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Vida do Beato Henrique Suso, da ordem dos Pregadores, traduzida ...

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^r-


V I D A<br />

DO<br />

BEATO HEKRIQUE SUSO,<br />

DA ORDEÍJ DOST.PÉGADORES,<br />

Traduzi<strong>da</strong> de Latim em Poituguez:<br />

CONSIDERAÇÕES<br />

DAS<br />

LAGRIJÍAS DE N. SENHORA,<br />

E uua* cbras era prosa, e em verso , (jue an<strong>da</strong>va»<br />

diiipersas.<br />

CO -M POSTAS<br />

POR<br />

Rcrgioso <strong>da</strong> dlla Oi;":.:in.<br />

< que $t ojiint9tt o. Fi<strong>da</strong> <strong>do</strong> mesmo Aulor , « o juízo<br />

sobre os seus Escritos, m<br />

r^.nh?<br />

1 V*-.<br />

COIMBRA:<br />

91 lilPhliiNSA OAUNlVERSiDADlj<br />

— *««


V<br />

\}^<br />

I6^


VIDA<br />

DO<br />

Padbe Fr. LUIZ DE SOUSA ,<br />

E JUÍZO SOB^^V'. 05 SEUS ESCRITOS,<br />

i>0 Aviso, qiic pnzémos ao^principío ria<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Venerável Arcebispo D. Fr. I^arrholomeu<br />

<strong>do</strong>s Martyres , que saio impressa em<br />

Jíiiie^lro deste ftnno (r jí)/-), dissemos que logo<br />

depois deterniinavanios p!d)Hair a <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong><br />

<strong>Beato</strong> <strong>Henrique</strong> Soso , e njuiitnr-lhc ns devo-<br />

rissinias Considerações <strong>da</strong>s Lagrimas de Nossa<br />

Seuliora , c algniras ol)ras Latinas , que aii»<br />

<strong>da</strong>vão soltas j Ui<strong>do</strong> producrão bem dii;na<br />

<strong>do</strong> insigne Autor <strong>da</strong> <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> mesmo Venerável<br />

Arcebispo : c que a!ii lhe ajur.iariamos<br />

tarnbum uma breve noticia <strong>da</strong> \ i<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

inesnio Aulor , e <strong>do</strong>s st ns FsrritdS , e o<br />

jnl/o Si^bie elles. Aguia van:os í>iilisra:er esia<br />

piomcssa.


4<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Padrk<br />

Fr. Luiz de Soiis.i, que no século se cKamou3Ianoel<br />

tle Sousa Couiinhojji), foi quinto<br />

filho de Lopo cie Sousi Coutinho , FiJilgo<br />

ilhistrissimo <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong> Senhor Kei D. João<br />

Iir , e que pelas suas virtudes , talento , e<br />

erudição mereceo, lugares mui distinctos na<br />

vi<strong>da</strong> militar , e conciliou universal respeito<br />

<strong>da</strong> Corte : e dvi D. Maria de Noronha , fdha<br />

de D. Fernan<strong>do</strong> de Noronha , Capitfio de<br />

Azamor, Lo.^o nos primeiros annos moslroa<br />

Manoel de Sousa grande viveza , e génio singular<br />

para os esíutíos, e muiio cm particular<br />

])ara as Bellas Letras, que cultivou maravi~<br />

íhosamente , e com láo prodigioso fVucto ,<br />

como o fazem ver os seus Escritos. Passou a<br />

estu<strong>da</strong>r Direito á Universi<strong>da</strong>de de Coimbra ,<br />

como o tinlião feito lo<strong>do</strong>ò seus irmãos, não<br />

dispensan<strong>do</strong> seu pai nesta parte nem ain<strong>da</strong><br />

o primogénito. E perguntan<strong>do</strong>-se-lhc a razão<br />

de o querer assim ? respondeo discretamente<br />

: Qu3 mal lhe tinhafeito aq lulie filha y<br />

para o deíjcir iqnorante P<br />

Não pro:egnio os estu<strong>do</strong>s na Universi<strong>da</strong>de;<br />

antes deixau<strong>do</strong>-os logo, entrou na Religião<br />

de Malta. E fazeuílo viagem para esta.<br />

íllia , ao sair <strong>da</strong> de Sardenha , aonde ohri-<br />

( 1 ) rV. António lia Kncariiar.So iiiN i<strong>da</strong> í\r Fr. I.n-t<br />

fli- Sonsa , c^ut TQM ftopiiiicipiu <strong>do</strong> iíj^uuJo i'gmo J«<br />

CluQU^M.


Fn. Lui2 Dl! Sousa.' 5<br />

^<strong>do</strong> de um grave temporal , e qnnsi derrota<strong>do</strong><br />

de to<strong>do</strong> tinha i<strong>do</strong> arriba<strong>do</strong>, foi cativo<br />

de um Corsário de Mouros, e juntamente<br />

seu irmaó André de Sousa Coutinho, Cavaileiro<br />

também <strong>da</strong> mesma KeligiSo. Leva<strong>do</strong> a<br />

Argel , alli acliou entre os cativos o ilhistre<br />

, e engenhosissiuio Miguel de Cervantes<br />

, com quem logo coníiahio estreita amizade.<br />

Em teálemuriiio delia ointroduzio Cervantes<br />

em hum Episodio <strong>da</strong> suacelebie Novella<br />

<strong>do</strong>s Trabalhos de Persiles , e Se^ismiiU'<br />

<strong>do</strong>. Ajustan<strong>do</strong>-se MatiOel de Sousa CoiuitiUo<br />

com O Conjman<strong>da</strong>ntc <strong>do</strong> Corsário em que,<br />

fican<strong>do</strong> seu irmão André de Suusa reti<strong>do</strong> no<br />

cativeiro , viesse elle d pátria negocearo resgate<br />

de um, e outro, passou para Valença<br />

julgan<strong>do</strong><br />

em Hespanha no anno de 15^5 ,<br />

que este lugar era commo<strong>do</strong>para (hdli eííeltoar<br />

o a ({ue viera. Aqoi teve a triste noticia<br />

<strong>da</strong> infebz morte de seu pai que havia<br />

,<br />

succedi<strong>do</strong> em Janeiro deste anno. É succeNs^j<br />

admirável , mas ver<strong>da</strong>deiro In<strong>do</strong> a desmontar-se<br />

d'uiu cavallo (na Vi lia de Povos)<br />

desenibainhon-se-liic a espa<strong>da</strong> : com o movimento<br />

(jue íez ao cair , firtui de sorte qeie<br />

,<br />

forcejan<strong>do</strong> ou p:ira a desviar , ou para a ter<br />

mão ; ella o ferio tão graveuKMíte, que alli<br />

falleceo logo eui 28 <strong>do</strong> diio tncz. Jaz iia Capella<br />

mói- <strong>da</strong> igreja Paruc^iilai <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r


6 <strong>Vi<strong>da</strong></strong>. <strong>do</strong> Pa<strong>da</strong>b<br />

<strong>da</strong> Villa de Santarém, de que er.i P.idro^ir.^,<br />

e juntamente sua mullier D. x^aria de Noronha.<br />

Estabeleci<strong>do</strong> Manoel de Sonsa em Valença<br />

, procurou logo o celclire Jaime Falcão,<br />

Cujos estu<strong>do</strong>s erão de giandefama er.i to<strong>da</strong><br />

a Hespnnlia, e cujo meiccimento Manoel de<br />

Sousa aftirma achara ain<strong>da</strong> maior <strong>do</strong> ([ue a<br />

mesma fama. Dois annos, que alii se deteve,<br />

tratou sempre com grande amizade aquelie<br />

sábio homem ; veneran<strong>do</strong>-o como pai , e honran<strong>do</strong>-o<br />

como mestre. Ellc llie explicou para<br />

sua melhor inslrucção a Arte Poética d Horácio;<br />

o que Manoel de Sousa confessa lhe<br />

servira de estimulo para tornar ao estu<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

Poesia, que havia deixa<strong>do</strong>. Ksta explicarão<br />

se acha no fim <strong>da</strong>s obras <strong>do</strong>me^mo Jai?neFalcão,<br />

e neila se mostra clare7.a , e bom conhecimento<br />

<strong>do</strong> ver<strong>da</strong>deiro senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Poeía.<br />

Negocea<strong>do</strong> em fim o seu resgate, e o de<br />

5eu irmão, voltou para o Reino , e para a<br />

Corte, sem que tivesse professa<strong>do</strong> na lleli-<br />

^iáo , que dissemos. Diz-se que tivera razies<br />

forçosas para assim o fazer. Então casou com<br />

D. r>lagdnlena de Vilhena , fdha de Francisco<br />

de Sousa Tavares , Senhora , que fora mulher<br />

de D. Jofío de Portugal, filhexleO. Francisco<br />

de Portugid, 'primeiro Conde deVimioso,<br />

o ^ual havia ^cagl^ oa infeliz batalha de AU


Fr. Lciz de Soisi, j<br />

9fiCièr. Assistia na Viila Je Almatla , viven<strong>do</strong><br />

eoniohoni Ci<strong>da</strong>dão, e cultivan<strong>do</strong> oS estu<strong>do</strong>s<br />

<strong>da</strong>s Bellas Leiras com seus amigos, que tinhao<br />

o mesmo gosto, instituin<strong>do</strong>, para o tazer melhor,<br />

uma Socied:ide Lite.-aria : e era Coro-<br />

nel fie 700 iníanles ,<br />

quelie districto.<br />

Por causa <strong>do</strong> mal <strong>da</strong> peste , com que Deos<br />

e quasi 100 Cavallos na-<br />

ferio Lisboa no asiiio de 1677 , passarão o?;<br />

Governa<strong>do</strong>res , que então erão <strong>do</strong> Ileino , ;i<br />

residir em Alma<strong>da</strong>, por ser terreno mais desafoga<strong>do</strong>,<br />

elinipn de to<strong>da</strong> a corrupção, Eião<br />

elles I<br />

(<br />

) D. Miguel de Castro, Arcebispo tio<br />

Lis])oa : D. João <strong>da</strong> Silva, quarto Contle <strong>do</strong><br />

Portalegre, Mor<strong>do</strong>mo Múr : D. FrancisiM<br />

Mascaranhas Conde de Santa Cruz: D. Duarte<br />

de Castello-Branco , primeiro Conde <strong>do</strong><br />

SaiíUíjnl , I\L'irinho Mór <strong>do</strong> liciívo : jMi.^uel<br />

de Moura, Escrivão <strong>da</strong> Puri<strong>da</strong>íle. Repartiiãt»<br />

entie si as casas <strong>da</strong> Villa que lhe parecerão<br />

,<br />

mais commo<strong>da</strong>s para caíla um : e não ob-<br />

que lhes podião ser' ir<br />

stante terem outras ,<br />

igualmente bem , ordenarão a Manoel de<br />

Sousa Couiiiiho despejasse as suas. Assetiiou<br />

elie que a <strong>ordem</strong> era injusta ; aures nascitiu.<br />

de anlig») ódio , que agor» quci ião satJi>lríxer<br />

, abusan<strong>do</strong> <strong>da</strong> autoii<strong>da</strong>


8 ViDJL DO Pa.I>R1!<br />

vin^^ar.oa particular. Foi extraordinarin a pai*<br />

xáo , que Manoel (iu Sousa conccbeo rew.lo<br />

um tal proítí llmento ; e deixanJo-stí levar<br />

delli , roiii|»eo na arroja<strong>da</strong> tietermiii,i':ão íle<br />

lançar fogo áscasas: elle íiiesmo o diz assim<br />

( I ): Cu^n vekenienter animo camino tus afcn,<br />

itji'a , et ifiaitdita mttamorphosi indis^nantes<br />

parlei is injwiiic subtluxi ; ia f.irnuni , e! ciie»<br />

res abiere. raríio logo pftra Madrid a informar<br />

o Piinclpe <strong>do</strong> procedimento, de qiic* se<br />

usara para com elle , e <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> porque ellc<br />

mesmo , perden<strong>do</strong> a paciência, se havia desaggrava<strong>do</strong>,<br />

Conhecen<strong>do</strong>-se a semrazío de<br />

quem o havia provoca<strong>do</strong>, foi attLMidi<strong>do</strong>.<br />

No tempo , em que se deteve em Madrid,<br />

tonjo ver<strong>da</strong>deiro amigo, cui<strong>do</strong>u em ajuntar<br />

«soljras de Jair.íC Falcão, que scisannos an-<br />

aonde viera<br />

tes havia fallcci<strong>do</strong> nesta Corte ,<br />

chama<strong>do</strong> de Valença; e as que pôde alcançar,<br />

iis fez imprimir no anno òc looo em um<br />

voliiiJíeem oitavo. DanJo ocrusião o seu inespera<strong>do</strong><br />

desterro, como elle Itiecliama, a iiâo<br />

íicarempeipetiio esquecimento a menuírladc<br />

um homem tão estimável ; pois não se pôde<br />

duvi<strong>da</strong>r que Jaime Falcão tinha grande engcnlio<br />

, e feliz imaginação; e se tivesse a<br />

fortunn de estu<strong>do</strong>s mais bem dirigi<strong>do</strong>s , seria<br />

hum escritor eouqdeto.<br />

( i ) JVaeíat. Opti". Xacub. I''aIc. de t£uib. iufra.


Fr. Lriz DE SotrsA. 9<br />

Bestitni<strong>do</strong> á Pátria, continuou INÍanocl de<br />

Sousa a mesma vi<strong>da</strong> retira<strong>da</strong>, e estudiosa,<br />

que linha ante?. Persuadi<strong>do</strong> então por seu<br />

irmão Jcfto Rodrignes Cuutinho , qutívivia<br />

em Panamá, na America iSleridional, a que se<br />

])assas5e iquelle pai?, com a es| csarra ilecon-<br />

«eguir copiosos iurros pelo connncrcio, fa-<br />

rcii<strong>do</strong>-o assim te^e a noticia, de qnc lhe tinha<br />

faileci<strong>do</strong> hnma fdha única , que havia<br />

si<strong>do</strong> ínulo <strong>do</strong> sen maiilmonio. Devia esit?<br />

golpe scr-lhe niuilo sensível , muito mais ,<br />

ven<strong>do</strong> ellc a serie ccntinua<strong>da</strong> de desgosto?^, e<br />

iníehci<strong>da</strong>des , que a vi<strong>da</strong> in(fulcn , e tumultuosa<br />

<strong>do</strong> século , a f|ue se havia entregue ,<br />

lhe tinha causa<strong>do</strong> sempre. Meditava nisto laram(M!íe,<br />

e ca<strong>da</strong> vez se desenganava mais d*<br />

nu<br />

e não era arruelle o esta<strong>do</strong>, cíu que Deos<br />

o (fueria. O succisso seguinte creio foi qucjn<br />

acidíou de o tlesenc^anar. Tinha Manoel de<br />

Sousa estreita , e íicl amizade com o Cíinde<br />

de Vimioso D. Luiz de Portuj^al. Alluniia<strong>do</strong><br />

que os eífeilos iheiíin ver<br />

esto por uma luz ,<br />

que era (h) Ceo , ahraçou juntanM-nte com<br />

sua mulher a vi<strong>da</strong> religiosa. O Conde lio reforma<strong>do</strong><br />

Convénio th» Beniíiía , .1 ('ondessa<br />

1). .loanra de Men<strong>do</strong>nça no <strong>do</strong> Sacramento <strong>da</strong><br />

Còrie. Fez este cxenjj)Io »raude impressão<br />

ni) anim.i de Manoel de Sonsa. Assentou que<br />

Deos ilití man<strong>da</strong>va que seguisse o amigo. Por


to <strong>Vi<strong>da</strong></strong>. <strong>do</strong> pADni<br />

niutuo consentimento seu, e de sua esposa<br />

se recolhço elle tr.nibeni ao Convento de<br />

Beniíica , e ella ao <strong>do</strong> Sacramento, toman<strong>do</strong><br />

e ellu o de Soror Mag-<br />

elle o nome de Luiz ,<br />

<strong>da</strong>lena disCIíasías. Em quanto viverão não se<br />

virao mais, rcm amua se tratarão por escrito.<br />

Professou Fr. Luiz em 8 de Setembro de<br />

i6i4 ) uas mãos <strong>do</strong> Prior , que então era<br />

Fr. João de Portugal, Bispo, que depois foi<br />

de Viseu. Logo mostrou que a sua vocat ão<br />

era ver<strong>da</strong>deira, perden<strong>do</strong> iuteiramcnlc to<strong>do</strong><br />

o c'h,pirilo <strong>do</strong> seci<strong>do</strong> , de que até alli vivera<br />

•ocupa<strong>do</strong>. Aquelle brio sem limites, aquelle<br />

animo altivo, e ardente que o tinlia ol)ri-<br />

,<br />

^a<strong>do</strong> a tantos excessos, se tornou em umaprolun<strong>da</strong>,<br />

soli<strong>da</strong> e constante abnegação própria.<br />

Vivia entre os Noviços como o menor de to<strong>do</strong>s<br />

ellcs j e depois de professo sempre se tratou<br />

«ntre os Reliooisos conlórmc o mesmo me»<br />

tlio<strong>do</strong>. Tinha no século iinia gioss.i tcnoa ,<br />

loc;0 a renunciou , nem quiz jamais ter di«<br />

nhelro algum , nem ain<strong>da</strong> no deposito ila<br />

Fieligião. O habito que ella lhe <strong>da</strong>va , dellc<br />

se servia , em quanto o podia remen<strong>da</strong>r. Ai<br />

túnicas eráo de laa ;<br />

nem admiltio nunca outro<br />

vesti<strong>do</strong>. De lãa era também a cama ; duas<br />

inania* sobre duas taboas; uma branca pequena<br />

de pinho j e para se usscnlar um lanho.


Fr. Luiz de SottsaÍ ii<br />

Não se contentava com jejuar ossett metes,<br />

e outros jejuns lia Ordem no discurso <strong>do</strong><br />

anno: íiin<strong>da</strong> se ariiantava mais; e além distai<br />

<strong>do</strong> que se llie <strong>da</strong>va no refeitório sempre deixava<br />

ineíade para os poi)res. Nas penitencias,<br />

discipiiiii)^, cilicio seguia sempre a mc^ma<br />

máxima , accrescentar de mais ao (pje devia<br />

de olrigação.<br />

Eii quanto «ão teve a seu cargo escrever<br />

por orlem <strong>da</strong> Religião, tomou sobre si o ot'*<br />

£cio de enfermeiro. Neíle mostrou tal desprezo<br />

p'oprio , tal abatimento, ião rara Iiiinul<strong>da</strong>de<br />

que a to<strong>do</strong>s confundia , e edifica-<br />

com a maior dili-<br />

va. Não íómente cui<strong>da</strong>va ,<br />

gencia , d[)5 medicamentos , fazer as cam.as,<br />

alimpar aí ce<strong>da</strong>s aos <strong>do</strong>entes ; mas eile mesmo<br />

por suís mãos fa/ia os ministérios mais<br />

despre2Íveii , e n;ais servis, E de que consolação,<br />

e aK.vio não era com a sua pratica<br />

aos enfermos'-* to<strong>da</strong> e.a ou <strong>da</strong>quelle Senhor,<br />

que he saudc , e vi<strong>da</strong> , ou para lionra<br />

dclle: ociosa, nem uma só palavra se ihe<br />

ouvia.<br />

Em scc>uir o Coro , e acodir á Oração era<br />

nidcíeelivtl.Nãosí salisfaziasócom a d.i Communi<strong>da</strong>de;<br />

semprt depois ficava continuan<strong>do</strong><br />

neila largo espaço ; antes podenjos dizer, qu«<br />

nunca deixava a Ur^ção. Continuamenie an<strong>da</strong>va<br />

o siíu espirito/ « a suabOca chtjia átt


f* <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Padb»<br />

Deos. De quanto via, ede quanto ou\la, fazíâ<br />

STihir logo o entencUmento , e o coração ao<br />

S2U Crea<strong>do</strong>r. De Deos era tu<strong>do</strong> , arvores (te<br />

Deos, bosques de Deos, aves de Deos, hibito<br />

de Deos, casa de Deos.<br />

Ao Rozario <strong>da</strong> Senliora tlnl^ singilar<br />

dcvoí ão. To<strong>do</strong>s os dias o rezava visiun<strong>do</strong><br />

sen altar : e que alfeclos se não tlescobrirãonelle,<br />

ven<strong>do</strong>-o de joelhos , falian<strong>do</strong><br />

com a Senhora to<strong>do</strong> huniildc , to<strong>do</strong> cheio de<br />

respeito , c d«^ piedíide ! Mas sobre íu<strong>do</strong> o<br />

que mais nelle ediíicava , era a corded devoção<br />

<strong>do</strong> Santissinio Sacramento <strong>do</strong> Akar: aqui<br />

lie onde to<strong>do</strong> o seu coração se derri»inava em<br />

\ivos actos de agradecinienlo , df té, e de<br />

amor : aqui se elevavn, e submcríj.a lo<strong>do</strong> na<br />

profun<strong>da</strong> meditação deste mvslerio sacrosanto<br />

, e inefiavel : e <strong>da</strong>qui lhe vcioque nunca<br />

deixou de celebrar o sacrifício la Missa ena<br />

io<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> , por mais ocijpa<strong>do</strong> que se<br />

tíssc : este t:ra to<strong>da</strong> a sua dilicii , e Io<strong>da</strong> a &ua<br />

consolação.<br />

Vu'\ admirável a obediência <strong>do</strong> Padre Fr,<br />

1 uiz de Sonsa. Não só obedecia em tu<strong>do</strong>, mas<br />

sem allegaçóes, nem replic.ns, ain<strong>da</strong> em casos,<br />

em que parece que o poilií fazer com justiça.<br />

Até o seu mesmo juizo mostrou que queria<br />

ler «ugeito agora cm desiggravo <strong>do</strong> tempo ,<br />

eai qu^ g Uuúa deita<strong>do</strong> guiar pelas máximas.


Fn. Lrix de Sousa. i5<br />

^enganosas <strong>do</strong> século. Esta foi a causa , porqueacceitou<br />

o cargo de escreTer. ain<strong>da</strong> obras,<br />

'[ue não erão <strong>da</strong> Ordem. E bem se \ê que a<br />

cliediencia, e sóa obediência foi quem o obrig'>u<br />

a que escrevesse. Man<strong>da</strong>va-o umRei;ea<br />

ese sempie se deve fazer a vontade. Nem<br />

Tintios se j^cde dizer qtie o escrever fpi no<br />

Pacre Fr. Luiz ambição de boura. Tanto era<br />

livrt delia , que nem os estu<strong>do</strong>s quiz seguir<br />

na Crdcm , por se rão obrigar a ser Prégatlor.<br />

Z que c\ "cliente o seria elle, ten<strong>do</strong> <strong>do</strong>-<br />

tes tão singulares para a IJoquencia sagra<strong>da</strong> ,<br />

como se vê nos seus escritos ! Deste mo<strong>do</strong><br />

evitou »ainbcm occi:|^ar cargos , e ter alguma<br />

parte to governo: econseguio o que desejava<br />

5 p-)is sempre foi súbdito, ]\]as consideremos<br />

aoccupacfio que ton;ou de escrever<br />

,<br />

pelo la<strong>do</strong>, por onde parece que be justo ; e<br />

mellior fa enios juizo se foi ambição , ou se<br />

foi virtude.<br />

Foi obiiga<strong>do</strong> a revolver Cai tórios, e pa-<br />

peis antigo., averiguar leiras tão (ega.^, e<br />

r.paga<strong>da</strong>s, que funão perder a vista aiiuL<br />

em annos m:.is vigorosos, separar o ver<strong>da</strong>deiro<br />

<strong>do</strong> fals->, ajustar tempos, combinar<br />

circumstancias, pesar attentan;t.nte os factos,<br />

escolbel-os , e Vinca 1-os de {)ois no papel com<br />

aceito; e isto n:n\ laltar num fó ] ortc ás<br />

obrigações de Rebgioso, ao Core, á Orsí âo.


i4 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Padre<br />

ás penitencias, bem se pôde dizer, que mais<br />

era de Santo, cio que de homem.<br />

Chegou em fim o prazo <strong>do</strong>s sens trahay<br />

lhos : nem forfio necessárias cautelas panl<br />

llie advertir que elle era chega<strong>do</strong> , e que/i<br />

<strong>do</strong>ença , que delle eia correio, era d^ niol'-<br />

te. Conheceo-o elle muito bem , corno (ji^tu<br />

sempre se havia prepara<strong>do</strong> para aquell i lyra;<br />

c a ca<strong>da</strong> instante a esperava. Recebco /oní<br />

grande pie<strong>da</strong>de os Sacramentos, pein<strong>do</strong><br />

humildemente á Communid..de perdjf) <strong>do</strong><br />

seu máo exemplo; e consolan<strong>do</strong>-se milto de<br />

acabar entre irmãos túo santos, fia^) em<br />

que pelas suas oraçSes entraria o Sen/ior eui<br />

juizo com elle benignamente, não,se lembran<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> que elle fura alguui dia ,ye agora<br />

muito <strong>do</strong> coração sentia ter si<strong>do</strong>. F.iaeceo no<br />

inez de !\Iaio de i632. Jaz no ariecoro <strong>do</strong><br />

Convento de Demfica junto ,<br />

cue sobem paiM o Coro.<br />

ao/deíiráos<br />

Ain<strong>da</strong> no século escreveo<br />

que temos impressas, e vão<br />

v/rias obras<br />

m fíui deste<br />

volume quasl pela mesma ortl/ni por que<br />

,<br />

sairão. Uma só não pudemos ilcauçar, intitula<strong>da</strong><br />

Navií^atío Aritartic^ú fid Doctorem<br />

Franciscum Giiidiim y civcnj Panamensem ,<br />

de que faz menção na sua r>i>llotheca o erudito<br />

Abbade Diogo barbos/ Macha<strong>do</strong> que<br />

,<br />

iufornjan<strong>do</strong>-nos cum tíUc <strong>do</strong> lujar, cm que


Fzi. Luiz de Sorsi. i5<br />

"ã poderíamos descobrir, nos protestou in-<br />

jeniiamenle se riáo ienibravn , pois aquclla<br />

i\ieníOiia, de que se servira na biblioiheca,<br />

lae não podia occorrer <strong>do</strong>nde a bavia consegui<strong>do</strong>.<br />

Além destas obras adiámos mais<br />

ma Soneto no principio <strong>do</strong> Livro irtitula<strong>do</strong><br />

Caicimento perfeito, escrilo por Diogo de<br />

Pal\a de Andrade, sobiini;o <strong>do</strong> insigne<br />

Tiíeologo desle mesmo nome,<br />

íva Rebgião escreveo primeiro a <strong>Vi<strong>da</strong></strong><br />

cio Venerável Arcebispo D. Fr. Bartholomeu<br />

<strong>do</strong>s Marlyres , que oííereceo á Camera de<br />

Viana, que generosamente a íez imprimir<br />

na mesna Villa , em um volume em tolio no<br />

anuo dt 1619, e nós publicámos agora segun<strong>da</strong><br />

Víz , como já dÍ5senK)S acima. Esta<br />

obra saio traduzi<strong>da</strong> em franccz iio anno de<br />

Escreveo mais a Prijneira parie <strong>da</strong> Histo-<br />

ria de S. Lumin^os y particular <strong>do</strong> lieino , e<br />

Conquistas de Portugal , que se imprin:io<br />

em 1623, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> composta <strong>da</strong>s memorias,<br />

que deixara ain<strong>da</strong> iiiFormcs o Padre<br />

Fr. Líiiz de Gacegas, yí Segun<strong>da</strong> Parie <strong>da</strong><br />

mesma Historia, que se in)primio em 1662 ,<br />

já depois <strong>da</strong> morie <strong>do</strong> Autor, peio Padre<br />

i^r. António <strong>da</strong> Ircarnacáo , que Ibeajunlou<br />

um Prolof:o, t Koticia <strong>da</strong> Ni<strong>da</strong> <strong>do</strong> Autor,<br />

«i>nde liiiin,os n.uito <strong>do</strong> que Itii os dilo, poi


1(5 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Pàdii<br />

ser Autor coéro , e Gcledl^no. Só ros nío<br />

pudemos detej-minar a seguil-o no que toca<br />

ao motivo, que refere tivera IManoel deSouíi<br />

para deixar o século. Não achamos na infoi^mação<br />

<strong>do</strong> peregrino, que se diz rir de Jerísalem<br />

, e mais circumstancias , motivo cjftis<br />

I»aste para nos fazer este sucresso crivei. Hsia<br />

foi a razão, porque assentámos cm outi.i raii-<br />

sa. Terceira Parte <strong>da</strong> mesma historia eh S.<br />

Domingos y impressa em Lisboa era i6y8.<br />

Tinlião-se impresso já duas obríí áo<br />

Padre Fr. Luiz de Sousa , uma no aiT^o de<br />

1645, e é a <strong>da</strong>s Considerações <strong>da</strong>s Lafrimas^<br />

que a P irgem nossa Senhora derrariou na<br />

Srigra<strong>da</strong> Paixão reparti<strong>da</strong>s cm de? passos:<br />

para a devoção <strong>do</strong>s dez sal^ba<strong>do</strong>s:


Fk. Lviz DK Socíi. 17<br />

(lor ígnari'i Barbosa Macha<strong>do</strong> , cujas letras<br />

sfio bem conheci<strong>da</strong>s neste Reino , que lhe<br />

deve o te!-o lllusira<strong>do</strong> com os seus escritos,<br />

nos segurou que seu Iniuio o Parlie D. José<br />

B.iT!)osa, .sujeito de conheci<strong>da</strong> literatura ,<br />

c talento , lirdia visto esta obra uo Padre<br />

Fr. Luiz de Sousa na livraria <strong>do</strong> ultimo Marquez<br />

de Gouvea com este titulo: Chronica<br />

cio Frade; mas iuíelizmente não pudera ter<br />

meio de a fazer copiar.<br />

l\esta-uos a^jora satisfazer ao sei^un<strong>do</strong><br />

ponto, a que nos obrigámos, e é, tazer<br />

juizo sobre o mereri mento <strong>do</strong>s escritos <strong>do</strong><br />

Padre Fr. Luiz de Sousa, Como não é tanta<br />

a nossa confi^ínça , que de-cancemos somente<br />

sobre o nosso conceito; cncost:nemo3 o que<br />

dissermos á g^rave autori<strong>da</strong>de de muitas<br />

pessoas de perteitu f^oslo , juizo soli<strong>do</strong> , e<br />

ajusta<strong>da</strong> critica, com quem temos muitas<br />

vezes conferi<strong>do</strong> sobre a presente matéria.<br />

E sem duvi<strong>da</strong>, que teve o Padre Fr,<br />

Luiz de Sousa as mais evrelletites quali<strong>da</strong>des<br />

para irsrrever perleifa mente. Até j ara<br />

isso lhe sérvio o seu i ascin»eiit«>, pela acerta<strong>da</strong><br />

educação , í|ue receln-o de seu pai. Os<br />

seus talentos uatmaes erfu^ iíUi tnt;eiTho vivo,<br />

e fértil , nma iníaginação copiosa, e<br />

feliz , um juizo soli<strong>do</strong> , e chuo , ujii animo<br />

brioso , e amauie <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, hj^W^ laknioi


i8 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> PadrI<br />

aperfeiçoa<strong>do</strong>s com o trato conliniia<strong>do</strong> cios<br />

homens mais sábios , e poli<strong>do</strong>s <strong>do</strong> seu teiupo<br />

, o commercio <strong>da</strong>s pessoas mais civis , e<br />

conhecinjcnto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> , não podiáo deixar<br />

de profluzir nelle nm snç^eilo eminente.<br />

Assim surccdeo : e ovonios nos [seus escritos.<br />

E principian<strong>do</strong> pela <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Arcebispo<br />

Santo D. Fr. Dartbolomcu <strong>do</strong>s Martyres :<br />

que evidente prova <strong>do</strong> que temos dito não é<br />

esta escritura ?<br />

Creio que não ncressilo de fazer agora<br />

aqui lan trata<strong>do</strong> mcthodico cmpestÍYa. Mas não pos?o escusnr-nie i!«<br />

apontar uns piincipios geraes , c certos , para<br />

desta sorte proce(ier sem cTrgano. E certo<br />

que é necessário cm quen» escreve Historia<br />

Juízo , Eloquência , Probi<strong>da</strong>de : Juizo para<br />

averiguar, escolher, e dispor os factus<br />

FJocjuencia para os explicar , c fazer sentir<br />

com to<strong>da</strong> a sua forca , peso , formosura<br />

Probi<strong>da</strong>de para não faltar á ver<strong>da</strong>de , e exprimir<br />

tu<strong>do</strong> de tí«l mo<strong>do</strong>, que instrua, «<br />

aproveite aos costumes , sem declamar. Tu<strong>do</strong><br />

isto parece


Tá. L:^::% de Zgvs\,<br />

cipaclamcnte a conhecer os fjuc tem destina<strong>do</strong><br />

para obivr cousas grandes: desta natvreza<br />

é o casosuccediclo ao Art-ebispo, sen<strong>do</strong><br />

aiiítid nieniim , com o pobre , que veio<br />

xDedir esmola a sua mãi, que se achava no<br />

síllo <strong>da</strong> Torriígem : e aqueíla inclinação aos<br />

Religiosos


%x> <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Padki<br />

E qiierlirei eu <strong>do</strong>s outros furtos ãe maiot<br />

"uUo , e a que esses severos criíiros só que-<br />

Teni admlttir? (>)ino os escolhe sa!)ian5enle<br />

•o Paílre Fr. Luiz de Sou^a , ecoino os dispõe<br />

? Quan<strong>do</strong> re})rest'nia o Arcebispo votan<strong>do</strong><br />

no SngraíJu (Concilio de Trento: nos<br />

Cousistorius de Pio IV, advogan<strong>do</strong> pela digniilade<br />

Fpiseopal j nas Cortes de Fiiippe<br />

II, consu) van<strong>do</strong> io<strong>da</strong> a honra <strong>da</strong> stia Priínalia<br />

, bem se vê em to<strong>da</strong>s estas f»c(asl'jes o<br />

Arcebispo, grande, generoso, nobre; mas<br />

Santo. £ tanto nestes, como nos casos preceílenies<br />

parece que bem mostra o Historia<strong>do</strong>r<br />

o seu JUÍZO.<br />

Alguns succcssos ha , nos quaes parece<br />

que <strong>da</strong> parte <strong>do</strong> Arce}»ispo hou^e ali^um excesso<br />

no proceder: tal c, acaso, o mo<strong>do</strong>,<br />

porque se houve na alça<strong>da</strong> de D. Pedro <strong>da</strong><br />

Cunha , escreven<strong>do</strong> a F.lllei ; o <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r<br />

de Chaves ; o <strong>da</strong> i evolução <strong>do</strong> povo ile<br />

Braga na uiorte «Io Cardeal Rei. Estes suc-<br />

cessos era bem Jelicaíh) rcíenl-os sem offender<br />

ou a memoria <strong>do</strong> Santo Arcel)i«;po ,<br />

ou a autori<strong>da</strong>de tio Principe. Mas o Padre<br />

Fr. Luiz dtí Sousa, a n»eU ver, procedeo<br />

com rara discrição , e acerto, lleterc o que<br />

na vci-<strong>da</strong>de se passou ; mas ou deixa a ca<strong>da</strong><br />

um , (|ue lê, íazer juizo xsobii- o suctcsso , ou<br />

«e deixa entender sómeule mosirau<strong>do</strong> que o


Fr. Luiz ce Sodsa. ai<br />

*èlo forte , ain<strong>da</strong> que nasci<strong>do</strong> de boa intenção<br />

, foi quem iiioveo o grande Prela<strong>do</strong> ,<br />

e ijae t.ies aoçóes são ílaqnelias, qne se de-<br />

Tem adniirai', sem qiiesirvão de exemplo<br />

para a imitação. E quein assim procede na<br />

escolha <strong>do</strong>s íacLos , no mo<strong>do</strong> de os conceber,<br />

e de os exprimir, creio que dá boa prova <strong>do</strong><br />

seu juizo. Deixo á parte íallar no bem arrima<strong>do</strong>,<br />

e bem assenta<strong>do</strong> de ca<strong>da</strong> um, qi!e é<br />

com lai arle, que, obscrvatla l)em atlcntainente<br />

to<strong>da</strong> a historia, se conheie que nenhuma<br />

<strong>da</strong>s partes desmeate <strong>do</strong> seu to<strong>do</strong> em<br />

cousa alguma. E certo que não pode acharse<br />

<strong>ordem</strong> mais bem regala<strong>da</strong>. Chega -se ao<br />

íim , e se d'alii , como de um hjg;ir alio , se<br />

lancão os olhos por lo<strong>do</strong>s os aí^rad-iveis 5Ítios<br />

, por oncie se tem passa<strong>do</strong> , torna<strong>do</strong>s<br />

agora a^ver enchem de nova alegria, e deixáo<br />

conhecer to<strong>da</strong> a sua proporção , c formosura,<br />

Passemos á Eloquciicia, Se é eloquente<br />

aquelle , que não só concebe as cousas clara,<br />

e soli<strong>da</strong>mente, mas com cerlo mo<strong>do</strong> grave,<br />

e poli<strong>do</strong>; e depois as exprime com uma<br />

digni<strong>da</strong>de sãa , nobre, viva , e natural ; certamente<br />

foi eloquente o Padre Fr. Luiz d«<br />

Sousa. Mas isto ain<strong>da</strong> se prova melhor peh)s<br />

ef leitos, que o coração experimenta no ([ue<br />

ouve ^ ou 10. Ninguém (se lè altentamente o


í2 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> no Padrk<br />

Padre Fr. Luiz de Sousa) deixa de sentir que<br />

que o coração íalh,<br />

aíjuella c a linr^uagcm ,<br />

e que o seu próprio coração desejara ter íjlla<strong>do</strong><br />

assim , ou que lhe níiu íalLbieui


Fr. Luiz de Sousi. a5<br />

9!qm se vêm juntamente pratica<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as<br />

lei': <strong>da</strong> Jlistona que o estilo é claro<br />

com bre^'í<strong>da</strong>de , discreto sem ajfectacão , co»<br />

pioso nem re<strong>da</strong>njlancia , e tão corrente , fácil,<br />

e notável, que enriquecen<strong>do</strong> a memoria , 9<br />

affeicoan<strong>do</strong> a vontade , não cansa o enicn'<br />

dimento. . . .<br />

Qne , ain<strong>da</strong> quefalião aqnclles casos , e<br />

nomes estron<strong>do</strong>so^; , que por si mes/nos Icvcintão<br />

a p


%4 VlDk DO PaDRK<br />

idiomas . e es suas largas peregrinações em<br />

ambos os mun<strong>do</strong>s o não poderão apartar <strong>da</strong>s<br />

fontes naturaes <strong>da</strong> lingua materna ; como<br />

acontecs aos rios ^ que vem de louge ^ que<br />

sempre tomão a cor, e sabor <strong>da</strong>i terras , por<br />

cndj pass'Jo,<br />

A propneiade y com que fuV.a em to<strong>da</strong>s<br />

ms matérias , c como de quem as aprende o na<br />

eschola <strong>do</strong>s olhos. Nas <strong>do</strong> mar , e navega*<br />

eão falhi como quem o passou muitas vezes :<br />

nas <strong>da</strong> g".erra como quem exercitou as armas:<br />

nas <strong>da</strong>s Cvries , e Paço cnnio Coríezão , ê<br />

desengana<strong>do</strong> : e nas <strong>da</strong> perfeição^ e virtudes<br />

rdligiosas , ci-?ic> Religioso perfeito. Afé aqui<br />

aquelle sal)lo, e cloqucnle lunnem. E com<br />

isto iiíli^inios ter abona<strong>do</strong> fjastantemcnle a<br />

eloquência <strong>do</strong> Padre Fr. Luiz dt. Sousa,<br />

Quanto á Prohididc paroiia escusa<strong>do</strong><br />

nioslrarniol-a ein o Padro Fr. Luiz de Sonsa ,<br />

dejíois de ter dito que elle foi eloquente<br />

(i) , e (jue pratico!i a vi<strong>da</strong> que deixamos<br />

escrita. ATíjs o certo é qiie qr.an<strong>do</strong> leuios os<br />

seus escíito"^, Io^ío alli veuios um IIisioi:Ja-<br />

<strong>do</strong>r prudente , hom , ver


Fr. Luiz de Sousa.. *5<br />

espirito , que oETangííllio imprime a quem o<br />

medita ; a -jnelle espirito manso, humilde,<br />

caritativo , mas ao mesmo pass(j nobre, generoso,<br />

granJe; o qual e^lá contati<strong>do</strong> á<br />

posteri<strong>da</strong>de, para seu bem, o qiie elie presenceou.<br />

fí <strong>da</strong>qui nasce no coração um gosto<br />

singular, que ao mesmo teri-po, que o<br />

rccred, o excita para se aperfeiçoar. E esta<br />

unia falta , que se acíia em alguns modernos<br />

, aliás sábios, e judiciosos, e lhe nao<br />

posso desculpar. Escrevem nobremente, mas<br />

respirão uma íiiosofia h uai ma , uuí ar profano<br />

, de sorte que , len<strong>do</strong>-os , mais me parece<br />

que tenho nas uínos um Gentio crea<strong>do</strong><br />

nas trevas <strong>da</strong> Infideli<strong>da</strong>de , <strong>do</strong> que um<br />

homem , que teve a felici<strong>da</strong>de incomparável<br />

de professar a Religião Tcr<strong>da</strong>deira.<br />

Temos satisfeito ao que pertence á His-<br />

toria que o Padre Fr. Luiz de Si>usa escre-<br />

,<br />

veo como sua própria. A f^i<strong>da</strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

<strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong> é um perfeito exempKír <strong>da</strong><br />

traduf cão , quanto a su!)stancia , e ver<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> matéria; nias no estilo , e fra/e excede<br />

grandemente o orij^nnal.<br />

As Meditações <strong>da</strong>s Dores <strong>da</strong> Senhora são<br />

obra perfoitissima. Não se pôde escrever<br />

na<strong>da</strong> mais cheio<br />

para cmn a ^Ifii<br />

tle ternura , e de pie<strong>da</strong>de<br />

tle Deos. O < oração, que<br />

ama íielmeole, descobre alliosaffeclos niaii


a6 "<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Padrb<br />

puros , e mais vivos ; até a lingmgem é simples<br />

, e cievotissima ; parece <strong>do</strong> Cep.<br />

Quanto ás composiç''es La^:inas. Bem se<br />

vê que o Fadre Fr. Luiz de Sousa soube a<br />

lingiia Latina com pcríeição !)astarile. AcjueU<br />

les Ciiticoi, que uulcaíuente po iem julgar<br />

Pope , acliaráõ<br />

que Iheuolar; mas os que tem bom gosto<br />

que o ha nas composii óes La-<br />

conhecerão ,<br />

tinas <strong>do</strong> Padre Fr. Luiz, aindu quanto ao<br />

que é rigorosan.ente lalini<strong>da</strong>d aiil iuruiia<br />

íuclit , itut UuiumUiI [>ui'uiu ca>it u


Fb. Luiz de ScrsA. 3^7<br />

paixão pelo Arcobispo ; qr,e na Cbronica a<br />

n?io mostra menos pel.l sua Ordem : que ás<br />

%'ezes se cletém cni faz.cr descri pç^es com<br />

desejo de parecer elegante, e mais como<br />

Poela, <strong>do</strong> que como Historia<strong>do</strong>r: qnc mista*<br />

rn autori<strong>da</strong>Jes Latinas de permeio qufi<br />

,<br />

são alheias <strong>do</strong> bom estilo. Que no corpo <strong>da</strong><br />

obra ajunta rloíMimentos , que proTÚo os fa-<br />

o que só era próprio de uma Disserta-<br />

ctos ;<br />

ção, on de umas I^I-jmorias; pois taiís <strong>do</strong>cumenlos,<br />

como diz um Historia<strong>do</strong>r !)em celebre<br />

(i) são como os anílames nos ediíicios ,<br />

e os esicios , e formas nas alio!)e íjs , que se<br />

tirão feita a obra , fican<strong>do</strong> bera claro, que<br />

«obre ellas é qne se fun<strong>do</strong>u. Além disto que<br />

parece mais crédulo, <strong>do</strong> que a judiciosa Critica<br />

opermiite; nem se regu!o?i sempre pelo<br />

preceito <strong>do</strong> Apostolo: Orjmia prohnte : r[\\e<br />

referio visões , e appariçóes prova<strong>da</strong>s talvei<br />

com o dito de pessoas , cuja imaginação viva<br />

lhe faz acieditar o í[ue apenas se lhe representou<br />

; que deu por uiilagres, ou obras sobre<br />

-naturaes coi!sas que bem cabião dentro<br />

,<br />

nas forcas ordinárias <strong>da</strong> natureza: que se<br />

tlislrae para esc/ever cousas, em que so pa-<br />

rece quiz ostentar que sabia fallar nvllas:<br />

(r) Fleur. Diicurs. j:iimKÍr« íob;* aUistori;» tr-


a8<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Padrí<br />

qneo seu estilo ás vezes é tliffuso, e rctlur»<br />

<strong>da</strong>nte, e tem tlemaziaxia simplici<strong>da</strong>de, e talvez<br />

falia de elegar.cia : e com çstes defeitos<br />

como se pótie aju^ítar o que dissemos <strong>do</strong> seu<br />

juizo, <strong>da</strong> sua eloquência , e <strong>da</strong> su2í probi<strong>da</strong>de^<br />

Coiiíesso que estes defeitos são graves,<br />

e que por si<br />

um Escritor;<br />

só desiustraiiáo<br />

mas eu hei de<br />

grandemeule<br />

mostrar que<br />

muitos delles não os ha no Padre Fr. Luiz de<br />

Sousa; e esses, que ha, não diminuem a<br />

cicelleucia <strong>do</strong>s <strong>do</strong>tes , que cu apontei , c Hz<br />

ver iieiltí, e que sempre íica salva a sua autori<strong>da</strong>de,<br />

e merecimento.<br />

Quanto ao dizer-se que parece ter paixão<br />

pelo Santo Arcebispo: ttl-a-hin o Padre Fr.<br />

Luiz de Sousa , se cu lhe occuUnsse os defeilcs,<br />

ou llie ampliucasse as virtudes. Quom<br />

lhe confessa geuio ardente, e forte , e severo<br />

quem mostra que elle se enganou algu-<br />

,<br />

mas vezes , não merece nome de apaixona<strong>do</strong>.<br />

Em aLono <strong>da</strong> sua Ordem é necessário que<br />

refira o que acha prova<strong>do</strong>; e tau)l)em é justo<br />

que assim o faça ; e se alguma vez parece<br />

que lhe níio devia ter si<strong>do</strong> bastante a prova,<br />

esta culpa ab honestíssima sone causa pro*<br />

com'» disse um sábio Critico a respeito<br />

fecta ,<br />

de Tito Livio. A origem <strong>da</strong> Inquisição , que<br />

atlribue á sua ()rdem ; S. (loncalo d'Ama«<br />

rantc, que conu cnire o> Santos delia ^ Fr.


Fr, Luiz de Sousi, 15<br />

Soeiro Mendes que dá por Porluguf z , ,<br />

toiísas, que prora com <strong>do</strong>cumentos.<br />

sáa<br />

Assim é c[iie se detém em descrever lugares<br />

como Poeta por exemplo , , o Convento<br />

de Bemfica ; mas alem de que nesta parle é<br />

boa satisíaçãa o exemplar que imitou, e o<br />

aífecto,que lhe merecia uma Casa, onde tinha<br />

recebi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ceo graças especiaes ; é<br />

certo que isto não é impróprio na Historia ,<br />

a qual esi . , , , próxima poetis , et quo<strong>da</strong>ni-^<br />

mo<strong>do</strong> carmen solutum , como diz um graú<strong>da</strong><br />

Mestre (i). As autori<strong>da</strong>des Latinas são muito<br />

raras, e muito brevts , e nesta parte condescendeo<br />

com o seu século : e assim ao me-<br />

nos, nno desmerece perdão. Os <strong>do</strong>cumentos],<br />

podia escusaUos,<br />

que metteo na Ghronica ,<br />

assim hc ; mas ou julgou que a natureza<br />

ou que alli S8<br />

desta escritura lh'o pcruiittia ,<br />

conservarião mais seguros para to<strong>do</strong> o tempo.<br />

Quanto a dizer-se, que parece ser um<br />

tanto crédulo , e menos critico em algiins<br />

factos: ol^adieFr. Luiz de Sonsa era homem<br />

de pie<strong>da</strong>de, c prudência s#)gular*. creio quo<br />

\en<strong>do</strong> os seus <strong>do</strong>cumentos, ;io tempo de esciever<br />

dizia comsi«fo com melhor razão , <strong>do</strong><br />

que Livio (:>.) : Mí/ii vetustas rcs scribcníi^<br />

(i) Quiiit. I. 10, Cij). i.<br />

(a> Liv. 43 Citp. li.


2o ViDi. 3o Palrr<br />

f}escio quo pacto , antiquiis fit nnimus ; ef.<br />

quae<strong>da</strong>m Reli^io est ^ cjiinc prudcntissimi tnri..,<br />

snscipien<strong>da</strong> censiierunt , en pro inclii»riis<br />

hahcre. quac in incos annaies r.^fcram. Jti^to<br />

mesmo podiíiinos rer.pondcr acerca fl:)5 visões,<br />

c <strong>do</strong>s milaí^res; a siu\ pie(l:i(le certamente UA<br />

causa de se inciirar mais a referil-os.<br />

Se parece que se desvia <strong>do</strong> seu caminlio<br />

para descrever ou o sitio de i\Iazn2[:u), ou as<br />

festas <strong>da</strong> Trasla<strong>da</strong>ção <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> Santo Arcebispo:<br />

no primeiro caso o amor <strong>da</strong> palri^<br />

o jUSliOca : no secun<strong>do</strong> o afjradeoiniento ás<br />

nnezas que a Villa de Viana tinlia obra<strong>do</strong><br />

,<br />

em obsequio <strong>do</strong> mesmo Santo Arcebispo, e<br />

<strong>da</strong> sua Ordem. Se o estilo parece ali^uma vcx<br />

ílifiuso , não é com excesso ; e a dureza singular,<br />

e a graça maravillicsa, com que sempre<br />

propõe o que tliz , fax que possamo»<br />

dizer , (]\\q a brevi<strong>da</strong>de tao estimável no<br />

Historia<strong>do</strong>r d'n>crsis viríiitlbus conscciífus esf,<br />

como Quintiliano diz de Tito Livio a respeito<br />

de Salusllo. A simplici<strong>da</strong>de, que Fr.<br />

Luiz tem, sempre é nobre, ain<strong>da</strong> em oscaso"^,<br />

euí que parece seria difficultoso que assim<br />

fosse. O successo aconfet i<strong>do</strong> á comitiva ôo<br />

Arcebispo nas alturas de 13arr4>sn , sen<strong>do</strong><br />

cousa emsibumilde, couseiva eui a r»arrac5o<br />

to<strong>do</strong> o ílecoro, que se podia desejar, l (K'Stc<br />

mo<strong>do</strong> coucluinios a respeito <strong>do</strong> Padre Vr,


Fk. Llí2 dl Sousa. 5i<br />

líuiz de Sousa , como um tios mais sábios ,<br />

c eruditos proíessores <strong>da</strong> Eloquência , que a<br />

Europa vio neste século, conclue a respeito<br />

de Tito Li vio (i) : íla praestitit , . , iit si mi'<br />

nas , ccteris omnibiis dicendus est praeripuisst<br />

palmam , ceríe nidli secundtis haberi possit :<br />

tíc si Historiarurn scriptori atile dulci miscere<br />

safficerel jjruslra cjaidquamperjectias inveni»<br />

retur . . . paulluluni claudicavit , et huinaiii<br />

aíiquid passas est ; sed iía , vt calpam eausa<br />

culpae elevare plcramquô videatur.<br />

Tenho satiífeito o a que me obriguei no<br />

Prologo que fiz á <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Santo Arcebispo:<br />

e á yista <strong>do</strong> que ate aqui tenho escrito parece,<br />

que não comecei desacerta<strong>da</strong>mente a<br />

resusciíar os nossos primeiros Escritores pelo<br />

Padre Fr. Luiz de Sous:» para delle passar<br />

,<br />

a outros, que nos resiáo, e são em maior<br />

numero <strong>do</strong> ({ue comniuniuienre se jul^a. Espero<br />

conseguir o meu projecto pela protecção<br />

<strong>do</strong> nosso Augusto Soberano, e pessoas,<br />

que amão o bem publico <strong>do</strong>s seus naluraes.<br />

Pois devo confessar o que experimento : ain<strong>da</strong><br />

ha aqucUes briosos aíilrnos antigos, bons<br />

compatriotas, que estiuíãoa honra , e as le-<br />

iloas , e desejão ou imitar , ou igualar os jquo<br />

mais patrocinarão os estudiosos. Quanto a<br />

ii • . .<br />

(O lu PraíÍAtt avl iiv, llui^r. i)rop, fio.


3^ TiDÂ DO Padm<br />

ilizer-se, quesó enrre nósé próprio o critlcif<br />

mulignamenLe , é gian<strong>do</strong> erro. Não succetle<br />

entre nós nesta parle n


Fr. Ltiz DE Sorsi. 33<br />

Mapoel de Faria e Sousa Tom. i. <strong>do</strong>s<br />

Comnícntos <strong>da</strong>s Rim. de Cani. Juizo <strong>da</strong>s<br />

Kini.<br />

Fué iin Ccwalhro de miicho inferno , y<br />

tan insíTuiclo cn las letras humanas, qu&<br />

hien pu<strong>do</strong> jusgar de ingenios siirefioi inc/itc<br />

orna<strong>do</strong>s delias . . . Escritor nó menos cuer<strong>do</strong>,<br />

que elegante^<br />

Fr. Agostinho de Sousa na sua Censura<br />

du<strong>da</strong> em it^ de Sete;nbro de 1622.<br />

Estilo grave ^ e elegante, sentcncloso<br />

com brevi<strong>da</strong>de , e clareza juntamente , que cm<br />

poucos se acha. Linguagem natural , canente,<br />

e coriezãa , com termos tâo próprios , signiji'<br />

cativos, e e/Jicazes, e longo de ajfeites,' e ar^<br />

iijlcios viciosos, que sem encarecimenío podc'<br />

71ÍOS affrmar , que <strong>do</strong>s livros , que até o pre^<br />

sente são escritos em Poitugiiez, nenhum se<br />

achará de mais policia , e peijcicão.<br />

j\lanoel Severim de Faria : Disc. var,<br />

Disr. 2. <strong>da</strong> ling. Porlug. Lsta paite . . . (falia<br />

<strong>da</strong> Histííria} tâo estima<strong>da</strong> , <strong>da</strong> eloquência^<br />

SC vèperfeitamente exercita<strong>da</strong> em varias histo-<br />

rins , compostas cm nosso unlgar, . . Biíste-nos<br />

pnr ora três, que sÚo João de Barros, cos<br />

J^adrcs Jouo de Lucena, e Fr. Luiz de Sousa;<br />

<strong>do</strong>s quacs João de Barros c ti<strong>do</strong> por narâo<br />

cfonsummadn naquelle género de escritura ,<br />

O mesmo podemos dizer <strong>do</strong> Padrtí João d<br />

2.


54 VinA. DO Padue Fr. Luiz de Sousa.<br />

Lucena , , , E <strong>da</strong>s obras <strong>do</strong> Padre Fr. Luiz<br />

de Sonsa se não podem esperar menores lou'<br />

que o tempo qualifica<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s engenhes<br />

cores ,<br />

lhe concederá brevemente nas outras provin-^<br />

cias j como já lhos tem começa<strong>do</strong> a <strong>da</strong>r neste<br />

Heino."<br />

O erudito A})bacle Diogo Barbosa Macbarlo<br />

na Bibliotheca Lusitana pag. i45.<br />

Tom. 3.<br />

To<strong>da</strong> a pureza <strong>do</strong> idioma Portuguez,<br />

to<strong>da</strong> a elegância <strong>do</strong> estilo Romano , e io<strong>da</strong> a<br />

pompa <strong>do</strong> artificio Bhetorico se tem religiosamente<br />

observa<strong>do</strong> nesta historia , em cujo theti"<br />

tro apparecem diversas figuras mais orna<strong>da</strong>s y<br />

quan<strong>do</strong> mais despi<strong>da</strong>s de pomposos cpithetos ,<br />

explican<strong>do</strong> altos conceitos com termos humil-*<br />

des*


PROLOGO AO LEITOP,.<br />

55<br />

eira<strong>do</strong> parte <strong>da</strong> Caria dedicatória, que Lourenço<br />

5inrio fez no principio <strong>da</strong>s obras deste<br />

Santo Varão, traduzi<strong>da</strong>s <strong>do</strong> menino Surio de<br />

Allemão em Latim ; parte <strong>do</strong> Prolof;o, que o<br />

mesmo Autor fez ante o principio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ,<br />

que aqui vui iresla<strong>da</strong>ia cm vulgar , e de ou"<br />

tros Autores,<br />

A <strong>Vi<strong>da</strong></strong> {diz Surio) <strong>do</strong> <strong>Beato</strong> <strong>Henrique</strong> Siiso,<br />

ain<strong>da</strong> que diffusa ,<br />

nao contém lo<strong>do</strong>s os seus<br />

feitos dignos de memoria , n'as só uns<br />

poucos <strong>do</strong>s muitos, que obrou: aqnelles, que<br />

lhe parc^cco n)nnií"estar del)aixo de nome<br />

alheio. Porém no livro, que nos veio á mão<br />

escrito na lingua vulgar Tudesca (de que<br />

traduzimos alguns trabalhos , e eslutíosseus)<br />

se contãoalguu:as cousas ain<strong>da</strong> que senj nome<br />

dj Autor , as quaes não se acháo nesta sua<br />

vi<strong>da</strong> mais larga; mas parcceo bem pr(q)oI-as<br />

aqui, por evitar prolixi<strong>da</strong>de , seasaítrescenlassemos<br />

á mesma vi<strong>da</strong>. No baptismo lhe<br />

foi poiT o nome de <strong>Henrique</strong>, porém tanto<br />

\ .0 ao admirável gráo de 5anli<strong>da</strong>de , a


ZS pROLoe#<br />

que chegou , Deos lhe mu<strong>do</strong>u o Tjome fie<br />

Henriíjue em Aman<strong>do</strong> , o qual v.]\e em qii.tuio<br />

TÍveo nfio quiz nianit


Âo Leitoh. Zy<br />

e fazer attentos os ouvintes : Ouvi , dizia , vos<br />

rogo que dá bra<strong>do</strong> <strong>Suso</strong> , í]ue conforme o<br />

seu nome soa , o njesrr.o que levantar com<br />

seu dizer o auditório para o alto Ceo (|jorque<br />

<strong>Suso</strong> em Tudesco é o mesmo que sufsnni<br />

em Latim , que quer dizer no Portuguez<br />

para acima). Destas, e outras similhantes<br />

formas de dizer usava na pregação njui vivas,<br />

as quaes se não podem bem declarar no Latim,<br />

e por conseguinte , nem no Portuguez.<br />

Os seus escritos leve muitos annos escondi<strong>do</strong>s-^com<br />

propósito


38 Prologo<br />

louvor <strong>do</strong> Senhor, antes os podcilão mostrar<br />

primeiro aos faltos de diicurso , e razão natural,<br />

e mal acustuma<strong>do</strong>s , os qutes por sua<br />

malevolencia os sipciltarião como muitas<br />

Tezes acontece. Toman<strong>do</strong> pois disto confiança,<br />

tirou de seus escritos as proposições<br />

nialsprincipaes , e maisdifficultosas, edeu-a*<br />

a rever a um Doutor em Theolo^^ia grandemente<br />

alumia<strong>do</strong> no espirito <strong>do</strong> Senhor, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong><br />

de grandes partes , e <strong>do</strong>tes d'.ilma, que<br />

então era Provincial <strong>do</strong>s Frades Prega<strong>do</strong>res<br />

em Allemanha, por nome Bartholomeu, o<br />

qnal as lou com muita attencão , e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>,<br />

e deu sol)re ell.Ts seu parecer , approvan<strong>do</strong>-as<br />

por t«<strong>da</strong>s as vias , e moilos que se requerem,<br />

declaran<strong>do</strong> serem pontualnjente conformes ás<br />

Sagra<strong>da</strong>s Leiras. K como apoz isto quizesse<br />

cntres^ar ao mesmo Doutor Bartholomeu to<strong>da</strong>s<br />

as outras snas obras de menos ditficul<strong>da</strong>de<br />

para que as examinasse , fallecen<strong>do</strong><br />

o Doutor neste meio tempo , náo pôde irr<br />

efíeito o sen bom desejo , de que se começou<br />

a entristecer , e magoar muito, não saben<strong>do</strong><br />

que fizesse: mas oran<strong>do</strong> por isso mui de veras<br />

a N^osso Senhor, para que fosse servi<strong>do</strong> nianifeslar-lhe<br />

o que mais convinha, appareceo-lhe<br />

o dito Theoloí^o cerca<strong>do</strong> de grande<br />

luz, e ilisse-lhc, que a Ocos era mui agradável<br />

o divui^arclleseus eãcritos, ecoinmuuical-o»


AO Leitor. 89<br />

t to<strong>do</strong>s os pios; o que fez muito de coração.<br />

Dos quiies escritos (diz o mesmo Surio no<br />

Prologo cita<strong>do</strong> pouco depois <strong>do</strong> principio)<br />

a estimação , que se deve fazer , poderá só<br />

conhecer , quem os ler não de passagem, ©<br />

cumprimento , nem só por curiosi<strong>da</strong>de de<br />

achar cousas no\as, mas com observação<br />

religiosa , e pia attenção , porque creio niio<br />

haverá corarão tão de pedra , que pon<strong>do</strong> Loa<br />

diligencia, e cui<strong>da</strong><strong>do</strong> nesta lição, não haja<br />

de sentir em si nova luz <strong>da</strong> divina gi^aça,<br />

c tal mu<strong>da</strong>nça , qual nunca experimentou,<br />

porque de propósito em to<strong>do</strong>s os seus escritos<br />

o que mais procurou he <strong>da</strong>r luz aos cet,( s<br />

corações , trazen<strong>do</strong>-os ao devi<strong>do</strong> conhecimento<br />

de seu Crca<strong>do</strong>r , desprezo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>;<br />

« amor de De os.


4o Prologo<br />

O mesmo Surto no prologo antes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dê<br />

Santo <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>,<br />

yj Sanfo <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong> foi rara o d«<br />

grande Santi<strong>da</strong>de, esclareci<strong>do</strong> com muitos<br />

milagres, quasi <strong>da</strong> primeira i<strong>da</strong>de fez uma<br />

vi<strong>da</strong> a poucos inutavui. Tove uma íiiha espi-<br />

ritual illustre em sangue, porém mais illustre<br />

na virtude ; a qual escondi<strong>da</strong>mente foi tiran»<br />

<strong>do</strong> delle muitas cousas secretas de sua vi<strong>da</strong> ,<br />

que poz em memoria por escrito : mas sen<strong>do</strong><br />

senti<strong>da</strong> <strong>do</strong> servo de Deos, man<strong>do</strong>u-llie por<br />

obediência , que lhe entregasse os paptis, e<br />

logo queimou quantos recebera <strong>da</strong>quelia vez:<br />

porém queren<strong>do</strong> queimar a outra parle, que<br />

depois lhe deu a Religiosa obediente , foi<br />

prohibi<strong>do</strong> por divina revelarão: tlonde os<br />

que escaparão <strong>do</strong> fogo, tirou a luz om nome<br />

alheio, sem fazer menrão alguma de si próprio,<br />

mas noinean<strong>do</strong>-se em to<strong>do</strong> o lugar só<br />

por Ministro <strong>da</strong> Sapiência, por fugir <strong>da</strong> vangloria,<br />

i'^ pois certo que nesta suavi<strong>da</strong>de se<br />

ochão muitas cousas, as quaes sem dúvi<strong>da</strong><br />

são as mais efucazes que pôde iiaver para iuilammar<br />

os corações ain<strong>da</strong> mais frios, e enrt-


AO LiiTonJ 4*<br />

gela<strong>do</strong>s no amor de Dens. Alguns que vi-<br />

vem nesta vi<strong>da</strong> como brutos , <strong>da</strong><strong>do</strong>s ás cousas<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> , soem enfastiar-se destas cousas:<br />

porém não df-ve de ser esse m<strong>do</strong> exemplo<br />

parte para que os que desejão contentar a<br />

Deos, e não ao mun<strong>do</strong> , deixem de abraçar<br />

esta lição , porque o Senhor Deos ordenou<br />

que se nos escrevessem as vi<strong>da</strong>s , e feitos <strong>do</strong>s<br />

Santos, a fim de queaquelles, a que n5o movino<br />

as palavras , abalassem os exemplos <strong>da</strong>s<br />

obias. Por tanto, ú pio Leitor, eu te peço<br />

afíecíuosaniente, que sejas contínuo , e diligente<br />

em resolveresta vi<strong>da</strong>, porque o não faiassem<br />

grande proveito leu ; até aqui Surio.<br />

iNasceo o <strong>Beato</strong> <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong> de pais<br />

nobres na Suevia, provincia de Allemanha<br />

alta , ao í{uc se cre, na Ci<strong>da</strong>de de Constância<br />

a 2í) de Março , dia assinala<strong>do</strong> <strong>do</strong>Patriarcha<br />

i>. i3ef "o, mas não se sabe o anno. Seu pai<br />

se íbamava tio a[)pelli<strong>do</strong> de M(;ntense ,<br />

nobre<br />

e conheci<strong>do</strong>, e sua niãi <strong>do</strong> de <strong>Suso</strong> , ou Sizo ,<br />

como í)uíros escrevem. Não temos os nomes<br />

próprios jielo muito que o <strong>Beato</strong> Henricjue<br />

€ncoi)ri


^2<br />

Prologo<br />

na (Jfial era tão contínua e favoreci<strong>da</strong>, qn9<br />

em to<strong>do</strong>s os 3o annos antes de sna morte ,<br />

não ouvio Missa em que não tivesse particular<br />

, e intensa compaixão <strong>da</strong>s <strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />

Senhor JESU Crucifica<strong>do</strong>.<br />

Em Constância tomou o <strong>Beato</strong> <strong>Henrique</strong><br />

o habito <strong>do</strong>s Prega<strong>do</strong>res , sen<strong>do</strong> de pouca<br />

i<strong>da</strong>dej porque como consta <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> , cap,<br />

XX. , aos i8 annos foi alumia<strong>do</strong> com particular<br />

^raca <strong>do</strong> Senhor a melhorar a vi<strong>da</strong> ,<br />

haven<strong>do</strong> já passa<strong>do</strong> alguns tempos na Ordem<br />

com íloxid^o. Depois de sua conversão esteve<br />

obran<strong>do</strong> só comsigo primeiro a sua vi<strong>da</strong> em<br />

silencio 8 annos contínuos, sem se conimu-<br />

nicar aos [)roximos, no íini <strong>do</strong>s qu.ies lhe íoi<br />

man<strong>da</strong><strong>do</strong> por Deos que saísse a pregar. Dis-<br />

corren<strong>do</strong> então por to<strong>da</strong> Allemanha alta, e<br />

mas com<br />

baixa fez grande fructo nas almas ,<br />

esta differcnça em seu tratamento, i>e <strong>do</strong>s<br />

i8 annos de sua i<strong>da</strong>de, que foi o pritneiro<br />

de sua conversão , até os 4'» "^o aílouxou<br />

nunca nas suas penitencias asperi>simns, em<br />

que se passarão 22 annos : porém depois por<br />

amoestação <strong>do</strong> Ceo remitii<strong>do</strong> o rigor <strong>da</strong>s<br />

extraordinárias penitencias, mas nuncii o <strong>da</strong><br />

regular observância, continuou muitos annos<br />

no aproveitamento <strong>da</strong>s alnias, com raro<br />

exemplo de paciência nos trabalhos , e perigos<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> , e luíura em fjue Nosso Seubor


AO Leitor. 4^<br />

o exercitou, não menos extraordinariamente<br />

(lo que ellese tratava na penitencia corporal.<br />

Destes exercicios, que forfio muitos, ain<strong>da</strong><br />

que não se escrevem to<strong>do</strong>s , como se vê <strong>do</strong> Capitulo<br />

XX. de sua vi<strong>da</strong>, secolllge,que a sua<br />

i<strong>da</strong>de foi larga : posto que se não saiba o periotio<br />

certo delia, por nos faltara memoria <strong>do</strong><br />

anuo em que nasceo, com tu<strong>do</strong> sabemos que<br />

não passou de 2 5 de Janeiro <strong>da</strong> era <strong>do</strong> Senhor<br />

de mil e trezentos e sessenta e cinco, em que<br />

deixou esta vi<strong>da</strong> presente pela eterna no<br />

Convento de v lona, onde vi veo muitos annos.<br />

As obras, que cumpoz, forão muitas , e to<strong>da</strong>s<br />

deediíicaçuo , massó temos as seguintes:<br />

O Dialogo <strong>da</strong> Sapiência , era que falia a Sapiência<br />

com o Ministro. Quatro Sermões ,<br />

<strong>do</strong>s quaes vai aqui traduzi<strong>do</strong> o primeiro para<br />

remédio , e consolação <strong>do</strong>s escrupulosos.<br />

Doze Epistolas , <strong>da</strong>s quaes se poz aqui tum-<br />

Lem a quinta , tiaduzi<strong>da</strong> em nosso vulgar,<br />

como em protestarão <strong>do</strong> anin)o, que fez sair<br />

á luz esta viíla <strong>do</strong> <strong>Beato</strong> <strong>Henrique</strong> nesta impressão.<br />

A's Epistolas se segue o Traía<strong>do</strong><br />

<strong>da</strong>s Lioclias , quejúan<strong>da</strong> trailuzi<strong>do</strong>em \uli;ar<br />

Cdsteihano. Logo a vi<strong>da</strong> que aqui se p'>e; tlepois<br />

Cem iMeditaçòes <strong>da</strong> Paixão, \i no fim<br />

uai Exircicío <strong>do</strong>s Ministros <strong>da</strong> Sapiência ,<br />

que aqui ajuntamos por ser de\oto ,<br />

Compoi mais o Ojjxio quotidiano<br />

e lard.<br />

<strong>da</strong> S.i-


44<br />

Prologo<br />

piencía, que trazem as Horas de Nossa Senhora,<br />

segun<strong>do</strong> o rito <strong>do</strong>s Frades Prégn<strong>do</strong>res, ea<br />

Missa própria <strong>da</strong> me^mn Sapiência, Outras<br />

obras suas, e sermões se aclifio entre os escritos<br />

de João Taulero, Varão taml)e!ri de<br />

granrJe vi<strong>da</strong>, e <strong>do</strong>utrina <strong>da</strong> mr^sina Ordem<br />

<strong>do</strong>s Prega<strong>do</strong>res, insigne prega<strong>do</strong>r em Allemanha,<br />

<strong>do</strong>nde foi natural, e falleceo com<br />

opinião de santi<strong>da</strong>de.<br />

O <strong>Beato</strong> <strong>Henrique</strong> não é Canonisa<strong>do</strong>psla<br />

mas intitula-se Peato de tem-<br />

Sé Apostólica ,<br />

po immemoriavel nas Horas de Nossa Senhora,<br />

segun<strong>do</strong> o rito <strong>do</strong>s írades Prega<strong>do</strong>res<br />

no principio <strong>do</strong> Officio <strong>da</strong> Sapiência , asquaes<br />

Horas sempre são, e forão especiahnente<br />

approva<strong>da</strong>s pela Sé Apostólica , e oulrosi é<br />

conta<strong>do</strong> entre os <strong>Beato</strong>s Con/Vssores <strong>da</strong> Ordem<br />

<strong>do</strong>s Prega<strong>do</strong>res, que traz o Calendário<br />

Dominicano no fim. Além disto nas Provincias<br />

de AUemanha alta , e baixa , que é Fraudes,<br />

se re/a <strong>do</strong> <strong>Beato</strong> <strong>Henrique</strong> pelos Frades<br />

Prega<strong>do</strong>res com o Oificio próprio; veneran<strong>do</strong><br />

sua ímacjem com altares levantaclos


45<br />

ElFxcl D. Sebastião. Ajunta-se a tu Jo isto ser<br />

« nosso Dcato <strong>Henrique</strong> celebra<strong>do</strong> por Santo<br />

também de tempo ininiemoraTel nos escritos<br />

<strong>do</strong>s Var5es pios, e <strong>do</strong>clos , como é Surio,<br />

que tanto apregoa sua santi<strong>da</strong>de, e mila^^^res<br />

«os prólogos acima , e em outros muitos lugares,escieveu<strong>do</strong><br />

noauno <strong>do</strong> Senhor de i555,<br />

quefazembojc perto de cem annos,suppon<strong>do</strong><br />

A mesma Hadiçáo deduzi<strong>da</strong> até seus tempos,<br />

não fazen<strong>do</strong> aqui menção de nossos Escritores<br />

, eCironicas, que de sua santi<strong>da</strong>de, e<br />

milagres t'at5o largamente , como é Fr. ]Miguel<br />

Pio ím Toscano , c Fr. Fernan<strong>do</strong> de<br />

Castilho, 80 Bispo de Monopoli, aquellena<br />

segun<strong>da</strong> patê, e este na sexta. Bzovio no<br />

Tom. i4 <strong>do</strong>;Annaes Fcclesiasticos , Anno <strong>do</strong><br />

Senhor 1 36:, onde diz que em vi<strong>da</strong> , e depois<br />

<strong>da</strong> morte ílcreceo em irrandes niilafTTes. O<br />

mesmo diz Fi António de Sena no seu í.hronicon<br />

ad an. 3^o, onde lhe dá tit. de <strong>Beato</strong>.<br />

]\íolnno nas aUlições ao AJartyrol. de l:si!ar<strong>do</strong><br />

die 25 Jai. Fr. Estevão de S. Tnio in<br />

Stcinmat. Orànis. pnc^. o.^m, Fr. I.(nn(ho<br />

Alberto de vifs iliusfr. Ord. Praei/. Uv. 5.<br />

Bti\A tm.de Scnj, Eccl. pag. 384.


íí<br />

EPISTOLA<br />

Em <strong>ordem</strong> V. <strong>da</strong>s Obras <strong>do</strong> Brato <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>,<br />

<strong>da</strong> Ordem <strong>do</strong>s Prèí^d<strong>do</strong>res , Iradnzidide Lnfhrt<br />

fm vulgar por um Religioso <strong>da</strong> iftirrK^ Urdem,<br />

jfxLegre-se altamente a multidão <strong>do</strong>s Santos<br />

Anjos liahita<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s mora<strong>da</strong>s celestiaes<br />

E testemunho <strong>do</strong> Senhor JESU lo Evangelho,<br />

que faz o Ceo grande festana conversão<br />

de um pecca<strong>do</strong>r á ver<strong>da</strong>deira penitencia.<br />

"Veio á noticia <strong>do</strong> Ministro <strong>da</strong> I'>riia Sapiên-<br />

cia , que havia uma mulher deião rara formosura<br />

, e graça nos olhos <strong>do</strong>s lomens que<br />

,<br />

muitos eráo íeií<strong>do</strong>s <strong>do</strong> seu lUior lascivo.<br />

Doía isto muito ao Ministro d Sapiência, e<br />

desejava cortar as raizes de tacanhos escân<strong>da</strong>los,<br />

e perdições de tantas amas, tr.izen<strong>do</strong><br />

aqiieUa perdi<strong>da</strong> a Deos, panyjue nella fosse<br />

o Senhor louva<strong>do</strong> , e o Anjc <strong>da</strong> sua guar<strong>da</strong><br />

delia tivesse particular ghyia , e to<strong>do</strong>s os<br />

mais Anjos com sua conveȋo gozo espiritual<br />

: e os homens tomascm exemplo de<br />

emen<strong>da</strong>. Pelo que com tods as forcas de seu


Epistola <strong>do</strong> <strong>Beato</strong> <strong>Henrique</strong> Scso. ^7<br />

«spiriíoseapplicou a rogar a Deos pela conversão<br />

taquella alma , e mui em particular<br />

iniportujava muitas \ezcs a Virgem Sacra-<br />

tíssima Ãaiíle Duos Estrella <strong>do</strong> mar resplandecente.<br />

oedinclp-lhe com grande aífecto, e<br />

contínua jrarão, que alcançasse de seu Unigénito<br />

Fiho luz áquelle coração tão entregue<br />

ás co.sas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, cego, e escureci<strong>do</strong><br />

com as esjcssas trevas <strong>do</strong>s muitos pecca<strong>do</strong>s,<br />

para queipartan<strong>do</strong>-o delles o tr»juxcssc a<br />

Deos, Ouvo a Senhora os rogos de sexi servo,<br />

e íoi <strong>da</strong><strong>da</strong>tal graça áqneila alma mun<strong>da</strong>na ,<br />

que suhitíaiente se converteo a Deos mui<br />

de veras, d» que recebeo o Ministro ' tamanha<br />

alegriaia suaalnia, que, como fura de<br />

si bêba<strong>do</strong> dtjubilos espirituaes, Iheescreveo<br />

esta caria. F>rém como <strong>da</strong>hl a muitos tempos<br />

íizesbo ei-tdba de seus papeis, ode mul-<br />

los separassi estes poucos, deixan<strong>do</strong> tO(I;js<br />

os mais por forrar ten)po, chegou a esta<br />

carta , e verulque não contiiiba xnais ou'i»a<br />

cousa senão ui jubilo, e excesso de alegria<br />

espiritual, teino que vin<strong>do</strong> á tino <strong>do</strong>s liomcjis<br />

de durosç sêccos corações, lhes p^arcceriasemsaburjidcneulium<br />

Irulo,' portanto<br />

a j)()Z de parte, -orem logo na njadiuga<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />

dia fegníntif, qn era a oitava <strong>do</strong>s Anjos, em<br />

visão cípirituaihe apparerêião niuifeos cs«<br />

piiitos Augeiico cm fóima de njar^.cchofi


4^ KiisTOLA f>o <strong>Beato</strong><br />

formosíssimos, os quaes o rcprchenclôrao <strong>do</strong><br />

haver posta de parte , e risc^iila aqudia carta<br />

, exhortan<strong>do</strong>-o a que <strong>do</strong> novo a escre-<br />

Tesse; o que tez, começan<strong>do</strong>-a comas pala»<br />

Tias <strong>do</strong> principio. Ale^^ra-se grancfen)k''iti* a<br />

multidão <strong>do</strong>s Anjos liahitn<strong>do</strong>res d:» nioradâS<br />

Celestlaes. etc. E sen<strong>do</strong>-nic cntãc commuiiioa<strong>do</strong>s<br />

raios de luz , e clarl<strong>da</strong>deespiritr.al<br />

pela respUndecenre Estrella <strong>do</strong> r]ar a Virgem<br />

Santissima Mãi de Deos , coi os quaes<br />

desapparecendc) to<strong>da</strong>s as névoas d meu oo-<br />

racão, le<strong>do</strong> e prestes saudei a cesma Senhora<br />

com to<strong>da</strong>s minhas forças , hgo na própria<br />

iiora para mim saborosissin)a lompi com<br />

a fortaleza em vozes tle grande ctfitentamen-<br />

to, que chegavão ao Ceo, dizn<strong>do</strong>: Sejais<br />

Estrella excellentissima <strong>do</strong> mar»au<strong>da</strong><strong>da</strong> com<br />

affectos de amor sem limite <strong>do</strong>s ue muilíi vos<br />

querem. Convi<strong>da</strong>va aos Santosinj(\s (jue me<br />

havláo appareci<strong>do</strong> , áquelles laneehos foriTKísissimos<br />

vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Ceo , p;*a qne conngo<br />

á competência com melhores t mais esforça<strong>da</strong>s<br />

vo^zes sau<strong>da</strong>ssem a Dulcisima, e Esclarecidissima<br />

Rainha <strong>do</strong>s Ceos por haver com<br />

rTandes, e formosos raios rhsua luz illuslra<strong>do</strong><br />

o coração <strong>da</strong>quella mu^er, depí)is que<br />

por ella ouvio meus rogo, e petições. O<br />

meu espirito exalta<strong>do</strong> comíanto gozo <strong>da</strong>va<br />

altos louvores áquella Co^'iúal Jerusalém.


t.HEKUiQUE Sdso. 49<br />

Bogíiva sera cessar áquellns dlninelas singulares<br />

, áquelles niatlnetes suavíssimos<br />

lios campos <strong>da</strong> ç:U)ria , qne me aju<strong>da</strong>ssem<br />

a canlar em voze*? altíssimos louvores<br />

ao Senhor em reconherimento de sna rrande<br />

magiiifice!>ci:i. Tornava logo a levantar o<br />

rosiro,c olhos so Geo, e treshtir<strong>da</strong>n<strong>do</strong> ororaçáo<br />

de contentamento dizia : Alegre-se íjrandemenie<br />

a multidão <strong>do</strong>s espíritos angeti


5o F.p:stola <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

trácias , eporlaes, <strong>da</strong>ntes tão devassos , já sao<br />

fecha<strong>do</strong>s, e seguros. Oc.impo alhea<strong>do</strong> <strong>do</strong>nies<br />

a sen possui<strong>do</strong>r lhe é restituí<strong>do</strong>. Pelo ^^jue,<br />

vós ó órgãos <strong>do</strong>s Ceos, ó dextros na rilhara,<br />


Fr. Hb:íriqtie <strong>Suso</strong>. õi<br />

fazeis estas grandes maravilhais nos nivilores,<br />

e mais desespera<strong>do</strong>s pecca<strong>do</strong>res ; fíuc ain<strong>da</strong><br />

que em to<strong>da</strong>s vossas obras, ó dulcíssimo , e<br />

to<strong>do</strong> pí)deroso Senhor, sejaes amável, e digno<br />

de infinito louvor , com tu<strong>do</strong> por muitos<br />

mais mo<strong>do</strong>s sois amável , e digno de louvor<br />

sem comparação maior nas misericórdias, que<br />

usaes com os miseráveis pecca<strong>do</strong>res; áquel-<br />

]es , que tão longe estão <strong>do</strong> que merecem,<br />

só por vossa bon<strong>da</strong>de, e misericoidia sois<br />

servi<strong>do</strong> de attraír a vós. Este, Senhor Santissimo,<br />

é na ver<strong>da</strong>de o timbre de vossas<br />

este c a formosura de vossa benigni-<br />

obras ,<br />

<strong>da</strong>de , este o enfeite de to<strong>do</strong>s voss()S feitos<br />

mais lilustrcs. Nesta obra , Senhor, o moíite<br />

de ferro de vossa exactíssima justiça se deilou<br />

romper e paiiir para <strong>da</strong>r lugar á misericorvUa<br />

, e bon<strong>da</strong>de. Vinde pois a mim to<strong>do</strong>.^<br />

os (jue tendes recebi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Senhor outro tal<br />

l)eneficio , e juntos to<strong>do</strong>s em um tratemos<br />

iiiui de veras o como poderemos engran


^2 Ei'ISrOL4 DO Bí\TO<br />

wesma5, e a outras occasiáo de rulra , •<br />

perdição, já hoje são pré;4a<strong>do</strong>vas <strong>da</strong> suavi<strong>da</strong>de<br />

de vosso amor, não saben<strong>do</strong> falíar de<br />

outra cousa. Caso he de grande admiração<br />

Vã ver<strong>da</strong>de, aquellas que hontem qiicl>ran<strong>do</strong><br />

de mimo ,


Fr. HknpvIque <strong>Suso</strong>. 53<br />

lureis Inros <strong>do</strong>s próprios pecca<strong>do</strong>s , já agora<br />

desembaraça<strong>da</strong>s, e prestes passan<strong>do</strong> além<br />

de tu<strong>do</strong> o que o mun<strong>do</strong> pôde dnr com uma<br />

firme confiança , e solia liber<strong>da</strong>de se levan*<br />

tão tanto sobre si , já mu<strong>da</strong><strong>da</strong>s , q!io oiisão<br />

e podem <strong>da</strong>r vozes, que chegão á pátria ce-<br />

lestial : em fim troca<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong>, não se espantão<br />

senão de como foi possível que algum<br />

dia estivcrão presas <strong>do</strong> amor <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e<br />

de como viverão algum tempo nas trevas <strong>da</strong><br />

obscura noite <strong>do</strong>s pecca<strong>do</strong>s. Ka ver<strong>da</strong>de,<br />

Senhor, aqui venho a ver por experiência<br />

ser certo o que se diz, que o corpo se acommo<strong>da</strong><br />

ao espirito, e um bom natural se<br />

applica ás cousas eternas, logo aliiseacccndc<br />

um grande inceridio de vosso amor. Esta ena<br />

Ter<strong>da</strong>de , Seidior , a mu<strong>da</strong>nça só de vossa nião<br />

poderosa. Estas são, Senhora , e Rainha <strong>do</strong>s<br />

Ceos , as obras de vossa pie<strong>da</strong>de sem limito.<br />

Mas comtigo fallo agora filha minha em<br />

Christo muito ama<strong>da</strong> , dá-me altenção ,<br />

e adverte tu , e eu , e to<strong>do</strong>s os que a nós são<br />

similhantes, como nos devemos liaver com o<br />

Senhor Omnipotente. Assi somos c>l)riga<strong>do</strong>s<br />

compor <strong>da</strong>qui em diante nossa vi<strong>da</strong> , que<br />

não haja quem nos possa nunca jamais fur»<br />

tar a Deos : <strong>da</strong> mesma sorte nos havemos de<br />

haver como uma escrava <strong>da</strong> cosinha, a qual<br />

o liei illustrc , e poderoso preferisse i pro-


54 Ephtol\ <strong>do</strong> B>:ato<br />

pria Rainha. Não lia diivi<strong>da</strong> senão qre essa<br />

escrava niimosa íaria extremos por se inosiiar<br />

agradeci Ja ao Rei, seria íidehssinia em o<br />

atuar, louvaUo-hia sempre de to<strong>do</strong> seu coração<br />

, e quanto se visse mais indigna de favores<br />

tão altos , lanlo se esforçai ia tnais no<br />

amor de sen Senhor. Não de outra sorte<br />

pois , nós pecca<strong>do</strong>res devemos procurar ven-<br />

cer aos innocenies, e puros, que nunca errarão<br />

; e se elles só n'um exercicio se em pregão<br />

por serviço de Dlos , nós devemos <strong>do</strong>-<br />

Inar o trabalho, e serviço <strong>do</strong> Senhor; se<br />

elles anuu) a Dcos singelamente, nós teluos<br />

obrigação de re<strong>do</strong>brar o amor milhares<br />

de milhares de vezes , para que assim como<br />

antigamente nos não ficou cousa por fazer<br />

no emprego <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> , e para grangearmos<br />

as vontades profanas, assim agora recompensemos<br />

estes <strong>da</strong>mnos , procuran<strong>do</strong> com <strong>do</strong>bra<strong>do</strong><br />

cui<strong>da</strong><strong>do</strong> trazer to<strong>do</strong>s a Deos, e solue<br />

to<strong>da</strong>s as cousas tralen>os de agra<strong>da</strong>r ao Senhor<br />

, não menos diligentes no bem, <strong>do</strong><br />

que o fomos antigamente para o mal.<br />

Torna, fdha , d memoria te rogo quanto<br />

lios era agradável nos annos, em que an<strong>da</strong>van)os<br />

<strong>da</strong><strong>do</strong>s ao ntun<strong>do</strong>; 'achar quem antcpozesse<br />

nosso amor aos demais, quem nos<br />

louvasse, e gabasse mais que os outros, e<br />

com particular aífcctu e tenção nos5egui>se^


Fr. TÍENRiour- <strong>Suso</strong>. 55<br />

como nós então nos persuadiam os ; quanto<br />

pois sem coniparação alguma será agora meíiior<br />

a nossa sorte, e boa ventura, se o<br />

Summo Bem ,<br />

o Senhor Deos toclo poderoso<br />

nos amar, não de qualquer maneira, rijas empregan<strong>do</strong><br />

em nós seu cui<strong>da</strong><strong>do</strong> ? Consicitra,<br />

filha, quanto trabalho custou muitas vezes<br />

chegar a poder lograr uma hora um amigo<br />

<strong>da</strong> terra, <strong>da</strong> qual se 'pesares as cousas, e<br />

ain<strong>da</strong> as palavras, pouco, ou na<strong>da</strong> se tirou<br />

deallivio, e recreação. Quantoserá pois mais<br />

acerta<strong>do</strong> sofrer também agora alf^um trabalho<br />

porgrangear oser ama<strong>do</strong> de T)eos? Por<br />

sem duvi<strong>da</strong> tenho , ó Eterna Sapiência , que<br />

se to<strong>do</strong>s chegarão a ver-vos com os olhos interiores,<br />

como eu vos vejo, que logo ao mesmo<br />

ponto se apagaria nelles to<strong>do</strong> o amor <strong>da</strong>s<br />

cousas terrenas. Não posso. Senhor, acabar<br />

de declarar o espanto de minha alma, ain<strong>da</strong><br />

que já o meu juizo foi bem differente nesta<br />

parle ,<br />

de con)o possa haver coração, que se<br />

empregue, e assocegueem amar outra rcuisa<br />

fora de vós, ó abysmo de to<strong>da</strong> a bon<strong>da</strong>de ;<br />

e<br />

outrosi, não menos me admira o porque<br />

vos não manifestacs , Senhor , aos taes misera-<br />

Tcis. E sobre isso ver o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> , com que<br />

os ama<strong>do</strong>res <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> auílão cobrin<strong>do</strong> , c<br />

<strong>do</strong>uran<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que nelhi lhe pôde dt-sngra<strong>da</strong>r,<br />

tu<strong>do</strong> o que e disíorme, e á'jh»


5(j Epistola <strong>do</strong> BhVTO<br />

ctiioso?e pelo rontr:irio se alguma ro usa tem<br />

que po3Sti parecer bem fJessa pinta<strong>da</strong>, e mentirosa<br />

formosura , ctmi que diligencia ariíno<br />

á praça, e quanto scofem se nrio ê I>em sabi<strong>da</strong>,<br />

e visia (lo seu amaflo qnalffuer apj)aren«<br />

cia Ji3 lustre seu próprio , e quaii<strong>do</strong> vem :í<br />

experiência fpara qut; diga tu<strong>do</strong> numa pala-<br />

vra) não aciíMo outra cousa n)ais que sacos<br />

de esterco : <strong>do</strong>s quaes com razão se pudeia<br />

dizer, ó queJii vos tirara a pelle de fór.j ?<br />

então se viw claramente, i[u:\o me<strong>do</strong>nlio<br />

monstro é a apparescia. Porém vós, ó Esclarecidissiina<br />

Sapiência, agora encobris o que<br />

em vós é amável, e só manifestais o que é<br />

de pena , e moleflia. Descobris o que é<br />

áspero, reten<strong>do</strong> eni segre<strong>do</strong> o que é suave.<br />

Mas porque o fazeis assi óBenij^nissimo JESU?<br />

Seja-iiie, Senhor, licito com licença vossa<br />

dizer uma só palavra, porque nao me posso<br />

conter. O' sevos, Sjnhor, me quizcsseis ! ó se<br />

vós me amasseis JESU dulcíssimo I ó se eu<br />

Senhor vosso mimoso fosse ! Haverá alguém<br />

que creia que eu sou ama<strong>do</strong> <strong>do</strong> Senhor<br />

JESU ? A isto só asjiira. Senhor, a niinlia<br />

alma ; o meu corarão , Senhor, se engrandece<br />

de gozo , e salta de prazer só em cui<strong>da</strong>r<br />

que sou de vós ama<strong>do</strong>. Tanto que me vem,<br />

Senhor, isto a memoria, tamanho co gozo<br />

que recebo, que quem quizer atleuUr bem


Fr. rÍKNT.rQrs Snso. Sj<br />

tn'o poderá cie fora conhecer , porque tu<strong>do</strong> o<br />

que ha em mini se «lerrete, e eatpap* com<br />

alegria. Se me dfiãoíi oscv^lher, nfio podéra<br />

desejar cousa mais sul>lÍ!iie, nem iniiisaí;ra-<br />

diivel , nem mais 5ah(írosa, <strong>do</strong> que ser de Vvós<br />

queri<strong>do</strong> com singulari<strong>da</strong>de, e que pozesseis ,<br />

Senhor, com particular aífecto os olhos de<br />

vossa benigni<strong>da</strong>de em mim porque isto, Se-<br />

,<br />

nhor, quem haverá que (Uividc queé o Reino<br />

<strong>do</strong>s CeosP os vossos (dhos resplandecentes.<br />

Scnlior, vencem es raios <strong>do</strong> Sol sem comp;»ração<br />

: a Tossa boca é suavissima a quem t:o<br />

manifesta ; o encarna<strong>do</strong> so])re a mesuia alvura<br />

de vossa face , assim <strong>da</strong> tiivina, como <strong>da</strong><br />

Iiumana natureza-: finalmente a. sem par<br />

composlura de vessa pessoa sem comparação<br />

cxcedi3 tu<strong>do</strong> quanto o desejo mais levanta<strong>do</strong><br />

pôde alcançar nesta vi<strong>da</strong> corporal. Quanto<br />

mais, e mais se apura vossa grandeza sobre<br />

to<strong>da</strong> a matéria corporal , tanto sois, Senhor,<br />

mais amável e aprazível, ecom tanto mais im-<br />

menso gozo se se logra vossa prcs;;nça. Tu<strong>do</strong><br />

o que se pode imaginar de formoso , amável<br />

e de lustre em vós, ó siiavissÍ!uo Deos , e<br />

Seidmr, sobre to<strong>do</strong> o encarecimento se encerra<br />

com inestimável perfeição. Náo é<br />

possivel achar-se em alguma creatura cousa<br />

agradável, e de saber, ou estimação, que<br />

por mo<strong>do</strong> purissimo com iufmiio exccí>so


58 Epist. <strong>do</strong> B. Fr. Iíí-nriqtjs <strong>Suso</strong>.<br />

«enao veja em vós, o Senhor de tutlo. Por<br />

lanto vós outros nvjrtaes, lião vos passe |;or<br />

alto, antes com muita considera cr» o adverti<br />

que tal, e. lâo exccliciite é o incu ama<strong>do</strong> !<br />

Ê sen<strong>do</strong> esle , vede qne me quer a mim bom,<br />

ó {ilhas de Jerusalém ! O' Senhor, c quão de<br />

réras será ditoso aquelle , a quem vós quereis<br />

bem, e que nesta vossa amizade for<br />

eternamente confirma<strong>do</strong>! Deos vos guarde, ó<br />

£lha minha, para sempre. Amen.


Y I D A<br />

DO<br />

<strong>Beato</strong> Fn. HENRIQUE SUSO,<br />

DA ORDE.V Dos Pr.EGADOEIS.<br />

CAPÍTULO í.<br />

Em que se dá conta <strong>do</strong>nde era nafurai o Z?.<br />

Fr, <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong> , e <strong>do</strong> tempo e i<strong>da</strong><strong>da</strong> ,<br />

em que entrou na Religião , e começou a<br />

seguir o caminho <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> perfeita , e de<br />

como se escreveo esta historia.<br />

N,A grande , e estenJi<strong>da</strong> província de Alieman4ia<br />

houve uni Kelifjioso <strong>da</strong> Ordem <strong>do</strong> hí.sso<br />

glorioso P. S. Domingos, natural de Suevia<br />

, cujo nome era Fr. <strong>Henrique</strong> S':so. Vivia<br />

nelle, em quanto morou na teira, um ardente<br />

desejo de ser servo <strong>do</strong> Senlior, e não somente<br />

se contentava c


6o <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong>'<br />

mento , e pvntica de uma santa niiillier, qiie<br />

tcií<strong>do</strong> píirticuiares favores no Ceo , tinha ila<br />

terra contínuos trabalhos e aíílicr^es : ecomo<br />

t;il desejava c&nsolnr-se com este religioso<br />

cesíorcarseu cançii<strong>do</strong> espirito, ouvin<strong>do</strong> de!le<br />

algr.inas lições subré a niateiia <strong>do</strong> padecer,<br />

tira<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ntuita experiência, que longainenie<br />

tinha teila em casos próprios: c isto<br />

jez muito tempo to<strong>da</strong>s as tcz-cs que o \ia ,<br />

assim veio justamente a tirar delle com encii»<br />

]icrtas , e dissinji<strong>da</strong><strong>da</strong>s pergimtas , que lhe<br />

fazia, a crdem , e priricipio de sua vi<strong>da</strong>,<br />

e processo delia, e alguns exercícios, e<br />

maneiras de padecer, porque passara : o qu«<br />

tu<strong>do</strong> lhe descobria o religioso em segre<strong>do</strong><br />

em snntn, e espiritual conversação. Mas elU<br />

Ten<strong>do</strong> qne manifestamente lhe rcMdtava<br />

<strong>da</strong>qui coiíSoh.çfio para os trabalhos, e ih>u-<br />

trina para a alma, foi pon<strong>do</strong> por escrito tu<strong>do</strong><br />

o (jue lhe ouvia para se aproveitar a si<br />

e a outros: mas isto tanto a furto, e ás<br />

escondi<strong>da</strong>s de seu mestre , qne não entendia<br />

elleo toubo espiritual, quosell.e fazia. ('.i>m<br />

tu<strong>do</strong> lauto que pelo tempo adiante o veio<br />

a sentir, rcprehendeo-a, e obrigou-a a lhe<br />

entregar o que tinha escrito , que logo queimou,<br />

t tornan<strong>do</strong>-lhi- a <strong>da</strong>r outro dia alguns<br />

papeis, que lhe Cearão na mão , também iís<br />

quizeia por no fojo, jMas foi- lhe tolhi<strong>da</strong>-<br />

e


Fr. fTtzíRiQíUE <strong>Suso</strong>. 6i<br />

«I)ra rcm uma revelarão divina: e assim ficarúo<br />

livres estes uUinios cí-critos, que (|ua>i<br />

to<strong>do</strong>s eráo de mão <strong>da</strong> santa , aos quacs ella<br />

depois de seu íalUciniento ajuntou , e a Heii^ião<br />

eni nome delia n)uitos outros <strong>do</strong>cuwentos<br />

espiriluaeã. Começou Fr. <strong>Henrique</strong><br />

sui\ conversão ou os mais determina<strong>do</strong>s princi?)ios<br />

<strong>do</strong>ila , sen<strong>do</strong> em i<strong>da</strong>de de dezoito<br />

r. Tinos : j^oique sem embargo que neste tempo<br />

Lavia já cinco que eslava na Peligião , tinha<br />

;\in<strong>da</strong> o espirito inquieto,' e desasocega<strong>do</strong>.<br />

E se bem cou» o favor divino se guar<strong>da</strong>va<br />

de pecca<strong>do</strong>s mais feios , e <strong>do</strong>s (^le o podião<br />

desacreditar, tod^avia nas culpas leves, e<br />

(omsiiuas era descui<strong>da</strong><strong>do</strong>. IMas neste tempo<br />

tinlia o Senhor tal cui<strong>da</strong>dt) de sua guar<strong>da</strong>,<br />

que a to<strong>da</strong> a parte que se deixava levar <strong>da</strong>s<br />

cousas, a (jue seus senti<strong>do</strong>s com natural<br />

í^osto , e deleitação se inclinavão, cm uenhuma<br />

acliava quietação , nem repouso. E<br />

parecia-lhe ((uo alguu)a cousa outra tinha<br />

por descobrir, que só podia <strong>da</strong>r paz, e ver<strong>da</strong>deiro<br />

descanço a seu vigoroso tspirito', e<br />

assim vivia com trabalho, an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> nas<br />

on<strong>da</strong>s destas alterações , e dcsassocegos :<br />

ati'omentava-o intciiorniente uma contínua<br />

guerra <strong>da</strong> consciência, e com tu<strong>do</strong> não<br />

era poderoso para se aju<strong>da</strong>r de si mesmo,<br />

até que O pie<strong>do</strong>sissimo Deos loi servi<strong>do</strong> ir»


(53<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> De ato<br />

Tra^-o (oin Tma conversão divina. Enxergou»<br />

se K;go iielle uma súbita mu<strong>da</strong>riç;», que a<br />

lo(J(js causava espanto , imaginan<strong>do</strong> no que<br />

|jOíleria ser, que assim o trocara, e to<strong>do</strong>s<br />

<strong>da</strong>vâo seu parecer no caso; mas ningutm<br />

que em<br />

por então acertou com a ver<strong>da</strong>de ,<br />

fim Ibi obra <strong>do</strong> Senhor. O ((ual por meio<br />

de um arreliatameiíto secrclo, e clicio de luz<br />

<strong>do</strong> Ceo obrou sul>ilamenle em Fr. íienriqua<br />

ftsla divina mu<strong>da</strong>nça , cujo effeito íoi <strong>da</strong>i cie<br />

isião a to<strong>da</strong>s as cousas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e «ntregar-se<br />

to<strong>do</strong> a Deos.<br />

CAPITULO II.<br />

De algumas tentações , que o B. Fr, <strong>Henrique</strong><br />

padeceo no principio de sua con^'ersão.<br />

J- En<strong>do</strong> Fr. <strong>Henrique</strong> recebi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ceo<br />

esta divina graça , logo começou a sentir em<br />

si uma guerra de tentações, e repugnaucias<br />

interiores , com que o diabo tra!)alIiaTa por<br />

lhe estorvar os meios de sua salvaçiio. E<br />

foi desta maneira. As inspirações, com que<br />

Deos lhe batia nas portas <strong>da</strong> alma, obriga-<br />

\ão-no a voltar as cosias com uma expcíh<strong>da</strong><br />

e solta retira<strong>da</strong> a tu<strong>do</strong> a({uillo, que o podia<br />

embaraçar no caminho <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. Lontra


Fr.. íIekp.iqus Sus©. CS<br />

íslc poi fiava a tentação, que procedesse com<br />

bom conselho , e que se náo determinasse<br />

de pressa, porque era fácil coriíeçar , e muito<br />

difíicuhoso levar ns cousas ao cabo, A inspirarfio<br />

celestial repiesentava-lhe o grande<br />

poder e ol^ras <strong>do</strong> E?=pirito Santo. Da outra<br />

parte a tentação não fazia duvi<strong>da</strong>s na grandeza,<br />

e omnipotência de Deos quan<strong>do</strong> quizesse<br />

ajudnr , mas duvi<strong>da</strong>va de seu querer.<br />

TSo c;d)o de tu<strong>do</strong> mostrava-se-lhe na alma<br />

com clareza certissinia, que não podia Deos<br />

faltar nnquella bran<strong>da</strong> e amorosa promessa<br />

«ua, que era soccorrer, e aju<strong>da</strong>r a to<strong>do</strong>saquelles<br />

, que, fia<strong>do</strong>s em seu santo nome, com»<br />

metlcsseni este caminho. Ficn<strong>do</strong> nesta conten<strong>da</strong><br />

a victoria <strong>da</strong> parte de Deos , logo o<br />

commettia outro pensamento, que , disfarça<strong>do</strong><br />

com brandura, e com capa de amizade, se<br />

Jhe ia assentan<strong>do</strong> na alma, eo aconselhava<br />

pôde ser que seja acer-<br />

Bem desta maneira :<br />

ta<strong>do</strong> isto que tcntaes, e razão é emen<strong>da</strong>r Sk.<br />

vi<strong>da</strong> , mas não vos mateis muito : antes<br />

começai tcão altento que possaes cbcj^ar ao<br />

,<br />

fim com o que começardes. Comei, e bebei<br />

á vontade , e tratai-vos bem , e eniretaulo<br />

não haja peccar. Ga dentro de vós , e para<br />

com voscoscde santo quanto quizerdes, ma«í<br />

ftc^ja com tal temperança , que no exterior<br />

nio se assombre nin'uiem com vosco j «


64<br />

VlDl DO Be4T0<br />

an<strong>da</strong>i com o dito commiim : Haja pureza na<br />

alma , que lu<strong>do</strong> o mais vai bem. Poder-<br />

Tos-heis <strong>da</strong>r bons dias, e viver entre os ho»<br />

metiS alegremente, e com tu<strong>do</strong> não deixar<br />

de cumprir codi as obrigações <strong>da</strong> virtude.<br />

Taad>eni a outra gente espera de se saKar,<br />

o mais wão se metie em tantas fadigas. í^las a<br />

sabe<strong>do</strong>iia etfcí na desbaratava tão íalsívs concelhos<br />

com esta só ra/^io. Quem cui<strong>da</strong> de<br />

ter uma enguia pelo rabo, e começar fi<strong>da</strong><br />

santa tihia monte, tanto se engana em uma<br />

cousa, como naoutr.i; porque tjuan<strong>do</strong> llte<br />

parece que está bem empolga<strong>do</strong> em ambas,<br />

frscoa-se <strong>da</strong>s mãos , e acua-se sem na<strong>da</strong>. Assim<br />

também quem quer sopear , e ter sujeita<br />

a carne altiva , e mal habitua<strong>da</strong> viven<strong>do</strong><br />

vi<strong>da</strong> mimosa e tlcsranea<strong>da</strong> , | ó<strong>do</strong>-se-IIie di-<br />

«er, que não é de juizo l-em assenta<strong>do</strong> ,<br />

por»<br />

que querer gozar mun<strong>do</strong> ,'e juntamente ser-<br />

vir a Deos com perfeição, é íabricar impossibili<strong>da</strong>des,<br />

é falsilicar as Escripturas Sagra»<br />

<strong>da</strong>s , é <strong>da</strong>nar a Doutrina de Ghristo. As im<br />

que se queres despcdir-le de tu<strong>do</strong>, convcin<br />

fazei -o com animo varonil, e dctermir.a<strong>do</strong>.<br />

An<strong>da</strong>mlo muiloi dias ás voltas com estas<br />

imaginações, em ínn cobrítu ousatlia, e arma<strong>do</strong><br />

de conGanca apartou-se esforça<strong>da</strong>mente<br />

de tu<strong>do</strong>, Knire as cousas a que fugio<br />

Ibi uma a companhia ociosa <strong>do</strong>s amigo*,


iio Tine sfu vigoroso animo passoTi tanto trabalho<br />

nos I rincipios, que posso affimiar, que<br />

pacleceo muiías míntes. Businva-os primeiro<br />

alírunws ve:*es pan? se dcsníelancolizar com<br />

eiles venculo <strong>da</strong> fraqueza natural: mas as<br />

mais delias Ibe a( oiiteria tomar triste <strong>do</strong>iid©<br />

fora alegrí ; porque as praticas, e recreações<br />

<strong>do</strong>s amigos, í:ão erão na<strong>da</strong> de Feu ^josto<br />

5 c fís suas erão odiosas aos juesr.ios. Outras<br />

Tezes siiíC^.\o, e não íorao pouras,<br />

trataieni-no coixi palavras, e ditos pesa<strong>do</strong>s,<br />

tanto que se chega\a a cllrs. Um ll.e perguntava<br />

que ordenj de vi<strong>da</strong> ciw aque!.'a qne<br />

enipreudera , em ene queria sor só, c desviar-se<br />

<strong>do</strong> coniniuin : Outro lhe dizia , (\v.e o<br />

mais seguro mo<strong>do</strong> de viver era o ordinário ,<br />

por oude to<strong>do</strong>s corrião : Outro que laes invenções<br />

de vi<strong>da</strong> sempre paravfio em niiío<br />

£m. Aíjsini o agasaUíavão um trazo:ilro, e<br />

elle sem lhes responder palavra , talían<strong>do</strong><br />

con^si^o dizia : O' pit<strong>do</strong>sissinio Deos não ha.<br />

'onstílho mais acena<strong>do</strong>, que fugir á compa-<br />

;<br />

' qt;e<br />

.ia <strong>do</strong>s liomens; que na ver<strong>da</strong>de, se cu i:ão<br />

;a buscnr tacs juaticas, níio tivera 3^M)ra<br />

me queixar. - Esta Cruz o trouxe<br />

nj.lle tempo gravisslniamente aloinícr.-<br />

!o, porque i^fio tinha ninguém com qucín<br />

desse dtaabafíir descubriijtlodl.e suasofflic-<br />

í^ LSj que íoísc pessoa , que sei;uisse a me£ii:a


0S \ir\ Dô Zl\t<br />

<strong>ordem</strong> , e estilo de vi<strong>da</strong>. E assim vivia descontente<br />

, e triste. Em fim á viva forçi se<br />

acabou de furtar aos liomeus, e sen<strong>do</strong> p.ira<br />

eile cousa ião penosa esta abser.cia, o costume<br />

lha vci(» a fazer depois saborosíssima.<br />

CAPITULO ííí.<br />

Dâ um rapto sobrenatural , que icí'e o <strong>Beato</strong><br />

Fr, <strong>Henrique</strong>,<br />

AConieceo ao B. Fr. <strong>Henrique</strong> no principio<br />

de sua conversão, que entran<strong>do</strong> um dia<br />

depois de comer no Goro na Festa <strong>da</strong> Vki-<br />

rein e Martvr Santa Icjnezse deiíou ficar só ,<br />

c em pe nas cadeiras mais baixas <strong>do</strong> Coro<br />

direito. An<strong>da</strong>va elle neste tenip ) mui carrega<strong>do</strong><br />

de melancolia causa<strong>da</strong> de uma grande<br />

tribulação , que padecia. E estan<strong>do</strong> assim<br />

desampara<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> o allivio, e consolação<br />

luimana , não sen<strong>do</strong> ninguém presente , foi<br />

arjebata<strong>da</strong> sua alma, ou tosse no corpo, ou<br />

íóra <strong>do</strong>Ue, e vio , * ouvio cousas, que nem<br />

to<strong>da</strong>s quantas línguas ha <strong>do</strong> nunulo serão<br />

bastantes para as contar. Era o que vio uma<br />

cousa sem figura , e sem distlncla feição, e<br />

to<strong>da</strong>via tinha em si lo<strong>do</strong>sos ^jstos, e delei-<br />

te^, q.ie se podem imaginar em to<strong>da</strong>s as ti»<br />

guras, e feições de cousas. O coração junta-


Fui HíTíRiQUE Srsft» 6y<br />

«lentc lhe ardia em desejos , e juntamente<br />

se satisíazia , o espirito estava de to<strong>do</strong><br />

desassombraílf) , e aprazível, o appctitc,<br />

e eleirão não obravão, antes jazião corno<br />

scpiílta<strong>do</strong>s em profun<strong>do</strong> sono ,<br />

semente ap-<br />

p-iicava com cui<strong>da</strong><strong>do</strong> os olhos <strong>da</strong> alma enipiegan<strong>do</strong>~os<br />

naquelle raio resplandecente,<br />

e (larisíinio onde de si, e de tu<strong>do</strong> o <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> perdia a memoria. De maneira que não<br />

sabia se era dia , se noite. Foi isto sem duvir<br />

<strong>da</strong> um gosto, que brotou <strong>da</strong> eterna vi<strong>da</strong> segun<strong>do</strong><br />

a experiência que Fr, <strong>Henrique</strong> de-<br />

,<br />

pois leve em tempos de mais paz , e quieíacâo<br />

, e assim dizia elle depois : Sc aquiilo não<br />

é a gloria <strong>do</strong> Reino <strong>do</strong>s Ceos , cu me reselvo<br />

que não sei que cousa he Reino dvs Ccos,<br />

Porque tu<strong>do</strong> quanto v,v,. homem pôde padecer<br />

de Irabalho nesta vi<strong>da</strong> nào I)asta de razão<br />

, nem de justiça para merecer uma fnl<br />

gloria Jiavcn<strong>do</strong>-a <strong>do</strong> lograr para sempre. Durou-lhe<br />

este extasls uma hora , e meia, sem<br />

saber atinar se tivera neste espaço a alma no<br />

corpo , ou lóra delle. Mas toriiati<strong>do</strong> em si<br />

an<strong>da</strong>va lai que parecia homem , , que viniia<br />

d(i outro mun<strong>do</strong>, e saio <strong>da</strong>lli tão quelwantn<strong>do</strong><br />

, e cheio de <strong>do</strong>res, que llie paiecia que<br />

nno podia ninguém passar tanlas em termo<br />

tão ])reve, ain<strong>da</strong> que fosse na lir.ra <strong>da</strong> n^orle,<br />

I. tanto que foi est?n(h) mais v\\\ si, e ro-


6^ TiDÀ Dft BZAT*<br />

bran<strong>do</strong> forças <strong>da</strong>va uns stispiros, qne se íliê<br />

arranca\:\o <strong>do</strong> inaiâ príifuu<strong>do</strong> <strong>da</strong> aluia , e<br />

SCÍ15 se poder aju<strong>da</strong>r caía por terra , como<br />

acontece ácpielles, que por falta de forças se<br />

desniaião. Gciíiia lastimosamente, c <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />

ais que arrancava <strong>da</strong>s entranhas, dizia desta<br />

maneira : O' meu Deos , onde eslava cu , e<br />

oníle me acho agora. O' summo bem meu,<br />

meu bem principal não ha^vcrá jamais cousa<br />

que possa levar de njínha ahna a memoria<br />

desta hora. No corpo estava , e nelle vivia ,e<br />

aju<strong>da</strong>va, e to<strong>da</strong>via não houve ninguém que<br />

di íóra visse, ou entenJesjS delle c;)usa ai*<br />

j;u!na deitas, com an<strong>da</strong>r tal, que trazia a<br />

aluía cheia de visões celestiaes, c no maii<br />

secreto delia se lhe abriáo rcsplan<strong>do</strong>res divinos,<br />

que a peneiraváo pctr to<strong>da</strong> aparte, d«<br />

maneira que lhe parecia , que an<strong>da</strong>va pelos<br />

ares: (inalmente em to<strong>da</strong>s as par^s principaes<br />

d.í alma lhe ficou aquelle bom sabor, e<br />

gosto celestial (como vemos em um vaso, que<br />

sérvio de licores cheirosos, que não perde a<br />

cheiro ain<strong>da</strong> depois de vazio) e durau<strong>do</strong>-Ihe<br />

depois muito tempo l.)i melo de espertar em<br />

5011 esoirito uma cclesLiul sede, e sau<strong>da</strong>de<br />

de D^oê,


Fa. <strong>Henrique</strong> Srso. ^^<br />

CAPITULO IV.<br />

€oino o Baato Fr. <strong>Henrique</strong> cehlrou Fípo*<br />

sorio €Sf:>irííual com a Sabe<strong>do</strong>ria eterna^<br />

A <strong>ordem</strong> de vi<strong>da</strong> que Fr. <strong>Henrique</strong> costu»<br />

niou por grenile discurso de tempo, nos<br />

exercícios cspirituaes , que usava, tra uni<br />

atura<strong>do</strong> desejo de gozar perp«?tuamente <strong>da</strong><br />

vista, e presença de Deos, e juntamente<br />

trataI-o,e conversal-ocom familiar coninuini-<br />

caçào. O princi{»io que teve est(j desejo se<br />

achará nos livros, que clle mesmo rouipoz <strong>da</strong><br />

Sabe<strong>do</strong>ria eterna eia Aliemão. Era o Santo<br />

de sua natureza mui alíeiooa<strong>do</strong> , e desde<br />

sna moci<strong>da</strong>de teve esta inciiiiarfio : e í;eos<br />

na Sagra<strong>da</strong> Scriptura , onde laila de si i oní<br />

nome de Sabe<strong>do</strong>ria eterna , lUbo se oITciec»<br />

inenoá que por uma amii^a muito venci<strong>da</strong><br />

de amores, que se eníeita, e atavia ricamente<br />

para agratlar a lo<strong>do</strong>s , usa de palavras<br />

e geslosamorosos, para levar traz si as almas,<br />

lo^jo aponta os enganos ,<br />

OLiiras ami.\^*;ís, re[)resenlan<strong>do</strong> de sua parte<br />

grande constância, e^lcal<strong>da</strong>iie em amar,<br />

titãs cousas tiravao pt lo animo juvenil ,<br />

Con'.o dizem <strong>da</strong> onça , que com a suavi<strong>da</strong>de<br />

e pouca lirmeza de


•^Ct<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Bií^to<br />

<strong>do</strong> cheiro, que naliirnljnciite de si Innoa,<br />

obriga os outros aniinaes.i buscarcm-na. Os<br />

livros cm que mais se usa deste terujo, cujo<br />

intento é com brandura , c suavi<strong>da</strong>de levan-<br />

tar nossa alma ao amor divino, sào os (!e<br />

,<br />

Salomão, e <strong>da</strong> Sapiência , e <strong>do</strong> Ecclesiastico:<br />

os qiiaes len<strong>do</strong>-se no Refeitório, e t)uvin<strong>do</strong><br />

o Santo um dia as palavras bran<strong>da</strong>s, e namotaJas<br />

<strong>da</strong> Sapiência , encheo-se to<strong>do</strong> de alegria<br />

em sua alma, e começou-a a namorar,<br />

e perder-se por ella; e arden<strong>do</strong> neste cui<strong>da</strong><strong>do</strong><br />

fallava desta man


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. yl<br />

tíesde minha moci<strong>da</strong>de j e husqiiei-a para n<br />

tomar por esposa , ê Jiz-me amante de seu<br />

gosto. l-'or esta terei nome no povo ^ e honra<br />

entre os mais velhos; por esta serei immortal,<br />

e deixarei memoria perpetua aos que hão dê<br />

vir depois de mim. Entrafi<strong>do</strong> cm minlia casa<br />

descansarei com ella; porque sua coJiversação<br />

não é pesa<strong>da</strong>^ nem sua còmpanJiia enja<strong>da</strong>,<br />

antes dá gosto, e alegria. Cora sabe<strong>do</strong>ria<br />

fun<strong>do</strong>u o Senhor a terra , co}?i prudência<br />

fortaleceo os Ccos , de seu saber sairão os<br />

abjsí7ws , c as nurcns se congelão com ona-<br />

Iho. Quem a alcançou passou coíijía<strong>da</strong>mente<br />

seu caminho, e o seu pê não tr(>pccará ; se<br />

<strong>do</strong>rmir não finverã me<strong>do</strong> ^ e o seu sono será<br />

descansa<strong>do</strong>. Ouvin<strong>do</strong> estas palavras, e outra:;<br />

a este mo<strong>do</strong> to<strong>da</strong>s clieias de <strong>do</strong>çura, ficou<br />

com o coraof.o abrasa<strong>do</strong>, e rtvolven<strong>do</strong>-asuo<br />

pensamento failava dusta maneira comsigo:<br />

O' ver<strong>da</strong>duiramente riO])re , e escol hid:? amiga.<br />

O* se por dita pudera aronleccr querer<br />

ella sel-o minha: que bem an<strong>da</strong>nte, que<br />

logo o espantavào iniagi-<br />

Mas ditoso seria !<br />

nações contrarias, que laslinian<strong>do</strong>-o inltriormente<br />

lhe chzlào : Como vos ha de caber no<br />

pensamento amar o que nunca vistes ? Como<br />

podereis querer bem a quem nunca conhecestes<br />

? Kfio saldeis vós que nalhor c ur.i pequeno<br />

punlui<strong>do</strong> cerio j t dcseciba r?( a<strong>do</strong>,


5*<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> C«\ro<br />

que a rasa cheia com diivl I.js * qr.rrn fabril<br />

ca edifício alto, e íjrangca amizu.le de grande<br />

Senhor , estan<strong>do</strong> hniíre de se r seu i^unl ,<br />

este tal as mais <strong>da</strong>s vezes se acha engana<strong>do</strong><br />

em sua espera nçn , e clieio de miséria,©<br />

fome, larga o negoeio. i)em confesso que<br />

i5ão íôra para engeitar o amor desta (iama, se<br />

eila consentira a seus servi<strong>do</strong>res tratarem-sc<br />

])eni , e levarem boa -vi<strong>da</strong>; mas elU esta-vos<br />

dizen<strong>do</strong>: Quem folga com vinho, e com<br />

grossura não será sábio. E diz mais : Até<br />

quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>rmirás preguiçoso, quan<strong>do</strong> has de<br />

acabar de te levantar desse sono? Pouco<br />

áormirás, pouco estarás sonorento, menos<br />

tempo juntarás as mãos para desça nçar , ^<br />

<strong>da</strong>rá comtigo a miséria como um correio, e<br />

a pobreza, como homcRi arma<strong>do</strong>. Vede [lois<br />

se houve alguma hora quem pozcsse tào rigorosas<br />

leis a seusnmanlesP Aqui lhe acudio<br />

MUI pensamento dí; Ceo to


Fii. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. ^3<br />

tos, t contrastes se sujeita© , e a seu pezar<br />

ess«5 ama<strong>do</strong>res <strong>do</strong> iiuin<strong>do</strong>. Com estas, e<br />

outras inspirações siniiihantes, cobrava es«<br />

forço para perseverar, e virihão-lhe a min*<br />

de. E assim ora estava de Lon» aniriio,<br />

ora tornava a abater a afíeição ás cousas<br />

transitórias. An<strong>da</strong>n<strong>do</strong> nestas voltas sempre<br />

topaTa com alguma cousa, que contradizia<br />

sua períeila conrcrsao, e por esta razão<br />

variava penden<strong>do</strong> ora a uma parte , ora<br />

a o;itra. Um dia estan<strong>do</strong> á mesa ouvio ler<br />

um passo <strong>da</strong> Escriptura Sagra<strong>da</strong>, que falia <strong>da</strong><br />

Sabe<strong>do</strong>ria , com que se abrazou vehementisiinianíente<br />

, era o passo este: Eu estendi<br />

meus ramos como tberibiiilbo, e os meus<br />

ramos suo de honra , e de graça; como iibano<br />

nao corta<strong>do</strong> perfumei n^inlia mora<strong>da</strong>, e<br />

como bálsamo sem mistura é o meu cueiro ;<br />

quem me athar, adiará j;az , e aUanrar.í<br />

4âuJe <strong>do</strong> Senhor. íslo failava <strong>da</strong> Sabe<strong>do</strong>ria:<br />

e <strong>do</strong> amor sensual e dcshonesio dizia o seguinte:<br />

ALuei uma mulher niais amargosa<br />

que a morte, que é laço de caça<strong>do</strong>res, seu<br />

coração rede , « suas mã^s grilliócs , quem<br />

agia<strong>da</strong> a Deos escapará ; mas quem c peccad(U',<br />

si:^"d por ella laliva<strong>do</strong>. A islo levanla^a<br />

entre si um grande l)ra<strong>do</strong> , e dizia : Claraínentc<br />

siTo islo ver<strong>da</strong>des. Ora de tc(ío cm<br />

to<strong>do</strong> mu resolvo de tomar por Eí^posa a Su-


^4<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> no Padus<br />

Le<strong>do</strong>rla. Já tenho assenta<strong>do</strong> de me c:Uivar<br />

(le seu amor, e Gnlrcg


Fa. IiENRIQtE Su^o. ^5<br />

fortaleza, e ordcnaTa tu<strong>do</strong> com suavi<strong>da</strong>de.<br />

Quan<strong>do</strong> Ilie parecia que estava to<strong>do</strong> enle-<br />

,<br />

va<strong>do</strong> na belleza de uma formosa <strong>do</strong>nzelia ,<br />

iníístrava-se-liie em figura de um Ijellisslmo<br />

mancebo , algun-as vezes se lhe cfíerecia<br />

como mestra dextrissima em to<strong>da</strong>s as artes;<br />

amiora, e graciosa para to<strong>do</strong>s; en) fim voltan<strong>do</strong>-se<br />

a elle aprazivelmente , e agazalhan<strong>do</strong>-o<br />

com a bôra theia de riso, mas r.Po desacompanha<strong>da</strong><br />

de uma m:)gestade cídtstiai,<br />

í"al!ou-lhe amorosamente estas palavras:<br />

Dá-me, filho, teu coraçã


^(5<br />

Ti<strong>da</strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

A T«? aLr.ioo, que ninguém nro tolhe , roTtí<br />

cntranhayelaíTt>cto deste meu nhraza<strong>do</strong> espirito.<br />

No meio destes pensamentos lhe ncontecia<br />

alojjimas vezes cominunicar-se-lhe o<br />

mesmo Senhor , que é fonte, e corrente de<br />

to<strong>do</strong> o heui ; no qual juntamente nrhava<br />

to<strong>da</strong> a formosura, e tu<strong>do</strong> aquillo que só<br />

merecesse ser ama<strong>do</strong>, e tlescja<strong>do</strong> , e tu<strong>do</strong><br />

alli eslava junto jior mo<strong>do</strong> , que tião ha palavras<br />

coui que se possa contar. Da^pii lhe<br />

ficou em costume que To<strong>da</strong>s ns vezes, que<br />

ouvia referir, o?i cantar versos amorosos,<br />

logo corria c'o alm:i , e c'o coração á sua<br />

nma<strong>da</strong>, de quem procede tu<strong>do</strong> o que é dlj;r.3<br />

de ser ama<strong>do</strong>: e furtan<strong>do</strong> de certo mo<strong>do</strong> a<br />

vista <strong>do</strong> que tinha presente, se recolhia dentro<br />

em si , ou se arrehatava. E não se pode<br />

dizer quantas vezes com os olhos cheios de<br />

lagrimas largan<strong>do</strong> sem t«rmo a capaci<strong>da</strong>dá<br />

de seu coraçTo a ahravu , e apertou com-<br />

8Ígo. ^luitas vezes se havia com elle neste<br />

Tempo a Kterna Sahe<strong>do</strong>ria , como se ha uma<br />

imli com uiu fdho menino pedin<strong>do</strong>-lhc o<br />

jicito to<strong>do</strong> sumi<strong>do</strong> eiitre seui hracos : ella<br />

ahracan<strong>do</strong>-o amorosamente. E como o ii:enino<br />

coiu a cahcra , e os meneios <strong>do</strong> corpo<br />

trahalha por chegar aos peitos <strong>da</strong> inãi , o<br />

com risinhos, e geilos graciosos lhe está signlGcan<strong>do</strong><br />

o ^osío, quo tom najuéllc lugar:


Fr. Henuique 5c$o. ^y<br />

Y*íri nals nem menos Toavíi a alma c!o B. Fr.<br />

)!eniiqiie para aquclla prtsenço , gloiiosissima<br />

com uma enchente de alegria, que lhe<br />

tríshor<strong>da</strong>va por to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s, I-og*^


Va maneira ,<br />

Ti<strong>da</strong> <strong>do</strong> Beat»<br />

CAPITULO T.<br />

com que o Santo cscrevco srl'e<br />

seu coração o SaiuisAmo nome ddJiíSi\<br />

NO mesmo tempo se lovniiton em snantfim<br />

um grande fogo, que atea<strong>do</strong> nella , e c ascen<strong>do</strong><br />

sem termo lha abrazou to<strong>da</strong> em tfficacissimo<br />

amor divino, e sentin<strong>do</strong> um dia<br />

este ar<strong>do</strong>r causa<strong>do</strong> <strong>da</strong> cari<strong>da</strong>de, com que<br />

sobremaneira amava a Christo , recclheo-se<br />

á sua cella , em um luí^ar aparta<strong>do</strong> , e eniran»<br />

<strong>do</strong> em uma contemplação saborosissima tal'<br />

lava como o Senhor , e dizia-lhc : Prouveri<br />

a vós formosissimo Deos, que tivera cu pode*<br />

para inventar algum sinal de amor , que fòri<br />

iim perpetuo penhor, e lembrança de ami*<br />

7ade entre mim e vós , e dera testemuuii»<br />

<strong>do</strong> muito, que me vós quereis, e <strong>do</strong> qu3<br />

vos cu quero a vós , e fura tal que nenliun<br />

,<br />

^esquecimento pudera ser parle para se pertler.<br />

Comeste fervor ilt* e


Fr. <strong>Henrique</strong> Srso. 79<br />

líç coiiTCm não me conlentar com rrenos<br />


OMtro no fleclo mínimo íIa mão. Esle nomf<br />

trouxe em seu peito até «í Ijora <strong>da</strong> morlG<br />

Tetlas as vezes, que lhe palpitaTa o cornrrr><br />

fazia o nome o mesmo movimento, e rts<br />

princípios lançava tle si um estrema<strong>do</strong> rôplan<strong>do</strong>r.<br />

Mas o Santo teve sempre tainan>o<br />

cui<strong>da</strong><strong>do</strong> de o esconder, que já n»inca mais c<br />

descobrío a r;in£:uern , sciiio foi a um .»<<br />

seus companheiros, a quem o deixou ver eu<br />

segre<strong>do</strong>, por ler com e!le amizade particuU'<br />

e espiritual. Dalliem diante quan<strong>do</strong> ihesircediáo<br />

lral)alhos, punha os olhos neste sini<br />

de amor, c passava-os melhor. Algumas veze<br />

falian<strong>do</strong> rom o Senhor familiarmente Sf)í.<br />

a dizer-lhe. Os amantes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> coslumát<br />

trazer os retratos <strong>da</strong>s suas <strong>da</strong>mas nas roupas<br />

que vestem, eeu, Serilior, com muito avan-<br />

tcja<strong>da</strong> aííclção es( re\i-vos cm meu corarão, «<br />

em meu sangue. Um dia rocolhen<strong>do</strong>-se par;<br />

a celia , acaba<strong>da</strong> a oração , que tinha depoi.<br />

áii Matinas , encostou-se sobre um banco toman<strong>do</strong><br />

por cabeceira o livro, que chainão<br />

J''iías paiiutn. Aíjui leve um rapto, e pare^<br />

^cia-lhe que se !he levantava <strong>do</strong> coração alguma<br />

clari<strong>da</strong>de , e pon<strong>do</strong> os olhos nelle vi»<br />

sobre o mesmo lui^ar uma Crur de our*<br />

guarneci<strong>da</strong> de muita pedraria, entre a (|uai<br />

resplandecia com nuiravilhosa obra o Nome<br />

di JESU. Acudio logo com o capello a cobfir


Fr. Mekriqce <strong>Suso</strong>. 8í<br />

a conção, trabalhan<strong>do</strong> por esconder tão<br />

espantosa luz , para que de ninguém fossa<br />

"vista, mas quan<strong>do</strong> hkjís se cansava , cntto se<br />

esforcaTãoestreraa<strong>da</strong>iiiente os ardentes raios,<br />

qnc deila saião, lançan<strong>do</strong> de si tamanho<br />

resplan<strong>do</strong>r, que por nenluima via pôde enco-<br />

brir, nem reprimir sua força»<br />

CAPITULO VI,<br />

Pe nl^uns ensaios de consolações díx^ínas,<br />

com que Deos favorecia o B, Fr. lUnriauc<br />

eui seus princípios»<br />

OAín<strong>do</strong> o Santo um dia de Matinas, e re»<br />

foiiien<strong>do</strong>'se como costumava cm seu Oratório,<br />

deitou-se sobre o oca banco para repoular<br />

um poiico. Foi o sono breve, e não durou<br />

mais, que até os esperta<strong>do</strong>res <strong>da</strong>rem<br />

sinal <strong>do</strong> dia , a cujas vozes acor<strong>do</strong>u , c derri-<br />

])an<strong>do</strong>-se logo por terra satulara a eslrella<br />

d alva, digo, a Soberana llainha <strong>do</strong>s Ceos,<br />

parecen<strong>do</strong>-lhc , que assim como as avosinhas<br />

pelo Estio saem alegremente a receber o dia<br />

quan<strong>do</strong> amanhece, assim era razão ievantar-s«<br />

elle lambem a a<strong>do</strong>rar a mãi <strong>do</strong> Eterno Sol<br />

com alegre, e devoto afíeolo. As palavras<br />

cpe diziu dtí sau<strong>da</strong>ção uuo erão reza<strong>da</strong>s sw-


32 Vi Dl. LO pAcnr<br />

mente , rr.as entoa<strong>da</strong>s con; unia rnirsica íla alma<br />

caia<strong>da</strong> , e suave. Aiiles <strong>do</strong> Santo acor<strong>da</strong>r<br />

<strong>do</strong> sono, que digo, ruivia um espantoso<br />

estron<strong>do</strong>, que lhe retumbava dentro nalma,<br />

com que to<strong>do</strong> cslreniecin. O s


Fr. Il£xi\iQU2Scoo. S5<br />

eftmpoZjC anila nos livrinhos, que fez de de-<br />

vocfio que começa : Desejou minha alma , etc,<br />

j<br />

A estas duas ajuntava a terceira beijan<strong>do</strong><br />

tanjbeni o chão em honra <strong>do</strong> mais alto ,<br />

e mais ahraza<strong>do</strong> Seraphlm <strong>do</strong> Ceo , que<br />

com maior fervor arde em amor divino.<br />

O que lhe pedia era, que inflasiimasse<br />

sua alma no mesmo amor, de maneira, que<br />

não só SC ahrazasse to<strong>do</strong> até ás entranhas<br />

neste santo fogo, mas fizesse arder i.elle ao<br />

miiu<strong>do</strong> tíj<strong>do</strong>com suas fervorosas amoestacóes,<br />

e <strong>do</strong>utrina. E lae-? eráo as devoções, que usava<br />

to<strong>da</strong>s as maulians quan<strong>do</strong> se levantava.<br />

No tempo <strong>do</strong> erjtrn<strong>do</strong>, em que o mun<strong>do</strong> »n<strong>da</strong><br />

lo<strong>do</strong> devasso, e desccmiposto , esiendeo o<br />

Santo Varão inn.i noite tauto a oração, que<br />

os esperta<strong>do</strong>res já fazião sitiai , que amanhecia<br />

: elle então falbva coujsigo , e dizia: Repousa<br />

agora um pouco (orpo cansa<strong>do</strong> autes<br />

que vamos a receber a formosa estrella d'aU<br />

va , e deixan<strong>do</strong> vencer os senti<strong>do</strong>s de um<br />

breve sono, começarão os Anjos a cantar<br />

Mquelle bran<strong>do</strong>, e suavissimo Uesj>onsoi io<br />

Sartre illiuninave Jerusalemy etc, E a musica<br />

soava dentro cm síia alma com estienia<strong>da</strong><br />

suavi<strong>da</strong>de. A cabo de um pequeno espaço<br />

enlevava-se-lhe o esj)irito naquelia celestial<br />

harmonia , de maneira , aue já não pod?i<br />

sop portar o peso <strong>do</strong> corpo mor lai . c terreno ,


1^<br />

Ti<strong>da</strong> <strong>do</strong> Blatô<br />

c nssim açorJava trcsbor<strong>da</strong>r<strong>do</strong>-llie pcloft<br />

ollnisii ízloria ilo coracãu em ardentes arrojos<br />

de lagrimas, que delies verlia. Pelo niesfno<br />

tempo encostan<strong>do</strong>-se algumas vezes para repousar,<br />

pnT('ci-.í-llie , que era leva<strong>do</strong> a uma<br />

região estranha, e logo \ia o seu Anjo <strong>da</strong><br />

guar<strong>da</strong>, que post* á sua nuio direita rom<br />

semblante alegre t risonho o acompanhava :<br />

cm ven<strong>do</strong> o Anjo abracava-se com elle,<br />

linni1o-o com seus braços, e meltcn<strong>do</strong>-o<br />

to<strong>do</strong> em sua akna, o mais aperta<strong>da</strong> e amorosamente<br />

, que podia , de maneín , que lhe<br />

pareria , qwe entre elle, e aquelle celestial<br />

csj^irito não havia na<strong>da</strong> de permeio. Enláo<br />

soltari<strong>do</strong> uma voz !uagoa<strong>da</strong> , e os olhos arrasa<strong>do</strong>s<br />

de agua ,<br />

e com un)a per)eita tlevaráo<br />

<strong>da</strong> alma , di/.ia-lhe estas palavias: O' aiuorosissimo<br />

espirito , que por Ueos me fostef<br />

assina<strong>do</strong> para guar<strong>da</strong>, e remédio de minha<br />

ti<strong>da</strong> , peço-vos pelo ardeutissimo amor , que<br />

tendes a ease mesmo Si^nhor, que me não desampareis.<br />

A isto rospondeo o Anjo: Como?<br />

V. não ousastes a fiai -vos <strong>do</strong> Deos? Pois orode-nie,<br />

que tamanlia é a cari<strong>da</strong>de rom qut<br />

ab eterno vos ann)u , que >osnáo ticsampar*<br />

jamais porsua voutaoVv Outra "vez ( on»eçan<strong>do</strong><br />

ae^ilarecera manhãa dcpoi^ídeter dcv>?


Tn. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. ^<br />

^tasi . pcdio a um delles que llie declarasse,<br />

porque mo<strong>do</strong> morava Ueos escondi<strong>da</strong>nieníe<br />

em sua alma. Tornou-lbe o Anjo: Ora siií:,<br />

quero-vus mostrarq que (lesfjais. Poinlealegromente<br />

os olhos em vós mesmo, e vereh como<br />

se ha Deos com utna ahna , qne o ama , como<br />

av. issa. Aitontand) lo^opara si^vio, que<br />

soi")re o siiio d(í coração se lhe tornava a carne<br />

transparííiiíe como um cristal , e via seiUa<strong>do</strong><br />

qiiietissimamentti no centro dellc ao eterno<br />

Déos em uma fij^ura cheia de amor, e beni-<br />

que estava<br />

gni<strong>da</strong>de; e junt


56 ViDV :<strong>do</strong> Padub<br />

afíiiccru). Estan<strong>do</strong> assim atormenta<strong>do</strong> TimR<br />

noite precedente á festa que a igreja celebra<br />

,<br />

<strong>do</strong>s Anjcs, foi arrebata<strong>do</strong> em extasi , e parecia-lhe<br />

que ouvia uma musica <strong>do</strong> Ceo , e<br />

vozesangeiicaSjCom que ílcou tao allivia<strong>do</strong> ,<br />

que de lo<strong>do</strong> perdeo a ir.emoria dus <strong>do</strong>res,<br />

quepa.ssava , e dizia-lhe uni <strong>do</strong>s Anjos: Assim<br />

como ati te recreia ouvir de nós os cânticos<br />

úa Eterni<strong>da</strong>de, que entoamos, assim nos<br />

alef»ra a nós ouvir-te as cantigas <strong>da</strong> eterna,<br />

e aitiisinia Sapiência, que compões, e loj^o<br />

ajiinKm: Este que ouvistes heaquelle cântico,<br />

com que hào de sair to<strong>do</strong>s os escolhi<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />

Senhor no dia ultimo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, tanto que<br />

se virem confirma<strong>do</strong>s na posse <strong>da</strong> eteina<br />

})emaventuranca. Muitas outras horas teve<br />

o ser\o de Deos no mesmo dia esta celestial<br />

conversação ven<strong>do</strong> , e contemplan<strong>do</strong> as<br />

íesias, e passatempos <strong>do</strong>s Anjos. 1'rimcira-<br />

ineute começan<strong>do</strong> já de amanhecer veio-se a<br />

clle um mancebo , que no geito , e na pre-<br />

sença parecia ser um musico <strong>do</strong> Ceo, (jue -<br />

Deos llie enviava. Acompanhavão-no muitos<br />

outrtís mancebos dj gentil disposição na<br />

niesíua postura, e traje , salvo qae aquelle<br />

era de meu respeito como Archanjo. (ihegou-seao<br />

Santo com brio «grande, e disse llic,<br />

qucelle e seus companheiros erão alli nnin-<br />

<strong>da</strong>tlos por <strong>ordem</strong> divina para o alegrarem , •


' Ffi.<br />

TIrxRiQrE Scso. 87<br />

entrctercm, e lhe alUviarein as penas, que<br />

padecia. Pelo que , dizia o Arclianjo , é ueces-<br />

sario, que posta de parLe to<strong>da</strong> a melancolin ,<br />

entreis nesta companhia, e <strong>da</strong>nceis c^oni<br />

nosco as <strong>da</strong>nças <strong>do</strong> Ceo. Isto dito clio^járão-<br />

se to<strong>do</strong>s a elles,tiran(lo-o pelas mãos, nietlerão-no<br />

entre si. Eo AicLanjo cotneçou logo<br />

que<br />

a entoar um hymno <strong>do</strong> Menino JESU ,<br />

diz: In diílci jubilo y etc. Tanto que o Santo<br />

vio, e ouvio soleninizar com tão acor<strong>da</strong><strong>da</strong> ,0<br />

desenvolta harmonia oNome de JP^Sti , ficou<br />

tão aiiivia<strong>do</strong> <strong>do</strong> coração, e de to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s,<br />

que despedin<strong>do</strong> num momento to<strong>da</strong><br />

parecia-lhe que nunca tivera tra-<br />

a trlâteza ,<br />

balho, e estava com grande ^osti) (]'alina<br />

to<strong>do</strong> end)ehi(lo na destreza , e admirável con-<br />

-<br />

lações <strong>do</strong> Ceo teve o B. Fr. <strong>Henrique</strong> a este<br />

mo<strong>do</strong>, que por alguns anxios forão quasisem


S8<br />

Vidím)oBkat»<br />

niiaiero, principalmente rjuanJo se acliavi<br />

m.íis af.Ii^ltio (le suas penitencias , c assim<br />

as passara ineTUor. Um seivo de Deos leve<br />

iiina rcvelaeãn , em que o vio ao lenipo qu»<br />

,<br />

sobia ao altar para dizer Missa cercailo d©<br />

iini resplen<strong>do</strong>r, e via ilescer sobre sua alma<br />

a graça de Deos a nio<strong>do</strong> de orvalbo , e logo<br />

unir-se o Santo com elle de mancim , qtiâ<br />

ficavão Deos, e elle imia só cousa. Vio mais<br />

estarem por detraz d elle muitos meninos de<br />

lin<strong>do</strong> e gracioso pirecer, com cirios acesos<br />

nas mãos que rodeavão o altar, e postos em<br />

,<br />

<strong>ordem</strong> huns traz outros, e t(j<strong>do</strong>s um , e um<br />

se ião (betan<strong>do</strong> ao Santo, e estenden<strong>do</strong> os<br />

bracinbos, o abraçavão aniorosissimamente,<br />

eo apertavão comsijjo.^Em Hn: .espanta<strong>do</strong> Fr.<br />

Henrijue <strong>da</strong> visão, pergunia\a-lhes quem<br />

çrfio, ou que qutrião significar naquella<br />

C'bra. Erospontliuo-lbe os uieninos,que erão<br />

comp;inheiro3 <strong>do</strong> Santo, e participantes de<br />

seus gostos na gloria eterna , e por isso •<br />

acompanharão perpetuamt^nle , e o guai<strong>da</strong>y:\o.<br />

ileplicuu o Santo Varão: E que quer<br />

dizer abraçardes to<strong>do</strong>s com tanto amor a este<br />

íiaile ?, Quereinos-lbe uiuito , responderão<br />

elles , e temos com elle grande conversação<br />

e amizade , e liáveis de bAtcv que obra o Senhor<br />

Deos em sua alma grandes maravillias,<br />

f taes , que senão podem dtclarar, E lu<strong>do</strong> •


^v.e elle quizer pedir de propósito a Deos<br />

nunca lhe será nega<strong>do</strong>.'<br />

CAPITULO VIÍI.<br />

Di^ algumas revelações y


i)o <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Pàdmi<br />

foi respondi<strong>do</strong>, que nào Imvia palnvrns^nem<br />

termos humanos, que pudessem sigrificar o<br />

como se sumia uma alnia naquelle ahysmo<br />

immenso , e sem limite <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de. Ase»<br />

gun<strong>da</strong> qucsiâo era qual seria o mais proveitoso<br />

exercicio para uma alma poder ejíegar a<br />

este esta<strong>do</strong> ? Respondeo-lheo Sauio Filai<strong>do</strong>^<br />

que o mais seguro meio era íiif^ir-se um<br />

homem a si niesmo , e desapropriar se de<br />

si com uma humilde resignação , enã'> querer<br />

na<strong>da</strong> <strong>da</strong>s creaturas , e tomar tu<strong>do</strong> o que vier<br />

<strong>da</strong> mão de Deos , e com isto saher-se governar<br />

com mansidão, e paciência com io<strong>da</strong> a<br />

sorte de mãos honjenâ. O Santo Fr. João lhe<br />

mostrou laixi])em uma esoccial íormosura ,<br />

de que sua alma estava atavia<strong>da</strong> na Gloria,<br />

EFr. <strong>Henrique</strong> lhe perguntou qual era entre<br />

to<strong>do</strong>s o mais proveitoso exercicio para a sal-<br />

Tação , e mais custoso de pòr por obra. 11 espondeo<br />

, que nenhunja cousa podia <strong>da</strong>r maior<br />

trabalho a uuía alma, nem aprovciiar-lhc<br />

mais, que soírer com paciência ser desampara<strong>da</strong><br />

de D^os , e assim íolgarde carecer de<br />

Deos por amor <strong>do</strong> mesmo Deos. Tand^eni<br />

appareceo ao B. Fr. <strong>Henrique</strong> seu pai depois<br />

que como na vi<strong>da</strong> se deixou levar<br />

de morto ,<br />

lo<strong>do</strong> <strong>da</strong>s vai<strong>da</strong>des <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, manilesiou-lho<br />

com representaçã.0 lastimosa o cruel tormento<br />

, que tinha no Purgatório, e decla-


Fe. lÍEN-RIQUE SUSO, 9I<br />

rôu-lhe »n culpa principal porque o padecia,<br />

c o mo<strong>do</strong> , que podia haver para o Santo<br />

o que o Santo<br />

filho lhe <strong>da</strong>r remédio nelie ,<br />

Varão cumprio. E elle l!ie tornou apparccer,<br />

e lhe deu c ;nta corno estava já livre <strong>da</strong> pena,<br />

A mãi de Yv. <strong>Henrique</strong> fican<strong>do</strong> viuva por<br />

niorle de seu mari<strong>do</strong>, íbi niulher de abalisa<strong>da</strong><br />

virtude ; e mostrou Deos em seu corpo<br />

c coração depoi* de morta sinaes maravilhosos.<br />

Sen<strong>do</strong> talleci<strong>da</strong> appareceo ao filho em<br />

revelação, eco'»tou-lhe grarmissimas mercês,<br />

que tinlia recel)iilo <strong>do</strong> Seuhor. I*or e.;te mo<strong>do</strong><br />

vio, e fallou a muitas ahiias, que foi cousa,<br />

que por eníao lhe deu algum allivio, e niuilo<br />

tempo o aju<strong>do</strong>u a perseverar naquella abpe^<br />

leza de vi<strong>da</strong>, que seguia.<br />

CAPITULO IX.<br />

Dõ cnmo ^c havia o B. Fr. <strong>Henrique</strong> cnan(^ò<br />

havia de ir ao refeitório , e quan<strong>do</strong> cotnisL<br />

ficlle,<br />

J. O<strong>da</strong>s as vezes que este Santo Vnrao havia<br />

de ir ao refeiloiio tinha por costume st/i-<br />

tar-stí primeiro dejoeliios tfiante de Deus, c<br />

entregue a uma profun<strong>da</strong> nie(htaçào <strong>da</strong> alma,<br />

pedia-lhe eíficazmente quizesse acompanhaUo<br />

, e comei' cora elle, Suavissinio JESU,


§:»<br />

Vni DO BxATflr<br />

dizia , com grande gosto e vontade d'alni«<br />

TOS coiivi<strong>do</strong>agí)ra.Pe;i)-vo5 Senhor, cjueasiiir»<br />

como iiiiserJ;;orcliosaii:c]iie nic <strong>da</strong>is de comer<br />

, assim queirais hoje acoinpAuhar-mw<br />

com vossa [>rcsc!ira. 1 anto que se assenta-<br />

Ta a uieza figurava dcíronte de bi-, como cm<br />

ol)jeclo aqúeile amorosíssimo ho.s[MíJe <strong>da</strong>»<br />

ahiias puras, e fazentlo conta , que o tinha<br />

alli comsigo , punha nelle ws duos hrand*<br />

€ aU^greiucnlc , outras Tezes reclinava»se a<br />

seu la<strong>do</strong>. Ca<strong>da</strong> prato, que lhe irazião oftere»<br />

cia a esle pai de familias ceieslial, e podialhe,<br />

que lho dvitasse sua bençào, usanJo de<br />

palavias familiares, que as mais <strong>da</strong>s vezes<br />

ei ão estas lAmariíissiiuo Senhor peçu-vosqu»<br />

comais comigo. Meu Senhor JÈSXJ benzei,<br />

rogo-vos , esle comer, o tomai delle juuiainente<br />

com es!epuhreser\ovosso. Taes erão<br />

os amores, que tinha neste lugar com a<br />

Eterna Sabe<strong>do</strong>iia. Quan<strong>do</strong> havia de hehcr<br />

primeiro llie olferecia o copo, rogan<strong>do</strong>- lh«<br />

que bebesse. 'Jinha por costume bebei á<br />

meza cinco tragos sóu>ente , e estes lazia.<br />

conta, que os liobia <strong>da</strong>s cinco chagas de sea<br />

ama<strong>do</strong> JESIJ. K pMrijue <strong>do</strong> sagra


Fr. Hzr.-siQCE Su5«, ^5<br />

íleos, e pol-a mais inílamma<strong>da</strong> cari<strong>da</strong>tle <strong>do</strong><br />

mais alto Serafim <strong>do</strong> Ceo, coui desejo de<br />

alcançar para sua alma perfeita coniniiiiáca-<br />

«iío destes <strong>do</strong>ns amores. Se lhe <strong>da</strong>vão algum<br />

comer ,.qiie não e>a de seu gosto , servia-lhe<br />

desal paiu olevaroeoracao de Christo haiiha»<br />

tio cm sangue, eassiíii o pasmava sem duti<strong>da</strong>r^<br />

e sem receio de lhe fazer <strong>da</strong>i!0. Era o Saiilo<br />

muito amigo de maçãs , e o Senhor mau<strong>da</strong>va-<br />

llie que as não Coii»eí>se. Eiii uma TÍsão, que te-<br />

\e, parecia-lhe aiie lhe <strong>da</strong>vão uma maçu,^ e<br />

que quem llia <strong>da</strong>va lhe dizia: Toma , e farta<br />

a vontade, quecslassuo as misérias, em qua<br />

tu an<strong>da</strong>s hujcan<strong>do</strong> gostos. Responden<strong>do</strong> o<br />

Sanlo que em nenhuma cousa tinha gosto st<br />

v.Zo n;i Eterna Sabe<strong>do</strong>ria : disse-lhe o ouiro<br />

qu


^4<br />

TiD\ DO Padre<br />

fruta ; pedlo í> nosso Senhor, que so fo^se<br />

sei: serviço tornar clle a comer marus^ ortlerííisse<br />

ci


Fh. lÍENniQTTzSuSO. ^3<br />

inei.to passava por qualquer cousa <strong>do</strong>slas ,<br />

elle rnesoio su clara o castigo. Che;;oa-se ir.nii<br />

vez um peregrino a elle , e disse-iiie, que cm<br />

uma visáo lhe fora man<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> Cef) ,<br />

que se<br />

('ueria íju.ir<strong>da</strong>r a <strong>ordem</strong> devi<strong>da</strong> no co:. er se<br />

fosse a elle, ellie tieoisse quizesse ensinar-lhe<br />

as regras e exercícios, que neste particular<br />

usava,<br />

CAPITULO X.<br />

De como se aparelhou Fi\ <strong>Henrique</strong> parti<br />

entrar no anno novo,<br />

JLíiM Sucvia, <strong>do</strong>nde Fr. <strong>Henrique</strong> era natural<br />

, c costume em algumas terras entre mancebos<br />

leves, e ociosos, quan<strong>do</strong> chega o primeiro<br />

dia de Janeiro arruarem tod.\ a noite ,<br />

e procurar ca<strong>da</strong> um haver uma Capella <strong>da</strong><br />

infio de suas <strong>da</strong>mas, e a este fim compõem<br />

trovas, Qá\xsò musicas, eGnalmente iisào de<br />

to<strong>do</strong> artificio, e industria para obrigarem ás<br />

<strong>da</strong>mas. Vin<strong>do</strong> o wSanto Varão a sal)er isto 1'oi<br />

a cousa , que mais llie caio em graça, e melhor<br />

lhe pareceo a sua arte. E logo na mesma<br />

noite se determinou elle também visitar sua<br />

Senhora, e pedir-lhe uma capella. E assim<br />

antes de nascer o Sol foi-se aonde estava<br />

lima imagem de Nossa Senhora , que tinha


f)6<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong>. <strong>do</strong> Be\to<br />

entre scj*; ornços o Menino JESU bran<strong>da</strong>»<br />

incnte aperta<strong>do</strong> nos peitos, e posto de joelhos<br />

diante delia com uma musica <strong>da</strong>lma cala<strong>da</strong>,<br />

c suave começoti a cantar uma Sequencia <strong>da</strong><br />

Virí( » n ,pediíi<strong>do</strong>-ihe por nicrcc alírisse caminlio<br />

para eile alt atiçar de seu hento F.Iho<br />

tir.ia capellj, e o cpje laltasse em seu merecimento,<br />

íupprisse eila coní sua misericórdia.<br />

Fez isto por jnuitas vezes Ião de veras , e<br />

acu(lÍQ-lhe tamanha forç* de choro, que<br />

to<strong>do</strong> se banhava em fervorosas lagrimas.<br />

Acabn<strong>da</strong> esta musica voltava-sc para aquella,<br />

que unicamente amava , digo a Iilerna Sapiência<br />

: c prostra<strong>do</strong> a seus pés, a<strong>do</strong>ra?a-a<br />

<strong>do</strong> mais iniimo de sua alma, e engrandecia<br />

com muitos louvores sua formosura, seu<br />

v;.lor, suas virtudes , sua braii/Iura , e liier-<br />

<strong>da</strong>de junta com eterna autori<strong>da</strong>de, e respei-<br />

que em nenhuma <strong>da</strong>ma <strong>do</strong><br />

to, c aí firmava ,<br />

inun<strong>do</strong> por formosaque fosse, estavão tam-<br />

,<br />

bém estas partes conm nella. Isto fazia com o<br />

canto, comas palavras, c'os pensamentos, e<br />

c'os desej(jscomo inelhorjjodia , cjuntament»<br />

estava desejan<strong>do</strong> de poder scr]H)i' mc<strong>do</strong>|e>p:ritual<br />

como uni messaffciro de Kt<strong>do</strong>s os corações<br />

namora<strong>do</strong>s , e conjo um golfo, e amoiUoamento<br />

de to<strong>do</strong>s os pensanienlos, palavras, e<br />

senti<strong>do</strong>s, (íue nascem <strong>do</strong> amor, para que assim<br />

^udi.ss« <strong>da</strong>r iou\orej á Sapicucia igtiaes coiu


Vru merecimento , pois poi outra parte se<br />

sentia indigno cie a poíier louvar. Em fim<br />

fallan<strong>do</strong> com ella lhe tlizia: Vós sois, ó ama<strong>da</strong><br />

minha, minha alegre paschoa , vós estio flori<strong>do</strong><br />

de meu coração , vós minha hora de ^osto<br />

Tcs sois aquella a quem só ama , e de quem ?6<br />

faz conta esta alma minha, e [-or cuja cansa<br />

tem <strong>da</strong><strong>do</strong> de míío a to<strong>do</strong> o amor mun<strong>da</strong>no.<br />

Pcço-vo8, Senhora, que me valhais nisto, e<br />

•[ue mereça eu hoje alcançar de vós uma.<br />

grinal<strong>da</strong>. Fazei-me , rogo-vos Senhora henignissima<br />

, esta mercê pol-a vossa liberali<strong>da</strong>de<br />

divina , pol-a vossa natural bon<strong>da</strong>de, e iiL'y<br />

permittaes, que neste principio de anno nie<br />

aparte eu de vós com as mãos vazias , que não<br />

estará isso bem a quem vós sois, ó <strong>do</strong>çura <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>. Lembre-vos Senhora, que testemunha<br />

de vós um leal servo vosso; que não se acha<br />

em vossa casa , sim , e n.lo , senão , sim , e<br />

mais sim. Eia pois alegria de meu coração<br />

<strong>da</strong>i-me por favor celestial uma aprazível, e<br />

graciosa capella, para que assim como a rece-<br />

Lem esses desatina<strong>do</strong>s ania<strong>do</strong>rcs <strong>do</strong> miin<strong>do</strong><br />

feita por mãos humanas , a^sim a minha ahna<br />

receba neste dia por meio <strong>da</strong>s vossas denientissimas<br />

, ó Salje<strong>do</strong>ria suavissima, alguma<br />

graça pajlicular, ou nova luz «m lugar<br />

de Janeiras. A esie mo<strong>do</strong> costumava o S».n-<br />

to fazer suas oraíúcs, e nuiica juniais ilnè<br />

4


^8<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

acontecia enganal-o a espertnç.i, com rjue<br />

entrava nellas.<br />

CAPITULO xr.<br />

Das considerações com que o Bento Fr. Hen»^<br />

rique cantava as pcLla^ras <strong>do</strong> Prefacio :<br />

Surstim Cor<strong>da</strong>.<br />

U -\Ia hora perguntavTo aFr. <strong>Henrique</strong> seus<br />

amigos , que tenção tinha (jiianJo cantan<strong>do</strong><br />

a Missa comc^^ava a entoar aqiieilas palavras<br />

<strong>do</strong> Vt^Íslcio Surs li fTz cor<strong>da</strong> (cuja sigoificaçào<br />

é, que se levantem, e suspirem a Deos os<br />

corações de to<strong>do</strong>s) , ])()rque ns dizia com tanta<br />

eíficacia , e scntimenío, ({ue espertava nos ou-<br />

vintes um particular movimouro de pied.ide ,<br />

e devaçào. Aos quiies o Santo P.uh'e com<br />

facili<strong>da</strong>de respondco desta maneira : Quan<strong>do</strong><br />

na Plissa pronunclavi estas palavras as mais<br />

<strong>da</strong>s vezes me acontecia derreter-se-me a alma<br />

e o coraçfío com ardentes sau<strong>da</strong>des, que naquelle<br />

ponto sentia de Deos, que eriio tacs ><br />

que me roubjvào o coração^ e m'o faziào sair<br />

de si. Era a causa três soberano» e poderosos<br />

pensamentos , ou discursos, qno em meu<br />

entendimento se moviáo , <strong>do</strong>s quao^ naquella<br />

hora se me oFfereciao ora um , ora <strong>do</strong>us , e ás<br />

vezes to<strong>do</strong>s três, e tinhuo força para mo en«.


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. 5^<br />

ferar , c nrrebatar to<strong>do</strong> em Deos , e por meu<br />

nuio íi Io<strong>da</strong>s as crealuras. O piiíneiro, (jne<br />

interiormente me occ.irria era esie. Prí)puiilia-me<br />

a mim mesmo diante <strong>do</strong>s oliios <strong>da</strong>l-<br />

lua lo<strong>do</strong> tamanho sou com alma , e corpo ,tí<br />

to<strong>do</strong>s rnc*us senti<strong>do</strong>s, e ao re<strong>do</strong>r de mim<br />

assentava Io<strong>da</strong>s quantas creaturas ha por to<strong>da</strong><br />

.1 parte íeitas por Dcos , lá nos (leos , cá na<br />

terra, e nos elenienios, e ca<strong>da</strong> inna por si<br />

nofuéii<strong>da</strong>inenle como as aves <strong>do</strong> Ceo, as fthas<br />

dv>s liosques, os peixes <strong>da</strong>s a^uas , e to<strong>da</strong>s as<br />

onsas qne a terra prodnz té a n)ils peqne»-<br />

,<br />

ra hervinlia <strong>do</strong> caníoo , as áreas <strong>do</strong> mar sem<br />


lOO VlDl DO B«\T(»<br />

convi<strong>da</strong> seus companheiros, qu« c^intcm al^<br />

giernsnte ,<br />

e levante-ii os cirações a Deos, di*<br />

2en


Fr. HirfRiQiE <strong>Suso</strong>. loi<br />

<strong>do</strong>s nas cousas temporaes. A estes to<strong>do</strong>s, e a<br />

mim com el!es piovncavti eu a tentarmos um.'t<br />

confia<strong>da</strong>, e desassombra<strong>da</strong> experiência de nos-<br />

sas forcas, c <strong>do</strong> que nos cumpre para a salvação<br />

com uma perfeita rennnciaçào de nó.^<br />

me.'.m(js, e de to<strong>da</strong>s as creaturas, dizen<strong>do</strong>:<br />

Sursmn cor<strong>da</strong>,<br />

C A IM T U L O Xir.<br />

Do mo<strong>do</strong> com que o Santo solemuizava ajista<br />

<strong>da</strong> Piir/Jicacuo d$ Nossa Sen/iora,<br />

X Res dias antes <strong>do</strong> em que a Igreja cclehia<br />

a festa <strong>da</strong> Puiiíicacão <strong>da</strong> ^ ii;'tm f{l(/rio-<br />

' DO<br />

sissima llie fabricava o Santo com su.is or;vçóes<br />

uma candeia , a qual fazia de tres jia-<br />

vios. O primeiro á honra de sua inteirissima<br />

pureza. O se^'un<strong>do</strong> em reverencia de sua imniensa<br />

humil<strong>da</strong>de. O terceiro ení veiieraciTo<br />

<strong>da</strong> digni<strong>da</strong>de d-e mài de Deoi, que são as<br />

tres exiellencias, em que esta Seidiora á<br />

avantaja<strong>da</strong> a to<strong>do</strong>s os nujrtaes. iLsta cautlt^iu<br />

espiritual , que di^^o começava tres dias antes<br />


loi <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Beito<br />

com sou divino penhor, (jonsideran^ío el-a em c()iiip:íuhii de io<strong>do</strong>s<br />

os corações, que amão a Oeos, m.\9> levan<strong>do</strong><br />

a to<strong>do</strong>s a dianteira em afíecio, e devaçãotr.dma.<br />

Na praça chega\a-se a ella, e pedia-!ha<br />

quizesse alli parar um pouco com s«u acoai-<br />

])anbamer.io,ein quanto a serviu com um Cân-<br />

tico , e logo começava á pressa I/nHo!(ita , eic,<br />

s ao<br />

templo com bymnos , e louvores. Antes <strong>da</strong><br />

Virgem entrar dentro , e entregar o lie Icmptor<br />

ao Saiuo Simeuo, cbe^ava-se de uuvo


Fr. Hexuique <strong>Suso</strong>. ioS<br />

a ella com um afervora<strong>do</strong> desejo, e com os<br />

joelhos em terra , e as niaos e olhos levanta<strong>do</strong>s<br />

pedia-lh»^, qiie lhe mostrasse o menino,<br />

e lhe desse licença para lhe beijar os pés ,<br />

qne consentin<strong>do</strong> a Senhora estendia o Santo<br />

seus hracos , e com elles juniamente to<strong>da</strong> a<br />

machina <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> , e tomava no cojlo o<br />

ama<strong>do</strong> Esposo tie sua alma , e n'um I^rcve<br />

espaço o abraçava cem mil Tezes, contemplava<br />

aquelles olhos formosissimos, e aqucllas<br />

muos de neve , beijava com humil<strong>da</strong>de<br />

lo<strong>do</strong>s aquellcs divinos membros, tenros , e<br />

pueris. Em fim contcniplan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>, e le-<br />

vantan<strong>do</strong> os olhos para o Ceo com espanto ,<br />

chorava em seu coração , to<strong>do</strong> pasma<strong>do</strong> de<br />

ver o autor <strong>do</strong> Ceo táo immenso, e aqui<br />

tão pequeno , tão formoso nos Ceos, e menino<br />

na terra. Alli se occupava to<strong>do</strong> com o<br />

bom JESU , ora cantan<strong>do</strong> , ora desfazcn<strong>do</strong>-se<br />

em la^rin^as , entreízne a to<strong>da</strong> a sorte?<br />

ue exercicios espirituaes. Idtimamenie enti egava-o<br />

a sua mai , e entrava com ella no tem?<br />

pio até se acabar to<strong>da</strong> a solemni<strong>da</strong>dc.<br />

o


io4 Ti<strong>da</strong> <strong>do</strong> Bbw»<br />

CAPITULO Xíir.<br />

Dê como se haí^ia o D, Fr. <strong>Henrique</strong> nos diat<br />

<strong>do</strong> entru<strong>do</strong>.<br />

Ao sabba<strong>do</strong> anles <strong>da</strong> Domin«:i^t dn Septusgesima,<br />

er.i que a Igreja deixa de cantar a<br />

âUeluia,- que é o tempo em que os honieii»<br />

mun<strong>da</strong>nos andáo mais soltos, e <strong>da</strong><strong>do</strong>s a desatinos<br />

e vícios com a visinbduça <strong>do</strong> entru<strong>do</strong>,<br />

ordenou Fr. <strong>Henrique</strong> de fazer para si cm sua<br />

alma um entru<strong>do</strong> celestial, por esta maueira:<br />

Considerava primeiro quão momentâneo ,<br />

t<br />

prejudicial era o gosto <strong>do</strong> entru<strong>do</strong> c.irnal ,<br />

e como os mais <strong>do</strong>s homens por um breve<br />

passatempo comprão dcsaventuras , e misérias<br />

prolonga<strong>da</strong>s, e rezíiva o iVilmo ào Mise^<br />

rsrs mei Deus em honra <strong>do</strong> Scnlior, e por<br />

to<strong>do</strong>s os pccca<strong>do</strong>s, injurias , e affrontas, que<br />

«e lhe faziáo naquelle devasso tempo, c a este<br />

chamava clle entru<strong>do</strong> de vihúos , como <strong>do</strong><br />

j^cntes, que por ignorantes não alcanção<br />

cousas mais altas. Depois meilitava nos ensaios<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> celestial , consideran<strong>do</strong> (onío Deos<br />

honra a seus servos ain<strong>da</strong> viven<strong>do</strong> na carno<br />

inf)rtal, e corruptível, quasi como passan<strong>do</strong><br />

tempo cora ellcs por meio de divinas consolarócs.<br />

Logij passava pela memoria tu<strong>do</strong> O<br />

que neste ^^enero liuba cip


Fr. HaKAíQri nt ivsol io6<br />

icompanlian<strong>do</strong>-o com multas graças, e louvores<br />

ao Senhor. Ain<strong>da</strong> no tempo de sua conversão<br />

teve o Santo um espiritual entru<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

Ceo , que passou desta maneira : No mesmo<br />

dia de entru<strong>do</strong> antes de Completas tinha-s«<br />

recolhi<strong>do</strong> o Santo a uma estufa, para S6<br />

aquentar, porque se perdia d« frio , e de fome<br />

, mas mui lo mór trabalho lhe <strong>da</strong>va a sede<br />

que juntamcnip padecia. E ven<strong>do</strong> alli<br />

,<br />

muitos que se fariavão de carne , e vinho<br />

quan<strong>do</strong> elle morria de fome e sede , sentio-se<br />

mover interiormente, e foi-se h)"o fuíiin<strong>do</strong><br />

pol-a porta fora arrancan<strong>do</strong> grandes suspiros<br />

<strong>da</strong>hna com dó, e compaixfio de si mesmo,<br />

mas na n^.esma noite teve uma visão, em que<br />

llie parecia que se achava em uma enferma-<br />

e <strong>da</strong> ban<strong>da</strong> de fora ouvia cantar um hy-<br />

e concer-<br />

que não se llie podia con)parar nenhuma<br />

ria ,<br />

nino celeslial com tanta melodia ,<br />

to ,<br />

bem acor<strong>da</strong><strong>da</strong> viola , c era a voz cc>n!o de i m<br />

moco de cscliola de i<strong>da</strong>de de <strong>do</strong>ze annos. i'icou<br />

lo*,'o Fr. Heni Iqiie esqneci(]o <strong>da</strong> pena<br />

que lhe <strong>da</strong>váo a<br />

mui atlento , e<br />

fome, e a sede , e estava<br />

cou» as orellias j^ronqUas<br />

ouvin<strong>do</strong> a musica. E dizia com o Icrvor <strong>da</strong><br />

alma quem é o que canta ahi tnra ? Ku não<br />

ouvi jamais na terra tão acor<strong>da</strong><strong>da</strong> harmonia.<br />

Eespontlia-lhe un: mancebo tle gentil dií^-poicão,<br />

que naquella hora checava : Sabtrci*


lo6 Ti<strong>da</strong> <strong>do</strong> Deit©<br />

que aquelle moço não vemcnTilarn oiiirem,<br />

seiíão a \ós, e p


Fk. Hl??RIQtTE Susd. 10^<br />

mzrlo , que un\e eu de to<strong>da</strong>s minhas forças<br />

este gracioso, e soberano menino? Merece<strong>do</strong>r<br />

é de ver<strong>da</strong>de que o ame. E se a mim me<br />

copstííra qual Ke sua vontade, íizer?.-]ha eu<br />

er.i to<strong>da</strong>s as maneiros. Logo tornava para o<br />

mancebo, que lhe dera o ramo, e dizia-ihe :<br />

Dizei-me por vi<strong>da</strong> vossa, ama<strong>do</strong> mancebo, parece-vos<br />

que íaço nisto o que devo? Ao que<br />

clle sorrin<strong>do</strong>-se respondia, njui Ijem o enteralei.s.<br />

Justo e deviJo é, que quei^ais mnila<br />

a quem com mais afieiçfLO vos olha, e quer,<br />

que a muitos outros. Pelo que vos Icndjro<br />

que façais pelo amar de to<strong>do</strong> coração, e que<br />

estejais apercebi<strong>do</strong> porque sabeis , que cumpre<br />

padecerdes inuiio ,<br />

e mais <strong>do</strong> que muitos<br />

outros padecerão. Tu<strong>do</strong> farei quanto dizeis,<br />

disse o Santo, de mui boa vontade , uías peço-vos<br />

que façais , que possa eu vel-o para Ih*<br />

agradecer este rico presente. Chegai ú janeU<br />

la , tornou o mancebo, e olhai. Abrio Fi\<br />

Henri(|uc a janella , e vio um moco como<br />

estu<strong>da</strong>nte de tão aoa!)a


io8 ViDÁ DO Beito<br />

C APITULO XIV.<br />

De como festejava o <strong>Beato</strong> Fr, <strong>Henrique</strong><br />

a entra<strong>da</strong> dc Maio,<br />

li A noite <strong>do</strong> primeiro dia clc Ivlaio rostiiniava<br />

o Santo coíherespiriíur.liiieute, Ci^uinr<strong>da</strong>rpara<br />

si um rair.o verde, ao qual vencr.na<br />

«iguns dias eoni oraçoens quotidiaras. E<br />

como para haver este ramo não pude nuuta<br />

achar arvore mais fresca entre to<strong>da</strong>s as que<br />

ílorccem na terra por mais bellas, e l)eni as-<br />

sonibia


Fr. HEi^RiQrE Scso.' 105<br />

traijhavel. Em segun<strong>do</strong> lugar te offereço por<br />

io<strong>da</strong>s as violas, que nascem á íace ('o chão<br />

«ma humilde sujeição. Tw teneiíí) por to<strong>do</strong>s<br />

os cheirosos lirií)s um ahraco de |'ureza. Em<br />

quarto um espiritual osculo d'aln a por to<strong>da</strong><br />

a sorte de lin<strong>da</strong>s, e agracia<strong>da</strong>s flores tanto<br />

em frescura , como em cores, que neste Verão<br />

criarem ou tenháo cria<strong>do</strong> <strong>da</strong>ntes ou hajão de<br />

criar depois os matos , os pia<strong>do</strong>s , os bosques ,<br />

as arvores, os jardins, e os campos. Em<br />

quinto lugar te oiiereco louvores iiifinilos<br />

de minha alma p»l-a musica, que to<strong>da</strong>s as aves,<br />

derem<br />

que olegremtntc voão por estes ares ,<br />

<strong>da</strong>qui té o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sohje quaesquer<br />

raminhos de arvores. Em sexto por to<strong>da</strong> a<br />

sorte de graça , e frescura, que o \ eifo óde f<br />

comníunjcar a uma planta, te engrandece<br />

hoje meu coração com espiritual armonia rogan<strong>do</strong>-te<br />

que me sorcorras , , ai vor


lio VlDÀ DO Be1T«<br />

CAPÍTULO XV.<br />

La maneira, que o B. Fr. <strong>Henrique</strong> ncfímpa'<br />

nhn\*^a a Christo em to<strong>do</strong>s os passos dê sua<br />

sagra<strong>da</strong> Paixão,<br />

J Eve o <strong>Beato</strong> Fr.. <strong>Henrique</strong> no priucipio<br />

de sua convciião muitas consoUoóes , e inin>o5<br />

<strong>do</strong> Geo , cem que Deos o recreou por<br />

muito tempo , <strong>do</strong>s quaes vivia tão satisfeito ,<br />

que tu<strong>do</strong> o que era tratar <strong>da</strong> gloria , e divin-<br />

<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Senhor era para elle suave ,<br />

e tlelc:toso.<br />

Mas se queria lembrar-se de sua paixão,<br />

ou pòr-se em <strong>ordem</strong> de a imitar cm alguma<br />

parte ,<br />

nenhuma cousa sentia mais desabri-<br />

cki , nem mais áspera delevaraocal^o. Donde<br />

nasceo , quo o Senhor o reprehendeo ; um cha<br />

asperamente lhe disse: Tão mal sahcs tu que<br />

sou eu a porta, pela qual é torcailo entrarem<br />

e passarem tc»d.">s os venladciros amigtjs de<br />

Dvíos, que pretenderem alcannar gloria P Onvjm<br />

, sem duvi<strong>da</strong> , que passes pelas atílicçóes<br />

de minha atribula<strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de coníornian<strong>do</strong>-te<br />

com ella se queres de ver<strong>da</strong>de chegar<br />

á divin<strong>da</strong>de nua e perfeita. Ficou Fr.<br />

Henriíjutí temeroso desta pratica , e trabaliiava<br />

por se applicar ao que o Senhor lhe<br />

dissera, alu<strong>da</strong> que coiu grande repugnância


Fr. Hknriqtje Srso. iti<br />

le s^u gosto. E assim começou a apprender<br />

uma sciencia, em que <strong>da</strong>ntes estava rude,<br />

eritregaii<strong>do</strong>-se to<strong>do</strong> com o animo rendi<strong>do</strong><br />

nas li, aos de Deos. Dahi em diante to<strong>da</strong>s<br />

,is noites depois de Matinas leeolhen<strong>do</strong>-se no<br />

Capitulo, cí>£tuma\a exerci lar-se em uma representação<br />

ao tívo <strong>da</strong> Paixão de Chiislo fazen<strong>do</strong><br />

conta, que o acompanhava, e padecia<br />

juntamente, assim nos passos, que an<strong>do</strong>u,<br />

"omo cm tu<strong>do</strong> o mais que por nós padecco,<br />

Passeava de canto a canto para deitar de si<br />

(' sono , e a | reguiça , e estar n~iais prompto,<br />

e sentimento<br />

€ mais esperto na ir.ediíação ,<br />

(ia sagra<strong>da</strong> l^aixão. O lugar <strong>do</strong>nde cemeçava<br />

eia o <strong>da</strong> ultima céa. Daqui saía com Cliristo ,<br />

e con ia com ellc to<strong>do</strong>s aquelít^s lugares sagra<strong>do</strong>s<br />

sem dei::ar nenhum te o trazer diante<br />

de Pilatos. Em fim reeehia-o sentencia<strong>do</strong><br />

ú nicrte d ante o trihunal, e passava com elie<br />

aquelle lastimoso caminho , que o l)om JE.SL^<br />

íez tom a Cruz ás costas des<strong>do</strong> mesmo lugar<br />

té o monte Calvaiio. A cruem que legava<br />

neste can;inho <strong>da</strong> Cruz era a seguinte: Cliegau<strong>do</strong><br />

á poila <strong>do</strong> Capitulo paia sair, pr'-<br />

ineiro que tu<strong>do</strong> com os joelhos eui terra<br />

beijava as pisa<strong>da</strong>s <strong>do</strong> Senhor, une fazia conta<br />

que saía j)or alli já coiidemna<strong>do</strong> a morte , e<br />

camiidiavn para o lugar delia, e aqui rt7a\n o<br />

i*jiaimo : Ltm JUius uicus i íípice iii mt . cie. ^


tí% <strong>Vi<strong>da</strong></strong> D5 B]e4T'í<br />

assim saía pftla porta fora, e fa <strong>da</strong>n<strong>do</strong> rol li<br />

pt!ii oTiiSU ,<br />

jndtí tinha f-.<br />

giiiaçã'» ciuatro píaias, p- ií<br />

passar em co;iipa[íh;a co oeníii>r, í ÍJ<br />

á priineira passava-aroni ílc5ejo,e .. . :iá«<br />

cão de largar todus os bens te:nporaes, amigos<br />

, e hizeud.i , e padecer em h,>:ra, e louvor<br />

de Christo um desterro


Tm, Henriqui Scío. ti3<br />

% lastima disto não arrancasse lagrimas , e<br />

gemi<strong>do</strong>s de compaixno. Che;2[andt> á qujrta<br />

e ultima praça lançava-se de joelhos no meio<br />

delia, f izen lo cont;» que o fazia diante <strong>da</strong><br />

porta <strong>da</strong> LÍ<strong>da</strong>


.11<br />

Logo «e levantava ,<br />

Ti<strong>da</strong> no <strong>Beato</strong><br />

c loniavn a caminhar traí!<br />

o Senhor até o alcanrar , e se pur á sua ilhar-<br />

ga. E isto ain<strong>da</strong> que ima^inatlo, tiriha-o algumas<br />

vezes tão presente , como se corporalmente<br />

o acompanhara. E ven<strong>do</strong>-o rão só<br />

considerava cmijo iiuin<strong>do</strong> Ell\cl David de<br />

íeii filho Absalão, nunca lhe taltaião sol-<br />

cla(h)s valorosos , que o aconipaiiha\ ã") , c familiarmente<br />

lhe assistão a um , e a oulro<br />

la<strong>do</strong>. Aqui rendia , e renunciava to<strong>do</strong> seu<br />

queier, é vontade nas mãos aivinns , resoluto<br />

em não cngeiíar na<strong>da</strong> de lu<strong>do</strong> quanlo<br />

Deos quizcsse ordíiuir delle. Depois trazia á<br />

memoria aqucila iicão <strong>do</strong> Propheia Isaias,<br />

que se iêna Sexta feira <strong>da</strong> Semana Sania , e<br />

começa : Domine quis ctedidit auditui nosfroy<br />

efe; na qual se pinin ao vivo esta saí<strong>da</strong> <strong>do</strong> Senhor<br />

})ara o Uíonte Calvário. Com esta con-<br />

«ideiação entrava pela porta <strong>do</strong> choro, t<br />

luhia-se ao preshyíerio <strong>do</strong> alur, e alii lancan<strong>do</strong>-se<br />

por terra diante de uma Cruz f>cdia ao<br />

boni JESU, que lúo c[uizcs5e consentir vel-o<br />

tparta<strong>do</strong> ilo si em tempo al-itim, nem na<br />

morte, nem na vi<strong>da</strong>, nem r.«s boas vcntur.is,<br />

nem nas adversielade>. (Costumava tamhem o<br />

8anlo fazer outro caminho espiritual <strong>da</strong> -Crui<br />

p


Tsi, Hr-^R:QUE Sn5o, Ii5<br />

puUhro He sen Filho, cerca<strong>da</strong> de um mar de<br />

<strong>do</strong>res, e iiiKí^iriava que erfio horas de a recolher<br />

para casn, e (jue este o-ficio estax-a a<br />

ma conta. K assim fazia tros vénias em espirito<br />

, e a ca<strong>da</strong> uraa deílas beijava o chão , &<br />

desta maneira a acompanhaTa até casa. A<br />

priíneiía vénia fazia junto <strong>do</strong> Sepulchro ;<br />

porque tanto que se começava a Sa/í^e inclinava<br />

sua alína^aos pés <strong>da</strong> Senhora, e toma-<br />

va-a euí seus braços espiritualmente , e alli<br />

chorava a desconsolação <strong>da</strong>quelle peito riiaternal<br />

cheio de amargura , de desprezos, de<br />

afrontas , e de mui aiuargosa tristeza , e consolava-a<br />

com lhe lembrar, qiuí em recompensa<br />

destes trabalhos era agora Ikiirdia poderosa<br />

, Rainha de misericortha , vi<strong>da</strong>, <strong>do</strong>çura,<br />

e es[)erança nossa. Chegan<strong>do</strong> ás portas<br />

de Jerusalém adiantava-se um pouco, ©<br />

viran<strong>do</strong> para traz punha os olhus nella<br />

ven<strong>do</strong> qcnía nostra^ ctc. encouimen(hi*a-<br />

lhe que estivesse de hom animo,<br />

pois já era de tod.» o género humano ativoga -<br />

<strong>da</strong> dijjuissima, c rogava-ihe que puzesác neilíÇ


os sens pirclosos olhos pelo amor <strong>da</strong>qiielle la»<br />

tiniosí), e niagon<strong>da</strong> aspeito, que trazia, elhe<br />

mostrasse bran<strong>do</strong>, e benigno, depois <strong>do</strong> deslerro<br />

desta vi<strong>da</strong>, a JP>jli fruito l>emdilo de<br />

seu ventre. A terceira vénia fazia ás portas <strong>da</strong><br />

casa de Santa Anna , mãi <strong>da</strong> Senhora , aonrlt<br />

entrava desfazen<strong>do</strong>-se em lagrimas, e encommen<strong>da</strong>va-se<br />

em sua brandíssima misericór-<br />

dia, e em sua brandura misericordiosissiiiia<br />

com as devotas palavras : O cUmens ^ o pia,<br />

o diílcis Mriria , ^ pedia -lhe que na hora <strong>da</strong><br />

iMorte recebesse sua ulma pobre, e desterra<strong>da</strong><br />

, e a levasse, e a defetulesse <strong>do</strong>s inimigos<br />

iufernaes, e enraminhasíe pelas portai <strong>do</strong><br />

Ceo á porta <strong>da</strong> eterna beiuaventurança.<br />

CAPITULO XVÍ.<br />

Do cui<strong>da</strong><strong>do</strong> com que o B. Fr, <strong>Henrique</strong> f^uar*<br />

<strong>do</strong>u a virtude utilUsiuia <strong>do</strong> iilencio.<br />

X ínba o B. Fr. Henri(}ue grandes impulsos<br />

interiores que o obiií;aAã


Fn. He^aíQUí <strong>Suso</strong>. iiy<br />

^lebrou o sileiuio senãt) foi uma vez co»<br />

mcn<strong>do</strong> em urna iiáo com niuiios Fr-des,<br />

com qne vinha de íJopilulo. E para se fazer<br />

mais senhor <strong>da</strong>. língua , e !iáo ser arremessa<strong>do</strong><br />

no tallar tonjou em sna iiiíaginacão<br />

três mestres sem cnja licença partirular<br />

não fallava. flsicí erão os Padres S. Domingos,<br />

Santo Arsénio, S. Ocrnartlo. Haven<strong>do</strong><br />

de dizer al^nina cousa h)^o em seu pensamento<br />

os corria to<strong>do</strong>s , pedin<strong>do</strong> licença a<br />

ca<strong>da</strong> um , e dizen<strong>do</strong> : Jube Domine Oenedicert,<br />

E se o que queria dizer se podia fazer em tempo<br />

, e Ingar acínnmo<strong>da</strong><strong>do</strong> , fazia conta que<br />

tinha licença rio prinieiro. E se estava certo<br />

que <strong>da</strong> pratica lhe rifio nasreria renhuni inconveniente,<br />

ou embaraço de fór,^ , linha<br />

também licença <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> , e se sentia que<br />

o que queria íallarlhe não causaria desassocego<br />

alguíu, ou alteração interior, já então<br />

havia que toJos ires lhe <strong>da</strong>va o licença , e assim<br />

acabava de soltar o que queria dizer. Mas<br />

se lhe acontecia entender outra cousa neste<br />

exame , parava , e não saía <strong>do</strong>s limites <strong>do</strong> silencio.<br />

Quan<strong>do</strong> acodia á portaria chama<strong>do</strong> por<br />

alguém, procurava guar<strong>da</strong>r (jualro cousas.<br />

A primeira atalhar a lo<strong>do</strong>s com benigni<strong>da</strong>de.<br />

A segun<strong>da</strong> concluir em poucas palavras.<br />

A terceira não deixar ir ninguém desconsola<strong>do</strong>.<br />

A quarta tornar para a bua celiu senj


1 1? <strong>Vi<strong>da</strong></strong>. <strong>do</strong> Beito<br />

Icviír nenliiim <strong>da</strong>nino <strong>da</strong> conversação ou lhe<br />

íicar preso nelia albina atíecto (U TontaJe.<br />

CAPITULO XVÍÍ.<br />

D;iS asparas penitencias com que o D, Fr»<br />

Hcnriqiis inorfiJicai\i. sua carne,<br />

XLPia Fr. Henri|ne em sim moci<strong>da</strong>de dt<br />

unici uatine/a deprava<strong>da</strong> , e lasciva , e torno<br />

ia entra fidi) na i<strong>da</strong>de roniecaváo os vieios a<br />

<strong>do</strong> que o Saiilo re-<br />

fazer nella grande ahalo :<br />

cebia assaz desgosto conheren<strong>do</strong> quão pesa<strong>da</strong><br />

era a targa <strong>da</strong> huinanulaíle in:d mortifica<strong>da</strong><br />

, quanto mais de seu próprio corpo.<br />

Por esta rasao inventava nuiiias cousas sagazmente<br />

traça<strong>da</strong>s , e afliij^ia seu corpo com<br />

cruéis penitencias , trabalhan<strong>do</strong> pelo trazer<br />

sujeiío ao espirito. Priuieiramente trouxe<br />

muilo tempo um cilicio , e unia cadèa de<br />

feiro cingid.i no corpo , alé quví pelo muito<br />

sangne que Ibe Sciía <strong>da</strong>s cliaga> ,<br />

, cpie lhe cau-<br />

sava , fui forca<strong>do</strong> a tiral-a. Maiulou secretamente<br />

fazer umas ciroulas ile áspero cilicio,<br />

e nella^ umas filas para se alar, em que havia<br />

cenio c cincoenta agulhas de metal adelgaça<strong>da</strong>s<br />

á lima, cujas pontas lia/.la sempre \ ira<strong>da</strong>s<br />

para a rarne. Estas íirt)nlas erào muito<br />

justas, e pela dianteira aperta<strong>da</strong>s para §•


Fr. Hsxktqub Sus(í. 119<br />

clicgarem mais ao corpo, e afsitn enlrarera<br />

as naulhas mais luía cai no, e cheíiavão-rue<br />

ale o eiubigo, e aornua com cii.is ue noiíe.<br />

Neste tornienlo parsava as calmas <strong>do</strong> Estio ,<br />

(juan<strong>do</strong> viisha de fura afronta<strong>do</strong> <strong>do</strong> camijjlio,<br />

e desíaleci<strong>do</strong> dfe forças, e alento; ou cjiian<strong>do</strong><br />

acabava de ler sca<strong>do</strong> mestre ; e de nia-<br />

Ticira jizla aperta<strong>do</strong> , que tanibom os bichos<br />

lhe fazião guerra, o assim força<strong>do</strong> <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de,<br />

ora se encolhia, ora se torcia,<br />

ora se revolvia de uma ban<strong>da</strong> para outra ,<br />

como faz um bicho, se o. picão com uma<br />

aí>ulha. finitas vezes ficava taí <strong>da</strong> guerra, c[ue<br />

lhe fazlào os } iollios , como se estivera rodea<strong>do</strong><br />

de muitas formigas; porque ou quizesse<br />

cerrar os olhos , ou estivesse já <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong><br />

saitavão nelle, e moru*ião-no, e bcben<strong>do</strong>-lhe<br />

o sangue o atormenta VuO cruelmente.<br />

Nestas occasiões costumava algumaí;<br />

vezes dizer a Deos de to<strong>do</strong> coiaçrio : O* meu<br />

Deos , e quáo penosa morte é esta qna de uma morto abbrevia<strong>da</strong> :<br />

mas eu jazen<strong>do</strong> entre bichos, e cerca<strong>do</strong> del-<br />

]es, vejo-ine uorrer de coníínuo , e vejo que<br />

n.Vo posso acabar, e to<strong>da</strong>via consentir tan-<br />

tas penas: nunca pc»k' acabar


fao TiDÁ Da Beitô<br />

Antes i^kTi ter menos allivio accrescentom<br />

outra cousa de novo. Lanrou ao nescoço um<br />

pe<strong>da</strong>ço de cinto, que Ilie 6cava como colar ,<br />

e iieile pegou artificiosamente duas manilhas<br />

feitas de couro, nas quaes nieilia as mãos^<br />

e as fecli.iva, como em aljeinns , com <strong>do</strong>us<br />

cadea<strong>do</strong>s, easchaves delies punha sobre um<br />

banco , dianfe <strong>do</strong> leiro , eni que jazia , e não<br />

se soltava senuo quan<strong>do</strong> eriío horas de se le-<br />

Tantar para as Matinas. FicaviTo-ihe os braços<br />

pega<strong>do</strong>s na garf^anta, e estendi<strong>do</strong>s para<br />

cima , e era a prisíTo tào íirmc , que bem se<br />

lhe podia qileimar a cclla ,<br />

e o Mosteiro to<strong>do</strong><br />

sem ellc ser poderoso para st rcmedear em<br />

na<strong>da</strong> como nuo usasse <strong>da</strong>s chaves. Conúnuou<br />

neste martjrio tanto tempo, que lhe começarão<br />

a tremer as mãos e braços em j^randc<br />

maneira por se aperíar tanto. ílntão buscou<br />

outra invenção. Fez fazer un; as luvas <strong>do</strong> couro<br />

como as de que usfío os trabalha<strong>do</strong>res vm ofíicios<br />

perigosos para as mãos , c os lavra<strong>do</strong>res<br />

para arrancar car<strong>do</strong>s, e espinhos, « nianflou-as<br />

semear to<strong>da</strong>s de preguinhos tle bronz*<br />

de pontas agudiís, e calçava-as de noite pari<br />

que assim se ferisse, e magoasse se acaso <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong><br />

quizesse afastar de si , ou afiouxarai<br />

ceroulas de cilicio, ou \aler-se de alguma<br />

maneira <strong>da</strong>s mãos contra os bichos, quan<strong>do</strong><br />

o comessem , e assim lhe acoutçceo , qu«


Fr. HEríniQTii Soso, laj<br />

^ucrerulo-se aju<strong>da</strong>r díS muos (luan<strong>do</strong> <strong>do</strong>r-*<br />

mia , e coçan<strong>do</strong>-se nos peitos com os pregos,<br />

abria as carros tão crua , e feamcnte, que pa-<br />

reci<strong>do</strong> rasg^a<strong>da</strong>sdts unhas de al^um usso ,<br />

chegava a esta<strong>do</strong> que lh« inchavào os braços<br />

, e os peitos. E sen<strong>do</strong> as feri<strong>da</strong>s ta«s, que<br />

nao sarava delias senão a cabo de muitos dias,<br />

com tu<strong>do</strong>, em sen<strong>do</strong> são logo tornava d«<br />

novo ao mesmo tratamento. Neste penoso<br />

exercício, ou por melhor dizer martyrio<br />

coutiniíou o Santo dezeseis annos: no cabo<br />

cios quaes reírian<strong>do</strong>-se-lhe já a naUireza , •<br />

sentin<strong>do</strong> muitas contrarie<strong>da</strong>des e misérias<br />

delia , teve uma visão de Anjos , em um dia<br />

de Pentecoste , que lhe certiGcárão ser Deos<br />

servi<strong>do</strong>, que não padecesse mais tal trabalho,<br />

e elle obedecen<strong>do</strong> logo, e d.*«.lstin<strong>do</strong><br />

de tu<strong>do</strong> lançou n'um rio to<strong>do</strong>s aquellcs iastrumentus.<br />

CAPITULO XVIII.<br />

De uma áspera CrnZy que ó <strong>Beato</strong> Fr, Henri»<br />

que trouxe entre as tspa<strong>do</strong>as,<br />

OOhre to<strong>do</strong>s os outros exercícios de pe«<br />

niiencia, que o B. Fr. <strong>Henrique</strong> continuou,<br />

levava-se com grande gosto <strong>da</strong>quelas<br />

que lhe faziãg tiaztí; cia seu cor*.<br />

e


I5i2 Yicr no Br ATO<br />

po algum sinal cie compaixão experiment^T,<br />

e sensível <strong>do</strong>s cruéis toniienlos qiu? o Senhor<br />

padeceo na Cruz. E a esic fim fabricou par<br />

suas mãos unia Cruz de pão <strong>do</strong> comprimento<br />

de um palmo , e de lurgura proporciona-<br />

<strong>da</strong>, e pregou nolla trinta cravos em honra , c<br />

memoria de to<strong>da</strong>s as chagas cora queChrisio<br />

testemunhou o grande amor que teve ao género<br />

humano. Esta Cruz assentou nas costis<br />

soljre a carne r.úa estendi<strong>da</strong> entre as espa<strong>do</strong>as<br />

e trouxe-a oito annos couiínuos de dia e de<br />

noite, em louvor de Cl»»iisLo seu Senhor crucilicad.o.<br />

No derradeiro ar.no accrescenlou<br />

mais sele agulhas , cujas pontas íuguravão a<br />

Cruz pelo meio, e saião a outra parte, fican<strong>do</strong><br />

nella bem reíirma<strong>da</strong>s , e corta<strong>da</strong>s pela<br />

parle de cima. O sangue e <strong>do</strong>res, que tsias<br />

llic causavão rccel)ia á honra <strong>da</strong>quella dòr<br />

penetrante, c agudissima, com que foi trespassa<strong>do</strong><br />

o corai:ão e alma <strong>da</strong> Virgem sagra<strong>da</strong><br />

j)a morte de seu filho. A primeira vez que<br />

poz esta Cruz, e a apertou comsigo , assoiubrou-se-lhe<br />

a natureza como delica<strong>da</strong> que<br />

era, e ficou cheia de pavor. Pelo que com<br />

uma pedra embotou um pouco as pontas <strong>do</strong>s<br />

cravos. Mas logo sentin<strong>do</strong> ver-sc venci<strong>do</strong> de<br />

tal pusillanimi<strong>da</strong>de, fornou-os a apontar to<strong>do</strong>s<br />

com uma lima, e pol-os sobre a<br />

carne* JBai to<strong>da</strong>s as parUíS <strong>da</strong>s costas , oni]#


Tr\, Luiz db Socsa. Ii3<br />

na o«.sos, que sáeni para fora, a Cruz Ih»<br />

ínzia sangue, e chaga. Quan<strong>do</strong> qtier qud<br />

an<strong>da</strong>va ouse deitava parecia-ihe que an<strong>da</strong>va<br />

vesti<strong>do</strong> oní unia pelle de ouiico. Se alguém<br />

desatlentad;nnente lhe tocava naquelia parte<br />

ou o empuxava, nutgoava-o. Com wui s6<br />

lenicílio lhe pareceo que faria loieravel tão<br />

trahalhosíi Cvuz, e foi entalhar como entahiou<br />

nas costas delia o salutifero nome<br />

de JÈISU. Alem <strong>da</strong>s afriicçóes ordinari;:s ,<br />

qtie o Sa?ito padecia com csia Ciuz, , duas<br />

vezrs ca<strong>da</strong> dia se disciphnava com ella<br />

por este mo<strong>do</strong>: Dav2«lhe punlia<strong>da</strong>s em cima,<br />

e os cravos en lia<strong>do</strong>s pela carne , prega vfio-so<br />

de maneira , que era necessário para os tirar<br />

de^pir-be primeiro. Isto sabia fazer tão encobertameiite,<br />

e


1*4 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Biato<br />

com «tenção e nnimo de se não apartar nnn(?€<br />

deChristocruciíicatlo. Em oulrasoccasióesse<br />

mal tratava tambetn <strong>da</strong> in«sjiu maneira, mas<br />

isto nfio ern Sfínào f|u.ni{lo ihe aconteria ter<br />

gosto demaslatlo no coriici- , ou no hcbcr ,<br />

oii em COUS3S similliantes. Aconieoeo um<br />

dia, que estan<strong>do</strong> senta<strong>da</strong>s com elleduas<strong>do</strong>nlelias<br />

cm lugar púbico, e (iuiile de multa<br />

por liiscui<strong>do</strong> ibes tomou as niaos sem<br />

gfntc ,<br />

pretençao , nem pensamento mvío ; mas l>om<br />

(iepressa llie pe.sou assaz, entenden<strong>do</strong> qne<br />

riào era raz;To passar tal í ;ingc!icos, qnesc-mpre >iidK'Ío<br />

aconipanlial o eui suas meditaç.Vs. Do[)ois<br />

queren<strong>do</strong> já re


Fa. Lui2 ox Sot?si. la^<br />

Ha casa, e Corren<strong>do</strong> partioularinente os San»<br />

tos , que fazia conta eiiavão á ro<strong>da</strong>, ferio-s*<br />

<strong>da</strong> mesma maneira trinta vezes de mo<strong>do</strong>, (jue<br />

llie corria o sangue pelos hund)ros abaixo em<br />

abundância. As«im purgou c: uelmi nte aquel*<br />

la deleitação, que lhe parcceo recebera desordena<strong>da</strong>.<br />

Acab.id^s as Matinas, recolhi<strong>do</strong> no<br />

oratório <strong>do</strong> Capitulo em um lugar aparta<strong>do</strong>,<br />

que costumava , prostata-se cem vezes com<br />

o rosto C!n terra , e beijava o chão, e outras<br />

tantas lazia o ?nesmo posto de joeliios , e para<br />

ca<strong>da</strong> vez que beijava o cliàfo de uma maneira,<br />

e de outra , tinha suas particulares medita^ç5es.<br />

Daqui saía sempre mui trabalha<strong>do</strong>;<br />

porque Como trazia a Cruz fortemente aperta<strong>da</strong><br />

lio corpo , e muito mais checa<strong>da</strong>, e cosi<strong>da</strong><br />

com a carne , <strong>do</strong> que audão as cor<strong>da</strong>s<br />

que se at\o em rasos para servir, e como an»<br />

<strong>da</strong>n<strong>do</strong> desia maneira se debruçava cem vezes<br />

para l)eljai a terra ; a


laO Yj<strong>da</strong> 130 Deato<br />

r^níi-o rn]>ilr ãc uma parle e cVoulra ri»<br />

Miiia-i nofiias fie bronze agu<strong>da</strong>s cônio de fu-<br />

ra<strong>do</strong>r , e d'» meio <strong>do</strong> azorrague para diante<br />

que fica\áo pej^^a<strong>da</strong>s<br />

saííTo nois duas p*)nías ,<br />

com cala uma <strong>da</strong>s prlineiras, dejnaneira que<br />

vinha a Si^r ca<strong>da</strong> uir.a de três I)icos quan<strong>do</strong><br />

,<br />

<strong>da</strong>va a panca<strong>da</strong>, e feria. Com esta disciplina ,<br />

levaiitan<strong>do</strong>-se antes de corneçarein Matinas ,<br />

se ia at> Coro diante <strong>do</strong> Sanlissi;iio Sacramento,<br />

e diciplinava-se asperamente por uni<br />

])oni espaço , e isto fez até que soube qne to<strong>do</strong>s<br />

os Frades o linhão já senti<strong>do</strong>^ pr.rque<br />

desde então cessou. Em dia de S. Cíemcnle ,<br />

quan<strong>do</strong> comera já a entrar olnxrriio, lhe<br />

íconteceo unii vez fazer uma coiifiísão geral,<br />

e como foi noite, que tu<strong>do</strong> estava cala<strong>do</strong>,<br />

íechou-se na cella, e despir<strong>do</strong>-se de to<strong>do</strong>s oi<br />

vesti<strong>do</strong>s, íican<strong>do</strong> com as cerot<strong>da</strong>sde ciliiio ,<br />

que trazia , nçoutou-se de maneira até nas<br />

pernas , e bryços , que o sani^Tic que de<strong>do</strong><br />

corria não era menos que sclòri de cutila<strong>da</strong>s<br />

de uma esjj.uia. Tinha o azorrií^^ue uma <strong>da</strong>s<br />

pontas revolla, como gancho, ou anzol. (\v.e<br />

tu<strong>do</strong> o em que pegava <strong>da</strong> carue arrancara<br />

fora. Foi tal, e tão atura<strong>da</strong> a força desta<br />

diseijjHna , í{ue lhe qnelnou o azorrague, o<br />

feito em três pe<strong>da</strong>ços foi <strong>da</strong>r nas paredes <strong>da</strong><br />

cel!;í, íir.iiulodhe outro pe<strong>da</strong>t:*) nas máos. Estan<strong>do</strong><br />

p.ds ussiai tc<strong>do</strong> (.nvulro cm sangue , •


Fr. Luiz de S uíaJ 1^7<br />

olhan<strong>do</strong> para si considerava a miserarel figu*<br />

ra de seu corpo , e muitas vezes cui<strong>da</strong>va que<br />

arreuie<strong>da</strong>va bcni ao vivo ao mesmo (^hristo<br />

quan<strong>do</strong> foi açouta<strong>do</strong> na columna. Logo começou<br />

a cluiriír agramente de uma compai-<br />

xão de si mesmo. Eassi.n como estava nú, e<br />

banhan<strong>do</strong> em s;íngue , e j)or aquelie frio <strong>da</strong><br />

Inverno, pon<strong>do</strong> os joelhos em terra , pedia a<br />

Deos, que lhe per<strong>do</strong>asse to<strong>do</strong>s seus pecca<strong>do</strong>s.<br />

Depois disto outra vez em um Domingo <strong>da</strong><br />

Quinquiigesima (que eráo dias em que costumava<br />

tomar disciplina) «stan<strong>do</strong> os Fradeô<br />

na me/a, mettl<strong>do</strong> na cella^e as roupas íóia,<br />

5e açoutou com a niesma deshumani<strong>da</strong>de, fican<strong>do</strong><br />

to<strong>do</strong> lava<strong>do</strong> em sangue; c queren<strong>do</strong><br />

apertar de novo comsigo com mais aspereza<br />

acudio um Frade aos som dus golpes , que<br />

<strong>da</strong>va com a disciplina , e assim parou por en»<br />

tao , n)as para sentir mais tormento' lavou<br />

as chajTj.is com sal e vinagre. Em dia de S,'<br />

Bento, que íui o cm que Fr <strong>Henrique</strong> nasceo<br />

a horas de janiir , recolheo-se erii seu ora-<br />

tório, e fechan<strong>do</strong>-sc por


f a8 Ti<strong>da</strong> 9o JízLtd<br />

c abundância, que lhe corria até os pét, fe<br />

alagAva o sobra<strong>do</strong>. Logo lhe inchou o braço,<br />

e se lhe fez nesrro : <strong>do</strong> que íit an<strong>do</strong> o Santo<br />

atemoriza<strong>do</strong> nao se alreTeo a ir por diante.<br />

No mesmo tempo ^ e liora que aisim se açoutava<br />

, uma snnta <strong>do</strong>nzella por nome Anna ,<br />

que estava em orai áo tni outra ci<strong>da</strong>de , foi<br />

leva<strong>da</strong> em visão ao mesnío lugar, e vistos<br />

os temerosos golpes , que se <strong>da</strong>va , cheia de<br />

compaiião, chegou-se perto, e in<strong>do</strong> o Santo<br />

uma vez com o braço esiendi<strong>do</strong> para se ferir,<br />

de maneira<br />

•lia se atravessou ao azorragne ,<br />

que lhe pareceo que ton.ara lo<strong>do</strong> o golpe em<br />

um braço , e cm fim toman<strong>do</strong> em si achou<br />

a panca<strong>da</strong> sinala<strong>da</strong> no braço , e a carne alli<br />

pica<strong>da</strong> 5 e negra , e este sinal evidente por<br />

argumento certo • ver<strong>da</strong>deiro <strong>da</strong>s ásperas<br />

penitencias de Fr. <strong>Henrique</strong> lhe ficou bem<br />

de ver<strong>da</strong>de<br />

l^mpo.<br />

impresso nas carnes por muito


Fr. <strong>Henrique</strong> Srso. 129<br />

CAPITULO XIX.<br />

Da camcij que. o <strong>Beato</strong> Fr, llenrique usava*<br />

J. ^^ Káte n^esmo tempo houve Fr. <strong>Henrique</strong> ás<br />

jnãos iiu;a<br />

e níeltoo-a<br />

po; ta vellia que j:i nào servia,<br />

,<br />

ua sua cella junto <strong>da</strong> cama, e<br />

cosluniCTa a <strong>do</strong>rmir nellasern nenhum mo<strong>do</strong><br />

decoboitor: somente teceo por suas mãos<br />

un»a esU:ira de- junco bem j:ieli,M<strong>da</strong>, que tinha<br />

posta sobre a porta , e nuo lhe clic^ava mais<br />

que até os joullios para a caberá em luijar<br />

;<br />

decaljeceira poz um saquinho <strong>do</strong> palha de<br />

avea , e sobre elle outra almofadinha bem<br />

pequena. Nenhuma cousa totalmente tinha<br />

<strong>da</strong>s que servem , e se usào na cama , e deita-<br />

Ta-se, e <strong>do</strong>rmia de noite assim como an<strong>da</strong>va<br />

de dia dcfcalian<strong>do</strong> somente os sapatos, e co-<br />

Lrin<strong>do</strong>-os com uma capa grossa, e assi era<br />

cousa mui pie<strong>do</strong>sa ver o couío ja/ia , porijue<br />

a palha dura depois de amassatia fazia-se-lhe<br />

em novellos debaixo án cubeca. A Ouz com<br />

os agu(h)S cravos passava-lhe as costas , os<br />

brarcs estavâo an.arra<strong>do</strong>s , e fccbatids ((.ni<br />

chave cm duasal^^cmas, os lombos lastima<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>s pannos de cilicio. A capa cancava-o com<br />

o peso , a porta nu)ía-o cchu sua dureza, e<br />

íricl<strong>da</strong>tle , cm lim jazia triste, e miseia^cU


mente atribula<strong>do</strong> , e como um capo nao se<br />

podia mover sem nniito tormento , t se lhe<br />

acontecia virar-se com força sobre a Cruz venci<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> sono encravava-se nos pregos , e<br />

agullias até os ossos. Entre tanto tu<strong>do</strong> era<br />

gemer, e <strong>da</strong>r ais ao Ceo. No Inverno passava<br />

multo raal por ra/ITo <strong>do</strong> íiio. Porque estenden<strong>do</strong><br />

os pés , como eraccsturaa<strong>do</strong>, punba-os<br />

nús na poria nna, e quan<strong>do</strong> os queria encolber<br />

por estarem enregela<strong>do</strong>s com frio, ti<br />

cbegabos ao corpo , levantan<strong>do</strong> pira cima<br />

os joelhos d


Fk. <strong>Henrique</strong> Snso, i3i<br />

«ellíi , onde tomou por cama o banco, que<br />

iiclla servia de assento, que era tão estreito<br />

ecurlo, que se não podia estender nelle, e<br />

neste mo<strong>do</strong> de prisão tão a pena<strong>da</strong>, e na<br />

porta, que temos dito, se deitou oito nimos<br />

contínuos as vezes que havia de <strong>do</strong>rmir, sem<br />

alliriar neuhunia cousa de to<strong>do</strong>s os outros<br />

irslrumentos de penitencia , que usava e tiidia<br />

então por costume, quan<strong>do</strong> se achava no<br />

Mosteiro , não entrar em estufa depois de<br />

Compleí-as, nem se chtgar á fogueira <strong>do</strong> Frades<br />

para se aquentar por mais iíiconiporlavel<br />

que o frio fosso. Eistoc^uar<strong>do</strong>u vinte e cinco<br />

annos , se não era quan<strong>do</strong> acaso lhe conipria<br />

ir aos ditos lugares por outra occasião. Nunca<br />

nos ditos vinte cinco annos entrou em banho,<br />

nunca lavou os pés por recrearão , ou por<br />

evitar desabrimentos de corpo delica<strong>do</strong>, qual<br />

era o seu. Além disto foi tão abstinente, que<br />

nem em Verão, nem Inverno comco mais<br />

de uma só vez ao dia, e não somente não comia<br />

carne , nias nem jcixe , nem (jvos. Muitos<br />

annos teve t.il cui<strong>da</strong><strong>do</strong> desci:;iilr a pobreza,<br />

que nem com licença , nem ícm ella<br />

quiz tomar dinheiro, nem tocal-o. Wm muito<br />

tempo teve tal guar<strong>da</strong> na pureza espiritual ,<br />

e corporal, que se não co(a\a, r ítu tf)rava<br />

em nenhuma paile <strong>do</strong>coipo, mais que nos<br />

fes, c u.ãos.


tZ% VíD\ DO BlAT»<br />

CAPITULO XX.<br />

Dã temperança, que o B, Fr, <strong>Henrique</strong> rtsai>M<br />

no beLer,<br />

\J 31 tempo se aprestava o Santo a f izcr iiin<br />

inoílo


Fr. <strong>Henrique</strong> S-js». i3u»<br />

um dia sentio dentro de si uma inspiração<br />

ou voz de Ueos que lhe fallava desta manei-<br />

,<br />

ra : Leinbra-te , e considera como no ultimo<br />

íim de minha vi<strong>da</strong> , estan<strong>do</strong> eu afíligi<strong>do</strong><br />

com as anciãs <strong>da</strong> morte,<br />

cura, e sede ardenti.^sima ,<br />

passei uma sec-<br />

com um pouco<br />

de vinagre , e ftl , stn<strong>do</strong> niiijlias to<strong>da</strong>s as<br />

fontes <strong>da</strong>s a^uas, como feitas por mim , com<br />

tu<strong>do</strong> o mais que serve para uso, e sustentação.<br />

Assim pois convém, se queres seguir<br />

liiinbas pisa<strong>da</strong>s, que sotras ,'leve e dcsassomLrad.imenie<br />

as necessi<strong>da</strong>des, e faltas, em<br />

que vives. Lm tempo ante^<strong>do</strong> Natal , <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />

o Santo de mío a tT;<strong>do</strong> o qenero de al-<br />

livio, e descanio corporal , alem de soas ordinal.»<br />

;, e costuma<strong>da</strong>s penitencias, de n


134 VlDl DO Bf.ít©<br />

Tosissimo : assim to<strong>do</strong> enregela<strong>do</strong> com frio<br />

se i\ depois de Completas deitar a <strong>do</strong>rmir<br />

sobre o seu banco, e logo d».^pois de Matinas<br />

ficava em pé diante <strong>do</strong> Altar Mór sobre<br />

as iageas frias, e descalço até pela<br />

nianháa, como temos di':o. A terceira ycni'<br />

tencia foi determinar-se de não beber,<br />

totaim-nte em to<strong>do</strong> o dia, nin<strong>da</strong> que se TÍs'>e<br />

demasia<strong>da</strong>mente aperta<strong>do</strong> <strong>da</strong> sede , tiran<strong>do</strong><br />

ao jantar, que para e:itTo tinha sua medi<strong>da</strong><br />

taixi<strong>da</strong>, que bíbia , e assim quan<strong>do</strong><br />

^inha a tarde apertava-o a sede tão cruelmente,<br />

que to<strong>do</strong>s seus senti<strong>do</strong>s esiaTáo arden<strong>do</strong><br />

em desejos de beber. O que to<strong>da</strong>-<br />

1'ia o Santo reprimia p.irfi.in<strong>do</strong> contra si,<br />

nfÍD sem muitas, e mui rigorosas dOrrcs. A<br />

l)òca se lhe seccava por tora , e por dentro<br />

<strong>da</strong> mesma maneira , que acontece a um enfermo<br />

de febre arderue. A Inigua se lhe gretava<br />

tanto, que depois an<strong>do</strong>u mais de um<br />

anuo sem p^der acabar de sarar delia.<br />

Quan<strong>do</strong> desta maneira se achava ás Completas,<br />

e se lançava a agua benta, como c<br />

costume , virava-se com grande desejo com<br />

a boca aberta para o hysopc a ver se lhe<br />

ca'a ACAio uni\ gotinha <strong>do</strong> agua naquclla<br />

seca lingua, C(vm que tivesse algum pouco<br />

de icfrigtirio. Quan io ia ao refeitório fazer<br />

coliaçàoj em st- assentan<strong>do</strong> na mesa , ain<strong>da</strong>


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. %35<br />

que eslava morto de sede, afastava de si o<br />

vinho, e algunsas vezes levantantlo os olhos<br />

io Geo : Kecebei , dizia , Pai celestial este<br />

licor como ein sacrifício de sangue de meu<br />

coração, e <strong>da</strong>i-o a vosso Filho Unigénito,<br />

que está para espirar na Cruz, aííli^iilo de<br />

mui rigoiosa sede. Outras vezes , assim sequioso<br />

cjino an<strong>da</strong>va , ía-se á fonte, e pon<strong>do</strong>-se<br />

a contemplar aquella agua , que corria<br />

com um suave roí<strong>do</strong> , e caía em um vaso<br />

estanha<strong>do</strong> por dentro, que a fazia mais clara<br />

c formosa , levantava os oliios aDeos com<br />

lastimosos suspiros arrariCa<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s entranhas.<br />

Outras vezes tliegon<strong>do</strong> a esta<strong>do</strong> que já não<br />

podia mais sofrer dizia a Decs <strong>do</strong> intimo de<br />

seu coração : O' bon<strong>da</strong>de eterna , quão secretos<br />

são vossos juízos , que c possível que<br />

vivo láo p^rlo desse espaçoso lago de Con-<br />

stância, e passão diante de meus olhos as<br />

cristalinas aguas <strong>do</strong> Danúbio , e com tu<strong>do</strong><br />

não ha de haver para mimom só trago dtj<br />

agua P Grandíssima miséria é esta! llsia <strong>ordem</strong><br />

de vi<strong>da</strong> C(,ulinnou até í)on:ií)ga , em<br />

que se canta o E\angelho, que tiata eomo o<br />

benhor couverteo a agua euk vinlio. Kslan<strong>do</strong><br />

este dia á tarde na mesa con^unti<strong>do</strong> de<br />

seus trabalhos não podia comer de pura<br />

sede. Tanto que se dei fu» as praças recolheo-<br />

et; de presia para o seu orai'j;io , porque cia


l36 VíD.V DO Beàtí»<br />

tão fintoleravel a vehemaiicia <strong>do</strong> mal, que<br />

passava, que já não tinha forças para se poder<br />

ter , e começou a chorar ileiranian<strong>do</strong><br />

muitas lagrimas, fallan<strong>do</strong> com Deos , e di-<br />

«en<strong>do</strong>: O' Deos immortal , que só conlieceii<br />

©s trabalhos , e as <strong>do</strong>res, que clles causão ,<br />

quão desaventnra<strong>do</strong> nisci neste inun<strong>do</strong>,<br />

pois sobej»n<strong>do</strong>-ine tu<strong>do</strong> quanto c necessário<br />

para a suslentaçio <strong>da</strong> ti<strong>da</strong> , com tu<strong>do</strong> c<br />

lorça<strong>do</strong>, que padcja uma tamanha, e tão<br />

terrível falta. No meio dcistas queixas pareceo-lhe<br />

que dentro em sua alma ouvia uma<br />

oz que lhe dizia: Animo, animo, que<br />

«e<strong>do</strong> serás alegre o consola<strong>do</strong> por Deos.<br />

Ac\hein-£e as lagrimas, valoroso luta<strong>do</strong>r, e<br />

sol<strong>da</strong><strong>do</strong> de Deos. Não desmacs, nem te tra-<br />

tes mal. Com estas palavias cobrou tanto esforço,<br />

que deixou de chorar por um pouco<br />

espaço: e com tu<strong>do</strong> não se podia alegrar<br />

períeitaracnte, mas estava de maneira, que<br />

no mesmo tempo qiie lhe corrlão <strong>do</strong>s olhos<br />

,<br />

as lagrimas, sentia iulcriormer.te uma cousa,<br />

qae o forçava a rir-se com c.pf ranças de um<br />

grande bem, e j^osto que <strong>do</strong> Seidu^r muito<br />

,<br />

depreisalbe havia de vir, <strong>do</strong>sla maneira >e<br />

foi a Completas: a boca cantava , mas o coração<br />

tremia, e entre tanto lhe parecia , que<br />

ca<strong>da</strong> vez estava mais perto a h.>ra de se ver<br />

livre desU Cruz, como acoutcctío pouco de-


» Fn. KisimiQTji Siso. jSy<br />

poij, e aintia na mesma noite teve em parl«<br />

principio, e foi desta maneira : \ io o Santo<br />

em revelação vir- se para elle a Virgem Nossa<br />

Senhora coiu o inenino JESU naquelU figura<br />

, que representava quan<strong>do</strong> era de sete<br />

annos , e vio ^que o menino JESU i razia ma<br />

copo cheio de agna maior alguma cousa,<br />

que os copos ordinários , qne sei-sâão no<br />

Mosteiro, e que a Virgem gloriosissima o<br />

tomava em suas mãos, e lh'o vinha ofíerecer,<br />

para que bebesse , c elle acceitan<strong>do</strong>-o<br />

Lebia com grande gosto, a matava a sede á<br />

vontade. Aconteceo iiaqueile tempo ir o Santo<br />

um dia «amir.ban<strong>do</strong>pelo campo, e entran<strong>do</strong><br />

por uma vere<strong>da</strong> estreita vio , que pela<br />

mesma se vinha encontrar com elle uma<br />

mulher pobre , mas b.onesta em seu parecer.<br />

Tanto que chegou perlo delia, deixou-lhe o<br />

raminho enchuto, e mctteo^se pela lama at«<br />

que passou. A honra<strong>da</strong> Uiulher voltan<strong>do</strong>-se<br />

para elle , que quef dizer isto , dizia , Reveren<strong>do</strong><br />

Senhor, que sen<strong>do</strong> vós Sacer<strong>do</strong>te , d<br />

illustre por \i\\ digni<strong>da</strong>fle , me largastes com<br />

tanta humil<strong>da</strong>de o caminho sen<strong>do</strong> cu uma<br />

pobre mulher, que com mais razão eftava<br />

obriga<strong>da</strong> a lazer o que vós fizeiles ? Ku ,<br />

rospondco o Santo, tenho por coslnme faler<br />

corte/ia a io<strong>da</strong>s as uiulbcres em reveren-<br />

cia <strong>da</strong> SoberanisòiiDa M;'i de Deus ,<br />

ç Bainha


i38 YiDi Dcf Br.VTo<br />

<strong>do</strong> Ceo. PxcplicoTi a mulher levantan<strong>do</strong> ct%<br />

olhos, e as mãos ao Cf^o : Per.o eu, e rogo a<br />

esta mesma Senhora, a quem vós ião de ver<strong>da</strong>de<br />

reverenciaes em to<strong>da</strong>s nós ontras as<br />

mulheres, que não passeis desta vi<strong>da</strong> sem<br />

alcançardes delia alguma particular mercê.<br />

Assim o queira , e faça , tornou eUc , aquella<br />

Sereníssima Senhora , e Imperatriz <strong>do</strong> Ceo.<br />

Depois <strong>da</strong> visão dita , ain<strong>da</strong> que se lhe<br />

punh.ão diante licores de to<strong>da</strong> a sorte para<br />

poder beher, com tu<strong>do</strong> seguin<strong>do</strong> seu costume,<br />

levantava-se <strong>da</strong> mesa morto de sede*<br />

Acontcceo pois , que na noite seguinte teve<br />

lima visão, em que Iheappareceo uma pessoa<br />

celestial de maravilhosa formosura, que lhe<br />

disse: Eu sou a Virgem Mài de Dcos , que a<br />

noite passa<strong>da</strong> te dei de heber por um púcaro<br />

de barro, c to<strong>da</strong>s as vezes que padece-<br />

res similhante sede, eu mesma te acudirei ,<br />

e haverei pie<strong>da</strong>de de li. Aqui o Sanlo cheio<br />

de grande coníiança disse: To<strong>da</strong>via Virgem<br />

pura não vos vejo na<strong>da</strong> nessas mãos, com que<br />

possaes lempei ar-nie esta sede. A bebi<strong>da</strong> , re«<br />

])licava a Senliora , (jrje vos eu hei de <strong>da</strong>r lia<br />

de ser aquella muisahitifera, que procede , e<br />

mana de meu próprio coração. De ouvir<br />

estas palavras ficava o Santo tão espanta<strong>do</strong>,<br />

que nào podia responder como quem se<br />

tinlia por indigno ae tamanho favor. ^las a


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>, 139<br />

Virefera sacratíssima consolava-o amorosamente<br />

, e clizia-lhe : Pois meu Senlior e<br />

meu filho JESU se tem entranha<strong>do</strong> tão<br />

araorosatnenie tm teu cornção , e ta o tens<br />

niereci<strong>do</strong> , sofren<strong>do</strong> com tanto torn:ento a<br />

seccura de tua boca, terás de mim uma particular<br />

corjsohiçáo , que será recrear-te não<br />

com bebi<strong>da</strong> corporal, mas coro um licor salutiíero<br />

, excellente , e espiritual de perfeita<br />

pureza. Consentia o Santo então como quem<br />

tinlía por ver<strong>da</strong>deiras as palavras , que ouvia,<br />

e entre tanto revolvia no pensamento,<br />

que já sem duvi<strong>da</strong> poderia beber á sua vontade<br />

, c acabar de vencer, e matar a sede,<br />

que o consummia. ?Jas tanto que se fartou ,<br />

e refrescou a vontade com aquelle celestial<br />

licor, que a Senhora lhe deu, ficou-lhe na<br />

boca uuia cousa como um grão moile , alvo<br />

com.o neve, como se escreve que era o<br />

maná , eeste grão trouxe depois muito tempo<br />

na boca em testemunho <strong>do</strong> que ver<strong>da</strong>deiramente<br />

passou nesta visão. Passa<strong>da</strong> ella derreti<strong>do</strong><br />

o Santo to<strong>do</strong> em fervorosas lagrimas,<br />

deu graças de to<strong>do</strong> o coraçáo a Deos , e a<br />

sua Mãi tarratlssima por tão alta mercê,<br />

como de ambos rece])éra. Na Inclina noite ,<br />

que isto acontcceo , se mostrou JXcssa Se-<br />

Jihora visivcluicntc a um J^nnto T;,ião, que<br />

"vivia tm cuUo h.^ar , e ile declarou j cr


t4o <strong>Vi<strong>da</strong></strong>. <strong>do</strong> I5za.to<br />

que maneira tléra de beber no Santo Tr,<br />

<strong>Henrique</strong>, e disse-llie mais estas palavras :<br />

Vai-te ter com o servo de meu Filho Fr.<br />

<strong>Henrique</strong>, e dize-lhe de ruinha parte o<br />

aviso, que assim como se escreve, que<br />

acontectK) ao insigne Doutor <strong>da</strong> Igreja S.<br />

João Clirysostomo , que sen<strong>do</strong> moço, e estu<strong>da</strong>nte,<br />

estan<strong>do</strong> de joelhos diante de uni<br />

altar, onde estava a minha Imaj^cm fabrica<strong>da</strong><br />

de madeira , e a de meu Filho uiamnn<strong>do</strong> a<br />

meus peitos, pela mesma imagem disse a<br />

meu Filho , que me largasse um pouco o<br />

peito, e consentisse , que mamasse aquelle<br />

moço , digo, que a mesma graça, e favor<br />

lhe ílz eu também a tile. È cm fé desta<br />

ver<strong>da</strong>de, se attentares, verás <strong>da</strong>qui em diante<br />

que a <strong>do</strong>utrina e [)régaçao , que sáe de siia<br />

boca santa , tem muito mais graça , e é maÍ3<br />

afervora<strong>da</strong>, e mais deleitosa de ouvir <strong>do</strong><br />

que atégora foi. Quan<strong>do</strong> ao Santo Fr. <strong>Henrique</strong><br />

derão este reca<strong>do</strong>, levantou as m'tos<br />

em alto , e coin ellas os olhos , e o coraç'io<br />

e disse : Bemdita , e louva<strong>da</strong> seja aquella<br />

fonte de divin<strong>da</strong>dde, que perennalmcnteestá<br />

m.mnn<strong>do</strong>. E bemdita seja a INIãi suavissima<br />

de to<strong>da</strong>s as graças pola mercê, que recebi<br />

sem nenhum merecimento meu. Uma cousa<br />

similhantea esta 'achará o leitor na primeira<br />

parle <strong>do</strong> livro, que se inlitula : Espelho d«


Tr, <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. l4f<br />

Vicente. Accrescentou mais o Santo Yaiáo o<br />

seguinte: Ain<strong>da</strong> tenho mais que vos rlizer:<br />

Sabereis, que esta noite me appareteo a<br />

\irgeni com seu Filho, e ella linha na mão<br />

um formoso copo cheio de agua , e pratican<strong>do</strong><br />

ambos sobre vossas cousas tratai ãovos<br />

com honra , e com amor. Logo a Mái<br />

offercceo o copo ao Filho pedin<strong>do</strong> que lhe<br />

,<br />

lançasse a benção. Fez o Senhor o qi e sua<br />

Mãi lhe pedia , c no mesmo instante se ccn- '<br />

verteo a ajua em vinho, e disse o Sei hcr:<br />

Pasta já o que e passa<strong>do</strong> , nao quero rue o<br />

meu servo continue mais este mo<strong>do</strong> de penitencia<br />

de não beber vinho , antes hei por<br />

bem que use delle <strong>da</strong>qui em diante que<br />

,<br />

assim o pede já sua d'^sbarata<strong>da</strong> , c coiiSummi<strong>da</strong><br />

natureza. Com esta licença , que o<br />

Senhor lhe deu, começou outra vez a í cl t r<br />

vinho como primeiro fazia. Neste teuipf) an<strong>da</strong>va<br />

já o Santo mui qiuhia<strong>do</strong> <strong>da</strong> conlirua-<br />

çfio demasia<strong>da</strong> <strong>do</strong>s excriicios , e cnilcncias,<br />

]<br />

que ten-.os leferiílo , con» que li-ntos annos<br />

S'j aííligíra. Mas Chrislo Kosso Stnh


j4^<br />

Vi Dl <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

chegavA a Fr. <strong>Henrique</strong>, e cIesco])ertn o vas*,<br />

que Yinha cheio de san^-iie fresco, unia-<br />

Ta-lhe com elle o coração de maneira t|ie<br />

licava to<strong>do</strong> tinto em san


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. i43<br />

«"^furlosa , e ffue era ain<strong>da</strong> necessário exerci*<br />

tar-stí , e Iral.alhar por outros mo<strong>do</strong>s, se<br />

tjueria que se fizesse bera com elle.<br />

CAPÍTULO XXL<br />

De como o Santo foi leva<strong>do</strong> ^m revelação e.<br />

uma eschola <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira resis^nacão.<br />


x4{<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Biíto<br />

tr.^to, e feição narecla um Mosteiro^ em qi:


Fa. Iís?T;;rQrE Srzo» l45<br />

fhi-eira que Deos o tratar ou por sua r.ião,<br />

ou por mão <strong>da</strong>s creaturas assim nos trabalhos<br />

, como nas i^rosperi<strong>da</strong>ties , faça força<br />

por mostrar senjprt? um mesmo rosto, e uni<br />

*mfc*srHo aniino iíí'.ial, e$en) muílanra em to<strong>do</strong><br />

o esta<strong>do</strong> com renunciaçrto de si , e cie tu<strong>do</strong><br />

o qne cabe ern sua alça<strong>da</strong> tanto, quanto [.óde<br />

sofrer, e <strong>da</strong>r de si a fraqueza humana , e só<br />

tenha postos os olhos, e tenção no que cumpre<br />

á iioura , e louvor de Deos , imitan<strong>do</strong>-o<br />

como se houve ('^hristo JESIJ com -eu i jÍ<br />

Celcslial tm quanto an<strong>do</strong>u na t«^tra. A2^ra<strong>da</strong>va<br />

isto a Fr. Heruique , e afíirmava que<br />

em to<strong>do</strong> o caso qu«ria estu<strong>da</strong>r esta sciencia ,<br />

e que se lhe nfào poderia offerecer cousa<br />

tanto contra seu gosto, que o tirasse de-ta<br />

determinação , c já começava a entender em<br />

edificar um aposento , eoccupou-se em muitos<br />

negócios de pouca quietação, mas o mancebo<br />

in<strong>do</strong>-lhe á mão dizia-lhe, que aquella<br />

arte requeria uma ociosi<strong>da</strong>de assocega<strong>da</strong> , e<br />

religiosa, e quanto ca<strong>da</strong> um se occupava, •<br />

obrav^ menos, tanto ua ver<strong>da</strong>de fazia mais,<br />

entenden<strong>do</strong> <strong>da</strong>quella occupação, com que<br />

uma ahna se enibaraca , e não tem puramente<br />

os olhos na honra de Deos. IN o fim<br />

desta pratica tornou Fr. <strong>Henrique</strong> cm seu<br />

acor<strong>do</strong>, e dei\an<strong>do</strong>-so estar assenta<strong>do</strong>, e<br />

cala<strong>do</strong> começiju a pasmar pela meiuoria o


^46<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

que ouvira com uma profun<strong>da</strong> consí(]risç?o,<br />

e assentou, que em tr.clo era conlcríne á<br />

razão e verJade , e á dtmti ina , oue o mesmo<br />

Clnisto eiisinou. Em {;m fallan<strong>do</strong> comslgo<br />

interiormente diiia assinj: Olha Heniiqutí<br />

para dentro de ti, « vê como hoje foi o primeiro<br />

dia, em que na ver<strong>da</strong>de te entendeste<br />

com lo<strong>do</strong>s os exercicios e penitencias exteriores,<br />

que por tua vontade íi/este^ ain<strong>da</strong><br />

não estas rendi<strong>do</strong> a sofrer um trabalho , que<br />

te vetdiade fora , ou te seja <strong>da</strong><strong>do</strong> por outrem.<br />

Ain<strong>da</strong> te assombras ca<strong>da</strong> dia com qualquer<br />

díi^gosto, quetesuccede, como se foras uma<br />

lebre despavori<strong>da</strong>, que se vai escoij


Fr. Il2.->íraQUB Sdso» j^J<br />

CAPÍTULO xxir.<br />

De algumas pcnr>sas mortificações y em qUê<br />

Q Sai lio se extíícitãi^a.<br />

D Epois q;ie Dcos nosso Senhor man<strong>do</strong>u si<br />

Fr. Honiiqiití que deixasse as penitencias exteriores<br />

, que em parte temos conta<strong>do</strong>, que<br />

lhe houverfio de custar a vi<strong>da</strong> se as não deixara<br />

, tanto se alegrou aquella natureza debilita<strong>da</strong><br />

e consumi<strong>da</strong>, que chora<strong>da</strong> de prazer<br />

, tornan<strong>do</strong> á memoria a fjrande aspereza<br />

<strong>do</strong>s cilícios e prisões, e d'oiitras cousas, que<br />

comtrabalho, e marlyrio experimentara. Entrava<br />

eniáo em pensauientos , que o faziáo<br />

dizer entre si desta maneira : Já agora, Deos<br />

e Senhor uicu, vivirei <strong>da</strong>qui eni diante uma<br />

vi<strong>da</strong> folga<strong>da</strong> ,' e tratar-me-hei bem , niatarei<br />

a sede com agua e vinho, deitar-me-hei<br />

livre de prisões, ecm enxergão de palha, que<br />

foi aVecreação, que muitas vezes co])icei , se<br />

quer antes de acabar a vi<strong>da</strong>. Assaz e demazia<strong>do</strong><br />

quebrantei níinhas forcas , tempo é já<br />

de descancar. Estes atrevi<strong>do</strong>s pensamenics sa<br />

lhe ião assentan<strong>do</strong> bran<strong>da</strong>mente na alma,<br />

romo a quem sabia mal o que Doos linha<br />

determina<strong>do</strong> delle ; e haven<strong>do</strong> já algumas<br />

aemanas ) que seus senti<strong>do</strong>s aa<strong>da</strong>vãu com-


t^i<br />

VlDl DO 1)1170<br />

bali<strong>do</strong>s de similhantes inid


Fr. lÍEi^aíQri 5us»^ JÍ^<br />

muitas mais, e mais cri!eis batalhas e afrontas<br />

ha iie vencer, e passar <strong>do</strong> que venrêrão,<br />

e pasíárào esses iUusires, e famosos capitães,<br />

cujos íoilDS em armas, e triunfos insignes<br />

trazem os homens tio ruuuclo sempre na boca,<br />

para os celebrarem fallan<strong>do</strong> , e escrcveriflo.<br />

Vós cui<strong>da</strong>is que voS tem já Deos tira<strong>do</strong> o ji:;^'o,<br />

e que cslals livre <strong>da</strong> prisão, e que haveis<br />

de tratar só de recreações, e "vi<strong>da</strong> descanr a<strong>da</strong>?<br />

Pois afíirmo-vos que vai o negocio mriito<br />

aorevez. Não quer Deos soltar-vos Ja prisão:<br />

trocal-a sim , e fazel-a mais tralnllmsa <strong>do</strong><br />

que nunca atégora foi. Atemoriza<strong>do</strong> grandemente<br />

o Santo Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>do</strong> que ouvira,<br />

dizia a De


lio VíD\ D(j <strong>Beato</strong><br />

ain


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. t^t<br />

«l^iima fifente de entení!imentos erraclos; o<br />

que terás por mais agro e duro (le soíier , <strong>do</strong><br />

que era para tuas espal<strong>da</strong>s a Cruz abrolha<strong>da</strong><br />

de cravos , que na ver<strong>da</strong>de os trabalhos passa<strong>do</strong>s<br />

renílião- te glcria e louvor diante <strong>do</strong>s<br />

liojuens, mas nestes has de ser abati<strong>do</strong>, e<br />

chegar a esta<strong>do</strong> que te não tenlião em conta.<br />

A outra é que ain<strong>da</strong> que te aííligiste com<br />

muitas e terríveis penas , que por taes podiáo<br />

ternomede mortes, com tu<strong>do</strong> íicon-teain<strong>da</strong><br />

e<br />

por <strong>ordem</strong> divina uma condição bran<strong>da</strong> ,<br />

que folga de ser ama<strong>da</strong>; mas agora ncontecer-te-hn,<br />

que nas mesmas partes, em (jue an<strong>da</strong>res<br />

grangean<strong>do</strong> uma fé ver<strong>da</strong>deira , e uma<br />

amisade especial, ahi acharás grandes enganos<br />

e mentiras, e serás cruelmente avexa<strong>do</strong>,<br />

e isto por tantas vias que até aquelles, que<br />

com fé e amor puro te am;irem por haverem<br />

dó de ti, viráõ a ser participante^ em<br />

tuas mesmas tribulações. A. terceira será que<br />

atégora le criaste com leite de peitos como<br />

menino, que ain<strong>da</strong> não é desmama<strong>do</strong> ,(jU('ro<br />

dizer que na<strong>da</strong>ste conuf ,<br />

em um hkw largo<br />

de conlentamentoj divinos, c <strong>da</strong>qui etn diante<br />

não te farei mais taes favores ,nntes le dt-ixareiseccar,<br />

e mirrliarde pura po])rP/.a de espirito<br />

, e serás desanipari<strong>do</strong> ãv Deos, e <strong>do</strong>s homens<br />

; e amigoi> eininngos juntamente t** perseguirão<br />

coradcshuniani<strong>da</strong>de, e para concluir


i5i<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Biato<br />

em pouri:^ nalavras , quanto tiveres traçaJ»<br />

para consolação , e quietação tua , tu<strong>do</strong> te<br />

sairá totaliiiçrtte ao rcvez. Ficou Fr, <strong>Henrique</strong><br />

tão corta<strong>do</strong> de me<strong>do</strong> com estas palavras,<br />

que t()<strong>do</strong>4remla. E arrenicçan<strong>do</strong>-se impeiuo-<br />

sainerite ao ciião , estendeo-se neile eni forma<br />

de crucifica<strong>do</strong>, e bra<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a Of*


Fb. ÍIe^írique Sl'50. i5S<br />

panno velha e rota, com que fazia granfle<br />

festa, ora cleilaii<strong>do</strong>-a para o ar, ora pon<strong>do</strong>-<br />

Ihe as mãos em cinia , e rasg;inclo-a comas<br />

unhas, e rnorden<strong>do</strong>-a com os dentes. Le-<br />

Tantou o Santo os olhos ao Ceo, e <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />

que dentro na sina<br />

uni grande ai ! sentio<br />

liie soavão estas palavras : Desla mesma maneira<br />

serás trata<strong>do</strong> án boca <strong>do</strong>s tens Frades.<br />

Ao que o Santo cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong> um pouco comsigo,<br />

dizia desta maneira: Pois ai não pôde ser,<br />

cnlrcí^a-te nas mãos de Dfíos. E assim como<br />

aqueliepanno sofre, sem fallar palavras, to<strong>da</strong>s<br />

as voltas , que o cão lhe d:í , faze tu também o<br />

mesmo. Lop^o desceo a baixo , e tomou o<br />

panno, guarcÍou-o muitos ânuos estiman<strong>do</strong> «o<br />

como cousa de preço , e se alguma hora tenta<strong>do</strong><br />

de impaciência ia para arrebentar em<br />

palavras, ou indignação , lirava-o fora , e punha<br />

os odios neíle para tornar em si , e s«<br />

conhecer, e não largar palavras contra ninguém<br />

; se algumas vezes lhe acontecia Tngir<br />

com o rosto com desdém aos que o perseguião<br />

repreliendia-se interiormente com estas<br />

palavras : Lembra-le pecca<strong>do</strong>r, que *> mesmo<br />

Seidior teu não virou aquelie íornuísiésimo<br />

rosto, nem quan<strong>do</strong> o injuriavão coui mui<br />

ásperas palavras , nem quan<strong>do</strong> o ctispiâo.<br />

E logo por extremo senti<strong>do</strong> voltava para os<br />

mesmos com braudura , e semblante alegre.


l54 TiDV rn <strong>Beato</strong><br />

Antes disto qunntio ilie acontecia algum tra»<br />

])aUK) imaginan<strong>do</strong> conisigo, dizia: Ah bom<br />

quem se vira livre desia Cruz. Eappa-<br />

Deos ,<br />

receo-lhe em revela' ão o Menino JESU em<br />

iim dia <strong>da</strong> Purificação , e depois de o reprehender<br />

dÍ5se-lhe: In<strong>da</strong> não sabes padecer<br />

como convém. Mas eu t'o ensinarei quan<strong>do</strong><br />

;<br />

tens algum trabalho não áti\es tratar <strong>do</strong> fira<br />

dclle , nem procural-o , como que então<br />

hajas de viver descanca<strong>do</strong>, n)as em «juanto<br />

te dura hiiinilha-te , c apercebeste para receberes<br />

outro de novo sem nenhuma alteração.<br />

E isto é o que em to<strong>do</strong> ocaso convém' que<br />

£íças. lias tie arreme<strong>da</strong>r uma <strong>do</strong>nzella, qsie<br />

apanha rosas, que nfio íica satisfeita em vc-.-<br />

liien<strong>do</strong> uma d'entre as espirdias, mas colhe<br />

mui ias mais. Digo que assim o faças tu também.<br />

An<strong>da</strong> cojn o peito aparelha<strong>do</strong> para tomares<br />

logo outra Cruz ás costas tanto que te<br />

faltar a presente. Entre outros servos áv Deos,<br />

que profetizavao ao Santo as tiibulaçóes, que<br />

lhe haviào de succeder, foi uma <strong>do</strong>iizclia de<br />

abalisa<strong>da</strong> virtude, a qual visitan<strong>do</strong>-o lhe<br />

disse, que na festa <strong>do</strong>s Anjos depois de Matinas<br />

fizera oração por elle muito de propósito,<br />

e que cm revelarfiolhe parecera que a levarão<br />

a uni lugar, onde oSaiili) estava, t' vira crescer<br />

sobre elle um rosal íirandede larijura e com»<br />

primeuiu, e uiuiio deleitoso, cheio de frciÇAi


Fr. Hesuique Srso. i 55<br />

rosas, e to tias encarna<strong>da</strong>s. Logo levantan<strong>do</strong><br />

os olhos vira nascei' o Sol com admirável<br />

clari<strong>da</strong>de, e sem nenhiini impedimento de<br />

nuvens, e viri estarem pé no meio de seus<br />

raios um menino de singular formosura cm<br />

figura decraciíica<strong>do</strong>, e<strong>do</strong> mesmo Sol sair un*<br />

raio, que ia <strong>da</strong>r no coração <strong>do</strong> Santo coni<br />

tanta força e efíiracia que , to<strong>do</strong>s seus membros<br />

, e to<strong>da</strong>s as veias se lhe abrasavuo. Aqui<br />

o rosal com sua espessura e ahun<strong>da</strong>ncia <strong>do</strong><br />

rosas porfiaTa por tomar em si a força áo<br />

Sol, e desvial-o <strong>do</strong> seu peito , mas não fazia<br />

na<strong>da</strong> , porque os raios ardentes penetran<strong>do</strong><br />

pela raíTia, irlo ferir no coração <strong>do</strong> Santo.<br />

Traz isto via o I^Ienino saír-se <strong>do</strong> Sol , e tila<br />

ilizia-lhe : Para onde ides bom Tilenino?<br />

Vou-me, disse- lhe ,<br />

para o meu ama<strong>do</strong> servo.<br />

E que quor dizer, amorosissimo iMenino,<br />

replicava ella , aquelle raio <strong>do</strong> Sol, que arde<br />

em seu peito ? Saberás, respondeo o Menino,<br />

que lhe enchi o coração de tanta luz e clari<strong>da</strong>de,<br />

porquj uma reverberação, que dcíla<br />

ha de sair de seu peito me ha de ^'anhar, e<br />

reduzir a meu serviço muitas almas. Nem<br />

ha de ser parte este espesso rosal que signi-<br />

,<br />

fica um grande numero de tribulações, que<br />

lhe eslão guar<strong>da</strong>ilas, para estorvar (jue sa<br />

effeitue por clle o que digo com


i56 Ti<strong>da</strong> <strong>do</strong> Eeat»<br />

cousas que servem para os piincipIaTit«s na<br />

virtude seja mais proveitosa de totíjs a vi<strong>da</strong><br />

solitária , pareceo ao S.mío que seria conselho<br />

mui acerta<strong>do</strong> nâo sair <strong>do</strong> Mosteiro por<br />

e vivfr assim<br />

tempo ds dez anncs, ou mais ,<br />

aparta<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> , e de to<strong>do</strong> o comnicrcio<br />

e trato <strong>da</strong>s gentes. E assim em sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> re-<br />

feitório feohava-se em seu oratório , e alii<br />

se deixava estar sem chegar nunca áporlavia,<br />

uem cou-<br />

nem querer íallar com mulheres ,<br />

versar cem honicris, nem ain<strong>da</strong> ver-ihes o<br />

rosto. Tinha limita<strong>do</strong> aoá olhos um termo<br />

certo, e esse bem esireito <strong>do</strong>nde não haviâo<br />

de passir c


Fa. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>» 107<br />

Dcos também qne se lhe não cumprissem<br />

logo seus dcsej':ts. Porque começan<strong>do</strong> o pintor<br />

a obra , e líào ten<strong>do</strong> lança<strong>do</strong> ninis que o<br />

primeiro rescurlio de carvíio cni algiim.as<br />

hiruras <strong>do</strong>s Padres, a<strong>do</strong>eceo <strong>do</strong>s olhos de<br />

nianeiraque iiao pôde ir por diante: e assim<br />

se despedio , afíirman<strong>do</strong> que era força<strong>do</strong><br />

largar a o])ra no esta<strong>do</strong> ern ([ue estava, até<br />

ronvalecer. E sen<strong>do</strong> pergunta<strong>do</strong> quanto<br />

tempo liavia anisterpara col)rar saú<strong>do</strong>, e poder<br />

tornar ao trabalho ? Respondeo , que ires<br />

mezes. Então o Santo man<strong>do</strong>u-lhe que tornasse<br />

a levantar a esca<strong>da</strong>, e sobiíj<strong>do</strong> nella<br />

poz as [mãos peias imagens ilos Santos , e<br />

tocan<strong>do</strong> com ellas os olhos enfermos <strong>do</strong> pin-<br />

tor disse-lhe :Eu te man<strong>do</strong> ]Hntor em virtude<br />

de Deos , e <strong>da</strong> santi<strong>da</strong>de destes Padres, que<br />

tornes aqTii d nwnhfia com os olhos de to<strong>do</strong><br />

sãos, e salvos. Quan<strong>do</strong> amanhcceo tornou o<br />

pintor ao Mosteiro são, e alegre <strong>da</strong>n<strong>do</strong> gra-<br />

ças a Deoâ e ao Santo pela mercê , e rc .stitnlção<br />

<strong>da</strong> vista, que tiniia perdi


:58 ID.l DO Íi£ATO<br />

noile , acor(íaílo , e <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> , com Insolência,<br />

eimporlunaçfio írrandissiijía , e aperfavão<br />

com elle terrivcliiienie por mo<strong>do</strong>s ásperos ,<br />

c extraordinários. Aconteceo inna vez qiio<br />

desejou de comer carne, que muitos annos<br />

havia nãí> lini:ia còca , e a ira de<br />

Deos veio sobre elles. E ladran<strong>do</strong> f


C A P I T U L O XXIII.<br />

De algumas tribiilacoc: , que o Santo padcceé<br />

interioi-fiiente.<br />

E Ntre outros trabalhos, que o Santo teve ,<br />

três ii»tcrit>i\íS o aííligiião penosissimanieiUe.<br />

Um destes er;i peiísaiiientoscleirífideiiuatle. A<br />

to<strong>da</strong> a hora iiic conibatiaa alma uma contínua<br />

imaginação, que secretamente llie dizia , que<br />

como podiaser, on se podia crer íazer-se Deos<br />

liouifin ? ajuntan<strong>do</strong> entras blasfémias muitas<br />

similhantcrí a esta , ns qiiaes cjuanto niyiso<br />

Sr.nto qutria rebater comargunientos , tanto<br />

mvÀs se embaraçava. Esta tentarão o martyli/ou<br />

nove annos choran<strong>do</strong> scinpie <strong>do</strong>s olhos,<br />

e suspiran<strong>do</strong> d'ahna a Deos , e a to<strong>do</strong>s os<br />

Santos por soccorro <strong>do</strong> Ceo. Em ÍÍm tanto<br />

que ao Senhor lhe parcceo tempo livrou -o<br />

lotiíhijenle delia ,e deu-lhe uma L;rande íir-<br />

n;e.La de íc clara, e ahin<strong>da</strong><strong>da</strong>. O outro trabalho<br />

foi UMiyJextraordinaria tristeza ; qi;asi<br />

continuamente o apertava com tanuidio<br />

peso de melancolia , que parecia que trazia<br />

sobre o corarão um monte inteiro. Este mal<br />

lhe íicou em parte <strong>da</strong> ^'rancie velieuiencia ,<br />

com que seconverteo a í)eos , ((»ie como sua<br />

conversão ioi repentina eefíitacis-inia , ílt ou-<br />

Ihtí <strong>da</strong>Ui uma anciã , que por txlreuio o ufa*


l5«<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> 13íato<br />


Fjr, HiLNRiQrE Srso. iCi<br />

que ciar rruitos ais arranca<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s entranhas,<br />

corren<strong>do</strong>-lhe as lagrimas cm fio pelo rosto<br />

abaixo. Algumas vezes liatia nos peitos dizen<strong>do</strong>:<br />

Que cm fiiu Senh )r Deos é força<strong>do</strong>,<br />

e sem remédio perder>me eu ? Que miséria<br />

pófle l.aTer maior que esta ? Tarlo vaiem<br />

nno possuir eu ncnlunn l)em nesta vi<strong>da</strong> ,<br />

mw na outra : pobre <strong>do</strong> mim , para que<br />

uasci no mun<strong>do</strong> ? Esta tentacilo lhe procedeo<br />

de um rae<strong>do</strong> desordena<strong>do</strong>, que tomou<br />

por lhe dizei em , que fora recebi<strong>do</strong> no Mosteiro<br />

por razão de certos bcus temporacs , e<br />

que era pecca<strong>do</strong> de simonia , quan<strong>do</strong> 5C ncgocia^ào<br />

bens espirituaes com em pregoo de<br />

fazen<strong>da</strong> temporal; isto lhe ficou assenta<strong>do</strong><br />

na memoria até vir a <strong>da</strong>r nesta tentaçíTo. jMas<br />

no cabo de dez annos de marlyrio, em to<strong>do</strong>s<br />

os quaes não fazia conta de si, senão<br />

como de homem condemn<strong>do</strong>, foi ter com •<br />

sanlissimo Varão lu bar<strong>do</strong>, Doutorem a Sajjra<strong>da</strong><br />

Theologia, com cujo conselho, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>íhe<br />

conta de sua afílicção ficou livre e quieto,<br />

sain<strong>do</strong> de um cárcere infernal, cm que tan-<br />

tos annos estivera preso,


x(ía<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

CAPITULO XXIV.<br />

De coino o Snnto começou a entender np<br />

remédio , e salvação <strong>do</strong>s próximos.<br />

OEn<strong>do</strong> piissaflos muitos nnnos, qite o Santo<br />

não tratava em mais, que rm purificar sua<br />

alma, e \iver em silencio e soi<strong>da</strong>de , foi<br />

depois movi<strong>do</strong> por Dcos , e obriga<strong>do</strong> por<br />

meio de muitas revelações a tomar cui<strong>da</strong><strong>do</strong><br />

de salvar outras almas. JMas não tem fim,<br />

que nesle<br />

nem conto os grandes trabalhos ,<br />

serviço de cari<strong>da</strong>de se lhe offerecèrão, e<br />

menos o tem de outra parte a iutíni<strong>da</strong>de de<br />

almas, que ganhou para o Senhor; o que<br />

tu<strong>do</strong> foi mostra<strong>do</strong> uma vez em revelação a<br />

«ma<br />

bém<br />

<strong>do</strong>nzella de grande virtude que tam-<br />

,<br />

eia sua filha espiritual : estan<strong>do</strong> eni<br />

oração esta Sania Virc^em , foi arrebata<strong>da</strong><br />

em espirito , e vu> ao ^anto, que sobre um<br />

alio monte estava celebran<strong>do</strong> o sagra<strong>do</strong> sacriíicin<br />

<strong>da</strong> Plissa; e vio que cilavâo pega-<br />

,<br />

<strong>do</strong>s com cl!e uma infini<strong>da</strong>de de homens, e<br />

to<strong>do</strong>s dlfferontes enlre si; <strong>do</strong>s quaes os que<br />

€stavão nielhor , e mais uni<strong>do</strong>s com Dcos<br />

estarão «anibem mais perto <strong>do</strong> Santo, e<br />

c^uanto e>ta\ão mais ch^íga<strong>do</strong>s a clle, tum-


Fr. KEríRiQUE <strong>Suso</strong>. i^3<br />

hem o Senhor os chegava para si com<br />

iDais amor, e \ia ao Santo rof;ar por to<strong>do</strong>s<br />

íle propósito ao Senhor, que tinha nas mãos.<br />

Pedio a Santa Virgem a Deos, que fosse<br />

scrri<strong>do</strong> clcclarar-lhc esta visão ; o que o Scnhí)r<br />

lhe concedco , dizen<strong>do</strong>-lhc assim: Ves<br />

aqnelle concurso de homens sem conto que<br />

,<br />

estno pega<strong>do</strong>s nelle Pestes saherás, que significáo<br />

os seus confessa<strong>do</strong>s , que vivem<br />

entregues a seus conselhos , e santa <strong>do</strong>utrina<br />

; e aq>.el!e qiie fora disto com particular<br />

fé, e boa vontade o amão, aos quaes to<strong>do</strong>s<br />

me tem encqmmen<strong>da</strong><strong>do</strong> com tal clíicacla,<br />

que não hei de rouseutir, que nenhum dellcs<br />

se aparte de mÍBi jamais, antes farei que<br />

acabem a vi<strong>da</strong> santa e bemaventura<strong>da</strong>meute<br />

, e a elle pagarei largamente com consolações<br />

miidiíKS o trabalho, que por esta causa<br />

passar, ou seja toma<strong>do</strong> por suas uíãos, ou<br />

negocia<strong>do</strong> por poder alheio. Antes qre a<br />

santa <strong>do</strong>nzella que na , virtude era sinala<strong>da</strong><br />

como temos dito, conhecesse'» Fr. <strong>Henrique</strong><br />

foi interiormenfe movi<strong>da</strong> por Deos, a ';un<br />

procurasse veUo. Kaconteceo que ,<br />

estan<strong>do</strong><br />

um dia arrebata<strong>da</strong> em extasi, ouvio cm<br />

revelação, que lhe dizião, que chegasse alli,<br />

onde eslava Fr. líenrique , e que o visse E<br />

como ella respondessí», que o .in


l(54<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong>.<br />

níero de Frades, que via junto-; , nuv.o logo<br />

í£ue lhe tornavão .\ dizer o seg^r lute : Sem<br />

muito trabalho se pôde conhecer entre lo<strong>do</strong>s,<br />

po]qne traz ua cabe a uurã bem fresca<br />

capella de boninas teci<strong>da</strong> de rosas brancas,<br />

e encarna<strong>da</strong>s. E as rosas brancas significào<br />

sua casti<strong>da</strong>de, as vermcliias sua j):iciencia,<br />

no meio de niuilas e contínuas tribularócs.<br />

Tu assiiu como aquelle circulo <strong>do</strong>uro, qu^ se<br />

costuma pintar sobre as cabeçiis <strong>do</strong>s Santos,<br />

é si^nal <strong>da</strong> bcmaventur.;nça eíerna , qva<br />

gozão no Senhor, assim esta grinal<strong>da</strong> de<br />

rosas significa muitas e diversas tribufaç^ies,<br />

(j^ne os amigos de Deos padecem cm quanto<br />

nesta viila exercitão vaiorosameute a milícia<br />

de seu Oeos , e Senhor. Passa<strong>do</strong> isto levou<br />

11 m Anjo em revelação a mesma <strong>do</strong>nzella ao<br />

lugar, onde Fr. <strong>Henrique</strong> vivia, e logo o conheceu<br />

pela capellade rosas, que tirdia posta,<br />

"Nestes tempos , em que oSaulo cia por muitas<br />

maneiras e rigoroiamcutc aliibula<strong>do</strong>, a<br />

cousa , que mais o contortava e inleriornienie<br />

lhe <strong>da</strong>\a animo para tu<strong>do</strong>, era unia<br />

contínua conversação e trato , que tinha<br />

com os Anjos. E uma vei lhe aconteceo que ,<br />

fican<strong>do</strong> alheio de to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s exteriores,<br />

vio, que o levavao em espirito a um<br />

luf»ar , que estava C(»berto de um numero<br />

iídinito de Anjoi, <strong>do</strong>s quucs um, qua lhe


Fr. ÍÍEKraQtiE <strong>Suso</strong>. i65<br />

iscava mais perto , disse para elle : Estendei<br />

essas rnfíos , e olhai para ellas. Eslendeo ello<br />

umaiiifío, e ollian<strong>do</strong>-a \if), que <strong>do</strong> meio delia<br />

lhe saía uiiia formosíssima rosa cncarr.a<strong>da</strong>,<br />

ce-'eaíUi de íollias muito frescas, a qual cres-<br />

cia tanto, que lhe \inha a íolwiar to<strong>da</strong> a<br />

mão até 05 de<strong>do</strong>s, e fazia-se tuo hella e<br />

que em extremo alegrava e delei-<br />

graciosa ,<br />

tava os olhos. Virara o Santo as mSos de<br />

lima parte u <strong>da</strong> outra , e de to<strong>da</strong>s era a<br />

vista lias rosas dilkíitosissinia , e asbini muito<br />

espanta<strong>do</strong> dizia : Santo mancebo declaraime,<br />

que quer liizer esta '^isfioi^ Ao que o<br />

Anjo respondia: A si«jtiificaeuo é Cri:7es e<br />

mais Cruzes , c outras Cruzes e mais outras<br />

Cruzes, porque Dcos qiiCr que passeis, e<br />

isto se dá a entender nas duas ro:5as , que<br />

Icnties nas mãos , e nas outras duas ,<br />

qne também vos cobrem es pés. Suspirou o<br />

Santo , e tlisse: Camorosissinn? Deus , épos*<br />

vel , que é tão penosa a tribnlarào para os<br />

iif)niens< e to<strong>da</strong> vi;i lhe pnem tanta íormosu-<br />

la na almai^ i^âo ha duvi<strong>da</strong> senão que é<br />

is^o uma notável dispensarão, e mertè Vijssa<br />

dií^na lie ser reconheci<strong>da</strong> com espanto.


l66<br />

ViDi DO Deito<br />

CAPITULO XXV.<br />

De muitos trabalhos , que n Santo Fr» Henri^<br />

que padccjo.<br />

V^Hegou iim dia Fr. <strong>Henrique</strong> a nmn Vil-<br />

Ifita , não longe <strong>da</strong> qual estava um Crucifixo<br />

de ma:!eira posto em uma pequena Ermid.i,<br />

cjue 05 mora<strong>do</strong>res lhe tinhão edifica<strong>do</strong> ,<br />

como é costume em muitas lerras , c liavia<br />

lama , que se fazião alli muilos mil.ij^res;<br />

pelo que a gente devota trazia a otíerecer<br />

grand»^ copia de cera lavra<strong>da</strong> em figuras , e<br />

èm pão, que pondiiravâo, e deixa vão em<br />

louvor de Ocos. Chegan<strong>do</strong> o Santo ao Crucifixo<br />

poz-se de joellios, e esleve um espaço<br />

fazen<strong>do</strong> oração , e foi -se com seu con^panheiro<br />

á pousa<strong>da</strong>; e esteve presente uma<br />

menina de sele annos, que o vio , e notou.<br />

A noite seguiiite derão ladrões na Einii<strong>da</strong>,<br />

€ q«iebran<strong>da</strong> moca, que temos dito, e<br />

afiiiaiou j que cila o conhecia , e sen<strong>do</strong> aper-


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>.^ 167<br />

ta (la qut dissesse o nome , deu os indícios de<br />

como ro dia atiaz vira alli a Fr. <strong>Henrique</strong><br />

estar fazen<strong>do</strong> oração já muito tarde, e <strong>da</strong>hi<br />

se recoiiicra para o lugar. A esta infoimaçáo<br />

<strong>da</strong> menina deu o bom visir.ho credito tão<br />

ligeiramente como se íòra ver<strong>da</strong>deira , e de<br />

maneira esleiídco e publicou a mentira,<br />

que an<strong>da</strong>va divulga<strong>da</strong> por \n<strong>da</strong> a Yilla , e os<br />

mais linlião aO Santo por culpa<strong>do</strong> em tamanha<br />

mal<strong>da</strong>de. Entre tanto tn<strong>do</strong> era lançar<br />

jnizos sobre que movle llie díuião, e com<br />

que género de tornienlos o tirariíTo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

como a homem aboíninavcl. JMas tanto<br />

que o Santo teve noticia <strong>do</strong> que passava ,<br />

temeo grandemente, sem en)bargo, que<br />

conliecia sua iunorencia ,<br />

<strong>do</strong> suspiro <strong>do</strong> coração disse a Deos: Pois, Senhor,<br />

é jorça<strong>do</strong> que eu padeça , tutlo sofrera<br />

levemeiíte , e de b(ui voiiiade, se fôreis<br />

servi<strong>do</strong> <strong>da</strong>r-ujc tal sorte de trabalhos,<br />

que me não tocárno na honra j masvejc^j<br />

Senhor, que os que pennlltjs, que me succedáo<br />

são lacs , que de to<strong>do</strong> me desacrcditão<br />

; e estes ^ão os que eu síMo r";i!n.a.<br />

Com este meilo dclxou-se ficar no higar alé<br />

se apaziguar o povo , e o nunim. Kuk outra<br />

Ci<strong>da</strong>de aconteceo ao Santo outra cousa<br />

quasi símilhante a esla , com que sua fama<br />

e com inn pioftm-<br />

íoi mal trata<strong>da</strong> áii bòea dtí muitos , uíio bò


l6o<br />

VlD\ DO Be.vto<br />

na mesma terra, mas por to<strong>do</strong> seu distrlcto,<br />

E toi o negocio asshvi : ííavla naquella Ci<strong>da</strong>de<br />

um Mosteiro, em que estava um Cru-<br />

cifixo de mármore <strong>da</strong> mesma estatura , segun<strong>do</strong><br />

se dizia , de que foi Christo nosso<br />

Senhor. Aconteceo que uma Quaresma se<br />

vio , que tinha a imagem sangue íVesco em<br />

lucrar <strong>da</strong> chas^a •.'•o la<strong>do</strong>. K corren<strong>do</strong> muita<br />

gente a ver o milagre , a( udio também o<br />

Santo Fr. <strong>Henrique</strong>, e ven<strong>do</strong> o sangue,<br />

chegou-se de mais perto , e tomou-o n'um<br />

de<strong>do</strong> á vista de to<strong>do</strong>s os que cstaváo preíientes.<br />

Ajuntoíi-se logo sobre elle um numero<br />

infinito de povo , e constrangeráo-no a declarar<br />

publicamente o que "víra e tocara , o<br />

que o Santo fez contan<strong>do</strong> simplesmente e<br />

na ver<strong>da</strong>de o que passara, não se resolven<strong>do</strong><br />

em na<strong>da</strong> , nem determinan<strong>do</strong> se era aquiilo<br />

niysterio <strong>do</strong> Ceo , ou obra <strong>da</strong> terra, mas<br />

deixan<strong>do</strong> a determinara ) disso para outro<br />

juizo, n'um momento se publicou o caso<br />

por to<strong>da</strong> a terra , e ca<strong>da</strong> um acc.escentava o<br />

que lhe vinha á vontade, e chegou a cousa<br />

a termos , (juc affuinavão que o Santo se<br />

picara no de<strong>do</strong> , e puzera o sangue, que lhe<br />

saíra, na imagem, para que se cui<strong>da</strong>sse que<br />

manara delia milagrosamente , e que não<br />

procurara aqtielle ajuntamento <strong>do</strong> povo a<br />

outro íim, seuão paru fazer muito dinheiro,


Fiu Kri^RraTTE Srso. iCg<br />

e fartar sua coJ3Íca. Esle gcnero de praga<br />

corria <strong>do</strong> Santo em outros lugares, e an<strong>da</strong>va<br />

nas linguas de to<strong>do</strong>s. Mas lanto que chegou<br />

ás oreluas <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de^ foi-ihe<br />

necessário saír-se delia íogin<strong>do</strong>. E conitu<strong>do</strong><br />

ain<strong>da</strong> o forfio seguin<strong>do</strong> com deíermi»jacào d«<br />

o matarem , se senão acolhera ; mas como<br />

e»ca pou , fizerào promessas de muito dinheiro<br />

a que'm quer í|ue liro desse ás n»àos vivo<br />

,<br />

esto<br />

ou mortOj Muitas ontias faL.i<strong>da</strong>des a<br />

mo<strong>do</strong> se assacavâo a Fr. <strong>Henrique</strong>;<br />

aonde f(uer que ehegavão erào ti<strong>da</strong>s por<br />

ver<strong>da</strong>deiías , <strong>do</strong> ({ue nasceo ter-se poi' maldito,<br />

e abominável seu nome entre muita<br />

gente , e hun aien;-se a ca<strong>da</strong> passo muitos<br />

jui/os temerários, e cheios de n-al<strong>da</strong>de sn-<br />

l)re sua vi<strong>da</strong>, e obras. Algumas vezes aclian-<br />


I^o <strong>Vi<strong>da</strong></strong>. <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

terras , principalmente portfue os mais <strong>do</strong>s<br />

homens honra<strong>do</strong>s delia o tinlião por innocente<br />

<strong>da</strong> culpa , que se lhes <strong>da</strong>va , mas elie<br />

respondeo-lhe nesti íórma : Se Deos fora<br />

servi<strong>do</strong> que só esta Cruz me opprimira ,<br />

íacil cousa fora valcr-me desse remédio<br />

mas vejo cm\x dia tantos males similhanles<br />

a este sobre mim, que enten<strong>do</strong> que me<br />

convém deixar tu<strong>do</strong> a Deos, c níío fazer<br />

força, nem porfiar em contrario. Aconteceo<br />

que foi uma vez a Allemanha a Raixa a um<br />

Capitulo , qne se fazia , e já lá lhe estava arma<strong>da</strong><br />

d'antemão a perseguição; porque <strong>do</strong>us<br />

Keligioios <strong>do</strong>s principaes <strong>da</strong> sua Ordem crão<br />

i<strong>do</strong>s ao mesmo Capitulo mui aposta<strong>do</strong>s a lhe<br />

fazerem to<strong>do</strong> o mal, que pudessem: foi o<br />

Santo man<strong>da</strong><strong>do</strong> apparecer em juizo , e veio a<br />

ellc cheio de tremor, eme<strong>do</strong>, e entre outras<br />

muilas culpas , que lhe ílerão, foi accusa<strong>do</strong><br />

por falsa inforniaçáo de seus emulos,<br />

que nos livros, que Compunha, misturava heregias,<br />

com qne se viria a perdera pureza <strong>da</strong><br />

Fe por to<strong>da</strong> aquella terra , por isso o repreenderão<br />

os Padres Capitulares asperamente<br />

com aineai;as de maiores castigos,<br />

sem emhiirgo que diante de Deos,e <strong>do</strong>s<br />

luuncns estava livro de tal culpa. E comtu<strong>do</strong><br />

uào se deu o Senhor por satisfeito era per-<br />

antes lhe<br />

miliir , que fosse esta Gruzsingela ,


Fr. <strong>Henrique</strong> Stso. 171<br />

aggravou o mal atormenlan<strong>do</strong>-o com unias<br />

crucls fehrcs, e sobre ellas com unia perigosa<br />

posteiua, que se llie íez nau entranhas<br />

íifío loiíj^e lio coração; e iltsíes traLalhos ,<br />

que assim de dentro, como de ícia o an»<br />

gustiavão, chegou a esta<strong>do</strong>, que tcdcs desconfiavão<br />

<strong>do</strong> sua vi<strong>da</strong>. E seu ccmpauheiío o<br />

vigiava esperan<strong>do</strong> a ca<strong>da</strong> passo o termo em<br />

que havia de espirar. Assim estava o Santo<br />

Vr. líenrique em terra estranha , e em Wosteiío<br />

alheio lança<strong>do</strong> isa cama , e desampara<strong>do</strong><br />

de to<strong>da</strong> a consolação , quan<strong>do</strong> uma<br />

noite não poden<strong>do</strong> loinar sono com a forca<br />

<strong>da</strong> <strong>do</strong>r, conif^çou a enlrar em contas com<br />

Deos, e f.illar-Ilhe assim : Ah Justissimo Dcçs,<br />

pois vós, Senhor, houvestes por liem de alorr.ieniar<br />

com ifio intohíravel <strong>do</strong>r este coipo<br />

consiimnii<strong>do</strong> de tral)alhos , e l"erir-me no iiilimo<br />

tPííhna com uma vergonlía , e aírorJoi<br />

grandíssima de maneira , que não ha parte<br />

cm mim, que esteja livre de magoas, nem<br />

interior, nem exteriormente: quan<strong>do</strong> chegarei<br />

a ver nina liora , Pie<strong>do</strong>síssimo Pai,<br />

cm que me deis por bem castiga<strong>do</strong> i^ quan<strong>do</strong><br />

chci^inei a ver tempo, cm qne levanteis a<br />

jjiito de me aííli^Mr ? Acaba<strong>da</strong>s esias palavras,<br />

conieçou ;i meditar as angustias iiortaes,<br />

que (^iirJslo nosso Sahacor j ;iyhou i;o n.enttí<br />

Uiivete, c entre a nitditaçí o passcu-se <strong>do</strong>


1-2 YíDl DO Br.VTO<br />

leito para Tima cadeira, que tinlia perto, e<br />

?cnton-se nclla , porque <strong>da</strong> grsiidc dur , que<br />

a postema lhe causava , nào podia jazer, listan<strong>do</strong><br />

assim assenta<strong>do</strong> ecarreira<strong>do</strong> de dòrís,<br />

e miséria pareceo-lhe que via em espirito<br />

,<br />

um grande numero <strong>da</strong> Anjos q!io Ilic en-<br />

,<br />

íravão po!a ceila a consolal-o, c cantaviío<br />

com agradáveis vozes uns versos celesíiaes ,<br />

cuja melodia lhe cncliia as oieUias de tamanha<br />

deleitarão que de to<strong>do</strong> íicava ou-<br />

,<br />

tro. Finalmente continuan<strong>do</strong> os Anjos com<br />

sua musica, e o Santo em sou assento entre<br />

o martyrio <strong>da</strong> íebrc , e <strong>da</strong>s <strong>do</strong>res, um <strong>do</strong>s<br />

Anjos se clicgou a elle, e tiran<strong>do</strong>-lhe bran<strong>da</strong>mente'<br />

<strong>do</strong> hraj^o, porque razão, di*=se<br />

estais meu irmão tão cala<strong>do</strong>? Porque não<br />

cantais juntamente comnosco ? Pois h«m<br />

sei eu que sois vós bom rncstre de musicas<br />

<strong>do</strong> Ceo. A isto respondeo o Santo acompanhan<strong>do</strong><br />

o que diziíi com magoa <strong>do</strong>s suspiros<br />

sní<strong>do</strong>s <strong>da</strong> alma. Não vedes vós, disse, ou<br />

não notais, o esta<strong>do</strong> de minha viíla? Qual<br />

foi o homem que se pôde alguma hora alef^rar<br />

estan<strong>do</strong> cm braro^ com a morte ? E<br />

possivel que em tal ccmjuncção me convi-<br />

<strong>da</strong>is vós para cantar? O que eu cantarei serão<br />

tristezas, e magoas. Porque se alguma<br />

hora em tempos pasma<strong>do</strong>s cantei com alegria,<br />

tu<strong>do</strong> isso é hoje acaba<strong>do</strong>, que já agora


Fn. IIs'^RrQUE Soso. 1*3<br />

•ono cspei^o mais que a hora <strong>da</strong> morte. Dis-<br />

Hi-lhe então o Anjo com grande alegria:<br />

'iVnde animo, e coração varonil, que nenlinna<br />

cousa dessas vos ha de acontecer.<br />

Antes vos certifico, e crêde-nie, que tal<br />

çmcao haveis de entoar ain<strong>da</strong> em vossos<br />

dias, que a Deos lo<strong>do</strong> podei-oso ha de <strong>da</strong>r<br />

bonn , e a muitos altrihula<strong>do</strong>s consolação.<br />

Logo se lhe abrirão os olhos acor<strong>da</strong>n<strong>do</strong>, e<br />

comei o'i a chorar com 2;randc abundância<br />

í'e lagrimas, c na mesma hora lhe arrebentou<br />

a postcma , e cobrou perfeita saúde.<br />

Tanto que o Santo tornou para o seu Most(.'iro,<br />

foi visita<strong>do</strong> de um varão abalis;i<strong>do</strong> no<br />

serviço de Deos, o qual lhe disse-o seguinte :<br />

Ain<strong>da</strong>, Senhor, que nesta votsa jorna<strong>da</strong> tínhamos<br />

no meio de andjos mais de cem nú-<br />

Ihas de distancia , com tu<strong>do</strong> cá vi , e tive<br />

presente a Cruz, que lá padecestes ; porque<br />

haveis de saber , que eu vi um dia com os<br />

olhos d'alma o grão Juiz Soberano as.ve::ta<strong>do</strong><br />

em seu throno, e com sua licença se<br />

soltarão (h)us demónios , que vos atormentarão;<br />

e o meio, que tomarão , foi o <strong>da</strong>quelles<br />

<strong>do</strong>us Prela<strong>do</strong>s, que forão auclores <strong>da</strong><br />

persegfiiçâo que padecestes. Mas eu <strong>da</strong>v.;<br />

vozes ao SeiTlior , e dizia -lhe: Como pode<br />

ser, Deos núsericordioíissimo , que foírdis<br />

ser túo mal irala<strong>do</strong> uuí ami:ro vcsso? lles-


1^4<br />

YlDA DO BeàT©<br />

pondia-me o Senhor : Eii o ter.ho escnlliiJc<br />

para mim , paru que peio ir, tio cias tfibulí»ções<br />

se pareça e coníórnie com moii Unigénito<br />

Fiiho; mas to<strong>da</strong>via a inteireza cie minha<br />

justiça está pedinchj , que se vingue limanha<br />

injuria , como recejjeo , com* a m


Fr. IIexrioue <strong>Suso</strong>. 17J<br />

lomem, e contou-llie o que passava; o<br />

'ípe o Santo ouvin<strong>do</strong> , ricoii pasma<strong>do</strong>. E eníiiquecen<strong>do</strong>-llie<br />

o coração com a forca <strong>da</strong><br />

dcr an<strong>da</strong>vci como homem tolo, e qvie nercicra<br />

toíos os senti<strong>do</strong>s. Perguntan<strong>do</strong> onde acharia<br />

a p»rdi<strong>da</strong> irmãa? ninguém lhe sahia dizer<br />

cousi certa. Eniáo fazen<strong>do</strong> discursos fa liava<br />

só comsiga, e dizia : Eisaqiiihe entra<strong>da</strong> nova<br />

triholacâo , mas não haja desmaiar. Ksforca-<br />

te faze diligencia , e ve se por ajgnma via<br />

pó('es remediar esta alma perdi<strong>da</strong>, e desavcn-<br />

iiir.i<strong>da</strong>. Ofíerece a Deos pie<strong>do</strong>sissimo a<br />

queira, que esle caso traz á tua honra , o<br />

ciédio. Ponha-se de parte to<strong>do</strong> o pejo <strong>da</strong><br />

humaai<strong>da</strong>de , ariisca-te a entrar n'um profun<strong>do</strong><br />

'ago a ver se podes tirar deile essa mi-<br />

serável. Quan<strong>do</strong> passava polo Coro por nieio<br />

<strong>do</strong>s Fraces perdia as cores, esfriava, arrepiava<br />

-se toi'o , e tremia. Não se atrevia ajuntar<br />

com ninguém, porque to<strong>do</strong>s se pejavão deilc;<br />

os que d'antes erão senis companheiros e ídlu/iiares,<br />

tm o ven<strong>do</strong> fogião. Se (|uciia acon-<br />

selhar-se com os amigos, viravão-ilic? ò rosto,<br />

e nfio o linlifio em conta. No meio deste trabalho<br />

lemhravase <strong>do</strong>Sanio Job, e (hzia: Pois<br />

to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> me desampara , buja por bein<br />

de me acudir o bcni^^iissimo Deos com seu<br />

diviíjo lemedio. F. não deixava


I '-5 Ti<strong>da</strong> <strong>do</strong> Beat«<br />

Talcr mais de pressa á desa ventura tia irniãa-<br />

Em fim <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-llie novas de certo lugar ont^<br />

a poderia achar, logo se poz ao caniiidio. F/a<br />

isto em dia <strong>da</strong> Virgem Santa lí^nez, e f./»a<br />

grande íVio; e na mesma noite tinha pas3»í'«^<br />

ll.^ rijo chuveiro, com qucifjo cheios iod>s os<br />

ribeiros. Queren<strong>do</strong> o Santo passar de salf) nm<br />

pequeno regato, era tal sua fraqueza, qnr caio<br />

no meio dclle , e ficou mergulha<strong>do</strong>. Siío-se<br />

to<strong>da</strong>via o melhor que pôde. E coíuo o sevti-<br />

iiiento, que lhe cantivaa alma, era excessvo,<br />

não lhe deu muito peio que só fazia no rolo<br />

corpo. Caminhan<strong>do</strong> adiante mostrará >- lhe<br />

lima casa, onde a irmãa eslava. Entrou t)Santo<br />

pela porta to<strong>do</strong> trespassa<strong>do</strong> de <strong>do</strong>r, e :chou-a<br />

dentro assenta<strong>da</strong> , e quan<strong>do</strong> a vic , ca/o<br />

so]);e iim banco onde ella eslava, e por<br />

duas vezes ficou desmaia<strong>do</strong>. Mas fornari<strong>do</strong><br />

em si arrebentou em pie<strong>do</strong>sas lagritias e começou<br />

a encher o ar de gritos equiíixas lastimosas<br />

, c baten<strong>do</strong> as mãos sobre a cabeça,<br />

e dizia: Deos Deos meu, como me desamparastes<br />

assim ? logo vira^ão-se-lhc os olhos, a<br />

lingoa pcgava-sc-lhe no ceo <strong>da</strong> boca, apertavag-sc-ihe<br />

as mãos, e ficava assim um espaço<br />

desampara<strong>do</strong> de lo<strong>do</strong> uso <strong>do</strong>s scntiílos.<br />

tonan<strong>do</strong> tornou outra vez em acor


Fk. FIenriotie Slmo; 17 j<br />

miserável tendes chesfa<strong>do</strong> ! Ah<br />

Snn'n í^nez<br />

Yiro*;iTi Santíssima quíTo triste , e (\v:io penoso<br />

íiia foi este vosso pi a uÁm ! ISo cabo<br />

de to<strong>da</strong>s e^íns palavras tornava a cair (lesinaia<strong>do</strong><br />

, e fora de si : o ^lv.e veiulo a poljre<br />

irmãa lancou-se-lhe aos pé.í derraman<strong>do</strong> de<br />

seus oihos rios de lagrimas, e dizen<strong>do</strong> muitas<br />

lastimas , faliava com elle desta manei-<br />

•ra: O' senhor , c pai meu , mal aventura<strong>do</strong><br />

íoi o dia, em que eii nafci no míiri<strong>do</strong> , pois<br />

por uma parte tenho perdi<strong>do</strong> a Deos , e por<br />

outra %os causei tanto mal , e tantos tormentos.<br />

Com razão mereço viver sempre eni<br />

trabalhos. Coin razão me devem perpetuamente<br />

cair as laces com vergonha , e deifazer-se«me<br />

o coração em gemi<strong>do</strong>s. O' íidelissinio<br />

remíílor de luinha triste alma. Ain<strong>da</strong><br />

que não sou digna de me tallardes, nem res-<br />

ponderdes, peço vos to<strong>da</strong>via que haja memoria<br />

nesse pie<strong>do</strong>so coração , que em nenhuma<br />

cousa podeis melhor cumprir com a palavra<br />

que a Derati<strong>da</strong> , e <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />

a mão a uma alma oppriuii<strong>da</strong> de gravissimo<br />

peso ; que este é o íim para que Deos vos<br />

(leu condição pie<strong>do</strong>sa aconipitnlia<strong>da</strong> íle proniptidão<br />

, e brandura para com lo<strong>do</strong>s os atlii-<br />

gi<strong>do</strong>s. Pois como ha de haver no mun<strong>do</strong> qj\e


l^r^<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Deito<br />

só pnia a triste de mim pecca<strong>do</strong>ra , de to<strong>do</strong>s<br />

despreza<strong>da</strong> e<br />

entranhas de<br />

aoorreci<strong>da</strong> haveis de serrar<br />

niisciicordia ? A mim qT)v'<br />

a$<br />

já<br />

diante de Deos e <strong>do</strong>s homens estou perdi<strong>da</strong><br />

depois que minha mal<strong>da</strong>de me fez cair em desgraça<br />

<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s? Mas lai sois vós que aquella,<br />

que to<strong>do</strong>s dcsprezão, e a que to<strong>do</strong>s dão de<br />

mão , essa buscais : e aquella de quem to<strong>do</strong>s<br />

com muita razfio se envorgonhfio , e pejão ,<br />

essa chamais , nHo sem grande ahaiimei.to<br />

de vossa autori<strong>da</strong>de, e magoa deste coração.<br />

cui:i<br />

Abraça<strong>da</strong> a esses pés vos peco sénior<br />

um sentimento eteino de minha alma,<br />

que por honra ^le Deos per<strong>do</strong>eis a esta desditosa<br />

e^te homicídio que comir.elli (ah mofina<br />

mulher ) contra vós , e contra n)iu!)a ahna.<br />

E lembre-vos que ain<strong>da</strong> que lui occasiâo de<br />

receberdes psrJa na honra , e no gosto <strong>da</strong><br />

\i<strong>da</strong> temporal, haveis de ter no Geo por este<br />

respeito uma particular gloria , e contentamento<br />

eterno. Havei lastima <strong>da</strong> mais abati<strong>da</strong><br />

e miserável i ccadjra j d«) mun<strong>do</strong> ; (jue tu<br />

mesma me lancei na rede para padecer eternamente<br />

no corpo e na alma o mal, que tenho<br />

piesenle , e ser abominável , e odiosa<br />

tanto a mim , como a «piantns me conhere-<br />

: tomai-me tie hoje em tliante a' vossa<br />

lem<br />

conta para remédio desta vi<strong>da</strong> , c <strong>da</strong> or.tra ,<br />

e não vos uè pena cui<strong>da</strong>r que quero lorcar


ao eslaclo nonrailo de irniíía vossa , que antei<br />

iiLMíbnrria cousa desejo mais , que perder<br />

para to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> este nome, que não mereço,<br />

O que só queria ^le que de mercê me soííVesseis<br />

ter Ingar diante de vós de irmáa perdi<strong>da</strong>,<br />

e de ilireilo neuhiJUi outro se não de esciava<br />

acha<strong>da</strong> de novo , e c()bra<strong>da</strong> á custa de muito<br />

toriiiento vo^so. E esta determinação tenho<br />

tão asàeiila<strong>da</strong> comigo , que se houver quem<br />

inc chan;e vossa irmàa , ou por essa queira<br />

íazer-me alguma boa ebra , será a cousa que<br />

na ahna mais sentirei. Anlcs terei dó de<br />

vós , se estiverdes em parte onde vos eu possa<br />

apparecer diante <strong>do</strong>s olhos, e hajais de so-<br />

frer tamanha afronta como é !iatuialu»ernc ,<br />

e com razão para to<strong>do</strong> o homem , uma tal<br />

irmàa, e como eu creio que o é para vós,<br />

,<br />

seí(un<strong>do</strong> conheço de vossa ctjndicHo. Nem<br />

quero, que em nenhum tempo tenhais<br />

comigo trr.to, nem conversação que bem<br />

j<br />

enlcn<strong>do</strong> que não podem deixar de se assíunbrar<br />

comigo vossas orelhas, e quel>rarLn: sevos<br />

03 olhos com vergonha. Cousas são estas<br />

para mim muito de sentir, i<strong>da</strong>s ain<strong>da</strong> que<br />

scjão duras e intoleráveis , com ludt) piíssarei<br />

por to<strong>da</strong>s de boa vontadvi, e oííerccel-as-bei<br />

ao poderoso Dcos em desconto <strong>do</strong> a;iontoso<br />

pecca<strong>do</strong> com que o ofíeudi: para que assim<br />

movendcj-vos vós a pi^vladc Ucniim por quem


i8o<br />

YiDk <strong>do</strong>!3j-:\to<br />

sois, liajais por liem de satisfazer fielniento<br />

por minha culpa , e torn;ir-me a pc.r em<br />

graça com Dco-s. A estas lamentações, e<br />

pranto acudio o Santo Fr. <strong>Henrique</strong> , livre<br />

já (Io acciclente, e resnonrleo desla niancira :<br />

Eia sli-s ardentes lai^riniHS arrebentai já deste<br />

coração íertilissimo delias , que de dòr, e<br />

magoas não lhe cabe lá em si. Ai de mim<br />

íiliia minha, único ailivio desta alnia dcsd'o<br />

principio de minha vi<strong>da</strong>. Deixai os pós,<br />

chcgai-vos a mim, e a este peito já dcfuiicto<br />


Fr.Heniviqce <strong>Suso</strong>. iSr<br />

Iro mal , que me cnn^n^tcs , e de forra liáveis<br />

de causar já até o fim de meus d as. E<br />

não duvideis que vos hei de aju<strong>da</strong>r sempre ,<br />

satisnizen<strong>do</strong> por vossa culpa quanto puder ,<br />

assim diante de Deos , como <strong>do</strong>s Lomens.<br />

Alguns homens, que acaso se achárào piesentes<br />

a este acto, ven<strong>do</strong> os prantos d'anihas<br />

as parles , e aquelles eíítiios de tristeza ,<br />

forfío ião movi<strong>do</strong>s de com.paixão , que nenliiim<br />

podia ler as lagiimas. Desta maneira<br />

tkhran<strong>do</strong>u o Sinito aquelle coraí^ào , primeiro<br />

com os eíTeitus íie sentimento, e lo^o<br />

coiu a consolação amorosa, e ficou tal, (jue<br />

TIO mesmo ponto se ofíercceo prompíamente<br />

a tornar ao ha])ilo penitente <strong>da</strong>lleíigião,<br />

que linha deixa<strong>do</strong>. E foi o Senhor servi<strong>do</strong>,<br />

que tanto que esta ovcllia perdiíla tornou<br />

para o rehanho de Chrislo á custa de tanta<br />

vergonha e ahatimento, e Irahalho <strong>do</strong> Santo<br />

, foi recchi<strong>da</strong> n'oulro I>Iosteiro melhor<br />

accomnio<strong>da</strong><strong>do</strong> c mais a seu propósito. Onde<br />

cresceo depois rlj maneira cui fervor, c ohras<br />

<strong>do</strong> serviço de IJeos , c procedeo na guar<strong>da</strong><br />

de sua ahna tão santa c acautclr.(^ín:ente<br />

arman<strong>do</strong>-se de muitas virtudes ale a ujorle,<br />

que seu irmão se houve por largamente satis-<br />

feito ,e contente <strong>do</strong>s enfa<strong>da</strong>mentos, e traballios,<br />

que diante de Deos , e <strong>do</strong>s liomers<br />

passou por sua causa. Antes ven<strong>do</strong> que o


182 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Blato<br />

qne por ella padecera lhe tinha rendi<strong>do</strong><br />

tanto , sentia j^iandc gosto , e aU;grava-se<br />

ruuito , e considerava os occultos juizos de<br />

Deos, e como aos que o aiiião tu<strong>do</strong> lhes<br />

torna em hem. Da.jni levantava os ollios ao<br />

Ceo , e <strong>da</strong>va- lhe iníinit;is gratas , c to<strong>da</strong> sua<br />

aliijâ se derretia em louvores Divinos.<br />

CAPÍTULO XXVíl.<br />

De um grande perigo j cjiie Fr, <strong>Henrique</strong> jws^<br />

soíi por causa de um hradê seu conipankti'<br />

ro,<br />

J Arlin<strong>do</strong> o Santo uni dia para fora, foi-lhe<br />

<strong>da</strong><strong>do</strong> por companheiro um^i*'rade lei^i), que<br />

lo5^'o acceilou de má voulade, porque era<br />

liomem de juizo pouco assenta<strong>do</strong>: leudjravao-lhe<br />

quantos desgostos lhe tiidiào succedi<strong>do</strong><br />

com outros companheiros, que sem<br />

respeito se lhe tinhfio dcsconjposlo; e to<strong>da</strong>via<br />

sogeitan<strong>do</strong>-se por obediência á vontade<br />

alheia , levou-o comsigo. Aconteceo ciiegarcm<br />

antes de comer a uma aldèa , aonde<br />

corria grande numero de gente por razào de<br />

de certa feira , que alli se fazia. Vinha o leigo<br />

nu)ilia<strong>do</strong> <strong>da</strong> chuva , que troiixcrào pcKi<br />

inanhàa; pelo que mettendu-se em uiua ca-<br />

sa ciicgou-i.c ao foi^o, e dicse ao Í.Miito,


Fr. ííENIlIQUE <strong>Suso</strong>. x83<br />

que se não sentia em disposição para passar<br />

adiante , que se tiniia alguma cousa que<br />

ncgocear, fosse embora só, que elle o queria<br />

alli esperar. E tanto que o Santo poz os<br />

pés fora <strong>da</strong> porta , largou o fogo , e foi-se á<br />

mesa, onde comia muita fjente dissolula, e<br />

devassa, que vinha ne^ocear na feira, e porcurar<br />

giinlio de suas merca<strong>do</strong>rias. Ven<strong>do</strong><br />

alguns destes, que o Frade leigo se levantara<br />

<strong>da</strong> uiesa , e estava á porta bocejan<strong>do</strong>, e<br />

ocioso , voUantlo os olnos com livi.iu<strong>da</strong>dc a<br />

uma parte , e a outra , e <strong>da</strong>n<strong>do</strong> fé de tu<strong>do</strong>,<br />

lançarão mão delle , levaiitan<strong>do</strong>-lhc qi)c<br />

lhes totnára um queijo. Em quanlo csu-s<br />

luáos homens maltratavilo o pobre Frade por<br />

esta via , sobrevierão outros , que erao cin-<br />

co, e vinhao arma<strong>do</strong>s , e cheios de fúria,<br />

que também pef^árão dello dizen<strong>do</strong> a grandes<br />

vozes,, que era honuMu , que trazia peçonha<br />

comsigo , e a punha, e lançava por<br />

to<strong>da</strong> a parte. Corria fama naquelle temj>c,<br />

que havia homens, que cum atrevi<strong>da</strong> niaU<br />

<strong>da</strong>dtí iníicionaviio as aíruas. Em Hm tomálão-no<br />

entiesi, e tal era a tra^í.-dia , que<br />

rcprescntavào , que corria a elles to<strong>do</strong> o<br />

])ovo. Ven<strong>do</strong>-se o Frade preso, e desejan<strong>do</strong><br />

livrar-'^ \ voltou-se para os circunstantes , e<br />

disse-lhes estas palavras: Pcco-vos, Senhores ,<br />

que me deis uma breve audiciK^ia , e descu-


x84 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> ro Cíato<br />

l)rir-vo5-]i?i cháoniente tu<strong>do</strong> o que é passa<strong>do</strong><br />

nesta jnateíia. Ficaiuio ic»t.o3 altL-iuos,<br />

ecala:it)S, começou a fa liar (icsti maneira .*<br />

Bem veíltís , e conheceis lo<strong>do</strong>s cm nieu aspeito<br />

, que sou homem íle fraco juízo, e por<br />

isso nino^uem íuz de mim conta. Rias lenho<br />

uni companheiro homem sisu<strong>do</strong> ,<br />

grande ser, a quem nossa Oídem tem<br />

e «Ití<br />

<strong>da</strong><strong>do</strong><br />

o cargo de empeçonhentar to<strong>da</strong>s as íonies,<br />

que ha <strong>da</strong>qui até os Trihunos, ou Alsatia, e<br />

a esse fim caminha para lá. Pelo que não<br />

haja detença em o colhíT<strong>do</strong>s; que, se tar-<br />

<strong>da</strong>is, porá cm execução e^lG <strong>da</strong>na<strong>do</strong> intento.<br />

E já lançou na fonte deste luí^ar um<br />

saquinho (ie veneuo para que morrão quantos<br />

aqui vierem, e hehereni dcUa. E esia é a<br />

razHo porque me deixei aqui (içar, o nào<br />

fui com elle , visto como já o acompanhal-o<br />

me faz mal. E para que vos asse£;ureis , que<br />

íallo ver<strong>da</strong>de, será testemunlia <strong>do</strong> que dií^o<br />

um alíorjj^e granile, que serve de trazer livros,<br />

no (jual -traz muitas hocelas atesta<strong>da</strong>s<br />

de peçonha, e de muitas moe<strong>da</strong>s d'ouro<br />

que os Judeos lhe derào a elle, e á noss*<br />

Ordem para que ponha em ohra tamanha<br />

mal<strong>da</strong>de. Tanto que tal ouvirão os cinco, e<br />

outros tão desatina<strong>do</strong>s, e preversos conio<br />

elles , que se lhe tinhão ajunta<strong>do</strong> , <strong>do</strong>vào<br />

brami^ivs como ])estas leras, e a grandes


Fr. ITkxriqus Su^o. io5<br />

Vozes dizião, Tanivos depressa traz elle, sigamol-o.<br />

¥. ít>í^í^ arrebatan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> um o que<br />

primeiro achava, quem lança, quem machia<strong>do</strong>,<br />

quem outra CDUsa, ião corren<strong>do</strong> como<br />

<strong>do</strong>u<strong>do</strong>s, e quebran<strong>do</strong> portas, e abrin<strong>do</strong> ca-<br />

sas , onde cui<strong>da</strong>vão de achar o Santo : com as<br />

espa<strong>da</strong>s nuas fazifio gueira a's camns, e á |}a-<br />

Iha <strong>do</strong>s eijxergóes, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-ihes de estoca<strong>da</strong>s,<br />

e era o alvoroço , e o rui<strong>do</strong> tal , que quantos<br />

nn<strong>da</strong>ví^o na feira ião traz elle. A-Ciiaiáo-sc<br />

aUi alguns forasteiros, homens de bem, qi;e<br />

conhecião ao Sjnto Fr. <strong>Henrique</strong>. Estes ou-<br />

TÍii<strong>do</strong>-o nomear niettcrão-se no meio, eaffirrunvão<br />

que fazião o que não deviáo em o<br />

buscarem, porque era tal Pessoa, c de tanta<br />

virtude, que uáo era possivej entrar-llie ra<br />

vontade, nem no pensamento um tamanlio<br />

pccca<strong>do</strong>. Com tu<strong>do</strong> não se quietarão senão<br />

depois que não poderão <strong>da</strong>r com elle, mas<br />

leva'rão preso o leif(o ao Governa<strong>do</strong>r <strong>da</strong> ter-<br />

que o man<strong>do</strong>u encarcerar em uma casa,<br />

ra 5<br />

O Santo Fr. <strong>Henrique</strong> não sabia na<strong>da</strong> <strong>do</strong> que<br />

passava ; e parecendj-lhe hora de comer, e<br />

que seu companheiro teria já o habito enxuto,<br />

veio-se para a pousa<strong>da</strong> <strong>do</strong>ntle o deixara<br />

para jantar. Tanto que entrou, contai'ão-]he<br />

tu<strong>do</strong> o que era passa<strong>do</strong>. O que entendiílo,<br />

íicou mui atcMuori/a<strong>do</strong>, e r.o mes-<br />

nio poiilo sem parar voltou para íóra , e


i86 YiDA po <strong>Beato</strong><br />

ft)i-«e rom pressa a rasa <strong>do</strong> Govfrnuclor, er<br />

pedia-lhe que llie soitjsse seu companheiro..<br />

Piespondeo-llie o C(;verna<strong>do</strong>r, qne por nenhum<br />

caso podia "tiil ÍLi/er, antes o havia de .<br />

r.ielter em uma torre pelos males, que linha-<br />

feito. Sentio Fr. <strong>Henrique</strong> por estiemo esta<br />

resohiçâo, e não cansava de sohir, e descer<br />

esca<strong>da</strong>s , e an<strong>da</strong>r de luiuia parte para a outra<br />

por ver se podia remediar o sen preso. E em<br />

fim depois deter gasta<strong>do</strong> nisto muitas horas,<br />

não sem grandes enfa<strong>da</strong>mentos e afrontas,<br />

acahou que lh'o sohassem. Parecia-lhe já então<br />

a Fr. <strong>Henrique</strong> que era acal)a<strong>da</strong> io<strong>da</strong> a<br />

tempestade. Mas na ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>qui começou<br />

a relVescar mais asperamente, pí)ique quan<strong>do</strong><br />

acahou de se dcsemharacar <strong>do</strong>s que mand;:vão<br />

no lugar, então entrou em perigo de<br />

perder a vi<strong>da</strong>. E o negocio passou desta maneira<br />

: 'l'i:dia-se divv.lga<strong>do</strong> at|uella tarde no<br />

povo min<strong>do</strong>, e entre a gente haixa, que o<br />

íSanto tiazla c


Fr. He-Vrique <strong>Suso</strong>. 187<br />

c Governn<strong>do</strong>r. Venrío-se o Santo aperla<strong>do</strong>,<br />

quiz acolher-se a uma quitUa : pp.táo levantarão<br />

a voz corn niais íuiia, e uns dizião :<br />

Afognemol-o no Danúbio (estava assentatJo<br />

o lugar ao longo (leile), outros gritavão: Isso<br />

iiívo, que nos <strong>da</strong>nará a agua es^e ladiáo, ave<br />

é sujo, e torpe; melhor será queimal-o. lím<br />

villfio deshumano e furioso envolto em um<br />

tabar<strong>do</strong>, trazia uma lança nas ii/ãos, e atra-<br />

Tessandri por meio <strong>da</strong> gente onde estava niais<br />

apinha<strong>da</strong>, poz-se diante de to<strong>do</strong>s, e soltou<br />

estas palavias; Oilvi-mc senhores, e to<strong>do</strong>s os<br />

que aqui sois presentes. Nenhuma morte poderemos<br />

<strong>da</strong>r a este herege mais afrontosa, <strong>do</strong><br />

que será se o cu espetar nesta lança como se<br />

faz aos sapos. Desta maneira fican<strong>do</strong> nú , e<br />

aspa<strong>do</strong> nesta lança, e levanta<strong>do</strong> no ar com a<br />

boca par.1 baixo atnarral-o-hei a esta sebe de<br />

maneira , que uno possa cair. i\lirrhe-se no ar<br />

o corpo malva<strong>do</strong>, e fique este ladrão á vista<br />

<strong>do</strong> quar)los passarem, para que o maldigâo,<br />

e abominem ven<strong>do</strong> tão feio grenero de morte,<br />

eassnn seja maior sua desventura no tempo<br />

presente, e no por vir, que tu<strong>do</strong> tem bem<br />

mereci<strong>do</strong> tão jvj^tilencial homem. Ouviu isto<br />

o Santo com assaz pavor, e aperta<strong>do</strong>s suspiros,<br />

e era tal a anciã , que lhe fazia saltar as<br />

lagrimas <strong>do</strong>s olhos. Ven<strong>do</strong>-o neste esta<strong>do</strong> alguns<br />

homens honra<strong>do</strong>s, que eslaváo á ro<strong>da</strong>^


i88 VíDA DO Bi:\TO<br />

choravao ngranientc, oiitiosconi niigoa ba-<br />

tião nos peilos, c lorcláo as mãos sobre a<br />

cabeça. lias nã© oustiva neubuni falia r palavra<br />

ciíia me<strong>do</strong> ilo povo furioso, |)or((ue não<br />

lançiíssein mão delle. Asoini passou Fr. <strong>Henrique</strong><br />

o dia, e sencio j:i tarde an<strong>da</strong>va de casa<br />

em casa pedin<strong>do</strong> ga/aiiia<strong>do</strong> cí)i!i lagrimas, e<br />

eiii to<strong>da</strong> a parte íoi esqtiivaineiitc despedi-<br />

<strong>do</strong>. Umas devotas mulheres desejánio aj^Mza-<br />

Ihal-o; mas de me<strong>do</strong> o deixarão cie íazer:<br />

finalnientc seiítin<strong>do</strong>-se apirlauo dcmoiliiis<br />

anjuslluS, e dcsanipara^lo de lo<strong>do</strong> o socorro<br />

humano, como a({uella genie não espeiava<br />

anais c|ue vel-o preso para o acai;arem,<br />

caio de pura tristeza, e me<strong>do</strong> <strong>da</strong> morle ao<br />

longo de um vabulo; e dídii levantan<strong>do</strong> os<br />

olhos, incha<strong>do</strong>s <strong>do</strong> muito que tinha chora-<br />

Jo, ao pji ceh^sllal dizia : O' pai amoro.-issimo,<br />

qnaii<strong>do</strong> valereis já a e.^le miserável melli<strong>do</strong><br />

em tanianho aperto? O' pai pie<strong>do</strong>sissinu»,<br />

porque vos esqueceis tanto de mim ? O' pai,<br />

ó íidelissiiiio, ó clenientissimo pai ajuilai-uje<br />

nesta minha uliima necessi<strong>da</strong>de, que jii eslo<br />

coração deíiinU) não tem esperança de vi<strong>da</strong>.<br />

3Va moíle não ha duvi<strong>da</strong>. IN cm posso esc^ipar<br />

de aíoga<strong>do</strong> no rio, ou queima<strong>do</strong>, ou pas-<br />

Sii<strong>do</strong> de uma lança. Kncommen<strong>do</strong>-vos hoje<br />

meu desconsola<strong>do</strong> espirito, e peço que liajais<br />

pie<strong>da</strong>de desta desavcuUira<strong>da</strong> n.orlc, que i^io


Fr. iíi:ríi;iQi:E <strong>Suso</strong>, 189<br />

eslão longe os qwe me querem matar. Sen<strong>do</strong><br />

informa<strong>do</strong> um Sacer<strong>do</strong>te <strong>do</strong> lugar destas pie<strong>do</strong>sas<br />

la5ti)iias, foi de pressa aonde o Santo<br />

jazia, o usaiitlo de íoíVíi tirou-o <strong>da</strong>s mãos<br />

<strong>da</strong>([ueries inimigos, e melten<strong>do</strong>-o em casa<br />

teve-o dcjuella noiíe em paz, e ao oiiiro dia<br />

em amanhecen<strong>do</strong> nian<strong>do</strong>u-o embora , e as-<br />

siiií o livrou <strong>do</strong> pcrijj^o <strong>da</strong> mo* te, que tão cei-<br />

ta, e tão presente leve.<br />

C A P 1 T i: L O XXVIII.<br />

Do rue acontccco ao Santo com uni ladrão.<br />

i_ Ornava o Santo mna vez para Allemanba,<br />

onde tinlia sua mora<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s partes delrandes,<br />

(Hide o mantlaia a obeuiencla, e vinha<br />

caminhan<strong>do</strong> peia ribeiras <strong>do</strong> Danúbio con\<br />

um companheiro mancebo, e despacha<strong>do</strong> no<br />

arnlar. Aconteceo que achan<strong>do</strong>-se um dia o<br />

Santo mal disposto , e cansa<strong>do</strong> , não lhe pôde<br />

aturar o passo, que levava, e ficoii-se [)or<br />

dclraz espaço ({uasi de meia milha. la-st; pon-<br />

e o bosque,<br />

eparou-seum pouco antes de enlrar neílc es-


Ií)0<br />

VlDY DO BljLTO<br />

p?ranflo nl^tir^n. Fiilretantovio assomar fluas<br />

pessoas, que vinhõo raminh.in<strong>do</strong> Á pressa,<br />

<strong>da</strong>s quaes uma era nuiliíer moça , e forninsa;<br />

a o!ilra um lioniem temoroso com uma l.inca<br />

ao liombro, e uma espa<strong>da</strong> compriíla á ilharga,<br />

cuherto com um taljar<strong>do</strong> negro. Assouibra<strong>do</strong><br />

o Santo <strong>da</strong> feia catiidura deste, tornou<br />

a estender os olhos por tu<strong>do</strong> por ver se acaso<br />

"Vcria outra companhia; rnas não ven<strong>do</strong> jiinguem,<br />

fallava comsig(?, e dizia: Senhor Deos,<br />

que sorte de homens são estes I qne feição<br />

tão espantosa ? Como hei de passar assim tão<br />

grande bosque? E que será de mim ? Dizen<strong>do</strong><br />

isto fez o sinal <strong>da</strong> Cruz sobre os peitos,<br />

e metteo-se a caminho pela floresta adiante.<br />

Ten<strong>do</strong> caminha<strong>do</strong> um l)om pe<strong>da</strong>ço to<strong>do</strong>s<br />

tre?, travou a mullier pratica com elle, perg(;nlap.df>-ll!e<br />

quem era, e como se chamava?<br />

Satisfez o Santo á pergunta. K ella: Bem<br />

vos conheço senhor meu, disse, pelo nouie.<br />

Pccovos que me queirais ouvir de confissíío.<br />

Começou loi^o a ir-se confessan<strong>do</strong>, e disse:<br />

Ai de mim, Reveren<strong>do</strong> Padre, quero-nie<br />

queixar com vosco de minha triste ventura,<br />

líaví.is de saber que este homem, que n(»s<br />

aco'upaTdia é ladrão, e mata<strong>do</strong>r, e usa este<br />

oMirii» neste ])osfjuc c n'outras partes, e toma<br />

a lo<strong>do</strong>s as bolsas, e vesti(h)s, sem pírdtvir a<br />

iiinjj;ueni, lílle lueengauuu, eme tirou d\u-


Fr. Kr^NRTQUE <strong>Suso</strong>. ic;t<br />

tre minhas amigns, e por força sou sua<br />

iiiullicr. Ouvin<strong>do</strong> isto Fr. <strong>Henrique</strong> faltou<br />

pouco para lhe <strong>da</strong>r um acidente de me<strong>do</strong>, e<br />

Tiran<strong>do</strong> para traz olliava paia to<strong>da</strong>s ns parle*<br />

por ver se podia ver, ou ouvir al^ueni. Mas<br />

como a ílorcsta t-ra espessa, e sombria, nun-<br />

mais que o la-<br />

ca vio, nem omio niijjniem ,<br />

drão, que os vinha seguin<strong>do</strong>. Neste ríeio fazia<br />

discursos Cl insigo , e dizia : se fujo assim caura<strong>do</strong><br />

comí^ vou , logo me alcança , e me mala<br />

; SC bra<strong>do</strong> , não ha de lun er quem me ouça<br />

neste tão espaçoso ermo, e <strong>da</strong> mesma maneira<br />

sou perdi<strong>do</strong>. Então Icvaiitan<strong>do</strong> os olhos<br />

ao Ceo tristes, c arrasa<strong>do</strong>s de agua : Ah Senh.or<br />

Da poj traí<strong>do</strong>. O


ií)2 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

ladrão começava a vlr-se para e!le. OuancTo<br />

o Santo o \io junlo íle si, e lhe \io a LuíÇd<br />

Uiis niãoa, treiuco toei ), e .irrepiárâo-se-llie<br />

os cabellos , e ficu-se por acauaJo, porque<br />

nfio sabi;i o que an»hos ti:íhão passa<strong>do</strong> ciitre<br />

si. O sitio <strong>do</strong>hio^ar, por onde raminliavâo<br />

era de si niea.inlio, porque o Danúbio corria<br />

ao longo <strong>do</strong> bosqne , í? a esti a<strong>da</strong> ia sobre<br />

a l)orJa tio rio. O lad/áo deixou ir o Santo<br />

parle <strong>da</strong> agua, e poz-se <strong>da</strong> ban<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra.<br />

In<strong>do</strong> nvim o hanto cIícIo de nie<strong>do</strong> , couicçou<br />

o ladrão sua confis.i'10 dec^^aran<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s<br />

íjuanlos males, e rí>ubos linha feito, e em<br />

particular contou nin horrendissinio homiridio<br />

que fez íicar o Santo altoiiito. Kntrei um<br />

dia , contava o ladrão, neste bosque a saltear<br />

como tand)eni agora venho, encontrei com<br />

um Sacer<strong>do</strong>te honra<strong>do</strong> e veneravei, confes-<br />

:sei-me com clle, in<strong>do</strong> caminhan<strong>do</strong> and)os<br />

como agora vamos vós, eeu. Acaba<strong>da</strong> a confissão,<br />

levei desta mesina espa<strong>da</strong>, que aqui<br />

vedes, c del-lhe de estoca<strong>da</strong>s, o lancei-o no<br />

rio. Desta historia junta com os gestos, que<br />

o ladrão fazia conlan<strong>do</strong>-a, e de seu aspecto<br />

ficou Fr. Heiiriíjuc tão atlonito e perdi<strong>do</strong> de<br />

animo, que lhe corrião suores frios, e mor-<br />

tais lo<strong>do</strong>s os men)!)ros, e o sangue se llie<br />

congelou no corpo, e perdeo a f.iila, e ficou<br />

tJe maneira, que ";uroi eslava faliu de tu<strong>do</strong>s


Tb. ÍÍE^íRiQtJE SusOé 193<br />

'os scr.tl<strong>do</strong>s, só tinha os ollios postos na espa<strong>da</strong><br />

(lo Indião, esperan<strong>do</strong> a hora, eni que<br />

o havia de atravessar com elh^ , como ílzera ;ío<br />

outro Sacer<strong>do</strong>te , q lançal-o de cabeça no rio:<br />

e começan<strong>do</strong> com esta asronia a desmaiar, e<br />

não ten<strong>do</strong> jd tbrcss para se ter em pé, íicoii*<br />

lhe o rosto desfigura<strong>do</strong> e mortal, como de<br />

homem , que c^^tava para perder a vi<strong>da</strong> logo,<br />

e desejava £aival-a. Notava estes eííeitos a<br />

companheira <strong>do</strong> ladrão, e tanto que caio no<br />

que era, acudio de pressa a ahracar-se com<br />

clle, que ia cain<strong>do</strong> já desfaleci<strong>do</strong>, e trabalhava<br />

pelo alentar, e tornar em acor<strong>do</strong>, dizen<strong>do</strong>-ihe<br />

: Não temais , bom Paíire que não se<br />

,<br />

vos fará' nenlium mah Também o ladrão o<br />

animava , o dizia-lhe : Eu Senhor tenho ouvi<strong>do</strong><br />

muitos bens de vós , e por ivso quero dei-<br />

X ir- vos a vi<strong>da</strong>. Rogai a Deos por mim , e pe-<br />

di-Ihe que por aunrr (k; vos me acu<strong>da</strong> ,<br />

e haja<br />

njisericordia comigo, que sou um la d ião, e<br />

an<strong>do</strong> para morrȒr catia dia. Quan<strong>do</strong> dizia<br />

eUas ultimas palavras acaha\rio de sair <strong>do</strong><br />

bosque, e eis ([ue appareceo o compnniitiro<br />

de Fr, Henri(p>e, que estava assenta<strong>do</strong><br />

ao pé de uma arvore espera !ulo por ello.<br />

O bubão adiantnu-se com sua ci,m[)anheira<br />

; mas o Santo chegan<strong>do</strong> como pôde aonde<br />

estava o seu Frade, dei\ou-se cair em<br />

terra com um íjranile tremor d«) coracâc,<br />

7


194<br />

VíDA. DO <strong>Beato</strong><br />

c <strong>do</strong> corpo to<strong>do</strong>. Depois de estar assim u«i<br />

espaço deita<strong>do</strong> cobran<strong>do</strong> alento, levantou-se,<br />

e acabou seu caniinbo. E sempre pedia a<br />

Doos n)ui de propósito, e com granc^e^ sus-<br />

Í)iros, fosse servi<strong>do</strong> que aproveitasse aqnelle<br />

adião a fé, que tiveia nelle, e a esperança ,<br />

cjue puzera em sua intercessão , e orações, e<br />

não permittisse que depois <strong>da</strong> morte se condemnasse.<br />

E mostrou-l!ie o So!)bor uma visão<br />

, pela qual ficou cei lifica<strong>do</strong> de sua salvação<br />

poi^ maneira (jue nenhuma duvi<strong>da</strong> tiniu<br />

que se havia de salvar,<br />

CAPITULO XXIX.<br />

De alguns perigos y<br />

que o Santo passou por<br />

X ínha o Santo por costume ir algumas ve-<br />

^xes á Ci<strong>da</strong>de de Argentina, que vulgarmente<br />

se chama Str.iburgf. Tornan<strong>do</strong> uma vez delia<br />

para o Convento, caio uuui temeroso pego<br />

<strong>do</strong>Dantdjlo, e juntamente com elle foi um livro,<br />

que tinha composto havia pouco, a quem<br />

o diabo linha grande ódio. E sen<strong>do</strong> leva<strong>do</strong><br />

<strong>da</strong> forca <strong>da</strong> corrente sem haverquem Ibe acodisse,<br />

e an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> já em braços com a morte,<br />

ora in<strong>do</strong>-se ao fun<strong>do</strong>, ora Lí)rnan<strong>do</strong>-se em<br />

cima <strong>da</strong> agua, acontccco por divina provi»


Fr. IIE^•RIQrE <strong>Suso</strong>? 19^<br />

que r.o mesmo íeaipo cliegou alli um<br />

tlencin ,<br />

sol<strong>da</strong>d.) <strong>da</strong> Prússia, quo vinlia de Argentina,<br />

o qual se lançou á agua , e o tirou dcUa com<br />

seu companheiro são e salvo , livran<strong>do</strong>-os de<br />

tão triste género de morte. Outra vez foi<br />

íora <strong>da</strong> casa por <strong>ordem</strong> <strong>do</strong>s superiores, e ei^<br />

no Inverno, e ten<strong>do</strong> caminha<strong>do</strong> em coclie o<br />

dia to<strong>do</strong> alé vésperas :>em comer, pelo vento<br />

que corria frio e desabri<strong>do</strong> , chegou a um passo<br />

de agua turva e nlía , que com a força <strong>da</strong>s<br />

chuv.is levava grande corrente. O cria<strong>do</strong>, qiis<br />

governava ococlie, deixou-se chegar t;i«to á<br />

})or<strong>da</strong> d'agua por descui<strong>do</strong> , que cain<strong>do</strong> as<br />

ro<strong>da</strong>s em vazio <strong>da</strong>quell;\. ban<strong>da</strong> , revirou em<br />

claro sobre a corrente. Cain<strong>do</strong> o coche caio<br />

tand)em o Santo de cabeça, e fjcou de costas<br />

pohrir a aíT^a , e losfo foi o ccclie sobre elle,<br />

de maneira que se não pod'a tirar debaixo,<br />

nem revolver-se com o peso paia nenliuma<br />

parte, nem aju<strong>da</strong>r-se; c assim foi um gr;yidj<br />

pediíço pela agua abaixo junto com o coche<br />

até <strong>da</strong>rem n'um moinho. Aqui o cocheiro<br />

acudio com outros, e ferrou nulle; uj.ís era<br />

tal o ptíso <strong>do</strong> coche, que por muito que tr;:*<br />

balhaváo, e fazião pelo tirar, não n'o j)odira><br />

levantar, antes tornava a baixo. Em íim levantan<strong>do</strong><br />

primeiro o coche, não sem gmnde<br />

trabalho, tirarão-no a terra bem niolha<strong>do</strong>. E<br />

como o frio era grandíssimo , logo so lhe con-


19^ VíDi DO <strong>Beato</strong><br />

gelarão os fatos no corpo de maneira, que<br />

batia os dentes de íiio. Nesta afllircão esteve<br />

o Santo por grande esj);i( o sem se poder valer,<br />

e levantan<strong>do</strong> os ollios a Deos dizia : Que<br />

farei, Senhor, ou que intentarei primeiro?<br />

veni^se a noite, e não vejo luj^ar, nem alJèa<br />

por aqui onde me possa aquentar, ou reme-<br />

diar. Se quereis que acabe aqui assim tristemente,<br />

he bem miserável género de morte.<br />

To<strong>da</strong>via estenden<strong>do</strong> a vista por tu<strong>do</strong> enxergou<br />

ao longe uma aldeã ao pé de um monte,<br />

Foi-se lá como pôde to<strong>do</strong> molha


Fk. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. 197<br />

C A P I T U L O XXX.<br />

De como se houve o Santo n^uni breve tempo,<br />

que teve vago de tribulações,<br />

JLjiília já Deos nosso Senlior poslo cni tal<br />

costume o seu servo Fr. <strong>Henrique</strong>, que em<br />

lhe aíroxan<strong>do</strong> uma tribubífio, cleterniina<strong>da</strong>inente<br />

espeiíiva logo í)ntra. E a^aim sem ter<br />

um momento de lefrioeiio, an<strong>da</strong>va semj re<br />

afíligl<strong>do</strong> : só de unja vez lhe deu o Senlior algum<br />

repouso, e este foi ain<strong>da</strong> de bem pouca<br />

dura; no qual tempo entran<strong>do</strong> um dia n'i:m<br />

Mosteiro de Freiras, umas filhas espirituais,<br />

que nelle linha , lhe perguntarão conjo ainía-<br />

Ta. Aoque o Santo rcspondeo, que receava qn j<br />

lhe não ia l)em , e que Deos se esquecia deile ,<br />

porque era passa-lo um mez inteiro sem receber<br />

otiensa de ni»)guem, nem no corpo, netn<br />

na fama, cousa íóra <strong>do</strong> costume em que estava<br />

de muito teujpo atraz. l'onco espaço liavia<br />

queo Santo eslava assenta<strong>do</strong> asgrades, quan<strong>do</strong><br />

um Fratle de sua Ordem, ([uese alliathou,<br />

o chamou á parre, e Ihedisse osej^uinte : \ão<br />

ha muitos dias que ntc achei u'um ca^tello,<br />

onde ouvi o Senhor deile per^^amtar elíioazincnle<br />

por vós, c por (huide aritlaveis, e ju-<br />

rar com as mãos levanta<strong>da</strong>s diante de mi;ila<br />

gente, que se vus aciuvu, cm qualquer lu-


igH <strong>Vi<strong>da</strong></strong> no <strong>Beato</strong><br />

gar que fosse, vos havia (]e <strong>da</strong>r de nonliali-<br />

<strong>da</strong>s. O mesmo juramento Gzerão tnníLcm alguns<br />

fi<strong>da</strong>lgos seus parentes, os ([tiaes a estr\<br />

conta TOS huscarão já em tdgans Moslciros,<br />

]:ara executarem esla <strong>da</strong>na<strong>da</strong> vontade, que vos<br />

lein. Por onde vede o que vos cumpre. An<strong>da</strong>i<br />

acautela<strong>do</strong>, e olhai por vós, se estimais<br />

a vi<strong>da</strong>. Ouvin<strong>do</strong> isto Fr. <strong>Henrique</strong> ficou cheio<br />

de me<strong>do</strong> , e disse ao Frade , que tomara saber,<br />

que razfio hírvia para o tei eui por merece<strong>do</strong>r<br />

de tal morte. O Frade llie respondeo desta<br />

maneira: Haveis de saber que cuntarfio a este<br />

senhor, que vós ensináveis a urna fiilia sua<br />

um mo<strong>do</strong> devi<strong>da</strong> particul.jr, e novo, que se<br />

chama espiritual, e os professores delle espira<br />

uais, e (jue a niettesles nella c .mo fizestes<br />

noutra muita gente. E está persuadi<strong>do</strong> que en-<br />

tre to<strong>do</strong>s os nasci<strong>do</strong>s não ha peiores ho:i»ens,<br />

que os que seguem esta <strong>do</strong>utrina. Também<br />

estava piesente nesta junla um homem atrevi<strong>do</strong>,<br />

e feroz, que aftírmava (jue vós o tii::heis<br />

descasa<strong>do</strong> de sua mulher, que muito<br />

amava de tal maneira, que tapava o rosto,<br />

e não queria olhar para elle , e dizia que que-<br />

ria bó olhar para dentro de si, e por sua alma.<br />

Tanto que o Santo soube estas novas,<br />

deu graças a Deos , e tornou logo para as Ke-<br />

ligiosas, e disse-lhes : Ama<strong>da</strong>s tilhas, servi a<br />

Deos varoniiiuente, que ja se lembrou <strong>do</strong>


Fr. He:íriqui <strong>Suso</strong>, ipf)<br />

mim. E logo lhes contou as temerosas novas<br />

que v^ Frade llie dera , e como o luaiulo an<strong>da</strong>va<br />

traçan<strong>do</strong> pagar^lhe com males os servi-<br />

ços, que lhe fazia.<br />

CAPITULO xxxr.<br />

De conin o Santo entrou um dia ein contas<br />

com Deos , e <strong>do</strong> que lhe rssultou delias»<br />

N,O mesmo tempo, que Fr. <strong>Henrique</strong> padecia<br />

os trabalhos, que vamos contan<strong>do</strong>, entrou<br />

unia vez na enfermaria <strong>da</strong> casa, em í\\\q<br />

morava, para d.ir alguina recreação a seus<br />

cansa<strong>do</strong>s Uíembros. Estan<strong>do</strong> seula<strong>do</strong> á mesa,<br />

e cala<strong>do</strong>, segun


aoo <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Bj24to<br />

muitas vezes, e de uma levantan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong><br />

mesa, não se pude mais reprimir, e fcil-se<br />

Corren<strong>do</strong> ao seu Oratório, e posto diante de<br />

Deos conieç.ju a queixar-se desta maneira :<br />

Suavibsimo Deos, Senhor <strong>do</strong> inun<strong>do</strong> tolo,<br />

peço-vos que useis comiijo de brandura, e<br />

pie<strong>da</strong>de , que hoje é o dia , em que determino<br />

entrar em contas com vosco , e não posso ai<br />

fazer. E ain<strong>da</strong> que a ninguém deveis na<strong>da</strong>,<br />

nem eslejaij obriga<strong>do</strong> a na fia, por serdes,<br />

como soisj Deos soberano,, c imnicnso em magestade:<br />

sem embargo de tu<strong>do</strong> á vossa bon<strong>da</strong>de<br />

iníiuiia compete sofrerdes, que possa<br />

desabafar com vosco, e tomar algum aílivio<br />

CiC vossos divinos favores, um espirito afoga<strong>do</strong><br />

em tribula'-ões, maionnente quan<strong>do</strong><br />

não tem outrem ninguém , a quem se possa<br />

queixar, ou quem o console. E começan<strong>do</strong>,<br />

a vós mesmo Senhor, a quem na<strong>da</strong> se esconde,<br />

tóiuo eu por testemunha, que desde<br />

que nasci tive sempre um coração bran<strong>do</strong>, e<br />

compassivo; porque nu!íca me lembra que<br />

visse ninguém altribula<strong>do</strong>, ou triste, que<br />

me não compadecesse delleentranhavelmen-<br />

te. Nunca pude ouvir cousa que pudesse faler<br />

nojo ao p-oximo, nem em presença,<br />

nem em a])^eniia sua. De unia cousa me serão<br />

testemunhas meus companheiros lo<strong>do</strong>s,<br />

que mui raras veze"^ «ue ouviriáo torcer coiu


Fr. TÍENRIQtlE ScSO. 40»<br />

minlia llnofiiacrem , ou Jar entendlmenlo á<br />

pfior parte aos feitos alheios, nem de Frade,<br />

riem de outrem ninguém, assim diante cios<br />

superiores como de to<strong>da</strong> a outra pessoa. Antes<br />

em qiianto pude julguei sempre o melhor<br />

<strong>da</strong>s obras de to<strong>do</strong>s, e quand


*02 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Beatí><br />

mim entranliss úc amor e branrlura: e vós^<br />

Deos pie<strong>do</strong>síssimo, perniittis que haja homens<br />

(eslcs são os que o Apostolo chama ir-<br />

iiiftos falsos) que me tratem com muita esqui-<br />

"vança , e de«abrimento, como \ós, Senhor,<br />

Lem saljeis, e a to<strong>do</strong>s lie ben) notório. Peço-vos,<br />

Senhor, que vejais isto, eros mesmo<br />

me deis algum aUivio de vossa nião. Depois<br />

que o Santo desabafou largamente com Deos<br />

riestas contas, ficou n'um repouso mui assoceo^a<strong>do</strong>,<br />

esentio i:or meio de uma luz divina<br />

csra resposta em sua ahna: Eftas tuas conlus<br />

são contas de minino, e nasccm-te de não ad-<br />

virtires sempre, c^mo deves, nas palavras,<br />

e nas obias de Christo paciento. Has de entender,<br />

que não é só bastante para Deos esta<br />

tua condição caritativa e bran<strong>da</strong> , de que tu<br />

te contentas, mas sabe q«)e quer de ti outra<br />

cousa mais subi<strong>da</strong>, e mais perfeita, quoro<br />

dizer, que quan<strong>do</strong> alguém te aggravar com<br />

obras, ou com palavras, não somente passes<br />

por isso levemente, mas in<strong>da</strong> estejas tão<br />

morto á tua paixão, e a ti mesmo, que não<br />

ouses deilar-te a <strong>do</strong>rmir sem primeiro busca-<br />

res esse que te a^j^sfravou ,<br />

e com gesto tlesassonjbrn<strong>do</strong><br />

e palavias decortezia, e com a bo-<br />

ca cheia de rizo abran<strong>da</strong>res quanto em ti for,<br />

ç assocegaressiia cólera , e fúria: porque com<br />

esta uioderacào e humil<strong>da</strong>de lhe arrancas


Fr.. <strong>Henrique</strong> Sttso. ao3<br />

Ia mito a espa<strong>da</strong>, e fazes que aquella raiva<br />

ema vontade lhe finue fraca, e sem forças,<br />

e totalmente desnrmri<strong>da</strong>. E este he a(|nelle<br />

aníi;'o casuinlio ^de perfeição que Clirlsto<br />

JESL ensinou a seus discípulos quan<strong>do</strong> lhes<br />

dizia: íiis afie eu vos man<strong>do</strong> como cordeiros<br />

entre 'obos. Depois que o Santo tornou em<br />

si pancco-lhtí este caminho de perfeiçno<br />

muito liais agro, e trabalhoso, e não podia<br />

cui<strong>da</strong>r nelle sem .grande desabrimento , e<br />

muití) naior o sentia se queria acommeltel-o.<br />

Mas cí'm tu<strong>do</strong> como estava resigna<strong>do</strong> nas<br />

mãf)S d) Senlror, começo\i a provar suas forças<br />

, ea:)r3nder os passos desta estra<strong>da</strong>. Acon-<br />

ttíceo <strong>da</strong>lli a alj^uns dias, que um í'rade leigo<br />

o tratou mal (!e palavra, e o injuriou notavelmente<br />

Sofreo tu<strong>do</strong> o Santo sem fallar nalavrií<br />

; e luven<strong>do</strong> que isto bastava , náo queria<br />

passar adiante. Mas interiormente sentia um<br />

reníordimento ,<br />

que o obrigava a fazer mais.<br />

E assim no mesmo dia á tarde estan<strong>do</strong> o Frade<br />

cean<strong>do</strong> na eifermaria , esperou a porta , cem<br />

sain<strong>do</strong> deiton-se-lhe aos pés, e pcdio-lhe<br />

hurnihlemente perdfio dizen<strong>do</strong>: Cliarissimo<br />

e Rclij^ioso Pa Ire , peço- vos por reverencia<br />

de Deos , que «e em algucna cousa vos molestei,<br />

ou offendi, me per<strong>do</strong>eis por amor<br />

de Deos. Vejidu o leigo um tal acto, primeiramente<br />

íicou par;r<strong>do</strong>, t mu<strong>do</strong>, c lo^o er-


ao4 <strong>Vi<strong>da</strong></strong>. <strong>do</strong> BrAxo<br />

giien<strong>do</strong> os olhos disse em voz alta : Valha-me<br />

Dcos, que maravilha é esta? que fazeis?<br />

Nunca me offcndestes mais que aos oulfos,<br />

antes eu fui o que notavehiiente vos e*c;in-<br />

<strong>da</strong>lizci , e que com a soltura demasiadri ííosta<br />

liugua V03 fiz cruéis aL'oiitas; c disto eu sou ,<br />

meu Padre, o que houvera e devia peclr-vos<br />

perdão, e iniportunar-vos uma, e muitas<br />

vezes por elle. E assim ficou o Santo (|uielo.<br />

I^m dia estan<strong>do</strong> Fr. <strong>Henrique</strong> á mesa na enfermaria,<br />

disse-lhe un» Fraiie muitas palavras<br />

pesa<strong>da</strong>s , e malditas, e elle lhas pagou<br />

com se virar para elle com um senjl)lante<br />

tão risonho e alegre, como se nelias reccl)era<br />

alguma amizade mui signala<strong>da</strong>. Mas i-*to teve<br />

poder para tornar o Framo Frade este successo na ci<strong>da</strong>de<br />

com estas palavras : Hoje foi o dia , em<br />

que uie vi tão cheio de vergonha e afronta<strong>do</strong><br />

estan<strong>do</strong> comen<strong>do</strong>, que cuid> que nunca<br />

outra tal me aronteceo. Porque fa lian<strong>do</strong> eu<br />

mui solta, e desarazoa<strong>da</strong>men:e contra Fr.<br />

<strong>Henrique</strong>, elle me ouvio tom um gesto tão<br />

aprazivel , e desapaixona<strong>do</strong>, que me ffz ficar<br />

corri<strong>do</strong>. È espero aw nosso Senhor que me<br />

ha de aproveitar sempre este seu exemplo.


Fe. Kenriqte Srso. 2o5<br />

CAPÍTULO XXXII.<br />

Deconio o Santo chegou alí^umas vezes a risco<br />

íe perder a vi<strong>da</strong> de demasia<strong>da</strong> ajjlicçào,<br />

ACjonterco a Fr. <strong>Henrique</strong> em certo tempo,<br />

-jue as mais <strong>da</strong>s noites no meio <strong>do</strong> sono<br />

acoríava cheio tle pavor E começan<strong>do</strong> a re-<br />

2ar sem saber o qne, logo começava o PsaU<br />

mo d;Pnlxáo, que começa :<br />

Deus Deus meus<br />

respiciin me, que éonjcsn-o, qnecoritf.o, que<br />

Chiisú') nosso Senhor disse na Cruz ven<strong>do</strong>-se<br />

naquele nliimo irai alho desan;para<strong>do</strong> <strong>do</strong> Padre<br />

Fjerro , e de to<strong>da</strong>s as creaiuias. A contínua<br />

r(peli< áo deste P.«^almo, qiicscm qnei er se<br />

lhe vidia á hòca , e a lembinnca <strong>do</strong> prii:


20(5 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> f>n P.bvto<br />

nero de trabalho. NiTo tar<strong>do</strong>u muito ?. cm<br />

que cLuínuentc lhe represei tár.i aíjuelle r>-<br />

soíTibra mento nocturno , com a qual lhe a-o<br />

t;d um homem virtuoso seu devoto, cue era<br />

presente (qne o Santo tirara de gravís peoca<strong>do</strong>s,<br />

nío i;em grande custo, e trahabo seu)<br />

acudio de pressa lançan<strong>do</strong> muitas lagimas, e<br />

saltan<strong>do</strong>-liie o coração de <strong>do</strong>r, por ^er se tinha<br />

ain<strong>da</strong> ah^^um alento devi<strong>da</strong>. iMjS achoulhe<br />

o coração tão adi)rmeci<strong>do</strong>, q\c não pjrecia<br />

fazer iiíais movimento quese íura de<br />

um homem morto. Então venc<strong>do</strong> de <strong>do</strong>r<br />

cain<strong>do</strong> sobre ellecom lagrimas en fio e pranto<br />

em grita : O' Deos, dizia, >ede como é<br />

acaba<strong>do</strong> hoje aquelle cxcellen te .^oração , que<br />

vus hospe<strong>do</strong>u, e trouxe em »i tão longos


Fr. Henltqfe í<strong>Suso</strong>. ^07<br />

anos com uma virtude, e religião fora <strong>do</strong><br />

ciomum, e que com palavras, e escritos, que<br />

corem pelo mun<strong>do</strong>, vos deu a conhecer, e<br />

cou suavi<strong>da</strong>de fez seguir de infinito numero<br />

díí liomens estraga<strong>do</strong>s, e perdi<strong>do</strong>s. Enire<br />

esta lamentações, e magoas, que dizia, piinliallíe<br />

as mãos sobre o coração, e na boca,<br />

e pcos braços, desejan<strong>do</strong> entender se estava<br />

an<strong>da</strong> vivo, ou se era falleci<strong>do</strong>. Mas em<br />

iienhnia parte lhe achou movimento, nem<br />

pulse E na ver<strong>da</strong>de elle eslava tal, que nenhum<br />

cousa tinha <strong>do</strong> homem vivo, mas<br />

tu<strong>do</strong> omo quem caminhava já para a sepultura.<br />

) rosto infla<strong>do</strong>, e amarcllo, e a buca<br />

negr;. Neste esta<strong>do</strong> esteve tanto esjiaço, em<br />

quani se pudera bem an<strong>da</strong>r uma milha de<br />

Allcnniha. Mps em quanto a^sín» jazia como<br />

em ex;isi , eslava sua alma gozan<strong>do</strong> não me-<br />

nos oljecto que o mesmo Dios, e a divin-<br />

<strong>da</strong>de ,<br />

» aquelle que só é ver<strong>da</strong>deiro , e a<br />

mesma er<strong>da</strong>de, e a uni<strong>da</strong>de sempiterna. E<br />

já antes |ue começasse a cair reste desfalleci-<br />

m'*ento , ? Iransporlar-se , tiirha entra<strong>do</strong> eni<br />

bran<strong>do</strong>s? devotos colloquios com Deos, dizen<strong>do</strong><br />

d6ta maneira: O' Acrilade eterna,<br />

cujo ine:


to 3 VíDi DO Beatíj<br />

cieiro termo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Por isso, Deos Omnpotunle,<br />

íallo com vosco nesta uitinia lioii,<br />

coiu vosco a quem ninguém póile /iientir a<br />

qiíein ninguém pó»le en^^janar, pois tu<strong>do</strong> os<br />

é patente e manifesto. Vós só sabeis »> |Ue<br />

passa CMtre nun» e vós. Vussa henigni^de<br />

e misericórdia invoco Clementissimo íli-<br />

delissinio Pai: e su alíjuma liora me dtA^iei<br />

para outro algum oI)jecto fora <strong>da</strong> snhfaoa<br />

ver<strong>da</strong>de, peza-me, Senhor Deos, deno<strong>do</strong><br />

coração, pedin<strong>do</strong>-vos que com vosso pccio-<br />

so sangue laveis este erro, segun<strong>do</strong> vos* clemência,<br />

e minha nece-^si<strong>da</strong>de. Lemhíevos,<br />

Senlior, como quanto foi em mim lourvi, e<br />

exalcei por to<strong>do</strong> o discurso de minha<strong>Vi<strong>da</strong></strong><br />

aquelle puríssimo, e sagra<strong>do</strong> Sangue, (j/e na<br />

Cruz derramastes. Este fazei vós que W pu-<br />

rifique e alimpe de to<strong>do</strong> o pecca<strong>do</strong> íjora ,<br />

que vou passan<strong>do</strong> desta vi<strong>da</strong>. Peço-vo.v .3anlos<br />

<strong>do</strong> Ceo, e a vós em particular morosíssimo<br />

Pai e Bispo S. iNicoláo, qu lo<strong>do</strong>s<br />

juntos de joelhos, e com as niáos letnta<strong>da</strong>s<br />

façais oração por mim ao Senhor, que me<br />

dè boa morte. O' puríssima e eslareci<strong>da</strong><br />

Virgem i\Iaria, <strong>da</strong>i-;ne ajora a mão aijuella<br />

mão, digo, pie<strong>do</strong>slíslma , e vo^sa, frt esta ultima<br />

hora recebei minha alma di^aixo de<br />

vossa Fé, e amparo, ]>ois depoií de Deos<br />

não tem meu coração outro gosic^ nem au-


Fa. TlE"'íP.iQrE Sus^. 209<br />

tra copsolíção senão a vós ó Senhora e Mãi<br />

niinha : e»; vossas niáos encommenclo meu<br />

es|úritô. Ah suavíssimos espirlios .-Jiigelicos,<br />

lenibre-vos, rogo, como em to<strong>da</strong> a v*


210 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

cie amizade, ou de confissão tiverão trato,<br />

ou conliecimento coiiiiso. E assim como vó-><br />

misericorcliosissimo JI- SU estan<strong>do</strong> para render<br />

o espirito com sumiiia confiança encommen<strong>da</strong>stes<br />

ao Padre Eterno vossos ama<strong>do</strong>s<br />

discípulos , peço-ros que com o n:esmo amor<br />

os li.ijals por encomnienila<strong>do</strong>s a tcs para llies<br />

<strong>da</strong>rdes santo e bemaventura<strong>do</strong> fim. Agora<br />

de ver<strong>da</strong>de <strong>do</strong>u as costas a to<strong>da</strong>s a*s crealu-<br />

ras vis e mortaes; e íaço de mim entrega á<br />

mesma divin<strong>da</strong>de, fonte e origem primeira<br />

<strong>da</strong> salvação eterna. 'i'en<strong>do</strong> dito esUis palavras,<br />

e outras mnitas a este mo<strong>do</strong> , que en-<br />

tre si com devação e amorosamente íallava,<br />

começou a cair no de mai > que temos conta<strong>do</strong>,<br />

e ficou arrebata<strong>do</strong>. ]\ias cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s<br />

, e elle também que morria , tornou em<br />

si; e o coração, que estava sem movimento,<br />

e mortal, resuscitou.com novo alento de vi<strong>da</strong><br />

, os membros cansa<strong>do</strong>s e enfermos cobrarão<br />

saúde, e elle suas forças primeiras.


Fr. Hn'-r.TorE <strong>Suso</strong>. ail<br />

CAPÍTULO XXXill.<br />

De como foi revela<strong>do</strong> ao Santo , em que ma^<br />

ncíra devem os ajjii^i<strong>do</strong>s . ojferecer a Dcos<br />

suas irihi<strong>da</strong>coes com louvor e íiracas.<br />

l-jStan<strong>do</strong> o Sinto Fr. <strong>Henrique</strong> um dia com<br />

profun<strong>da</strong> imaginação consideran<strong>do</strong> seus tra-<br />

biilios, e batalhas contínuas, e passan<strong>do</strong> to»<br />

<strong>da</strong>s pela íuemona , e notan<strong>do</strong> nt;llas os escondi<strong>do</strong>s,<br />

e uíaravilhosos juiios de Deos , virou<br />

para o Seniior com uni suspiro saí<strong>do</strong> d'alma,<br />

etiisse: Estas cruzes, SenlioPj eafíiicçõts com<br />

que vós permittis que exteriormente eu seja<br />

persegui<strong>do</strong>, ao parecer de fora não tem neniiuma<br />

diiferença de uns agu<strong>do</strong>s ahrollios, e<br />

espinhos duros, qjic me passão a carne , e encravão<br />

os ossos. Pelo que, pie<strong>do</strong>síssimo Senlior,<br />

fazei vós que s íia algum fru< lo saboro-<br />

2j, fruct»» de <strong>do</strong>utrina pia , e saudável <strong>da</strong> aspereza<br />

destes espinhos, para que os miseráveis<br />

atribula<strong>do</strong>s levemos com mais paciência<br />

o pcs4) de nossas crnzes, e saibanif»s tirar<br />

delias hiuvor e gloria vossa. Depois (juc o<br />

Santo continuou um grande espaço, e muito<br />

de proposiso esta petição , transportf»u-se algumas<br />

vezes dentro de si , e sobre si, n'ura<br />

quieto roubo <strong>da</strong> alma, e bran<strong>do</strong> alheio de<br />

to<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> corporal, ouvio o Senlioi-, que


a 12 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

suavemente llie dizia estas palavras : Hoje por<br />

certo te quero descobrir urna exrellencia , e<br />

diijni<strong>da</strong>de altíssima d«3 minha vi<strong>da</strong> , e ensinar-te<br />

coino to<strong>do</strong> o afíligi<strong>do</strong> deve offererer a<br />

Deos com louvor o agradeeimeníí) os trabalhos,<br />

que lhe dá. Tanto que isto oii^io oSar.»<br />

to, começou a derreter-se-lhe o coração em<br />

grande suavi<strong>da</strong>de nasci<strong>da</strong> de nma abundância<br />

sem medi<strong>da</strong> de cousas, que naquelle extasi<br />

sentia communicareai-se-lhe. E estendemh)<br />

os braços de sua alma pela imuiensi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>va<br />

<strong>do</strong> Ceo , e por a re<strong>do</strong>ndeza <strong>da</strong> terra ,<br />

graças a Deos com entra nliavel aí feito<br />

<strong>do</strong> coração, c com uma inefável devacãf) di«<br />

zen<strong>do</strong> desta matieira: Até>^ora Senhor meu<br />

vos louvava em meus escritos , atégora vos<br />

celebrava, e engrandecia cont.m<strong>do</strong>, e trazen<strong>do</strong><br />

em gloria vossa tu<strong>do</strong> (juanto pode<br />

haverem to<strong>da</strong>s as crealuras, que sejaagla<strong>da</strong>vel,<br />

e deleitoso, que seja saboroso, e apra-<br />

zivel. Mas agora sou forca<strong>do</strong> a romper os<br />

ares com uma nova musica , e entoar um louvor<br />

dt;'^act)^lijma(lo, et.d, qtie eu lyesmo<br />

não tive ja ukÚ'^ nolicia delle, senão foi hoje<br />

que vim a aprender suas adversi<strong>da</strong>des. Comecemos<br />

Ioíi


Fr. HE^RIQtJE <strong>Suso</strong>. âi3<br />

Tr?.balhos, e angustias de to<strong>do</strong>s os outros homens,<br />

as <strong>do</strong>res de to<strong>do</strong>s os feri<strong>do</strong>s, os tormentos<br />

de to<strong>do</strong>s os eníernios, os suspiros<br />

<strong>do</strong>s anoja<strong>do</strong>s, as lagrimas <strong>do</strong>s tristes, os des*<br />

pi'ezos e aíroiitas <strong>do</strong>s qiu; andão nlro[)elia-<br />

a miséria dns viuvas desam-<br />

<strong>do</strong>s <strong>do</strong> rnmi<strong>do</strong> ,<br />

para<strong>da</strong>s, e <strong>do</strong>s oríãos sem remédio, a seccura<br />

<strong>da</strong> fome, e sede <strong>do</strong>s pofjres, e necessita<strong>do</strong>s,<br />

to<strong>do</strong> o sancriie que lo<strong>do</strong>s os Alarlyres<br />

derramarão, a renunciarão <strong>da</strong> própria vontade<br />

de to<strong>do</strong>s aíjuelles, que nílo pnssárão<br />

ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> ílor e vigor dn i<strong>da</strong>de, as aspeins<br />

e rigorosas penitencias de quaeiquer servos<br />

'í]||,Deos, to<strong>da</strong>s as afílicções e <strong>do</strong>res, assim pul)licas<br />

como secretas, qne ou cu, ou qualquer<br />

outro hí/uiem so^^eito a desaventnrns<br />

padeceo no cor[)o , na fazen<strong>da</strong>, na lic^uM ,<br />

tanto nas prosperiílades , como nos tcujpos<br />

contrários, o tu<strong>do</strong> em fim quanto ca<strong>da</strong> homem<br />

alj^uma hora ha fie padecer até o fim<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, dií^o que to<strong>da</strong>s estas cousas sejào<br />

para eterno lotivor vosso , Padre Allissimo,<br />

Deos e Senhor meu, e para i^loria e honra,<br />

em annos sem fim, de vosso unigénito Filho,<br />

í{ue por mim padereo. E juntamente eu pr)-<br />

líre servo vosso desejo acudir, e supprir fielmente<br />

|)or to<strong>do</strong>s aquelles, que, sencííí atlrihula<strong>do</strong>s,<br />

fuTo souherno por ventura usar hem de<br />

suas cruzes louviudu-vos tom paciência e


ai4 ViDÀ DO Bi:vT«<br />

agradecimento; e em noiiie Jc to<strong>do</strong>s vos offereço<br />

to<strong>do</strong>s stíus trabalhos parj vos^o louvor<br />

, fosse qualquer que íosse a lencão com<br />

quo os passarão. E os niesiDos vos offerero<br />

por elies, e louvor perpetuo de vosso Filho<br />

t:niweiúlo rruíliuente alHi^i<strong>do</strong>, e para consoiacão<br />

<strong>do</strong>s mesmos altrihuia<strong>do</strong>s, ou sejào<br />

vivos, ou mortos. Com vós outros íallo to<strong>do</strong>s<br />

quantos viveis tristes e desconsola<strong>do</strong>s,<br />

to<strong>do</strong>s quantos juntamente comigo traceis<br />

vossas cruzes ás costas : olhai, rogo-vos para<br />

,<br />

mim , e ouvi o que vos quero dÍ7er com nttenção<br />

: He<br />

na ver<strong>da</strong>de justo, é acertatlo que<br />

nos alegremos, e consolemos, alu<strong>da</strong> que nyj<br />

trata<strong>do</strong>s, olhan<strong>do</strong> para Chriòlo JESU cal»eca<br />

nossa , e Senhor de to<strong>do</strong>s, que primeiío<br />

que nós provou tantos, e tão vários trtiba-<br />

Ihos, que eo) quanto viveo na terra nunca<br />

jamais teve um dia de gosto. Certo e que se<br />

em uma famiiia de


Fr. <strong>Henrique</strong> Srso. 21<br />

li mbre-vos, Senijor, que já alguma liora soc-<br />

correstes a um servo vo5so vo meio de seus<br />

inales quasi desespera<strong>do</strong> dizcín<strong>do</strong>-Ilie: Esíoiça-te<br />

filho, ollia para mim. Kis-me aqui<br />

que também nasci de gerarfio ilhistrl.vsiuKí , e<br />

sempre vivi po'ue neste mun<strong>do</strong>, juntamente<br />

era o mais delica<strong>do</strong> deile , e juntamente o<br />

mais miserável. Com grandes alegrias nasci<br />

nelle, e to<strong>da</strong>via sen)pre me cercaváo <strong>do</strong>res ,<br />

e cruz. Eia pois to<strong>do</strong>s os que somos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />

valoroáos deste soberaníi Impera<strong>do</strong>r, nfío<br />

desmaiemos; to<strong>do</strong>s os que seguimos tal Capitão<br />

, armemo-nos de varonii esíorco ; e pois<br />

vamos traz elle, não levcm(-s de má vontade<br />

nossa cruz, que na ver<strong>da</strong>de se <strong>da</strong>s adversi<strong>da</strong>des<br />

se não tirara outro intcresie maior, que<br />

parccermo-nos tauto mais com aqucllc elarissimo<br />

espelho JESU Christo Senhor nosso ,<br />

quanto mais de ver<strong>da</strong>de o imitamos, era as-<br />

saz grande, e muito para estimar. Antes tenho<br />

para mim que, se Ueos depois desta<br />

vi<strong>da</strong> houvera de <strong>da</strong>r igual premio aos que padecem<br />

, e aos ípie viveu» contentes, ain<strong>da</strong><br />

então haviamos de escolher os trabalhos por<br />

nenhuma outra razão senão só por nos conformarmos<br />

com Christo, pJ5r(]ue a regra <strong>do</strong><br />

amor é conformar-se, e unir-se o amante<br />

com o que ama como e por qualquer maneira<br />

que pôde. Mas que razão póile haver, JESU


Iií5 ViDi DO <strong>Beato</strong><br />

Rei invictissinio , pnia nos atrevermos a inteijtar<br />

ou desejar parecer-nos com vosco nos<br />

trabalhos ? O' quanta difíerenca ha <strong>do</strong>s que<br />

vós padecestes aos nossos! Vós, inen Senhor,<br />

só sois aqueile que passastes gravíssimos ma-<br />

Ifcs, sem nunca merecerdes nerdium. E qual<br />

será o homem (jue se possa gabar que não<br />

fez nunca por onde mereça uni infortnnio,<br />

e que se bera pôde acontecer por uma parte<br />

padecer contra razãí) , por outra não !he pôde<br />

íahar por onde seja bem dif^no delies. Por<br />

onde to<strong>do</strong>s os que alguma hora íouios afíligi<strong>do</strong>s<br />

juntos em uma grande ro<strong>da</strong> vos assentamos<br />

Senhor no meio delia , e diante de vós<br />

alargamos as sêccas veas tle nossas almas abiasa<strong>da</strong>s<br />

de sede, e desejos de beber dessa fonte<br />

e de graça que sois vós. Co-<br />

perv^Mine de vi<strong>da</strong> ,<br />

stuma aterra quan<strong>do</strong> abre ícn<strong>da</strong>s de sec*<br />

cura embeber eai si muito mais aguas com<br />

que largunente a rega o Ceo, assim nós pecca<strong>do</strong>res<br />

fracos sem humor de virtudes greta<strong>do</strong>s<br />

de mil íontes de vicios, quanto mais vos<br />

devenios, tanlo com mais ardentes desejos,<br />

e mais sequiosos corações Jios abraçamos com<br />

vosco, e segun<strong>do</strong> ^ós mesuí.» por vossa sagra<strong>da</strong><br />

boca nos e^commen<strong>da</strong>stes queremos,<br />

apezar <strong>do</strong> njun<strong>do</strong> totlo , lavar-nos nas correntes<br />

copiosissin)as de vossas chagas, e em to-<br />

<strong>da</strong>s as maneiras ficar limpos , c purilica<strong>do</strong>s


por esta via de to<strong>do</strong> o peccrJo. Díinde nasce-<br />

rá serdes perpetuanunitti ioina<strong>do</strong>, e glori-<br />

fica<strong>do</strong> de nós, e nós alcançaremos de vós a<br />

graça ; que tal é a virtude de vosso precioso<br />

sangue , 'jue basta com sua efíicacia para tirar<br />

to<strong>da</strong> a feal<strong>da</strong>de, que o pecca<strong>do</strong> causa em<br />

nossas almas. Depois que o San lo gozou por<br />

grande espaço desta quietaçião em quatito as<br />

cousas, qne temos dito, se lhe revelavão, e<br />

assentavão com firmeza no centro d'alma<br />

levantou-se alegre, e contente, e deu graças<br />

ao Sc.Mhor por esta mercê,<br />

CAPITULO XXXIV.<br />

De como foi ranela<strong>do</strong> a Fr. <strong>Henrique</strong> por que<br />

meios consola Deos neste mun<strong>do</strong> aos aírí'<br />

bala<strong>do</strong>s em seus trabalhos,<br />

VJ M dia de Paschoa an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o Santo bem<br />

assombra<strong>do</strong> , e presenteiro , sentatlo no seu<br />

banco, em que costumava a repousar as breves<br />

horas, que tomava para o sííuo, desejava<br />

entetuler de Deos, que consolação havia <strong>do</strong><br />

<strong>da</strong>r nesta vi<strong>da</strong> áquelles , que por seu amor<br />

padecessen» muito, (loui esta consideração<br />

se arrebatou em extasi ,<br />

divina ill iminaçào leve esta resposta : Alegrem-se<br />

de to<strong>do</strong> coração , c com auimo in-<br />

e por meio de uma


»lS VlDADoBrVTO<br />

Tenclvel to<strong>do</strong>s os que vivem em trabalhos , e<br />

leváo suas cruzes com verciacieira resignação:<br />

porque podem estar certos, que llies ha de<br />

render esta paciência 4,'ra n d iss imos galar<strong>do</strong>es,<br />

fjue ahsim como na opinião de muitos íoráo<br />

miseráveis , e mal afortuna<strong>do</strong>s, assim muitos<br />

mais hão de receber perpetuo e celestial gosto<br />

de sua particular bemr.vcnturai]ça , e <strong>do</strong><br />

louvor que para sempre hão de ter. Comigo<br />

morrerão aqui, con5Í.^'o tambcm aiegremeute<br />

resurgirdõ. Mas altíni disto ain<strong>da</strong> lhes hei de<br />

comniunicar mais três gastos particulares de<br />

tanta honra e exccUencia que ninguém po-<br />

,<br />

derá conheceriina valia. O piiiiiciro é que haverão<br />

de mim licença pnra escolherem no Ceo<br />

e na terra o que quizcrem, e sempre íílcançaráó<br />

o que desejarem. O outro é que lhes <strong>da</strong>rei<br />

mlniia divina paz, que nem os Anjos, nem os<br />

demónios, nem os homers, nem (re^Uura alguma<br />

llit s poderá tirar. O terceiro é que de<br />

contínuo estarei em braços com suas almas ,<br />

e com a minha boca na sua com tanto amor,<br />

e com Ião particular e entianhavel assistên-<br />

cia , q»:e sejão uma só cousa comigo, e neste<br />

esta<strong>do</strong> permaneefKj eternanjente , ellesvivão<br />

em mim , e eu nelles. K assim como neiihuuia<br />

cous.) «anca lanlo a um entermo,<br />

como , quan<strong>do</strong> peile alj;uma cousa com instancia<br />

, nào lhe fazerem a Vontade, a&sim..


Fr, H£^-^^T':)^:: S-jí^o. 219<br />

pelo brove cspsro , que agora p2de


'22a VíD.i DO BzVTO<br />

rãò muitos destes cegos, que andáo pelo<br />

mun<strong>do</strong>. Logo liie foi <strong>da</strong>di» interiormt-nie<br />

esta <strong>do</strong>dtriíia. TocIíís aqiieiies que bem e<br />

direitamente se governâo na mortiíicaçào , e<br />

renuijciação própria, que é r.ecessaria liaver<br />

no seivo de Deos primeico que tu<strong>do</strong>, de ni:ineira<br />

que para comsigo , e {5ara com to<strong>da</strong>s as<br />

cousas <strong>do</strong> uíun<strong>do</strong> seja como morto (que lia<br />

Lem poucos, que tal facão) estes taes perdein-se<br />

tanto de vista a si rae5raos, e tanto se<br />

alongão de si para Deos com os senti<strong>do</strong>s, e<br />

com a alma, que quaii se d-jsccuhccem , e<br />

cliegão a nao saber parte ile si, se não é para<br />

seaciiaiem, e alcançarem em sua primeira<br />

origem, que é o mesmo Deos, lauto a si como<br />

a tu<strong>do</strong> o mais; e <strong>da</strong>qui lhes nasce levarem tanto<br />

gosto de to<strong>da</strong>s as obras, que Deos faz, como<br />

se Deos nãoíòra oauior delias, mas como se<br />

lhas man<strong>da</strong>ra fazer a elles a seu mo<strong>do</strong>, e por<br />

sua trat a. E esia é a razào porque se lhes dá<br />

licença para escolher, e desejar, pois o Oco<br />

lhes obedece, e a terra os serve, e to<strong>da</strong>s as<br />

creaturas estfio a seu man<strong>da</strong><strong>do</strong> em tu<strong>do</strong><br />

aquiib», que fazem, e no mesmo tjuedeixão<br />

de fazer. Homens desta mauiira com nenhuma<br />

tiibulacão senlem des^^^osto na alma,<br />

porque eu chamo (h'sgosto d'.! Ima quauílo a<br />

vontade com entendimento delibera<strong>do</strong> deseja<br />

de se \er livre <strong>da</strong> iribularáo. Que quanto


Fr. Hexiuqce Scso. a2i<br />

tos senti<strong>do</strong>s, e ao homeni exterior , tamhem<br />

estes de quem tratamos sentem o hem e o<br />

mal, como os outros homens ; antes alguns<br />

sentem os males mais que as outros , por te*<br />

rem a nature/.a eníraqueci<strong>da</strong> e «asta<strong>da</strong><br />

mas quanto ao interior não tem nelles nenhum<br />

higar, c i.in<strong>da</strong> quanto aí) depois passao<br />

seus trabalhos sem fazer desconcertos,<br />

nem raoslrar irnpaciencia


522 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> DO Br.ÀTO<br />

sento (^ue lhes vai Leni


Fr. <strong>Henrique</strong> Scso. 2^3<br />

decer mni gravíssimos tormentos afjuelles ,<br />

que repugnao sempre á ciisposlcào Jivina, e<br />

que, se tora em sua niao , tomarão an<strong>da</strong>r<br />

sempre ao sabor de seu gosto. Estes tais não<br />

tem mais paz, que os drena<strong>do</strong>s <strong>do</strong> inferno ;<br />

porque reina cm sJias almas uma perpetua<br />

melancolia. Mas bem ao contrario acontece<br />

a uma alma nua de vontade própria. Esta<br />

tem de seu a Deos perpetuamente, e possue<br />

ver<strong>da</strong>deira paz, tanto nos trabalhos, como<br />

nas bonanças, porque cm efíeito está sempre<br />

com elia presente o Senhor, que criou e governa<br />

to<strong>da</strong>s as cousas , e que é o tu<strong>do</strong> em<br />

to<strong>da</strong>s. Como será logo a estc^s homens molesta<br />

a Cruz eafílicçào, na qual vem a Deos,<br />

na qual o achão , na qual gozão de sua divina<br />

vontade, deixan<strong>do</strong>, e negan<strong>do</strong> a sua própria,<br />

como a cousa, que não conhecem ? E<br />

isto é assim antes de tartarmos <strong>da</strong>quellas illustra<strong>da</strong>s<br />

consolações , e celestiacs represen-<br />

tações , e dehcias, com que Deos repeti<strong>da</strong>»<br />

mente recrea , e sustenta os seus amigos,<br />

quan<strong>do</strong> mais aííiictos, e desconsola<strong>do</strong>s. Na<br />

ver<strong>da</strong>de estes já vivem dentro no mesmo<br />

Ceo; por quanto tu<strong>do</strong> o que lhes succcde ,<br />

ou não succede , to<strong>da</strong>s as cousas , que Deoi<br />

ordena , ou não ordena em to<strong>da</strong>s as criaturas<br />

, são para seu bem , e to<strong>da</strong>s os ajuduo á<br />

salvação eterna. Fiaalmciitc por esta via ,


ia4 ViDÂ Eo Blato<br />

ao que sofre com igual<strong>da</strong>tle (ic animo f.\<br />

adversicUídes desta vi<strong>da</strong> ,<br />

nin<strong>da</strong> eslaii<strong>do</strong> iieU<br />

Li , so lhe restitue jiaríe cio premio <strong>da</strong> outra ,<br />

nisto que é gozar em to<strong>da</strong>s as cousas paz e<br />

gozo sem perluibaçíTo, e depois <strong>da</strong> morte<br />

alcançar a bemavcniuranca,<br />

a a<br />

G A P I T U L O aXXV.<br />

De um^ Jilhct espintual cio Eeato Fr, Ilen*^<br />

rique.<br />

Quas i no mesmo fempo linha o Peato Fr.<br />

<strong>Henrique</strong> uma íillia espiritual na proGssíio<br />

Dominica, que vivia n iim Pthosteiro cRcena-<br />

por nome Isabel Eslaglin;<br />

<strong>do</strong>, de uma villa<br />

,<br />

cuja vi<strong>da</strong> interior ,<br />

e mo<strong>do</strong> de proteder era<br />

assa's santa, sen<strong>do</strong> na ver<strong>da</strong>de o animo interior<br />

Angélico. Aquella excellente conversão,<br />

com que se tornou a Deos de to<strong>do</strong> o corarão,<br />

era tão íorte, tão eííicaz, e tão vehemente,<br />

que em um momento se despio de io<strong>da</strong>s<br />

aqnellas superllui<strong>da</strong>des , e vai<strong>da</strong>des , com<br />

que muitos se prendem e embaratão para<br />

Dão tratarem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> eterna como convém.<br />

To<strong>do</strong> o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> desta serva de Deos era procurar<br />

com grande diligencia , conio seria en-<br />

slna


Fe. HiNRiQrí <strong>Suso</strong>. aaS<br />

í?ra o S€u uniro e insaciável desejo. Porém<br />

asstMitava com diligencia tu<strong>do</strong> o qr.e por alguma<br />

via apren<strong>do</strong>, que podesse ser útil a si,<br />

e aos oiitios, paia alrancar as virtudes <strong>do</strong><br />

espirito; iinllíiva as trahaUia<strong>do</strong>ras abelhas, que<br />

de to<strong>do</strong> o género de flores, que íia coiliem<br />

para o suave favo mel. Naquelle IMosteiro,<br />

aonde cnire as outras Virgens consagra<strong>da</strong>s a<br />

Deos vivia tomo um vivo retrato de to<strong>da</strong>s as<br />

virtudes, e sen<strong>do</strong> mui enferma, e falta de forças<br />

corporaes , conipoz uni livro assas grande,<br />

ni) qual entre outras cousas, tinha escrito<br />

a santa Fielioriosa a conversação, o mo<strong>do</strong> de<br />

viver exemplar, os grandes, e extraordinários<br />

favores, que receberão <strong>do</strong> Senhor to<strong>da</strong>s as Religiosas<br />

defuntas <strong>da</strong> mesma casa. Cousas certo<br />

de muita edificação , e que despertão graníU-niente<br />

os ânimos devotos no serviço de<br />

Deos. Pois esía santa Virgem ten<strong>do</strong> noticia<br />

<strong>do</strong> Be-ato Fr. Heniique, Ministro <strong>da</strong> Sapiên-<br />

cia , foi movi<strong>da</strong> pelo Ceo a procurar sa!;cr<br />

com muita devacão , e dillíjencia a sua vi<strong>da</strong> ,<br />

e regras de espirito ; o que conseguio perscrutan<strong>do</strong><br />

com muita cautela , e dissimulação<br />

a <strong>ordem</strong> , por onde elle , deixan<strong>do</strong> atraz io<strong>da</strong>s<br />

as cousas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, penetrava ao mesmo<br />

Deos, e coiuo se negava as.im mesmo d


a!i(5 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Be\t«<br />

le se tornará a contar. E nos primeiros prin-<br />

cípios <strong>da</strong> conversfio desta serva <strong>do</strong> Deoá , lhe<br />

forão revela<strong>da</strong>s muitas cousas, e muito altas,<br />

e que só pertencião ao conhecimento, diíHcultosas<br />

assas de perceber. Con\eiii a saber,<br />

<strong>da</strong> singela e nua Divin<strong>da</strong>de; orno t<strong>da</strong>s as<br />

cousas cria<strong>da</strong>s súo nad:i ; <strong>da</strong> resignação de si<br />

mesma; de como se deve despejar a alma de<br />

to<strong>da</strong>s as imagens , e figuras, para clu^gar á<br />

ver<strong>da</strong>deira pureza de espirito, e outras m.ii-<br />

tas cousas deste teor , que sen<strong>do</strong> escritas coin<br />

fi^rande concerto, e limpeza de palavra*;, <strong>da</strong>-<br />

"vfio grande consolação a quem as lia. Porém<br />

liavia aqui escondi<strong>do</strong> um perigo, e<strong>da</strong>mno<br />

oculto para os simples, e priucipiautes na<br />

virtude, que por falta <strong>da</strong> discripoão necessá-<br />

ria fa qual ella ain<strong>da</strong> padecia) podião torcer<br />

aquelias palavras a uma e ou ti a parte, acominodnn(in-as<br />

igualmer.lo ao espirito, e á con»<br />

solaçfio <strong>da</strong> carne, segun<strong>do</strong> que o leitor estivesse<br />

bem ou mal aftecto. As cousas em tim<br />

erão de grande <strong>do</strong>utrina , mas nem a Religiosa<br />

se podia bem desapegar delias. Pelo<br />

q le pedio por cartas ao <strong>Beato</strong> Fr. <strong>Henrique</strong>,<br />

Mifiislro <strong>da</strong> Sapiência, com grandes itislan*<br />

cias , que a quizcsse soccorrer, e ajuilar , tira.ulo-a<br />

ao caminho real , plano , e desembaraça<strong>do</strong>.<br />

?>Ias porque ella eslava ain<strong>da</strong> presa<br />

<strong>da</strong> suavi<strong>da</strong>de, que achava naqutil


Frí IIe^írtque <strong>Suso</strong>. 527<br />

cicios espiritwaes, esorcveo-lhe pedin<strong>do</strong>, que<br />

tltfi:4a<strong>do</strong>s por eníf.o os priricipios rudes tios<br />

que começ-rio , a (loutii::íísse escrcvc\iíIo-liiG<br />

<strong>da</strong>s cousas líívanta<strong>da</strong>-j e altas , que lhe tiídia<br />

aponta<strong>do</strong>. Ao que respoiídeo o MinisVro <strong>da</strong><br />

Sapiência: Se desejais, fdha, coiliíicar-vos de<br />

mim nestas cousas altas peia grande admi-<br />

ração, que vos rausão. para (|ue conl


âaS Vjd\ <strong>do</strong> Beito<br />

servo, e amigo de Deos, e como toilos forão<br />

)Dor este caminho, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> principio á sua vi<strong>da</strong><br />

espiritual, e exercitanclo-se em primeiro lugarnavi<strong>da</strong>,<br />

e paixão de Gliristo, ecjueoonsa»<br />

padecerão mais atura<strong>da</strong>mente, como segovcr-<br />

r.árão no exterior, e interior, se fováo trata<strong>do</strong>s<br />

de Deos com mimos , ou com seccura , e<br />

em fim como e (fuan<strong>do</strong> chegarão a perderas<br />

íisrnras, e similhancas <strong>da</strong>s cousas. Esies sfio<br />

t)S meios por oníle um principiante se con«<br />

vi<strong>da</strong>, e encaminha pf.ra chegar á períeirão,<br />

e ao que mais cumpre para a salvação ; que,<br />

ain<strong>da</strong> que Deos pôde <strong>da</strong>r lu<strong>do</strong> isto em um momento,<br />

to<strong>da</strong>via não o castunja, e de forca<br />

lia de haver trabalhar e traballiar para se alc;incar.<br />

A isto replicou a sania d«ínzel!a por<br />

outra carta com e


F». Hf-NRiQTTE Srso. 229<br />

tar a inais sobi<strong>da</strong> perfticãc <strong>do</strong> Ceo: etião tos<br />

de pena a fraqueza dfí minha natureza que<br />

,<br />

em confiança <strong>do</strong> poclei- divino , não arrecea-<br />

rei tousa nenhuma de quantas me qe.izerdes<br />

man<strong>da</strong>r fazer, ain<strong>da</strong> que enct)í]trem a mesma<br />

natureza. Começai embora <strong>da</strong>s cousas mais<br />

baixas, e levai-me pouco a pouco ás maiores,<br />

e tratai-me como a menino de csthela, a<br />

quem o ?>Testre começa ensinar prinjciro o<br />

que é mais accommo<strong>da</strong><strong>do</strong> áquella i<strong>da</strong>de, e<br />

logo por degráoso vai sobin<strong>do</strong> de dia em dia<br />

a cousas de mais substancia, até o <strong>da</strong>r mestre.<br />

l^ma cousa vos queira pedir, que por me fazer<br />

mercê me vSo negueis , a qual é qt.^e nfío<br />

somente sejais vós o que me encaminheis, o<br />

instrunis na vi<strong>da</strong> espiritual, mas que me armeis<br />

tam})em de forças , e constância para<br />

quaesquer adversi<strong>da</strong>des, que me possão succeder.<br />

PeiguiUan<strong>do</strong>-lhe o Santo que requeiimento<br />

era esíeP Respondeo assim: Tenho, senhor,<br />

ouvi<strong>do</strong> contar, que o Pjlicano tem nor<br />

natureza abrir cíun o bico seu próprio pcil»;,<br />

e manter os lilhinhos de seu sangue, obriga<strong>do</strong><br />

<strong>da</strong> afreiçào natural, que lhes tem. O q'ie<br />

nisto qiiero ilizcr é , que tia mesnia m.mcira<br />

agasalhei'^, e crieis esta po})re , e indigna<br />

íi!ha vossit com o [i:\\v. de vossa santa <strong>do</strong>ulrifía<br />

nã') colhi<strong>da</strong> d'outrem , tutus tira<strong>da</strong> de vcs mesmo<br />

, e dv vossa vi<strong>da</strong> e expor-^Míci.:». pui*tjue


a3o <strong>Vi<strong>da</strong></strong>. <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

aquillo porque vós passastes, qtiantode mais<br />

poi-lo o provastes, e experimentastes em vossa<br />

Vítln própria, tanto maior eííeilo faiá em minha<br />

alma, e mais liie aproveitai á. A este rcquerimentií<br />

lhe tornou o Santo a escrever com<br />

a lesposra seguinte: Nao lia ínuito t».'mpo,<br />

qu3 mo vós mostrastes um caderno de ditos<br />

excellenles, que tinlieis colhi<strong>do</strong> <strong>da</strong>s claras<br />

sunvissnnas <strong>do</strong> Santo Dí)ntor iichar<strong>do</strong>, que<br />

ijuar<strong>da</strong>is para vós com o amor e gosto , qae<br />

e razAo. l^elo que não posso deixar de me<br />

espantar granden;ente de ver que mostrais<br />

tanta seíle ila minha pobre agua nasci<strong>da</strong> de<br />

baixa e rústica ftmte, dcp-ois de lerdes prot.\<strong>do</strong><br />

<strong>da</strong> voa riquíssima de tal varão, d »nde<br />

mana licor celestial. Ain<strong>da</strong> que, quan<strong>do</strong> cui<strong>do</strong><br />

bem niiso, reci^nhero em tais desejos não<br />

sem £;;ande gosto meu , \ ossa prudência , e<br />

industria, pois buscais com cui<strong>da</strong><strong>do</strong> , c pro-<br />

curais saber os principios, e entra<strong>da</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

segura e santa, ou os meic^s e exercicios<br />

por onde ha de passar primeiro quem quizer<br />

ch


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. 23<br />

dn virtude, a primeira cousa, que fez, foi purificar<br />

ii consciência com uma confisião geral<br />

, e antes de a fazer to<strong>do</strong>s seus pensamentos<br />

occupava em a ordenar de maneira, que<br />

fosse muito bem feita, eein buscar confessor<br />

prud


a32<br />

ViD\ DO Blato<br />

elle seu confessor, como quem era tr»o iíTonco,<br />

ten<strong>do</strong> juntamenie tenção a duas cousas:<br />

liina a ficar <strong>da</strong>lli em diante sua filha espiritual<br />

pelo meio <strong>da</strong> confissão , outra para Hm<br />

ficar sua salvação mais encarrega<strong>da</strong> para com<br />

Deos. Mas porque não podia íazer ccnfi.ssã


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. ^33<br />

nhor, lança<strong>do</strong> com ella a vossos pés, qiio<br />

hajais por bem de a ouvir. Valha-lhe sua fé<br />

e siinta confiança , porque bra<strong>da</strong> traz nós; e<br />

lemhre-vos o que antl;2:amente fizestes com<br />

misericordiosissi-<br />

a Cananea. E na ver<strong>da</strong>de ,<br />

mo Senhrr , tão solemnisa<strong>da</strong> é enlre nós , e<br />

tão nomea<strong>da</strong> vossa inimensa njansidão que<br />

,<br />

com razão deveis <strong>da</strong>r perdão a muitos mais<br />

pecca<strong>do</strong>s. Clenientissimo Jesu , ponde nel!a<br />

Yo.sf.os amorosissimos ollirt#. Dizei-Ihe aquella<br />

só palavra de consolarí^o : fdlia , tem confiança<br />

, tua i.' te salvou. E tique isto que pe-<br />

,<br />

ço , certo e firme, e su[>pri vós por mim no que<br />

llíe fizer falta , pois tenho feito de n^inha<br />

parle o que me locava , oulorgan<strong>do</strong>-lhe em<br />

desejos picnissima e geral absolvição de to<strong>da</strong>s<br />

suas culpas. Depois turn


í34 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

tecla um com particular ortleiu , e differcnçt<br />

roínmnnicou particulares e diítcremes pro-<br />

priecJades, que nãu ha palavras, com que se<br />

poi-íão declarar. Depois que assim estive um<br />

espaço recreari<strong>do</strong>-iite entre aquelles htmaventura<strong>do</strong>s<br />

esjHíitos com celestial altgiia , e<br />

estan<strong>do</strong> cheio de contentamento <strong>da</strong>s grandes<br />

maravillias, que alli .


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. 235<br />

7lvla em um Casteilo por nome Anna , mulher<br />

heni nol)re, e mui reli:7Í()sa, cuja vi<strong>da</strong>^<br />

Yião foi oiiira cousa , senáo um contínuo<br />

mariyrio. Obran<strong>do</strong> Deos nella desde s primeiros<br />

annos de sua i<strong>da</strong>de até morle j^ran-<br />

dcs, e notáveis maravilhas. Antes que esta<br />

<strong>do</strong>nzella conhecesse a Fr. <strong>Henrique</strong> , nem<br />

soubesse novas deile , estan<strong>do</strong> um dia eni<br />

ciacáo Hrou rapta eru extasi, e alli vioconio<br />

C()nteniph'io e hiuvfio a Deos os Santos u-i<br />

e ven<strong>do</strong> a S. João Evange-<br />

Pátria celestial ;<br />

lista qiw era , o seu Apostolo , e com quem<br />

tinha especial devaçno, pedio-lhe que a quizesse<br />

confessar. OEvaugeiisla lhe respondco<br />

com muita brard na, que lhe <strong>da</strong>ria em teu<br />

lugar um bom confessor, a f|i:eir. Deos tiidia<br />

<strong>da</strong><strong>do</strong> inteiro uoder e autori<strong>da</strong>de sobro<br />

ella , e que lhe poderia <strong>da</strong>r copi. sãmente<br />

allivio em to<strong>da</strong>s suas aifliccóes. Pe''^untan<strong>do</strong><br />

quem era? satisfez bastaniemente a tu<strong>do</strong>. O<br />

outro dia pela ujaidiáa levantoií-se íomprn<strong>do</strong><br />

a alva, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> cracas ao Senhor, e foi-se ao.<br />

Mosteiro ondií a Deos niandára , e perguntou<br />

por Fr. <strong>Henrique</strong>; o qual sen^ > (hamaíío<br />

\eio á portaria, e pcrguntou-lhe que n\an<strong>da</strong>va<br />

delleP Contou a <strong>do</strong>nzella o que passava,<br />

comti temos referi<strong>do</strong>, e começou a confes-<br />

sar-se: o que ven<strong>do</strong> Fr. <strong>Henrique</strong>, e c


23(» <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Ceàto<br />

satisfei-a com a confissão. Ksta vlrtiioí^a <strong>do</strong>n-<br />

7.elia foi a que lhe contou , que vírr. em reveiíjçao<br />

hnnia formosissirna roseira cuherta de<br />

frescas rosas, to<strong>da</strong>s vermelhas, e a clie senta<strong>do</strong><br />

debaixo delias, e lopjo lhe apparecèra o<br />

Menino JESU sobre a mesma roseira com uma<br />

capella teci<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mesmas rosas vermelhas,<br />

o (|ual a{>arilian<strong>do</strong> muitas rosas as lançava<br />

sobro Fr. <strong>Henrique</strong> em lanta quanti<strong>da</strong>de, que<br />

o deixava cuberto delias. E perguntan<strong>do</strong> a<br />

<strong>do</strong>nzelia , que qaeriáo tlizcr aquellas rosas ?<br />

respondera o Menino , estas rosas em tanta<br />

quanti<strong>da</strong>de significão muitas e contínuas tribi!<br />

loções, que Deos permittirá, que succedáo<br />

a Vr. <strong>Henrique</strong>, que elle tomará de sua<br />

mão com ale^^^re vontade, e sofrerá com paciência,<br />

C A P I T L L O XXXVlir.<br />

£r7i que j prosei^uiii<strong>do</strong> na <strong>do</strong>utrina con^enien'<br />

te fios principiantes na virtude y se contuo<br />

ali^.Lnias dci'acòes e exerci<strong>do</strong>s ^ que o Santo<br />

iia em sua moci<strong>da</strong>de: e avisa como se<br />

liÁo de rr^ular as penitencias com pruden^<br />

cia.<br />

Oi:=an<strong>do</strong> o Santo Fr. ílenrii|ue se determi*<br />

T!ou a entrar no caminho <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> mais períeita,<br />

depois de faz,er (como temos conta<strong>do</strong>)


Fr. <strong>Henrique</strong> Sc5o. iZ-j<br />

uma confissão geral mui upura<strong>da</strong> , ordf iiou<br />

logo nos princípios coinsii;o algumas cousas ,<br />

í.\n{i o aju<strong>da</strong>rão limito nelle. Primeira mente<br />

limiíou-se no pensauicnto ties sítios paia morar,<br />

dentro <strong>do</strong>s quaes se encerrou determina<strong>da</strong>nienle,<br />

para melhor guar<strong>da</strong> desuaalma. O<br />

primeiro sitio linha três paríes , a sua cella , o<br />

keu oratório, e o coro. F.m quanto estava<br />

neste, havia que vivia bem seguro. O outro<br />

sitio era to<strong>do</strong> í) Mosteiro sem t liegará portaria.<br />

O terceiro e ulliuio era a n;esma prriaii.i,<br />

aonde era forra<strong>do</strong> acudir algumas ve/cs, e alli<br />

entendia , que lhe era necessário ter muita<br />

guar<strong>da</strong> e vigilância sobre si. E se alguma liora<br />

lhe acontecia por obediência sair lióra destes<br />

limites, tinha-se por tão arrisca<strong>do</strong>, como<br />

qualquer animal silvestre, que an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> íóra<br />

<strong>da</strong> cova , dá entre caça<strong>do</strong>res, e lia n;isler saber<br />

muito, e suar muito para se salvar. No<br />

mesmo tempo tinha escolhi<strong>do</strong> um lugar<br />

aparta<strong>do</strong>, que era o seu oratório, onde alem<br />

de outros meios satisfazia também a sua deva<<br />

ãtí cr-tn imagens, que nelle mantlava pintar.<br />

Em particular sen<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> ujuilo n.oço<br />

fe/ pintar n'um pergaminho a tleina Saj)ien<br />

cia , senliorean<strong>do</strong> o Ceu e a terra com tíío<br />

vivas cores, e com tanta formosura, e ii.n<br />

amoroso gosto, que claran.cnle abatia a<br />

maior peiítií^ão de le<strong>da</strong>s as cii;aur;.s, e qc.í


a3S <strong>Vi<strong>da</strong></strong> ©o Bratci<br />

foi musa tle a toin.ir por Setiliom , e Espo5;i<br />

sua nessa prifDt^ira iílade. Esta in»ai(em por<br />

estremo bem acahad.i rosluniava clle a trazer<br />

comsigo, qiiat)(Io o manílavfio estu<strong>da</strong>r a outros<br />

Conventos, eprej;ava-a na relia junto <strong>da</strong><br />

janella , aí^nde ll»e ficava mais defroiíte <strong>da</strong><br />

vista, eol])ava para ella muitas vezes com um<br />

mui entranli.ivel eílv-ilo <strong>da</strong> alma. No cabo de<br />

suas peregrinações tornou-a a trazer eoiusigo<br />

para oMíJsteiro; e pòlra em o seu oratório<br />

com uma santa simplici<strong>da</strong>de de espirito. As<br />

mais pinturas , que alli tinha , crão segun<strong>do</strong><br />

achava , que mais lhe armavão para elle , e<br />

para í»s priuripiantes na virtude , e quaes fas-<br />

scní facihnente se pôde colIi;4Ír <strong>da</strong>s leiras ,6<br />

sentenças <strong>do</strong>s l^athes anti-os, que a(jui irão<br />

em parte escritas , assim como as tinha no<br />

orarorio , tresla<strong>da</strong>n<strong>do</strong> mais o sentidv) ,<br />

as palavras de ca<strong>da</strong> uma.<br />

1 O Abhadc Arser<strong>do</strong> perp^untou a<br />

que<br />

um<br />

Anjo, que faria para se salvar;^ Respondeo:<br />

Foge, cala, assocega.<br />

2 Em u»na visão que Fr. flonriqje teve,<br />

,<br />

recitou-lhe um Anjo esta seitteuca <strong>do</strong> livro<br />

que chaujfio f^^itas Patrum .* A<br />

íonie e origem<br />

ce to<strong>do</strong>s os bens é morar um homem com-<br />

sigo per[)etuamente '^em nunca sair de si.<br />

3 O Abbade Tlieo<strong>do</strong>ro dizia: A pureza<br />

<strong>da</strong> alma ensiua maii», que o mesmo esta<strong>do</strong>.


Fr. He3írique <strong>Suso</strong>: aS^<br />

4 O A])bac]e RIoyses: Está-te em tua cella<br />

, que ella te ensinará tu<strong>do</strong>.<br />

5 O Abbadc João: Guar<strong>da</strong>-te no exterior<br />

tom silencio, no interior com pureza.<br />

6 O niesmr»: O peixe tora <strong>da</strong> agna , e o<br />

Frat-Ie íóra <strong>da</strong> cella igualmente desíallecem.<br />

y António dizia : Trcs cousas crião e<br />

conserTao a casti<strong>da</strong>de, penitencia corpoial,<br />

devaçáo <strong>do</strong> espiíito, apartamento <strong>do</strong>s homens.<br />

8 O mesmo: Não tragas vesti<strong>do</strong> , que<br />

cheire a levian<strong>da</strong>(]c. A primeira balallia <strong>do</strong><br />

bisonlio na virtude é peleijar valentemente<br />

contra os vicios.<br />

9 O Abbade Pastor: Jamais te indignes<br />

cofitra ninguém , in<strong>da</strong> que te vejas tirar o<br />

olho direito.<br />

10 Isi<strong>do</strong>ro Abbade: To<strong>do</strong> bondem súbito<br />

na ira desagra<strong>da</strong> a Deos, ain<strong>da</strong> que faca mi-<br />

lagres,<br />

í I Ipericio : Menos perca quem come<br />

carne nos tempos, que a toilie a Igreja , que<br />

quem diz mal de seu proxiruo.<br />

12 Pior Abbade: A nuiior mal<strong>da</strong>de de<br />

to<strong>da</strong>s é laliar nos vicios alheios , e di^siiriular<br />

os próprios.<br />

i3 Zachaiias: Quem qnizer chegar ao<br />

cume <strong>da</strong> perfeição, é necessário que ía'ja primeiro<br />

mui abati<strong>do</strong> e despreza<strong>do</strong>


^io<br />

VlDÀ DO BeAT»<br />

i4 Nestor; He necessário que te facas<br />

animal bruto e o mais ignorante de to<strong>do</strong>s<br />

primeiro, que chegues a alcançar o saber <strong>do</strong><br />

Ceo.<br />

i5 Um velho: Nos trabalhos ena bonança<br />

não faças mais movimento <strong>do</strong> qi:e í.»2 um<br />

corpo morto.<br />

iG Helias: Três cousas estão mui bem no<br />

Religioso , rosto amarello , corpo seco , íui-<br />

niil<strong>da</strong>de no an<strong>da</strong>r e no tratar.<br />

ly Hilário : A cavallo rincha<strong>do</strong>r, e corpo<br />

orgulhoso encurta-lhe a mantença.<br />

18 Um velho: Tirai-me o vinho, que jaz<br />

escondi<strong>da</strong> nelle a morte <strong>da</strong>lma.<br />

19 Pastor: JNão se ha de ter por Frade<br />

quem se queixa , quem nao sabe enfrear a<br />

coKíra : escusar muita pratica , sofrer ser ti<strong>do</strong><br />

em pouco.<br />

20 Cassiano: De tal maneira devemos<br />

ordenar nossa vi<strong>da</strong> e costumes, que imitemos<br />

a (^hrislo poslo na Cruz, e morren<strong>do</strong>.<br />

2 i O Àbhade António escrevia a um Fra-<br />

^e : Eia , irmão , tem cui<strong>da</strong><strong>do</strong> de tua salvação<br />

, e se não , nem Deos , nem eu te poderemos<br />

jamais remediar.<br />

22 Arsénio Abljade , pedin<strong>do</strong>-Uie certa<br />

mulher, que se lembrasse delia diante de<br />

Deos: Peço-lhe eu, disse, que nunca ein<br />

to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> me dê lembrança de ti.


Fr. '<strong>Henrique</strong> Su:». a4f<br />

lí rjr.cario : Mortifico minha carne , avexarMlo-me<br />

com varie<strong>da</strong>rle de penitencias ,<br />

c af^i*^iii<strong>do</strong>-nie com muiias tentações.<br />

sí4^ João Abhade: Ninica obedeci á vontade;<br />

niincH ensinei de palavra cousa , que<br />

não tivesse primeiro niostiacio por obra.<br />

25 líii velho : Palavras boas, formosas,<br />

e muitas sem companhia de obras , é cousa<br />

sem sui)stari( ia , como arvore coberta de folha<br />

despeja


a4* <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong>Beat©<br />

33 Santa Siiiíletira : Qnan<br />

alegra-te, porque se kinbia Dtos cie ti , não<br />

digas que o jejiíni causa <strong>do</strong>enças, porque<br />

também a<strong>do</strong>rcem os caie não jejuão : se padeces<br />

tentaçr-es corp comer,<br />

35 João : Nunca o Sol me vio ira<strong>do</strong>.<br />

3G António: Entre to<strong>da</strong>s as virtudes , a<br />

que tem o piimeiro lugar é a Prudência , a<br />

qual é necessária j^ara poderes acertar com o<br />

melo e guar<strong>da</strong>r re;:ra , e modcricão em<br />

tu<strong>do</strong>.<br />

3y Pafnucio : Na<strong>da</strong> aproveita começar<br />

bem , se não per5;ev


Fíi. TÍExrvinnE Scso, a45<br />

sõps, mar^oan(!


a54 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

crer, qiiC ncrn só (Uivil-a contar porlí^m os<br />

iioiner-s desle lenips»,


Fr. ÍÍExrxiQUE Srso. 24^<br />

que são fracos , e para pouí o que n?o lia cie<br />

desprezar, nem tachar , nem lançar a peior<br />

parte as penitencias , e aiisterirlades grandes,<br />

(pie virem nos oulroj. Ca<strong>da</strong> um íenba conta<br />

coinsigo só , e trabalhe por entender , o ene<br />

Deos cíelle quer , e com isto cumpra , sem se<br />

empachra' com o que íazeni os ou ti os. Pela<br />

maior parte o nielhtir e niais se^^uro é <strong>da</strong>r-se<br />

homem á penitencia regra<strong>da</strong> meu te , e com<br />

prudência, arjles que íazcr dvmaaias indiscretas.<br />

E porque é diíficultoso acertar com<br />

este niei(i , é melhor conselho ficar antes<br />

áqueni iim pouco, que passar além mais ào<br />

que é razão. Porque acontece muitas vezes<br />

quan<strong>do</strong> queremos apertar demasia<strong>do</strong> com a<br />

natureza , ser depois força<strong>do</strong> para se restau-<br />

,<br />

rar, íavorecel-a e animail-a com a môsn;a demasia.<br />

Ain<strong>da</strong> que é beui ver<strong>da</strong>de, que muitos<br />

Padres insi;^ncs em virtude e santi<strong>da</strong>de<br />

passárfto nesta paite os termos , obriga<strong>do</strong>s de<br />

ardentisáimo fervor. Esta rigorosa orílcm de<br />

vi<strong>da</strong>, e os exemplos de rara severi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />

Santos sirvão j)ara aquelles que desordena<strong>da</strong>mente<br />

são amigos de si , e se tratão com<br />

muito mimo e brandura , e que deltrmina-<br />

<strong>da</strong>mente largão as rédeas ao cor|;o furioso,<br />

e desenfrea<strong>do</strong> para sua perdição. Mas não<br />

convém para vós, nem para gente composta<br />

<strong>da</strong>s vossas quali<strong>da</strong>dcs.Tem Deos Nosso Senhor


a4^ <strong>Vi<strong>da</strong></strong> no Dkíto<br />

dlíferenças deCruzes, co:n quo provn o castiga<br />

seus servos; e eu cui<strong>do</strong> certo, que vos<br />

quer elle lançar ás costas tima , que não será<br />

menos traballiosa, que a dessa penitencia<br />

corporal (luevós tomais. Qu.?ii<strong>do</strong> chegar não<br />

llii; façais !»iáo rostro. Não passou muito tempo<br />

, qve couiocon Deos a tentar com <strong>do</strong>enças<br />

compri<strong>da</strong>s esta <strong>do</strong>uzella que fvjrão conti-<br />

,<br />

nuan<strong>do</strong> de maneira que, e:n quanlo viveo ,<br />

,<br />

não teve um tlia desande; o que logo escre*<br />

Teo ao Santo, avisan<strong>do</strong>-o como se compria<br />

nella o que lhe tinha proletiza<strong>do</strong>. E o Santo<br />

lhe respondeo assim : Charissinia filha , n§o me<br />

tomo!i só Deos por instrumento de vos notificar<br />

d anttf mão vossas tribulações , mas também<br />

me castigou a mim , e me fez assas mal,<br />

<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-vol-as j visto coujo não tenlio outrem<br />

nin«;nem , que <strong>da</strong>qui em diante me possa<br />

aju<strong>da</strong>r acabar aí> obras que tenho composto , ,<br />

e fazer outras de novo com o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e<br />

Ter<strong>da</strong>de , que vós fizestes em quanto tinheis<br />

sauile. Por esta causa fez oração a Deos por<br />

vós um servo seu pedin<strong>do</strong>-lhe decoração,<br />

vos quizesse <strong>da</strong>r saúde.<br />

que se fosse servi<strong>do</strong> ,<br />

Mas não sen<strong>do</strong> lo^^o ouvi<strong>do</strong> conso desejava ,<br />

agastou-se com Deos com uma afuorasa indignação,<br />

edisse-lhe, que í»áo lia%ia mais descrever<br />

tlelle, nem lhe havia mais de fazer<br />

uma devota sau<strong>da</strong>ção, que costumava [elas


Fr. lÍENRTQrE Srso. 247<br />

manliãas, se vos não sarasse. E recolhcn<strong>do</strong>-se<br />

assim apaixona<strong>do</strong>, e queixoso a seu Oratório,<br />

assentou-se ifni pouco como tinha cie<br />

costume. Aqui, fican<strong>do</strong> rouba<strong>do</strong> aos senti<strong>do</strong>s,<br />

parecia-lhe que vinha uni giande numero de<br />

Anjos, que entravão pelo Oratório; e pelo<br />

recrearem, porque an<strong>da</strong>va neste tempo avexa<strong>do</strong><br />

de uma extraorditiaria aídicçào , lhe<br />

<strong>da</strong>vão uma musica celestial. E |)ergunlan<strong>do</strong>-<br />

Ihe os Anjos porrjue eslava assinj triste, e não<br />

chegava a aju<strong>da</strong>l-os a cantar, cordessou-lhes<br />

a paixão de sua alma , que o obrií^ira a agastar-se<br />

contia Deos , poique não queria ou-<br />

vir as orações, aue por vossa saúde lhe fazia.<br />

Mas os Anjos persuadião-no que socegassc ,<br />

ti não podesse assin! , porque se Deos permittira<br />

padecerdes indisposiçóes, era paia grande<br />

j)i'Oveito vosso , c que esta havia de ser a vo>^<br />

sa Cruz neste u!? ri<strong>do</strong> , a qual vos renderia<br />

muita graça na vi<strong>da</strong> presente, gal: rdão mui<br />

avantaja<strong>do</strong> na futura : Por onde , (ilha. tende<br />

paciência , e recehei esletrahalho <strong>da</strong> rniTo <strong>da</strong><br />

providencia divina , com não u)cnos boa<br />

sombra , que se fora uma mercê de muito<br />

Sosio vosso.


^4^ <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Bcato<br />

CAPITULO XXXVIU.<br />

Em que o Santo conta oiftras dcí^acões^ qus<br />

fazia em seus princípios , e umas visões ,<br />

que teve no mesmo tempo,<br />

L^ M tlia foi o S.\Tito visitar a <strong>do</strong>nzclla Isabel,<br />

que estava enlerma, e tUa pedio-lhe<br />

quizesse praticar alguma matéria espiritual,<br />

que não fosse <strong>da</strong>-: mais subi<strong>da</strong>s, e to<strong>da</strong>via<br />

alegrasse uma aliDa devota. Coniecou então<br />

o servo de^Deos c


Fr. HcNniQrE Suno. a4f<br />

nlior meu , que a ninguém qucio eu mais<br />

que a vós. Por isso me venlio aqui pi.ra que<br />

])


230 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

punha , era sempre cm honra tia Virgem Mãi<br />

cie Deos. Depois qu.in<strong>do</strong> lhe parecia tempo<br />

apanhava outras ílores , não desacotnpanha<strong>da</strong>s<br />

de con^iueracóes arnorobissiinas, e irazen4o-ys<br />

á relia tecia giinal<strong>da</strong>s, e entrava<br />

no Curo, OM siibia ao altar de Nossa Senhora,<br />

e posto de joelhos con) grande humil<strong>da</strong>de<br />

diante de sua imagem, coioava-a com ellas<br />

respeitan<strong>do</strong> comsigo, qe.e esta Senhora eia a<br />

niaij aprasivel flor de to<strong>da</strong>s as ílores, e a<br />

n^csmo verão e frescura de sua alma , e rogava-lhe<br />

que não engeitasse <strong>da</strong> máo de seu<br />

servo as primícias <strong>da</strong>s Ho» es, que lhe ofterecia.<br />

Um dia , ten<strong>do</strong> posto un-.a eapeíla a sua<br />

ariia<strong>da</strong> Scrdiora e Klerna Sd)e<strong>do</strong>rla, te\e<br />

lima visno, na qual lhe parecia, que via o<br />

Ceo aherto, e o Anjos Aoar de cima para<br />

haixo vesti<strong>do</strong>s de roupas ric .s e loucãas: Juntamente<br />

lhe feria as orelhas unia inusica a<br />

inais suave e deleitosa de (piantas jamais se<br />

ouvirão na terra , que la r»a (^urle celestial<br />

estavão <strong>da</strong>i)<strong>do</strong> aquelleá hePiaventuia<strong>do</strong>s espirit;)s,<br />

Partic- lai inen^e entendeo que canta-<br />

,<br />

Tâo um verso <strong>da</strong> M.li de Deos que d zifio a<br />

,<br />

"vozes com tno at


Fr. ÍIexrique Srso, a5x<br />

niimf etc, E o ^Ilnistro começou a cantar<br />

juntíituerite com elles, Alli alcançou sua alma<br />

gruniltis ef clientes de gloria u-o a cantar<br />

despeja<strong>da</strong>mente. E logo de um grande ajun-<br />

ta ruento de Anjos, que assistifio no Coro ,<br />

sairão Ires , ou quatro, e juntos com elie<br />

forãíj tand)i'm cantan<strong>do</strong>, e traz estes se vierão<br />

chegan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os (jue eslavár» na caf>a como<br />

á porfia , e caníavão com tamanho estron<strong>do</strong>,<br />

e melodia juntamente, comosc soarão juntos<br />

to<strong>do</strong>s quantos in^irumcmos ha na inusica.


a52 YiDJL DO Be\to<br />

Mas não potencio a hiimanidnde fraca siipporlar<br />

aqiiella extraordinária floria, tornou<br />

o Ministro em seu aeor<strong>do</strong>. Outra vez tainbeni<br />

alcançou ciiegar á vista <strong>do</strong>s ;^'ostos S')))eran )S<br />

<strong>da</strong> Pátria Celestial, e foi um dia depois du<br />

festa <strong>da</strong> Assumpção <strong>da</strong> Virgem. Mais nesta<br />

TÍsão não se lhe consentia a elle, nem a ninguém<br />

, mais que ver de fora, porque não<br />

deixa vão entrar quem vinha descompostamente<br />

, e fazen<strong>do</strong> o Ministro força por entrar,<br />

TÍo que um mancebo lhe travava <strong>do</strong> brato ,<br />

dizen<strong>do</strong>: irmão meu, não ha para que cui<strong>da</strong>r,<br />

que haveis de ter licença para entrarei desta<br />

Tez. Deixiiyvos estar aqui fora , poÍ5 estnis<br />

cbri


Fr. <strong>Henrique</strong> Su.^o. 253<br />

Soberana Im peru triz cio Cjo está menencorea<br />

com vosco pela mesn^n razão, que vos<br />

tem aqui preso. Ficava o r^Iinistro altonito de<br />

temor <strong>do</strong> que ouvia , ç dizia : Ai de mim, e<br />

em que cousa adesservi eu? toma mal, tornou<br />

o mancebo, serties Xí^^ò in<strong>do</strong> de chegar a pregar<br />

delia em 5Íias festas que ain<strong>da</strong> hontem<br />

,<br />

em uma soleniui Jade sua tão grande , respondestes<br />

a vossos Superiores, que não quereis<br />

sui)ir ao púlpito. É ver<strong>da</strong>de, disse o Minis-<br />

tro , e a razão é, porqiie terlio por tão altas<br />

e tamanhas as excellericias <strong>da</strong> Virgem que<br />

,<br />

me hei por indigno de fallar delia em público<br />

nem uma só palavra. E por isso largo este<br />

car^o aos pi ('.-^a<strong>do</strong>res mais velhos e mais sabios,<br />

de quem julgo, que cumprem com<br />

tamanha obrigação muito melhor, <strong>do</strong> que o<br />

pôde fazer um ignorante como eu. ^^las afíirnian<strong>do</strong>-lhe<br />

o njancebo, que suas pregações<br />

erão multo acccitas á Virgem , e que não era<br />

razão furíar-llies mais o corpo , desfazia-se<br />

em lagrimas de devacâo, e dizia : Peço-vos ,<br />

charissimo espirito, que me ponhais em graça<br />

c(»m a ^ irgem gh)riosiítSÍma que eu vos<br />

,<br />

empenho niiidiu fé, que não caia mais em<br />

similhante falta. Su?rio-se o Anjo, e tiran<strong>do</strong>-o<br />

<strong>da</strong> prisão tornou ao lugar, onded'anles<br />

eslava , diz


s54 VinA DO Bkato<br />

mansidão, e no como falia


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. i55<br />

que era a flifferença que lia via entre os três<br />

esta<strong>do</strong>s cio homem pj incipiante na virtude ,<br />

<strong>do</strong> que vai aproveitan<strong>do</strong>, e <strong>do</strong> que é já perfeito,<br />

E como uns e outras sentem a mesma<br />

varie<strong>da</strong>de de eí feitos iia connnunicai^ão , e<br />

ahnn<strong>da</strong>ncia <strong>do</strong>s ^rostos divinos. Ten<strong>do</strong> o <strong>Beato</strong><br />

Fr. <strong>Henrique</strong> conta<strong>do</strong> editas e outras muitas<br />

cousas desta (juali<strong>da</strong>de á stia enferma,<br />

concluio a pratica , e desj»edio-se. I<strong>do</strong> o San*<br />

to, «t devota Isabel tomou tinta e penna<br />

escreveo tu<strong>do</strong>, e fechou o papel em uma<br />

caixa , porque se não perdesse. Succedeo<br />

que alguns dias depois veio visital-a outra<br />

Religiosa , e lhe perguntou se tinha na(]ueUa<br />

arca alguma cousa , que tocasse a Mysterios<br />

<strong>do</strong> Ceo. Porque , dizia elia, vi esta noite em<br />

sonhos um menino celestial, que estava as»<br />

senta<strong>do</strong> sobre ella , e tinha na mão um instrumento<br />

musico por estremo suave , ao qual<br />

cantava composK^óes espiriíuaes tão graciosas<br />

, e l»em aponta<strong>da</strong>s, que não havia quem<br />

não ficasse cheio de devoção e alegria espi-<br />

ritual de as ouvir. Pcco-vos, irmãa minha j<br />

que me mostreis o cjue alii tendes gtiar<strong>da</strong><strong>do</strong> ,<br />

para que o ItMinos, e tenha eu t;iud)cm minha<br />

parle. Klla cerrou-se sem querer mos-<br />

trar , nem contar nad.« , por(|ue assim lho tinha<br />

mantla<strong>do</strong> Fr, ilenri.^uc.


^^S <strong>Vi<strong>da</strong></strong> bo Beíto<br />

G A P I T U L O XXXIX.<br />

Ern que o Santo conta j como 5c empregou em<br />

ganhar almas engolfa<strong>da</strong>s no mtiri<strong>do</strong> fiara.<br />

Deos y e como conso/ava os alriôula<strong>do</strong>s.<br />

H A ven<strong>do</strong> muitos dias , que a devota Isabel<br />

não linha nciilir.ni reca<strong>do</strong> de seu Mestre<br />

Fr. <strong>Henrique</strong>, mân<strong>do</strong>u-lhe uma cai la , eiu<br />

que ihe pedia quizesse escrever-lhe alguma<br />

,<br />

cousa , com que desal^afasse de suas continua»<br />

afflicções. A substancia <strong>da</strong> carta era esta: Pai a<br />

qualquer triste é gcnero de consolação ver<br />

que lia outras mais tristes que elle , assim<br />

mesmo um homem atribula<strong>do</strong> cobra esforço<br />

e entra em si quan<strong>do</strong> ouve que seus viãi-<br />

, ,<br />

rhos se viríio tm maiores aírouins, c to<strong>da</strong>via<br />

forão soccorri<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Ceo. A isto respondeo<br />

o Santo o que se segue , fallan<strong>do</strong> de si em<br />

terv''elja pessoa com o nome, que usava, <strong>da</strong>s suas íorças e desejos empregava<br />

em uma cousa , que era amar ud


to<strong>do</strong> coraçHo a Deos , e ol)íigar os outros a<br />

eritranliareni-no em suas aln^as de maneira,<br />

que a nenhuma cousa quizessem mais que a<br />

elle, e por este meio se afastassem <strong>do</strong> amor<br />

vão e prejudicial <strong>da</strong>s creatuias. O fjue to»<br />

<strong>da</strong>via vio cumpri<strong>do</strong> em muítcs , asjrim hom.ens<br />

, como mulheres. i^Ias o diabo, ven<strong>do</strong><br />

que se llie arrebatava <strong>da</strong>s mãos, e tornava<br />

para Deos o que era presa sua , seutiao por<br />

extremo, eappare(cr<strong>do</strong> a alguns homens<br />

devotos, soltava palavras clieias de ameaças<br />

contra o Ministro <strong>da</strong> Sapiência , af^rmantlo<br />

que tii^ba assenta<strong>do</strong> vingar-sc valentemente<br />

delle. iXcste ínterim passou o Ministro por<br />

um Mosteiro, onde viviAo em litligião homens<br />

emulhercfijuntan ente ,elles com regra<br />

particular sua , eeiias tambtm ( ou» leis sepa*<br />

ra<strong>da</strong>s. Achou aqui que entre uui Religioso<br />

,<br />

destes, e uma Religiosa corria uma au;izade<br />

e conversação cslieitissima. E Irazia-lhes o<br />

demónio as almas tão cegas, disfarçan<strong>do</strong>-lhíS<br />

o mal com as sombras de virtude, fjue ('e<br />

nenluHua maneira imaginavão , que li;:via al'i<br />

culpa , antes que tinbáo para isso licci «a de<br />

Deos; e sen<strong>do</strong> perguíita<strong>do</strong> se podia manter*<br />

se tal ami/adeem serviço de Deos, < bâanicnte<br />

o contradisse affirman<strong>do</strong>, que era (quni.io falsa<br />

e erra<strong>da</strong>, e contra a ver<strong>da</strong>de' <strong>da</strong> <strong>do</strong>utrina<br />

Christãa. E assim acabou com ellcs, qnc s«<br />

9


l58 YlDA DO LeATO<br />

atalhasse a conversação, e ficassem viven<strong>da</strong><br />

í.l:».ni em diante pnia e Iioiicstaiiienle, No<br />

mcstno tempo que nesta santa obra se occnpava<br />

, uma santa <strong>do</strong>nzella, por nome Anna ,<br />

TÍo em espirito uma grande multidão de demónios,<br />

que juntos sobre o iSIinistro bra<strong>da</strong>-<br />

rão a grandes vozes: O' que malva<strong>do</strong> Frade!<br />

malemol-o. Traz isto<br />

vinde, saltemos íielle ,<br />

lancavão-lhc maldições , e roJ[av;.o-llie iiragas<br />

, porque com seus conselhos e santas<br />

amoestacõeá os lançara <strong>da</strong>quclle lugar tamisem<br />

assombra<strong>do</strong> para elles. E to<strong>do</strong>s juntamente<br />

Fazeri<strong>do</strong> gestos feios, e meneos cheios<br />

de braveza juravão, que havlãii de an<strong>da</strong>r d'a-<br />

\iso sobre elle, e armar»ihe com tanta cí>ntin<br />

nação ale o colheram o se vinjjarem. E<br />

quand»> ihe não podesseni empecer no corpo<br />

, ou na fazen<strong>da</strong> , ao menos entre a genlc<br />

secular llie menoscabarião a honra e repu-<br />

taÇvio grandemente., tingin<strong>do</strong> contra elle<br />

cousas torpes c vergonhosas. E com quanto<br />

se guar<strong>da</strong>va com grande cautela tie to<strong>da</strong>s as<br />

occasivões, não <strong>do</strong>ixarião c!e sair com seu intjnt<br />

) por meio ile minas secreias de enganos<br />

e mentiras. Assomiuw<strong>da</strong> a Santa <strong>do</strong> (pie<br />

ouvira ro.;.iva a Isosaa Senliora , qne valesse<br />

ao Ministro em perigos tão aperta<strong>do</strong>s. Mas a<br />

i\iãi lie viisericortlia respondia amorosamen.<br />

tt j Nenhum mal lhe podem fazer sen» Itrem


Fk. Ili?;n:orE Srso. 2^9<br />

iicenra cie nuii rillio. V entende, que to<strong>do</strong><br />

o que elle permittlr, que cliihi lhe veiilia , II e<br />

será ruui inij^^^ortiinte e proveitoso para a alma.<br />

Pelo que l)em ihe podes dizer, que esteja<br />

de bom auiuio , e não tema. Sen<strong>do</strong> o Mi-<br />

nistro avisa<strong>do</strong> destas cousas, coniocou a ro-<br />

e segun<strong>do</strong> cos!u-<br />

tear a coRjurarílo iniciual ,<br />

riir.va fazer a miude , (juan<strong>do</strong> se adiava cm<br />

ajjcrtos , subio-se aoiuonte, on<strong>do</strong>tiului uma<br />

Heriui<strong>da</strong> <strong>da</strong> Invocação <strong>do</strong>s Anjos , e passava<br />

nove luezes ao re<strong>do</strong>r tlella á honra <strong>do</strong>s nove<br />

coros <strong>do</strong>s Anjos, rezan<strong>do</strong>, e pediu<strong>do</strong>-lhes<br />

muito de propósito que fossem com elle, e<br />

o aju<strong>da</strong>ssem contra seus inimigos : logo em<br />

au)auheceu<strong>do</strong> teve um rapto <strong>da</strong> alma, eparecia-lhe<br />

que era leva<strong>do</strong> a um formoso pra<strong>do</strong>,<br />

onde via ao re<strong>do</strong>r de si um cojuosissiu.o<br />

ajuntamento de Anjos, que lhe vinbão acudir,<br />

e o auitravão com estas jxilavias: O Se-<br />

nhor é com vo.ico ,<br />

perigo , nem aíronta vos ha de desamparar<br />

jamais. Pelo que o que \os cumpre é que<br />

,<br />

não largueis o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> em que an<strong>da</strong>is de<br />

arrancar almas <strong>da</strong>s vai<strong>da</strong>des <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e<br />

Irazel-as para Deos. Esh)rca<strong>do</strong> o Minislio<br />

com taes visões, fazia grande^ diligencia por<br />

converter lo<strong>do</strong> género de gente. E assim co-<br />

Iheo com boas palavras, e com um santo engano<br />

ganhou para Deos um homem cspan»<br />

o sabei que cm nenhum


ti<strong>do</strong> <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Beat»<br />

tosainente assoma<strong>do</strong> e temeroso, que havia<br />

dezoito annos que se não confessava , o qual<br />

toca<strong>do</strong> dl graça divina se Jbe confessou com<br />

tanta dòr e arrependimento d'alnia que am-<br />

,<br />

bos juntamente clioravão. E ponco tempo<br />

depois acabou a vi<strong>da</strong> bemaveniura<strong>da</strong>mente.<br />

De uma vez tirou de máo viver <strong>do</strong>ze mídberes<br />

públicas. E não se pôde encarecer o trabalho<br />

que levou com elias até as chegar a<br />

bom esta<strong>do</strong> j o cii fim só duas perseverarão<br />

nelle. No diitricto <strong>da</strong>qiiella terra , onde então<br />

morava , Ira via por muitos lugares grande<br />

numero de mulheres, assim seculares como<br />

religiosas, que por fraqueza e levian<strong>da</strong>de<br />

se tinliáo perdi<strong>do</strong> desalina<strong>da</strong>mente , euão tinhào<br />

ningiieui a quem se atrevessem a confessar<br />

suas desavenluras, pela grande vergonha<br />

que em suas almas sentião ; <strong>do</strong>nde lhes<br />

nascia uma anciã tão excessiva, que muitas<br />

vezes entra/ão em tentação de se matarem.<br />

I\Ias como cairão na brandura e pie<strong>da</strong>de<br />

com que o Ministro tratava to<strong>do</strong>s os affligi<strong>do</strong>s<br />

, cobran<strong>do</strong> co líi mra , vierão-se a elle uma<br />

que era maior o perigo tle<br />

e uma no tempo ,<br />

seu esta<strong>do</strong>, c c o n dòr e lagrimas lUe derão<br />

conta <strong>da</strong>s angiístiás, eui que vivião , e <strong>do</strong><br />

p«.rigo q le receavãtx Quan<strong>do</strong> o Ministro vio<br />

o ín> p ibr.^s mulheres afadiga<strong>da</strong>s com lania<br />

naiiJrla ,<br />

o.isjlava«ai com muito amor, cho-


Fr. Hjznbique <strong>Suso</strong>. 2Ô1<br />

ran<strong>do</strong> com to<strong>da</strong>s, e em Sm remetleou-us, e<br />

fez, ain<strong>da</strong> que não foi sem arriscar r.niito de<br />

sua reputação, que ganhassem as almas, e<br />

remecliassem a lionra , não fazen<strong>do</strong> caso no<br />

processo desrl. negocio <strong>do</strong> que as lingnas <strong>do</strong>s<br />

maldizentes lhe podião levantar. Havia nma<br />

que era mull^er bem nasci<strong>da</strong> e nolire, que<br />

estranhamenle sentia ver-se em tal esta<strong>do</strong>.<br />

Appareceo-Uie a Virgem gloriosissima , Nossa<br />

Seniicra, e man<strong>do</strong>u-lhe que se fosse ao seu<br />

(^aneliíío, avisan<strong>do</strong>-a que era o Ministro,<br />

])ara ser remedia<strong>da</strong> por elle. E responden<strong>do</strong><br />

que o não conhecia, tornou a Mãi de Misericórdia<br />

: Olha para de!)aÍAO de meu manto,<br />

.que O guar<strong>do</strong> e defen<strong>do</strong> com meu amparo,<br />

tí nola-lhe as feições <strong>do</strong> rcstro, para que o<br />

possas conhecer depois ; elle é consolação ,<br />

e alliviodc to<strong>do</strong>s os tristes, elle ,te consolará.<br />

Foi a mulher ao Ministro , e pon<strong>do</strong>-llie os<br />

olhos no rostro , conhcceo-o pelo que tinha<br />

visto na rcvelaçfio ; e contan<strong>do</strong>-lhe sua ])erdição<br />

, pedio-lhe quo a remediasse com<br />

entranhas <strong>do</strong> miiericorília. Ouvio-a o Ministro<br />

conj muita benigni<strong>da</strong>de, e aju<strong>do</strong>u-a (pianto<br />

pôde, porque tornasse arcstauiar o nome<br />

perdi<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> a Sagra<strong>da</strong> Virgem Íh'o en-<br />

carregai a.


i62 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Dízato<br />

CAPITULO XL.<br />

Em que Fr, <strong>Henrique</strong> , proscí^nin<strong>do</strong> sua nar-^<br />

ração j conta uma estranha afronta y em que<br />

se vio , procuran<strong>do</strong> com mi:,ir ejjlcacia , e<br />

cui<strong>da</strong><strong>do</strong> a salvação <strong>da</strong>s almas,<br />

1 Ela maneira que leínos dito salvou o Ministro<br />

um numero infinito de homens afadigciílos<br />

com o peso de seus pecca<strong>do</strong>s. 3Mas em<br />

pago destas obras de caricíaJe íoi necessário<br />

padecer maltas e mui rig(


Fs. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. 265<br />

seus Marlyrc."^ , não menos que em to<strong>do</strong> outro<br />

tempo. Vós apeiccbei-TOs, c não façaisoiitra<br />

cousa, e ide começan<strong>do</strong> a Missa. Corria o<br />

Ministro , e revolvia o Missal que tinha diante<br />

, e procurava dizer outra Missa , qualquer<br />

que ícsse, ou de Confessores, ou <strong>do</strong>utra<br />

cousa , antes que de Marlyres insignes. Mas<br />

por muito que se cansava em correr o Missal<br />

não topava com outra cousa, senão com Of-<br />

íicios de Mar í Vi es, de que adiava to<strong>da</strong>s as<br />

íbilias cheias. Ilntão ven<strong>do</strong> que não podia<br />

ai fazer, con.:iniio , e i"ui-se cantan<strong>do</strong> com<br />

a um pouco tornava a falíar com elles dizen<strong>do</strong><br />

: Km vei<strong>da</strong>deque c cousa espantosa,<br />

e n(r\a a oTie fazeis. Porque não di-<br />

reis ai)íe:i uíu Gaudcanius y que é intróito<br />

alegí-e, e não esse que é triste e melaiK<br />

oliza<strong>do</strong> .í^ Nào sal3eis, meu amigo, o<br />

x\\\iô passa? respoudiáo os Cantores: Aí]^ola<br />

tem primeiro lu^^ar este ofncio <strong>do</strong>s Mar-<br />

tyres, depois viiá i'ssv Gaiulca/nus de festa<br />

algumas vezes, e a seu teuqu). Quan<strong>do</strong><br />

o Ministro entrou em si estremeceo to<strong>do</strong> com<br />

Ipavor <strong>do</strong> que vira, e dizia: Ai de mim, meu<br />

bom JESL ! é isto por ventura ali;um novo<br />

género de Cruzes, que me espeião? In<strong>do</strong> camiidian<strong>do</strong><br />

com roslro caí<strong>do</strong>, e dcst onteníe,<br />

perguniuu-ihe o conipanlieiio , qucliavia,


a64 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Bíato<br />

porque ia assim nielarjcolizaclo. Respor.tli^o :<br />

Oue vos posso dizer irmão: cantou-se-nie nesie<br />

lu^^nr uma Missa de ?,Lirtyres. Queren<strong>do</strong> si-<br />

gnificar que lhe fora revela<strong>do</strong> por Deos , qu-j<br />

havia de ser asperamente persegui<strong>do</strong>. Mas o<br />

Frade não entendeo, nem eile lhe quiz desi-ohrlr<br />

mais. Tanto que tornou ao Convento ,<br />

que foi antes de Natal no tempo, que as iioitr<br />

são mais comnri<strong>da</strong>s , locro ocomecáráo a saitear,<br />

segun<strong>do</strong> seu antigo costume, varias u<br />

mui pesa<strong>da</strong>s trlhi<strong>da</strong>ções por maneira que ,<br />

humanau.enle julgarfílo, cria que lhe hsAÍa Ój-<br />

' c<br />

estalar o coração com a íV.rca <strong>do</strong> sentimento,<br />

ain<strong>da</strong> (]ue não fora de mais, que ver o mesliio<br />

mal era qualquer outro liomem , porque<br />

o punhào em cerco tão aperta<strong>do</strong> e crutl ,<br />

que por meios iaslimosos lhe vinha a falln.<br />

totalmente tu<strong>do</strong> quanto lhe ficava, eoi que<br />

poder estribar de descanso, de consolação ,<br />

de honra temporal, e finalmente de qualquer<br />

outra cousa , que pôde <strong>da</strong>r gosto na vi<strong>da</strong>.<br />

Esta trabalhosíssima Cruz passou desta maneira<br />

: Entre a muita gente, que o IVIinistrij<br />

desejava reduzir ao serviço ile Deos , veio<br />

ter com elle uma falsa fêmea , engana<strong>do</strong>ra<br />

, e <strong>do</strong>bra<strong>da</strong> , que com capa de virtude<br />

ao que parecia , colaria um corinjão de loh;i ,<br />

sabia também dissimular, que por grande<br />

tjmpo não pôde o Ministro cair em quem


Fr. <strong>Henrique</strong> Scso, ^65<br />

clia ei»n. Esta se tinlia perdi<strong>do</strong> primeiro com<br />

certo homem; e para lazer a culpa mais feia,<br />

não se contentan<strong>do</strong> com a primeira mal<strong>da</strong>de<br />

de uma criança , que delle tinha , quiz <strong>da</strong>r<br />

por pai oLiiro homem , que totalmente a não<br />

conhecia. Mas não foi isto parte para o Mi-<br />

nistro a lançar í^e si, antes a ouvia de confis-<br />

são , e lhe arodin com n^uitas ohras de cari<strong>da</strong>de<br />

, com que remediava suas necessi<strong>da</strong>des ,<br />

e honrava e fazia por ella mais que os Frades<br />

<strong>da</strong>quellal^iovincia,que (hamioXerminaríos,<br />

Sen<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> muito tempo que o Ministro<br />

continuava coui ella , veio-se a entender claramente<br />

})or elle , e por outras pessoas di-<br />

que ás escondi<strong>da</strong>s era tão má<br />

^ gnas de fé ,<br />

e tão devassa, conjo o fora no principio de<br />

sua \i<strong>da</strong>.'E to<strong>da</strong>via elle encuhrio o que sabia ,<br />

não a qTieriíu<strong>do</strong> publicar por quem era , mas<br />

foi-se desvian<strong>do</strong> delia , e levantan<strong>do</strong> a mão<br />

<strong>do</strong>s bens, que lhe fa/ia. Tanto («ue isto enlendeo<br />

a boa mulher, man<strong>do</strong>u-lhe dizer qu« mTo<br />

procedesse assim com ella, porque lhe fazia<br />

que se lhe faltava com os lions of-<br />

a saber ,<br />

íioios , e favores que atélli recebera delle, lh'o<br />

havia de pagar a bem grande preço. Porque o<br />

menos que havia de lazer seria man<strong>da</strong>r-lhe<br />

cngeilar, e nomear por íilho seu um menino<br />

que linha de um secular, com o que lhe <strong>da</strong>-<br />

ria tal descrédito , que em to<strong>da</strong> a terra ficasse


u66 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

infama<strong>do</strong>. Mui assomlíra<strong>do</strong> ficou o Ministr*<br />

deste reca<strong>do</strong>: e recolhi<strong>do</strong> só comsjcro, e ca-<br />

Ja<strong>do</strong> ,<br />

suspirava proíimaainente ,e discorria<br />

assim entre si. l^()r to<strong>da</strong> parte me vejo posto<br />

em cerco , e não sei que conselho siga ; que<br />

se corro niais com esta mulher, perco-me ; e<br />

se o não faço , tainherii me pejco: e assim<br />

fico rodea<strong>do</strong> de inales para nào poder escapar<br />

de ser a tropel la<strong>do</strong> d'alguni. Entretanto<br />

padecia inorlaes afrontas in)aginan<strong>do</strong> como ,<br />

e eni que , e até onde ptrniiitiria Deos que se<br />

alargasse este minlstio infernal em o perseguir.<br />

Em fim assentou que era melhor para si<br />

e para Ueos, e mais acerta<strong>do</strong> para a saúde ãa.<br />

alma , e <strong>do</strong> corpo, quehrar couí a perversa<br />

mulher escolhen<strong>do</strong> de <strong>do</strong>us males o menor,<br />

sem fazer caso <strong>do</strong> risco, a que punha sua<br />

honra , e assim o fez. lAa^i cila ficou tão toma<strong>da</strong><br />

, que com uma mal<strong>da</strong>de hestial , qual<br />

era a sua , qu iz dcshonrar-se a si , só por<br />

prejudicar ao Ministro; e corren<strong>do</strong> por entre<br />

Religiosos e Senhores , e an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> de uns a<br />

outios publicou e affirmou, que tinha uni<br />

filho delle. Grandenienie se escan<strong>da</strong>lizarão<br />

com tal nova to<strong>do</strong>s os que lhe <strong>da</strong>Tao credito,<br />

e tanto mais, quanto em melhor conta<br />

o tinhão, e quanto mais cornmum mente era<br />

havi<strong>do</strong> por Santo em to<strong>da</strong> parte. Mas a clle<br />

chegava-lhe á alma, e atressava-lhe o cora-


Fr. Heniiique Scso. ^6y<br />

cão com dòr, e assim se ia seccan<strong>do</strong> , c niyirlian<strong>do</strong><br />

de pura desconsolação e agonia. As<br />

noites [^assava inteiras sem dnrniii-, os dias<br />

cansa<strong>do</strong>s, e tristes; algum brexe repouso,<br />

que tomava, eia envoito em representações<br />

me<strong>do</strong>nhas. Um dia levantou os olhos a Deos<br />

com rosíro choioso, e magoa<strong>do</strong>s suspiros ,<br />

e<br />

dizia : Eis , Senlior, tenho já presente aquelle<br />

desventura<strong>do</strong> tempo que lenua , checa<strong>da</strong> é<br />

aquella triste hora, chora minha O' como poderei<br />

supportar os apertos sem termo deste<br />

coração ! O' quem lura morto para que nao<br />

vira, nem ouvira tal desventura! O' bom<br />

JESU, bem sal>eis vós como reverenciei sempre<br />

vosso Nomo Santíssimo, e quanto trabalhei<br />

sempre peh) íazcr ama<strong>do</strong> e servi<strong>do</strong> de<br />

to<strong>do</strong>s, e por to<strong>da</strong> parte: e vós quereis, Senhor<br />

, que padeça o meu agora uma tamanha<br />

quebra i' Dem , e com assas razão me posso<br />

eu queixar disso. Eis que a Ordem de São<br />

Domingos tão iilustre no mun<strong>do</strong> terá por<br />

mim uma tamanha iní\imia , qual nunca já<br />

m:iis deÍ7carei de cliorar ? O' anciãs e tormentos<br />

de minlia alma , já to<strong>do</strong>s os devo-<br />

tos, que atégora mehuniárão como se fora<br />

honjcm Sanlo (cousa ({ue me podia <strong>da</strong>r animo<br />

para o ser) não meolliaráõ senão como a um<br />

lal.so engana<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s homens , cousa que me<br />

trcsj;assa a alma de inoríacs leri<strong>da</strong>s. Ttn<strong>do</strong>


26B <strong>Vi<strong>da</strong></strong> ko Beat©<br />

passa<strong>do</strong> algum tempo nestas queixas e pran*<br />

tos de mai;eira, que ia perden<strong>do</strong> as forcas,<br />

e a vi<strong>da</strong> , veio ter com elle uma mulher , que<br />

lhe faílou desta maneira : Que razão ha Se-<br />

j.dior para vos matardes assim ? ten<strong>do</strong> animo ;<br />

que eu vos <strong>da</strong>rei remédio a l)cm pouco custo,<br />

se quizerdes governar a meu mo<strong>do</strong> , para que<br />

não percais nem um fio de vossa reputação.<br />

Ora íazei , rogo-vos, um coração grande , valoroso<br />

e constante. Levantan<strong>do</strong> o»Ministro<br />

o rostro pergunlon-lhe que <strong>ordem</strong> havia de<br />

ter no que dizia. Tomaiei, rcspondeo , esse<br />

menino, e leval-o-liei dehaixo deste manto<br />

escondi<strong>do</strong>, e como for noite enterral-o-hei vi-<br />

vo, ou o matarei metien<strong>do</strong>lhe uma agulha pela<br />

calieca. iHe morto, acnlmará U)go io<strong>da</strong> esta<br />

tormenta , e ficará vossa lionra sem f[ue]>ra.<br />

Ouvin<strong>do</strong> isto o Ministro encheo-se de paixão,<br />

e disse-lhe:0' fêmea mais-deshutnaua de to<strong>da</strong>s<br />

quantas são nasci<strong>da</strong>s , e assim te atreve-<br />

rias a matar um innocente? Como ? e lia-se<br />

de ^ôr á conta <strong>do</strong> menino a mal<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mái<br />

para pa^^ar por ella ? Vivo o querias sepultar ?<br />

?íão ha de haver tal, nunca Deos queira que<br />

<strong>do</strong> meu consentimento tal insulto secorametla.<br />

O maior mal, que.deste me pôde vir, é um<br />

total abatimento de meu credito, pois affirnio-'vC<br />

que se de minha iionra dependera a de<br />

um Pvcino inteiro , de boa vontade u largara


Fr. KETíniQrc Scs^j, 2^)9<br />

n.is mãos de Deos, c iha offorecéra, antes<br />

que consintir derramar- se pela conservaçuo<br />

deila este innocenle sangue. Elle não c vosso<br />

filho : qae vos dá logo que acabe assim ? replicou<br />

a mullier. E Iraz estas palavras arrancou<br />

de imia iara aíia<strong>da</strong> j c Icjnion a dizer:<br />

Acabai já, deixai-mo levar <strong>da</strong>qui, tirar-vol-o-<br />

liei <strong>da</strong> ^ista , e logo ou o degolarei , ou llie<br />

<strong>da</strong>rei com osla faca pelo Cíjração, e assim<br />

acalnn<strong>do</strong> clle , terciros paz. Cala-le perversa<br />

niillicr, disse o Ministro. Seja deqi.ieni quer<br />

ior, Lr.sla (jue è feito á imagem de Deos, e<br />

remi<strong>do</strong> com o sangue piecioso de Christo;<br />

que se derrame<br />

não é razão, nem quero eu ,<br />

seu sangue com tamanln crueza. Ficou a mulliar<br />

com estas palavras abra/a<strong>da</strong> de raiva, e<br />

respon{]e{)-llie : Pois não quereis que morra,<br />

convém que de duas cousas façais uma. Ou<br />

que pela manbãa o deixeis levar a porta <strong>da</strong><br />

Igreja , como se faz aos mais engeiía<strong>do</strong>s , 011<br />

vos apercvhais para uma despesa, excessiva<br />

para vús, í»té (\ue seja cria<strong>do</strong>. Eu ron<strong>do</strong> em<br />

Deos to<strong>do</strong> poderoso, tornou o i\Iinistro, que<br />

atégora teve de mim cui<strong>da</strong><strong>do</strong> , também o terá<br />

<strong>da</strong>qui em diante, e nos tlará o necessário a<br />

este menino , e a mim : p >r isso ide , c trazeimo<br />

aqui, que o quero ve ás escoruli<strong>da</strong>s. '!'()mou-o<br />

então nos braços, e ten<strong>do</strong>-o no collo,<br />

comecou-llie o coitadinho a rir. Ao oue clle ,


ajo Vi D A DO Beat»<br />

responden<strong>do</strong> com v.m gemulo rança<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

innis intin^.or <strong>do</strong>p


Fn. IIí:\'RIQce <strong>Suso</strong>. 271<br />

de pssar grande trabalhos ; que não poderei<br />

eu p-jr nenhum caso acal.ar comigo, fazer-te<br />

mal , pois ficas sen<strong>do</strong> meu fillio , e de Deos;<br />

e eiii([nanto o Senhor me ministrar um 1)0ca<strong>do</strong><br />

íe pão [>artil-o-l:."i comtigo áhonia <strong>do</strong><br />

,<br />

mestno Senhor , e levarei com paciência e<br />

gosio »o<strong>do</strong> o mal, que por amor de time<br />

vier. Nío cião bem acaba<strong>da</strong>s estas lastimas<br />

quan<strong>do</strong> aquclla cruel que assentara matar<br />

,<br />

o meninf), to<strong>da</strong> compungi<strong>da</strong> em seu corarão<br />

comecoí a chorar aoramcnte com erandcs<br />

e alios sthiços de maneira, que_^ foi necessário<br />

íazd-a calar por se não publicar o ne-<br />

,<br />

gocio. I)c,)0Ís que a deixou chorar um espaço<br />

, toiiií.u-l!ie o menino', e rogan<strong>do</strong>-Uie<br />

muitos btns dizia : O Senhor Deos te de sua<br />

benção, e seus Anjos te «^uaidem de to<strong>do</strong><br />

mal. j*^ man<strong>do</strong>u que á sua custa tivesse cui-<br />

,<br />

<strong>da</strong> dt) delle, c o alimentasse. Mas não se sa-<br />

tisfez com isto a perversa mãi , antes cisnlinuou<br />

em infamar o íMinistro, principahn^Mite<br />

naquellcs lugares, onde mais <strong>da</strong>mno ]he [?odiafazor,<br />

de maneira, que muitos houjcns<br />

"viiluosos lhe tinhão lastima, e chefjavâo a<br />

pedir a Deos, que como justo juiz tiiasse ta^<br />

mulher <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Foi um dia vistal-o uni<br />

parente seu, e disse-lhe : Giiai dessa malva<strong>da</strong>,<br />

que lai ribalderia ousou accommettcr<br />

contra vós j que cu tenho acha<strong>do</strong> mai:eir.i


STl<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

para vos vingar clella á vontade, e é esíonfler-me<br />

em qualquer parte dessa compri<strong>da</strong><br />

ponlc, que está Sí)!)re o rio , e colhel-a ?onio<br />

passar, e lanran<strong>do</strong>-a dt; cabeça na agui , fazel-a<br />

afogar. ISâo fareis lai cousa se nieAmais,<br />

disse a isto o AUiiislro; que iiunci Deos<br />

queira , que por minha causa se ma'e ninguém.<br />

Basta que sa])e o Senhor qu3 tu<strong>do</strong><br />

sabe, que contra to<strong>da</strong> razão me lanoju essa<br />

inidher em casa seu íilhó. Em suis mãos<br />

deixo esta causa» Elle a mate , ou lhe dê vi<strong>da</strong><br />

como mais for servi<strong>do</strong> ; que aindi que eu<br />

com lhe negociar a morte desejara , cu pudera<br />

salvar o risco , em que an<strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> e<br />

honra, com tu<strong>do</strong>, por ser mulhtr, tivera<br />

respeito , e fizera cortezia nella a lò<strong>da</strong>s , as<br />

que sao honra<strong>da</strong>s e virtuosas ,<br />

e dexára-avi-<br />

Ter. Aqui tornou o parente com melancoria.<br />

Pois de mim vos digo que quem quer que<br />

,<br />

tal a£i'onla me fizera, ma houvera de pagar<br />

com a vi<strong>da</strong> ,<br />

sem me <strong>da</strong>r na<strong>da</strong> que fura íio-<br />

mem , ou muliíer. Não digais tal , disse o<br />

JMinistro; que isso é uma brutaliJaile desmesura<strong>da</strong><br />

e um desatino bárbaro. Assocegai-vos,<br />

1? deixai-me vir quantos males Deos quizer.<br />

Cresclào no Ministro os desgostos com o tem-<br />

renovan<strong>do</strong>-se-lhe ca<strong>da</strong> hora com a fama<br />

j)o ,<br />

tio successo que se ia dividgan<strong>do</strong>. E senli<strong>do</strong>-se<br />

um dia demasia<strong>da</strong>mente afadiga<strong>do</strong> venci<strong>do</strong><br />

,


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. ajS<br />

cTa fraque?»! natural desejava buscar algum<br />

oenero de consolação, ou allivio. Coiu esta<br />

tenção foi-se em busca de <strong>do</strong>us homens, que<br />

no bom tenipo o communlcaTão muito, e se<br />

lhe tinhào mostra<strong>do</strong> bons auilgos. Aqui perluittío<br />

Deos , que visse por experiência em<br />

ambos, quaiaanha ver<strong>da</strong>de é, que não ha<br />

cousa sãa , nem macissa nas criaturas. Porque<br />

assim elie, como os que eslavão em sua<br />

companhia o tratai ã> com muito mais aspereza,<br />

<strong>do</strong> (|(ie o povo fazia. Uui recebeo com<br />

razões pesa<strong>da</strong>s, e lohan<strong>do</strong> o rostro a onlra<br />

parte com desdém dizia-lhe rllezas. Entre<br />

as quaes foi uuia, que o não visse mais , nem<br />

o tivesse por ami^o, porqne se corria de ter<br />

commercio con7 elle. Cortavão-lhe as entranhas<br />

estas palavras, e com unja voz caí<strong>da</strong> e<br />

niafj^oad.i : Ah irmão meu , disse para elle , de<br />

mim vos seiatíirmar, (pie se Deos permitlira<br />

cairdes vós nesle'pego de lo<strong>do</strong>, e al)atimento ,<br />

em que hoje me vejosomi<strong>do</strong> , corren<strong>do</strong> e publican<strong>do</strong><br />

vos houvera de ir acudir, e aju<strong>da</strong>r<br />

com amor e cortezia a sair delle. E vós soÍ5<br />

ião deshuniíàno f[ne não basta verdes-me atol*<br />

la<strong>do</strong> até o pescoço, mas ain<strong>da</strong> trabalhais por<br />

lue levar debaixo <strong>do</strong>s pés , e atropellar-me.<br />

Disso só me queixarei eu sempre áquelleso*<br />

bre to<strong>do</strong>s atormenta<strong>do</strong> coração <strong>do</strong> clementisíimo<br />

JESU. Mas elle man<strong>do</strong>u-lhc que se ca«


2y4 VíDA r)0 Bea.t«<br />

lasse dizen<strong>do</strong>-lhe injurlor.nmerjte : .Ta sois<br />

acaba<strong>do</strong>, jd não ha f[iie fazer conla de vós,<br />

nem vossa pregações, nem vossos li\ros serão<br />

vistos de ningTiem , a que tu<strong>do</strong> se <strong>da</strong>rá de<br />

TTíão, tu<strong>do</strong> se fngeitará. \(j!!Í o Ministro pon<strong>do</strong><br />

os olhos no Ceo respondeo mansamente:<br />

Pois eu confio em Ueos to<strong>do</strong> pode roso , que<br />

ha <strong>do</strong> vir tempo , em que meus escritos sejáo<br />

inais aira<strong>do</strong>s e estima<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, <strong>do</strong> que<br />

nunca forao. Taes foiHo as consoiíçóes q;ie<br />

achou nos amigos, (>ue linha por principais, e<br />

ver<strong>da</strong>deiros. Os hímiens virtuosos <strong>da</strong>qiielleiugar<br />

tin;i.'io nuiilo cuitla<strong>do</strong> de o proverem com<br />

o necessário. Mas depois que se pul)hcarão<br />

estas falsas novas , to<strong>do</strong>s os que as crifio levan-<br />

tarão mão de lhe fazer bem ; até que certifica<strong>do</strong>s<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, tornarão outra vez a correr<br />

com elle. Assentan<strong>do</strong>-se um dia no seu balico<br />

porverse poderia repousar uni ouço, foi loçro<br />

j<br />

rouba<strong>do</strong> aos senti<strong>do</strong>s, e parecia-lhe que era<br />

leva<strong>do</strong> a uma região representa<strong>da</strong> no entendiuíeuto,<br />

onde achava um. homem, que lhe<br />

fallava assim na parte inferior <strong>da</strong> alma: Escu-<br />

escutai umas palavras que vos quero ler<br />

tai ,<br />

de consolação. Applicava-se o Ministro com<br />

attencão , e ouvi<strong>do</strong>s promptos, e notava que<br />

lhe lia em Latim a(|uellas palavras de Isaías,<br />

que dizem : Não te chamarás já <strong>da</strong>qui em<br />

diante desampara<strong>da</strong>, e tua terra não se cha-


Fr. <strong>Henrique</strong> Srso, 2^5<br />

m^.rá mais deserta, mas chamar-tc-bas vontade<br />

minha em ella, e tua terra povoa<strong>da</strong>,<br />

porque o Senhor se deu por coiUente cm ti.<br />

Acaban<strong>do</strong> o homem de lhas ler uma vez, torijou-as<br />

a começar outra, e leo-lhas até quatro<br />

que<br />

ezes. Do que o iviinistro espanta<strong>do</strong> :<br />

fim, pergunrou, me repetis isso<br />

A<br />

tantas vezes<br />

? Faco-o , respondeo para que firme-<br />

,<br />

mente confieis em Deos, riman<strong>do</strong> a elle vossa<br />

ahna e vossas esperanças, pois vos consta<br />

que até a terra de seus servos, quero dl/.er<br />

até a esses corpos mortaes acode com o Tie( os-<br />

sário; e é tand)em que se por uma parte se<br />

liies tirar alguma cousa, logo lha ha de supprir<br />

por outra. E assim o lará também por<br />

nem me-<br />

sua pie<strong>da</strong>de com vosco. Nem mais ,<br />

nos succetleo depois em reali<strong>da</strong>ile, e com<br />

tanta evideixia , que muitos de contentes<br />

rião , e louviAvâo a Deos , cujos olhos primeiro<br />

tinhão derrama<strong>do</strong> infinitas laijrimas<br />

de excessiva compaixão. Mas como vemos<br />

que acontece aos animaes n)ansos c pequenos,<br />

que são presa <strong>do</strong>s grandes e bravos<br />

que se lhes caem nas mãos são dcspa<strong>da</strong>ca<strong>do</strong>s<br />

de suas unhas, e traga<strong>do</strong>s de seii'^ dentes até<br />

lhe (içarem os ossos esbulha<strong>do</strong>s ebmpí>s, e<br />

am<strong>da</strong> sobre esses , se tem (jualqner cheiío de<br />

carne , <strong>da</strong>scenj enxajues de vespas famintas,<br />

que os acabão de roer e cocavcirar j e lífio


a^^ <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

fpr<strong>do</strong>anclo nos tutanos lhos cliupão, e letfío<br />

]ie]os aves; <strong>da</strong> nu^snia irianeira era tinta<strong>do</strong><br />

então <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> Fr. <strong>Henrique</strong> ; e assim foi<br />

roi<strong>do</strong> e infama<strong>do</strong> por to<strong>da</strong> parte, e isto<br />

por homens nas apparencias virtuosos , e que<br />

o faziáo com capa e côr de um sentimento<br />

santo e discurso christão,a fim de se consolarem<br />

como amigos, que professa\ão s


Fr, Hexriqiii: <strong>Suso</strong>. iyy<br />

€Ía, teve interiormente esla resposta: Lem-<br />

])ra-te Cbristão, que o mesmo JESU não qiiiz<br />

somente trazer em sua companhia um João<br />

queii<strong>do</strong>, e um Pedro fiel, mas qulz também<br />

soíier um Ju<strong>da</strong>s trai<strong>do</strong>r. P>)Í3 tu , que dese-<br />

jas seguir Sitas pisa<strong>da</strong>s , porque razáo te i\^ns'<br />

tas com teu Ju<strong>da</strong>s? Contra isto o armava<br />

um pensamento responden<strong>do</strong> assim : Ai de<br />

mim pie<strong>do</strong>so JESLT, que, se este vosso atormenta<strong>do</strong><br />

servo não tivera mais que um Ju<strong>da</strong>s<br />

, lòra ò negocio soíVivel ; mas eu vejo<br />

qntí to<strong>do</strong>s os cantos estão cheios de Juc'as<br />

píua mim de maneira, que em fallan<strong>do</strong> um ,<br />

lo^o SC me levaiitão cento. A isto também<br />

lhe foi rephcr.<strong>do</strong> interiormente desta maneira<br />

: To<strong>do</strong> homem , que traz conta com<br />

sna alma, tem obrigação de não cui<strong>da</strong>r de<br />

Tjinguem , que é seu Ju<strong>da</strong>s : antes deve cui<strong>da</strong>r<br />

que é instrumento, ou coadjutor de Deos<br />

aquelíe por cuj^ meio lhe vem trabalhos<br />

que são para sca bem, e para o maior bem<br />

de toiios i[ue é a salvaçíío. Isto nos insinoii<br />

Chrlstíj quan<strong>do</strong> enlregan<strong>do</strong>-o Ju<strong>da</strong>s com osculo<br />

de naz lhe poz nome de amigo seu, dizen<strong>do</strong>:<br />

Amigo a que vieste:' Sen<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>s<br />

muitos dias que o Ministro an<strong>da</strong>va assim<br />

atril)ula<strong>do</strong> , íicava-llie só uma consolarão<br />

bem fraca , que em algum mo<strong>do</strong> o alentava, a<br />

jL^ual era núo ter chega<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> a infâmia


%y% ViTik DO Br. iTO<br />

que (lelle corria , aos Prela<strong>do</strong>s maiores de sifâ<br />

Ordem. Mas este pequeiK» ailivio lhe lirou<br />

tan.hem Deos subitamente; porque o Geral<br />

(la Ordfin , e o Provincial de Aliuruaaiia íorão<br />

ter ambos juntos em um tempí> á mesma<br />

terra , onde a <strong>da</strong>na<strong>da</strong> fêmea lhe assacou o<br />

falso testemunho. Do que tanto que o pobre<br />

Fiade foi avisa<strong>do</strong> em outro aigar distante ,<br />

onde morara, receoso em tiemnsia , fazia<br />

discursos em seu pdiíisameuto dizen<strong>do</strong> : Bem<br />

pôde ser que teus superiores dèm credito<br />

áqueila falsa, e se o fizerem uão tens uma<br />

hora de vi<strong>da</strong>, porque te laucaráó n'um cárcere<br />

tão tcrrivei , que seja menos mal acabar<br />

lo^o. Este cui<strong>da</strong><strong>do</strong> o moU\stou <strong>do</strong>ze dias<br />

contínuos, e outras tantas noites de manei-<br />

que esperava a ca<strong>da</strong> momento o ca^li^o.<br />

ra ,<br />

Um dia saío-se pela portaria fora , e venci<strong>do</strong><br />

<strong>da</strong> aucia que por então coni maiop excesso o<br />

,<br />

afrontava, logo fugin<strong>do</strong> <strong>da</strong> gente tão lastimoso,<br />

e para haver dó no interior de sua ai-'<br />

ma , como ia nas mostras lie íóra , fui se esconder<br />

n um higar aparta<strong>do</strong>, onde ninjjuem<br />

o podia ver , nem ouvir. Aqui soltan<strong>do</strong> a retlea<br />

a seus tormentos, ora rebentava em<br />

profun<strong>do</strong>s suspiros, ora se lhe rasavão os<br />

olhos de agua , ora lhe coriião impetuosamente<br />

rios de lagrimas pelo roslro abaixo.<br />

Tal era o aperto que sintia no coiaçúo, que


Fr. <strong>Henrique</strong> Srso. 27^<br />

não poilia soccgar em nenbnna<br />

pí»''f»^' í5w»-'itanieiJte<br />

se assenf-'^» ? c Iu^.j tom a mesma<br />

preste/» ^it.ços com a<br />

nioite. .Outras Tezes lançaTa <strong>da</strong>s entrai ha»<br />

unsgenji<strong>do</strong>s tiistissimos di/er<strong>do</strong>: Ai ai, Cio*<br />

meutissimo JFSU e que dcteiminais fazer de<br />

mim? ÍSeste pit<strong>do</strong>sít esta<strong>do</strong> vivia, fjuan<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

Ceo teve uma inspiração, que ilenlro nV.lma<br />

lhe fallava assiui : Onde istá a-;ora a resignaçáo?<br />

Oiule a constante dfteiuiinação de<br />

nfio ^arinr pousa mentos , nem \)or mal , nc:n<br />

por bem? Tem francau.ente aconselliavas ,<br />

hem persuadias como se devia entregar ca<strong>da</strong><br />

um nas mãos de Deos resolulaniente , e desapega<br />

r-se de tu<strong>do</strong>. Ao que elle clioran<strong>do</strong><br />

respondia assim : Evos perguntais-mc pela<br />

resigmição, pois eu vos pergunto a vós,<br />

onde SC foi a misericórdia de Deos infinita ,<br />

V. sem liuíiie para com seus servos , eis (jue<br />

mo vejo em esta<strong>do</strong>, que me não falta mais<br />

que esperar, que o estremo de to<strong>do</strong>s os ma-<br />

les; e quanto a mim já sou bem morto ,<br />

como aci^nlece a quem está para ser ronde-<br />

Dira<strong>do</strong> ú morte, e tem já perdi<strong>do</strong> a sa*ude ,<br />

a fazen<strong>da</strong>, e a honra. 'Jinha eu a Deos por<br />

Benigníssimo, por clementíssimo, e mui leal<br />

paia com to<strong>do</strong>s aquelles,que se avtíiuuravuo


aSo <strong>Vi<strong>da</strong></strong>. <strong>do</strong> Ceato<br />

a iai.^or.


Fn. lÍEr-íniocE Scso. 281<br />

icm esgota<strong>do</strong> e sumi<strong>do</strong> por tal maneira,<br />

que não ha nieml)ro em to<strong>do</strong> este»rorpo, que<br />

não esteja perdi<strong>do</strong> e acaba<strong>do</strong> de <strong>do</strong>r, e mar-<br />

tyrios. Coiiío j)óde logo ser que viva resigna<strong>do</strong><br />

quem assim vive? Haven<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> o jMi-<br />

liislro acíueiles <strong>do</strong>ze dias com tanto trahallio<br />

como temos conta<strong>do</strong>, no cabo delles a lioras<br />

du meio dia, como estava mui enfraqueci<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> miolo, aquietou em fim , e assentoií-se.<br />

Então retira<strong>do</strong> , e esqueci<strong>do</strong> to<strong>do</strong> de si mesmo,<br />

virou-se para Deos, e larr^^an<strong>do</strong>-se com<br />

ver<strong>da</strong>deira resignação nas mãos de sch divino<br />

querer, dizia: Cumpra-se vossa vontade.<br />

Estanílo pois assim assenta<strong>do</strong> entro\i em uma<br />

extasi (la alma , e via nella awo. se lhe punha<br />

diante uma santa <strong>do</strong>nzeiia , <strong>da</strong>s que erão ti-<br />

iiias esjíirituaes suas, a qual quan<strong>do</strong> vivialhe<br />

profetizou quetinlia por padjcer muitos trabalhos,<br />

masque de to<strong>do</strong>s ohavia Deos de livrar,<br />

Consuiava-o a <strong>do</strong>nzeiia amorosamente,<br />

mas elle indigna<strong>do</strong> com ella tratava-a de íal»<br />

sa, e de mentiro5;a. A santa então sorrin<strong>do</strong>se<br />

chegon-se de mais perto, c <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe a<br />

mão: eisaqui, disse , vos empenho minha fé<br />

em nome de Deos to<strong>do</strong> po iLroso, e de sua<br />

que vos mão ha de desamparar,<br />

santa palavra ,<br />

antes com sua divina aju<strong>da</strong> , e por sua misericórdia<br />

haveis de sair bem dc.Ue di*sgosto, e de<br />

«[uaesqucr outros, que vus succedtírem. E ião


dcslramana , respondia o Ministro, a <strong>do</strong>r, e<br />

a agonia , cm que vivo, quejá agora , filha,<br />

níio posso acabsr comigo <strong>da</strong>r-vos credito, se<br />

me não ríostrarties um si^nal claro e ceilo,<br />

<strong>do</strong> que dizeis. Ao que clía , tcícís, difese, que<br />

o mesmo i)ers eu) pessoa vos desculpai a e<br />

dcíí.nderá com to<strong>da</strong> a gente virtuosa, que<br />

quanto aos mãos, como medem tu<strong>do</strong> por<br />

si, e por sua mal<strong>da</strong>de , liào tem para que lazer<br />

conia uelies o hon)em ,<br />

Deos e sisu<strong>do</strong>, e qiianto<br />

que é amigo <strong>do</strong><br />

a Orficm de S.<br />

Doviúugos que vós choiais havcnilo-a por<br />

afronta<strong>da</strong> neste caso, faço^vos srber que<br />

por vosso meio , e com vosso nome ha de<br />

ficar mais acceiía assim a Deos, como a to<strong>do</strong><br />

homem de entendimento, E para que enlen<strong>da</strong>is,<br />

que íalio ver<strong>da</strong>de, poder-vos-iia servir<br />

de sicjUal o que agora oirei : brevemeulc<br />

TOS vingará Deos justa e terrivelmente, soltan<strong>do</strong><br />

sua ira contra essa abominável íemea ,<br />

que vos foi autora deste mal, e matal-a-ha de<br />

morte suljitanea , e lo<strong>do</strong>s aqutUcs que parli-<br />

culnrmenle aju<strong>da</strong>i ão, dizen<strong>do</strong> e publiían<strong>do</strong><br />

males de vós, também acabarão brevemente.<br />

Com estas novas ficou o Ministro algum<br />

tanto suais alegre, (ui<strong>da</strong>n<strong>do</strong> de se ver ce<strong>do</strong><br />

em paz, o assim esta\a esperan<strong>do</strong>, que fim<br />

havia Dks de <strong>da</strong>r a esta tragedia. I^Ias não<br />

passarão muitos dias, que se vio tu<strong>do</strong> cum»


Fr. Kf."?rique <strong>Suso</strong>. 283<br />

prí<strong>do</strong> com effeito. Porque a mulher morreo<br />

siibltaciiente , castigan<strong>do</strong> Dt^os assim o peccatlo<br />

de sacrilégio, que coninietteo : e <strong>do</strong>s<br />

ouiros, que mais o tinhão persegui<strong>do</strong>, falle-<br />

cerfio tiuibem muitos a])revia<strong>da</strong>mente, parte<br />

com o juízo perdi<strong>do</strong>, o parte sem Sacramentos,<br />

Entre estes foi um Prela<strong>do</strong>, que o apertou<br />

l)ravamcnte , e depois de morto appare-<br />

ceo ao Ministro, e aífirmou-lhe , que pelo<br />

mal, que lhe fizera, lhe tirara Deos a digni<strong>da</strong>de<br />

e a vi<strong>da</strong> , e tinha para passar muito<br />

tempo gravi


a 84<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Cr-ATO<br />

depois um conipanlieiío seu <strong>da</strong>celia,que<br />

neste trabalho se lhe mostrou pouco amigo.<br />

E sen<strong>do</strong> morto, e acaba<strong>do</strong> um impedimento<br />

c]ue llie toUiia a visão beatifica, appareceo<br />

ao Ministro cuberto de roupas de luz, e<br />

ouro , e abraran<strong>do</strong>-o com amor chego» sua<br />

face á <strong>do</strong> Ministro , e pedio-lhe perdão <strong>da</strong>s<br />

offensas, que lhe fizera, com pacto que houvesse<br />

amizade perpetua entre ambns. Mostrou<br />

o Ministro, que folgava com isso, e o<br />

defunto tornou-o a abrarar amigamcnle, e<br />

logo desapparecco, ese foi ao Ceo. Ten<strong>do</strong> o<br />

Ministro prova<strong>do</strong> infini<strong>da</strong>de de marlyrios,<br />

em íim pareceo ao Senlior, qae erattnipo,<br />

foi divinamente ^iliyia<strong>do</strong> íie lo<strong>do</strong>s , e ficou<br />

gozan<strong>do</strong> de uma paz interior <strong>da</strong>lma, acompanha<strong>da</strong><br />

de uma quietação socegadu, e de<br />

graça cheia de luz. Então louvava a Deos<br />

por se ver fora , principalmente desta tribulação<br />

, e affiruiava , que nem pelo que vai<br />

o mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>, quizera deixar tio ter pasòa<strong>do</strong><br />

por ella , e por to<strong>da</strong>s as mais. Enião por<br />

celestial iiluminaçáo, conliecia claramente,<br />

que este seu abatimento o levantara mais<br />

alto , e lhe fora meio de maiores consolações,<br />

e o chegara mais a Deos, que to<strong>da</strong>s quantas<br />

adversi<strong>da</strong>des tinha cuu<strong>do</strong> uebd'a hora , t^iLg<br />

Dasccra. ulc então.


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>» i8I<br />

CAPITULO XLI.<br />

Tjn que o Santo Fr. íicniiqne conta <strong>do</strong>ns ca^<br />

SOS, que lhe passai cio pelas mã^sde tribu^<br />

laç í es in terio i 'es .<br />

J~l Gaban<strong>do</strong> a santa «lonzela delL-ra tribula*'<br />

cão de seu l\ui;e espiritual, que temos conta<strong>do</strong><br />

, solemnizou-u com asseis lagrimas de<br />

pie<strong>da</strong>de e compaixão de tao triste historia,<br />

e tornou-lhe a pedir , que lhe quizesse dizer<br />

alguma cousa <strong>do</strong>s trabalhos <strong>do</strong> espirito.<br />

Elle respondco, que 3Ó <strong>do</strong>us casos lhe contaria<br />

nesta matéria, E começou assiíii : Houve<br />

em certa <strong>ordem</strong> de Frades um mui conhecitlo<br />

por íama, que por divina permissão<br />

padecia uma cruz interior , a qual lhe <strong>da</strong>va<br />

tanta pena, e o trízia tão desanima<strong>do</strong>, que<br />

de dia e de noite não fazia outra cousa,<br />

senão accrescentar seu mal com lagrimas e<br />

pranto contíimo. Veio-se um dia ao Ministro<br />

<strong>da</strong> Eterna Sabe<strong>do</strong>ria, e deu-lhe conta de<br />

si, com grande devoção, pedin<strong>do</strong> lhe,<br />

que com suas orações lhe alcançasse remédio<br />

<strong>do</strong> Senlior. Estantlo o Ministro uma<br />

manhãa em oração porelic recolhi<strong>do</strong> dcnno<br />

em seu Oratoo-io , teve uma revelação , ciu


«S5 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Deato<br />

que lhe appareceo o dcint^nio em n^ijura de<br />

negro dé Guiné mui azivichntlo, os olhos<br />

cotrio brasas , o semblante mechuiho , e in-<br />

fernal , e com um arco nas màos. Disse-lhe<br />

o Ministn- : Eu te esconjuro por Deos vivo<br />

que me digas na ver<strong>da</strong>de quem és , e que<br />

queres aqui. Eu (disse o diabo, resp nlenílo<br />

bem como quem é) sou o espirito de blasfémia<br />

; e o que aqui quoro, vós n)esnm o csperimentareis.<br />

I)esviand(í-se o Ministro para<br />

se meter pela porta <strong>do</strong> Coro , via que no<br />

mesmo tempo punha nella os pés o Relio;ioso<br />

atribula<strong>do</strong> (íe que falíamos , para entrar no<br />

Coro a caníar a Tílissa , logo o malva<strong>do</strong> espirito<br />

arman<strong>do</strong> o arco tiiou um tiro de fogo<br />

ao coração <strong>do</strong> pobre Frade , com que caía<br />

por terra quasi de costas, e não podia chegar<br />

ao Coro. Escan<strong>da</strong>liza<strong>do</strong> o Ministro reprendia<br />

azo<strong>da</strong>menle odiabo. Oque toman<strong>do</strong><br />

mal a soberba infernal armava o aico para<br />

«... " .<br />

lhe fazer tiro com outra sella de fo";o. Mas o<br />

Ministro viran<strong>do</strong>-se com pressa para a Virgem<br />

dizia : Bemdiga-nos c'o iilho a gloriosa<br />

delRei Eterno mãi , e íilha e esposa. E o<br />

demónio perdi<strong>da</strong>s as forças desappareceo<br />

logo. (Jomo foi de dia Conlou o Ministro<br />

este successo ao Religioso, eensinou-lhe renudios<br />

certos e poderosos contra o inimigo<br />

; e são us uitíàmo3 que deixgu w^crilo»


Tr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>, 287<br />

cm r.m Sf rnião que começa : Lecíulus no--<br />

,<br />

sier JioriíÍLis , etc. Entre os muitos molesta<strong>do</strong>s<br />

de males <strong>do</strong> espirito que ca<strong>da</strong> dia se viuiião<br />

,<br />

sf)CcoiTer ao Ministro , chegoii-se uma "vez a<br />

elle um homem secular , natural d'oulra<br />

província , e disse-llie, que padecia um<br />

mal, qual nunca ninguém livera no mun<strong>do</strong>,<br />

cm que outren» niuguííni lhe podia <strong>da</strong>r conselíío<br />

e leinedio senão elle. iSrio ha muito<br />

(dizia o pobre hon>em) que quasi cheguei a<br />

esta<strong>do</strong> de desesperar , o com a força <strong>da</strong> dôr ,<br />

que Svínlla, desejava uiatar-me. Leva<strong>do</strong> desta<br />

juria fui para mo lançar no mar, e remetten»<br />

<strong>do</strong> para acabar de ser homici<strong>da</strong> de mim mesmo,<br />

ouvi uma voz sobre mim , (jue me dizia :<br />

Tem-te ; não te percas vilmente ; busca um<br />

rradcde S. Domingos (e logo lhe dizia o<br />

,<br />

o nome <strong>do</strong> Ministro, nome, que nunca<br />

d'anles ouvira) e elle te remcdeará, e ensina-<br />


l88 ViDi DO Bejlto<br />

CAPITULO XLir.<br />

Em que se clcclnrn quass S''ío as tribulações<br />

de inih proveito para o Christão ^ c d$<br />

mais floria para Deos,<br />

Dl'Epois (lo qne tomos coiiía<strong>do</strong>, fez a santa<br />

<strong>do</strong>nzelb as perguntas seíjr.intes a Fr. Hen»<br />

rique. Qulzera saber, meu Pacire, qiiaes são<br />

as cruzes , que mais servem a uma alma para<br />

se saWar, c de que maior louvor resulta ao<br />

Senhor. Muitos e mui vários são os trabalhos,<br />

respondeo o Sa:Uo que preparão ,<br />

, e<br />

armão um homem para a beniavenliirança ,<br />

e lhe seginão os caminhos para ella,se souber<br />

usar bem delles. Algumas vezes permiite<br />

Deos succederein-llie teniveis petseguições<br />

*eni culpa sua : aqui o intento de DeÔs d<br />

querer proval-o , e experimentar sua constância,<br />

ou mosirar-ilie para qr.anli> é, equo<br />

é , o que lem de si só , e de sua jiropria co»<br />

llieita : <strong>do</strong> que tenios mulfos exeuíplos na<br />

\"


Tr. Henriqui: <strong>Suso</strong>. nZg<br />

ç]a\la o merpceni bem . ronio ft)i o Ladrão ,<br />

que cnitificárao com Cliristo , a cjuíni o Se-<br />

nlior promettto o Ceo pela inteira e peiíeita<br />

conversão , com que se lhe reudco na<br />

Cruz. ÁlgMis padecem trabalhes sem os<br />

merecerem , se tratamos <strong>da</strong> caiisa, pQiqjse os<br />

dá Deos na vi<strong>da</strong> presente; e to<strong>da</strong>via liáo carecem<br />

de alguma culpa, pela qual pcrmilte<br />

o Senhor que lhes \enhão ; e isto faz mtnto<br />

ordinariamente para hiiniilhar sobcilas demasia<strong>da</strong>s,<br />

e tornar para si, e para o raminho<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de o homem tocailo delias ,<br />

e assim íèbaler e njortiCcar a ir.ch.aef.o de<br />

um espirito altivo: o que faz em coisa,<br />

onde por ventura o tal lu niem nfio meneia<br />

nenhum mal. Outros males lia, que Ders é<br />

servi<strong>do</strong>, que succedão a muitos ptlo an or,<br />

que lhes tem , para por n:cio desses os hirar<br />

d'oulros maiores, como acontece áquelles,<br />

que neste mun<strong>do</strong> tem seu puTfjatoiio, sei <strong>do</strong><br />

atribula<strong>do</strong>s com <strong>do</strong>enças, ctni pclirc/a , e<br />

com outros niales desta qualidiíde, paia evitarem<br />

castigo ujais rigoroso, que é qua


âC)o Viu A DO <strong>Beato</strong>-<br />

za<strong>do</strong>s em um amor urdentissimo. Tomljem<br />

ha no mun<strong>do</strong> uns trabalhos sem fruto, nem<br />

que são os em (lue vivem nqnel-<br />

consolação ,<br />

les , que, sem respeito <strong>da</strong> aíina, querem<br />

cumprir c'o Uíun<strong>do</strong> em cousas, que totí^lmente<br />

são miintlauas, e esíf:.s taes comprfio<br />

as penas <strong>do</strong> inferno o->ni muita áòv e tja-<br />

Lalho : cousa que devia ronsohir Uíiiito a<br />

gente virtuosa em suas afílieçóes. Também<br />

ha homens a quem Deos está sempre i)rj<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />

, e /^visan<strong>do</strong> , que de to<strong>do</strong> roraçáo se<br />

íionvertão, porque deseja coramunirar-se-<br />

Ihes , c <strong>da</strong>r-lhes muito de si; e to<strong>da</strong>via de<br />

descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s ou resistem , ou não acabão.<br />

Estes traz Deos assim aljumas ve7.es por<br />

meio <strong>da</strong>s adversi<strong>da</strong>des, ortl?i an<strong>do</strong> qneonde<br />

quer que potjm o rostro , ou se acolhem por<br />

lhe escapar, ahi mesmo não achem outra<br />

cousa se não infortúnios econtrariedides , e<br />

muitos dissabores de volta com os gostos <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> , e assim faz presa nelles, como se<br />

os tivera pelos cabellos, com tanta força ,<br />

que não iia íujfir de suas mãtís. Emhm<br />

achareis muita gento , que vive sem cruz ,<br />

se não é a que ella mesma se forja , ou negoceia<br />

prjr suas m.íos ,<br />

fazen<strong>do</strong> caso de cousas,<br />

que de si nao importão na<strong>da</strong>. O que já<br />

uma hora experimentou com certeza ura<br />

"^ <strong>da</strong> fortuna, Fassiiva este por uma


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. 291<br />

casa onde seiítio que se carnia uma mulher<br />

com lag limas c pranto jiet!cso. liiitrcu<br />

dentro pela consolar , e perguntari<strong>do</strong>-lhe a<br />

causa tle sua desconsolní fio , itsponc^eo, qi:e<br />

não podia achar uma ugulha qi:e perdera.<br />

Saío-se attonito , e foi discorren<strong>do</strong> assim<br />

comsigo : O' líjulhcr néscia j ó mull.er tonta ,<br />

eu te fico que se tontííias as cestas i:n) cos<br />

feixes , que cu trago , não prantearas | cr<br />

tfio fraca per<strong>da</strong>. Tacs sfio vv.s certcis niin.o-<br />

sos, que com quak|uer leve cansa íin


29a <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Bíât»<br />

os males que como máos merererr*05. Ist©,<br />

filha minha, deveis considerar, c riào façaesiifinca<br />

iiiáo rosto aos trabalhos, que por<br />

qualqiier via, que elles venháo, podem ser de<br />

proveito ao Chrislão, se os souber tomar e<br />

j econlieccr tia mâb de Deos , e referin<strong>do</strong>-os<br />

a eile passa<strong>da</strong>s valorosamente por seu amor.<br />

Aqui lez pausa Fr. <strong>Henrique</strong> , e Sor IsaleL<br />

couieçou assirií : A(|ueiia cruz, meu Padre,<br />

de q-ie ultir-.acienle tratastes, que é quan<strong>do</strong><br />

iim homem padece sem piecedereuL cul[^a3,<br />

é de pouca gente. E eu t.omáia saber p')rque<br />

melo pôde um homem , que é pecca<strong>do</strong>r,<br />

e sogeito a culpas e misérias, valer-se c\o<br />

auxiUo Divino para com elle facilitar, e vencer<br />

suas afiKcçóes. Porcjue este tal parece<br />

que vive entre <strong>do</strong>us tornífntos, ten<strong>do</strong> de<br />

uma par^tc o de ler offendi<strong>do</strong> a Deos , e <strong>da</strong><br />

outra o exterior, que o aíflige. iSisso também<br />

, respondeo o Santo , vos satisfarei logo.<br />

Eu conheci uma pessoa que se lhe acon te-<br />

,<br />

cla por fraqueza humana cair em pccca<strong>do</strong><br />

que merecesse casligo, tinha este costume:<br />

Como uma lavandeira, dextra em seu oííicio,<br />

lava<br />

depois a<br />

primeiro<br />

passa a<br />

a roupa com sabão , e<br />

outra agua , com que<br />

a deixa de to<strong>do</strong> limpa c alva , assim esta<br />

pessoa não descansava, até espiritualmente<br />

ciie^^ar áquella fonte e corrente cau<strong>da</strong>l <strong>da</strong>


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. «93<br />

precioso sangue de Ghristo derrama<strong>do</strong> com<br />

inefável cari<strong>da</strong>de para consolação e soccorro<br />

de to<strong>do</strong>s os nccca<strong>do</strong>rcs, fonte que nasce de<br />

suas sagra<strong>da</strong>s Chagas. AWi naquelie sangue,<br />

que ferve eni amor <strong>do</strong>s homens, se banhava,<br />

e somia com to<strong>da</strong>s suas cul{)as , que são as<br />

Tio<strong>do</strong>as <strong>da</strong> ahna. Alli naquelie rio de ver<strong>da</strong>-<br />

deira salvarão se lavava e purificava to<strong>da</strong> ,<br />

como se faz a um menino metli<strong>do</strong> em banho<br />

quente. íslo fazia com grande fervor, e devaçào<br />

<strong>da</strong> alma , junta n uma fé firme, e dcseiigana<strong>da</strong>,<br />

que aqncUe divino sangue com<br />

sua virtude e merecimento infinito a havia<br />

de deixar iin)pa e sãa de to<strong>da</strong> a culpa. Este<br />

termo pois usava sempre diante de Deos<br />

quan<strong>do</strong> se via cm .lígum traljalho , quer o<br />

tivesse mereci<strong>do</strong>, quer lhe viesse sem causa.<br />

C A P 1 T U L O XLIIÍ.<br />

Fm qut^ j trata iiorque maneira apartou o<br />

<strong>Beato</strong> Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>da</strong> affdcj.o <strong>da</strong>s comas<br />

transitarias alí^uns homens engo!fa<strong>do</strong>!i no<br />

mun<strong>do</strong> f e os injlamniou em amor Divino»<br />

1^0 tempo, que Fr. <strong>Henrique</strong> de propósito<br />

se empregava em converter aimas a<br />

Deos, e desapegaUas <strong>do</strong>s go^ios e vai<strong>da</strong>des


504<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

cio mun<strong>do</strong> , advertio cjue em alguns ?.Iosteiros<br />

bavia gente , que com habito e profissão<br />

monástica cobria coração e pensamentos<br />

mun<strong>da</strong>nos. Em particular soube<br />

que em certo Convento havia nina Freira ,<br />

que an<strong>da</strong>va mui entregue a uma affeicão,<br />

para em siniilhantes parles , não licita, que<br />

tinha, e mu<strong>da</strong>va devotos, ou por nifeluoriJizer<br />

servi<strong>do</strong>res , que é a peçonha e deslruição<br />

de to<strong>da</strong> a Reli^nao. Avisava-a o Santo, qne<br />

se queria viver vi<strong>da</strong> dt'scansa<strong>da</strong> e quieta, e<br />

segdira vi<strong>da</strong> espiritual, que proíessáro, desse<br />

de mão a's conversações , e em lugar <strong>do</strong>s<br />

amigos ociosos , tomasse por amiga a Sa-<br />

be<strong>do</strong>ria Eterna. Não se lhe pot-ia ia liar cm<br />

porque era<br />

cousa que mais a desagra<strong>da</strong>sse ;<br />

moca e formosa , e eslava já enre<strong>da</strong><strong>da</strong> neste<br />

Inço <strong>do</strong> diabo mal entendi<strong>do</strong> , e mui trava<strong>da</strong><br />

na amizade. To<strong>da</strong>via cb.egou a termos, que<br />

lhe rendeu a vontade a estar prompla e<br />

disposta para tomar seus conselhos. /.Ias occupan<strong>do</strong>-sc<br />

outros em lha perverter, foi fá-<br />

cil de mu<strong>da</strong>r. O que visto pelo Santo, disse-<br />

lhe : Filha minha, deixai est^ mo<strong>do</strong> de vi<strong>da</strong> ,<br />

olhai, que vos amoesio e profetizo , que se<br />

o não fazeis por vontade, o vireis a fazer<br />

por força, e mal que vos pez. Vio elh; que<br />

fíizia ju)uco caso de sua sãa e ver<strong>da</strong>deira<br />

Doutrina: fez oração ao Senhor, que [>or


Fr. <strong>Henrique</strong> Srso. 29^<br />

bem , on por mal fosse serviclo tirnl-a claqnelle<br />

esta<strong>do</strong>: e íoi-sc um dia ao Presbyterio <strong>da</strong><br />

Igreja , com. o costumava, e alli debruça<strong>do</strong><br />

aos pés de um Crr*ci6r.o , descobertas as<br />

costas , discipíinou-se cruelmente e de maneira<br />

, que tu<strong>do</strong> se baiihava em saiigiíe , e<br />

pedia a Deos que amancusse aquelle duro<br />

espirito. Em fim ouvio o Senlior sua oração.<br />

Porque recolhen<strong>do</strong>-se ella um dia para<br />

casa 5<br />

começou-se-ihe a criar nas costas uma<br />

feia alrorcova , com que íicou torpe e disforme.<br />

E assim constranrrl<strong>da</strong> <strong>do</strong> mal, veio a<br />

la ro^ar por força, o q-.ie não quiz por bem,<br />

nem por amor de Deos. Tveste mesmo ]\Iosteiro,<br />

que nao era <strong>do</strong>s que professaTflo clausura,<br />

ha\ia outra <strong>do</strong>nzeila moça ua i<strong>da</strong>de, e<br />

nobre no sangue , a qual cain<strong>do</strong> taml.ein na<br />

rê-i^í deste mesmo dernonio , tinha perdi<strong>do</strong><br />

o tempo, e devasra<strong>do</strong> a honra utuitos annos<br />

, (om to<strong>da</strong> sorte de homens, e t!e maneira<br />

an<strong>da</strong>va cega , que fogia <strong>do</strong> Sanro,<br />

como a lebre <strong>do</strong>s «^alç^os > líoroue receava<br />

que havia de procurar por lhe fízer mu<strong>da</strong>r ;i<br />

vi<strong>da</strong>. Tinlia esta <strong>do</strong>nzeila uma iruiãa , a qual<br />

pedio a Fr. <strong>Henrique</strong> quizesse provar a Uião<br />

com ella , a ver se por alguma via a podia<br />

arrancai- de tão <strong>da</strong>uuioso esta<strong>do</strong>, e tornal-a<br />

para Deos. M.ís elle julgan<strong>do</strong>-o por quasi<br />

impossível, afíiraiuva-lhe , que Unha por


soG <strong>Vi<strong>da</strong></strong> no Ceato<br />

iT)ais íacll abnlxar-se o Ceo , que tlohrar-se<br />

€Íla a <strong>do</strong>ixar seus costumes , de rjue só a<br />

morte a poderia já retirar. Apertava «o com<br />

muita instancia a irmãa , dizen<strong>do</strong>, que linha<br />

nelle tanta fé que entendia não lhe havia<br />

,<br />

Deos de negar cousa, que <strong>do</strong> veras lhe pedis*<br />

se. Venci<strong>do</strong> o Santo destas palavras obrigou-<br />

S3 a fazer de sua parte o que podesse. Mas<br />

con^o a <strong>do</strong>nzelia de contínuo se desviasse<br />

delle, e assim não podes:e lia ver uma kora<br />

para lhe fallar , em fim soube um dia, que<br />

era perto <strong>da</strong> festa de Santa Margari<strong>da</strong> Virgem<br />

, que era fora <strong>do</strong> rilosteiro em companhia<br />

de to<strong>da</strong> a Gomniuni iade, que saíra a<br />

curar linho ao campo. Foi-se Í'>go dissirnula<strong>da</strong>niente<br />

traz eilas <strong>da</strong>n<strong>do</strong> rodi'ios por chegar<br />

a cUa em tempo, e comiiiunicaráo acommo<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

Mas tanto que a pobre mulher o<br />

,<br />

sentio virou -lhe as costas com descortezia ,<br />

saltan<strong>do</strong>-lhe fof^o pelo rostro de líravcza, e<br />

com bra<strong>do</strong>s desentoa<strong>do</strong>s fallava-lhe desta<br />

maneira: Que me quereis Senhor? para<br />

(fue me buscaesP ide en)])ora vosso caminho,<br />

que comigo não acabareis na<strong>da</strong> que<br />

j<br />

antes tomarei que me cortem a cabeça que<br />

,<br />

confessar-me comvosco, e primeiro sofrerei<br />

cnterrarem-me viva que deixar ,<br />

amizades por vosso respeito. A isto<br />

minhns<br />

acudlo<br />

uma companheira j que lhe ficava perlo , o


. pirava<br />

Fr. <strong>Henrique</strong> Sl'soí 297<br />

estranhou-lhe o que fazia , lembran<strong>do</strong>-llie ,<br />

que o que Santo pertendia eia j3or seu<br />

Lcm , e para sua salvação. JMas ella aljanan<strong>do</strong><br />

a cabeça íuriosaniente dizia: Nfio o hei<br />

de enganar, antes em quanto íizer e disser<br />

quero , que veja e conheça minha delermi*<br />

liarão. Espanta<strong>do</strong> o Santo <strong>do</strong> despejo coni<br />

que íallava , e <strong>da</strong> descomposição <strong>do</strong>s meueios<br />

que fazia, ficou tão atalha<strong>do</strong>, que não<br />

podia faliar palavra. To<strong>da</strong>s as Freiras, que<br />

eião presentes, loniárão mal o atrevimento<br />

<strong>da</strong> companheira , e to<strong>da</strong>s ilie bra<strong>da</strong>vão , que<br />

fazia mal que se reportasse. Afasloii-se o<br />

,<br />

Santo então , e pon<strong>do</strong> os olhos no Ceo sus<strong>do</strong><br />

fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> peito, e queria de to<strong>do</strong><br />

largar<br />

«'alma<br />

a enipreza , se níio fOjia que dentro<br />

lh'o contradizia Deos com esta leiuliranca<br />

que quem tem requerimento com<br />

,<br />

Deos e com o mun<strong>do</strong> , e quer acabar alguma<br />

cousa não ha de parar logo , nem euía<strong>da</strong>r-sc<br />

de iuiportunar e trabalhar. F.ra<br />

depois <strong>do</strong> meio dia quan<strong>do</strong> isto aconteceo.<br />

Jantaião as Freiras , e viu<strong>do</strong> a tarde, que<br />

havião de ir a uma horta para cuncluirem<br />

c'o linho, rogou a uma <strong>da</strong>s ami;;as <strong>da</strong> Freira,<br />

que quan<strong>do</strong> passassem por um hospital ,<br />

onde elle estaria , que era caminho para a<br />

líorta , poV arte lha levasse lá , e se saísse<br />

para fora. Fcz-se assim, aiu<strong>da</strong> que com Ira-


âpS <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> BriTe<br />

Lalho. Tanto que entrou , e o Santo a tío<br />

assenta<strong>da</strong> a seus pés naquelle lugar publico,<br />

em que estava, começou sua pratica <strong>do</strong> coração,<br />

que lhe arrebentava ern conceitos,<br />

acompanhan<strong>do</strong>-a coru profun<strong>do</strong>s suspiros , e<br />

dizen<strong>do</strong> desta maneiía : Eia formosissima<br />

<strong>do</strong>nzella, <strong>do</strong>nzella escollii<strong>da</strong> deDeos, até<br />

quan<strong>do</strong> haveis de trazer em poder <strong>do</strong> diabo<br />

a belleza desse rcstro , e de vossa alma?<br />

Olhai que \os fez Deos amável , e bem pareci<strong>da</strong><br />

em to<strong>da</strong>s as cousas, só para terdes por<br />

menoscabo de vossa pessoa, sen<strong>do</strong> mulher de<br />

tão boas partes , e tão nobre, renderdes^vos<br />

a nenhum outro amor senão ao de vosso<br />

Deos, que é o melhor amigo de quantos ha<br />

na lerra. A quem, dizei, se devem com<br />

mais razfTo oííerecer as rosas desse rosto,<br />

que agora estão em sua primavera, que<br />

áquclíe, cujas ellas siío na ver<strong>da</strong>de? Abri ,<br />

rogo-vos, iUustre e formosa <strong>do</strong>nzella, esses<br />

claros olhos <strong>da</strong> alma, e lem])rai-vos sobre<br />

tu<strong>do</strong> <strong>da</strong>cjueila Divina amizade, que começa<br />

aqui, e dura pata senípie. Olh.ii a que desaventuras,<br />

a que enganos se arriscão, a que<br />

tormentos, e cruzes se offerecem que<br />

,<br />

<strong>da</strong>mnos é forca<strong>do</strong>, que padeçuo no corpo e<br />

r»a fazen<strong>da</strong>, n'ahi)a , e na fama , e mal que<br />

lhes pez to<strong>da</strong>s aquelias que andiTo'embcbiua5<br />

restas <strong>da</strong>mnosas ar.íizades, <strong>da</strong>s qaaes vos


Fpl. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>, 299<br />

afíirmo , que ain<strong>da</strong> que a peçonha, ou feitiço<br />

í'iini íalso gosto traz tontos e aliena<strong>do</strong>s os<br />

jinzos de niautira, que llies fez perder o respeito<br />

ea nieoioria de tantos, e tamanhos<br />

ínc(>nvenienies, com tu<strong>do</strong> elles abrangem<br />

nesta vi<strong>da</strong> e na outra. Ora pois, tilha minha ,<br />

nriais bíjlla e i.-iais merece<strong>do</strong>ra de ser ama<strong>da</strong><br />

de to<strong>da</strong>s quantas o ííÍio , passai io<strong>do</strong> o bor»<br />

natural , que em vós ha , naquellc Senhor ,<br />

que desde to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de é o mais nobre<br />

, e mais excellente siíjeito que ha, nem<br />

pôde liaver. E acabai já com estas sandices ,<br />

que eu vos <strong>do</strong>u minha l'é , eme ol)rigo , que<br />

elie vos acceite por amiga , e vos manteíiha<br />

ver<strong>da</strong>deira fe e amizade neste mun<strong>do</strong> , e no<br />

outro. Era bem escansa<strong>da</strong> aquella hora.<br />

lào-na entran<strong>do</strong> estas palavras , e abran<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />

aquelie peito fero de maneira, que,<br />

levantan<strong>do</strong> logo os olhos ao Ceo, suspirava<br />

com entrnnhavel dòr: e tratan<strong>do</strong> com o<br />

Santo coiiíiad;nnente , e com resoluçfio varonil<br />

dizia desta maneira: Padre, e senhor<br />

meu , não haja mais (hlação : eisme aqui<br />

rendi<strong>da</strong>, e seja logo hoje, á disposição de<br />

Deos , e vossa : aparellia<strong>da</strong> estou a deixar de<br />

toch) ponto ,<br />

concerta<strong>da</strong> e vãa ; e com vosso conselho c<br />

aju<strong>da</strong> entiegar-me to<strong>da</strong> a Deos, e a elle só<br />

servir dchojeeradianlc até luorte, Nenhuma<br />

e nesta mesma hora a \i<strong>da</strong> des»


3oo <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

nova , disse o Santo , se me podia a^ora <strong>da</strong>í<br />

de maior gosto. Bcnidito e louva<strong>do</strong> seja o<br />

Senhor, que a to<strong>do</strong>s, os que a elle se tornão,<br />

recebe alegremente. Estan<strong>do</strong> as^im<br />

ambos fallan<strong>do</strong> ác Deos, as amigas <strong>da</strong> <strong>do</strong>n-<br />

zella , e companheiras de suas Icviant^ades ,<br />

estavao á porta <strong>da</strong> ban<strong>da</strong> de fora : e enfa<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

de pratica tão compri<strong>da</strong> , coruo receavão<br />

, que o Santo a apartasse <strong>da</strong> soltura de<br />

sua conversação, começarâo-llie a bra<strong>da</strong>r<br />

que acabasse. Levantou-se a <strong>do</strong>nzella, foi -se<br />

com ellas, e disse-lhes : Amigas e companheiras<br />

minhas, ficai-vos embora de hoje<br />

paia to<strong>do</strong> sciupre : eu me hei por despedi<strong>da</strong><br />

de vós , e de to<strong>da</strong>s as de nossa companhia,<br />

como de gente, com quem gastei meu tempo<br />

mal , e como não devia, de que to<strong>da</strong> a<br />

vi<strong>da</strong> terei ma^joa. Já a^ora a um só Deos<br />

to<strong>do</strong> poderoso me offereco e entresjo ; e<br />

to<strong>do</strong> o mais en:íeito e lar-jo. Hesta maneira<br />

começou a evitar to<strong>da</strong> a amizade peri.^osa , e<br />

viver recolhi<strong>da</strong>mcnle. E ain<strong>da</strong> que não faltou<br />

depois quem a tentou, e trabalhou pela<br />

tornar aos costumes passailos, não se acal)ou<br />

na<strong>da</strong> com ella. Antes se havia de maneira,<br />

cjue acompanhan<strong>do</strong> uma estrema<strong>da</strong><br />

honesti<strong>da</strong>de com to<strong>da</strong> s;>rte de virtudes perseverou<br />

até o fir.i <strong>da</strong> viila, firme, e conslanleincnte<br />

uo seivico de Deos. Açonieceo de-


FRiTÍENRiQnr. Sfso. 3oi<br />

}OÍs , que sain<strong>do</strong> o Santo um clia <strong>do</strong> Mostei-<br />

ro , en] que morava, para a ir visitar o<br />

mimar no caminho <strong>da</strong> Ylrtiule , e consolai-*<br />

de -certos trabalhos, que padecia , como r.n<strong>da</strong>v;<br />

neste tempo indisposto , e o caminho<br />

era eh muitos lo<strong>do</strong>s, e parte delle por serras<br />

altas, I!<br />

fragosas, ia mtii afadiga<strong>do</strong>. No m(>'o<br />

desta ahonta levantan<strong>do</strong> os oUk^s a Deos dizia<br />

a ir.iude: Senhor Deos Misericordinso<br />

e obra<strong>do</strong>? de misericórdias, ' lembro •\ os<br />

aqnelles cinsa<strong>do</strong>s' passos, qne neste mun<strong>do</strong><br />

com muit;o ^.rahalho destes por nos salvar; c<br />

V pero-vos qn° me guardeis minha filha. Traz<br />

isto encostavi«-se em sen conipanhe iro ; o<br />

qual cheio de lastima de o ver assim disse-<br />

Ihc: De verd.ide enten<strong>do</strong> que compele a<br />

Peos , segun<strong>do</strong> sua bon<strong>da</strong>de, sah;:r*mnitas<br />

abnas por vosso meio. In<strong>do</strong> mais. adiante, e<br />

r. Santo tão desfalleci<strong>do</strong> , (pie já não podia<br />

<strong>da</strong>r um passo: P.>r certi) , l\a(he, tornou a<br />

dÍ2(ír o companheiro , q-ie bem com ra^zão<br />

pudera Deos agora olhar para vossa fraone-<br />

7a , e com seu poder dcparar-nos aqui uma<br />

cavalgaíhira , e!n (|ue fôreis um pouc(j até<br />

chegarmos a povoa<strong>do</strong> Sc ambos jtini(..s, responufo<br />

o Santo, p{jdirju(js isso a Deíís, bem<br />

ronfio nelle , (pie pelo mercclmcnio ue vos-a<br />

virtude nos íará mercc. t estcTiden<strong>do</strong> ns<br />

olhos vio sair <strong>do</strong> mato um bem íeito c.ivallo


5ai <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Beit(^<br />

muito manso, e quieto, sellaclo, e enfrea<strong>do</strong>,<br />

e sem <strong>do</strong>no. Entúo o companheiro levantan<strong>do</strong><br />

a voz com alegria disòc : Oihai , Padie<br />

thaiissimo, con^u 5e parece que não está /s-<br />

fjueci<strong>do</strong> Deos de vós. Toriiou-lhe o San^o :<br />

Alegrai, filho, os olhos por to<strong>da</strong> essa t^rra,<br />

que se descobre, e vede se porventura rarece<br />

alguém , cujo possa ser estecavallo. Ohan<strong>do</strong><br />

oFradc a unia e ouíra parte não vio jingueni<br />

mais, que o cavallo , que mansaiiente se<br />

vinha chegan<strong>do</strong> para elles. E di.


Tr. Hr.xPx qce Sus«. 3o3<br />

ra<strong>do</strong> o Santo ao l:'gar, para onde ia , estava<br />

^in (lia á taide senta<strong>do</strong> com suas £lbas es-<br />

pi-ituíies, e pré;j;ava-lbes <strong>do</strong> amor Divino, c<br />

trJ)alliava por lhes fazer odioso o <strong>da</strong>s consa»<br />

t^íi'sitorias. No cabo, despedi<strong>da</strong>s aslVeiras,<br />

ficoí com a elfiracia <strong>da</strong> ]^rati( a abrasa<strong>do</strong> to<strong>do</strong><br />

em fo^o cie Ui\ina cari<strong>da</strong>de; *e estava iniag)nana><br />

qne só o seu ama<strong>do</strong> , em c^uem elle<br />

^<br />

tinha o. olhos , e o corarão , e a quem pregava<br />

e persuadia a to<strong>do</strong>s que amassem , le-<br />

,<br />

vava infiriía vantagem a to<strong>do</strong>s 03 amigos <strong>do</strong><br />

muu<strong>do</strong>. Nista <strong>do</strong>ce meditarão foi arrchalacío<br />

eín espirito e pareciadhe que o mettlão em<br />

um pra<strong>do</strong> frtsquissimo , onde o acompanhava<br />

, e trazia pela mào um gcritil mancelio<br />

cortesão <strong>do</strong> Cto, o qual llio começou a can-<br />

tar tão siiavernerte, qoc peiíetian<strong>do</strong>-lhe n'al-<br />

perdia com a força <strong>da</strong><br />

ma a melodia <strong>da</strong> voz ,<br />

deleitação to<strong>da</strong> a operação e uso <strong>do</strong>s siiiti<strong>do</strong>s<br />

j e parccia-llie que o coração dentro em<br />

sen peito se lhe enchia de um desejo , e 5audiule<br />

de Deos ardunlii-slma de xnaTicira , ({iie<br />

batia e saltava , como cjne se qneria fazer<br />

pe<strong>da</strong>ços com o excesso <strong>da</strong> força que sentia.<br />

,<br />

K para se valer, foi necessário acudir com<br />

a mão direita, e pòr-llu em cima. T^las entio<br />

tanto or^u) tantas as lagrimas, rine seus oi!:os<br />

eslilla\rt() , qneem fio lhe desdão pelo rostio<br />

abaixo. Acaba<strong>da</strong> a musica , rcpresentcií-se-


^oi <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

lhe uma figura ,<br />

para poder apprender o que^<br />

ouvira cantar com tal firmeza, que nunf»<br />

íiiais lhe esquecesse. Via a Virgem gloiio*<br />

sissiina, nossa Senhora ,<br />

que tinha no coiloo<br />

Menino J£SU, Sabe<strong>do</strong>ria F.terna , apert;^^»<br />

com o sagra<strong>do</strong> peito , e sobre a cabeça <strong>do</strong><br />

Menino estavS escrito o principio <strong>da</strong> ca^çáo,<br />

que ouvira , com letras formosissimas; mas<br />

o mo<strong>do</strong>, por que estava escrito, era t^ subtil<br />

e escuro , que o nào' podião l»í^ senão<br />

aqtielies , que o tinhão estu<strong>da</strong><strong>do</strong> ^ alcança<strong>do</strong><br />

por experiência de trabalhe^ e penitencias.<br />

A linguagem era de Alhmanha. O<br />

que iKi Portngueza podia sigíiiícar, dizia:<br />

Amigo fidelíssimo, como que íÓ elle seja o<br />

í^ue na ver<strong>da</strong>de é gosto vei<strong>da</strong>leiro d'alnia ,<br />

e amigo singchssiíuo. O Santo leo logo tu<strong>do</strong> :<br />

e entre taulo o .^lenino JIlSI tinha amorosamente<br />

os olhos nelle : <strong>do</strong>nde lhe nascia<br />

quasicoHi cerie/.a experiiut^ntar como só este<br />

suavissliuo Serdior é na ver<strong>da</strong>de amigo<br />

<strong>da</strong> alma , em cuja companliia nem gostos a<br />

descompõe, nem adversi<strong>da</strong>des a soçobrão.<br />

E assim o meltia to<strong>do</strong> nella; e Ioêjo com o<br />

mancebo começou a entoar a canção, e ami<strong>do</strong>s<br />

a levarão té o ca!)o. Estan<strong>do</strong>-se assim<br />

a 'ora '.avidj n>) fogo destes amores, cessou o<br />

tíítasi , tornou em seu accor<strong>do</strong> , e achou-so<br />

ca.n a mfio direita posu ^obr^ u cpra^^o d»


Yr, <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. 3o5<br />

fnesnia maneira, que a assentou , qnan<strong>do</strong> llie<br />

quiz acudir com ella<br />

que batia.<br />

na grande força com<br />

CAPITULO XLIV.<br />

Como por merecimentos <strong>do</strong> Santo lhe accres'^<br />

centoiL Deos o vinho , estan<strong>do</strong> assenta<strong>do</strong> á<br />

mesa com muitos companheiros.<br />

\J^M dia, caininli?.n<strong>do</strong>o Santo por terra estiaiilia<br />

, chegou tarde, e quel)ranta(lo <strong>da</strong> lon-<br />

ga jorna<strong>da</strong>, a um inclusorium , onde fizera<br />

co?)ta de vir <strong>do</strong>rmir aquella noite. Succetlco<br />

não se achar vinho iio lugar, nem cm uma<br />

aldeã, que era visinlia; só uma honra<strong>da</strong> <strong>do</strong>nzeUa<br />

, (|ue era presente, disse , que em sua<br />

casa havia um pequeno jarro de viid^o. Mas<br />

para entre tantos , dizia ella , que cousa é<br />

iini jarri)? E dizia iNto porque , poucos mais<br />

ou menos, estavào alli jnul«vs vinte liomens<br />

devotos, a fora outros, (pie acudíiào á f;»uia<br />

<strong>do</strong> Santo, desejan<strong>do</strong> ouvil-o pregar, l\Ian<strong>do</strong>u-lhe<br />

trazer o jarro, e poí-o na mesa.<br />

Posto o jarro , rogavão-lhe lo<strong>do</strong>s (pie o benzesse.<br />

Fel-o o Santo em virtude <strong>do</strong> nome<br />

Sautissimo de JIlSP , e bcd)co priu)eiro (jiie<br />

to<strong>do</strong>s , porque vinha arden<strong>do</strong> em sèdc


3o6 Ti<strong>da</strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

caminho. Logo o deu aos outros, que todõS<br />

foráo beben<strong>do</strong>. Punha-se o jarro na niczn á<br />

vista de to<strong>do</strong>s, e sem se lhe lançar omm .<br />

nem vinho, que o não havia , como temos<br />

dito, tornava a an<strong>da</strong>r a ro<strong>da</strong> e bebia»» lo<strong>do</strong>s<br />

uma vez , e outra, f^las como eslaváo com<br />

grande devação de ouvir a palavra de Deos ,<br />

ninguém attentava iio nalagre <strong>do</strong> Ceo. No<br />

cabo quan<strong>do</strong> entrarão cm acor<strong>do</strong> , e caíiáo<br />

na conta <strong>da</strong> mardvilha , que o noder Di\if:o<br />

obrou no crescimento d«i vinho, lou\;i\áo a<br />

Deos, e queriâo attribuir o milagre á -virtude<br />

e merecimenios de Fi*. <strong>Henrique</strong>; o<br />

que não consentin<strong>do</strong> por nenlium caso; não<br />

ha, fdhosmens, dizia, poia que me deis por<br />

autor disso. Quiz o Poderoso Deos lembrarse<br />

desta virtuosa companhia de gente, que<br />

aqui concorrer», e (*m galardfio de sua íe re-<br />

frescal-os com bebi<strong>da</strong> corporal e espiritual.<br />

CAPÍTULO XLV.<br />

Do que aconteceo ao <strong>Beato</strong> Fr. <strong>Henrique</strong><br />

com algumas pessoas , qua com clU tiverào<br />

particular amizade,<br />

XJ-Avia em uma Ci<strong>da</strong>de duas pessoa*? de<br />

muita virtude, q^ue tinháo íamiliari<strong>da</strong>de c'o


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>, 3qj<br />

Santo. As quaes, se;^iiin<strong>do</strong> ambas o mesmo<br />

caminho <strong>do</strong> espirilo, levava Deos por mui<br />

difíerente termo , uma ria outra. Uíiia era<br />

conheci<strong>da</strong> e estima<strong>da</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e vivia<br />

em grandes mimos e favores <strong>do</strong> Ceo. A outra<br />

ninguém lhe sabia o nome, e trazia-a<br />

Deos penitencia<strong>da</strong> com tribulações conlinuas.<br />

Sen<strong>do</strong> ambas mortas , desejava o Santo<br />

saber que íbtferença tinhão de premio no<br />

,<br />

outro mun<strong>do</strong> pois neste fora tamanha a de<br />

,<br />

suas vi<strong>da</strong>s. Um dia ao rompei- <strong>da</strong> manliãa<br />

appareceo llie a de fiima, e contou-lhe como<br />

in<strong>da</strong> então estava deti<strong>da</strong> , e penan<strong>do</strong> no<br />

Purgatório. Pergtíntan<strong>do</strong>-lhe admira<strong>do</strong> , como<br />

podia ser tal ? respondeo qne por ne-<br />

,<br />

nhuma outra culjia pagava , senão porque<br />

<strong>da</strong>quclla estima, que via íaze»' de sua virtude,<br />

llie sobião á alma uns fumos de soberba<br />

de espiriíf) , a que não resistira com a<br />

destreza que rouviuha; e com tu<strong>do</strong> tinha por<br />

,<br />

certo haver de sair ce<strong>do</strong> <strong>da</strong>quelle trabalho,<br />

A outra que vivia despieza<strong>da</strong> e abati<strong>da</strong> no<br />

,<br />

mun<strong>do</strong>, voou sem «letefica [)ara I)cm)s. Tam-<br />

bém a mái de Fr. Hcuiicjue, em quanto vi-<br />

padeceo gravissimos tormentos<br />

veu na teira ,<br />

causa<strong>do</strong>s <strong>da</strong> differeuca de vi<strong>da</strong> , que tila e<br />

seu mari<strong>do</strong> faziao :<br />

desejava conformar a vi<strong>da</strong> de to<strong>do</strong> ponto<br />

€om ãua santa Lei : elie, tu<strong>do</strong> <strong>da</strong><strong>do</strong> ao luun-<br />

ella, to<strong>da</strong> cheia de Deos,


3o8 Ti<strong>da</strong> <strong>do</strong> Br a to<br />

iln , encontrava-a terrivelmente. Daqui nas»<br />

cião to<strong>do</strong>s os de>igostos. Tinha por co.sti:me<br />

esta honra<strong>da</strong> <strong>do</strong>na, quan<strong>do</strong> se via rercadii de<br />

trabalhos, afogal-os to<strong>do</strong>s, e suinil-os no<br />

^oUo <strong>da</strong> paixão de Christo ; e desta maneira<br />

ficava CQjii victoria delles. Antes que morres-<br />

se , contou ao Sanlo Fr. <strong>Henrique</strong> seu filho,<br />

que por espnço de trinta annos, nunra se<br />

achara no Santo sacrifício <strong>da</strong> Missa, que não<br />

chorasse agramente de pie<strong>da</strong>de e compaixfo<br />

<strong>do</strong>s tormentos de Christo , e de sua magoadissima<br />

niãi. Disse níais, que lhe acontccêia<br />

algumas vezes cliegara a<strong>do</strong>ecer de puroam.or<br />

de Deos (sem haver outra cau^a , tão exces-<br />

sivo Q sem medidp era o que lhe tinha) e<br />

que <strong>do</strong>ze semanas estivera em cama sem<br />

outro mal mais, que sau<strong>da</strong>des de Deos tão<br />

rivas e acesas, (p.io até os Médicos lhas ei.tendião<br />

e se edificavão assas. íío derradeiro<br />

anno de sua vi<strong>da</strong>, entran<strong>do</strong> a Quaresma, foiseum<br />

dia a uma Igreja , onde iiavia um rctaholo,<br />

em que estava figura<strong>do</strong> de relevo o<br />

descendimenlo <strong>da</strong> Cruz AlH lhe foi communica<strong>da</strong><br />

á vista <strong>da</strong>quellas figuras alguma parte<br />

<strong>da</strong> intcnsissima <strong>do</strong>r, que a Sagra<strong>da</strong> Virgem<br />

que tam-<br />

senlio ao pé <strong>da</strong> Cruz p;»r maneira ,<br />

))em a sentia , e jadecia; e foi tamanho o<br />

ímpeto <strong>da</strong>s <strong>do</strong>res, que dtsta lhe recrescerão<br />

de pura compaixão e pie<strong>da</strong>de , que o cora-


Fr. lÍENRiorE Srso. 3og<br />

çrTo quasi Ibe estalava no peiio porinaneira,<br />

qire de a desampararem as forças naluraes ,<br />

caio por terra desmaia<strong>da</strong> . e ficou sem lalla,<br />

e sem vista , e sem <strong>da</strong>r le de na<strong>da</strong>. ISesle esta<strong>do</strong><br />

a levarão para casa , e nelia esteve sem<br />

se lev.mtar <strong>da</strong> cama , nem fallar palavra, até<br />

a sesta feira <strong>da</strong> Semana Santa. No qual dia ,<br />

ao tempo que se cantava pelas Igrejas a Paixão<br />

a horas de Noa, espiíou. Estava então o<br />

Santo Fr. <strong>Henrique</strong> , seu (idio, em Colónia<br />

estu<strong>da</strong>n<strong>do</strong>. Apparereo-llie a ])emav(íntura<strong>da</strong><br />

inãi em revelação , e cheia de estranha alegria<br />

disse-lhe: Ro.go-te, fdho, que ames sempre<br />

a Deos, e tem por certo , que nunca te<br />

desaníparará em nenhum trahalho , cjue te<br />

venha, Vês-nie aqui, já vou fora <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

e não sou morta, antes agora \ivirei elC!namenle<br />

com Deos. Então heijan<strong>do</strong> o filho<br />

amo/^osamente na face, e lancan<strong>do</strong>-lhe a<br />

benção de coração, desappareceo. Elle dcrrella-sc<br />

em la::;iimas, e hia<strong>da</strong>n<strong>do</strong> apoz d\dla<br />

dizia: O' santa, e anrh issima niãi miidia,<br />

sede-me hoa amiira diante d«* Deos. E a^sim<br />

choran<strong>do</strong> e soluçan<strong>do</strong> tornou em si. Sen<strong>do</strong><br />

Fr. llenrifjue mancebo , foi-lhe força<strong>do</strong><br />

ir-se <strong>do</strong> (Convento , em que morava , á outra<br />

terra a estu<strong>da</strong>r: fú Deos ser\i<strong>do</strong> <strong>da</strong>rdhe por<br />

com|)afdiciro nesta mu<strong>da</strong>nça um homem<br />

muito ^virtuoso, e que llie fui sempre ver-


3ro <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

<strong>da</strong>tleiro amigo. Um dia assenta<strong>do</strong>s ambo»<br />

juntos, e len<strong>do</strong> falla<strong>do</strong> de Deos grande espaço,<br />

tirou-t) o amigo de parte, e jKidiollie<br />

em segre<strong>do</strong> pela fé e obrigação , que iim<br />

ao outro se tinliàt) , lhe mostrasse as letras<br />

<strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> nome de JESU que tinha escul-<br />

,<br />

pi<strong>da</strong>s no peito. Deíeníhase o Santo, e escusava-se.<br />

Mas em fiiu respeitan<strong>do</strong> sua grande<br />

devoção houve de condescendçr com elle, e<br />

descobrin<strong>do</strong> o peito deu-lhe licença para<br />

Ter bem á vontade arjuella rica jóia de seu<br />

coraç'ào. Do que eUe não satisieito, depois<br />

de o ter de espaço contempla<strong>do</strong>, e nota<strong>do</strong><br />

quão cUiramente estava escrito aquelle Divino<br />

Nome, tocou -o tambeuí com a mão, e<br />

chegou -lhe o rostro, e em fim pon<strong>do</strong>-lhc a<br />

boca começou a derraraar muitas" lagrimas<br />

de devoção de mo<strong>do</strong>, que !>aidiava com cilas<br />

o peito <strong>do</strong> Santo. Depois disto teve o<br />

Santo tamanho segre<strong>do</strong> neste nome, qiit<br />

nunca mais c«.iiseniio ver-lho ninguém , se-<br />

não foi uma só vez um grande servo de<br />

Deos, que <strong>do</strong> me^no Senhor teve licença<br />

para o ver. Quan<strong>do</strong> o vio teve os mesmos<br />

effeitos de devt^ção. Uaven<strong>do</strong> estes dt)us<br />

companheiros continua<strong>do</strong>, largos annos,<br />

sua amizade , e conversação espiritual<br />

quamlo se ht)uveião de apartar, despedirão-<br />

6e um <strong>do</strong> ouiro com í^Taiide amor, c cou-


Fr. Ke^triode Scso. 3ii<br />

certárão entre si, que fallerentlo qualquer<br />

delles , o que ficasse vivo, pelo íraternal<br />

amor, com que se nmyvão , clis'=esse ca<strong>da</strong> semana<br />

duas Missas piílo defunto, e fo^^se uma<br />

dé defuntos á se^run<strong>da</strong> feira , outia <strong>da</strong> Paixíioá<br />

sexta. Dahi a muitos anros veio a morrer<br />

o amigo , e o Sant


3i2 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> DO <strong>Beato</strong><br />

C A V I T U L O XLVr.<br />

Co:^70 appnreceo Chrhto nn <strong>Beato</strong> Fr. Hcu^<br />

lique em j.^ ura cie Suíaj.uLy e o insinou a<br />

padecer.<br />

X Oz-se o Santo certo dia diante de Deos<br />

em oração mui fervorosa e de grfande efíicacia<br />

, pedin<strong>do</strong>-llie qise o in


Fa* <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. 3í3<br />

a lição, q»ie tomastes nesse Seraíim. Acoiite-<br />

Cí'o pais, que no Convento, em qwe o Santo<br />

então era mora<strong>do</strong>r , não tinha entra<strong>do</strong> havia<br />

três annos esmola de pào, nem de vinho<br />

de parle nenhiuna, e assim estava mui indivi<strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />

Houveião os Frades seu conselho:<br />

tazem Prior a Fr. <strong>Henrique</strong> sen? lhe valerem<br />

escusas , nem a resistência , que fazia , ven<strong>do</strong><br />

já contra si arma<strong>da</strong> a perseguição com a<br />

f^randc íalla , e carestia , que havia de tiulo.<br />

O dia seguinte chamou os Frades a Capitulo<br />

, e juntos aníoesiou-os, que se encomnien<strong>da</strong>sseai<br />

a S. Domingos, pois elle promettcra<br />

aos seus Frades de lhes acudir e <strong>da</strong>r<br />

remédio, se nas necessi<strong>da</strong>des se quizessem<br />

valer de sua aju<strong>da</strong>. Estavâo naquella junta<br />

<strong>do</strong>us Frades senta<strong>do</strong>s perto delle, os quaes<br />

disserão algumas cousas de mumiur.i: ilo<br />

delle. Mas o Santo perseveran<strong>do</strong> em seu pre-<br />

posilo , tanto que amatiheceo, niantloii<br />

cantar urna BFissa de S. Domingos , para que<br />

lhes acudisse com o mantimento de que linhão<br />

necessi<strong>da</strong>de. Estan<strong>do</strong> em pé no (^òro,<br />

e engolfa<strong>do</strong> em muitas iníaginaç')es, veio-<br />

Ihe <strong>da</strong>r lera<strong>do</strong> o Porteiro, que o huscava<br />

um Cónego. Fra o Coueg») homem rico , e<br />

parlicul.ir amigo <strong>do</strong> Santo. Quan<strong>do</strong> chegou<br />

a elle tlissuj-lhe: Tenlio sal)i<strong>do</strong>, Padre e<br />

Senhor meu, que exilai» em falta <strong>do</strong> que


3i4 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Ttata<br />

cumpre para manter esta Casa; e fui aTÍsa<strong>do</strong><br />

esta noite <strong>do</strong> Geo , que em nome de D cos<br />

vos soccorresse. Por isso em principio de<br />

aju<strong>da</strong> vos trago estas vinte lihras de moe<strong>da</strong><br />

de Constância , e confiai en Deos , que não<br />

vos ha de des.^mparar. Fican<strong>do</strong> o Santo<br />

cheio de alegria, rece])eo o dinheiro , e man<strong>do</strong>u<br />

logo comprar trigo e vinho, e assim<br />

com o favor de Deos , e <strong>do</strong> Padre S. Domin»<br />

gos governou, e proveo a Casa ahastadr.men-<br />

te , em quanto íoi Prior, e negociou que a<br />

não oI)rigassem ao pagamento <strong>da</strong>s di>j<strong>da</strong>s<br />

passa<strong>da</strong>s. Este mesmo Cónego, estan<strong>do</strong> para<br />

morrer, deixou cm seu tesramrnto grossíssimas<br />

esmolas para se distrihuircm por varias<br />

partes a disposição e alvedrio <strong>do</strong> Santo. E<br />

man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-o chamar, porque o Mosteiro,<br />

em que servia de Prior ,<br />

era na mesma terra,<br />

entregou-lhe uma boa quanti<strong>da</strong>de de moe<strong>da</strong><br />

em ouro , para que elle a repartisse por outros<br />

lugares, entre pessoas pubres , e virtuo-<br />

sas, que por aspereza de vi<strong>da</strong> penitente estivessem<br />

já inn tiles , e sem íorc^as para trabalhar.<br />

iMiiito contra sua vontade acceitava o<br />

Santo este dinheiro, arrecea!)<strong>do</strong> as perseguições,<br />

que depois lhe causou. Mas em fim<br />

levou-o venci<strong>do</strong> <strong>da</strong> amizade ; e jion<strong>do</strong>-se a<br />

caminho, semei>u-o , conio promellèra ao<br />

amigo, por onde espera\a seria mais pro-


Fk, HfiNRiQUE <strong>Suso</strong>. 3l5<br />

Teitoso á sua alma, e teve rui<strong>da</strong>clo ãs o<br />

fazer cotn testemunhas dignas de fé, e d.ín«<br />

<strong>do</strong> estreita conta de tu<strong>do</strong> a sens superiores.<br />

Mas não bastou na<strong>da</strong> para deixarem de se<br />

llie levantar <strong>da</strong>qui grandes contrastes. Porque<br />

o Cónego tinha um filho bastar<strong>do</strong> , o<br />

qual, depois (jue des!)3raton e consuinio to<strong>da</strong><br />

a íazen<strong>da</strong>, que o pai lhe deixnu, desbaratou<br />

também a vi<strong>da</strong> e a ahna. E assim deu em<br />

perlender com tern.o e cobiça desenfrea<strong>da</strong><br />

o dinheiro, que o Santo recebeo. Vcn<strong>do</strong>-se<br />

desespera<strong>do</strong> delle, man(h)u-lheaffiíin.ir com<br />

juraníento, que onde uner que o topasse o<br />

liAvia de matar. E tal foi o ódio, que lhe<br />

tomou , que nunca ninguém o pôíle mitigar<br />

por mais que se tentou. Em fjm ellc se<br />

deterníiiuui de to<strong>do</strong> em to<strong>do</strong> nialar o Santo,<br />

o quaí, vc!i<strong>do</strong> o perigo , e viven<strong>do</strong> enj contínuos<br />

receios , não ousava sair por fora livre-<br />

riicnte com me<strong>do</strong> <strong>da</strong> morte j e levantan<strong>do</strong> os<br />

ollios a Deos dizia suspiran<strong>do</strong> : x^h , Senhor,<br />

que género é de morte o que determinais,<br />

que deseslra<strong>da</strong>mente me acabe ? Accrcscentava-lhe<br />

a desconsolação saber, que havia<br />

pouco, que em outra Cid.ide íòra morto<br />

Tim Erade honra<strong>do</strong> por causa similhanle.<br />

Nunca o afíligi<strong>do</strong> Santo achou ninguém<br />

que se atrevesse, ou«qiiizesse valer-liie neste<br />

enfa<strong>da</strong>aieulo , pelo muito que obrigava a


3i6 YiEA. DO Eeato<br />

to<strong>do</strong>s a ousadia e desatino <strong>do</strong> mancebo. Finalmente<br />

tornou-se a Deos, que o lavrou,<br />

acaban<strong>do</strong> com morte acelera<strong>da</strong> nni corpo<br />

rijo e robusto, e na íior <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, qual era<br />

o de seu adversário. Para este n)al nào ficar<br />

singelo, ajiintou-se-lhe outro bem duro de<br />

levar. Havia certo (loliegio, a quem o Cónego<br />

tinba <strong>da</strong><strong>do</strong> muito de sua faien<strong>da</strong> , com<br />

que não contentes os collegiaes perlendião o<br />

dinheiro, que dera ao Santo; e porque lh'o<br />

negou , accommetterão-no com aniuios <strong>da</strong>»<br />

na<strong>do</strong>s, e pozeráo-no em esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> ficar por<br />

barreira de quantos o querião maltratar.<br />

Sen<strong>do</strong> assim que o iufanjarão entre secu-<br />

lares e religiosos , publican<strong>do</strong> cora senti<strong>do</strong>s<br />

torci<strong>do</strong>s e intrepreta<strong>do</strong>s á peior parte quanto<br />

íizera em sua vi<strong>da</strong>, e espalhau<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> pela<br />

terra entre to<strong>da</strong> sorte de gentes, por maneira<br />

, que íizerão que pelo mesmo, que para<br />

com Deos estava isento de to<strong>da</strong> culpa , an<strong>da</strong>sse<br />

mal julga<strong>do</strong> diante <strong>do</strong>s homens; e se o<br />

negoeio c'o tempo se ia apagan<strong>do</strong> ou esquecen<strong>do</strong><br />

, tornavão-no a atiçar de novo , e<br />

não cessarão muitos annos até deixarem o<br />

Santo bem moi<strong>do</strong>, e atropella<strong>do</strong>. No tempo<br />

q


Fn. Hl!?rique Slso, 3iy<br />

bem; e encommenclou-lhe, que levasse<br />

ooin paciência a cruei senirazão , que por<br />

sua causa lhe i^aziao , fican<strong>do</strong> certo, que por<br />

Deos seria brguissitnamente consola<strong>do</strong>. E<br />

pergiintau<strong>do</strong> o Santo, que í-ignificava aquelle<br />

tortuoso vesti<strong>do</strong>, que trazia , respondeo<br />

assim : As rosas vermelhas em campo verde<br />

signiíicão os trabalhos, que padeceis, e o<br />

sofrimento com que os passaes , que são<br />

duas cousas, com que vós me ataviastes <strong>da</strong><br />

mauciía, que vedes, e por ellas vos vestirá<br />

Dcos eternamente de si mesmo.<br />

c A p í T x; L O XLVir.<br />

Em que o <strong>Beato</strong> Fr. He?iriqne ensina cnm um<br />

successo seu , quão necessário c peleijar va»<br />

lorosanieiite , quem periende alcançar vito»<br />

ria espiritual,<br />

li Oj principies de sua conversão desejava<br />

ir. <strong>Henrique</strong> por extremo contentar a Deos,<br />

mas queria que fosse sem trabalho, nem<br />

pena sua. Acontecco pois qiu', sain<strong>do</strong> uma<br />

vez a pregar pela comarca th» lugar, onde<br />

morava , entrou em uma náo no la^jo de<br />

Constância, c topou nella entre outros com<br />

um mancebo mui geutilhomem , c loueâa-


3l8 ViDi DO DeATO<br />

mente vesti<strong>do</strong>. Gliegou-se par.-^ e-leo Santo,<br />

e começou-llie a jjerguntar quem era , e <strong>do</strong><br />

que vivia. Ao que o mancebo responcleo,<br />

que seu otficio era assistir entre fiíi.ilgos em<br />

justas, e torneios, e ensinar este, c outrt»5<br />


Fn. Hzr^RiQUE <strong>Suso</strong>, Srj<br />

outra vez o Santo d


3ao <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Beati<br />

elle tantas, e tão Ijravas trlhultirões , que<br />

quasi chega>a a desesperar de Deus ; e muita<br />

gente tliorava de lasíima delle. E nm dia,<br />

perdi<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a memoria <strong>da</strong> ^alo^osa e incansável<br />

niilicia, a (|ue com tatuo gosto se<br />

oíTerecèia com lagrimas em íio, e al^^um<br />

tanto impaciente contra Deos , poz-se a<br />

imaginar que razão haveria paia Deos o tratar<br />

tão mal. Na maubiTa seguinte, antes de<br />

esclaret er o dia , estan<strong>do</strong> sua alma em um<br />

roubo <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s gozan<strong>do</strong> de uma saborosa<br />

paz e quietação , sentia que interiormente<br />

lhe íallava uma voz desta maneira : Ofide<br />

está agora aquella excelienle .milícia, que<br />

professastes ? aquelle valor estrema<strong>do</strong>, que<br />

promettias? Assim passa sohla<strong>do</strong> de palha,<br />

e homem de trapos , ou vilmente envolto<br />

nelles , orandes (onfiancas na bonança : e<br />

em se tol<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o tempo , logo espíritos que-<br />

])rad(»s, logo amos mulheris Não se abanca<br />

por certo desse m(ui


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. Sai<br />

liOTiTcr de honrar, é tu<strong>do</strong> |^erpetno. Cain<strong>do</strong><br />

o Santo na conia com estas palavias, e corvenci<strong>do</strong><br />

delias disse cem giande hi n il<strong>da</strong>de:<br />

Dijj^o minha tuljja , Senhor meu ; Tf)^o-ios<br />

sóinerite que me deixelí) fartar de choiar, já<br />

Çbe este meu coracào total meiíie rio pócle<br />

ter as lagrimas. Mas o Senhor: Ah vergonha,<br />

disse, queres chorar couio mulher?<br />

Deshonrar-le-has de ver<strong>da</strong>de diante de lo<strong>do</strong>s<br />

os Cid.idàos <strong>do</strong> Ceo. Aliujpa os oUios, faze<br />

bom rostro, que nem Deos ,<br />

nem os homens<br />

entendáo de ti, qui; choras de altrihi h <strong>do</strong>»<br />

Começou então a rir um pouco, concii<strong>do</strong>-<br />

Ihe to<strong>da</strong>via as lagiimas cm abundância, e<br />

prometieo a Deos de não chorar d'alii cm<br />

diante mais , para poder merecer c alcançar<br />

o anneL es^jiritual.<br />

CAPITULO XLVIII.<br />

Como, pregan<strong>do</strong> o Santo, lhe resj)landccco ê<br />

rostro ccino o Sol,<br />

JL Rc^gava o Santo Y\\ Kcnviqne uma vcs<br />

cm Colónia mui de proposilo e < on» grauííc<br />

fervor, e estava presente um no\o M-l<strong>da</strong><strong>do</strong><br />

<strong>da</strong> milicia de Christo , cnlia<strong>do</strong> de | ( i < os<br />

tlias iiO caminho <strong>da</strong> pcríc.çáo, o cji ai ancúva<br />

] I


Sas <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

assas atribula<strong>do</strong>. Estancio este homem c*of<br />

olhos e attencão proniptos no Santo , vio<br />

com os olhos d'ahna trocar-se-lhe o rostro<br />

e<br />

em uma clari<strong>da</strong>íle por extremo agradável ;<br />

notou, que ires vezes ficara tào resplandecente<br />

e claro , como é o Sol quan<strong>do</strong> o ar<br />

,<br />

está mais puro. De maneira que sem ne-<br />

,<br />

nhum estorvo se pôde estar ven<strong>do</strong> nelle,<br />

como em um espelho. Teve poder esfa visão<br />

para o dei.ar asseis consola<strong>do</strong> e anima<strong>do</strong>em<br />

seu trabalho, e para o coi. firmar na santa<br />

fi<strong>da</strong> que começava a empiender.<br />

,<br />

CAPÍTULO XLÍX.<br />

e ultimo.<br />

Da deçoeiOf que o <strong>Beato</strong> Fr. Hc^nrique tinha<br />

ao saudável nome dd JESV.<br />

X Assan<strong>do</strong> Fr. <strong>Henrique</strong> de Alh^manha a<br />

alta para Aqni^grano em romaria a uma<br />

imagem <strong>da</strong> Viij^em 'gloriosissima Senhora<br />

nossa ,<br />

que natjiiella Ci<strong>da</strong>de ha de muita devoção,<br />

^iu tempo, que se tornava , appareceu<br />

a mesma Senhora a umi santa <strong>do</strong>nzella<br />

e disie-lhí3: Eis [uo é vin<strong>do</strong> o .Ministro de<br />

meu i''ilho , e deixa espalha<strong>do</strong> por io<strong>da</strong> partt


Fn. <strong>Henrique</strong> Srso. 323<br />

seu suavíssimo Nome com íerTor admirável,<br />

roíiio ontigamente fizeião seus Apóstolos.<br />

Que assim como elles desejavão persuadir<br />

ao nuiiulo to<strong>do</strong> a féChristria, e ílar-llie a<br />

conhecei- aqueile Santo Nome; assim <strong>Henrique</strong><br />

se occupa , e emprega to<strong>do</strong> em o entranhar<br />

em to<strong>da</strong>s as almas frias coiií um<br />

Jiovo ar<strong>do</strong>r e cari<strong>da</strong>de, e em íazer , que esteja<br />

vivo e aceso relias. 1-elo que depois de<br />

sua morte tan)bem terá seu galar<strong>do</strong>o com os<br />

Santos Apóstolos. Passa<strong>do</strong> isto , tornan<strong>do</strong> a<br />


5^4 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Béíto Fr. íÍenriqte Srsc*<br />

cm muitas cousas, ler o Santo , fjue era seu<br />

Padre espiíiunl, uma niaiaviuiosa fé e<br />

ílcvoíjao neste suavíssimo Nome de JESU ,<br />

coiíio quem o esculpira com suas mãos na<br />

própria carne sobre os peitos, começou tan^<br />

bem a amal-o "veheinentissimamcnte; e toman<strong>do</strong><br />

um pequeno panno , bor<strong>do</strong>ii-o nelle<br />

com uns fros de se<strong>da</strong> carmesim , queren<strong>do</strong><br />

trazei-o conislgo secretamente. E por cble<br />

mo<strong>do</strong> fez um numero iníinito de nomes, e<br />

acibwu com o Santo , qr.e os tocasse to<strong>do</strong>s<br />

em seu peito. E depois lançan<strong>do</strong>-llie a benção<br />

os man<strong>da</strong>sse por to<strong>da</strong> pane a seus confessa<strong>do</strong>s.<br />

Teve depois esta Santa uma reveiacào<br />

, em que foi avisa<strong>da</strong> <strong>da</strong> parte de Deos ,<br />

que to<strong>da</strong> a pessoa, que por aquella <strong>ordem</strong><br />

trouxesse comsiofo o sacratíssima Nome de<br />

JESU, e á sua bonra rezasse ca<strong>da</strong> dia a<br />

eraçfio <strong>do</strong> Paler uoster , o mesmo Senhor a<br />

trataria coru amor nesta vi<strong>da</strong> , e usaria de<br />

misericórdia cota ella na outra. Sirva-se<br />

Christo JílSU nosso bem de nos fazer a<br />

to<strong>do</strong>s esta mcrcc. Ainen.


SERMÃO L<br />

DO<br />

325<br />

Santo Fr. HENRIQUE SUSO,<br />

DA ORDEM DOS PP.LGADORES<br />

De como se vencerão algumas tentações molestlssiinai<br />

aos que de novo se toruão de véias a N. Scuhor.<br />

Traduzi<strong>do</strong> de AUeinxo cm Latim<br />

CARTUSIANO ;<br />

í agora de Latim cm Portut-iiez por um ReVj^ioío ds<br />

Ordem <strong>do</strong>j Prét-aclores.<br />

Lectidus fioslci' flori<strong>da</strong>s,<br />

ALgiins lia que sã!> vexa<strong>do</strong>s de perplexos<br />

escnipuios de consciência , c graiuicinente<br />

atormenta<strong>do</strong>s náo achnitiem remédio, nem<br />

querem seguir conselho; com o que náo<br />

dão lugar, a que o Serdior JESU taça em<br />

seus eoiaçóes mora<strong>da</strong>; pela sua grande in-


32 6<br />

Sermão <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

quietarão, a qnal Jcveráó lançar uc si muito<br />

longe. (juer. o Senhor JESU ser ngasalhn<strong>do</strong><br />

em consciência pura, varia<strong>da</strong> de divetsas<br />

flores de virtudes : e com quanta rasão ; porque<br />

quão dissimilhante é um leito, ou pra<strong>do</strong><br />

cuberto de rosas, lirios, e varias flores para<br />

se nelle descansar suavemente, <strong>do</strong> campo inculto<br />

clieio de espinhos, car<strong>do</strong>s, e abrolhos,<br />

tanto ditíere <strong>da</strong> consciência de um animo<br />

desordena<strong>do</strong> <strong>da</strong> de uma alma bem concerta<strong>da</strong>.<br />

As dilicias <strong>do</strong> Senhor sfío descancar em<br />

mora<strong>da</strong> de flores; o que bem o entendeo a<br />

Esposa Santa nos Cantares quan<strong>do</strong> desejan<strong>do</strong><br />

ooziir <strong>do</strong>s amorosos abraços <strong>do</strong> Esposo disse:<br />

LectuIiLS no^tcrfloridus. Como se dissera : O<br />

llialamo está fecha<strong>do</strong> e perfeito , o leito de<br />

nosso amor é cuberto <strong>do</strong> flores : vinde pois<br />

amigo desejadissimo , que já nno falta mais,<br />

que fazerdes, que esta alma descance nos<br />

Ijraços de vosso immcnso amor.<br />

Porém alguns homens ha , cuja consciên-<br />

cia não é orna<strong>da</strong> <strong>do</strong> flores , mas lem o coração<br />

feito um u»or tório de esterco , e immun-<br />

dicias; estes são aqutílles , cujos vicios se dcsaforÁrão,<br />

gente entregue aos vãos pensame!:tos<br />

e honras <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s quaes não<br />

ha que tratar cm este lugar.<br />

Outros ha que padecem tentações occultas<br />

dentro no interior de suas almas , as quaes


Fr. <strong>Henrique</strong> Srso.' 327<br />

jiiTicía que sejáo muitas , entre to<strong>da</strong>s com<br />

tu<strong>do</strong> ha três tão molestas e pesa<strong>da</strong>s , que<br />

outros se lhe não podem comparar. A primeira<br />

é desordena<strong>da</strong> tristeza , a segun<strong>da</strong> demasia<strong>da</strong><br />

afíhcção , a terceira grande e vehemente<br />

desconfiança de remédio.<br />

Quanto á primeira é necessário saber,<br />

que o homem ás vezes é opprimi<strong>do</strong> de tão<br />

grande meUincoHa , que nem vonf.nde tem<br />

para obrar cousa boa, nem ain<strong>da</strong> forças, e<br />

«'^{ue mais é, que nem conhece o qtie lhe<br />

falta, nem percebe a cansa <strong>da</strong> <strong>do</strong>r que padece,<br />

in<strong>da</strong> que faca muito pela descobrir.<br />

Este sentimento parece que quiz em si declarar<br />

o Santo Rei David quan<strong>do</strong> disse:<br />

Qiiare trlstis es anima mea, et qiiare contar"<br />

has me? Como se dissera : Alguma cousa te<br />

falta, mas nem tu, alma, sabes o de que necessitas.<br />

Espera em Deos , e melhoraras,<br />

porque ain<strong>da</strong> lhe hei de cantar h)uvores com<br />

gosto. Esta tristeza muitas vezes nasce <strong>da</strong><br />

complexão natural , o que é para sentir,<br />

porque a muitos faz deixar o Ijeni que começárfio.<br />

Pelo que é certo, que a 'ícnhuni<br />

<strong>do</strong>s nasci<strong>do</strong>s é mais necessária uma invenci-<br />

Tel constância e h)rtaleza decoração, que<br />

áquelles que se apostfio a entrar em batalha<br />

com os vicios , tom animo <strong>da</strong> alcançarem<br />

tlellea \ictoria: porque se o hoiucm tstiver


3-25 Sermão <strong>do</strong> C£a.to<br />

no animo ])em firme, aju<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>da</strong> ginça d©<br />

Espirito Santo , que moléstia corjDoial ii.iverá,<br />

que o possa enfraquecei? c pelu contrario,<br />

como poderá viver se continua mento<br />

trouxer o coração aperta<strong>do</strong> de afíliccóes , e<br />

carrega<strong>do</strong> deste deleixamento? Peli> que<br />

deve ca<strong>da</strong> um procurar com to<strong>do</strong> o cui<strong>da</strong><strong>do</strong><br />

livrar-se deste mal. E se me perguntarem<br />

como se poderá ver livre delle, notem bem<br />

o erieujplo, que se segue :<br />

A um Ministro <strong>da</strong> Sabe<strong>do</strong>ria Eterna no<br />

principio de sua conversão accommelteo<br />

com tanta íorça este desordena<strong>do</strong> aífccto de<br />

tristeza, que nem podia ler, nem orar, nem fa-<br />

zev alguma outra obra boa. liste pois um dia,<br />

estan<strong>do</strong> senta<strong>do</strong> na sua cella, grarulemente<br />

opprimi<strong>do</strong> deste mal , e com g^^ande <strong>do</strong>r e<br />

magoa, ouvio uiwa voz de cima, que lhe<br />

dizia intelectualmente: Que estás aqui assenta<strong>do</strong><br />

ocioso consummin<strong>do</strong>te em li mesmo?<br />

lovanta-te , e póe-le a meditar com devacuo<br />

na minha morte e paixão; e com a memo-<br />

ria <strong>da</strong>s <strong>do</strong>res, que nella padeci, sete alliviará<br />

este tormento. O que ouvin<strong>do</strong> aquelle Religioso<br />

lovanton-se , e pòz-se a meditar na<br />

Paixão de JESU; e <strong>do</strong> ponto, que comectm<br />

este exercício, lhe fcd mezinha tão saudável<br />

que nunca mais sentio similhante aflliccão ,<br />

que, v,iU'n<strong>do</strong>-sc <strong>do</strong> remediu Divino, não fos-<br />

se aliivia<strong>do</strong>.


F». <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. 829<br />

0;:tra tentação interior c uma agonia ,<br />

c aperto (lo espirito: os que padecem esttí<br />

luaí cliegão a conhecer que liies íalla alguma<br />

cousa , isto é , que não estão bem conformes<br />

com a vonlíKic de Deos. Nasce este tíc"Í'> <strong>do</strong><br />

fazerem mais caso , <strong>do</strong> que convén>, <strong>da</strong>qiuUo<br />

de q!ie se v.?.o deve fazer conta , especiatmente<br />

<strong>da</strong> affllcçào, que por permissão i3ivina<br />

interiormente padecem. Quatro são a5 af*<br />

ílicções, que podem molestar o coiacão liu*<br />

ri)n!i{>, as quaes ninguém pode crer quão<br />

duras sejão, senão quem as experimentou ^<br />

ou a quem nosso Senhor deu espirito para as<br />

entender.<br />

Por quanto no «m que devia o rstes<br />

miseráveis sentir algum aliivio, que é em s*.<br />

t(jrnar a Deos, ahi são mais gravemente atormenta<strong>do</strong>s,<br />

vin<strong>do</strong>-ilie então os mais perver-<br />

sos e abomináveis pensamentos contra Deos :<br />

pjorém estas tentações nfio são pesa<strong>da</strong>s poríjUe<br />

causem algum mal grande na alíua, mas<br />

por causa <strong>da</strong> grande moléstia , que delias nà<br />

recebe , com que atravessão o coração.<br />

São pois estas tentações duvi<strong>da</strong>s, e<br />

pouca íirmeza na fé, desesperação <strong>da</strong> Divina<br />

I\Tisericordia , pensamentos de bla>lemia<br />

(ouiia Deos, e seus Santos, e sobre tu<strong>do</strong><br />

tlescjtís de se tirar a vi<strong>da</strong> por suas mãos: ile<br />

Io<strong>da</strong>s as quaes não deterniino tratar, mas st»


33o Sehjiao <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

tia que está em segan<strong>do</strong> lugar , <strong>da</strong> desesperação<br />

<strong>da</strong> Divina Misericórdia.<br />

Esta desesperação pôde nascer de três<br />

causas, de nfio sal)eieju bem considerar,<br />

que cousa é Deos, que cousa seja peccad


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>. 33;<br />

novações Senhor tão grande e tão suave.<br />

Píirqiie na ver<strong>da</strong>de tão fácil vos é per<strong>do</strong>ar<br />

um, como mil talentos; <strong>da</strong>r perdão a um<br />

só , como a innumeraveis pecca<strong>do</strong>s mortaes.<br />

Vence sem falia esta vossa benigni<strong>da</strong>de<br />

e clemência a to<strong>da</strong> a lijjerali<strong>da</strong>de e<br />

mansidão, porqne nem estes , qne isto conhecem,<br />

poderáõ nunca <strong>da</strong>r-vos as devi<strong>da</strong>s<br />

giaras ; por isso derretem suas almas, e corações<br />

eia vossos louvores : estes sem falta<br />

são para vós de maior honra e louvor, <strong>do</strong><br />

que se nunca peccárao, viven<strong>do</strong> com frieza e<br />

com menos amor , como se pôde bem provar<br />

com as Escripturas , porque não attenlais<br />

(como diz S. Bernar<strong>do</strong>) o que o homem foi,<br />

senfio o que desoja ser com aflecto de seu<br />

coração. Pelo que totlo aquelle, que vos negar<br />

o per<strong>do</strong>ardes pecca<strong>do</strong>s , ain<strong>da</strong> que seja<br />

])or tantas vezes, quantos são os momentos<br />

lio tempo, sem falta é rouha<strong>do</strong>r e ladião<br />

de vossa grande honra. Porque o pccca<strong>do</strong><br />

vos trouxe <strong>do</strong> Ceo á terra , a vós, digo,liedemptor<br />

tão pie<strong>do</strong>so , e tão amável , que<br />

em to<strong>do</strong>s os momentos com grande prompti'lão<br />

estais aparelha<strong>do</strong> para nos receber d<br />

vossa graça.<br />

Quem por esta razão souber ponderar o<br />

quem Deos é (dé-se David por fia<strong>do</strong>r) não<br />

jnjdtMii desconfiar de l)eí>s, nem <strong>do</strong>se.-^peiar<br />

dtí sua Divina Misencoidiii.


332 Sermão <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

O segun<strong>do</strong>, que não sabem considerai,<br />

é, c.ue cousa seja pecca<strong>do</strong>. Na ver<strong>da</strong>de aquillo<br />

só se ha de ter por pecca<strong>do</strong> no que o<br />

liomem com deliberação certa, com advertência<br />

, e vontade, sem reclamar a raíCo se<br />

quer apartar de Deos, e passar á mal<strong>da</strong>de.<br />

Mas se uma alma ain<strong>da</strong> em toilos os<br />

momentos lhe vem máos pensamentos, posto<br />

que sejáo tão encerra<strong>do</strong>s, que nem o coração<br />

hun»auo os possa formar, e tão fci'>s<br />

que nem a hngua os possa pronunciar, <strong>do</strong><br />

que quer que sejão , ou de Deos, ou <strong>da</strong>s<br />

creaturas : e posto que este homem ande<br />

\\m e outro anno , e muitos annos neste<br />

esta<strong>do</strong> , sem os' poder nunca lançar de si ,<br />

como os aparie com a razão superior, e lhes<br />

resista e repijf^ne de sorte , que nunca<br />

lhes de consentimento com plena deliberarão,<br />

e inteira vontade: e postt) que anile a<br />

braços com o pecca<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a natureza<br />

padece este trabalho, seja certo que nunca<br />

commeltepecca<strong>do</strong> mortal: o que se pôde prosar<br />

com as Sagia<strong>da</strong>s Leiras, e sentenças <strong>da</strong><br />

I^i^reja Catholica , pelas quaes nos ensina o<br />

Espirito Santo.<br />

Mas fica aqui escondi<strong>do</strong> um aperto, que<br />

é umsulitil fio, queaqui pôde haver: este é,<br />

de aquelle a que vtMu um mão pensamento<br />

destes lhe dá olho» com alguma deleitação ,


Fn. HENRíQtJE Srso. ^33<br />

%iim pouco esqueci<strong>do</strong> de si não tira dclle<br />

lâa de pressa o animo, porque cui<strong>da</strong> que por<br />

ist( só conseutio delibera<strong>da</strong>ihenle , e que<br />

3cm temor <strong>do</strong> mal, que se íaz , assim comme!tr.ç<br />

Padres, qu'j sobreviu<strong>do</strong>-nos grnude<br />

imporliuacão de pensamentos n;áos, muitas<br />

vezes a razão se move com a deleitação , e<br />

rSio por pouco espaço, mas por tempo lar-<br />

o, pnmfciro que a própria ra/ão possa fajr<br />

inteira leliheracão erra<strong>da</strong>, e que então,<br />

'-3 admiltir , ou rejeitar os taes pensamentos •<br />

se diiá que r,ói\e conr.neUcr pecca<strong>do</strong> mor-<br />

tal , ou resiftii.<br />

O que coi.-,o seja certo, não ha para que<br />

tcnlião estes par.i si , qric crMumclLêifio pec-<br />

t;ulo mortal, se é que querem <strong>da</strong>rcrédlto in-<br />

terior á <strong>do</strong>r.trina calliulica. S. Aííostinho<br />

diz: que o pecca<strong>do</strong> c ião voluntário , que se<br />

náò for voluntário, não será pecca<strong>do</strong>, <strong>do</strong>nde<br />

aífirnjiTo os l}í)Ut(ircs , que se só Ev-a<br />

comera, sem Adão consentir c(;m ella n:;.<br />

culpa, nenlium dr.mno se nos seguira. Da<br />

própria maneira . por Uiais pensamento.-^<br />

uiáos que se leAa'Mjui na parle scnsili\a, !>e<br />

a razão Il.es nf.o der seu ra\or, e tonstnliniciito<br />

, nunca ^^adcn» faztr pecía<strong>do</strong> níortal.


334 Sermão <strong>do</strong> Peat«»<br />

A terceira ronsa , que lhes omi-c» o *<br />

estes, é (n:c não s;iljcin ponderar , que ^ja<br />

Terciadeiía contrição. E a conlriíão v"»*<br />

virtude , (jue livra a hotneni de seus |)t


Fr. HENniQrE Sr «o. 335<br />

Mirar. Daqui veio dizer a Sclíecloria Fterna :<br />

flho, na\ua fraqueza não le tlesestinies a<br />

ti ,n)as roga ao Seiilior , que elle te curará :<br />

ikIo será grande fatno iuRielle que porque<br />

,<br />

vè lie fiilla um ollio, se arrancar o outro<br />

por sias pioprias mãos?<br />

^«íis cousas porém se podem c devem<br />

ronsidirar nestes medrosos corações que<br />

,<br />

relles si soem adiar. A primeira que te^<strong>do</strong><br />

,<br />

o jnizo -ivai erra<strong>do</strong> e alheio <strong>da</strong> \cr<strong>da</strong>de,<br />

nfio qnernn <strong>da</strong>r ciédllo a quem devem seguir,<br />

e nuaiio menos áquclles que lhes<br />

,<br />

<strong>da</strong>o I azoes ,com que pudèrão recehei' consolação<br />

ealHio, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> peh) ctiutiario inteiro<br />

ciédito áqtcHes, que Uses dizem cousas,<br />

com que se li^ agrava o mal e a moléstia,<br />

que padecem; oquu lhes succedc por causa<br />

<strong>da</strong> (iòr, que iraTj-m na alma quasi contiinianienie.<br />

Também em outro mal, que declalão<br />

facihncnte to<strong>do</strong>s os seus trabalhos e a<br />

causa, com pretexto de pedir consch-,çào<br />

e aju<strong>da</strong> , e não co^vém ser assim , pois c<br />

certo que pouco, ou neiílíi.m proveito tirão<br />

de aqui ; antes qnanth) buscfio muitos mais<br />

remédios para seu mnl , ta!:lo m.tis força<br />

toma a afílicção , que pndectm , fòra-lVics<br />

bnm conselho buscar algr.m varão tenienfr<br />

a Deos de letras e expeiientia, a quem ec<br />

«níregassem tlc IcTo o coração, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhc


*3^ SermÍo <strong>do</strong> Bea^to<br />

inteiro crerllto sem replica , n;m gcnciv<br />

algum cie duviíla, porque no jiiizo íina^a<br />

esie, e não a elies pedir.í Deos conta de<br />

suas almas , se pelo menos de sua parte -iterem<br />

o que nelles é, para seu remédio.<br />

O segun<strong>do</strong> , que os inquieta, é um lie<strong>do</strong><br />

conlínuo e vão de nunca ihes parecer que<br />

se conrejsrio bem , por mais lotr;ulo (


Frí Henrtqte <strong>Suso</strong>. 33^<br />

o terceiro erro (]'estes , que nun* to penoso<br />

se lhes íaz , é que queieiu ler sriencia,<br />

e certeza igual <strong>da</strong>s cousas , em qtie a não<br />

póile haver; querem saher tle certo se lem ,<br />

ou não tem pesca<strong>do</strong> mortal , sen<strong>do</strong> cousa<br />

averigua<strong>da</strong> segun<strong>do</strong> nossa fé, que ninguern ,<br />

por mais Santo que seja , prxle nesta vi<strong>da</strong><br />

saher se está em graça , se Det^s llTo não re-<br />

velar. O que hasta nesta paile é, que feito<br />

diligente exame de consciência, nào »e athe<br />

iiella pecca<strong>do</strong> mortal certo. Assim que q«;erer<br />

saher isto com maicir certeza , nasce<br />

ignorância , com>í se um nienino quizer<br />

ile<br />

saber<br />

o que :» liei tinha no seu c»nacrio. Por<br />

tanto assim como o <strong>do</strong>ente lefu ol»rii:acão<br />

de crer ao medicív <strong>do</strong> hcm , ou nuil de sua<br />

enfermi<strong>da</strong>de , como aquelle que meihor entende<br />

a <strong>do</strong>ença <strong>do</strong> próprio eníermo , assim<br />

os h'!mcF)s desta laya tc.n (íhii^Mcão de crer,<br />

e obedecerem tu<strong>do</strong> a um confessor piudente.<br />

O quarto erro destes é que são tenta<strong>do</strong>s<br />

de impaciência contra Deos , a qtial procede<br />

án mesma affliccão , qtie pa'lecem; porque<br />

Como nã » são prova<strong>do</strong>s em outros trahallios,<br />

aconlece-lhes o que a um cavallo duro <strong>do</strong><br />

freio, iridí)milo, ala<strong>do</strong> ao corhe , o qual,<br />

depois de muito coucear por se livrar, de<br />

cansa<strong>do</strong> vem a se sogeitar, e pouco a pouco


338 Sermão <strong>do</strong> Deato<br />

amansa <strong>da</strong>s primeiras fúrias. Assim estes em<br />

quanto se oppóera ás suas afíliocóes trabalhan<strong>do</strong><br />

muito por se livrar delias sem acabarem<br />

de se sogeitar , e resignar de to<strong>do</strong> á<br />

divina vontade, roníórnies em sofrer estas<br />

cousas quanto for <strong>ordem</strong> de Deos , são pof<br />

isto gravemente atormenta<strong>do</strong>s; nem se podem<br />

livrar delias , porque núo \^óáe ser<br />

menos que piulecel-as, até que Deos ponha<br />

os olhos em seu trabalho e sofrimento, o<br />

qual só saln^ quan<strong>do</strong> Ihics convém serem livres<br />

dtilas. Peio que nenhumíf^cousa é mais<br />

necessária para reriíedio deste mal , queresignar-se<br />

e oííerecer-se uma alma com grande<br />

humil<strong>da</strong>de , para as sofrer em quanto for<br />

vontade <strong>do</strong> Senhor, e pedir-lhe aju<strong>da</strong> com<br />

pacieucia , valen<strong>do</strong>-se <strong>da</strong>s orações <strong>do</strong>s bons.<br />

O quinto erro , e o maior euíjano em<br />

que andão, é querer responder a to<strong>do</strong>s os<br />

niáos pensamentos, cren<strong>do</strong>-os, e responden<strong>do</strong>-lhe<br />

, e com razoes procurar conven-<br />

cel-os, -vin<strong>do</strong> a disputa com clles. O que se<br />

deve evitar com grjmle cui<strong>da</strong><strong>do</strong> ; porque<br />

pelo mesmo caso que se põe a lutar com os<br />

taes pensamentos , seembaracHo, e deixão<br />

perder de sorte, que lhe não fica saí<strong>da</strong> por<br />

onde lhes possão encapar.<br />

Pelo que o mais acerta<strong>do</strong> e seguro con-<br />

«elho é , tanto que vier um pcLsameutu


Fií. Hl^rique Slso. 339<br />

destes, sem coiítí-^n<strong>da</strong>, nem nrginnento, e<br />

sem pôr.; algum estorço por lhe r^iisistir , o<br />

mais d« pjessa que puder divertir-se, e pôr<br />

o senti<strong>do</strong> em a primeira coiisn que acertar<br />

dever, ouvir, 011 conliecer. Corno se dis-<br />

sera : lá íe liavém com teus susunos , que a<br />

mim me não tofão;não é a-Cua mal<strong>da</strong>de<br />

para alguém t^ querer responder. Porque<br />

na vei<strong>da</strong>de quanto menos caso se faz destas<br />

importunações, tanto mais de pressa se desfazem<br />

; e assim se deve repelir este remédio<br />

uma, e outra vez, até qtie fique em uso.<br />

Porém estas cousas só as alcanção os que em<br />

si as cxperimentão.<br />

O sexto engano é , quanto mais sagra<strong>do</strong>s<br />

são os tempos , e quanto elíes de melhor<br />

vontade se cliegão a Deos , tanto é maior a<br />

sua afihcção, de sorte que nem um Pater<br />

nosler ^ ou A^^e Maria podem dizer sem estes<br />

susurros diabólicos: d*oude os pobres, vin<strong>do</strong><br />

como em desesperação, deixão a reza, e<br />

Que me podem aproveitar<br />

(hzem coiijsigo :<br />

orações túo cheias de torpez.is? N (pie crráo<br />

grandemeiíTe , c fazem a vontade a seu inimigo<br />

, CUJO intento não é outro, que fazer<br />

com que tenhão pouca estima <strong>do</strong>s exercicios<br />

espirituaes, lhes pareção de nenhum proveito,<br />

e por isso os deixem ; sen<strong>do</strong> assim,<br />

que a tal oração , ain<strong>da</strong> com to<strong>da</strong>s aquuUas


84^<br />

SermSo <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

trovoa<strong>da</strong>s de tentações, e de m á os pensamentos<br />

, que tanto os atormenta, não é<br />

pouco agradável ao to<strong>do</strong> poderoso Dccs;<br />

porque, coiíio diz S. Gregório, muitas vezes<br />

o coração <strong>do</strong> homem é tào gravemente per-<br />

que se não sabe li\rar <strong>da</strong> tribula-<br />

turba<strong>do</strong> ,<br />

ção, mas no meio dessa aí-licção o mesmo<br />

trabalho esta inierceden<strong>do</strong> devotissimamenie<br />

diante <strong>do</strong>s Divinos olhos pelo próprio coração<br />

, que a padece. A mesma amargura<br />

<strong>da</strong> tribubação <strong>do</strong> coração afflirto , rebizin<strong>do</strong><br />

nos olhos de Deos, mais de pressa ,<br />

outro exercício (|ualqi!er<br />

<strong>do</strong> que<br />

espiritiial, inchna<br />

a sua Divina iMaç:;e5tade a este coração aíílicto,<br />

fazen<strong>do</strong>-se-ihc força para que mais ce<strong>do</strong><br />

lh« acu<strong>da</strong> com seu favor. Por tanto nào se<br />

interrompa pfjr esta cansa obra nenhun^a<br />

boa, não se deixem orações , nem o ir á<br />

Igreja , que é uma <strong>da</strong>s cousas ijue mais moléstia<br />

dá aos demónios. P


Fr. HETTF.iQrE Sus©. 541<br />

t!a orncáo , tanto mais nos accommo<strong>da</strong>mos<br />

c*jm o inimigo de nossas almas.<br />

Porém sen<strong>do</strong> rerto, como temos prova<strong>do</strong>,<br />

que nestas aíílicçóes não ha pecca<strong>do</strong> , é para<br />

perguntar a causa, por que Deos nosso Senlior<br />

deixa atormentar tHo gravemente t s qne as<br />

padecem ; aos qiiaes não apontareis pena ,<br />

0!J tormento corporal, que de boa vontade<br />

não acceitem por se ver livres desta tentação<br />

de desesperaçáo. Na ver<strong>da</strong>de estes e alguns<br />

simplices sem experiência persuadem-se , que<br />

isto não é sem culpa sua : mas o contrario<br />

se mostra ])em claramente , advertin<strong>do</strong> qu«<br />

tanjbcm padecem este Irnlialho muitas pessoas<br />

de grande virtude, e santid'ade conheci<strong>da</strong> ,<br />

como se vê por experiência , além <strong>do</strong> que os<br />

Santos escrevem e icstiíicão. E pelo contrario<br />

vemos homens de consciências perdi<strong>da</strong>s<br />

e torpes, scmntnhutna perlurb.íção, nem inquietarão<br />

interior, sen<strong>do</strong> assim que alé nos<br />

meninos innitasvezes acontece verem-se estes<br />

trabalhos, antes de poder haver nelles pecca<strong>do</strong>s<br />

giaves.<br />

Pelo (jue se alienem depois de haver toma»<br />

<strong>do</strong> o liabito de alguma Religião, ou depois<br />

de conheci<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong>de, por culpa sua vier<br />

a padecer estas tribulações , deve <strong>da</strong>r por<br />

cilas muitas graças a Deos: porque , romo as<br />

Sagra<strong>da</strong>s Leiras' nos eusinfio, c grandissimo


34^ Sermão <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

slgnal, e prova <strong>do</strong> amor Divino não deixar<br />

por luuito teiuposuccederem as cous;>s a V(;»»tade<br />

dus pecca<strong>do</strong>res , mas appliear-ibe logo<br />

em continente o casti^ío.<br />

A causa por que o sapientissimo Senhor<br />

com esla tenção de (i^iesperacão queira antes<br />

abater a soberba destes, quebrantan<strong>do</strong>-os<br />

e <strong>do</strong>man<strong>do</strong>-os mais com esra tribiiiacíio, que<br />

com outras , isso é segred») de sua alta providencia<br />

, o que também devem entender,<br />

porque como<br />

e confessar os que as padecem ;<br />

o Senhor tenha bem conheci<strong>do</strong> os corações<br />

<strong>do</strong>s homens, almas e coslunits , como medico<br />

Gel applica a ca<strong>da</strong> um a mesinlia. que<br />

mais lhe conveai. E se me perguntar alguém<br />

de que utili<strong>da</strong>de j)óde ser esta tentação de<br />

desesperação, cmií grande certeza dij^o, que<br />

delia se tirão muitos e grandes bens espiri-<br />

tuaes.<br />

Primeiramente os homens por natureza<br />

soberbos, por nenhuma outra via melhor,<br />

e menos sem elles o entenderem, podem *=or<br />

trazi<strong>do</strong>s áhuniihlade ver<strong>da</strong>deira ,<br />

niãi de to<strong>da</strong>s<br />

as virtudes; porque os que são opprimi<strong>do</strong>s<br />

desta tentação pela torpeza e suavi<strong>da</strong>de de<br />

seus pensamentos, vem a conhecer a feal<strong>da</strong>de<br />

e enormitlade <strong>do</strong>s pccca<strong>do</strong>s mortaes; o<br />

que d'antes não conheciào , como provámos<br />

ao principio, Cuusa cerU é , que ler um


Fr. Hemuqtje Susf». 343<br />

homem um só pensa nien lo de vangloria o<br />

fará mais disforme diante de Deos, que mil<br />

pensamentos, tilhulaçóes , e angnsiias, que<br />

tieciaramos, o que se vê claramente em Lúcifer,<br />

o quvil sem padecer tentação nlgnma<br />

torpe caio feiamente. 1'ermiltc pois Deos,<br />

que seja um homem vexa<strong>do</strong> de.sla moléstia,<br />

para que aquellc, que íòr causa de inchação<br />

de Seu coi arão , não se queria conhecer<br />

pelo menos com e«;ta aíflicçào venha em conhecimento<br />

próprio.<br />

E assim succede que aqncllc, que d'antes<br />

desprezava os outros, já se tenha por mere*<br />

cf<strong>do</strong>r que to<strong>do</strong>s o desprezem ; que cousa<br />

lhe pode ser mais proveitosa que esta ? ou<br />

que cousa o pôde mais de pressa tornar a<br />

Deos? Por(|ue é impossível que Deos deixo<br />

perder o ver<strong>da</strong>deiramente humilde.<br />

Pelo que os que padecem esta cruz<br />

assim pelo que nos ensináo as Escripturas ,<br />

como pelo que consta <strong>da</strong> mesma ver<strong>da</strong>de ,<br />

devenj, prostran<strong>do</strong>-se aos pés <strong>do</strong> To<strong>do</strong> Poderoso<br />

Deos, <strong>do</strong>urar esta tão execravel tentação<br />

com pie<strong>do</strong>so fazimento de L,Macas; porque<br />

esta afllicção não só tira a um homem <strong>da</strong><br />

boca <strong>do</strong> inferno, mas o levanta até o pór<br />

nuC


S44 SERMto DO BeíTO<br />

que na ver<strong>da</strong>de llie é o maior proveito , •<br />

áe gríintlissiui;! aju<strong>da</strong> para se a!>ia« ar (oiu<br />

as virtudes: p')ique os que patlectm esta<br />

teiitaçãíi são táo vexa<strong>do</strong>s delia, que vern a<br />

tomar por remédio de sua necessitlade seguirem<br />

a vii-tude, e na<strong>da</strong> lhe parece impossível,<br />

com que possão aliiviar sua cruz ou esqueccrse<br />

<strong>do</strong> mal que padecem, o que ain<strong>da</strong> que<br />

facão mui de preposilo, nem por isso levanta<br />

logo nosso Senhor a mão , antes os<br />

deixa mais atormeníar com a mesma miséria,<br />

até que depois de ajuulaiem grande celeiro<br />


Fr. <strong>Henrique</strong> Su5o. '<br />

Si?<br />

tle um glpe aparla a caijcça <strong>do</strong>s honibros,<br />

Firiainit^iiie écousa averigua<strong>da</strong> n.is Escriptu-<br />

ras Santas , e por experiência consta ser esta<br />

vexação argumento de giaiide amor de<br />

Deos a quem o padece, o qual se s


exercício<br />

347<br />

DA<br />

ETERNA SAPIÊNCIA,<br />

NA REALIDADE DULCÍSSIMO<br />

REVELADO POR DEOS<br />

AO<br />

<strong>Beato</strong> Fr. HENRIQUE SUSO,<br />

DA ORDEM DOS PREGADORES.<br />

TradmUio de Latim em Portit^ttez por i:/n Religioso dm<br />

mesma Ordem,<br />

X O<strong>do</strong> aqnolle, que deseja ser discípulo ama»<br />

<strong>do</strong> <strong>da</strong> Eterna Sapiência, que c JESU Curisto<br />

nosso Senhor, e junlaineiitc aproveitar no<br />

amor de Deos , guar<strong>da</strong>r-se <strong>do</strong>s males, sentir<br />

os elTeitos <strong>da</strong> graça e hencào fan>iliar de<br />

Deos, viver bem , morrer ditosamente, de<br />

qualquer esta<strong>do</strong> , e contlii.ão que seja , ob*


348 Exercício <strong>do</strong> Beat©<br />

serve com tliligencia e cui<strong>da</strong><strong>do</strong> as cousas<br />

seguintes , as quaes srio tão niodt ra<strong>da</strong>s e<br />

teiíipera<strong>da</strong>s, que sem difíiculdude alguma<br />

qualquer pessoa as pôde exercitar sem prejuízo<br />

<strong>do</strong> seu esta<strong>do</strong> e coudiçáo , porque<br />

nfio contém preceito algum, inas só despertáo<br />

ao amor de Deos aquelles, que estão como<br />

ala<strong>do</strong>s de noxiífão e perguiça d'aim2.<br />

Em primeiro lugar o discijjulo <strong>da</strong> Eterna<br />

Sapiência não só deve apartar de si tu<strong>do</strong> o<br />

amor próprio ,<br />

mas procurar com to<strong>da</strong>s suas<br />

forcas de lançar de si , e aiTancar d'alma to<strong>do</strong><br />

o aífecto desordena<strong>do</strong> , e torci<strong>do</strong> a quaesquer<br />

cousas <strong>da</strong> terra, e com isto eleger, e<br />

tomar por esposa a Divina Sapiência :. mas<br />

se al^um se vir tão embaraça<strong>do</strong> e preso <strong>do</strong><br />

«mor próprio que lhe pareça muito árduo<br />

,<br />

apariar-se ílelle , este lai íoruje um propósito<br />

e desejo na sua alma , de que se apartará<br />

deste amor nocivo , tanto que em qualquer<br />

occasiào se sentir tocar <strong>da</strong> giaça e auxilio<br />

de De(js eíiicazinente, e com este<br />

comece este exercício.<br />

propósito<br />

Porém aquçlles, a^ucm não tem presos<br />

o tal amor próprio ,C^com tu<strong>do</strong> são alu<strong>da</strong><br />

ne^liireutes, e íi i< s no amor divino , estes<br />

tomem de novo por esposa a Divma Sapiência<br />

, renovan<strong>do</strong> e:n si o .seu divino amor com<br />

fervorosos affeclos , de soi le que , se Uaiiie^


Fr. <strong>Henrique</strong> Ssso. 5*491<br />

a serrlão como a Senlior pelo temor <strong>da</strong> pena,<br />

já <strong>da</strong>qui eni filante estudem af;rs0ar-llie,<br />

nnin<strong>do</strong>-se com<br />

como a esposa mui queri<strong>da</strong> ,<br />

ella por íerventissima cari<strong>da</strong>de. Pesan<strong>do</strong> e<br />

pensan<strong>do</strong> muitas veies a grande exceliencia ,<br />

benigni<strong>da</strong>de e t'oi4iio5a presença desta divi-<br />

níssima esposa, ou esposo, conforme lhe<br />

for mais suave nomeai -a pois em Deos não<br />

,<br />

ha diíFerencas <strong>da</strong> sexos, sentlo, como é,<br />

espirito puríssimo , e simplicíssimo. O* uma ,<br />

e multas vezes ditosos aquelles, que forem<br />

dio^nos de ser adunlti<strong>do</strong>s á sua auiizade e<br />

traio familiar. Porém este desposorio , não<br />

senão<br />

só se deve frizer interiormente n'alma ,<br />

também exteriormente para despertar o<br />

,<br />

fervor <strong>da</strong> ilevoção : mas em secreto por<br />

,<br />

meio de certos siguaes devotos na forma seguinte.<br />

Primeiramente todviaqnelle, que quer ser<br />

recebi<strong>do</strong> á iruian<strong>da</strong>d* <strong>da</strong> Kterna Sapiência,<br />

dizen<strong>do</strong> tves* Paires nos fres ^ c outras tantas<br />

j^i>g Marias em SGC*reto prostre-se outras<br />

,<br />

tantas vezes em terra , offerecen<strong>do</strong>-se , resignan<strong>do</strong>-se,<br />

e deixan<strong>do</strong>«se totlo í» Eterna Sapiência.<br />

Peça-llie as arras <strong>do</strong> de^posítrio divino<br />

, SC nova graça em slgnal de mutua<br />

amizade, e fideli<strong>da</strong>


35o ExETíCICIO DO Bea-to<br />

Devem os clisí ipulos, que deveras venerão<br />

a Etí^nia S;ipieii(ia , dizer to<strong>do</strong>s os dias<br />

as nuii devotas iioras e ofíiíio, que se cliaina<br />

vulgarmente o Curso <strong>da</strong> Eterna Sapiência,<br />

as quaes estão nas iioras de jNossa Seiihoia<br />

<strong>do</strong>s Frades Prégadt)rcs. Porém os que<br />

não sabem, nem podem rezar -estas horas ,<br />

diffão em seu lu^-ar sete vezes a oração <strong>do</strong><br />

Pater nosier com outras tautiis y/t'


Fr. HE>'niQUE <strong>Suso</strong>, 3di<br />

Dijno também um Pater nnster e Jve<br />

Mn/ia ao cluU.issimo e saudável nome <strong>da</strong><br />

para<br />

Kterna Sapiência, que é o Senhor JTSU ,<br />

que o mL^iino Scídior defen<strong>da</strong> , e ampare<br />

to<strong>do</strong>s os discípulos <strong>da</strong> Eterna Sapienria , e<br />

a [greja Cat}i'dlca de to<strong>do</strong>s os contrastes e<br />

cila<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s inimigos , ajuntan<strong>do</strong> estas pala-<br />

Tras: Bento seja o <strong>do</strong>ce nome <strong>do</strong> Senhor JESIJ,<br />

e <strong>da</strong> gloriosa sempre Virgem Maria sua mãi<br />

para sempre jamais. Amen.<br />

E isto para que o Senhor JESU que (<br />

nestes tempos miseráveis an<strong>da</strong> ião desterra<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>s corações de muitos, porque lo<strong>do</strong>s buscão<br />

só o que é seu , e não o que é de JESU<br />

Christo) haven<strong>do</strong> nos seus corações o se«<br />

amor, inspiran<strong>do</strong> nelles o seu nome suavissimOjC<br />

meliíluo, e conservan<strong>do</strong>-o para sempre.<br />

Além disto os discipulos <strong>da</strong> Eterna Sapiência<br />

devem em certos dias <strong>do</strong> anno vene-<br />

ral-a como a Senhora ,<br />

algum particular aíTecto ,<br />

mina<strong>do</strong>.<br />

e obsequio


Zdi Exercício <strong>do</strong> Peato<br />

dignou entrar corpciraliuente ne-^te munclo ,<br />

farão uma especial C(»u!iueinorat Ho á lUerna<br />

Sapiência pvir Aiitiphona , e (Jt»lle< ta , ou<br />

por um Pater nosicr ^ coníóruie a (levõ< ão<br />

de ca<strong>da</strong> um ; o que fòr Sacer<strong>do</strong>te , se nestes<br />

dias disser Missa <strong>da</strong> ElerrKi Sapiência, tar-lhe»<br />

ba um aíira<strong>da</strong>vel serviço.<br />

O terceiro dia é <strong>da</strong> Circiinuisâo <strong>do</strong> Senhor,<br />

no qual se começa o anno novo, em<br />

o qual os amigos di.ste inun<strong>do</strong> se mandão<br />

presentes e <strong>da</strong>divas uns aos outros, com<br />

imprecações de bons annos. Da mesma sorte<br />

o discipulo <strong>da</strong> Eteina Sapiência , por afer-<br />

Torar em si o amor, visiie a Eterna Sapiência,<br />

pedin<strong>do</strong>-lhe hons annt»s para si , e para<br />

to<strong>da</strong> a Igreja Calholica.<br />

O quarto dia é Dominga <strong>da</strong> Quinqnage-<br />

«ima, que o mun<strong>do</strong> thama de Entru<strong>do</strong>, o<br />

qual é tào celebra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mun<strong>da</strong>nos com se<br />

ajuntarem em festas e ])anquetes profanos<br />

em que se coiUamináo os Cíístumes com<br />

muitas mal<strong>da</strong>des a troco <strong>da</strong>s \ãas consolações<br />

e gostos dí) corpo. JMas o discípulo <strong>da</strong><br />

Eterna Sapiência, para que mostre com<br />

iinaes certos como <strong>da</strong> Etei na Sapiência é to<strong>do</strong><br />

o seu gosto e consolação nesta vi<strong>da</strong> , e na<br />

por vir , faça o que abaixo se diz.<br />

O quinto dia é o primeiro de^Maio,<br />

guan<strong>do</strong> a alegre Primai çfa se luosUa a lo-.


Fb. íÍESRi-QrE <strong>Suso</strong>. 353<br />

tios agradável, bioíau<strong>do</strong> em to<strong>da</strong> a parte flo-<br />

res , e \erduras. Na noiíte anies deste<br />

costuníâo os inarcchos <strong>da</strong><strong>do</strong>s a tinioic* ,<br />

cm algumas partes enramar as perlas <strong>da</strong>s<br />

casas, onde lem seus amores com ramos<br />

verdes , e flores em demonstração e testemunho<br />

<strong>da</strong> fc , a anior, que ^ uai dão a buas<br />

<strong>da</strong>mas.<br />

Para que se tire de trio mio costume<br />

al^'um £i:ucto bom , e para que os filhos<br />

deste mcn<strong>do</strong> o que fazem a um sujeito corporal<br />

c mun<strong>da</strong>no, como elles , seja melhor<br />

emprega<strong>do</strong> espiritualmente pelos filhos <strong>da</strong><br />

Eterna Sapiência aoCrea<strong>do</strong>r de tuuo, e isto<br />

com tanto maior cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, quanto mais sem<br />

comparação esta Divina esposa e amiga<br />

excede a to<strong>do</strong>s os mortaes , ofíercção-lhc<br />

reste dia , ou um liiio, ou ai» uma orafão<br />

particular.<br />

Ca<strong>da</strong> um destes cinco dias aponta<strong>do</strong>s cele-<br />

Lrem ca<strong>da</strong> anno to<strong>do</strong>s os discípulos <strong>da</strong> r.ierna<br />

Sapiência com singular e devota reno-<br />

vação , dizen<strong>do</strong> em ca<strong>da</strong> um cem Pnter<br />

nostres , e outras l;\uidiS Ave I\Jaiias^ ou qualquer<br />

oração ou serviço, como c ouvir Missa;<br />

ise forem Sacer<strong>do</strong>tes a dii,rio, ou actncãoum<br />

cirio , ou íação alguma loa obra, que é a<br />

Eterna luz, em testemunho e prova eviden-<br />

Jedeque, como fieis discípulos, to<strong>da</strong><br />

12<br />

a ^ua


354 Exercício <strong>do</strong> <strong>Beato</strong><br />

salvação neste tempo, que passa, somente reconhecem<br />

ter só de sua divina esposa, e<br />

delia só a querem pedir, a que só o seu divino<br />

amor se ha de ver arder em seus corações.<br />

E peçáo-lhe que, se por algum acontecimento<br />

este divino amor está apaga<strong>do</strong> tm<br />

seus corações, tão benigna e fielmente seja<br />

outra vez nclles encendi<strong>do</strong>, que nunca já<br />

mais se apag\ie.<br />

O sexto uid será o seguinte ao <strong>do</strong>s íina-<br />

<strong>do</strong>=;, no qual os que forem Sacer<strong>do</strong>tes digfio<br />

Missa por to<strong>do</strong>s os Irmãos desta socie<strong>da</strong>de<br />

e união , e por to<strong>do</strong>s os seus amigos defunctos,<br />

o:i a facão dizer, ou cera Pater<br />

no^ires ^ e outras ta n las Â^'e Marias^ ou<br />

quaesquer outras orações equivalentes,<br />

A to<strong>da</strong>s estas cousas que nos dias determina<strong>do</strong>s<br />

se apontão, em ca<strong>da</strong> um dclles accrcscentem<br />

depois delias esta oraçfio:<br />

Pie<strong>do</strong>síssimo Pai nosso, to<strong>do</strong> poderosoy<br />

peco-vospila coeterna a vósy a vossa Sapieri'<br />

cia^ N. Senhor JKSU CinstOj que soccorrais<br />

a vossa afjlicta Itsrcja , e a ponhais cm paz y<br />

uniUo e tranquillí<strong>da</strong>de conforme vossa<br />

e ahissimo beneplácito, Amen,<br />

honra ,<br />

Também os discipulos <strong>da</strong> Eterna Sapiência<br />

tiagão sempre comsigo o nome tia Eterna<br />

Sapiência s. o saluíifero nome de JESU ,<br />

9U impresso , ou insculpi<strong>do</strong> , ou de qualquer


Fr. <strong>Henrique</strong> <strong>Suso</strong>, 355<br />

sorte, confónDe sua devoção, estampa<strong>do</strong>,<br />

ou debaixo <strong>do</strong> vesti<strong>do</strong>, ou como melhor<br />

e digão pela nianliãa de ca<strong>da</strong> um<br />

puderem ,<br />

dia a sau<strong>da</strong>ção seguinte para que o pie<strong>do</strong>so<br />

,<br />

JESUS os guarde de lo<strong>do</strong> o mal,e leve a Jjoai<br />

íim,<br />

A minba alma tos desejou na noii«, e<br />

TIO espirito de minhas entranhas, muidcniariiiúa<br />

tlespertejava , ó exccllentÍ£sirx:a Sapiwn-<br />

cia, pedin<strong>do</strong> que arossaama<strong>da</strong> presença a portíí<br />

de mim to<strong>da</strong>s as cousas coulrarias; peneire<br />

vossa sfraca o intimo de meu coração, afervoran<strong>do</strong>-o<br />

grandemente em vosso amor. Agora<br />

dulcissimc» Senhor JESUCiiristo cu me levan-<br />

to ce<strong>do</strong> só para vós, evos saú<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> n.cti<br />

coração. i\iiliiares de uíilharcs de Angélicos<br />

espiritos, que continuamente vos servem, e<br />

assistem , vos glorifiquem por mim. A universal<br />

armonia de to<strong>da</strong>s as creaturas vos louve<br />

por mim , e digão: seja o vosso gloriosíssimo<br />

Nome, que é escudu de nobsa protecção ,<br />

bemcHto, e lotiva<strong>do</strong> para to<strong>do</strong> sempre. Amen.<br />

Além destas cousas os discipulos <strong>da</strong> Eterna<br />

Sapiência devem venerar com grande<br />

affecto a mãi gloriosíssima <strong>da</strong> Eterna Sapiência<br />

como aquella, que está sciii|>re prestes<br />

para os amar a to<strong>do</strong>s crimo ílihos, v. curar<br />

(lelles com entranhas í!e pie<strong>da</strong>de nalcriial,<br />

Peio que ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s dibcipiílcs ijúd»


S56 Exercício <strong>do</strong> Beat»<br />

ca<strong>da</strong> dia com nove Ave Marias á Virgem Mal,<br />

s. uma vez pela manbãa logo, em se levantan<strong>do</strong>,<br />

pon<strong>do</strong> os joelhos na lerra , offereca<br />

to<strong>da</strong>s suas boas obras <strong>da</strong>fjii^ílle dia á Rainha<br />

<strong>do</strong>s Ceos , para que ella, como Mái ião agradável<br />

e acceita , as apreseiite a seu Unigénito<br />

Filho, ao qual serão sem duvi<strong>da</strong> agradáveis ,<br />

se quer por reverencia <strong>da</strong> Mái, qne asoíTerece<br />

como medianeira , ain<strong>da</strong> que scjáo em si cou-<br />

sas de mui.o pouco porte, e substamia ,<br />

e muito menos gratas como forão se im mediatamente<br />

as oííciecera como as olirou um<br />

pecca<strong>do</strong>r talvez muito grande.<br />

O mesmo faea á noite quan<strong>do</strong> se recolher<br />

a <strong>do</strong>rmir depois de ter revoa<strong>do</strong> to<strong>da</strong>s as suas<br />

devoções ,<br />

pedin<strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> o que naquelle<br />

o suppra a<br />

dia houvesse ti<strong>do</strong> de uegligentia ,<br />

Setdiora com sua cari<strong>da</strong>de; o que fosse mal<br />

feito, a Senhora o emende, eo que houver de<br />

l)jm ii Senhora oappresc^nte diante <strong>do</strong>s olhos<br />

di\ino5. As outras sete advertências oíferera<br />

ao coração dulcíssimo <strong>da</strong> Mfii de Dens, refugio<br />

pie<strong>do</strong>síssimo de to<strong>do</strong>s os pecca<strong>do</strong>rcs , -^^ara<br />

que a Sjnhora, assento e mora<strong>da</strong> suavíssima<br />

<strong>da</strong> E:erna Sipicncia , depositário de<br />

to<strong>da</strong>s as misericórdias divinas , corrente manancial<br />

delias, as appllcjue sobre os corações<br />

<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os disc*iptd'>s .ia Eterna Sapiência ,<br />

que es.á j na denadcira hora , e nelia os de-


Fr. HENRiQrB StrsoJ 357<br />

fen Ja com entranhas de pie<strong>da</strong>de, e delia os<br />

não largue mais , até os meter de posse de<br />

Bemaverturança.<br />

Finalmente se alguns , ou por fraqueza<br />

de es['.irito , e de foiças, ou por occupaçóes<br />

nào poderem <strong>da</strong>r-se a estes exercicios em" alguns<br />

dias , ou se por dureza de coração^ e<br />

ignorância, não souberem cumprir to<strong>da</strong>s , e<br />

ca<strong>da</strong> uma destas cousas aponta<strong>da</strong>s, digáo<br />

ca<strong>da</strong> dia nove Pater nostrcs , e outras tantas<br />

A


CONSIDERAÇÕES<br />

DAS<br />

LAGRIMAS,<br />

QUE<br />

A<br />

YIRGEM N. SENHORA<br />

DERRAMOU<br />

NA<br />

SAGRADA PAIXÃO,<br />

Koparlúlas em dez passos, para a devaçâo <strong>do</strong> dez<br />

Sabha<strong>do</strong>s,<br />

PELO<br />

<strong>da</strong> Ordeia de S, Domingos.


S A B B A D O I.<br />

3^i<br />

Despede^se o Senhor <strong>da</strong> Firmem para ir a padec^r.<br />

C Omeção hoje, puríssima Virgcni Mar,<br />

vossos devotos a considerar, e sentir com<br />

vosco aqucllc abismo de <strong>do</strong>res, aquelíe mar<br />

de lagrimas, que vos ciisLou a Paixão d«<br />

vosso unigénito Filho , Filho vosso , e ver<strong>da</strong>deiro<br />

Deos , c Senhor meu. Atrevimento é ,<br />

tíio grande pecca<strong>do</strong>r, como eu, chegar-m«<br />

a tal companhia , tentar vossos porias, quanto<br />

mais entrar por ellas. RJas lembran<strong>do</strong>vos<br />

, Senliora , que vosso Filho iWs^c , qu«<br />

não vinlia buscar justos, scnao pecca<strong>do</strong>res ;<br />

<strong>da</strong>i-nie licença , que se quer de longe , couío<br />

o Puhiicano , ponha os olhos em vos: para<br />

que ven<strong>do</strong> neste aííligidissimo semblante a<br />

graveza <strong>do</strong>s*ermentos , que cercào vossa<br />

alma, reverbere sobre a niiniia uma luz <strong>do</strong><br />

(iCO, que me faça digno de vos aju<strong>da</strong>r a sen-<br />

til-os.<br />

líoje , Soidiora , é o dia , que começa a<br />

entrar por vo>sa casa aquclla espa<strong>da</strong>, qu«<br />

taatos ânuos ha ouvistes ao Santo Siiueáo ,


362 Considerações <strong>da</strong>s Laguimas<br />

qne atravessaria vossa alma. Hoje é o dia ,<br />

que coníeça o vosso Divino Abel a caminhar<br />

para o campo, em que o espera a maior trairão<br />

, que jamais se commeiteo ; traição , nao<br />

só de irmãos, inas de filhos, que dóe mais ;<br />

e fiihos crea<strong>do</strong>s com tantas misericórdias.<br />

Hoje man<strong>da</strong> a oliediencia <strong>do</strong> Padre Eterno ,<br />

qne comece o innoccnte Isaac a sobir ao<br />

monte para ser sacrifica<strong>do</strong> ,e não virá Anjo<br />

que detenha o cutello ; mas jnnlar-se-hão<br />

infinitos algozes a <strong>da</strong>r pressa ao sacrifício ;<br />

algozes de vossas penas , executores <strong>do</strong>s fios<br />

<strong>da</strong> empa<strong>da</strong> de Simefio. fios ião agu<strong>do</strong>s, que<br />

coi tão por alma, e espirito. E porque eite<br />

Seidior, q!ie ha de ser sacrifica<strong>do</strong>, quer,<br />

qne venhãt» s«»bre elle to<strong>da</strong>s as desconsolações<br />

juntas , que o mutí<strong>do</strong> pôde <strong>da</strong>r, acceita<br />

tanuDeni ser para com vosco o mensageiro de<br />

tão tristes novas; e entra hoje por vossas portas<br />

a avisar-vos delias, despedir-se de vós,<br />

e <strong>da</strong>r-vos os últimos al)racos de obediente fi-<br />

Ihí» , qual sempre o experimentastes. Magoa<br />

é sem fisn , que clieguem voaTi<strong>do</strong> as profe-<br />

cias tristes para m.Jiar, e que as legres tardem<br />

, como se forjo fingimentos , para cn-<br />

í:^'unar. Tínheis oijvi<strong>do</strong> , que havia de ser<br />

grande, ciue havia de reinar eternamente<br />

cm Jacob ; e elle mesmo vos faz a saber, qne<br />

•vai a padecer , que vai para u não verdiíi


A TiRGEM Nossa Sexhora^ 365<br />

rtiais em sua vi<strong>da</strong> alegre. O acerbissimo desengano!<br />

ó ciuelissima troca! n'oiitro tempí><br />

vos disseião os Anjos que estáveis cljeia de<br />

,<br />

graça que eslava o Senhor com vosco : hoje<br />

,<br />

vos diz o r.jesnio Senhor <strong>do</strong>s Anjos, que se<br />

vai, e vos deixa, para ficarem com vosco e<br />

em sen lugar to<strong>do</strong>s os maiores toí^mentos , e<br />

martyrios que o mun<strong>do</strong> pôde <strong>da</strong>r.<br />

,<br />

iMas quo sentiria vossa alma , Virgem<br />

bemdita, neste passo, que sentiria o fillio na<br />

sua ? íSão bastão entendimentos de Serafins<br />

para o poderem penetrar. Creio eu que vos<br />

,<br />

acodiríao aos olhos não menos aguas, que as<br />

<strong>do</strong> rio JNiJo paia chorar, e ao coração os tremores<br />

e abalos <strong>do</strong> monte Etna para suspi-<br />

TAv. Mas se é ver<strong>da</strong>de que isto de alguma<br />

,<br />

maneira descança e consola; creio também<br />

que vos quÍ7X'stes privar de tal allivio, tanto<br />

para começardes a padecer com o fillio<br />

,<br />

quanto para lhe não accrescentardes magoa,<br />

s.iben<strong>do</strong> certo a grande parle, que tinha nas<br />

vossas : crtsce a (lòr repiimi<strong>da</strong> , morre por<br />

arrebentar, como em mit:a, suspiros reprezí<strong>do</strong>s.<br />

Assim me persua<strong>do</strong>, que o mesmo Selihor<br />

para <strong>da</strong>r lugar a vossas lagrimas, começíH)<br />

primeiro a declarar, e deixar correr<br />

as suas, que se elle as não nc^ou na triste/a<br />

de duasirmãas, que uma vez o agazalliarao ,<br />

nem na dcstruiçáo antes vista <strong>da</strong> Ciu;'.dL',


364 Co:T5id£ràçóes <strong>da</strong>s Lacrimií<br />

que em sua morte se alegrava; como nã


Hk ViRGSM Nossa Senhoua. 565<br />

S A B D A D O ÍL<br />

Como sonhe a. Virgem, <strong>da</strong> prisão , c o mais<br />

que o SenJior passou aqucUa noite,<br />

i.iErca<strong>da</strong> estais fie anjrustias , Tirfrem Snn-<br />

tissima j fazen<strong>do</strong> discursos entre li grimas e<br />

jei»ii(]f/S sobre o sacrifício , que vos foi denuncia<strong>do</strong><br />

, imaginais sacrifício, imaginais<br />

iiíorte. Mas triste de mim, menos mal é<br />

morte, que o mo<strong>do</strong> , e circumstancias <strong>da</strong><br />

que se aparelha para o l)oni JFST^S. Ouvi a<br />

^o:\n seu ama<strong>do</strong>, que chega dcsalentadíí , e<br />

tremen<strong>do</strong> <strong>da</strong>s cruezas , que stus olhos virão<br />

executa<strong>da</strong>s contra elle. Quem crera, que<br />

para prendernu um Cordeiro sejão neces-<br />

sárias mnnljas, e cautelas? Sejão necessárias<br />

armasP Peita-se o Discípulo infiel: comprào-<br />

sc a dinheiro , meu hom JESUS , vossas injurias:<br />

busca-se a noite para crescerem em<br />

despejo c soltura: paga-se uma companhia<br />

de gente arma<strong>da</strong> para haver mais executores<br />

delia.<br />

Assim começa S. Jolo a cortar: n'as<br />

para o rpie resta, como tereis oll^i


365 Considerações <strong>da</strong>.s Lagrima?<br />

to : maiores causas pedem maiores L-ffeitoi,<br />

Hnuve, Scíihoia, Ci)itléis psra alar ri^oio^amente<br />

aquelbs mãos , que fizerão o C.eo e<br />

a terra, e souu uiua^oz <strong>do</strong> maldito trai<strong>do</strong>r,<br />

que o arreca<strong>da</strong>ssem bem. Houve mãos paia<br />

afear as rosas <strong>do</strong> rosto mais formoso que<br />

,<br />

quantos nascerão <strong>da</strong>s mulheres : para arrepelar<br />

o ouro <strong>da</strong> sagra<strong>da</strong> Cabeça. Ho tive pés<br />

para empuxar , e atropelar os membros santos.<br />

Houve línguas para afrontas , vozes para<br />

falsos testemuirhos, varas para cinco .mil<br />

açoutes. E porque antes querem por senhor<br />

iim César Gentio que o 1 ilho de Deos vivo , •<br />

dâo-ilie por t:scarneo ceptro, e coroa, ceptro<br />

de canna , e coroa de espinhos, e em íini<br />

pôe-Ibcuni pesaiio madeiro sobre as costas,<br />

que de muito chaga<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s açoutes , crão<br />

to<strong>da</strong>s uuja só chaga. Mas se ca<strong>da</strong> cousa destas<br />

pei" si SD basta para quel)iar coraç3es, que<br />

tempestades de afíllcção levaniariáo nesse<br />

virginal peito to<strong>da</strong>s juntas? Cheia está minha<br />

alma de terror, e cheia de compaixão :<br />

<strong>do</strong> terror, porque foráo minhas culpas causa<br />

de tanto mal: de compaixão ven<strong>do</strong> o que<br />

padeceis vós igualmente, Virgem bemdita,<br />

sem teres jamais oiíondi<strong>do</strong> o Crca<strong>do</strong>r, e<br />

|)or isto merecestes ser .Mái sua , e ouvir a<br />

iau<strong>da</strong>ção <strong>do</strong> Anjo, que vos oifcreço ncàtas<br />

Ave Marias.<br />

Cem //rc Mur/us^


DA. Virgem Nossa. SE^IroRA. Z6y<br />

S A B L A D O ÍIÍ.<br />

Como a Firgem encontroa o ScnJior jia rum<br />

<strong>da</strong> Amargura,<br />

V^Ostiima o inverno frio esforçaras fontes,<br />

c accrt-íicentar os rios: mas se cresce em ri^or<br />

ala , e endurece as aguas , suspende as correntes<br />

<strong>do</strong>s rios, e até o mar salga<strong>do</strong> congel-<br />

la. Assim creio , Virgem sagra<strong>da</strong> , que crescerão<br />

tanto vossas magoas, com o que ou-<br />

vistes a João, que seccarão a veia <strong>da</strong>s ínerimas,<br />

cerrarão o peito, [renderão os sus|.iro5,<br />

e fican<strong>do</strong> to<strong>da</strong> troca<strong>da</strong>, íica.stes por novo mo<strong>do</strong><br />

mais atribula<strong>da</strong>. Logo tomais o manto, deixais<br />

a casa, e com passos apresurfi<strong>do</strong>s saís a<br />

a buscar (como n'oTJtro tempo vos representou<br />

o Espirito Santo) acu


363 CoifSIDERAÇOES DAS LlGETMAJ<br />

não deveis menos ao amor, que lhe tendes,<br />

e ao que sabeis que vos ellc tem.<br />

,<br />

E em fim chí^gastes animosa iVLTi ao Filho<br />

atribula<strong>do</strong> , vistes o Filho ; mas como o<br />

vistes? O' que chaga<strong>do</strong>! O' que i?ista! Bem<br />

próprio foi o nome , que ficou a tal rua (rua<br />

'?rit > que <strong>do</strong> luidvíiro havia ilc reinar.<br />

A'á co:npau!iv3Íras diz, que cliorein sobre<br />

si; p>i:pi8 se o vingar dá gosto, duro castijo<br />

j-jjiM aos qac esta pena lho dj-


©A Virgem Nossa SEJinoni. 3^9<br />

tão. Ah Virgem purissinia , npo tos pôde<br />

faltar consolação <strong>da</strong>quelles Divinos olhos em<br />

quanto o tendes pre>?ente, em qualquer esta<strong>do</strong>,<br />

que o vejais; puis sempre vivestes <strong>da</strong><br />

luz delles. E para isto vos lembro a caloria ,<br />

que sentistes com as novas de serdes sua Mai<br />

na saa<strong>da</strong>cHo Ano^elica,<br />

Cem Ave Marias.<br />

S A B B A D O IV.<br />

Como vio preparo Senhor na Cruz,<br />

ÍtJLAs é grande a pressa , grande a violên-<br />

cia ,<br />

com que vos arrebatào o bom Sei hor;<br />

se vossos passos não podem ser iguaes , re-<br />

Kicdio tendes para não errar ocamihl.o;<br />

tal rasto fica <strong>do</strong> precioso Sangue , que elle<br />

vos guiará, onde seus inimigos o levjo. Ao<br />

monte vão, e la vos convém ir, Virí?m<br />

l-emd.ita; se tendes animo para ver a ultima<br />

. maior<br />

de to<strong>da</strong>s as mal<strong>da</strong>des e cruezas,<br />

ijue com elle se usarão : ISiidus egressus snni<br />

de ventre mutris meae , dizia Job, ntidim r^vertar<br />

etc. Qual o vistes na cova <strong>do</strong> Presépio,<br />

sem mais testemunhas , que vossos purissimos<br />

olhos, e os de S. Joseph : tal qutrcm


3yo Considerações <strong>da</strong>s Lagrimas<br />

os malva <strong>do</strong>s , que o vejais na coiòa cie um<br />

monte á vista de infinito povo: lá festeja<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>s Anjos, a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> e servi<strong>do</strong> de Reis: cá<br />

cerca<strong>do</strong> de opprobrios, e pregoa<strong>do</strong> por menos<br />

merece<strong>do</strong>r <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, que um publico lio-<br />

niici<strong>da</strong> : lá reclina<strong>do</strong> enj pobres palhinhas,<br />

mas agazallia<strong>do</strong> , e abiiga<strong>do</strong>


DA Virgem Nossa Senuoiia. Zn<br />

S A B B A D O V.<br />

Como vio o Senhor levanta<strong>do</strong> na Cruz,<br />

J A' parecia , Virji^em affligidissinia , qne naò<br />

podia haver cousa que accrescentasse vossas<br />

,<br />

penas quan<strong>do</strong> de novo se moatra que nem<br />

, ,<br />

em vossos ininiif]fos se leni esgota<strong>do</strong> as invencoes<br />

de afíligir ao meu bom JESUS , nem<br />

faltão ao vosso peito occasióes de mais dur ,<br />

e mais mcrccimeiUoj hem se diz, que to<strong>do</strong>s<br />

os Marlyres juntos não padc-cèiáo tanto,<br />

como elle só ; c que vós sem níorrer , pa detestes<br />

tanto, conuí to<strong>do</strong>s eiles. Levant.To a<br />

(]ruA cm alto, assenta o-llie o pé delia na cova<br />

em que lia de ficar arvora<strong>da</strong> : estremecei<br />

to<strong>do</strong> o Corpo Sa


3j5<br />

Considerações <strong>da</strong>s Lagrimas<br />

que <strong>da</strong>va saúde com sua vista. Já o Fiiho ão<br />

liotiieiu está em alto para trazer in<strong>do</strong> a si:<br />

já seu divino Sanoue reíra os ossos deli<strong>do</strong>s<br />

com antigui<strong>da</strong>de de nosso pai Adão neste<br />

monte .sepulta<strong>do</strong> para que lava<strong>da</strong>s assim<br />

j<br />

suas culpas, se torne em ben^^ões a maldição,<br />

que por ellas mereceo a terra. Pois, Senhora<br />

, como não tom allivio vossas desconsolações,<br />

onde to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> espera ver<strong>da</strong>deiro<br />

remédio ás suas misérias? ftlas se h;To<br />

de alliviar , se só pafa vós crescem ca<strong>da</strong> hora<br />

novas rasóes de magoa? Não querem , que<br />

baste morte de Cruz, morte de iníiimia, e<br />

iRiddiçâo querem fazer culpas ; , onde nenhuma<br />

podia haver. Com <strong>do</strong>is bdr


WA Virgem Nossa Senhora. ^yj<br />

S A B B A D O VI.<br />

Como lhe deu o Senhor por filho a S» João,<br />

A^M fim , meu ])om JESUS e Senhor <strong>da</strong> midIki<br />

alma , tla<strong>do</strong> tem remate vosso inimigo a<br />

tu<strong>do</strong> o que podia executar contra tós o ódio<br />

e mal<strong>da</strong>de : já despejào o monte: já vos fino<br />

<strong>da</strong> Mãi saibra<strong>da</strong>. Pilas é em esta<strong>do</strong>, que<br />

vos não pôde ser I>oa mais, que com a vista :<br />

o madeiro alto , e seus braços fracos para<br />

nos livrar, (.hega-se ao pé delle , que é tu<strong>do</strong><br />

o que pode fazer, e posta em pé para mais<br />

visinlianca , prega seus olhos nas eslrellas<br />

<strong>do</strong>s vossos, que em to<strong>da</strong>s as tempestades <strong>da</strong><br />

•vi<strong>da</strong> llie forão sempre fiel norte. AUi está<br />

Io<strong>da</strong> embebi<strong>da</strong> na consideração <strong>da</strong>s cruel<strong>da</strong>des<br />

, com ((ue vos ti*i\árão a vi<strong>da</strong>: espanta-s*<br />

como lhe dura a sua , ven<strong>do</strong>-a de tantos géneros<br />

de morte accommetti<strong>da</strong> , (fuantos são<br />

os que vos estão atormentan<strong>do</strong>. Neste passo<br />

mostrastes, nu^u bom Seidior , que não sen-<br />

tis monos seus tormentos que os í[ue estais<br />

,<br />

padecen<strong>do</strong> : e lastima<strong>do</strong> mais .fo efta<strong>do</strong> , em<br />

que a vedes, que de vós mesmo , ordenais<br />

com elia , como olediente e ver<strong>da</strong>deiro filho<br />

, vosso testamento. Quera não tem na<strong>da</strong>


374 Considerações <strong>da</strong>s Lagbimas<br />

de seu; pois nem vesti<strong>do</strong>s vos deixarão, e<br />

até a túnica interior foi joga<strong>da</strong> aos d^<strong>do</strong>s,<br />

assaz é , que dê alguma rou:-^ para pren<strong>da</strong> ,<br />

e sinal de amor. Uois penhores tínheis na<br />

terra, que muito amáveis: a sagra<strong>da</strong> Mài , e<br />

o Discípulo João : a e!le com amor tle Filho ,<br />

e a ella com amor de jMãi : e porque morren<strong>do</strong><br />

vós , fica ella sem Fillio , e João sem<br />

?dãi , ordenais, que tenha ella a João por<br />

Filho , e João a eíl» por Mãi. Isto íoi o que<br />

naqu tília ultima liora lhe dissestes, ^las<br />

<strong>da</strong>i-me iicença , Senhor, para vos dizer, que<br />

a não desconsolão só os inimigos , também<br />

vós , que sois to<strong>do</strong> o seu I)em , lhe <strong>da</strong>is nisto<br />

muito que sentir. Mas se desengana quem<br />

ama de ver<strong>da</strong>de, em quanto vos tem vivo,<br />

deixai-a , Senhor, enganar C(un vossa presença.<br />

?^âo se publicão os testamentos em<br />

vitla,nem se acceitão lega<strong>do</strong>s, senão depois<br />

que acaba o testa<strong>do</strong>r. Quanto mais que nem<br />

para depois que vós faltanles , é a troca de<br />

receber : trocar o Rei pelo vassallo , o Senhor<br />

pelo escravo, o amo pelo cria<strong>do</strong>, e:n<br />

nenhum estilo póile ser género de consolação<br />

: antes creio, que uma <strong>da</strong>s mais cruéis<br />

setas, que em vossa 1-aixão lhe teríião a alma,<br />

fi)i este desengano. Vós mo» to não podeis<br />

deixar ile ser seu Filho, e mais lhe<br />

vaieis murto , e sepulta<strong>do</strong> , que quantos lhe


DA. Virgem Nossa Senhora. 3;<br />

podeis <strong>da</strong>r na viuii , por puros , e santos , que<br />

sejáo , qual lie João. Se quereis muito a<br />

Jofio , nao seja tanto á custa <strong>da</strong> Mài , que vos<br />

deis já por nào Fillio seu , e que ella sabe<br />

mui l)em, que vós sois por natureza; e vivo<br />

€ morto vos quer por Filho , e em to<strong>do</strong> o<br />

esta<strong>do</strong> não ha mister outro , senão avós:<br />

quanto mais, que bem sabeis vós, Senhor,<br />

que não pôde liaver nenhum , que encha o<br />

vosso lugar. E son<strong>do</strong> assim , occasião lhe <strong>da</strong>is<br />

de lagrimas sem remédio to<strong>da</strong>s as vezes , que<br />

olhar para o a<strong>do</strong>ptivo com lembranças <strong>do</strong><br />

natural ; c. mortais sau<strong>da</strong>des , quan<strong>do</strong> vir,<br />

que lhe deixastes a sombra em lugar de ver<strong>da</strong>de.<br />

Ce-n yli'0 Marias.<br />

S A B n A D O Vir.<br />

Como onvío dizer ao ScnJior y que tinha sede,<br />

J-^Leva<strong>da</strong> estais to<strong>da</strong>, Virgem Saniissinn , no<br />

vosso Cnuifica<strong>do</strong>: notan<strong>do</strong> os termos porque<br />

transpon<strong>do</strong> o Sol <strong>da</strong>quella vi<strong>da</strong> , de que dejjende<br />

a vossa. Já nadão os (>lhos em on<strong>da</strong>s<br />

de niorte , quebran<strong>do</strong>-se sua luz. (^lí<strong>da</strong> está<br />

a ral>cça sobre o peito, enrruadcis e grossas<br />

as ícj i<strong>da</strong>s com o rigor <strong>do</strong> Lio j<br />

e ties|as5a<strong>do</strong>


5^6 GoNSIDERAÇt^ES DAS LAGRnfl9<br />

delle o corpo tório. Neste esta<strong>do</strong> levanta a<br />

"VOZ o affligidissimo JEjUS, publican<strong>do</strong> un\<br />

tormento interior deseccura, que aquella<br />

humani<strong>da</strong>de sentio, causa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ii^uitos<br />

exteriores que tinha passrí<strong>do</strong>, edis?-*, que<br />

,<br />

tinha sede : mas a quem vos queixais, meii<br />

bom Senhor, ou a quem pedis agua: se á<br />

Mái, ella não vos pôde valer no esfa<strong>do</strong> em<br />

que está e tós estais, se não for com a de<br />

seus olhos j se aos que pnssão , toilos síío inimigos<br />

, uns zomhào de vós, outi os fazem<br />

2ond:)aiia <strong>da</strong> vossa afflicção, sen<strong>do</strong> Blhos <strong>da</strong>quelles<br />

(ó gente ingralissima) (jue vós antigamente<br />

acompanhastes com uma fonie perenal,<br />

que os seguia por n^eio <strong>da</strong>s areias scccas<br />

<strong>do</strong> deserto. Sede foi esta só para mailyrio<br />

<strong>da</strong> pobre Mái : a vós canoa , m.is a ella ma-<br />

ta ; porque não a poden<strong>do</strong> remediar por si<br />

,<br />

te que houve peitos ião deshumanos, que<br />

,<br />

em fel e vinagre embebem uma esponja ,<br />

e vol-o offerecem por agua na ponte de uma<br />

cana. Que mu<strong>da</strong>nças são estas tão estranhas ?<br />

Yós sois , Senhor , o que a Elias acodisles com<br />

o bolo e vazo de aj^iia na sua necessi<strong>da</strong>de<br />

e a Daniel no lago <strong>do</strong>s Leões, com o jantar<br />

<strong>do</strong>s Cega<strong>do</strong>res <strong>do</strong> outro Profeta ? Vós sois , o<br />

que na fome <strong>do</strong> vosso jejum fostes servi<strong>do</strong> de<br />

Anjos, que vos pozeráií meza nos matos <strong>do</strong><br />

ermo ? Vós sois o que ha pouco tempo susteu-


DA Virgem Nossa Senhora. ^yj<br />

tastes muitos milhares de homens com poucos<br />

pães, e o que offerecieis á Samaritana fontes<br />

vivas no fervor <strong>da</strong> calma ? E hoje por uma<br />

pouca de agua, de que estais necessita<strong>do</strong><br />

não achais quem vos acu<strong>da</strong>, se não com fel.<br />

Mas que Gzestes, meu <strong>do</strong>ce JESUS, quan<strong>do</strong><br />

tal Lehi<strong>da</strong> vos foi presenta<strong>da</strong> ? pro"v;jstes o<br />

fel, para mostrardes, que nenhuma pena<br />

recusais por meus pecca<strong>do</strong>s. E toma<strong>da</strong> a salva<br />

, deixais o mais á Mãi sagra<strong>da</strong>, que sem<br />

dúvi<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> primeiro que vós o hebeo lo<strong>do</strong><br />

em dòr e angustias, senão foi era sustancit,<br />

Cem Ave Marias,<br />

S A B B A D O VIII.<br />

Como lhe vio <strong>da</strong>r a lança<strong>da</strong>.<br />

J-iM fim cliegou-se o termo <strong>da</strong>quella fi<strong>da</strong>,'<br />

que para tão persegui<strong>da</strong>, tinha dura<strong>do</strong> muito.<br />

Virgem Mái so-<br />

Acompanháo vossas <strong>do</strong>res ,<br />

bre to<strong>da</strong>s as Mais a mais atribula<strong>da</strong> , e sobre<br />

to<strong>da</strong>s as Virgens a mais pura que to<strong>da</strong>s as<br />

,<br />

cousas crea<strong>da</strong>s, Cobre-se o Ceo de escuri<strong>da</strong>de,<br />

perdem sua luz o Sol e a Lua, treme a<br />

terra, abalão-se os montes, correm as serras,<br />

quebrão-s« 05 pçng<strong>do</strong>s uns com outros.


3-8 Co:?fsiDERAÇ(5iiS <strong>da</strong>s Lagrimas<br />

respondem os vales com cecos e roncos tristes;<br />

lu<strong>do</strong> em fim mostra brandura de sen-<br />

timento, só vossos inimigos estão ain<strong>da</strong> mais<br />

duros e encarniça<strong>do</strong>s que a primeiía hora.<br />

,<br />

O ódio mais entra nhavel , a maior raiva , e<br />

indignarão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> duia até malar o inimigo,<br />

e cessa com sua morte; mas nestes não<br />

é assim, tomão as armas contra os memlíios<br />

defuntos, e diante de vossos olhos passfio<br />

com uma lança o peito frio. Abanou-se a<br />

Cruz com a torça <strong>do</strong> encontro , tremeo o<br />

Corpo Sagra<strong>do</strong> , que já não sentia ; mas o<br />

que elle não sentia ,<br />

padecerão vossas entra-<br />

nhas , Virgem purissima. OcHo e vingança<br />

fora de homens, nKital-o, e deixal-o; mostra<br />

o braveza de bestas que ,<br />

espo<strong>da</strong>çar o corpo, bebem o<br />

depois de<br />

sangue. E<br />

disto <strong>da</strong> signal o Peito Sagra<strong>do</strong>, despedin<strong>do</strong><br />

<strong>da</strong> feri<strong>da</strong> um rio de sangue , como reprehenden<strong>do</strong><br />

sua deshumauitlade , e dizen<strong>do</strong>:<br />

Paia a minha sede, nã > tivestes, gente<br />

avara e cruel , uma gota de agua , eu para<br />

lartar a vossa , não quero que íique nestes<br />

membros, nem uma só gola de Sangue , e<br />

ahi vai to<strong>do</strong>. O' lança cruel, ó cruiza sobre<br />

to<strong>da</strong>s as cruezas! Fm comparação delia ,<br />

ces (içarão os cravos ,<br />

leve o poíjo du Cruz,<br />

<strong>do</strong>-<br />

bran<strong>do</strong>s os espinhos<br />

Ce/n Jy'c Marias^


DA. ViiiGiíM Nossa Senhora. 879<br />

S A B B /\ D O IX.<br />

Como lhe puzerão o Senhor nos braços ,<br />

clescen<strong>do</strong>'0 <strong>da</strong> Cruz,<br />

VjUmpri<strong>do</strong> eslá , Virgem Santíssima,<br />

quanto <strong>da</strong> morte cie vossol^ilholinlifio escrito<br />

os Profetas, e o mesmo Senhí)r tinha dito<br />

de si. Eclipsa<strong>do</strong> está de to<strong>do</strong> aquelle Sol Divino<br />

, c posto cm esta<strong>do</strong> , qne nem de homem<br />

tem fijj^iira. Mas novos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s combatem<br />

vossa alma. Temeis , e com razão , se quererão<br />

os vossos inimigos, que fique ain<strong>da</strong> o<br />

Corpo Sagra<strong>do</strong> para <strong>da</strong>r segundiís vistas ao<br />

povo , e ser alvo de novos opprobrios. E logo<br />

vos faz temer e tremer um tropel de gente,<br />

que sentis vir deman<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o monte. Porém<br />

silo Discípulos nobres e secretos de vosso Fi-<br />

que como o í)uviào de noite, tamhem<br />

lho ,<br />

o buscão nas trevas de seus trabalhos: cliegão<br />

a vós, pedcm-vos licença para lhe <strong>da</strong>rem<br />

sepultura, descem o Corpo Sagra<strong>do</strong>,<br />

depositão-no em vossos braços : nellcs teve o<br />

primeiro descanco depois de morto , como<br />

no primeiro que começou a viver no<br />

,<br />

inun<strong>do</strong>. O que aqui sentistes. Virgem bemdita,<br />

os rios de lagrimas que derramastes,<br />

,<br />

« com que banhustei o rosto e peito Sa-


38o COTTSIDERAÇÕES DAS L.VGRIMAS<br />

gradd, e lavastes as feri<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s pés , e mãos :<br />

as lastimas, que em ca<strong>da</strong> uma dissestes, e as<br />

razoes que de novo pranto achastes em ca<strong>da</strong><br />

,<br />

uma , só os Anjos que foiTio presentes , , as<br />

podem refeiir, e a eiíes peço que mas dèni<br />

j<br />

que netihHma b.ora<br />

a sentir com talaífecto ,<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> deixem de ser presentes nesta alma.<br />

Grande cousa íbi, Virgem Santa, poderdes<br />

sustentar a vi<strong>da</strong> á vista de tal espectáculo.<br />

Mas não morrestes, ponjue não podia morrer<br />

quem viven<strong>do</strong> já estava morta , e (ji.eca<br />

o Senh(ir que vivêsseis para consolarão <strong>do</strong>s<br />

Disripulos , e remtdi(i e MarLis.<br />

S A B B A D O X.<br />

Como o acompanhou á Seoullura, c o deixou<br />

ndlct<br />

ItXAs é tempo , Senhora , de largardes o<br />

Sa^'ra<strong>do</strong> deposito para se entender no olílcio<br />

<strong>da</strong> sepultura ; que o cntrula a noite, e convém<br />

fazer-se antes <strong>do</strong> Sahba<strong>do</strong>. Evos Virgem<br />

Santa , não podeis acabar com vosco<br />

desapegar-vos dclle. Antes quasi tlefunla com<br />

O defuQto, pedis , que vus juntem a si na


T>x Virgem Nossa Senhora, 38<br />

sepultura , qne pois para vós houve Cruz,<br />

como para elie , ao menos haja para amhos<br />

a mesma terra, Cul)ra vossos olhos a<br />

que ciihrir os seus, e íiqiiem vossas (iòres<br />

com as suas scpullaclas. No meio destas histU<br />

mas levão-vos o Filho, e a pouei> espaço ve»<br />

des o Scpulchro cerra<strong>do</strong> de um grossa lage.<br />

Aqui, Virgem pie<strong>do</strong>sissima , c.iío sohre<br />

vossa aluía unia noite e.->cnrissima de tristeza<br />

, montes de anciã, e tormento sobre o<br />

coração, e ccrrou-se para vós o Ceo , e a<br />

terra , o Ceo com a falta <strong>do</strong> Filho , que ain<strong>da</strong><br />

assim morto era género de consolação sua<br />

presença : a terra com a luge , que o cobre.<br />

Bem pagais, Senhora , agora e com cresci<strong>da</strong>s<br />

vantagens as <strong>do</strong>res ,'que no parlo não tivestes,<br />

liem pagais os gozos de vos ou\ ir chamar<br />

bcmdila entre as mulheres. Por um filho,<br />

que tinha por espc<strong>da</strong>ça<strong>do</strong> de feras, não admitia<br />

consolação um Jacob, ten<strong>do</strong> vivos<br />

outros muitos: que fareis Virgem , por um<br />

só, que ver<strong>da</strong>deiras feras vos tirarão? Desfazia-sc<br />

cm pranto o Santo Rei David por uni<br />

filho muito culpa<strong>do</strong>; que será razão, que façais<br />

vós por ura innocentissimo, cquetonhe-<br />

ceis por ver<strong>da</strong>deiro Deos? Com lagrimas irremediáveis<br />

chorava uma Mãi sau<strong>do</strong>sa a<br />

ausência <strong>do</strong> seu único Tobias; quais hão de<br />

«er as voásas n«i moitC} não só ausência d


3 82 CONSIDER. DÁS LaGR. DE N. Se?JHOP\<br />

Tosso Unigénito , iinica consolação, refugio<br />

e renieclio de vossa vifla , que á forra de ferro<br />

e afrontas vos matarão seus inimiíjros? Virgeiu<br />

sagni<strong>da</strong>, se vossas magoas crescem á<br />

medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> razão, qtic tendes, nem as ílòies<br />

podem ter fim , nem to<strong>da</strong>s as aguas <strong>do</strong> mar<br />

igualar vossas lagrimas. Maiores sao Tossas<br />

<strong>do</strong>res, que to<strong>da</strong>s as grandes, que houve no<br />

inun<strong>do</strong>; porque as padece a mais pura e mais<br />

santa crealura de quantas puras creaturas<br />

nelle nascerão, que sois vós, e vós as padeceis<br />

pelo mellior Filíio , que quantos nascerão <strong>da</strong>s<br />

mulheres, e tal, que só eile vos pôde <strong>da</strong>r remédio.<br />

Cem Ave Marias,<br />

Dia de. Páscoa se dirá uma Missa <strong>da</strong> Re-<br />

surreicão.


VARIAS COMPOSIÇÕES<br />

DO<br />

Padre Fr. LUIZ DE SOUSA,<br />

Assim em prosn , como cm Terso , que uncIaTao dis-<br />

persas por diversos livros , e aqui se ajuiitao para<br />

satisfazer a curiosi<strong>da</strong>de , e gosto <strong>do</strong>s Leitores, qm<br />

facilmeute aao as poderiao alcançar.


385<br />

Ko pilncipío cias Obras Poéticas de Jaime Falcam<br />

impressas em Madrid no aiino de 1600 por diligencia<br />

de Marvel de Sousa Coutinho vem esta Dedicatória<br />

, e Piologo.<br />

PHILIPPO TERTIO, Hispaniarvm, níqus<br />

Indiarurn Regi Catholico j clemcntissiiiio y<br />

augustissimo , invictissimo salutum , et rontineniem<br />

felicitatis cursum,<br />

t^>iUm Reges in terris pracpotenlis Del providentiam<br />

exercere, \icem agere, et qiiasi<br />

quam<strong>da</strong>m personam sustinere , ipsae sarrae<br />

Literae plurihus locis attestentur, non iinmerito<br />

, Regum potentissime , opem tuam<br />

in beneíicium aniici íato funcú iniploraluiii<br />

acce<strong>do</strong>. Ecce oblata jaceiít ad pedes luos ossa<br />

ári<strong>da</strong> Falcor.is Yaleiítinl ; sciipta, inquani,<br />

Falconis Poètae quon<strong>da</strong>m disertissimi apiid<br />

iValentinos, in volunieii , qiiasi in corpus<br />

integrum compacta : quibus, iit lui favoíi.n<br />

aíflatu vitain inspires, efflagitamus, non<br />

brevem, non coniinuneni, non nd irueritiim<br />

praecipitibus ruentem spatiis, sed diuUirnani,<br />

et inimortalem, atque in perpetnum tliiratu-<br />

rani; id est , aeternani , nullisque íinibus<br />

circnniscriben<strong>da</strong>m ianiain. Qua ut nihil lio-<br />

Xiiini liberali in -rita optabilius , slc post fata<br />

nihil gloriosius. Híinc lu eumulatissiuie rrae-<br />

i3


^85 Varias composições<br />

><br />

stabis, si ad scripía, qnae offerimiis, ínclinata<br />

tantisper Regia majcstate, óculos demit-<br />

tere non dedignaberis. íta enim fiet , ut statnam<br />

, qnani nos amico pro viribiis, papyraceam<br />

poniinus , tu in oihls theatro inarnioream<br />

, tu anream red<strong>da</strong>s. Si enim veteres<br />

Poètae solo Musarum favore, quasi aura afflati<br />

nominis immortalitatem sibi ausi sunt augurari,<br />

quid nos Falconi cum veteribusacquo<br />

jure de poèti^A l.u.ide certantiaudehimuspol-<br />

liceri, si illuni Mi:sarum jam gloria evectum ,<br />

llcgius tuus favor benlgnius complectatur ?<br />

Accipe igltur, Rex augustissimc, Falconis<br />

poèmata , in quae afflalu tiio vÍTentem animam<br />

introducas, utRenipublicam lilerariam<br />

augeas, tuosque popnlos in borsaruni artium<br />

stndia incen<strong>da</strong>s: rertabunt hae olium non<br />

ultimo loco in regiae tuae \irtutcs Inudem,<br />

Honora Falconem quo Valcntiam , , nrbem<br />

luam<br />

....<br />

, cjusdem patrlam , nuiltisque tibi nonúnibus<br />

devinctam inimoitali beneficio denuò<br />

astrin:T.is. Honora cum Falcone omnes<br />

illi Musarum studiis conjunctos, ut maiores<br />

tuos, duosque ipsos Alfonsos, quanvis $apientum<br />

cognomen litcrarum gloria adeptos<br />

, nou S()lum imiteris , 'Tcriini , uti sperain;js,<br />

loií^issiniò antecellas. Vale. Datum<br />

idibus Martiis ,<br />

Mantuae Carpentanorum.<br />

Èni:nafiu€l Sousa Couttigniu,


DO P. Fr. Luiz de Sousa. 887<br />

,.«,-%


388 Varias coMPOsirõrs<br />

runt, etpubiicae utiliiati serviurit, nulla spç<br />

hiimani praemii adiictos , scd divino instinctu<br />

agitatos id facere. Unde non jam<br />

proiogium , seá apologiain iiiihi in liiiiine<br />

constituen<strong>da</strong>ni video. Omnes ercfo mortalcs<br />

in primis persuasos velini, nuUuni me inanis<br />

gloriae siimulum huic oneri siiscipieiulo<br />

adegisse. Officium estvet^iris, et bene íun<strong>da</strong>tae<br />

amicitlae. Si qtii siniili vinculo aninium<br />

aliquanJo ol^strinxisti , facile apud expertos<br />

íidem inveriiam. Sed ut singula dilucidius<br />

explanentur , pauca mihi de Falcone<br />

mostro praemonen<strong>da</strong> erunt. Jacobus Falco<br />

Yalentiae Exletanorum (urbs cst in Hispânia<br />

tani anioenitate soli , quam ingeniorum<br />

ubertate notissiina} natiis est nobili quidem,<br />

etaníiqao loco. Prima aetale humanis literis<br />

incubuit : in iis eani de se expectationem<br />

dedit tin:i ingcnii acumine , tum judicii<br />

profunditate , ut ma^^lstri Poetam natiim<br />

asserercnt. Adhac syllabarum natiiras vix<br />

perceperat puer , jam justa mensura cirmirja<br />

scandere , cLiudií.untia nosse, et restituere ,<br />

totum Virj:ilium mcmoriter recitare. Cnm<br />

tale à naluia in^jenium accepisset primis<br />

,<br />

bumanitatis rudimeniis vix exc(/hiit. Vitium<br />

est liispaniae nostiae pecidiare. Coelurn<br />

babem us ingeni )ram mlnimè avarum , liomiaes<br />

discipiijiarum avaxissimos. Unde q^uos


DO P. Fr. Luiz de Sowsa. 389<br />

cUrissimos habuimus viros, ii magna ex<br />

parte sunt, qui anud exteras nationcs ingeniiim<br />

exercuere li bei i à parcntum seu incúria<br />

y seu avaritià. Ua Falco pkii> nalurae ,<br />

quam arti etparenlibusclebitora<strong>do</strong>lescentlam<br />

sane importuno tempere ad otiuni conveitit.<br />

Hinc lusoriis artibus, aleae, et taloruni,<br />

animuni adjecit, phis quam decet , litciarum<br />

amatorem. Lrium illi lioc \ilium in<br />

illà aetate objicilur : in quod paulo post salyris<br />

duabus ita invectus est , ut possis conjicerc<br />

satis ipsum malè impensae opcrae poe-<br />

nituiíise. Sed cum cgregiac in<strong>do</strong>bs Cbset ,<br />

suople ingenio, tanquam pondus ad centrum,<br />

ad studia literarum deferebatur. A'<br />

]\hisarum aiilis absens <strong>do</strong>nii multa sibi et<br />

ditficiba discen<strong>da</strong> imponcbat. Suo duclu,<br />

itidHusque auspiciis totam AristoteHs pbilosopbiam<br />

, bbrosque Plalonis percurrit,<br />

"Maihematicas artes, Geomeiiiam , et Astrobj^lam<br />

ila penetravil , ut in utiAque iii:>iíj;uio<br />

evascrit. At ne animum laboriosac scieniiae<br />

sludio scmper coiilundeict, vcl coaelaneis ,<br />

€t civibns suis minus viderclur humanus,<br />

lusui quideni inter amicos sacrossivií boris<br />

indulgebat, scd tali Insui , qui inj^eniuni<br />

ejus profunde, et non sinevirlule excrreret,<br />

Audierat Saccr<strong>do</strong>lem vulgo Aldíalem Saliae<br />

noniiiiatum ingeniem uou)ÍLÍ5 íaniam lu-


3go Varias composições<br />

trmicalorum lu<strong>do</strong> Gonseciitum, quòd omneí<br />

aetatis suae homines non suluni artis calliditate<br />

vinceret , setl quòd mcinoritcr, ahsensque<br />

ab alvéolo cuiii praesentibus lude-<br />

let (dictu (juidein mirabile). Floret is in<br />

Hispânia ludus praecipue inter nobiles , et<br />

Lene moratos viros. Conteniio est judiciorum<br />

, exaaien itigenii : minoris íit in eo lu«<br />

cruni , q;uiin victoria : ipsa nolius vlrtoria<br />

preiium est , e praemiiun \ictorlae. Miruni<br />

«arrabo praestaníi?sin)i inj^enii excmplum.<br />

Cam antea ne latruiiculos quidem agere<br />

rosset, parvo teir.poris intervallo non tantum<br />

ciim dexteritate ludere, viotoriainque<br />

de spííctatisslniis lusoribus repoi-lare, sed<br />

€liaii) meiDoriler ludere, et cum Abbate<br />

ipso <strong>do</strong> latidc certare. Certo seio niultis boc<br />

lutaruin incredibile: sed cum inter vivos<br />

testes loquar, niiralnlia narrare non erubesco<br />

: incredulosque onínos oratos velim,<br />

fidem mibi non prius adhibeant, scrupulunive<br />

animo deponaiit, qiiam testes ipsos<br />

ncuUtos, qui plures adbuc snpcrsunt , percontentur.<br />

Is erat Falco, qui sibi sem per<br />

difriciljima arrogabat; ut ipse eleganter disberit<br />

lib. 2. Ode 24. Unde arcusatus venustatis,<br />

et facllitatis , qua in saíyra utebalur<br />

(quasl nomen Poetae amitterct, qui a Persiano<br />

illo tétrico, et obscuro scribendi generc


DO P. Ff. Luiz de Sousa. dgt<br />

ahliorreretj satyrara integram <strong>da</strong>ta opera<br />

coniposuit, ubi sententiarn Horutianae illius<br />

, quae incipit : Quijii Naecenas etc. ad<br />

ungnem expriínens, singulos versus à mo-<br />

Dosyllabis orsiis, moiiosyllabis clausit. Persinm<br />

etiam eadem de causa imitatus est sa-<br />

tyra 2. O studía , o mores etc. Sed qui clarissimuni<br />

ingeniuni à natura acceperat,<br />

nullo mo<strong>do</strong> adduci poterat, ut obscurè<br />

aninii sensa depromeret. Legerat apud Gel-<br />

liuni , ut ipse mihi saepius affirraavit, dilíiciilimum<br />

exisiiniatuni tuisse prisca illaaetate<br />

carminis Jnmbici genus, quorl Jambis pedibus<br />

merè constaret. Hinc ansam arripuit<br />

edendi epigranimata , odesque nou pancas<br />

meris Jambis summo cuni labore , sed non<br />

minore cum lau<strong>do</strong>. Omitto retroo:ra<strong>do</strong>rum<br />

quae primo patent<br />

carmmum varia gencra ,<br />

libro : qui quidem labor, quanvis sterilis , et<br />

tanto viro indignus videatur, sublllitateni<br />

tamen ingenii non contemnen<strong>da</strong>m argiut,<br />

Sed maximè Falcon«m aíl opinionem iiidustriae,<br />

et sagariíalis


392<br />

Varias composições<br />

lAni ínextrlca])iU amba^e perplexiim , ut<br />

mérito labyrinthus (quod illi nouien Auctor<br />

rleJit) appellari possit. íd nos in publicam<br />

utiiitatern Geometricis ejus lucubrationibus<br />

subnectimus. Cum his artibus in urbe sna<br />

omnibus cbarus esset , incredibile est, quaiu<br />

intrinseca famiiiaritate, qiiain solidii amicitià<br />

animum sapientissimi viii Petri Borgiae sibi<br />

ílevinxerit. Erat is 'Slontesianae miíiiiae in<br />

eo regno clarissimae Magister, í'i*aterque<br />

Francisci ilhislrissiniiGandiae Reguli :<br />

utque<br />

erat solertissimo ingenio praeditus, nec niinus<br />

insigni iiberaUtate ilhistrls, cum Falconis<br />

fidem, industriam, integritatem animi<br />

uiaximis in rebus expertas esset, eum sumino<br />

cum bouore in collesjium ^Montesianuni<br />

cooptavit, et vertente tempore honoratissimo<br />

stipendio cumulavit {Commen<strong>da</strong>m Hispani<br />

dinint). Erat haec in oppi<strong>do</strong> Perpucicnte sita.<br />

Adllegem semel, atqueiteru» pergensdegrafissiniis<br />

rebus disceplaturus eum secum du-<br />

xit , omniumquc consiliorum suorum participem<br />

ferit. Oranum etiam in Africam trajecit,<br />

quo à Rege missus est munitissimi iUius propugnacuU<br />

iniperator destinatus. In omnibus<br />

ita bominis prudentiam, constantiam, gravitatem<br />

admirabatur, nt nibil in otio, nibil in<br />

regotio , Falcone inconsulto , ageret. Intrrioi<br />

Falco nuntjuam Ubros depoQ«re, prae^


DO P. Fr. Luiz de Sousa; %3<br />

sertim poetas; scirper allqultl ir.edltars:<br />

nunc epigramnia, mmc hyinrjum p;ii)gere :<br />

partem etiam uoclibus íurari, qnani in tlieíu<br />

transcrilíeret , iiterls/po iiupendeiei. Per<br />

itl tempiis libros Georj^icoriini VirgUii iuii-<br />

taturijs conipendiaiiaiu •<br />

luhicoruiii Ailstu-<br />

telis descriptioncin aggressiis est (jiicuiidissi-<br />

iiium opus, si, ut prt)po5iiit, absolverei,<br />

taiiloque Georgicis utiliiis, quanto animorum<br />

ciihus agrirulturae pratstat). IVaecipuus<br />

ejus labor fuit ojnis 4»piruni ttxere,<br />

qiio Hispanoriim fa<strong>da</strong> celeliaicl. íratpius<br />

(licentem audivi solos portaruin nomint* di-<br />

qui opus epicnm componero au-<br />

gnos esse ,<br />

derent : idque in expositione Anis poétirae<br />

plane affirmat. Miium est qnam intenta<br />

opera huic se nieditationi addixit. Tlatonis ,<br />

Arislotelis, Iloratii libros de ai le poética sae-<br />

pius revolvit, et ('iuiclcca\ it : Graecjs literas<br />

tentavit^ ut sensa Homeri , quem Latine<br />

legerat , [)enitus invcsligaret. Cum mul-<br />

ta jani animo concepisset , instar pictoris<br />

lineas primas tiahcniis íun<strong>da</strong>menla jacere<br />

inccpir, conslruílionem operis formare,<br />

])arles nunc nKídIas , nunc posleritues ila<br />

pertraclare, ut faeile tiat kgenlibus conjicere<br />

ex liaginentis , quae inter libros annulueramus<br />

Falconem cum primis antiquilalis<br />

viris aemulalionem assumpsissè, Ab ulioque


394<br />

Yahias composições<br />

opere fellciter absolven<strong>do</strong> varias homínem<br />

occupationes retar<strong>da</strong>runt qiiibus à IMaece-<br />

,<br />

nate Borgia fere semper implicabatur, cum<br />

sua niinquam commo<strong>da</strong> amicitiae' officiis<br />

anteponeret. Quod n^agis <strong>do</strong>leo , non pauca<br />

titriusíjue operis periere membra , quae<br />

sane studiosos delccturent , aiictori gloriam<br />

])arerent. Nuniijuam niiniis appetentem glorlae<br />

poetam Apolliiiis scbolae protulerunt,<br />

Ubi noviiin paiturn mens illa conceperat ,<br />

protlniis iníquas pater non umbilicis iiiauia-<br />

tis, non miniu disllncíls, sed vilibns cliarlis,<br />

Tel epistolae <strong>do</strong>rso cnnimen<strong>da</strong>bat , vel in<br />

calce libri cujusvis exponebat. L'nde ilbiia<br />

anilei ei


DO P. Fii. Lriz DE SoTJsi. 3t|5<br />

jara síínescente actate : ipse eliam , qiii pari<br />

annorum passu 31aecenateni suum sequtbalur,<br />

i/l uiheni palriam se recepit. Ibi cuni<br />

amicis conversar! , animiim omnihus piutatis<br />

«fíiciis excolere, à Ivlnsis tanien nuuqnani<br />

lecedeie. Eo nos prorsus tenipore homincm<br />

iiovirrms. Valeijtiani veni anv.n á ['arlii Vir-<br />

^•inis septuagefsmio soptinio supra niillcssi-<br />

r.iuni, et quingentessimum. Hanc in!liií:e(]en\<br />

elegxTam agitan<strong>da</strong>e rcilei:iplionis uostrae,<br />

ctfiatris: qui in Bíelitensi trirenii r.dversa<br />

tenipestate pene CTcrsa à piraiis ad Sardiniam<br />

capti , Algerliunqiie in Aírlcain Irajecti<br />

ciim Praetore har])aro tonveneranins, iiC<br />

ego in palriam demitterer, ciuii statuto pre-<br />

tio libertatis utriu&que rediturus. Cuni iirbcm<br />

adiissem , rihil mibi potius ftjit, quam<br />

iit Falronem convenirem, ciijus lama oiiíiies<br />

regni illiiis sinus pcragrabat. C^onveni, aiuli-<br />

^i, aiiiavi. Mir?or enini crat fama bcniino<br />

3;iso. Duobus annls iit paticni cobii , ut nia-<br />

gistruni veneratus siini. Uiraque ilb; olíicia<br />

«tpatris, et magislri intbjlgfntissime praestilit.<br />

liitcr alia Artem Poclicam !loralii nnbi<br />

sedulo explaraAií, eadtniqiif ij)sa scholia<br />

dictavlt, quae bis libris snl)jimxiimis. Ad<br />

stutlia literarum pene jam I^lusaruin ol lilum<br />

cxcitavli, languentem atl Poéiirii iiiipulit<br />

, et quasi futuri pjaesagiis onínibus me


3yG TarTAS COMPOSinÕES<br />

aniicitiae vinciilis obstrlnxit. Fatio'al)atnr<br />

tunc gravíssima Geometiiae parte. Cum non<br />

Sfjbim res magnas snscipere, scd veliementer<br />

árduas , plenasqiie laljorum à mente indefessa<br />

cogerelur, imposuerat sibi circuli Qua-<br />

^raturam inrenire. In qiiod studiíini tanta<br />

unimi conteiilione incubnit, iit saluti ejiis<br />

nb amicisomnibus timeretur. Noites integras<br />

insomnes agere, saepius coenae , saepius sui<br />

í'sse immemorem , Tigllantem, et <strong>do</strong>rnilentem<br />

inter circinos, et bneas versai i, ajiqnandò<br />

non firmas mentis videri. Fama cst operis<br />

rxiagniruíbne deterritiim voluisse se tam<br />

í^ravi oncii subcbjcere , in eamqiie mentem<br />

anxibnm Uei , bominumque religione insignium<br />

invocasse: contracto tamen babitii<br />

assiietudine meditandi niiUo mo<strong>do</strong> poluísse<br />

ruram exiicre. Scd de bis laiius agemus in<br />

ipsis Geomcíriae commentjriis , quac propediem<br />

edituri M'.nins, nbi Qiiaib.itnras cir-<br />

culi phiribus modis fclicitcr tentatns exbibebimus.<br />

íd tantum in a miei commen<strong>da</strong>tione<br />

ad<strong>da</strong>m , quod referi ArnobUis Union Delga<br />

in eo opere, cui iiomen dedit Lignum vitae<br />

tom. 2. cap. 4^- V^Z- ^' ^^^^^^ Jacobus<br />

Falco HispaniJS Valentinns, ordinis Montesia^e<br />

miles , admirabilis ingenii vir. Quod<br />

enim ante ignotum, suo nobis manifestavit<br />

in^jenio: paucU lácmpe abbi»G annii Qua*


DO P. Fi:'. Luiz de Sorsi. ÔCiy<br />

rlraturam circiili noviter aclinvenil , et Je ea<br />

insignem tractatum scrij^sit, qiii exciíssiis<br />

rst AnlticTpiae apwd Joannem Bellerum ari:o<br />

1591. Haec ilie. Ciim Falco bis turis iam<br />

£[raviter iirgcretur, nullo mo<strong>do</strong> ad humaiiiora<br />

stiuiia revoran potuit : rnni jani abun-<br />

<strong>da</strong>rei otio , vel ad iiicohata opera perfrcier<strong>da</strong><br />

, vel inipeifecta s;ilieni expolier<strong>da</strong>. Ideo<br />

multa bic iniperíe<strong>da</strong> , imilía inoriiala <strong>da</strong>mus,<br />

aliqua niimis correcta : cjuce vos ! ori<br />

consulturos speramus, praesertim cumhitel-<br />

lexeritls qwo casii , qna fortuna bacc peni»<br />

jam extlncta nionuinenta è tenebris in luccni<br />

venerint. Animam egerat Falco exlra patriam.<br />

Dispersa erant ejus «cripta inter multorum<br />

manus. Plura Valentiae liabebal Franciscus<br />

Beneitus ,vir nolllitate, cl religione<br />

«:larus: illa , nl crat Falconis amicissitnus ,<br />

menicfiae tradcre snnm. opere oplabal. Adversabanlur<br />

aliqui leiibns quidem de causis,<br />

partim viri graves, paitim gian ni: ijri :<br />

íiand seio nu gloiiae 5uae, cl jntriac, an<br />

Falconis invidenliores. Ita inj^raia Pátria<br />

scnpta VI ta (IiL;njssima ciim auctore suo sepelicbat:<br />

et bonorc ÍVau<strong>da</strong>bat non eos soluni,<br />

qui ii) bor libro lau<strong>da</strong>nlur , sed qiii in .«al}-<br />

ris accusantur. Scilè nu(; juditio Ilelrusc ;'s<br />

qni<strong>da</strong>ni , pluris, inqnit, laccuni a Dnn;c


3gS Varias cojiposiçoes<br />

signari , quam ipsius Hetruriae RcguVi opíbus,<br />

copiis, dicruitate frui. Pilagnifica Terò<br />

vox , et lioniine Romano digna. Si enim<br />

iinpius jlle Dianae Ephesinae hostis , vel per<br />

incendia nominis faniam quaerere non dubitavit<br />

, quanto gloriasiàs itnmortalitateni<br />

sihi vindicabunt illi , quorum nomine ab<br />

homine sapientissimo ieviter joco praesliicU<br />

aoternum victnris carminibus posteritati<br />

coniinen<strong>da</strong>ntur. Novus casus litem diieniit.<br />

Alma<strong>da</strong>e in Lusitânia agebam , qui locus<br />

Ulisiponi imniinet , brevi freto interíluente<br />

Tago , salu})er coelo, fontibus exuberaas<br />

IMusaruni otiis conimodissimus. Vita erat<br />

curis libera, et pene rusticana, practerquam<br />

qnòd praefectuíam niihi imposuerat Rex septingentorum<br />

peditum, equlíuni ferme ccntunj<br />

, qui nobis atl signa, si quan<strong>do</strong> res postula!)at,<br />

praesto errint. Ad íncrunt (hibernatores<br />

Regni , cariam Alma<strong>da</strong>in transíeren-<br />

tes. Aedes oppidi sibi ia hospirium dislribuunt:<br />

cum piares, nec incommo<strong>da</strong>e super-<br />

esseiit, meãs etiain sibi postulant: quae pos-<br />

tulalio iniqui plena impcrii contra niorein<br />

p.itrium, et morum instituía, Regumque<br />

,h? jes inilissimas satis iiidicabat, nova illos<br />

\ eteris in me ofíensae recor<strong>da</strong> tione , jam diii<br />

cj:npressuni oJii virus opp:>rtunè evomere ,<br />

nequaquani in raemoriaiu rjvocintes , dede-


DO P. Fr, Luiz de Sousa. Sci^<br />

•ere príncipes vires, quales ii esseut, in<br />

privíttam "vlndictani potenliá pr.blici magistratívs<br />

a]>uti. (>uni vf lienieiiter ariimo ccnimotus<br />

essein, nova, et inauclila inetauior-<br />

phoftis liidignantes parleies injuriae siibiliixi;<br />

in íunuin , et cineres abiere. Ad Rcgcn^i<br />

rleinde Mantuani Carpentanoium feslir.o,<br />

Ivegem motili^eiitia in noítros , aequitate in<br />

onmcs Lusilanoruni iieijum veie succcíío-<br />

rcni. Ita qiiincjueviraius ilie in\idiani sibi<br />

non levem conílavit , niihi inopinatuni exilinnj<br />

peperit, Falconi gloriam altulit. Lbi<br />

Manluain vcni , nibil porius duxl , quani ut<br />

^ndci memoriam consccrarcm. Sciipta ex.<br />

omni parte colle;;i , disposui , in libM)S dislribni<br />

, lahoren, ingenlem suscepi. lia ernnt<br />

omnia dispersa , et involula , et sibi diss^iden-<br />

lia. IMiilium milii addit animi Comes Ticalii,<br />

Joannes Borgia, IMariae Impcraliicis <strong>do</strong>nius<br />

Pracrecliis, Ma^;istri ijc|)


4ao VàRlAS COMPOSlÇÓEf<br />

Manluae Carpentanorum : in templnm So<br />

cietatis JESU tumulo reccptus ,<br />

Aá extremam usque spiíittim ,<br />

anno i594.<br />

cum per oc-<br />

cupationes llcebat, studiis vacavil. Caelil>em<br />

\itam perpetua egit. Amicos oíficiosissime<br />

coluit. Qua etiam de causa extra Patriam<br />

iliem clausit : cum septuagenarius non ciu-<br />

])itaret Maecenatis sui vitâ jam defuncti<br />

causa curiam adire, Regem convenire, et<br />

de amici rebus constantissimé agere. Constans<br />

est fama, Regem sapientissimum hoiriinis<br />

constahtiam admiratum Régio oráculo<br />

colau<strong>da</strong>sse : nullum se in tota Republica<br />

ineliorem Falcone hominem habere. De immortiilitate<br />

animorum, de soUuione naturae<br />

Libicunque occurrebat, avidè , et jucundè<br />

disputabat acerrimus immortalitatis demon-<br />

.stvator: quippe cui omnia bona in morte<br />

sila esse jndicanti proprium pondus animi<br />

solertiam acuebat, Cum ad me scriberet,<br />

liaec ferme fuere verba : de communibus<br />

amicis, ut scribam , oras: Gombaum sclto<br />

f;Uis cuncessisse; paucis posl diebus Cbristo-<br />

.phoriim. Glemens in IMaioricam missas est<br />

iu Sar


DO P. Fr. Litiz de Sousa. 4o t<br />

contemptio forturiae. Ea fuit modéstia, ut<br />

cum ad unum iinlversa ordinis Montesiani<br />

administratio deíerretur, Praeíectus a Rege<br />

ipso loco , ac nomine l\egio nuncupatus ,<br />

tanto se honore diíjnum constanter ne;íaret<br />

nec prius proviíiciam susciperet, quani vi<br />

Regii imperii con:pnlsus est. Ne plura dicam<br />

, ita piam se in onínibus , ita philosophuni<br />

gessit , ut Christianum Platonem<br />

posses dicere. Talis vol)i% hominis, stndiosi<br />

Lectores , lucubrationes offero : vaticinir.nique<br />

non Delphicum , sed veriim praecino,<br />

nemiiii qnidem , qui virtutis via insistat , et<br />

memoria digna connetur, defuturum , qui<br />

laudes ejus celebiet , nomenque posteris<br />

muadet.<br />

yahtc^


4ol<br />

Ko principio <strong>do</strong> primeiro tomo <strong>da</strong> Monarchia Lusj^<br />

tí\iia , \eai a obra que se segue,<br />

D. EMMANVKLIS SOSAE COTTIGNI<br />

Cármen Heroicwn ia laudem Fratris Be*'nardi<br />

de Brito.<br />

Uíscute luctificá squalentein fronte capiU<br />

liim ,<br />

O qui turbato jam pridem volveris amne ,<br />

Necte sacras lauios, et priscuin crinibus aiirum<br />

j<br />

Amissosque ânimos iterum, Tage , Dubibus<br />

aequa.<br />

Magna, qiiod optanti nostrCira permittere<br />

nemo<br />

Auderet, reruni series jam nascltnr: ecce<br />

Bipis, ecce tais otimil tibi Pai ria eivem<br />

llUistri e{j;rcgiuni partii, quo clarior orbe<br />

Jaçtabit niiUo telliis se Lysia íantiim.<br />

Arte pólens , opibusque aninii l;ernardu5<br />

ab alto<br />

Ducet Lysiadum famani , et monimcnla liiorum<br />

,<br />

Ex quo prima uotís Aurora invecla quadri-


!4o4 Varias composições<br />

Splenfliiit humano gcneri : dehlnc arma<br />

tritimphis.<br />

Inclyta , tunc sanctos repetens ?.b origint<br />

mores ,<br />

LoiJga vetustatis , reruuique arcana niove-<br />

bit.<br />

Vela setl in ventos jatujani flullancla pandit.<br />

<strong>da</strong> Nerèa niiiem<br />

Aílsis ò proriiiSí[ne juves ,<br />

Euruniííue, et Zephyrum, Hcsperii Rex inaxime<br />

fiuctus.<br />

MhificLiín tibi furgit opus quo viibiera<br />

,<br />

iiostra<br />

Obníibi tandem potuerunt, licèt impla Par-<br />

ca,<br />

Diim res ambiguae, dum spei erut ulla íu-<br />

tu ri<br />

Insultare dedlt , fatoque iiiciiniberc trlsti<br />

Venales Itab\m calamos , quos ater in iras<br />

Exacuit Uvor , fí^lbsque immane venenuni.<br />

Lega tamen sta])ili succednnt laela <strong>do</strong>lori.<br />

Ascipe ut inJucarjt primam haec in litora<br />

gentem<br />

Semina Pyrrhaei lapldis, durum genus unde<br />

Decidlmus, primam ut nobis Tubal Optimus<br />

arcem<br />

Erigat, Hesperiae caput ,<br />

turam.<br />

imperiumque fu-<br />

Ut Lenaeus agens Nysae de vértice Tigres<br />

Orbe triumphato, primiim Iiis corsedÁt in<br />

Oi'Í6


DO P. Fr. Lri7 de Sousi!^ 4o5<br />

IVonilna Lysiadls socli de Poinine sigffaiis.<br />

AdiiiiranJa quihas , post longum scilicel<br />

aevnn» ,<br />

Vertere clniistra clatuni Oceani, et nova si»<br />

dera inundi<br />

Indunique , atqiie suam ra libas Irar.f.ccr.í^r^^<br />

iNysani<br />

Orcultà fati signatum ]c^e £íicl)at.<br />

. . .<br />

Addit Ulyssaeis tun<strong>da</strong>tani virihus uroem.<br />

Ostentai raptas Aquilas, íracluniqiie Quirinum<br />

,<br />

Multatosque Gotlios, atque agmina Van<strong>da</strong>lorum<br />

,<br />

Maile levem quoiies ariiiavlt Lysla pubem.<br />

At geminas huc ílccle acics : nova gentis<br />

origo ,<br />

Religionc potens , cerne, ut se tollit Olym-<br />

Et niimernni sanrtis altarlbus aiiget, ut indc<br />

Vera fides longos nitet intemerata per aii-<br />

nos.<br />

Exin gentrin Arabum , pugnalaque in ordine<br />

bulia ,<br />

Nostra jugo quorum nunquam se coUa dc-<br />

d(;rc.<br />

Testantur nuiliae servalis maenibus arces.<br />

O quantos Reges í Quam fortia pectora<br />

Magnos<br />

Alphonsos , et Joanncs , Pctrcíquo roveros.


4o6<br />

Varias composíçÓeS<br />

Aspice Cotílnos, genus insuperabile liella.<br />

Aspice íberorum vulnus , stragemque Ve^<br />

reiras<br />

Almey<strong>da</strong>s Indi cladem , Libyaeque Meneses.<br />

Noronlas, Sylvasque , et beili fulmina So-<br />

sas ,<br />

Reroasque allos natos melioribus annis ,<br />

Martla qiios stabili clecorarunt vulnera fama.<br />

Sed quid ego<br />

la u dum<br />

annale , tantaruni stringere<br />

Yersibus exíguis tentem ?<br />

bus<br />

Non si mihi Phac-<br />

Et cilharam ,<br />

melosque.<br />

et vim sufficeret, rocisque ?<br />

Ergo ur^de<br />

Eole ,<br />

Hesperiae rector , <strong>do</strong>mlnalop<br />

Laudiluis in^fentem «jratus fer ad aeihera<br />

aluninun) :<br />

Aurea quo tandem componas têmpora , red-<br />

dens<br />

Seria tibl , luctumque hosti , rairiaequc<br />

salutem.


CO P. Fr. Lrrz »e Sousi. 4^7<br />

Epi^ramma de ^lanoel de Sonsa Coutinho ,<br />

que elU man<strong>do</strong>u pôr em publico no dia <strong>da</strong><br />

collocação <strong>da</strong>s relicfuias <strong>do</strong>s Santos Mar»<br />

tyrcSf que se levarão á Igreja de S. Baque<br />

a 2S de Janeiro 'de i588, e/itre os mais<br />

Imersos <strong>da</strong>festa com o titulo seguinte»<br />

êumanae SjbiUae orncuhim , qnoã ÀstrologCTum 'vmnitmj<br />

l/J dcttrins niulavvrat.<br />

JL Ostqunm ter Phoebus qiiingentis cursibus^<br />

aclos<br />

A Dato in terris miminc, tollet equos.<br />

Octogessimus octavus vciieraliilis annus<br />

Lysiaduni geiíti gauclia snnima ferct.<br />

Si non hoc anno pravae mala scmina sectae.<br />

Si non cum Lihyco 'lliiax fenis liosle luil.<br />

At supplcx iiianibus vinctis j»osl tcrga Eiita<br />

n nus<br />

Hispano subdet pérfi<strong>da</strong> colla jugo.<br />

Prisca íides , et religio , pielasque, pu<strong>do</strong>rque<br />

Aurífero referent áurea secía Tago.<br />

Parva loquor, Divis tolo procul orbe fugatis,<br />

Ipsc Tagtis sedes, et pia tem pia <strong>da</strong>Lit.<br />

Tantus erit profugis honor, atque triuraphus<br />

,<br />

ut inde<br />

Join coelo incipiant or>$a boftta frui»


4o8 VarUs composições<br />

<strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> Patriarca S. Domin^oSy dividi<strong>da</strong> em<br />

i-j disticos y que se acfião debuxa<strong>do</strong>s em<br />

o azulejo , que c^bre as paredes <strong>do</strong> clausro'<br />

<strong>do</strong> Convénio de S, Domingos de Lisboa»<br />

V Era TÍ(ides , gentrix ; coelestem condi»<br />

in alvo ,<br />

Qui mundum accenso personet ore, canem.<br />

Fax in ventre latens jam sacro fonte lavatus<br />

Aurora, est , ardens postmo<strong>do</strong> Plaebus<br />

erit.<br />

Absumens parvum pia liteni flauini.i dlreniit.<br />

Et saiictuni innocuum ter repulère facífs,<br />

Accipe ai) aetlierco niissuin tlbi muiMJS<br />

Olympo,<br />

Orbis tutamen , diliciasque meãs.<br />

Pro Christo certuns , scutum Cnicis objizit<br />

hosti<br />

Ilanc solam , illaeso milita, tela petunt.


DO P. Fr. Luiz de Sorrsi.' 4og<br />

Qui potiiit quon<strong>da</strong>m templi cohibere ruinani<br />

Per sobolera verus niinc quoqae fulsit<br />

Atlas.<br />

Nate , quis in míseros tantus furor? Áurea<br />

terris<br />

Hoc duce, restituei saecula prisca fides.<br />

Quas saepe coeli praenuncia signa probârunt,<br />

Aeternâ leges consecro lege tuas.<br />

Lustret, et illustr«t mens aemula Sclis ut<br />

orbem ,<br />

Legis Evangelicae est rector hic, ille viae.<br />

Arte laboratam nostrâ tlbi susripe Testem ,<br />

Regiiialde , luei siigmata Dominici.<br />

Prodlgus ad pocnas renuitqiic , horretque<br />

Tiaras :<br />

Omnis anhelaiiti sidera sordet boiios.<br />

Férrea vin<strong>da</strong> diu , terque hórri<strong>da</strong> vcrberi<br />

noctu<br />

Aeterna rcpetunt coiulltione vices.<br />

Quae non monstra tibi, quae non miracula<br />

ccdcnt


4 IO Virias composições<br />

Cui loties spoliis mortis onusta manusí<br />

Quid non speremus egeni?<br />

Félix paupertas !<br />

Coelicolum , o socii pascimur ecce , penu!<br />

Corpoream excedit nioiem super aéra raptus,<br />

Nec pavet insidias, hostis inique, tuas.<br />

Qui potuit pluvias cohibere , et claudere<br />

nubes ,<br />

Hunc mira populi religione colunt.<br />

Ergo triunipliales , victor, íer ad aetheni<br />

passas<br />

Sacra ruanus oneret palma , corona caput.


T>0 P. Fíí. Luil DE SOUSA.^ ÍH<br />

No principio <strong>do</strong> livro intitula<strong>do</strong> Gaza mento<br />

Perfeito , auctor Diogo de Paiva de An-drade<br />

, vem de Manoel de Sousa Cominho<br />

este<br />

SONETO.<br />

O S meios tle Imivar-te me ncj^aste,<br />

Busca<strong>do</strong>s, niasentvão, <strong>do</strong> obedecer- te;<br />

Que de cliegar, Senhor, a conhecer-te<br />

Admirações somente me deixaste.<br />

De^te perfeito assumpto , que tomaste ,<br />

Quiz devi<strong>do</strong>s elogios escrever-te ;<br />

Mas vejo tpie o louvor chega a ofl'ender-le,<br />

Por não poder chegar ao que chegaste.<br />

Mas ain<strong>da</strong> assim isento de aggravar-le<br />

Só devia louvur-te jusíanicnle ,<br />

Pois to julgo o mais tligno de louvar-ie»<br />

No que <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> illustra Phcho ardente<br />

Que parte em teu louvor não terá parte?<br />

Que siente sem li será sienie?


4 12 Varias composições<br />

No principio <strong>do</strong> livro iníilula<strong>do</strong> Gigantoma^<br />

chia , auctor Manoel de Gallegos, vem de<br />

Manoel de Sousa Coutinho este<br />

SONETO.<br />

U Nicos son dichosos Tueslros males<br />

Pues que gozais venci<strong>do</strong>s grave ernpleo;<br />

Si aspirasteys deyad ya tanta os vco,<br />

,<br />

Que con los niisinos dioses soys iguales.<br />

La ciega presuncion de los mortales<br />

Ha conslgui<strong>do</strong> el fin de su desseo;<br />

Con Jn piíer se iguala el gran Typlioo ,<br />

Uno , y otro en tu canto ya imniortales,<br />

Y tu por niàs que Jove poderoso<br />

Bivc gloriosamente en la memoria<br />

A pezar de laendjidia, y tieuipo avaro,<br />

El vence nn esqusdron por licencioso,<br />

Tu le dàb ruUi.ina<strong>do</strong> lanta floria ,<br />

Que Júpiter trocara el poder raro.


DO P. Fr. Luiz de Sousa. 4i3<br />

».». %i^/^ »^V»"V v^-»- «/^/W<br />

A^o livro intitula<strong>do</strong> Discursos Variei Políticos<br />

, anctor Manoel Scverim cir Faria,<br />

impresso em Ei^ora em 1624 vem. íJ^^iManoel<br />

de Sousa Coutinho eUe<br />

EPÍGRAMMA<br />

V^Uod Maro suhlinii , quod sua>i rinrlarus<br />

, alto<br />

Quod Sophocles,<br />

canit.<br />

tristi Naso , qcod or«<br />

Maestitiauí , casus , horrentia piaelia , amo-<br />

res ,<br />

Junctasiinul canlu , sed graviore , <strong>da</strong>nuis.'<br />

Quisnani an<strong>do</strong>r? Camoniu.s. Undc hic?<br />

Protiiilil illuin<br />

Lysia in Eoas imperiosa plagas.<br />

Unus tanta ucdit :* Oedit , et maiora <strong>da</strong>tu-<br />

riis,<br />

Ni ciileri fato corriperetiir , erat.<br />

Ultimus hic choreis Musaruiu pncfiiit: illo<br />

rieniur Aonidum est , jiubiliortjuc clui-<br />

rus.<br />

Fios vetcris, virtuscpie iiovae fuit ille<br />

Cauienae:


4f4 Varias composições<br />

Debita jure sihi steptra Poésis babet.'<br />

in Lusitanos Mt;Íicouis culmina tractus<br />

Transtulit a.itia , Lyi'as , sertã, flucnta ^<br />

Deas.<br />

Currere Castalios nostra de rupe liquores<br />

Jussit, ah invito prata virere solo.<br />

Cerne per iuculios , Tenipe meliora , recessus,<br />

Cerne satãs sterili cespite ,<br />

veris opes.<br />

Omnibus Occidui rident tibi florll)Tis liorti<br />

Non ego jani Lysios, cre<strong>do</strong>, sed Elysios.<br />

Orpheús attonilas dulci inodulainine cantes<br />

Traxit, et ah stygio squali<strong>da</strong> monstra<br />

foro.<br />

fl^bessalicos ,<br />

montes<br />

Lo<strong>do</strong>ice, sacro dum flumine<br />

Pieridumque trabis ,<br />

Coelicolumque tbo-^<br />

ros.<br />

£unt maiora tuae Orpheis miracula tocís:<br />

Attica , quid íacerçs , si libi lingua loretií


Bo P. Fr. Lriz de SotisA^ 4'S<br />

l^a Biblioteca Lusitana, tom» 2. Art. Fr.<br />

Luiz de Sousa , vem de Manoel de Sousa.<br />

Coutlniio, feito na occasião , em que<br />

deitou o ffygo ás casas<br />

Aima<strong>da</strong> , este<br />

déí sua quinta de<br />

EPÍGRAMMA.<br />

IXviJo ,<br />

quid<br />

quid nostris insultas aedibus ? ant<br />

Exilio causas nectis, alisque moras!<br />

Molire , expone, implora, minitare , rc»<br />

posce<br />

Yindictam,<br />

crm<br />

laqueos, jura, pcricla, ne-<br />

Conjurem tecum fortuna, occasio, leges<br />

Longe allò nobis lis dirimen<strong>da</strong> foro est.<br />

Quos llama absumpsit, re<strong>do</strong>lct milii fama<br />

Penates ;<br />

Ponet ai atíternam non moritura <strong>do</strong>muin«


BV Sousa, Luiz de<br />

5095 <strong>Vi<strong>da</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Beato</strong> <strong>Henrique</strong><br />

S85S6<br />

1836<br />

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