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Poesia Moderna - marcelo::frizon

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MODERNISMO<br />

<strong>Poesia</strong> <strong>Moderna</strong>


POEMAS DE<br />

OSWALD DE ANDRADE<br />

Canto de regresso à pátria<br />

Minha terra tem palmares<br />

Onde gorjeia o mar<br />

Os passarinhos daqui<br />

Não cantam como os de lá<br />

Minha terra tem mais rosas<br />

E quase que mais amores<br />

Minha terra tem mais ouro<br />

Minha terra tem mais terra<br />

Ouro terra amor e rosas<br />

Eu quero tudo de lá<br />

Não permita Deus que eu<br />

[morra<br />

Sem que volte para lá<br />

Não permita Deus que eu<br />

[morra<br />

Sem que volte pra São Paulo<br />

Sem que veja a Rua 15<br />

E o progresso de São Paulo


A descoberta<br />

Seguimos nosso caminho<br />

por este mar de longo<br />

Até a oitava da Páscoa<br />

Topamos aves<br />

E houvemos vista de terra<br />

Os Selvagens<br />

Mostraram-lhes uma<br />

galinha<br />

Quase haviam medo dela<br />

E não queriam por a mão<br />

E depois a tomaram como<br />

espantados<br />

Primeiro Chá<br />

Depois de dançarem<br />

Diogo Dias<br />

Fez o salto real<br />

As Meninas da Gare<br />

Eram três ou quatro moças<br />

bem moças e bem [gentis<br />

Com cabelos mui pretos<br />

pelas espáduas<br />

E suas vergonhas tão altas e<br />

tão saradinhas<br />

Que de nós as muito bem<br />

olharmos<br />

Não tínhamos nenhuma<br />

vergonha.


Pronominais<br />

Dê-me um cigarro<br />

Diz a gramática<br />

Do professor e do aluno<br />

E do mulato sabido<br />

Mas o bom negro e o bom<br />

branco<br />

Da Nação Brasileira<br />

Dizem todos os dias<br />

Deixa disso camarada<br />

Me dá um cigarro<br />

Vício na fala<br />

Para dizerem milho dizem<br />

mio<br />

Para melhor dizem mió<br />

Para pior pió<br />

Para telha dizem teia<br />

Para telhado dizem teiado<br />

E vão fazendo telhados<br />

O capoeira<br />

— Qué apanhá sordado?<br />

— O quê?<br />

— Qué apanhá?<br />

Pernas e cabeças na calçada.


POEMAS DE<br />

MARIO DE ANDRADE<br />

Eu Sou Trezentos...<br />

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,<br />

As sensações renascem de si mesmas sem repouso,<br />

Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!<br />

Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!<br />

Abraço no meu leito as milhores palavras,<br />

E os suspiros que dou são violinos alheios;<br />

Eu piso a terra como quem descobre a furto<br />

Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus<br />

[próprios beijos!<br />

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,<br />

Mas um dia afinal eu toparei comigo...<br />

Tenhamos paciência, andorinhas curtas,<br />

Só o esquecimento é que condensa,<br />

E então minha alma servirá de abrigo.


Ode ao Burguês<br />

Eu insulto o burgês! O burguês-níquel,<br />

o burguês-burguês!<br />

A digestão bem feita de São Paulo!<br />

O homem-curva! o homem-nádegas!<br />

O homem que sendo francês, brasileiro,<br />

italiano,<br />

é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!<br />

Eu insulto as aristocracias cautelosas!<br />

os barões lampiões! os condes Joões! os<br />

[duques zurros!<br />

que vivem dentro de muros sem pulos,<br />

e gemem sangues de alguns mil-réis fracos<br />

para dizerem que as filhas da senhora falam o<br />

[francês e tocam os "Printemps" com as unhas!<br />

Eu insulto o burguês-funesto!<br />

O indigesto feijão com toucinho, dono das<br />

tradições!<br />

Fora os que algarismam os amanhãs!<br />

Olha a vida dos nossos setembros!<br />

Fará Sol? Choverá? Arlequinal!<br />

Mas à chuva dos rosais<br />

o êxtase fará sempre Sol!<br />

Morte à gordura!<br />

Morte às adiposidades cerebrais<br />

Morte ao burguês-mensal!<br />

ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!<br />

Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!<br />

“-- Ai, filha, que te darei pelos teus anos?<br />

-- Um colar... _ Conto e quinhentos!!!<br />

-- Mas nós morremos de fome!”<br />

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina<br />

pasma!<br />

Oh! purée de batatas morais!<br />

Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!<br />

Ódio aos temperamentos regulares!<br />

Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!<br />

Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!<br />

Ódio aos sem desfalecimentos nem<br />

[arrependimentos, sempiternamente as<br />

[mesmices convencionais!<br />

De mãos nas costas! Marco eu o compasso!<br />

Eia!<br />

Dois a dois! Primeira posição! Marcha!<br />

Todos para a Central do meu rancor<br />

inebriante!<br />

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!<br />

Morte ao burguês de giolhos,<br />

cheirando religião e que não crê em Deus!<br />

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!<br />

Ódio fundamento, sem perdão!<br />

Fora! Fu! Fora o bom burguês!...


Inspiração<br />

Onde até na força do verão havia<br />

tempestades de ventos e frios de<br />

crudelíssimo inverno.<br />

Fr. Luís de Sousa<br />

São Paulo! Comoção de minha vida...<br />

Os meus amores são flores feitas de original...<br />

Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...<br />

Luz e bruma... Forno e inverno morno...<br />

Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...<br />

Perfumes de Paris... Arys!<br />

Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...<br />

São Paulo! Comoção de minha vida...<br />

Galicismo a berrar nos desertos da América!


MANUEL BANDEIRA<br />

MANUEL BANDEIRA (1886-1968) :: Vida: Nasceu no<br />

Recife, filho de uma família oligárquica. Começou a fazer o curso de<br />

engenharia, em São Paulo, mas a tuberculose o impediu de concluir<br />

a faculdade. Buscando a cura, esteve um ano na Suíça, onde<br />

efetivamente eliminou a doença. Voltando para o Brasil, tornou-se<br />

inspetor de ensino e, depois, professor de Literatura na<br />

Universidade do Brasil.<br />

Obras principais: Cinza das horas (1917); Carnaval (1919);<br />

Ritmo dissoluto (1924); Libertinagem (1930); Estrela da manhã<br />

(1936); Lira dos cinquent'anos (1948); Estrela da tarde (1963)


A poesia de Manuel Bandeira - eliminados os<br />

resíduos simbolistas e parnasianos de Cinza das horas e<br />

Carnaval - enquadrando-se na vertente mais clássica do<br />

espírito modernista, aquela em que se processa uma fusão<br />

entre a confissão pessoal e a vida cotidiana. Em Bandeira<br />

predomina com algumas insistência o lirismo do EU, mas o<br />

cotidiano jamais desaparece dos textos, numa síntese feliz<br />

entre subjetividade e objetividade. Isto se dá porque uma<br />

relação dialética estabelece-se entre ambos. Assim:<br />

<strong>Poesia</strong> = cotidiano mais o eu-lírico.<br />

Nada em sua poesia é mera visão interior. Tampouco lhe<br />

apraz a simples fotografia realista do mundo. Mesmo assim,<br />

praticou eventualmente uma lírica sem a presença da<br />

interioridade.


É o caso do “Poema tirado de uma notícia de jornal”:<br />

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da<br />

[Babilônia num barracão sem número<br />

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro<br />

Bebeu<br />

Cantou<br />

Dançou<br />

Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.


Ou, ainda, deste “O bicho”, infiltrado por grande<br />

indignação moral:<br />

Vi ontem um bicho<br />

Na imundície do pátio<br />

Catando comida entre os detritos<br />

Quando achava alguma coisa,<br />

Não examinava nem cheirava:<br />

Engolia com voracidade.<br />

O bicho não era um cão,<br />

Não era um gato,<br />

Não era um rato.<br />

O bicho, meu Deus, era um homem.


O poeta debruça-se sobre o mundo concreto, porém na<br />

sua fala sobre o real pode-se pressentir o traço biográfico,<br />

como no já antológico “Irene no céu”:<br />

Irene preta<br />

Irene boa<br />

Irene sempre de bom humor<br />

Imagino Irene entrando no céu:<br />

- Licença, meu branco.<br />

E São Pedro, bonachão:<br />

- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.


O desejo insatisfeito<br />

Na medida em que a sua poesia assume um caráter<br />

confidencial, as referências biográficas tornam-se<br />

importantes. Tanto a tuberculose quanto a decadência da<br />

família poderiam nos explicar o clima de desejo insatisfeito e<br />

amargurado que percorre a sua obra.<br />

A doença impediu-o de realizar uma série de experiências<br />

e vivências. Desta forma, a literatura representou para ele<br />

"toda a vida que podia ter sido e que não foi". Daí a<br />

frequência e a intensidade de seus sonhos, geradores de<br />

universos imaginários, onde não há repressões e os homens<br />

são felizes. Mas, ao contrário dos românticos que acreditem<br />

em suas fantasias, Manuel Bandeira ironiza os seus próprios<br />

desejos, dando-os como ilusões. “Vou-me embora pra<br />

Pasárgada” é o seu mais conhecido poema:


Vou-me embora pra Pasárgada<br />

Lá sou amigo do rei<br />

Lá tenho a mulher que eu quero<br />

Na cama que escolherei<br />

Vou-me embora pra Pasárgada<br />

Vou-me embora pra Pasárgada<br />

Aqui eu não sou feliz<br />

Lá a existência é uma aventura<br />

De tal modo inconsequente<br />

Que Joana a Louca de Espanha<br />

Rainha e falsa demente<br />

Vem a ser contraparente<br />

Da nora que nunca tive<br />

E como farei ginástica<br />

Andarei da bicicleta<br />

Montarei em burro brabo<br />

Subirei no pau de sebo<br />

Tomarei banhos de mar!<br />

E quando estiver cansado<br />

Deito na beira do rio<br />

Mando chamar a mãe-d'água<br />

Pra me contar histórias<br />

Que no tempo de eu menino<br />

Rosa vinha me contar<br />

Vou-me embora pra Pasárgada<br />

Em Pasárgada tem tudo<br />

É outra civilização<br />

Tem um processo seguro<br />

De impedir a concepção<br />

Tem telefone automático<br />

Tem alcalóide à vontade<br />

Tem prostitutas bonitas<br />

Para a gente namorar<br />

E quando eu estiver mais triste<br />

Mas triste de não ter jeito<br />

Quando de noite me der<br />

Vontade de me matar<br />

- Lá sou amigo do rei -<br />

Terei a mulher que eu quero<br />

Na cama que escolherei<br />

Vou-me embora pra Pasárgada.


Também a Balada das três mulheres do sabonete Araxá se insere<br />

na linha do erotismo fantasioso. A espontaneidade da composição e<br />

a ironia fizeram-na clássica:<br />

As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam,<br />

[me hipnotizam.<br />

Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às quatro horas da tarde!<br />

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!<br />

Que outros, não eu, a pedra cortem<br />

Para brutais vos adorarem,<br />

Ó brancaranas azedas,<br />

Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata<br />

Ou celestes africanas:<br />

Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete<br />

[Araxá!<br />

São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete<br />

[Araxá?<br />

São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?<br />

São as três Marias?


Meu Deus, serão as três Marias?<br />

A mais nua é doirada borboleta.<br />

Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra<br />

[beber e nunca mais telefonava.<br />

Mas se a terceira morresse... Oh, então, nunca mais a<br />

[minha vida outrora teria sido um festim!<br />

Se me perguntassem: queres ser estrela? queres ser rei?<br />

[queres uma ilha no Pacífico? Um bangalô em<br />

[Copacabana?<br />

Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só<br />

[quero as três mulheres do sabonete Araxá:<br />

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!


A doença e, possivelmente, o ocaso social dos grandes senhores rurais<br />

nordestinos, classe de onde procedia, devem explicar a amargura que<br />

assalta a sua produção poética. Mesmo nos momentos das fantasias<br />

mais gratificantes, o poeta não esquece esta "agitação feroz e sem<br />

finalidade" que é a vida. “Belo belo” indica a consciência da inutilidade<br />

dos desejos de uma realidade prepotente:<br />

Belo belo minha bela<br />

Tenho tudo que não<br />

quero<br />

Não tenho nada que<br />

quero<br />

Não quero óculos nem<br />

tosse<br />

Nem obrigação de<br />

voto<br />

Quero quero<br />

Quero a solidão dos<br />

píncaros<br />

A água da fonte<br />

escondida<br />

A rosa que floresceu<br />

Sobre a escarpa<br />

inacessível<br />

A luz da primeira<br />

estrela<br />

Piscando no luscofusco<br />

Quero quero<br />

Quero dar a volta ao<br />

mundo<br />

Só num navio de vela<br />

Quero rever<br />

Pernambuco<br />

Quero ver Bagdá e<br />

Cuzco<br />

Quero quero<br />

Quero o moreno de<br />

Estrela<br />

Quero a brancura de<br />

Elisa<br />

Quero a saliva de Bela<br />

Quero as sardas de<br />

Adalgisa<br />

Quero quero tanta<br />

coisa<br />

Belo belo<br />

Mas basta de lero-lero<br />

Vida noves fora zero.


A temática da morte<br />

Por isso, como reflexo da sua crise pessoal, Manuel Bandeira se<br />

aproxima continuamente do tema da morte. É um dos seus maiores<br />

motivos poéticos, conforme podemos constatar no expressivo “Momento<br />

num café”:<br />

Quando o enterro passou<br />

Os homens que se achavam no café<br />

Tiraram o chapéu maquinalmente<br />

Saudavam o morto distraídos<br />

Estavam todos voltados para a vida<br />

Absortos na vida<br />

Confiantes na vida.<br />

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado<br />

Olhando o esquife longamente<br />

Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade<br />

Que a vida é traição<br />

E saudava a matéria que passava<br />

Liberta para sempre da alma extinta.


Exemplar sob este ângulo da morte é o poema<br />

“Consoada”:<br />

Quando a Indesejada das gentes chegar<br />

(Não sei se dura ou caroável),<br />

talvez eu tenha medo.<br />

Talvez sorria, ou diga:<br />

- Alô, iniludível!<br />

O meu dia foi bom, pode a noite descer.<br />

(A noite com os seus sortilégios.)<br />

Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,<br />

A mesa posta,<br />

Com cada coisa em seu lugar.


O velho e o menino<br />

A tristeza do autor de Estrela da manhã não toma, contudo, uma direção<br />

crepuscular, lamentosa, nostálgica ou doentia. Gilberto Freyre diz que há em<br />

Manuel Bandeira sábia conciliação entre um velho, lúcido e pessimista, e um<br />

menino, instintivo e apaixonado pela vida.<br />

E é este menino - habitante do poeta - que esquadrinha os horizontes do<br />

cotidiano, que descobre o lirismo perdido nos becos, nos arrabaldes, em<br />

pobres quartos de hotel e que, finalmente, concede extraordinária força vital<br />

ao texto poético. “Versos de Natal” revelam a síntese do menino e do velho:<br />

Espelho, amigo verdadeiro,<br />

Tu refletes as minhas rugas,<br />

Os meus cabelos brancos,<br />

Os meus olhos míopes e cansados.<br />

Espelho, amigo verdadeiro,<br />

Mestre do realismo exato e<br />

minucioso,<br />

Obrigado! Obrigado!<br />

Mas se fosses mágico,<br />

Penetrarias até o fundo desse<br />

homem triste,<br />

Descobririas o menino que<br />

sustenta esse homem,<br />

O menino que não quer morrer,<br />

Que não morrerá senão comigo,<br />

O menino que todos os anos na<br />

véspera de Natal<br />

Pensa ainda em pôr os seus<br />

chinelos atrás da porta.


O menino triunfa na evocação da infância, como em<br />

“Porquinho-da-Índia”:<br />

Quando eu tinha seis anos<br />

Ganhei um porquinho-da-Índia<br />

Que dor de coração me dava<br />

Porque o bichinho só queria estar de baixo do fogão<br />

Levava ele pra sala<br />

Pra lugares mais bonitos, mas limpinhos<br />

Ele não gostava:<br />

Queria era estar debaixo do fogão.<br />

Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...<br />

- O meu porquinho-da-Índia foi minha primeira<br />

[namorada.


A simplicidade expressiva<br />

Usando tanto as formas mais radicais da vanguardas do século XX<br />

quando as formas clássicas do lirismo ocidental, Manuel Bandeira delimita<br />

um estilo de absoluta simplicidade. Uma simplicidade espontânea que<br />

pode parecer até pobreza, mas que constitui uma de suas virtudes.<br />

Simplicidade alicerçada num processo criativo dominado pelo<br />

subconsciente, no qual não há espaço explícito para a luta pela expressão,<br />

para a busca da palavra exata, fenômenos que só ocorrem a poetas que<br />

escrevem de acordo com princípios do consciente.<br />

Veja-se a singeleza absoluta do “Poema só para Jaime Ovalle”:<br />

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro<br />

(Embora a manhã já estivesse avançada).<br />

Chovia.<br />

Chovia uma triste chuva de resignação<br />

Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.<br />

Então me levantei,<br />

Bebi o café que eu mesmo preparei<br />

Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando<br />

- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.


Genial sob todos os sentidos é “Profundamente”, onde sob o pretexto de<br />

evocar uma festa de São João, o poeta reflete sobre a efemeridade da vida.<br />

Repare-se na expressão "dormindo profundamente" que, em sua primeira<br />

utilização significa sono, e na segunda, morte.<br />

Quando ontem<br />

adormeci<br />

Na noite de São João<br />

Havia alegria e rumor<br />

Estrondo de bombas<br />

luzes de Bengala<br />

Vozes cantigas e risos<br />

Ao pé das fogueiras<br />

acesas<br />

No meio da noite<br />

despertei<br />

Não ouvi mais vozes<br />

nem risos<br />

Apenas balões<br />

Passavam errantes<br />

Silenciosamente<br />

Apenas de vez em<br />

quando<br />

O ruído de um bonde<br />

Cortava o silêncio<br />

Como um túnel.<br />

Onde estavam os que há<br />

pouco<br />

Dançavam<br />

Cantavam<br />

E riam<br />

Ao pé das fogueiras<br />

acesas?<br />

Estavam todos<br />

dormindo<br />

Estavam todos deitados<br />

Dormindo<br />

Profundamente.<br />

Quando eu tinha seis<br />

anos<br />

Não pude ver o fim da<br />

festa de São João<br />

Porque adormeci<br />

Hoje não ouço mais as<br />

vozes daquele tempo<br />

Minha avó<br />

Meu avô<br />

Totônio Rodrigues<br />

Tomásia<br />

Rosa<br />

Onde estão todos eles?<br />

- Estão todos dormindo<br />

Estão todos deitados<br />

Dormindo<br />

Profundamente.


A simplicidade de sua linguagem e de seus assuntos levou<br />

o próprio artista a um autoconceito equivocado:<br />

Tomei consciência de que era um poeta menor; que me<br />

estaria sempre fechado o mundo das grandes abstrações<br />

generosas; que não havia em mim aquela espécie de<br />

cadinho onde, pelo calor do sentimento, as emoções morais<br />

se transmudam em emoções estéticas: o metal precioso eu<br />

teria que sacá-lo a duras penas, ou melhor, a duras esperas<br />

do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda<br />

menores alegrias.<br />

Em “Testamento” já havia afirmado a dimensão precária<br />

de sua poesia:


O que não tenho e desejo<br />

É que melhor me enriquece.<br />

Tive uns dinheiros — perdi-os...<br />

Tive amores — esqueci-os.<br />

Mas no maior desespero<br />

Rezei: ganhei essa prece.<br />

Vi terras da minha terra.<br />

Por outras terras andei.<br />

Mas o que ficou marcado<br />

No meu olhar fatigado,<br />

Foram terras que inventei.<br />

Gosto muito de crianças:<br />

Não tive um filho de meu.<br />

Um filho!... Não foi de jeito...<br />

Mas trago dentro do peito<br />

Meu filho que não nasceu.<br />

Criou-me, desde eu menino<br />

Para arquiteto meu pai.<br />

Foi-se-me um dia a saúde...<br />

Fiz-me arquiteto? Não pude!<br />

Sou poeta menor, perdoai!<br />

Não faço versos de guerra.<br />

Não faço porque não sei.<br />

Mas num torpedo-suicida<br />

Darei de bom grado a vida<br />

Na luta em que não lutei!


Sua obra o desmentiu completamente:<br />

Manuel Bandeira foi um poeta maior.


Poética<br />

Estou farto do lirismo<br />

comedido<br />

Do lirismo bem<br />

comportado<br />

Do lirismo funcionário<br />

público com livro de<br />

ponto expediente<br />

protocolo e<br />

manifestações de<br />

apreço ao sr. diretor.<br />

Estou farto do lirismo<br />

que pára e vai<br />

averiguar no dicionário<br />

o cunho vernáculo de<br />

um vocábulo.<br />

Abaixo os puristas<br />

Todas as palavras<br />

sobretudo os<br />

barbarismos universais<br />

Todas as construções<br />

sobretudo as sintaxes<br />

de exceção<br />

Todos os ritmos<br />

sobretudo os<br />

inumeráveis<br />

Estou farto do lirismo<br />

namorador<br />

Político<br />

Raquítico<br />

Sifilítico<br />

De todo lirismo que<br />

capitula ao que quer<br />

que seja fora de si<br />

mesmo.<br />

De resto não é lirismo<br />

Será contabilidade<br />

tabela de co-senos<br />

secretário do amante<br />

exemplar com cem<br />

modelos de cartas e as<br />

diferentes [maneiras<br />

de agradar às<br />

mulheres, etc.<br />

Quero antes o lirismo<br />

dos loucos<br />

O lirismo dos bêbedos<br />

O lirismo difícil e<br />

pungente dos bêbedos<br />

O lirismo dos clowns<br />

de Shakespeare<br />

- Não quero mais saber<br />

do lirismo que não é<br />

libertação.


Rondó dos<br />

Cavalinhos<br />

Os cavalinhos<br />

correndo,<br />

E nós, cavalões,<br />

comendo...<br />

Tua beleza,<br />

Esmeralda,<br />

Acabou me<br />

enlouquecendo.<br />

Os cavalinhos<br />

correndo,<br />

E nós, cavalões,<br />

comendo...<br />

O sol tão claro lá<br />

fora<br />

E em minh’alma —<br />

anoitecendo!<br />

Os cavalinhos<br />

correndo,<br />

E nós, cavalões,<br />

comendo...<br />

Alfonso Reys<br />

partindo,<br />

E tanta gente<br />

ficando...<br />

Os cavalinhos<br />

correndo,<br />

E nós, cavalões,<br />

comendo...<br />

A Itália falando<br />

grosso,<br />

A Europa se<br />

avacalhando...<br />

Os cavalinhos<br />

correndo,<br />

E nós, cavalões,<br />

comendo...<br />

O Brasil<br />

politicando,<br />

Nossa! A poesia<br />

morrendo...<br />

O sol tão claro lá<br />

fora,<br />

O sol tão claro,<br />

Esmeralda,<br />

E em minh’alma —<br />

anoitecendo!


Pneumotórax<br />

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.<br />

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.<br />

Tosse, tosse, tosse.<br />

Mandou chamar o médico:<br />

- Diga trinta e três.<br />

- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...<br />

- Respire.<br />

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o<br />

pulmão direito infiltrado.<br />

- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?<br />

- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.


Os Sapos<br />

Enfunando os papos,<br />

Saem da penumbra,<br />

Aos pulos, os sapos.<br />

A luz os deslumbra.<br />

Em ronco que aterra,<br />

Berra o sapo-boi:<br />

- "Meu pai foi à guerra!"<br />

- "Não foi!" - "Foi!" - "Não<br />

foi!".<br />

O sapo-tanoeiro,<br />

Parnasiano aguado,<br />

Diz: - "Meu cancioneiro<br />

É bem martelado.<br />

Vede como primo<br />

Em comer os hiatos!<br />

Que arte! E nunca rimo<br />

Os termos cognatos.<br />

O meu verso é bom<br />

Frumento sem joio.<br />

Faço rimas com<br />

Consoantes de apoio.<br />

Vai por cinquüenta anos<br />

Que lhes dei a norma:<br />

Reduzi sem danos<br />

A fôrmas a forma.<br />

Clame a saparia<br />

Em críticas céticas:<br />

Não há mais poesia,<br />

Mas há artes poéticas..."<br />

Urra o sapo-boi:<br />

- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"<br />

- "Não foi!" - "Foi!" - "Não<br />

foi!".<br />

Brada em um assomo<br />

O sapo-tanoeiro:<br />

- A grande arte é como<br />

Lavor de joalheiro.<br />

Ou bem de estatuário.<br />

Tudo quanto é belo,<br />

Tudo quanto é vário,<br />

Canta no martelo".<br />

Outros, sapos-pipas<br />

(Um mal em si cabe),<br />

Falam pelas tripas,<br />

- "Sei!" - "Não sabe!" -<br />

"Sabe!".<br />

Longe dessa grita,<br />

Lá onde mais densa<br />

A noite infinita<br />

Veste a sombra imensa;<br />

Lá, fugido ao mundo,<br />

Sem glória, sem fé,<br />

No perau profundo<br />

E solitário, é<br />

Que soluças tu,<br />

Transido de frio,<br />

Sapo-cururu<br />

Da beira do rio...


A Estrela da Manhã<br />

Eu quero a estrela da<br />

manhã<br />

Onde está a estrela da<br />

manhã?<br />

Meus amigos meus<br />

inimigos<br />

Procurem a estrela da<br />

manhã<br />

Ela desapareceu ia nua<br />

Desapareceu com quem?<br />

Procurem por toda a<br />

parte<br />

Digam que sou um<br />

homem sem orgulho<br />

Um homem que aceita<br />

tudo<br />

Que me importa?<br />

Eu quero a estrela da<br />

manhã<br />

Três dias e três noites<br />

Fui assassino e suicida<br />

Ladrão, pulha, falsário<br />

Virgem mal-sexuada<br />

Atribuladora dos aflitos<br />

Girafa de duas cabeças<br />

Pecai por todos pecai<br />

com todos<br />

Pecai com os malandros<br />

Pecai com os sargentos<br />

Pecai com os fuzileiros<br />

navais<br />

Pecai de todas as<br />

maneiras<br />

Com os gregos e com os<br />

troianos<br />

Com o padre e com o<br />

sacristão<br />

Com o leproso de Pouso<br />

Alto<br />

Depois comigo<br />

Te esperarei com mafuás<br />

novenas cavalhadas<br />

comerei terra e direi<br />

coisas de uma ternura<br />

tão simples<br />

Que tu desfalecerás<br />

Procurem por toda parte<br />

Pura ou degradada até a<br />

última baixeza<br />

eu quero a estrela da<br />

manhã


O cacto<br />

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:<br />

Laocoonte constrangido pelas serpentes,<br />

Ugolino e os filhos esfaimados.<br />

Evocava também o seco nordeste, carnaubais, caatingas...<br />

Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades<br />

excepcionais.<br />

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.<br />

O cacto tombou atravessado na rua,<br />

Quebrou os beirais do casario fronteiro,<br />

Impediu o trânsito de bonde, automóveis, carroças,<br />

Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas<br />

privou a cidade de iluminação e energia:<br />

- Era belo, áspero, intratável.


Evocação do Recife<br />

Recife<br />

Não a Veneza americana<br />

Não a Mauritssad dos armadores das Índias Ocidentais<br />

Não o Recife dos Mascates<br />

Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois -<br />

Recife das revoluções libertárias<br />

Mas o Recife sem história nem literatura<br />

Recife sem mais nada<br />

Recife da minha infância


A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e<br />

partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas<br />

Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na<br />

ponta do nariz<br />

Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com<br />

cadeiras mexericos namoros risadas<br />

A gente brincava no meio da rua<br />

Os meninos gritavam:<br />

Coelho sai!<br />

Não sai!


A distância as vozes macias das meninas politonavam:<br />

Roseira dá-me uma rosa<br />

Craveiro dá-me um botão<br />

(Dessas rosas muita rosa<br />

Terá morrido em botão...)<br />

De repente<br />

nos longes da noite<br />

um sino


Uma pessoa grande dizia:<br />

Fogo em Santo Antônio!<br />

Outra contrariava: São José!<br />

Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.<br />

Os homens punham o chapéu saíam fumando<br />

E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.


Rua da União...<br />

Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância<br />

Rua do Sol<br />

(Tenho medo que hoje se chame de Dr. Fulano de Tal)<br />

Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...<br />

Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...<br />

Capiberibe<br />

- Capibaribe<br />

...onde se ia fumar escondido<br />

...onde se ia pescar escondido


Lá longe o sertãozinho de Caxangá<br />

Banheiros de palha<br />

Um dia eu vi uma moça nuinha no banho<br />

Fiquei parado o coração batendo<br />

Ela se riu<br />

Foi o meu primeiro alumbramento


Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços<br />

redemoinho sumiu<br />

E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos<br />

destemidos em jangadas de bananeiras<br />

Novenas<br />

Cavalhadas<br />

E eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a<br />

mão nos meus cabelos<br />

Capiberibe<br />

- Capibaribe


Rua da União onde todas as tardes passava a preta das<br />

bananas com o xale vistoso de pano da Costa<br />

E o vendedor de roletes de cana<br />

O de amendoim<br />

que se chamava midubim e não era torrado era cozido<br />

Me lembro de todos os pregões:<br />

Foi há muito tempo...<br />

Ovos frescos e baratos<br />

Dez ovos por uma pataca


A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros<br />

Vinha da boca do povo na língua errada do povo<br />

Língua certa do povo<br />

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil<br />

Ao passo que nós<br />

O que fazemos<br />

É macaquear<br />

A sintaxe lusíada


A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem<br />

Terras que não sabia onde ficavam<br />

Recife...<br />

Rua da União...<br />

Nunca pensei que ela acabasse!<br />

Tudo lá parecia impregnado de eternidade<br />

Recife...<br />

Meu avô morto.<br />

A casa de meu avô...<br />

Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de<br />

meu avô.


O último poema<br />

Assim eu quereria meu último poema<br />

Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e<br />

menos intencionais<br />

Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas<br />

Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume<br />

A pureza da chama em que se consomem os<br />

diamantes mais límpidos<br />

A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.


CARLOS DRUMMOND<br />

DE ANDRADE<br />

Carlos Drummond de Andrade nasceu em ltabira (MG) em 1902. Fez os estudos<br />

secundários em Belo Horizonte, num colégio interno, onde permaneceu até uma doença<br />

levou-o de novo a ltabira. Voltou para outro internato, desta vez em Nova Friburgo, no Rio<br />

de Janeiro. Pouco ficaria nessa escola: acusado de “insubordinação mental”, foi expulso do<br />

colégio. Em 1921, começou a colaborar com o Diário de Minas. Em 1925, diplomou-se em<br />

farmácia, profissão pela qual demonstrou pouco interesse. Nessa época, já redator do<br />

Diário de Minas, tinha contato com os modernistas de São Paulo. Na Revista de<br />

Antropofagia publicou, em 1928, o poema “No meio do caminho”, que provocaria muito<br />

comentário:<br />

No meio do caminho tinha uma pedra<br />

tinha uma pedra no meio do caminho<br />

tinha uma pedra<br />

no meio do caminho tinha uma pedra.<br />

Nunca me esquecerei desse acontecimento<br />

na vida de minhas retinas tão fatigadas.<br />

Nunca me esquecerei que no meio do caminho<br />

tinha uma pedra<br />

tinha uma pedra no meio do caminho<br />

no meio do caminho tinha uma pedra.


Ingressou no funcionalismo público e, em 1934, mudou-se para o Rio<br />

de Janeiro. Em agosto de 1987, faleceu sua única filha, Julieta. Doze dias<br />

depois, o poeta também faleceu. Tinha publicado vários livros de poesia<br />

e obras em prosa - principalmente crônica. Em vida, já era consagrado<br />

como o maior poeta brasileiro de todos os tempos.<br />

O nome de Drummond está associado ao que se fez de melhor na<br />

poesia brasileira. Pela grandiosidade e pela qualidade, sua obra não<br />

permite qualquer tipo de análise esquemática. Para compreender e,<br />

sobretudo, sentir a obra desse escritor, o melhor é ler seus poemas.<br />

O eu-lírico extrai sua poesia de acontecimentos banais, corriqueiros,<br />

gestos ou paisagens simples indo até o engajamento social e, em alguns<br />

casos, analisando fatos determinantes da história mundial. Do primeiro<br />

grupo, podemos citar poemas como “O caso do vestido”, “O<br />

desaparecimento de Luísa Porto “ e “Construção”. Do segundo, podemos<br />

citar “O medo”, “Nosso tempo” e “Canto ao homem do povo Charlie<br />

Chaplin”.


O primeiro poema de Alguma poesia é o conhecido "Poema de<br />

sete faces", do qual transcreve-se a primeira estrofe: Quando nasci,<br />

um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos!<br />

ser gauche na vida.<br />

A palavra gauche, de origem francesa, corresponde a “esquerdo”<br />

em nosso idioma. Em sentido figurado, o termo pode significar<br />

“acanhado”, “inepto”. Qualifica o ser às avessas, o “torto”, aquele<br />

que está à margem da realidade circundante e que com ela não<br />

consegue se comunicar. É assim que o poeta se vê. Logicamente,<br />

nesta condição, estabelece-se um conflito: o “eu” do poeta<br />

confronta-se com a realidade. Na superação desse conflito entra a<br />

poesia, único veículo possível de comunicação entre a realidade<br />

interior do poeta e a vida, a realidade exterior. Variantes da palavra<br />

gauche - como esquerdo, torto, canhestro - aparecem por toda a<br />

obra de Drummond, revelando sempre a oposição eu-lírico X<br />

realidade externa, que se resolverá de diferentes maneiras.


Muitos poemas de Drummond funcionam como denúncia da opressão<br />

que marcou o período da Segunda Grande Guerra. A temática social,<br />

resultante de uma visão dolorosa e penetrante da realidade, predomina<br />

em Sentimento do mundo (1940) e A rosa do povo (1945), obras que<br />

exprimem uma tendência da época: a literatura comprometida com a<br />

denúncia dos problemas sociais mundiais (caso da ascensão do nazifascismo),<br />

mas também de problemas locais (caso da situação brasileira<br />

sob a ditadura de Getúlio Vargas, conhecida como Estado Novo). A<br />

consciência do tenso momento histórico produz a indagação filosófica<br />

sobre o sentido da vida, pergunta para a qual o poeta só encontra uma<br />

resposta pessimista.<br />

O passado ressurge muitas vezes na poesia de Drummond e sempre<br />

como antítese para uma realidade presente. A terra natal - ltabira -<br />

transforma-se então no símbolo da atmosfera cultural e afetiva vivida<br />

pelo poeta. Nos primeiros livros, a ironia predominava na observação<br />

desse passado; mais tarde, o que vale são as impressões gravadas na<br />

memória. Transformar essas impressões em poemas significa<br />

reinterpretar o passado com novos olhos. O tom torna-se afetuoso, não<br />

mais irônico.


Da análise de sua experiência individual, da convivência<br />

com outros homens e do momento histórico, resulta a<br />

constatação de que o ser humano luta sempre para sair do<br />

isolamento, da solidão. Neste contexto, questiona-se<br />

também a existência de Deus.<br />

Nos primeiros livros de Drummond, o amor merece<br />

tratamento irônico. Mais tarde, o poeta procura capturar a<br />

essência desse sentimento e só encontra - como Camões e<br />

outros - as contradições, que se revelam no antagonismo<br />

entre o definitivo e o passageiro, o prazer e a dor. No<br />

entanto, essas contradições não destituem o amor de sua<br />

condição de sentimento maior. A ausência do amor é a<br />

negação da própria vida. O amor-desejo, paixão, vai<br />

aparecer com mais frequência nos últimos livros.


Depois da morte de Drummond, reuniu-se no livro O<br />

amor natural uma série de poemas eróticos mantidos em<br />

sigilo e que foram associados a um suposto caso<br />

extraconjugal mantido pelo poeta. Verdade ou não, interessa<br />

é que são poemas bem audaciosos, que exploram o aspecto<br />

físico do amor. Alguns encaram como poemas pornográficos;<br />

outros, como o erotismo transformado em linguagem da<br />

melhor qualidade poética.<br />

Drummond também explorou a metalinguagem, ou seja, a<br />

reflexão sobre o ato de escrever.<br />

O tempo é um dos aspectos que concede unidade à poesia<br />

de Drummond: o tempo passado, o presente e o futuro.<br />

Toda a trajetória do poeta - qualquer que seja o assunto<br />

tratado - marca-se por uma tentativa de conhecer-se a si<br />

mesmo e aos outros homens, através da volta ao passado, da<br />

adesão ao presente e da projeção a um futuro possível.


O passado renasce nas reminiscências da infância, da adolescência e<br />

da terra natal. A adesão ao presente concretiza-se quando o poeta se<br />

compromete com a sua realidade histórica (poesia social). E o tempo<br />

futuro aparece na expectativa de um mundo melhor, resultante da<br />

cooperação entre todos os homens. A seguir, uma lista com suas<br />

principais obras:<br />

<strong>Poesia</strong>: Alguma poesia (1930); Brejo das almas (1934); Sentimento<br />

do mundo (1940); <strong>Poesia</strong>s (1942); A rosa do povo (1945); Claro enigma<br />

(1951); Viola de bolso (1952); Fazendeiro do ar (1954); A vida passada a<br />

limpo (1959); Lição de coisas (1962); Boitempo (1968); As impurezas do<br />

branco (1973); A paixão medida (1980); Corpo (1984); Amar se<br />

aprende amando (1985); O amor natural (1992).<br />

Prosa: Confissões de Minas (1944) - ensaios e crônicas; Contos de<br />

aprendiz (1951); Passeios na ilha (1952) - ensaios e crônicas; Fala,<br />

amendoeira (1957) - crônicas; A bolsa e a vida (1962) - crônicas e<br />

poemas; O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso (1972) -<br />

crônicas; Boca de luar (1984) - crônicas; Tempo vida poesia (1986).


Poema de Sete Faces<br />

Quando nasci, um anjo torto<br />

desses que vivem na sombra<br />

disse: Vai, Carlos! ser gauche na<br />

vida.<br />

As casas espiam os homens<br />

que correm atrás de mulheres.<br />

A tarde talvez fosse azul,<br />

não houvesse tantos desejos.<br />

O bonde passa cheio de pernas:<br />

pernas brancas pretas amarelas.<br />

Para que tanta perna, meu Deus,<br />

pergunta meu coração.<br />

Porém meus olhos<br />

não perguntam nada.<br />

O homem atrás do bigode<br />

é sério, simples e forte.<br />

Quase não conversa.<br />

Tem poucos, raros amigos<br />

o homem atrás dos óculos e do<br />

bigode.<br />

Meu Deus, por que me abandonaste<br />

se sabias que eu não era Deus,<br />

se sabias que eu era fraco.<br />

Mundo mundo vasto mundo<br />

se eu me chamasse Raimundo<br />

seria uma rima, não seria uma<br />

solução.<br />

Mundo mundo vasto mundo,<br />

mais vasto é meu coração.<br />

Eu não devia te dizer<br />

mas essa lua<br />

mas esse conhaque<br />

botam a gente comovido como o<br />

diabo.


Sentimento do Mundo<br />

Tenho apenas duas mãos<br />

e o sentimento do mundo,<br />

mas estou cheio de escravos,<br />

minhas lembranças escorrem<br />

e o corpo transige<br />

na confluência do amor.<br />

Quando me levantar, o céu<br />

estará morto e saqueado,<br />

eu mesmo estarei morto,<br />

morto meu desejo, morto<br />

o pântano sem acordes.<br />

Os camaradas não disseram<br />

que havia uma guerra<br />

e era necessário<br />

trazer fogo e alimento.<br />

Sinto-me disperso,<br />

anterior a fronteiras,<br />

humildemente vos peço<br />

que me perdoeis.<br />

Quando os corpos passarem,<br />

Eu ficarei sozinho<br />

Desfiando a recordação<br />

do sineiro, da viúva e do<br />

microscopista<br />

que habitavam a barraca<br />

e não foram encontrados<br />

ao amanhecer<br />

esse amanhecer<br />

mais noite que a noite.


Cidadezinha qualquer<br />

Casas entre bananeiras<br />

mulheres entre laranjeiras<br />

pomar amor cantar.<br />

Um homem vai devagar.<br />

Um cachorro vai devagar.<br />

Um burro vai devagar.<br />

Devagar ... as janelas olham.<br />

Eta vida besta, meu Deus.


José<br />

E agora, José?<br />

A festa acabou,<br />

a luz apagou,<br />

o povo sumiu,<br />

a noite esfriou,<br />

e agora, José?<br />

e agora, Você?<br />

Você que é sem nome,<br />

que zomba dos outros,<br />

Você que faz versos,<br />

que ama, protesta?<br />

e agora, José?<br />

Está sem mulher,<br />

está sem discurso,<br />

está sem carinho,<br />

já não pode beber,<br />

já não pode fumar,<br />

cuspir já não pode,<br />

a noite esfriou,<br />

o dia não veio,<br />

o bonde não veio,<br />

o riso não veio,<br />

não veio a utopia<br />

e tudo acabou<br />

e tudo fugiu<br />

e tudo mofou,<br />

e agora, José?<br />

E agora, José?<br />

sua doce palavra,<br />

seu instante de febre,<br />

sua gula e jejum,<br />

sua biblioteca,<br />

sua lavra de ouro,<br />

seu terno de vidro,<br />

sua incoerência,<br />

seu ódio, - e agora?<br />

Com a chave na mão<br />

quer abrir a porta,<br />

não existe porta;<br />

quer morrer no mar,<br />

mas o mar secou;<br />

quer ir para Minas,<br />

Minas não há mais.<br />

José, e agora?<br />

Se você gritasse,<br />

se você gemesse,<br />

se você tocasse<br />

a valsa vienense,<br />

se você dormisse,<br />

se você cansasse,<br />

se você morresse...<br />

Mas você não morre,<br />

você é duro, José!<br />

Sozinho no escuro<br />

qual bicho-do-mato,<br />

sem teogonia,<br />

sem parede nua<br />

para se encostar,<br />

sem cavalo preto<br />

que fuja a galope,<br />

você marcha, José!<br />

José, para onde?


Um boi vê os homens<br />

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm<br />

e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos<br />

de alguma coisa. Certamente, falta-lhes<br />

não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres<br />

e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,<br />

até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam<br />

nem o canto do ar nem os segredos do feno,<br />

como também parecem não enxergar o que é visível<br />

e comum a cada um de nós, no espaço.E ficam tristes<br />

e no rasto da tristeza chegam à crueldade.<br />

Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se<br />

a um simples baixar de cílios, a uma sombra.<br />

Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade,<br />

e como neles há pouca montanha,<br />

e que secura e que reentrâncias e que<br />

impossibilidade de se organizarem em formas calmas,<br />

permanentes e necessárias. Têm, talvez,<br />

certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem<br />

perdoar a agitação incômoda e o translúcido<br />

vazio interior que os torna tão pobres e carecidos<br />

de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme<br />

(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo<br />

como pedras aflitas e queimam a erva e a água,<br />

e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.


Confidência do Itabirano<br />

Alguns anos vivi em Itabira.<br />

Principalmente nasci em Itabira.<br />

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.<br />

Noventa por cento de ferro nas calçadas.<br />

Oitenta por cento de ferro nas almas.<br />

E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.<br />

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,<br />

vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.<br />

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,<br />

é doce herança itabirana.<br />

De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço:<br />

este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;<br />

este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;<br />

este orgulho, esta cabeça baixa...<br />

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.<br />

Hoje sou funcionário público.<br />

Itabira é apenas uma fotografia na parede.<br />

Mas como dói!


Os ombros suportam o mundo<br />

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.<br />

Tempo de absoluta depuração.<br />

Tempo em que não se diz mais: meu amor.<br />

Porque o amor resultou inútil.<br />

E os olhos não choram.<br />

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.<br />

E o coração está seco.<br />

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.<br />

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,<br />

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.<br />

És todo certeza, já não sabes sofrer.<br />

E nada esperas de teus amigos.<br />

Pouco importa venha velhice, que é a velhice?<br />

Teus ombros suportam o mundo<br />

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.<br />

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios<br />

provam apenas que a vida prossegue<br />

e nem todos se libertaram ainda.<br />

Alguns, achando bárbaro o espetáculo,<br />

prefeririam (os delicados) morrer.<br />

Chegou um tempo em que não adianta morrer.<br />

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.<br />

A vida apenas, sem mistificação.


A Flor e A Náusea<br />

Preso à minha classe e a algumas roupas,<br />

vou de branco pela rua cizenta.<br />

Melancolias, mercadorias, espreitam-me.<br />

Devo seguir até o enjôo?<br />

Posso, sem armas, revoltar-me?<br />

Olhos sujos no relógio da torre:<br />

Não, o tempo não chegou de completa justiça.<br />

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.<br />

O tempo pobre, o poeta pobre<br />

fundem-se no mesmo impasse.<br />

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.<br />

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.<br />

O sol consola os doentes e não os renova.<br />

As coisas. Que triste são as coisas, consideradas em ênfase.


Vomitar este tédio sobre a cidade.<br />

Quarenta anos e nenhum problema<br />

resolvido, sequer colocado.<br />

Nenhuma carta escrita nem recebida.<br />

Todos os homens voltam pra casa.<br />

Estão menos livres mas levam jornais<br />

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.<br />

Crimes da terra, como perdoá-los?<br />

Tomei parte em muitos, outros escondi.<br />

Alguns achei belos, foram publicados.<br />

Crimes suaves, que ajudam a viver.<br />

Ração diária de erro, distribuída em casa.<br />

Os ferozes padeiros do mal.<br />

Os ferozes leiteiros do mal.<br />

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.<br />

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.<br />

Porém meu ódio é o melhor de mim.<br />

Com ele me salvo<br />

e dou a poucos uma esperança mínima.


Uma flor nasceu na rua!<br />

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do [tráfego.<br />

Uma flor ainda desbotada<br />

ilude a polícia, rompe o asfalto.<br />

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,<br />

garanto que uma flor nasceu.<br />

Sua cor não se percebe.<br />

Suas pétalas não se abrem.<br />

Seu nome não está nos livros.<br />

É feia. Mas é realmente uma flor.<br />

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde<br />

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.<br />

Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.<br />

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.<br />

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


Elegia 1938<br />

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,<br />

onde as formas e as ações não enceram nenhum exemplo.<br />

Praticas laboriosamente os gestos universais,<br />

sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.<br />

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,<br />

e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.<br />

À noite, se neblina, abrem guardas chuvas de bronze<br />

ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.<br />

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra<br />

e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.<br />

Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina<br />

e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.<br />

Caminhas por entre os mortos e com eles conversas<br />

sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.<br />

A literatura estragou tuas melhores horas de amor.<br />

Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.<br />

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota<br />

e adiar para outro século a felicidade coletiva.<br />

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição<br />

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


Mãos Dadas<br />

Não serei o poeta de um mundo caduco.<br />

Também não cantarei o mundo futuro.<br />

Estou preso à vida e olho meus companheiros<br />

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.<br />

Entre eles, considere a enorme realidade.<br />

O presente é tão grande, não nos afastemos.<br />

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.<br />

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.<br />

não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.<br />

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.<br />

não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.<br />

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,<br />

a vida presente.


Quadrilha<br />

João amava Teresa que amava Raimundo<br />

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili<br />

que não amava ninguém.<br />

João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,<br />

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,<br />

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes<br />

que não tinha entrado na história.


Amar<br />

Que pode uma criatura senão,<br />

entre criaturas, amar?<br />

amar e esquecer,<br />

amar e malamar,<br />

amar,desamar, amar?<br />

Sempre, e até de olhos vidrados, amar?<br />

Que pode, pergunto, o ser amoroso,<br />

sozinho, em rotação universal, senão<br />

rodar também, e amar?<br />

amar o que o mar traz à praia,<br />

o que ele sepulta, e o que, na brisa<br />

marinha,<br />

é sal, ou precisão de amor, ou simples<br />

ânsia?<br />

Amar solenemente as palmas do deserto,<br />

o que é entrega ou adoração expectante,<br />

e amar o inóspito, o áspero,<br />

um vaso sem flor, um chão de ferro,<br />

e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e<br />

uma ave de rapina.<br />

Este o nosso destino: amor sem conta,<br />

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,<br />

doação ilimitada a uma completa<br />

ingratidão,<br />

e na concha vazia do amor a procura<br />

medrosa,<br />

paciente, de mais e mais amor.<br />

Amar a nossa falta mesma de amor, e na<br />

secura nossa<br />

amar a água implícita, e o beijo tácito, e a<br />

sede infinita.


POESIA MODERNA<br />

CECÍLIA, QUINTANA<br />

E VINICIUS


POESIA MODERNA<br />

Na década de 1930 a poesia moderna brasileira consolida-se. As<br />

ousadias, por vezes excessivas, da geração de 1922 vão se abrandando. O<br />

resultado é o nascimento de uma lírica pujante, elaborada por um<br />

excepcional conjunto de criadores. Poucos países do mundo podem se<br />

orgulhar de possuir um grupo tão expressivo quanto este. A legítima idade<br />

de ouro do gênero poético, no país, ocorre em mais ou menos cinqüenta<br />

anos, até a década de 80, - quando morre Drummond e João Cabral se<br />

aposenta - fechando um ciclo de incomum grandeza. Didaticamente,<br />

podemos dividir estas brilhantes vozes poéticas em duas linhas:<br />

a) O grupo da tradição lírica: Resulta da síntese entre as inovações<br />

modernistas e o melhor da poesia ocidental do passado, fundindo a<br />

linguagem renovadora com temas clássicos e universais. Predomina a<br />

subjetividade e reafirma-se o velho poder da inspiração, nos moldes<br />

românticos. Seu maior expoente é Manuel Bandeira, mas enquadram-se<br />

neste bloco Cecília Meireles, Vinícius de Moraes e Mário Quintana.


) O grupo da modernidade radical: Estrutura-se em oposição<br />

ao confessionalismo e ao subjetivismo da poesia tradicional, mesmo<br />

aquela produzida por autores contemporâneos. O mundo torna-se mais<br />

importante do que o eu-lírico. Há uma grande desconfiança a respeito<br />

das possibilidades comunicativas da linguagem e rejeita-se a inspiração,<br />

privilegiando-se a técnica e a carpintaria poética. O nome principal é o de<br />

Carlos Drummond de Andrade. Outros representantes seriam Murilo<br />

Mendes, João Cabral de Mello Neto e os concretistas de São Paulo.<br />

Não é errado falar também um grupo (ou subgrupo) que opta pela<br />

poesia engajada. Este tipo especial de lírica origina-se dos compromissos<br />

sociais, políticos e religiosos dos escritores, para quem a arte se identifica<br />

com a manifestação de princípios nacionalistas, católicos ou marxistas.<br />

Geralmente correspondem a fases transitórias dos poetas, como a do<br />

socialismo de Drummond, a da religiosidade popular de Jorge de Lima,<br />

ou a do catolicismo conservador de Vinícius de Moraes, no início de<br />

carreira, etc. Do ponto de vista da linguagem, seus adeptos fogem do<br />

experimentalismo e buscam um estilo mais convencional, e por vezes<br />

discursivo. Mais próximos de nós, encontramos, nesta vertente engajada,<br />

boa parte das obras de Ferreira Gullar e Afonso Romano de Sant´Anna.


CECÍLIA MEIRELES<br />

Nasceu em 1901 na cidade do Rio de Janeiro e muito cedo ficou órfã de pai e mãe,<br />

sendo educada pela avó materna. Formou-se na Escola Normal, tornando-se<br />

professora. Em 1922, casou-se com o artista plástico português Fernando Dias com<br />

quem teve três filhas e do qual enviuvou em 1935. Casou-se novamente em 1940.<br />

Cecília Meireles teve intensa atividade profissional se levarmos em conta as<br />

limitações profissionais que as mulheres sofriam no país. Além de educadora e<br />

grande poeta, foi jornalista e tradutora. Criou a primeira biblioteca infantil no país,<br />

fez pesquisas folclóricas e lecionou Literatura e Cultura Brasileira na Universidade<br />

do Texas, EUA. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1964, aos sessenta e três anos, após<br />

longa enfermidade.<br />

Obras principais: Viagem (1939); Vaga música (1942); Mar absoluto (1945);<br />

Doze noturnos de Holanda (1952); O romanceiro da Inconfidência (1953); Metal<br />

rosicler (1960).<br />

Muito jovem ainda, Cecília Meireles participou da revista Festa, produzida<br />

por um grupo literário católico, conservador e antimodernista que no final da<br />

década de 1920 teve alguma repercussão na antiga capital federal. Desta vinculação,<br />

herdou, possivelmente, o gosto pela tradição lírica do passado, sobretudo a tradição<br />

simbolista, que aparece tanto em seu estilo quanto em sua temática.


A poética de Cecília Meireles, no entanto, não é anacrônica. Apesar<br />

das influências passadistas, os seus versos situam-se além das escolas do<br />

século XIX, não se enquadrando em qualquer conceito muito rígido. São<br />

versos delicados, intimistas, subjetivos. O crítico Otto Maria Carpeaux<br />

delimitou assim esta obra tão pessoal:<br />

A poesia de Cecília Meireles embora pertencendo a nós o e ao nosso<br />

mundo, é uma poesia de perfeição intemporal.<br />

A LINGUAGEM :: No plano estilístico – ao contrário do coloquialismo<br />

dos poetas modernos – há em sua obra uma tendência à linguagem<br />

elevada, sempre carregada de musicalidade. A música, algumas vezes,<br />

parece ser mais importante que o próprio sentido dos versos. Também a<br />

exemplo dos simbolistas, as palavras para a autora mais sugerem do que<br />

descrevem. Daí a força das impressões sensoriais em seus poemas:<br />

imagens visuais e auditivas sucedem-se a todo momento: O rumor de suas<br />

penas / era um rumor de fontes / brancas em tardes morenas.<br />

Ressalte-se que certas palavras que aparecem continuamente em seus<br />

versos, tais como música, areia, espuma, lua e vento, acabam, por sua<br />

repetição obsessiva, adquirindo uma dimensão metafórica. Simbolizam o<br />

efêmero, aquilo que passa (em geral, os sentimentos do eu-lírico). Opõemse,<br />

por exemplo, à palavra mar, que é a grande metáfora daquilo que<br />

permanece (em geral, o sofrimento).


A TEMÁTICA :: Igualmente no plano dos assuntos, a poesia de<br />

Cecília Meireles revela ligações com várias estéticas tradicionais,<br />

especialmente o Simbolismo. Entre os seus motivos dominantes figuram:<br />

- O registro de estados de ânimo vagos e quase incorpóreos. Neles<br />

predomina uma difusa melancolia e uma noção de perda amorosa,<br />

abandono e solidão.<br />

- Uma aguda consciência da passagem do tempo, da brevidade enganosa<br />

de todas as coisas, sobremodo dos sentimentos.<br />

A atmosfera de dor existencial que emana dos poemas de Cecília<br />

Meireles é centrada na percepção de que tudo passa e de que o fluir do<br />

tempo dissolve as ilusões e os amores, o corpo e mesmo a memória. Um<br />

exemplo desta visão sofrida é “Retrato”:<br />

Eu não tinha este rosto de hoje,<br />

assim calmo, assim triste, assim<br />

magro,<br />

nem estes olhos tão vazios,<br />

nem o lábio tão amargo.<br />

Eu não tinha estas mãos sem força,<br />

tão paradas e frias e mortas;<br />

eu não tinha este coração<br />

que nem se mostra.<br />

Eu não dei por conta esta mudança,<br />

tão simples, tão certa e fácil:<br />

Em que espelho ficou perdida<br />

a minha face?


O crítico Flávio Loureiro Chaves anotou que a poesia de Cecília Meireles<br />

vive “engolfada na torrente do tempo”, em meio a uma grande angústia, imersa<br />

num “deserto opaco”, sem passado e sem futuro. “Não há passado / nem há<br />

futuro. / Tudo que abarco / se faz presente” – diz a poeta. Sua experiência é,<br />

portanto, uma experiência do vazio, já que ela não encontra possibilidade de<br />

comunicação com o mundo circundante. Nisto residiria o vínculo da autora com a<br />

modernidade estética, já que esta tem entre suas características ideológicas as<br />

sensações do absurdo e da falta de sentido da vida contemporânea.<br />

Diante da “navegação sem estrelas”, que é a trajetória humana, resta à Cecília<br />

apenas o canto, isto é, a celebração do ato de criação poética, único<br />

enfrentamento da artista contra um universo despossuído de significado. Observe-<br />

se o poema “Aceitação”:<br />

É mais fácil pousar o ouvido nas<br />

nuvens<br />

e sentir passar as estrelas<br />

do que prendê-lo à terra e alcançar o<br />

rumor dos teus passos.<br />

É mais fácil, também, debruçar os<br />

olhos no oceano<br />

e assistir, lá no fundo, ao nascimento<br />

mudo das formas,<br />

que desejar que apareças, criando com<br />

teu simples gesto<br />

o sinal de uma eterna esperança.<br />

Não me interessam mais nem as<br />

estrelas, nem as formas do mar, nem<br />

tu.<br />

Desenrolei de dentro do tempo a<br />

minha canção:<br />

não tenho inveja às cigarras: também<br />

vou morrer de cantar.


Outro exemplo encontra-se em<br />

“Motivo”:<br />

Eu canto porque o instante existe<br />

e a minha vida esta completa.<br />

Não sou alegre nem sou triste:<br />

sou poeta.<br />

Irmão das coisas fugidias,<br />

não sinto gozo nem tormento.<br />

Atravesso noites e dias<br />

no vento.<br />

Se desmorono ou se edifico,<br />

se permaneço ou me desfaço,<br />

não sei, não sei. Não sei se fico<br />

ou passo.<br />

Sei que canto. E a canção é tudo.<br />

Tem sangue eterno a asa ritmada.<br />

E um dia sei que estarei mudo:<br />

- mais nada.


ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA :: A experiência<br />

poética mais significativa de Cecília Meireles – e uma das obrasprimas<br />

de toda a literatura brasileira – é o Romanceiro da<br />

Inconfidência. Para escrevê-lo, pesquisou durante quatro anos os<br />

elementos históricos da sedição mineira. No entanto, a obra tem<br />

uma abrangência muito maior, registrando toda a civilização do<br />

ouro, no século XVIII, conforme nos explica a própria autora:<br />

Era uma história feita de coisas eternas e irredutíveis: ouro,<br />

amor, liberdade, traições.<br />

Mas porque todos esses grandiosos acontecimentos já vinham<br />

preparados de tempos mais antigos, e foram o desfecho de um<br />

passado minuciosamente construído – era preciso iluminar esses<br />

caminhos anteriores, seguir o rastro do ouro que vai, a princípio<br />

como o fio de um colar, ligando cenas e personagens, até<br />

transformar-se em pesada cadeia que prende e imobiliza num<br />

destino doloroso.


Ao mesmo tempo, Cecília encontrou numa expressão poética específica do<br />

passado ibérico a saída técnica para dar maior autenticidade e força evocativa<br />

ao episódio: o romanceiro.<br />

O romanceiro é formado por um conjunto de romances1, poemas curtos de<br />

caráter narrativo ou lírico, destinados ao canto e transmitidos oralmente por<br />

trovadores e que permaneceram na memória coletiva popular. Seus autores,<br />

em regra geral, ficaram anônimos. Os romanceiros eram conhecidos na<br />

Espanha e em Portugal desde o século XV e tinham várias funções:<br />

informação, diversão, doutrinamento político e religioso.Parece também que<br />

o canto de certos romances servia de estímulo ao trabalho agrícola.<br />

Segundo Norma Goldstein a composição do romanceiro pode ser<br />

comparada a de uma rosácea, pois “cada romance corresponderia a uma<br />

pétala, unidade válida por si mesma e, simultaneamente, parte de um<br />

conjunto”. Ou seja, cada romance pode ter relativa autonomia em relação aos<br />

anteriores, mas deve se ater ao tema central da obra. Ainda na questão formal,<br />

os romances apresentam um ritmo mais ou menos regular, com o domínio da<br />

rima assonante e o recurso do estribilho para facilitar a memorização.<br />

Ao valer-se dessa espécie literária arcaica, Cecília Meireles como que<br />

deu aos fatos históricos narrados uma aura lírica que parece vir do próprio<br />

século XVIII, mesclando admiravelmente a crônica dramática de uma época à<br />

tradição literária popular e à invenção poética, conforme pode-se ver neste<br />

fragmento do “Romance XXI ou das Idéias”.


A vastidão desses campos.<br />

A alta muralha das serras.<br />

As lavras inchadas de ouro.<br />

Os diamantes entre as<br />

pedras.<br />

Negros, índios e mulatos.<br />

Almocrafes* e gamelas.<br />

Os rios todos virados.<br />

Toda revirada, a terra.<br />

Capitães, governadores,<br />

padres, intendentes, poetas.<br />

Carros, liteiras douradas,<br />

cavalos de crina aberta<br />

A água a transbordar das<br />

fontes.<br />

Altares cheios de velas.<br />

Cavalhadas, Luminárias.<br />

Sinos. Procissões.<br />

Promessas.<br />

Anjos e santos nascendo<br />

em mãos de gangrena e<br />

lepra.<br />

Finas músicas broslando*<br />

as alfaias* das capelas.<br />

Todos os sonhos barrocos<br />

deslizando pelas pedras.<br />

Pátios de seixos. Escadas.<br />

Boticas. Pontes. Conversas.<br />

Gente que chega e que<br />

passa.<br />

E as idéias.<br />

Amplas casas. Longos<br />

muros.<br />

Vida de sombras inquietas.<br />

Pelos cantos das alcovas,<br />

histerias de donzelas.<br />

Lamparinas, oratórios,<br />

bálsamos, pílulas, rezas.<br />

Orgulhosos sobrenomes.<br />

Intrincada parentela.<br />

No batuque das mulatas,<br />

a prosápia * degenera:<br />

pelas portas dos fidalgos,<br />

na lã das noites secretas,<br />

meninos recém-nascidos<br />

como mendigos esperam.<br />

Bastardias. Desavenças.<br />

Emboscadas pela treva.<br />

Sesmarias. Salteadores.<br />

Emaranhadas invejas.<br />

O clero. A nobreza. O povo.<br />

E as idéias. (...)<br />

Doces invenções da Arcádia!<br />

Delicada primavera:<br />

pastoras, sonetos, liras,<br />

-- entre as ameaças austeras<br />

que uns protelam e outros<br />

negam.<br />

Casamentos impossíveis.<br />

Calúnias. Sátiras. Essa<br />

paixão da mediocridade<br />

que na sombra se exaspera.<br />

E os versos de asas<br />

douradas,<br />

que amor trazem e amor<br />

levam...<br />

Anarda. Nise. Marília...<br />

As verdades e as quimeras.<br />

Outras leis, outras pessoas.<br />

Novo mundo que começa.<br />

Nova raça. Outro destino.<br />

Plano de melhores eras.<br />

E os inimigos atentos,<br />

que, de olhos sinistros,<br />

velam.<br />

E os aleives. E as denúncias.<br />

E as idéias.<br />

Aleives: perfídias, traições;<br />

Almocrafes: enxadas usadas na mineração;<br />

Alfaia: paramentos de igreja;<br />

Broslando: ornamentando<br />

Prosápia: linhagem.


Estrutura do poema :: A obra compõem-se de 85 romances,<br />

intercalados por uma Fala inicial, uma Fala à antiga Vila Rica, uma Fala aos<br />

pusilânimes, uma Fala à comarca do Rio das Mortes e pela Fala aos<br />

inconfidentes mortos, que fecha o Romanceiro. Estas falas seriam a expressão<br />

mais direta do ponto de vista do poeta em relação aos fatos narrados. Há<br />

também quatro Cenários – que situam os acontecimentos e também recriam<br />

a atmosfera da época. E aparecem, por fim, dois outros poemas com títulos<br />

próprios: Imaginária serenata e Retrato de Marília.<br />

Um dos romances mais admirados é o “Romance XXXIV ou de Joaquim<br />

Silvério”:<br />

Melhor negócio que Judas<br />

fazes tu, Joaquim Silvério:<br />

que ele traiu Jesus Cristo,<br />

tu trais um simples Alferes.<br />

Recebeu trinta dinheiros...<br />

- e tu muitas coisas pedes:<br />

pensão para toda a vida,<br />

perdão para quanto deves,<br />

comenda para o pescoço,<br />

honras, glórias, privilégios.<br />

E andas tão bem na cobrança<br />

que quase tudo recebes!<br />

Melhor negócio que Judas<br />

fazes tu, Joaquim Silvério!<br />

Pois ele encontra remorso,<br />

coisa que não te acomete.<br />

Ele topa uma figueira,<br />

tu calmamente envelheces,<br />

orgulhoso e impenitente<br />

com teus sombrios mistérios.<br />

(Pelos caminhos do mundo,<br />

nenhum destino se perde:<br />

há os grandes sonhos dos homens,<br />

e a surda força dos vermes.)


“Retrato de Marília em Antônio Dias” é um dos mais pungentes<br />

poemas do Romanceiro:<br />

(Essa, que sobe vagarosa<br />

a ladeira da sua igreja,<br />

embora já não mais o seja,<br />

foi clara, nacarada rosa.<br />

E seu cabelo destrançado<br />

ao clarão da amorosa aurora<br />

não era prata de agora,<br />

mas negro veludo ondulado.<br />

A que se inclina pensativa<br />

e sobre a missa os olhos cerra,<br />

já não pertence mais à terra:<br />

e só na morte que está viva. (...)<br />

Corpo quase sem pensamento,<br />

amortalhado em seda escura,<br />

com lábios de cinza murmura<br />

“memento, memento,<br />

memento...”<br />

ajoelhada no pavimento<br />

que vai ser sua sepultura.)


MÁRIO QUINTANA<br />

Em 1906, nasceu em Alegrete, tradicional cidade oligárquica da campanha<br />

rio-grandense, filho de uma família de classe média. Com treze anos<br />

ingressou no Colégio Militar de Porto Alegre. Em 1924, abandonou os<br />

estudos e após curto retorno a Alegrete, onde trabalharia na farmácia do<br />

pai, fixou-se definitivamente na capital gaúcha. Durante muitos anos<br />

entregou-se à vida boêmia, então muito intensa na cidade. Tornou-se<br />

tradutor da Editora do Globo, vertendo para o nosso idioma Proust,<br />

Conrad, Maupassant, Verlaine e Aldous Huxley, entre outros clássicos.<br />

Também colaborou permanentemente com a imprensa. Apesar da<br />

consagração nacional que o cercou na velhice e das dezenas de títulos<br />

honoríficos que recebeu, morreu em extrema pobreza no ano de 1994.<br />

Obras principais: Rua dos cataventos (1940); Canções (1946);<br />

Sapato florido (1948); O aprendiz de feiticeiro (1950); Espelho mágico<br />

(1951); <strong>Poesia</strong>s (1962); Do caderno H (1973); Apontamentos de história<br />

sobrenatural (1976); A vaca e o hipogrifo (1977); Esconderijos do tempo<br />

(1880); Baú de espantos (1986); Velório sem defunto (1990).


Seja por razões pessoais que ele nunca explicitou, seja por<br />

ter vivido numa sociedade pastoril em derrocada (sua<br />

infância coincide com o declínio da metade sul do Rio<br />

Grande), Mário Quintana elabora uma poesia<br />

eminentemente crepuscular, percorrida por uma constante<br />

amargura e articulada em torno de poucos elementos: a<br />

morte e a tristeza das coisas.<br />

Desde seu livro de estréia, Rua dos cataventos, - composto<br />

por trinta e cinco sonetos, que parecem marchar contra o<br />

verso livre dos modernistas - percebe-se a melancolia<br />

intensa do eu-lírico. Sua interioridade está dilacerada, à<br />

maneira dos românticos. A todo momento, ele refere-se aos<br />

desencantos que o afligem, porém sua linguagem é tão<br />

evasiva, tão vaga e simbólica, que não se sabe, com clareza,<br />

quais são estes males. Ou seja, a tristeza do poeta é visível, as<br />

causas não. Exemplo famoso encontramos no soneto XVII:


Da primeira vez em que me assassinaram<br />

Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...<br />

Depois, de cada vez que me mataram,<br />

Foram levando qualquer coisa minha...<br />

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou<br />

O mais desnudo, o que não tem mais nada...<br />

Arde um toco de vela amarelada...<br />

Como o único bem que me ficou!<br />

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!<br />

Ah! Desta mão, avaramente adunca,<br />

Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!<br />

Aves da noite! Asas do Horror! Voejai!<br />

Que luz, trêmula e triste como um ai,<br />

A luz do morto não se apaga nunca!


Este universo de ruínas interiores, de sonhos mortos e de<br />

naufrágios pessoais aparece em toda a sua obra, como em “A<br />

carta”, do livro Apontamentos de história sobrenatural:<br />

Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta<br />

[amarelecida.<br />

Rasguei-a a sem procurar ao menos saber de quem seria...<br />

Eu tenho um medo horrível<br />

A essas marés montantes do passado,<br />

Com suas quilhas afundadas, com<br />

Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e<br />

[gáveas...<br />

Ai de mim,<br />

Ai de ti, ó velho mar profundo,<br />

Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios!


O indivíduo percebe o fim de tudo e sente-se perdido numa<br />

realidade imprecisa, cheia de noites silenciosas. Todas as referências<br />

concretas são dissolvidas em nevoeiros e outros símbolos da<br />

ausência de sentido das coisas: Que procuravas, solitário e triste? /<br />

Vamos andando entre os nevoeiros frios... / Vamos<br />

andando...Nada mais existe!...<br />

Quando o mundo exterior é descrito mais objetivamente, os<br />

cenários parecem quase naturezas-mortas, com certa atmosfera<br />

fantástica, como se as contradições da vida moderna ali não<br />

existissem. Daí o seu gosto por pequenas ruas silenciosas que<br />

lembram ruas de uma longínqua memória perdida:<br />

Dorme, ruazinha... É tudo escuro...<br />

E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?<br />

Dorme o teu sono sossegado e puro,<br />

Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos...


Esta irrealidade da vida concreta é acentuada pela<br />

presença de anjos que tocam flauta em cima de telhados, por<br />

luas enormes, por mortos que assombram as madrugadas,<br />

por velas ardentes que emitem luzes sem fim. Em certos<br />

momentos, Mário Quintana está próximo do surrealismo e<br />

seu desinteresse pelo registro fotográfico revela-se até na<br />

pungente homenagem que presta a Porto Alegre, no<br />

antológico “O mapa”. O crítico Paulo Becker assinala que<br />

neste poema, “a reinvenção lírica de Porto Alegre se<br />

processa sem qualquer relação direta com aspecto real ou<br />

característica típica da capital gaúcha, apresentando de fato<br />

a utopia de uma cidade humanizada que possa ser sentida<br />

por seus habitantes como um segundo corpo.”


Olho o mapa da cidade<br />

Como quem examinasse<br />

A anatomia de um corpo...<br />

(É nem que fosse o meu corpo!)<br />

Sinto uma dor infinita<br />

Das ruas de Porto Alegre<br />

Onde jamais passarei...<br />

Há tanta esquina esquisita,<br />

Tanta nuança de paredes,<br />

Há tanta moça bonita<br />

Nas ruas que não andei<br />

(E há uma rua encantada<br />

Que nem em sonhos sonhei...)<br />

Quando eu for, um dia desses,<br />

Poeira ou folha levada<br />

No vento da madrugada,<br />

Serei um pouco do nada<br />

Invisível, delicioso<br />

Que faz com que o teu ar<br />

Pareça mais um olhar,<br />

Suave mistério amoroso,<br />

Cidade de meu andar<br />

(Deste já tão longo andar!)<br />

E talvez de meu repouso...


Um poeta à margem das escolas :: De certa forma, Quintana tem<br />

dívidas com várias escolas. A nostalgia do passado, a sensação de infortúnio<br />

no tempo presente e a insistência na idéia da morte indicam uma herança<br />

romântica. Já a predominância de metáforas e imagens ousadas o remete<br />

para influências simbolistas, de quem assimilou também a valorização do<br />

soneto. Ou seja, encontra-se em seus versos a tradição da lírica ocidental.<br />

Mas, como em Manuel Bandeira, o tradicional se funde com o moderno<br />

através de uma linguagem de absoluta simplicidade, longe do artificialismo<br />

das poéticas do século XIX. Esta junção do subjetivismo crepuscular - de<br />

inspiração simbolista - com o estilo coloquial da poesia moderna constitui<br />

uma das razões de seu encanto.<br />

Os poemas em prosa (Quintanares) :: Sapato florido, de 1948,<br />

abriria uma outra tendência em sua obra, culminando com a publicação de<br />

Do caderno H, em 1973. Ambos reúnem poemas curtos em prosa e não<br />

chegam a constituir outra fase na carreira do autor porque são produzidos<br />

simultaneamente à poesia mais convencional. Já no século anterior,<br />

Baudelaire havia elaborado na teoria e na prática o poema em prosa:<br />

“Qual de nós não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical<br />

sem ritmo e sem rima, bastante maleável e rica de contrastes para se<br />

adaptar aos movimentos líricos da alma? (...) É sobretudo da frequentação<br />

das grandes cidades, é do cruzamento de suas inúmeras relações que nasce<br />

este ideal obsessivo.”


Os textos de Mário Quintana distinguem-se, no entanto, por<br />

serem mais curtos e irônicos. Alguns lembram epigramas (ditos<br />

humorísticos), dado o seu caráter imprevisível e a sua rapidez: "A<br />

mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer." Ou ainda:<br />

"Amar é mudar a alma de casa."<br />

A exemplo de Baudelaire, o alvo dos poemas em prosa de Sapato<br />

Florido e Do caderno H é o cotidiano. Mas enquanto o escritor<br />

francês procurava nas ruas os sinais dos tempos modernos,<br />

estabelecendo uma espécie de realismo poético, o autor gaúcho<br />

busca na vida diária aquilo que é risível, incomum, absurdo, surreal.<br />

O cotidiano passa a ser uma fonte de mistérios e surpresas.<br />

O humor dos poemas em prosa (chamados de "quintanares" por<br />

Manuel Bandeira) nasce dessa visão inesperada que torna mágica a<br />

banalidade do nosso dia-a-dia. Eis alguns exemplos, retirados de<br />

Sapato florido e Do caderno H:


Horror<br />

Com seus OO de espanto, seus RR<br />

guturais, seu hirto H, HORROR é<br />

uma palavras de cabelos em pé,<br />

assustada da própria significação.<br />

Arte de fumar<br />

Desconfia dos que não fumam: esses<br />

não têm vida interior, não têm<br />

sentimentos. O cigarro é uma<br />

maneira disfarçada de suspirar...<br />

O espião<br />

Bem o conheço. Num espelho de bar,<br />

numa vitrina, ao acaso do footing,<br />

em qualquer vidraça por aí,<br />

trocamos às vezes um súbito e<br />

inquietante olhar. Não, isto não pode<br />

continuar assim. Que tens tu de<br />

espionar-me? Que me censuras,<br />

fantasma? Que tens a ver com os<br />

meus bares, com os meus cigarros,<br />

com os meus delírios ambulatórios,<br />

com tudo o que não faço na vida?<br />

Cartaz para uma Feira do Livro<br />

Os verdadeiros analfabetos são os<br />

que aprenderam a ler e não lêem.<br />

Leituras<br />

Não, não te recomendo a leitura<br />

de Joaquim Manuel de Macedo ou<br />

de José de Alencar. Que idéia foi<br />

essa de teu professor?<br />

Para que havias tu de os ler, se a<br />

tua avozinha já os leu? E todas as<br />

lágrimas que ela chorou, quando era<br />

moça como tu, pelos amores de Ceci<br />

e da Moreninha, ficaram fazendo<br />

parte do teu ser, para sempre.<br />

Como vês, minha filha, a<br />

hereditariedade nos poupa muito<br />

trabalho.


O supremo castigo<br />

Em todos os aeródromos, em<br />

todos os estádios, no ponto principal<br />

de todas as metrópoles, existe -<br />

quem é que não viu? - aquele<br />

cartaz...<br />

De modo que, se esta civilização<br />

desaparecer e seus dispersos e<br />

bárbaros sobreviventes tiverem de<br />

recomeçar tudo desde o princípio -<br />

até que uma dia também tenham os<br />

seus próprios arqueólogos - estes<br />

hão de sempre encontrar, nos mais<br />

diversos pontos do mundo inteiro,<br />

aquela mesma palavra.<br />

E pensarão eles que Coca-Cola era<br />

o nome do nosso Deus!<br />

Página de História<br />

De uma História universal editada<br />

no século XXXIII: 'Os homens do<br />

século XX, talvez por motivos que só<br />

a miséria explicaria, costumavam<br />

aglomerar-se inconfortavelmente em<br />

enormes cortiços de cimento. Alguns<br />

atribuem o fato a não se sabe que<br />

misterioso pânico ao simples contato<br />

da natureza; mas isso é matéria de<br />

ficcionistas, místicos e poetas...O<br />

historiador sabe apenas que chegou<br />

a haver, em certas áreas, conjuntos<br />

de cortiços erguidos lado a lado sem<br />

o suficiente espaço e arejamento,<br />

que poderiam alojar vários milhões<br />

de indivíduos. Era, por assim dizer,<br />

uma vida de insetos - mas sem a<br />

segurança que apresentam as<br />

habitações construídas por estes.


No final de sua vida, Quintana manteve o humor, mesmo voltando às<br />

formas mais tradicionais de versificação, como neste “Bilhete”, em que o<br />

erotismo se manifesta com fina ironia: Mas onde já se ouviu falar de amor<br />

à distância,<br />

Num teleamor?!<br />

Num amor de longe...<br />

Eu sonho é um amor pertinho...<br />

E depois<br />

Esse calor humano é uma coisa que todos -<br />

[até os executivos têm<br />

É algo que acaba se perdendo no ar<br />

No vento<br />

No frio que agora faz...<br />

Escuta!<br />

O que eu quero<br />

O que eu amo<br />

O que eu desejo em ti<br />

É o teu calor animal...


O Poema<br />

Um poema como um gole d'água bebido no<br />

[escuro.<br />

Como um pobre animal palpitando ferido.<br />

Como pequenina moeda de prata perdida<br />

[para sempre na floresta noturna.<br />

Um poema sem outra angústia que sua<br />

[misteriosa condição de poema.<br />

Triste.<br />

Solitário.<br />

Único.<br />

Ferido de mortal beleza.<br />

De O Aprendiz de Feiticeiro (1950)<br />

Do Amoroso Esquecimento<br />

Eu agora - que desfecho!<br />

Já nem penso mais em ti...<br />

Mas será que nunca deixo<br />

De lembrar que te esqueci?<br />

Outros poemas de Mario Quintana:<br />

De Espelho Mágico (1951)<br />

O Auto-Retrato<br />

No retrato que me faço<br />

- traço a traço -<br />

às vezes me pinto nuvem,<br />

às vezes me pinto árvore...<br />

às vezes me pinto coisas<br />

de que nem há mais lembrança...<br />

ou coisas que não existem<br />

mas que um dia existirão...<br />

e, desta lida, em que busco<br />

- pouco a pouco -<br />

minha eterna semelhança,<br />

no final, que restará?<br />

Um desenho de criança...<br />

Corrigido por um louco!<br />

De Apontamentos de História<br />

Sobrenatural (1976)


Eu queria trazer-te uns versos<br />

muito lindos<br />

Eu queria trazer-te uns versos muito<br />

lindos<br />

colhidos no mais íntimo de mim...<br />

Suas palavras<br />

seriam as mais simples do mundo,<br />

porém não sei que luz as iluminaria<br />

que terias de fechar teus olhos para<br />

as ouvir...<br />

Sim! Uma luz que viria de dentro<br />

delas,<br />

como essa que acende inesperadas<br />

cores<br />

nas lanternas chinesas de papel.<br />

Trago-te palavras, apenas... e que<br />

estão escritas<br />

do lado de fora do papel... Não sei,<br />

eu nunca soube<br />

o que dizer-te<br />

e este poema vai morrendo, ardente<br />

e puro, ao vento<br />

da <strong>Poesia</strong>...<br />

como<br />

uma pobre lanterna que incendiou!<br />

De Apontamentos de História<br />

Sobrenatural (1976)<br />

Eu escrevi um poema triste<br />

Eu escrevi um poema triste<br />

E belo, apenas da sua tristeza.<br />

Não vem de ti essa tristeza<br />

Mas das mudanças do Tempo,<br />

Que ora nos traz esperanças<br />

Ora nos dá incerteza...<br />

Nem importa, ao velho Tempo,<br />

Que sejas fiel ou infiel...<br />

Eu fico, junto à correnteza,<br />

Olhando as horas tão breves...<br />

E das cartas que me escreves<br />

Faço barcos de papel!<br />

De A Cor do Invisível (1989)


Do Caderno H (1973):<br />

O Pior<br />

O pior dos problemas da gente é<br />

que ninguém tem nada com isso.<br />

Indecência<br />

Na verdade, a coisa mais<br />

pornográfica que existe é a palavra<br />

“pornografia”.<br />

Dos Livros<br />

Hás duas espécies de livros: uns<br />

que os leitores esgotam, outros<br />

que esgotam os leitores.<br />

Das Escolas<br />

Pertencer a uma escola poética é o<br />

mesmo que ser condenado à<br />

prisão perpétua.<br />

O Anti-Hamlet<br />

O que nos atrai no 007 é que ele é<br />

o t i p o d o h e r ó i a n t i -<br />

shakespeariano. Nada de casos de<br />

consciência. Não é como esse<br />

pobre príncipe Hamlet que, para<br />

cometer meia dúzia de crimes,<br />

passa todo o tempo falando<br />

sozinho...<br />

Poeminha do Contra<br />

Todos esses que aí estão<br />

Atravancando meu caminho,<br />

Eles passarão...<br />

Eu passarinho!<br />

Verso Perdido<br />

... eu te amo a perder de vista ...<br />

Recato<br />

Não gosto de estar dormindo nem<br />

de estar morto perto de ninguém.


Os farsantes<br />

Desconfia da tristeza de certos poetas.<br />

É uma tristeza profissional e tão<br />

suspeita como a exuberante alegria<br />

das coristas.<br />

Amizade<br />

Quando o silêncio a dois não se torna<br />

incômodo.<br />

Amor<br />

Quando o silêncio a dois se torna<br />

cômodo.<br />

Guerra<br />

Método Prático de Geografia.<br />

Morte<br />

Nada de maior; simples passagem de<br />

um estado para outro – assim como<br />

quem se muda do estado do Rio<br />

Grande do Sul para o estado de Santa<br />

Catarina...<br />

Pobres<br />

Espetáculo predileto dos ricos.<br />

Ricos<br />

Espetáculo predileto dos pobres.<br />

Frases que Matam<br />

– M a s c o m o v o c ê e s t á b e m<br />

conservado!<br />

Quincas Borba<br />

Os personagens de Machado de Assis<br />

eram tão medíocres que, enquanto<br />

outros loucos do mundo bancavam<br />

Napoleão o Grande, o de Machado de<br />

Assis contentava-se em ser Napoleão<br />

III.<br />

Carnaval<br />

Não gosto do Carnaval porque parece<br />

filme histórico italiano.<br />

Vida<br />

A vida era muito mais intensa quando<br />

não passava, na média, de 40 anos.<br />

Agora é um longo, um interminável<br />

arrastar de correntes: nós somos as<br />

almas penadas deste mundo.<br />

Contingências<br />

Pobre se engasga com cuspe.


VINICIUS DE<br />

MORAES<br />

Nascido no Rio de Janeiro, em 19 de outubro de 1913, Vinicius foi<br />

diplomata, dramaturgo, jornalista, poeta e compositor.<br />

Poeta essencialmente lírico, o poetinha (como ficou conhecido)<br />

notabilizou-se pelos seus sonetos. Conhecido como um boêmio<br />

inveterado, fumante e apreciador do uísque, era também conhecido<br />

por ser um grande conquistador. Vinicius casou-se nove vezes ao<br />

longo de sua vida.<br />

Sua obra é vasta, passando pela literatura, teatro, cinema e<br />

música. No campo musical, foi parceiro de Tom Jobim, Toquinho,<br />

Baden Powell, João Gilberto, Chico Buarque e Carlos Lyra.<br />

A seguir, uma seleção de alguns de seus poemas mais famosos.


Inatingível<br />

O que sou eu, gritei um dia para o<br />

infinito<br />

E o meu grito subiu, subiu sempre<br />

Até se diluir na distância.<br />

Um pássaro no alto planou vôo<br />

E mergulhou no espaço.<br />

Eu segui porque tinha que seguir<br />

Com as mãos na boca, em concha<br />

Gritando para o infinito a minha<br />

dúvida.<br />

Mas a noite espiava a minha<br />

dúvida<br />

E eu me deitei à beira do caminho<br />

Vendo o vulto dos outros que<br />

passavam<br />

Na esperança da aurora.<br />

Eu continuo à beira do caminho<br />

Vendo a luz do infinito<br />

Que responde ao peregrino a<br />

imensa dúvida.<br />

Eu estou moribundo à beira do<br />

caminho.<br />

O dia já passou milhões de vezes<br />

E se aproxima a noite do desfecho.<br />

Morrerei gritando a minha ânsia<br />

Clamando a crueldade do infinito<br />

E os pássaros cantarão quando o<br />

dia chegar<br />

E eu já hei de estar morto à beira<br />

do caminho.<br />

De O caminho para a distância<br />

(1933)


A volta da mulher morena<br />

Meus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher morena<br />

Que os olhos da mulher morena estão me envolvendo<br />

E estão me despertando de noite.<br />

Meus amigos, meus irmãos, cortai os lábios da mulher morena<br />

Eles são maduros e úmidos e inquietos<br />

E sabem tirar a volúpia de todos os frios.<br />

Meus amigos, meus irmãos, e vós que amais a poesia da minha alma<br />

Cortai os peitos da mulher morena<br />

Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono<br />

E trazem cores tristes para os meus olhos.<br />

Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes<br />

Traze-me para o contato casto de tuas vestes<br />

Salva-me dos braços da mulher morena<br />

Eles são lassos, ficam estendidos imóveis ao longo de mim<br />

São como raízes recendendo resina fresca<br />

De Forma e Exegese (1935)<br />

São como dois silêncios que me paralisam.<br />

Aventureira do Rio da Vida, compra o meu corpo da mulher morena<br />

Livra-me do seu ventre como a campina matinal<br />

Livra-me do seu dorso como a água escorrendo fria.<br />

Branca avozinha dos caminhos, reza para ir embora a mulher morena<br />

Reza para murcharem as pernas da mulher morena<br />

Reza para a velhice roer dentro da mulher morena<br />

Que a mulher morena está encurvando os meus ombros<br />

E está trazendo tosse má para o meu peito.<br />

Meus amigos, meus irmãos, e vós todos que guardais ainda meus últimos cantos<br />

Dai morte cruel à mulher morena!


Soneto de devoção<br />

Essa mulher que se arremessa, fria<br />

E lúbrica aos meus braços, e nos seios<br />

Me arrebata e me beija e balbucia<br />

Versos, votos de amor e nomes feios.<br />

Essa mulher, flor de melancolia<br />

Que se ri dos meus pálidos receios<br />

A única entre todas a quem dei<br />

Os carinhos que nunca a outra daria.<br />

Essa mulher que a cada amor proclama<br />

A miséria e a grandeza de quem ama<br />

E guarda a marca dos meus dentes nela.<br />

Essa mulher é um mundo! – uma cadela<br />

Talvez... – mas na moldura de uma cama<br />

Nunca mulher nenhuma foi tão bela!<br />

De Novos poemas (1938)<br />

Soneto de fidelidade<br />

De tudo, ao meu amor serei atento<br />

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto<br />

Que mesmo em face do maior encanto<br />

Dele se encante mais meu pensamento<br />

Quero vivê-lo em cada vão momento<br />

E em seu louvor hei de espalhar meu<br />

[canto<br />

E rir meu riso e derramar meu pranto<br />

Ao seu pesar ou seu contentamento<br />

E assim quando mais tarde me procure<br />

Quem sabe a morte, angústia de quem<br />

[vive<br />

Quem sabe a solidão, fim de quem ama<br />

Eu possa lhe dizer do amor (que tive):<br />

Que não seja imortal, posto que é chama<br />

Mas que seja infinito enquanto dure<br />

De Poemas, Sonetos e Baladas (1946,<br />

escrito em 1939)


Soneto de separação<br />

De repente do riso fez-se o pranto<br />

Silencioso e branco como a bruma<br />

E das bocas unidas fez-se a espuma<br />

E das mãos espalmadas fez-se o espanto.<br />

De repente da calma fez-se o vento<br />

Que dos olhos desfez a última chama<br />

E da paixão fez-se o pressentimento<br />

E do momento imóvel fez-se o drama.<br />

De repente, não mais que de repente<br />

Fez-se de triste o que se fez amante<br />

E de sozinho o que se fez contente.<br />

Fez-se do amigo próximo o distante<br />

Fez-se da vida uma aventura errante<br />

De repente, não mais que de repente.<br />

De Poemas, Sonetos e Baladas (1946,<br />

escrito em 1938)<br />

Soneto do amor total<br />

Amo-te tanto, meu amor... não cante<br />

O humano coração com mais verdade...<br />

Amo-te como amigo e como amante<br />

Numa sempre diversa realidade<br />

Amo-te afim, de um calmo amor<br />

[prestante,<br />

E te amo além, presente na saudade.<br />

Amo-te, enfim, com grande liberdade<br />

Dentro da eternidade e a cada instante.<br />

Amo-te como um bicho, simplesmente,<br />

De um amor sem mistério e sem virtude<br />

Com um desejo maciço e permanente.<br />

E de te amar assim muito e amiúde,<br />

É que um dia em teu corpo de repente<br />

Hei de morrer de amar mais do que<br />

[pude.<br />

De Novos poemas II (1959, escrito em<br />

1951)


A rosa de Hiroxima<br />

Pensem nas crianças<br />

Mudas telepáticas<br />

Pensem nas meninas<br />

Cegas inexatas<br />

Pensem nas mulheres<br />

Rotas alteradas<br />

Pensem nas feridas<br />

Como rosas cálidas<br />

Mas oh não se esqueçam<br />

Da rosa da rosa<br />

Da rosa de Hiroshima<br />

A rosa hereditária<br />

A rosa radioativa<br />

Estúpida e inválida<br />

A rosa com cirrose<br />

A anti-rosa atômica<br />

Sem cor sem perfume<br />

Sem rosa sem nada<br />

De Antologia Poética (1954)<br />

Eu sei que vou te amar<br />

Vinicius de Moraes / Antonio Carlos Jobim<br />

Eu sei que vou te amar<br />

Por toda a minha vida, eu vou te amar<br />

Em cada despedida, eu vou te amar<br />

Desesperadamente<br />

Eu sei que vou te amar<br />

E cada verso meu será<br />

Pra te dizer<br />

Que eu sei que vou te amar<br />

Por toda a minha vida<br />

Eu sei que vou chorar<br />

A cada ausência tua, eu vou chorar<br />

Mas cada volta tua há de apagar<br />

O que esta tua ausência me causou<br />

Eu sei que vou sofrer<br />

A eterna desventura de viver<br />

À espera de viver ao lado teu<br />

Por toda a minha vida<br />

Do disco Por toda minha vida (1959)

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