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a festa do rosário: a alegoria barroca ea reconstrução das diferenças

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A FESTA DO ROSÁRIO:<br />

A ALEGORIA BARROCA E A RECONSTRUÇÃO DAS<br />

DIFERENÇAS *<br />

Célia Maia Borges<br />

Departamento de História e <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação<br />

em Ciência da Religião.<br />

Universidade Federal de Juiz de Fora. Brasil **<br />

Introdução<br />

Esta comunicação pretende mostrar o papel desempenha<strong>do</strong> pela <strong>festa</strong> <strong>do</strong><br />

Rosário na conversão <strong>do</strong>s negros escravos ao catolicismo e na socialização <strong>do</strong> africano<br />

e seus descendentes durante os séculos XVIII e XIX em Minas Gerais (Brasil).<br />

Historicamente esta <strong>festa</strong> atravessa to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> colonial até ao Brasil<br />

Império e a sua promoção estava a cargo <strong>do</strong>s escravos, negros alforria<strong>do</strong>s e livres<br />

congrega<strong>do</strong>s nas Irmandades 1 <strong>do</strong> Rosário. Ela significava a homenagem à santa<br />

padroeira e constituía o momento máximo da vida da organização fraternal. Além <strong>das</strong><br />

missas e procissões, e da cerimônia de posse <strong>do</strong> rei e da rainha da irmandade, a <strong>festa</strong><br />

também era preenchida por representações dramáticas conheci<strong>das</strong> como Conga<strong>das</strong>,<br />

por vários banquetes e quitutes nas casas <strong>do</strong>s festeiros.<br />

Há no entanto expressivas <strong>diferenças</strong> na forma como essas <strong>festa</strong>s se<br />

desenvolveram no Brasil 2. Apenas nos cingiremos aos rituais em Minas, região<br />

minera<strong>do</strong>ra na época colonial.<br />

O primeiro ponto <strong>do</strong> nosso enfoque levará em conta o significa<strong>do</strong> da <strong>festa</strong> na<br />

sociedade minera<strong>do</strong>ra onde as múltiplas expressões da arte <strong>barroca</strong> marcaram uma<br />

presença dura<strong>do</strong>ura. A <strong>festa</strong> <strong>do</strong> Rosário alcançava o seu pleno senti<strong>do</strong> no diálogo com<br />

outros acontecimentos rituais: fosse nas dramatizações feitas pelas associações<br />

religiosas, fosse nos cultos, na preparação para a morte, nos poderes simbólicos da<br />

estatuária <strong>barroca</strong> que seduzia os confrades, como no elemento mágico que polarizava<br />

∗ A presente comunicação é, em parte, resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho de pesquisa que r<strong>ea</strong>lizei para<br />

a minha tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> defendida em 1998 na Universidade Federal Fluminense, Brasil, e que se<br />

intitula – Devoção Branca de Homens Negros: as Irmandades <strong>do</strong> Rosário em Minas Gerais no Século XVIII .<br />

Trata-se de um trabalho que enfoca o papel social, cultural e religioso assumi<strong>do</strong> pelas Irmandades <strong>do</strong><br />

Rosário no contexto da região minera<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Brasil colonial.<br />

** Prof.ª <strong>do</strong> Departamento de História e <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Ciência da<br />

Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora/Brasil. Doutora em História Social pela Universidade<br />

Federal Fluminense e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.<br />

1 A fim de facilitar a exposição, utilizo indistintamente as palavras irmandades e confrarias,<br />

apesar <strong>do</strong>s aspectos legais que as diferenciam.<br />

2 Carlos Rodrigues Brandão mostra como no Brasil se geraram diferentes formas de<br />

Conga<strong>das</strong>. Alguns <strong>do</strong>s rituais estruturaram-se em torno da apresentação de embaixa<strong>das</strong> e de danças<br />

dramáticas representan<strong>do</strong> grupos rivais em combate. Esses rituais em Minas ganharam força<br />

permanecen<strong>do</strong> até hoje em inúmeros lugarejos. Uma segunda modalidade diz respeito aos desfiles pelos<br />

arraiais, apenas com cortejo e sem danças. Uma outra variação era a coroação <strong>do</strong> rei com grupos de<br />

dançantes, a que se acrescenta uma outra versão, a inclusão de reis nas embaixa<strong>das</strong> dramáticas. Esses<br />

modelos dão idéia <strong>das</strong> variações de um ritual com uma mesma matriz (cf. BRANDÃO, Carlos Rodrigues.<br />

Festim <strong>do</strong>s Bruxos, Campinas, São Paulo, Editora da Unicamp, Ícone, 1987, pp. 198-199).<br />

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o binômio promessa/milagre. Tu<strong>do</strong> isso, enfim, possibilitava a reordenação cultural<br />

<strong>do</strong>s diversos grupos étnicos que compunham a sociedade minera<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> século XVIII.<br />

O colori<strong>do</strong> e a variedade <strong>das</strong> práticas religiosas traduzia-se em grandes<br />

espetáculos perm<strong>ea</strong><strong>do</strong>s de fé, em procissões rech<strong>ea</strong><strong>das</strong> de <strong>alegoria</strong>s susceptíveis de<br />

arrastar toda a sociedade local 3. Mediante recurso a dispositivos pirotécnicos,<br />

montavam-se espetáculos cênicos com grandes coreografias, sen<strong>do</strong> difícil separar as<br />

mani<strong>festa</strong>ções sagra<strong>das</strong> da profanas. Danças, mistérios, música, jogos, comida,<br />

carros alegóricos, eis os vários cenários de fun<strong>do</strong> em que se des<strong>do</strong>bravam essas <strong>festa</strong>s<br />

cristãs Os irmãos <strong>do</strong> Rosário, longe de se alh<strong>ea</strong>rem <strong>do</strong>s acontecimentos, participavam<br />

ativamente, quer desfilan<strong>do</strong> com suas opas e tochas nas procissões, quer<br />

ornamentan<strong>do</strong> as ruas e preparan<strong>do</strong> outrossim as luminárias e os carros alegóricos.<br />

De notar que a presença <strong>do</strong>s irmãos se restringia a duas formas distintas de<br />

rituais: os internos à organização e os externos. Neste caso último caso tratava-se de<br />

rituais promovi<strong>do</strong>s por outras associações. Isto significa que os membros <strong>das</strong><br />

confrarias religiosas interagiam com a linguagem simbólica própria da sociedade<br />

local. É, pois, nesse senti<strong>do</strong> que devemos entender a própria essência da <strong>festa</strong><br />

naquelas irmandades em que a homenagem a N.ª S.ª <strong>do</strong> Rosário exprimia a<br />

ritualização de conflitos e a configuração de conteú<strong>do</strong>s veicula<strong>do</strong>s pelo imaginário<br />

católico e estiliza<strong>do</strong>s pela estatuária <strong>barroca</strong>. A <strong>festa</strong> <strong>do</strong> Rosário, efetivamente,<br />

mesclava elementos da tradição católica com elementos da cultura africana. Ao<br />

conteú<strong>do</strong> barroco <strong>das</strong> <strong>festa</strong>s cristãs sobrepunham-se outras expressões artísticas que<br />

lhe emprestavam novos traços simbólicos.<br />

O segun<strong>do</strong> ponto <strong>do</strong> nosso enfoque tem a ver com a dinâmica interna da <strong>festa</strong><br />

<strong>do</strong> Rosário, a sua relação com os demais rituais católicos onde os irmãos, de formas<br />

distintas, também se integravam segun<strong>do</strong> os códigos da estética <strong>barroca</strong>. Iremos<br />

observar como o acontecimento se revestia de capital importância para a congregação,<br />

atrain<strong>do</strong> novos integrantes, principalmente negros que se associavam à irmandade.<br />

Era um momento alto de confraternização entre os irmãos, não só <strong>do</strong> Rosário senão<br />

também de outras irmandades de negros, escravos, forros e livres que se sentiam<br />

atraí<strong>do</strong>s para a religião católica.<br />

Contu<strong>do</strong>, para entender a <strong>festa</strong> em si convém ter presente algumas<br />

particularidades da sociedade minera<strong>do</strong>ra.<br />

O controle sobre as Minas e a busca da autonomia religiosa<br />

Minas Gerais caracterizou-se por ser bem distinta de outras regiões <strong>do</strong> Brasil.<br />

A fim de fiscalizar a saída <strong>do</strong> ouro e controlar as populações locais, a Coroa<br />

portuguesa proibiu a entrada de ordens religiosas na região, expulsan<strong>do</strong> inclusive as<br />

que lá se tinham estabeleci<strong>do</strong> nas primeiras déca<strong>das</strong> de Setecentos. Por força desta<br />

medida, a própria sociedade local investiu na organização <strong>do</strong>s cultos e festividades<br />

católicas, fato que deu às irmandades, confrarias e ordens terceiras um papel<br />

fundamental nesse processo, cada qual com o seu capelão oficiante 4. Elementos <strong>do</strong><br />

clero secular, contrata<strong>do</strong>s pelas irmandades, celebravam os sacramentos em<br />

consonância com as determinações da mesa diretora da confraria. Os leigos detinham<br />

3 Ver ÁVILLA, Affonso. O Lúdico e as Projeções <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> Barroco, São Paulo, Perspectiva,<br />

1980.<br />

4 Sobre as Irmandades em Minas, ver BOSCHI. Caio César. Os Leigos e o Poder:<br />

Irmandades Leigas e Política Coloniza<strong>do</strong>ra em Minas Gerais. São Paulo, Ática, 1986; SALLES, Flitz<br />

Teixeira de. Associações Religiosas no Ciclo <strong>do</strong> Ouro, Belo Horizonte, Universidade de Minas Gerais, 1963.<br />

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fundamental na organização <strong>do</strong>s rituais e na disseminação <strong>do</strong> catolicismo barroco.<br />

Missas acompanha<strong>das</strong> de músicas, novenas e procissões, com várias encenações<br />

bíblicas, representavam um verdadeiro espetáculo para toda a comunidade em meio<br />

aos inúmeros fogos de artifício. A <strong>festa</strong> servia também de palco a vários outros<br />

acontecimentos paralelos: barracas de comida, músicas e danças.<br />

A proibição de entrada <strong>das</strong> ordens religiosas em Minas não significou, todavia,<br />

menos controle religioso por parte <strong>das</strong> autoridades eclesiásticas. A Igreja, na pessoa<br />

de bispos e párocos, tentou a to<strong>do</strong> o custo intervir na organização <strong>do</strong>s cultos<br />

religiosos. A disputa pela gestão <strong>do</strong>s assuntos religiosos acabou por gerar um sem<br />

número de incidentes entre autoridades eclesiásticas e confrades que queriam<br />

chamar a si a administração <strong>do</strong>s bens sagra<strong>do</strong>s. To<strong>das</strong> as confrarias lutaram pelo<br />

direito de oficiar os cultos à sua maneira, principalmente sem a presença <strong>do</strong> vigário, e<br />

pelo direito de isenção no pagamento de taxas paroquiais.<br />

Na seqüência destes conflitos os irmãos <strong>do</strong> Rosário, alia<strong>do</strong>s ao capelão,<br />

lograram um certo espaço de autonomia para a produção festiva, aproveitan<strong>do</strong> a luta<br />

<strong>do</strong>s próprios senhores de escravos, comerciantes e <strong>do</strong>nos de lavras que desejavam<br />

celebrar os seus cultos e festividades religiosas longe <strong>do</strong> olhar <strong>das</strong> autoridades<br />

coloniais.<br />

Deste mo<strong>do</strong>, as associações representativas de diferentes categorias sociais<br />

brigaram pelo direito de liberdade religiosa, muitas vezes associan<strong>do</strong>-se ou resistin<strong>do</strong><br />

às autoridades eclesiásticas no senti<strong>do</strong> de recriarem os seus cultos da maneira que<br />

mais lhes conviesse. Nesse jogo sutil, complexo e dialético enredaram-se as elites<br />

<strong>do</strong>minantes, numa ação que variou entre a concessão e a repressão de acor<strong>do</strong> com os<br />

seus interesses.<br />

Justamente porque a <strong>festa</strong> foi alvo de perseguições ao longo <strong>do</strong> século XVIII por<br />

um setor da Igreja reforma<strong>do</strong>ra, os compromissos <strong>das</strong> Irmandades tiveram que ser<br />

atualiza<strong>do</strong>s e adapta<strong>do</strong>s a uma estratégia política de sobrevivência.<br />

Por conseguinte, a produção artística na colônia, conhecida como <strong>barroca</strong>, não<br />

pode simplesmente ser associada ao projeto católico reforma<strong>do</strong>r, uma vez que entre a<br />

arte produzida pela sociedade e a convencionada pelos representantes da ideologia<br />

tridentina se interpunha uma tensão permanente. Os grupos <strong>do</strong>minantes, herdeiros<br />

<strong>das</strong> tradições lusitanas, plasmavam a sua religiosidade em inúmeras <strong>festa</strong>s religiosas,<br />

em representações dramáticas, as quais formavam um verdadeiro cenário onde<br />

diversos atos decorriam. Os negros <strong>das</strong> irmandades foram influencia<strong>do</strong>s pelo<br />

imaginário religioso católico, sobretu<strong>do</strong> na sua versão popular, isto graças ao contato<br />

com as múltiplas mani<strong>festa</strong>ções artísticas, o que lhes possibilitou dar um novo<br />

senti<strong>do</strong> às suas antigas tradições.<br />

Os reis e as rainhas <strong>das</strong> Irmandades <strong>do</strong> Rosário: a ritualização <strong>do</strong> poder na<br />

<strong>festa</strong><br />

Em homenagem a N.ª S.ª <strong>do</strong> Rosário 63 confrarias foram cria<strong>das</strong> nesta região,<br />

to<strong>das</strong> constituí<strong>das</strong> majoritariamente por homens negros5. As associações religiosas<br />

5 BORGES, Célia Maia. Devoção Branca de Homens Negros: as Irmandades <strong>do</strong> Rosário em<br />

Minas Gerais no séc. XVIII. Niterói (Brasil), Universidade Federal Fluminense, 1998, p. 15.<br />

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eram o único lugar possível, <strong>do</strong> ponto de vista legal, para reuniões e organização de<br />

<strong>festa</strong>s e onde, de fato, muitos homens e mulheres – vin<strong>do</strong>s de lugares distintos de<br />

África, e também escravos nasci<strong>do</strong>s no Brasil – se encontravam.<br />

To<strong>das</strong> as irmandades e confrarias se inspiravam nas <strong>festa</strong>s da tradição católica<br />

européia e comemoravam <strong>festa</strong>s anuais de preito ao seu santo devoto. Cada uma, de<br />

acor<strong>do</strong> com os seus usos, organizava as suas próprias festividades religiosas. Nos<br />

séculos XVIII e XIX havia cerca de 322 associações fraternais em Minas Gerais 6, as<br />

quais congregavam pessoas de determina<strong>do</strong>s segmentos sociais, conforme a profissão,<br />

situação econômica, cor, ou mesmo a condição social (escravo, forro ou livre).<br />

Enquanto os altos dignitários, ricos <strong>do</strong>nos de lavras e grandes comerciantes se<br />

reuniam habitualmente nas Ordens Terceiras <strong>do</strong> Carmo, na de São Francisco e na<br />

Irmandade <strong>do</strong> Santíssimo, os homens par<strong>do</strong>s e os negros livres reuniam-se na<br />

Irmandade <strong>das</strong> Mercês e na de São Gonçalo; os negros escravos e forros nas <strong>do</strong><br />

Rosário, São Benedito e Santa Efigênia. A composição social <strong>das</strong> irmandades refletia<br />

assim a organização da própria sociedade colonial 7.<br />

As irmandades, confrarias e ordens terceiras funda<strong>das</strong> no Brasil, no perío<strong>do</strong><br />

colonial, reproduziram o modelo <strong>das</strong> organizações pias e caritativas existentes na<br />

Europa. Prestar devoção ao santo protetor, dar impulso à solidariedade entre irmãos,<br />

auxiliar nos momentos de infortúnio, garantir a assistência ao confrade na hora da<br />

morte, acompanhar o féretro e assegurar um lugar de sepultamento nas igrejas <strong>das</strong><br />

Irmandades, eis to<strong>do</strong> um conjunto de deveres e objetivos por que se regiam as<br />

associações fraternais. Para acautelar estas obrigações, havia uma mesa diretora<br />

responsável pela organização e recolhimento de um fun<strong>do</strong> capaz de cust<strong>ea</strong>r as<br />

despesas.<br />

Nas irmandades de homens negros, além de juizes e juízas, escrivão, tesoureiro<br />

e procura<strong>do</strong>res (estes com assento também nas mesas diretoras <strong>das</strong> restantes<br />

corporações), havia ainda os reis e as rainhas. Em algumas, o poder <strong>do</strong>s reis e<br />

rainhas estava acima <strong>do</strong> <strong>do</strong>s seus confrades e foram eles exatamente, frente à<br />

comunidade local, que se bateram repeti<strong>das</strong> vezes pelos interesses da organização<br />

fraternal. Depois de entroniza<strong>do</strong>s com as suas coroas e com o cetro no dia da <strong>festa</strong>, os<br />

reis desfilavam com seu séqüito numa demonstração simbólica de poder.<br />

A busca de respeito e reconhecimento da autoridade <strong>do</strong>s reis não era um<br />

problema exclusivamente externo às organizações. Os confrades <strong>das</strong> irmandades<br />

negras provinham, muitas vezes, de diversas partes de África, e por isto, pertencentes<br />

a grupos étnicos distintos. Daí os inúmeros conflitos em virtude de um grupo se<br />

querer sobrepor aos demais. Em muitos lugares <strong>do</strong> litoral <strong>do</strong> Brasil – como no Rio de<br />

Janeiro e em Salva<strong>do</strong>r da Bahia – os grupos tendiam a se agrupar de acor<strong>do</strong> com a<br />

origem geográfica ou a base “étnica” <strong>do</strong>s seus membros. Na Bahia, por exemplo, os<br />

Jêjes reuniam-se em uma irmandade; os Nagô em outra; os “Angola” em uma terceira,<br />

crian<strong>do</strong> zonas fronteiriças defini<strong>do</strong>ras de cada grupo 8. No Rio de Janeiro, os Maki<br />

congregavam-se na Irmandade de N.ª Sr.ª <strong>do</strong>s Remédios 9, os de “Angola” e<br />

6 BOSCHI, op. cit., p. 190.<br />

7 SALLES, op. cit.<br />

8 REIS João José. A Morte é Uma Festa: Ritos Fúnebres e Revolta Popular no Brasil <strong>do</strong><br />

Século XIX. São Paulo, Companhia <strong>das</strong> Letras, 1991, p. 55; VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo <strong>do</strong> Tráfico de<br />

Escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de To<strong>do</strong>s os Santos, XVIII ao XIX (tradução de Tasso Gadzanis)<br />

São Paulo, Corrupio, 1997, pp. 524-525<br />

9 SOARES, Maria de Carvalho. Identidade Étnica, Religiosidade e Escravidão. Os “pretos<br />

minas” no Rio de Janeiro (século XVIII), tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> em História/UFF, Niterói, 1997, p. 96.<br />

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“Benguela” na <strong>do</strong> Rosário, o que originou uma complexidade de relações que exigia de<br />

cada uma funções de liderança 10.<br />

Dizem os pretos da nação Benguela, irmãos de N.ª Sª <strong>do</strong> Rosário, que não<br />

deven<strong>do</strong> haver mais Rei <strong>do</strong> que o da Irmandade da mesma Senhora <strong>do</strong> Rosário<br />

algumas nações <strong>do</strong>s mesmos pretos têm erigi<strong>do</strong> outras Irmandades, nas quais<br />

constituem em cada uma seu Rei e até têm instituí<strong>do</strong> um rei chama<strong>do</strong> <strong>do</strong> Congo, em<br />

cuja multiplicidade de Reis, se fermentam discórdias, queren<strong>do</strong> cada um <strong>do</strong>s referi<strong>do</strong>s<br />

Reis que to<strong>das</strong> as mais nações o acompanhem e porque não deva haver mais rei <strong>do</strong> que<br />

a Irmandade de N.Srª <strong>do</strong> Rosário, a quem to<strong>das</strong> as nações devem obedecer [...] pedem<br />

a V. Exa lhes faça mercê mandar que os suplicantes não sejam obriga<strong>do</strong>s a<br />

acompanhar mais <strong>do</strong> que o Rei da Irmandade <strong>do</strong> Rosário 11.<br />

Em Minas, pelo contrário, não existiu essa exclusão como nos foi da<strong>do</strong><br />

constatar ao longo <strong>das</strong> nossas pesquisas 12. Afinal, em função da história de cada<br />

lugar, os diferentes grupos no processo de conjunção de forças imprimiram aos<br />

rituais formas e conteú<strong>do</strong>s diversos. No litoral os grupos estavam dividi<strong>do</strong>s; cada um<br />

reivindicava o direito a eleger a sua r<strong>ea</strong>leza. Ao invés disso, em Minas, as Irmandades<br />

<strong>do</strong> Rosário tiveram um caráter aglutina<strong>do</strong>r, os grupos que entravam nessas<br />

irmandades comprometiam-se, no essencial, a aceitar a r<strong>ea</strong>leza que o conjunto da<br />

irmandade elegesse. Quan<strong>do</strong> assim não sucedia, estalavam os conflitos, como<br />

dissemos. Logo a eleição tinha um cunho eminentemente negocial que se renovava<br />

nos momentos de choque entre as várias facções. Ser r<strong>ea</strong>leza significava deter as<br />

prerrogativas próprias de uma autoridade e esta aparecia simbolicamente<br />

representada no momento da <strong>festa</strong>.<br />

Essa relação, como é evidente, fixou os marcos de convivência entre as<br />

distintas frações. Competia à r<strong>ea</strong>leza, depois da sua entronização, intervir na<br />

organização da sociedade. A <strong>festa</strong> era portanto um acontecimento especial na vida <strong>do</strong><br />

grupo, no senti<strong>do</strong> da ritualização e dramatização de tais conflitos 13.<br />

Dependen<strong>do</strong> da irmandade e <strong>do</strong> espaço geográfico, a organização fraternal<br />

nunca deixava por mãos alheias a defesa <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong>s irmãos. Essa prática era<br />

extensiva às Irmandades <strong>do</strong> Rosário. Nalgumas destas irmandades o rei e a rainha<br />

eram mais <strong>do</strong> que um poder simbólico, restrito à <strong>festa</strong>. Eram também reis e rainhas<br />

da comunidade negra, pleit<strong>ea</strong>n<strong>do</strong> o direito de organizar autonomamente os rituais,<br />

como o fizeram, de resto, muitas outras irmandades; ou pleit<strong>ea</strong>n<strong>do</strong> a consecução <strong>das</strong><br />

suas <strong>festa</strong>s; ou a defesa da igreja ao verem-se am<strong>ea</strong>ça<strong>do</strong>s de perder os seus templos.<br />

Ser rei da irmandade conferia prestígio, mesmo a um escravo. Ganhava-se<br />

deferência tanto junto <strong>do</strong>s seus pares como frente à comunidade. É certo que a<br />

autoridade <strong>do</strong> rei se circunscrevia aos dias de <strong>festa</strong>, porém isso acontecia porque o<br />

ritual da <strong>festa</strong> é que legitimava tal dignidade. A posse outorgava o título de rei <strong>do</strong><br />

Congo, mas a cabeça coroada tanto podia ser um “Benguela”, um “Angola”, como um<br />

“Mina” ou um crioulo 14. Os rituais contavam com a participação de grupos sociais<br />

10 Por uma questão de comodidade referimo-nos aos “Angola” e aos “Benguela” como<br />

grupos, todavia sabemos que estas denominações serviam para identificar os portos de embarque <strong>do</strong>s<br />

escravos. No entanto, como encontramos esta classificação nos livros <strong>das</strong> Irmandades a<strong>do</strong>tamo-la por<br />

comodidade, tanto mais que novos grupos se constituíram forman<strong>do</strong> novas identidades a partir desta<br />

classificação.<br />

11 «Requerimento da Irmandade <strong>do</strong> Rosário de 1767, envia<strong>do</strong> ao vice-rei, o conde da<br />

Cunha››. Documento transcrito por Francisco Noronha Santos. Igrejas e Irmandades [mimeo]<br />

12 BORGES, Célia, op. cit.<br />

13 Idem, ibidem.<br />

14 Crioulo no Brasil é a denominação atribuída ao escravo nasci<strong>do</strong> na colônia.<br />

1228


marca<strong>do</strong>s por origens e etnias diversas, por isso não é correto dizer que se tratava de<br />

representações decalca<strong>das</strong> de cultos pratica<strong>do</strong>s no Reino <strong>do</strong> Congo. Eram, sim,<br />

representações de grupos que haviam sofri<strong>do</strong> um processo histórico de<br />

transculturação e que em novo ambiente colonial, o <strong>do</strong> Brasil, se reconstruíram<br />

adquirin<strong>do</strong> uma nova plasticidade na sua relação com o mun<strong>do</strong> envolvente. Em<br />

Minas, os irmãos vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Congo nem sempre foram maioria nas irmandades.<br />

A <strong>festa</strong> <strong>do</strong> Rosário: o acontecimento<br />

A <strong>festa</strong> da Rosário conciliava tradições nem sempre homogên<strong>ea</strong>s dentro de um<br />

mesmo acontecimento. Elementos específicos <strong>das</strong> <strong>festa</strong>s <strong>barroca</strong>s eram adapta<strong>do</strong>s a<br />

um novo cenário onde ocorriam simulações de cenas de combates. Vários quadros<br />

dramáticos se desenvolviam em simultâneo, embora em espaços diferentes, numa<br />

mesma vila ou cidade. Assim, por via desses grupos <strong>do</strong> Rosário, situa<strong>do</strong>s na base da<br />

pirâmide social, se criaram novas <strong>festa</strong>s, novas linguagens simbólicas que os<br />

identificavam como protegi<strong>do</strong>s de Nossa Senhora. Eram <strong>festa</strong>s repletas de<br />

coreografias, de indumentárias colori<strong>das</strong> que personificavam os grupos em situação<br />

de combate: negros, índios e marinheiros (brancos). Os negros nos autos dramáticos<br />

figuravam sempre como vence<strong>do</strong>res, ampara<strong>do</strong>s pela poder miraculoso da santa<br />

homenag<strong>ea</strong>da.<br />

As <strong>festa</strong>s <strong>do</strong> Rosário constituíam o ponto alto da mobilização <strong>do</strong>s confrades.<br />

Estes afluíam de toda a parte da Capitania, até de pontos distantes, para participar<br />

<strong>do</strong> grande acontecimento. Uma semana antes compareciam na igreja se tivessem<br />

templo próprio; de contrário compareciam no templo onde a Irmandade estivesse<br />

filiada e aí mesmo elegiam os reis e a Mesa diretora. Após uma semana de votação, os<br />

reis assumiam o posto e eram coroa<strong>do</strong>s no dia da <strong>festa</strong> <strong>do</strong> Rosário.<br />

É com base nas crónicas <strong>do</strong>s viajantes Spix e Von Martius, <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século<br />

XIX, cujos relatos se reportam à <strong>festa</strong> na região <strong>do</strong> Tejuco, que apoiaremos a nossa<br />

descrição etnográfica e procuraremos elucidar o que foi (ou foram) o(s) significa<strong>do</strong>(s)<br />

desse acontecimento para a comunidade fraternal 15.<br />

Abria o préstito um homem transportan<strong>do</strong> um estandarte com o emblema da<br />

irmandade, cuja pintura ostentava a figura de N.ª S.ª <strong>do</strong> Rosário. Completava o<br />

cortejo uma banda de músicos negros vestin<strong>do</strong> uma indumentária de gala: capa<br />

vermelha e roxa. Um homem mascara<strong>do</strong> de preto antecedia a família. Esta aparecia<br />

ornada com suas insígnias. Primeiro o príncipe e a princesa, acompanha<strong>do</strong>s por<br />

pajens que carregavam suas capas. O rei e a rainha com o cetro e a coroa. Os novos<br />

monarcas seguiam atrás enfeita<strong>do</strong>s com jóias. A família r<strong>ea</strong>l impunha-se para a<br />

“comunidade” – intra e extra-irmandade. O cortejo seguia em direção à Igreja onde<br />

tinha lugar a cerimonia de posse.<br />

O ritual de sagração decorria em lugar especialmente prepara<strong>do</strong> para o efeito e<br />

cerca<strong>do</strong> de uma grande pompa, receben<strong>do</strong> o rei e a rainha os seus distintivos: a coroa,<br />

o manto e o cetro. É interessante notar como em algumas irmandades as coroas<br />

tinham valor monetário por serem de ouro ou prata 16, ao contrário de Pernambuco<br />

15 SPIX & MARTIUS. Viagem pelo Brasil, 1817-1820, vol. 2, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, São<br />

Paulo, 1981, p. 47.<br />

16 No inventário de bens da Irmandade <strong>do</strong> Rosário de Itabira <strong>do</strong> Campo consta o seguinte:<br />

«uma coroa de prata que serve ao Rei desta Irmandade, cujo peso é de trezentos e dezoito oitavas»; «uma<br />

coroa pequena de prata que serve à rainha da irmandade, pesan<strong>do</strong> trinta e oito oitavas». Igualmente<br />

consta um cetro de prata que serve ao rei, de peso vinte e oito oitavas». A Irmandade <strong>do</strong> Rosário de<br />

1229


onde Koster observou que a coroa <strong>do</strong> rei era feita de papelão 17. Este evento descrito<br />

por aqueles viajantes, no que toca aos rituais em Minas, pode ser confronta<strong>do</strong> com as<br />

aquarelas de Carlos Julião. Em diversos quadros, o artista evidencia a pompa <strong>do</strong>s reis<br />

e o seu séquito, <strong>do</strong> qual faziam parte músicos <strong>do</strong> sexo masculino, e a rainha com as<br />

suas mucamas e mulheres instrumentistas.<br />

A <strong>festa</strong> tinha, numa palavra, essa função: espelhar a r<strong>ea</strong>leza, os “Reis <strong>do</strong><br />

Congo”, enquanto representantes da organização fraternal. Fosse quem fosse,<br />

legitimava-se como representante <strong>das</strong> irmandades e reconstruía um novo grupo, com<br />

novos códigos e novos arranjos políticos internos. A r<strong>ea</strong>leza simbolicamente<br />

harmonizava as <strong>diferenças</strong>.<br />

Atente-se na aquarela de Carlos Julião cuja imagem é uma corte <strong>barroca</strong>; não<br />

falta nenhum ingrediente sugestivo. As personagens têm pose e gestos de uma<br />

r<strong>ea</strong>leza européia. Apesar disso, não se pode ignorar que, apesar da aparência de uma<br />

corte européia, essa r<strong>ea</strong>leza se perfilava como uma instituição criada à escala de<br />

diversos povos africanos.<br />

A produção <strong>do</strong>s rituais: a integração <strong>das</strong> <strong>diferenças</strong><br />

Por meio da produção cênica os irmãos durante a <strong>festa</strong> podiam transcender a<br />

r<strong>ea</strong>lidade cotidiana e integrar-se no drama subjacente à estrutura <strong>do</strong> rito. Na história<br />

mítica eles eram os vence<strong>do</strong>res, os eleitos de Nossa Senhora. Vivencian<strong>do</strong> o<br />

acontecimento festivo, resgatavam o mito <strong>do</strong> aconchego de uma mãe protetora e parte<br />

<strong>do</strong>s diversos significa<strong>do</strong>s que o cerimonial no seu conjunto veiculava. A coreografia<br />

<strong>do</strong>s grupos, entoan<strong>do</strong> cânticos e ao som de instrumentos musicais, ajudava os<br />

participantes a alcançar intimidade com os conteú<strong>do</strong>s que davam suporte às<br />

festividades.<br />

Outra curiosidade na <strong>festa</strong> <strong>do</strong> Rosário era a ponte que se estabelecia com os<br />

elementos sagra<strong>do</strong>s da religião <strong>do</strong>s grupos <strong>do</strong>minantes. A expressão artística <strong>do</strong>s<br />

t<strong>ea</strong>tros religiosos, ten<strong>do</strong> como atores os próprios irmãos, produziu essa simbiose que<br />

proporcionava aos irmãos novas emoções e, inclusive, os fazia sentir-se num outro<br />

tempo e lugar. A <strong>festa</strong> suspendia provisoriamente a experiência concreta <strong>do</strong>s sujeitos,<br />

no seu dia-a-dia. Era um acontecimento em que o irmão sentia inverter-se<br />

simbolicamente a sua condição de escravo, forro e oprimi<strong>do</strong> e entrar num novo tempo,<br />

o <strong>do</strong> encontro e <strong>do</strong> aconchego; momento em que o grupo de irmãos se tornava forte<br />

pela convivência ritual. Beber e comer juntos tinha uma força simbólica<br />

extraordinária, porque recriava a troca <strong>do</strong> afeto, da amizade e reforçava pactos de<br />

solidariedade. Ao darem forma orgânica a essas liturgias, os irmãos aos poucos<br />

passaram a reconhecer como sagra<strong>do</strong>s os diversos símbolos <strong>do</strong>s cultos católicos: as<br />

imagens, a cruz, o cálice e a hóstia.<br />

Fruto desta vivência ritual, os irmãos experimentavam sensorialmente a<br />

entrada na esfera <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>, a utopia de uma vida nova, sen<strong>do</strong> a promessa o recurso<br />

infalível. Ao santo agradava-se com oferen<strong>das</strong> ou candidatan<strong>do</strong>-se a juiz ou juíza de<br />

devoção, ou dançan<strong>do</strong> na <strong>festa</strong>. Ao apropriarem-se de uma prática radicada na crença<br />

Tiradentes registrou em seu inventário (...) «uma coroa de ouro que serve a rainha, e (...) uma vara de<br />

prata que serve no juiza<strong>do</strong>» (AEAM. Livro 32, «Inventário de alfaias da Irmandade de N.ª Sra. <strong>do</strong> Rosário<br />

de Itabira <strong>do</strong> Campo, 1809››; AESAT. «Livro de Inventários <strong>do</strong>s Bens da Irmandade N.ª Sra. <strong>do</strong> Rosário <strong>do</strong>s<br />

Homens Pretos da Vila de S. José, 1808»).<br />

17 RUGENDAS, Maurício. Viagem Pitoresca Através <strong>do</strong> Brasil, São Paulo, Ed. Martins, USP,<br />

1972, pp. 280-281.<br />

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“popular”, os irmãos interiorizaram ser necessário estar em boas relações com o santo<br />

para obter benefícios. Faziam-se promessas que às vezes, segun<strong>do</strong> as crenças, eram<br />

atendi<strong>das</strong>. Lévis Strauss mostrou bem a eficácia simbólica <strong>do</strong> rito para fazer reverter<br />

um quadro de <strong>do</strong>enças. A crença nisso era fundamental 18.<br />

Entrar para a irmandade terá si<strong>do</strong> o sonho de muitos negros. Agruparem-se<br />

para cantar e dançar era uma forma de reconstruir sociabilidades e resgatar a<br />

soberania <strong>do</strong> seu corpo, gestos e voz, expressão limitada de uma precária liberdade.<br />

Através da linguagem corporal estabelecia-se a comunicação entre os grupos. Nos<br />

dias de festividade, as roupas eram outras, a comida abundante. Era a grande <strong>festa</strong><br />

da comunidade negra, legalmente constituída, onde era possível ao homem negro<br />

participar de um t<strong>ea</strong>tro, poder desfrutar de uma experiência religiosa e dar um novo<br />

senti<strong>do</strong> à sua vida.<br />

O desejo, consciente ou inconsciente, de recriar laços afetivos, assim como a<br />

busca de proteção, atraiu os negros para os recintos religiosos. Motivos de ordem<br />

existencial, política e econômica, impulsionaram os confrades <strong>do</strong> Rosário a cimentar a<br />

solidariedade <strong>do</strong> grupo fraternal; solidariedade consagrada na <strong>festa</strong> e que adquiria<br />

força por ser intensamente vivida pelos irmãos que ali celebravam a sua fraternidade.<br />

É isso que explica sua permanência até hoje em muitas cidades mineiras<br />

Concluin<strong>do</strong>, a <strong>festa</strong> <strong>do</strong> Rosário significou, antes de tu<strong>do</strong>, a personificação de<br />

uma identidade de grupo, cuja dinâmica funcionou como uma espécie de catalisa<strong>do</strong>r<br />

pelo qual foi possível limar ou atenuar divergências internas. Se as <strong>diferenças</strong> étnicas<br />

<strong>do</strong>s vários grupos foram muitas vezes fatores de conflito, a vivência ritual permitiu a<br />

superação dessas querelas e a sua dramatização nos dias de jubileu.<br />

Sem dúvida que a integração <strong>do</strong>s negros na nova sociedade colonial lhes<br />

permitiu adquirir elementos e valores da tradição cultural <strong>do</strong>s grupos <strong>do</strong>minantes<br />

europeus, mas também – e sobretu<strong>do</strong> – a reformular as suas representações coletivas<br />

de origem. Nisso a arte <strong>barroca</strong> teve o mérito de desempenhar um papel-chave, na<br />

medida em que aju<strong>do</strong>u a difundir um imaginário religioso, conferin<strong>do</strong> um estatuto de<br />

verdade a uma vivência <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>.<br />

18 LEVI-STRAUSS, C. «O Feiticeiro e Sua Magia» In: Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro,<br />

Tempo Brasileiro, 1991.<br />

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