Brasil, 10 anos depois: identidade e história pela TV - Unirevista
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UNIrevista - Vol. 1, n° 3 : (julho 2006) ISSN 1809-4661<br />
Resumo<br />
<strong>Brasil</strong>, <strong>10</strong> <strong>anos</strong> <strong>depois</strong>:<br />
<strong>identidade</strong> e <strong>história</strong> <strong>pela</strong> <strong>TV</strong><br />
Denise Tavares<br />
Jornalista, doutoranda no Prolam/USP, Mestre em Multimeios<br />
PUCCampinas, SP<br />
Este texto analisa o programa “<strong>Brasil</strong>, <strong>10</strong> <strong>anos</strong> <strong>depois</strong>”, do Globo Repórter (Rede Globo), que tem como eixo<br />
editorial recuperar dois momentos da <strong>história</strong> do <strong>Brasil</strong>: 1992-2002. O objetivo é discutir como a edição deste<br />
programa apresenta estes recortes temporais marcados como “históricos” <strong>pela</strong> produção, considerando o papel da<br />
mídia <strong>TV</strong> no processo de construção de uma possível “<strong>identidade</strong> brasileira”, observada aqui como elemento<br />
fundamental da cidadania e de pertencimento social.<br />
Palavras-chave: Comunicação e Cidadania, Telejornalismo e Identidade, Globo Repórter.<br />
Introdução<br />
Os meios de comunicação têm construído espaços de significação da memória pautados, quase sempre, por<br />
marcos de uma <strong>história</strong> de “acontecimentos”. Neste sentido, participam de um ritual de recomposição da<br />
<strong>identidade</strong> a partir de um princípio básico, que é o resgate do passado como estratégia fundamental para<br />
compreensão do presente. Recortes pontuais, efemérides em destaque, apresentação de personagens-<br />
chaves e de escolhas decisivas: quase sempre assentam sobre estes eixos os “resgates” feitos, tanto nos<br />
produtos audiovisuais quanto na comunicação impressa. Por exemplo, em 2004, um momento desta opção<br />
foi especialmente rico: o marco “40 <strong>anos</strong> da Ditadura Militar”. Foco de múltiplas abordagens, permitiu um<br />
universo de reflexões sobre o momento do golpe, sua continuidade e possíveis heranças. Também<br />
proporcionou encontros e debates que colocaram, algumas vezes, em possibilidade de diálogo, pessoas que<br />
se opuseram ao regime militar e jovens nascidos pós-início da abertura política. 1<br />
Esta estratégia, portanto, de circular efemérides, apresentadas como momentos-chaves da <strong>história</strong> do país,<br />
não é estranha às mídias que a reconhece e legitima com seus produtos e, ao público, que a aceita. Assim,<br />
incorpora-se às contribuições dos meios de comunicação este processo de re-conhecimento da <strong>história</strong> – e,<br />
por extensão, do processo de formação social, cultural e político do <strong>Brasil</strong>. É, portanto, sob esta perspectiva<br />
que se construiu o projeto “Marcos da Memória e Construção de Identidade” 2 , do qual recorto, em especial<br />
1 O momento, também repercutiu na Faculdade de Jornalismo da PUC-Campinas que desenvolveu uma série de atividades<br />
durante a “Semana 40 <strong>anos</strong> do Golpe” e também foi abordado por esta pesquisadora, em artigo produzido a quatro mãos<br />
com a professora e diretora da Faculdade de Jornalismo, Cecília Toledo e apresentado no GT de Jornalismo do<br />
Intercom/2004.<br />
2 Este texto representa resultados parciais desta pesquisa, desenvolvida na PUC-Campinas <strong>pela</strong> autora, que abrange os<br />
programas Globo Repórter, da Rede Globo e Repórter Especial, da <strong>TV</strong> Cultura, nas edições veiculadas entre 1994 e 2004.<br />
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Denise Tavares<br />
os documentários audiovisuais e as grandes reportagens televisivas, já que, necessariamente, entrelaçam<br />
fundamentos do jornalismo, do cinema documentário e da <strong>história</strong>, neste momento em que diversos autores<br />
discutem a construção dos discursos nestas áreas do saber.<br />
A proposta deste trabalho, assim, insere-se em uma discussão que permeia o campo da comunicação em<br />
suas diversas interfaces - incluindo a construção da <strong>identidade</strong> em sua relação com a cidadania - e que se<br />
confronta com um paradoxo, especialmente no caso brasileiro, cuja hegemonia de um canal de <strong>TV</strong> em<br />
termos de audiência, apresenta-se como foco de resistência a um processo que permite, cada vez mais,<br />
graças aos avanços da tecnologia, a possibilidade de descentralização da comumicação massiva (Santaella,<br />
2002, p. 67).<br />
Ou seja, enquanto o campo da comunicação repensa suas teorias, confrontadas com uma realidade de<br />
fragmentação acentuada do conhecimento e novas possibilidades de autoria, procurando localizar o papel do<br />
sujeito – tanto na produção quanto na recepção das mídias – a realidade brasileira revela, ainda, uma<br />
situação marcada, no caso do audiovisual produzido <strong>pela</strong> <strong>TV</strong>, por um discurso hegemônico cuja estrutura<br />
narrativa acaba sendo modelo - em que se pese a tradição do pensamento crítico que rege boa parte dos<br />
autores e pesquisadores da comunicação no <strong>Brasil</strong>. É, então, sob esta constatação que este texto se constrói,<br />
buscando, primeiro, localizar o programa Globo Repórter (<strong>TV</strong> Globo) e a edição “<strong>Brasil</strong>, <strong>10</strong> <strong>anos</strong> <strong>depois</strong>” e,<br />
em seguida, recuperar o quadro teórico-conceitual que norteia esta pesquisa dedicada ao estudo dos<br />
múltiplos cruzamentos que balizam as produções audiovisuais do jornalismo que se apresentam como<br />
marcos históricos.<br />
Globo Repórter: breve histórico<br />
O programa Globo Repórter, da Rede Globo de Televisão, é, ainda hoje, modelo de abordagem e tratamento<br />
“jornalístico” de temas selecionados <strong>pela</strong> produção como merecedores de ir ao ar em cadeia nacional. Criado<br />
em abril de 1973, o Globo Repórter, segundo dados da emissora 3 , é assistido hoje por cerca de 30 milhões<br />
de pessoas. Trabalha com equipe própria de repórteres que, ainda segundo a emissora, gravam as matérias<br />
– hoje, amarradas tematicamente – com três semanas de antecedência. Dividido em cinco blocos, o<br />
programa tem 45 minutos de duração.<br />
Este formato atual não coincide com a proposta original. De acordo com depoimento do cineasta Paulo Gil<br />
Soares 4 , responsável <strong>pela</strong> direção das três primeiras edições de o “Globo Repórter” levadas ao ar – Arte<br />
Popular, Testemunho do Natal e Como Come o <strong>Brasil</strong>eiro -, o programa é surgiu a partir de um<br />
desdobramento de uma proposta da multinacional Shell, de realização de 24 documentários, <strong>depois</strong> reduzida<br />
para 20 e, finalmente, cancelada, porque a Shell não gostou das edições realizadas por Gil e outros<br />
cineastas convidados por. Mas, como a posição da multinacional não significou o rompimento de contrato de<br />
Paulo Gil Soares com a emissora, o cineasta teve a idéia de realizar um “especial” sobre a Guerra do Vietnã,<br />
que, na época, era destaque nos noticiários, quase que cotidianamente. O modelo para esta produção, ainda<br />
segundo o depoimento do cineasta, seria a revista Realidade, considerada o produto jornalístico que contava<br />
3 Informações do site da <strong>TV</strong> Globo.<br />
4 Texto da jornalista Paula Muniz, filha do cineasta Paulo Gil Soares, reproduzido no site<br />
http://www.mnemocine.com.br/aruanda/paulogil.htm<br />
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com o melhor time de profissionais da imprensa, incluindo Hamilton Ribeiro que havia perdido,<br />
dramaticamente, uma perna, quando fora cobrir a guerra no país asiático. Assim, com material de arquivo e<br />
entrevistando José Hamilton, foi ao ar o documentário sobre o Vietnã, veiculado no mesmo horário em que<br />
era exibido o Globo Shell, ou seja, às 23 horas de uma sexta-feira.<br />
A aceitação do programa foi grande e logo novos colaboradores começam a participar, como Luis Carlos<br />
Maciel, um especialista em material de arquivo. No entanto, a censura destes <strong>anos</strong> 1970 não facilitava e a<br />
alternativa era trabalhar com temáticas internacionais. A estratégia tinha o apoio da direção da emissora,<br />
satisfeita com os índices de aceitação dos documentários, enquanto entre os cineastas havia a certeza de<br />
que tinham, viável e criativo. Paralelamente a <strong>TV</strong> Globo começava, ainda em 1973, a estruturar um novo<br />
programa jornalístico. Podendo argumentar com a grande aceitação dos documentários veiculados no antigo<br />
horário da Shell, Paulo Gil Soares acabou convencendo Boni, um dos homens-chave da programação da<br />
emissora, que era possível fazer um programa jornalístico aprofundado, com tratamento documentário.<br />
O resultado foi uma série de programas autorais, com temas que, por conta da censura externa e interna,<br />
acabaram afunilados para áreas menos complicadas de abordar neste período da <strong>história</strong> do <strong>Brasil</strong>, tais<br />
como ecologia, investigação policial de crimes de grande repercussão, cultura, imigração, etc. Realizados em<br />
16 mm e montados na moviola, estes programas só usavam o VT para gravar as cabeças com Sérgio<br />
Chapellin e tinham entre seus realizadores cineastas como Eduardo Coutinho, Walter Lima Jr, Maurice<br />
Copovilla e João Batista de Andrade, que faziam parte da equipe fixa, junto com Paulo Gil Soares. Este, por<br />
sua vez, acabava sempre convidando algum colega de fora. Vale destacar que a maior parte destes<br />
realizadores trazia em sua bagagem documentários cuja estilística vinculava-se ao cinema direto que o uso<br />
do gravador Nagra tornara ainda mais popular. Foi esta safra, portanto, quem definiu os contornos dos<br />
primeiros “Globo Repórter”, em uma fase que se estendeu até 1983, quando o formato do programa é<br />
alterado, <strong>depois</strong> de ficar três meses fora do ar.<br />
Quando o Globo Repórter retorna, Paulo Gil Soares não é mais o diretor, sendo deslocado para dirigir a<br />
minisérie “Anarquistas, graças a Deus”. O estilo do programa muda completamente, especialmente a edição,<br />
que passa a depender mais de cada repórter. No entanto, apesar desta mudança definida <strong>pela</strong> direção da<br />
Globo, o formato anterior deixa a marca de um modelo que irá influenciar documentários produzidos por<br />
outros canais, inclusive os veiculados <strong>pela</strong> <strong>TV</strong> Cultura ainda hoje. Acaba, também, de certa forma,<br />
retornando ao próprio Globo Repórter que volta à proposta de tema único – substituída com a saída de<br />
Soares e só retomada após a saída de Armando Nogueira e Boni. Mas, apesar desta recuperação estratégica<br />
do projeto original, o fato é que a produção atual não apresenta a marca autoral que o caracterizou nos<br />
primeiros <strong>anos</strong>. De qualquer forma, é fato que a versão que vai ao ar agora continua sendo, de alguma<br />
forma, referência para o tratamento da reportagem na <strong>TV</strong>, com poucas variações.<br />
Este breve histórico da produção recuperado aqui, demarca não só a origem do programa, mas permite<br />
localizar as diferenças de abordagem e de linguagem, entre as primeiras edições e a versão atual. Quanto à<br />
linguagem, destaco Ismail Xavier 5 , pois, como bem coloca este autor, linguagem é trama, é como a “fábula”<br />
5 Diante de qualquer discurso narrativo, posso falar em fábula, querendo me referir a uma certa <strong>história</strong> contada, a<br />
certas personagens, a uma seqüência de acontecimentos que se sucederam num determinado lugar (ou lugares) num<br />
intervalo de tempo que pode ser maior ou menor; e posso falar em trama para me referir ao modo como tal <strong>história</strong> e tais<br />
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é construída. Assim, a linguagem do audiovisual se constrói a partir dos equipamentos disponíveis, da<br />
manipulação destes equipamentos que se expressam no que chamamos “estilo” e, claro, a partir das mídias<br />
em que a produção será veiculada. Neste sentido, não se pode ignorar, por exemplo, a relação de distância,<br />
de profundidade de campo, tão diferentes entre cinema e vídeo. Não se pode ignorar, também, os padrões<br />
de resolução da <strong>TV</strong> tão distantes, ainda – em que se considere os avanços do digital – da película. Estas e<br />
outras diferenças técnicas não são desprezíveis, em especial quando localizamos o Cinema Direto como o<br />
estilo que domina a produção documentária dos <strong>anos</strong> 1960 e 1970 no <strong>Brasil</strong> – o que significa incluir Paulo Gil<br />
Soares e a gama de cineastas que participou da primeira fase do Globo Repórter. Ora, o Cinema Direto,<br />
entre outros pontos, inscreve-se em um dos eixos da realização documentarista que sempre inquietou os<br />
cineastas: a mediação da câmera na captação da realidade.<br />
Esta inquietação dos cineastas que assumem o Cinema Direto como estratégia estilística na produção de<br />
documentários, rompendo, entre outras escolas, com a tradição da escola documentarista inglesa marcada<br />
<strong>pela</strong> produção teórica e fílmica de Grierson e, também, questionando os procedimentos de encenação<br />
reverenciados até então pelos cineastas, especialmente após Flaherty e seu Nanook do Norte, no entanto,<br />
não está presente no campo do jornalismo, cuja base de existência é justamente esta relação “direta” com a<br />
realidade. Assim, enquanto os documentaristas discutem as estratégias éticas da abordagem, recuperam<br />
Vertov e o seu “capturar a vida como ela é”, problematizam a “voz” no documentário, enfim, buscam<br />
circular desde os processos de produção à linguagem, o jornalismo não problematiza esta questão, já que<br />
define-se, a priori, como não intervencionista.<br />
Tal postura do jornalismo explica-se facilmente já que é a entrevista que garante, na quase totalidade, a<br />
produção de notícia, de reportagem. Sem a relação direta com a fonte, não há, praticamente, nenhuma<br />
matéria jornalística. Se tal afirmação pode parecer extremamente simplista, vale lembrar Chronique d´um<br />
été, de Jean Rouch e Edgar Morin, realizado em 1960, destacado como um dos marcos de descobertas<br />
potenciais ao documentário cinematográfico, entre outros motivos, por incorporar um procedimento até<br />
então não visto em produções do gênero: instalar uma personagem que faz perguntas diretas a pessoas<br />
aleatórias que circulam numa determinada rua de Paris.<br />
Tal “descoberta”, por assim dizer, que fascinou os documentaristas e que está presente, ainda, nas reflexões<br />
que envolvem a produção do cinema documentário – que chega, inclusive, a questionar sua própria<br />
existência, como Fernão Ramos faz em artigo intitulado O que é documentário? 6 – é assumida hoje, sem<br />
qualquer dificuldade, nas reportagens audiovisuais: cabe ao repórter entrevistar e interpretar, de forma<br />
resumida, sua investigação. E o espectador absorve ou não esta “verdade da realidade”, pautado por suas<br />
referências muito mais em relação ao canal que a veicula ou ao programa que a enquadra. Ou seja, se a<br />
produção cinematográfica documentária problematizou as interferências da câmera, da equipe de filmagem,<br />
da encenação ao logo da trajetória do documentário, criando escolas-referências e pontos de inflexão, o<br />
telejornalismo fixou-se muito mais na discussão em torno da mídia, localizando seu poder de penetração e<br />
personagens aparecem para mim (leitor/espectador) por meio do texto, do filme, da peça. (XAVIER, Ismail in PELLEGRINI,<br />
Tânia - et ali: 2003, p. 65).<br />
6 In Ramos, Fernão e Catani, Afrânio (orgs), Estudos de Cinema SOCINE 2000, Porto Alegre, Editora Sulina, 2001, p.<br />
192/207.<br />
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reconhecendo nos recortes temáticos e de personagens, as áreas nobres para melhor compreensão ou<br />
definição do que é jornalismo.<br />
Estes caminhos diferenciadas do documentário cinematográfico e do jornalismo, em que se destaque as<br />
contribuições de autores como Cremilda Medina 7 e outros, que especialmente a partir dos <strong>anos</strong> 1980 vêm<br />
questionando os critérios que norteiam o jornalismo, tais como objetividade, neutralidade, etc, -, precisam<br />
ser estabelecidos para que se possa compreender a importância que se dá aqui às produções audiovisuais<br />
que recortam marcos históricos ou elegem determinados momentos como significativos e necessários para<br />
que entendamos nossa própria <strong>história</strong>. Isto porque, localizar-se historicamente em sua época significa abrir<br />
um caminho de pertencimento, em especial quando estes marcos apresentam-se afinados à construção da<br />
<strong>identidade</strong> nacional já que esta, como diz Bauman, sempre foi diferenciada:<br />
A <strong>identidade</strong> nacional, permita-me acrescentar, nunca foi como as outras <strong>identidade</strong>s.<br />
Diferentemente delas,que não exigiam adesão inequívoca e fidelidade exclusiva, a <strong>identidade</strong><br />
nacional não reconhecia competidores, muito menos opositores. Cuidadosamente construída pelo<br />
Estado e suas forças (ou “governos à sombra” ou “governos no exílio no caso de nações aspirantes –<br />
“nações in spe”, apenas clamando por um Estado próprio), a <strong>identidade</strong> nacional objetivava o direito<br />
monopolista de traçar a fronteira entre “nós” e “eles”. (Bauman, 2004, p.28)<br />
Ora, pertencer à <strong>história</strong> de um país significa ser cidadão deste país? Seria possível localizar-se como<br />
brasileiro em 29 de novembro de 2002, sem lembrar mais o que teria acontecido dez <strong>anos</strong> antes? Qual é o<br />
vínculo possível? Por que era tão importante recortar estes dois marcos temporais? Como justificar esta<br />
efeméride? Quais foram, portanto, os elos criados por um programa amarrado tematicamente <strong>pela</strong><br />
identificação do país e sua trajetória de dez <strong>anos</strong>?<br />
Vamos, então, à edição do Globo Repórter, “<strong>Brasil</strong>, <strong>10</strong> <strong>anos</strong> <strong>depois</strong>”.<br />
<strong>Brasil</strong>, <strong>10</strong> <strong>anos</strong> <strong>depois</strong><br />
Como se disse acima, o programa foi ao ar em 29 de novembro de 2002. Nesta altura o <strong>Brasil</strong> já sabia quem<br />
seria o seu novo presidente da República. O país havia convivido com dois turnos eleitorais, um mês e<br />
poucos dias antes, sendo que, no segundo turno, apenas com dois candidatos, a polarização era evidente e<br />
a vitória do candidato Lula sobre Serra foi considerada um feito histórico. Em boa medida porque Serra,<br />
naquele momento, significava uma linha de continuidade de um governo que teve dois mandatos seguidos,<br />
batizados informalmente pelos meios de comunicação como “a era FHC”. E este foi o primeiro presidente a<br />
substituir o anterior, Fernando Collor de Mello, por meio de votos, sendo que Collor carrega a marca de ser<br />
o primeiro presidente eleito pelo voto direto da população, após a ditadura militar.<br />
Há, aqui, um parêntese necessário. Não se pode ignorar que foi Fernando Collor quem derrotou Lula em um<br />
processo eleitoral marcado <strong>pela</strong> interferência da Rede Globo na edição do último debate entre os dois<br />
7 Entre outras obras, “Notícia, um produto à venda”, etc.<br />
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candidatos. Tal interferência, apontada por diversos autores 8 , traduziu-se na edição do último debate entre<br />
Lula e Collor, veiculada pelo Jornal Nacional, francamente favorável ao candidato alagoano, em um exemplo<br />
caro a quem pesquisa o potencial de manipulação que cabe às edições de telejornais. Pois, dez <strong>anos</strong> <strong>depois</strong>,<br />
como se poderá ver em seguida, a Rede Globo concebe o seu Globo Repórter como uma espécie de “minha<br />
culpa” sem, claro, fazer qualquer relação com a sua “minha culpa”, como já não havia feito em 1992, época<br />
da deposição do presidente que ajudara ou pretendeu ajudar a eleger.<br />
Sem, então, qualquer alusão a si própria, a rede Globo inicia esta edição do Globo Repórter nestes termos:<br />
Em agosto de 1992, o país fervia. Protestos nas ruas colocavam o governo contra a parede. “Fora<br />
Collor” começava a virar frase-símbolo. Os cara-pintadas estavam surgindo, sem saber que iriam<br />
adotar esse nome. Foi Cecília Lotufo quem primeiro pintou o rosto. A foto foi capa de jornal. Nasciam<br />
os cara-pintadas e sua musa.<br />
Em seguida, o programa apresenta a musa, o que está fazendo, como é sua rotina, etc. Valoriza a fala em<br />
que a personagem credita sua felicidade “à descoberta de ser dona-de-casa” para, em seguida, apresentá-la<br />
como alguém que é dona-de-casa sim, mas é uma dona-de-casa especial, diferente. Tal diferença se<br />
expressa nos rastros de brasilidade que ela assume – espalha p<strong>anos</strong> verde-amarelos <strong>pela</strong> casa e mantém-se<br />
apegada a um “toca-disco”, apresentado como símbolo do seu culto à memória, algo necessário a um<br />
programa que se pretende resgate da <strong>história</strong>. Por último, fechando o bloco que apresenta a personagem, a<br />
frase emblemática: Eu sou brasileira, eu curto o <strong>Brasil</strong>.<br />
Ou seja: a <strong>história</strong> surge a partir de um personagem que se mobilizou para fazer <strong>história</strong> mesmo não<br />
sabendo que sua atitude seria histórica. Não há, portanto, um aspecto da conscientização política que<br />
mobilizou partidos políticos e instituições como a OAB para iniciar o processo de cassação de Fernando Collor.<br />
Há, apenas, a indignação de uma jovem de 16 <strong>anos</strong>, frente à corrupção constatada no governo Collor,<br />
apresentado ao país à época em que se elegeu presidente, como, entre outros slogans, “o caçador de<br />
marajás”. Não há qualquer contextualização nem recuperação do processo que fez o <strong>Brasil</strong> “ferver”. A<br />
estratégia é valorizar a ação pessoal, construir um personagem, recuperar para ele uma situação de<br />
“símbolo” que os meios de comunicação lhe haviam atribuído, confirmando um processo de<br />
espetacularização já anunciado, há tantos <strong>anos</strong>, pelos autores que reconheciam no advento da televisão o<br />
passo decisivo para a consolidação da indústria cultural advinda dos meios de comunicação de massa.<br />
No bloco seguinte dois personagens “simples e honestos” ganham o espaço no horário nobre da televisão.<br />
São Ivanilson dos Santos e Jailson Fernandes, amigos que trabalham hoje na Companhia de Limpeza Urbana<br />
do Rio de Janeiro (Comlurb). Em junho de 1992 eram garis. E foi nesta condição que encontraram, cada um,<br />
carteiras recheadas de dinheiro quando limpavam as instalações onde acontecia um encontro mundial da<br />
ONU sobre meio-ambiente. O encontro teve a participação de líderes do mundo inteiro. A questão ambiental,<br />
8 Por exemplo, o historiador Boris Fausto in http://www.pnbe.org.br/midia/28112005.htm<br />
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reconhece-se, é nó górdio a ser desatado, sob o risco do estrangulamento do potencial de sobrevivência do<br />
planeta. No entanto, <strong>10</strong> <strong>anos</strong> <strong>depois</strong>, o que foi importante deste momento, segundo o padrão do Globo<br />
Repórter, é o crescimento financeiro dos dois personagens – hoje, chefes de seção e proprietários de casa<br />
própria graças à valorização da atitude que tiveram, quando devolveram as carteiras que encontraram – e,<br />
finalmente o legado de honestidade que deixam à nação e à <strong>identidade</strong> do brasileiro.<br />
No próximo bloco, batizado “De ilustre a anônimo”, há, aparentemente, a inversão da pauta. Isto porque, se<br />
nos dois primeiros blocos assiste-se a anônimos que se tornaram heróis involuntários, temos agora um<br />
“herói” de 1992 que hoje é anônimo. A mudança do discurso é apenas aparente. Também o novo<br />
personagem foi, em 1992, alguém que ganhou fama a partir da cobertura de mídia. É ela quem credita ao<br />
esporte, como é o caso de Rogério Sampaio, o papel de herói. Basta lembrar Ayrton Senna. Pois Sampaio é<br />
apresentado como protagonista de uma jornada heróica:<br />
Olimpíadas de Barcelona, 1992. Rogério Sampaio era um ilustre desconhecido para os próprios<br />
brasileiros. Depois de vencer três lutas, ele estava na semifinal. E logo contra o campeão mundial, o<br />
alemão Udo Quelmazz. A perna de Rogério ameaçou tremer. "Tinha um lado que falava assim: o<br />
cara é campeão do mundo. Quem sou eu aqui, numa final de jogos olímpicos, para enfrentar um<br />
cara que tem esse poder todo? E, ao mesmo tempo, existe o outro lado que fala para você: eu<br />
treinei muito e alguém pode ter treinado a mesma coisa do que eu. Mas mais do que eu impossível",<br />
lembra o judoca. Foi por acreditar nisso que Rogério fez a luta da sua vida. Mas faltava um minuto e<br />
meio e ele achava que as forças estavam acabando. Não foi preciso tanto. Rogério venceu. E mal<br />
conseguia acreditar. A final foi contra o húngaro Iosef Csak. Cheio de moral, Rogério venceu, levou a<br />
medalha de ouro... E chorou.<br />
Assim, apesar de abrir o bloco destacando rapidamente o anonimato atual do personagem que, inclusive,<br />
engordou e ficou careca, o programa recupera sua <strong>história</strong> enfatizando a luta do personagem, em uma<br />
relação similar à luta de David contra Golias. Para encerrar a participação do judoca, o programa destaca<br />
que Rogério continua ativo no esporte e é exemplo para os mais novos. Tem sua academia de Judô e seu<br />
anonimato, portanto, é em relação à mídia, pois é nela que ele não ocupa mais espaço. Na sua comunidade,<br />
continua reconhecido e valorizado. Não sabemos, portanto, se a tal condição de anonimato, que lhe é<br />
conferida neste momento pelo Globo Repórter, é realmente algo pertinente. Enfim...<br />
Os dois personagens seguintes também são esportistas. Um continua sob os holofotes: é Maurício,<br />
levantador da seleção de vôlei que atravessou estes dez <strong>anos</strong> sempre marcada <strong>pela</strong> aura de vencedora e,<br />
por isso mesmo, sempre acompanhada <strong>pela</strong> mídia. Aqui o personagem pode ser visto como símbolo da<br />
resistência ao tempo. Ou seja: não é porque se passaram dez <strong>anos</strong> que tudo mudou. Existem áreas de<br />
permanência, como a do Globo Repórter, por exemplo – podemos pensar - ou como o jogador Maurício. Esta<br />
leitura se articula à apresentação da personagem seguinte, a nadadora Dailza Damas. Com 44 <strong>anos</strong> ela é<br />
citada após uma frase emblemática: A carreira de atleta termina mesmo aos 30?<br />
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Negar a longevidade como fator degenerativo é algo imprescindível a um programa que tem mais de 30<br />
<strong>anos</strong> que vai ao ar. Mesmo que não tenha sido esta a intenção, apontar a possibilidade de relação é<br />
tentadora. Vamos encará-la, então, por falta mesmo de comprovação, como um comentário... De qualquer<br />
modo, Dailza teve seus méritos em 1992: ocupou o livro dos recordes por ter, neste ano, atravessado o<br />
Canal da Mancha. Um feito, mais uma vez, segundo o Globo Repórter, heróico e carregado de momentos de<br />
superação - Eu era uma mulher frágil, doente, cheia de medos, narra Dailza e coloca no ar o programa –<br />
como acontece com os personagens apresentados em seguida: Evando dos Santos, um pedreiro e José Luís<br />
Zagati, catador de lixo.<br />
As informações profissionais de Evando e José Luís, no entanto, são precedidas de duas outras que<br />
justificam a seleção de tais personagens para uma proposta editorial como a definida em “<strong>Brasil</strong>, dez <strong>anos</strong><br />
<strong>depois</strong>”. Isto porque, segundo o programa, em 1992 os intelectuais – assim, genericamente colocado –<br />
protestavam nas ruas por falta de verbas. Como se sabe, uma das primeiras medidas promovidas pelo<br />
governo Collor foi a desativação de diversos órgãos públicos que financiavam projetos culturais, como a<br />
Embrafilme, por exemplo. Mas nenhum dos artistas rebelados à época das ações de Collor aparece no<br />
programa. Esta informação, portanto, é apenas um preâmbulo, um “nariz de cera”, para se apresentar estes<br />
dois personagens que, justifica o Globo Repórter, apesar das profissões atuam ativamente no campo<br />
artístico e cultural.<br />
Sim, porque Evando é um intelectual do Rio de Janeiro, dono de uma das maiores bibliotecas do país,<br />
enquanto José Luís é um cineasta de São Paulo. As duas cidades são os maiores pólos culturais do <strong>Brasil</strong>. A<br />
biblioteca de Evando fica no subúrbio do Rio de Janeiro. Sua freqüência é destacada pelos aspectos<br />
apresentados como “anti-burocráticos”. Não devolver o livro é colocado como dado positivo, pois o próprio<br />
bibliotecário acredita que tal fato deve-se ao amor <strong>pela</strong> obra, o que é bom sinal. Assim, aprendemos que ser<br />
intelectual, antes de tudo – ou, talvez só por isso – é acumular livros, mesmo que sem apoio, seja ele<br />
governamental ou privado. De novo, a tarefa heróica de alguém simples que ainda atua positivamente na<br />
sua comunidade carente. Nenhum comentário sobre a responsabilidade pública e privada. No <strong>Brasil</strong>, temos<br />
gente de valor...<br />
O cineasta José Luiz tem uma trajetória parecida. É na garagem da sua casa, localizada em Taboão da Serra,<br />
apresentada como periferia de São Paulo pelo programa, que funciona o Mine-Cine Tupy. As garagens, como<br />
se vê, são espaços para cultura e ninguém lamenta a ausência de carro. Comemora-se, ao contrário, no<br />
caso de José Luis, a projeção, duas vezes por semana, de filmes selecionados por ele. Um sucesso, segundo<br />
o cineasta – definido assim pelo programa - foi “Rin-tin-tin”.<br />
Não se trata, é claro, de negar o mérito de tais iniciativas. O que se questiona é um recorte editorial que,<br />
por eleger “pessoas simples” como personagens símbolos para marcar <strong>10</strong> <strong>anos</strong> de travessia histórica de um<br />
país, passa ao largo de temas, contextos, fatos e personagens cujas existências podem oferecer um<br />
contorno – não estamos, entenda-se, sequer solicitando profundidade – do que foram estes <strong>anos</strong> para o país.<br />
Mas, só para encerrar essas sínteses já que o espaço não permite uma análise pontual em termos de<br />
construção da linguagem, vamos aos próximos personagens. Inserido no contexto, bem rapidamente, da<br />
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Denise Tavares<br />
devastação ambiental – e, para tanto, cita-se, mais uma vez, o encontro de representantes da ONU para a<br />
questão ambiental, no Rio de Janeiro, em 1992 - Felipe César é apresentado como alguém que nesta data<br />
resolve voltar para a terra natal, uma pequena cidade – Serrinha – localizada na Serra da Mantiqueira. Ali<br />
começa uma luta de recuperação ambiental que resultou, dez <strong>anos</strong> <strong>depois</strong>, em 5 mil pés de palmitos<br />
plantados, com todas as boas conseqüências que situação engloba. Neste período Felipe também fundou<br />
uma ONG e faz trabalhos de conscientização com crianças, uma vez por semana. O mérito do personagem é<br />
evidente. No entanto, mais uma vez o programa perde a chance de localizar a situação ambiental do país,<br />
optando por uma metáfora pobre - . ...Felipe sabe que a luta está só no início. Mas nessas pequenas vitórias,<br />
do tamanho de uma mudinha, o mago vai recriando suas florestas – preferindo supervalorizar o feito de seu<br />
personagem, a ponto de poder chamá-lo, como se vê, de “mago”.<br />
Para encerrar o programa, uma pauta amarrada <strong>pela</strong> atualidade. Neste novembro de 2002 o país<br />
acompanhava <strong>pela</strong> imprensa a situação de Pedrinho, o garoto levado da maternidade e reencontrado 16<br />
<strong>anos</strong> <strong>depois</strong>. O mote para o futuro estava dado – como Pedrinho estará daqui a <strong>10</strong> <strong>anos</strong>? – pergunta o Globo<br />
Repórter. O mote para o passado estava dado – quantas mães não viveram esta situação? E um caso<br />
dramático vem à tona. Uma mãe que teve dois filhos desaparecidos – um menino de 8 <strong>anos</strong> e uma menina<br />
de 5 – conseguiu, em 1992, reencontrar a filha <strong>depois</strong> de sete <strong>anos</strong> de espera, uma espera ativa, a única<br />
que lhe restara após encontrar, logo <strong>depois</strong> de desaparecido, o seu filho assassinado. E a televisão tem<br />
papel fundamental neste encontro, pois Regiane, a menina que está agora com 22 <strong>anos</strong> e já constituiu sua<br />
própria família, enquanto esteve desaparecida acumulou na sua trajetória mendicância, maus tratos, vida<br />
em abrigo e adoção até reconhecer-se, dez <strong>anos</strong> antes, no programa Linha Direta, da Rede Globo, quando<br />
seu caso foi apresentado a partir das informações da mãe que procurava sua filha.<br />
Eis a televisão substituindo a responsabilidade pública. Pode-se falar em parceria, mas mesmo esta teria que<br />
ser demarcada em um território que, cada vez mais, tem se pautado pelo descaso às políticas públicas e<br />
crescente despolitização das demandas sociais. Ao destacar seu próprio papel, a televisão, portanto, reforça<br />
sua capacidade de intervenção social mas, por outro lado, contribui para a supervalorização da sua força<br />
tendo como contrapartida o esvaziamento da responsabilidade do estado. Neste sentido, atua como órgão<br />
que agrega à indústria cultural ainda maior poder e capacidade de formatação da <strong>identidade</strong> do país. Não é,<br />
como diz Eugênio Bucci, <strong>pela</strong> televisão que o país cada vez mais se reconhece? Qual é, então, o papel da<br />
comunicação, em especial da telecomunicação, em um <strong>Brasil</strong> atravessado por antenas – só para lembrar o<br />
belíssimo filme de Cacá Diegues, “Bye, bye, <strong>Brasil</strong>”? 9<br />
Comunicação, cidadania, <strong>história</strong> e <strong>identidade</strong><br />
O campo da comunicação tem sua definição compreendida por boa parte dos autores como intrinsecamente<br />
interdisciplinar. Esta perspectiva norteia uma discussão em torno do que é campo e do que é disciplina da<br />
comunicação, presente, em especial, nos estudos que se debruçam sobre a Teoria da Comunicação. A<br />
questão é, como bem diz Schramm, que a comunicação é um processo que garante a existência das<br />
sociedades humanas. Investigar, pois, um objeto empírico, como se escolheu fazer aqui, inscrito no<br />
9 Filme de Cacá Diegues, de 1979, que mostra, de forma extraordinária, a penetração da televisão em todo o país.<br />
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<strong>Brasil</strong>, <strong>10</strong> <strong>anos</strong> <strong>depois</strong>: <strong>identidade</strong> e <strong>história</strong> <strong>pela</strong> <strong>TV</strong><br />
Denise Tavares<br />
processo de produção da comunicação, abre a possibilidade de estudá-lo a partir de uma gama de<br />
disciplinas cuja seleção resulta em um determinado olhar sobre a realidade – olhar que não a esgota,<br />
evidentemente. A perspectiva, portanto, desta análise, depreende-se da compreensão de que comunicação,<br />
cidadania, <strong>história</strong> e <strong>identidade</strong>, espelham-se e se sobrepõe para que melhor se possa observar o fenômeno<br />
jornalismo audiovisual, a partir de uma produção específica, por sua vez inscrita em universo que não<br />
demarca fronteiras para garantir sua própria existência.<br />
Assim, sem querer ou poder – por uma questão de limite de espaço - ficar discutindo conceitualmente cada<br />
um dos campos de conhecimento, define-se, cidadania, <strong>pela</strong> síntese mais simples, mas que, a meu ver, é<br />
absolutamente pertinente a este texto. Isto é, cidadania é aqui compreendida como a dimensão ou a<br />
capacitação humana que permite intervenção na realidade. Cidadão é aquele que, portanto, intervém na<br />
realidade. Ora, esta intervenção é possível, entre outros fatores, <strong>pela</strong> identificação ou não com esta<br />
realidade. Alguém que viva à margem ou alheio à realidade que o cerca, não tem como nem porquês para<br />
intervir. Não estar alheio ou estar imerso na realidade depende, então, de reconhecê-la, saber dela, estar<br />
informado sobre ela. Assim temos, muito resumidamente, a importância da informação e a necessidade de<br />
se comunicar esta informação.<br />
Este raciocínio, inicialmente, coloca como positiva a edição do Globo Repórter que pretende marcar dois<br />
momentos considerados fundamentais para a <strong>história</strong> do <strong>Brasil</strong>. Afinal, no reconhecimento da própria<br />
<strong>história</strong> inscrita em uma nacionalidade, assenta-se um dos eixos da construção da <strong>identidade</strong>. Não tê-la ou<br />
perdê-la, como lembra Zygmunt Bauman <strong>10</strong> , significa defrontar-se com indagações e inquietações que<br />
resultam em, pelo menos, dois caminhos: viver uma dolorida sensação de não-pertencimento ou<br />
deslocamento e ali permanecer, ou mobilizar-se em torno desta questão que a condição moderna, que<br />
expõe o homem a múltiplas fragmentações e estilhaçamentos, coloca na urgência de ser compreendida<br />
histórica e socialmente.<br />
Não pretendo aqui mergulhar em capacidades intelectuais de enfrentamento para tal dilema, o que<br />
significaria investigar o público e não a produção do programa, como se optou neste trabalho. Resta,<br />
portanto, observar a construção desta edição que se apresenta, tão resumidamente como “<strong>Brasil</strong>, <strong>10</strong> <strong>anos</strong><br />
<strong>depois</strong>”. Assim, em termos de <strong>identidade</strong> da própria edição, e aí estamos pensando na estrutura do<br />
programa, o que temos? Em primeiro lugar, o que se pode constatar é a unidade da edição definida a partir<br />
do título: um país se apresenta dez <strong>anos</strong> <strong>depois</strong> de alguma coisa indefinida. Cabe, portanto, localizar o que é<br />
este <strong>depois</strong>. No primeiro bloco, o <strong>depois</strong> seria o movimento “caras-pintadas”, apresentado através da<br />
personagem-símbolo do movimento. No bloco seguinte, a conferência da ONU, <strong>depois</strong> as Olimpíadas, em<br />
seguida a conquista individual do Canal da Mancha e assim por diante, até encontrarmos a <strong>história</strong> da<br />
programação da Rede Globo, que nos lembra do Linha Direta e suas conquistas.<br />
Este é, portanto, o panorama do país de 1992, resgatado <strong>pela</strong> produção. A citação de situações políticas,<br />
coletivas é apenas isso: citação, quase que nariz de cera de cada bloco. Somos, então, o país dos heróis do<br />
esporte, dos heróis da honestidade, da heroína tenaz, que não desistiu de encontrar sua filha e, assim,<br />
<strong>10</strong> Ver referência na Bibliografia<br />
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<strong>Brasil</strong>, <strong>10</strong> <strong>anos</strong> <strong>depois</strong>: <strong>identidade</strong> e <strong>história</strong> <strong>pela</strong> <strong>TV</strong><br />
Denise Tavares<br />
reconstituir parcialmente sua família, já que o filho fora assassinado. Somos, então, um país de personagens<br />
que vencem, que se superam. Esta é a nossa <strong>história</strong>, esta é a nossa <strong>identidade</strong>. Pertencer a ela é ser<br />
brasileiro. Dez <strong>anos</strong> antes ou <strong>depois</strong>. Além disso, a realidade mudou porque houve interferências nela: se<br />
Cecília Lotufo, a musa dos caras-pintadas, não tivesse ido às ruas... Se a mãe tivesse desistido da sua busca<br />
e, assim, não acionado a televisão... Se... Estamos, portanto, diante de cidadãos que interferiram na<br />
realidade. Como, então, e por que, refutar esta estratégia editorial do programa?<br />
Antes de tentar responder a esta questão é preciso ainda outra consideração em relação a este jornalismo<br />
audiovisual que se apresenta amarrado em um eixo temático, como é hoje a estratégia do Globo Repórter:<br />
jornalismo é narrativa? Esta indagação é essencial na proposta deste trabalho já que responder a esta<br />
questão significa localizar o que considero o ponto de cruzamento entre <strong>história</strong>, jornalismo, <strong>identidade</strong> e<br />
cidadania. Isto porque, a premissa básica destes quatro campos é exatamente o reconhecimento da<br />
narrativa como tessitura essencial da condição humana, do reconhecimento da existência. Pois, o que é a<br />
<strong>história</strong> senão a recuperação e compreensão de narrativas articuladas ao longo do tempo? Ou, como<br />
indagou Luiz Gonzaga Mota 11 , existe ou não a possibilidade do público recuperar ou reordenar as notícias<br />
apresentadas de forma tão fragmentada – base editorial do jornalismo – como uma narrativa coesa e<br />
ordenada?<br />
E assim chego ao que considero um dos pontos-chaves deste trabalho. Justamente por apresentar o país<br />
construindo uma narrativa que é fragmentada em blocos, mas coesa o suficiente para resumir-se em um<br />
título, é que o Globo Repórter, apresenta-se na contramão de um processo sobre o qual se debruça a<br />
produção audiovisual, especialmente o documentário e também de certo modo, a nova <strong>história</strong>. Este<br />
processo, traduzido <strong>pela</strong> recuperação da importância do indivíduo em suas singularidades e não em seus<br />
feitos “extraordinários ou espetaculares “ – situação cara ao telejornalismo – caminha no sentido oposto ao<br />
que tem sido realizado no Globo Repórter e que a edição aqui destacada tão exemplarmente ilustra. Ou seja,<br />
se é necessário nos livrarmos de uma visão do passado construído apenas pelos “grandes feitos de grandes<br />
personagens”, não podemos colocar em seu lugar “grandes feitos de personagens comuns” porque apenas<br />
estaríamos deslocando os personagens mas mantendo o modelo.<br />
Falta, portanto, a este modelo de telejornalismo, algo que é caro ao documentário brasileiro atual, sobre o<br />
qual nos debruçamos em outro momento desta pesquisa: a comunidade a que ele pertence, seu território,<br />
suas articulações. Ao mantê-lo isolado em seu feito, a televisão apenas reproduz sua estratégia de projeção<br />
de anônimos, transformando-os em famosos instantâneos para, em seguida, relegá-los ao esquecimento. E<br />
temos aí, mais uma vez, a dimensão da existência permeada <strong>pela</strong> mídia, em um processo não só<br />
profundamente despolitizado, como também desarticulado e a-histórico. Nada mais artificial do que esta<br />
<strong>identidade</strong> nacional construída sem contraponto, sem polifonia de vozes – esta sim, uma estratégia básica<br />
do jornalismo, saudada por autores como Peter Brook, historiador que problematiza a escrita da <strong>história</strong><br />
reconhecendo justamente a dificuldade de uma construção quase sempre fundamentada em um percurso<br />
linear e na não inclusão de múltiplas vozes.<br />
11 Motta, Luiz Gonzaga in http://www.compos.org.br/e-compo (edição 1, dezembro de 2004, da revista eletrônica e-<br />
compós).<br />
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Denise Tavares<br />
Mas não só isso, evidentemente. Não se quer aqui negar o caráter da cobertura jornalística, que é quase<br />
sempre sobre incidentes fragmentados que precisam, continuamente, serem reatirculados para fazerem<br />
sentido e traduzirem um presente que já se apresenta caótico. Não à toa reconhece-se no jornalista o<br />
“historiador do presente”. Mas esta particularidade não pode justificar um tratamento idêntico quando se<br />
elege o tempo histórico como tema da produção jornalística. Escolher este caminho significa recusar-se às<br />
diferenciações que estão presentes no próprio jornalismo, já que este trabalha com a reportagem, a grande<br />
reportagem, a pesquisa. E sequer falamos, aqui, das articulações da imagem e do som, pois tal discussão<br />
não é possível por uma questão de espaço. Ficamos, portanto, no que costumamos chamar “tema” ou<br />
“conteúdo”, especulando apenas em torno dos discursos apresentados.<br />
Finalmente, não posso encerrar este texto sem lembrar o óbvio: como mídia dominante na geografia e<br />
tempo brasileiro, a televisão tem que ser reconhecida pelo seu poder de construção da realidade ao longo de<br />
tempo. Neste sentido é que ela hoje, em especial no caso da Rede Globo que já marcou sua presença por<br />
mais de 40 <strong>anos</strong> no país, tem que ser vista como instrumento real da construção simbólica da imagem e<br />
<strong>identidade</strong> brasileiras. E, nos rastro deste poder, como exemplifica, por exemplo, o programa Linha Direta,<br />
ela também tem se apropriado de um espaço que não lhe cabe. Tal apropriação reconfigura, quem sabe,<br />
conceitos como os da <strong>identidade</strong> e, também, da cidadania. Afinal, àquele que quer de fato intervir na<br />
realidade, tem restado, como muito já se viu, o caminho da tevê. É ali que ele acredita que sua <strong>história</strong> se<br />
resolverá. Tal proximidade, com certeza, legitima a televisão no seu espectro de canal emissor da verdade.<br />
Pois, como nunca, ela tem sido a vitrine da realidade brasileira. Pelo menos da realidade que se pretende<br />
brasileira. E muitos brasileiros estão convictos disto.<br />
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