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ilustração - Revista 365

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<strong>365</strong><br />

DIRECTOR<br />

Fernando Alvim<br />

alvim@revista<strong>365</strong>.com<br />

EDITOR<br />

António Gregório<br />

a.gregorio@sapo.pt<br />

EDITOR ADJUNTO<br />

Carina Fonseca<br />

carinadafonseca@gmail.com<br />

EDITORES HONORÁRIOS<br />

Vasco Barreto<br />

José Luís Peixoto<br />

GRAFISMO<br />

Homem Invisível<br />

DEPARTAMENTO INTERNACIONAL<br />

Pedro Lourenço<br />

plourenco@revista<strong>365</strong>.com<br />

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Maria Pires<br />

mariapires@revista<strong>365</strong>.com<br />

Rossana Patrícia<br />

rossanapatricia@revista<strong>365</strong>.com<br />

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Raio X — Publicidade e Marketing<br />

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CÚMPLICES<br />

Aleksandra Korecka, Alexandre Andrade,<br />

Alex Gozblau, Ana Queiroz, Aneta<br />

Kowalczyk, Ângela Berlinde, Chelsea Pop,<br />

Daniel Galera, Elisabete Patrícia Andrade,<br />

Izet Sarajilic, Luís Graça, Marcelo Moutinho,<br />

Maria João Ribeiro, Mário Bruno Pastor,<br />

Micael Póvoa, Miguel Marques, Monika<br />

Stojak, Pedro Miguel, Pedro Santo, Rita Lino,<br />

Rui Manuel Amaral, Scott James Prebble<br />

ENDEREÇO<br />

Apartado 15154,<br />

1074 - 004 Lisboa<br />

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91 625 79 29<br />

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ASSINATURAS<br />

assinaturas@revista<strong>365</strong>.com<br />

PUBLICIDADE<br />

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IMPRESSÃO<br />

Ginocar<br />

TIRAGEM<br />

10 000 exemplares<br />

PERIOCIDADE<br />

Bimestral<br />

DEPÓSITO LEGAL<br />

000 000/07<br />

PROPRIEDADE<br />

Cego, surdo e mudo<br />

— produções multimedia<br />

MECENAS<br />

Robin Hood<br />

CAPA<br />

Micael Póvoa<br />

fotografia Scott James Prebble<br />

tr3s65 01


EDITORIAL<br />

Cá estamos de novo no sopé de mais um ano e este,<br />

avisam as autoridades, um bocadinho mais a subir que<br />

os outros, com seixos afiados amiúde, aqui e ali musgo<br />

escorregadio a promover gloriosos espalhanços. Porém,<br />

e para o caso de caírem sentados, que não vos falte a<br />

<strong>365</strong> para uns minutos de aprazível leitura antes da reto-<br />

ma da marcha. São mais de uma dezena de contos pro-<br />

fusamente ilustrados (alguns, inclusive, a cores porque<br />

somos uns mãos-largas), dois deles vindos do outro lado<br />

do Atlântico, onde nesta altura é Primavera e faz calor:<br />

se a inveja provocasse diarreia aos invejados, entre cada<br />

saraivada de granizo luso, haveria uma multidão de bra-<br />

sileiros a correr para a casa de banho. Destaco, pois, o<br />

sotaque deste número: o conto de Marcelo Moutinho,<br />

autor de vários livros de contos e ainda inédito em Por-<br />

tugal; e o de Daniel Galera, cujo seu romance «Mãos de<br />

Cavalo» aconselho (a edição é de 2008, da Caminho).<br />

Ainda um magnífico conto de Alexandre Andrade, outro<br />

de Luís Graça, cinco microficções de Rui Manuel Amaral,<br />

um poema de Izet Sarajlic traduzido por José Luís Peixo-<br />

to, a estreia nas páginas da <strong>365</strong> de Ana Queiroz e Pedro<br />

Miguel, a continuidade de Pedro Santo, Elisabete Patrí-<br />

cia Andrade, Mário Bruno Pastor e Miguel Marques.<br />

Divirtam-se, que é a melhor maneira de lidar com a<br />

crise.<br />

António Gregório.<br />

02<br />

tr3s65<br />

04 Biografias<br />

06 Scents of Provence<br />

>> Alexandre Andrade<br />

14 Confissão à parede<br />

>> Miguel Marques<br />

17 My life in a museum<br />

>> Monika Stojak<br />

18 Tiroteio<br />

>> Daniel Galera<br />

20 O meu rosto termina<br />

onde o teu começa<br />

>> Elisabete Patrícia Andrade<br />

24 A minha estância em Istambul<br />

>> Izet Sarajlic<br />

26 Rosa noturna<br />

>> Marcelo Moutinho<br />

32 Cinco histórias nocturnas<br />

>> Rui Manuel Amaral<br />

34 A mulher que sofria muito<br />

com as recordações musicais<br />

>> Luís Graça<br />

38 Jacinto<br />

>> Pedro Santo<br />

40 Another one bites the dust<br />

>> Pedro Miguel<br />

42 Os dois caras de cavalo<br />

>> Ana Queiroz<br />

46 O caminho para Weimar<br />

>> Mário Bruno Pastor


fotografia Maria João Ribeiro<br />

tr3s65 03


ESTRAnHOs CoMO NoS<br />

Alexandre Andrade nasceu em 1971 em Lisboa, onde reside. É<br />

professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.<br />

Tem 2 romances e 2 livros de contos publicados.<br />

Ana Queiroz tem 21 anos, frequenta o último ano do curso de<br />

Cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema. Foi seleccionada<br />

entre os Jovens Criadores de 2008 na categoria de Literatura e, no<br />

futuro, deseja trabalhar nessa área, bem como na de Cinema.<br />

António Gregório nasceu em Leiria, em 1970. É autor de «Uma<br />

história de desamor treze vezes» (Ambar, 2004) e «American<br />

Scientist» (Quasi, 2007). O conto «Rodolfo» que aqui publica-<br />

mos, foi retirado da antologia «Vamos para onde temos a ventu-<br />

ra» (CEPAE, 2008)<br />

Daniel Galera nasceu em São Paulo, em 1979. É escritor e tradu-<br />

tor. Tem publicado em Portugal o romance «Mãos de Cavalo»<br />

(Caminho, 2008). É também autor de «Até o dia em que o cão<br />

morreu» (Livros do Mal, 2003 e Companhia das Letras, 2007 –<br />

posteriormente adaptado ao cinema com o nome «Cão sem<br />

dono» e realizado por Beto Brant e Renato Ciasca) e «Cordilhei-<br />

ra» (Companhia das Letras, 2008), além do volume de contos<br />

«Dentes Guardado» (Livros do Mal, 2001), de onde retirámos «Ti-<br />

roteio», que publicamos neste número.<br />

Elisabete Patrícia Andrade estudou letras na Universidade Clás-<br />

sica de Lisboa. Reside presentemente no Reino Unido. Gosta de<br />

arte, de filosofia, de coleccionar livros e memórias. Elege o humor<br />

negro.<br />

Izet Sarajlic é um dos poetas bósnios mais traduzidos. Nasceu<br />

em Doboj, em 1930, e morreu em Sarajevo, em 2002. O poema<br />

que aqui publicamos, «A minha estância em Istambul», foi tradu-<br />

zido por José Luís Peixoto a partir do castelhano, segundo consta<br />

no volume «Una calle para mi nombre» (4 Estaciones, 2003).<br />

Luís Graça é jornalista e escritor. Tem publicado «15 Desatinóni-<br />

mos para Fernando Pessoa», «De Boas Erecções está o Inferno<br />

Cheio» e «A Mulher que Fazia Recados às Putas e mais contos<br />

perversos», de onde retirámos «A mulher que sofria muito com as<br />

recordações musicais», que publicamos neste número.<br />

04<br />

tr3s65<br />

Marcelo Moutinho nasceu em Madureira, subúrbio do Rio de<br />

Janeiro, no dia 22 de Junho de 1972. É jornalista e escritor. Tem<br />

publicados os volumes «Memória dos barcos» (7Letras, 2001) e<br />

«Somos todos iguais nesta noite» (Rocco, 2006). É inédito em<br />

Portugal.<br />

Mário Bruno Pastor nasceu no Porto em 1976. Padece de bis-<br />

sextismo e custa-lhe a aceitar que existam calendários para os<br />

anos vindouros. A par disso tem publicado poesia em edições lite-<br />

rárias colectivas.<br />

Miguel Marques nasceu em Lisboa em 1978, cursou Psicologia<br />

derivado a um erro de preenchimento dos impressos e encontra-<br />

se, actualmente, empregado a título precário num projecto de<br />

intervenção social. Falhou uma brilhante carreira política. Entre-<br />

mentes, foi forcado em Barrancos, seringueiro na Amazónia,<br />

bate-chapas em Moscavide, traficante de armas na Rodésia e guia<br />

de excursões entre Tânger e Gilbraltar. Tem contos publicados nas<br />

antologias <strong>Revista</strong> <strong>365</strong> – Os Primeiros Anos (CoolBooks, 2004) e<br />

em duas colectâneas Jovens Escritores (101 Noites, 2005 e<br />

2006).<br />

Pedro Miguel nasceu em Leiria, há 33 anos. Escreve. Certas noi-<br />

tes, independentemente da fase da lua, transforma-se no dj Sch-<br />

meichael e mete música.<br />

Pedro Santo é um gajo que acha que estas mini-biografias são<br />

redutoras para com a sua incomensurabilidade. Como precisava<br />

de pelo menos mais uma linha, e em protesto, acaba por não<br />

adiantar nada sobre si, a não ser que nasceu em Leiria, em 1980.<br />

Rui Manuel Amaral nasceu no Porto, em 1973, cidade onde<br />

vive. É coordenador literário da revista aguasfurtadas. É autor de<br />

«Caravana», editado pela Angelus Novus.


fotografia Rita Lino<br />

tr3s65 03


06<br />

tr3s65<br />

Scents of Provence<br />

Alexandre Andrade


A bola embateu na outra bola no ponto<br />

certo, mas com o efeito errado, ou no ponto er-<br />

rado com o efeito certo. Rachel não pôde evitar<br />

um suspiro de frustração. Cada colisão era acom-<br />

panhada por um som seco e previsível. Os tacos<br />

passaram de uma brusca mão derrotada para<br />

outra mão. Rachel não conhecia as regras do<br />

jogo, mas emitia opiniões com uma cadência<br />

quase feroz.<br />

Havia meia hora que entrara naquele<br />

bar de Antibes, esforçando-se por aparentar a<br />

calma principesca de quem já conheceu tudo o<br />

que na vida existe que valha a pena conhecer.<br />

Interessara-se pela partida de bilhar, e agora,<br />

com a mão esquerda fechada em torno do copo<br />

que continha o resto tépido do seu diabolo grenadine,<br />

esforçava-se por se integrar no grupo de<br />

jogadores, mas mantendo as distâncias; ou então,<br />

cultivar um módico de distanciamento sem<br />

descurar o apetite pela socialização. Tanto uma<br />

como a outra estratégia lhe pareciam boas. Um<br />

rapaz muito moreno, dono de um fascinante par<br />

de olhos verde-azeitona, perguntou a Rachel se<br />

queria jogar. Não, Rachel não jogava. O seu reflexo<br />

no vidro que dava para a rua mostrou um rosto<br />

sufocado pela gratidão.<br />

Era um fim de manhã de Julho, e oxalá<br />

que todos os dias fossem tão carregados de possibilidades<br />

como aquele. O olhar abarcava sem<br />

esforço todos os segmentos do campo visual, e o<br />

tempo era meigo, benigno, tolerante para os caprichos.<br />

O grupo preparava-se para partir. O rapaz<br />

moreno chamava-se Malik. Rachel vasculhava<br />

as profundezas da gramática e vocabulário<br />

franceses para responder à última pergunta que<br />

lhe fora dirigida. Saiu quando os outros saíram,<br />

em último lugar. Atravessou a rua fora da passadeira<br />

para peões, apreensiva por abdicar da superioridade<br />

moral que o respeito pelo código da<br />

estrada confere, em caso de acidente. Mas aquele<br />

sol glorioso, tão cruamente diferente do sol<br />

que ela conhecia do Ohio!... Perturbada pela luz,<br />

Rachel chegou ao outro lado da rua incólume,<br />

mas prestes a perder contacto com o grupo de<br />

jovens que a precedia. Rachel estava certa de que<br />

um comentário que escutara, da boca de um deles,<br />

mas não de Malik, lhe era dirigido. Não o<br />

compreendera totalmente, mas a vontade de responder<br />

aglutinou, por momentos, toda a sua<br />

energia e motivação. Eis porém que, ao dobrar<br />

uma esquina, os viu mais do que nunca afastados,<br />

atravessando já a rua, mais uma vez na diagonal,<br />

apressando o passo. Rachel deixou-se ficar.<br />

Fingiu seguir com os olhos um spaniel<br />

pachorrento, cuja dona, uma mulher de cerca de<br />

quarenta e cinco anos, retocava a pintura com a<br />

ajuda de um minúsculo espelho circular. Segurava<br />

o espelho e a trela com a mesma mão, e com<br />

a direita aplicava rímel.<br />

Lembrou-se que “Kro” era uma abreviatura<br />

para “Kronenbourg”, apreciada marca de<br />

cerveja.<br />

Àquela hora, os pais estariam no quarto<br />

de hotel, escrevendo cartas, ou servindo-se de<br />

pratas de chocolate para marcar as páginas do<br />

guia turístico. O dia seguinte a uma chegada a<br />

lugar estranho não era a altura ideal para se expor<br />

às agressões do mundo exterior. Tudo o que<br />

fosse sair à rua antes do terceiro dia era prematuro.<br />

A saúde do pai de Rachel. Rachel, os seus dezasseis<br />

anos, pela primeira vez num novo continente.<br />

“As minhas certezas devassadas” pensou<br />

Rachel, “as minhas convicções sacudidas. Nada<br />

mais peço do que isso.”<br />

Que fazer? Rachel desdobrou o mapa<br />

de estradas que trazia sempre consigo. Converteu<br />

mentalmente distâncias quilométricas em milhas<br />

e em horas. A proximidade da saída rodoviá-<br />

tr3s65 07


ia para Grasse era tentadora. Deixar para trás<br />

Antibes, na qual Rachel adivinhava uma implacável<br />

promessa de tédio e de opressão, fugir do<br />

mar Mediterrâneo, no automóvel de um desconhecido<br />

cujas feições não perdurariam na sua<br />

memória. Abandonar-se ao acaso. Forçá-lo a ser<br />

seu cúmplice. Grasse, a capital mundial do perfume.<br />

Como fazer para chamar a atenção de<br />

um motorista que reunisse as doses exactas de<br />

boa vontade e de urbanidade? Como ser mais do<br />

que uma manchinha colorida e fugidia na berma<br />

da estrada, tão alheia ao furor mecânico dos automóveis<br />

que aceleravam na cobiçada direcção<br />

de Grasse? Rachel guiou os seus passos pelo<br />

mapa de estradas. Talvez um capricho do destino<br />

fizesse as vezes de providência sob aquele soberbo<br />

céu mediterrânico. Talvez alguém reparasse<br />

nela. Talvez não pensar no problema fosse a melhor<br />

maneira de o começar a resolver. Podia ser<br />

que a timidez dos seus pequeninos passos fosse<br />

na medida inversa da vertiginosa deslocação física<br />

que aquele dia reservava para o seu corpo.<br />

E, afinal, como tudo foi fácil! Prestando<br />

atenção à estrada como se fosse sua a obrigação<br />

de conduzir, Rachel alheou-se da conversa com a<br />

08<br />

tr3s65<br />

mesma eficácia com que se alheava da hora do<br />

dia e do bom senso. Entre Antibes e Grasse ca-<br />

bem decerto mais do que dois ou três monossíla-<br />

bos e um olhar furtivo, mas Rachel fez-se parca<br />

em palavras e gestos como se a parcimónia a de-<br />

fendesse de tudo aquilo que inquieta neste mun-<br />

do dos Homens. A dama que lhe dera boleia ti-<br />

nha uma cicatriz oblíqua na nuca, e o hábito de<br />

se debruçar para a frente sobre o volante. No<br />

banco traseiro via-se, semicoberta por uma man-<br />

ta de tecido barato, uma gaiola de plástico que<br />

continha um animal roedor, provavelmente um<br />

porquinho-da-Índia. Ah, os detalhes.<br />

Mal se tinha apeado, Rachel voltou-se<br />

subitamente para perguntar à condutora qual era<br />

o local, em Grasse, onde as pessoas tinham o hábito<br />

de se encontrar, para conversar, etc. Devidamente<br />

informada, seguiu caminho. Encontrou o<br />

local sem dificuldades. Assim que o primeiro rapaz<br />

lhe ofereceu uma bebida, Rachel orientou a conversa<br />

para o tema dos perfumes, das fragrâncias,<br />

dos aromas, das essências. Os sinónimos em excesso<br />

podem denotar insegurança. Rachel humedecia<br />

os lábios com frequência, o que a irritava. O<br />

gesto era dela, mas irritava-a. Deu-se conta de<br />

que tinha perdido o mapa de estradas.


— Tenho de fazer uma chamada telefó-<br />

nica — disse Rachel.<br />

— Empresto-te o meu cartão — disse o<br />

rapaz, cujas feições eram melancólicas e breves.<br />

Rachel afogou interiormente o desapontamento.<br />

Habituada a uma pródiga dieta de<br />

filmes franceses dos anos 50 e 60, em sessões<br />

nocturnas de um obscuro canal por cabo, já se<br />

via ao balcão a comprar uma mão cheia de jetons,<br />

essas pequenas fichas de plástico para o<br />

telefone público que o progresso relegou para a<br />

categoria de objectos da nostalgia. O cartão que<br />

o rapaz lhe estendia fazia publicidade a uma<br />

companhia de seguros mutualista. Pensando<br />

bem, o telefonema aos pais não se impunha. A<br />

tarde ainda mal começara.<br />

— E o que há para fazer em Grasse?<br />

Existiam, ao que parecia, muitas coisas<br />

para fazer em Grasse. O jovem discorreu vagamente<br />

sobre um mercado ao ar livre, uma exposição<br />

e um local de animação nocturna, mas sem<br />

que a sua expressão denotasse algo parecido<br />

com o entusiasmo.<br />

— Engano-me — perguntou Rachel,<br />

indo directa ao assunto — ao supor que existe na<br />

cidade um museu da indústria dos perfumes,<br />

com reputação planetária?<br />

É claro que não se enganava.<br />

— Levas-me até lá? — Rachel já estava<br />

de pé. Havia algo de nobre e de austero, naquelas<br />

ruas cujo pitoresco não saltava com demasiada<br />

violência aos olhos.<br />

O Musée International de la Parfumerie<br />

oferecia como pontos altos a visita à fábrica e à<br />

estufa. No interior desta, Rachel deslocava-se de<br />

um lado para o outro, num alvoroço controlado,<br />

balbuciando o nome das essências sem precisar<br />

de confirmação: jasmim, íris, pimenteiro, benjoim,<br />

bergamota, baunilha.<br />

— Tu sabias que a bergamota... Como<br />

é mesmo o teu nome?<br />

— Arnaud.<br />

— Tu sabias, Arnaud, que a bergamota<br />

é um citrino? Colhe-se entre Novembro e Maio.<br />

Apenas se utiliza a casca, e o rendimento do processo<br />

não ultrapassa os 0,5 %. Também possui<br />

propriedades antissépticas.<br />

Quanto à lavanda...<br />

Arnaud tão pouco estava ao corrente<br />

de que a famosa casa de perfumaria Molinard<br />

permitia ao turista interessado a visita das suas<br />

instalações. Arnaud e Rachel percorreram suces-<br />

tr3s65 09


sivamente a fábrica de sabonetes, a destilaria e a<br />

sala dos cremes. As técnicas empregues eram estritamente<br />

artesanais, garantindo uma rara qualidade<br />

e um requinte extremo. No final da visita,<br />

era proposto ao visitante um curioso jogo em<br />

equipa. Numa primeira etapa, cada equipa deveria<br />

esforçar-se por reconhecer as essências e associá-las<br />

à matéria-prima correspondente. Em<br />

seguida, a missão consistia em recriar um perfume<br />

e eliminar o intruso presente numa dada pirâmide<br />

olfactiva. Rachel saiu-se na perfeição, e sem<br />

esforço aparente. De novo ao ar livre, num ziguezagueante<br />

trote rápido de felicidade, Rachel enumerava<br />

os nomes dos perfumes em cuja composição<br />

entra o cardamomo, que Arnaud apenas<br />

conhecia como aromatizante de café: “Femme”,<br />

de Marcel Rochas, “Jungle”, de Kenzo, “Envy”,<br />

de Emilio Gucci, “Dolce Vita”, de Christian Dior,<br />

“Stradivarius”, de Armani, “So”, de Oscar de la<br />

Renta, “Déclaration”, de Cartier, “Sonia Rykiel”,<br />

de Sonia Rykiel, e “Jako”, de Karl Lagerfeld. Mais<br />

em tom de cantilena do que de elenco. Seguiu-se<br />

uma vénia, uma pequena vénia. Ninguém reparou<br />

na vénia.<br />

— O teu olfacto é fenomenal — elogiou<br />

Arnaud, incrédulo. Arnaud, pouco à vonta-<br />

10<br />

tr3s65<br />

de, personagem menor e acessória, sem saber<br />

como lidar com aquele novelo de energia e deci-<br />

são dotado de sotaque.<br />

— Em Cleveland, que é de onde eu venho,<br />

só me serve para cheirar escape de carros,<br />

reboco húmido e gelado de baunilha industrial.<br />

Como desejava visitar a Côte d’Azur! Se aqui estou,<br />

devo-o sobretudo aos altos e baixos da saúde<br />

do meu pai. O clima. Mesmo que não lhe faça<br />

bem, decerto que não lhe fará mal. Mas os meus<br />

pais também achavam que umas férias europeias<br />

me seriam benfazejas. Querem-me emancipada e<br />

de espírito aberto, querem que eu rasgue os<br />

meus horizontes, querem que eu, longe de estiolar,<br />

viceje.<br />

— Queres jantar com um grupo de amigos<br />

meus? — perguntou Arnaud, em cuja voz<br />

sumida Rachel, deleitada, debilmente lisonjeada,<br />

julgou detectar o medo (absurdo) de uma recusa.<br />

Um pouco mais tarde, num estabelecimento<br />

de restauração rápida, Rachel fixava os<br />

rostos e corpos que compunham a roda de amigos,<br />

atenta aos rituais, às expressões, às posturas,<br />

à articulação da palavra com o gesto. A necessidade<br />

de telefonar aos pais funcionou quase


como um pretexto, como um argumento impro-<br />

visado para conceder alguns minutos de trégua à<br />

sua excitação, para fugir à violenta forma de eu-<br />

foria que dela se apoderava. Os pais não mostra-<br />

ram preocupação pela sua ausência. Rachel pro-<br />

meteu tentar regressar a Antibes no dia seguinte,<br />

e descreveu a situação geográfica de Grasse.<br />

“Vem de certeza no guia” gritou ainda para o<br />

aparelho, sem a certeza de ter sido ouvida.<br />

De regresso à mesa, pejada de restos de<br />

comida e de copos de plástico a cujo interior aderiam<br />

gotículas de Orangina, Rachel detectou uma<br />

nota de solenidade que até aí estivera ausente<br />

das conversas e interpelações cruzadas daquela<br />

meia dúzia de camaradas, unidos por uma história<br />

comum, pela adolescência tardia e pela pertença<br />

àquela nesga de terra provençal. Falava-se<br />

(pareceu-lhe) de uma pessoa ausente, de alguém<br />

que suscitava admiração, mas também o incómodo<br />

próprio de quem faz coisas que mais ninguém<br />

faz ou como mais ninguém faz. Viva perto de<br />

Draguignan, e chamava-se Marianne. Marianne<br />

interrompera estudos académicos para se entregar,<br />

a tempo inteiro, a uma tarefa que fugia ao<br />

corriqueiro. Um industrial e multimilionário norte-americano,<br />

Bruce Portinari, rei dos colchões<br />

ortopédicos, pagava-lhe para procurar provas<br />

que sustentassem o seu longínquo parentesco<br />

com a Beatriz do Dante. Marianne vivia num lugar<br />

isolado, numa cabana rústica desprovida dos<br />

mais elementares confortos. Dispensava água<br />

corrente, telefone e Internet; possuía pomar privativo,<br />

e fazia o seu próprio queijo. Viajava muito,<br />

sobretudo a Marselha, e daí para Florença e<br />

outras cidades da Europa. Consultava assentos<br />

de baptismo em paróquias e passava dias inteiros<br />

em bibliotecas. Chegava à hora de abertura e vinha-se<br />

embora à hora de encerramento. Parlamentava<br />

com directores de registos civis. Rachel<br />

não chegou a perceber o que trouxera à conversa<br />

(de resto fugazmente, pois já se mudara de assunto)<br />

aquela personagem, que alcançara estatuto<br />

de lenda local. “Tal e qual uma personagem de<br />

Pagnol” pensou Rachel, assombrada. Os ruídos e<br />

os aromas do interior da Provença participavam<br />

desse seu fascínio. Durante muito tempo, associaria<br />

Dante ao cheiro feroz da esteva, da toranja<br />

e do alecrim.<br />

O que fazer daquela noite? Ninguém<br />

opôs mais do que um simulacro de resistência à<br />

ideia de um passeio nocturno a Cannes. Alguém<br />

se deu ao trabalho de explicar a Rachel onde fica-<br />

tr3s65 11


va Cannes, e como se ia de Grasse para lá. Aten-<br />

ção supérflua, pois Rachel passara o trajecto de<br />

avião a estudar guias turísticos e mapas da re-<br />

gião, com a atenção crispada de um neófito de-<br />

masiado orgulhoso para se permitir passar por<br />

ignorante. Distribuíram-se por três viaturas. Ao<br />

sentir o ar estagnado, alguém prognosticou uma<br />

trovoada. Rachel lamentou a hora adiantada, que<br />

a privava do contacto visual com as bermas da<br />

estrada nacional nº 85. Avançavam impantes<br />

como galeões seiscentistas, ufanos e condescen-<br />

dentes, sem sequer se darem ao trabalho de ace-<br />

lerar de forma excessiva. Dir-se-ia uma plácida<br />

procissão onde aos celebrantes importasse es-<br />

sencialmente fruir do momento presente. Come-<br />

çara a chover. O ribombar fez-se esperar até avis-<br />

tarem o Mediterrâneo, negro e líquido, tão<br />

imensamente superior à borrasca. Estacionaram<br />

assim que puderam, num caminho secundário<br />

em declive. Acenaram uns aos outros, de carro<br />

para carro, através dos vidros batidos pela água<br />

que tombava em torrentes. Havia quem achasse<br />

que os ocupantes de um automóvel estavam pro-<br />

tegidos dos relâmpagos, e havia quem achasse o<br />

contrário. Mais do que iluminar rostos, uma lan-<br />

terna eléctrica encontrada no porta-luvas definiu<br />

os seus contornos. Cantaram-se canções de Mi-<br />

chel Polnareff, com percussão de moedas, unhas,<br />

chaves e palmas contra palmas. Não faltou quem,<br />

com o avançar das horas, se entregasse a um<br />

sono necessariamente breve e incipiente. A sorri-<br />

dente Rachel, essa, nunca abrandou a vigília.<br />

“Olha para tudo. Vê tudo. Hás-de lembrar-te<br />

disto para sempre.”<br />

12<br />

tr3s65<br />

Quando rompeu a alvorada, chovia menos.<br />

Segmentos de céu baço e claro espraiavamse,<br />

morosos. Saíram dos carros, procuraram a<br />

praia. A Croisette estava quase deserta, àquela<br />

hora. Entraram areal adentro com fatigada ligeireza.<br />

Formaram-se grupos. Odores fortes por<br />

identificar cavalgavam a brisa. “É apenas a segunda<br />

vez na minha vida que vejo o mar”, pensou<br />

Rachel, esquecendo-se do oceano avistado a<br />

milhares de pés de altitude.<br />

Despontava o sol.<br />

No seu guia turístico, a distância que<br />

separava Cannes de Antibes equivalia a uma falange<br />

de seu dedo indicador. Rachel admirou a<br />

forma simples e resoluta como os seus antebraços<br />

se projectavam para fora das mangas húmidas<br />

da sweat-shirt.<br />

“Será que mereço isto? Chamar-me-ão<br />

louca se falar em espuma de rebentação e asfalto<br />

num só bilhete-postal? A minha história aguenta-se?<br />

Será que se aguenta?”<br />

Mas estava na altura de se desviar de<br />

alguém cuja sombra se aproximava, e da ameaça<br />

de um brusco sorriso.<br />

Lisboa, Outubro-Novembro, 2006


fotografia<br />

Rita Lino<br />

tr3s65 13


MIGUEL MARQUES<br />

14<br />

tr3s65<br />

CONFISSÃO À PAREDE<br />

fotografia MICAEL PÓVOA


Hoje está atrasada. Os malvados nunca<br />

vêm à tabela. Se calhar perdeu o das nove e teve<br />

de esperar pelo das dez menos um quarto. Quan-<br />

do não vem, telefona a avisar. Hoje ainda não li-<br />

gou, portanto deve vir. Deus queira que não te-<br />

nha acontecido nada. Já tinham dado nas<br />

notícias. Eles dão sempre. Ainda antes de ontem<br />

caiu uma catenária e morreram não sei quantas<br />

pessoas. O comboio descarrilou e apareceu o<br />

chefe da estação a falar. Esse não morreu. Os<br />

malvados vêm sempre com atraso. Acho que foi<br />

um rápido. A sorte foi que iam poucos passagei-<br />

ros, mas, mesmo assim, ainda morreram uns<br />

quantos. Deve ter-se atrasado. Se calhar ligou e<br />

não dei por nada. O mais certo é ter-se atrasado.<br />

Nunca se esquece. Nove e meia, o mais tardar,<br />

telefona. No outro dia trouxe-me um aquecedor<br />

eléctrico, daqueles que se ligam à corrente, por-<br />

que diz que faz mal acender a braseira em casa,<br />

mas não me habituo a ele. Como não tenho as<br />

brasas, ponho a manta nos joelhos ou aqueço os<br />

pés com o saco de água quente. Nesta altura, as<br />

noites são tão frias que me enregelam as mãos e<br />

a barriga das pernas. Uso meias de lã mas o frio<br />

perpassa a roupa. Perpassa tudo, este frio.<br />

O Verão passado levou-me à praia a ver<br />

o mar. Nunca tinha visto o mar, antes. Mostroume<br />

as ondas e as pessoas a apanharem sol, estendidas<br />

na areia, com as mamas ao léu, e ficámos<br />

ali as duas sentadas, a comer pão com<br />

presunto e uns pastéis de bacalhau que salteei<br />

com um raminho de coentros. Bebemos chá dum<br />

termo que ela leva sempre para a praia, dentro<br />

duma cesta. Também vimos um homem que vendia<br />

gelados, um que gritava por uma corneta,<br />

como os malucos, e apitava uma buzina, e ela até<br />

comprou um gelado e comemo-lo a meias, porque<br />

já não tenho dentes e o doce ataca-me o<br />

estômago. Também já não tenho estômago. Pôs-<br />

me o palhinhas na cabeça e besuntou-se toda de<br />

creme, de cima a baixo, braços e pernas. Também<br />

ficou com as mamas ao léu, à torreira, e eu<br />

só a avisava para ter cuidado, que é preciso cautela,<br />

porque faz um mal danado, aquele sol assim<br />

de chapa, mas ela gosta de se bronzear e ficar<br />

chamuscada como uma cavaca. Nesse dia, adormeceu<br />

deitada na toalha, e vi passar uma catraia<br />

com tranças mais a mãe, à beira da água. Nunca<br />

comia nada, ela, quando era pequena. Bolçavase<br />

toda e era um martírio para comer, por isso<br />

tive de obrigá-la a engolir o vomitado para<br />

se habituar a não deitar tudo cá para fora,<br />

senão tinha morrido de fraqueza.<br />

Anda uma puta duma melga de roda de<br />

mim há coisa de uma hora, a cirandar. Pôs-me os<br />

braços num crivo, cheios de babas, pareço uma<br />

chaga. Fico numa pilha de nervos só de a ouvir,<br />

neste zunzum. Está ali no tecto, a magana. A ver<br />

se a apanho. Se não fossem as pernas, punha<br />

uma rodilha na vassoura e matava-a. A ver se a<br />

deixo pousar, malvada.<br />

Parece que escuto baterem. Puxa sempre<br />

duas vezes. Combinámos assim. Também<br />

combinámos que, quando precisar de alguma<br />

coisa, marco o número neste botão e o telefone<br />

marca o resto sozinho, por ele. É daqueles modernos.<br />

Espero que dê o sinal que ela depois ligame<br />

de volta. Trabalha nos telefones e não paga<br />

as chamadas que faz de lá. As campainhas estão<br />

a tocar. Deve ser algum, com certeza. E agora,<br />

levantar-me? Vá a ver. Nunca vêm à tabela, os<br />

desgraçados. Raios os partam mais as greves,<br />

sempre a azucrinarem-me os cornos, almas dos<br />

infernos. A puta está ali naquele canto, a espreitar.<br />

Espera lá que já te conto uma estória, espera<br />

lá. Canto-te uma cantiga. Deixa-te poisar no armário<br />

que eu dou-te o arroz. Espera lá, espera.<br />

Que não me deixa ouvir o homem, esta pata co-<br />

tr3s65 15


nana. Parece que disseram que é o de Vila Fran-<br />

ca. Ainda aparece, com certeza. Nunca se esque-<br />

ce. Deve vir esganada. O pior é se traz muita<br />

fome e não fica cheia só com as costeletas. Frito<br />

batatas, também. É só debulhá-las. As costeletas<br />

são boas. É melhor tirá-las do congelador. Podia<br />

ter feito uma açorda, mas só ali tenho dois papo-<br />

secos. Espera. Ainda ali há um restinho de caldo<br />

verde. Não terá azedado? Fervo-o, de qualquer<br />

das maneiras, e, assim, come uma colherzinha de<br />

sopa e já fica mais aconchegada. Depois estrelo<br />

um ovo e cozo um bocado de toucinho para<br />

acompanhar com a sopa. Gosta de comer o tou-<br />

cinho no pão, ela. Até se lambe toda, coitadinha.<br />

Para isso nunca se queixa de que fica gorda. E<br />

este maldito frio, que não há maneira de passar?<br />

O estupor do vento não me deixa ouvir nada. Pa-<br />

rece que chove. Se vem trovoada molha-se toda.<br />

E se não traz guarda-chuva? Costuma trazer um<br />

dentro da mala. Ai, Nossa Senhora, como se pôs<br />

o tempo. Passou-se-me o noticiário. Devem ter<br />

avisado, eles. Avisam sempre que dão chuva. E a<br />

roupa a secar, quem ma apanha, abrenúncio?<br />

Deus nos acuda. A ver se ganho alento e me le-<br />

vanto para ir à cozinha acender a lamparina, e<br />

aproveito e trago a vassoura para matar esta puta<br />

que não pára de me moer o juízo. Maldita. Vá a<br />

ver. Parece que escuto baterem. Ou será da chu-<br />

va? É com cada trovão que tudo estremece, cre-<br />

do. Chegou um, parece-me. Deve vir neste. Nun-<br />

ca se esquece. Há-de vir toda molhadinha. Ainda<br />

se constipa, valha-me Deus. Apanha-me uma gri-<br />

pe ou uma broncopneumonia. Na semana passa-<br />

da estava a chocar uma, sempre a fungar, com o<br />

pingo no nariz. Tive de lhe emprestar um lenço.<br />

Anda sempre constipada, aquela rapariga. É me-<br />

lhor aquecer chá de limão e misturar-lhe uma co-<br />

lher de mel. O que chove lá fora, Jesus Senhor.<br />

Por este andar, nem depois de amanhã consigo<br />

16<br />

tr3s65<br />

secar a roupa. E fazem-me tanta falta, o resguar-<br />

do e os lençóis. Pode ser que cá durma, hoje.<br />

Com este tempo, não há-de trazer na ideia voltar<br />

para trás. Parece que bateram. Deve ser ela. Não<br />

me dá descanso, esta magana. Vou buscar a vas-<br />

soura, espera lá. Dou-te uma que te arranco as<br />

asas. Deve ser ela. Nunca se esquece. Vá a ver.<br />

Tenho de me levantar para abrir o fecho, senão<br />

molha-se toda. Anunciaram qualquer coisa. Não<br />

se ouve nada, com esta chuva. Ainda me demoro<br />

a descascar as batatas e a pôr a carne debaixo de<br />

água. A ver se amanhã não me esqueço de com-<br />

prar pão no lagar. Prefere saloio, ela, mas agora<br />

tenho trazido daqueles da padaria que enrijecem<br />

num instante e só servem para fazer torradas, e<br />

não tenho dentes para trincá-las. Marcou-me<br />

consulta porque perdi a placa não sei aonde, mas<br />

diz que não faz mal, que até é melhor assim, por-<br />

que agora fazem umas que não se arrancam, fi-<br />

cam agarradas à boca, e é da maneira que não<br />

torno a perdê-la. Parece que ando maluca, since-<br />

ramente. Doida de todo. Parou um. Deve vir nes-<br />

te. Vá a ver. O óleo é capaz é de já não estar em<br />

condições. Tenho impressão que guardei uma<br />

garrafa na despensa. Ainda aparece, com certe-<br />

za. Daqui a nada está aí, ela. Deve trazer fome.<br />

Nunca se esquece. Terão batido? Parece que ouvi<br />

puxar. Se calhar azedou, a sopa. Espera lá, espe-<br />

ra, que já aí vou ter contigo. Eu conto-te uma<br />

estória, espera lá. Dou-te uma que te estrafego.<br />

Nem sabes de que terra és. Chegou um, parece-<br />

me. Anunciaram qualquer coisa. Se calhar ficam<br />

melhor mexidos, os ovos. Ainda ali há carcaças.<br />

Os rápidos nunca param.


Monika Stojak<br />

My Life in a Museum<br />

tr3s65 17


18<br />

tr3s65<br />

Eu tava no bar do Zé comendo uma co-<br />

xinha de galinha e tomando uma cerveja, nada<br />

que eu já não tivesse feito antes. Havia, como de<br />

praxe, meia dúzia de pescadores bêbados atira-<br />

dos pelas mesas, uns rindo da cara dos outros,<br />

outros jogando dominó, um último cambaleando<br />

entre duas mesas de sinuca, coçando o rosto in-<br />

chado. E meio que do meu lado, a pouco mais de<br />

um metro, um outro pescador, maior que todos<br />

os outros, mais feio que todos os outros, sacudin-<br />

do graciosamente um carrinho de bebê dentro do<br />

qual havia um bebê. O carrinho era novo, o bebê<br />

era branquinho, limpo, sorridente e silencioso. Eu<br />

já tinha visto muita coisa estranha no bar do Zé<br />

pra me espantar com um carrinho de bebê com<br />

um bebê dentro, no meio daquele boteco escuro,<br />

velho, ocupado exclusivamente por homens ru-<br />

des, grotescos, a maioria miseráveis, todos bêba-<br />

dos. Continuei mastigando minha coxinha. Mas a<br />

presença do bebê começou, finalmente, a me<br />

causar uma certa estranheza, e eu tirei os olhos<br />

do balcão para encarar aquele pequeno ser nos<br />

olhos. O pai também encarava a criança, com<br />

uma expressão bobalhona. Então eu olhei pro su-<br />

jeito e falei uma coisa que eu nunca imaginaria a<br />

mim mesmo falando pra ninguém, muito menos<br />

prum pescador bêbado. “Que criança linda”. Ele<br />

sorriu e se inclinou pra cima de mim, soltando um<br />

bafo alcoolizado e morno no meio do qual conse-<br />

gui distinguir o nome da menina, que já esqueci.<br />

Então ele começou a contar toda a história do<br />

nascimento da criança, era a segunda filha dele, a<br />

outra tinha cinco anos de idade, nesse tempo<br />

todo separando as duas a mulher dele tinha sofri-<br />

do três abortos naturais, havia ficado doente, ele<br />

trabalhou feito m cachorro pra conseguir pagar<br />

todos os médicos e hospitais, mas que agora a<br />

filha dele tinha finalmente nascido, e que era<br />

muito esperta e muito linda e etc, e eu olhei pra<br />

ela no carrinho e notei que era mesmo uma das<br />

crianças mais lindas que eu já tinha visto. O cara<br />

parecia fascinado em ter encontrado alguém pra


escutar as coisas que ele tinha pra dizer, e depois<br />

de todos os detalhes do nascimento da filha co-<br />

meçou a falar do resto da família dele, a mãe dele<br />

tinha tido cinco filhos, duas gêmeas e três trigê-<br />

meos, ele era um dos três e mais um monte de<br />

coisa, e eu comecei então a me sentir realmente<br />

desconfortável, a coxinha não terminava nunca, a<br />

garrafa de cerveja não tava nem na metade, re-<br />

solvi que eu queria sair dali mas não tinha como,<br />

não tinha coragem de cortar o cara, pedir pra ele<br />

parar de falar, e a menina no carrinho olhando<br />

pra mim com olhos arregalados, tão bonita e per-<br />

feitinha quanto num comercial de sabonete Fofo,<br />

o carrinho levemente embalado por aquele ser<br />

enorme, tão tosco que eu só compreendia uma<br />

em cada três palavras que ele me dizia, mãos<br />

grossas com dedos rachados, a pele parecendo<br />

folgada por cima dos músculos vigorosos. “Quer<br />

ver como ela é forte? Bota o dedo na mãozinha<br />

dela pra ver como ela aperta, quero ver tu soltar”,<br />

ele me disse, e eu fui lá estiquei o indicador e<br />

coloquei na mão da criatura, ela não ligou muito,<br />

ignorou o meu dedo, ficou rindo sozinha, eu já<br />

não tava achando graça, eu tava desesperado pra<br />

sumir dali, engoli todo o resto da coxinha e come-<br />

cei a beber a cerveja apressadamente, tirando uns<br />

trocos da carteira ainda escutando o cara contar<br />

como a filha mais velha era inteligente, com cinco<br />

anos de idade sabia até atender telefone, sabia<br />

até tratar visita, assim que eu sequei a garrafa me<br />

virei e disse mais uma coisa que eu nunca imagi-<br />

nei a mim mesmo dizendo pra ninguém, muito<br />

menos prum pescador bêbado, “Feliz Natal e um<br />

bom ano novo pro senhor”, do alto da empolga-<br />

ção ele me respondeu algo parecido, sorriu, eu<br />

sorri de volta, nervoso, muito nervoso, sem saber<br />

o porquê daquele mal-estar, e saí de lá quase cor-<br />

rendo, depois corri, como se estivesse fugindo de<br />

um tiroteio.<br />

tr3s65 19


20<br />

tr3s65<br />

O MEU ROSTO TERMINA<br />

ONDE O TEU COMEÇA<br />

Elisabete Patrícia Andrade<br />

fotografia Rita Lino<br />

Tem 13 anos. Todas as noites se despe em frente do espelho. Executa este ritual sem<br />

procurar perceber que necessidade urge. Com a mão procura prazer, busca pontos no corpo que<br />

possam ser estimulados numa precipitação urgente para o orgasmo. Gosta de contemplar o rosto<br />

a abrir-se numa emoção de prazer enquanto uma luz lhe passa sobre os olhos. Masturba-se devagar,<br />

descobrindo o seu corpo milímetro a milímetro. Quando se vem nascem-lhe asas, os dedos<br />

lambuzados e felizes entre as pernas. Depois seca as lágrimas e imobiliza-se um instante diante do<br />

espelho, observa longamente o duplo rasgado pelo reflexo da lua. Fica fascinada com as transformações<br />

rápidas que o corpo sofre, aprecia particularmente a saliência dos seios. O corpo retoma<br />

o seu movimento natural, lentamente, e ela treme um pouco à contemplação do reflexo que<br />

o espelho devolve. Compreende cada vez menos a asfixia que oprime.


tr3s65 21


Tem 22 anos. Corre as cortinas para de<br />

seguida encarar o espelho. É uma mulher bonita<br />

e triste. Por momentos esforça-se por destacar<br />

o volume do corpo da divisão, um peso de carne<br />

no qual deixou de se reconhecer e que agora<br />

ameaça dissolver-se nas sombras. No silêncio<br />

trémulo da casa procura palavras, a pulsação<br />

cheia de histórias sobrepostas, o nome do homem<br />

que ama. Procura tudo isso que a melancolia<br />

contagiou. Passa os dedos sobre o reflexo,<br />

algo a abandona com violência. Um rosto possuído<br />

pela melancolia é um rosto que está mais<br />

perto da morte, aos 22 anos sabe destas coisas<br />

que aos 13 anos pressentiu tão somente na asfixia<br />

que oprimia. De resto não sabe falar de<br />

outras emoções ou se sabe é porque tomou ansiolíticos.<br />

Para esquecer o nome do homem que<br />

ama submerge emoções com o consumo de ansiolíticos.<br />

É curioso que o possa somente aperceber<br />

em movimento no tempo em que procura<br />

uma aproximação com o passado. Ele vem até<br />

ela com cadastro, isto é, com palavras repetidas,<br />

frases agarradas, coisas violentas que lhe pertencem.<br />

Ela quer que ele chegue isolado, sem<br />

que seja preciso medir o perigo da aparição.<br />

Mas sabe de antemão o que irá encontrar. Foram<br />

demasiadas palavras envenenadas entre<br />

22<br />

tr3s65<br />

eles que ainda se encontram frescas. O mais<br />

provável é ceder mediante a contínua e cres-<br />

cente carga emocional, acabando por sentir<br />

pena dela mesma porque é assim, na verdade,<br />

que sucede com o amor. A tragédia patética do<br />

amor, isso é que não. É tomada por uma ligeira<br />

sensação de agonia. Não chora mais, ao invés<br />

habituou-se a substituir a náusea pela dormên-<br />

cia. Deixou de haver razão para chorar, pois se<br />

tudo está predestinado à morte. As coisas mor-<br />

tas são pesos a que nos afeiçoamos por puro<br />

masoquismo. As dores mortas na trégua do pra-<br />

zer são golpes adiados. E depois há pessoas que<br />

morrem todos os dias, uns matam-se por amor,<br />

outros por falta dele. São coisas da vida como<br />

diz o outro.<br />

Tem 38 anos e chora quando se masturba.<br />

É bela, principalmente quando cede aos<br />

olhos expressões de prazer. Uma mão de encontro<br />

ao seio, a outra aflorando lentamente o sexo<br />

com acuidade. Aprendeu a qualidade do prazer<br />

no decorrer dos anos. Foi há tanto tempo, Sandra.<br />

A tua voz, os teus pulsos rasgados na juntura<br />

das veias. Vê como sofresteste a metamorfose,<br />

vê como tudo o que perdeste está mais<br />

que morto e ficou repisado na memória por<br />

inépcia. As madrugadas são longas e já não sa-


es dizer se vocês aconteceram juntos, então,<br />

num misto de saudade e apatia, revolves gave-<br />

tas à procura de fotografias em que aparecem<br />

juntos. És capaz de ficar a olhar para elas duran-<br />

te horas. Quando voltas a repô-las na gaveta<br />

provas a agonia de serem outros seres, dois se-<br />

res misturados que perderam a identidade e que<br />

deixaste de reconhecer, duas pessoas demora-<br />

das nos seus defeitos, às quais, agora, te podes<br />

dar ao luxo de acrescentar mais este ou aquele<br />

defeito para te sentires melhor contigo própria.<br />

Numa das raras fotografias em que ele<br />

mostra os dentes num sorriso, cinge-a num<br />

abraço. Estavam felizes no dia em que a fotografia<br />

foi tirada ou, pelo menos, é essa a sensação<br />

que retira do tempo da fotografia. Na mesma<br />

fotografia ela exibe uma seriedade sombria,<br />

da qual não se apercebera na altura. Talvez as<br />

fotografias captem tão somente os momentos<br />

aos quais ainda não chegámos. Os momentos<br />

que ainda nos falta acontecer, os rostos que ainda<br />

não experimentámos e a que nos falta unir.<br />

Quando deixa de pressenti-lo nas fotografias<br />

faz para reencontrá-lo, escreve-o, rebusca-o na<br />

sua totalidade fragmentada. “A escrita é outra<br />

forma de desejar o teu corpo, é uma forma de<br />

pertencer algures onde decorrem todas as emo-<br />

ções de uma só vez, onde tu sempre estiveste<br />

comigo. É uma forma violenta de morrer, é isso.<br />

A escrita trata-se, nada mais nada menos, de<br />

um antídoto contra a morte. Um antídoto que<br />

não ressalva ninguém da morte mas que em<br />

certos casos tem a vantagem de adiá-la”, escreveu<br />

no caderno aos 22 anos. “A culpa é daquilo<br />

que os olhos percebem e roubam às imagens.<br />

Felizes são os não praticantes deste ofício letal.”<br />

Pousa o caderno e alcança o casaco com a mão.<br />

Arrasta-se pela casa num passo automático, as<br />

mãos afogadas nos bolsos do casaco. Sandra<br />

ouve a chuva a bater contra as paredes, imagina<br />

jactos de luz. É a chuva que lhe traz a imutável<br />

sensação de falsa segurança, enganando-a. É a<br />

chuva que paralisa o medo e lhe permite recobrar<br />

uma nesga de coragem. A madrugada baixa<br />

sobre a cidade e acompanha-a na casa. Sandra<br />

apercebe no quarto o gira-discos coberto<br />

por uma fina camada de poeira, apetece-lhe ouvir<br />

seja o que for, salvo a sua própria voz. A música<br />

cresce no silêncio trémulo da casa, produzindo<br />

um som que arranha e que ela gostaria de<br />

compreender. Ela coloca-se diante do espelho,<br />

falta-lhe o ar. Abre a gaveta com mãos lentas,<br />

alcança um ansiolítico. Sem o nome dele, não<br />

suporta viver.<br />

tr3s65 23


24<br />

tr3s65


Izet Sarajlic<br />

A minha estância em Istambul<br />

tradução José Luís Peixoto<br />

<strong>ilustração</strong> Alex Gozblau<br />

Existem várias versões<br />

acerca da minha estância em Istambul.<br />

De acordo com a primeira,<br />

fui com o encargo de uma suspeita missão política.<br />

De acordo com a segunda,<br />

tratava-se de uma aventura romântica.<br />

Na terceira versão<br />

chegou a falar-se de tráfico de drogas.<br />

Evidentemente que o facto de eu jamais ter posto<br />

os pés em Istambul não interessa a ninguém.<br />

tr3s65 25


ROSA<br />

NOTURNA<br />

MARCELO MOUTINHO<br />

<strong>ilustração</strong> ALEX GOZBLAU<br />

26<br />

tr3s65


Teresa tinha um pênis<br />

de vinte e dois centímetros, contados na régua.<br />

O atributo lhe rendia fama nos arredores da praça Paris,<br />

onde trabalhava de terça a domingo, das onze às cinco, quarenta reais<br />

por uma gozada, sem beijo na boca. “Beijar, nem por cem. É só para namorado.”<br />

tr3s65 27


Os quarenta (e mais quarenta e mais<br />

quarenta e mais quarenta) ajudavam a pagar as<br />

despesas do apartamento da rua Cândido Mendes,<br />

dividido com duas amigas. Era ali que Teresa<br />

dormia, depilava as pernas, o sovaco e o rosto,<br />

tonificava os glúteos com os exercícios da revista<br />

de ginástica, aplicava em ampolas de hormônio<br />

as futuras curvas de mulher. Era ali que, enfim,<br />

abrigava-se durante o invisível do dia, nas horas<br />

de inexistência, antes de virar purpurina sublime e<br />

esparsa numa calçada de Glória.<br />

Nas dimensões apertadas do apartamento,<br />

ela se amontoava às próprias coisas, às<br />

amigas e aos objetos das amigas, espalhados pelos<br />

dois cômodos. A topografia das caixas de papelão,<br />

dos móveis atravancados, dos colchões no<br />

colchão, da geladeira no meio da sala, dos poucos<br />

armários para muitas roupas, era como um<br />

raio X invertido da própria Teresa: desordem.<br />

O dinheiro, contudo, não permitia mais<br />

espaço. “Só estico a mão até onde posso alcançar.<br />

Quem sabe quando encontrar um italiano<br />

rico...”, ela pegava emprestado o sonho das amigas,<br />

mas devolvia rápido. Pois sabia que ao menos<br />

naquele apartamento conseguia morar sem<br />

maiores entraves – em geral com três sessões arrecadava<br />

o básico das despesas.<br />

Responsável pela organização da contabilidade<br />

interna, fixou uma quantia mensal para<br />

cada moradora e, de sua parte, distribuiu os gastos<br />

do mês pelos 26 dias de trabalho (segunda era<br />

folga), estabelecendo um valor mínimo a garantir<br />

noite após noite. Caso ficasse doente e fosse obrigada<br />

a faltar, compensava nos dias seguintes.<br />

Problemas mais sérios mesmo só enfrentava<br />

nas épocas chuvosas, como aquele mês<br />

de outubro, que resolveu desafiar todos os prognósticos.<br />

Lá se iam mais de três semanas de temporal<br />

e ruas vazias. “Quando chove, os homens<br />

somem. Parece que são feitos de papel. A gente<br />

lá, com guarda-chuva na mão, passando frio, e<br />

28<br />

tr3s65<br />

ninguém dá as caras.”<br />

Teresa passou o mês inteiro de olho na<br />

previsão do tempo, adiando a apreensão. Mas já<br />

era dia 27, não havia como esperar mais. As dívidas<br />

gritavam em vermelho num bilhete na geladeira:<br />

“A pagar: dia 30 – aluguel, dia 5 – condomínio,<br />

luz e água, dia 8 – conta do restaurante.”<br />

Se no restaurante poderia até negociar,<br />

com algum juro, um prazo melhor, outros pagamentos<br />

tinham que ser na data, sem chororô.<br />

“Boneca que atrasa dorme na rua”, o proprietário<br />

do apartamento já avisara – e quando ele falava<br />

apertando a orelha direita (e ele falou), significava<br />

que o assunto requeria seriedade.<br />

Por isso naquela noite, a primeira cujo<br />

teto não se cobrira com o véu da chuva, ele decidiu<br />

colocar de uma só vez as contas em dia. Com<br />

cinco sessões, calculou, abateria boa parte da dívida.<br />

Bastavam disposição, preservativos e uma<br />

roupa sensual.<br />

Optou pelo vestido de paetês dourados,<br />

bainha pelo menos dois palmos acima do joelho,<br />

delineando as coxas e a bunda, e pelos sapatos<br />

plataforma que lhe impingiam ainda mais altura.<br />

Pintou o rosto em cores quentes, recolocou o<br />

piercing brilhante no nariz. Depois ajeitou o sutiã,<br />

compensando com enchimento o peito menor<br />

pela injeção de silicone mal aplicada, borrifou<br />

perfume, pegou a bolsa e ganhou a rua.<br />

- Quanto é o boquete? – Não eram nem<br />

onze e meia quando, direto no assunto, o rapaz<br />

no Chevette a abordou. Ele era jovem, bastante<br />

jovem, fazia o tipo namorado-certinho-que-resolveu-aprontar.<br />

- Boquete, vinte; completo, quarenta.<br />

Vale a pena, viu, gato?<br />

- Vinte? Não rola por quinze, não? – ele<br />

chorou.<br />

- Vinte, gato. É tabelado.<br />

- Mas onde a gente faz?


- Pode ser dentro do carro mesmo, tem<br />

uma rua bem discreta ali em cima...<br />

Teresa entrou no Chevette, sentando-se<br />

ao lado do rapaz, e subiram uma ladeira até chegar<br />

a um canto ermo do bairro, onde havia outros<br />

carros parados. Ele abriu as calças, ela pôs a boca,<br />

ele gozou, ela cuspiu, e em meia hora voltava ao<br />

mesmo ponto onde antes ela se achava, na calçada<br />

entre as lojas de portas cerradas e a praça Paris,<br />

no entrelugar, sempre no entrelugar.<br />

Por cerca de uma hora, Teresa permaneceu<br />

ali, à espera, observando carros a circundar a<br />

praça, desejos rondando sem coragem de estacionar.<br />

Até que um Fiat Uno piscou o farol em sua<br />

direção, diminuiu a velocidade e se aproximou. O<br />

homem de meia-idade, cavanhaque somando<br />

anos extras ao rosto, pareceu-lhe levemente bêbado.<br />

- Oi, tesão! – ele movia os músculos da<br />

boca de maneira esquisita, tentando desenhar no<br />

rosto uma excitação.<br />

- Oi, gato. Procurando diversão? Teresa<br />

encostou a bunda na janela do carro e puxou a<br />

mão dele até sua nádega esquerda.<br />

- Depende...<br />

- Depende de quê, gato?<br />

- Do preço dessa diversão.<br />

- Ah, não é caro, não. E garanto que<br />

você não vai se arrepender. – Com a bunda projetada<br />

ainda mais para o interior do veículo, ela<br />

pousou os dedos sobre o sexo dele e começou a<br />

massageá-lo. – Quarenta reais e você vai à lua comigo.<br />

- Mas está incluído o motel lá na lua? –<br />

ele fez graça.<br />

- Não, gato, mas o motel só custa quinze<br />

e aceita cartão.<br />

- Você também aceita?<br />

- Ainda não. Quem sabe um dia, no futuro.<br />

Nós somos as mulheres do futuro, você sabia?<br />

- E você é ativa também, mulher do fu-<br />

turo? – ele desafiou.<br />

- Faço de tudo, amor. Menos beijar na<br />

boca.<br />

- Pode entrar. Vamos lá. – O homem<br />

abriu a porta do carona, engatou a primeira e entabulou<br />

uma conversa.<br />

- Sabe por que eu gosto de transar com<br />

vocês? Porque um homem conhece exatamente<br />

onde fica o prazer de outro homem. Mas não<br />

gosto de corpo de homem, e vocês já têm corpo<br />

de mulher...<br />

- Mulheres do futuro, já falei – Teresa<br />

sorriu. – É aqui. Pára ali, colado naquele poste –<br />

apontou o indicador.<br />

Andaram poucos metros até o motel,<br />

onde ela cumprimentou a recepcionista e pediu a<br />

chave do 206. Permaneceu no quarto com o homem<br />

do cavanhaque por mais de hora e meia.<br />

Duas gozadas, pagamento dobrado, menos oitenta<br />

do bilhete na geladeira. O homem levou-a<br />

de volta à praça Paris.<br />

Teresa precisava de um pequeno intervalo.<br />

Enquanto esperava pelo novo cliente, comprou<br />

uma lata de cerveja num bar próximo. Tomou<br />

lá mesmo, apoiada no balcão. Três e meia da<br />

manhã, três sessões: nada mal. Uns quinze minutos<br />

ficaram no bar.<br />

- Pendura, Zé – e rumou para a calçada.<br />

Então, o susto: um carro esportivo, não<br />

deu para ver direito a marca, voou repentinamente<br />

da faixa central para a pista colada à calçada, e<br />

Teresa só pode sentir o jato forte soprando um pó<br />

branco contra seu rosto.<br />

- Pirocuda! – alguém berrou de dentro<br />

do carro, que partia. Ela ainda enxergou o extintor<br />

de incêndio projetado para fora da janela. E<br />

com as mãos friccionando o vestido no meio das<br />

próprias pernas, rebateu:<br />

- Viados! Playboys filhos-da-puta!<br />

tr3s65 29


30<br />

tr3s65<br />

Embora já estivesse acostumada, ainda<br />

perdia a pose com esses ataques. Mas a raiva não<br />

tardava a se esvair. Uma ajeitada no vestido, um<br />

pente rápido nos cabelos e a noite aquietava:<br />

pronta para outra. Para mim duas, aliás. A inten-<br />

ção era concluir o plano até cinco da manhã. Te-<br />

resa retornou ao bar apenas para a última ajeita-<br />

da no espelho e vamos lá: mais duas.<br />

Não precisou aguardar muito. Carro<br />

novo, casal com jeitão de recém-casado, tudo<br />

bem, claro, com os dois, sem problema, nesse<br />

caso é sessenta mais quinze do motel, eu ensino<br />

como faz para chegar lá, é aqui, quarto 202, não,<br />

não, sem beijo de língua, chupar a moça tudo<br />

bem, foder a moça tudo bem, com você tudo<br />

bem também, vai, vai, goza gostoso, vai, goza<br />

aqui na minha boca, isso, isso, mais sessenta reais<br />

na carteira, vocês podem dar carona até a praça?<br />

A noite estava promissora confirmava a<br />

vocação e apesar de cansada, Teresa sentia alívio:<br />

faltava somente a derradeira sessão e, depois,<br />

casa.<br />

Ainda era madrugada, mas a manhã já<br />

se insinuava e o movimento diminuía. Os funcionários<br />

das padarias começavam a aparecer, carregando<br />

os seus “bom-dia” nas mochilas, e quando<br />

as lojas abrissem os clientes de certo sumiriam de<br />

vez. “Mais um, só mais um e posso ir...”<br />

Teresa vertia o cansaço na maquiagem<br />

que esfriara, mas se ascendeu de novo ao notar<br />

que um Honda Civic, com cara de zero-quilômetro,<br />

desacelerou cerca de vinte metros à sua frente.<br />

O motorista pousou duas rodas sobre a calçada,<br />

trancou a porta e riscou o chão em linha reta<br />

para onde ela estava.<br />

- Boa noite, estou com pressa, programa<br />

rápido, quanto é? – ele, esbaforido, engolia as<br />

palavras.<br />

- Quarenta, o completo.<br />

- Tem local?<br />

- Motel. Soma mais quinze.<br />

- É perto?<br />

- É, mas indo de carro.<br />

- Não. Sem carro. Não tem outro?<br />

- Tem. Só que é mais caro. Custa cinqüenta<br />

por uma hora.<br />

- E quinze minutos?<br />

- Cinqüenta também.<br />

- Fechado – e tomou Teresa pelo antebraço,<br />

puxando-a com força, como se fosse ele o<br />

guia.<br />

Afobados, andaram no compasso ditado<br />

pelo homem até o motel mais luxuoso, vencendo<br />

vertiginosamente a portaria. Mal entrou no<br />

quarto, ele pediu a Teresa que tirasse a roupa, se<br />

lubrificasse e ficasse de quatro sobre a cama. Em<br />

seguida, arriou a calça de moleton e entrou nela<br />

com violência. Gozou em menos de três minutos.<br />

- Pronto. Pode se vestir. – Já recomposto,<br />

ele lavava as mãos.<br />

- Calma. E o pagamento?<br />

O homem se secou com a toalha de papel,<br />

apalpou o bolso de trás da calça e então percebeu:<br />

o dinheiro ficara no carro.<br />

- Olha só, esqueci a carteira no portaluvas.<br />

Vamos até lá que eu pago.<br />

- E o motel?<br />

- Você não tem algum aí?<br />

- Eu? Eu é que vou pagar?<br />

- Só até o carro. Pode deixar que eu<br />

compenso...<br />

Teresa não via outra saída se não confiar<br />

nele. Mesmo tensa com a possibilidade de um<br />

golpe, mais um, deixou cinqüenta reais na recepção<br />

do motel e o seguiu.<br />

- Olha só, você fica no mesmo lugar<br />

onde estava quando fui falar contigo. Por favor,<br />

não se aproxima do carro, OK?<br />

“Lá se vão meus cinqüenta”, e Teresa<br />

estancou no ponto combinado, ele se encaminhando<br />

ao seu Honda Civic. Para surpresa dela,


porém, o homem de fato resgatou a carteira e<br />

num passo retornava com os noventa reais, que<br />

lhe foram entregues com um seco “obrigado”.<br />

Em seguida, ele se virou de costas e fez<br />

o trajeto de volta, preciptando-se carro adentro.<br />

Ajeitou-se na posição do motorista e, com a porta<br />

entreaberta, pendeu para o banco de trás, de<br />

onde retirou algo que ela não definia bem e que<br />

ele manteve no colo. Teresa se aproximou um<br />

pouco e pôde ver com mais nitidez: era um buquê<br />

de rosas vermelhas.<br />

Passaram-se alguns instantes, ele fitando<br />

as rosas sobre seu ventre, e a cena se dispersou.<br />

Num ato repentino, o homem escancarou a<br />

porta do carro, atirou as flores no chão, engatou<br />

a chave e arrancou de forma brusca. Os pneus<br />

gritaram por ele.<br />

Teresa então notou que, com a rispidez<br />

da queda, uma rosa se desgarrara do buquê. Ela<br />

se abaixou, pegou a rosa e, ainda agachada, inflou<br />

o rosto num sorriso, imaginando quem seria<br />

enfim o destinatário que nunca receberia aquelas<br />

flores. Talvez alguém se foi, independente como<br />

um barco que se desamarra da margem; talvez<br />

uma mulher que, por um motivo qualquer ou sem<br />

motivo algum, não as merecesse; ou ainda o próprio<br />

homem, que as desprezou pela remissão a<br />

alguém que hoje só desperta ira. As possibilida-<br />

O<br />

des rebolavam em sua cabeça, alongavam-se as<br />

especulações, até que Teresa atinou: pouco importava.<br />

Aquela rosa, que brotara inesperadamente<br />

numa fenda invisível da madrugada, na<br />

mesma calçada entre as lojas e a praça Paris, agora<br />

era dela.<br />

Hora de ir para casa: a noite estava ganha.<br />

tr3s65 31


CINCO<br />

HISTÓR1AS<br />

NOCTURNAS<br />

RUI MANUEL AMARAL<br />

fotografia ANETA KOWALCZYK<br />

32<br />

tr3s65<br />

HISTÓRIA DO DITO CUJO<br />

Se eu quisesse, podia contar muitas histórias so-<br />

bre o dito cujo. Mas basta esta, a primeira que<br />

me vem à cabeça. Um belo dia, após uma bela<br />

noite de sono, o dito cujo abriu os olhos, levan-<br />

tou-se da cama, dirigiu-se ainda meio ensonado<br />

ao quarto de banho, olhou para o espelho e, oh!,<br />

fez uma careta terrível! Caramba, a terrível care-<br />

ta que ele fez! E depois disse: “Xanto Deux, o<br />

gue agontexeu à minha gara? Parexo o Gregor<br />

Xamxa.” O que significa: “Santo Deus, o que<br />

aconteceu à minha cara? Pareço o Gregor Sam-<br />

sa”, mas ele pronunciava mal as palavras, por<br />

causa daquilo que acontecera à sua cara durante<br />

a noite. E é tudo.


QUANDO O SILÊNCIO CAIU EM VOLTA<br />

A noite era de um esplendor invulgar. A lua, em-<br />

bora não estivesse cheia, brilhava e envolvia toda<br />

a paisagem com uma beleza que desafiava qual-<br />

quer tentativa de descrição. Os campos estavam<br />

cheios de sombras amenas. Não havia vento,<br />

nem o mais leve sopro. Os demais corpos celestes<br />

derramavam sobre o lago uma luz pura, estável,<br />

branca. As árvores estavam como que hipnotiza-<br />

das numa espécie de encantamento misterioso.<br />

A senhora Ava Novak estava sentada na varanda,<br />

desfrutando das ternas e encantadoras sensações<br />

daquela noite maravilhosa, e sonhava, sonhava,<br />

sonhava, contemplando a lua resplandecente.<br />

Depois, por um momento, todas as cigarras se<br />

calaram, o silêncio caiu em volta e a senhora No-<br />

vak deu um pum.<br />

CONSEQUÊNCIAS DE UMA NOITE DE FOLIA<br />

Depois de uma longa e bem preenchida noite de<br />

bebedeira, Zavala Zabehlice acordou dentro de<br />

uma garrafa. Uma situação, como é fácil compre-<br />

ender, pouco ou nada brilhante.<br />

- Efectivamente a minha situação está longe de<br />

ser brilhante. Na verdade, é muito aborrecido<br />

uma pessoa acordar e concluir que está presa no<br />

interior de uma garrafa. Talvez para sempre. É<br />

sobretudo muito incómodo – diz o infeliz pânde-<br />

go, secundando a minha opinião.<br />

Pois muito bem. Aqui têm o que proporciona<br />

uma noite de folia como aquela que Zavala Za-<br />

behlice teve o ensejo de gozar.<br />

O TRASEIRO COMICHOSO<br />

Um fulano entra à noite furtivamente no gabine-<br />

te de trabalho de um escritor famoso, esfrega as<br />

mãos e bebe um frasco inteiro de tinta. Depois<br />

pousa o frasco no lugar, coça o traseiro comicho-<br />

so e volta furtivamente para casa.<br />

No dia seguinte, o fulano começa a cagar histó-<br />

rias e transforma-se num autor famoso. O outro,<br />

sem a tinta, pobrezinho, mergulha numa crise de<br />

criatividade e acaba por morrer de desgosto.<br />

SEZAY GORODECKY NÃO CONSEGUIA DORMIR<br />

Noite após noite, agitado, transtornado, ofegan-<br />

te, barrigudo e com uma borbulha na ponta do<br />

nariz, Sezay Gorodecky não conseguia pregar<br />

olho. Ora, passar tantas noites sem dormir não é<br />

muito bom para a saúde. Ao fim de algum tempo<br />

uma pessoa começa a morrer de sono. E nem de<br />

propósito! Ao fim de algum tempo, Sezay come-<br />

çou a morrer de sono. E depois morreu*.<br />

* Esta nota de rodapé é pura garotice minha. Existe apenas para enganar<br />

o leitor. Sezay Gorodecky morreu efectivamente de sono. Fim da história.<br />

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34<br />

tr3s65<br />

Tudo lhe doía.<br />

Desde “There will never be another<br />

you” (Art Pepper, 6 minutos e 9 de sexo oral feito<br />

por um ex-namorado que emigrou para a China<br />

comunista) até “The flight of the bumble-bee”,<br />

de Rimsky-Korsakov, pela voz do violino de Nigel<br />

Kennedy (um antigo colega de Faculdade que a<br />

sodomizou numa noite de temporal, para depois<br />

se ir gabar do feito para o Cais do Sodré, no “Bri-<br />

tish Bar”).<br />

A sua vida era um vendaval de desilusões<br />

amorosas, sempre acompanhadas de recordações<br />

musicais que funcionavam como guarnições<br />

indigestas para um “à la carte” do<br />

sofrimento afectivo. Pobre coração ávido de melodia!<br />

A virgindade foi-se num fim de tarde esquisito,<br />

o céu plúmbeo de indecisões micro-climáticas.<br />

Os passarinhos desconfiados dos reformados<br />

que lhes atiravam com pão, os cães de dentes<br />

arreganhados para as crianças que brincavam à<br />

volta do coreto. A banda tocava a trilha sonora de<br />

“A golpada”, ela e Joaquim escondidos num recanto<br />

fétido, (mal) frequentado por ratazanas<br />

mafiosas que dominavam a zona. Não teve tempo<br />

para pensar. Joaquim agarrou-lhe os ombros com<br />

manápulas férreas de erecção acumulada, atiroua<br />

contra a parede do coreto e a natureza seguiu o<br />

seu curso. Não foi violação porque ela estava demasiado<br />

entontecida para manifestar de forma<br />

expressa a sua desilusão com Joaquim. Em vez de<br />

24 rosas, 20 centímetros. Ao invés de “amor,<br />

quero entrar em ti”, lá vai alho.<br />

A partir daí, ouvir a “Golpada” só podia<br />

doer.<br />

Perdeu-se de amores por um contínuo<br />

da Caixa-Geral de Depósitos. Apostou a sua felicidade<br />

num namoro de domingo com visitas entre-<br />

A MULHER QUE SOFRIA MUITO COM AS RECORDAÇÕES MUSICAIS


meadas ao jardim zoológico e ao estádio de Alvalade.<br />

E quando tudo acabou nunca mais pôde<br />

ouvir Maria José Valério a entoar o hino do Sporting.<br />

O engenheiro Bill Brown parecia ser um<br />

homem diferente. Trazia outros hábitos do Canadá.<br />

Cortejou-a como deve ser, enquanto inspeccionava<br />

as mais variadas obras. Até ao dia em que<br />

a obrigou a engolir os seus fluidos em plena sessão<br />

do Tivoli. E nunca mais os ouvidos dela toleraram<br />

a banda sonora de “Tora,Tora,Tora”.<br />

Esteve casada três anos, com um homem bom e<br />

puro. Infelizmente, era tão puro que não tinha<br />

queda para a intimidade no sentido bíblico. E ela,<br />

não obstante todas as agruras da vida, ainda era<br />

senhora de algum alimento.<br />

A frustração sexual fermentou ao longo<br />

dos anos, os dias e as noites iam passando e nada<br />

de filmes de acção, somente carinho, companhei-<br />

rismo, cumplicidade. Menezes era um homem<br />

culto, dado aos prazeres da música, mas abusava<br />

da ópera. Especialmente da “Carmen”. Duas ou<br />

três vezes por semana era certo e sabido que Me-<br />

nezes punha a tocar a Carmen. Uma verdadeira<br />

tourada!<br />

Necessitada de uma revolução na sua<br />

vida, deixou-se conduzir para um beco terrível. O<br />

seu coração foi cativado por Hermínio, um “punk”<br />

de terceira geração que era funcionário público<br />

na Câmara Municipal de Oeiras e só podia vestir à<br />

“punk” aos fins-de-semana. Durante a semana<br />

Hermínio ainda era um namorado normal, com<br />

sticadas em vãos de escada, telefonemas a horas<br />

próprias, um cinema, um jantar de marisco, essas<br />

coisas banais e saborosas. O pior era aos fins-desemana.<br />

Hermínio envergava a fardamenta<br />

“punk”, raptava o “tijolo” ao primo Ernesto e ala<br />

que se faz tarde. Os fins-de-semana eram exclusivamente<br />

dedicados aos “Ases da Folia”, um grupo<br />

de amigos de infância, cerca de 15 parvalhões<br />

com cara de atrasados mentais, ávidos por lanches<br />

no campo, Sagres de litro e discos dos Sex<br />

Pistols, Plasmatics, AC/DC e Guns and Roses.<br />

LUIS GRAÇA<br />

tr3s65 35


Durante 15 dias afogou o fracasso da<br />

relação com garrafas de “Four Roses”. E desta<br />

feita ficou feliz por nunca mais ter de ouvir as<br />

marteladas musicais a massacrar-lhe o cérebro.<br />

Mas as recordações eram-lhe demasiado dolorosas.<br />

Ecléctica nos sofrimentos musicais. Tanto<br />

se lavava em lágrimas com um fado (“Povo que<br />

lavas no rio”, um homem que lhe dera uma tarde<br />

fabulosa de sado-masoquismo, numa pensão barata)<br />

como se torcia de dores sentimentais com<br />

uma balada de música ligeira (“20 anos”, José<br />

Cid como anfitrião sonoro de umas férias em Paris,<br />

rematadas pelo roubo da sua mala).<br />

Quim Barreiros acampanhou as suas dores durante<br />

perto de um ano, na sequência de uma paixão<br />

mal resolvida por um ajudante de pedreiro que<br />

vivia em Alfama com a avó. O homem era bruto<br />

como as casas que ajudava a construir. Feio como<br />

os trovões. Ordinário quanto baste. Desprovido<br />

de sentimentos subtis. Mesmo assim, o amor tem<br />

destas coisas, ela apaixonou-se. Eram domingos<br />

36<br />

tr3s65<br />

inteiros debruçada em varandins, em miradouros,<br />

ansiosa pela cair da noite, invariavelmente passada<br />

num quarto mais escondido lá de casa, onde<br />

Arménio (que fôra trolha na Areosa antes de vir<br />

para Lisboa) podia cavalgar a namorada sem a<br />

avó dar conta do estardalhaço que fazia.<br />

Durava aí uns dois minutos, se tanto.<br />

Sem preliminares, bem entendido, que no campe-<br />

onato sexual de Arménio entrava-se logo na fase<br />

final, sem apuramento. Arménio esvaziava as suas<br />

bolsas testiculares por uma semana, puxava dos<br />

cigarros mais rascas do mercado e dava umas pas-<br />

sas que empestavam o quarto num ápice. E de-<br />

pois uma cassette-pirata de Quim Barreiros, dois<br />

cálices de azia, somados ao Carvalho, Ribeiro e<br />

Ferreira, bagaço para desinfectar corações muito<br />

atreitos a mazelas sentimentais. Foi um período<br />

difícil. Dizem que não se deve misturar bebidas.<br />

Então e os sentimentos? Demorou a enjoar o Ar-<br />

ménio e o bagaço. Mas quando chegou a fase de<br />

saturação e do despertar para as realidades, des-


marcou o Arménio para os tapumes mais próximos<br />

(“Ai não queres andar mais comigo? Olha,<br />

há mais quem queira, minha vaca”) e fez todos os<br />

possíveis por se desviar da música de Quim Barreiros.<br />

Claro que de vez em quando toda a<br />

gente acerta. Há fases boas. Albert Parkinson tinha<br />

30 anos, enorme fortuna pessoal, uma educação<br />

esmerada (Cambridge, ao que foi possível<br />

apurar) e um palacete em Cascais. Passava o Natal<br />

e o Ano Novo em Londres. Logo regressava a<br />

Portugal. Era escritor de poemas naturalistas.<br />

Mais de 90 por cento dos seus poemas falavam<br />

de pássaros. O mais curioso é que ele detestava<br />

filmes de Hitchcock. E era raro permitir-se ir ao<br />

cinema. No espaço de cinco anos publicou 15 livros<br />

de poesia, todos em edição de autor, após<br />

uma experiência mal sucedida na “Abutre Editores”,<br />

uma aventura editorial pouco clara, que meteu<br />

capitais da droga galega e tráfico de armas na<br />

Costa do Marfim.<br />

Os títulos poderão não adiantar muito,<br />

mas o facto é que as obras tinham nomes assim:<br />

“Céus de poesia”, “O voo de uma gaivota deprimida”,<br />

“Nuvens a toda a volta”, “A voar todos os<br />

santos ajudam”, “Mafalda e os pássaros do sul”,<br />

“O pardal recalcitrante”, “Corvos de água doce”,<br />

“Tibúrcio, o rouxinol do horizonte próximo”, “O<br />

meu amor é uma arara”, “Um grãozinho na asa”,<br />

“Pássaros, passarinhos, migrações e alguns passarões”.<br />

Cada um é livre de titular como quer.<br />

Albert era um ser muito terno na hora<br />

do amor, apesar do inconveniente de se esquecer<br />

do nome da namorada frequentes vezes e o trocar<br />

pelos que lhe vinham à mente na altura.<br />

“Querida, você sabe que eu não ligo muito a nomes,<br />

mas estou a pensar em si”.<br />

Era um problema. O amor-próprio pode<br />

ser um verdadeiro entrave para uma experiência<br />

namoradeira plena. E Albert passou à História ainda<br />

antes dela se entregar de alma e coração aos<br />

vibradores.<br />

Encontrou a felicidade na mecânica<br />

afectiva desses bichinhos queridos e a partir daí a<br />

única música que quis ouvir foi o zumbido suave<br />

do latex a entrar-lhe nas cavernosas margens do<br />

seu prazer pessoal e intransmissível.<br />

fotografia ALEKSANDRA KORECKA<br />

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38<br />

tr3s65


Consta que é da praxe, que todos os super-heróis em potência, em determinada altura de suas vidas, são<br />

expostos a situações que espoletam a sua faceta de semideus dos oprimidos. Os exemplos factuais com-<br />

provam-no: o Homem-Aranha foi mordido por uma aranha numa aula de ciências, ou lá o que foi, o Hulk<br />

também se embrulhou com uns tubos de ensaio ou raios gama, e, o próprio Batman, ainda que apartado<br />

do contexto laboratorial, alombou com os seus pais a serem vindimados à sua frente ou chatice afim. Tudo<br />

isto para dizer que, com Jacinto, o nosso super-herói, não sendo possível registar com exactidão o mo-<br />

mento de transformação numa entidade protagonista na eterna luta do bem contra o mal, é possível de-<br />

terminar uma série de momentos que convergiram nesse sentido. Ora bem, Jacinto, quando era garoto,<br />

foi demonstrando especial apetência para se cruzar com pessoas que, assim que se lhes informava que o<br />

nome de Jacinto era, lá está, Jacinto, retorquiam com um “ah, como um dos reis magos”. Das primeiras<br />

vezes, Jacinto ainda sorria com o erro e corrigia as pessoas, “não, não, como um dos pastorinhos”, mas à<br />

medida que uma pessoa cresce, a raiva vai-se tornando no sentimento mais presente e orientador. E com<br />

Jacinto foi igual. Até porque, para além de se ter continuado a cruzar com canalha que confunde profun-<br />

damente reis magos com pastorinhos, Jacinto começou a ter também interacções com entidades que<br />

corrigiam a sua clarificação, dizendo quase sempre “não, não, nos três pastorinhos havia é uma Jacinta”.<br />

Foi crescendo o sentimento de que a raça humana é, na sua esmagadora maioria, composta por pessoas<br />

cuja finalidade definidora é dar cabo dos nervos às pessoas que sobram. E eis que, a dada altura da sua<br />

vida, Jacinto se convenceu de que o mundo, tal como o conhecemos, urgia por um justiceiro que nos li-<br />

vrasse dessa canalha que só dá nervos. E, por livrar o mundo, Jacinto não se referia a terapia de grupo ou<br />

mariquices de índole homoerótica, mas sim a limpar literalmente o sebo a esses calhaus com olhos. Pes-<br />

soas que enervam eram, então, e fazendo paralelo com as carreiras de Homem-Aranha, Hulk e Batman, o<br />

equivalente para Jacinto do inimigo do Homem-Aranha, o inimigo do Hulk e o Joker. Logo nos primeiros<br />

dias de acção super-heróica, Jacinto arrumou com um indivíduo que dizia que só se podia dizer que al-<br />

guém havia morrido de velho quando essa pessoa tivesse ultrapassado a esperança média de vida vigente<br />

na altura do óbito. E que bem soube a Jacinto, esta prática inequívoca do bem. Tão bem que à segunda<br />

vítima, para ser aviada com uma meia cheia de tangerinas (era o M.O. de Jacinto, só mudava o conduto<br />

da meia – pilhas era utensílio bastante usado, também) bastou clamar ao mundo que jogava sempre com<br />

a mesma chave no totoloto porque, em termos estatísticos, era igual a qualquer outro conjunto de núme-<br />

ros. Jacinto ouviu, e, pouco tempo depois, sem testemunhas, actuou, bordoando com vigor. A terceira<br />

vítima fora alguém que, para além de se desviar sempre para a esquerda nos passeios [quando a norma<br />

social obedece ao código da estrada e ordena que se encoste à direita], ainda dizia que os Roxette eram<br />

casados um com o outro. Foram menos três vilões mete-nervos a chagar a população inocente com as<br />

suas posturas, teorias e et ceteras diversos. Ciente de que, para mentes mais obtusas, a sua acção justicei-<br />

ra poderia encaixar numa zona cinzenta da moral e humanismo, Jacinto fazia questão de deixar pequenas<br />

pistas que indicassem que o crime tivera um daqueles motivos que, apesar de tudo, merecem considerável<br />

aceitação alheia. É que, a ser apanhado, Jacinto não queria parecer um daqueles psicopatas que matam<br />

pessoas sem ser por dinheiro ou por motivos passionais. Jacinto não queria nada ser associado a essa ca-<br />

nalha demente.<br />

tr3s65 39


J’ai faim! Merde, j’ai faim! Era com esta<br />

lembrança de um filme francês, ou pelo menos a<br />

sentir uma convicção parecida com a de alguém<br />

num cenário amarelo torrado, em mangas de camisa,<br />

perigosamente ao pé da salamandra, (o<br />

que não acontecia no filme, mas também não<br />

importava porque como já foi referido, era mais<br />

uma convicção parecida, que outra coisa) com a<br />

barba por fazer, com a devida consequência de<br />

lhe causar comichão, que Elliot se debatia à uma<br />

da manhã numa noite de Inverno (Novembro…<br />

pode ser?) de segunda para terça. Deixar o conforto<br />

do lar para ir buscar alimento era algo que<br />

o incomodava muito, mesmo fazendo o esforço<br />

para se sentir pré-histórico e encarar aquilo como<br />

uma aventura. Estava frio, mas quanto a isso não<br />

havia problema. A técnica estava apurada, fruto<br />

de um casamento há muito afundado, mas que<br />

lhe deixou alguma sabedoria, como por exemplo<br />

ir ás bombas de gasolina a meio da noite para ir<br />

comprar à sua mulher grávida uma bocata de<br />

atum. O truque era repetir um velho hábito de<br />

infância escolar, naquelas manhãs ainda de noite,<br />

sem tirar o pijama em tons de um triste cinza.<br />

Ir bem alcochoado, vestir uma camisola larga por<br />

cima do pólo de algodão oferecido pela sogra,<br />

entalar com as meias a parte de baixo, subitamente<br />

delegadas à constrangedora posição de<br />

umas ceroulas, para quando vestisse as calças<br />

por cima, as ditas, que com um pouco de boa<br />

vontade também se poderiam chamar de meiascalça,<br />

não subissem pelas pernas acima, como<br />

naqueles sonhos em que uma centopeia nos trepa<br />

por aí adiante.<br />

40<br />

tr3s65<br />

Enquanto se equipava devidamente,<br />

pensava nas palavras da ex-mulher antes de sair<br />

de casa. “Não te vais safar!”, disse ela com um<br />

sorriso triunfal antes de bater de vez com a por-<br />

ta. Com efeito, a despensa de Elliot estava vazia,<br />

não porque passava necessidades, mas porque<br />

era desleixado. Estava com uma fome do caraças<br />

e já só tinha no frigorífico um naco de pêssego<br />

em calda, que misteriosamente ainda mantinha a<br />

sua tonalidade artificialmente laranja choque. Já<br />

na rua, o frio bateu-lhe como uma chapada da-<br />

quelas de mão aberta e com balanço, encolheu-<br />

se por entre o néon vermelho do putedo da vizi-<br />

nhança e entrou no carro apressadamente. A<br />

viagem não seria muito longa até á roulote mais<br />

próxima, mas mesmo assim preferiu esperar para<br />

que o aquecimento do carro fizesse efeito e de-<br />

sembaciasse um pouco mais os vidros. O rádio<br />

teimava em memorizar uma estação religiosa,<br />

onde se faziam curas em directo e tudo! Por en-<br />

tre lombas claramente acima dos limites da lei na<br />

zona escolar, fez duas rotundas, passou num via-<br />

duto bordado de luzes brancas a acompanhar o<br />

desenho, e chegou ao destino sem encontrar um<br />

único carro na rua. O barulho do gerador da rou-<br />

lote devia chatear bastante as pessoas que mora-<br />

vam nos prédios em frente, mas numa atitude de<br />

“antes eles que eu”, lá fez o pedido “super-espe-<br />

cial para embrulhar se faz favor”, comprou duas<br />

cervejas pelo triplo do preço do que num super-<br />

mercado e foi para casa.<br />

Enquanto comia a bifana, nada de especial,<br />

lembrava-se das palavras da ex-mulher:<br />

“Não te vais safar!” “Não te vais safar!” Amaldiçoou-a<br />

duas vezes entre cada dentada.


ANother<br />

One biTEs<br />

tHe duSt<br />

v<br />

pedRo MiguEl<br />

tr3s65 41


42<br />

ANA ANA QUEIROZ QUEIROZ<br />

tr3s65<br />

OS DOIS DOIS<br />

CARAS CARAS<br />

DE CAVALO CAVALO<br />

<strong>ilustração</strong> <strong>ilustração</strong> chelsea chelsea pop pop<br />

Os Dois Caras de Cavalo<br />

por Ana Queiroz<br />

As minhas pernas assemelhavam-se, fus-<br />

tigadas e pesadas, quase em papa, às dos cavalos<br />

que corriam à minha frente. Eram os segundos in-<br />

vasores em pouco tempo, admitindo que me fala-<br />

ram de coisas reais e que estive longe de línguas<br />

fantasiosas, errantes, etc, etc, daquelas espalha-<br />

das pelos cantos escuros da Cidade, onde normal-<br />

mente parava... Mas esta parte não me interessa<br />

assim tanto; ou melhor, tento perceber agora o<br />

que me interessa e o que vou pôr de parte (1- não<br />

me posso esquecer do nevoeiro)... Vou começar<br />

de novo. A tremura que sentia no corpo era pare-<br />

cida com a dos cavalos que chegavam mas só po-<br />

dia justapô-las com razão se os animais fossem<br />

mais velhos ou se estivessem tão cansados como<br />

eu. Por algum motivo, olhava mais para os cavalos<br />

que para as silhuetas que os montavam; e eram<br />

muitos, apesar de parecidos, e de um conjunto de<br />

massas muito juntas, eram às centenas. Todos en-<br />

volvidos na mesma crença e disposição embora<br />

houvesse duas frentes distintas, separadas por na-<br />

tureza, vim eu a descobrir mais tarde, sem que me<br />

interessasse realmente sabê-lo, digo-o sem medo,


Aliás, era dos únicos seres que não entrava numa<br />

igreja naqueles tempos, simplesmente porque me<br />

esquecia de o fazer, mas torço a língua sentindo-<br />

os a reconhecer-me, com as mãos gulosas, os<br />

olhos enormes. E depois como se já não bastasse<br />

a presença dos tipos, A perseguição; digo-vos, In-<br />

justa e idiota, como vão perceber pelo meu discur-<br />

so raquítico e sem sentido. Mas na verdade, digo-<br />

vos voltando atrás, Não me perseguiram porque<br />

passava despercebido, não sei se por me fazer de<br />

mudo e acenar com a cabeça num tom de ámen,<br />

aleluia ou se pelo meu ar inofensivo e abandona-<br />

do, quase de um Cristo na Cruz à espera de não<br />

sei o quê com a boca aberta. Ou talvez vos esteja<br />

a esconder informação!...mas corrijo-me imedia-<br />

tamente, Começaram a perseguir-me quando me<br />

apercebi do meu rosto e isso, prometo-vos, fica<br />

mais claro lá para a frente. Dizia a mim mesmo há<br />

bocado, que se não fosse aquele abismo, ou infer-<br />

no labiríntico para ser mais preciso, num grau de<br />

precisão idiota e enublado, a minha vida não tinha<br />

valido de nada, tinha acabado um tipo comum,<br />

chato e informe com as mesmas varizes de agora,<br />

mas chato e informe semelhante a uma pasta de<br />

arroz a cair num prato de família. Estes tempos<br />

deram-me imagens que os meus olhos tentaram<br />

expelir e depois aceitaram tentando lembrar mais<br />

com avidez! Posso considerar-me um vasto arqui-<br />

vo histórico, se estou vivo..., Embora saturado de<br />

emoções e provavelmente adulterado até à última<br />

casa por essas malditas, tão queridas e cuidadas<br />

por mim com especial aprumo, até ao dia de hoje.<br />

Sempre me perguntei por que não me mataram<br />

no primeiro momento em que me cruzei com eles,<br />

eu que me passeava entre os invasores e os cadá-<br />

veres; mas provavelmente era só um vulto, daque-<br />

les que perdem a capacidade de se manter na in-<br />

visibilidade para sempre e de repente estão à vista,<br />

partindo do princípio que essa espécie de vultos<br />

existe, mas insisto neste tema porque um dia apa-<br />

nharam-me e levei pelas semanas todas em que<br />

andava entre eles, mas disso falo-vos adiante para<br />

não pensar muito no assunto e não me amargura-<br />

rem as escleróticas, amarelas da cirrose. Num cer-<br />

to sentido, e para vos explicar melhor o que sentia<br />

por toda aquela devastação que avançava à minha<br />

volta, fui um sortudo por não ter tido tempo para<br />

me ligar a ninguém naquela cidade; era um mero<br />

desconhecido com ar de louco a vagabundear<br />

eternamente; provavelmente daquelas pessoas<br />

que parecem abandonadas pelo mundo e que<br />

chamam o nevoeiro a si (ponto 1 lembrado, de-<br />

pois torna-se mais concreto), e sei bem que o ce-<br />

nário era horrível, mas estava cego ainda na carni-<br />

ficina dos meus e nada me fazia arregalar os olhos.<br />

Mas adiante! Como vos tentava explicar no início<br />

ou talvez só o tenha pensado, acreditei sempre<br />

que o meu ar desse nas vistas, pelo menos para<br />

me matarem sem hesitação numa situação como<br />

esta, porque o líder dos tipos que tinham invadido<br />

primeiro a cidade parecia-me tão louco e abando-<br />

nado como eu e tínhamos aliás, enormes parecen-<br />

ças físicas, embora não vos consiga dizer precisa-<br />

mente quais. A verdade era que podíamos ser<br />

irmãos e talvez tivesse sido isso a urgir por um<br />

manto esfarrapado sobre os ombros e a cabeça<br />

quando os via chegar. Gostava de ter aproveitado<br />

a fuga de algumas famílias, se conhecesse algu-<br />

mas delas. Os que conseguiram escapar meteram-<br />

se em carroças pela noite fora já durante a caçada,<br />

e até me tentei meter num desses carros, confes-<br />

so! Mas depois reparei na fronte desvairada dos<br />

cavalos que os levavam e detive-me cheio de<br />

medo; Antes levassem burros ou outros animais<br />

mais atarracados que me metessem menos medo,<br />

mas logo tinha que me deparar com aquela famí-<br />

lia abonada (cambada de excêntricos!), levada por<br />

dois horríveis cavalos. Acho que eles estranharam<br />

a minha desistência porque lhes tinha pedido por<br />

tudo que me levassem antes de encontrar os mal-<br />

ditos cavalos, e tinha caído no ridículo ao ponto<br />

de chorar, mas a verdade é que não tinham muito<br />

tr3s65 43


tempo para estranhar quaisquer atitudes. Lembra-<br />

va-me do rosto do líder e, como éramos parecidos,<br />

tremia só de pensar que me confundissem com<br />

ele. Sabia à partida qual era o meu destino; iça-<br />

vam naqueles dias as primeiras jaulas na catedral<br />

de Mughler. E interrompo um bocadinho aqui para<br />

vos dizer que gostava de vos contar tudo isto de<br />

uma forma pragmática, com uma lista de aconte-<br />

cimentos ou qualquer outra coisa, mas a começar<br />

com uma pequena introdução bela e cuidadosa-<br />

mente orlada por adjectivos, dizendo: A cidade<br />

chamava-se Mughler, era uma terra encantadora,<br />

cheia de luz e catedrais esmagadoras, se não fos-<br />

se como digo, tinha ficado esquecida na história<br />

como qualquer outra cidade esquecida sem que-<br />

rer; e depois as listagens dos acontecimentos e<br />

por fim a dos mortos... Mas não vos quero maçar<br />

com a materialidade da vida porque tenho mais de<br />

530 anos, e isso da materialidade a mim não me<br />

interessa, quero dar-vos pistas para jogarmos, de<br />

forma a que se concentrem primeiro noutras coi-<br />

sa, que na verdade não sei bem quais são. Digo-<br />

vos só que se concentrem nas pequenas histórias<br />

e que não se desviem delas por um segundo.<br />

Digo-vos também que me custa dar-vos matéria<br />

tão vaga, mas de outra maneira concentravam-se<br />

em contextos e datas e digo-vos, com certeza, que<br />

44<br />

tr3s65<br />

o tempo não era preciso na cabeça destas pessoas<br />

que morriam ou esperavam pela morte...e que na<br />

minha, não é preciso desde o único acontecimen-<br />

to tenebroso da minha vida, e digo-vos mais ainda<br />

que o que não é dado com certezas e dito que não<br />

é dado com certezas, não interessa realmente; e o<br />

que não é dado com certeza somente, interessa<br />

mais que tudo, sobretudo quando é antecipado<br />

por interrogações. De onde vinha antes de cair<br />

neste molhos de cobras? Antes da invasão dos Ca-<br />

ras de Cavalo?...Não sei se querem de facto saber,<br />

mas deixo aqui esclarecido que fui um homem de<br />

bem, com família e que a minha vida se movia di-<br />

reita como os ponteiros do relógio. Mas chega,<br />

não tenho tempo para recordar e passar tempos<br />

infinitos a pensar na morte da bezerra, ou na mor-<br />

te dos cavalos, porque me apetece falar de cavalos<br />

para me distrair. Vamos falar dos meus cavalos, ou<br />

não, vamos falar dos meus achaques bem vindos,<br />

coisa que apesar do drama que se instalava na Ci-<br />

dade, permanecia a despontar-me dos cabelos<br />

como em qualquer outro tempo. Semanas depois<br />

de ver as jaulas erigidas na fachada da Catedral e<br />

os Caras de Cavalo a olharem para cima satisfei-<br />

tos, percebi que tinham pessoas lá dentro. Não<br />

eram aquelas tipas que usavam lenços na cabeça e<br />

que andavam muito encolhidas pela cidade antes<br />

dos invasores chegarem, mas o séquito do líder.<br />

Uma das jaulas continuava vazia com o nevoeiro<br />

que se alongava pela cidade a entranhar-se nas<br />

grades, e a mim parecia-me óbvio o que me aguar-<br />

dava; não tinha remédio senão deixar-me levar<br />

pelos homens das duas frentes, cheios de forças<br />

para recuperar a liberdade daquela cidade, ou o<br />

que entendiam por liberdade nos seus próprios<br />

padrões. Só pensava em arranhar-me até deixar de<br />

ser parecido com aquele reizinho, o tal líder malu-<br />

co que andava fugido. Se soubesse por onde an-<br />

dava, se tivesse uma única pista, tinha-o denun-<br />

ciado, ingloriamente, mas com um ar solene,<br />

como ladrão da minha identidade; e nas primeiras


noites parecia-me vê-lo passar do cimo da cate-<br />

dral, mas quando começava aos berros, ameaça-<br />

vam-me com mais uma tareia valente e aí calava-<br />

me; ao mesmo tempo era uma ideia estúpida a de<br />

me irem buscar e devia ter-me lembrado disso já<br />

que tocava nas nuvens, mas só cheguei a essa<br />

conclusão depois e a algum custo. O líder, o tal<br />

tipo que odiei até à morte durante os quatro dias<br />

em que estive enjaulado, tinha levado para ali<br />

aqueles tipos fanáticos e digo-vos sem problemas<br />

que mais me pareciam aborígenes limpinhos sem-<br />

pre em ritos, pela noite e dia fora. Tinham costu-<br />

mes bizarros, podiam-se casar várias vezes e ou-<br />

tras coisas do género que não se viam em qualquer<br />

paragem. Talvez fosse por isso que tinham levan-<br />

tado tanta polémica, mas não, na verdade era<br />

tudo uma questão de poder, que na altura tinha<br />

que estar numa das duas frentes principais. Como<br />

consegui sair daquela jaula? Mais uma vez me per-<br />

guntam vocês coisas inúteis que não vos interes-<br />

sam em nada para as vossas parcas vidas. Tinha<br />

ainda umas ideias anteriores ao enjaulamento,<br />

que apesar de não conseguir produzir naquele ins-<br />

tante, podia recordar por uma questão de confor-<br />

to e aparência, como de resto tinha planeado se<br />

alguma vez me encontrasse naquela situação. Não<br />

usei nenhuma delas; mesmo com a cabeça atarra-<br />

cada de medo, consegui olhar para o nevoeiro e<br />

abraçá-lo, abraçá-lo, como se nunca tivesse visto<br />

nevoeiro. À altura dos céus, de onde via os outros<br />

prisioneiros famintos e desgraçados, quis falar-<br />

lhes do que amavam cegamente, do que os pode-<br />

ria vir a reavivar, e comecei dizendo: Eu sou Cristo,<br />

e nesse instante senti-me cheio de sorte, como se<br />

tivesse que ser recompensado pelo acaso depois<br />

de tanta coragem. Reafirmei a voz no meu corpo<br />

desgastado e voltei a repetir-me olhando para o<br />

nevoeiro que ficava denso, Eu sou Cristo, Avizi-<br />

nha-se uma grande praga onde todos os que me<br />

perseguiram vão cegar e a cegueira será também<br />

para todos os que não me libertaram, Só eu pode-<br />

rei ver, Só eu poderei dar luz, Eu, a fonte de toda<br />

a cor e de todas as formas; e continuei noite fora<br />

até que o nevoeiro cerrasse ao ponto de não se ver<br />

nada. A multidão de Caras de Cavalo ajuntava-se<br />

perto da catedral gritando para que me libertas-<br />

sem e ouviam-se homens a chorar, parecia-me que<br />

o corpo dos moribundos enjaulados, um de cada<br />

lado, tinha cessado de lutar pela vida. Na verdade,<br />

há já umas horas que tinha ouvido parar os sussur-<br />

ros, as orações, as perguntas desesperadas que-<br />

rendo saber se eu era mesmo a reencarnação de<br />

Cristo. Penso até ter ouvido, aquelas vozes soltas<br />

no nevoeiro perguntarem-me onde estava o líder;<br />

diziam que não me conheciam a voz, e pergunta-<br />

vam por que não os tirava dali. Resta-me contar-<br />

vos que os Caras de Cavalo se juntaram para des-<br />

cer a minha jaula com um gancho pesado e que<br />

quando senti a jaula bater no chão, só tacteei cor-<br />

pos a fugir aos gritos, atarantados naquele espaço<br />

encoberto. Também eu corri sem saber por onde<br />

ia, mas quando senti erva seca a estalar-me debai-<br />

xo dos pés, quedei o corpo e permaneci enrolado<br />

no chão como um animal, durante muito tempo.<br />

Lembrei-me que me tinha esquecido de contar os<br />

cadáveres para ser um arquivo útil de informação,<br />

mas para mim eram apenas seis já contados há<br />

algum tempo.<br />

tr3s65 45


Tínhamos perdido. Ao fundo, roncando<br />

aos solavancos, afastava-se o comboio lento. Estava<br />

macerado pela exposição solar de quase<br />

quatro anos sem restauro. Dentro dos vagões,<br />

amontoados uns sobre os outros, ombros caídos,<br />

os últimos camaradas sobreviventes que tinham<br />

conseguido embarcar em Sedan fitavam o cais de<br />

embarque. Ninguém nos acenava, não havia sorrisos<br />

e Eric, a meu lado, ressentido pelo atraso e<br />

pela indiferença dos que partiam, dizia-se transparente.<br />

Era inútil esperar por um novo transporte.<br />

Aquele tinha sido o último comboio a partir<br />

para leste, daqui em diante as fronteiras seriam<br />

reentregues às autoridades francesas, e<br />

estas iriam fechá-las para sempre. O melhor seria<br />

caminhar. Mesmo tendo que percorrer os quase<br />

500 quilómetros que nos separavam de Weimar,<br />

ainda havia tempo para chegar a casa antes do<br />

Natal.<br />

Não havia muito que motivasse o regresso;<br />

Eric já não tinha família, perdera a mãe<br />

bem antes do início da guerra, o pai, ausente<br />

praticamente desde o seu nascimento, nunca<br />

existira na realidade e o seu único irmão, com<br />

quem tinha sido criado, morrera logo nos primeiros<br />

meses da guerra.<br />

Olhando em redor, via que tudo mudara<br />

nestes últimos anos, a terra deixara de ser castanha<br />

e viçosa; caminhávamos sobre cinzas, as<br />

poucas árvores que ainda se mantinham de pé<br />

estavam carbonizadas. De vez em quando, cruzávamo-nos<br />

com as filas esfarrapadas dos prisioneiros<br />

desarmados que regressavam a França. Eles<br />

não olhavam para nós. Num desses recontros,<br />

Eric decidiu enfrentar alguns deles, despiu o dólman<br />

e plantou-se em frente à coluna com os pu-<br />

46<br />

tr3s65<br />

nhos erguidos, mas de nada valeu a afronta, os<br />

homens passaram por ele silenciosos, como se<br />

Eric fosse invisível, um fantasma indiferente prostrado<br />

no caminho daqueles que não pensavam<br />

em nada mais do que o regresso. E a verdade era<br />

essa: já não havia motivo para confrontos. As<br />

balas e os murros tinham cessado e cada um só<br />

desejava regressar a casa, como se de repente<br />

todos os milhares de homens ensandecidos tivessem<br />

ficado cordatos e vissem as ofensas e a guerra<br />

como coisas de um mundo ao qual já não queriam<br />

pertencer. Para eles, não sei se também para<br />

nós, aquilo não era o sossego, mas era a paz, e<br />

ao fim de quatro anos de contenda, nada haveria<br />

com mais valor do que a paz.<br />

Arrastámo-nos durante muitos outros<br />

dias, já não víamos a terra incendiada das fronteiras<br />

das Ardenas, as árvores outonais quase<br />

que geravam esperança e as fileiras de refugiados<br />

tinham desaparecido. Tudo isso fez com que<br />

sentisse algo aceso no coração, estávamos na<br />

nossa terra, a casa em Weimar cada vez mais<br />

próxima e as duras memórias pareciam-me remotas.<br />

Apesar de tudo, preocupava-me a imagem<br />

de Eric, logo à minha frente: marchava descompassado,<br />

os braços deambulavam a cada<br />

passada trôpega, o uniforme em fio desagregava-se<br />

aos bocados. Lia-lhe no olhar baço que as<br />

suas memórias contiuavam vivas. Pertencia<br />

àqueles que perderam as causas e depois de tantos<br />

anos a destruir e a matar, parecia que já não<br />

sabia o que construir, ou até como fazê-lo. No<br />

seu silêncio letal, nos gestos cada vez mais descoordenados,<br />

percebi que Eric ainda estava na<br />

terra de ninguém e talvez não quisesse verdadeiramente<br />

sair de lá.


“A morte é silenciosa.<br />

Não tenho nada a dizer<br />

sobre a morte.”<br />

João César Monteiro<br />

O CAMINHO PARA WEIMAR<br />

Mário Bruno Pastor<br />

fotografia Ângela Berlinde<br />

tr3s65 47


Se fosse mais perspicaz, perceberia então<br />

que Eric deveria ser como um espelho, a imagem<br />

da minha própria condição, mas acreditava<br />

que era diferente, que poderia reencontrar o caminho<br />

normal até ao passado, refazer as coisas<br />

todas como se a guerra e a morte nunca tivessem<br />

existido, como se fosse igual, ou até melhor, do<br />

que os camaradas calados que partiram nos comboios.<br />

Era como se tivesse deixado no lugar vazio<br />

da alma a grande ilusão de ter sobrevivido.<br />

Não tínhamos caminhado muito para além de<br />

Kriesfeld quando nos deparámos com o que restava<br />

de um regimento deslocado. Eram austríacos<br />

e estavam mais ou menos dispersos pelo caminho.<br />

Eric passou por eles, não queria conversas<br />

com velhos aliados de derrota, eu, no entanto,<br />

precisava de parar. Não pelo cansaço, que em<br />

bom rigor – pesado rigor, relembro agora – me<br />

entorpecia o corpo, mas porque na verdade achei<br />

pouco comum ver aqueles soldados tão longe de<br />

casa, tão fora do seu lugar. Sentei-me junto a um<br />

deles, era um jovem tenente e, pela primeira vez<br />

desde Sedan, julgo que se calhar até antes disso,<br />

falei com alguém que não fosse Eric. Explicou-me<br />

que se tinham mobilizado para norte depois de<br />

terem sido dizimados em Veneto pelos italianos.<br />

Como não se permitiram assinar a rendição, procuraram<br />

o caminho para se juntarem às forças<br />

alemãs e prosseguir o esforço na Frente Ocidental.<br />

Agora estavam a reagrupar e marchariam<br />

para França. Não sei como, mas não me foi possível<br />

explicar-lhe que já não havia guerra. O tenente,<br />

cristalizado noutro tempo, não aceitava a<br />

derrota. Preferia fantasiar sobre a urgência do<br />

seu pelotão, os salvadores da germanidade, da<br />

civilização, dizia ele. Acreditava e fazia os seus<br />

homens acreditarem que ainda era possível salvar<br />

48<br />

tr3s65<br />

a situação, inverter o rumo do tempo e regressar<br />

ao passado, onde as possibilidades estariam ain-<br />

da todas em aberto.<br />

Senti que o tenente austríaco era afinal<br />

como nós, tinha outro destino, mas era igual. Ele<br />

queria ir para França, nós faziamos a viagem para<br />

Weimar, mas todos nos movíamos no tempo e<br />

não no espaço. Não procuravamos salvar nada,<br />

nem regressar às trincheiras, desejávamos encontrar<br />

a idade anterior ao início da guerra, regressar<br />

à família, ao lar e à vida de 1914, reorganizar<br />

tudo sem ter em conta a desordem que se seguiu,<br />

sem aceitar a mudança. Por fim deixámos<br />

os austríacos para trás, e prosseguimos caminho,<br />

rumo a Weimar. Chegaríamos no Natal.<br />

Não foram necessários muitos dias para<br />

começarmos a avistar, primeiro ao longe, depois<br />

bem mais perto, os negros telhados íngremes e<br />

as torres góticas da Stadtkirche. Entrámos na cidade<br />

ao anoitecer, exactamente no dia do concerto<br />

de Natal, concerto triste, com o mesmo<br />

Bach de todos os outros concertos anteriores à<br />

guerra, mas desta vez, as palavras cantadas - wachet<br />

auf, ruft uns die Stimme - soaram-me mais<br />

fundas: acordemos, a voz chama-nos.<br />

E um a um, pelas ruas iluminadas, surgiram outros<br />

soldados imundos, olhares vazios e gestos<br />

morosos. Juntávamo-nos e caminhávamos em silêncio<br />

na direcção da música magnética. Como<br />

sonâmbulos, reconhecíamos mecanicamente os<br />

rostos uns dos outros, Eric, saudou o próprio irmão,<br />

mas muitos mais iam chegando. Quando<br />

percebi a verdade da nossa situação, vi que já<br />

éramos centenas, batalhões, regimentos inteiros,<br />

e nenhum de nós, afinal, tinha um espaço para<br />

onde realmente regressar.

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