resistindo ao presente - Revista Novos Estudos
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RESISTINDO AO PRESENTE*<br />
A ARTE DE MIRA SCHENDEL<br />
Sônia Salzstein<br />
RESUMO<br />
Concentrado em poucos procedimentos formais, que se apresentam, quase sempre, à<br />
maneira de enigmáticos jogos de linguagem, o trabalho de Mira Schendel (Zurique, 1919 —<br />
São Paulo, 1988) frequentemente deu margem a que se o considerasse pelo viés de um<br />
essencialismo místico ou de uma afinidade com as linhagens conceituais. O texto procura<br />
demonstrar, entretanto, que tal essencialismo — modo sistemático, na verdade, pelo qual a<br />
artista buscou interrogar os limites de uma esfera pessoal no mundo contemporâneo — é<br />
ponto de chegada e não pressuposto do trabalho. Neste sentido, os percalços do trabalho em<br />
direção à constituição desta esfera pessoal envolverão incessantemente a possibilidade de vê-<br />
la generalizada e encarnada numa forma, digamos assim, materialista — aí residiria, conforme<br />
o texto busca assinalar, a originalidade da obra de Mira Schendel.<br />
Palavras-chave: arte contemporânea; essencialismo; Mira Schendel.<br />
SUMMARY<br />
Concentrated in a limited amount of formal procedures, which almost always appear as<br />
enigmatic language games, the art work of Mira Schendel (Zurich, 1919 — São Paulo, 1988)<br />
often lent itself to being considered as a sort of mystical essentialism or as something in tune<br />
with conceptual lineages. This article, however, seeks to demonstrate that such essentialism<br />
— in effect, a systematic way in which the artist questioned the limits of a personal sphere<br />
within the contemporary world — is the culmination and not the underlying assumption of<br />
her work. Thus the trajectory of her work in constituting this personal sphere incessantly<br />
involved the possibility of generalizing it and incarnating it as, shall we say, into a materialist<br />
form. As this text aims to show, this is where the originality of the work of Mira Schendel lies.<br />
Keywords: contemporary art; essentialism; Mira Schendel.<br />
1<br />
Parece-me significativo que a trajetória de Mira Schendel, iniciada em<br />
meados dos anos 50, só tenha alcançado certa visibilidade pública no<br />
princípio da década de 80, poucos anos antes, portanto, da morte da artista,<br />
em 1988. Em alguma medida, as razões de tal esquivamento podem ser<br />
encontradas no próprio trabalho, que desde sempre demonstrou exigir um<br />
desenvolvimento em ritmo lento, concentrado em número restrito de<br />
questões matriciais, e sobretudo relativamente isolado das ruidosas revira-<br />
nnnnn<br />
Droguinhas ("little scraps, nothings"), c. 1966. 40x20x20 cm.<br />
Coleção Ada Schendel. Foto Romulo Fialdini<br />
(*) O título deste texto foi ins-<br />
pirado no artigo "Palavras a<br />
preço de mercado", de autoria<br />
de Bento Prado Junior e Eric<br />
Alliez, publicado na Folha de<br />
S. Paulo de 21 de maio de<br />
1995, à página 5-3. Agradeço a<br />
Ada Schendel, por ter coloca-<br />
do à minha disposição seu<br />
acervo de trabalhos de Mira<br />
Schendel, e também a Paulo<br />
Malta Campos, cuja pesquisa<br />
sobre a vida e a obra da artista<br />
foram úteis na elaboração des-<br />
te texto. Este texto foi original-<br />
mente elaborado para o catá-<br />
logo da exposição coletiva In-<br />
side The Visible, a pedido de
RESISTINDO AO PRESENTE<br />
voltas da agenda cultural de seu tempo. Frente <strong>ao</strong> caráter tão decisivo desta<br />
disposição para a obliquidade, digamos assim, importaria pouco lembrar<br />
aqui que o meio artístico brasileiro, ainda hoje às voltas com a incipiência<br />
de uma história da arte brasileira, tenha absorvido apenas superficialmente<br />
a contribuição de Mira, em suas quase quatro décadas de intensa produção.<br />
De fato, quando alguma visibilidade adveio, Mira já tinha atrás de si<br />
uma obra constituída, e das mais originais, que combinava, desde os<br />
primeiros tempos, a exigência de depuradas manobras conceituais a uma<br />
adesão desconcertante às coisas cotidianas, <strong>ao</strong> que a vida cotidiana pudesse,<br />
enfim, fornecer de entrópico, arbitrário e brutal. Talvez se possa desde logo<br />
afirmar que a obra dependeu desta obliquidade para se realizar, pois a<br />
interrogação principal que viria a fazer se originaria num sujeito necessa-<br />
riamente solipsista, duvidando incessantemente da natureza ideológica de<br />
todo incitamento à comunicação. Tal reticência metódica frente à lingua-<br />
gem, ou melhor, frente <strong>ao</strong> que o trabalho veria de permissivo nesta, em seu<br />
incessante desgaste na vida prática, é uma de suas características essenciais.<br />
As Droguinhas, objetos produzidos por volta de 1966, a partir do<br />
trançado entre cego e metódico de tiras de papel japonês, resultando numa<br />
progressão indefinida e disforme de nós, exemplificam bem a convivência<br />
entre aqueles princípios tão opostos, que de resto marcarão todo o trabalho<br />
de Mira. São objetos cuja existência fala, essencialmente, de uma humildade<br />
ética da ação (no instante mesmo em que o sujeito solipsista é capturado<br />
para a vida prática), porque neles o obstinado esforço de formalização,<br />
enredando-se num raciocínio topológico complexo e vertiginoso, reage ali,<br />
<strong>ao</strong> mesmo tempo, à mais pedestre necessidade de suplantar uma espécie de<br />
abstrusidade originária da matéria.<br />
A combinação daqueles princípios opostos aparecerá em suas pinturas<br />
e desenhos na forma de um repertório extremamente reduzido de sinais —<br />
coeficiente expressivo mínimo que prestaria contas, passo a passo, do<br />
processo de socialização e generalização de uma instância puramente<br />
pessoal e a princípio auto-reflexiva. Mas o que distingue, no universo da arte<br />
contemporânea, a maneira de Mira enfrentar as exigências desta esfera<br />
pessoal pacientemente extraída é que, <strong>ao</strong> mesmo tempo em que se<br />
relaciona com as coisas a partir de uma escala intimista e de modo coloquial,<br />
revela-se profundamente indiferente a tudo o que evoque as idiossincrasias<br />
dos pequenos dramas pessoais e, neste sentido, tende paradoxalmente à<br />
despersonalização e <strong>ao</strong> anonimato (e, como consequência, <strong>ao</strong> desdobra-<br />
mento e <strong>ao</strong> teste de realidade de seu caráter auto-reflexivo).<br />
Vejamos agora como o trabalho lida com este movimento de interio-<br />
rização, que lhe é decisivo, sem entretanto amesquinhar-se num particula-<br />
rismo psicológico qualquer. É preciso recapitular, para tanto, as passagens<br />
mais significativas do percurso da artista. Nascida em Zurique em 1919, Mira<br />
emigrou para o Brasil em 1949, após longo período vivendo em Milão.<br />
Algumas de suas primeiras pinturas, de meados a fins da década de 50,<br />
preparam a gênese de um vocabulário elementar de formas — inicialmente<br />
eram pesos, alicates, tesouras, garrafas, recipientes — que <strong>ao</strong>s poucos, e <strong>ao</strong><br />
nnnn<br />
198 NOVOS ESTUDOS N.° 43<br />
sua curadora, Catherine de<br />
Zegher. A mostra será apre-<br />
sentada no Instituto of Con-<br />
temporary Art de Boston, ten-<br />
do inauguração prevista para<br />
fevereiro de 1996.
SÔNIA SALZSTEIN<br />
longo da carreira, se condensaria numa espacialidade branca, quase vazia,<br />
pontuada por umas poucas intervenções.<br />
As pinturas daquela época são, na verdade, naturezas-mortas elabora-<br />
das mais ou menos convencionalmente na linhagem de um Morandi e, de<br />
resto, perfeitamente integradas a certa tendência de época, que encontrare-<br />
mos do mesmo modo em alguns de seus contemporâneos brasileiros, como<br />
Milton da Costa ou Maria Leontina.<br />
Em todo caso, evidenciam já o interesse do trabalho por acolher os<br />
objetos em sua literalidade, estabelecendo, desta maneira, relação tensa<br />
entre a percepção afetiva e complacente das coisas e a resistência do<br />
suporte, superfície heterogênea que força para se manter una e não<br />
deslindar seus objetos à visão. Cabe lembrar, todavia, que o que está em<br />
questão aqui é algo além da dialética modernista entre um sistema de<br />
representação e a evidência incontornável do suporte. De outra maneira, e<br />
por via muito própria, desde o princípio Mira problematizava, com sua<br />
figuração sempre a ponto de se esgarçar numa penumbra vazia, a noção de<br />
naturalidade, o processo pelo qual as coisas se naturalizam <strong>ao</strong>s nossos<br />
olhos.<br />
Os anos 60 assinalam a produção mais numerosa de Mira. Passado o<br />
momento inicial, em que o trabalho pôde elaborar seus traços fundamentais,<br />
nnn<br />
NOVEMBRO DE 1995 199<br />
Sem título, 1964.<br />
Têmpera-ovo sobre<br />
eucatex.<br />
Coleção Ada Schendel.
RESISTINDO AO PRESENTE<br />
não houve rupturas abruptas, grandes contrastes ou um aprendizado<br />
estilístico cronologicamente acumulativo na trajetória da artista. Talvez a<br />
melhor imagem que se possa ter desta trajetória é a de um redemoinho,<br />
onde as mudanças se produziram, na verdade, da perplexidade sempre<br />
renovada com que umas poucas questões germinais foram indefinidamente<br />
revisitadas, num movimento circular e de expansão incessante. Neste<br />
movimento, a obra apontava para a simplicidade crescente de seus meios —<br />
a linguagem era cada vez mais econômica e enigmática, os materiais ralos,<br />
casuais, desconhecendo qualquer drama de excesso ou extravagância.<br />
Surgem nessa década um vasto conjunto de monotipias, as menciona-<br />
das Droguinhas, os Objetos Gráficos, e também o projeto do surpreendente<br />
trabalho apresentado na última Bienal Internacional de São Paulo (1994),<br />
que consistiu numa espécie de "ambiente", semelhante a uma paisagem<br />
difusa e impenetrável de feixes de linhas brancas pendendo do teto (Ondas<br />
Paradas de Probabilidade). Paralelamente, a artista continuava a pintar,<br />
concentrada numa figuração que testava <strong>ao</strong> máximo os limites entre a<br />
percepção abstrata de um espaço virtual e os acontecimentos físicos do<br />
suporte. Predomina em todos estes trabalhos, que são razoavelmente<br />
diferentes entre si, a alternância tensa entre transparência e opacidade,<br />
entre o que permite e impede uma posição reflexiva do observador.<br />
Para que se entenda melhor este processo de oposições (sem<br />
resolutividade possível), cabe dar uma descrição mais precisa dos trabalhos<br />
em questão. As monotipias são realizadas em finíssimo papel japonês, e<br />
mostram formas lineares bastante simples, basicamente segmentos manus-<br />
critos, enunciados de paisagens, ou apenas balizas espaciais que nunca se<br />
completam. O espaço virtual é aí frequentemente negado pelo espaço literal<br />
das inserçães da escrita, mas ocorre que, às vezes, estas acabam se<br />
incorporando às paisagens, completando tracejados ou protagonizando<br />
pequenas personagens antropomórficas que se perdem em suas linhas de<br />
horizonte. Com este procedimento, a artista restaurava a homogeneidade do<br />
plano, ainda que combinando ordens diversas de representação.<br />
Embora seja perfeitamente possível, nestas monotipias, discernir o lado<br />
que recebeu a tinta, elas sugerem, graças a sua transparência, o intercâmbio<br />
de pontos de vista entre a frente e o verso do papel e, no que concerne à<br />
fusão entre a escrita e as imagens topográficas representadas, *sugere<br />
igualmente uma transitividade entre aquelas ordens diversas de representa-<br />
ção, entre uma percepção "natural" e uma percepção "intelectual".<br />
A mesma indiferenciação entre o que é material ou apenas virtual,<br />
entre o que é natural e o que é intelectivo, estará <strong>presente</strong> nos Objetos<br />
Gráficos, série de desenhos produzida entre fins de 60 e inícios da década<br />
de 70, trazendo em geral emaranhados de letras, linhas e sinais gráficos<br />
insistentemente repetidos. Os Objetos Gráficos foram produzidos em papel<br />
translúcido, montados entre placas de acrílico transparente que devem ser<br />
vistas suspensas no espaço, permitindo assim a visão simultânea das faces<br />
anterior e posterior dos desenhos.<br />
Dessa maneira, tais desenhos se apresentam como uma escrita<br />
nnnnnnnnnnn<br />
200 NOVOS ESTUDOS N.° 43
SÔNIA SALZSTEIN<br />
circular, transformada num magma de todas as representações, reclamando<br />
apreensão integral, "escultórica" e, tanto quanto os outros trabalhos,<br />
sugerindo indecidibilidade entre uma percepção puramente sensível, de um<br />
lado, ou conceitual, de outro. De resto, a ambiguidade do teor expressivo<br />
com que emergem letras industriais e manuscritas, e linhas que são<br />
repetidas de maneira mais ou menos automática, parecendo ora casuais, ora<br />
esquemáticas, revela que aí está em marcha um processo severo de<br />
inquirição da idéia de naturalidade, como já se disse do conjunto do<br />
trabalho.<br />
NOVEMBRO DE 1995 201<br />
Sem título (da série<br />
Escritas), 1964.<br />
47x23 cm.<br />
Monotipia sobre papel<br />
arroz.<br />
Coleção Ada Schendel.
RESISTINDO AO PRESENTE<br />
Dentre os trabalhos de Mira Schendel que tomei como relevantes na<br />
explanação de um certo percurso de constituição da esfera pessoal,<br />
entendida no caso como o aprendizado paciente e sem fim dos limites desta,<br />
caberia, finalmente, abordar os "Sarrafos", de 1987, última série produzida<br />
pela artista, um ano antes de sua morte. Os "Sarrafos" são a expressão mais<br />
violenta e contundente de todas as formulações anteriores, porque fazem<br />
com que o recesso virtual constituído no cruzamento de duas linhas —<br />
reduto, por excelência de todas as idealizações e projeções do sujeito —<br />
adquira materialidade literal.<br />
O aspecto mais importante a se destacar nesta série de têmperas<br />
brancas com sarrafos negros de madeira (que lembram uma assemblage<br />
modernista, adaptada para a circunspecção dos novos tempos, o que<br />
explicaria sua aparência árida e lacônica) é a obviedade exasperante com<br />
que desempenham sempre a mesma operação construtiva: uma linha<br />
irrompendo de um plano.<br />
Mas o que chama a atenção nos "Sarrafos" é que este pensamento visual<br />
que eles insistentemente afirmam, como se fosse o desenvolvimento das supostas<br />
etapas de algum raciocínio analítico da forma, não expõe à luz do dia nenhuma<br />
interioridade finalmente submetida à clarividência do sujeito. Mais que isto, vale<br />
dizer que eles resistem a todo processo identificatório, de sorte que ali, a nossa<br />
frente, eles nada mais estariam a fazer do que arbitrando sua interface pública e<br />
social. Isto significa: afirmando a possibilidade de sua liberdade ideológica e res-<br />
pondendo apenas a seu elã produtivo.<br />
202 NOVOS ESTUDOS N.° 43<br />
Sem título (da série<br />
Sarrafos), 1988.<br />
Coleção Ada Schendel.
2<br />
SÔNIA SALZSTEIN<br />
Considerando o que foi dito até aqui, pode-se concluir que o trabalho<br />
da artista se produziu a partir do esforço de balizar continuamente a esfera<br />
pessoal no contexto que lhe serve de fundo, onde esta se materializa<br />
histórica e socialmente. O que significaria isto senão que tal trabalho está a<br />
nos confrontar com as formas ambíguas que as noções de público e privado<br />
tomam na vida contemporânea? Não estará ele protagonizando para nós,<br />
enfim, os limites sempre mais lábeis da privacidade contemporânea?<br />
Se é fato que ele se colocou como questão fundamental inquirir tais<br />
limites, fica claro que sua experiência de privacidade não tem nada da<br />
intensa compulsão confessional à qual quase sempre se reduziu a subjetivi-<br />
dade contemporânea, em suas formas de aparecimento eminentemente<br />
comportamentais, e, por outro lado, que sua experiência do que seja uma<br />
dimensão pública contrasta de modo absoluto com o sentido publicitário<br />
que frequentemente detectamos em demandas particulares que pleiteiam<br />
alcançar a escala pública.<br />
Antes de tocarmos nestas questões convém lembrar que, mesmo<br />
admitindo-se a presença de algo necessariamente contemplativo e intimista<br />
no trabalho de Mira, este algo não deve evocar, nem remotamente, alguma<br />
nostalgia idealista (um classicismo modernista, fora do tempo e do espaço,<br />
por exemplo), pois a disponibilidade para contemplar provém do interesse<br />
genético que este trabalho revela pelas coisas, exatamente pela materia-<br />
lidade inextricável com que tais coisas se impõem para compor a forma de<br />
nossa experiência cotidiana do real.<br />
Alguns procedimentos correntes nos desenhos da década de 60, como<br />
enumerar repetidamente grupos de frutas abaixo ou acima de uma linha de<br />
horizonte, ou des-hierarquizar as coisas a ponto de alfabetos e segmentos<br />
manuscritos caminharem desenvoltamente pela paisagem — em suma, uma<br />
figuração assentada no acaso e na repetição —, são um pouco a evidência<br />
de que aí o sujeito bateu em retirada do centro da cena para inaugurar uma<br />
relação não-analítica e não-explicativa com a linguagem.<br />
Além disto, uma das operações principais nestes desenhos consiste em<br />
simplesmente afirmar seu modo elementar e despretensioso de ver, como se<br />
tivessem colocado em suspenso todo pensamento analítico frente <strong>ao</strong> que na<br />
linguagem haveria de hermético e intransitivo. Estas observações me<br />
parecem importantes para afastar da obra de Mira qualquer pretensão de<br />
conceitualismo, ou ainda o epíteto de "intelectual" que frequentemente a<br />
acompanha. Sua obra estará, portanto, desde o início profundamente<br />
ancorada no real, ainda que se possa dizer que se introduza aí como uma<br />
espécie de produtividade extra, um tempo a mais legado à contemplação<br />
e <strong>ao</strong> lento amadurecimento da visão.<br />
Retornando agora às questões citadas há pouco, da constituição do<br />
trabalho como o topos dos balizamentos recíprocos entre uma esfera pessoal<br />
e sua dimensão pública e anônima, me parece importante ressaltar como<br />
nnnnnn<br />
NOVEMBRO DE 1995 203
RESISTINDO AO PRESENTE<br />
Mira pôde descartar com indiferença os aspectos publicitários e a compul-<br />
são declaratória do eu nas formas que conhecemos da privacidade contem-<br />
porânea. Isto não significa, de modo algum, que valorizasse uma posição<br />
olímpica e resguardada dos dilemas culturais da atualidade.<br />
Afinal, a conhecida obliquidade do trabalho, sua desconfiança de uma<br />
expressividade à flor da pele, a valorização de um sujeito que, <strong>ao</strong> mesmo<br />
tempo em que deve se expor (pois é disto que se trata), sabe se esquivar<br />
do centro — tudo isto sugere que seu trabalho reconhece o mundo à volta<br />
como instância pouco receptiva às sutilezas da subjetividade. Por isto, à<br />
pedagogia dos clichês artísticos de tom psicológico, o trabalho sempre<br />
respondeu com a objetividade irrecorrível de suas formulações conceituais,<br />
e com ceticismo às extroversões de um mundo psicologizado <strong>ao</strong> extremo,<br />
mas paradoxalmente hostil a toda operação de inscrição da subjetividade<br />
em alguma dimensão pública.<br />
Em face deste apreço pelo pouco, pode-se dizer que na base do<br />
trabalho de Mira há uma idéia de produtividade que se desinteressa<br />
metodicamente do produto enquanto resultado, enquanto algo que pudesse<br />
se desprender de uma totalidade existencial, digamos assim. Tudo nele<br />
evoca um tempo ralenti que, como se disse, se desfia lentamente e<br />
indiferente à idéia do enumerável e do quantificável: a arte não como<br />
especialidade, como repertório linguístico que pudesse anteceder e servir<br />
de receptáculo às coisas mas, diversamente, como o reduto de uma<br />
disciplina e de um amadurecimento pessoal.<br />
204 NOVOS ESTUDOS N.° 43<br />
Sem título (da série Mais<br />
ou Menos Frutas), 1982.<br />
54x75 cm.<br />
Aquarela sobre papel.<br />
Coleção Ada Schendel.<br />
Recebido para publicação em<br />
agosto de 1995.<br />
Sônia Salzstein é crítica de arte<br />
e doutoranda em filosofia pela<br />
FFLCH-USP. Já publicou nesta<br />
revista "Autonomia e subjetivi-<br />
dade na obra de Hélio Oiticica"<br />
(Nº 4l).<br />
<strong>Novos</strong> <strong>Estudos</strong><br />
CEBRAP<br />
N.° 43, novembro 1995<br />
pp. 196-204