — Não estou quente.<br />

Estou frio. Tão frio.<br />

Estendi a mão para tocá-lo, mas ele se jogou para trás. E ao fazer isso,<br />

percebi um lampejo <strong>de</strong> dor atravessar seu rosto.<br />

— Não entendo o que aconteceu com você — disse eu com calma. —<br />

Mas seja o que for, posso ajudar.<br />

— Não. Não po<strong>de</strong> me ajudar. Ninguém po<strong>de</strong> me ajudar. — Então, o<br />

silêncio, e, <strong>de</strong>ssa vez, um sussurro. — Fui abandonado.<br />

— Abandonado? Por quem?<br />

— Por Ele. Por Deus.<br />

— O que quer dizer?<br />

Mas ele apenas sacudiu a cabeça violentamente e se abraçou com mais<br />

força ainda. Então, para o meu horror, começou a chorar: sentando-se ali,<br />

paralisado com as lágrimas correndo por sua face, como aquelas estátuas<br />

milagrosas da Virgem que choram sangue como uma maneira <strong>de</strong> atrair para a fé<br />

os que duvidam.<br />

— Oh, lamento tanto.<br />

E agora, pela primeira vez, olhou diretamente para mim, e quando fixei<br />

seus olhos, pareceu que ele, o pintor, esse jovem tímido vindo do Norte não<br />

estava mais lá, e em seu lugar, havia apenas um poço fundo <strong>de</strong> tristeza e terror.<br />

— Oh, conte-me — disse eu. — Por favor. Não há nada tão terrível que<br />

não possa ser contado.<br />

Atrás <strong>de</strong> mim, a porta se abriu e ouvi passos leves. Seria Erila. Eu estava<br />

ali há tempo <strong>de</strong>mais e ela <strong>de</strong>via estar fora <strong>de</strong> si <strong>de</strong> preocupação.<br />

— Agora não... — murmurei sem me mover.<br />

— Mas...<br />

— Agora não.<br />

— Seus pais estão para chegar.<br />

Era uma boa mentira, tanto para aquecê-lo quanto para me ajudar. Inclinei<br />

a cabeça para ela e o olhar que me lançou continha um sermão. Assenti<br />

levemente com a cabeça, enten<strong>de</strong>ndo seu conselho.<br />

— Então, saia, por mim. Por favor.


Virei-me. Seus passos retroce<strong>de</strong>ram e a porta foi fechada.<br />

Ele não tinha se movido. Arrisquei. Tirei os esboços <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do meu<br />

vestido e dispus alguns <strong>de</strong>les no chão, perto do prato, <strong>de</strong> modo que as tripas do<br />

homem ficassem do lado dos restos <strong>de</strong> carne.<br />

— Sei há muito tempo — disse eu baixinho. — Estive no seu quarto. Vi<br />

todos eles. É isso que não po<strong>de</strong> contar?<br />

Estremeceu.<br />

— Não é o que está pensando — a sua voz foi um rosnado repentino. —<br />

Não lhes fiz mal. Não machuquei ninguém... — interrompeu-se.<br />

Dessa vez fui em sua direção, e se não era a coisa certa a fazer, então não<br />

seria eu a julgá-la. Estava vivendo em um mundo em que um marido entra em<br />

uma mulher como se ela fosse uma vaca, e homens se beijam e se penetram com<br />

uma paixão e <strong>de</strong>voção que fariam os santos corarem. Não existia mais um<br />

comportamento correto. Pus meus braços, <strong>de</strong>licadamente, em volta <strong>de</strong> seu corpo.<br />

Ele emitiu um gemido, se bem que <strong>de</strong> dor ou <strong>de</strong>sespero eu não sabia. Sua pele<br />

estava fria e retesada como a <strong>de</strong> um cadáver, e ele estava tão magro que eu podia<br />

sentir cada osso <strong>de</strong> seu corpo.<br />

— Conte-me, pintor, conte-me...<br />

A voz <strong>de</strong>le, quando falou, soou grave e hesitante, o penitente buscando as<br />

palavras certas.<br />

— Ele disse que o corpo humano era a maior criação <strong>de</strong> Deus e que, para<br />

entendê-lo, tinha-se <strong>de</strong> conhecer sob a pele. Somente <strong>de</strong>ssa maneira po<strong>de</strong>ríamos<br />

apren<strong>de</strong>r a dar-lhe vida. Eu não era o único. Havia seis ou sete <strong>de</strong> nós.<br />

Encontrávamo-nos à noite em uma sala no hospital <strong>de</strong> Santo Spirito, do lado da<br />

igreja. Os cadáveres pertenciam à cida<strong>de</strong>, ele disse, pessoas que não tinham<br />

família para reclamá-los, ou criminosos, corpos vindos dos cadafalsos. Ele disse<br />

que Deus enten<strong>de</strong>ria. Porque a sua glória viveria em nossa arte.<br />

— Ele? Quem é esse "Ele"?<br />

— Não sei seu nome. Era jovem, mas não havia nada que não conseguisse<br />

<strong>de</strong>senhar. Uma vez, levaram um garoto, <strong>de</strong> quinze ou <strong>de</strong>zesseis anos. Havia<br />

morrido <strong>de</strong> alguma coisa no cérebro, mas seu corpo estava perfeito. Ele disse<br />

que o menino era jovem <strong>de</strong>mais para ter sido corrompido. Disse que seria o<br />

nosso Jesus. Eu ia pô-lo no afresco. Mas antes que pu<strong>de</strong>sse pintá-lo, ele retornou<br />

com a sua Crucificação. Foi esculpida em cedro-branco. O corpo era tão<br />

perfeito, tão vivo, dava para sentir cada músculo, cada tendão. Tive certeza <strong>de</strong><br />

que era Cristo. Eu não podia...<br />

Interrompeu-se <strong>de</strong> novo. Soltei-o e recuei para po<strong>de</strong>r olhá-lo, avaliar o<br />

dano que essas palavras tinham lhe causado.<br />

— E quanto mais Deus fluía por ele mais o extenuava — disse eu<br />

calmamente. — Foi isso o que aconteceu?


Ele negou com a cabeça.<br />

— Você não enten<strong>de</strong>... você não enten<strong>de</strong>. Eu não <strong>de</strong>veria ter ido lá, nunca.<br />

Era tudo uma mentira. Não era Deus naquela sala, e sim outra coisa. O po<strong>de</strong>r da<br />

tentação. Depois que o exército chegou, Ele foi embora. Desapareceu. Os corpos<br />

pararam <strong>de</strong> chegar. A sala foi fechada. Havia rumores <strong>de</strong> corpos sendo<br />

encontrados na cida<strong>de</strong>. Uma garota e seu útero arrancado, o casal, o homem<br />

eviscerado. Nossos corpos... não sabemos... isto é... eu não sabia... — sacudiu a<br />

cabeça. — Não havia Deus naquela sala — repetiu, <strong>de</strong>ssa vez com raiva. — Era<br />

o Diabo, enten<strong>de</strong>? O frei diz que quanto mais pintamos o homem em vez <strong>de</strong><br />

Deus, mais per<strong>de</strong>mos a sua divinda<strong>de</strong>. O corpo é o Seu mistério. A Sua criação.<br />

Não cabe a nós compreendê-lo, somente adorá-lo. Cedi à tentação para<br />

conhecer. Desobe<strong>de</strong>ci e agora Ele me abandonou.<br />

— Oh, não, não... essa é a voz <strong>de</strong> Savonarola falando, não a sua — disse<br />

eu. — Ele quer que as pessoas tenham medo, que achem que Deus as<br />

abandonará. Assim, ficam sob seu controle, Esse pintor, quem quer que fosse,<br />

estava certo. Como po<strong>de</strong> ser maligno compreen<strong>de</strong>r o prodígio <strong>de</strong> Deus?<br />

Mas ele não respon<strong>de</strong>u.<br />

— E mesmo que fosse, Ele não o abandonaria por uma coisa assim —<br />

encorajei-o, aterrorizada com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perdê-lo novamente. — Seu<br />

talento é precioso <strong>de</strong>mais para Ele.<br />

— Você não enten<strong>de</strong> — repetiu e fechou os olhos com força. — Acabou,<br />

<strong>de</strong>sapareceu... Olhei fixo para o sol e meus olhos queimaram. Não posso mais<br />

pintar.<br />

— Não é verda<strong>de</strong> — disse eu baixinho, esten<strong>de</strong>ndo minhas mãos para ele.<br />

— Vi aqueles <strong>de</strong>senhos. Contêm verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais para serem ímpios.<br />

Você está só e perdido e foi tomado pelo <strong>de</strong>sespero. Tudo o que precisa é<br />

acreditar que voltará a enxergar e conseguirá. Suas mãos farão o resto. Dê-me<br />

suas mãos, pintor. Dê-me suas mãos.<br />

Ele ficou se balançando e choramingando por um momento, então,<br />

vagarosamente, soltou-as <strong>de</strong> seu corpo e esten<strong>de</strong>u-as a mim, as palmas para<br />

baixo. Segurei-as e, ao fazer isso, ele <strong>de</strong>u um grito <strong>de</strong> dor, como se o meu toque<br />

o tivesse queimado. Passei a segurá-lo pelas pontas dos <strong>de</strong>dos, frios como gelo,<br />

e virei suas mãos bem <strong>de</strong>vagar.<br />

— Oh. — Toda a minha <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za nunca seria o bastante. No meio <strong>de</strong><br />

suas palmas havia dois gran<strong>de</strong>s ferimentos, buracos escuros <strong>de</strong> sangue<br />

coagulado, a carne inchada ao redor <strong>de</strong> on<strong>de</strong> a infecção havia se instalado. Os<br />

buracos on<strong>de</strong> os pregos teriam penetrado. Pensei em São Francisco acordando<br />

em sua cela <strong>de</strong> pedra pleno do êxtase <strong>de</strong> Deus. E na minha própria intoxicação<br />

naquela noite, quando a dor do meu corpo tinha parecido quase um alívio à dor<br />

da minha mente. Mas a minha havia sido uma automutilação aci<strong>de</strong>ntal. Nem tão


profunda nem tão perdida quanto essa.<br />

— Oh, meu Deus — murmurei. — Oh, meu Deus. Que violência fez a si<br />

mesmo?<br />

Ao dizer isso, senti <strong>de</strong>sespero, como uma névoa venenosa filtrando-se<br />

nele, <strong>de</strong> novo, enchendo sua boca e seus ouvidos, asfixiando seu espírito com<br />

seus vapores. E agora fiquei realmente com medo, pois não podia mais saber ao<br />

certo se não vazaria também para mim.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, eu ouvira histórias <strong>de</strong> melancolia. Como até mesmo<br />

homens pios às vezes se per<strong>de</strong>m em sua jornada para Deus, e se entregam à<br />

auto<strong>de</strong>struição para aliviar o sofrimento. Um dos meus primeiros preceptores<br />

tinha caído nesse poço, <strong>de</strong>vastado pela falta <strong>de</strong> esperança e sentido, até minha<br />

mãe, tão generosa, dispensá-lo, receosa do impacto <strong>de</strong> sua tristeza sobre as<br />

nossas mentes jovens. Quando lhe perguntei sobre ele, ela respon<strong>de</strong>u que alguns<br />

acreditavam que essa tristeza era obra do Diabo, mas que ela acreditava ser uma<br />

doença da mente e dos humores, e que apesar <strong>de</strong> isso, geralmente, não matar,<br />

<strong>de</strong>bilitava a alma por muito tempo, e não era fácil <strong>de</strong> curar.<br />

— Tem razão — disse eu calmamente, afastando-me <strong>de</strong>le, agindo mais<br />

por instinto do que pela razão. — Você pecou. Mas não da maneira que imagina.<br />

Isso não é verda<strong>de</strong>, é <strong>de</strong>sespero, e <strong>de</strong>sespero é um pecado. Não consegue<br />

enxergar por que apagou a luz <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> você. Não po<strong>de</strong> pintar porque se <strong>de</strong>ixou<br />

seduzir pela auto<strong>de</strong>struição. Levantei-me.<br />

— Quando fez isso a si mesmo? Até on<strong>de</strong> chegou com os afrescos? —<br />

Falei e minha voz foi veemente.<br />

Aprumou o corpo por um momento, os olhos no chão.<br />

— Se não respon<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>scobrirei sozinha.<br />

Puxei-o para que ficasse em pé. Ru<strong>de</strong>mente. Sei que o machuquei.<br />

— Você é egoísta <strong>de</strong>mais, pintor. Quando tinha talento, não o partilhou.<br />

Agora que não tem, sente quase orgulho disso também. Você não abraçou o<br />

<strong>de</strong>sespero simplesmente, você pecou contra a esperança. O Diabo o merece.<br />

Conduzi-o pela capela até a pare<strong>de</strong> do lado esquerdo do altar. Ele foi sem<br />

resistir, como se seu corpo estivesse mais sob o meu controle do que sob o seu<br />

próprio, se bem que fosse o meu próprio coração que eu sentisse pulsando em<br />

meu peito.<br />

As lonas cobrindo as pare<strong>de</strong>s e o teto estavam conectadas, separadamente,<br />

por cordas duplas a uma estaca firmada no chão.<br />

— Vamos. Mostre-me essas obras esquecidas por Deus — disse eu. —<br />

Quero ver.<br />

Ele olhou diretamente para mim por um instante. E nesse instante, percebi<br />

algo <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sespero, uma espécie <strong>de</strong> reconhecimento, quase a<br />

compreensão <strong>de</strong> que, se não houvesse mais ninguém, eu teria <strong>de</strong> fazer. Virou-se


para as cordas e, tirando-lhes os nós, <strong>de</strong>ixou a primeira lona escorregar.<br />

Não havia muita luz nesse dia. Por isso é difícil explicar a<strong>de</strong>quadamente<br />

por que o impacto foi tão gran<strong>de</strong>. É claro que eu estava esperando algo diferente,<br />

alguma coisa que causasse perplexida<strong>de</strong>, algo ruim ou profano, e havia me<br />

preparado para o choque. Mas, em vez disso, fui abalada pela beleza.<br />

Os afrescos recém-pintados refulgiam a pare<strong>de</strong>: a vida <strong>de</strong> Santa Catarina<br />

dividida em oito partes, sua figura serena, graciosa, movendo-se em uma cor<br />

vibrante por seus primeiros anos, a casa <strong>de</strong> seu pai e seus milagres no campo.<br />

Como a sua Virgem na pare<strong>de</strong>, ela parecia conter não somente a paz <strong>de</strong> Deus,<br />

como também uma doçura humana exuberante só sua.<br />

Olhei para ele, mas ele não conseguiu sustentar meu olhar. O b<strong>rev</strong>e<br />

momento <strong>de</strong> conexão havia escapado e ele estava, <strong>de</strong> novo, sob o domínio <strong>de</strong><br />

seus próprios Demônios. Fui sozinha para o altar seguinte e soltei as cordas,<br />

fazendo a lona <strong>de</strong>slizar <strong>de</strong>vagar até o chão. A segunda pare<strong>de</strong> acompanhava-a <strong>de</strong><br />

seus triunfos até a sua morte. Era ali que a heresia começava a exsudar.<br />

Como toda boa florentina, eu sabia a história <strong>de</strong> mil santas, tinha lido as<br />

parábolas <strong>de</strong> suas tentações, sua bravura e o martírio final. Algumas iam mais ou<br />

menos <strong>de</strong> bom grado, nem todas com um sorriso beatífico no momento em que o<br />

fogo inflamava ou as facas afiavam-se, mas em algum lugar, em alguma forma,<br />

quando a morte chegava, irradiavam uma certeza do céu em seu sofrimento. Mas<br />

essa Santa Catarina não parecia tão certa <strong>de</strong> nada. Em sua cela, aguardando a<br />

execução, ao invés <strong>de</strong> serenida<strong>de</strong>, havia agitação, e, na cena final, on<strong>de</strong>, tendo<br />

<strong>de</strong>struído a roda, ela é arrastada em direção à espada do carrasco, a face que<br />

olhava acusadoramente o espectador era iluminada com um medo palpável,<br />

lembrando-me a agonia na garota do <strong>de</strong>senho.<br />

A última lona cobria tanto a pare<strong>de</strong> do altar quanto o telhado abobadado.<br />

Ao caminhar em direção ao molinete que o firmava, senti o suor na base <strong>de</strong> meu<br />

pescoço.<br />

Levantei a cabeça. A pare<strong>de</strong> do fundo oferecia uma hoste <strong>de</strong> anjos, suas<br />

asas abrindo-se em uma glória plúmea tirada dos pombos e pavões e <strong>de</strong> mil<br />

pássaros do paraíso imaginário, os olhos erguidos para o Pai Nosso que está no<br />

céu.<br />

E ali estava, no meio do teto, no trono dourado, refulgindo e glorificado,<br />

cercados pelos santos, plenos <strong>de</strong> sua própria luz sublime — o Diabo, seu corpo<br />

preto peludo espalhando-se no trono, suas três cabeças explodindo <strong>de</strong> seu<br />

pescoço, cada uma com a sua própria auréola <strong>de</strong> asas <strong>de</strong> morcego, e em suas<br />

presas, as figuras <strong>de</strong> Cristo e Maria, enfiadas pela meta<strong>de</strong> em sua boca, entre<br />

seus <strong>de</strong>ntes semelhantes aos <strong>de</strong> um cão.


Trinta e Um<br />

NÓS O LEVAMOS NA CARROÇA <strong>de</strong> meu pai. Ele não resistiu. Qualquer que<br />

fosse a luta que andara travando, tinha se encerrado, e parecia grato por qualquer<br />

<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> afeto. Quando Maria percebeu o que estávamos fazendo, acho<br />

que quis me <strong>de</strong>ter, mas ela já não tinha a mesma autorida<strong>de</strong>, e só lhe restava<br />

olhar e se queixar. Quando me perguntou, como fez repetidamente, o que estava<br />

acontecendo, respondi-lhe a mesma coisa que dissera na carta que <strong>de</strong>ixei para a<br />

minha mãe: que tinha encontrado o pintor doente, na capela, e o estava levando<br />

para a minha casa, para cuidar <strong>de</strong>le.<br />

De qualquer maneira, era a verda<strong>de</strong>. Que sofria <strong>de</strong> algum tipo <strong>de</strong><br />

enfermida<strong>de</strong> era óbvio a qualquer um que o visse quando o ajudamos a sair da<br />

capela e <strong>de</strong>scer para o pátio. Parecia que ia se esfacelar quando o sol o atingiu;<br />

um tremor terrível percorreu seu corpo e seus <strong>de</strong>ntes bateram até dar a impressão<br />

<strong>de</strong> que chocalhariam os ossos <strong>de</strong> seu crânio. Na meta<strong>de</strong> do caminho, <strong>de</strong>smaiou, e<br />

teve <strong>de</strong> ser carregado nos últimos lances <strong>de</strong> escada.<br />

Nós o envolvemos em mantas e o colocamos <strong>de</strong>licadamente na parte <strong>de</strong><br />

trás da carroça. Antes <strong>de</strong> o removermos da capela, Erila e eu suspen<strong>de</strong>mos <strong>de</strong><br />

novo as lonas, trancamos as duas portas e levamos as chaves conosco. Se<br />

chegou a achar alguma coisa do que viu nas pare<strong>de</strong>s e no teto, não me disse<br />

nada.<br />

Quando ultrapassamos os portões, já era quase noite. Sentei-me na parte<br />

<strong>de</strong> trás da carroça, Erila a conduzindo. Ela estava nervosa. Acho que foi a<br />

primeira vez que a vi <strong>de</strong>ssa maneira. Era, disse ela, uma má hora para estar na<br />

rua. Ao entar<strong>de</strong>cer, os jovens guerreiros <strong>de</strong> Savonarola saíam para impor o seu<br />

toque <strong>de</strong> recolher, enxotando homens e mulheres duas vezes mais velhos do que<br />

eles pela cida<strong>de</strong>, para as suas casas, para longe das tentações das ruas. E como<br />

tinham assumido a tarefa <strong>de</strong> dividir os a<strong>de</strong>ptos dos tentados, e ajudar os últimos<br />

fazendo com que sua jornada para casa fosse mais rápida e mais dolorosa, era<br />

preciso ter uma boa história pronta para qualquer eventualida<strong>de</strong>.<br />

Esbarramos com eles ao dobrarmos a esquina pelas gran<strong>de</strong>s alas do<br />

Palazzo Strozzi, um edifício que teria sido o maior palácio da cida<strong>de</strong> se não<br />

tivesse sido <strong>de</strong>ixado inacabado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a morte <strong>de</strong> Filippo Strozzi. Era uma morte<br />

que Savonarola tinha usado freqüentemente como material nos sermões, para<br />

ilustrar o absurdo <strong>de</strong> valorizar a riqueza mais do que a promessa da vida eterna.<br />

Nesse meio-tempo, a cida<strong>de</strong> se habituara tanto com a fachada inacabada do<br />

palácio, que não conseguia mais imaginar como seria se chegasse a ser<br />

completada.


Tinham usado a gran<strong>de</strong> pedra angular como seu posto <strong>de</strong> fronteira<br />

temporário. Havia cerca <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong>les no outro lado da rua, suas túnicas<br />

encardidas e sua semelhança com anjos distintamente artificial. O mais velho<br />

<strong>de</strong>les — seria esse o papel <strong>de</strong> Luca? — <strong>de</strong>stacou-se do resto e ergueu a mão na<br />

nossa frente. Erila parou a carroça, tão perto que o bafo dos cavalos fumegou<br />

seu rosto.<br />

— Boa noite, florentinas <strong>de</strong>votas. O que as traz às ruas ao escurecer?<br />

Erila curvou a cabeça, como fazia quando <strong>de</strong>sempenhava o papel <strong>de</strong><br />

escrava.<br />

— Boa noite, senhor. O irmão <strong>de</strong> minha ama está doente, e o estamos<br />

levando para casa para ser tratado.<br />

—Tão tar<strong>de</strong> e sem acompanhante.<br />

— O condutor <strong>de</strong> meu amo está nas orações <strong>de</strong> abstinência no outro lado<br />

da cida<strong>de</strong>. Partimos com a luz do dia, mas a roda da carroça atolou em um sulco<br />

e tivemos <strong>de</strong> esperar que fosse empurrada. Já estamos quase em casa.<br />

— On<strong>de</strong> está o inválido?<br />

Ela apontou para trás da carroça.<br />

O lí<strong>de</strong>r fez sinal para dois da turma e eles se aproximaram <strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu<br />

estava com o pintor oculto sob a manta, adormecido em meu colo. Um <strong>de</strong>les<br />

puxou as cobertas <strong>de</strong> seu corpo e o outro cutucou-o com uma vara.<br />

Ele acordou com um susto, saindo do meu colo e <strong>de</strong>batendo-se<br />

freneticamente, afastando-se <strong>de</strong>les para o fundo da carroça.<br />

— Não se aproximem, não se aproximem <strong>de</strong> mim. Tenho o Diabo em<br />

mim. Ele tem Cristo entre os <strong>de</strong>ntes e engolirá vocês também.<br />

— O que ele diz? — O garoto, que tinha o nariz tão pontiagudo quanto a<br />

vara, preparou-se para outra cutucada.<br />

— Não enten<strong>de</strong> a língua dos santos quando a ouve? — disse eu<br />

bruscamente. — Ele fala, em latim, da misericórdia <strong>de</strong> Cristo e do amor do<br />

nosso Salvador.<br />

— Mas o que ele disse do Diabo?<br />

É claro: graças a Savonarola, seu nome era mais famoso do que o <strong>de</strong><br />

Deus.<br />

— Ele diz que a misericórdia e amor <strong>de</strong> Cristo expulsará o Diabo <strong>de</strong><br />

Florença com a ajuda dos pios. Mas não po<strong>de</strong>mos per<strong>de</strong>r tempo. Meu irmão<br />

segue o Frei. Está <strong>de</strong>stinado a receber os paramentos em San Marco. A<br />

or<strong>de</strong>nação está planejada para a próxima semana. Por isso temos <strong>de</strong> levá-lo para<br />

casa e curá-lo antes da cerimônia.<br />

O garoto acenou. Aproximou-se e a ponta <strong>de</strong> seu nariz registrou a<br />

negligência do pintor com seu corpo.<br />

— Nossa! Ele não me parece muito com um frei. Olhem para ele... está


imundo.<br />

— Não está doente, está bêbado — disse o outro e percebi o lí<strong>de</strong>r vir em<br />

nossa direção.<br />

— Mantenha-o quieto, minha ama — soou a voz <strong>de</strong> Erila, impaciente e<br />

alto na frente da carroça. — Se ele se move, as bolhas po<strong>de</strong>m estourar. E o<br />

contágio é fácil com o pus.<br />

— Bolhas? Ele está com bolhas? — O garoto com a vara <strong>de</strong>u rapidamente<br />

um passo para trás.<br />

— Por que não disse logo? — O lí<strong>de</strong>r assumiu a <strong>de</strong>cisão, como todo bom<br />

lí<strong>de</strong>r faz. — Fiquem longe <strong>de</strong>le. Todos vocês. E você, mulher... leve-o daqui.<br />

E se certifiquem <strong>de</strong> que não se aproxime <strong>de</strong> nenhum mosteiro até estar<br />

curado.<br />

Erila bateu as ré<strong>de</strong>as com força e a carroça <strong>de</strong>u um solavanco à frente, a<br />

barricada se <strong>de</strong>sfez diante da ameaça <strong>de</strong> contágio. O pintor se enroscou <strong>de</strong> volta<br />

sob as mantas, resmungando por causa da nossa pressa <strong>de</strong>sajeitada. Esperei até<br />

estarem fora <strong>de</strong> vista e subi ao assento traseiro.<br />

— Ei, cuidado com a sua pele — disse ela quando <strong>de</strong>slizei para o seu<br />

lado. — Não quero nada <strong>de</strong> pus em mim.<br />

— Bolhas! — ri. — Des<strong>de</strong> quando o nosso exército <strong>de</strong>voto tem medo <strong>de</strong><br />

alguns furúnculos?<br />

— Des<strong>de</strong> que a infecção chegou — sorriu. — O seu problema é que não<br />

sai muito. Se bem que quem sai começa a se arrepen<strong>de</strong>r. Ninguém sabe <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

veio. Os boatos são <strong>de</strong> que os franceses a <strong>de</strong>ixaram nos buracos em que<br />

verterem seu sumo. Começou com as prostitutas, mas começa a se espalhar.<br />

Quando eram somente as mulheres infectadas, era conhecida como a doença do<br />

Diabo, mas agora que os fiéis começam a empolar, os rumores são <strong>de</strong> que Deus<br />

está testando a sua paciência como... qual foi aquele homem da Bíblia que<br />

mandou as pragas...<br />

— Jó — disse eu.<br />

— Jó. É esse. Se bem que aposto que Jó nunca teve nada parecido a essas<br />

Bolhas Francesas: gran<strong>de</strong>s bolas <strong>de</strong> calor e pus, que doem pra diabo e <strong>de</strong>ixam<br />

cicatrizes feias. Pelo que ouvi, está mantendo suas vítimas na cama com muito<br />

mais sucesso do que a doutrinação do Frei.<br />

— Oh, Erila — ri. — Suas intrigas são preciosas. Juro que <strong>de</strong>via <strong>de</strong>ixar eu<br />

lhe ensinar melhor as letras. Po<strong>de</strong>ria esc<strong>rev</strong>er uma história <strong>de</strong> Florença que<br />

rivalizaria com os contos da Grécia <strong>de</strong> Heródoto.<br />

Ela <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros.<br />

— Se vivermos o bastante para envelhecermos juntas, falarei e você<br />

esc<strong>rev</strong>erá. Só espero que cheguemos até lá. O que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> você saber o que<br />

está fazendo agora — disse ela, apontando para trás da carroça e batendo as


é<strong>de</strong>as por sobre a cabeça dos cavalos para que aumentassem a velocida<strong>de</strong><br />

enquanto o escuro cobria a cida<strong>de</strong>.<br />

Os cavalos <strong>de</strong> Cristoforo e Tomaso não estavam no pátio, e não havia luz<br />

em seu quarto. Or<strong>de</strong>nei aos cavalariços que carregassem o pintor até meu local<br />

<strong>de</strong> trabalho, do lado do meu quarto, on<strong>de</strong> armamos um catre para ele, explicando<br />

que era um homem santo da nossa família que adoecera quando meus pais<br />

estavam fora. Percebi o olhar severo <strong>de</strong> Erila, mas o ignorei. A alternativa era<br />

alojá-lo com os criados e, apesar <strong>de</strong> suas divagações em latim estarem seguras<br />

ali, se começasse a gritar sobre o po<strong>de</strong>r do Diabo em toscano seria mais sensato<br />

tê-lo longe dos ouvidos <strong>de</strong> crentes.<br />

Depois que foi instalado, chamamos o irmão mais velho do cavalariço,<br />

Filippo, para cuidar <strong>de</strong>le. Era um rapaz robusto, nascido com os tímpanos<br />

rompidos, o que o fazia parecer mais lerdo e idiota do que realmente era. Mas<br />

isso também conferia à sua força bruta uma certa <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, e como tal, era o<br />

único dos criados <strong>de</strong> meu marido a quem Erila <strong>de</strong>dicava algum tempo. Nos<br />

meses <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ali chegamos, ela apren<strong>de</strong>u sinais suficientes para torná-lo seu<br />

escravo voluntário (se bem que nunca perguntei como ela lhe pagava seus<br />

serviços). Agora ela lhe dava instruções para começar a preparar um banho para<br />

o pintor antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>spi-lo. De seu quarto, ela trouxe sua bolsa <strong>de</strong> remédios, que<br />

lhe fora transmitida por sua mãe, e que cheirava a exótico. Teria sua mãe tido a<br />

sabedoria <strong>de</strong> curar estigmas da mente assim como das mãos?<br />

— Diga-lhe que vamos lavá-lo e enfaixar suas mãos — disse Erila<br />

rapidamente. — Que ele compreenda bem.<br />

Ele estava sentado na ca<strong>de</strong>ira on<strong>de</strong> o tinham <strong>de</strong>ixado, seu corpo caído à<br />

frente, os olhos fixados no chão. Fui até ele e agachei-me do seu lado.<br />

— Agora você está seguro — disse eu. — Vamos cuidar <strong>de</strong> você. Cuidar<br />

<strong>de</strong> suas mãos e fazer com que se sinta melhor. Nada <strong>de</strong> ruim lhe acontecerá aqui.<br />

Está enten<strong>de</strong>ndo?<br />

Ele não respon<strong>de</strong>u.<br />

Ergui os olhos para ela, que fez um sinal para a porta.<br />

— E se...<br />

— ...fizer uma cena? Então racharemos seu crânio. Mas <strong>de</strong> um jeito ou <strong>de</strong><br />

outro, estará lavado e alimentado antes <strong>de</strong> aproximar-se <strong>de</strong>le <strong>de</strong> novo.<br />

Po<strong>de</strong> usar o tempo para pensar na história que contará a seu marido.<br />

Porque não vejo como a do parente santo funcionará com ele. E com isso, me<br />

empurrou para fora do quarto.<br />

Os primeiros dias foram os piores. Apesar <strong>de</strong> o pessoal da casa andar nas pontas<br />

dos pés à nossa volta, as intrigas eram mais ruidosas do que qualquer um dos


seus passos. O pintor, por sua vez, permanecia em uma espécie <strong>de</strong> estupor,<br />

mudo, ainda que rebel<strong>de</strong> à sua própria maneira. Apesar <strong>de</strong> ter permitido a Erila e<br />

Filippo o lavarem e enfaixarem suas mãos, continuava recusando-se a comer. O<br />

diagnóstico <strong>de</strong>la foi abrupto e direto.<br />

— Ele po<strong>de</strong> mover os <strong>de</strong>dos, o que significa que po<strong>de</strong> voltar a pintar, se<br />

bem que ninguém mais lera a sua sorte na palma <strong>de</strong> sua mão. Quanto ao outro<br />

problema: não existe planta ou ungüento, até on<strong>de</strong> sei, que possa curá-lo. Se<br />

insistir em não comer, isso o matará mais <strong>de</strong>pressa do que qualquer perda <strong>de</strong><br />

Deus.<br />

Durante toda essa noite, fiquei acordada atenta a ele. No ponto mais<br />

escuro da noite, ele sofreu uma espécie <strong>de</strong> acesso <strong>de</strong> choro, um som <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sespero tão fundo como se toda a dor do mundo transpirasse <strong>de</strong>le. Erila e eu<br />

nos encontramos em sua porta, mas o seu grito <strong>de</strong> dor acordara outros e ela não<br />

<strong>de</strong>ixou que eu entrasse.<br />

— Mas está sofrendo tanto. Acho que posso ajudá-lo.<br />

— Faria melhor se ajudasse a si mesma — disse com veemência. — Uma<br />

coisa é o marido quebrar as leis <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>, outra inteiramente diferente é a<br />

mulher fazer o mesmo. Eles são criados <strong>de</strong>le. Não têm tempo nem disposição<br />

para amá-la por sua obstinação. Vão traí-la, e o escândalo se propagará como<br />

uma linha <strong>de</strong> fogo pela vida <strong>de</strong> vocês dois. Volte para a cama. Eu cuidarei <strong>de</strong>le,<br />

não você.<br />

E como suas palavras me apavoraram, obe<strong>de</strong>ci.<br />

Quando na noite seguinte aconteceu <strong>de</strong> novo, seu grito foi mais brando.<br />

Eu estava acordada lendo, por isso escutei imediatamente, mas atenta às<br />

palavras <strong>de</strong> Erila, esperei que ela acorresse. Mas ou estava cansada <strong>de</strong>mais ou<br />

dormindo profundamente <strong>de</strong>mais. Receosa <strong>de</strong> que seu grito acordasse a casa<br />

toda <strong>de</strong> novo, saí furtivamente para verificar.<br />

O patamar estava vazio, Filippo tinha adormecido rápido do lado <strong>de</strong> fora<br />

<strong>de</strong> sua porta, <strong>de</strong>satento ao barulho. Passei por ele com cuidado e entrei. Se foi<br />

uma insensatez fazer aquilo, então tudo o que posso dizer é que ainda não me<br />

arrependo <strong>de</strong> tê-lo feito.


Trinta e Dois<br />

O QUARTO ESTAVA ILUMINADO por uma pequena lamparina a óleo, seu<br />

clarão <strong>de</strong>licado como a luz <strong>de</strong> vela na capela àquela noite, o cheiro <strong>de</strong> tinta e a<br />

parafernália do meu trabalho por toda parte. Ele estava <strong>de</strong>itado na cama, olhando<br />

fixo o espaço, a tristeza e o vazio como um lago à sua volta.<br />

Aproximei-me e sorri para ele. Sua face estava úmida, mas o choro tinha<br />

cessado.<br />

— Como está, pintor? — perguntei.<br />

Seus olhos me viram, mas não fizeram nenhuma associação.<br />

Sentei-me na beira da cama. Antes, ele se esquivaria da minha<br />

proximida<strong>de</strong>, mas agora não reagiu. Eu não sabia se a sua apatia era fraqueza ou<br />

paralisia do <strong>de</strong>sespero. Pensei em mim mesma, na noite <strong>de</strong> núpcias, e em como<br />

todo o meu mundo se partira em fragmentos à minha volta e em como, quando<br />

minha mente não conseguia mais trabalhar, meus <strong>de</strong>dos assumiram o controle.<br />

Mas ele havia mutilado, <strong>de</strong>liberadamente, seu único meio <strong>de</strong> salvação. Suas<br />

mãos jaziam incomodamente sobre a coberta, as ataduras limpas, sem mancha.<br />

Mas se lhe permitiriam ou não segurar uma pena, eu não sabia.<br />

Quando não há imagens, tudo o que resta são palavras.<br />

— Trouxe-lhe uma coisa — disse eu. — Se vai ser <strong>de</strong>vorado pelo Diabo,<br />

<strong>de</strong>ve ouvir outros que travaram a mesma batalha.<br />

Peguei o volume que eu ha quando seus gritos chamaram minha atenção.<br />

Apesar <strong>de</strong> não ter as ilustrações <strong>de</strong> Botticelli, o simples ato <strong>de</strong> registrar as<br />

palavras no papel era, em si mesmo, o trabalho <strong>de</strong> um amor muito profundo. Ao<br />

qual, agora, eu acrescentava o meu... falando lentamente, enquanto traduzia o<br />

italiano vernacular obsedante para o latim, esforçando-me para encontrar as<br />

palavras certas que o tocassem.<br />

Na meta<strong>de</strong> da jornada da vida,<br />

Despertei e me vi em uma floresta escura,<br />

Pois tinha-me extraviado do caminho verda<strong>de</strong>iro.<br />

Como é difícil contar como se parecia<br />

Essa floresta erma, selvagem e refratária,<br />

Até mesmo pensar nela me traz <strong>de</strong> volta todos os meus temores antigos.<br />

Um lugar tão triste, que nem na própria morte haverá<br />

mais tristeza...<br />

Continuei a ler o primeiro canto do Inferno, com suas florestas <strong>de</strong>


<strong>de</strong>sespero e animais selvagens do medo, mas sempre conduzindo ao primeiro<br />

vislumbre da colina acima iluminada pelo sol e um vestígio <strong>de</strong> esperança.<br />

Era a hora do amanhecer,<br />

o sol ascen<strong>de</strong>ndo com aquelas mesmas estrelas<br />

que o tinham acompanhado no primeiro dia do mundo,<br />

o dia em que o Amor Divino <strong>de</strong>u vida à sua beleza:<br />

portanto, a hora e a doce estação da criação<br />

encorajaram-me a pensar que po<strong>de</strong>ria passar...<br />

Relanceei os olhos para cima, enquanto recobrava o fôlego, e percebi que<br />

os seus tinham-se fechado. Sabia que não estava dormindo.<br />

— Você não está só, sabe? — disse eu. — Acho que muita gente a<br />

<strong>de</strong>terminada altura da vida sente as t<strong>rev</strong>as à sua volta, como se tivessem caído da<br />

mão <strong>de</strong> Deus, escorregado <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>dos para as rochas embaixo. Acredito que<br />

Dante também tenha sentido isso. Acho que o seu gran<strong>de</strong> talento tornou isso, <strong>de</strong><br />

certa forma, mais difícil para ele. Como se fosse esperado mais <strong>de</strong>le porque<br />

recebera tanto. Mas se ele conseguiu reencontrar seu caminho, nós também<br />

conseguiremos.<br />

Na verda<strong>de</strong>, eu, assim como meu marido, tínhamos achado mais trivial<br />

entrar no inferno do que no paraíso, mas tinha havido alguns momentos em que<br />

a luz sempre aquecera a minha alma. Eu os buscava agora, na esperança que<br />

aquecessem também a sua.<br />

— Quando eu era menina — disse eu para cobrir o silêncio enquanto<br />

procurava —, costumava achar que Deus era luz. Isto é... as pessoas me diziam<br />

que Ele estava em toda parte, mas nunca consegui vê-Lo. Mas aqueles que<br />

estavam plenos Dele eram sempre pintados com um halo <strong>de</strong> luz dourada ao seu<br />

redor. Quando Gabriel fala com Maria, suas palavras penetram seu peito em um<br />

rio <strong>de</strong> sol. Eu costumava me sentar e observar o sol atravessar as janelas a certas<br />

horas do dia, estudando a maneira como se estilhaçaria no vidro e enviaria<br />

pontos <strong>de</strong> luz ao chão. Pensava nisso como Deus se dividindo em uma saraivada<br />

<strong>de</strong> bonda<strong>de</strong>, que cada alfinetada <strong>de</strong> luz continha o mundo inteiro e Deus, assim<br />

como a si mesma. Lembro-me <strong>de</strong> que isso fazia minha mente estremecer,<br />

tentando agarrar-se a essa idéia. Depois, quando li Dante, encontrei alguns<br />

versos no Paraíso que parecem dizer a mesma coisa...<br />

E continuava a olhar para ele quando começou a falar.<br />

— Luz não — disse ele calmamente. — Para mim não era luz.<br />

Meus <strong>de</strong>dos pararam sobre a página.<br />

— Era o frio.<br />

Interrompeu-se.


— Frio? — falei. — Como?<br />

Respirou fundo, como se fosse a primeira vez em muito tempo, e, então,<br />

calou-se <strong>de</strong> novo. Esperei. Tentou <strong>de</strong> novo e, <strong>de</strong>ssa vez, as palavras saíram mais<br />

fáceis.<br />

— Fazia frio. No mosteiro. Às vezes, o vento vinha do mar, trazendo o<br />

gelo junto... Enregelava a pele do rosto. Um inverno, a neve estava tão funda<br />

que não pu<strong>de</strong>mos passar da porta para ir até o galpão <strong>de</strong> lenha. Um monge pulou<br />

<strong>de</strong> uma janela. Afundou-se no monte <strong>de</strong> neve e precisou <strong>de</strong> muito tempo para se<br />

levantar. Nessa noite, me colocaram para dormir do lado do fogão. Eu era<br />

pequeno, magro, como um pedaço <strong>de</strong> casca <strong>de</strong> vidoeiro. Mas então o fogo<br />

extinguiu-se.<br />

"O Padre Bernard levou-me para a sua cela... Foi ele quem primeiro me<br />

<strong>de</strong>u carvão e papel. Era tão velho que seus olhos pareciam que estavam<br />

chorando. Mas nunca estava triste. No inverno, usava menos cobertores do que<br />

nós todos. Dizia que não precisava <strong>de</strong>les porque Deus o aquecia."<br />

Ouvi-o engolir, sua garganta seca <strong>de</strong> falar. Erila tinha <strong>de</strong>ixado um pouco<br />

<strong>de</strong> vinho doce na mesa <strong>de</strong> cabeceira. Verti um pouco em um copo e o aju<strong>de</strong>i a<br />

beber.<br />

— Mas nessa noite, até mesmo o Padre Bernard sentiu frio. Deitou-me na<br />

cama do seu lado, envolveu-me em uma pele <strong>de</strong> animal e em seus braços.<br />

Contou-me histórias <strong>de</strong> Jesus. Como o Seu amor podia <strong>de</strong>spertar os mortos e<br />

como, com Ele no coração, podia-se aquecer o mundo... Quando acor<strong>de</strong>i estava<br />

claro. A neve tinha cessado <strong>de</strong> cair, Eu estava aquecido. Mas ele estava frio.<br />

Dei-lhe a pele, mas seu corpo estava enrijecido. Não sabia o que fazer. Então<br />

tirei um pedaço <strong>de</strong> papel <strong>de</strong> sua arca sob a cama e o <strong>de</strong>senhei, ali <strong>de</strong>itado. Havia<br />

um sorriso em sua face. Percebi que Deus estivera lá quando ele morreu. Que<br />

agora, Ele estava em mim, e que por causa do Padre Bernard, eu estaria<br />

aquecido para sempre.<br />

Engoliu <strong>de</strong> novo, e mais uma vez levei o copo à sua boca. Ele bebeu outro<br />

gole, <strong>de</strong>pois se <strong>de</strong>itou e fechou os olhos. Ficamos juntos na cela do monge por<br />

um tempo, esperando que a morte se tornasse vida <strong>de</strong> novo. Pensei na arca<br />

<strong>de</strong>baixo da cama <strong>de</strong> Padre Bernard e busquei na minha mesa <strong>de</strong> trabalho papel e<br />

carvão aliado, pronto para o momento em que seus <strong>de</strong>dos pu<strong>de</strong>ssem voltar a<br />

trabalhar.<br />

Coloquei-os em seu colo.<br />

— Quero ver como ele era — disse eu com firmeza. — Desenhe-o.<br />

Desenhe o seu monge para mim.<br />

Olhou para o papel, <strong>de</strong>pois para as próprias mãos. Observei a ponta <strong>de</strong><br />

seus <strong>de</strong>dos se dobrarem. Sentou-se na cama. Moveu sua mão direita até o<br />

pedaço <strong>de</strong> carvão e tentou fechar os <strong>de</strong>dos sobre ele. Vi-o estremecer <strong>de</strong> dor.


Usei o livro como <strong>de</strong>scanso para o papel e o apoiei sobre seus joelhos.<br />

Ergueu os olhos para mim. O <strong>de</strong>sespero atravessou seu rosto <strong>de</strong> novo.<br />

Insensibilizei meu coração à sua dor.<br />

— Ele <strong>de</strong>u-lhe o calor, pintor. Isto é o mínimo que po<strong>de</strong> fazer por ele<br />

antes <strong>de</strong> morrer.<br />

Ele começou a mover a mão pela página. O traço teve início, <strong>de</strong>pois<br />

escorregou. O carvão caiu no chão. Peguei-o e o pus <strong>de</strong> novo em sua mão.<br />

Delicadamente, coloquei minha mão em concha sobre a sua, entrelaçando meus<br />

<strong>de</strong>dos nos seus, com cuidado para não tocar no machucado, oferecendo meus<br />

músculos como lastro, quando tinha <strong>de</strong> empurrar o carvão. Aspirou<br />

profundamente. Fiz os primeiros traços com ele, <strong>de</strong>ixando-o guiar a linha.<br />

Lentamente, cuidadosamente, o contorno <strong>de</strong> uma face surgiu por <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong><br />

nossos traços. Depois <strong>de</strong> algum tempo, senti seus <strong>de</strong>dos se fortalecerem e retirei<br />

os meus. Observei quando, apesar da dor, completou o <strong>de</strong>senho.<br />

O rosto <strong>de</strong> um homem velho apareceu na página, seus olhos fechados, um<br />

meio sorriso em seus lábios, e embora não se inflamasse do amor <strong>de</strong> Deus,<br />

tampouco estava paralisado no vazio.<br />

O esforço lhe custara, e quando terminou, e o carvão caiu <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>dos, a<br />

sua pele estava cinza <strong>de</strong> dor.<br />

Peguei um pedaço do pão sobre a mesa e o molhei no vinho, <strong>de</strong>pois leveio<br />

a seus lábios.<br />

Aceitou-o e mastigou-o lentamente, tossindo um pouco. Esperei até que<br />

engolisse, <strong>de</strong>pois alimentei-o com um pouco mais. Aos pouquinhos, pedaço por<br />

pedaço, gole por gole.<br />

Por fim, sacudiu a cabeça. Se exagerasse, ele sentiria náusea.<br />

— Estou com frio — disse ele, por fim, os olhos ainda fechados. — Estou<br />

<strong>de</strong> novo com frio.<br />

Subi na cama e me <strong>de</strong>itei do seu lado. Pus meu braço sob a sua cabeça e<br />

ele se virou, enroscando-se, como uma criança em meus braços. Envolvi-me ao<br />

redor <strong>de</strong>le. Ficamos assim e ele foi se aquecendo em meus braços. Depois <strong>de</strong><br />

algum tempo, ouvi sua respiração se regularizar e seu corpo relaxar contra o<br />

meu. Senti-me em paz e muito feliz. Se não tivesse medo <strong>de</strong> também adormecer,<br />

acho que ficaria ali até amanhecer e sairia furtivamente antes da casa <strong>de</strong>spertar.<br />

Comecei a me mover sub-repticiamente, puxando bem <strong>de</strong>vagar meu braço<br />

direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> sua cabeça para me soltar. Mas o movimento perturbou-o e<br />

ele gemeu baixinho, rolando em seu sono, imprensando-me na cama com o peso<br />

<strong>de</strong> seu ombro e cabeça, e jogando seu outro braço sobre meu corpo.<br />

Esperei que se acomodasse para tentar <strong>de</strong> novo. Na luz da lamparina, seu<br />

rosto estava perto do meu. Apesar <strong>de</strong> a fome ter aguçado suas feições, a sua pele<br />

era quase translúcida, mais a pele <strong>de</strong> uma garota do que a <strong>de</strong> um rapaz. Suas


ochechas encovadas, porém, estranhamente, seus lábios permaneciam cheios.<br />

Eu podia traçar o subir e <strong>de</strong>scer <strong>de</strong> seus pulmões pelo calor <strong>de</strong> seu hálito em<br />

minha face. Erila e Filippo tinham feito um bom trabalho: a sua pele cheirava a<br />

camomila e outras ervas, e seu hálito tinha o cheiro forte do vinho doce. Olhei<br />

seus lábios. Meu marido tinha-me beijado na bochecha um dia, à porta do meu<br />

quarto. Tinha sido o único beijo que eu sentira, em minha vida, <strong>de</strong> um homem.<br />

Eu seria penetrada até produzir um her<strong>de</strong>iro, mas no que dizia respeito a ternura<br />

e paixão, eu permaneceria virgem. Ou, citando meu marido, o meu prazer seria<br />

problema só meu.<br />

Curvei-me e aproximei meu rosto do <strong>de</strong>le. Seu hálito atingiu-me em ondas<br />

doces e quentes. Dessa vez, a proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le não me fez tremer. Em vez<br />

disso, tornou-me audaciosa. Seu corpo estava tão ressequido que pu<strong>de</strong> perceber<br />

rachaduras na superfície <strong>de</strong> sua pele. Pus meus <strong>de</strong>dos na boca para molhá-los.<br />

Minha saliva era quente e secreta, uma transgressão em si mesma. Passei a ponta<br />

<strong>de</strong> meus <strong>de</strong>dos molhados levemente em seus lábios. Tocá-lo provocou um<br />

choque agudo lá <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, mas palpitante, como a sensação ao <strong>de</strong>scobrir<br />

meu machucado interior. Eu podia ouvir meu coração pulsando em meus<br />

ouvidos, como na tar<strong>de</strong> em que procurara Deus nos raios <strong>de</strong> sol e não O<br />

encontrara. Nem todo calor encerrava uma <strong>rev</strong>elação. Algumas tem-se <strong>de</strong> achar<br />

sozinho. Movi meus <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> seu rosto para o seu peito. A túnica que tinham<br />

encontrado para ele era gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais para seu corpo emaciado e seus ombros<br />

estavam expostos. A ponta do meu <strong>de</strong>do era o mais fino dos pincéis. Lembro-me<br />

da hilarida<strong>de</strong> da linha brilhante <strong>de</strong> meu próprio sangue naquela noite, no escuro,<br />

e imaginei cores fluindo <strong>de</strong> mim para ele, a sua pele transformando-se em<br />

rastros <strong>de</strong> azul índigo ou açafrão selvagem sob o meu <strong>de</strong>do. Sua pele estava<br />

quente. Murmurou ao meu toque, agitando-se em seu sono. Meus <strong>de</strong>dos<br />

pararam, pairaram incertos, <strong>de</strong>pois se moveram <strong>de</strong> novo. O açafrão tornou-se<br />

ocre vivo, <strong>de</strong>pois púrpura escura. Logo ele estaria coberto <strong>de</strong> cores.<br />

Cheguei minha boca para perto da sua. E para que não tenham dúvidas,<br />

<strong>de</strong>vo dizer que sabia perfeitamente o que estava fazendo. Com isso quero dizer<br />

que o fazer e eu éramos um só. E não tive medo. Meus lábios encontraram os<br />

seus, e sua sensualida<strong>de</strong> me fez <strong>rev</strong>olver por <strong>de</strong>ntro. Senti ele se agitar contra<br />

meu corpo e reprimir um gemido quando sua boca abriu e encontrou minha<br />

língua.<br />

Seu corpo estava tão magro que era como se eu segurasse uma criança.<br />

Meu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>rramou-se sobre ele e quando nossos torsos se comprimiram, senti<br />

seu sexo erguer-se contra minha coxa. Em algum lugar em mim, uma centelha<br />

acen<strong>de</strong>u-se e foi se intensificando. Tentei engolir, mas não havia saliva<br />

suficiente. A minha vida inteira estava presente no fôlego que agora eu<br />

começara a tomar. Depois <strong>de</strong> ter o ar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim o que faria com ele? Eu o


eijaria <strong>de</strong> novo ou o usaria para me afastar <strong>de</strong>le?<br />

Nunca tomei a <strong>de</strong>cisão. Porque agora ele se moveu, colocando-se sobre<br />

mim e me beijando, a língua sôfrega, se<strong>de</strong>nta com o seu gosto. De repente<br />

estávamos juntos, nos tocando e rolando sem fôlego, minhas entranhas em fogo,<br />

minha pele como um nervo exposto, e o que se seguiu foi tão rápido, seus <strong>de</strong>dos<br />

em minha pele tão atrapalhados e <strong>de</strong>sajeitados que, quando ele encontrou o<br />

caminho para o meu sexo, não posso dizer se senti choque ou prazer, se bem que<br />

me fez gritar tão alto que temi sermos <strong>de</strong>scobertos. O que sei é que quando<br />

levantei a camisola e aju<strong>de</strong>i-o a me penetrar, ele abriu seus olhos pela primeira<br />

vez e, durante esse b<strong>rev</strong>e instante, olhamos um para o outro, incapazes <strong>de</strong> fingir<br />

que o que estava acontecendo não estava acontecendo. E havia nesse olhar tanta<br />

intensida<strong>de</strong> que pensei que por mais errado que fosse não po<strong>de</strong>ria haver nenhum<br />

mal, e que se os homens não pu<strong>de</strong>ssem nos perdoar, possivelmente Deus<br />

perdoaria. E ainda acredito nisso, assim como acredito que Erila estava certa ao<br />

dizer que a inocência, às vezes, po<strong>de</strong> ser tão perigosa quanto o conhecimento,<br />

embora haja muitos que diriam que tais pensamentos simplesmente provam a<br />

profun<strong>de</strong>za da minha danação.<br />

Quando tinha acabado e ele <strong>de</strong>itou-se sobre mim, ofegante com a segunda<br />

chance <strong>de</strong> vida que recebera, abracei-o e falei com ele como a uma criança,<br />

dizendo tudo o que me ocorria para impedir que retornasse a seu medo. Até<br />

esgotar todo o meu repertório e me ver recitando o que conseguia me lembrar<br />

dos versos do último canto <strong>de</strong> Dante, sem querer pensar na heresia que talvez<br />

minha recitação implicasse:<br />

Nesse abismo vi como o amor une<br />

Em um único ser todas as folhas cujo vôo<br />

Propaga-se pelo universo<br />

Que substância, aci<strong>de</strong>nte e atributo unidos,<br />

Fundidos, juntos por assim dizer, <strong>de</strong> tal forma<br />

Que tudo o que digo é apenas uma idéia pálida.


Trinta e Três<br />

EM MEU QUARTO, ME LAVEI. Se tivesse tido tempo, talvez me ocorressem<br />

um milhão <strong>de</strong> pensamentos.<br />

— Por on<strong>de</strong> andou?<br />

Virei-me.<br />

— Oh, meu Deus, Erila, você me assustou!<br />

— Ótimo. — Nunca a tinha visto tão irritada. — On<strong>de</strong> você estava?<br />

— Eu...ahn... O... pintor acordou. Eu... achei que você estava dormindo.<br />

Portanto... fui ver se ele estava bem.<br />

Ela me olhou com um <strong>de</strong>sdém óbvio. Meu cabelo estava <strong>de</strong>sgrenhado e eu<br />

sabia que meu rosto estava vermelho. Baixei o pano e ajeitei a camisola,<br />

mantendo os olhos baixos.<br />

— Eu... hum... eu consegui fazer com que aceitasse um pouco <strong>de</strong> pão e<br />

vinho. Ele agora está dormindo.<br />

Ela moveu-se rápido, agarrando-me pelos ombros e me sacudindo com<br />

tanta força que gritei. Não me lembrava <strong>de</strong> ela ter-me machucado antes. Quando<br />

parou, continuou apertando meus braços, seus <strong>de</strong>dos penetrando minha pele.<br />

— Olhe para mim. — Sacudiu-me <strong>de</strong> novo. — Olhe para mim.<br />

Olhei. E ela sustentou meu olhar, como se não pu<strong>de</strong>sse acreditar no que<br />

estava vendo.<br />

— Erila — disse eu —, eu...<br />

— Não minta para mim.<br />

Parei no meio da frase.<br />

Ela me sacudiu <strong>de</strong> novo, <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> súbito, me largou.<br />

— Não escutou nem uma palavra do que eu lhe disse? Não? Acha que<br />

faço tudo isso para o meu próprio bem?<br />

Pegou a flanela on<strong>de</strong> tinha caído, do lado da bacia, e molhou-a na água.<br />

Levantou a minha camisola e começou a passar a flanela na minha pele, sobre<br />

meus seios e barriga e por minhas pernas e entre elas, até mesmo na minha<br />

fenda, grosseiramente, me machucando, como uma mãe com uma filha teimosa.<br />

Depois <strong>de</strong> um tempo, comecei a chorar, tanto por medo quanto porque<br />

machucava, mas isso não a <strong>de</strong>teve.<br />

Quando finalmente terminou, jogou a flanela na bacia e uma toalha para<br />

mim. Observou enquanto, emburrada, eu me enxugava, choramingando,<br />

reprimindo as lágrimas, tentando não sentir vergonha.<br />

— Seu marido está <strong>de</strong> volta.<br />

— O quê? Oh, meu Deus. Quando chegou? — E nós duas sentimos o


pânico em minha voz.<br />

— Há mais ou menos uma hora. Não ouviu os cavalos?<br />

— Não. Não.<br />

Ela bufou alto.<br />

— Ainda bem que eu sim. Ele perguntou por você.<br />

— E o que respon<strong>de</strong>u?<br />

— Que estava cansada e dormindo.<br />

— Contou para ele?<br />

— Que parte da história? Não, não disse nada. Mas estou certa que os<br />

criados contarão, se já não o tiverem feito.<br />

— Ótimo — disse eu, tentando parecer tranqüila. — Bem, eu... falarei<br />

com ele amanhã.<br />

Ela me olhou por um momento. Depois sacudiu a cabeça claramente<br />

exasperada.<br />

— Não enten<strong>de</strong> mesmo, enten<strong>de</strong>? Deus meu, como é possível que sua<br />

mãe e eu não tenhamos lhe ensinado. Mulheres não po<strong>de</strong>m fazer o mesmo que<br />

os homens fazem. Não é assim que as coisas funcionam. Elas são <strong>de</strong>struídas por<br />

eles.<br />

Mas eu estava muito assustada e, <strong>de</strong> repente, achei que quem não estava<br />

comigo estava contra mim.<br />

— Ele disse que a minha vida era só minha — disse eu com raiva. — Foi<br />

parte da barganha.<br />

— Oh, Alessandra, como po<strong>de</strong> ser tão boba? Você não tem uma vida. Não<br />

como ele tem. Ele po<strong>de</strong> fo<strong>de</strong>r quem quiser. Ninguém nunca o acusará. Mas<br />

acusarão você.<br />

Sentei-me, envergonhada.<br />

— Eu... eu não...<br />

— Não. De novo não. Não minta <strong>de</strong> novo.<br />

Ergui os olhos.<br />

— Simplesmente aconteceu — disse eu calmamente.<br />

— Simplesmente aconteceu? Aha... — soprou enchendo as bochechas,<br />

meta<strong>de</strong> risada, meta<strong>de</strong> fúria. — Sim, bem, sempre acontece.<br />

— Eu não... quer dizer, ninguém precisa saber. Ele não vai contar. Nem<br />

você.<br />

Deu um suspiro, irritada, como se estivesse lidando com uma criança a<br />

quem já repetira a mesma coisa centenas <strong>de</strong> vezes. Virou-se e ficou <strong>de</strong> lá para cá<br />

no quarto, extravasando sua ansieda<strong>de</strong>. Finalmente, parou e virou-se para mim.<br />

— Ele gozou?<br />

— O quê?<br />

— Ele gozou? — sacudiu a cabeça. — Se o seu conhecimento da vida nas


uas fosse tão <strong>de</strong>senvolvido quanto o intelectual, po<strong>de</strong>ria governar a cida<strong>de</strong>,<br />

Alessandra. O fluido <strong>de</strong>le entrou em você?<br />

— Eu... ahn... Não tenho certeza. Talvez. Acho que sim.<br />

— Quando sangrou pela última vez?<br />

— Não sei. Há <strong>de</strong>z dias, talvez duas semanas.<br />

— Quando o seu marido a penetrou pela última vez?<br />

Baixei a cabeça.<br />

— Alessandra. — Ela quase não pronunciava meu nome, mas agora não<br />

parava <strong>de</strong> dizê-lo. — Preciso saber.<br />

Ergui os olhos para ela e recomecei a chorar.<br />

— Nunca mais <strong>de</strong>s<strong>de</strong>... a noite do casamento.<br />

— Oh, Cristo. Bem, é melhor que faça <strong>de</strong> novo. E logo. Po<strong>de</strong> conseguir<br />

isso?<br />

— Acho que sim. Não falamos sobre isso há algum tempo.<br />

— Pois fale agora. E consiga. A partir <strong>de</strong> agora, não se aproxime do pintor<br />

sem uma acompanhante no quarto. Está me ouvindo?<br />

— Mas...<br />

— Não! Nada <strong>de</strong> mas... Vocês dois estavam fadados a serem amantes<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que puseram os olhos um no outro, só que eram jovens <strong>de</strong>mais para<br />

saberem disso. Sua mãe nunca <strong>de</strong>veria ter permitido que ele ficasse na casa.<br />

Bem, agora é tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais. Você vai sob<strong>rev</strong>iver. E se ele é capaz <strong>de</strong> encontrar<br />

seu buraco, espero que consiga encontrar o caminho <strong>de</strong> volta à vida. É o tipo <strong>de</strong><br />

ressurreição que freqüentemente inflama o apetite em homens.<br />

— Oh, Erila, você não enten<strong>de</strong>, não foi assim.<br />

— Ah não? Então como foi? Ele pediu a sua permissão ou você se<br />

ofereceu?<br />

— Não — repliquei com firmeza. — Eu comecei. A culpa foi minha.<br />

— E aí? Ele não fez nada? — E acho que se sentiu aliviada por ver que o<br />

meu espírito voltara.<br />

Dei <strong>de</strong> ombros. Olhou-me séria mais uma vez. Depois, se aproximou e me<br />

abraçou forte, abrindo as asas e cacarejando para mim como uma galinha mãe. E<br />

eu sabia que se ela me <strong>de</strong>ixasse, a minha coragem também me abandonaria.<br />

— Idiota, garota boba. — Murmurou insultos doces em meu ouvido,<br />

<strong>de</strong>pois se afastou um pouco e acariciou meu rosto, afastando meu cabelo<br />

emaranhado para trás, para me examinar melhor. — Então — disse ela baixinho.<br />

— Você fez? Finalmente. Como foi? Ouviu a doçura do som do alaú<strong>de</strong>?<br />

— Eu... na verda<strong>de</strong>, não — sussurrei, embora soubesse que tinha sentido<br />

algo.<br />

— Bem, é porque tem <strong>de</strong> fazer mais <strong>de</strong> uma vez. Eles, os homens, são<br />

lentos para apren<strong>de</strong>r. São só fúria, inépcia e pressa. A maioria não melhora.


Apenas faz. Mas há alguns, <strong>de</strong> vez em quando, que têm a humilda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

apren<strong>de</strong>r. Contanto que não <strong>de</strong>ixe que percebam que é você quem os está<br />

ensinando. Mas primeiro, tem <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir o seu próprio prazer. Po<strong>de</strong> fazer<br />

isso?<br />

Dei uma risada nervosa.<br />

— Não sei. Eu... acho que sim. Mas... não entendo, Erila. O que está me<br />

dizendo?<br />

— Estou dizendo que se vai quebrar as regras, então tem <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a<br />

fazer isso melhor do que qualquer um, digo qualquer um, que as cumpra. É a<br />

única maneira <strong>de</strong> vencê-los no seu jogo.<br />

— Não sei se consigo fazer isso... a menos que me aju<strong>de</strong>. Ela riu.<br />

— E quando não aju<strong>de</strong>i? Agora vá para a cama e durma. Vai precisar <strong>de</strong><br />

toda a sua sagacida<strong>de</strong> amanhã. Como todos nós.


Trinta e Quatro<br />

ELE ESTAVA SENTADO À MESA LENDO e bebendo vinho. A manhã ainda<br />

começava, mas o calor já era forte. Não nos víamos há várias semanas. Eu não<br />

sabia o quanto eu <strong>de</strong>via estar mudada. Nessa manhã, ao examinar meu rosto no<br />

espelho, não percebi nenhuma diferença óbvia. Ele, por outro lado, estava<br />

alterado. As linhas ao redor da boca estavam mais proeminentes, conferindo-lhe<br />

uma expressão severa permanente, e a sua pele estava mais avermelhada.<br />

Acompanhar o ritmo do meu irmão exigiria esforço <strong>de</strong> uma constituição jovem,<br />

que dirá uma mais velha. Sentei-me no lado oposto a ele e me cumprimentou.<br />

Eu não fazia idéia no que ele estava pensando.<br />

— Olá, minha mulher.<br />

— Olá, meu marido.<br />

— Dormiu bem?<br />

— Sim, obrigada. Lamento não ter estado aqui para recebê-lo. Ele<br />

dispensou minhas palavras com um gesto da mão. — Você está completamente<br />

recuperada <strong>de</strong> sua... indisposição?<br />

— Sim — disse eu. Depois <strong>de</strong> um tempo, acrescentei: — Estive pintando.<br />

E ele ergueu os olhos e juro que percebi prazer neles.<br />

— Ótimo. — Voltou a olhar para seus papéis.<br />

— Meu irmão está aqui?<br />

Relanceou os olhos para mim.<br />

— Por quê?<br />

— Eu...ahn, gostaria <strong>de</strong> cumprimentá-lo, se estiver.<br />

— Não, não. Foi para casa. Não está se sentindo bem.<br />

— Nada grave, espero.<br />

— Acho que não. Só um pouco <strong>de</strong> febre.<br />

Eu não teria uma outra oportunida<strong>de</strong> tão boa.<br />

— Tenho algo a lhe dizer.<br />

— Sim?<br />

— Temos visita.<br />

Dessa vez ele ergueu a vista.<br />

— Eu soube.<br />

Contei com simplicida<strong>de</strong>, conformando o relato a uma história <strong>de</strong> arte e<br />

beleza: as maravilhas que o pintor podia criar e o medo <strong>de</strong> que não fosse mais<br />

capaz disso. Acho que fiz o melhor que pu<strong>de</strong>, embora saiba que estava mais<br />

nervosa do que gostaria. Ele não tirou os olhos <strong>de</strong> mim nem uma vez sequer,<br />

nem mesmo quando o silêncio se impôs entre nós <strong>de</strong>pois que terminei.


— Alessandra... Lembra-se da nossa primeira conversa, não? Na noite do<br />

casamento.<br />

— Sim.<br />

— Então se lembra <strong>de</strong> que pedi várias coisas, com as quais você<br />

concordou. E uma <strong>de</strong>las foi a discrição.<br />

— Sim, mas...<br />

— Acha realmente que esse foi um ato discreto? Atravessar a meta<strong>de</strong> da<br />

cida<strong>de</strong> à noite, em uma carroça, trazendo um homem enlouquecido ao palazzo,<br />

na ausência <strong>de</strong> seu marido. Depois acomodá-lo em um aposento do lado do seu.<br />

— Ele estava doente... — interrompi-me. Sabia que não havia argumento.<br />

Segundo a interpretação <strong>de</strong> Erila das regras, eu tinha perdido todos os direitos.<br />

— Desculpe — eu disse. — Percebo que isso po<strong>de</strong> comprometê-lo. Mesmo se<br />

ele não for...<br />

— O que ele será ou não não é a questão, Alessandra. A questão é como é<br />

percebido. Isso, minha cara, é só o que, agora, interessa a esta cida<strong>de</strong>. Não a<br />

realida<strong>de</strong>, mas a percepção. É inteligente o bastante para saber disso tanto<br />

quanto eu.<br />

Dessa vez, ele <strong>de</strong>ixou o silêncio crescer.<br />

— Ele não po<strong>de</strong> ficar — disse eu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo, afirmando um<br />

fato e não fazendo uma pergunta.<br />

— Não, não po<strong>de</strong>.<br />

— Eu... ahn... <strong>de</strong> qualquer maneira, acredito que ele esteja melhor. — Eu<br />

tinha sabido por Erila que ele aceitara alimento nessa manhã. — Nesse caso, ele<br />

estará ansioso por retornar à casa dos meus pais. Ele tem <strong>de</strong> terminar um<br />

trabalho. Ele é um pintor maravilhoso, Cristoforo. Quando vir o altar concluído,<br />

vai enten<strong>de</strong>r.<br />

— Estou certo que sim. — Bebeu um gole do vinho. — Não falaremos<br />

mais nisso. — Pôs o copo, com cuidado, sobre a mesa, e ficou me observando<br />

por um momento. — Agora, tenho algo a lhe dizer. — Fez uma pausa. —<br />

Ontem, dois conhecidos meus foram <strong>de</strong>tidos por suspeita <strong>de</strong> fornicação<br />

in<strong>de</strong>cente. Tinham sido acusados por meio da caixa <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncias em Santa<br />

Maria Novella. Seus nomes não têm importância, embora você logo os ouvirá,<br />

pois são <strong>de</strong> boa família — interrompeu-se. — Embora não tão boa quanto as<br />

nossas.<br />

— O que vai acontecer com eles?<br />

— Serão interrogados e torturados na tentativa <strong>de</strong> verificarem as<br />

acusações e conseguirem mais nomes. Nenhum dos dois tem uma razão direta<br />

para me envolverem... mas, bem, uma vez puxado o fio, a roupa po<strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>sfazer rapidamente.<br />

Não era <strong>de</strong> admirar que a minha transgressão o tivesse irritado. Por outro


lado, se eu fosse Erila, certamente começaria a procurar potencial além <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sastre em um momento como esse.<br />

— Bem, senhor, talvez <strong>de</strong>vêssemos procurar uma maneira <strong>de</strong> protegê-lo<br />

melhor — fiz uma pausa. — Uma esposa grávida adiantaria para recuperar a sua<br />

reputação?<br />

Sorriu com um misto <strong>de</strong> diversão e <strong>de</strong>sagrado.<br />

— Certamente mal não faria. Mas você não está grávida. A menos que eu<br />

tenha entendido mal as palavras <strong>de</strong> sua escrava. E ela parecia falar bem claro.<br />

— Não — disse eu —, não estou — lembrando-me da mentira <strong>de</strong> Erila.<br />

— Mas se pu<strong>de</strong> conceber uma vez, po<strong>de</strong>rei outra. — Deixei o silêncio<br />

permanecer só por um pouco. — Estou em um bom momento para isso.<br />

— Entendo. E ficaria... satisfeita com isso?<br />

Olhei diretamente em seus olhos, e meu olhar não tremeu.<br />

— Sim — disse eu. — Ficaria.<br />

Levantei-me, inclinei-me, vagarosamente, sobre a mesa, beijando-o<br />

levemente na testa, antes <strong>de</strong> sair e retornar ao meu quarto.<br />

Não aborrecerei com <strong>de</strong>scrições da nossa segunda experiência <strong>de</strong> intercurso<br />

sexual. Minha reticência não tem a intenção <strong>de</strong> provocar ou fazer intriga. Se<br />

houvesse algo a relatar a mais do que a primeira vez, eu <strong>rev</strong>elaria com alegria.<br />

Quanto mais velha fico, mais tenho certeza <strong>de</strong> que o silêncio que cerca essas<br />

questões gera somente mais hesitação e mal-entendido. Mas, então, não houve<br />

nenhum mal-entendido entre nós. A nossa era uma parceria <strong>de</strong> negócios entre<br />

marido e mulher. E havia respeito e atenção o bastante para que eu, pelo menos,<br />

me sentisse mais como uma igual.<br />

Ao contrário da primeira vez, ele não saiu do quarto imediatamente.<br />

Ficamos juntos, quase como dois companheiros, durante algum tempo, tomando<br />

refrescos e conversando <strong>de</strong> arte, da vida, <strong>de</strong> questões <strong>de</strong> estado. E, <strong>de</strong>sse modo,<br />

ao relaxarmos, sentimos um certo prazer mútuo na nossa união, embora fosse<br />

originado da carícia das palavras e não da pele.<br />

— Quando soube disso? Ainda não virou boato.<br />

— Não? Bem, logo vai virar. Essas coisas não são mantidas em segredo<br />

por muito tempo.<br />

— Savonarola vai obe<strong>de</strong>cer?<br />

— Ponha-se no lugar <strong>de</strong>le, Alessandra. Você é o lí<strong>de</strong>r incontestável da<br />

cida<strong>de</strong>. Florença aguarda cada palavra sua. O púlpito é um lugar melhor <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

se governar do que a Signoria. Então, seu inimigo, o Papa, a proíbe <strong>de</strong> pregar<br />

sob pena <strong>de</strong> excomunhão. O que faz?<br />

— Acho que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do julgamento que mais temo, o do Papa ou o <strong>de</strong>


Deus.<br />

— Não acha que é heresia sugerir uma diferença entre os dois?<br />

— Bem, eu até posso achar que sim. Mas agora sou Savonarola. E ele não<br />

faz essa distinção. Deus vem em primeiro lugar para ele. Se bem que... —<br />

interrompi-me. — Ele não é tolo quando se trata <strong>de</strong> questões <strong>de</strong> estado. Mas<br />

tampouco o Papa é.<br />

— Então vai lhe interessar saber que há uma cenoura além da vara.<br />

— Qual é?<br />

— Um cardinalato, se ele concordar.<br />

— Oh! — refleti. — Não. Ele não vai aceitá-lo. Po<strong>de</strong> ser louco por Deus,<br />

mas não é hipócrita. Ele <strong>de</strong>spreza a corrupção da Igreja. Um cardinalato seria<br />

como aceitar as trintas moedas para trair Cristo.<br />

— Bem, veremos.<br />

— Cristoforo, como sabe disso tudo? — perguntei admirada.<br />

Ele fez uma pausa.<br />

— Não passo todo o meu tempo livre trepando com o seu irmão.<br />

Fui pega <strong>de</strong> surpresa.<br />

— Mas... mas achava que não se envolvia em coisas <strong>de</strong>sse tipo — falei,<br />

lembrando-me das palavras <strong>de</strong> minha mãe sobre ele.<br />

— Em tempos como os nossos, esta é a melhor maneira <strong>de</strong> se envolver,<br />

não acha? — fez uma pausa. — A oposição mais segura é a que não existe, até o<br />

momento certo.<br />

— Nesse caso, acho que <strong>de</strong>veria ter cuidado com quem fala sobre isso.<br />

— Tenho — disse ele, me olhando intensamente. — Acha que cometi um<br />

erro?<br />

— Não. — E minha voz foi firme.<br />

— Ótimo.<br />

— Mas tem <strong>de</strong> estar atento. Isso o torna um inimigo político, além <strong>de</strong> um<br />

inimigo moral.<br />

— É verda<strong>de</strong>. Mas <strong>de</strong>sconfio que quando inflamarem a palha <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong><br />

mim, não será a minha política que estarão queimando.<br />

— Não fale assim — disse eu. — Isso não vai acontecer. Por mais<br />

po<strong>de</strong>roso que seja, não po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>safiar o Papa para sempre. Haverá muitos<br />

<strong>de</strong>votos florentinos que se sentirão incomodados ao escutarem sermões <strong>de</strong> um<br />

padre excomungado.<br />

— Tem razão. Embora o Papa vá precisar escolher o melhor momento.<br />

Cedo <strong>de</strong>mais só incitará uma rebelião. Tem <strong>de</strong> esperar até que os rachas<br />

comecem a aparecer.<br />

— Então é melhor que tenha uma vida longa — disse eu. — Não vejo<br />

nenhum racha.


— O que quer dizer que não está olhando com atenção bastante, minha<br />

mulher.<br />

— Devia estar nas ruas quando seus guerreiros nos pararam com o<br />

pintor... — vi seu rosto turvar-se. — Está tudo bem. Não faziam idéia <strong>de</strong> quem<br />

nós éramos. Erila apavorou-os evocando as bolhas francesas.<br />

— Ah, sim, as bolhas. Então os nossos salvadores, os franceses,<br />

trouxeram com eles mais do que liberda<strong>de</strong> cívica.<br />

— Sim, mas é difícil abalar seu po<strong>de</strong>r.<br />

— Não por si só. Mas e se o verão continuar tão quente quanto o inverno<br />

foi frio? E se não chover e a safra for arruinada? Somos pios <strong>de</strong>mais para<br />

perseguir, hoje, a prosperida<strong>de</strong>, e a cida<strong>de</strong> já não produz tanto quanto produzia.<br />

E apesar <strong>de</strong> todo o seu exército <strong>de</strong> <strong>de</strong>votos, há ainda um louco rondando e<br />

usando os intestinos das pessoas como colares.<br />

— Houve outro corpo!<br />

Ele sacudiu os ombros.<br />

— Não foi divulgado. Os vigias <strong>de</strong> Santa Felicita encontraram restos<br />

humanos espalhados no altar ontem <strong>de</strong> manhã.<br />

— Oh...<br />

— Mas quando voltaram com ajuda, tinham <strong>de</strong>saparecido.<br />

— Acha que seus seguidores se livraram do corpo?<br />

— Que corpo? Realida<strong>de</strong> e percepção, lembra-se? Quando ele era<br />

oposição, essa profanação era uma dádiva do céu. Agora cheira a anarquia. Ou<br />

coisa pior. Pense bem. Se Florença é <strong>de</strong>vota, mas Deus é cruel com ela, então é<br />

só uma questão <strong>de</strong> tempo até seus a<strong>de</strong>ptos começarem a questionar<br />

publicamente se a sua é a pieda<strong>de</strong> do tipo certo.<br />

— Acha isso ou sabe? — perguntei. Pois até mesmo uma oposição que<br />

não existe <strong>de</strong>ve manter contato com vozes <strong>de</strong>ntro assim como <strong>de</strong> fora.<br />

Ele sorriu.<br />

— Veremos. Mas me diga, Alessandra, como se sente? Como me sentia?<br />

Tinha dormido com dois homens nas ultimas horas. Um alimentara meu corpo, o<br />

outro, a minha mente. Se Savonarola era realmente um mensageiro <strong>de</strong> Deus na<br />

terra, então eu já <strong>de</strong>veria estar sentindo as chamas lambendo meus pés. Mas, em<br />

vez disso, sentia-me surpreen<strong>de</strong>ntemente calma.<br />

— Sinto-me... plena — repliquei.<br />

— Bem, soube que o começo do verão é um bom momento para a<br />

concepção, se marido e mulher se encontram em um amor respeitoso, e não<br />

lascivo — fez uma pausa. — De modo que rezemos para o futuro.<br />

O pintor partiu na manha seguinte bem cedo. Erila viu-o antes <strong>de</strong> ele partir.


Contou-me que ele foi calmo e cortês com ela, e <strong>de</strong>ixou-a cuidar <strong>de</strong> suas mãos.<br />

Os ferimentos começavam a cicatrizar e, apesar <strong>de</strong> ainda estar fraco, tinha<br />

comido o bastante para adquirir um estado mais alerta, como se parte <strong>de</strong> seu<br />

espírito tivesse retornado. A última coisa que ela fez foi lhe dar as chaves da<br />

capela. Meus pais ainda ficariam fora por algumas semanas — as últimas<br />

notícias eram que meu pai estava melhorando com as águas. Ou ele encontraria<br />

vonta<strong>de</strong> e força para voltar a trabalhar os afrescos ou não. Eu não podia fazer<br />

mais nada para ajudá-lo agora.<br />

Depois que se foi, <strong>de</strong>itei-me em meu quarto pensando em que filho me<br />

agradaria mais: um com aptidão para política ou para a pintura?


PARTE TRÊS<br />

Trinta e Cinco<br />

MEU MARIDO DEMONSTROU ESTAR CERTO em relação a várias coisas,<br />

nos meses que se seguiram. Inclusive quanto ao tempo. O verão chegou com<br />

toda força, fumegante e fétido como o resfôlego <strong>de</strong> um cavalo, e a cida<strong>de</strong> ficou<br />

impregnada. On<strong>de</strong> dois anos antes tínhamos visto os bancos da igreja Santa<br />

Croce flutuando em direção à Catedral quando as chuvas da primavera<br />

chegaram, agora essas mesmas ruas produziam tempesta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> poeira quando as<br />

carroças passavam crepitando.<br />

No campo, as oliveiras brotando ressecavam como excrementos <strong>de</strong><br />

animais, e o solo estava tão duro que não fazia diferença <strong>de</strong> quando congelava.<br />

A medida que o calor progredia <strong>de</strong> agosto para setembro, a palavra estiagem<br />

começou a ser substituída pelo boato da fome. Sem água para lavar sua pureza,<br />

os Anjos <strong>de</strong> Savonarola começaram a exalar um cheiro menos puro. Mas, então,<br />

tinham menos o que policiar. Estava quente <strong>de</strong>mais para pecar. Estava quase<br />

quente <strong>de</strong>mais para rezar.<br />

O Papa fez exatamente o que meu marido tinha p<strong>rev</strong>isto e or<strong>de</strong>nou que<br />

Savonarola parasse <strong>de</strong> pregar. A oferta privada <strong>de</strong> um cardinalato tinha sido<br />

recusada com um pronunciamento público em que dizia que outro chapéu<br />

escarlate lhe conviria melhor, "um vermelho <strong>de</strong> sangue". Ainda assim<br />

Savonarola percebeu a política do momento o bastante para se retirar à sua cela<br />

para pedir a orientação <strong>de</strong> Deus. Até mesmo meu marido aplaudiu a sua<br />

perspicácia. Mas se era política ou sincerida<strong>de</strong>, era impossível saber. Para um<br />

homem santo, ele era um misto complexo <strong>de</strong> arrogância e humilda<strong>de</strong>.<br />

O tempo, a luta <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r — meu marido tinha predito tudo isso. Também<br />

tinha razão sobre o verão precoce. Revelou-se um bom momento para a<br />

concepção.<br />

Deitava-me em meu quarto obscurecido, vomitando tudo o que havia em<br />

meu estômago, dia e noite, em uma vasilha do lado da minha cama. Sentia um<br />

enjôo como nunca sentira na vida. Começou duas semanas <strong>de</strong>pois que meu<br />

sangue não <strong>de</strong>sceu. Acor<strong>de</strong>i, certa manhã, e ao tentar sair da cama, minha pernas<br />

ce<strong>de</strong>ram, meu estômago veio à minha boca e, <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>rramou-se no chão. Não<br />

consegui nem chegar à porta. Erila me encontrou ali, vomitando saliva, pois já


não havia mais nada para botar para fora.<br />

— Parabéns.<br />

— Estou morrendo.<br />

— Não, não está. Está grávida.<br />

— Como é possível? Isto não é um bebê, é uma doença.<br />

Ela riu.<br />

— Devia estar contente. Este nível <strong>de</strong> náusea significa que a gravi<strong>de</strong>z está<br />

bem fixada. Mulheres que não sentem nada quase sempre o per<strong>de</strong>m antes do fim<br />

da terceira lua.<br />

— E nas afortunadas? — perguntei entre vômitos. — Quanto tempo dura?<br />

Ela sacudiu a cabeça, passando um pano úmido na minha.<br />

— Dê graças a Deus por sua constituição — disse ela animadamente. —<br />

Vai lhe ser muito útil.<br />

Fui consumida pelas náuseas. Havia dias em que mal conseguia falar <strong>de</strong><br />

tão concentrada no aumento <strong>de</strong> nível da saliva em minha boca. Mas tinha seu<br />

lado positivo. Não pensava no pintor, em seus <strong>de</strong>dos na pare<strong>de</strong> ou na sensação<br />

<strong>de</strong> seu corpo contra o meu. Não me perguntava sobre meu marido nem me<br />

ressentia <strong>de</strong> meu irmão. E pela primeira vez em minha vida, não ansiei por<br />

minha liberda<strong>de</strong>. A casa já era um mundo gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais para mira.<br />

A minha doença fez maravilhas com a minha posição diante da<br />

criadagem. Antes eu era arrogante e pretensiosa, agora mal podia andar. Pararam<br />

<strong>de</strong> cochichar por minhas costas e começaram a colocar vasilhas em lugares<br />

estratégicos pela casa, <strong>de</strong> modo que eu pu<strong>de</strong>sse vomitar on<strong>de</strong> quer que a ânsia<br />

me dominasse. Até mesmo me procuraram com sugestões. Comi alho, mastiguei<br />

gengibre e bebi chá <strong>de</strong> terra. Erila vasculhou cada botica da cida<strong>de</strong> em busca <strong>de</strong><br />

remédios. Passou tanto tempo na loja Landucci, do lado do Palazzo Strozzi, que<br />

fez amiza<strong>de</strong> com seu proprietário, um homem <strong>de</strong> língua loquaz, comparável à<br />

sua. Ele mandou um cataplasma cheio <strong>de</strong> ervas e pedacinhos ressequidos <strong>de</strong><br />

animais mortos para ser colocado sobre meu estômago. Cheirava pior do que o<br />

meu vômito, se bem que me aliviou por alguns dias. Mas somente alguns dias.<br />

Meu marido, que andava mais ocupado do que nunca com questões que<br />

supostamente não existiam, ficou tão preocupado que trouxe um médico. Ele<br />

<strong>de</strong>u-me uma poção que me fez vomitar mais.<br />

Em meados <strong>de</strong> setembro, eu estava enjoada há tanto tempo que até mesmo<br />

Erila <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> se mostrar lépida comigo. Acho que receou que eu morresse. Eu<br />

me sentia tão nauseada que havia momentos em que acolheria a morte quase <strong>de</strong><br />

bom grado. Tornei-me soturna em meu sofrimento.<br />

— Nunca se perguntou sobre esse bebê... — disse-lhe uma noite em que<br />

estava sentada na minha cama abanando o calor terrível que grudara na minha<br />

pele como uma manta ensopada.


— Eu me perguntei o quê?<br />

— Se o meu enjôo não é uma espécie <strong>de</strong> castigo. Um sinal. De que talvez<br />

seja realmente filho do Diabo.<br />

Ela riu.<br />

— E se for, quando arranjou tempo para fornicar com ele naquela noite?<br />

— Falo sério, Erila. Você...<br />

— Ouça. Sabe qual a pior coisa que po<strong>de</strong> acontecer com você? Sua vida<br />

vir a tornar-se tranqüila, sossegada, e não lhe oferecer nada em que pensar. Você<br />

atrai drama como o cadáver <strong>de</strong> um cão atrai moscas. E a menos que eu esteja<br />

muito enganada, será sempre assim. É ao mesmo tempo a sua maravilha e a sua<br />

aflição. Mas quanto ao filho do Diabo... po<strong>de</strong> ter certeza <strong>de</strong> que se ele <strong>de</strong>sejasse<br />

gerar um her<strong>de</strong>iro nesta cida<strong>de</strong>, haveria milhares <strong>de</strong> candidatas mais<br />

merecedoras do que você.<br />

Nessa semana, minha irmã foi me visitar. A notícia da minha humilhação<br />

<strong>de</strong>via ser <strong>de</strong> conhecimento público.<br />

— Oh, olhe só para você! Está horrível. Seu rosto está emaciado. Ainda<br />

assim, sempre gostou <strong>de</strong> receber atenção. — Estava grávida <strong>de</strong> novo e comendo<br />

por dois. Mas me abraçou forte o bastante para que eu percebesse que estava<br />

preocupada comigo. — Coitadinha — disse ela. — Não faz mal, em b<strong>rev</strong>e estará<br />

bebericando vinhos doces e sentindo o gosto <strong>de</strong> pombo assado. Nosso<br />

cozinheiro tem a receita do molho <strong>de</strong> ameixa mais <strong>de</strong>licioso que existe.<br />

Senti o nível <strong>de</strong> saliva aumentar em minha boca e me perguntei,<br />

consi<strong>de</strong>rando-se a minha mira fabulosa nesses dias, se conseguiria vomitar<br />

direto no seu colo ou simplesmente sobre seus sapatos.<br />

— Como vai Illuminata? — perguntei para manter minha mente longe<br />

<strong>de</strong>sse esporte.<br />

— Oh, está crescendo no campo.<br />

— Não sente falta <strong>de</strong>la?<br />

— Estive com ela na vila, durante agosto. Mas ela se <strong>de</strong>senvolve melhor<br />

longe da cida<strong>de</strong> do que se estivesse aqui no calor e na poeira. Não faz idéia <strong>de</strong><br />

quantas crianças estão sucumbindo ao clima. As ruas estão cheias <strong>de</strong> caixões<br />

pequeninos.<br />

— Viu nossos irmãos?<br />

— Não sabe? Luca, agora, é comandante <strong>de</strong> brigada.<br />

— O que significa isso?<br />

Ela sacudiu os ombros.<br />

— Não faço idéia. Mas ele tem umas três dúzias <strong>de</strong> anjos sob seu<br />

comando e teve, até mesmo, uma audiência com o Frei.<br />

— Sabia que, por fim, alguém na família seria <strong>rev</strong>erenciado — disse eu.<br />

— E Tomaso?


— Oh, Tomaso! Não soube?<br />

Sacudi os ombros.<br />

— Tenho andado um pouco indisposta.<br />

— Ele está doente.<br />

— Não grávido, espero — disse eu com doçura.<br />

— Oh, Alessandra! — ela ria tanto que suas bochechas tremiam. Essa<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gordura podia me sustentar por semanas, pensei. Ela <strong>de</strong>u um<br />

suspiro ligeiro e afetado. — Bem, quando digo doente, o que quero realmente<br />

dizer é... — Baixou a voz era um sussurro dramático. — Ele está com as Bolhas.<br />

— Oh, mesmo?<br />

— Oh, mesmo. Oh, e <strong>de</strong>via vê-lo. Elas tomaram todo seu corpo. Urgh.<br />

Trancou-se em casa e recusa-se a receber visitas.<br />

E juro que pela primeira vez em dois meses, comecei a me sentir um<br />

pouco melhor.<br />

— E como pegou isso?<br />

Ela baixou os olhos.<br />

— Sabe dos boatos, não sabe?<br />

— Não — repliquei.<br />

— Sobre ele.<br />

— Quais?<br />

— Oh, não consigo pronunciar a palavra. Basta dizer que aqueles<br />

acusados da mesma coisa per<strong>de</strong>rão os narizes e a pele das costas quando seu<br />

julgamento for concluído. Consegue acreditar que homens façam essas coisas?<br />

— Bem — disse eu —, suponho que o pecado existe para Deus perdoá-lo.<br />

— Nossa pobre mãe — disse ela. — Imagina a vergonha. Retorna <strong>de</strong> meses no<br />

campo, cuidando do nosso pai para <strong>de</strong>scobrir que o seu próprio filho é.. .Tudo o<br />

que posso dizer é que, graças a Deus, na nossa família tem aqueles que se<br />

comportam com retidão.<br />

— Sim, <strong>de</strong> fato. Graças a Deus.<br />

— Não está contente por, agora, estar no caminho certo?<br />

— De todo coração — disse eu baixinho. — Quando disse que ela voltou?<br />

Enviei Erila para pedir que minha mãe viesse nessa mesma tar<strong>de</strong>. Nossa<br />

hostilida<strong>de</strong> já tinha durado tempo <strong>de</strong>mais, e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do que soubera ou<br />

não, eu precisava <strong>de</strong> seu bom senso. O fato <strong>de</strong> ela po<strong>de</strong>r trazer notícias do pintor<br />

era, juro, algo em que pensei somente <strong>de</strong>pois.<br />

Fiz um esforço para recebê-la bem. Erila vestiu-me e man<strong>de</strong>i que<br />

colocasse duas ca<strong>de</strong>iras na galeria <strong>de</strong> esculturas. O vento fazia uma corrente <strong>de</strong><br />

ar atravessar esse salão e achei que ela apreciaria como a beleza da pedra


permanecia tão fresca na bruma do calor. Lembrei-me do dia em que nos<br />

sentamos em meu quarto para discutirmos o meu casamento. Nesse dia, também<br />

fazia muito calor. Se bem que não como agora.<br />

Erila introduziu-a e ficamos olhando uma para a outra. Ela tinha<br />

envelhecido nos meses <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nosso último encontro. As costas perfeitamente<br />

eretas apresentavam apenas um indício <strong>de</strong> curvatura e, apesar <strong>de</strong> continuar a ser<br />

uma mulher bonita, pareceu-me que a luz em seus olhos tornara-se um pouco<br />

mais opaca.<br />

— Quanto tempo <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z? — perguntou, e percebei que estava<br />

chocada com a minha aparência.<br />

— Sangrei pela última vez em julho.<br />

— Onze semanas. Hah! Tentou mandrágora e semilla?<br />

— Ahn... não. Acho que <strong>de</strong>vem ser as únicas coisas que ainda não tentei.<br />

— Man<strong>de</strong> Erila consegui-las agora. Prepararei a beberagem eu mesma.<br />

Por que não mandou me chamar antes?<br />

Eu estava sem energia para começar uma discussão.<br />

— Eu... eu não queria preocupá-la...<br />

Ela era mais corajosa do que eu.<br />

— Não. Não é esta a razão. Foi tão agressiva comigo. Não a obriguei a<br />

casar-se com ele, sabe disso.<br />

Franzi o cenho.<br />

— Não, temos <strong>de</strong> conversar sobre isso. Não haverá futuro se não falarmos<br />

disso. Responda-me: mesmo que eu soubesse, e não sabia, mas mesmo que<br />

tivesse sabido... isso a <strong>de</strong>teria? Estava tão <strong>de</strong>terminada a ser livre.<br />

Não tinha pensado nisso antes. Como teria reagido se tivesse sabido.<br />

— Não sei — disse eu. — Você realmente não sabia?<br />

— Oh, minha criança, é claro que não...<br />

— Mas o via na corte. E reagiu <strong>de</strong> maneira tão estranha quando lhe<br />

perguntei sobre isso. Eu...<br />

— Alessandra — disse ela, interrompendo-me com firmeza —, nem tudo<br />

é como parece. Eu era muito jovem. E apesar da minha erudição, era muito<br />

ignorante. De todas as maneiras e sobre todo tipo <strong>de</strong> coisas.<br />

Como eu, pensei. Então, ela não sabia.<br />

— Quando <strong>de</strong>scobriu? — perguntei com calma.<br />

— Sobre seu irmão? — perguntou dando um suspiro. — Acho que sabia e<br />

não sabia fazia muito tempo. Sobre seu marido? Há três dias. Tomaso acha que<br />

está morrendo. Não está, mas quando um homem tão bonito fica tão feio,<br />

confun<strong>de</strong> isso com algo fatal. Acho que, finalmente, ele começou a perceber as<br />

conseqüências <strong>de</strong> suas ações. Está em um frenesi <strong>de</strong> dor e medo. No começo<br />

<strong>de</strong>sta semana, chamou um confessor para ser absolvido. Depois, me contou.


— A quem se confessou? — perguntei apreensiva, lembrando-me das<br />

histórias <strong>de</strong> Erila sobre padres que falavam.<br />

— Um amigo da família. Estamos seguros. Ou seguros como alguém<br />

conseguiria estar agora.<br />

Ficamos ali por algum tempo, assimilando uma as <strong>rev</strong>elações da outra.<br />

Examinei seu cansaço. Como meu marido se lembrava <strong>de</strong>la? Beleza, perspicácia<br />

e erudição. Seria sempre pecado ser tão confiante? Nosso Senhor <strong>de</strong>veria sempre<br />

haver por bem nos tirar isso à força?<br />

— Então, minha filha? Já faz muito tempo que não nos vemos. Como está<br />

indo?<br />

— Entre mim e ele? Como está vendo. Fizemos o casamento dar certo.<br />

— Sim, estou vendo. Ele falou comigo antes <strong>de</strong> eu vir. Ele é... —<br />

interrompeu-se. — Não sei. Ele é...<br />

— Um homem bom — disse eu. — Eu sei. Estranho, não?<br />

Há muito tempo queria conversar com minha mãe <strong>de</strong>ssa maneira.<br />

Falarmos <strong>de</strong> mulher para mulher, como alguém que tivesse percorrido a mesma<br />

estrada antes <strong>de</strong> mim, mesmo que não tivesse passado pelos mesmos lugares.<br />

— E meu pai?<br />

— Está... está um pouco melhor. Apren<strong>de</strong> a aceitar as coisas. E isso é uma<br />

recuperação.<br />

— Ele sabe sobre Tomaso?<br />

Ela sacudiu a cabeça.<br />

— Bem, Plautilla sabe e se sente ultrajada.<br />

— Oh, querida Plautilla — foi a primeira vez que a vi sorrir. — Ela<br />

sempre gostou <strong>de</strong> ultrajes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequena. Pelo menos, <strong>de</strong>ssa vez é por algo que<br />

vale a pena.<br />

— E você, mamãe? O que acha?<br />

Ela sacudiu a cabeça.<br />

— Sabe, Alessandra, estes são tempos difíceis. Acho que Deus observa<br />

tudo que fazemos e nos julga menos por nosso sucesso do que pelo quanto<br />

lutamos quando o caminho é penoso. Reza como eu man<strong>de</strong>i? Vai regularmente a<br />

igreja?<br />

— Só quando tenho certeza <strong>de</strong> que não vomitarei lá — repliquei com um<br />

sorriso. — Mas sim, rezo.<br />

Não estava mentindo. Tinha rezado constantemente ao longo dos últimos<br />

meses, <strong>de</strong>itada na cama com meu estômago virando, implorando uma<br />

intercessão que permitisse meu bebê ser saudável e não amaldiçoado, mesmo<br />

que não pu<strong>de</strong>sse fazer o mesmo por mim.Tinha havido momentos em que meu<br />

medo tinha sido tão gran<strong>de</strong> que eu <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> distinguir a náusea do meu corpo<br />

da náusea da minha mente.


— Então será atendida, minha filha. Acredite, Ele ouve tudo o que Lhe é<br />

dito, mesmo quando parece não ouvir.<br />

Suas palavras foram como um alívio temporário para febre. O Deus que<br />

governava Florença teria eu e a criança eternamente enforcadas por nossas<br />

tripas. O Deus que vi nos olhos <strong>de</strong> minha mãe nessa tar<strong>de</strong> tinha, pelo menos, a<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> distinguir gradações <strong>de</strong> culpa. Tinha sentido falta <strong>de</strong> sua<br />

inteligência brilhante e serena mais do que ousava admitir.<br />

— Tem notícias do pintor? — perguntei <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um tempo.<br />

— Sim. Maria me contou. Segundo suas palavras, a maior responsável foi<br />

você.<br />

Ri.<br />

— Eu? Imagine só. Como ele está? — pela primeira vez em meses, me<br />

permiti vê-lo diante <strong>de</strong> mim.<br />

— Bem, embora continue nada loquaz, parece recuperado do que quer que<br />

o tenha afligido.<br />

Sacudi os ombros.<br />

— Não foi muito sério. Acho que a sua solidão e a carga do trabalho o<br />

oprimiram.<br />

— Hummm — disse ela, que era o som que sempre fazia quando eu era<br />

pequena e ainda não <strong>de</strong>cidira se acreditava ou não em mim.<br />

— E a capela?<br />

— A capela? Oh, a capela está maravilhosa, um farol em nossa t<strong>rev</strong>a. A<br />

Assunção no teto é <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>ixar sem fôlego. O rosto <strong>de</strong> Nossa Senhora é o mais<br />

impressionante — fez uma pausa —, para aqueles que conhecem bem a família.<br />

Baixei os olhos para o chão para que não visse o rubor <strong>de</strong> prazer em<br />

minha face.<br />

— Ainda bem que ela está muito no alto. De qualquer maneira, quem me<br />

reconheceria agora? Está zangada?<br />

— É difícil se zangar com a beleza — respon<strong>de</strong>u simplesmente. — Ela<br />

possui uma graça tão inesperada e, como você diz, não serão muitos que a<br />

interpretarão como nós. Se bem que a sua irmã, é claro...<br />

— ...se sentirá ultrajada. — E <strong>de</strong>ssa vez, sorrimos. — Então, está<br />

concluída?<br />

— Não completamente. Embora ele garanta que estará para a primeira<br />

missa.<br />

— E quando vai ser?<br />

— Luca está ansioso, Tomaso, pela primeira vez, é cativo, e Plautilla<br />

adora um evento. Se a mandrágora e a semilla surtirem efeito, acho que<br />

po<strong>de</strong>mos planejá-la para o começo do mês que vem. Vai ser bom ter a família<br />

reunida <strong>de</strong> novo, não acha?


Trinta e Seis<br />

EMBORA FOSSE ÓTIMO DIZER que o remédio <strong>de</strong> minha mãe surtiu um<br />

efeito miraculoso na minha constituição, a verda<strong>de</strong> é que não funcionou melhor<br />

do que qualquer outra coisa. Ou talvez simplesmente levasse mais tempo para<br />

agir.<br />

Eu estava no quarto mês e tão magra que parecia mais uma vítima da<br />

fome do que uma mulher com um bebê, quando, <strong>de</strong> repente, o vômito, assim<br />

como veio, cessou. Acor<strong>de</strong>i certa manhã, e já me inclinava para a vasilha, pronta<br />

para pôr para fora mais do conteúdo <strong>de</strong> meu estômago vazio, quando me <strong>de</strong>i<br />

conta <strong>de</strong> que a náusea tinha-se ido. Minha cabeça estava <strong>de</strong>sanuviada e os sumos<br />

<strong>de</strong> meu estômago sossegados. Deitei-me <strong>de</strong> novo com a cabeça no travesseiro e<br />

pus minha mão sobre a protuberância que ainda só eu podia perceber.<br />

— Obrigada — disse eu. — E seja bem-vindo.<br />

Minha mãe tinha pedido que fôssemos um dia antes, <strong>de</strong> modo que Erila pu<strong>de</strong>sse<br />

ajudar nos preparativos e a família passasse um pouco <strong>de</strong> tempo junta. O verão<br />

tinha acabado e levado junto um pouco do calor escaldante, mas a estiagem<br />

permaneceu. Havia poeira por toda parte, nuvens <strong>de</strong> pó rodopiando das rodas e<br />

cascos <strong>de</strong> cavalos, cobrindo e sufocando os passantes. Algumas das pessoas por<br />

que passamos pareceram quase tão magras quanto eu. As tendas no mercado<br />

estavam meio vazias, <strong>de</strong>claração franca <strong>de</strong> uma safra arruinada, legumes e frutas<br />

pequenos e anômalos. Não havia sinal do homem da serpente. As únicas pessoas<br />

a fazerem bons negócios eram os penhoristas e os boticários. As Bolhas tinham<br />

<strong>de</strong>ixado sua marca. Mesmo aqueles curados tinham cicatrizes.<br />

A casa saiu para nos receber. Ele não — mas, então, sempre se mantivera<br />

à parte disso —, mas Maria, Lodovica e todos os outros. Todos que me<br />

saudaram ficaram chocados com a minha aparência, embora tentassem, em vão,<br />

não <strong>de</strong>monstrá-lo. Minha mãe beijou-me os dois lados da face e levou-me ao seu<br />

gabinete, on<strong>de</strong> meu pai, agora, passava todo o tempo.<br />

Estava sentado à mesa, com uma pilha <strong>de</strong> livros-razões na frente, e um par<br />

<strong>de</strong> lentes <strong>de</strong> aumento sobre o nariz. Não nos ouviu entrar e ficamos, por um<br />

momento, observando-o, enquanto <strong>de</strong>scia seus <strong>de</strong>dos por cada coluna, seus<br />

lábios se movendo silenciosamente enquanto contava, fazendo, em seguida,<br />

várias anotações na margem. Parecia mais um dos agiotas nas ruas do que um<br />

próspero comerciante da cida<strong>de</strong>. Mas, talvez, já não fosse tão próspero.<br />

— Ahh... Alessandra — disse ele ao me ver, meu nome ressoando como


um longo chiado vindo <strong>de</strong> seu peito. Levantou-se e era tão mais baixo do que eu<br />

me lembrava, como se alguma coisa em seu centro tivesse ruído e o resto do<br />

corpo se recurvado para <strong>de</strong>ntro para proteger o buraco.<br />

Abraçamo-nos e nossos ossos chocalharam juntos.<br />

— Sente-se, sente-se, sente-se, minha filha. Temos muito o que conversar.<br />

Mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> trocarmos gracejos, <strong>de</strong> ele me congratular pela boa-nova e<br />

perguntar como estava meu marido, parece que restou muito pouco a dizer, e<br />

seus olhos começaram a se extraviar, <strong>de</strong> volta às colunas e seus livros.<br />

Esses livros, com sua organização e exatidão, foram durante muitos anos<br />

o seu orgulho e alegria, a evidência escrita <strong>de</strong> nossa riqueza cada vez maior.<br />

Agora, enquanto ele olhava, parecia estar sempre encontrando erros, estalando a<br />

língua irritado ao sublinhá-los pesadamente, esc<strong>rev</strong>inhando mais cifras do lado.<br />

Minha mãe salvou-me um pouco <strong>de</strong>pois.<br />

— O que ele está fazendo? — perguntei enquanto saía sem fazer ruído.<br />

— Está... ele está cuidando <strong>de</strong> seus negócios. Como sempre fez —<br />

replicou rapidamente. — Mas... agora tem uma coisa que <strong>de</strong>via ver.<br />

E, assim, ela me levou à capela.<br />

Era realmente uma visão surpreen<strong>de</strong>nte. On<strong>de</strong> tinha sido pedra fria em<br />

uma luz fria, havia agora dois grupos <strong>de</strong> bancos <strong>de</strong> nogueira, cada um com suas<br />

extremida<strong>de</strong>s esculpidas e polidas. O altar estava no lugar, com um <strong>de</strong>licado<br />

painel da Nativida<strong>de</strong> no centro, iluminado pela seqüência <strong>de</strong> velas gran<strong>de</strong>s em<br />

castiçais <strong>de</strong> prata, seu fulgor dirigindo o nosso olhar para cima, para os afrescos<br />

das pare<strong>de</strong>s.<br />

— Oh!<br />

Minha mãe sorriu, mas enquanto eu andava na direção do altar, ela me<br />

<strong>de</strong>ixou só e, um pouco <strong>de</strong>pois, ouvi as portas se fecharem atrás <strong>de</strong>la. Com<br />

exceção <strong>de</strong> um pequeno pedaço <strong>de</strong> lona na parte inferior, meta<strong>de</strong> dos afrescos da<br />

pare<strong>de</strong> à esquerda estava concluída; completos, coerentes, belos.<br />

— Oh — repeti.<br />

Santa Catarina, em seu martírio, com gravida<strong>de</strong> e serenida<strong>de</strong>, a sua tortura<br />

apenas um estágio passageiro em sua jornada em direção à luz, sua face<br />

iluminada com quase a mesma alegria infantil da primeira Virgem na pare<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

seu quarto.<br />

Meu pai foi retratado à esquerda do altar, minha mãe no lado oposto.<br />

Estavam <strong>de</strong> perfil, ajoelhados, suas roupas sombrias, o olhar <strong>de</strong>voto. Para um<br />

homem que começara a vida na loja <strong>de</strong> um negociante <strong>de</strong> tecidos, era uma<br />

elevação digna, mas era minha mãe que chamava a atenção, mesmo <strong>de</strong> perfil seu<br />

olhar tão intenso e a postura tão alerta.<br />

Minha irmã personificava a figura da imperatriz visitando a santa em sua<br />

cela, sua roupa <strong>de</strong> casamento reproduzida fielmente com uma cor tão viva que


ela quase eclipsava a beleza serena da santa, enquanto Luca estava em um <strong>de</strong><br />

seus interlocutores, suas feições taurinas e o olhar inflexível exsudando uma<br />

certa presunção, embora, provavelmente, ele fosse interpretar como autorida<strong>de</strong>.<br />

E Tomaso... bem, Tomaso tinha tido seu <strong>de</strong>sejo satisfeito. Ah estava, curado <strong>de</strong><br />

sua aflição atual para os propósitos <strong>de</strong> posterida<strong>de</strong>, forte e elegante como um dos<br />

eruditos mais proeminentes da corte, um homem cujo senso <strong>de</strong> elegância era tão<br />

vibrante quanto sua mente. Nas gerações futuras, qualquer que fosse a família<br />

que rezasse ali, as garotas da casa teriam sua atenção dividida entre a <strong>de</strong>voção e<br />

o <strong>de</strong>sejo. Quão poucos saberiam...<br />

E eu? Bem, como minha mãe tinha insinuado, eu estava no céu, tão alto<br />

que a pessoa teria <strong>de</strong> ter a vista jovem e arriscar um torcicolo para apreciar a<br />

verda<strong>de</strong>ira profundida<strong>de</strong> da semelhança. Mas para enten<strong>de</strong>r realmente o po<strong>de</strong>r<br />

da transformação, seria preciso ter visto o que tinha sido pintado lá antes. O<br />

Diabo foi expulso <strong>de</strong> seu trono, todo sinal <strong>de</strong> canibalismo e terror per<strong>de</strong>u-se na<br />

luz difusa. Em seu lugar estava Nossa Senhora; não tanto uma belda<strong>de</strong> quanto<br />

uma alma substancial, sem nenhum sinal da <strong>de</strong>selegância <strong>de</strong> uma girafa,<br />

satisfeita, finalmente, com tudo o que haviam exigido <strong>de</strong>la.<br />

Fiquei com minha cabeça para trás, girando várias vezes para ver como<br />

cada pare<strong>de</strong> alcançava o teto, até ficar tonta e os afrescos parecerem nadar e<br />

rodopiar diante <strong>de</strong> meus olhos, como se as próprias figuras estivessem se<br />

movendo. Eu sentia uma espécie <strong>de</strong> alegria, como há muito tempo não sentia.<br />

Quando girei <strong>de</strong> novo, ele estava lá, na minha frente.<br />

Estava bem vestido e bem alimentado. Se ficássemos juntos, agora o seu<br />

corpo ocuparia mais lugar do que o meu. As minhas náuseas tinham mantido<br />

todo e qualquer <strong>de</strong>sejo à distância, mas sem elas, temi que minha mente<br />

estivesse tão atordoada quanto meu corpo.<br />

— Então? O que acha? — seu italiano tinha menos sotaque agora.<br />

— Oh, é lindo. — E me vi rindo largo, como se a felicida<strong>de</strong> transbordasse<br />

e eu não pu<strong>de</strong>sse fazer outra coisa a não ser <strong>de</strong>rramá-la. — É... é florentino —<br />

fiz uma pausa. — E você, está bem?<br />

Ele assentiu com um movimento da cabeça, seus olhos fixos nos meus,<br />

como se ali houvesse um texto que ele tentasse ler.<br />

— Não sente mais frio?<br />

— Não — replicou baixinho. — Não sinto mais frio. Mas você...<br />

— Eu sei — interrompi rapidamente. — Está tudo bem... estou melhor<br />

agora. — Tem <strong>de</strong> lhe contar, pensei. Tem <strong>de</strong> lhe contar. Se ninguém contou.<br />

Mas não consegui. Enquanto as palavras se esgotavam, ficamos olhando<br />

um para o outro, e continuamos assim. Se alguém entrasse... Lembrei-me <strong>de</strong><br />

quantas vezes o mesmo pensamento me ocorrera: seu quarto na primeira vez, na<br />

capela à noite, no jardim... Erila tinha me dito, certa vez, que a inocência po<strong>de</strong>


criar mais armadilhas do que o conhecimento. Mas em nossa inocência, sempre<br />

houvera conhecimento. Soube disso naquele momento. Queria tanto tocá-lo que<br />

minhas mãos doíam.<br />

— Então... — Minha voz soou estranhamente leve, como a escuma dos<br />

ovos quando são batidos. — Sua capela está pronta.<br />

— Não. Ainda não, Ainda falta uma coisa a ser completada.<br />

Por fim, esten<strong>de</strong>u a mão para mim. Quando a aceitei, meus <strong>de</strong>dos<br />

<strong>de</strong>slizaram pela pele grossa da sua palma, mas as cicatrizes eram tão ásperas que<br />

tive dúvidas <strong>de</strong> se ele sentiria o meu toque. Conduziu-me à pare<strong>de</strong> no lado<br />

esquerdo, on<strong>de</strong> tirou o pedaço <strong>de</strong> lona que restava. Embaixo da lona, havia um<br />

pequeno espaço em branco no afresco: o esboceto <strong>de</strong> uma mulher sentada, com<br />

suas saias cheias, o rosto voltado para uma janela na qual um pássaro branco<br />

<strong>de</strong>volvia seu olhar. Santa Catarina como uma jovem <strong>de</strong>licada, preparando-se<br />

para <strong>de</strong>ixar a casa <strong>de</strong> seu pai. A faixa comprida <strong>de</strong> gesso na sua imagem ausente<br />

ainda estava úmida.<br />

— Sua mãe me disse que você viria hoje <strong>de</strong> manhã. O gesseiro acabou<br />

ainda agora. Ela é sua.<br />

— Mas... não posso...<br />

Minha voz <strong>de</strong>sapareceu. Observei seu sorriso se alargar.<br />

— Não po<strong>de</strong> o quê? Não po<strong>de</strong> pintar uma garota que está para <strong>de</strong>safiar<br />

seus pais e o mundo para obe<strong>de</strong>cer à sua própria vocação? — pegou um pincel e<br />

esten<strong>de</strong>u-o a mim. — Nos esboços <strong>de</strong> sua irmã, você fez os panos <strong>de</strong> seu pai<br />

moverem-se como água. A pare<strong>de</strong> perdoa menos que o papel, mas você, <strong>de</strong><br />

todas as pessoas, não <strong>de</strong>ve temê-la.<br />

Fiquei olhando o espaço em que Santa Catarina estaria. Meu corpo todo<br />

pinicava. Ele tinha razão. Eu a conhecia. Sabia exatamente o que estava sentindo<br />

agora: o embate entre a excitação e a trepidação. Ela já estava pintada em minha<br />

mente.<br />

— Misturei ocre, tons <strong>de</strong> pele e dois vermelhos diferentes. Diga-me <strong>de</strong><br />

que outros tons precisa.<br />

Peguei o pincel em sua mão e foi impossível saber se o enjôo que senti foi<br />

pelo risco que corríamos ou pelo <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhá-la. A primeira pincelada e a<br />

visão daquela cor iri<strong>de</strong>scente <strong>de</strong>slizando do pincel na pare<strong>de</strong> venceram meu<br />

medo. Observei como meu pulso movia-se ao manobrar o pincel, a maneira<br />

como a or<strong>de</strong>m e a ação se conectavam in<strong>de</strong>levelmente. Tudo relacionado a isso<br />

era tão físico: a precisão <strong>de</strong> cada pincelada, a textura da tinta ao colidir com o<br />

gesso, como se uniam e aglutinavam, a excitação com a imagem crescendo e se<br />

arredondando sob seus <strong>de</strong>dos... oh, se eu tivesse sido Fra Filippo, jamais teria<br />

querido sair <strong>de</strong> minha cela.<br />

Não falamos. Ele trabalhava do meu lado, preparando as tintas e limpando


os pincéis. E assim, Catarina transformou-se em suas roupas, suas pernas rijas<br />

<strong>de</strong> camponesa, firmes mas ocultas sob o pano. E a sua expressão, quando chegou<br />

a sua vez, transmitia, espero, a coragem que era preciso assim como a graça<br />

recebida. Por fim, meus <strong>de</strong>dos ficaram entorpecidos com a tensão ao segurar o<br />

pincel.<br />

— Tenho <strong>de</strong> <strong>de</strong>scansar — disse eu, recuando da pare<strong>de</strong>. E quando me<br />

levantei buscando ar fresco, perdi o equilíbrio.<br />

Ele segurou meu braço.<br />

— O que há com você? Eu sabia. Está doente.<br />

— Não — disse eu. — Não. Não estou... — sabia o que tinha <strong>de</strong> dizer,<br />

mas não consegui emitir as palavras.<br />

Ficamos, <strong>de</strong> novo, olhando um para o outro. Eu não conseguia respirar.<br />

Eu não fazia idéia do que faria em seguida. Talvez nunca mais em nossa vida<br />

pudéssemos estar a sós novamente. Tínhamos nos cortejado nessa capela.<br />

Embora nenhum dos dois tivesse se dado conta <strong>de</strong> que tinha sido isso.<br />

— Eu não.<br />

— Eu queria...<br />

Mas a sua voz era mais urgente do que a minha.<br />

— Queria vê-la. Eu não sabia... Quer dizer, como você não veio, comecei<br />

a achar...<br />

Seus braços me cingiram e seu corpo me era tão familiar, como se durante<br />

esse tempo todo eu tivesse guardado uma cópia <strong>de</strong>le em minha mente. E senti o<br />

<strong>de</strong>sejo — pois agora eu sabia que era isso — se inflamar, como uma fonte<br />

quente, em meu estômago.<br />

O barulho da porta da sacristia se abrindo nos separou tão rápido que era<br />

possível que ele não nos tivesse visto. Que estava sofrendo, era óbvio pela<br />

maneira como andava, embora o sentimento que transmitisse fosse mais o <strong>de</strong><br />

fúria. Não era <strong>de</strong> admirar. Eu era como <strong>Vênus</strong> e Adônis em um único ser em<br />

comparação a ele agora. As bolhas tinham tomado seu rosto. Havia três, uma na<br />

bochecha esquerda, outra no queixo e uma terceira no meio <strong>de</strong> sua testa, como o<br />

olho <strong>de</strong> ciclope. Eram gran<strong>de</strong>s e estavam cheias <strong>de</strong> pus. Ele aproximou-se<br />

mancando. Era evi<strong>de</strong>nte que as tinha também entre as pernas. Mas pareciam não<br />

ter afetado seus olhos. Bem, saberíamos logo.<br />

— Tomaso — disse eu, movendo-me rapidamente em sua direção. —<br />

Como vai? Como está a doença? — juro que não havia nem uma pontinha <strong>de</strong><br />

triunfo em minha voz. Pois certamente o sofrimento nos torna solidários.<br />

— Não tão aceitável quanto a sua — olhou para mim sem piscar. — Mas<br />

Plautilla tem razão, você parece um espantalho. Formamos um belo par agora —<br />

riu com <strong>de</strong>sdém. — Então. Para quando é?<br />

— Ahn... a primavera. Abril, maio.


— Um her<strong>de</strong>iro para Cristoforo, hein? Trabalhou bem. Não achei que<br />

você tivesse essa habilida<strong>de</strong>.<br />

Senti o pintor enrijecer do meu lado. Relanceei os olhos para ele.<br />

— Provavelmente já sabe — disse eu, com uma voz que vibrava <strong>de</strong><br />

alegria — que estou grávida. Mas não passei muito bem, por isso ainda não<br />

aparece.<br />

— Grávida? — olhou fixo para mim. Os cálculos não eram difíceis, nem<br />

mesmo para um garoto criado em um mosteiro.<br />

Devolvi-lhe o olhar. Se ama um homem por sua franqueza, não po<strong>de</strong> ficar<br />

irritada quando ele a <strong>de</strong>monstra.<br />

Tomaso olhou para nós dois.<br />

— Tomaso, viu a capela? — disse eu, virando-me para ele com uma<br />

flui<strong>de</strong>z que faria meu professor <strong>de</strong> dança chorar <strong>de</strong> alegria. — Não acha que está<br />

maravilhosa?<br />

— Hummm. Muito bonita — mas continuava nos olhando.<br />

— A sua figura é a mais...<br />

— Lisonjeira — completou bruscamente. — Mas tínhamos um acordo, o<br />

pintor e eu, não tínhamos? E fantástico como temos segredos. Soube que foi<br />

minha irmã que o ajudou em sua... <strong>de</strong>safortunada enfermida<strong>de</strong>. Quando foi isso?<br />

No começo do verão, não foi? Há quantos meses exatamente?<br />

— Por falar em segredos — disse eu com meiguice, sempre o sinal mais<br />

seguro <strong>de</strong> mordacida<strong>de</strong> entre nós —, mamãe me contou que você se confessou.<br />

— Vamos, pensei, <strong>de</strong>ixe-o em paz. Você sabe que nós dois somos os melhores<br />

nesse jogo. Qualquer outro seria <strong>de</strong>rrotado facilmente.<br />

Ele fez uma carranca.<br />

— Sim... que gentil ela mantê-la informada.<br />

— Bem, ela sabe o quanto me preocupo com o seu bem-estar espiritual.<br />

Se bem que <strong>de</strong>ve ter sido um choque quando você percebeu que, afinal, não<br />

morreria.<br />

— Sim, mas vou lhe dizer uma coisa, irmã. Tem suas vantagens — fechou<br />

os olhos, como que saboreando o momento. — Como estava verda<strong>de</strong>iramente<br />

arrependido, agora estou salvo. O que me dá gran<strong>de</strong> conforto, como po<strong>de</strong><br />

imaginar. Se bem que <strong>de</strong>vo confessar que fiquei mais intolerante em relação aos<br />

pecados dos outros — e olhou <strong>de</strong> novo para o pintor. — Diga-me, como vai<br />

Cristoforo?<br />

— Está bem. Não o tem visto?<br />

— Não. Mas como está vendo, não sou mais uma bela companhia.<br />

Olhei para ele. Percebi o medo em sua fúria. Como era estranho um<br />

homem ter-se sentido tão amado e isso não ter gerado nenhuma ternura.<br />

— Sabe, Tomaso — disse eu —, não acho que a sua amiza<strong>de</strong> se baseie


somente na beleza — e por um segundo, me <strong>de</strong>sarmei. — Se é um consolo,<br />

tampouco eu o tenho visto. Tem andado ocupado com outras questões.<br />

— Sim, estou certo que sim. — Era quase possível tocar na ferida aberta<br />

em sua arrogância. Pensei, por um momento, que ele ia chorar. — Bem — disse<br />

rapidamente —, você e eu conversaremos mais outra hora. Já a ocupei por<br />

tempo <strong>de</strong>mais. — Apontou para o afresco quase terminado. — Por favor...<br />

voltem ao... que quer que estavam fazendo antes <strong>de</strong> eu interrompê-los.<br />

Nós o observamos sair mancando. Quando as bolhas estouram, quanto <strong>de</strong><br />

sua amargura <strong>de</strong>ve escoar junto com seu liquido, pensei. Sem dúvida,<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria do quanto as cicatrizes o <strong>de</strong>sfigurariam. Quanto ao que faria com as<br />

suas suspeitas, bem, preocupar-me com isso só me enfraqueceria para a luta, se<br />

houvesse.<br />

Virei-me para o pintor. Como po<strong>de</strong>ria enten<strong>de</strong>r o que acabara <strong>de</strong><br />

presenciar? Eu não tinha palavras, muito menos estômago para lhe contar.<br />

— Preciso terminar sua saia... — falei asperamente.<br />

— Não. Eu tenho <strong>de</strong>...<br />

— Por favor... Por favor, não me pergunte nada. Você está bem, a capela<br />

terminada, e eu espero um bebê. Temos <strong>de</strong> estar gratos.<br />

E, <strong>de</strong>ssa vez, fui eu que <strong>de</strong>sviei o olhar. Peguei o pincel e voltei para a<br />

pare<strong>de</strong>.<br />

— Alessandra!<br />

Sua voz <strong>de</strong>teve minha mão. Acho que foi a primeira vez que usou meu<br />

nome <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que nos conhecemos. Virei-me.<br />

— Não po<strong>de</strong> ficar assim. Você sabe disso.<br />

— Não! O que sei é que meu irmão é perigoso <strong>de</strong>mais e nós dois, agora,<br />

estamos à sua mercê. Não percebe? Temos <strong>de</strong> ser estranhos um para o outro.<br />

Você é o pintor. Eu sou a filha casada. É a única maneira <strong>de</strong> nos salvarmos.<br />

Virei-me para a pare<strong>de</strong>, só que o pincel estava tremendo <strong>de</strong>mais para que<br />

pu<strong>de</strong>sse usá-lo. Apertei o punho à sua volta e obriguei minha mão a se firmar,<br />

ficar tão firme quanto meu coração. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>le estava à minha volta. Tudo o<br />

que eu tinha a fazer era me virar e <strong>de</strong>ixar que me abraçasse. Coloquei o pincel na<br />

pare<strong>de</strong> e dirigi todo o meu <strong>de</strong>sejo à tinta.<br />

Depois <strong>de</strong> um tempo, juntou-se à mim, e quando minha mãe voltou à<br />

capela para me buscar, nos encontrou pintando um do lado do outro.<br />

E apesar <strong>de</strong> ela não ter dito nada, nessa noite mandou Erila para o<br />

alojamento dos criados e dormiu comigo em meu antigo quarto, on<strong>de</strong> ficou tão<br />

evi<strong>de</strong>ntemente inquieta que nem mesmo eu, que no passado tivera tanta coragem<br />

para sair a caminhar na noite, me at<strong>rev</strong>eria a arriscar seu olho semi-aberto.


Trinta e Sete<br />

A CONSAGRAÇÃO FOI REALIZADA PELO BISPO, que só se <strong>de</strong>morou<br />

tempo suficiente para comer e beber fartamente, e que foi embora com algumas<br />

peças <strong>de</strong> tecido esplêndidas e um cibório <strong>de</strong> prata. Supostamente teria um local<br />

on<strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r tudo isso, pois se os Anjos ficassem sabendo <strong>de</strong>sses presentes, o<br />

arrancariam <strong>de</strong> seu palácio e o jogariam em suas carroças antes <strong>de</strong> ele ter tempo<br />

<strong>de</strong> dizer Ave Maria.<br />

O padre que realizou a missa <strong>de</strong>pois foi o confessor <strong>de</strong> Tomaso. Era<br />

amigo da família <strong>de</strong> minha mãe há muito tempo, quem me iniciou no catecismo<br />

e ouviu as minhas primeiras confissões. Só Deus sabe quantos pecados enfeitei<br />

para seu <strong>de</strong>leite, então. Tive uma propensão precoce para o drama e, às vezes,<br />

quis parecer mais culpada do que era realmente, pois achava que, assim, a minha<br />

absolvição po<strong>de</strong>ria receber mais atenção <strong>de</strong> Deus. Na medida em que nunca<br />

evitei o confessionário, po<strong>de</strong>r-se-ia argumentar que fui amaldiçoada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

infância, mas, ao mesmo tempo, o Deus com que cresci sempre tinha sido mais<br />

benevolente do que vingativo, e eu tinha sido amada o bastante para acreditar<br />

que ele continuaria a ser assim. Quantas outras famílias haveria na cida<strong>de</strong> que se<br />

encontravam agora em uma posição igualmente difícil diante da recente<br />

intransigência? Se bem que observando as recompensas que o bispo embolsava<br />

por fazer o que, afinal, era obra <strong>de</strong> Deus, era fácil ver como as linhas da batalha<br />

tinham sido traçadas.<br />

O serviço foi simples: um sermão curto sobre a graça e coragem <strong>de</strong> Santa<br />

Catarina, o po<strong>de</strong>r da oração, a riqueza dos afrescos e a alegria do Verbo<br />

transformado em tinta, embora o ardor do padre tivesse sido mediado pela<br />

presença <strong>de</strong> Luca, que se sentou no segundo banco como uma massa <strong>de</strong><br />

fermento. Meu irmão engordara ao servir ao Frei — eu tinha ficado sabendo que<br />

a ameaça <strong>de</strong> fome tinha visto uma nova onda <strong>de</strong> recrutas da milícia <strong>de</strong> Deus nas<br />

últimas semanas —, com um senso cada vez maior <strong>de</strong> sua importância. A nossa<br />

conversa foi cordial, banal, até eu tocar no assunto da excomunhão, pelo Papa, e<br />

a confusão que isso po<strong>de</strong>ria causar em seus seguidores. Luca explodiu <strong>de</strong> raiva,<br />

alegando que Savonarola era o <strong>de</strong>fensor do povo, o que significava que somente<br />

Deus tinha o direito <strong>de</strong> excluí-lo do púlpito, e que ele pregaria sempre que<br />

quisesse, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> quaisquer or<strong>de</strong>ns do encarregado do bor<strong>de</strong>l mais rico<br />

<strong>de</strong> Roma.<br />

Na verda<strong>de</strong>, a retórica do meu irmão sobre a corrupção da Igreja<br />

estabelecida era, agora, tão extremada e racional, com uma lógica tão clara e<br />

fervorosa — em si mesma, um tributo do homem que lhe ensinara —, que


parecia impossível qualquer acordo entre as partes. Se Savonarola voltasse a<br />

pregar, o Papa não po<strong>de</strong>ria tolerar tal ameaça à sua autorida<strong>de</strong>. Usaria da força<br />

para esmagá-la? Certamente, não. Nesse caso, acabaríamos com algum tipo <strong>de</strong><br />

cisma? Não suportar a idéia <strong>de</strong> uma Igreja que <strong>de</strong>nunciava a arte e a beleza,<br />

significaria, na verda<strong>de</strong>, aprovar uma que ven<strong>de</strong>sse a salvação e <strong>de</strong>ixasse seus<br />

bispos e papas <strong>de</strong>sviarem a riqueza da Igreja para os bolsos <strong>de</strong> seus filhos<br />

ilegítimos? No entanto, um cisma era impensável. Um dos dois teria <strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r.<br />

Relanceei os olhos, em volta, para o resto da família. Minha mãe e meu<br />

pai estavam no banco da frente, as costas <strong>de</strong>la eretas forçando-o a ficar<br />

aprumado. Esse era o momento com que ele sonhara. Apesar <strong>de</strong> nossa riqueza<br />

estar minguando, nossas cabeças mantinham-se erguidas, exceto quanto a<br />

Tomaso, que se sentou separado, consumido pela autocomiseração, muito mais<br />

consciente <strong>de</strong> sua feiúra do que havia sido <strong>de</strong> sua beleza. Do seu lado estavam<br />

Plautilla e Maurizio, robustos e apáticos, e, em seguida, meu marido e eu. Uma<br />

família florentina comum. Ha! Se se escutasse com atenção, era possível ouvir o<br />

coro <strong>de</strong> nossos pecados e hipocrisias silvando em nossas almas.<br />

O pintor estava atrás, e eu podia sentir seus olhos em mim. Tínhamos<br />

passado a manhã movendo-nos um à volta do outro como dois poços em um rio,<br />

que se aproximam constantemente sem nunca se fundir. Tomaso nos observava<br />

com seus olhos <strong>de</strong> falcão, mas nos esqueceu assim que Cristoforo apareceu. Os<br />

dois se encontraram b<strong>rev</strong>emente no pátio, ao longo <strong>de</strong> uma mesa com comes e<br />

bebes, os dois tão tensos quanto cavalos <strong>de</strong> corrida, minha mãe e eu fingindo<br />

não notar. Mal se falaram, e quando fomos chamados à capela, Tomaso se soltou<br />

e virou-se com um movimento óbvio para chamar a atenção. Preferi não olhar<br />

para meu marido, mas não pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> notar a cara <strong>de</strong> Luca quando passaram<br />

por ele. Lembrei-me do comentário <strong>de</strong> minha mãe tempos atrás. O sangue é<br />

mais espesso do que a água. Mas seria mais espesso do que a crença?<br />

— Você tinha razão em relação ao seu pintor. — De volta à casa <strong>de</strong> meu marido,<br />

sentamo-nos no pátio do jardim <strong>de</strong>scuidado, observando o pôr-do-sol, os dois<br />

um pouco nervosos sem saber bem o que contar. — Ele tem talento. Se bem que<br />

com a atmosfera atual da cida<strong>de</strong>, faria melhor indo para Roma ou Veneza, para<br />

suas próximas encomendas. — Fez uma pausa. — Ainda bem que seu espírito<br />

não sofre <strong>de</strong> vertigem. Por quanto tempo posou para ele?<br />

— Algumas tar<strong>de</strong>s — repliquei. — Mas foi há muito tempo.<br />

— Então o aplaudo ainda mais. Captou tanto a criança quanto a mudança<br />

em você. O que aconteceu para que um homem <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sfigurasse a si mesmo<br />

<strong>de</strong> uma maneira tão brutal?<br />

Não. Meu marido não <strong>de</strong>ixava escapar muita coisa.


— Por algum tempo, per<strong>de</strong>u a fé — respondi calmamente.<br />

— Ah, pobre alma. E você ajudou-o a reencontrá-la? Bem, salvou algo<br />

ali, Alessandra. Há muita ternura nele. Ele teve sorte <strong>de</strong> a cida<strong>de</strong> não o<br />

corromper ainda mais. — Fez uma pausa. — Há uma coisa <strong>de</strong> que precisamos<br />

falar, se ainda a <strong>de</strong>sconhece. A infecção <strong>de</strong> Tomaso... é contagiosa.<br />

— Está dizendo que estou doente? — E meu estômago virou <strong>de</strong> medo.<br />

— Não. Mas que nós dois po<strong>de</strong>mos estar.<br />

— Nesse caso, on<strong>de</strong> ele a pegou? — perguntei bruscamente.<br />

Ele riu, embora não houvesse muito do quê.<br />

— Minha querida, não parece muito difícil <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r. Tenho sido um<br />

louco <strong>de</strong> amor quando se trata <strong>de</strong> seu irmão, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira vez em que pus os<br />

olhos nele, no fundo <strong>de</strong> um antro <strong>de</strong> jogo, perto da ponte velha, há três anos. Ele<br />

tinha quinze anos e era tão impetuoso quanto um potro. Talvez fosse insensato<br />

eu esperar que tal paixão pu<strong>de</strong>sse vir a ser mútua.<br />

— Bem, eu teria lhe dito isso — disse eu. — Quanto tempo até sabermos<br />

ao certo?<br />

Ele sacudiu os ombros.<br />

— A doença é nova para todos nós. A única esperança é que as pessoas<br />

não parecem morrer disso. O senão é que não existem regras e nenhum remédio<br />

que se aplique a ela. Tomaso caiu rápido, mas po<strong>de</strong> ser por tê-la contraído no<br />

começo. Ninguém sabe.<br />

Pensei no proxeneta enforcado na Ponte Santa Trinita, com suas tripas no<br />

chão, e em como isso tinha sido castigo por, entre outras coisas, oferecer aos<br />

franceses tudo o que <strong>de</strong>sejavam. E isso me fez pensar <strong>de</strong> novo no assassino; que<br />

força <strong>de</strong> retidão <strong>de</strong>via haver <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le. E que fúria.<br />

— Mas há algo pior — disse ele baixinho. — Outra epi<strong>de</strong>mia chegou à<br />

cida<strong>de</strong>.<br />

Olhei para ele, que baixou os olhos.<br />

— Oh, Cristo, não. Quando?<br />

— Há uma semana. Talvez antes. Os primeiros casos chegaram à morgue<br />

alguns dias atrás. As autorida<strong>de</strong>s tentarão manter sigilo pelo máximo <strong>de</strong> tempo<br />

possível, mas não <strong>de</strong>verá ser muito.<br />

E apesar <strong>de</strong> nenhum <strong>de</strong> nós dois dizer nada, a palavra já estava no ar,<br />

<strong>de</strong>slizando por sobre as portas, saindo pelas janelas para as ruas, entrando em<br />

toda casa daqui até os muros da cida<strong>de</strong>, o medo mais infeccioso do que a própria<br />

doença. Ou Deus estava tão impressionado com a <strong>de</strong>voção florentina que<br />

resolvera chamar os <strong>de</strong>votos diretamente a Ele ou... bem, o "ou" era terrível<br />

<strong>de</strong>mais para se pensar nele.


Trinta e Oito<br />

A PESTILÊNCIA CHEGOU COMO SEMPRE ACONTECIA, sem quê nem<br />

para quê, sem nenhum aviso e nenhum sinal do nível <strong>de</strong> dano que causaria ou <strong>de</strong><br />

quanto tempo duraria. Foi como um fogo que po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>struir cinco ou mil<br />

casas, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da direção em que o vento soprasse. A cida<strong>de</strong> ainda<br />

carregava as cicatrizes do gran<strong>de</strong> expurgo <strong>de</strong> século e meio atrás, quando havia<br />

exterminado praticamente mais da meta<strong>de</strong> da população. Tantos monges haviam<br />

morrido então, tombando como peças <strong>de</strong> boliche em suas celas, que uma crise<br />

<strong>de</strong> fé foi <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada entre aqueles que restaram, e igrejas e conventos<br />

conservavam pinturas daquela época, todas obcecadas pelo Juízo Final e a<br />

proximida<strong>de</strong> do inferno.<br />

Ainda assim, certamente Florença, agora, estava diferente, um estado pio<br />

governado por um gran<strong>de</strong> pregador e policiado por um exército <strong>de</strong> Anjos.<br />

Enquanto as Bolhas podiam ser vistas como um castigo merecido dos pecadores,<br />

até mesmo uma confissão pública <strong>de</strong> fornicação, a peste era outra história. Se<br />

fosse realmente castigo <strong>de</strong> Deus, então o que teríamos feito para merecê-lo? Era<br />

uma pergunta que Savonarola <strong>de</strong>veria respon<strong>de</strong>r.<br />

A notícia <strong>de</strong> seu retorno ao púlpito viajou mais rápido do que a doença. Eu daria<br />

qualquer coisa para ouvir a sua predica, mas embora a praga fosse, <strong>de</strong> fato,<br />

partidária do igualitarismo, tinha <strong>de</strong>monstrado uma afeição por aqueles que já<br />

estavam fracos. Se só se tratasse <strong>de</strong> mim mesma, talvez tivesse corrido o risco,<br />

motivada pela minha curiosida<strong>de</strong> insaciável, mas agora eu tinha <strong>de</strong> pensar por<br />

dois, e, no fim, aceitei acompanhar Cristoforo na carruagem até a igreja para ver<br />

a multidão, <strong>de</strong>pois retornar à casa, enquanto ele entrava.<br />

Que a multidão era menor, ficou óbvio para todo mundo. Evi<strong>de</strong>ntemente,<br />

havia bons motivos para isso — o medo <strong>de</strong> contágio ou mesmo a própria<br />

doença. Seria precipitação diagnosticar o <strong>de</strong>clínio <strong>de</strong> sua influência pelo<br />

comparecimento a um único sermão. Uma vez lá <strong>de</strong>ntro, meu marido disse que a<br />

paixão <strong>de</strong> Savonarola não se amainara nem um pouco e, sem dúvida, todos que o<br />

ouviram sentiram o fogo <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong> novo em suas entranhas. Mas nas ruas,<br />

on<strong>de</strong> sua voz não alcançava, nem todas as pessoas estavam doentes. Algumas<br />

pareciam simplesmente extenuadas, suas barrigas sofrendo <strong>de</strong> outra dor, <strong>de</strong>ssa<br />

vez <strong>de</strong> fome, <strong>de</strong> modo que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo, ficou difícil distinguir uma<br />

dor da outra.<br />

A verda<strong>de</strong> era que apesar <strong>de</strong> a cida<strong>de</strong> continuar amando o Frei e


aplaudindo sua coragem e a sua proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, também queria comer.<br />

Ou, pelo menos, se sentir um pouco menos miserável.<br />

A análise <strong>de</strong> meu marido <strong>de</strong>sse tópico foi elegante. Quando os Medici<br />

estavam no po<strong>de</strong>r, disse ele, como não tivessem Deus mais do que ninguém<br />

(embora tivessem muito mais dinheiro), adotaram uma estratégia simples para<br />

conquistar o povo. Se não podiam oferecer salvação, podiam, pelo menos,<br />

oferecer espetáculo, alguma coisa que fizesse até mesmo o mais pobre dos<br />

pobres se sentir melhor, orgulhoso <strong>de</strong> sua cida<strong>de</strong>, orgulhoso <strong>de</strong> sua visão,<br />

mesmo que essa só se esten<strong>de</strong>sse até a celebração. Não que tais eventos fossem<br />

ímpios. Pelo contrário. Eram concebidos para louvar e dar graças a Deus. Estava<br />

ali em todos eles: nas justas, nos torneios e <strong>de</strong>sfiles. Simplesmente exibiam uma<br />

aparência feliz, ruidosa, até mesmo libertina. E o que quer que acontecesse<br />

durante as festivida<strong>de</strong>s, havia sempre a opção da confissão no dia seguinte.<br />

Dessa maneira, por um b<strong>rev</strong>e período, as pessoas se esqueciam do que não<br />

tinham, contanto que as coisas melhorassem a longo prazo (ou tão longo quanto<br />

não piorassem), o que parecia suficiente. Era tal a cor e a confiança <strong>de</strong> seu<br />

reinado, que o povo se sentia como se tivesse "vivido" durante o governo<br />

Medici. Sentimento muito diferente do <strong>de</strong> simplesmente se preparar para morrer.<br />

Não havia, no momento, outra maneira melhor <strong>de</strong> banir o "soturno" senão<br />

por um espetáculo religioso: um evento que falasse <strong>de</strong> Deus, mas que também<br />

servisse para iluminar a existência diária, sombria. Torná-la... bem... menos<br />

soturna.<br />

Tenho <strong>de</strong> admitir que A Fogueira das Vaida<strong>de</strong>s foi uma idéia inspirada. E a<br />

maneira como Savonarola a mencionou no púlpito foi irresistível: se Florença<br />

estava sofrendo, era porque Deus a tinha escolhido acima <strong>de</strong> todas as outras e a<br />

sua jornada tinha-se tornado uma questão <strong>de</strong> sua atenção pessoal. Assim como<br />

ele, Savonarola, flagelava e submetia à fome seu corpo, para se tornar um<br />

recipiente perfeito para o Senhor, a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>via se mostrar disposta a fazer<br />

sacrifícios merecedores <strong>de</strong> Seu gran<strong>de</strong> amor. Da renúncia da riqueza<br />

<strong>de</strong>snecessária originava-se a bênção requintada. Que necessida<strong>de</strong>s, afinal,<br />

tínhamos <strong>de</strong>sses preciosismos da vida? Cosméticos e perfumes, textos pagãos,<br />

jogos, arte in<strong>de</strong>cente; todos esses objetos e artefatos somente distraíam a nossa<br />

atenção e enlameavam a nossa <strong>de</strong>voção a Deus. Que lançássemos tudo às<br />

chamas. Que a nossa vaida<strong>de</strong> e a nossa resistência ar<strong>de</strong>ssem no nada e<br />

<strong>de</strong>saparecessem com a fumaça. No espaço <strong>de</strong>ixado, viria a graça. E apesar <strong>de</strong> eu<br />

ter certeza <strong>de</strong> que o próprio Frei nunca chegou a tanto, tal expurgo também<br />

ajudaria a aliviar o sofrimento dos pobres: pois ao induzir os que tinham muito à<br />

humilda<strong>de</strong>, oferecia àqueles que nada tinham o conforto <strong>de</strong> que ninguém mais o


teria em seu lugar.<br />

Ao longo das semanas seguintes, as vaida<strong>de</strong>s coletadas pelos Anjos<br />

ascen<strong>de</strong>ram em uma gran<strong>de</strong> pira octogonal, no meio da Piazza <strong>de</strong>lla Signoria.<br />

Erila e eu a observamos crescer com um misto <strong>de</strong> admiração e horror. Não se<br />

podia negar que a cida<strong>de</strong> se sentia viva <strong>de</strong> novo. A sua construção ofereceu<br />

trabalho para pessoas que, <strong>de</strong> outra maneira, ficariam ainda mais fracas por<br />

causa da fome. As pessoas tinham algo do que falar, um foco para mexericos e<br />

excitação. Homens e mulheres acabaram com seus guarda-roupas. Crianças<br />

acabaram com seus brinquedos. On<strong>de</strong> antes ostentávamos nossos bens, agora<br />

explorávamos as atrações <strong>de</strong> sacrifício.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, nem todos <strong>de</strong>monstraram o mesmo grau <strong>de</strong> entusiasmo.<br />

Na verda<strong>de</strong>, houve muitas pessoas que, se tivessem escolha, talvez não<br />

participassem. Foi aí que entraram os Anjos, um gesto, em si mesmo,<br />

inteligente, pois o jovem exército <strong>de</strong> Deus andava, <strong>de</strong> certa forma,<br />

subempregado, ocioso em uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>primida pela fome e doença. Alguns<br />

eram mais persuasivos do que outros. Savonarola tinha inflamado uma gran<strong>de</strong><br />

retórica em algumas almas jovens durante seu reinado, e a população <strong>de</strong>paravase<br />

com alguns cujas palavras refulgiam como laça dourada da boca <strong>de</strong> Gabriel<br />

na Anunciação. Uma vez, vi um <strong>de</strong>les convencer uma jovem elegante a abrir<br />

mão <strong>de</strong> seu bracelete escondido e a admitir uma trança postiça em seu cabelo.<br />

Os dois se separaram iluminados.<br />

Os Anjos conduziam carroças pelas ruas, a que seguia na frente levando a<br />

terna estátua <strong>de</strong> Donatello do menino Jesus. Entoavam as lau<strong>de</strong>s e hinos e<br />

visitavam cada casa ou instituição sucessivamente, perguntando do que queriam<br />

abrir mão. Em alguns lugares, tornou-se quase um esnobismo, com uma<br />

querendo sobrepujar a outra. Em outros, as visitas tocavam as raias da<br />

Inquisição. Os Anjos tinham se preparado bem, buscando primeiro as famílias<br />

mais ricas para darem um bom exemplo. Se recebiam o bastante, agra<strong>de</strong>ciam e<br />

prosseguiam seu caminho. Do contrário, convidavam a si mesmos a entrar e dar<br />

uma olhada. É claro que a doação era voluntária, mas meninos adolescentes<br />

po<strong>de</strong>m ser incrivelmente <strong>de</strong>sajeitados quando estão com pressa, e bastaram<br />

algumas histórias <strong>de</strong> vidros <strong>de</strong> Murano quebrados e tapeçarias rasgadas, para<br />

que muitas famílias <strong>de</strong>monstrassem generosida<strong>de</strong>, uma generosida<strong>de</strong> gerada<br />

pelo medo. Mesmo quando Florença tinha sido invadida, nossos inimigos<br />

haviam se comportado com mais fidalguia, embora, agora, fosse preciso<br />

coragem para usar a palavra pilhagem na presença dos Anjos.<br />

Na manhã que vieram à nossa casa, eu estava sentada a uma janela do<br />

andar <strong>de</strong> cima, observando-os avançarem pela rua, sua cantoria estri<strong>de</strong>nte —<br />

vozes excessivamente entrecortadas, conspurcando as angelicais — por sobre a<br />

percussão das rodas das carroças. As leis sobre a arte in<strong>de</strong>cente eram conhecidas


<strong>de</strong> todos. Não <strong>de</strong>veria haver imagens <strong>de</strong> homens e mulheres nus nas casas em<br />

que havia moças. Como a maioria das casas tinham garotas, mesmo que criadas,<br />

as leis po<strong>de</strong>riam ser aplicadas <strong>de</strong> maneira um tanto impiedosa. Por esses<br />

padrões, a galeria <strong>de</strong> esculturas <strong>de</strong> meu marido seria consi<strong>de</strong>rada obscena.<br />

Estava trancada, a chave com ele, enquanto no pátio, uma caixa <strong>de</strong> oferendas<br />

estava pronta: alguns tecidos vistosos e antiquados, alguns baralhos <strong>de</strong> cartas,<br />

diversas quinquilharias e leques e um gran<strong>de</strong> e feio espelho <strong>de</strong> moldura dourada,<br />

que <strong>de</strong>nunciava mais um mau gosto do que uma ausência <strong>de</strong> fé. Temi que não<br />

fosse o bastante (minha gravi<strong>de</strong>z me tornava mais apreensiva do que antes), mas<br />

Cristoforo ficou impassível: apesar <strong>de</strong> haver, no po<strong>de</strong>r, quem soubesse <strong>de</strong> tais<br />

coleções, argumentou ele, seriam cautelosos quanto a quem traírem. A sorte<br />

mudava rapidamente em um clima tão volátil quanto o atual, disse ele, e<br />

políticos inteligentes eram capazes <strong>de</strong> sentir <strong>de</strong> longe o cheiro <strong>de</strong> dissensão.<br />

Quando chegaram em nossa casa, abrimos logo os portões e Erila levou<br />

uma ban<strong>de</strong>ja <strong>de</strong> bebidas leves, enquanto Filippo carregava as caixas.<br />

Havia um garoto, <strong>de</strong> <strong>de</strong>zesseis ou <strong>de</strong>zoito anos, no alto da carroça,<br />

ajoelhado nos livros e roupas, arrumando os tesouros para dar espaços para os<br />

outros que chegavam. Observei quando jogou para o lado um painel <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira<br />

pintado com ninfas e sátiros nus, a superfície rachando e lascando com o seu<br />

<strong>de</strong>scuido.<br />

Corriam rumores que não eram somente os patronos que estavam ce<strong>de</strong>ndo<br />

sua arte, mas que também os próprios artistas, com Fra Bartolommeo e Sandro<br />

Botticelli li<strong>de</strong>rando o grupo. É claro que, agora, Botticelli era um homem velho,<br />

que mais precisava do amor <strong>de</strong> Deus do que <strong>de</strong> qualquer patrono, se bem que<br />

meu marido insinuava que se ele preten<strong>de</strong>sse o paraíso, seria melhor que<br />

confessasse outros pecados que não o <strong>de</strong>sejo pelas mulheres. De minha parte,<br />

não pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> me lembrar da <strong>de</strong>scrição que Cristoforo fizera <strong>de</strong> sua <strong>Vênus</strong><br />

nascendo do mar e fiquei feliz por aquela pintura estar oculta no campo. Pelo<br />

menos as nossas ninfas e sátiros não fariam falta à história: as pernas das<br />

mulheres eram curtas <strong>de</strong>mais para os corpos e suas peles pareciam massa <strong>de</strong> pão<br />

antes <strong>de</strong> ser assada.<br />

— Olá, moça bonita. Não tem nada para as chamas? Alguma conta <strong>de</strong><br />

coral ou leques <strong>de</strong> penas?<br />

Era um garoto bonito que não se ajustava às suas vestes e corte <strong>de</strong> cabelo.<br />

Em outra Florença, ele po<strong>de</strong>ria estar cantando uma serenata para mim <strong>de</strong> volta<br />

<strong>de</strong> uma noitada na cida<strong>de</strong>. Especialmente porque, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> estava, não tinha<br />

como perceber o tamanho da minha barriga.<br />

Sacudi a cabeça, mas não consegui <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> sorrir. Talvez por nervoso.<br />

— Que tal os pentes em seu cabelo? Não são pérolas que os enfeitam?<br />

Pus a mão no alto da cabeça. Erila havia trançado meu cabelo nessa


manhã, se bem que não me lembrava <strong>de</strong> que pregadores tinha usado. Não<br />

<strong>de</strong>veria ser ostentoso. Não obstante, tirei-os. Ao fazer isso, uma parte <strong>de</strong> meu<br />

cabelo caiu por minhas costas. Ele viu e sorriu largo para mim. Seu sorriso era<br />

contagiante. Talvez até mesmo os Anjos estivessem se cansando da bonda<strong>de</strong>.<br />

Joguei os pentes para ele, que os pegou com um floreio.<br />

Lá embaixo, seus companheiros estavam discutindo se entravam ou não<br />

para procurar mais coisas.<br />

— Vamos — gritou ele, lançando-me outro sorriso. — Se per<strong>de</strong>rmos<br />

tempo em cada casa, per<strong>de</strong>remos as chamas.<br />

Quando a carroça se afastou, juro que o vi escon<strong>de</strong>r os pentes no bolso.<br />

Na manhã seguinte, a pira estava do tamanho <strong>de</strong> uma casa. Acen<strong>de</strong>ram os<br />

feixes <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira ao redor, ao meio-dia, e o momento pô<strong>de</strong> ser ouvido por toda<br />

a cida<strong>de</strong>, acompanhado pela fanfarra <strong>de</strong> trombetas e sinos das igrejas, e um<br />

cântico da multidão que ali se reunira. Mas nem todas as vozes ascendiam aos<br />

céus. Apesar <strong>de</strong> a praça estar cheia, havia alguns, como nós, que foram observar<br />

os sentinelas tanto quanto celebrar a façanha.<br />

Enquanto estávamos ali, comprimidos pela multidão, Erila e eu vimos<br />

coisas que nos fizeram per<strong>de</strong>r as esperanças. Alguns dias antes, um colecionador<br />

veneziano havia enviado uma mensagem à Signoria, oferecendo 20.000 florins<br />

para salvar a arte das chamas. Sua resposta chegava agora na forma <strong>de</strong> sua<br />

própria efígie, colocada no alto da pira. Haviam-no vestido com roupas ricas,<br />

coberto sua cabeça com uma dúzia <strong>de</strong> tranças postiças femininas e colocado<br />

bombinhas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua figura. Quando as chamas o atingiram, a bombas<br />

explodiram e a efígie oscilou e emitiu ganidos enquanto a multidão incentivava<br />

com gritos. Eu soube, <strong>de</strong>pois, que pessoas juravam que sentiram o cheiro <strong>de</strong><br />

cabelo queimado. E tamanha era a excitação e alegria que a impressão era <strong>de</strong><br />

que não <strong>de</strong>moraria para vermos carne humana sendo tostada.<br />

Os cânticos e as orações prosseguiram durante o dia inteiro, conduzidos<br />

pelos dominicanos e pelos Anjos. Mas qualquer um com olhos podia ver que<br />

havia um elemento da Igreja que não estava representado: os franciscanos, que<br />

estavam sentindo os ventos frios do favoritismo corroerem o seu apoio<br />

tradicional entre os pobres, tinham começado a questionar o gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

Savonarola. Mas não conseguiram abalar seu triunfo. A Fogueira ar<strong>de</strong>u até tar<strong>de</strong><br />

da noite. Durante dias <strong>de</strong>pois, as cinzas dos nossos luxos produziram neve cinza<br />

sobre a cida<strong>de</strong>, cobrindo as saliências <strong>de</strong> nossas janelas, empoeirando nossas<br />

roupas e enchendo nossas narinas do triste odor <strong>de</strong> arte incinerada.<br />

E <strong>de</strong>ssa vez, quando o Papa soube, excomungou o Fra<strong>de</strong>.


Trinta e Nove<br />

QUANDO O DECRETO CHEGOU, Savonarola pegou seu chicote e livro <strong>de</strong><br />

orações e trancou-se em sua cela em San Marco. Não faria nem diria nada até<br />

Deus ter falado com ele diretamente. Apesar <strong>de</strong> poucos, agora, duvidarem <strong>de</strong> sua<br />

paixão, houve, pela primeira vez, comentários sobre seu julgamento. Quaisquer<br />

que fossem suas faltas, o Papa continuava sendo o representante <strong>de</strong> Deus na<br />

terra, e sem o <strong>de</strong>vido respeito à autorida<strong>de</strong>, nenhum estado ou governo estaria<br />

seguro.<br />

Enquanto ele pregava, a peste <strong>de</strong>vorava os fiéis. Até mesmo seu próprio<br />

mosteiro foi atacado, a infecção tão feroz que muitos monges partiram. Nesse<br />

meio-tempo, aqueles ainda comprometidos com a Nova Jerusalém tornaram-se<br />

ainda mais <strong>de</strong>cididos, vendo inimigos em toda parte. Os sodomitas que tinham<br />

sido <strong>de</strong>tidos e presos no verão eram, agora, expostos pelas ruas, açoitados<br />

publicamente e mutilados na praça principal. Um dos homens que meu marido<br />

tinha dito conhecer, <strong>de</strong> nome Salvi Panizzi, foi exposto como um ofensor<br />

contínuo e notório e marcado para ser queimado, mas apesar <strong>de</strong> seu corpo ter<br />

sido fraturado pela estrapada e o ecúleo, no último momento, a cida<strong>de</strong> mostrouse<br />

inquieta com tal vergonha pública e sua punição foi substituída por uma<br />

multa e a prisão perpétua em um asilo <strong>de</strong> loucos.<br />

No Natal, Savonarola respon<strong>de</strong>u, retornando <strong>de</strong>safiadoramente para<br />

celebrar a missa solene diante <strong>de</strong> uma multidão na Catedral. Seu corpo estava<br />

tão magro que parecia um esqueleto com as vestes, e seu nariz estava tão afiado<br />

quanto a foice da morte. Mas sua voz era um tiro <strong>de</strong> canhão: força e chama. A<br />

resposta do Papa foi rápida. Enviou embaixadores à Signoria e exigiu que ou<br />

pren<strong>de</strong>ssem esse "Filho da Iniqüida<strong>de</strong>" ou o enviassem acorrentado a Roma. A<br />

<strong>de</strong>sobediência resultaria na sua fúria contra toda a cida<strong>de</strong>. Enquanto o governo<br />

p<strong>rev</strong>aricava, Savonarola respon<strong>de</strong>u aos dois ao mesmo tempo. Suas palavras,<br />

proferidas no púlpito, se propagaram pela cida<strong>de</strong> por uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> boateiros:<br />

"Digam a todos que procuram se engran<strong>de</strong>cer e exaltar, que seus lugares estão<br />

reservados — no Inferno. E também que um <strong>de</strong>les já tem seu lugar no inferno."<br />

Não há registro <strong>de</strong> resposta do Papa.<br />

Já não me lembro mais da cronologia exata dos meses seguintes. Há tempos em<br />

que tristeza e drama caem com tanta força que nos curvamos sob seu peso por<br />

um certo tempo, e não conseguimos discernir on<strong>de</strong> estamos.<br />

O que sei é que a peste atingiu nossa casa no começo do Ano-Novo. A


filha caçula do cozinheiro caiu primeiro. Era uma coisinha magricela, não mais<br />

<strong>de</strong> sete ou oito anos, e apesar <strong>de</strong> fazermos tudo o que podíamos, ela morreu em<br />

três dias. Filippo foi o próximo. Seu caso foi mais difícil, e senti muito por ele,<br />

pois não podia ouvir nosso conforto nem falar <strong>de</strong> seu sofrimento. Agonizou por<br />

<strong>de</strong>z dias, enfraquecendo paulatinamente. Acabou morrendo à noite, quando<br />

ninguém estava do seu lado. Pela manhã, quando Erila me <strong>de</strong>u a notícia, caí em<br />

prantos.<br />

Nesse dia, eu e meu marido tivemos a nossa primeira discussão. Ele<br />

queria me mandar para fora da cida<strong>de</strong>, para a estação <strong>de</strong> águas no sul ou para as<br />

colinas a leste, on<strong>de</strong> disse que o ar estaria mais puro. Eu estava tomando a dose<br />

diária <strong>de</strong> aloé, mirra e açafrão <strong>de</strong> Erila, para me proteger do contágio, e tinha me<br />

fortalecido <strong>de</strong>pois que os vômitos haviam cessado, mas ainda não me recuperara<br />

<strong>de</strong> todo, e, apesar <strong>de</strong> toda a minha curiosida<strong>de</strong>, acho que acabaria convencida se<br />

os eventos não nos surpreen<strong>de</strong>ssem.<br />

Ainda conversávamos, trancados em seu quarto, quando o criado chegou<br />

da casa <strong>de</strong> meus pais.<br />

O bilhete estava com a letra <strong>de</strong> minha mãe:<br />

A pequena Illuminata faleceu da febre. Eu iria para a casa <strong>de</strong> Plautilla, mas<br />

seu pai está doente e temo o contágio se eu for <strong>de</strong> uma casa para a outra. Se você está<br />

bem e se sente em condições <strong>de</strong> viajar, sua irmã precisa <strong>de</strong> você. Não há mais ninguém<br />

a quem eu possa pedir isso. Tenha cuidado com você mesma e com o precioso bebê que<br />

carrega.<br />

Plautilla mal tinha visto Illuminata <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a mandara para o campo<br />

com a ama-<strong>de</strong>-leite, quase um ano antes. Não seria a primeira nem a última vez<br />

que uma criança não conseguia chegar ao <strong>de</strong>smame e minha irmã, que, até on<strong>de</strong><br />

eu sabia, tinha passado a sua vida inteira mais preocupada com questões<br />

superficiais do que profundas, já tinha outro filho a caminho.<br />

Portanto sinto-me envergonhada ao admitir que não estava preparada para<br />

o que encontrei.<br />

O som <strong>de</strong> sua dor nos alcançou assim que saltamos da carroça. Sua criada<br />

<strong>de</strong>sceu a escada correndo para nos receber, e tanto Erila quanto eu percebemos o<br />

pânico em seu rosto. Quando chegamos ao último patamar, a porta do quarto se<br />

abriu e Maurizio surgiu, extremamente abatido. Atrás <strong>de</strong>le, o arfar <strong>de</strong> seus<br />

gemidos ressoava como um vento anunciando tempesta<strong>de</strong>.<br />

— Graças a Deus vocês vieram — disse ele. — Está assim <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

recebeu a notícia hoje <strong>de</strong> manhã. Eu não posso fazer mais nada, ela não aceita<br />

conforto. Receio que fique doente e perca a criança.<br />

Erila e eu entramos, silenciosamente, no quarto.


Ela estava sentada no chão, do lado do berço vazio, agora preparado para<br />

o novo bebê, o cabelo solto e o vestido <strong>de</strong>sabotoado em cima. A sua barriga era<br />

maior do que a minha e seu rosto inchado <strong>de</strong> lágrimas. Nunca a tinha visto tão<br />

<strong>de</strong>sgrenhada e perdida. Abaixei-me <strong>de</strong>sajeitadamente sentando-me do seu lado,<br />

minhas saias erguendo-se em volta da minha barriga dilatada, <strong>de</strong> modo que<br />

juntas parecíamos dois pássaros gordos. Mas quando estendi minha mão para<br />

tocá-la, ela se esquivou e sua voz soou esganiçada.<br />

— Não me toque. Não me toque. Sei que ele mandou chamá-la, mas não<br />

serei confortada. Sei que aquela mulher matou-a. Ela tinha os olhos estranhos.<br />

Maurizio tem <strong>de</strong> ir à sua casa e trazer o corpo. Não <strong>de</strong>ixarei que ela me impinja<br />

um corpo esquelético que ela encontrou no povoado enquanto fica com<br />

Illuminata. Oh, se pelo menos tivéssemos dado mais para as chamas. Eu disse<br />

que não era o bastante. Que Deus nos puniria por nossa mesquinharia.<br />

— Oh, Plautilla, isso nada tem a ver com as Vaida<strong>de</strong>s. E a peste... Mas ela<br />

pôs as mãos nos ouvidos e sacudiu a cabeça com violência.<br />

— Não, não. Não vou escutá-la. Luca disse que você tentaria me dominar<br />

com sua conversa. Você não sabe nada. Sua cabeça fala e sua alma sofre. Estou<br />

surpresa por Ele não tê-la <strong>de</strong>rrubado. Luca diz que é só uma questão <strong>de</strong> tempo.<br />

Deve olhar o bebê quando sair <strong>de</strong> você. Se não for sadio, não haverá remédio<br />

que o salve.<br />

Olhei para Erila. Em lealda<strong>de</strong> a mim, ela nunca <strong>de</strong>dicara muito tempo a<br />

minha irmã, e percebi a sua intolerância com a sua histeria. Se não podia ser<br />

interrompida pela razão, eu teria <strong>de</strong> encontrar outra maneira. Disse-lhe isso com<br />

os olhos. Ela assentiu e saiu, em silêncio, do quarto.<br />

— Plautilla, preste atenção — disse eu, e embora minha voz não soasse<br />

tão alta quanto a <strong>de</strong>la, me certifiquei <strong>de</strong> que ouviria. — Se este é realmente o<br />

Seu julgamento, então a sua dor, por si só, é uma vaida<strong>de</strong>. Se continuar assim,<br />

provocará o trabalho <strong>de</strong> parto e terá outra morte em suas mãos.<br />

— Oh, você não enten<strong>de</strong>. Acha que as coisas são como as vê. Acha que<br />

sabe tudo. Mas não sabe. Nunca soube e não saberá agora. — E seus gritos<br />

voltaram a soar histéricos.<br />

Deixei que soluçasse mais um pouco, transtornada tanto pela força <strong>de</strong> sua<br />

paixão contra mim quanto por sua própria dor.<br />

— Ouça — disse eu mais gentilmente, quando seu pranto diminuiu um<br />

pouco. — A única coisa que sei é que você a amava. Mas não po<strong>de</strong> se culpar.<br />

Não po<strong>de</strong>ria fazer nada para salvá-la.<br />

— Não... você está enganada — interrompeu. — Oh, eu não <strong>de</strong>via ter<br />

escondido minhas pérolas. Quase as <strong>de</strong>i. Mas... mas... são tão bonitas. Luca diz<br />

que admitir a nossa fraqueza nos aproximará Dele. Mas às vezes não sei o que<br />

Ele quer <strong>de</strong> nós. Rezo toda noite e confesso meus pecados, mas... não sou feita


<strong>de</strong> material tão duro. Não eram nem mesmo pérolas tão boas... E não acho que<br />

quando as uso O amo menos... Não po<strong>de</strong>mos dar nenhuma importância à nossa<br />

aparência? Oh, não compreendo.<br />

Mas ela tinha exaurido sua raiva e lágrimas e, <strong>de</strong>ssa vez, não rejeitou a<br />

minha mão. Afastei um cacho úmido <strong>de</strong> cabelo da sua face. Sua pele cultuava <strong>de</strong><br />

suor e lágrimas, mas ela ainda parecia... tão graciosa.<br />

— Tem razão, Plautilla. Não sei tudo. Vivo <strong>de</strong>mais em minha cabeça e<br />

não o bastante em meu coração. Sei disso. Mas me parece que se Deus nos ama,<br />

então não nos quer prostrados. Ou morrendo <strong>de</strong> fome. Ou mesmo feios em seu<br />

nome. Ele quer que cheguemos até ele, e não que tornemos isso impossível. O<br />

seu egoísmo não matou Illuminata. Ela morreu da peste. Se foi vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus<br />

levá-la, não po<strong>de</strong> se punir por Ele amá-la tanto. Está certo que sofra a sua perda,<br />

mas não a ponto <strong>de</strong> se <strong>de</strong>struir.<br />

Ela ficou em silêncio por um momento.<br />

— Você acha mesmo?<br />

— Sim, eu acho. Acho que o que está acontecendo conosco aqui é um<br />

engano. Acho que o que ele fez foi nos <strong>de</strong>ixar cheios <strong>de</strong> medo e não <strong>de</strong> amor.<br />

Ela sacudiu a cabeça.<br />

— Eu... eu não sei. Você sempre falou tudo sem ro<strong>de</strong>ios. Se Luca<br />

estivesse aqui, diria...<br />

— Com que freqüência vê Luca?<br />

Ela sacudiu os ombros.<br />

— Ele passa por aqui com seus garotos. Acho que não se sente bem-vindo<br />

em casa e... bem, ele sempre foi mais gentil comigo do que com você e Tomaso.<br />

Acho que não nos sentíamos tão idiotas quando estávamos juntos.<br />

Suas palavras feriram mais fundo do que anos <strong>de</strong> sua raiva e escárnio<br />

jamais tinham conseguido. Quanto dano minha arrogância havia causado à<br />

minha família?<br />

— Sinto muito, Plautilla — disse eu. — Não tenho sido uma boa irmã<br />

para você, mas se <strong>de</strong>ixar, tentarei reparar isso daqui por diante.<br />

Inclinou-se para mim e nossas barrigas se encontraram. Comecei a<br />

imaginar Maria e Isabel: duas jovens grávidas, as barrigas se encontrando<br />

enquanto louvavam os meios misteriosos do Senhor — uma cena evocada em<br />

uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> murais pela cida<strong>de</strong>. De certa maneira, eu tinha razão. Os<br />

caminhos do Senhor eram misteriosos. E apesar <strong>de</strong> não haver sementes santas<br />

em Plautilla ou Alessandra, houve uma <strong>rev</strong>elação a partir do amor que tínhamos<br />

uma pela outra.<br />

Ficamos juntas até Erila retornar com uma poção que ela mesma tinha<br />

preparado. Plautilla bebeu-a e ficamos com ela até que adormecesse.<br />

Seu rosto ficou mais adorável em repouso.


— Não acredito que seja isso que Deus queira <strong>de</strong> nós — disse eu,<br />

enquanto a observávamos. — Separar famílias. Esse homem está <strong>de</strong>struindo a<br />

cida<strong>de</strong>.<br />

— Não mais — Erila sacudiu a cabeça. — Agora, ele está <strong>de</strong>struindo só a<br />

si mesmo.


Quarenta<br />

JÁ ANOITECIA QUANDO PARTIMOS DE VOLTA para casa. Maurizio<br />

insistiu para que ficássemos — acho que estava, <strong>de</strong> certa maneira, assustado<br />

com o prospecto <strong>de</strong> lidar com a sua mulher mudada —, mas nós duas queríamos<br />

estar em nossa casa e recusamos polidamente.<br />

As ruas estavam diferentes da noite em que levamos o pintor para casa.<br />

Chuviscava e o frio fazia o escuro parecer mais profundo. Mas não se tratava só<br />

da estação. A própria atmosfera tinha mudado. Nas últimas semanas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

excomunhão, uma oposição insinuava-se. Com o po<strong>de</strong>r do Papa por trás, os<br />

partidários dos Medici sentiam-se fortes o bastante para se aventurarem a<br />

aparecer em público, e grupos <strong>de</strong> rapazes cujas famílias lucrariam com a<br />

mudança <strong>de</strong> governo tinham começado a aparecer nas ruas. Houve, até mesmo,<br />

um embate estranho entre eles e os Anjos. Disseram que tinham sido eles os<br />

responsáveis pelo inci<strong>de</strong>nte na Catedral, quando alguém tinha passado gordura<br />

animal no púlpito na noite anterior, antes <strong>de</strong> Savonarola falar. Depois, durante<br />

seu sermão, uma gran<strong>de</strong> arca foi jogada sobre a nave, espatifando-se no chão <strong>de</strong><br />

pedra e causando pânico na congregação. Pela primeira vez, as forças dos<br />

dissi<strong>de</strong>ntes se <strong>rev</strong>elaram mais altas do que a sua voz.<br />

No caminho <strong>de</strong> volta da casa <strong>de</strong> minha irmã, tínhamos <strong>de</strong> passar pela<br />

gran<strong>de</strong> fachada <strong>de</strong> pedra do Palácio Medici, agora entabuada e saqueada, cruzar<br />

para o sul do Batistério e, <strong>de</strong>pois, para o oeste, na Via Porta Rossa. A estrada<br />

estava vazia, porém localizei mais adiante a figura corpulenta <strong>de</strong> um fra<strong>de</strong><br />

dominicano surgindo sorrateiramente do escuro <strong>de</strong> uma das travessas. Seu capuz<br />

estava abaixado, suas mãos juntas <strong>de</strong>ntro das mangas, e o marrom <strong>de</strong> seu hábito<br />

confundia-o com o escuro. Quando estávamos mais perto, agitou os braços,<br />

fazendo sinal para pararmos. Preparamo-nos para um interrogatório.<br />

— Boa noite, filhas <strong>de</strong> Deus.<br />

Baixamos a cabeça em uma <strong>rev</strong>erência.<br />

— É tar<strong>de</strong> para estarem nas ruas, boas irmãs. Estou certo que sabem que<br />

tal transgressão é proibida por nosso nobre Savonarola, Estão sozinhas?<br />

— Como nos vê, Padre. Mas estamos em uma missão misericordiosa —<br />

disse Erila rapidamente. — A irmã <strong>de</strong> minha ama per<strong>de</strong>u seu bebê para a peste.<br />

Fomos levar-lhe conforto e preces.<br />

— Nesse caso é uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cida por generosida<strong>de</strong> — murmurou<br />

ele, seu rosto ainda oculto por seu capuz, — E Deus incumbiu-lhes, agora, <strong>de</strong><br />

outra missão misericordiosa. Há uma mulher ferida perto daqui. Encontrei-a à<br />

porta <strong>de</strong> uma igreja. Preciso <strong>de</strong> ajuda para levá-la a um hospital.


— É claro — disse eu. — Venha conosco e nos mostre on<strong>de</strong> está.<br />

Ele sacudiu a cabeça.<br />

— O beco é estreito <strong>de</strong>mais para as rodas. Desçam e juntos po<strong>de</strong>remos<br />

trazê-la.<br />

Descemos e amarramos o cavalo. A rua atrás <strong>de</strong> nós estava vazia e a<br />

travessa para que apontou estava escura como breu. Havia tal ansieda<strong>de</strong> em tudo<br />

que nem mesmo seu hábito me tranqüilizou. Enxotei meu medo. Ele seguia na<br />

nossa frente, com pressa, seu capuz baixado, seu hábito lustroso com a chuva.<br />

Não fazia muito tempo, os dominicanos andavam pelas ruas como se fossem<br />

donos <strong>de</strong>la, e agora esse parecia, <strong>de</strong> certa maneira, com medo <strong>de</strong> ser visto.<br />

Certamente, a maré estava mudando.<br />

De uma rua em algum lugar mais adiante, ouvi um grito. De surpresa ou,<br />

talvez, dor. Em seguida, uma gargalhada frenética. Relanceei, apreensiva, os<br />

olhos para Erila.<br />

— Está longe, Padre? — perguntou ela, ao atravessarmos a Via <strong>de</strong>lle<br />

Terme e nos embrenharmos em outro beco escuro.<br />

— É logo ali, filha, logo ali na Santi Apostoli. Não ouvem os gritos?<br />

Mas eu não ouvia nada. A entrada da igreja assomou-se à esquerda, suas<br />

portas pesadas bem fechadas. Divisamos uma figura, meio oculta no escuro;<br />

uma mulher caída na escada, a cabeça no peito, como se estivesse cansada<br />

<strong>de</strong>mais para se levantar.<br />

Erila alcançou-a antes <strong>de</strong> mim e se agachou. Esten<strong>de</strong>u a mão<br />

imediatamente, impedindo que eu me aproximasse mais.<br />

— Padre — disse ela imediatamente. — Ela não está doente. Está morta.<br />

Há sangue por todo seu corpo.<br />

— Ah, ah, não. Ela estava se movendo quando a <strong>de</strong>ixei. Tentei parar o<br />

sangue com minhas mãos. — Ergueu seus braços e quando suas mangas<br />

baixaram, mesmo no escuro, pu<strong>de</strong> ver as manchas nelas. Abaixou-se do lado<br />

<strong>de</strong>la. — Pobre criança. Pobre criança querida. Pelo menos agora está com Deus.<br />

Com Deus talvez. Mas <strong>de</strong>via ter sido uma viagem dolorosa. Por sobre o<br />

ombro <strong>de</strong> Erila eu pu<strong>de</strong> perceber seu peito ensangüentado. Pela primeira vez em<br />

vários meses, senti a saliva em minha boca aumentar. Erila levantou-se<br />

rapidamente e vi que ela também estava tremendo.<br />

O frei relanceou os olhos para nós duas.<br />

— Temos <strong>de</strong> rezar por ela. Qualquer que tenha sido a sua pobre vida, nós<br />

lhe traremos a salvação com nossos hinos e orações.<br />

Pôs-se a cantar com uma voz grossa, gutural. E, <strong>de</strong> repente, havia algo<br />

familiar nele: o manto escuro e o eco <strong>de</strong> uma voz em outro momento <strong>de</strong><br />

escuridão, um que quase me fizera transpirar <strong>de</strong> medo. Recuei<br />

involuntariamente. Ele quebrou o silêncio.


— Venham, irmãs — <strong>de</strong>ssa vez, o tom foi áspero. — Ajoelhem-se as<br />

duas.<br />

Mas Erila colocou-se com <strong>de</strong>terminação entre mim e ele.<br />

— Lamento, Padre. Não po<strong>de</strong>mos ficar. Minha ama está grávida e se<br />

resfriará se não chegarmos logo em casa. Estas não são horas clementes para<br />

uma mulher grávida estar nas ruas.<br />

Ele olhou para mim como se estivesse me vendo direito pela primeira vez.<br />

— Está com um bebê? Uma criação divina? — ao falar, seu capuz caiu<br />

para trás e pu<strong>de</strong> ver uma face pálida, como a superfície da lua, marcada com<br />

bexigas. Pedra-pomes, pensei; um monge dominicano com a cara como pedrapomes,<br />

que via Florença como um esgoto do mal. Há quanto tempo Erila me<br />

contara a história? Mas sei que ela também estava se lembrando.<br />

— Na verda<strong>de</strong>, sobretudo pia — respon<strong>de</strong>u ela por mim, me afastando<br />

mais ainda. — Devota e perto <strong>de</strong> nascer. Mandaremos ajuda <strong>de</strong> nossa casa.<br />

Vivemos bem perto daqui.<br />

Ele olhou-a fixamente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ixou a cabeça cair e voltou a atenção para<br />

o corpo. Esten<strong>de</strong>u uma mão para o peito da mulher, para o local em que havia<br />

mais sangue, e recomeçou a cantar.<br />

Retornamos aos tropeções à carruagem. O escuro era quase impenetrável,<br />

e Erila manteve minhas mãos com firmeza nas suas. A palma das mãos das duas<br />

estava viscosa <strong>de</strong> medo.<br />

— O que aconteceu lá? — perguntei sem fôlego quando subimos na<br />

carroça e açoitamos o cavalo, apressando-o.<br />

— Não sei. Mas uma coisa posso dizer. Aquela mulher não estava viva já<br />

há algum tempo. E ele estava fe<strong>de</strong>ndo a seu sangue.<br />

Chegamos em casa e encontramos os portões abertos e o cavalariço e Cristoforo<br />

esperando no pátio.<br />

— Graças a Deus, chegaram. On<strong>de</strong> estavam?<br />

— Desculpe — repliquei enquanto me ajudava a <strong>de</strong>scer. — Fomos<br />

retardadas nas ruas. Nós...<br />

— Man<strong>de</strong>i homens procurarem por toda a cida<strong>de</strong>. Não <strong>de</strong>viam estar fora a<br />

esta hora.<br />

— Eu sei. Desculpe — repeti. Estendi minha mão para ele. Ele a pegou e<br />

a segurou firme, e senti a ansieda<strong>de</strong> como uma maré o submergindo. — Mas<br />

estamos <strong>de</strong> volta. Seguras. Vamos entrar e nos sentarmos à lareira e vou contar o<br />

que vimos nesta noite.<br />

— Não há tempo para isso. — Atrás <strong>de</strong> mim, o cavalariço <strong>de</strong>satrelava o<br />

cavalo. Ele esperou até que ficasse longe o bastante. Erila estava do lado. Senti


sua hesitação e fiz um sinal para ela se afastar.<br />

— O que é? O que é? Fale.<br />

— Má notícia.<br />

— Má? O que po<strong>de</strong> ser pior do que morte e possível assassinato?<br />

Mas não sei se chegou a me ouvir.<br />

— Tomaso foi <strong>de</strong>tido.<br />

— O quê? Quando?<br />

— Foi levado hoje à tar<strong>de</strong>.<br />

— Mas quem... — interrompi-me. — Luca. É claro... Interrompi-me <strong>de</strong><br />

novo. E à luz das tochas, olhamos um para o outro.<br />

Precisei <strong>de</strong> tempo para encontrar as palavras.<br />

— Com certeza é somente um aviso — sussurrei. — Ele é jovem.<br />

Provavelmente preten<strong>de</strong>m assustá-lo. — Ele não disse nada. — Vai ficar tudo<br />

bem. Tomaso não é tolo. Se não pu<strong>de</strong>r ser forte, será astuto.<br />

Ele sorriu com tristeza.<br />

— Alessandra, não é uma questão <strong>de</strong> força. É somente uma questão <strong>de</strong><br />

tempo — fez uma pausa. — Não lhe <strong>de</strong>i muita atenção nesses últimos meses. —<br />

E disse isso tão tranqüilamente que nem mesmo estou certa <strong>de</strong> terem sido essas<br />

as palavras.<br />

— Não é o momento para isso — disse eu peremptoriamente. —Talvez<br />

nenhum <strong>de</strong> nós tenha dado atenção um ao outro. Talvez essa seja a razão <strong>de</strong> tudo<br />

o que aconteceu. Mas não é hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>sistir. Você mesmo disse isso. Ele não é a<br />

única voz na cida<strong>de</strong> agora. Não se at<strong>rev</strong>erão a vir atrás <strong>de</strong> você. Seu nome é<br />

muito reputado e a maré está ficando contrária a eles. Venha, vamos entrar e<br />

conversar melhor.<br />

Ficamos juntos nessa noite, contemplando as chamas como tínhamos feito<br />

durante aquelas poucas semanas após nosso casamento, antes do ácido do ciúme<br />

que se <strong>de</strong>rramou <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim. Agora, era ele que precisava <strong>de</strong> ajuda, e embora<br />

eu <strong>de</strong>sse o máximo que podia, não foi suficiente. Toda vez que se silenciava, eu<br />

sabia no que estava pensando. Como é quando se sabe que alguém a quem se<br />

ama está sofrendo? Quando por mais que tampemos nossos ouvidos,<br />

continuamos a escutar seus gritos? Apesar <strong>de</strong> eu não po<strong>de</strong>r dizer, com<br />

honestida<strong>de</strong>, que amava meu irmão, a idéia do que po<strong>de</strong>ria estar lhe acontecendo<br />

agora fazia meu estômago se contorcer.<br />

Como não seria pior para o meu marido que havia adorado esse corpo<br />

perfeito quando estava em seus braços? Quando a estrapada tivesse terminado,<br />

não seria mais perfeito.<br />

— Fale comigo, Cristoforo. Vai ajudar, se falar. Diga-me. Deve ter-se<br />

preparado para esse momento. Pensado sobre o que fariam, se chegasse esse<br />

momento.


Ele sacudiu a cabeça.<br />

— Tomaso nunca se preocupou com o futuro. Seu talento era o presente.<br />

Era capaz <strong>de</strong> tornar o presente tão po<strong>de</strong>roso, que nos fazia acreditar que jamais<br />

terminaria.<br />

— Então, apren<strong>de</strong>rá agora. Ninguém sabe como ele ou ela se comportará<br />

até serem testados. Ele po<strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r a nós dois.<br />

— Ele tem medo da dor.<br />

— Quem não tem?<br />

Eu havia pensado muitas vezes na estrapada. Talvez todo mundo<br />

houvesse. Em certos dias, quando passávamos pelo Bargello no verão e o calor<br />

obrigava todas as folhas <strong>de</strong> janelas a serem abertas, era possível ouvir os ecos <strong>de</strong><br />

dor vindo lá <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, E passávamos apressados, tranqüilizados pelo<br />

pensamento <strong>de</strong> que não era ninguém que conhecíamos ou que eram criminosos<br />

ou pecadores, e <strong>de</strong> qualquer maneira, não tinha nada que pudéssemos fazer.<br />

Mas, ainda assim, podíamos imaginá-lo. Seu propósito é quebrar a sua vonta<strong>de</strong><br />

quebrando seu corpo. Apesar <strong>de</strong> haver um milhão <strong>de</strong> outras maneiras — tenazes,<br />

fogo, cordas e açoites — em que os ferimentos se curam e as cicatrizes os<br />

cobrem. Mas se usado apropriadamente, não há recuperação da estrapada.<br />

Depois que seus braços são amarrados bem apertados nas suas costas, você é<br />

içado, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ixam-no cair diversas vezes <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> altura, e a pressão é<br />

tal que é só uma questão <strong>de</strong> tempo para os tendões e músculos estalarem e se<br />

esgarçarem, e suas juntas se <strong>de</strong>slocarem. Alguns acreditam que é uma tortura<br />

a<strong>de</strong>quada porque lembra a Crucificação. A maneira como os braços <strong>de</strong> Nosso<br />

Senhor <strong>de</strong>vem ter-se esgarçado com o peso do seu corpo pen<strong>de</strong>ndo da cruz. A<br />

diferença é que não se morre. Ou não sempre. Depois, quando o cortam a corda,<br />

dizem que se cai no chão como uma boneca <strong>de</strong> pano. Às vezes, os vemos, os<br />

sob<strong>rev</strong>iventes, nas ruas anos <strong>de</strong>pois: homens com uma espécie <strong>de</strong> paralisia,<br />

tremendo e rolando ao se moverem, seus membros trepidando e irregulares.<br />

Deus <strong>de</strong>u ao homem fragilida<strong>de</strong> juntamente com a beleza. A Bíblia nos diz que<br />

antes da Queda, não sentíamos dor, e que o nosso sofrimento é culpa da<br />

<strong>de</strong>sobediência <strong>de</strong> Eva. É tão difícil acreditar que Deus infligiria tal castigo por<br />

um único pecado, por maior que fosse. Certamente a dor também existe para nos<br />

lembrar a transitorieda<strong>de</strong> e a imperfeição <strong>de</strong> nossos corpos como o oposto da<br />

radiância da nossa alma. Ainda assim, parece tão cruel...<br />

— Alessandra...<br />

— Desculpe. — Meus pensamentos tinham-se perdido nas chamas e eu<br />

não o ouvira.<br />

— Você está cansada. Por que não vai se <strong>de</strong>itar? Não há razão para os<br />

dois ficarem esperando.<br />

Sacudi a cabeça.


— Vou ficar com você. Faz idéia <strong>de</strong> quanto tempo?<br />

— Não. Um dos homens que foram levados no verão... Eu o vi antes <strong>de</strong><br />

seu exílio. Ele me contou como foi com ele. Disse que alguns dão nomes logo<br />

<strong>de</strong> início, para evitar o sofrimento. Mas confissões sem tortura não são<br />

consi<strong>de</strong>radas confiáveis.<br />

— Então, confessam duas vezes — disse eu. — Antes e <strong>de</strong>pois. Eu me<br />

pergunto se dão sempre os mesmos nomes.<br />

Ele <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros.<br />

— Veremos.<br />

Fiquei acordada um pouco mais, porém, como Pedro ao velar a agonia <strong>de</strong><br />

Cristo no jardim, na última noite, meus olhos foram ficando cada vez mais<br />

pesados. O dia tinha sido tão longo e, às vezes, a criança parece ter mais po<strong>de</strong>r<br />

sobre quando acordo e durmo do que eu.<br />

— Venha.<br />

Ergui os olhos e ele estava à minha frente. Dei-lhe a mão. Levou-me para<br />

o meu quarto e me ajudou a ir para a cama.<br />

— Devo chamar Erila?<br />

— Não, não, <strong>de</strong>ixe-a dormir. Só vou me <strong>de</strong>itar um pouco.<br />

E assim fiz.<br />

A próxima coisa <strong>de</strong> que me lembro é a sensação <strong>de</strong> ele vir para a cama,<br />

<strong>de</strong>itar-se do meu lado, aproximando seu corpo com cuidado, até ficarmos um do<br />

lado do outro, como um casal <strong>de</strong> pedra em uma capela, captados em uma morte<br />

esculpida. Parecia não querer me <strong>de</strong>spertar, portanto não <strong>de</strong>ixei que percebesse<br />

que tinha me acordado. Depois <strong>de</strong> um tempo, esten<strong>de</strong>u o braço por cima <strong>de</strong><br />

minha barriga, até sua mão em concha sentir a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> da criança. Pensei em<br />

Plautilla e na criança que ela per<strong>de</strong>ra, e no Frei e no estômago ensangüentado da<br />

mulher, e, finalmente, pensei em Nossa Senhora, tão calma e abençoada em<br />

relação a tudo isso. E nisso, senti o bebê se mover.<br />

— Ah — disse ele com calma. — Está se preparando para a sua chegada.<br />

— Hummm — disse eu sonolenta. — Foi um chute bem forte.<br />

— Imagino como ele será. Com os professores certos, certamente terá<br />

uma mente <strong>de</strong> florim recém-cunhado.<br />

— E um olho capaz <strong>de</strong> distinguir uma estátua grega recente <strong>de</strong> uma<br />

antiga. — Senti o calor <strong>de</strong> sua mão em minha barriga intumescida. — Mas,<br />

espero que ache mais fácil amar Deus e a arte sem confusão ou medo. Gostaria<br />

que Florença tivesse os dois no futuro.<br />

— Sim. Eu também gostaria.<br />

Ficamos em silêncio. Estendi minha mão e a coloquei, <strong>de</strong>licadamente, em<br />

cima da sua.


Chegaram ao amanhecer, <strong>de</strong>spertando a casa com a batida nos portões. Em todas<br />

as histórias <strong>de</strong>sse tipo, as más notícias chegam ao amanhecer, como se o dia não<br />

conseguisse conviver com a <strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong> das falsas esperanças.<br />

Apesar <strong>de</strong> o barulho me <strong>de</strong>spertar, meu marido já estava <strong>de</strong> pé há muito<br />

tempo. O bebê agora estava tão gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, e eu estava tão cansada,<br />

que precisei <strong>de</strong> algum tempo para me levantar da cama e <strong>de</strong>scer a escada.<br />

Quando cheguei ao pátio, as portas já tinham sido abertas e o mensageiro estava<br />

lá. Erila também estava acordada, no entanto, as intrigas passam por brechas<br />

invisíveis em tempos como esses.<br />

Eu esperava soldados. Ou mesmo, que Deus não permita, Luca e sua<br />

brigada. Mas havia somente um único homem velho.<br />

— Senhora Alessandra! — levei um momento para reconhecê-lo: o<br />

marido <strong>de</strong> Lodovica, sua ida<strong>de</strong> acentuada pelo esforço.<br />

— Andréa, o que foi? O que aconteceu?<br />

E ele pareceu tão acabado que me fez pensar no pior.<br />

— Meu pai? — disse eu. — É o meu pai? Ele está morto.<br />

— Não. Não. Seu pai está bem — fez uma pausa. — Sua mãe me<br />

mandou. Para lhe dizer que os soldados foram à nossa casa <strong>de</strong> manhã cedo. E<br />

levaram o pintor.<br />

Afinal, Tomaso tinha combatido a dor com a astúcia.


Quarenta e Um<br />

NÃO HAVIA MOVIMENTO EM MEU ÚTERO. Pus as mãos sobre o meu<br />

ventre, cutuquei até distinguir a extensão <strong>de</strong> osso <strong>de</strong> uma perna e um traseiro<br />

contra a minha pele. Cutuquei mais um pouco e não houve resposta. Tentei não<br />

entrar em pânico. Às vezes, o sono se parece com a morte, mesmo quando ainda<br />

não nascemos.<br />

— Alessandra. — A voz <strong>de</strong>la me fez escancarar os olhos. Minha fiel<br />

Erila, sentada do meu lado, seus olhos fixos nos meus. Atrás <strong>de</strong>la, estava<br />

Cristoforo, sua cabeça em um halo do sol da manhã. Olhei <strong>de</strong> volta para os olhos<br />

<strong>de</strong> Erila. Cuidado, seu olhar dizia. A cada passo que <strong>de</strong>r agora a sua vida se<br />

tornará mais perigosa. E não po<strong>de</strong>rei estar lá para ajudá-la.<br />

Sorri para ela. Não é <strong>de</strong> admirar que ela fosse capaz <strong>de</strong> ler as mãos e ver<br />

padrões na maneira como as sementes <strong>de</strong> girassol se espalham no solo. Queria-a<br />

ao meu lado para sempre, para que pu<strong>de</strong>sse me ensinar tais habilida<strong>de</strong>s para<br />

lidar com a vida e eu, por minha vez, os transmitisse a meu filho. Entendo,<br />

respondi sem falar. Farei o possível.<br />

— Olá — minha voz ressoou muito distante. — O que aconteceu? —<br />

Você está bem. Desmaiou por um momento, só isso. — E a voz <strong>de</strong> meu marido<br />

soou cheia <strong>de</strong> alívio.<br />

— E o bebê...<br />

— Está dormindo, tenho certeza — interrompeu Erila. — Como você<br />

também <strong>de</strong>veria estar. Num momento como este, qualquer excesso <strong>de</strong> emoção<br />

po<strong>de</strong> prejudicar os dois.<br />

— Sei disso. — Sentei-me na cama, peguei sua mão e a apertei com força.<br />

— Obrigada, Erila. Po<strong>de</strong> nos <strong>de</strong>ixar agora.<br />

Ela assentiu com a cabeça e saiu sem lançar nenhum olhar. Observei-a<br />

sair, seu cabelo solto como um enxame <strong>de</strong> moscas furiosas ao redor <strong>de</strong> sua<br />

cabeça.<br />

— Não o levaram. — Sorri para ele. — O alívio <strong>de</strong>ve ter sido muito<br />

gran<strong>de</strong> para mim. — Mas, ao dizer isso, senti uma onda <strong>de</strong> náusea crescendo<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim. Agora eu sei. Sei o que você sentiu: esse medo cego que nos<br />

toma ao imaginarmos o que po<strong>de</strong> estar lhes acontecendo, mesmo agora,<br />

enquanto lhe ocorre o mesmo pensamento. Engoli em seco e tentei <strong>de</strong> novo. —<br />

Sabe, Plautilla diz que o parto é tão ruim quanto a estrapada. Mas não acredito<br />

nisso, porque o parto é vida e certamente compreen<strong>de</strong>mos isso quando vem a<br />

dor.<br />

— Sua irmã não sabe nada <strong>de</strong>ssas coisas — disse ele abruptamente.


— Não. Cristoforo... — senti minha voz falhar.<br />

— Estou escutando.<br />

— Cristoforo, estou tão contente que não tenha sido você. Tão contente...<br />

— interrompi-me. — Mas sabe que é o ódio <strong>de</strong> Tomaso por mim. Ele... —<br />

interrompi-me <strong>de</strong> novo, vendo os olhos <strong>de</strong> Erila na minha frente.<br />

— Ele po<strong>de</strong>ria ter dito <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> outros nomes. Ele sabe do meu gran<strong>de</strong><br />

amor pela arte e como <strong>de</strong>vo ao estímulo do pintor. — Tive dificulda<strong>de</strong>s em<br />

sustentar seu olhar. — Vão torturá-lo também, não vão?<br />

Ele assentiu com um movimento da cabeça.<br />

— Se foi <strong>de</strong>nunciado, sim. É a lei.<br />

— Mas ele não sabe nada. Não conhece ninguém. Não terá nomes a dar.<br />

Mas não darão importância a isso. Sabe o que vai acontecer, Cristoforo. Sabe o<br />

que farão. Insistirão, insistirão até ele falar, e, assim, romperão as articulações <strong>de</strong><br />

seus braços. E sem seus braços...<br />

— Eu sei, Alessandra. Eu sei — sua voz foi incisiva. — Sei muito bem<br />

que está se passando aqui.<br />

— Desculpe — e apesar da intenção <strong>de</strong> ser pru<strong>de</strong>nte, comecei a chorar.<br />

— Sinto muito. Sei que a culpa não é sua — fiz menção <strong>de</strong> me levantar.<br />

— Tenho <strong>de</strong> ir até lá.<br />

Ele veio até mim.<br />

— Não seja tola.<br />

— Não. Não. tenho <strong>de</strong> ir. Tenho <strong>de</strong> contar para eles. Se não acreditarem<br />

em mim, po<strong>de</strong>rão me interrogar. A lei proíbe a tortura <strong>de</strong> mulheres grávidas,<br />

portanto serão obrigados a aceitar minha palavra.<br />

— Ahh, isso é total estupi<strong>de</strong>z. Nunca lhe darão atenção. Só fará piorar a<br />

situação, e complicar nós todos em sua maldita culpa.<br />

— Culpa <strong>de</strong>les? Mas...<br />

— Preste atenção...<br />

— Não é culpa <strong>de</strong>les. É...<br />

— Pelo amor <strong>de</strong> Deus, já enviei...<br />

Nossas vozes se confundiram na discussão irada. Eu podia imaginar Erila<br />

em pé, do lado <strong>de</strong> fora, alarmada, tentando dar sentido àquela tormenta. Parei:<br />

— O que disse?<br />

— Eu disse, se é que consegue se acalmar o bastante para escutar, que já<br />

enviei alguém à prisão.<br />

— Enviou quem?<br />

— Alguém a quem ouvirão. Po<strong>de</strong> achar o que quiser <strong>de</strong> seu irmão, e, <strong>de</strong><br />

certa maneira, talvez eu ache o mesmo, mas não quero que acredite que eu<br />

<strong>de</strong>ixaria um homem inocente sofrer em meu lugar.<br />

— Oh, você confessou?


Ele riu com amargura.<br />

— Não sou tão valente. Mas achei como fazer os que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m tais<br />

questões ouvirem. Você dormiu durante horas importantes. A história corre mais<br />

rápido do que o Arno em época <strong>de</strong> cheia e as coisas estão mudando mesmo<br />

enquanto falamos.<br />

— O que quer dizer?<br />

— Quero dizer que seu po<strong>de</strong>r, agora, está realmente ameaçado.<br />

— Como?<br />

— Ontem, o lí<strong>de</strong>r da or<strong>de</strong>m franciscana atacou-o abertamente, dizendo<br />

que ele não era um profeta, mas um lunático mal orientado, e que a cida<strong>de</strong> corre<br />

o risco da danação por segui-lo. Como evidência, <strong>de</strong>safiou-o aprovação do fogo.<br />

— O quê?<br />

— Os dois juntos atravessarem o fogo para <strong>de</strong>monstrar se Savonarola está<br />

realmente sob a proteção <strong>de</strong> Deus.<br />

— Virgem Maria! O que está acontecendo conosco? Nós nos tornamos<br />

bárbaros.<br />

— Na verda<strong>de</strong>, é o que somos. Mas é espetáculo e, em tempos como este,<br />

substitui com eficiência o pensamento. Já estão erigindo as tábuas encharcadas<br />

na Piazza <strong>de</strong>lla Signoria.<br />

— E se Savonarola vencer?<br />

— Não seja ingênua, Alessandra. Nenhum dos dois vencerá. Isso<br />

simplesmente encorajará a plebe. Mas ele já per<strong>de</strong>u. Nesta manhã, anunciou que<br />

a obra <strong>de</strong> Deus era mais importante do que esses testes e nomeou outro Frei para<br />

o seu lugar.<br />

— Oh! Mas então se expôs como uma frau<strong>de</strong> e um covar<strong>de</strong> ao mesmo<br />

tempo.<br />

— Ele não vê <strong>de</strong>ssa maneira, mas é a mensagem que o povo receberá. E o<br />

mais importante... é que significa que a Signoria não precisa mais apoiá-lo.<br />

Estavam esperando a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua<br />

excomunhão.<br />

— E então, acha que...<br />

— Acho que há uma chance <strong>de</strong> tudo <strong>de</strong>smoronar, sim. Ninguém quer ser<br />

seguidor <strong>de</strong> um lí<strong>de</strong>r con<strong>de</strong>nado à <strong>de</strong>struição, por mais <strong>de</strong>sprezível que seja sua<br />

posição. Em tempos assim, é fácil <strong>de</strong>mais o torturador se tornar o torturado. Nos<br />

velhos tempos, esses crimes podiam ser negociados segundo a influência e<br />

tamanho <strong>de</strong> seu bolso. Devemos esperar e rezar para retomar esse caminho.<br />

— Então, vai comprar a sua libertação?<br />

— Sim, é possível.<br />

— Oh, Deus! — recomecei a chorar, sem conseguir parar as lágrimas. —<br />

Oh, Deus. Estamos todos loucos. O que será <strong>de</strong> nós?


— O que será <strong>de</strong> nós? — sacudiu a cabeça, com tristeza. — Faremos o<br />

que pu<strong>de</strong>rmos fazer, viveremos a vida que nos foi dada viver e rezaremos para<br />

que Savonarola esteja errado e que Deus, em sua eterna misericórdia, possa<br />

amar os pecadores tanto quanto os santos.


Quarenta e Dois<br />

O DIA ENTARDECEU E O ENTARDECER virou noite. Por volta da meianoite,<br />

chegou uma mensagem para ele. Partiu imediatamente. Lá fora, a cida<strong>de</strong><br />

recusava-se a adormecer. Como nos velhos tempos, tanta ativida<strong>de</strong> até tar<strong>de</strong> da<br />

noite. Com a janela aberta, ouvia-se o rebuliço lá na praça.<br />

Para me confortar, fomos para o meu ateliê. Eu não parava <strong>de</strong> pensar na<br />

manhã antes do meu casamento, quando la Vacca tinha sido enforcado e minha<br />

mãe não <strong>de</strong>ixara eu sair para ver o que estava acontecendo. Assim como ela<br />

testemunhara a violência Pazzi comigo em seu útero, agora, eu também estava<br />

próxima <strong>de</strong> eventos sangrentos quando meu filho estava para nascer. Tentei usar<br />

a tinta para acalmar meu pânico, mas até mesmo as cores pareciam mais<br />

rarefeitas e não conseguiram fazer minha cabeça parar <strong>de</strong> ribombar.<br />

Logo após a alvorada, o portão da frente se abriu e ouvimos seus passos<br />

nos <strong>de</strong>graus <strong>de</strong> pedra. Erila, que adormecera, acordou em um estalar <strong>de</strong> <strong>de</strong>dos.<br />

Quando ele entrou, eu estava <strong>de</strong> pé e teria me aproximado se ele não me<br />

<strong>de</strong>tivesse com um olhar <strong>de</strong> alerta.<br />

— Bem-vindo, meu marido — disse eu calmamente. — Como você está?<br />

— Seu pintor foi solto.<br />

— Oh! — E quando minhas mãos foram à minha boca, senti os olhos <strong>de</strong><br />

Erila me aquietarem. — E...Tomaso?<br />

Ficou em silêncio por alguns segundos.<br />

— Não conseguimos <strong>de</strong>scobrir nada <strong>de</strong> Tomaso. Não está mais na prisão.<br />

Ninguém sabe on<strong>de</strong> está.<br />

— Mas... quer dizer, on<strong>de</strong> quer que esteja, está a salvo. Você vai<br />

encontrá-lo.<br />

— Esperemos que sim.<br />

Mas nós dois sabíamos que não era uma conclusão inevitável. Ele não<br />

seria o primeiro prisioneiro a <strong>de</strong>saparecer <strong>de</strong> uma prisão sem <strong>de</strong>ixar rastro. Mas<br />

Tomaso era assim. A sua história certamente era audaciosa <strong>de</strong>mais para se<br />

encerrar na parte traseira <strong>de</strong> uma carroça com uma mortalha sobre si.<br />

— O que mais?<br />

Ele relanceou os olhos para Erila. Ela levantou-se, mas coloquei a mão<br />

sobre seu braço.<br />

— Cristoforo, ela sabe <strong>de</strong> tudo entre nós. Confio nela mais do que em<br />

mim mesma. A essa altura, acho que <strong>de</strong>ve ouvir o resto.<br />

Ele olhou-a fixamente por um momento, como se a visse pela primeira<br />

vez. Ela curvou a cabeça humil<strong>de</strong>mente.


— Então, o que mais quer saber? — perguntou ele com certo<br />

aborrecimento.<br />

— Eles... quer dizer... ?<br />

— Tivemos sorte. Os carcereiros estavam mais interessados nas notícias<br />

do dia do que no trabalho do dia. Nós o encontramos antes que o pior tivesse<br />

sido feito.<br />

Eu quis perguntar mais, mas não soube como.<br />

— Não se preocupe, Alessandra. O seu precioso pintor ainda será capaz<br />

<strong>de</strong> segurar um pincel.<br />

— Obrigada — disse eu.<br />

— Talvez <strong>de</strong>vesse esperar antes <strong>de</strong> me agra<strong>de</strong>cer. Não ouviu toda a<br />

história. Apesar <strong>de</strong> libertado, as acusações subsistem. Como estrangeiro, há uma<br />

pena <strong>de</strong> banimento. Com efeito imediato. Falei com sua mãe e esc<strong>rev</strong>i uma carta<br />

<strong>de</strong> apresentação a pessoas <strong>de</strong> minhas relações em Roma. Lá, estará seguro. Se o<br />

seu talento continua no lugar, acho que ele po<strong>de</strong>rá usá-lo. Já foi <strong>de</strong>spachado.<br />

Já <strong>de</strong>spachado. O que eu tinha pensado? Que não havia preço a ser pago<br />

por sua liberda<strong>de</strong>? Já <strong>de</strong>spachado. O mundo pareceu estremecer por alguns<br />

segundos, e percebi como a vida podia empurrar-nos pelas brechas do <strong>de</strong>stino<br />

para o <strong>de</strong>sespero, mas eu não podia <strong>de</strong>ixar isso acontecer agora. Meu marido me<br />

olhava fixamente e havia, achei, uma tristeza nele que eu não percebera antes.<br />

Engoli em seco.<br />

— O que mais po<strong>de</strong> fazer por Tomaso?<br />

Ele sacudiu os ombros.<br />

— Po<strong>de</strong>mos continuar procurando. Se ele estiver em Florença, nós o<br />

encontraremos.<br />

— Oh, tenho certeza <strong>de</strong> que sim.<br />

Ele parecia tão cansado. Havia uma jarra <strong>de</strong> vinho sobre a mesa. Levei-lhe<br />

uma taça, esforçando-me para meu estômago <strong>de</strong>ixar que o servisse. Bebeu um<br />

longo trago, <strong>de</strong>pois recostou a cabeça na ca<strong>de</strong>ira. Pareceu-me que sua pele<br />

tornara-se mais amarelada e flácida com as preocupações noturnas, <strong>de</strong> modo<br />

que, agora, seu rosto era o <strong>de</strong> um homem velho. Pus minha mão sobre a <strong>de</strong>le.<br />

Olhou para ela, mas não respon<strong>de</strong>u.<br />

— E a cida<strong>de</strong>? — perguntei. — A provação ainda vai acontecer?<br />

Ele sacudiu a cabeça.<br />

— Ah, torna-se cada vez mais uma farsa. O franciscano agora diz que só<br />

atravessará as chamas com Savonarola. Então outro monge ocupará o seu lugar<br />

também.<br />

— Nesse caso, não há mais por quê.<br />

— Não, a não ser provar que o fogo queima. Po<strong>de</strong>riam muito bem<br />

escolher caminhar sobre o Arno e julgar qual dos dois molharia os pés.


— Por que a Signoria não dá um basta nisso?<br />

— Porque a população está excitada aguardando, e se agir assim só<br />

conseguirá provocar um motim. Tudo o que po<strong>de</strong>m fazer é restringir os danos e<br />

criticar os freis a quem quer que escute. São como ratos no navio que afunda,<br />

ansiosos por pular, mas com medo da água. Ainda assim, terão, das janelas, uma<br />

vista privilegiada quando as chamas começarem a ar<strong>de</strong>r.<br />

Teria havido um tempo em que uma notícia como essa provocaria um<br />

arrepio tanto <strong>de</strong> excitação quanto <strong>de</strong> terror, quando eu fantasiaria maneiras <strong>de</strong><br />

escapar do controle das acompanhantes e me per<strong>de</strong>ria na multidão, para ser parte<br />

da história <strong>de</strong> tudo isso. Mas não agora.<br />

— Não consigo admitir que tenhamos caído tanto. Vai assistir?<br />

— Eu? Não. Tenho mais o que fazer do que assistir à humilhação da<br />

minha cida<strong>de</strong> — virou-se para Erila. — E você? Pelo que sei, você sabe mais o<br />

que acontece em Florença do que a maior parte <strong>de</strong> seu governo. Vai assistir?<br />

Ela sustentou seu olhar com serenida<strong>de</strong>.<br />

— Não gosto do cheiro <strong>de</strong> carne humana queimando — respon<strong>de</strong>u<br />

calmamente.<br />

— Faz bem. Tudo o que po<strong>de</strong>mos esperar é que Deus concor<strong>de</strong> e, <strong>de</strong><br />

alguma maneira, faça sentir a Sua própria mão.<br />

E assim Ele fez.<br />

Talvez não conheçam a história. Em Florença, tornou-se uma lenda: como<br />

os monges loucos <strong>de</strong>sgraçavam a si mesmos, brigando e discutindo à toa, até<br />

Deus lançar um raio para cessar a rixa.<br />

Se fôssemos diagnosticar o pecado, o orgulho seria o primeiro a nos<br />

ocorrer. E se alguém tivesse <strong>de</strong> partilhar da culpa, então os dominicanos seriam<br />

os primeiros.<br />

A provação ficou marcada para o meio da tar<strong>de</strong> do dia seguinte, um dia<br />

antes do Domingo <strong>de</strong> Ramos. Sob um céu cor <strong>de</strong> chumbo, os franciscanos<br />

chegaram na hora, comportando-se como seus seguidores, com humilda<strong>de</strong> e<br />

<strong>rev</strong>erência. Em contraste, seus rivais, que haviam aprendido o po<strong>de</strong>r do teatro<br />

com seu lí<strong>de</strong>r, estavam ofensivamente atrasados, entrando finalmente na praça<br />

em uma procissão elaborada, carregando um gran<strong>de</strong> crucifixo à frente. Seu<br />

número aumentado dos fiéis cantando as lau<strong>de</strong>s e os salmos. E ali, no final,<br />

Savonarola em pessoa, orgulhoso e <strong>de</strong>safiador, erguendo a hóstia consagrada.<br />

Isso foi <strong>de</strong>mais para os franciscanos, que exigiram que fosse retirada<br />

imediatamente <strong>de</strong> suas mãos excomungadas. As coisas se agravaram quando o<br />

representante <strong>de</strong> Savonarola, Fra Domenico, comunicou sua intenção <strong>de</strong> carregar<br />

a hóstia e o crucifixo com ele nas chamas. O franciscano, então, se recusou a<br />

acompanhá-lo. Por fim, após muita negociação furiosa — durante a qual, o<br />

corredor <strong>de</strong> fogo ardia cada vez mais alto e quente —, Fra Domenico concordou


em <strong>de</strong>ixar o crucifixo, mas insistiu em manter a hóstia.<br />

Ainda brigavam feito crianças, quando Deus, compreensivelmente<br />

exasperado como o barulho que faziam e com sua arrogância, rompeu os céus<br />

com raios e trovões, <strong>de</strong>spejando uma torrente <strong>de</strong> água sobre as chamas e<br />

mergulhando a praça na fumaça e confusão, <strong>de</strong> modo que, ao cair da tar<strong>de</strong>, a<br />

Signoria, mais do que aliviada com o fato <strong>de</strong> alguém mais ter <strong>de</strong>cidido a questão<br />

em seu lugar, suspen<strong>de</strong>u o fiasco e or<strong>de</strong>nou que a multidão fosse para casa.<br />

E nessa noite, Florença pagou seus pecados venenosos com vergonha e<br />

<strong>de</strong>cepção.


Quarenta e Três<br />

— ACORDE.<br />

— O que é? O que aconteceu? — O medo me alerta imediatamente.<br />

— Psiuu. Quieta. — Erila, curvada sobre mim, pronta para viajar. — Não<br />

faça perguntas. Levante-se e vista-se. Rápido. Não faça o menor ruído.<br />

Fiz o que mandou, embora o bebê estivesse tão gran<strong>de</strong> que até mesmo as<br />

coisas mais simples levavam muito tempo.<br />

Estava me esperando ao pé da escada. Era o momento mais escuro da<br />

noite. Quando abri a boca, ela a tampou com o <strong>de</strong>do. Pegou minha mão, apertoua,<br />

e me conduziu em direção aos fundos da casa, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>strancou a porta.<br />

Escapulimos para a rua. A temperatura estava baixa, o resto do inverno ainda no<br />

ar.<br />

— Preste atenção, Alessandra.Temos <strong>de</strong> andar, está bem? Po<strong>de</strong> fazer isso?<br />

— Não, a menos que me diga aon<strong>de</strong> vamos.<br />

— Não, já disse. Nada <strong>de</strong> perguntas. É melhor você não saber. Falo sério.<br />

Confie em mim. Não temos muito tempo.<br />

— Pelo menos me diga a distancia.<br />

— É longe. Porta di Giustizia.<br />

O portão do patíbulo? Comecei a falar, mas ela já se embrenhara no<br />

escuro.<br />

Não éramos as únicas. A cida<strong>de</strong>, enlouquecida <strong>de</strong>pois do anticlímax do<br />

dia, estava alvoroçada com turmas <strong>de</strong> homens procurando agitação. Mantivemos<br />

a cabeça bem coberta e nos esgueiramos pelas ruas laterais, on<strong>de</strong> a noite era<br />

mais <strong>de</strong>nsa. Duas ou três vezes, Erila parou repentinamente, <strong>de</strong>tendo-me e<br />

escutando, e, uma vez, fui eu que tive certeza <strong>de</strong>,ouvir alguma coisa ou alguém<br />

atrás <strong>de</strong> nós. Ela retroce<strong>de</strong>u alguns passos para checar, espreitando no escuro,<br />

<strong>de</strong>pois avançou me puxando para andar ainda mais rápido. Passamos pelas<br />

barricadas que restavam daquele dia, mas evitamos a praça, cruzando para o<br />

norte, perto da casa do meu pai, <strong>de</strong>pois passamos por trás <strong>de</strong> Santa Croce, até<br />

chegarmos à Via <strong>de</strong> Malcontenti, essa rua sombria e triste, que os prisioneiros<br />

con<strong>de</strong>nados são obrigados a percorrer, acompanhados pelos freis <strong>de</strong> preto.<br />

O bebê estava acordado e irrequieto, embora agora houvesse menos<br />

espaço para seus movimentos. Senti um cotovelo, ou talvez um joelho, <strong>de</strong>slizar<br />

sob a superfície do meu estômago.<br />

— Erila, pare. Por favor. Não posso ir tão rápido.<br />

Ela estava impaciente.<br />

— Você precisa. Eles não esperarão por nós.


Atrás <strong>de</strong> nós, os sinos <strong>de</strong> Santa Croce tocaram o começo da vigília das<br />

3:00. Ah, as ruas eram substituídas pelo campo aberto, o terreno e jardins do<br />

mosteiro <strong>de</strong> Santa Croce <strong>de</strong> cada lado, à frente o portão com os gran<strong>de</strong>s muros<br />

da cida<strong>de</strong> ao redor. Lembrei-me <strong>de</strong> Tomaso contando como, no verão, era um<br />

bom terreno para o esporte, para quem quisesse jogar. Eu imaginara moças com<br />

sorrisos faceiros, mas, sem dúvida, ele estava-se referindo a outras coisas. Mas o<br />

humor estava mais para outro tipo <strong>de</strong> transgressão, e o terreno coberto <strong>de</strong><br />

vegetação que levava ao portão estava <strong>de</strong>serto.<br />

— Meu Deus, espero que não tenhamos nos atrasado <strong>de</strong>mais —<br />

murmurou Erila. Empurrou-me para a sombra <strong>de</strong> uma árvore gran<strong>de</strong>. — Não se<br />

mexa — mandou. — Eu já volto.<br />

Desapareceu no escuro e me apoiei no tronco. Eu estava ofegando do<br />

esforço, e minhas pernas estavam tremendo. Ouvi algo se mover à minha<br />

esquerda e me virei rapidamente, mas não havia nada ali. No portão, <strong>de</strong>veria<br />

haver soldados: três horas da manhã marcava a hora da mudança da guarda. Por<br />

que a hora tinha sido tão importante?<br />

— Erila? — sussurrei <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo.<br />

O silêncio agora era profundo e a escuridão mais assustadora do que as<br />

ruas. Senti uma dor brusca na parte inferior do meu útero, mas era difícil dizer<br />

se tinha sido provocada pelo medo ou pelo bebê. Do escuro, sob o muro, vi uma<br />

figura emergir. Erila, meta<strong>de</strong> andando, meta<strong>de</strong> correndo. Quando me alcançou,<br />

agarrou-me pela mão.<br />

— Alessandra. Temos <strong>de</strong> voltar. Já. Sei que está cansada, mas temos <strong>de</strong><br />

andar rápido.<br />

— Mas...<br />

— Nada <strong>de</strong> "mas". Vou contar, juro, mas não agora. Agora, por favor,<br />

an<strong>de</strong>. — E havia um terror em sua voz que eu nunca ouvira antes, e que parou<br />

meus protestos. Levou-me pela mão e quando fiquei sem ar, apoiou-me sob o<br />

cotovelo. Saímos da vegetação e voltamos para a cida<strong>de</strong>. Seus olhos estavam em<br />

toda parte, tentando ler o escuro. Quando alcançamos a Piazza Santa Croce,<br />

parei, a gran<strong>de</strong> fachada <strong>de</strong> tijolos da igreja avultando-se sobre nós.<br />

— Tenho <strong>de</strong> parar ou vou passar mal — disse eu, minha voz trêmula <strong>de</strong><br />

exaustão.<br />

Ela concordou, sua cabeça sem parar <strong>de</strong> virar para todo lado. A praça era<br />

um lago cinza sob feixes <strong>de</strong> luar fragmentado, a única rosácea da gran<strong>de</strong> igreja<br />

olhando para nós, lá do alto, como o olho do Ciclope.<br />

— Conte.<br />

— Depois...<br />

— Não, agora. Não vou sair daqui até que me conte.<br />

— Oh, Cristo, não há tempo para isso!


— Então, ficamos aqui.<br />

E ela sabia que eu falava sério.<br />

— Está bem. Hoje à noite, <strong>de</strong>pois que você adormeceu, eu estava no meu<br />

quarto, quando seu marido foi ao alojamento dos criados. Ele falou com seu<br />

criado. Ouvi tudo o que disseram. Disse-lhe para levar um salvo-conduto à Porta<br />

di Giustizia hoje à noite. Que era urgente, que havia um homem, um pintor que<br />

estava partindo às 3:00 e precisaria do documento para partir. — Ela fechou os<br />

olhos com força. — Juro que foi o que ouvi. Por isso a trouxe. Achei...<br />

— Achou que eu po<strong>de</strong>ria encontrá-lo lá. On<strong>de</strong> ele está?<br />

— Não estava lá. Nem ele nem o criado. Não havia ninguém lá.<br />

— Então <strong>de</strong>ve ter sido o portão errado. Temos <strong>de</strong> ir...<br />

— Não. Não, escute. Sei o que ouvi — fez uma pausa. — Agora sei que<br />

era para eu ouvir.<br />

— O que quer dizer?<br />

Relanceou os olhos em volta.<br />

— Acho que seu marido...<br />

— Não... oh, Deus, não. Cristoforo não sabe. Como saberia? É<br />

impossível. Ninguém mais sabe além <strong>de</strong> mim e você.<br />

— E não acredita que seu irmão tenha adivinhado? — disse ela com raiva.<br />

— No dia que se <strong>de</strong>parou com vocês na capela?<br />

— Acho que <strong>de</strong>sconfiou, mas não houve tempo para ele dizer a<br />

Cristoforo. Observei-os o tempo todo que estiveram juntos. Ele não lhe contou.<br />

Eu sei. E não se viram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, pois Tomaso está <strong>de</strong>saparecido. — Ela<br />

olhou fixo para mim, <strong>de</strong>pois baixou os olhos. — Não está? — E quando eu disse<br />

isso, senti pânico como o vômito subindo por minha garganta. — Oh, Cristo. Se<br />

tiver razão... se tiver sido uma cilada...<br />

— Ouça, não penso nem acho mais nada. Só sei que se não chegarmos em<br />

casa, com certeza seremos <strong>de</strong>scobertas.<br />

Percebi seu medo. Ela não estava acostumada a se enganar, a minha Erila,<br />

e essa não era hora para hesitar.<br />

— Escute bem — disse eu com <strong>de</strong>terminação. — Estou feliz que tenha<br />

agido assim. Feliz. Enten<strong>de</strong>u? Não se preocupe. — Estava na minha vez <strong>de</strong><br />

tranqüilizá-la. — Estou bem. Vamos.<br />

Andamos rapidamente, retornando por on<strong>de</strong> tínhamos ido, <strong>de</strong> modo que o<br />

escuro nos envolvesse durante a maior parte do percurso, Se estivéssemos sendo<br />

seguidas, então certamente saberíamos. O bebê, agora, estava quieto, se bem que<br />

o esforço não me <strong>de</strong>ixaria impune, e senti uma dor opressiva no útero. A nossa<br />

volta, ouvíamos gritos. Para o sul da Catedral, nos <strong>de</strong>paramos com uma falange<br />

<strong>de</strong> jovens, armados estri<strong>de</strong>ntes, dirigindo-se à praça da Catedral. Erila<br />

empurrou-me rápido para a sombra, quando eles passaram. Com a aurora,


haveria a missa <strong>de</strong> Domingo <strong>de</strong> Ramos na Catedral, e apesar <strong>de</strong> Savonarola não<br />

po<strong>de</strong>r pregar, um <strong>de</strong> seus discípulos subiria ao púlpito. Em uma cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> em<br />

b<strong>rev</strong>e o jogo estaria <strong>de</strong> volta às ruas, eu não teria apostado que conseguisse<br />

chegar ao sermão.<br />

Quando voltamos para a rua, senti uma punhalada funda na meta<strong>de</strong><br />

inferior das costas e <strong>de</strong>ixei escapar um arquejo <strong>de</strong> dor. Erila virou-se e vi meu<br />

pânico refletido em seus olhos.<br />

— Está tudo bem. Está tudo bem — disse eu, tentando rir, mas não<br />

conseguindo emitir o som certo. — Só uma câimbra.<br />

— Meu Deus — ouvi-a murmurar.<br />

Dei-lhe a mão e a apertei forte.<br />

— Já disse, estou bem. Fizemos um pacto, o bebê e eu. Não nascerá em<br />

uma cida<strong>de</strong> governada por Savonarola. E ele ainda não se foi. Venha. Estamos<br />

perto, se bem que po<strong>de</strong>ríamos andar um pouco mais <strong>de</strong>vagar.<br />

A casa estava silenciosa e escura. Entramos sem fazer ruído pela porta dos<br />

criados e subimos a escada. A porta <strong>de</strong> meu marido estava fechada. Eu estava<br />

tão cansada, que mal consegui me <strong>de</strong>spir. Erila ajudou-me, <strong>de</strong>pois se <strong>de</strong>itou<br />

vestida em um catre do lado da porta. Sei que ela estava preocupada com as<br />

dores. Pegou um líquido na bolsa <strong>de</strong> remédios <strong>de</strong> sua mãe e tomei algumas<br />

gotas. Antes <strong>de</strong> adormecer, pus as mãos sobre a barriga, mas on<strong>de</strong> antes havia<br />

um outeiro, quase até minhas vértebras, agora, o bebê havia <strong>de</strong>scido em meu<br />

útero, o seu corpo pressionando com força minha bexiga. Pelos cálculos no<br />

calendário, ainda faltavam três semanas. Quando, então, a ama-<strong>de</strong>-leite e a<br />

parteira já estariam bem instaladas.<br />

— Seja paciente, pequerrucho — sussurrei. — Falta pouco, agora.<br />

Teremos a cida<strong>de</strong> e a casa prontas para você.<br />

E o bebê, em obediência ao nosso acordo, <strong>de</strong>ixou-me dormir.


Quarenta e Quatro<br />

QUANDO ACORDEI, ERILA NÃO ESTAVA E a casa estava silenciosa. Eu<br />

me sentia sonolenta. Sua poção tinha-me feito bem. Fiquei <strong>de</strong>itada, por um<br />

momento, tentando calcular a hora do dia pela luz ao meu redor. Já <strong>de</strong>via ser <strong>de</strong><br />

tar<strong>de</strong>, e todos estariam fazendo a sesta. A opressão em meu estômago voltara,<br />

como se alguém estivesse raspando o fundo do meu útero com um escovão.<br />

Fui até a janela e a chamei. Nenhuma resposta. Vesti um robe e <strong>de</strong>sci,<br />

<strong>de</strong>vagar, a escada. As cozinhas e os alojamentos dos criados estavam vazios. Do<br />

lado da copa, havia uma pequena <strong>de</strong>spensa on<strong>de</strong> se guardavam sacos <strong>de</strong> farinha<br />

e se penduravam carnes curadas. Ao passar por ela, ouvi uma espécie <strong>de</strong><br />

zumbido. Dentro, a filha mais velha do cozinheiro estava sentada no chão, com<br />

uma quantida<strong>de</strong> do que pareciam ser uvas, contando-as em pequenas pilhas,<br />

<strong>de</strong>pois colocando uma na boca. Mais robusta do que a irmã, tinha sob<strong>rev</strong>ivido à<br />

peste, mas a sua mente era menos <strong>de</strong>senvolvida do que seu corpo, e havia uma<br />

certa inanida<strong>de</strong> em seu comportamento. Na sua ida<strong>de</strong>, eu estava recitando Dante<br />

e os verbos gregos. Se bem que tais aptidões eram <strong>de</strong> pouca utilida<strong>de</strong> agora.<br />

— Tancia? — ela <strong>de</strong>u um pulo <strong>de</strong> susto e se apressou a cobrir as uvas com<br />

suas saias. — On<strong>de</strong> está o seu pai?<br />

— Meu pai?... Foi lutar na guerra.<br />

— Que guerra?<br />

— A guerra contra o Monge — disse ela, e suas palavras ressoaram como<br />

se fosse algo divertido.<br />

— E os outros criados?<br />

Ela sacudiu os ombros. Tínhamos trocado apenas algumas palavras, ela e<br />

eu, e parecia com medo <strong>de</strong> mim. Com meu cabelo solto e a enorme barriga, eu<br />

<strong>de</strong>via estar parecendo meio selvagem.<br />

— Responda. Tem alguém na casa?<br />

— O patrão disse que todos podiam ir — falou alto. — Mas eu não tive<br />

permissão.<br />

— E a minha escrava também foi?<br />

Ela me olhou sem enten<strong>de</strong>r.<br />

— A mulher negra — eu disse com impaciência. — Erila. Ela também<br />

foi?<br />

— Não sei.<br />

E quando ela disse isso, senti a primeira pontada; um cinto <strong>de</strong> metal ao<br />

redor <strong>de</strong> meu abdômen, apertando com tanta força que parecia que minhas<br />

entranhas explodiriam e se <strong>de</strong>rramariam no chão.


— Aaii. — De tal forma me tirou o ar que tive <strong>de</strong> me segurar na porta<br />

para não cair. O espasmo durou talvez <strong>de</strong>z ou quinze segundos, <strong>de</strong>pois aliviou.<br />

Agora não. Oh, Deus, agora não. Não estou pronta.<br />

Quando busquei ar para respirar, ela estava olhando fixo para a minha<br />

barriga.<br />

— O bebê é gran<strong>de</strong>, senhora.<br />

— Sim, sim, é. Tancia, preste atenção — falei bem claro e <strong>de</strong>vagar. —<br />

Preciso que faça uma coisa para mim. Preciso que leve um bilhete ao outro lado<br />

da cida<strong>de</strong>, à casa da minha mãe, perto da Piazza Sant'Ambrogio. Está<br />

enten<strong>de</strong>ndo?<br />

Ela olhou para mim, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>u uma risadinha.<br />

— Não posso, senhora. Não sei on<strong>de</strong> é e o patrão disse que os outros<br />

podiam ir ver a guerra, mas que eu tinha <strong>de</strong> ficar aqui.<br />

Fechei meus olhos e respirei fundo. Por favor, Deus, se tenho <strong>de</strong> entrar em<br />

trabalho <strong>de</strong> parto, pelo menos me dê Erila. Não me <strong>de</strong>ixe só na casa com uma<br />

menina retardada. Não podia estar acontecendo. Não podia. Era cedo <strong>de</strong>mais. Eu<br />

estava apenas exausta e amedrontada. Voltaria para a cama e dormiria <strong>de</strong> novo.<br />

Quando acordasse, a casa estaria viva <strong>de</strong> novo, e eu estaria bem.<br />

Subi a escada com cuidado. Ao chegar ao primeiro andar, ouvi um<br />

barulho, uma ca<strong>de</strong>ira se arrastando ou uma persiana se fechando? O ruído vinha<br />

da galeria <strong>de</strong> Cristoforo. Percorri o corredor com cuidado, minhas mãos em<br />

concha sobre minha barriga, e empurrei a porta.<br />

Dentro, um sol prematuro <strong>de</strong> primavera enviava um raio <strong>de</strong> luz dourada<br />

pelos azulejos e sobre as estátuas. O corpo do Lançador <strong>de</strong> disco refulgia em seu<br />

calor.<br />

— Bom dia, minha mulher.<br />

Foi a minha vez <strong>de</strong> levar um susto. Virei-me e o vi sentado no outro<br />

extremo da sala, um livro no colo, a estátua <strong>de</strong> Baco, em um langor embriagado<br />

meio caindo <strong>de</strong> seu pe<strong>de</strong>stal, atrás <strong>de</strong>le.<br />

— Cristoforo. Você me assustou! O que está acontecendo? On<strong>de</strong> estão<br />

todos?<br />

— Foram testemunhar a história. Como antes você ansiava tanto fazer. O<br />

populacho interrompeu o serviço na Catedral, esta manhã. Os dominicanos<br />

fugiram <strong>de</strong> volta a San Marco e estão agora sitiados em seu mosteiro.<br />

— Meu Deus. E Savonarola?<br />

— Está lá <strong>de</strong>ntro. Há uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> prisão da Signoria para ele. E só uma<br />

questão <strong>de</strong> tempo.<br />

Então, realmente estava terminando. Senti a opressão <strong>de</strong> novo em meu<br />

útero. O bebê, ao que parecia, tinha aptidão para política. Certamente, afinal,<br />

seria filho do meu marido.


— E Erila? Também foi assistir?<br />

— Erila? Não me diga que sua leal Erila a <strong>de</strong>ixou. Achei que estaria<br />

sempre do seu lado. On<strong>de</strong> quer que você fosse — fez uma pausa. Percebi tar<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>mais o que as palavras significavam. — Dormiu tar<strong>de</strong>, Alessandra? Deve ter<br />

passado a noite acordada. O que teria provocado isso?<br />

— Eu... estou cansada, Cristoforo, e acho que a chegada do bebê será<br />

antes do que pensávamos.<br />

— Nesse caso, você <strong>de</strong>veria voltar para a cama.<br />

Agora não havia como não perceber a sua poli<strong>de</strong>z fria. Quando aparecera<br />

pela primeira vez? Estava diferente quando chegou com a notícia da libertação<br />

do pintor? Teria me sentido tão aliviada que, apesar das advertências <strong>de</strong> Erila,<br />

não havia prestado atenção suficiente às suas maneiras?<br />

— Tem notícias <strong>de</strong> Tomaso? — perguntei.<br />

— Por que pergunta?<br />

— Eu... eu estava rezando para que fosse encontrado.<br />

Ele <strong>de</strong>sviou o olhar para as estátuas. Se o lançador <strong>de</strong> disco não estivesse<br />

tão concentrado em seu trabalho, quase pensaríamos que estivesse escutando.<br />

— Dizem que gran<strong>de</strong>s artistas só po<strong>de</strong>m dizer a verda<strong>de</strong> em suas obras.<br />

Você concorda, Alessandra?<br />

— Eu... eu não sei. Suponho que sim.<br />

— E diria que um bebê é uma obra <strong>de</strong> arte <strong>de</strong> Deus?<br />

— ...Certamente.<br />

— Nesse caso, talvez não seja possível <strong>de</strong>tectar uma mentira em um bebê?<br />

Senti minha pele ficar fria e úmida.<br />

— Não sei o que quer dizer — disse eu e percebi uma leve hesitação em<br />

minha voz.<br />

— Não? — fez uma pausa. — Seu irmão está seguro.<br />

— Oh! Graças a Deus. Como ele está?<br />

— Ele está... mudado. Acho que esta é a palavra.<br />

— Eles...<br />

— Eles o quê? Arrancaram a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>le? E sempre tão difícil dizer<br />

quando se trata <strong>de</strong> Tomaso. Às vezes, ele mente <strong>de</strong> maneira mais convincente do<br />

que quando diz a verda<strong>de</strong>. Sobre todo tipo <strong>de</strong> coisa.<br />

Engoli em seco.<br />

— Talvez não <strong>de</strong>vesse se esquecer <strong>de</strong> que, antes, você acreditava em tudo<br />

o que ele dizia — eu disse baixinho.<br />

— Talvez. Ou po<strong>de</strong> ser que a facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le com esse tipo <strong>de</strong> coisa venha<br />

da família Cecchi.<br />

Olhei fixo para ele.<br />

— Nunca menti para você, Cristoforo.


— Mesmo? — sustentou meu olhar. — Sou o pai <strong>de</strong> seu filho?<br />

Respirei fundo. Não havia como recuar agora.<br />

— Não sei.<br />

Sustentou meu olhar por um momento, <strong>de</strong>pois pôs o livro sobre a mesa e<br />

se levantou.<br />

— Bem, obrigado, pelo menos por sua honestida<strong>de</strong>.<br />

— Cristoforo... Não é o que está pensando...<br />

— Não estou pensando nada — disse ele, com frieza. — O nosso trato foi<br />

um filho. As condições, me lembro, diziam mais respeito a discrição do que a<br />

fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>. A culpa é do casamento. Eu <strong>de</strong>veria ter sabido pelo passado <strong>de</strong> sua<br />

mãe. Agora, com licença, tenho negócios a tratar.<br />

— O que quer dizer com o passado <strong>de</strong> minha mãe? — mas ele já se dirigia<br />

à porta. — Não. Não vá, Cristoforo, por favor. Isso tampouco é verda<strong>de</strong>. —<br />

Interrompi-me. O que podia lhe dizer? Que palavras po<strong>de</strong>riam transmitir afeição<br />

assim como hostilida<strong>de</strong>? —Tem <strong>de</strong> saber que sentimos... — senti, lá no fundo, o<br />

cinto apertar <strong>de</strong> novo, mais forte ainda <strong>de</strong>ssa vez. Precisaria <strong>de</strong> todo o ar para a<br />

dor. — Ai... O bebê... Por favor, imploro que fique... só até Erila retornar. Não<br />

posso fazer isso sozinha.<br />

Ele olhou para mim. Talvez tenha visto simplesmente mais uma mentira.<br />

Ou talvez meu corpo, que lhe causara tanta aversão quando estava intacto, agora<br />

lhe oferecesse somente o prospecto <strong>de</strong> sangue.<br />

— Chamarei alguém — disse ele, virando-se e saindo.<br />

Quando a porta se fechou atrás <strong>de</strong>le, a dor foi gritante, um anel <strong>de</strong><br />

músculo <strong>de</strong> aço sendo amassado. Pensei na serpente no jardim, sussurrando no<br />

ouvido <strong>de</strong> Eva, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ela sucumbir, imaginei-a se enrolando em volta do<br />

abdômen <strong>de</strong>la e apertando, apertando, até um feto <strong>de</strong>formado escorregar <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la. E, assim, pecado e agonia nasciam juntos. Dessa vez me curvei e<br />

tive <strong>de</strong> me apoiar na pele <strong>de</strong> pedra <strong>de</strong> Baco, até o espasmo passar. Foi mais<br />

longo, mais fundo. Contei vinte, <strong>de</strong>pois trinta. Só em trinta e cinco começou a<br />

diminuir. Se o bebê estava cumprindo seu lado do trato, Savonarola já <strong>de</strong>via ter<br />

sido <strong>de</strong>tido.<br />

É claro que eu tinha ouvido histórias <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> parto. Que mulher<br />

grávida <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Eva não ouviu? Sabia que começava com uma série <strong>de</strong> dores<br />

rítmicas que iam aumentando, como a entrada do útero se alargava para permitir<br />

a saída do bebê. Mas se usasse a respiração e controlasse os nervos, acharia<br />

como superá-las, supondo que não durassem para sempre. Depois, quando a<br />

cabeça do bebê começasse a forçar a passagem, e nesse ponto tudo o que se<br />

podia fazer era empurrar e rezar para que Deus tivesse nos dado um corpo que<br />

não se esgarçasse em pedaços, como tinha acontecido com a minha tia e minha<br />

mãe antes <strong>de</strong> mim.


Mas eu não pensaria nelas agora. Primeiro tinha que chegar ao meu<br />

quarto. Estava a meio caminho, no patamar, quando começou a contração<br />

seguinte. Dessa vez, eu estava preparada. Agarrei-me firme na balaustrada <strong>de</strong><br />

pedra e tentei contar, minha respiração saindo em uma série <strong>de</strong> gemidos. A dor<br />

aumentou, chegou ao máximo, se sustentou, <strong>de</strong>pois começou a se reduzir. Você<br />

po<strong>de</strong>, pensei. Você po<strong>de</strong> fazer isso. No entanto, meus gritos <strong>de</strong>vem ter sido mais<br />

altos do que me <strong>de</strong>i conta, porque localizei Tancia no canto do pátio, olhando<br />

para mim com os olhos escancarados <strong>de</strong> medo.<br />

— Tancia... eu...<br />

Não terminei a frase. Aprumei o corpo e senti, <strong>de</strong> repente, uma urgência<br />

incontrolável <strong>de</strong> urinar. Tentei <strong>de</strong>sesperadamente conter minha bexiga, mas a<br />

pressão foi gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais. Nós duas ouvimos o estalo — como uma chicotada<br />

na pare<strong>de</strong> — quando algo em mim abriu, <strong>de</strong> súbito, o piso <strong>de</strong> pedra embaixo<br />

ficou coberto <strong>de</strong> água com sangue. Pareciam galões <strong>de</strong> água, esguichando <strong>de</strong><br />

mim, jorrando como uma queda d'água por minhas pernas, espalhando-se pelo<br />

patamar até pingar no pátio lá embaixo. Tancia soltou um ganido <strong>de</strong> pânico e<br />

<strong>de</strong>sapareceu.<br />

De como consegui voltar ao meu quarto não me lembro. A próxima onda<br />

foi tão violenta que fez as lágrimas correrem em meu rosto. Forçou-me a<br />

ajoelhar, minhas mãos na beira da cama. A dor estava em toda parte, em meus<br />

rins, em minhas costas, em minha cabeça. Ela e eu éramos uma só, fundidas,<br />

dominando o pensamento, dominando tudo. Dessa vez, o pico durou para<br />

sempre. Tentei respirar, mas cada arfada saía abrupta e pouco profunda, e<br />

quando a boca <strong>de</strong> aço começou a relaxar seu aperto, eu me ouvi chorando <strong>de</strong><br />

medo.<br />

Sentei-me ereta e me forcei a continuar pensando. Uma vez em minha<br />

vida eu tinha visto o mar, uma praia perto <strong>de</strong> Pisa, on<strong>de</strong> os navios com<br />

carregamentos <strong>de</strong> panos do meu pai atracavam. Eu <strong>de</strong>via ser muito pequena,<br />

pois só me lembro <strong>de</strong> um horizonte infinito e do som das ondas, e <strong>de</strong> como cada<br />

onda tinha vida própria, um músculo encrespando e flexionando, ascen<strong>de</strong>ndo da<br />

barriga do oceano, até se dobrar no alto e <strong>de</strong>spencar estrondosamente, formando<br />

espuma que escoava sobre a areia rumorejante. Meu pai contou-me, nesse dia,<br />

como ainda muito jovem estava em um navio que naufragou perto do litoral, e<br />

como apren<strong>de</strong>u, ao nadar para a costa, para se salvar, a usar as ondas, erguendose<br />

no topo <strong>de</strong> cada uma e movendo-se com ela, e como, quando a perdia, era<br />

engolfado, engolindo água até temer se afogar.<br />

Eu sabia que agora eu também nadava para salvar a minha vida. Só que<br />

nesse mar, as ondas eram dores, cada uma mais violenta do que a outra, e a<br />

minha única esperança era conduzi-las à terra firme. Ou também eu seria<br />

engolfada e me afogaria. Quando a onda seguinte cresceu, lá longe no mar,


fechei os olhos e me imaginei crescendo e subindo com ela...<br />

— Alessandra!<br />

A voz vinha <strong>de</strong> algum lugar muito, muito distante. Mas não podia lhe<br />

prestar atenção, senão seria sugada para baixo da onda.<br />

— Agüente firme, filha. Desça e fique <strong>de</strong> quatro. — Agora, mais próxima,<br />

mais alta, or<strong>de</strong>nando. — Desça. Isso vai ajudar.<br />

Assumi o risco e prestei atenção. Quando minhas mãos atingiram o chão,<br />

senti a palma <strong>de</strong> suas mãos empurrarem minhas costas para baixo, com uma<br />

pressão firme. A onda estava crescendo, chegando ao seu máximo.<br />

— Respire — disse a voz. — Respire. Inspire, expire... isso, é isso<br />

mesmo, minha menina. De novo. Inspire... expire... — E ouvi um gemido baixo,<br />

que <strong>de</strong>via ser a minha própria voz quando a espuma branca moveu-se<br />

rapidamente em direção à praia e, <strong>de</strong>pois, quebrou-se lentamente e se <strong>de</strong>sfez.<br />

Quando olhei para ela, vi o medo e orgulho misturados em seus olhos, e<br />

soube que eu ficaria bem. Minha mãe tinha vindo. Recostei-me nela.<br />

— Eu...<br />

— Não <strong>de</strong>sperdice energia. Qual o intervalo entre as contrações? Sacudi a<br />

cabeça.<br />

— Quatro, cinco minutos, talvez, mas estão chegando mais rápido.<br />

Segurou-me o melhor que podia enquanto puxava os travesseiros da cama<br />

e os colocava no chão, para que eu <strong>de</strong>itasse a cabeça neles.<br />

— Preste atenção — disse ela calmamente. — Erila foi buscar a parteira,<br />

mas ela e o resto da cida<strong>de</strong> estão nas ruas. As dores vão continuar, mas essa<br />

parte terá <strong>de</strong> fazer sozinha. Não tem mais ninguém em casa?<br />

— Tancia, a filha do cozinheiro. — Vou buscá-la.<br />

— Não! Não me <strong>de</strong>ixe sozinha!<br />

Mas ela já tinha saído. No patamar, sua voz soava imensa e autoritária<br />

como um sino <strong>de</strong> igreja. A garota podia me ignorar, mas não a ignoraria.<br />

Quando voltou, a dor atacou <strong>de</strong> novo. Dessa vez, ela estava comigo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

começo, usando suas mãos como uma força na parte inferior <strong>de</strong> minhas costas,<br />

para massagear e dispersar a faixa <strong>de</strong> aço que se comprimia <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim.<br />

— Alessandra, me escute — or<strong>de</strong>nou. — Tem <strong>de</strong> encontrar uma maneira<br />

<strong>de</strong> absorver a dor. Pense na agonia <strong>de</strong> Nosso Senhor na cruz. Fique com ele e<br />

Cristo a ajudará a suportá-la.<br />

Mas eu tinha pecado <strong>de</strong>mais para que Cristo me ajudasse agora. Esse era o<br />

meu castigo e duraria para sempre...<br />

— Não posso.<br />

— Sim, você po<strong>de</strong> — sua voz, agora, soou quase irritada. — Concentrese.<br />

Veja a arca <strong>de</strong> casamento na sua frente. Encontre um rosto ou uma figura ali,<br />

e a mantenha enfocada enquanto respira. Vamos, filha, use esta sua gran<strong>de</strong>


mente para se conectar com a dor. Agora, respire.<br />

Quando, <strong>de</strong>pois, caí nos travesseiros, vi Tancia à porta, os olhos<br />

escancarados <strong>de</strong> terror. Quando minha mãe gritou-lhe as instruções, senti uma<br />

fúria repentina, ainda maior do que o meu medo, e ouvi minha voz começar a<br />

uivar e praguejar, como se eu estivesse possuída. As duas se interromperam e<br />

olharam para mim. Acho que Tancia teria fugido <strong>de</strong> novo se minha mãe não<br />

tivesse batido a porta antes.<br />

— Quer fazer força? E o que está sentindo?<br />

— Não sei, não sei — falei asperamente. — O que acontece <strong>de</strong>pois?<br />

Como faço isto?<br />

No meio do meu terror, ela me surpreen<strong>de</strong>u, seu rosto abrindo-se em um<br />

sorriso.<br />

— Da mesma maneira como fez o bebê. Apenas faça o que o seu corpo<br />

mandar. Deus e a natureza farão o resto.<br />

E então, <strong>de</strong> repente, mudou. Da minha exaustão surgiu a necessida<strong>de</strong> mais<br />

premente <strong>de</strong> fazer força, <strong>de</strong> expulsá-lo <strong>de</strong> mim. Tentei me levantar, não<br />

consegui.<br />

— Oh, está vindo. Posso senti-lo. Ela segurou-me pelo braço.<br />

— Levante-se. Vai doer mais se ficar no chão. Venha cá, menina. Segure<br />

a sua patroa. Enganche seus cotovelos sobre suas axilas. Vamos. Isso. Apóie<br />

suas costas eretas contra você. Vamos, prepare-se, sustente o peso <strong>de</strong>la.<br />

Levante-a. Agora.<br />

Ela talvez fosse meio idiota, mas era forte. Pendurei-me em seus braços,<br />

meu corpo todo tremendo, minhas saias presas nos ombros, as pernas abertas,<br />

minha imensa barriga embaixo <strong>de</strong> mim, e minha mãe agachada a meus pés.<br />

Quando a vonta<strong>de</strong> voltou, fiz força e sustentei-a até ficar sem ar, até sentir<br />

minha face ficar púrpura e meus olhos lacrimejarem com o esforço, e parecia<br />

que meu ânus e sexo estavam sendo rasgados.<br />

— De novo. Empurre! A cabeça está lá. Posso vê-la. Está pronto para sair.<br />

Mas não consegui fazer isso. De repente, a urgência me abandonou e caí<br />

para trás, lassa e tremendo em seus braços; uma mulher retirada do ecúleo, todos<br />

os seus membros tremendo como água, com medo e dor. Senti as lágrimas<br />

correrem por minha face, e o catarro pingar <strong>de</strong> meu nariz, e teria soluçado se não<br />

estivesse assustada <strong>de</strong>mais com a energia que isso consumiria. Não houve tempo<br />

para me recuperar e ela voltou, aquela necessida<strong>de</strong> terrível <strong>de</strong> eliminar, expelir,<br />

evacuar esse bebê. Exceto que não conseguia. A cada empurrão, eu me sentia<br />

explodir. Alguma coisa estava terrivelmente errada. A cabeça estava <strong>de</strong>formada,<br />

tão gran<strong>de</strong> que nunca conseguiria sair. O pecado <strong>de</strong> sua concepção infligia o seu<br />

nascimento, e ficaríamos ali para sempre, ele e eu, em tormento perpétuo<br />

enquanto ele tentava rasgar seu caminho para fora <strong>de</strong> meu corpo.


— Não consigo... não consigo — senti o pânico em minha voz. — Sou<br />

pequena <strong>de</strong>mais. Isto é o castigo <strong>de</strong> Deus por meus pecados.<br />

A voz <strong>de</strong> minha mãe foi firme, como tinha sido por <strong>de</strong>zessete anos,<br />

guiando, adulando.<br />

— O quê? Acha que Deus tem tempo para seus pecados? Neste momento,<br />

Savonarola está sofrendo tortura por heresia e traição. Seus gritos po<strong>de</strong>m ser<br />

ouvidos na praça. Que erros seriam os seus em comparação aos <strong>de</strong>le? Guar<strong>de</strong><br />

seu fôlego para o bebê. Está vindo. Agora, faça força, empurre, empurre como<br />

se disso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse a sua vida. Vamos.<br />

Fiz força <strong>de</strong> novo.<br />

— Sim, sim, <strong>de</strong> novo. Está ali. Está quase fora. — E me senti esticando a<br />

ponto <strong>de</strong> me romper, mas ainda assim não consegui.<br />

— Não posso — sussurrei, ofegando. — Estou com medo. Estou com<br />

tanto medo.<br />

Dessa vez, ela não gritou comigo, mas esten<strong>de</strong>u a mão e tocou em meu<br />

rosto, enxugando-o com carinho. E apesar <strong>de</strong> sua mão ser <strong>de</strong>licada, sua voz era<br />

urgente.<br />

— Escute bem, Alessandra. Você tem uma inteligência como nunca vi em<br />

uma garota e não chegou até aqui para morrer no chão <strong>de</strong> seu quarto. Só mais<br />

um empurrão. Mais um e ele sairá. Vou ajudá-la. Apenas me escute e faça o que<br />

eu mandar. Está voltando? Sim? Então respire fundo. O mais fundo que for<br />

possível. Sim, isso. Ótimo. Agora, segure. E agora empurre, faça força para fora.<br />

Segure. Empurre. De novo. EMPURRE.<br />

— AAAIIII. — E enquanto minha voz se esgoelava pelo quarto, ouvi<br />

outro som, a costela <strong>de</strong> minha própria carne, quando me abri para <strong>de</strong>ixar a<br />

cabeça passar.<br />

— Sim! Sim! — Não precisei da sua voz para me dizer. Tinha saído. Eu<br />

podia sentir, um po<strong>de</strong>r imenso, tenaz, <strong>de</strong>slizante, e uma sensação <strong>de</strong> alívio como<br />

nunca sentira na vida. — Oh, está aqui. Veio. Oh, oh, veja só, olhe para ele.<br />

E quando Tancia e eu caímos no chão, vi a meus pés um pequeno duen<strong>de</strong><br />

brilhando, resmungando e curvado, coberto <strong>de</strong> merda e sangue e gosma.<br />

— Oh, é uma menina — disse minha mãe com a voz abafada. — Uma<br />

linda, muito linda menininha.<br />

Suspen<strong>de</strong>u o corpinho viscoso e o virou <strong>de</strong> cabeça para baixo, segurandoo<br />

pelos pés, e ele sufocou como se seu nariz e pulmões estivessem cheios <strong>de</strong><br />

água, até ela bater com força em seu traseiro, e, então, emitiu seu gritinho irado,<br />

vibrante, um primeiro protesto contra a insanida<strong>de</strong> e ultraje do mundo em que<br />

acabava <strong>de</strong> entrar.<br />

E como não havia nenhuma faca ou tesoura, ela usou os <strong>de</strong>ntes para cortar<br />

o cordão. Depois, colocou-a sobre minha barriga, só que eu estava tremendo


tanto que mal consegui segurá-la, e Tancia teve <strong>de</strong> pegá-la quando escorregou<br />

em direção ao chão. Mas, em seguida, eu a segurei, e enquanto minha mãe<br />

massageava minha barriga para que expelisse as secundinas, fiquei <strong>de</strong>itada no<br />

chão, abraçando esse bichinho quente, pegajoso, enrugado.<br />

Foi assim que minha filha nasceu. Depois <strong>de</strong> a lavarem e envolverem em<br />

um cueiro e, como não havia ama-<strong>de</strong>-leite para alimentá-la, trouxeram-na para<br />

mim <strong>de</strong> novo e observamos com uma espécie <strong>de</strong> admiração quando cavou seu<br />

caminho, como um verme cego, até meu seio, as gengivas firmando-se no<br />

mamilo com tal força inesperada, que me fez dar um grito, seu maxilar<br />

miudinho sugando, sugando, até eu sentir a dor gostosa do leite começando a<br />

fluir. E só então, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> suas exigências serem cumpridas, e ela largar o seio,<br />

como um carrapato farto <strong>de</strong> sangue fresco, dignou-se a dormir e me <strong>de</strong>ixar<br />

dormir.


Quarenta e Cinco<br />

DURANTE OS DIAS SEGUINTES, ME APAIXONEI; profundamente e<br />

ir<strong>rev</strong>ogavelmente. E se meu marido a tivesse visto, não tenho dúvida <strong>de</strong> que ela<br />

o teria conquistado também; com o milagre <strong>de</strong> suas unhas, a gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu<br />

olhar sem pestanejar e o fulgor da chama flagrante da divinda<strong>de</strong> nela.<br />

Enquanto meu mundo encolhia-se nas pupilas <strong>de</strong> seus olhos, a história<br />

estava sendo feita lá fora. Minha mãe tinha razão sobre a nossa agonia conjunta.<br />

Enquanto minhas entranhas eram comprimidas e estendidas pela força <strong>de</strong> uma<br />

nova vida, Savonarola ouvia o som <strong>de</strong> seus próprios gritos enquanto seus<br />

tendões rompiam sob o peso da estrapada. Seu reinado na Nova Jerusalém tinhase<br />

encerrado nessa manhã com a agitação <strong>de</strong> San Marco. Apesar <strong>de</strong> seus leais<br />

monges terem lutado como soldados — falou-se muito na força ensan<strong>de</strong>cida <strong>de</strong><br />

um Padre Brunetto Datto, um dominicano gigantesco com a pele como uma<br />

pedra-pomes, que manejava uma faca com um prazer selvagem especial —<br />

acabaram sendo sobrepujados, e a ralé entrou e encontrou Savonarola curvado,<br />

rezando diante do altar. Dali, foi levado acorrentado à torre da fortaleza do<br />

Palazzo Della Signoria, on<strong>de</strong> o gran<strong>de</strong> Cosimo <strong>de</strong> Medici havia sido preso<br />

sessenta anos antes pela mesma acusação <strong>de</strong> traição contra o estado. Mas<br />

enquanto Cosimo tinha tido recursos para encantar e subornar seus carcereiros,<br />

não haveria tal lenitivo para Frei Girolamo.<br />

Foi submetido primeiro à estrapada e, <strong>de</strong>pois, ao ecúleo. Com cada osso<br />

<strong>de</strong> seu corpo fraturado, confessou-se culpado <strong>de</strong> outra acusação; falsa profecia,<br />

heresia e traição, disse-lhes o que quisessem ouvir, contanto que parassem o<br />

sofrimento. Nesse ponto, cortaram as cordas e o levaram para a cela. Mas sem a<br />

dor, abjurou, gritando que era a tortura e não a verda<strong>de</strong> que o havia quebrado, e<br />

pedindo a Deus que o iluminasse. Mas com o primeiro trinco da catraca do<br />

ecúleo, confessou <strong>de</strong> novo, e, <strong>de</strong>ssa vez, prosseguiram com a tortura até lhe<br />

faltar a voz, muito mais a coragem, para negar novamente.<br />

Desse modo, Florença estava liberta da tirania do homem que havia<br />

pretendido levá-la a Deus, só para, no fim, <strong>de</strong>scobrir que Deus o abandonara.<br />

Mas embora eu tivesse um bom motivo para odiá-lo, só consegui sentir pena. Do<br />

meu lado, Erila ria da minha compaixão, e me dizia como o parto era notório por<br />

abrandar o cérebro da mulher. E assim, passaram-se dois dias, e ainda nenhuma<br />

notícia do meu marido.<br />

Na manha do terceiro dia, <strong>de</strong>spertei para um sol intenso e a visão <strong>de</strong> Erila<br />

e minha mãe em uma conversa urgente à minha porta.<br />

— O que foi? — perguntei da minha cama. Viraram-se, trocando olhares


ápidos. Minha mãe entrou, até ficar bem perto da cama.<br />

— Filha querida... Há notícias. Vai ter <strong>de</strong> ser valente.<br />

— Cristoforo. — Porque, é claro, todo esse tempo, eu ficara esperando<br />

algo. — É Cristoforo, não é?<br />

Ela se aproximou e segurou minha mão enquanto contava, seus olhos<br />

lendo o movimento <strong>de</strong> minha emoção. Era uma história do nosso tempo: como a<br />

cida<strong>de</strong> fora tomada pela se<strong>de</strong> <strong>de</strong> sangue nos dias que se seguiram à tormenta <strong>de</strong><br />

San Marco, com antigas contas a serem ajustadas, antigos inimigos sendo<br />

caçados. Mas nem toda a violência tinha sido justa e vários outros corpos tinham<br />

sido encontrados, inclusive um no beco La Bocca, perto da ponte velha, um<br />

local notório on<strong>de</strong> a carne <strong>de</strong> homens e mulheres era negociada na calada da<br />

noite. E <strong>de</strong> como, ali, em uma manhã, sob vários ferimentos <strong>de</strong> punhaladas,<br />

alguém reconhecera o tecido elegante e a nobreza <strong>de</strong> uma face.<br />

Fiquei paralisada como uma <strong>de</strong> suas estátuas, minha pele esfriando a cada<br />

palavra sua.<br />

— Tem <strong>de</strong> ser corajosa, Alessandra — repetiu rninha mãe, e a sua voz me<br />

lembrou o tempo em que, quando eu era pequena, ela me ensinava como falar<br />

com Deus como se Ele fosse meu pai, tanto quanto meu Senhor. —<br />

Essas coisas são a Sua vonta<strong>de</strong> e não nos cabe questioná-las. — Abraçoume<br />

forte por um momento, e quando ficou certa que eu não me partiria com o<br />

choque, falou baixinho: — Minha querida, seu marido não tinha outra família.<br />

Se estiver com força suficiente, pe<strong>de</strong>m que vá reclamar o corpo.<br />

Se o parto abranda sentimentos, também <strong>de</strong>slinda a memória, fazendo<br />

com que alguns momentos fiquem para sempre e outros <strong>de</strong>sapareçam quase<br />

quando acontecem.<br />

Embora tivesse sido encontrada uma ama-<strong>de</strong>-leite, ficamos com o bebê<br />

porque eu não suportava ficar separada <strong>de</strong>la. Os criados, eu me lembro, estavam<br />

em pé à porta quando partimos, os olhos baixos, seu futuro <strong>de</strong>sfeito com a<br />

notícia. No caminho, paramos no Batistério. Sem meu marido, ninguém tinha<br />

registrado o nascimento e a lei exigia que isso fosse feito em no máximo<br />

sessenta horas. Um feijão-branco para menina, um preto para menino. Sob a<br />

cúpula dourada, on<strong>de</strong> a vida <strong>de</strong> Nossa Senhora se <strong>de</strong>senvolvia em <strong>de</strong>nsos<br />

mosaicos cintilantes, a caixa <strong>de</strong> nascimentos chocalhava <strong>de</strong> vida nova.<br />

Lá fora, as ruas estavam imundas com os escombros da <strong>rev</strong>olta: paus,<br />

pedras, pedaços <strong>de</strong> pano entupindo a sarjeta, e tudo isso iluminado por um sol<br />

<strong>de</strong>slumbrante. Mas apesar do tempo ser alegre, o humor era sombrio. Não<br />

éramos mais um estado pio e ninguém sabia bem o quanto <strong>de</strong>víamos nos<br />

regozijar com isso.<br />

A peste tinha feito tantas vítimas que tiveram <strong>de</strong> montar um necrotério<br />

temporário na outra margem do rio, requisitando um conjunto <strong>de</strong> quartos no


hospital <strong>de</strong> Santo Spirito. Enquanto éramos guiadas pelo labirinto atrás da igreja,<br />

pensei no meu pintor e nas noites passadas registrando as maneiras como a<br />

violência dissecava o corpo humano. Apertei a criança contra mim e an<strong>de</strong>i, eu<br />

mesma <strong>de</strong> novo criança, seguindo minha mãe, com minha criada logo atrás.<br />

O funcionário à porta era um homem ru<strong>de</strong>, seu hálito rançoso <strong>de</strong> cerveja<br />

choca. Segurava um livro improvisado no qual havia colunas <strong>de</strong> números e, em<br />

alguns casos, nomes. A letra era tosca. Minha mãe tomou a iniciativa e contou a<br />

nossa história da mesma maneira como se movia no mundo, com graça e<br />

clareza. As pessoas escutavam minha mãe. Quando terminou, ele levantou-se <strong>de</strong><br />

sua ca<strong>de</strong>ira e, arrastando seus pés, entrou conosco na sala.<br />

Era, como se po<strong>de</strong> imaginar, um campo <strong>de</strong> batalha <strong>de</strong>pois que o exército<br />

se <strong>de</strong>sloca. Havia uma série <strong>de</strong> corpos no chão, envolvidos em voltas <strong>de</strong> pano<br />

encardido. Havia tanto sangue em alguns <strong>de</strong>les que receávamos que ainda<br />

estivessem vivos, jogados ali para que o resto <strong>de</strong> vida escoasse em suas<br />

mortalhas improvisadas.<br />

O cadáver <strong>de</strong> meu marido estava em um catre próximo ao extremo da<br />

sala. Em outro momento da história, seria esperada mais cerimônia com nomes<br />

mais nobres, mas Florença estava com hemorragia <strong>de</strong> morte e qualquer espaço<br />

serviria.<br />

Ficamos do lado <strong>de</strong> seus pés. Ele ergueu os olhos para mim.<br />

— Está pronta?<br />

Dei o bebê para a minha mãe.<br />

Ela sorriu para mim.<br />

— Não fique chocada, minha filha — disse ela. — Há um po<strong>de</strong>r maior em<br />

ação, maior do que nós duas.<br />

Ele curvou-se e puxou a mortalha. Fechei os olhos, e os abri <strong>de</strong> novo para<br />

uma face ensangüentada <strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> meia-ida<strong>de</strong> que eu nunca vira antes.<br />

Do meu lado, Erila <strong>de</strong>u um grito:<br />

— Oh, amo! Oh, meu amo, quem po<strong>de</strong> ter feito isto com o senhor? —<br />

Quando me virei, ela se jogou em meus braços, agarrando-se a mim e gritando...<br />

— Oh, minha pobre senhora, não olhe, não olhe, é medonho <strong>de</strong>mais. O que será<br />

<strong>de</strong> nós agora?<br />

Tentei me soltar <strong>de</strong>la, mas ela se grudava que nem uma sanguessuga.<br />

— Está louca? — sussurrei, horrorizada. — Este não é Cristoforo! — Mas<br />

seu lamento continuou. Olhei impotente para minha mãe, que imediatamente se<br />

uniu a nós. O homem, agora, observava intensamente. Sem dúvida, já vira o<br />

bastante <strong>de</strong> mulheres se <strong>de</strong>sesperando, e estava preparado para qualquer coisa.<br />

Minha mãe relanceou os olhos para o corpo, <strong>de</strong>pois para mim. Seu olhar<br />

foi penetrante.<br />

— Oh, minha querida, minha filha querida — disse alto. — Sei como


<strong>de</strong>ve estar se sentindo. Como é difícil ver como Deus po<strong>de</strong> permitir algo assim,<br />

levar o homem que você ama, sem qualquer motivo. Lamente por você, lamente<br />

por seu Cristoforo, mas <strong>de</strong>ixe-o repousar. Ele foi para um lugar melhor.<br />

Eu ali, em pé, e minha boca abriu-se chocada, pasma, a brandura <strong>de</strong> minha<br />

condição atual <strong>rev</strong>elou-se para me ajudar e comecei a chorar; lágrimas copiosas<br />

que uma vez <strong>de</strong>rramadas, não se podia mais controlar. E toda essa comoção<br />

<strong>de</strong>spertou o bebê que começou a berrar também. Assim, ficamos ali, como uma<br />

visão do sofrimento feminino liberto, e o homem pegou a caneta e marcou uma<br />

gran<strong>de</strong> cruz do lado do nome <strong>de</strong> meu marido.<br />

De volta à sala <strong>de</strong>sconfortável e <strong>de</strong>sconsolada, Erila, cujas lágrimas<br />

tinham-se secado imediatamente ao sairmos do edifício, trouxe-nos vinho e<br />

insistiu para que eu tomasse uma poção <strong>de</strong> sua bolsa antes <strong>de</strong> me abraçar e nos<br />

<strong>de</strong>ixar, fechando a porta atrás <strong>de</strong> si. O bebê estava em meus braços, seus<br />

olhinhos piscando para mim enquanto eu encarava minha mãe.<br />

— Então — disse eu, entorpecida. — On<strong>de</strong> ele está?<br />

— Foi embora.<br />

— Foi embora para on<strong>de</strong>?<br />

— O campo. Com Tomaso. Na manhã <strong>de</strong> seu parto, foi me buscar e me<br />

disse o que havia se passado entre vocês. Uma vez <strong>de</strong>cidido, provi<strong>de</strong>nciou que<br />

um corpo fosse encontrado com um bilhete escrito com sua letra, <strong>de</strong> modo que<br />

levasse as autorida<strong>de</strong>s a nós para i<strong>de</strong>ntificá-lo. Lamento a aflição que lhe<br />

causou. Não lhe contei porque temi que, no seu estado enternecido, não fosse<br />

capaz <strong>de</strong> fingir. — Ela soava tão prosaica, como um estadista cuja missão é<br />

assumir questões graves e esclarecê-las para o resto da população amedrontada.<br />

Mas eu não tinha a sua serenida<strong>de</strong>.<br />

— Eu... eu não entendo. Por quê? Era tão importante assim que o bebê<br />

não fosse seu? Porque...<br />

— Porque talvez fosse? Não se preocupe, Alessandra. Sei <strong>de</strong> tudo. Não<br />

estou aqui para julgá-la. Há outro tribunal para isso, e, nesse tribunal, acho que<br />

po<strong>de</strong>remos nos encontrar lado a lado, um dia. — Deu um suspiro. — Não teve a<br />

ver com o bebê. Ele achou... bem, não <strong>de</strong>vo falar por ele. Pediu que <strong>de</strong>pois que<br />

isso fosse <strong>rev</strong>elado lhe entregasse esta carta. Se bem que acho que seria mais<br />

sensato, se a <strong>de</strong>struísse <strong>de</strong>pois.<br />

E tirou <strong>de</strong> seu corpete a carta. Peguei-a com as mãos tremendo. O bebê<br />

choramingou em meus braços. Acalmei-o e abri o selo.<br />

Sua letra era tão elegante. Um contraste com o rabisco violento no livro<br />

<strong>de</strong> registros do Santo Spirito. Senti prazer só em olhá-la. Prazer e<br />

reconhecimento.


Minha querida Alessandra,<br />

quando ler esta, teremos partido. E você, se Deus quiser dará à luz uma<br />

criança sadia. Tomaso precisa <strong>de</strong> mim, o dano que lhe causaram é terrível, e<br />

sem a sua beleza e seu corpo fraturado, sua necessida<strong>de</strong> é ainda maior. Não<br />

posso me esquivar da acusação <strong>de</strong> que minha lascívia, <strong>de</strong> certa maneira, o gerou<br />

e, portanto, é meu <strong>de</strong>ver agora cuidar do sofrimento que causei. Meu <strong>de</strong>ver. E<br />

sim, meu <strong>de</strong>sejo. Se eu você ficássemos juntos, eu sentiria esse sofrimento pelo<br />

resto da minha vida e seria uma companhia amarga para você e a criança.<br />

Comigo morto, é possível um futuro diferente para você. Não tenho outra<br />

família que reclame meus bens, foi redigido um testamento que garante a<br />

Tomazo dinheiro suficiente para levemos uma vida <strong>de</strong> conforto, mo<strong>de</strong>sta, e lega<br />

o resto <strong>de</strong> meus bens a você. Como isso é incomum, haverá aqueles que<br />

questionem, mas é legal e será honrado. O futuro cabe a você <strong>de</strong>cidir. É jovem o<br />

bastante para se casar <strong>de</strong> novo. Po<strong>de</strong> escolher voltar a morar com sua família<br />

ou até mesmo, se tiver o estômago para isso, viver sozinha. Não duvido <strong>de</strong> sua<br />

coragem nem por um instante. Mas creio que sua mãe tem idéias a esse respeito<br />

que você <strong>de</strong>va ouvir.<br />

Peço que perdoe minhas palavras ásperas na galeria. Apesar do nosso<br />

acordo, me percebi mais atraído por você do que imaginava, e a sua traição me<br />

magoou profundamente, assim como a minha a magoou <strong>de</strong> maneira semelhante.<br />

Quero que saiba que senti tanto por você quanto era possível eu sentir. E que<br />

sempre sentirei.<br />

A chave que acompanha essa carta abre o armário do manuscrito em meu<br />

gabinete. Ficará surpresa com seu conteúdo. Estou ciente que alguns o<br />

consi<strong>de</strong>rarão roubo, mas nós dois sabemos que, se não fosse assim, po<strong>de</strong>ria se<br />

tornar butim <strong>de</strong> guerra ou coisa pior <strong>–</strong> combustível para o fogo -, prefiro vê-los<br />

em suas mãos do que em quaisquer outras. Você compreen<strong>de</strong> essa nossa gran<strong>de</strong><br />

nova arte tanto quanto qualquer homem que já conheci. Seu pai teria ficado<br />

orgulhoso <strong>de</strong> você.<br />

Para sempre seu marido <strong>de</strong>dicado,<br />

Cristoforo Langella<br />

Apertei minha mão em volta da chave e li a carta uma segunda vez. E uma<br />

terceira. Depois <strong>de</strong> algum tempo, minha mãe teve <strong>de</strong> tirá-la <strong>de</strong> mim porque<br />

minhas lágrimas transformavam a tinta em um riacho <strong>de</strong> aguada preta e seu<br />

conteúdo era tal, que isso não obscureceria, agora, o seu significado. Erila tinha<br />

razão. O coração <strong>de</strong> uma mulher amolece com o parto. Nesse estado, amamos<br />

todo mundo, mesmo os que nos abandonaram e nos traíram. Parecia que eu teria<br />

<strong>de</strong> criar minha filha sem marido, sem nem mesmo seu avô consangüíneo para<br />

cuidar <strong>de</strong>la. "Seu pai teria ficado orgulhoso <strong>de</strong> você." Como o mundo po<strong>de</strong> ser


facilmente virado <strong>de</strong> cabeça para baixo por algumas palavras bem escolhidas.<br />

Finalmente, quando ergui os olhos para a minha mãe, ela me encarou. Ele<br />

nunca teria escrito esse tipo <strong>de</strong> coisa, se não tivesse falado com ela antes, não é<br />

claro?<br />

— Sabe o que diz? — perguntei, quando tive espírito para falar.<br />

— O que diz respeito diretamente a seu futuro e a meu passado foi<br />

conversado antes <strong>de</strong> ele esc<strong>rev</strong>er a carta. O resto foi escrito só para você.<br />

E continuou sem <strong>de</strong>sviar os olhos. Durante toda a minha vida, ela havia<br />

irradiado tal inteligência e serenida<strong>de</strong> que costumava acalmar as tormentas <strong>de</strong><br />

rebelião e questionamento que percebia em mim. Nunca me ocorrera que<br />

tivesse, ela própria, sofrido tais tormentas, ou que a sua aceitação da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Deus e crença em Sua infinita misericórdia tivesse experimentado qualquer<br />

conflito. Mas agora sei que não é fácil para filhas pensarem em suas mães como<br />

seres separados, com vidas e <strong>de</strong>sejos que não sejam subservientes aos seus<br />

próprios. E assim como perdoei à minha filha essa falha, estou certa que minha<br />

mãe me perdoou. Tenho <strong>de</strong> admitir que, nesse dia, ela não se esquivou <strong>de</strong><br />

minhas perguntas nem mentiu <strong>de</strong> maneira alguma. Acho que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tanto<br />

tempo, foi até mesmo um alívio po<strong>de</strong>r contá-lo.<br />

— Então — disse eu, por fim —, a <strong>de</strong>dicatória <strong>de</strong> Lorenzo <strong>de</strong> Medici no<br />

livro dos Discursos, que ele <strong>de</strong>u a meu marido, datava <strong>de</strong> 1478. O ano <strong>de</strong> minha<br />

concepção. Mas você não estava na corte, então, estava? A estrela <strong>de</strong> seu irmão<br />

já brilhava alto o bastante para fazê-la conseguir um bom marido. Não é essa a<br />

história que sempre nos foi contada?<br />

— Sim — replicou calmamente. — Eu já estava casada. E já que estamos<br />

falando disso, <strong>de</strong>ve saber que não foi uma união infeliz, por mais que assim lhe<br />

pareça hoje. Já tinha me dado três filhos saudáveis, a quem Deus, em Sua<br />

infinita bonda<strong>de</strong>, poupara a doença ou morte prematura. Fui abençoada, na<br />

verda<strong>de</strong>. Mas o que diz sobre esse ano, Alessandra, não é toda a verda<strong>de</strong>. Apesar<br />

<strong>de</strong> ter estado na corte antes, retornei b<strong>rev</strong>emente. Embora não publicamente.<br />

Ficou em silêncio. Esperei. Até mesmo o ar parecia parado à nossa volta.<br />

— Meu irmão tinha amigos importantes — disse ela, por fim, e seu<br />

sorriso foi como um esgar. — A corte estava cheia <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> muita<br />

profundida<strong>de</strong> e inteligência. Para uma garota a quem se ensinara a refletir e<br />

expressar seus pensamentos, era o paraíso antes do dia do Juízo Final. E embora<br />

a noção platônica não permita que as mulheres participem <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>liberações,<br />

eles eram platônicos florentinos e, portanto, é claro que até mesmo os maiores<br />

<strong>de</strong>les podiam ser distraídos pela beleza, quando era acompanhada <strong>de</strong> um talento<br />

igual para a erudição. O que, como você, eu tinha. E como com você, foi tanto a<br />

minha glória quanto o meu fardo.<br />

"Meu irmão, que tinha entendido os perigos que tal perfeita pureza


continha, assumiu a tarefa <strong>de</strong> provi<strong>de</strong>nciar para que eu me casasse, e assim<br />

evitar riscos futuros. Mas nem mesmo ele teve o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> impedir que eu<br />

voltasse.<br />

"Lorenzo e a sua corte passaram o começo do verão <strong>de</strong> 1478 em sua vila<br />

em Careggi. Fui um dos poucos visitantes convidados... Foi há muito tempo.<br />

Interrompeu-se <strong>de</strong> novo, e, por um momento, achei que não fosse<br />

prosseguir, que havia se treinado, <strong>de</strong> fato, para esquecer o que acontecera. Ela<br />

respirou fundo.<br />

— Havia música, conversa, arte e natureza... só os jardins já eram como<br />

um paraíso terreno. A beleza do corpo era tanto um assunto <strong>de</strong> discussão quanto<br />

a beleza da mente. As duas belezas eram vistas como alpondras no caminho para<br />

o amor <strong>de</strong> Deus. Não fui criada para ser coquete. Eu era tão séria e, <strong>de</strong> certa<br />

maneira, tão inocente quanto você. Mas como você, me impressionava a<br />

inteligência, o estudo e a arte. E apesar <strong>de</strong> eu ter resistido uma vez, nesse verão,<br />

eu estava apaixonada há anos <strong>de</strong>mais para saber como me reprimir.<br />

Vi <strong>de</strong> novo suas lágrimas diante do corpo <strong>de</strong> Lorenzo, na capela <strong>de</strong> San<br />

Marco tanto tempo atrás. Quais tinham sido as palavras <strong>de</strong> Tomaso em meu<br />

ouvido naquele dia? Que apesar <strong>de</strong> sua feiúra, a sua poesia <strong>de</strong> amor podia<br />

inflamar o coração mais gélido. Dei um suspiro, baixando os olhos para o<br />

rostinho radiantemente tranqüilo em meus braços. Era difícil saber o quão<br />

grosso seu nariz seria quando ela crescesse, ou o quanto seu queixo ficaria<br />

pontudo. Sem dúvida, também <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> seu pai. Quem quer que fosse.<br />

— Bem, pelo menos agora sei porque sou feia — falei calmamente.<br />

— Oh, Alessandra, você não é feia. Você possui uma beleza tal que quase<br />

virou a cabeça <strong>de</strong> um sodomita.<br />

E, é claro, fiquei <strong>de</strong>liciada pela maneira como a palavra causava tanto<br />

prazer em sua transgressão para ela quanto causara para mim. Ficamos sentadas<br />

juntas por um certo tempo, nessa sala <strong>de</strong>sbotada, fora <strong>de</strong> moda, o silêncio da<br />

tar<strong>de</strong> interrompido somente pela respiração doce e rápida <strong>de</strong> minha filha, em paz<br />

por saber que não restava mais nenhum segredo a ser <strong>rev</strong>elado.<br />

— Então — acabei dizendo —, o que vai acontecer agora?<br />

Ela pensou por um momento.<br />

— Você sabe a escolha tanto quanto eu.<br />

— Não vou me casar <strong>de</strong> novo — disse eu com <strong>de</strong>terminação. — Um<br />

segundo casamento privaria minha filha <strong>de</strong> seus direitos, e eu não faria isso.<br />

— É verda<strong>de</strong> — replicou com calma.<br />

— E não posso voltar para casa. Tenho <strong>de</strong> viver a minha própria vida.<br />

Portanto, suponho que <strong>de</strong>vo construir minha casa sozinha.<br />

— Alessandra, acho que não seria sensato. A nossa cida<strong>de</strong> é cruel com as<br />

viúvas. Você e a criança se veriam proscritas, solitárias e rejeitadas.


— Ainda temos você.<br />

— Não para sempre. Pensar nisso me gelou.<br />

— Então, o que posso fazer?<br />

— Há uma alternativa que não discutimos. — E sua voz foi firme. —<br />

Casar-se com Deus.<br />

— Casar-me com Deus? Eu? Uma viúva com um pincel, uma escrava<br />

negra e uma filha. E que convento, mamãe, nos aceitaria?<br />

E observei quando um sorriso matreiro insinuou-se em seu rosto.<br />

— Ora, Alessandra, o com que sempre sonhou, é claro.


Quarenta e Seis<br />

DEIXAMOS A CIDADE - ESSA VIÚVA COM seu pincel, sua escrava negra e<br />

sua filha — em 10 <strong>de</strong> maio do ano <strong>de</strong> Nosso Senhor <strong>de</strong> 1498.<br />

A nossa não foi a única <strong>de</strong>spedida do dia. Na gran<strong>de</strong> praça da Signoria,<br />

outra pira tinha sido erigida ao longo das últimas semanas: Savonarola e seus<br />

dois fiéis dominicanos seriam estrangulados e queimados. Finalmente, Florença<br />

sentiria o cheiro <strong>de</strong> carne humana queimando.<br />

A minha Erila tinha-se mostrado entusiasmada com assistir à execução,<br />

pelo menos para completar a história <strong>de</strong> tudo isso, mas eu proibi. O mundo era<br />

tão luminoso e novo para a minha filha que eu não quis nem mesmo o cheiro <strong>de</strong><br />

sofrimento perto <strong>de</strong>la. Partimos, passando por rios <strong>de</strong> gente movendo-se em<br />

direção à praça, mas não havia o clima <strong>de</strong> carnaval. Apesar <strong>de</strong> ter sido odiado,<br />

também tinha sido amado, e na violência <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua prisão,<br />

acho que muitos lamentaram a morte da Nova Jerusalém, mesmo tendo brilhado<br />

mais na intenção do que na realida<strong>de</strong>.<br />

Ainda assim, seus inimigos tinham-se mantido firmes contra ele. Nos dias<br />

que presidiram o julgamento, mais boatos <strong>de</strong> perfídia atravessaram a cida<strong>de</strong><br />

como uma fumaça causticante ao vento. Em particular, vazou da prisão a<br />

história <strong>de</strong> que seu cúmplice mais fiel, Padre Brunetto Datto, o monge que tinha<br />

lutado com tal violência na batalha final e que morreria com ele na fogueira,<br />

tinha-se <strong>rev</strong>elado enlouquecido pela <strong>de</strong>voção e que durante sua tortura tinha<br />

confessado todo tipo <strong>de</strong> pecados: o espeto atravessado em uma garota<br />

encontrada nas ruas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> escurecer e o gosto <strong>de</strong> sua carne entre seus <strong>de</strong>ntes,<br />

a retirada das genitálias <strong>de</strong> prostitutas e seus clientes na igreja <strong>de</strong> Santo Spirito,<br />

até mesmo a sodomia <strong>de</strong> um jovem sodomita penetrado por sua própria espada.<br />

Mas o verda<strong>de</strong>iro terror não foi originado pelas confissões, mas pelo prazer com<br />

que as admitia, vangloriando-se das maneiras como Deus o usara como<br />

mensageiro divino, para levar os pecadores <strong>de</strong> volta ao caminho da verda<strong>de</strong>.<br />

Até, por fim, seus torturadores terem ficado enojados com suas blasfêmias e<br />

colocado um pano <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua boca, ameaçando atearem-lhe fogo se não<br />

parasse com suas obscenida<strong>de</strong>s.<br />

No dia em que Erila trouxe essas histórias, foi a primeira e única vez que<br />

a vi abalada com um rumor. Em parte porque, sentada na beira da cama, o bebê<br />

<strong>de</strong>itado do seu lado, olhando-a com seus olhos solenes, contou como o monge,<br />

antes <strong>de</strong> finalmente ser silenciado, tinha instruído como encontrariam um último<br />

corpo; o <strong>de</strong> uma jovem prostituta com seus seios cortados, <strong>de</strong>ixada para<br />

apodrecer na cripta <strong>de</strong> Santi Apostoli.


Então me lembrei da voz lúgubre que me havia expulsado da loggia na<br />

noite anterior ao meu casamento, e do frei grandalhão nos acenando na rua com<br />

suas mãos cheias <strong>de</strong> sangue, e comecei a enten<strong>de</strong>r que, embora, às vezes, me<br />

sentisse excluída da graça <strong>de</strong> Deus, na verda<strong>de</strong> tinha sido extremamente<br />

protegida. E esse conhecimento me trouxe <strong>de</strong> volta a uma relação mais afetuosa<br />

com Nosso Senhor.<br />

No entanto, nessa tar<strong>de</strong>, em meu quarto com Erila, não nos <strong>de</strong>moramos<br />

falando nessas coisas. Mas juntas nos pusemos a arrumar a arca <strong>de</strong> casamento<br />

pela segunda vez, enchendo-a com <strong>de</strong>senhos e livros e, o melhor <strong>de</strong> tudo, o<br />

espesso manuscrito, não enca<strong>de</strong>rnado, recuperado no armário <strong>de</strong> meu marido e<br />

oculto cuidadosamente no meio <strong>de</strong> roupas coloridas e veludos.<br />

Pouco antes <strong>de</strong> partirmos, visitamos minha família na velha casa <strong>de</strong> Sant'<br />

Ambrogio. Luca, cuja cara <strong>de</strong> anjo continuava machucada dos gloriosos<br />

conflitos finais <strong>de</strong> seus dias <strong>de</strong> exército, estava taciturno e <strong>de</strong>slocado (não muito<br />

diferente, <strong>de</strong> fato, dos tempos antigos), mas conseguiu me <strong>de</strong>sejar sorte antes <strong>de</strong><br />

voltar, encurvado, ao seu quarto. Plautilla, agora imensa com o bebê, chorou até<br />

seu marido repreendê-la tão duramente que, chocada, se calou. E o meu pai...<br />

bem, meu pai <strong>de</strong>u-me uma peça <strong>de</strong> seu tecido escarlate predileto para serem<br />

transformados em vestidos em minha nova casa. Beijei-o, <strong>de</strong>sejei-lhe felicida<strong>de</strong><br />

e não fiz nada para dissipar a sua ignorância, e, então, ele pegou a mão <strong>de</strong> minha<br />

mãe e <strong>de</strong>ixou que ela o levasse <strong>de</strong> volta aos seus livros-razões. A última visão<br />

que tenho <strong>de</strong>les é a dos dois entrando em seu gabinete, o olhar límpido e sereno<br />

<strong>de</strong> minha mãe <strong>de</strong>saparecendo atrás da porta se fechando.<br />

E foi assim que nesse dia <strong>de</strong> maio saímos da cida<strong>de</strong> com o cavalariço <strong>de</strong><br />

meu marido e dois <strong>de</strong> seus escravos, como guias e carregadores, incitados pela<br />

promessa <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong> no fim da viagem. A manhã estava quente e<br />

ensolarada, o ar enevoado ameaçando muito calor. Passamos pela Porta di<br />

Giustizia e, ao <strong>de</strong>ixarmos a cida<strong>de</strong>, ouvimos um forte estrondo <strong>de</strong> trovão.<br />

Sabíamos que era o som da pólvora inflamando o fogo na praça, o que<br />

significava que o carrasco havia feito seu trabalho e o trio <strong>de</strong> monges tinha sido<br />

estrangulado, estando prontos para as chamas. Fizemos o sinal-da-cruz e<br />

rezamos por aqueles levados a Deus, invocando Sua misericórdia por todos os<br />

pecadores, mortos e vivos.<br />

E ao sairmos do vale e começarmos a subir as colinas, vimos, a milhas <strong>de</strong><br />

distância, a coluna <strong>de</strong> fumaça, ascen<strong>de</strong>ndo do mar <strong>de</strong> telhados e dispersando-se<br />

no ar fragrante <strong>de</strong> verão.


PARTE QUATRO<br />

Quarenta e Sete<br />

O MEU SEGUNDO CASAMENTO - o casamento da Irmã Lucrezia com Deus<br />

—, apesar <strong>de</strong> bígamo legalmente, <strong>rev</strong>elou-se muito mais bem-sucedido do que o<br />

primeiro.<br />

O que posso dizer <strong>de</strong>ste lugar?<br />

Quando cheguei aqui, foi, <strong>de</strong> fato, o paraíso na terra. O convento <strong>de</strong> Santa<br />

Vitella localiza-se no fundo da região rural toscana, distante a leste <strong>de</strong> Florença,<br />

as colinas irregulares e cobertas <strong>de</strong> bosques alternando encostas <strong>de</strong>licadas com<br />

vinhas e oliveiras e vistas que nos fazem enten<strong>de</strong>r Deus como o primeiro e<br />

melhor artista <strong>de</strong> todos. No interior dos muros <strong>de</strong> sua fortaleza, nessa época,<br />

havia uma comunida<strong>de</strong> próspera: dois grupos <strong>de</strong> claustros (o maior com seus<br />

arcos <strong>de</strong>corados por Luca Della Robbia, trinta e duas cabeças <strong>de</strong> santas, azuis e<br />

brancas, <strong>de</strong> cerâmica, cada uma sutilmente, maravilhosamente diferente da<br />

outra), hortas generosas, práticas e gloriosas ao mesmo tempo, já que forneciam<br />

a maior parte <strong>de</strong> nossa alimentação, o refeitório e a capela, pequenos quando<br />

cheguei, mas que foram se tornando maiores e mais graciosos ao longo dos<br />

anos. E tudo isso administrado por mulheres. Uma república construída, se não<br />

baseada na virtu<strong>de</strong>, então na criativida<strong>de</strong> feminina.<br />

Nós éramos muitas: as mulheres que não se enquadravam. As mulheres<br />

que amavam tanto a vida quanto a Deus, ainda que retiradas <strong>de</strong>la e encarceradas<br />

atrás dos muros do convento. A recente prosperida<strong>de</strong> das cida<strong>de</strong>s tinha nos<br />

engendrado (quanto maior o dote exigido, menor o número <strong>de</strong> famílias que<br />

podiam arcar com ele) e a nova liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> erudição tinha nos encorajado. Mas<br />

o mundo não estava preparado para nós, e tantas <strong>de</strong> nós acabaram em lugares<br />

como Santa Vitella. E apesar <strong>de</strong> não sermos consi<strong>de</strong>radas ricas, nossos dotes,<br />

quando somados, eram amplos o bastante para financiarem nossa liberda<strong>de</strong>. No<br />

fim, era simples matemática: os números começaram a sobrepujar as regras.<br />

Erila e eu tivemos sorte. Chegamos bem <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sse momento ter sido<br />

alcançado.<br />

Cada uma <strong>de</strong> nós chegava já formada. Algumas traziam lembranças dos<br />

vestidos que tinham usado, ou dos livros que tinham lido, ou dos rapazes que<br />

tinham beijado, ou, pelo menos, <strong>de</strong>sejado beijar. Por trás <strong>de</strong> portas fechadas,<br />

embora honrássemos Deus e rezássemos a Ele freqüentemente, nossa


imaginação funcionava <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> maneiras diferentes. Evi<strong>de</strong>ntemente,<br />

umas eram mais superficiais do que outras. Havia aquelas que transformavam<br />

suas celas em pretensos salões <strong>de</strong> beleza, usando seu tempo livre para se excitar<br />

com sua toalete ou refazendo seus hábitos para mostrar um pouco do penteado<br />

ou permitir um vislumbre do tornozelo. Seus maiores prazeres eram escutar o<br />

som das próprias vozes no coro da capela e cultivar a arte do entretenimento, e<br />

embora os muros fossem altos e os portões ficassem trancados, em certas noites<br />

era possível ouvir suas risadas misturadas com vozes mais graves masculinas<br />

ecoando pelos claustros.<br />

Mas nem todos os nossos pecados eram carnais. Havia a mulher <strong>de</strong><br />

Verona, apaixonada por palavras, que passava os dias esc<strong>rev</strong>endo peças,<br />

histórias cheias <strong>de</strong> moralida<strong>de</strong> e martírio, com um toque <strong>de</strong> amor não<br />

correspondido e romance. Nós as encenávamos no convento, as melhores<br />

costureiras confeccionando as roupas e as mais exibicionistas representando os<br />

papéis (masculinos e femininos). Havia também a freira vinda <strong>de</strong> Pádua, cujo<br />

amor pela erudição tinha sido ainda maior do que o meu e que passara anos<br />

<strong>de</strong>safiando seus pais, recusando-se a se casar. Quando, por fim, perceberam que<br />

a sua <strong>de</strong>voção não podia ser suprimida, levaram seus estudos até nós. Ao<br />

contrário <strong>de</strong> seus pais, tivemos gran<strong>de</strong> cuidado com ela. A sua cela tornou-se a<br />

nossa biblioteca e a sua mente um dos nossos maiores tesouros. Durante meus<br />

primeiros anos, passei muitas noites <strong>de</strong>batendo com ela Deus e Platão e a<br />

jornada da humanida<strong>de</strong> até a divinda<strong>de</strong>, e houve vezes em que me fez refletir<br />

mais profundamente do que meus tutores.<br />

Ela era a nossa erudita e, quando Plautilla cresceu, ela foi — junto comigo<br />

— a sua professora.<br />

Plautilla...<br />

No primeiro mês, minha filha não teve nome. Mas quando chegou, <strong>de</strong><br />

Florença, a notícia <strong>de</strong> que minha irmã tinha morrido ao dar à luz um filho<br />

robusto, primeiro chorei e, <strong>de</strong>pois, batizei minha filha. Dessa maneira, podia<br />

conservar recordações da minha família.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, ela era a queridinha do convento. Todos a amavam.<br />

Durante os primeiros anos, perambulava como uma criança selvagem, mimada.<br />

Mas assim que teve ida<strong>de</strong>, começamos a sua educação, um processo a<strong>de</strong>quado a<br />

uma princesa da Renascença. Quando tinha doze anos, sabia ler e esc<strong>rev</strong>er em<br />

três línguas, bordar, tocar música, atuar e, é claro, rezar. Inevitavelmente, ela<br />

cresceu com uma certa gravida<strong>de</strong> adulta por causa da privação <strong>de</strong> outras<br />

crianças, mas lhe caía bem, e assim que a facilida<strong>de</strong> entre seu olho e sua mão<br />

começou a se <strong>rev</strong>elar, tirei a cópia <strong>de</strong> Cennini <strong>de</strong> minha arca, afiei um toco <strong>de</strong>


carvão preto e preparei um painel <strong>de</strong> buxo com osso moído e saliva, pronto para<br />

ela riscar suas primeiras tentativas a ponta <strong>de</strong> prata. E como não houvesse<br />

ninguém que a tornasse consciente <strong>de</strong> seu talento, acostumou-se a ele<br />

instantaneamente, <strong>de</strong> modo que muito antes <strong>de</strong> eu perceber nela o olhar felino<br />

ver<strong>de</strong> cinzento <strong>de</strong> seu pai eu soube <strong>de</strong> quem era filha.<br />

Erila também floresceu. O cargo <strong>de</strong> Conversa, posto <strong>de</strong>signado<br />

especificamente a escravas, era tradicionalmente subalterno — servir às servas<br />

<strong>de</strong> Deus —, mas como o nosso convento não era um convento tradicional,<br />

paguei por sua liberação e ela logo criou outro papel para si mesma; fazendo<br />

compras, agitando os boatos e dirigindo um serviço postal para as freiras entre o<br />

convento e a cida<strong>de</strong> (com que mantínhamos um comércio <strong>de</strong> luxos proibidos),<br />

<strong>de</strong> uma maneira que lhe ren<strong>de</strong>u uma fortuna. Não <strong>de</strong>morou e era temida e<br />

adorada igualmente, e assim se tornou, por fim, uma mulher livre. Mas tornarase<br />

tão essencial às irmãs e uma família para mim e Plautilla, que escolheu ficar<br />

conosco para melhor usufruir isso.<br />

Quanto a mim — bem, no inverno <strong>de</strong>pois que chegamos, o convento<br />

começou a construir uma nova capela e, com isso, recebi a encomenda da minha<br />

vida. A Madre Superiora era uma mulher sagaz que, se não tivesse cedido aos<br />

encantos <strong>de</strong> um vizinho casado, teria sido capaz <strong>de</strong> dirigir uma família nobre em<br />

Milão. De certa maneira, dirigia uma mais satisfatória, aqui. Atenta a não<br />

misturar nossas transgressões com nossas realizações, administrava as finanças<br />

do convento com mais perspicácia do que os banqueiros dos Medici, e logo teve<br />

o suficiente para financiar a nova capela. O Bispo, que era menos encantador e<br />

mais venial do que ela — o braço magricela <strong>de</strong> Savonarola nunca penetrara tão<br />

longe na região rural —, visitava-nos duas ou três vezes ao ano. Em troca da<br />

nossa hospitalida<strong>de</strong> superior (os prazeres refinados do paladar eram uma das<br />

maneiras nada ortodoxas <strong>de</strong> celebrarmos Deus), trazia fofocas artísticas das<br />

gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>u a sua bênção aos novos planos que, como ela tinha talento<br />

para a arquitetura, eram, em gran<strong>de</strong> parte, realização da própria Madre<br />

Superiora. Mas apesar <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r perceber a luz e o espaço <strong>de</strong> proporções<br />

clássicas, as pare<strong>de</strong>s quando, finalmente, foi concluída, ficaram nuas.<br />

E assim, finalmente, tive meu altar para pintar.<br />

O verão antes <strong>de</strong> começarmos, passei em minha cela trabalhando nos<br />

<strong>de</strong>senhos, enquanto Plautilla fazia correntes <strong>de</strong> flores nos pomares cercada por<br />

um grupo <strong>de</strong> noviças, que davam risadinhas e que a viam como o seu melhor<br />

brinquedo. Meu tema seria a vida <strong>de</strong> João Batista e a Virgem Maria. Somente<br />

com minha memória, sem nenhum mestre para me ajudar, usei as ilustrações <strong>de</strong><br />

Botticelli como minhas professoras, estudando a maneira como seu bico-<strong>de</strong>-pena<br />

animava mil figuras humanas diferentes no paraíso e inferno, com apenas uma<br />

dúzia <strong>de</strong> traços cada, criando histórias complexas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero e alegria.


A pintura dos afrescos levou o tempo <strong>de</strong> uma b<strong>rev</strong>e vida. Plautilla tinha<br />

quase sete anos quando comecei. No começo, havia pouco o que eu pu<strong>de</strong>sse<br />

ensinar a ela, porque eu mesma sabia muito pouco: livros e os esboços <strong>de</strong> Santa<br />

Catarina não po<strong>de</strong>riam me tornar uma especialista. Mas Erila usou suas<br />

conexões e encontrou, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Verona, um rapaz recentemente graduado do<br />

estúdio <strong>de</strong> seu mestre, que era, ela achava, <strong>de</strong>dicado e discreto o bastante para<br />

passar dias na companhia <strong>de</strong> freiras seculares sem se sentir nem acabrunhado<br />

nem ser corrompido. Desse modo, ele ensinou e nós apren<strong>de</strong>mos. E quando<br />

partiu, vinte meses <strong>de</strong>pois, a armação <strong>de</strong> andaimes estava construída, e pu<strong>de</strong><br />

aplicar a minha própria faixa <strong>de</strong> gesso nas pare<strong>de</strong>s, e Plautilla pô<strong>de</strong> moer e<br />

misturar vários dos pigmentos. Era somente uma questão <strong>de</strong> tempo até ela<br />

começar a acrescentar seus próprios toques.<br />

Quando a capela ficou cheia <strong>de</strong> santos e pecadores, as visitas do bispo<br />

incitaram minha curiosida<strong>de</strong> em relação aos rumores sobre um gênio<br />

estrangeiro. Ele vinha <strong>de</strong> Roma com freqüência, e apesar <strong>de</strong> não me dizer nada<br />

sobre meu pintor, tinha muito a dizer da gran<strong>de</strong>za da cida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> como ela tinha<br />

superado Florença em questões <strong>de</strong> arte. Falou <strong>de</strong> como esse resplendor vinha das<br />

mãos <strong>de</strong> um jovem florentino beligerante, um artista tão intenso em sua conexão<br />

pessoal com Deus, que nem mesmo o Papa tinha autorida<strong>de</strong> sobre ele. A sua<br />

obra mais recente, encomendada por sua cida<strong>de</strong> natal, era uma escultura<br />

gigantesca <strong>de</strong> Davi talhada em um único bloco <strong>de</strong> mármore irregular, tão<br />

majestosa e tão viril em sua humanida<strong>de</strong>, que os pobres florentinos mortificados<br />

não sabiam o que fazer com aquilo. Tiveram <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrubar arcos e <strong>de</strong>struir casas<br />

para <strong>de</strong>slocá-la do ateliê até a Piazza <strong>de</strong>lla Signoria. Estava agora, disse ele, na<br />

entrada para o Palazzo, a presteza <strong>de</strong> Davi para golpear Golias como um aviso<br />

perene a todos aqueles que ameaçassem a República da cida<strong>de</strong>. E apesar <strong>de</strong> suas<br />

proporções <strong>de</strong>slumbrarem quem a olhava, o bispo disse que havia outros que<br />

falavam também entusiasticamente <strong>de</strong> uma obra muito anterior, executada<br />

quando ele ainda era adolescente: uma crucificação em tamanho natural na<br />

igreja <strong>de</strong> Santo Spirito, em que o corpo <strong>de</strong> Jesus era tão jovem e perfeito que<br />

levava lágrimas aos olhos <strong>de</strong> quem o via.<br />

Hoje, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos anos, finalmente soube o nome <strong>de</strong> Michelangelo<br />

Buonarroti, e me admira a maneira como o <strong>de</strong>stino levou meu pintor e sua<br />

nêmesis à mesma cida<strong>de</strong>. Mas embora tais histórias excitassem minha<br />

curiosida<strong>de</strong>, não me alonguei nelas. Apesar <strong>de</strong> os poetas po<strong>de</strong>rem afirmar o<br />

contrário, não é possível insistir em uma paixão quando não existe nada para<br />

mantê-la viva. Ou talvez fosse mais uma prova da misericórdia <strong>de</strong> Deus comigo<br />

o fato <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascimento <strong>de</strong> Plautilla, ele tenha me libertado do<br />

domínio do <strong>de</strong>sejo por algo que eu não podia ter. E assim, como a cor ao sol,<br />

minhas recordações do pintor <strong>de</strong>sbotaram.


Em seu lugar, se <strong>de</strong>senvolveu um certo prazer no ritual e na or<strong>de</strong>m. Meus<br />

dias eram simples: levantar ao alvorecer para rezar, <strong>de</strong>pois passar as primeiras<br />

horas aplicando o gesso na área da pare<strong>de</strong> que eu trabalharia naquele dia. Uma<br />

pausa para a refeição da manhã: no verão, frios com abobrinha frita e geléias <strong>de</strong><br />

legumes, no inverno, presunto curado, tortas e consome. Depois, passar a tinta<br />

antes <strong>de</strong> o gesso secar ou os raios <strong>de</strong> sol incidirem abaixo da janela, tornando a<br />

luz muito baixa para o meu pincel. On<strong>de</strong> antes eu ansiara pelo mundo lá fora,<br />

agora minha visão se reduzia à transformação <strong>de</strong> um quadrado úmido <strong>de</strong> gesso<br />

em um conjunto <strong>de</strong> formas e cores que só po<strong>de</strong>riam ser compreendidas quando o<br />

todo fosse concluído.<br />

Desse modo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tantos anos, Alessandra Cecchi finalmente<br />

apren<strong>de</strong>u a virtu<strong>de</strong> da paciência, e a cada entar<strong>de</strong>cer, quando largava os pincéis e<br />

atravessava os claustros, <strong>de</strong> volta à sua cela, acho que se po<strong>de</strong> dizer que se sentia<br />

contente.<br />

E essa sensação durou muitos anos, até a primavera <strong>de</strong> 1512.


Quarenta e Oito<br />

A METADE DA CAPELA ESTAVA QUASE concluída quando, no fim <strong>de</strong> uma<br />

tar<strong>de</strong>, me avisaram que eu tinha visita.<br />

Consi<strong>de</strong>rando-se a liberalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossa instituição, visitantes não eram<br />

raros, embora não para mim. Minha mãe vinha ano sim ano não, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a minha<br />

chegada, e ficava por algumas semanas, para saborear o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sua<br />

neta. Mas, recentemente, sua vista tinha-se tornado cada vez mais turva, e agora,<br />

meu pai, que se tornara uma espécie <strong>de</strong> recluso assim como um inválido,<br />

precisava <strong>de</strong>la a seu lado o tempo todo. Suas últimas notícias tinham chegado<br />

por carta apenas alguns meses antes. Luca tinha-se casado finalmente com uma<br />

garota forte que gerava filhos como se estivesse montando um exército,<br />

enquanto Maurizio, que <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> minha irmã, tinha tomado outra<br />

esposa com um dote maior e uma educação inferior, enviuvara <strong>de</strong> novo. De<br />

Tomaso e Cristoforo não se sabia nada. Era como se tivessem <strong>de</strong>saparecido no<br />

ar. Às vezes, eu os imaginava em uma vila elegante na periferia <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>,<br />

vivendo como dois sob<strong>rev</strong>iventes <strong>de</strong> uma guerra brutal, velando as necessida<strong>de</strong>s<br />

e espírito um do outro, até um <strong>de</strong>les morrer. E em todos aqueles anos, eu não<br />

soube nada que contrariasse essa fantasia.<br />

Voltando à visita.<br />

Pedi que ele — pois era um homem — fosse introduzido na sala <strong>de</strong> leitura,<br />

que abrigava a nossa pequena, mas orgulhosa, coleção <strong>de</strong> livros e manuscritos,<br />

tanto seculares quanto divinos, e que lhe dissessem que eu iria logo, assim que<br />

lavasse os pincéis e as mãos. Tinha-me esquecido <strong>de</strong> que Plautilla já estava lá, à<br />

escrivaninha, ocupada com as ilustrações para um Livro dos<br />

Salmos recentemente copiado, e portanto, quando abri a porta<br />

calmamente, os vi antes <strong>de</strong> me verem, sentados juntos à mesa banhada pela luz<br />

suave do sol <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>.<br />

— Está vendo agora? Assim a linha é mais fina — disse ele, <strong>de</strong>volvendolhe<br />

a pena.<br />

Ela olhou para baixo por um momento.<br />

— Quem você disse que era?<br />

— Um velho amigo <strong>de</strong> sua mãe. Faz muitas ilustrações para a palavra <strong>de</strong><br />

Deus?<br />

Ela <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros, Apesar <strong>de</strong> ela ter <strong>de</strong>senvolvido um nível satisfatório<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scontração para conversar com o nosso jovem artista da capela, era tímida<br />

com homens. Sem dúvida como eu tinha sido na sua ida<strong>de</strong>, tantos anos antes.<br />

— Pergunto isso porque você tem um traçado vivo. É <strong>de</strong> admirar que a


sua força não diminua as palavras.<br />

Ouvi minha filha estalar a língua, aquele gesto <strong>de</strong> frustração tranqüila que<br />

tinha aprendido com Erila.<br />

— Oh, não vejo como po<strong>de</strong> acreditar nisso. Quanto mais gloriosa a<br />

imagem, mais perto ela leva o suplicante a Cristo. Esc<strong>rev</strong>er em um lugar o nome<br />

<strong>de</strong> Nosso Senhor, colocar a figura que o representa no lado oposto, e qual dos<br />

dois estimula mais a <strong>de</strong>voção?<br />

— Não sei. É uma pergunta sábia?<br />

— Sim! O homem que disse isso é um pintor sábio. Talvez não o conheça,<br />

a sua obra é mo<strong>de</strong>rna. Seu nome é Leonardo da Vinci.<br />

E ele riu.<br />

— Leonardo? Nunca ouvi falar <strong>de</strong>le. E como sabe o que esse Leonardo<br />

diz?<br />

Ela olhou para ele séria.<br />

— Não estamos tão isoladas quanto po<strong>de</strong> parecer. E algumas notícias são<br />

mais importantes do que outras. De on<strong>de</strong> veio mesmo?<br />

— Ele vem <strong>de</strong> Roma — disse eu, atravessando a sala obscurecida até a luz<br />

do sol que incidia neles. — Via Florença e um mosteiro na beira do mar, on<strong>de</strong> o<br />

vento do inverno é tão frio que congela seus cílios e transforma em gelo a<br />

respiração em suas narinas.<br />

Ele virou-se e olhamos um para o outro. Eu o teria reconhecido<br />

imediatamente, com ou sem o tecido elegante. Estava bem mais forte, a<br />

vivacida<strong>de</strong> adolescente há muito <strong>de</strong>saparecida, e estava bonito, agora podia-se<br />

ver isso realmente. Se bem que também po<strong>de</strong>ria se <strong>de</strong>ver ao fato <strong>de</strong> que ele sabia<br />

disso. Confiança é uma coisa perigosa: pouca <strong>de</strong>mais e se está perdido, em<br />

excesso e será culpado <strong>de</strong> outros pecados que ela gera.<br />

E eu? O que ele via na freira à sua frente, o hábito <strong>de</strong> trabalho manchado<br />

<strong>de</strong> tinta, o rosto brilhando do suor provocado pela concentração? Minha estatura<br />

não se alterara. Eu continuava <strong>de</strong>sengonçada, quase do tamanho <strong>de</strong> uma girafa,<br />

se bem que ele sempre fora alto o bastante para fazer eu me esquecer <strong>de</strong> minha<br />

altura. De resto — bem, embora, na época, houvesse espelhos em nosso<br />

convento, há muito eu <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> me olhar neles. Tinha sido um certo prazer<br />

<strong>de</strong>ixar para trás a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se enfeitar e embelezar que vem com o <strong>de</strong>sejo.<br />

Ao longo dos anos, as esteticistas dos claustros tinham-me adulado, vez ou<br />

outra, na permuta <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s, e eu havia evocado meia dúzia <strong>de</strong> cenas<br />

religiosas <strong>de</strong>corativas em suas celas em troca <strong>de</strong> um hábito <strong>de</strong> melhor caimento<br />

ou uma pele mais macia. Mas nunca tinha sido minha intenção cortejar ninguém.<br />

Meus <strong>de</strong>dos faziam o trabalho <strong>de</strong> um homem, tanto com o pincel como, às<br />

vezes, em meu mato, como Erila, tão poeticamente, diria. Conseqüentemente, eu<br />

tinha me transformado <strong>de</strong> garota em mulher sem perceber.


— Mamãe?<br />

— Plautilla?<br />

Ela estava olhando para nós dois. A sala agora apresentava dois pares <strong>de</strong><br />

olhos <strong>de</strong> gato. Senti certa vertigem ao examiná-los. Toquei levemente na cabeça<br />

<strong>de</strong>la.<br />

— Por que não termina isto, filha? A luz está linda lá fora. Vá e registre a<br />

mão <strong>de</strong> Deus na natureza.<br />

— Oh, mas estou cansada.<br />

— Então, <strong>de</strong>ite-se ao sol e <strong>de</strong>ixe que seus raios clareiem seu cabelo.<br />

— Mesmo? Posso?<br />

Desconfiada, antes que eu mudasse <strong>de</strong> idéia, arrumou suas coisas<br />

rapidamente e saiu. E no seu andar, vi <strong>de</strong> novo sua tia, <strong>de</strong>strancando o mesmo<br />

cabelo castanho basto, pegando suas coisas e saindo às pressas do quarto,<br />

<strong>de</strong>ixando eu e minha mãe para falarmos sobre o assunto <strong>de</strong>sagradável do<br />

casamento no silêncio que se instalara. Tinha sido havia tanto tempo que a<br />

imagem pareceu recém-cunhada em minha mente.<br />

Ficamos em silêncio por um tempo, meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma vida no espaço entre<br />

nós.<br />

— Ela tem o traço forte — disse ele, por fim. — Você ensinou bem.<br />

— Não precisou ser ensinado. Ela nasceu com um olhar genuíno e uma<br />

mão firme.<br />

— Como sua mãe?<br />

— Mais como seu pai, eu acho, se bem que não estou certa que seus<br />

primeiros professores o reconhecessem em suas roupas sofisticadas.<br />

Ele abriu sua capa e expôs seu forro escarlate.<br />

— Não aprova?<br />

Dei <strong>de</strong> ombros.<br />

— Vi tinturas melhores no armazém <strong>de</strong> meu pai. Mas isso foi há muito<br />

tempo, quando artistas se preocupavam mais com a cor <strong>de</strong> suas tintas do que<br />

com a <strong>de</strong> suas roupas.<br />

Ele sorriu, como se minha língua afiada o agradasse. Fechou a capa.<br />

— Como nos encontrou?<br />

— Não foi fácil. Esc<strong>rev</strong>i a seu pai várias vezes, mas ele nunca respon<strong>de</strong>u.<br />

Três anos atrás, fui à sua casa em Florença, mas não havia ninguém, e os criados<br />

eram estranhos e não me disseram nada. Então, neste inverno, passei uma noite<br />

na companhia <strong>de</strong> um bispo que contou, com bazófia, que havia uma freira em<br />

um <strong>de</strong> seus conventos que estava pintando a própria capela com a ajuda <strong>de</strong> sua<br />

filha natural.<br />

— Entendo. Bem, estou feliz que Roma tenha lhe concedido tais<br />

companhias ébrias, se bem que esperava mais do pintor que conheci do que ser


eduzido às inclinações do Bispo Salvetti. Embora, se o vinho correu solto o<br />

bastante, provavelmente nem se lembre <strong>de</strong> seu nome.<br />

— Na verda<strong>de</strong>, me lembro. Mas me lembro mais <strong>de</strong> como me senti com a<br />

sua história — disse ele calmamente, tratando a minha língua ferina como o que<br />

era: uma <strong>de</strong>fesa precipitada contra a emoção. — Tenho procurado vocês duas há<br />

tanto tempo, Alessandra.<br />

Senti um rubor me invadir. Erila tinha razão: não adianta as mulheres<br />

pararem <strong>de</strong> pensar nos homens. Isso as torna vulneráveis quando eles retornam.<br />

Sacudi a cabeça.<br />

— Foi há muito. Tenho certeza <strong>de</strong> que estamos muito mudados.<br />

— Você não parece ter mudado — disse ele, calmamente. — Seus <strong>de</strong>dos<br />

estão manchados como sempre.<br />

Dobrei-os do meu lado, como fazia quando era criança.<br />

— Mas a sua língua está mais melíflua. — E a minha voz ainda inflexível.<br />

— Eu me pergunto on<strong>de</strong> estará a sua timi<strong>de</strong>z.<br />

— Minha timi<strong>de</strong>z? — ficou em silêncio por um momento. — Parte <strong>de</strong>la<br />

<strong>de</strong>sapareceu em minha viagem ao inferno naquelas semanas na capela. Parte foime<br />

arrancada na prisão <strong>de</strong> Bargello. O resto, guardo trancado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim.<br />

Roma não é uma cida<strong>de</strong> para os tímidos ou os inseguros. Mas faria melhor não<br />

me julgar pela aparência. Quando era jovem, conheci uma garota que vestia<br />

roupas caras e tinha a língua afiada. Mas a sua alma <strong>rev</strong>elou-se maior do que<br />

muitas que usavam roupas mais veneráveis.<br />

E a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> sua voz tocou um ponto sensível da memória. Senti<br />

algo se contorcer <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, mas tinha sido fazia tanto tempo que eu não<br />

sabia mais o que era prazer e o que era medo.<br />

A porta abriu-se e uma noviça jovem pôs a cabeça para <strong>de</strong>ntro. Ela havia<br />

chegado recentemente <strong>de</strong> Veneza, on<strong>de</strong> seus pais haviam tido problemas para<br />

mantê-la em casa à noite e continuava a ser, <strong>de</strong> certa forma, um problema para<br />

nós. Viu-nos juntos e <strong>de</strong>u um risinho. Quando recuou rapidamente, ainda<br />

sorrindo, ele perguntou:<br />

— Tem algum lugar, em seu convento, on<strong>de</strong> possamos ficar a sós?<br />

Com a porta fechada, minha cela que, até então, tinha sido gran<strong>de</strong> o<br />

bastante para conter toda a minha vida, <strong>de</strong> repente ficou pequena <strong>de</strong>mais. Acima<br />

da minha cama, estava um estudo em tamanho natural do nascimento da<br />

Virgem, o bebê <strong>de</strong>liciosamente rechonchudo baseado em centenas <strong>de</strong> esboços da<br />

nossa filha. Observei seu rosto abrir-se em um sorriso.<br />

— Ela está na sua capela?<br />

Sacudi os ombros.<br />

— É só um esboço.<br />

— Ainda assim, estão vivos. Como a mulher e o bebê do <strong>Nascimento</strong> da


Virgem <strong>de</strong> Ghirlandaio. Revi a capela na última vez em que estive em Florença.<br />

Às vezes acho que nada foi pintado que o supere.<br />

— Mesmo? — disse eu. — Não é o que o nosso bispo nos diz. Está<br />

sempre exaltando as novida<strong>de</strong>s em Roma.<br />

Ele sacudiu a cabeça.<br />

— Não sei se você gostaria tanto da arte <strong>de</strong> Roma hoje. Está se tornando<br />

um tanto... carnal.<br />

— O homem tão importante quanto Deus — disse eu, relembrando a<br />

última noite <strong>de</strong> conversa com a nossa freira erudita.<br />

— Em algumas mãos, sim.<br />

— E nas suas?<br />

Foi até a janela. Lá fora, um grupo <strong>de</strong> freiras mais jovens atravessava o<br />

claustro para as vésperas, suas risadas enlaçadas com o som dos sinos.<br />

— Às vezes, é difícil nadar contra a corrente. — Virou-se e olhou para<br />

mim. — Talvez <strong>de</strong>va saber por que vim vestido com minhas melhores roupas.<br />

Ficamos olhando um para o outro. Havia tanto a dizer. Mas eu sentia<br />

dificulda<strong>de</strong> em respirar. Era como se alguém tivesse inflamado o fogo no quarto<br />

e isso sugasse o ar entre nós.<br />

— E você <strong>de</strong>veria saber... — gaguejei —, <strong>de</strong>veria saber que agora<br />

pertenço a Deus — disse eu com firmeza. — E que Ele me conce<strong>de</strong>u o perdão<br />

<strong>de</strong> meus pecados.<br />

Encarou-me e, <strong>de</strong>ssa vez, seus olhos felinos estavam sérios.<br />

— Sei disso. Também eu fiz as pazes com Deus, Alessandra. Mas, nessa<br />

paz, não há um dia em que não pense em você.<br />

Deu um passo em minha direção. Tentei repelir as palavras. Tinha-me<br />

tornado tão tranqüila na minha auto-suficiência. Era doloroso <strong>de</strong>mais abrir mão<br />

<strong>de</strong>la.<br />

— Tenho uma filha. E um altar a pintar — disse eu ameaçadoramente. —<br />

Agora não tenho tempo para essas coisas.<br />

Porém, no mesmo instante em que dizia isso, a antiga Alessandra estava<br />

<strong>de</strong> volta. Eu podia senti-la atacando o <strong>de</strong>sejo como a cabeça <strong>de</strong> um dragão<br />

<strong>de</strong>spertando, farejando o ar, sentindo em sua barriga uma gran<strong>de</strong> excitação <strong>de</strong><br />

fogo e po<strong>de</strong>r. Ele também o sentiu. Estávamos tão próximos que eu podia sentir<br />

a sua respiração à minha volta. Seu cheiro era mais doce do que eu me lembrava,<br />

apesar do tisnado da estrada. Em outro momento da nossa vida, tinha sido eu<br />

que dominara o seu medo. Agora era a sua vez. Pegou minhas mãos e entrelaçou<br />

nossos <strong>de</strong>dos. Entre nós dois, nossa pele manchada formava uma paleta. Sempre<br />

tínhamos estado unidos um ao outro pelo po<strong>de</strong>r do <strong>de</strong>sejo, mesmo quando nada<br />

sabíamos disso. Fiz uma última tentativa.<br />

— Estou apavorada — disse eu, as palavras saindo sem o meu


consentimento. — Vivi <strong>de</strong> maneira tão diferente esses anos todos, e agora tenho<br />

medo.<br />

— Sei disso. Esquece-se <strong>de</strong> que eu já tive esse medo. — Puxou-me para si<br />

e me beijou <strong>de</strong>licadamente, puxando meu lábio inferior com o seu, <strong>de</strong>slizando a<br />

língua <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> minha boca, incitando-me a brincar. E seu gosto era tão quente<br />

e lembrava-me <strong>de</strong>le tão bem, mesmo tendo sido quando éramos tão crianças...<br />

Ele interrompeu-se. — Mas, agora, não tenho medo. — E o seu sorriso iluminou<br />

nossos rostos. — E não po<strong>de</strong> imaginar quanto tempo esperei por este momento,<br />

Alessandra Cecchi.<br />

Despiu-me lentamente, colocando <strong>de</strong> um lado, com cuidado, meu hábito,<br />

e me examinando a cada peça que tirava, até remover, por fim, minha camisa e<br />

eu ficar nua na sua frente. Eu tinha me assustado com meu cabelo, que no<br />

passado tinha sido a minha glória e que não mais podia cair como um rio <strong>de</strong> lava<br />

negra por minhas costas. Mas quando fiquei sem a touca, o cabelo curto e<br />

embaraçado surgiu como relva rija, e ele passou a mão, eriçando-o, como se<br />

fosse um atributo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> alegria e beleza.<br />

Ouvi dizerem que há homens que gostam da idéia <strong>de</strong> possuírem freiras. É<br />

claro que se trata do mais grosseiro dos crimes, pois é adultério contra Deus.<br />

Suponho que só por essa razão, po<strong>de</strong>-se perceber como aqueles que vivem para<br />

a sensação, a achem mais potente, por isso geralmente ou são loucos por guerra<br />

ou bebem antes <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r realizá-lo. Mas ele não era nenhum dos dois. Ele era<br />

louco por ternura.<br />

Pôs as mãos entre minhas pernas, traçando a linha da parte interna <strong>de</strong><br />

minha coxa, <strong>de</strong>slizando seu <strong>de</strong>do para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, brincando com a carne<br />

que encontrou ali, seus olhos tão ousados quanto seu toque, presos aos meus,<br />

examinando-me o tempo todo. Então me beijou <strong>de</strong> novo e, quando parou,<br />

repetiu meu nome várias vezes. E o tempo todo, parecia tão à vonta<strong>de</strong> que me<br />

fez rir, e me perguntei, <strong>de</strong> novo, como alguém que tinha sido tão <strong>de</strong>sajeitado se<br />

tornara tão seguro.<br />

— Des<strong>de</strong> quando ficou tão seguro em relação a essas coisas?<br />

— Des<strong>de</strong> que me mandou embora — disse ele baixinho, beijando-me <strong>de</strong><br />

novo, fechando meus olhos com seus lábios. — Agora pare <strong>de</strong> pensar —<br />

sussurrou em meu ouvido. — Por uma única vez pare essa sua cabeça vibrante.<br />

Separou meu sexo com seus <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> novo, cuidadosamente, com<br />

precisão, seus olhos nos meus o tempo todo, e usou a ponta dos <strong>de</strong>dos para tocar<br />

a extremida<strong>de</strong> da minha fenda, e pressionou, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ando uma sensação<br />

prazerosa em mim. Nessa tar<strong>de</strong>, ele me mostrou coisas que nunca imaginei;<br />

peculiarida<strong>de</strong>s do sexo, iguarias do <strong>de</strong>sejo. Mais que tudo lembro-me do toque<br />

<strong>de</strong> sua língua em mim, como a ponta da língua <strong>de</strong> um gato, limando com<br />

movimentos rápidos e firmes, sorvendo o leite, Toda vez que eu gemia, ele


erguia a cabeça para checar que eu estava com ele, seus olhos brilhantes, como<br />

se a risada não passasse <strong>de</strong> uma expiração.<br />

Eu tinha ouvido dizerem que, no paraíso, até mesmo a substancia da<br />

matéria muda com a luz <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong> modo que se po<strong>de</strong> enxergar, através <strong>de</strong><br />

coisas sólidas, o que está além. Quando começou a escurecer em minha cela,<br />

achei que, naquele momento, podia ver através <strong>de</strong> seu corpo a sua própria alma.<br />

Erila, com certeza, alegaria uma experiência mais musical, a experiência <strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tantos anos, finalmente ouvir a doçura da corda do alaú<strong>de</strong>.<br />

Por causa <strong>de</strong> seu talento com o pincel, a Madre Superiora <strong>de</strong>u-lhe permissão<br />

para ficar por algum tempo. À noite, ele me ensinava a arte do corpo, e, <strong>de</strong> dia,<br />

ajudava-me na capela. On<strong>de</strong> havia erros, fazia o que podia para corrigi-los, e<br />

on<strong>de</strong> eu me satisfizera com a proporcionalida<strong>de</strong> sem ardor (e foram muitos os<br />

exemplos disso), ele acrescentava a centelha <strong>de</strong> seu pincel para dar-lhe mais<br />

vida. Sei que ele via somente as imperfeições, mas não se <strong>de</strong>morava nelas.<br />

Quando não estava comigo, estava com Plautilla, e sob seus cuidados, ela<br />

florescia. Percebi seu conhecimento atiçar a curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la, aproximando-os<br />

cada vez mais, tanto na arte quanto na conversa.<br />

E quanto mais tempo passavam um na companhia do outro, mais certa eu<br />

ficava do que tinha <strong>de</strong> fazer.<br />

Mesmo sem ele, seria apenas uma questão <strong>de</strong> tempo até ela me <strong>de</strong>ixar. Eu<br />

sempre soubera disso. Nem mesmo nas or<strong>de</strong>ns mais indulgentes, ela po<strong>de</strong>ria<br />

permanecer in<strong>de</strong>finidamente sem tomar o véu, e eu não permitiria isso. Seu<br />

futuro era gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais para ser contido pelos muros do convento, e não havia<br />

mais nada que eu pu<strong>de</strong>sse ensinar-lhe. Ela tinha quase quatorze anos; ida<strong>de</strong> em<br />

que um jovem talento <strong>de</strong>ve encontrar um mestre se tiver <strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolver. Se<br />

Uccello pô<strong>de</strong> treinar sua própria filha, então ele também po<strong>de</strong>ria, e se existia,<br />

nesse momento, uma cida<strong>de</strong> capaz <strong>de</strong> quebrar as regras para incluir o talento<br />

fora do comum <strong>de</strong> uma mão feminina, certamente essa seria Roma. O resto<br />

caberia a ela.<br />

Foi provi<strong>de</strong>nciado para que partissem antes do auge do calor. É claro que<br />

quando lhe disse, ela só conseguiu ver a perda e o terror e, <strong>de</strong> início, se recusou<br />

a ir. Fui <strong>de</strong>licada com ela, ciente <strong>de</strong> como os castigos <strong>de</strong> minha mãe nunca<br />

tinham conseguido nada além <strong>de</strong> me tornar ainda mais obstinada. Quando a<br />

razão não funcionou, contei-lhe a história: <strong>de</strong> uma jovem que tinha querido tanto<br />

pintar que isso a levara a transgressões <strong>de</strong> tal magnitu<strong>de</strong>, que o seu maior <strong>de</strong>sejo<br />

na vida era, agora, dar à sua filha o que ela não pu<strong>de</strong>ra ter. E tendo escutado com<br />

atenção, por fim concordou em me <strong>de</strong>ixar. Ela era, percebo retrospectivamente,<br />

uma criança mais obediente do que eu tinha sido. Mas não adiantava agora


alongar-me em como a minha rebelião tinha <strong>de</strong>finido a minha vida.<br />

Em sua arca, junto com minhas esperanças e sonhos, também coloquei o<br />

manuscrito envolvido em um tecido <strong>de</strong> veludo. Não precisava <strong>de</strong>le agora, e ele<br />

merecia coisa melhor do que a úmida arca <strong>de</strong> casamento <strong>de</strong> uma freira que<br />

envelhecia. Antes <strong>de</strong> envolvê-lo pela última vez, ele sentou-se com o manuscrito<br />

aberto à sua frente. Senti seus <strong>de</strong>dos lerem cada linha traçada com admiração, e<br />

percebi que tomaria tanto cuidado com ele quanto eu, e, <strong>de</strong>ssa maneira,<br />

encontraria seu caminho na história.


Quarenta e Nove<br />

À NOITE, ANTES DE PARTIREM, DEITAMO-NOS juntos em minha cama<br />

dura, nossos corpos viscosos no calor do verão. A exaustão do nosso <strong>de</strong>sejo<br />

satisfeito havia nos <strong>de</strong>ixado languidos e sonolentos. Ele molhou os <strong>de</strong>dos em<br />

uma vasilha <strong>de</strong> água e traçou uma linha fria da minha mão até o braço,<br />

atravessou meu peito e <strong>de</strong>sceu o outro braço, parando por um momento sobre a<br />

fina cicatriz branca que <strong>de</strong>corava meu pulso e a parte interna <strong>de</strong> meu braço.<br />

— Conte-me <strong>de</strong> novo — pediu calmamente.<br />

— Já ouviu essa história <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> vezes. A lâmina escorregou e...<br />

— E usou o sangue para pintar seu corpo. — Ele sorriu. — E on<strong>de</strong><br />

pintou? Aqui? — tocou em meu ombro. — Depois aqui? — passando seu <strong>de</strong>dos<br />

por meus seios. — E <strong>de</strong>pois aqui? — e seu <strong>de</strong>do moveu-se por minha barriga em<br />

direção ao sexo.<br />

— Não! Nem mesmo eu ousaria tanto.<br />

— Não acredito — disse ele. — Ainda assim, teria ficado bonito: o<br />

escarlate na pele castanha. Embora haja outras cores que também se ajustariam...<br />

Sorri e <strong>de</strong>ixei sua mão on<strong>de</strong> tinha ido. Amanhã, vestirei meu hábito,<br />

voltarei à capela e me tornarei freira <strong>de</strong> novo. Amanhã.<br />

— Se soubesse quantas vezes pintei seu corpo em minha imaginação...<br />

— E uma vez na realida<strong>de</strong>. No teto da capela.<br />

Ele sacudiu a cabeça.<br />

— Você nunca foi o mo<strong>de</strong>lo certo para uma Madona. Seus olhos eram<br />

at<strong>rev</strong>idos <strong>de</strong>mais. Por que acha que tive medo <strong>de</strong> você por tanto tempo? Sempre<br />

foi Eva. Se bem que eu não avaliaria as chances da serpente contra sua mente.<br />

— Acho que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria da cara que teria — disse eu.<br />

— Ah, ainda não pensa na serpente como uma mulher? Continua a<br />

<strong>de</strong>safiar Masolino.<br />

Dei <strong>de</strong> ombros.<br />

— Acho — eu disse, e sorri quando ele imitou com a boca as minhas<br />

próximas palavras. — Acho que não existe nenhuma evidência nas escrituras<br />

para essa representação. Mas ainda não vi um pintor corajoso o bastante para<br />

<strong>de</strong>safiá-la.<br />

Desse modo a serpente se juntou a nós em nossa cama, nessa última noite.<br />

E apesar <strong>de</strong> saber que o que fizemos foi uma blasfêmia, não <strong>de</strong>sejo que seja<br />

<strong>de</strong>sfeita: a maneira como seu corpo selvagem ver<strong>de</strong> e prateado se <strong>de</strong>senvolveu<br />

sob seu pincel, enroscando-se sobre meus seios, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>scendo por meu<br />

estômago até <strong>de</strong>saparecer em meu pêlo, e exatamente on<strong>de</strong> o envolvia, <strong>de</strong>lineou


o seu próprio rosto no emaranhado. E enquanto trabalhava, provocou momentos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>solação e <strong>de</strong> prazer, e o corpo do charlatão com a luxúria <strong>de</strong> seus músculos<br />

ondulando sob sua pele lustrosa.<br />

Na manha seguinte, levantei-me, ocultei a pintura gloriosa que, agora, era<br />

o meu corpo sob o meu hábito, e vi meu amante e nossa filha partirem.<br />

Mas eu gastara tanta energia convencendo Plautilla a partir, que tinha me<br />

esquecido <strong>de</strong> guardar o bastante para me consolar. Nos dias seguintes, a tristeza<br />

brotou como doença, envolvendo-me em uma febre fria <strong>de</strong> <strong>de</strong>solação, e quanto<br />

mais a distância crescia entre nós, mais minhas entranhas pareciam se <strong>de</strong>sfazer e<br />

se <strong>de</strong>rramar no chão.<br />

Uma vez, eu tinha acusado meu amante do pecado do <strong>de</strong>sespero. Agora,<br />

parecia que eu sucumbiria a ele. Minha capela permaneceu intocada, a vida da<br />

Virgem mal começara. À noite, ficava na cama recordando o <strong>de</strong>sejo nas dobras<br />

do corpo da serpente. Mas o verão inflamou-se como fogo, e com o calor vieram<br />

os suores noturnos, a poeira e a sujeira, e não <strong>de</strong>morou para que as cores<br />

começassem a sangrar e <strong>de</strong>sbotar, como os tecidos coloridos <strong>de</strong> meu pai ao<br />

serem <strong>de</strong>ixados ao sol. E, assim, meu espírito <strong>de</strong>scorou junto com elas.<br />

A Madre Superiora brincou com meu sofrimento por um tempo, e, então,<br />

ficou impaciente com o atraso. No fim, foi Erila que me salvou, se bem que eu<br />

temia que ela também tivesse me abandonado. Florença era uma viagem longa<br />

<strong>de</strong> Loro Ciufenna, e os tintureiros <strong>de</strong> Santa Croce constituíam uma fraternida<strong>de</strong><br />

muito fechada, <strong>de</strong> modo que mesmo quando ela os encontrava nas ruas próximas<br />

ao rio, em suas oficinas improvisadas cheias <strong>de</strong> agulhas e cores roubadas,<br />

relutavam em ce<strong>de</strong>r seus segredos a uma estranha. Mas ninguém conseguia<br />

resistir a Erila por muito tempo. Do charlatão, ela me contou <strong>de</strong>pois, não havia<br />

sinal.<br />

Chegou <strong>de</strong> volta certo entar<strong>de</strong>cer, quando a luz estava em seu momento<br />

mais sublime, esvaziando sua pequena maleta <strong>de</strong> couro e dispondo o conteúdo<br />

no chão, do lado do meu catre: remédios, ungüentos, panos, agulhas, e um<br />

conjunto <strong>de</strong> frascos pequeninos. A cor <strong>de</strong> cada um turva e enlameada, a<br />

<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nanquim, e não <strong>de</strong> tinta. Só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> a pele ser perfurada e a tinta<br />

penetrar ponto por ponto na ferida é que o efeito vibrante era liberado. Oh, mas<br />

então, os tons eram surpreen<strong>de</strong>ntes; toscos e novos como as primeiras pinceladas<br />

<strong>de</strong> Deus no jardim do É<strong>de</strong>n, e a visão <strong>de</strong>les se misturando com meu sangue fez<br />

com que parte da velha chama tremeluzisse em mim. Nessa primeira noite,<br />

trabalhamos à luz <strong>de</strong> vela, e quando alvoreceu, havia meia polegada da cauda da<br />

serpente em meu ombro restaurada e meu corpo estava exausto do prazer<br />

causado por suportar a dor.


Com o passar dos dias, nos tornamos mais rápidas e eu com mais<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recuperação. A serpente sob nossos <strong>de</strong>dos tornou-se mais<br />

sedutora à medida que aprendíamos melhor como lidar com a agulha, e calcular<br />

quantas perfurações minúsculas eram necessárias para dar vida a cada<br />

movimento do seu músculo. Quando se enrolou e se enroscou, <strong>de</strong> sua maneira<br />

lasciva, em meus seios e minha barriga, eu podia vê-la o suficiente para usar a<br />

agulha eu mesma. De modo que quando cheguei aos contornos <strong>de</strong>sbotados do<br />

rosto <strong>de</strong> meu amante, eu estava sozinha, e aconteceu uma doce catarse na<br />

cruelda<strong>de</strong> das agulhas enquanto eu acrescentava o dardo da língua da serpente<br />

<strong>de</strong>slizando <strong>de</strong> sua boca em direção ao meu sexo. E assim, recuperei o apetite <strong>de</strong><br />

viver e retornei às pare<strong>de</strong>s do meu altar.<br />

Os anos seguintes foram tumultuados. Na primavera, meu pai faleceu, na<br />

ca<strong>de</strong>ira em seu gabinete, seu ábaco e livros <strong>de</strong> contabilida<strong>de</strong> à sua frente. Luca<br />

assumiu a casa e minha mãe retirou-se para um convento <strong>de</strong>ntro da cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong><br />

fez o voto do silêncio. Sua última carta <strong>de</strong>sejava que Deus me abençoasse e<br />

insistia para que eu confessasse meus pecados, como ela confessara os seus.<br />

Nesse meio-tempo, em sua amada Florença, a República tão maltratada<br />

aceitou os Medici <strong>de</strong> volta, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> décadas <strong>de</strong> exílio. Mas Giovanni <strong>de</strong><br />

Medici, agora Papa Leão X, era uma sombra pálida <strong>de</strong> seu pai erudito. Meu<br />

gordo e seboso meio irmão — pois era isso que era — tinha sido forjado nas<br />

chamas do parasitismo e dissipação da fortuna. Sob seu pontificado, Roma<br />

tornou-se tão flácida quanto seu corpo. Até mesmo a sua arte tornou-se<br />

corpulenta. As cartas <strong>de</strong> meu pintor falavam <strong>de</strong> uma jovem artista, cujo pincel<br />

logo seria tão bom quanto o <strong>de</strong> qualquer homem, mas <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> afligindose<br />

em sua própria <strong>de</strong>cadência; <strong>de</strong> banquetes que duravam dias e patronos tão<br />

ricos que atiravam os pratos <strong>de</strong> prata no Tibre <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> comerem (se bem que<br />

corria o boato <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>pois, seus criados os resgatavam).<br />

No ano seguinte, meu pintor e minha filha partiram <strong>de</strong> Roma para a<br />

França. No passado, ele recebera convites tanto <strong>de</strong> Paris quanto <strong>de</strong> Londres,<br />

cida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> a nova erudição estava ainda na infância e on<strong>de</strong> haveria mais<br />

chances <strong>de</strong> patronato para aqueles que permaneceram fiéis aos costumes antigos.<br />

Portanto, partiram com seus pincéis e o manuscrito. Marquei o percurso em um<br />

mapa que a minha freira erudita me conseguira com um cartógrafo em Milão. O<br />

navio ancorou em Marselha, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> viajaram para Paris. Mas o convite<br />

prometido não resultou em trabalho remunerado, e acabaram sendo obrigados a<br />

ven<strong>de</strong>r parte da Divina comédia para se sustentarem. Dessa maneira,<br />

atravessaram a Europa, mas suas cartas falavam <strong>de</strong> uma agressão cada vez maior<br />

dirigida à Igreja estabelecida e ao que alguns consi<strong>de</strong>ravam sua arte idolatra, e,<br />

finalmente, passaram para a Inglaterra, on<strong>de</strong> o jovem rei, instruído na<br />

Renascença, estava ansioso por artistas que engran<strong>de</strong>cessem sua corte. Durante


os primeiros anos, enviou-me histórias <strong>de</strong> um povo ensopado pela chuva, com<br />

uma língua áspera e maneiras ainda mais ásperas. E, é claro, eu não consegui<br />

evitar pensar em seu mosteiro, e em como a vida o levara <strong>de</strong> volta à paleta cinza<br />

mais uma vez. Mas então, as cartas pararam <strong>de</strong> chegar e não recebo notícias<br />

<strong>de</strong>les há alguns anos.<br />

Tive pouco tempo para lamentar. Logo <strong>de</strong>pois que a capela foi concluída,<br />

a Igreja investiu contra nós. A nossa criativida<strong>de</strong> tinha-se tornado monstruosa<br />

<strong>de</strong>mais mesmo para esses tempos duvidosos. Sempre tinha sido uma questão <strong>de</strong><br />

tempo até os rumores chegarem aos ouvidos errados. Quando o nosso bispo<br />

morreu, o homem <strong>de</strong>signado para substituí-lo era feito <strong>de</strong> material mais<br />

inflexível, e com ele vieram os inspetores das igrejas que sentiam o cheiro do<br />

Diabo em toda parte: no feitio <strong>de</strong> nossos hábitos, no pano perfumado em nossas<br />

celas e, principalmente, nos livros em nossas estantes. Somente meu altar<br />

sob<strong>rev</strong>iveu ao escrutínio porque, na época, a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa arte tinha-se<br />

tornado comum. Meu altar e meu corpo. Mas isso era assunto entre mim e Deus.<br />

Aquelas entre nós que já haviam passado por isso antes, aceitaram com<br />

tranqüilida<strong>de</strong>. Sabíamos que era melhor não lutar. As poucas que resistiram<br />

foram oprimidas e transferidas. De certa forma, não foi tão terrível. Nossa<br />

dramaturga e a maioria das costureiras esteticistas se foram, mas a erudita ficou,<br />

apesar <strong>de</strong> sua biblioteca ter sido expurgada. Uma nova Madre Superiora foi<br />

trazida, pura e íntegra, com um Deus mais severo em seu caráter. Com a capela<br />

concluída, <strong>de</strong>senvolvi a voz para as vésperas e ocultei minhas excentricida<strong>de</strong>s<br />

por trás do meu livro <strong>de</strong> orações. Contanto que me mostrasse submissa, estava<br />

velha <strong>de</strong>mais para ser uma ameaça. É claro que perdi meu material <strong>de</strong> pintura.<br />

Mas me <strong>de</strong>ixaram minhas penas, e foi assim que comecei esta história da minha<br />

vida, que, por enquanto, afugenta a solidão e o tédio da nova or<strong>de</strong>m.<br />

Minha maior perda foi Erila. Evi<strong>de</strong>ntemente, não havia espaço para seu<br />

espírito comercial obstinado nesse novo mundo estrito. Para ficar, teria <strong>de</strong> ser a<br />

criada que sempre rejeitou, e, <strong>de</strong> qualquer maneira, já tinha forjado uma vida lá<br />

fora. Com a minha ajuda e suas próprias economias, estabeleceu uma botica na<br />

cida<strong>de</strong> vizinha. Um lugar tão pacato nunca vira uma mulher tão selvagem e, é<br />

claro, houve quem a consi<strong>de</strong>rasse uma bruxa, se bem que, ironicamente, mais<br />

uma bruxa branca do que negra. Mas não <strong>de</strong>morou para que passassem a<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seus remédios e conselhos tanto quanto as freiras haviam<br />

<strong>de</strong>pendido. E assim, conseguiu uma certa respeitabilida<strong>de</strong>. Rimos sobre isso nas<br />

ocasiões que tinha permissão para me visitar; como a vida po<strong>de</strong> oferecer o mais<br />

bizarro dos finais à vida <strong>de</strong> alguém.<br />

Terminei este manuscrito há dois meses e foi, então, que <strong>de</strong>cidi o que <strong>de</strong>vo


fazer. Não é que eu esteja sofrendo — agora, as recordações são tão fracas<br />

quanto minha vista —, é que os anos passaram na minha frente como uma massa<br />

fina, e não suporto a idéia <strong>de</strong>ssa eternida<strong>de</strong> rígida e a longa e lenta passagem<br />

para a <strong>de</strong>crepitu<strong>de</strong>. Depois <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir, é claro que pedi ajuda a Erila. Uma última<br />

vez. O tumor foi idéia <strong>de</strong>la. Tinha visto vários; coisas malignas que surgiam na<br />

pele <strong>de</strong> uma maneira volumosa e misteriosa. As mulheres principalmente eram<br />

propensas a eles ao redor dos seios. Cresciam tanto <strong>de</strong>ntro quanto na superfície,<br />

corroendo fundo os órgãos vitais do corpo até as vítimas afundarem na agonia<br />

<strong>de</strong> sua própria <strong>de</strong>cadência. Não havia tratamento e até mesmo os chamados<br />

médicos tinham medo <strong>de</strong>les. Uma vez atacadas, as vítimas afastavam-se da<br />

socieda<strong>de</strong>, como animais feridos, gritando sua dor no escuro, aguardando a<br />

morte.<br />

A bexiga <strong>de</strong> porco foi inspirada e fácil — bastou uma visita à cozinha<br />

enquanto as outras estavam orando. Erila ajudou-me a enchê-la e a fixá-la em<br />

meu peito, e me <strong>de</strong>u beberagens e ungüentos para me fazerem vomitar ou elevar<br />

a temperatura do corpo quando eu precisasse que a doença ficasse mais flagrante<br />

para mantê-las afastadas. E no fim, seria ela que me traria o veneno para quando<br />

eu precisasse, extraído das raízes <strong>de</strong> uma das plantas medicinais que cultivava<br />

em seu jardim. Causaria dor, me disse, e não podia garantir a rapi<strong>de</strong>z do efeito,<br />

mas do resultado não tinha dúvidas. A única questão que restava era o que<br />

fariam <strong>de</strong>pois com o meu corpo. Nosso convento tinha outra Madre Superiora<br />

agora, a última sob<strong>rev</strong>ivente dos velhos tempos; a nossa erudita, que ao longo<br />

dos anos conseguira encontrar uma vocação genuína em sua solidão. Não posso<br />

contar-lhe tudo, é claro, mas pedi a sua indulgência em <strong>de</strong>ixar meu corpo e meu<br />

hábito intactos. Não é minha intenção causar embaraços à sua direção. Gosto<br />

<strong>de</strong>la e a respeito <strong>de</strong>mais para isso. Como ela sabe disso, e se lembra das minhas<br />

contravenções passadas, não perguntou mais nada e concordou.<br />

Estão se perguntando sobre a minha morte, não estão? Sobre o pecado do<br />

suicídio e a impossibilida<strong>de</strong> final do perdão <strong>de</strong> Deus.<br />

Pensei muito nisso.<br />

Antes <strong>de</strong> o manuscrito <strong>de</strong>ixar minhas mãos, examinei aqueles círculos do<br />

inferno apinhados <strong>de</strong> gente. O suicídio é, <strong>de</strong> fato, um pecado grave. De certa<br />

maneira, o mais grave. Mas acho, <strong>de</strong> certa forma, confortante como Dante o<br />

retrata. A punição a<strong>de</strong>quada para o pecado apropriado: para aqueles que<br />

escolheram <strong>de</strong>ixar o mundo antes do momento <strong>de</strong>signado para eles, o inferno os<br />

<strong>de</strong>ixa enraizados a ele para sempre. As almas dos suicidas estão firmemente<br />

arraigadas na terra, urdidas em estruturas <strong>de</strong> árvores, seus galhos e troncos<br />

crestados atuando como alimento vivo para todo tipo <strong>de</strong> harpias e aves <strong>de</strong>


apina. Na meta<strong>de</strong> do canto, Dante fala <strong>de</strong> como uma matilha <strong>de</strong> cães<br />

perseguindo pecadores aparece saltando pela floresta, e em sua trajetória, fazem<br />

em pedaços uma árvore pequena, cuja alma chora com tristeza por ter seus<br />

ramos rompidos.<br />

Perseguição por cães <strong>de</strong> caça. Odiei a lenda <strong>de</strong> Onesti por tanto tempo,<br />

talvez porque eu estivesse <strong>de</strong>stinada a partilhar do <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> sua heroína. Mas<br />

nem tudo será sofrimento. Memorizei bem a geografia do inferno <strong>de</strong> Dante. O<br />

bosque dos suicidas está perto do solo em chamas dos sodomitas. Às vezes, são<br />

atingidos, batendo as chamas que se inflamam constantemente por seus corpos<br />

marcados e, como Dante faria, às vezes têm tempo <strong>de</strong> parar e conversar um<br />

pouco com outras almas danadas sobre arte e literatura e os pecados pelos quais<br />

todos somos con<strong>de</strong>nados. Eu gostaria disso.<br />

Fiz minhas <strong>de</strong>spedidas. Uma tar<strong>de</strong>, tirei minha touca e me <strong>de</strong>itei no jardim<br />

com o rosto ao sol, perto da figueira que plantamos logo que chegamos, e por<br />

seu crescimento medíamos o <strong>de</strong> Plautilla. Sequer me <strong>de</strong>i ao trabalho <strong>de</strong> me<br />

mexer quando a jovem freira me encontrou ali, e correu <strong>de</strong> volta à casa a<br />

tagarelar, com noticias da minha "transgressão". O que sabem <strong>de</strong> mim? Foi tudo<br />

há tanto tempo e freiras velhas são tão invisíveis. Andam arrastando os pés e<br />

sorriem com olhos lacrimosos, e resmungam ao comerem seu pudim e ao<br />

rezarem, tudo isso aprendi a fazer admiravelmente. Não fazem idéia <strong>de</strong> quem eu<br />

sou. A maioria nem mesmo sabe que foram meus <strong>de</strong>dos os responsáveis pelas<br />

imagens que reluzem quando cantam na capela.<br />

Portanto, agora, estou em minha cela, esperando Erila, que virá à noite me<br />

trazer a beberagem e se <strong>de</strong>spedir. É a ela que vou confiar este documento. Ela<br />

não é mais escrava <strong>de</strong> ninguém e <strong>de</strong>ve fazer do resto da sua vida o que achar<br />

melhor. Tudo o que lhe pedi foi que <strong>de</strong>spachasse este ao último en<strong>de</strong>reço que<br />

tenho <strong>de</strong> minha filha e do pintor, em uma área da cida<strong>de</strong> perto <strong>de</strong> Kings Court,<br />

chamada Cheapsi<strong>de</strong>. No entanto, nós duas sabemos que meu pai nunca <strong>de</strong>ixaria<br />

um documento ou contrato <strong>de</strong> qualquer valor fora <strong>de</strong> seu controle, a menos que<br />

tivesse uma cópia ou prova <strong>de</strong> que seu agente recebesse, e mesmo assim obtinha<br />

um seguro oficial <strong>de</strong> sua chegada a salvo. Recentemente, Erila falou em viajar<br />

com uma espécie <strong>de</strong> apetite que só acontece com aqueles que nasceram em lugar<br />

diferente daquele em que irão morrer. Se for possível encontrar minha filha, ela<br />

encontrará. Não posso fazer mais nada.<br />

A noite está chegando, uma manta <strong>de</strong> calor e umida<strong>de</strong>. Depois que Erila<br />

sair, tomarei a bebida rapidamente. De acordo com o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> minha mãe,<br />

preparei minha confissão e o padre foi chamado. Esperemos que tenha um<br />

estômago forte e uma língua silenciosa.


Epílogo<br />

ESQUECI-ME DE UMA COISA. MINHA CAPELA.<br />

Levou tanto tempo — <strong>de</strong> certa maneira, foi o trabalho da minha vida — e<br />

falei tão pouco <strong>de</strong>la.<br />

As vidas da Virgem e <strong>de</strong> João Batista. Os mesmos temas do altar <strong>de</strong><br />

Domenico Ghirlandaio na Capella Maggiore <strong>de</strong> Santa Maria Novella, que minha<br />

mãe e eu tínhamos visto juntas quando eu tinha apenas <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Foi a<br />

minha primeira experiência <strong>de</strong> história, e assim como permaneceu sendo a<br />

principal recordação florentina <strong>de</strong> meu pintor, também é a minha. Pois por mais<br />

que possa haver melhores artistas e maiores realizações, os afrescos <strong>de</strong><br />

Ghirlandaio contam tanto da glória e humanida<strong>de</strong> da nossa gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> quanto<br />

a vida <strong>de</strong> qualquer santo, e, na minha opinião, é justamente isso que os torna tão<br />

comoventes e tão verda<strong>de</strong>iros.<br />

Portanto, no espírito <strong>de</strong>ssa verda<strong>de</strong>, que no passado foi tão central para a<br />

nossa erudição, não escon<strong>de</strong>rei esse fato agora.<br />

A minha capela é tristemente medíocre. Se futuros especialistas da nova<br />

arte se <strong>de</strong>pararem com ela, a olharão <strong>de</strong> relance, então, seguirão adiante,<br />

percebendo os afrescos como uma tentativa <strong>de</strong> um artista inferior em uma era<br />

superior. Sim, <strong>de</strong>nota uma sensibilida<strong>de</strong> para a cor (essa paixão nunca perdi), e<br />

há vezes em que o pano <strong>de</strong> meu pai move-se como água, e uma face ocasional<br />

transmite um caráter assim como uma pintura. Mas as composições são<br />

<strong>de</strong>sajeitadas e muitas das figuras, apesar do meu cuidado, permanecem graves e<br />

sem vida. Se gentileza e franqueza forem consi<strong>de</strong>radas, po<strong>de</strong>-se dizer que foi<br />

obra <strong>de</strong> uma artista mais velha sem treinamento, que fez o seu melhor e que<br />

merece ser lembrada tanto por seu entusiasmo quanto por sua realização.<br />

E se isso parecer uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> fracasso <strong>de</strong> uma mulher velha no fim<br />

<strong>de</strong> sua vida, po<strong>de</strong>m acreditar quando eu digo que <strong>de</strong>finitivamente não é.<br />

Pois se a compararem com todas as outras; todos os painéis <strong>de</strong> casamento,<br />

ban<strong>de</strong>jas <strong>de</strong> parto e arcas <strong>de</strong> casamento, afrescos, retábulos e painéis produzidos<br />

durante aqueles tempos estonteantes, quando colocamos o homem em contato<br />

com Deus <strong>de</strong> uma maneira nunca feita antes... então verão o que é<br />

simplesmente: uma única voz perdida <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> coro.<br />

E é esse o som que o coro faz unido, ter participado disso foi o bastante<br />

para mim.


NOTAS<br />

O Crucifixo <strong>de</strong> cedro <strong>de</strong> Michelangelo ficou perdido por muitos anos <strong>de</strong>pois da<br />

invasão <strong>de</strong> Napoleão da Itália. Foi re<strong>de</strong>scoberto na década <strong>de</strong> 1960,<br />

reautenticado, recentemente restaurado, e hoje está na sacristia da igreja <strong>de</strong><br />

Santo Spirito, no lado sul do rio. Quando era muito jovem, Michelangelo<br />

também trabalhou como assistente <strong>de</strong> Domenico Ghirlandaio nos afrescos para a<br />

Capella Maggiore em Santa Maria Novella.<br />

As ilustrações <strong>de</strong> Botticelli da Divina comédia, <strong>de</strong> Dante, <strong>de</strong>sapareceram<br />

da Itália logo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> serem pintadas, só reaparecendo em diversas partes da<br />

Europa séculos <strong>de</strong>pois. Em 1501, seu nome apareceu em uma das caixas <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>núncias da igreja e ele foi levado à Polícia Noturna acusado <strong>de</strong> sodomia. Há<br />

divergências entre os estudiosos quanto à acusação ter sido calúnia ou verda<strong>de</strong>.<br />

A Polícia Noturna operou durante todo o século XV e <strong>de</strong>pois, controlando<br />

a sodomia e outras formas <strong>de</strong> fornicação in<strong>de</strong>cente em Florença. Com exceção<br />

dos anos <strong>de</strong> Savonarola, <strong>de</strong> 1494 a 1498, seu controle era muito mais flexível do<br />

que muitas outras cida<strong>de</strong>s.<br />

No começo do século XVI, quando os dotes aumentaram e o número <strong>de</strong><br />

mulheres solteiras aumentou, foram <strong>de</strong>scobertos alguns conventos no norte da<br />

Itália que eram indulgentes em relação as leis <strong>de</strong> comportamento. A Igreja<br />

investigou e os conventos ofensores ou sofreram expurgos ou foram fechados.


Agra<strong>de</strong>cimentos<br />

Este livro foi construído no andaime da história construído a partir <strong>de</strong> várias<br />

fontes contemporâneas, estudiosos eminentes e historiadores <strong>de</strong> arte. Os fatos<br />

foram extraídos daí, quaisquer erros são inteiramente meus.<br />

Eu não po<strong>de</strong>ria tê-lo escrito sem o amor, o incentivo intelectual e o apoio <strong>de</strong> Sue<br />

Woodman, que me <strong>de</strong>u mais do que po<strong>de</strong> imaginar (embora eu me at<strong>rev</strong>a a dizer<br />

que ela suspeite). Berenice Goodwin, uma gran<strong>de</strong> professora <strong>de</strong> arte e boa<br />

amiga, leu o manuscrito em um estágio inicial crítico e foi <strong>de</strong> extrema<br />

importância, tanto por salvar-me <strong>de</strong> erros graves quanto por enriquecer<br />

substancialmente a minha compreensão do período. Meus mais sinceros<br />

agra<strong>de</strong>cimentos a Jaki Authur, Gillian Slovo, Eileen Quinn, Peter Busby e Mohit<br />

Bakaya, cada qual à sua própria maneira alimentou meu espírito durante os<br />

momentos difíceis. Por sua assistência em Florença, agra<strong>de</strong>ço a Isabella Planner,<br />

Carla Corri e Pietro Bernabei. Também sou grata a Kate Lowe, que me ajudou<br />

pessoalmente com sua erudição. E, finalmente, à minha agente Clare Alexan<strong>de</strong>r,<br />

que teve uma paciência infinita e clareza <strong>de</strong> crítica, e a Lennie Goodings, minha<br />

editora e amiga <strong>de</strong> longa data, que foi a melhor parteira que alguém <strong>de</strong>sejaria ter<br />

em um livro que, ao manter seu título, teve um trabalho <strong>de</strong> parto colorido. Por<br />

sua tenacida<strong>de</strong> e visão, Lennie, ficarei sempre em dívida com você.<br />

Para aqueles que quiserem ler mais sobre esse período extraordinário,<br />

ofereço a seguinte b<strong>rev</strong>e bibliografia:<br />

Leon Alberti: On painting, Penguin Classics.<br />

Francis Ames-Lewis: Drawing in Early Renaissance Italy, Yale University Press.<br />

Ugo Baldassarri, org.: Images of Quattrocento Florence, Yale University Press.<br />

Michael Baxendale: Painting and Experience in 15 th Century Italy, Oxford University Press.<br />

Elizabeth Birbari: Dress in Italian Painting, John Murray.<br />

Anthony Blunt: Artistic Theory in Italy 1450-1600, Oxford University Press.<br />

Eve Borsook: Companion Gui<strong>de</strong> to Florence, Companion Gui<strong>de</strong>.<br />

Cennino Cennini: The Craftsman's Handbook (II Libro <strong>de</strong>ll'Arte), Dover Publications.<br />

Christopher Hibbert: The Base and Fall of the House of Medici, Penguin Books.<br />

Graham Hughes: Renaissance Cassoni, Art Books International.<br />

Lisa Jardine: Worldy Goods, Macmillan.<br />

Luca Landucci, trad. Jervis A. Rosen: A Florentine Diary from 1450 to 1516, Ayer


Company Publications.<br />

Jean Lucas-Dubreton: Daly life in Florence in the Time of the Medici, Macmillan.<br />

Michael Rocke: Forbid<strong>de</strong>n Friendships, Homosexuality and Male Culture in Renaissance<br />

Florence, Oxford University Press.<br />

Paola Tinagli: Women in Italian Renaissance Art, Manchester University Press.<br />

Giorgio Vasari, trad. George Buli: Lives of the Artists, Penguin Classics.<br />

Martin Wackernagel: The Work of the Florentine Renaissance Artist, Princeton University<br />

Press.<br />

Evelyn Welch: Art and Society in Italy 1350-1500, Oxford University Press.<br />

Christine Klapisch Zuber: Women, Family and Ritual in Renaissance Florence, University<br />

of Chicago Press.<br />

Pela permissão <strong>de</strong> citar dos Cantos I e XIII na tradução <strong>de</strong> Mark Musa <strong>de</strong> A Divina Comédia,<br />

<strong>de</strong> Dante, I: O Inferno, publicado pela Penguin Books, gostaria <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer à The University<br />

of Indiana Press. Pela permissão <strong>de</strong> citar do Canto XXXIII na tradução <strong>de</strong> Dorothy L. Sayers<br />

e Barbara Reynolds <strong>de</strong> A Divina Comédia, III: Paraíso, também publicado pela Penguin<br />

Books, gostaria <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer a David Higham Associates.<br />

Digitalização, <strong>rev</strong>isão e formatação:<br />

Dayse Duarte<br />

Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, <strong>de</strong> maneira<br />

totalmente gratuita, o benefício <strong>de</strong> sua leitura àqueles que não po<strong>de</strong>m comprá-la ou àqueles<br />

que necessitam <strong>de</strong> meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda <strong>de</strong>ste e-book ou até<br />

mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente con<strong>de</strong>nável em qualquer<br />

circunstância. A generosida<strong>de</strong> e a humilda<strong>de</strong> é a marca da distribuição, portanto distribua este<br />

livro livremente.<br />

Após sua leitura consi<strong>de</strong>re seriamente a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adquirir o original, pois assim<br />

você estará incentivando o autor e a publicação <strong>de</strong> novas obras.<br />

http://groups.google.com.br/group/digitalsource<br />

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros

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