“Isso não é um cachimbo”: sobre os usuários de crack - Áskesis
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Assim, para compreen<strong>de</strong>r a relação <strong>de</strong>ssa usuária com o seu cachimbo <strong>é</strong> preciso, primeiro,<br />
afastar a id<strong>é</strong>ia <strong>de</strong> irracionalida<strong>de</strong>. Depois, há que se suspen<strong>de</strong>r o caráter utilitário do cachimbo,<br />
como já n<strong>os</strong> alertaram Sahlins (2003) e Douglas e Isherwood (2009) e como tentei fazer ao<br />
longo <strong>de</strong>ste texto. E, por fim, <strong>é</strong> necessário que se leve em conta a p<strong>os</strong>sibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação<br />
entre a coisa e a pessoa, o g<strong>os</strong>to, assim como o contexto social no interior do qual a relação <strong>é</strong><br />
estabelecida.<br />
Ao longo da minha pesquisa <strong>de</strong> doutorado tenho me <strong>de</strong>parado com <strong>um</strong>a s<strong>é</strong>rie <strong>de</strong> representações<br />
midiáticas que se fartam em enunciar trajetórias pessoais e dramas familiares n<strong>os</strong><br />
quais o <strong>crack</strong> atua como <strong>de</strong>tonador d<strong>os</strong> conflit<strong>os</strong>, responsável pela ruptura <strong>de</strong> laç<strong>os</strong> afetiv<strong>os</strong><br />
e sociais. Por causa do <strong>crack</strong>, dizem as notícias, per<strong>de</strong>-se o controle, o caráter, a vergonha e<br />
a dignida<strong>de</strong>; at<strong>é</strong> a alma se per<strong>de</strong> <strong>um</strong> pouco12 . Creio que recuperar o contexto <strong>de</strong> reprodução<br />
midiática e tamb<strong>é</strong>m lembrar das constantes situações <strong>de</strong> agressão e do <strong>de</strong>scaso que marca a<br />
vida <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>sses usuári<strong>os</strong> <strong>é</strong> relevante para enten<strong>de</strong>r a relação <strong>de</strong>ssa mulher com<br />
o seu cachimbo. Mas acredito que seu entendimento só se completa com a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> outra<br />
cena que presenciei entre três menin<strong>os</strong> e <strong>um</strong>a menina, tod<strong>os</strong> em situação <strong>de</strong> rua e tod<strong>os</strong> usuári<strong>os</strong><br />
da droga. Na minha frente, eles começaram a tirar sarro da menina dizendo “ela f<strong>um</strong>ou<br />
naquela lata nojenta, que passa barata”. Riam muito enquanto ela, entre a vergonha e a indignação,<br />
gritava para mim com <strong>os</strong> olh<strong>os</strong> lacrimejad<strong>os</strong>: “<strong>é</strong> mentira, tia, eu só f<strong>um</strong>o no <strong>cachimbo”</strong>. A<br />
fala da psicóloga do PRD/Campinas, em entrevista, po<strong>de</strong> indicar <strong>um</strong> modo <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o que<br />
se passou aí:<br />
[se fala que] o <strong>crack</strong> <strong>é</strong> a nóia, o <strong>crack</strong> <strong>é</strong> fedido, o <strong>crack</strong> <strong>é</strong> porco e <strong>de</strong>ntro d<strong>os</strong><br />
que usam <strong>crack</strong>, tem ainda <strong>os</strong> que usam no cachimbo e <strong>os</strong> que usam na lata,<br />
<strong>os</strong> que usam na lata são a podridão da podridão, n<strong>é</strong>?<br />
Tais experiências somadas me m<strong>os</strong>travam tamb<strong>é</strong>m que o cachimbo marcava hierarquias e diferenciações<br />
internas entre <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> cons<strong>um</strong>idores; mas ao observá-las todas em conjunto<br />
elas parecem dizer mais. Levando em conta a precarieda<strong>de</strong> que marca as suas vidas, <strong>não</strong> seria<br />
o uso <strong>de</strong> <strong>crack</strong> no cachimbo a fronteira última <strong>de</strong> h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> e dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>m dar<br />
prova esses usuári<strong>os</strong>? Se assim for, a menina que chorava pra mim porque f<strong>um</strong>ava no cachimbo<br />
– e <strong>não</strong> n<strong>um</strong>a lata nojenta que passa barata – pedia para que eu reconhecesse a sua capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> discernimento e <strong>de</strong> escolha, portanto sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser gente. Se assim for,<br />
tamb<strong>é</strong>m consigo contextualizar a relação daquela senhora com o “perninha”. Ter o seu próprio<br />
cachimbo po<strong>de</strong> revelar o grau máximo <strong>de</strong> at<strong>é</strong> on<strong>de</strong> algu<strong>é</strong>m po<strong>de</strong> se assujeitar.<br />
Apreensão policial, à guisa <strong>de</strong> conclusão<br />
Por fim, atrav<strong>é</strong>s d<strong>os</strong> cachimb<strong>os</strong> po<strong>de</strong>m<strong>os</strong> notar as disputas entre as secretarias <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e a <strong>de</strong> segurança,<br />
como nota este trecho retirado tamb<strong>é</strong>m da tese <strong>de</strong> Domanico (2006, p. 189, grif<strong>os</strong> meus):<br />
N<strong>um</strong>a visita a campo no projeto dois pu<strong>de</strong>m<strong>os</strong> constatar o <strong>de</strong>spreparo policial.<br />
Enquanto a equipe estava n<strong>um</strong> lado da rua conversando e distribuindo<br />
ins<strong>um</strong><strong>os</strong>, no outro lado a polícia passava e com <strong>um</strong> alicate quebrava <strong>os</strong><br />
cachimb<strong>os</strong> dizendo: “A secretaria <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> distribui e a secretaria <strong>de</strong><br />
segurança recolhe”<br />
E <strong>um</strong>a vez que <strong>os</strong> cachimb<strong>os</strong> tamb<strong>é</strong>m falam <strong>sobre</strong> seus portadores, eles po<strong>de</strong>m se voltar con-<br />
12 Cf: “At<strong>é</strong> a alma eu perdi <strong>um</strong> pouco”. Folha <strong>de</strong> S.Paulo, São Paulo, 15 jan. 2005,Disponpivel em: . Acesso em: 22 fev. 2012.<br />
<strong>Áskesis</strong> | v. 1 | n. 1 | jan/jul - 2012 | p. 32 – 45 | 43