Ministro Carlos Maximiliano - Supremo Tribunal Federal
Ministro Carlos Maximiliano - Supremo Tribunal Federal
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Supremo Tribunal Federal
Memória Jurisprudencial
Ministro Carlos Maximiliano
Brasília
2010
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Memória Jurisprudencial
MINISTRO CARLOS MAxIMILIANO
ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOy
Brasília
2010
Diretoria-Geral
Alcides Diniz da Silva
Secretaria de Documentação
Janeth Aparecida Dias de Melo
Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência
Leide Maria Soares Corrêa Cesar
Seção de Preparo de Publicações
Cíntia Machado Gonçalves Soares
Seção de Padronização e Revisão
Rochelle Quito
Seção de Distribuição de Edições
Maria Cristina Hilário da Silva
Diagramação: Eduardo Franco Dias e Ludmila Araujo
Capa: Jorge Luis Villar Peres
Edição: Supremo Tribunal Federal
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Supremo Tribunal Federal – Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)
Godoy, Arnaldo Sampaio de Moraes.
Memória jurisprudencial : Ministro Carlos
Maximiliano / Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. –
Brasília : Supremo Tribunal Federal, 2010. – (Série
memória jurisprudencial)
ISBN 978-85-61435-19-6
1. Ministro do Supremo Tribunal Federal. 2. Brasil.
Supremo Tribunal Federal (STF). 3. Maximiliano,
Carlos - Jurisprudência. I. Título. II. Série.
CDD-341.4191081
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Ministro Antonio CEZAR PELUSO (25-6-2003), Presidente
Ministro Carlos Augusto AyRES de Freitas BRITTO (25-6-2003), Vice-Presidente
Ministro José CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989)
Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990)
Ministra ELLEN GRACIE Northfleet (14-12-2000)
Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002)
Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003)
Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (16-3-2006)
Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21-6-2006)
Ministro José Antonio DIAS TOFFOLI (23-10-2009)
Ministro Carlos Maximiliano
APRESENTAÇÃO
A Constituição de 1988 retomou o processo democrático interrompido
pelo período militar.
Na esteira desse novo ambiente institucional, a Constituição significou
uma renovada época.
Passamos para a busca de efetividade dos direitos no campo das prestações
de natureza pública, como pelo respeito desses direitos no âmbito da
sociedade civil.
É na calmaria institucional que se destaca a função do Poder Judiciário.
É inegável sua importância como instrumento na concretização dos valores
expressos na Carta Política e como faceta do Poder Público, em que os horizontes
de defesa dos direitos individuais e coletivos se viabilizam.
O papel central na defesa dos direitos fundamentais não poderia ser
alcançado sem a atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal na construção
da unidade e do prestígio de que goza hoje o Poder Judiciário.
A história do SUPREMO se confunde com a própria história de construção
do sistema republicano-democrático que temos atualmente e com a consolidação
da função do próprio Poder Judiciário.
Esses quase 120 anos (desde a transformação do antigo Supremo Tribunal
de Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28-2-1891) não significaram simplesmente
uma seqüência de decisões de cunho protocolar.
Trata-se de uma importante seqüência político-jurídica da história nacional
em que a atuação institucional, por vários momentos, se confundiu com
defesa intransigente de direitos e combate aos abusos do poder político.
Essa história foi escrita em períodos de tranqüilidade, mas houve também
delicados momentos de verdadeiros regimes de exceção e resguardo da
independência e da autonomia no exercício da função jurisdicional.
Conhecer a história do SUPREMO é conhecer uma das dimensões do
caminho político que trilhamos até aqui e que nos constituiu como cidadãos
brasileiros em um regime constitucional democrático.
Entretanto, ao contrário do que a comunidade jurídica muitas vezes tende
a enxergar, o SUPREMO não é — nem nunca foi — apenas um prédio, um plenário,
uma decisão coletada no repertório oficial, uma jurisprudência.
O SUPREMO é formado por homens que, ao longo dos anos, abraçaram
o munus publicum de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e à
defesa das instituições democráticas.
Conhecer os vários “perfis” do SUPREMO.
Entender suas decisões e sua jurisprudência.
Analisar as circunstâncias políticas e sociais que envolveram determinado
julgamento.
Interpretar a história de fortalecimento da instituição.
Tudo isso passa por conhecer os seus membros, os valores em que acreditavam,
os princípios que seguiam, a formação profissional e acadêmica que
tiveram, a carreira jurídica ou política que trilharam.
Os protagonistas dessa história sempre foram, de uma forma ou de outra,
colocados de lado em nome de uma imagem insensível e impessoal do Tribunal.
Vários desses homens públicos, muito embora tenham ajudado, de forma
decisiva, a firmar institutos e instituições de nosso direito por meio de seus
votos e manifestações, são desconhecidos do grande público e mesmo ignorados
entre os juristas.
A injustiça dessa realidade não vem sem preço.
O desconhecimento dessa história paralela também ajudou a formar uma
visão burocrática do Tribunal.
Uma visão muito pouco crítica ou científica, além de não prestar homenagem
aos Ministros que, no passado, dedicaram suas vidas na edificação de um
regime democrático e na proteção de um Poder Judiciário forte e independente.
Por isso esta coleção, que ora se inicia, vem completar, finalmente, uma
inaceitável lacuna em nossos estudos de direito constitucional e da própria formação
do pensamento político brasileiro.
Ao longo das edições desta coletânea, o aluno de direito, o estudioso do
direito, o professor, o advogado, enfim, o jurista poderá conhecer com mais profundidade
a vida e a obra dos membros do Supremo Tribunal Federal de ontem
e consultar peças e julgados de suas carreiras como magistrados do Tribunal,
que constituem trabalhos inestimáveis e valorosas contribuições no campo da
interpretação constitucional.
As Constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988)
consubstanciaram documentos orgânicos e vivos durante suas vigências.
Elas, ao mesmo tempo em que condicionaram os rumos político-institucionais
do país, também foram influenciadas pelos valores, pelas práticas e
pelas circunstâncias políticas e sociais de cada um desses períodos.
Nesse sentido, não há como segmentar essa história sem entender a dinâmica
própria dessas transformações.
Há que se compreender os contextos históricos em que estavam inseridas.
Há que se conhecer a mentalidade dos homens que moldaram também
essa realidade no âmbito do SUPREMO.
A Constituição, nesse sentido, é um dado cultural e histórico, datada no
tempo e localizada no espaço.
Exige, para ser compreendida, o conhecimento dos juristas e dos políticos
que tiveram papel determinante em cada um dos períodos constitucionais
tanto no campo da elaboração legislativa como no campo jurisdicional de
sua interpretação.
A Constituição, por outro lado, não é um “pedaço de papel” na expressão
empregada por FERDINAND LASSALE.
O sentido da Constituição, em seus múltiplos significados, se renova e é
constantemente redescoberto em processo de diálogo entre o momento do intérprete
e de sua pré-compreensão e o tempo do texto constitucional.
É a “espiral hermenêutica” de HANS GEORG GADAMER.
O papel exercido pelos Ministros do SUPREMO, como intérpretes oficiais
da Constituição, sempre teve caráter fundamental.
Se a interpretação é procedimento criativo e de natureza jurídico-política,
não é exagero dizer que o SUPREMO, ao longo de sua história, completou
o trabalho dos poderes constituintes que se sucederam ao aditar conteúdo normativo
aos dispositivos da Constituição.
Isso se fez na medida em que o Tribunal fixava pautas interpretativas e
consolidava jurisprudências.
Não há dúvida, portanto, de que um estudo, de fato, aprofundado no
campo da política judiciária e no âmbito do direito constitucional requer, como
fonte primária, a delimitação do pensamento das autoridades que participaram,
em primeiro plano, da montagem das linhas constitucionais fundamentais.
Nesse sentido, não há dúvida de que, por exemplo, o princípio federativo
ou o princípio da separação dos Poderes, em larga medida, tiveram suas fronteiras
de entendimento fixadas pelo SUPREMO e pela carga valorativa que seus
membros traziam de suas experiências profissionais.
Não é possível se compreender temas como “controle de constitucionalidade”,
“intervenção federal”, “processo legislativo” e outros tantos sem se saber
quem foram as pessoas que examinaram esses problemas e que definiram as
pautas hermenêuticas que, em regra, seguimos até hoje no trabalho contínuo
da Corte.
Por isso, esta coleção visa a recuperar a memória institucional, política e
jurídica do SUPREMO.
A idéia e a finalidade é trazer a vida, a obra e a contribuição dada
por Ministros como CASTRO NUNES, OROZIMBO NONATO, VICTOR
NUNES LEAL e ALIOMAR BALEEIRO, além de outros.
A redescoberta do pensamento desses juristas contribuirá para a melhor
compreensão de nossa história institucional.
Contribuirá para o aprofundamento dos estudos de teoria constitucional
no Brasil.
Contribuirá, principalmente, para o resgate do pensamento jurídico-político
brasileiro, que tantas vezes cedeu espaço para posições teóricas construídas
alhures.
E, mais, demonstrará ser falaciosa a afirmação de que o SUPREMO deve
ser um Tribunal da carreira da magistratura.
Nunca deverá ser capturado pelas corporações.
Brasília, março de 2006
Ministro Nelson A. Jobim
Presidente do Supremo Tribunal Federal
SUMáRIO
ABREVIATURAS 13
DADOS BIOGRÁFICOS 15
NOTA DO AUTOR 17
1. TRAJETóRIA INTELECTUAL DE CARLOS MAxIMILIANO 19
2. A CORTE DE CARLOS MAxIMILIANO 30
3. MANDADO DE SEGURANçA E DIREITO ADMINISTRATIVO 36
4. Habeas corpus 70
4.1 Questões políticas 77
4.2 Expulsão de estrangeiros e extradição 119
4.3 Lei de Imprensa 132
4.4 Natureza, validade e nulidade das provas 133
4.5 Questões gerais e processuais 143
5. DIREITO PENAL 188
6. DIREITO TRIBUTÁRIO 221
7. CONFLITOS DE JURISDIçãO 285
REFERÊNCIAS 308
APÊNDICE 311
ÍNDICE NUMÉRICO 448
ABREVIATURAS
ACi Apelação Cível
ACr Apelação Criminal
Ag Agravo
AgP Agravo de Petição
AI Agravo de Instrumento
CJ Conflito de Jurisdição
CR Carta Rogatória
CT Carta Testemunhável
Den Denúncia
ED Embargos de Declaração
Ext Extradição
HC Habeas corpus
MS Mandado de Segurança
RC Recurso Criminal
RE Recurso Extraordinário
RHC Recurso em Habeas corpus
RMS Recurso em Mandado de Segurança
RvC Revisão Criminal
SE Sentença Estrangeira
DADOS BIOGRáFICOS
CARLOS MAxIMILIANO PEREIRA DOS SANTOS, filho de Acelino
do Carmo Pereira dos Santos e de D. Rita de Cassia Pereira dos Santos, nasceu
em 24 de abril de 1873, em São Jerônimo, província do Rio Grande do Sul.
Fez o curso de Humanidades em Porto Alegre e formou-se em Ciências
Jurídicas e Sociais na Escola de Direito de Belo Horizonte, recebendo o grau de
bacharel em março de 1898. Depois de formado, advogou em várias comarcas
do Rio Grande do Sul e perante o Supremo Tribunal durante trinta e seis anos.
Ingressou na política sendo eleito Deputado ao Congresso Nacional nas
legislaturas de 1911-1914 e 1919-1923, pelo Estado do Rio Grande do Sul.
Convidado pelo Dr. Wenceslau Braz Pereira Gomes para auxiliar do seu
governo presidencial, iniciado em 15 de novembro de 1914, aceitou a pasta da
Justiça e Negócios Interiores, sendo nomeado na referida data.
Grande auxiliar do Governo em época bem agitada, em vista da guerra
mundial, Carlos Maximiliano, nos quatro anos de sua gestão, deixou bem
evidenciada a ação que exerceu, conforme se verifica dos três relatórios que
apresentou ao Chefe do Governo e dos decretos que referendou constantes da
Coleção de Leis.
Dotado de grande cultura e brilhante inteligência, organizou vários serviços,
entre eles o alistamento e processo eleitoral e o ensino secundário e superior
da República.
Carlos Maximiliano foi o Ministro que referendou o Código Civil
Brasileiro e a Consolidação das disposições legais e regulamentares concernentes
aos territórios das freguesias urbanas e suburbanas do Distrito Federal, que
formaram as circunscrições judiciárias das pretorias.
Ocupou interinamente a pasta da Agricultura, Indústria e Comércio, no
período de 19 de janeiro a 5 de outubro de 1917.
Em 1932, foi nomeado Consultor-Geral da República, por decreto de 4 de
novembro e, em seguida, por decreto de 14 do mesmo mês, também Consultor
Jurídico do Ministério da Justiça e Negócios Interiores.
Passou depois para o alto cargo de Procurador-Geral da República, em
decreto de 2 de agosto de 1934, exercendo-o até 3 de maio de 1936.
Convidado pelo Dr. Getúlio Vargas, aceitou o cargo de Ministro da Corte
Suprema, sendo nomeado em decreto de 22 de abril de 1936, preenchendo a
vaga proveniente do falecimento de Arthur Ribeiro de Oliveira; tomou posse no
dia 4 de maio seguinte.
Escritor de elevado mérito, publicou as notáveis obras repletas de
ensinamentos: comentários à constituição brasileira de 1891 (3v., 1918),
Hermenêutica e aplicação do Direito (1925), Direito das sucessões (3v., 1937)
e condomínio: terras, apartamentos e andares perante o Direito (1944).
Carlos Maximiliano foi uma das mais eloqüentes afirmações da cultura
jurídica e uma figura de invulgar projeção da intelectualidade brasileira.
A notável obra comentários à constituição brasileira retrata com fidelidade
sua brilhante cultura e legitima plenamente o excepcional conceito que
desfrutou nos meios científicos.
Aposentado em 13 de junho de 1941, compareceu à Corte para despedirse,
em 18 seguinte, sendo saudado pelo Ministro Eduardo Espinola, Presidente,
e pelo Ministro Laudo de Camargo; pelo Juiz Dr. Ribas Carneiro e pelo Dr.
Miranda Jordão, Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros.
Depois de aposentado, retornou ao exercício de atividades advocatícias.
Faleceu em 2 de janeiro de 1960, na cidade do Rio de Janeiro, sendo registrado
o fato na sessão do Tribunal de 4 seguinte, quando o Presidente, Ministro
Lafayette de Andrada, comunicou haver comparecido ao enterro, manifestando-se,
a seguir, o Ministro Luiz Gallotti, pela Corte; o Dr. Carlos Medeiros
Silva, pela Procuradoria-Geral da República; e o Dr. Justo de Moraes, pelos
advogados, sendo aprovado voto de profundo pesar e comunicado à família.
Foi homenageado pelo Supremo Tribunal Federal, no centenário de nascimento,
em sessão de 2 de março de 1973, quando falou pela Corte o Ministro
Oswaldo Trigueiro; pela Procuradoria-Geral da República, o Prof. José Carlos
Moreira Alves; e, pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito
Federal, e Instituto dos Advogados do Distrito Federal, o Prof. Roberto Rosas.
Dados biográficos extraídos da obra supremo Tribunal de Justiça e supremo Tribunal Federal: dados
biográficos (1828-2001), de Laurenio Lago. Este texto também pode ser encontrado no sítio do
Supremo Tribunal Federal na Internet.
NOTA DO AUTOR
A presente pesquisa, na busca da trajetória de Carlos Maximiliano como
Ministro do Supremo Tribunal Federal, identifica, em primeiro lugar, a colaboração
de Maximiliano na definição dos contornos de nosso mandado de
segurança. Em seguida, apresenta um levantamento das decisões de Carlos
Maximiliano proferidas em habeas corpus. Nesse momento, é desenhado panorama
da história do Direito brasileiro ao longo da ditadura de Vargas.
O estudo inclui também conjunto de decisões conduzidas por Carlos
Maximiliano em âmbito de Direito Tributário. Maximiliano era cauteloso com
temas fiscais. Em excerto doutrinário, observou:
Dádiva espontânea ao chefe, a princípio, esperada depois, reclamada em
seguida, quando exígua ou tardia, tornou-se, por fim, obrigatório o imposto,
pago em animais, em produtos da terra ou em trabalho, ultimamente em moeda.
Readquiriu, com a evolução política, o caráter de relativa espontaneidade:
só é exigível quando votado pelo povo por intermédio dos seus representantes.
Como reminiscência do antigo lançamento arbitrário, perdura a denominação
derivada do particípio do verbo latino imponere.
Como quer que se encarem as funções do Estado, desde a amplitude
socialista até o sistema restrito do individualismo teórico, em qualquer hipótese
avultarão para os poderes públicos encargos perenes, constantes necessidades
de dinheiro, urgência imperiosa de exigir sacrifícios dos que moram no país ou
ali possuem bens de qualquer natureza.
O imposto é o doloroso produto do progresso; nasceu da crescente complexidade
das funções do Estado moderno. (...)
As guerras, flagelos, casamentos principescos e outras necessidades criadas
pelo progresso social forçaram os soberanos a exigir sacrifícios dos particulares,
em dinheiro, trabalho ou produtos da agricultura. “Nasceram no mesmo
dia, relembra um economista, aquelas duas necessidades terríveis: o imposto e o
exército permanente.” Surgiu o tributo, a princípio a título excepcional, como o
dízimo saladino, pago pelos que não tomavam parte nas Cruzadas. (...)
(...) Onera nacionais e estrangeiros, e até os que não residem na circunscrição
político-administrativa, porém ali possuem propriedades ou valores
de qualquer natureza. Em geral é exigido em moeda corrente, ouro ou papel;
entretanto, ainda hoje, embora abolido o trabalho forçado (corvée), admite-se a
contribuição facultativa, em serviço pessoal em vez de dinheiro, sobretudo nos
municípios; e deste modo se observa o terceiro canon de Adam Smith com atender
à comodidade do tributo, que prefere o labor à entrega de valores.
(...) Basta comparar, p. ex., o ensino, a higiene e a viação de hoje, com
o que, sob aparência semelhante, existia há um século no Brasil ou no exterior,
para se convencer de que o aumento contínuo da despesa é uma conseqüência
imediata do progresso. Tantos benefícios propiciados pelo Estado devem ser
pagos por aqueles que dos mesmos tiram proveito, ou direto, como habitantes do
país, ou indireto, como proprietários de terras, sócios de empresas ou herdeiros
de fortunas radicadas em alguma das circunscrições administrativas 1 .
Estuda-se em seguida o perfil de Carlos Maximiliano em matéria penal. Mais
uma vez, tem-se desenho nítido de nossa história jurídica em tempos de exceção.
Por fim, no estudo dos conflitos de jurisdição revela-se outra especialidade
de Carlos Maximiliano, relativa a conflito de leis no espaço e no tempo.
Em relação a esse tema, Direito Intertemporal, Carlos Maximiliano também
escreveu livro clássico, em que fixou o conceito de que a matéria rege o
“alcance do império de duas normas que se seguem reciprocamente” 2 .
Na continuação do texto, são apresentadas algumas decisões de Carlos
Maximiliano em âmbito de Direito do Trabalho, que confirmam a impressão de
que o Ministro possuía mente arejada e avançada.
A pesquisa pretende constatar a coerência que marcou a trajetória intelectual
de Carlos Maximiliano. Humanista, experimentalista, culto, avançado,
Carlos Maximiliano é atemporal. Viveu no Supremo Tribunal Federal os agitados
tempos da ditadura de Vargas. Espírito compenetrado e generoso, Carlos
Maximiliano marcou a magistratura brasileira com as cores de uma prosa jurídica
elegante e de um raciocínio conciso e objetivo. Em qualquer época, pretérita
ou presente, Carlos Maximiliano é referência perene de segurança jurídica
e de equilíbrio institucional.
1 MAxIMILIANO, Carlos. comentários à constituição brasileira. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1954. v. I, p. 265 et seq.
2 MAxIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 7.
Ministro Carlos Maximiliano
1. TRAJETóRIA INTELECTUAL DE CARLOS MAxIMILIANO
Carlos Maximiliano foi Ministro do Supremo Tribunal Federal de 22 de
abril de 1936 a 13 de junho de 1941. Ao longo de cinco anos Carlos Maximiliano
colaborou, entusiástica e definitivamente, na fixação de nosso modelo de mandado
de segurança, bem como na definição do habeas corpus, em seus aspectos
de competência e de procedimento. O estado de guerra que se avizinhava
bem como os reflexos normativos da ditadura que se instalou com o golpe de
1937 marcaram época difícil. Maximiliano foi Ministro do Supremo Tribunal
Federal nos turbulentos anos do Estado Novo.
Carlos Maximiliano plasmou coerentemente em seus julgados a orientação
que seguia em portentosa obra teórica, brilhante e marcante na literatura
jurídica nacional. Notabilizou-se pela autoria de nossa mais conhecida obra de
Hermenêutica, Hermenêutica e aplicação do direito. Nada obstante avanços na
Filosofia da Linguagem e nos aportes do Realismo Jurídico, a par dos marcos
conceituais do Neoconstitucionalismo, que alteraram profundamente o panorama
da interpretação do Direito, a obra de Carlos Maximiliano ainda é referência
recorrente na concepção de linguagem comum entre os juristas.
Nesse sentido, Carlos Maximiliano entendia que a Hermenêutica Jurídica
tinha por “objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para
determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito” 3 . Para Maximiliano,
a Hermenêutica qualificava “a teoria científica da arte de interpretar” 4 .
As fontes que oxigenaram a obra de Carlos Maximiliano estão dispersas
nos pensadores do liberalismo jurídico continental e em quantidade menos
significativa na sociologia jurídica norte-americana. Maximiliano conhecia
muito bem os autores que citava. Os seus enunciados hermenêuticos eram
substancializados por atraente honestidade intelectual. Montesquieu, François
Geny, Rudolf Stammler, Edmund Picard, Marcel Planiol, Rudolf von Iehring,
Hermann Kantarowicz e Roscoe Pound, entre tantos outros, transcendem as
notas de rodapé e realmente dão os contornos conceituais aos problemas e soluções
evidenciados pelo autor de Hermenêutica e aplicação do direito e Ministro
do Supremo Tribunal Federal.
Carlos Maximiliano representa a hermenêutica clássica e é com freqüência
referido como o príncipe dos hermeneutas pátrios. Foi Ministro da Justiça
do governo Wenceslau Brás Pereira Gomes e nessa qualidade rubricou o Código
Civil de 1916. Foi consultor-geral da República e mais tarde procurador-geral,
exercendo ambos os cargos durante o período de Getúlio Vargas, que o nomeou
3 MAxIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1965. p. 13.
4 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., loc. cit.
19
Memória Jurisprudencial
Ministro do Supremo Tribunal Federal em 1936, cargo que exerceu até 1941,
quando se aposentou. Carlos Maximiliano faleceu em 1960, aos 87 anos 5 . Probidade,
ilustração e critério são as qualidades que Maximiliano julgava imperiosas
no hermeneuta 6 . Conseqüentemente, exigia alto conteúdo ético, muita cultura e
grande capacidade de discernimento para o intérprete do direito. Maximiliano
caracterizava a hermenêutica com romantismo e apelo retórico efusivo:
20
A Hermenêutica é ancila do Direito, servidora inteligente que o retoca,
aformoseia, humaniza, melhora, sem lhe alterar a essência. Ora as leis devem
ser concebidas e decretadas de acordo com as instituições vigentes; logo a exegese,
mero auxiliar da aplicação das normas escritas, nada procura, nem conclui
em desacordo com a índole do regime 7 .
Maximiliano indicava que a hermenêutica tinha “por objeto o estudo e a
sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance
das expressões do Direito” 8 . A interpretação é definida como a aplicação da
hermenêutica, que então é elevada à categoria “de teoria científica da arte de
interpretar” 9 . Valendo-se de dicionários de equivalência, Carlos Maximiliano
identificou o conteúdo semântico da palavra hermenêutica, enquanto substantivo,
identificador da ciência da interpretação.
Em doutrina de expressão inglesa, Carlos Maximiliano aproximava
hermenêutica a interpretation e construction 10 . Uma leitura contemporânea da
passagem indica sutil diferença entre essas duas palavras, dada a forma como
são utilizadas no direito norte-americano. Interpretation caracteriza um modelo
interpretativo que busca a intenção original do legislador (principalmente o
constitucional), o chamado original meaning; construction suscita uma visão
imaginativa, a imaginative vision, possibilitando a criatividade do intérprete, de
onde a sinonímia com creative meaning, com o sentido de busca de um significado
oculto que possibilita uma interpretação mais livre, com maior garantia de
acepções de reserva de sentido.
A propósito, há um debate no direito norte-americano relativo a referenciais
hermenêuticos, sobremodo em âmbito de interpretação constitucional.
As distinções radicam no desenvolvimento do pensamento originalista, que
insiste que o intérprete deve seguir a literalidade do texto constitucional, de
5
RODRIGUES, Leda Boechat. História do supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002. v. 4, p. 390.
6
MAxIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1965. p. 112.
7 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 174.
8
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 13.
9
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., loc. cit.
10
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 14.
Ministro Carlos Maximiliano
modo a alcançar a intenção exata dos constituintes norte-americanos do século
xVIII (drafters). Tal atitude conceitual, textualista, encontra utilização ampla
em modelos interpretativos mais conservadores. De acordo com as tendências
jurisprudenciais norte-americanas, percebe-se que esses modelos são identificados
politicamente com as teses do Partido Republicano dos Estados Unidos,
e justificadores de votos de juízes como Antonin Scalia, Clarence Thomas,
Sandra Day O’Connor e William Rehnquist, recentemente falecido, caracterizando
um minimalismo judicial.
Em contrapartida, os não-originalistas afirmam que compete ao intérprete
atualizar o texto constitucional, de forma construtivista, criativa, cabendo
à autoridade judiciária determinar o alcance do texto a ser interpretado. Tal tendência
é de mais utilização por intérpretes liberais, identificados com o Partido
Democrata. Ambas as posições encetam grande conteúdo ideológico, qual uma
permanente lembrança de que o direito não é matemática. No entanto, a avançarmos
no debate, há quem hoje afirme que a oposição entre interpretation e construction
exprima uma falsa dicotomia, justificando-se de tal forma a imagem de
Carlos Maximiliano, que não contava também com o benefício da clarividência.
Com simplicidade, Maximiliano escrevera que “[a] aplicação do Direito
consiste no enquadrar um caso concreto em a norma jurídica adequada” 11 ,
formulando um juízo descritivo de subsunção. Ainda, “[a] aplicação não prescinde
da Hermenêutica: a primeira pressupõe a segunda, como a medicação
a diagnose” 12 . Em seguida lecionava que “[i]nterpretar é explicar, esclarecer;
dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras
um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão;
extrair da frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém” 13 .
Maximiliano partia da premissa de que a lei era imperfeita e de que
essa imperfeição refletia sua origem, o fato de que o legislador é o próprio
homem. Esse estigma da imperfeição justificaria a necessidade de interpretação.
Segundo Maximiliano, então, “[t]oda lei é obra humana e aplicada por
homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados
práticos, se não verificarem, com esmero, o sentido e o alcance das suas prescrições”
14 . Uma atitude pragmática desenhava o pano de fundo das concepções
de Carlos Maximiliano quanto à interpretação da lei, que deveria “revelar o
sentido apropriado para a vida real” 15 . Identificada como arte, a Hermenêutica
11 MAxIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1965. p. 18.
12 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 20.
13 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 21.
14
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 21-22.
15 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 22.
21
Memória Jurisprudencial
não seria adorno intelectual ou província cultural do litoral das curiosidades.
A disciplina respirava na vida concreta. De tal modo,
22
Não se trata de uma arte para simples deleite intelectual, para o gozo das
pesquisas e o passatempo de analisar, comparar e explicar os textos; assume,
antes, as proporções de uma disciplina eminentemente prática, útil na atividade
diária, auxiliar e guia dos realizadores esclarecidos, preocupados em promover
o progresso, dentro da ordem; bem como dos que ventilam nos pretórios os casos
controvertidos, e dos que decidem os litígios e restabelecem o Direito postergado. 16
Hermenêutica e linguagem, já reconhecia Maximiliano, convergiam na
mesma realidade epistemológica, dado que “[t]alvez constitua a Hermenêutica
o capítulo menos seguro, mais impreciso da ciência do Direito; porque partilha
da sorte da linguagem” 17 . Emergia a palavra como necessária de entendimento,
de revelação, dada sua condição de veicular a lei. Por isso,
A palavra, quer considerada isoladamente, quer em combinação com
outra para formar a norma jurídica, ostenta apenas rigidez ilusória, exterior.
É por sua natureza elástica e dúctil, varia de significação com o transcorrer do
tempo e a marcha da civilização. Tem, por isso, a vantagem de traduzir as realidades
jurídicas sucessivas. Possui, entretanto, os defeitos das suas qualidades;
debaixo do invólucro fixo, inalterado, dissimula pensamentos diversos, infinitamente
variegados e sem consistência real. Por fora, o dizer preciso; dentro, uma
policromia de idéias 18 .
Carlos Maximiliano adiantou-se em temas de filosofia da linguagem e
insistia em aspectos analíticos de consideração de mecanismos de fala. Em passagem
de impressionante riqueza conceitual, típica de textos de teoria da comunicação,
deixou consignado que
Presta-se a língua para estabelecer e cimentar as relações entre os
homens. Quando alguém pretende despertar em outrem idéia semelhante à que
irrompeu no seu próprio cérebro, por meio dos nervos motores engendra um
produto físico, o qual, por sua vez, impressiona os órgãos sensitivos do outro
indivíduo, em cuja alma faz brotar a imagem planejada. O mais importante
desses produtos físicos é a linguagem, falada ou consistente em escrita, gestos,
figuras, sinais. A comunicação completa-se desde que a imagem criada por um
se reproduz com impressionar o intelecto do outro. 19
Maximiliano enaltecia a atividade do intérprete, tido como “renovador
inteligente e cauto, o sociólogo do Direito” 20 . O esclarecimento da norma e sua
16 MAxIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1965. p. 22.
17 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 23.
18 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 28.
19
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 118.
20 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 24.
Ministro Carlos Maximiliano
inserção na vida real qualificavam o ato interpretativo. Desprezando elementos
ideológicos e psicológicos, Maximiliano, em linguagem apologética, ainda a
respeito do intérprete, insistia que “[o] seu trabalho [do intérprete] rejuvenesce e
fecunda a fórmula prematuramente decrépita, e atua como elemento integrador
e complementar da própria lei escrita. Esta é a estática, e a função interpretativa,
a dinâmica do Direito” 21 . Carlos Maximiliano imaginava um legislador
que pairava acima de tudo e de todos, desprezando elementos políticos e sociológicos,
centrando a produção da regra na subjetividade de quem a concebia
normatividade. Maximiliano escreveu que
O indivíduo que legisla é mais ator do que autor; traduz apenas o pensar e
o sentir alheios, reflexamente às vezes, usando meios inadequados de expressão
quase sempre. Impelem-no forças irresistíveis, subterrâneas, mais profundas do
que os antagonismos dos partidos. De outro modo se não explica o fato, verificado
em todos os países, de adotar uma facção no poder as idéias, os projetos
e as reformas sustentadas pelo adversário, dominador na véspera; um grupo
realiza o programa dos contrários e, não raro, até as inovações que combatera. 22
Pretendia que o intérprete complementasse a obra legislativa, subsumindo
comandos normativos a específicas circunstâncias não presumidas pelo
legislador, em que pese suposta onisciência. Assim,
Ante a impossibilidade de prever todos os casos particulares, o legislador
prefere pairar nas alturas, fixar princípios, estabelecer preceitos gerais, de largo
alcance, embora precisos e claros. Deixa ao aplicador do Direito (juiz, autoridade
administrativa, ou homem particular) a tarefa de enquadrar o fato humano
em uma norma jurídica, para o que é indispensável compreendê-la bem, determinar-lhe
o conteúdo. Ao passar do terreno das abstrações para o das realidades,
pululam os embaraços; por isso a necessidade da Interpretação é permanente,
por mais bem formuladas que sejam as prescrições legais. 23
Maximiliano defendia o pensamento de Rudolf von Ihering, posteriormente
desenvolvido por Hans Kelsen, concebendo o Estado como único detentor
do poder de coagir, fonte única do Direito, revelado pelo jurista, “esclarecido
pela Hermenêutica” 24 . O Direito, como um espelho, refletiria sua fonte produtora,
e, por ela determinado, caminharia de modo lento, identificando evolução,
conceito que plasmava o pensamento da época, profundamente influenciada
pelas doutrinas de Herbert Spencer. A imagem de evolução é inclusive título de
um dos livros de Ihering. Para Maximiliano, neste sentido:
21 MAxIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1965. p. 24.
22 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 32.
23
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 25.
24 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 26.
23
Memória Jurisprudencial
24
O Direito Positivo é o resultado de ação lenta e reação oportuna. O ambiente
age sobre a inteligência, moderando-a, imprimindo-lhe caracteres determinados;
afinal o indivíduo reage sobre a natureza, dominando-a, por sua vez,
com a sua atividade modificadora, transformadora, indiscutivelmente eficiente.
A natureza humana amolda as instituições jurídicas; por sua vez estas reagem
sobre aquela; dessa influência recíproca afinal resulta o equilíbrio almejado,
uma situação relativamente estável. 25
Carlos Maximiliano concebia uma historiografia que abominava a grande
façanha e o líder carismático, no sentido weberiano em que a palavra carisma
é utilizada. A história não é “façanha de reis” e nem “heróis fundam nações” 26 .
Maximiliano apontava para os dois extremos perigosos no manejo da história,
“o excessivo apreço e o completo repúdio” 27 . E é a partir da história, e das comparações
que Maximiliano estabelecia entre a disciplina de Clio e o Direito,
que se alcançava a manifestação normativa como mero reflexo do movimentar
social. De tal maneira,
[a] prova de que o indivíduo influi em escala reduzida no desenrolar dos
fatos sociais, ressalta de não se deter a marcha vitoriosa de um exército, nem
retardar o progresso vertiginoso de um grande país, após o traspasse de um
chefe aparentemente insubstituível. Por outro lado, o homicídio de um déspota
não faz raiar a liberdade; o revolucionário sincero de hoje será o descontente de
amanhã, pelo contraste entre as promessas de oposicionistas e as realizações de
triunfadores. Também a ciência do Direito abrange um conjunto de fenômenos
sociais; como a História, deve atender menos ao esforço do homem isolado do
que à ação complexa da coletividade. 28
Carlos Maximiliano pulverizava o legislador na coletividade, dissolvendo
o agente concreto de confecção da lei no ambiente social, sem nenhuma
concessão ou economia de recursos retóricos. Assim, “[o] legislador não tem
personalidade física individual, cujo pensamento, pendores e vontades se apreendam
sem custo. A lei é obra de numerosos espíritos, cujas idéias se fundem
em um conglomerado difícil de decompor” 29 . Carlos Maximiliano tocou na
questão da autonomia da norma em relação ao legislador. Para ele, a lei ganhava
existência distinta de seu criador, depois de gerada e inserida no mundo normativo.
A seguinte passagem empolgou gerações de juristas:
Com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa;
separa-se do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo; dilata e até
25 MAxIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1965. p. 33.
26 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 32.
27 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 152.
28
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 32.
29 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 39.
Ministro Carlos Maximiliano
substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na prática,
mais previdente que o seu autor. 30
Maximiliano abominava a parêmia in claris cessat interpretatio, isto é,
“disposições claras não comportam interpretação”, taxando-a de “afirmativa
sem nenhum valor científico” 31 . Ele duvidava do próprio conceito de clareza,
que reputava relativo 32 . E observou:
Que é lei clara? É aquela cujo sentido é expresso pela letra do texto. Para
saber se isto acontece, é força procurar conhecer o sentido, isto é, interpretar.
A verificação da clareza, portanto, ao invés de dispensar a exegese, implica-a,
pressupõe o uso preliminar da mesma. 33
Carlos Maximiliano propugnava por modelos interpretativos ponderados
e bem refletidos. Procurava relativizar a engenhosidade criativa do intérprete,
vinculando-o à letra da regra, postura edificadora, de apego aos postulados de
Montesquieu. É o que se percebe na leitura do seguinte excerto:
Entretanto, o elemento moderado, conservador, se detém em um meiotermo
discreto, tira todas as deduções exigidas pelo meio social, porém compatíveis
com a letra da lei; evita os exageros dos revolucionários, mas também se
não conforma com a imobilidade emperrada, produto lógico da dogmática. 34
Defendendo a necessidade de interpretação, Maximiliano criticou Justiniano
e Napoleão, legisladores que abominavam os hermeneutas, “deformadores
de códigos e estatutos fundamentais” 35 . Mas Maximiliano também
condenava os excessos, o sobejo e a sobra interpretativa, fazendo-o na crítica
à jurisprudência sentimental, ao bom juiz Magnaud, magistrado francês que
defendia fracos e oprimidos. E escreveu que, “[q]uando o magistrado se deixa
guiar pelo sentimento, a lide degenera em loteria, ninguém sabe como cumprir
a lei a coberto de condenações forenses” 36 .
Maximiliano afirmava que a interpretação é uma só, que não se fraciona,
mas que se exercita por vários processos. O modelo gramatical, ou filológico,
preocupar-se-ia com a letra do dispositivo. O modelo lógico, fracionado em
lógico propriamente dito e sociológico, ocupar-se-ia com “o espírito da norma
em apreço” 37 . Carlos Maximiliano advertia também para o apego às palavras
30
MAxIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1965. p. 42-43.
31
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 45.
32
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 49.
33 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 50.
34
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 62.
35
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 68.
36
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 95.
37
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 118.
25
Memória Jurisprudencial
sagradas, imobilizadas, que configurariam formas atrasadas de civilização38 , aderindo
aos conceitualistas, em oposição aos nominalistas, a lembrar-nos da questão
das universais, que sacudiu o ambiente cultural medieval, na discussão do que vale
mais, se as coisas ou os nomes que a elas imputamos e pelos quais as chamamos.
Carlos Maximiliano pranteava o legislador e duvidava das antinomias;
a culpa seria do intérprete despreparado. Afinal, “[s]empre que descobre uma
contradição, deve o hermeneuta desconfiar de si; presumir que não compreendeu
bem o sentido de cada um dos trechos”. 39
Empolgado com a sociologia jurídica norte-americana e com o realismo
jurídico a ela vinculado, Carlos Maximiliano hostilizava a lógica em favor de
uma compreensão menos geométrica e mais social do direito, escrevendo:
Desapareceu nas trevas do passado o método lógico, rígido, imobilizador
do Direito: tratava todas as questões como se foram problemas de Geometria.
O julgador hodierno preocupa-se com o bem e o mal resultantes de seu veredictum.
Se é certo que o juiz deve buscar o verdadeiro sentido e alcance do texto;
todavia este alcance e aquele sentido não podem estar em desacordo com o fim
colimado pela legislação — o bem social. 40
Maximiliano, por outro lado, esposou com firmeza o dogma positivista da
separação entre direito e moral, declinando que as órbitas dessas realidades culturais
são “concêntricas” 41 . Relativizava a jurisprudência como fonte interpretativa,
anotando que “[a] jurisprudência auxilia o trabalho do intérprete; mas não o
substitui, nem dispensa. Tem valor; porém relativo. Deve ser observada quando
acorde com a doutrina” 42 . Carlos Maximiliano prezava a independência do
magistrado-intérprete, defendendo intransigentemente o livre-arbítrio do juiz.
Tanto o magistrado que lançou uma exegese nova, como os de categoria
inferior à dele, gozam da liberdade de a desprezar, ou seguir, em outras decisões
sobre espécies judiciárias iguais ou semelhantes. Quantas vezes se observa
achar-se no voto vencido, de alto juiz, ou na sentença reformada, do pequeno,
do novo, estudioso e brilhante, a boa doutrina, tímida, isolada, incipiente hoje,
triunfante, generalizada amanhã! 43
Carlos Maximiliano prescreveu enunciados que se tornaram clássicos,
a exemplo do conceito de analogia, que consiste em “aplicar a uma hipótese
não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante” 44 . Para
38
MAxIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1965. p. 132.
39
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 146.
40
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 169.
41 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 172.
42
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 195.
43
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 197.
44
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 220.
26
Ministro Carlos Maximiliano
Maximiliano, até o silêncio se interpreta, dado que “ele traduz alguma coisa” 45 .
Elaborou distinções entre prescrições de ordem pública e de ordem privada:
entre as primeiras, sobreleva-se o interesse social; entre as últimas, “a proteção
do direito do indivíduo constitui o objetivo primordial” 46 . A finura da exposição
de Carlos Maximiliano invocava equilíbrio olímpico, marca característica de
seu pensamento. Essa percepção intelectual altaneira é qualificada na célebre
passagem na qual o hermeneuta insiste que “apaixonar-se não é argumentar” 47 .
Carlos Maximiliano fundamentava uma hermenêutica diretiva, na medida
em que orientava, sugeria, advertia. Ele tocou em temas de intensa utilização
e de imensa importância na vida prática, a exemplo de tópicos de
interpretação autêntica e doutrinal; direito comparado; sentido de disposições
transitórias; concepções de história legislativa (ocassio legis) e de política judiciária
(ratio legis); eqüidade; valor do uso da jurisprudência; importância dos
costumes para aferição do direito; analogia; nulidades; uso de brocardos e anexins;
decadência; prescrição; princípios gerais de direito, a par de hermenêuticas
setorizadas, em temas constitucionais, comerciais, penais, fiscais; além de
reflexões em âmbito de pequenas sutilidades, como distinções entre revogação
e anulação. Carlos Maximiliano também expôs com rigidez conceitual outros
temas, como coisa julgada48 , e em planisfério mais amplo, direito constitucional
positivo, conforme percebe-se nos comentários que anotou à nossa primeira
Constituição republicana49 . Maximiliano é um clássico.
Adiante de seu tempo, Carlos Maximiliano expressava idéia avançada,
relativa à concepção de Constituição. Para Maximiliano, a Constituição deveria
“condensar princípios e normas asseguradoras do progresso, da liberdade e da
ordem, e precisa evitar casuística minuciosidade, a fim de se não tornar demasiado
rígida, de permanecer dúctil, flexível, adaptável a épocas e circunstâncias
diversas, destinada, como é, a longevidade excepcional” 50 .
Ainda, em outro passo que marcava percepção avançada do papel dos
textos constitucionais, Maximiliano escrevia que se supunha que não fora “a
Constituição escrita em linguagem arrevezada e difícil, inçada de termos técnicos,
e, sim, em estilo simples, claro, chão, como uma obra do povo, adotada pelo
povo e pelo mesmo povo lida e observada” 51 .
45 MAxIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1965. p. 220.
46 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 228.
47 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 289.
48 MAxIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. p. 202 et seq.
49 MAxIMILIANO, Carlos. comentários à constituição brasileira. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1954.
50
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., v. I, p. 128.
51 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 133.
27
Memória Jurisprudencial
A simplicidade na escrita era característica de suas intervenções. A literalidade
tinha, em seu pensamento, um sentido menos hierático e mais pragmático.
Segundo Maximiliano, não prevaleceria “exegese nenhuma em desacordo com
o sentido comum da letra expressa da lei, muito embora se invoque o elemento
histórico, ou o chamado Direito Natural” 52 . De tal modo, formulava regra, nos
seguintes termos: “recorra-se aos vários elementos de Hermenêutica a fim de
decidir entre duas interpretações possíveis da palavra escrita, sem atingir jamais
a uma exegese que o texto expresso não poderia razoavelmente permitir” 53 .
Hostil à interpretação literal, estrita, e não criativa ou integrativa, Carlos
Maximiliano percebia na literalidade inconseqüente o desate da lei do menor
esforço. Inimigo de jurisprudência centrada na falta de ousadia na interpretação
do Direito, advertia:
28
Nunca será demasiado insistir no combate ao abuso da chamada interpretação
gramatical. Preferem-na às vezes até aos mais formosos talentos brasileiros,
obedientes à lei do menor esforço, ou compelidos pelas necessidades
da casuística. De fato, ela oferece o encanto da simplicidade; fica ao alcance de
todos; impressiona agradavelmente os indoutos, e convence os próprios letrados
não familiarizados com a ciência do Direito. Empresta-lhe menor valor o profissional
de boa escola verdadeiro jurisconsulto. 54
Carlos Maximiliano equilibrava suas decisões a partir dos textos normativos
que havia, e que interpretava nos limites estreitos da Constituição. Assim,
em comentários aos nossos textos constitucionais, trabalho incansável que
começara ainda na década de 1910, readaptando-o às alterações que conhecemos
em função de nossas vicissitudes políticas, Maximiliano afirmava:
O espírito da lei suprema pode ser invocado somente como incluído na
letra de um dispositivo, e não pra se pronunciarem inconstitucionalidades não
previstas pelo texto.
Não podem os tribunais declarar inexistente um decreto legislativo, apenas
por ser contrário aos princípios da justiça, às boas normas republicanas, à
soberania popular, às conquistas da democracia ou às noções fundamentais do
Direito; é de rigor que violem a Constituição, implícita ou explicitamente. 55
Em época na qual ainda não se havia pacificado a idéia de que a Constituição
qualificasse efetivo vetor da normatividade, Carlos Maximiliano
adiantava-se na esperança de que o texto constitucional marcasse dimensão atemporal,
recebendo do intérprete a carga interpretativa dos momentos presentes.
52 MAxIMILIANO, Carlos. comentários à constituição brasileira. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1954. v. I, p. 133.
53 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., loc. cit.
54
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 135.
55 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 134.
Ministro Carlos Maximiliano
Inspirado em Joseph Story, a quem reverenciava, Maximiliano lembrava que a
Constituição aplicava-se “aos casos modernos, não previstos pelos que a elaboraram”
56 . Não era um originalista. Assim, a Constituição seria também “a égide
da paz, a garantia da ordem, sem a qual não há progresso nem liberdade. (...) Forçoso
se lhe torna acompanhar a evolução, adaptar-se às circunstâncias imprevistas,
vitoriosa em todas as vicissitudes, porém aparentemente imutável” 57 .
Para Carlos Maximiliano, a Constituição era “a lei suprema do país: contra
a sua letra ou espírito não prevalecem as resoluções dos poderes federais,
constituições, decretos ou sentenças estaduais, nem tratados, ou quaisquer atos
diplomáticos” 58 . Dignificava o texto constitucional.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal, no qual trabalhou Carlos
Maximiliano, era menos uma Corte Constitucional do que uma Corte revisora.
Por isso, multiplicavam-se julgados que tratavam de temas infraconstitucionais,
embora se perceba, nas entrelinhas, que emergiam problemas que contemporaneamente
ainda agitam nossa Corte Suprema, em âmbito de liberdades
fundamentais.
56 MAxIMILIANO, Carlos. comentários à constituição brasileira. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1954. v. I, p. 136.
57
MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 137.
58 MAxIMILIANO, Carlos. op. cit., p. 142.
29
Memória Jurisprudencial
2. A CORTE DE CARLOS MAxIMILIANO
Carlos Maximiliano viveu duas realidades constitucionais ao longo dos
anos em que foi Ministro do Supremo Tribunal Federal. Quando tomou posse,
em 1936, nosso tribunal superior era denominado de Corte Suprema; estava
em vigência a Constituição de 1934. Em 1937, com a Constituição outorgada
naquele ano, retomou-se a denominação de Supremo Tribunal Federal; vigia a
Constituição de 1937.
Nos termos da Constituição de 1934, a Corte Suprema tinha sede na Capital
da República e jurisdição em todo o território nacional. Era composta por
onze Ministros 59 . Por proposta da própria Corte Suprema poderia o número de
Ministros ser elevado por lei até dezesseis. De qualquer modo, o número era irredutível
60 . O Tribunal poderia conceber divisão funcional em Câmaras ou Turmas,
cujas matérias, nos termos de lei, poderiam ser revistas, ou não, pelo Pleno 61 .
Os Ministros eram nomeados pelo Presidente da República, com aprovação
do Senado Federal, dentre brasileiros natos de notável saber jurídico e
reputação ilibada, eleitores, não devendo ter, salvo os magistrados, menos de 35,
nem mais de 65 anos de idade 62 .
A competência da Corte Suprema consistia em processar e julgar originariamente:
a) o Presidente da República e os próprios Ministros da Corte, nos
crimes comuns; b) os Ministros de Estado, o Procurador-Geral da República,
os juízes dos tribunais federais, além dos juízes das cortes de apelação dos
Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, os Ministros do Tribunal de
Contas e os Embaixadores e Ministros diplomáticos nos crimes comuns e nos
de responsabilidade; c) os juízes federais e os seus substitutos, também nos crimes
de responsabilidade; d) as causas e os conflitos entre a União e os Estados,
ou entre estes; e) os litígios entre as nações estrangeiras e a União ou os Estados;
f) os conflitos de jurisdição entre juízes ou tribunais federais, entre esses e os
Estados, e entre juízes e tribunais de Estados diferentes, incluídos, nas duas
últimas hipóteses, os do Distrito Federal e os dos Territórios; g) a extradição
de criminosos, requisitada por outras nações, e a homologação de sentenças
estrangeiras; h) o habeas corpus, quando fosse paciente, ou coator, tribunal,
funcionário ou autoridade cujos atos estivessem sujeitos imediatamente à jurisdição
da corte; e ainda se houvesse perigo de se consumar a violência antes que
outro juiz ou tribunal pudesse conhecer do pedido; i) o mandado de segurança
contra atos do Presidente da República ou de Ministro de Estado 63 .
59 Constituição de 1934, art. 73.
60 Constituição de 1934, § 1º do art. 73.
61 Constituição de 1934, § 2º do art. 73.
62 Constituição de 1934, art. 74.
63 Constituição de 1934, art. 76.
30
Ministro Carlos Maximiliano
A Corte Suprema julgava ainda as ações rescisórias dos próprios acórdãos,
bem como em recurso ordinário: a) as causas, inclusive mandados de
segurança, decididas por juízes e tribunais federais; b) algumas questões
resolvidas pelo Tribunal Superior de Justiça Eleitoral; c) as decisões de última
ou única instância das justiças locais e as de juízes e tribunais federais, denegatórias
de habeas corpus; em recurso extraordinário, as causas decididas
pelas justiças locais em única ou última instância, nas seguintes hipóteses: a)
quando a decisão fosse contra literal disposição de tratado ou lei federal, sobre
cuja aplicação se houvesse questionado; b) quando se questionasse vigência ou
validade de lei federal em face da Constituição, e a decisão do tribunal local
negasse aplicação à lei impugnada; c) quando se contestasse validade de lei ou
ato dos governos locais em face da Constituição, ou de lei federal, e a decisão
do tribunal local julgasse válido o ato ou a lei impugnada; d) quando ocorresse
diversidade de interpretação definitiva da lei federal entre cortes de apelação de
Estados diferentes, inclusive do Distrito Federal ou dos Territórios, ou entre um
desses tribunais e a Corte Suprema, ou outro tribunal federal. A Corte Suprema
também revia, em benefício dos condenados, nos casos e pela forma que a lei
determinasse, os processos findos em matéria criminal, inclusive os militares
e eleitorais, a requerimento do réu, do Ministério Público ou de qualquer pessoa64
. Ao Presidente da Corte Suprema competia conceder exequatur às cartas
rogatórias das justiças estrangeiras 65 .
Com a Carta outorgada de 1937, retomou-se o nome Supremo Tribunal
Federal. Manteve-se a sede na Capital da República e a jurisdição em todo o território
nacional, permanecendo a composição de onze Ministros66 . Os Ministros
seriam nomeados pelo Presidente da República, com aprovação do Conselho
Federal (como então se denominou o Senado Federal), dentre brasileiros natos de
notável saber jurídico e reputação ilibada, não devendo ter menos de 35, nem mais
de 58 anos de idade67 . O Conselho Federal detinha competência para processar e
julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade 68 .
O Supremo Tribunal Federal era competente para processar e julgar originariamente:
a) os próprios Ministros; b) os Ministros de Estado, o Procurador-
Geral da República, os juízes dos tribunais de apelação dos Estados, do Distrito
Federal e dos Territórios, os Ministros do Tribunal de Contas e os Embaixadores
e Ministros diplomáticos, nos crimes comuns e nos de responsabilidade; e) as
causas e os conflitos entre a União e os Estados, ou entre estes; d) os litígios
64 Constituição de 1934, art. 76.
65 Constituição de 1934, art. 77.
66 Constituição de 1937, art. 97.
67 Constituição de 1937, art. 98.
68 Constituição de 1937, art. 100.
31
Memória Jurisprudencial
entre nações estrangeiras e a União ou os Estados; e) os conflitos de jurisdição
entre juízes ou tribunais de Estados diferentes, incluídos os do Distrito Federal e
os dos Territórios; f) a extradição de criminosos, requisitada por outras nações,
e a homologação de sentenças estrangeiras; g) o habeas corpus, quando fosse
paciente, ou coator, tribunal, funcionário ou autoridade, cujos atos estivessem
sujeitos imediatamente à jurisdição do tribunal, ou quando se tratasse de crime
sujeito a essa mesma jurisdição em única instância; e, ainda, se houvesse perigo
de consumar-se a violência antes que outro juiz ou tribunal pudesse conhecer do
pedido; por fim, h) a execução das sentenças, nas causas de competência originária,
com a faculdade de delegar atos do processo a juiz inferior 69 .
De acordo com a Constituição de 1937, também competia ao Supremo
julgar: as ações rescisórias de seus acórdãos; e, em recurso ordinário: a) as causas
em que a União fosse interessada como autora ou ré, assistente ou opoente;
b) as decisões de última ou única instância denegatórias de habeas corpus; bem
como julgar, em recurso extraordinário, as causas decididas pelas justiças locais
em única ou última instância nas seguintes hipóteses: a) quando a decisão fosse
contrária a letra de tratado ou lei federal, sobre cuja aplicação se tivesse questionado;
b) quando se questionasse sobre a vigência ou validade da lei federal
em face da Constituição, e a decisão do tribunal local negasse aplicação à lei
impugnada; c) quando se contestasse a validade de lei ou ato dos governos locais
em face da Constituição, ou de lei federal, e a decisão do tribunal local julgasse
válida a lei ou o ato impugnado; d) quando decisões definitivas dos tribunais de
apelação de Estados diferentes, inclusive do Distrito Federal ou dos Territórios,
ou decisões definitivas de um desses tribunais e do Supremo Tribunal Federal,
dessem à mesma lei federal inteligência diversa70 . Do mesmo modo do previsto
na Constituição de 1934, competia ao Presidente do Supremo Tribunal Federal
conceder exequatur às cartas rogatórias das justiças estrangeiras.
A natureza revisora e minudente da Corte ficava muito nítida quando se
investigavam os contornos de recursos extraordinários que a ela chegavam. Do
ponto de vista fático, tinha-se uma casa revisora. De tal modo, por exemplo,
no RE 2.107/RS, julgado em 4 de setembro de 1936, relatado pelo Ministro
Carvalho Mourão, decidiu-se pelo não-provimento do recurso, porquanto a
parte não comprovara com certidões o que alegara. Carlos Maximiliano discordou
de tal orientação.
A recorrente era a Companhia Francesa do Porto do Rio Grande do Sul
e a recorrida era a Senhora Maria Rosa Bella Saldanha. Tratava-se da execução
de sentença numa ação de indenização. A recorrente fora condenada a pagar
à recorrida-viúva, por causa da morte do esposo, que fora vitimado por um
69 Constituição de 1937, art. 101.
70 Constituição de 1937, art. 101.
32
Ministro Carlos Maximiliano
acidente quando viajava num bonde da recorrente. A recorrida não teria comprovado
com as necessárias certidões dos julgados que invocou a interpretação
que lhe era favorável, relativa ao art. 1.064 do Código Civil de 1916. A recorrida
havia mencionado decisões do Tribunal de Apelação do Rio de Janeiro, porém
as citara como foram publicados na revista de Direito e no Jornal do comércio.
Nos termos do voto de Carlos Maximiliano:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Tenho opinião divergente: entendo
que a orientação de qualquer tribunal sobre determinado assunto, sempre apuramos
simplesmente pelas publicações científicas. Se se tratasse de matéria de
fato, exigiria a certidão. Nós mesmos, quando arrazoamos, ao elaborarmos as
nossas próprias sentenças, em tais fontes haurimos a jurisprudência. Já sustentei
este parecer, em um livro, e continuo a mantê-lo. Absolutamente, não há lei
alguma que exija certidão da sentença divergente. Semelhante critério é, para
mim, inexeqüível: se quero, por exemplo, citar um acórdão do tribunal do Acre
ou do Amazonas, dentro do prazo da lei, não tenho tempo para obter uma certidão;
recorremos, por isso, às publicações. Desde que o Sr. Relator informa haver
a Companhia Francesa do Porto do Rio Grande do Sul, a recorrente, se utilizado
da revistas do Direito, fundada e dirigida pelo Sr. Ministro Bento de Faria, nada
tenho a opor. O meu modo de pensar, como disse, é esse, e, não existindo lei
alguma tornando obrigatória a certidão, preliminarmente, tomo conhecimento;
por outro fundamento, não conheceria; mas, segundo informa o Sr. Relator,
outro não é o ponto que está em votação. Por isso, repito: conheço do recurso.
Outro exemplo. No RE 2.810-embargos/SP, relatado por Carlos Maximiliano
e julgado em 24 de junho de 1940, discutiu-se interrupção da prescrição,
no que se refere a requerimento de vistoria. Ementou-se que ao promover
vistoria ad perpetuam rei memoriam, o segurado ou o respectivo cessionário,
interromperiam a prescrição da ação para haver o seguro. Na seqüência, o relatório
e a ata, de Carlos Maximiliano:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Antonio de Camillis, na qualidade
de cessionário de N. Bernardo, acionou a Companhia Ítalo-Brasileira de Seguros
Gerais, para haver o seguro a ser pago ao cedente, em virtude de incêndio no estabelecimento
comercial denominado “Cidade de Roma”. A Sentença de primeira
instância julgou prescrita a ação, por decorrer mais de um ano entre a propositura
da mesma e a data do sinistro; desprezou, assim, a alegação de que uma vistoria
ad perpetuam rei memoriam interrompera o lapso prescricional; o veredictum foi
confirmado, em grau de apelação. O vencido propôs ação rescisória, cumulando
o pedido com o de novo julgamento da causa. A 2ª Câmara da Corte de Apelação
de São Paulo, por acórdão de fl. 36v., julgou procedente a ação, — “para declarar
nulo o acórdão rescindendo, que acolheu a preliminar da prescrição, e mandar
que o juiz julgasse a causa como fosse de direito”. Opostos embargos, estes
foram recebidos, para se julgar improcedente a rescisória. O vencido interpôs
recurso extraordinário, baseado no art. 76, nº 2, inciso III, letras a e d, da Constituição
de 1934. A Primeira Turma do Supremo Tribunal conheceu do recurso
e lhe deu provimento, para restabelecer o acórdão de fl. 36v. Houve Embargos,
repelidos in limine pelo Relator, Exmo. Sr. Ministro Barros Barreto, ao examinar
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Memória Jurisprudencial
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a relevância dos mesmos, porém admitidos pela maioria do Supremo Tribunal.
Houve sorteio de novo Relator, depois de contestados os embargos de fl. 92, nos
quais se reiteraram as anteriores alegações da seguradora.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de embargos cíveis, em que
é embargante a companhia Ítalo-brasileira de seguros Gerais e embargado
antonio de camillis, como cessionário de direitos de N. bernardo: Conforme
o relatório anexo, que fica fazendo parte integrante desta decisão, na presente
causa não se discutiu direito em espécie, porém a seguinte tese: uma vistoria
requerida pelo segurado ad perpetuam rei memoriam constitui meio hábil para
interromper a prescrição da ação de seguros. Um acórdão concluiu afirmativamente;
outro, pela negativa. Era caso, pois, de ação rescisória. A Ítalo-Brasileira
foi citada para a vistoria e acudiu à citação.
Para interromper a prescrição, basta qualquer ato judicial ou extrajudicial,
por meio do qual o sujeito ativo da ação denote a vontade inequívoca de
agir para obter o cumprimento da obrigação, conforme admite carpenter — Da
prescrição, n. 124 —, citando Mirabelli. Ora, a citação para vistoria ad perpetuam
rei memoriam torna evidente aquele propósito de fazer valer o seu direito.
almeida oliveira — a prescrição, p. 167 — considera o simples compromisso,
que sujeita as partes à decisão de árbitros, capaz de interromper a prescrição.
Ora, quem assina compromisso não reconhece dívida alguma; pode o juízo
arbitral visar exatamente a validade da dívida; entretanto, vale o compromisso
como prova de estar vigilante o titular do direito, tal qual acontece na hipótese
de promoção de vistoria por parte dele.
Enfim, baudry-Lacantinerie & Tissier, que, em seu livro — De la
prescription —, se mostram muito parcimoniosos em admitir hipóteses de
interrupção de lapso prescricional, prestam, no n. 532, este esclarecimento:
Tem sido julgado em matéria de seguros, e é uma solução que
parece das mais equitativas e das mais jurídicas, que a decadência da
ação para o pagamento da indenização não se verifica, se foram nomeados
peritos pelas partes antes de seis meses, para avaliar o dano.
O exposto afeiçoa-se perfeitamente ao caso em apreço, substituído
apenas o lapso de seis meses pelo de um ano, fixado pelo Código Brasileiro.
Os mestres franceses colocam a sua observação debaixo da epígrafe interrupção
civil resultante do reconhecimento do que prescreve, exatamente aludindo,
pois, à colocação da espécie no texto em que a situou o acórdão embargado.
Enfim, o caso era de recurso extraordinário; porque se decidira contra a
letra de lei federal.
Pelos motivos expostos, acorda o Supremo Tribunal Federal em rejeitar
os embargos admitidos liminarmente para discussão.
E segue ainda outro exemplo. No RE 3.799/DF, relatado por Carlos
Maximiliano e julgado em 24 de dezembro de 1940 71 , discutiu-se questão
hermenêutica afeta à obra teórica de Carlos Maximiliano a propósito de interpretação
literal da legislação, no sentido de se vincular o texto legal à prova
71 Com efeito, na fl. 217 do RE 3.799/DF, lê-se excerto manuscrito dando conta da data de 24
de dezembro de 1940 como data de julgamento do caso, com os respectivos nomes, também em
letras manuscritas, do então Presidente da Corte, Ministro José Linhares, e do Relator, Ministro
Carlos Maximiliano.
Ministro Carlos Maximiliano
produzida. Ementou-se que o tribunal que julga tratar-se não de arrendamento,
mas de aforamento à vista da prova dos autos, não decide contra a letra de lei
alguma; aplicaria os textos de acordo com a prova, e, conseqüentemente, não
daria margem a recurso extraordinário:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: O Dr. Francisco Pinto da Fonseca
Teles requereu o despejo de um terreno ocupado por Luiz César de Siqueira, sob
a alegação de que este comprara benfeitorias pertencentes ao Barão da Taquara e
ficara no terreno como arrendatário, porém ali não ia nem pagava aluguéis. Opôs
embargos o Rec. alegando nem ser locatário do autor, nem ter sido do pai deste, o
Barão da Taquara, que não era dono do terreno em questão, e sim apenas das benfeitorias,
que lhe foram pagas. A sentença, de fl. 21v., julgou provada a ação, para
o efeito do despejo impetrado; foi reformada, unanimemente, e em parte, pelo
acórdão de fl. 32, depois de baixarem os autos para uma vistoria (fl. 30). Houve
embargos por parte de Siqueira, os quais foram por se tratar de enfiteuse, e não
de locação, recebidos, para ser julgada improcedente a ação. (acórdão de fl. 37v.).
O Dr. Fonseca Teles interpôs recurso extraordinário, baseado no art. 101,
n. III, letras a e d, da Constituição vigente, por violação literal dos arts. 492 e
551 do Código Civil e do art. 148 da Constituição Federal.
ACóRDãO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de recurso extraordinário, em
que é recorrente o Dr. Francisco Pinto da Fonseca Teles e recorrido Luiz César
de Siqueira: Conforme o relatório anexo, que faz parte integrante desta decisão,
o recorrente promoveu o despejo de terreno que considerava arrendado pelo seu
pai ao recorrido; mas a Justiça local, à vista da prova dos autos, decidiu tratar-se
de aforamento, não de locação; ora, o tribunal que assim decide não viola a letra
de lei alguma nem diverge de outro sobre assunto de Direito; aprecia a prova,
como lhe parece acertado e conclui de acordo com ela, o que faz soberanamente,
sem restar margem para recurso extraordinário.
Demais, com um dia de diferença, foram interpostos dois recursos — o
de revista e o extraordinário, o que torna este inadmissível, se o recorrente não
desistiu do primeiro, o que não consta. Enfim, o recurso está indevidamente
instruído; pois não oferece elementos para se verificar se foi interposto dentro
do prazo legal.
Por estes motivos, acorda a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal
em não conhecer do recurso, por não ser caso dele.
À Corte não tocavam, recorrentemente, apenas matérias afetas à discussão
de constitucionalidade. A competência era ampla, de modo que se conhecia
uma casa revisora dos julgados. Essas, em linhas gerais, as características do
Supremo Tribunal Federal nos anos em que Carlos Maximiliano fora Ministro,
e que serão em seguida tratadas em pormenor.
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Memória Jurisprudencial
3. MANDADO DE SEGURANÇA E DIREITO ADMINISTRATIVO
Carlos Maximiliano exerceu grande influência na fixação dos contornos
do mandado de segurança no Direito brasileiro. Exemplo de nossa criatividade,
o mandado de segurança é, de certa forma, o resultado da evolução de uma doutrina
que se originou de algumas peculiaridades do habeas corpus.
O mandado de segurança fora inicialmente previsto no item 33 do art. 13
da Constituição de 1934. Dispunha-se que se daria mandado de segurança para
defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente
inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. Dispunha-se também
que o processo seria o mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida
a pessoa de direito público interessada. A regra constitucional previa também
que o mandado de segurança não prejudicaria as ações petitórias competentes.
A Lei 191, de 16 de janeiro de 1936, regulou o processo do mandado de
segurança. Seguiu-se a linha geral da previsão constitucional e dispôs-se no
art. 1º que se daria mandado de segurança para defesa de direito certo e incontestável,
ameaçado, ou violado, por ato manifestamente inconstitucional, ou
ilegal, de qualquer autoridade. A lei considerava ato de autoridade os atos de
entidade autárquica e de pessoas naturais ou jurídicas, no desempenho de serviços
públicos, em virtude de delegação ou de contrato exclusivo, ainda quando
houvesse transgressão do aludido contrato72 . Confirmava-se que o mandado de
segurança não prejudicaria as ações petitórias competentes73 .
A decisão do mandado de segurança não impediria que a parte reiterasse
a defesa de seu direito por ação competente, nem, tampouco, que por esta
pleiteasse efeitos patrimoniais não obtidos74 . O pedido poderia ser renovado
na hipótese de ação de decisão denegatória que não lhe houvesse apreciado o
merecimento75 . O mandado era cabível em face de quem executasse, mandasse
ou tentasse executar o ato que o tivesse provocado76 .
O prazo decadencial era fixado em 120 dias, contados da data da ciência
do ato impugnado77 . Não se permitia o mandado de segurança quando se
tratasse da liberdade de locomoção (exclusivamente), de ato em face do qual
houvesse recurso administrativo com efeito suspensivo — independente-
72 Lei 191, de 16 de janeiro de 1936, parágrafo único do art. 1º.
73 Lei 191, de 1936, art. 2º, caput.
74 Lei 191, de 1936, § 1º do art. 2º.
75 Lei 191, de 1936, § 2º do art. 2º.
76
Lei 191, de 1936, § 3º do art. 2º.
77 Lei 191, de 1936, art. 3º.
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Ministro Carlos Maximiliano
mente de caução, fiança ou depósito —, de questão puramente política ou de
ato disciplinar 78 .
Exigia-se petição inicial em três vias, com qualificação e identificação do
impetrante, exposição circunstanciada do fato, demonstração de que o direito
alegado era certo e incontestável, indicação precisa da autoridade coatora, bem
como o pedido de garantia ou de restauração do direito79 . A petição inicial deveria
ser instruída com os documentos probatórios do direito alegado e da sua
ameaça ou violação; a segunda e a terceira via da petição inicial deveriam ser
instruídas com cópias de todos os documentos80 .
No caso de o requerente afirmar que o documento necessário à prova se
achava em repartição pública, ou em poder de autoridade, o juiz deveria requisitar,
de ofício, a sua exibição, no original ou em cópia autenticada, no prazo que
fixasse, entre três a oito dias úteis 81 .
Nos mandados de segurança, a União seria representada, na Corte
Suprema, pelo Procurador-Geral da República; na Justiça Eleitoral, pelos
órgãos do Ministério Público respectivos; nos demais juízos e tribunais, por
procurador-seccional designado, na Justiça Federal, pelo juiz do feito e, nas
jurisdições locais, pelo Procurador da República82 .
Cabia recurso, no prazo de cinco dias, contado da intimação, da decisão
que indeferisse liminarmente o pedido ou que, afinal, concedesse ou denegasse
o mandado; não se atribuía recurso suspensivo ao recurso previsto, que subia
nos próprios autos originários 83 .
A Lei 191/1936 dispunha também que o processo de mandado de segurança
teria preferência sobre qualquer outro, exceto o habeas corpus; poderia
iniciar e correr nas férias forenses, bem como admitia intervenção de terceiro,
como assistente, em qualquer uma de suas partes 84 . Tratava-se de uma ação civil
de rito sumaríssimo.
O mandado de segurança centrava-se prioritariamente em questões de
Direito Administrativo. Problema comum em mandados de segurança era a fixação
da autoridade coatora. Em âmbito de Corte Suprema, a questão era ainda
mais dramática, porquanto não havia como responsabilizar o Presidente da
78 Lei 191, de 1936, art. 4º.
79 Lei 191, de 1936, art. 7º.
80 Lei 191, de 1936, § 1º do art. 7º.
81 Lei 191, de 1936, § 2º do art. 7º.
82 Lei 191, de 1936, letra a do art. 9º.
83 Lei 191, de 1936, art. 11.
84 Lei 191, de 1936, art. 16.
37
Memória Jurisprudencial
República por todas as ações e omissões da administração. Carlos Maximiliano,
no MS 184/DF, julgado em 15 de julho de 1936, assentou o seguinte:
38
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Voto contra a preliminar.
Na minha prática de homem de Parlamento, nunca vi dirigir-se ao
Presidente da República, diretamente, nem sequer Poder igual ao dele. Eu,
mesmo, agora, nos meus despachos, adotei a fórmula parlamentar: “Peçam-se
informações ao Poder Executivo, por intermédio do Ministro de tal pasta”.
É o mais lógico. O Presidente da República não sabe de nada e nem pode
saber, em casos semelhantes ao d’agora, por exemplo.
Na questão vertente, de fato, S. Exa. apenas assinou ato de administração,
que, aliás, antigamente, era resolvido, somente, pelo Ministro. O chefe do
Governo Provisório, na verdade, centralizou em si muitos atos administrativos
secundários; basta dizer que a licença a um servidor da Polícia, anteriormente
despachada pelo chefe ou pelo comandante, conforme se tratasse da Civil ou da
Militar, nem indo ao Ministro — hoje, é dada pelo Presidente! Originou-se isto
de decreto do Governo Provisório que nenhuma lei posterior revogou.
Ora, o Ministro é quem conhece, é quem pode conhecer, perfeitamente,
a questão; aliás, nem mesmo S. Exa. propriamente; pois a sua Secretaria é que
fornece esclarecimentos.
Não há, pois, creio, motivo para se oficiar ao Presidente. O ilustre Relator
deixou bem claro que se tratava, apenas, de questão de escrúpulo. Assim, em
se tratando de processo de urgência, prefiro conhecer, logo, do mérito do caso.
Voto, pois, contra a preliminar.
É o meu voto.
No MS 219/ES, julgado em 4 de setembro de 1936, discutiu-se questão
que tinha como pano de fundo a fixação de competência para apreciação de
mandado de segurança, em sua forma originária, em face de autoridade coatora,
um juiz federal da Seção do Espírito Santo.
Um residente em Vitória requereu mandado de segurança contra o referido
juiz, que teria impedido o impetrante de ver, visitar e receber visitas das
três filhas, ao longo de uma ação de desquite, que corria na Justiça Federal de
Vitória. Originalmente, a ação fora proposta na Justiça comum. Ocorre que o
autor era de nacionalidade portuguesa. Por isso, a competência fora deslocada
para a Justiça Federal.
O requerente argumentava que detinha direito certo e incontestável de ver
as filhas, por prerrogativa de pátrio poder. E insistia que pouco importava que
a Constituição outorgasse competência à Corte Suprema apenas para conhecer
de pedidos de mandado de segurança contra atos do Presidente da República e
de Ministros de Estado. O requerente observava que o cumprimento literal do
texto constitucional o deixaria sem remédio imediato. É que deveria requerer ao
próprio juiz, aguardar a negativa, e somente em seguida recorrer para a Corte
Suprema, em grau de recurso.
Ministro Carlos Maximiliano
O Procurador-Geral da República juntou parecer, forte na letra i do
n. 1 do art. 76 da Constituição então vigente, no sentido de que o pedido não
poderia ser conhecido, porquanto a Corte Suprema não detinha competência
para apreciar originariamente a questão. Observou também que o mandado
de segurança não era meio idôneo para invalidação de decisões judiciárias.
O Relator, Ministro Laudo de Camargo, opinou pelo não-conhecimento do
pedido. Carlos Maximiliano acompanhou o Relator. No entanto, como razão
mais forte, optou por não aceitar o uso do mandado de segurança como instrumento
para revisão de decisões judiciais:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Quanto a ser originário, fico em
dúvida; sendo ato do Dr. Juiz Federal, acho que dele podemos conhecer.
A questão, porém, morre por outro lado. É que, sendo decisão da Justiça,
há dela recurso legal, por meios ordinários; não pode, na hipótese, ser requerido
mandado de segurança.
Por esse fundamento, improcede o pedido.
É o meu voto.
No MS 223/PR, julgado em 24 de julho de 1936, relatado por Carlos
Maximiliano, um tenente farmacêutico reformado compulsoriamente aos 48 anos
afirmou que tinha direito certo e incontestável de ser reformado aos cinquenta
anos. O problema consistia em se fixar o regime jurídico que alcançava combatentes
e não-combatentes. Maximiliano indeferiu o pedido, em decisão simples, que
revela a singeleza dos problemas que a Corte Suprema então enfrentava:
RELATóRIO E VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Álvaro da Costa Lima foi reformado
compulsoriamente no posto de 1º Tenente farmacêutico, ao completar 48 anos de
idade; pede mandado de segurança, a fim de ser anulada a reforma, visto que a
mesma só aos 50 anos poderia ser a ele imposta. Argumenta que a lei que reduziu
de dois anos a idade para a compulsória, visara os oficiais combatentes, e o impetrante
fazia parte de outra categoria. O Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geral pôs em
realce a nenhuma liquidez do alegado direito do solicitante: se a situação deste não
está regulada pelo Decreto 24.068, de 29-3-1934, porque este repositório de normas
entrou em vigor em 29 de março de 1936 e a reforma ocorreu em 2 de janeiro
deste ano; se, por outro lado, o Decreto 12.800 não o atinge, por não ser oficial
combatente o peticionário; será o caso de invocar o Decreto 193 a, de 30 de janeiro
de 1890, que o Decreto 1.800 revogou na parte que fixa a idade para a compulsória
dos oficiais combatentes, sem nada dispor sobre a dos oficiais não-combatentes;
donde se deve inferir o propósito do legislador de não alterar, a respeito destes, a
lei derrogada; ora o Decreto 193 a, no art. 1º, fixava em 48 anos a idade da reforma
compulsória de todos os primeiros tenentes, sem distinguir entre combatentes e
não-combatentes. Cumpriu-se a lei; não se violou direito algum, muito menos
direito evidente, claro, líquido, indiscutível. Por este motivo, indefiro o pedido.
No MS 239/DF, julgado em 11 de setembro de 1936, relatado pelo
Ministro Ataulpho de Paiva, o requerente postulou nomeação como magistrado
39
Memória Jurisprudencial
na Corte de Apelação, no então Território do Acre. Alegava que era juiz de
direito em xapuri e que, por ato de 25 de janeiro de 1935, o Presidente da
República nomeara para a vaga naquele tribunal um desembargador que estava
em disponibilidade do Tribunal de Cruzeiro. Alegava que o Presidente da Corte
daquele Território o indicara para a vaga aberta.
O requerente apontava que a nomeação do desembargador afrontava o
direito vigente, no sentido de que a aludida vaga deveria de ser ocupada por um
juiz efetivo, como ele, o requerente. O retorno do desembargador em disponibilidade,
segundo o requerente, suscitava aumento de despesa; além do que, o
referido desembargador já fora preterido por três vezes.
O Ministro da Justiça encaminhou informações dando conta de que a
nomeação do desembargador em disponibilidade decorria de um decreto de
1931, que mandava aproveitar, nas vagas que surgissem, os adidos e os em disponibilidade,
obrigatoriamente. Segundo o Ministro da Justiça, o mencionado
decreto fora aprovado pelas Disposições Transitórias do texto constitucional de
1936. O Procurador-Geral da República afirmou que o requerente não detinha
direito certo e incontestável, e o fez com base nas informações encaminhadas
pelo Ministro da Justiça.
O Relator acatou o parecer do Procurador-Geral e declarou que não
mais se discutiria se magistrados eram (ou não) funcionários. Afirmou que a
Constituição de 1936 dava por encerrada essa questão, dispondo que magistrados
eram funcionários, e não mais, simplesmente, membros do Poder Judiciário.
Por isso, agira adequadamente o governo, ao aplicar o decreto que determinava
o aproveitamento dos funcionários que estivessem em disponibilidade.
Carlos Maximiliano acompanhou o Relator e insistiu que o Presidente do
Tribunal não tinha competência para indicar o requerente para a vaga pretendida:
40
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: O próprio requerente, na sua petição,
dá a entender bem que não tem direito certo e incontestável: em vez de ser indicado
pela Corte de Apelação, o foi pelo seu Presidente, pura e simplesmente sob
o pretexto de que não se achavam presentes os demais desembargadores. Ora, o
Presidente da Corte não tem direito de indicar quem quer que seja para ser promovido.
À vista disso, indefiro o mandado requerido.
É o meu voto.
No MS 246/DF, julgado em 10 de julho de 1936 e relatado pelo Ministro
Costa Manso, discutiu-se a organização interna do Ministério da Fazenda.
Debatia-se a propósito da classificação de fiéis e de tesoureiros; aqueles eram
indicados por estes, e, em nome destes, desempenhavam uma série de funções.
Fiéis não detinham direitos, especialmente de estabilidade, embora à época se
utilizasse a expressão “vitaliciedade”.
Ministro Carlos Maximiliano
Ao longo da discussão — inclusive após intervenção do Ministro Costa
Manso —, Maximiliano explicitou lição de Hermenêutica, afirmando que o
principal meio de interpretar uma lei consistiria em saber a sua finalidade.
É que a designação do fiel era feita pelo tesoureiro, até o advento do Governo
Provisório de Getúlio Vargas, quando um decreto dispôs que a competência
para tal seria doravante do Poder Executivo.
No caso, surgira uma vaga, mas o requerente não fora indicado pelo
Executivo para ocupá-la, embora contasse com apoio do tesoureiro. Reviu-se
a posição, determinando-se que o requerente fosse aproveitado na vaga aberta.
No entanto, a determinação não foi implementada, por falta de ação das autoridades
competentes. A decisão de Carlos Maximiliano corrigiu a omissão, na
forma que segue:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, examinarei os dois
argumentos apresentados pelo interessado e discutidos pelo Sr. Ministro Relator.
Quanto ao primeiro, o ilustre Ministro Costa Manso o colocou, a meu
ver, em seu legítimo lugar. Se a organização do funcionalismo da Fazenda
tivesse sido feita em sentido inverso ao que se deu, isto é, se os ajudantes do
tesoureiro houvessem passado a fiéis, ainda não caberia razão ao requerente;
porque um ato que, anteriormente, era do Presidente da República fora transferido
para as atribuições do tesoureiro.
O fiel era um indivíduo indicado pelo tesoureiro; afiançado por ele, em
sua companhia deixava as funções. Não tinha vitaliciedade nem direito algum.
A lei determinou o contrário, para proteger os fiéis, prejudicando o serviço
público, e o digo porque todos os tesoureiros se queixam.
Quando o fiel foi indicado para o cargo, essa indicação era do tesoureiro;
tratava-se de pessoa de sua direta e absoluta confiança; quando, porém, o
Governo despachou que o impetrante devia ser aproveitado, essa mesma atribuição
se transferira para o Poder Executivo.
O Sr. Ministro Costa Manso (Relator): Ainda não.
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Em todo o caso, ficou sendo, de modo
que o argumento prova em contrário; agora, o Governo nomeia. O Sr. Relator
conclui muito bem: esse argumento não procede.
Examinemos o outro.
Para que se fez o decreto? É princípio de hermenêutica: o principal
meio de interpretar uma lei é saber o fim dela. Foi para evitar que, pelos meios
judiciários, se reformasse a deliberação do Governo, para impedir as ações de
perdas e danos, e outras. Entretanto, o próprio Governo, examinando esses
atos, entrando no estudo minucioso das provas produzidas, chegou à conclusão
de que, no delírio da vitória, o que é muito comum, talvez houvesse praticado
injustiças, e teve a nobreza de reconhecer o seu erro, mandando que fosse aproveitado
na primeira vaga.
Já a Corte Suprema teve ocasião de deliberar sobre um desses casos. Refirome
ao do engenheiro Romero Zander, da Estrada de Ferro Central do Brasil, exercendo
eu, nessa ocasião, a Procuradoria-Geral da República. Dei parecer favorável
à pretensão do requerente, que obteve um despacho ordenando o seu aproveitamento
também na primeira vaga. Verificada esta, um seu colega foi nomeado; e
41
Memória Jurisprudencial
42
nada fez, porque estava este nas mesmas condições. Ocorrida a segunda, reclamou,
vindo bater às portas deste Tribunal, que lhe deu ganho de causa.
No instante a que me reporto, o chefe do Governo dispunha de poderes
discricionários, o que não acontece agora: tem que se submeter às leis que
ele próprio fez, desde que não tenham sido revogadas ou não colidam com a
Constituição em vigor. Anteriormente, tão grande era o seu poder que mandava
parar a marcha dos processos em curso no Judiciário. Agora, não; a situação
modificou-se completamente; nada disso é possível.
No entanto, o Poder Executivo, reconhecendo, como disse, o seu erro,
determinou que o suplicante fosse aproveitado na primeira vaga. Por isso,
Senhor Presidente, concedo o mandado requerido. O interessado deve ser aproveitado
na primeira vaga e até devia receber os seus vencimentos em disponibilidade.
Não pode ficar na rua depois que o Governo mandou fosse aproveitado.
Defiro o pedido nesse sentido e para, enquanto não reassumir as funções,
perceber os estipêndios a que tiver direito.
No MS 249/DF, julgado em 15 de julho de 1936, relatado por Carlos
Maximiliano e impetrado por Oswaldo Miranda de Vasconcelos, discutiu-se a
idoneidade moral de um policial, no caso, o requerente. Ao que consta, foram
presos alguns chefes de uma quadrilha de arrombadores. Um dos presos denunciou
o investigador de polícia que o prendeu, o que ensejou o mandado de segurança
e os fatos aqui narrados.
O denunciante afirmara que o investigador era indivíduo ligado a bandidos,
e que não perfilava qualidades morais para trabalhar na polícia. Com
pormenores, informou que o denunciado lhe fornecia as armas com as quais
praticava os assaltos.
Da denúncia veio processo administrativo que resultou na expulsão do
policial, qualificado como indigno de pertencer à corporação. O objeto do mandado
de segurança era a pronta reintegração no cargo. Objetou que era concursado
e que com onze anos de serviço detinha estabilidade. Nos termos do
relatório do Ministro Carlos Maximiliano, percebe-se que o impetrante alegava
também que não lhe concederam a ampla defesa.
Consignou-se ainda que do processo administrativo originou-se processo
penal, no qual se absolveu o impetrante, por falta de provas. Cuida-se do típico caso
de condenação no processo administrativo e de absolvição no processo criminal.
Carlos Maximiliano formulou o voto condutor, indeferiu o pedido e centrou
sua linha de raciocínio no fato de que a intimidade entre um investigador
de polícia e um ladrão é circunstância que justifica o afastamento do policial:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o Rio de Janeiro
era perturbado por uma quadrilha de ladrões arrombadores, que ainda assaltavam
os transeuntes, inclusive os choferes. Procedidas as diligências, foram
Ministro Carlos Maximiliano
presos os chefes da quadrilha, João dos Santos e Argentino Leite, aquele pelo
requerente, investigador de polícia.
Acontece que este último ladrão, ao ser apresentado às autoridades superiores,
declarou que o citado investigador era indivíduo sem idoneidade para
exercer o cargo de policial, porquanto estava indiretamente ligado à quadrilha,
tendo tanta intimidade com um companheiro dele, denunciante, a ponto de lhe
fornecer o revólver com que andava assaltando as vítimas.
Daí resultou, naturalmente, processo administrativo, que concluiu pela
expulsão do impetrante da corporação por indigno de a ela pertencer.
Por isso, vem o requerente pedir mandado de segurança para ser reintegrado
no cargo.
Alega, em primeiro lugar, que era funcionário de concurso e tinha muito
mais até do tempo exigido para a estabilidade, pois contava cerca de onze anos
de serviço. Assegura, ainda, que não houve, propriamente, processo administrativo,
com plenas garantias de defesa, como manda a Constituição.
Vale dizer que ao administrativo seguiu-se processo criminal, em que foi
o requerente absolvido por falta de provas e até com a contraprova de boa conduta.
Da sentença não houve recurso e, assim, passou em julgado.
Recebido o processo, pedi informações ao Sr. Ministro da Justiça e
S. Exa. me mandou esclarecimentos, que constam de fl. 24 (lê).
O Dr. Procurador-Geral emitiu parecer à fl. 40:
O requerente alega que, nomeado investigador da polícia do Distrito
Federal, em virtude de concurso, foi, contudo, exonerado por haver
sido movido contra si processo como incurso no art. 238 da Consolidação
das Leis Penais.
Não obstante ter sido absolvido, por sentença passada em julgado,
do crime que se lhe imputara, não logrou reintegração no seu antigo
cargo, apesar de requerê-lo ao Exmo. Sr. Ministro da Justiça.
Para ver realizada a sua pretensão impetra o presente mandado
de segurança.
Não tem, porém, direito a ser atendido.
A alegada absolvição do crime que motivou o procedimento contra
o requerente não o isenta automaticamente da exoneração.
Para a condenação judicial os elementos de conceituação do delito
deverão ser mais rigorosamente apreciados, não tendo o juiz ampla margem
de arbítrio, eis que firma convicção para aplicar determinada pena
ao passo que na condenação em processo administrativo a perda do
emprego não é uma penalidade imposta ao faltoso, senão uma medida
conveniente aos interesses da administração. Numa, é principalmente
atendida a sorte ou situação do indivíduo; na outra, são apreciados, de
preferência, os interesses do serviço.
A punição judiciária é uma reparação social o afastamento do serviço,
por falta grave, é uma restauração dos interesses que o serviço visa.
O processo penal a que se submeteu o requerente não levou ao
julgador a convicção de que houvesse elementos bastantes para uma
condenação do paciente; mas, ao par do procedimento administrativo,
revelou graves faltas que desrecomendam a sua continuação no serviço
da Polícia Civil.
Assim é que naquele não ficou provado que o requerente se conluiasse
com criminosos notórios para a prática de delitos, ou mesmo que
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Memória Jurisprudencial
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houvesse emprestado armas para um assalto; mas nele se evidenciou que
o requerente investigador de polícia, mantinha relações cordiais com
tais criminosos, que um destes lhe furtou o revólver com que praticou o
crime de assalto, sem que o requerente se sentisse obrigado a prendê-lo,
ou denunciá-lo ou tomar-lhe a arma. Ora, esse procedimento não deu
margem a uma condenação em juízo, mas é excessivo para a continuação
da carreira de um policial.
Se um investigador se mostra assim complacente com quem lhe
furta a própria arma, que garantia dará de melhor zelo pela defesa e segurança
de outrem?
Evidentemente, tal cidadão não serve para policial; foi isso o
que apurou o inquérito administrativo, e, agindo em conseqüência, não
admitiu o Sr. Ministro da Justiça o reingresso do requerente ao quadro de
investigadores da Polícia do Distrito Federal.
O procedimento da autoridade se ajusta perfeitamente aos casos
em que os funcionários nomeados por concurso e com mais de dois anos
de serviço podem ser exonerados (art. 169 da Constituição).
Não pode, em conseqüência, ser amparado pelo mandado de
segurança, porque a Autoridade não praticou ato inconstitucional ou
ilegal, mas sim usou atribuições constitucionais, para a salvaguarda do
interesse da administração, quando lhe negou readmissão no quadro de
investigadores da Polícia do Distrito Federal.
Sustenta-se que, embora diversas as conclusões de ambos os processos,
as do último não prevalecem contra as do primeiro, visto como, no administrativo,
se podem apurar fatos que, conquanto não constituam crime, já não
recomendam o acusado ao serviço; aí, se verificou, devidamente, não merecer o
referido investigador confiança para exercer o cargo.
É o relatório.
VOTO
Senhor Presidente, o único ponto de importância é este da estabilidade
do cargo, garantida pela Constituição, no art. 169. Para a demissão dos funcionários,
estabelece-se, ainda, o processo administrativo ou o criminal.
Ora, no caso presente, houve ambos os processos. Entretanto, num, no
primeiro, concluíram pela demissão do funcionário, visto a sua indignidade;
noutro, o criminal, absolveram-no.
Militam a favor do paciente a circunstância de que o denunciante é
ladrão profissional, não podendo, assim, as suas argüições ser levadas muito
em conta, e a circunstância de que, no processo criminal, tanto as testemunhas
de acusação como as de defesa sustentaram a boa conduta, como funcionário,
do investigador.
Chamo a atenção de V. Exas. para o fato de que a própria sentença absolutória
declara que o depoimento do acusado, no processo administrativo — que
serviu, até, para a sua condenação —, não foi confirmado, no criminal.
Isto vem dar a entender, primeiramente, que houve processo administrativo,
confirmado, pois, o que disse o Sr. Chefe de Polícia.
Do próprio processo criminal se vê que o ladrão entrou no aposento do
requerente, arrombou um armário e, deste, retirou um revólver. Não se alega,
porém, que o criminoso, para cometer o ato, forçou a porta do quarto ou usou
Ministro Carlos Maximiliano
chave falsa; isto prova a intimidade entre os dois; da mesma forma, nada é referido
quanto às providências que o investigador furtado tomara, como devia, em
relação ao ladrão. Prova-se, todavia, por outro lado, por exame somático, efetuado
no Gabinete Médico Legal, que o acusado não tinha pendores inconfessáveis
com relação ao ladrão.
Ora, a intimidade de um investigador com um ladrão, ainda mesmo que
não se revista de aspectos ultra-imorais, é coisa muito séria. É qualidade negativa
para um bom policial. Releva-se, outrossim, notar que o investigador alegara,
para não prender um dos ladrões, que não tinha competência para tanto,
visto não pertencer à Seção de Vigilância; entretanto, efetuou a prisão de outro.
Em ação comum, que pode propor, talvez consiga o acusado provar que
tudo isso não passa de mera perseguição contra si. Entretanto, em mandado de
segurança, não lhe reconheço direito certo e incontestável. Por isso, indefiro
o pedido.
No MS 259/DF, julgado em 22 de julho de 1936, relatado por Carlos
Maximiliano e impetrado por Raul Netto dos Reys, discutiu-se o direito de promoção,
alegado pelo requerente, então funcionário do Ministério da Agricultura.
O Relator percebeu que o requerimento excedia o prazo, então também fixado
em 120 dias, e julgou de modo simples, e firme, tocando também no mérito:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, trata-se de funcionário
do Ministério da Agricultura, que alega direito a promoção, em vaga
que deveria ser provida por merecimento. Diz o requerente que, a fim, justamente,
de apurar o merecimento, o Ministro nomeou Comissão, ato que considera
irregular; por isso, pede o mandado.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano (Relator): Senhor Presidente, a decisão
do Ministro é de 29 de outubro de 1935; a petição foi apresentada em 11 de
maio de 1936, mais de 120 dias, portanto, após. Assim, o direito está perempto.
Não tomo, pois, conhecimento do pedido.
Se rejeitada a preliminar, voto, quanto ao mérito, indeferindo o pedido.
Se o critério para a promoção é o merecimento, e não a antiguidade, o seu direito
não é certo e incontestável.
É o meu voto.
No MS 268/RS, julgado em 16 de setembro de 1936, relatado pelo
Ministro Ataulpho de Paiva, e impetrado por Aníbal Barbosa, discutiu-se questão
afeta ao Tribunal Militar. Ao que consta, o interessado praticara duas fraudes,
e ainda pretendia invocar direito certo:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: A doutrina do Tribunal Militar é
correta: ninguém pode tirar partido da própria torpeza.
45
Memória Jurisprudencial
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O requerente praticou duas fraudes: falsificou a idade, ao se alistar, e,
posteriormente, procurando retificá-la, fê-lo com autoridade incompetente. Não
tem, pois, direito algum ao que pede — quanto mais direito certo e incontestável.
Nego, portanto, a ordem.
No caso do MS 270/MA, relatado por Hermenegildo de Barros e, depois,
por Bento de Faria, impetrado pelo Dr. Achilles de Faria Lisboa, governador do
Maranhão, e julgado em 8 de julho de 1936, em voto extremamente sinuoso e
muito bem engendrado, Carlos Maximiliano tangenciou a relação entre a atuação
do Poder Judiciário e as questões políticas. Antes, no entanto, reproduzo a
ementa do julgado, que fornece os contornos da discussão:
Intervenção federal nos Estados — Competência dos Poderes da União
para decretá-la e para conhecer da sua constitucionalidade, conveniência
ou oportunidade.
— A faculdade de intervir, em tais casos (art. 12, n. I a III, da Constituição
Federal), foi reservada aos poderes políticos da União, ou seja, ao Legislativo
e ao Executivo, desde que somente a estes, como decorre dos dispositivos subseqüentes,
foi deferida a iniciativa da intervenção, conforme o caso emergente.
— À Corte Suprema e ao Superior Tribunal de Justiça Eleitoral, como
aos representantes dos poderes estaduais eletivos, somente é permitido requisitar
ou solicitá-la, os primeiros, para garantir as ordens e decisões dos juízes e
tribunais federais e o livre exercício do Judiciário local; os outros, para garantir
o livre exercício de qualquer dos poderes públicos estaduais (art. 12, § 5º e § 8º).
— A interferência da União nos negócios dos seus Estados não pode ser
compreendida entre as questões judiciais, porquanto, fundamentalmente, há de
sempre expressar uma questão de caráter essencialmente político. Assim sendo,
sob esses aspectos, o requerimento em apreço é inadmissível, pois importaria
em sujeitar ao contraste judicial um ato de natureza exclusivamente política,
contra o disposto no art. 68 da Constituição Federal.
— Interpretação dos arts. 12; 56, n. 12; e 68 da Constituição Federal.
— Item, Decreto Federal 881, de 5-6-1936.
Carlos Maximiliano em seu voto observou que, concomitantemente, havia
ainda problema de dubiedade de decisões, porquanto no pano de fundo percebia-se
competência oriunda da Constituição Federal, bem como da Constituição
do Estado do Maranhão:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: A Constituição afastou-se, em parte,
do seu modelo de 1891. Neste se negava ao Poder Judiciário tomar conhecimento
de questões políticas; agora, explicitamente, permitiu-se que, em certos casos,
que são aqueles subordinados ao Poder Eleitoral, pudéssemos conhecer de casos
semelhantes. Sempre, em todo caso, repetiu o preceito genérico da Carta anterior.
Assim, parece ser este a regra e aquele a exceção.
No caso em apreço, trata-se de julgamento feito por tribunal previsto,
normalmente, pela Constituição Federal e pela Carta do Estado. Logo, da deliberação
desse tribunal caberia recurso para o poder fixado pelas próprias leis;
Ministro Carlos Maximiliano
ora, se as leis locais não dão recurso para outra autoridade, naturalmente é porque
tal tribunal é soberano, único, em última instância decide.
É claro que, todavia, existe recurso do ato do Presidente da República,
que decreta a intervenção. Esta é já outra questão; mas o recurso, aqui, é para o
próprio Poder Legislativo, recurso até ex officio, pois a Constituição determina
que o Poder Executivo submeta o caso ao referendum do Legislativo. Ora, aí,
há defesa, ainda; valendo-se o prejudicado dos seus procuradores e, na hipótese,
dos deputados que são seus partidários, os quais podem examinar a constitucionalidade
da medida.
O impetrante levanta, mais, dois argumentos.
Um é que o Governador Lisboa foi processado e condenado por atos que
não constituem crime. Ora, tomarmos conhecimento desse ponto já seria entrarmos
no mérito da questão, para o que não temos competência.
Admitindo-se, porém, a hipótese de sermos competentes, ainda negaria
o mandado. Creio não ser este o meio de libertar qualquer indivíduo de processo
e condenação por atos que se reputem não constituir crime.
Há outro argumento que o impetrante sustenta. Este agora é mais sério.
É que o Governador Achilles Lisboa requereu e obteve mandado de segurança
das autoridades judiciárias locais e que, em desrespeito a tal decisão, foi decretada
a intervenção.
Ora, em primeiro lugar, tal mandado não foi concedido contra a autoridade
federal, contra, no caso, o Senhor Presidente da República; sim, contra a
maioria da Assembléia.
Por outro lado, a mesma maioria alega que obteve do mesmo Tribunal, a
Corte de Apelação do Estado, habeas corpus, no sentido de que o seu Presidente
assumisse o Governo do Maranhão.
Temos, pois, caso típico de dualidade de Poder Judiciário. Assim, não
sabemos qual, de fato, é a verdadeira autoridade: se a que concedeu o mandado
ao Governador ou se a que, cassando o mandado, deu o habeas corpus.
Por isso tudo, parece que o único remédio é a intervenção. Todavia, não
quero examinar essa questão, que já é de mérito.
Como a Constituição, explicitamente, não dá ao Poder Judiciário competência
para conhecer da espécie, e atribui, explícita, ou, pelo menos, indiretamente,
autoridade ao Legislativo para tal, não conheço do pedido. É o meu voto.
No MS 271/DF, relatado por Bento de Faria, e depois por Eduardo
Espinola, impetrado por Aristóteles de Sousa Imenes, julgado em 5 de agosto
de 1936, colhe-se voto do Ministro Carlos Maximiliano, que aprecia importantíssima
questão política. Cuidava-se de disposição do art. 18 das Disposições
Transitórias da Constituição de 1934, que afastava do Poder Judiciário a apreciação
dos atos do Governo Provisório de Getúlio Vargas, que durou de 1930 —
quando da deposição de Washington Luís — até 1934 — data da promulgação
de nosso terceiro texto constitucional.
Carlos Maximiliano apreciou especificamente questão referente à criação
de comissão de expertos que emitia pareceres referentes aos atos do Governo
Provisório. Definiu que a emissão de parecer era mera peça opinativa, e que não
possibilitava nenhum conteúdo decisório. O voto do Ministro é libelo em defesa
47
Memória Jurisprudencial
da legalidade, concluindo que: “mercê dos céus, acima de nós em autoridade,
só existe a lei”:
48
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: A Constituinte, no art. 18 das
Disposições Transitórias do estatuto básico, afastou, explícita e absolutamente,
da competência do Poder Judiciário a apreciação e, portanto, a reforma de ato do
Governo Provisório. Admitiu, entretanto, como lenitivo a tanto rigor, que fosse
nomeado um grupo de homens cultos, a fim de emitir parecer sobre a injustiça
das demissões e conveniência das reintegrações de bons servidores do país.
“Emitir parecer” é opinar, deduzir, aconselhar; não é mandar, impor,
exigir. Parecem-nos consultivas as funções da Comissão; não imperativas, decisórias.
Sugere; não ordena, reforma ou desfaz.
Jamais prevalece exegese que atribuía ao legislador um desvio flagrante
da boa doutrina, da ciência jurídica universal das normas fundamentais do
regimen. Incidiria nesse erro deplorável, quando conferisse a particulares autoridade
jurisdicional negada até ao pretório supremo da República; teriam eles,
no conceito do impetrante de mandado de segurança, mais alto império que um
dos grandes poderes constitucionais; ficariam superpostos ao mesmo e no lugar
que aos mesmos cabia.
Admitamos, entretanto, por um momento, a hermenêutica do ilustre
peticionário. Nesse caso, devemos levá-la às suas conseqüências lógicas. Se a
Comissão nomeada pelo chefe de Estado tem autoridade superior à da Corte
Suprema, por que e com que fundamento pedir a esta que ampare e converta em
realidade um ato daquela? Como reclamar do fraco o remédio contra o ludíbrio
sofrido pelo forte? Se à Comissão foi atribuída autoridade decisória em relação
a certas demissões injustas e à Corte se negou toda e qualquer ingerência em
tal matéria, incumbiria à própria Comissão, e não ao juízo ordinário, impor ao
Executivo a obediência aos arestos por ela proferidos. Portanto, improcede o
pedido. Diante da Corte continua intransponível a barreira formidanda do art. 18.
Ao menos esse sinal de onipotência hão de convir que o legislador
não outorgou à Comissão: o de converter o mais alto tribunal do Brasil em
mero juízo executivo das decisões dos cidadãos conspícuos que a integram.
Semelhante regalia humilharia, ainda mais, a Corte; pois o juízo executório é,
em todas as legislações, o mais baixo; é inferior ao decisório.
Mercê dos céus, por enquanto no Brasil, acima de nós em autoridade,
só existe a lei; esta nos inibe de contribuir para a reforma de atos do Governo
Provisório.
Indefiro o pedido, pois.
No MS 273/DF, relatado pelo Ministro Plínio Casado, impetrado por
Ary Monteiro e julgado em 4 de agosto de 1936, Carlos Maximiliano confeccionou
voto de fortíssimo fundo processual, a propósito de identidade de objeto
e de pessoa.
Tratava-se de mandado de segurança protocolado por professor com o
objetivo de garantir posse e exercício do cargo de professor da antiga Escola de
Auxiliares Especialistas da Armada, que então se chamava Escola Almirante
Wandenkolk. O impetrante invocava que fora ilegal e arbitrariamente despojado,
por mera ordem verbal do Ministro da Marinha, Almirante Protógenes
Ministro Carlos Maximiliano
Guimarães; e a ordem fora posteriormente confirmada por decreto do Governo
Provisório, datado de 19 de janeiro de 1933.
O pedido já fora apreciado pela Corte Suprema, e fora indeferido por
unanimidade, com voto condutor do Ministro Laudo de Camargo. É que o
impetrante detinha cargo em comissão, o que não justificava o procedimento
que invocava, afeto a servidores estáveis. Com o indeferimento do pedido, o
interessado requereu a entrega dos documentos com os quais instruíra a petição
inicial. Em seguida, protocolou outro pedido, que não passava de mera repetição
do primeiro deles, no entendimento do Relator, Ministro Plínio Casado. Nos
termos do ementado:
Mandado de segurança — Procede a renovação do pedido se fundado
em causa diversa.
— Não havendo identidade de “causa”, mas somente de “coisa” e de
“pessoa”, pode o autor repetir o pedido, ainda que o Tribunal tenha apreciado o
mérito, no julgamento anterior.
— O parecer da Comissão Revisora, instituída nos termos do parágrafo
único do art. 18 das Disposições Transitórias da Constituição Federal, vale
como opinião, como conselho, como esclarecimento, como sugestão, mas não
obriga juridicamente o Governo e muito menos a Corte Suprema.
— Interpretação do art. 18, parágrafo único, das Disposições Transitórias
da Constituição Federal.
— Idem, do art. 2º, § 2º, da Lei 191, de 16-1-1936.
O impetrante justificava o segundo pedido em parecer da Comissão
Revisora dos Atos do Governo Provisório, que entendera que a perda do cargo
de professor fora inadequada. No entanto, firmou-se na época o entendimento
de que os pareceres dessa comissão não eram vinculantes, isto é, que não
tinham força de sentença. E o próprio Carlos Maximiliano vinha capitaneando
esse entendimento, mais uma vez aqui sufragado:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o meu primeiro
movimento foi no mesmo sentido do voto proferido pelo Sr. Ministro Relator.
Parece-me que há identidade de objeto e de pessoa, mas a causa de pedir não é
inteiramente a mesma. Na realidade, o requerente apresenta um fato novo, posterior
ao outro fundamento, e esse fato novo encontra-se consubstanciado no
parecer da Comissão Revisora. Logo, a meu ver, o terceiro requisito não existe.
Liberalmente, na dúvida, tomo conhecimento do pedido, para o indeferir,
porém.
No MS 279/DF, relatado pelo Ministro Hermenegildo de Barros e julgado
em 19 de agosto de 1936, Carlos Maximiliano divergiu do Ministro Relator, em
discussão relativa ao fato de que mandado de segurança contra ato de juiz federal
não poderia ser apreciado pela Corte Suprema, em âmbito de competência
originária. Cuidava-se de ato de juiz federal que fora confirmado por Ministro
49
Memória Jurisprudencial
de Estado, o que, na visão de Carlos Maximiliano, fixava competência originária
da Corte Suprema para apreciar a questão:
50
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Sinto divergir do Sr. Ministro Relator.
Quando a lei proíbe que um juiz federal tome conhecimento ou anule
atos de Ministro, isto é, quando manda que, originariamente, a Corte Suprema
conheça dos atos do governo, é porque não reconhece no juiz federal autoridade
para anular um ato de Ministro de Estado.
O ato em apreço, embora praticado por autoridade inferior, foi confirmado
pelo Ministro. De maneira que, se o juiz federal o anular, implicitamente
anula o ato do titular da pasta, isto é do Ministro.
O espírito da lei é este: os atos dos Ministros e os praticados pelo Presidente
da República só podem ser anulados pela Corte Suprema; esta, em se
tratando de habeas corpus, conhece originariamente.
Quanto à prescrição, não está provado que a parte teve conhecimento do
ato há mais de 120 dias. Tratando-se de direito estrito, também não conheço da
caducidade; por este motivo, tomo conhecimento do pedido.
No MS 288/DF, julgado em 11 de agosto de 1936, relatado por Carlos
Maximiliano e impetrado pelo Tenente-Coronel Cássio Paiva de Souza, discutiu-se
questão interna da Escola Naval. Levantou-se preliminar, relativa à
impossibilidade de que menor de vinte anos fosse representado por advogado,
que exibia procuração apenas do pai, e não do filho, representado pelo pai.
Maximiliano não tomou conhecimento do pedido, nos estritos limites da legislação
de regência então aplicável, e com fundamento ainda nas Ordenações, em
excerto lacônico, porém de extrema precisão:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o regulamento
da Escola Naval, aprovado pelo Decreto 19.877, de 16 de abril de 1931, comina,
para os alunos, a perda da matrícula, nos seguintes casos:
Art. 76, b) falta de aproveitamento ou inabilitação em mais de
duas disciplinas de um mesmo período;
d) nota de aptidão para o oficialato inferior a quatro;
Art. 77, c) repetição de inabilitação na mesma disciplina.
O rigor das disposições transcritas foi atenuado pelo Decreto 24.633, de
19 de julho de 1934, nos termos seguintes:
Art. 20. Os alunos dos Cursos Prévio e Superior que incidirem
nos casos previstos nas letras b do art. 76 e b e c do art. 77 do atual
Regulamento poderão repetir o ano superior apenas uma única vez,
desde que tenham revelado aptidão para o oficialato da Marinha, providência
que deverá ser observada a partir do ano letivo corrente.
Como sucede em vários institutos, na Escola Naval, o aluno que deixa de
prestar exame, ou é reprovado em uma só matéria, não fica preso pela mesma
a um ano do curso; freqüenta as aulas do ano superior; depois de aprovado
na cadeira que lhe faltava, entra em exame das referentes ao ano superior, na
mesma época ou na segunda época (art. 65 do Regulamento).
Ministro Carlos Maximiliano
O jovem Heitor foi julgado deficiente em disciplina do 2º período do 1º
ano; pelo que repetiu a mesma e cursou o 2º ano superior, em 1934; porém, não
prestou exames senão da disciplina restante do 1º ano. Em 1935 cursou o 2º ano.
Nas vésperas dos exames deu parte de doente. Os médicos militares
acharam que ele não precisava abandonar o serviço, sendo suficiente o tratamento
em ambulatório.
Médicos civis atestaram o contrário; o Exmo. Sr. Ministro da Marinha
conformou-se com o parecer destes e deu licença de noventa dias ao jovem, a 3
de janeiro.
O despacho, entretanto, só foi publicado muitos dias depois; pelo que
Heitor foi chamado a exame no dia 5; por não comparecer, teve, nos termos do
Regulamento, nota zero.
Como as médias dos exames parciais não eram bastante altas para lhe
garantirem a aprovação independentemente do exame final, foi considerado
reprovado.
Em obediência ao disposto no art. 77 do Regulamento, combinado com
o art. 20 do Decreto 24.633, foi excluído da matrícula, apesar de ter obtido nota
cinco de aptidão para o oficialato.
Como o Decreto, posterior, n. 787, de 30 de abril de 1936, deu aos colegas
de ano do jovem Heitor o direito a seguirem o curso na categoria de guardasmarinhas;
requer o presente mandado, para o fim de ser Heitor matriculado no
2º ano da Escola Naval e seguir o curso como guarda-marinha.
É o relatório.
VOTO
Preliminarmente; é lícito a um advogado agir em defesa de um moço de
vinte anos de idade, exibindo só procuração do pai e não do filho assistido pelo pai?
A negativa me parece evidente (Decreto 3.084, de 1898; part. 3ª, art. 4º,
com referência às ordenações, Liv. 3º, Tít. 41, § 8º, 2ª parte). Por isso, do pedido,
não tomo conhecimento.
No MS 298/DF, relatado por Carlos Maximiliano, requerido por Adolpho
Constant Bur May, assistido por sua tutora, Alda Santos Carvalho, e julgado em
11 de setembro de 1936, julgou-se novamente matéria de regimento da Escola
Naval, no que se refere à aprovação de aluno. Maximiliano aplicou juízo de
equidade, e confeccionou a passagem que segue:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Este é outro mandado para o mesmo
fim do de número 288, há pouco julgado, porém dele se diferencia porque o
menor instituiu procurador com a assistência do pai. Não se verificou o fato de
pedido de licença para tratamento da saúde; houve uma segunda reprovação.
É o relatório.
VOTO
Gira o desacordo entre o impetrante e o Exmo. Sr. Ministro da Marinha
em torno das seguintes questões:
51
Memória Jurisprudencial
52
1º — quando o Regulamento proíbe repetir um ano mais de uma vez,
inclui-se na contagem o ano que o aluno cursou sem matrícula definitiva no
mesmo, visto estar na dependência de uma cadeira do ano anterior?
2º — A força maior constatada, a doença, é motivo suficiente para se não
cumprir a disposição que, de modo absoluto, proíbe repetir a segunda vez um ano?
É de notar que o culpado do mal é, pelo menos em parte, o aluno; pois,
embora não estivesse doente em 1934, não prestou exames, nem na primeira,
nem na segunda época, das matérias concernentes ao 2º ano superior.
Por outro lado, parece que a tolerância da repetição se dá exatamente
para o caso de no primeiro ano o aluno não prestar exame por haver adoecido.
Parece, também, que o regulamento não admite exceção alguma. Ocorre ainda
a circunstância de que, se o jovem fosse estudioso, teria obtido nos exames parciais
média superior a seis, e nesse caso prescindiria do exame final para ser
aprovado no 2º ano. Ora, o Regulamento tem em mira exatamente excluir os que
obtêm pouco aproveitamento.
Enfim, por eqüidade, poder-se-ia atender ao impetrante; porém direito
certo, claro, indiscutível a cursar mais uma vez o 2º ano e ser promovido a
guarda-marinha, não lhe assiste.
Pelas razões aduzidas, indefiro o pedido.
No MS 289/DF, relatado pelo Ministro Hermenegildo de Barros, protocolado
pelo Bacharel Antonio Leitão Vieira de Mello e julgado em 14 de agosto
de 1936, quando se discutiram, mais uma vez, as demissões feitas pelo Governo
Provisório de Getúlio Vargas. Maximiliano insistiu na imprestabilidade da
força decisória dos pareceres emitidos pela Comissão Revisora criada pelo
Governo Federal:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, desde que o
Sr. Relator afirma que o Sr. Procurador-Geral foi ouvido e o processo, portanto, se
encontra em ordem, para ser julgado, só por este fundamento, indefiro o pedido.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, pela exposição
do brilhante advogado do impetrante, parece que S. S. faz uma pequena confusão
entre as várias decisões da Corte Suprema. É verdade que houve casos em
que o indivíduo demitido pelo Governo Provisório, mais tarde, obteve, desse
mesmo Governo, um despacho anulatório da decisão anterior. Esses despachos
é que foram objeto de votações repetidas aqui, neste recinto.
Invariavelmente, Senhor Presidente, votei para que se considerassem tais
despachos como revogatórios dos anteriores, porque era o mesmo Governo, com
a mesma autoridade, que reconhecia, aliás, nobremente, o erro em que incorra
no delírio da vitória, e resolvera fazer justiça a uma pessoa.
Numa das vezes, esta minha opinião foi vencedora. Na segunda, porém,
creio que houve três votos apenas, inclusive o meu favorável; já a maioria não
aceitou essa orientação.
Quanto à aplicação do art. 18, com referência aos atos da Comissão
Revisora, só conheço dois julgados: um muito anterior ao de 5 de agosto; se me
Ministro Carlos Maximiliano
não engano, o Sr. Ministro Costa Manso foi o Relator, ou apresentou um dos votos
longamente fundamentados; e o de 5 de agosto em que a decisão foi uniforme.
Não vale a pena, por conseguinte, repetir os argumentos, inclusive os meus, sobretudo
quando o meu parecer foi publicado, em três jornais, no dia seguinte.
Indefiro o pedido porque a hipótese não é idêntica às anteriores. Além
disso, jamais alguém reconheceu força decisória nos pareceres formulados pela
Comissão Revisora.
A franqueza e os modos simples e diretos do Ministro Carlos Maximiliano
ficam muito bem identificados no MS 306/DF, relatado pelo Ministro Octavio
Kelly, impetrado por Manoel Cardoso Nunes e julgado no dia 11 de novembro
de 1936. Discutia-se incompetência de parte e de juízo. Para Maximiliano, à
Corte cabia, nesse tipo de caso, apenas observar que era incompetente: a parte
é que deveria pesquisar qual o juízo competente para a causa que patrocinasse:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, diariamente,
estamos, nesta Corte, repelindo, in limine, mandados de segurança e habeas
corpus quando a parte é incompetente. Ora, o caso presente não é previsto em
lei nem na Constituição.
Concordo, por conseguinte, com o eminente Ministro Relator: a parte
que se dirija ao juiz competente.
Quanto à questão de declarar qual o magistrado competente, nada temos
com ela. Basta dizer não sermos nós competentes. À parte mesma é que incumbirá,
pelo estudo do caso, verificar a que juiz se deve dirigir.
No MS 309/DF, relatado pelo Ministro Hermenegildo de Barros, impetrado
por Luiz Marianno de Barros Fournier e julgado em 31 de janeiro de 1937,
Carlos Maximiliano confeccionou voto em que discutiu o termo a quo para a
contagem do prazo do mandado de segurança, isto é, se o prazo seria contado do
momento em que o interessado se dirigia ao governo, protestando por um direito,
ou do instante em que as autoridades negassem a providência pretendida:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, temos de considerar,
em primeiro lugar, se está perempto o direito que tem a parte de requerer
o mandado de segurança. Parece-me que não está.
Não se trata — como bem informou o Sr. Ministro Relator e se deduz
da exposição impressa, que recebi, e do discurso do ilustre advogado — de ato
positivo, mas negativo, do Governo, recusando-se a tomar uma providência.
Ora, não julgo razoável que se comece a contar o prazo para perempção do
direito, do momento em que o indivíduo se dirige ao Governo, pedindo o cumprimento
de uma sentença. O requerente pediu o mandado não por causa deste
requerimento, mas porque não conseguiu solução alguma, nem positiva, nem
negativa. Sendo a prescrição de direito estrito e regendo-se a perempção pelas
mesmas regras, não existe meio algum de contar os 120 dias. Não considero,
pois, perempto o direito.
53
Memória Jurisprudencial
54
Em segundo lugar, temo o seguinte: se o indivíduo não obtém o mandado,
ir-se-ia, em conseqüência, encaminhá-lo às vias ordinárias? Seria o
mesmo que mandá-lo ao Bispo...
Passada em julgado uma sentença, o Governo, nobremente, a cumpriu,
mandado pagar uma soma vultosa, para a qual, naturalmente, pediu o crédito
necessário ao Legislativo. Depois dirigiu-se ao Consultor-Geral da República, a
fim de que este promovesse ação rescisória.
Que pede, porém, atualmente, a parte? Solicita ela o seguinte: o Governo
cumpriu a sentença, em parte; depois o requerente pediu, simplesmente, fosse
incluído na folha mensal de pagamento, a fim de receber os vencimentos anteriores,
acrescidos da quantia que a sentença mandou pagar. Recusam-se, todavia,
a incluí-lo na folha!
Se o Sr. Ministro da Guerra tivesse dado a informação, que a palavra
sempre eloqüente e criteriosa do Sr. Procurador-Geral deu, quando disse que
a Fazenda não sofre penhora, de modo que, havendo direito novo a atender, é
necessário pedir ao Congresso a concessão de verba; se S. Exa. tivesse declarado
que se ia dirigir ao Legislativo, solicitando a inclusão, no orçamento, do
necessário crédito, estaria tudo muito bem. S. Exa., porém, não deu resposta
alguma, limitando-se, na informação do Sr. Relator, a dizer que o Presidente
agirá como melhor lhe parecer.
Evidentemente, já que não deu motivo algum, o Governo não incluiu o
impetrante na folha por não querer fazê-lo, visto como isso lhe era fácil, tendo
sido o Orçamento votado depois de agosto, época de que data a causa. Se o
impetrante reclamasse, agora, esse dinheiro, negar-lhe-ia o mandado. Pede,
porém, só para ser incluído em folha.
Ora, já está estabelecido, por sentença, que ele deverá receber a diferença entre
os vencimentos do posto que tinha, antes de propor a ação, e os que, agora, tem.
Iremos, portanto, encaminhá-lo à justiça comum, aos recursos ordinários?
Há, evidentemente, denegação de justiça. Assim, não há outro meio para
fazer respeitar o seu direito, que o mandado de segurança.
Aliás, o Governo não nega nem afirma. O Procurador-Geral, entretanto,
fala em propor uma ação rescisória. Ora, o prazo para a propositura dessa ação
é de cinco anos. Considerando-se que a demora de julgamento em ações ordinárias
é de dez anos, até a última instância haveria um lapso de quinze anos.
A ação rescisória, é sabido, não tem efeito suspensivo. Como pode o
Governo, pois, alegar que não incluiu o nome do funcionário da lista de pagamento,
porque a vai propor? Se tivesse alegado que não pagava por falta de
verba, o caso seria muito diferente.
Nessas condições, concedo a ordem.
É o meu voto.
No MS 334/DF, relatado pelo Ministro Costa Manso, requerido pelo
Dr. Nero de Macedo Junior, julgado em 25 de novembro de 1936, Carlos
Maximiliano montou voto curtíssimo, mas muito bem engendrado, relativo ao
problema da competência do Presidente da Corte, em se tratando de alegação
de inconstitucionalidade.
O postulante havia requerido ao Desembargador Presidente da Corte de
Apelação do Distrito Federal inscrição em concurso aberto para preenchimento
Ministro Carlos Maximiliano
de vaga em cargo de pretor, que então compunha a estrutura judiciária do
Distrito Federal. Declarou que tinha 23 anos, e o limite mínimo para o o cupante
da vaga era fixado em 25 anos. Indeferiu-se o pedido, por força da idade do
requerente, que ainda não contava com 25 anos. Contra esse ato é que o mandado
de segurança foi ajuizado. Depois de distribuído, o pedido foi liminarmente
indeferido pelo Relator, em face de incompetência da Corte Suprema,
que somente poderia apreciar originariamente mandados de segurança contra o
Presidente da República e Ministros de Estado.
O requerente agravou do despacho em petição reputada pelo Relator
como não fundamentada. Inferiu-se que o interessado fixava a competência
da Corte Suprema porquanto argüia a inconstitucionalidade da lei que fixava a
idade de 25 anos para o exercício do cargo de pretor (Lei 256, de 28 de setembro
de 1936). O Ministro Costa Manso afirmou em seu voto que a Corte Suprema,
“de acordo com elementaríssimos princípios de direito, não poderia se pronunciar,
em tese, sobre a inconstitucionalidade de leis ou regulamentos”.
O Ministro Relator argumentou que o perigo que o interessado invocava
era um perigo remoto, que não se traduzia em ameaça direta do direito do peticionário,
e que ameaçava, em tese, qualquer pessoa que pretendesse concorrer
para o cargo e que também não contasse com 25 anos.
Carlos Maximiliano engendrou voto minimalista e inteligentíssimo,
observando que, se o problema de ordem constitucional era de competência do
Presidente da Corte Suprema, e se esse já havia se manifestado, não havia mais
o que ser dito:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: As alegações de inconstitucionalidade
podem ser procedentes ou não; de qualquer maneira, têm de caber dentro
do pedido.
O Sr. Ministro Costa Manso: É o que digo.
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Ora, se, de um lado, a razão constitucional
é o fundamento do pedido, a autoridade coatora é o Presidente da Corte.
De fato, o requerente diz que o Presidente da Corte já atentou e está
na iminência de atentar contra um direito seu. Se assim é, temos de dizer que
somos incompetentes.
Nestas condições, nego provimento ao agravo, para confirmar o despacho
agravado.
É o meu voto.
No RMS 336/DF, relatado pelo Ministro Ataulpho de Paiva, impetrado
por Roberto Alexandre Hashett e julgado em 6 de janeiro de 1937, Carlos
Maximiliano elaborou voto no qual discorreu sobre a natureza do mandado
de segurança, no sentido da possibilidade (ou não) da renovação do pedido.
Explicitou que o mandado de segurança não era mais do que uma ação cível,
embora de rito célere e especialíssimo.
55
Memória Jurisprudencial
O impetrante era auditor da 8ª Circunscrição Judiciária Militar, que fora
extinta; atuava como adido junto à 1ª Região Militar. Insurgia-se contra ato
do Presidente do Supremo Tribunal Militar, invocando que não fora nomeado
substituto de auditor corregedor, em virtude da nomeação de outro interessado,
o que ofendia direito seu.
O mandado de segurança fora proposto no Supremo Tribunal Militar.
Pretendia o impetrante ser aproveitado nas auditorias dependentes do Ministério
da Guerra, e invocava capacidade e competência do Supremo Tribunal Militar
para correção do ato. O Supremo Tribunal Militar não tomou conhecimento do
pedido. Alegou-se incompetência.
Lê-se no acórdão originário que o Supremo Tribunal Militar decidira que,
“nem na Constituição Federal, nem na lei ordinária, está atribuída ao Supremo
Tribunal Militar competência para o reconhecimento de direitos por meio de
mandado de segurança”. É nesse núcleo conceitual que o problema se revela:
poderia o Supremo Tribunal Militar apreciar mandados de segurança? Em face
da negativa daquele Tribunal, o interessado levou a questão à Corte Suprema.
O impetrante alegava que o Supremo Tribunal Militar era órgão do
Judiciário, que a Justiça Militar era alcançada pela legislação do habeas corpus,
e que não havia palavras supérfluas na lei: “in legibus nullum verbum superflum
est.” O Procurador-Geral da República enviara ofício ao Presidente do Supremo
Tribunal Militar, invocando que a insurgência se dava contra ato de administração,
e não contra ato judiciário. E que o Supremo Tribunal Militar era, “irrecusavelmente”,
um tribunal federal, “isto é, instituído pela União e com jurisdição
em todo território nacional”.
Carlos Maximiliano via a questão sob outra ótica. Entendia que o mandado
de segurança era uma ação cível e que ações cíveis não podiam ser propostas
junto a tribunais militares:
56
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, estou, mais
ou menos, de acordo com o Sr. Relator, mas não vou tão longe como S. Exa.,
dizendo que não examina o caso, porque me parece que, para negar o recurso,
teria que o examinar.
Quando tratamos de decidir se o mandado de segurança poderia ou não
ser renovado, estabelecemos que ele não é mais que uma ação cível, embora de
rito muito rápido, especialíssimo. Ora, não se propõem ações cíveis no Supremo
Tribunal Militar, seja contra quem for. Eis a razão por que não entro no mérito
da questão — aliás, o Sr. Ministro Carvalho Mourão vai ainda mais longe,
entroncando os mandados de segurança nos interditos romanos. De qualquer
forma, trata-se de ações cíveis, que não se propõem no foro militar.
Não se diga que o recorrente ficará sem justiça. De fato terá o recurso
das ações sumárias especiais, como se fazia antigamente, ao tempo em que não
havia ainda o mandado de segurança.
Ministro Carlos Maximiliano
Por conseguinte, entendendo que mandados de segurança não podem ser
propostos no foro militar, chego à mesma conclusão que o ilustre Relator.
No MS 432/DF, relatado pelo Ministro Costa Manso, impetrado por
Silva Ferreira e julgado em 20 de outubro de 1937, discutiu-se mais uma vez
questão referente ao regime de matrícula na Escola Militar. Carlos Maximiliano
explicitou em seu voto percepção de direito adquirido tonificada pela realidade
dos fatos então apreciados:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, quando examinamos
este caso, aqui, a primeira vez, tomamos, como base do pedido, um
direito adquirido. Tenho sempre sustentado doutrina contrária e esta prevaleceu
de maneira que eu agora não podia deixar de mantê-la. O aluno que se matricula
num colégio não tem, só por isso, o direito de seguir até o fim o seu curso
de acordo com a lei vigente na época da matrícula. Se fosse este o fundamento
do pedido, não o examinaria mais: reportar-me-ia a pareceres e votos anteriores
sobre este e outros assuntos semelhantes. Para mim, porém, existem, neste
momento, vários fatos novos.
Em primeiro lugar, levanta o Sr. Ministro Relator a questão de que um
ato do Governo, dispondo sobre as matrículas no Colégio Militar, dispensou a
aplicação do regulamento em 1933. Esta matéria não foi ainda apreciada.
Parece, pelo que ouvi expor o ilustre advogado dos impetrantes e o
Sr. Ministro Relator, que há uma série de regulamentos, avisos, etc., como sempre
acontece em assuntos militares, uns atrapalhando e dificultando o entendimento
e aplicação dos outros.
Passo a examinar, porém, antes de resolver definitivamente os fatos acima
apontados, dois outros aspectos posteriores, para mim da maior gravidade.
Quando os alunos, requerentes do primeiro mandado, alegaram direito
adquirido, tiveram vitória na primeira instância. Havendo recurso para esta
Corte, o mandado de segurança foi cassado e o Sr. Ministro da Guerra não
cumpriu a decisão da Corte, que mandava cassar o mandado, alegando que os
rapazes já se haviam matriculado na Escola Militar e não lhe era mais possível
cancelar essa matrícula. Em conseqüência dessa resolução do Ministro, ficaram
estes moços em situação privilegiada sobre todos os que, em igualdade de condições,
tinham vindo ao Judiciário: foram repelidos, mas a derrota para eles se
transformou em vitória.
Depois desse fato, isto é, na minha ausência, esta Corte resolveu, por
maioria absoluta, segundo me parece, que alguns moços deviam ser matriculados
na Escola Militar.
É verdade que os tribunais só decidem em espécie e uma decisão não
irradia o seu efeito para todos os casos similares, de maneira que obrigue o
Executivo a cumprir, em favor de outros indivíduos, que não obtiveram sentença,
o arresto que deu vitória a algum impetrante. Em virtude, porém, do princípio
da harmonia dos poderes, sempre que os tribunais decidem uma tese de direito,
definitivamente — como é de supor que o fazem sempre que decidem por maioria
absoluta —, o Poder Executivo e o Legislativo imediatamente se conformam,
não só com a sentença — que não se pode discutir —, mas com o espírito e
a doutrina desta sentença. Do contrário, quase que não valia a pena pleitear a
inconstitucionalidade de uma lei ou de um decreto, desde que só determinados
57
Memória Jurisprudencial
58
indivíduos — impetrantes, autores, réus, solicitantes, etc. — seriam alcançados
pela decisão. Tal não se dá em virtude do referido princípio da harmonia dos
poderes. Desde que o Tribunal, por maioria absoluta de seus membros, decide
um caso, o Governo deve estender essa deliberação a todos os casos semelhantes.
A espécie em estudo é de eqüidade evidente. Cumpre acentuar, até, que se
deu um fato mais grave: o Ministro não quis, quando o Tribunal negou o mandado,
cumprir o julgado e deixou os rapazes matriculados; posteriormente, quando o
Tribunal concedeu o mandado, não permitiu que os rapazes se matriculassem.
Isso influi, forte e decididamente, no meu espírito, para compelir os
outros Poderes, sobretudo o Poder que dispõe da força, a obedecer e atender às
nossas decisões e deliberações frias, serenas e soberanas.
Bastava esse aspecto do caso para conceder o mandado e, parece-me, não
vale a pena examinar os outros fundamentos: concedo o mandado de segurança.
No MS 452/DF, relatado pelo Ministro Costa Manso, requerido por
Urbano Burlier Filho e julgado em 8 de outubro de 1937, Carlos Maximiliano
expôs sua visão referente a problema gravíssimo de Direito Administrativo, e
relativo à inamovibilidade de servidor público.
O requerente, escrevente, letra F, quadro I, do Ministério da Guerra, pretendia
invalidar ato daquele ministério, que o transferiu da Diretoria da Aviação
para o Quartel General da 2ª Divisão de Cavalaria, em Alegrete, no Rio Grande
do Sul.
Carlos Maximiliano percebera que a remoção de servidor, especialmente
em âmbito militar, poderia qualificar eventual castigo. No entanto, ponderou,
a situação não se apresentava assim do ponto de vista regimental, e era nesse
sentido legalista que deveria de ser encarada:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, adoto a argumentação
feita pelo Sr. Ministro Relator, com quem estou de acordo. Faço,
porém, uma inversão na ordem.
Entendo que, não sendo inamovível o funcionário em questão, podia
o Ministro mandá-lo para o lugar onde julgasse serem os seus serviços mais
convenientes.
Bem sei que, quando um oficial procede de maneira desagradável para os
seus superiores, quando vem com representações, etc., é removido, precisamente
como um castigo; porém, regimental e legalmente, não se pode considerar como
tal. É, até, pelo fato de não haver recurso que a autoridade faz estas remoções.
Nestas condições, exatamente por não constituir a remoção de um funcionário,
que não é inamovível e que deve ser colocado onde convier ao serviço,
um castigo disciplinar, é que a preliminar não procede.
Devemos, portanto, tomar conhecimento do pedido para o indeferir.
Matéria administrativa também foi objeto do MS 453/DF, relatado pelo
Ministro Octavio Kelly, impetrado por Carlos Eugenio Chauvin e julgado em
8 de outubro de 1937. Tratava-se de servidor extranumerário, que não detinha
Ministro Carlos Maximiliano
estabilidade e, tendo perdido função por meio de decreto do Governo Provisório,
invocava o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias à Constituição de
1934 para obter provimento do pedido de recondução.
O impetrante era engenheiro, major da 2ª linha, e não admitia que perdesse
função de topógrafo auxiliar da Inspetoria Especial de Fronteiras, em que
fora investido em 29 de maio de 1934. Argumentava que o referido serviço era
de caráter militar, e que o desempenho da função era prerrogativa de oficiais
disponíveis da ativa ou da reserva.
O impetrante também alegava que havia prestado serviços de 1890 a 1899,
junto ao antigo Ministério da Viação. Fora também subchefe da Delegacia do
Departamento do Exército, de 1918 a 1921. Em 1936 fora chamado pelo Ministro
da Guerra para ir até o Rio de Janeiro, e que fora surpreendido por publicação no
Boletim do Exército, que dispunha que comandantes e chefes de serviço deveriam
exigir dos oficiais de reserva designados para o exercício de emprego no
Ministério confecção e encaminhamento de declaração expressa, dando conta de
que recebiam tão-somente a remuneração prevista no orçamento.
Por força dessa disposição o impetrante enviara um memorial a uma
Comissão de Eficiência que havia no Exército. Não se deu prosseguimento ao
pedido, alegando-se que um aviso do Ministro da Fazenda arbitrava os vencimentos
do impetrante. Concomitantemente, este fora deslocado no quadro
de carreira, sendo remanejado para as funções de contratado extranumerário.
Assim, entendia que fora dispensado e que a dispensa era ilegal, por violar o
estatuto que regia a matéria.
O que se constatou foi que o impetrante não conseguira demonstrar que
era titular de cargo efetivo na administração federal. Como oficial do Exército,
fora tão-somente designado para servir na Comissão de Fronteiras, onde permanecera
por muito tempo, como se lê no voto do Ministro Relator.
Nas informações prestadas pela autoridade coatora, adiantou-se que o
impetrante fora contratado para o exercício de determinadas funções e não era
membro do quadro de funcionários efetivos. Poderia, portanto, ser dispensado
discricionariamente.
Nos termos do curtíssimo voto de Carlos Maximiliano, que inverteu a
lógica do impetrante:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, estou de acordo
com o Sr. Ministro Relator. Trata-se, no caso, de funcionário extranumerário,
cujo lugar podia ser suprimido a qualquer momento.
O requerente invoca o art. 18 das Disposições Transitórias da
Constituição. Esse artigo, porém, não garante coisa alguma ao indivíduo; pelo
contrário, garante o Governo contra a ação do indivíduo. É essa, exatamente, a
59
Memória Jurisprudencial
60
finalidade desse dispositivo: garantir o Governo contra a ação dos prejudicados
pelos seus possíveis erros.
Nestas condições, nego a ordem requerida.
No MS 463/DF, relatado pelo Ministro Octavio Kelly, impetrado pela
União dos Sindicatos dos Proletários de Belém, do Estado do Pará, e julgado em
20 de outubro de 1937, Carlos Maximiliano insistia na necessidade de demonstração
imediata, por parte do impetrante, de direito líquido, certo e incontestável:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, preliminarmente,
tomo conhecimento do mandado de segurança. Acho que a alegação do Mi-
nistro não se refere, especialmente, ao atual estado de guerra.
Quanto ao fato em si, porém, acho que a lei invocada é duvidosa, quando
declara que, dos atos da Diretoria e da Assembléia Geral, há recurso para a autoridade
competente.
O ilustre advogado, que patrocina a causa, entende que a “autoridade
competente” é o Poder Judiciário. Não me parece seja este o espírito da lei,
porque, existindo sempre o recurso para o Judiciário, em virtude da própria
Constituição, desnecessário se torna que venha ele declarado em um simples
decreto. O decreto em questão está, portanto, omisso; não declara qual é a autoridade
que receberá o recurso; diz, simplesmente, que “haverá recurso para a
autoridade competente.” Destes termos decorre que o direito não é tão claro
assim e, desde que está em dúvida qual é a autoridade referida no decreto, não
é, absolutamente, líquido o direito.
Como se trata de mandado de segurança e não de uma ação comum, acho
que o direito não é líquido, certo e incontestável; e, por essa razão, nego o mandado.
Carlos Maximiliano era implacável para com os requisitos exigidos pela
lei do mandado de segurança, a exemplo da correta fixação do prazo de decadência.
É o que se vê no MS 471/SP, relatado pelo Ministro Laudo de Camargo,
impetrado por Gastão de Araujo Jordão e julgado em 13 de outubro de 1937, no
qual se discutia demissão do cargo de Procurador da República:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: O requerente alega que foi, irregularmente,
demitido do cargo de Procurador da República. Quanto a essa parte, o
Sr. Ministro Relator já deu a solução.
De resto, o direito de reclamar contra o fato está prescrito, porque,
segundo a lei que regula o mandado de segurança, todos deviam apresentar
suas reclamações, contra atos anteriores, dentro dos 120 dias subseqüentes à
sua promulgação.
O requerente baseia-se, primeiramente, em que tem parecer favorável da
Comissão Revisora. Parece-me que até este fundamento lhe falta.
Na verdade, se a Comissão foi além do pedido, isto ao réu nada pode
valer. O que o requerente pediu foi a reintegração no cargo de Consultor Jurídico
da Delegacia Fiscal, pedido a que se devia ater a Comissão.
Ministro Carlos Maximiliano
Demais, como muito bem disse o Sr. Ministro Relator, as decisões da
Comissão não são compulsórias, mas meramente informativas, podendo o
Governo dar-lhes ou não atenção.
Invoca o requerente, ainda, a lei que restabeleceu a Vara de São Paulo, lei
cujo texto, um tanto ambíguo, parece indicar que o Governo deveria aproveitar o
procurador que já estava na Vara. Aliás, a lei não diz isso duramente; entretanto,
mesmo que assim dissesse, não lhe obedeceria porque a consideraria inconstitucional,
uma vez que o são — conforme já até afirmei em livro — todas as leis
que obrigam o Executivo a nomear um determinado indivíduo, porque o direito
de nomear é do Executivo. A lei pode estabelecer as regras, as condições para
obtenção do cargo; não é, porém, possível tirar, integralmente, absolutamente,
ao Executivo o direito de escolha.
Por todas estas razões, acompanho o Sr. Ministro Relator, indeferindo
o pedido.
Carlos Maximiliano partia da premissa de que as informações prestadas
pela autoridade coatora qualificavam, em princípio, interpretação realista e
ortodoxa da questão discutida. É a conclusão que se tira da leitura de seu voto,
confeccionado para o MS 473/DF, relatado pelo Ministro Ataulpho de Paiva,
requerido por Paulo Cesar de Aranha Hoppe e julgado em 22 de outubro de 1937:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, a primeira parte
da petição levar-me-ia à mesma conclusão a que chegou o Sr. Ministro Relator;
a segunda, entretanto, me faz repelir a preliminar.
O requerente alega que foi afastado da comissão em que se encontrava
e proibido de voar, porque era suspeito de atividades comunistas, fato que lhe
foi comunicado pelo comandante da Base Naval em que serviu. Em seguida,
porém, essa proibição foi revogada e ele ficou, apenas, afastado da comissão.
O pedido, portanto, ficou prejudicado quanto à parte de poder continuar a voar,
pois é ele mesmo quem declara que essa proibição cessou.
Devia, então, guiar-me pelas informações do Governo — que é por onde
nos guiamos —, para não tomar conhecimento do pedido. Ora, o Ministério
não diz que o requerente foi afastado da comissão por ser comunista; mas sim
que ele, Ministro, tem o direito de indicar esta ou aquela pessoa para de ter mina
da comissão.
Tal afirmação exclui a certeza, pelo menos, de que o requerente foi afastado
por ser comunista. Ao contrário, foi reintegrado nas fileiras, conforme ele
próprio declara.
Nestas condições, tomo conhecimento do pedido, mas nego o mandado
pela segunda razão dada pelo Sr. Ministro Relator, que é, aliás, a única que
figura na informação do Governo, ou seja, a de caber a este o direito de escolher
os oficiais para o exercício de comissões de caráter administrativo-militar.
Carlos Maximiliano separava objetivamente o campo do habeas corpus
do núcleo do mandado de segurança. É o que se percebe no curtíssimo voto
elaborado para o MS 527/AC, relatado pelo Ministro Laudo de Camargo, impe-
61
Memória Jurisprudencial
trado por Nilo Bezerra de Oliveira e julgado em 27 de julho de 1939, portanto
já no Estado Novo:
62
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o Sr. Ministro
Relator informa tratar-se de multa criminal, cobrada executivamente, com
pressa, com irregularidade; informa, ainda, que, a propósito disto, há pedido de
habeas corpus, de que é Relator o Sr. Ministro Plínio Casado.
Nestas condições, acredito resolvermos a questão, dentro da lei, no
habeas corpus; que é o meio hábil no caso.
Por conseguinte, voto pela incompetência do Supremo Tribunal.
No MS 235/SP, julgado em 17 de julho de 1936, relatado pelo Ministro
Carvalho Mourão e que subiu à Corte Suprema em grau de recurso, concluiuse
que não se devia tomar conhecimento do pedido de mandado de segurança,
quando a parte dispusesse de recurso administrativo com efeito suspensivo.
Os limites da questão estão indicados no relatório do Ministro Carvalho Mourão:
O Sr. Ministro Carvalho Mourão (Relator): Senhor Presidente, o impetrante
alega ser licenciado em São Paulo para exercer a profissão de arquiteto
por força da Lei 2.822, de 1924, confirmada pelo Decreto Federal 23.569, de
1933, que veio regular o exercício da engenharia no país. Todavia, o Conselho
Regional de Engenharia e Arquitetura baixou, depois, resolução (de n. 1) estabelecendo,
no art. 2º, restrições de ordem técnica.
Aí se declara que a profissão de arquiteto se limita, na construção de edifícios,
a obras que não exijam cálculos de estabilidade e resistência.
O requerente considera certo e incontestável o seu direito e, por conseguinte,
ilegal a resolução do Conselho, pede o presente mandado de segurança
a fim de que possa exercer sem restrições a sua profissão, encarregando-se da
construção de edifícios e obras complementares, ainda que exijam cálculos de
resistência e de estabilidade.
O MM. Juiz Federal, apreciando o pedido, levantou duas preliminares:
a primeira consistente em que se não deve tomar conhecimento do pedido,
porque são decorridos mais de 120 dias, contados do ato que o recorrente considera
lesão, ou ameaça de lesão, de seu direito; a segunda em que do ato do
coator cabe recurso suspensivo, independentemente de caução, fiança ou depósito.
Desprezando as preliminares, o juiz concedeu o mandado e recorreu ex
officio. Também recorreram o Conselho de Engenharia e o Dr. Procurador da
República. Ambos arrazoaram os seus recursos. Nesta instância superior, mandei
dar vista ao Dr. Procurador-Geral, que se reportou a um outro parecer que
dera em mandado de que foi Relator nosso eminente colega, Sr. Ministro Laudo
de Camargo, e que, segundo S. Exa. afirmara, é absolutamente idêntico ao atual.
É o relatório.
Carlos Maximiliano entendia que, na pendência ou na possibilidade de
recurso, não se poderia manejar o mandado de segurança:
Ministro Carlos Maximiliano
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, estou de acordo
com as conclusões do Sr. Ministro Costa Manso, embora, nos fundamentos de
seu voto, me pareça S. Exa. haver incorrido em contradição com o voto anterior.
Em caso de que tratamos há tempo, a lei era do Governo Provisório.
Agora, trata-se de provimento de comissão pelo Governo; é ato do qual
cabe recurso, com efeito suspensivo.
Assim sendo, já que determinava a lei sobre mandado de segurança que
este não cabe enquanto houver recurso, com efeito suspensivo, para instâncias
administrativas superiores, dou provimento ao recurso. Casso o mandado por
não terem sido esgotados os recursos administrativos.
O Ministro Laudo de Camargo lembrou em plenário que de ato de
Conselho Regional caberia recurso para instância superior, dotado de efeito suspensivo.
Por isso, somente depois do julgamento do caso, em âmbito administrativo,
é que o ato guerreado tornar-se-ia definitivo, admitindo-se, só a partir
daí, o uso do mandado de segurança.
A pendência do recurso administrativo obstaculizando o mandado de
segurança também foi discutida no RMS 543/PE, julgado em 25 de outubro de
1938, relatado pelo Ministro José Linhares, em que o recorrente era o Instituto
do Açúcar e do Álcool e o recorrido Antonio xavier de Andrade. Nos termos do
singelo — porém preciso — voto de Carlos Maximiliano:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, a lei, quando
proíbe que a parte impetre o mandado de segurança, havendo recurso administrativo,
declara que é só quando o recurso tiver efeito suspensivo e este deve
estar declarado em lei.
A parte fica entre as duas pontas do dilema: ou o recurso é devido contra
o ato do delegado do Instituto de Álcool de Pernambuco — neste caso, passou
o prazo porque do ato teve conhecimento há mais de 120 dias —, ou, ao contrário,
não é contra esse ato, mas sim contra o Instituto em pessoa, porque ele quer
contar o prazo não do ato que ele praticou, mas do ato posterior. Provavelmente,
neste segundo caso, o recurso devia ter sido interposto na capital da República.
Das duas uma: ou ele pede contra o ato do delegado exclusivamente — nesse
caso, passaram-se os 120 dias da lei —, ou pede contra o Instituto em conjunto,
e o Delegado não está mais em caso.
Por um motivo ou por outro, não pode prevalecer o processo.
Dou provimento ao recurso para cassar o mandado.
O modelo de funcionalidade do mandado de segurança firmava-se nesse
conjunto de julgados da Corte Suprema, na segunda metade da década de 1930.
No RMS 238/DF, cujos recorridos eram Ícaro Garcia e Luiz Gastão Lessa
Bastos, na relatoria de Octavio Kelly, acentuou-se que não se poderia conceder
mandado de segurança, nem a quem tivesse direito ao que pedia, se o direito
invocado fosse controvertido, não certo, incontrastável, e, acima de tudo, razoável,
como se colhe na ementa do aludido julgado.
63
Memória Jurisprudencial
Os impetrantes do mandado de segurança haviam concluído o 6º ano do
Colégio Militar do Rio, sob regime de decreto que fora alterado e em seguida
lhes fora impedido o ingresso na Escola Militar, por entender o Chefe do Estado
Maior do Exército que um novo decreto era aplicável, e que seria necessário
um exame vestibular, em face da nova legislação e em decorrência das médias
obtidas pelos impetrantes. Levaram a liminar e a decisão de primeira instância,
razão do apelo, dirigido pela União, à Corte Suprema. Houve informação de
que a ordem fora cumprida, no sentido de que se matriculassem os interessados,
pelo que, nos termos de passagem do Relator, o pedido estava prejudicado.
O Procurador-Geral da República juntou explicação, dando conta de que
fora informado que o Ministro da Guerra não apenas cumprira a decisão de primeira
instância, em relação aos recorridos, como também determinara que se
estendesse o conteúdo da decisão a todos quantos estivessem na mesma situação.
A situação não convenceu a Carlos Maximiliano, que não vislumbrou
direito certo e incontestável em favor dos recorridos, bem como não admitiu a
decisão de primeira instância, cassando-a:
64
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, do processo
infiro que há longo debate entre o Gabinete do Sr. Ministro da Guerra e o Estado
Maior do Exército.
No Exército Brasileiro, como no de todos os povos cultos, existe essa corporação,
composta de oficiais de grande preparo, talvez os mais adestrados da
tropa, que opinam, exatamente, sobre os casos mais difíceis, quer propriamente
militares, quer regulamentares. No labirinto formidável, que constitui a legislação
militar do Brasil, não há autoridade mais competente do que o Estado Maior.
Entretanto, no caso presente, há divergência, como se vê, entre o
Gabinete e o Estado Maior. Ora, diante desse contraste, argumentos contrários
sendo apresentados de parte a parte, não encontro, no impetrante, direito certo
e incontestável.
Também não posso concordar em julgar prejudicado o pedido.
Quanto ao fato de o Sr. Ministro da Guerra ter mandado cumprir a sentença,
S. Exa. não fez mais do que a sua obrigação. Fez cumprir porque assim
estava obrigado, por lei. De fato, diz o art. 10 da Lei 191:
Recebendo cópia da sentença, o representante da pessoa jurídica
de direito público, sob pena de responsabilidade, ou no caso do art. 1º,
parágrafo único, dará, imediatamente, as providências necessárias para
cumprir a decisão judiciária.
Por outro lado, do mandado de segurança não há recurso suspensivo. Assim,
cabendo ao Sr. Ministro da Guerra, no caso, fazer cumprir a sentença, S. Exa. disto
se executou. Fez o que devia. Não quer dizer que se submeteu. Pelo contrário, pois
o órgão do Governo junto ao Judiciário, o Sr. Procurador-Geral, recorreu da sentença;
assim, não houve conformidade, como se quer dar a entender — pois, simplesmente,
o que houve foi pura obediência à lei que regula o mandado.
Por tudo isso, não julgando prejudicado o pedido, dou provimento para o
recurso, para mandar cassar o mandado de segurança.
Ministro Carlos Maximiliano
As linhas gerais do mandado de segurança, especialmente no que se referia
à competência da Justiça Federal, foram também discutidas no RMS 254/SP,
relatado pelo Ministro Carvalho Mourão e que tinha como recorrente a firma A.
Ribeiro & Cia. Ltda. e como recorridas a Fazenda do Estado de São Paulo e a
União Federal. A questão foi julgada em 1º de julho de 1936.
A matéria era de fundo tributário. O Estado de São Paulo vinha exigindo
dos impetrantes imposto incidente sobre vendas mercantis, com base em lei
estadual, a partir do exercício de 1936. Até 1935, o tributo era de competência
federal. O impetrante alegava que houvera majoração, de cerca de 20%, quando
da mudança de competência, de federal para estadual, de 1935 para 1936, no
cumprimento de disposição da Constituição de 1934.
O Procurador Fiscal do Estado de São Paulo contestou a demanda,
mediante informações, alegando que o direito do interessado, “de pagar imposto
sobre rendas e consignação mediante tarifa menor do que a fixada na lei estadual”,
não se mostrava certo e incontestável, bem como o impedimento ao seu
exercício decorria de ato ilegal ou manifestadamente inconstitucional.
Invocou também que, ao fixar o novo modelo, inclusive com novas alíquotas,
teria o Estado de São Paulo praticado ato de sua atribuição, nos estritos
moldes da letra e do inciso I do art. 8º da Constituição de 1934. Argumentava
também que as modalidades tributárias discutidas não eram exatamente as mesmas.
Isto é, o imposto estadual sobre vendas e consignações, de competência
estadual, não era o mesmo imposto federal que no pretérito incidia sobre as
vendas mercantis.
O Procurador da República foi ouvido. Opinou pela incompetência da
Justiça Federal para processar e julgar o pedido, por força do disposto na letra h
do art. 81 da Constituição Federal, “pois que a impetrante se queixava de ameaça
de direito seu, certo e incontestável, por ato manifestadamente inconstitucional,
praticado por autoridade estadual”.
O Juiz Federal que apreciou a questão julgou-se competente, vencendo
a preliminar. No mérito, denegou o mandado, especialmente porque não se lhe
afigurava evidente e manifesta a alegada inconstitucionalidade da lei paulista
então impugnada. Seguiu então recurso para a Corte Suprema.
Como Procurador-Geral ad hoc, manifestou-se Themistocles Cavalcanti,
para quem o recurso fora interposto fora do prazo legal. Além disso, para ele,
a regra constitucional que fixava a competência deveria ser lida de modo restrito,
não se admitindo nenhuma ampliação; isto é, mandados de segurança, em
âmbito de Justiça Federal, eram protocolados em face de autoridades federais.
Não se tratava da hipótese, porquanto a autoridade coatora era do governo do
Estado de São Paulo.
65
Memória Jurisprudencial
Por fim, e no mérito, alegou que o direito pleiteado não era certo e incontestável,
nem era certa a inconstitucionalidade argüida. E remendou observando
que “os debates doutrinários verificados naqueles autos sobre o ponto de vista
da técnica jurídica como do ponto de vista da técnica tributária, quando não
levassem a conclusão que se lhe afigurasse mais acertada, ainda assim levariam
a dúvidas que tornariam incerto e incontestável o direito do recorrente”.
O Relator afastou todas as preliminares e decidiu que a competência era
da Justiça local, e, portanto, não se estava em face de matéria de fundo federal.
No mesmo sentido votou Carlos Maximiliano:
66
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o primeiro mandado
de segurança discutido pela Corte Suprema colocava mais à margem a
competência da Justiça Federal do que este.
Naquele, V. Exa. deve estar lembrado, alegava-se a inconstitucionalidade
de uma lei federal — o Regulamento da Inspetoria de Veículos —, mas, apesar
disso, prevaleceu a preliminar de não se tomar conhecimento, porque se tratava
de ato do Chefe de Polícia, o que também era duvidoso, visto ser nomeado pelo
Presidente da República, isto é, considerou-se que a autoridade contra a qual se
pedia o mandado era local.
O caso em apreço só se ocupa de autoridades estaduais, indiscutivelmente
estaduais.
Havendo, nesse sentido, uma jurisprudência firmada há mais de dois
anos, que já se tornou pacífica, concordo com o Sr. Ministro Relator em negar
provimento, mas por outro fundamento, isto é, incompetência do juiz, que, aliás,
examinou o mérito do caso.
Carlos Maximiliano voltava a apreciar matéria administrativa no RMS
256/DF, relatado pelo Ministro Costa Manso, impetrado por Hermínia da Conceição
Silva e julgado em 10 de julho de 1936.
A impetrante inscrevera-se em concurso aberto pelo Ministério da
Agricultura para o preenchimento de dez vagas de terceiro-oficial. Foi classificada
em 41º lugar. Constava do edital que o concurso seria válido pelo prazo
de dois anos, contados da data da sua aprovação pelo Ministro da Fazenda, e
os candidatos nele classificados do 11º lugar em diante seriam nomeados para
as vagas de terceiro-escriturário das diretorias gerais técnicas. O concurso fora
aprovado por ato de 20 de janeiro de 1934, e o prazo de validade, portanto,
esgotar-se-ia em 20 de janeiro de 1936.
Ao longo desse prazo foram aproveitados os candidatos até o 40º classificado.
Para a impetrante corresponderia a próxima vaga. Nomeou-se, no entanto,
no lugar da impetrante, o arquivista Silvio Nunes dos Santos. A requerente
alegou que isso ofendia o art. 170, 2, da Constituição, que exigia concurso de
provas ou de títulos para a primeira investidura nos postos de carreira das repartições
administrativas. Segundo a impetrante, o arquivista não se submetera a
concurso nem tinha direito a promoção.
Ministro Carlos Maximiliano
O Ministro da Agricultura, nas informações prestadas, observou que o
edital fixava que a nomeação (a partir do 11º colocado) seria para o cargo de
terceiro-escriturário, e não para o cargo de terceiro-oficial, como pretendia a
impetrante. Com base nessa informação, o Ministro Relator indeferiu o pedido
da impetrante, de modo que se ementou como segue: “As condições do concurso
aberto pelo Ministério da Agricultura para a nomeação de terceiros escriturários
não conferem aos candidatos o direito à nomeação de terceiros oficiais.”
Carlos Maximiliano seguiu a mesma linha, invocando que a interessada
não tinha direito subjetivo à nomeação. O voto é curtíssimo, porém impressionantemente
rico na dimensão que desenha, no que refere ao papel do Estado nos
concursos públicos que organiza.
Senhor Presidente, julgo que o fato de ser aprovado em concurso não
dá direito à nomeação pela ordem de classificação, embora isto seja de justiça.
É regra de ética, mas não de direito. O Governo até pode anular o concurso, se
não estiver de acordo com a classificação.
Por tudo isso, não acho que haja direito certo e incontestável. Assim, voto
com o Relator.
À época, a Corte Suprema também sufragou entendimento no sentido de
que nulo seria o mandado de segurança impetrado contra autoridade que não
era coatora. Trata-se do RMS 308/MG, julgado em 25 de setembro de 1936,
relatado por Carlos Maximiliano. O relatório dá os contornos da questão, e o
voto, sintético, explicita a posição do Ministro aqui estudado:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Alega o jovem José Marcelino que
a lei federal sobre o ensino facultava aos ginasianos, já aprovados em mais de
seis preparatórios, prestar exame dos que lhes faltassem conjuntamente com o
exame vestibular. O impetrante tentou, em março de 1935, aproveitar-se dessa
disposição, o que não foi possível, por achar-se fechado o curso de Química
Industrial da Escola de Engenharia da Universidade de Minas Gerais. Reaberto
o curso, entrou como ouvinte; porém, quando pretendeu, em março de 1936,
submeter-se a exame dos preparatórios que lhe faltavam, foi-lhe respondido
pela diretoria da escola haver a Diretoria-Geral da Educação do Ministério da
Educação, em Aviso de 29 de dezembro de 1935, declarado ter deixado de vigorar
em 1936 a concessão de que pretendia aproveitar-se o impetrante. Este achou
estar sendo violado direito seu; pelo que requereu ao Juiz Federal de Minas
Gerais mandado de segurança, dando como autoridade coatora o Diretor da
Escola de Engenharia. Ouvido este, respondeu ter apenas cumprido ordem do
Departamento-Geral da Educação, e estar pronto a atender ao suplicante, uma
vez revogada a dita ordem. O Juiz, apesar do parecer favorável do Procurador
da República, não tomou conhecimento do pedido, por ser autoridade coatora
a Diretoria-Geral de Ensino, com sede na Capital da República e, portanto, ser
competente o Juízo Federal do Distrito Federal. O Sr. Dr. Procurador-Geral
opina ser competente o Juiz de Belo Horizonte.
67
Memória Jurisprudencial
68
VOTO
O ser a autoridade coatora a Diretoria-Geral da Educação é coisa que se
não infere somente da informação do Diretor da Escola, mas também se deduz
da própria inicial. Logo, contra a mencionada Diretoria-Geral deveria ser dirigido
o mandado. Na verdade, só esta poderia informar em que se fundou para
declarar não vigorante em 1936 a faculdade concedida em 1931. Como, pois, o
processo foi intentado contra autoridade que não era a coatora, e a coatora não
foi ouvida, está nulo, ab initio, todo o processado (Lei 191, de 16 de janeiro de
1936, arts. 7º e 8º).
Se considerássemos autoridade coatora a Diretoria da Escola, então, anularíamos
o processo, por incompetência da Justiça Federal, visto ser estadual a
Escola, e, portanto, autoridade local o Diretor.
Por todos estes motivos, nego provimento ao recurso.
O campo temático do mandado de segurança era similar ao que percebemos
no modelo atual. Por exemplo, no RMS 2.880/RJ, relatado pelo Ministro
Laudo de Camargo, tendo por recorrente José Serpa de Carvalho e por recorrido
o Procurador-Geral do Estado do Rio de Janeiro, discutia-se o regime de promoção
do Ministério Público estadual, no que se refere a interesse do recorrente,
então Promotor de 3ª Entrância na Comarca de Iguaçu.
Carlos Maximiliano deferiu o pedido, acolhendo a pretensão do recorrente,
invocando direito adquirido, da forma que segue:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, a disposição da
Constituição estadual, que dá poderes ao procurador local para remover os promotores,
não me parece violadora da Carta federal. Todavia, não há contradição
alguma entre este texto de lei e o que pretende o impetrante invocar.
Alega o Dr. Procurador que, para remover um promotor de entrância inferior
para superior, são necessárias certas qualidades, alguns requisitos. Ora, não
é isso exigível, no caso presente, que é, manifestamente, de direito adquirido.
De fato, imaginemos o caso de funcionário que está fixo em determinado
lugar. Posteriormente, a lei vem a criar certas condições para o acesso a este
cargo. É fora de dúvida que essas condições só podem atingir aqueles nomeados
ou promovidos depois da promulgação da lei.
Ora, segundo as informações prestadas pelo eminente Ministro Relator,
creio que é esse o caso ocorrido no Estado do Rio, que está em debate.
Nestas condições, dou provimento ao recurso, para conceder a medida
impetrada.
Percebe-se nas intervenções de Carlos Maximiliano importante papel na
fixação dos contornos do mandado de segurança no direito brasileiro. A relação
entre o mandado de segurança e o papel do Poder Judiciário no que se refere a
questões políticas, o papel do mandado de segurança nas discussões de matéria
tributária, problemas de fixação de competência — originária ou recursal
—, situações de servidores públicos, classificação em concurso, promoções,
Ministro Carlos Maximiliano
definição precisa e objetiva de direito líquido e incontestável, matéria criminal,
limites entre mandado de segurança e habeas corpus, regulamento da Escola
Naval, entre outros, são assuntos tratados nos mandados de segurança aqui
indicados, nos quais se percebe a presença firme de Carlos Maximiliano, que,
nesse sentido, exerce papel central na fixação dessa criação típica do direito brasileiro,
que é o mandado de segurança.
69
Memória Jurisprudencial
4. Habeas corpus
Carlos Maximiliano exerceu também muita influência na fixação da
competência e do campo de atuação do habeas corpus. Especialmente, como se
verá, miríade de assuntos foram discutidos, de modo que se tem um panorama
da história do direito à época, especialmente sob a ótica das intervenções de
Carlos Maximiliano como Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Na Corte Suprema, repudiou-se o uso do habeas corpus para discussão
de matéria de fato. Isto é, firmou-se jurisprudência no sentido de que não se
poderia usar do habeas para revisão de provas. Assuntos de feição mais privada,
bem como, e especialmente, temas de alto relevo político foram debatidos
no Supremo Tribunal Federal. Por exemplo, entre os vários temas debatidos em
habeas corpus, discutiu-se pronúncia de menor, definição de atividade nociva,
segurança nacional, estado de guerra, estado de sítio, ordem pública, terrorismo,
partidos políticos, atuação da Ação Integralista Brasileira e liberdade de
expressão, entre tantos outros assuntos.
Do ponto de vista de registros históricos mais conhecidos, foram apreciados
em habeas corpus o caso de Ernesto Gattai — pai da memorialista Zélia
Gattai —, a expulsão de Olga Prestes — que esperava um filho de Luís Carlos
Prestes —, bem como o famoso caso do deputado baiano João Mangabeira.
Advogados de renome, como Sobral Pinto, atuaram intensamente no Supremo
Tribunal Federal que Carlos Maximiliano conheceu.
Na Corte Suprema, definiram-se também as linhas gerais da doutrina
das nulidades, tema procedimental relativo ao habeas corpus, em sua dimensão
fática. Princípio da bagatela, expulsão de estrangeiros, extradição, controle de
estrangeiros no território nacional, competência de magistrados para, de ofício,
reverem as próprias decisões, crimes políticos, prescrição, competência da Justiça
Militar, federalismo (a partir do alcance de lei federal em todo o território
nacional), competência do Tribunal do Júri, natureza da Constituição de 1937,
Lei de Imprensa, crime de defloramento e ação penal privada, a par de questões
de muita atualidade, a exemplo da discussão relativa à possibilidade ou não de o
réu responder em liberdade, ainda que foragido, encontram-se entre os inúmeros
temas discutidos no Supremo Tribunal Federal, ao longo dos anos em que Carlos
Maximiliano foi Ministro da Corte Suprema. É do que se trata em seguida.
Antes, no entanto, cabe fazer uma rápida contextualização do texto constitucional
de 1937, bem como da Lei de Segurança Nacional então vigente, porquanto
ambos os textos dão os contornos históricos e normativos da época aqui estudada.
O texto constitucional de 1937, atribuído ao jurista Francisco Campos, em
linhas gerais, dava conta de regime ditatorial. A hipertrofia do Executivo federal
ficava clara em regra que apontava que o Governo federal interviria nos Estados,
70
Ministro Carlos Maximiliano
mediante a nomeação, pelo Presidente da República, de interventor, que assumiria
no Estado as funções que, pela sua Constituição, fossem de competência
do Poder Executivo, ou as que, de acordo com as conveniências e necessidades
de cada caso, lhe fossem atribuídas pelo Presidente da República para impedir
invasão iminente de um país estrangeiro no território nacional, ou de um Estado
em outro; para restabelecer a ordem gravemente alterada, nos casos em que o
Estado não quisesse ou não pudesse fazê-lo; para administrar o Estado, quando,
por qualquer motivo, um dos seus Poderes estivesse impedido de funcionar; para
reorganizar as finanças do Estado que suspendesse, por mais de dois anos consecutivos,
o serviço de sua dívida fundada, ou que, passado um ano do vencimento,
não houvesse resgatado empréstimo contraído com a União; para assegurar a
execução de princípios constitucionais, a exemplo da forma republicana e representativa
de governo, do governo presidencial, dos direitos e garantias assegurados
na Constituição; e para assegurar a execução das leis e sentenças federais.
O poder central plasmava-se na figura presidencial. A norma vigente
determinava que o Presidente da República, autoridade suprema do Estado,
coordenaria a atividade dos órgãos representativos de grau superior, dirigiria a
política interna e externa, promoveria e orientaria a política legislativa de interesse
nacional e superintenderia a administração do País.
Em âmbito de competência privativa, competia ao chefe da nação sancionar,
promulgar e fazer publicar as leis e expedir decretos e regulamentos para
a sua execução; expedir decretos-leis; manter relações com os Estados estrangeiros;
celebrar convenções e tratados internacionais ad referendum do Poder
Legislativo; exercer a chefia suprema das forças armadas da União, administrando-as
por intermédio dos órgãos do alto comando; decretar a mobilização das
forças armadas; declarar a guerra, depois de autorizado pelo Poder Legislativo,
e, independentemente de autorização, em caso de invasão ou agressão estrangeira,
fazer a paz ad referendum do Poder Legislativo; permitir, após autorização
do Poder Legislativo, a passagem de forças estrangeiras pelo território nacional;
intervir nos Estados e neles executar a intervenção; decretar o estado de emergência
e o estado de guerra; prover os cargos federais, salvo as exceções previstas
na Constituição e nas leis; autorizar brasileiros a aceitar pensão, emprego ou
comissão de governo estrangeiro; determinar que entrassem provisoriamente
em execução, antes de aprovados pelo Parlamento, os tratados ou convenções
internacionais, se a isso o aconselhassem os interesses do País; indicar candidatos
à própria sucessão; dissolver a Câmara dos Deputados; nomear Ministros de
Estado; designar membros do Conselho Federal reservados à sua escolha; adiar,
prorrogar e convocar o Parlamento, bem como exercer o direito de graça.
Disposições transitórias ao referido texto constitucional fortaleciam
a autoridade presidencial. Indicavam, por exemplo, que, dentro do prazo de
sessenta dias, a contar da data da Constituição, poderiam ser aposentados ou
71
Memória Jurisprudencial
reformados, de acordo com a legislação em vigor, os funcionários civis e militares
cujo afastamento se impusesse, a juízo exclusivo do Governo, no interesse
do serviço público ou por conveniência do regime. Declarava-se o estado de
emergência, nos termos do art. 168 da Constituição.
É dessa época também uma lei de segurança nacional (Lei 38, de 4 de
abril de 1935), articulada pelo jurista Vicente Rao. Essa lei definia os crimes
contra ordem política e social. Principiava indicando conjunto de crimes contra
a ordem política, não excluindo outros definidos em lei. O primeiro tipo consistia
em tentar, diretamente e por fato, mudar, por meios violentos, a Constituição
da República, no todo ou em parte, ou a forma de governo por ela estabelecida.
A pena prevista era a de reclusão, de seis a dez anos para os líderes e de cinco a
oito anos para os co-réus.
Também cometia crime quem se opusesse diretamente — ou de fato —
à reunião ou ao livre funcionamento de qualquer dos poderes políticos da
União. A pena era de reclusão, de dois a quatro anos. Indicativo da hipertrofia
do Executivo central, a par do desacerto histórico do federalismo brasileiro, a
pena seria reduzida de um terço se o crime fosse cometido contra poder político
estadual, bem como pela metade, se cometido contra poder municipal.
O art. 3º previa pena de prisão celular de um a três anos a quem fizesse
oposição, por meio de ameaça ou violência, ao livre e legítimo exercício de funções
de qualquer agente do poder político da União. De igual modo ao descrito
na modalidade anterior, a pena seria reduzida se o ofendido fosse o Estado ou
o Município.
O art. 4º prescrevia as penas acima mencionadas, diminuídas de um
terço, para os que cometessem os crimes acima descritos mediante a prática de
uma série de atos, a saber: aliciamento ou articulação de pessoas; organização
de planos e plantas de execução, mediante aparelhamento de meios ou recursos;
formação de juntas ou de comissões para direção, articulação ou realização dos
referidos planos; instalação ou funcionamento clandestino de estações radiotransmissoras
ou radiorreceptoras e, por fim, transmissão, por qualquer meio,
de ordens ou instruções para a execução dos crimes previstos pela lei.
O art. 5º previa penas de três a nove meses de prisão celular para quem
impedisse funcionário público de tomar posse do cargo para o qual tivesse sido
nomeado, para quem usasse de ameaça ou violência para forçá-lo a praticar ou
deixar de praticar qualquer ato de ofício, ou para quem obrigasse funcionário
público a exercer o cargo, em determinado sentido.
O art. 6º previa pena de um a três anos de prisão celular para quem incitasse
publicamente à prática dos crimes previstos nos três primeiros artigos da
lei. O art. 7º prescrevia a mesma pena para quem incitasse funcionários públicos
ou servidores do Estado à cessação coletiva, total ou parcial, dos serviços.
72
Ministro Carlos Maximiliano
A previsão atingia a greve no serviço público, que ficava terminantemente proibida.
A perda de cargo era a pena prevista para o funcionário público que paralisasse
suas atividades. A instigação da desobediência coletiva ao cumprimento
da ordem pública era também penalizada com um a três anos de prisão celular.
A incitação de militares — inclusive policiais — à desobediência da lei
ou à infração de qualquer forma de disciplina, bem como à rebelião e à deserção,
suscitavam prisão celular, pelo prazo de um a quatro anos. Incorreria na
mesma pena quem distribuísse ou procurasse distribuir entre soldados e marinheiros
quaisquer papéis, impressos, manuscritos, datilografados ou mimeografados,
nos quais se incitasse diretamente à indisciplina. A pena era extensiva
a quem introduzisse ou procurasse introduzir semelhantes papéis em qualquer
estabelecimento militar ou vaso de guerra. De igual modo, para quem afixasse,
apregoasse ou vendesse tais papéis nas imediações de estabelecimentos de caráter
militar, ou de local em que soldados se reunissem, se exercitassem ou praticassem
manobras. Previa-se também a apreensão e a destruição de tais papéis.
O art. 11 da Lei de Segurança previa penas de um a três anos de prisão
celular para quem provocasse animosidade entre classes armadas, inclusive policiais
militares, ou contra elas, ou delas contra instituições civis. O art. 12 prescrevia
penas de quinze a noventa dias de prisão celular para quem divulgasse,
por escrito, ou em público, notícias falsas, sabendo ou devendo saber que o eram,
especialmente se tais notícias gerassem na população desassossego ou temor.
O art. 13 previa pena de um a quatro anos de prisão celular para aqueles
que fabricassem, ou tivessem sob guarda ou posse, ou que importassem ou
exportassem, comprassem ou vendessem, trocassem, cedessem ou emprestassem,
por conta própria ou de outrem, ou que transportassem, sem licença da
autoridade competente, substâncias ou engenhos explosivos, ou armas utilizáveis
como de guerra ou como de instrumento de destruição. O parágrafo único
esclarecia que não dependia de licença de autoridade policial — que, no entanto,
deveria ser comunicada, sob pena de apreensão — a posse de arma necessária
à defesa do domicílio do morador rural, bem como a de explosivos necessários
ao exercício de profissão ou à exploração da propriedade.
Em seguida listavam-se os crimes contra a ordem social, com observação
de que não se excluíam outras modalidades definidas em lei. Com penas
variáveis, indicavam-se como crimes: incitação direta do ódio entre as classes
sociais; instigação das classes sociais à luta pela violência; incitação de luta religiosa
pela violência; incitação ou preparação de atentado contra pessoa ou bens,
por motivos doutrinários, políticos ou religiosos; instigação ou preparação de
paralisação de serviços públicos ou de abastecimento à população; indução de
empregadores ou empregados à cessação ou suspensão do trabalho por motivos
estranhos às condições inerentes a ele; promoção, organização ou direção de
73
Memória Jurisprudencial
sociedade de qualquer espécie, cuja atividade se exercesse no sentido de subverter
ou de modificar a ordem pública ou social por meios não consentidos em lei.
Previa-se a dissolução das referidas sociedades, bem como se impediria que seus
membros se reunissem para os mesmos fins. A mera afiliação a essas sociedades
suscitava penalização. Por fim, prescrevia-se pena de seis meses a dois anos para
quem tentasse, por meio de artifícios fraudulentos, promover a alta ou baixa dos
preços de gêneros de primeira necessidade, com o fito de lucro ou proveito.
O art. 22 da lei indicava que não seria tolerada a propaganda de guerra
ou de processos violentos para subversão da ordem política ou social. O § 1º
definia ordem pública como aquela que resultasse da independência, soberania
e integridade territorial da União, bem como da organização e atividade dos
poderes políticos, estabelecidos na Constituição da República, nas dos Estados
e nas leis orgânicas respectivas. O § 2º definia ordem social, indicando-a como
aquela estabelecida pela Constituição e pelas leis relativamente aos direitos e
garantias individuais e à sua proteção civil e penal, ao regime jurídico da propriedade,
da família e do trabalho, bem como à organização e ao funcionamento
dos serviços públicos e de utilidade geral e aos direitos e deveres das pessoas de
direito público para com os indivíduos e reciprocamente.
O art. 23 prescrevia pena de um a três anos de reclusão para quem
fizesse propaganda de processos violentos para subversão da ordem pública; a
pena seria de um a três anos de prisão celular para quem fizesse propaganda de
processos violentos para subversão da ordem social. Idêntica pena era prescrita
para quem fizesse propaganda de guerra.
Quando os crimes previstos pela lei de segurança fossem cometidos
pela imprensa, as respectivas edições seriam apreendidas, sem prejuízo das respectivas
ações penais. A execução da medida competia, no Distrito Federal, ao
chefe de polícia, e, nos Estados e no Território do Acre, à autoridade policial de
maior graduação no local. A autoridade que determinasse a apreensão deveria
comunicar imediatamente o fato ao juiz federal da seção, inclusive remetendolhe
exemplar da edição apreendida.
O art. 26 vedava a impressão, exposição à venda, venda ou qualquer
modo de circulação de gravuras, livros, panfletos, boletins ou quaisquer publicações
não periódicas, nacionais ou estrangeiras, em que se verificasse prática
de ato definido como crime na lei, devendo a autoridade apreender os exemplares,
sem prejuízo da ação penal competente. A mesma prática, por meio de
radiodifusão, ensejava a aplicação de multas pecuniárias, além da suspensão do
funcionamento por prazo não excedente a sessenta dias, ou o fechamento, constatada
a reincidência. Seriam multadas também as agências de publicidade ou
transmissoras de notícias e informações que praticassem atos definidos como
delituosos pela lei de que se cuida.
74
Ministro Carlos Maximiliano
O art. 29 previa que as sociedades que houvessem adquirido personalidade
jurídica mediante falsa declaração de seus fins, ou que, depois de registradas,
passassem a exercer atividade subversiva da ordem política ou social,
seriam fechadas pelo governo, por até seis meses, devendo, sem demora, ser
proposta ação judicial de dissolução.
O art. 30 proibia a existência de partidos, centros, agremiações ou juntas,
de qualquer espécie, que visassem a subversão, pela ameaça ou violência,
da ordem política ou social. O art. 32 previa afastamento ou demissão (essa, por
sentença judiciária ao funcionário vitalício, como se chamava o estável) para
servidor público civil que se filiasse ostensiva ou clandestinamente a partido,
centro, agremiação ou junta de existência proibida pela lei, bem como se praticasse
quaisquer dos crimes descritos pela norma que se estuda. O art. 33 previa
afastamento do cargo, comando ou função militar para o oficial das forças
armadas que praticasse atos definidos como criminosos pela lei de segurança
nacional. O art. 34 previa incompatibilidade com o oficialato, por parte do oficial
militar que cometesse algum crime previsto na Lei de Segurança Nacional,
o que seria declarado pelo Superior Tribunal Militar. O art. 36 prescrevia que,
sem prejuízo de ação penal, perderia o cargo o professor que, na cátedra, praticasse
quaisquer dos atos definidos como crime pela Lei de Segurança, provado
o fato em processo administrativo, ou, se estável, mediante sentença judiciária.
O art. 37 previa que seria cancelada a naturalização, tácita ou voluntária,
de quem exercesse atividade política nociva ao interesse nacional.
Considerava-se essa última a prática de qualquer dos delitos previstos na Lei de
Segurança, sem prejuízo de outros casos previstos na legislação.
O art. 38 prescrevia o rito para o cancelamento da naturalização, bem
como para a punição dos demais crimes capitulados na lei. Apresentada a denúncia,
instruída com documentos comprobatórios, se existissem, ou com rol de três
testemunhas, pelo menos, se houvesse, o juiz determinaria a citação do acusado
para a primeira audiência. Não sendo encontrado o acusado, a citação seria feita
por edital, com dez dias de prazo. Se o acusado não comparecesse em audiência,
o procedimento seguiria à revelia, com designação de curador. Se presente o acusado,
seria qualificado, em seguida seria lida a denúncia — ou queixa —, com
concessão de prazo de cinco dias para que o acusado apresentasse defesa escrita
e indicasse rol de testemunhas e elementos da defesa. Findo esse prazo, seriam
inquiridas as testemunhas de acusação e de defesa. Seriam também praticadas
as diligências requeridas pelas partes. O acusado, depois de qualificado, poderia
defender-se por procurador e deixar de comparecer à formação da culpa, se não
houvesse sido preso em flagrante ou preventivamente. A inquirição das testemunhas
e as diligências requeridas deveriam ser realizadas no prazo de vinte dias.
Terminada a dilação probatória, o autor teria cinco dias para arrazoar e, depois
dele, o réu teria idêntico prazo para a mesma finalidade. Ao fim desse prazo, o
75
Memória Jurisprudencial
processo seria julgado, e a sentença seria proferida dentro de dez dias. Dessa
última caberia recurso a ser interposto no prazo de cinco dias. O recurso não
teria efeito suspensivo, salvo quando se tratasse de crimes afiançáveis ou quando
o recurso dissesse respeito ao regime de cumprimento de pena.
O art. 39 previa o rito para o processo administrativo para exoneração
de funcionário público, nos casos previstos pela lei. O processo seria iniciado
mediante representação, ou ex officio, instruído com os documentos de acusação.
O acusado seria, então, ouvido; a ele seria dado o prazo de cinco dias
para resposta, sob pena de revelia. Se o acusado, em defesa, alegasse fatos que
dependessem de prova, o prazo para resposta seria dobrado. Depois de conclusos
os autos para a autoridade, essa teria cinco dias para preparar e apresentar
relatório minucioso. O processo seria, então, remetido ao Ministro ou ao
Secretário de Estado, ou ao Prefeito, conforme o caso, para decisão. Da decisão
caberia recurso para autoridade superior, no prazo improrrogável de cinco dias.
Em capítulo relativo a disposições gerais, a lei previa que seriam inafiançáveis
os crimes por ela punidos, cujo máximo da pena fosse prisão celular
ou reclusão superior a um ano. Em alguns casos que a lei indicava, a pena de
prisão seria cumprida em estabelecimento distinto dos destinados a réus de
crimes comuns, e sem sujeição a qualquer regime penitenciário ou carcerário.
No interesse da ordem pública, ou a requerimento do condenado, poderia o juiz
executor da sentença ordenar que a pena fosse cumprida fora do lugar do delito.
Poderia a autoridade judiciária, igualmente, a qualquer tempo, determinar a
alteração do local de cumprimento da pena.
Previa-se que o local do cumprimento da pena, salvo requerimento
do interessado, não poderia ser situado a mais de mil quilômetros do local do
delito, “asseguradas sempre boas condições de salubridade e de higiene”, na
dicção da lei, pelo menos. A competência para o processamento dos crimes definidos
na Lei de Segurança Nacional era da Justiça Federal, e sempre sujeitos a
juízo singular. O art. 46 previa que a prisão provisória do expulsando não poderia
exceder de três meses. Previa-se também que, em caso de demora de visto
consular no respectivo passaporte, poderia o governo localizar o expulsando em
colônias agrícolas ou fixar-lhe domicílio.
O art. 47 determinava que somente o poder público teria a prerrogativa
de constituir milícias de qualquer natureza, vedando-se organizações
militares, caracterizadas por subordinação hierárquica, quadros ou formações.
Excluíam-se do alcance do artigo as associações de escoteiros, os tiros de
guerra e outras autorizadas em lei. Aparentemente de modo liberal, porém com
pequeno alcance prático, o art. 48 previa que a exposição e a crítica de doutrina,
feitas sem propaganda de guerra ou de processo violento para subverter
a ordem política ou social, não motivariam nenhuma das sanções previstas na
76
Ministro Carlos Maximiliano
lei. O art. 50 indicava como circunstância agravante, quando não elementar do
delito, a condição de funcionário civil ou militar.
A Lei de Segurança Nacional projetou-se intensamente nos temas que
em seguida serão tratados. O Supremo Tribunal Federal vivia dias de angústias
e de incertezas, como se a Corte fosse um vulcão pronto para entrar em erupção.
Iniciou-se o Governo Provisório com vendeta desse último, diminuindo-se
os vencimentos dos Ministros e demitindo-se alguns deles; as razões, supostamente,
vinculavam-se a julgamentos anteriores em desfavor dos tenentes.
4.1 QUESTõES POLíTICAS
Em decisão de 30 de novembro de 1938, Carlos Maximiliano enfrentou
cautelosamente a questão da natureza da Constituição de 1937. Em muito
bem engendrada construção conceitual, Maximiliano indiretamente — e a
partir da ótica do paciente — cotejou os textos constitucionais de 1934 e 1937,
a propósito de efeitos práticos de eventual anistia. Apreciou-se a petição inicial,
que Maximiliano qualificou como digressão elegante. É do que se trata o
HC 26.941/PE, relatado pelo Ministro Washington de Oliveira e julgado em 30
de novembro de 1938:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o ilustre impetrante
alega que a nova Constituição eliminou os delitos cometidos pelos pacientes
e, por conseguinte, o réu devia ser absolvido ou, como seja a condenação
anterior, devia ter o remédio do habeas corpus.
Ora, a Constituição de 10 de novembro, assim como todas as Constituições
do mundo, prevê, exatamente, o contrário, ou seja, a reação legal contra aqueles
que querem mudar as instituições. A de 1937, no seu art. 122, n. 17, diz o seguinte:
Os crimes que atentarem contra a existência, a segurança e a
integridade do Estado, a guarda e o emprego da economia popular serão
submetidos a processo e julgamento perante tribunal especial, na forma
que a lei instituir.
É, exatamente, o que se dá com os pacientes, que foram submetidos a
processo e julgamento perante tribunal especial, de acordo com esse dispositivo.
Pela argumentação do ilustre advogado, pareceria, à primeira vista, quisesse
ele chegar à conclusão de que o crime praticado pelos pacientes seria igual
ao do Senhor Presidente da República e, como o Chefe da Nação não é considerado
criminoso, os seus constituintes também não o deveriam ser. Na tribuna,
porém, deixou P.S. bem claro, insistentemente, não ter a idéia de atacar, nem
sequer indiretamente, S. Exa.
Ao que me parece, pois, a sua argumentação teria por fim concluir que
a Constituição de 10 de novembro foi produto de golpe de Estado. Nesse caso,
ela seria ilegal, inexistente. Ora, tal argumento destrói a base do seu pedido;
se é inexistente, está de pé a de 1934 e, à sua sombra, eles foram processados
e condenados.
77
Memória Jurisprudencial
78
Nenhum dos fundamentos, portanto, me parece jurídico. Só posso crer
tenha o ilustre advogado querido fazer digressão elegante.
Assim, indefiro o pedido.
No HC 26.556/DF, relatado por Ataulpho de Paiva e julgado em 8 de
outubro de 1937, o paciente, Willy Baungarten, supostamente envolvido em atividades
perigosas à ordem pública e nocivas à segurança nacional, tornara-se
alvo da vigilância policial. E porque fora preso por razões de ordem pública e de
segurança nacional, o Ministro Relator seguiu jurisprudência da Corte que denegava
habeas corpus nesses casos. De tal modo, julgou-se prejudicado o pedido.
Carlos Maximiliano avaliou o problema sob outro ponto de vista. Tomou
informações da chefatura de polícia, das quais não subsumiu nenhuma atividade
nociva, e julgou a questão à luz do fato de que o prazo de permanência no
País autorizado ao paciente estava esgotado:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, segundo as informações
que acabo de ouvir, prestadas pela Chefia da Polícia do Distrito Federal
e lidas pelo Sr. Ministro Relator, parece-me que se trata de um caso vulgar de
estrangeiro que, tendo vindo ao Brasil com passaporte de turista, aqui se encontra
por prazo excedente aos três meses de permanência, a que dá direito essa espécie
de passaporte. Intimado a deixar o país, declarou às autoridades que não tem
dinheiro para comprar passagem de volta; deve, por isso, ser compelido a sair.
Não se trata, porém, de indivíduo prejudicial à ordem pública. Não se
encontra, nas informações da Polícia, qualquer referência a esse respeito. É caso
semelhante ao dessa moça alemã, de que tive notícia pelos jornais europeus,
coagida pelas nossas autoridades a deixar o país por ter excedido o prazo que
lhe facultava o passaporte.
Acho que o indivíduo em questão pode ser obrigado a embarcar, a deixar
o país, porque excedeu o prazo durante o qual lhe era permitido aqui permanecer.
Não me parece, porém, que deva ficar preso, uma vez que não se trata de
elemento prejudicial à ordem pública.
Nestas condições, concedo o habeas corpus, para que seja posto em
liberdade sem prejuízo da expulsão.
Segurança nacional foi também tema do RHC 26.287/BA, relatado pelo
Ministro Plínio Casado e julgado em 16 de novembro de 1936. Nesse processo,
debateu-se prisão por medida da referida segurança nacional, em virtude do
estado de guerra:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, pela sistemática
do nosso direito, o juiz competente para tomar conhecimento de um fato delituoso,
ao ponto de julgar um fato concernente a esse delito ou ao delito em si, é
também o competente para conhecer do habeas corpus requerido por pessoas
presas ou ameaçadas de prisão, como incursas na mesma disposição legal.
Ministro Carlos Maximiliano
De sorte que, se há um tribunal especial para conhecer de determinada
figura delituosa, esse tribunal será também o competente, em primeira instância,
para conhecer do habeas corpus. Por conseguinte, se se trata, como o
reconhecem os impetrantes e afirma o juiz federal, de um delito de esfera de um
tribunal especial, organizado há pouco tempo, a esse tribunal caberia conhecer
do habeas corpus.
Não me impressiona o hábil argumento de que o aludido tribunal será
sempre um tribunal a quo. Sê-lo-ia se a prisão fosse determinada por ele.
E, então, o caso de prisão preventiva ou de prisão em virtude de pronúncia ou de
sentença. Mas, desde que a prisão não foi determinada pelo tribunal em questão
e sim por uma autoridade policial, seria um tribunal ad quem.
Surge aí uma dificuldade: a Constituição manda que, toda vez que um tribunal
superior verificar que não é o competente para conhecer da espécie, deve
remeter os autos a magistrado que lhe pareça competente.
Nesse ponto, não opinaria pela remessa do processo, porque essa ordem
importaria, de minha parte, resolver, preliminarmente, uma questão de competência,
que não cabe. Só devo conhecer ou não do despacho, sobretudo porque o
caso está colocado num terreno em que o Judiciário não pode intervir.
No estado de sítio, se a autoridade informar falsamente, ficará, mais
tarde, sujeita a um processo de responsabilidade; durante o estado de guerra,
desde que informe ao Poder Judiciário que o indivíduo está preso ou ameaçado
de prisão, tolhido em sua liberdade, por motivo de segurança nacional, não se
executa in limine o pedido.
Se assim é no estado de guerra, com maioria de razão no estado de sítio,
que não é mais que um estado de sítio terrivelmente agravado, onde diminuem
ao invés de aumentarem as garantias constitucionais.
Por esses motivos, limito-me a confirmar o despacho do juiz, isto é, nego
provimento ao recurso. E não tomo conhecimento originário do pedido por
causa do estado de guerra.
Estado de guerra, estado de sítio e ordem pública também foram temas
apreciados por Carlos Maximiliano no RHC 26.299/DF, relatado pelo Ministro
Laudo de Camargo e julgado em 23 de novembro de 1936:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, a primeira
informação era no sentido de que o paciente estava preso por motivo de ordem
pública. Depois, a parte alegava que se achava preso em lugar destinado aos réus
de crime comum.
Ora, a Constituição, quanto ao estado de sítio, é que faz exceção, declarando,
no art. 175, n. 2, letra b, que a detenção só se pode dar em lugar não destinado
a réus naquelas condições. Todavia, não estamos em estado de sítio e sim em
estado de guerra. E a este respeito a Constituição nada diz, determinando, apenas,
no art. 161, que “o estado de guerra implicará a suspensão das garantias constitucionais,
que possam prejudicar, direta ou indiretamente, a segurança nacional”.
Infiro, portanto, que o estado de guerra é o mesmo que estado de sítio,
sem essas exceções, porque, se assim não fosse, seria a mesma coisa, ou até desnecessário.
Por conseguinte, não daria habeas corpus para um indivíduo que, no
estado de guerra, estivesse preso em lugar destinado aos réus de crimes comuns.
79
Memória Jurisprudencial
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Em segundo lugar, as informações divergem. A polícia declara que o
paciente está preso por motivo de segurança nacional e o defensor do acusado,
na tribuna, disse encontrar-se o mesmo respondendo a processo perante o Juiz
da 3ª Vara.
Ainda por esse motivo, não podemos tomar conhecimento, porque, se o
réu está preso à ordem do juiz da 3ª Vara, não nos é possível conhecer do recurso.
Por todos esses motivos, concordo com o Sr. Relator, para ne gar-lhe
provimento.
Prisão por motivo de ordem pública foi tema debatido no RHC 26.652/
DF, relatado pelo próprio Ministro Carlos Maximiliano e julgado em 4 de
janeiro de 1938:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o caso, que à
primeira vista se apresenta interessante, é o seguinte: Genaro André, conhecido
como dado a crime de furto, foi preso, durante o estado de sítio, e posto à disposição
do Governo, por motivo de ordem pública. Os processos contra ele instaurados
seguiram os trâmites regulares e ele foi condenado, duas vezes, por crime
de furto. Da segunda vez, porém — exatamente da segunda vez —, alegou que
era delinqüente primário e, portanto, devia ser-lhe reconhecida a atenuante do
exemplar comportamento anterior. A Corte de Apelação, certamente por não ter
sido informada de que o ora recorrente tinha outro processo, aplicou pena mais
baixa do que a que ele tivera no primeiro. É outro motivo, entretanto, que o leva
a pedir a presente ordem de habeas corpus.
A questão suscitada pelo recorrente no presente pedido é a de que, geralmente,
quando o indivíduo é condenado e já estava preso, se desconta, no tempo
de prisão, aquele durante o qual ele esteve preso. Entretanto, ele declara que
esteve preso por motivo de ordem pública, mas que, na realidade, foi preso por
ser gatuno; por essa razão, pede que seja descontado do tempo de prisão o tempo
em que esteve preso aparentemente por motivo de ordem pública.
Não tendo o Dr. Juiz da 1ª Vara Criminal concordado com a argüição do
paciente, impetrou ele ordem de habeas corpus à então Corte de Apelação, para
o mesmo efeito acima declarado. Esta acordou em denegar a ordem, considerando
improcedente a fundamentação do pedido.
É o relatório.
VOTO
Parece-me que só se pode descontar, em favor do condenado, o tempo da
prisão preventiva quando esta seja motivada pelo crime em virtude do qual foi
condenado. No caso, porém, não se trata desta hipótese. O ora recorrente esteve
preso por motivo político, isto é, por motivo de ordem social, à ordem e disposição
do Exmo. Sr. Chefe de Polícia.
Ora, pela Constituição de 1934, vigente ao tempo em que ocorreu o ato
sub judice, o indivíduo preso por motivo político não ia para o mesmo lugar dos
criminosos comuns, tinha prisão especial, isto é, numa sala ou num quartel,
sempre isolado dos delinqüentes comuns. Por conseguinte, não se pode levar
Ministro Carlos Maximiliano
em conta este tempo de prisão política para ser descontado na pena a que foi
condenado, por crime comum.
A verdade, aliás, é que ele cumpriu uma das penas e que, para o cumprimento
desta segunda, faltam, apenas, 30 ou 40 dias. De modo que se formos
descontar aquele período, é caso de habeas corpus porque ele entrará imediatamente
em liberdade.
Nego, porém, a ordem, pelas duas razões invocadas: em primeiro lugar,
porque o que se desconta é o tempo da prisão preventiva; em segundo, porque
esta prisão por motivo de ordem pública, de acordo com a Constituição de 34,
então vigente, não podia ser executada no mesmo lugar onde eram cumpridas
as penas comuns. Por conseguinte, esse tempo que ele pede seja descontado não
pode, absolutamente, ser considerado como cumprimento prévio da pena.
O meu voto, pois, é para negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão
recorrido, que é, alias, unânime.
Discutiu-se inclusive terrorismo, a propósito do que se observa no RHC
26.353/DF, relatado pelo próprio Carlos Maximiliano, em julgamento de 18 de
janeiro de 1937:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Tarquinio Joaquim da Silva foi
processado e condenado como homicida e terrorista. Numa agitação terrorista,
praticada em padarias, exerceu ele pressão sobre os colegas, para obrigá-los a
seguir a sua doutrina e os seus processos, violência que chegou até o homicídio.
Por esse crime foi condenado como incurso nos arts. 294, § 2º, e 362 do
Código Penal.
Tendo cumprido metade da pena, pediu livramento condicional, mas o
Conselho Penitenciário deu parecer contrário ao seu pedido. O Juiz negou o
livramento condicional, motivo pelo qual requereu habeas corpus à Corte de
Apelação. Esta negou-o, o que deu lugar ao presente recurso.
O paciente se declarou miserável.
Para instrução do Tribunal, vou ler as informações do Juiz:
Exmo. Sr. Desembargador Presidente das Câmaras Criminais da
Corte de Apelação:
Atendendo à requisição de V. Exa. respeitante ao pedido de habeas
corpus impetrado em favor de Tarquinio Joaquim da silva, cumpre-me
informar que o paciente se encontra condenado por este Juízo, em definitivo,
a 14 anos de prisão celular. Pleiteando ele livramento condicional,
contra cuja concessão opinou o Conselho Penitenciário, indeferiu-lhe
este Juízo a medida visada, fazendo-o nos seguintes termos: “Vistos etc.
Tarquinio Joaquim da Silva, preso e recolhido à Casa de Correção em
cumprimento de pena imposta por este Juízo e posteriormente reduzida
a 14 anos pela egrégia Corte Suprema, alegando haver cumprido mais da
metade da pena que lhe foi imposta, e mais de uma quarta parte dessa
pena em serviços externos de utilidade pública, requereu à fl. 423 lhe
fosse concedido o benefício do livramento condicional. Nos termos da
lei, esse pedido veio encaminhado pelo Conselho Penitenciário, com
parecer contrário à concessão desse livramento. Ouvido por este Juízo,
o ilustrado doutor Promotor Público concordou com o parecer referido.
81
Memória Jurisprudencial
82
Foi então convertido o julgamento em diligência a fim de que fossem
prestados esclarecimentos pelo Diretor da Casa de Correção, a quem
ainda se requisitou a remessa, a este Juízo, do prontuário relativo ao
requerente, prontuário que se encontra em apenso. Dele consta a cópia
de um ofício dirigido por aquele funcionário ao Sr. Ministro da Justiça,
em o qual declara o seguinte: ‘trazendo Tarquinio para o presídio idéias
comunistas e verificando que andava a aliciar outros companheiros para
o seu credo, mandei recolhê-lo ao cubículo para averiguação, onde o
deixei em observação de 21 de fevereiro a 26 de abril de 1935.’ Posta de
lado a singularidade de ser o sentenciado recolhido ao cubículo ‘para
averiguação’ de estar ele fazendo propaganda de doutrinas subversivas
da ordem social, eis que, na solitária, era-lhe impossível prosseguir nessa
propaganda, pela inexistência de convívio com os outros sentenciados,
o certo é que o diretor do presídio afirma positivamente ter mandado
recolher esse sentenciado ao cubículo, por haver ‘verificado que andava a
aliciar outros companheiros para o seu credo’. É verdade que aquele funcionário,
no mesmo ofício, acrescenta ‘não ter sido possível apurar a verdade
da denúncia’, mas é evidente que essa impossibilidade decorreu do
próprio ato do diretor, fazendo recolher ao cubículo o sentenciado, pois,
aí não tinha ouvintes para sua doutrinação. É fora de dúvida, pois, que o
requerente de fl. 423 se entregou, no presídio, à propaganda de doutrinas.
Tal circunstância, por si só, seria suficiente para justificar a denegação
do benefício que pleiteia o sentenciado, mas é de acentuar que o delito
praticado por esse sentenciado foi de natureza terrorista, pois praticado
fora para obrigar, pela violência, aos proprietários de padarias, a conceder-lhe,
e aos seus companheiros operários em greve, aumento de salários,
isto em abril de 1929. Como bem apreciou o parecer do Conselho
Penitenciário, seria arriscado conceder ao paciente o livramento que
impetra, ‘num momento como este em que se votam leis muito mais
rígidas para esses delitos, e quando a Polícia, preventivamente, e ainda
usando de prerrogativas estabelecidas no estado de sítio e no estado de
guerra, toma outras providências acauteladoras da ordem pública, em
luta sem tréguas contra o comunismo’. Por estes fundamentos, indefiro o
pedido de fl. 423 e denego o livramento condicional impetrado pelo sentenciado
Tarquinio Joaquim da silva. P.R.I. Rio de Janeiro, 19 de setembro
de 1936. (a). Francisco de Paula Rocha Lagôa Filho.
Para melhores esclarecimentos, remeto a V. Exa. os autos originais
do processo, consistentes em dois volumes, a que respondeu, com
outros, o paciente em questão.
Aproveito a oportunidade para apresentar a V. Exa. os protestos
da minha alta estima e distinta consideração.
O Juiz de Direito da 5ª Vara Criminal, no impedimento do titular
desta Vara.
(a) Nelson Hungria.
VOTO
O peticionário não juntou prova alguma de se ter portado bem na prisão
e de se haver regenerado.
Ministro Carlos Maximiliano
Pelo contrário, a única prova que existe nos autos é a de que, tendo sido
preso e condenado como terrorista, começou, dentro da cadeia, a aliciar os próprios
companheiros para o seu credo.
Foi por essa razão que o Conselho Penitenciário opinou contra o livramento
condicional do réu e o juiz e a Corte de Apelação indeferiram o pedido.
Por esse mesmo motivo, eu também nego provimento ao recurso.
No RHC 27.757/DF, relatado pelo Ministro Octavio Kelly e julgado em
16 de abril de 1941, no qual se debateu aplicação retroativa da lei, no que se
refere a crimes políticos, Carlos Maximiliano fundamentou voto em princípio
de direito que dá conta de que lei nova não pode ser aplicada com o resultado de
agravar a situação do delinqüente:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, é um princípio
de direito universal que a lei nova não se aplica desde que agrave a situação do
delinqüente.
Ora, a lei antiga dava ao delinqüente, sem restrição alguma, desde que se
portasse bem na prisão e provasse um índice de regeneração total, o direito ao
livramento condicional. A lei nova obriga o delinqüente político a ficar na prisão
esta terça parte da condenação. Portanto, na realidade, a pena foi agravada.
Tomando-se, como no presente caso, uma pena de três anos, cumpridos dois,
pela lei antiga, o bom preso, obediente, poderia readquirir a liberdade. Pela lei
nova, apesar de toda a sua correção, o preso ficará mais um ano na cadeia. Foi ou
não agravada a pena? É evidente que sim. Logo, a nova lei é inaplicável à espécie
e assim tem julgado o Tribunal, em outros casos idênticos.
Também concordo com o Sr. Ministro Cunha Mello em que não é necessário
que o paciente renuncie aos seus ideais, porque não se pode exigir de
homem algum esta barbaridade. O que se exige é que ele não pretenda mais
fazer revoluções.
Qual de nós não foi, já, um terrível revolucionário e hoje não quer ouvir
sequer falar de revolução! Seria iníquo exigir-se de um homem que ele renunciasse
aos seus ideais, que perdesse o caráter e a vergonha.
O Conselho Penitenciário não tem razão quando afirma que o criminoso
político não endireita, não se corrige e que é inútil dar-lhe o livramento condicional.
Apesar de muito respeito às opiniões contrárias, inclusive a do nobre Relator,
voto contra a diligência, por desnecessária, e concedo imediatamente a ordem.
Carlos Maximiliano julgou questão política gravíssima, a propósito da
atuação da Ação Integralista Brasileira, no RHC 26.356/DF, relatado pelo
Ministro Eduardo Espinola e julgado em 29 de janeiro de 1937. Carlos Maximiliano
manteve coerência com julgamentos anteriores, negando-se a examinar
o mérito da questão, porquanto a questão envolvia prova e matéria de fato.
Ao longo do voto observa-se sutil observação de Carlos Maximiliano, no sentido
de que se tinha objetivamente um habeas corpus em favor de partido político:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Os peticionários englobam na sua
petição duas solicitações: pedem a liberdade de locomoção para uns membros do
partido — Ação Integralista Brasileira — que se acham presos como suspeitos de
83
Memória Jurisprudencial
84
conspirarem contra a ordem política e social, ou pelo menos contra a ordem política
vigente, e estendem o pedido a todo o partido, pelo menos na Bahia, que eles
avaliam em 80 a 100.000 pessoas, para quem pedem permissão para exercerem
livremente a sua atividade, não só política como educativa, altamente social, etc.
Quanto à segunda parte, não me parece fácil dar competência ao Poder
Judiciário para num habeas corpus conceder um direito impetrado de modo
abstrato, sem indicar quais são os titulares desse direito, não me parecendo
possível dar habeas corpus para 80.000 ou 100.000 pessoas, embora essas pessoas
aleguem e provem que o pedido era feito para prestar serviços relevantes
à ordem pública e à sociedade. Quando muito, como se trata de um partido que
deseja exercer a sua atividade perfeitamente regular, eu admitiria que eles se
dirigissem ao Tribunal Eleitoral para realizar a sua propaganda, tanto mais que
se aproximam as eleições e era lógico que o partido, neste sentido, quisesse
exercer a sua atividade. Até aí não vai, porém, a nossa competência, porque não
nos envolvemos em questões essencialmente políticas e não podemos examinar
se é ou não lícito darmos num dia habeas corpus para 80 ou 100.000 pessoas
exercerem propaganda política na Bahia.
São, todavia, mencionadas algumas pessoas como presas por serem
julgadas prejudiciais à ordem pública. Alegam os impetrantes que o estado de
guerra foi decretado para combater o comunismo que tentava apoderar-se do
Brasil para entregá-lo à 3ª Internacional, sendo eles, impetrantes, visceralmente,
os inimigos desse partido. É esta uma questão toda de fato que não se afeiçoa
aos processos de habeas corpus. Eu sei que isto é uma verdade, mas num processo
rápido como é o de habeas corpus, não se poderá provar qual é o programa
de um partido e o de outro, mormente quando o outro partido nega os seus
planos, disfarça as suas atividades, esconde tudo o que pretende realizar, e até
mesmo ordena aos seus subordinados que neguem serem comunistas. Torna-se,
pois, muito difícil o confronto.
Além disso, há alegação que o Sr. Ministro Relator examinou longamente.
É que o Governador da Bahia agiu por motivo de política interna e não
como delegado do Presidente da República. Também seria uma questão mais de
ordem moral, a de saber se ele abusa ou não da confiança que nele deposita o
Presidente da República. Quando muito caberia então aos impetrantes dirigiremse
ao próprio Presidente da República solicitando que S. Exa. desaprovasse esse
ato ou o revogasse, uma vez que se trata de um ato de seu subordinado; mas o
Presidente da República não teve gesto algum reprovando o ato do Governador,
assumindo assim a responsabilidade pelo mesmo. Aliás, sempre julgamos desta
maneira; quando uma pessoa está sob as ordens de outra e pratica um ato antijurídico,
é responsável pelo ato o indivíduo a quem está subordinado o praticante
do mesmo. Seria necessário, para desfazer essa presunção, que existisse prova
em contrário. No caso essa prova deveria constar de um ato do Presidente da
República desfazendo o do Governador da Bahia, tanto mais quanto esse ato do
Governador teve repercussão em outros Estados, importando numa guerra contra
o Integralismo, que já cessou por completo, mediante atos oficiais.
Quanto aos indivíduos presos, é o único ponto que nos interessa no
momento, uma vez que acho difícil podermos conceder habeas corpus a um
partido político, a não ser que eles se organizassem em sociedade particular e
cada um requeresse de sua vez. Contra os indivíduos presos, porém, as informações
únicas que constam do processo são que eles foram realmente dados
como seriamente comprometidos numa conspiração. O brilhante advogado
Ministro Carlos Maximiliano
que ocupou a tribuna alega que encontraram um material bélico insignificante;
mas tudo isso é matéria de fato, que não podemos examinar em habeas corpus,
sobretudo quando das informações se conclui justamente o contrário.
Por essas considerações, embora com grande pesar, eu não examino o
mérito. Desejaria examiná-lo; mas, coerente com a minha orientação em habeas
corpus anteriores, nego provimento ao presente pedido.
Questões de fundo político, e que se relacionavam a atividades do Partido
Comunista eram julgadas com muita freqüência. Por exemplo, no RC 918/SP,
julgado em 10 de agosto de 1936, relatado pelo próprio Carlos Maximiliano,
e que tinha como recorrente o Jornal de Notícias, e como recorrida a Justiça
Federal, Carlos Maximiliano votou e julgou como segue:
RELATóRIO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de recurso criminal, em que é
recorrente o Jornal de Notícias de São Paulo, e recorrida a Justiça Federal:
Certo diário, a propósito da revolta comunista do Norte do Brasil, insinuou
que era esperada a dilatação do movimento ao Sul, aí, porém, com o
caráter político de luta entre o poder estadual e o federal; demais, reproduziu
a notícia, já oficialmente desmentida, de remessa de forças para guarnecerem
Itararé. Por isso, teve a folha apreendida a sua edição. Remetido o auto de apreensão,
acompanhado do número do jornal, ao Juízo Federal, o diretor do diário
impugnou o ato da autoridade, com os seguintes fundamentos: 1º — a Lei de
Segurança declara competir a apreensão à mais graduada autoridade policial do
lugar; logo, deveria ter sido feita pelo Secretário da Segurança; porém, a efetuou
um delegado adido; 2º — a lei autoriza a inutilizar a edição depois de julgada
definitivamente a apreensão; entretanto, logo a autoridade destruiu as matrizes;
3º — as notícias publicadas o foram também por outros jornais não apreendidos
e versavam apenas sobre telegramas recebidos.
O Secretário da Segurança defendeu, ut fl. 20, o seu ato, com alegar: 1º —
a ordem de apreensão foi dada por ele próprio, por portaria de 25 de novembro,
protocolada em 25 e cumprida no mesmo dia, estando o original junto aos autos,
à fl. 4, por haver sido remetido ao Juízo Federal; 2º — o jornal se não limitou a
reproduzir telegramas; reproduziu notícia local, dada por outros, mas desmentida
oficialmente antes da reprodução; 3º — houve, apenas, o cumprimento do
estatuído no art. 12 da Lei de Segurança, de 4 de abril de 1935. A apreensão foi
julgada regular, por sentença, à fl. 20. O jornal recorreu. Na segunda instância
opinou o Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geral, à fl. 51:
Já esta Egrégia Corte Suprema, em hipótese semelhante à de que
trata o presente recurso, (RC 878), decidiu que o intuito da Lei 38, de 4
de abril de 1935, foi autorizar a apreensão, sem qualquer demora, das
edições de jornais infringentes da proibição nela contida (art. 25), pois,
ao contrário, seria inútil o efeito desejado, porque a demora daria lugar a
que a publicação se tornasse conhecida, pela propagação. Não era possível
exigir que tal diligência fosse feita pessoalmente, pela mais graduada
autoridade policial, no caso em apreço — o Secretário da Segurança
Pública, o que seria materialmente impraticável pois a apreensão é quase
sempre feita em lugares diversos, só podendo, portanto, ser realizada por
intermédio de auxiliares da dita autoridade.
85
Memória Jurisprudencial
86
Foi o que se fez, em virtude da portaria de fl. 4, e não é possível
negar que se justificava tal medida, de conformidade com o art. 12 da dita
lei, pois a notícia de que dois batalhões da Força Pública partiriam para
Itararé “era falsa, e evidente o propósito de alarmar a população”.
Em tudo foi respeitada a lei, não merecendo, assim, provimento
o recurso.
VOTO
É raro que autoridade superior cumpra em pessoa qualquer diligência; e a
lei sempre se presume referir-se ao que sucede vulgarmente — quod plerumque
fit. Quando se atribui a competência para um ato à autoridade superior, apenas
se exige que da mesma decorra a ordem para a prática do mesmo, a fim de evitar
os males resultantes de abuso ou ignorância de subalterno. Improcede, pois, a
primeira alegação da defesa.
A lei manda só inutilizar a edição depois de passar em julgado a sentença
relativa à apreensão; e o próprio contestante confessa que só inutilizaram as
matrizes. Demais, se isto fora errado, poderia dar margem à responsabilidade;
não a ficar nula a apreensão.
Enfim, uma das notícias foi dada depois de desmentida, e a da primeira
coluna era editorial da folha apreendida. Em uma e outra se procurava insinuar
o que nunca sucedeu, e constituída alarmante inverdade: que o Sul viria, nas
águas da insurreição marxista, uma revolta política, com as forças estaduais em
armas e o Governador do Rio Grande à frente, conforme a leitura procedida pelo
Relator perante a Corte. A defesa alude a passagem à opinião de Fabreguettes, à
página 308 do v. II, da sua obra — Traité des Délits politiques et des Infractions
par la parole, l’ecriture et la presse. Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que
o escritor se refere ao crime e sua punição, e, por enquanto, só se trata de medidas
administrativas anteriores ao processo criminal; em segundo, nem assim
Fabreguettes aproveita; ao recorrente; antes, o fulmina.
Na página citada, o escritor começa o comentário ao art. 27 da Lei
Francesa de 29 de julho de 1881, o qual pune “A publicação ou reprodução de
notícias falsas, quando essa publicação ou reprodução perturbe a paz pública e
tenha sido feita de má-fé”.
Nos números 237 a 240, assim o mestre comenta o texto positivo:
Notícia é a narração de um fato. Quando se trata de um fato errôneo
ou inexato, existe notícia falsa. É preciso evidentemente, que se trate
de um fato recente, de um fato de atualidade.
La nouvelle c’est la narration d’un fait. Quand il s’agit d’un fait
erroné ou inexat, il y a fausse nouvelle. Il faut, évidemment, qu’il s’agisse
d’un fait récent, d’un fait d’actualité.
Este requisito foi satisfeito, tratava-se de notícia sobre fatos atuais
e inverídicos.
A publicação não foi negada, está documentada. Existe, pois, o segundo
requisito, publicaram, em primeira mão, a falsa nova da revolta política no Sul,
e reproduziram o boato, já desmentido, da remessa de forças para Itararé, fronteira
Sul de São Paulo.
Acrescenta Fabreguettes:
A perturbação poderá ser tanto moral como material.
La trouble pourra être aussi bien moral que matériel.
Mais clara, ainda, se nos antolha, a respeito, a Lei de Segurança:
Ministro Carlos Maximiliano
Art. 12. (...) notícias falsas que possam gerar na população desassossego
ou temor.
Ora, quem negará que o boato de que viria a situação a ser agravada por
um levante do próprio Governo do Rio Grande geraria o desassossego e o temor
nas regiões ameaçadas de invasão armada?
Existiu, pois, o terceiro requisito, para apreender e punir.
Nem falta o último, o quarto: o concernente ao dolo, à má-fé; posto que este
requisito só seja exigível para aplicação da pena, e não para a simples apreensão.
barbier — code expliqué da la presse, v. I, n. 355, explica:
A publicação é punível quando haja sido feita com intenção de
prejudicar, por pessoas que sabiam ser falsa a notícia (o grifo encontrase
no livro de barbier).
La publication n’est punisable qu’autant au’elle a eté faite avec
intention de nuire, par personnes qui savaient que la nouvelle était fausse.
Acrescenta o expositor:
Esta intenção decorre da vontade de tornar acreditada e propagar
entre o público uma notícia falsa, que, em razão da sua gravidade mesma,
seja de natureza a perturbar a paz pública.
cette intention doit s’entendre de la volonté d’acrediter et de
propager dans le public une fausse nouvelle, qui, á raison de sa gravité
même, est de nature á troubler la paix publique.
Ora, o autor da publicação sabia ser falsa a notícia da remessa de forças
para Itararé; e o artigo inicial prova o intuito de lançar entre os leitores a convicção
de que uma revolta, isto é, um fato gravíssimo estava ocorrendo, a rumo
do Sul para Norte.
O mesmo barbier emite outro conceito, para caracterizar o dolo, da máfé
(p. 297, n. 350), que é assim também exposto pelo citado Fabreguettes (v. II,
n. 240):
É precisa também a intenção. Assim, a apreciação inexata de um
fato, por um jornalista, não pode constituir o delito, quando aquele fato
seja em si verdadeiro. O mesmo, porém, se não concluiria, se as apreciações
falsas sobre os fatos fossem apresentadas de maneira tendente a os
desnaturar ou a lhes mudar o caráter.
Il faut assi l’intention. ainsi, l’appréciation inexate d’un fait, par
un jornaliste, ne peut, quan ce fait est vrai en lui-même, constituer le
délit. Mais, il n’on serait pas de même, se les fausses appréciations portées
sur les faits, étaient presentées de maniére á les dénaturer et á en
changer de caractére.
O conceito transcrito afeiçoa-se, como uma luva, ao caso em apreço: o
jornal procurou desnaturar os fatos presentes, dar-lhes outro caráter, fazendo
crer que o Governo do Rio Grande se aproveitava da ação comunista ao Norte
para fazer deflagrar uma revolta política no Sul. Mais ainda: o escritor francês
prevê o comentário sobre fatos verdadeiros em si; entretanto, o jornal paulista
fez pior; um dos fatos em que baseou o comentário, o embarque de forças estaduais
para a fronteira sul de São Paulo era sabidamente inverídico, já oficialmente
contestado.
Considerando, em conclusão, que houve justo motivo para o ato praticado
pela autoridade policial, acordam os Ministros da Corte Suprema em negar
provimento ao recurso, para confirmar a decisão recorrida, condenando nas
custas o recorrente.
87
Memória Jurisprudencial
Carlos Maximiliano também participou do julgamento histórico de Ernesto
Gattai, pai da memorialista Zélia Gattai. Ernesto viveu a iminência de ser
expulso do território nacional, porquanto era italiano e fora acusado de conspirar
ao lado dos comunistas. Cuida-se do HC 26.643/SP, relatado pelo Ministro
Armando de Alencar e julgado em 5 de janeiro de 1938:
88
VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, a Constituição
de 1934, no art. 76, 1, h, e a atual, no art. 101, I, g, declaram que se conhecerá,
aqui, de habeas corpus originários, quando o paciente ou coator for tribunal,
funcionário ou autoridade que esteja diretamente subordinada a este Tribunal.
É de notar, porém, que, quando a Constituição de 1934, tratando da responsabilidade
do Presidente da República, nos crimes comuns, sujeitava-o ao
julgamento da então Corte Suprema, sendo esta, expressamente, competente
para processar e julgar o Presidente da República. Tal não ocorre, entretanto, na
Constituição vigente, de 10 de novembro de 1937, que excluiu da competência
deste Tribunal o julgamento do Presidente da República e a ele incumbiu apenas
de processar e julgar os seus Ministros, os Ministros de Estado, o Procurador-
Geral da República, etc., declarando, até, na parte relativa à responsabilidade
do Presidente, que este será processado perante o Conselho Federal, depois
de se ter pronunciado a Câmara dos Deputados. Cumpre salientar, ainda mais,
que o art. 73 da Carta atual declara ser o Presidente da República a autoridade
suprema do Estado; é, portanto, superior a este Supremo Tribunal Federal.
Foi além o estatuto básico: isentou o Chefe do Estado de qualquer processo
por delito comum (art. 87), de sorte que, se o Presidente pratica uma violência
de qualquer natureza, se assassina um homem ou viola uma dama, por
exemplo, cruzam os braços perante ele os juízes, durante todo o período presidencial.
A lei é expressa:
Art. 87. O Presidente da República não pode, durante o exercício
de suas funções, ser responsabilizado por atos estranhos às mesmas.
Em resumo: se é coação funcional, o Presidente responde perante tribunal
especial; se o não é, não responde em pretório nenhum; logo, não está sujeito
imediatamente à jurisdição do Supremo Tribunal. Não somos, pois, competentes
para conhecer originariamente do pedido, com fundamento no art. 101, letra g,
da Constituição vigente.
No HC 26.739/DF, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 11 de
maio de 1938, decidiu-se que em estado de emergência não se poderia conceder
habeas corpus a indivíduo perigoso à ordem pública:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: O paciente pediu habeas corpus
porque está recolhido à Casa de Detenção, à ordem do Sr. Ministro da Justiça,
para ser expulso. Solicitadas informações ao titular desta Pasta, remeteu-me
S. Exa. cópia do relatório policial, onde se diz que o inquérito foi instaurado pela
Delegacia de Segurança Política e Social, dada a situação irregular do paciente
no País, e pelo fato de se saber ser o mesmo evadido das prisões da Guiana
Ministro Carlos Maximiliano
Francesa, onde cumpria pena de prisão perpétua, sendo, ainda, nocivo à ordem
pública, em vista de agir como espião a serviço de comunistas franceses.
No inquérito, o réu não apresentou defesa.
É o relatório.
VOTO
Nego a ordem, pela razão de que estamos em estado de emergência, que
foi decretado, precisamente, para manter a ordem pública. Ora, o paciente é considerado
perigoso à mesma.
É o meu voto.
Carlos Maximiliano enfrentou questões políticas gravíssimas, em tema de
segurança nacional, assunto recorrente na ditadura de Getúlio Vargas. A Lei de Segurança
Nacional suscitava críticas, porquanto era por muitos vista como texto
normativo que fixava um tribunal de exceção. É o que se observa no HC 26.897/
DF, relatado por Laudo de Camargo e julgado em 19 de outubro de 1938.
Discutia-se crime de injúria. O paciente, ao que consta, publicara boletim
em que teria ofendido autoridades federais. O paciente era o Dr. Caio Monteiro
de Barros, da Ordem dos Advogados do Brasil e da Associação Brasileira de
Imprensa. O habeas corpus era preventivo e revelava insurgência em face do
Tribunal de Segurança Nacional, que havia condenado o paciente.
O assunto radicava em episódio ocorrido na campanha de sucessão
presidencial, em Minas Gerais. O paciente apoiara o candidato da União
Democrática Mineira, braço da União Democrática Brasileira. Tais agremiações
faziam oposição a Getúlio Vargas. Apurou-se que, ao longo da campanha
presidencial, aparecera um impresso, divulgado na cidade de Mariana, no qual
havia acusações a autoridades públicas. A discussão chegara ao Tribunal de
Segurança Nacional, que condenou o paciente.
Carlos Maximiliano deferiu o pedido, qualificando, para aquele caso —
bem entendido —, o Tribunal de Segurança Nacional como incompetente para
apreciar a matéria. A decisão, à luz de um efeito prático, fixava o Tribunal de
Segurança Nacional como juízo de exceção:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, trata-se de condenação
proferida por tribunal de exceção.
Pelo próprio nome que este tribunal tem, na classificação da judicatura
brasileira, só deve julgar os casos que, estritamente, ficarem compreendidos na
sua competência.
Desde que haja dúvidas sobre a competência do tribunal, elas se resolvem
contra o mesmo, isto é, a favor do impetrante e da Justiça comum.
O paciente é acusado de haver injuriado autoridades e, como tal, incurso
numa das Leis de Segurança. A denúncia, porém, declara que a base do processo
é, exclusivamente, o boletim junto aos autos; logo, não se trata, propriamente,
89
Memória Jurisprudencial
90
de prova cujo exame o habeas corpus não comporta, pois basta ler a própria
denúncia, onde se alude ao boletim junto, para verificar a veracidade do alegado.
Em tese, não se pode dizer que tais boletins tivessem o intuito de injuriar.
De fato, visavam propaganda eleitoral e, como sempre se faz em tais propagandas,
eleva-se o candidato próprio e, para o mesmo fim, esmaga-se o candidato
oposto, de maneira que a diferença entre ambos fique colossal. É este o processo
comum das propagandas eleitorais: desfazer os méritos de um e elevar, desmesuradamente,
os do outro.
Por conseguinte, não se pode dizer que tais fatos constituam crime, desde
que se sabe que o intuito do indivíduo não é de injuriar, mas, somente, o de fazer
triunfar o seu candidato.
Entretanto, no caso, o acusado pode ter cometido crime de calúnia, positivamente;
porque atribuiu àquelas autoridades a prática de violências, as quais
constituem crime.
A Lei de Segurança, porém, não previu isso; quis, apenas, manter o
maior respeito pelas autoridades, evitando injúrias, palavras grosseiras.
A injúria tem a sua qualificação especial; desde que o indivíduo declara
qual o fato atribuído às autoridades, pode estar caluniando, não injuriando.
Não considero, pois, que não tenha cometido crime; mas entendo, como
o Sr. Ministro Relator, que o fato não é da competência do tribunal de exceção,
e, assim, não examino os outros aspectos do caso.
Nestas condições, concedo a ordem, por entender nulo o processo, ab initio,
pela manifesta incompetência do Tribunal processante e julgador.
Questões do referido Tribunal de Segurança Nacional eram muito comuns.
Por exemplo, no HC 26.904/DF, relatado pelo Ministro Carvalho Mourão,
impetrado pelo advogado Heráclito de Fontoura Sobral Pinto, em favor de
Jatyr de Carvalho Serejo (capitão da Marinha) e julgado em 19 de outubro de
1938, discutiu-se prisão celular decretada pelo aludido Tribunal. Comedido,
Maximiliano precisava de mais informações, suscitava diligências, pretendia
confecção de conjunto probatório robusto:
VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o Sr. Ministro
Relator teve um argumento forte dizendo que a ele não competia completar a
prova. Entretanto, aceitamos outro fundamento: quando solicitamos uma informação
e a autoridade não a presta ou presta de maneira insuficiente, consideramos
a autoridade como confessando o alegado na inicial, que é coisa muito mais
grave, e sempre concedemos o habeas corpus.
Não vou tão longe, mas acho que as informações prestadas ao Sr. Ministro
Relator estão, exatamente, nos termos de uma que acabo de receber, agora —
porque tenho um pedido igual — e em que nada ou quase nada se diz. De fato,
consta que o paciente foi mandado para a polícia e que esta nada resolveu, e
assim por diante.
De acordo com os meus votos precedentes, até, eu daria a ordem. Uma
vez, porém, que as circunstâncias do fato não estão bem claras, prefiro a diligência,
a fim de que se pergunte ao Ministro da Marinha quando, por que e
Ministro Carlos Maximiliano
para que este homem foi preso; isto é, a pergunta, tal qual foi feita, de acordo
com a inicial.
Entendendo assim, dispenso, inteiramente, o auto de flagrante. A falta
deste auto é mais um motivo para dar o habeas corpus, porque o ato de lavrar o
termo não é do réu e sim do juiz e quando não é feito prejudica o réu. Por que não
terá ele o benefício da computação do tempo de prisão apenas porque deixou de
ser cumprida uma formalidade que não dependia dele? Se não foram cumpridas
as formalidades legais, em relação a ele, este não é motivo para negarmos o
habeas corpus e sim para darmos.
Nessas condições, peço as informações. Aliás, tenho um caso semelhante
e não trago os autos ao Tribunal, porque entendo que as informações prestadas
são extraordinariamente incompletas e vou pedir outras, por despacho.
É o caso também do decidido no HC 26.818/DF, relatado pelo Ministro
Carvalho Mourão e julgado em 20 de julho de 1938. Carlos Maximiliano não
conheceu do habeas corpus porquanto não admitia que o Supremo Tribunal
Federal apreciasse questões afetas ao Tribunal de Segurança Nacional, em
estrita leitura do texto constitucional então vigente:
VOTO
(Primeira preliminar)
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, diz o art. 101 da
Carta Constitucional:
Ao Supremo Tribunal Federal compete:
I — processar e julgar originariamente:
(...)
g) o habeas corpus, quando for paciente, ou coator, tribunal, funcionário
ou autoridade cujos atos estejam sujeitos imediatamente à jurisdição
do Tribunal, ou quando se tratar de crime sujeito a essa mesma
jurisdição em única instância; e, ainda, se houver perigo de consumar-se
a violência antes que outro juiz ou tribunal possa conhecer do pedido.
Logo, o Supremo Tribunal Federal só poderá conhecer, originariamente,
de habeas corpus quando a autoridade coatora estiver a ele subordinada, imediatamente.
A mesma Carta Constitucional diz, no art. 90, que estabelece a
hierarquia judiciária:
São órgãos do Poder Judiciário:
a) o Supremo Tribunal Federal;
b) os juízes e tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos
Territórios;
c) os juízes e tribunais militares.
Por conseguinte, a meu ver, esses juízes e tribunais das letras b e c são
os diretamente subordinados a este Supremo Tribunal. O Tribunal de Segurança
não está compreendido nessa nomenclatura.
Ao tratar dos crimes cometidos contra a segurança do Estado, a Carta
Constitucional apenas estabelece que ficarão sujeitos a justiça e processo especiais,
que a lei prescreverá. Se não está incluído ali, se está colocado completamente
à parte, é claro que não está subordinado ao Supremo Tribunal.
Por conseguinte, não conheço do habeas corpus.
91
Memória Jurisprudencial
Também foi o caso do discutido no RHC 27.732/DF, relatado pelo
Ministro Octavio Kelly e julgado em 29 de janeiro de 1941. Nos termos do voto
de Carlos Maximiliano:
92
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, num e noutro caso
os réus tinham sido condenados no grau mínimo; a diferença é que uns foram
considerados como incursos em uma lei anterior, enquanto que outros, por se
entender que se tratava de crime continuado, foram abrangidos pela lei posterior.
Entendeu o Tribunal que, não havendo crime continuado de usura, devia
aplicar-se a estes últimos réus, também, a lei anterior. Este foi o fundamento
da decisão.
Nós não mudamos a pena. Julgamos, apenas, que se devia aplicar a lei
anterior. Se se aplicou uma lei em vez de outra, o caso é de nulidade da sentença.
Naturalmente, o Tribunal de Segurança Nacional se sentiu constrangido, de
vez que apreciamos a questão da prescrição e a repelimos, quando ele a havia aceito.
Para mim, é o caso de dar-se provimento ao recurso, para anular a sentença
condenatória. Abro, assim, uma oportunidade para que o Tribunal de
Segurança proceda corretamente, modificando a sua sentença.
Dou, pois, provimento ao recurso, mas para anular a sentença condenatória.
Os contornos da Lei de Segurança Nacional foram discutidos no HC
26.836/PE, relatado pelo Ministro Carvalho Mourão e julgado em 10 de agosto
de 1938. Nos termos do voto de Carlos Maximiliano:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, estou de acordo
com o peticionário e o seu ilustre advogado em que a nova lei de segurança constitui,
realmente, um sistema integral, de maneira que todos os dispositivos da
anterior, que não estejam explicitamente restabelecidos, se consideram revogados.
Este crime, porém, como bem ficou demonstrado, é o mesmo previsto no
art. 112 do Código Penal, que diz:
Usar de violência ou ameaças, contra os agentes do poder executivo
federal, ou dos Estados, para os forçar a praticar ou deixar de praticar
um ato oficial.
Este dispositivo foi modificado pela Lei 38, art. 3 º:
Opor-se alguém, por meio de ameaça ou violência, ao livre e legítimo
exercício de funções de qualquer agente de poder político da União.
E a nova lei:
Usar de ameaça ou violência para forçá-lo (ao funcionário público)
a praticar ou deixar de praticar qualquer ato do ofício, ou obrigar a
exercê-lo em determinado sentido.
Está-se vendo que é a mesma disposição, mudando apenas a redação.
Como, afinal, a pena foi discriminada, aplica-se o art. 3º do Código Penal, que,
como bem concluiu o Sr. Ministro Relator, não foi revogado pela Constituição.
Não foi isto o que visou a nossa Carta Magna; o que ela teve em vista
foi dar garantias e não tirá-las. Houve, apenas, uma redação apressada, que não
previu claramente a hipótese, mas não revogou expressamente o dispositivo do
Código Penal.
Ministro Carlos Maximiliano
Como bem disse o Sr. Ministro Carvalho Mourão, trata-se de princípio
seguido universalmente e que somente por dispositivo claro de lei podia ser
considerado revogado.
Por esses motivos, estou de acordo com o Sr. Ministro Relator. Se a pena
foi diminuída, concedo a ordem, porque o paciente já cumpriu a pena a que
devia ter sido condenado.
Entendia-se que em estado de emergência não se concederia habeas corpus
a quem estivesse preso por motivo de ordem e segurança públicas. É o teor
do decidido no RHC 27.654, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 20
de novembro de 1940:
ACóRDãO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de recurso de habeas corpus,
em que é recorrente João da silva araujo e recorrido o Tribunal de apelação do
Distrito Federal: O paciente, tendo sido condenado pelo crime de furto, impetrou
habeas corpus duas vezes, alegando nulidades no processo e errada contagem
de tempo de prisão. Nada conseguiu; porém teve a pena comutada pelo
Chefe do Governo. Cumprida a pena, foi preso, por motivo de ordem e segurança
pública. Pediu novo habeas corpus; negado, recorreu e solicitou a requisição
de sua presença ao julgamento, a fim de se defender pessoalmente, visto
não ter advogado. Foi atendido pelo Relator, neste particular. Como, porém, não
se concede habeas corpus a indivíduo preso por motivo de ordem e segurança
pública, em se achando o País em estado de emergência, acorda o Supremo
Tribunal Federal em negar provimento ao recurso.
Desavenças políticas que identificavam a presença do patrimonialismo e do
caciquismo entre nós também foram apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal
em âmbito de habeas corpus. É o que se extraiu do HC 26.945/GO, julgado em
16 de novembro de 1938, relatado pelo Ministro Costa Manso, no qual a natureza
e os limites de questões políticas muito localizadas ficaram muito nítidas:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Lamento divergir, e radicalmente,
do voto do ilustre Relator.
Trata-se do seguinte: mataram o chefe político de um Município, sem
dúvida partidário do Governo, pois que era funcionário público, o Promotor da
Comarca. Por este intróito, já se fica sabendo como é administrada a Justiça em
Goiás, quais as garantias asseguradas aos adversários processados; pois a chefia
do Ministério Público local é confiada ao próprio chefe político.
Imediatamente, o Executivo do Estado lançou mão da regalia consignada
no art. 59 da Constituição goiana, que dá ao Governador a faculdade de afastar
da direção e julgamento do processo criminal o juiz de direito da Comarca
onde se verificou o delito, e designar, à vontade, a dedo, entre os quarenta ou
cinqüenta juízes do Estado, o que mais a seu gosto pareça para agir contra os
adversários suspeitos de conivência em criminosa prática.
93
Memória Jurisprudencial
94
Isto aberra dos comezinhos princípios de Direito; grita contra a doutrina
da divisão e independência dos poderes; e até contra a inamovibilidade dos juízes,
que, no sábio pensar de Garsonnet, é estabelecida, mais em proveito dos
jurisdicionados que do magistrado, exatamente o contrário do que asseverou o
ilustre Relator. Em que situação desgraçada ficam os adversários do poder em
Goiás, desde que se deixa ao arbítrio do Governador investir da Promotoria o
chefe político local e, denunciados por este até os inocentes, ainda ao Executivo
cabe a regalia que não teve nunca imperador algum do mundo, de designar, a
dedo, o mais dúctil magistrado da região!
Objeta o Sr. Relator ser o Governador obrigado a escolher entre os juízes
vitalícios, e a todos acoberta a presunção de altivez e independência de caráter.
Esta presunção existe em teoria, mas nem sempre corresponde à realidade:
pululam por este Brasil afora os magistrados dignos ao lado de cortejadores
sistemáticos de todos os poderosos, em cujas mãos se acham as promoções por
merecimento e as nomeações dos parentes dos cortesãos.
Alega, também, o Sr. Relator que existe, em Goiás, na hipótese vertente,
o recurso ex officio; portanto o magistrado procederá com integridade, pela certeza
de que o seu veredictum será sempre examinado no pretório superior. Isto
não é remédio, é remendo; pois bem se sabe que os réus recorreriam voluntariamente;
mas depois de haver o juiz conduzido a jeito a prova e usado de todas as
traças que a maldade e a paixão humanas inspiram.
Existe em outros Estados providência semelhante à de Goiás, porém
mais discreta: o Governador remove, a pedido, o juiz efetivo; obtém que se
demita o primeiro suplente; nomeia para o lugar deste o mais apto para agir
contra o adversário, ou dissidente político, adrede envolvido em processo. Isto
mesmo, aliás, é inqualificável. Em geral, só se admite o desaforamento da causa;
porém sem a mínima intervenção do poder público, mediante simples acórdão
do Tribunal de Apelação.
Objeta, enfim, o Sr. Relator que o juiz vacilou em aceitar a comissão,
prova de que era íntegro. Falo em tese; não alvejo nunca as pessoas quando discuto;
observo, entretanto, que a vacilação do magistrado, longe de exculpar o
erro do legislador e do Governador, põe em realce a monstruosidade da medida,
a que os juízes se curvam a medo, de má vontade, sob o penso da censura coletiva
e da grave suspeita possível, entre o povo, de que ele haja sido o escolhido
por ter, como diz Victor Hugo, um caniço na espinha dorsal.
Replica o Sr. Relator que a certa altura do processo o magistrado fez ver
que não podia estar servindo como juiz designado, na sua própria Comarca, o
que prova que ele apenas fora passado a agir no termo da própria Comarca; e o
Tribunal de Apelação repelira as alegações dos réus (...).
No RHC 26.701/DF, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 19
de abril de 1938, decidiu-se que o tempo de prisão por motivo de ordem pública
não seria descontado no cômputo do tempo de cumprimento da pena criminal.
Esta decisão fixava posição firme do Supremo Tribunal Federal, no sentido de se
separar o delito relativo à ordem pública, e portanto político, dos crimes comuns:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Trata-se de questão muito simples.
O recorrente, condenado várias vezes pelo mesmo crime, esteve preso durante
Ministro Carlos Maximiliano
84 dias declaradamente por motivo de ordem pública — prisão política, portanto.
Após esses 84 dias, foi requisitado à Casa de Detenção para responder
a um dos diversos processos contra ele instaurados. Tendo sido condenado,
em um dos processos, a três anos de prisão, pediu à Corte de Apelação para contar
os 84 dias já como cumprimento da pena de três anos.
Considerando que não havia no processo a menor prova que excluísse
o caráter de ordem pública, atribuído à prisão inicial, não obstante alegar o
paciente que fora preso, desde essa época, em virtude dos delitos por que foi
condenado, a então Corte de Apelação não atendeu ao pedido e negou a ordem.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano (Relator): Fui Relator de caso semelhante
e não descontei o período da prisão por motivo político. O preso político
— segundo a própria lei — não deve estar no lugar de criminosos comuns e
não se pode considerar a prisão política como prisão celular.
O pedido consiste apenas nisto: que se contem os 84 dias de prisão por
motivo de ordem pública para, considerando-os cumprimento da pena de três
anos, serem descontados, reduzido o período de prisão.
Só nos casos de prisão preventiva é que se faz o desconto e, na hipótese,
não houve prisão preventiva a não ser depois de ter sido o paciente requisitado
pelo Juiz, já tendo sido descontado esse período.
Nessas condições, nego provimento ao recurso, de acordo com voto anteriormente
proferido.
DECISãO
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: indeferiram o pedido unanimemente,
digo, negaram provimento, por unanimidade.
No HC 27.350/RS, relatado pelo Ministro Octavio Kelly e julgado em 6
de dezembro de 1939, Carlos Maximiliano explicitou seu entendimento a propósito
do alcance da anistia:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, um dos efeitos
da anistia é, precisamente, libertar os acusados de qualquer processo. Por conseguinte,
se nós, agora, exigíssemos que cada anistiado fosse a processo para
provar sua inocência, o decreto seria desnecessário.
Todas as anistias decretadas no Brasil deram margem a inúmeros pedidos
de habeas corpus e o Tribunal deles sempre tomou conhecimento. Aliás,
não há outro meio. Como vamos mostrar a conexidade entre dois fatos sem
entrar no exame da prova das circunstâncias que os determinaram?
Se não se examinassem os fatos e suas circunstâncias, a anistia a favor
dos crimes conexos seria medida inócua. Como podemos provar, repito, que o
crime é conexo sem examinarmos as provas determinantes do fato?
Na hipótese dos autos, o crime se deu na própria fazenda do indivíduo
apontado como matador. Quer dizer que o assassino e a vítima eram mais ou
menos camaradas; separaram-se e brigaram por motivos políticos. Aquele que
atirou primeiro — por sinal o mais fraco e menos valente — foi mais feliz; morreu
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Memória Jurisprudencial
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o outro. A política, pois, foi a razão única do crime. Ora, sem se examinarem todas
essas circunstâncias, não se pode, de modo algum, aplicar a lei de anistia.
Quando da outra Revolução, no Rio Grande do Sul, em São Gabriel, certo
fazendeiro teve, também, rixa, matando peões do adversário. Houve pedido para
se aplicar a anistia, que fora decretada e o Tribunal, unanimemente, a concedeu,
exatamente em virtude da anistia, pelo fato de considerar que vítimas e assassino
eram adversários políticos, até inimigos figadais por este motivo.
Temos, pois, de examinar a prova.
(...)
No caso, a vítima foi morta quando procurava afastar o capataz que ia
para a Revolução.
Tenho de examinar este fato, para ver a conexidade com a causa política,
e, examinando-a, não posso chegar a outra conclusão senão a de que o motivo
determinante desse fato lamentável foi a exaltação provocada pela Revolução
de 1930.
Por todos esses fatos, concedo a ordem.
Carlos Maximiliano participou de um dos mais importantes julgamentos
de nossa história política. Trata-se do RHC 26.330/DF, relatado pelo Ministro
Costa Manso e julgado em 11 de janeiro de 1937. O recorrente era o deputado
baiano João Mangabeira, irmão de Octávio Mangabeira (que fora Ministro
das Relações Exteriores no Governo Washington Luís), tio-avô de Roberto
Mangabeira Unger, filósofo e jurista brasileiro conhecido internacionalmente,
professor de Direito da Harvard Law school. Nos termos do relatório do referido
habeas corpus, que bem dá os contornos da discussão:
O Sr. Ministro Costa Manso: O deputado João Mangabeira requereu ao
Supremo Tribunal Militar uma ordem de habeas corpus, a fim de não serem, ele,
impetrante, e seu filho Dr. Francisco Mangabeira, sujeitos a processo perante
o Tribunal de Segurança Nacional, criado pela Lei 244, de 11 de setembro
de 1936. A petição expõe desenvolvidamente as razões por que o impetran-
te considera inconstitucional a referida lei. Deixo de lê-la, porque o impetrante
declarou, à fl. 65 dos autos, que ela se achava publicada no Diário do poder
Legislativo e seria enviada, na íntegra, a todos os Srs. Ministros da Corte
Suprema. Limito-me, pois, a informar, em resumo, que a argüição de inconstitucionalidade
repousa nos seguintes motivos:
1º — Os pacientes são acusados de delitos políticos ou contra a ordem
social. Somente aos juízes seccionais, com recurso para a Corte Suprema, compete
processar e julgar tais delitos, como está expresso nos arts. 81, letras i e l, e
76, 2, II, letra a, da Constituição. Logo, não podia o legislador ordinário transferir
o processo para a Justiça Militar.
2º — A Lei 244 criou um tribunal de exceção, pois funciona apenas
durante o estado de guerra, para o julgamento de determinados delitos, profere
decisões pela livre convicção do julgador, processa os feitos sem as necessárias
garantias para o direito de defesa, não tem juízes vitalícios e nomeados na forma
do art. 80 da Constituição, e, embora das sentenças finais caiba recurso, este
não suspende a execução da pena porventura imposta. Violou, assim, o art. 113,
n. 25, da Constituição.
Ministro Carlos Maximiliano
3º — O art. 4º da Lei 244 sujeita ao Tribunal de Segurança Nacional e
ao processo nela instituído os delitos praticados em data anterior à sua vigência.
Esse dispositivo ofende o art. 113, n. 26 e 27, da Constituição.
O Supremo Tribunal Militar, no acórdão de fl. 54, depois de mostrar que era
competente para julgar o habeas corpus, decidiu não tomar conhecimento do pedido,
por estar suspenso aquele remédio constitucional durante o estado de guerra.
Dessa decisão recorreu o impetrante para esta Corte Suprema, impugnando,
nas razões que apresentou, a conclusão do acórdão recorrido, e insistindo
nas alegações anteriores.
Como era alegada a aplicação retroativa da Lei 244, pareceu-me conveniente
requisitar cópia das denúncias apresentadas contra os pacientes, a fim de
ficar o Relator habilitado a fornecer quaisquer esclarecimentos à Corte. Foi essa
a causa da relativa demora do presente julgamento.
Segue o voto do Ministro Relator:
I — Quando foi impetrado o habeas corpus, os pacientes não se achavam
sequer denunciados ao Tribunal de Segurança Nacional. Eu jamais concedi
habeas corpus para impedir a instauração ou a marcha de processo civil ou
criminal, antes de se manifestar a ameaça, pelo menos, de um constrangimento
à liberdade de locomoção. Conseqüentemente, não tomaria conhecimento do
pedido, nos termos em que foi formulado, e no qual há, na realidade, um ataque
à lei em tese e não a ato de qualquer autoridade. E por este fundamento — não
pelo acórdão recorrido — confirmaria a conclusão a que chegou a colenda Corte
de Justiça Militar.
(...)
II — A Corte Suprema tem decidido diversas vezes que o estado de
guerra só suspende o habeas corpus nos termos do art. 161 da Constituição, isto
é, naquilo que possa prejudicar, direta ou indiretamente, a segurança nacional.
As medidas de polícia política não são, pois, atingidas pelo habeas corpus. Não
assim os atos judiciários, como os decretos de prisão preventiva, os despachos
de pronúncia e as sentenças condenatórias. Podendo os tribunais e juízes de
primeira instância praticar tais atos, e sendo lícito aos tribunais superiores confirmá-los
ou reformá-los em grau de recurso, é para mim evidente que também
podem obstar os seus efeitos mediante a concessão do habeas corpus, quando se
demonstre serem manifestamente ilegais.
O habeas corpus, na hipótese, apenas elimina os efeitos do ato judicial,
ressalvada a ação da autoridade administrativa, na defesa da ordem pública.
Todas as ordens de habeas corpus levam a cláusula de ser o paciente posto em
liberdade “se por al não estiver preso”. Assim, a ordem, por ventura concedida,
nenhum prejuízo poderá acarretar à segurança nacional.
Dir-se-á que, sendo possível a mantenção da prisão, por ato do Poder
Executivo, nenhum resultado produzirá a eliminação, por habeas corpus, dos
efeitos do ato judicial. Não procede a objeção, porque o constrangimento decorrente
do ato judicial não só perdurará após a terminação do estado de guerra,
mas também impedirá que a autoridade administrativa mande, antes disso, pôr
os pacientes em liberdade, se reputar desnecessária à ordem pública a sua conservação
na prisão — como, aliás, o fez em relação a diversos detidos.
Discordando, assim, da conclusão a que chegou o Supremo Tribunal
Militar, dou provimento ao recurso, para declarar admissível o pedido de habeas
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Memória Jurisprudencial
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corpus, e para que a Corte Suprema dele tome conhecimento, nos termos do
art. 23, parágrafo único, letra a, da Lei 221, de 1894.
III — Passando ao mérito, declaro desde logo que não entrarei no exame
intrínseco do despacho do Tribunal de Segurança Nacional, que decretou a
prisão preventiva dos pacientes. Essa questão não foi submetida ao exame do
Supremo Tribunal Militar. Não é, portanto, objeto do recurso. Se os pacientes
entenderem que a prisão foi decretada sem provas, ou sem que fosse necessária,
deverão requerer outro habeas corpus ao Juízo competente, trazendo-o a esta
Corte, em grau de recurso, se o remédio constitucional for denegado.
Meu voto versará, pois, unicamente sobre a matéria da petição inicial.
IV — No art. 81 da Constituição, vêm enumeradas, entre as atribuições
dos juízes seccionais, as
de processar e julgar, em primeira instância:
(...)
i) os crimes políticos e os praticados em prejuízo de serviço
ou interesses da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral
ou Militar;
(...)
l) os crimes praticados contra a ordem social, inclusive o de
regresso ao Brasil de estrangeiro expulso.
A ressalva constante da letra i não se refere unicamente, segundo me
parece, aos crimes “contra serviços ou interesses da União”, mas também aos
crimes políticos. Basta atender a que os crimes eleitorais, pelo menos, embora
sejam crimes políticos, estão sujeitos, nos termos do art. 83, letra h, à Justiça
Eleitoral, donde se vê que nem todos os delitos políticos devem ser processados
e julgados pela Justiça Federal comum.
A letra h do art. 81 não contém ressalva alguma. Pareceria, à primeira vista,
que estabelece uma regra de caráter absoluto. Tal, porém, não acontece. As exceções
à competência dos juízes federais devem estar expressas na Constituição.
Portanto, haja ou não uma ressalva no art. 81, o juiz federal será incompetente se,
em outro ponto, a Lei Suprema conferir a atribuição a Juízo diverso.
Ora, o art. 84, depois de estabelecer, como regra, que “os militares e as pessoas
que lhes são assemelhadas terão foro especial nos delitos militares”, permite
seja esse foro estendido aos civis, nos casos expressos em lei, para a repressão de
crimes contra a segurança externa do País ou contra as instituições militares.
Esta medida pode ser adotada tanto na paz como na guerra, já porque
a Constituição não distingue, já porque a ação da Justiça Militar em tempo de
guerra vem regulada de modo mais amplo no art. 85. E, de fato, os crimes contra a
segurança externa do país ou contra as instituições militares podem ser praticados
antes da declaração de guerra e mesmo que ela não sobrevenha. Basta lembrar a
espionagem, a revelação de segredos políticos ou militares, as intrigas internacionais,
a propaganda contra as forças armadas, o incitamento delas à rebelião, etc.
Nas hipóteses do art. 84, pois, os crimes políticos ou contra a ordem
social podem ser transferidos da Justiça Federal comum para a Militar.
A transferência é facultativa e depende de preceito legal expresso, como
declara o texto, in verbis: “poderá (...) nos casos expressos em lei (...)”.
Logo, na ausência de lei expressa, os mencionados delitos permanecem
na competência dos juízes federais comuns. Nesse sentido orientou-se o Poder
Legislativo, logo após a promulgação do Pacto Político de 16 de julho de 1934,
pois a Lei 38, de 4 de abril de 1935, no art. 44, determinou fossem todos os
Ministro Carlos Maximiliano
crimes nela definidos processados pela Justiça Federal. A Lei 38, assim como
a Lei 136, que a modificou em parte, sem alterar a competência dos juízes federais,
definem, entretanto, crimes contra a ordem política ou social, e que podem
não só pôr em perigo a segurança nacional, mas também prejudicar as instituições
militares, como os dos arts. 10 e 11 do primeiro daqueles atos legislativos
e 8 e 11 do segundo. O legislador de 1935, deliberadamente, não quis, portanto,
exercer a faculdade conferida no art. 84 da Constituição.
Sobreveio, porém, a Lei 244, de 11 de setembro de 1936, que pôs em
prática o preceito constitucional, mandando, no art. 3º, que passassem a ser julgados
pelo Tribunal de Segurança Nacional, órgão da Justiça Militar, os civis e
militares acusados de crimes:
a) contra a segurança externa da República, havidos como tais os previstos
nas Leis 38 e 136, citadas, quando praticados em concerto, com o auxílio ou
sob a orientação de organizações estrangeiras ou internacionais;
b) contra as instituições militares, previstos nos arts. 10, parágrafo único
e § 11 da Lei 38.
Portanto, esses delitos passaram regularmente para a jurisdição militar,
nos termos do art. 84 da Constituição. Podia o legislador ter determinado que
tal acontecesse tanto na paz como na guerra. Preferiu, entretanto, aplicar parcialmente
o art. 84, sujeitando ao Tribunal de Segurança Nacional unicamente
os delitos que “derem causa a comoção intestina grave, seguida de equiparação
ao estado de guerra, ou durante este forem praticados” (Lei 244, art. 3º, n. 3).
Concluo esta parte do meu voto julgando improcedente a argüição de
inconstitucionalidade da Lei 244, por sujeitar à Justiça Militar delitos políticos
ou praticados contra a ordem social.
Não sou incoerente com o voto que proferi a respeito do encaminhamento
ao Supremo Tribunal Militar dos feitos já decididos pelos juízes seccionais,
voto que se encontra à p. 260 do v. xL do arquivo Judiciário. Tratava-se,
então, de feitos em que os referidos juízes, ainda competentes, haviam proferido
sentenças. Nos termos do art. 76, 2, II, letra a, da Constituição, somente a
Corte Suprema pode julgar os recursos das decisões por eles proferidas. E não
sendo eles juízes militares, não me pareceu possível sujeitar as suas sentenças
à revisão do Supremo Tribunal Militar. O caso de agora é diferente, pois me
ocupo de processos intentados originariamente perante o Tribunal de Segurança
Nacional — tribunal militar de primeira instância.
V — O art. 113, n. 25, da Constituição preceitua:
Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção; admitemse,
porém, juízos especiais em razão da natureza das causas.
O legislador não exigiu, neste dispositivo, uniformidade na constituição e
no modo de funcionamento dos diversos órgãos do Poder Judiciário, pois admite a
criação de Juízos especiais em razão da natureza das causas. A lei pode, pois, instituir
tribunais para o processo de menores delinqüentes, de falências, dos delitos
de imprensa, dos crimes funcionais, das infrações chamadas policiais, e quaisquer
outras, inclusive os delitos políticos e os praticados contra a ordem social.
Os tribunais especiais podem ser constituídos de modo diverso dos tribunais
ordinários; o processo, nesses tribunais, pode deixar de ser — e isso geralmente
acontece — o processo comum. O essencial é que se observem certos
princípios fundamentais decorrentes da Constituição.
O intuito do legislador constituinte, quando aludiu aos tribunais de
exceção, foi impedir a instituição das “comissões extraordinárias”, com que os
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Memória Jurisprudencial
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governos despóticos sufocavam violentamente os movimentos de opinião contrários
à tirania — tribunais irregulares, que julgavam de plano, sem forma e
figura de Juízo, e sem recurso para outra autoridade judiciária permanente.
Ora, o Tribunal de Segurança Nacional não pode ser equiparado a tais
“comissões extraordinárias”. Basta observar que das suas decisões há recurso
para o Supremo Tribunal Militar, podendo, ainda, ser examinadas, em revisão
criminal, pela Corte Suprema. Está, portanto, colocado na engrenagem judiciária
do País, sujeito, nos seus movimentos, ao ritmo impresso pelo Direito a todo
o mecanismo.
Objeta o recorrente que o recurso não tem efeito suspensivo, que o processo
estabelecido sacrifica o direito de defesa, que os juízes decidem segundo
a sua livre convicção.
Já declarei que admito se estabeleça processo especial para os feitos julgados
pelos tribunais especiais. A natureza das causas pode exigir que se não
observem as formas comuns, e isso — repito — é o que geralmente acontece.
Os crimes confiados ao julgamento do Tribunal de Segurança Nacional são os
que determinarem grave comoção intestina e a declaração do estado de guerra.
Neles, portanto, há de estar sempre envolvido um grande número de indivíduos.
O julgamento, mediante as fórmulas ordinárias, exigiria tão dilatado tempo,
que os réus, presos preventivamente ou em conseqüência de pronúncia, cumpririam
as penas que lhes fossem impostas antes de proferida a sentença final.
Quando a ação criminosa se estendesse a diversos pontos do País, cada delinqüente
ou grupo de delinqüentes, segundo as regras ordinárias da competência,
teria de ser processado e julgado por um juiz diferente. E um só fato, ou um
fato complexo, desdobrado em ações múltiplas mas articuladas, seria apurado
e apreciado diversamente, segundo a maior ou menor inteligência, severidade,
honestidade ou tendência espiritual de cada julgador!
Impunha-se, pois, a criação de um tribunal único, com jurisdição em
todo o território nacional, e que observasse um processo rápido e enérgico para
a apuração das responsabilidades.
É verdade que a Lei 244 estabeleceu certas normas visivelmente incompatíveis
com o direito de defesa assegurado na Constituição. Se, porém, o Tribunal
de Segurança Nacional aplicar essas normas, e delas resultar efetivamente prejuízo
substancial para a defesa dos réus, nulas serão as sentenças proferidas,
podendo a nulidade ser pronunciada em grau de recurso, em revisão criminal e
talvez mesmo, conforme o caso, sumariamente, em processo de habeas corpus.
Mas a prescrição de normas viciosas de processo não influi na estrutura
do órgão judiciário incumbido de executá-las. Suponha-se que surja uma lei
regulando o processo dos juízes federais pela Corte Suprema, e que contenha
preceitos restritivos de direito de defesa. Passará a Corte Suprema, por esse
motivo, a constituir um tribunal de exceção, uma vez que nos outros Juízos tais
preceitos restritivos não existam? É claro que a conseqüência única da inconstitucionalidade
da lei restritiva será a não aplicação do texto. A ofensa a direito
substancial da defesa destrói a sentença, não o tribunal que a profere.
O recurso não suspensivo já figurava no art. 38, parágrafo único da
Lei 38 e art. 17, parágrafo único da Lei 136. Subsiste, quando os crimes definidos
nas referidas leis sejam da competência dos juízes seccionais. Logo, se
tal circunstância bastasse ou concorresse para que o Tribunal de Segurança
Nacional fosse um tribunal de exceção, também daria lugar a que aos juízes
seccionais se aplicasse o mesmo epíteto!
Ministro Carlos Maximiliano
Realmente, o art. 10, parágrafo único, da Lei 244 dispõe que “os membros
do Tribunal de Segurança Nacional julgarão, como juízes de fato, por livre
convicção”. Note-se, que, na publicação oficial, foi omitida uma vírgula depois
da palavra “julgarão”. Como juízes de fato, é que os membros do Tribunal julgarão
de livre convicção, o que não quer dizer que não sejam também juízes de
direito, ou que possam aplicar arbitrariamente a lei.
O dispositivo, aliás, é absolutamente inócuo. É possível que o legislador
tivesse tido a intenção de conferir aos juízes a faculdade, que têm os jurados, de
julgar de consciência, com abstração da prova colhida no processo, atendendo
ao conhecimento pessoal dos fatos ou à conveniência da sociedade. Mas não foi
isso que ficou escrito.
Em primeiro lugar, o próprio art. 10 estabelece o recurso para o Supremo
Tribunal Militar, que, nos termos do art. 376 do Código da Justiça Militar,
não julga de consciência. Aliás, a Lei 244 alude unicamente aos “membros
do Tribunal de Segurança Nacional”. Não foi determinado que, no recurso, o
tribunal superior apenas apreciasse o processo na sua parte formal, como, em
relação ao Júri, determinara o Código de Processo Criminal de 1932, arts. 301 a
303. Portanto, sempre que o tribunal de primeira instância se afaste do alegado
e provado nos autos, a sua decisão será necessariamente reformada, porque o
superior não encontrará elementos para confirmá-la.
Demais, não há juiz que não julgue livremente, segundo as suas próprias
convicções, embora adstrito ao sistema legal de provas. Essa livre e íntima convicção
é que leva o juiz a decidir se o fato está ou não provado e como a lei deva
ser aplicada. As divergências que diariamente se manifestam entre os membros
dos tribunais coletivos revelam a liberdade com que cada um deles aprecia a
questão submetida a julgamento.
O que resulta do art. 10, parágrafo único, da Lei 244, é, pois, na realidade,
unicamente isto: o Tribunal de Segurança Nacional não é obrigado a fundamentar
as suas sentenças, embora moralmente deva fazê-lo. É o que sucede
com relação a todos os juízes federais, pois as nossas leis de processo não consideram
nulas as sentenças não fundamentadas.
Ficam, assim, afastadas as objeções relativas ao processo, às quais,
entretanto, voltarei, na última parte deste voto, quando estudar a questão
da retroatividade.
Os tribunais militares de primeira instância, no Brasil e creio que em
todo o mundo, jamais foram permanentes ou constituídos por juízes permanentes.
Até a expedição do Decreto 14.450, de 30 de outubro de 1920, a jurisdição
militar inferior era exercida pelos Conselhos de Investigação e de Guerra, constituídos
por um auditor, juiz togado, e por oficiais do Exército ou da Armada,
nomeados, para cada processo, pelos comandantes das guarnições ou unidades.
O referido decreto criou os Conselhos de Justiça, formados pelo auditor e quatro
juízes militares, designados mediante sorteio. No Conselho incumbido de julgar
as praças de pret, os juízes sorteados serviam durante seis meses, em todos
os processos que surgissem (art. 15, § 9º). Sendo o acusado oficial, o Conselho
era constituído para cada processo (art. 22). Tal sistema, nas suas linhas gerais,
foi mantido pelo “Código da Justiça Militar”, mandado executar pelo Decreto
17.231-A, de 26 de fevereiro de 1926, reduzida a três meses a vida dos Conselhos
julgadores de praças de pret (arts. 9º, § 3º; 10, § 2º; 21; e 24). O art. 9, § 5º,
permite a constituição de Conselhos extraordinários, no caso de acúmulo de
serviço ou de outro motivo relevante. Esses conselhos se dissolvem logo que
101
Memória Jurisprudencial
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estejam concluídos os processos submetidos ao seu julgamento. Em tempo de
guerra, entretanto, procede-se como antigamente: os Conselhos são nomeados
pelo Ministro da Guerra ou da Marinha ou pelo comandante-chefe das forças
em operações (art. 349).
Logo, a temporariedade do funcionamento (não da existência jurídica)
do Tribunal de Segurança Nacional e a sua constituição por juízes também temporários
não o colocam em situação excepcional, em face dos demais tribunais
militares. Nem seria concebível a nomeação de juízes permanentes para um tribunal
que só tem processos para julgar quando é decretado o estado de guerra,
situação excepcional que poderia não ocorrer mais de uma vez na vida do juiz.
Dir-se-á que o art. 64 da Constituição determina sejam todos os juízes
vitalícios e inamovíveis. Esse preceito, porém, não é aplicável aos juízes militares,
como sempre se entendeu desde que o Brasil existe como nação independente
e sob a vigência de duas Constituições que, como a de 1934, asseguravam
aos juízes aquelas regalias.
A lei pode, sem dúvida, criar juízes militares com os atributos dos magistrados
civis. E, efetivamente, assim procedeu o legislador, quanto aos Ministros
do Supremo Tribunal Militar e aos auditores. A esses é que alude o art. 87 da
Constituição, para lhes restringir a inamovibilidade no caso ali previsto. Mas,
não tendo a Constituição estabelecido normas especiais (vide o art. 86), poderá
a lei ordinária organizar do modo mais conveniente às instituições militares os
órgãos da respectiva justiça, desde que obedeça aos princípios fundamentais a
que já aludi, indispensáveis ao direito de defesa.
Pelo exposto, não considero o Tribunal de Segurança Nacional incluído
entre as instituições condenadas pelo art. 113, n. 25, da Constituição: é um tribunal
especial; não é um tribunal de exceção.
VI — O art. 4º da Lei 244 manda sejam os seus preceitos aplicados retroa-
tivamente. Eis o texto:
São também da competência do Tribunal, na vigência do estado
de guerra, o processo e julgamento de todos os crimes a que se refere o
art. 3º, praticados em data anterior à desta lei, e que não tenham sido julgados,
cabendo ao Supremo Tribunal Militar conhecer dos julgados em
primeira instância.
Parágrafo único. Os processos em andamento na primeira instância
serão remetidos ao Tribunal de Segurança Nacional para os fins
da presente lei. Para os mesmos fins, serão encaminhados ao Supremo
Tribunal Militar os que se acharem em andamento na segunda instância,
ou penderem de recurso.
Suscitei a declaração da inconstitucionalidade do preceito, na parte em
que sujeitou ao Supremo Tribunal Militar os feitos julgados pelos juízes seccionais.
Fui vencido, com os eminentes Srs. Ministros Laudo de Camargo e Octavio
Kelly, que comigo concordaram. Tratava-se, então, de aplicar o art. 76, 2, II, letra
a, da Constituição. Cogita-se agora da questão da retroatividade das leis de organização
judiciária e de processo. É invocado o art. 113, ns. 26 e 27, que dispõem:
Ninguém será processado nem sentenciado, senão pela autoridade
competente, em virtude de lei anterior ao fato e na forma por ela prescrita.
A lei penal só retroagirá quando beneficiar o réu.
Sustenta o recorrente que a palavra “lei”, do inciso 26, e a locução “lei
penal”, do 27º, abrangem tanto a lei substantiva, como a adjetiva. E, assim, o
delinqüente há de ser julgado pelo tribunal que era competente ao tempo do
Ministro Carlos Maximiliano
crime, e segundo a forma processual então vigente. Examinemos a interessante
questão, em face da jurisprudência, da doutrina e do texto constitucional.
a jurisprudência pátria. Os nossos tribunais sempre admitiram a aplicação
das leis orgânico-judiciárias e de processo aos fatos pretéritos. As coletâneas
de julgados estão repletas de decisões proferidas nesse sentido. Uma
das mais importantes foi a sentença do Supremo Tribunal Federal, lavrada na
Apelação Criminal 1.009, de São Paulo, a 23 de dezembro de 1927, no processo
instaurado contra os implicados no movimento militar que explodira na capital
daquele Estado a 5 de julho de 1924. O acórdão se encontra no “Arquivo
Judiciário”, v. VI, p. 571 a 712. Os decretos legislativos 4.848, de 13 de agosto de
1924, e 4.861, de 29 de setembro do mesmo ano, haviam transferido do Tribunal
do Júri para os juízes seccionais, o julgamento dos delitos políticos, estabelecendo
a forma que tais juízes deveriam observar nos respectivos processos.
O Supremo Tribunal Federal, pelos votos dos Srs. Ministros Muniz barreto,
Heitor de sousa, cardoso ribeiro, bento de Faria, pedro dos santos, arthur
ribeiro, soriano de sousa, Firmino Whitaker e pedro Mibielli (9 votos), contra
os dos Srs. Ministros Hermenegildo de barros e Leoni ramos (2 votos), declarou
aplicáveis os referidos atos legislativos. Ainda um Ministro, o Sr. pires e
albuquerque, então Procurador-Geral da República, sustentara vigorosamente
a tese vencedora. O acórdão é largamente fundamentado e menciona a existência
de numerosas leis de forma, aplicadas a fatos anteriores, sem objeções dos
tribunais. Vou ler o acórdão, na parte que interessa: (lê). Lerei também o voto
vencido do Sr. Ministro Hermenegildo de barros (lê).
a jurisprudência norte-americana. As decisões com que a Suprema
Corte norte-americana construiu o maravilhoso sistema político-judiciário, que
se irradiou para as demais nações da América, são sempre invocadas com proveito.
O recorrente cita diversos julgados. O princípio neles dominante, porém,
é o de serem inconstitucionais as leis que ofendam certos direitos do acusado,
como os meios de prova, a fiança e outras garantias essenciais — preceitos que,
segundo a melhor doutrina, são de direito substantivo, embora geralmente figurem
intercalados nas leis de processo.
Admitamos, porém, que existam decisões no sentido da irretroatividade
das leis de forma. Serão casos esporádicos, porque a generalidade dos arestos do
famoso tribunal sustenta que tais leis não são “leis ex post facto”, condenadas pela
Constituição norte-americana. Tenho à mão a obra de Nicolás calvo — Decisiones
constitucionales —, e dela extraio diversos julgados referentes ao assunto.
(...)
a doutrina. Como em todas as questões de direito, há controvérsia a respeito
do caso que examino. A opinião preponderante, entretanto, é pela aplicação
das leis de processo e de organização judiciária aos fatos anteriores, por se
tratar de normas fundadas no interesse público.
Poderia trazer para aqui uma biblioteca, a fim de ler as lições dos mais
notáveis escritores. Seria abusar inutilmente da paciência dos eminentes colegas,
que, melhor do que eu, conhecem o assunto. Citarei, porém, os constitucionalistas
da casa, os ilustres Srs. Ministros carlos Maximiliano e bento de Faria, nos
comentários à constituição, n. 203, do primeiro, e na aplicação e retroatividade
da lei, n. 9, do segundo. Aí vem abundante documentação, à qual me reporto.
carlos Maximiliano invoca a autoridade de p. Mazzoni, beandant, clovis
bevilaqua, capitant, ribas Mac-clain, Martinho Garcez e barbalho. E bento de
Faria a de bianchi, Faggella, Delacourt, reverend, De Villeneuve, Josserand,
103
Memória Jurisprudencial
104
Garsonnet e bru, Ferrara, stolfi, coviello, Guillot, Felício dos santos, ribas,
Vampré, bevilaqua, barbalho, carlos Maximiliano. Vejamos, porém, como
pensa rui barbosa, cujo nome glorioso menciono com respeito, e que figura na
petição do recorrente. Na anistia Inversa, efetivamente, rui barbosa escreveu
que a expressão “forma”, do art. 72, § 15, da Constituição de 1891, compreende
tanto o direito material como o processual. Isto, porém, depois de ter demonstrado,
em face da doutrina e da jurisprudência norte-americana, que a aplicação
retroativa só era vedada quando esbulhasse o réu de quaisquer direitos substanciais,
e de transcrever a lição de Hardcastle constante desta regra: “as alterações
na forma do processo são retroativas, quando a reforma entende exclusivamente
com os tramites da ação, sem interessar os direitos das partes”.
Aliás, o assunto versado pelo Mestre era a inconstitucionalidade da
Lei 310, de 21 de outubro de 1895, que, depois de conceder anistia a todas as pessoas
envolvidas em movimentos revolucionários até 23 de agosto daquele ano,
suspendia os efeitos da medida de clemência em relação aos oficiais do Exército
e da Armada, durante dois anos, e ainda depois desse prazo, se o Governo o
julgasse conveniente. Para rui, este dispositivo piorava a situação dos militares,
que, submetidos a julgamento, poderiam ser absolvidos. O Poder Legislativo,
conseguintemente, apostrofou o Mestre:
suprime a prova,
julga sem juiz,
condena sem processo.
A referência à retroatividade das leis de processo constituiu mero incidente
de argumentação. O que ele na realidade combatia era o que os ingleses e
norte-americanos denominam bill of attainder.
A anistia Inversa foi publicada em 1896. Pois bem! Nove anos depois,
em discurso proferido no Senado, rui abordava diretamente a questão que agora
examinamos. E manifestou categoricamente o seu pensamento, dizendo, como
se vê a p. de 3113 a 3116 do Diário do congresso Nacional, n. 201, de 30 de
novembro de 1905:
(...)
Quer ante os princípios gerais do Direito, quer ante os precedentes
do Direito americano, as leis de processo criminal são retroativas.
A nossa Constituição veda, é verdade, as leis retroativas — é esta
a fórmula constitucional —, mas a fórmula da Constituição brasileira não
é nossa: ela reproduz simplesmente a fórmula da Constituição americana.
A Constituição americana vedou igualmente aquilo que na nossa
língua se traduziria — leis retroativas; e, todavia, a jurisprudência americana
tem entendido sempre assim esta disposição, apesar da sua feição
e aparência absolutas, de acordo com as restrições a elas postas pelos
princípios universais do Direito.
A Constituição declara no art. 72 que ninguém será sentenciado
senão perante a autoridade competente, em virtude de lei anterior e na
forma por ela regulada.
Poder-se-á supor que a última cláusula deste texto, isto é, as
expressões na forma por ela regulada, se referem às leis de processo;
quer dizer que, não existindo lei de processo no momento em que se perpetrou
o delito, o delito não seja processável?
Penso que não.
Ministro Carlos Maximiliano
Ambas as cláusulas da Constituição se referem à mesma idéia;
ambas elas se referem à lei substantiva, à lei que estabelece a pena e por
isso diz — pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na
forma por ela regulada.
(...)
A forma aqui é a forma pela qual a lei substantiva estabelece a
punição do delito. Ambas as cláusulas se referem à mesma lei penal.
A lei penal define o crime, estabelece a pena e a forma da sua aplicação,
isto é, as condições em que a pena se aplica, as circunstâncias que
podem minorá-la ou agravá-la, os caracteres que definem o delito, etc.
Tudo isto constitui a forma pela qual a pena se aplica. E quando
nós, na linguagem legislativa, usamos da expressão na forma da lei, queremos
dizer do modo como a lei dispõe. Não costumamos empregar a
expressão forma da lei como forma de processo
Não quero estender-me, Senhor Presidente, e vou terminar.
Em todo caso, quero provar ao Senado que não há espírito de sofisma
nesta opinião, que é universal.
(...)
Do que se tem escrito sobre o direito brasileiro, anterior à nossa
Constituição, peço licença para citar as palavras de ribas:
As leis de processo civil e criminal aplicam-se tanto aos
processos pendentes como aos fatos anteriores a elas, mas que
sob o seu império são trazidas a juízo (RIBAS, Direito civil, 1º
Tomo, p. 222).
Este era o direito universalmente conhecido.
Poderia citar Gabba e todos os tratadistas que largamente desta
matéria se têm ocupado; mas, para resumir tudo em uma só proposição
de uma só autoridade, capaz de exprimir cabalmente a opinião geral, hoje
dominante no direito, eu lerei ao Senado as palavras de aubry et rau,
cuja obra é considerada na França como um dos dois ou três grandes
monumentos da literatura jurídica do século passado.
aubry et rau, v. I, p. 106, § 30:
Leis de processo civil e criminal. Estas leis se aplicam
ao processo e julgamento dos processos a que hajam dado lugar
ainda os fatos anteriores à promulgação delas. É assim quanto às
leis do processo criminal, bem que se trate de feitos começados
antes que elas se tornassem obrigatórias.
Pelo que toca ao direito americano, peço permissão para ler duas
linhas ao Senado; são de tratado de Wade, sobre a retroatividade das leis;
é uma obra clássica entre os americanos.
Diz o autor:
As mudanças na lei que interessarem aos processos pelos
quais se punam os crimes têm efeito sobre os atos anteriores, sem
violarem a proibição constitucional das leis retroativas.
Estas palavras se referem a crimes e não a processo criminal.
Antes de Wade, todos os autores americanos que se ocuparam do
assunto, até story, todos eles, unanimemente, firmaram a mesma doutrina.
E ainda há pouco, na última edição publicada, em 1903, da obra de
cooley, assim se exprime este grande mestre da interpretação do direito
constitucional nos Estados Unidos:
105
Memória Jurisprudencial
106
Mas enquanto se trata de simples modo de processo, a
parte não tem direito nem em uma ação civil, nem em uma ação
criminal, em insistir que o seu feito seja julgado sob a lei em vigor
quando se deu o ato que se investiga.
Os meios do direito devem ficar sempre sob o critério da legislatura,
e seria criar confusões intermináveis nas formas legais, se todos os
processos tivessem de ser dirigidos unicamente de acordo com as regras
e julgados pelas autoridades existentes quando os fatos se deram.
A legislatura pode abolir tribunais e criar outros, pode prescrever
inteiramente modos diversos de processos, conquanto, a meu modo de
ver, procedendo assim não possa legitimamente abolir estes meios com
que a lei existente protege a pessoa do acusado.
(...)
Quando os jurisconsultos estabelecem os princípios da retroatividade
das leis em um processo criminal, fazem sempre essa reserva e ainda há pouco
a li no trecho de cooley, por mim aqui citado.
Toda a vez que um novo processo corta ou destrói garantias anteriores,
ele não se pode aplicar; mas se a lei se limita a organizar o processo, mantidos
os direitos constitucionais do acusado, se é simplesmente ordinatoria liti, essa
lei se refere aos fatos anteriores.
Imaginemos um caso. O legislador chega à convicção de que é necessário
punir como criminosa uma falta até então não sujeita a pena. A essa falta,
mediante a lei nova, imprime o estigma de fato criminoso.
Naturalmente entre a decretação da lei que caracteriza o delito e a promulgação
da lei que dá forma ao processo, o tempo decorre e se, nesse meio
tempo, acaso se pratica o crime que a lei de que se trata veio exatamente punir,
ficará esse crime irresponsável pela simples circunstância, acidental, de não
estar ainda organizado o processo, quando a organização do processo não interessa
absolutamente às garantias da defesa? Não pode ser!
Esta lei ordinatoria liti, como bem diz o meu honrado colega do Estado
do Rio de Janeiro, tem aplicação retroativa porque ela não interessa às garantias
da defesa, nem diminui os direitos do acusado.
o texto constitucional. Observa o impetrante que, se, em face da
Constituição de 1891, as leis de forma pudessem ser aplicadas aos fatos pretéritos,
outro conceito seria imposto pelo Código Político de 1934. Dispunha o
art. 72, § 15, da primeira que “ninguém será sentenciado senão pela autoridade
competente, em virtude de lei anterior e na forma por ela regulada”, enquanto
que o segundo, no art. 113, n. 26, intercalou a palavra “processado”, para expressamente
incluir no preceito as leis adjetivas.
A mim me parece, entretanto, que o sentido do texto é precisamente o
mesmo. “Ninguém será processado nem sentenciado” quer dizer que “ninguém
será submetido a processo nem sujeito a sentença”. E, como ninguém é sentenciado
sem ser submetido a processo, segue-se que a expressão — “ninguém será
sentenciado” — é equivalente à outra — “ninguém será processado nem sentenciado”.
Podemos, pois, decompor deste modo o texto da Constituição de 1934:
— Ninguém será submetido a processo senão perante a autoridade competente,
e ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente.
— Ninguém será sujeito a processo nem sentenciado senão em virtude
de lei anterior ao fato.
Ministro Carlos Maximiliano
— Ninguém será submetido a processo nem sentenciado senão na forma
prescrita pela “lei” (ou “pela lei anterior”).
A primeira proposição visa impedir a sujeição dos réus a pessoas ou corporações
destituídas do poder de julgar. Eis o que ensina João barbalho:
Esta proibição tem um duplo caráter. Tem um fim de natureza
política e outro de ordem jurídica. Garante o indivíduo: 1º, contra julgamentos
por pessoas, comissões ou tribunais que não pertençam à
magistratura instituída segundo a Constituição e leis a ela conformes,
e 2º, contra as decisões proferidas por membros dessa corporação, mas
excessivas do círculo de jurisdição que a cada um deles é atribuído, ou
porque o caso não se compreenda nos de que consta seu poder de julgar,
ou porque envolva indivíduo alheio à sua circunscrição judiciária.
Não se cogita, pois, de uma norma de irretroatividade, porque a sentença
do juiz incompetente é nula, seja o fato anterior, seja posterior à lei reguladora
da competência, ou melhor, da jurisdição dos tribunais.
A segunda proposição — “ninguém será sujeito a processo nem sentenciado
senão em virtude de lei anterior ao fato” — é que determina a irretroatividade
da lei penal substantiva, salvo na hipótese do inciso 27. A Constituição
proíbe a aplicação da lei:
a) que declare criminoso um fato que, quando praticado, era inocente;
b) que agrave a pena cominada na lei vigente ao tempo do delito;
c) que altere, em prejuízo do réu, as regras legais da prova e outros direitos
substanciais da defesa.
À terceira e última proposição pode-se gramaticalmente atribuir dupla
inteligência, segundo se entenda que o pronome “ela”, da oração — “na forma
por ela prescrita” — esteja em lugar do substantivo “lei” ou da locução “lei
anterior”, da cláusula precedente. Na primeira hipótese, o legislador ter-se-ia
referido às leis de forma. Na segunda, ao modo de aplicação da lei substantiva,
como, aliás, sustentou rui barbosa, no discurso que há pouco li.
Adotada a primeira inteligência (“ninguém será processado nem sentenciado
senão na forma prescrita pela lei”), teremos firmada na Constituição
a regra de que os tribunais não dispõem da faculdade de processar as causas de
modo arbitrário: são obrigados a obedecer aos trâmites legais. E essa regra se
aplica não só aos fatos anteriores, como aos subseqüentes à lei processual. Não
é um preceito pertinente à irretroatividade das leis de processo.
Na segunda hipótese (“ninguém será processado senão na forma prescrita
pela lei anterior”), teremos uma norma de irretroatividade, mas da lei
substantiva, pois que a locução “lei anterior”, da cláusula antecedente, substituída
pelo pronome “ela”, não se refere às leis de forma. E repetiremos, com
rui barbosa: “A forma, aqui, é a forma pela qual a lei substantiva estabelece a
punição do delito. A lei penal define o crime, estabelece a pena e a forma da sua
aplicação, isto é, as condições em que a pena se aplica, as circunstâncias que
podem minorá-la ou agravá-la, os caracteres que definem o delito, etc.”
Conceda-se, porém, que o texto possa ter a inteligência pleiteada pelo
recorrente. A conseqüência seria que existe uma “dúvida” a respeito da constitucionalidade
da Lei 244. Mas a “dúvida” acerca da constitucionalidade de uma
lei — ensinam os escritores norte-americanos — nunca é motivo suficiente para
que os tribunais deixem de aplicá-la. A discordância entre a Constituição e a lei
deve ser tal (esse conceito é de cooley), que se apodere do juiz a clara e viva
convicção da incompatibilidade entre uma e outra; isto não é outra coisa senão
107
Memória Jurisprudencial
108
um decoroso respeito à sabedoria, à integridade e ao patriotismo do legislador,
devendo-se admitir que toda lei tem a seu favor a presunção de validade.
Encontra-se na citada obra de calvo esta ementa extraída de diversos
julgados relativos ao assunto:
2538 — La cuestión de si una ley es nula ó no, por ser repugnante
a la constitución, es en todos tiempos una cuestión tan delicada, que,
raras veces, si alguna vez se hace, debe ser decidida por la afirmativa,
en un caso dudoso. el tribunal, cuando se siente impelido por el deber,
para pronunciar ese juicio, seria indigno de su posición, si olvidara las
solemnes obligaciones que ella le impone. No es sobre una implicancia
ligera, y una vaga conjetura, que puede declararse que la legislatura
ha ultrapasado sus poderes, y que sus actos hayan de ser considerados
como nulos. La oposición entre la constitución y la ley debe ser
tal que el juez sienta una clara y fuerte convicción de su recíproca
incompatibilidad.
Não sendo, pois, manifesta a inconstitucionalidade, a aplicação da lei é
de rigor. É, aliás, o que dispõem expressamente o art. 13, § 10, da Lei 221, de
1894, o art. 267 do Decreto 3.084, de 1898, Parte I, e a própria Constituição
de 1934, no art. 113, n. 33. Este Código Político resguarda de tal modo os atos
dos Poderes Legislativo e Executivo impugnados perante o Poder Judiciário,
que exige a maioria absoluta de votos da totalidade dos seus juízes, para que
os tribunais possam pronunciar a inconstitucionalidade (art. 179). E quando a
inconstitucionalidade seja declarada por uma das cortes de apelação, e até pelo
Tribunal Superior de Justiça Eleitoral, permite seja o caso submetido em grau de
recurso à Corte Suprema (art. 76, 2, III, letra b; e art. 81, § 1º).
Se o juiz assim deve proceder geralmente, que dizer de um caso, como o
que estamos julgando, em que a aplicação da lei aos fatos pretéritos é apoiada
pela doutrina e pela jurisprudência?
VII — A Lei 244 contém, efetivamente, como já reconheci, dispositivos
contrários à Constituição. Como tais eu reputo, em rápido exame do texto:
— o que submete ao Supremo Tribunal Militar as causas já decididas
pelos juízes seccionais (ofensa ao art. 76, 2, II, letra a, da Constituição);
— o que marca o prazo manifestamente exíguo de oito dias para a citação
edital do réu ausente (ofensa ao art. 113, n. 24);
— o que limita a cinco as testemunhas de defesa, sem limitar o número
das de acusação, e manda aplicar esse preceito restritivo da prova aos fatos pretéritos
(ofensa ao art. 113, n. 24 e 26);
— o que obriga o réu a apresentar as suas testemunhas, estabelecendo a
presunção de desistência delas quando não compareçam (ofensa ao art. 113, n. 24);
— o que estabelece, com efeito retroativo, a presunção da criminalidade
contra o réu preso com arma na mão (ofensa ao art. 113, n. 26).
Tais dispositivos não deverão ser aplicados, porque não são meramente
ordinatórios da lide. Isso, porém, não quer dizer que, por figurarem na lei, deva
ser dissolvido o Tribunal de Segurança Nacional. Ainda que todas as normas
de processo estabelecidas na Lei 244 fossem inconstitucionais, não poderíamos
chegar a essa absurda conseqüência. A solução, indicada no art. 113, n. 37,
da Constituição, seria considerá-las inexistentes, aplicando-se as leis do processo
militar comum, prescritas no Código da Justiça Militar de 1926 para os
Conselhos de Justiça.
Ministro Carlos Maximiliano
VIII — Meu voto é pelo indeferimento do pedido. A existência do
Tribunal de Segurança Nacional, que o Estado instituiu no uso do poder e do
dever de resguardar a ordem jurídica e a organização social, não colide com os
princípios constitucionais. Pode ele prosseguir na sua alta missão, de acordo
com a respectiva lei orgânica, escoimada dos senões que indiquei.
Seguiu votando o Ministro Carvalho Mourão:
VOTO
(preliminar)
O Sr. Ministro Carvalho Mourão: Também dou provimento ao recurso,
nos termos do voto do Sr. Ministro Costa Manso; a ele farei, porém, ligeira
modificação, em virtude de idéias que tenho sustentado.
Entendo que se deve conhecer do habeas corpus, mesmo em estado de
guerra; não tanto, contudo, pelas razões que S. Exa. aduziu, de modo tão notável
e refletido, cuja procedência é digna de ser meditada. De fato, tenho sempre
sustentado que, mesmo em estado de guerra ou em estado de sítio, visto que a
nossa Constituição não determinou, nem em um nem em outro, que ela própria
ficará suspensa e a proclamação da ditadura; visto que os poderes do Legislativo
e do Executivo são limitados pela Constituição, ainda no estado de sítio como
no de guerra; tenho sustentado que o habeas corpus só está suspenso para as
medidas ou providências legislativas e executivas que forem tomadas dentro dos
limites dos poderes excepcionais que a Constituição lhes outorgou, nesse estado
anormal, de perigo público.
Por conseguinte, desde que se argúa que o Legislativo, ou o Executivo,
excederam os próprios poderes constitucionais, que lhes são conferidos durante a
vigência do estado de sítio ou de guerra, entendo que o habeas corpus é admissível.
Do contrário, essa limitação não teria qualquer garantia; ponto sobre o qual,
aliás, já tive ocasião de me externar. Afirmei, então, que o habeas corpus vai até
onde vai a garantia constitucional; é a túnica de Nessus da garantia constitucional;
quando esta cessa; cessa, igualmente, o habeas corpus, mas quando reaparece,
renasce o habeas corpus. Ela, com efeito, não existe sem a medida protetora.
Nestas condições, desde que os impetrantes alegam que o Poder
Legislativo, criando esse tribunal extraordinário ou de exceção, como eles
o qualificam, excedeu os próprios poderes que a Constituição outorga ao
Legislativo no estado de guerra, acho que é caso de se conhecer do pedido.
VOTO
O Sr. Ministro Carvalho Mourão: 1 — O presente recurso só deverá ser provido
se julgar-se evidentemente inconstitucional a Lei 244, de 11 de setembro p.p.:
1º — quando instituiu como órgão da Justiça Militar o Tribunal de
Segurança Nacional, com sede no Distrito Federal, para processar e julgar em
primeira instância (sempre que for decretado o estado de guerra e até que ultime
os processos de sua competência), não somente os militares e assemelhados,
senão também os civis que cometerem os crimes previstos nos incisos 1º, 2º e 3º
do art. 3º; ou (na hipótese de se considerar constitucional semelhante instituição,
em tais condições); 2º — quando dá competência ao mesmo Tribunal para processar
e julgar os ditos crimes; ainda que anteriores à lei que o criou (“sempre
109
Memória Jurisprudencial
110
que derem causa à comoção intestina grave, seguida de equiparação ao estado
de guerra” — art. 3º, n. 3, in fine).
2º — As demais alegações do recorrente sobre inaplicabilidade aos casos
pretéritos de várias disposições da cit. lei, referentes à produção das provas, à
sua eficácia e ao sistema adotado para sua apreciação, ao rito processual propriamente
dito no que entende com as garantias da defesa, e às penalidades
aplicáveis, são inoportunas. O Tribunal de Segurança ainda não as aplicou. É de
presumir (porque é do seu dever) que não aplique as que, na verdade, forem
inconstitucionais (quando aplicadas a processos por fatos pretéritos); sendo de
notar que algumas das disposições criticadas são de caráter facultativo; são
coisas que o Tribunal “poderá” fazer ou não (por exemplo, as que se contêm no
art. 9º, n. 11 e 14, e no art. 13).
Sentenciar neste momento sobre a constitucionalidade ou não de tais preceitos
legais seria apreciar a constitucionalidade da lei, em tese, em processo de
habeas corpus; o que nos não é permitido.
À vista do exposto, passo a examinar, uma após outra, as duas questões
pertinentes no caso sub judice.
3 — Quanto à constitucionalidade da criação do Tribunal de segurança
Nacional, com o caráter que lhe foi dado e com a competência que lhe foi atribuída,
durante o estado de guerra — não me parece contestável.
A Constituição de 1934 deixou à lei ordinária a organização da Justiça
Militar de primeira instância. Reza, na verdade, o art. 86:
São órgãos da Justiça Militar o Supremo Tribunal Militar e os tribunais
e juízes criados por lei.
Deixou também à lei ordinária regular “a jurisdição dos juízes militares
e a aplicação das penas da legislação militar, em tempo de guerra, ou [note-se
bem] na zona de operações durante grave comoção intestina” (art. 85). Foi o
que fez a Lei 244, no art. 3º, § 3º. Nada obsta, por conseguinte, à criação, por
lei ordinária, de tribunais militares extraordinários, ou de exceção, na zona de
operações, quer em tempo de guerra internacional, quer durante grave comoção
intestina, que assuma o caráter de guerra civil (só em casos de guerra civil
poder-se-á cogitar de “zona de operações”).
Para obviar qualquer dúvida a este respeito, foi que se votou a Emenda 1
à Constituição.
Dir-se-á que, nos termos do citado art. 85, não se autoriza a criação de
semelhantes tribunais senão para os militares, assemelhados e pessoas estranhas
ao Exército que hajam cometido, em tempo de guerra, externa ou civil,
crimes previstos nas leis penais militares (espiões etc.). Responde à dúvida o
art. 84 da Constituição, onde, depois de preceituar que “os militares e as pessoas
que lhes são assemelhadas terão foro especial nos delitos militares”, acrescentou
o legislador constituinte de 1934 (afastando-se nisso da Constituição de 1891 e
até da tradição do regime monárquico):
Este foro poderá ser estendido aos civis, nos casos expressos em
lei, para a repressão de crimes contra a segurança externa do País, ou
contra as instituições militares.
Note-se que, aqui, nem sequer se distingue entre tempo de paz e tempo
de guerra.
Entender-se-á talvez que, ante os textos acima citados, autorizará a
Constituição Federal a criação de tribunais militares extraordinários, ou de
exceção, e a transferência da jurisdição ordinária, comum, para os tribunais
Ministro Carlos Maximiliano
militares (cit. art. 84), na zona de operações; não na zona do interior (chamada),
isto é, fora do teatro da guerra.
Ir-se-á talvez mais longe, e, invocando o art. 113, n. 25, da Constituição,
afirmar-se-á, com o recorrente, que ela não permite, em caso algum, a criação
de tribunais de exceção. É preciso, porém, não esquecer que o texto do invocado
n. 25 do art. 113, inscrito sob a epígrafe: Dos direitos e garantias constitucionais
(Cap. II do Título III), nada mais é que a declaração de uma das referidas garantias,
cuja suspensão, nos termos do art. 161 da mesma Constituição, “o estado de
guerra implica”, desde que “possam prejudicar direta ou indiretamente a segurança
nacional”; do que só o legislador ordinário pode ser juiz, tendo em vista as
contingências do momento e as necessidades da guerra.
Para a zona do interior, “em caso de guerra, ou de emergência de guerra”
(é claro que aqui — oposta a “caso de guerra” — “emergência de guerra” quer
dizer: guerra iminente, perigo iminente de guerra), criou a Constituição de
1934, no § 15 do art. 175, o “estado de sítio agravado” de que já temos tratado
nesta Corte Suprema e cujos efeitos — diz a Constituição — “uma lei especial
regulará”. Enquanto não vem essa lei orgânica, é claro que ao Poder Legislativo
ordinário, em caso de guerra, compete indicar quais as garantias constitucionais
que ficam suspensas. Foi o que fez (muito constitucionalmente, por conseguinte)
o Decreto 702, de 21 de março de 1936, autorizado pelo Decreto Legislativo 8,
de 21 de dezembro de 1935, por sua vez promulgado em execução da Emenda 1 à
Constituição; decreto, aquele, que, em seu art. 2º, excluiu, das garantias constitucionais
que ficam mantidas, a que está consagrada no § 25 do art. 113, em questão.
Se consultarmos a doutrina e a legislação comparada dos países de constituição
rígida, que se regeram ou se regem por instituições democráticas; veremos
que em grande número deles, longe de ser considerada inconstitucional a
criação de tribunais extraordinários em tempo de guerra ou de grave comoção
intestina, bem como a transferência para eles da jurisdição comum ou ordinária,
em parte (para certos crimes previstos na lei penal comum — em regra crimes
políticos), estas providências são autorizadas, ou por lei expressa, ou pela jurisprudência
e pela prática parlamentar.
Em caso de guerra e na zona das operações, a prática e a doutrina são
quase unânimes, senão unânimes (vide Ranelletti, La polizia di sicurezza, no
trattato completo di diritto amministrativo italiano, de Orlando, v. IV — Parte
1ª, p. 1160 e 1161). A controvérsia surge, quanto à criação de tais tribunais, com
tal competência, em caso de estado de sítio ficto ou político. Mas, ainda assim,
mesmo em estado de sítio, propriamente dito, permitiam expressamente tais
providências excepcionais ou, ao menos, a jurisdição excepcional dos tribunais
militares para julgarem crimes de direito comum; antes da Guerra Mundial, a
lei francesa de 9 de agosto de 1849, arts. 7 a 9, não modificada pela lei de 4 de
abril de 1878; a legislação imperial alemã (vide Ranelletti, op. cit. n. 1.228, nota
2) e a Constituição Monárquica portuguesa, art. 145, § 34. Na Itália de antes da
guerra, não obstante a proibição absoluta de se criarem tribunais ou comissões
extraordinários, contida no art. 71 do Estatuto de 1848, e embora houvesse
divergência séria na doutrina, a jurisprudência dominante nos tribunais e no
Parlamento era no sentido da legitimidade de tal jurisdição excepcional dos tribunais
militares (op. cit., p. 1222 e 1223 do 4º v. V, Parte 1ª).
Das constituições democráticas, promulgadas depois da Grande Guerra,
permitem, ou permitiam, a criação de tribunais extraordinários em tempos de
guerra: a de Weimar, art. 105; a Constituição Federal Austríaca, de 1º de outubro
111
Memória Jurisprudencial
112
de 1920, art. 83, n. 3; a da Tchecoslováquia, § 94, n. 3; a da Estônia, § 74 (limitada,
porém, a sua jurisdição à que estiver estabelecida na lei); a da Grécia, de 2 de junho
de 1927, art. 97, 1ª alínea; a da Lituânia, art. 70, 1ª alínea; a nova Constituição da
Polônia, de 23 de abril de 1935, art. 68, inciso 5º (a anterior, de 1º de março de
1921, já os permitia; limitando embora a sua competência para os crimes cometidos
depois de criados os ditos tribunais de exceção); finalmente, a Constituição da
República Espanhola, de 9 de dezembro de 1931, art. 95, 3ª alínea, in fine.
Somente proíbem em absoluto a instituição de tribunais extraordinários
(dentre as Constituições anteriores à Grande Guerra, ainda em vigor): a belga,
arts. 67, 94 e 130, que só os permite em praças sitiadas pelo inimigo; a holandesa,
de 30 de novembro de 1887, arts. 7, 9, 158, 159, 156, § 1º, e 187; e (dentre
as posteriores): a da cidade livre de Dantzig, de 11 de maio de 1922, art. 62; a da
Finlândia, de 1919, § 60, alínea; a da Rumania, de 29 de março de 1923, art. 101,
1ª alínea; e finalmente a da Iugoslávia, de 28 de junho de 1921 (abolida a 6 de
janeiro de 1929 por um golpe de estado) art. 109, 2ª alínea.
A Constituição do Estado Livre da Irlanda, de 6 de dezembro de 1922,
art. 70, não fala em tribunais extraordinários; mas autoriza expressamente, em
caso de guerra ou de rebelião armada, a extensão da jurisdição militar à “população
civil”, por atos cometidos em tempo de guerra ou de rebelião armada.
Permitem criar tais tribunais, mesmo durante o simples estado de sítio
(além da Itália, como vimos) as seguintes Constituições: a da Áustria (que deixa o
caso à lei ordinária do processo penal); a da Tchecoslováquia (só exige prévia determinação
legal); e a nova Constituição da Polônia, que deixa o caso à lei ordinária.
Deste vasto estudo comparativo, vê-se que, na grande maioria das constituições
democráticas promulgadas depois da guerra, quer dizer, sob a influência
do perigo que ora correm as instituições democráticas, é permitida a criação de
tribunais de exceção em tempo de guerra e, em algumas, mesmo para funcionarem
durante o estado de sítio ficto ou político; donde se conclui que tudo leva
a crer que a interpretação dada, nesta parte do meu voto, aos textos a princípio
citados da nossa Constituição — uma das últimas em data depois da Grande
Guerra e, assim, promulgada sob a influência desta nova corrente de idéias —
seja a lídima expressão de seu pensamento.
4 — Quanto à alegada inconstitucionalidade da Lei 244, na parte em
que dá ao Tribunal de segurança competência para processar e julgar os autores
e cúmplices, em crimes cometidos antes de sua criação “sempre que derem
causa à comoção intestina grave, seguida de equiparação ao estado de guerra”
(interpretação confirmada pelo confronto do art. 3º, n. 3, in fine, com o disposto
no art. 4º e seu parágrafo único). — A inconstitucionalidade de uma lei ordinária
há de ser examinada, exclusivamente, em face de algum texto expresso
da própria Constituição, ou de preceito implícito em algum texto expresso;
não em face de princípios doutrinários (preconizados embora pelos maiores
mestres), ou aplicados por tribunais estrangeiros. Quais os textos expressos da
Constituição de 1934, ou os preceitos implícitos em textos expressos dela, que
os impugnados dispositivos da Lei 244 violam ou contradizem? — Os números
26 e 27 do art. 113 — diz o recorrente. Mas, ainda mesmo pondo de lado o fato
de não haverem essas garantias constitucionais, contidas nos dois incisos invocados,
sido incluídas entre as que ficam mantidas durante o estado de guerra,
pelo art. 2º do Decreto 702, de 1936 (enumeração esta expressamente autorizada
pela Emenda constitucional 1, promulgada pelo Decreto Legislativo 6, de 18 de
dezembro de 1935), os invocados incisos do art. 113 da Constituição de 1934 não
Ministro Carlos Maximiliano
têm a significação que lhes dá o recorrente, de consagrarem os princípios — tão
controvertidos na doutrina e na jurisprudência, sobretudo quanto à sua extensão
e alcance — da irretroatividade da lei penal processual e da aplicação, sempre,
da lei processual mais favorável ao réu. Na verdade, o 1º (o n. 26 do art. 113),
quando preceitua que “ninguém será processado, nem será sentenciado, senão
pela autoridade competente em virtude de lei anterior ao fato, e na forma por ela
prescrita”, refere-se a três requisitos distintos para a legalidade do processo e da
sentença: 1º — competência do juiz (não diz que o deva ser por lei anterior ao
processo ou ao fato que o determina); 2º — lei anterior que defina como crime o
fato imputado (é, por outras palavras, a máxima de direito material, substantivopenal:
nullum crimen sine lege); 3º — “na forma por ela prescrita” — quer dizer:
para ser punido com a pena nela (lei anterior) prescrita ou melhor, cominada
(é a máxima também de direito substantivo: nulla pene sine lege). Que são três
requisitos distintos, uns dos outros, revela-o até a pontuação do texto, onde cada
um deles se vê separado dos outros por vírgulas. É assim que Marnoco e Souza
(citado por Araújo Castro — a nova constituição brasileira, p. 365) entende
dispositivo idêntico da Constituição portuguesa de 1911.
Afirma o sábio comentador que a “lei anterior” refere-se à lei substantiva
e a “forma nela prescrita” quer dizer: “nos termos que ela (a lei substantiva, é
claro) determinar”.
Dar ao citado inciso a inteligência que lhe dá o recorrente é atribuir ao
legislador constituinte a consagração da absoluta irretroatividade das leis do
processo — coisa que ninguém sustenta.
Num caso de habeas corpus de São Paulo em que se discutia (invocando
este mesmo n. 26 do art. 113) a aplicação da lei nova, que viera restaurar a apelação
ex officio do Presidente do Tribunal do júri, a um fato ocorrido quando
semelhante apelação não existia, mas julgado na vigência dela (lei nova), eu já
votei, dando ao dito preceito constitucional a mesma inteligência que agora lhe
estou dando.
Outra vez assim votei no HC 26.259.
O segundo preceito constitucional, apontado como violado pela Lei 244,
o n. 27 do mesmo art. 113, que diz: “A lei penal só retroagirá quando beneficiar
o réu”, refere-se igualmente à lei substantiva; não à processual. É reprodução do
art. 3º do Código Penal, quando dispõe:
A lei penal não tem efeito retroativo; todavia o fato anterior será
regido pela lei nova:
a) se não for considerado passível de pena;
b) se for punido com pena menos rigorosa.
Assim o entende Araújo Castro, comentando-o.
Quem diz: “lei penal” (tout court) quer dizer: “lei penal substantiva”.
Não se compreende que, pretendendo inovar e consagrar em princípio a aplicação
irrestrita de todas as normas que sejam mais favoráveis ao réu, não se referisse
o legislador expressamente a ambas as classes de leis penais: substantivas
e processuais.
Nenhuma razão científica justifica a aplicação de um rito processual que
se revelou inidôneo ou de uma jurisdição que se mostrou inapta para o descobrimento
da verdade; só porque é mais favorável ao réu. Se a nova lei cerceia a
defesa, será inconstitucional por isso mesmo; não por ser retroativa. Tanto que
não deve ser aplicada a nenhum processo; nem aos que são movidos por fatos
pretéritos; nem aos que por fatos posteriores se moverem.
113
Memória Jurisprudencial
114
A jurisprudência desta Corte Suprema, bem como a do antigo Supremo
Tribunal Federal e a dos tribunais superiores dos Estados, foi sempre no sentido
da imediata aplicação aos processos ainda não iniciados, ou pendentes, mas
ainda não julgados definitivamente, das leis sobre competência (de outras não
se deve agora cogitar, como a princípio demonstrei). Assim se procedeu, no
Distrito Federal e nos Estados, com as leis que retiraram do júri, para atribuir ao
juiz singular (caso grave que importa piorar a sorte do réu e diminuir as possibilidades
de sua absolvição) a competência para o julgamento de diversos crimes.
Pelo exposto, dou provimento ao recurso, para, reformando o acórdão
recorrido, julgar admissível o pedido; não obstante o estado de guerra. Assim
conhecendo do pedido: de meritis, nego a ordem impetrada.
Na seqüência, pronunciou-se o Ministro Eduardo Espinola:
VOTO
O Sr. Ministro Eduardo Espinola: Conheço do pedido:
Nas razões de rec., publicadas no correio da Manhã, de 3 de dezembro
último, diz o recorrente, invocando a jurisprudência da Corte Suprema: “(...) o
estado de guerra não importa na abolição ou suspensão do instituto do habeas
corpus, como tem decidido a Corte Suprema, ao conhecer, durante essa medida
de exceção, de inúmeros pedidos, entre os quais os de n. 26.178, 26.206 e 26.243,
relativos ao recorrente. O que ela tem feito é, conhecendo do habeas corpus, não
o deferir, quando a sua concessão, embora assegurada na garantia do indivíduo,
colide com a segurança nacional. Se, porém, o que está em causa não é uma garantia
individual, o direito violado pelo ato de arbítrio há de encontrar amparo no
Poder Judiciário. Ora, o que, no presente habeas corpus se reclama, sobretudo e
antes de tudo, é o respeito ao Poder Judiciário, cuja competência const. se arranca,
por um golpe de força, a um dos seus órgãos”. Nos pedidos de habeas corpus a que
acima se refere o recorrente, a Corte, preliminarmente, tomou conhecimento da
matéria para apreciá-la, porque se alegava a violação das prerrogativas do Poder
Legislativo. Agora o que antes de tudo e acima de tudo, se declara é o desrespeito
flagrante da competência constitucional do Poder Judiciário.
Cumpre, portanto, examinar se tem razão o recorrente. Se afirmativa
a conclusão, deve ser atendido, a despeito da situação anormal resultante do
estado de guerra, por se não tratar de simples garantia ou direito individual
assegurado pela Constituição.
O caso é delicado e não será de estranhar que surgirão interpretações
divergentes.
O dispositivo da Constituição que se invoca, fundamentalmente, é o do
art. 81: “aos juízes federais compete processar e julgar, em 1ª instância: (...) 1) os
crimes políticos e os praticados em prejuízo de serviços ou interesses da União,
ressalvada a competência da justiça eleitoral ou militar”.
Argumenta-se: aí se compreendem todos os crimes políticos, portanto,
também os contemplados na Lei 244, art. 3º. Sendo assim, a criação do tribunal
de que se ocupa esta lei é contrária à Constituição e fere fundamento o Poder
Judiciário, subtraindo-lhe atribuições, que lhe competem nos termos da mesma
Constituição.
Não creio, porém, que assim seja.
Ministro Carlos Maximiliano
Segundo o art. 84, os militares e as pessoas que lhes são assemelhadas
terão foro especial nos delitos militares, foro que poderá ser estendido aos
civis nos casos expressos em lei, para a repressão de crimes contra a segurança
externa do País ou contra as instituições militares.
O art. 85 determina que a lei regulará a jurisdição dos juízes militares e
a aplicação das penas da legislação militar, em tempo de guerra, ou na zona de
operações durante grave comoção intestina.
A Emenda 1 admite que seja o Presidente da República autorizado, pela
Câmara e Senado, a declarar a comoção intestina grave, com finalidades subversivas
das instituições políticas e sociais, equiparada ao estado de guerra, em
qualquer parte do território nacional.
Sem me alargar sobre o assunto e sem procurar aprofundá-lo, direi, no
momento, que bem me parece que, no caso previsto na Emenda 1, da mesma
sorte que no caso de guerra previsto nos arts. 84 e 85, pode a lei regular a jurisdição
militar e estendê-la aos civis, especialmente para a segurança interna do
país, e das instituições políticas e sociais.
Essa matéria, que é nova na Constituição de 1934, inspirada em considerações
atinentes a fatos de gravidade excepcional, que exigem repressão e
repulsa tão imediatas e radicais como as que se opõem às expressões externas,
não pode ser encarada à luz dos princípios puros da Constituição de 1891 e ao
critério de seus liberais comentadores.
Para o caso especialmente contemplado, a medida especialmente estabelecida
com os seus consectanos jurídicos, sem dúvida, deduzidos teleologicamente,
afastada a falsa orientação que leve à inutilização prática da medida.
Quanto ao art. 113, n. 25, da Constituição, que proíbe o foro privilegiado
e os tribunais de exceção, creio, em primeiro lugar que se não trata de tribunal
de exceção, no sentido da lei, mas de tribunal especial para uma situação especial,
abrangendo todos os que nela se encontrem e entrando em função sempre
que ela se apresente; e cuja constituição, aliás, não destoa da dos tribunais militares;
além disso, seria de atender a que se trataria de garantia individual suspensa
por força do estado de guerra.
No que diz respeito ao n. 26 do mesmo art. 113, já tive ensejo de me pronunciar
sobre a inteligência do princípio constitucional, procurando demonstrar
que o novo texto não diverge substancialmente do da Constituição de 1891; fiz
ver também que as próprias leis de processo não retroagem quando daí possa
advir prejuízo ao processado. Quanto às leis de organização judiciária, aplicamse
sempre aos processos pendentes.
Mas esse dispositivo também constitui uma garantia individual que se
não poderá invocar, suspensa como está, no período de estado de guerra.
Em seu voto preliminar, o Ministro Bento de Faria seguiu pronunciamentos
anteriores, recusando-se a apreciar habeas corpus em período de estado de
guerra. Por isso, não conheceu do pedido.
Em seguida votou Carlos Maximiliano, que debateu com Costa Manso:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Estou de acordo com o Sr. Relator, no
seu muito brilhante voto, devendo acrescentar, apenas, algumas considerações.
Nem a letra da Constituição nem a da lei ordinária declaram que as leis
de organização judiciária não se aplicam aos casos pendentes. Não se pode
115
Memória Jurisprudencial
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inferir isso de qualquer texto legal e, igualmente, nada de semelhante se encontra
em qualquer autor; afirmam todos justamente o contrário.
Basta lembrar a seguinte hipótese: suponhamos que o legislador ordinário,
ou até mesmo o constituinte, suprimisse certo tribunal e criasse outro.
Como se iriam julgar os crimes que estavam sujeitos à jurisdição desse tribunal?
Ficariam impunes, simplesmente porque o tribunal, que os devia julgar, havia
deixado de existir? Não! Nunca se pensou, nem é possível pensar, que o legislador
esteja impedido de melhorar a organização judiciária, sem obrigação de
deixar, provisoriamente, funcionando os aparelhos defeituosos anteriores, até
que todos os processos em andamento, ou em possível andamento, fossem conclusos.
Nem mesmo teoricamente isso se poderia pensar.
O Sr. Ministro Costa Manso (Relator): Até que prescrevessem crimes de
réus foragidos, por exemplo.
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Se o tribunal anterior foi suprimido,
é de supor-se que o foi porque não servia. Esta questão principal.
Quanto ao processo, peço licença para acrescentar, ainda, um argumento.
Não daria habeas corpus a um acusado para não ser processado.
O Sr. Relator foi, até, liberal, pois o paciente não juntou prova alguma de que
estava denunciado perante o Tribunal de Segurança. Por conseguinte, pede
habeas corpus contra uma lei e não contra qualquer ato.
O Sr. Ministro Costa Manso (Relator): É fato notório a denúncia contra
o impetrante.
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Estamos julgando, simplesmente,
um recurso e, há dias, aliás, já tivemos ocasião de examinar essa questão: desde
que, no juízo recorrido, uma prova não foi feita ou uma questão levantada, o juiz
ad quem não toma conhecimento. Do contrário, suprimiríamos uma instância
quanto à matéria.
Por essas razões, nem examino esta questão, em primeiro lugar, porque
não foi ventilada e decidida no juízo recorrido. Por outro lado, nulidades de processo,
sejam de que qualidade forem, só podem ser conhecidas se forem aplicadas
em prejuízo do réu. Ora, o próprio impetrante confessa que se lhe não foi
aplicada penalidade alguma; declara, ainda, que, como todos os outros presos,
não se irá defender ante aquele tribunal.
Ora, não é direito de pessoa alguma — deixar de comparecer perante um
tribunal organizado por lei. O direito do réu — e também o seu dever — é comparecer
perante o Tribunal, seja ele bem ou mal organizado, e precisamente ali
argüir o seu direito, inclusive a defeituosa organização do juízo. Desatendido,
então, em grau de recurso, deve sustentar a mesma tese.
Fizemos, pois, um ligeiro acréscimo, quase desnecessário, porque o brilhante
Relator esgotou o assunto; e eu estou de acordo com S. Exa.
Quanto ao mérito, manifestou-se Bento de Faria:
O Sr. Ministro Bento de Faria: Indefiro o pedido, de acordo com a opinião
dos meus ilustres colegas.
Consola-me, grandemente, a decisão do Tribunal, por ver que não me
havia equivocado quando afirmei que o Tribunal de Segurança é perfeitamente
constitucional e que os crimes atribuídos ao impetrante e seus companheiros de
prisão podem ser submetidos ao seu julgamento.
Ministro Carlos Maximiliano
A votação seguiu com o Ministro Laudo de Camargo, que indeferiu o pedido.
O Sr. Ministro Laudo de Camargo: Não dou pela inconstitucionalidade
do Tribunal de Segurança Nacional, porquanto o considero antes especial que
de exceção.
Fosse desta natureza e contaria com a proibição constitucional.
Mas foi a própria Constituição que o permitiu nestes termos: são órgãos
da Justiça Militar o Supremo Tribunal Militar e os tribunais e juízes inferiores
criados por lei (art. 86).
Logo, a lei que a criou não é ofensiva ao preceito.
Nem se argumente com a temporariedade das funções.
Embora certo que, em geral, os tribunais são permanentes, como vitalícios
os juízes, nem por isso se poderá dizer o mesmo quanto aos tribunais
militares de primeira instância, em regra temporários, como temporários conseqüentemente
os seus membros.
Dir-se-á ainda que a competência dos juízes federais, para o processo e
julgamento dos crimes de que se trata, se tornou expressa pelo art. 81, letras i e
l, da Constituição.
Bem de ver, entretanto, que os preceitos legais não se interpretam isoladamente,
senão em confronto uns com os outros.
E, com esse procedimento, vamos encontrar o legislador constituinte
permitindo fosse alterada essa competência, quando feita por lei e em casos
expressos, nos termos do art. 84.
Segue-se daí que a alteração se apoiou em uma lei, sem ofensa à
Constituição, que, aliás, previu a alteração, segundo o art. 9, parágrafo único,
das Disposições Transitórias.
Releva ainda consignar que, no HC 25.625 e por acórdão de 5 de novembro
de 1934, decidiu a Corte Suprema não haver o direito de exigir, como
adquirido, a subsistência de um poder jurisdicional revogado, para o fim de ser
julgado por certo juiz ou tribunal de preferência a outro.
Por último, objeta-se não serem retroativas as leis penais, a menos que
beneficiem o réu.
Na de número 244, deparam-se, realmente, certas normas colidentes com
a Constituição, restringindo a defesa, que ampla é.
Mas nem tudo que ela encerra se poderá dizer inaplicável.
Não obstante o estabelecimento de algumas normas irregulares, outras
há e regulares, sendo que o processo poderá noticiar a inobservância daquelas e
assim a nenhuma ofensa aos direitos do acusado.
Só, portanto, com a apreciação de caso concreto, e após julgamento, é
que se poderá dizer a respeito.
Antes disso, e não incompetente o juiz, nada se poderá invalidar prematuramente
no processo.
Indefiro assim o pedido.
Votou em seguida Octavio Kelly:
O Sr. Ministro Octavio Kelly: Para o meu voto não preciso abordar a
questão de ser, ou não, constitucional, a lei que instituiu o Tribunal de Segurança
e deu ao Supremo Tribunal Militar a 2ª instância de seus julgamentos.
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Memória Jurisprudencial
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Desde quando juiz federal da 2ª Vara, sustentei que a irretroatividade das
leis penais compreende as materiais, de organização judiciária e do processo,
sofrendo apenas restrição se abrandam as sanções ou melhoram as condições da
defesa. Esse ponto de vista levou-me, então, a suscitar um Conflito de Jurisdição
ao se cuidar da aplicação dos arts. 2º, § 2º, do Decreto 4.848, de 1924, e 2º, in fine,
do Decreto 4.861, do mesmo ano. E apoiava a opinião na regra do art. 72, § 15, da
Constituição de 1891, que dispunha: “Ninguém será sentenciado senão pela autoridade
competente etc.”, consagração do princípio do art. 11, n. 3, do mesmo estatuto:
“É vedado aos Estados, como à União (...) 3º prescrever leis retroativas”.
E João Barbalho, que comentara aquele texto, ensinava que a expressão
final do parágrafo — “em virtude da lei anterior e na forma por ela regulada” —
equivale às regras e formalidades que a lei tem estabelecido para a regular e reta
administração da justiça (Com. 2. ed. p. 435) — e que outras não são senão as
que se relacionam com a extensão do poder dos juízes, demarcando-lhes os limites
de sua jurisdição e competência e traçando-lhes normas indeclináveis de agir.
A Constituição de 1934 foi mais rígida e desfez todas as dúvidas ao instituir
— “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente em virtude de lei anterior e na forma por ela prescrita” — (art. 113,
n. 26). Assim disciplinado, o novo preceito reputou contrário aos direitos de
defesa que linhas antes formulara (art. cit., n. 24), permitir-se a modificação das
leis do processo após a verificação do crime, como já proscrevera a alteração da
competência para o julgamento e a retroação majorativa da pena (art. cit. n. 27).
E foi, por assim entender, que, ao se tratar da remessa dos autos já sentenciados
pelos juízes federais à nova jurisdição de recurso, votei no sentido de continuar
esta Corte com a incumbência de exercitá-la.
Verifico, entretanto, que, na espécie, se cogita, liminarmente, de subtrairse
aos mandamentos da lei de organização e processo do Tribunal de Segurança,
acusados por delitos deferidos à competência julgadora desse órgão judiciário.
Convenho em que certos preceitos do invectivado diploma afetam direitos e
garantias que a Constituição superiormente tutela, mas porque não me cabe
repeti-los, desde já, sem um exame mais detido do conflito do seu texto com a
magna lei, só possível em recurso que admita maior discussão e controvérsia,
deixo de os examinar no pedido de habeas corpus, sem, com isso, renunciar o
propósito de fazê-lo, quando em grau de recurso vierem os respectivos autos à
nossa apreciação para um pronunciamento final.
Por estas razões, adotando a conclusão do Sr. Ministro Relator, conheço
do recurso, mas indefiro a súplica.
Como se vê, os Ministros do Supremo Tribunal admitiram o habeas corpus
e, no mérito, indeferiram o pedido, unanimemente.
O habeas corpus de João Mangabeira foi um dos casos de mais importância
política, que marcou a Era Vargas e a atuação do Supremo Tribunal
Federal, especialmente, como visto, com a intervenção de Carlos Maximiliano.
Do ponto de vista mais dogmático, a ação acima identificada representou tentativa
frustrada de se fazer controle de constitucionalidade via habeas corpus.
No pano de fundo, a questão recorrente dos limites da retroatividade da lei.
4.2 ExPULSÃO DE ESTRANGEIROS E ExTRADIÇÃO
Ministro Carlos Maximiliano
Expulsão de estrangeiro foi tema decidido no HC 26.870/DF, relatado
pelo próprio Maximiliano e julgado em 19 de outubro de 1938. Percebe-se posição
liberal, que retoma jurisprudência que se consolidara ainda com o texto
constitucional de 1934. Na ocasião ementou-se que, desde que transcorressem
mais de três meses sem ser decretada a expulsão de estrangeiro indesejável, não
poderia este continuar preso. Nos termos da decisão de Carlos Maximiliano:
ACóRDãO
Pela segunda vez pede habeas corpus Luiz Vilela, preso desde 7 de fevereiro
do corrente ano, para ser expulso do território nacional, como indesejável
dado à exploração do lenocínio. Sob o regime da Constituição de 1934, a Corte
Suprema firmou a seguinte jurisprudência liberal: se não se consumasse dentro
de noventa dias a expulsão do alienígena prejudicial aos interesses do país, seria
o mesmo posto em liberdade, sem prejuízo da expulsão posterior. Por sugestão
do então Procurador-Geral da República, atual Relator deste habeas corpus,
feita pessoalmente à comissão de Justiça da Câmara dos Deputados, o precedente
judiciário foi convertido em lei. Tal preceito foi revogado; na verdade,
houve motivo para isto: vários representantes de nações estrangeiras retardam,
adrede, o visto nos passaportes; por conseguinte, a autoridade coatora passa
a ser, de fato, cada um daqueles diplomatas, contra os quais não pode agir o
Judiciário do Brasil, e, sim, o Executivo. Entretanto, em relação aos ainda não
expulsos, a responsabilidade é do Governo Nacional. Concordei em admitir um
prazo razoável para ser ultimado o processo de expulsão; achei estar isto no
espírito dos últimos decretos referentes à matéria; por isso, hei negado habeas
corpus a qualquer expulsando.
Não é de presumir, entretanto, pretender o legislador sancionar a iniqüidade
em que consistiria o deixar eternamente alguém preso, sem ter contra si um
decreto que o exclua da comunhão com os brasileiros; por assim entender, volto,
em parte, à jurisprudência liberal mencionada; concederei habeas corpus, sem
prejuízo da expulsão, aos que estiverem detidos há mais de três meses, sem ter
sido contra eles lavrado decreto de expulsão. Neste sentido, eu defiro o pedido,
porque, em ofício de 6 de outubro corrente, informou o Exmo. Sr. Ministro da
Justiça que o paciente foi recolhido ao presídio em 7 de fevereiro e até hoje não
foi lavrado o decreto de expulsão.
Decidiu-se também que só era brasileiro — e, portanto, não poderia ser
expulso do Brasil — quem, alegando ter nacionalidade brasileira, provasse, de
modo pleno, compra de imóvel, mediante escritura válida e registrada, bem
como casamento com brasileira, ou o nascimento de filho brasileiro. É o que
emergiu no RHC 26.143/DF, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 12
de junho de 1936, em que se percebe ainda animado debate:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, Agostinho da
Trindade, dado como português e na iminência de ter ordem de expulsão do
119
Memória Jurisprudencial
120
território nacional, pede uma ordem de habeas corpus, juntando à inicial certidões
em que prova haver desposado mulher brasileira e possuir filhos também
brasileiros. Só isso.
O meu primeiro movimento foi trazer o processo ao conhecimento da
Corte Suprema, porque ele próprio declarava que era considerado, pela polícia,
como homem perigoso à ordem pública. Porém, num liberalismo, atendendo a
que solicitava fosse ouvido, primeiramente, o titular da pasta da Justiça, resolvi
pedir informações. Em resposta, S. Exa. asseverou que o requerente espalhava
boletins subversivos, exercia abertamente uma atividade comunista na capital
da República, acrescentando: ainda que tivesse bens imóveis no Brasil, não era
aconselhável conceder o habeas corpus, para evitar a expulsão em virtude da lei
de segurança nacional; e S. Exa. chega a citar o artigo. É o dispositivo em que
se declara que, mesmo que o indivíduo contenha bens imóveis no Brasil, será
expulso se exercer atividade contrária à ordem pública.
Na mesma data em que o Sr. Ministro da Justiça mandou esses informes,
o advogado do requerente entrou com uma petição a mim dirigida, pleiteando a
juntada de uma certidão, a fim de provar que o seu cliente havia comprado um
imóvel no Distrito Federal.
É o relatório.
VOTO
Senhor Presidente, este habeas corpus comporta duas questões muito
interessantes e completamente novas, e vou declará-las no Tribunal, para que
reconheça a necessidade de prestar muita atenção e meditar sobre elas.
A primeira é esta: um indivíduo brasileiro, tendo ordem de expulsão do
território nacional, durante o período de estado de guerra, pode requerer habeas
corpus, apesar de a lei declaratória do estado de guerra ter suspenso essa garantia
constitucional e o Tribunal haver resolvido — e eu próprio o sustentei em
parecer na qualidade de Procurador-Geral — que não se deve conhecer de pedidos
dessa natureza desde que a autoridade dada como coatora informe sofrer o
mesmo indivíduo coação porque é prejudicial à ordem pública?
A segunda é a seguinte: quando a Constituição diz ser brasileiro todo
aquele que tiver bens imóveis no País, deve entender-se o que, no momento da
expulsão, ainda os possui, ou o texto abrange aos que, por acaso, hajam possuído
e deles se tenham desfeito?
O documento apresentado pelo paciente não prova que, atualmente, seja
proprietário; prova, apenas, que, em certa época, assinou uma escritura de compra.
O Sr. Ministro Bento de Faria: Nessa ocasião, já era casado com mulher
brasileira e tinha filhos brasileiros?
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano (Relator): Creio que não, mas essa
circunstância não importa.
O Sr. Ministro Costa Manso: Foi antes de ser promulgada a Constituição?
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano (Relator): O caso, ponto por ponto.
O brasileiro, em hipótese alguma, pode ser expulso. E, como salientei, a Corte
Suprema já resolveu que, durante o estado de guerra, não se concede habeas
corpus à pessoa cuja atividade seja prejudicial à ordem pública e nociva aos
interesses do País. As informações ministeriais, aliás, bem curtas, dizem (...)
A mim parece que o brasileiro não pode ser expulso. Por isso, é nosso
dever deferir uma ordem de habeas corpus nesse sentido? Se um indivíduo é
Ministro Carlos Maximiliano
mandado para fora do País, durante o estado de guerra, sendo brasileiro, ipso
facto, essa expulsão não prevalecerá depois de terminado esse mesmo estado de
guerra. Logo, há, somente, um defeito de expressão: em vez de expulso é banido,
justamente o que se fez na Revolução de 1930. Mas a pena de banimento está
proibida pela Constituição. O Governo, receoso de que uma interpretação liberal
abrangesse às pessoas banidas durante o aludido estado de guerra, quando
o decretou, entre garantias que não mantinha, colocou a do n. 29 do art. 113,
justamente a que proíbe o banimento.
Por conseguinte, não existe garantia contra a pena de banimento. Mas,
o requerente, enviado para Portugal, sendo brasileiro, ficaria, de fato, não
expulso — pouco importa o termo, quando a verdade é esta —, porque, acabado
o período de estado de guerra, impetraria uma ordem de habeas corpus para
regressar ao Brasil.
Entretanto, essa questão subordina-se à outra circunstância.
Na polícia, houve um longo processo de expulsão, onde se admitiu a
prova e contraprova. Agostinho da Trindade nunca provou que tinha bens imóveis
no Brasil e nem procurou fazê-lo. Na inicial, também não o diz: declara
que era casado com mulher brasileira antes de promulgada a Constituição de
1934 e possuía filhos nascidos aqui e, ainda, haver exercido duas profissões no
Brasil — a de chofer e a de barbeiro —, exatamente duas das três que contam
maior número de comunistas, a saber: padeiro, barbeiro e chofer.
Como disse, solicitei informações ao Sr. Ministro da Justiça. No dia 3
recebi a resposta de S. Exa., e nessa mesma data também despachei uma petição
do interessado em que declarava ter adquirido um imóvel no Distrito Federal,
sem que, no entanto, tivesse o cuidado de anexar à mesma uma certidão do
Registro de Imóveis, a fim de provar o que asseverava.
O Sr. Ministro Ataulpho de Paiva: Não juntou documento probatório?
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano (Relator): Não.
O verbo “possuir”, empregado na Constituição, quer dizer que possui
atualmente bens imóveis. No processo, realmente, encontra-se certidão de uma
escritura de compra e venda, passada a 26 de março. Nessa data, adquiriu, na
Freguesia do Irajá, um terreno medindo 22 metros de frente por 22 de largura,
com extensão de 30 metros.
O Sr. Ministro Bento de Faria: De que data é?
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano (Relator): A aquisição se fez em
1919; porém, da certidão do Registro de Imóveis não consta que, atualmente, a
propriedade ainda lhe pertença.
O Sr. Ministro Bento de Faria: O interessado não prova que, quando se
casou, possuía esse terreno?
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano (Relator): Não se sabe se a propriedade
continua em seu poder. A certidão do Registro de Imóveis silencia a respeito.
Agostinho da Trindade juntou também a certidão do casamento, realizado
em 14 de dezembro de 1920, antes da aquisição. A 16 de abril de 1921,
nasceu-lhe um filho e em janeiro de 1923 uma filha. Anexou também outra
certidão, fornecida pelo Consulado de Portugal, na qual está consignado não
haver declarado manter a nacionalidade de origem (portuguesa). O Consulado
foi além: informa que nem sequer sabe se o paciente é português.
Preliminarmente, não tomo conhecimento do pedido, porque entendo
não estar suficientemente provado que o requerente seja brasileiro e possua,
atualmente, bens imóveis no País. E, se o fosse, pedia ser banido, não expulso.
121
Memória Jurisprudencial
122
Terminado o período de estado de guerra, se voltasse ao Tribunal, provavelmente
eu examinaria o caso com outra orientação.
No presente momento, como disse, não conheço do pedido; se dele
conhecesse, seria para indeferi-lo.
Fixou-se jurisprudência que dava conta de que a prova de ter filhos brasileiros,
e de estarem vivos, era indispensável ao estrangeiro, para evitar a expulsão.
É o caso do HC 26.790/SP, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em
20 de julho de 1938:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o presente habeas
corpus é o primeiro a ser submetido ao nosso julgamento apoiando-se na nova lei
de expulsão, na parte em que abre exceção para certa categoria de estrangeiros.
Isaias Chaba já estava expulso do território nacional quando foi promulgada
essa lei, cujo um dos dispositivos estatui que não serão expulsos os estrangeiros
residentes no Brasil há mais de 25 anos e que tenham filhos brasileiros
vivos, oriundos de justas núpcias; prevalecendo-se dela, então, pediu habeas
corpus, alegando aquele tempo de residência e juntando certidão de nascimento
de uma filha.
As informações das autoridades competentes dizem que a ordem de
expulsão fora expedida por ser o paciente vagabundo sem profissão e que ainda
não havia sido cumprida em virtude de dificuldades na obtenção do passaporte,
uma vez que o paciente ora dizia ser de uma nacionalidade, ora de outra; conseguira-se,
afinal, que o cônsul inglês visasse o passaporte. Todavia, o expulsando
não comparecia à aludida chancelaria, a fim de regularizar a sua situação.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano (Relator): A regra é que só brasileiros
não podem ser expulsos. Assim, parece-me que a disposição da lei, a que me
referi, favorável a determinados estrangeiros, constitui preceito excepcionalíssimo.
Devo, portanto, interpretar o seu texto com o máximo rigor.
Declara ela que não serão expulsos os estrangeiros que contarem mais de
25 anos de residência no Brasil e tiverem filhos brasileiros vivos, oriundos de
justas núpcias. Não basta, pois, que tenham filhos nascidos no Brasil; é preciso
que esses filhos estejam vivos.
Ora, o paciente juntou certidão de casamento e de nascimento de uma
menina, mas não provou que esta esteja viva, como não provou, também, ter
mais de 25 anos de residência no País. Afirma-o, apenas, e sendo, como é, indivíduo
de péssimos antecedentes, tal afirmativa não basta.
Nego, por conseguinte, o habeas corpus impetrado.
DECISãO
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Negaram a ordem, unanimemente.
Ministro Carlos Maximiliano
Questão de expulsão de estrangeira também foi debatida no famoso caso
Olga, quando se discutiu a propósito da expulsão de Maria Prestes, alemã que
esperava um filho de Luís Carlos Prestes, e que fora entregue às autoridades da
Alemanha nazista. O voto do Ministro Carlos Maximiliano é histórico, e segue na
íntegra, tal como se encontra no HC 26.155/DF, decidido em 17 de junho de 1936:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o advogado, na
petição inicial, publicada na imprensa e remetida a todos nós, faz certas alegações
que precisam ser examinadas. Uma delas, e talvez a mais séria, é que a pessoa
acusada de crime inafiançável ou de crime em geral, e contra a qual se hajam
extraído provas convincentes, não é expulsa preliminarmente, ao contrário, é
processada primeiro, condenada a cumprir a pena e depois expulsa. Lembra, por
isso, que, no caso em apreço, se devia proceder desta maneira, diante as notícias
circulantes, isto é, que se trata de pessoa terrivelmente perigosa e comprovadamente
delinqüente, sujeita aqui a cumprimento de pena; só depois devia ser
expulsa do território nacional. Mas, em apoio dessa sua afirmativa, tanto quanto
coligi da leitura, produzida com a maior clareza, pelo Sr. Ministro Relator, o
advogado não juntou prova alguma...
O Sr. Ministro Bento de Faria (Relator): Até prova em contrário.
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: ...quando podia tê-lo feito. Por outro
lado, os tribunais devem aceitar como verdadeiras as informações das autoridades,
até prova em contrário. Não as há, e fica de pé a informação da autoridade
declarando que não existe um processo criminal no qual tenha sido apurada responsabilidade
suscetível de determinar o recolhimento dessa senhora à cadeia,
por alguns anos.
Este argumento, portanto, e que me parece, repito, o mais interessante,
na espécie em julgamento, desaparece por falta de prova do impetrante.
S. S., no entanto, com certeza não satisfeito, invoca um outro: essa
senhora, regenerando-se pelo amor, como a Dama das Camélias, iria, e deseja
mesmo, no recinto da prisão, com afagos, carinhos e conselhos, regenerar também
o revolucionário Luís Carlos Prestes!
Não acredito que este seja um fundamento para habeas corpus, tanto
mais quanto, nos presídios, os casais jamais se unem, pelo fato de os homens
serem alojados em compartimentos isolados dos destinados às damas, salvo se
o Regulamento não é obedecido, quando, então, dar-se-ia a lamentável promiscuidade
dos dois sexos, permitindo, aí sim, a conversão ou a rendição de um
revoltoso às atitudes ternas da mulher amada.
Ainda existe, Senhor Presidente, outro motivo que me obriga a examinar
o caso em debate.
O advogado declara que se vai expulsar ou banir uma brasileira.
Se tal estivesse na iminência de acontecer, isto é, se uma autoridade pretendesse
expulsar ou banir um nacional, a questão, sem dúvida, seria objeto de
exame por parte desta Corte Suprema. E desde que o advogado levantou a tese,
sou forçado a apreciá-la, considerando a espécie em plenário.
A paciente Maria Prestes é brasileira? O seu advogado não o provou; apenas
limitou-se a articular, para a sua defesa, as notícias publicadas nos jornais,
e referentes a acontecimentos anteriores. No entanto, essas notícias apontam-na
como amante de um terrível revolucionário alemão, ao qual deu fuga das prisões
alemãs. E por isso foi expulsa da Alemanha, comprometendo o seu direito
123
Memória Jurisprudencial
124
de permanecer no país. É brasileira, afirma o advogado, porque está para lhe
nascer um filho.
A Constituição só considera brasileiro o nascido no Brasil e não aquele
que tenha sido arranjado no Brasil.
Salienta o advogado, para sustentar o seu ponto de vista, que a criança
tem, por direito, a proteção e o apoio das nossas leis. Assim, o presente habeas
corpus seria para um feto, para lhe reconhecer o direito de sair das entranhas
maternas. Não compreendo habeas corpus dessa natureza. Pelo contrário, até
julgo uma tese difícil de ser defendida com êxito. Ainda mais: a maternidade,
no caso, é certa, o que não sucede quanto à paternidade, pois ao tempo da concepção
não se sabe onde se encontrava Luís Carlos Prestes, talvez mesmo no
Paraguai... No nosso país não se achava.
Desse ponto de vista, ainda não poderia deferir o pedido. Mas o advogado
assevera que, implicitamente, a criança será expulsa.
Esse fato acontece com todas as expulsandas; todas levam em sua
companhia, fora ou dentro do ventre, os filhos que tenham. É um direito e até
uma obrigação.
A Constituição de 1891 e a atual, excepcionalmente, proíbem a expulsão
de quem tenha filhos brasileiros possuindo imóveis no País. Logo, o direito de
ter filhos não impede a expulsão; é preciso que seja proprietário. Esta não é a
situação de Maria Prestes; pelo contrário: não é casada com brasileiro, não possui
imóveis, e o filho ainda não nasceu.
Incansável na defesa da sua constituinte, o advogado apela para a existência
de um processo de extradição eivado de nulidades, sem provar quais
sejam, e ainda que o conseguisse, o Poder Executivo, desde que não se trata de
nacional, pode expulsar, uma vez fique evidenciada a periculosidade do indivíduo
à ordem pública. O direito do Governo para expulsar é absoluto, em se
tratando de estrangeiro.
Por todos estes motivos, conheço do pedido, mas o indefiro, de acordo
com o Relator, Sr. Ministro Bento de Faria.
No HC 26.745/DF, relatado por Laudo de Camargo e julgado em 15 de
junho de 1938, discutiu-se a expulsão de indivíduo que chegou ao Brasil com
seis anos de idade, casou-se com brasileira, e que exercia a profissão de motorista.
O habeas corpus objetivava evitar a expulsão da paciente. No voto de
Carlos Maximiliano há impressionante observação, no sentido de que a lei que
se aplicava era mal redigida, mas que o fato era regra, há mais de 30 anos:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, também nego a ordem.
Da vez passada, examinando este artigo segundo o qual, enquanto não
se consumar a expulsão, o Ministro da Justiça e Negócios Interiores poderá
ordenar ou manter a prisão do expulsando, ou, quando for o caso, mandar que
continue preso, tive oportunidade de dizer que já não podíamos conceder ordem
de habeas corpus nesses casos. O art. 2º, no meu entender, estabelecia que o
indivíduo proxeneta, por exemplo, fosse primeiro pronunciado e condenado e
só depois expulso.
Ministro Carlos Maximiliano
Ora, estes crimes, por uma lei especial, se tornaram inafiançáveis, de
modo que os indivíduos podiam imediatamente ter uma ordem de prisão preventiva,
que seria confirmada, depois, por uma sentença condenatória. Então, o
Governo manteria a prisão.
A lei atual modificou esta situação — e vim a saber que o meu voto
influiu, em grande parte, para essa mudança, eis que uma autoridade o levou a
outra, a fim de mostrar que, em virtude dessa disposição, não se podia expulsar
o proxeneta nem o vagabundo.
Revogado implicitamente o art. 2º, hoje qualquer um pode ser imediatamente
expulso, sem qualquer pronunciamento judiciário.
Estamos, portanto, diante de uma mudança de orientação evidente da
parte do Governo. Acrescente-se, ainda, que o Presidente da República é o único
juiz da conveniência da expulsão, uma vez que, com exceção de dois casos, o
Judiciário não toma conhecimento das expulsões.
Reconheço que a lei está mal redigida. Mas todas as leis, de há uns trinta
anos para cá, são mal redigidas.
Por conseguinte, nego a ordem.
No HC 26.770/DF, relatado por Carlos Maximiliano, também se discutiu
expulsão. No caso, havia inúmeros elementos fáticos, que Maximiliano tomou
do relatório policial, e que explicitou e enfrentou:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: O presente pedido de habeas corpus
é impetrado em favor de Antonio Nunes.
Alega-se que, ao ser preso o paciente, como suspeito de comunista, para
ser solto mais rapidamente, preferiu ser expulso e deu a identidade falsa de
Belsario dos Anjos, português. Assim seguiu todo o processo de expulsão e,
finalmente, foi lavrado o respectivo decreto.
No entanto, Antonio Nunes é funcionário da Marinha Mercante, onde foi
matriculado como brasileiro.
Junta, então, carteira de identidade, donde, aliás, não está a naturalidade.
Pedi informações, por achar difícil, em habeas corpus, apurar questão
de identidade, porque ele mesmo declarara ser português e se chamar Belisario
dos Anjos.
Vieram-me elas em cópia do relatório da polícia, que passo a ler:
polícia civil do Distrito Federal, Delegacia especial de segurança
política e social, seção de segurança social. Data do início desta ficha:
7-11-1934. Fotografado em: de... de 193... Nome do identificado: Belisario
dos Anjos. Nome do Pai: João Bernardino. Nome da mãe: Adelaide
Rosa. Nacionalidade: português — Naturalidade Localidade — Idade:
24 anos. Nascido em — Estado civil — Profissão atual: garçom — Sabe
ler e escrever — Residência atual: Rua Carolina Machado, 1016 —
Pessoas que conhecem o identificado: nome de policiais que o conhecem.
Histórico: foi preso no Sindicato dos Garçons, à Rua dos Arcos,
26, em uma reunião comunista, presidida pela C.G.T.B., sob a direção
do Partido Comunista em 6-11-1934. Foi recolhido ao Depósito de
Presos, em 6-11-1934. Foi posto em liberdade em 8-11-1934. Preso, por
ordem do Sr. Delegado Especial, como medida preventiva de segurança
125
Memória Jurisprudencial
126
política e social, em virtude de reiteradas atividades pró-bolchevisação
do Brasil, em 23-10-1937. Procedendo-se busca em sua residência,
foram ali apreendidos os seguintes livros: Berzin — o amor no país dos
soviets, Nach, Moscou Ville rouge e uma cópia da defesa do comunista
antonio Maciel bomfim, em 23-10-1937. Foi identificado, fotografado e
recolhido à Sala de Detidos, em 23-10-1937. Prestou as declarações, cujo
termo se acha por cópia, neste prontuário, em 3-11-1937. Transferido
para a Casa de Detenção, à disposição do Exmo. Sr. Chefe de Polícia (Of.
570/S-2), em 3-11-1937. Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1937. Confere:
Encarregado do Expediente J. de Oliveira Dias — Conforme: Seraphim
Braga. Chefe da Seção. Termo de declarações que presta belisario dos
anjos, na forma abaixo: Aos três do mês de novembro do ano de mil
novecentos e trinta e sete, nesta Seção de Segurança Social, da Delegacia
Especial de Segurança Política e Social, onde se achava o respectivo
Chefe, Sr. Seraphim Braga, comigo João de Oliveira Dias, Encarregado
do Expediente, compareceu belisario dos anjos, português, natural de
Trás-os-Montes, onde nasceu a quatorze de fevereiro de mil novecentos
e dez, filho de João Bernardino Revoredo e de Adelaide dos Anjos,
solteiro, garçom, trabalhando no Restaurante “Alba Mar” — Mercado
Municipal, e residente à rua Riachuelo, duzentos e quarenta e cinco, o
qual tendo sido preso no dia vinte e três do mês último, inquirido, disse:
que, conhecendo embora Manoel Passos Gil, do “Centro Cosmopolita”,
quando ambos foram sócios desse Centro, desde o Carnaval de mil novecentos
e trinta e três, não mais se avistou com ele; que só veio a saber
que Passos Gil era comunista, depois da prisão do mesmo, e isto por
intermédio de companheiros de trabalho; que, conhecendo Assis Halem,
na mesma época, da “União dos Garçons”, mais tarde, quando este foi
solto, o encontrou, isto há cerca de dois meses, no “Café Indígena” —
Largo da Lapa, esquina de Men de Sá, e que, nessa ocasião, vendo o
estado de penúria em que o mesmo se achava, ofereceu-lhe uma camisa
que não pôde dá-la no momento, porque essa camisa estava na lavadeira;
que, desde então, não mais se avistou com o referido Assis Halem;
que, sabendo ser este adepto do comunismo, o aconselhou a deixar
esse credo; que, quanto aos livros e folhetos arrecadados pela polícia
em sua residência, e que ora lhe são apresentados, o explica: o livro
“cento por cento de amor, de volúpia, de especulação — o amor no
país dos soviets”, o trouxera do “Centro Cosmopolita”; que o outro livro
“Moscou Ville rouge”, ele, declarante, desconhece o seu conteúdo, por
ser o mesmo escrito em francês, língua que ele ignora; que, finalmente,
quanto ao folheto (Defesa de Antonio Maciel Bomfim), estava dentro
do último livro acima referido, o qual foi encontrado pelo declarante
numa gaveta da casa onde trabalha (restaurante Alba Mar), parecendolhe
que tanto o livro como o folheto fossem ali deixados (na chapelaria)
por algum freguês, como freqüentemente acontecia. E como nada mais
disse nem lhe fosse perguntado, mandou o Sr. Chefe da Seção se encerrasse
o presente termo que, depois de lido e achado conforme, assina
o declarante com o referido Sr. Chefe da Seção e comigo Encarregado
do Expediente. Eu, João Pires de Camargo n. 882 — Investigador
n. 882 — oitocentos e oitenta e dois — o datilografei. Seraphim Braga.
Ministro Carlos Maximiliano
J. Oliveira Dias. Belisario dos Anjos. confere: (a) A. de Saldanha,
Datilógrafo. conforme: (a) M. L. M. Medeiros.
polícia do Distrito Federal — auto de Qualificação e de perguntas
na forma abaixo. Aos nove dias do mês de novembro do ano de mil novecentos
e trinta e sete, neste Distrito Federal e na Terceira Delegacia
Auxiliar, onde se achava o respectivo Delegado, Senhor Doutor Dulcidio
Gonçalves, comigo, escrivão da classe F de seu cargo adiante declarado,
aí presente o acusado Belisario dos Anjos, o Dr. Delegado o qualificou,
fazendo-lhe as seguintes perguntas: Qual o seu nome? Respondeu
chamar-se Belisario dos Anjos. Qual a sua filiação? Respondeu ser
filho de João Bernardino Rivoredo e de Adelaide Rosa. Qual a sua
idade? Respondeu ter vinte e sete anos de idade. Qual o seu estado civil?
Respondeu ser solteiro. Qual a sua residência? Respondeu residir à Rua
do Riachuelo n. 245. Sabe ler e escrever? Respondeu sim. Qual o lugar
de sua última residência no país de origem? Respondeu ser no Lugar de
Jou, Conselho de Murça de Trás-os-Montes. Qual a data em que chegou
ao Brasil? Respondeu ser no mês de dezembro do ano de 1923, não se
recordando o dia. Qual o meio de transporte que utilizou para esse fim?
Respondeu ter sido o navio alemão “Sante Sá”. Qual o lugar em que residiu
imediatamente antes de vir para o Brasil? Respondeu no Lugar de
Jou, Conselho de Murça do Trás-os-Montes. É reservista do Exército ou
da Armada do seu país de origem? Respondeu não. Possui passaporte ou
outra qualquer prova de nacionalidade? Respondeu que não. E mais não
respondeu, nem lhe foi perguntado, pelo que o Doutor Delegado mandou
encerrar este auto, que depois de lido e achado conforme, assina com
o acusado e com Salvador Corrêa Gonçalves, residente à Rua General
Pedra, número duzentos e vinte e um, casa um, e Thyerre Barreto, residente
à Rua Dona Minervina, número quarenta e dois, que assistiram a
lavratura deste termo. Eu, Daniel Cardoso Real — Escrivão da Classe F,
o datilografei. E eu, assinatura ilegível, Escrivão da Classe J, o subscrevo.
Dulcidio Gonçalves. Belisario dos Anjos. Salvador Corrêa Gonçalves.
Thyerre Barreto. confere: (a) A. de Saldanha — Datilógrafo. conforme:
(a) M. L. M. Medeiros.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano (Relator): Senhor Presidente, em
habeas corpus, é muito difícil examinar questão de prova. O paciente tem outros
meios judiciais de que se socorrer; pode propor ação, baseada na nacionalidade,
durante a qual não será preso, de acordo com a lei.
Não há, aliás, aqui, prova plena de que seja cidadão brasileiro.
Além do mais, está preso como comunista, por medida de segurança pública.
Por tudo isso, denego a ordem.
DECISãO
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Denegaram a ordem, unanimemente.
127
Memória Jurisprudencial
Em tema de extradição, Carlos Maximiliano fixou entendimento realista
em voto que proferiu no HC 26.311/DF, relatado pelo Ministro Octavio Kelly e
julgado em 9 de dezembro de 1936:
128
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Como Relator do pedido de extradição
apresentado pela Embaixada do respectivo país ao nosso, peço a palavra
para dar alguns esclarecimentos à Corte.
Nesse assunto de extradição, acho que devemos encarar, sempre, a matéria
com muito realismo, de forma a evitar, o quanto possível, aumente no Brasil
o número de criminosos. Assim, como Procurador da República — e sei que os
meus antecessores também procediam da mesma forma — sempre que faltava
ao pedido quaisquer formalidades, como no caso presente, opinava no sentido
de que a Embaixada completasse, na forma legal, o pedido. No caso sub judice, o
que acontece é, justamente, coisa semelhante. De fato, falta, apenas, certo texto
do código português, referentemente à prescrição. Como Relator do pedido de
extradição, verificando essa falha, dei despacho no sentido de que a Embaixada
completasse os papéis. Aliás, fui informado, particularmente, de que funcionário
da mesma aqui esteve, ontem, indagando a respeito, a fim de providenciar.
Agora, entretanto, o interessado alega que procedi contrariamente à jurisprudência
da Corte Suprema, desde quando esta, encontrando os papéis em desordem,
tem negado a extradição. Tanto isso não é exato que, ainda há poucos dias,
em causa de que foi Relator o Sr. Ministro Ataulpho de Paiva, julgamos que se
deviam solicitar as informações necessárias à Embaixada. Assim se fez e, na sessão
seguinte, continuando a discussão da matéria, foi ela julgada definitivamente.
Aliás, o Ministério das Relações Exteriores já nos devia enviar os papéis
completos. Isso faz-me lembrar, até, o Visconde de Cabo Frio, que se gabava de
não passar por ali coisa alguma que não fosse completada. E ele sabia fazê-lo
de maneira diplomática e até elegante. Basta citar o caso de uma nota escrita em
tom jacobino, no tempo de Saldanha, que ele redigiu de modo tal que nenhum
outro o faria.
Eram estes, Senhor Presidente, os esclarecimentos que desejava dar aos
meus eminentes colegas.
Expulsão também foi questão enfrentada no HC 26.682/DF, relatado
pelo Ministro Armando de Alencar e julgado em 11 de maio de 1938. O paciente
era acusado da prática de lenocínio e de falsamente se atribuir a qualidade de
brasileiro nato, embora, ao tirar a carteira de motorista, se identificasse como
argentino. Nos termos do voto do Ministro Carlos Maximiliano:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, concedo a ordem
em atenção, exatamente, ao Decreto-Lei 392, de 27 de abril de 1838, invocado
pelo Sr. Ministro José Linhares, o qual, longe de prejudicar, é muito mais
benigna para com os indesejáveis do que a legislação anterior.
A legislação anterior sobre a matéria foi iniciada com o Decreto 1.641, de
7 de janeiro de 1907, cujo art. 2º estatuía:
São também causas bastantes para a expulsão:
(...)
§ 3º A vagabundagem, a mendicidade e o lenocínio competentemente
verificados.
Ministro Carlos Maximiliano
Entendia-se que, para se dar cumprimento a esse “competentemente verificados”,
bastava o inquérito policial.
Depois, veio o Decreto 2.741, de 8 de janeiro de 1913, que revogou, juntamente
com outros, esse § 3º do Decreto 1.641.
Em seguida, a Constituição, com as emendas de 7 de setembro de 1926,
no art. 72, § 33, estabeleceu:
É permitido ao Poder Executivo expulsar do território nacional os
súditos estrangeiros perigosos à ordem pública ou nocivos aos interesses
da República.
E, igualmente, a Constituição de 1934, no art. 113, n. 15, determinou:
A União poderá expulsar do território nacional os estrangeiros
perigosos à ordem pública ou nocivos aos interesses do país.
Nos termos da Constituição, portanto, foi autorizada, pura e simplesmente,
a expulsão do indivíduo prejudicial.
Isso acontece na legislação de todos os povos cultos. O decreto atual,
porém, modificou inteiramente o assunto.
O art. 1º contém um preceito geral quando dispõe que é passível de expulsão
o estrangeiro que, por qualquer motivo, comprometer a segurança nacional,
a estrutura das instituições ou a tranqüilidade pública. O art. 2º, n. 4, declara
que, depois de cumprida a pena que lhe tenha sido imposta, fica sujeito a expulsão
imediata o estrangeiro que houver sido condenado como autor ou cúmplice,
em qualquer forma ou grau, nos crimes referentes a: venda de tóxicos e entorpecentes,
tráfico de mulheres, lenocínio, corrupção de menores, estupro. Por outro
lado, o art. 3º, n. 4, preceitua que poderá ainda ser expulso, depois de cumprida
a pena que tenha sido imposta, o estrangeiro que haja sido condenado no Brasil
por crime inafiançável ou que, condenado por crime dessa natureza, se tenha
evadido de outro país.
Por conseguinte, o indivíduo só pode ser expulso depois de condenado e
cumprida a pena de lenocínio. Agora, não é possível a expulsão.
Temos de atentar, ainda, para os arts. 10 o e 11 o.
Art. 10. Enquanto não se consumar a expulsão, o Ministro da
Justiça e Negócios Interiores poderá ordenar ou manter a detenção do
expulsando, ou, quando for o caso, mandar que continue preso.
Art. 11. A alegação documentada da nacionalidade brasileira
importa suspensão da expulsão; admitido, apenas, neste caso, o recurso
ao Judiciário.
Parágrafo único. Enquanto não houver sentença definitiva, o
Ministro da Justiça e Negócios Interiores poderá usar da atribuição que
lhe confere o art. 10.
O Sr. Ministro José Linhares: A expulsão não pode ser decretada
enquanto não houver sentença definitiva.
O Sr. Ministro Costa Manso: Haverá sentença judicial quando a parte
reclamar em juízo contra a expulsão, por ser brasileira.
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Por conseguinte, era muito fácil
decretar a prisão preventiva e, nesse caso, teríamos de negar o habeas corpus.
Em face da lei, entretanto, não se pode expulsar ninguém por lenocínio antes
do processo.
Nessas condições, concedo a ordem, sem prejuízo do processo de
expulsão.
129
Memória Jurisprudencial
O controle da presença de estrangeiros em tempo de guerra era assunto
reiteradamente apreciado pelo Supremo Tribunal Federal. No HC 26.917/DF,
relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 14 de dezembro de 1938, em que
se ementou que não constituía constrangimento ilegal a prisão de estrangeiro
que entrara irregularmente no País, justificando-se o repatriamento, julgou-se,
como segue, na forma exposta por Carlos Maximiliano:
130
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, em que é
paciente Alfredo Micael: este lituano impetrou habeas corpus, pelo fato de
estar preso desde fevereiro para ser expulso do Brasil. Solicitadas informações
ao Exmo. Sr. Ministro da Justiça, verificou então, pela resposta, o Relator que
o pedido era o segundo; ordenada a apensação dos autos do anterior habeas
corpus, apurado ficou tratar-se de inicial absolutamente idêntica à primeira,
que fora desatendida, contra o só voto do Relator, por se tratar de estrangeiro
que entrara irregularmente no país. Se liminarmente o Relator verificasse ter
em estudo segundo pedido igual ao primeiro, tê-lo-ia indeferido in limine.
Trata-se de péssimo elemento, entrado irregularmente no país, dado ao vício
da embriaguez e não dedicado a nenhuma espécie de trabalho: é o que informa
a autoridade apontada como coatora. É caso de manter a decisão anterior; por
isso, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em indeferir o pedido.
À época, definiu-se também que não constituía constrangimento ilegal a
prisão de estrangeiro contra o qual fora expedido decreto de expulsão, não consumada
em virtude da dificuldade na obtenção de passaporte visado por autoridade
diplomática ou consular competente. É o que foi decidido no HC 26.966/
SP, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 7 de dezembro de 1938, cujo
acórdão é em seguida reproduzido:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, em que é
paciente Stefano Macaroff: Trata-se de um russo várias vezes preso como terrorista;
o próprio impetrante junta aos autos recortes de jornais em que se noticia
haver ele feito falhar manifestações ao Dr. Armando Sales em Marília, mediante
o expediente de interromper a iluminação, para o fim de facilitar atentados (fl.
23). Existe o decreto de expulsão, datado de 10 de março de 1937, e o Delegado
de Vigilância e Capturas fez certificar não ter sido ainda consumada a medida,
por dificuldade na obtenção de visto em passaporte para um russo, que, aliás,
está preso desde 28 de julho deste ano, segundo a certidão de 23, embora alegue
o peticionário achar-se detido há 880 dias. Infelizmente foi revogada a lei
que em tais casos mandava recolher o expulsando a uma colônia agrícola. Nas
circunstâncias atuais, e havendo já um decreto de expulsão, nada pode fazer o
Judiciário. Pelas razões expostas, acordam os Ministros do Supremo Tribunal
Federal em indeferir o pedido.
Decidiu-se também que o fato de residir um estrangeiro no Brasil há
cinco anos, bem como de ser delinqüente primário, não seria obstáculo à sua
expulsão. É o que se percebe na leitura da decisão proferida no HC 27.126/DF,
relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 28 de junho de 1939:
Ministro Carlos Maximiliano
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, em que é
paciente cesário pinto da cunha: O impetrante é português, explorador do lenocínio;
por isto, foi preso para ser expulso do país. Depois de quase três meses de
reclusão, obteve habeas corpus. Volta, agora, ao pretório excelso, alegando que
está domiciliado há mais de cinco anos no Brasil e é delinqüente primário; por
isto, se achava convencido de não mais ser perseguido pelas autoridades; entretanto
foi novamente preso e o informou a Polícia de haver sido expulso desde 4
de outubro de 1938; pede habeas corpus a fim de ser solto e não mais enviado
para a sua terra. Solicitadas informações ao Exmo. Sr. Ministro da Justiça, este
não respondeu; impetrou o interessado a reiteração de diligência; veio então um
ofício, no qual se comunicava o que, aliás, constava da inicial: ter sido lavrado
decreto de expulsão e haver apenas dificuldade em conseguir o passaporte; mas
o Ministério da Justiça acabava de oficiar ao das Relações Exteriores insistindo
no sentido de se afastarem os embaraços na obtenção do documento necessário
para o embarque do paciente. Como se vê, a autoridade coatora não é brasileira;
da prolongada detenção deve queixar-se o paciente ao Governo de seu país. Por
isto, acorda o Supremo Tribunal Federal em indeferir o pedido.
À época decidiu-se pela legalidade da prisão preventiva do extraditando,
desde que fossem oferecidos pela autoridade diplomática impetrante do-
cumen tos justificativos do pedido de entrega do criminoso comum. Tratava-se
do HC 27.214/DF, julgado em 30 de agosto de 1939 e relatado por Carlos
Maximiliano:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus originário,
em que é paciente o engenheiro francês Pedro Guilherme Dreyffus: Alegando
achar-se preso há mais de 45 dias para ser extraditado a pedido do Exmo.
Sr. Encarregado de Negócios da República Argentina, sem que tivessem sido
encaminhados os papéis justificativos da medida solicitada, Dreyffus fez impetrar
habeas corpus. A inicial veio desacompanhada de qualquer prova; por isto,
o Relator a indeferiu in limine, de acordo com o disposto no art. 11, § 1º, do
Decreto 19.656, de 3 de fevereiro de 1931. O advogado Dr. Raymundo Nonato da
Costa Cruz pediu reconsideração do despacho, alegando que lhe negavam todas
as certidões pedidas sobre o assunto e até o impediam de se comunicar com o
paciente, e juntou o atestado de dois advogados militantes no foro do Distrito
Federal afirmando terem visto Dreyffus preso na Casa de Detenção. Como se
alegava outro constrangimento e talvez mais grave, a dificultação da defesa,
o Relator atendeu à solicitação e pediu informações ao Exmo. Sr. Ministro da
Justiça. Vieram estas e se encontram à fl. 19; por sua vez o advogado juntou
documentos concernentes aos antecedentes de extraditando (fls. 14 a 17).
Não consta dos autos que o paciente se ache preso além do tempo legal,
sem serem oferecidos, como alegou, os documentos justificativos da extradição.
Não há prova nenhuma da data da detenção; e o Exmo. Sr. Ministro da Justiça
informou o contrário do afirmado pelo impetrante, declarou haver recebido os
papéis indispensáveis e os remetido, já, ao Supremo Tribunal. Por isto, acorda
este em indeferir o pedido.
É também o caso do decidido no HC 26.934/SP, relatado pelo Ministro
Laudo de Camargo e julgado em 28 de dezembro de 1938. Em pequeno excerto
131
Memória Jurisprudencial
do julgado, Carlos Maximiliano explicitava que não concebia a extradição
como pena: tratar-se-ia de medida de ordem pública:
132
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, também aplico a
lei nova, não porque considere a expulsão como pena, pois ela me parece simples
medida de ordem pública; mas porque o próprio Governo achou não ser
necessário expulsar do País estrangeiros que nele residam há mais de 25 anos e
tenham filhos brasileiros.
Assim, concedo a ordem.
Outra expulsão de estrangeiro foi matéria decidida no HC 27.250/RS,
relatado pelo Ministro Carvalho Mourão e julgado em 20 de setembro de 1939.
Nos termos do voto do Ministro Carlos Maximiliano:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, parece-me que
o que houve, na Polícia de Porto Alegre, foi o interesse de cumprir a lei; se o
expulsando cometeu qualquer crime comum, deve, primeiro, cumprir a pena e,
só depois, ser expulso. Ora, tendo notícia, certa ou não, de que havia contra o
ora paciente processo, na Justiça comum de Bagé, foi ele remetido para lá, sem
prejuízo da expulsão.
Aliás, esse caso de Bagé não seria da nossa competência originária: se
foi preso, sem processo, devia ele dirigir-se ao Tribunal de Apelação do Estado.
Quanto ao outro fato, está claro que é legal a prisão, desde que está preso
à ordem do Sr. Ministro da Justiça, para ser expulso.
Nestas condições, denego a ordem.
4.3 LEI DE IMPRENSA
A Lei de Imprensa e o julgamento dos crimes lá previstos pelo júri comum
foi assunto debatido recorrentemente no Supremo Tribunal Federal durante a Era
Vargas. No HC 26.241/BA, relatado pelo Ministro Octavio Kelly e julgado em
16 de outubro de 1936, a questão foi discutida. O voto de Carlos Maximiliano
explorou aspectos finalísticos da norma que se discutia, nos termos seguintes:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, diante da controvérsia
que se esboçou, procurarei trazer ao debate elemento outro de exegese, que é o
teleológico. — por que e para que o legislador exigiu que, no caso especial de delitos
de imprensa, em vez de ser o indiciado sujeito a processo e julgamento perante
o juiz comum, fosse submetido à apreciação de seus pares, os quais, conhecedores
do efeito maléfico ou benéfico do ato incriminado, cientes do interesse social, coletivo,
afetado, poderiam, melhor que o juiz togado, pronunciar o veredicto?
Foi este e não poderia ser outro o objetivo do legislador: fazer retirar o
julgamento das estreitezas da técnica, exigir nele o pronunciamento do povo,
dos jurados. Como, pois, se admitir que, em segunda instância, em tribunal
inteiramente diferente, se reforme, de tal maneira, a decisão do pequeno júri?
De fato, o juiz da segunda instância, pela sua modalidade, critério, até
pela consciência natural de seus deveres, só poderia examinar a questão sob o
aspecto técnico, jurídico.
Ministro Carlos Maximiliano
Mesmo achando a decisão contrária à prova dos autos, o tribunal de
segunda instância só poderia mandar o réu a novo júri, como se faz com os tribunais
populares comuns.
Não procedeu assim a Corte de Apelação da Bahia, pois resolveu reformar
a sentença para condenar o réu absolvido. Foi um lapso, um escorregão dos
magistrados, que não acompanho.
Estou, por conseguinte, com o ilustre Relator: concedo a ordem.
É o meu voto.
Lei de Imprensa também foi objeto do julgamento proferido no
HC 26.279/DF, relatado pelo Ministro Laudo de Camargo e julgado em 9 de
novembro de 1936. Entendeu-se que, quando a Lei de Imprensa falava em multa
ou prisão, propiciava uma alternativa. Assim, condenado o agente em multa, a
prisão, como acréscimo, qualificaria constrangimento ilegal:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Entendo que o pensamento do legislador,
proibindo se convertesse a multa em prisão, foi exatamente no sentido de
regular o caso quando houvesse as duas penas. O costume era, em vários códigos,
como no do Rio Grande do Sul, por exemplo, de se mandar fazer a avaliação
da multa por peritos; para o efeito da conversão, estabelecia-se que o indivíduo,
que não pagasse a multa, teria tantos dias de prisão quantos fossem os de trabalho
correspondentes à pena pecuniária. Destarte, elevava-se a multa, às vezes a
proporções fantásticas.
O caso, porém, de pena alternativa, prisão ou multa, já é diferente. Na
Inglaterra, onde estive em 1913, presenciei, nos pequenos tribunais, casos interessantes
nesse sentido. Nos delitos menos graves, o juiz, resumindo a falta
do delinqüente, dava a sentença da seguinte forma: “Ou três dias de prisão,
ou multa de cinco libras”, por exemplo. O criminoso, naturalmente preferindo
satisfazer a multa, retirava-se, logo.
Ora, não creio seja este o caso previsto na Constituição, de maneira
proibitiva.
Na verdade, o que a Carta Magna pretendeu vedar foi a conversão da
multa em prisão, a transformação de uma em outra. Não, porém, as duas consideradas
cada qual de per si — a prisão, uma pena; a multa, outra pena.
Nessas condições, nego a ordem impetrada.
É o meu voto.
4.4 NATUREzA, VALIDADE E NULIDADE DAS PROVAS
Nulidade de prova foi questão decidida no RHC 26.228/DF, relatado pelo
Ministro Carvalho Mourão e julgado em 4 de setembro de 1936. Ementou-se que
não se concederia habeas corpus se alegada, apenas, a nulidade de prova. Não se
poderia invocar lei estadual sobre prova, visto ser a matéria de direito substantivo,
regulável pela União. Colhe-se do voto do Ministro Carlos Maximiliano,
com pequena intervenção do Relator, o excerto que segue:
133
Memória Jurisprudencial
134
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Em geral, não poderia, em habeas corpus,
tomar conhecimento dessa nulidade, em falta do auto de corpo de delito. Creio
bem que este não constitui formalidade essencial. Leu, porém, o ilustre colega
Relator dispositivo do Código Judiciário do Estado do Rio, por onde se vê que, lá, é
indispensável o corpo de delito direto, desde que o fato deixou vestígio. O habeas
corpus, porém, nessas condições, equivaleria, sempre, à absolvição do réu.
O Sr. Ministro Carvalho Mourão (Relator): Poderia ser renovado
o processo.
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Não se trata de questão de preliminar,
mas de prova.
Por todas essas razões, poderia dar o habeas corpus para anular o processo.
Por não ter havido o corpo de delito direto, anularia o processo, para ser
feito o corpo de delito indireto.
Caso seja vencido, neste ponto, negarei a ordem.
É o meu voto.
Prova também foi o assunto discutido no HC 26.321/DF, relatado pelo
Ministro Octavio Kelly e julgado em 6 de janeiro de 1937, em que se indeferiu o
pedido porquanto se verificou matéria estranha ao habeas corpus, e que dependia
de exame minucioso de prova. Nos termos do voto de Carlos Maximiliano,
com pequena intervenção do Relator:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, sinto divergir,
por várias razões, do Sr. Relator.
Em primeiro lugar, trata-se de despacho de pronúncia, para o qual existe
recurso adequado. Por outro lado, não é tão fácil julgar o mérito da questão, sem
examinar os autos em conjunto; saber, por exemplo, como foi questionado, a
todo momento, pelo Relator, sobre se se tratava ou não de delito funcional, etc.
Uma série de circunstâncias de fato, que não se podem apurar em habeas corpus,
precisariam ser elucidadas.
Além disso, no meu espírito, pesam certos argumentos: se não damos
extradição a brasileiros, qual seria, então, a sorte do acusado? Ele não prejudicou
a Portugal, prejudicou ao próprio Brasil. Ajudava, de fato, os portugueses
que eram indesejáveis — e tanto o eram que não podiam obter os papéis, pelos
meios regulares, para vir para o Brasil — a entrarem, irregularmente, no nosso
País, valendo-se da sua função de cônsul. Se vamos soltar esse homem, por um
simples habeas corpus, qual é o meio que tem o Governo do Brasil para punir
os seus funcionários consulares e diplomáticos, em suas faltas, desde que as
cometam em Paris, Berlim, etc.?
O Sr. Ministro Octavio Kelly (Relator): Nesse caso, é preciso revogar a lei.
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Não há meio algum. Não é possível,
portanto.
Há, ainda, um princípio de Direito Internacional a considerar: desde que
não restituímos o homem para ser punido, temos obrigação de puni-lo. É um
preceito de Grotius, muito antigo, pois se não o restituímos, porque brasileiro
não pode ser extraditado, logo, nosso dever é o punir.
Como se vê, a matéria não dá para ser discutida, toda ela, com a plenitude
necessária, em rápido habeas corpus. Fico mesmo surpreso de que, tratando-se
de recurso de despacho proferido nessa mesma Casa, noutro andar, o acusado, em
Ministro Carlos Maximiliano
lugar de vir com o recurso de pronúncia, que é o adequado, venha com um habeas
corpus, para nos surpreender com argumentos e provas que não podemos examinar.
Por todos esses motivos, nego a ordem.
É tema que também informou o RHC 26.908/DF, relatado pelo próprio
Carlos Maximiliano e julgado em 25 de outubro de 1938, quando se ementou
que matéria de fato não poderia ser apreciada e resolvida em processo de
habeas corpus:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de recurso de habeas corpus, em
que é recorrente Nathaniel do Rego Macedo e recorrido o Tribunal de Apelação
do Distrito Federal: O recorrente foi processado como peculatário, implicado
em desfalque nos cofres da Prefeitura do Distrito Federal; pediu habeas corpus,
sob o duplo fundamento de não ter havido desfalque nenhum e não se ter feito
prova pericial do delito. Foi aberto inquérito contra o tesoureiro; no correr deste
procedimento preliminar, surgiram acusações contra o Fiel de Pagador, o atual
impetrante de habeas corpus. O Tribunal de Apelação indeferiu o pedido, pelo
acórdão de fl. 14; pelo que o paciente recorreu para o Supremo Tribunal.
A própria certidão oferecida pelo paciente, à fl. 30v., mostra que houve
exame pericial da contabilidade da Prefeitura, a fim de apurar o desfalque; logo,
a mais reiterada argüição do impetrante cai pela base. Demais, o processo está
no início ainda; não há, portanto, base para apurar se houve, ou não, desfalque e
se é culpado o mesmo, ou não, o solicitante, sendo de notar que se trata de matéria
de fato, inapreciável em habeas corpus.
Pelas razões expostas, acordam, em turma julgadora, os Ministros do
Supremo Tribunal Federal em negar provimento ao recurso.
Prova é também tema que marcou o HC 26.323/DF, relatado pelo próprio
Carlos Maximiliano e julgado em 13 de janeiro de 1937:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Um médico, talvez por suspeitar
que um dentista lhe estava requestando a esposa, armou-lhe uma cilada, em
combinação com um parente que sabia dirigir automóvel e mais dois homens: à
meia-noite, mandou pedir ao dentista que fosse com ele servir de árbitro numa
discussão travada nas Laranjeiras entre a esposa e a amante do médico. O dentista
embarcou no automóvel; ao chegarem perto de uma bomba de gasolina, o
condutor avisou: aqui está bom, porque está escuro. Atiraram o dentista à rua,
justamente quando passavam um bonde com velocidade e outro automóvel, de
sorte que por um milagre não foi esmagado o dentista, que caíra sobre os trilhos;
armado de rebenque o médico e de pau e bambu os outros, bateram à vontade
no dentista, malgrado os esforços do empregado da bomba, que afinal correu
a chamar a polícia. Foram todos presos, menos um que fugiu no começo do
ataque, e levados, com a vítima desacordada, ao próximo posto policial, onde
soltaram, sob fiança, os agressores. Foram condenados às penas de 9 meses, 22
dias e 12 horas de prisão, grau submáximo do art. 303 da Consolidação das Leis
Penais, por militarem contra eles os agravantes do art. 39, § 1º, § 7º e § 13, como
preponderantes sobre a atenuante do exemplar comportamento anterior. A sentença
atribuiu, portanto, ao médico, o haver procurado a noite ou lugar ermo,
135
Memória Jurisprudencial
136
para mais facilmente perpetrar o delito, ter procedido com surpresa, traição ou
disfarce, ajustado o crime entre dois ou mais indivíduos. A Corte de Apelação
confirmou o veredictum. Alegando a sua conduta anterior e ser delinqüente primário,
o facultativo impetrou o sursis; a Justiça local o negou, à vista da perversidade
revelada pelo réu ao praticar o crime, decisão esta mantida pela Corte de
Apelação. Daí o pedido de habeas corpus, ao qual se juntam atestados abonadores
de bons serviços prestados pelo condenado, antes da prisão, como médico.
Foram pedidas informações à Câmara que negou o sursis; (...).
Conheço do pedido, por ser apontada a Corte de apelação como autoridade
coatora.
Trata-se de uma questão de fato, muito melhor apreciável pelo juiz
que assistiu à formação da culpa, que apreciou a conduta dos réus na prisão e
durante as audiências, e leu todo o processo, como o fez a Câmara da Corte de
Apelação, que confirmou o veredictum. Nem está provado, senão indiretamente
pelo depoimento do réu, que ele agiu por motivo de honra; porquanto ele apenas
declara que o dentista lhe requestava a consorte, mas nega obstinadamente
o crime, não diz que agrediu o dentista por aquele motivo; e a lei explicitamente
manda recusar o sursis quando o acusado haja revelado caráter perverso.
Realmente, o marido ofendido e bom pode esbordoar o sedutor da esposa,
embora não deva; mas o faz como homem, frente a frente, sozinho, leal e valorosamente,
dando e arriscando-se a apanhar; o réu chamou em seu auxílio mais
três homens, armando-se, eles, de revólver, faca, rebenque e pau, e, de surpresa,
caíram todos sobre a vítima inerme; e por tudo isso pretende não sofrer nada;
pois dos autos não consta que esteja recolhido à detenção; antes, está provado ter
sido solto, logo depois do fato, mediante fiança.
Parece, pois, não merecer habeas corpus, sobretudo porque o acórdão se
funda em matéria de fato, inapreciável em processo de habeas corpus; é este o
meu voto — pelo indeferimento do pedido.
Prova também foi o tema discutido no RHC 26.780/DF, relatado por
Carlos Maximiliano, no qual se ementou que em processo de habeas corpus não
se poderia examinar matéria simplesmente probatória:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o paciente alega
que foi processado e condenado por haver, juntamente com outro, atacado e subjugado
um transeunte, na Esplanada do Castelo, para roubar. O que faziam era o
seguinte: um amordaçava o indivíduo enquanto o outro, que é o ora recorrente,
lhe dava busca nos bolsos, ao mesmo tempo que o ameaçava com uma faca.
Segundo consta da petição, o processo girou em torno da confissão do
co-réu que, preso, confessou, também, tudo quanto a ele se referia. Faz o recorrente
uma digressão científica, dizendo que se tratava de confissão qualificada
porque o indivíduo, além de confessar o crime de apropriar-se do alheio, confessou
a violência e, sendo qualificada, a confissão não valeria por si só, dependendo
de provas suplementares.
É o próprio recorrente, entretanto, quem informa que foi feita essa prova
suplementar porque uma das testemunhas arroladas declarara que, procurando
intervir para liberar o agredido, foi ferido a faca pelo ora recorrente, o que coin-
Ministro Carlos Maximiliano
cide, exatamente, com a confissão do outro, de vez que era ele quem estava de
faca, para assustar.
É em torno desse fato que baseia o recorrente o pedido de habeas corpus,
alegando não estar aquele suficientemente provado, nem justificado o acórdão
que lhe negou a ordem.
É o relatório.
VOTO
É certo que o Tribunal de Apelação não justificou a denegação do habeas
corpus, limitando-se a apreciar a questão de incompetência.
Entretanto, o ora recorrente, iniciando a sua petição de recurso com a
frase de rui barbosa “O que é nulo nenhum efeito pode ter”, só se ocupa da
prova dos autos, insistindo em que o processo é radicalmente nulo.
Nego provimento ao recurso por se tratar de argüição toda ela fundada
em prova. Quando muito, poderíamos examiná-la em revisão, mas, mesmo
assim, acho que não procederia a alegação.
Nessas condições, não concedo o habeas corpus.
O problema da prova remetia à questão das diligências e a fixação de
entendimento relativo à falta de encaminhamento de informações, por parte da
autoridade coatora. Esse assunto foi discutido no HC 26.904/RS, relatado pelo
Ministro Carvalho Mourão e julgado em 19 de outubro de 1938. Nos termos do
voto do Ministro Carlos Maximiliano:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o Sr. Ministro
Relator teve um argumento forte dizendo que a ele não competia completar a
prova. Entretanto, aceitamos outro fundamento: quando solicitamos uma informação
e a autoridade não a presta ou presta de maneira insuficiente, consideramos
a autoridade como confessando o alegado na inicial, que é coisa muito mais
grave, e sempre concedemos o habeas corpus.
Não vou tão longe, mas acho que as informações prestadas ao Sr. Ministro
Relator estão, exatamente, nos termos de uma que acabo de receber agora —
porque tenho um pedido igual — e em que nada ou quase nada se diz. De fato,
consta que o paciente foi mandado para a polícia e que esta nada resolveu, e
assim por diante.
De acordo com os meus votos precedentes, até, eu daria a ordem. Uma
vez, porém, que as circunstâncias do fato não estão bem claras, prefiro a diligência,
a fim de que se pergunte ao Ministro da Marinha quando, por que e para que
este homem foi preso; isto é, a pergunta, tal qual foi feita, de acordo com a inicial.
Entendendo assim, dispenso, inteiramente, o auto de flagrante. A falta
deste auto é mais um motivo para dar habeas corpus, porque o ato de lavrar o
termo não é do réu e sim do juiz e quando não feito prejudica o réu. Por que não
terá ele o benefício da computação do tempo de prisão apenas porque deixou de
ser cumprida uma formalidade que não dependia dele? Se não foram cumpridas
as formalidades legais, em relação a ele, este não é motivo para negarmos o
habeas corpus e sim para darmos.
Nessas condições, peço as informações. Aliás, tenho um caso semelhante
e não trago os autos ao Tribunal, porque entendo que as informações prestadas
são extraordinariamente incompletas e vou pedir outras, por despacho.
137
Memória Jurisprudencial
Ainda em tema de prova, no RHC 26.978/DF, relatado pelo Ministro
Cunha Mello e julgado em 23 de dezembro de 1938, decidiu-se que não se
concederia o remédio, quando requerido por motivo de nulidade do processo, e
quando, em face da prova, inexistisse a alegada nulidade. Nos termos do voto
de Carlos Maximiliano, que inclusive menciona questão fática, relativa ao descuido
do paciente:
138
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, não me parece
que tenha havido surpresa por parte do paciente, que era homem de bem, conforme
alegou o advogado da tribuna. É inacreditável que um homem de bem,
acusado de ter dado um desfalque de cento e tantos contos, tivesse se esquecido
de que estava sendo processado em razão de um negócio de tanto valor.
Não houve surpresa alguma, e sim um enorme descuido ou, até mesmo,
indiferença pelo processo por parte do paciente. Foi intimado para um processo
gravíssimo e tinha advogado e, no entanto, não se importou com ele e disse, até,
ter ficado espantado quando foi preso. Deveria ficar espantado, sim, se não fosse
parar na cadeia.
Nessas condições, nego a ordem.
Foi ainda o caso do RHC 27.736/DF, relatado por Carlos Maximiliano
e julgado em 29 de janeiro de 1941, no qual se ementou que em habeas corpus
não se examinaria a prova e que, para dar queixa, seria necessária procuração
com poderes especiais; porém, nem por isto se exigiria, na própria procuração,
individualização e classificação do delito. Na expressão de Carlos Maximiliano:
ACóRDãO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de recurso de habeas corpus,
em que é recorrente o Dr. Nilson carvalho da silva e recorrido o Tribunal de
apelação do pará: o recorrente foi processado e pronunciado como havendo
deflorado a menor Maria Graziella brigido dos santos. Pediu habeas corpus
ao Tribunal do Estado, alegando estar o processo radicalmente nulo, por
haver a queixa sido dada por procurador sem poderes especiais para isto, tanto
que se não menciona, na procuração, o nome da vítima, nem o crime em suas
minúcias; demais, é deficiente a prova do fato, isto é, de ser a moça honesta,
havendo fundada suspeita de que praticava atos contra a natureza. O Tribunal
do Estado negou a ordem (acórdão à fl. 18); o paciente recorreu. Realmente, só
o procurador com poderes especiais pode dar queixa. Os escritores citados pelo
recorrente, entretanto, só exigem poderes especiais — para dar queixa; não
exigem a especificação do crime, com as suas minúcias, o nome da vítima, etc.
Ora, a procuração oferecida pelo recorrente, como Doc. n. 3, a fls. 11A, confere
— “amplos e ilimitados poderes com a cláusula ad juditia para o foro em
geral; especialmente para oferecer, no juízo competente, queixa-crime contra
o Dr. Nilson Carvalho da Silva, médico, como autor do defloramento de Maria
Graziella Brigido dos Santos, filha menor do casal outorgante, e incurso nas sanções
do art. 267 da Consolidação das Leis Penais”. Esta procuração é de 22 de
julho; antes, a 8, o pai dera outra, com poderes para o foro criminal, dar queixacrime,
jurar, n’alma dele, outorgante (fl. 11, doc. 2).
Ministro Carlos Maximiliano
Os poderes, outorgados antes de começar a ação judicial, são suficientes.
O mais constitui matéria de fato, que se não examina em habeas corpus. Por esses
motivos, acorda o Supremo Tribunal Federal em negar provimento ao recurso.
No HC 27.333/RS, relatado pelo próprio Carlos Maximiliano e julgado
em 1º de novembro de 1939, decidiu-se que matéria de fato, apurável pelo simples
exame da prova criminal, constituiria assunto de revisão, e não de habeas corpus:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus originário,
em que é paciente Luiz Krasuski: Foi este absolvido pelo júri, pela dirimente da
legítima defesa, e condenado a doze anos de prisão pelo Tribunal de Apelação
do Rio Grande do Sul; pede habeas corpus, sob o fundamento de que ele era
um homem tímido, ameaçado a cada momento pelo seu irmão, indivíduo forte
e violento; para se livrar de mal certo, matou-o. Analisa longamente a prova
dos autos, para concluir ser caso de legítima defesa, devendo, pois, prevalecer o
veredictum do juízo popular.
O assunto melhor se afeiçoa a revisão criminal; matéria de fato, apurável
pelo simples exame da prova, não fundamenta habeas corpus. Por isso, acorda
o Supremo Tribunal Federal em indeferir o pedido.
Caso parecido, o julgado no HC 27.679/DF, relatado por Carlos
Maximiliano e julgado em 4 de dezembro de 1940:
ACóRDãO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus originário,
em que é paciente agostinho José da silva: Este foi condenado, em primeira
e segunda instância, como incurso na sanção do art. 297, grau mínimo, da
consolidação das Leis penais, por haver atropelado, com o automóvel que dirigia,
um transeunte que faleceu, depois, em conseqüência dos ferimentos recebidos.
Alegou menoridade, desde o primeiro momento, apresentando como prova
da idade um atestado de assentamentos em Consulado Português, feitos recentemente.
A Justiça local concedeu a atenuante respectiva, porém não a prescrição
correspondente, porque a favor do réu, que tinha maus antecedentes como
motorista, não era probante o atestado fornecido pelo Consulado (decisões de
fls. 6 e 9v). Matéria de fato, simples questão de prova, não pode ser apreciada em
habeas corpus; sendo, aliás, de notar que os julgados estão certos. O fato delituoso
ocorreu em 31 de outubro de 1939; a denúncia é de 2 de fevereiro de 1940;
julgada em 5 de agosto e 7 de novembro de 1940. Por esses motivos, acorda o
Supremo Tribunal Federal em indeferir o pedido.
Ainda em tema de prova, no HC 27.342/SP, relatado por Carlos
Maximiliano e julgado em 10 de janeiro de 1940, decidiu-se que a prova de que
se fora vítima de apropriação indébita seria suficiente para oferecer queixa à
polícia contra o delinqüente; em crime de tal natureza, não se faria indispensável
o auto de corpo de delito. É o que se colhe do julgado de Carlos Maximiliano:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus originário,
em que é paciente Joaquim Gomes de carvalho: Este pediu habeas corpus
139
Memória Jurisprudencial
140
ao Tribunal de Apelação de São Paulo, por ter sido condenado em processo
nulo; indeferida a súplica, ele recorreu; a Segunda Turma do Supremo Tribunal
Federal confirmou o acórdão em que se julgou incompetente o pretório local
por ser um dos autores das sentenças atacadas pelo suplicante; porém resolveu
remeter os autos ao Tribunal Pleno, para este julgar o pedido como originário.
Alega o paciente ter sido condenado a 21 meses de prisão pelo crime de apropriação
indébita, em processo eivado das seguintes nulidades: a) falta de corpo
de delito; b) ter sido dado como em lugar incerto e não sabido, quando tinha residência
fixa; c) ilegitimidade da queixa, visto haver sido oferecida por Jurandir
Brito Figueiredo, aceitante de duplicatas, objeto do processo, e não por credor
das mesmas. Solicitadas informações, o Tribunal paulista remeteu os autos originais.
Eis o fato criminoso: Jurandir Brito Figueiredo confiou duas duplicatas a
Joaquim Gomes de Carvalho, para as descontar na praça; este assim procedeu;
mas se apossou do produto do negócio; por isto, aquele deu queixa-crime contra
este, na Delegacia de Furtos. Apurado o fato delituoso, o Promotor Público ofereceu
denúncia contra o acusado. Na Polícia, o denunciado confessara, na essência,
os fatos alegados contra ele. Perante a Justiça local foram feitas as mesmas
alegações de nulidade, repelidas sumariamente nas duas instâncias (fls. 69 e 128
v. do processo criminal). O queixoso foi positivamente a pessoa que confiou os
documentos ao paciente, que os descontou sem restituir a importância recebida.
Quanto à falta de corpo de delito, é irrisório que a exijam, em se tratando de
apropriação indébita de dinheiro. A citação foi regular. Por todos os motivos
expostos, acorda o Supremo Tribunal Federal em indeferir o pedido.
No HC 27.389/SP, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 20 de
dezembro de 1939, decidiu-se que não se concederia habeas corpus a quem
fizesse simples alegações desacompanhadas de prova. Julgar-se-ia como pedido
originário recurso de habeas corpus quando este remédio processual fosse
negado por tribunal que fora autoridade coatora:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, em que são
pacientes angelo sarzano e Miguel sarzano: Ambos impetraram habeas corpus
ao Tribunal de Apelação de São Paulo, por estarem sofrendo constrangimento
ilegal; aquela corporação não conheceu do pedido, por ter sido ela própria coautora
do mal de que se queixaram os solicitantes. Recorreram os pacientes.
A Segunda Turma do Supremo Tribunal negou provimento ao recurso, por ser
correto o julgado paulista; porém deliberou remeter o processo ao Tribunal
Pleno, a fim de que este conhecesse do pedido como originário. Limitaram-se
os impetrantes a transcrever um acórdão do Tribunal do Estado, no qual se concede
habeas corpus a um acusado que, apesar de se achar preso, foi considerado
como em lugar incerto e não sabido; e concluíram ser esta a condição dos
pacientes. As informações prestadas à Justiça não corroboram essa afirmativa,
e os solicitantes não juntam prova alguma do alegado: apenas se sabe, pelos
autos, tratar-se de amigos do alheio, condenados, ora por furto, ora pelo crime
de roubo. Por isso, acorda o Supremo Tribunal Federal em indeferir a súplica.
Matéria similar foi debatida no RHC 27.432/DF, relatado por Carlos
Maximiliano e julgado em 24 de abril de 1940, no qual se entendeu que não se
Ministro Carlos Maximiliano
atenderia a pedido de habeas corpus que fosse simples reiteração de outro e que
estivesse desacompanhado de prova do alegado:
ACóRDãO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de recurso de habeas corpus,
em que é recorrente sebastião bonifacio e recorrido o Tribunal de Apelação
do Distrito Federal: O recorrente solicitou três vezes habeas corpus, e pelo
mesmo motivo, dirigindo-se originariamente duas vezes ao Supremo Tribunal,
onde foram Relatores o Exmo. Sr. Ministro Cunha Mello e o atual Relator deste
recurso concernente a solicitação dirigida ao Tribunal de Apelação, que se
julgou incompetente, por ter sido a autoridade coatora uma das suas Câmaras.
O pedido é simples reiteração dos anteriores e vem desacompanhado de quaisquer
provas. Acorda, por isso, o Supremo Tribunal Federal em negar provimento
ao recurso, porque bem decidiu o Tribunal local e, conhecendo originariamente
da espécie, indefere pelas duas razões já aduzidas.
Reiterava-se o entendimento de que o habeas corpus não era campo suscetível
para a apreciação de provas. No HC 26.242/DF, relatado pelo Ministro
Ataulpho de Paiva, julgou-se queixa-crime, por parte de irmão e tutor provisório
de menor, que fora estuprada pelo paciente. Este invocara ilegitimidade da
parte, porquanto a mãe da menor ainda era viva. Esta fora investida no pátrio
poder, com a morte do pai da ofendida; do pátrio poder a mãe fora destituída por
decisão de juiz municipal, o que se vislumbrava como incorreto, porquanto a
competência para a aludida destituição era exclusiva do juiz de direito. Colhe-se
do voto do Ministro Carlos Maximiliano:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: A exposição do ilustre Relator já
deixa a impressão de que se trata, quase exclusivamente, de matéria de fato, que
não se aprecia em habeas corpus. Na verdade, dizer-se que a ofendida era miserável,
para se justificar a intervenção do Ministério Público, já é questão de prova.
Na minha opinião — e, aqui, sinto divergir de S. Exa. —, quando a lei diz
que o Promotor só intervirá quando a ofendida for miserável, quer enunciar que
isso só se dará no caso dela não poder custear a demanda. E afirma S. Exa. que
a menor possuía propriedade no valor de um conto de reis e que dava renda; ora,
a renda de tal propriedade absolutamente não dá para custear semelhante feito.
De qualquer forma, isso será questão de prova, alegável no processo, mas
que nunca poderá servir para impedir o seu prosseguimento, por habeas corpus.
Nessas condições, nego a ordem.
Matéria de prova ainda outra vez também foi discutida no RHC 26.269/
DF, relatado pelo Ministro Laudo de Camargo e julgado em 21 de outubro
de 1936:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, sinto divergir,
porque, há pouco, tive um caso semelhante.
141
Memória Jurisprudencial
142
Se fosse possível aplicar ao requerente o artigo, seria o 7º, que manda
contar da intimação ou da data em que devia ser incorporado. Geralmente, é
chamado por edital. E deve fazer a prova de que é arrimo de mãe viúva perante
a junta de sorteio, o que não praticou, embora tivesse obrigação de apresentar a
prova. Este, a meu ver, já é um motivo bastante para negar o pedido de habeas
corpus, porque questões de prova não se coadunam com a natureza desse instituto
constitucional e jurídico.
O art. 8º diz respeito a um caso superveniente: se o sorteado, embora
arrimo de mãe viúva, é incluído nas fileiras. Nesta hipótese, deve dirigir-se ao
Ministro da Guerra, que julgará da procedência ou não da prova oferecida.
Assim sendo, nego a ordem.
No HC 26.840/DF, relatado pelo próprio Carlos Maximiliano e julgado
em 9 de agosto de 1938, a questão da prova voltou a ser debatida. Na ocasião
ementou-se que em falta de prova plena em contrário, deveriam prevalecer
como verdadeiras as informações da autoridade apontada como coatora:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, em geral, resumo
o relatório; no caso de hoje, porém, vou ler a inicial, porque a questão é
muito importante e, também, as alegações estão redigidas de maneira correta,
por advogado.
O recorrente junta três números do jornal em que se vê a notícia da prisão
dos pacientes e, em um deles, até entrevista do Sr. Chefe de Polícia, em que este
diz que os pacientes foram presos e demitidos dos respectivos cargos por espancamento
de presos políticos e extorsão feita a vários outros.
O Tribunal de Apelação pediu informações ao Sr. Chefe de Polícia, que
respondeu dizendo estarem eles detidos à sua própria disposição, por estarem
envolvidos em ocorrências que dizem de perto com a segurança das instituições;
assim, por motivo de ordem pública. À vista destas informações, o Tribunal de
Apelação não tomou conhecimento do pedido.
Houve, então, recurso para o Supremo Tribunal.
É o relatório.
VOTO
As provas apresentadas são três números de jornal em que se diz que
os pacientes estão presos por crime não políticos: espancamento e extorsão a
detentos; entretanto, a informação do Sr. Chefe de Polícia declara que se acham
eles detidos por motivo de ordem pública. Ora, jornais não são documentos suficientes
para destruir informações oficiais.
Nestas condições, de acordo com a tradição invariável deste Tribunal,
nego provimento ao recurso.
Como informação extra-autos, sem influir no meu voto, lembrarei que
neste meio tempo, impetrado habeas corpus ao Tribunal de Segurança, dadas
pelo Sr. Chefe de Polícia idênticas informações, aquela Corte denegou a ordem.
Ora, o Tribunal de Segurança é mais competente do que nós para tratar da questão.
4.5 QUESTõES GERAIS E PROCESSUAIS
Ministro Carlos Maximiliano
O Supremo Tribunal Federal recorrentemente apreciava questões de
dimensão menos política, e indicativas de que se tinha uma casa muito mais
pragmaticamente revisora do que instância única para o debate dos grandes
temas constitucionais. É o que se infere do estudo do HC 26.927/SP, relatado
por Carlos Maximiliano e julgado em 23 de novembro de 1938, quando se decidiu
que não poderia livrar da condenação o cúmplice, pelo simples fato de que
se anulara o processo contra os autores do crime. Anulação, na hipótese, não
tinha os mesmos efeitos da absolvição. O motivo de toda a discussão radicava
no furto de dois animais. Nos termos da decisão de Carlos Maximiliano:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus originário, em
que é paciente Clarindo Pinheiro: Oscar Siqueira de Souza e José Lucio Ferreira
furtaram dois animais; Clarindo Pinheiro ocultou-os e vendeu-os; os três eram
useiros e vezeiros em tais práticas. Processados, foi anulado o processo em
relação aos dois primeiros, sendo desclassificado o delito em relação ao último,
considerado cúmplice pelo Tribunal de Apelação, embora denunciado, pronunciado
e condenado como co-autor. Pede habeas corpus, sob o fundamento de
que onde não existem autores, não pode haver cúmplice. Seria verdadeira a tese,
se os autores tivessem obtido sentença absolutória; mas ocorreu coisa diversa;
o processo foi anulado, por não terem sido citados para o julgamento, apesar
de estarem presos. Serão julgados de novo; a pronúncia convence de que houve
autores, e foram precisamente os indivíduos os quais o paciente, nesta e em ocasiões
anteriores, prestou a mesma espécie de auxílio. O pedido é, pelo menos,
prematuro; pois se não deu a absolvição dos autores. Pelas razões expostas,
acorda o Supremo Tribunal Federal em indeferir o pedido.
Carlos Maximiliano prendia-se à literalidade também como mecanismo
de simplificação de suas decisões. Sintetizava o caso e da letra da lei alcançava
solução imediata. Colhe-se exemplo dessa afirmação no HC 26.930/DF, relatado
pelo Ministro José Linhares e julgado em 9 de novembro de 1938. Carlos
Maximiliano negou o pedido, em matéria de fixação de fiança, e com base em
indicação de pena concreta:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, nego o habeas corpus.
Parece-me que, com habilidade, se quer emprestar ao caso a questão da
pena concreta e não é isto que o Código tem em vista. Realmente, se se tomasse
por base a pena aplicada ao indivíduo, no caso de atenuantes, todos teriam o
habeas corpus para prestarem fiança.
O Código, porém, não diz tal coisa; declara que os crimes, para os quais
o máximo da pena é de quatro anos acima, são inafiançáveis. Assim, o indivíduo
que está incurso num artigo do Código, cuja pena máxima é quatro anos de prisão,
embora não seja condenado a esse período, não pode ser admitido a prestar
fiança: é réu de crime inafiançável.
143
Memória Jurisprudencial
Essa mesma literalidade, que substancializava segurança jurídica, encontra-se
também no HC 26.965/AM, julgado em 14 de dezembro de 1938 e
relatado por Octavio Kelly, quando se discutiu a quantidade de testemunhas
arroladas no libelo:
144
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, os textos lidos da
tribuna pelo advogado e confirmados pelo Sr. Ministro Relator dão a impressão
de que o que a lei amazonense determina é que o Promotor Público ou acusador
tem a faculdade de arrolar, no libelo, cinco testemunhas. Não diz, entretanto,
que as testemunhas do processo sejam somente cinco, nem diz, tampouco, que
somente cinco sejam citadas.
O que ficou claro, apenas, é que no libelo podem ser arroladas cinco testemunhas.
Na inicial, porém, podia apresentar número maior e como não há lei
alguma proibindo que fossem levadas a sumário as demais testemunhas, é de
crer que o Tribunal tivesse empenho em exigir que fossem todas citadas.
Por conseguinte, entendo que não há constrangimento ilegal e, de acordo
com o Sr. Ministro Relator, nego a ordem.
Em matéria de habeas corpus discutiu-se, inclusive, autorização para
atuação de advogado em juízo. Exemplifica-se com o HC 26.937/DF, relatado
por Carlos Maximiliano e julgado em 23 de novembro de 1938. Ementou-se
que não poderia um tribunal deixar de conhecer de apelação interposta por
solicitador que perante a Ordem dos Advogados provasse o exercício contínuo
da advocacia criminal durante mais de dez anos anteriores à promulgação do
regulamento da mesma Ordem. Nos termos do julgado de Carlos Maximiliano:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus originário,
em que é paciente Eduardo Mautret Muzer: Este fora condenado como incurso
em crime afiançável; solto mediante fiança, apelou; o Tribunal de Apelação do
Distrito Federal não tomou conhecimento do recurso, por haver sido interposto
por pessoa não habilitada para advogar; por isto, o réu pede habeas corpus,
visto estar na iminência de ser preso em conseqüência do acórdão, que ele acha
destituído de apoio em Direito. O alegado está provado por certidões e confirmado
nas informações prestadas pelo Exmo. Senhor Presidente do Tribunal
de Apelação. O impetrante juntou documentos no sentido de demonstrar que
o recurso foi interposto pelo solicitador Paulo Lerroux, o qual está inscrito no
quadro dos solicitadores para o exercício da advocacia criminal, tendo-lhe sido
concedido o benefício constante do art. 8º da Lei 510, de 22 de setembro de 1937
(doc. às fls. 3, 4 e 5). À fl. 6, encontra-se um jornal onde é exarada a íntegra do
ofício dirigido à Assistência Judiciária pelo Presidente da Seção da Ordem dos
Advogados no Distrito Federal, Dr. Philadelpho de Azevedo, que assim conclui:
Aproveito, ainda, a oportunidade para declarar a V. Exa. que,
tendo a Lei 510, de 22 de setembro p.p. esclarecido o disposto no art. 2º
do regulamento da Ordem aprovado pelo Decreto 22.478, de 20 de
fevereiro de 1933, de modo a impedir, mesmo no foro criminal, a advocacia
às pessoas não habilitadas legalmente, discriminando, ainda,
nitidamente as funções de advogados e solicitadores, contudo permitiu
Ministro Carlos Maximiliano
excepcionalmente a estes o exercício da plena advocacia no crime e na
primeira instância do cível desde que preencham certas condições de
longo exercício anterior à execução do regulamento, o que a Ordem vai
apurar em cada caso, lançando a competente averbação na respectiva
carteira profissional.
Não se encontra nos autos a carteira profissional do solicitador; mas
existe à fl. 3 certidão passada pelo 2º Secretário da Ordem, em que se afirma
ter Paulo Lerroux obtido a concessão a que se refere o ofício acima transcrito
em parte.
O art. 8º da Lei 510, de 22 de setembro de 1937, estatuiu: “No foro criminal,
sempre o próprio acusado se poderá defender pessoalmente; sendo também
facultado o exercício da advocacia aos solicitadores que, por mais de dez anos
contínuos, contados até o início da vigência deste regulamento, hajam exercido,
permanentemente, essa advocacia, desde que o provem perante o conselho e
seja averbado, por determinação do mesmo, na respectiva inscrição.”
Ora, a certidão, já referida, de fl. 3, evidencia estar satisfeita a condição
exarada no final do art. 8º, isto é, achar-se averbada no processo de inscrição
no quadro dos solicitadores a concessão mencionada no mesmo artigo e feita
a Paulo Lerroux. Como o fato de haver este profissional assinado o termo de
Apelação foi o fundamento único do veredictum contrário ao réu, acordam
os Ministros do Supremo Tribunal Federal em conceder a ordem para que o
paciente não seja preso enquanto não for julgada a apelação do paciente.
A competência do Supremo Tribunal Federal alcançava miríade de
assuntos, que revelavam sociedade multifacetada e que vivia a transição de
um modelo rural e artesanal para um sistema típico de sociedade industrializada,
como decorrência do regime econômico de substituição de importações,
que então se fixava entre nós. Ilustro com o HC 26.947/DF, julgado em 16 de
novembro de 1938 e relatado por Carlos Maximiliano, em que se discutiu quiromancia,
na forma que segue:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, em que
é paciente Joanna Grego: Esta impetrante foi autuada em flagrante quando,
auxiliada por uma filha, praticava a cartomancia, para inculcar cura a uma consulente;
pelo que foi condenada a um mês de prisão celular, grau mínimo do
art. 157 do Código Penal. Pediu habeas corpus, alegando não constituir crime
o fato narrado na denúncia, visto ser pacífica a jurisprudência no sentido de
não considerar delito a quiromancia, e ser nulo o processo, por figurar como
testemunha numerária pessoa que foi mera auxiliar da polícia para a descoberta
do fato incriminado. O que a denúncia de fl. 4 expõe é o mesmo que o art. 157
do Código considera crime; logo, improcede a primeira argüição. Quanto à
segunda, também não merece acolhida: certa Jurema Amaral se compraz em
apresentar-se como necessitada de auxílio de feiticeiras e quiromantes e, avisando
a Polícia, facilita os flagrantes; isto, porém, não a impede de depor como
testemunha, que foi, da prática vedada por lei. Pelas razões expostas, acorda o
Supremo Tribunal Federal em indeferir o pedido.
145
Memória Jurisprudencial
Ilustra-se também com o decidido no HC 26.822/DF, relatado por Carlos
Maximiliano e julgado em 17 de agosto de 1938, quando se fixou entendimento
de que não seria necessária prova de menoridade da ofendida para a caracterização
do estupro, desde que se comprovasse que a vítima sofrera violência real:
146
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Jayme Luiz da Silva, recolhido à
Casa de Detenção, em cumprimento da pena de um ano de prisão celular, como
incurso nos arts. 268 e 272 da Consolidação das Leis Penais, pede habeas corpus
em virtude de considerar radicalmente nulo o processo, em primeiro lugar,
porque a sentença, ao mesmo tempo se refere a defloramento e a estupro, coisas
completamente distintas; em segundo lugar, quanto à divergência da idade da
ofendida, nos autos não há prova de que seja menor de 16 anos, a ofendida.
Alegou também estado de miserabilidade, no entanto, esqueceu-se de
provar todas estas alegações.
Havendo declarado ter sido condenado pelo juízo da 8ª vara criminal,
solicitei informações a esse magistrado, que m’as deu nos termos seguintes:
(...)
É o relatório.
VOTO
Senhor Presidente, parece-me que a prova de idade seria até desnecessária.
Na verdade, há um artigo do Código Penal que dispõe que, em se tratando
de sedução de menor de 16 anos, se conclui que houve violência. Na hipótese dos
autos, porém, houve violência real. O paciente agarrou a menina, atirou-a sobre
os trilhos e violentou-a. Ora, o Código diz que a violência é crime, até mesmo
cometida contra pessoa maior e não virgem. Daí afirmar eu que a prova de idade
seria até desnecessária.
Quanto à outra legação, no sentido de que houve duas classificações para
o crime, uma opondo-se à outra, também não procede. Como tivesse havido
violência real e a ofendida fosse menor de 16 anos, o juiz classificou o crime
também como estupro. Isso, porém, não significa que as duas classificações se
repilam. Pelo contrário, uma completa a outra.
Por essas razões, indefiro o pedido.
Matéria processual, em sentido estrito, também provocava recorrentemente
o Supremo Tribunal Federal. Por exemplo, no HC 26.960/DF, relatado
pelo Ministro Washington de Oliveira e julgado em 21 de dezembro de 1938,
discutiu-se conflito de jurisdição, ainda que em sede de habeas corpus. Colhe-se
do voto de Carlos Maximiliano, com intervenção do Ministro Costa Manso:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Quando este Tribunal julgou o conflito,
este não mais existia, visto haver já sentença definitiva em uma das justiças
e, se esta era absolutória, seria muito esquisito que anulássemos uma sentença,
num conflito de jurisdição. Ela só seria anulável, se o Juiz tivesse desobedecido
uma ordem expressa do Supremo Tribunal, revelando, assim, um pouco
Ministro Carlos Maximiliano
de má-fé, ou se nós mandássemos parar o processo e ele mandasse prosseguir,
absolvendo o réu.
Não havendo ordem para parar o feito, esta fica ao arbítrio do Relator — e
é necessário que assim seja, porque, muitas vezes, os conflitos são propostos até
com fins protelatórios.
O Sr. Ministro Costa Manso: Até para provocar a prescrição da ação.
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Tanto assim que as partes, muitas
vezes, no final da petição, pedem para parar o processo e o Relator tem a faculdade
de verificar a procedência ou não do pedido e mandar que o processo prossiga.
Desde que a sentença passou em julgado, segundo temos sempre decidido
aqui, não há mais conflito algum, pois, para isso, seria necessário que estivesse
prosseguindo o feito.
Por essas razões, concedo a ordem.
É o caso também de discussão relativa a nulidade por conta de réu citado
por edital, porque o oficial de justiça certificara que este se encontrara em local
incerto e não sabido. É o conteúdo do decidido no HC 27.076/DF, julgado em 3
de maio de 1939 e relatado por Carlos Maximiliano:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, em que é
paciente João Fernandes de Carvalho: Este foi condenado por haver sido preso
quando levava utensílios próprios para a perpetração de furtos e roubos; pede
habeas corpus, alegando que o oficial de justiça, incumbido de o citar para o
processo, certificou achar-se o acusado em lugar incerto e não sabido, mas não
fez diligência para o encontrar; por isso é nulo o processo e sem vigor a sentença
condenatória. Requisitadas informações, vieram os autos originais. À fl. 5 se
encontra impressionante relação de instrumentos encontrados em poder do preso
e por ele reconhecidos (fl. 7v.). Ao ser interrogado, informou residir à Rua do
Núncio, n. 19 (fl. 7). Com esta indicação foi lavrado o mandado de fl. 27. O oficial
encontrou o prédio desabitado e certificou achar-se o acusado em lugar incerto
e não sabido. Logo, o culpado único de não ter sido feita pessoalmente a citação
inicial foi o paciente, ao qual o juiz deu advogado (fl. 40), que produziu a defesa.
O crime é afiançável; porquanto o réu foi condenado, em 1ª e 2ª instância, no grau
máximo, a três anos de prisão celular (art. 361 da Consolidação das Leis Penais).
Não ocorreu nulidade substancial nenhuma; por isto, acorda o Supremo
Tribunal Federal em indeferir o pedido.
Questão semelhante, relativa a nulidade de citação, foi debatida no
HC 26.813/DF, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 20 de julho de 1938:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, João Batista do
Nascimento pediu habeas corpus ao Tribunal de Apelação porque, como afirma,
tinha sido condenado, ilegalmente, pelo crime de arrombamento e roubo; alega,
justificando o que diz, que o oficial de justiça que o fora intimar, achando que
morava muito longe, lá não apareceu, limitando-se a declarar, falsamente, que
não o encontrara; foi, então, intimado por edital. O Tribunal de Apelação, na 1ª
Câmara Criminal, não tomou conhecimento do pedido, porque a sentença con-
147
Memória Jurisprudencial
148
denatória fora confirmada pela 2ª Câmara Criminal; à vista disso, ele recorreu
para o Supremo Tribunal.
A Segunda Turma, onde fui Relator, recebendo os autos, resolveu
devolvê-los ao Tribunal Pleno, para que conhecesse, originariamente, visto que,
em grau de recurso, não se pode conhecer do caso, pois o Tribunal de Apelação
se limitara a declarar sua incompetência.
É o relatório.
VOTO
O paciente junta, como prova, carta de vizinho onde este afirma aquilo
que o peticionário alega, sem sequer ter a missiva firma reconhecida, porém; o
fato de morar em determinado lugar não prova que, na ocasião de ser intimado,
lá estivesse, pois até é comum que quem comete crime procure afastar-se do
local onde costuma citar.
Não há, também, prova alguma de que o oficial de justiça não tenha ido
a sua casa.
Nestas condições, tomo conhecimento, originariamente, do pedido e o
indefiro.
No HC 27.473/PB, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 17 de
abril de 1940, decidiu-se que a lei federal sobre o júri aplicar-se-ia a todos os
Estados do Brasil. E ainda que, matéria de fato, dependente de exame da prova,
não fundamentaria habeas corpus:
ACóRDãO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus originário,
em que são pacientes elias bezerra, José Mangueira, sabino pereira ramalho,
Martiniano corrêa, pedro corrêa e raymundo de souza Leite. Foram estes condenados
pelo Juiz de Direito da Comarca de Itaporanga, no Estado da Paraíba,
à pena de três anos, nove meses e quinze dias de prisão pelo crime previsto pelo
art. 304, parágrafo único, da Consolidação das Leis Penais (ferimentos graves).
Os três primeiros já se acham presos; todos impetraram habeas corpus, sob
dois fundamentos: incompetência do Juiz de Direito para julgar a causa; errada
classificação do delito. Segundo a Lei de Organização Judiciária do Estado da
Paraíba, de 28 de janeiro de 1937, os crimes de ferimentos graves eram da competência
do júri; porém a Justiça local considerou esta norma implicitamente
revogada pelo Decreto-Lei de 5 de janeiro de 1938, que restabeleceu e regulou
o júri. Entendem os pacientes que a lei federal só se aplica ao Distrito Federal e
ao Território do Acre; seria inconstitucional estendê-la aos Estados; deveriam
ser eles levados à barra do tribunal popular. Por outro lado, argumentam com a
prova pericial, para concluir tratar-se de ferimentos leves. Jurisprudência uniforme
e pacífica deste alto pretório já fixou a aplicabilidade da lei do júri aos
Estados, tendo sido anulados vários julgamentos de Cortes locais em desacordo
com o Decreto-Lei federal 167; improcede, pois, o primeiro fundamento do
pedido; e do segundo não se deve conhecer, porque matéria de fato, dependente
de exame da prova, não serve de base para se conceder habeas corpus. Por isto,
acorda o Supremo Tribunal Federal em indeferir o pedido.
Ministro Carlos Maximiliano
A competência da Justiça Militar foi questão apreciada no HC 27.056/
MG, relatado pelo próprio Carlos Maximiliano e julgado em 5 de abril de 1939.
Ementou-se que a Justiça Militar detinha competência para processar e julgar
crimes cometidos por militares e nos quais se evidenciasse desrespeito à hierarquia
e à disciplina. Nos termos do acórdão:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, em que é
paciente Aldrovando da Silva Braga: questões íntimas, de família, levaram o
soldado Aldrovando da Silva Braga a agredir e ferir o cabo Humberto Alves da
Rocha, seu superior hierárquico, visto pertencerem ambos ao Exército Nacional;
por isso, foi condenado pela Justiça Militar a dois anos de prisão com trabalho;
antes de condenado, pediu habeas corpus ao Supremo Tribunal Militar, por
excesso de demora no processo; desatendido, recorreu; mas a Segunda Turma
do Supremo Tribunal Federal julgou prejudicado o pedido, por ter sido solto o
paciente. Impetra ele, agora, habeas corpus originário, sob o fundamento de
incompetência da Justiça que o condenou, visto tratar-se de navalhadas dadas
na residência da vítima, portanto fora de estabelecimento militar e por motivo
alheio à profissão dos contendores. Improcede o pedido; desde que o ferido era
superior hierárquico do réu, houve desrespeito à hierarquia e à disciplina militar;
portanto, compete ao foro militar o exame e julgamento da espécie. Por isso,
acorda o Supremo Tribunal em indeferir o pedido.
A natureza e a competência do Tribunal do Júri foram assuntos que Carlos
Maximiliano abordou no HC 27.084/SP, relatado pelo Ministro Costa Manso e
julgado em 19 de abril de 1939. Nos termos do voto de Carlos Maximiliano, que
era um crítico do Tribunal do Júri:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o brilhante
voto do ilustre colega Ministro Costa Manso leva-me, exatamente, à conclusão
oposta, com a devida vênia.
Desde que a Constituição atual, que estabelece a forma de se organizar o
Poder Judiciário, não fez referência ao júri, a dúvida que poderia surgir era esta:
se podia haver um outro tribunal que não aqueles previstos pela Constituição,
isto é, se poderia haver um tribunal formado por cidadãos ignorantes de direito,
sem toga, sem tirocínio técnico, sem cultura jurídica alguma, ponto este que já
foi levantado e decidido, uma vez que o Tribunal aceitou a lei do júri como não
incompatível com a Constituição.
Tendo a Carta Constitucional aberto mão do júri — esta forma especialíssima
inglesa de julgamento dos criminosos e desastrada para os povos latinos
—, o legislador ordinário teve a tolerância de atender a uma certa corrente
de opinião e restabelecê-lo com restrições.
Desde que se não considere inconstitucional o júri em si, por ser uma forma
de organização comum não prevista na Constituição, ele é uma criação exclusiva
do legislador ordinário, não se regulando por princípio constitucional algum.
Inconstitucional é aquilo que está em desacordo com o que preceitua a
Constituição. Ora, a Constituição nada preceitua sobre o júri. Como pode uma
lei que regula esta instituição estar em desacordo com uma coisa que não existe?
Desde que se restabeleceu o júri, julgo, até, que foi uma idéia feliz restringir
a sua competência. As decisões do júri são clamorosas. É mais perigoso
149
Memória Jurisprudencial
150
matar uma vaca que matar uma mulher, porque o indivíduo que mata bovino
alheio será certamente condenado, ao passo que o que mata uma mulher é sempre
absolvido pelo júri. Via de regra, os nossos jurados reconhecem a privação
dos sentidos e inteligência. Verifica-se, entretanto, o contrário na Inglaterra. Ali,
o júri é muito mais rigoroso que o tribunal comum. É raríssimo o assassino que
não é enforcado.
Conheci um cidadão que, viajando a bordo de um navio inglês, teve graves
perturbações devido ao enjôo, ficou semilouco e matou a mulher. Porque o
crime se consumara em navio inglês, embora o passageiro fosse português e se
destinasse a Portugal, movimentou-se a diplomacia e ele só se salvou porque
Portugal entrou na guerra naquela ocasião. O juiz presidente recomendou o caso
à clemência do soberano, e este perdoou o réu, com a condição, porém, de este
sair imediatamente da Inglaterra, aonde ele nunca pretendera ir.
O júri, na Inglaterra, foi instituído para evitar perseguições políticas e,
neste terreno, é inexorável: os criminosos políticos são sempre absolvidos, a
menos que o crime seja claríssimo; mas, quando se trata de crime comum, é
certíssima a condenação.
No Brasil, uma vez que se restabeleceu a instituição do júri, é natural, e
foi justo, que se desse ao juiz togado a possibilidade de reformar as sentenças
dos juízes de fato.
Nego a ordem.
No HC 27.107/PA, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 10 de
maio de 1939, discutiu-se questão de pormenor processual, relativa a anulação
do processo de habeas corpus, pelo fato de que o promotor retardara por um dia
o termo de apelação, ainda que por motivo de doença comprovada. Nos termos
da decisão de Carlos Maximiliano:
ACóRDãO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus originário,
em que é paciente conrado penha Diniz: Este foi processado por crime de
defloramento; absolvido, houve apelação, interposta dentro do prazo legal, contado
da intimação da sentença às partes, mas o Dr. Promotor Público assinou o
Termo de Apelação 24 horas depois de transcorrido o prazo para apelar; sob este
fundamento, o réu pediu ao tribunal superior que não conhecesse do recurso;
porém o acórdão de fl. 9, que reformou a sentença absolutória e condenou o acusado,
assim justificou o desprezo pelas alegações da defesa:
Não ser absoluta a doutrina invocada com apoio na Jurisprudência
dos tribunais, qual a de, constituindo o termo parte integrante do recurso,
só lhe reconhecer validade quando foi o mesmo assinado pela parte que
o interpôs, dentro do prazo fatal e improrrogável para a sua interposição.
É assim que este Tribunal tem aberto exceção à referida regra, em casos
como o da espécie, quando o recurso é de parte que não pode transigir.
Tendo o Promotor apelado em tempo útil, só pelo fato de ter sido
o respectivo termo assinado, aliás, por motivo de moléstia comprovada,
no dia seguinte ao da expiração do prazo, não se torna imprestável a
apelação, de vez que, em razão do seu ofício, o representante da Justiça
Pública não podia desistir da mesma.
Ministro Carlos Maximiliano
A alegação da defesa está devidamente documentada. Em regra, o termo
é complemento do recurso; portanto deve, como este, ser completado dentro do
prazo para recorrer, salvo impedimento justo, como, por exemplo, a demora do
juiz em despachar, ou do escrivão em cumprir o despacho; também a moléstia
intercorrente deve ser atendida, sobretudo quando a demora tenha sido muito
curta, como no caso em apreço, e, como afirmou o acórdão, o impedimento foi
documentado; demais está o julgado acorde com a jurisprudência do pretório
local, que o Supremo costuma e deve acatar. Por todos estes motivos, acorda o
Supremo Tribunal Federal em indeferir o pedido de habeas corpus.
Matéria processual também foi objeto do julgamento no HC 27.190/
RN, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 23 de agosto de 1939.
Na ocasião ementou-se que recurso interposto antes de promulgada a lei que o
suprimira deveria ser processado e julgado. De acordo com a decisão de Carlos
Maximiliano:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, em que são
pacientes Jerônimo Alves Simplício, Pedro Alves Simplício e Vicente Manoel da
Silva: Havendo sérias suspeitas de haver Saturnino Nunes da Silva, residente em
Macaíba, Estado do Rio Grande do Norte, participado do assassínio de Manoel
Simplício de Araújo, perpetrado pelo seu cunhado Clovis Batista da Silva, foi,
em provável revindita, morto pelos parentes da sua vítima. Processados três destes,
foram absolvidos pelo júri. Não houve apelação voluntária; mas o Presidente
do tribunal popular, cumprindo disposição de lei estadual, recorreu ex officio.
Depois de interposta a apelação, entrou em vigor a nova lei do júri, que extinguiu
este remédio contra as absolvições imerecidas. Entendem os pacientes
que, por ser a lei nova mais favorável aos réus e tratar-se de matéria criminal,
retroage o texto, morre o recurso, embora interposto quando vigorava lei que o
permitia. Ocorreu o julgamento em 24 de agosto de 1937; o tribunal popular foi
reformado pelo Decreto-Lei 167, de 5 de janeiro de 1938; e a apelação foi provida
em 27 de junho de 1938, isto é, interposta quatro meses antes de entrar em
vigor a nova norma, teve decisão cinco meses após a promulgação do mencionado
decreto-lei federal.
Não parece defensável a tese da defesa: a lei processual não retroage,
como se afirma.
Doutrina Vicenzo Manzini — Trattato di procedura penale, v. I, n. 32:
Todos os procedimentos e atos processuais realizados sob o império
da lei revogada ou suspensa mantêm plena eficiência sob o domínio
da lei nova, que dite normas processuais diversas.
Quando, portanto, se diz que as leis judiciárias são retroativas,
enuncia-se um erro; porque a sua pretensa retroatividade se refere aos
crimes, isto é, a coisa sobre a qual elas não dispõem, ao passo que são
absolutamente irretroativas a respeito dos procedimentos e atos processuais,
que constituem o verdadeiro objeto de suas disposições.
(...)
Precisamente no capítulo que tem por epígrafe — Della retroattività in
materia penale, escreveu — Gabba — Teoria della retroattività delle leggi,
3. ed., v. II, p. 479:
151
Memória Jurisprudencial
152
Se a lei sob cujo império a sentença emanou, concedia qualquer
remédio contra a mesma, não pode uma lei nova tolher este direito a
quem o tem, mas não fez ainda uso dele. A lei vigente no dia em que
foi proferida a sentença deverá seguir-se para decidir se e qual remédio
possa dar-se contra a sentença mesma.
Ora, se até mesmo na hipótese de ser o recurso eliminado quando não
havia ainda sido interposto, deve ele ter seguimento, desde que existia em lei
quando foi proferida a decisão, com evidente cópia maior de argumentos prevalecerá,
se fora iniciado antes de promulgada a nova norma que o suprimiu.
Ensina roubier — Les conflits des lois dans le temps, v. II, p. 728:
As vias de recurso não podem ser definidas senão pela lei em vigor
no dia do julgamento: nenhuma via de recurso nova pode resultar de lei
posterior, e, inversamente, nenhuma via de recurso existente contra um
julgamento poderia ser suprimida sem retroatividade por uma lei posterior.
É esta a boa doutrina: a lei nova não cria nem suprime recursos contra
sentenças emanadas antes da sua promulgação.
Ainda outro argumento, de menor monta, aliás, aparece na inicial: o
Tribunal superior anulou o processo, por não terem sido observadas formalidades
que a lei nova não reproduz. Pouco importa: o processo correria de acordo
com a norma reguladora do mesmo, na época em que tais formalidades deveriam
ser cumpridas.
Improcedem, pois, os argumentos todos dos pacientes; pelo que o
Supremo Tribunal Federal acorda em conhecer originariamente do pedido, por
ser apontada como autoridade coatora o Tribunal de Apelação do Rio Grande do
Norte, e o indeferir, por não existir a alegada coação contrária à lei.
Contagem de prazos prescricionais em matéria penal é tema que mereceu
percuciente análise de Carlos Maximiliano no HC 27.243/RS, julgado em 30 de
agosto de 1939, e pelo próprio Carlos Maximiliano relatado, quando se decidiu
que entre a denúncia e a sentença o prazo para a prescrição é contado de acordo
com a capitulação do crime feita na denúncia:
ACóRDãO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, em que é
paciente Abílio Albrecht Sehn: Condenado pelo crime de apropriação indébita,
o paciente impetrou habeas corpus, que lhe foi concedido; baseara o pedido em
ser afiançável aquele delito; agora, renova o pedido, mas com outro fundamento;
alega estar prescrito o crime, contados os prazos de acordo com a pena concreta,
como lhe parece jurídico. Como em última instância foi reduzida a pena a sete
meses de prisão, sobre esta base o solicitante calcula o lapso prescricional da ação
ab initio. O pedido está instruído apenas com dois acórdãos, referente o primeiro
à condenação do paciente, o segundo a embargos de declaração; não se encontra
nos autos certidão da denúncia ou queixa, concernente ao delito que a inicial
diz ocorrido entre 1º de agosto de 1934 e 30 de junho de 1936. O paciente alega
ter-se consumado a prescrição entre a data do crime e a da sentença de primeira
instância. Nem o teor da sentença condenatória se encontra nos autos. Entretanto,
pelos acórdãos se apura a data do delito e a da primeira condenação; trata-se de
desfalques sucessivos que ocorreram entre agosto de 1934 e 30 de abril de 1937
(acórdão à fl. 2v.); e a sentença condenatória foi proferida em 11 de fevereiro
Ministro Carlos Maximiliano
de 1939 (acórdão a fls. 4v.). O paciente foi processado como incurso nas penas
do art. 331, n. 2, da consolidação das Leis penais, por haver-se apropriado de
144:726$850, pertencentes a uma sociedade cooperativa, de que era adjunto da
Diretoria e Guarda Livros; a pena máxima a que estava sujeito era de três anos de
prisão com aumento da sexta parte, três anos e seis meses, portanto; prescreveria,
pois, em oito anos (art. 85 da Consolidação citada). Ora, a sentença foi de 11
de fevereiro de 1939, e o crime continuado foi perpetrado entre agosto de 1934 e
abril de 1937; não decorreram os oito anos entre a prática delituosa e a sentença.
A primeira condenação foi por dois anos e quinze dias de prisão, decisão esta proferida
em 11 de fevereiro de 1939; este julgado fixa a pena básica em referência à
prescrição; o prazo desta seria de seis anos; ora, o acórdão que diminuiu a pena
tem a data de 25 de maio de 1939, isto é, dois meses após a primeira sentença.
Portanto, não é verdade que quando foi julgado o paciente, em qualquer das instâncias,
já estivesse prescrita a ação penal, como afirma o impetrante. Afinal, o
acórdão reduziu a condenação a sete meses de prisão celular, o que daria a prescrição
de dois anos; o acórdão é deste ano. Não houve prescrição em hipótese
nenhuma. Por isso, acorda o Supremo Tribunal Federal em indeferir o pedido.
No HC 27.793/DF, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 30 de
abril de 1941, definiu-se que só a nulidade indiscutível e insanável — e não simples
irregularidade — suscitaria a possibilidade de habeas corpus:
ACóRDãO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, em que é
paciente Antonio Joaquim Gomes: Este foi condenado a 28 meses de prisão
celular pelo crime de roubo; pede habeas corpus, alegando estar o processo
radicalmente nulo, porque o exame pericial procedido no local do delito por
dois peritos tem a assinatura de um só. Isso seria, quando muito, uma irregularidade;
jamais nulidade capaz de inutilizar duas decisões uniformemente condenatórias
de um indivíduo destituído de probidade. Contra sentença final só se
admite habeas corpus em caso de nulidade indiscutível e insanável, sobretudo
hoje, quando se consideram sanadas as nulidades não argüidas antes da primeira
apreciação final das provas. Por isso, acorda o Supremo Tribunal Federal em
indeferir o pedido originário de habeas corpus.
Competência para apreciar habeas corpus fomentou ementa que dava
conta que, em sendo o habeas corpus impetrado ao Tribunal de Apelação e
por este negado, não poderia a parte dirigir-se originariamente ao Supremo
Tribunal. A este sodalício somente chegaria em grau de recurso. É o que se
infere do HC 27.825/RN, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 23 de
maio de 1941:
ACóRDãO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, em que
são pacientes Romualdo do Nascimento, vulgo Tutu, e Djalma Maurício de
Barros: Os pacientes impetraram habeas corpus ao Tribunal de Apelação do
Rio Grande do Norte; porque estavam presos em virtude de sentença do juiz de
153
Memória Jurisprudencial
154
Direito, a qual foi anulada pelo Supremo Tribunal. Desatendidos, dirigiram-se,
originariamente, ao Pretório Excelso, alegando que o Tribunal de Apelação se
considerara incompetente para conhecer da espécie. O que não ocorria; porquanto
o magistrado julgador era subordinado àquela coletividade.
O pedido não se baseia no mesmo fundamento do anterior, que teve,
aliás, o mesmo Relator do atual; por isto, não foi indeferido liminarmente.
Releva, entretanto, notar que os pacientes baralham os fatos, para tirar proveito.
No HC 27.769, cujos autos foram apensados aos da nova súplica, o Supremo
Tribunal concedeu a ordem, para anular o processo criminal, sem prejuízo do
despacho de prisão preventiva; porque a nulidade a este não alcançava e o
crime era inafiançável (homicídio voluntário). Os réus dirigiram-se ao Tribunal
de Apelação, alegando estarem presos em virtude de sentença, anulada, do juiz
de Direito; entendeu o pretório local persistir a privação de liberdade em conseqüência
de acórdão do Supremo Tribunal, que a Corte estadual era incompetente
para examinar e reformar. Os pacientes não articularam uma só palavra contra
o acórdão que manteve a prisão. Demais, desde que se dirigiram ao Tribunal de
Apelação, deveriam vir ao Pretório Excelso por meio de recurso; não originariamente.
Por todos esses motivos, acorda o Supremo Tribunal Federal em não
tomar conhecimento do pedido originário.
No HC 27.398/DF, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 24 de
janeiro de 1940, decidiu-se que se deveria recorrer ao Supremo Tribunal, e não
se dirigir diretamente a ele, quem tivesse denegado pedido de habeas corpus
por outro pretório superior:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus originário, em
que é paciente Manoel bello de souza: Este foi condenado a seis anos de prisão
e, por ter sido indeferido o seu requerimento de livramento condicional pelo
Dr. Juiz de Direito da 6ª Vara Criminal, impetrou habeas corpus. À primeira
vista, já parecia caso de não conhecer do pedido originário, visto existir um
pretório local superior ao apresentado como coator; como, porém, o suplicante
alegasse miserabilidade, o Relator solicitou informações àquele magistrado,
pelas quais ficou evidente haver o paciente requerido livramento condicional três
vezes; nas duas primeiras, o parecer do Conselho Penitenciário lhe foi contrário;
na última, favorável; o Juiz não concedeu a medida pleiteada, porque, na opinião
do próprio Conselho, tivera má conduta na prisão o liberando, só ultimamente,
após as duas denegações, passara a proceder melhor; o paciente impetrou habeas
corpus ao Tribunal de Apelação, porém este confirmou o despacho do Juiz de
Direito. Em caso de Recurso, não de súplica originária, conforme tem uniformemente
decidido o Supremo Tribunal; por esse motivo, acordam os Ministros do
Supremo Tribunal Federal em não conhecer do pedido.
Percebe-se coerência e visão muito firme de Carlos Maximiliano, no que
se refere aos propósitos do processo criminal em geral, e do habeas corpus
em particular. Trata-se do decidido no RHC 27.412/SP, relatado pelo Ministro
Costa Barreto e julgado em 24 de janeiro de 1940:
Ministro Carlos Maximiliano
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, entendo que todo
processo criminal consiste num constrangimento, embora nem sempre seja este
ilegal. A pessoa envolvida em processo dessa natureza, mesmo ainda que ele
não conclua, obrigatoriamente, pela prisão, não pode ausentar-se do distrito da
culpa, é obrigada a comparecer às audiências a que é chamada, ficando, de certo
modo, pois, tolhida no direito de ir e vir. Por conseguinte, não acho procedente a
razão dada pelo Tribunal de Apelação de que não é caso de habeas corpus, uma
vez que não houve prisão do paciente.
Resta saber se o constrangimento é ilegal ou não. Aí, devo regular-me,
não pela conclusão da prova, que não examino em habeas corpus, mas pelos
termos da denúncia. Ora, por aí, o fato impugnado não constitui crime.
Por isso, concedo a ordem, apesar de estar o paciente pronunciado.
No HC 26.133/SP, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 15 de
maio de 1936, em tema de crime de imprensa, entendeu-se que não se podia
reformar, por meio de novo pedido de habeas corpus, decisão na qual não se
tomava conhecimento do pedido, por não se tratar de ato ou de decisão de tribunal
superior:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, Paulino Botelho
Vieira, advogado, vem fazer pedido à Corte Suprema, de maneira um pouco
original. Alega o seguinte: que há tempos se dirigiu à Corte de Apelação de
São Paulo, impetrando habeas corpus, por estar sendo processado e julgado por
crime de imprensa. Recordo-me perfeitamente desse julgamento; na hipótese
a lei mandava aplicar ao crime ou a pena de prisão ou a de multa, alternativamente.
A Primeira Câmara da Corte de Apelação do Estado declarou-se incompetente
para decidir do assunto, por se tratar de matéria constitucional; pelo que
o impetrante se dirigiu a esta Corte. Aqui, em habeas corpus de que foi Relator
o Sr. Ministro Bento de Faria, foi decidido que não se tomaria conhecimento da
espécie; porque se tratava de recurso, mas não da mais alta Corte estadual, tendo
havido, entretanto, alguns votos divergentes, que aceitavam preliminarmente o
pedido e até julgavam de meritis.
Agora, alega o impetrante que outro advogado se dirigiu à Corte de
Apelação de São Paulo, a qual, em corte plena, conhecendo do caso, declarou
que a lei não é inconstitucional, porquanto se trata de alternativa de penas e não
da conversão da multa em prisão. Se esta alegação fosse provada, demonstraria,
mais uma vez, o acerto da decisão da Corte Suprema, não tomando conhecimento
da espécie por não se tratar de recurso da mais alta Corte estadual.
Ocorre, entretanto, que o impetrante junta apenas retalhos de jornais para
provar a sua alegação e pede não um novo habeas corpus e, sim, que a Corte
Suprema julgue de novo o mesmo caso que julgou há tempos apenas quanto a
uma preliminar. Alega ele, para isso, que, já tendo a Corte plena estadual resolvido
que a lei é constitucional, torna-se inútil baixarem os autos ao tribunal
local, porquanto ali obedecerão, naturalmente, essa deliberação da Corte plena.
155
Memória Jurisprudencial
156
Pede, por conseguinte, conforme já acentuei, não um novo habeas corpus,
mas sim que a Corte Suprema reveja o seu julgamento e o reforme para o
efeito de conhecer do mérito da questão e decidi-la imediatamente.
É o relatório.
VOTO
Senhor Presidente, no primeiro momento e como o impetrante pede
apenas, que a Corte reforme a decisão anterior, despachei no sentido de serem
apensos os autos anteriores.
Como, porém, o impetrante alega urgência e a possibilidade de sofrer violência
e como, de outro lado existem preliminares que podem ser levadas e decididas
imediatamente, achei melhor anular o despacho e mandar os autos à Mesa.
As preliminares que tenho a levantar são duas e as seguintes:
Em primeiro lugar, o paciente não recorre da decisão da Corte plena estadual
e, sim, pede que esta Corte reveja o seu próprio despacho e o substitua pelo conhecimento
do mérito da questão, processo que não me parece perfeitamente regular.
Em segundo lugar, o paciente, para justificar o seu pedido, junta apenas
retalhos de jornais de São Paulo, nos quais se encontra a transcrição do acórdão
da Corte estadual e um transunto do julgamento.
Por conseguinte, não conheço do pedido, por essas duas razões, isto é, por
não solicitar novo habeas corpus e sim a revisão do despacho anterior —importando,
portanto, o pedido numa espécie de embargos ao acórdão, mas sem ter a
forma de embargos — e, em segundo lugar, por estar deficientemente instruído.
Isenção de serviço militar também era matéria apreciada pelo Supremo
Tribunal Federal, bem entendido, no contexto de discussão relativa à possibilidade
de apreciação de matéria de fato, em âmbito do remédio heróico que se
estuda. No RHC 26.233/DF, relatado pelo Ministro Carlos Maximiliano, lê-se,
como segue:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Manoel Antonio de Barros Filho
recorreu do acórdão do Supremo Tribunal Militar que lhe negou habeas corpus
tendente a isentá-lo das penas de insubmissão. Alega, à fl. 8, haver, em
tempo útil, requerido a sua isenção do serviço militar, por ser o arrimo de
sua mãe viúva e pobre, e ser a entrega desse requerimento confessada pela
1ª Circunscrição de Recrutamento à fl. 9 do processo primitivo.
Ora, a informação prestada pela 1ª Circunscrição ao Supremo Tribunal
Militar diz o contrário: que ele deixou de anexar ao requerimento os documentos
exigidos pelo art. 124 do Regulamento do Serviço Militar; pelo que teve
a sua petição este despacho: “Indeferido, por falta de fundamento legal. Faça
prova perante a Junta de Revisão e Sorteio.”
Ele não cumpriu o despacho, nem se apresentou, quando sorteado em
1931; pelo que foi considerado insubmisso e como tal sub judice; capturado em
20 de março de 1936, foi encaminhado ao seu destino.
Provou, agora, com docs., que a sua mãe não recebe pensão, nem paga
impostos, e com duas testemunhas que ele a sustenta com o seu trabalho; mas o
Supremo Tribunal Militar negou habeas corpus, nos termos seguintes (lê fl. 6).
Ministro Carlos Maximiliano
VOTO
O processo de habeas corpus não comporta o exame de matéria de fato;
e esta deve ser esclarecida, em tempo, perante a Junta de Revisão e Sorteio.
O impetrante disto sabia; e ele próprio mostra que foi informado pelo despacho
de fl. 9, só por seu desrespeito à lei, está na fileira. Quis ex culpa sua damnum
sentit, non intelligitur damnum sentire: este aforismo concernente ao dano, bem
se aplica a todos os que sofrem males por culpa sua.
Nego provimento ao recurso.
No RHC 26.253/DF, relatado por Carlos Maximiliano e julgado em 28
de setembro de 1936, discutiu-se tema até hoje debatido, relativo à possibilidade
de réu responder processo em liberdade, ainda que tenha fugido:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o art. 21 da Lei
1.849 nega efeito suspensivo à sentença condenatória quando o réu se apresentar
à prisão logo depois da denúncia; o réu, que é o embargante, assim procedeu
e foi absolvido, mas, absolvido, evadiu-se e, dado o segundo julgamento, não
compareceu para ser julgado. No entanto, conseguiu absolvição pela segunda
vez. Houve, então, apelação ex officio.
Aqui está toda a questão.
O juiz, ao prolatar a sentença, declarou que não expediu o alvará de soltura
porque o embargante não se apresentara para o julgamento. Pelo contrário,
fugira logo após ao primeiro veredictum, não mais aparecendo.
Requereu, mais tarde, um habeas corpus à Corte de Apelação, tendo esse
tribunal pedido informações ao juiz, que as deu neste sentido:
Acuso o recebimento do Ofício 3.885/m.a., de 24 do corrente, de
V. Exa., requisitando-me informações sobre uma ordem de habeas corpus,
impetrada pelo Dr. José Veríssimo Filho, a favor de Arnoldo Bulle.
Respondendo-o, informo a V. Exa. o seguinte: — O paciente foi
julgado pela segunda vez pelo Júri desta comarca, por crime de homicídio
(art. 294, § 1º), tendo sido absolvido por seis votos; como Juiz
Presidente do Tribunal do Júri apelei ex officio, com fundamento no
art. 36, do Decreto 4.784, de 1º de dezembro de 1930.
Prolatando a sentença absolutória, não determinei a expedição de
alvará de soltura dando, assim, ao recurso, efeito suspensivo.
Realmente, de acordo com a jurisprudência firmada pela Egrégia
Primeira Câmara da Corte de Apelação, o efeito suspensivo da apelação
ex officio do Juiz Presidente do Júri decorre da inafiançabilidade do
crime e da absolvição não unânime. São os dois requisitos exigidos e que
ocorrem no caso. E assim é porque o art. 36, do citado Decreto 4.784,
restabeleceu a apelação ex officio “na forma das leis e decretos que a
regulavam” e, estes davam o efeito suspensivo ao recurso desde que se
tratasse de crime inafiançável e absolvição não unânime.
É o que edita o art. 17, § 4º, da Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871:
A apelação do parágrafo 1º, do art. 79, da Lei de 3 de
dezembro de 1841, só tem efeito suspensivo, quando interposta
de sentença absolutória do acusado de crime inafiançável, e não
sendo unânime a decisão do júri que a determinar.
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A sentença por mim proferida deu, como motivo da não expedição
de alvará de soltura, a favor do paciente, a falta de apresentação à prisão,
considerando que o réu não se apresentara à prisão para o segundo julgamento,
invalidando, destarte, a apresentação feita logo após a prática do
crime, mas, de acordo com a jurisprudência da E. Primeira Câmara não
é de se cogitar da apresentação à prisão, por isso que a Lei 1.849 não se
aplica à apelação ex officio.
A prisão do paciente não é, porém, ilegal, pelos outros motivos
apontados, que bem a autorizam.
É o que cumpre informar a V. Exa. a quem renovo meus protestos
de elevada estima e profunda admiração.
Diante dos esclarecimentos prestados, aquele colégio judiciário elaborou
o seguinte acórdão:
Acordam negar a ordem de habeas corpus impetrada pelo Dr. José
Veríssimo Filho a favor de Arnoldo Bulle.
Tendo sido este absolvido pelo Júri da acusação que lhe foi intentada
(art. 294, § 1º, do Código Penal), não podia, entretanto, o paciente
ter sido posto em liberdade, visto não ter sido unânime a decisão absolutória,
e ter o Dr. Juiz de Direito interposto apelação ex officio.
Pouco importa que o paciente se tivesse apresentado à prisão;
circunstância é esta atendível nas apelações interpostas pelo Ministério
Público, que não que o sejam oficialmente pelo Juiz de Direito, Presidente
do Tribunal do Júri.
Neste sentido se tem manifestado a Jurisprudência da Corte.
Custas pelo impetrante.
É o relatório.
VOTO
Senhor Presidente, parece-me que, quando a lei paulista declara que o
indivíduo absolvido será posto em liberdade, no caso de se haver apresentado,
espontaneamente, à prisão, admite a presunção de inocência, conseqüente à
absolvição, e que o mesmo não embarace a ação da justiça, na hipótese de vir a
precisar dele. Nesta situação, justo é que tenha liberdade.
No entanto, quando a justiça dele necessitou, pela segunda vez, não
compareceu, não atendeu ao seu chamamento. Fugiu, desaparecendo assim o
espírito da lei.
A jurisprudência do Estado entende que a apelação ex officio foi restabelecida
depois dessa lei, que permitia a liberdade; só se apelava nos casos de
apelação da Promotoria Pública e nunca ex officio.
Em virtude da jurisprudência estadual e das razões que dou, confirmo o
despacho, para negar provimento ao recurso.
A natureza do habeas corpus foi fixada no HC 26.340/MG, relatado pelo
Ministro Costa Manso e julgado em 20 de janeiro de 1937. Naquela ocasião
entendeu-se que o habeas corpus não só protegeria a liberdade de locomoção,
como também impediria que um constrangimento legítimo fosse executado
de modo irregular com prejuízo para o indivíduo. O oficial do Exército ou da
Armada, condenado a dois ou mais anos de pena restritiva da liberdade, não
Ministro Carlos Maximiliano
perderia o posto, devendo cumprir a pena em praça de guerra ou estabelecimento
militar adequado. Essa regra também era extensiva aos oficiais das
Polícias Militares. No entender de Carlos Maximiliano, que insistiu que não
aplicava leis penais por analogia:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Concordo com o Sr. Ministro
Relator. Impera, porém, no meu espírito ainda, uma razão: baseou-se S. Exa.,
inicialmente, em uma disposição do Código Penal Militar relativa aos crimes
militares e aplicou o art. 409, o qual estabelece que, enquanto não entrar
em plena execução o sistema penitenciário (chamo a atenção da Corte para o
assunto, visto tratar-se de lei penal) a pena de prisão celular será cumprida,
como a de prisão com trabalhos, nos estabelecimentos penitenciários existentes,
segundo o regime atual; nos lugares em que não os houver, será convertida em
prisão simples, com aumento da sexta parte do tempo.
Por conseguinte, só na hipótese de não haver penitenciária é que se
aumenta a pena da sexta parte. Foi por analogia, parece-me, que o Sr. Ministro
Relator aplicou o aludido dispositivo ao presente caso, em que o réu vai para
uma fortaleza onde não há regime penitenciário. Embora de acordo com S. Exa.,
quanto à concessão do habeas corpus, não aplico, como S. Exa., o art. 409 ao
caso, porque não faço, por analogia, aplicação de leis penais. Aliás, isto não é
mesmo da nossa competência, mas da do juiz da execução.
Por tudo isto e pelas razões de S. Exa., defiro o pedido.
Fixou-se também o entendimento de que em simples processo de habeas
corpus não se anularia processo por falta de corpo de delito, sobretudo em caso
para o qual havia previsão de recurso ordinário. É o conteúdo do decido no
RHC 26.363/SP, relatado pelo próprio Carlos Maximiliano e julgado em 25 de
janeiro de 1937:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: O advogado José Adriano Marrey
Junior impetrou à Corte de Apelação de São Paulo habeas corpus a favor de
João Cardoso de Almeida processado à revelia e pronunciado como incurso nas
penas do art. 221, combinado com o 222, da Consolidação das Leis Penais, e
também no art. 248 da mesma consolidação. Trata-se dos crimes de peculato e
falsidade, previstos pelos arts. 1º a 3º, e 17, do Decreto 4.780, de 27 de dezembro
de 1923. Alega estar o processo radicalmente nulo, por dois únicos fundamentos:
1º — apesar de ser o réu pessoa de família muito conhecida em São Paulo e de
residir na Alameda Lorena, nº 489, foi dado como ausente em lugar incerto e
não sabido e, conseqüentemente, não citado inicialmente para se ver processar;
2º — em se tratando de crime de falsidade, constituía formalidade substancial
o exame de corpo de delito, este se não efetuou. A Corte de Apelação negou a
ordem conforme o acórdão de fl. 20, aliás unânime. Para maior esclarecimento,
lerei a denúncia de fl. 12, o despacho de pronúncia de fl. 13 e as informações
prestadas à Corte de Apelação pelo juiz processante, à fl. 17.
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VOTO
A certidão juntada pelo próprio impetrante, à fl. 13v. in fine, convence
de que houve a necessária diligência para encontrar o acusado, que não foi
encontrado. (...)
Nunca aceitamos a opinião de se poder em simples processo de habeas
corpus, quando ainda cabe outro meio mais apropriado para examinar o mérito
da decisão, anular o despacho de pronúncia, pela simples falta de auto de corpo
de delito direto. Por outro lado, é dever da Corte Suprema, ao examinar a aplicação
da lei estadual, consultar, com interesse, a jurisprudência dos tribunais
locais, e o acórdão do tribunal superior do Estado foi contrário ao exame do
assunto em habeas corpus; o impetrante cita outro acórdão, mas proferido em
recurso criminal. É deste que deve o impetrante lançar mão; por isto, eu nego
provimento ao recurso de habeas corpus.
Habeas corpus era remédio no qual também se discutia competência,
a exemplo no julgado no RHC 26.582/SP, relatado pelo Ministro Laudo de
Camargo, em 13 de outubro de 1937. Carlos Maximiliano negou a ordem, nos
termos seguintes:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, o fato de alguém
falsificar o registro civil, a meu ver, não se enquadra na competência da Justiça
federal, porque o registro é feito em cartório onde se efetua serviço estadual.
Demais, a competência federal é exceção, sendo que a estadual constitui
a regra. Só poderíamos, portanto, reconhecer a competência federal se o
acusado tivesse falsificado o registro aqui e dele fizesse uso no Ministério da
Justiça, procurando embair a autoridade federal.
Apesar disso, poderia ainda ter falsificado o registro com outro intuito,
qual o de, provando que tinha um filho, beneficiar-se com a sua morte pela
herança do sogro.
Nestas condições, nego a ordem.
O realismo de Carlos Maximiliano é recorrente. No HC 26.586/DF, relatado
pelo próprio Maximiliano e julgado em 20 de outubro de 1937, fixou-se,
como segue:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: O advogado Miguel Pimenta impetra
habeas corpus para João Costa Affonso, alegando que este fora condenado
a 7 meses e 15 dias de prisão celular, em processo radicalmente nulo. Diz que o
Código de Processo exige número legal de testemunhas, sob pena de nulidade
insanável; e que tal nulidade houve, uma vez que as testemunhas arroladas nada
ou quase nada disseram sobre a questão, com exceção de uma, o que não pode
fazer prova, motivo pelo qual a sentença deve ser cassada.
É o relatório.
Ministro Carlos Maximiliano
VOTO
Na petição, o advogado conclui pedindo que eu requisite os autos,
embora não alegue pobreza. Na verdade mesmo, porém, a petição está selada e
o paciente teve meios de constituir procurador.
Não há, junto aos autos, documento algum, nem sequer a certidão
da sentença.
Por todos esses motivos, não achei necessário requisitar o processo.
Indubitavelmente, o paciente não é miserável.
Além do mais, ainda mesmo verdadeiro o que alega o impetrante, não
concederia o habeas corpus. O fato alegado quanto às testemunhas quando
muito seria causa de revisão; se elas não depuseram contra o réu, a sentença
estaria contra a prova dos autos.
Assim, não tomo conhecimento do pedido.
É o meu voto.
Questões simples eram encaradas com muita elegância por Carlos
Maximiliano, que confeccionava decisões factíveis, do ponto de vista do pragmatismo
forense; é o que se percebe também na decisão proferida no HC 26.592/DF,
relatado pelo Ministro Laudo de Camargo e julgado em 20 de outubro de 1937:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, devemos, em
primeiro lugar, tomar em consideração que estamos tratando de simples habeas
corpus contra uma sentença. Portanto, só se se tratasse de nulidade claríssima,
evidente e indiscutível, poderíamos tomar conhecimento.
O Promotor Público não recorreu, simplesmente, da parte da sentença referente
à prescrição. Ao contrário, examinou a decisão inteiramente, o mesmo acontecendo
ao Tribunal, que, por esse motivo, achou ter o Juiz julgado mal, quanto
à prescrição e, por um certo escrúpulo — que me parece aceitável, até certo
ponto — atendendo a que o réu ainda tinha tempo para recorrer, não resolveu logo
a questão principal. O Promotor, por conseguinte, devolveu-lhe o conhecimento
pleno da causa. Assim, o Tribunal andou muito bem conhecendo da apelação.
Concordo, pois, com o Sr. Ministro Relator e nego o habeas corpus.
É com simplicidade também que Carlos Maximiliano diferenciava
perempção de prescrição, nos termos do decidido no RHC 26.605/PA, relatado
pelo Ministro Ataulpho de Paiva e julgado em 3 de dezembro de 1937:
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, estou de acordo
com o voto do Sr. Ministro Relator.
É evidente que o impetrante confunde, não sei se propositadamente,
perempção com prescrição da ação. A perempção, sim, se verificaria depois de
decorrido o prazo de 2 anos; ora, ele mesmo confessa que a denúncia foi oferecida
antes de transcorrido esse prazo. A ação, assim, não está perempta.
Quanto à prescrição, esta nada tem a ver com a perempção. Segue a regra
geral da Consolidação Penal; não pode prescrever com dois anos crime cujo
máximo de pena é de 8 anos.
Nego, portanto, provimento ao recurso.
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Memória Jurisprudencial
A meticulosidade dos relatórios de Carlos Maximiliano não prejudicava
a concisão e a objetividade de seus textos decisórios. É o que se comprova no
HC 26.596/SC, relatado pelo próprio Maximiliano e julgado em 8 de dezembro
de 1937:
162
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: À primeira vista, pareceu-me que o
objeto do presente pedido era, muito simplesmente, fazer com que se respeitasse
decisão deste Supremo Tribunal, desobedecida pelo Tribunal local, de Santa
Catarina. Por isso, vi-me na contingência de requisitar os autos de anterior habeas
corpus, que é, por assim dizer, a primeira parte do que ora nos é apresentado.
Há meses atrás, Altamiro Bianchini paciente, foi impetrado pedido de
habeas corpus, em crime de homicídio. O réu fora a júri e este o absolvera, havendo
apelação do Dr. Promotor, sob a alegação de que a decisão fora contra a prova dos
autos. Conhecendo do recurso, porém, a Corte de Apelação, não entrando no
mérito, anulou o julgado, porque funcionara, como advogado de defesa, um solicitador.
O caso veio a nós, em habeas corpus, como disse e, aqui, embora por fraca
maioria — votos vencidos dos Srs. Ministros Costa Manso, Laudo de Camargo,
Plínio Casado e Hermenegildo de Barros, — concedemos a ordem, sob o fundamento,
aliás também sustentado pelo Dr. Procurador-Geral do Estado, de que a
nulidade invocada era daquelas que só à defesa competiria levantar.
Nessas condições, como se vê, a nossa decisão foi no sentido de que
deveria prevalecer o julgado do Tribunal do Júri, reformando, por conseguinte,
o acórdão da Corte de Apelação, que o anulara.
Estranhamente, porém, o réu, que deveria ter sido solto, foi mandado a
novo júri.
É aqui que começa o motivo do segundo habeas corpus.
No novo júri, todavia, o réu foi novamente absolvido. Nova apelação do
Dr. Promotor.
Aí, entretanto, o Dr. Juiz a quo entrou em dúvida sobre se deveria
continuar o réu em prisão e, nesse sentido, consultou a Corte de Apelação.
O Presidente desta, por sua vez, telegrafou sobre o fato ao Presidente Edmundo
Lins, que entregou o estudo do caso ao Sr. Ministro Ataulpho de Paiva, que fora
o Relator do pedido anterior.
A resposta de S. Exa., naturalmente por um lapso, foi dizendo que o acórdão
da Corte Suprema fora perfeitamente cumprido, produzira todos os efeitos
legais; quanto ao novo julgamento, deveria regulá-lo a Lei de Organização
Judiciária do Estado. À Justiça local, portanto, cabia solucionar a dúvida.
Foi à vista desse despacho, rigorosamente acatado pelo Dr. Juiz a quo,
que o réu foi, novamente, preso e, mais uma vez, habeas corpus subiu, no
mesmo sentido, ao Supremo Tribunal Federal. Já que, em julgamento anterior,
decidimos não dever prevalecer a decisão da Corte de Apelação, entende o
paciente que resolvemos só estar de pé o primitivo julgado do Tribunal do Júri
e, assim, deve ele ser posto em liberdade, definitivamente, sem mais recurso de
espécie alguma.
É o relatório.
Ministro Carlos Maximiliano
VOTO
Não tenho dúvida em dizer que as autoridades locais de Santa Catarina
procederam lealmente para conosco. Na verdade, suscitada a questão, desde
logo trataram de se entender com o Presidente da então Corte Suprema, o qual
se apressou, igualmente, em submeter o caso à apreciação do Relator.
Parecem-me, todavia, ter havido engano por parte do Sr. Ministro
Ataulpho de Paiva, no despacho que deu em resposta à consulta efetuada; de fato,
o que ocorreu foi que S. Exa. afirmou estar sendo cumprido o habeas corpus.
O que a Corte Suprema decidiu foi tornar nulo o Acórdão da Corte de
Apelação que reformara a decisão do Tribunal do Júri. Logo, só ficou de pé a
sentença do tribunal popular, sentença absolutória, devendo, conseqüentemente,
o ora paciente ser, imediatamente, posto em liberdade.
A questão colocada nessas condições, parece-me que nem podemos voltar
ao exame do mérito. Assim, não examino mais essa tese.
Por conseguinte, é indubitável que devemos conceder o presente habeas
corpus, a fim de que o decidido no anterior seja restaurado, ficando de pé, portanto,
só a sentença do Tribunal do Júri que absolveu o acusado, o qual deve ser,
imediatamente, posto em liberdade.
Em pedido de habeas corpus requerido por Evandro Lins e Silva, Carlos
Maximiliano negou-se a apreciar decisão prolatada por juiz da vara de família.
Trata-se do RHC 26.598/DF, relatado pelo Ministro Bento de Faria e julgado
em 5 de novembro de 1937. Nos termos do voto de Carlos Maximiliano:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, a questão,
parece-me, entrelaça-se com a dúvida sobre o pátrio poder. Pela informação do
Juiz, é esse homem acusado de ter falsificado o assentamento do menino, dando
este como filho seu e de outra mulher que não a mãe verdadeira, para o fim de
dele se apossar. Ora, depende ainda de muito estudo a questão do pátrio poder,
em se tratando de filhos naturais. Daí resulta ser inadmissível o remédio jurídico
invocado, pois o que se quer é reformar o despacho do juiz sobre assunto
do Direito Civil, de Direito de Família. Nego, pois, a ordem.
A competência do Supremo Tribunal Federal foi também questão apreciada
em âmbito de habeas corpus. Discutia-se condenação do paciente pela
prática do jogo do bicho. O interessado argüia nulidade da condenação, por
força de que sofrera cerceamento de defesa. O recurso subira ao Supremo por
provocação do juízo originário do feito, que concedera a ordem de habeas corpus,
mas recorrera ex officio da própria decisão. Alegava-se que a Constituição
de 1934 havia implicitamente abolido o recurso ex officio das decisões que concedessem
ordem de habeas corpus.
No RHC 26.601/DF, relatado pelo Ministro Carvalho Mourão e julgado
em 8 de novembro de 1937, Carlos Maximiliano votou da forma que segue, com
base no modelo de competência fixado pelo modelo constitucional então vigente:
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, não estou de
acordo com a conclusão a que chegou o ilustre colega, Sr. Ministro Relator.
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A Constituição teve em vista tornar excepcional o recurso dos tribunais
locais para a Corte Suprema, restringindo quanto possível a nossa competência.
Natural era, por conseguinte, que determinasse, como fez, quer quanto a recursos
extraordinários quer quanto a habeas corpus, casos taxativos em que houvesse
probabilidade de se recorrer da deliberação da Justiça local para a federal.
Teve em vista, igualmente, a Constituição não aumentar em demasia
a nossa competência. Dado, porém, que, somos, sobretudo, a salvaguarda da
liberdade, permitiu, então, que recorressem para esta Corte sempre que a liberdade
ficasse em constrangimento, isto é, quando fosse negado o habeas corpus.
Quando o habeas corpus é concedido, tornava-se dispensável o recurso porque,
aí, a liberdade da pessoa não periclita. A nossa função principal é a de estarmos
acima de todas as autoridades do País quando se trata da liberdade humana.
Estas considerações são as suscitadas pela Constituição, mas é, até, regra
de hermenêutica que, na dúvida, existe sempre o direito de recorrer. Não posso,
portanto, considerar que nunca há recurso, quando a Constituição apenas o proíbe
em caso de matéria eleitoral e em outros por ela enumerados.
Se entendêssemos assim, iríamos transformar uma exceção em regra: a
nossa competência é excepcional e não podemos transformar esse preceito, feito
para a exceção, em regra geral porque isto seria generalizar a exceção.
Sob este fundamento, nego provimento ao recurso.
No HC 26.606/DF, relatado pelo próprio Carlos Maximiliano e julgado
em 24 de novembro de 1937, discutiu-se prisão de funcionário público, ocorrida
por ordem do Ministro da Fazenda:
RELATóRIO
O Sr. Ministro Carlos Maximiliano: Senhor Presidente, Henrique Tedim
Pessoa está preso desde 8 de julho do corrente ano. Pedia habeas corpus, alegando
que foi excedido o