música erudita brasileira - Conservatorio Musical Maestro Paulino ...
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4<br />
MÚSICA<br />
ERUDITA<br />
BRASILEIRA
Escrever um panorama da História da Música<br />
Erudita ou de Concerto no Brasil é um<br />
desafio há muito acalentado. Diferente<br />
de outras produções artísticas <strong>brasileira</strong>s,<br />
a <strong>música</strong> ainda carece de estudos<br />
organizados com o objetivo de contar sua<br />
história e, principalmente, contextualizá-la<br />
perante o repertório consagrado da <strong>música</strong><br />
ocidental. Essa vertente da produção musical<br />
<strong>brasileira</strong> por muitos é considerada como<br />
o último tesouro ainda por ser descoberto<br />
e verdadeiramente explorado da cultura<br />
do país. À exceção do célebre Villa-Lobos,<br />
e também de Camargo Guarnieri, pouco<br />
se conhece a respeito dessa imensa produção<br />
musical. Isso se dá tanto nos meios<br />
internacionais como, espantosamente, entre<br />
os próprios músicos brasileiros, que bastante<br />
sabem e executam Mozart, Beethoven<br />
e Brahms, mas que pouca informação<br />
têm de compositores brasileiros<br />
contemporâneos e mesmo de outros períodos.<br />
5
6<br />
Por outro lado, enquanto a denominada MPB ou<br />
Música Popular Brasileira é consagrada pelos meios<br />
de comunicação e conhecida internacionalmente como<br />
símbolo da produção musical do Brasil do século XX,<br />
a <strong>música</strong> <strong>erudita</strong> ou de concerto ainda é um território<br />
inexplorado, quer pelos estrangeiros, quer pelos<br />
próprios músicos brasileiros. Diferentemente<br />
da produção de MPB, que abrange dos últimos anos<br />
do século XIX aos dias atuais, a <strong>música</strong> “clássica”<br />
no Brasil está ligada diretamente ao início da<br />
colonização pelos portugueses e perpassa pelos cinco<br />
séculos de transformações e adaptações culturais<br />
ocorridas no país.<br />
A respeito de como interagem na cultura <strong>brasileira</strong><br />
essas duas realidades musicais complementares,<br />
citamos artigo do jornalista Irineu Franco Perpétuo1 que bem exemplifica essa situação:<br />
“É que parece cada vez mais que, no Brasil, falar<br />
de <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong> corresponde a falar de <strong>música</strong><br />
“popular” <strong>brasileira</strong>. Claro que a supremacia, em<br />
termos de difusão, da <strong>música</strong> popular sobre a <strong>música</strong><br />
de concerto é um fenômeno mundial. O que torna<br />
o caso do Brasil específico é que os principais autores<br />
e intérpretes de nossa <strong>música</strong> popular desfrutam<br />
do status não apenas do carinho das massas, mas o afago<br />
da “inteligentsia”, desalojando a <strong>música</strong> “clássica”<br />
da posição hegemônica mesmo entre as elites. Para<br />
o bem ou para o mal, os intelectuais orgânicos<br />
brasileiros, na área de <strong>música</strong>, são gente como Chico<br />
Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento − não<br />
Almeida Prado, Edino Krieger ou Gilberto Mendes,<br />
por mais que possamos admirar e respeitar o talento<br />
desses compositores. As idéias dos astros da MPB é<br />
que são levadas a sério, debatidas e discutidas pelos<br />
formadores de opinião pública. Quando acontece um<br />
fato de comoção nacional, e a imprensa quer saber<br />
a opinião de um músico a respeito, vai perguntar para<br />
o Chico. A intenção de voto de Caetano a cada eleição<br />
presidencial é sempre repercutida pela imprensa com<br />
estardalhaço, mas ninguém vai averiguar em quem<br />
Nelson Freire ou Antonio Meneses vão votar.<br />
Não se trata aqui de atacar a <strong>música</strong> popular<br />
<strong>brasileira</strong>, mas apenas lamentar o deslocamento sofrido<br />
pela <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong> de concerto.”<br />
Ao procurarmos os vários fatores a que se deve<br />
a atual situação de desconhecimento da história e da<br />
produção da <strong>música</strong> de concerto no Brasil, deparamonos<br />
com dois principais, que são a falta de programas<br />
editorais eficazes para a publicação de obras compostas<br />
no Brasil desde o século XVIII e o próprio<br />
desincentivo ou mesmo desinteresse das corporações<br />
musicais em conhecer e programar esse repertório em<br />
seus concertos. Diante desse quadro, nada mais<br />
oportuno que escrever, ainda que despretensiosamente,<br />
esta História da Música Erudita no Brasil, de modo<br />
multidisciplinar e em formato de revista.<br />
Para esta publicação elaboramos uma pauta onde<br />
subdividimos os assuntos em três grandes períodos<br />
históricos: do Descobrimento à Independência, do<br />
Império ao Estado Novo e da Segunda Guerra aos dias<br />
atuais, sendo a subdivisão interna de cada fase formada<br />
por artigos de diferentes características. Há os artigos<br />
contextualizantes de um período histórico e que vêem<br />
a produção musical no âmbito sociológico, e há os que<br />
exploram a biografia dos principais compositores de<br />
cada período, tornando-se importantes verbetes para<br />
uma compreensão mais objetiva da biografia e<br />
produção de cada compositor ou período estético<br />
abrangido. Esse formato, uma vez que esta é uma<br />
revista de divulgação de cultura <strong>brasileira</strong> no exterior,<br />
tem como objetivo possibilitar que o leitor, mesmo que<br />
jamais tenha ouvido falar a respeito dos assuntos<br />
abordados, possa ter uma ambientação histórica<br />
e social na qual essa <strong>música</strong> foi produzida.<br />
Acessíveis e interessantes para músicos,<br />
ou somente interessados em saber mais sobre essa<br />
produção musical, os artigos foram escritos por alguns<br />
dos mais atuantes especialistas de cada subdivisão do<br />
assunto, entre jornalistas, acadêmicos e musicistas.<br />
A presença do CD anexo, assim como as bibliografias<br />
e discografias sugeridas, servem como ilustração a cada<br />
assunto abordado nos artigos. Desse modo,<br />
pretendemos tornar a revista ainda mais dinâmica,<br />
possibilitando que a mesma possa ser utilizada como<br />
um guia referencial para aqueles que pretendem<br />
começar a se enveredar pelo tema, e até servir como<br />
base bibliográfica para a elaboração de pequenas aulas.<br />
Dentre as publicações mais importantes de História
da Música no Brasil, sendo escritas cada qual por<br />
somente um autor, podemos citar as de Vicente<br />
Cernicchiaro, Renato de Almeida e Mário de Andrade,<br />
ainda nas décadas de 1920 e 30, passando por Luiz<br />
Heitor Corrêa de Azevedo nos anos 60, Bruno Kieffer<br />
nos anos 70 e Vasco Mariz em dias atuais.<br />
Nesta Textos do Brasil, por sua característica<br />
multidisciplinar unindo conhecimentos específicos<br />
para cada assunto abordado, pretendemos contribuir<br />
para incrementar e dar nova visão sobre essa não<br />
vasta, porém importante, bibliografia existente<br />
a respeito do tema.<br />
O primeiro texto da revista, “Música e sociedade<br />
no Brasil colonial”, assinado por Rogério Budasz, trata<br />
inicialmente da <strong>música</strong> composta e utilizada pelos<br />
jesuítas com o objetivo de catequizar os povos<br />
indígenas brasileiros durantes os dois primeiros séculos<br />
da colonização. Apesar de não existir documentação<br />
musical remanescente do período, o pesquisador faz<br />
uma minuciosa e aprofundada pesquisa sobre esse<br />
processo, tendo como fonte o trabalho realizado<br />
pelo emblemático Padre José de Anchieta, buscando<br />
em suas notas as informações necessárias para<br />
a reconstituição provável desse material. No mesmo<br />
artigo, Budasz trata da produção musical para os versos<br />
do ilustre poeta da Província da Bahia ainda no século<br />
XVII, Gregório de Matos, podendo ser uma das<br />
primeiras informações a respeito de uma prática de<br />
<strong>música</strong> não-litúrgica ou profana em nosso território.<br />
Desta também não restou documentação musical<br />
específica, porém é também possível realizar um<br />
processo comparativo e de reconstituição baseado<br />
em manuscritos musicais existentes em Portugal, a que<br />
são feitas referências em documentos da época.<br />
Ainda no século XVII e início do XVIII temos,<br />
para não deixar de citar, o caso da <strong>música</strong> composta<br />
na região das Missões Jesuíticas dos Índios Guaranis −<br />
hoje pertencentes ao território brasileiro no Sul<br />
do país, mas que no período pertenciam à Coroa<br />
espanhola −, sendo sua produção artística e musical<br />
mais diretamente ligada à arte barroca praticada<br />
em países como Argentina, Paraguai e Bolívia.<br />
Para conhecermos mais a respeito desta produção,<br />
basta que conheçamos os trabalhos editoriais<br />
A <strong>música</strong> “clássica”<br />
no Brasil está ligada<br />
diretamente ao início da<br />
colonização pelos portugueses e<br />
perpassa pelos cinco séculos de<br />
transformações e adaptações<br />
culturais ocorridos no país<br />
e de partituras, assim como os registros musicais em<br />
discos e sobre <strong>música</strong> barroca hispano-americana.<br />
Tratando a pauta com respeito a uma ordem<br />
cronológica e contextual passamos, a seguir, a tratar da<br />
<strong>música</strong> sacra no Brasil, sobretudo na segunda metade<br />
do século XVIII e primeira metade do XIX.<br />
Neste segundo artigo, “A Música no Brasil Colônia<br />
anterior à chegada da Corte de D. João VI”, assinado<br />
por Harry Crowl, é abordado um aspecto mais<br />
difundido, porém também pouco conhecido da<br />
produção musical do Brasil colônia, que é a <strong>música</strong><br />
sacra composta pelos mestres-de-capela nas sedes de<br />
Bispados e a atuação dos músicos junto às Irmandades<br />
leigas, sobretudo nas províncias das Minas Gerais, São<br />
Paulo, Bahia e Pernambuco.<br />
Esse artigo trata justamente da <strong>música</strong> a partir<br />
do primeiro documento musical encontrado, que é um<br />
recitativo e ária da Bahia datado de 1759, e contextualiza<br />
as produções nordestinas do mesmo período para,<br />
aí sim, dar total ênfase à mais importante escola<br />
de compositores do período colonial, que é a das Minas<br />
Gerais da segunda metade do século XVIII. É um texto<br />
bastante completo, que contempla a produção de vários<br />
nomes importantes do período, como Emerico Lobo de<br />
Mesquita, Francisco Gomes da Rocha, Marcos Coelho<br />
Neto, João de Deus de Castro Lobo, entre outros.<br />
Nesta nossa introdução não podemos deixar<br />
de explicar, mesmo que brevemente, como esse estilo<br />
musical se estabeleceu no Brasil colonial,<br />
principalmente nos séculos XVIII e XIX. Essa<br />
7
8<br />
linguagem musical eminentemente italiana tem uma<br />
trajetória interessante: D. João V de Portugal, a partir<br />
da década de 1710, manda jovens compositores<br />
portugueses estudar na Itália como bolsistas, sobretudo<br />
em Roma e Nápoles, a fim de absorver o estilo musical<br />
italiano, que era o predominante na época, e trazê-lo<br />
para Lisboa. Do mesmo modo, compositores italianos<br />
como Domenico Scarlatti são levados a Portugal para<br />
dirigir a <strong>música</strong> na Sé e na corte lisboeta. Como<br />
a mais importante colônia do império português<br />
do período, o Brasil tem uma grande atividade musical<br />
e está em estreito contato com as novidades vindas<br />
da metrópole, passando também a ter sua produção<br />
musical nos mesmos moldes de Portugal. Com a<br />
descoberta do ouro, sobretudo na província das Minas<br />
Gerais, outros importantes centros urbanos como Vila<br />
Rica surgem para, além das tradicionais grandes<br />
cidades como Salvador e Rio de Janeiro, possuírem<br />
intensa atividade musical, que caracterizará um dos<br />
mais profícuos momentos da história musical <strong>brasileira</strong>.<br />
No entanto, não há parâmetro para as<br />
transformações nas atividades culturais e mesmo sociais<br />
do Brasil como o deslocamento da Corte de D. João VI<br />
de Portugal para o Rio de Janeiro, que teve o fim de<br />
salvaguardar a alta administração portuguesa da<br />
invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas em 1808.<br />
O artigo que se segue, “Música na Corte do Brasil:<br />
Entre Apolo e Dionísio 1808-1821”, assinado pelo<br />
musicólogo e historiador Maurício Monteiro, começa<br />
justamente a falar das grandes mudanças sociológicas<br />
e estilístico-musicais que se seguem após este<br />
importante momento da História do Brasil.<br />
Com o objetivo de finalizar essa primeira sessão,<br />
segue, por nós assinado, artigo a respeito do mais<br />
representativo compositor desse período colonial<br />
brasileiro, que é o carioca José Maurício Nunes Garcia<br />
(1767 –1830). Esse texto, “José Maurício Nunes<br />
Garcia e a Real Capela de D. João VI no Rio<br />
de Janeiro”, trata de sua interessante biografia<br />
e de como suas obras sobreviveram através do tempo.<br />
Por ser um compositor que trabalhou sempre no Rio<br />
de Janeiro, sendo sua primeira obra datada de 1783<br />
e a última de 1826, sua <strong>música</strong> também reflete<br />
as transformações que essa cidade, como capital<br />
da colônia, sofreu em sua <strong>música</strong> e relações sociais.<br />
Esses anos foram intensos também para as artes<br />
plásticas no Brasil, com a vinda da Missão Artística<br />
Francesa de 1817 e de músicos como o compositor<br />
austríaco Sigismund Neukomm – que veio na missão<br />
diplomática do Duque de Luxemburgo a serviço<br />
de Luís XVIII de França – e que permaneceu no<br />
Rio de Janeiro por cinco anos, sofisticando a produção<br />
de <strong>música</strong> instrumental na corte como <strong>música</strong> para<br />
piano, de câmara e até mesmo sinfônica. Graças<br />
à presença desse compositor, os músicos atuantes na<br />
cidade puderam travar contato com o que havia de<br />
mais relevante da produção musical centro-européia,<br />
como a Missa de Réquiem de Mozart, regida por José<br />
Maurício em 1819, e os oratórios As Estações<br />
e A Criação de Joseph Haydn, este último também<br />
comprovadamente regido por José Maurício em 1821.<br />
Nos anos que seguiram ao processo de<br />
Independência do Brasil de Portugal, ocorrida em<br />
1822, as atividades culturais sofreram um grande<br />
declínio em comparação aos faustos anos da presença<br />
da corte portuguesa no Rio de Janeiro. O início de uma<br />
longa reestruturação se inicia com a criação do<br />
Imperial Conservatório de Música, atual Escola de<br />
Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que<br />
teve como seu primeiro diretor o autor do Hino<br />
Nacional Brasileiro, Francisco Manoel da Silva,<br />
que durante o tempo de José Maurício esteve entre<br />
seus alunos diletos.<br />
Esse período se caracterizou por uma certa<br />
desestruturação da Real Capela de Música,<br />
transformada em Imperial Capela, e seus músicos –<br />
entre eles seus mestres-de-capela José Maurício Nunes<br />
Garcia e Marcos Portugal – sofreram sérias dificuldades<br />
financeiras. Essa época coincidiu também com<br />
a ascensão de Rossini nos teatros do mundo todo,<br />
passando a ser um novo parâmetro para a produção<br />
operística italiana. As óperas de Rossini fizeram tanto<br />
sucesso no Brasil que, mesmo durante a estada do Rei<br />
D. João VI no Rio de Janeiro, várias de suas óperas<br />
foram encenadas. Entre elas, sobretudo, Il Barbiere di<br />
Seviglia e La Cenerentola, com diferenças por vezes de<br />
poucos meses em relação às estréias européias. Essa<br />
modificação no gosto serviu de modelo para a criação
14<br />
Música<br />
e sociedade<br />
no Brasil<br />
colonial<br />
ROGÉRIO BUDASZ<br />
Carlos Julião. Cortejo da Rainha Negra<br />
na Festa de Reis. Aquarela colorida<br />
do livro “Riscos illuminados de figurinos<br />
de brancos e negros dos uzos<br />
do Rio de Janeiro e Serro Frio”.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />
DIVISÃO DE ICONOGRAFIA
Sem levar em conta alguns casos isolados de portugueses<br />
e franceses fixando-se na costa <strong>brasileira</strong>, por livre<br />
vontade ou não, durante as primeiras décadas do século<br />
XVI, a colonização e o efetivo povoamento dessa<br />
região por europeus e seus descendentes tiveram início<br />
apenas na década de 1530. Missionários religiosos<br />
também começaram a se estabelecer nessa época,<br />
sendo o grupo mais importante a Companhia de Jesus,<br />
que chegou em 1549 e fundou vários colégios ao longo<br />
da costa <strong>brasileira</strong>.<br />
O povoamento da costa <strong>brasileira</strong> nos dois<br />
primeiros séculos após a descoberta pelos portugueses<br />
foi condicionado pelos ciclos econômicos do pau-brasil<br />
e da cana-de-açúcar, esse último marcando também<br />
o início da presença negra no Brasil. Os colonos eram<br />
invariavelmente homens que estabeleciam<br />
propriedades rurais e, geralmente, amasiavam-se<br />
com as nativas, originando um novo tipo étnico,<br />
o mameluco, que se tornaria o principal responsável<br />
pela expansão territorial da colônia. A colonização foi<br />
marcada por iniciativas e regulamentações<br />
contraditórias, que, enquanto estimulavam a vinda<br />
de colonos, reprimiam o desenvolvimento de uma<br />
identidade <strong>brasileira</strong> por proibir o surgimento de casas<br />
impressoras, periódicos e universidades.<br />
Para o colono, a única forma de literatura era<br />
muitas vezes aquela transmitida oralmente, nos<br />
romances populares ibéricos de teor histórico ou<br />
moral. Muitos desses romances, geralmente cantados<br />
sobre melodias simples para não dificultar<br />
a inteligibilidade da narrativa, permanecem vivos até<br />
hoje na tradição popular tanto em Portugal como<br />
no Brasil, e sofrendo poucas transformações nesses<br />
quinhentos anos, como é o caso de Conde Claros,<br />
A Bela Infanta, Gerineldo, e tantos outros.<br />
Além desses, o repertório musical dos primeiros<br />
colonos e seus descendentes incluiria também cantos<br />
de trabalho para acompanhar ações rotineiras,<br />
15
16<br />
acalantos e cantigas, tanto em português como em tupi.<br />
A primeira geração de brasileiros crescia, assim,<br />
ouvindo romances, cantigas e ritmos ibéricos cantados<br />
e tocados na viola pelo pai, enquanto era embalada<br />
pelos acalantos da mãe tupi em seu idioma. Quer fosse<br />
pelo seu conteúdo considerado “lascivo” ou pela sua<br />
associação com os cultos nativos, algumas daquelas<br />
cantigas, tanto ibéricas como tupis, escandalizaram<br />
os missionários, induzindo-os a comporem versões<br />
pias, ou “divinizadas”. José de Anchieta era mestre<br />
nessa transmutação e ensinava também as doutrinas,<br />
orações e hinos católicos no idioma tupi.<br />
Fora do contexto missionário, também eram<br />
comuns as bandas de corporações militares ou de<br />
escravos, mantidas pelos latifundiários mais destacados<br />
como aparato de ostentação e demonstração de poder,<br />
ao realizarem entradas pomposas nas vilas ao som dos<br />
clarins, ou para impressionar visitantes. Promovidas<br />
pelas autoridades seculares e religiosas, várias festas,<br />
como as de Corpus Christi e da Visitação de Santa<br />
Isabel, incluíam procissões, <strong>música</strong> e danças, trazendo<br />
alegorias, mascarados e coreografias de índios e negros.<br />
Para o acompanhamento costumavam ser usados<br />
tambores, pandeiros, gaitas de fole, pífanos<br />
e charamelas — termo esse que poderia incluir tanto<br />
instrumentos de palheta, como a chirimia ibérica,<br />
quanto instrumentos de bocal, como as cornetas,<br />
sacabuxas, trompas e outros. Além disso, nas festas<br />
e outros congraçamentos ao ar livre poderíamos,<br />
tal como hoje em dia, encontrar cantores repentistas,<br />
numa tradição que remonta aos segréis<br />
da Idade Média.<br />
Tais festas e procissões, tal qual em Portugal,<br />
muitas vezes funcionavam como pretexto para<br />
a socialização e diversão, como satirizaria o poeta<br />
Gregório de Mattos no final do século XVII. Contudo,<br />
a despeito de várias regulamentações repressoras e das<br />
opiniões de alguns moralistas, o congraçamento entre<br />
escravos era geralmente tolerado “para evitar males<br />
maiores”, no dizer de Antonil, pois a mistura de raças<br />
também dificultava a identificação étnica de escravos<br />
de várias nações e crenças, diminuindo o perigo<br />
de insurreição. Já a mistura entre negros e branco, era<br />
insistentemente reprimida pelas autoridades — e isso<br />
até o início do século XX —, o que não parece jamais<br />
ter surtido o efeito desejado, como o comprovam não<br />
só as descrições de viajantes como também o fato<br />
de terem sido reprisadas várias vezes no decorrer dos<br />
séculos as prescrições contra o ajuntamento de brancos<br />
e escravos nas festas.<br />
Quanto à <strong>música</strong> oficial do Estado e da Igreja,<br />
nota-se já no século XVI a tentativa de reproduzir<br />
em miniatura o estabelecimento musical português.<br />
Existiam, no entanto, algumas diferenças fundamentais<br />
que dificultavam essa reprodução, ao mesmo tempo<br />
em que moldavam novas maneiras de fazer e usar<br />
a <strong>música</strong>: se Portugal era pequeno e densamente<br />
povoado, o inverso valia para o Brasil nos dois<br />
sentidos. A rarefação populacional tornava inviáveis<br />
certas práticas musicais e inúteis outras.<br />
MÚSICA NO ESPAÇO DOMÉSTICO<br />
A maior parte das vilas fundadas durante o primeiro<br />
século da colonização formava-se ao redor de alguns<br />
fortes militares e escolas jesuíticas. Enquanto isso,<br />
o grosso da população habitava as propriedades rurais,<br />
que cresceram muito — em número e tamanho — nas<br />
últimas décadas do século XVI, passando<br />
a especializar-se no cultivo da cana de açúcar<br />
e na produção de seus derivados, açúcar e aguardente,<br />
assim como no cultivo da mandioca e na produção<br />
da farinha.<br />
Distante dos centros urbanos — numa época em<br />
que eram poucos os que se destacavam —, o engenho<br />
ficava assim definido como a principal unidade de<br />
produção e povoamento, enquanto a Casa Grande<br />
era o seu centro administrativo e religioso, na verdade<br />
o principal espaço de sociabilidade. Ali era promovida
a educação civil e religiosa, bem<br />
como os encontros sociais, por<br />
ocasião de batizados, de casamentos,<br />
e da hospedagem de visitantes.<br />
Nesse contexto, a <strong>música</strong> era<br />
cultivada como auxiliar no fluir<br />
das atividades sociais, como<br />
passatempo na intimidade<br />
do lar, acompanhando momentos<br />
de devoção religiosa ou como<br />
demonstração de civilidade e poder<br />
para os olhos e ouvidos externos.<br />
E era por isso que a prática musical também fazia<br />
parte da instrução dos filhos e afilhados do senhor<br />
de engenho. Formação diferente, e para cumprir tarefas<br />
diferentes, teriam os músicos escravos — cantores<br />
e charameleiros — que participariam do aparato<br />
de propaganda e demonstração de poder do senhor<br />
de engenho, sendo muitas vezes emprestados às Igrejas<br />
e vilas por ocasião de festas religiosas e cívicas.<br />
Os primeiros que se dedicaram ao ensino<br />
da <strong>música</strong> foram os missionários, que, a princípio,<br />
concentravam-se nos nativos e usavam a <strong>música</strong> como<br />
instrumento auxiliar na conversão e catequese. Depois<br />
deles, representando oficialmente o estabelecimento<br />
musical da Igreja, aparecem os mestres de capela,<br />
enviados de Portugal para organizar a atividade<br />
musical de determinada região mas que também<br />
exerciam a função de instrutores da arte da <strong>música</strong><br />
para quem pudesse pagar. Mais tarde, também passam<br />
a exercer essa função, embora de forma limitada,<br />
os cantores e instrumentistas mais destacados<br />
dentre os índios, negros e mulatos instruídos<br />
na <strong>música</strong> européia pelos missionários e mestres<br />
de capela, com o objetivo principal de interpretarem<br />
Alexadre Rodrigues Ferreira.<br />
Desenho aquarelado.<br />
Viola que tocam os pretos.<br />
Desenho aquarelado do livro<br />
Viagem filosófica às Capitanias<br />
do Grão-Pará, Rio Negro, Cuiabá.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO<br />
DE ICONOGRAFIA<br />
as composições por eles preparadas.<br />
Evidentemente, o filho de um senhor de engenho<br />
não entraria numa relação mestre-aprendiz com o<br />
mestre de capela local. Esperava-se que tomasse conta<br />
dos negócios do pai, fosse estudar em Portugal ou<br />
seguisse a carreira eclesiástica — podendo, neste último<br />
caso desenvolver suas habilidades musicais de maneira<br />
mais aprofundada. Este tipo de interesse musical não<br />
profissional era bastante comum entre a aristocracia e<br />
burguesia abastada portuguesa, a ponto de vários<br />
nobres, incluindo reis e príncipes, tornarem-se<br />
compositores competentes.<br />
Sendo o profissionalismo musical indicativo de<br />
baixa estatura social, isso talvez explicasse o porquê da<br />
quase inexistência de compositores brancos nas Minas<br />
Gerais do século XVIII (com exceção dos portugueses<br />
enviados com a expressa finalidade de servirem como<br />
mestres-de-capela), numa época em que, após a<br />
descoberta do ouro, multiplicavam-se os centros<br />
urbanos no interior da colônia, multiplicando-se<br />
também as oportunidades de trabalho de cantores,<br />
instrumentistas e compositores.<br />
Todavia, para a elite <strong>brasileira</strong> dos séculos XVII<br />
e XVIII, mesmo desdenhando o profissionalismo<br />
musical, o diletantismo na <strong>música</strong> era qualidade<br />
apreciável. A habilidade como compositor é colocada<br />
por historiógrafos e bibliógrafos portugueses<br />
e brasileiros em pé de igualdade com a produção<br />
literária, e a proficiência na execução à viola<br />
ou à harpa equivaleria aos dotes poéticos e à instrução<br />
nas assim chamadas artes liberais. De fato, inventários<br />
17
18<br />
da época comprovam que o mobiliário das casas<br />
grandes costumava incluir harpas, violas e cítaras, além<br />
de dispor de aposentos usados como escolas, onde<br />
os filhos eram instruídos em aritmética, gramática,<br />
retórica, religião e <strong>música</strong>.<br />
Na Nobiliarchia Paulistana, Pedro Taques de<br />
Almeida Prado menciona, entre a aristocracia<br />
paulistana de séculos passados, além de harpistas<br />
e tocadores de “vários instrumentos”, dois tocadores<br />
de viola. Frei Plácido, “eminente na prenda de tanger<br />
viola”, tomou o hábito em Alcobaça e teria tocado para<br />
o rei D. Pedro II de Portugal. Francisco Rodrigues<br />
Penteado, pernambucano, demonstrava tal “mimo”<br />
na mesma arte que em 1648, voltando de Lisboa, foi<br />
convidado por Salvador Correia de Sá e Benevides<br />
a instruir “nos instrumentos músicos” suas filhas e seu<br />
filho Martim Correia. Evidentemente, em se tratando<br />
das famílias aristocráticas <strong>brasileira</strong>s, os dotes musicais<br />
não poderiam ser utilizados como forma permanente<br />
de sustento: são práticas socialmente distintas o cultivo<br />
da <strong>música</strong> como profissão ou como “elemento de<br />
civilidade”, usando a expressão da época. À época<br />
do convite de Sá e Benevides, Penteado encontrava-se<br />
desprovido de recursos, pois havia esbanjado a fortuna<br />
paterna em Lisboa, e a solução encontrada, enquanto<br />
buscava formas mais nobres de aquisição de capital,<br />
seria remediar-se instruindo os filhos do mais poderoso<br />
brasileiro de seu tempo. Algum tempo depois,<br />
Penteado se estabeleceria em São Paulo, após casar-se<br />
com a filha de um latifundiário.<br />
Fora do contexto religioso, além da citação de<br />
Almeida Prado, a harpa aparece também em um<br />
poema de Gregório de Mattos, animando uma festa.<br />
Mesmo utilizada como principal acompanhante das<br />
funções religiosas pelo interior do Brasil até as<br />
primeiras décadas do século XVIII, a harpa não parece<br />
ter-se difundido muito como instrumento doméstico.<br />
Nem mesmo o cravo parece ter exercido essa função<br />
em larga escala, permanecendo neste papel a viola<br />
até ser sobrepujada pelo piano no século XIX.<br />
Principal acompanhador dos romances, cantigas,<br />
tonos e modinhas, além de ótimo veículo para a <strong>música</strong><br />
solo, a viola de mão era instrumento de versatilidade<br />
incontestável. Suas variantes no século XVI incluíam<br />
um instrumento de quatro ordens de cordas (a guitarra<br />
renascentista), de seis ordens (conhecida na Espanha<br />
como vihuela), e, no século seguinte, de cinco ordens<br />
(muitas vezes chamada guitarra barroca). Este último<br />
instrumento originaria mais tarde a viola caipira<br />
<strong>brasileira</strong>, as diversas violas regionais portuguesas,<br />
e a guitarra espanhola, ou violão. Nomes de tocadores<br />
que se especializaram na viola de cinco ordens, como<br />
Felipe Nery da Trindade, Manuel de Almeida Botelho<br />
e João de Lima aparecem com destaque na obra de<br />
Domingos do Loreto Couto, historiógrafo<br />
pernambucano do século XVIII.<br />
Além de chantre da catedral de Salvador por<br />
vários anos, João de Lima — conhecido do poeta<br />
Gregório de Mattos — foi pedagogo e compositor,<br />
deixando obras de <strong>música</strong> sacra e profana<br />
e dominando a execução musical em vários<br />
instrumentos. Manuel de Almeida Botelho passou<br />
vários anos em Portugal, protegido do patriarca<br />
de Lisboa e do Marquês de Marialva. Loreto Couto<br />
atesta que, além de muita <strong>música</strong> sacra, Botelho teria<br />
composto “sonatas e tocatas tanto para viola como<br />
para cravo”, além de <strong>música</strong> de salão, como<br />
minuetes e tonos.<br />
Forma de canção <strong>erudita</strong> bastante difundida na<br />
Península Ibérica e América Latina, o tono humano<br />
geralmente apresenta temática árcade, forma estrófica<br />
com refrão, e textura a uma ou duas vozes agudas<br />
contra um baixo, constituindo-se assim num ancestral<br />
da modinha portuguesa. Quanto aos tonos de Botelho,<br />
talvez se assemelhassem àqueles compostos pelo<br />
português Antônio Marques Lésbio, com<br />
acompanhamento à viola, ou mesmo com a peça<br />
Matais de Incêndios, integrante dos manuscritos
de Mogi (da década de 1720 ou 1730), e trazidos<br />
novamente à tona graças às pesquisas de Jaelson<br />
Trindade, embora ainda reste alguma dúvida quanto<br />
a se esta peça é um tono humano, como sugerido<br />
por Trindade, ou um vilancico natalino, conforme<br />
estudo de Paulo Castagna.<br />
Embora não tenhamos notícia da sobrevivência<br />
de peças compostas por aqueles violistas<br />
pernambucanos e paulistas, podemos ter uma idéia<br />
bastante aproximada do que tocavam, através das<br />
fontes portuguesas do início do século XVIII, para<br />
a viola de cinco ordens contendo o repertório-padrão<br />
para a formação do instrumentista luso-brasileiro<br />
daquela época: danças italianas, francesas, ibéricas<br />
e de influência afro-<strong>brasileira</strong> como o canário, o vilão,<br />
o arromba, o cumbé e o cubanco, além de muitas<br />
fantasias e rojões.<br />
É importante lembrar que o repertório popular<br />
ibérico e latino-americano era muito menos<br />
heterogêneo no século XVII do que em nossos dias.<br />
Portugal havia reconquistado sua independência da<br />
Espanha apenas em 1640. Naquela época, durante<br />
a infância e juventude de Gregório de Mattos, os<br />
elementos que ajudariam a definir a brasilidade apenas<br />
começavam a tomar forma. Muita poesia tanto no<br />
Brasil como em Portugal ainda era escrita em espanhol,<br />
e, enquanto peças de Calderón e Lope de Vega eram<br />
representadas em Salvador, autores brasileiros também<br />
escreviam teatro naquele idioma. Naturalmente,<br />
a <strong>música</strong> desse período também pareceria a nossos<br />
ouvidos bastante espanhola, tratando-se menos de uma<br />
influência nacional específica do que da evidência de<br />
um estilo compartilhado e generalizado por toda<br />
a Península Ibérica e América Latina, como o atestam,<br />
por exemplo, os vilancicos e tonos de Gaspar<br />
Fernandes e Antonio Marques Lésbio, bem como<br />
o repertório português para viola e teclado.<br />
Na ausência de documentos musicais, uma ótima<br />
fonte de informações sobre a <strong>música</strong> não-religiosa<br />
tocada e cantada no Brasil seiscentista é a obra poética<br />
de Gregório de Mattos (1636-1696). Além de descrever<br />
funções musicais e teatrais, de mencionar<br />
instrumentistas e cantores e de citar peças instrumentais<br />
comuns tanto em Portugal como na Espanha e América<br />
Latina, Mattos usa vários tonos humanos espanhóis<br />
como refrão ou base para glosas de sua autoria. Em<br />
outros casos, Mattos usa modas profanas em português,<br />
ou, no dizer dele próprio, canções que os “chulos”<br />
cantavam. Religiosos e moralistas continuavam<br />
encarando com suspeita esse repertório, sendo célebre<br />
a condenação de Nuno Marques Pereira, atribuindo<br />
aquelas modas à invenção do demônio — o qual, conta<br />
Pereira, era exímio tocador de viola.<br />
Na segunda metade do século XVIII, o repertório<br />
musical que passa a difundir-se pela colônia é, por um<br />
lado, o de danças afrancesadas como o minuete<br />
e a contradança — as principais coreografias de salão no<br />
Brasil até o início do século XIX — e, por outro lado, as<br />
canções simples — as modas — agora influenciadas pelo<br />
estilo galante da ópera e <strong>música</strong> sacra napolitanas, com<br />
melodias e harmonias ainda mais simples e adocicadas,<br />
despretensiosamente denominadas “modinhas”.<br />
Se a princípio estas apresentavam uma temática<br />
pastoril árcade, vinculada ao gosto poético da época,<br />
o estilo é gradativamente influenciado pelo contexto<br />
afro-brasileiro, tanto na maneira de falar como nos<br />
ritmos e harmonias do lundu — aquela dança que tanto<br />
escandalizou viajantes do norte da Europa —<br />
originando assim a modinha <strong>brasileira</strong>, que acabaria<br />
voltando para Portugal nas obras de poetas<br />
e compositores como Domingos Caldas Barbosa<br />
e Joaquim Manuel da Câmara.<br />
Felizmente, foi preservada muita <strong>música</strong> desse<br />
período, sendo notáveis as peças coletadas pelos<br />
viajantes austríacos Spix e Martius, as modinhas<br />
<strong>brasileira</strong>s preservadas na Biblioteca da Ajuda<br />
e na Biblioteca Nacional de Lisboa, e as peças<br />
instrumentais contidas no livro de saltério<br />
de Antônio Vieira dos Santos, compilado no início<br />
19
20<br />
do século XIX. Há ainda uma única peça para<br />
teclado do século XVIII, a chamada Sonata Sabará,<br />
cuja autoria ainda permanece cercada de dúvidas.<br />
Finalmente, os duetos concertantes para dois violinos<br />
de Gabriel Fernandes da Trindade, da segunda<br />
década do século XIX, nos dão uma idéia<br />
do estiloda <strong>música</strong> de câmara para cordas<br />
composta nos últimos tempos do Brasil-colônia.<br />
DISCOGRAFIA<br />
Romances Populares:<br />
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron<br />
Discos; faixa 5: Romance da Nau Catarineta<br />
DO ROMANCE AO GALOPE NORDESTINO. Quinteto Armorial.<br />
Discos Marcus Pereira. Romance da Bela Infanta<br />
José de Anchieta:<br />
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron<br />
Discos; faixa 8: Quién te visitó, Isabel?; faixa 9: Mira Nero<br />
A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura<br />
e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 6: Venid a sospirar<br />
con Jesu amado (Companhia Papagalia)<br />
Marinícolas:<br />
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.<br />
Estúdio Eldorado; faixa 2<br />
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron<br />
Discos; faixa 12<br />
Matais de Incêndios:<br />
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL I. Ricardo Kanji.<br />
Estúdio Eldorado; faixa 36<br />
A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura<br />
e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 15 (Klepsidra)<br />
Sonata ‘Sabará’:<br />
NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Collegium Musicum de Minas. Prod.<br />
independente, faixa 5<br />
Modinhas:<br />
MARÍLIA DE DIRCEU. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela<br />
Nogueira. Estúdio Eldorado.<br />
MODINHAS E LUNDUS DOS SÉCULOS XVIII E XIX. Manuel Morais<br />
e Segréis de Lisboa. Movieplay; faixa 8: Eu nasci sem coração;<br />
faixa 13: Ganinha, minha Ganinha; faixa 19: Menina, você que<br />
tem?<br />
Coleção de Spix e Martius:<br />
VIAGEM PELO BRASIL. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela<br />
Nogueira. Estúdio Eldorado<br />
Recitativo e Ária:<br />
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.<br />
Estúdio Eldorado; faixas 11 e 12<br />
Duetos concertantes:<br />
GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES. Maria Ester<br />
Brandão, Koiti Watanabe. Paulus<br />
CASAS DE ÓPERA E ACADEMIAS<br />
Uma espécie de teatro moral com intervenções<br />
musicais já se encontra presente no primeiro século<br />
da colonização, nos autos preparados por José<br />
de Anchieta e Manuel da Nóbrega. Tal como<br />
na Europa, a finalidade didática do teatro jesuítico<br />
era óbvia, e os números musicais cumpriam a função<br />
de tornar mais atraente a mensagem de submissão<br />
à igreja e ao rei. É evidente também a filiação desse<br />
teatro aos autos ibéricos seiscentistas, em especial<br />
os de Gil Vicente, sempre intercalando enredos leves<br />
e cômicos com danças, canções e romances populares.<br />
Nos séculos seguintes, os modelos passariam<br />
a ser Lope de Vega e Calderón.<br />
São bastante numerosos os relatos sobre<br />
a representação de comédias musicadas nas casas<br />
abastadas das cidades, ou mesmo ao ar livre, como<br />
aquelas para as quais o pernambucano Antônio da<br />
Silva Alcântara compôs a <strong>música</strong> em 1752. É quase<br />
certo que tais comédias — a grande maioria escrita em<br />
idioma espanhol — seguissem o modelo da zarzuela de<br />
Antonio de Literes e Sebastián Durón, com árias, coros<br />
e alguns recitados alternando com diálogos falados.<br />
Durante o século XVII, não se tem notícia na<br />
colônia da apresentação de óperas no sentido moderno<br />
do termo, ou seja, a encenação de um enredo<br />
integralmente posto em <strong>música</strong>. Mesmo no século<br />
XVIII, além do modelo das óperas de Antônio José da<br />
Silva, com diálogos falados e poucos números musicais,<br />
não era incomum encenarem-se libretos operísticos<br />
sem qualquer emprego da <strong>música</strong>, funções que eram<br />
mesmo assim denominadas “óperas”.<br />
Sendo o teatro e a ópera — nas suas variadas<br />
acepções — desde cedo explorados no Brasil como<br />
instrumentos de doutrinação ideológica, não tardariam<br />
a aparecer, patrocinadas pelo poder público, casas<br />
especificamente destinadas à representação de dramas,<br />
comédias e entremezes em <strong>música</strong> — as casas de ópera<br />
— que visavam promover uma educação cívica paralela<br />
à educação religiosa da Igreja. No decorrer do século<br />
XVIII, toda vila de maior porte passa a possuir,<br />
além da igreja, uma casa de ópera, aparecendo<br />
as duas muitas vezes lado a lado. Seguindo a marcha<br />
de povoamento do interior que se sucede à descoberta
do ouro, encontramos casas de ópera em várias<br />
localidades das Minas Gerais, de Goiás<br />
e tão longe quanto em Cuiabá, no centro<br />
geográfico da América do Sul.<br />
O repertório das casas de ópera no século XVIII<br />
e boa parte do XIX incluía principalmente dramas<br />
de Metastasio, como Ezio in Roma e Didone abbandonata,<br />
que, além de transmitir alguma lição moral, retratavam<br />
o herói como líder firme, sábio e magnânimo, mas<br />
usando de disciplina quando necessário. Os libretos<br />
escolhidos eram bastante convenientes para<br />
a finalidade proposta, pois a platéia fatalmente<br />
identificaria o herói com o soberano português.<br />
Embora o musicólogo Francisco Curt Lange tenha<br />
compilado uma lista impressionante de óperas<br />
representadas no Brasil durante o século XVIII,<br />
apenas algumas páginas de partituras sobreviveram,<br />
impossibilitando qualquer tentativa de reconstituição.<br />
Do período joanino, restam de Bernardo José de Souza<br />
Queiroz a <strong>música</strong> de cena para uma peça teatral<br />
de 1813, dois entremezes e uma ópera, Zaíra, composta<br />
no Rio de Janeiro antes de 1816, além de alguns<br />
números avulsos de óperas do baiano Damião Barbosa<br />
de Araújo. Além disso, muita pesquisa resta a ser<br />
realizada sobre as óperas de autores europeus —<br />
Marcos Portugal e Pedro Antônio Avondano, para<br />
citar os mais importantes — representadas em casas<br />
de ópera <strong>brasileira</strong>s.<br />
Por volta do final do século XVIII, devido<br />
à escassez do ouro e ao fim do patrocínio público, as<br />
casas de ópera desaparecem ou passam a ser definidas<br />
mais e mais como espaços daqueles que podem pagar<br />
e dos que, à custa de muita bajulação, conseguem um<br />
lugar ao lado daqueles. Já os atores, cantores<br />
e instrumentistas sempre foram na sua maior parte<br />
mulatos e negros, cuja instrução teria sido provida<br />
ou pelos mestres de capela locais ou, de maneira mais<br />
informal, pelos diretores musicais dos regimentos<br />
militares ou das bandas de músicos dos engenhos<br />
e minas. Algumas vezes, tais artistas conseguiam ir bem<br />
além da casa de ópera local, como foi o caso da<br />
cantora mulata Joaquina Maria da Conceição Lapinha,<br />
que apresentou-se com sucesso em teatros portugueses.<br />
Não se colocando na posição subserviente de<br />
músico ou ator profissional, o rico e o letrado teriam<br />
restritas possibilidades de demonstração de suas<br />
habilidades performáticas, fossem elas de poeta,<br />
intérprete ou mesmo compositor. Além do espaço<br />
doméstico, havia a academia, um misto de clube<br />
literário e sociedade secreta que se difundiria pelos<br />
principais centros urbanos do Brasil a partir da segunda<br />
metade do século XVIII. É no contexto das academias,<br />
ligadas à estética árcade, que surgem nomes como os<br />
de Tomás Antônio Gonzaga (cujas poesias foram depois<br />
musicadas na série de modinhas do ciclo de Marília<br />
de Dirceu) e Domingos Caldas Barbosa (cristalizador<br />
da modinha <strong>brasileira</strong>), e de obras como a cantata<br />
Herói, egrégio, douto, peregrino, mais conhecida como<br />
Recitativo e Ária para José Mascarenhas, composta<br />
em Salvador em 1759.<br />
Não sobreviveu até nossos dias o repertório<br />
de <strong>música</strong> de câmara que talvez fizesse parte das<br />
reuniões daqueles acadêmicos. Alguns deles possuíam<br />
instrumentos de arco, como ficou registrado nos autos<br />
de devassa da Inconfidência Mineira. Além disso,<br />
comprovando a prática da <strong>música</strong> de câmara européia<br />
no interior do Brasil, há o relato de Spix e Martius,<br />
sobre um mineiro que intercepta os viajantes<br />
no interior da mata e os convida a irem à sua casa,<br />
onde, com instrumentos e partituras cedidas pelo<br />
anfitrião, executam um quarteto de Pleyel.<br />
ROGÉRIO BUDASZ<br />
Doutor em musicologia (Phd) pela Universidade do Sul da Califórnia, mestre em musicologia pela Universidade de São Paulo<br />
e professor da Universidade Federal do Paraná.<br />
21
22<br />
A <strong>música</strong> no<br />
Brasil Colonial<br />
anterior à<br />
chegada da<br />
Corte de<br />
D. João VI<br />
HARRY CROWL
OS AVANÇOS DOS ESTUDOS MUSICOLÓGICOS NOS<br />
ÚLTIMOS ANOS, NA ÁREA DA MÚSICA PRODUZIDA<br />
NO BRASIL NA ÉPOCA DA COLÔNIA, TÊM APONTADO<br />
SEMPRE PARA UM FATO QUE JÁ NOS PARECE<br />
IRREVERSÍVEL – DESCONHECE-SE TODA A MÚSICA<br />
PRODUZIDA EM TERRAS BRASILEIRAS EM PERÍODO<br />
ANTERIOR À SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII.<br />
ASSIM COMO TAMBÉM DESCONHECEMOS A MAIOR<br />
PARTE DO QUE SE PRODUZIU NAS REGIÕES NORTE<br />
E NORDESTE EM TODA A ÉPOCA COLONIAL.<br />
23
Oconjunto da produção musical encontrado na capitaniageral<br />
das Minas Gerais, na época do ciclo do ouro,<br />
tornou-se a referência mais antiga da produção musical<br />
artística no Brasil. Salvo alguns poucos exemplos<br />
isolados de manuscritos encontrados em outras regiões<br />
do país, a produção mineira consistiu-se no primeiro<br />
grande conjunto de obras musicais disponíveis para<br />
o desenvolvimento de um estudo mais aprofundado<br />
sobre a expressão musical no país.<br />
Apesar do deslocamento do eixo econômico para<br />
a região das Minas Gerais, é nas capitanias-gerais da<br />
Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências<br />
musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.<br />
Considerando que as descobertas de Mogi-das-Cruzes<br />
na década de 1980 apontam para as práticas<br />
polifônicas portuguesas anteriores ao século XVIII,<br />
somos obrigados a retomar a antiga capital da colônia,<br />
Salvador, como ponto de partida para qualquer<br />
consideração que queiramos fazer sobre a <strong>música</strong><br />
exclusivamente escrita no Brasil, na época anterior<br />
à independência política. Sendo a região por onde<br />
iniciou-se a colonização, a Bahia apresenta nessa<br />
época uma sociedade já relativamente sedimentada,<br />
se comparada com as demais regiões da Colônia.<br />
Poderíamos acrescentar a Capitania de Pernambuco<br />
como a segunda região mais importante do ponto<br />
de vista sócio-cultural e econômico. Nesse sentido,<br />
o achado mais importante até agora é uma obra<br />
de caráter profano, anônima, composta em 1759,<br />
denominada Recitativo e Ária. Esse manuscrito para<br />
soprano, violinos I e II, e baixo contínuo, datado de<br />
2/7/1759, está dedicado a José Mascarenhas Pacheco<br />
Pereira de Mello, um importante magistrado da<br />
“Casa de Suplicação”, a suprema Corte de Justiça<br />
de Portugal, na época. Essa composição, que está<br />
baseada num texto vernáculo, também de autoria<br />
desconhecida, é uma laudatória em homenagem<br />
ao referido magistrado, que estava ligado à “Academia<br />
Brasílica dos Renascidos”, uma sociedade intelectual<br />
semelhante à “Arcádia Romana”. O referido<br />
magistrado estava recém-restabelecido de uma longa<br />
enfermidade e, ao que parece, o Recitativo e Ária<br />
foi composto especialmente para recebê-lo numa<br />
das reuniões da “Academia”.<br />
24<br />
Em Recife, encontramos o nome de Luís Álvares<br />
Pinto (1719-1789). Esse compositor, regente, poeta e<br />
professor viajou, por volta de 1740, para Lisboa, onde<br />
estudou com Henrique da Silva Negrão, organista da<br />
catedral de Lisboa, e que foi discípulo de Duarte Lobo.<br />
Na época em que viveu na capital portuguesa, ele<br />
compunha, tocava violoncelo na Capela real, fazia<br />
cópias de <strong>música</strong> e dava aulas em casas de nobres.<br />
Na relação de músicos portugueses publicada por<br />
José Mazza, em 1799, ele informa o seguinte sobre<br />
esse compositor: “Luis Alvares Pinto natural<br />
de Pernambuco, excelente Poeta Português e Latino,<br />
muito inteligente na língua Francesa, e Italiana;<br />
acompanhava muito bem rabecão, viola, rabeca veio<br />
a Lxa aprender contraponto com célebre Henrique da<br />
Silva, tem composto infinitas obras com muito acerto<br />
principalmente eclesiásticas; compôs (ultimat.e humas<br />
exequias) à morte do Senhor Rey D. José o primeiro<br />
a quatro coros, e ainda em composições profanas tem<br />
escrito com muito aserto” (sic).<br />
Em 1761 já estava de volta a Pernambuco,<br />
profissionalmente atuante. Nesse mesmo ano escreveu<br />
a Arte de Solfejar, cujo manuscrito encontra-se<br />
na Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi responsável<br />
pela formação de vários músicos e mestres-de-capela.<br />
L. A. Pinto foi também militar, tendo tido a patente<br />
de capitão do regimento de milícia confirmada<br />
também em 1766.<br />
Luís Álvares Pinto foi também um dos primeiros<br />
comediógrafos nascidos no Brasil. Sua peça teatral em<br />
três atos, Amor Mal Correspondido, foi encenada em 1780.<br />
Em 1782, por ocasião da inauguração da igreja<br />
de São Pedro dos Clérigos, foi confirmado na função<br />
de mestre-de-capela, cargo que já desempenhava desde<br />
1778 e que ocupou até 1789, ano de seu falecimento.<br />
De suas poucas composições que alcançaram<br />
os nossos dias restaram apenas um Te Deum alternado,<br />
cuja orquestração perdeu-se, e um Salve Regina para três<br />
vozes mistas, violinos I e II e baixo contínuo. Consta<br />
ainda ter composto três hinos a Nossa Senhora da<br />
Penha, um hino a Nossa Senhora do Carmo, um hino<br />
a Nossa Senhora Mãe do Povo, um Ofício da Paixão,<br />
matinas de São Pedro, matinas de Santo Antônio,<br />
novenas, ladainhas e sonatas.
Apesar do deslocamento do eixo econômico<br />
para a região das Minas Gerais, é nas capitanias gerais<br />
da Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências<br />
musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.<br />
Se Luis Álvares Pinto foi o único compositor<br />
nascido no Brasil que teve a oportunidade de estudar<br />
em Lisboa — de acordo com a documentação<br />
conhecida até o momento —, por outro lado,<br />
o português André da Silva Gomes (Lisboa, 1752 —<br />
São Paulo, 1844) foi um músico enviado pela<br />
metrópole, no século XVIII, para ocupar a função<br />
de mestre-de-capela numa vila importante da colônia.<br />
Pouco se sabe sobre sua formação musical, apenas que<br />
foi discípulo de José Joaquim dos Santos (ca. 1747 —<br />
1801?), compositor português aluno do napolitano<br />
David Perez (1711 — 1778), importante músico que<br />
sistematizou o ensino musical em Portugal, cujas obras<br />
foram amplamente difundidas inclusive no Brasil.<br />
André da Silva Gomes nasceu em Lisboa em 1752 e<br />
veio para o Brasil em março de 1774. Assim que<br />
chegou, foi contratado para ocupar o cargo de mestrede-capela<br />
da Sé de São Paulo, tornando-se o quarto<br />
ocupante da função. Suas atividades foram intensas,<br />
pois, ao que parece, havia uma necessidade<br />
de reorganização dos serviços musicais da Sé. Desde<br />
sua chegada até 1801, foi também o responsável pela<br />
<strong>música</strong> nas festas reais anuais da Câmara de São Paulo.<br />
Silva Gomes teve vários discípulos e agregados, entre<br />
eles futuros mestres-de-capela e organistas, como foi<br />
o caso de Bernadino José de Sena, que foi seu agregado<br />
em 1776 e mais tarde, desempenhou o cargo<br />
de organista na vila de Nossa Senhora do Rosário<br />
de Pernaguá, atual Paranaguá, PR.<br />
Como já acontecia nas demais partes da colônia,<br />
o compositor precisou atuar em outras profissões para<br />
poder sobreviver. Após requerer algumas funções que<br />
lhe permitiriam independência econômica em relação<br />
à capela da <strong>música</strong> da Sé, foi nomeado interinamente,<br />
em 1797, para o cargo de professor régio de gramática<br />
latina da cidade de São Paulo, tendo sido efetivado por<br />
D. Maria I no cargo de professor de latim em 1801.<br />
André da Silva Gomes abandonou todos os serviços<br />
J. J. Emerico Lobo<br />
de Mesquita.<br />
Tércio (1783).<br />
Fotografia<br />
do original<br />
autógrafo.<br />
FUNARTE<br />
25
26<br />
musicais além da Sé, de cujo salário abriu mão<br />
em benefício da capela de <strong>música</strong> da catedral, que não<br />
deixou por solicitação expressa do bispo. As primeiras<br />
composições de A. da Silva Gomes, datadas e<br />
assinadas, remontam ao ano de sua chegada<br />
a São Paulo, 1774. Trazidas de Portugal ou copiadas<br />
aqui por ele, existem diversas obras de compositores<br />
portugueses e italianos, na maioria salmos. Compôs<br />
mais de uma centena de obras. Muitas delas foram<br />
recopiadas posteriormente por outros, sem que se<br />
transcrevesse o nome de seu autor. Suas composições<br />
mais notáveis são a Missa a 8 vozes e instrumentos<br />
e a Missa a 5 vozes. Sua última composição foi uma<br />
Missa de Natal, 1823, composta para ser executada na<br />
Matriz da Freguesia de Acutia (atual Cotia, SP), ao que<br />
parece, uma adaptação de outra obra bem anterior.<br />
No último quartel do século XVIII aparece ainda<br />
o nome de Theodoro Cyro de Souza como mestre-decapela<br />
na catedral da Bahia. Esse é o ultimo caso de<br />
nomeação direta de Portugal para o cargo em Salvador,<br />
e é também o primeiro compositor a atuar na região<br />
do qual encontramos exemplos musicais concretos.<br />
Nascido em Caldas da Rainha, Portugal, em 1766,<br />
Theodoro Cyro de Souza recebeu sua formação<br />
musical no Seminário Patriarcal em Lisboa,<br />
provavelmente sob a orientação de José Joaquim dos<br />
Santos. Em 1781, partiu de Lisboa para Salvador, onde<br />
assumiria a função de mestre-de-capela, com<br />
o patrocínio de D. Pedro III, da mesma maneira como<br />
ocorrera com André da Silva Gomes, em São Paulo.<br />
A obra de Theodoro Cyro de Souza parece ter<br />
gozado de considerável reputação em toda a região,<br />
pois sua única composição encontrada no Brasil até<br />
o momento, os Motetos para os passos da Procissão do<br />
Senhor, é uma cópia do final do século XIX realizada<br />
em Alagoinhas − BA, que foi localizada numa coleção<br />
de <strong>música</strong> para a Semana Santa, anônima, proveniente<br />
de Propriá − SE, divulgada numa primeira transcrição<br />
por Alexandre Bispo.<br />
MÚSICA NAS MINAS GERAIS<br />
O isolamento imposto pela Coroa portuguesa, assim<br />
como o próprio afastamento geográfico da região da<br />
Capitania-Geral das Minas Gerais, fará com que toda a<br />
organização da vida cotidiana, religiosa e cultural dessa<br />
parte do Brasil torne-se um tanto peculiar, necessitando,<br />
assim, de critérios específicos para sua avaliação.<br />
A descoberta do ouro trouxe enormes benefícios<br />
para a Coroa portuguesa, como já se sabe. A partir<br />
de 1696, a grande movimentação humana em direção<br />
ao interior do continente fez com que as autoridades<br />
portuguesas regulamentassem a ocupação dessas<br />
regiões. Preocupados com o contrabando de riquezas,<br />
a Coroa viu-se forçada a proibir a entrada de ordens<br />
monásticas nas regiões recém-ocupadas. Devido<br />
ao fato de que o Estado português e a Igreja Católica<br />
formavam uma espécie de unidade corporativa desde<br />
o século XVI, a inviolabilidade dos mosteiros<br />
e conventos era uma realidade aparentemente<br />
irreversível. Portanto, ao mesmo tempo em que<br />
a autoridade eclesiástica representava o Estado, ela<br />
também possibilitava o contrabando de ouro e pedras<br />
preciosas diante das autoridades civis, sem que essas<br />
pudessem fazer muito a respeito. Diante de tal situação,<br />
muito comum nas regiões do Nordeste brasileiro,<br />
determinou-se que toda a vida religiosa na região<br />
das minas fosse organizada por ordens leigas,<br />
ou irmandades formadas por homens comuns,<br />
que deveriam contratar todos os serviços relativos<br />
ao “bom desempenho das funções religiosas”.<br />
Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado<br />
pelos portugueses para não haver distinção entre<br />
negros forros, mulatos ou mesmo brancos<br />
nativos sem posses ou posição social.
Essas irmandades eram denominadas também<br />
como ordens terceiras, confrarias e arquiconfrarias,<br />
de acordo com sua importância na comunidade.<br />
Eram distribuídas por etnias, ou seja, homens brancos,<br />
pardos ou negros. O Estado colonial incentivava<br />
a rivalidade entre essas agremiações, que cuidavam<br />
de desde a construção da igreja até a contratação<br />
de artistas para a realização da decoração interna,<br />
talha, escultura e pintura, assim como a contratação<br />
de músicos para a criação e interpretação da <strong>música</strong><br />
que deveria ser usada nas cerimônias. A maior parte<br />
dos músicos e artistas atuantes na região era “parda”,<br />
ou seja, de sangue mestiço de brancos e negros.<br />
Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado pelos<br />
portugueses para não haver distinção entre negros<br />
forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses<br />
ou posição social.<br />
A informação mais antiga que temos a respeito<br />
de um compositor ou regente ou organista, na antiga<br />
Vila Rica, é a de que Bernardo Antônio recebeu<br />
a soma de 200 oitavas de ouro pela <strong>música</strong> anual<br />
de 1715. Esse dado consta no livro de receitas e<br />
despesas da Irmandade de Santo Antônio. Ainda na<br />
primeira metade do século XVIII, encontramos os<br />
nomes de Francisco Mexia e de Antônio de Souza<br />
Lobo, em Vila Rica, assim como o do Mestre Antônio<br />
do Carmo, em São João del Rei. Todas as notícias<br />
relativas à <strong>música</strong> em Minas no século XVIII estão<br />
restritas aos livros manuscritos de receitas e despesas<br />
das irmandades. Não há registros de nomeações<br />
ou informações impressas sobre os compositores, pois<br />
a imprensa inexistia na colônia. O cargo de mestre-decapela<br />
era um privilégio das sedes de bispado, portanto<br />
somente a vila de Mariana contava com nomeações<br />
para essa função. Nas demais vilas encontramos<br />
a denominação de “responsável pela <strong>música</strong>”, o que<br />
não implicava um cargo permanente, pois um músico<br />
responsável pelo serviço em um ano determinado<br />
poderia ser substituído no ano seguinte.<br />
A documentação musical propriamente dita<br />
encontrada até o momento concentra-se numa<br />
produção posterior a 1770. Na condição de capital<br />
da capitania, Vila Rica, atual Ouro Preto, foi local<br />
de atividade mais intensa durante o período de final<br />
Luís Álvares<br />
de Azevedo Pinto.<br />
Te Deum Laudamus.<br />
Secretaria<br />
de Educação<br />
e Cultura de<br />
Pernambuco, 1968.<br />
Restauração<br />
do Padre Jaime Diniz.<br />
FUNARTE<br />
do século XVIII até por volta de 1850.<br />
O compositor mais antigo cuja obra é parcialmente<br />
conhecida é Ignácio Parreiras Neves (ca. 1730—1794?).<br />
A alusão mais remota ao seu nome é a de seu ingresso<br />
na Irmandade de São José dos Homens Pardos,<br />
em 16/4/1752. A partir daí, seu nome aparece como<br />
regente-compositor e cantor (tenor), em várias ocasiões<br />
até 1793, atuante em quase todas as Irmandades<br />
e Ordens 3as de Vila Rica. De sua obra, conhecemos<br />
apenas três exemplos bem distintos entre si. São eles:<br />
o Credo em Ré maior, a Antífona de Nossa Senhora — Salve<br />
Regina e a Oratória ao Menino Deus na Noite de Natal.<br />
Nenhuma dessas obras está datada. A mais curiosa<br />
de todas é a Oratória. Trata-se de uma composição<br />
sobre texto vernáculo em português. É a única<br />
do gênero encontrada até agora no Brasil. No período<br />
em que Parreiras Neves atuou como cantor, dois outros<br />
músicos importantes foram seus colegas no conjunto<br />
vocal. São eles: Francisco Gomes da Rocha e Florêncio<br />
José Ferreira Coutinho. Considerando o fato de que<br />
esses músicos eram mais novos e que atuaram juntos<br />
por mais de 15 anos, acreditamos que esses dois<br />
tenham sido discípulos de I. P. Neves. Não há qualquer<br />
indicação de como esses músicos que viveram na<br />
região das minas aprenderam a arte da solfa. Não<br />
há menção em qualquer documento da existência<br />
de alguma escola de <strong>música</strong>. Portanto, a resposta mais<br />
razoável seria a de que eles se desenvolveram num<br />
processo de iniciação que seguia o modelo de relação<br />
mestre/discípulo, como no caso dos artistas plásticos,<br />
27
28<br />
DISCOGRAFIA<br />
LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM<br />
MANOEL DIAS DE OLIVEIRA: MISERERE E MAGNIFICAT<br />
IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: SALVE REGINA<br />
Negro Spirituals au Brésil Baroque<br />
Direction: Jean-Christophe Frisch. K617113 - França<br />
LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM<br />
Camerata Antiqua de Curitiba<br />
Regência: Roberto de Regina. PAULUS 11563-0 - Brasil<br />
IGNÁCIO PARREIRAS NEVES:<br />
ORATÓRIA AO MENINO DEUS NA NOITE DE NATAL<br />
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />
Direção: Ricardo Bernardes.<br />
AMERICANTIGA PLCD51837 - Brasil<br />
ANDRÉ DA SILVA GOMES:<br />
MISSA A 8 VOZES E INSTRUMENTOS<br />
Orquestra Barroca do 14º Festival Internacional de Música<br />
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora<br />
Direção: Luís Otávio Santos<br />
CD 14º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil<br />
VENI SANCTE SPIRITU<br />
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />
Direção: Ricardo Bernardes<br />
AMERICANTIGA, Vol. I PLCD51837 - Brasil<br />
JOSÉ JOAQUIM EMERICO LOBO DE MESQUITA:<br />
MISSA EM MI BEMOL MAIOR<br />
Orquestra Barroca do 12º Festival Internacional de Música<br />
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora<br />
Direção: Luís Otávio Santos<br />
CD 12º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil<br />
MATINAS PARA QUINTA-FEIRA SANTA<br />
Orquestra Barroca do 11º Festival Internacional de Música<br />
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora<br />
Direção: Luís Otávio Santos<br />
CD 11o.Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil<br />
MATINAS DE SÁBADO SANTO<br />
Calíope<br />
Direção: Júlio Moretzsohn<br />
Museu da Música da Mariana III (CD - MMM III). Mariana, MG -<br />
Brasil<br />
MISSA PARA 4 a FEIRA DE CINZAS<br />
Calíope<br />
Direção: Júlio Moretzsohn. CAL-001 Rio de Janeiro, RJ - Brasil<br />
PE. JOÃO DE DEUS DE CASTRO LOBO:<br />
MATINAS DE NATAL<br />
Coral Porto Alegre e Orquestra<br />
Regência: Ernani Aguiar<br />
CD - FUNPROARTE, Prefeitura de Porto Alegre. Porto Alegre,<br />
RS - Brasil<br />
como já pode ser constatado.<br />
Francisco Gomes da Rocha (1754?—1808) ingressou<br />
na Irmandade da Boa Morte da Matriz de Nossa<br />
Senhora da Conceição, na Freguesia de Antônio Dias,<br />
em julho de 1766, e na Irmandade de São José dos<br />
homens Pardos, em junho de 1768.<br />
Em todas essas confrarias, ocupou cargos<br />
importantes, como o de escrivão e tesoureiro.<br />
Apresentou-se como regente e contralto em inúmeras<br />
festividades, durante longo período da segunda metade<br />
do séuclo XVIII. Foi também timbaleiro da tropa de<br />
linha, segundo o recenseamento de 1804. Nesse mesmo<br />
recenseamento consta que Gomes da Rocha contava<br />
com 50 anos na época do mesmo, tendo, portanto,<br />
nascido em 1754. De sua produção, conhecemos<br />
apenas uma parte mínima, que são as obras<br />
Invitatório a 4 para 4 vozes, 2 trompas, violinos I<br />
e II, e baixo contínuo; Novena de Nossa Senhora do Pilar,<br />
de 1789, para 4 vozes, 2 trompas, vln. I e II, viola<br />
e baixo contínuo; Spiritus Domine, de 1795, para<br />
2 coros, 2 oboés, 2 trompas, vln. I e II, viola e baixo<br />
contínuo. Há ainda uma obra incompleta,<br />
as Matinas do Espírito Santo, também de 1795.<br />
Florêncio José Ferreira Coutinho (1750—1820) foi<br />
regente, cantor (baixo) e trombeteiro do Regimento<br />
de Cavalaria Regular. Por três vezes foi contemplado<br />
com a contratação para a realização do serviço anual<br />
das festas oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica.<br />
Em 1770, entrou para a Irmandade de São José<br />
dos Homens Pardos, que lhe registrou<br />
o falecimento em 10/06/1820.<br />
Outros três compositores de Vila Rica que<br />
mencionaremos são Marcos Coelho Neto (1746?—<br />
1806), Jerônimo de Souza Queiroz (17..—1826?)<br />
e o Pe. João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica,<br />
1794 — Mariana, 1832).<br />
Coelho Neto, que era trompista, clarinista<br />
(trompetista), timbaleiro do 9º Regimento, além<br />
de compositor e regente, exerceu ainda, segundo<br />
documento localizado no cartório do 1º ofício de Ouro<br />
Preto pelo professor Ivo Porto de Menezes, o ofício de<br />
alfaiate. Em 1785 foi designado pelo Governador-Geral<br />
Luís da Cunha Menezes para reger a <strong>música</strong> de três<br />
óperas e dois dramas reais, por ocasião dos festejos
Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana<br />
o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo, no norte<br />
da Alemanha (...) Esse instrumento foi uma doação<br />
do rei ao bispado e é considerado, hoje como o órgão<br />
Arp Schnitger mais importante fora da Europa.<br />
do casamento dos infantes D. João e Mariana Vitória.<br />
Em 1804, ano do recenseamento geral de Vila Rica,<br />
o compositor declara contar com 58 anos, tendo<br />
nascido, portanto, em 1746. De sua obra, podemos citar<br />
o hino Maria Mater Gratiae, de 1787, o Salve Regina<br />
de 1796, e a Ladainha em Ré Maior, denominada<br />
em alguns manuscritos como Ladainha das Trompas.<br />
Seu filho, também chamado Marcos Coelho Neto,<br />
foi trompista e trombeteiro do 19º Regimento.<br />
Em 1804, ele declarou ter 28 anos. Faleceu em 1823.<br />
Acreditamos que as obras que levam o nome<br />
de Marcos Coelho Neto são da autoria do pai, pois<br />
apresentam características formais muito semelhantes<br />
entre si, e o filho seria demasiadamente jovem quando<br />
o hino Maria Mater Gratiae foi composto.<br />
Jerônimo de Souza Queiroz foi organista<br />
e organeiro. Era filho do português Jerônimo de Souza<br />
Lobo Lisboa e Anna Maria Queiroz Coimbra.<br />
Seu nome tem sido freqüentemente confundido com<br />
o de seu pai, pois Souza Lobo foi, igualmente, um<br />
importante músico em Vila Rica. Souza Queiroz atuou<br />
na Irmandade do Santíssimo Sacramento do Pilar entre<br />
1798 e 1801. Em 1826, compôs a Missa e Credo<br />
a 4 vozes com acompanhamento “d’órgão”. A data<br />
exata do seu falecimento é ainda ignorada, não tendo o<br />
seu nome aparecido em qualquer referência após 1826.<br />
De sua obra, dispomos hoje de uma coleção<br />
aproximada de 20 manuscritos. Suas composições<br />
mais importantes são: Credo em Ré Maior; Missa e Credo<br />
a 4 para coro e órgão (1826); Zelus Domus Tuae<br />
(Ofício de 4a feira santa); Astiterunt Reges Terrae (Ofício<br />
de 5a feira santa); In Pace (Ofício de 6a feira santa).<br />
O último grande compositor ativo em Vila Rica<br />
foi, sem dúvida, o Pe. João de Deus de Castro Lobo<br />
(1794-1832). As primeiras notícias da atividade musical<br />
do Pe. João de Deus datam de 1810, quando seu nome<br />
aparece como o responsável pela regência da<br />
temporada de Ópera em Vila Rica. De 1817 a 1823,<br />
atuou como organista da Ordem 3a do Carmo,<br />
alternadamente, a partir de 1819, com sua formação<br />
sacerdotal no Seminário de Mariana, que se<br />
completará em 1821. Apesar de ter falecido bastante<br />
jovem, em 1832, o Pe. João de Deus foi um dos<br />
compositores mais “ousados” de sua época, escrevendo<br />
obras de grande dificuldade técnica tanto para as vozes<br />
quanto para os instrumentos. Pe. João de Deus deixou<br />
variada obra litúrgica, além da Abertura em Ré-Maior,<br />
que é o único exemplar de <strong>música</strong> puramente<br />
instrumental encontrado em Minas pelo autor<br />
do presente texto.<br />
Suas principais composições são: Missa e Credo<br />
a 8 vozes e orquestra; Missa a 4 vozes em Ré maior; Matinas<br />
de Natal; Matinas de Nossa Senhora da Conceição; Te Deum<br />
(1822); 6 Responsórios Fúnebres (1832).<br />
O compositor faleceu em Mariana, aos 38 anos<br />
de idade, em 1832.<br />
Antes do Pe. João de Deus, Mariana, como<br />
sede do bispado, foi um centro musical de grande<br />
importância, sendo que a função de mestre-de-capela<br />
foi criada pelo primeiro bispo D. Frei Manoel da Cruz.<br />
Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana<br />
o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo,<br />
no norte da Alemanha, originalmente para servir<br />
em Lisboa. Esse instrumento foi uma doação do rei<br />
ao bispado e é considerado, hoje, como o órgão Arp<br />
Schnitger mais importante fora da Europa.<br />
29
30<br />
Outro compositor importante que provavelmente<br />
atuou em Mariana foi Francisco Barreto Falcão,<br />
procedente da Vila de Sabará. Algumas de suas obras<br />
encontram-se em manuscritos, no Museu da Música<br />
de Mariana.<br />
Da avaliação que se pode fazer até o momento<br />
da produção musical de Vila Rica de Nossa Senhora<br />
da Conceição do Sabarabussu, atual Sabará,<br />
percebemos que a produção musical de lá foi<br />
igualmente intensa, porém a perda da documentação<br />
musical foi ainda maior que em outros lugares.<br />
Além de Francisco Barreto Falcão, que atuou em<br />
Mariana, encontramos Manuel Júlião da Silva Ramos<br />
(1763-1824), que foi descoberto pelo musicólogo Régis<br />
Duprat. O compositor Manuel Júlião aparece<br />
exercendo funções musicais na Vila de Atibaia, SP,<br />
em 1808. É autor de um Credo, cuja linguagem está<br />
bem próxima da dos demais compositores.<br />
As Vilas de São José e São João del-Rei<br />
desempenharam também um importante papel na<br />
produção musical do período. O compositor de maior<br />
destaque da região é, sem dúvida, Manuel Dias<br />
de Oliveira (1735 − 1813). Organista e regente, esse<br />
compositor jamais atuou fora de sua região, onde<br />
foi organista na Matriz de Santo Antônio de São José<br />
del-Rei (atual Tiradentes).<br />
A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias<br />
de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes<br />
entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida boa<br />
parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.<br />
Em São João del-Rei, os compositores mais<br />
importantes são Antônio dos Santos Cunha,<br />
Pe. Manuel Camelo, João José das Chagas, Francisco<br />
Martiniano de Paula Miranda e Lourenço José<br />
Fernandes Braziel.<br />
Santos Cunha representa, juntamente como<br />
Pe. João de Deus, o início das influências românticas<br />
na <strong>música</strong> produzida na região das minas. Esse<br />
compositor atuou em São João entre 1815 e 1825;<br />
ignoram-se as datas de seu nascimento e morte.<br />
A primeira notícia escrita de atividade musical<br />
em São João del-Rei data de 1717, quando o<br />
Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedro<br />
de Almeida e Portugal, conde de Assumar, fez uma<br />
visita à antiga vila.<br />
O manuscrito de Samuel Soares de Almeida relata<br />
minuciosamente a recepção, descrevendo desde<br />
a marcha de entrada da comitiva na vila até a<br />
solenidade na Igreja Matriz, “ao som de <strong>música</strong><br />
organizada pelo mestre Antônio do Carmo”. Na Igreja<br />
foi entoado o Te Deum, “que foi seguido por todo<br />
o clero e <strong>música</strong>”, o que provavelmente indica uma<br />
forma alternada de canto em polifonia com os padres<br />
cantando um verso gregoriano e o conjunto musical<br />
respondendo com um verso musical, tal como se faz,<br />
ainda hoje, na cidade.<br />
Daí em diante, o mestre Antônio do Carmo<br />
responsabiliza-se pela parte musical de importantes<br />
festas realizadas na vila. Em 1724 dirigiu a <strong>música</strong> na<br />
solenidade de benção da nova Matriz. Quatro anos<br />
depois, organizou a <strong>música</strong> para a festa de São João<br />
Batista, promovida pelo Senado da Câmara, e, em<br />
1730, os “desponsórios dos Sereníssimos Príncipes<br />
Nossos Senhores”. Pe. Manuel Camelo parece ser<br />
o compositor mais antigo do qual conhecemos algum<br />
exemplo musical. Trata-se de uma Antífona:<br />
Flos Carmeli. Lourenço José Fernandes Braziel atuou<br />
em fins do século XVIII e início do XIX, sendo que<br />
o inventário de seus bens nos dá uma visão bastante<br />
ampla do tipo de repertório que era conhecido pelos<br />
A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias<br />
de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes<br />
entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida<br />
boa parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.
compositores mineiros da época. João José das Chagas<br />
e Francisco Martiniano de Paula Miranda são<br />
compositores também representativos da <strong>música</strong><br />
do início do século XIX.<br />
Na Vila de Tamanduá (atual Itapecerica) aparece<br />
o nome de José Rodrigues Dominguez de Meireles<br />
como músico. Em época ignorada, esse compositor<br />
transferiu-se para a Vila de Nossa Senhora da Piedade<br />
(atual Pitangui). De sua obra, a referência mais antiga<br />
que temos é uma página de rosto existente no Museu<br />
da Música de Mariana; trata-se de uma Antífona<br />
de Santo Antônio, de 1797, que se encontra perdida.<br />
Existe ainda, no Museu da Música, uma Antífona<br />
Portuguesa a Sta. Rita. As demais obras encontradas<br />
são: Ofício de Domingo de Ramos (1810); Ofício de 4a feira<br />
de Trevas “Zelus Domus” (1811); Ofício de 5a feira<br />
“Astiterunt” (1811); Ofício de Finados, todas completas.<br />
Todas essas obras estão no Arquivo Curt Lange,<br />
em Ouro Preto. Consta no arquivo que pertenceu<br />
ao <strong>Maestro</strong> Vespasiano Santos, em Belo Horizonte,<br />
a ária a solo Oh Lingua Benedicta, de 1815.<br />
Em 1985, foram descobertas pelo autor deste texto,<br />
uma Trezena de Santo Antônio e um Domine<br />
ad Adjuvandum de Dominguez de Meireles.<br />
Outro importante compositor é Joaquim de Paula<br />
Souza, o “Bonsucesso”, de Prados, que deixou uma<br />
Missa em Sol Maior e outra em Dó Maior. Na região<br />
diamantina, ou seja, da Vila do Príncipe do Serro<br />
do Frio (atual Serro) e do Arraial do Tejuco (atual<br />
Diamantina), atuaram José Joaquim Emerico Lobo<br />
de Mesquita (1746?−1805), José de Paiva Quintanilha<br />
(século XVIII/XIX) e Alberto Fernandes de Azevedo<br />
(século XVIII/XIX).<br />
Lobo de Mesquita atuou como organista<br />
e compositor na Vila do Príncipe até por volta de 1775,<br />
quando se transferiu por motivos desconhecidos para<br />
o Arraial do Tejuco. Sua obra datada mais antiga que<br />
conhecemos é a Missa para Quarta-feira de Cinzas,<br />
de 1778, para 4 vozes, violoncelo obligatto e órgão<br />
(baixo contínuo), o que mostra que o compositor,<br />
muito provavelmente, já atuava como organista<br />
nessa época. Em 1792, encarregou-se de compor um<br />
Oratório para a Semana Santa, que se encontra perdido.<br />
Em 1795 abandonou o Carmo e em 1798, o Arraial<br />
do Tejuco, por problemas financeiros, indo instalar-se<br />
em Vila Rica, onde viveu por um ano e meio. Com<br />
a decadência da Vila e a falta de melhor remuneração<br />
para o seu trabalho, Lobo de Mesquita abandona<br />
Vila Rica em 1800, passando o cargo que ocupava na<br />
Ordem 3a do Carmo para Francisco Gomes da Rocha.<br />
A partir de dezembro de 1801 até a morte, tocava nas<br />
missas da igreja da Ordem 3a do Carmo, no Rio<br />
de Janeiro, em troca de 40 mil réis. O compositor<br />
faleceu em 1805. Como todos os outros compositores<br />
de sua época, a maioria de sua obra se perdeu.<br />
Algo em torno de 60 manuscritos chegaram<br />
até os nossos dias.<br />
José de Paiva Quintanilha atuou na Vila do<br />
Príncipe durante toda a sua vida e, ao que parece, pelo<br />
estilo de sua Missa em Sol Maior, foi discípulo de Lobo<br />
de Mesquita. Desse mestre, no momento, pouco<br />
podemos dizer além de que recebeu, da Irmandade do<br />
Santíssimo Sacramento da Vila do Príncipe, para<br />
compor a <strong>música</strong> da Semana Santa de 1790, 1792, 1807<br />
e 1808, e que seu nome figura numa relação de<br />
músicos da Irmandade de Santa Cecília no período<br />
de 1817 a 1838.<br />
O nome de Alberto Fernandes de Azevedo<br />
aparece no período de 1804−1805 na Capela das<br />
Mercês do Tejuco, tendo entrado para esta Irmandade,<br />
segundo Curt Lange, em 24/9/1799. Em 1818 e 1819<br />
foi encarregado de compor a <strong>música</strong> para cravo para<br />
a Semana Santa para a Irmandade do Santíssimo<br />
Sacramento da Matriz de Santo Antônio, no Tejuco.<br />
Apenas duas obras suas chegaram até os nossos dias:<br />
Gradual Veni Sancte Spiritus para quatro vozes, violino<br />
I e II, viola, trompas e baixo; e uma Encomendação<br />
para quatro vozes e baixo.<br />
HARRY CROWL<br />
Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná.<br />
Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná.<br />
Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná e da Rádio MEC. Presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005).<br />
31
MÚSICA NA CORTE DO BRASIL
Entre<br />
Apolo e Dionísio<br />
Os projetos de transferência da Corte somente se<br />
concretizaram no período em que as incursões<br />
napoleônicas ameaçaram o Estado de Portugal<br />
e a continuidade da casa de Bragança. Nos inícios<br />
do século XIX, diante do medo e das ameaças que<br />
levariam à perda do poder e de partes do território<br />
Na página ao lado: Henrique Bernardelli.<br />
José Maurício tocando para D. João VI.<br />
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL<br />
1808-1821<br />
PROF. DR. MAURÍCIO MONTEIRO<br />
português, as opiniões sobre a retirada da Família Real<br />
e dos cortesãos para o Brasil não foram unânimes.<br />
Para alguns se tratava de uma traição; para outros,<br />
estratégia. Podia ser, em outras palavras, tanto<br />
o abandono do povo e do trono, como o único recurso<br />
capaz de manter a casa monárquica, tendo em vista as<br />
ameaças de Napoleão. O marquês de Alorna já havia<br />
alertado, paradoxalmente, à Corte portuguesa para<br />
os perigos de permanência da Corte em Portugal, na<br />
iminência do ataque francês, e para os benefícios que<br />
33
34<br />
essa mesma retirada estratégica poderia gerar. Para<br />
o marquês de Alorna, foi estratégica e importante<br />
a vinda de D. João VI e da Família Real para o Brasil,<br />
porque daqui, como um imperador em um vasto<br />
território, os domínios poderiam expandir-se<br />
e o monarca poderia conquistar facilmente “as colônias<br />
espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as<br />
potências da Europa” 1 . As recomendações do marquês<br />
de Alorna não foram novidades nos inícios do século<br />
XIX em Portugal. Não foi também a primeira vez que<br />
os franceses incomodaram a monarquia portuguesa,<br />
e muito menos era nova a aliança com os ingleses.<br />
Desde os tempos de D. João III, depois nos reinados<br />
de D. João IV e de D. Luíza de Gusmão, a monarquia<br />
já admitia um projeto de se instalar fora das mediações<br />
de Portugal e se estabelecer em algum lugar<br />
do ultramar. Ou porque temia as interferências dos<br />
estrangeiros – como no caso dos franceses na primeira<br />
metade do século XVII e na derradeira expansão<br />
napoleônica nos inícios do século XIX, ou porque<br />
realmente confiavam no potencial econômico<br />
do Brasil, a Corte portuguesa pretendeu, durante<br />
quatro séculos, retirar-se de Portugal2 . Se pensarmos<br />
como pensou o marquês de Alorna, a emotividade com<br />
que a carta foi escrita e a estratégia que ela propunha,<br />
a retirada da Família Real para o Brasil era necessária<br />
havia muito tempo e inevitável, diante as ameaças<br />
de Junot. Não bastava somente uma retirada nem<br />
as lembranças de uma terra promissora, que por direito<br />
de conquista deveria acolher o príncipe e sua família.<br />
Foi preciso ainda reforçar, nesse caso como<br />
um atrativo para a retirada, as dimensões da colônia<br />
e a possibilidade da conquista de territórios vizinhos.<br />
Como estratégia política ou como reação que<br />
previa a expansão francesa, o príncipe regente, sua<br />
mãe debilitada, a princesa Carlota Joaquina e seus<br />
filhos, vieram para o Brasil e aqui se estabeleceram por<br />
13 anos, com seus costumes e suas práticas. A primeira<br />
mudança foi acolher um número estimado de reinóis<br />
entre 10.000 e 15.000 indivíduos; a segunda, já<br />
no plano das perdas e da autoridade, começou nos<br />
despejos. Para toda população que tinha uma das<br />
residências “das mais excelentes”, ou pelo menos<br />
habitável, estaria sujeita, mais por obrigação<br />
que por espontaneidade, a ceder sua residência<br />
aos portugueses. As autoridades coloniais mandaram<br />
marcar nessas casas as iniciais P. R. impressas nas<br />
portas das casas; seriam para uns, “Príncipe Regente”,<br />
para outros, “Ponha-se na Rua” 3 . Com a instalação<br />
da Corte e com as medidas tomadas por D. João, as<br />
relações com os estrangeiros foram mais abrangentes.<br />
Spix e Martius mostram que vários países vendiam<br />
produtos para o Brasil: da Inglaterra vinham algodão,<br />
chitas, panos finos, porcelana e cerveja; de Gibraltar,<br />
vinhos espanhóis; da França, artigos de luxo, jóias,<br />
móveis, licores finos, pinturas e gravuras; da Holanda,<br />
cerveja, objetos de vidro e tecidos de linho; da Áustria,<br />
relógios, pianos e espingardas; e vários outros produtos<br />
da Alemanha, Rússia, Suécia, Estados Unidos, Guiné,<br />
Moçambique, Angola e Bengala4 . O produto interno,<br />
a manufatura e a indústria, que ainda começavam<br />
a crescer no Brasil, não eram competitivos, nem<br />
em termos de gosto nem em termos de tecnologia<br />
da civilização, com os da Europa. Os hábitos<br />
estrangeiros foram, dessa forma, assimilados pelos<br />
cariocas, seja pela observação do outro, seja pela<br />
imitação de seu comportamento.<br />
Durante todo o período joanino, houve no Rio<br />
de Janeiro uma intensa atividade musical, distribuída<br />
basicamente em dois setores, o da Corte, onde<br />
a qualidade era imprescindível, e o de fora da Corte,<br />
em que a funcionalidade era festiva e mítica. É<br />
importante pensar nisto, numa complexidade que<br />
surge no momento em que negros e mestiços são<br />
Os músicos diletantes ou<br />
amadores dividiam-se entre<br />
os negros e mestiços, com seus<br />
lundus, modinhas e batuques, e<br />
brancos pobres que normalmente<br />
tinham uma outra ocupação,<br />
que lhes assegurava o sustento.
chamados para tocar em festas religiosas, muitas vezes<br />
com seus instrumentos típicos e com suas próprias<br />
interpretações. Arregimentar músicos, pintores e outros<br />
artífices para algum trabalho ou para abrilhantar<br />
alguma festa em caráter de urgência foi uma medida<br />
comum nos tempos de D. João VI. Na verdade era<br />
necessário atender um desejo de manter a pompa,<br />
a ostentação e a visibilidade de um gosto; mas para isso<br />
era necessário que houvesse mão-de-obra suficiente.<br />
Muitas vezes não era possível. Em algumas situações,<br />
criava-se, literalmente, o artífice e artesão,<br />
normalmente uma maioria de negros, mestiços<br />
e brancos pobres, cujo desejo e habilidade eram<br />
formulados pela ordem e obediência. Em algumas<br />
circunstâncias, para atender à demanda musical,<br />
ou de outra atividade artesanal, o que valia era o poder<br />
de um sobre o outro. O caso dos músicos pobres,<br />
dos diletantes que estavam à mercê dessas relações<br />
de poder, não foi diferente. Robert Southey chega<br />
a falar de “devotos músicos” que eram chamados<br />
para as festas das igrejas “muitas vezes por água” 5 .<br />
Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre<br />
os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas<br />
Neukomm, Sigismund. Retrato de autoria de Ary Scheffer.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />
e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham<br />
uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento.<br />
Entre esses diletantes, encontrava-se ainda alguns<br />
professores, mecânicos e “barbeiros-cirurgiões”.<br />
No Rio de Janeiro já existia uma vida musical<br />
significativa para aqueles tempos históricos, com<br />
compositores ativos e importantes, como Lobo<br />
de Mesquita, que saiu de Minas e foi para o Rio, morto<br />
em 1806; José Maurício Nunes Garcia, mestre-decapela,<br />
compositor e organista que se tornou uma<br />
das maiores expressões da História da Música no<br />
Brasil, e Gabriel Fernandes da Trindade, violinista<br />
e compositor, um dos mais prolíficos instrumentistas da<br />
Colônia e do Brasil Reino. Além desses ilustres, tem-se<br />
ainda o vasto universo dos anônimos. A vinda da<br />
Família Real para o Brasil, juntamente com alguns<br />
dos compositores e intérpretes portugueses que<br />
serviram a Corte em Portugal, influenciou o estilo<br />
e as práticas desses músicos coloniais, “construindo”<br />
uma nova percepção do gosto e uma nova maneira<br />
de observar o mundo das artes. O surgimento de<br />
instituições de corte, como a Capela e Câmara Reais,<br />
favoreceu a expansão da atividade musical, criou mais<br />
35
36<br />
oportunidades de trabalho e redefiniu a hierarquia<br />
entre os músicos. As famílias aristocráticas que vieram<br />
com D. João VI, ou que aqui se aproximaram dele,<br />
contribuíram com seus comportamentos e hábitos<br />
de ouvir <strong>música</strong> em saraus e reuniões sociais. Em tudo<br />
isso pode-se somar ainda a circulação de viajantes<br />
e negociantes estrangeiros, a freqüência e a pompa que<br />
as festividades adquiriram e, sobretudo, a construção<br />
do Real Teatro de São João, palco ideal para<br />
as representações dramáticas. Se os homens vão e vêm,<br />
com eles circulam também as idéias.<br />
A circulação de músicos estrangeiros no Rio de<br />
Janeiro joanino foi importante para o estabelecimento<br />
de uma prática de corte, para sustentar a demanda de<br />
<strong>música</strong> e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto,<br />
baseado em práticas cortesãs. A vinda dos cantores<br />
castrados, o serviço prestado por Marcos Portugal e em<br />
seguida a vinda de Neukomm foram acontecimentos<br />
importantes que transformaram a idéia da criação e da<br />
recepção musical. Todas essas mudanças ocorridas nos<br />
níveis sociais, culturais, administrativos e, sobretudo,<br />
mentais, criaram um outro espaço e uma outra forma<br />
de audiência das obras no período joanino. Classicismo<br />
e italianismo vieram, respectivamente, com Sigismund<br />
Neukomm e Marcos Portugal. O que aconteceu nesse<br />
período em que a Família Real esteve no Brasil foi<br />
exatamente uma articulação desses estilos. Se a <strong>música</strong><br />
vocal se firmou no virtuosismo italiano, a <strong>música</strong><br />
instrumental se baseou nos modelos do classicismo<br />
vienense. As relações da Casa de Bragança com<br />
as cortes da Europa, sobretudo com a Casa da Áustria,<br />
se reforçavam cada vez mais, através de questões<br />
políticas e conveniências matrimoniais.<br />
Acontecimentos como a vinda da Missão Artística<br />
em 1816 e o casamento da arquiduquesa D. Leopoldina<br />
com D. Pedro I aproximavam os portugueses dos<br />
costumes e hábitos europeus.<br />
O que aqui denominamos por “classicismo”<br />
conviveu com o “italianismo” e com o “colonialismo”.<br />
Um se refere à estilística tipicamente germânica<br />
e austríaca; outro, como diz o próprio termo que<br />
o define, a uma maneira de dramatizar e interpretar<br />
em termos de técnica desenvolvida na Itália e, por fim,<br />
uma situação político-administrativa, o “colonialismo”<br />
português no Brasil do tempo de D. João VI. Esse<br />
último termo tem significado histórico e prático. Na<br />
verdade, pode-se sugerir a intensa e larga dependência<br />
do Brasil com Portugal. Mesmo depois da instalação<br />
da Corte, da elevação a Reino Unido, da coroação do<br />
Príncipe Regente, a situação dos trópicos não mudou<br />
muito nas suas relações externas. Classicismo, com<br />
Haydn (através das relações Brasil-Áustria e a vinda<br />
de Neukomm), Mozart e Beethoven e o italianismo<br />
operístico, com as obras de Piccini, Cimarosa, David<br />
Perez, Salieri, Scarlatti, Rossini e a transferência de<br />
Marcos Portugal, estiveram na colônia, absorvidos por<br />
José Maurício. Essas relações são importantes para<br />
a compreensão de uma estilística resultante de práticas<br />
coloniais, de um novo gosto, que foi mantido com<br />
a Família Real no Rio de Janeiro e aos poucos foi<br />
sendo construído no Brasil. O gosto pela ópera clássica<br />
era cultivado pela Família Real portuguesa, sobretudo<br />
pelo Príncipe Regente e depois rei do Reino Unido<br />
de Portugal, Brasil e Algarves, D. João VI. A ópera<br />
italiana do final do século XVIII e da primeira metade<br />
do século seguinte reservava o caráter virtuosístico<br />
predominantemente aos cantores castratti. Como uma<br />
extensão desse gosto, D. João VI incentivou a vinda<br />
desses cantores para a colônia, transportando,<br />
da melhor maneira possível, o cenário da prática<br />
musical da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro.<br />
A circulação de músicos<br />
estrangeiros no Rio de Janeiro<br />
joanino foi importante para<br />
o estabelecimento de uma prática<br />
de corte, para sustentar a<br />
demanda de <strong>música</strong> e, sobretudo,<br />
ajudar a construir um novo gosto,<br />
baseado em práticas cortesãs.
Jean-Baptiste Debret. Vista interior da Capela Real, desenhada do degrau superior do altar-mor, olhando para o lado da entrada da Igreja.<br />
A orquestra de músicos ocupa toda a parte superior do fundo. Do livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA<br />
A imaginação individual era canalizada<br />
estritamente de acordo com o gosto dos patronos.<br />
No Brasil Colonial, a religião, através das irmandades,<br />
e por vezes o poder político, através dos Senados e das<br />
Câmaras, ou de seus representantes mais ilustres,<br />
ditavam o gosto. Era preciso que o compositor tivesse<br />
como princípio a funcionalidade da sua obra e a devida<br />
correspondência com os aspectos morais e espirituais<br />
permitidos ou em uso no seu espaço social. A situação<br />
social do músico e a conseqüente estilística tomaram,<br />
a partir dos fins do século XVIII, um outro caminho:<br />
o interesse da coletividade cedeu lugar ao indivíduo<br />
e o fim paulatino do anonimato consagrou a estética<br />
e o artista, agora com nome, endereço e personalidade.<br />
Na Áustria, Haydn passou quase a vida toda a serviço<br />
de príncipes, Mozart enfrentou-os e conquistou sua<br />
liberdade; Beethoven, aceito pela aristocracia, fez com<br />
que os príncipes admirassem sua arte; Neukomm<br />
desapontou a todos, aristocráticos e burgueses,<br />
e, embora tivesse a proteção de Charles Maurice de<br />
Talleyrand, preferiu uma vida mais ou menos nômade.<br />
No Brasil joanino, ser músico da Corte ainda era<br />
uma situação favorável, por três motivos básicos:<br />
melhores oportunidades de mostrar sua arte, de tomar<br />
contato com músicos estrangeiros e linguagens<br />
modernas e, por fim, de garantir um status social<br />
e financeiro em parte suficiente para viver em colônias.<br />
A <strong>música</strong> praticada fora do círculo cortesão foi tão<br />
multifacetada quanto a própria sociedade; e, ainda<br />
mais, pode-se dizer que foi uma mistura de tradição<br />
e novidade. Costumes e práticas de várias culturas<br />
conviveram no Brasil joanino. Negros e índios<br />
compartilharam, de uma forma ou de outra, da cultura<br />
do branco, imitaram-na, transformaram-na e, em alguns<br />
momentos, procuram até se afastar dela. Nos tempos de<br />
D. Maria I e D. João, como foi em toda a vida colonial,<br />
os europeus tiveram de articular seus costumes<br />
e hábitos com práticas autóctones ou que aqui se<br />
estabeleceram. Europeus eram dominadores, donos de<br />
colônias, e por isso mesmo tiveram um sentimento<br />
de cultura superior, de força e de retórica. Seu modo<br />
de ver o mundo era melhor de que todos os outros, seu<br />
37
38<br />
Deus era uno, trino e onipotente, e também por isso,<br />
mais verdadeiro que os dos outros. Entretanto, tratamos<br />
aqui de formas culturais, cada uma com sua força e<br />
tradição, mas que, sustentada por indivíduos diferentes,<br />
entrecruzavam-se todas. Nesse sentido, seria oportuno<br />
pensar em um mundo apolíneo nos domínios<br />
de Dionísio, e que é nada mais que uma cultura escrita,<br />
normatizada, programada e cheia de sanções morais<br />
em um ambiente onde ela era mais espontânea.<br />
As concepções de Nietzsche sobre os mitos de<br />
Apolo e Dionísio podem se tornar úteis para introduzir<br />
temas de culturas variadas nesses espaços comuns6 .<br />
Numa outra dimensão da idéia que caracteriza<br />
os personagens, a <strong>música</strong> de Apolo é européia,<br />
encontra-se cultivada fora das camadas populares,<br />
levada para o ultramar como pressuposto<br />
de modernidade e civilização, como um dispositivo<br />
importante de uma cultura que cristianizou e sustentou<br />
o absolutismo de reis, príncipes e cortes. A <strong>música</strong><br />
de Dionisio é indígena, africana ou afro-ameríndia;<br />
encontra-se nas manifestações das culturas de tradição<br />
oral. No Brasil colonial, Apolo e Dionísio<br />
DISCOGRAFIA<br />
O MÉTODO DE PIANOFORTE DO PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA.<br />
Rio de Janeiro, UNIRIO, 1998, CD 002. Ruth Serrão (piano)<br />
MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA E SIGSMUND NEUKOMM<br />
Rio de Janeiro, 1998, Independente. Pedro Persone<br />
(fortepiano). Luiza Sawaya (canto)<br />
GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES<br />
São Paulo, PAULUS, 1995, CD 11100-7. Maria Ester Brandão<br />
e Koiti Watanabe (violinos)<br />
MÚSICA PORTUGUESA E BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII PARA CRAVO<br />
Rio de Janeiro, Brascan, 1990. Marcelo Fagerlande (cravo)<br />
MATINAS DE FINADOS. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA<br />
Rio de janeiro, Funarte, 1980, CD 07.Associação de Canto<br />
Coral. Direção: Cleofe Person de Matos<br />
MISSA DE SANTA CECILIA. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA<br />
Rio de Janeiro, Funarte, 1980. Associação de Canto Coral<br />
Orquestra Sinfônica Brasileira<br />
Direção: Edoardo de Guarnieri. 2v<br />
VENENO DE AGRADAR. MODINHAS<br />
Lisboa, 1998, CD LS-9801. Luiza Sawaya (canto)<br />
Achille Picchi (piano)<br />
MUSICA BARROCA BRASILEIRA<br />
Caracas, Centro de Estudios Brasileños, 1992, CD 2.72.0440<br />
Camerata Barroca de Caracas. Direção Isabel Palacios<br />
se entrecruzaram entre lundus, modinhas, batuques,<br />
práticas de feitiçarias, alegorias e Te Deuns.<br />
Entretanto, em alguns momentos da vida social<br />
da colônia, as ruas, praças, templos religiosos e, por<br />
algumas vezes, os estabelecimentos de espetáculos se<br />
tornavam espaços comuns. Neles, os vários estamentos<br />
e grupos étnicos se reuniram para comemorar alguma<br />
data ou reverenciar algum nobre ou príncipe<br />
e, de forma estratégica, esses encontros de todos<br />
serviram, mesmo que momentaneamente, para atenuar<br />
as diferenças sociais. Tudo que não estava na Corte,<br />
que não estava sujeito às regras de etiqueta e civilidade,<br />
que não seguia determinadas normas de tocar, cantar,<br />
compor e dançar, estava, conseqüentemente, sujeito<br />
a ponderações muitas vezes preconceituosas.<br />
Ao contrário das práticas de corte, as manifestações<br />
de características populares ou étnicas, como aquelas<br />
encontradas entre os brancos pobres, africanos<br />
e indígenas, estiveram sujeitas a um outro tipo<br />
de determinismo: a espontaneidade. Essas práticas,<br />
no caso de indígenas e africanos, estavam atreladas<br />
a cultos de deidades negras e a rituais animistas.<br />
A dos brancos pobres, os excluídos do processo<br />
de corte, estavam sujeitas àquilo que chamamos aqui<br />
de uma ‘articulação’ de culturas; pode-se dizer que elas<br />
absorveram elementos de todas as outras, em menor<br />
escala, dos indígenas. Os negros também absorveram,<br />
através do catolicismo, formas miscigenadas<br />
das práticas européias e deram uma outra roupagem<br />
às suas tradições; preservaram-nas, fizeram com<br />
que elas sobrevivessem numa corte pitoresca que<br />
procurava se impor7 .<br />
Tudo isso era um espetáculo, uma mistura<br />
de catolicismo com atividades autóctones, própria<br />
de negros, índios e mestiços. Um espetáculo à parte<br />
daquilo que acontecia na Corte, ou dentro dos templos,<br />
nos teatros ou nas casas mais abastadas. Tinha tanto<br />
de sincrético quanto de propriedade. A palavra<br />
sincretismo vem designar não a simples e inevitável<br />
mistura, ou absorção de uma cultura pela outra, como<br />
uma forma em que as culturas não européias deveriam<br />
aceitar a cultura do outro. Em propostas mais<br />
abrangentes, sincretismo significa aqui uma maneira<br />
de preservar a própria cultura em detrimento das
interferências e das imposições das culturas européias.<br />
Nessa forma de observar o sincretismo, os negros,<br />
sobretudo, preservaram, da maneira possível, suas<br />
raízes e a absorção inevitável da cultura do branco<br />
se tornou um matiz para a preservação de sua própria<br />
cultura. Numa sociedade escravista e preconceituosa<br />
em tudo, esse sincretismo era a única forma possível<br />
de preservar o que é seu sem cair nas malhas da<br />
vigilância e das sanções do Estado e da Igreja. Foram<br />
nos círculos populares, nas casas, nas senzalas, nas<br />
tribos e nas regiões rurais que as manifestações se<br />
tornaram mais autênticas que nas cidades, que nas<br />
áreas onde a vigilância obrigava demonstrações da<br />
cultura européia. Preservar a cultura afro-americana<br />
ou indígena, assim como impor por meios diversos<br />
a cultura européia, era uma articulação viável que,<br />
ao mesmo tempo, preservava uma e absorvia outra.<br />
Surgem dois territórios onde as formas de cultura<br />
se contracenam: um público e outro privado.<br />
Fez-se a festa. Falou-se alto. A vida fora da Corte<br />
vinha de uma observação que era inversa à de um<br />
mundo proposto em um mundo diferente. Em toda<br />
essa sociedade, sobretudo nas vilas e cidades litorâneas<br />
onde as trocas com elementos externos aconteciam<br />
primeiro, era de se esperar que existissem formas<br />
de convivência. Em outras palavras, pode-se dizer que<br />
existiram momentos em que as diversas formas<br />
1. “...É preciso que Vossa Alteza mande armar com toda pressa<br />
os seus navios de guerra e de todos os de transporte que se<br />
acharem na praça de Lisboa, que meta neles a princesa, seus<br />
filhos e os seus tesouros(...), podemos cobrir a retirada<br />
de Vossa Alteza e a nação portuguesa sempre ficará sendo<br />
nação portuguesa. (...) Porque ainda que essas cinco províncias<br />
padeçam algum tempo debaixo do jugo estrangeiro,<br />
Vossa Alteza poderá criar tal poder que lhe seja fácil resgatálas,<br />
mandando aqui um socorro, que junto ao amor nacional<br />
as liberte e de todo. Dizem que é mal visto todo homem que<br />
aconselha tudo isto a Vossa Alteza”.<br />
Carta do Marquês de Alorna a D. João VI. 30 de maio de 1801.<br />
Cf.: NORTON, Luis. A Corte de Portugal no Brasil. São Paulo,<br />
Companhia Editora Nacional, 1938, p. 54.<br />
2. Cf.: MATOSO, Antonio G. História de Portugal. Lisboa:<br />
Livraria Sá da Costa Editora, 1939, p. 439.<br />
de culturas – as autóctones, as européias e africanas<br />
– manifestaram-se isoladamente, e em outras<br />
oportunidades fundiram-se numa só, permitindo<br />
a existência de vários elementos se entrecruzando.<br />
Essas ocasiões poderiam acontecer em espaços<br />
originais, na sua própria origem, como no caso dos<br />
índios, ou podiam ser ainda preparadas para o formato<br />
dos rituais, do entretenimento ou da demonstração<br />
de poder. Se na igreja ouvia-se os Te Deuns, nas ruas,<br />
ao lado da imagem da santa, tocava-se gaitas típicas,<br />
flautas e tambores. Fora das festas de caráter cristão,<br />
existiu a convivência com negros que andavam<br />
pelas ruas tocando suas calimbas e berimbaus.<br />
Os índios, talvez por estarem menos expostos<br />
à cultura urbana, participaram em menor escala desse<br />
processo de troca. Eles apareceram menos nas cidades<br />
e sumiram mais rapidamente do litoral. Mas é possível<br />
também imaginar os índios descritos pelo príncipe<br />
Maximiliano Wied-Neuwied dançando lundus<br />
ou batuques, ou o índio que era padre e fugiu<br />
nu pela floresta. De qualquer forma, o Brasil,<br />
e mais particularmente o Rio de Janeiro, se tornou<br />
uma sociedade que tinha pajés, reis do congo,<br />
D. Maria I e D. João VI; transformou-se em um espaço<br />
de ritos, onde deuses de várias naturezas disputavam<br />
as almas tropicais. Criou-se um círculo de articulações<br />
e um espaço de tolerâncias.<br />
ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império. Porto: Edições<br />
Afrontamento, 1993, p. 837.<br />
3. Cf.: LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI o Brasil. Rio de<br />
Janeiro: Topbooks, 1996, p. 790.<br />
4. Cf.: SPIX, J.B. & MARTIUS, C.F.P. Viagem pelo Brasil. 3 v.<br />
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 67.<br />
5. Cf.: SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Belo Horizonte:<br />
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 435.<br />
6. Cf.: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia.<br />
Tradução: Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1958,<br />
p. 179 p. As concepções aqui são tomadas em relação ao que<br />
é europeu e não europeu. Apolo é europeu, Dionísio<br />
é africano e indígena, e em certa medida, colonial.<br />
7. Cf.: KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana - América Latina<br />
e Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1987.<br />
MAURÍCIO MONTEIRO<br />
Prof. Dr. em História pela USP, leciona na Universidade Anhembi-Morumbi e membro do Conselho Curador da Fundação Pe. Anchieta.<br />
39
José Maurício Nunes Garcia<br />
e a Real Capela<br />
de D. João VI<br />
no Rio de Janeiro<br />
RICARDO BERNARDES
José Maurício Nunes Garcia (1767–1830) é um dos mais<br />
significativos compositores da América colonial no que<br />
diz respeito à quantidade de composições, à qualidade<br />
estética e à definição de uma linguagem própria,<br />
facilmente perceptível. Esse perfil o individualiza<br />
e o destaca dos compositores mineiros ou hispanoamericanos<br />
do século XVIII, que podemos identificar,<br />
respectivamente, dentro de uma “escola” ou estilo<br />
comum de composição. É também o único compositor<br />
colonial cuja obra e biografia não foram esquecidas<br />
ao longo destes dois séculos, pois contou com árduos<br />
defensores, desde seus contemporâneos Manuel<br />
de Araújo Porto Alegre e Bento das Mercês, até<br />
o Visconde de Taunay, que conseguiu fazer com que,<br />
em fins do século XIX, o governo brasileiro adquirisse<br />
as principais obras de José Maurício, reunidas<br />
e conservadas, em coleção, por Bento das Mercês1 ,<br />
e editasse com Alberto Nepomuceno, em 1897,<br />
o famoso Réquiem de 1816, numa versão reduzida para<br />
canto e piano ou órgão2 .<br />
Em 1930, o filho de Taunay, Affonso de E. Taunay,<br />
reuniu os escritos do pai a respeito de José Maurício<br />
e Carlos Gomes, organizando-os no livro “Dous<br />
Artistas Máximos: José Maurício e Carlos Gomes” 3 ,<br />
contribuindo assim para a imagem que o século XX<br />
tem de José Maurício, das personagens e dos fatos que<br />
o cercaram. Essa visão foi bastante difundida durante<br />
os primórdios da República, quando se buscava criar<br />
a idéia de um “herói brasileiro”, que fizesse frente<br />
ao “vilão luso”, na busca desenfreada por uma<br />
identidade nacional.<br />
Ainda, durante o século XIX e o início do XX,<br />
outras iniciativas foram tomadas, por compositores<br />
como Leopoldo Miguez e Alberto Nepomuceno,<br />
visando recuperar a obra do padre mestre, através de<br />
sua restauração e execução, como no caso da<br />
reinauguração da Igreja da Candelária, em 1900,<br />
ocasião em que foi executada a Missa em Si bemol<br />
de 1801, com reorquestração de Nepomuceno.<br />
Louis Claude Desausles Freycinet.<br />
Teatro São João, do livro Voyage autour du monde, entrepris<br />
par ordre du roi... Execute sur les cervettes de S. M. l’Urane<br />
et la Physicienne, pendant les années 1819 et 1820.<br />
Paris, Pillet Ainé, 1824.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS<br />
41
42<br />
Foi a partir da década de 1940,<br />
porém, que a vida e a obra de José<br />
Maurício Nunes Garcia contaram<br />
com um estudo bastante sério<br />
e profundo, realizado pela regente<br />
e musicóloga Cleofe Person de<br />
Mattos, que, além de transcrever<br />
e promover a execução de suas<br />
obras, editou o “Catálogo temático<br />
das obras do padre José Maurício<br />
Nunes Garcia” 4 , obra fundamental<br />
para o conhecimento da produção<br />
mauriciana. Na década de 1980,<br />
a pesquisadora editou ainda 10<br />
partituras, reunidas em 8 volumes5 ;<br />
em 1994, o Réquiem de 1816, na<br />
versão completa de orquestra6 , e sua<br />
biografia mauriciana7 .<br />
A 22 de setembro de 1767, nasce<br />
José Maurício Nunes Garcia, filho<br />
de Apolinário Nunes Garcia,<br />
(segundo registros) de raça branca,<br />
e de Victória Maria da Cruz, de<br />
ascendentes imediatos “da Guiné”,<br />
o que os subentende escravos. O Dr. Nunes Garcia<br />
Júnior, único filho legitimado de José Maurício,<br />
descreve seus avós paternos como mulatos claros<br />
“de cabelos finos e soltos”. Manoel de Araújo Porto<br />
Alegre, em seus “Apontamentos sôbre a vida e obras<br />
do Padre J. M. N. G.” 8 , indica a freguesia de Nossa<br />
Senhora da Ajuda, na Ilha do Governador,<br />
Rio de Janeiro, como local de seu nascimento.<br />
José Maurício tem sua formação musical com<br />
Salvador José de Almeida e Faria, “o pardo”, amigo<br />
da família e natural de Vila Rica, Minas Gerais. Desde<br />
os doze anos já é professor de <strong>música</strong> e em 1783, aos 16<br />
anos, compõe sua primeira obra, Tota Pulchra es Maria.<br />
É ordenado padre em 1792 e, em 1798, é designado<br />
para assumir a função de mestre-de-capela9 da Sé<br />
do Rio de Janeiro, que então funcionava na Igreja<br />
da Irmandade do Rosário e S. Benedicto. No entanto,<br />
José Maurício já compunha para essa instituição<br />
mesmo antes de sua nomeação, como comprovam<br />
os autógrafos das Vésperas de Nossa Senhora, de 1797,<br />
Pe. José Maurício Nunes Garcia.<br />
Litogravura.<br />
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO<br />
O tempo de José<br />
Maurício à frente<br />
da Real Capela<br />
é claramente um<br />
período de transição<br />
estilística entre suas<br />
duas práticas<br />
dedicados ao conjunto da Sé.<br />
Em 1808, fugindo das tropas<br />
napoleônicas sob o comando de<br />
Junot, D. Maria I, o príncipe regente<br />
D. João, a real família, parte da<br />
Corte e da alta administração do<br />
reino português deslocam-se para<br />
a capital da colônia com o objetivo,<br />
ímpar na história da colonização<br />
do Brasil e das Américas, de lá<br />
se instalarem e fazerem da cidade<br />
a nova capital do reino,<br />
aproximando-se da metrópole sob<br />
todos os aspectos.<br />
Um choque de urbanidade<br />
então se impõe sobre o Rio de<br />
Janeiro, que – por esforços pessoais<br />
do ainda príncipe regente, a ser<br />
coroado D. João VI apenas em 1818<br />
– vai gradualmente se tornando uma<br />
capital nos moldes europeus, com<br />
a vinda da imprensa, a abertura dos<br />
portos ao livre comércio, a criação<br />
também se reflete sobre a vida musical da cidade,<br />
através da construção de um Teatro de Ópera<br />
e, principalmente, da criação de uma Real Capela de<br />
Música, nos moldes da Real Capela lisboeta. 10<br />
da Biblioteca Real. A modernização<br />
Quando do desembarque da Corte, a 8 de março<br />
de 1808, todas as festividades de recepção estavam<br />
preparadas na Igreja de Nossa Senhora do Monte do<br />
Carmo, por ser a mais rica e ornamentada da cidade.<br />
Porém, D. João desejava que se celebrasse um Te Deum,<br />
em agradecimento pela boa viagem e chegada, na Sé,<br />
cujo conjunto musical, dirigido por José Maurício,<br />
contava com um grupo vocal formado por cantores<br />
meninos, nas vozes de soprano e contralto, e adultos,<br />
como tenores e baixos. Contava ainda com um<br />
pequeno grupo de instrumentistas, que segundo<br />
a prática de orquestração de suas obras até então,<br />
provavelmente consistiam em: cordas, flautas,<br />
ocasionalmente clarinetes, trompas e baixo contínuo,<br />
realizado por órgão, fagote e contrabaixo. Este<br />
é o primeiro contato que o príncipe regente trava com
a <strong>música</strong> do compositor carioca.<br />
No mesmo mês, D. João terá ainda<br />
várias oportunidades de avaliar<br />
a qualificação musical do conjunto<br />
da Sé e, especificamente,<br />
a qualidade do nível de criação<br />
de seu mestre-de-capela, o padre<br />
José Maurício.<br />
O claro objetivo de D. João era<br />
montar uma capela musical no Rio<br />
de Janeiro nos moldes daquela que<br />
havia em Lisboa, tanto no formato<br />
quanto na fixação de um estilo<br />
musical para as obras que para<br />
lá seriam compostas. Designa<br />
então José Maurício para dirigir<br />
as atividades da recém-criada<br />
instituição, formada por músicos já<br />
atuantes na cidade e alguns vindos<br />
com D. João. Numa demonstração<br />
de apreço e admiração por seus<br />
talentos musicais, D. João<br />
concede-lhe o Hábito da Ordem<br />
A partir desse ano começam a chegar<br />
ao Rio de Janeiro os cantores vindos da Capela Real<br />
de Lisboa, e, no início de 1810, os instrumentistas.<br />
Os músicos são atraídos pelas possibilidades<br />
de trabalho propiciadas pela instalação permanente<br />
da Corte na cidade e pela construção, em andamento,<br />
do Teatro de Ópera.<br />
Todos esses acontecimentos, que propiciam um<br />
meio musical bastante rico e intenso, aliados às novas<br />
obras que começam a circular na colônia, trazidas por<br />
D. João11 de Cristo, em 1809.<br />
, serão os responsáveis pelas transformações<br />
na linguagem musical de José Maurício.<br />
O tempo de José Maurício à frente da Real Capela<br />
é claramente um período de transição estilística entre<br />
suas duas práticas, desde há muito estabelecidas pelos<br />
pesquisadores de sua obra: antes e depois da chegada<br />
da Corte. Se, antes, escrevia para grupos pequenos e<br />
possivelmente com limitações técnicas, vê-se obrigado,<br />
a partir de então, a escrever uma <strong>música</strong> mais brilhante<br />
e virtuosística, com o objetivo de se aproximar<br />
Marcos Portugal.<br />
Litogravura assinada por Rodrigues.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E<br />
ARQUIVO SONORO<br />
José Maurício tem<br />
a oportunidade<br />
de estrear obras como<br />
o Réquiem de Mozart,<br />
em dezembro de 1819,<br />
e o oratório A Criação<br />
de Haydn, em 1821.<br />
do “estilo da Capela Real”.<br />
O que justamente caracteriza<br />
esse período como de transição<br />
é a síntese através da qual José<br />
Maurício adapta sua <strong>música</strong><br />
e sua linguagem, obtendo um estilo<br />
híbrido em sua criação, ainda com<br />
resquícios fortes da primeira fase,<br />
mas já alçando vôos em direção<br />
ao estilo que iria caracterizar<br />
sua segunda fase: mais madura<br />
e moderna.<br />
O período de 1808 a 1811<br />
é extremamente fecundo: José<br />
Maurício compõe cerca de setenta<br />
obras visando atender à extensa<br />
série de solenidades. Entre as mais<br />
importantes, comprovadamente<br />
do período e que sobreviveram até<br />
nossos tempos, destacam-se: a Missa<br />
São Pedro de Alcântara de 1808,<br />
e outra Missa São Pedro de Alcântara<br />
de 1809, um Te Deum para as Matinas<br />
de São Pedro, um Stabat Mater,<br />
arranjado sobre um tema cantado por D. João, e o<br />
moteto Judas Mercator Pessimus, os três últimos de 1809.<br />
Ainda em 1810, compõe um Ecce Sacerdos a 8 vozes<br />
e o Magnificat das Vésperas de S. José, em 1811, a Missa<br />
Pastoril para a Noite de Natal, a Missa em Mi bemol para<br />
coro e órgão e um Te Deum em dó maior.<br />
No entanto, a grande obra do período de José<br />
Maurício à frente da Real Capela é a Missa de Nossa<br />
Senhora da Conceição para 8 de dezembro de 1810.<br />
É, sem dúvida, a obra mais complexa e grandiloqüente<br />
das que havia composto até então e uma das mais<br />
sofisticadas de toda a sua carreira, composta num<br />
momento de plena maturidade: José Maurício tinha,<br />
então, 43 anos.<br />
Era um momento cheio de esperanças e alegrias<br />
para o compositor – por passar a trabalhar à frente de<br />
um grupo através do qual poderia mostrar todas as suas<br />
potencialidades como músico e artista –, mas também<br />
de sofrimentos causados pelo preconceito, por sua<br />
condição de brasileiro, mulato, e por ter tido uma<br />
43
44<br />
formação musical, em muitos<br />
em 1816, no intuito de retomar<br />
aspectos, autodidata.<br />
relações diplomáticas com a Corte<br />
A composição da Missa<br />
portuguesa –, José Maurício tem<br />
da Conceição para 8 de dezembro<br />
a oportunidade de estrear obras<br />
daquele ano pode ter sido uma<br />
como o Réquiem de Mozart, em<br />
comprovação aos músicos e ao<br />
dezembro de 1819, e o oratório<br />
príncipe de que José Maurício podia<br />
A Criação de Haydn, em 1821.<br />
se adaptar ao novo gosto. Essa missa<br />
O padre mestre compõe, no mesmo<br />
figura entre suas obras mais<br />
ano, dois salmos, Laudate Dominum<br />
importantes, ao lado do Ofício e<br />
e Laudate Puerum, que, segundo o<br />
Missa de Réquiem, de 1816, da Missa de<br />
punho do próprio compositor, foram<br />
Nossa Senhora do Carmo, de 1818,<br />
“arranjados sobre temas da Creação<br />
e da Missa de Santa Cecília, de 1826.<br />
do Mundo do immortal Haydn”<br />
Em 1811, a chegada de Marcos<br />
Portugal, o mais afamado<br />
compositor português de sua época,<br />
encerra o período de Nunes Garcia<br />
como diretor e compositor da Real<br />
Capela. De renome internacional,<br />
Portugal vem assumir na cidade<br />
as funções de Diretor do Teatro<br />
14 .<br />
Podem ser observadas, ainda,<br />
citações do oratório As estações,<br />
do mesmo Haydn, em obras mais<br />
tardias, como no Qui Tollis da Missa<br />
Abreviada, de 1823.<br />
Sua última obra e legado<br />
é a Missa de Santa Cecília,<br />
encomendada pela ordem<br />
de Ópera de São João e de mestre compositor<br />
da Real Capela. José Maurício continua, todavia,<br />
compondo ocasionalmente para a instituição<br />
a pedido de D. João, que o tem em grande estima. 13<br />
Jean-Baptiste Debret. D. João VI. Do livro<br />
Voyage pitoresque et historique au Brésil.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />
DIVISÃO DE ICONOGRAFIA<br />
homônima, em 1826. É sua obra maior, que pode<br />
ser posta ao lado das grandes obras, compostas<br />
durante o mesmo período, dentro da história<br />
da <strong>música</strong> ocidental.<br />
Através da amizade com o compositor austríaco<br />
Em 1830, morre em extrema miséria. Sua obra,<br />
Sigismund Neukomm (1778–1858), discípulo de Joseph contudo, tem sido cada vez mais objeto de estudo<br />
Haydn – que veio ao Brasil em uma missão<br />
e interesse por músicos e pesquisadores<br />
diplomática promovida por Luís XVIII de França brasileiros e estrangeiros.<br />
1. Esse acervo encontra-se, hoje, na Biblioteca Alberto<br />
Nepomuceno da Escola Nacional de Música da UFRJ.<br />
2. GARCIA, José Maurício Nunes. Missa de Réquiem 1816.<br />
Rio de Janeiro/São Paulo: Bevilacqua, 1897.<br />
3. TAUNAY, Visconde de. Dous artistas máximos: José Maurício<br />
e Carlos GomesI. São Paulo: Companhia Melhoramentos/<br />
Rio de Janeiro: Cayeiras, 1930.<br />
4. MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático das obras do padre<br />
José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de<br />
Cultura/MEC, 1970.<br />
5. Referências: Gradual de São Sebastião. Rio de Janeiro: Funarte/<br />
INM/Pro-Memus, 1981; Tota pulchra es Maria. Rio de Janeiro:<br />
Funarte/INM/Pro-Memus, 1983; Gradual Dies Sanctificatus. Rio<br />
de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981; Missa pastoril para<br />
Noite de Natal 1811. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,<br />
1982; Ofício 1816. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,<br />
1982; Aberturas Zemira e Abertura em Ré. Rio de Janeiro: Funarte/<br />
INM/Pro-Memus, 1982; Salmos Laudate Pueri e Laudate Dominum.<br />
Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981.<br />
6. GARCIA, José Maurício Nunes. Requiem in D (CV 23.008/01,<br />
edited by Cleofe Person de Mattos) Stuttgart: Carus Verlag, 1994.<br />
7. MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia –<br />
biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca nacional/<br />
Departamento Nacional do Livro, 1994.<br />
8. Cf.: MURICY, José Cândido de Andrade (org.). Estudos<br />
mauricianos. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.<br />
9. Mestre-de-capela: pessoa responsável pela preparação<br />
das <strong>música</strong>s destinadas às cerimônias religiosas.<br />
10. A tradição das capelas reais portuguesas, como grupos<br />
de excelência na criação e execução musical para as festividades
eligiosas, inicia-se em 1713, no reinado de D João V, graças às<br />
grandes riquezas proporcionadas pela descoberta de ouro em<br />
Minas Gerais. Uma das principais capelas principescas da<br />
Europa, a Real Capela Portuguesa, desde o princípio, mantém<br />
estreitos contatos com a prática musical e litúrgica italiana,<br />
principalmente a Romana, ligada ao Vaticano. No mesmo<br />
período, é criado o Seminário da Sé Patriarcal em Lisboa,<br />
importante centro de formação de músicos portugueses em todo<br />
o século XVIII, tendo, vários deles, a oportunidade de estudar<br />
em Roma ou Nápoles. Durante o reinado de D. João V,<br />
destacam-se os nomes de Antônio Teixeira (1707 – ca.1759), João<br />
Rodrigues Esteves (ca.1700 – depois de 1751) e Francisco Antônio<br />
de Almeida (ca.1702 – 1755). Seus sucessores, como D. José I,<br />
mantiveram essa prática, concedendo estudos a João de Sousa<br />
Carvalho (1745 – 1798), Marcos Portugal (1762–1830), Antônio<br />
Leal Moreira (1758 – 1819) e João Domingos Bomtempo<br />
(1775 – 1842). Nessa mesma política de aproximação, D. José<br />
manteve contato com importantes compositores italianos da<br />
época, como os napolitanos Davide Perez (1711 – 1778) e Nicolò<br />
Jommelli (1714 – 1774), encomendando óperas e <strong>música</strong> religiosa,<br />
tendo este último, em 1766, enviado cópias de todas suas obras<br />
religiosas à Corte portuguesa, a pedido do rei de Portugal.<br />
“[...] D. João V cria o Seminário Patriarcal de Lisboa, em 1713, e,<br />
à maneira de outras cortes européias, italianiza o gosto musical,<br />
iniciando o envio de compositores portugueses para estudar nos<br />
principais centros de produção musical cortesã da época: Nápoles<br />
e Roma. Ainda de maior importância é a contratação do<br />
compositor napolitano Davide Perez como mestre da Capela<br />
Real de Música da corte de D. José I de Portugal, de 1752 a 1778.<br />
Perez, assim como Jommelli, compositor napolitano que também<br />
serviu a corte de Lisboa, era um dos compositores mais<br />
importantes ligados à aristocracia européia na segunda metade do<br />
século XVIII.” (FERRAZ, Sílvio e DOTTORI, Maurício.<br />
“Manoel Dias de Oliveira e Davide Perez. Uma aproximação<br />
entre o barroco mineiro e a ópera italiana.” In: Ciência e Cultura,<br />
nº 42 (9). São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP,<br />
setembro de 1990, p. 662-669).<br />
11. Os arquivos musicais que vieram com a corte em 1808<br />
pertenciam à Biblioteca da Capela Real d’Ajuda, justamente a<br />
capela que se destacava por ser a de repertório mais virtuosístico.<br />
12. MATTOS, Cleofe Person. José Maurício Nunes Garcia – uma<br />
biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional /<br />
Departamento Nacional do Livro, 1997, p. 67.<br />
13. “Marcos Portugal toma logo de assalto a vida musical da<br />
Corte... e o seu reino é incontestado. Aliás, o que ele encontra<br />
à sua frente? Cantores italianos vindos de Lisboa, certos cantores<br />
brasileiros, dos quais alguns eram notáveis mas que se integravam<br />
na vida musical da corte e que não podiam prejudicá-lo, enfim,<br />
músicos vindos de Lisboa e que tinham testemunhado a sua<br />
glória naquela cidade. Ou, pelo menos, quase. Havia uma sombra<br />
na imagem. Era o Padre José Maurício, compositor brasileiro de<br />
real talento, fundador da Irmandade de Santa Cecília, no Rio de<br />
Janeiro, organista da Capela Real desde 26 de novembro de 1808<br />
e mestre de <strong>música</strong> a partir daquela data. Marcos Portugal, de um<br />
DISCOGRAFIA<br />
OFFICIUM 1816<br />
Camerata Novo Horizonte de São Paulo<br />
Regência: Graham Griffiths. PAULUS - Brasil<br />
LAUDATE DOMINUM<br />
DOMINE JESU<br />
TE CHRISTE SOLUM NOVIMUS<br />
TE DEUM (1799?)<br />
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />
Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Vol. I - Brasil<br />
TE DEUM (1801)<br />
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />
Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Série Relações<br />
Musicais, Vol.II - Brasil<br />
MOTETOS PARA SEMANA SANTA<br />
CALÍOPE<br />
Direção: Júlio Moretzohn<br />
CALÍOPE<br />
MISSA PASTORIL PARA A NOITE DE NATAL<br />
LAUDATE DOMINUM<br />
DIES SANCTIFICATUS<br />
JUSTUS CUM CECIDERIT<br />
LAUDATE PUERI<br />
Ensemble Turicum. Direção: Luís Alves da Silva. K617 - França<br />
orgulho incomensurável e que os escrúpulos não ajudavam a<br />
abafar, tomou o seu lugar como mestre de capela e foi, ainda por<br />
cima, perfeitamente desagradável e desdenhoso para com ele.<br />
Procurou afastá-lo de todas as maneiras. Teve a sorte de o Padre<br />
José Maurício ser um homem pacífico, bom e apagado, numa<br />
palavra, pouco talhado para a luta; isso permitiu-lhe levar avante<br />
os seus planos com facilidade. Deve, no entanto, dizer-se que o<br />
Príncipe Regente não foi cego a suas manobras e que tentou<br />
reparar o melhor que pôde a injustiça que acabara de cometer.<br />
Mas a sua admiração por Marcos Portugal foi mais forte e, se não<br />
afastou o Padre José Maurício, não lhe atribuiu contudo mais que<br />
um papel secundário. No fundo, o Príncipe Regente via em<br />
Marcos Portugal o músico célebre que ele era sem dúvida, o<br />
autor capaz de compor uma <strong>música</strong> pela qual sentia uma atração<br />
segura e à qual estava já habituado. Pensava ter ao seu serviço (e,<br />
de certa maneira, tinha razão) uma vedeta de primeiríssimo<br />
plano. Tinha de pagar o preço, mesmo que se tratasse de uma<br />
injustiça.” In: SARRAUTE, Jean Paul. Marcos Portugal – Ensaios.<br />
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 121 e 122.<br />
14. MONTEIRO, Maurício Mário. “A construção do gosto: um<br />
estudo sobre as práticas musicais na corte de D. João VI” In:<br />
Anais do Simpósio Latino-Americano de Musicologia. Org.: Elisabeth<br />
Seraphim Prosser e Paulo Castagna. Curitiba : Fundação Cultural<br />
de Curitiba, 1999, p. 397.<br />
RICARDO BERNARDES<br />
Regente e pesquisador especializado em <strong>música</strong> antiga luso-<strong>brasileira</strong> e autor da coleção Música no Brasil nos séculos XVIII e XIX, Funarte 2001.<br />
Diretor artístico da Américantiga História e Cultura.<br />
45
A MODINHA<br />
E O LUNDU<br />
NO BRASIL<br />
Com crescimento populacional que vinha se acentuando<br />
46<br />
As primeiras manifestações da<br />
<strong>música</strong> popular urbana no Brasil<br />
desde o início do século XVIII e a formação de centros<br />
urbanos (tais como Salvador, Ouro Preto, Rio<br />
de Janeiro, dentre outros), a demanda por um certo<br />
tipo de entretenimento por parte de uma classe média<br />
emergente era condição imperiosa para a manutenção<br />
de um modelo de cultura que a metrópole, no caso<br />
Portugal, vinha impondo à colônia.<br />
Antes dos concertos públicos, que só viriam<br />
a acontecer no início do século XIX em Portugal (Nery,<br />
1991) e mais tardiamente no Brasil, o lazer era<br />
praticado de diversas maneiras, tanto na Corte quanto<br />
na colônia: as óperas, encenadas desde o século XVIII;<br />
as festas profanas, tais como aniversários de cidades,<br />
membros da família real ou alguma figura importante<br />
pertencente à classe dominante; as festas religiosas,<br />
que também tinham funções sociais.<br />
EDILSON VICENTE DE LIMA<br />
Uma outra forma de entretenimento que vinha<br />
sendo praticada no Brasil desde meados do século<br />
XVIII era a <strong>música</strong> patrocinada por proprietários<br />
de posses, que mantinham orquestra formada por<br />
escravos negros especialmente treinados para<br />
executarem os mais diversos instrumentos (violinos,<br />
viola, teclado, charamelas, dentre outros).<br />
As <strong>música</strong>s que interpretavam eram os sucessos<br />
europeus que nos chegavam às mãos (Kiefer, 1982).<br />
Porém, tais eventos ocorriam em recintos fechados<br />
e para convidados especiais.<br />
Página ao lado: Domingos Caldas Barbosa.<br />
1ª edição da obra Viola de Lereno. Lisboa.<br />
Na Officina Nunesiana.<br />
Anno 1798.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS
48<br />
Os saraus praticados pelas elites, entre os séculos<br />
XVIII e XIX, também foram formas de lazer, e, por<br />
conseguinte, de divulgação da <strong>música</strong> cultivada pela<br />
classe média em sua vida cotidiana. Era o local onde<br />
músicos amadores e profissionais podiam se irmanar,<br />
tocando ou cantando suas peças preferidas.<br />
Era também a oportunidade para as moças das finas<br />
famílias exibirem seus dotes ao teclado, ou sua<br />
encantadora voz acompanhada pela delicadeza<br />
do dedilhado na guitarra (Nery, 1994).<br />
Portanto, o gosto pela <strong>música</strong> e, por conseqüência,<br />
pelo canto, parece ser uma constante na cultura dos<br />
europeus vindos para o Brasil. O negro, por sua vez<br />
e mesmo em condições sub-humanas, sempre cultivou<br />
a <strong>música</strong>, seja em sua forma ritualística longe dos olhos<br />
ocidentais, ou como divertimento nos terreiros e praças<br />
públicas. Desta forma, sem querer adentrar<br />
as discussões sociológicas quanto às condições sociais<br />
das diversas camadas que residiam no Brasil<br />
em meados do século XVIII, ainda que altamente<br />
europeizada, a colônia, aos poucos, foi construindo<br />
seu próprio caminho musical à medida que as vilas<br />
se desenvolviam.<br />
É nesse ambiente e condições sociais que, nos<br />
últimos anos do século XVIII, surge a modinha,<br />
um tipo especial de canção que será cultivada tanto em<br />
Portugal quanto no Brasil. Esta designa um tipo de<br />
canção lírica, singela e de duração reduzida, composta<br />
para uma ou duas vozes acompanhadas por guitarra<br />
ou teclado. Cultivada, inicialmente, pelas classes mais<br />
abastadas, aos poucos, vai se popularizando, até tornarse,<br />
pouco a pouco, um veículo para a expressividade<br />
musical, tanto portuguesa quanto <strong>brasileira</strong>.<br />
As discussões pela definição da paternidade da<br />
modinha parecem infrutíferas já que, a despeito da sua<br />
origem e seu surgimento, vai ser adotada pelas duas<br />
pátrias como filha legítima. Mais do que o local<br />
de nascimento, é a trajetória e a aceitação por uma<br />
determinada nação que definem uma nacionalidade.<br />
Porém, a origem da modinha está intimamente<br />
relacionada com a moda portuguesa, sua antecessora,<br />
que em meados do século XVIII, designava,<br />
genericamente, qualquer tipo de canção e era praticada<br />
nos salões de Lisboa pelas classes mais favorecidas<br />
Álbum de Modinhas, da coleção de modinhas imperiais da Divisão<br />
de Música e Arquivo Sonoro da FBN. Neste número, Despedida,<br />
de José Lino de Almeida Fleming. Narciso e Cia. s/d.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />
(Araújo, 1963). No Brasil, a palavra moda assume duas<br />
acepções diferentes: qualquer tipo de canção, como em<br />
Portugal; e moda de viola, gênero de canção muito<br />
praticada em São Paulo e Minas Gerais (idem, 1963).<br />
Ao absorver dessa última as características formais<br />
e melódicas, a modinha se configura de maneira muito<br />
rica, não assumindo uma forma específica.<br />
Caracteriza-se, também, por ser mais curta, mais<br />
singela, delicada e, sobretudo, pelo tema amoroso.<br />
Mário de Andrade, no texto introdutório de sua<br />
antológica publicação de 1930, Modinhas Imperiais,<br />
defende que o diminutivo “modinha” está intimamente<br />
relacionado com as características “acarinhantes” tão<br />
presentes na cultura luso-<strong>brasileira</strong>: “Chamam-lhe<br />
Modinhas por serem delicadas” (Andrade, 1980). Esta<br />
característica, por sua vez, é descrita com muita graça<br />
no refrão da modinha “Quando a gente está com<br />
a gente”, de Domingos Schiopetta, músico que atuou<br />
em Lisboa entre o século XVIII e XIX: “Nós, lá no<br />
Brasil, com nossa ternura/ Açúcar nos sobe com tanta
doçura/ Já fui à Bahia, já passei no mar,/ Coisinhas que<br />
vi me fazem babar”.<br />
No final do setecentos, literatos e cronistas<br />
portugueses diferenciavam a modinha portuguesa<br />
da <strong>brasileira</strong> e atribuíam a esta características próprias<br />
advindas da colônia, no caso, o Brasil. O pesquisador<br />
português Manuel Morais descreve algumas delas:<br />
melodia ondulante, cromatismos melódicos<br />
e acompanhamento singelo (Morais, 2000). Poderíamos<br />
acrescentar: melodias entrecortadas e compostas<br />
de motivos sincopados, ora em retardo, ora em<br />
antecipação, abuso de cadências femininas, porém,<br />
sempre primando por uma certa delicadeza<br />
(Lima, 2001).<br />
O etnomusicólogo Gerard Béhague, em seu<br />
pioneiro artigo sobre o manuscrito Modinhas do Brasil,<br />
que se encontra na Biblioteca da Ajuda em Lisboa<br />
(Béhague, 1968), destaca ainda aspectos poéticos que<br />
considera característicos do estilo brasileiro<br />
e, sobretudo, de Caldas Barbosa. Identifica dois<br />
poemas utilizados nas modinhas desta coleção como<br />
sendo de sua autoria: Eu nasci sem coração e Homens<br />
errados e loucos. Domingos Caldas Barbosa, padre,<br />
também conhecido pelo nome árcade de Lereno<br />
Selinuntino, foi poeta, cantor de modinhas, exímio<br />
improvisador e, naturalmente, tangia sua própria<br />
viola-de-arame. Migrou para Lisboa e lá viveu<br />
no último quartel do século XVIII até sua morte.<br />
Tornou-se muito popular na corte por sua atuação<br />
como poeta e cantor de modinhas.<br />
Seu livro, Viola de Lereno, uma coletânea<br />
de poemas em dois volumes, sugere letras de modinhas<br />
e lundus de sua própria lavra. Teve várias publicações<br />
em Lisboa entre 1798 e 1823 e uma na Bahia, em 1813.<br />
Nele, podemos encontrar o estilo que Caldas Barbosa<br />
utilizou em seus poemas e que muito se assemelham<br />
ao estilo de vários textos encontrados no manuscrito<br />
Modinhas do Brasil acima citado: neologismos<br />
afro-brasileiros, como “mugangueirinha”, além<br />
de diminutivos como “enfadadinha” e “negrinho”;<br />
também os vocábulos “sinhá” e “nhanhá”, tratamento<br />
que os escravos dispensavam às senhoras e senhoritas<br />
nessa época, bem ao gosto do vocabulário popular<br />
praticado na colônia. Caldas Barbosa gozou de grande<br />
sucesso no período em que viveu na corte onde era<br />
muito comum apresentar-se acompanhado por sua<br />
viola e cantando modinhas.<br />
Com base na análise poético-musical efetuada no<br />
manuscrito da Biblioteca da Ajuda e da obra de Caldas<br />
Barbosa, Béhague sugere que, se não todas<br />
as modinhas da coleção, grande parte delas é de<br />
Domingos Caldas Barbosa. Destaca as características<br />
musicais consideradas <strong>brasileira</strong>s presentes em muitas<br />
modinhas desse manuscrito, sobretudo a frase<br />
sincopada, que no caso dessas peças, aparece<br />
totalmente incorporada ao estilo musical, indicando<br />
uma prática adquirida naturalmente, ou seja,<br />
pela convivência, e não pelo resultado de estudos<br />
técnico-analíticos.<br />
No estágio em que se encontram as pesquisas<br />
sobre a modinha e o lundu, tanto no Brasil quanto<br />
em Portugal, encontramos vários poemas de Domingos<br />
Caldas Barbosa musicados por compositores de<br />
renome, tais como Marcos Portugal (1762-1830),<br />
compositor lisboeta que se transferiu para o Brasil<br />
em 1811 e aqui permaneceu até sua morte;<br />
e Antônio Leal Moreira (1758-1819), outro músico<br />
português de renome em Lisboa no final do século<br />
XVIII, só para citar alguns nomes. Outras tantas<br />
modinhas sobre poemas seus, não trazem assinatura<br />
do compositor da melodia, porém é muito provável<br />
que Caldas Barbosa compusesse <strong>música</strong> de “ouvido”,<br />
e por isso não tivesse o hábito de assinar suas<br />
composições, pois consta que não era iniciado<br />
nos cânones musicais (Sandroni, 2001).<br />
Fato é que, na documentação pesquisada até<br />
o presente momento, há uma grande quantidade<br />
de modinhas que se destacam por possuir uma<br />
musicalidade muito própria: melodias sinuosas de<br />
poucos compassos e compostas por pequenos motivos,<br />
a presença da síncopa melódica, o acompanhamento<br />
em arpejos de quatro colcheias, parafraseando<br />
as batidas do nosso atual pandeiro ou ganzá. Insisto<br />
nestas características pois elas serão associadas<br />
ao universo afro-brasileiro e estão na base de gêneros<br />
como o choro, o maxixe e samba (Béhague, 1968).<br />
Neste aspecto, o manuscrito Modinhas do Brasil<br />
é de fundamental importância, pois, das trinta<br />
49
50<br />
Domingos Caldas Barbosa.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS<br />
modinhas que compõem a coleção, várias trazem<br />
marcadamente estas características (Lima, 2001).<br />
Não afirmamos com isso que a musicalidade <strong>brasileira</strong><br />
se resume aos aspectos acima destacados. Herdamos,<br />
com certeza, o gosto pela melodia que nos foi trazida<br />
pelos portugueses e todas as influências italianas<br />
incorporadas no decorrer do século XVIII; mas,<br />
certamente, a frase sincopada, como ela se apresenta<br />
em várias modinhas desse manuscrito, associada<br />
ao staccato monótono da viola ou guitarra, confere<br />
a elas um caráter muito particular, antecipando em<br />
aproximadamente um século as características musicais<br />
que vão ser associadas ao choro, ao maxixe<br />
e, posteriormente ao samba, como ficou dito acima.<br />
A partir dessas afirmações, podemos concluir que,<br />
apesar de nossa dependência política, certas<br />
características musicais e poéticas reputadas ao Brasil,<br />
inclusive por portugueses já no último quartel do<br />
setecentos, apontam para um direcionamento próprio,<br />
pelo menos no que tange à produção musical.<br />
Neste momento não podemos deixar de falar<br />
do lundu, dança popular <strong>brasileira</strong> introduzida<br />
no Brasil, provavelmente, pelos escravos angolanos,<br />
muito popular em meados do século XVIII (Andrade,<br />
1989). José Ramos Tinhorão descreve essa dança<br />
já como um resultado da confluência de elementos<br />
da cultura negra, portuguesa e espanhola e praticada<br />
por negros e mestiços no decorrer do século XVIII<br />
e XIX (Tinhorão, 1991). O lundu-dança foi descrito<br />
por Tomás Antônio Gonzaga, um de nossos maiores<br />
poetas inconfidentes, em uma de suas Cartas Chilenas,<br />
atestando ainda mais a sua popularidade na época.<br />
O lundu era dançado, tendo como<br />
acompanhamento o batuque dos negros e<br />
instrumentos já ocidentais, como a viola. Tornou-se<br />
popular por seus elementos coreográficos: a famosa<br />
umbigada, o sensual requebrado das ancas e os trejeitos<br />
das mãos e estalidos dos dedos, elemento que Tinhorão<br />
associa ao fandango Espanhol/ Português (idem, 1991).<br />
A convivência entre negros livres e cativos, a classe<br />
média e a corte, possibilitada pelos centros urbanos<br />
emergentes, aproximou, seguramente, o lundu da<br />
modinha e vice-versa. Essa convivência vizinha fez<br />
com que a modinha absorvesse o estilo sincopado do<br />
batuque do sensual lundu e este, por sua vez, as formas<br />
musicais da recatada modinha, dando origem ao<br />
lundu-canção. Estes lundus quase modinhas, ou estas<br />
modinhas quase lundus, como destaca Mozart de<br />
Araújo em seu importantíssimo trabalho A modinha<br />
e o lundu no século XVIII (1963), são o maior exemplo<br />
da fusão ocorrida, já no século XVIII, entre elementos<br />
da cultura da classe média européia e da cultura<br />
popular afro-<strong>brasileira</strong>.<br />
É importante frisar que o lundu-dança foi utilizado,<br />
já no século XVIII, em espetáculos para divertir<br />
cortesãos e membros da classe média, tanto no Brasil<br />
quanto nos salões de Lisboa. Isso torna evidente que,<br />
apesar de seu caráter “licencioso”, como queriam<br />
alguns, foi cultivado pelas classes mais favorecidas,<br />
mesmo que em forma de espetáculo e mais estilizado,<br />
e, certamente, influenciou músicos e poetas que não<br />
poderiam ficar imunes aos seus feitiços.<br />
Portanto, podemos caracterizar o lundu-canção,<br />
doravante chamada apenas de lundu, como sendo peça
para voz solista ou a duas vozes, em compasso binário<br />
simples, predominância da tonalidade maior, linha<br />
melódica sincopada e geralmente composta por<br />
fragmentos curtos e o esquema formal variado. Com<br />
relação ao texto, há predominância do uso da quadra<br />
com versos em redondilha maior e uso de refrão<br />
(Kiefer, 1986). O tema, na maioria dos casos, continua<br />
amoroso, porém no caso do lundu, há uma tendência<br />
para a comicidade e a sensualidade (Sandroni, 2001).<br />
No século XIX, encontramos lundus estilizados,<br />
escritos em compasso binário composto, antecipando,<br />
ou já dentro de uma tradição romântica.<br />
Durante o século XIX, a modinha e o lundu, já<br />
autônomos em suas manifestações musicais, tornam-se<br />
verdadeiros meios da expressividade musical tanto<br />
popular quanto <strong>erudita</strong>. Foi cultivado por músicos<br />
como José Maurício e Marcos Portugal; também por<br />
Carlos Gomes e, numa fase mais adiantada, por Villa-<br />
Lobos, já com sentimentos nostálgicos nas primeiras<br />
décadas do século XX. Na vertente popular, serviram<br />
de suporte para músicos como Xisto Bahia<br />
e a maestrina Chiquinha Gonzaga e porque não dizer,<br />
de Tom Jobim e Chico Buarque. Ainda no século XIX,<br />
incorporaram-se ao repertório de espetáculos<br />
populares e serviram de crônicas à sociedade<br />
de então, como no famoso lundu Lá no largo da<br />
sé velha, que tece uma saborosa crítica à corrupção<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ANDRADE, M. de. Dicionário <strong>Musical</strong> Brasileiro. Belo Horizonte:<br />
Itatiania, 1989.<br />
________________. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia,<br />
1980.<br />
ARAUJO, M. de. A modinha e o lundu no século XVIII. São Paulo:<br />
Ricordi Brasileira, 1963<br />
BÉHAGUE, G. “Biblioteca da Ajuda (Lisbon) Mss. 1595/1596:<br />
two eighteenth-century anonymous collections of modinhas”,<br />
Anuário do Instituto Interamericano de pesquisa musical, vol. IV,<br />
1968.<br />
KIEFER, B. História da Música Brasileira: dos primórdios ao início<br />
do século XX. Porto Alegre: Editora Movimento, 1982.<br />
_________ . A modinha e o lundu: duas raízes da <strong>música</strong> popular<br />
DISCOGRAFIA<br />
MODINHA E LUNDU: BAHIA MUSICAL, SÉC. XVIII E XIX. BAHIA: Copene, s/d.<br />
CANTARES D’AQUÉM E D’ALÉM MAR. SÃO PAULO: 1989<br />
COMPOSITORES BRASILEIROS, PORTUGUESES E ITALIANOS DO SÉC. XVIII,<br />
Américantiga, 2003<br />
MARÍLIA DE DIRCEU.São Paulo: Akron, s/d<br />
MODINHAS FORA DE MODA. São Paulo: Festa, s/d<br />
MODINHAS E LUNDUNS DOS SÉCULOS XVIII E XIX.Lisboa. Movieplay, 1997<br />
MÚSICA DE SALÃO DO TEMPO DE D. MARIA I. LISBOA: Movieplay, 1994<br />
1900: A VIRADA DO SÉCULO. São Paulo: Akron, s/d<br />
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA (II). São Paulo: Eldorado, s/d<br />
NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Belo Horizonte, s/d<br />
VIAGEM PELO BRASIL. São Paulo: Akron, s/d<br />
20 MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA/Sigismund Neukomm.<br />
São Paulo: BIEM, 1998<br />
e aos desmandos econômicos da época.<br />
Finalizando, não obstante a origem aristocrática<br />
da modinha, praticada, inicialmente, nos salões<br />
cortesãos e nas casas dos senhores mais abastados,<br />
aos poucos e numa convivência nem sempre tranqüila,<br />
foi absorvendo características musicais e poéticas<br />
das manifestações advindas das classes<br />
econômicas menos privilegiadas, irmanando-se<br />
ao seu parceiro inseparável, o lundu. Ainda nesse<br />
caminho rumo a aceitação de todos, ambos,<br />
a modinha e o lundu, folclorizam-se, talvez num último<br />
passo para diluir-se na alma!<br />
<strong>brasileira</strong>. Porto Alegre: Movimento, 1977.<br />
LIMA, E. de. As modinhas do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.<br />
MORAI, M. Modinhas, lunduns e cançonetas. Lisboa: Imprensa<br />
Nacional – Casa da Moeda, 2000.<br />
NERY, R V e CASTRO, P F. História da Música. Lisboa: Imprensa<br />
Nacional – Casa da Moeda, 1991.<br />
NERY, R.V. in “Música de Salão do tempo de D. Maria I – CD”.<br />
Lisboa: Movieplay, 1994.<br />
SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio<br />
de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed.:<br />
Ed. UFRJ 2001.<br />
TINHORÃO, J.R. Pequena história da <strong>música</strong> popular. São Paulo:<br />
Art. Editora, 1991.<br />
EDILSON VICENTE DE LIMA<br />
Musicólogo, autor do livro “As modinhas do Brasil” - Edusp 2001. Mestre em musicologia pela Universidade do Estado de São Paulo.<br />
Professor de História de Música e coordenador do curso de <strong>música</strong> da Unicsul.<br />
51
CONSIDERAÇÕES SOBRE<br />
Fora a honrosa exceção do livro “A Força Indômita” de<br />
54<br />
Marcus Góes, editado em 1996, ainda não se fez um<br />
estudo minucioso sobre a vida de Carlos Gomes.<br />
Apesar da existência de uma série de livros, biografias<br />
e citações em diversas enciclopédias universais, o que<br />
se tem visto e lido é um amontoado de informações<br />
baseadas sempre nas mesmas superficialidades, nas<br />
mesmas fontes e, o que é pior, uma repetição constante<br />
de equívocos que vão se sedimentando...<br />
Esses equívocos vão desde a data do nascimento<br />
de Carlos Gomes até suas origens. Muitas dessas<br />
informações se baseiam no livro escrito por sua filha,<br />
Itala Gomes Vaz de Carvalho que, romanticamente,<br />
descreve seu pai como de origem espanhola,<br />
descendente dos Gomez de Pamplona e por aí vai...<br />
Na verdade Antônio Carlos Gomes (com S e não<br />
com Z) é filho de Manoel José Gomes, mulato, que por<br />
sua vez era filho de português com negra. A mãe<br />
de Carlos Gomes, Fabiana Maria Jaguari Cardoso, era<br />
filha de branco com índia. Nenhum traço espanhol,<br />
pois, em sua descendência.<br />
Outro equívoco que se perpetua e continua sendo<br />
divulgado – o fato de Carlos Gomes ser um imitador<br />
de Verdi – o que aliás, não seria nenhum demérito.<br />
Na verdade, Carlos Gomes sempre teve uma grande<br />
LUIZ AGUIAR<br />
veneração pelo Mestre de Le Roncole. Uma veneração<br />
artística, veneração pessoal, vizinha da adoração. Em<br />
seu critério e escalonamento, Carlos Gomes colocava<br />
Verdi logo abaixo de Deus e, em seguida, vinha sua<br />
família. Neste particular é bastante conhecida<br />
a narrativa de Luiz Guimarães Júnior sobre a primeira<br />
grande emoção que a <strong>música</strong> de Verdi provocou<br />
no jovem Carlos Gomes. Famosa, também, a história<br />
de seu primeiro contato com um “spartito” de<br />
Il Trovatore, em 1853, ainda em Campinas, meses após<br />
a estréia da ópera. Desta emoção surgiu a composição<br />
da Parada e Dobrado sobre motivo de Il Trovatore para<br />
banda. Esta partitura foi – em 1976 – recuperada,<br />
revisada e reescrita por nós. É obra interessantíssima,<br />
em que o jovem Carlos Gomes, então com 17 anos,<br />
compõe para os instrumentos que dispunha na Banda<br />
em que seu pai era o regente. Um tema, de autoria do<br />
próprio Carlos Gomes, dá início à Parada (Desfile) e em<br />
seguida surge o tema do Dobrado (cabaleta – “Di tale<br />
amor” que sucede à belíssima ária “Tacea la notte<br />
placida”). Solos alternados de trompete e clarineta.<br />
Estranhamente esta Parada e Dobrado termina em<br />
compasso ternário, quase uma valsa.<br />
Que Verdi foi o grande ídolo e modelo de Carlos<br />
Gomes, não resta a menor dúvida. Mas não podemos
esquecer – isto é muito importante – da influência<br />
francesa de Gounod, no detalhe orquestral e, muito<br />
especialmente, de Meyerbeer, na grandiloqüência<br />
da “Grand Opera”.<br />
Carlos Gomes chega a Milão no ano da morte<br />
de Meyerbeer (1864). Bellini e Donizetti já haviam<br />
falecido em 1835 e 1848, respectivamente, e o “bel<br />
canto” já dava sinal de envelhecimento... agonizava.<br />
Rossini, que viverá até 1868, encontrava-se afastado da<br />
cena lírica, em ócio voluntário. Verdi domina a cena!!!<br />
Senão vejamos: Temporada 1864/1865 – “Teatro<br />
Alla Scala”:<br />
02/janeiro – I Lombardi – Verdi<br />
19/janeiro – Ginevra di Scorzia – Rota<br />
02/fevereiro – I Vespri Siciliani – Verdi<br />
23/fevereiro – Gli Ugonotti – Meyerbeer<br />
(em italiano, bem se vê)<br />
10/março – Le Aquille Romane – Chélard<br />
26/dezembro – La contessa d’Amalfi – Petrella<br />
31/dezembro – Norma – Bellini<br />
A temporada prossegue pelo ano de 1865 com<br />
Faust (Gounod), em italiano – Rigolleto (Verdi) –<br />
Favorita (Donizetti) e L’Ebrea de Halévy (em italiano),<br />
do original La Juive. Sabemos, também, que o próprio<br />
Verdi, por motivos diversos, se auto exilara em Paris,<br />
somente voltando a compor em 1871 (Aída), e em 1874<br />
(Messa da Requiem). Neste período de aparente ócio,<br />
Verdi, após Don Carlos em francês – (1867), revisava<br />
suas óperas anteriores (Macbeth, I Lombardi, Simon<br />
Boccanegra, Forza del Destino...). Mas, ao mesmo<br />
tempo, Verdi se preparava e se reciclava para sua volta<br />
à ópera com o Otello em 1887 e Falstaff em 1893.<br />
Verdi sabia que não tinha o menor sentido continuar<br />
escrevendo outras óperas no mesmo estilo e que<br />
a ópera estava prestes a sofrer uma renovação.<br />
Paralelamente a este momento, a este auto-exílio<br />
de quase 17 anos, eclode o movimento dos<br />
“scapigliati”. Na verdade Carlos Gomes nunca foi um<br />
“scapigliato” na acepção da palavra. Mas era simpático<br />
ao movimento de renovação da ópera e das artes em<br />
geral. Conviveu, com toda certeza, com Boito, Faccio,<br />
Praga, Mariani e freqüentou os salões da Condessa<br />
Carlos Gomes.<br />
Figurinos da ópera Lo Schiavo.<br />
Assinado por Luigi Bartezago.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL<br />
– DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />
55
Maffei. Dessa convivência surgiram influências mútuas.<br />
É possível que Carlos Gomes tenha influenciado,<br />
com sua verve tropical, seu exotismo, sua originalidade<br />
melódica, harmônica e rítmica, aos compositores<br />
contemporâneos daquele movimento.<br />
Na verdade, a noite de 19 de março de 1870<br />
(estréia de Il Guarany no Teatro “Alla Scala”) marca<br />
uma época na história da ópera. O autor, jovem<br />
maestro brasileiro, vindo de um país desconhecido.<br />
O libreto, baseado em romance de outro brasileiro<br />
desconhecido – José de Alencar. O tema, o amor<br />
de uma branca por um índio. Lutas de tribos rivais,<br />
presença de um cacique aimoré, antropófago e que,<br />
também, se apaixona pela moça branca, filha de um<br />
fidalgo português. Era muito exotismo junto. Tudo<br />
bastante estranho; e o 3 º ato – Campo dos Aimorés –<br />
com suas danças, evocações a Tupã, utilização de<br />
instrumentos exóticos e inusitados – inubias, maracás...<br />
Tudo isto aliado a uma <strong>música</strong> que já prenunciava<br />
novos caminhos: tendência à melodia infinita;<br />
abandono gradativo do esquema de árias, duetos, trios,<br />
quartetos, alternando com recitativos; <strong>música</strong> mais<br />
adequada ao texto, num desenvolvimento natural<br />
e espontâneo; nada de “belcantismo”, ao contrário,<br />
uma forte tendência na criação de situações dramáticas<br />
com a utilização de temas recorrentes e caracterizantes<br />
de uma determinada personagem ou situação; temas<br />
musicais com grandes saltos melódicos ascendentes<br />
e descendentes realçando uma certa virilidade em seus<br />
meandros e arroubos harmônicos; tendência acentuada<br />
ao cromatismo; uso deliberado dos intervalos de<br />
quintas e sétimas, principalmente os chamados quinta<br />
aumentada e sétima diminuída, modulando com<br />
elegância e beleza; uso atrevido de nonas. Mas<br />
o grande progresso, rumo à personalíssima<br />
caracterização melódico-rítmico-harmônica de Carlos<br />
Gomes se daria em 1873 com a ópera Fosca, verdadeira<br />
obra-prima. Antecedendo 2 anos à Carmen de Bizet<br />
(1875) e de 3 anos à Gioconda de Ponchielli (1876),<br />
a ópera Fosca é um grito de alerta de uma nova<br />
tendência lítero musical – o “verismo”. E, na Fosca,<br />
Página ao lado: Carlos Gomes. O Guarany. Imprensa Nacional. Rio<br />
de Janeiro, 1986. Desenho de Álvaro M. Seth.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA<br />
Carlos Gomes está perfeitamente seguro de si. Nem<br />
uma nota a mais, nem uma nota a menos. Tudo em<br />
dose certa. Melodia, harmonia, ritmo se unem para<br />
a mais perfeita e bela ópera de Carlos Gomes. Tudo<br />
que havia se evidenciado, de forma discreta,<br />
em Il Guarany (1870), atinge seu apogeu com<br />
o enriquecimento de novas combinações tímbricas<br />
na orquestra, resultando uma instrumentação plena<br />
de matizes. Tratamento objetivo do libreto, excelente<br />
por sinal, de autoria de Ghislanzoni, sem divagações<br />
e repetições desnecessárias. O final da ópera, a partir<br />
da frase “Non m’abborrir... compiagimi tu” é um dos<br />
mais belos momentos líricos de toda a história da<br />
ópera. “Fosca”, que fracassou na estréia em 1873,<br />
conheceu o sucesso em 1878, já reformulada.<br />
É muito importante realçar que Carlos Gomes não<br />
é somente o autor de Il Guarany, que muitos acreditam<br />
ser apenas os dez minutos orquestrais da abertura,<br />
impropriamente chamada de protofonia. Por que não<br />
nos referimos a esta abertura com o seu título original –<br />
sinfonia – como Carlos Gomes a denominou e como<br />
Carlos Gomes.<br />
Caricatura publicada na Revista Illustrada, Anno 5, 1880<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE PERIÓDICOSIA<br />
57
58<br />
era uso corrente naquela época? O caso do prelúdio<br />
primitivo (da estréia em 19 de março de 1870) é uma<br />
outra história.<br />
Outras pessoas, entretanto, acrescentam que Carlos<br />
Gomes é, também, o autor da modinha Quem sabe?<br />
com versos de Bittencourt Sampaio (“Tão longe, de<br />
mim distante...”). Mas param por aí.<br />
Carlos Gome é muito mais. Mesmo fora do Brasil,<br />
a partir de 1864, ele participou e viveu os problemas<br />
sociais e políticos brasileiros. Embora não se deva<br />
confundir conscientização com engajamento.<br />
Monarquista convicto e declarado, grande admirador<br />
DISCOGRAFIA<br />
IL GUARANY<br />
Plácido Domingo<br />
Verónica Villarroel<br />
Carlos Álvarez<br />
Chor und extrachor der Oper Stadt Bonn<br />
Orchester der Beethovenhalle Bonn. Regência: John Neschling<br />
Sony SK66273 / 2 CDs<br />
COLOMBO<br />
Inacio de Nonno<br />
Carol Mc Davit<br />
Fernando Portari<br />
Maurício Luz<br />
Coros e Orquestra Sinfônica da Escola de Música da<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Reg.: Ernani Aguiar<br />
UFRJ MUSICA - emufrj - 004<br />
ABERTURAS E PRELÚDIOS<br />
Orquestra Sinfônica Brasileira<br />
Reg.: Yeruham Scharovsky. OSBCD0001/98<br />
SONATA PARA CORDAS ”BURRICO DE PAU”<br />
Orquestra de Câmara de Londrina. ETU 112<br />
Videos VHS e CDs<br />
FOSCA<br />
Gail Gilmore<br />
Krassimira Stoyanova<br />
Roumen Doykov<br />
Orquestra, Coro e Solistas da Ópera Nacional de Sófia<br />
Reg.: Luís Fernando Malheiro<br />
FUNARTE / São Paulo Imagem Data / Sudameris 1997<br />
MARIA TUDOR<br />
Eliane Coelho<br />
Kostadin Andreev<br />
Elena Chavdarova-Isa<br />
Orquestra, Coro e solistas da Ópera Nacional de Sófia<br />
Reg.: Luís Fernando Malheiro<br />
FUNARTE / São Paulo Imagem Data 1998<br />
de D. Pedro II e da família imperial era, entretanto,<br />
a favor da causa abolicionista. Possuidor de um<br />
temperamento difícil, irascível, meticuloso, detalhista<br />
(que o digam suas cartas) era sensível, nobre, generoso.<br />
Jamais um mesquinho.<br />
Romântico por natureza, mas suas óperas estão<br />
apoiadas no realismo, na corrente naturalista que<br />
desembocaria no “verismo” (de vero = verdade).<br />
As personagens das óperas de Carlos Gomes são<br />
humanas, de carne e osso. Nada de deuses, ninfas,<br />
mitos ou coisas que tais. Ouçamos, com atenção<br />
a Fosca (1873) – a Maria Tudor (1879) – Lo Schiavo (1889)<br />
e, principalmente, Condor (pronuncia-se Côndor),<br />
de 1891. Esta última, inclusive, surge num momento de<br />
“crise universal”da ópera: quando o gênero lírico não<br />
era mais o centro do mundo musical. A Itália, também,<br />
volvia seus olhos e ouvidos à <strong>música</strong> instrumental.<br />
É nestas águas que Carlos Gomes, também, foi se<br />
banhar. Compõe a Sonata para quinteto de cordas que,<br />
em última análise, é um quarteto de cordas com<br />
o acréscimo do contrabaixo. Não se trata de uma<br />
sonata nos moldes clássicos e tradicionais. Mas<br />
é <strong>música</strong> inspirada, espontânea, bem escrita e seu<br />
último movimento – “vivace” leva o sub-título de<br />
Burrico de Pau. Música descritiva, não resta dúvida.<br />
O romantismo musical brasileiro encontra, de fato,<br />
sua expressão mais ampla em Carlos Gomes e Zito<br />
Batista Filho chega a afirmar que “genialidade<br />
é fenômeno irreprimível e seu primeiro sintoma é o<br />
desafio ao horizonte”. Assim foi com Carlos Gomes:<br />
De Campinas (então São Carlos) para São Paulo, numa<br />
fuga arquitetada, bem pensada e concretizada em 1859.<br />
De São Paulo ao Rio de Janeiro, uma distância<br />
considerável por terra e mar. A chegada na corte<br />
imperial, a Condessa de Barral, o imperador D. Pedro<br />
II, seu ídolo, Francisco Manuel da Silva (autor do Hino<br />
Nacional Brasileiro e diretor do Conservatório Imperial<br />
de Música), D. José Amat (diretor da Ópera Nacional).<br />
Vieram logo as perseguições, invejas e intrigas...<br />
As duas primeiras composições importantes,<br />
as cantatas Salve dia de ventura e A Última Hora<br />
do Calvário, ambas de 1860, estrearam em 15 de março<br />
e 16 de agosto, respectivamente.<br />
Seguem-se suas duas primeiras óperas, também em
Funerais do<br />
maestro Carlos<br />
Gomes.<br />
Fotografia<br />
assinada por<br />
Fidanza. 1896.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA<br />
NACIONAL – DIVISÃO DE<br />
MÚSICA E ARQUIVO<br />
SONORO<br />
Num balanço sucinto, a “vol d’oiseau”, podemos registrar, como finalização destas considerações,<br />
que a obra de Carlos Gomes se apóia no resumo abaixo:<br />
1) Óperas completas, estreadas e muitas<br />
vezes apresentadas: 9<br />
a) em português – A Noite do Castelo –<br />
1861<br />
Joana de Flandres – 1863<br />
b) em italiano – Il Guarany –1870<br />
Fosca –1873<br />
Salvator Rosa –1874<br />
Maria Tudor –1879<br />
Lo Schiavo –1889<br />
Condor –1891<br />
Colombo –1892 (na verdade um poema<br />
vocal – sinfônico mas claramente<br />
pensado como ópera)<br />
2) Revistas musicais (vizinhas das<br />
operetas), estreadas e inúmeras vezes<br />
encenadas: 2<br />
Se sa minga –1867<br />
Nella luna –1868<br />
3) <strong>música</strong> vocal de câmara: 47 (5 em<br />
português, 2 em francês, 1 em dialeto<br />
veneziano e 39 em italiano)<br />
4) Missas: 3 (Brevis – 2 e Solemnis –1)<br />
a) São Sebastião – 1856<br />
b) Nossa Senhora da Conceição – 1859<br />
c) Sem título específico – 1852<br />
5) Partes avulsas de missas (inacabadas<br />
(?) - perdidas as demais partes (?)<br />
a) Kyrie – 1865<br />
b) Qui tollis – ?<br />
c) Credo – ?<br />
6) Música instrumental de câmara: 4<br />
a) Aria para clarineta e piano – 1857<br />
b) Al chiaro di luna (para bandolim ou<br />
violino e piano) – ?<br />
c) Sonata para quinteto de cordas<br />
(Burrico de Pau) – 1894<br />
d) Variações para bandolim (Vem cá,<br />
Bitu) – ?<br />
7) Música para piano: 36 (32 para piono<br />
solo e 4 para piano a 4 mãos)<br />
8) Cantatas para coro masculino: 2<br />
a) La fanciulla delle Asturie – 1866<br />
(coro e piano)<br />
b) Sacra bandiera – 1895 (coro e piano)<br />
9) Arias avulsas para vozes e orquestra: 4<br />
a) Aria do cozinheiro (Eis-me aqui<br />
nesta cidade) – 1855<br />
b) Aria do alfaiate (Senhor mestre,<br />
veja lá) – ? (na verdade um dueto)<br />
c) Aria de Teresa (Ogni brivido... ogni<br />
rumor) 1872<br />
d) Mama dice (anteriormente composta<br />
para canto e piano – 1882<br />
e em 1892 orquestrada pelo próprio<br />
compositor)<br />
10) Coro “a capella” : 6<br />
a) Fugas tonais – 1866<br />
b) Fugas reais – 1866<br />
11) Música orquestral: 3<br />
a) Variações sobre o tema do romance<br />
Alta Noite – 1859<br />
b) Lalalayu (anteriormente compsota<br />
para piano – 1866 e em 1867<br />
português: A Noite do Castelo (1861) e Joana de Flandres<br />
(1863). Do Rio de Janeiro (8 de dezembro de 1863)<br />
a Milão (1864), passando por Portugal e França, em<br />
busca de conhecimento, de glória, num sonho que lhe<br />
trará o reconhecimento e a imortalidade. Trajetória de<br />
luminosidade crescente, com momentos de escuridão,<br />
depressão, dúvidas, sacrifícios e angústias, mas que,<br />
certamente, constitui uma página das mais belas<br />
da História do Brasil.<br />
LUIZ AGUIAR<br />
Pianista, maestro, compositor, pesquisador, restaurador e revisor da obra de Carlos Gomes.<br />
orquestrada pelo prórpio autor)<br />
c) Eva (valsa) – 1871<br />
12) Música para banda: 4<br />
a) Parada e dobrado sobre motivo da<br />
ópera “O Trovador”- 1856<br />
b) “L’Oriuolo” (galope) composta em<br />
1888, posteriormente instrumentada<br />
para banda por Giuseppe Mariani –<br />
1891<br />
c) Ao Ceará Livre – 1884<br />
d) Cruzador Escola “Benjamin<br />
Constant” – 1893<br />
13) Música para coro e banda: 2<br />
a) Inno Marcia (Al fianco abbiam l’acciar)<br />
– 1883<br />
b) A Camões ( O teu dia irromperá da<br />
história) – 1880<br />
14) Música para coro, banda e orquestra: 3<br />
a) Il Saluto del Brasile (Salve glorioso<br />
suol) – 1876<br />
b) Inno Alpino (In alto... in alto) – 1884<br />
c) Coro triunfal – também conhecido<br />
como Hino Progresso (Pela estrada de<br />
flores repleta) – 1885<br />
15) Voz “a capella” (O Vos omnis) − ?<br />
16) Óperas inacabadas: 2<br />
a) I Moschettieri (Gabriella di Blossac) −<br />
1871 (2 atos completos somente para<br />
canto e piano)<br />
b) Morena – 1887 (idem)<br />
59
CHOPIN CARIOCA<br />
Obra do compositor Ernesto Nazareth mistura o refinamento<br />
técnico da <strong>música</strong> de concerto com elementos populares<br />
Todas as 229 composições de Ernesto Nazareth foram<br />
60<br />
escritas para piano. Porém, ele só foi ter um<br />
instrumento decente aos 63 anos, doado por amigos<br />
de São Paulo, depois de uma temporada na cidade.<br />
Até então, os pianos que usava eram de amigos, alunos<br />
ou de lojas de <strong>música</strong> onde trabalhava.<br />
Nascido no Morro do Pinto, no Rio de Janeiro,<br />
em 1863, Ernesto Júlio de Nazareth era filho de um<br />
despachante aduaneiro e de uma pianista amadora,<br />
de quem herdou o gosto pela <strong>música</strong> de Chopin e pelo<br />
virtuosismo no instrumento. Aos dez anos de idade,<br />
ficou órfão de mãe e, na mesma época, sofreu uma<br />
queda que provocou hemorragia no ouvido direito,<br />
causando problemas auditivos que o acompanhariam<br />
pelo resto da vida.<br />
Aos 14 anos, escreveu sua primeira composição,<br />
a polca-lundu Você Bem Sabe, que já revelava seu grande<br />
interesse pelos gêneros populares. A riqueza rítmica<br />
da peça fez com que fosse publicada e, daí por diante,<br />
Nazareth tornou-se músico profissional. A intenção<br />
do pai era enviar o filho à Europa para aperfeiçoar<br />
ALEXANDRE PAVAN<br />
os estudos pianísticos, mas por falta de recursos<br />
o projeto foi cancelado.<br />
A falta de dinheiro foi constante na vida de<br />
Nazareth. Já adulto, era obrigado a executar acrobacias<br />
mais virtuosas que suas peças musicais para poder<br />
sobreviver. Além de professor de piano, se apresentava<br />
em clubes que detestava e acabou arriscando até<br />
mesmo o serviço público – em 1907, conseguiu ser<br />
nomeado escriturário do Tesouro Nacional, mas não foi<br />
efetivado no cargo por não dominar o idioma inglês.<br />
Apesar das dificuldades financeiras, Nazareth<br />
continuava compondo. Mesmo sem o merecido<br />
reconhecimento, ia cristalizando a linguagem urbana<br />
da <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong>. “Nazareth imprimiu à rítmica<br />
incipiente das polcas-lundus um caráter tão preciso,<br />
sistematizando e enriquecendo-a com uma tão grande<br />
variedade de fórmulas, empregou nas suas<br />
composições uma ciência rítmica, uma beleza<br />
harmônica e uma tal riqueza de invenção melódica<br />
que o tornam de fato o expoente máximo da<br />
<strong>música</strong> popular <strong>brasileira</strong> e um autêntico precursor<br />
Ernesto Nazareth em<br />
São Paulo em 1926.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA<br />
NACIONAL – DIVISÃO<br />
DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
da nossa <strong>música</strong> <strong>erudita</strong> de caráter<br />
tenha sido apresentado aos ilustres<br />
nacional”, escreveu o musicólogo<br />
autores brasileiros da época,<br />
Brasílio Itiberê.<br />
Milhaud surpreendeu-se mais com<br />
Essa característica da obra<br />
os sons da rua do que com aqueles<br />
de Ernesto Nazareth trouxe mais<br />
das salas de concerto. “Seria de<br />
problemas do que dividendos ao<br />
desejar que os músicos brasileiros<br />
autor: o povo não gostava muito<br />
de suas composições, porque não<br />
eram dançáveis, e os estudiosos<br />
Ernesto Nazareth. Cavaquinho porque choras?Editora.<br />
Mangione (SP -1926) e Casa Carlos Gomes (SP-s/d).<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />
compreendessem a importância<br />
dos compositores de tangos,<br />
de maxixes, de sambas<br />
torciam o nariz por considerarem<br />
DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />
e de cateretês, como (Marcelo)<br />
as peças com pouco valor como obras de concerto. Tupinambá ou o genial Nazareth”, anotou o francês.<br />
Durante um bom período, garantiu o aluguel<br />
Realmente, o pianista carioca deve tê-lo<br />
como pianista da sala de espera do Cine Odeon, impressionado, afinal, anos mais tarde, trechos<br />
na Avenida Rio Branco. Como de costume na época, dos tangos brasileiros Brejeiro e Escovado seriam<br />
os espectadores se dirigiam ao cinema cerca<br />
aproveitados por Milhaud em sua suíte Le Bœuf Sur<br />
de uma hora antes do filme começar para ouvirem Le Toit. Pena que o francês tenha se esquecido de<br />
os instrumentistas tocarem. No Odeon, também<br />
mencionar na partitura o nome de Nazareth, que mais<br />
se apresentava a pequena orquestra do maestro<br />
uma vez não lucrou nada com a história.<br />
Andreozzi, da qual Heitor Villa-Lobos<br />
Em seus últimos anos, Ernesto Nazareth teve<br />
era violoncelista.<br />
o problema de audição agravado, mas, por motivos<br />
Esse trabalho inspirou Nazareth em uma de suas econômicos, não pôde parar de tocar. Quando se<br />
peças mais conhecidas, intitulada Odeon. Outras obras sentava ao piano, era obrigado a debruçar-se sobre<br />
de referência são Tenebroso, Apanhei-te, Cavaquinho o teclado para tentar capturar o som das notas que lhe<br />
e Fon-Fon. O compositor transitou pela valsa, marcha, fugiam. Em 1932, durante uma turnê no Uruguai,<br />
choro e tango. O nome tango foi usado no Brasil antes começou a apresentar os primeiros sinais de distúrbios<br />
da Argentina, porém as peças de Ernesto Nazareth mentais. De volta ao Rio, passou por vários períodos<br />
classificadas desta forma nada têm a ver com a <strong>música</strong> de internação. Às vésperas do carnaval de 1934,<br />
portenha. Era apenas uma denominação mais<br />
escapou do manicômio e ficou desaparecido por 3 dias.<br />
aceitável, sob a qual o autor escondia as afinidades Foi encontrado morto – por afogamento – próximo<br />
de sua obra com os gêneros populares – como<br />
o maxixe, uma espécie de pai do samba –, aumentando<br />
a uma cachoeira.<br />
as chances de ela ser editada. Alguns tangos de<br />
DISCOGRAFIA<br />
Nazareth tiveram relativo sucesso, o que não quer dizer SEMPRE NAZARETH (Kuarup),<br />
que tenham lhe rendido muito dinheiro. Segundo<br />
de Maria Teresa Madeira (piano) e Pedro Amorim (bandolim)<br />
a praxe da época, quando as editoras compravam<br />
ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES (Sonhos e Sons − Série Mestres<br />
as peças, ficavam desobrigadas de repassar o lucro<br />
das vendas para os compositores.<br />
Brasileiros), de Maria Teresa Madeira (piano), Marcus Viana<br />
(violino) e Sebastião Vianna (flauta)<br />
ARTHUR MOREIRA LIMA INTERPRETA ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES<br />
Em 1917, o diplomata Paul Claudel (irmão<br />
(Marcus Pereira), de Arthur Moreira Lima (piano)<br />
da escultora Camille Claudel) transferiu-se para<br />
RADAMÉS & AÍDA INTERPRETAM NAZARETH E GNATTALI (Kuarup),<br />
a embaixada francesa no Brasil e trouxe como<br />
de Radamés e Aída Gnattali (piano)<br />
acompanhante o compositor Darius Milhaud. Embora Inclui obras de Radamés Ganattali<br />
ALEXANDRE PAVAN<br />
Jornalista, co-autor com Irineu Franco Perpétuo do livro “Populares e Eruditos” e colaborador da revista Carta Capital.<br />
61
62<br />
O Modernismo
<strong>Musical</strong> Brasileiro<br />
Oobjetivo deste artigo é retratar a geração<br />
de compositores brasileiros ativos durante a Primeira<br />
República até o limiar da década de 1920.<br />
Tradicionalmente considerados românticos − como<br />
Leopoldo Miguez (1850-1902), Henrique Oswald<br />
(1852-1913) e Glauco Velásquez (1884-1914) − ou,<br />
alguns mais afortunados, precursores do nacionalismo<br />
musical − entre eles Brasílio Itiberê da Cunha<br />
(1846-1913), Alexandre Levy (1864-1892), Alberto<br />
Nepomuceno (1864-1920) e Ernesto Nazareth (1863-<br />
1934) − essas caracterizações remetem a um ponto de<br />
referência: a Semana de Arte Moderna. Esse<br />
acontecimento, que ocorreu entre os dias 13 e 17<br />
de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São<br />
Paulo, “passou à história da cultura no Brasil como<br />
evento que inaugura simbolicamente o modernismo”.<br />
(Travassos, 2000; 17). Em outras palavras,<br />
a (des)qualificação desses compositores se dava pela<br />
maior ou menor proximidade de suas obras com<br />
os ideais desse marco zero, dividindo os períodos<br />
históricos em antes e depois da Semana.<br />
Os critérios utilizados para as definições<br />
de modernidade foram “a ênfase na atualização estética<br />
e na luta contra o ‘passadismo’, representado a grosso<br />
modo pelo romantismo, na <strong>música</strong>, e pelo<br />
parnasianismo, na poesia” (Travassos, 2000; 19)<br />
e no modernismo nacionalista.<br />
Com base nesses critérios, os escritos tratavam<br />
de um digladiar entre o novo e o velho, o progressista<br />
e o ultrapassado, entre o independente e o<br />
Página ao lado: caricatura de Alberto Nepomuceno<br />
por Enrico Caruso. Rio de Janeiro, 1917.<br />
COLEÇÃO PARTICULAR: SÉRGIO NEPOMUCENO<br />
LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG<br />
subserviente. Em suma, entre o nativo original<br />
e o estrangeiro transplantado ao exotismo dos trópicos.<br />
De acordo com essa concepção, os artistas<br />
da Semana de 22 seriam não só os profetas do porvir<br />
mas os próprios agentes messiânicos dos novos tempos,<br />
levando a frente um projeto estético e ideológico cujo<br />
objetivo era transfigurar a identidade e o centro<br />
ideológico e cultural do Brasil, tendo São Paulo como<br />
o centro irradiador.<br />
Assim escreveu Menotti del Picchia (1892-1988),<br />
um dos ideólogos e porta-voz do movimento<br />
modernista de 1922:<br />
“Rinchem de inveja as outras ‘capitanias do país’,<br />
entretanto, em matéria de arte e de política, São Paulo<br />
continua e continuará com a batuta e liderança [...]”.<br />
(Picchia apud Brito, 1971; 171)<br />
Na mesma linha, Guilherme de Almeida (1890-<br />
1969) se refere que “São Paulo devia, par droit de<br />
conquête et naissance, ser também, no Brasil, o berço da<br />
libertação intelectual”. (Almeida apud Brito, 1971; 178).<br />
Como resultado, aos compositores da geração<br />
anterior seriam passadistas, copiadores da Europa,<br />
tributários a uma estética que não mais representaria<br />
a sociedade de então, colaboradores na perpetuação<br />
de valores já ultrapassados. Entre esses compositores,<br />
alguns mereceram a qualificação de precursores, já que<br />
não podiam ser de todo desqualificados. Quanto aos<br />
demais, permaneceriam presos ao romantismo ou, na<br />
melhor das hipóteses, ao romantismo tardio.<br />
Dessa forma, as forças antagônicas estavam postas<br />
e os inimigos identificados. Seguindo o seu destino<br />
bandeirante, desbravador, os paulistas fizeram<br />
a “batalha sem sangue da Semana de Arte Moderna”<br />
(Brito, 1971; 172) e saíram-se vencedores.<br />
63
64<br />
No entanto, por mais significativos e escandalosos<br />
que tenham sido os resultados obtidos no evento<br />
paulista, os programas musicais apresentados não<br />
se mostraram de todo inovadores. Wisnik já se<br />
manifestara a esse respeito ao diagnosticar que existiria<br />
“uma certa defasagem entre as idéias (alardeadas)<br />
e as obras (apresentadas)” (Wisnik, 1977; 66), além de<br />
a própria formação desses modernistas estar vinculada<br />
ao “passado”.<br />
Em outras palavras, os resultados apresentados<br />
durante a Semana de 22 não se deram por um processo<br />
de “geração espontânea”, e sim já eram gestados<br />
e amadurecidos por compositores como Brasílio Itiberê<br />
da Cunha, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno,<br />
Francisco Braga (1868-1945), Glauco Velásquez, entre<br />
outros. Pode-se afirmar que estes compositores foram<br />
os “bandeirantes” que abriram o caminho para<br />
os artistas da Semana, que sobre seus ombros<br />
Alexandre Levy. Diploma da Premiação pelo Júri da Comissão<br />
Colombiana Mundial junto à Exposição Internacional de Chicago,<br />
1893. Edição da Sociedade Brasileira de Musicologia. São Paulo.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />
e conquistas os “novos modernos” tiveram êxito.<br />
Ainda segundo Wisnik, os modernos da Semana<br />
de 22 manifestavam uma “preocupação febril<br />
de atualização com referência às vanguardas européias<br />
e, portanto, de afastamento da tradição” (Wisnik, 1977;<br />
66), de onde se interpreta que um compositor como<br />
Nepomuceno estava comprometido com a tradição,<br />
cabendo aos “novos modernos” os louros<br />
da atualização e do progresso.<br />
Tal afirmação pode ser contestada por artigo<br />
de Darius Milhaud (1892-1977), que viveu no Rio<br />
de Janeiro entre 1917-1918, para Le Revue <strong>Musical</strong>e<br />
e também citado por Wisnik. Segundo Milhaud,<br />
Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald mantinham<br />
a biblioteca do Instituto Nacional de Música atualizada<br />
com partituras de <strong>música</strong> contemporânea. Entretanto,<br />
cita somente os compositores e associações francesas,<br />
como C. Debussy, V. D’Indy, C. Koechlin, E. Satie,<br />
a Société <strong>Musical</strong> Independante e a Schola Cantorum,<br />
entre outros.<br />
A atualização do meio musical carioca era tal que,<br />
ainda de acordo com Milhaud, “eles (Oswaldo<br />
e Nininha Guerra) me iniciaram na <strong>música</strong> de Satie<br />
que eu conhecia até então muito imperfeitamente<br />
e eu a percorri com Nininha, que lia excepcionalmente<br />
bem toda a <strong>música</strong> contemporânea” (Milhaud apud<br />
Wisnik, 1977; 40).<br />
Dois outros relatos se referem a essa ênfase<br />
contemporânea patrocinada por Nepomuceno. Trata-se<br />
da série de 26 concertos realizados durante a Exposição<br />
Nacional de 1908, comemorativos ao centenário da<br />
abertura dos portos às nações amigas, por Dom João VI.<br />
Conforme Luiz Heitor Correa de Azevedo, “pode-se<br />
dizer que, em <strong>música</strong>, foi essa a nossa entrada oficial no<br />
século XX” (Azevedo, 1956; 171).<br />
De acordo com José Rodrigues Barbosa, “Houve<br />
um momento em que as circunstâncias permitiram<br />
a Nepomuceno uma série brilhantíssima de concertos<br />
sinfônicos em que ele fez ouvir as produções dos<br />
nossos compositores e uma série luminosa da mais<br />
moderna literatura musical estrangeira”.<br />
(Barbosa, 1940; 28).<br />
A abrangência do repertório apresentado<br />
demonstrou que a relação de compositores estrangeiros
dada a conhecer ao público brasileiro não se restringia<br />
aos franceses, como descrito por Milhaud alguns<br />
anos mais tarde, mas também incluía russos<br />
e alemães, além de brasileiros.<br />
Entre os estrangeiros, foram ouvidos Paul Dukas<br />
(1865–1935), Claude Debussy (1862-1918), Alexander<br />
Glazunov (1865-1936), Albert Roussel (1869-1937),<br />
Rimsky-Korsakov (1844–1908), entre outros.<br />
Já entre os brasileiros figuraram Araújo Vianna<br />
(1871-1916), Barroso Neto (1881-1941), Ernesto<br />
Ronchini (1863-1931), Henrique Braga (1845-1917),<br />
Henrique Oswald, Carlos Gomes (1836-1896),<br />
Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno, entre outros.<br />
Com base na relação de compositores<br />
apresentados durante os concertos da Exposição<br />
Nacional, pode-se concluir que se tratava de um evento<br />
onde a intolerância estética não teria espaço. Assim,<br />
Carlos Gomes, compositor representativo do período<br />
imperial, vinculado à escola operística italiana, figurava<br />
ao lado de republicanos românticos e modernos,<br />
adeptos das escolas germânica e francesa. Daí<br />
vislumbra-se, também, que a formação do público<br />
de concerto estava entre os seus objetivos.<br />
Reforça essa conclusão a respeito da atualização<br />
do modo de recepção o relato do pianista português<br />
José Viana da Mota (1868-1948), sobre a série de<br />
Concertos Populares, ocorridos em 1896 e 1897, e regidos<br />
por Nepomuceno. Esse pianista se manifesta que eram<br />
“os preços acessíveis a (sic) todas as bolsas, afim (sic)<br />
de espalhar o mais possível o gôsto (sic) pela<br />
<strong>música</strong> [...]”. (Melo, 1947; 290).<br />
A modernização pretendida no meio musical<br />
carioca se refletiu também na formação musical. Coube<br />
a Leopoldo Miguez realizar uma avaliação crítica das<br />
principais escolas de <strong>música</strong> européias, culminando<br />
com a publicação do relatório Organização dos<br />
Conservatórios de Música na Europa, com o objetivo<br />
de criar o Instituto Nacional de Música, fato que se deu<br />
pelo Decreto nº 143, de 12 de janeiro de 1890.<br />
A qualidade e o grau de seriedade de seus professores<br />
e alunos era tal que, ainda de acordo com Viana da<br />
Mota, “o que bem mostra a riqueza de elementos<br />
artísticos de que dispõe o Rio é que a associação<br />
[de Concertos Populares] não tem dificuldade<br />
Luciano Gallet.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO<br />
nenhuma em variar os artistas em seus concêrtos (sic)”.<br />
(Melo, 1947; 291).<br />
Ainda sobre a ênfase na atualização estética, alguns<br />
exemplos da <strong>música</strong> de Alberto Nepomuceno<br />
mostram-se sintomáticos e demonstram sua tendência<br />
modernizadora. Nas Variações sobre um Tema Original<br />
op. 29, para piano, Nepomuceno utiliza politonalismo,<br />
escala hexatônica, escala pentatônica, entre outros<br />
procedimentos modernos. Também seguem a mesma<br />
trilha a sua ópera Abul, bem como o ciclo de canções<br />
Le Miracle de la Semence, sobre texto do simbolista<br />
Jacques D’Avray (Senador Freitas Valle).<br />
Merecem citação à parte as considerações<br />
a respeito do Trio em fá sustenido menor,<br />
de Nepomuceno. Avelino Pereira relata que<br />
“Em setembro [de 1916], o trio de piano, violino<br />
e violoncelo formado por Barroso Netto, Nicolino<br />
Milano e Alfredo Gomes estreava no salão do Jornal<br />
do Commercio o Trio em fá sustenido menor de<br />
Nepomuceno, obra dedicada àquele conjunto musical<br />
e saudada por Luiz de Castro como o produto<br />
de um compositor que se tornou completamente moderno”<br />
[grifo nosso] (Pereira, 1995; 304).<br />
Pereira ainda relata o fato de que os compositores<br />
franceses André Messager (1853-1929) e Xavier Leroux<br />
(1863-1919), recém chegados de Buenos Aires,<br />
compareceram a esse concerto de 1916. Ao final,<br />
ao ouvir o Trio, Messager dirigiu-se à Nepomuceno<br />
declarando Vous avez débuté par un coup de maître!<br />
(Pereira, op. cit.; 304). Em audição posterior do Trio de<br />
65
66<br />
Nepomuceno, Messager declarou<br />
a <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong> da escola alemã,<br />
que a obra colocava o autor entre os<br />
considerada moderna, afastando-a do<br />
melhores da <strong>música</strong> moderna (Pereira,<br />
lirismo excessivo da escola italiana.<br />
op. cit.; 305). Darius Milhaud<br />
Assim, Brahms e Wagner foram<br />
concordava com essas considerações<br />
modelos em detrimento de Rossini<br />
e estava desejoso da publicação do<br />
e Verdi. No entanto, os programas<br />
Trio para levá-lo para a Europa<br />
musicais se mantiveram ecléticos.<br />
(Pereira, op. cit.; 308).<br />
Em um futuro não distante, Debussy,<br />
Após essas considerações, pode-<br />
Fauré, Sant-Säens, entre outros,<br />
se questionar a pretensão<br />
seriam somados a esse grupo.<br />
atualizadora, anti-passadista, dos<br />
As trocas com a Europa também<br />
“novos modernos”. A geração de<br />
moldaram o crescente nacionalismo<br />
compositores da Primeira República<br />
Alexandre Levy, Sinfonia. musical brasileiro. Não podemos<br />
já se ocupava em manter-se<br />
atualizada, já que as trocas com<br />
Edição da Sociedade Brasileira<br />
de Musicologia. São Paulo.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />
perder de vista que, na época, a visão<br />
européia sobre o Brasil afirmava<br />
a Europa eram freqüentes, além<br />
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a “impossibilidade de uma nação<br />
de a formação de muitos desses compositores<br />
civilizada nos trópicos e ainda por cima miscigenada”.<br />
brasileiros ter-se dado no velho continente, seguindo, (Odália apud Reis, 2002; 94). Logo, nada mais natural<br />
na maioria das vezes, escolas progressistas.<br />
que, no princípio, os brasileiros imitassem os europeus<br />
Assim, para citar alguns dos mais conhecidos para mostrarem que também eram capazes e, portanto,<br />
compositores do período, observa-se que Leopoldo civilizados. Como exemplo temos José Maurício Nunes<br />
Miguez estudou em Portugal e na Bélgica; Henrique Garcia (1767-1830), que compôs, entre outras tantas<br />
Oswald, na Itália; Alexandre Levy esteve na Itália obras, uma Missa de Réquiem considerada obra-prima.<br />
e na França; enquanto Alberto Nepomuceno teve Em uma etapa posterior, utilizaram-se temas nativos<br />
a sua formação na Itália, na Alemanha e na França. com roupagem européia. O exemplo clássico são<br />
(Uma boa panorâmica sobre esse assunto pode<br />
as óperas O Guarani e O Escravo, de Antônio Carlos<br />
ser encontrada no artigo Compositores românticos<br />
Gomes (1836-1896). Após, a inspiração viria da <strong>música</strong><br />
brasileiros: estudos na Europa, de Maria Alice Volpe). popular urbana, eventualmente da popular rural<br />
Para se ter em conta o espírito<br />
ou folclórica, representada pela Série<br />
desbravador desses compositores, vale<br />
Brasileira ou o prelúdio O Garatuja,<br />
lembrar que até por volta de 1880,<br />
de Alberto Nepomuceno e pelos<br />
ópera e bel canto eram sinônimos<br />
Tangos, Polcas e Valsas, de Ernesto<br />
de <strong>música</strong> no Brasil – e no restante<br />
Nazareth. Um grande passo nesse<br />
da América. Foi a partir dessa década<br />
caminho nacionalista foi a odisséia<br />
que se deu efetivamente a introdução<br />
nepomucena de escrever canções<br />
da <strong>música</strong> sinfônica e camerística nos<br />
sobre poemas em português, feito que<br />
eventos musicais brasileiros, tendo<br />
ainda sequer havia se concretizado em<br />
Miguez, Oswald e Nepomuceno<br />
Portugal, segundo Viana da Mota.<br />
como grandes divulgadores.<br />
Continuando a migração dos pólos,<br />
As mudanças de meios de<br />
chega-se ao extremo oposto, onde<br />
expressão e gosto pretendidos não<br />
a <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong> se vestiria de<br />
visaram a substituição da ópera pela Leopoldo Miguez. Desenho assinado acordo com a sua sonoridade nativa,<br />
<strong>música</strong> sinfônica ou de câmera.<br />
Tinham como objetivo aproximar<br />
por Henrique Bernardelli em 1903.<br />
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independente da citação folclórica.<br />
Foi um dos caminhos trilhados por
Villa-Lobos (1887-1959) em obras como os Choros para<br />
orquestra ou nas obras Uirapuru e Amazonas.<br />
Essa dinâmica de concepções nacionalistas não se<br />
coloca como pré, proto, ou qualquer outro prefixo tão<br />
comum nas categorizações. São simplesmente visões<br />
distintas de nacionalismo, de acordo com o permitido<br />
pelas dinâmicas sociais de cada período histórico.<br />
Daí as afirmações do tipo “preocupação nacionalista”,<br />
para os compositores do período aqui tratado,<br />
apresentarem-se plenas de preconceito e presas<br />
ao dogma do “futurismo” defendido na Semana de 22.<br />
Pela mesma razão, o juízo de que faltaria à<br />
Nepomuceno, Levy e Brasílio Itiberê da Cunha maior<br />
intimidade com a <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong> mostra-se<br />
não procedente.<br />
Parafraseando Mário da Silva Brito, poderão<br />
parecer, ao público de hoje, tímidas e, por vezes,<br />
desajeitadas as realizações musicais desses<br />
compositores brasileiros, mais acadêmicas do que<br />
revolucionárias, mas, ao seu tempo, repercutiam<br />
perturbadoramente, eram objeto de discussão<br />
e poderiam causar algum escândalo. Mas foi, através<br />
delas, que novas perspectivas puderam ser abertas<br />
e processos mais amplos para a expressão musical<br />
foram conquistados.<br />
Portanto, o período da Primeira República, mostra-<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. 150 anos de <strong>música</strong> no Brasil.<br />
Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1956.<br />
BARBOSA, José Rodrigues. Alberto Nepomuceno. Revista Brasileira<br />
de Música. Rio de Janeiro, v.7, n.1, 1940. p.19-39.<br />
BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro:<br />
antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira, 1971.<br />
CHAVES, Celso G. Loureiro. Literatura e Música. História da<br />
Literatura Brasileira. Vol.3. Lisboa: Alfa, 2000.<br />
MELO, Guilherme de. A <strong>música</strong> no Brasil: desde os tempos coloniais<br />
até o primeiro decênio da República. Rio de Janeiro: Imprensa<br />
Nacional, 1947.<br />
PEREIRA, Avelino Romero Simões. Música, sociedade e política:<br />
DISCOGRAFIA<br />
NEPOMUCENO, Alberto − TRIO EM FÁ SUSTENIDO MENOR,<br />
PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO. Trio Dell’Arte, 1995<br />
Sony Music Entertainment<br />
NEPOMUCENO, Alberto − SÉRIE BRASILEIRA. Orquestra Sinfônica<br />
Brasileira/Souza Lima. Festa − Polygram, 1981<br />
MIGUEZ, Leopoldo − SONATA OP.14, PARA VIOLINO E PIANO. VL. −<br />
Paulo Bosísio; Pno. − Lilian Barreto. 1998<br />
OSWALD, Henrique − TRIO EM SOL MENOR OP.9. VL<br />
Elisa Fukuda; Vc. − Antônio Del Claro; Pno. − José Eduardo<br />
Martins. FUNARTE. 1998<br />
LEVY, Alexandre − SUÍTE BRASILEIRA. Orquestra Sinfônica Brasileira/<br />
Souza Lima. Festa<br />
BRAGA, Francisco − TRIO PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO<br />
Trio da Rádio MEC. Funarte ProMeMus<br />
se uma época muito rica para a <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong>.<br />
A eterna atualização estética junto com a afirmação<br />
da identidade <strong>brasileira</strong>, pelo auto-conhecimento<br />
de suas <strong>música</strong>s nativas (urbanas ou rurais), refletem<br />
um “período mágico”, onde “reside a essência do<br />
verdadeiro e breve modernismo musical brasileiro”.<br />
(Chaves, 2000; 140). Na mesma linha reflexiva de<br />
Celso Loureiro Chaves, o modernismo musical<br />
brasileiro pós Semana de Arte Moderna dogmatizou-se<br />
e virou Nacionalismo <strong>Musical</strong> Brasileiro.<br />
Alberto Nepomuceno e a República <strong>Musical</strong> do Rio de Janeiro (1864-<br />
1920). Dissertação (Mestrado em História Social). Instituto de<br />
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de<br />
Janeiro, 1995.<br />
REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC.<br />
5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.<br />
TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e <strong>música</strong> <strong>brasileira</strong>. Rio de<br />
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.<br />
VOLPE, Maria Alice. Compositores românticos brasileiros: estudos na<br />
Europa. Revista Brasileira de Música. Rio de Janeiro, v.21, 1994/<br />
95. p.51-76<br />
WISNIK, José Miguel. O Coro dos Contrários – A Música em torno<br />
da Semana de 22. São Paulo: Duas Cidades, 1977.<br />
LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG<br />
Professor de piano no Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas (RS).<br />
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Música, Musicologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.<br />
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