O jornalismo em O tempo eo vento
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para D. Vanja a paixão pelo texto ficcional publicado <strong>em</strong> jornal acaba se identificando com os<br />
dramas exibidos no cin<strong>em</strong>atógrafo, que acabara de chegar a Santa Fé. Durante uma sessão ela<br />
afirma:<br />
– Sou louca por cin<strong>em</strong>atógrafo! – exclamou. – Eu já disse lá <strong>em</strong> casa: tir<strong>em</strong>-me<br />
tudo, o pão, a água, o oxigênio que respiro, as estrelas do firmamento, tudo, mas não<br />
me priv<strong>em</strong> do folhetim do Correio do Povo n<strong>em</strong> do meu rico cin<strong>em</strong>atógrafo. Não<br />
achas, Rodriguinho, que é um in<strong>vento</strong> tão instrutivo? Que de maravilhosos<br />
espetáculos nos proporciona! E que privilégio podermos ver naquele rico paninho<br />
branco os melhores atores e atrizes do universo! Eu só imagino se meu pai<br />
ressuscitasse dentre os mortos e pudesse ver essas fotografias animadas. Ele já<br />
achava o daguerreótipo uma coisa mágica, imagin<strong>em</strong>! Ai! É como s<strong>em</strong>pre estou<br />
dizendo, bendito seja o progresso! (O RETRATO II, p. 481)<br />
A influência do folhetim na vida dessas personagens revela uma maneira de<br />
manter as duas <strong>em</strong> mundos distintos, da realidade e da ficção, não muito diferente do mundo<br />
dos homens que estão interessados nos noticiários políticos e científicos. Elas viv<strong>em</strong> na<br />
pequena Santa Fé e viajam para mundos distantes através da fantasia dos romances, habitam o<br />
mesmo espaço na cidade fictícia e mantêm um pé <strong>em</strong> Porto Alegre, no Rio de Janeiro e nos<br />
países da Europa. Assim como os homens moldam suas idéias de consciência cívica a partir<br />
da leitura dos noticiários, elas passam a identificar nas pessoas que estão <strong>em</strong> sua volta os<br />
modelos tirados dos folhetins. 41<br />
A influência jornalística muda inclusive a linguag<strong>em</strong> das duas senhoras. 42 D.<br />
Emerenciana, “por influência de suas leituras do Correio do Povo usava termos como<br />
doidivanas, tresloucado e adrede” (O RETRATO I, p. 137). Já D. Vanja, que t<strong>em</strong> circulação<br />
livre no Sobrado e por isso aparece um número maior de vezes no romance, age como se<br />
fosse uma das personagens saídas do folhetim:<br />
Emerenciana, sentada na cama, especada entre travesseiros, a escutava de olhos s<strong>em</strong>icerrados e uma expressão<br />
de felicidade no rosto [...]. Despediu-se delas, deixando-as a discutir as personagens do folhetim como se se<br />
tratasse de criaturas vivas que conhecess<strong>em</strong> na intimidade. Será que o conde ia casar com a Marie? E por que é<br />
que aquele s<strong>em</strong>-vergonha do Dr. Monet não volta para o lar? Anda bebendo pelas tavernas, enquanto a pobre da<br />
esposa fica <strong>em</strong> casa se esfalfando a costurar, a costurar, a costurar...”. O Retrato II. Op. cit., p. 378.<br />
41 Sobre a leitura folhetinesca nos jornais da Província, Antonio Hohlfeldt destaca que “não há qualquer relação<br />
direta entre a id<strong>eo</strong>logia do jornal e o folhetim publicado, de sorte que muitos dos folhetins divulgados num jornal<br />
liberal pod<strong>em</strong> vir a ter espaço num jornal republicano”. Isso também acontece no romance pesquisado. In: Deus<br />
escreve direito por linhas tortas. Op. cit., p. 51.<br />
42 D. Vanja e D. Emerenciana têm perfis diferentes de idade e sentimentos <strong>em</strong> relação às leitoras costumeiras dos<br />
folhetins, conforme escreveu Marlyse Meyer. Entretanto, para os efeitos que Erico Verissimo procurava<br />
imprimir na formação do caráter das personagens, isso pouco importa. “A mulher, ‘a gentil leitora’, é o<br />
destinatário ‘natural’ do romance. Repetiu-se no Brasil aquela ‘situação de leitura’ a que se refere Roger<br />
Chartier, largamente representada na pintura pré-romântica, que multiplicou ‘as cenas de leitura f<strong>em</strong>inina’, sendo<br />
típica aquela que mostra uma mulher jov<strong>em</strong> recostada languidamente, livro aberto sobre o colo, olhos perdidos,<br />
envolvida pelos efeitos <strong>em</strong>ocionais da leitura romanesca”. In: MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. Op.<br />
cit., p. 379.<br />
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