Edição 133 - Jornal Rascunho - Gazeta do Povo
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Gente real<br />
Tijolão reunin<strong>do</strong> os contos de DEONÍSIO DA SILVA consolida o autor no primeiro time <strong>do</strong>s prosa<strong>do</strong>res brasileiros<br />
O AUTOR<br />
DEONÍSIO DA SILVA<br />
Nasceu em Siderópolis<br />
(SC), em 1948. Professor<br />
universitário de etimologia<br />
e literatura, é Pró-Reitor<br />
de Cultura e Extensão da<br />
Universidade Estácio de<br />
Sá, e sempre conciliou<br />
sua vida de escritor com<br />
a <strong>do</strong>cência e uma ativa<br />
colaboração na imprensa. É<br />
<strong>do</strong>utor em Letras pela USP.<br />
Alguns romances: A mulher<br />
silenciosa (1981), A cidade<br />
<strong>do</strong>s padres (1986), Orelhas<br />
de aluguel (1988) e Avante,<br />
solda<strong>do</strong>s: para trás (1992).<br />
Este último recebeu o<br />
prêmio cubano da Casa<br />
de Las Américas. Seu livro<br />
Teresa (1997) foi premia<strong>do</strong><br />
pela Fundação Biblioteca<br />
Nacional. Tem escrito<br />
também diversos livros<br />
de contos, gênero com o qual<br />
estreou em 1975. É também<br />
autor de livros infanto-juvenis.<br />
Mantém colunas regulares<br />
na revista Caras e no<br />
Observatório da Imprensa.<br />
CONTOS REUNIDOS<br />
Deonísio da Silva<br />
Leya<br />
592 págs.<br />
TRECHO<br />
CONTOS REUNIDOS<br />
“Haviam derruba<strong>do</strong> a mata,<br />
com aquela violência<br />
peculiar aos primeiros<br />
colonos de origem<br />
italiana, vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Rio<br />
Grande <strong>do</strong> Sul e de Santa<br />
Catarina, que, segun<strong>do</strong><br />
a advertência <strong>do</strong> padre<br />
<strong>do</strong> lugar, não podiam ver<br />
árvore que já se sentiam<br />
ataca<strong>do</strong>s de cólera<br />
fl orestal, que os levava às<br />
exageradas derrubadas<br />
e grandes incêndios.<br />
O milho veio bonito de<br />
se ver e a porcada fez<br />
uma festa ininterrupta<br />
de cento e vinte dias, ao<br />
fi m <strong>do</strong>s quais os leitões<br />
de trinta quilos haviam<br />
se transforma<strong>do</strong> em<br />
masto<strong>do</strong>ntes de quase<br />
duzentos. Uma porca<br />
chegara aos trezentos<br />
— quase o peso de uma<br />
vaca. (<strong>do</strong> conto A mesa<br />
<strong>do</strong>s inocentes)<br />
: : MÁRCIA LÍGIA GUIDIN<br />
SÃO PAULO – SP<br />
O<br />
volume <strong>do</strong>s Contos<br />
reuni<strong>do</strong>s de Deonísio<br />
da Silva, publica<strong>do</strong> em<br />
2010 pela Editora Leya é,<br />
literalmente, grande e pesa<strong>do</strong>. Com<br />
quase 600 páginas, reúne contos de<br />
várias épocas da produção <strong>do</strong> escritor,<br />
recolhen<strong>do</strong> (creio que precocemente<br />
— já que o escritor é vigoroso<br />
e muito produtivo) em volume único<br />
a produção de contos, que, aliás,<br />
Deonísio <strong>do</strong>mina muito bem. Sua<br />
articulação experiente de cronista<br />
se adapta muito bem ao manuseio<br />
da narrativa fi ccional curta.<br />
A despeito da desagradável<br />
sensação <strong>do</strong> leitor ao manusear tão<br />
extravagante “tijolo” (como seria<br />
bom se eu lesse a obra no iPad...),<br />
a tarefa não é inglória. Autoriza<strong>do</strong><br />
pela difi culdade — digamos — física,<br />
o leitor se dá a liberdade de<br />
abrir o livrão neste ou naquele<br />
conto e, para seu prazer, to<strong>do</strong>s têm<br />
grata autonomia (apesar de muitos<br />
se passarem na fi ctícia cidade de<br />
Sanga da Amizade, com personagens<br />
que se repetem) — tanto que o<br />
leitor sai satisfeito, com a sensação<br />
de ter usufruí<strong>do</strong> de um história autônoma,<br />
com começo, meio e fi m.<br />
Deonisio é muito bom conta<strong>do</strong>r<br />
de histórias. E, para nosso conforto<br />
“contemporâneo”, não me parece<br />
que pretenda, nem pretendeu, aderir<br />
a grandes experimentalismos de<br />
foco, sintaxe, semântica, muito me-<br />
nos ingressar em alguma vanguarda<br />
das vanguardas — daquelas que a<br />
USP defenestrava e a PUC aplaudia.<br />
Sua narrativa é, sem invenções gratuitas,<br />
honesta e efi ciente.<br />
Muitas são as temáticas e, é<br />
claro, como em to<strong>do</strong> escritor descrente<br />
da segunda metade <strong>do</strong> século<br />
20, nela pre<strong>do</strong>minam relações interpessoais<br />
a mostrar um mun<strong>do</strong> sem<br />
lugar para felicidade plena, ou romantismos<br />
miú<strong>do</strong>s, ou adesão à moral<br />
pequeno-burguesa. Como bem<br />
diz o prefacia<strong>do</strong>r da obra, Sergius<br />
Gonzaga, “alguém que transita de<br />
um mun<strong>do</strong> em decomposição, um<br />
mun<strong>do</strong> agônico, para uma outra realidade,<br />
em que o novo começava a se<br />
insinuar decisivamente no cotidiano<br />
da população urbana <strong>do</strong> país”.<br />
Uma das qualidades <strong>do</strong> autor,<br />
nesse universo de narrativas curtas,<br />
está em não ter deixa<strong>do</strong> pesar<br />
sua vivência biográfi ca nos textos.<br />
Explico-me: sabemos que o autor,<br />
de cidade pequena, sob as vicissitudes<br />
da vida humilde, buscou na<br />
vida <strong>do</strong> seminário seus caminhos.<br />
Dele saiu, já adulto, sem lastros ou<br />
travas, para escrever totalmente à<br />
vontade — contamina<strong>do</strong> pelo mun<strong>do</strong><br />
laico, ao qual se integrou para<br />
analisar e ironizar vigorosamente.<br />
Sejam seminaristas, campesinos ou<br />
latifundindiários, seus personagens<br />
nunca se parecem com o autor. Ou<br />
seja, sua literatura parece liberta de<br />
quaisquer amarras ideologizantes,<br />
que poderiam encurtá-la em temas<br />
ou estilo: a escatologia, o sexo, a<br />
DEONÍSIO DA SILVA POR RAMON MUNIZ<br />
traição aparecem nos textos com<br />
grande naturalidade. São apenas e<br />
simplesmente parte da vida — da<br />
minha, da sua, de to<strong>do</strong>s nós.<br />
Em entrevista a Pedro Luso de<br />
Carvalho, Deonísio da Silva afi rmou:<br />
Acho uma irresponsabilidade<br />
o escritor desconhecer sua ferramenta<br />
de trabalho. Desde a alfabetização,<br />
o que sempre me fascinou<br />
não foi a botânica, mas a jardinagem<br />
das palavras. Estu<strong>do</strong> por gosto,<br />
por prazer, pela alegria <strong>do</strong> convívio<br />
intelectual com meus pares,<br />
infelizmente cada vez mais raros.<br />
Tal declaração nos oferece<br />
uma honesta faceta <strong>do</strong> autor, que a<br />
põe em prática com extrema competência<br />
(o que é raro, diga-se): o<br />
respeito pela precisão da frase, seja<br />
ela egressa da voz erudita <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r<br />
ou da tonalidade mais rasteira<br />
<strong>do</strong>s personagens. Vejamos:<br />
O milho veio bonito de se ver e<br />
a porcada fez uma festa ininterrupta<br />
de cento e vinte dias, ao fi m <strong>do</strong>s quais<br />
os leitões de trinta quilos haviam se<br />
transforma<strong>do</strong> em masto<strong>do</strong>ntes de<br />
quase duzentos. Uma porca chegara<br />
aos trezentos — quase o peso de uma<br />
vaca. (A mesa <strong>do</strong>s inocentes)<br />
Neste trecho, por exemplo,<br />
percebemos a natural precisão semântica<br />
<strong>do</strong> verbo (o milho veio<br />
bonito); ou como ecoa vigorosa a<br />
ação coletiva (a porcada fez uma<br />
festa ininterrupta de cento e vinte<br />
dias); ou ainda o ótimo eufemismo<br />
(uma festa) para a glutonaria<br />
<strong>do</strong>s suínos; por sua vez, o tempo<br />
transcorre não sob o passar das<br />
horas, mas através <strong>do</strong> escandaloso<br />
acúmulo adiposo de uma das porcas<br />
(Uma porca chegara aos trezentos<br />
– quase o peso de uma vaca).<br />
Num outro exemplo, mais fôlego<br />
e precisão semântica:<br />
Em dia de chuva, estan<strong>do</strong> um<br />
pouco desinteressada <strong>do</strong>s papos<br />
vazios de suas colegas, Jurema,<br />
senhora bem casada, beiran<strong>do</strong> os<br />
quarenta e cinco, grande turiferária<br />
<strong>do</strong> próprio mari<strong>do</strong>, ao imiscuise<br />
na vida de suas duas empregadas<br />
<strong>do</strong>mésticas, ouviu relatos<br />
perigosos, a propósito <strong>do</strong> maior<br />
me<strong>do</strong> que cada mulher pode ter.<br />
(Confi dências perigosas)<br />
Como não tomarmos as palavras<br />
“colegas”, “senhora bem casada”<br />
“grande turiferária <strong>do</strong> próprio<br />
mari<strong>do</strong>” como perfeitas para a<br />
construção irônica da personagem?<br />
Estamos, sem dúvida, diante de um<br />
conta<strong>do</strong>r de histórias que, sem experimentalismos<br />
gratuitos, traz à<br />
vista <strong>do</strong> leitor a palavra precisa, que<br />
consegue revelar o furtivo, o subliminar,<br />
o sugeri<strong>do</strong>.<br />
CANTO<br />
DE BOCA<br />
Ora, ora, dirá<br />
um incauto, mas isto<br />
são contos de professor,<br />
que tu<strong>do</strong> sabe sobre<br />
as palavras? A resposta<br />
é não. Deonísio<br />
certamente manuseia a<br />
língua com destreza superior,<br />
mas não é isso que<br />
MAIO DE 2011<br />
11<br />
faz de um professor um escritor<br />
(e como há professores escreven<strong>do</strong>...).<br />
O bom contista surpreende<br />
o leitor, com recursos à mão, <strong>do</strong>s<br />
quais a ironia é um <strong>do</strong>s mais interessantes.<br />
Veja-se outro trecho <strong>do</strong><br />
mesmo conto acima:<br />
As virtudes de Margô não<br />
eram reconhecidas apenas pela sua<br />
patroa, ao contrário, eram mais<br />
bem gabadas na boca de certos seminaristas<br />
que juravam de pés separa<strong>do</strong>s<br />
que o fulgor <strong>do</strong>s rosários<br />
ditos fosforescentes, que tinham<br />
de carregar no bolso, não chegava<br />
nem perto <strong>do</strong> alumiar incandescente<br />
das receptivas coxas de Margô.<br />
Que tal? Em poucas linhas,<br />
destroem-se a entidade eclesiástica,<br />
a seriedade vocacional <strong>do</strong>s jovens,<br />
a reputação da empregada polaca,<br />
e a eventual epifania religiosa. Ao<br />
leitor cabe um sorriso de canto de<br />
boca (bem-vin<strong>do</strong>, aliás, desde os<br />
tempos de Macha<strong>do</strong> de Assis).<br />
Bom crítico da falsa moralidade,<br />
urbana ou suburbana, o autor,<br />
como eu disse, sedia várias histórias<br />
na fi ctícia cidade de Sanga da<br />
Amizade, no Paraná. Interessante<br />
estratégia: é a partir desse pequeno<br />
mun<strong>do</strong> que ecoam grandes situações<br />
universais, as quais o autor<br />
explora, cruzan<strong>do</strong> personagens e<br />
ruas com temas, como a loucura,<br />
o adultério, a farsa social e, muitas<br />
vezes, o nonsense — tão verossímil<br />
num mun<strong>do</strong> assim fantástico.<br />
A sexualidade, o erotismo, a<br />
sacanagem são elementos vitais na<br />
construção destas histórias. Parecem<br />
funcionar como traços liberta<strong>do</strong>res<br />
— sem pu<strong>do</strong>res inúteis —,<br />
tanto <strong>do</strong>s protagonistas quanto <strong>do</strong><br />
autor. Sergius Gonzaga, novamente,<br />
dirá melhor <strong>do</strong> que eu:<br />
Para o escritor, as vivências<br />
sexuais não se revestem de dramaticidade;<br />
antes, elas possuem<br />
tamanha força vital que desencadeiam<br />
o humor, a irreverência, o<br />
culto ao prazer e o deboche de to<strong>do</strong>s<br />
os tabus que impedem a plena<br />
realização da libi<strong>do</strong>.<br />
Se buscarmos infl uências,<br />
talvez encontremos semelhanças<br />
de Deonísio da Silva com o melhor<br />
de Lobato adulto ou Lima Barreto<br />
— sem, é claro, a adesão ideológica<br />
destes autores a seus personagens.<br />
Mas, como eles, Deonísio está empenha<strong>do</strong><br />
em destituir o mun<strong>do</strong> arcaico<br />
e dissoluto, que só serve ao riso.<br />
Aliás, para que isso seja possível,<br />
é bom ver o ponto de vista: quanto<br />
ao uso <strong>do</strong> foco narrativo, da Silva<br />
opta pela superioridade <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r<br />
onisciente intruso, que lhe oferece<br />
melhores subsídios para a ironia ou<br />
para a construção estratégica desta<br />
ou daquela personalidade.<br />
To<strong>do</strong>s os personagens têm<br />
afi nal o mesmo genótipo. A matéria-prima<br />
é o homem institucionaliza<strong>do</strong><br />
em suas cincunstâncias — as<br />
quais, passam, num átimo, <strong>do</strong> solene<br />
ao ridículo. Como diz o personagem<br />
das confi ssões de Sedução:<br />
O bicho homem é que leva<br />
a vida mais braba: pra tu<strong>do</strong> que<br />
queira fazer, tem que trabalhar<br />
esmurra<strong>do</strong> antes, tirante os ricos<br />
que vivem no bem-bom, mas que<br />
também têm que se preocupar com<br />
os seus negócios da China.<br />
Não sabemos se Dionísio da<br />
Silva fi cará na história da narrativa<br />
brasileira tão vigorosamente como<br />
um Dalton Trevisan ou um Rubem<br />
Fonseca. Afi nal, esse autor pagará o<br />
alto preço da atuação cultural multifacetada<br />
e eclética. Fazer muitas coisas<br />
talvez não seja fazê-las bem. Por ora,<br />
entretanto, seu ecletismo (com perdão<br />
<strong>do</strong> para<strong>do</strong>xismo) é ecletismo rigoroso.<br />
Assim, esse tijolão vale a pena.