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música erudita brasileira - Conservatorio Musical Maestro Paulino ...

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4<br />

MÚSICA<br />

ERUDITA<br />

BRASILEIRA


Escrever um panorama da História da Música<br />

Erudita ou de Concerto no Brasil é um<br />

desafio há muito acalentado. Diferente<br />

de outras produções artísticas <strong>brasileira</strong>s,<br />

a <strong>música</strong> ainda carece de estudos<br />

organizados com o objetivo de contar sua<br />

história e, principalmente, contextualizá-la<br />

perante o repertório consagrado da <strong>música</strong><br />

ocidental. Essa vertente da produção musical<br />

<strong>brasileira</strong> por muitos é considerada como<br />

o último tesouro ainda por ser descoberto<br />

e verdadeiramente explorado da cultura<br />

do país. À exceção do célebre Villa-Lobos,<br />

e também de Camargo Guarnieri, pouco<br />

se conhece a respeito dessa imensa produção<br />

musical. Isso se dá tanto nos meios<br />

internacionais como, espantosamente, entre<br />

os próprios músicos brasileiros, que bastante<br />

sabem e executam Mozart, Beethoven<br />

e Brahms, mas que pouca informação<br />

têm de compositores brasileiros<br />

contemporâneos e mesmo de outros períodos.<br />

5


6<br />

Por outro lado, enquanto a denominada MPB ou<br />

Música Popular Brasileira é consagrada pelos meios<br />

de comunicação e conhecida internacionalmente como<br />

símbolo da produção musical do Brasil do século XX,<br />

a <strong>música</strong> <strong>erudita</strong> ou de concerto ainda é um território<br />

inexplorado, quer pelos estrangeiros, quer pelos<br />

próprios músicos brasileiros. Diferentemente<br />

da produção de MPB, que abrange dos últimos anos<br />

do século XIX aos dias atuais, a <strong>música</strong> “clássica”<br />

no Brasil está ligada diretamente ao início da<br />

colonização pelos portugueses e perpassa pelos cinco<br />

séculos de transformações e adaptações culturais<br />

ocorridas no país.<br />

A respeito de como interagem na cultura <strong>brasileira</strong><br />

essas duas realidades musicais complementares,<br />

citamos artigo do jornalista Irineu Franco Perpétuo1 que bem exemplifica essa situação:<br />

“É que parece cada vez mais que, no Brasil, falar<br />

de <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong> corresponde a falar de <strong>música</strong><br />

“popular” <strong>brasileira</strong>. Claro que a supremacia, em<br />

termos de difusão, da <strong>música</strong> popular sobre a <strong>música</strong><br />

de concerto é um fenômeno mundial. O que torna<br />

o caso do Brasil específico é que os principais autores<br />

e intérpretes de nossa <strong>música</strong> popular desfrutam<br />

do status não apenas do carinho das massas, mas o afago<br />

da “inteligentsia”, desalojando a <strong>música</strong> “clássica”<br />

da posição hegemônica mesmo entre as elites. Para<br />

o bem ou para o mal, os intelectuais orgânicos<br />

brasileiros, na área de <strong>música</strong>, são gente como Chico<br />

Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento − não<br />

Almeida Prado, Edino Krieger ou Gilberto Mendes,<br />

por mais que possamos admirar e respeitar o talento<br />

desses compositores. As idéias dos astros da MPB é<br />

que são levadas a sério, debatidas e discutidas pelos<br />

formadores de opinião pública. Quando acontece um<br />

fato de comoção nacional, e a imprensa quer saber<br />

a opinião de um músico a respeito, vai perguntar para<br />

o Chico. A intenção de voto de Caetano a cada eleição<br />

presidencial é sempre repercutida pela imprensa com<br />

estardalhaço, mas ninguém vai averiguar em quem<br />

Nelson Freire ou Antonio Meneses vão votar.<br />

Não se trata aqui de atacar a <strong>música</strong> popular<br />

<strong>brasileira</strong>, mas apenas lamentar o deslocamento sofrido<br />

pela <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong> de concerto.”<br />

Ao procurarmos os vários fatores a que se deve<br />

a atual situação de desconhecimento da história e da<br />

produção da <strong>música</strong> de concerto no Brasil, deparamonos<br />

com dois principais, que são a falta de programas<br />

editorais eficazes para a publicação de obras compostas<br />

no Brasil desde o século XVIII e o próprio<br />

desincentivo ou mesmo desinteresse das corporações<br />

musicais em conhecer e programar esse repertório em<br />

seus concertos. Diante desse quadro, nada mais<br />

oportuno que escrever, ainda que despretensiosamente,<br />

esta História da Música Erudita no Brasil, de modo<br />

multidisciplinar e em formato de revista.<br />

Para esta publicação elaboramos uma pauta onde<br />

subdividimos os assuntos em três grandes períodos<br />

históricos: do Descobrimento à Independência, do<br />

Império ao Estado Novo e da Segunda Guerra aos dias<br />

atuais, sendo a subdivisão interna de cada fase formada<br />

por artigos de diferentes características. Há os artigos<br />

contextualizantes de um período histórico e que vêem<br />

a produção musical no âmbito sociológico, e há os que<br />

exploram a biografia dos principais compositores de<br />

cada período, tornando-se importantes verbetes para<br />

uma compreensão mais objetiva da biografia e<br />

produção de cada compositor ou período estético<br />

abrangido. Esse formato, uma vez que esta é uma<br />

revista de divulgação de cultura <strong>brasileira</strong> no exterior,<br />

tem como objetivo possibilitar que o leitor, mesmo que<br />

jamais tenha ouvido falar a respeito dos assuntos<br />

abordados, possa ter uma ambientação histórica<br />

e social na qual essa <strong>música</strong> foi produzida.<br />

Acessíveis e interessantes para músicos,<br />

ou somente interessados em saber mais sobre essa<br />

produção musical, os artigos foram escritos por alguns<br />

dos mais atuantes especialistas de cada subdivisão do<br />

assunto, entre jornalistas, acadêmicos e musicistas.<br />

A presença do CD anexo, assim como as bibliografias<br />

e discografias sugeridas, servem como ilustração a cada<br />

assunto abordado nos artigos. Desse modo,<br />

pretendemos tornar a revista ainda mais dinâmica,<br />

possibilitando que a mesma possa ser utilizada como<br />

um guia referencial para aqueles que pretendem<br />

começar a se enveredar pelo tema, e até servir como<br />

base bibliográfica para a elaboração de pequenas aulas.<br />

Dentre as publicações mais importantes de História


da Música no Brasil, sendo escritas cada qual por<br />

somente um autor, podemos citar as de Vicente<br />

Cernicchiaro, Renato de Almeida e Mário de Andrade,<br />

ainda nas décadas de 1920 e 30, passando por Luiz<br />

Heitor Corrêa de Azevedo nos anos 60, Bruno Kieffer<br />

nos anos 70 e Vasco Mariz em dias atuais.<br />

Nesta Textos do Brasil, por sua característica<br />

multidisciplinar unindo conhecimentos específicos<br />

para cada assunto abordado, pretendemos contribuir<br />

para incrementar e dar nova visão sobre essa não<br />

vasta, porém importante, bibliografia existente<br />

a respeito do tema.<br />

O primeiro texto da revista, “Música e sociedade<br />

no Brasil colonial”, assinado por Rogério Budasz, trata<br />

inicialmente da <strong>música</strong> composta e utilizada pelos<br />

jesuítas com o objetivo de catequizar os povos<br />

indígenas brasileiros durantes os dois primeiros séculos<br />

da colonização. Apesar de não existir documentação<br />

musical remanescente do período, o pesquisador faz<br />

uma minuciosa e aprofundada pesquisa sobre esse<br />

processo, tendo como fonte o trabalho realizado<br />

pelo emblemático Padre José de Anchieta, buscando<br />

em suas notas as informações necessárias para<br />

a reconstituição provável desse material. No mesmo<br />

artigo, Budasz trata da produção musical para os versos<br />

do ilustre poeta da Província da Bahia ainda no século<br />

XVII, Gregório de Matos, podendo ser uma das<br />

primeiras informações a respeito de uma prática de<br />

<strong>música</strong> não-litúrgica ou profana em nosso território.<br />

Desta também não restou documentação musical<br />

específica, porém é também possível realizar um<br />

processo comparativo e de reconstituição baseado<br />

em manuscritos musicais existentes em Portugal, a que<br />

são feitas referências em documentos da época.<br />

Ainda no século XVII e início do XVIII temos,<br />

para não deixar de citar, o caso da <strong>música</strong> composta<br />

na região das Missões Jesuíticas dos Índios Guaranis −<br />

hoje pertencentes ao território brasileiro no Sul<br />

do país, mas que no período pertenciam à Coroa<br />

espanhola −, sendo sua produção artística e musical<br />

mais diretamente ligada à arte barroca praticada<br />

em países como Argentina, Paraguai e Bolívia.<br />

Para conhecermos mais a respeito desta produção,<br />

basta que conheçamos os trabalhos editoriais<br />

A <strong>música</strong> “clássica”<br />

no Brasil está ligada<br />

diretamente ao início da<br />

colonização pelos portugueses e<br />

perpassa pelos cinco séculos de<br />

transformações e adaptações<br />

culturais ocorridos no país<br />

e de partituras, assim como os registros musicais em<br />

discos e sobre <strong>música</strong> barroca hispano-americana.<br />

Tratando a pauta com respeito a uma ordem<br />

cronológica e contextual passamos, a seguir, a tratar da<br />

<strong>música</strong> sacra no Brasil, sobretudo na segunda metade<br />

do século XVIII e primeira metade do XIX.<br />

Neste segundo artigo, “A Música no Brasil Colônia<br />

anterior à chegada da Corte de D. João VI”, assinado<br />

por Harry Crowl, é abordado um aspecto mais<br />

difundido, porém também pouco conhecido da<br />

produção musical do Brasil colônia, que é a <strong>música</strong><br />

sacra composta pelos mestres-de-capela nas sedes de<br />

Bispados e a atuação dos músicos junto às Irmandades<br />

leigas, sobretudo nas províncias das Minas Gerais, São<br />

Paulo, Bahia e Pernambuco.<br />

Esse artigo trata justamente da <strong>música</strong> a partir<br />

do primeiro documento musical encontrado, que é um<br />

recitativo e ária da Bahia datado de 1759, e contextualiza<br />

as produções nordestinas do mesmo período para,<br />

aí sim, dar total ênfase à mais importante escola<br />

de compositores do período colonial, que é a das Minas<br />

Gerais da segunda metade do século XVIII. É um texto<br />

bastante completo, que contempla a produção de vários<br />

nomes importantes do período, como Emerico Lobo de<br />

Mesquita, Francisco Gomes da Rocha, Marcos Coelho<br />

Neto, João de Deus de Castro Lobo, entre outros.<br />

Nesta nossa introdução não podemos deixar<br />

de explicar, mesmo que brevemente, como esse estilo<br />

musical se estabeleceu no Brasil colonial,<br />

principalmente nos séculos XVIII e XIX. Essa<br />

7


8<br />

linguagem musical eminentemente italiana tem uma<br />

trajetória interessante: D. João V de Portugal, a partir<br />

da década de 1710, manda jovens compositores<br />

portugueses estudar na Itália como bolsistas, sobretudo<br />

em Roma e Nápoles, a fim de absorver o estilo musical<br />

italiano, que era o predominante na época, e trazê-lo<br />

para Lisboa. Do mesmo modo, compositores italianos<br />

como Domenico Scarlatti são levados a Portugal para<br />

dirigir a <strong>música</strong> na Sé e na corte lisboeta. Como<br />

a mais importante colônia do império português<br />

do período, o Brasil tem uma grande atividade musical<br />

e está em estreito contato com as novidades vindas<br />

da metrópole, passando também a ter sua produção<br />

musical nos mesmos moldes de Portugal. Com a<br />

descoberta do ouro, sobretudo na província das Minas<br />

Gerais, outros importantes centros urbanos como Vila<br />

Rica surgem para, além das tradicionais grandes<br />

cidades como Salvador e Rio de Janeiro, possuírem<br />

intensa atividade musical, que caracterizará um dos<br />

mais profícuos momentos da história musical <strong>brasileira</strong>.<br />

No entanto, não há parâmetro para as<br />

transformações nas atividades culturais e mesmo sociais<br />

do Brasil como o deslocamento da Corte de D. João VI<br />

de Portugal para o Rio de Janeiro, que teve o fim de<br />

salvaguardar a alta administração portuguesa da<br />

invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas em 1808.<br />

O artigo que se segue, “Música na Corte do Brasil:<br />

Entre Apolo e Dionísio 1808-1821”, assinado pelo<br />

musicólogo e historiador Maurício Monteiro, começa<br />

justamente a falar das grandes mudanças sociológicas<br />

e estilístico-musicais que se seguem após este<br />

importante momento da História do Brasil.<br />

Com o objetivo de finalizar essa primeira sessão,<br />

segue, por nós assinado, artigo a respeito do mais<br />

representativo compositor desse período colonial<br />

brasileiro, que é o carioca José Maurício Nunes Garcia<br />

(1767 –1830). Esse texto, “José Maurício Nunes<br />

Garcia e a Real Capela de D. João VI no Rio<br />

de Janeiro”, trata de sua interessante biografia<br />

e de como suas obras sobreviveram através do tempo.<br />

Por ser um compositor que trabalhou sempre no Rio<br />

de Janeiro, sendo sua primeira obra datada de 1783<br />

e a última de 1826, sua <strong>música</strong> também reflete<br />

as transformações que essa cidade, como capital<br />

da colônia, sofreu em sua <strong>música</strong> e relações sociais.<br />

Esses anos foram intensos também para as artes<br />

plásticas no Brasil, com a vinda da Missão Artística<br />

Francesa de 1817 e de músicos como o compositor<br />

austríaco Sigismund Neukomm – que veio na missão<br />

diplomática do Duque de Luxemburgo a serviço<br />

de Luís XVIII de França – e que permaneceu no<br />

Rio de Janeiro por cinco anos, sofisticando a produção<br />

de <strong>música</strong> instrumental na corte como <strong>música</strong> para<br />

piano, de câmara e até mesmo sinfônica. Graças<br />

à presença desse compositor, os músicos atuantes na<br />

cidade puderam travar contato com o que havia de<br />

mais relevante da produção musical centro-européia,<br />

como a Missa de Réquiem de Mozart, regida por José<br />

Maurício em 1819, e os oratórios As Estações<br />

e A Criação de Joseph Haydn, este último também<br />

comprovadamente regido por José Maurício em 1821.<br />

Nos anos que seguiram ao processo de<br />

Independência do Brasil de Portugal, ocorrida em<br />

1822, as atividades culturais sofreram um grande<br />

declínio em comparação aos faustos anos da presença<br />

da corte portuguesa no Rio de Janeiro. O início de uma<br />

longa reestruturação se inicia com a criação do<br />

Imperial Conservatório de Música, atual Escola de<br />

Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que<br />

teve como seu primeiro diretor o autor do Hino<br />

Nacional Brasileiro, Francisco Manoel da Silva,<br />

que durante o tempo de José Maurício esteve entre<br />

seus alunos diletos.<br />

Esse período se caracterizou por uma certa<br />

desestruturação da Real Capela de Música,<br />

transformada em Imperial Capela, e seus músicos –<br />

entre eles seus mestres-de-capela José Maurício Nunes<br />

Garcia e Marcos Portugal – sofreram sérias dificuldades<br />

financeiras. Essa época coincidiu também com<br />

a ascensão de Rossini nos teatros do mundo todo,<br />

passando a ser um novo parâmetro para a produção<br />

operística italiana. As óperas de Rossini fizeram tanto<br />

sucesso no Brasil que, mesmo durante a estada do Rei<br />

D. João VI no Rio de Janeiro, várias de suas óperas<br />

foram encenadas. Entre elas, sobretudo, Il Barbiere di<br />

Seviglia e La Cenerentola, com diferenças por vezes de<br />

poucos meses em relação às estréias européias. Essa<br />

modificação no gosto serviu de modelo para a criação


14<br />

Música<br />

e sociedade<br />

no Brasil<br />

colonial<br />

ROGÉRIO BUDASZ<br />

Carlos Julião. Cortejo da Rainha Negra<br />

na Festa de Reis. Aquarela colorida<br />

do livro “Riscos illuminados de figurinos<br />

de brancos e negros dos uzos<br />

do Rio de Janeiro e Serro Frio”.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />

DIVISÃO DE ICONOGRAFIA


Sem levar em conta alguns casos isolados de portugueses<br />

e franceses fixando-se na costa <strong>brasileira</strong>, por livre<br />

vontade ou não, durante as primeiras décadas do século<br />

XVI, a colonização e o efetivo povoamento dessa<br />

região por europeus e seus descendentes tiveram início<br />

apenas na década de 1530. Missionários religiosos<br />

também começaram a se estabelecer nessa época,<br />

sendo o grupo mais importante a Companhia de Jesus,<br />

que chegou em 1549 e fundou vários colégios ao longo<br />

da costa <strong>brasileira</strong>.<br />

O povoamento da costa <strong>brasileira</strong> nos dois<br />

primeiros séculos após a descoberta pelos portugueses<br />

foi condicionado pelos ciclos econômicos do pau-brasil<br />

e da cana-de-açúcar, esse último marcando também<br />

o início da presença negra no Brasil. Os colonos eram<br />

invariavelmente homens que estabeleciam<br />

propriedades rurais e, geralmente, amasiavam-se<br />

com as nativas, originando um novo tipo étnico,<br />

o mameluco, que se tornaria o principal responsável<br />

pela expansão territorial da colônia. A colonização foi<br />

marcada por iniciativas e regulamentações<br />

contraditórias, que, enquanto estimulavam a vinda<br />

de colonos, reprimiam o desenvolvimento de uma<br />

identidade <strong>brasileira</strong> por proibir o surgimento de casas<br />

impressoras, periódicos e universidades.<br />

Para o colono, a única forma de literatura era<br />

muitas vezes aquela transmitida oralmente, nos<br />

romances populares ibéricos de teor histórico ou<br />

moral. Muitos desses romances, geralmente cantados<br />

sobre melodias simples para não dificultar<br />

a inteligibilidade da narrativa, permanecem vivos até<br />

hoje na tradição popular tanto em Portugal como<br />

no Brasil, e sofrendo poucas transformações nesses<br />

quinhentos anos, como é o caso de Conde Claros,<br />

A Bela Infanta, Gerineldo, e tantos outros.<br />

Além desses, o repertório musical dos primeiros<br />

colonos e seus descendentes incluiria também cantos<br />

de trabalho para acompanhar ações rotineiras,<br />

15


16<br />

acalantos e cantigas, tanto em português como em tupi.<br />

A primeira geração de brasileiros crescia, assim,<br />

ouvindo romances, cantigas e ritmos ibéricos cantados<br />

e tocados na viola pelo pai, enquanto era embalada<br />

pelos acalantos da mãe tupi em seu idioma. Quer fosse<br />

pelo seu conteúdo considerado “lascivo” ou pela sua<br />

associação com os cultos nativos, algumas daquelas<br />

cantigas, tanto ibéricas como tupis, escandalizaram<br />

os missionários, induzindo-os a comporem versões<br />

pias, ou “divinizadas”. José de Anchieta era mestre<br />

nessa transmutação e ensinava também as doutrinas,<br />

orações e hinos católicos no idioma tupi.<br />

Fora do contexto missionário, também eram<br />

comuns as bandas de corporações militares ou de<br />

escravos, mantidas pelos latifundiários mais destacados<br />

como aparato de ostentação e demonstração de poder,<br />

ao realizarem entradas pomposas nas vilas ao som dos<br />

clarins, ou para impressionar visitantes. Promovidas<br />

pelas autoridades seculares e religiosas, várias festas,<br />

como as de Corpus Christi e da Visitação de Santa<br />

Isabel, incluíam procissões, <strong>música</strong> e danças, trazendo<br />

alegorias, mascarados e coreografias de índios e negros.<br />

Para o acompanhamento costumavam ser usados<br />

tambores, pandeiros, gaitas de fole, pífanos<br />

e charamelas — termo esse que poderia incluir tanto<br />

instrumentos de palheta, como a chirimia ibérica,<br />

quanto instrumentos de bocal, como as cornetas,<br />

sacabuxas, trompas e outros. Além disso, nas festas<br />

e outros congraçamentos ao ar livre poderíamos,<br />

tal como hoje em dia, encontrar cantores repentistas,<br />

numa tradição que remonta aos segréis<br />

da Idade Média.<br />

Tais festas e procissões, tal qual em Portugal,<br />

muitas vezes funcionavam como pretexto para<br />

a socialização e diversão, como satirizaria o poeta<br />

Gregório de Mattos no final do século XVII. Contudo,<br />

a despeito de várias regulamentações repressoras e das<br />

opiniões de alguns moralistas, o congraçamento entre<br />

escravos era geralmente tolerado “para evitar males<br />

maiores”, no dizer de Antonil, pois a mistura de raças<br />

também dificultava a identificação étnica de escravos<br />

de várias nações e crenças, diminuindo o perigo<br />

de insurreição. Já a mistura entre negros e branco, era<br />

insistentemente reprimida pelas autoridades — e isso<br />

até o início do século XX —, o que não parece jamais<br />

ter surtido o efeito desejado, como o comprovam não<br />

só as descrições de viajantes como também o fato<br />

de terem sido reprisadas várias vezes no decorrer dos<br />

séculos as prescrições contra o ajuntamento de brancos<br />

e escravos nas festas.<br />

Quanto à <strong>música</strong> oficial do Estado e da Igreja,<br />

nota-se já no século XVI a tentativa de reproduzir<br />

em miniatura o estabelecimento musical português.<br />

Existiam, no entanto, algumas diferenças fundamentais<br />

que dificultavam essa reprodução, ao mesmo tempo<br />

em que moldavam novas maneiras de fazer e usar<br />

a <strong>música</strong>: se Portugal era pequeno e densamente<br />

povoado, o inverso valia para o Brasil nos dois<br />

sentidos. A rarefação populacional tornava inviáveis<br />

certas práticas musicais e inúteis outras.<br />

MÚSICA NO ESPAÇO DOMÉSTICO<br />

A maior parte das vilas fundadas durante o primeiro<br />

século da colonização formava-se ao redor de alguns<br />

fortes militares e escolas jesuíticas. Enquanto isso,<br />

o grosso da população habitava as propriedades rurais,<br />

que cresceram muito — em número e tamanho — nas<br />

últimas décadas do século XVI, passando<br />

a especializar-se no cultivo da cana de açúcar<br />

e na produção de seus derivados, açúcar e aguardente,<br />

assim como no cultivo da mandioca e na produção<br />

da farinha.<br />

Distante dos centros urbanos — numa época em<br />

que eram poucos os que se destacavam —, o engenho<br />

ficava assim definido como a principal unidade de<br />

produção e povoamento, enquanto a Casa Grande<br />

era o seu centro administrativo e religioso, na verdade<br />

o principal espaço de sociabilidade. Ali era promovida


a educação civil e religiosa, bem<br />

como os encontros sociais, por<br />

ocasião de batizados, de casamentos,<br />

e da hospedagem de visitantes.<br />

Nesse contexto, a <strong>música</strong> era<br />

cultivada como auxiliar no fluir<br />

das atividades sociais, como<br />

passatempo na intimidade<br />

do lar, acompanhando momentos<br />

de devoção religiosa ou como<br />

demonstração de civilidade e poder<br />

para os olhos e ouvidos externos.<br />

E era por isso que a prática musical também fazia<br />

parte da instrução dos filhos e afilhados do senhor<br />

de engenho. Formação diferente, e para cumprir tarefas<br />

diferentes, teriam os músicos escravos — cantores<br />

e charameleiros — que participariam do aparato<br />

de propaganda e demonstração de poder do senhor<br />

de engenho, sendo muitas vezes emprestados às Igrejas<br />

e vilas por ocasião de festas religiosas e cívicas.<br />

Os primeiros que se dedicaram ao ensino<br />

da <strong>música</strong> foram os missionários, que, a princípio,<br />

concentravam-se nos nativos e usavam a <strong>música</strong> como<br />

instrumento auxiliar na conversão e catequese. Depois<br />

deles, representando oficialmente o estabelecimento<br />

musical da Igreja, aparecem os mestres de capela,<br />

enviados de Portugal para organizar a atividade<br />

musical de determinada região mas que também<br />

exerciam a função de instrutores da arte da <strong>música</strong><br />

para quem pudesse pagar. Mais tarde, também passam<br />

a exercer essa função, embora de forma limitada,<br />

os cantores e instrumentistas mais destacados<br />

dentre os índios, negros e mulatos instruídos<br />

na <strong>música</strong> européia pelos missionários e mestres<br />

de capela, com o objetivo principal de interpretarem<br />

Alexadre Rodrigues Ferreira.<br />

Desenho aquarelado.<br />

Viola que tocam os pretos.<br />

Desenho aquarelado do livro<br />

Viagem filosófica às Capitanias<br />

do Grão-Pará, Rio Negro, Cuiabá.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO<br />

DE ICONOGRAFIA<br />

as composições por eles preparadas.<br />

Evidentemente, o filho de um senhor de engenho<br />

não entraria numa relação mestre-aprendiz com o<br />

mestre de capela local. Esperava-se que tomasse conta<br />

dos negócios do pai, fosse estudar em Portugal ou<br />

seguisse a carreira eclesiástica — podendo, neste último<br />

caso desenvolver suas habilidades musicais de maneira<br />

mais aprofundada. Este tipo de interesse musical não<br />

profissional era bastante comum entre a aristocracia e<br />

burguesia abastada portuguesa, a ponto de vários<br />

nobres, incluindo reis e príncipes, tornarem-se<br />

compositores competentes.<br />

Sendo o profissionalismo musical indicativo de<br />

baixa estatura social, isso talvez explicasse o porquê da<br />

quase inexistência de compositores brancos nas Minas<br />

Gerais do século XVIII (com exceção dos portugueses<br />

enviados com a expressa finalidade de servirem como<br />

mestres-de-capela), numa época em que, após a<br />

descoberta do ouro, multiplicavam-se os centros<br />

urbanos no interior da colônia, multiplicando-se<br />

também as oportunidades de trabalho de cantores,<br />

instrumentistas e compositores.<br />

Todavia, para a elite <strong>brasileira</strong> dos séculos XVII<br />

e XVIII, mesmo desdenhando o profissionalismo<br />

musical, o diletantismo na <strong>música</strong> era qualidade<br />

apreciável. A habilidade como compositor é colocada<br />

por historiógrafos e bibliógrafos portugueses<br />

e brasileiros em pé de igualdade com a produção<br />

literária, e a proficiência na execução à viola<br />

ou à harpa equivaleria aos dotes poéticos e à instrução<br />

nas assim chamadas artes liberais. De fato, inventários<br />

17


18<br />

da época comprovam que o mobiliário das casas<br />

grandes costumava incluir harpas, violas e cítaras, além<br />

de dispor de aposentos usados como escolas, onde<br />

os filhos eram instruídos em aritmética, gramática,<br />

retórica, religião e <strong>música</strong>.<br />

Na Nobiliarchia Paulistana, Pedro Taques de<br />

Almeida Prado menciona, entre a aristocracia<br />

paulistana de séculos passados, além de harpistas<br />

e tocadores de “vários instrumentos”, dois tocadores<br />

de viola. Frei Plácido, “eminente na prenda de tanger<br />

viola”, tomou o hábito em Alcobaça e teria tocado para<br />

o rei D. Pedro II de Portugal. Francisco Rodrigues<br />

Penteado, pernambucano, demonstrava tal “mimo”<br />

na mesma arte que em 1648, voltando de Lisboa, foi<br />

convidado por Salvador Correia de Sá e Benevides<br />

a instruir “nos instrumentos músicos” suas filhas e seu<br />

filho Martim Correia. Evidentemente, em se tratando<br />

das famílias aristocráticas <strong>brasileira</strong>s, os dotes musicais<br />

não poderiam ser utilizados como forma permanente<br />

de sustento: são práticas socialmente distintas o cultivo<br />

da <strong>música</strong> como profissão ou como “elemento de<br />

civilidade”, usando a expressão da época. À época<br />

do convite de Sá e Benevides, Penteado encontrava-se<br />

desprovido de recursos, pois havia esbanjado a fortuna<br />

paterna em Lisboa, e a solução encontrada, enquanto<br />

buscava formas mais nobres de aquisição de capital,<br />

seria remediar-se instruindo os filhos do mais poderoso<br />

brasileiro de seu tempo. Algum tempo depois,<br />

Penteado se estabeleceria em São Paulo, após casar-se<br />

com a filha de um latifundiário.<br />

Fora do contexto religioso, além da citação de<br />

Almeida Prado, a harpa aparece também em um<br />

poema de Gregório de Mattos, animando uma festa.<br />

Mesmo utilizada como principal acompanhante das<br />

funções religiosas pelo interior do Brasil até as<br />

primeiras décadas do século XVIII, a harpa não parece<br />

ter-se difundido muito como instrumento doméstico.<br />

Nem mesmo o cravo parece ter exercido essa função<br />

em larga escala, permanecendo neste papel a viola<br />

até ser sobrepujada pelo piano no século XIX.<br />

Principal acompanhador dos romances, cantigas,<br />

tonos e modinhas, além de ótimo veículo para a <strong>música</strong><br />

solo, a viola de mão era instrumento de versatilidade<br />

incontestável. Suas variantes no século XVI incluíam<br />

um instrumento de quatro ordens de cordas (a guitarra<br />

renascentista), de seis ordens (conhecida na Espanha<br />

como vihuela), e, no século seguinte, de cinco ordens<br />

(muitas vezes chamada guitarra barroca). Este último<br />

instrumento originaria mais tarde a viola caipira<br />

<strong>brasileira</strong>, as diversas violas regionais portuguesas,<br />

e a guitarra espanhola, ou violão. Nomes de tocadores<br />

que se especializaram na viola de cinco ordens, como<br />

Felipe Nery da Trindade, Manuel de Almeida Botelho<br />

e João de Lima aparecem com destaque na obra de<br />

Domingos do Loreto Couto, historiógrafo<br />

pernambucano do século XVIII.<br />

Além de chantre da catedral de Salvador por<br />

vários anos, João de Lima — conhecido do poeta<br />

Gregório de Mattos — foi pedagogo e compositor,<br />

deixando obras de <strong>música</strong> sacra e profana<br />

e dominando a execução musical em vários<br />

instrumentos. Manuel de Almeida Botelho passou<br />

vários anos em Portugal, protegido do patriarca<br />

de Lisboa e do Marquês de Marialva. Loreto Couto<br />

atesta que, além de muita <strong>música</strong> sacra, Botelho teria<br />

composto “sonatas e tocatas tanto para viola como<br />

para cravo”, além de <strong>música</strong> de salão, como<br />

minuetes e tonos.<br />

Forma de canção <strong>erudita</strong> bastante difundida na<br />

Península Ibérica e América Latina, o tono humano<br />

geralmente apresenta temática árcade, forma estrófica<br />

com refrão, e textura a uma ou duas vozes agudas<br />

contra um baixo, constituindo-se assim num ancestral<br />

da modinha portuguesa. Quanto aos tonos de Botelho,<br />

talvez se assemelhassem àqueles compostos pelo<br />

português Antônio Marques Lésbio, com<br />

acompanhamento à viola, ou mesmo com a peça<br />

Matais de Incêndios, integrante dos manuscritos


de Mogi (da década de 1720 ou 1730), e trazidos<br />

novamente à tona graças às pesquisas de Jaelson<br />

Trindade, embora ainda reste alguma dúvida quanto<br />

a se esta peça é um tono humano, como sugerido<br />

por Trindade, ou um vilancico natalino, conforme<br />

estudo de Paulo Castagna.<br />

Embora não tenhamos notícia da sobrevivência<br />

de peças compostas por aqueles violistas<br />

pernambucanos e paulistas, podemos ter uma idéia<br />

bastante aproximada do que tocavam, através das<br />

fontes portuguesas do início do século XVIII, para<br />

a viola de cinco ordens contendo o repertório-padrão<br />

para a formação do instrumentista luso-brasileiro<br />

daquela época: danças italianas, francesas, ibéricas<br />

e de influência afro-<strong>brasileira</strong> como o canário, o vilão,<br />

o arromba, o cumbé e o cubanco, além de muitas<br />

fantasias e rojões.<br />

É importante lembrar que o repertório popular<br />

ibérico e latino-americano era muito menos<br />

heterogêneo no século XVII do que em nossos dias.<br />

Portugal havia reconquistado sua independência da<br />

Espanha apenas em 1640. Naquela época, durante<br />

a infância e juventude de Gregório de Mattos, os<br />

elementos que ajudariam a definir a brasilidade apenas<br />

começavam a tomar forma. Muita poesia tanto no<br />

Brasil como em Portugal ainda era escrita em espanhol,<br />

e, enquanto peças de Calderón e Lope de Vega eram<br />

representadas em Salvador, autores brasileiros também<br />

escreviam teatro naquele idioma. Naturalmente,<br />

a <strong>música</strong> desse período também pareceria a nossos<br />

ouvidos bastante espanhola, tratando-se menos de uma<br />

influência nacional específica do que da evidência de<br />

um estilo compartilhado e generalizado por toda<br />

a Península Ibérica e América Latina, como o atestam,<br />

por exemplo, os vilancicos e tonos de Gaspar<br />

Fernandes e Antonio Marques Lésbio, bem como<br />

o repertório português para viola e teclado.<br />

Na ausência de documentos musicais, uma ótima<br />

fonte de informações sobre a <strong>música</strong> não-religiosa<br />

tocada e cantada no Brasil seiscentista é a obra poética<br />

de Gregório de Mattos (1636-1696). Além de descrever<br />

funções musicais e teatrais, de mencionar<br />

instrumentistas e cantores e de citar peças instrumentais<br />

comuns tanto em Portugal como na Espanha e América<br />

Latina, Mattos usa vários tonos humanos espanhóis<br />

como refrão ou base para glosas de sua autoria. Em<br />

outros casos, Mattos usa modas profanas em português,<br />

ou, no dizer dele próprio, canções que os “chulos”<br />

cantavam. Religiosos e moralistas continuavam<br />

encarando com suspeita esse repertório, sendo célebre<br />

a condenação de Nuno Marques Pereira, atribuindo<br />

aquelas modas à invenção do demônio — o qual, conta<br />

Pereira, era exímio tocador de viola.<br />

Na segunda metade do século XVIII, o repertório<br />

musical que passa a difundir-se pela colônia é, por um<br />

lado, o de danças afrancesadas como o minuete<br />

e a contradança — as principais coreografias de salão no<br />

Brasil até o início do século XIX — e, por outro lado, as<br />

canções simples — as modas — agora influenciadas pelo<br />

estilo galante da ópera e <strong>música</strong> sacra napolitanas, com<br />

melodias e harmonias ainda mais simples e adocicadas,<br />

despretensiosamente denominadas “modinhas”.<br />

Se a princípio estas apresentavam uma temática<br />

pastoril árcade, vinculada ao gosto poético da época,<br />

o estilo é gradativamente influenciado pelo contexto<br />

afro-brasileiro, tanto na maneira de falar como nos<br />

ritmos e harmonias do lundu — aquela dança que tanto<br />

escandalizou viajantes do norte da Europa —<br />

originando assim a modinha <strong>brasileira</strong>, que acabaria<br />

voltando para Portugal nas obras de poetas<br />

e compositores como Domingos Caldas Barbosa<br />

e Joaquim Manuel da Câmara.<br />

Felizmente, foi preservada muita <strong>música</strong> desse<br />

período, sendo notáveis as peças coletadas pelos<br />

viajantes austríacos Spix e Martius, as modinhas<br />

<strong>brasileira</strong>s preservadas na Biblioteca da Ajuda<br />

e na Biblioteca Nacional de Lisboa, e as peças<br />

instrumentais contidas no livro de saltério<br />

de Antônio Vieira dos Santos, compilado no início<br />

19


20<br />

do século XIX. Há ainda uma única peça para<br />

teclado do século XVIII, a chamada Sonata Sabará,<br />

cuja autoria ainda permanece cercada de dúvidas.<br />

Finalmente, os duetos concertantes para dois violinos<br />

de Gabriel Fernandes da Trindade, da segunda<br />

década do século XIX, nos dão uma idéia<br />

do estiloda <strong>música</strong> de câmara para cordas<br />

composta nos últimos tempos do Brasil-colônia.<br />

DISCOGRAFIA<br />

Romances Populares:<br />

TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron<br />

Discos; faixa 5: Romance da Nau Catarineta<br />

DO ROMANCE AO GALOPE NORDESTINO. Quinteto Armorial.<br />

Discos Marcus Pereira. Romance da Bela Infanta<br />

José de Anchieta:<br />

TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron<br />

Discos; faixa 8: Quién te visitó, Isabel?; faixa 9: Mira Nero<br />

A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura<br />

e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 6: Venid a sospirar<br />

con Jesu amado (Companhia Papagalia)<br />

Marinícolas:<br />

HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.<br />

Estúdio Eldorado; faixa 2<br />

TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron<br />

Discos; faixa 12<br />

Matais de Incêndios:<br />

HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL I. Ricardo Kanji.<br />

Estúdio Eldorado; faixa 36<br />

A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura<br />

e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 15 (Klepsidra)<br />

Sonata ‘Sabará’:<br />

NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Collegium Musicum de Minas. Prod.<br />

independente, faixa 5<br />

Modinhas:<br />

MARÍLIA DE DIRCEU. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela<br />

Nogueira. Estúdio Eldorado.<br />

MODINHAS E LUNDUS DOS SÉCULOS XVIII E XIX. Manuel Morais<br />

e Segréis de Lisboa. Movieplay; faixa 8: Eu nasci sem coração;<br />

faixa 13: Ganinha, minha Ganinha; faixa 19: Menina, você que<br />

tem?<br />

Coleção de Spix e Martius:<br />

VIAGEM PELO BRASIL. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela<br />

Nogueira. Estúdio Eldorado<br />

Recitativo e Ária:<br />

HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.<br />

Estúdio Eldorado; faixas 11 e 12<br />

Duetos concertantes:<br />

GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES. Maria Ester<br />

Brandão, Koiti Watanabe. Paulus<br />

CASAS DE ÓPERA E ACADEMIAS<br />

Uma espécie de teatro moral com intervenções<br />

musicais já se encontra presente no primeiro século<br />

da colonização, nos autos preparados por José<br />

de Anchieta e Manuel da Nóbrega. Tal como<br />

na Europa, a finalidade didática do teatro jesuítico<br />

era óbvia, e os números musicais cumpriam a função<br />

de tornar mais atraente a mensagem de submissão<br />

à igreja e ao rei. É evidente também a filiação desse<br />

teatro aos autos ibéricos seiscentistas, em especial<br />

os de Gil Vicente, sempre intercalando enredos leves<br />

e cômicos com danças, canções e romances populares.<br />

Nos séculos seguintes, os modelos passariam<br />

a ser Lope de Vega e Calderón.<br />

São bastante numerosos os relatos sobre<br />

a representação de comédias musicadas nas casas<br />

abastadas das cidades, ou mesmo ao ar livre, como<br />

aquelas para as quais o pernambucano Antônio da<br />

Silva Alcântara compôs a <strong>música</strong> em 1752. É quase<br />

certo que tais comédias — a grande maioria escrita em<br />

idioma espanhol — seguissem o modelo da zarzuela de<br />

Antonio de Literes e Sebastián Durón, com árias, coros<br />

e alguns recitados alternando com diálogos falados.<br />

Durante o século XVII, não se tem notícia na<br />

colônia da apresentação de óperas no sentido moderno<br />

do termo, ou seja, a encenação de um enredo<br />

integralmente posto em <strong>música</strong>. Mesmo no século<br />

XVIII, além do modelo das óperas de Antônio José da<br />

Silva, com diálogos falados e poucos números musicais,<br />

não era incomum encenarem-se libretos operísticos<br />

sem qualquer emprego da <strong>música</strong>, funções que eram<br />

mesmo assim denominadas “óperas”.<br />

Sendo o teatro e a ópera — nas suas variadas<br />

acepções — desde cedo explorados no Brasil como<br />

instrumentos de doutrinação ideológica, não tardariam<br />

a aparecer, patrocinadas pelo poder público, casas<br />

especificamente destinadas à representação de dramas,<br />

comédias e entremezes em <strong>música</strong> — as casas de ópera<br />

— que visavam promover uma educação cívica paralela<br />

à educação religiosa da Igreja. No decorrer do século<br />

XVIII, toda vila de maior porte passa a possuir,<br />

além da igreja, uma casa de ópera, aparecendo<br />

as duas muitas vezes lado a lado. Seguindo a marcha<br />

de povoamento do interior que se sucede à descoberta


do ouro, encontramos casas de ópera em várias<br />

localidades das Minas Gerais, de Goiás<br />

e tão longe quanto em Cuiabá, no centro<br />

geográfico da América do Sul.<br />

O repertório das casas de ópera no século XVIII<br />

e boa parte do XIX incluía principalmente dramas<br />

de Metastasio, como Ezio in Roma e Didone abbandonata,<br />

que, além de transmitir alguma lição moral, retratavam<br />

o herói como líder firme, sábio e magnânimo, mas<br />

usando de disciplina quando necessário. Os libretos<br />

escolhidos eram bastante convenientes para<br />

a finalidade proposta, pois a platéia fatalmente<br />

identificaria o herói com o soberano português.<br />

Embora o musicólogo Francisco Curt Lange tenha<br />

compilado uma lista impressionante de óperas<br />

representadas no Brasil durante o século XVIII,<br />

apenas algumas páginas de partituras sobreviveram,<br />

impossibilitando qualquer tentativa de reconstituição.<br />

Do período joanino, restam de Bernardo José de Souza<br />

Queiroz a <strong>música</strong> de cena para uma peça teatral<br />

de 1813, dois entremezes e uma ópera, Zaíra, composta<br />

no Rio de Janeiro antes de 1816, além de alguns<br />

números avulsos de óperas do baiano Damião Barbosa<br />

de Araújo. Além disso, muita pesquisa resta a ser<br />

realizada sobre as óperas de autores europeus —<br />

Marcos Portugal e Pedro Antônio Avondano, para<br />

citar os mais importantes — representadas em casas<br />

de ópera <strong>brasileira</strong>s.<br />

Por volta do final do século XVIII, devido<br />

à escassez do ouro e ao fim do patrocínio público, as<br />

casas de ópera desaparecem ou passam a ser definidas<br />

mais e mais como espaços daqueles que podem pagar<br />

e dos que, à custa de muita bajulação, conseguem um<br />

lugar ao lado daqueles. Já os atores, cantores<br />

e instrumentistas sempre foram na sua maior parte<br />

mulatos e negros, cuja instrução teria sido provida<br />

ou pelos mestres de capela locais ou, de maneira mais<br />

informal, pelos diretores musicais dos regimentos<br />

militares ou das bandas de músicos dos engenhos<br />

e minas. Algumas vezes, tais artistas conseguiam ir bem<br />

além da casa de ópera local, como foi o caso da<br />

cantora mulata Joaquina Maria da Conceição Lapinha,<br />

que apresentou-se com sucesso em teatros portugueses.<br />

Não se colocando na posição subserviente de<br />

músico ou ator profissional, o rico e o letrado teriam<br />

restritas possibilidades de demonstração de suas<br />

habilidades performáticas, fossem elas de poeta,<br />

intérprete ou mesmo compositor. Além do espaço<br />

doméstico, havia a academia, um misto de clube<br />

literário e sociedade secreta que se difundiria pelos<br />

principais centros urbanos do Brasil a partir da segunda<br />

metade do século XVIII. É no contexto das academias,<br />

ligadas à estética árcade, que surgem nomes como os<br />

de Tomás Antônio Gonzaga (cujas poesias foram depois<br />

musicadas na série de modinhas do ciclo de Marília<br />

de Dirceu) e Domingos Caldas Barbosa (cristalizador<br />

da modinha <strong>brasileira</strong>), e de obras como a cantata<br />

Herói, egrégio, douto, peregrino, mais conhecida como<br />

Recitativo e Ária para José Mascarenhas, composta<br />

em Salvador em 1759.<br />

Não sobreviveu até nossos dias o repertório<br />

de <strong>música</strong> de câmara que talvez fizesse parte das<br />

reuniões daqueles acadêmicos. Alguns deles possuíam<br />

instrumentos de arco, como ficou registrado nos autos<br />

de devassa da Inconfidência Mineira. Além disso,<br />

comprovando a prática da <strong>música</strong> de câmara européia<br />

no interior do Brasil, há o relato de Spix e Martius,<br />

sobre um mineiro que intercepta os viajantes<br />

no interior da mata e os convida a irem à sua casa,<br />

onde, com instrumentos e partituras cedidas pelo<br />

anfitrião, executam um quarteto de Pleyel.<br />

ROGÉRIO BUDASZ<br />

Doutor em musicologia (Phd) pela Universidade do Sul da Califórnia, mestre em musicologia pela Universidade de São Paulo<br />

e professor da Universidade Federal do Paraná.<br />

21


22<br />

A <strong>música</strong> no<br />

Brasil Colonial<br />

anterior à<br />

chegada da<br />

Corte de<br />

D. João VI<br />

HARRY CROWL


OS AVANÇOS DOS ESTUDOS MUSICOLÓGICOS NOS<br />

ÚLTIMOS ANOS, NA ÁREA DA MÚSICA PRODUZIDA<br />

NO BRASIL NA ÉPOCA DA COLÔNIA, TÊM APONTADO<br />

SEMPRE PARA UM FATO QUE JÁ NOS PARECE<br />

IRREVERSÍVEL – DESCONHECE-SE TODA A MÚSICA<br />

PRODUZIDA EM TERRAS BRASILEIRAS EM PERÍODO<br />

ANTERIOR À SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII.<br />

ASSIM COMO TAMBÉM DESCONHECEMOS A MAIOR<br />

PARTE DO QUE SE PRODUZIU NAS REGIÕES NORTE<br />

E NORDESTE EM TODA A ÉPOCA COLONIAL.<br />

23


Oconjunto da produção musical encontrado na capitaniageral<br />

das Minas Gerais, na época do ciclo do ouro,<br />

tornou-se a referência mais antiga da produção musical<br />

artística no Brasil. Salvo alguns poucos exemplos<br />

isolados de manuscritos encontrados em outras regiões<br />

do país, a produção mineira consistiu-se no primeiro<br />

grande conjunto de obras musicais disponíveis para<br />

o desenvolvimento de um estudo mais aprofundado<br />

sobre a expressão musical no país.<br />

Apesar do deslocamento do eixo econômico para<br />

a região das Minas Gerais, é nas capitanias-gerais da<br />

Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências<br />

musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.<br />

Considerando que as descobertas de Mogi-das-Cruzes<br />

na década de 1980 apontam para as práticas<br />

polifônicas portuguesas anteriores ao século XVIII,<br />

somos obrigados a retomar a antiga capital da colônia,<br />

Salvador, como ponto de partida para qualquer<br />

consideração que queiramos fazer sobre a <strong>música</strong><br />

exclusivamente escrita no Brasil, na época anterior<br />

à independência política. Sendo a região por onde<br />

iniciou-se a colonização, a Bahia apresenta nessa<br />

época uma sociedade já relativamente sedimentada,<br />

se comparada com as demais regiões da Colônia.<br />

Poderíamos acrescentar a Capitania de Pernambuco<br />

como a segunda região mais importante do ponto<br />

de vista sócio-cultural e econômico. Nesse sentido,<br />

o achado mais importante até agora é uma obra<br />

de caráter profano, anônima, composta em 1759,<br />

denominada Recitativo e Ária. Esse manuscrito para<br />

soprano, violinos I e II, e baixo contínuo, datado de<br />

2/7/1759, está dedicado a José Mascarenhas Pacheco<br />

Pereira de Mello, um importante magistrado da<br />

“Casa de Suplicação”, a suprema Corte de Justiça<br />

de Portugal, na época. Essa composição, que está<br />

baseada num texto vernáculo, também de autoria<br />

desconhecida, é uma laudatória em homenagem<br />

ao referido magistrado, que estava ligado à “Academia<br />

Brasílica dos Renascidos”, uma sociedade intelectual<br />

semelhante à “Arcádia Romana”. O referido<br />

magistrado estava recém-restabelecido de uma longa<br />

enfermidade e, ao que parece, o Recitativo e Ária<br />

foi composto especialmente para recebê-lo numa<br />

das reuniões da “Academia”.<br />

24<br />

Em Recife, encontramos o nome de Luís Álvares<br />

Pinto (1719-1789). Esse compositor, regente, poeta e<br />

professor viajou, por volta de 1740, para Lisboa, onde<br />

estudou com Henrique da Silva Negrão, organista da<br />

catedral de Lisboa, e que foi discípulo de Duarte Lobo.<br />

Na época em que viveu na capital portuguesa, ele<br />

compunha, tocava violoncelo na Capela real, fazia<br />

cópias de <strong>música</strong> e dava aulas em casas de nobres.<br />

Na relação de músicos portugueses publicada por<br />

José Mazza, em 1799, ele informa o seguinte sobre<br />

esse compositor: “Luis Alvares Pinto natural<br />

de Pernambuco, excelente Poeta Português e Latino,<br />

muito inteligente na língua Francesa, e Italiana;<br />

acompanhava muito bem rabecão, viola, rabeca veio<br />

a Lxa aprender contraponto com célebre Henrique da<br />

Silva, tem composto infinitas obras com muito acerto<br />

principalmente eclesiásticas; compôs (ultimat.e humas<br />

exequias) à morte do Senhor Rey D. José o primeiro<br />

a quatro coros, e ainda em composições profanas tem<br />

escrito com muito aserto” (sic).<br />

Em 1761 já estava de volta a Pernambuco,<br />

profissionalmente atuante. Nesse mesmo ano escreveu<br />

a Arte de Solfejar, cujo manuscrito encontra-se<br />

na Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi responsável<br />

pela formação de vários músicos e mestres-de-capela.<br />

L. A. Pinto foi também militar, tendo tido a patente<br />

de capitão do regimento de milícia confirmada<br />

também em 1766.<br />

Luís Álvares Pinto foi também um dos primeiros<br />

comediógrafos nascidos no Brasil. Sua peça teatral em<br />

três atos, Amor Mal Correspondido, foi encenada em 1780.<br />

Em 1782, por ocasião da inauguração da igreja<br />

de São Pedro dos Clérigos, foi confirmado na função<br />

de mestre-de-capela, cargo que já desempenhava desde<br />

1778 e que ocupou até 1789, ano de seu falecimento.<br />

De suas poucas composições que alcançaram<br />

os nossos dias restaram apenas um Te Deum alternado,<br />

cuja orquestração perdeu-se, e um Salve Regina para três<br />

vozes mistas, violinos I e II e baixo contínuo. Consta<br />

ainda ter composto três hinos a Nossa Senhora da<br />

Penha, um hino a Nossa Senhora do Carmo, um hino<br />

a Nossa Senhora Mãe do Povo, um Ofício da Paixão,<br />

matinas de São Pedro, matinas de Santo Antônio,<br />

novenas, ladainhas e sonatas.


Apesar do deslocamento do eixo econômico<br />

para a região das Minas Gerais, é nas capitanias gerais<br />

da Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências<br />

musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.<br />

Se Luis Álvares Pinto foi o único compositor<br />

nascido no Brasil que teve a oportunidade de estudar<br />

em Lisboa — de acordo com a documentação<br />

conhecida até o momento —, por outro lado,<br />

o português André da Silva Gomes (Lisboa, 1752 —<br />

São Paulo, 1844) foi um músico enviado pela<br />

metrópole, no século XVIII, para ocupar a função<br />

de mestre-de-capela numa vila importante da colônia.<br />

Pouco se sabe sobre sua formação musical, apenas que<br />

foi discípulo de José Joaquim dos Santos (ca. 1747 —<br />

1801?), compositor português aluno do napolitano<br />

David Perez (1711 — 1778), importante músico que<br />

sistematizou o ensino musical em Portugal, cujas obras<br />

foram amplamente difundidas inclusive no Brasil.<br />

André da Silva Gomes nasceu em Lisboa em 1752 e<br />

veio para o Brasil em março de 1774. Assim que<br />

chegou, foi contratado para ocupar o cargo de mestrede-capela<br />

da Sé de São Paulo, tornando-se o quarto<br />

ocupante da função. Suas atividades foram intensas,<br />

pois, ao que parece, havia uma necessidade<br />

de reorganização dos serviços musicais da Sé. Desde<br />

sua chegada até 1801, foi também o responsável pela<br />

<strong>música</strong> nas festas reais anuais da Câmara de São Paulo.<br />

Silva Gomes teve vários discípulos e agregados, entre<br />

eles futuros mestres-de-capela e organistas, como foi<br />

o caso de Bernadino José de Sena, que foi seu agregado<br />

em 1776 e mais tarde, desempenhou o cargo<br />

de organista na vila de Nossa Senhora do Rosário<br />

de Pernaguá, atual Paranaguá, PR.<br />

Como já acontecia nas demais partes da colônia,<br />

o compositor precisou atuar em outras profissões para<br />

poder sobreviver. Após requerer algumas funções que<br />

lhe permitiriam independência econômica em relação<br />

à capela da <strong>música</strong> da Sé, foi nomeado interinamente,<br />

em 1797, para o cargo de professor régio de gramática<br />

latina da cidade de São Paulo, tendo sido efetivado por<br />

D. Maria I no cargo de professor de latim em 1801.<br />

André da Silva Gomes abandonou todos os serviços<br />

J. J. Emerico Lobo<br />

de Mesquita.<br />

Tércio (1783).<br />

Fotografia<br />

do original<br />

autógrafo.<br />

FUNARTE<br />

25


26<br />

musicais além da Sé, de cujo salário abriu mão<br />

em benefício da capela de <strong>música</strong> da catedral, que não<br />

deixou por solicitação expressa do bispo. As primeiras<br />

composições de A. da Silva Gomes, datadas e<br />

assinadas, remontam ao ano de sua chegada<br />

a São Paulo, 1774. Trazidas de Portugal ou copiadas<br />

aqui por ele, existem diversas obras de compositores<br />

portugueses e italianos, na maioria salmos. Compôs<br />

mais de uma centena de obras. Muitas delas foram<br />

recopiadas posteriormente por outros, sem que se<br />

transcrevesse o nome de seu autor. Suas composições<br />

mais notáveis são a Missa a 8 vozes e instrumentos<br />

e a Missa a 5 vozes. Sua última composição foi uma<br />

Missa de Natal, 1823, composta para ser executada na<br />

Matriz da Freguesia de Acutia (atual Cotia, SP), ao que<br />

parece, uma adaptação de outra obra bem anterior.<br />

No último quartel do século XVIII aparece ainda<br />

o nome de Theodoro Cyro de Souza como mestre-decapela<br />

na catedral da Bahia. Esse é o ultimo caso de<br />

nomeação direta de Portugal para o cargo em Salvador,<br />

e é também o primeiro compositor a atuar na região<br />

do qual encontramos exemplos musicais concretos.<br />

Nascido em Caldas da Rainha, Portugal, em 1766,<br />

Theodoro Cyro de Souza recebeu sua formação<br />

musical no Seminário Patriarcal em Lisboa,<br />

provavelmente sob a orientação de José Joaquim dos<br />

Santos. Em 1781, partiu de Lisboa para Salvador, onde<br />

assumiria a função de mestre-de-capela, com<br />

o patrocínio de D. Pedro III, da mesma maneira como<br />

ocorrera com André da Silva Gomes, em São Paulo.<br />

A obra de Theodoro Cyro de Souza parece ter<br />

gozado de considerável reputação em toda a região,<br />

pois sua única composição encontrada no Brasil até<br />

o momento, os Motetos para os passos da Procissão do<br />

Senhor, é uma cópia do final do século XIX realizada<br />

em Alagoinhas − BA, que foi localizada numa coleção<br />

de <strong>música</strong> para a Semana Santa, anônima, proveniente<br />

de Propriá − SE, divulgada numa primeira transcrição<br />

por Alexandre Bispo.<br />

MÚSICA NAS MINAS GERAIS<br />

O isolamento imposto pela Coroa portuguesa, assim<br />

como o próprio afastamento geográfico da região da<br />

Capitania-Geral das Minas Gerais, fará com que toda a<br />

organização da vida cotidiana, religiosa e cultural dessa<br />

parte do Brasil torne-se um tanto peculiar, necessitando,<br />

assim, de critérios específicos para sua avaliação.<br />

A descoberta do ouro trouxe enormes benefícios<br />

para a Coroa portuguesa, como já se sabe. A partir<br />

de 1696, a grande movimentação humana em direção<br />

ao interior do continente fez com que as autoridades<br />

portuguesas regulamentassem a ocupação dessas<br />

regiões. Preocupados com o contrabando de riquezas,<br />

a Coroa viu-se forçada a proibir a entrada de ordens<br />

monásticas nas regiões recém-ocupadas. Devido<br />

ao fato de que o Estado português e a Igreja Católica<br />

formavam uma espécie de unidade corporativa desde<br />

o século XVI, a inviolabilidade dos mosteiros<br />

e conventos era uma realidade aparentemente<br />

irreversível. Portanto, ao mesmo tempo em que<br />

a autoridade eclesiástica representava o Estado, ela<br />

também possibilitava o contrabando de ouro e pedras<br />

preciosas diante das autoridades civis, sem que essas<br />

pudessem fazer muito a respeito. Diante de tal situação,<br />

muito comum nas regiões do Nordeste brasileiro,<br />

determinou-se que toda a vida religiosa na região<br />

das minas fosse organizada por ordens leigas,<br />

ou irmandades formadas por homens comuns,<br />

que deveriam contratar todos os serviços relativos<br />

ao “bom desempenho das funções religiosas”.<br />

Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado<br />

pelos portugueses para não haver distinção entre<br />

negros forros, mulatos ou mesmo brancos<br />

nativos sem posses ou posição social.


Essas irmandades eram denominadas também<br />

como ordens terceiras, confrarias e arquiconfrarias,<br />

de acordo com sua importância na comunidade.<br />

Eram distribuídas por etnias, ou seja, homens brancos,<br />

pardos ou negros. O Estado colonial incentivava<br />

a rivalidade entre essas agremiações, que cuidavam<br />

de desde a construção da igreja até a contratação<br />

de artistas para a realização da decoração interna,<br />

talha, escultura e pintura, assim como a contratação<br />

de músicos para a criação e interpretação da <strong>música</strong><br />

que deveria ser usada nas cerimônias. A maior parte<br />

dos músicos e artistas atuantes na região era “parda”,<br />

ou seja, de sangue mestiço de brancos e negros.<br />

Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado pelos<br />

portugueses para não haver distinção entre negros<br />

forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses<br />

ou posição social.<br />

A informação mais antiga que temos a respeito<br />

de um compositor ou regente ou organista, na antiga<br />

Vila Rica, é a de que Bernardo Antônio recebeu<br />

a soma de 200 oitavas de ouro pela <strong>música</strong> anual<br />

de 1715. Esse dado consta no livro de receitas e<br />

despesas da Irmandade de Santo Antônio. Ainda na<br />

primeira metade do século XVIII, encontramos os<br />

nomes de Francisco Mexia e de Antônio de Souza<br />

Lobo, em Vila Rica, assim como o do Mestre Antônio<br />

do Carmo, em São João del Rei. Todas as notícias<br />

relativas à <strong>música</strong> em Minas no século XVIII estão<br />

restritas aos livros manuscritos de receitas e despesas<br />

das irmandades. Não há registros de nomeações<br />

ou informações impressas sobre os compositores, pois<br />

a imprensa inexistia na colônia. O cargo de mestre-decapela<br />

era um privilégio das sedes de bispado, portanto<br />

somente a vila de Mariana contava com nomeações<br />

para essa função. Nas demais vilas encontramos<br />

a denominação de “responsável pela <strong>música</strong>”, o que<br />

não implicava um cargo permanente, pois um músico<br />

responsável pelo serviço em um ano determinado<br />

poderia ser substituído no ano seguinte.<br />

A documentação musical propriamente dita<br />

encontrada até o momento concentra-se numa<br />

produção posterior a 1770. Na condição de capital<br />

da capitania, Vila Rica, atual Ouro Preto, foi local<br />

de atividade mais intensa durante o período de final<br />

Luís Álvares<br />

de Azevedo Pinto.<br />

Te Deum Laudamus.<br />

Secretaria<br />

de Educação<br />

e Cultura de<br />

Pernambuco, 1968.<br />

Restauração<br />

do Padre Jaime Diniz.<br />

FUNARTE<br />

do século XVIII até por volta de 1850.<br />

O compositor mais antigo cuja obra é parcialmente<br />

conhecida é Ignácio Parreiras Neves (ca. 1730—1794?).<br />

A alusão mais remota ao seu nome é a de seu ingresso<br />

na Irmandade de São José dos Homens Pardos,<br />

em 16/4/1752. A partir daí, seu nome aparece como<br />

regente-compositor e cantor (tenor), em várias ocasiões<br />

até 1793, atuante em quase todas as Irmandades<br />

e Ordens 3as de Vila Rica. De sua obra, conhecemos<br />

apenas três exemplos bem distintos entre si. São eles:<br />

o Credo em Ré maior, a Antífona de Nossa Senhora — Salve<br />

Regina e a Oratória ao Menino Deus na Noite de Natal.<br />

Nenhuma dessas obras está datada. A mais curiosa<br />

de todas é a Oratória. Trata-se de uma composição<br />

sobre texto vernáculo em português. É a única<br />

do gênero encontrada até agora no Brasil. No período<br />

em que Parreiras Neves atuou como cantor, dois outros<br />

músicos importantes foram seus colegas no conjunto<br />

vocal. São eles: Francisco Gomes da Rocha e Florêncio<br />

José Ferreira Coutinho. Considerando o fato de que<br />

esses músicos eram mais novos e que atuaram juntos<br />

por mais de 15 anos, acreditamos que esses dois<br />

tenham sido discípulos de I. P. Neves. Não há qualquer<br />

indicação de como esses músicos que viveram na<br />

região das minas aprenderam a arte da solfa. Não<br />

há menção em qualquer documento da existência<br />

de alguma escola de <strong>música</strong>. Portanto, a resposta mais<br />

razoável seria a de que eles se desenvolveram num<br />

processo de iniciação que seguia o modelo de relação<br />

mestre/discípulo, como no caso dos artistas plásticos,<br />

27


28<br />

DISCOGRAFIA<br />

LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM<br />

MANOEL DIAS DE OLIVEIRA: MISERERE E MAGNIFICAT<br />

IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: SALVE REGINA<br />

Negro Spirituals au Brésil Baroque<br />

Direction: Jean-Christophe Frisch. K617113 - França<br />

LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM<br />

Camerata Antiqua de Curitiba<br />

Regência: Roberto de Regina. PAULUS 11563-0 - Brasil<br />

IGNÁCIO PARREIRAS NEVES:<br />

ORATÓRIA AO MENINO DEUS NA NOITE DE NATAL<br />

Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />

Direção: Ricardo Bernardes.<br />

AMERICANTIGA PLCD51837 - Brasil<br />

ANDRÉ DA SILVA GOMES:<br />

MISSA A 8 VOZES E INSTRUMENTOS<br />

Orquestra Barroca do 14º Festival Internacional de Música<br />

Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora<br />

Direção: Luís Otávio Santos<br />

CD 14º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil<br />

VENI SANCTE SPIRITU<br />

Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />

Direção: Ricardo Bernardes<br />

AMERICANTIGA, Vol. I PLCD51837 - Brasil<br />

JOSÉ JOAQUIM EMERICO LOBO DE MESQUITA:<br />

MISSA EM MI BEMOL MAIOR<br />

Orquestra Barroca do 12º Festival Internacional de Música<br />

Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora<br />

Direção: Luís Otávio Santos<br />

CD 12º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil<br />

MATINAS PARA QUINTA-FEIRA SANTA<br />

Orquestra Barroca do 11º Festival Internacional de Música<br />

Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora<br />

Direção: Luís Otávio Santos<br />

CD 11o.Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil<br />

MATINAS DE SÁBADO SANTO<br />

Calíope<br />

Direção: Júlio Moretzsohn<br />

Museu da Música da Mariana III (CD - MMM III). Mariana, MG -<br />

Brasil<br />

MISSA PARA 4 a FEIRA DE CINZAS<br />

Calíope<br />

Direção: Júlio Moretzsohn. CAL-001 Rio de Janeiro, RJ - Brasil<br />

PE. JOÃO DE DEUS DE CASTRO LOBO:<br />

MATINAS DE NATAL<br />

Coral Porto Alegre e Orquestra<br />

Regência: Ernani Aguiar<br />

CD - FUNPROARTE, Prefeitura de Porto Alegre. Porto Alegre,<br />

RS - Brasil<br />

como já pode ser constatado.<br />

Francisco Gomes da Rocha (1754?—1808) ingressou<br />

na Irmandade da Boa Morte da Matriz de Nossa<br />

Senhora da Conceição, na Freguesia de Antônio Dias,<br />

em julho de 1766, e na Irmandade de São José dos<br />

homens Pardos, em junho de 1768.<br />

Em todas essas confrarias, ocupou cargos<br />

importantes, como o de escrivão e tesoureiro.<br />

Apresentou-se como regente e contralto em inúmeras<br />

festividades, durante longo período da segunda metade<br />

do séuclo XVIII. Foi também timbaleiro da tropa de<br />

linha, segundo o recenseamento de 1804. Nesse mesmo<br />

recenseamento consta que Gomes da Rocha contava<br />

com 50 anos na época do mesmo, tendo, portanto,<br />

nascido em 1754. De sua produção, conhecemos<br />

apenas uma parte mínima, que são as obras<br />

Invitatório a 4 para 4 vozes, 2 trompas, violinos I<br />

e II, e baixo contínuo; Novena de Nossa Senhora do Pilar,<br />

de 1789, para 4 vozes, 2 trompas, vln. I e II, viola<br />

e baixo contínuo; Spiritus Domine, de 1795, para<br />

2 coros, 2 oboés, 2 trompas, vln. I e II, viola e baixo<br />

contínuo. Há ainda uma obra incompleta,<br />

as Matinas do Espírito Santo, também de 1795.<br />

Florêncio José Ferreira Coutinho (1750—1820) foi<br />

regente, cantor (baixo) e trombeteiro do Regimento<br />

de Cavalaria Regular. Por três vezes foi contemplado<br />

com a contratação para a realização do serviço anual<br />

das festas oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica.<br />

Em 1770, entrou para a Irmandade de São José<br />

dos Homens Pardos, que lhe registrou<br />

o falecimento em 10/06/1820.<br />

Outros três compositores de Vila Rica que<br />

mencionaremos são Marcos Coelho Neto (1746?—<br />

1806), Jerônimo de Souza Queiroz (17..—1826?)<br />

e o Pe. João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica,<br />

1794 — Mariana, 1832).<br />

Coelho Neto, que era trompista, clarinista<br />

(trompetista), timbaleiro do 9º Regimento, além<br />

de compositor e regente, exerceu ainda, segundo<br />

documento localizado no cartório do 1º ofício de Ouro<br />

Preto pelo professor Ivo Porto de Menezes, o ofício de<br />

alfaiate. Em 1785 foi designado pelo Governador-Geral<br />

Luís da Cunha Menezes para reger a <strong>música</strong> de três<br />

óperas e dois dramas reais, por ocasião dos festejos


Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana<br />

o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo, no norte<br />

da Alemanha (...) Esse instrumento foi uma doação<br />

do rei ao bispado e é considerado, hoje como o órgão<br />

Arp Schnitger mais importante fora da Europa.<br />

do casamento dos infantes D. João e Mariana Vitória.<br />

Em 1804, ano do recenseamento geral de Vila Rica,<br />

o compositor declara contar com 58 anos, tendo<br />

nascido, portanto, em 1746. De sua obra, podemos citar<br />

o hino Maria Mater Gratiae, de 1787, o Salve Regina<br />

de 1796, e a Ladainha em Ré Maior, denominada<br />

em alguns manuscritos como Ladainha das Trompas.<br />

Seu filho, também chamado Marcos Coelho Neto,<br />

foi trompista e trombeteiro do 19º Regimento.<br />

Em 1804, ele declarou ter 28 anos. Faleceu em 1823.<br />

Acreditamos que as obras que levam o nome<br />

de Marcos Coelho Neto são da autoria do pai, pois<br />

apresentam características formais muito semelhantes<br />

entre si, e o filho seria demasiadamente jovem quando<br />

o hino Maria Mater Gratiae foi composto.<br />

Jerônimo de Souza Queiroz foi organista<br />

e organeiro. Era filho do português Jerônimo de Souza<br />

Lobo Lisboa e Anna Maria Queiroz Coimbra.<br />

Seu nome tem sido freqüentemente confundido com<br />

o de seu pai, pois Souza Lobo foi, igualmente, um<br />

importante músico em Vila Rica. Souza Queiroz atuou<br />

na Irmandade do Santíssimo Sacramento do Pilar entre<br />

1798 e 1801. Em 1826, compôs a Missa e Credo<br />

a 4 vozes com acompanhamento “d’órgão”. A data<br />

exata do seu falecimento é ainda ignorada, não tendo o<br />

seu nome aparecido em qualquer referência após 1826.<br />

De sua obra, dispomos hoje de uma coleção<br />

aproximada de 20 manuscritos. Suas composições<br />

mais importantes são: Credo em Ré Maior; Missa e Credo<br />

a 4 para coro e órgão (1826); Zelus Domus Tuae<br />

(Ofício de 4a feira santa); Astiterunt Reges Terrae (Ofício<br />

de 5a feira santa); In Pace (Ofício de 6a feira santa).<br />

O último grande compositor ativo em Vila Rica<br />

foi, sem dúvida, o Pe. João de Deus de Castro Lobo<br />

(1794-1832). As primeiras notícias da atividade musical<br />

do Pe. João de Deus datam de 1810, quando seu nome<br />

aparece como o responsável pela regência da<br />

temporada de Ópera em Vila Rica. De 1817 a 1823,<br />

atuou como organista da Ordem 3a do Carmo,<br />

alternadamente, a partir de 1819, com sua formação<br />

sacerdotal no Seminário de Mariana, que se<br />

completará em 1821. Apesar de ter falecido bastante<br />

jovem, em 1832, o Pe. João de Deus foi um dos<br />

compositores mais “ousados” de sua época, escrevendo<br />

obras de grande dificuldade técnica tanto para as vozes<br />

quanto para os instrumentos. Pe. João de Deus deixou<br />

variada obra litúrgica, além da Abertura em Ré-Maior,<br />

que é o único exemplar de <strong>música</strong> puramente<br />

instrumental encontrado em Minas pelo autor<br />

do presente texto.<br />

Suas principais composições são: Missa e Credo<br />

a 8 vozes e orquestra; Missa a 4 vozes em Ré maior; Matinas<br />

de Natal; Matinas de Nossa Senhora da Conceição; Te Deum<br />

(1822); 6 Responsórios Fúnebres (1832).<br />

O compositor faleceu em Mariana, aos 38 anos<br />

de idade, em 1832.<br />

Antes do Pe. João de Deus, Mariana, como<br />

sede do bispado, foi um centro musical de grande<br />

importância, sendo que a função de mestre-de-capela<br />

foi criada pelo primeiro bispo D. Frei Manoel da Cruz.<br />

Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana<br />

o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo,<br />

no norte da Alemanha, originalmente para servir<br />

em Lisboa. Esse instrumento foi uma doação do rei<br />

ao bispado e é considerado, hoje, como o órgão Arp<br />

Schnitger mais importante fora da Europa.<br />

29


30<br />

Outro compositor importante que provavelmente<br />

atuou em Mariana foi Francisco Barreto Falcão,<br />

procedente da Vila de Sabará. Algumas de suas obras<br />

encontram-se em manuscritos, no Museu da Música<br />

de Mariana.<br />

Da avaliação que se pode fazer até o momento<br />

da produção musical de Vila Rica de Nossa Senhora<br />

da Conceição do Sabarabussu, atual Sabará,<br />

percebemos que a produção musical de lá foi<br />

igualmente intensa, porém a perda da documentação<br />

musical foi ainda maior que em outros lugares.<br />

Além de Francisco Barreto Falcão, que atuou em<br />

Mariana, encontramos Manuel Júlião da Silva Ramos<br />

(1763-1824), que foi descoberto pelo musicólogo Régis<br />

Duprat. O compositor Manuel Júlião aparece<br />

exercendo funções musicais na Vila de Atibaia, SP,<br />

em 1808. É autor de um Credo, cuja linguagem está<br />

bem próxima da dos demais compositores.<br />

As Vilas de São José e São João del-Rei<br />

desempenharam também um importante papel na<br />

produção musical do período. O compositor de maior<br />

destaque da região é, sem dúvida, Manuel Dias<br />

de Oliveira (1735 − 1813). Organista e regente, esse<br />

compositor jamais atuou fora de sua região, onde<br />

foi organista na Matriz de Santo Antônio de São José<br />

del-Rei (atual Tiradentes).<br />

A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias<br />

de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes<br />

entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida boa<br />

parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.<br />

Em São João del-Rei, os compositores mais<br />

importantes são Antônio dos Santos Cunha,<br />

Pe. Manuel Camelo, João José das Chagas, Francisco<br />

Martiniano de Paula Miranda e Lourenço José<br />

Fernandes Braziel.<br />

Santos Cunha representa, juntamente como<br />

Pe. João de Deus, o início das influências românticas<br />

na <strong>música</strong> produzida na região das minas. Esse<br />

compositor atuou em São João entre 1815 e 1825;<br />

ignoram-se as datas de seu nascimento e morte.<br />

A primeira notícia escrita de atividade musical<br />

em São João del-Rei data de 1717, quando o<br />

Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedro<br />

de Almeida e Portugal, conde de Assumar, fez uma<br />

visita à antiga vila.<br />

O manuscrito de Samuel Soares de Almeida relata<br />

minuciosamente a recepção, descrevendo desde<br />

a marcha de entrada da comitiva na vila até a<br />

solenidade na Igreja Matriz, “ao som de <strong>música</strong><br />

organizada pelo mestre Antônio do Carmo”. Na Igreja<br />

foi entoado o Te Deum, “que foi seguido por todo<br />

o clero e <strong>música</strong>”, o que provavelmente indica uma<br />

forma alternada de canto em polifonia com os padres<br />

cantando um verso gregoriano e o conjunto musical<br />

respondendo com um verso musical, tal como se faz,<br />

ainda hoje, na cidade.<br />

Daí em diante, o mestre Antônio do Carmo<br />

responsabiliza-se pela parte musical de importantes<br />

festas realizadas na vila. Em 1724 dirigiu a <strong>música</strong> na<br />

solenidade de benção da nova Matriz. Quatro anos<br />

depois, organizou a <strong>música</strong> para a festa de São João<br />

Batista, promovida pelo Senado da Câmara, e, em<br />

1730, os “desponsórios dos Sereníssimos Príncipes<br />

Nossos Senhores”. Pe. Manuel Camelo parece ser<br />

o compositor mais antigo do qual conhecemos algum<br />

exemplo musical. Trata-se de uma Antífona:<br />

Flos Carmeli. Lourenço José Fernandes Braziel atuou<br />

em fins do século XVIII e início do XIX, sendo que<br />

o inventário de seus bens nos dá uma visão bastante<br />

ampla do tipo de repertório que era conhecido pelos<br />

A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias<br />

de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes<br />

entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida<br />

boa parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.


compositores mineiros da época. João José das Chagas<br />

e Francisco Martiniano de Paula Miranda são<br />

compositores também representativos da <strong>música</strong><br />

do início do século XIX.<br />

Na Vila de Tamanduá (atual Itapecerica) aparece<br />

o nome de José Rodrigues Dominguez de Meireles<br />

como músico. Em época ignorada, esse compositor<br />

transferiu-se para a Vila de Nossa Senhora da Piedade<br />

(atual Pitangui). De sua obra, a referência mais antiga<br />

que temos é uma página de rosto existente no Museu<br />

da Música de Mariana; trata-se de uma Antífona<br />

de Santo Antônio, de 1797, que se encontra perdida.<br />

Existe ainda, no Museu da Música, uma Antífona<br />

Portuguesa a Sta. Rita. As demais obras encontradas<br />

são: Ofício de Domingo de Ramos (1810); Ofício de 4a feira<br />

de Trevas “Zelus Domus” (1811); Ofício de 5a feira<br />

“Astiterunt” (1811); Ofício de Finados, todas completas.<br />

Todas essas obras estão no Arquivo Curt Lange,<br />

em Ouro Preto. Consta no arquivo que pertenceu<br />

ao <strong>Maestro</strong> Vespasiano Santos, em Belo Horizonte,<br />

a ária a solo Oh Lingua Benedicta, de 1815.<br />

Em 1985, foram descobertas pelo autor deste texto,<br />

uma Trezena de Santo Antônio e um Domine<br />

ad Adjuvandum de Dominguez de Meireles.<br />

Outro importante compositor é Joaquim de Paula<br />

Souza, o “Bonsucesso”, de Prados, que deixou uma<br />

Missa em Sol Maior e outra em Dó Maior. Na região<br />

diamantina, ou seja, da Vila do Príncipe do Serro<br />

do Frio (atual Serro) e do Arraial do Tejuco (atual<br />

Diamantina), atuaram José Joaquim Emerico Lobo<br />

de Mesquita (1746?−1805), José de Paiva Quintanilha<br />

(século XVIII/XIX) e Alberto Fernandes de Azevedo<br />

(século XVIII/XIX).<br />

Lobo de Mesquita atuou como organista<br />

e compositor na Vila do Príncipe até por volta de 1775,<br />

quando se transferiu por motivos desconhecidos para<br />

o Arraial do Tejuco. Sua obra datada mais antiga que<br />

conhecemos é a Missa para Quarta-feira de Cinzas,<br />

de 1778, para 4 vozes, violoncelo obligatto e órgão<br />

(baixo contínuo), o que mostra que o compositor,<br />

muito provavelmente, já atuava como organista<br />

nessa época. Em 1792, encarregou-se de compor um<br />

Oratório para a Semana Santa, que se encontra perdido.<br />

Em 1795 abandonou o Carmo e em 1798, o Arraial<br />

do Tejuco, por problemas financeiros, indo instalar-se<br />

em Vila Rica, onde viveu por um ano e meio. Com<br />

a decadência da Vila e a falta de melhor remuneração<br />

para o seu trabalho, Lobo de Mesquita abandona<br />

Vila Rica em 1800, passando o cargo que ocupava na<br />

Ordem 3a do Carmo para Francisco Gomes da Rocha.<br />

A partir de dezembro de 1801 até a morte, tocava nas<br />

missas da igreja da Ordem 3a do Carmo, no Rio<br />

de Janeiro, em troca de 40 mil réis. O compositor<br />

faleceu em 1805. Como todos os outros compositores<br />

de sua época, a maioria de sua obra se perdeu.<br />

Algo em torno de 60 manuscritos chegaram<br />

até os nossos dias.<br />

José de Paiva Quintanilha atuou na Vila do<br />

Príncipe durante toda a sua vida e, ao que parece, pelo<br />

estilo de sua Missa em Sol Maior, foi discípulo de Lobo<br />

de Mesquita. Desse mestre, no momento, pouco<br />

podemos dizer além de que recebeu, da Irmandade do<br />

Santíssimo Sacramento da Vila do Príncipe, para<br />

compor a <strong>música</strong> da Semana Santa de 1790, 1792, 1807<br />

e 1808, e que seu nome figura numa relação de<br />

músicos da Irmandade de Santa Cecília no período<br />

de 1817 a 1838.<br />

O nome de Alberto Fernandes de Azevedo<br />

aparece no período de 1804−1805 na Capela das<br />

Mercês do Tejuco, tendo entrado para esta Irmandade,<br />

segundo Curt Lange, em 24/9/1799. Em 1818 e 1819<br />

foi encarregado de compor a <strong>música</strong> para cravo para<br />

a Semana Santa para a Irmandade do Santíssimo<br />

Sacramento da Matriz de Santo Antônio, no Tejuco.<br />

Apenas duas obras suas chegaram até os nossos dias:<br />

Gradual Veni Sancte Spiritus para quatro vozes, violino<br />

I e II, viola, trompas e baixo; e uma Encomendação<br />

para quatro vozes e baixo.<br />

HARRY CROWL<br />

Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná.<br />

Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná.<br />

Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná e da Rádio MEC. Presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005).<br />

31


MÚSICA NA CORTE DO BRASIL


Entre<br />

Apolo e Dionísio<br />

Os projetos de transferência da Corte somente se<br />

concretizaram no período em que as incursões<br />

napoleônicas ameaçaram o Estado de Portugal<br />

e a continuidade da casa de Bragança. Nos inícios<br />

do século XIX, diante do medo e das ameaças que<br />

levariam à perda do poder e de partes do território<br />

Na página ao lado: Henrique Bernardelli.<br />

José Maurício tocando para D. João VI.<br />

MUSEU HISTÓRICO NACIONAL<br />

1808-1821<br />

PROF. DR. MAURÍCIO MONTEIRO<br />

português, as opiniões sobre a retirada da Família Real<br />

e dos cortesãos para o Brasil não foram unânimes.<br />

Para alguns se tratava de uma traição; para outros,<br />

estratégia. Podia ser, em outras palavras, tanto<br />

o abandono do povo e do trono, como o único recurso<br />

capaz de manter a casa monárquica, tendo em vista as<br />

ameaças de Napoleão. O marquês de Alorna já havia<br />

alertado, paradoxalmente, à Corte portuguesa para<br />

os perigos de permanência da Corte em Portugal, na<br />

iminência do ataque francês, e para os benefícios que<br />

33


34<br />

essa mesma retirada estratégica poderia gerar. Para<br />

o marquês de Alorna, foi estratégica e importante<br />

a vinda de D. João VI e da Família Real para o Brasil,<br />

porque daqui, como um imperador em um vasto<br />

território, os domínios poderiam expandir-se<br />

e o monarca poderia conquistar facilmente “as colônias<br />

espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as<br />

potências da Europa” 1 . As recomendações do marquês<br />

de Alorna não foram novidades nos inícios do século<br />

XIX em Portugal. Não foi também a primeira vez que<br />

os franceses incomodaram a monarquia portuguesa,<br />

e muito menos era nova a aliança com os ingleses.<br />

Desde os tempos de D. João III, depois nos reinados<br />

de D. João IV e de D. Luíza de Gusmão, a monarquia<br />

já admitia um projeto de se instalar fora das mediações<br />

de Portugal e se estabelecer em algum lugar<br />

do ultramar. Ou porque temia as interferências dos<br />

estrangeiros – como no caso dos franceses na primeira<br />

metade do século XVII e na derradeira expansão<br />

napoleônica nos inícios do século XIX, ou porque<br />

realmente confiavam no potencial econômico<br />

do Brasil, a Corte portuguesa pretendeu, durante<br />

quatro séculos, retirar-se de Portugal2 . Se pensarmos<br />

como pensou o marquês de Alorna, a emotividade com<br />

que a carta foi escrita e a estratégia que ela propunha,<br />

a retirada da Família Real para o Brasil era necessária<br />

havia muito tempo e inevitável, diante as ameaças<br />

de Junot. Não bastava somente uma retirada nem<br />

as lembranças de uma terra promissora, que por direito<br />

de conquista deveria acolher o príncipe e sua família.<br />

Foi preciso ainda reforçar, nesse caso como<br />

um atrativo para a retirada, as dimensões da colônia<br />

e a possibilidade da conquista de territórios vizinhos.<br />

Como estratégia política ou como reação que<br />

previa a expansão francesa, o príncipe regente, sua<br />

mãe debilitada, a princesa Carlota Joaquina e seus<br />

filhos, vieram para o Brasil e aqui se estabeleceram por<br />

13 anos, com seus costumes e suas práticas. A primeira<br />

mudança foi acolher um número estimado de reinóis<br />

entre 10.000 e 15.000 indivíduos; a segunda, já<br />

no plano das perdas e da autoridade, começou nos<br />

despejos. Para toda população que tinha uma das<br />

residências “das mais excelentes”, ou pelo menos<br />

habitável, estaria sujeita, mais por obrigação<br />

que por espontaneidade, a ceder sua residência<br />

aos portugueses. As autoridades coloniais mandaram<br />

marcar nessas casas as iniciais P. R. impressas nas<br />

portas das casas; seriam para uns, “Príncipe Regente”,<br />

para outros, “Ponha-se na Rua” 3 . Com a instalação<br />

da Corte e com as medidas tomadas por D. João, as<br />

relações com os estrangeiros foram mais abrangentes.<br />

Spix e Martius mostram que vários países vendiam<br />

produtos para o Brasil: da Inglaterra vinham algodão,<br />

chitas, panos finos, porcelana e cerveja; de Gibraltar,<br />

vinhos espanhóis; da França, artigos de luxo, jóias,<br />

móveis, licores finos, pinturas e gravuras; da Holanda,<br />

cerveja, objetos de vidro e tecidos de linho; da Áustria,<br />

relógios, pianos e espingardas; e vários outros produtos<br />

da Alemanha, Rússia, Suécia, Estados Unidos, Guiné,<br />

Moçambique, Angola e Bengala4 . O produto interno,<br />

a manufatura e a indústria, que ainda começavam<br />

a crescer no Brasil, não eram competitivos, nem<br />

em termos de gosto nem em termos de tecnologia<br />

da civilização, com os da Europa. Os hábitos<br />

estrangeiros foram, dessa forma, assimilados pelos<br />

cariocas, seja pela observação do outro, seja pela<br />

imitação de seu comportamento.<br />

Durante todo o período joanino, houve no Rio<br />

de Janeiro uma intensa atividade musical, distribuída<br />

basicamente em dois setores, o da Corte, onde<br />

a qualidade era imprescindível, e o de fora da Corte,<br />

em que a funcionalidade era festiva e mítica. É<br />

importante pensar nisto, numa complexidade que<br />

surge no momento em que negros e mestiços são<br />

Os músicos diletantes ou<br />

amadores dividiam-se entre<br />

os negros e mestiços, com seus<br />

lundus, modinhas e batuques, e<br />

brancos pobres que normalmente<br />

tinham uma outra ocupação,<br />

que lhes assegurava o sustento.


chamados para tocar em festas religiosas, muitas vezes<br />

com seus instrumentos típicos e com suas próprias<br />

interpretações. Arregimentar músicos, pintores e outros<br />

artífices para algum trabalho ou para abrilhantar<br />

alguma festa em caráter de urgência foi uma medida<br />

comum nos tempos de D. João VI. Na verdade era<br />

necessário atender um desejo de manter a pompa,<br />

a ostentação e a visibilidade de um gosto; mas para isso<br />

era necessário que houvesse mão-de-obra suficiente.<br />

Muitas vezes não era possível. Em algumas situações,<br />

criava-se, literalmente, o artífice e artesão,<br />

normalmente uma maioria de negros, mestiços<br />

e brancos pobres, cujo desejo e habilidade eram<br />

formulados pela ordem e obediência. Em algumas<br />

circunstâncias, para atender à demanda musical,<br />

ou de outra atividade artesanal, o que valia era o poder<br />

de um sobre o outro. O caso dos músicos pobres,<br />

dos diletantes que estavam à mercê dessas relações<br />

de poder, não foi diferente. Robert Southey chega<br />

a falar de “devotos músicos” que eram chamados<br />

para as festas das igrejas “muitas vezes por água” 5 .<br />

Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre<br />

os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas<br />

Neukomm, Sigismund. Retrato de autoria de Ary Scheffer.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />

e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham<br />

uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento.<br />

Entre esses diletantes, encontrava-se ainda alguns<br />

professores, mecânicos e “barbeiros-cirurgiões”.<br />

No Rio de Janeiro já existia uma vida musical<br />

significativa para aqueles tempos históricos, com<br />

compositores ativos e importantes, como Lobo<br />

de Mesquita, que saiu de Minas e foi para o Rio, morto<br />

em 1806; José Maurício Nunes Garcia, mestre-decapela,<br />

compositor e organista que se tornou uma<br />

das maiores expressões da História da Música no<br />

Brasil, e Gabriel Fernandes da Trindade, violinista<br />

e compositor, um dos mais prolíficos instrumentistas da<br />

Colônia e do Brasil Reino. Além desses ilustres, tem-se<br />

ainda o vasto universo dos anônimos. A vinda da<br />

Família Real para o Brasil, juntamente com alguns<br />

dos compositores e intérpretes portugueses que<br />

serviram a Corte em Portugal, influenciou o estilo<br />

e as práticas desses músicos coloniais, “construindo”<br />

uma nova percepção do gosto e uma nova maneira<br />

de observar o mundo das artes. O surgimento de<br />

instituições de corte, como a Capela e Câmara Reais,<br />

favoreceu a expansão da atividade musical, criou mais<br />

35


36<br />

oportunidades de trabalho e redefiniu a hierarquia<br />

entre os músicos. As famílias aristocráticas que vieram<br />

com D. João VI, ou que aqui se aproximaram dele,<br />

contribuíram com seus comportamentos e hábitos<br />

de ouvir <strong>música</strong> em saraus e reuniões sociais. Em tudo<br />

isso pode-se somar ainda a circulação de viajantes<br />

e negociantes estrangeiros, a freqüência e a pompa que<br />

as festividades adquiriram e, sobretudo, a construção<br />

do Real Teatro de São João, palco ideal para<br />

as representações dramáticas. Se os homens vão e vêm,<br />

com eles circulam também as idéias.<br />

A circulação de músicos estrangeiros no Rio de<br />

Janeiro joanino foi importante para o estabelecimento<br />

de uma prática de corte, para sustentar a demanda de<br />

<strong>música</strong> e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto,<br />

baseado em práticas cortesãs. A vinda dos cantores<br />

castrados, o serviço prestado por Marcos Portugal e em<br />

seguida a vinda de Neukomm foram acontecimentos<br />

importantes que transformaram a idéia da criação e da<br />

recepção musical. Todas essas mudanças ocorridas nos<br />

níveis sociais, culturais, administrativos e, sobretudo,<br />

mentais, criaram um outro espaço e uma outra forma<br />

de audiência das obras no período joanino. Classicismo<br />

e italianismo vieram, respectivamente, com Sigismund<br />

Neukomm e Marcos Portugal. O que aconteceu nesse<br />

período em que a Família Real esteve no Brasil foi<br />

exatamente uma articulação desses estilos. Se a <strong>música</strong><br />

vocal se firmou no virtuosismo italiano, a <strong>música</strong><br />

instrumental se baseou nos modelos do classicismo<br />

vienense. As relações da Casa de Bragança com<br />

as cortes da Europa, sobretudo com a Casa da Áustria,<br />

se reforçavam cada vez mais, através de questões<br />

políticas e conveniências matrimoniais.<br />

Acontecimentos como a vinda da Missão Artística<br />

em 1816 e o casamento da arquiduquesa D. Leopoldina<br />

com D. Pedro I aproximavam os portugueses dos<br />

costumes e hábitos europeus.<br />

O que aqui denominamos por “classicismo”<br />

conviveu com o “italianismo” e com o “colonialismo”.<br />

Um se refere à estilística tipicamente germânica<br />

e austríaca; outro, como diz o próprio termo que<br />

o define, a uma maneira de dramatizar e interpretar<br />

em termos de técnica desenvolvida na Itália e, por fim,<br />

uma situação político-administrativa, o “colonialismo”<br />

português no Brasil do tempo de D. João VI. Esse<br />

último termo tem significado histórico e prático. Na<br />

verdade, pode-se sugerir a intensa e larga dependência<br />

do Brasil com Portugal. Mesmo depois da instalação<br />

da Corte, da elevação a Reino Unido, da coroação do<br />

Príncipe Regente, a situação dos trópicos não mudou<br />

muito nas suas relações externas. Classicismo, com<br />

Haydn (através das relações Brasil-Áustria e a vinda<br />

de Neukomm), Mozart e Beethoven e o italianismo<br />

operístico, com as obras de Piccini, Cimarosa, David<br />

Perez, Salieri, Scarlatti, Rossini e a transferência de<br />

Marcos Portugal, estiveram na colônia, absorvidos por<br />

José Maurício. Essas relações são importantes para<br />

a compreensão de uma estilística resultante de práticas<br />

coloniais, de um novo gosto, que foi mantido com<br />

a Família Real no Rio de Janeiro e aos poucos foi<br />

sendo construído no Brasil. O gosto pela ópera clássica<br />

era cultivado pela Família Real portuguesa, sobretudo<br />

pelo Príncipe Regente e depois rei do Reino Unido<br />

de Portugal, Brasil e Algarves, D. João VI. A ópera<br />

italiana do final do século XVIII e da primeira metade<br />

do século seguinte reservava o caráter virtuosístico<br />

predominantemente aos cantores castratti. Como uma<br />

extensão desse gosto, D. João VI incentivou a vinda<br />

desses cantores para a colônia, transportando,<br />

da melhor maneira possível, o cenário da prática<br />

musical da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro.<br />

A circulação de músicos<br />

estrangeiros no Rio de Janeiro<br />

joanino foi importante para<br />

o estabelecimento de uma prática<br />

de corte, para sustentar a<br />

demanda de <strong>música</strong> e, sobretudo,<br />

ajudar a construir um novo gosto,<br />

baseado em práticas cortesãs.


Jean-Baptiste Debret. Vista interior da Capela Real, desenhada do degrau superior do altar-mor, olhando para o lado da entrada da Igreja.<br />

A orquestra de músicos ocupa toda a parte superior do fundo. Do livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA<br />

A imaginação individual era canalizada<br />

estritamente de acordo com o gosto dos patronos.<br />

No Brasil Colonial, a religião, através das irmandades,<br />

e por vezes o poder político, através dos Senados e das<br />

Câmaras, ou de seus representantes mais ilustres,<br />

ditavam o gosto. Era preciso que o compositor tivesse<br />

como princípio a funcionalidade da sua obra e a devida<br />

correspondência com os aspectos morais e espirituais<br />

permitidos ou em uso no seu espaço social. A situação<br />

social do músico e a conseqüente estilística tomaram,<br />

a partir dos fins do século XVIII, um outro caminho:<br />

o interesse da coletividade cedeu lugar ao indivíduo<br />

e o fim paulatino do anonimato consagrou a estética<br />

e o artista, agora com nome, endereço e personalidade.<br />

Na Áustria, Haydn passou quase a vida toda a serviço<br />

de príncipes, Mozart enfrentou-os e conquistou sua<br />

liberdade; Beethoven, aceito pela aristocracia, fez com<br />

que os príncipes admirassem sua arte; Neukomm<br />

desapontou a todos, aristocráticos e burgueses,<br />

e, embora tivesse a proteção de Charles Maurice de<br />

Talleyrand, preferiu uma vida mais ou menos nômade.<br />

No Brasil joanino, ser músico da Corte ainda era<br />

uma situação favorável, por três motivos básicos:<br />

melhores oportunidades de mostrar sua arte, de tomar<br />

contato com músicos estrangeiros e linguagens<br />

modernas e, por fim, de garantir um status social<br />

e financeiro em parte suficiente para viver em colônias.<br />

A <strong>música</strong> praticada fora do círculo cortesão foi tão<br />

multifacetada quanto a própria sociedade; e, ainda<br />

mais, pode-se dizer que foi uma mistura de tradição<br />

e novidade. Costumes e práticas de várias culturas<br />

conviveram no Brasil joanino. Negros e índios<br />

compartilharam, de uma forma ou de outra, da cultura<br />

do branco, imitaram-na, transformaram-na e, em alguns<br />

momentos, procuram até se afastar dela. Nos tempos de<br />

D. Maria I e D. João, como foi em toda a vida colonial,<br />

os europeus tiveram de articular seus costumes<br />

e hábitos com práticas autóctones ou que aqui se<br />

estabeleceram. Europeus eram dominadores, donos de<br />

colônias, e por isso mesmo tiveram um sentimento<br />

de cultura superior, de força e de retórica. Seu modo<br />

de ver o mundo era melhor de que todos os outros, seu<br />

37


38<br />

Deus era uno, trino e onipotente, e também por isso,<br />

mais verdadeiro que os dos outros. Entretanto, tratamos<br />

aqui de formas culturais, cada uma com sua força e<br />

tradição, mas que, sustentada por indivíduos diferentes,<br />

entrecruzavam-se todas. Nesse sentido, seria oportuno<br />

pensar em um mundo apolíneo nos domínios<br />

de Dionísio, e que é nada mais que uma cultura escrita,<br />

normatizada, programada e cheia de sanções morais<br />

em um ambiente onde ela era mais espontânea.<br />

As concepções de Nietzsche sobre os mitos de<br />

Apolo e Dionísio podem se tornar úteis para introduzir<br />

temas de culturas variadas nesses espaços comuns6 .<br />

Numa outra dimensão da idéia que caracteriza<br />

os personagens, a <strong>música</strong> de Apolo é européia,<br />

encontra-se cultivada fora das camadas populares,<br />

levada para o ultramar como pressuposto<br />

de modernidade e civilização, como um dispositivo<br />

importante de uma cultura que cristianizou e sustentou<br />

o absolutismo de reis, príncipes e cortes. A <strong>música</strong><br />

de Dionisio é indígena, africana ou afro-ameríndia;<br />

encontra-se nas manifestações das culturas de tradição<br />

oral. No Brasil colonial, Apolo e Dionísio<br />

DISCOGRAFIA<br />

O MÉTODO DE PIANOFORTE DO PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA.<br />

Rio de Janeiro, UNIRIO, 1998, CD 002. Ruth Serrão (piano)<br />

MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA E SIGSMUND NEUKOMM<br />

Rio de Janeiro, 1998, Independente. Pedro Persone<br />

(fortepiano). Luiza Sawaya (canto)<br />

GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES<br />

São Paulo, PAULUS, 1995, CD 11100-7. Maria Ester Brandão<br />

e Koiti Watanabe (violinos)<br />

MÚSICA PORTUGUESA E BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII PARA CRAVO<br />

Rio de Janeiro, Brascan, 1990. Marcelo Fagerlande (cravo)<br />

MATINAS DE FINADOS. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA<br />

Rio de janeiro, Funarte, 1980, CD 07.Associação de Canto<br />

Coral. Direção: Cleofe Person de Matos<br />

MISSA DE SANTA CECILIA. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA<br />

Rio de Janeiro, Funarte, 1980. Associação de Canto Coral<br />

Orquestra Sinfônica Brasileira<br />

Direção: Edoardo de Guarnieri. 2v<br />

VENENO DE AGRADAR. MODINHAS<br />

Lisboa, 1998, CD LS-9801. Luiza Sawaya (canto)<br />

Achille Picchi (piano)<br />

MUSICA BARROCA BRASILEIRA<br />

Caracas, Centro de Estudios Brasileños, 1992, CD 2.72.0440<br />

Camerata Barroca de Caracas. Direção Isabel Palacios<br />

se entrecruzaram entre lundus, modinhas, batuques,<br />

práticas de feitiçarias, alegorias e Te Deuns.<br />

Entretanto, em alguns momentos da vida social<br />

da colônia, as ruas, praças, templos religiosos e, por<br />

algumas vezes, os estabelecimentos de espetáculos se<br />

tornavam espaços comuns. Neles, os vários estamentos<br />

e grupos étnicos se reuniram para comemorar alguma<br />

data ou reverenciar algum nobre ou príncipe<br />

e, de forma estratégica, esses encontros de todos<br />

serviram, mesmo que momentaneamente, para atenuar<br />

as diferenças sociais. Tudo que não estava na Corte,<br />

que não estava sujeito às regras de etiqueta e civilidade,<br />

que não seguia determinadas normas de tocar, cantar,<br />

compor e dançar, estava, conseqüentemente, sujeito<br />

a ponderações muitas vezes preconceituosas.<br />

Ao contrário das práticas de corte, as manifestações<br />

de características populares ou étnicas, como aquelas<br />

encontradas entre os brancos pobres, africanos<br />

e indígenas, estiveram sujeitas a um outro tipo<br />

de determinismo: a espontaneidade. Essas práticas,<br />

no caso de indígenas e africanos, estavam atreladas<br />

a cultos de deidades negras e a rituais animistas.<br />

A dos brancos pobres, os excluídos do processo<br />

de corte, estavam sujeitas àquilo que chamamos aqui<br />

de uma ‘articulação’ de culturas; pode-se dizer que elas<br />

absorveram elementos de todas as outras, em menor<br />

escala, dos indígenas. Os negros também absorveram,<br />

através do catolicismo, formas miscigenadas<br />

das práticas européias e deram uma outra roupagem<br />

às suas tradições; preservaram-nas, fizeram com<br />

que elas sobrevivessem numa corte pitoresca que<br />

procurava se impor7 .<br />

Tudo isso era um espetáculo, uma mistura<br />

de catolicismo com atividades autóctones, própria<br />

de negros, índios e mestiços. Um espetáculo à parte<br />

daquilo que acontecia na Corte, ou dentro dos templos,<br />

nos teatros ou nas casas mais abastadas. Tinha tanto<br />

de sincrético quanto de propriedade. A palavra<br />

sincretismo vem designar não a simples e inevitável<br />

mistura, ou absorção de uma cultura pela outra, como<br />

uma forma em que as culturas não européias deveriam<br />

aceitar a cultura do outro. Em propostas mais<br />

abrangentes, sincretismo significa aqui uma maneira<br />

de preservar a própria cultura em detrimento das


interferências e das imposições das culturas européias.<br />

Nessa forma de observar o sincretismo, os negros,<br />

sobretudo, preservaram, da maneira possível, suas<br />

raízes e a absorção inevitável da cultura do branco<br />

se tornou um matiz para a preservação de sua própria<br />

cultura. Numa sociedade escravista e preconceituosa<br />

em tudo, esse sincretismo era a única forma possível<br />

de preservar o que é seu sem cair nas malhas da<br />

vigilância e das sanções do Estado e da Igreja. Foram<br />

nos círculos populares, nas casas, nas senzalas, nas<br />

tribos e nas regiões rurais que as manifestações se<br />

tornaram mais autênticas que nas cidades, que nas<br />

áreas onde a vigilância obrigava demonstrações da<br />

cultura européia. Preservar a cultura afro-americana<br />

ou indígena, assim como impor por meios diversos<br />

a cultura européia, era uma articulação viável que,<br />

ao mesmo tempo, preservava uma e absorvia outra.<br />

Surgem dois territórios onde as formas de cultura<br />

se contracenam: um público e outro privado.<br />

Fez-se a festa. Falou-se alto. A vida fora da Corte<br />

vinha de uma observação que era inversa à de um<br />

mundo proposto em um mundo diferente. Em toda<br />

essa sociedade, sobretudo nas vilas e cidades litorâneas<br />

onde as trocas com elementos externos aconteciam<br />

primeiro, era de se esperar que existissem formas<br />

de convivência. Em outras palavras, pode-se dizer que<br />

existiram momentos em que as diversas formas<br />

1. “...É preciso que Vossa Alteza mande armar com toda pressa<br />

os seus navios de guerra e de todos os de transporte que se<br />

acharem na praça de Lisboa, que meta neles a princesa, seus<br />

filhos e os seus tesouros(...), podemos cobrir a retirada<br />

de Vossa Alteza e a nação portuguesa sempre ficará sendo<br />

nação portuguesa. (...) Porque ainda que essas cinco províncias<br />

padeçam algum tempo debaixo do jugo estrangeiro,<br />

Vossa Alteza poderá criar tal poder que lhe seja fácil resgatálas,<br />

mandando aqui um socorro, que junto ao amor nacional<br />

as liberte e de todo. Dizem que é mal visto todo homem que<br />

aconselha tudo isto a Vossa Alteza”.<br />

Carta do Marquês de Alorna a D. João VI. 30 de maio de 1801.<br />

Cf.: NORTON, Luis. A Corte de Portugal no Brasil. São Paulo,<br />

Companhia Editora Nacional, 1938, p. 54.<br />

2. Cf.: MATOSO, Antonio G. História de Portugal. Lisboa:<br />

Livraria Sá da Costa Editora, 1939, p. 439.<br />

de culturas – as autóctones, as européias e africanas<br />

– manifestaram-se isoladamente, e em outras<br />

oportunidades fundiram-se numa só, permitindo<br />

a existência de vários elementos se entrecruzando.<br />

Essas ocasiões poderiam acontecer em espaços<br />

originais, na sua própria origem, como no caso dos<br />

índios, ou podiam ser ainda preparadas para o formato<br />

dos rituais, do entretenimento ou da demonstração<br />

de poder. Se na igreja ouvia-se os Te Deuns, nas ruas,<br />

ao lado da imagem da santa, tocava-se gaitas típicas,<br />

flautas e tambores. Fora das festas de caráter cristão,<br />

existiu a convivência com negros que andavam<br />

pelas ruas tocando suas calimbas e berimbaus.<br />

Os índios, talvez por estarem menos expostos<br />

à cultura urbana, participaram em menor escala desse<br />

processo de troca. Eles apareceram menos nas cidades<br />

e sumiram mais rapidamente do litoral. Mas é possível<br />

também imaginar os índios descritos pelo príncipe<br />

Maximiliano Wied-Neuwied dançando lundus<br />

ou batuques, ou o índio que era padre e fugiu<br />

nu pela floresta. De qualquer forma, o Brasil,<br />

e mais particularmente o Rio de Janeiro, se tornou<br />

uma sociedade que tinha pajés, reis do congo,<br />

D. Maria I e D. João VI; transformou-se em um espaço<br />

de ritos, onde deuses de várias naturezas disputavam<br />

as almas tropicais. Criou-se um círculo de articulações<br />

e um espaço de tolerâncias.<br />

ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império. Porto: Edições<br />

Afrontamento, 1993, p. 837.<br />

3. Cf.: LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI o Brasil. Rio de<br />

Janeiro: Topbooks, 1996, p. 790.<br />

4. Cf.: SPIX, J.B. & MARTIUS, C.F.P. Viagem pelo Brasil. 3 v.<br />

Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 67.<br />

5. Cf.: SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Belo Horizonte:<br />

Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 435.<br />

6. Cf.: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia.<br />

Tradução: Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1958,<br />

p. 179 p. As concepções aqui são tomadas em relação ao que<br />

é europeu e não europeu. Apolo é europeu, Dionísio<br />

é africano e indígena, e em certa medida, colonial.<br />

7. Cf.: KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana - América Latina<br />

e Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1987.<br />

MAURÍCIO MONTEIRO<br />

Prof. Dr. em História pela USP, leciona na Universidade Anhembi-Morumbi e membro do Conselho Curador da Fundação Pe. Anchieta.<br />

39


José Maurício Nunes Garcia<br />

e a Real Capela<br />

de D. João VI<br />

no Rio de Janeiro<br />

RICARDO BERNARDES


José Maurício Nunes Garcia (1767–1830) é um dos mais<br />

significativos compositores da América colonial no que<br />

diz respeito à quantidade de composições, à qualidade<br />

estética e à definição de uma linguagem própria,<br />

facilmente perceptível. Esse perfil o individualiza<br />

e o destaca dos compositores mineiros ou hispanoamericanos<br />

do século XVIII, que podemos identificar,<br />

respectivamente, dentro de uma “escola” ou estilo<br />

comum de composição. É também o único compositor<br />

colonial cuja obra e biografia não foram esquecidas<br />

ao longo destes dois séculos, pois contou com árduos<br />

defensores, desde seus contemporâneos Manuel<br />

de Araújo Porto Alegre e Bento das Mercês, até<br />

o Visconde de Taunay, que conseguiu fazer com que,<br />

em fins do século XIX, o governo brasileiro adquirisse<br />

as principais obras de José Maurício, reunidas<br />

e conservadas, em coleção, por Bento das Mercês1 ,<br />

e editasse com Alberto Nepomuceno, em 1897,<br />

o famoso Réquiem de 1816, numa versão reduzida para<br />

canto e piano ou órgão2 .<br />

Em 1930, o filho de Taunay, Affonso de E. Taunay,<br />

reuniu os escritos do pai a respeito de José Maurício<br />

e Carlos Gomes, organizando-os no livro “Dous<br />

Artistas Máximos: José Maurício e Carlos Gomes” 3 ,<br />

contribuindo assim para a imagem que o século XX<br />

tem de José Maurício, das personagens e dos fatos que<br />

o cercaram. Essa visão foi bastante difundida durante<br />

os primórdios da República, quando se buscava criar<br />

a idéia de um “herói brasileiro”, que fizesse frente<br />

ao “vilão luso”, na busca desenfreada por uma<br />

identidade nacional.<br />

Ainda, durante o século XIX e o início do XX,<br />

outras iniciativas foram tomadas, por compositores<br />

como Leopoldo Miguez e Alberto Nepomuceno,<br />

visando recuperar a obra do padre mestre, através de<br />

sua restauração e execução, como no caso da<br />

reinauguração da Igreja da Candelária, em 1900,<br />

ocasião em que foi executada a Missa em Si bemol<br />

de 1801, com reorquestração de Nepomuceno.<br />

Louis Claude Desausles Freycinet.<br />

Teatro São João, do livro Voyage autour du monde, entrepris<br />

par ordre du roi... Execute sur les cervettes de S. M. l’Urane<br />

et la Physicienne, pendant les années 1819 et 1820.<br />

Paris, Pillet Ainé, 1824.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS<br />

41


42<br />

Foi a partir da década de 1940,<br />

porém, que a vida e a obra de José<br />

Maurício Nunes Garcia contaram<br />

com um estudo bastante sério<br />

e profundo, realizado pela regente<br />

e musicóloga Cleofe Person de<br />

Mattos, que, além de transcrever<br />

e promover a execução de suas<br />

obras, editou o “Catálogo temático<br />

das obras do padre José Maurício<br />

Nunes Garcia” 4 , obra fundamental<br />

para o conhecimento da produção<br />

mauriciana. Na década de 1980,<br />

a pesquisadora editou ainda 10<br />

partituras, reunidas em 8 volumes5 ;<br />

em 1994, o Réquiem de 1816, na<br />

versão completa de orquestra6 , e sua<br />

biografia mauriciana7 .<br />

A 22 de setembro de 1767, nasce<br />

José Maurício Nunes Garcia, filho<br />

de Apolinário Nunes Garcia,<br />

(segundo registros) de raça branca,<br />

e de Victória Maria da Cruz, de<br />

ascendentes imediatos “da Guiné”,<br />

o que os subentende escravos. O Dr. Nunes Garcia<br />

Júnior, único filho legitimado de José Maurício,<br />

descreve seus avós paternos como mulatos claros<br />

“de cabelos finos e soltos”. Manoel de Araújo Porto<br />

Alegre, em seus “Apontamentos sôbre a vida e obras<br />

do Padre J. M. N. G.” 8 , indica a freguesia de Nossa<br />

Senhora da Ajuda, na Ilha do Governador,<br />

Rio de Janeiro, como local de seu nascimento.<br />

José Maurício tem sua formação musical com<br />

Salvador José de Almeida e Faria, “o pardo”, amigo<br />

da família e natural de Vila Rica, Minas Gerais. Desde<br />

os doze anos já é professor de <strong>música</strong> e em 1783, aos 16<br />

anos, compõe sua primeira obra, Tota Pulchra es Maria.<br />

É ordenado padre em 1792 e, em 1798, é designado<br />

para assumir a função de mestre-de-capela9 da Sé<br />

do Rio de Janeiro, que então funcionava na Igreja<br />

da Irmandade do Rosário e S. Benedicto. No entanto,<br />

José Maurício já compunha para essa instituição<br />

mesmo antes de sua nomeação, como comprovam<br />

os autógrafos das Vésperas de Nossa Senhora, de 1797,<br />

Pe. José Maurício Nunes Garcia.<br />

Litogravura.<br />

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO<br />

O tempo de José<br />

Maurício à frente<br />

da Real Capela<br />

é claramente um<br />

período de transição<br />

estilística entre suas<br />

duas práticas<br />

dedicados ao conjunto da Sé.<br />

Em 1808, fugindo das tropas<br />

napoleônicas sob o comando de<br />

Junot, D. Maria I, o príncipe regente<br />

D. João, a real família, parte da<br />

Corte e da alta administração do<br />

reino português deslocam-se para<br />

a capital da colônia com o objetivo,<br />

ímpar na história da colonização<br />

do Brasil e das Américas, de lá<br />

se instalarem e fazerem da cidade<br />

a nova capital do reino,<br />

aproximando-se da metrópole sob<br />

todos os aspectos.<br />

Um choque de urbanidade<br />

então se impõe sobre o Rio de<br />

Janeiro, que – por esforços pessoais<br />

do ainda príncipe regente, a ser<br />

coroado D. João VI apenas em 1818<br />

– vai gradualmente se tornando uma<br />

capital nos moldes europeus, com<br />

a vinda da imprensa, a abertura dos<br />

portos ao livre comércio, a criação<br />

também se reflete sobre a vida musical da cidade,<br />

através da construção de um Teatro de Ópera<br />

e, principalmente, da criação de uma Real Capela de<br />

Música, nos moldes da Real Capela lisboeta. 10<br />

da Biblioteca Real. A modernização<br />

Quando do desembarque da Corte, a 8 de março<br />

de 1808, todas as festividades de recepção estavam<br />

preparadas na Igreja de Nossa Senhora do Monte do<br />

Carmo, por ser a mais rica e ornamentada da cidade.<br />

Porém, D. João desejava que se celebrasse um Te Deum,<br />

em agradecimento pela boa viagem e chegada, na Sé,<br />

cujo conjunto musical, dirigido por José Maurício,<br />

contava com um grupo vocal formado por cantores<br />

meninos, nas vozes de soprano e contralto, e adultos,<br />

como tenores e baixos. Contava ainda com um<br />

pequeno grupo de instrumentistas, que segundo<br />

a prática de orquestração de suas obras até então,<br />

provavelmente consistiam em: cordas, flautas,<br />

ocasionalmente clarinetes, trompas e baixo contínuo,<br />

realizado por órgão, fagote e contrabaixo. Este<br />

é o primeiro contato que o príncipe regente trava com


a <strong>música</strong> do compositor carioca.<br />

No mesmo mês, D. João terá ainda<br />

várias oportunidades de avaliar<br />

a qualificação musical do conjunto<br />

da Sé e, especificamente,<br />

a qualidade do nível de criação<br />

de seu mestre-de-capela, o padre<br />

José Maurício.<br />

O claro objetivo de D. João era<br />

montar uma capela musical no Rio<br />

de Janeiro nos moldes daquela que<br />

havia em Lisboa, tanto no formato<br />

quanto na fixação de um estilo<br />

musical para as obras que para<br />

lá seriam compostas. Designa<br />

então José Maurício para dirigir<br />

as atividades da recém-criada<br />

instituição, formada por músicos já<br />

atuantes na cidade e alguns vindos<br />

com D. João. Numa demonstração<br />

de apreço e admiração por seus<br />

talentos musicais, D. João<br />

concede-lhe o Hábito da Ordem<br />

A partir desse ano começam a chegar<br />

ao Rio de Janeiro os cantores vindos da Capela Real<br />

de Lisboa, e, no início de 1810, os instrumentistas.<br />

Os músicos são atraídos pelas possibilidades<br />

de trabalho propiciadas pela instalação permanente<br />

da Corte na cidade e pela construção, em andamento,<br />

do Teatro de Ópera.<br />

Todos esses acontecimentos, que propiciam um<br />

meio musical bastante rico e intenso, aliados às novas<br />

obras que começam a circular na colônia, trazidas por<br />

D. João11 de Cristo, em 1809.<br />

, serão os responsáveis pelas transformações<br />

na linguagem musical de José Maurício.<br />

O tempo de José Maurício à frente da Real Capela<br />

é claramente um período de transição estilística entre<br />

suas duas práticas, desde há muito estabelecidas pelos<br />

pesquisadores de sua obra: antes e depois da chegada<br />

da Corte. Se, antes, escrevia para grupos pequenos e<br />

possivelmente com limitações técnicas, vê-se obrigado,<br />

a partir de então, a escrever uma <strong>música</strong> mais brilhante<br />

e virtuosística, com o objetivo de se aproximar<br />

Marcos Portugal.<br />

Litogravura assinada por Rodrigues.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E<br />

ARQUIVO SONORO<br />

José Maurício tem<br />

a oportunidade<br />

de estrear obras como<br />

o Réquiem de Mozart,<br />

em dezembro de 1819,<br />

e o oratório A Criação<br />

de Haydn, em 1821.<br />

do “estilo da Capela Real”.<br />

O que justamente caracteriza<br />

esse período como de transição<br />

é a síntese através da qual José<br />

Maurício adapta sua <strong>música</strong><br />

e sua linguagem, obtendo um estilo<br />

híbrido em sua criação, ainda com<br />

resquícios fortes da primeira fase,<br />

mas já alçando vôos em direção<br />

ao estilo que iria caracterizar<br />

sua segunda fase: mais madura<br />

e moderna.<br />

O período de 1808 a 1811<br />

é extremamente fecundo: José<br />

Maurício compõe cerca de setenta<br />

obras visando atender à extensa<br />

série de solenidades. Entre as mais<br />

importantes, comprovadamente<br />

do período e que sobreviveram até<br />

nossos tempos, destacam-se: a Missa<br />

São Pedro de Alcântara de 1808,<br />

e outra Missa São Pedro de Alcântara<br />

de 1809, um Te Deum para as Matinas<br />

de São Pedro, um Stabat Mater,<br />

arranjado sobre um tema cantado por D. João, e o<br />

moteto Judas Mercator Pessimus, os três últimos de 1809.<br />

Ainda em 1810, compõe um Ecce Sacerdos a 8 vozes<br />

e o Magnificat das Vésperas de S. José, em 1811, a Missa<br />

Pastoril para a Noite de Natal, a Missa em Mi bemol para<br />

coro e órgão e um Te Deum em dó maior.<br />

No entanto, a grande obra do período de José<br />

Maurício à frente da Real Capela é a Missa de Nossa<br />

Senhora da Conceição para 8 de dezembro de 1810.<br />

É, sem dúvida, a obra mais complexa e grandiloqüente<br />

das que havia composto até então e uma das mais<br />

sofisticadas de toda a sua carreira, composta num<br />

momento de plena maturidade: José Maurício tinha,<br />

então, 43 anos.<br />

Era um momento cheio de esperanças e alegrias<br />

para o compositor – por passar a trabalhar à frente de<br />

um grupo através do qual poderia mostrar todas as suas<br />

potencialidades como músico e artista –, mas também<br />

de sofrimentos causados pelo preconceito, por sua<br />

condição de brasileiro, mulato, e por ter tido uma<br />

43


44<br />

formação musical, em muitos<br />

em 1816, no intuito de retomar<br />

aspectos, autodidata.<br />

relações diplomáticas com a Corte<br />

A composição da Missa<br />

portuguesa –, José Maurício tem<br />

da Conceição para 8 de dezembro<br />

a oportunidade de estrear obras<br />

daquele ano pode ter sido uma<br />

como o Réquiem de Mozart, em<br />

comprovação aos músicos e ao<br />

dezembro de 1819, e o oratório<br />

príncipe de que José Maurício podia<br />

A Criação de Haydn, em 1821.<br />

se adaptar ao novo gosto. Essa missa<br />

O padre mestre compõe, no mesmo<br />

figura entre suas obras mais<br />

ano, dois salmos, Laudate Dominum<br />

importantes, ao lado do Ofício e<br />

e Laudate Puerum, que, segundo o<br />

Missa de Réquiem, de 1816, da Missa de<br />

punho do próprio compositor, foram<br />

Nossa Senhora do Carmo, de 1818,<br />

“arranjados sobre temas da Creação<br />

e da Missa de Santa Cecília, de 1826.<br />

do Mundo do immortal Haydn”<br />

Em 1811, a chegada de Marcos<br />

Portugal, o mais afamado<br />

compositor português de sua época,<br />

encerra o período de Nunes Garcia<br />

como diretor e compositor da Real<br />

Capela. De renome internacional,<br />

Portugal vem assumir na cidade<br />

as funções de Diretor do Teatro<br />

14 .<br />

Podem ser observadas, ainda,<br />

citações do oratório As estações,<br />

do mesmo Haydn, em obras mais<br />

tardias, como no Qui Tollis da Missa<br />

Abreviada, de 1823.<br />

Sua última obra e legado<br />

é a Missa de Santa Cecília,<br />

encomendada pela ordem<br />

de Ópera de São João e de mestre compositor<br />

da Real Capela. José Maurício continua, todavia,<br />

compondo ocasionalmente para a instituição<br />

a pedido de D. João, que o tem em grande estima. 13<br />

Jean-Baptiste Debret. D. João VI. Do livro<br />

Voyage pitoresque et historique au Brésil.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />

DIVISÃO DE ICONOGRAFIA<br />

homônima, em 1826. É sua obra maior, que pode<br />

ser posta ao lado das grandes obras, compostas<br />

durante o mesmo período, dentro da história<br />

da <strong>música</strong> ocidental.<br />

Através da amizade com o compositor austríaco<br />

Em 1830, morre em extrema miséria. Sua obra,<br />

Sigismund Neukomm (1778–1858), discípulo de Joseph contudo, tem sido cada vez mais objeto de estudo<br />

Haydn – que veio ao Brasil em uma missão<br />

e interesse por músicos e pesquisadores<br />

diplomática promovida por Luís XVIII de França brasileiros e estrangeiros.<br />

1. Esse acervo encontra-se, hoje, na Biblioteca Alberto<br />

Nepomuceno da Escola Nacional de Música da UFRJ.<br />

2. GARCIA, José Maurício Nunes. Missa de Réquiem 1816.<br />

Rio de Janeiro/São Paulo: Bevilacqua, 1897.<br />

3. TAUNAY, Visconde de. Dous artistas máximos: José Maurício<br />

e Carlos GomesI. São Paulo: Companhia Melhoramentos/<br />

Rio de Janeiro: Cayeiras, 1930.<br />

4. MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático das obras do padre<br />

José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de<br />

Cultura/MEC, 1970.<br />

5. Referências: Gradual de São Sebastião. Rio de Janeiro: Funarte/<br />

INM/Pro-Memus, 1981; Tota pulchra es Maria. Rio de Janeiro:<br />

Funarte/INM/Pro-Memus, 1983; Gradual Dies Sanctificatus. Rio<br />

de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981; Missa pastoril para<br />

Noite de Natal 1811. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,<br />

1982; Ofício 1816. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,<br />

1982; Aberturas Zemira e Abertura em Ré. Rio de Janeiro: Funarte/<br />

INM/Pro-Memus, 1982; Salmos Laudate Pueri e Laudate Dominum.<br />

Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981.<br />

6. GARCIA, José Maurício Nunes. Requiem in D (CV 23.008/01,<br />

edited by Cleofe Person de Mattos) Stuttgart: Carus Verlag, 1994.<br />

7. MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia –<br />

biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca nacional/<br />

Departamento Nacional do Livro, 1994.<br />

8. Cf.: MURICY, José Cândido de Andrade (org.). Estudos<br />

mauricianos. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.<br />

9. Mestre-de-capela: pessoa responsável pela preparação<br />

das <strong>música</strong>s destinadas às cerimônias religiosas.<br />

10. A tradição das capelas reais portuguesas, como grupos<br />

de excelência na criação e execução musical para as festividades


eligiosas, inicia-se em 1713, no reinado de D João V, graças às<br />

grandes riquezas proporcionadas pela descoberta de ouro em<br />

Minas Gerais. Uma das principais capelas principescas da<br />

Europa, a Real Capela Portuguesa, desde o princípio, mantém<br />

estreitos contatos com a prática musical e litúrgica italiana,<br />

principalmente a Romana, ligada ao Vaticano. No mesmo<br />

período, é criado o Seminário da Sé Patriarcal em Lisboa,<br />

importante centro de formação de músicos portugueses em todo<br />

o século XVIII, tendo, vários deles, a oportunidade de estudar<br />

em Roma ou Nápoles. Durante o reinado de D. João V,<br />

destacam-se os nomes de Antônio Teixeira (1707 – ca.1759), João<br />

Rodrigues Esteves (ca.1700 – depois de 1751) e Francisco Antônio<br />

de Almeida (ca.1702 – 1755). Seus sucessores, como D. José I,<br />

mantiveram essa prática, concedendo estudos a João de Sousa<br />

Carvalho (1745 – 1798), Marcos Portugal (1762–1830), Antônio<br />

Leal Moreira (1758 – 1819) e João Domingos Bomtempo<br />

(1775 – 1842). Nessa mesma política de aproximação, D. José<br />

manteve contato com importantes compositores italianos da<br />

época, como os napolitanos Davide Perez (1711 – 1778) e Nicolò<br />

Jommelli (1714 – 1774), encomendando óperas e <strong>música</strong> religiosa,<br />

tendo este último, em 1766, enviado cópias de todas suas obras<br />

religiosas à Corte portuguesa, a pedido do rei de Portugal.<br />

“[...] D. João V cria o Seminário Patriarcal de Lisboa, em 1713, e,<br />

à maneira de outras cortes européias, italianiza o gosto musical,<br />

iniciando o envio de compositores portugueses para estudar nos<br />

principais centros de produção musical cortesã da época: Nápoles<br />

e Roma. Ainda de maior importância é a contratação do<br />

compositor napolitano Davide Perez como mestre da Capela<br />

Real de Música da corte de D. José I de Portugal, de 1752 a 1778.<br />

Perez, assim como Jommelli, compositor napolitano que também<br />

serviu a corte de Lisboa, era um dos compositores mais<br />

importantes ligados à aristocracia européia na segunda metade do<br />

século XVIII.” (FERRAZ, Sílvio e DOTTORI, Maurício.<br />

“Manoel Dias de Oliveira e Davide Perez. Uma aproximação<br />

entre o barroco mineiro e a ópera italiana.” In: Ciência e Cultura,<br />

nº 42 (9). São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP,<br />

setembro de 1990, p. 662-669).<br />

11. Os arquivos musicais que vieram com a corte em 1808<br />

pertenciam à Biblioteca da Capela Real d’Ajuda, justamente a<br />

capela que se destacava por ser a de repertório mais virtuosístico.<br />

12. MATTOS, Cleofe Person. José Maurício Nunes Garcia – uma<br />

biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional /<br />

Departamento Nacional do Livro, 1997, p. 67.<br />

13. “Marcos Portugal toma logo de assalto a vida musical da<br />

Corte... e o seu reino é incontestado. Aliás, o que ele encontra<br />

à sua frente? Cantores italianos vindos de Lisboa, certos cantores<br />

brasileiros, dos quais alguns eram notáveis mas que se integravam<br />

na vida musical da corte e que não podiam prejudicá-lo, enfim,<br />

músicos vindos de Lisboa e que tinham testemunhado a sua<br />

glória naquela cidade. Ou, pelo menos, quase. Havia uma sombra<br />

na imagem. Era o Padre José Maurício, compositor brasileiro de<br />

real talento, fundador da Irmandade de Santa Cecília, no Rio de<br />

Janeiro, organista da Capela Real desde 26 de novembro de 1808<br />

e mestre de <strong>música</strong> a partir daquela data. Marcos Portugal, de um<br />

DISCOGRAFIA<br />

OFFICIUM 1816<br />

Camerata Novo Horizonte de São Paulo<br />

Regência: Graham Griffiths. PAULUS - Brasil<br />

LAUDATE DOMINUM<br />

DOMINE JESU<br />

TE CHRISTE SOLUM NOVIMUS<br />

TE DEUM (1799?)<br />

Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />

Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Vol. I - Brasil<br />

TE DEUM (1801)<br />

Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />

Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Série Relações<br />

Musicais, Vol.II - Brasil<br />

MOTETOS PARA SEMANA SANTA<br />

CALÍOPE<br />

Direção: Júlio Moretzohn<br />

CALÍOPE<br />

MISSA PASTORIL PARA A NOITE DE NATAL<br />

LAUDATE DOMINUM<br />

DIES SANCTIFICATUS<br />

JUSTUS CUM CECIDERIT<br />

LAUDATE PUERI<br />

Ensemble Turicum. Direção: Luís Alves da Silva. K617 - França<br />

orgulho incomensurável e que os escrúpulos não ajudavam a<br />

abafar, tomou o seu lugar como mestre de capela e foi, ainda por<br />

cima, perfeitamente desagradável e desdenhoso para com ele.<br />

Procurou afastá-lo de todas as maneiras. Teve a sorte de o Padre<br />

José Maurício ser um homem pacífico, bom e apagado, numa<br />

palavra, pouco talhado para a luta; isso permitiu-lhe levar avante<br />

os seus planos com facilidade. Deve, no entanto, dizer-se que o<br />

Príncipe Regente não foi cego a suas manobras e que tentou<br />

reparar o melhor que pôde a injustiça que acabara de cometer.<br />

Mas a sua admiração por Marcos Portugal foi mais forte e, se não<br />

afastou o Padre José Maurício, não lhe atribuiu contudo mais que<br />

um papel secundário. No fundo, o Príncipe Regente via em<br />

Marcos Portugal o músico célebre que ele era sem dúvida, o<br />

autor capaz de compor uma <strong>música</strong> pela qual sentia uma atração<br />

segura e à qual estava já habituado. Pensava ter ao seu serviço (e,<br />

de certa maneira, tinha razão) uma vedeta de primeiríssimo<br />

plano. Tinha de pagar o preço, mesmo que se tratasse de uma<br />

injustiça.” In: SARRAUTE, Jean Paul. Marcos Portugal – Ensaios.<br />

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 121 e 122.<br />

14. MONTEIRO, Maurício Mário. “A construção do gosto: um<br />

estudo sobre as práticas musicais na corte de D. João VI” In:<br />

Anais do Simpósio Latino-Americano de Musicologia. Org.: Elisabeth<br />

Seraphim Prosser e Paulo Castagna. Curitiba : Fundação Cultural<br />

de Curitiba, 1999, p. 397.<br />

RICARDO BERNARDES<br />

Regente e pesquisador especializado em <strong>música</strong> antiga luso-<strong>brasileira</strong> e autor da coleção Música no Brasil nos séculos XVIII e XIX, Funarte 2001.<br />

Diretor artístico da Américantiga História e Cultura.<br />

45


A MODINHA<br />

E O LUNDU<br />

NO BRASIL<br />

Com crescimento populacional que vinha se acentuando<br />

46<br />

As primeiras manifestações da<br />

<strong>música</strong> popular urbana no Brasil<br />

desde o início do século XVIII e a formação de centros<br />

urbanos (tais como Salvador, Ouro Preto, Rio<br />

de Janeiro, dentre outros), a demanda por um certo<br />

tipo de entretenimento por parte de uma classe média<br />

emergente era condição imperiosa para a manutenção<br />

de um modelo de cultura que a metrópole, no caso<br />

Portugal, vinha impondo à colônia.<br />

Antes dos concertos públicos, que só viriam<br />

a acontecer no início do século XIX em Portugal (Nery,<br />

1991) e mais tardiamente no Brasil, o lazer era<br />

praticado de diversas maneiras, tanto na Corte quanto<br />

na colônia: as óperas, encenadas desde o século XVIII;<br />

as festas profanas, tais como aniversários de cidades,<br />

membros da família real ou alguma figura importante<br />

pertencente à classe dominante; as festas religiosas,<br />

que também tinham funções sociais.<br />

EDILSON VICENTE DE LIMA<br />

Uma outra forma de entretenimento que vinha<br />

sendo praticada no Brasil desde meados do século<br />

XVIII era a <strong>música</strong> patrocinada por proprietários<br />

de posses, que mantinham orquestra formada por<br />

escravos negros especialmente treinados para<br />

executarem os mais diversos instrumentos (violinos,<br />

viola, teclado, charamelas, dentre outros).<br />

As <strong>música</strong>s que interpretavam eram os sucessos<br />

europeus que nos chegavam às mãos (Kiefer, 1982).<br />

Porém, tais eventos ocorriam em recintos fechados<br />

e para convidados especiais.<br />

Página ao lado: Domingos Caldas Barbosa.<br />

1ª edição da obra Viola de Lereno. Lisboa.<br />

Na Officina Nunesiana.<br />

Anno 1798.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS


48<br />

Os saraus praticados pelas elites, entre os séculos<br />

XVIII e XIX, também foram formas de lazer, e, por<br />

conseguinte, de divulgação da <strong>música</strong> cultivada pela<br />

classe média em sua vida cotidiana. Era o local onde<br />

músicos amadores e profissionais podiam se irmanar,<br />

tocando ou cantando suas peças preferidas.<br />

Era também a oportunidade para as moças das finas<br />

famílias exibirem seus dotes ao teclado, ou sua<br />

encantadora voz acompanhada pela delicadeza<br />

do dedilhado na guitarra (Nery, 1994).<br />

Portanto, o gosto pela <strong>música</strong> e, por conseqüência,<br />

pelo canto, parece ser uma constante na cultura dos<br />

europeus vindos para o Brasil. O negro, por sua vez<br />

e mesmo em condições sub-humanas, sempre cultivou<br />

a <strong>música</strong>, seja em sua forma ritualística longe dos olhos<br />

ocidentais, ou como divertimento nos terreiros e praças<br />

públicas. Desta forma, sem querer adentrar<br />

as discussões sociológicas quanto às condições sociais<br />

das diversas camadas que residiam no Brasil<br />

em meados do século XVIII, ainda que altamente<br />

europeizada, a colônia, aos poucos, foi construindo<br />

seu próprio caminho musical à medida que as vilas<br />

se desenvolviam.<br />

É nesse ambiente e condições sociais que, nos<br />

últimos anos do século XVIII, surge a modinha,<br />

um tipo especial de canção que será cultivada tanto em<br />

Portugal quanto no Brasil. Esta designa um tipo de<br />

canção lírica, singela e de duração reduzida, composta<br />

para uma ou duas vozes acompanhadas por guitarra<br />

ou teclado. Cultivada, inicialmente, pelas classes mais<br />

abastadas, aos poucos, vai se popularizando, até tornarse,<br />

pouco a pouco, um veículo para a expressividade<br />

musical, tanto portuguesa quanto <strong>brasileira</strong>.<br />

As discussões pela definição da paternidade da<br />

modinha parecem infrutíferas já que, a despeito da sua<br />

origem e seu surgimento, vai ser adotada pelas duas<br />

pátrias como filha legítima. Mais do que o local<br />

de nascimento, é a trajetória e a aceitação por uma<br />

determinada nação que definem uma nacionalidade.<br />

Porém, a origem da modinha está intimamente<br />

relacionada com a moda portuguesa, sua antecessora,<br />

que em meados do século XVIII, designava,<br />

genericamente, qualquer tipo de canção e era praticada<br />

nos salões de Lisboa pelas classes mais favorecidas<br />

Álbum de Modinhas, da coleção de modinhas imperiais da Divisão<br />

de Música e Arquivo Sonoro da FBN. Neste número, Despedida,<br />

de José Lino de Almeida Fleming. Narciso e Cia. s/d.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />

(Araújo, 1963). No Brasil, a palavra moda assume duas<br />

acepções diferentes: qualquer tipo de canção, como em<br />

Portugal; e moda de viola, gênero de canção muito<br />

praticada em São Paulo e Minas Gerais (idem, 1963).<br />

Ao absorver dessa última as características formais<br />

e melódicas, a modinha se configura de maneira muito<br />

rica, não assumindo uma forma específica.<br />

Caracteriza-se, também, por ser mais curta, mais<br />

singela, delicada e, sobretudo, pelo tema amoroso.<br />

Mário de Andrade, no texto introdutório de sua<br />

antológica publicação de 1930, Modinhas Imperiais,<br />

defende que o diminutivo “modinha” está intimamente<br />

relacionado com as características “acarinhantes” tão<br />

presentes na cultura luso-<strong>brasileira</strong>: “Chamam-lhe<br />

Modinhas por serem delicadas” (Andrade, 1980). Esta<br />

característica, por sua vez, é descrita com muita graça<br />

no refrão da modinha “Quando a gente está com<br />

a gente”, de Domingos Schiopetta, músico que atuou<br />

em Lisboa entre o século XVIII e XIX: “Nós, lá no<br />

Brasil, com nossa ternura/ Açúcar nos sobe com tanta


doçura/ Já fui à Bahia, já passei no mar,/ Coisinhas que<br />

vi me fazem babar”.<br />

No final do setecentos, literatos e cronistas<br />

portugueses diferenciavam a modinha portuguesa<br />

da <strong>brasileira</strong> e atribuíam a esta características próprias<br />

advindas da colônia, no caso, o Brasil. O pesquisador<br />

português Manuel Morais descreve algumas delas:<br />

melodia ondulante, cromatismos melódicos<br />

e acompanhamento singelo (Morais, 2000). Poderíamos<br />

acrescentar: melodias entrecortadas e compostas<br />

de motivos sincopados, ora em retardo, ora em<br />

antecipação, abuso de cadências femininas, porém,<br />

sempre primando por uma certa delicadeza<br />

(Lima, 2001).<br />

O etnomusicólogo Gerard Béhague, em seu<br />

pioneiro artigo sobre o manuscrito Modinhas do Brasil,<br />

que se encontra na Biblioteca da Ajuda em Lisboa<br />

(Béhague, 1968), destaca ainda aspectos poéticos que<br />

considera característicos do estilo brasileiro<br />

e, sobretudo, de Caldas Barbosa. Identifica dois<br />

poemas utilizados nas modinhas desta coleção como<br />

sendo de sua autoria: Eu nasci sem coração e Homens<br />

errados e loucos. Domingos Caldas Barbosa, padre,<br />

também conhecido pelo nome árcade de Lereno<br />

Selinuntino, foi poeta, cantor de modinhas, exímio<br />

improvisador e, naturalmente, tangia sua própria<br />

viola-de-arame. Migrou para Lisboa e lá viveu<br />

no último quartel do século XVIII até sua morte.<br />

Tornou-se muito popular na corte por sua atuação<br />

como poeta e cantor de modinhas.<br />

Seu livro, Viola de Lereno, uma coletânea<br />

de poemas em dois volumes, sugere letras de modinhas<br />

e lundus de sua própria lavra. Teve várias publicações<br />

em Lisboa entre 1798 e 1823 e uma na Bahia, em 1813.<br />

Nele, podemos encontrar o estilo que Caldas Barbosa<br />

utilizou em seus poemas e que muito se assemelham<br />

ao estilo de vários textos encontrados no manuscrito<br />

Modinhas do Brasil acima citado: neologismos<br />

afro-brasileiros, como “mugangueirinha”, além<br />

de diminutivos como “enfadadinha” e “negrinho”;<br />

também os vocábulos “sinhá” e “nhanhá”, tratamento<br />

que os escravos dispensavam às senhoras e senhoritas<br />

nessa época, bem ao gosto do vocabulário popular<br />

praticado na colônia. Caldas Barbosa gozou de grande<br />

sucesso no período em que viveu na corte onde era<br />

muito comum apresentar-se acompanhado por sua<br />

viola e cantando modinhas.<br />

Com base na análise poético-musical efetuada no<br />

manuscrito da Biblioteca da Ajuda e da obra de Caldas<br />

Barbosa, Béhague sugere que, se não todas<br />

as modinhas da coleção, grande parte delas é de<br />

Domingos Caldas Barbosa. Destaca as características<br />

musicais consideradas <strong>brasileira</strong>s presentes em muitas<br />

modinhas desse manuscrito, sobretudo a frase<br />

sincopada, que no caso dessas peças, aparece<br />

totalmente incorporada ao estilo musical, indicando<br />

uma prática adquirida naturalmente, ou seja,<br />

pela convivência, e não pelo resultado de estudos<br />

técnico-analíticos.<br />

No estágio em que se encontram as pesquisas<br />

sobre a modinha e o lundu, tanto no Brasil quanto<br />

em Portugal, encontramos vários poemas de Domingos<br />

Caldas Barbosa musicados por compositores de<br />

renome, tais como Marcos Portugal (1762-1830),<br />

compositor lisboeta que se transferiu para o Brasil<br />

em 1811 e aqui permaneceu até sua morte;<br />

e Antônio Leal Moreira (1758-1819), outro músico<br />

português de renome em Lisboa no final do século<br />

XVIII, só para citar alguns nomes. Outras tantas<br />

modinhas sobre poemas seus, não trazem assinatura<br />

do compositor da melodia, porém é muito provável<br />

que Caldas Barbosa compusesse <strong>música</strong> de “ouvido”,<br />

e por isso não tivesse o hábito de assinar suas<br />

composições, pois consta que não era iniciado<br />

nos cânones musicais (Sandroni, 2001).<br />

Fato é que, na documentação pesquisada até<br />

o presente momento, há uma grande quantidade<br />

de modinhas que se destacam por possuir uma<br />

musicalidade muito própria: melodias sinuosas de<br />

poucos compassos e compostas por pequenos motivos,<br />

a presença da síncopa melódica, o acompanhamento<br />

em arpejos de quatro colcheias, parafraseando<br />

as batidas do nosso atual pandeiro ou ganzá. Insisto<br />

nestas características pois elas serão associadas<br />

ao universo afro-brasileiro e estão na base de gêneros<br />

como o choro, o maxixe e samba (Béhague, 1968).<br />

Neste aspecto, o manuscrito Modinhas do Brasil<br />

é de fundamental importância, pois, das trinta<br />

49


50<br />

Domingos Caldas Barbosa.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS<br />

modinhas que compõem a coleção, várias trazem<br />

marcadamente estas características (Lima, 2001).<br />

Não afirmamos com isso que a musicalidade <strong>brasileira</strong><br />

se resume aos aspectos acima destacados. Herdamos,<br />

com certeza, o gosto pela melodia que nos foi trazida<br />

pelos portugueses e todas as influências italianas<br />

incorporadas no decorrer do século XVIII; mas,<br />

certamente, a frase sincopada, como ela se apresenta<br />

em várias modinhas desse manuscrito, associada<br />

ao staccato monótono da viola ou guitarra, confere<br />

a elas um caráter muito particular, antecipando em<br />

aproximadamente um século as características musicais<br />

que vão ser associadas ao choro, ao maxixe<br />

e, posteriormente ao samba, como ficou dito acima.<br />

A partir dessas afirmações, podemos concluir que,<br />

apesar de nossa dependência política, certas<br />

características musicais e poéticas reputadas ao Brasil,<br />

inclusive por portugueses já no último quartel do<br />

setecentos, apontam para um direcionamento próprio,<br />

pelo menos no que tange à produção musical.<br />

Neste momento não podemos deixar de falar<br />

do lundu, dança popular <strong>brasileira</strong> introduzida<br />

no Brasil, provavelmente, pelos escravos angolanos,<br />

muito popular em meados do século XVIII (Andrade,<br />

1989). José Ramos Tinhorão descreve essa dança<br />

já como um resultado da confluência de elementos<br />

da cultura negra, portuguesa e espanhola e praticada<br />

por negros e mestiços no decorrer do século XVIII<br />

e XIX (Tinhorão, 1991). O lundu-dança foi descrito<br />

por Tomás Antônio Gonzaga, um de nossos maiores<br />

poetas inconfidentes, em uma de suas Cartas Chilenas,<br />

atestando ainda mais a sua popularidade na época.<br />

O lundu era dançado, tendo como<br />

acompanhamento o batuque dos negros e<br />

instrumentos já ocidentais, como a viola. Tornou-se<br />

popular por seus elementos coreográficos: a famosa<br />

umbigada, o sensual requebrado das ancas e os trejeitos<br />

das mãos e estalidos dos dedos, elemento que Tinhorão<br />

associa ao fandango Espanhol/ Português (idem, 1991).<br />

A convivência entre negros livres e cativos, a classe<br />

média e a corte, possibilitada pelos centros urbanos<br />

emergentes, aproximou, seguramente, o lundu da<br />

modinha e vice-versa. Essa convivência vizinha fez<br />

com que a modinha absorvesse o estilo sincopado do<br />

batuque do sensual lundu e este, por sua vez, as formas<br />

musicais da recatada modinha, dando origem ao<br />

lundu-canção. Estes lundus quase modinhas, ou estas<br />

modinhas quase lundus, como destaca Mozart de<br />

Araújo em seu importantíssimo trabalho A modinha<br />

e o lundu no século XVIII (1963), são o maior exemplo<br />

da fusão ocorrida, já no século XVIII, entre elementos<br />

da cultura da classe média européia e da cultura<br />

popular afro-<strong>brasileira</strong>.<br />

É importante frisar que o lundu-dança foi utilizado,<br />

já no século XVIII, em espetáculos para divertir<br />

cortesãos e membros da classe média, tanto no Brasil<br />

quanto nos salões de Lisboa. Isso torna evidente que,<br />

apesar de seu caráter “licencioso”, como queriam<br />

alguns, foi cultivado pelas classes mais favorecidas,<br />

mesmo que em forma de espetáculo e mais estilizado,<br />

e, certamente, influenciou músicos e poetas que não<br />

poderiam ficar imunes aos seus feitiços.<br />

Portanto, podemos caracterizar o lundu-canção,<br />

doravante chamada apenas de lundu, como sendo peça


para voz solista ou a duas vozes, em compasso binário<br />

simples, predominância da tonalidade maior, linha<br />

melódica sincopada e geralmente composta por<br />

fragmentos curtos e o esquema formal variado. Com<br />

relação ao texto, há predominância do uso da quadra<br />

com versos em redondilha maior e uso de refrão<br />

(Kiefer, 1986). O tema, na maioria dos casos, continua<br />

amoroso, porém no caso do lundu, há uma tendência<br />

para a comicidade e a sensualidade (Sandroni, 2001).<br />

No século XIX, encontramos lundus estilizados,<br />

escritos em compasso binário composto, antecipando,<br />

ou já dentro de uma tradição romântica.<br />

Durante o século XIX, a modinha e o lundu, já<br />

autônomos em suas manifestações musicais, tornam-se<br />

verdadeiros meios da expressividade musical tanto<br />

popular quanto <strong>erudita</strong>. Foi cultivado por músicos<br />

como José Maurício e Marcos Portugal; também por<br />

Carlos Gomes e, numa fase mais adiantada, por Villa-<br />

Lobos, já com sentimentos nostálgicos nas primeiras<br />

décadas do século XX. Na vertente popular, serviram<br />

de suporte para músicos como Xisto Bahia<br />

e a maestrina Chiquinha Gonzaga e porque não dizer,<br />

de Tom Jobim e Chico Buarque. Ainda no século XIX,<br />

incorporaram-se ao repertório de espetáculos<br />

populares e serviram de crônicas à sociedade<br />

de então, como no famoso lundu Lá no largo da<br />

sé velha, que tece uma saborosa crítica à corrupção<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ANDRADE, M. de. Dicionário <strong>Musical</strong> Brasileiro. Belo Horizonte:<br />

Itatiania, 1989.<br />

________________. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia,<br />

1980.<br />

ARAUJO, M. de. A modinha e o lundu no século XVIII. São Paulo:<br />

Ricordi Brasileira, 1963<br />

BÉHAGUE, G. “Biblioteca da Ajuda (Lisbon) Mss. 1595/1596:<br />

two eighteenth-century anonymous collections of modinhas”,<br />

Anuário do Instituto Interamericano de pesquisa musical, vol. IV,<br />

1968.<br />

KIEFER, B. História da Música Brasileira: dos primórdios ao início<br />

do século XX. Porto Alegre: Editora Movimento, 1982.<br />

_________ . A modinha e o lundu: duas raízes da <strong>música</strong> popular<br />

DISCOGRAFIA<br />

MODINHA E LUNDU: BAHIA MUSICAL, SÉC. XVIII E XIX. BAHIA: Copene, s/d.<br />

CANTARES D’AQUÉM E D’ALÉM MAR. SÃO PAULO: 1989<br />

COMPOSITORES BRASILEIROS, PORTUGUESES E ITALIANOS DO SÉC. XVIII,<br />

Américantiga, 2003<br />

MARÍLIA DE DIRCEU.São Paulo: Akron, s/d<br />

MODINHAS FORA DE MODA. São Paulo: Festa, s/d<br />

MODINHAS E LUNDUNS DOS SÉCULOS XVIII E XIX.Lisboa. Movieplay, 1997<br />

MÚSICA DE SALÃO DO TEMPO DE D. MARIA I. LISBOA: Movieplay, 1994<br />

1900: A VIRADA DO SÉCULO. São Paulo: Akron, s/d<br />

HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA (II). São Paulo: Eldorado, s/d<br />

NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Belo Horizonte, s/d<br />

VIAGEM PELO BRASIL. São Paulo: Akron, s/d<br />

20 MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA/Sigismund Neukomm.<br />

São Paulo: BIEM, 1998<br />

e aos desmandos econômicos da época.<br />

Finalizando, não obstante a origem aristocrática<br />

da modinha, praticada, inicialmente, nos salões<br />

cortesãos e nas casas dos senhores mais abastados,<br />

aos poucos e numa convivência nem sempre tranqüila,<br />

foi absorvendo características musicais e poéticas<br />

das manifestações advindas das classes<br />

econômicas menos privilegiadas, irmanando-se<br />

ao seu parceiro inseparável, o lundu. Ainda nesse<br />

caminho rumo a aceitação de todos, ambos,<br />

a modinha e o lundu, folclorizam-se, talvez num último<br />

passo para diluir-se na alma!<br />

<strong>brasileira</strong>. Porto Alegre: Movimento, 1977.<br />

LIMA, E. de. As modinhas do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.<br />

MORAI, M. Modinhas, lunduns e cançonetas. Lisboa: Imprensa<br />

Nacional – Casa da Moeda, 2000.<br />

NERY, R V e CASTRO, P F. História da Música. Lisboa: Imprensa<br />

Nacional – Casa da Moeda, 1991.<br />

NERY, R.V. in “Música de Salão do tempo de D. Maria I – CD”.<br />

Lisboa: Movieplay, 1994.<br />

SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio<br />

de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed.:<br />

Ed. UFRJ 2001.<br />

TINHORÃO, J.R. Pequena história da <strong>música</strong> popular. São Paulo:<br />

Art. Editora, 1991.<br />

EDILSON VICENTE DE LIMA<br />

Musicólogo, autor do livro “As modinhas do Brasil” - Edusp 2001. Mestre em musicologia pela Universidade do Estado de São Paulo.<br />

Professor de História de Música e coordenador do curso de <strong>música</strong> da Unicsul.<br />

51


CONSIDERAÇÕES SOBRE<br />

Fora a honrosa exceção do livro “A Força Indômita” de<br />

54<br />

Marcus Góes, editado em 1996, ainda não se fez um<br />

estudo minucioso sobre a vida de Carlos Gomes.<br />

Apesar da existência de uma série de livros, biografias<br />

e citações em diversas enciclopédias universais, o que<br />

se tem visto e lido é um amontoado de informações<br />

baseadas sempre nas mesmas superficialidades, nas<br />

mesmas fontes e, o que é pior, uma repetição constante<br />

de equívocos que vão se sedimentando...<br />

Esses equívocos vão desde a data do nascimento<br />

de Carlos Gomes até suas origens. Muitas dessas<br />

informações se baseiam no livro escrito por sua filha,<br />

Itala Gomes Vaz de Carvalho que, romanticamente,<br />

descreve seu pai como de origem espanhola,<br />

descendente dos Gomez de Pamplona e por aí vai...<br />

Na verdade Antônio Carlos Gomes (com S e não<br />

com Z) é filho de Manoel José Gomes, mulato, que por<br />

sua vez era filho de português com negra. A mãe<br />

de Carlos Gomes, Fabiana Maria Jaguari Cardoso, era<br />

filha de branco com índia. Nenhum traço espanhol,<br />

pois, em sua descendência.<br />

Outro equívoco que se perpetua e continua sendo<br />

divulgado – o fato de Carlos Gomes ser um imitador<br />

de Verdi – o que aliás, não seria nenhum demérito.<br />

Na verdade, Carlos Gomes sempre teve uma grande<br />

LUIZ AGUIAR<br />

veneração pelo Mestre de Le Roncole. Uma veneração<br />

artística, veneração pessoal, vizinha da adoração. Em<br />

seu critério e escalonamento, Carlos Gomes colocava<br />

Verdi logo abaixo de Deus e, em seguida, vinha sua<br />

família. Neste particular é bastante conhecida<br />

a narrativa de Luiz Guimarães Júnior sobre a primeira<br />

grande emoção que a <strong>música</strong> de Verdi provocou<br />

no jovem Carlos Gomes. Famosa, também, a história<br />

de seu primeiro contato com um “spartito” de<br />

Il Trovatore, em 1853, ainda em Campinas, meses após<br />

a estréia da ópera. Desta emoção surgiu a composição<br />

da Parada e Dobrado sobre motivo de Il Trovatore para<br />

banda. Esta partitura foi – em 1976 – recuperada,<br />

revisada e reescrita por nós. É obra interessantíssima,<br />

em que o jovem Carlos Gomes, então com 17 anos,<br />

compõe para os instrumentos que dispunha na Banda<br />

em que seu pai era o regente. Um tema, de autoria do<br />

próprio Carlos Gomes, dá início à Parada (Desfile) e em<br />

seguida surge o tema do Dobrado (cabaleta – “Di tale<br />

amor” que sucede à belíssima ária “Tacea la notte<br />

placida”). Solos alternados de trompete e clarineta.<br />

Estranhamente esta Parada e Dobrado termina em<br />

compasso ternário, quase uma valsa.<br />

Que Verdi foi o grande ídolo e modelo de Carlos<br />

Gomes, não resta a menor dúvida. Mas não podemos


esquecer – isto é muito importante – da influência<br />

francesa de Gounod, no detalhe orquestral e, muito<br />

especialmente, de Meyerbeer, na grandiloqüência<br />

da “Grand Opera”.<br />

Carlos Gomes chega a Milão no ano da morte<br />

de Meyerbeer (1864). Bellini e Donizetti já haviam<br />

falecido em 1835 e 1848, respectivamente, e o “bel<br />

canto” já dava sinal de envelhecimento... agonizava.<br />

Rossini, que viverá até 1868, encontrava-se afastado da<br />

cena lírica, em ócio voluntário. Verdi domina a cena!!!<br />

Senão vejamos: Temporada 1864/1865 – “Teatro<br />

Alla Scala”:<br />

02/janeiro – I Lombardi – Verdi<br />

19/janeiro – Ginevra di Scorzia – Rota<br />

02/fevereiro – I Vespri Siciliani – Verdi<br />

23/fevereiro – Gli Ugonotti – Meyerbeer<br />

(em italiano, bem se vê)<br />

10/março – Le Aquille Romane – Chélard<br />

26/dezembro – La contessa d’Amalfi – Petrella<br />

31/dezembro – Norma – Bellini<br />

A temporada prossegue pelo ano de 1865 com<br />

Faust (Gounod), em italiano – Rigolleto (Verdi) –<br />

Favorita (Donizetti) e L’Ebrea de Halévy (em italiano),<br />

do original La Juive. Sabemos, também, que o próprio<br />

Verdi, por motivos diversos, se auto exilara em Paris,<br />

somente voltando a compor em 1871 (Aída), e em 1874<br />

(Messa da Requiem). Neste período de aparente ócio,<br />

Verdi, após Don Carlos em francês – (1867), revisava<br />

suas óperas anteriores (Macbeth, I Lombardi, Simon<br />

Boccanegra, Forza del Destino...). Mas, ao mesmo<br />

tempo, Verdi se preparava e se reciclava para sua volta<br />

à ópera com o Otello em 1887 e Falstaff em 1893.<br />

Verdi sabia que não tinha o menor sentido continuar<br />

escrevendo outras óperas no mesmo estilo e que<br />

a ópera estava prestes a sofrer uma renovação.<br />

Paralelamente a este momento, a este auto-exílio<br />

de quase 17 anos, eclode o movimento dos<br />

“scapigliati”. Na verdade Carlos Gomes nunca foi um<br />

“scapigliato” na acepção da palavra. Mas era simpático<br />

ao movimento de renovação da ópera e das artes em<br />

geral. Conviveu, com toda certeza, com Boito, Faccio,<br />

Praga, Mariani e freqüentou os salões da Condessa<br />

Carlos Gomes.<br />

Figurinos da ópera Lo Schiavo.<br />

Assinado por Luigi Bartezago.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL<br />

– DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />

55


Maffei. Dessa convivência surgiram influências mútuas.<br />

É possível que Carlos Gomes tenha influenciado,<br />

com sua verve tropical, seu exotismo, sua originalidade<br />

melódica, harmônica e rítmica, aos compositores<br />

contemporâneos daquele movimento.<br />

Na verdade, a noite de 19 de março de 1870<br />

(estréia de Il Guarany no Teatro “Alla Scala”) marca<br />

uma época na história da ópera. O autor, jovem<br />

maestro brasileiro, vindo de um país desconhecido.<br />

O libreto, baseado em romance de outro brasileiro<br />

desconhecido – José de Alencar. O tema, o amor<br />

de uma branca por um índio. Lutas de tribos rivais,<br />

presença de um cacique aimoré, antropófago e que,<br />

também, se apaixona pela moça branca, filha de um<br />

fidalgo português. Era muito exotismo junto. Tudo<br />

bastante estranho; e o 3 º ato – Campo dos Aimorés –<br />

com suas danças, evocações a Tupã, utilização de<br />

instrumentos exóticos e inusitados – inubias, maracás...<br />

Tudo isto aliado a uma <strong>música</strong> que já prenunciava<br />

novos caminhos: tendência à melodia infinita;<br />

abandono gradativo do esquema de árias, duetos, trios,<br />

quartetos, alternando com recitativos; <strong>música</strong> mais<br />

adequada ao texto, num desenvolvimento natural<br />

e espontâneo; nada de “belcantismo”, ao contrário,<br />

uma forte tendência na criação de situações dramáticas<br />

com a utilização de temas recorrentes e caracterizantes<br />

de uma determinada personagem ou situação; temas<br />

musicais com grandes saltos melódicos ascendentes<br />

e descendentes realçando uma certa virilidade em seus<br />

meandros e arroubos harmônicos; tendência acentuada<br />

ao cromatismo; uso deliberado dos intervalos de<br />

quintas e sétimas, principalmente os chamados quinta<br />

aumentada e sétima diminuída, modulando com<br />

elegância e beleza; uso atrevido de nonas. Mas<br />

o grande progresso, rumo à personalíssima<br />

caracterização melódico-rítmico-harmônica de Carlos<br />

Gomes se daria em 1873 com a ópera Fosca, verdadeira<br />

obra-prima. Antecedendo 2 anos à Carmen de Bizet<br />

(1875) e de 3 anos à Gioconda de Ponchielli (1876),<br />

a ópera Fosca é um grito de alerta de uma nova<br />

tendência lítero musical – o “verismo”. E, na Fosca,<br />

Página ao lado: Carlos Gomes. O Guarany. Imprensa Nacional. Rio<br />

de Janeiro, 1986. Desenho de Álvaro M. Seth.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA<br />

Carlos Gomes está perfeitamente seguro de si. Nem<br />

uma nota a mais, nem uma nota a menos. Tudo em<br />

dose certa. Melodia, harmonia, ritmo se unem para<br />

a mais perfeita e bela ópera de Carlos Gomes. Tudo<br />

que havia se evidenciado, de forma discreta,<br />

em Il Guarany (1870), atinge seu apogeu com<br />

o enriquecimento de novas combinações tímbricas<br />

na orquestra, resultando uma instrumentação plena<br />

de matizes. Tratamento objetivo do libreto, excelente<br />

por sinal, de autoria de Ghislanzoni, sem divagações<br />

e repetições desnecessárias. O final da ópera, a partir<br />

da frase “Non m’abborrir... compiagimi tu” é um dos<br />

mais belos momentos líricos de toda a história da<br />

ópera. “Fosca”, que fracassou na estréia em 1873,<br />

conheceu o sucesso em 1878, já reformulada.<br />

É muito importante realçar que Carlos Gomes não<br />

é somente o autor de Il Guarany, que muitos acreditam<br />

ser apenas os dez minutos orquestrais da abertura,<br />

impropriamente chamada de protofonia. Por que não<br />

nos referimos a esta abertura com o seu título original –<br />

sinfonia – como Carlos Gomes a denominou e como<br />

Carlos Gomes.<br />

Caricatura publicada na Revista Illustrada, Anno 5, 1880<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE PERIÓDICOSIA<br />

57


58<br />

era uso corrente naquela época? O caso do prelúdio<br />

primitivo (da estréia em 19 de março de 1870) é uma<br />

outra história.<br />

Outras pessoas, entretanto, acrescentam que Carlos<br />

Gomes é, também, o autor da modinha Quem sabe?<br />

com versos de Bittencourt Sampaio (“Tão longe, de<br />

mim distante...”). Mas param por aí.<br />

Carlos Gome é muito mais. Mesmo fora do Brasil,<br />

a partir de 1864, ele participou e viveu os problemas<br />

sociais e políticos brasileiros. Embora não se deva<br />

confundir conscientização com engajamento.<br />

Monarquista convicto e declarado, grande admirador<br />

DISCOGRAFIA<br />

IL GUARANY<br />

Plácido Domingo<br />

Verónica Villarroel<br />

Carlos Álvarez<br />

Chor und extrachor der Oper Stadt Bonn<br />

Orchester der Beethovenhalle Bonn. Regência: John Neschling<br />

Sony SK66273 / 2 CDs<br />

COLOMBO<br />

Inacio de Nonno<br />

Carol Mc Davit<br />

Fernando Portari<br />

Maurício Luz<br />

Coros e Orquestra Sinfônica da Escola de Música da<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Reg.: Ernani Aguiar<br />

UFRJ MUSICA - emufrj - 004<br />

ABERTURAS E PRELÚDIOS<br />

Orquestra Sinfônica Brasileira<br />

Reg.: Yeruham Scharovsky. OSBCD0001/98<br />

SONATA PARA CORDAS ”BURRICO DE PAU”<br />

Orquestra de Câmara de Londrina. ETU 112<br />

Videos VHS e CDs<br />

FOSCA<br />

Gail Gilmore<br />

Krassimira Stoyanova<br />

Roumen Doykov<br />

Orquestra, Coro e Solistas da Ópera Nacional de Sófia<br />

Reg.: Luís Fernando Malheiro<br />

FUNARTE / São Paulo Imagem Data / Sudameris 1997<br />

MARIA TUDOR<br />

Eliane Coelho<br />

Kostadin Andreev<br />

Elena Chavdarova-Isa<br />

Orquestra, Coro e solistas da Ópera Nacional de Sófia<br />

Reg.: Luís Fernando Malheiro<br />

FUNARTE / São Paulo Imagem Data 1998<br />

de D. Pedro II e da família imperial era, entretanto,<br />

a favor da causa abolicionista. Possuidor de um<br />

temperamento difícil, irascível, meticuloso, detalhista<br />

(que o digam suas cartas) era sensível, nobre, generoso.<br />

Jamais um mesquinho.<br />

Romântico por natureza, mas suas óperas estão<br />

apoiadas no realismo, na corrente naturalista que<br />

desembocaria no “verismo” (de vero = verdade).<br />

As personagens das óperas de Carlos Gomes são<br />

humanas, de carne e osso. Nada de deuses, ninfas,<br />

mitos ou coisas que tais. Ouçamos, com atenção<br />

a Fosca (1873) – a Maria Tudor (1879) – Lo Schiavo (1889)<br />

e, principalmente, Condor (pronuncia-se Côndor),<br />

de 1891. Esta última, inclusive, surge num momento de<br />

“crise universal”da ópera: quando o gênero lírico não<br />

era mais o centro do mundo musical. A Itália, também,<br />

volvia seus olhos e ouvidos à <strong>música</strong> instrumental.<br />

É nestas águas que Carlos Gomes, também, foi se<br />

banhar. Compõe a Sonata para quinteto de cordas que,<br />

em última análise, é um quarteto de cordas com<br />

o acréscimo do contrabaixo. Não se trata de uma<br />

sonata nos moldes clássicos e tradicionais. Mas<br />

é <strong>música</strong> inspirada, espontânea, bem escrita e seu<br />

último movimento – “vivace” leva o sub-título de<br />

Burrico de Pau. Música descritiva, não resta dúvida.<br />

O romantismo musical brasileiro encontra, de fato,<br />

sua expressão mais ampla em Carlos Gomes e Zito<br />

Batista Filho chega a afirmar que “genialidade<br />

é fenômeno irreprimível e seu primeiro sintoma é o<br />

desafio ao horizonte”. Assim foi com Carlos Gomes:<br />

De Campinas (então São Carlos) para São Paulo, numa<br />

fuga arquitetada, bem pensada e concretizada em 1859.<br />

De São Paulo ao Rio de Janeiro, uma distância<br />

considerável por terra e mar. A chegada na corte<br />

imperial, a Condessa de Barral, o imperador D. Pedro<br />

II, seu ídolo, Francisco Manuel da Silva (autor do Hino<br />

Nacional Brasileiro e diretor do Conservatório Imperial<br />

de Música), D. José Amat (diretor da Ópera Nacional).<br />

Vieram logo as perseguições, invejas e intrigas...<br />

As duas primeiras composições importantes,<br />

as cantatas Salve dia de ventura e A Última Hora<br />

do Calvário, ambas de 1860, estrearam em 15 de março<br />

e 16 de agosto, respectivamente.<br />

Seguem-se suas duas primeiras óperas, também em


Funerais do<br />

maestro Carlos<br />

Gomes.<br />

Fotografia<br />

assinada por<br />

Fidanza. 1896.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA<br />

NACIONAL – DIVISÃO DE<br />

MÚSICA E ARQUIVO<br />

SONORO<br />

Num balanço sucinto, a “vol d’oiseau”, podemos registrar, como finalização destas considerações,<br />

que a obra de Carlos Gomes se apóia no resumo abaixo:<br />

1) Óperas completas, estreadas e muitas<br />

vezes apresentadas: 9<br />

a) em português – A Noite do Castelo –<br />

1861<br />

Joana de Flandres – 1863<br />

b) em italiano – Il Guarany –1870<br />

Fosca –1873<br />

Salvator Rosa –1874<br />

Maria Tudor –1879<br />

Lo Schiavo –1889<br />

Condor –1891<br />

Colombo –1892 (na verdade um poema<br />

vocal – sinfônico mas claramente<br />

pensado como ópera)<br />

2) Revistas musicais (vizinhas das<br />

operetas), estreadas e inúmeras vezes<br />

encenadas: 2<br />

Se sa minga –1867<br />

Nella luna –1868<br />

3) <strong>música</strong> vocal de câmara: 47 (5 em<br />

português, 2 em francês, 1 em dialeto<br />

veneziano e 39 em italiano)<br />

4) Missas: 3 (Brevis – 2 e Solemnis –1)<br />

a) São Sebastião – 1856<br />

b) Nossa Senhora da Conceição – 1859<br />

c) Sem título específico – 1852<br />

5) Partes avulsas de missas (inacabadas<br />

(?) - perdidas as demais partes (?)<br />

a) Kyrie – 1865<br />

b) Qui tollis – ?<br />

c) Credo – ?<br />

6) Música instrumental de câmara: 4<br />

a) Aria para clarineta e piano – 1857<br />

b) Al chiaro di luna (para bandolim ou<br />

violino e piano) – ?<br />

c) Sonata para quinteto de cordas<br />

(Burrico de Pau) – 1894<br />

d) Variações para bandolim (Vem cá,<br />

Bitu) – ?<br />

7) Música para piano: 36 (32 para piono<br />

solo e 4 para piano a 4 mãos)<br />

8) Cantatas para coro masculino: 2<br />

a) La fanciulla delle Asturie – 1866<br />

(coro e piano)<br />

b) Sacra bandiera – 1895 (coro e piano)<br />

9) Arias avulsas para vozes e orquestra: 4<br />

a) Aria do cozinheiro (Eis-me aqui<br />

nesta cidade) – 1855<br />

b) Aria do alfaiate (Senhor mestre,<br />

veja lá) – ? (na verdade um dueto)<br />

c) Aria de Teresa (Ogni brivido... ogni<br />

rumor) 1872<br />

d) Mama dice (anteriormente composta<br />

para canto e piano – 1882<br />

e em 1892 orquestrada pelo próprio<br />

compositor)<br />

10) Coro “a capella” : 6<br />

a) Fugas tonais – 1866<br />

b) Fugas reais – 1866<br />

11) Música orquestral: 3<br />

a) Variações sobre o tema do romance<br />

Alta Noite – 1859<br />

b) Lalalayu (anteriormente compsota<br />

para piano – 1866 e em 1867<br />

português: A Noite do Castelo (1861) e Joana de Flandres<br />

(1863). Do Rio de Janeiro (8 de dezembro de 1863)<br />

a Milão (1864), passando por Portugal e França, em<br />

busca de conhecimento, de glória, num sonho que lhe<br />

trará o reconhecimento e a imortalidade. Trajetória de<br />

luminosidade crescente, com momentos de escuridão,<br />

depressão, dúvidas, sacrifícios e angústias, mas que,<br />

certamente, constitui uma página das mais belas<br />

da História do Brasil.<br />

LUIZ AGUIAR<br />

Pianista, maestro, compositor, pesquisador, restaurador e revisor da obra de Carlos Gomes.<br />

orquestrada pelo prórpio autor)<br />

c) Eva (valsa) – 1871<br />

12) Música para banda: 4<br />

a) Parada e dobrado sobre motivo da<br />

ópera “O Trovador”- 1856<br />

b) “L’Oriuolo” (galope) composta em<br />

1888, posteriormente instrumentada<br />

para banda por Giuseppe Mariani –<br />

1891<br />

c) Ao Ceará Livre – 1884<br />

d) Cruzador Escola “Benjamin<br />

Constant” – 1893<br />

13) Música para coro e banda: 2<br />

a) Inno Marcia (Al fianco abbiam l’acciar)<br />

– 1883<br />

b) A Camões ( O teu dia irromperá da<br />

história) – 1880<br />

14) Música para coro, banda e orquestra: 3<br />

a) Il Saluto del Brasile (Salve glorioso<br />

suol) – 1876<br />

b) Inno Alpino (In alto... in alto) – 1884<br />

c) Coro triunfal – também conhecido<br />

como Hino Progresso (Pela estrada de<br />

flores repleta) – 1885<br />

15) Voz “a capella” (O Vos omnis) − ?<br />

16) Óperas inacabadas: 2<br />

a) I Moschettieri (Gabriella di Blossac) −<br />

1871 (2 atos completos somente para<br />

canto e piano)<br />

b) Morena – 1887 (idem)<br />

59


CHOPIN CARIOCA<br />

Obra do compositor Ernesto Nazareth mistura o refinamento<br />

técnico da <strong>música</strong> de concerto com elementos populares<br />

Todas as 229 composições de Ernesto Nazareth foram<br />

60<br />

escritas para piano. Porém, ele só foi ter um<br />

instrumento decente aos 63 anos, doado por amigos<br />

de São Paulo, depois de uma temporada na cidade.<br />

Até então, os pianos que usava eram de amigos, alunos<br />

ou de lojas de <strong>música</strong> onde trabalhava.<br />

Nascido no Morro do Pinto, no Rio de Janeiro,<br />

em 1863, Ernesto Júlio de Nazareth era filho de um<br />

despachante aduaneiro e de uma pianista amadora,<br />

de quem herdou o gosto pela <strong>música</strong> de Chopin e pelo<br />

virtuosismo no instrumento. Aos dez anos de idade,<br />

ficou órfão de mãe e, na mesma época, sofreu uma<br />

queda que provocou hemorragia no ouvido direito,<br />

causando problemas auditivos que o acompanhariam<br />

pelo resto da vida.<br />

Aos 14 anos, escreveu sua primeira composição,<br />

a polca-lundu Você Bem Sabe, que já revelava seu grande<br />

interesse pelos gêneros populares. A riqueza rítmica<br />

da peça fez com que fosse publicada e, daí por diante,<br />

Nazareth tornou-se músico profissional. A intenção<br />

do pai era enviar o filho à Europa para aperfeiçoar<br />

ALEXANDRE PAVAN<br />

os estudos pianísticos, mas por falta de recursos<br />

o projeto foi cancelado.<br />

A falta de dinheiro foi constante na vida de<br />

Nazareth. Já adulto, era obrigado a executar acrobacias<br />

mais virtuosas que suas peças musicais para poder<br />

sobreviver. Além de professor de piano, se apresentava<br />

em clubes que detestava e acabou arriscando até<br />

mesmo o serviço público – em 1907, conseguiu ser<br />

nomeado escriturário do Tesouro Nacional, mas não foi<br />

efetivado no cargo por não dominar o idioma inglês.<br />

Apesar das dificuldades financeiras, Nazareth<br />

continuava compondo. Mesmo sem o merecido<br />

reconhecimento, ia cristalizando a linguagem urbana<br />

da <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong>. “Nazareth imprimiu à rítmica<br />

incipiente das polcas-lundus um caráter tão preciso,<br />

sistematizando e enriquecendo-a com uma tão grande<br />

variedade de fórmulas, empregou nas suas<br />

composições uma ciência rítmica, uma beleza<br />

harmônica e uma tal riqueza de invenção melódica<br />

que o tornam de fato o expoente máximo da<br />

<strong>música</strong> popular <strong>brasileira</strong> e um autêntico precursor<br />

Ernesto Nazareth em<br />

São Paulo em 1926.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA<br />

NACIONAL – DIVISÃO<br />

DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO


da nossa <strong>música</strong> <strong>erudita</strong> de caráter<br />

tenha sido apresentado aos ilustres<br />

nacional”, escreveu o musicólogo<br />

autores brasileiros da época,<br />

Brasílio Itiberê.<br />

Milhaud surpreendeu-se mais com<br />

Essa característica da obra<br />

os sons da rua do que com aqueles<br />

de Ernesto Nazareth trouxe mais<br />

das salas de concerto. “Seria de<br />

problemas do que dividendos ao<br />

desejar que os músicos brasileiros<br />

autor: o povo não gostava muito<br />

de suas composições, porque não<br />

eram dançáveis, e os estudiosos<br />

Ernesto Nazareth. Cavaquinho porque choras?Editora.<br />

Mangione (SP -1926) e Casa Carlos Gomes (SP-s/d).<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />

compreendessem a importância<br />

dos compositores de tangos,<br />

de maxixes, de sambas<br />

torciam o nariz por considerarem<br />

DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />

e de cateretês, como (Marcelo)<br />

as peças com pouco valor como obras de concerto. Tupinambá ou o genial Nazareth”, anotou o francês.<br />

Durante um bom período, garantiu o aluguel<br />

Realmente, o pianista carioca deve tê-lo<br />

como pianista da sala de espera do Cine Odeon, impressionado, afinal, anos mais tarde, trechos<br />

na Avenida Rio Branco. Como de costume na época, dos tangos brasileiros Brejeiro e Escovado seriam<br />

os espectadores se dirigiam ao cinema cerca<br />

aproveitados por Milhaud em sua suíte Le Bœuf Sur<br />

de uma hora antes do filme começar para ouvirem Le Toit. Pena que o francês tenha se esquecido de<br />

os instrumentistas tocarem. No Odeon, também<br />

mencionar na partitura o nome de Nazareth, que mais<br />

se apresentava a pequena orquestra do maestro<br />

uma vez não lucrou nada com a história.<br />

Andreozzi, da qual Heitor Villa-Lobos<br />

Em seus últimos anos, Ernesto Nazareth teve<br />

era violoncelista.<br />

o problema de audição agravado, mas, por motivos<br />

Esse trabalho inspirou Nazareth em uma de suas econômicos, não pôde parar de tocar. Quando se<br />

peças mais conhecidas, intitulada Odeon. Outras obras sentava ao piano, era obrigado a debruçar-se sobre<br />

de referência são Tenebroso, Apanhei-te, Cavaquinho o teclado para tentar capturar o som das notas que lhe<br />

e Fon-Fon. O compositor transitou pela valsa, marcha, fugiam. Em 1932, durante uma turnê no Uruguai,<br />

choro e tango. O nome tango foi usado no Brasil antes começou a apresentar os primeiros sinais de distúrbios<br />

da Argentina, porém as peças de Ernesto Nazareth mentais. De volta ao Rio, passou por vários períodos<br />

classificadas desta forma nada têm a ver com a <strong>música</strong> de internação. Às vésperas do carnaval de 1934,<br />

portenha. Era apenas uma denominação mais<br />

escapou do manicômio e ficou desaparecido por 3 dias.<br />

aceitável, sob a qual o autor escondia as afinidades Foi encontrado morto – por afogamento – próximo<br />

de sua obra com os gêneros populares – como<br />

o maxixe, uma espécie de pai do samba –, aumentando<br />

a uma cachoeira.<br />

as chances de ela ser editada. Alguns tangos de<br />

DISCOGRAFIA<br />

Nazareth tiveram relativo sucesso, o que não quer dizer SEMPRE NAZARETH (Kuarup),<br />

que tenham lhe rendido muito dinheiro. Segundo<br />

de Maria Teresa Madeira (piano) e Pedro Amorim (bandolim)<br />

a praxe da época, quando as editoras compravam<br />

ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES (Sonhos e Sons − Série Mestres<br />

as peças, ficavam desobrigadas de repassar o lucro<br />

das vendas para os compositores.<br />

Brasileiros), de Maria Teresa Madeira (piano), Marcus Viana<br />

(violino) e Sebastião Vianna (flauta)<br />

ARTHUR MOREIRA LIMA INTERPRETA ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES<br />

Em 1917, o diplomata Paul Claudel (irmão<br />

(Marcus Pereira), de Arthur Moreira Lima (piano)<br />

da escultora Camille Claudel) transferiu-se para<br />

RADAMÉS & AÍDA INTERPRETAM NAZARETH E GNATTALI (Kuarup),<br />

a embaixada francesa no Brasil e trouxe como<br />

de Radamés e Aída Gnattali (piano)<br />

acompanhante o compositor Darius Milhaud. Embora Inclui obras de Radamés Ganattali<br />

ALEXANDRE PAVAN<br />

Jornalista, co-autor com Irineu Franco Perpétuo do livro “Populares e Eruditos” e colaborador da revista Carta Capital.<br />

61


62<br />

O Modernismo


<strong>Musical</strong> Brasileiro<br />

Oobjetivo deste artigo é retratar a geração<br />

de compositores brasileiros ativos durante a Primeira<br />

República até o limiar da década de 1920.<br />

Tradicionalmente considerados românticos − como<br />

Leopoldo Miguez (1850-1902), Henrique Oswald<br />

(1852-1913) e Glauco Velásquez (1884-1914) − ou,<br />

alguns mais afortunados, precursores do nacionalismo<br />

musical − entre eles Brasílio Itiberê da Cunha<br />

(1846-1913), Alexandre Levy (1864-1892), Alberto<br />

Nepomuceno (1864-1920) e Ernesto Nazareth (1863-<br />

1934) − essas caracterizações remetem a um ponto de<br />

referência: a Semana de Arte Moderna. Esse<br />

acontecimento, que ocorreu entre os dias 13 e 17<br />

de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São<br />

Paulo, “passou à história da cultura no Brasil como<br />

evento que inaugura simbolicamente o modernismo”.<br />

(Travassos, 2000; 17). Em outras palavras,<br />

a (des)qualificação desses compositores se dava pela<br />

maior ou menor proximidade de suas obras com<br />

os ideais desse marco zero, dividindo os períodos<br />

históricos em antes e depois da Semana.<br />

Os critérios utilizados para as definições<br />

de modernidade foram “a ênfase na atualização estética<br />

e na luta contra o ‘passadismo’, representado a grosso<br />

modo pelo romantismo, na <strong>música</strong>, e pelo<br />

parnasianismo, na poesia” (Travassos, 2000; 19)<br />

e no modernismo nacionalista.<br />

Com base nesses critérios, os escritos tratavam<br />

de um digladiar entre o novo e o velho, o progressista<br />

e o ultrapassado, entre o independente e o<br />

Página ao lado: caricatura de Alberto Nepomuceno<br />

por Enrico Caruso. Rio de Janeiro, 1917.<br />

COLEÇÃO PARTICULAR: SÉRGIO NEPOMUCENO<br />

LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG<br />

subserviente. Em suma, entre o nativo original<br />

e o estrangeiro transplantado ao exotismo dos trópicos.<br />

De acordo com essa concepção, os artistas<br />

da Semana de 22 seriam não só os profetas do porvir<br />

mas os próprios agentes messiânicos dos novos tempos,<br />

levando a frente um projeto estético e ideológico cujo<br />

objetivo era transfigurar a identidade e o centro<br />

ideológico e cultural do Brasil, tendo São Paulo como<br />

o centro irradiador.<br />

Assim escreveu Menotti del Picchia (1892-1988),<br />

um dos ideólogos e porta-voz do movimento<br />

modernista de 1922:<br />

“Rinchem de inveja as outras ‘capitanias do país’,<br />

entretanto, em matéria de arte e de política, São Paulo<br />

continua e continuará com a batuta e liderança [...]”.<br />

(Picchia apud Brito, 1971; 171)<br />

Na mesma linha, Guilherme de Almeida (1890-<br />

1969) se refere que “São Paulo devia, par droit de<br />

conquête et naissance, ser também, no Brasil, o berço da<br />

libertação intelectual”. (Almeida apud Brito, 1971; 178).<br />

Como resultado, aos compositores da geração<br />

anterior seriam passadistas, copiadores da Europa,<br />

tributários a uma estética que não mais representaria<br />

a sociedade de então, colaboradores na perpetuação<br />

de valores já ultrapassados. Entre esses compositores,<br />

alguns mereceram a qualificação de precursores, já que<br />

não podiam ser de todo desqualificados. Quanto aos<br />

demais, permaneceriam presos ao romantismo ou, na<br />

melhor das hipóteses, ao romantismo tardio.<br />

Dessa forma, as forças antagônicas estavam postas<br />

e os inimigos identificados. Seguindo o seu destino<br />

bandeirante, desbravador, os paulistas fizeram<br />

a “batalha sem sangue da Semana de Arte Moderna”<br />

(Brito, 1971; 172) e saíram-se vencedores.<br />

63


64<br />

No entanto, por mais significativos e escandalosos<br />

que tenham sido os resultados obtidos no evento<br />

paulista, os programas musicais apresentados não<br />

se mostraram de todo inovadores. Wisnik já se<br />

manifestara a esse respeito ao diagnosticar que existiria<br />

“uma certa defasagem entre as idéias (alardeadas)<br />

e as obras (apresentadas)” (Wisnik, 1977; 66), além de<br />

a própria formação desses modernistas estar vinculada<br />

ao “passado”.<br />

Em outras palavras, os resultados apresentados<br />

durante a Semana de 22 não se deram por um processo<br />

de “geração espontânea”, e sim já eram gestados<br />

e amadurecidos por compositores como Brasílio Itiberê<br />

da Cunha, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno,<br />

Francisco Braga (1868-1945), Glauco Velásquez, entre<br />

outros. Pode-se afirmar que estes compositores foram<br />

os “bandeirantes” que abriram o caminho para<br />

os artistas da Semana, que sobre seus ombros<br />

Alexandre Levy. Diploma da Premiação pelo Júri da Comissão<br />

Colombiana Mundial junto à Exposição Internacional de Chicago,<br />

1893. Edição da Sociedade Brasileira de Musicologia. São Paulo.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />

e conquistas os “novos modernos” tiveram êxito.<br />

Ainda segundo Wisnik, os modernos da Semana<br />

de 22 manifestavam uma “preocupação febril<br />

de atualização com referência às vanguardas européias<br />

e, portanto, de afastamento da tradição” (Wisnik, 1977;<br />

66), de onde se interpreta que um compositor como<br />

Nepomuceno estava comprometido com a tradição,<br />

cabendo aos “novos modernos” os louros<br />

da atualização e do progresso.<br />

Tal afirmação pode ser contestada por artigo<br />

de Darius Milhaud (1892-1977), que viveu no Rio<br />

de Janeiro entre 1917-1918, para Le Revue <strong>Musical</strong>e<br />

e também citado por Wisnik. Segundo Milhaud,<br />

Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald mantinham<br />

a biblioteca do Instituto Nacional de Música atualizada<br />

com partituras de <strong>música</strong> contemporânea. Entretanto,<br />

cita somente os compositores e associações francesas,<br />

como C. Debussy, V. D’Indy, C. Koechlin, E. Satie,<br />

a Société <strong>Musical</strong> Independante e a Schola Cantorum,<br />

entre outros.<br />

A atualização do meio musical carioca era tal que,<br />

ainda de acordo com Milhaud, “eles (Oswaldo<br />

e Nininha Guerra) me iniciaram na <strong>música</strong> de Satie<br />

que eu conhecia até então muito imperfeitamente<br />

e eu a percorri com Nininha, que lia excepcionalmente<br />

bem toda a <strong>música</strong> contemporânea” (Milhaud apud<br />

Wisnik, 1977; 40).<br />

Dois outros relatos se referem a essa ênfase<br />

contemporânea patrocinada por Nepomuceno. Trata-se<br />

da série de 26 concertos realizados durante a Exposição<br />

Nacional de 1908, comemorativos ao centenário da<br />

abertura dos portos às nações amigas, por Dom João VI.<br />

Conforme Luiz Heitor Correa de Azevedo, “pode-se<br />

dizer que, em <strong>música</strong>, foi essa a nossa entrada oficial no<br />

século XX” (Azevedo, 1956; 171).<br />

De acordo com José Rodrigues Barbosa, “Houve<br />

um momento em que as circunstâncias permitiram<br />

a Nepomuceno uma série brilhantíssima de concertos<br />

sinfônicos em que ele fez ouvir as produções dos<br />

nossos compositores e uma série luminosa da mais<br />

moderna literatura musical estrangeira”.<br />

(Barbosa, 1940; 28).<br />

A abrangência do repertório apresentado<br />

demonstrou que a relação de compositores estrangeiros


dada a conhecer ao público brasileiro não se restringia<br />

aos franceses, como descrito por Milhaud alguns<br />

anos mais tarde, mas também incluía russos<br />

e alemães, além de brasileiros.<br />

Entre os estrangeiros, foram ouvidos Paul Dukas<br />

(1865–1935), Claude Debussy (1862-1918), Alexander<br />

Glazunov (1865-1936), Albert Roussel (1869-1937),<br />

Rimsky-Korsakov (1844–1908), entre outros.<br />

Já entre os brasileiros figuraram Araújo Vianna<br />

(1871-1916), Barroso Neto (1881-1941), Ernesto<br />

Ronchini (1863-1931), Henrique Braga (1845-1917),<br />

Henrique Oswald, Carlos Gomes (1836-1896),<br />

Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno, entre outros.<br />

Com base na relação de compositores<br />

apresentados durante os concertos da Exposição<br />

Nacional, pode-se concluir que se tratava de um evento<br />

onde a intolerância estética não teria espaço. Assim,<br />

Carlos Gomes, compositor representativo do período<br />

imperial, vinculado à escola operística italiana, figurava<br />

ao lado de republicanos românticos e modernos,<br />

adeptos das escolas germânica e francesa. Daí<br />

vislumbra-se, também, que a formação do público<br />

de concerto estava entre os seus objetivos.<br />

Reforça essa conclusão a respeito da atualização<br />

do modo de recepção o relato do pianista português<br />

José Viana da Mota (1868-1948), sobre a série de<br />

Concertos Populares, ocorridos em 1896 e 1897, e regidos<br />

por Nepomuceno. Esse pianista se manifesta que eram<br />

“os preços acessíveis a (sic) todas as bolsas, afim (sic)<br />

de espalhar o mais possível o gôsto (sic) pela<br />

<strong>música</strong> [...]”. (Melo, 1947; 290).<br />

A modernização pretendida no meio musical<br />

carioca se refletiu também na formação musical. Coube<br />

a Leopoldo Miguez realizar uma avaliação crítica das<br />

principais escolas de <strong>música</strong> européias, culminando<br />

com a publicação do relatório Organização dos<br />

Conservatórios de Música na Europa, com o objetivo<br />

de criar o Instituto Nacional de Música, fato que se deu<br />

pelo Decreto nº 143, de 12 de janeiro de 1890.<br />

A qualidade e o grau de seriedade de seus professores<br />

e alunos era tal que, ainda de acordo com Viana da<br />

Mota, “o que bem mostra a riqueza de elementos<br />

artísticos de que dispõe o Rio é que a associação<br />

[de Concertos Populares] não tem dificuldade<br />

Luciano Gallet.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />

nenhuma em variar os artistas em seus concêrtos (sic)”.<br />

(Melo, 1947; 291).<br />

Ainda sobre a ênfase na atualização estética, alguns<br />

exemplos da <strong>música</strong> de Alberto Nepomuceno<br />

mostram-se sintomáticos e demonstram sua tendência<br />

modernizadora. Nas Variações sobre um Tema Original<br />

op. 29, para piano, Nepomuceno utiliza politonalismo,<br />

escala hexatônica, escala pentatônica, entre outros<br />

procedimentos modernos. Também seguem a mesma<br />

trilha a sua ópera Abul, bem como o ciclo de canções<br />

Le Miracle de la Semence, sobre texto do simbolista<br />

Jacques D’Avray (Senador Freitas Valle).<br />

Merecem citação à parte as considerações<br />

a respeito do Trio em fá sustenido menor,<br />

de Nepomuceno. Avelino Pereira relata que<br />

“Em setembro [de 1916], o trio de piano, violino<br />

e violoncelo formado por Barroso Netto, Nicolino<br />

Milano e Alfredo Gomes estreava no salão do Jornal<br />

do Commercio o Trio em fá sustenido menor de<br />

Nepomuceno, obra dedicada àquele conjunto musical<br />

e saudada por Luiz de Castro como o produto<br />

de um compositor que se tornou completamente moderno”<br />

[grifo nosso] (Pereira, 1995; 304).<br />

Pereira ainda relata o fato de que os compositores<br />

franceses André Messager (1853-1929) e Xavier Leroux<br />

(1863-1919), recém chegados de Buenos Aires,<br />

compareceram a esse concerto de 1916. Ao final,<br />

ao ouvir o Trio, Messager dirigiu-se à Nepomuceno<br />

declarando Vous avez débuté par un coup de maître!<br />

(Pereira, op. cit.; 304). Em audição posterior do Trio de<br />

65


66<br />

Nepomuceno, Messager declarou<br />

a <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong> da escola alemã,<br />

que a obra colocava o autor entre os<br />

considerada moderna, afastando-a do<br />

melhores da <strong>música</strong> moderna (Pereira,<br />

lirismo excessivo da escola italiana.<br />

op. cit.; 305). Darius Milhaud<br />

Assim, Brahms e Wagner foram<br />

concordava com essas considerações<br />

modelos em detrimento de Rossini<br />

e estava desejoso da publicação do<br />

e Verdi. No entanto, os programas<br />

Trio para levá-lo para a Europa<br />

musicais se mantiveram ecléticos.<br />

(Pereira, op. cit.; 308).<br />

Em um futuro não distante, Debussy,<br />

Após essas considerações, pode-<br />

Fauré, Sant-Säens, entre outros,<br />

se questionar a pretensão<br />

seriam somados a esse grupo.<br />

atualizadora, anti-passadista, dos<br />

As trocas com a Europa também<br />

“novos modernos”. A geração de<br />

moldaram o crescente nacionalismo<br />

compositores da Primeira República<br />

Alexandre Levy, Sinfonia. musical brasileiro. Não podemos<br />

já se ocupava em manter-se<br />

atualizada, já que as trocas com<br />

Edição da Sociedade Brasileira<br />

de Musicologia. São Paulo.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />

perder de vista que, na época, a visão<br />

européia sobre o Brasil afirmava<br />

a Europa eram freqüentes, além<br />

DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />

a “impossibilidade de uma nação<br />

de a formação de muitos desses compositores<br />

civilizada nos trópicos e ainda por cima miscigenada”.<br />

brasileiros ter-se dado no velho continente, seguindo, (Odália apud Reis, 2002; 94). Logo, nada mais natural<br />

na maioria das vezes, escolas progressistas.<br />

que, no princípio, os brasileiros imitassem os europeus<br />

Assim, para citar alguns dos mais conhecidos para mostrarem que também eram capazes e, portanto,<br />

compositores do período, observa-se que Leopoldo civilizados. Como exemplo temos José Maurício Nunes<br />

Miguez estudou em Portugal e na Bélgica; Henrique Garcia (1767-1830), que compôs, entre outras tantas<br />

Oswald, na Itália; Alexandre Levy esteve na Itália obras, uma Missa de Réquiem considerada obra-prima.<br />

e na França; enquanto Alberto Nepomuceno teve Em uma etapa posterior, utilizaram-se temas nativos<br />

a sua formação na Itália, na Alemanha e na França. com roupagem européia. O exemplo clássico são<br />

(Uma boa panorâmica sobre esse assunto pode<br />

as óperas O Guarani e O Escravo, de Antônio Carlos<br />

ser encontrada no artigo Compositores românticos<br />

Gomes (1836-1896). Após, a inspiração viria da <strong>música</strong><br />

brasileiros: estudos na Europa, de Maria Alice Volpe). popular urbana, eventualmente da popular rural<br />

Para se ter em conta o espírito<br />

ou folclórica, representada pela Série<br />

desbravador desses compositores, vale<br />

Brasileira ou o prelúdio O Garatuja,<br />

lembrar que até por volta de 1880,<br />

de Alberto Nepomuceno e pelos<br />

ópera e bel canto eram sinônimos<br />

Tangos, Polcas e Valsas, de Ernesto<br />

de <strong>música</strong> no Brasil – e no restante<br />

Nazareth. Um grande passo nesse<br />

da América. Foi a partir dessa década<br />

caminho nacionalista foi a odisséia<br />

que se deu efetivamente a introdução<br />

nepomucena de escrever canções<br />

da <strong>música</strong> sinfônica e camerística nos<br />

sobre poemas em português, feito que<br />

eventos musicais brasileiros, tendo<br />

ainda sequer havia se concretizado em<br />

Miguez, Oswald e Nepomuceno<br />

Portugal, segundo Viana da Mota.<br />

como grandes divulgadores.<br />

Continuando a migração dos pólos,<br />

As mudanças de meios de<br />

chega-se ao extremo oposto, onde<br />

expressão e gosto pretendidos não<br />

a <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong> se vestiria de<br />

visaram a substituição da ópera pela Leopoldo Miguez. Desenho assinado acordo com a sua sonoridade nativa,<br />

<strong>música</strong> sinfônica ou de câmera.<br />

Tinham como objetivo aproximar<br />

por Henrique Bernardelli em 1903.<br />

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DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />

independente da citação folclórica.<br />

Foi um dos caminhos trilhados por


Villa-Lobos (1887-1959) em obras como os Choros para<br />

orquestra ou nas obras Uirapuru e Amazonas.<br />

Essa dinâmica de concepções nacionalistas não se<br />

coloca como pré, proto, ou qualquer outro prefixo tão<br />

comum nas categorizações. São simplesmente visões<br />

distintas de nacionalismo, de acordo com o permitido<br />

pelas dinâmicas sociais de cada período histórico.<br />

Daí as afirmações do tipo “preocupação nacionalista”,<br />

para os compositores do período aqui tratado,<br />

apresentarem-se plenas de preconceito e presas<br />

ao dogma do “futurismo” defendido na Semana de 22.<br />

Pela mesma razão, o juízo de que faltaria à<br />

Nepomuceno, Levy e Brasílio Itiberê da Cunha maior<br />

intimidade com a <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong> mostra-se<br />

não procedente.<br />

Parafraseando Mário da Silva Brito, poderão<br />

parecer, ao público de hoje, tímidas e, por vezes,<br />

desajeitadas as realizações musicais desses<br />

compositores brasileiros, mais acadêmicas do que<br />

revolucionárias, mas, ao seu tempo, repercutiam<br />

perturbadoramente, eram objeto de discussão<br />

e poderiam causar algum escândalo. Mas foi, através<br />

delas, que novas perspectivas puderam ser abertas<br />

e processos mais amplos para a expressão musical<br />

foram conquistados.<br />

Portanto, o período da Primeira República, mostra-<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. 150 anos de <strong>música</strong> no Brasil.<br />

Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1956.<br />

BARBOSA, José Rodrigues. Alberto Nepomuceno. Revista Brasileira<br />

de Música. Rio de Janeiro, v.7, n.1, 1940. p.19-39.<br />

BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro:<br />

antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro:<br />

Civilização Brasileira, 1971.<br />

CHAVES, Celso G. Loureiro. Literatura e Música. História da<br />

Literatura Brasileira. Vol.3. Lisboa: Alfa, 2000.<br />

MELO, Guilherme de. A <strong>música</strong> no Brasil: desde os tempos coloniais<br />

até o primeiro decênio da República. Rio de Janeiro: Imprensa<br />

Nacional, 1947.<br />

PEREIRA, Avelino Romero Simões. Música, sociedade e política:<br />

DISCOGRAFIA<br />

NEPOMUCENO, Alberto − TRIO EM FÁ SUSTENIDO MENOR,<br />

PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO. Trio Dell’Arte, 1995<br />

Sony Music Entertainment<br />

NEPOMUCENO, Alberto − SÉRIE BRASILEIRA. Orquestra Sinfônica<br />

Brasileira/Souza Lima. Festa − Polygram, 1981<br />

MIGUEZ, Leopoldo − SONATA OP.14, PARA VIOLINO E PIANO. VL. −<br />

Paulo Bosísio; Pno. − Lilian Barreto. 1998<br />

OSWALD, Henrique − TRIO EM SOL MENOR OP.9. VL<br />

Elisa Fukuda; Vc. − Antônio Del Claro; Pno. − José Eduardo<br />

Martins. FUNARTE. 1998<br />

LEVY, Alexandre − SUÍTE BRASILEIRA. Orquestra Sinfônica Brasileira/<br />

Souza Lima. Festa<br />

BRAGA, Francisco − TRIO PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO<br />

Trio da Rádio MEC. Funarte ProMeMus<br />

se uma época muito rica para a <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong>.<br />

A eterna atualização estética junto com a afirmação<br />

da identidade <strong>brasileira</strong>, pelo auto-conhecimento<br />

de suas <strong>música</strong>s nativas (urbanas ou rurais), refletem<br />

um “período mágico”, onde “reside a essência do<br />

verdadeiro e breve modernismo musical brasileiro”.<br />

(Chaves, 2000; 140). Na mesma linha reflexiva de<br />

Celso Loureiro Chaves, o modernismo musical<br />

brasileiro pós Semana de Arte Moderna dogmatizou-se<br />

e virou Nacionalismo <strong>Musical</strong> Brasileiro.<br />

Alberto Nepomuceno e a República <strong>Musical</strong> do Rio de Janeiro (1864-<br />

1920). Dissertação (Mestrado em História Social). Instituto de<br />

Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de<br />

Janeiro, 1995.<br />

REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC.<br />

5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.<br />

TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong>. Rio de<br />

Janeiro: Jorge Zahar, 2000.<br />

VOLPE, Maria Alice. Compositores românticos brasileiros: estudos na<br />

Europa. Revista Brasileira de Música. Rio de Janeiro, v.21, 1994/<br />

95. p.51-76<br />

WISNIK, José Miguel. O Coro dos Contrários – A Música em torno<br />

da Semana de 22. São Paulo: Duas Cidades, 1977.<br />

LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG<br />

Professor de piano no Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas (RS).<br />

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Música, Musicologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.<br />

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