O Delfim - hora absurda IV
O Delfim - hora absurda IV
O Delfim - hora absurda IV
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logo nos primeiros capítulos cruzo-me com legiões de romanos; se andar mais, encontro<br />
peregrinações de leprosos em demanda da lama da lagoa «que é de cura infalível nas<br />
chagas mais rebeldes» (palavras da Dona da Pensão, não do Abade); mais adiante,<br />
tropeço em restos de balneários e aparece-me ela, de dedo espetado: «Luxo e<br />
desgoverno. Foi a ânsia de luxar que atirou com tantos emigrantes daqui para fora...»<br />
Ah, hospedeira, que por vezes chego a pensar que é o doutor Agostinho Saraiva<br />
quem fala por detrás dessa boca de pétalas. Só ele criticaria assim os camponeses que<br />
abandonam a terra e os rapazes que vestem blusões de plástico e vão para o café ver<br />
televisão. «Luxo e desgoverno...»<br />
«Quando o pobre come galinha...»: Duma quelha que dá para a estrada sai uma<br />
velhota a perseguir uma galinha. «Piu-piu...», vai chamando, como se trouxesse no<br />
avental algum milho para lhe oferecer. Mas o animal não se comove e, de cabecita a dar<br />
a dar, passo alertado, entra em campo aberto, no terreiro. Quando o pobre come<br />
galinha, diz o ditado, não há luxo nem desgoverno: um dos dois está doente. A galinha<br />
não se deixa agarrar porque não se sente ainda doente. E a velhota, estará?<br />
O livro do Dom Abade pesa-me na mão. Não preciso de o abrir para antever o<br />
universo que me espera. Numas folhas encontrei um acampamento militar, noutras um<br />
cipo funerário de Tibúrcio, o Moço, poeta cirurgião; noutras galerias, aras votivas,<br />
dedicatórias. A páginas tantas entra-se na idade dos varões lavradores.<br />
«Subiu este lugar no conceito do Paço e do Reino mercê de alguns honrados<br />
que o povoaram e protegeram com o seu braço, mormente os da casa dos Palma<br />
Bravo...»<br />
E é como se tivessse a minha hospedeira a interromper-me a leitura, deleitada:<br />
«Os oito fidalgos de bom coração.»<br />
Então eu, que estudo pela décima vez os lavradores enaltecidos, por acaso<br />
nenhum deles fidalgo e todos Tomás Manuel de baptismo, eu pouso o livro e faço os<br />
meus cálculos. Somo aos oito Palmas Bravo da crónica o pai e o avô do Engenheiro:<br />
perfazem dez e saltaram todos do passado, assanhadíssimos. Não importa. Andam em<br />
guerra nos pinhais (para onde se dirige a furgoneta do altifalante) e, sendo ou não<br />
fantasmas de fidalgos que agitam os protocolos do diabo, contam. Junto-lhes mais o<br />
Engenheiro: ficam onze. «Onze», confirmo. Número primo, dois algarismos gémeos,<br />
aprumados. Duas lanças verticais a fechar a lista dos Palmas Bravo.<br />
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