Infernus #16 - Associação Portuguesa de Satanismo
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Sexta-feira. Felicida<strong>de</strong>.<br />
Mais uma noite louca e glamorosa,<br />
em casa do homem<br />
cuja “qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida”<br />
se po<strong>de</strong>ria sumariamente<br />
<strong>de</strong>finir no elevado rácio<br />
<strong>de</strong> amigos sorri<strong>de</strong>ntes, por<br />
metro quadrado, e aparente<br />
ausência <strong>de</strong> problemas reais,<br />
ou pelo menos na visível relutância<br />
<strong>de</strong> os contemplar à<br />
luz do sol.<br />
Nas janelas da caótica cobertura,<br />
espessas cortinas preveniam a luz indiscreta<br />
da manhã, assegurando ao<br />
anfitrião, aos convivas e ao imenso estendal<br />
<strong>de</strong> copos, garrafas, pratos sujos,<br />
espelhos empoeirados e caixas vazias<br />
<strong>de</strong> cattering, algumas horas extra <strong>de</strong><br />
noite, e a conveniente protecção dos<br />
incómodos feixes <strong>de</strong> luz poeirenta a<br />
anunciar-lhe o fim.<br />
Sempre que me vestia para essas<br />
noites, pensava em tudo isso: não apenas<br />
na promessa <strong>de</strong> longas horas frenéticas,<br />
não apenas na miría<strong>de</strong> <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s<br />
que encerravam, mas também<br />
na visão romanesca <strong>de</strong>sses fins <strong>de</strong> noite,<br />
o momento em que os gritos e as gargalhadas<br />
no elevador, se diluíam aos<br />
poucos, as horas intermináveis em que<br />
o sossego conquistava a casa, e se anunciava<br />
certo, sagrado e incorruptível<br />
numa lamela <strong>de</strong> Xanax. Aqueles breves<br />
momentos <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> que tão secretamente<br />
<strong>de</strong>sejava, até que o sedativo o<br />
levasse para os braços <strong>de</strong> um Morfeu<br />
surdo e pesado. O momento em que lhe<br />
acariciava a testa em segredo e me <strong>de</strong>spia<br />
da amante crua, do sarcasmo que<br />
pontuava as nossas exibições públicas<br />
<strong>de</strong> humor, abrindo por instantes as portas<br />
ao amor, seu inimigo mortal. Depois<br />
pegava no casaco e saía, fechando silenciosamente<br />
a porta, tentando perpetuar<br />
na memória o cheiro inconfundível da<br />
escada, os ruídos rítmicos do elevador,<br />
ao <strong>de</strong>scer cada andar, por saber que<br />
muito em breve, teria <strong>de</strong> fugir a tudo<br />
aquilo: A ele, ao <strong>de</strong>samor, às festas e à<br />
sua insuspeita carcereira, a Madame cocaína.<br />
A ela parecia <strong>de</strong>ver a sua preciosa<br />
“emancipação” à realida<strong>de</strong>, a sua <strong>de</strong>voção<br />
a um cinismo oco e seguro, própria<br />
<strong>de</strong> quem mais não espera da vida, que<br />
a sua inerente fealda<strong>de</strong>, boiando nela<br />
como rei e escravo.<br />
Sim, a minha estrela era um escravo<br />
e eu bebia-o enquanto podia, sabendoo<br />
perdido. A imagem perfeita <strong>de</strong> um<br />
esplendor inteligente e estúpido, estranhamente<br />
cativante do qual me via forçada<br />
a <strong>de</strong>sistir, quanto mais não fosse<br />
por instinto <strong>de</strong> sobrevivência.<br />
Numa <strong>de</strong>ssas manhãs, saí para<br />
uma segunda-feira, igual a tantas outras,<br />
parando numa das pastelarias das<br />
gran<strong>de</strong>s avenidas, para um prometedor<br />
pequeno-almoço anónimo, antes <strong>de</strong><br />
me disparar auto-estrada fora, até ao<br />
meu canto. De olhos confortavelmente<br />
escondidos atrás <strong>de</strong> uns enormes óculos<br />
<strong>de</strong> sol, observei os transeuntes, <strong>de</strong><br />
duche tomado e rostos arrancados ao<br />
sono.<br />
Salvos pela realida<strong>de</strong>, pensei. Não<br />
sabem da missa a meta<strong>de</strong>. Os vampiros<br />
da “branca” dormem neste instante, em<br />
camas <strong>de</strong> lençóis sujos.<br />
A meu lado dois homens aprumados,<br />
<strong>de</strong> gravata e fato escuro, discutiam<br />
empolgados diante <strong>de</strong> dois cafés. Eram<br />
obviamente <strong>de</strong> cores políticas diferentes<br />
e retórica política <strong>de</strong> cada um, pautada<br />
por lugares-comuns facilmente i<strong>de</strong>ntificáveis<br />
num qualquer matutino, parecia<br />
obe<strong>de</strong>cer não à razão, mas ao hábito,<br />
Outubro<br />
“O sol <strong>de</strong> inverno<br />
brilhava, emprestando<br />
à cida<strong>de</strong> uma<br />
luminosida<strong>de</strong> azulada<br />
ligeiramente<br />
nevoenta, como se a<br />
estivesse a ver atrás<br />
<strong>de</strong> uma janela fosca e<br />
a luci<strong>de</strong>z se bastasse<br />
ao interior do habitáculo.<br />
A caminho<br />
da auto-estrada, fui<br />
surpreendida por uma<br />
manifestação, que<br />
acabou por parar o<br />
trânsito.”<br />
37 ~ <strong>Infernus</strong> XVI