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<strong>365</strong><br />
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Fernando Alvim<br />
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EDITOR<br />
António Gregório<br />
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Daniel Galera, Elisabete Patrícia Andrade,<br />
Izet Sarajilic, Luís Graça, Marcelo Moutinho,<br />
Maria João Ribeiro, Mário Bruno Pastor,<br />
Micael Póvoa, Miguel Marques, Monika<br />
Stojak, Pedro Miguel, Pedro Santo, Rita Lino,<br />
Rui Manuel Amaral, Scott James Prebble<br />
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MECENAS<br />
Robin Hood<br />
CAPA<br />
Micael Póvoa<br />
fotografia Scott James Prebble<br />
tr3s65 01
EDITORIAL<br />
Cá estamos de novo no sopé de mais um ano e este,<br />
avisam as autoridades, um bocadinho mais a subir que<br />
os outros, com seixos afiados amiúde, aqui e ali musgo<br />
escorregadio a promover gloriosos espalhanços. Porém,<br />
e para o caso de caírem sentados, que não vos falte a<br />
<strong>365</strong> para uns minutos de aprazível leitura antes da reto-<br />
ma da marcha. São mais de uma dezena de contos pro-<br />
fusamente ilustrados (alguns, inclusive, a cores porque<br />
somos uns mãos-largas), dois deles vindos do outro lado<br />
do Atlântico, onde nesta altura é Primavera e faz calor:<br />
se a inveja provocasse diarreia aos invejados, entre cada<br />
saraivada de granizo luso, haveria uma multidão de bra-<br />
sileiros a correr para a casa de banho. Destaco, pois, o<br />
sotaque deste número: o conto de Marcelo Moutinho,<br />
autor de vários livros de contos e ainda inédito em Por-<br />
tugal; e o de Daniel Galera, cujo seu romance «Mãos de<br />
Cavalo» aconselho (a edição é de 2008, da Caminho).<br />
Ainda um magnífico conto de Alexandre Andrade, outro<br />
de Luís Graça, cinco microficções de Rui Manuel Amaral,<br />
um poema de Izet Sarajlic traduzido por José Luís Peixo-<br />
to, a estreia nas páginas da <strong>365</strong> de Ana Queiroz e Pedro<br />
Miguel, a continuidade de Pedro Santo, Elisabete Patrí-<br />
cia Andrade, Mário Bruno Pastor e Miguel Marques.<br />
Divirtam-se, que é a melhor maneira de lidar com a<br />
crise.<br />
António Gregório.<br />
02<br />
tr3s65<br />
04 Biografias<br />
06 Scents of Provence<br />
>> Alexandre Andrade<br />
14 Confissão à parede<br />
>> Miguel Marques<br />
17 My life in a museum<br />
>> Monika Stojak<br />
18 Tiroteio<br />
>> Daniel Galera<br />
20 O meu rosto termina<br />
onde o teu começa<br />
>> Elisabete Patrícia Andrade<br />
24 A minha estância em Istambul<br />
>> Izet Sarajlic<br />
26 Rosa noturna<br />
>> Marcelo Moutinho<br />
32 Cinco histórias nocturnas<br />
>> Rui Manuel Amaral<br />
34 A mulher que sofria muito<br />
com as recordações musicais<br />
>> Luís Graça<br />
38 Jacinto<br />
>> Pedro Santo<br />
40 Another one bites the dust<br />
>> Pedro Miguel<br />
42 Os dois caras de cavalo<br />
>> Ana Queiroz<br />
46 O caminho para Weimar<br />
>> Mário Bruno Pastor
fotografia Maria João Ribeiro<br />
tr3s65 03
ESTRAnHOs CoMO NoS<br />
Alexandre Andrade nasceu em 1971 em Lisboa, onde reside. É<br />
professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.<br />
Tem 2 romances e 2 livros de contos publicados.<br />
Ana Queiroz tem 21 anos, frequenta o último ano do curso de<br />
Cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema. Foi seleccionada<br />
entre os Jovens Criadores de 2008 na categoria de Literatura e, no<br />
futuro, deseja trabalhar nessa área, bem como na de Cinema.<br />
António Gregório nasceu em Leiria, em 1970. É autor de «Uma<br />
história de desamor treze vezes» (Ambar, 2004) e «American<br />
Scientist» (Quasi, 2007). O conto «Rodolfo» que aqui publica-<br />
mos, foi retirado da antologia «Vamos para onde temos a ventu-<br />
ra» (CEPAE, 2008)<br />
Daniel Galera nasceu em São Paulo, em 1979. É escritor e tradu-<br />
tor. Tem publicado em Portugal o romance «Mãos de Cavalo»<br />
(Caminho, 2008). É também autor de «Até o dia em que o cão<br />
morreu» (Livros do Mal, 2003 e Companhia das Letras, 2007 –<br />
posteriormente adaptado ao cinema com o nome «Cão sem<br />
dono» e realizado por Beto Brant e Renato Ciasca) e «Cordilhei-<br />
ra» (Companhia das Letras, 2008), além do volume de contos<br />
«Dentes Guardado» (Livros do Mal, 2001), de onde retirámos «Ti-<br />
roteio», que publicamos neste número.<br />
Elisabete Patrícia Andrade estudou letras na Universidade Clás-<br />
sica de Lisboa. Reside presentemente no Reino Unido. Gosta de<br />
arte, de filosofia, de coleccionar livros e memórias. Elege o humor<br />
negro.<br />
Izet Sarajlic é um dos poetas bósnios mais traduzidos. Nasceu<br />
em Doboj, em 1930, e morreu em Sarajevo, em 2002. O poema<br />
que aqui publicamos, «A minha estância em Istambul», foi tradu-<br />
zido por José Luís Peixoto a partir do castelhano, segundo consta<br />
no volume «Una calle para mi nombre» (4 Estaciones, 2003).<br />
Luís Graça é jornalista e escritor. Tem publicado «15 Desatinóni-<br />
mos para Fernando Pessoa», «De Boas Erecções está o Inferno<br />
Cheio» e «A Mulher que Fazia Recados às Putas e mais contos<br />
perversos», de onde retirámos «A mulher que sofria muito com as<br />
recordações musicais», que publicamos neste número.<br />
04<br />
tr3s65<br />
Marcelo Moutinho nasceu em Madureira, subúrbio do Rio de<br />
Janeiro, no dia 22 de Junho de 1972. É jornalista e escritor. Tem<br />
publicados os volumes «Memória dos barcos» (7Letras, 2001) e<br />
«Somos todos iguais nesta noite» (Rocco, 2006). É inédito em<br />
Portugal.<br />
Mário Bruno Pastor nasceu no Porto em 1976. Padece de bis-<br />
sextismo e custa-lhe a aceitar que existam calendários para os<br />
anos vindouros. A par disso tem publicado poesia em edições lite-<br />
rárias colectivas.<br />
Miguel Marques nasceu em Lisboa em 1978, cursou Psicologia<br />
derivado a um erro de preenchimento dos impressos e encontra-<br />
se, actualmente, empregado a título precário num projecto de<br />
intervenção social. Falhou uma brilhante carreira política. Entre-<br />
mentes, foi forcado em Barrancos, seringueiro na Amazónia,<br />
bate-chapas em Moscavide, traficante de armas na Rodésia e guia<br />
de excursões entre Tânger e Gilbraltar. Tem contos publicados nas<br />
antologias <strong>Revista</strong> <strong>365</strong> – Os Primeiros Anos (CoolBooks, 2004) e<br />
em duas colectâneas Jovens Escritores (101 Noites, 2005 e<br />
2006).<br />
Pedro Miguel nasceu em Leiria, há 33 anos. Escreve. Certas noi-<br />
tes, independentemente da fase da lua, transforma-se no dj Sch-<br />
meichael e mete música.<br />
Pedro Santo é um gajo que acha que estas mini-biografias são<br />
redutoras para com a sua incomensurabilidade. Como precisava<br />
de pelo menos mais uma linha, e em protesto, acaba por não<br />
adiantar nada sobre si, a não ser que nasceu em Leiria, em 1980.<br />
Rui Manuel Amaral nasceu no Porto, em 1973, cidade onde<br />
vive. É coordenador literário da revista aguasfurtadas. É autor de<br />
«Caravana», editado pela Angelus Novus.
fotografia Rita Lino<br />
tr3s65 03
06<br />
tr3s65<br />
Scents of Provence<br />
Alexandre Andrade
A bola embateu na outra bola no ponto<br />
certo, mas com o efeito errado, ou no ponto er-<br />
rado com o efeito certo. Rachel não pôde evitar<br />
um suspiro de frustração. Cada colisão era acom-<br />
panhada por um som seco e previsível. Os tacos<br />
passaram de uma brusca mão derrotada para<br />
outra mão. Rachel não conhecia as regras do<br />
jogo, mas emitia opiniões com uma cadência<br />
quase feroz.<br />
Havia meia hora que entrara naquele<br />
bar de Antibes, esforçando-se por aparentar a<br />
calma principesca de quem já conheceu tudo o<br />
que na vida existe que valha a pena conhecer.<br />
Interessara-se pela partida de bilhar, e agora,<br />
com a mão esquerda fechada em torno do copo<br />
que continha o resto tépido do seu diabolo grenadine,<br />
esforçava-se por se integrar no grupo de<br />
jogadores, mas mantendo as distâncias; ou então,<br />
cultivar um módico de distanciamento sem<br />
descurar o apetite pela socialização. Tanto uma<br />
como a outra estratégia lhe pareciam boas. Um<br />
rapaz muito moreno, dono de um fascinante par<br />
de olhos verde-azeitona, perguntou a Rachel se<br />
queria jogar. Não, Rachel não jogava. O seu reflexo<br />
no vidro que dava para a rua mostrou um rosto<br />
sufocado pela gratidão.<br />
Era um fim de manhã de Julho, e oxalá<br />
que todos os dias fossem tão carregados de possibilidades<br />
como aquele. O olhar abarcava sem<br />
esforço todos os segmentos do campo visual, e o<br />
tempo era meigo, benigno, tolerante para os caprichos.<br />
O grupo preparava-se para partir. O rapaz<br />
moreno chamava-se Malik. Rachel vasculhava<br />
as profundezas da gramática e vocabulário<br />
franceses para responder à última pergunta que<br />
lhe fora dirigida. Saiu quando os outros saíram,<br />
em último lugar. Atravessou a rua fora da passadeira<br />
para peões, apreensiva por abdicar da superioridade<br />
moral que o respeito pelo código da<br />
estrada confere, em caso de acidente. Mas aquele<br />
sol glorioso, tão cruamente diferente do sol<br />
que ela conhecia do Ohio!... Perturbada pela luz,<br />
Rachel chegou ao outro lado da rua incólume,<br />
mas prestes a perder contacto com o grupo de<br />
jovens que a precedia. Rachel estava certa de que<br />
um comentário que escutara, da boca de um deles,<br />
mas não de Malik, lhe era dirigido. Não o<br />
compreendera totalmente, mas a vontade de responder<br />
aglutinou, por momentos, toda a sua<br />
energia e motivação. Eis porém que, ao dobrar<br />
uma esquina, os viu mais do que nunca afastados,<br />
atravessando já a rua, mais uma vez na diagonal,<br />
apressando o passo. Rachel deixou-se ficar.<br />
Fingiu seguir com os olhos um spaniel<br />
pachorrento, cuja dona, uma mulher de cerca de<br />
quarenta e cinco anos, retocava a pintura com a<br />
ajuda de um minúsculo espelho circular. Segurava<br />
o espelho e a trela com a mesma mão, e com<br />
a direita aplicava rímel.<br />
Lembrou-se que “Kro” era uma abreviatura<br />
para “Kronenbourg”, apreciada marca de<br />
cerveja.<br />
Àquela hora, os pais estariam no quarto<br />
de hotel, escrevendo cartas, ou servindo-se de<br />
pratas de chocolate para marcar as páginas do<br />
guia turístico. O dia seguinte a uma chegada a<br />
lugar estranho não era a altura ideal para se expor<br />
às agressões do mundo exterior. Tudo o que<br />
fosse sair à rua antes do terceiro dia era prematuro.<br />
A saúde do pai de Rachel. Rachel, os seus dezasseis<br />
anos, pela primeira vez num novo continente.<br />
“As minhas certezas devassadas” pensou<br />
Rachel, “as minhas convicções sacudidas. Nada<br />
mais peço do que isso.”<br />
Que fazer? Rachel desdobrou o mapa<br />
de estradas que trazia sempre consigo. Converteu<br />
mentalmente distâncias quilométricas em milhas<br />
e em horas. A proximidade da saída rodoviá-<br />
tr3s65 07
ia para Grasse era tentadora. Deixar para trás<br />
Antibes, na qual Rachel adivinhava uma implacável<br />
promessa de tédio e de opressão, fugir do<br />
mar Mediterrâneo, no automóvel de um desconhecido<br />
cujas feições não perdurariam na sua<br />
memória. Abandonar-se ao acaso. Forçá-lo a ser<br />
seu cúmplice. Grasse, a capital mundial do perfume.<br />
Como fazer para chamar a atenção de<br />
um motorista que reunisse as doses exactas de<br />
boa vontade e de urbanidade? Como ser mais do<br />
que uma manchinha colorida e fugidia na berma<br />
da estrada, tão alheia ao furor mecânico dos automóveis<br />
que aceleravam na cobiçada direcção<br />
de Grasse? Rachel guiou os seus passos pelo<br />
mapa de estradas. Talvez um capricho do destino<br />
fizesse as vezes de providência sob aquele soberbo<br />
céu mediterrânico. Talvez alguém reparasse<br />
nela. Talvez não pensar no problema fosse a melhor<br />
maneira de o começar a resolver. Podia ser<br />
que a timidez dos seus pequeninos passos fosse<br />
na medida inversa da vertiginosa deslocação física<br />
que aquele dia reservava para o seu corpo.<br />
E, afinal, como tudo foi fácil! Prestando<br />
atenção à estrada como se fosse sua a obrigação<br />
de conduzir, Rachel alheou-se da conversa com a<br />
08<br />
tr3s65<br />
mesma eficácia com que se alheava da hora do<br />
dia e do bom senso. Entre Antibes e Grasse ca-<br />
bem decerto mais do que dois ou três monossíla-<br />
bos e um olhar furtivo, mas Rachel fez-se parca<br />
em palavras e gestos como se a parcimónia a de-<br />
fendesse de tudo aquilo que inquieta neste mun-<br />
do dos Homens. A dama que lhe dera boleia ti-<br />
nha uma cicatriz oblíqua na nuca, e o hábito de<br />
se debruçar para a frente sobre o volante. No<br />
banco traseiro via-se, semicoberta por uma man-<br />
ta de tecido barato, uma gaiola de plástico que<br />
continha um animal roedor, provavelmente um<br />
porquinho-da-Índia. Ah, os detalhes.<br />
Mal se tinha apeado, Rachel voltou-se<br />
subitamente para perguntar à condutora qual era<br />
o local, em Grasse, onde as pessoas tinham o hábito<br />
de se encontrar, para conversar, etc. Devidamente<br />
informada, seguiu caminho. Encontrou o<br />
local sem dificuldades. Assim que o primeiro rapaz<br />
lhe ofereceu uma bebida, Rachel orientou a conversa<br />
para o tema dos perfumes, das fragrâncias,<br />
dos aromas, das essências. Os sinónimos em excesso<br />
podem denotar insegurança. Rachel humedecia<br />
os lábios com frequência, o que a irritava. O<br />
gesto era dela, mas irritava-a. Deu-se conta de<br />
que tinha perdido o mapa de estradas.
— Tenho de fazer uma chamada telefó-<br />
nica — disse Rachel.<br />
— Empresto-te o meu cartão — disse o<br />
rapaz, cujas feições eram melancólicas e breves.<br />
Rachel afogou interiormente o desapontamento.<br />
Habituada a uma pródiga dieta de<br />
filmes franceses dos anos 50 e 60, em sessões<br />
nocturnas de um obscuro canal por cabo, já se<br />
via ao balcão a comprar uma mão cheia de jetons,<br />
essas pequenas fichas de plástico para o<br />
telefone público que o progresso relegou para a<br />
categoria de objectos da nostalgia. O cartão que<br />
o rapaz lhe estendia fazia publicidade a uma<br />
companhia de seguros mutualista. Pensando<br />
bem, o telefonema aos pais não se impunha. A<br />
tarde ainda mal começara.<br />
— E o que há para fazer em Grasse?<br />
Existiam, ao que parecia, muitas coisas<br />
para fazer em Grasse. O jovem discorreu vagamente<br />
sobre um mercado ao ar livre, uma exposição<br />
e um local de animação nocturna, mas sem<br />
que a sua expressão denotasse algo parecido<br />
com o entusiasmo.<br />
— Engano-me — perguntou Rachel,<br />
indo directa ao assunto — ao supor que existe na<br />
cidade um museu da indústria dos perfumes,<br />
com reputação planetária?<br />
É claro que não se enganava.<br />
— Levas-me até lá? — Rachel já estava<br />
de pé. Havia algo de nobre e de austero, naquelas<br />
ruas cujo pitoresco não saltava com demasiada<br />
violência aos olhos.<br />
O Musée International de la Parfumerie<br />
oferecia como pontos altos a visita à fábrica e à<br />
estufa. No interior desta, Rachel deslocava-se de<br />
um lado para o outro, num alvoroço controlado,<br />
balbuciando o nome das essências sem precisar<br />
de confirmação: jasmim, íris, pimenteiro, benjoim,<br />
bergamota, baunilha.<br />
— Tu sabias que a bergamota... Como<br />
é mesmo o teu nome?<br />
— Arnaud.<br />
— Tu sabias, Arnaud, que a bergamota<br />
é um citrino? Colhe-se entre Novembro e Maio.<br />
Apenas se utiliza a casca, e o rendimento do processo<br />
não ultrapassa os 0,5 %. Também possui<br />
propriedades antissépticas.<br />
Quanto à lavanda...<br />
Arnaud tão pouco estava ao corrente<br />
de que a famosa casa de perfumaria Molinard<br />
permitia ao turista interessado a visita das suas<br />
instalações. Arnaud e Rachel percorreram suces-<br />
tr3s65 09
sivamente a fábrica de sabonetes, a destilaria e a<br />
sala dos cremes. As técnicas empregues eram estritamente<br />
artesanais, garantindo uma rara qualidade<br />
e um requinte extremo. No final da visita,<br />
era proposto ao visitante um curioso jogo em<br />
equipa. Numa primeira etapa, cada equipa deveria<br />
esforçar-se por reconhecer as essências e associá-las<br />
à matéria-prima correspondente. Em<br />
seguida, a missão consistia em recriar um perfume<br />
e eliminar o intruso presente numa dada pirâmide<br />
olfactiva. Rachel saiu-se na perfeição, e sem<br />
esforço aparente. De novo ao ar livre, num ziguezagueante<br />
trote rápido de felicidade, Rachel enumerava<br />
os nomes dos perfumes em cuja composição<br />
entra o cardamomo, que Arnaud apenas<br />
conhecia como aromatizante de café: “Femme”,<br />
de Marcel Rochas, “Jungle”, de Kenzo, “Envy”,<br />
de Emilio Gucci, “Dolce Vita”, de Christian Dior,<br />
“Stradivarius”, de Armani, “So”, de Oscar de la<br />
Renta, “Déclaration”, de Cartier, “Sonia Rykiel”,<br />
de Sonia Rykiel, e “Jako”, de Karl Lagerfeld. Mais<br />
em tom de cantilena do que de elenco. Seguiu-se<br />
uma vénia, uma pequena vénia. Ninguém reparou<br />
na vénia.<br />
— O teu olfacto é fenomenal — elogiou<br />
Arnaud, incrédulo. Arnaud, pouco à vonta-<br />
10<br />
tr3s65<br />
de, personagem menor e acessória, sem saber<br />
como lidar com aquele novelo de energia e deci-<br />
são dotado de sotaque.<br />
— Em Cleveland, que é de onde eu venho,<br />
só me serve para cheirar escape de carros,<br />
reboco húmido e gelado de baunilha industrial.<br />
Como desejava visitar a Côte d’Azur! Se aqui estou,<br />
devo-o sobretudo aos altos e baixos da saúde<br />
do meu pai. O clima. Mesmo que não lhe faça<br />
bem, decerto que não lhe fará mal. Mas os meus<br />
pais também achavam que umas férias europeias<br />
me seriam benfazejas. Querem-me emancipada e<br />
de espírito aberto, querem que eu rasgue os<br />
meus horizontes, querem que eu, longe de estiolar,<br />
viceje.<br />
— Queres jantar com um grupo de amigos<br />
meus? — perguntou Arnaud, em cuja voz<br />
sumida Rachel, deleitada, debilmente lisonjeada,<br />
julgou detectar o medo (absurdo) de uma recusa.<br />
Um pouco mais tarde, num estabelecimento<br />
de restauração rápida, Rachel fixava os<br />
rostos e corpos que compunham a roda de amigos,<br />
atenta aos rituais, às expressões, às posturas,<br />
à articulação da palavra com o gesto. A necessidade<br />
de telefonar aos pais funcionou quase
como um pretexto, como um argumento impro-<br />
visado para conceder alguns minutos de trégua à<br />
sua excitação, para fugir à violenta forma de eu-<br />
foria que dela se apoderava. Os pais não mostra-<br />
ram preocupação pela sua ausência. Rachel pro-<br />
meteu tentar regressar a Antibes no dia seguinte,<br />
e descreveu a situação geográfica de Grasse.<br />
“Vem de certeza no guia” gritou ainda para o<br />
aparelho, sem a certeza de ter sido ouvida.<br />
De regresso à mesa, pejada de restos de<br />
comida e de copos de plástico a cujo interior aderiam<br />
gotículas de Orangina, Rachel detectou uma<br />
nota de solenidade que até aí estivera ausente<br />
das conversas e interpelações cruzadas daquela<br />
meia dúzia de camaradas, unidos por uma história<br />
comum, pela adolescência tardia e pela pertença<br />
àquela nesga de terra provençal. Falava-se<br />
(pareceu-lhe) de uma pessoa ausente, de alguém<br />
que suscitava admiração, mas também o incómodo<br />
próprio de quem faz coisas que mais ninguém<br />
faz ou como mais ninguém faz. Viva perto de<br />
Draguignan, e chamava-se Marianne. Marianne<br />
interrompera estudos académicos para se entregar,<br />
a tempo inteiro, a uma tarefa que fugia ao<br />
corriqueiro. Um industrial e multimilionário norte-americano,<br />
Bruce Portinari, rei dos colchões<br />
ortopédicos, pagava-lhe para procurar provas<br />
que sustentassem o seu longínquo parentesco<br />
com a Beatriz do Dante. Marianne vivia num lugar<br />
isolado, numa cabana rústica desprovida dos<br />
mais elementares confortos. Dispensava água<br />
corrente, telefone e Internet; possuía pomar privativo,<br />
e fazia o seu próprio queijo. Viajava muito,<br />
sobretudo a Marselha, e daí para Florença e<br />
outras cidades da Europa. Consultava assentos<br />
de baptismo em paróquias e passava dias inteiros<br />
em bibliotecas. Chegava à hora de abertura e vinha-se<br />
embora à hora de encerramento. Parlamentava<br />
com directores de registos civis. Rachel<br />
não chegou a perceber o que trouxera à conversa<br />
(de resto fugazmente, pois já se mudara de assunto)<br />
aquela personagem, que alcançara estatuto<br />
de lenda local. “Tal e qual uma personagem de<br />
Pagnol” pensou Rachel, assombrada. Os ruídos e<br />
os aromas do interior da Provença participavam<br />
desse seu fascínio. Durante muito tempo, associaria<br />
Dante ao cheiro feroz da esteva, da toranja<br />
e do alecrim.<br />
O que fazer daquela noite? Ninguém<br />
opôs mais do que um simulacro de resistência à<br />
ideia de um passeio nocturno a Cannes. Alguém<br />
se deu ao trabalho de explicar a Rachel onde fica-<br />
tr3s65 11
va Cannes, e como se ia de Grasse para lá. Aten-<br />
ção supérflua, pois Rachel passara o trajecto de<br />
avião a estudar guias turísticos e mapas da re-<br />
gião, com a atenção crispada de um neófito de-<br />
masiado orgulhoso para se permitir passar por<br />
ignorante. Distribuíram-se por três viaturas. Ao<br />
sentir o ar estagnado, alguém prognosticou uma<br />
trovoada. Rachel lamentou a hora adiantada, que<br />
a privava do contacto visual com as bermas da<br />
estrada nacional nº 85. Avançavam impantes<br />
como galeões seiscentistas, ufanos e condescen-<br />
dentes, sem sequer se darem ao trabalho de ace-<br />
lerar de forma excessiva. Dir-se-ia uma plácida<br />
procissão onde aos celebrantes importasse es-<br />
sencialmente fruir do momento presente. Come-<br />
çara a chover. O ribombar fez-se esperar até avis-<br />
tarem o Mediterrâneo, negro e líquido, tão<br />
imensamente superior à borrasca. Estacionaram<br />
assim que puderam, num caminho secundário<br />
em declive. Acenaram uns aos outros, de carro<br />
para carro, através dos vidros batidos pela água<br />
que tombava em torrentes. Havia quem achasse<br />
que os ocupantes de um automóvel estavam pro-<br />
tegidos dos relâmpagos, e havia quem achasse o<br />
contrário. Mais do que iluminar rostos, uma lan-<br />
terna eléctrica encontrada no porta-luvas definiu<br />
os seus contornos. Cantaram-se canções de Mi-<br />
chel Polnareff, com percussão de moedas, unhas,<br />
chaves e palmas contra palmas. Não faltou quem,<br />
com o avançar das horas, se entregasse a um<br />
sono necessariamente breve e incipiente. A sorri-<br />
dente Rachel, essa, nunca abrandou a vigília.<br />
“Olha para tudo. Vê tudo. Hás-de lembrar-te<br />
disto para sempre.”<br />
12<br />
tr3s65<br />
Quando rompeu a alvorada, chovia menos.<br />
Segmentos de céu baço e claro espraiavamse,<br />
morosos. Saíram dos carros, procuraram a<br />
praia. A Croisette estava quase deserta, àquela<br />
hora. Entraram areal adentro com fatigada ligeireza.<br />
Formaram-se grupos. Odores fortes por<br />
identificar cavalgavam a brisa. “É apenas a segunda<br />
vez na minha vida que vejo o mar”, pensou<br />
Rachel, esquecendo-se do oceano avistado a<br />
milhares de pés de altitude.<br />
Despontava o sol.<br />
No seu guia turístico, a distância que<br />
separava Cannes de Antibes equivalia a uma falange<br />
de seu dedo indicador. Rachel admirou a<br />
forma simples e resoluta como os seus antebraços<br />
se projectavam para fora das mangas húmidas<br />
da sweat-shirt.<br />
“Será que mereço isto? Chamar-me-ão<br />
louca se falar em espuma de rebentação e asfalto<br />
num só bilhete-postal? A minha história aguenta-se?<br />
Será que se aguenta?”<br />
Mas estava na altura de se desviar de<br />
alguém cuja sombra se aproximava, e da ameaça<br />
de um brusco sorriso.<br />
Lisboa, Outubro-Novembro, 2006
fotografia<br />
Rita Lino<br />
tr3s65 13
MIGUEL MARQUES<br />
14<br />
tr3s65<br />
CONFISSÃO À PAREDE<br />
fotografia MICAEL PÓVOA
Hoje está atrasada. Os malvados nunca<br />
vêm à tabela. Se calhar perdeu o das nove e teve<br />
de esperar pelo das dez menos um quarto. Quan-<br />
do não vem, telefona a avisar. Hoje ainda não li-<br />
gou, portanto deve vir. Deus queira que não te-<br />
nha acontecido nada. Já tinham dado nas<br />
notícias. Eles dão sempre. Ainda antes de ontem<br />
caiu uma catenária e morreram não sei quantas<br />
pessoas. O comboio descarrilou e apareceu o<br />
chefe da estação a falar. Esse não morreu. Os<br />
malvados vêm sempre com atraso. Acho que foi<br />
um rápido. A sorte foi que iam poucos passagei-<br />
ros, mas, mesmo assim, ainda morreram uns<br />
quantos. Deve ter-se atrasado. Se calhar ligou e<br />
não dei por nada. O mais certo é ter-se atrasado.<br />
Nunca se esquece. Nove e meia, o mais tardar,<br />
telefona. No outro dia trouxe-me um aquecedor<br />
eléctrico, daqueles que se ligam à corrente, por-<br />
que diz que faz mal acender a braseira em casa,<br />
mas não me habituo a ele. Como não tenho as<br />
brasas, ponho a manta nos joelhos ou aqueço os<br />
pés com o saco de água quente. Nesta altura, as<br />
noites são tão frias que me enregelam as mãos e<br />
a barriga das pernas. Uso meias de lã mas o frio<br />
perpassa a roupa. Perpassa tudo, este frio.<br />
O Verão passado levou-me à praia a ver<br />
o mar. Nunca tinha visto o mar, antes. Mostroume<br />
as ondas e as pessoas a apanharem sol, estendidas<br />
na areia, com as mamas ao léu, e ficámos<br />
ali as duas sentadas, a comer pão com<br />
presunto e uns pastéis de bacalhau que salteei<br />
com um raminho de coentros. Bebemos chá dum<br />
termo que ela leva sempre para a praia, dentro<br />
duma cesta. Também vimos um homem que vendia<br />
gelados, um que gritava por uma corneta,<br />
como os malucos, e apitava uma buzina, e ela até<br />
comprou um gelado e comemo-lo a meias, porque<br />
já não tenho dentes e o doce ataca-me o<br />
estômago. Também já não tenho estômago. Pôs-<br />
me o palhinhas na cabeça e besuntou-se toda de<br />
creme, de cima a baixo, braços e pernas. Também<br />
ficou com as mamas ao léu, à torreira, e eu<br />
só a avisava para ter cuidado, que é preciso cautela,<br />
porque faz um mal danado, aquele sol assim<br />
de chapa, mas ela gosta de se bronzear e ficar<br />
chamuscada como uma cavaca. Nesse dia, adormeceu<br />
deitada na toalha, e vi passar uma catraia<br />
com tranças mais a mãe, à beira da água. Nunca<br />
comia nada, ela, quando era pequena. Bolçavase<br />
toda e era um martírio para comer, por isso<br />
tive de obrigá-la a engolir o vomitado para<br />
se habituar a não deitar tudo cá para fora,<br />
senão tinha morrido de fraqueza.<br />
Anda uma puta duma melga de roda de<br />
mim há coisa de uma hora, a cirandar. Pôs-me os<br />
braços num crivo, cheios de babas, pareço uma<br />
chaga. Fico numa pilha de nervos só de a ouvir,<br />
neste zunzum. Está ali no tecto, a magana. A ver<br />
se a apanho. Se não fossem as pernas, punha<br />
uma rodilha na vassoura e matava-a. A ver se a<br />
deixo pousar, malvada.<br />
Parece que escuto baterem. Puxa sempre<br />
duas vezes. Combinámos assim. Também<br />
combinámos que, quando precisar de alguma<br />
coisa, marco o número neste botão e o telefone<br />
marca o resto sozinho, por ele. É daqueles modernos.<br />
Espero que dê o sinal que ela depois ligame<br />
de volta. Trabalha nos telefones e não paga<br />
as chamadas que faz de lá. As campainhas estão<br />
a tocar. Deve ser algum, com certeza. E agora,<br />
levantar-me? Vá a ver. Nunca vêm à tabela, os<br />
desgraçados. Raios os partam mais as greves,<br />
sempre a azucrinarem-me os cornos, almas dos<br />
infernos. A puta está ali naquele canto, a espreitar.<br />
Espera lá que já te conto uma estória, espera<br />
lá. Canto-te uma cantiga. Deixa-te poisar no armário<br />
que eu dou-te o arroz. Espera lá, espera.<br />
Que não me deixa ouvir o homem, esta pata co-<br />
tr3s65 15
nana. Parece que disseram que é o de Vila Fran-<br />
ca. Ainda aparece, com certeza. Nunca se esque-<br />
ce. Deve vir esganada. O pior é se traz muita<br />
fome e não fica cheia só com as costeletas. Frito<br />
batatas, também. É só debulhá-las. As costeletas<br />
são boas. É melhor tirá-las do congelador. Podia<br />
ter feito uma açorda, mas só ali tenho dois papo-<br />
secos. Espera. Ainda ali há um restinho de caldo<br />
verde. Não terá azedado? Fervo-o, de qualquer<br />
das maneiras, e, assim, come uma colherzinha de<br />
sopa e já fica mais aconchegada. Depois estrelo<br />
um ovo e cozo um bocado de toucinho para<br />
acompanhar com a sopa. Gosta de comer o tou-<br />
cinho no pão, ela. Até se lambe toda, coitadinha.<br />
Para isso nunca se queixa de que fica gorda. E<br />
este maldito frio, que não há maneira de passar?<br />
O estupor do vento não me deixa ouvir nada. Pa-<br />
rece que chove. Se vem trovoada molha-se toda.<br />
E se não traz guarda-chuva? Costuma trazer um<br />
dentro da mala. Ai, Nossa Senhora, como se pôs<br />
o tempo. Passou-se-me o noticiário. Devem ter<br />
avisado, eles. Avisam sempre que dão chuva. E a<br />
roupa a secar, quem ma apanha, abrenúncio?<br />
Deus nos acuda. A ver se ganho alento e me le-<br />
vanto para ir à cozinha acender a lamparina, e<br />
aproveito e trago a vassoura para matar esta puta<br />
que não pára de me moer o juízo. Maldita. Vá a<br />
ver. Parece que escuto baterem. Ou será da chu-<br />
va? É com cada trovão que tudo estremece, cre-<br />
do. Chegou um, parece-me. Deve vir neste. Nun-<br />
ca se esquece. Há-de vir toda molhadinha. Ainda<br />
se constipa, valha-me Deus. Apanha-me uma gri-<br />
pe ou uma broncopneumonia. Na semana passa-<br />
da estava a chocar uma, sempre a fungar, com o<br />
pingo no nariz. Tive de lhe emprestar um lenço.<br />
Anda sempre constipada, aquela rapariga. É me-<br />
lhor aquecer chá de limão e misturar-lhe uma co-<br />
lher de mel. O que chove lá fora, Jesus Senhor.<br />
Por este andar, nem depois de amanhã consigo<br />
16<br />
tr3s65<br />
secar a roupa. E fazem-me tanta falta, o resguar-<br />
do e os lençóis. Pode ser que cá durma, hoje.<br />
Com este tempo, não há-de trazer na ideia voltar<br />
para trás. Parece que bateram. Deve ser ela. Não<br />
me dá descanso, esta magana. Vou buscar a vas-<br />
soura, espera lá. Dou-te uma que te arranco as<br />
asas. Deve ser ela. Nunca se esquece. Vá a ver.<br />
Tenho de me levantar para abrir o fecho, senão<br />
molha-se toda. Anunciaram qualquer coisa. Não<br />
se ouve nada, com esta chuva. Ainda me demoro<br />
a descascar as batatas e a pôr a carne debaixo de<br />
água. A ver se amanhã não me esqueço de com-<br />
prar pão no lagar. Prefere saloio, ela, mas agora<br />
tenho trazido daqueles da padaria que enrijecem<br />
num instante e só servem para fazer torradas, e<br />
não tenho dentes para trincá-las. Marcou-me<br />
consulta porque perdi a placa não sei aonde, mas<br />
diz que não faz mal, que até é melhor assim, por-<br />
que agora fazem umas que não se arrancam, fi-<br />
cam agarradas à boca, e é da maneira que não<br />
torno a perdê-la. Parece que ando maluca, since-<br />
ramente. Doida de todo. Parou um. Deve vir nes-<br />
te. Vá a ver. O óleo é capaz é de já não estar em<br />
condições. Tenho impressão que guardei uma<br />
garrafa na despensa. Ainda aparece, com certe-<br />
za. Daqui a nada está aí, ela. Deve trazer fome.<br />
Nunca se esquece. Terão batido? Parece que ouvi<br />
puxar. Se calhar azedou, a sopa. Espera lá, espe-<br />
ra, que já aí vou ter contigo. Eu conto-te uma<br />
estória, espera lá. Dou-te uma que te estrafego.<br />
Nem sabes de que terra és. Chegou um, parece-<br />
me. Anunciaram qualquer coisa. Se calhar ficam<br />
melhor mexidos, os ovos. Ainda ali há carcaças.<br />
Os rápidos nunca param.
Monika Stojak<br />
My Life in a Museum<br />
tr3s65 17
18<br />
tr3s65<br />
Eu tava no bar do Zé comendo uma co-<br />
xinha de galinha e tomando uma cerveja, nada<br />
que eu já não tivesse feito antes. Havia, como de<br />
praxe, meia dúzia de pescadores bêbados atira-<br />
dos pelas mesas, uns rindo da cara dos outros,<br />
outros jogando dominó, um último cambaleando<br />
entre duas mesas de sinuca, coçando o rosto in-<br />
chado. E meio que do meu lado, a pouco mais de<br />
um metro, um outro pescador, maior que todos<br />
os outros, mais feio que todos os outros, sacudin-<br />
do graciosamente um carrinho de bebê dentro do<br />
qual havia um bebê. O carrinho era novo, o bebê<br />
era branquinho, limpo, sorridente e silencioso. Eu<br />
já tinha visto muita coisa estranha no bar do Zé<br />
pra me espantar com um carrinho de bebê com<br />
um bebê dentro, no meio daquele boteco escuro,<br />
velho, ocupado exclusivamente por homens ru-<br />
des, grotescos, a maioria miseráveis, todos bêba-<br />
dos. Continuei mastigando minha coxinha. Mas a<br />
presença do bebê começou, finalmente, a me<br />
causar uma certa estranheza, e eu tirei os olhos<br />
do balcão para encarar aquele pequeno ser nos<br />
olhos. O pai também encarava a criança, com<br />
uma expressão bobalhona. Então eu olhei pro su-<br />
jeito e falei uma coisa que eu nunca imaginaria a<br />
mim mesmo falando pra ninguém, muito menos<br />
prum pescador bêbado. “Que criança linda”. Ele<br />
sorriu e se inclinou pra cima de mim, soltando um<br />
bafo alcoolizado e morno no meio do qual conse-<br />
gui distinguir o nome da menina, que já esqueci.<br />
Então ele começou a contar toda a história do<br />
nascimento da criança, era a segunda filha dele, a<br />
outra tinha cinco anos de idade, nesse tempo<br />
todo separando as duas a mulher dele tinha sofri-<br />
do três abortos naturais, havia ficado doente, ele<br />
trabalhou feito m cachorro pra conseguir pagar<br />
todos os médicos e hospitais, mas que agora a<br />
filha dele tinha finalmente nascido, e que era<br />
muito esperta e muito linda e etc, e eu olhei pra<br />
ela no carrinho e notei que era mesmo uma das<br />
crianças mais lindas que eu já tinha visto. O cara<br />
parecia fascinado em ter encontrado alguém pra
escutar as coisas que ele tinha pra dizer, e depois<br />
de todos os detalhes do nascimento da filha co-<br />
meçou a falar do resto da família dele, a mãe dele<br />
tinha tido cinco filhos, duas gêmeas e três trigê-<br />
meos, ele era um dos três e mais um monte de<br />
coisa, e eu comecei então a me sentir realmente<br />
desconfortável, a coxinha não terminava nunca, a<br />
garrafa de cerveja não tava nem na metade, re-<br />
solvi que eu queria sair dali mas não tinha como,<br />
não tinha coragem de cortar o cara, pedir pra ele<br />
parar de falar, e a menina no carrinho olhando<br />
pra mim com olhos arregalados, tão bonita e per-<br />
feitinha quanto num comercial de sabonete Fofo,<br />
o carrinho levemente embalado por aquele ser<br />
enorme, tão tosco que eu só compreendia uma<br />
em cada três palavras que ele me dizia, mãos<br />
grossas com dedos rachados, a pele parecendo<br />
folgada por cima dos músculos vigorosos. “Quer<br />
ver como ela é forte? Bota o dedo na mãozinha<br />
dela pra ver como ela aperta, quero ver tu soltar”,<br />
ele me disse, e eu fui lá estiquei o indicador e<br />
coloquei na mão da criatura, ela não ligou muito,<br />
ignorou o meu dedo, ficou rindo sozinha, eu já<br />
não tava achando graça, eu tava desesperado pra<br />
sumir dali, engoli todo o resto da coxinha e come-<br />
cei a beber a cerveja apressadamente, tirando uns<br />
trocos da carteira ainda escutando o cara contar<br />
como a filha mais velha era inteligente, com cinco<br />
anos de idade sabia até atender telefone, sabia<br />
até tratar visita, assim que eu sequei a garrafa me<br />
virei e disse mais uma coisa que eu nunca imagi-<br />
nei a mim mesmo dizendo pra ninguém, muito<br />
menos prum pescador bêbado, “Feliz Natal e um<br />
bom ano novo pro senhor”, do alto da empolga-<br />
ção ele me respondeu algo parecido, sorriu, eu<br />
sorri de volta, nervoso, muito nervoso, sem saber<br />
o porquê daquele mal-estar, e saí de lá quase cor-<br />
rendo, depois corri, como se estivesse fugindo de<br />
um tiroteio.<br />
tr3s65 19
20<br />
tr3s65<br />
O MEU ROSTO TERMINA<br />
ONDE O TEU COMEÇA<br />
Elisabete Patrícia Andrade<br />
fotografia Rita Lino<br />
Tem 13 anos. Todas as noites se despe em frente do espelho. Executa este ritual sem<br />
procurar perceber que necessidade urge. Com a mão procura prazer, busca pontos no corpo que<br />
possam ser estimulados numa precipitação urgente para o orgasmo. Gosta de contemplar o rosto<br />
a abrir-se numa emoção de prazer enquanto uma luz lhe passa sobre os olhos. Masturba-se devagar,<br />
descobrindo o seu corpo milímetro a milímetro. Quando se vem nascem-lhe asas, os dedos<br />
lambuzados e felizes entre as pernas. Depois seca as lágrimas e imobiliza-se um instante diante do<br />
espelho, observa longamente o duplo rasgado pelo reflexo da lua. Fica fascinada com as transformações<br />
rápidas que o corpo sofre, aprecia particularmente a saliência dos seios. O corpo retoma<br />
o seu movimento natural, lentamente, e ela treme um pouco à contemplação do reflexo que<br />
o espelho devolve. Compreende cada vez menos a asfixia que oprime.
tr3s65 21
Tem 22 anos. Corre as cortinas para de<br />
seguida encarar o espelho. É uma mulher bonita<br />
e triste. Por momentos esforça-se por destacar<br />
o volume do corpo da divisão, um peso de carne<br />
no qual deixou de se reconhecer e que agora<br />
ameaça dissolver-se nas sombras. No silêncio<br />
trémulo da casa procura palavras, a pulsação<br />
cheia de histórias sobrepostas, o nome do homem<br />
que ama. Procura tudo isso que a melancolia<br />
contagiou. Passa os dedos sobre o reflexo,<br />
algo a abandona com violência. Um rosto possuído<br />
pela melancolia é um rosto que está mais<br />
perto da morte, aos 22 anos sabe destas coisas<br />
que aos 13 anos pressentiu tão somente na asfixia<br />
que oprimia. De resto não sabe falar de<br />
outras emoções ou se sabe é porque tomou ansiolíticos.<br />
Para esquecer o nome do homem que<br />
ama submerge emoções com o consumo de ansiolíticos.<br />
É curioso que o possa somente aperceber<br />
em movimento no tempo em que procura<br />
uma aproximação com o passado. Ele vem até<br />
ela com cadastro, isto é, com palavras repetidas,<br />
frases agarradas, coisas violentas que lhe pertencem.<br />
Ela quer que ele chegue isolado, sem<br />
que seja preciso medir o perigo da aparição.<br />
Mas sabe de antemão o que irá encontrar. Foram<br />
demasiadas palavras envenenadas entre<br />
22<br />
tr3s65<br />
eles que ainda se encontram frescas. O mais<br />
provável é ceder mediante a contínua e cres-<br />
cente carga emocional, acabando por sentir<br />
pena dela mesma porque é assim, na verdade,<br />
que sucede com o amor. A tragédia patética do<br />
amor, isso é que não. É tomada por uma ligeira<br />
sensação de agonia. Não chora mais, ao invés<br />
habituou-se a substituir a náusea pela dormên-<br />
cia. Deixou de haver razão para chorar, pois se<br />
tudo está predestinado à morte. As coisas mor-<br />
tas são pesos a que nos afeiçoamos por puro<br />
masoquismo. As dores mortas na trégua do pra-<br />
zer são golpes adiados. E depois há pessoas que<br />
morrem todos os dias, uns matam-se por amor,<br />
outros por falta dele. São coisas da vida como<br />
diz o outro.<br />
Tem 38 anos e chora quando se masturba.<br />
É bela, principalmente quando cede aos<br />
olhos expressões de prazer. Uma mão de encontro<br />
ao seio, a outra aflorando lentamente o sexo<br />
com acuidade. Aprendeu a qualidade do prazer<br />
no decorrer dos anos. Foi há tanto tempo, Sandra.<br />
A tua voz, os teus pulsos rasgados na juntura<br />
das veias. Vê como sofresteste a metamorfose,<br />
vê como tudo o que perdeste está mais<br />
que morto e ficou repisado na memória por<br />
inépcia. As madrugadas são longas e já não sa-
es dizer se vocês aconteceram juntos, então,<br />
num misto de saudade e apatia, revolves gave-<br />
tas à procura de fotografias em que aparecem<br />
juntos. És capaz de ficar a olhar para elas duran-<br />
te horas. Quando voltas a repô-las na gaveta<br />
provas a agonia de serem outros seres, dois se-<br />
res misturados que perderam a identidade e que<br />
deixaste de reconhecer, duas pessoas demora-<br />
das nos seus defeitos, às quais, agora, te podes<br />
dar ao luxo de acrescentar mais este ou aquele<br />
defeito para te sentires melhor contigo própria.<br />
Numa das raras fotografias em que ele<br />
mostra os dentes num sorriso, cinge-a num<br />
abraço. Estavam felizes no dia em que a fotografia<br />
foi tirada ou, pelo menos, é essa a sensação<br />
que retira do tempo da fotografia. Na mesma<br />
fotografia ela exibe uma seriedade sombria,<br />
da qual não se apercebera na altura. Talvez as<br />
fotografias captem tão somente os momentos<br />
aos quais ainda não chegámos. Os momentos<br />
que ainda nos falta acontecer, os rostos que ainda<br />
não experimentámos e a que nos falta unir.<br />
Quando deixa de pressenti-lo nas fotografias<br />
faz para reencontrá-lo, escreve-o, rebusca-o na<br />
sua totalidade fragmentada. “A escrita é outra<br />
forma de desejar o teu corpo, é uma forma de<br />
pertencer algures onde decorrem todas as emo-<br />
ções de uma só vez, onde tu sempre estiveste<br />
comigo. É uma forma violenta de morrer, é isso.<br />
A escrita trata-se, nada mais nada menos, de<br />
um antídoto contra a morte. Um antídoto que<br />
não ressalva ninguém da morte mas que em<br />
certos casos tem a vantagem de adiá-la”, escreveu<br />
no caderno aos 22 anos. “A culpa é daquilo<br />
que os olhos percebem e roubam às imagens.<br />
Felizes são os não praticantes deste ofício letal.”<br />
Pousa o caderno e alcança o casaco com a mão.<br />
Arrasta-se pela casa num passo automático, as<br />
mãos afogadas nos bolsos do casaco. Sandra<br />
ouve a chuva a bater contra as paredes, imagina<br />
jactos de luz. É a chuva que lhe traz a imutável<br />
sensação de falsa segurança, enganando-a. É a<br />
chuva que paralisa o medo e lhe permite recobrar<br />
uma nesga de coragem. A madrugada baixa<br />
sobre a cidade e acompanha-a na casa. Sandra<br />
apercebe no quarto o gira-discos coberto<br />
por uma fina camada de poeira, apetece-lhe ouvir<br />
seja o que for, salvo a sua própria voz. A música<br />
cresce no silêncio trémulo da casa, produzindo<br />
um som que arranha e que ela gostaria de<br />
compreender. Ela coloca-se diante do espelho,<br />
falta-lhe o ar. Abre a gaveta com mãos lentas,<br />
alcança um ansiolítico. Sem o nome dele, não<br />
suporta viver.<br />
tr3s65 23
24<br />
tr3s65
Izet Sarajlic<br />
A minha estância em Istambul<br />
tradução José Luís Peixoto<br />
<strong>ilustração</strong> Alex Gozblau<br />
Existem várias versões<br />
acerca da minha estância em Istambul.<br />
De acordo com a primeira,<br />
fui com o encargo de uma suspeita missão política.<br />
De acordo com a segunda,<br />
tratava-se de uma aventura romântica.<br />
Na terceira versão<br />
chegou a falar-se de tráfico de drogas.<br />
Evidentemente que o facto de eu jamais ter posto<br />
os pés em Istambul não interessa a ninguém.<br />
tr3s65 25
ROSA<br />
NOTURNA<br />
MARCELO MOUTINHO<br />
<strong>ilustração</strong> ALEX GOZBLAU<br />
26<br />
tr3s65
Teresa tinha um pênis<br />
de vinte e dois centímetros, contados na régua.<br />
O atributo lhe rendia fama nos arredores da praça Paris,<br />
onde trabalhava de terça a domingo, das onze às cinco, quarenta reais<br />
por uma gozada, sem beijo na boca. “Beijar, nem por cem. É só para namorado.”<br />
tr3s65 27
Os quarenta (e mais quarenta e mais<br />
quarenta e mais quarenta) ajudavam a pagar as<br />
despesas do apartamento da rua Cândido Mendes,<br />
dividido com duas amigas. Era ali que Teresa<br />
dormia, depilava as pernas, o sovaco e o rosto,<br />
tonificava os glúteos com os exercícios da revista<br />
de ginástica, aplicava em ampolas de hormônio<br />
as futuras curvas de mulher. Era ali que, enfim,<br />
abrigava-se durante o invisível do dia, nas horas<br />
de inexistência, antes de virar purpurina sublime e<br />
esparsa numa calçada de Glória.<br />
Nas dimensões apertadas do apartamento,<br />
ela se amontoava às próprias coisas, às<br />
amigas e aos objetos das amigas, espalhados pelos<br />
dois cômodos. A topografia das caixas de papelão,<br />
dos móveis atravancados, dos colchões no<br />
colchão, da geladeira no meio da sala, dos poucos<br />
armários para muitas roupas, era como um<br />
raio X invertido da própria Teresa: desordem.<br />
O dinheiro, contudo, não permitia mais<br />
espaço. “Só estico a mão até onde posso alcançar.<br />
Quem sabe quando encontrar um italiano<br />
rico...”, ela pegava emprestado o sonho das amigas,<br />
mas devolvia rápido. Pois sabia que ao menos<br />
naquele apartamento conseguia morar sem<br />
maiores entraves – em geral com três sessões arrecadava<br />
o básico das despesas.<br />
Responsável pela organização da contabilidade<br />
interna, fixou uma quantia mensal para<br />
cada moradora e, de sua parte, distribuiu os gastos<br />
do mês pelos 26 dias de trabalho (segunda era<br />
folga), estabelecendo um valor mínimo a garantir<br />
noite após noite. Caso ficasse doente e fosse obrigada<br />
a faltar, compensava nos dias seguintes.<br />
Problemas mais sérios mesmo só enfrentava<br />
nas épocas chuvosas, como aquele mês<br />
de outubro, que resolveu desafiar todos os prognósticos.<br />
Lá se iam mais de três semanas de temporal<br />
e ruas vazias. “Quando chove, os homens<br />
somem. Parece que são feitos de papel. A gente<br />
lá, com guarda-chuva na mão, passando frio, e<br />
28<br />
tr3s65<br />
ninguém dá as caras.”<br />
Teresa passou o mês inteiro de olho na<br />
previsão do tempo, adiando a apreensão. Mas já<br />
era dia 27, não havia como esperar mais. As dívidas<br />
gritavam em vermelho num bilhete na geladeira:<br />
“A pagar: dia 30 – aluguel, dia 5 – condomínio,<br />
luz e água, dia 8 – conta do restaurante.”<br />
Se no restaurante poderia até negociar,<br />
com algum juro, um prazo melhor, outros pagamentos<br />
tinham que ser na data, sem chororô.<br />
“Boneca que atrasa dorme na rua”, o proprietário<br />
do apartamento já avisara – e quando ele falava<br />
apertando a orelha direita (e ele falou), significava<br />
que o assunto requeria seriedade.<br />
Por isso naquela noite, a primeira cujo<br />
teto não se cobrira com o véu da chuva, ele decidiu<br />
colocar de uma só vez as contas em dia. Com<br />
cinco sessões, calculou, abateria boa parte da dívida.<br />
Bastavam disposição, preservativos e uma<br />
roupa sensual.<br />
Optou pelo vestido de paetês dourados,<br />
bainha pelo menos dois palmos acima do joelho,<br />
delineando as coxas e a bunda, e pelos sapatos<br />
plataforma que lhe impingiam ainda mais altura.<br />
Pintou o rosto em cores quentes, recolocou o<br />
piercing brilhante no nariz. Depois ajeitou o sutiã,<br />
compensando com enchimento o peito menor<br />
pela injeção de silicone mal aplicada, borrifou<br />
perfume, pegou a bolsa e ganhou a rua.<br />
- Quanto é o boquete? – Não eram nem<br />
onze e meia quando, direto no assunto, o rapaz<br />
no Chevette a abordou. Ele era jovem, bastante<br />
jovem, fazia o tipo namorado-certinho-que-resolveu-aprontar.<br />
- Boquete, vinte; completo, quarenta.<br />
Vale a pena, viu, gato?<br />
- Vinte? Não rola por quinze, não? – ele<br />
chorou.<br />
- Vinte, gato. É tabelado.<br />
- Mas onde a gente faz?
- Pode ser dentro do carro mesmo, tem<br />
uma rua bem discreta ali em cima...<br />
Teresa entrou no Chevette, sentando-se<br />
ao lado do rapaz, e subiram uma ladeira até chegar<br />
a um canto ermo do bairro, onde havia outros<br />
carros parados. Ele abriu as calças, ela pôs a boca,<br />
ele gozou, ela cuspiu, e em meia hora voltava ao<br />
mesmo ponto onde antes ela se achava, na calçada<br />
entre as lojas de portas cerradas e a praça Paris,<br />
no entrelugar, sempre no entrelugar.<br />
Por cerca de uma hora, Teresa permaneceu<br />
ali, à espera, observando carros a circundar a<br />
praça, desejos rondando sem coragem de estacionar.<br />
Até que um Fiat Uno piscou o farol em sua<br />
direção, diminuiu a velocidade e se aproximou. O<br />
homem de meia-idade, cavanhaque somando<br />
anos extras ao rosto, pareceu-lhe levemente bêbado.<br />
- Oi, tesão! – ele movia os músculos da<br />
boca de maneira esquisita, tentando desenhar no<br />
rosto uma excitação.<br />
- Oi, gato. Procurando diversão? Teresa<br />
encostou a bunda na janela do carro e puxou a<br />
mão dele até sua nádega esquerda.<br />
- Depende...<br />
- Depende de quê, gato?<br />
- Do preço dessa diversão.<br />
- Ah, não é caro, não. E garanto que<br />
você não vai se arrepender. – Com a bunda projetada<br />
ainda mais para o interior do veículo, ela<br />
pousou os dedos sobre o sexo dele e começou a<br />
massageá-lo. – Quarenta reais e você vai à lua comigo.<br />
- Mas está incluído o motel lá na lua? –<br />
ele fez graça.<br />
- Não, gato, mas o motel só custa quinze<br />
e aceita cartão.<br />
- Você também aceita?<br />
- Ainda não. Quem sabe um dia, no futuro.<br />
Nós somos as mulheres do futuro, você sabia?<br />
- E você é ativa também, mulher do fu-<br />
turo? – ele desafiou.<br />
- Faço de tudo, amor. Menos beijar na<br />
boca.<br />
- Pode entrar. Vamos lá. – O homem<br />
abriu a porta do carona, engatou a primeira e entabulou<br />
uma conversa.<br />
- Sabe por que eu gosto de transar com<br />
vocês? Porque um homem conhece exatamente<br />
onde fica o prazer de outro homem. Mas não<br />
gosto de corpo de homem, e vocês já têm corpo<br />
de mulher...<br />
- Mulheres do futuro, já falei – Teresa<br />
sorriu. – É aqui. Pára ali, colado naquele poste –<br />
apontou o indicador.<br />
Andaram poucos metros até o motel,<br />
onde ela cumprimentou a recepcionista e pediu a<br />
chave do 206. Permaneceu no quarto com o homem<br />
do cavanhaque por mais de hora e meia.<br />
Duas gozadas, pagamento dobrado, menos oitenta<br />
do bilhete na geladeira. O homem levou-a<br />
de volta à praça Paris.<br />
Teresa precisava de um pequeno intervalo.<br />
Enquanto esperava pelo novo cliente, comprou<br />
uma lata de cerveja num bar próximo. Tomou<br />
lá mesmo, apoiada no balcão. Três e meia da<br />
manhã, três sessões: nada mal. Uns quinze minutos<br />
ficaram no bar.<br />
- Pendura, Zé – e rumou para a calçada.<br />
Então, o susto: um carro esportivo, não<br />
deu para ver direito a marca, voou repentinamente<br />
da faixa central para a pista colada à calçada, e<br />
Teresa só pode sentir o jato forte soprando um pó<br />
branco contra seu rosto.<br />
- Pirocuda! – alguém berrou de dentro<br />
do carro, que partia. Ela ainda enxergou o extintor<br />
de incêndio projetado para fora da janela. E<br />
com as mãos friccionando o vestido no meio das<br />
próprias pernas, rebateu:<br />
- Viados! Playboys filhos-da-puta!<br />
tr3s65 29
30<br />
tr3s65<br />
Embora já estivesse acostumada, ainda<br />
perdia a pose com esses ataques. Mas a raiva não<br />
tardava a se esvair. Uma ajeitada no vestido, um<br />
pente rápido nos cabelos e a noite aquietava:<br />
pronta para outra. Para mim duas, aliás. A inten-<br />
ção era concluir o plano até cinco da manhã. Te-<br />
resa retornou ao bar apenas para a última ajeita-<br />
da no espelho e vamos lá: mais duas.<br />
Não precisou aguardar muito. Carro<br />
novo, casal com jeitão de recém-casado, tudo<br />
bem, claro, com os dois, sem problema, nesse<br />
caso é sessenta mais quinze do motel, eu ensino<br />
como faz para chegar lá, é aqui, quarto 202, não,<br />
não, sem beijo de língua, chupar a moça tudo<br />
bem, foder a moça tudo bem, com você tudo<br />
bem também, vai, vai, goza gostoso, vai, goza<br />
aqui na minha boca, isso, isso, mais sessenta reais<br />
na carteira, vocês podem dar carona até a praça?<br />
A noite estava promissora confirmava a<br />
vocação e apesar de cansada, Teresa sentia alívio:<br />
faltava somente a derradeira sessão e, depois,<br />
casa.<br />
Ainda era madrugada, mas a manhã já<br />
se insinuava e o movimento diminuía. Os funcionários<br />
das padarias começavam a aparecer, carregando<br />
os seus “bom-dia” nas mochilas, e quando<br />
as lojas abrissem os clientes de certo sumiriam de<br />
vez. “Mais um, só mais um e posso ir...”<br />
Teresa vertia o cansaço na maquiagem<br />
que esfriara, mas se ascendeu de novo ao notar<br />
que um Honda Civic, com cara de zero-quilômetro,<br />
desacelerou cerca de vinte metros à sua frente.<br />
O motorista pousou duas rodas sobre a calçada,<br />
trancou a porta e riscou o chão em linha reta<br />
para onde ela estava.<br />
- Boa noite, estou com pressa, programa<br />
rápido, quanto é? – ele, esbaforido, engolia as<br />
palavras.<br />
- Quarenta, o completo.<br />
- Tem local?<br />
- Motel. Soma mais quinze.<br />
- É perto?<br />
- É, mas indo de carro.<br />
- Não. Sem carro. Não tem outro?<br />
- Tem. Só que é mais caro. Custa cinqüenta<br />
por uma hora.<br />
- E quinze minutos?<br />
- Cinqüenta também.<br />
- Fechado – e tomou Teresa pelo antebraço,<br />
puxando-a com força, como se fosse ele o<br />
guia.<br />
Afobados, andaram no compasso ditado<br />
pelo homem até o motel mais luxuoso, vencendo<br />
vertiginosamente a portaria. Mal entrou no<br />
quarto, ele pediu a Teresa que tirasse a roupa, se<br />
lubrificasse e ficasse de quatro sobre a cama. Em<br />
seguida, arriou a calça de moleton e entrou nela<br />
com violência. Gozou em menos de três minutos.<br />
- Pronto. Pode se vestir. – Já recomposto,<br />
ele lavava as mãos.<br />
- Calma. E o pagamento?<br />
O homem se secou com a toalha de papel,<br />
apalpou o bolso de trás da calça e então percebeu:<br />
o dinheiro ficara no carro.<br />
- Olha só, esqueci a carteira no portaluvas.<br />
Vamos até lá que eu pago.<br />
- E o motel?<br />
- Você não tem algum aí?<br />
- Eu? Eu é que vou pagar?<br />
- Só até o carro. Pode deixar que eu<br />
compenso...<br />
Teresa não via outra saída se não confiar<br />
nele. Mesmo tensa com a possibilidade de um<br />
golpe, mais um, deixou cinqüenta reais na recepção<br />
do motel e o seguiu.<br />
- Olha só, você fica no mesmo lugar<br />
onde estava quando fui falar contigo. Por favor,<br />
não se aproxima do carro, OK?<br />
“Lá se vão meus cinqüenta”, e Teresa<br />
estancou no ponto combinado, ele se encaminhando<br />
ao seu Honda Civic. Para surpresa dela,
porém, o homem de fato resgatou a carteira e<br />
num passo retornava com os noventa reais, que<br />
lhe foram entregues com um seco “obrigado”.<br />
Em seguida, ele se virou de costas e fez<br />
o trajeto de volta, preciptando-se carro adentro.<br />
Ajeitou-se na posição do motorista e, com a porta<br />
entreaberta, pendeu para o banco de trás, de<br />
onde retirou algo que ela não definia bem e que<br />
ele manteve no colo. Teresa se aproximou um<br />
pouco e pôde ver com mais nitidez: era um buquê<br />
de rosas vermelhas.<br />
Passaram-se alguns instantes, ele fitando<br />
as rosas sobre seu ventre, e a cena se dispersou.<br />
Num ato repentino, o homem escancarou a<br />
porta do carro, atirou as flores no chão, engatou<br />
a chave e arrancou de forma brusca. Os pneus<br />
gritaram por ele.<br />
Teresa então notou que, com a rispidez<br />
da queda, uma rosa se desgarrara do buquê. Ela<br />
se abaixou, pegou a rosa e, ainda agachada, inflou<br />
o rosto num sorriso, imaginando quem seria<br />
enfim o destinatário que nunca receberia aquelas<br />
flores. Talvez alguém se foi, independente como<br />
um barco que se desamarra da margem; talvez<br />
uma mulher que, por um motivo qualquer ou sem<br />
motivo algum, não as merecesse; ou ainda o próprio<br />
homem, que as desprezou pela remissão a<br />
alguém que hoje só desperta ira. As possibilida-<br />
O<br />
des rebolavam em sua cabeça, alongavam-se as<br />
especulações, até que Teresa atinou: pouco importava.<br />
Aquela rosa, que brotara inesperadamente<br />
numa fenda invisível da madrugada, na<br />
mesma calçada entre as lojas e a praça Paris, agora<br />
era dela.<br />
Hora de ir para casa: a noite estava ganha.<br />
tr3s65 31
CINCO<br />
HISTÓR1AS<br />
NOCTURNAS<br />
RUI MANUEL AMARAL<br />
fotografia ANETA KOWALCZYK<br />
32<br />
tr3s65<br />
HISTÓRIA DO DITO CUJO<br />
Se eu quisesse, podia contar muitas histórias so-<br />
bre o dito cujo. Mas basta esta, a primeira que<br />
me vem à cabeça. Um belo dia, após uma bela<br />
noite de sono, o dito cujo abriu os olhos, levan-<br />
tou-se da cama, dirigiu-se ainda meio ensonado<br />
ao quarto de banho, olhou para o espelho e, oh!,<br />
fez uma careta terrível! Caramba, a terrível care-<br />
ta que ele fez! E depois disse: “Xanto Deux, o<br />
gue agontexeu à minha gara? Parexo o Gregor<br />
Xamxa.” O que significa: “Santo Deus, o que<br />
aconteceu à minha cara? Pareço o Gregor Sam-<br />
sa”, mas ele pronunciava mal as palavras, por<br />
causa daquilo que acontecera à sua cara durante<br />
a noite. E é tudo.
QUANDO O SILÊNCIO CAIU EM VOLTA<br />
A noite era de um esplendor invulgar. A lua, em-<br />
bora não estivesse cheia, brilhava e envolvia toda<br />
a paisagem com uma beleza que desafiava qual-<br />
quer tentativa de descrição. Os campos estavam<br />
cheios de sombras amenas. Não havia vento,<br />
nem o mais leve sopro. Os demais corpos celestes<br />
derramavam sobre o lago uma luz pura, estável,<br />
branca. As árvores estavam como que hipnotiza-<br />
das numa espécie de encantamento misterioso.<br />
A senhora Ava Novak estava sentada na varanda,<br />
desfrutando das ternas e encantadoras sensações<br />
daquela noite maravilhosa, e sonhava, sonhava,<br />
sonhava, contemplando a lua resplandecente.<br />
Depois, por um momento, todas as cigarras se<br />
calaram, o silêncio caiu em volta e a senhora No-<br />
vak deu um pum.<br />
CONSEQUÊNCIAS DE UMA NOITE DE FOLIA<br />
Depois de uma longa e bem preenchida noite de<br />
bebedeira, Zavala Zabehlice acordou dentro de<br />
uma garrafa. Uma situação, como é fácil compre-<br />
ender, pouco ou nada brilhante.<br />
- Efectivamente a minha situação está longe de<br />
ser brilhante. Na verdade, é muito aborrecido<br />
uma pessoa acordar e concluir que está presa no<br />
interior de uma garrafa. Talvez para sempre. É<br />
sobretudo muito incómodo – diz o infeliz pânde-<br />
go, secundando a minha opinião.<br />
Pois muito bem. Aqui têm o que proporciona<br />
uma noite de folia como aquela que Zavala Za-<br />
behlice teve o ensejo de gozar.<br />
O TRASEIRO COMICHOSO<br />
Um fulano entra à noite furtivamente no gabine-<br />
te de trabalho de um escritor famoso, esfrega as<br />
mãos e bebe um frasco inteiro de tinta. Depois<br />
pousa o frasco no lugar, coça o traseiro comicho-<br />
so e volta furtivamente para casa.<br />
No dia seguinte, o fulano começa a cagar histó-<br />
rias e transforma-se num autor famoso. O outro,<br />
sem a tinta, pobrezinho, mergulha numa crise de<br />
criatividade e acaba por morrer de desgosto.<br />
SEZAY GORODECKY NÃO CONSEGUIA DORMIR<br />
Noite após noite, agitado, transtornado, ofegan-<br />
te, barrigudo e com uma borbulha na ponta do<br />
nariz, Sezay Gorodecky não conseguia pregar<br />
olho. Ora, passar tantas noites sem dormir não é<br />
muito bom para a saúde. Ao fim de algum tempo<br />
uma pessoa começa a morrer de sono. E nem de<br />
propósito! Ao fim de algum tempo, Sezay come-<br />
çou a morrer de sono. E depois morreu*.<br />
* Esta nota de rodapé é pura garotice minha. Existe apenas para enganar<br />
o leitor. Sezay Gorodecky morreu efectivamente de sono. Fim da história.<br />
tr3s65 33
34<br />
tr3s65<br />
Tudo lhe doía.<br />
Desde “There will never be another<br />
you” (Art Pepper, 6 minutos e 9 de sexo oral feito<br />
por um ex-namorado que emigrou para a China<br />
comunista) até “The flight of the bumble-bee”,<br />
de Rimsky-Korsakov, pela voz do violino de Nigel<br />
Kennedy (um antigo colega de Faculdade que a<br />
sodomizou numa noite de temporal, para depois<br />
se ir gabar do feito para o Cais do Sodré, no “Bri-<br />
tish Bar”).<br />
A sua vida era um vendaval de desilusões<br />
amorosas, sempre acompanhadas de recordações<br />
musicais que funcionavam como guarnições<br />
indigestas para um “à la carte” do<br />
sofrimento afectivo. Pobre coração ávido de melodia!<br />
A virgindade foi-se num fim de tarde esquisito,<br />
o céu plúmbeo de indecisões micro-climáticas.<br />
Os passarinhos desconfiados dos reformados<br />
que lhes atiravam com pão, os cães de dentes<br />
arreganhados para as crianças que brincavam à<br />
volta do coreto. A banda tocava a trilha sonora de<br />
“A golpada”, ela e Joaquim escondidos num recanto<br />
fétido, (mal) frequentado por ratazanas<br />
mafiosas que dominavam a zona. Não teve tempo<br />
para pensar. Joaquim agarrou-lhe os ombros com<br />
manápulas férreas de erecção acumulada, atiroua<br />
contra a parede do coreto e a natureza seguiu o<br />
seu curso. Não foi violação porque ela estava demasiado<br />
entontecida para manifestar de forma<br />
expressa a sua desilusão com Joaquim. Em vez de<br />
24 rosas, 20 centímetros. Ao invés de “amor,<br />
quero entrar em ti”, lá vai alho.<br />
A partir daí, ouvir a “Golpada” só podia<br />
doer.<br />
Perdeu-se de amores por um contínuo<br />
da Caixa-Geral de Depósitos. Apostou a sua felicidade<br />
num namoro de domingo com visitas entre-<br />
A MULHER QUE SOFRIA MUITO COM AS RECORDAÇÕES MUSICAIS
meadas ao jardim zoológico e ao estádio de Alvalade.<br />
E quando tudo acabou nunca mais pôde<br />
ouvir Maria José Valério a entoar o hino do Sporting.<br />
O engenheiro Bill Brown parecia ser um<br />
homem diferente. Trazia outros hábitos do Canadá.<br />
Cortejou-a como deve ser, enquanto inspeccionava<br />
as mais variadas obras. Até ao dia em que<br />
a obrigou a engolir os seus fluidos em plena sessão<br />
do Tivoli. E nunca mais os ouvidos dela toleraram<br />
a banda sonora de “Tora,Tora,Tora”.<br />
Esteve casada três anos, com um homem bom e<br />
puro. Infelizmente, era tão puro que não tinha<br />
queda para a intimidade no sentido bíblico. E ela,<br />
não obstante todas as agruras da vida, ainda era<br />
senhora de algum alimento.<br />
A frustração sexual fermentou ao longo<br />
dos anos, os dias e as noites iam passando e nada<br />
de filmes de acção, somente carinho, companhei-<br />
rismo, cumplicidade. Menezes era um homem<br />
culto, dado aos prazeres da música, mas abusava<br />
da ópera. Especialmente da “Carmen”. Duas ou<br />
três vezes por semana era certo e sabido que Me-<br />
nezes punha a tocar a Carmen. Uma verdadeira<br />
tourada!<br />
Necessitada de uma revolução na sua<br />
vida, deixou-se conduzir para um beco terrível. O<br />
seu coração foi cativado por Hermínio, um “punk”<br />
de terceira geração que era funcionário público<br />
na Câmara Municipal de Oeiras e só podia vestir à<br />
“punk” aos fins-de-semana. Durante a semana<br />
Hermínio ainda era um namorado normal, com<br />
sticadas em vãos de escada, telefonemas a horas<br />
próprias, um cinema, um jantar de marisco, essas<br />
coisas banais e saborosas. O pior era aos fins-desemana.<br />
Hermínio envergava a fardamenta<br />
“punk”, raptava o “tijolo” ao primo Ernesto e ala<br />
que se faz tarde. Os fins-de-semana eram exclusivamente<br />
dedicados aos “Ases da Folia”, um grupo<br />
de amigos de infância, cerca de 15 parvalhões<br />
com cara de atrasados mentais, ávidos por lanches<br />
no campo, Sagres de litro e discos dos Sex<br />
Pistols, Plasmatics, AC/DC e Guns and Roses.<br />
LUIS GRAÇA<br />
tr3s65 35
Durante 15 dias afogou o fracasso da<br />
relação com garrafas de “Four Roses”. E desta<br />
feita ficou feliz por nunca mais ter de ouvir as<br />
marteladas musicais a massacrar-lhe o cérebro.<br />
Mas as recordações eram-lhe demasiado dolorosas.<br />
Ecléctica nos sofrimentos musicais. Tanto<br />
se lavava em lágrimas com um fado (“Povo que<br />
lavas no rio”, um homem que lhe dera uma tarde<br />
fabulosa de sado-masoquismo, numa pensão barata)<br />
como se torcia de dores sentimentais com<br />
uma balada de música ligeira (“20 anos”, José<br />
Cid como anfitrião sonoro de umas férias em Paris,<br />
rematadas pelo roubo da sua mala).<br />
Quim Barreiros acampanhou as suas dores durante<br />
perto de um ano, na sequência de uma paixão<br />
mal resolvida por um ajudante de pedreiro que<br />
vivia em Alfama com a avó. O homem era bruto<br />
como as casas que ajudava a construir. Feio como<br />
os trovões. Ordinário quanto baste. Desprovido<br />
de sentimentos subtis. Mesmo assim, o amor tem<br />
destas coisas, ela apaixonou-se. Eram domingos<br />
36<br />
tr3s65<br />
inteiros debruçada em varandins, em miradouros,<br />
ansiosa pela cair da noite, invariavelmente passada<br />
num quarto mais escondido lá de casa, onde<br />
Arménio (que fôra trolha na Areosa antes de vir<br />
para Lisboa) podia cavalgar a namorada sem a<br />
avó dar conta do estardalhaço que fazia.<br />
Durava aí uns dois minutos, se tanto.<br />
Sem preliminares, bem entendido, que no campe-<br />
onato sexual de Arménio entrava-se logo na fase<br />
final, sem apuramento. Arménio esvaziava as suas<br />
bolsas testiculares por uma semana, puxava dos<br />
cigarros mais rascas do mercado e dava umas pas-<br />
sas que empestavam o quarto num ápice. E de-<br />
pois uma cassette-pirata de Quim Barreiros, dois<br />
cálices de azia, somados ao Carvalho, Ribeiro e<br />
Ferreira, bagaço para desinfectar corações muito<br />
atreitos a mazelas sentimentais. Foi um período<br />
difícil. Dizem que não se deve misturar bebidas.<br />
Então e os sentimentos? Demorou a enjoar o Ar-<br />
ménio e o bagaço. Mas quando chegou a fase de<br />
saturação e do despertar para as realidades, des-
marcou o Arménio para os tapumes mais próximos<br />
(“Ai não queres andar mais comigo? Olha,<br />
há mais quem queira, minha vaca”) e fez todos os<br />
possíveis por se desviar da música de Quim Barreiros.<br />
Claro que de vez em quando toda a<br />
gente acerta. Há fases boas. Albert Parkinson tinha<br />
30 anos, enorme fortuna pessoal, uma educação<br />
esmerada (Cambridge, ao que foi possível<br />
apurar) e um palacete em Cascais. Passava o Natal<br />
e o Ano Novo em Londres. Logo regressava a<br />
Portugal. Era escritor de poemas naturalistas.<br />
Mais de 90 por cento dos seus poemas falavam<br />
de pássaros. O mais curioso é que ele detestava<br />
filmes de Hitchcock. E era raro permitir-se ir ao<br />
cinema. No espaço de cinco anos publicou 15 livros<br />
de poesia, todos em edição de autor, após<br />
uma experiência mal sucedida na “Abutre Editores”,<br />
uma aventura editorial pouco clara, que meteu<br />
capitais da droga galega e tráfico de armas na<br />
Costa do Marfim.<br />
Os títulos poderão não adiantar muito,<br />
mas o facto é que as obras tinham nomes assim:<br />
“Céus de poesia”, “O voo de uma gaivota deprimida”,<br />
“Nuvens a toda a volta”, “A voar todos os<br />
santos ajudam”, “Mafalda e os pássaros do sul”,<br />
“O pardal recalcitrante”, “Corvos de água doce”,<br />
“Tibúrcio, o rouxinol do horizonte próximo”, “O<br />
meu amor é uma arara”, “Um grãozinho na asa”,<br />
“Pássaros, passarinhos, migrações e alguns passarões”.<br />
Cada um é livre de titular como quer.<br />
Albert era um ser muito terno na hora<br />
do amor, apesar do inconveniente de se esquecer<br />
do nome da namorada frequentes vezes e o trocar<br />
pelos que lhe vinham à mente na altura.<br />
“Querida, você sabe que eu não ligo muito a nomes,<br />
mas estou a pensar em si”.<br />
Era um problema. O amor-próprio pode<br />
ser um verdadeiro entrave para uma experiência<br />
namoradeira plena. E Albert passou à História ainda<br />
antes dela se entregar de alma e coração aos<br />
vibradores.<br />
Encontrou a felicidade na mecânica<br />
afectiva desses bichinhos queridos e a partir daí a<br />
única música que quis ouvir foi o zumbido suave<br />
do latex a entrar-lhe nas cavernosas margens do<br />
seu prazer pessoal e intransmissível.<br />
fotografia ALEKSANDRA KORECKA<br />
tr3s65 37
38<br />
tr3s65
Consta que é da praxe, que todos os super-heróis em potência, em determinada altura de suas vidas, são<br />
expostos a situações que espoletam a sua faceta de semideus dos oprimidos. Os exemplos factuais com-<br />
provam-no: o Homem-Aranha foi mordido por uma aranha numa aula de ciências, ou lá o que foi, o Hulk<br />
também se embrulhou com uns tubos de ensaio ou raios gama, e, o próprio Batman, ainda que apartado<br />
do contexto laboratorial, alombou com os seus pais a serem vindimados à sua frente ou chatice afim. Tudo<br />
isto para dizer que, com Jacinto, o nosso super-herói, não sendo possível registar com exactidão o mo-<br />
mento de transformação numa entidade protagonista na eterna luta do bem contra o mal, é possível de-<br />
terminar uma série de momentos que convergiram nesse sentido. Ora bem, Jacinto, quando era garoto,<br />
foi demonstrando especial apetência para se cruzar com pessoas que, assim que se lhes informava que o<br />
nome de Jacinto era, lá está, Jacinto, retorquiam com um “ah, como um dos reis magos”. Das primeiras<br />
vezes, Jacinto ainda sorria com o erro e corrigia as pessoas, “não, não, como um dos pastorinhos”, mas à<br />
medida que uma pessoa cresce, a raiva vai-se tornando no sentimento mais presente e orientador. E com<br />
Jacinto foi igual. Até porque, para além de se ter continuado a cruzar com canalha que confunde profun-<br />
damente reis magos com pastorinhos, Jacinto começou a ter também interacções com entidades que<br />
corrigiam a sua clarificação, dizendo quase sempre “não, não, nos três pastorinhos havia é uma Jacinta”.<br />
Foi crescendo o sentimento de que a raça humana é, na sua esmagadora maioria, composta por pessoas<br />
cuja finalidade definidora é dar cabo dos nervos às pessoas que sobram. E eis que, a dada altura da sua<br />
vida, Jacinto se convenceu de que o mundo, tal como o conhecemos, urgia por um justiceiro que nos li-<br />
vrasse dessa canalha que só dá nervos. E, por livrar o mundo, Jacinto não se referia a terapia de grupo ou<br />
mariquices de índole homoerótica, mas sim a limpar literalmente o sebo a esses calhaus com olhos. Pes-<br />
soas que enervam eram, então, e fazendo paralelo com as carreiras de Homem-Aranha, Hulk e Batman, o<br />
equivalente para Jacinto do inimigo do Homem-Aranha, o inimigo do Hulk e o Joker. Logo nos primeiros<br />
dias de acção super-heróica, Jacinto arrumou com um indivíduo que dizia que só se podia dizer que al-<br />
guém havia morrido de velho quando essa pessoa tivesse ultrapassado a esperança média de vida vigente<br />
na altura do óbito. E que bem soube a Jacinto, esta prática inequívoca do bem. Tão bem que à segunda<br />
vítima, para ser aviada com uma meia cheia de tangerinas (era o M.O. de Jacinto, só mudava o conduto<br />
da meia – pilhas era utensílio bastante usado, também) bastou clamar ao mundo que jogava sempre com<br />
a mesma chave no totoloto porque, em termos estatísticos, era igual a qualquer outro conjunto de núme-<br />
ros. Jacinto ouviu, e, pouco tempo depois, sem testemunhas, actuou, bordoando com vigor. A terceira<br />
vítima fora alguém que, para além de se desviar sempre para a esquerda nos passeios [quando a norma<br />
social obedece ao código da estrada e ordena que se encoste à direita], ainda dizia que os Roxette eram<br />
casados um com o outro. Foram menos três vilões mete-nervos a chagar a população inocente com as<br />
suas posturas, teorias e et ceteras diversos. Ciente de que, para mentes mais obtusas, a sua acção justicei-<br />
ra poderia encaixar numa zona cinzenta da moral e humanismo, Jacinto fazia questão de deixar pequenas<br />
pistas que indicassem que o crime tivera um daqueles motivos que, apesar de tudo, merecem considerável<br />
aceitação alheia. É que, a ser apanhado, Jacinto não queria parecer um daqueles psicopatas que matam<br />
pessoas sem ser por dinheiro ou por motivos passionais. Jacinto não queria nada ser associado a essa ca-<br />
nalha demente.<br />
tr3s65 39
J’ai faim! Merde, j’ai faim! Era com esta<br />
lembrança de um filme francês, ou pelo menos a<br />
sentir uma convicção parecida com a de alguém<br />
num cenário amarelo torrado, em mangas de camisa,<br />
perigosamente ao pé da salamandra, (o<br />
que não acontecia no filme, mas também não<br />
importava porque como já foi referido, era mais<br />
uma convicção parecida, que outra coisa) com a<br />
barba por fazer, com a devida consequência de<br />
lhe causar comichão, que Elliot se debatia à uma<br />
da manhã numa noite de Inverno (Novembro…<br />
pode ser?) de segunda para terça. Deixar o conforto<br />
do lar para ir buscar alimento era algo que<br />
o incomodava muito, mesmo fazendo o esforço<br />
para se sentir pré-histórico e encarar aquilo como<br />
uma aventura. Estava frio, mas quanto a isso não<br />
havia problema. A técnica estava apurada, fruto<br />
de um casamento há muito afundado, mas que<br />
lhe deixou alguma sabedoria, como por exemplo<br />
ir ás bombas de gasolina a meio da noite para ir<br />
comprar à sua mulher grávida uma bocata de<br />
atum. O truque era repetir um velho hábito de<br />
infância escolar, naquelas manhãs ainda de noite,<br />
sem tirar o pijama em tons de um triste cinza.<br />
Ir bem alcochoado, vestir uma camisola larga por<br />
cima do pólo de algodão oferecido pela sogra,<br />
entalar com as meias a parte de baixo, subitamente<br />
delegadas à constrangedora posição de<br />
umas ceroulas, para quando vestisse as calças<br />
por cima, as ditas, que com um pouco de boa<br />
vontade também se poderiam chamar de meiascalça,<br />
não subissem pelas pernas acima, como<br />
naqueles sonhos em que uma centopeia nos trepa<br />
por aí adiante.<br />
40<br />
tr3s65<br />
Enquanto se equipava devidamente,<br />
pensava nas palavras da ex-mulher antes de sair<br />
de casa. “Não te vais safar!”, disse ela com um<br />
sorriso triunfal antes de bater de vez com a por-<br />
ta. Com efeito, a despensa de Elliot estava vazia,<br />
não porque passava necessidades, mas porque<br />
era desleixado. Estava com uma fome do caraças<br />
e já só tinha no frigorífico um naco de pêssego<br />
em calda, que misteriosamente ainda mantinha a<br />
sua tonalidade artificialmente laranja choque. Já<br />
na rua, o frio bateu-lhe como uma chapada da-<br />
quelas de mão aberta e com balanço, encolheu-<br />
se por entre o néon vermelho do putedo da vizi-<br />
nhança e entrou no carro apressadamente. A<br />
viagem não seria muito longa até á roulote mais<br />
próxima, mas mesmo assim preferiu esperar para<br />
que o aquecimento do carro fizesse efeito e de-<br />
sembaciasse um pouco mais os vidros. O rádio<br />
teimava em memorizar uma estação religiosa,<br />
onde se faziam curas em directo e tudo! Por en-<br />
tre lombas claramente acima dos limites da lei na<br />
zona escolar, fez duas rotundas, passou num via-<br />
duto bordado de luzes brancas a acompanhar o<br />
desenho, e chegou ao destino sem encontrar um<br />
único carro na rua. O barulho do gerador da rou-<br />
lote devia chatear bastante as pessoas que mora-<br />
vam nos prédios em frente, mas numa atitude de<br />
“antes eles que eu”, lá fez o pedido “super-espe-<br />
cial para embrulhar se faz favor”, comprou duas<br />
cervejas pelo triplo do preço do que num super-<br />
mercado e foi para casa.<br />
Enquanto comia a bifana, nada de especial,<br />
lembrava-se das palavras da ex-mulher:<br />
“Não te vais safar!” “Não te vais safar!” Amaldiçoou-a<br />
duas vezes entre cada dentada.
ANother<br />
One biTEs<br />
tHe duSt<br />
v<br />
pedRo MiguEl<br />
tr3s65 41
42<br />
ANA ANA QUEIROZ QUEIROZ<br />
tr3s65<br />
OS DOIS DOIS<br />
CARAS CARAS<br />
DE CAVALO CAVALO<br />
<strong>ilustração</strong> <strong>ilustração</strong> chelsea chelsea pop pop<br />
Os Dois Caras de Cavalo<br />
por Ana Queiroz<br />
As minhas pernas assemelhavam-se, fus-<br />
tigadas e pesadas, quase em papa, às dos cavalos<br />
que corriam à minha frente. Eram os segundos in-<br />
vasores em pouco tempo, admitindo que me fala-<br />
ram de coisas reais e que estive longe de línguas<br />
fantasiosas, errantes, etc, etc, daquelas espalha-<br />
das pelos cantos escuros da Cidade, onde normal-<br />
mente parava... Mas esta parte não me interessa<br />
assim tanto; ou melhor, tento perceber agora o<br />
que me interessa e o que vou pôr de parte (1- não<br />
me posso esquecer do nevoeiro)... Vou começar<br />
de novo. A tremura que sentia no corpo era pare-<br />
cida com a dos cavalos que chegavam mas só po-<br />
dia justapô-las com razão se os animais fossem<br />
mais velhos ou se estivessem tão cansados como<br />
eu. Por algum motivo, olhava mais para os cavalos<br />
que para as silhuetas que os montavam; e eram<br />
muitos, apesar de parecidos, e de um conjunto de<br />
massas muito juntas, eram às centenas. Todos en-<br />
volvidos na mesma crença e disposição embora<br />
houvesse duas frentes distintas, separadas por na-<br />
tureza, vim eu a descobrir mais tarde, sem que me<br />
interessasse realmente sabê-lo, digo-o sem medo,
Aliás, era dos únicos seres que não entrava numa<br />
igreja naqueles tempos, simplesmente porque me<br />
esquecia de o fazer, mas torço a língua sentindo-<br />
os a reconhecer-me, com as mãos gulosas, os<br />
olhos enormes. E depois como se já não bastasse<br />
a presença dos tipos, A perseguição; digo-vos, In-<br />
justa e idiota, como vão perceber pelo meu discur-<br />
so raquítico e sem sentido. Mas na verdade, digo-<br />
vos voltando atrás, Não me perseguiram porque<br />
passava despercebido, não sei se por me fazer de<br />
mudo e acenar com a cabeça num tom de ámen,<br />
aleluia ou se pelo meu ar inofensivo e abandona-<br />
do, quase de um Cristo na Cruz à espera de não<br />
sei o quê com a boca aberta. Ou talvez vos esteja<br />
a esconder informação!...mas corrijo-me imedia-<br />
tamente, Começaram a perseguir-me quando me<br />
apercebi do meu rosto e isso, prometo-vos, fica<br />
mais claro lá para a frente. Dizia a mim mesmo há<br />
bocado, que se não fosse aquele abismo, ou infer-<br />
no labiríntico para ser mais preciso, num grau de<br />
precisão idiota e enublado, a minha vida não tinha<br />
valido de nada, tinha acabado um tipo comum,<br />
chato e informe com as mesmas varizes de agora,<br />
mas chato e informe semelhante a uma pasta de<br />
arroz a cair num prato de família. Estes tempos<br />
deram-me imagens que os meus olhos tentaram<br />
expelir e depois aceitaram tentando lembrar mais<br />
com avidez! Posso considerar-me um vasto arqui-<br />
vo histórico, se estou vivo..., Embora saturado de<br />
emoções e provavelmente adulterado até à última<br />
casa por essas malditas, tão queridas e cuidadas<br />
por mim com especial aprumo, até ao dia de hoje.<br />
Sempre me perguntei por que não me mataram<br />
no primeiro momento em que me cruzei com eles,<br />
eu que me passeava entre os invasores e os cadá-<br />
veres; mas provavelmente era só um vulto, daque-<br />
les que perdem a capacidade de se manter na in-<br />
visibilidade para sempre e de repente estão à vista,<br />
partindo do princípio que essa espécie de vultos<br />
existe, mas insisto neste tema porque um dia apa-<br />
nharam-me e levei pelas semanas todas em que<br />
andava entre eles, mas disso falo-vos adiante para<br />
não pensar muito no assunto e não me amargura-<br />
rem as escleróticas, amarelas da cirrose. Num cer-<br />
to sentido, e para vos explicar melhor o que sentia<br />
por toda aquela devastação que avançava à minha<br />
volta, fui um sortudo por não ter tido tempo para<br />
me ligar a ninguém naquela cidade; era um mero<br />
desconhecido com ar de louco a vagabundear<br />
eternamente; provavelmente daquelas pessoas<br />
que parecem abandonadas pelo mundo e que<br />
chamam o nevoeiro a si (ponto 1 lembrado, de-<br />
pois torna-se mais concreto), e sei bem que o ce-<br />
nário era horrível, mas estava cego ainda na carni-<br />
ficina dos meus e nada me fazia arregalar os olhos.<br />
Mas adiante! Como vos tentava explicar no início<br />
ou talvez só o tenha pensado, acreditei sempre<br />
que o meu ar desse nas vistas, pelo menos para<br />
me matarem sem hesitação numa situação como<br />
esta, porque o líder dos tipos que tinham invadido<br />
primeiro a cidade parecia-me tão louco e abando-<br />
nado como eu e tínhamos aliás, enormes parecen-<br />
ças físicas, embora não vos consiga dizer precisa-<br />
mente quais. A verdade era que podíamos ser<br />
irmãos e talvez tivesse sido isso a urgir por um<br />
manto esfarrapado sobre os ombros e a cabeça<br />
quando os via chegar. Gostava de ter aproveitado<br />
a fuga de algumas famílias, se conhecesse algu-<br />
mas delas. Os que conseguiram escapar meteram-<br />
se em carroças pela noite fora já durante a caçada,<br />
e até me tentei meter num desses carros, confes-<br />
so! Mas depois reparei na fronte desvairada dos<br />
cavalos que os levavam e detive-me cheio de<br />
medo; Antes levassem burros ou outros animais<br />
mais atarracados que me metessem menos medo,<br />
mas logo tinha que me deparar com aquela famí-<br />
lia abonada (cambada de excêntricos!), levada por<br />
dois horríveis cavalos. Acho que eles estranharam<br />
a minha desistência porque lhes tinha pedido por<br />
tudo que me levassem antes de encontrar os mal-<br />
ditos cavalos, e tinha caído no ridículo ao ponto<br />
de chorar, mas a verdade é que não tinham muito<br />
tr3s65 43
tempo para estranhar quaisquer atitudes. Lembra-<br />
va-me do rosto do líder e, como éramos parecidos,<br />
tremia só de pensar que me confundissem com<br />
ele. Sabia à partida qual era o meu destino; iça-<br />
vam naqueles dias as primeiras jaulas na catedral<br />
de Mughler. E interrompo um bocadinho aqui para<br />
vos dizer que gostava de vos contar tudo isto de<br />
uma forma pragmática, com uma lista de aconte-<br />
cimentos ou qualquer outra coisa, mas a começar<br />
com uma pequena introdução bela e cuidadosa-<br />
mente orlada por adjectivos, dizendo: A cidade<br />
chamava-se Mughler, era uma terra encantadora,<br />
cheia de luz e catedrais esmagadoras, se não fos-<br />
se como digo, tinha ficado esquecida na história<br />
como qualquer outra cidade esquecida sem que-<br />
rer; e depois as listagens dos acontecimentos e<br />
por fim a dos mortos... Mas não vos quero maçar<br />
com a materialidade da vida porque tenho mais de<br />
530 anos, e isso da materialidade a mim não me<br />
interessa, quero dar-vos pistas para jogarmos, de<br />
forma a que se concentrem primeiro noutras coi-<br />
sa, que na verdade não sei bem quais são. Digo-<br />
vos só que se concentrem nas pequenas histórias<br />
e que não se desviem delas por um segundo.<br />
Digo-vos também que me custa dar-vos matéria<br />
tão vaga, mas de outra maneira concentravam-se<br />
em contextos e datas e digo-vos, com certeza, que<br />
44<br />
tr3s65<br />
o tempo não era preciso na cabeça destas pessoas<br />
que morriam ou esperavam pela morte...e que na<br />
minha, não é preciso desde o único acontecimen-<br />
to tenebroso da minha vida, e digo-vos mais ainda<br />
que o que não é dado com certezas e dito que não<br />
é dado com certezas, não interessa realmente; e o<br />
que não é dado com certeza somente, interessa<br />
mais que tudo, sobretudo quando é antecipado<br />
por interrogações. De onde vinha antes de cair<br />
neste molhos de cobras? Antes da invasão dos Ca-<br />
ras de Cavalo?...Não sei se querem de facto saber,<br />
mas deixo aqui esclarecido que fui um homem de<br />
bem, com família e que a minha vida se movia di-<br />
reita como os ponteiros do relógio. Mas chega,<br />
não tenho tempo para recordar e passar tempos<br />
infinitos a pensar na morte da bezerra, ou na mor-<br />
te dos cavalos, porque me apetece falar de cavalos<br />
para me distrair. Vamos falar dos meus cavalos, ou<br />
não, vamos falar dos meus achaques bem vindos,<br />
coisa que apesar do drama que se instalava na Ci-<br />
dade, permanecia a despontar-me dos cabelos<br />
como em qualquer outro tempo. Semanas depois<br />
de ver as jaulas erigidas na fachada da Catedral e<br />
os Caras de Cavalo a olharem para cima satisfei-<br />
tos, percebi que tinham pessoas lá dentro. Não<br />
eram aquelas tipas que usavam lenços na cabeça e<br />
que andavam muito encolhidas pela cidade antes<br />
dos invasores chegarem, mas o séquito do líder.<br />
Uma das jaulas continuava vazia com o nevoeiro<br />
que se alongava pela cidade a entranhar-se nas<br />
grades, e a mim parecia-me óbvio o que me aguar-<br />
dava; não tinha remédio senão deixar-me levar<br />
pelos homens das duas frentes, cheios de forças<br />
para recuperar a liberdade daquela cidade, ou o<br />
que entendiam por liberdade nos seus próprios<br />
padrões. Só pensava em arranhar-me até deixar de<br />
ser parecido com aquele reizinho, o tal líder malu-<br />
co que andava fugido. Se soubesse por onde an-<br />
dava, se tivesse uma única pista, tinha-o denun-<br />
ciado, ingloriamente, mas com um ar solene,<br />
como ladrão da minha identidade; e nas primeiras
noites parecia-me vê-lo passar do cimo da cate-<br />
dral, mas quando começava aos berros, ameaça-<br />
vam-me com mais uma tareia valente e aí calava-<br />
me; ao mesmo tempo era uma ideia estúpida a de<br />
me irem buscar e devia ter-me lembrado disso já<br />
que tocava nas nuvens, mas só cheguei a essa<br />
conclusão depois e a algum custo. O líder, o tal<br />
tipo que odiei até à morte durante os quatro dias<br />
em que estive enjaulado, tinha levado para ali<br />
aqueles tipos fanáticos e digo-vos sem problemas<br />
que mais me pareciam aborígenes limpinhos sem-<br />
pre em ritos, pela noite e dia fora. Tinham costu-<br />
mes bizarros, podiam-se casar várias vezes e ou-<br />
tras coisas do género que não se viam em qualquer<br />
paragem. Talvez fosse por isso que tinham levan-<br />
tado tanta polémica, mas não, na verdade era<br />
tudo uma questão de poder, que na altura tinha<br />
que estar numa das duas frentes principais. Como<br />
consegui sair daquela jaula? Mais uma vez me per-<br />
guntam vocês coisas inúteis que não vos interes-<br />
sam em nada para as vossas parcas vidas. Tinha<br />
ainda umas ideias anteriores ao enjaulamento,<br />
que apesar de não conseguir produzir naquele ins-<br />
tante, podia recordar por uma questão de confor-<br />
to e aparência, como de resto tinha planeado se<br />
alguma vez me encontrasse naquela situação. Não<br />
usei nenhuma delas; mesmo com a cabeça atarra-<br />
cada de medo, consegui olhar para o nevoeiro e<br />
abraçá-lo, abraçá-lo, como se nunca tivesse visto<br />
nevoeiro. À altura dos céus, de onde via os outros<br />
prisioneiros famintos e desgraçados, quis falar-<br />
lhes do que amavam cegamente, do que os pode-<br />
ria vir a reavivar, e comecei dizendo: Eu sou Cristo,<br />
e nesse instante senti-me cheio de sorte, como se<br />
tivesse que ser recompensado pelo acaso depois<br />
de tanta coragem. Reafirmei a voz no meu corpo<br />
desgastado e voltei a repetir-me olhando para o<br />
nevoeiro que ficava denso, Eu sou Cristo, Avizi-<br />
nha-se uma grande praga onde todos os que me<br />
perseguiram vão cegar e a cegueira será também<br />
para todos os que não me libertaram, Só eu pode-<br />
rei ver, Só eu poderei dar luz, Eu, a fonte de toda<br />
a cor e de todas as formas; e continuei noite fora<br />
até que o nevoeiro cerrasse ao ponto de não se ver<br />
nada. A multidão de Caras de Cavalo ajuntava-se<br />
perto da catedral gritando para que me libertas-<br />
sem e ouviam-se homens a chorar, parecia-me que<br />
o corpo dos moribundos enjaulados, um de cada<br />
lado, tinha cessado de lutar pela vida. Na verdade,<br />
há já umas horas que tinha ouvido parar os sussur-<br />
ros, as orações, as perguntas desesperadas que-<br />
rendo saber se eu era mesmo a reencarnação de<br />
Cristo. Penso até ter ouvido, aquelas vozes soltas<br />
no nevoeiro perguntarem-me onde estava o líder;<br />
diziam que não me conheciam a voz, e pergunta-<br />
vam por que não os tirava dali. Resta-me contar-<br />
vos que os Caras de Cavalo se juntaram para des-<br />
cer a minha jaula com um gancho pesado e que<br />
quando senti a jaula bater no chão, só tacteei cor-<br />
pos a fugir aos gritos, atarantados naquele espaço<br />
encoberto. Também eu corri sem saber por onde<br />
ia, mas quando senti erva seca a estalar-me debai-<br />
xo dos pés, quedei o corpo e permaneci enrolado<br />
no chão como um animal, durante muito tempo.<br />
Lembrei-me que me tinha esquecido de contar os<br />
cadáveres para ser um arquivo útil de informação,<br />
mas para mim eram apenas seis já contados há<br />
algum tempo.<br />
tr3s65 45
Tínhamos perdido. Ao fundo, roncando<br />
aos solavancos, afastava-se o comboio lento. Estava<br />
macerado pela exposição solar de quase<br />
quatro anos sem restauro. Dentro dos vagões,<br />
amontoados uns sobre os outros, ombros caídos,<br />
os últimos camaradas sobreviventes que tinham<br />
conseguido embarcar em Sedan fitavam o cais de<br />
embarque. Ninguém nos acenava, não havia sorrisos<br />
e Eric, a meu lado, ressentido pelo atraso e<br />
pela indiferença dos que partiam, dizia-se transparente.<br />
Era inútil esperar por um novo transporte.<br />
Aquele tinha sido o último comboio a partir<br />
para leste, daqui em diante as fronteiras seriam<br />
reentregues às autoridades francesas, e<br />
estas iriam fechá-las para sempre. O melhor seria<br />
caminhar. Mesmo tendo que percorrer os quase<br />
500 quilómetros que nos separavam de Weimar,<br />
ainda havia tempo para chegar a casa antes do<br />
Natal.<br />
Não havia muito que motivasse o regresso;<br />
Eric já não tinha família, perdera a mãe<br />
bem antes do início da guerra, o pai, ausente<br />
praticamente desde o seu nascimento, nunca<br />
existira na realidade e o seu único irmão, com<br />
quem tinha sido criado, morrera logo nos primeiros<br />
meses da guerra.<br />
Olhando em redor, via que tudo mudara<br />
nestes últimos anos, a terra deixara de ser castanha<br />
e viçosa; caminhávamos sobre cinzas, as<br />
poucas árvores que ainda se mantinham de pé<br />
estavam carbonizadas. De vez em quando, cruzávamo-nos<br />
com as filas esfarrapadas dos prisioneiros<br />
desarmados que regressavam a França. Eles<br />
não olhavam para nós. Num desses recontros,<br />
Eric decidiu enfrentar alguns deles, despiu o dólman<br />
e plantou-se em frente à coluna com os pu-<br />
46<br />
tr3s65<br />
nhos erguidos, mas de nada valeu a afronta, os<br />
homens passaram por ele silenciosos, como se<br />
Eric fosse invisível, um fantasma indiferente prostrado<br />
no caminho daqueles que não pensavam<br />
em nada mais do que o regresso. E a verdade era<br />
essa: já não havia motivo para confrontos. As<br />
balas e os murros tinham cessado e cada um só<br />
desejava regressar a casa, como se de repente<br />
todos os milhares de homens ensandecidos tivessem<br />
ficado cordatos e vissem as ofensas e a guerra<br />
como coisas de um mundo ao qual já não queriam<br />
pertencer. Para eles, não sei se também para<br />
nós, aquilo não era o sossego, mas era a paz, e<br />
ao fim de quatro anos de contenda, nada haveria<br />
com mais valor do que a paz.<br />
Arrastámo-nos durante muitos outros<br />
dias, já não víamos a terra incendiada das fronteiras<br />
das Ardenas, as árvores outonais quase<br />
que geravam esperança e as fileiras de refugiados<br />
tinham desaparecido. Tudo isso fez com que<br />
sentisse algo aceso no coração, estávamos na<br />
nossa terra, a casa em Weimar cada vez mais<br />
próxima e as duras memórias pareciam-me remotas.<br />
Apesar de tudo, preocupava-me a imagem<br />
de Eric, logo à minha frente: marchava descompassado,<br />
os braços deambulavam a cada<br />
passada trôpega, o uniforme em fio desagregava-se<br />
aos bocados. Lia-lhe no olhar baço que as<br />
suas memórias contiuavam vivas. Pertencia<br />
àqueles que perderam as causas e depois de tantos<br />
anos a destruir e a matar, parecia que já não<br />
sabia o que construir, ou até como fazê-lo. No<br />
seu silêncio letal, nos gestos cada vez mais descoordenados,<br />
percebi que Eric ainda estava na<br />
terra de ninguém e talvez não quisesse verdadeiramente<br />
sair de lá.
“A morte é silenciosa.<br />
Não tenho nada a dizer<br />
sobre a morte.”<br />
João César Monteiro<br />
O CAMINHO PARA WEIMAR<br />
Mário Bruno Pastor<br />
fotografia Ângela Berlinde<br />
tr3s65 47
Se fosse mais perspicaz, perceberia então<br />
que Eric deveria ser como um espelho, a imagem<br />
da minha própria condição, mas acreditava<br />
que era diferente, que poderia reencontrar o caminho<br />
normal até ao passado, refazer as coisas<br />
todas como se a guerra e a morte nunca tivessem<br />
existido, como se fosse igual, ou até melhor, do<br />
que os camaradas calados que partiram nos comboios.<br />
Era como se tivesse deixado no lugar vazio<br />
da alma a grande ilusão de ter sobrevivido.<br />
Não tínhamos caminhado muito para além de<br />
Kriesfeld quando nos deparámos com o que restava<br />
de um regimento deslocado. Eram austríacos<br />
e estavam mais ou menos dispersos pelo caminho.<br />
Eric passou por eles, não queria conversas<br />
com velhos aliados de derrota, eu, no entanto,<br />
precisava de parar. Não pelo cansaço, que em<br />
bom rigor – pesado rigor, relembro agora – me<br />
entorpecia o corpo, mas porque na verdade achei<br />
pouco comum ver aqueles soldados tão longe de<br />
casa, tão fora do seu lugar. Sentei-me junto a um<br />
deles, era um jovem tenente e, pela primeira vez<br />
desde Sedan, julgo que se calhar até antes disso,<br />
falei com alguém que não fosse Eric. Explicou-me<br />
que se tinham mobilizado para norte depois de<br />
terem sido dizimados em Veneto pelos italianos.<br />
Como não se permitiram assinar a rendição, procuraram<br />
o caminho para se juntarem às forças<br />
alemãs e prosseguir o esforço na Frente Ocidental.<br />
Agora estavam a reagrupar e marchariam<br />
para França. Não sei como, mas não me foi possível<br />
explicar-lhe que já não havia guerra. O tenente,<br />
cristalizado noutro tempo, não aceitava a<br />
derrota. Preferia fantasiar sobre a urgência do<br />
seu pelotão, os salvadores da germanidade, da<br />
civilização, dizia ele. Acreditava e fazia os seus<br />
homens acreditarem que ainda era possível salvar<br />
48<br />
tr3s65<br />
a situação, inverter o rumo do tempo e regressar<br />
ao passado, onde as possibilidades estariam ain-<br />
da todas em aberto.<br />
Senti que o tenente austríaco era afinal<br />
como nós, tinha outro destino, mas era igual. Ele<br />
queria ir para França, nós faziamos a viagem para<br />
Weimar, mas todos nos movíamos no tempo e<br />
não no espaço. Não procuravamos salvar nada,<br />
nem regressar às trincheiras, desejávamos encontrar<br />
a idade anterior ao início da guerra, regressar<br />
à família, ao lar e à vida de 1914, reorganizar<br />
tudo sem ter em conta a desordem que se seguiu,<br />
sem aceitar a mudança. Por fim deixámos<br />
os austríacos para trás, e prosseguimos caminho,<br />
rumo a Weimar. Chegaríamos no Natal.<br />
Não foram necessários muitos dias para<br />
começarmos a avistar, primeiro ao longe, depois<br />
bem mais perto, os negros telhados íngremes e<br />
as torres góticas da Stadtkirche. Entrámos na cidade<br />
ao anoitecer, exactamente no dia do concerto<br />
de Natal, concerto triste, com o mesmo<br />
Bach de todos os outros concertos anteriores à<br />
guerra, mas desta vez, as palavras cantadas - wachet<br />
auf, ruft uns die Stimme - soaram-me mais<br />
fundas: acordemos, a voz chama-nos.<br />
E um a um, pelas ruas iluminadas, surgiram outros<br />
soldados imundos, olhares vazios e gestos<br />
morosos. Juntávamo-nos e caminhávamos em silêncio<br />
na direcção da música magnética. Como<br />
sonâmbulos, reconhecíamos mecanicamente os<br />
rostos uns dos outros, Eric, saudou o próprio irmão,<br />
mas muitos mais iam chegando. Quando<br />
percebi a verdade da nossa situação, vi que já<br />
éramos centenas, batalhões, regimentos inteiros,<br />
e nenhum de nós, afinal, tinha um espaço para<br />
onde realmente regressar.