MEM Ó RIAE PAT RIM Ô NIOCU LT URALDEC ... - Fábrica do Futuro
MEM Ó RIAE PAT RIM Ô NIOCU LT URALDEC ... - Fábrica do Futuro
MEM Ó RIAE PAT RIM Ô NIOCU LT URALDEC ... - Fábrica do Futuro
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Volume 3<br />
M E M <strong>Ó</strong> R I A E P AT R I M <strong>Ô</strong> N I O C U L T U R A L<br />
D E C ATA G U A S E S
Apoio:<br />
Execução:<br />
Patrocínio:<br />
Incentivo:
M E M <strong>Ó</strong> R I A E P AT R I M <strong>Ô</strong> N I O C U L T U R A L<br />
D E C ATA G U A S E S<br />
Vo l u m e 3
2 ª E D I Ç Ã O – 2 0 1 2<br />
Organização e Coordenação: Paulo Henrique Alonso<br />
Pesquisa<strong>do</strong>ras (1ªedição):<br />
Gláucia Siqueira, Mariana Cândida Garcia Car<strong>do</strong>so Almeida<br />
Auxiliares de pesquisa (1ªedição):<br />
Irenilda R.B.R.M. Cavalcanti, Luciana Ferreira de Oliveira,<br />
Maria Aparecida Torre Barcelos<br />
Entrevista<strong>do</strong>res (1ªedição): Gláucia Siqueira, Hedileuza Maria de Oliveira<br />
Valadares, Hélvia Peres Cordeiro, João Carlos Juste, José Luiz Batista, Maria<br />
José de Oliveira Paula, Mariana Cândida Garcia Car<strong>do</strong>so Almeida, Mônica<br />
Macha<strong>do</strong> da Silva, Rosângela Schettini Rodrigues<br />
Coleta material iconográfico: Marcela Andrade da Silva<br />
Design: Birte Paetrow, Gustavo Baldez, Holger Melzow<br />
Infraestrutura e tecnologia: Américo Vicente Sobrinho<br />
Plataforma de rede e internet: David Azeve<strong>do</strong>, Danilo Marinho<br />
Comunicação: Beth Sanna<br />
Produção: Bárbara Piva<br />
Gestão administrativo-financeira: Djalma Dutra Jr, Geisiane Marinho de Lima<br />
M533<br />
Memória e patrimônio cultural de Cataguases / Paulo Henrique Alonso<br />
(Coord.). – 2 ed. – Cataguases / MG: ICC, 2012.<br />
272 p.: il. pb. – (Memória e patrimônio cultural de Cataguases; III)<br />
ISBN: 978-85-65550-02-4<br />
1. Memória Oral. 2. Patrimônio Cultural. 3. História. 4. Cataguases / MG. I.<br />
Alonso, Paulo Henrique. II. Instituto Cidade de Cataguases – ICC. III. Título.<br />
Ficha Catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias:<br />
Carla Viviane da Silva Angelo – CRB-6/2590.<br />
Edna da Silva Angelo – CRB-6/2560.<br />
CDD: 981.5
M E M <strong>Ó</strong> R I A E P AT R I M <strong>Ô</strong> N I O C U L T U R A L<br />
D E C ATA G U A S E S<br />
Vo l u m e 3
Este é o terceiro volume, em 2ª edição, da série que<br />
registra a memória oral de vários personagens da ci-<br />
dade de Cataguases, Minas Gerais. Ele é parte de um<br />
projeto inicia<strong>do</strong> em 1988 pela Prefeitura Municipal<br />
de Cataguases e pela antiga Secretaria <strong>do</strong> Patrimônio<br />
Histórico e Artístico Nacional/Fundação Nacional<br />
pró-Memória.<br />
A P R E S E N TA Ç Ã O<br />
Aqui, damos continuidade e retomamos o tra-<br />
balho original, com a produção periódica de novos<br />
exemplares e a reedição <strong>do</strong>s volumes publica<strong>do</strong>s an-<br />
teriormente. O propósito é que tenhamos, de forma<br />
sistematizada, registrada e divulgada a memória da-
queles que fizeram e fazem a história da cidade e que<br />
possamos, assim, contribuir para a preservação da<br />
memória local.<br />
Neste volume estão 12 relatos, colhi<strong>do</strong>s entre<br />
1988 e 1989 e publica<strong>do</strong>s em 1996. Como na edição<br />
anterior, o texto privilegia a fala própria <strong>do</strong>s entrevis-<br />
ta<strong>do</strong>s, regen<strong>do</strong>-se mais pelas regras da comunicação<br />
oral <strong>do</strong> que pelas normas da escrita. Na reprodução<br />
das fotos, as autorias e datas que não foram identi-<br />
ficadas estão citadas nas suas respectivas legendas<br />
como s/a e s/d.<br />
Esta publicação está também disponível, em<br />
formato PDF, para <strong>do</strong>wnload gratuito no sítio eletrô-<br />
nico www.fabrica<strong>do</strong>futuro.org.br.
Í N D I C E<br />
11<br />
AMÉLIA GOMES FERNANDES<br />
Tecelã, 80 anos<br />
31<br />
A M É L I A L A N D <strong>Ó</strong> E S<br />
Diretora de Escola, 75 anos<br />
53<br />
J O Ã O K N E I P<br />
Eletricitário, 80 anos<br />
75<br />
M A R I A D A G L <strong>Ó</strong> R I A A LV E S S I LVA<br />
Dona de Casa, 90 anos<br />
97<br />
M A R I A M A G A L H Ã E S P E R E I R A<br />
Tecelã, 67 anos
125<br />
M A R I T A G U I M A R Ã E S C O S T A C R U Z<br />
Dona de Casa, 74 anos<br />
145<br />
R E N A T O T E I X E I R A<br />
Bancário, 70 anos<br />
169<br />
S E B A S T I Ã O L O P E S N E T O<br />
Pastor Metodista, 70 anos<br />
191<br />
S Í LV I A M E N D O N Ç A L E I T E ( D O N A V I C A )<br />
Dona de Casa, 85 anos<br />
209<br />
S T E L L A A B R I T A A LV E S<br />
Professora Aposentada, 77 anos<br />
233<br />
T E O D O R I C O T E I X E I R A C A R D O S O<br />
Ferroviário, 83 anos<br />
245<br />
T E R E Z I N I M A S S E N A G U I M A R Ã E S<br />
Professora Aposentada
A M É L I A G O M E S<br />
F E R N A N D E S<br />
T E C E L Ã<br />
8 0 a n o s<br />
Eu nasci em 1911. Nasci em Ponte<br />
Nova, mas vim pr ’aqui pequena e morei em<br />
Camargo, no sítio da minha avó: minha avó tinha sí-<br />
tio a meia. Agora não tem mais nada lá não. Acabou<br />
tu<strong>do</strong>. Mas nós vivemos lá muitos anos. Vim pr’aqui<br />
pequena e fiquei até fazer três anos. Eu fui parar em<br />
Cachoeiro <strong>do</strong> Itapemirim, depois viemos pr’aqui,<br />
vim com uns <strong>do</strong>ze anos. Ficava na roça. Acho que papai<br />
veio de Juqueri, um lugar que ninguém nem ouve<br />
falar dele. Em Ponte Nova, logo que ele casou trabalhou<br />
na roça. Meu pai, deixa eu ver, acho que teve<br />
quatorze filhos. Foi uma porção, mas são sete vivos.<br />
Foto: Interior da <strong>Fábrica</strong> de Teci<strong>do</strong>s, Alberto Landóes, início séc. XX,<br />
Departamento Municipal <strong>do</strong> Patrimônio Histórico e Artístico de<br />
Cataguases<br />
11
Morreram to<strong>do</strong>s assim com um ano, um ano e meio.<br />
Morria tu<strong>do</strong>! Depois vingou... da Aparecida pra lá<br />
acho que vingou quatro ou cinco. E nós somos sete irmãos<br />
vivos. Tem o Zé Mole, o pai da Carminha; tem<br />
a Aparecida, mulher <strong>do</strong> Osval<strong>do</strong> e pai da Marilene. A<br />
mãe da Marilene é minha irmã e tem uma também<br />
que mora lá no Haideé Fajar<strong>do</strong>, também é viva. Sei<br />
que nós somos sete irmãos. O Zezé toda vida viveu<br />
de negócio. E depois têm os outros. Um trabalhou<br />
aqui na Manufatora muito tempo. Depois foi embora<br />
pra São Paulo, arrumou tu<strong>do</strong>, lá ficou, lá trabalhou,<br />
casou e veio embora pr’aqui. Mora aqui. O outro tá<br />
lá até hoje. Minhas irmãs moram por aqui mesmo.<br />
Uma está até moran<strong>do</strong> na Vila Reis, outra no bairro<br />
Haideé Fajar<strong>do</strong>. A da Vila Reis a casa é dela; a <strong>do</strong><br />
bairro Haideé, não é não. E a Aparecida <strong>do</strong> Osval<strong>do</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> casou ficou lá pra São Paulo muito tempo.<br />
Depois voltou. Agora foi pra Juiz de Fora. Meu pai<br />
trabalhava na roça mesmo. Plantava, fazia plantação:<br />
minha vó também ajudava, tinha uma tia que<br />
ajudava também. Aí fazia tu<strong>do</strong>, não comprava nada.<br />
Só comprava as coisas que não podia mesmo fazer<br />
em casa.<br />
Depois nós começamos a andar... minha vó<br />
vendeu o sítio porque ela não podia continuar também.<br />
Aí nós ficamos andan<strong>do</strong>. Eu fui pra to<strong>do</strong> lugar,<br />
12
até que papai arrumou serviço no Nogueira, traba-<br />
lhou na fábrica de macarrão. Talvez cê lembra dele:<br />
Raimun<strong>do</strong> Carroceiro. Ele trabalhava de carroceiro.<br />
Trabalhou de carroceiro muitos anos, até quase ficar<br />
muito velho. Trabalhou de carroça muitos anos.<br />
Depois da carroça pegou a charrete... Ele já não<br />
aguentava mais fazer muita coisa, né. Ele também<br />
não aposentou depois de velho... Aposentou agora,<br />
depois que começou esse negócio... Funrural. Aí ele<br />
aposentou por bagatela, né. Ele morreu com oitenta<br />
e seis anos. Carregou muito saco nas costas... Ele fazia<br />
tu<strong>do</strong> com a carroça... Não tinha tanto caminhão,<br />
né. Ele ficava ali na estação esperan<strong>do</strong> os trem de<br />
carga. O Expresso chegava, vinha viajante... O viajante<br />
pegava as coisas, ele entregava. Trabalhou muito<br />
com viajante... Trabalhava... Mamãe cuidava da casa<br />
e fazia muitas... Assim... negócio de flor pra mês de<br />
Maria, coroa e flores para o cemitério: quan<strong>do</strong> morria<br />
uma pessoa, às vezes encomendava. Então ela fazia<br />
muita coisa pra fora. Ela fez muita coroa... papel, pano,<br />
passava na pena fina. A coroa dela era muito bem<br />
feita, muito bonita! Ela fez muita coroa mesmo, pra<br />
essas meninas tu<strong>do</strong> que coroava aí... engomava os<br />
panos, fazia coroas, e ainda, às vezes, pegava umas<br />
costurinhas pra fazer. Tu<strong>do</strong> isso ela fazia. Ajudava,<br />
porque o papai sozinho trabalhan<strong>do</strong> para sustentar<br />
13
os filhos to<strong>do</strong>s... Naquele tempo tu<strong>do</strong> era difícil, mas<br />
difícil mesmo! Depois eu comecei a trabalhar tam-<br />
bém. Ganhava mucadinho melhor. Eu ganhava, a<br />
Rita também ganhava, a Mira ganhava e aí foi melho-<br />
ran<strong>do</strong> mucadinho. Ajudei bem em casa... trabalhava<br />
em casa. Fazia to<strong>do</strong> serviço de casa. To<strong>do</strong> serviço<br />
de casa eu fazia... logo depois eu casei, com 23 anos<br />
acho. E aí continuou tu<strong>do</strong> em casa. Os meninos, ma-<br />
mãe, o papai. Nós moramos juntos até ele morrer.<br />
Aqui, sabe onde que eu morei? Ali, defronte o<br />
(Grupo Escolar) Gui<strong>do</strong> Marlière - nem o Gui<strong>do</strong> não<br />
tinha nessa ocasião - tinha uma casinha de sapé, lá<br />
no canto. Então nós morávamos ali, numa casinha de<br />
sapé - era <strong>do</strong> Dr. Lisupi, irmão da Dona Luiza Villas<br />
- na beira <strong>do</strong> córrego. Nesse tempo o córrego não era<br />
direto, ele fazia aquela curva assim e nós morava ali.<br />
Nem era a avenida que tá alí (hoje). Logo depois fi-<br />
zeram o grupo e logo já começou a aumentar. Nós<br />
fomos na festa <strong>do</strong> dia da pedra fundamental <strong>do</strong> gru-<br />
po. Até, me parece, que foi o governa<strong>do</strong>r... Acho que<br />
o Antônio Carlos veio. Foi uma festa daquelas! Uma<br />
das maiores festas que eu vi aqui em Cataguases<br />
foi aquela!<br />
E dali é que eu entrei pra fábrica... O ano não<br />
me lembro... Eu entrei pra fábrica foi em (19)28... Não<br />
sei se foi, não sei. Tinha feito a pouco tempo, aque-<br />
14
las casinhas ali atrás da fábrica. Aquele meio de casas.<br />
Aquele meio dali daquele morro de pedra. E ali eles<br />
me deram uma casa. Ali pagava acho que quinze mil<br />
réis... O Seu Lisupi foi embora pra São Paulo... Nós<br />
ficamos ali. Trabalhava na fábrica e morava naquela<br />
casa: pagava, quinze mil réis, com luz. Eu tava e mi-<br />
nha irmã também entrou... entrou com <strong>do</strong>ze anos pra<br />
fábrica. O contramestre não queria dar a ela o servi-<br />
ço. Depois ele a<strong>do</strong>eceu e aconteceu que ela entrou.<br />
Quan<strong>do</strong> ele voltou, não man<strong>do</strong>u ela embora não. Eu<br />
morei ali, depois fui lá pra perto da fábrica, nessas<br />
casas novas, e de lá eu passei pr’aqui, pra essa ca-<br />
sa aqui onde mora o Bitoca <strong>do</strong> Serafim Barata, sabe?<br />
Nós viemos pr’ali; e ficamos moran<strong>do</strong> ali uns tempos.<br />
Depois, de lá vim pr’aqui. Aqui também é da fábri-<br />
ca. Esta casa é da fábrica. Tem cinquenta e um anos<br />
que eu moro aqui... Eles davam pros operários... Mas<br />
agora já pediram essas casas... mudaram muita gen-<br />
te... já tem uns seis anos que eles pediram, mas nós...<br />
Mas a gente... pra onde é que a gente vai? A gente<br />
só tem que ficar é aqui mesmo! Aí eu falei: - Eu já tô<br />
com oitenta anos, deixa eu morrer primeiro...<br />
Mas ali não tinha casa, não tinha nada. Era<br />
uma roça no tempo <strong>do</strong> Chico Leonar<strong>do</strong>. Aquilo ali<br />
era <strong>do</strong> velho Leonar<strong>do</strong>. E ali defronte, onde é aquelas<br />
casas, onde é a Vila Raimun<strong>do</strong> - que eu nem sei se<br />
15
tem o nome ainda, acho que não tem mais não - ali<br />
tinha um correiozinho de casa. Nesse correiozinho<br />
de casa morava o senhor Lisupi... Tinhas uns pra cá...<br />
O Senhor João, que era ferra<strong>do</strong>r de roda de carroças,<br />
era ferreiro. Acho que era ferreiro. Morava ali também.<br />
E nós... morava atrás da casa, tinha que passar<br />
pelo beco. E aquele córrego passava atrás da nossa<br />
casa, passava assim... fazia aquela volta e vinha pra<br />
cá. Não passava direto conforme passa (hoje) não.<br />
Era brejo e água pra to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong>!<br />
Ali é muito bom. É um <strong>do</strong>s lugares que a<br />
gente tinha vontade de morar. Ou ali, ou então na<br />
Granjaria. Tem uns quarenta e cinco anos, mais ou<br />
menos, a gente olhava: suspendia uma casa. Cada<br />
dia que a gente olhava suspendia uma casa! E até hoje<br />
ainda tão suspenden<strong>do</strong> casa ali! A Vila Domingos<br />
Lopes era uma coisinha pequena. Era muito pequena<br />
mesmo! Agora progrediu... Quase que são duas cidades,<br />
ou três, porque lá na Taquara Preta também...<br />
Aquilo lá também... Mas lá eu só fui uma vez... Fui<br />
lá de passagem... É muito difícil porque... nem sair<br />
de casa, quase, eu saio. Na Vila... comerciante que tinha<br />
aqui era o Seu Pandeló, sogro da Ana. Ele tinha<br />
negócio de mantimento e também de pano. Ele tinha<br />
bastante coisinha... era ali defronte a loja Estrela, naquela<br />
casa alta que tem alí... mucadinho pra cá, onde<br />
16
agora estão fazen<strong>do</strong> banco... por ali afora... era ali a<br />
loja <strong>do</strong> Seu Pandeló. A casa de cá era da mulher de-<br />
le... Acho que ele era casa<strong>do</strong> “segunda vez”... eu não<br />
me lembro mais... o Seu Rafael trabalhava ali den-<br />
tro, nos fun<strong>do</strong>s, até quan<strong>do</strong> ele morreu... eu ainda<br />
tenho uma panela que eu comprei dele. Mas o Seu<br />
Rafael tem pouco tempo, né. Não tem muitos anos<br />
não... em frente à fábrica tinha um corre<strong>do</strong>r de casa<br />
muito vagabun<strong>do</strong>, que até o Senhor Zé Bonifácio<br />
tinha um botequinho lá... Tinha uma casa onde morou<br />
o Tanda e mais algum pra cá. Eu não me lembro<br />
mais também. A gente não lembra, né. É muita coisa!<br />
Muitos anos passam, a gente não lembra. Tem muita<br />
coisa que podia... mas não tem jeito mais... não lembro<br />
mesmo não... eu esqueço tu<strong>do</strong>! Aqui só tinha essas<br />
quatro casas... Joaquim Almeida tinha uma casa<br />
aqui. Nessa rua aqui onde morou também o Serafim<br />
Spín<strong>do</strong>la, depois morou a <strong>do</strong>na Maria Vargas... Acho<br />
que deixaram essa casa aqui pra pagar dívida lá no<br />
banco. As outras repartiram pros filhos. Diz que teve<br />
uma enchente aqui... Foi até lá em cima também,<br />
mas eu não lembro... Lá de cima <strong>do</strong> Rio Pomba... Eu<br />
não me lembro dessa não. Eu só lembro de enchente<br />
aqui depois que começou a aterrar essas coisas tu<strong>do</strong>!<br />
Esse Rio Meia Pataca aqui, esse enche à toa! Mas ele<br />
também era um rio que tinha muita volta... Fazia vol-<br />
17
ta assim... Agora não... Eles cortaram, ele ficou certo,<br />
vai direto até lá adiante, mas enche muito! Esse Rio<br />
Meia Pataca aqui foi muito aproveita<strong>do</strong>! A criançada<br />
não saía de dentro dele! A criançada tomava banho<br />
nele diariamente. Era uma beleza! Agora, depois que<br />
essa fábrica de papel sujou acabou o rio. Acabou tu<strong>do</strong>!<br />
Tem hora que a gente não aguenta a catinga que<br />
solta. A água está toda suja, né. Mas aqui era muito<br />
bom! Os meninos brincavam, muita gente lavava<br />
roupa nessa beirada aí... Agora não se pode mais<br />
não... De uns tempos pra cá é que deu enchente. A<br />
Vila não tinha nada: da fábrica pra cá só tinha a fábrica.<br />
Depois começou aquelas casinhas que nós moramos<br />
nela... Fizeram aquelas casas ali. Eu até fui uma<br />
das primeiras que morou lá. Cá não tinha quase nada.<br />
Não tinha casa, não tinha nada! Aquele morro ali,<br />
<strong>do</strong> Haideé Farja<strong>do</strong> era mato. Aquilo ali era mato só!<br />
Acho que tem uns quarenta e poucos anos que começou<br />
aquilo ali. E ficou <strong>do</strong> jeito que tá! Tem, mais ou<br />
menos, uns quarenta e cinco anos...<br />
Tem muita coisa que eu não lembro... Pra falar<br />
a verdade foi muito difícil! Além <strong>do</strong> trabalho, eu passeava,<br />
brincava muito, saía no carnaval... Brincava<br />
carnaval era no “Modesta Violeta”, no Seu Emílio.<br />
Cê lembra dele? Não sei se o Seu Emílio ainda é vivo.<br />
Foi no tempo <strong>do</strong> Seu Emílio, mas isso há quantos<br />
18
anos! Eu era nova ainda, né. Brincava nos bailes, saí<br />
no carro, participava nos dias de carnaval. Eu brin-<br />
quei muito carnaval. Mamãe não deixava a gente ir<br />
sozinha não. Mamãe levava, né. Mas foi há muitos<br />
anos... Foi na época que eu entrei pra fábrica. No<br />
tempo das crianças eu brinquei muito. Fazia muita<br />
farra mesmo! Tive muita regalia, que meus pais da-<br />
vam assim, com eles... Papai não, mamãe. Papai não<br />
brincava muito não, com mamãe eu tive muita rega-<br />
lia. Jogava bola, batia bola, tu<strong>do</strong> eu brincava! Já es-<br />
tava moça quan<strong>do</strong> eles arrumaram esse negócio de<br />
basquetebol. Fizeram um campinho ali onde é essas<br />
casas novas <strong>do</strong>s Peixoto. Pra cá tinha um campo, fi-<br />
zeram na rua mesmo. No meu tempo de criança eu<br />
aproveitei muito!<br />
Eu tenho o primeiro ano só, primeiro ano de<br />
Grupo... Coronel Vieira. Foi só o primeiro ano. Não<br />
tinha condição, não tinha tempo, não tinha jeito de<br />
ir. Não tinha nada: aí fiz só o primeiro ano. Escrevia<br />
muito mal, aprendi as quatro contas... Agora eu nem<br />
sei mais fazer conta! Trabalhava de dia pra estudar<br />
de noite... A gente achava muito... Além de trabalhar<br />
lá fora eu ainda fazia muito serviço aqui. Ajudava, eu<br />
fazia muito o serviço de casa, porque a gente trocava<br />
de turno. A turma que ficava em casa ficava traba-<br />
lhan<strong>do</strong>. Não dava para mais nada! Mas eu acho que<br />
19
aprendi melhor <strong>do</strong> que agora. Eu vejo esses meninos<br />
aprenden<strong>do</strong> quarto ano... Eu aprendi melhor! E o<br />
que sei hoje é isso... Meus filhos tiraram o quarto ano.<br />
A Rita estu<strong>do</strong>u <strong>do</strong>is anos e parou. Depois de mais velha<br />
ela continuou estudan<strong>do</strong>. Fez até a faculdade. O<br />
Zezé não. O Zezé estu<strong>do</strong>u até a segunda série. Não<br />
estu<strong>do</strong>u mais não.<br />
Eu entrei pra fábrica ainda não tinha 14 anos.<br />
Entrei pra fábrica e ali fiquei até aposentar. Trabalhei<br />
como tecelã até sair de lá. A gente trabalhava muito,<br />
então a gente estragava muito pano! Quan<strong>do</strong> a gente<br />
pensava que, no fim <strong>do</strong> mês, ia receber dinheiro vinha<br />
os panos tu<strong>do</strong> nas costas. Dinheiro, além de ser<br />
pouco, nós pagava... eles cobravam os panos to<strong>do</strong>s<br />
que a gente errava. Pagava e ficava com ele. Então<br />
nós não trazia dinheiro quase nenhum pra casa. Aí ficava<br />
aquela panaiada tu<strong>do</strong> lá em casa! Trabalhava pelo<br />
que fazia: se fizesse muito, ganhava muito, se fizesse<br />
pouco, ganhava pouco. Era produção... Mas toda<br />
vida trabalhei muito e puxei muito serviço sempre!<br />
Eu trabalhava mais e ganhava mais... mucadinho. Ah,<br />
aprender, não tive (dificuldade) não. Depois que eu<br />
aprendi, até fazer o serviço daqueles contramestre<br />
eu fazia! Também eu trabalhava só com o tear liso né,<br />
porque não deu pra aprender também o xadrez. Não<br />
aprendi de jeito nenhum! Trabalhei uns tempos com<br />
20
xadrez, maquineta, mas era ruim. Era muito difícil!<br />
No meu tempo às vezes tocava <strong>do</strong>is, três, quatro tea-<br />
res! Acabava uma braçadeira punha a outra. Não da-<br />
va tempo pra gente fazer nada. Só andan<strong>do</strong> pra lá e<br />
pra cá, mudan<strong>do</strong> braçadeira, troçan<strong>do</strong>... às vezes, re-<br />
bentava da lã, ficava vago de cá. Naquele tempo era<br />
muito ruim... às vezes o encarrega<strong>do</strong> não tinha tempo<br />
de olhar, ficar perto da gente... Atrapalhava a engre-<br />
nagem, quebrava a peça. Aí ficava para<strong>do</strong>. Eu gosta-<br />
va muito de trabalhar quan<strong>do</strong> a tecelagem estava boa<br />
mesmo, dan<strong>do</strong> produção, eu gostava... Mas quan<strong>do</strong><br />
parava um mucadinho, eu achava ruim... Se tivesse<br />
boa produção ganhava bem mais. Às vezes, o tear da<br />
maquineta ficava para<strong>do</strong> uma porção de dias... Eles<br />
pelejan<strong>do</strong> com ela. Ela fican<strong>do</strong> parada a gente não ta-<br />
va ganhan<strong>do</strong>. Eu trabalhava já de turno troca<strong>do</strong>, por-<br />
que na ocasião que nós entramos era assim. Quan<strong>do</strong><br />
tinha muita coisa, muito pedi<strong>do</strong>, nós trabalhava qua-<br />
torze horas. Trabalhava das seis às dez da manhã. Às<br />
dez saía pra almoçar e voltava às onze. E saía as cin-<br />
co pra jantar e voltava e saía as dez da noite... Isso,<br />
quase a semana inteira. Só ficava <strong>do</strong>is dias em casa...<br />
Mais pro fim <strong>do</strong> ano fracassava o serviço, aí nós tra-<br />
balhava só quatro horas por dia. Uma semana inteira<br />
quatro ou seis horas. Ia assim uns <strong>do</strong>is ou três me-<br />
ses, depois consertava outra vez. Depois começou<br />
21
as duas turmas... Atrapalhou muito porque até que<br />
aprendia uma, a outra tava ten<strong>do</strong> prejuízo. Aí, não<br />
fazia quase nada porque tava sempre arruman<strong>do</strong> o<br />
tear, arruman<strong>do</strong> as coisas pra outra turma entrar. Foi<br />
muito ruim trabalhar ali naquela ocasião.<br />
O patrão era mesmo o Senhor Manoel Peixoto.<br />
Nem o <strong>do</strong>utor Francisco trabalhava lá ainda. Depois<br />
que o <strong>do</strong>utor Francisco formou é que voltou pra trabalhar<br />
lá. Era o <strong>do</strong>utor Manoel, Senhor Altamiro, o<br />
João Peixoto, que de vez em quan<strong>do</strong> estava lá também...<br />
E os encarrega<strong>do</strong>s era o Serafim Spín<strong>do</strong>la,<br />
Senhor Werneck, que já morreu também há muitos<br />
anos, né. O Serafim era encarrega<strong>do</strong> de uma parte<br />
da fábrica, e o Senhor Werneck era da tecelagem,<br />
onde eu trabalhava. O Onofre foi bem depois. O<br />
Onofre também da tecelagem. Ele era muito bom<br />
pra mim. Não tenho o que queixar. Eu não tenho<br />
o que queixar de nenhum deles, graças a Deus! Eu<br />
gostava muito deles. Eu gosto até hoje porque eles<br />
to<strong>do</strong>s me tratavam muito bem, tanto os encarrega<strong>do</strong>s,<br />
como os que trabalhavam pra consertar o tear...<br />
Eu acho, também, que eu procurava fazer por<br />
onde, né. Muitas coisas eu... eles até me chamavam<br />
de “puxa-saco”. Eu não importava não. Até o <strong>do</strong>utor<br />
Francisco, quan<strong>do</strong> passava lá na fábrica, ele chegava<br />
perto de mim, cumprimentava e tu<strong>do</strong>. Eu gostava<br />
22
dele. Mas muita gente reclamava dele, e reclama-<br />
va <strong>do</strong> Senhor Manoel, que toda vida foi muito bom,<br />
muito atencioso. Quan<strong>do</strong> eu precisava de conversar<br />
qualquer coisa com ele, eu ia lá no escritório. Ele era<br />
muito bom pra gente. Eu gostava tanto de trabalhar<br />
que, quan<strong>do</strong> eu aposentei, eu queria continuar tra-<br />
balhan<strong>do</strong>, sabe. O Zezé falou até que ia fazer um<br />
escândalo, lá na porta da fábrica, se eu voltasse pra<br />
trabalhar. Aí eu fiquei quieta em casa. Também foi<br />
bom. Já tem vinte e <strong>do</strong>is anos que eu estou aposen-<br />
tada. Também não incomodava o contramestre não.<br />
Por exemplo: mudar martelo, mudar correia, aquela<br />
correinha... Tu<strong>do</strong> isso eu fazia. Eu sentia que o con-<br />
tramestre tava aperta<strong>do</strong>, eu via que eu podia fazer,<br />
eu fazia... Muitos ficava esperan<strong>do</strong>... Às vezes com<br />
o tear para<strong>do</strong> toda a vida... Depois, parece também<br />
que eles gostavam muito de mim... Quarenta e <strong>do</strong>is<br />
anos é uma vida! Mas eu tive uns anos fora de lá,<br />
porque eu a<strong>do</strong>eci... Eu acho que foi nervoso e tra-<br />
balhar demais. A<strong>do</strong>eci e fui pro sanatório. Tive no<br />
sanatório um ano. Depois que eu vim de lá, sarei e<br />
voltei... Muita gente morria mesmo, né.<br />
Eu nunca fui atrás de médico. Meus filhos tu-<br />
<strong>do</strong> nasceu com parteira... Quatro... Morreram <strong>do</strong>is:<br />
a mais velha com seis meses. E morreu o mais novo<br />
com três meses. Ficou abaixo da mais velha, ficou a<br />
23
caçula que é a Rita. Nunca fiz tratamento nenhum.<br />
Nunca fiz. Sempre foi tu<strong>do</strong> em casa. O médico que eu<br />
sempre gostei muito dele, e que também eu precisei<br />
mais dele, foi o <strong>do</strong>utor Otônio. Já o <strong>do</strong>utor Edson...<br />
Uma vez, quan<strong>do</strong> eu a<strong>do</strong>eci, fui embora para o sana-<br />
tório... Ele negou até a tirar a chapa, sabe. Aí eu fui<br />
até o escritório - a Liza, minha irmã, veio ao escritó-<br />
rio, falou com o Senhor Manoel e ele falou, então, que<br />
fosse onde fosse! Se precisasse de sair, que podia sair,<br />
fazer os exames to<strong>do</strong>s, e que não ficasse sozinha também!<br />
Aí fomos a Leopoldina e fizemos to<strong>do</strong>s os exames.<br />
Arrumou tu<strong>do</strong> para a gente ir. Foi tu<strong>do</strong> pago por<br />
ele. Nesse tempo não tinha Instituto. Não tinha nada.<br />
Eles é que pagavam o sanatório, porque no princípio,<br />
quan<strong>do</strong> eu entrei, não tinha garantia, não tinha nada.<br />
Se a<strong>do</strong>ecesse morria à míngua... Se não tivesse quem<br />
tratasse... Depois que veio esse negócio de Instituto, e<br />
tu<strong>do</strong>, foi que começou a pagar. Depois que começou<br />
a vir esse negócio de Instituto - que a gente precisava<br />
dele - é que eu comecei a sentir. Foi o Getúlio Vargas<br />
que arrumou tu<strong>do</strong>. Férias... Essas coisas todas foi ele<br />
que fez. Ele fez tu<strong>do</strong> de bom pra gente... Mas sei lá...<br />
cada dia que passava parece que ficava pior a situação<br />
na fábrica, né. O que havia era muito pequeno. A<br />
fábrica, pequenininha mesmo... quan<strong>do</strong> eu saí já estava<br />
bem maior. Teve uma ocasião que ganhamos um<br />
24
lucro. Mas o lucro foi tanto que não deu pra nada! Foi<br />
pouco... Acho que foi só um ano que deram...<br />
Em certos pontos eu acho melhor é agora, né.<br />
Eu não ia ao cinema... quase que não ia ao cinema<br />
nenhum. Não ia a cinema, passear no jardim não pas-<br />
seava... Só ia à Igreja. Eu fui ser “Filha de Maria” e<br />
deixei tu<strong>do</strong>. Eu tava com dezessete anos e fui ser as-<br />
pirante de Filha de Maria. Depois passei a Filha de<br />
Maria, no dia 8 de dezembro, ia fazer dezoito anos...<br />
No primeiro <strong>do</strong>mingo <strong>do</strong> mês ia prá Santa Rita de<br />
uniforme branco, de faixa azul, véu e tu<strong>do</strong>. Tu<strong>do</strong> uni-<br />
formiza<strong>do</strong>. Nós íamos também aos retiros: só rezan-<br />
<strong>do</strong> e ouvin<strong>do</strong> prática <strong>do</strong> padre. Nesse tempo, retiro<br />
era na Semana Santa, depois passou pro carnaval.<br />
Durante os últimos dias da Semana Santa nós fica-<br />
va presa lá dentro... Ficava ali... Era só rezar. A gen-<br />
te ajudava os outros porque queria ajudar, mas não<br />
era obriga<strong>do</strong> não... Todas as roupas de manga com-<br />
prida... Era assim umas roupas mais decentes, mas<br />
não era igual à Assembleia (de Deus) não. E também<br />
andar com namora<strong>do</strong> pra baixo e pra cima, essas<br />
coisas tu<strong>do</strong> eles proibia. Moças, só, não tinha nenhu-<br />
ma casada... Cin<strong>do</strong>nga... Cora Duarte... Carmelita<br />
Guimarães... Padre Cota, Padre Zé Avelino de Castro<br />
que eu acho que era sobrinho <strong>do</strong> Padre Cota. Até eu<br />
casar ainda tinha. Depois que eu casei é que acabou<br />
25
com isso. Mas era muito bom também. Eu gostei<br />
muito! Tinha convivência...<br />
O pai <strong>do</strong> meu mari<strong>do</strong> era irmão da mãe <strong>do</strong><br />
Manoel Peixoto. Essa gente é primo dele. Eles eram<br />
primos: primo primeiro. Meu mari<strong>do</strong> era filho da-<br />
quele Zeca Julião. Vocês não lembram dele não, tem<br />
muitos anos que ele morreu. Eu sei que é meio pa-<br />
rente <strong>do</strong>s Peixoto, sabe. E porque o velho era casa<strong>do</strong><br />
duas vezes. Ele tinha... acho que <strong>do</strong>is ou três filhos<br />
da primeira mulher, não sei... Depois é que ele casou<br />
com a irmã <strong>do</strong> pai <strong>do</strong> meu mari<strong>do</strong>. E aí que deu essa<br />
porção de filhos: Zé Peixoto, Eponina Peixoto... e se<br />
eu não me engano, essa gente tu<strong>do</strong> era <strong>do</strong> segun<strong>do</strong><br />
matrimônio. Era primo <strong>do</strong> meu mari<strong>do</strong>. Eu não sou<br />
parente, ele é que era...<br />
Meu mari<strong>do</strong> trabalhava aqui, depois daqui<br />
levaram ele empresta<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> começou a<br />
Manufatora. Levaram empresta<strong>do</strong> pra lá e não deixou<br />
sair mais. Ficou lá até sair: também aposentou.<br />
Eu não sei se ele era maçaroqueiro... eu não sei se era<br />
cargueiro. Falar a verdade: nem sei não. Eu acho que<br />
ele trabalhava na carga... Eles tiraram algumas pessoas<br />
pra trabalhar na Manufatora, que eles fizeram<br />
aqui, ali atrás da estação. No comecinho, a fábrica<br />
ficava ali atrás da estação. E naquele correio de casa<br />
que tem ali. Eles fizeram um cômo<strong>do</strong> alí. Depois<br />
26
foram lá para baixo. Fizeram um prédio lá em baixo<br />
e passaram pra lá. Aí tiraram meu, e mais alguns, de<br />
cá. Daqui passaram pra lá, pra ensinar. E ensinan<strong>do</strong><br />
ficou... ensinan<strong>do</strong> até sair... Não voltou mais...<br />
Toda vida fui <strong>do</strong>s Peixoto! Toda vida fui! Desde<br />
que começou a primeira eleição. Na primeira eleição<br />
votamos com eles. A gente votava porque gostava.<br />
Eu, por exemplo, gostava. Tu<strong>do</strong> o que eles fazia, para<br />
mim era bom. Eu gostava muito deles! Mas muitos<br />
falam, até hoje! Falam que era cabresto! Que era isso,<br />
que era aquilo. Mas não era cabresto nada! Não era<br />
não. Eu considero assim. Agora, outra gente eu não<br />
sei... porque tem muita gente que não é <strong>do</strong> mesmo<br />
la<strong>do</strong> da gente, né. Nesta época tinha tantas colegas...<br />
eu gostava delas todas. Nunca tive raiva de nenhu-<br />
ma. Nunca briguei com ninguém Helena <strong>do</strong> Tito...<br />
Marilene... já morreram muitas... muitas mesmo! Já<br />
morreu quase tu<strong>do</strong>... a Eva Comello morreu há pou-<br />
co tempo. Morreu bem velha! Morreu em 82... 81...<br />
não sei... eu tirei retrato com ela... eu fui naquele fil-<br />
me, o primeiro filme <strong>do</strong> Humberto Mauro... eu lem-<br />
bro dele, mas não lembro dele mesmo não. Lembro<br />
só... falava dele... até naquele filme dele eu fui, sabe.<br />
Um filme que passou aqui primeiro. Eu era menina...<br />
passou a Eva Comello, passou o pai dela o Sr. Pedro<br />
Comello e, muito mais...<br />
27
Tem mais ou menos cinquenta anos... não, tem<br />
menos... que o Padre Antônio veio pra cá. Ele mo-<br />
rava em Santana, né. Ele morava em Santana e veio<br />
pr’aqui. A Rita, minha filha, era pequena. A Rita foi<br />
batizar lá em cima porque aqui estava em movimen-<br />
to, tava construin<strong>do</strong>, foi batizada lá em cima... essa<br />
igreja foi desmontada duas vezes. Era uma capelinha<br />
mesmo, quase que não tinha ninguém. Não tinha pa-<br />
dre, não tinha nada. Era uma coisinha pequenininha.<br />
E aí, ia lá em cima, na Igreja Santa Rita. Tinha a ca-<br />
pelinha pequena, depois aumentaram, agora de uns<br />
tempos pra cá fizeram aquela outra grande. Não fui<br />
lá em cima mais porque o padre Antônio começou foi<br />
missa aqui, quan<strong>do</strong> a igreja era pequena. Ia lá em ci-<br />
ma quan<strong>do</strong> tinha festa, uma coisa qualquer, mas para<br />
assistir missa não. Essa daqui, depois que começou<br />
eu não saí mais não... vou à missa só sába<strong>do</strong> de noi-<br />
te... eu gosto de ir de noite... seis horas estava ermo,<br />
antes deles mudarem o horário. Eu acostumei ir sá-<br />
ba<strong>do</strong>, porque <strong>do</strong>mingo a gente... Sei lá.<br />
Tinha passeata, tinha! Teve “pic-nic” <strong>do</strong> 1º de<br />
maio. Sempre tinha. Teve “pic-nic” no horto, acho<br />
que duas vezes e acho que lá em Dona Euzébia tam-<br />
bém teve dias. Tu<strong>do</strong> isso eu tomei parte. Passeata<br />
foi dia sete de setembro, me parece. Eu não lembro<br />
mais...<br />
28
Tinha muito movimento... tinha bastante... ti-<br />
nha dia de semana - acho que terça e sexta-feira que<br />
ia e voltava duas vezes. Saía de Caratinga, acho que<br />
às nove horas, chegava ao meio dia e ia pra Miraí.<br />
Voltava de tarde, cinco e meia, seis horas ele volta-<br />
va, sempre cheio com passageiros. Aqui era mui-<br />
to movimento de trem. Tinha trem de carga, de le-<br />
nha, tinha essas coisas todas daqui pra Miraí, daqui<br />
pra Recreio... só sei que era muita máquina! E tinha<br />
Expresso daqui também. O Expresso ia e voltava<br />
cheio pro Rio... o Expresso é que acabou mais de-<br />
pressa... agora tem estrada de ônibus... é mais perto...<br />
com uma, duas horas tamos lá... era bem movimen-<br />
tada... aqui onde mora Maria José, essa casa grande,<br />
ali era Estação Velha, mas eu não alcancei ela não. Ali<br />
não é <strong>do</strong> meu tempo não. Essa ali era velha... logo<br />
eles fizeram aquela dali e passaram pra lá... eu só<br />
me lembro daquela. E tinha um barracão compri<strong>do</strong>...<br />
esse barracão era caso sério! Pra gente vir da fábrica<br />
de noite era uma escuridão! Nossa Senhora! A gente<br />
vinha corren<strong>do</strong>... com me<strong>do</strong>, porque aqui não tinha<br />
casa, não tinha nada. Era só mato. O barracão era da<br />
estação também: guardava máquinas... no barracão<br />
faziam limpeza das máquinas...<br />
Eu acho que quan<strong>do</strong> fizeram a Ro<strong>do</strong>viária, lá<br />
em baixo, o Sr. Manoel já tinha morri<strong>do</strong>... eu vou fa-<br />
29
zer oitenta anos agora em janeiro. Muitos anos, né.<br />
Tem hora que eu cismo assim que vou morrer... eu<br />
não estou muito longe de morrer não. Mas eu fico<br />
pensan<strong>do</strong> assim... meu Deus <strong>do</strong> Céu, eu não quero fi-<br />
car morren<strong>do</strong> toda vida na cama... aí não dá... minha<br />
mãe morreu com oitenta e cinco... eu não sei... não sei<br />
nada não... eu esqueço tu<strong>do</strong>!<br />
Entrevistada em 30/8/1990 por Gláucia Siqueira e José Luiz Batista<br />
30
A M É L I A L A N D <strong>Ó</strong> E S<br />
D I R E TO R A D E E S C O L A<br />
7 5 a n o s<br />
Eu posso contar muito pouco porque<br />
eu saí de lá muito pequena. Eu saí de lá com quatro<br />
anos. Só me lembro <strong>do</strong> jardim de Cataguases... Eu me<br />
lembro que eu brincava muito no jardim. Minha irmã<br />
Alcina, tinha uns quatorze anos, é que me levava... E<br />
me lembro <strong>do</strong> cinema. Papai tinha um camarote e eu,<br />
pequenininha, tinha uma cadeirinha de armar, que<br />
ele botava assim na frente... A nossa casa ia da Rua<br />
Coronel Vieira até a Avenida Astolfo Dutra. Aquele<br />
pedaço to<strong>do</strong>, uma casa enorme! Nós tínhamos cava-<br />
los, tínhamos um carro com <strong>do</strong>is animais... O carro<br />
que ele gostava de passear com as filhas, não é. Era<br />
31
uma casa muito grande... tinha então uma tipografia,<br />
era uma continuação: tinha a nossa casa, tinha o ate-<br />
lier fotográfico, depois a tipografia.<br />
Cataguases era muito pequeno, não é meu fi-<br />
lho? Eu só me lembro de Cataguases... da nossa ca-<br />
sa... A “Força e Luz”... Depois tinha um hotel assim<br />
na esquina... depois descia a Rua da Estação... de-<br />
pois tinha, lá no fim perto da estação, o Hotel Villas.<br />
Ainda existe? Tinha muito viajante, muito movimen-<br />
to mesmo e papai era o festeiro <strong>do</strong> lugar. To<strong>do</strong> mun-<br />
<strong>do</strong> gostava dele. To<strong>do</strong> sába<strong>do</strong> havia uma reunião lá<br />
em casa, porque to<strong>do</strong> sába<strong>do</strong> ele ia à estação buscar o<br />
barrilzinho de chope pros amigos. Ele era jovem nes-<br />
se tempo, né. Os amigos dele era só gente moça, mui-<br />
to alegre. Bailes no clube, ele marcava quadrilha. Era<br />
um homem muito alegre. Mamãe já era mais discreta.<br />
Também tinha uma diferença grande, quase dez anos,<br />
entre eles, né. Ele tinha um relacionamento muito<br />
grande. O Mares Guia, Gaston Bajor, a família <strong>do</strong><br />
Luiz <strong>do</strong> Carmo. Ele gostava muito de festa... Papai<br />
conhecia aqueles Peixoto, Villas, aquela gente toda.<br />
Ele estava em tu<strong>do</strong> quanto é reunião. Tu<strong>do</strong> quanto<br />
era... qualquer coisa que houvesse em Cataguases<br />
papai estava presente.<br />
Ele era estrangeiro, quer dizer, ele não tomava<br />
parti<strong>do</strong>. Ele explicava sempre:<br />
32
- Eu não tenho parti<strong>do</strong> político. Eu sou estrangeiro.<br />
Eu não sou nem A nem B. Agora, eu tenho o meu<br />
jornal, eu imprimo o que me trazem aqui.<br />
Ele não tomava parti<strong>do</strong>, mas ele tinha a tipo-<br />
grafia. Vinha o jornal, ele editava. Ele vivia disso. O<br />
jornal vinha e ele imprimia. Aquilo era um meio de<br />
vida. Ele só imprimia o jornal, isso eu quero que fi-<br />
que bem claro!<br />
O jornal era da oposição - Jornal da Mata - pri-<br />
meiro foi o jornal, depois veio a Revista da Mata. Ele,<br />
como estrangeiro, ele não se metia, ele não votava<br />
nem nada. Ele era suíço <strong>do</strong> cantão alemão. Papai era<br />
suíço da cidade de Zurique e estudava em Hamburgo.<br />
Era de uma família que tinha meios para que o filho<br />
estudasse lá. Ele era um homem de uma cultura mui-<br />
to grande. Ele falava o alemão, falava o francês, o<br />
italiano e alguma coisa <strong>do</strong> inglês. Meu pai - Alberto<br />
Landóes - tinha uma cultura muito grande. O senhor<br />
sabe que a Suíça é um pedacinho de terra... Ele tinha<br />
uma cultura! Ele conhecia música, ele cantava, ele to-<br />
cava instrumento... Uma cultura enorme! Papai estu-<br />
dava física e química comigo. Em matemática era um<br />
colosso! Era um homem de uma cultura muito rica.<br />
Ele não chegou a se formar em engenharia...<br />
Ele veio aqui para o Brasil, viu a mamãe e ca-<br />
sou-se. Disseram a ele:<br />
33
- Olha, São João Dei Rei tem moças muito bonitas!<br />
Ele chegou lá e na Igreja de São Francisco de<br />
Assis ele conheceu mamãe, se casou e ficou por aqui.<br />
Quan<strong>do</strong> ele quis voltar à Europa arrebentou a guerra<br />
- foi quan<strong>do</strong> eu nasci - e aí ele não foi. Quan<strong>do</strong> termi-<br />
nou a guerra - graças a Deus nós tínhamos a parte<br />
monetária sempre direitinha - quan<strong>do</strong> acabou a guer-<br />
ra, em 1918, ele disse:<br />
- Eu vou ver a minha mãe.<br />
Aí a mãe dele morreu. Ele aí perdeu o interes-<br />
se... Ele fez de memória o retrato dela, como ele dei-<br />
xou a mãezinha dele... Eu tenho o retrato da minha<br />
avó. Ele fez o retrato dela, a lembrança dele.<br />
Meu pai era um artista. Ele desenhava e pin-<br />
tava que era uma beleza! Ele ganhou um prêmio na<br />
Europa de um desenho de mãos. O senhor sabe, dar<br />
expressão a mãos é uma coisa difícil. Ganhou o prê-<br />
mio! Isso foi em 1890 e pouco, lá na Europa. A expres-<br />
são da figura que ele pintou... ele ganhou prêmio pela<br />
expressão das mãos... Expressão no olhar, no sorriso,<br />
é fácil, mas nas mãos... Modéstia a parte, papai era<br />
um colosso! Ele fazia clichê, fazia fotogravura, zincogravuras,<br />
fotografia. Tu<strong>do</strong> isso é arte. Tenho aqui tu<strong>do</strong><br />
isso que ele fazia, era completo nisso, certo?<br />
Ele fazia retratos. Ele veio pra cá com o prêmio<br />
que ele ganhou de retrato. Ele escolheu o Brasil como<br />
34
prêmio, para vir pra cá. Ele tinha uma irmã, a mais<br />
velha, ela morava no Rio, no Leme, ele ficou com ela.<br />
Ele gostava de fazer retratos né, e conversan<strong>do</strong> assim<br />
no meio de amigos disseram:<br />
- Olha, moças muito bonitas o senhor encontra em<br />
São João Dei Rei.<br />
Então, na Igreja de São Francisco de Assis,<br />
num <strong>do</strong>mingo de missa, ele conheceu minha mãe -<br />
Afonsinha Pereira Landóes - que tinha 15 anos, e ele<br />
24 (anos). Ele nem sabia falar português nem ela sa-<br />
bia falar alemão. Não sei como eles se entenderam, né.<br />
Então se casaram em São João Dei Rei. Ele ca-<br />
sou-se com mamãe em 1894.<br />
Passou a trabalhar aqui em Minas. Viajou pelas<br />
cidades todas. Ele se casou em Minas e continuou em<br />
Minas. Sempre em Minas. A maior parte <strong>do</strong> tempo<br />
ele ficou em Cataguases. Uns trinta anos. Ele vinha<br />
ao Rio trabalhar com a “Bastos Dias”, uma firma aqui<br />
muito grande. Ele fazia retratos pra “Bastos Dias”.<br />
No Rio de Janeiro, a “Bastos Dias” sempre tinha re-<br />
tratos daqueles políticos to<strong>do</strong>s da época. A “Bastos<br />
Dias” recebia a encomenda e passava pro papai. Ele<br />
então fazia o retrato <strong>do</strong> Washington Luiz, Epitácio<br />
Pessoa, Artur Bernardes, toda essa gente... com um<br />
negócio de velu<strong>do</strong> assim, na vitrine da “Bastos Dias”,<br />
na Rua Sete de Setembro... Retratos de fulano, ele fa-<br />
35
zia, eles punham lá. Ele recebia encomenda, ele não<br />
sabia pra quem... Retratos de família... Retratos to<strong>do</strong>s<br />
que ele fez... Quem gosta de ver isso é meu mari<strong>do</strong>.<br />
falamos...<br />
Ele não conheceu o meu pai, mas pelo que nós<br />
Papai teve sete filhos. Teve um menino... mor-<br />
reu com quatro meses. Ele quase ficou enlouque-<br />
ci<strong>do</strong> com a morte desse menino. Depois veio o ou-<br />
tro. Esse foi um grande construtor aqui no Rio de<br />
Janeiro. Aposentou-se, mas é conhecida a construtora<br />
Landóes aqui. Como meu irmão - era o filho único<br />
- ele tinha verdadeira paixão. Ele não quis estudar en-<br />
genharia como papai queria, mas acabou sen<strong>do</strong> cons-<br />
trutor. Ele não era engenheiro-construtor, mas era <strong>do</strong>-<br />
no da empresa: Construtora Landóes.<br />
Muito conhecida aqui no Rio de Janeiro pelos<br />
bons trabalhos... Ele teve quatro filhas em seguida,<br />
uma atrás da outra, com uma diferença de um ano e<br />
meio de cada uma: a Albertina, a Augusta, Adalzira e<br />
Alcina. Papai as chamava “meu soneto”. Moças mui-<br />
to bonitas, fizeram até muito sucesso em Cataguases<br />
nas festas e tu<strong>do</strong>, né. Eu não me lembro dessas coisas.<br />
Eu lembro disso porque ouvia mamãe comentar, mi-<br />
nhas irmãs...<br />
As minhas irmãs, duas estudaram na Escola<br />
Normal, as outras duas estudaram no Grambery. A<br />
36
mais velha e a última estudaram lá, e as duas <strong>do</strong><br />
meio estudaram no Grambery. Todas professoras. Ele<br />
nos educou numa rigidez extraordinária, não é.<br />
Por isso que todas nós - to<strong>do</strong>s nós, porque só<br />
temos um rapaz, um homem né - todas nós vencemos<br />
na vida. Ele fez questão que nós estudássemos.<br />
Pai amantíssimo, carinhoso, mas enérgico. Ele era<br />
genioso. Nos deu uma educação rígida. Aquele rigor,<br />
aquela disciplina! Papai tinha hora pra tu<strong>do</strong>! Eu já<br />
mocinha feita, noiva, dez horas tinha que ir <strong>do</strong>rmir.<br />
Ele dizia:<br />
- Vai <strong>do</strong>rmir. Às dez horas é o sono da beleza!<br />
Ele tinha muito carinho comigo porque eu fui a<br />
caçula, fui a última. Então, minhas irmãs reclamavam:<br />
- O xodó que o senhor tem pela Amelinha... Tu<strong>do</strong> pra<br />
Amelinha!<br />
- É com esta que eu vou viver menos, é com esta que<br />
vou viver menos!<br />
Elas estavam “trintonas” quan<strong>do</strong> ele morreu.<br />
Eu estava meninota de 16, 17 anos, quer dizer:<br />
“é com esta que vou viver menos”... Ele falava bem<br />
o português, mas com um certo sotaque, sabe. Era<br />
um homem muito inteligente. Ele tinha tiradas... Em<br />
1935, 21 de maio, ele faleceu...<br />
As crianças da vizinhança iam todas lá pra<br />
casa. Papai fazia circo, armava fogãozinho para eu<br />
37
incar, balanço... tu<strong>do</strong> isso no quintal... quintal<br />
enorme!<br />
Agora, ele não me deixava ir pra casa <strong>do</strong> vizi-<br />
nho. Eu não ia, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> era lá em casa. Eu ainda<br />
eduquei minha filha assim. Minha filha ainda teve a<br />
educação a “lá Landóes”.<br />
Depois, nós viemos pro Rio por causa da política.<br />
Ele tinha um jornal que ele editava, o jornal da<br />
oposição. Ele tinha a tipografia, o que viesse ele imprimia.<br />
De uma noite pro dia eles quiseram empastelar<br />
a tipografia dele... Ele não se metia em política,<br />
porque ele era estrangeiro. Ele conhecia o seu lugar...<br />
Ele fez to<strong>do</strong> aquele trabalho da Zona da Mata<br />
toda. Veja aqui por esta revista.<br />
Tu<strong>do</strong> isso é trabalho dele, organizan<strong>do</strong>... E a<br />
beleza desse trabalho dele é que a família dele nunca<br />
entrou! Ele nunca colocou a família aqui. Você viu o<br />
jornal? Meu irmão há tempo me falou, que foi mais<br />
ou menos 1915... Eu era novinha, eu tinha nasci<strong>do</strong><br />
naquela época. Nós temos a Revista da Mata de 17,<br />
18, 19. Tu<strong>do</strong> isso aqui da revista era feito por ele. A revista<br />
foi fundada por Eurico Ribeiro. Aqui na própria<br />
revista - eu estive ven<strong>do</strong> ontem, eu já vi isso várias<br />
vezes - tinha vários colabora<strong>do</strong>res aqui. Olha aqui,<br />
tenho aqui uma porção de colabora<strong>do</strong>res. Hermano<br />
Mares Guia - que até gostou da minha irmã mais<br />
38
velha - era um <strong>do</strong>s poetas. Olha aqui o homem que<br />
deu nome à rua onde nós morávamos: Rua Coronel<br />
Vieira, funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> município de Cataguases, né.<br />
Olha aqui o Venceslau Brás. Esse retrato ele fez foi<br />
quan<strong>do</strong> eu nasci. Aqui o Astolfo Dutra, esse ficou<br />
contra nós porque papai editava o jornal. Eles foram<br />
contra, quiseram até empastelar nossa tipografia. O<br />
Astolfo Dutra... o Pedrito era namorico com minha irmã,<br />
o Homero Dutra também, com outra irmã. Quer<br />
dizer, nos dávamos bem. Mas por causa <strong>do</strong> bendito<br />
jornal houve essa dissidência, houve essa separação...<br />
Ele sofreu vários atenta<strong>do</strong>s naquela época. Um,<br />
que eu ouvia falar, jogaram ele na linha <strong>do</strong> trem. A<br />
sorte grande que o trem passava aqui e ele caiu ali,<br />
naquele bequinho, naquele vãozinho. Não teve nada!<br />
Mamãe vivia em sobressalto. Papai saía, ela não sabia<br />
se ele voltava. Basta dizer que o papai era um homem<br />
pacífico - era um homem muito enérgico e tu<strong>do</strong>,<br />
mas pacífico - ele passou a andar arma<strong>do</strong>. A mamãe<br />
não tinha sossego.<br />
Papai saía, viajava muito... Leopoldina, aqueles<br />
lugares to<strong>do</strong>s ali, e mamãe ficava preocupada.<br />
Nós nos dávamos muito bem com aquelas famílias<br />
de destaque, como era a família Astolfo Dutra. Até os<br />
meninos dele, o Homero e o Pedrito, eram namorico<br />
lá com minhas irmãs. Nós nos dávamos bem com to-<br />
39
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, mas depois que acirrou aquela política e<br />
o papai foi muito... Mamãe ficou apavorada! Queria<br />
vir para o Rio, queria ir para outro lugar! Fomos. Ele<br />
vendeu tu<strong>do</strong> de qualquer maneira. Nós tivemos que<br />
fugir da nossa casa porque empastelaram a nossa tipografia.<br />
Agora, o que eu me lembro é que quan<strong>do</strong> nós<br />
tivemos... quiseram empastelar a nossa tipografia,<br />
a nossa casa, nós saímos corren<strong>do</strong> para a casa <strong>do</strong><br />
Capitão Ezequiel. Era uma fazenda que havia. Esse<br />
capitão era muito amigo de papai. Fugimos pra lá<br />
então... A política foi horrorosa! Era uma coisa horrível<br />
viver assim! Minhas irmãs já estavam moças, e eu<br />
pequenininha, minhas irmãs estavam loucas para vir<br />
pro Rio de Janeiro. Papai tinha uma irmã mais velha<br />
aqui, que tinha um atelier de costura muito elegante,<br />
na Rua Sena<strong>do</strong>r Dantas. Então ele resolveu sair de lá.<br />
Teve que sair corren<strong>do</strong>.<br />
Então ele resolveu vir para o Rio de Janeiro.<br />
Aqui ele teve uma tipografia e fotografia, na Praça da<br />
Bandeira. Aí ele trabalhou muitos anos.<br />
Nós morávamos aqui em São Cristóvão.<br />
Minhas irmãs, então, foram trabalhar com esse diretor,<br />
professor João de Camargo. Era um grande<br />
mestre! Minhas irmãs, professoras, trabalhavam com<br />
o professor João de Camargo e construíram esse co-<br />
40
légio. Antes, em (19)24 o colégio foi funda<strong>do</strong> pelo<br />
professor João de Camargo. Ele era diretor <strong>do</strong> “Pio<br />
Americano”, que era um colégio pra rapazes. Então,<br />
o sonho dele era fazer um colégio modelo para me-<br />
ninas. Ele comprou esse prediozinho, só tinha aquele<br />
palacetezinho aqui na frente, onde nós agora estamos<br />
demolin<strong>do</strong> e fazen<strong>do</strong> uma área maior. Quan<strong>do</strong> o co-<br />
légio estava com quatro anos o professor Camargo<br />
vende para nós. Em 1929, o João de Camargo quis<br />
desfazer o colégio para fazer uma colônia de férias<br />
em Paquetá. Então ele vende o colégio à minha famí-<br />
lia. Minhas irmãs não podiam comprar, papai então<br />
comprou este colégio. Custou cento e vinte contos só<br />
esse prédio aqui. Isso aqui nós compramos depois...<br />
Aqui tinha uma porção de casas... Aqui era a antiga<br />
Rua Emereciana... Eu fui a primeira aluna desse colé-<br />
gio: Escola Brasileira de Educação e Ensino. Uma es-<br />
cola modelo para meninas. Eu fui a primeira aluna...<br />
Ele comprou esse colégio e ficou trabalhan<strong>do</strong><br />
aqui com mamãe e as minhas duas irmãs mais velhas.<br />
Eu era muito menina, eu estava na escola pública,<br />
aqui na Gonçalves Dias, na segunda série. Eu estava<br />
no primário. Nós compramos o colégio no dia 6 de<br />
janeiro de (19)29. Ele ficou muito satisfeito! Ele orga-<br />
nizou tu<strong>do</strong>! Ia a São Paulo comprar carteira! Foi um<br />
homem muito dinâmico! Foi a alma desse colégio no<br />
41
princípio, né. Ele e mamãe, mamãe sempre marcou...<br />
Mamãe também era uma mulher maravilhosa! A fi-<br />
lha falar <strong>do</strong> pai é muito difícil, porque eu tenho um<br />
xodó! Com minha mãe então, nem se fala, né. Porque<br />
minha mãe foi uma mulher <strong>do</strong> lar. Nunca cortou os<br />
cabelos, nunca pintou as unhas. Mamãe era uma sen-<br />
timental, uma romântica. Ela dizia:<br />
- Nesta mão só aliança. Aqui é só aliança, essa mão<br />
só serve aliança. Nessa mão minha filha...<br />
Pro senhor ver o encantamento que ela tinha<br />
pelo casamento! Ela não usava anel nenhum desse<br />
la<strong>do</strong>. Podia usar desse (outro) la<strong>do</strong>, mas aqui não...<br />
Usava brincos de brilhante... O papai, quan<strong>do</strong> nascia<br />
um filho, ele dava uma joia para mamãe.<br />
Eu tenho brilhantes aí que papai dava para<br />
mamãe... Isso eu me lembro com admiração. Ela só se<br />
dedicou a nós. Foi de uma dedicação! O papai tam-<br />
bém. Papai viajava, ela ia junto...<br />
Nós to<strong>do</strong>s morávamos aqui, toda a família aqui,<br />
até as irmãs casadas. Nós morávamos aqui no colé-<br />
gio, aqui na frente. Fizemos esse Colégio Brasileiro a<br />
maravilha que ele é! Nós tínhamos o horário integral,<br />
das dez horas da manhã até às cinco horas da tarde.<br />
Nós tínhamos o curso completo. Enquanto papai foi<br />
vivo o colégio... Nós fizemos exposições belíssimas<br />
na cidade! Tinha professora de pintura, nós fazíamos<br />
42
uma porção de trabalhos e expúnhamos. A minha ir-<br />
mã, essa aqui, a Augusta desenhava, arte <strong>do</strong> lápis, né.<br />
Ela desenhava, ela fez curso de pintura e tu<strong>do</strong>. E to-<br />
das nós temos jeito para desenho. Minhas irmãs eram<br />
muito bonitas. Elas escreviam, elas desenhavam, mas<br />
eu não encontrei nada aqui <strong>do</strong> trabalho delas... Se o<br />
senhor tivesse pega<strong>do</strong> a minha irmã Alcina, que fale-<br />
ceu em 1972... Essa é que sabia tu<strong>do</strong>! Esse livro, papai<br />
passou pra ela. Depois, em (19)58 ela passou para ou-<br />
tra irmã, Augusta Landóes... Depois que ele morreu<br />
perdeu um pouco, porque ele era a alma de tu<strong>do</strong> isso.<br />
Ele foi a alma, ele foi o alicerce.<br />
O papai foi um homem dedicadíssimo! Fez de<br />
nós gente boa. Nós todas temos a mesma educação,<br />
temos o mesmo critério aqui no trabalho. O Colégio<br />
passou por papai e mamãe, depois veio as minhas<br />
duas irmãs mais velhas. A Augusta, esta aqui, já mor-<br />
reu há quatro anos. Era a coisa linda da família, essa<br />
alvoroçou Cataguases! Muito bonita mesmo! Depois a<br />
outra, Adalzira, morreu agora, há um ano e meio. Eu<br />
me aposentei, estava em casa, não quis saber de nada.<br />
Ela morreu, essa imensidão, esse gigante branco ficou<br />
pra mim... Nós fizemos coisas muito boas.<br />
Minhas irmãs foram ótimas diretoras! Mas isso<br />
nós devemos ao rigor - com muito carinho, mas mui-<br />
ta energia né. Agora já está... eu digo que é a quarta<br />
43
geração: papai e mamãe, minhas irmãs, agora estou<br />
eu e já trouxe a minha filha, e já trouxe uma neta, que<br />
já está trabalhan<strong>do</strong>. Ela está fazen<strong>do</strong> informática na<br />
Faculdade, mas já está nos ajudan<strong>do</strong> aqui na parte de<br />
contabilidade. Estamos aqui pra dar amor a isto, por-<br />
que isto aqui é obra Landóes!<br />
Hoje eu sou a última, mas eu trouxe a minha<br />
filha, que já estava casada há vinte anos, sempre<br />
dedicada à família. Eu a preparei para isso. Ela fez<br />
tu<strong>do</strong> quanto era pra ser ótima diretora! Ela estu<strong>do</strong>u<br />
na Europa, passou <strong>do</strong>is anos lá. Fez o curso de Física<br />
aqui na Nacional, foi se aperfeiçoar na Alemanha, fez<br />
a pós-graduação, passou lá <strong>do</strong>is anos e meio. Casouse<br />
também com alemão. Eles se conheceram na<br />
Faculdade e quan<strong>do</strong> acabaram, casaram-se e foram<br />
fazer o curso na Alemanha. O alemão é muito agarra<strong>do</strong><br />
à família, dedica<strong>do</strong> à família. Meu genro é uma<br />
coisa maravilhosa! Essa menina é a que hoje está aqui<br />
comigo trabalhan<strong>do</strong>.<br />
Papai a<strong>do</strong>rava Cataguases! Quan<strong>do</strong> viemos<br />
pro Rio e tu<strong>do</strong>, ele tornou a voltar.<br />
Botou um atelier pequeno, porque ele ia e<br />
voltava, né. Não era aquele atelier maravilhoso, que<br />
ele teve no princípio. Era lá em casa mesmo, na<br />
Rua Coronel Vieira, 60. Era ali. Depois foi na Rua<br />
da Estação, com meu irmão, para vender máquinas,<br />
44
filmes, porta-retratos, tu<strong>do</strong>. Ele fez um comerciozi-<br />
nho... Os quadros de formatura eram to<strong>do</strong>s feitos por<br />
ele. Quan<strong>do</strong> eu estive em Juiz de Fora, em 1972, já se<br />
conhecia papai. Quan<strong>do</strong> Ari Barroso morreu, os re-<br />
tratos que apareciam eram <strong>do</strong> atelier de papai. Papai<br />
não era fotógrafo de jardim, não. Era atelier fotográ-<br />
fico, era arte! Não era só fotografia, não. Ele fazia re-<br />
tratos a pincel. Era fabuloso! Era <strong>do</strong> pincel, mesmo!<br />
Era <strong>do</strong> lápis! Tinha uma letra linda... as assinaturas<br />
dele... Vinham pessoas de fora para procurar o ate-<br />
lier para fotografias e tu<strong>do</strong>... Sempre trabalhou por<br />
conta própria.<br />
Com aquela saída (de Cataguases) teve um pre-<br />
juízo muito grande... Vendeu de qualquer maneira né.<br />
Ele aí trabalhou na Ilha <strong>do</strong>s Pombos, com os america-<br />
nos. Ele se localizou em Porto Novo <strong>do</strong> Cunha. Ficou<br />
lá muito tempo só com mamãe. Minhas irmãs no Rio<br />
e uma tia veio tomar conta de nós. Mamãe sempre<br />
acompanhou papai. Ele se fixou em Porto Novo <strong>do</strong><br />
Cunha, trabalhou naquela represa <strong>do</strong> Rio Paraíba,<br />
que a Light estava fazen<strong>do</strong>. Aí trabalhou muitos anos<br />
e ganhan<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s maiores ordena<strong>do</strong>s! Teve uma si-<br />
tuação muito boa! Ele fez este trabalho durante anos,<br />
ajudan<strong>do</strong> o engenheiro chefe, que era o Kandel. Em<br />
parte ajudava na engenharia, porque ele tinha um<br />
estu<strong>do</strong> - não chegou a se formar engenheiro, porque<br />
45
veio para o Brasil e não acabou. Quan<strong>do</strong> acabaram<br />
aquele serviço o convidaram, com uma situação in-<br />
vejável, para ir a São Paulo. Ele não aceitou. Quan<strong>do</strong><br />
acabou essa represa <strong>do</strong> Rio Paraíba, ele foi convida<strong>do</strong><br />
pela Light para ir para São Paulo como um <strong>do</strong>s maio-<br />
rais, ganhan<strong>do</strong> um belíssimo ordena<strong>do</strong>! Ele disse:<br />
- Não, eu não tenho patrão.<br />
Ele fazia o trabalho dele, dava o preço e era<br />
muito elogia<strong>do</strong>. Ele fez um serviço lá muito bonito,<br />
isso é que eu sei. Tinha até um Fordeco, um “ford bi-<br />
gode”. Quan<strong>do</strong> a Light o quis efetivar ele não aceitou<br />
absolutamente. Ele nunca aceitou... Sempre autôno-<br />
mo. Era um homem muito rígi<strong>do</strong>, muito honesto, gos-<br />
tava de tu<strong>do</strong> muito direitinho. Isso ele incutiu em nós.<br />
E quan<strong>do</strong> ele quis, coita<strong>do</strong>, reunir a família em<br />
1929, as filhas... a Albertina, a mais velha, casada há<br />
um ano e meio, morre de parto. Ele ficou com uma<br />
paixão, porque ele queria toda a família unida. Ela te-<br />
ve um choque pavoroso... Ele veio esperan<strong>do</strong> o nas-<br />
cimento <strong>do</strong> neném... Foi um choque! Ele aí teve um<br />
ataque cardíaco, quase morreu.<br />
Ele ainda durou cinco anos, mas sempre tinha<br />
suas crises de coração... Até tínhamos me<strong>do</strong> quan<strong>do</strong><br />
ele viajava... Ele continuou a viajar e tu<strong>do</strong>. Ele tinha<br />
negócios em vários lugares, né. Em Itaperuna, em<br />
Cachoeiro <strong>do</strong> Itapemirim, ele tinha fazenda lá. Ele<br />
46
aban<strong>do</strong>nou tu<strong>do</strong> depois. É uma <strong>do</strong>ença muito traiço-<br />
eira a <strong>do</strong> coração... Ele continuou conosco até 1935.<br />
Morreu de um ataque cardíaco... Levantou-se mui-<br />
to satisfeito, tomou banho, fez barba, vestiu-se, isso<br />
tu<strong>do</strong>... Estava conversan<strong>do</strong> conosco - comigo e com<br />
outra irmã - na sala de jantar. Ele aí virou-se pra mim<br />
- eu já estava com meus dezesseis anos - ele virou-se<br />
para mim e disse:<br />
- Olha, está dan<strong>do</strong> o sinal.<br />
Então eu peguei a pasta, desci as escadas e fui<br />
pro colégio. Mal eu chego no colégio me chamam dizen<strong>do</strong><br />
que ele tinha ti<strong>do</strong> um ataque cardíaco. Morreu<br />
bonitinho, não é?<br />
Já sofria <strong>do</strong> coração. O primeiro ataque cardíaco<br />
que o papai teve foi quan<strong>do</strong> ele chegou de viagem,<br />
ele veio de Minas e a Albertina...<br />
Engraça<strong>do</strong>, ele sempre teve amigos muito<br />
mais moços <strong>do</strong> que ele... Levava a gente ao corso de<br />
carnaval aqui no Rio: ele, a mamãe e nós. A gente<br />
queria uma fantasia de última hora, ele cortava umas<br />
bolotas e fazia uma colombina. Aqueles “frufrus”, ele<br />
ajudava a passar. Ele sabia enfeitar a roupa da gente...<br />
Um artista! Por exemplo, eu tinha aulas de desenho,<br />
eu não entendia nada de perspectiva... A professora<br />
botava lá uma pilha de livros e mandava copiar... Ele<br />
então me orientava, e eu fazia. Estudava com os fi-<br />
47
lhos... Quan<strong>do</strong> eu era pequena, ele com a tesoura fa-<br />
zia bonecas... Brincava de circo comigo em casa, ele<br />
era o acrobata... ele era um homem muito liberal, sa-<br />
be, muito liberal mesmo.<br />
Ele gostava de ir, aqui no Rio, aos teatros. Ele<br />
botava as quatro filhas no camarote e ele ficava na<br />
plateia para ouvir os comentários, orgulhoso <strong>do</strong> “so-<br />
neto” dele... Eu era um bebê muito bonitinho, tem<br />
uns retratos. Eu assim em cima da mesa, eu sentada<br />
em coluna, eu era um catalzim gordinho, bonitinho,<br />
naquele tempo. Agora, uma velhusca, né. Eu sei que<br />
minhas irmãs queriam vir era para o Rio. Sabe-se co-<br />
mo é que é toda moça, né. Elas tiveram pretenden-<br />
tes lá (em Cataguases) para se casar. Mas elas vie-<br />
ram se casar aqui no Rio. Eu tive quatro cunha<strong>do</strong>s,<br />
né. E papai - o pai das moças - como eles se davam<br />
bem! Papai gostava de botar to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de pileque.<br />
Minhas irmãs tinham que fechar os mari<strong>do</strong>s porque<br />
senão papai fazia... gostava de botá-los de pileque.<br />
Gostava de uma brincadeira, gostava muito! Ele era<br />
muito moleque. Ele dançava... mas só o olhar dele,<br />
to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> respeitava. Ele tinha um <strong>do</strong>mínio sobre<br />
as pessoas muito grande. Ele só olhava... Natal era<br />
uma festa belíssima!<br />
Isso eu não sei porque eu sou a “rapa <strong>do</strong> ta-<br />
cho”. Tem o caso da política, quan<strong>do</strong> quiseram matar<br />
48
Anísio Car<strong>do</strong>so, que era o grande escritor <strong>do</strong> jornal, e<br />
era da oposição. Ele foi alveja<strong>do</strong>, quase que morreu.<br />
O irmão dele, o Mau (Dr. Mário Car<strong>do</strong>so), que era<br />
médico, é que cui<strong>do</strong>u... me parece que a língua ficou<br />
esfacelada... Mas quan<strong>do</strong> ele se recuperou continuou<br />
naquela luta... Daí, então eles acharam que o papai<br />
era da oposição.<br />
Ele era muito alegre, muito chistoso. Era um<br />
homem a<strong>do</strong>rável para se viver...<br />
Acho que eu devia ter uns nove anos, eu vol-<br />
tei lá pra visitar papai (em Cataguases). A mamãe<br />
estava com ele. Minha irmã Alcina, que sempre cui-<br />
<strong>do</strong>u de mim, fomos lá e passamos uns quatro dias.<br />
Interessante... eu tenho uma passagem... O meu ma-<br />
ri<strong>do</strong> foi comandante da IV Região Militar, lá em Juiz<br />
de Fora. E lá em Cataguases acabaram saben<strong>do</strong> que<br />
a esposa <strong>do</strong> general era uma cataguasense. Foram lá<br />
me procurar para eu ir a Cataguases. O prefeito me<br />
convi<strong>do</strong>u para um almoço num <strong>do</strong>mingo... Eu queria<br />
conhecer Cataguases... Sabe que eu não tive ocasião<br />
de ir a Cataguases.<br />
Isso eu não sei não, não lembro tu<strong>do</strong>. Isso meu<br />
filho, eu sou um pouco ignorante nisso, porque como<br />
eu disse, eu sou o último rebento. Ele era maçom,<br />
ele foi venerável da maçonaria, da “Cataguasense”,<br />
ali perto <strong>do</strong> cinema. Papai era venerável - eu nem<br />
49
sei o que é isso, viu - naquele tempo eu ouvia falar.<br />
Minhas irmãs, elas bordavam tu<strong>do</strong> pra maçonaria,<br />
até aquelas bandeiras, aquelas coisas lindas...<br />
Eu estive ven<strong>do</strong>... Eu estou ven<strong>do</strong> coisas que<br />
se reclamava naquele tempo e nós estamos recla-<br />
man<strong>do</strong> agora. Eu vi aqui uns títulos... a mesma crise<br />
daquela época nós estamos viven<strong>do</strong> agora. Então é<br />
antigo... Isso aqui tem quantos anos? Papai já morreu<br />
há cinquenta e tantos anos... Ele morreu moço, mor-<br />
reu muito ce<strong>do</strong>, com sessenta e sete... E, a história se<br />
repete.<br />
Entrevistada em 5/5/1989 por José Luiz Batista.<br />
50
J O Ã O K N E I P<br />
E L E T R I C I T Á R I O<br />
8 0 a n o s<br />
Nasci aqui. Eu sempre vivi aqui em<br />
Cataguases, desde criança. Vou fazer oitenta anos...<br />
Meu pai, minha mãe, tu<strong>do</strong> aqui em Cataguases. Eu<br />
sou descendente de alemão, meu pai era filho de<br />
alemão. Eu me lembro que o meu pai era um ho-<br />
mem muito respeita<strong>do</strong> aqui em Cataguases. José de<br />
Almeida Kneip: tem uma rua aí com o nome dele. O<br />
meu pai era um homem que andava muito alinha<strong>do</strong>!<br />
Eu vou te mostrar um retrato <strong>do</strong> meu pai. Naquele<br />
Foto: Usina Maurício (Fachada da casa de força da Usina Maurício),<br />
Alberto Landóes, 1908, Departamento Municipal <strong>do</strong> Patrimônio Histórico<br />
e Artístico de Cataguases<br />
53
tempo os homens andavam tu<strong>do</strong> direitinho! Tu<strong>do</strong><br />
que precisavam vinham atrás <strong>do</strong> papai. Qualquer<br />
coisa, o velho estava lá para aconselhar. Questão de<br />
balanço, às vezes estava dan<strong>do</strong> prejuízo; ele ia lá, or-<br />
ganizava. Era uma beleza nessa época! O respeito de<br />
um ao outro: não tinha esse negócio de “conto de vi-<br />
gário”, essa bandalheira que está existin<strong>do</strong> hoje. Os<br />
homens eram mais sinceros, mais puros.<br />
A vida em Cataguases era uma beleza naque-<br />
le tempo. E como se diz: Cataguases antigamente era<br />
uma família, você conhecia to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. To<strong>do</strong> mun-<br />
<strong>do</strong> te respeitava e gostava... precisava de um e outro...<br />
pedia... Minha mãe chamava Maria e era chamada de<br />
Dona Garrincha. Ela não gostava não, mas atendia.<br />
Papai era Zequinha. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> chamava o velho<br />
de Zequinha. Ele ensinou muita gente a trabalhar<br />
em escritório. Mais ou menos em 1918, eu era garoto<br />
ainda, era menino, ele abriu uma escola de contabili-<br />
dade. Ensinou muita gente. Mas era um tempo bom<br />
aquele... Meu pai, minha mãe, meus irmãos... Um tra-<br />
balhava no Banco de Crédito Real, o outro foi pro Rio.<br />
Tem uns retratos antigos aí, que eu vou guardan<strong>do</strong>,<br />
que foi <strong>do</strong> velho, da minha velha, das minhas tias...<br />
Todas elas eram comadres naquele tempo... Papai e<br />
mamãe têm uma porção de afilha<strong>do</strong>s. Eu mesmo já<br />
tive uns quatro ou cinco afilha<strong>do</strong>s... tu<strong>do</strong> era uma fa-<br />
54
mília só. Hoje eu quase não conheço mais ninguém!<br />
Cataguases triplicou. Isso aqui é um colosso.<br />
O velho era um homem muito respeita<strong>do</strong>,<br />
muito queri<strong>do</strong>... Trabalhou na Companhia Força e<br />
Luz muito tempo. Ele era respeita<strong>do</strong> como se fosse<br />
um gerente! Muito bom, muito honesto. Ele não era<br />
gerente não, mas ele era respeita<strong>do</strong> como gerente!<br />
Eu entrei pra “Força e Luz” em 1925. Naquele<br />
tempo não era como hoje. A Usina era pouca.<br />
Chegava a ocasião da seca, era uma coisa horrorosa!<br />
A Companhia fazia tu<strong>do</strong>: <strong>do</strong> poste até a iluminação.<br />
Hoje não. Hoje o governo ajuda. Hoje, para aumentar<br />
a luz nem precisa... Eu me lembro que, numa ocasião,<br />
nós fomos lá no Sindicato pedir um aumento de luz<br />
para os emprega<strong>do</strong>s. Chegamos lá, pedimos... um<br />
<strong>do</strong>s diretores até brigou:<br />
- Mas não pode! Vai subir o custo de vida!<br />
Eu tenho vontade de falar com ele:<br />
- E hoje? Hoje sobe to<strong>do</strong> dia, não é?<br />
Quan<strong>do</strong> eu entrei para a “Força e Luz” eu ga-<br />
nhava cinquenta mil réis. Depois fui para oitenta, pa-<br />
ra noventa e fui terminan<strong>do</strong> até ficar chefe da ofici-<br />
na. Eu trabalhei muitos anos ali na Usina Maurício.<br />
Era a mesma Usina, só que tem que ela foi aumen-<br />
tada. Hoje, está outra coisa. Está muito bem organi-<br />
zada, tu<strong>do</strong> arrumadinho. Ia sempre lá: dava defeito<br />
55
nas máquinas, eu ia pra lá. Eu com o meu pessoal. O<br />
<strong>do</strong>utor Gabriel Junqueira era um diretor muito bom.<br />
Eu gostava muito dele.<br />
Já trabalhei muito nessa Cataguases, Nossa<br />
Senhora! Trabalhei quarenta anos só essa parte de elé-<br />
trica, eletricidade. Eu me aposentei em (19)66. Estou<br />
com vinte e tantos anos de aposenta<strong>do</strong>. Depois que eu<br />
aposentei, eu botei uma firma aqui. É minha. Trabalho<br />
aqui. Trabalho para essa zona toda aí. Conserto motor<br />
e transforma<strong>do</strong>r, tu<strong>do</strong> quanto é aparelho de eletricidade.<br />
E, qualquer coisa que entrar aqui! Graças a<br />
Deus sou muito conheci<strong>do</strong> nessa zona aí, sabe.<br />
Eu sou emérito da Maçonaria. Aquele prédio<br />
ali foi construí<strong>do</strong> por mim. Eu era tesoureiro, fui tesoureiro<br />
durante o tempo to<strong>do</strong>, até construir. Eu mais<br />
o Paulo Pessoa... To<strong>do</strong>s os irmãos ajudaram, mas<br />
aquele que foi mesmo par meu foi o Paulo Pessoa.<br />
Aquele prédio ali, quan<strong>do</strong> eu vejo aquilo, parece um<br />
sonho! Quan<strong>do</strong> eu terminei aquele prédio sabe quanto<br />
estava? Quarenta e <strong>do</strong>is contos! Quarenta e <strong>do</strong>is<br />
mil contos! Hoje, compramos uma sala por trezentos<br />
mil... Nós fizemos aquilo e fomos venden<strong>do</strong> as salas...<br />
Depois fomos apanhan<strong>do</strong> (as salas) outra vez. O<br />
meu pai, ele é que organizou essas atas. A rua que<br />
eu nasci... eu não estou lembran<strong>do</strong> não, sabe. Não sei<br />
se é lá na Rua <strong>do</strong> Pomba... por ali assim, sabe. As ru-<br />
56
as antigamente era tu<strong>do</strong> de chão. Eu me lembro que,<br />
tempo de chuva, dava aquele barro! Essa avenida<br />
quem abriu essa avenida foi o Coronel João Duarte.<br />
Naquele tempo, ele era prefeito de Cataguases. João<br />
Duarte Ferreira era um capitalista muito grande. Ele<br />
morou ali onde vocês vão fazer o Museu, ali na pra-<br />
ça. Coronel João Duarte tinha muita indústria, tinha<br />
Banco, tinha tu<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> morreu era o homem<br />
mais rico, ricaço mesmo!<br />
Aqui era brejo, aqui tu<strong>do</strong> era brejo. O trem<br />
passava aqui, passava mais pra cá, o “corgo” pas-<br />
sava aí. Esse “corgo” foi feito, acho que foi feito em<br />
1922. Fizeram o canal em mil novecentos e vinte e<br />
tanto, não me lembro não. Acabaram com o “cor-<br />
go”... Mas aqui tu<strong>do</strong> era brejo. E a rua tinha aquelas<br />
pedras grandes. Automóvel só existia um, era da<br />
Companhia (Força e Luz): Benz, <strong>do</strong> Doutor Gabriel<br />
Junqueira. Depois começou a aparecer novos carros.<br />
Veio um carro aí to<strong>do</strong> bonitão! Quem vendia carro<br />
muito bonito era o Agenor de Barros. Era capitalista,<br />
agora perdeu tu<strong>do</strong>, ficou pobre... O negócio <strong>do</strong> ca-<br />
fé derrubou muita gente naquele tempo... Isso aqui<br />
era um brejo, plantava arroz aqui: arrozal. Era um<br />
colosso! João Duarte que abriu essa Avenida Astolfo<br />
Dutra e fez o canal. Tirou o que passava ali atrás...<br />
onde é hoje, era tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de cá. Não tinha casa<br />
57
nenhuma... Mas ali na avenida já tinha a casa <strong>do</strong> <strong>do</strong>u-<br />
tor Astolfo, foi uma das primeiras casas que fez ali.<br />
Depois foi fazen<strong>do</strong> as outras.<br />
Olha aí no livro... Não era livro, era revista, vo-<br />
cê pode ver aí: janeiro, fevereiro...<br />
Era revista, cada vez saía... O papai foi juntan-<br />
<strong>do</strong> aqui nessa escrivaninha. Depois o papai morreu,<br />
eu abri lá e vi. Aí mandei encadernar todas três. E<br />
a “Revista da Mata”... 1917... Foi o Alberto Landóes,<br />
ele que fez isso. A fotografia dele era muito boa!<br />
To<strong>do</strong> lugar: Leopoldina, Astolfo Dutra, Ubá, São João,<br />
Cataguases... Tem muito verso aí, muita coisa antiga,<br />
nomes antigos respeita<strong>do</strong>s: Ribeiro Junqueira, <strong>do</strong>utor<br />
Lobo... Aí, esse é o Eurico Rabelo, homem direito...<br />
ensinava mesmo! Naquele tempo ensinava... Hoje<br />
não ensina conforme era não... No entanto, ganha-<br />
va pouco essa gente. Andava bem vestida, ensinava<br />
bem... Hoje, essas greves aí...<br />
Estudei (no Grupo Escolar Coronel Vieira). A<br />
professora era a Dona Tita, deve estar aí Dona Tita.<br />
Naquele tempo era só ele... 1912... 1913... só tinha<br />
ele. A não ser a Escola Normal, não é? Aqui tem a<br />
Escola Normal, era aqui atrás, você vê justamente em<br />
cima, logo no final. Era a Chácara Arthur Cruz. Eu<br />
me lembro, eu era menino, não é? Naquela ocasião<br />
eu devia ter uns quatorze anos... Ali era um pomar,<br />
58
você ia lá, apanhava fruta... Depois passou a chá-<br />
cara, fizeram a Escola Normal na praça. O Ginásio<br />
era onde é o Colégio hoje, lá em cima. Do tempo <strong>do</strong><br />
Antônio Amaro, velho respeita<strong>do</strong>, bom professor! O<br />
Sr. Francisco... a Industrial... compraram, derruba-<br />
ram e fizeram este. O Jânio Quadros... com aquela lei<br />
que era obriga<strong>do</strong>... toda a companhia tem que fazer<br />
o colégio. (Fizeram a <strong>do</strong>ação <strong>do</strong>) colégio pro Esta<strong>do</strong>.<br />
Hoje é <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />
A Revista Verde era uma revista boa, mas eu<br />
não tinha... Naquele tempo eu não me lembro da<br />
Revista Verde não... Eu não ligava pra essas coisas<br />
não. Quem podia dizer sobre a Revista Verde é o fi-<br />
lho <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Francisco, ele que pode informar me-<br />
lhor. Tem o Rosário Fusco, tem o Guilhermino, que<br />
fazia parte da Revista... Tem o livro até que eles me<br />
deram. Emprestei: nunca mais me deram o livro!<br />
Esse negócio de emprestar livro pros outros... Eu te-<br />
nho um ciúme desse livro! Uma ocasião, eu empres-<br />
tei, mas (uma) criança pegou e passou (as páginas)<br />
de qualquer jeito. Tem que pegar direito! O <strong>do</strong>utor<br />
Enrique (de Resende) fez um outro livro, está ali, e<br />
até pôs o meu nome!<br />
A “Irmãos Peixoto” é a fábrica mais antiga que<br />
tem. A mãe das fábricas aqui é a “Irmãos Peixoto”,<br />
dela que saíram todas. Só sei que ela foi aumentan-<br />
59
<strong>do</strong> muito. Depois que passou para os netos melhorou<br />
cada vez mais. Dali foi a “Industrial”... “Manufatora”,<br />
tu<strong>do</strong> da mesma família: o Zé Peixoto, o Manuel<br />
Peixoto. E tem o Rodrigo Lanna também, que é da<br />
Emília Peixoto... A indústria era muito pouco, tinha<br />
mais lavoura. Agora, tem mais indústria. As operá-<br />
rias agora só andam bem vestidas...<br />
Eu me lembro que os operários, antigamente,<br />
saía de madrugada com o tamanquinho: toc-toc-toc-<br />
toc. Hoje não, operária hoje está igual a professora:<br />
chique, bem vestida. Hoje operário tem geladeira,<br />
televisão, tem tu<strong>do</strong>. Naquele tempo a coisa era... ga-<br />
nhava pouco... O ordena<strong>do</strong> naquele tempo não dava<br />
muito, dava trinta mil réis; mas passava bem, muita<br />
fartura. Você comprava um litro de leite por duzen-<br />
tos réis; um frango muito caro era oitocentos réis. O<br />
lavra<strong>do</strong>r, por exemplo, comia carne seca. Comia bem!<br />
Eu me lembro. Eu tenho um cunha<strong>do</strong> que ia lá, ven-<br />
dia carne seca, arroz feijão, saco de farinha... Hoje,<br />
quem come carne seca? Está cada vez pior a vida!<br />
Não tem jeito, não.<br />
Naquele tempo o pessoal tinha mais disposi-<br />
ção para trabalhar, não é. O pessoal era mais alegre,<br />
não tinha que ficar com me<strong>do</strong> de ser assalta<strong>do</strong>. Hoje,<br />
você não pode sair de noite aqui! Fiz tu<strong>do</strong> a grade,<br />
tu<strong>do</strong> de grade. A gente fica na grade e os vadios sol-<br />
60
tos aí. Seis, sete horas já tranco o portão: tem só eu<br />
e a mulher aqui! Naquele tempo, um Juiz de Direito<br />
quan<strong>do</strong> passava - o <strong>do</strong>utor Cleto - o pessoal parava<br />
com to<strong>do</strong> respeito, no meio da estrada. Eu me lembro,<br />
o <strong>do</strong>utor Cleto Toscano, quan<strong>do</strong> passava, o pessoal<br />
parava pra ele passar, cumprimentavam... Tu<strong>do</strong> bem<br />
vesti<strong>do</strong>. Hoje acabou isso tu<strong>do</strong>.<br />
Terno e gravata! Era tu<strong>do</strong> direitinho, tu<strong>do</strong> di-<br />
reitinho. Antigamente... eu me lembro que a gente<br />
fazia baile aqui. Aqui em casa mesmo já fez. Vinha<br />
pr’aqui aquelas mocinhas. Fazia baile. Não era muita<br />
gente não. Era na casa <strong>do</strong> vizinho, outro na outra ca-<br />
sa - <strong>do</strong> Coronel Antônio Augusto - um homem muito<br />
estima<strong>do</strong> aqui. Morreu... Me lembro das minhas na-<br />
moradas... Já morreu tu<strong>do</strong>... O namoro era de noite,<br />
de vez em quan<strong>do</strong> conversava, mas nada de mão da-<br />
da. Qualquer coisa diferente era um escândalo, sabe.<br />
Hoje, tá um caso sério, não é? Absur<strong>do</strong>!<br />
Os bailes eram ali no “Comercial”. Ali em ci-<br />
ma <strong>do</strong> Cinema Recreio, naquele tempo, tinha o clu-<br />
be. Tem o retrato aí. Era ali que eram os bailes, em<br />
cima <strong>do</strong> cinema. Eu dancei muito ali, brinquei mui-<br />
to. Depois derrubaram ele, desmancharam e fizeram<br />
aquela porcaria! Eles não deviam ter desmancha<strong>do</strong><br />
este prédio <strong>do</strong> Cinema Recreio. Eu tenho retrato dele<br />
aí: por dentro e por fora. Olha aí no livro. Duas coisas<br />
61
que eu fico com dó: a igreja e o prédio... Fizeram uma<br />
reunião: o Padre Solin<strong>do</strong> com porção deles. Fizeram<br />
uma reunião lá, houve votação se devia desmanchar<br />
ou não. Muitos foram contra. Mas tem a maioria: a<br />
maioria era a favor de derrubar. Quem aju<strong>do</strong>u muito<br />
ali foi o João Peixoto, a pedra para aquilo tu<strong>do</strong> foi ele<br />
que deu. Mas é uma pena... O cinema Recreio, por<br />
exemplo, pra que desmanchar? Deixassem ele... Eu<br />
achei um absur<strong>do</strong> derrubarem aquela igreja, uma<br />
beleza que era! Que fizesse esta em outro lugar, mas<br />
que deixassem aquela! A igreja você conhece? Tem<br />
ali o retrato dela. Olha que beleza de igreja aí! Olha<br />
que beleza! Devia conservar... Antiguidade é que é<br />
bonito. Desmancharam uma igreja dessa para fazer<br />
essa igreja feia desse jeito! Moderna! Tu<strong>do</strong> antigo é<br />
mais bonito! Eu acho horrível essa igreja! Aquilo<br />
nem parece igreja! Esquisita, não parece igreja não!<br />
Não gosto desta igreja não! “A primeira era muito<br />
mais bonita que a de agora, não é?” (intervenção de<br />
Wanda Kneip, filha). Mês de maio aí era uma beleza!<br />
Não tem mais coroações não. No mês de maio, to-<br />
<strong>do</strong> dia, tinha! Agora tem lá na Vila, não é? O padre<br />
Antônio ainda conserva. Já fui lá, de vez em quan-<br />
<strong>do</strong> eu vou lá... No batiza<strong>do</strong> da minha bisneta... Eu<br />
já tenho, já vem pra quatro bisneto! E neto eu tenho<br />
treze! Quan<strong>do</strong> eu casei eu fui para o Rio... a primei-<br />
62
a filha foi passear em 1932. Eu casei em (19)21, vou<br />
fazer cinquenta e oito anos de casa<strong>do</strong>... Eu me lembro<br />
quan<strong>do</strong> o Pedro Dutra casou. Você ia a tu<strong>do</strong>, saía de<br />
casa tu<strong>do</strong> de braço da<strong>do</strong> para o casamento. Aquela<br />
fila parecia uma procissão. Não tinha carro, não ti-<br />
nha nada... Esses velhos aí, eu me lembro deles to-<br />
<strong>do</strong>s. Essas professoras... Dona Olinda, a Flávia Dutra,<br />
mulher <strong>do</strong> Pedro Dutra... Ela ainda está viva, a Dona<br />
Flávia mora no Rio com o filho dela.<br />
Eu estive no Rio em 1927. Estive na “Força e<br />
Luz”, depois fui para o Rio, o senhor Gabriel man-<br />
<strong>do</strong>u eu ir pra lá. Lá fiquei um ano através da CIBS.<br />
Mas eu a<strong>do</strong>eci... Depois papai não quis deixar eu vol-<br />
tar, senão era capaz de ter fica<strong>do</strong> lá. Eles não queriam<br />
deixar eu sair. Antigamente eu ia para o Rio... Eu me<br />
lembro que quan<strong>do</strong> eu ia para o Rio de trem - tinha<br />
que ir de trem - pegava o trem, chegava lá no Rio<br />
às vezes dez horas... onze horas. Era uma viagem<br />
boa. O Rio de janeiro era outra coisa, naquele tempo.<br />
Eu me lembro da ocasião em que fui batizar a Nilza,<br />
nós fomos de trem. Levamos uma matutagem 1 para<br />
comer no caminho... Eu me lembro que quan<strong>do</strong> eu<br />
vim <strong>do</strong> Rio, com o papai, pra to<strong>do</strong> la<strong>do</strong> via... enchia<br />
1 ) Expressão mineira para merenda, refeição rápida durante uma viagem.<br />
63
a Estação. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ia esperar o “expresso” ali,<br />
de tarde, na Praça da Estação. Quan<strong>do</strong> era dez ho-<br />
ras, ia to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para a estação para ver o pessoal<br />
sair na Leopoldina - o trem que vai para o Rio, que<br />
ia até o Rio. Quan<strong>do</strong> vinha <strong>do</strong> Rio... vai tu<strong>do</strong> para a<br />
Estação... Ali na Praça da Estação era um movimen-<br />
to naquele tempo! Tu<strong>do</strong> era despacha<strong>do</strong>, vinha tu-<br />
<strong>do</strong> ali... Gente, era um movimento dana<strong>do</strong>, naquele<br />
tempo. Não tinha essa praça. Eu me lembro que, eu<br />
era menino, solteiro, rapazinho já, ficava passean<strong>do</strong>.<br />
Tu<strong>do</strong> bem vesti<strong>do</strong>. As moças vinham de lá e a gen-<br />
te ficava rodan<strong>do</strong> ali no jardim, para lá e para cá. A<br />
Praça da Estação, hoje, é quase a mesma coisa. Ficou<br />
o prédio ali, aquela casa ali onde era o João Duarte...<br />
Já derrubaram alguma coisa, não é. Mas o prédio ali,<br />
<strong>do</strong> la<strong>do</strong> de lá, na Leiteria, é quase o mesmo. Estão<br />
conservan<strong>do</strong> o Hotel Villas. É bom a gente saber que<br />
reformaram isso tu<strong>do</strong>... A Carcacena foi feita de-<br />
pois. Foi em 1922, eu me lembro quan<strong>do</strong> fizeram a<br />
Carcacena... A Praça de Santa Rita tinha um chafariz<br />
que era uma beleza! Veio um tal de engenheiro e aca-<br />
bou com aquilo tu<strong>do</strong>: o chafariz, o coreto, as palmei-<br />
ras... derrubou tu<strong>do</strong>! Era praça bonita! O chafariz era<br />
uma beleza!<br />
Isso aqui tinha um ban<strong>do</strong> de an<strong>do</strong>rinhas!<br />
Quan<strong>do</strong> chegava... às vezes, de tarde voava tu<strong>do</strong>!<br />
64
Era bonito, por causa desse jardim... Aqui era onde<br />
fazia o coreto pra leilão. Era <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de cá. O jardim<br />
foi pra frente... aqui tinha duas palmeiras... Banda<br />
de música... Tinha a <strong>do</strong> Rogério Teixeira, tinha a <strong>do</strong><br />
Pierre. Mas a bonita era a <strong>do</strong> Rogério. Eu me lembro<br />
é a <strong>do</strong> Rogério, por toda vida. Era uma coisa louca! O<br />
Rogério Teixeira era um músico formidável! O cinema,<br />
antigamente, era mu<strong>do</strong>, mas quem tocava no cinema<br />
era o Rogério Teixeira, era a senhora dele, João<br />
Ciodaro, aquela turma. Bonito, né. De vez em quan<strong>do</strong><br />
toca uma música, eu lembro dele...<br />
Acabou tu<strong>do</strong>... O jardim era... era uma beleza<br />
aquele jardim! Tinha banda de música, o coreto, o<br />
chafariz, muito bonito! O cinema, né. Tem aquela foto<br />
ali <strong>do</strong> João Butiga, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> ficava venden<strong>do</strong> <strong>do</strong>ce...<br />
<strong>do</strong>ce <strong>do</strong> João Butiga. Meu pai comprava umas cocadinhas<br />
dele. Ele ficava era <strong>do</strong> la<strong>do</strong> daquelas colunas,<br />
ele ficava ali venden<strong>do</strong>...<br />
O bonde é uma coisa interessante, puxa<strong>do</strong> a<br />
burros. Ele ia até o colégio, o ginásio. Ele partia lá<br />
da Vila, vinha aqui, lá <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da ponte também,<br />
passava na ponte ali. Tinha três trilhos. Eu botava<br />
muita pedra debaixo da linha pra fazer ele descarrilar!<br />
Mas ia mesmo mais longe. Ia até no colégio.<br />
Vinha lá da Vila, lá da Estação, passava na praça e<br />
vinha aqui... Descia para a ponte de madeira.<br />
65
Aqui era o colégio das irmãs, era aqui. E tinha<br />
uma rua ali que era para a ponte de madeira, depois<br />
eles desmancharam. Quan<strong>do</strong> eles fizeram esta ponte<br />
de metal, que é a ponte velha (hoje), eu me lembro. A<br />
ponte velha era de madeira, viu. Ponte de madeira,<br />
depois fizeram a de ferro. Acho que tem até o retrato<br />
aí. Era aqui onde está o colégio das Irmãs. Era ali, ti-<br />
nha um prédio, acho que tem um retrato aí.<br />
Quan<strong>do</strong> houve a (gripe) espanhola, o <strong>do</strong>utor<br />
Gabriel Junqueira era o gerente. Uma coisa horroro-<br />
sa! Ele levou meu pai lá pra casa dele, pra tomar con-<br />
ta dele lá. As Irmãs Carmelitas tomou conta de lá de<br />
casa, porque o papai é que fun<strong>do</strong>u o orfanato para<br />
elas. Tem retrato dele lá (no orfanato). Então elas iam<br />
pra lá e ficou tratanto da gente. Naquele tempo as<br />
Irmãs eram outra coisa... Eu perdi uma irmã...<br />
Eu me lembro daquela turma velha, aquela<br />
turma ali da Praça Santa Rita. O Alfre<strong>do</strong> Campos... Já<br />
morreu to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, os médicos daquele tempo, não<br />
é. Naquele tempo não tinha... depois que eles fizeram<br />
esse hospital aqui. Tinha um hospital lá em baixo,<br />
muito pequeno. Era lá... quem vai lá naquela ponte<br />
<strong>do</strong> “Meia Pataca”, ali tinha um prédio que era o<br />
hospital. Eu ainda me lembro daquele hospital. Certa<br />
vez, eu estava até machuca<strong>do</strong>, fui lá e tratei. Mas não<br />
tinha recurso nenhum! Operação, quem tivesse que<br />
66
fazer ia para o Rio. Aqui não tinha não. Os médicos<br />
não eram opera<strong>do</strong>res igual é hoje, não é? Hoje tem.<br />
Hoje tem uma porção de coisa. Está caro, não é? É<br />
verdade, não tinha esse negócio de aposenta<strong>do</strong>ria.<br />
Não tinha nada naquele tempo, não é?<br />
Natal... Natal era aquelas mesas de <strong>do</strong>ce que<br />
era uma beleza! Eu me lembro. Aqui em casa, no mês<br />
de São João, fazia festa de bandeirinha. A Wanda<br />
fazia São João, chamava os outros pra tocar valsa...<br />
A vizinhança, as crianças, tu<strong>do</strong> pra cá! Pé de mole-<br />
que, arroz... Naquele tempo era bom! Era uma festa<br />
de família, linda. O meu quintal era até na Avenida,<br />
então fazia festa ali: fogueira, aquilo tu<strong>do</strong>... To<strong>do</strong> o<br />
ano era ali. Era aniversário de uma menina? Festa!<br />
Aniversário de um, era festa! 2 Cada dia numa casa...<br />
Aqui dava também... Na casa <strong>do</strong> Luiz <strong>do</strong> Carmo, fica-<br />
va aquela enxurrada... Brincan<strong>do</strong>, jogava água, inva-<br />
dia a casa. É, jogava água e molhava tu<strong>do</strong>! Era água<br />
mesmo. Tinha o chafariz ali na rua... Às vezes agarra-<br />
va o sujeito e jogava dentro d’água! Domingo, como<br />
eu já te falei, passeavam no jardim. Aquelas moças<br />
2 ) As festas eram nas casas de família. De primeiro, dava muita brincadeira<br />
– brincadeira de laranja, de maçã – todas as férias de julho. Fazia laranjada,<br />
lembra João? (intervenção de Wanda Kneipp)<br />
67
todas passavam pra lá e pra cá. Tu<strong>do</strong> bem vestidinha,<br />
né. Hoje, acabou isso tu<strong>do</strong>, não tem mais...<br />
Carnaval, antigamente tinha esse negócio de<br />
bolas de cera. Então tinha esse negócio que vendia,<br />
que era uma bola: uns tinha perfume, outros não. Aí<br />
jogava assim... pá... molhava o sujeito! O ruim era o<br />
perfume. Jogava e molhava as costas <strong>do</strong> sujeito to-<br />
<strong>do</strong>! Isso há muitos anos! Eu era garoto, menino, ti-<br />
nha uns oito... dez anos. Era muito anima<strong>do</strong>, lança<br />
perfume em cima. Tinha gente que jogava na vista:<br />
<strong>do</strong>ía. Outros gostavam de cheirar; era perfumada. Eu<br />
mesmo comprava muito lança perfume pra vender.<br />
Muito mais brilho! Muito melhor! Os bailes... faziam<br />
fantasias. Em baile, cada qual fazia a fantasia mais<br />
bonita! Hoje, o pessoal já esta tu<strong>do</strong> fantasia<strong>do</strong> aí, né.<br />
Essas roupas de hoje, antigamente era fantasia! De<br />
rua então era uma beleza! De rua tinha aqueles blo-<br />
cos. O senhor Emílio fazia os blocos aí. Muito interes-<br />
sante! Cantava aquelas mulatas, morenas, tu<strong>do</strong>! Fazia<br />
até concurso para ver quem ganhava. Era anima<strong>do</strong><br />
mesmo! Antigamente tinha o bloco <strong>do</strong> “Flamengo” e<br />
<strong>do</strong> “Operário”: faziam aquelas coisas, que hoje não<br />
tem mais... agora acabou... só <strong>do</strong> clube... O clube <strong>do</strong>s<br />
viajantes era muito anima<strong>do</strong>. Animava muito o car-<br />
naval aqui... A gente fazia no “Comercial” mesmo,<br />
ele era muito anima<strong>do</strong>! Tem aí a Climene Barroso,<br />
68
que foi fantasiada. O Ciodaro, aquele pessoal, mas eu<br />
não me lembro daquilo ali não. Era muito criança.<br />
Eu fazia parte <strong>do</strong> Flamengo Futebol Clube, aju-<br />
dava e tu<strong>do</strong>. Era Atlético, depois passou a Flamengo<br />
Futebol Clube. Esses aí, to<strong>do</strong>s já morreram... Ofir<br />
Ribeiro, o Charrão, aquela turma boa. Jogava mesmo!<br />
Tinha o meu irmão, o Geral<strong>do</strong>, que jogava muito<br />
bem! Eu me lembro daquele tempo <strong>do</strong> Flamengo,<br />
que era uma beleza! As moças iam tu<strong>do</strong> pra lá. A sociedade<br />
ia toda assistir. Era uma festa: dia de jogo era<br />
uma festa! Flamengo e Operário naquele tempo: era<br />
caso sério! Antigamente havia mais amor. Ninguém<br />
ganhava pra jogar. Hoje não, tu<strong>do</strong> é dinheiro! Eu gostava<br />
muito daquele tempo: era uma festa, era bonito!<br />
Tem o Daniel Lopes, que era o presidente <strong>do</strong>... Osório<br />
de Souza... Vinha time <strong>do</strong> Rio... Vinha time <strong>do</strong> Rio,<br />
mesmo, jogar aqui! Naquele tempo a gente fazia sacrifício...<br />
Naquele tempo o campo não tinha grama,<br />
era tu<strong>do</strong> poeira. Aqui na Avenida, o campo era aqui<br />
na avenida onde está ali a “Cima”, a Igreja Metodista,<br />
em frente ao Grupo. Armava circo ali. Naquele tempo<br />
o campo era aberto, quan<strong>do</strong> vinha o circo... Fazia<br />
circo é ali, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da “Cima”. O circo era ali, o<br />
futebol era em frente...<br />
Aqui na Avenida Astolfo Dutra fazia a festa<br />
das árvores. Deixa eu ver aqui... plantavam ár-<br />
69
vores... era o prefeito, plantava árvores. Naquele<br />
tempo tinha mais amor às coisas... Eu não lembro<br />
não, eu era garoto... Isso aqui é a Casa Felipe. Aqui<br />
a “Henriques Felipe”, é no fim da Avenida... Essa<br />
Mecânica Cataguases era <strong>do</strong> Antônio Lopes. Já aca-<br />
bou. Ele quebrou... morreu... uma mecânica muito<br />
boa, sabe.<br />
Naquele tempo, a estrada era tu<strong>do</strong> de chão,<br />
não é? Para Miraí, por exemplo, era uma estrada<br />
horrorosa! Era só aquele trenzinho de Miraí. O<br />
trem... linha daqui pra Miraí. O único que tinha pra<br />
ir pra Miraí era o trem. Naquele tempo não tinha estrada,<br />
não é. Depois começaram a fazer estrada, fizeram<br />
estrada para Ubá, né. Isso aí foi em (19)28 a<br />
(19)30 mais ou menos... Não iam mais de trem, iam<br />
de ônibus. Eles deixaram de ir de trem. O trem acabou.<br />
O Maroti foi um <strong>do</strong>s primeiros. Era <strong>do</strong>... Eu me<br />
esqueço o nome dele... Ele botou uma linha de ônibus<br />
para o Rio. Eu esqueço o nome... O Maroti tinha<br />
ônibus também...<br />
Depois veio aquele negócio de fazer filme. Eu<br />
estava mais ou menos com dezesseis, dezessete anos.<br />
Até uma vez tomei parte, dançan<strong>do</strong> lá. O Humberto<br />
Mauro foi muito meu amigo. Quan<strong>do</strong> o Humberto<br />
Mauro fez a festa, eu iluminei a cidade toda! Tem um<br />
livro aí, que é da festa dele, e estão me elogian<strong>do</strong> por<br />
70
causa da festa. O Humberto Mauro é uma coisa mui-<br />
to formidável. Ele trabalhava em eletricidade, eu tra-<br />
balhei com ele também. Começou a fazer filme aqui<br />
em Cataguases. Foi aqui, aqui em Cataguases que ele<br />
começou a filmar. Foi mais ou menos em (19)24, por<br />
aí a fora. A Eva Nil... o Luiz Soroa... Eu me lembro,<br />
tem eu dançan<strong>do</strong> lá (no filme), eu fiz parte <strong>do</strong> baile...<br />
Era ali na Estação. Chiquinho Mauro foi um <strong>do</strong>s ar-<br />
tistas também, <strong>do</strong> “Brasa Dormida”. Eu estava sem-<br />
pre em comunicação com o Luiz Soroa, Eva Comello,<br />
Humberto Mauro, Aghenor de Barros, o pai da Eva<br />
Comello... A Eva Comello era fotógrafa, né, depois<br />
desse negócio de cinema. Era uma criatura muito<br />
boa, distinta! Foi uma coisa formidável! Até hoje ain-<br />
da festejam a memória <strong>do</strong> Humberto Mauro. Eu tra-<br />
balhei muito com Humberto Mauro, ele mexia com<br />
negócio de eletricidade. Aqui o cinema por dentro.<br />
Olha aí, viu? Tem um lugar aí que ficava a polícia. Eu<br />
sou <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong> Tom Mix... pagava seiscentos réis<br />
para entrar...<br />
Naquele tempo tinha muito jogo de bicho...<br />
Existia mais <strong>do</strong> que hoje. Jogo de bicho é o jogo mais<br />
sério que tem, não é?<br />
Política naquele tempo era brava, mas eu era<br />
amigo de to<strong>do</strong>s eles. Por exemplo: me chamaram pa-<br />
ra verea<strong>do</strong>r, eu nunca quis porque aqui se você fosse<br />
71
para um la<strong>do</strong>... o outro la<strong>do</strong> ficava mal com a gen-<br />
te. De forma que eu nunca quis, tratava to<strong>do</strong>s eles...<br />
<strong>do</strong>utor Pedro Dutra era meu vizinho aqui. Era um<br />
homem muito bom. Era brincalhão <strong>do</strong>utor Pedro. A<br />
minha filha era pequenininha quan<strong>do</strong> eu mudei para<br />
aqui. O <strong>do</strong>utor Pedro passava a mão na folhinha e<br />
falava:<br />
- Folhinha verde, quem está com a folhinha verde?<br />
Quem estivesse com a folhinha verde, ele da-<br />
va bala. Politiqueiro... A política naquele tempo era<br />
feia mesmo. Mas eu nunca quis salientar em política.<br />
Sempre tratei to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>... Os Peixoto gostavam<br />
muito... O Pedro Dutra também... Política, antigamen-<br />
te era uma coisa horrorosa... Eu já assisti tanta coisa<br />
na política! Eu ficava de longe, via muita coisa, muita<br />
injustiça em palavra <strong>do</strong> homem. Eu sabia a verdade,<br />
mas ficava quieto. Hoje... já me convidaram para ser<br />
verea<strong>do</strong>r agora. Estou com vontade de entrar, sabe.<br />
Estou anima<strong>do</strong> porque eles estão queren<strong>do</strong>:<br />
- Oh João, só o seu nome Kneip! Você pode entrar!<br />
Vai atrás disso, vai!<br />
Eu me lembro... fazia procissão <strong>do</strong> enterro... A<br />
Rua Coronel Vieira, eles tu<strong>do</strong> jogava coisas... E das<br />
portas e janelas, tu<strong>do</strong> com aquelas colchas bonitas<br />
enfeitan<strong>do</strong>... com jarros nas janelas por onde pas-<br />
savam... e bandas de música. Carregavam o Cristo:<br />
72
era só gente maior, da alta sociedade. O Juiz, coisa e<br />
tal, maior respeito... e a banda <strong>do</strong> Rogério atrás. Era<br />
bonito naquele tempo, eu era garoto... João Butiga...<br />
o Ciodário velho eu me lembro dele, o Paulinho<br />
Fernandes... o telefone era da “Força e Luz”. O tele-<br />
fone atendia toda essa zona. Em 1920 ou 22 vendeu o<br />
telefone pra “Telefônica”.<br />
Não havia preconceito não. Eu não me lem-<br />
bro de preconceito não. Havia mais respeito, né...<br />
Morei naquela casa, não tinha nada, só umas cober-<br />
tazinhas, um barraco velho tu<strong>do</strong> bem arruma<strong>do</strong>. E a<br />
“Força e Luz” era pequena também... Tinha o Luiz <strong>do</strong><br />
Carmo... a família <strong>do</strong> Augusto Cunha, gente impor-<br />
tante! Era ricaço! Eu me lembro... só existia o Hotel<br />
Villas... Tinha outro também - Hotel da Estação - era<br />
mais pobre. Também acabou, derrubaram aquilo<br />
tu<strong>do</strong>... Conheci toda turma antiga, mas esqueço é o<br />
nome... Esqueci de muita coisa... eu podia ter da<strong>do</strong><br />
mais, queria dar mais ainda, mas eu an<strong>do</strong> muito es-<br />
queci<strong>do</strong>.<br />
Entrevista<strong>do</strong> em 5/7/1988 por Hedileuza Maria de Oliveira Valadares e<br />
Maria José de Oliveira Paula.<br />
73
M A R I A D A G L <strong>Ó</strong> R I A<br />
A LV E S S I LVA<br />
D O N A D E C A S A<br />
9 0 a n o s<br />
Nasci em Cataguases no dia 28 de<br />
novembro de 1901. Graças a Deus vou fazer noventa<br />
anos agora, o mês que vem.<br />
Meus pais eram brasileiros, nasci<strong>do</strong>s aqui em<br />
Cataguases também. Eu nem sei como é que eles ca-<br />
saram, aqueles <strong>do</strong>is. Ah, porque naquele tempo não<br />
havia namoro, não podia namorar. Uai! Namorava...<br />
um sentava lá, outro aqui. Sentar perto não podia<br />
não. Eu não sei, mas eles viveram muito bem. Na<br />
ocasião em que me conheci como gente, eu já estava<br />
com uns seis, sete anos, oito anos, a gente já compre-<br />
ende, né. Graças a Deus viveram muito bem. A famí-<br />
Foto: Operárias da <strong>Fábrica</strong> de Teci<strong>do</strong>s, Gilson Costa, s/d, acervo iconográfico<br />
<strong>do</strong> IBGE<br />
75
lia da mamãe. Deram bom exemplo pra gente, ele era<br />
muito bom.<br />
Meu pai, Antônio José Maria, era carpinteiro.<br />
Ele trabalhava em casa, né, fazia canoa, guarda-rou-<br />
pa, fazia malas, tu<strong>do</strong> ele fazia. Ele trabalhava no ter-<br />
reiro lá de casa. A pessoa precisava, ia lá pedia a ele,<br />
e ele fazia, só de encomenda. Fazia sozinho. Era ele<br />
só. Lá uma vez ou outra eu ajudava um mucadinho.<br />
Comecei a trabalhar muito ce<strong>do</strong>, né, com dez<br />
anos eu entrei na fábrica <strong>do</strong>s Peixoto. Trabalhei até<br />
vinte e <strong>do</strong>is anos. Aos vinte e <strong>do</strong>is eu saí, fui trabalhar<br />
com uma costureira - D. Elza. Com dez anos eu esta-<br />
va trabalhan<strong>do</strong> na fábrica. Tinha uma com sete tam-<br />
bém, até morreu lá dentro, né. Ela ia apanhar uma<br />
espula assim no chão, o cabelo dela - um cabelo mui-<br />
to grande, né - enrolou ela aqui, ela morreu. Ainda vi<br />
ela morrer assim. Até (que) parasse a máquina...<br />
(Eu) trabalhava nos teares. Até que os teares<br />
não era muito pesa<strong>do</strong> não. Era um tear menor. Não<br />
é aquele grandão não. Aqueles que faz maior, né, as<br />
toalhas, o americano, o pessoal que tecia. Tinha o<br />
estreito e tinha o largo. Era o mesmo horário (<strong>do</strong>s<br />
adultos). Entrava às seis horas da manhã. Saia às<br />
dez pra almoçar, voltava às onze e saia às seis da<br />
tarde. Quan<strong>do</strong> fazia serão saia às cinco e voltava às<br />
seis. Quan<strong>do</strong> estava aperta<strong>do</strong> de pano pra entregar, a<br />
76
gente entrava às seis da tarde outra vez e saia às dez<br />
da noite. A gente ganhava por metragem. Se tivesse<br />
cem metros ganhava os cem, conforme o teci<strong>do</strong> que<br />
a gente fizesse, os metros. Era pago por metragem.<br />
Ah, tinha os mestres, né, pra ensinar a gente. Era fá-<br />
cil! Eu graças a Deus não tinha nada que queixar não.<br />
Meu mestre era muito bom. Ah... me lembro só <strong>do</strong><br />
seu Olinto, mas não sei o sobrenome dele não. Era<br />
italiano. Depois de <strong>do</strong>ze anos eu saí, ele ainda ficou.<br />
O chefe era o Manoel Peixoto. Manoel Peixoto, José<br />
Peixoto. Eram os <strong>do</strong>nos da fábrica. Eles tratavam a<br />
gente muito bem, né, mas se falhasse em alguma coi-<br />
sa eles também chamavam a atenção. Era muito bom<br />
pra gente.<br />
Uma moça me chamou pra costurar com ela,<br />
eu sai e fui aprender a costurar.<br />
Uma senhora que tinha aí. Aí fui aprender a<br />
costurar, mas não fiquei lá também não. Não achei<br />
bom costurar não, era muito para<strong>do</strong>. Depois voltei<br />
pra fábrica de novo, trabalhei uma porção de anos<br />
ainda. Naquele tempo não tinha aposenta<strong>do</strong>ria não.<br />
Não tinha nada não minha filha. A gente saía com<br />
uma mão atrás e outra na frente. Não tinha nada dis-<br />
so não.<br />
Ah, meu filho! Pra te falar a verdade... antiga-<br />
mente a gente não tinha infância não... Porque... tra-<br />
77
alhava fora, uai! Chegava em casa cansada, né, às<br />
vezes ia até <strong>do</strong>rmir, não tinha esse negócio de brinca-<br />
deira, brinque<strong>do</strong>s, essas coisas não. Eu tenho muita<br />
lembrança não. Eu morava em frente à fábrica, numa<br />
casa velha que tinha lá. Nós morávamos lá. E de ma-<br />
neira que eu não me lembro bem não. A mamãe era<br />
muito... como se diz, era severa pra gente. Não deixa<br />
a gente brincar com qualquer moça, qualquer criança.<br />
De maneira que a gente tinha aquele respeito. Ficava<br />
mais dentro de casa.<br />
Estudei. Com sete anos, quan<strong>do</strong> inaugurou o<br />
grupo (Coronel Vieira) eu entrei. Entrei no primeiro<br />
ano, fiz até o terceiro, o quarto não fiz não. Eu não<br />
podia comprar material pra gente estudar. Quan<strong>do</strong>...<br />
a gente pedia coisa a ele, às vezes um caderno, um<br />
lápis, uma coisa assim, papai dizia que não tinha<br />
dinheiro pra comprar. Ele ganhava dez... era dez<br />
tostões por semana. Eu não sei como era o dinhei-<br />
ro antigo. Dez tostões ele ganhava por semana. Era<br />
eu, Conceição, papai, mamãe e o Nonô, meu ir-<br />
mão, Nonô, sapateiro. Cê lembra dele? Tinha as tias.<br />
Quan<strong>do</strong> a vovó morreu, foram duas tias morar com<br />
a gente também. Aí quan<strong>do</strong> apertou aqui na cidade<br />
nós fomos pra roça. Fui criada lá no Esta<strong>do</strong> (Colônia<br />
Major Vieira). Aí perto onde morreu aquela menina<br />
<strong>do</strong> Francisco Tole<strong>do</strong> (Raquel). Naquela lagoa que ti-<br />
78
nha aquele negócio de fazer travesseiro... paina. Ela<br />
morreu afogada ali, né. Minha casa ficava lá em ci-<br />
ma. Foi antes de sete anos que nós viemos pra cidade.<br />
Nós viemos pra cidade estudar. Depois quan<strong>do</strong> eu...<br />
quan<strong>do</strong> nós estudamos, eu, Nonô e Conceição, vol-<br />
tou pra roça de novo. Eles davam a terra pro pessoal<br />
plantar - O Esta<strong>do</strong>. Ali papai plantava milho, planta-<br />
va feijão, a gente ajudava, né, na roça também. Tu<strong>do</strong><br />
que a gente fazia era da gente.<br />
Iiiih, mas era tão bom! Eu achava bom lá no<br />
Esta<strong>do</strong>. Eu achava muito bom! Eu morava lá no<br />
alto <strong>do</strong> morro, longe. Lá onde ele (o vizinho) gri-<br />
tava a gente ouvia lá em casa. Era um nosso pri-<br />
mo. Chamava Alberto. Mora lá em cima no morro.<br />
Vizinho perto mesmo não tinha não... Não sei quem<br />
foi morar na casa lá, porque quan<strong>do</strong> nós viemos pra<br />
cidade não voltamos mais lá. Dizem que aquela casa<br />
está de pé até hoje. É no caminho de Itamaraty. A úl-<br />
tima vez que eu passei pra ir em Itamaraty... da estra-<br />
da a gente via a casa lá nos fun<strong>do</strong>s.<br />
De lá <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> a gente vinha até na Igreja, de<br />
dia. Nasci na Metodista. (Meus pais) já eram meto-<br />
distas. Fui criada ali naquela igreja perto da cadeia.<br />
Ali que eu fiz a minha “Profissão de Fé”. Sou meto-<br />
dista desde que nasci, graças a Deus! Alfre<strong>do</strong> Duarte,<br />
Juvenal Pereira, Seu Guerra - teve muito pastor<br />
79
aqui - Bittencourt, acho que João de Barros também.<br />
(Quan<strong>do</strong> passou) pra Avenida, o Reveren<strong>do</strong> Kennedy,<br />
um americano, era nosso pastor. Tinha uns outros<br />
(pastores) porque demorou a fazer a igreja. Por causa<br />
de dinheiro, por causa de material. O Afonso Pires<br />
é que fez a igreja. Ele era construtor. Tem aquela<br />
Chácara Pires, lá na Vila Reis, era dele também.<br />
Ah, me lembro quan<strong>do</strong> puseram luz elétrica,<br />
quan<strong>do</strong> furaram os buracos para fincar os postes pra<br />
botar a luz. O Nonô até ainda caiu dentro de um bu-<br />
raco, quebrou um braço ou a perna - mamãe enca-<br />
nou. E me lembro quan<strong>do</strong> puseram luz, mas era uma<br />
luz igual querosene. Acendia às seis horas da tarde<br />
e apagava às dez horas da noite. Ficava tu<strong>do</strong> escu-<br />
ro. (Antes) tinha lampião na rua. A gente não saía de<br />
noite na rua não, tinha me<strong>do</strong>. Não iluminava mui-<br />
to bem não. Mas... um negócio assim que eles bota-<br />
vam em cima de um ferro. Botava um aqui, botava<br />
outro dez metros mais distante. Quase que não ilu-<br />
minava nada não. Devia ser querosene, porque tinha<br />
um homem que chegava com uma tocha e acendia<br />
ele. Tinha um homem que tomava conta. Às dez ho-<br />
ras ele voltava apagan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>. Tinha só umas ruas<br />
assim, só aqui no centro é que tinha luz. Pra outros<br />
la<strong>do</strong>s não tinha não. Cataguases antigamente era is-<br />
so aqui, só... eu conheci isso aqui tu<strong>do</strong> mato. Da es-<br />
80
quina aqui até lá embaixo no rio tu<strong>do</strong> era mato (Rua<br />
Alfre<strong>do</strong> G. Barroso). Conheci tu<strong>do</strong> mato isso aí. Praça<br />
Rui Barbosa toda cercada de uns pedaços de trilho.<br />
Tinha uns buracos, passava uns arame e cercava a<br />
praça toda. Cavalo... era porco, cabrito, tu<strong>do</strong> que an-<br />
dava na rua entrava pra comer as plantas, né. A gen-<br />
te tinha um portãozinho... você entrava em frente a<br />
padaria Santo Antônio e saía lá em frente o Bemge.<br />
Tinha outro portãozinho lá. Você entra ali e saía lá.<br />
Não podia deixar o portão aberto. A gente tinha que<br />
entrar, passar e fechar. De noite, a gente, às vezes, ia<br />
sentar lá mucadinho, mas não podia porque era mui-<br />
to escuro, tu<strong>do</strong> lampião. A gente tinha me<strong>do</strong>. Mamãe<br />
não deixava a gente sair de noite por causa da escu-<br />
ridão, o lampião quase não iluminava nada. Perigo<br />
mesmo não havia, mas você sabe, o perigo está em<br />
toda parte, né.<br />
Eu andei muito de bonde. Pagava duzentos<br />
réis pra andar de bonde, mas eu andava de graça. Eu<br />
morava na Praça Santa Rita na ocasião <strong>do</strong>s bondes.<br />
Puxa<strong>do</strong> a burro, né. Tinha, acho que três... três ou<br />
quatro bondes. A linha lá na ponte... aquela linha o<br />
bonde não chegou a estrear ela não. O percurso era<br />
na Praça Santa Rita, descia, virava ali no Mulambo<br />
- aqui na Praça Rui Barbosa, aqui em cima - virava,<br />
descia até lá na Estação. Pra lá da Estação tinha uma<br />
81
casa velha lá onde guardava os bondes e os burros.<br />
Eram quatro burros que puxavam o bonde. Não, na<br />
Avenida não (Avenida Astolfo Dutra). Nessa ocasião<br />
não tinha Avenida não, era tu<strong>do</strong> mato e tinha aque-<br />
le córrego. Aquele córrego que tem perto <strong>do</strong> Felipe<br />
(Casa Henriques Felipe), ele passava lá perto da Força<br />
e Luz, por ali assim. Depois passaram ele pra cá para<br />
poder passar a linha de trem. Ali não podia passar<br />
o bonde, porque era tu<strong>do</strong> mato. Conheci a Avenida<br />
desde ali debaixo, onde foi a Carcacena, até lá em ci-<br />
ma, na Usina de Açúcar (atual Praça de Esportes e almoxarifa<strong>do</strong><br />
da Prefeitura). Conheci aquilo tu<strong>do</strong> mato,<br />
não tinha casa nenhuma não. Era tu<strong>do</strong> mato, foi tu<strong>do</strong><br />
capina<strong>do</strong> ali. Só sei que eu andei muito de bonde e<br />
o moço não cobrava nada porque era garotinha, tinha<br />
idade, mas era muito magrela, ele achava que eu<br />
era nova e deixava eu andar. (Funcionava) dia inteiro,<br />
à noite não, até seis horas da tarde. (Era) mais pra<br />
passear. Ih... tinha ocasião que ele enchia de gente. O<br />
burrinho coitadinho, é que cansava, né. Era muito<br />
bom aquele bondinho. Eu sei que tinha um condutor<br />
e tinha o que recebia as passagens, né, que a gente<br />
levava, mas não lembro muito bem deles não. Eram<br />
muito amigos da gente, mas não me lembro não.<br />
O Hospital era ali onde era o beco, Vila Duarte.<br />
Ali era o Hospital antigo mesmo. Era ali, nas du-<br />
82
as partes ali. Aqui, nessa rua de lá. Rua Professor<br />
Alcântara. E, aquela escada. Ali que era o Hospital.<br />
Vila Duarte, agora é Vila A<strong>do</strong>lfo de Carvalho (pró-<br />
ximo à antiga Telemig). Até uma ocasião tinha uma<br />
Dona que morou lá, numa casa daquela, disse que de<br />
noite as coisas mexia na casa dela, tirava as panelas<br />
<strong>do</strong> lugar botava em cima <strong>do</strong> fogão, parecia que mexia<br />
nas panelas. Diz que era os defuntos que... alma <strong>do</strong>s<br />
defuntos que ficou lá. Falei assim:<br />
“Ah deixa de ser boba menina! Quem morre<br />
não volta aqui não”. “Ah, mas mexe sim! Mexe nas<br />
minhas panelas a noite inteira”. Bobagem, né.<br />
Na inauguração <strong>do</strong> Hospital, onde é hoje, eu<br />
fui. Acho que foi... o mês eu não me lembro, mas foi<br />
em 1923. Aquela ponte metálica... lembro da inaugu-<br />
ração dela também. Agora, essa última inauguração<br />
que teve quan<strong>do</strong> pintaram ela e arrumaram, eu fui<br />
também. Conheci (a ponte de madeira). Era onde...<br />
sabe lá <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da ponte? Tem rua que tem<br />
uma meia entrada assim, ali que era a ponte. Saía lá<br />
no colégio das Irmãs. Eu um dia eu vim com a ma-<br />
mãe pra Igreja, nós viemos to<strong>do</strong>s juntos, eu enfiei o<br />
pé no buraco, a tábua quebrou comigo, quase que eu<br />
caí dentro <strong>do</strong> rio, lá na ponte de tábua. Iiiih! Mas tava<br />
muito velha, precisava tirar mesmo, na ocasião que<br />
fizeram essa de ferro. Alemã, né, acho que é alemã.<br />
83
Num instantinho construíram a ponte. E desmancha-<br />
ram a de lá. E teve gente que chorou, por tal ponte<br />
ter acaba<strong>do</strong>, a ponte de madeira. To<strong>do</strong> <strong>do</strong>mingo eu<br />
passava nela pra ir à Igreja. Vinha lá <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> a pé.<br />
Passava por ela e saía onde é o colégio das Irmãs hoje.<br />
(Ali) não tinha nada não. (Tinha) uma igrejinha pequenina<br />
que tinha lá. Uma capelinha. Atravessava a<br />
ponte, ia pra Igreja. Vinha nessa perto da cadeia, porque<br />
não tinha outra lá não.<br />
“Da Maria Fumaça”? Lembro, muito mesmo.<br />
Andei pra Miraí. Era a “Maria Fumaça” que ia pra<br />
Miraí, aquele trem velho, aquela maquininha pequenininha.<br />
Era uma fumaçada mesmo! Eu fui muito a<br />
Miraí na “Maria Fumaça”. Quan<strong>do</strong> a minha amiga<br />
casou que foi morar lá, eu ia lá sempre. Era a “Maria<br />
Fumaça” que rodava. Parecia que era muito longe.<br />
Era tão pertinho! Ia uns dez (passageiros), quase não<br />
ia ninguém não. Se tivesse gente para embarcar ele<br />
parava (em São Diniz), se não tivesse não parava não.<br />
Depois ia até Glória... Sereno, Glória. Depois tinha<br />
um lugarejo pra lá, aquele parava também. Chegava<br />
em Miraí num instante, dentro de uma hora a gente<br />
chegava lá. Miraí era muito atrasa<strong>do</strong> também, né.<br />
Conheci muito Miraí quan<strong>do</strong> Lila Poyares morava lá.<br />
Lembro! Lembro muito! Antiga aquela chácara!<br />
Era menina e já conhecia aquela chácara, era mui-<br />
84
to bem tratada. Conheci o Seu João Duarte também.<br />
Quan<strong>do</strong> eu trabalhava na fábrica passava lá, o Seu<br />
João Duarte tava lá, no escritório, naquela chácara<br />
em frente ao Hotel Villas, naquela chácara que hoje<br />
está acaban<strong>do</strong>, né. Ele mesmo trabalhava no escritório.<br />
Era português. Dona Catarina era... diziam que<br />
era amiga dele. Eu não sei não. Era uma portuguesa,<br />
morava lá. A <strong>do</strong>na Catarina era uma senhora já... de<br />
quase uns cinquenta anos mais ou menos, quan<strong>do</strong> eu<br />
conheci ela. Era bonita! Ficava sempre no portão, a<br />
gente passava pra fábrica, né, eu abanava a mão pra<br />
ela. Ela morava com seu João Duarte, <strong>do</strong> café.<br />
Humberto Mauro... me lembro. Ele era de cinema,<br />
né. Eu fui lá em Volta Grande pra ir na casa dele,<br />
mas não encontrei com ele não, porque ele estava<br />
viajan<strong>do</strong>. Humberto Mauro foi muito amigo da gente:<br />
ele, os irmãos dele. A Bebe, a mulher dele, era da<br />
nossa Igreja. Um dia desse, um sobrinho meu foi lá<br />
(em Volta Grande) e disse que a casa dele ainda está<br />
lá. Acho que é museu. Diz que é uma chácara bacana<br />
mesmo lá, casa dele.<br />
A Eva Comello eu conheci ela com <strong>do</strong>is anos.<br />
Dois aninhos, quan<strong>do</strong> ela veio para aqui. Trabalhava<br />
no cinema. Eu conheci muito a Eva, foi muito minha<br />
amiga também. Pai dela tinha um cinema aí, acho<br />
que tinha um cinema aonde é a padaria <strong>do</strong> Nelo,<br />
85
por ali assim. E, eles faziam filmagens. Depois mu-<br />
<strong>do</strong>u aqui pra rua... aquela rua que desce pra cadeia...<br />
É Marechal. E ela morava ali com a mãe dela. Ele<br />
(Pedro Comello) era italiano. Dizem que vieram fu-<br />
gi<strong>do</strong>, né. Veio a Eva e veio o irmão dela. Era um casal<br />
só que tinham. Dona Ida que é mulher dele, mãe dela.<br />
Iiiiih!! Rosário Fusco, eu conheci ele chupan<strong>do</strong><br />
bico com <strong>do</strong>is anos. O filho dele, o François, teve na-<br />
moran<strong>do</strong> uma neta minha e então a gente teve lem-<br />
brança <strong>do</strong> pai dele. Eu passava às vezes ali em cima,<br />
ele morava prá lá daquele botequim, in<strong>do</strong> pra praça<br />
(Rui Barbosa), numas casas que tem ali ainda. Perto<br />
da Canuta por ali assim. Eu passava na rua, o Rosário<br />
Fusco estava assentadinho chupan<strong>do</strong> bico. Depois<br />
que ele cresceu, casou... ele foi pra França, né, foi ser...<br />
o que ele foi ser na França? Ele ia ser um negócio na<br />
França. Chegou lá encontrou aquela francesa e casou<br />
com ela, né, depois ele veio pr’aqui outra vez casa<strong>do</strong>.<br />
Morou lá em cima na Avenida, o François nasceu lá.<br />
Dr. Francisco eu lembro, eu lembro porque tra-<br />
balhei na fábrica, ele estava sempre lá. Francisco, o<br />
João, o José, o Manoel - Manoel careca.<br />
Dr. Norberto? Me lembro. Aquele... um terre-<br />
no que tem lá em baixo <strong>do</strong> pontilhão grande, aquele<br />
terreno à direita ali, onde é a fábrica de papel, onde é<br />
a... aquela química (Indústria Química), por ali assim<br />
86
tu<strong>do</strong> era dele. Diz que ele tinha <strong>do</strong>a<strong>do</strong> aquilo tu<strong>do</strong><br />
pro hospital. A fazenda da fumaça também, lá em<br />
Santana, deixou pro hospital. O Seu Anízio Pinheiro<br />
ficou toman<strong>do</strong> conta. Ah, esse, Cataguases tem mui-<br />
ta coisa... as pessoas deixavam uns pros outros sem<br />
ser deles. Às vezes deixava uma coisa pro fulano,<br />
quan<strong>do</strong> ia ver a coisa era <strong>do</strong> outro muito diferente. É.<br />
Não tinha nada. Não tinha escritura, não tinha papel<br />
nenhum.<br />
Quem conheceu Cataguases como eu conhe-<br />
ci! Rua tu<strong>do</strong> chão! As fábricas lá embaixo. Tu<strong>do</strong> de-<br />
sorganiza<strong>do</strong>, né. Se a gente perdesse hora era mul-<br />
ta<strong>do</strong> em <strong>do</strong>is, <strong>do</strong>is mil réis, que era naquela época.<br />
Descontava no pagamento da gente, quan<strong>do</strong> ia pagar.<br />
Perdesse hora de manhã podia entrar pra trabalhar,<br />
mas tinha que pagar os <strong>do</strong>is mil, <strong>do</strong>is mil réis que<br />
eles falavam. Levava to<strong>do</strong> dinheiro que a gente ga-<br />
nhava. Seu Manoel era muito ruim pros operários.<br />
Seu José não, Seu José era muito bom. Altamiro...<br />
mas o Manoel era muito ruim.<br />
Eu só trabalhei naquela lá embaixo (Irmãos<br />
Peixoto). Trabalhei lá 12 anos. Depois de 12 anos<br />
papai me tirou. Achou que eu estava fican<strong>do</strong> <strong>do</strong>en-<br />
te, estava emagrecen<strong>do</strong> muito, me tirou de lá. Em<br />
uma ocasião quase que eu fiquei tuberculosa, uai!<br />
Alimentava mal e trabalhan<strong>do</strong> naquela poeirada!<br />
87
Tinha o sanatório lá em Barbacena, já tinha uma parte<br />
<strong>do</strong> sanatório separada pras operárias daqui. Numa<br />
ocasião, foram cinco de uma vez pra lá, pro Hospital.<br />
Não havia remédio pra isso né. A gente passava mal<br />
e tinha que suportar tu<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> papai me tirou<br />
da fábrica eu estava muito <strong>do</strong>ente. Ele fez um remé-<br />
dio no leite com uma porção de coisa pra mim tomar.<br />
Foi quan<strong>do</strong> eu fiquei mais forte. <strong>Fábrica</strong> não serve<br />
não, a gente toma muita poeira. Hoje tá outra coisa.<br />
Naquele tempo a gente entrava às seis da manhã, ia<br />
até às seis da tarde e voltava... vinha em casa jantava,<br />
voltava e saía às dez da noite. Quan<strong>do</strong> estava mui-<br />
to aperta<strong>do</strong> de pano, de pedi<strong>do</strong>, fazia serão. Um fio<br />
que desse defeito no pano a gente tinha que pagar<br />
ele. Quan<strong>do</strong> a gente recebia uns trocadinhos já era<br />
por milagre de Deus.<br />
Trabalho e Igreja. Trabalhava na fábrica, en-<br />
trava às seis horas da manhã e saía às dez da noite,<br />
né. (lgreja) aos <strong>do</strong>mingos e quan<strong>do</strong> tinha reunião das<br />
moças eu ia também. Mas era mais só aos <strong>do</strong>mingos,<br />
porque, às vezes, dia de reunião a gente não podia ir,<br />
né, por causa da fábrica. Cansava muito também. O<br />
serviço. A fábrica cansa muito. Cansa mesmo.<br />
Olinda Neves, Alice Neves. Elas eram minhas<br />
amigas inseparáveis, essas duas, morreram no Rio.<br />
Acabaram. Tem a Zizinha Marinho também. Era me-<br />
88
todista também. Morava lá na Vila. Antigamente a<br />
gente não tinha tempo de ter amiga não. Porque tra-<br />
balhava fora, estava fora, estava sempre em casa aju-<br />
dan<strong>do</strong> a mamãe no serviço da casa. De maneira que<br />
a gente quase não tinha tempo de sair com as amigas<br />
não. Encontrava um mucadinho no <strong>do</strong>mingo na igreja.<br />
(Praça) Lá uma vez ou outra, que a mamãe<br />
não gostava não. Ela não gostava que agente saísse,<br />
principalmente para ir na praça. Quan<strong>do</strong> a Olinda e a<br />
Alice iam lá em casa pedir, ela deixava dar umas vol-<br />
tinhas. De lá mesmo ia pra Igreja, da Igreja vinha pra<br />
casa. Mas era muito difícil passear assim. Não é igual<br />
hoje: filhas às vezes sai de casa, a mãe nem sabe onde<br />
estão andan<strong>do</strong>. Naquele tempo, a gente tinha de falar<br />
aonde ia. Às vezes ela até mandava o Nonô atrás pra<br />
ver se a gente estava no lugar que a gente pedia. Era<br />
tão severa assim e graças a Deus eu queixo nada, eu<br />
acho que estava muito bom, porque eu fui uma chefe<br />
de família, né, minhas filhas me obedecem até hoje,<br />
são muito boas pra mim.<br />
De noite tinha que ir pra Igreja. Carnaval...<br />
nunca brinquei em carnaval. Mamãe não deixava<br />
não. Circo era proibi<strong>do</strong>. Metodista não ia em circo<br />
não. Uma noite tinha um negócio que ia haver lá no<br />
circo, não sei o que foi, eu sei que foi muita gente,<br />
muito metodista. Aí o pastor não pôde... não deixou<br />
89
de chamar atenção, mas não castigou ninguém não,<br />
porque foi muita gente, né.<br />
(Naquela época) era muito melhor. Parecia que<br />
havia mais amor entre os crentes... No dia da inau-<br />
guração da Igreja nova, lá na avenida, nós saímos a<br />
pé ali de perto da cadeia, fomos cantan<strong>do</strong> hino até<br />
lá. Passamos pela Prefeitura e descemos aquela rua<br />
da “Cima” cantan<strong>do</strong> hino, até lá na inauguração. Dia<br />
vinte <strong>do</strong>is de julho a inauguração da nossa igreja,<br />
mas não lembro o ano não (30/7/1922). To<strong>do</strong> mun-<br />
<strong>do</strong> tinha que ajudar. As crianças da Escola Dominical,<br />
to<strong>do</strong> <strong>do</strong>mingo, levava um tijolo. Tinha que levar um<br />
tijolinho e botar lá. Foi construída com a maior dificuldade<br />
aquela Igreja. Até o Pires trabalhava de graça.<br />
Não cobrava pra fazer, nunca cobrou um tostão<br />
pra fazer a Igreja. A gente dava lá uns troca<strong>do</strong>s a ele,<br />
mas que ele cobrava não.<br />
Pra te falar a verdade, não me lembro da enchente<br />
quan<strong>do</strong> eu era menina, quan<strong>do</strong> eu era mocinha.<br />
Agora, só me lembro de uma... eu morava na<br />
rua <strong>do</strong>... Rua <strong>do</strong> Cabral (Dr. Sobral). Eu lembro de<br />
uma que foi lá no meio de nosso quintal. Chegou<br />
aqui na pracinha (San<strong>do</strong>val Azeve<strong>do</strong>), aqui tu<strong>do</strong>. O<br />
meu quintal, onde eu morava lá em cima, era um<br />
morro, de maneira que dava no meio <strong>do</strong> morro. Só<br />
me lembro daquela enchente grande que dava. Era<br />
90
solteira ainda, morava ali, morava com mamãe o pa-<br />
pai, a Conceição. Não me lembro de enchente que da-<br />
va não. (Agora) a enchente chega até aqui. Qualquer<br />
chuvinha que dá vem enchente. A Déa tinha limpa-<br />
<strong>do</strong> a casa o ano passa<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> foi esse ano (1991),<br />
princípio <strong>do</strong> ano, foi que deu enchente... Ficou tu<strong>do</strong><br />
sujo outra vez. A gente não tem segurança.<br />
Lembro da “espanhola”. Papai ficou mui-<br />
to ruim! A mamãe deu chá de erva-cidreira, aquela<br />
erva-cidreira de capim, fez um chá bem forte e deu<br />
a ele com um negócio lá, com azeite, não sei. Ele te-<br />
ve ruim com a “espanhola”! Uma febre! Era febre só<br />
que dava na gente, mas eu não tive não. Eu trabalha-<br />
va na fábrica, continuei trabalhan<strong>do</strong>. A Lelé, minha<br />
tia, teve também. Teomília que ela chamava. Sarou.<br />
Mamãe deu chá de erva-cidreira a ela com azeite de<br />
mamona, ela sarou. Papai também. Morreu depois. A<br />
única que me lembro de epidemia foi a “espanhola”.<br />
Não me lembro mais de nenhuma.<br />
Ah, a gente dava remédio caseiro. Eu dava<br />
remédio caseiro. Eu às vezes fazia. Plantava em ca-<br />
sa hortelã. Tinha poejo, tinha tu<strong>do</strong> em casa. A<strong>do</strong>ecia<br />
com gripe... qualquer coisa era chá de mato que eu<br />
dava. Dava resulta<strong>do</strong>. Médico uma vez na vida e ou-<br />
tra na morte. Porque não podia pagar médico, mesmo<br />
barato <strong>do</strong> jeito que era, né. Dr. Miranda... Dr. Walter<br />
91
ali que é antigo... o mais velho é o Dr. Miranda. Tinha<br />
outro eu não me lembro bem não. Dr. Otônio era<br />
muito bom. Nunca fui no médico. Ganhei oito filhos.<br />
Parteira. Não, nunca frequentei médico, nunca con-<br />
sultei com médico, este perío<strong>do</strong>, nascia tu<strong>do</strong> em casa.<br />
Na hora que começava a passar mal chamava a par-<br />
teira. Era Dona Rosa Amaral, mãe <strong>do</strong> Antônio Amaral<br />
da Igreja, era da nossa Igreja também. D. Rosa...<br />
“D. Rosa Parteira”. Graças a Deus em três dias levan-<br />
tava, ia cuidar da minha obrigação e não tinha nada.<br />
Era muito desdeixa<strong>do</strong> o comércio. Era ruim<br />
da gente andar, ruim da gente comprar as coisas, tu-<br />
<strong>do</strong> muito... a gente achava caro porque a gente não<br />
tinha dinheiro, mas a gente comprava com muita<br />
dificuldade, muita dificuldade mesmo. Me lembro<br />
<strong>do</strong> Joaquim Peixoto Ramos, que era ali na esquina<br />
onde é o Banco Nacional hoje. Era <strong>do</strong> tamanho <strong>do</strong><br />
Banco. O Fortunato era em frente da Marcelus, o seu<br />
Joaquim Carvalho era ali pra baixo também; depois<br />
lá em baixo tinha o Felipe, o Felipe é antigo ali. A<br />
Nacional também.<br />
Não tinha armazém grande da gente comprar<br />
as coisas não. Era tu<strong>do</strong> pequenino, igual aquele boteco<br />
que tem ali em cima. A gente ia, comprava uma<br />
coisa aqui, comprava outra lá. Custava encontrar<br />
aquilo que queria. Fome graças a Deus, nunca nin-<br />
92
guém passou, né. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> plantava, to<strong>do</strong> mun-<br />
<strong>do</strong> colhia, né, trazia pra cidade para vender.<br />
Não! Que calçamento! Não tinha nada, era<br />
chão puro mesmo. Ah, o calçamento foi pouco tempo.<br />
Eu estava até em Brasília quan<strong>do</strong> calçaram a minha<br />
rua aqui, resolveram calçar ela.<br />
Me lembro no outro la<strong>do</strong> da ponte, <strong>do</strong> Fla-<br />
mengo. Lá naquele fundão (atrás da Industrial), lá ti-<br />
nha campo <strong>do</strong> Flamengo. Iiiih! Eu ia muito a futebol<br />
lá. Tu<strong>do</strong> uns fulasqueiros! Vinha de Miraí, vinha de<br />
Sereno jogar aqui; a gente ia lá pra distrair. Ah, futebol<br />
antigamente era muito ruim, eu acho, não sei, porque<br />
eu não conheço, né, negócio de futebol. Mas eu gosta-<br />
va <strong>do</strong> Flamenguinho, quan<strong>do</strong> tinha o campinho dele<br />
ali, né. Onde é o SESI, por ali tinha um campinho <strong>do</strong><br />
Flamengo, bom mesmo. To<strong>do</strong> joguinho <strong>do</strong> Flamengo<br />
eu estava lá, torcen<strong>do</strong> prá ele. Era uma vargem ali.<br />
Ah, mais alegre? Ah, acho que quan<strong>do</strong> eu<br />
me casei. Que eu gostava muito <strong>do</strong> Antônio, né, ele<br />
era um mulatinho, ele era um mulato bem fecha<strong>do</strong>.<br />
Mamãe não gostava muito não, mas deixou eu casar.<br />
O dia mais triste da minha vida foi quan<strong>do</strong> ele mor-<br />
reu. Me deixou com os filhos tu<strong>do</strong>. E, (as moças) ca-<br />
savam muito ce<strong>do</strong>, mais eu casei com 30 anos. Não<br />
sei porque eu... fui conhecer o Antônio muito tarde.<br />
O Antônio trabalhava na Força e Luz, depois passou<br />
93
pra telefônica. Quan<strong>do</strong> nós casamos ele trabalhava<br />
na telefônica. Eu casei no dia 30 de setembro de 1931.<br />
Se meu mari<strong>do</strong> tivesse aí... eu fazia sessenta anos de<br />
casada. Nós casamos e fomos pra Muriaé. (Depois)<br />
viemos pra Leopoldina, de Leopoldina fomos pra<br />
Volta Grande. Em Volta Grande fiquei cinco anos. A<br />
Déa, o Udnei, a Loló são nasci<strong>do</strong>s lá em Volta Grande.<br />
Depois voltamos pra Cataguases e estamos aqui até<br />
hoje. Meu mari<strong>do</strong> morreu e nós ficamos aqui. Eu morei<br />
lá na Vila naquele beco <strong>do</strong> Agustinho Rezende,<br />
um beco que tinha ali. Depois morei na Vila Minalda,<br />
e na Vila Duarte. De lá é que o Antônio comprou essa<br />
daqui. Foi a Companhia que comprou pra nós e foi<br />
pagan<strong>do</strong>, foi desconta<strong>do</strong> no ordena<strong>do</strong> dele, né, mas<br />
quan<strong>do</strong> foi daí a nove meses ele morreu. Ficou um<br />
tanto ainda para pagar e eles per<strong>do</strong>aram a dívida,<br />
não cobraram não. Eu fiquei com a casa.<br />
Eu acho que... pouquinho mas tinha (uma pensão).<br />
Mas eu custei boba! Passou acho que sete meses<br />
sem receber um tostão. As meninas trabalhavam<br />
ali na Nogueira embrulhan<strong>do</strong> balas e o Udmar lá na<br />
farmácia <strong>do</strong> José Esteves, é que ajudava. (Tive) oito.<br />
Cinco mulheres e três homens. Graças a Deus são to<strong>do</strong>s<br />
oito vivos: to<strong>do</strong>s casa<strong>do</strong>s.<br />
Ah, Gláucia! Pra te falar a verdade, minha filha,<br />
eu acho que antigamente era mais fácil. Não havia<br />
94
dinheiro não, mas era fácil. Ah, porque as crianças<br />
eram obedientes. Hoje se vê crianças muito rebeldes<br />
pros pais. Os meus filhos, graças a Deus, nunca me<br />
deram trabalho. Nunca me desobedeceram, mesmo<br />
depois que o pai morreu. Eles me ajudaram muito,<br />
principalmente o mais velho, o Udmar. A vida, acho<br />
que era mais fácil, as crianças tinham mais vontade<br />
de estudar. Mas, (ao mesmo tempo) era muito difícil.<br />
Eu ganhava... às vezes eu pedia no grupo um caderno,<br />
folha... aquelas folhas de almaço que eles precisavam,<br />
eu pedia tu<strong>do</strong> no grupo pra eles, eu não podia<br />
comprar. Eu recebia muito pouco, né. Estavam to<strong>do</strong>s<br />
dentro de uma casa ainda, to<strong>do</strong>s comigo.<br />
Eu acho que sou tão feliz! Graças a Deus! Fui<br />
feliz no meu casamento, um mari<strong>do</strong> muito bom.<br />
Tenho saudade dele até hoje. E meus filhos também<br />
são muito bons pra mim. De maneira, que a única<br />
coisa que eu tenho que agradecer a Deus é a bondade<br />
<strong>do</strong>s meus filhos pra mim. São muito bons. Bons<br />
mesmo!<br />
Entrevistada em 3/10/1991 por Gláucia Siqueira e José Luiz Batista.<br />
95
M A R I A M A G A L H Ã E S<br />
P E R E I R A<br />
T E C E L Ã<br />
6 7 a n o s<br />
Sou de Astolfo Dutra, meu pai é<br />
de Astolfo Dutra, minha mãe é de Astolfo Dutra.<br />
Antigamente era Porto de Santo Antônio, depois<br />
passou à cidade de Astolfo Dutra. A minha mãe<br />
é Carolina Maria de Jesus. Meu pai é Aristides<br />
Magalhães Pereira. Eu nasci em 1925. Então, eu gosto<br />
muito da minha terra, sabe. Eu a<strong>do</strong>ro Astolfo Dutra,<br />
mas tem tanto tempo que eu não vou lá!<br />
Eu vim muito pequena pra Cataguases, sabe.<br />
Naquela época, eu era muito pequenininha e gostava<br />
muito de brincar no jardim... Corria aquele jardim<br />
Foto: Maria Magalhães Vieira, 19 anos, Rainha <strong>do</strong>s Operários, Indústria<br />
Irmãos Peixoto, s/a, 15.05.45, Arquivo Instituto Nossa Senhora <strong>do</strong> Carmo<br />
97
de Astolfo Dutra... Eu brinquei muito naquela praça<br />
com as outras colegas, sabe? Brinquei... Eu não saía<br />
da Igreja. Eu era pequena, podia ter uns quatro ou<br />
cinco anos, mas eu gostava muito de ajoelhar nos<br />
pés de Nosso Senhor <strong>do</strong>s Passos e Nossa Senhora<br />
das Dores.<br />
Ficava encantada de ajoelhar ali... Eu tenho<br />
muita vontade de ir em Astolfo Dutra... Ainda vou,<br />
eu tenho conheci<strong>do</strong>s antiquíssimos... é pertinho, mas<br />
minha luta não deixa eu ir. Sempre tem uma coisa<br />
pra resolver to<strong>do</strong> dia! Faço uma coisa, faço outra...<br />
Então, nunca chego a apanhar o ônibus pra poder ir<br />
à Astolfo Dutra... Mas qualquer hora vou aparecer<br />
lá. Lá tem um senhor que eu quero muito ver, com-<br />
preendeu. Ele chama Rui, sabe eu não sei o sobre-<br />
nome dele, porque eu era pequenininha... Ele tinha<br />
venda, eu comprava muito <strong>do</strong>ce na mão dele, sabe.<br />
Rui... eles eram da família <strong>do</strong>s Florianos... São pesso-<br />
as assim que a gente tem uma recordação de infância,<br />
compreendeu?<br />
Nós... o papai tinha uma casa muito grande.<br />
Papai possuiu casa, uma casa muito grande, sabe? O<br />
meu pai comprava café, entendeu. Ele é um Senhor<br />
de Camargo, Joaquim Carvalho, que eu não cheguei<br />
a conhecer. A nossa casa era grande! O salão de pôr<br />
café também era grande! Então, meu pai comprava<br />
98
café junto com esse senhor Joaquim Carvalho, mas<br />
veio uma época... eu não sei te explicar que época<br />
é essa... Foi uma febre de café, sabe. Então meu pai<br />
quebrou junto com Joaquim Carvalho também 3 . Não<br />
sei te dar uma explicação porque eu era criança, na-<br />
quela época. Então, meu pai vendeu a casa lá a troco<br />
de outra casa, pra poder vim pr’aqui. Nem me lem-<br />
bro mais o nome <strong>do</strong> homem que comprou. Naquela<br />
época tu<strong>do</strong> era baratinho, né. Eu era pequenininha e<br />
achei ruim com meu pai de vender aquela casa! Mas<br />
o homem que comprou, dan<strong>do</strong> outra casa a meu pai,<br />
voltou um tanto a ele, compreendeu: dinheiro, por-<br />
que nossa casa era um terrenão! Uma casa grande,<br />
um terreno muito grande, fizeram um prédio nesse<br />
lugar! Então nós viemos pra Cataguases.<br />
Nós moramos ali naquela casa <strong>do</strong> Francisco<br />
Rossi, onde é a Ro<strong>do</strong>viária. Eu conheci o Francisco<br />
Rossi, sabe, tava velhinho... Naquela época eu era<br />
criança... Então, nós viemos pr’ali, nós moramos...<br />
nós mudamos também para vários lugares aqui, depois<br />
que meu pai vendeu... Meu pai chegou a comprar<br />
uma casa, ali na Ro<strong>do</strong>viária. Ele veio pra cá pra<br />
gente poder trabalhar, pra minha irmã mais velha<br />
entrar na fábrica, sabe. O meu pai começou a conser-<br />
3 ) Crise de 1929, com a quebra da bolsa de NY.<br />
99
tar máquinas, concertava relógio, punha mesa nas<br />
máquinas... muito caprichoso, muito! Depois ele vi-<br />
veu disso. Era tão inteligente que na mocidade dele,<br />
ele fez um moinho sem ninguém ensinar! Moinho<br />
d’água, sabe, porque ele já morou na roça também.<br />
Isso não é <strong>do</strong> meu tempo não. Eles que contava e eu<br />
tava sempre ouvin<strong>do</strong> as conversas, né? Então ele fez<br />
um moinho na roça. Você tá ven<strong>do</strong> aquela caixa que<br />
tá ali? Ela tem mais de cem anos! Aquela caixa ali<br />
foi <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong> meu pai. É relíquia! É uma madeira<br />
roxa, sabe. É relíquia porque ali ele guardava roupa,<br />
ali em cima daquela caixa ele trabalhava. Aqui em<br />
Cataguases consertava máquina, consertava relógio,<br />
compreendeu? Depois ele vendeu a casa dele aqui...<br />
não comprou mais. Nós ficamos sem casa. Aí, você<br />
sabe... Mas naquela época o meu irmão Elias estava<br />
trabalhan<strong>do</strong>, a minha irmã Dalila estava trabalhan-<br />
<strong>do</strong>... Eu não, eu ainda era muito pequena para tra-<br />
balhar. Eu tava estudan<strong>do</strong> ainda, né. Eu estudava no<br />
Grupo. Eu era pequena ainda...<br />
Eu estudei aqui no Grupo Gui<strong>do</strong> Marlière. Eu<br />
só tenho o terceiro ano. Não estudei mais não, sabe?<br />
Ven<strong>do</strong> os trabalhos da minha mãe, <strong>do</strong> meu pai, <strong>do</strong>s<br />
meus irmãos, um dia eu cheguei perto da minha mãe<br />
e falei assim: - Minha mãe, me tira <strong>do</strong> grupo. Eu paro<br />
de estudar. Vou trabalhar para ajudar a senhora.<br />
100
Aí resolveram. Naquela época eu tava com<br />
treze pra quatorze anos. Eu fiz quatorze anos, a mi-<br />
nha irmã pediu serviço pra mim. Aí o Onofre Correa<br />
Neto arrumou o serviço pra mim. Minha irmã entrou<br />
na Indústria Irmãos Peixoto não sei a época. Eu en-<br />
trei na fábrica com quatorze anos. Eu fui criada den-<br />
tro da Indústria Irmãos Peixoto. Eu não arrependi de<br />
ter para<strong>do</strong> de estudar, porque eu gostava muito de<br />
trabalhar na fábrica. Eu fiquei trabalhan<strong>do</strong> só na fábrica,<br />
foi uma coisa muito boa pra mim. Eu fui criada<br />
dentro da fábrica porque quatorze anos, pra chegar<br />
até o ponto que eu cheguei... trinta e <strong>do</strong>is anos... Eu<br />
trabalhei trinta anos e me aposentei. Mas tive que<br />
trabalhar mais <strong>do</strong>is anos para pagar o INPS. Porque<br />
a gente às vezes falha porque fica <strong>do</strong>ente, né, fica por<br />
conta <strong>do</strong> INPS. Então, aqueles dias, aqueles meses<br />
que a gente falhou é desconta<strong>do</strong>. Então, eu trabalhei<br />
trinta anos. E quan<strong>do</strong> eu me aposentei, eu fiz aquela<br />
festa pros operários! Convidei os operários pra tomar<br />
uma cervejinha na minha casa, como eu te mostrei<br />
no retrato.<br />
Em 1944 mudamos pra casa da Indústria<br />
Irmãos Peixoto, porque minha irmã já trabalhava,<br />
ela arrumou. O Seu Manoel Peixoto deu a casa pra<br />
nós morar. A nossa casa foi ali na Rua José Hardy<br />
Ramos. E ali aquela rua que vai pro pontilhão, pra<br />
101
Vila Reis. Ali, beiran<strong>do</strong> a linha tem um correio de ca-<br />
sa, ali perto da Companhia, aquela Estação Velha. Eu<br />
não sei se você lembra não, porque ali antigamente...<br />
Naquela época, o Seu Mota - que Deus dê a ele um<br />
bom lugar - trabalhava na fábrica e conseguiu, com<br />
Seu Manoel Peixoto, uma casa pra Dalila minha ir-<br />
mã, sabe? Aí nós mudamos e moramos ali quarenta<br />
e três anos. Aquela casa ali, pra mim tem uma relí-<br />
quia. Você nem queira saber! Gosto muito dali, por-<br />
que graças a Deus, fui muito feliz! Os vizinhos são<br />
tão bons! Ali to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é bom, entendeu? Então,<br />
aonde eu vou eu faço amizades. Eu sou muito co-<br />
municativa. Eu gosto de comunicar! Eu gosto de ter<br />
boas amizades! Tem uma senhora que mora ali, você<br />
conhece a <strong>do</strong>na Maria Vargas? Ela deve ter uns 86<br />
anos... Quan<strong>do</strong> eu mudei ela já morava ali. Uma vizi-<br />
nha ótima, só você ven<strong>do</strong>!<br />
Quarenta e três anos eu morei ali: de 1944 até<br />
1987. Eu mudei pr’aqui porque o pessoal agora, eles<br />
tão pedin<strong>do</strong> a casa aos aposenta<strong>do</strong>s, entendeu. Em<br />
1960... eles me ofereceram a casa, pra comprar. O<br />
<strong>do</strong>utor Francisco man<strong>do</strong>u o chefe, não sei se era o Zé<br />
Margato que era o mestre... não sei. Eu sei que ele<br />
man<strong>do</strong>u me oferecer... cem cruzeiros, naquela épo-<br />
ca. Eu queria, mas meu dinheiro era pouco. Eu não<br />
cheguei nem a conversar com ele, só falei que não<br />
102
queria comprar. Foi o erro que eu fiz na minha vida!<br />
Se eu comprasse aquela casa... Eu tô pagan<strong>do</strong> pou-<br />
co porque o <strong>do</strong>no da casa aqui, e a <strong>do</strong>na, são muito<br />
bons para mim. Eles faz um preço camarada aqui pra<br />
mim, compreendeu? Mas eu vejo que aí na cidade<br />
ninguém aluga mais casa por três mil! Eu vou te di-<br />
zer uma coisa: um chefe de família como é que vai<br />
pagar roupa e alimentação? Tá tu<strong>do</strong> caro! Então, eu<br />
falo que o aposenta<strong>do</strong> que ganha um salário devia<br />
ganhar <strong>do</strong>is!<br />
Eu aposentei com um salário. Se eu aposentasse<br />
ao menos com <strong>do</strong>is salários, ainda vá lá, mas eu<br />
aposentei com um salário! Não tá dan<strong>do</strong>, sabe? Não<br />
tá dan<strong>do</strong> porque um salário não dá: tem despesas de<br />
casa, as roupas estão muito caras. Eu sou sozinha e<br />
passo aperto, quanto mais um chefe de família! Eu<br />
aposentei com trezentos e onze... Hoje não está valen<strong>do</strong><br />
nada... Hoje, são três notas de cem, né. Eu recebo o<br />
salário mínimo na minha aposenta<strong>do</strong>ria. Quem ganha<br />
um salário mínimo não dá pra pagar aluguel de casa<br />
não. Não dá não! Não tenho nada! Trabalhei esse anos<br />
to<strong>do</strong>s e não tenho nada! Só tenho minha aposenta<strong>do</strong>ria:<br />
eu vivo da minha aposenta<strong>do</strong>ria. E <strong>do</strong>u graças a<br />
Deus! Dou conselho à mocidade: entra numa fábrica,<br />
entre em qualquer serviço, trabalha, paga o INPS até<br />
aposentar, porque o dinheiro da aposenta<strong>do</strong>ria é sa-<br />
103
gra<strong>do</strong>! É pouco, mas é sagra<strong>do</strong>! Mas o Collor vai dar<br />
um jeito de melhorar isso, não vai? O Collor podia dar<br />
mais um salário pra quem ganha um salário mínimo.<br />
Na época que eu aposentei o <strong>do</strong>utor Francisco<br />
- o Seu Manoel acho que já tinha morri<strong>do</strong> - uma pes-<br />
soa muito boa para os operários... Eu, mesmo apo-<br />
sentada, continuei na casa. Eu aposentei em (19)72.<br />
Mesmo aposentada eu continuei na casa porque o<br />
<strong>do</strong>utor Francisco é uma pessoa muito boa pros operá-<br />
rios. O seu Emanoel é ótimo! O seu Altamiro, o João<br />
Peixoto... Tu<strong>do</strong> foi bom pros operários. Aposentou,<br />
ele deixava ficar, né? Nós somos inquilino bom, eu<br />
fui uma operária muito boa. Graças a Deus fiz por<br />
onde. Eles gostava muito de mim e eu também gosta-<br />
va deles, entendeu? Eu não tenho nada a dizer da fa-<br />
mília <strong>do</strong>s Peixoto porque eles foram muito bons pra<br />
mim. To<strong>do</strong>s eles.<br />
Eu entrei na fábrica em 1939. Eu trabalhei na<br />
tecelagem. Eu trabalhei não sei quantos anos na tecelagem!<br />
Eu mudei de serviço porque eu a<strong>do</strong>eci. Eu<br />
tive problema acho que de rins... não sei, não me lembro<br />
mais. Então eu fui trocada de serviço. Depois da<br />
tecelagem eu trabalhei nos carretéis. Eu fui encarregada<br />
da maquininha de espularia, pra fazer espulas<br />
pras tecelagem, entendeu? Depois eu fui pra sala de<br />
pano, duas salas de pano. A sala pra gente revisar os<br />
104
panos e depois tem outra sala pra gente cortar os pa-<br />
nos, arrumar tu<strong>do</strong> direitinho e despachar, compreen-<br />
deu? São duas salas de pano: uma só pra revisar. A<br />
gente vai revisan<strong>do</strong>, as outras vão cortan<strong>do</strong>. Então eu<br />
trabalhei: tecelagem, carretéis, sala de pano, fui en-<br />
carregada da maquininha de espularia. Eu aposentei<br />
como encarregada da maquininha.<br />
Na tecelagem, o Onofre Correa era o mestre.<br />
Tinha um contramestre, ele morava na Vila Minalda,<br />
tratava ele de Neném. Não sei o sobrenome dele<br />
não. Depois o Riviria também entrou na fábrica.<br />
Eu fui pros carretéis, o encarrega<strong>do</strong> era José Alves.<br />
Encarrega<strong>do</strong> é o mestre; o contramestre é para consertar<br />
as máquinas, consertava tear... Tinha um rapaz<br />
que também trabalhou na maquininha, chamava<br />
Expedito. Tinha o Zé Vieira, que também trabalhava<br />
nos carretéis e na maquininha. Era uma seção só:<br />
carretéis e maquininha. Depois que eu fui pra sala<br />
de pano, o encarrega<strong>do</strong> era o Ciro. Não, era o José<br />
de Souza. Falar nisso tem o Zé de Souza pra você entrevistar,<br />
na casa dele. Ele foi chefão da sala de pano<br />
também. O Ciro também trabalhava na sala de pano<br />
como encarrega<strong>do</strong>, sabe? Tinha... ah meu Deus, ele<br />
já morreu...<br />
Tinha muita gente trabalhan<strong>do</strong> na fábrica: oito<br />
horas, toda vida. Na fábrica, a gente que vai trabalhar<br />
105
tem que dar produção, né. Se a gente trabalhava na<br />
tecelagem, tem que dar produção! Se a gente trabalhava<br />
nos carretéis, tem que dar produção! Se trabalhar<br />
na maquininha, também tem que dar produção,<br />
porque tem que dar conta das espulas pra tecelagem.<br />
A sala de pano também tem que dar produção, porque<br />
se tiver defeito você tem que cortar os defeitos,<br />
separan<strong>do</strong> os panos com defeito e outros panos sem<br />
defeito, entendeu? Os panos sem defeito eles manda<br />
alvejar, limpar tu<strong>do</strong> direitinho e manda despachar.<br />
A fábrica era diferente, quan<strong>do</strong> eu entrei. Tinha<br />
uma roda enorme, compreendeu. E tinha as outras<br />
roda pequena, como no retrato. Olha. Só tem que no<br />
retrato não apareceu a roda grande puxan<strong>do</strong>. A roda<br />
grande rodava todas rodas, da tecelagem toda, sabe?<br />
Depois, passan<strong>do</strong> um tempo, eles puseram um motor.<br />
Neste retrato que tá aqui ainda era as correias, entendeu.<br />
Depois, passan<strong>do</strong> uns tempos, eles tiraram as<br />
correias tu<strong>do</strong> e puseram um motor nos teares. Cada<br />
tear tinha um motor pra gente ligar e trabalhar.<br />
Teve uma época, sabe, que os operários da<br />
Indústria Irmãos Peixoto usou uniforme. E esse uniforme<br />
que eu estou com ele aí no retrato: saia azul,<br />
blusa branca, tênis branco, meia branca, com um<br />
escu<strong>do</strong> aqui no braço. Durante um tempo nós trabalhamos<br />
de uniforme. Depois, não sei o que houve,<br />
106
acabou nosso uniforme. Acho que a gente ganhava,<br />
não tenho certeza, não. Eu não me lembro mais não.<br />
A gente ia de uniforme desfilar. O desfile era muito<br />
bonito dentro de Cataguases. Então teve uma épo-<br />
ca que o João Peixoto trouxe uma pessoa, não sei de<br />
onde, pra poder filmar Cataguases. No dia <strong>do</strong> filme,<br />
quan<strong>do</strong> eles filmaram dentro da Indústria Irmãos<br />
Peixoto, eu estava de uniforme. A Manufatora, eu<br />
não sei se filmaram lá, mas o pessoal da Manufatora<br />
foi filma<strong>do</strong> na rua também. Durante o desfile, dentro<br />
de Cataguases, foi filma<strong>do</strong>. Eu só sei que todas vezes<br />
- 1º de maio, 7 de setembro - nós desfilava, compre-<br />
endeu? Saía a Indústria Irmãos Peixoto, Manufatora,<br />
Industrial, o Colégio das Irmãs, os Grupos, tu<strong>do</strong> saía<br />
pra desfilar. Era uma festa! Banda de música... Tinha<br />
mais de não sei quantos homens, cada um com o seu<br />
instrumento, sabe? Era bonito! Nós ia de uniforme<br />
para desfilar... A banda de música de Cataguases era<br />
muito bacana! Muito bonito, só você ven<strong>do</strong>!<br />
To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> gostava de festa! Coisa boa é uma<br />
festa! E eu gostava: desfilava, carregava bandeira.<br />
Era coisa muito boa mesmo. Tinha tu<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s mes-<br />
mo: homem, mulher... tu<strong>do</strong>. Toda vida gostei de festa.<br />
Quan<strong>do</strong> eu fui eleita pra ser rainha <strong>do</strong>s operários...<br />
Sabe, dentro da Indústria Irmãos Peixoto eles me es-<br />
colheram! Naquela época, minha mãe não gostava<br />
107
muito de baile, não deixan<strong>do</strong> eu frequentar baile não.<br />
Não deixava não! Mas aí, uma senhora - chamava<br />
Lourdes Peixoto - foi candidata, e os colegas me ar-<br />
rumaram pra ser candidata. Eles que venderam vo-<br />
to pra mim, sabe? Eu não vendi nenhum voto. Eles<br />
mesmos, os colegas, vendia votos na rua, dentro da<br />
Indústria Irmãos Peixoto... Aquela que tinha mais<br />
voto ganhava. No final das contas eu ganhei como<br />
rainha da Indústria Irmãos Peixoto. Eles me elege-<br />
ram, sabe? Foi em 1945 que eu ganhei como rainha.<br />
Venderam votos... não sei te explicar direito como foi<br />
o negócio não. Eu só sei que eu ganhei como rainha.<br />
Fui coroada no Clube <strong>do</strong>s Operários. Houve um bai-<br />
le muito bonito, que baile, antigamente, dava gosto a<br />
gente ir! Fui muito feliz! Depois de mim a Elza - não<br />
sei o sobrenome dela - também foi rainha. E teve a<br />
Galiléia, que também foi rainha na Indústria Irmãos<br />
Peixoto, depois de mim. E teve também concurso de<br />
simpatia. A moça que ganhou o concurso de simpatia<br />
saiu da fábrica. A Elza, depois que ela foi rainha, saiu<br />
também. Acho que casou, não sei, foi embora. Só eu<br />
fiquei plantada dentro da Indústria Irmãos Peixoto.<br />
Ali, trabalhan<strong>do</strong>: a durona foi só eu!<br />
João Peixoto organizava isso. Gostava muito<br />
de festa. Aqui dentro de Cataguases João Peixoto tava<br />
em primeiro lugar pra fazer festa pros operários,<br />
108
pra pobreza. Dia 13 de maio: bate-pau. O pessoal ia<br />
desfilar na praça com bate-pau pra lembrar <strong>do</strong>s tem-<br />
pos <strong>do</strong> cativeiro. Eu acho bonito... Cataguases era<br />
anima<strong>do</strong>! Cataguases era anima<strong>do</strong> demais! Agora<br />
Cataguases não é mais esse Cataguases... Você não vê<br />
ninguém fazer festa... Outro dia, na Igreja aqui, eu vi<br />
banda de música atrás da Virgem. Eu falei com mi-<br />
nha colega assim:<br />
- Ah, no tempo <strong>do</strong> João Peixoto, seu Manoel, <strong>do</strong>utor<br />
Francisco tinha muito, sabe. Tinha banda de mú-<br />
sica atrás <strong>do</strong>s operários da Industrial, tinha ban-<br />
da de música atrás <strong>do</strong> pessoal da Indústria Irmãos<br />
Peixoto, então, quan<strong>do</strong> ajuntava era muito bonito,<br />
só “cê” ven<strong>do</strong>! Tempo bom, já acabou...<br />
Eu gosto daquela praça, o busto <strong>do</strong> Zé Peixoto<br />
foi uma homenagem sim. E a praça é bonitinha. Eu<br />
não lembro muito de festa não, mas foi animada<br />
aquela festa ali. Não sei te contar sobre aquela praça<br />
ali não. Não me lembro da festa ali não. Não sei se<br />
houve discurso... Só sei que eles fizeram aquela festa<br />
ali, né?<br />
Eu sei que houve uma festa <strong>do</strong>s “pracinhas”,<br />
mas eu não sei contar não, sabe? Não me lembro, não<br />
me recor<strong>do</strong> da festa <strong>do</strong>s pracinhas não. A única coisa<br />
que eu lembro, é que eles foram lá no salão <strong>do</strong>s<br />
operários. Foi assim: nós estávamos dançan<strong>do</strong>, tinha<br />
109
aile no Clube <strong>do</strong>s Operários. Podia ser quase no-<br />
ve ou dez horas da noite, chegou - não sei se foi o<br />
Pedro Dutra ou Zé Esteves - uma turma de homens<br />
que eram os “pracinhas”. Na hora parou de dançar.<br />
Reuniu os “pracinhas” tu<strong>do</strong> lá no baile. Puseram<br />
banco, mandaram sentar ali, os “pracinhas” assim<br />
em volta e tiraram nossos retratos. Eu, como estava<br />
no baile... Acho que os “pracinhas” venceram a guer-<br />
ra... não sei se é guerra ou se é revolta, não me lem-<br />
bro mais o que era não. Eles vieram embora... Então,<br />
como nós tava no baile dançan<strong>do</strong>, eles chegaram<br />
foram no Clube, reuniram to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e tirou retra-<br />
to. Naquele retrato tá o Pedro Dutra, o Zé Esteves, o<br />
<strong>do</strong>utor Edson, <strong>do</strong>utor Jaime... Tem várias pessoas ali<br />
que hoje em dia - o retrato tá meio embaça<strong>do</strong> - não dá<br />
pra gente reconhecer os outros... Tem o Rolô, que foi<br />
“pracinha”... o Didi foi também. O Didi mora aqui.<br />
É isso mesmo, nós tiramos aquele retrato. Ninguém<br />
esperava quan<strong>do</strong> eles chegaram... Aquela porção de<br />
homem lá dentro <strong>do</strong> salão. Aí eles resolveram, puse-<br />
ram um banco lá e tiraram nossos retratos.<br />
Olha, eu toda vida gostei de baile, gostei de<br />
cinema e rodar aquela praça, passear. Na época que<br />
eu era jovem eu não passeava porque minha mãe<br />
não deixava. A minha mãe não deixava eu sair sozi-<br />
nha, não deixava eu passear sozinha, não deixava eu<br />
110
ir a lugar nenhum. Tinha de ficar rente com ela, ali!<br />
Aonde que fosse, tava comigo. Ela me levava no baile,<br />
com esse meu irmão Elias, que morreu agora. Ele ia<br />
com minha mãe: me levava no baile às nove horas e<br />
quan<strong>do</strong> dava onze horas me trazia pra casa. Ele não<br />
deixava eu ficar até terminar o baile não.<br />
A minha mãe soube me criar, Deus dê um bom<br />
lugar a ela, porque eu agradeço a ela, sabe. Eu agradeço<br />
muito! Eu acho que o filho, uma filha, deve obedecer<br />
pai e mãe, porque é tu<strong>do</strong> na vida! A família da<br />
gente é muito importante. A coisa mais sagrada que<br />
tem na vida da gente. Os pais se pôs filho no mun<strong>do</strong>,<br />
precisa saber criar, porque tem de entregar conta<br />
a Deus. Cê sabe disso? O que minha mãe e meu<br />
pai falava, tava fala<strong>do</strong>! Minha mãe era antiga, desse<br />
tempo antigo, ela é antiguíssima, mas ela sabia criar<br />
um filho. Eu gosto <strong>do</strong> tempo antigo, sabe, porque os<br />
filhos ficam obedientes ao pai e mãe. Minha família<br />
pra mim é sagrada. E uma família distinta, uma família<br />
de gente boa. Uma família que não tem defeito<br />
nenhum. Eu te pergunto: porque os mais novos de<br />
hoje não podem olhar um pai ou mãe, na velhice?<br />
Eles puseram no mun<strong>do</strong>, eles criaram... Educou o filho:<br />
formou pra médico, formou pra engenheiro, formou<br />
pra <strong>do</strong>utor! Porque esses filhos não pode olhar<br />
mãe ou pai na velhice? Eu graças a Deus, eu olhei<br />
111
minha mãe, olhei meu pai e meu irmão. Eu deixei de<br />
me casar. Eu não casei, tô solteirona até hoje porque<br />
tinha um compromisso com o meu pessoal! Como é<br />
que eu ia casar? Também se eu casasse, nem sei como<br />
era minha vida... Já estava viúva já muitos anos, porque<br />
vários rapazes que eu namorei, já se foi... Eu tava<br />
sozinha <strong>do</strong> mesmo jeito. E como eu disse a vocês: a<br />
gente nasce sozinha e morre sozinha. Ninguém vai<br />
com a gente. É ou não é? Tô certa ou não tô?<br />
A vida é essa. Eu não me importo de me envelhecer.<br />
A velhice não é bonitinha? Outro dia no<br />
“Fantástico” 4 passou aquela velhinha, de cabelo branquinho,<br />
com noventa e seis anos. Sozinha. Porque<br />
neste mun<strong>do</strong> é assim mesmo: você nasce sozinho,<br />
termina sozinho... to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tem sua vez de ir.<br />
Vamos conformar como Deus faz a gente... Na minha<br />
mocidade eu fui muito feliz! Agora estou sen<strong>do</strong> feliz!<br />
Se eu chegar nos oitenta ou noventa, se eu for até lá,<br />
pra mim é sagra<strong>do</strong>... Única coisa que eu acho triste,<br />
aquelas velhinhas no asilo...<br />
Eu me sinto uma pessoa realizada na minha<br />
vida. Minha vida pra mim é boa, uma vida sagrada,<br />
porque fiquei muito junto com pai e mãe, toda vida.<br />
Não me casei. Olhei minha mãe - morreu em (19)53<br />
4 ) Programa que de TV que vai ao ar aos <strong>do</strong>mingos.<br />
112
- depois ficou meu pai - morreu em (19)63 - depois<br />
teve meu irmão mais velho, que foi nosso pai. Meu<br />
irmão mais velho trabalhou, aju<strong>do</strong>u a criar a gen-<br />
te. Ajudava em casa, pagava aluguel, punha manti-<br />
mento dentro de casa. Meu irmão mais velho - Elias<br />
Magalhães Pereira - foi carpinteiro. E tinha apeli<strong>do</strong><br />
de Elias carpinteiro. Ele trabalhou na Igreja de Santa<br />
Rita, trabalhou no Edgard Cunha, trabalhou até na<br />
casa <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Francisco. Trabalhou em vários luga-<br />
res. Então ele ficou esclerosa<strong>do</strong>, sabe. Olhei ele cinco<br />
anos! Eu deixei de passear, deixei de ir em festa, dei-<br />
xei de ir à igreja, tu<strong>do</strong> porque não podia deixar ele<br />
sozinho. Eu era uma companhia, uma irmã. Ele aju-<br />
<strong>do</strong>u papai me criar, então eu olhei o fim da vida dele.<br />
Ele não casou, mas teve um filho. Esse filho dele, que<br />
é o Roberto, também me aju<strong>do</strong>u. Eu criei o Roberto<br />
(depois) que a mãe dele morreu. Com idade de dez<br />
anos ele foi pra minha casa, ficou aos meus cuida<strong>do</strong>s<br />
e <strong>do</strong> pai dele. Criei e eduquei, graças a Deus! Ele es-<br />
tu<strong>do</strong>u no colégio Cataguases, formou conta<strong>do</strong>r, tra-<br />
balha no INPS. Agora está estudan<strong>do</strong> Direito. Este<br />
ano ele forma pra advoga<strong>do</strong>. É casa<strong>do</strong>, tem uma filhi-<br />
nha. Isso é uma felicidade! Pra mim, que sou solteira,<br />
nunca fui mãe, é uma felicidade! Também criei uma<br />
sobrinha - de um aninho até sete anos - hoje ela é casada,<br />
já tem filhos, está no Rio de Janeiro. O que cai<br />
113
nas minhas mãos eu amparo, quer dizer, eu aju<strong>do</strong>. O<br />
que eu puder fazer para ajudar, eu tô pronta pra aju-<br />
dar. Coração bom tá aqui, só falta trato.<br />
Depois que meu irmão Elias a<strong>do</strong>eceu, com ar-<br />
teriosclerose, eu não pude sair. Eu não saía mais de<br />
casa. Eu só ficava dentro de casa, cozinhan<strong>do</strong> e olhan-<br />
<strong>do</strong> ele. Eu aban<strong>do</strong>nei tu<strong>do</strong> pra ficar de olho nele, por-<br />
que estava esclerosa<strong>do</strong>. Eu tomei conta <strong>do</strong> meu irmão<br />
cinco anos. Hoje, graças a Deus, tão quase tu<strong>do</strong> velho,<br />
mas to<strong>do</strong>s aposenta<strong>do</strong>s. Só tá faltan<strong>do</strong> pra aposentar<br />
o Expedito, que trabalhou no Clube <strong>do</strong> Remo e mora<br />
na Taquara. Eu não faço queixa de ninguém, porque<br />
eu fui bem tratada. Eu não tive problema com nin-<br />
guém, entendeu, com ninguém! Trabalhei muito em<br />
política pro Seu Manoel Peixoto. Trabalhei em políti-<br />
ca pro João Peixoto - o João Peixoto foi prefeito - to-<br />
<strong>do</strong>s eles gostava muito de mim. Eu também gostava,<br />
tratava to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> bem. To<strong>do</strong>s os operários foram<br />
bons, porque a coisa melhor na vida da gente é tratar<br />
to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> bem. Não faço queixa de ninguém.<br />
Na casa <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Geral<strong>do</strong>, eu trabalhei <strong>do</strong>-<br />
bran<strong>do</strong> cédula, entregan<strong>do</strong> cédula. Eles punha a gen-<br />
te pra trabalhar, pra <strong>do</strong>brar cédula. Depois de tu<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>bra<strong>do</strong>, a gente ia entregar nas casas, compreendeu.<br />
Eu trabalhei com Adail, com a Minalda Simões. Eles<br />
tiravam uma turminha pra fazer o serviço pra eles,<br />
114
porque naquela época os papelzinho era pequeno.<br />
Tinha folha <strong>do</strong> prefeito, <strong>do</strong>s verea<strong>do</strong>res. Agora, com<br />
uma cédula só, você tem que por o xis. De primeiro<br />
era diferente, já levava a cédula. A gente arrumava<br />
a cédula e ia entregar nas casas pra poder votar. Pra<br />
quem eles quisesse dar o voto, né. Eu trabalhei mui-<br />
to... gostava, gostava muito. Mas eu fui cortada da<br />
fábrica, por causa de política. Não me importo com<br />
isso não... Se alguém falou da minha pessoa, que eu<br />
estava <strong>do</strong>bran<strong>do</strong> cédula, marcan<strong>do</strong> cédula com ba-<br />
ton, eu não ligo pra isso não. Mas eu chorei muito,<br />
na época que eles me cortaram, porque eu a<strong>do</strong>rava a<br />
fábrica! Eu gostava muito de trabalhar. Nós... traba-<br />
lhan<strong>do</strong> pro Peixoto, eu não me lembro mais quem era<br />
o candidato, eu fui acusada. Não sei quem falou de<br />
mim, quem levou meu nome não sei pra quem. Eu só<br />
sei que o Onofre Correa chegou perto de mim e falou:<br />
- Maria, você está despedida.<br />
- Por que? Que que eu fiz?<br />
- Não sei.<br />
- Você pode falar com eles que eu não andei marcan<strong>do</strong><br />
cédula de baton não.<br />
Eu acho até graça! Eu não liguei não, porque<br />
naquela época eu era muito nova. Tinha o meu pai,<br />
tinha a minha mãe, não liguei muito não. Eu só virei<br />
e falei assim:<br />
115
- Fizeram uma calúnia comigo, porque eu não fiz o<br />
que eles estão falan<strong>do</strong> não. Mentira! É mentira! Eu<br />
fui cortada? Não tem importância não!<br />
Eu apenas trabalhava na rua. Eu, a Eva, muitas<br />
moças trabalhava na rua pra tomar conta das pessoas,<br />
levar as pessoas, ensinar onde tinha que votar, ensi-<br />
nar as pessoas como vota. Mas é mentira, eu não fiz<br />
nada disso não... Anulava as cédulas, anulava o voto!<br />
Aí sai, em 1946.<br />
Eu fiquei o ano to<strong>do</strong> estudan<strong>do</strong> lá no seu<br />
Domingos Tostes. A filha dele, a <strong>do</strong>na Dulce dava aula<br />
de bater máquina, uma professora muito boa. Comecei<br />
a estudar, bater máquina. Eu sei mais alguma coisa<br />
porque estudei particular durante um ano. O ano que<br />
eles me cortaram eu fiquei estudan<strong>do</strong>. Foi aí que eu<br />
aprendi mais... até bater máquina: aula de datilografia.<br />
Passou 1946, tô na minha, né. Quan<strong>do</strong> foi em<br />
(19)47 houve outra eleição. Não sei quais eram os<br />
candidatos... Aí eles mandaram o João Ramalho. Ele<br />
foi lá em casa, bateu lá em casa:<br />
- Maria, o João man<strong>do</strong>u falar com você. Se você votar<br />
neles...<br />
- Você fala com eles lá, com João, com <strong>do</strong>utor Manoel<br />
ou com <strong>do</strong>utor Francisco, que eu nunca fui contra<br />
eles. Eu não sou fingida não. Eu sou uma pessoa<br />
muito pontual, muito sincera na minha vida. Eu<br />
116
não votei contra eles não! Eu tô pronta pra traba-<br />
lhar pra eles: voltar pra fábrica pra trabalhar; trabalhar<br />
nas eleições pra eles, como antigamente.<br />
Eu não sei qual <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is, <strong>do</strong>s três... eu não sei<br />
se é o João, se é o <strong>do</strong>utor Francisco, ou se é o Seu<br />
Manoel... man<strong>do</strong>u me oferecer uma vaga na fábrica<br />
de novo, se por acaso voltaria... Aí eles arrumaram<br />
um discurso pra mim. Quan<strong>do</strong> foi no dia da festa <strong>do</strong><br />
comício, eles arrumaram um papel pra eu falar. Fui.<br />
Trepei no palanque, falei bonito! Decorei o meu papel:<br />
um discurso a favor <strong>do</strong>s Peixoto, a favor <strong>do</strong> candidato,<br />
que eu nem lembro mais quem era... Eu não<br />
me lembro quem fez o discurso. Eu só sei que eles<br />
me deram o papel pra falar. Aí eu decorei o papel e<br />
falei. Aí eu fiz o meu discurso.<br />
Aquela turma, aqueles colegas da gente, tava<br />
tu<strong>do</strong> assim perto <strong>do</strong> palanque. Aquela festa toda, as<br />
bandeiras... Seu Mota também estava no meio - Deus<br />
que dê um bom lugar a ele. A gente trabalhava tu<strong>do</strong><br />
em política. Aí, na mesma hora eu vim parar cá<br />
dentro da fábrica, junto com a turma. Quan<strong>do</strong> foi no<br />
outro dia, eu já estava trabalhan<strong>do</strong>.<br />
Eu gosto muito da família <strong>do</strong>s Peixoto, porque<br />
eles foram muito bons pra Cataguases. Se alguém fala<br />
deles, eu não tenho nada com a vida <strong>do</strong>s outros.<br />
Cada um tem o seu problema. Cada pessoa tem um<br />
117
mo<strong>do</strong> de ver. Então, eu não tenho nada a dizer deles.<br />
To<strong>do</strong>s eles são bons pra mim. Eu sou muito feliz. Fui<br />
muito feliz. Foi muito bom. Até hoje, se eles quiser eu<br />
vou lá fazer um cafezinho pra eles lá. É mesmo, eu<br />
gosto de lidar com as pessoas. Eu não tenho nada a<br />
dizer <strong>do</strong>s Peixoto. Eles foram bons patrões.<br />
Metade da minha vida foi na Vila Rezende.<br />
Naquela época era umas casas, agora está tu<strong>do</strong> mu-<br />
da<strong>do</strong>. Agora, um vai compran<strong>do</strong>, vai renovan<strong>do</strong>...<br />
Hoje, a vila tem muitos prédios bonitos. Os antigo<br />
eles vão compran<strong>do</strong>, vão desmanchan<strong>do</strong>... vai reno-<br />
van<strong>do</strong>. A cidade de Cataguases, hoje, é outra cidade.<br />
Do jeito que a gente viu, antigamente...Porque aque-<br />
las casa antiga tá se acaban<strong>do</strong>... Tá fazen<strong>do</strong> prédio,<br />
fazen<strong>do</strong> apartamento... Tem que melhorar a cidade.<br />
Antigamente as pessoas tinha amor às casas, tinha<br />
amor a um objeto. E a gente entrava naquela Igreja<br />
Santa Rita... Era uma coisa antiga, a gente achava bo-<br />
nito. Era bonita!<br />
Vai mudan<strong>do</strong> os tempos, vai renovan<strong>do</strong> os<br />
tempos, as pessoas vão derruban<strong>do</strong> as coisa antiga e<br />
fazen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> novo. A Igreja de Santa Rita era mui-<br />
to bonita... Eu não me lembro quem quis fazer ou-<br />
tra matriz... A população de Cataguases aumentou<br />
muito! Cataguases agora é uma cidade maravilhosa!<br />
Uma cidade muito bonita! Você vai na praça e você<br />
118
só vê juventude! Cataguases tem muita gente nova,<br />
bonita. Cataguases tá renovan<strong>do</strong>. Lá uma vez ou ou-<br />
tra, você vai na praça, cê vê aquela colega antiga, que<br />
você tinha antigamente. Eu tinha tanta colega! Tem<br />
a Judite, A Judite é a única colega que eu saía mais,<br />
passeava na praça. Essa irmã da Elvira, que mora ali<br />
perto <strong>do</strong> CB, foi minha colega de passeio. Trabalhou<br />
na fábrica comigo. Naquela época tive várias colegas,<br />
sabe. Tinha a Arlete, <strong>do</strong> Bazar René. A Arlete não foi<br />
operária não, mas ela era minha colega de passear na<br />
praça.<br />
Baile é a coisa melhor que tem! O divertimento<br />
melhor que tem, eu acho que é baile! Baile assim<br />
familiar somente. Baile direitinho, como antigamente<br />
tinha. Tinha o Clube <strong>do</strong> Operário atrás da Estação.<br />
Aquele correio de casa que tem ali... o Clube <strong>do</strong><br />
Operário era ali, um salão muito bom, prédio novo...<br />
Eu dançava muito no Clube <strong>do</strong> Operário... Agora<br />
já tu<strong>do</strong> velho... O Emílio era ali onde é o Sindicato<br />
<strong>do</strong> Fun<strong>do</strong> Rural, o Clube <strong>do</strong> Emílio era ali. O pessoal<br />
gostava muito porque o Emílio, quan<strong>do</strong> punha o<br />
pessoal dele pra sambar na rua, minha filha! Vou te<br />
contar! To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> gostava de ver aquela turma dele<br />
nos carnavais! Tinha carruagem bonita! Na minha<br />
época o Clube <strong>do</strong> Operário fazia carruagem também.<br />
No carnaval eu saí numa carruagem vestida de rai-<br />
119
nha. Um vesti<strong>do</strong> muito bonito! Aquele vesti<strong>do</strong> ali, to-<br />
<strong>do</strong> borda<strong>do</strong> de vidrilho. Eu não me lembro mais se<br />
eu ganhei, se eu comprei aquele vesti<strong>do</strong>... Não me<br />
lembro mais... Eu só sei que arrumei a costureira. Ela<br />
chamava Carmem, essa senhora que fez este vesti<strong>do</strong><br />
lin<strong>do</strong>. Ela era costureira e eu sou madrinha da filha<br />
da Carmem. A menina chama Dirce. Ela me deu a<br />
menina pra batizar... Ela era esposa de um senhor<br />
magro, alto, branco...<br />
Ganhei a taça. Eu trouxe a taça pro Clube<br />
<strong>do</strong> Operário. Era um clube muito bom, respeita<strong>do</strong>r.<br />
Tinha polícia toman<strong>do</strong> conta <strong>do</strong> clube. O Mário<br />
da Paixão também frequentava muito o Clube <strong>do</strong><br />
Operário, o Clube <strong>do</strong> Emílio... Era cem por cento, não<br />
tinha briga nem nada... O Lord Clube, eu ainda era<br />
criança, eu vinha com minha irmã olhar. Nunca dancei<br />
não, os de menor não entrava no baile. O Lord<br />
Clube era em frente à Indústria Irmãos Peixoto, ali<br />
onde é aquela padaria. Então, as moças se apresentavam<br />
muito bonitas, vesti<strong>do</strong> compri<strong>do</strong>. Antigamente<br />
as moças se vestiam bem, era charmosa... Os homens<br />
também se apresentavam de terno; gravata... Muito<br />
bonito! No Comercial eu entrei uma vez, numa festa<br />
que houve lá. Uma vez eu entrei, nem me lembro<br />
mais... ali no Comercial era muito anima<strong>do</strong>! O cinema<br />
era anima<strong>do</strong>! Olha, ia gente pro cinema! Tu<strong>do</strong> ia<br />
120
pra primeira sessão - tinha primeira e segunda sessão,<br />
né - nós ia pra primeira pra depois a gente poder pas-<br />
sear na praça. A gente saía às oito horas <strong>do</strong> cinema,<br />
a praça tava cheia! Hoje, eu vou à praça e fico recor-<br />
dan<strong>do</strong>, sabe, lembran<strong>do</strong> daqueles tempos... Era mais<br />
anima<strong>do</strong>! Você chegava na praça sete horas... aquela<br />
turma de rapaz, de homens, tu<strong>do</strong> engravata<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong><br />
de terno passean<strong>do</strong> em volta. A gente, as moças, pas-<br />
seava de um la<strong>do</strong>, os moços de outro. A gente, naque-<br />
la época, só flertava. Flertava com um, flertava com<br />
outro, depois a gente escolhia com quem queria falar.<br />
Eu gosto muito daquele tempo. É um tempo muito<br />
bom, gostoso... Eu não sei se porque o pessoal tem<br />
muito carro, (hoje) só passeia de carro, né.<br />
Eu sou católica toda vida. Eu sou da Irmandade<br />
de Nossa Senhora <strong>do</strong> Rosário.<br />
Eu sou da Irmandade <strong>do</strong> Sagra<strong>do</strong> Coração<br />
de Jesus, São José e Santa Rita, desde o tempo que<br />
o Padre Antônio veio pra essa Igrejinha aqui. Antes,<br />
eu frequentava muito a Igreja de Nossa Senhora <strong>do</strong><br />
Rosário, frequentava a Igreja de Santa Rita. Eu era<br />
muito católica, não perdia uma procissão! Você sabe<br />
que Deus ajuda muito a gente nas horas que mais a<br />
gente precisa. Nós devemos ter muita fé em Deus!<br />
Pedir a Deus sempre proteção, compreendeu. Pedir<br />
pra ter uma vida boa neste mun<strong>do</strong>. Desde que eu<br />
121
nasci, o meu tempo foi bom. Eu tenho essa felicidade<br />
na minha vida, porque eu acho a vida boa. Eu acho<br />
a vida gostosa! A gente precisa de aprender viver. Se<br />
você não fizer sua parte, quem vai fazer? Eu, graças<br />
a Deus, até hoje me sinto muito alegre, tenho alegria!<br />
O que eu tô contan<strong>do</strong> aqui... esse grava<strong>do</strong>r...<br />
muita gente não vai acreditar! São coisas que eu nunca<br />
falei com ninguém. Você está me entrevistan<strong>do</strong>,<br />
me fazen<strong>do</strong> pergunta, eu estou contan<strong>do</strong> a minha vida.<br />
Eu gosto de lembrar <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Tem muita gente<br />
que não gosta da idade, nem gosta de falar. Mas<br />
eu não ligo não, porque minha mocidade foi muito<br />
bonita. Meu tempo de mocidade foi bom... Se você<br />
quer viver muito, você tem que chegar na velhice...<br />
se você não quiser... tem que morrer novo... Cada um<br />
lembra <strong>do</strong> seu passa<strong>do</strong>. O meu passa<strong>do</strong> foi maravilhoso!<br />
Até hoje tá sen<strong>do</strong> bom. Não tenho nada, mas<br />
tenho Deus comigo! O que eu estou dizen<strong>do</strong> aqui é<br />
sobre minha vida, é o meu passa<strong>do</strong>. Sobre o passa<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s outros, eu não sei informação. Eu agradeço e fico<br />
muito satisfeita de você estar aqui comigo, me fazen<strong>do</strong><br />
perguntas, compreendeu.<br />
Entrevistada em 27/6/1990 por José Luiz Batista e Gláucia Siqueira.<br />
122
123
124
M A R I TA G U I M A R Ã E S<br />
C O S TA C R U Z<br />
D O N A D E C A S A<br />
7 4 a n o s<br />
Minha família é de fazendeiros, lá<br />
de Campo Limpo. Hoje Campo Limpo é chama<strong>do</strong><br />
de Ribeiro Junqueira, (município de) Leopoldina.<br />
Naquela época a pessoa era fazendeira, era rica,<br />
comprava título. Por exemplo, meu pai era coronel,<br />
uai! To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> o chamava de Coronel Chico<br />
Guimarães. Antigamente era assim: era rico, era coronel.<br />
A pessoa era rica, era fazendeira, tinha muito<br />
Foto: Fazenda <strong>do</strong> Coronel Arthur da Costa Cruz (Fazenda Bom Retiro),<br />
Alberto Landóes, s/d, Departamento Municipal <strong>do</strong> Patrimônio Histórico<br />
e Artístico de Cataguases<br />
125
café, muita coisa, comprava título: era coronel. Meu<br />
pai, Francisco Ribeiro Guimarães, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> só<br />
chamava de Coronel Chico Guimarães. Minha mãe,<br />
Cecília Ventura da Silva Guimarães era lá de Barra<br />
<strong>do</strong> Piraí, Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio. A minha mãe é fluminense,<br />
né. Papai é que é português. A Marilis é que sabe<br />
contar... Minha família é daqueles Breve... tinha os<br />
Breve miú<strong>do</strong> e os Breve graú<strong>do</strong>, né.<br />
Eu nasci em Campo Limpo, em 1918, e vim<br />
pra cá com 10 anos. Dez para onze anos... eu perdi<br />
pai e mãe e vim pra cá. Minha mãe morreu num ano,<br />
meu pai no outro. Mamãe foi rins, meu pai suicídio.<br />
Desespera<strong>do</strong>, né. Perdeu tu<strong>do</strong>! Tinha um ano que<br />
tinha perdi<strong>do</strong> a mulher, desorganizou tu<strong>do</strong>! Nós tínhamos<br />
uma fazenda muito boa, um sítio muito bom,<br />
muito bem monta<strong>do</strong>, muita fartura! Nós residíamos<br />
em Recreio. Tinha casa própria e tu<strong>do</strong>, em Recreio.<br />
A gente tinha sítio pra passar fim de semana... Tinha<br />
a Fazenda Bocaina, em Campo Limpo. Em Recreio,<br />
uma casa de luxo. Ainda tem lá até hoje, aquela casa<br />
no alto da Igreja. Uma casa de luxo! A nossa casa lá<br />
era <strong>do</strong> tipo desta, né. Meu pai tava muito bem de vida!<br />
Negócio de café: era fazendeiro e tinha armazém<br />
de café. Depois ele perdeu tu<strong>do</strong>, aí desesperou!<br />
Foi em 1930. Meu pai perdeu tu<strong>do</strong>! Perdeu<br />
fazenda, sítio, a casa que morava, carro... Tinha au-<br />
126
tomóvel, tinha tu<strong>do</strong>! Hoje, ainda existe a Fazenda<br />
Bocaina. Era dele... Ele entrou naquela Revolução<br />
de 30. Ele queria tanto morrer, que ele entrou<br />
na Revolução de 30. Ele foi eleva<strong>do</strong> a tenente na<br />
Revolução, por ato de bravura! Ele era contra a<br />
Aliança Liberal, eu acho que era... Era contra, devia<br />
ser contra... Um dia nós vimos ele e o ordenança che-<br />
gan<strong>do</strong>, lá na porteira... To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> achan<strong>do</strong> que era<br />
as forças federais que tavam entran<strong>do</strong>...<br />
A fazenda produzia açúcar, cachaça, muito ar-<br />
roz, café. Ele montou armazém de café, em Recreio.<br />
Trabalhou muito, também, naquela companhia de<br />
café Monteiro de Barros, lá em Providência. Nós vie-<br />
mos pra cá depois da Revolução de 30. A Revolução<br />
foi em outubro, papai morreu em novembro e eu<br />
vim terminar o quarto ano aqui. Eu era aluna da<br />
<strong>do</strong>na Flávia, esposa <strong>do</strong> Pedro Dutra. O quarto ano<br />
era <strong>do</strong>na Flávia... A Cordélia Dutra foi examina<strong>do</strong>-<br />
ra. Depois eu fiz o curso em Leopoldina, interna no<br />
Colégio Imaculada. Formei lá e vim para Cataguases<br />
trabalhar na Força e Luz. Foi aí que conheci a família<br />
Cruz.<br />
Eu me lembro quan<strong>do</strong> nós ficamos sem nada.<br />
Eu tinha dez pra onze anos. Nós viemos morar aqui,<br />
em frente às Carneiro. Foi a primeira casa que mora-<br />
mos. Saímos <strong>do</strong> conforto e viemos morar numa casa<br />
127
que nem banheira tinha! Era só chuveiro e privada.<br />
Passamos um choque tremen<strong>do</strong>! Sair disso tu<strong>do</strong>, des-<br />
sas grandezas todinha, e morar numa casa aluga-<br />
da! Nós to<strong>do</strong>s ficamos moran<strong>do</strong> com esse irmão, o<br />
Arman<strong>do</strong>, e esta irmã, Marilis... To<strong>do</strong>s eram solteiros,<br />
não tinha nenhum casa<strong>do</strong> na época. Meu irmão mais<br />
velho tinha 22 anos e a irmã mais velha tinha 24 anos.<br />
A Marilis uma heroína! E o Arman<strong>do</strong> também! Foi<br />
quan<strong>do</strong> abriram “A Nacional”. Meu irmão estabele-<br />
ceu junto com o senhor Antônio Rodrigues Gomes.<br />
O irmão mais velho trabalhava na “Nacional”.<br />
Antigamente era ali, perto da Casa Felipe, onde é a<br />
Dirce hoje. Quem tomou conta da família foram os<br />
<strong>do</strong>is irmãos mais velhos.<br />
Quan<strong>do</strong> meu pai perdeu tu<strong>do</strong>, falou que ia<br />
para Belo Horizonte. Arranjou colocação lá em Belo<br />
Horizonte e veio, até com três aluguéis adianta<strong>do</strong>s.<br />
Antigamente era assim: pro cê entrar numa casa ti-<br />
nha que pagar adianta<strong>do</strong>. Quer dizer que ele não<br />
tava com ideia de morrer... Quan<strong>do</strong> foi no dia de<br />
fina<strong>do</strong>s - ele morreu no dia de fina<strong>do</strong>s - ele colheu<br />
muitas flores, pra to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> lá em casa. Ele fez um<br />
buquê de flor pra cada um levar pra mamãe. Lá em<br />
casa tinha muitas flores! Nós estávamos sain<strong>do</strong> pro<br />
cemitério, quan<strong>do</strong> a empregada veio com a notícia<br />
que ele tinha morri<strong>do</strong>. Ele morreu na linha, longe de<br />
128
casa... Ele saiu fora da cidade... Pra nós foi um cho-<br />
que tremen<strong>do</strong>!<br />
Nós tínhamos que começar tu<strong>do</strong> de novo,<br />
porque ele vendeu o que podia vender; o que não<br />
pode vender, deu pros outros. Ele tinha da<strong>do</strong> tu<strong>do</strong><br />
pros outros. Não queria que levasse nada para Belo<br />
Horizonte, só as malas. Ele falou pra Marilis, que<br />
tinha aluga<strong>do</strong> casa e que ia comprar tu<strong>do</strong> de novo.<br />
Então, ela pôs roupa de cama, talher, umas travessas<br />
bonitinhas que a mamãe tinha, uma bandeja muito<br />
bonita - que a Marilinha tem, até hoje, de lembrança<br />
- muita roupa... Foi o que salvou! O resto ela deu<br />
pras nossas vizinhas, lá em Recreio. A Marilis deu<br />
muitas coisas para elas: jarras bonitas, de porcelana...<br />
Nós ficamos sem nada! Veio montar casa aqui, não<br />
tinha nada!<br />
Deus parece que calha tu<strong>do</strong>, que encaixa tu<strong>do</strong><br />
direitinho. O senhor Kleber Miranda tava mudan<strong>do</strong>,<br />
nós compramos tu<strong>do</strong>! Tinha uma prima, que o mari<strong>do</strong><br />
trabalhava na Irmãos Peixoto - Diocélio Tindó, era<br />
guarda-livros na fábrica velha - e tava de mudança<br />
pro Rio; também. Então deu muita coisa pra Marilis<br />
montar a casa.<br />
Estudei um ano aqui em Cataguases, no<br />
Colégio Nossa Senhora <strong>do</strong> Carmo, formei e fui pro<br />
colégio, interna. Fui pra Leopoldina. A Marilinha<br />
129
também estu<strong>do</strong>u interna no Colégio Imaculada.<br />
Fiquei lá até formar, em (19)36. Eu achava ótima a<br />
vida no internato. Gostava muito das freiras. Elas<br />
eram rigorosas, mas davam muito carinho pra gente.<br />
Eu me dava muito bem com essas freiras. Eu ajuda-<br />
va muito na secretaria a passar nota... Eu tenho, até,<br />
um quadro, uma Imaculada Conceição que a diretora<br />
man<strong>do</strong>u pra mim, de presente de casamento. O colé-<br />
gio era aperta<strong>do</strong>. O professor de português, <strong>do</strong>utor<br />
Bandeira de Melo, era muito bom! O professor Gilrat,<br />
de francês. O professor Macha<strong>do</strong>, de matemática. Na<br />
minha época, era aritmética. Eu gostava muito! Eu al-<br />
cancei aritmética até o segun<strong>do</strong> ano normal, depois<br />
passou pra matemática. Eu já não gostava mais. To<strong>do</strong><br />
último <strong>do</strong>mingo <strong>do</strong> mês tinha saída. Saía na Semana<br />
Santa, às vezes no feria<strong>do</strong>. Às vezes eu passava em<br />
casa de conheci<strong>do</strong>s, lá em Leopoldina. Não vinha<br />
aqui não, aquele ônibus era muito ruim! Eu passava o<br />
último <strong>do</strong>mingo em Leopoldina, porque situação não<br />
era das boas, pra ficar trançan<strong>do</strong> pra lá e pra cá, não.<br />
Aqui em Cataguases, eu frequentei pouca festa<br />
porque eu entrei logo pra “Filha de Maria”. Lá em<br />
Leopoldina, eu fui, eu ia a festas, mas não dançava.<br />
Antigamente, quem era “Filha de Maria” era muito<br />
presa. Não podia namorar, não podia dar braço ao<br />
rapaz, só no dia <strong>do</strong> casamento! Toda de branco, só<br />
130
manga comprida... Eu entrei lá no colégio interno.<br />
Lá to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> era “Filha de Maria”. A Nilzinha, a<br />
Nidinha, a irmã da <strong>do</strong>na Titiva, <strong>do</strong> Dr. Edson, todas<br />
eram... elas foram minhas contemporâneas.<br />
Eu formei, um ano e pouco mais ou menos,<br />
quase <strong>do</strong>is, eu casei. Não lecionei não. Trabalhei na<br />
contabilidade, na Força e Luz. O Dr. Junqueira era<br />
muito amigo <strong>do</strong> meu pai, negócio de política. Meu<br />
pai era chefe político lá em Recreio. A minha famí-<br />
lia se dava muito com a família Junqueira. O Dr.<br />
Junqueira era meu padrinho... arrumou colégio pra<br />
mim. Eu estudei por conta dele: Dr. José Ribeiro<br />
Junqueira, tio <strong>do</strong> Dr. Ormeu. Eram três irmãos: José,<br />
Custódio, Sebastião Ribeiro Junqueira. As irmãs, eu<br />
não lembro tanto, só da Pequetita Junqueira. Eu ia<br />
muito na casa dela, quan<strong>do</strong> ia com papai nas fes-<br />
tas em Leopoldina. Meu padrinho vivia pedin<strong>do</strong> a<br />
papai pra me dar pra ele, sabe. Então, nesta época<br />
nós perdemos pai e perdemos mãe, a Marilis escre-<br />
veu uma carta para ele, falan<strong>do</strong> que a gente estava<br />
naquela situação. Ele, imediatamente, escreveu que<br />
podia mandar pra Leopoldina, porque ele tinha ar-<br />
ranja<strong>do</strong> colégio interno pra mim. Fui interna por<br />
conta dele. Quan<strong>do</strong> eu formei, ele arranjou com o Sr.<br />
Manoel Peixoto, político aqui em Cataguases, depu-<br />
ta<strong>do</strong> na época, pra eu ser professora. O Sr. Manoel<br />
131
Peixoto escreveu um cartãozinho dizen<strong>do</strong> que, de-<br />
pois que nomeasse as três afilhadas dele, a primeira<br />
vaga era minha. Ele nomeou as três afilhadas, e nós<br />
sabíamos quais eram, e eu fiquei esperan<strong>do</strong> a minha<br />
vaga. A minha vaga não apareceu! Ele nomeou a fi-<br />
lha <strong>do</strong> Domingos Tostes, que era farmacêutico rico, e<br />
nomeou a Tereza Souza também, que o pai era <strong>do</strong>no<br />
de usina. A minha ficou esquecida, né. Aí a Marilis<br />
escreveu para o Dr. Junqueira de novo, falan<strong>do</strong> que<br />
havia uma vaga na Força e Luz. A Olga ia casar com<br />
o Sicarini, ia haver essa vaga, que ela pedia para<br />
mim. Nós mandamos a carta. Daí a três dias veio<br />
um radiograma para a Força e Luz: “Coloque Marita<br />
Guimarães, haja vaga ou não”! Aí, eu entrei de estalo.<br />
Devia ser fim de (19)37.<br />
Na Força e Luz tinha a Evangelina, a Lurdes<br />
Drumond, a Virita trabalhou também, a Olga... A<br />
Berenice Barroca também era <strong>do</strong> meu tempo. A<br />
Mariazinha Athouguia, a Iracema Fonseca. O escritório<br />
era muito difícil! Trabalhei com o Sr. Gonçalves,<br />
pessoa muito boa. O Afonso Lanna era o chefe.<br />
Afonso Lanna, Sr. Gonçalves, Seu Mourão da <strong>do</strong>na<br />
Cidália, eram os diretores. Na parte de engenharia<br />
era o Dr. Walter, casa<strong>do</strong> com a <strong>do</strong>na Maria, irmã da<br />
Idinha. Depois veio o Dr. Osmar trabalhar na seção<br />
de engenharia. Foi pouco tempo, minha filha, um<br />
132
ano e três meses só. Eu fiquei conhecen<strong>do</strong>... A histó-<br />
ria é tão grande!<br />
Eu fiquei conhecen<strong>do</strong> ele, lá na Força e Luz,<br />
porque ele foi lá fazer um pagamento... tinha uma<br />
menina, que estudava comigo interna, e falava muito<br />
dele, né. A Nair Duarte era namorada <strong>do</strong> José Cruz.<br />
Aí, quan<strong>do</strong> foi um dia, eu estou lá na Força e Luz - eu<br />
estava escreven<strong>do</strong> na máquina - José entra, diz que<br />
foi fazer um pagamento. Nunca tinha visto! Diz ele<br />
que eu fui receber, mas eu não me lembro. Eu olha-<br />
va tão pouco esse negócio de homem, porque eu era<br />
novinha. Tinha dezoito pra dezenove anos, na época.<br />
Arman<strong>do</strong> falava assim:<br />
- Cuida<strong>do</strong> com esses viajantes! Cuida<strong>do</strong> com esses<br />
homens assim mais maduros, porque geralmente<br />
são casa<strong>do</strong>s!<br />
Então, a gente nem olhava quan<strong>do</strong> via um ra-<br />
paz maduro. A diferença dele comigo era dez anos,<br />
né! Ele procurou pelo Sr. Mourão, eu fui lá, chamei o<br />
Sr. Mourão e voltei outra vez pra máquina. E ele cis-<br />
mou comigo na máquina de escrever. Foi embora pro<br />
Rio... Diz ele que estava lá num cassino, não sei onde,<br />
aquela porção de mulher, uma porção de coisa e ele<br />
estava ven<strong>do</strong> só aquela menina escreven<strong>do</strong> à máqui-<br />
na. Ele só via aquela menina escreven<strong>do</strong> na máquina!<br />
Voltou outra vez pra Cataguases... Ele disse que fica-<br />
133
va to<strong>do</strong>s os dias ali em frente à farmácia. Ali, onde é<br />
o BEMGE, tinha a farmácia <strong>do</strong> José Venâncio. Então<br />
ele ficava ali, pra ver eu passar, pra lá, pra cá. Eu sem<br />
saber quem era. Até que um dia ele quebrou o nariz<br />
(montan<strong>do</strong>) cavalo, sabe. Então, nós estávamos na sa-<br />
cada da Força e Luz e eu falei assim:<br />
- Coita<strong>do</strong> daquele rapaz ali, com uma cruz no nariz!<br />
- Ele tá com cruz no nariz e ele é Cruz.<br />
A Clotildes falou. Você lembra da Clotildes,<br />
mãe da Isa? A Isa é prima da Vera, <strong>do</strong> Edinho, que<br />
mora em São Paulo. Pois é, eu falei assim:<br />
- Que Cruz é aquele?<br />
- E o José Cruz.<br />
- Ah, esse é o José Cruz da Nair?<br />
Nesse dia nós começamos a namorar, porque<br />
eu olhei pra lá, vi que ele estava olhan<strong>do</strong> e veio to<strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>:<br />
- Ele tá olhan<strong>do</strong> é pro cê!<br />
Ele ainda brincava comigo e falava sempre<br />
assim:<br />
- Foi preciso eu quebrar o nariz pra você me enxergar!<br />
Não havia meio de você me enxergar! Já tinha<br />
quase três meses que eu estava ali, naquela farmácia,<br />
olhan<strong>do</strong> você passar pra lá e pra cá.<br />
Era filho <strong>do</strong> coronel Arthur Cruz, fazendeiro.<br />
A família de José vem de índio, vem daquele ín-<br />
134
dio Tibiriçá. Eram <strong>do</strong>is irmãos. Um fez a família <strong>do</strong><br />
Getúlio Vargas e outro fez a família <strong>do</strong> José Costa<br />
Cruz. A Marilinha tem um livro... tem a árvore gene-<br />
alógica todinha da família Cruz. Se vocês quiserem<br />
alguma coisa assim, no livro tem tu<strong>do</strong>, tem os funda<strong>do</strong>res...<br />
agora, <strong>do</strong>s Costa Cruz só existem <strong>do</strong>is: a<br />
<strong>do</strong>na Tatá e o Breno. E a Tatá tem uma filha só... e um<br />
entea<strong>do</strong>... a família Cruz vem lá de Itabira.<br />
O <strong>do</strong>utor Joaquim era médico, irmão <strong>do</strong> seu<br />
Arthur. Ele morou naquela Fazenda da Saudade,<br />
ali por Dona Euzébia, que agora ficou pros herdeiros.<br />
E teve (a chácara) Passa-Cinco. O Dr. Joaquim é<br />
pai <strong>do</strong> Antônio Carlos, que morreu há pouco tempo,<br />
que era médico de vista. O José estu<strong>do</strong>u em Além<br />
Paraíba quan<strong>do</strong> menino. Depois foi aqui mesmo, no<br />
Colégio Cataguases. Não quis ir pra fora. O único<br />
que estu<strong>do</strong>u, formou pra advocacia, foi o Afonso...<br />
o Geraldinho estu<strong>do</strong>u também lá em Viçosa... os outros<br />
ficaram... seu Arthur Cruz, ele morou na Vila<br />
onde é aquela chácara <strong>do</strong> João Carroceiro. Aqui<br />
na chácara era um colégio antigamente. Ali nessa<br />
esquina... pegan<strong>do</strong> a casa da Marizinha até na da<br />
Marilinha... Esse quarteirão to<strong>do</strong>, aquela esquina<br />
toda ali, e ainda pegava um pedaço <strong>do</strong> terreno da<br />
Emília. Era uma chácara que tinha um casarão no<br />
meio: era um colégio. Meu sogro transformou esse<br />
135
colégio numa casa. Comprou e veio morar aqui na<br />
chácara. Tinha muitos quartos, salões enormes! Era<br />
um casarão imenso! Tinha <strong>do</strong>is portões, esse portão<br />
que tinha ali na Marilinha era da chácara. Esse meu<br />
também era. Eu me lembro, quan<strong>do</strong> eu casei tinha a<br />
chácara... a Marília é casada com um irmão <strong>do</strong> meu<br />
mari<strong>do</strong>. São duas irmãs casadas com <strong>do</strong>is irmãos<br />
Costa Cruz. Meu sogro era <strong>do</strong>no disso aqui até na<br />
Belém, in<strong>do</strong> ali pro horto. Isso tu<strong>do</strong> aqui era dele!<br />
Eu vim pra cá com dez... seu Arthur já morava nessa<br />
chácara. Ali, onde é hoje o campo de esporte tinha<br />
uma outra chácara que era <strong>do</strong> pai da minha sogra.<br />
O senhor Arthur era muito rico! Tinha muita terra!<br />
Naquele tempo, terra não valia nada, dava até pros<br />
outros. Ele deu pra construir casa. Ele dava terra<br />
pros outros assim à toa. Amigo dele, ele dava posse...<br />
Antônio Amaro também teve muita terra aqui.<br />
Quem deu o terreno pra fazer o Fórum foi o Antônio<br />
Amaro e o Senhor Arthur. Foi ele que deu pra prefeitura<br />
fazer caixa d’água. Eles tinham muito ga<strong>do</strong>:<br />
café e ga<strong>do</strong> leiteiro. O senhor Arthur era produtor<br />
de creme... mandava pra Guarani. Eu acho que antigamente<br />
não tinha esse negócio de botar dinheiro<br />
em banco. Era só produzir, eles queriam era comprar<br />
ga<strong>do</strong>, muito ga<strong>do</strong>! Naquela época o pessoal tinha<br />
mania de ter muito, né. Tinha muitos emprega<strong>do</strong>s,<br />
136
muitas casas de colono. Antigamente tinha muito.<br />
Foram pra fazenda depois... eu não sei se aquela fa-<br />
zenda era deles... era da firma <strong>do</strong> Rama, mari<strong>do</strong> da<br />
Dedé Peixoto. A fazenda foi a leilão, né. Eu não sei<br />
esses negócios direito não. Eu acho que a fazenda<br />
era da firma - negócio de café - que fazia parte seu<br />
Manelinho Cruz... O Rama era muito rico também.<br />
Foi <strong>do</strong>no da Fazenda <strong>do</strong> Retiro. A casa <strong>do</strong> Rama pegava<br />
o quarteirão assim, na esquina...<br />
Eu casei e fui pra roça: Fazenda Goiabal, depois<br />
de Barão de Camargo. Lá tinha café, cana, ga<strong>do</strong>.<br />
Primeiro, o José tinha ga<strong>do</strong> Gir, esse ga<strong>do</strong> é importa<strong>do</strong>.<br />
Depois comprou vaca de leite. Foi quan<strong>do</strong> foi<br />
diretor da cooperativa, junto com o Dr. Car<strong>do</strong>sinho,<br />
o Dr. Moura. Um era tesoureiro, outro secretário... foi<br />
presidente da Cooperativa, acho.<br />
A vida na fazenda eu gostei muito. Eu fiquei<br />
sem luz elétrica muito pouco tempo. Eu quebrava<br />
tanto lampião, que o José resolveu colocar luz elétrica.<br />
Eu ia pegar o lampião, aquilo tava quente eu<br />
soltava o vidro! O tio dele, seu Juca Cruz, tinha trabalha<strong>do</strong><br />
na Usina Afonso Pereira e ele falou com José:<br />
- Vou trazer um transforma<strong>do</strong>r e vou botar aí pro cê.<br />
Vou botar uma luz de dínamo.<br />
Eu fiquei sem luz de abril a setembro: dia 7 de<br />
setembro inaugurou a luz lá.<br />
137
Mas eu não tinha prática de fazenda não. Eu ia<br />
na fazenda a passeio, com meus avós. Meus avós pa-<br />
ternos eram fazendeiros em Ribeiro Junqueira. Então,<br />
nas férias, a gente ia para a fazenda <strong>do</strong> meu avô. A<br />
gente achava mais graça ir pra fazenda <strong>do</strong> vovô, <strong>do</strong><br />
que a nossa fazenda, que tinha administra<strong>do</strong>r. A gen-<br />
te preferia ir pra fazenda <strong>do</strong> meu avô, porque lá tinha<br />
outros primos que moravam lá perto. Os outros tios<br />
to<strong>do</strong>s tinham sítio perto. Tinha aquelas cachoeiri-<br />
nhas... Era tão bom tomar banho naquelas cachoeiras,<br />
aquele ribeirão gostoso! Tu<strong>do</strong> limpinho! Tinha uma<br />
cascatinha que descia assim... A gente a<strong>do</strong>rava ficar<br />
ali, deita<strong>do</strong> nas pedras, deixan<strong>do</strong> a água correr... de<br />
roupa! Às vezes a gente ia no sítio para passar o fim<br />
de semana, porque o sítio era bonitinho. Papai estava<br />
arruman<strong>do</strong> o sítio quan<strong>do</strong> morreu... O sítio era muito<br />
perto de Recreio.<br />
Eu tive meu primeiro filho aqui na chácara.<br />
Nasceu aqui o Raimun<strong>do</strong>, com parteira. A segunda<br />
foi a Cecília, que nasceu na fazenda Goiabal. A parteira<br />
era uma crioula, e a minha sogra também estava<br />
lá. O terceiro, que foi o Arman<strong>do</strong>, já tive aqui<br />
em Cataguases. O Arman<strong>do</strong> e a Gilda, com parteira<br />
também. E o último, o quinto, também com parteira,<br />
eu tive lá na Fazenda Goiabal. Esse nasceu <strong>do</strong>ente,<br />
esse que eu tenho até hoje <strong>do</strong>ente. Nasceu per-<br />
138
feito... teve derrame com cinco dias de nasci<strong>do</strong>... Ele<br />
teve derrame e não fala, não anda... Passei bem em<br />
to<strong>do</strong>s! Nesse também! Eu comecei a sentir aquele<br />
derramamento de água só, resolvi entrar num banho.<br />
Tinha uma banheira muito grande, tomei um banho,<br />
de água bem esperta. Quase que ele nasceu dentro<br />
d’água, minha filha. Quan<strong>do</strong> eu saio da água para<br />
escovar dente senti aquela <strong>do</strong>r fortíssima. Não teve<br />
segunda <strong>do</strong>r, porque na segunda ele nasceu. Achei<br />
uma felicidade! Foi o melhor de to<strong>do</strong>s pra nascer!<br />
Mas cinco dias depois ele teve derrame. Aí a vida já<br />
não teve mais graça. Ter um filho <strong>do</strong>ente assim... Já<br />
passou a não ter aquela graça que tinha, que teve...<br />
to<strong>do</strong>s os outros sadios, muito sadios. Mas esse deu, e<br />
continua dan<strong>do</strong>, muito trabalho. Ele está com 37 anos,<br />
vive numa cama... Gosta de televisão... novela... Mas<br />
é um sofrimento, né.<br />
Eu vim pra cá a Gilda tava com 8 anos. Os meninos<br />
estudavam... passou a ficar muita gente na casa<br />
<strong>do</strong> Afonso, casa<strong>do</strong> com a Marilinha, minha irmã:<br />
Raimun<strong>do</strong>, Cecília, Arman<strong>do</strong>, Gilda. Aí resolvi fazer<br />
casa. José fez essa casa aqui. O Zezé precisava de mais<br />
conforto - ele já tava maiorzinho - e lá na roça não tinha<br />
um ventila<strong>do</strong>r! Não podia ter luz contínua, porque<br />
era dínamo! Então, tinha que ter mais conforto,<br />
televisão... pra ter um fim de vida melhor... Aqui, ele<br />
139
tem o apartamento dele, que tem tu<strong>do</strong>, né: a televi-<br />
são dele, ar refrigera<strong>do</strong>, renova<strong>do</strong>r de ar... Agora botei<br />
ventila<strong>do</strong>r. Na fazenda não tinha recurso para isso...<br />
Só dava pra ferro elétrico. Mas a noite não podia ligar<br />
ferro elétrico, porque ligava a luz. A luz <strong>do</strong> gera<strong>do</strong>r<br />
não podia puxar muito! Agora não, porque tem tu<strong>do</strong><br />
lá. Tem até aquele aparelho de puxar televisão.<br />
Arman<strong>do</strong> gosta muito de ga<strong>do</strong> de leite, planta<br />
muito pouco. Nem pro próprio sustento o Arman<strong>do</strong><br />
tá plantan<strong>do</strong>! Acha que precisa de muita gente... Ele<br />
acha que é mais fácil tirar leite. Agora também, ele é<br />
da Cooperativa, ele tá no mesmo lugar <strong>do</strong> pai dele,<br />
ocupan<strong>do</strong> o mesmo cargo que o José ocupou.<br />
Eu sempre falo com a minha nora: eu tive bons<br />
emprega<strong>do</strong>s. <strong>Ó</strong>timos! Eu não me queixo dessa parte<br />
de emprega<strong>do</strong>s. Eu não sei se é porque eu lidava com<br />
eles com muito carinho... Eu tinha ótimos funcioná-<br />
rios. Lidava com <strong>do</strong>ze mulheres, mas de primeira!<br />
E elas gostavam de trabalhar pra mim. Vinha gente<br />
de fora, de outras fazendas, pra trabalhar pra mim.<br />
Eu dava gratificação pras empregadas. Quan<strong>do</strong> ter-<br />
minava a safra eu gratificava. A safra de goiaba era<br />
maior! Eu fazia muito <strong>do</strong>ce pra vender: muita goiabada,<br />
muita pessegada, muita laranjada! Tu<strong>do</strong> quanto<br />
era fruta que eu podia industrializar, eu industrializava.<br />
Eu tinha uma fábrica de <strong>do</strong>ce e ganhei muito
dinheiro! Eu desmanchava seis sacos de açúcar por<br />
dia! Trezentos e sessenta quilos de açúcar por dia!<br />
A gente trabalhava, mas os filhos estavam to<strong>do</strong>s<br />
ali por perto. Era mais fácil <strong>do</strong> que hoje. Dona<br />
de casa, hoje, trabalha fora, os filhos ficam entregues<br />
a empregada. Eu não me queixo, tinha boas empregadas.<br />
E essa que mora comigo - crio desde os cinco<br />
anos - é muito leal! Mal de mim se não fosse ela,<br />
que me ajuda muito! No fim <strong>do</strong> ano eu gratificava<br />
minhas empregadas! Eu tinha dinheiro! Era meu!<br />
Minha menina tem pulseiras de ouro, tu<strong>do</strong> da<strong>do</strong> por<br />
mim, com dinheiro <strong>do</strong>s <strong>do</strong>ces. Muita coisa aqui em<br />
casa, eu que comprei, porque eu queria <strong>do</strong> meu jeito!<br />
Eu dava joias pras minhas meninas...<br />
A vida na roça era boa, eu gostava! O José tinha<br />
muito porco. Lá em casa tratava de porco com inhame,<br />
banana nanica, batata <strong>do</strong>ce, abóbora, moranga...<br />
Aqueles montes de inhame, fazia aquela fileira de<br />
inhame no meio <strong>do</strong> arroz... Colhia e vinha pro terreiro<br />
aqueles montes de inhame, pra tratar de porco...<br />
Na fazenda tinha bailes, era muita gente! Natal, a<br />
gente fazia na fazenda. Era uma vida mais pura.<br />
Eu acho que era mais anima<strong>do</strong>... Na praça tinha<br />
aquelas bandas de música...<br />
Os bailes também eram muito anima<strong>do</strong>s, eu<br />
acho. Eu ia sempre olhar. Carnaval também era mui-<br />
141
to era mais anima<strong>do</strong>! Aqueles carros alegóricos bo-<br />
nitos! Um rico que tinha, - Inácio Duarte - que era<br />
<strong>do</strong>no da casa onde morou o João Peixoto, a filha dele<br />
fantasiava-se muito, a mãe dela também. As fantasias<br />
eram caríssimas! Vesti<strong>do</strong> borda<strong>do</strong> a ouro, até. Eles<br />
viviam na sociedade e acabaram pobres, riquíssimos,<br />
tinham palacete no Rio também, davam recepções...<br />
To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> falava isso. Mandava fazer carro alegó-<br />
rico... Teve um carro de melancia - esse eu cheguei a<br />
ver - a filha fazen<strong>do</strong> o miolo da melancia, aquela fan-<br />
tasia toda vermelha, e as outras cabecinhas eram as<br />
sementinhas aparecen<strong>do</strong> no meio daqueles baba<strong>do</strong>s.<br />
Foi uma coisa rica! Uma beleza esse carro da melan-<br />
cia! Tu<strong>do</strong> patrocina<strong>do</strong> pelo Inácio Duarte... ficou po-<br />
bre, ele morreu pobre... Pobre mesmo!<br />
Entrevistada em 15/5/1990 por Gláucia Siqueira e Mariana Cândida.<br />
142
143
144
R E N AT O T E I X E I R A<br />
B A N C Á R I O<br />
7 0 a n o s<br />
Eu nasci em 20, em 1920. Eu não sei,<br />
mas se trata<strong>do</strong> da minha família aí eu tenho mais<br />
condições... com o tempo, da cidade propriamente<br />
dita, já me falha alguma coisa...<br />
A minha mãe era filha de Pedro Soares de<br />
Nazaré, português, que foi um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> “Porto<br />
<strong>do</strong>s Diamantes”. Ao que me consta, ali havia uma<br />
pequena povoação, em 1810 por aí. E ali parece que<br />
descobriram algum diamante. Deve ter si<strong>do</strong> um fato<br />
muito raro, porque nunca mais apareceu diamante<br />
por aqui. Se você for procurar, se você aceitar co-<br />
Foto: Banda de Música da Indústria Irmãos Peixoto, maestro Rogério<br />
Teixeira, s/a, 1945, Departamento Municipal <strong>do</strong> Patrimônio Histórico e<br />
Artístico de Cataguases<br />
145
mo “Porto <strong>do</strong>s Diamantes” daria a impressão que<br />
realmente tinha diamante. Se teve, é aquele “Tipo<br />
Conceição: ninguém sabe, ninguém viu”. E igual gi-<br />
rafa: existe, mas eu não compreen<strong>do</strong> com aquele pes-<br />
coço! Como “Meia-Pataca” também. Dizem que foi<br />
descoberto quantidade de ouro equivalente a uma<br />
moeda de valor meia-pataca. Nunca mais ninguém<br />
falou em ouro no “Meia-Pataca”. Pode ser ilusão, va-<br />
mos dizer assim.<br />
Então ali que aglomerou, ali se constituiu um<br />
pequeno núcleo. Vieram alguns padres para... Não<br />
sei se somente pelo espírito missionário ou também<br />
em busca de fortuna. A Igreja também, era muito<br />
comum, a Igreja juntava o útil ao agradável. Então<br />
vieram esses padres pr’aqui, para catequizar e botar<br />
uma certa ordem ali naquela povoação. Existiam ín-<br />
dios. Eram agrupamentos de índios civiliza<strong>do</strong>s, mas<br />
eram poucas pessoas, pouca gente. Se não me engano<br />
não chegavam a cinquenta, coisa assim. Mas eu acre-<br />
dito que esse problema de índio trabalhar... Você sabe<br />
que os índios eram muito arredios ao trabalho. Eles<br />
não aceitavam a escravidão. Os índios nunca se sub-<br />
meteram, ao trabalho escravo. Senão, talvez... tanta<br />
migração, tanta compra de escravos da África pra cá.<br />
Nós... o Brasil, ainda submeti<strong>do</strong> a Portugal, tinha necessidade<br />
de fazer comércio com o exterior, vender as<br />
146
suas merca<strong>do</strong>rias. E a maneira de... Até hoje, quanto<br />
mais barata a mão de obra, mais condições tem de ex-<br />
portar. Então, não havia mão de obra mais barata <strong>do</strong><br />
que a mão de obra escrava. Umas das razões porque<br />
prevaleceu, por muito tempo, a escravidão no Brasil<br />
foi, justamente, para produzir barato e vender, prin-<br />
cipalmente a cana-de-açúcar. O que eu sei é mais ou<br />
menos isso... E ali mesmo. Está lá. Ainda resta, ainda<br />
existe o chalé. O núcleo da família Soares é ali nesse<br />
chalé, saiu dali. Nunca me constou que ele (meu avô)<br />
tivesse escravo não. A escravidão terminou em 1888.<br />
Ele veio de Portugal, os ascendentes dele ficaram em<br />
Portugal... (Trabalhava com) comércio em geral, mi-<br />
nha irmã tem uma fotografia da loja dele. Era na boca<br />
da ponte de madeira, mas não era na praça, era <strong>do</strong><br />
outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> rio. A gente vê pela fotografia que era<br />
uma casa boa para a época, uma casa grande...<br />
Ali onde tem aquele pedaço daquele chalé an-<br />
tigo... eu acho que era uma sede de fazenda. Quan<strong>do</strong><br />
você chega mais ou menos no Beco <strong>do</strong> Fruta-Pão, tem<br />
uma ponta lá que é um chalé antigo. Ali morava o<br />
Pedro Soares Nazaré, que era meu avô. Quan<strong>do</strong> ele<br />
morreu eu tinha seis meses, mas ele me deixou uma<br />
marca. Diz a minha mãe, que ele brincan<strong>do</strong> comigo,<br />
eu no colo dele pulan<strong>do</strong>, bati com a cabeça na janela<br />
e fiz uma brechinha na cabeça, que até hoje tem a<br />
147
marca. O meu avô morreu quan<strong>do</strong> eu tinha seis me-<br />
ses, mas mesmo assim eu fiquei marca<strong>do</strong> por ele.<br />
Ali morava, então, a família <strong>do</strong> Pedro Soares<br />
Nazaré. Ele casou duas vezes e teve vários filhos. O<br />
mais velho estava até estudan<strong>do</strong> medicina na França.<br />
Morreu. O outro filho, ainda é vivo, mora em São<br />
Paulo. Deve estar com oitenta e três anos! To<strong>do</strong>s to-<br />
cavam piano. To<strong>do</strong>s eram músicos, porque naquela<br />
ocasião fazia parte da educação... a pessoa ter sempre<br />
essa parte musical, uma instrução de música qual-<br />
quer. Ele morou aqui onde é a escola Flávia Dutra,<br />
aqui desse la<strong>do</strong>, morou aqui também. Mas ele come-<br />
çou mesmo lá, nesse “Porto <strong>do</strong>s Diamantes”, lá no<br />
chalé <strong>do</strong> Bairro Leonar<strong>do</strong>.<br />
O meu pai (Rogério Teixeira) era de São João<br />
Nepomuceno e veio para Cataguases com onze<br />
anos. O pai dele era professor, a família de meu pai<br />
era de professores. Eles desbravavam um certo local,<br />
construíam uma escola, ficavam lecionan<strong>do</strong> até<br />
um certo tempo, depois iam pra outro lugar... Meu<br />
avô paterno era assim... Meu pai era o caçula da família.<br />
Era criança ainda quan<strong>do</strong> morreu o pai dele e<br />
eles ficaram em situação difícil, no que vieram para<br />
Cataguases... Aí já tinha esse princípio de música, os<br />
outros irmãos dele também já estavam estudan<strong>do</strong><br />
música... Ele tinha um irmão, João Teixeira, que era<br />
148
maestro de uma outra banda de música. Dizia meu<br />
pai, que naquele tempo Cataguases era atrasa<strong>do</strong>, ha-<br />
via mais manifestações artísticas que Cataguases de<br />
hoje. Ele dizia que aqui veio muita opereta italiana.<br />
Empresas de teatro <strong>do</strong> exterior vinham a Cataguases!<br />
Com onze anos de idade ele já começou a fazer<br />
parte de alguma banda de música, que talvez tives-<br />
se aqui naquela época. Era comum... Você vê nessa<br />
banda de música <strong>do</strong> Sigismun<strong>do</strong>, que é muito esfor-<br />
ça<strong>do</strong>, crianças também. Então, foi daí que começou<br />
a se desenvolver musicalmente. Ele era autodidata,<br />
porque a instrução musical que ele teve não foi mui-<br />
to grande. Mas ele tinha querer e vocação! De forma<br />
que foi um <strong>do</strong>s maiores destaques... O meu pai era<br />
uma pessoa modesta. Ele não gostava de... não era<br />
pretencioso não, mas ele realmente tinha muita ha-<br />
bilidade! Ele tocava qualquer instrumento de sopro.<br />
Embora não tocasse podia dar aulas de piano, sabia<br />
dar aula de piano. Foi professor de música muitos<br />
anos e nesse setor, realmente ele se destacou na histó-<br />
ria de Cataguases.<br />
Depois de casa<strong>do</strong>, já mais velho, ele tinha uma<br />
orquestra que tocava no Cinema Recreio durante os<br />
filmes. O Cinema Recreio era bem monta<strong>do</strong>. O cine-<br />
ma era mu<strong>do</strong>, então eles tocavam, procuravam mais<br />
ou menos tocar a música de acor<strong>do</strong> com o enre<strong>do</strong><br />
149
<strong>do</strong> filme. Assim, se era um filme mais triste, eles<br />
tocavam música de mais emoção. Inclusive, mui-<br />
tas pessoas diziam que iam ao cinema pela músi-<br />
ca. Gostavam tanto da orquestra que iam mais pela<br />
música <strong>do</strong> que pelo cinema! Essa orquestra, ele dizia<br />
que os empresários dessas operetas, desses grupos<br />
teatrais elogiavam muito a Orquestra de Cataguases,<br />
porque era mesmo muito adianta<strong>do</strong> pra época!<br />
Eu me lembro que era meu pai, minha mãe -<br />
porque ele também era pianista - A<strong>do</strong>lfo Teixeira, ir-<br />
mão dele. Tocava também uma irmã de minha mãe, a<br />
Dona Madalena, viúva <strong>do</strong> Cesar Abranches, que foi<br />
um dentista muito bom aqui de Cataguases. E outro,<br />
o Pascoal Ciodaro, que era pai <strong>do</strong> “Seu” João Ciodaro,<br />
“Seu” João pai da Irene Ciodaro. A Dona Carmelita,<br />
mulher dele... Era assim... pessoas que faziam seguir<br />
aquele conjunto. Eram profissionais. Durante o dia<br />
tinham suas atividades e à noite iam para o cinema<br />
tocar, para dar fun<strong>do</strong> musical. Eu acho que, naquela<br />
época, não ten<strong>do</strong> televisão, não ten<strong>do</strong> cinema - aliás,<br />
o cinema tinha, mas era mu<strong>do</strong> - e outras coisas atrativas,<br />
o pessoal se dedicava mais a esse tipo de arte, e<br />
isso enchia o tempo deles.<br />
Por falar nisso, eu tinha 7 anos mais ou menos,<br />
eu me lembro perfeitamente disso. A casa onde o Dr.<br />
Francisco morou e morreu, ali era uma casa pareci-<br />
150
da com aquela casa <strong>do</strong> Lacerda, da casa da Meina<br />
Vaz. Eram casas iguais parecidas... e tinha uma sala<br />
muito grande com aqueles sofás de palhinha, pia-<br />
no... Lá em casa sempre teve piano. Então, quan<strong>do</strong><br />
chegava depois <strong>do</strong> jantar - naquela época jantava-se<br />
mais ce<strong>do</strong> - mamãe sentava-se ao piano e começava<br />
a tocar. Isso eu me lembro muito! Aí papai pegava a<br />
flauta e começava a acompanhar. O meu tio A<strong>do</strong>lfo<br />
Teixeira tocava violino, não se continha, vinha com o<br />
violino e começava a tocar. Daí a pouco aparecia o Sr.<br />
Pascoal Ciodaro com o contrabaixo, começava a tocar.<br />
Olha, os meus irmãos mais velhos tinham amigos...<br />
os viajantes... Essas pessoas começaram a ir lá pra<br />
casa. Aí uns começavam a declamar. Eram verdadei-<br />
ros serões de arte! Um declamava, um cantava... As<br />
companhias, em dia de folga, vinham também. Isso<br />
aí, mais menos, no máximo até nove horas, porque<br />
nove horas já era tarde, naquela ocasião. Eu me lem-<br />
bro perfeitamente dessas noitadas de arte. Isso deve<br />
ter si<strong>do</strong> mais ou menos em 1927.<br />
Agora, eu me lembro, quan<strong>do</strong> nós moráva-<br />
mos numa casa em frente onde morou o faleci<strong>do</strong> Dr.<br />
Francisco, ali, pra lá da casa <strong>do</strong> Dr. Tarcisio. Aquela<br />
casa ali foi <strong>do</strong> meu pai também, e eu morava ali em<br />
criança. Não me lembro bem a idade que eu tinha,<br />
mas eu me lembro, que depois de to<strong>do</strong>s os serviços<br />
151
caseiros - colocar to<strong>do</strong>s os filhos na cama, ela teve<br />
quatorze filhos - quan<strong>do</strong>, às vezes não tinha cinema<br />
pra ir tocar, minha mãe então é que iria tocar piano,<br />
pra se exercitar e por prazer também!<br />
Mais tarde, conversan<strong>do</strong> com meus irmãos,<br />
eu dizia que muitas vezes, deita<strong>do</strong> na cama, criança<br />
ainda, eu me emocionava ouvin<strong>do</strong> minha mãe<br />
tocan<strong>do</strong> e acabava choran<strong>do</strong> de emoção. Ela tocava<br />
“A Grande Fantasia Triunfal” sobre o Hino Nacional<br />
Brasileiro. Eu não sei a nacionalidade dele, o nome,<br />
portuguesmente falan<strong>do</strong> é Gottschalk5 . É um arranjo<br />
muito bonito!<br />
Então, nós fomos cria<strong>do</strong>s assim, numa família<br />
em que pre<strong>do</strong>minava a música.<br />
Engraça<strong>do</strong>, os filhos de meu pai não se dedicaram<br />
à música. To<strong>do</strong>s eles - quase to<strong>do</strong>s, menos eu<br />
- estudaram um pouquinho. Quan<strong>do</strong> chegou a minha<br />
vez, ele já estava sem paciência. Man<strong>do</strong>u eu começar<br />
a solfejar, eu comecei a chorar, ele falou:<br />
- Some, some que eu não aguento mais!<br />
Neste conservatório de musica da Dona Lila<br />
Lorenzo Fernandes, que eu saiba, só três alunos tiraram<br />
nota dez, <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> curso até o fim, até o<br />
5<br />
) Louis Moreau Gottschalk, Orquestra Sinfônica de Berlim: Regência de<br />
Samuel Adler; Piano: Eugene List.<br />
152
exame no Rio de Janeiro. E desses três alunos duas<br />
são da minha família. Uma é Renata, minha filha -<br />
eu só tenho uma filha - que hoje mora na Argentina.<br />
Outra é a Silvinha, casada com Paulete 6 <strong>do</strong> Banco<br />
<strong>do</strong> Brasil. A terceira, a Verinha, casada com Carlos<br />
Alberto de Souza, filha da Dona Lila, tirou dez tam-<br />
bém, <strong>do</strong> princípio ao fim! A Renata casou, foi embora,<br />
está cuidan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s filhos em Buenos Aires, não tem<br />
mais tempo pra isso. O piano dela está aí. Quan<strong>do</strong><br />
vem aqui, de vez em quan<strong>do</strong>, ela se preocupa um<br />
pouquinho... Eu acho que só a Silvinha é que conti-<br />
nua gostan<strong>do</strong> muito. A Verinha, nem tanto... De certa<br />
forma eu, nós da família, embora a gente seja muito<br />
modesto, sem falsa modéstia, nós nunca procuramos<br />
receber homenagens, mesmo que a gente por ventura<br />
merecesse! Mas recebemos com justifica<strong>do</strong> orgulho o<br />
nome da escola (Marieta Soares Teixeira) por se tratar<br />
de uma professora de música, mãe de quatorze filhos,<br />
um exemplo de mulher dedicada ao lar, dedicada a<br />
criação da família. Então, homenagear uma pessoa<br />
simples, <strong>do</strong> povo, uma mãe, uma senhora que criou<br />
uma família com to<strong>do</strong> amor e carinho, to<strong>do</strong> sacrifí-<br />
cio... Esse la<strong>do</strong> humano da homenagem...<br />
6 ) Paulo Sérgio Ferreira de Souza.<br />
153
Agora é noite... mas aqui no quintal eu fiz<br />
um jardinzinho... Eu gosto. Tenho muito orgulho<br />
<strong>do</strong> meu quintal que é muito arrumadinho! O Paulo<br />
Shelb, quan<strong>do</strong> era presidente <strong>do</strong> “Operário” me<br />
deu uma placa que sobrou da praça da Ro<strong>do</strong>viária:<br />
Praça Rogério Teixeira! Então ele me deu a placa e<br />
eu botei (no quintal). De forma que até hoje eu me<br />
recor<strong>do</strong> desta fase da minha vida. E até hoje me emo-<br />
ciono quan<strong>do</strong> eu ouço o arranjo <strong>do</strong> Hino Nacional<br />
Brasileiro, porque eu volto àquela época. Porque é<br />
piano também, e ela (minha mãe) tocava isso... E to-<br />
cada pela Orquestra Sinfônica de Berlim, não é nacio-<br />
nal não, é alemão, mas tem solo de pianista. Descobri<br />
esta fita numa loja, lá no Rio de Janeiro...<br />
Nós tivemos crise de to<strong>do</strong> jeito! Foram mo-<br />
mentos de muita dificuldade que nós vivemos!<br />
Mudamos para o Rio, mudamos para Miraí, volta-<br />
mos para Cataguases, essa luta toda e ela ali, no leme.<br />
Mesmo porque o homem é um trabalha<strong>do</strong>r, mas sem<br />
ter uma retaguarda, uma mulher forte também segu-<br />
ran<strong>do</strong> a barra, ele não vence não! De forma que a mi-<br />
nha mãe deixou um exemplo muito bom, e eu creio<br />
que todas as minhas irmãs seguiram. São todas ex-<br />
celentes <strong>do</strong>nas de casa e pessoas <strong>do</strong> melhor conceito.<br />
Mas em matéria de filharada nenhuma seguiu, não!<br />
Quan<strong>do</strong> chegou em (19)35, a situação da nossa famí-<br />
154
lia foi fican<strong>do</strong> cada vez mais apertada. Muitos filhos,<br />
muita coisa. Aqui não tinha emprego, não tinha nada.<br />
Então meu pai foi convida<strong>do</strong> por uma sobrinha dele,<br />
para ir para o Rio, pra gente se empregar lá. O pri-<br />
meiro, ponta de lança, fui eu. Eu tinha quinze anos<br />
quan<strong>do</strong> comecei a trabalhar. Já trabalho há cinquenta<br />
e três anos!<br />
Eu me lembro que saí aqui <strong>do</strong> Ginásio, daque-<br />
la boa vida - apesar de ninguém ter nada, to<strong>do</strong> mun-<br />
<strong>do</strong> vivia numa miséria danada - era uma boa vida!<br />
Então, em julho, eu comecei nessa fábrica de lâmpa-<br />
das. Eu fiz dezesseis anos em setembro e trabalhava<br />
nove horas em pé! No fim <strong>do</strong> dia eu achava que mi-<br />
nha perna estava mais curta que o corpo! Isto na GE,<br />
na General Eletric, uma fábrica americana. Eu respeito<br />
o americano nesse ponto: o almoço lá era fabuloso!<br />
A hora <strong>do</strong> almoço, tinha o restaurante, uma bandeja<br />
muito farta, uma comida saborosíssima! Muito boa,<br />
muito bem feita! Isto naquela época. Eu fiquei lá não<br />
sei quanto tempo. Até houve um acidente comigo -<br />
queimei o braço - coisa de somenos. No dia seguinte<br />
eu estava trabalhan<strong>do</strong>.<br />
Dali, mais tarde, eu entrei para a Estrada de<br />
Ferro Leopoldina, no Rio de Janeiro. Comecei a trabalhar<br />
como “boy”, na administração, com os ingleses.<br />
Eles eram muito gentis, muito atenciosos, muito<br />
155
oas pessoas. Tratavam a gente muito bem, esses in-<br />
gleses. Não posso falar mal de estrangeiro não, por-<br />
que com quem eu trabalhei, eu me dei muito bem.<br />
Nessa parte eu tive muita sorte. Tinha um irlandês,<br />
que era mais exótico, me deu um relógio, o relógio<br />
dele. Parece que ele estava sempre em briga com o<br />
relógio. Acabou me dan<strong>do</strong> o relógio e quedê que o<br />
pessoal aceitava que um homem tivesse me da<strong>do</strong> um<br />
relógio! Isso era preocupação de saber que aquele re-<br />
lógio foi mesmo ganho, se eu podia ter “subtraí<strong>do</strong>” o<br />
relógio, por uma fraqueza. Isso é coisa de educação,<br />
que deve prevalecer em todas as famílias! Mas ele me<br />
deu o relógio! Por fim, eles se convenceram mesmo<br />
que eu tinha ganho: o relógio era uma porcaria! Não<br />
funcionou nada e eu joguei fora!<br />
Bom, mas ali da Leopoldina eu fiz, depois,<br />
concurso para o Banco Crédito Real. Eu estava tão fo-<br />
ra de estu<strong>do</strong> que eu não sabia mais nem fazer conta<br />
de dividir. No duro! A gente vai largan<strong>do</strong> de la<strong>do</strong>...<br />
Mas eu tenho força de vontade! Eu sei que, quin-<br />
ze para as cinco da manhã, eu já estava estudan<strong>do</strong>.<br />
Estudava até a hora de trabalhar, ir para a Estrada<br />
de Ferro Leopoldina. Depois eu pedi demissão e vim<br />
pra Cataguases. Fiquei quatro meses - eu digo, com<br />
franqueza, que foi o perío<strong>do</strong> da minha vida que eu<br />
fiquei à toa - estudan<strong>do</strong> para o concurso <strong>do</strong> Banco<br />
156
Crédito Real. Então fiz o concurso e passei. Voltei pa-<br />
ra o Rio, o Banco me man<strong>do</strong>u para o Rio de Janeiro.<br />
Mas meu perío<strong>do</strong> no Crédito Real foi um perío<strong>do</strong><br />
de uma gestação, porque nove meses depois, eu ti-<br />
nha feito concurso para o Banco <strong>do</strong> Brasil, fui para o<br />
Banco <strong>do</strong> Brasil no Paraná.<br />
Eu fui trabalhar em Ponta Grossa, no Paraná.<br />
Cidade muito boa! Ponta Grossa é uma cidade fabu-<br />
losa! Naquela época, era a segunda cidade <strong>do</strong> Paraná.<br />
Cidade muito limpa, um planalto, novecentos e se-<br />
tenta metros de altitude. Venta muito. O vento var-<br />
re a cidade, não precisa ter varre<strong>do</strong>r não. Então, eu<br />
acostuman<strong>do</strong> na cidade fui transferi<strong>do</strong> para o Rio,<br />
novamente. Eu tinha um irmão que era <strong>do</strong> Banco e<br />
conseguiu minha transferência, meio assim sem eu<br />
querer. Mas foi bom, porque eu me aproximei nova-<br />
mente daqui. Eu cheguei no Rio mais ou menos em<br />
setembro, em abril de (19)42 eu já estava transferi<strong>do</strong><br />
para Cataguases. Eu fiz a carreira <strong>do</strong> Banco toda em<br />
Cataguases. Em (19)43, logo em seguida, eu já peguei<br />
um cargo de comissão no Banco.<br />
Então eu fui depois chefe da Carteira Agrícola.<br />
Minha vida toda foi no Banco <strong>do</strong> Brasil, então fun-<br />
cionário comum, depois fui pra Carteira Agrícola.<br />
Eu lidei muito com o pessoal da roça daqui. Eu ti-<br />
nha muito pouco contato com o pessoal da cidade<br />
157
propriamente dito. Então eu fui a subgerente, fiquei<br />
mais preso internamente. Depois eu fui à gerência, aí<br />
(lidei) mais com comércio e indústria.<br />
Um <strong>do</strong>s funcionários que trabalhavam comi-<br />
go, e eu gosto de lembrar sempre, é o Levi Simões<br />
da Costa, que escreveu este livro “Cataguases<br />
Centenária”. O Levi era uma criatura fora de série!<br />
O Levi sempre foi muito modesto, tinha muita timi-<br />
dez pra redigir. O Levi era incumbi<strong>do</strong> de examinar<br />
os relatórios finais da Carteira Agrícola. Um relató-<br />
rio normal era resolvi<strong>do</strong> na Agência mesmo, mas to-<br />
<strong>do</strong> relatório que tinha uma anormalidade tinha que<br />
ser encaminha<strong>do</strong> à direção geral <strong>do</strong> Banco. Então,<br />
havia necessidade de um parecer. O Levi punha es-<br />
ses relatórios na minha mesa para eu dar o parecer.<br />
Então, falei:<br />
- O Levi, você escreva!<br />
- Mas eu não tenho jeito... Eu não sei...<br />
- Você escreva o que você quiser! Você pode escrever<br />
a maior bobagem, eu faço tu<strong>do</strong> de novo, mas preciso<br />
que você escreva. Eu quero que você escreva!<br />
Moral da história: o Levi escreveu um livro e<br />
eu não escrevi livro nenhum! Mas eu acho que eu tenho<br />
o mérito de ter força<strong>do</strong> o Levi a redigir, porque<br />
no fim ele escreveu este livro. Um subsídio tremen<strong>do</strong><br />
para Cataguases! Esse livro sempre vai ser pesquisa-<br />
158
<strong>do</strong> futuramente. Então, eu acho que tenho um pou-<br />
quinho desse mérito desse livro <strong>do</strong> Levi.<br />
Em janeiro de 65 eu assumi a gerência. Eu fui<br />
nomea<strong>do</strong> em 1965 e fui gerente até 1972. Foi justa-<br />
mente no perío<strong>do</strong>... um ano depois da revolução, que<br />
esse Roberto Campos foi Ministro <strong>do</strong> Planejamento,<br />
e ele virou a mesa <strong>do</strong> país, financeiramente falan<strong>do</strong>.<br />
To<strong>do</strong> o sistema financeiro foi modifica<strong>do</strong> por ele.<br />
Houve uma recessão muito grande! Nós passamos o<br />
maior aperto! Cataguases, mesmo, viveu momentos<br />
de muito aperto! E eu peguei essa batata quente! Mas,<br />
felizmente, aqui em Cataguases, os industriais daqui<br />
sempre progrediram com cautela, baten<strong>do</strong> o pé no<br />
lugar, sabiam onde estavam pisan<strong>do</strong>. De forma que<br />
eu consegui ajudá-los a vencer a crise. Isso foi em 65.<br />
Eu fiquei até janeiro de 72, quan<strong>do</strong> eu me aposentei.<br />
Aliás, eu estava propenso a aposentar, mas eu nunca<br />
acostumei a ficar à toa.<br />
Aposento, não aposento, aposento, não aposento...<br />
O pessoal queria que o Rodrigo Lanna fosse<br />
candidato a prefeito pela segunda vez. Ele não queria.<br />
Reuniram vários para ir forçar o Rodrigo a mudar<br />
de ideia. Fui junto com a turma. Eu não me lembro<br />
agora as pessoas. Mas as pessoas de maior destaque<br />
na cidade foram lá. Tinha bastante gente. Ele<br />
relutou muito, no fim acabou aceitan<strong>do</strong>. Muito bem,<br />
159
passa<strong>do</strong>s uns dias ele me telefona:<br />
- Renato, eu preciso falar com você. Que horas eu<br />
passo aí no Banco?<br />
- Bobagem, eu <strong>do</strong>u um pulo aí e converso com você.<br />
Fui lá e ele falou assim:<br />
- Você foi um <strong>do</strong>s que insistiram para eu aceitar a<br />
candidatura e to<strong>do</strong>s prometeram que, se eu preci-<br />
sasse, estavam às ordens. Eu vou precisar de você.<br />
Você vai ser meu secretário na Prefeitura. Você vai<br />
aposentar no Banco <strong>do</strong> Brasil e vai ser meu secre-<br />
tário.<br />
- Que é isso Rodrigo?! A gente fala assim de brinca-<br />
deira! Aquilo é pra botar sujeito em cima <strong>do</strong> lombo<br />
<strong>do</strong> burro! Botar peão em cima <strong>do</strong> burro, depois deixar<br />
o burro pular!<br />
Eu me aposentei. Já que eu tinha que me<br />
aposentar mesmo, pelo menos é uma oportunidade<br />
de trabalhar pela minha cidade. Fiquei vinte<br />
dias só à toa. Logo em seguida comecei a trabalhar<br />
na Prefeitura com ele. Eu não sei como é a situação<br />
hoje, eu sei que, naquela ocasião, dinheiro não tinha!<br />
O dinheiro era suficiente para a manutenção<br />
da Prefeitura... Varrer as ruas, pagar o pessoal e olhe<br />
lá! Durante os quatro anos que eu fui secretário da<br />
Prefeitura - isso eu falo com muito orgulho - eu trabalhei<br />
com o meu carro e com a minha gasolina. E<br />
160
o Rodrigo Lanna também viajava no carro dele. Nós<br />
não tínhamos recursos, não tínhamos condições. O<br />
sujeito ser um prefeito já é um sacrifício! E ainda vai<br />
pagar pra ser prefeito, pra trabalhar! Era a contribui-<br />
ção que a gente prestava à cidade. Nós fazíamos isso<br />
porque não tinha outro jeito, não tinha dinheiro. Não<br />
tinha. Justamente aí é que houve a reforma tributá-<br />
ria <strong>do</strong> Roberto Campos. O que vinha <strong>do</strong> Governo<br />
Federal vinha com fins específicos: telefone, ro<strong>do</strong>viá-<br />
ria, ICM... tanto para educação, tanto pra aquilo, tan-<br />
to pra aquilo outro. O imposto da cidade é pouquís-<br />
simo. Até hoje eu acredito que o imposto arrecada<strong>do</strong><br />
na cidade é muito pequeno!<br />
Depois <strong>do</strong>s 15 anos fui pro Rio. Trabalhei fora,<br />
fui para o Paraná, voltei com 21 anos. Eu me lembro...<br />
engraça<strong>do</strong>, eu morava... a Rua Major Vieira ainda<br />
não era calçada, era de terra, e o senhor João Ciodaro<br />
tinha um ônibus - o ônibus era tipo jardineira, aber-<br />
to <strong>do</strong> la<strong>do</strong> - isso eu me lembro perfeitamente. Vocês<br />
já viram esses ônibus antigos parecen<strong>do</strong> um bonde,<br />
aberto de um la<strong>do</strong> e de outro? Então, ele fazia um<br />
transporte... era mais um trenzinho praticamente,<br />
porque não era pra transportar gente pro trabalho,<br />
era mais pra passeio. Levantava uma poeirada!<br />
Aqui (na rua) era uma família só! Morava ali<br />
o pessoal <strong>do</strong> senhor Jota Lacerda, o Zé Lacerda que<br />
161
já morreu, a Dona Olga, mãe dele, uma santa cria-<br />
tura! O senhor Alípio Vaz - o nome <strong>do</strong> Museu - a<br />
Taninha, mãe dele. Tinha a Meina, a Maria, a Meirene,<br />
a Marina, o Alísio, o Alípio, filho dele. Em frente de<br />
minha casa morava o senhor Raimun<strong>do</strong> Queiroz.<br />
Eu me lembro <strong>do</strong> Humberto Mauro, quan-<br />
<strong>do</strong> eu morava nessa esquina, em frente ao Hotel<br />
Cataguases. Ali tinha uma casa, logo depois da casa<br />
da Aninha 7 , <strong>do</strong> faleci<strong>do</strong> José Pinto, tinha mais uma<br />
casa e ali morava o Humberto Mauro. Eu me lembro,<br />
ainda, de uma filmagem de Humberto Mauro, nes-<br />
ta casa onde mora hoje o Tarcísio. Ali morava o Sr.<br />
Drumond, não me lembro o primeiro nome dele. Ele<br />
era dentista e eu tratei de dente com ele, com motor<br />
de pedal. Então, ali naquele terreno, um pouco pra<br />
lá, na casa mesmo <strong>do</strong> Tarcísio tem aquela parte onde<br />
desce pra garagem, ali era um terreno baldio. A casa<br />
era um pouco pra cá... Morou muito tempo depois o<br />
pessoal <strong>do</strong> Peloso: Dona Maria Peloso, Emília Peloso.<br />
Não estou lembran<strong>do</strong> não... Então, ali tinha um me-<br />
nino, filho <strong>do</strong> Drumond, que fez parte em um filme.<br />
Ele fazia parte de um <strong>do</strong>s filmes de Humberto Mauro.<br />
Ele era um menino... Antigamente tinha aqui um sapo<br />
muito grande, que chamava sapo-boi. Eu não vejo<br />
7 ) Ana Pinto Pinheiro.<br />
162
mais sapo-boi aqui, já desapareceu com certeza... Os<br />
meninos colocavam cigarro na boca <strong>do</strong> sapo para ele<br />
fumar. Já viram falar nisso? Pois é. Então foi filma<strong>do</strong><br />
pelo Humberto Mauro, eu me lembro disso8 . Conheci<br />
muito o Humberto Mauro. Assisti filmes dele e assisti<br />
às filmagens... A Eva Comello, o pai dela, o Pedro<br />
Comello, conheci muito. O senhor Homero Cortes -<br />
é quase contemporâneo, porque morreu tem muito<br />
pouco tempo - o Homero Cortes era um <strong>do</strong>s financia<strong>do</strong>res,<br />
um <strong>do</strong>s produtores. Isso eu me lembro dessa<br />
época. E gente muito amiga mesmo.<br />
E depois eu me lembro quan<strong>do</strong> a Rua <strong>do</strong><br />
Pomba foi calçada, em “pé de moleque”. A gente<br />
chamava a Rua <strong>do</strong> Pomba, até hoje a gente chama<br />
Rua <strong>do</strong> Pomba, para mim é Rua <strong>do</strong> Pomba! Calçou<br />
em “pé de moleque”... rede de esgoto... A gente jogava<br />
bola de meia. Hoje não se vê menino com bola<br />
de meia. Era meia comprida: virava a meia, enchia<br />
de pano, fazia aquela bolinha, costurava e era bola<br />
de meia. Valia mais a força <strong>do</strong> pé <strong>do</strong> que outra coisa!<br />
Gente no meio fio, um empurra pra lá, outra pra<br />
cá, aquela briga! Podia-se jogar bola no meio da rua<br />
à vontade... O que eu queria dizer é o seguinte: era<br />
uma família só. As mães tomavam conta de to<strong>do</strong>s co-<br />
8 ) Cena <strong>do</strong> filme Thesouro Perdi<strong>do</strong>, 1927.<br />
163
mo se fossem zela<strong>do</strong>ras de to<strong>do</strong>s. Aquela que tivesse<br />
ocupada não se preocupava, que outra mãe tomava<br />
conta, chamava atenção. E não havia briga de vizi-<br />
nho, não havia não. As meninas brincavam de roda<br />
e os meninos brincavam de pique e outras coisas, até<br />
uma certa hora. Aí de repente: fulano, beltrano, sicra-<br />
no, cada um pra sua casa tomar banho, lavar os pés,<br />
não sei o que e tal, porque era tu<strong>do</strong> poeira!<br />
Tinha uma família aqui, o Luiz Megre, o Miguel<br />
Megre... Eu não sei se eles eram descendentes de<br />
franceses... Naquela época tinha um portão na minha<br />
casa e eu conseguia, com o “Seu” Megre, a gente<br />
pedia empresta<strong>do</strong> o lagarto e arranjava barbante,<br />
qualquer coisa assim, e punha o lagarto em baixo<br />
<strong>do</strong> portão. E ficava <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da rua. Quan<strong>do</strong> ia<br />
passan<strong>do</strong>, principalmente pessoa velha, a gente ia<br />
puxan<strong>do</strong> devagarinho aquele lagarto... Aquela farra!<br />
Era uma brincadeira ingênua, mas era a nossa brincadeira<br />
daquela época. Eu sei que o mun<strong>do</strong> mu<strong>do</strong>u<br />
muito!<br />
Eu sou meio piadista. Eu costumo dizer que o<br />
único diploma que eu tenho é de primeira comunhão.<br />
Até botei na parede! Mas eu fui vítima das circunstâncias.<br />
Em (19)34 eu repeti o ano, o terceiro ano ginasial<br />
eu repeti. Em consequência disso eu perdi a minha<br />
turma, que se formou mais tarde. Eu voltei... Fiquei...<br />
164
O senhor Amaro era o diretor <strong>do</strong> colégio anti-<br />
go, aqui em Cataguases. Quan<strong>do</strong> eu estava no segun-<br />
<strong>do</strong> ano ginasial, ele arren<strong>do</strong>u o colégio para uns pa-<br />
dres. O senhor Amaro já estava cansa<strong>do</strong>. Anos e anos,<br />
a vida inteira lutan<strong>do</strong>, calculo eu, estava cansa<strong>do</strong> e<br />
achou que seria uma boa. Quer dizer, arrendava para<br />
os padres. Os religiosos sempre foram destaca<strong>do</strong>s como<br />
educa<strong>do</strong>res - seria uma solução para Cataguases<br />
e para ele propriamente. Mas não deu certo. Isso foi<br />
em 1933... 34, por aí. Não sei se eles eram franciscanos.<br />
Sei que tinham aqueles capuchinhos espanhóis,<br />
que estavam fugin<strong>do</strong> da revolução na Espanha. Então,<br />
nessa época, vieram esses padres espanhóis para<br />
Cataguases... Eles não falavam português e ficou conturba<strong>do</strong><br />
o estu<strong>do</strong>. Com esses padres ficou completamente<br />
desmancha<strong>do</strong> o colégio. Eles ficaram aqui<br />
um ano e meio, mais ou menos, se não me falha a<br />
memória. Então, a gente... menino sabe como é que<br />
é, muito leva<strong>do</strong>, nós já fomos assim meio de cambulhada.<br />
Quan<strong>do</strong> chegou no meio <strong>do</strong> ano seguinte, eles<br />
aban<strong>do</strong>naram simplesmente... Quan<strong>do</strong> o Franco9 <strong>do</strong>minou<br />
a situação eles entregaram o colégio ao professor<br />
Amaro e foram embora! Os outros professores<br />
9 ) Franco, dita<strong>do</strong>r espanhol.<br />
165
já tinham saí<strong>do</strong>. Não tinha mais professores aqui, na<br />
época, contrata<strong>do</strong>s pelo professor Amaro. Então ele<br />
ficou no ar. Foi muito difícil pra ele! Ele se esforçou<br />
ao máximo! As filhas dele, a Carmenzinha, a <strong>do</strong>na<br />
Filhinha, eu me lembro que tinha um médico aqui, o<br />
<strong>do</strong>utor Sicarini, que também dava aula... Era o úni-<br />
co ginásio que tinha. Tinha o colégio das Irmãs, mas<br />
era só mulheres, era feminino... Bom, em consequên-<br />
cia, eu repito o ano. O francês era a matéria que eu<br />
tinha mais facilidade na época, mas o Antoniquinho<br />
Mendes, que era o professor, me reprovou. A minha<br />
irmã Silvia, a mais velha falou assim:<br />
- Não tem esse negócio de fazer segunda época não.<br />
Se tomou pau tem que repetir o ano!<br />
Isso era a conclusão dela... eu achei que podia...<br />
Eu lembro <strong>do</strong> Car<strong>do</strong>zinho, foi meu cole-<br />
ga. Tinha o Leôncio Moura, filho <strong>do</strong> juiz... A Josélia<br />
Peixoto, Irmã <strong>do</strong> Zezito... Tinha a Dinha, a Maria<br />
de Lourdes, que é filha <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Amaro também...<br />
Foram meus colegas. Eu lembro <strong>do</strong> Luiz Peixoto, que<br />
foi escrivão até pouco tempo... Era uma série muito<br />
grande. Uns seguiram e eu fiquei com a turma atra-<br />
sada... Meu amigo Luiz Peixoto era também um me-<br />
nino meio leva<strong>do</strong>. Nós fizemos as nossas artes aqui...<br />
Mas as artes de antigamente, comparadas com as de<br />
hoje... Dá pra tornar santo qualquer um!<br />
166
Eu tenho uma prima, que mora em Uberlândia<br />
- nós brigamos porque ela é defensora da separação<br />
<strong>do</strong> Triângulo - ela saiu de Cataguases pequenininha,<br />
novinha, mas ela tem uma ligação... tem um amor<br />
por Cataguases! Coisa impressionante! Então ela veio<br />
aqui, depois de muitos e muitos anos e fez questão<br />
de ir lá no chalé. Eu tirei uma fotografia de lá e tu<strong>do</strong><br />
(para) a família conhecer...<br />
Uma das meninas que está fazen<strong>do</strong> esta pes-<br />
quisa já descobriu de quem (o meu avô) comprou o<br />
“Porto <strong>do</strong>s Diamantes”... Pode ser, quem sabe, talvez<br />
um engano, porque isso pode acontecer. Mas trinta e<br />
seis quilômetros afora passaria de Barão de Camargo<br />
e chegaria bem longe. Sairia talvez, até, da área mu-<br />
nicipal. Não seria o caso. Eu acho que há um enga-<br />
no qualquer. É ali mesmo! Está lá! Ainda resta, ainda<br />
existe o chalé!<br />
Entrevista<strong>do</strong> em 14/6/1988 por João Carlos Juste e Rosângela Schettini<br />
Rodrigues<br />
167
S E B A S T I Ã O L O P E S N E T O<br />
PA S TO R M E TO D I S TA<br />
7 0 a n o s<br />
Em primeiro lugar, eu gostaria<br />
de agradecer a oportunidade que a Secretaria de<br />
Cultura está me oferecen<strong>do</strong> para esta entrevista, relatan<strong>do</strong><br />
alguma coisa ligada à Igreja Metodista, em<br />
Cataguases. Em segun<strong>do</strong> lugar, devo me apresentar<br />
como pastor da Igreja Metodista em Astolfo Dutra,<br />
Campestre, Piraúba e Dona Euzébia, ten<strong>do</strong> nasci<strong>do</strong><br />
na cidade de Cataguases, no dia 8 de janeiro de 1922,<br />
e aqui militan<strong>do</strong> na Igreja Metodista desde a infância.<br />
Quan<strong>do</strong> eu nasci meus pais já eram da Igreja<br />
Metodista. Naturalmente, como filho de membros da<br />
Igreja Metodista, eu tive uma ligação muito grande<br />
com a Igreja.<br />
Foto: Templo Metodista (rua Major Vieira), Alberto Landóes, 1915,<br />
Departamento Municipal <strong>do</strong> Patrimônio Histórico e Artístico de<br />
Cataguases<br />
169
Meus pais - Otávio Corrêa Neto e Ana Áurea<br />
Neta - eram muito fiéis à Igreja e, desde a minha<br />
meninice, ensinan<strong>do</strong> e <strong>do</strong>utrinan<strong>do</strong> para servir à<br />
Igreja. Numa certa ocasião eles mudaram aqui para<br />
Cataguases e foram residir numa fazenda próxima<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> - a localidade era conhecida por Esta<strong>do</strong> 10<br />
- e ali eles se tornaram metodistas. Trabalhan<strong>do</strong> sob<br />
a administração de Bento de Souza e <strong>do</strong>na Maria de<br />
Souza, uma família da Igreja Metodista, eles vieram<br />
a conhecer a Igreja. Meu pai era carpinteiro e minha<br />
mãe <strong>do</strong> lar, naturalmente.<br />
Os da<strong>do</strong>s que eu tenho sobre a história da<br />
Igreja Metodista foram coleta<strong>do</strong>s pelo reveren<strong>do</strong><br />
Epaminondas Moura, que foi pastor aqui na década<br />
de 40. Através de <strong>do</strong>cumentação, através de informa-<br />
ções de nosso sau<strong>do</strong>so irmão José Fernandes Sucasas,<br />
o que nós temos aqui é o seguinte, e eu tomo a liber-<br />
dade de fazer a leitura <strong>do</strong> próprio histórico da Igreja:<br />
“No dia 9 de fevereiro de 1894 chegou em<br />
Cataguases, pela primeira vez, o Reveren<strong>do</strong> Felipe<br />
Revale de Carvalho, que trazia algumas Bíblias pa-<br />
ra vendê-las aqui na cidade. Contu<strong>do</strong>, havia um fato<br />
curioso, ele não conhecia ninguém... Naquela épo-<br />
ca o senhor Sucasas trabalhava de alfaiate ali, num<br />
10 ) Antiga Colônia Major Vieira.<br />
170
prédio próximo à Estação da Estrada de Ferro. E, tra-<br />
balhan<strong>do</strong> ali, viu aquele homem passar com aquele<br />
amarra<strong>do</strong> de livros, e o chamou e perguntou que<br />
livros eram aqueles que ele levava. Então, ele disse<br />
que era a Bíblia e outros livros religiosos para ven-<br />
der. E o Sucasas, naturalmente, perguntou a ele como<br />
fazia para adquirir os livros. Como o Sucasas vinha<br />
da Espanha e via falar tanta coisa a respeito da Bíblia<br />
<strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s protestantes, ele quis tomar conhecimento.<br />
Adquiriu duas Bíblias de uma só vez, em vez<br />
de adquirir uma Bíblia só. E passou a estudar a Bíblia.<br />
Sempre que Felipe Revale de Carvalho vinha à<br />
Cataguases hospedava-se na casa <strong>do</strong> Sr. Sucasas e da<br />
Dona Encarnação. E também <strong>do</strong> Sr. Ezequiel Alonso,<br />
sogro <strong>do</strong> Sucasas, também espanhol.”<br />
Já nessa época residiam na Rua Alferes<br />
Henriques de Azeve<strong>do</strong>, naquelas imediações <strong>do</strong><br />
Sindicato de Fiação e Tecelagem. E ali surgiu a<br />
ideia da criação de um ponto de pregação da Igreja<br />
Metodista. Residin<strong>do</strong> ali, eles instalaram ali a<br />
Congregação Metodista. Ela teve seu ato inaugural<br />
no dia treze de maio de 1894. Mas no dia 20 de maio<br />
de 1894, quan<strong>do</strong> eles estavam ali reuni<strong>do</strong>s - realizavam<br />
um trabalho normal de culto, de estu<strong>do</strong> da palavra<br />
de Deus - aconteceu um fato inédito! Aquele ambiente<br />
muito alegre, muito festivo, foi surpreendi<strong>do</strong><br />
171
com a chegada de, mais ou menos, cinquenta homens<br />
arma<strong>do</strong>s de porretes e de chibatas, tiraram o pastor<br />
de dentro da casa, levan<strong>do</strong> até as proximidades da<br />
Estação Ferroviária. Arrasta<strong>do</strong> pelas ruas da cidade!<br />
O propósito deles era deportá-lo, mandar para outra<br />
cidade! Naquela época havia uma intransigência re-<br />
ligiosa. Havia como que uma certa oposição entre o<br />
catolicismo e o protestantismo. Com essa oposição<br />
a igreja sofreu quan<strong>do</strong> iniciava aqui o movimento.<br />
Mas o Sr. Sucasas, que era jovem ainda, espanhol, de<br />
sangue agita<strong>do</strong> né, então ele enfrentou to<strong>do</strong>s aque-<br />
les homens. E surgiu também José Schettini, uma<br />
figura que era da maçonaria em Cataguases. Então,<br />
juntamente com ele, conseguiu tirar Felipe Revale de<br />
Carvalho das mãos <strong>do</strong>s agressores. Retornaram com<br />
ele ao ponto de partida, lá na Rua Alferes Henriques<br />
de Azeve<strong>do</strong>. Não tar<strong>do</strong>u que chegasse lá um capitão<br />
da polícia, juntamente com as autoridades, perguntan<strong>do</strong><br />
ao pastor se queria que punisse os agressores.<br />
Ensanguenta<strong>do</strong>, Felipe Revale de Carvalho - com a<br />
roupa toda em sangue - já presidin<strong>do</strong> uma reunião<br />
de orações, pedin<strong>do</strong> bençãos a Deus para dar força<br />
àquele povo. Mesmo naquele esta<strong>do</strong>! O reveren<strong>do</strong><br />
disse:<br />
- Não, não quero que dê castigo nenhum a eles. Eu<br />
desejo apenas que eles se convençam, reconheçam o<br />
172
poder de Deus e esse poder <strong>do</strong> evangelho, que trans-<br />
forma suas vidas espiritualmente. Essa foi, natu-<br />
ralmente, a primeira iniciativa, vamos dizer assim.<br />
Na época era tão pequeno o grupo pra começar! Era<br />
nada mais que umas quatro ou cinco pessoas.<br />
Agora, uma coisa que devemos observar tam-<br />
bém, no início, era pouca frequência. E sen<strong>do</strong> pou-<br />
ca frequência enfrentava-se, também, um problema<br />
muito difícil! Na época fazia-se de tu<strong>do</strong> para sufocar<br />
aquele trabalho que estava começan<strong>do</strong>, estava se ini-<br />
cian<strong>do</strong>... Mas aconteceu que logo no início houve vá-<br />
rias conversões. Muitas pessoas começaram a chegar...<br />
Era esse o desejo, mas para decidir mesmo, para ba-<br />
tizar, para se tornar membro da igreja, foram poucas.<br />
José Fernandes Sucasas foi o pioneiro, vamos dizer<br />
assim, o inicia<strong>do</strong>r. Ele, juntamente com o sogro dele,<br />
Ezequiel Alonso é que foram os primeiros. Depois co-<br />
meçou a chegar, como foi o caso da família <strong>do</strong> Bibiano<br />
Pimenta... Outras pessoas. Mais ou menos na época,<br />
quan<strong>do</strong> foram recebi<strong>do</strong>s Bibiano Pimenta e sua es-<br />
posa, foram recebi<strong>do</strong>s o senhor José de Almeida e a<br />
esposa, um outro simpatizante, um outro membro<br />
da igreja. Mais tarde, a figura <strong>do</strong> nosso sau<strong>do</strong>so ir-<br />
mão Sizenan<strong>do</strong> Dutra de Siqueira, avô da nossa irmã<br />
Gláucia né, que foi um <strong>do</strong>s que aju<strong>do</strong>u, também, a le-<br />
var avante a bandeira <strong>do</strong> metodismo, na época.<br />
173
Agora, nós temos aqui os quatro primei-<br />
ros batiza<strong>do</strong>s realmente. No dia 15 de outubro de<br />
1894, Felipe Revale de Carvalho recebeu por batis-<br />
mo e profissão de fé, os primeiros quatro metodis-<br />
tas: José Fernandes Sucasas, José de Almeida Pinto,<br />
Encarnação Del Rego Sucasas e Bibiano Pimenta. No<br />
dia seguinte - porque eles faziam reuniões diárias -<br />
mais <strong>do</strong>is batiza<strong>do</strong>s: <strong>do</strong>na Hisbela Francisca Pimenta,<br />
que era esposa <strong>do</strong> Bibiano, e a <strong>do</strong>na Angélica de<br />
Moura. Agora, conforme eu disse, surgiram pos-<br />
teriormente outros nomes como: Joaquim Pereira<br />
Louro, Sizenan<strong>do</strong> Dutra de Siqueira e muitos outros.<br />
Depois tiveram sequência em prosseguir a obra <strong>do</strong><br />
metodismo em nossa cidade.<br />
A Igreja Metodista de Cataguases é a pioneira<br />
dessa região toda aqui. Foi daqui que saiu a igreja<br />
das cidades de Leopoldina, Ubá, Além Paraíba. Toda<br />
essa região da Zona da Mata leste, enfim. Quan<strong>do</strong> o<br />
Reveren<strong>do</strong> Felipe chegou aqui, ele era um pastor missionário,<br />
quer dizer, era subordina<strong>do</strong> à Conferência<br />
de Juiz de Fora, parece. Ele percorria essa região fazen<strong>do</strong><br />
trabalho missionário.<br />
Nós conseguimos pesquisas, né. Havia uma<br />
coisa interessante... Isso é um fato verídico! Acontecia<br />
o seguinte: os que saiam a campo mesmo, para<br />
realizar o trabalho verdadeiramente, era o José<br />
174
Fernandes Sucasas e o Bibiano Pimenta. Agora, o<br />
seu avô, o senhor Sizenan<strong>do</strong> Dutra de Siqueira e o<br />
Joaquim Pereira Louro - que eram homens de certo<br />
poderio econômico por aqui - custeavam as despesas<br />
desses que estavam no campo realizan<strong>do</strong> trabalho.<br />
Eles faziam questão! Pagavam a mensalidade para<br />
que o senhor José Fernandes Sucasas se dedicasse ao<br />
trabalho religioso. Ele tomava algum tempo da pro-<br />
fissão dele - alfaiate - então aquilo que faltava eles<br />
complementavam. Era assim custea<strong>do</strong> por eles. Era<br />
cooperação.<br />
Agora, uma coisa que eu gostaria de frisar, já<br />
que estamos falan<strong>do</strong> sobre a história, é que, infelizmente,<br />
daquele ponto de pregação da Rua Alferes<br />
Henriques de Azeve<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> nós tivemos aquela<br />
prova de fogo, como eu já me referi, o Monsenhor<br />
Araújo - que era o padre da Igreja Matriz - ele assistia<br />
passivamente da casa dele! Eu tenho a impressão que<br />
seja ali, naquela casa onde mora a família <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor<br />
Tarcísio, hoje. Pela que se deduz, seria ali... A hostilidade<br />
era a olhos vistos, dada a oposição religiosa<br />
que havia na época. Inclusive, a residência <strong>do</strong> senhor<br />
José Sucasas era alvo de pedradas. Atiravam pedras...<br />
quebravam janelas... Era realmente uma época muito<br />
difícil, de pouca tolerância religiosa. A intolerância<br />
foi mais com o Monsenhor Araújo...<br />
175
Dali, da Rua Alferes Henrique de Azeve<strong>do</strong>, te-<br />
ve algum tempo reunida na casa <strong>do</strong> senhor Bibiano<br />
Pimenta, avô <strong>do</strong> Jairinho - Jairo Pimenta Junior - esse<br />
nosso amigo. Mas eu não consegui precisar onde era<br />
a casa <strong>do</strong> Bibiano Pimenta. Procurei o Jairinho, ele es-<br />
tá viajan<strong>do</strong>, está para São Paulo, então não consegui<br />
precisar... Da casa <strong>do</strong> Bibiano Pimenta a Igreja foi pra<br />
Rua <strong>do</strong> Pomba, que é a Major Vieira, ali no Beco da<br />
Cadeia. Tem fotografia <strong>do</strong> templo ali... Dali nós fo-<br />
mos para a Avenida Astolfo Dutra, em terreno que<br />
foi <strong>do</strong>a<strong>do</strong> pela Prefeitura Municipal de Cataguases.<br />
Na época, foi inaugurada em 30 de julho de 1922, já<br />
tinha acaba<strong>do</strong> aquilo, em parte. A própria comunidade<br />
dan<strong>do</strong> apoio aos trabalhos da Igreja Metodista.<br />
Em 1922 a situação amenizou bem.<br />
Quan<strong>do</strong> saíram aqui <strong>do</strong> beco da cadeia, <strong>do</strong><br />
templo antigo para o templo novo, da Avenida, saíram<br />
em procissão. O jornal Cataguases deu ampla<br />
cobertura <strong>do</strong> acontecimento de inauguração <strong>do</strong> novo<br />
templo. O senhor Pergentino era superintendente da<br />
Escola Dominical, ia à frente com o Reveren<strong>do</strong> José<br />
de Azeve<strong>do</strong> Guerra, o pastor. E a banda de música<br />
acompanhan<strong>do</strong> o desfile <strong>do</strong>s metodistas.<br />
Eu acho que a causa metodista pesou muito,<br />
quan<strong>do</strong> Felipe Revale de Carvalho teve aquela atitude.<br />
Foi da<strong>do</strong> conhecimento à própria comunida-<br />
176
de... As autoridades queriam punir os agressores...<br />
Inclusive o Doutor Astolfo Dutra, que era pai <strong>do</strong><br />
Doutor Pedro Dutra Nicácio, neto, quis mover um<br />
processo e Felipe Revale de Carvalho foi lá no Fórum<br />
e pediu a retirada <strong>do</strong> processo! Quer dizer: não pu-<br />
nissem os agressores, que cada um deles se cons-<br />
cientizasse, e salvasse a vida deles espiritualmente...<br />
Transformasse, né?<br />
Naquele tempo, Cataguases era uma pequena<br />
cidade. Eu acho que isso aí pesou muito na balança<br />
porque a comunidade tomou conhecimento desse<br />
fato. Então começaram a sentir que aqueles poucos<br />
evangélicos, que estavam ali, mereciam um certo<br />
apoio! No dia da inauguração estavam vários pasto-<br />
res, inclusive o bispo da Igreja Metodista, na época.<br />
Não preciso o nome dele, porque não consegui... Eu<br />
não tenho nome de to<strong>do</strong>s aqui... Mas foi, realmen-<br />
te, uma noite de gala para a família Metodista de<br />
Cataguases, o ato de inauguração, em 1922.<br />
O templo que nós temos agora foi amplia-<br />
<strong>do</strong>. Nós construímos no fun<strong>do</strong> aquele salão social.<br />
Está servin<strong>do</strong> até à comunidade, com salas de aula<br />
alugadas ao município, para atender à reforma <strong>do</strong><br />
grupo Coronel Vieira. Examinan<strong>do</strong> as atas da Igreja,<br />
examinan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s aqueles da<strong>do</strong>s históricos, houve<br />
um crescimento rápi<strong>do</strong>. A gente vê pela recepção de<br />
177
membros anualmente. Sempre havia um crescimento,<br />
a despeito daqueles que saíram de Cataguases para<br />
outras cidades...<br />
Naquela época poderíamos dizer que a clas-<br />
se social que era recebida como membros da Igreja<br />
Metodista era... equilibrada. Uma parte mais hu-<br />
milde, outra mais elevada e entre eles podemos<br />
destacar a família Siqueira: <strong>do</strong>na Jandira Siqueira,<br />
que era formada em farmácia; o senhor Pergentino<br />
Siqueira mais os filhos <strong>do</strong> senhor Sizenan<strong>do</strong>, como o<br />
Elvin<strong>do</strong>, professor em Belo Horizonte. Então, a Igreja<br />
Metodista tem caminha<strong>do</strong> no campo da conquista de<br />
almas para Cristo. É o objetivo principal!<br />
Nós observamos que a Igreja tem um nível so-<br />
cial equilibra<strong>do</strong>, nós temos pessoas de uma certa ca-<br />
pacidade intelectual e temos, uma boa parte também,<br />
de pessoas mais humildes. Mas to<strong>do</strong>s eles se desen-<br />
volvem! To<strong>do</strong>s eles procuram se aprofundar, cada<br />
vez mais, nos conhecimentos religiosos, na <strong>do</strong>utrina<br />
da própria Igreja. O relatório escrito pelo reveren<strong>do</strong><br />
Felipe Revale de Carvalho, data<strong>do</strong> de 17 de outubro<br />
de 1894, diz o seguinte:<br />
“Ama<strong>do</strong>s irmãos,<br />
É com contentamento indizível que eu levanto-me diante<br />
de vós, congrega<strong>do</strong>s em conferência, para relatar-vos so-<br />
178
e a nossa obra evangélica, desde que para aqui cheguei,<br />
envia<strong>do</strong> em nome de nosso Bendito Salva<strong>do</strong>r Jesus Cris-<br />
to. Entrei na cidade de Cataguases com fim único de pre-<br />
gar o evangelho da salvação, no dia 9 de fevereiro de 1894.<br />
Durante três meses e quatro dias, unicamente, conversei<br />
com o povo e visitei várias famílias. No 13 de maio, glo-<br />
riosa data da fraternidade brasileira, inaugurei nossa sala<br />
de culto, desde quan<strong>do</strong> temos trabalha<strong>do</strong> com regularida-<br />
de, pregan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>mingos, às sete horas da noite, à<br />
uma assistência média de vinte pessoas. Às onze horas da<br />
manhã, uma Escola Dominical com assistência satisfatória.<br />
Pela fidelidade <strong>do</strong>s irmãos, nossos ouvintes, aos cultos e à<br />
aceitação das Santas Escrituras e Doutrinas, temos ti<strong>do</strong><br />
como resulta<strong>do</strong> a benção já conhecida por nós, isto é, trinta<br />
e três candidatos. Destes, seis foram batiza<strong>do</strong>s e fizeram<br />
sua profissão de fé. Esses são os seguintes: José Fernandes<br />
Sucasas, Encarnação Del Rego Sucasas, Bibiano José Pi-<br />
menta, Hisbela Francisca Pimenta, Firmina Angélica de<br />
Moura, José de Almeida Pinto. E batizamos também três<br />
crianças que são: Leopol<strong>do</strong> Del Rego, Samuel Del Rego e<br />
Israel de Carvalho. A causa evangélica da cidade promete<br />
um futuro risonho, embora muitos de nossos candidatos<br />
tenham se retira<strong>do</strong> e muda<strong>do</strong> de residência. A nossa Escola<br />
Dominical, que foi organizada com dez membros, só tem<br />
uma classe devi<strong>do</strong> a motivos justos, mas em tempo opor-<br />
tuno aumentaremos os membros e o número de alunos das<br />
179
classes. Contamos, presentemente, com treze membros,<br />
que se esforçam a responder as perguntas que lhe são feitas.<br />
Durante o tempo de minha residência na cidade tenho con-<br />
segui<strong>do</strong> angariar vinte e sete assinaturas <strong>do</strong> órgão oficial da<br />
Igreja, ‘O Expositor Cristão’, e tenho a esperança de mais<br />
alguns. Concluin<strong>do</strong> esse relatório, peço aos irmãos congra-<br />
tularem-se comigo por termos já uma Igreja Evangélica<br />
organizada em Cataguases, e pedir ao Nosso Pai Celestial,<br />
que nos cubra com suas santas bênçãos e nos guie com o<br />
Espírito Santo, para que possamos desempenhar a nossa<br />
tarefa, que é bastante espinhosa.<br />
Nada mais tenho a dizer.<br />
Respeitosamente,<br />
Felipe Revale de Carvalho<br />
Pastor”<br />
Naturalmente que o trabalho produziu frutos.<br />
Em primeiro lugar, to<strong>do</strong>s aqueles que passaram a mi-<br />
litar na <strong>do</strong>utrina metodista, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> um cami-<br />
nho de vícios, de erros, caminho de peca<strong>do</strong>s, essa coi-<br />
sa toda, eles obtiveram frutos procuran<strong>do</strong> santificar<br />
mais a vida. O espírito <strong>do</strong>utrinário obedece a uma<br />
<strong>do</strong>utrina rígida com referência à abstenção de vícios,<br />
essas coisas... Já saíram daqui para desempenharem<br />
suas missões dentro <strong>do</strong> pastora<strong>do</strong> da Igreja. Dentre<br />
eles, podemos destacar o Bispo Isaías Fernandes<br />
180
Sucasas, que chama<strong>do</strong> para ser pastor veio a ser, mais<br />
tarde, consagra<strong>do</strong> bispo da Igreja Metodista <strong>do</strong> Brasil.<br />
Ele passou a exercer o episcopa<strong>do</strong> ao tempo em que<br />
a Igreja só tinha um bispo. Como pastores nós te-<br />
mos o José Sucasas Junior, filho de José Fernandes<br />
Sucasas, hoje aposenta<strong>do</strong>. Temos o Tércio Macha<strong>do</strong><br />
de Siqueira, pastor metodista também, hoje exercen-<br />
<strong>do</strong> o magistério na Faculdade de Teologia em São<br />
Bernar<strong>do</strong> <strong>do</strong> Campo, São Paulo. O Tércio, inclusive,<br />
esteve fazen<strong>do</strong> mestra<strong>do</strong> na Inglaterra e nos Esta<strong>do</strong>s<br />
Uni<strong>do</strong>s. Nosso irmão Tércio Macha<strong>do</strong> de Siqueira é<br />
hoje uma das colunas mestras da Igreja Metodista <strong>do</strong><br />
Brasil, em matéria de cultura, <strong>do</strong> Velho e <strong>do</strong> Novo<br />
Testamento.<br />
Aluísio Faria de Siqueira, militan<strong>do</strong> no pas-<br />
tora<strong>do</strong> em Belo Horizonte; Luiz Israel de Barros foi<br />
pastor aqui em Cataguases cinco anos, faleci<strong>do</strong> re-<br />
centemente. Nós tivemos também o Ormeu Alves da<br />
Costa, pastor lá em Curitiba, Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Paraná; Silas<br />
Namorato, pastorean<strong>do</strong> em uma das Igrejas de São<br />
Paulo; Olívio Andrade da Silva, que saiu daqui para<br />
pastorear igrejas e hoje faz parte, como economista,<br />
da alta cúpula da Igreja Metodista! E Sebastião Lopes<br />
Neto, que está sen<strong>do</strong> entrevista<strong>do</strong>, pastorean<strong>do</strong> qua-<br />
tro campos: Astolfo Dutra, Piraúba, Campestre e<br />
Dona Euzébia.<br />
181
Pra chegar ao pastora<strong>do</strong>, naturalmente depois<br />
<strong>do</strong> preparo ginasial, ou melhor, primeiro e segun<strong>do</strong><br />
graus, vai à Faculdade de Teologia, fazer cinco anos<br />
de bacharel em teologia... Fazer um vestibular para<br />
ingressar é... (curso) superior! Agora, existe também<br />
a categoria pastor evangelista. Esse pode chegar ao<br />
pastora<strong>do</strong> através de um curso básico de teologia,<br />
que é o meu caso. Eu sou pastor evangelista. O cri-<br />
tério para a escolha <strong>do</strong> candidato hoje é da Igreja<br />
local, onde a pessoa está exercen<strong>do</strong> a sua atividade<br />
religiosa. Ela é recomendada pelo Concílio da Igreja<br />
às autoridades superiores para dar encaminhamento<br />
ao processo de estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> candidato. Muita gente aí<br />
anda confundin<strong>do</strong> as coisas...<br />
- Eu vou ser membro de determinada Igreja pra ser<br />
pastor!<br />
Não é bem isso não! O chama<strong>do</strong> para o Ministério<br />
é uma coisa realmente maravilhosa! Meu chama<strong>do</strong><br />
foi através de uma visão, em sonhos. Eu atribui<br />
que foi Deus falan<strong>do</strong>. E Deus, realmente, me<br />
abençoou e tenho feito um trabalho... da melhor forma<br />
possível.<br />
Para ser missionário da Igreja Metodista exigese<br />
o curso superior, desde que a igreja existe. E sempre<br />
teve, assim, uma oportunidade para aqueles que<br />
não pudessem chegar ao curso superior. Pra atender<br />
182
às Igrejas menores, poderia ser através de um curso<br />
básico de teologia, ou uma equivalência, vamos dizer<br />
assim. Eu tenho a impressão que o Felipe Revale de<br />
Carvalho tinha curso superior porque ele exercia o<br />
trabalho missionário.<br />
O trabalho metodista iniciou em 1738, na<br />
Inglaterra, através <strong>do</strong> movimento de John Wesley,<br />
juntamente com seu irmão Carlos Wesley. Ali na<br />
Inglaterra eles se levantaram para aconselhamento<br />
<strong>do</strong>s jovens, num momento de revolução espiritual.<br />
Eles denominaram de “grupo santo”. John<br />
Wesley relata, no diário dele, que cancelava nomes<br />
de membros da Igreja por quebra <strong>do</strong> dia de <strong>do</strong>min-<br />
go! Quem trabalhava <strong>do</strong>mingo era excluí<strong>do</strong> da Igreja!<br />
Quem passava na rua e olhava para a mulher <strong>do</strong> ou-<br />
tro, se ficasse prova<strong>do</strong>... Chegou ao Brasil com os pri-<br />
meiros missionários americanos. Vários bispos ame-<br />
ricanos passaram por aqui! Até pastores americanos<br />
pastorearam a Igreja Metodista de Cataguases!<br />
A igreja procura manter o seu nível <strong>do</strong>utrinário<br />
e disciplinar. Ela não pode abrir mão totalmente! A<br />
essência ela procura manter! Um equilíbrio... continua<br />
a abstinência <strong>do</strong>s vícios. O jogo, por exemplo, a<br />
loto, a loteria, é proibi<strong>do</strong>... se tornar um alcoólatra, é<br />
excluí<strong>do</strong> da Igreja! Tu<strong>do</strong> isso é abstinência de vício!<br />
Se cometeu falta grave é adverti<strong>do</strong>, dá-se oportuni-<br />
183
dade por determina<strong>do</strong> tempo. Agora, se continuar...<br />
A Igreja não abre mão disso! Desde os tempos de<br />
Wesley a filosofia é esta. A Igreja Metodista não está<br />
preocupada em quantidade, mas sim em qualidade.<br />
Agora, as Igrejas aí estão preocupadas em conseguir<br />
maior número de adeptos... Mas <strong>do</strong> jeito que entra,<br />
sai. Parece que não há consistência <strong>do</strong>utrinária. A<br />
pessoa entra por entusiasmo, né. De qualquer forma,<br />
seja qual for o tipo de trabalho, tem seu mérito por-<br />
que estão contribuin<strong>do</strong> para um aprimoramento de<br />
cada cidadão. E isso vem ajudar muito no compor-<br />
tamento da vida de cada pessoa: deixar aquilo que<br />
eles faziam, aqueles vícios que tinham, aban<strong>do</strong>naram<br />
aquilo tu<strong>do</strong> para se dedicar a uma causa.<br />
Agora, infelizmente, o que nós estamos ven-<br />
<strong>do</strong> aí, pela televisão... Há uma proliferação muito<br />
grande de pessoas, que assumem o coman<strong>do</strong> de uma<br />
igreja, visan<strong>do</strong> mais a parte monetária. O perigo está<br />
aí! A Igreja Metodista, como muitas igrejas evangé-<br />
licas, sobrevive com as contribuições que os mem-<br />
bros dão. Mas a Igreja Metodista não faz carga cer-<br />
rada em termos de contribuição, quer dizer, pede a<br />
cada membro uma oferta liberal, naturalmente. Uma<br />
oferta liberal quer dizer nem tão pouco, mas também<br />
não muito! Cada um na medida que pode, na possi-<br />
bilidade...<br />
184
Há anos atrás, a Igreja desenvolvia um traba-<br />
lho melhor, realmente. Mas de uns tempos para cá,<br />
parece que havia se acomoda<strong>do</strong>. Agora a Igreja ho-<br />
je está com nova dimensão. A igreja parte para um<br />
trabalho de avivamento espiritual. Em Astolfo Dutra,<br />
a Igreja Metodista vai espantar muita gente, porque<br />
é um trabalho de despertamento espiritual. A Igreja<br />
cantan<strong>do</strong>, oran<strong>do</strong>, vibran<strong>do</strong>, testemunhan<strong>do</strong> o evan-<br />
gelho! De uma maneira positiva e extraordinária! E<br />
a mocidade que tá aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> lá fora e<br />
se entregan<strong>do</strong> nas mãos de Deus. Por exemplo: eu<br />
tenho <strong>do</strong>is jovens na Igreja - um cantava no conjun-<br />
to da cidade, outro jogava futebol - aban<strong>do</strong>naram...<br />
Ainda não é membro da Igreja, ainda não se batizou,<br />
ainda não assumiu o la<strong>do</strong> de membro da Igreja!<br />
- Não, para servir a igreja e ser realmente um cristão,<br />
eu estou aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> lá fora, que possa impe-<br />
dir a minha candidatura!<br />
Eu vejo a Igreja se despertan<strong>do</strong> realizan<strong>do</strong> um<br />
grande trabalho... Cataguases está despertan<strong>do</strong> tam-<br />
bém. Agora, no tempo em que fomos da sociedade<br />
de jovens, você lembra, você também já pertenceu à<br />
igreja, nós tínhamos um trabalho muito bem progra-<br />
ma<strong>do</strong>. Muito bem programa<strong>do</strong>!<br />
A Igreja tem uma comissão de Ação Social<br />
e essa comissão procura atender, na medida <strong>do</strong><br />
185
possível, e diante de suas possibilidades de arreca-<br />
dação, às pessoas mais carentes da própria Igreja.<br />
Naturalmente dan<strong>do</strong> uma certa prioridade aos mem-<br />
bros mais pobres da igreja e, também, atenden<strong>do</strong><br />
às pessoas pobres da comunidade, geralmente em<br />
época de Natal: distribuição de gêneros alimentí-<br />
cios, roupas, etc. Os trabalhos da Igreja Metodista<br />
se organizam dentro da própria igreja, por exem-<br />
plo: Sociedade de Senhoras, Sociedade de Homens,<br />
Sociedade de Jovens... Crianças... Cada um na sua<br />
faixa etária, procuran<strong>do</strong> elevar o nível de cada um<br />
deles.<br />
Eu gostaria de fazer aqui uma colocação muito<br />
importante. Nós falamos tanto no princípio - a época<br />
em que a Igreja enfrentou duras perseguições - que<br />
havia aquela oposição, então eu gostaria de dizer hoje,<br />
aqui nesta entrevista, como a Igreja hoje caminha. Eu<br />
me recor<strong>do</strong> que, no pastora<strong>do</strong> <strong>do</strong> Reveren<strong>do</strong> Omar<br />
Daibert, nós fizemos parte de uma Comissão Central<br />
de Festividades aqui. Numa reunião que nós está-<br />
vamos lá na Prefeitura - Omar Daibert, Monsenhor<br />
Solin<strong>do</strong>, e membros da comissão - o reveren<strong>do</strong> Omar<br />
propôs um culto de Ação de Graças, nas festividades<br />
de 7 de setembro 11 . Houve a proposta <strong>do</strong> pastor da<br />
11 ) Festividades de aniversário da cidade.<br />
186
Igreja Metodista, e houve apoio. Monsenhor Solin<strong>do</strong><br />
gostava de estar sempre relaciona<strong>do</strong> com metodistas.<br />
O pastor propôs que a Católica fizesse seu palanque<br />
de um la<strong>do</strong>, que a Igreja Metodista faria de outro. O<br />
monsenhor levantou e declarou:<br />
- <strong>Ô</strong> pastor, porque não estamos juntos, as duas<br />
Igrejas no mesmo palanque?<br />
- Desde que o palanque estivesse simples.<br />
O pastor Omar Daibert aceitou o desafio e, na-<br />
turalmente, fez algumas observações... Nós temos a<br />
nossa <strong>do</strong>utrina e a Igreja Católica tem a dela... Foi<br />
combina<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> isso e, no dia 7 de setembro, nós es-<br />
távamos no palanque: os pastores, o coral da Igreja<br />
Católica e o Coral da Igreja Metodista. Eu tenho foto-<br />
grafia desse evento: 1962. Outra coisa que eu gostaria<br />
de dizer, é que aquele mesmo pastor que foi massa-<br />
cra<strong>do</strong>, que foi arrasta<strong>do</strong> pelas ruas da cidade, hoje<br />
dá nome a uma das principais avenidas <strong>do</strong> Bairro<br />
Independência, um <strong>do</strong>s bons bairros de nossa cidade.<br />
Foi na administração <strong>do</strong> prefeito Milton Cavalheira<br />
Peixoto este ato, homenagean<strong>do</strong> os metodistas, dan-<br />
<strong>do</strong> nome: Avenida Reveren<strong>do</strong> Felipe Revale de<br />
Carvalho. Eu publiquei uma reportagem... A inaugu-<br />
ração se deu no dia 20 de maio de 1979, quan<strong>do</strong> esti-<br />
veram presentes autoridades civis, militares e religio-<br />
sas. O decreto da egrégia Câmara Municipal recebeu<br />
187
o número 942 e foi publica<strong>do</strong> no Jornal Cataguases,<br />
no dia 6 de maio de 1979. Quer dizer, nós vimos aqui<br />
duas épocas distintas: uma em que havia intolerân-<br />
cia religiosa, e hoje nós caminhamos de mãos dadas,<br />
para alegria de toda nossa comunidade. Haja vis-<br />
to o 7 de setembro este ano (1990). Nós tivemos um<br />
grande culto ecumênico abrangen<strong>do</strong> todas as Igrejas<br />
Evangélicas de Cataguases. Todas as Igrejas da ci-<br />
dade estiveram no palanque, não somente a Igreja<br />
Metodista e a Igreja Católica.<br />
Encerran<strong>do</strong> essa nossa entrevista sobre a<br />
História da Igreja Metodista de Cataguases - este ano<br />
ela completa 96 anos de existência - que está a cami-<br />
nho <strong>do</strong> centenário, nosso propósito é realmente dar<br />
um cunho festivo. Que esta data <strong>do</strong> centenário mar-<br />
que época na história religiosa de Cataguases! Como<br />
humilde membro da Igreja Metodista de Cataguases,<br />
filho da terra, filho dessa Igreja que tanto amo, essas<br />
são as minhas palavras para deixar nos arquivos da<br />
Secretaria de Cultura.<br />
Entrevista<strong>do</strong> em 3/4/1990 por Gláucia Siqueira e Mariana Cândida.<br />
188
189
S Í LV I A M E N D O N Ç A L E I T E<br />
( D O N A V I C A )<br />
D O N A D E C A S A<br />
8 5 a n o s<br />
Meu pai, Veríssimo Men<strong>do</strong>nca, ele era<br />
fazendeiro. Aquela fazenda onde é que chama Ibraim<br />
Men<strong>do</strong>nça, aquilo ali era de papai, ali era uma fazen-<br />
da, Santa Clara. Vinha até aqui na cidade, atrás <strong>do</strong><br />
Hospital, Vila Tereza (atual). Ali tinha uma porção de<br />
casa até ali em baixo; aquela casa tá lá até hoje, é dele,<br />
uma casa que tem uma entrada assim, perto daque-<br />
le... daquele gerente da “Cima”. Aquilo ali é <strong>do</strong> papai.<br />
Papai quan<strong>do</strong> morreu deixou pra Ceição. Ceição foi<br />
herdeira, uma irmã, né. Conceição. Depois ela vendeu.<br />
Primeiro ele tinha uma outra fazenda lá em<br />
Santa Cecília, lá perto da Fazenda Estrela. Era um<br />
sítio, uma fazendinha, né. O movimento da fazenda<br />
era café, cana, né, essas coisas de engenho de cana...<br />
Foto: Vila Tereza, A Brasileira, 1915, Departamento Municipal <strong>do</strong><br />
Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases<br />
191
Tinha os emprega<strong>do</strong>s. Não, tinha grande numero não.<br />
Uns quatro, cinco. Hoje acabou tu<strong>do</strong>, aquilo tu<strong>do</strong> lá é<br />
pasto hoje. Já passei lá há pouco tempo, já vi, não tem<br />
mais nada. Vendeu pra essa gente de Aurora, né.<br />
A Fazenda Estrela era daquela gente Souza,<br />
lá perto da Aurora, Fazenda Aurora, né. Era lá pra<br />
aqueles la<strong>do</strong>s. Ainda tem até hoje por lá. A Fazenda<br />
da Saudade... terra dividin<strong>do</strong> com a Aurora. Aquilo<br />
ali era <strong>do</strong> Souza. Souza era riquíssimo! Minha irmã<br />
mais velha era casada com o Tonho de Souza, pai <strong>do</strong><br />
Filhinho. Ih! Os Souza tinha <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> de enorme! Só<br />
cê ven<strong>do</strong>! Nós perto dele não, tinha nada. Engenho<br />
de café, de cana-de-açúcar, tinha muita coisa. Gente<br />
riquíssima! Acabou tu<strong>do</strong>, né, menina? Acabou tu<strong>do</strong>,<br />
tu<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong>!<br />
A família da minha mãe, Jovelina Soares<br />
Men<strong>do</strong>nça, era de Ubá. Meu pai que era daqui.<br />
Minha mãe morava aqui perto, o pai dela tinha um<br />
sítio. Depois até papai quan<strong>do</strong> casou foi tomar conta<br />
da fazenda, a Fazenda Santa Cecília, lá perto da<br />
Aurora. Minha vó, não sei nada dela, tinha uma fazendinha,<br />
e depois o papai tomou conta. A minha vó<br />
era viúva, né. Pra tomá conta... ele casou, foi pra casa<br />
de minha vó e foi tomar conta <strong>do</strong> sítio. Onde <strong>do</strong> sítio<br />
ele fez uma fazenda. Cresceu! Não comprou tanta<br />
terra, mas mexeu... progresso, né.<br />
192
Fui criada na fazenda, nessa fazenda lá perto<br />
da Aurora, criada não, eu vim de lá com sete anos<br />
pra oito anos, pra Fazenda Santa Clara. Estudei in-<br />
terna no colégio, fui até o segun<strong>do</strong> ano Normal, só<br />
isso. (Saí) não foi pra casar não, fui pra roça, pra casa,<br />
né, depois que eu casei, porque nem foi mais a minha<br />
mãe... eles começaram a entrar em rixa, ele deu um<br />
pulo fora lá, sabe como é que é, né, e ela não aguen-<br />
tou e brigaram muito e tu<strong>do</strong>. Isto atrapalhou muito a<br />
família. Ele nos botou interna aqui no Colégio, estu-<br />
dei interna uns tempos - eu, Ceição e Cinoca. Aí de-<br />
pois fomos lá pra casa, né, pra roça. E nós ficamos<br />
conviven<strong>do</strong> lá, até casar.<br />
Quan<strong>do</strong> eu tava solteira, ele morava junto com<br />
ela. Viviam separa<strong>do</strong>s, mas sabe como é que é, né,<br />
dentro de casa. Quan<strong>do</strong>, essas coisas, mas moravam<br />
juntos. Eu já era casada quan<strong>do</strong> ele morreu, sabe, aí<br />
dividiu tu<strong>do</strong> pros filhos em vida, sabe, dividiu tu<strong>do</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> ele morreu deixou cada um com o seu pe-<br />
daço, igualzinho. Dividiu a fazenda. O Ibraim ficou<br />
com a sede, né, e nós ficamos com os outros pedaços.<br />
Até, por exemplo, onde morou o Faber Rezende, que<br />
casou com minha irmã Cinoca, ali no Beira Rio, ali é<br />
<strong>do</strong> papai também. A Cinoca casou e ficou moran<strong>do</strong><br />
ali. Ah! Mas acabou tu<strong>do</strong>, minha filha! Só o Sadi que<br />
era rico, né, mas não foi com herança <strong>do</strong> papai não.<br />
193
Ele trabalhou muito, era muito trabalha<strong>do</strong>r, agencia-<br />
<strong>do</strong>r da vida, sabe. Ele ficou bem, a família dele ainda<br />
está bem, nos dias de hoje. Trabalhou (com café), com<br />
cana, moinho de cana. (Vivi na fazenda) até quan<strong>do</strong><br />
eu casei, né. (Depois vim) pra cidade, Cataguases.<br />
Eu já rodei mun<strong>do</strong>, boba! A gente já an<strong>do</strong>u<br />
muito. Eu conheci (meu mari<strong>do</strong>), José Leite, na ci-<br />
dade, que ele é filho daqui, né, ele era filho daqui.<br />
Conheci ele aqui, fui namoran<strong>do</strong>, eu acho que eu fi-<br />
quei noiva uns seis meses, ou um ano, nem sei mais<br />
não, e logo casei. Não fiquei permanente, porque ele<br />
era conta<strong>do</strong>r daquele... João Duarte, <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong><br />
João Duarte. Quan<strong>do</strong> casei com ele era... depois per-<br />
deu, houve a falência, né. Ele perdeu o emprego.<br />
(O banco) logo que abriu falência, né, foi uma<br />
desilusão, foi uma tristeza, sabe. Nós fomos passear<br />
no Rio de lua de mel, quan<strong>do</strong> nós voltamos a falência<br />
já tinha si<strong>do</strong> declarada. Perdeu o emprego. Ih! ... aí<br />
depois ele fez coisas <strong>do</strong> diabo! Não sei quantos em-<br />
pregos que ele teve! Ele era um agencia<strong>do</strong>r da vida,<br />
sabe, nunca ele ficou para<strong>do</strong>. Teve uma ocasião que<br />
nós saímos daqui e fomos morar em... botou uma<br />
sociedade com um primo dele lá em... pra cima da<br />
Ponta Nova, esqueci o lugar, o nome. Moramos lá<br />
uns tempos, mas ele não gostava de lá, então nós<br />
viemos embora. Mas eu andei, minha filha, nessa vi-<br />
194
da! Filho e mudan<strong>do</strong>! (Meu mari<strong>do</strong>) foi prefeito aqui<br />
na Prefeitura. Quer dizer, ele trabalhava com o Dr.<br />
Edson Rezende e depois o Dr. Edson saiu pra candi-<br />
datar a deputa<strong>do</strong>, ai ele ficou como prefeito uns tem-<br />
pos. Tanto é que naqueles retratos, de ex-prefeitos,<br />
que tem lá no Fórum, ele deve tá lá.<br />
Política era ferven<strong>do</strong> aqui. Pedro Dutra com os<br />
Peixotos, né. Ah, naquele tempo? Tiro? Uai! Deram<br />
tiro na Rádio, foi uma coisa horrível! (“Meu pai<br />
foi preso, foi preso pelo Pedro Dutra, né, tu<strong>do</strong> por<br />
causa da política”, esclareceu Virginia, filha de D.<br />
Vica). Naquele tempo prendia to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Manoel<br />
Peixoto era o chefão aí, né. Seu pai era guarda-livros,<br />
trabalhava com os Peixoto. E o Pedro Dutra era con-<br />
tra. Muita gente já passou aperto por causa de polí-<br />
tica aí. Hoje, graças a Deus, já acabou tu<strong>do</strong>. O papai,<br />
o papai... não, o papai levou tiro foi na roça. Era por<br />
causa da fazenda.<br />
Vizinhança de fazenda. Você sabe onde mo-<br />
ra o Josué Peixoto hoje, na roça? Pois é, ali morava<br />
um que era inimigo <strong>do</strong> papai. Ele passava na porta<br />
lá de casa, pra ir pra cidade. Papai andava a cava-<br />
lo. Naquele tempo to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> andava era a cavalo.<br />
Não tinha esse negócio de automóvel pra aqueles la-<br />
<strong>do</strong>s nem nada não. Era só de carro... de carro de boi<br />
e de cavalo. Então, papai um dia vinha pra cidade...<br />
195
ele vinha sempre, to<strong>do</strong> dia ele vinha. Quan<strong>do</strong> che-<br />
gou numa volta que tem lá - até hoje tem essa volta<br />
lá, aqui no Beira Rio. Como é que se chama aquele<br />
lugar ali? Faber Rezende? E quan<strong>do</strong> chegou na volta<br />
lá, o homem tirou a garrucha e deu um tiro nele. Não<br />
é de revolver não, é de garrucha. Ele atirou no papai,<br />
o cavalo pulou; ele atirou o segun<strong>do</strong>, o cavalo pulou;<br />
o terceiro, acho que acabou a coisa, né, não disparou.<br />
E o papai contou uma coisa que tinha si<strong>do</strong> atira<strong>do</strong>.<br />
Ele tinha uma oração que chama “Justo Juiz”. Eu tenho<br />
essa oração que não sei quem me deu. Uma vizinha,<br />
uma senhora que tinha lá que era vizinha, e que<br />
gostava muito dele falou: “O seu Veríssimo, você vai<br />
usar essa oração no bolso, porque você anda muito<br />
em perigo”. Ele usava daquele la<strong>do</strong>, dentro da carteira.<br />
Eu acredito que seja isso, porque eu sou muito católica<br />
e acredito muito nas coisas. O homem deu três<br />
tiros nele, e a garrucha... era garrucha que ele tinha,<br />
Nem era revolver não. (A polícia) interferia, tu<strong>do</strong>,<br />
mas não prendeu nada porque não foi flagrante, não<br />
foi pego na hora, né, e o tiro não pegou... Ih! Nós viramos<br />
num desassossego, mas uma coisa horrorosa!<br />
E ele ainda voltou para a cidade. A mamãe gritan<strong>do</strong><br />
e falava: “Não vai Veríssimo, não vai!” Porque estava<br />
com me<strong>do</strong> dele atirar outra vez. Veio para a cidade<br />
voltou e não teve nada.<br />
196
Rico, rico, não, né, (papai) era bem rico, não<br />
era rico igual os Souza, Antonio Augusto de Souza,<br />
não era, mas ele era abasta<strong>do</strong>, né, como se diz, né.<br />
Ih!... Nós fomos cria<strong>do</strong>s na fartura. Lá em casa tinha<br />
ceva de porco, porco gor<strong>do</strong>, galinheiro, galinha em<br />
quantidade e roça de café, lavoura de café, de cana.<br />
Tinha engenho de cana. Pé de fruta. Ih!... tu<strong>do</strong>. Uma<br />
coisa eu posso falar: fui criada na fartura, graças a<br />
Deus. Agora os meus filhos já não foram cria<strong>do</strong>s as-<br />
sim, não foi cria<strong>do</strong> na miséria, mas tu<strong>do</strong>... você sa-<br />
be como é que é, né, com o mari<strong>do</strong> desemprega<strong>do</strong>...<br />
sai de uma coisa pega noutra, sai daqui pega noutra,<br />
porque ele perdeu o emprego, né. Se ele perde o em-<br />
prego antes, uns dias antes, eu não tinha casa<strong>do</strong>. Ah!<br />
Papai não deixava, não deixava mesmo!<br />
Na minha infância tenho lembrança, minha<br />
mãe tinha piano, tocava piano... e reunia as pesso-<br />
as lá em casa, ia gente daqui da cidade pra lá, uma<br />
família, por exemplo, que tinha – Samuel -, ia pra<br />
lá ficava dez, <strong>do</strong>ze, quinze dias. E lá tocava piano e<br />
aquela coisa. Papai fazia fogueira... tempo de foguei-<br />
ra, Nossa Senhora! Era uma fartura! Tinha forno de<br />
fazer quitanda, lá fazia quitanda, fazia tu<strong>do</strong>. Padeiro<br />
não aparecia lá em casa. A cidade era longe. Hoje está<br />
mais perto. Mas era longe. Tanto é que quan<strong>do</strong> apa-<br />
recia um padeiro lá, ficava tu<strong>do</strong> gritan<strong>do</strong>: “<strong>Ô</strong> padei-<br />
197
o! <strong>Ô</strong> padeiro!” Vinha o padeiro com o pão fresqui-<br />
nho. Então era feito em casa biscoito, broa, bolo, tu-<br />
<strong>do</strong>. Era uma fartura! Por exemplo, dia de sába<strong>do</strong> era<br />
dia de enfornar junto com as empregadas. Amarrava<br />
um pano na cabeça e ia enfornar pra semana inteira.<br />
Tinha, me lembro, um caixote grande, umas caixas de<br />
pau, sabe, usava assim. Aquilo ficava cheio de quitanda<br />
pra semana inteira. O dia de fazer quitanda, já<br />
de manhã ce<strong>do</strong>, ce<strong>do</strong>, mamãe tava lá, fazen<strong>do</strong>, enrolan<strong>do</strong>,<br />
fazen<strong>do</strong> as coisas, a massa da broa, a massa <strong>do</strong><br />
biscoito, aquela coisa toda, biscoito de polvilho <strong>do</strong>s<br />
grandes, sabe, mamãe fazia... era uma fartura, só cê<br />
ven<strong>do</strong>! Naquele tempo era uma beleza!<br />
O pessoal da Aurora... você já viu falar na<br />
Fazenda da Aurora? Gente de Farja<strong>do</strong>... Acho que<br />
tem aquela fazenda até hoje lá, né. Hoje lá até fábrica<br />
existe. Lá era uma beleza! Dia de sába<strong>do</strong> assim<br />
eles iam lá pra casa, aquele pessoal da Dona Ritinha<br />
Farja<strong>do</strong> ia lá pra casa, tinha piano, minha mãe tocava<br />
piano, e a gente cantava... era uma farra, sabe. Era<br />
bom demais! A minha infância foi uma beleza!<br />
As visitas... um <strong>do</strong>mingo eles vinha pra cá, outro<br />
<strong>do</strong>mingo nós ia pra lá. Eles iam muito lá pra casa<br />
porque mamãe tocava muito piano, tocava até tarde<br />
da noite. Mamãe tocava piano e tinha um professor,<br />
não sei quem é, eu era pequena, não me lembro mui-<br />
198
to, tocava violino. Tinha um que tocava flauta, não<br />
sei quem é mais; sei que era uma movimentação na<br />
roça, a gente não ia à cidade não. Divertia na roça.<br />
Eu era, nós era boba, tinha tanto me<strong>do</strong> da cidade!<br />
Quan<strong>do</strong> a gente via solda<strong>do</strong> agarrava na barra da<br />
saia da mamãe. Me<strong>do</strong> de solda<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> era peque-<br />
nininha. Vinha de carro de boi, punha tolda no carro<br />
de boi, tanto é que tinha uma pessoa... daquela gente<br />
<strong>do</strong> Samuel, ia pra roça, ficava lá às vezes quinze dias.<br />
Vinha carro de boi buscar eles na cidade. Minha casa<br />
era um movimento muito grande.<br />
A casa era grande, toda envidraçada! Não, não<br />
tinha (banheiro) era água na bacia. Dava uma trabalheira,<br />
né, esquentar água assim na bacia! Tinha (casinha)<br />
lá de fora, no terreiro. Eu conto sempre caso <strong>do</strong><br />
meu tempo. Os urinóis to<strong>do</strong>s tinham nome. Naquele<br />
tempo tinha muito médico em Cataguases e a mamãe<br />
conhecia muito médico, eles iam sempre lá em<br />
casa. Dr. Ventania, Dr. Pedro de Sá, Dr. Cavalcante e<br />
não sei mais quem... era uma porção de médicos e<br />
to<strong>do</strong>s... então os meus urinóis tinham nome. Na hora<br />
de tirar a gente falava: “agora vou tirar o fulano de<br />
tal.” É, nome <strong>do</strong>s médicos. Eles falavam que médico<br />
é <strong>do</strong>utor, e urinol tem apeli<strong>do</strong> de <strong>do</strong>utor. Mas a mamãe<br />
sempre teve empregadas boas. Nós tínhamos lavadeira<br />
e cozinheira dentro de casa. Mamãe nunca fi-<br />
199
cou sem empregada. Naquele tempo havia emprega-<br />
da. Eu lembro quan<strong>do</strong>... antes de mamãe... papai nos<br />
deixar... a gente andava de cavalo era cavalo de la<strong>do</strong>,<br />
assim, cilhão, não era igual montaria não, montaria<br />
veio depois, né! E... então papai tinha viaja<strong>do</strong>, e a empregada<br />
acabou de arrumar cozinha, a lavadeira também...<br />
ficava dentro de casa, tu<strong>do</strong> lá. De noite é que<br />
ia pra casa. Só a cozinheira que <strong>do</strong>rmia em casa. Mas<br />
então “agora nós vamos na roça, buscar verdura na<br />
roça...” umas verduras que dava no mato, cariru de<br />
porco, você já ouviu falar? Cariru de porco, e não sei<br />
mais o que, que nós vamos buscar na roça. Então nós<br />
fomos todas pra roça, as empregadas, a cozinheira, a<br />
lavadeira. Sei que moravam to<strong>do</strong>s dentro de casa. E...<br />
então mamãe viajou com papai e nós fomos pra roça<br />
buscar cariru de porco. Cobra gosta muito de cariru<br />
de porco. Aquelas coisas mais verdes, fresquinhas,<br />
cobra gosta muito de ficar ali dentro. Então tinha<br />
uma casa de colono, tinha caí<strong>do</strong>... ficou velha caiu, ficou<br />
caí<strong>do</strong> lá, ficou aquele sapé - você conhece sapé?<br />
- sapé que cobria a casa, ficou caí<strong>do</strong> lá, e tinha cobra<br />
lá debaixo. Sei que nós descemos para buscar cariru<br />
de porco, desceu to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> na frente, empregada<br />
na frente, outra atrás, corren<strong>do</strong>. A última que vinha<br />
atrás foi a minha irmã Cinoca. A cobra mordeu nela.<br />
Ela gritou: “Maria, Maria Rita, volta aqui, cobra<br />
200
me mordeu!” Aí ninguém apanhou cariru de porco,<br />
ninguém apanhou nada! Foi tu<strong>do</strong> embora corren<strong>do</strong><br />
lá pra casa. A mamãe não estava em casa nem papai.<br />
Usava... naquele tempo... homeopatia existia, um vi-<br />
drinho que fazia cura, negócio de cobra, mordida de<br />
cobra, sabe. Alguém trouxe uns, pôs umas coisas, um<br />
negócio assim. Não veio médico, não foi médico, não<br />
foi médico lá não. Acho que um senhor lá, e que sabia<br />
tratar, começou a tratar, botar remédio, dar remédio,<br />
pra beber também, de plantas. Não teve nada, não<br />
morreu, não ficou aleijada, não ficou nada. Botou re-<br />
médio de horta, remédio no pé, sei lá, sei que punha<br />
pano com leite... pra chupar, pra tirar veneno da co-<br />
bra, né, ensopava um pano com leite, tirava, depois<br />
tornava a por outro. O pano saía amarelinho, tirava<br />
o veneno da cobra. Não me recorda mais que eu era<br />
menina, também era mais nova <strong>do</strong> que ela. Sei que<br />
tomou o remédio. Ela sarou. Ficou muitos anos, uns<br />
três ou quatro anos sem andar, encostada numa muleta.<br />
Depois ficou boa. Até hoje ela tem o tornozelo<br />
meio incha<strong>do</strong> por causa <strong>do</strong> pé.<br />
(Eu) frequentava a (Igreja) Católica. Tanto é que<br />
nós estudamos no colégio interno, né. Frequentava,<br />
mas era muito difícil, a gente morava na roça, né. Mas<br />
eu não perdia uma missa de <strong>do</strong>mingo, isso é quan<strong>do</strong><br />
eu morava aqui, onde eu casei. Quan<strong>do</strong> eu morava<br />
201
antigamente né, no Rio Par<strong>do</strong>, perto da Aurora, lá<br />
não, fica fora de mão, muito difícil. Nem sei como é<br />
que a gente ia à missa. Agora, a Fazenda da Aurora<br />
era uma fazenda enorme! Era uma fazenda enorme!<br />
Era uma fazenda que não deixava a desejar nem pra<br />
cidade! Ela tinha um engenho de cana, engenho de<br />
café, fabrica de manteiga, tinha venda grande, tinha<br />
uma banda de música, campo de futebol... De maneira<br />
que o nosso movimento to<strong>do</strong> era lá.<br />
Nossa! Papai era assim uma coisa horrível!<br />
Exigente. Não podia sair pra parte nenhuma. Às vezes<br />
a gente quan<strong>do</strong> saía, dava umas fugidas, como<br />
por exemplo, uma ocasião nós... mamãe arranjou<br />
uma mentira com ele, nós fomos passar o carnaval<br />
em Ubá. O Carnaval! Uma beleza! Fugi<strong>do</strong> dele, ele<br />
não sabia onde nós tava. Mamãe... eu... acho... não sei<br />
se foi eu, a Ceição e a Cinoca, ou se foi eu e a Ceição<br />
só. Acho que a Cinoca também foi. Olha, mas eu era<br />
sirigaita pra baile, pra clube... Ih!... Nossa Senhora!<br />
Mas não podia ir, ele não deixava, não deixava a gente<br />
ir em baile não, Eu lembro numa ocasião que eu<br />
entrei num bloco aí, daquela gente de... como é que<br />
chama aquele farmacêutico... de Tostes. Eu entrei<br />
num bloco de “Pierrô” e “Pierrete”. Até atrapalhou<br />
o bloco, que o papai tirou a gente. Depois de tu<strong>do</strong><br />
arruma<strong>do</strong>, aquele branco e preto, tão bonito! Aquelas<br />
202
olas... Lembro tanto disso! Ele atrapalhou muito o<br />
bloco, duas “pierretes” saíram, eu e minha irmã.<br />
(O Carnaval) era no clube, Comercial Clube,<br />
mas eu ia fugida lá, nunca tive... olha, eu me lembro<br />
que uma ocasião que eu passei um baile lá... isso foi<br />
depois de casada. Um baile de passagem de ano, sabe.<br />
A D. Nair Peixoto era muito animada! Lembro<br />
tanto disso! Mas eu, por exemplo, o meu mari<strong>do</strong> era<br />
de sociedade, ele gostava de festa, de baile, tu<strong>do</strong>, mas<br />
e a filharada? Tenho 12 filhos.<br />
A gente vinha muito à cidade, uai! Antigamente<br />
isso aqui era uma coisinha pequenininha,<br />
não tinha jeito de cidade. Hoje é... tem um movimento<br />
grande, né. Passeava muito sabe, só não frequentava<br />
baile que ele não deixava. Mas a gente ia<br />
na praça. Antigamente minha filha... aquela praça<br />
ali, aquilo era uma coisa... não é aquele lixo que<br />
tem lá hoje, aquilo é um lixo, né, lá, aquela Praça<br />
Rui Barbosa é um lixo. Antigamente era uma beleza,<br />
era um jardim mesmo! Tinha canteiros... Tinha passagem<br />
embaixo e em cima; as moças passeavam em<br />
cima e os rapazes passeavam embaixo, sabe, nem<br />
sei explicar. Ah, mas era muito bonito ali! Só cê ven<strong>do</strong>!<br />
Antigamente a praça não era aquilo ali não, agora<br />
está muito diferente, muito diferente! Hoje está<br />
chique, tem coisa muito nova, mas nem se compara<br />
203
com antigamente. Tinha muitos bancos... eu lembro<br />
até que a gente passeava em cima - as moças - os<br />
rapazes passeavam na parte de baixo. As vezes eu<br />
tinha namora<strong>do</strong>, papai não queria... Então ele falava<br />
assim: “Eu vou lá pra cima.” Eu falava assim: “Você<br />
vem cá pra cima que eu vou lá pra baixo”. Eu falava<br />
pra ele porque papai zangava, sabe, papai não<br />
deixava a gente namorar não. Passear com namora<strong>do</strong>,<br />
Deus me livre! Não deixava, eu nem sei como<br />
a gente namorava. Namorava mesmo... Ele prendia,<br />
prendia, muito, papai.<br />
Minha filha, vou te falar uma coisa, sou tão<br />
presa! Tão presa! O papai prendia tanto a gente, que<br />
a gente não tem... não tô falan<strong>do</strong> com você? Clube...<br />
Comercial Clube, às vezes tinha um baile lá, ia escondi<strong>do</strong><br />
dele, ele vinha buscar a gente. Era uma brasa<br />
pra gente. Minha mãe era <strong>do</strong>ida pra festa. Foi criada<br />
em festa. Ela estu<strong>do</strong>u naquele... num colégio grande<br />
perto de São Diniz. Eu sei que ela tocava piano junto<br />
com o Dr. Astolfo (Dutra). Ela tocava, ele acompanhava,<br />
declamava, fazia coro sabe, estu<strong>do</strong>u junto com ele.<br />
Eu aprendi a tocar piano. Zé tocava música,<br />
tocava com meu mari<strong>do</strong>, tocava violino, tocava piano.<br />
Depois, a filharada entrou, acabou tu<strong>do</strong>. Ele tinha<br />
<strong>do</strong>is violinos... eu estava conversan<strong>do</strong> com minha<br />
menina aqui. Falei: “Minha filha, e os violinos de seu<br />
204
pai, heim?” Um senhor, vin<strong>do</strong> de lá de Governa<strong>do</strong>r<br />
Valadares, levou pra consertar, nunca mais nós vi-<br />
mos o violino. O violino, era daquele violino, ó... an-<br />
tigo, alemão.<br />
Nunca vi tanto filho! Dez filhos que eu tenho,<br />
né. Hoje só se tem <strong>do</strong>is, e olhe lá! Vinha mesmo, as-<br />
sim mesmo, não há isso que há hoje, hoje está uma<br />
beleza! Hoje você tem os filhos que quiser, que quiser<br />
ter. Nunca perdi nenhum, nunca teve um aborto, não<br />
tive nada! Graças a Deus! Dois eu tive com médico,<br />
porque foi muito demora<strong>do</strong> e tal, e veio o médico.<br />
Mas era parteira que fazia, D. Rosa Amaral... a gente<br />
antiga aqui de Cataguases. Tinha com ela. Mas <strong>do</strong>is...<br />
duas foi preciso médico. A primeira foi preciso, tava<br />
passan<strong>do</strong> <strong>do</strong> tempo e tal. Era o Dr. Edson Sicarini.<br />
Você já ouviu falar nele? Era um médico e tanto!<br />
Naquele tempo ninguém tinha criança no hospital,<br />
bem dizer, né. Hoje é só passar mal, e a beleza <strong>do</strong><br />
hospital, né. Eu era em casa mesmo. Era em casa que<br />
o Dr. Edson Sicarini fez meu parto sozinho. A parteira<br />
não era nem formada; D. Rosa Amaral. Prática,<br />
muita prática. Era mãe dessa gente de Cataguases,<br />
quase toda, as mais velhas, ela era a parteira. Depois<br />
é que foi acaban<strong>do</strong> esse negócio de parteira.<br />
Dr. Sicarini era um médico e tanto! De tu<strong>do</strong>!<br />
Depois que o menino acabou de nascer o Dr. Sicarini<br />
205
falou assim: “Nunca mais!” Quer dizer, fazer parto<br />
sozinho, né. Ele arriscou, uai! Podia ter perdi<strong>do</strong> eu,<br />
ou ter perdi<strong>do</strong> o menino e ter morri<strong>do</strong>. Foi mesmo<br />
um parto difícil. Essa última, a Silvinha, eu chamei<br />
o Dr... como é que chama, meu Deus, o médico... o<br />
<strong>do</strong>utor... Dr. Otônio. o Dr. Otônio era um médico e<br />
tanto!<br />
Ah, foi só criar filho, nem sei nada de alegria,<br />
quer dizer, tristeza também não tem, porque eu nun-<br />
ca perdi nenhum, graças a Deus. Só teve esse que fi-<br />
cou <strong>do</strong>ente que foi pro Rio tentar estudar medicina<br />
e a<strong>do</strong>eceu, não pôde continuar a estudar. Vem pra<br />
cá, <strong>do</strong>utor Edson (Rezende) olhou e não deu certo.<br />
Depois foi para Belo Horizonte, lá tratou e sarou, né,<br />
o Raul. Cuidava só de casa e de filho. Só. Não arreda-<br />
va pé pra nada. Passeio... nada.<br />
Entrevistada em 17/6/1991 por Glaucia Siqueira e Mariana Cândida<br />
206
207
S T E L L A A B R I TA A LV E S<br />
P R O F E S S O R A A P O S E N TA D A<br />
7 7 a n o s<br />
Eu escrevi aqui nesse livro: “Recordar<br />
é sofrer com saudades. O passa<strong>do</strong> nos faz sofrer, mas<br />
é dever de gratidão relembrar tu<strong>do</strong> que nos deu alegria,<br />
e to<strong>do</strong>s que foram tão bons amigos, carinhosos,<br />
principalmente nossos pais, irmãos”... Isso daí eu escrevi<br />
aqui, da minha cabeça, não é de ninguém não.<br />
A gente lembra sempre de to<strong>do</strong>s com saudade, né,<br />
às vezes a saudade dói. Às vezes eu fazia soneto no<br />
Colégio quan<strong>do</strong> eu era interna. Eu <strong>do</strong>rmia perto da<br />
janela, hora que a lua aparecia, pegava um caderno e<br />
começava a fazer. (Mas) quem era poeta era Oswal<strong>do</strong>,<br />
meu irmão. A Emilinha Quaresma é que gosta de falar<br />
que eu sou poetisa. Ah! Nada! Uns versos bobos<br />
que eu faço. O Joaquim (Branco) falava comigo que a<br />
Foto: Escola Normal, <strong>do</strong>rmitório, s/a, s/d, Departamento Municipal <strong>do</strong><br />
Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases<br />
209
minha poesia é <strong>do</strong> tipo espanhola. Não sei, Não en-<br />
ten<strong>do</strong>. Eu faço qualquer... de acor<strong>do</strong> com a atualida-<br />
de, o que acontece: um aniversário, um nascimento...<br />
Olha um rascunho de poesia minha aqui: “Sabe<strong>do</strong>ria<br />
Infinita”.<br />
“No começo: Adão e Eva<br />
amor: chave de tolerância<br />
tempo: chave de sofrimento<br />
Não em câmara lenta<br />
com sorriso, com lágrimas, com lamúria”.<br />
(Nasci) em Cataguarino. Vou fazer 77 (anos) no<br />
dia 29 de julho. Sou da idade <strong>do</strong> Padre Antônio. Meu<br />
pai chamava-se Boaventura José Abrita. (Minha mãe),<br />
Castorina Maria Abrita. Morreram novos, já falece-<br />
ram há muito anos. Minha mãe faleceu com 48 anos e<br />
meu pai faleceu em 1933, com cinquenta anos. O meu<br />
pai foi agente <strong>do</strong> correio de Cataguarino e era vere-<br />
a<strong>do</strong>r da Câmara Municipal de Cataguases, na época<br />
verea<strong>do</strong>r não tinha ônus nenhum. Trabalhava por<br />
amor a política. De vez em quan<strong>do</strong> ele falava com a<br />
minha mãe assim: “Apronta a minha roupa que ama-<br />
nhã tem reunião lá na Prefeitura, eu tenho que ir”.<br />
Então tinha que pegar cavalo, comparecer no dia se-<br />
guinte nas reuniões. Nessa época que ele era verea<strong>do</strong>r<br />
210
não tinha estrada. Era mesmo só para carro de boi e<br />
cavalo. Quase não ia carro. La em Cataguarino, pa-<br />
ra ir um carro naquela época era um... Uma história.<br />
Quan<strong>do</strong> chegava um carro, o arraial ficava em festa.<br />
Não tinha luz elétrica, não tinha instalação de água,<br />
era muito atrasa<strong>do</strong> mesmo. E quem começou, deu a<br />
primeira melhoria em Cataguarino foi o João Peixoto,<br />
que colocou a luz. Foi o primeiro prefeito que se in-<br />
teressou por Cataguarino. E na política, na época da<br />
política feminina, quem iniciou mesmo pra trabalhar<br />
em Cataguarino fui eu. Na época eu subia serra atrás<br />
de voto feminino. Os políticos daqui daquela época<br />
eram o Dr. San<strong>do</strong>val Soares de Azeve<strong>do</strong> e o Sr. Alípio<br />
Vaz. Foi uma época de muita luta, muita briga de po-<br />
lítica. Nessa época o Dr. Pedro (Dutra) já trabalhava<br />
na política. Meu pai era contra o Dr. Pedro e a favor<br />
<strong>do</strong> Dr. San<strong>do</strong>val. Ele me apanhou no Cataguarino pra<br />
estudar aqui em Cataguases. Eu era apaixonada com<br />
política! No início (<strong>do</strong> voto feminino) eu ia completar<br />
dezenove anos. Vou te falar na gíria: achei um bara-<br />
to! Aquilo deu pra fazer movimento. O meu pai me<br />
deixou trabalhar bastante. A gente vinha até aqui em<br />
Cataguases pra trazer os eleitores. A minha parte foi<br />
a Serra da Onça, lá no alto <strong>do</strong> Retiro. Então eu subia...<br />
o carro levava e depois a gente subia a pé pra ir lá em<br />
cima, porque o carro não subia, ele ficava lá em baixo.<br />
211
A gente ia a pé. Então precisava de tirar o sapato... Eu<br />
tinha saí<strong>do</strong> <strong>do</strong> internato, né, com os pezinhos bem fi-<br />
ninhos... quan<strong>do</strong> chegava lá na minha casa, tinha que<br />
dar banho de água de sal nos pés, porque estava to<strong>do</strong><br />
machuca<strong>do</strong>, de tanto andar naquele pedregulho lá da<br />
Serra da Onça. Consegui bastante eleitores. Aí meu<br />
pai falou comigo: “agora você toma conta dessa tur-<br />
ma”. Aí ele tinha que contratar um carro e trazer aqui<br />
na cidade pra poder fazer a inscrição. (Os mari<strong>do</strong>s)<br />
concordavam. Eu trazia as mulheres todas aqui.<br />
(Minha infância) foi um pouco tolhida. Meu<br />
pai era muito severo. A gente não podia brincar até<br />
tarde da noite... lá não tinha luz. Às vezes, na época<br />
de lua, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tava brincan<strong>do</strong>, a gente só ficava<br />
ate às oito horas. Às oito horas tinha que deitar, tinha<br />
que <strong>do</strong>rmir cedinho. Meu pai era bonzinho, cuidava<br />
muito das coisas, trabalhava muito, tu<strong>do</strong> que podia<br />
dar à gente ele dava, preocupava com os estu<strong>do</strong>s da<br />
gente... tanto que ele man<strong>do</strong>u o Oswal<strong>do</strong> aqui pro<br />
colégio <strong>do</strong> Antônio Amaro (Ginásio de Cataguases)<br />
e me man<strong>do</strong>u aqui pra Escola Normal pra eu estudar<br />
interna, né, com 13 anos, mas por muita insistência<br />
<strong>do</strong> Dr. San<strong>do</strong>val e <strong>do</strong> Alípio Vaz.<br />
Quan<strong>do</strong> eu nasci, (Cataguarino) chamava<br />
Empossa<strong>do</strong>. (Minha) casa (era) assim um sobra-<br />
<strong>do</strong>, <strong>do</strong>is andares, eu achava bonita. Quan<strong>do</strong> lá no<br />
212
Cataguarino aparecia circo, meu pai deixava fazer -<br />
debaixo tinha um porão grande - o meu pai deixa-<br />
va até fazer um circo. A minha mãe falou que no dia<br />
que eu nasci, tinha um circo debaixo <strong>do</strong> quarto. Lá<br />
em casa era tu<strong>do</strong>. Às vezes servia até pra prender os<br />
ladrões. Quan<strong>do</strong> a polícia ia dar uma batida, pegava<br />
os ladrões - lá não tinha cadeia - quan<strong>do</strong> era tarde da<br />
noite prendia lá os crioulos pelos pés. Muitos ladrões<br />
de cavalo. A roubaria mais lá no Cataguarino era de<br />
cavalo. E também tocaia. Tinha muita tocaia lá no<br />
Cataguarino. Constante tinha um cadáver lá na es-<br />
trada. Por qualquer coisa eles brigavam. Tinha muita<br />
cachaça e negócio de peão montar na rua. Cada um<br />
queria lançar o campeão... o peão melhor... Quan<strong>do</strong><br />
acabava aquele negócio, era briga certa. Cachaçada.<br />
Eu acho que eles ganham pra isso, pra amansar cava-<br />
lo, amansar burro. Gente brava mesmo.<br />
Fui reprimida. Até os 13 anos a gente ficava lá<br />
no Cataguarino. Festa que tinha lá era coroação, brin-<br />
que<strong>do</strong> de roda, as coisas durante o dia; mas à noite a<br />
gente não podia brincar de roda na rua porque tinha<br />
escuridão. Quan<strong>do</strong> tinha luar, meu pai punha a gente<br />
pra <strong>do</strong>rmir às 8 horas.<br />
Lá em Cataguarino, nas férias, a gente passava<br />
uma vida! Como é que a gente ficava lá? Passar as<br />
férias... eu tinha 16 anos e um namora<strong>do</strong> que mora-<br />
213
va em Juiz de Fora. Ele tinha dezoito (anos). E pra<br />
conversar com ele? Só cê ven<strong>do</strong> que sacrifício! Era<br />
demais. Eu me lembro uma vez que meu pai esta-<br />
va meio a<strong>do</strong>enta<strong>do</strong>, ele falou: “Vou deitar um pou-<br />
quinho”. Eu falei: “Gracas a Deus, agora eu vou dar<br />
uma voltinha”. E saí. O rapaz vinha de Juiz de Fora<br />
ficar com um irmão dele que era farmacêutico no<br />
Cataguarino. Passei na farmácia, comecei a conver-<br />
sar com ele, chegou o papai: “Que que cê ta fazen<strong>do</strong><br />
aí, menina?” Ih pai, saí pra comprar agulha, o senhor<br />
não viu que eu deixei a maquina aberta? Ele falou as-<br />
sim: “Ah é? Comprar agulha em farmácia?”<br />
Do internato, tanta lembrança... era bom, eu<br />
gostava. (As irmãs) não tratavam ninguém mal.<br />
Carinhosas... Só muito severas. A gente não podia,<br />
por exemplo, passar na portaria. Se passasse, tinha<br />
que ficar de castigo. Lá no colégio eu fazia parte da<br />
Congregação <strong>do</strong>s Santos Anjos e me puseram como<br />
conselheira geral da irmandade e tinha uma fitinha<br />
cor-de-rosa que punha no pescoço. Eu era a santinha<br />
lá <strong>do</strong> colégio, uma santa <strong>do</strong> pau-oco. Eu dava nó em<br />
fumaça. Sabe o que eu fazia? Combinava com umas<br />
três meninas, Falava assim: “<strong>Ó</strong>, nós temos que arranjar<br />
uma paquera. Você faz o seguinte: ‘Vai falar que<br />
esta com <strong>do</strong>r de dente’”; a outra com <strong>do</strong>r de dente, a<br />
outra com <strong>do</strong>r de dente. Com três meninas com <strong>do</strong>r<br />
214
de dente, as Irmãs mandavam a gente pro dentista.<br />
Então a gente paquerava os filhos <strong>do</strong> pessoal da Casa<br />
Matos. O Waldir Matos com os irmãos dele. Eles ti-<br />
nham uma casa de comércio lá perto <strong>do</strong> Meia Pataca,<br />
em frente de Conceição Quaresma, aquela casa alta.<br />
Naquela casa morava o Sr. João Guimarães, dentista.<br />
Três (meninas) era bom. Enquanto uma estava no ga-<br />
binete dentário, a outra estava na janela namoran<strong>do</strong>.<br />
O dentista até me quebrou um dente de tanto que eu<br />
falar que meu dente <strong>do</strong>ía. Espatifou meu dente bom.<br />
Cataguases... a Praça Santa Rita... a gente pas-<br />
seava de vez em quan<strong>do</strong>, fazia umas barraquinhas...<br />
não tinha calçamento, era só terra; duas palmeiras<br />
bonitas e aquela igreja linda que foi desmanchada.<br />
As irmãs de vez em quan<strong>do</strong> deixavam a gente fazer<br />
barraquinha em benefício. Aquela Capela da Escola<br />
Normal foi construída quase que com nossa turma.<br />
E aqui a Praça Rui Barbosa... o “footing”. As moças<br />
prum la<strong>do</strong> e os rapazes pro outro la<strong>do</strong>, era engraça<strong>do</strong>.<br />
Ali onde mora a Nancy de Souza, na Praça<br />
Santa Rita, tinha um birô eleitoral (onde) eu trazia<br />
as mulheres pra fazer inscrição. Foi assim que pegou<br />
o meu namoro com o Domingos Ciribelli Alves. Eu<br />
já tinha si<strong>do</strong> apresentada a ele no dia 1º de dezem-<br />
bro de 1932, na minha festa de formatura. Bom, me<br />
marcou. Desde essa época pra cá... ele também tra-<br />
215
alhava muito no birô <strong>do</strong> Dr. Pedro, e aquele bate-<br />
papo pra cá, bate-papo pra lá... começou o namoro<br />
com ele. O Domingos nasceu em Miraí. (A família)<br />
mu<strong>do</strong>u pra Cataguases, ele era rapazinho novo; tra-<br />
balhava com o Sr. Humberto Henriques e o Sr. Janir.<br />
Era auxiliar da Coletoria. (Aí) comecei a frequentar<br />
a sociedade. Quan<strong>do</strong> havia baile no Comercial, os<br />
rapazes entravam to<strong>do</strong>s de branco, baile de verão.<br />
Noite de inverno já era outro tipo de roupa. Naquela<br />
época os bailes eram muito chiques. Tinha um espe-<br />
lho bisotê em volta <strong>do</strong> salão. Então, na noite de inver-<br />
no - eu era membro da comissão - enfeitava o espelho,<br />
o lustre, tu<strong>do</strong> de algodão. Ficava como neve, tu<strong>do</strong><br />
penduradinho lá. Muito bonito! (As moças) sempre<br />
de longo, principalmente a comissão. Uma semana<br />
antes a gente trabalhava, fazen<strong>do</strong> barbante, aqueles<br />
algodões com papel <strong>do</strong>uradinho... a gente aproveitava<br />
até aquele papelzinho de cigarro para dar reflexo<br />
no salão. Não tinha orquestra. Quase sempre Aída<br />
Ribeiro no piano. A gente dançava a noite toda. As<br />
moças usavam decote até o meio da cintura. Na frente<br />
tapadinho, coberto.<br />
Quan<strong>do</strong> eu saí <strong>do</strong> internato, que eu vim trabalhar<br />
comecei a namorar sério o Domingos. Eu era<br />
sozinha aqui na cidade e pagava pensão. Então eu<br />
ía ao circo com ele todas as noites, eu ia em baile<br />
216
com ele... aos <strong>do</strong>mingos, eu, ele e o motorista fomos<br />
jantar lá em Ubá, na casa <strong>do</strong> irmão dele que era ge-<br />
rente <strong>do</strong> Crédito Real. E língua cascan<strong>do</strong>, o pessoal<br />
falan<strong>do</strong> que isso não tava direito, que minha mãe<br />
ficava lá em Cataguarino, não sabia da minha vida...<br />
e eu não tava nem aí, ó. Vinha às duas horas<br />
da madrugada <strong>do</strong> circo. O Rubens Cunha me cortou<br />
na língua com o Seu Fortunato. “O Fortunato, se<br />
eu fosse você não ficava com essa menina na casa<br />
não, que ela está com um namoro muito adianta<strong>do</strong>.<br />
Você porque não sabe. Olha, chega tarde em casa, cinema<br />
acaba tarde, fica conversan<strong>do</strong> toda a vida na<br />
porta”. Ih, mas o Rubens Cunha me estragou, sabe,<br />
mas eu nem me incomodei, falei assim: “Não estou<br />
nem aí com conversa”. Muita que passou, eu falei:<br />
“Primeiro o temor de Deus e deixa o resto”. A gente<br />
nesse mun<strong>do</strong> tem que ter temor de Deus. Então,<br />
nessa ocasião, eu passei por uma experiência engraçada.<br />
Eu achava graça. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> batia asas. Eles<br />
falam hoje: “Ah, que antigamente... eu não fazia isso,<br />
eu não beijava namora<strong>do</strong>, não sei o que...” que não<br />
beijava o quê! Saltava até janela pra conversar com o<br />
namora<strong>do</strong>! Quan<strong>do</strong> a família tinha melhor estrutura,<br />
uma educação mais fina, respeitavam e davam um<br />
jeito de amenizar, de esconder. (Quan<strong>do</strong>) eu morei<br />
em Teixeiras, a sobrinha <strong>do</strong> prefeito engravi<strong>do</strong>u e<br />
217
eles ficaram com ela direitinho. Quan<strong>do</strong> o menino<br />
tinha nove anos, ela arranjou um ótimo casamen-<br />
to. Aqui em Cataguases eu me lembro de uma mo-<br />
ça muito bonita que era professora em Rio Branco.<br />
Ela engravi<strong>do</strong>u e o pai botou ela pra fora. Então ela<br />
veio ficar aqui na zona, tinha uma zona aqui onde é<br />
a Telemig. Naquela época o ruim era isso, o pai da<br />
criança não assumia. Agora já é diferente, a maioria<br />
assume, não existe o preconceito que havia antiga-<br />
mente. Coitadinha da moça, ficava isolada! Muitas<br />
faziam o aborto, iam pro Rio, pra Juiz de Fora... Mas<br />
eu saí <strong>do</strong> internato, bobinha como ninguém, tinha<br />
muito temor a Deus, tinha um me<strong>do</strong> dana<strong>do</strong> de pe-<br />
car. Comigo não tinha perigo não.<br />
Ainda ontem mesmo eu tive uma conversa<br />
aqui <strong>do</strong> internato. (O Domingos), casei com ele, tinha<br />
uma namorada aqui em Cataguases que era filha <strong>do</strong><br />
coletor, e esse coletor morava ali, naquela casa que<br />
tinha si<strong>do</strong> <strong>do</strong> Enrique de Resende, (que) passou pa-<br />
ra o João Peixoto. Por sinal ela era minha colega, ex-<br />
terna, e eu interna. Então, por causa <strong>do</strong> namoro <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>is, que era muito avança<strong>do</strong>, o pai botou ela interna.<br />
Então a Madre Madalena falou assim: Olha aqui, a<br />
Marta - que era a namorada dele - vai <strong>do</strong>rmir perto<br />
de você aqui no <strong>do</strong>rmitório. E a Marta chorava que<br />
era uma coisa horrível! Eu perguntava: “ô Marta, por<br />
218
que você está choran<strong>do</strong>?” Não falava nada. Quan<strong>do</strong><br />
foi uma noite, a Marta subiu na beirada da janela;<br />
quan<strong>do</strong> abri os olhos vi a Marta na janela pra suici-<br />
dar. Passei a mão na camisola dela e fiz “buf” com ela<br />
no chão. Fui até a sala das Irmãs e a Madre Joselina<br />
falou: “o quê que foi? Eu falei assim: “A Marta que-<br />
ria pular da janela e eu a segurei”. No dia seguinte<br />
foi aquele sururu. As Irmãs falaram com o pai, que<br />
a Marta não podia continuar interna porque estava<br />
com umas ideias muito extravagantes. Aí ela prome-<br />
teu. Falei: “<strong>Ô</strong> Marta, você <strong>do</strong>rme perto de mim, não<br />
faz arte não, senão como é que eu fico? Os outros vão<br />
pensar que eu te joguei da janela abaixo, não vai fa-<br />
zer uma bobagem dessa não”. Ela falou: “Não, não<br />
vou fazer mais, pode deixar”. Passou. Também na<br />
hora <strong>do</strong> recreio eu tinha que ficar fiscalizan<strong>do</strong> a tur-<br />
minha toda: o que estava acontecen<strong>do</strong>, quem estava<br />
de bolinho, quem ficava de conversa... e acompa-<br />
nhan<strong>do</strong> a Marta. A Marta vai lá pro canto, vou eu de<br />
olho atrás dela. Então eu vi a Marta assim na beirada<br />
<strong>do</strong> muro, entregan<strong>do</strong> um bilhete pro emprega<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
quintal. Fiquei quieta e chamei a irmã Catarina, falei:<br />
“Irmã Catarina, a Marta entregou um bilhetinho pro<br />
seu Gastão”. Ai ela falou: “Vou ver o que é”. “Vem<br />
aqui, Gastão, escuta aqui, me dá esse papel que está<br />
no seu bolso”. Ele falou assim: “Não tem papel não,<br />
219
Irmã Catarina”. Agora ela: “Tem. Me dá esse papel<br />
que a menina te entregou”. Ele ficou tremen<strong>do</strong> um<br />
mucadinho e entregou o papel. A irmã Catarina leu<br />
assim: “Aqui no Colégio tem muito rato, preciso de<br />
arsênico”. Pedin<strong>do</strong> pra comprar arsênico! Aquele dia<br />
acendeu mesmo a fogueira no Colégio! A Marta estava<br />
queren<strong>do</strong> apanhar arsênico pra tentar suicídio<br />
por causa <strong>do</strong> Domingos. Aí veio tu<strong>do</strong>: o pai, a mãe,<br />
ele... eu fui lá na sala pra confirmar... eu nem me<br />
lembro mais como era a cara dele na época. O pai e<br />
a mãe levaram pra casa. Então o pai dela ficou desorienta<strong>do</strong>,<br />
porque ela tinha que estudar. Man<strong>do</strong>u<br />
ela pro Colégio Salesiano em Muriaé. Botou externa.<br />
Daí mucadinho ela começou a fazer programa com o<br />
Sady Men<strong>do</strong>nça lá em Muriaé. Ele era um fazendeiro.<br />
Nessa ocasião o Sady era solteiro. Foi aquele sururu.<br />
De Muriaé, o pai resolveu mudar pra Barbacena. Lá<br />
ela arranjou um casamento com um joga<strong>do</strong>r de futebol.<br />
Acabou a novela da Marta. Eu já tinha casa<strong>do</strong><br />
com o Domingos, não sabia que a história era com ele<br />
não. Então um dia, depois de casa<strong>do</strong>, ele foi fazer um<br />
curso lá em Barbacena. Chegou e falou assim: “Você<br />
não sabe com quem eu encontrei lá em Barbacena?<br />
Falei: “Com quem?” “Com a Marta”. Falei: “Que<br />
que tem a Marta?” “Ela ficou contan<strong>do</strong> o caso <strong>do</strong><br />
Colégio”. Que eu nem sabia que era com ele.<br />
220
Me formei em (19)32. Naquela época era só po-<br />
lítica. Então comecei a trabalhar no dia 15 de outubro<br />
de (19)33, uma vaga que o Dr. Pedro me arranjou no<br />
(grupo) Astolfo Dutra, substituin<strong>do</strong> a Ema Ciodaro.<br />
(Era) irmã <strong>do</strong> Seu João Ciodaro. Ela foi dirigir um<br />
grupo em Belo Horizonte. Aí eu fiquei trabalhan<strong>do</strong><br />
de (19)33, (19)34... trabalhei (19)35 também. No fim<br />
de (19)35, dezembro, me casei. Quan<strong>do</strong> eu voltei pro<br />
grupo em (19)36, entrei na sala de aula pra turma<br />
<strong>do</strong>... <strong>do</strong> Gelson Rocha, Roberto Sachetto, da Carmem<br />
Souza, <strong>do</strong> Ladário Faria... a Isabel Henriques... então<br />
eu tava na sala de aula quan<strong>do</strong> entrou o Custódio<br />
Leite, naquela época era inspetor. Eu dan<strong>do</strong> aula,<br />
ele entrou e falou assim: “Ah, de agora em diante a<br />
senhora está dispensada.” Aí comecei a chorar dentro<br />
da sala de aula. “Ah, por que dispensada?” “É<br />
porque aqui tem outra professora”. Era a Emília<br />
Carvalheira. “Por ordem <strong>do</strong> Sr. Manoel Peixoto, a<br />
Sra. está dispensada. A Sra. nos dá muito prazer<br />
de ficar aqui no grupo, passear, visitar os seus alunos...”<br />
Então eu tive que sair da sala e entrou a Emília<br />
Carvalheira... tive um trauma! Como eu sofri! Aí eu<br />
fui pra casa, naquele bangalozinho, perto onde mora<br />
a Isabel Salga<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> eu casei, morei ali. Cheguei<br />
lá de manhã, choran<strong>do</strong>. O meu mari<strong>do</strong> passou a mão<br />
num revólver e queria ir lá pra matar o Custódio. Eu<br />
221
falei “Não, não vai fazer isso não, deixa ficar.” Passou.<br />
Depois o Manoel Peixoto falou que eu trabalhei pro<br />
Pedro Dutra e todas pessoas que tinham trabalha<strong>do</strong><br />
pro Dr. Pedro tinham que desocupar o Grupo. Ele<br />
ganhou pra Deputa<strong>do</strong> Estadual. Um dia encontrei<br />
com a D. Ondina (Esposa <strong>do</strong> Manoel Peixoto) e ela<br />
falou assim: “Onde você trabalha, minha filha?” Eu<br />
falei assim: “Agora não trabalho em lugar nenhum,<br />
D. Ondina, já deixei o grupo muito tempo.” “Oh, você<br />
não está no grupo mais não.” Não levei a conversa<br />
pra frente. Deixei pra lá. E com o passar <strong>do</strong>s anos...<br />
fiquei viúva. (Fui) casada quinze anos. E logo que fiquei<br />
viúva, fiquei sem trabalhar, mas precisava trabalhar.<br />
Um dia a Tereza Ladeira chegou lá (em casa)<br />
e falou assim: “Stella, você não tem uns livros aí da<br />
Biblioteca <strong>do</strong> SESI?” O João Batista, meu filho, frequentava<br />
a biblioteca. Então ficou trazen<strong>do</strong> livro pra<br />
casa e não entregava. Eu falei: “não sei, Tereza, tem?”<br />
Ela: “Seu menino precisava de dar um jeito de entregar<br />
os livros.” Aí eu olhei pro guarda roupa dele e<br />
tinha uns livros mesmo. A Tereza falou assim: “Ih, eu<br />
vou te falar um negócio: eu estou mais apertada não<br />
é por causa <strong>do</strong>s livros não, é porque o curso supletivo<br />
<strong>do</strong> SESI vai acabar, eu não tenho uma professora<br />
pra esse curso”. Eu falei: “Muito bonito! Eu fiz a inscrição<br />
pra professora no SESI, mas era o Adail Matos<br />
222
com a Lupi Siqueira que estavam lá na liderança. Ela<br />
falava: “Ah, você não pode mais entrar pro SESI, de-<br />
pois de 35 anos não pode candidatar a professora no<br />
SESI”. Não consegui, né. Eu falei: “Tereza, eu não<br />
posso...” ela falou assim: “Você podia ir lá pro SESI<br />
agora, pra ver se fica alguns dia como professora <strong>do</strong><br />
curso supletivo, porque já correram onze candidatas,<br />
elas não aguentam o trabalho da noite com adulto.<br />
Você podia... porque senão... o diretor falou que vai<br />
mover o curso supletivo. Você vai lá pro SESI porque<br />
tem uma semana que estou pelejan<strong>do</strong> pra segurar o<br />
curso supletivo”. “Mas Tereza, eu não vou poder, eu<br />
já estou com 38 anos, e também aquele serviço <strong>do</strong><br />
SESI é impossível”. Eu tinha olha<strong>do</strong> o serviço de uma<br />
professora, irmã <strong>do</strong> Américo da Caçula. O serviço<br />
<strong>do</strong> SESI é muito complica<strong>do</strong>, eram nove folhas pra<br />
um serviço de um mês de aula. Era demais! Muito<br />
cheio de burocracia. Aí: “Bom, você vai lá, toma con-<br />
ta das aulas e eu faço o serviço”. Nessa ocasião a<br />
Naudir Macha<strong>do</strong> tinha um curso em Belo Horizonte<br />
e ficou lá como orienta<strong>do</strong>ra, na época que eu entrei.<br />
A Naudir falou: “Você vai fican<strong>do</strong> por aí”. Eu disse:<br />
“Tá bem, eu <strong>do</strong>u as aulas”. De repente lá no Senai<br />
(empresta<strong>do</strong> ao SESI), estava com quarenta alunos<br />
na turma. Eu falei: “bom, vou empregar o méto<strong>do</strong><br />
global, que aprendi na época <strong>do</strong> colégio, e a Naudir<br />
223
vai observan<strong>do</strong>”. Foi in<strong>do</strong>, chegou o fim <strong>do</strong> mês, a<br />
Tereza falou assim: “Ah, difícil... não fui eu que dei<br />
aula e agora eu é que vou fazer o serviço... você po-<br />
dia ver como é que faz “. Comecei a olhar e falei as-<br />
sim: “Você precisa me dar três dias pra eu olhar es-<br />
se serviço”. Nesses três dias veio uma modificação.<br />
Eu li direitinho as orientações. Falei: “Naudir, nem<br />
Tereza, nem ninguém precisa de olhar. Deixa quebrar<br />
a cabeça com isso lá na minha casa que eu vou fa-<br />
zer o serviço”. E fiz. Aí a gente passou a trabalhar na<br />
Rua <strong>do</strong> Pomba. Eles comecaram (o SESI) na prefei-<br />
tura com corte e costura, mas quan<strong>do</strong> veio o curso<br />
supletivo, não tinha lugar, foi lá pro Senai. Você ima-<br />
gina, onze moças concursadas, nenhuma aguentou a<br />
turma de adultos. Então eu fiquei. Mandaram eu as-<br />
sinar o serviço, eu assinei como substituta. Aí comu-<br />
nicaram a Belo Horizonte e a direção <strong>do</strong> SESI lá man-<br />
<strong>do</strong>u que eu ficasse uns três meses como experiência.<br />
Fiquei três meses e me mandaram a carteira, to<strong>do</strong>s<br />
os <strong>do</strong>cumentos. Fui fican<strong>do</strong>. Tinha reunião em Belo<br />
Horizonte, eu ia: ninguém nunca tinha me pedi<strong>do</strong><br />
diploma, nem nada de concurso. Quan<strong>do</strong> tinha uns<br />
seis meses, veio um elogio imenso, porque eu man-<br />
dei um trabalho feito com uma árvore genealógica<br />
de Cataguases. Então a Marlene Sete Câmara levou<br />
pro Rio e o trabalho foi muito elogia<strong>do</strong>, e eu fiquei<br />
224
satisfeita. Foi passan<strong>do</strong> o tempo, fui trabalhan<strong>do</strong> e<br />
estudan<strong>do</strong>. Na época eu alfabetizei uns mil operá-<br />
rios dessas fábricas. (Fiquei) vinte (anos) no SESI. Na<br />
época que eu entrei, to<strong>do</strong>s escreviam com impressão<br />
digital. Esse verea<strong>do</strong>r, Jorge Sales, foi meu aluno tam-<br />
bém. Então eles traziam os pagamentos, aquela coisa,<br />
eu dava mais uma aula prática pra eles. Aprendiam a<br />
controlar o desconto <strong>do</strong> sindicato, a encher cheque...<br />
o negócio foi passan<strong>do</strong>... quan<strong>do</strong> chegou uma ordem<br />
aqui que todas as não concursadas seriam dispensa-<br />
das <strong>do</strong> serviço. Falei: “Agora é hora”. Mas eu já ti-<br />
nha passa<strong>do</strong> de dez anos, né, tinha estabilidade. Fui a<br />
única no Esta<strong>do</strong> de Minas Gerais que permaneci. Foi<br />
até... eu fui dispensada pela política <strong>do</strong>s Peixoto, e<br />
trabalhei a favor da política <strong>do</strong>s Peixoto ensinan<strong>do</strong><br />
a fazer requerimento depois pra eleitores, ensinan<strong>do</strong><br />
os analfabetos. Trabalhei com os operários para eles<br />
poderem votar nos Peixoto. Eu ajudava e nunca en-<br />
trei em conversa política. A gente nesse mun<strong>do</strong> tem<br />
que ser assim, deixar a coisa passar. Fiz meu enxoval<br />
dentro da casa da Eponina Peixoto. Nunca briguei<br />
com ninguém. Conversava muito com a D. Ondina...<br />
depois eu fui muito elogiada pelos próprios Peixoto.<br />
Trabalhei até dentro da área da Industrial.<br />
O meu irmão, Osval<strong>do</strong> Abritta, fazia parte da<br />
Verde. Está escrito aqui: “Faleci<strong>do</strong> aos 28 de feverei-<br />
225
o de (19)47 em Carandaí.” Muito novo. Ia completar<br />
39 anos. Tem umas poesias aqui... ele era apaixona<strong>do</strong><br />
pela Zoraide Guimarães. Casou com outra, mas mor-<br />
reu apaixona<strong>do</strong> pela Zoraide. Foi através <strong>do</strong> Grêmio<br />
Literário Macha<strong>do</strong> de Assis que nasceu a “Verde”.<br />
To<strong>do</strong>s amigos frequentavam o Colégio de Cataguases.<br />
Eu tenho to<strong>do</strong>s os capítulos da Verde, os poemas de-<br />
le. Eram cheios de esperança. Com o afastamento de<br />
um pra cada la<strong>do</strong>, a “Verde” morreu verde. (Mas) ela<br />
deixou um bom exemplo de literatura. O Osval<strong>do</strong><br />
foi embora para Belo Horizonte com o Guilhermino<br />
César. Rosário Fusco partiu pra outro la<strong>do</strong>, o Ascânio<br />
morreu... o (Osval<strong>do</strong>) fazia direito em Belo Horizonte.<br />
Foi juiz municipal em Carandaí. Morreu como juiz.<br />
Na ocasião, a política que ele liderava perdeu. O che-<br />
fe da outra política sabe o que fez? Prendeu os eleito-<br />
res dele e deu purgante de azeite! Fez uma maldade<br />
louca! Ele ficou super apaixona<strong>do</strong> e foi fican<strong>do</strong> <strong>do</strong>en-<br />
te, até aparecer com cirrose. E outro (irmão), morreu<br />
como desembarga<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Rio.<br />
(Fiquei casada) quinze anos, mas eu conto só<br />
treze, porque <strong>do</strong>is anos eu fiquei no Rio com a minha<br />
filha mais velha - Mariangela - que sofreu encefalite<br />
com quatro anos. Vinha em casa passear, arranjava<br />
um filho voltava pro Rio. Depois Domingos ia pas-<br />
sear lá, arranjava outro filho. O negócio ficou assim,<br />
226
constituin<strong>do</strong> família no maior sacrifício. Nove filhos.<br />
O primeiro parto, um casal de gêmeos, que é essa que<br />
sofreu encefalite; perdi o outro por descui<strong>do</strong> médico,<br />
porque a gente não fazia pré-natal. A menina nasceu<br />
de parto normal, de la<strong>do</strong>, e deu muito trabalho, e o<br />
menino ficou, o médico não sabia que tinha outra<br />
criança. Nasceu depois com três quilos e duzentos,<br />
já com o sangue to<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> pelo cordão umbilical.<br />
Eu nunca fiz exame ginecológico. Não se usava. O Dr.<br />
Edson Rezende, coita<strong>do</strong>, até chorou. Falou que sentia<br />
muito, mas ele nunca tinha feito parto de gêmeos<br />
com uma placenta só. Depois eu tive mais <strong>do</strong>is meninos<br />
gêmeos, perdi também. Tu<strong>do</strong> isso pela falta de<br />
progresso de Cataguases, porque os meninos nasceram<br />
com seis meses e quinze dias, muito gordinhos...<br />
o Hospital não tinha estufa nem balão de oxigênio.<br />
Ficou combina<strong>do</strong> que eles iam ser leva<strong>do</strong>s pro Rio,<br />
mas daqui pro Rio eles poderiam morrer. Os meninos<br />
foram esfrian<strong>do</strong>, esfrian<strong>do</strong>... perdi três homens.<br />
Comecei a fazer a novena <strong>do</strong> São Geral<strong>do</strong> Magela e<br />
falei com a Mariangela: “minha filha, reza pro papai<br />
<strong>do</strong> céu dar a gente um irmãozinho, que ele vai chamar<br />
Geral<strong>do</strong> Magela”. Fiz a novena. Marquei direitinho:<br />
<strong>do</strong> quinto dia da novena ao nono dia, eu engravidei.<br />
Então arranjei a caminha, peguei uma estampa<br />
de São Geral<strong>do</strong>, coloquei na cabeceira, falei assim:<br />
227
“Agora São Geral<strong>do</strong> vai me dar um menino, um fi-<br />
lho, que eu quero um filho”. Passei uma gravidez óti-<br />
ma. Morava em Astolfo Dutra. O Teotônio Lourenço<br />
vinha a Cataguases sempre de moto e falava assim:<br />
“o que vai trazer hoje pro nenê?” Porque em Astolfo<br />
Dutra não tinha nada. Eu falava: ‘’Traz um abacaxi<br />
gostoso, Teotônio”. Ele levava. No dia seguinte ele<br />
falava assim:<br />
“Nenê quer outra fruta?”. “Então traz maçã”.<br />
E foi assim. Passei uma gravidez ótima, comen<strong>do</strong><br />
muita fruta. O parto foi natural. Ele nasceu com qua-<br />
tro quilos e duzentas gramas, com o Dr. Antonio, ir-<br />
mão da Zezé Cortes. Depois dessa época não perdi<br />
mais não.<br />
Meu mari<strong>do</strong> era um santo! Uma santa criatura.<br />
Ele trabalhava na Coletoria e eu então de tarde<br />
arrumava as crianças, mudava roupinha, levava pra<br />
esperar ali na praça - nessa ocasião já tinha volta<strong>do</strong><br />
pra Cataguases, como escrivão - então a gente encontrava<br />
naquela alegria. Jantava com as crianças às 6<br />
horas. Ele falava assim:<br />
“Minha filha, você está cansada de olhar menino”<br />
- é pra você ver só como ele e eu tinha cozinheira<br />
e tinha arrumadeira; a arrumadeira me ajudava a<br />
olhar os meninos, eu não trabalhava fora - mas ele<br />
falava assim: “Eu fico com as crianças e você vai ba-<br />
228
ter um papinho na praça. Se você quer ir ao cinema<br />
você pode ir”. Me mandava passear e ficava senta<strong>do</strong><br />
no escritório dele com o menorzinho. Dava mama-<br />
deira... ele era bom demais! To<strong>do</strong> sába<strong>do</strong> pegava as<br />
crianças, cortava as unhas de todas. E eu, às vezes,<br />
deitava mais ce<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> (ele) chegava eu estava<br />
<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>... eu até tenho remorso. Uma noite ele pegou<br />
um copo de leite e levou pra mim. Falou assim:<br />
“Você jantou muito pouco, comeu mal hoje, toma esse<br />
copo de leite”. Ele era muito bonzinho, sempre foi.<br />
As cartas dele desde namora<strong>do</strong>... está tu<strong>do</strong> aqui. Os<br />
desenhos que ele fazia pras crianças enquanto eu estava<br />
na praça... sentava no birô com os <strong>do</strong>is menores<br />
e ficava desenhan<strong>do</strong>. Às vezes eu vou fazer limpeza,<br />
quero jogar fora, mas me dá uma <strong>do</strong>rzinha no coração<br />
(e)vou guardan<strong>do</strong>. Na ocasião que eu fiquei viúva,<br />
quatro filhos, eu fiquei procuran<strong>do</strong> meio de vida<br />
pra sustentar os filhos. A Elizabeth estu<strong>do</strong>u na Escola<br />
Normal, o Geral<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>u, não houve perturbação<br />
de coisa nenhuma. Mas eu comprava cerâmica em<br />
Recreio e vendia em Cataguases. Eu andava venden<strong>do</strong><br />
vasos, toalhas... (meu mari<strong>do</strong>) recebia onze contos<br />
de réis na época. Eu fiquei com um conto e cinquenta<br />
e seis mil réis. Foi um tombo muito grande.<br />
Arranjei um fornece<strong>do</strong>r de cerâmica em Recreio. Eu<br />
ia apanhar, às vezes telefonava ou mandava apanhar.<br />
229
Tava fazen<strong>do</strong> uma feriazinha, mas deu um descarri-<br />
lamento de trem e o meu capital foi embora. Eu desa-<br />
nimei da venda de cerâmica, mas nem por isso fiquei<br />
desatinada. Fui em Carandaí, na casa das minhas<br />
irmãs, então elas me arranjaram a representação da<br />
fábrica de manteiga Carandaí, para ajudar na renda<br />
familiar. Vinha de trem umas latas de dez quilos e eu<br />
vendia. Mandava entregar no Hotel Villas, no Hotel<br />
Cataguases, em casa de família.<br />
Mas daí mucadinho começou to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> a<br />
reclamar que pedia <strong>do</strong>is quilos; chegava lá pesava,<br />
não tinha <strong>do</strong>is quilos de manteiga. “Ai meu Deus! Já<br />
vou desistir também dessa manteiga”. Fui procurar<br />
saber: é porque os meninos iam entregar a manteiga,<br />
sentavam na praça e comiam a manteiga. Falei:<br />
“Olha, então agora nem vocês vão comer manteiga”.<br />
Do lucro dava pra to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> comer manteiga em<br />
casa, mas eles começaram a tirar manteiga. “Então<br />
eu vou desistir da manteiga, porque eu estou com<br />
vergonha. Vou deixar essa manteiga de la<strong>do</strong>”. E os<br />
meninos ficaram... o dinheiro era pouco, não dava<br />
pra comer manteiga to<strong>do</strong> dia. Aí o João falava assim:<br />
“Como é que é? Hoje tem ou não tem manteiga pra eu<br />
passar nesse pão levar de merenda?” Eu falava assim:<br />
“Manteiga de filho de viúva, sabe o que é? É sopro, ó<br />
fu... “ Fechava o pão: “Leva esse pão e vai pro grupo”,<br />
230
falava com ele. Ele falou assim: “Por desaforo eu vou<br />
untar esse pão to<strong>do</strong> de gordura de coco”. Então en-<br />
chia o pão de gordura de coco. Comia tanta gordura<br />
de coco que deu um caroço nele que foi preciso o Dr.<br />
Hugo abrir. Eu só comprava manteiga uma vez por<br />
semana. Se desse, muito bem; se não desse paciên-<br />
cia. Então eu passei esses apertos to<strong>do</strong>s com a viuvez.<br />
Ah, eu vou falar mesmo com verdade: eu achei que a<br />
minha vida que foi boa mesmo, foi a minha vida de<br />
colégio. O mari<strong>do</strong> foi ótimo, foi uma boa vida de casa,<br />
mas muito cheia de atropelo com a <strong>do</strong>ença da meni-<br />
na. Hoje a vida é de uma preocupação intensa! Nossa<br />
Senhora! Sou muito preocupada, me preocupo muito<br />
com os filhos, com os netos e agora com <strong>do</strong>is bisnetos.<br />
Ninguém tira essa preocupação de mim, (mas) pode<br />
começar tu<strong>do</strong> de novo que eu enfrento.<br />
Entrevistada em 4/6/1991 por Gláucia Siqueira e Hélvia Peres Cordeiro<br />
231
T E O D O R I C O T E I X E I R A<br />
C A R D O S O<br />
F E R R O V I Á R I O<br />
8 3 a n o s<br />
Meu pai era de Portugal: Joaquim<br />
Teixeira Car<strong>do</strong>so. Minha mãe brasileira, daqui de<br />
Cataguases: Joaquina Martins Teixeira. Vou comple-<br />
tar oitenta e <strong>do</strong>is anos... 1908... primeiro de julho de<br />
1908... eu era o mais velho... e a minha mãe falava<br />
que não podia casar, porque tinha de ajudar a criar<br />
oito irmãos. Resta três ainda... quatro... aqui eu só<br />
tenho uma irmã, aqui em São Diniz... Trabalhei em<br />
casa quan<strong>do</strong> era menino. Naquele tempo os pais, por<br />
exemplo, só se preocupavam com os filhos com bar-<br />
riga cheia, né. Meu pai perguntava assim:<br />
Foto: Estação Ferroviária, s/a, 1906, Departamento Municipal <strong>do</strong><br />
Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases<br />
233
- Tá com a barriga cheia, meu filho? Tá? Então gra-<br />
ças a Deus!<br />
E não perguntava se tinha alguma roupa bo-<br />
nita. Não perguntava mais nada. Só perguntava se a<br />
barriga estava cheia, não tinha uma vida, tinha... o<br />
negócio de ter roupa bonita, sapato bonito, não usava<br />
não. Pra pobre não, né.<br />
Não gosto muito de lembrar da infância não.<br />
Estudei no Grupo da Avenida (Coronel Vieira) <strong>do</strong>is<br />
anos. Uma péssima recordação! Porque eu vinha a pé<br />
de lá de São Diniz aqui no Grupo da Avenida. Não<br />
trazia um tostão para comprar merenda! Na entrada<br />
de Cataguases, pela estrada, pra lá não tinha luz. A luz<br />
elétrica ia só até ali. Muitas vezes passei numa figueira<br />
que tinha lá, com me<strong>do</strong> de assombração! Pra lá era entrar<br />
no escuro até lá em casa. Dali pra lá não tinha luz<br />
não... A gente almoçava e vinha, ficava aqui... chegava<br />
aqui meio-dia. De tarde saía às quatro horas... ia brincan<strong>do</strong><br />
por aí afora... chegava cinco e meia, seis horas<br />
pra jantar e tomar café também... depois fui trabalhar...<br />
Meu primeiro emprego foi na rede. Aos dezessete<br />
anos eu entrei na estrada de ferro. Eu comecei<br />
a trabalhar em 1925, e naquele tempo não tinha carteira<br />
(de trabalho), não tinha nada! A primeira férias<br />
que eu gozei foi em abril de 1934! Fui gozar férias<br />
tinha nove anos de serviço!<br />
234
Trabalhava na linha, capinan<strong>do</strong>, socan<strong>do</strong> <strong>do</strong>r-<br />
mente. Serviço de conservação de linha tinha um<br />
ponto certo, não tinha turma. Isso quan<strong>do</strong> eu entrei,<br />
né. Depois eu passei a feitor, a mestre de linha.<br />
Aí, daqui eu fui pra Viçosa... não, daqui eu fui<br />
pra Guarani como feitor, e de Guarani eu tornei a vol-<br />
tar pr’aqui. Daqui eu fui pra Viçosa como mestre de<br />
linha. Mestre de linha comanda os feitor. Trabalhava<br />
muito! Quan<strong>do</strong> eu entrei na Estrada trabalhava das<br />
seis às cinco da tarde: dez horas de serviço! Depois<br />
passou pra oito... depois veio a semana inglesa... ao<br />
sába<strong>do</strong> trabalhava até meio dia. Agora eles... sába<strong>do</strong><br />
nem vai lá. Quan<strong>do</strong> havia um acidente, ou coisa as-<br />
sim, tinha que trabalhar <strong>do</strong>mingo, né. Só (descansa-<br />
va) <strong>do</strong>mingo quan<strong>do</strong> podia.<br />
De distância a distância tinha um médico que<br />
atendia o setor. Tinha um médico. Meu pai traba-<br />
lhou dezoito anos <strong>do</strong>ente. Sofreu dezoito anos com<br />
reumatismo.<br />
Tinha muito movimento na Estrada, e quan<strong>do</strong><br />
chovia muito... caiu muita chuva nas costas, pegou<br />
um grande reumatismo. A<strong>do</strong>eceu e aposentou. Ele<br />
aposentou por invalidez. A princípio eu pegava o en-<br />
velope que recebia e entregava ao meu pai sem ver o<br />
dinheiro! Depois, ele me entregava o dele, porque fi-<br />
cou <strong>do</strong>ente e então eu tomava conta. Sempre na luta!<br />
235
Fui folgar depois de aposenta<strong>do</strong>. Saí com cinquenta<br />
e sete anos e tenho vinte e cinco de aposenta<strong>do</strong>. Os<br />
ingleses é que exploravam: cortês eles eram muito,<br />
né. Mas pagava pouco. Pagava muito pouco! O pa-<br />
gamento atrasava muito naquele tempo. Enquanto<br />
o pessoal não fazia greve não saía pagamento! Nós<br />
nem recebia um, já tava vencen<strong>do</strong> outro. Atraso <strong>do</strong><br />
pagamento num passava de <strong>do</strong>is meses, porque ti-<br />
nha que comer, né.<br />
O Rio de Janeiro comandava to<strong>do</strong> o setor.<br />
Vinha correspondência <strong>do</strong> Rio, pagamento, tu<strong>do</strong><br />
vinha <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Tinha um escritório inglês<br />
da Rede: mandava de Recreio e, naquela época, ia<br />
até Raul Soares. De longe em longe vinha um trem<br />
cheio... Tinha que tirar o chapéu pra eles: um absur-<br />
<strong>do</strong>! Mas não havia perseguição não. A perseguição é<br />
que ganhava pouco, mas tinha que trabalhar muito!<br />
Se trabalhasse estava tu<strong>do</strong> bem, se não trabalhasse<br />
rodava, né. Apertava no serviço até o camarada lar-<br />
gar e ir embora. Depois foi modifican<strong>do</strong>... modificou<br />
tu<strong>do</strong>. E hoje tá tu<strong>do</strong> diferente!<br />
A estrada de ferro mu<strong>do</strong>u muito, nem parece<br />
aquela. Passou pra Rede foi em 1947. Ainda houve<br />
umas greves, mas foi modifican<strong>do</strong> e melhorou ul-<br />
timamente, porque o pagamento vem no dia certo.<br />
Antigamente tinha trem de passageiros, tinha trem<br />
236
noturno, hoje não tem trem. O que passa é trem de<br />
carga pra Recreio e pro la<strong>do</strong> de Ponte Nova. Num<br />
tem movimento quase nenhum. Acabou. Deixaram a<br />
ferrovia acabar, né. Quem fosse a Miraí e perdesse o<br />
trem, tinha que <strong>do</strong>rmir lá pra vir no outro dia. Se fos-<br />
se a Santana, se não viesse no trem que vinha de ma-<br />
nhã ce<strong>do</strong>, tinha que vir a pé, ou ficar pra vir no outro<br />
dia. Não tinha ônibus, não tinha nada. Num tinha<br />
outro transporte. Não tinha outro meio de transpor-<br />
te fácil não. Transporte forte era trem, né. O pessoal<br />
andava de trem. Então começou a... aquilo tava dan-<br />
<strong>do</strong> prejuízo, porque começou a aparecer ônibus pra<br />
carregar os passageiros, e caminhão pra carregar as<br />
compras... o café fracassan<strong>do</strong>... não foi só Miraí, não.<br />
Santana também tinha outro ramal... Leopoldina...<br />
Aqui, de ligação a Três Rios também tinha. Cada canto,<br />
pra Juiz de Fora... Tu<strong>do</strong> foi desativa<strong>do</strong> porque eles<br />
achavam que era deficitário. Então foram arrancan<strong>do</strong><br />
os trilhos, em (19)64. Trabalhei não, começou a retirar<br />
e eu saí. Um mal que eles fizeram né. Porque agora<br />
o transporte de caminhão tá muito caro. O transporte<br />
pesa<strong>do</strong> pelo menos... Que passageiro hoje não<br />
sujeita... Porque sain<strong>do</strong> daqui de Cataguases às nove<br />
e vinte, chegava ao Rio às nove da noite: era <strong>do</strong>ze horas,<br />
se não atrasasse! Quan<strong>do</strong> dava de atrasar, atrasava<br />
era muito: era hora, não era minuto, não. Tinha<br />
237
época que havia algum tombamento de vagão, coisa<br />
e tal... mas não era tanto não.<br />
Aqui era muito pequeno e qualquer coisa<br />
importante falava: vai buscar lá no Rio de Janeiro.<br />
Quan<strong>do</strong> iam fazer compras precisavam de quase tu<strong>do</strong>.<br />
Não me lembro bem, nesse tempo eu era garoto.<br />
Aqui era zona de café. Aqui, Miraí, Santana. Cana era<br />
só quase que pro gasto, né. Transporte pesa<strong>do</strong> mesmo<br />
era o café. O trem pegava e levava pro Rio, mas<br />
tinha leite, tinha galinha... tinha passageiro que levava<br />
pro Rio. Vinha de Santana, Miraí, chegava em<br />
Cataguases. A galinha e o leite era transporta<strong>do</strong> no<br />
expresso. To<strong>do</strong> expresso que chegava levava aquilo<br />
pro Rio.<br />
Aqui teve uma época de queima de café, né.<br />
Ali onde era a Manufatora, na Saco-Têxtil, ali é que<br />
queimava café. Juntava café, ia despejan<strong>do</strong> num<br />
monte lá e punha fogo! Eles diz que tava barato demais,<br />
então queimava pra dar preço! Não lembro<br />
bem não... o presidente acho que era o Getúlio. Ah,<br />
os grandes fazendeiros... agora não me lembro o nome...<br />
ele foi fazendeiro aqui, mas eu não me lembro<br />
que ele produzia muito café não...<br />
Eu conheci a Praça Rui Barbosa de cascalho,<br />
saibro... Tinha um chafariz no centro, ali. A gente ficava<br />
rodan<strong>do</strong>. Vinha passear na praça. Mas não era<br />
238
to<strong>do</strong> dia não, né. Porque de tarde não tava com von-<br />
tade de andar muito não. Ah... era diferente d’agora.<br />
Ninguém tinha dinheiro. Não saía porque não tinha<br />
condição, né. A gente ia em baile na roça... Dançava<br />
valsas, xote, mazurca: A coisa que eu mais gostava<br />
quan<strong>do</strong> solteiro! Mas depois que casei não fui mais<br />
dançar não. Porque não tinha graça eu ir em baile<br />
depois de casa<strong>do</strong>. Tem gente que falava que dançava<br />
pra divertir. Eu sempre dancei interessa<strong>do</strong>... Não era<br />
igual agora não. Havia mais respeito. Hoje o pessoal<br />
tá mais avança<strong>do</strong>.<br />
Conceição... Acho que foi num baile... Namoramos...<br />
Casamos, tem aí cinquenta e cinco anos! Eu<br />
casei com vinte e sete anos. Desobedeci minha mãe<br />
e casei. Ganhava cento e trinta e cinco réis por mês,<br />
quan<strong>do</strong> casei. Eu tinha dez anos de Leopoldina e só<br />
ganhava cento e trinta mil réis! E ganhava bem! Tinha<br />
muita gente que tinha inveja <strong>do</strong> meu ordena<strong>do</strong>! Foi<br />
muito aperta<strong>do</strong>. Criei oito filhos - seis homens e duas<br />
mulheres - aperta<strong>do</strong>. Tinha que dar, né. Padaria:<br />
eu comprava o pão o dia que podia. Tinha mês que<br />
dava muca<strong>do</strong> na farmácia, no armazém... o ordena<strong>do</strong>...<br />
quan<strong>do</strong> vinha o aumento, já tava precisan<strong>do</strong> dele<br />
há muito tempo! Eu ganhei duzentos mil réis na<br />
Leopoldina muitos anos! O pessoal da roça ganhava<br />
<strong>do</strong>is mil réis por dia. Dois mil réis não é <strong>do</strong> seu tem-<br />
239
po não, né? Teve uma época que eu tive oito filhos eu<br />
e a mulher - dez dentro de casa - só meu ordena<strong>do</strong>!<br />
Também não tinha jeito pra inflação não! Se subisse, o<br />
sujeito não podia comprar, não tinha dinheiro. Fosse<br />
agora não dava não. Eu consegui. Graças a Deus!<br />
A vida aqui sempre girou em torno da indús-<br />
tria. Tinha uma fábrica, aquela fábrica mais velha <strong>do</strong><br />
que eu, só tinha aquela. Depois foi crian<strong>do</strong> as outras<br />
indústrias, a cidade foi crescen<strong>do</strong>, foi crescen<strong>do</strong>, mais<br />
indústrias... Sempre o forte aqui foi a fábrica. Tinha<br />
muito português, tinha italiano, espanhóis... mas<br />
português era mais.<br />
Gostava muito <strong>do</strong>s estrangeiros pra trabalhar.<br />
Porque português vinha pro Brasil só pra ganhar dinheiro,<br />
né. Chegava aqui, dava duro pra não perder<br />
o emprego! Eles dava preferência à Estrada de Ferro.<br />
Os portugueses até já vinha com lugar arranja<strong>do</strong> na<br />
Estrada de Ferro. Tinha o Joaquim Peixoto Ramos, o<br />
Joaquim Carvalho, o João Duarte Ferreira, que era o<br />
chefão grande compra<strong>do</strong>r de café. E tinha até uma<br />
agência de Banco aqui. Eu sei que o Banco era ali,<br />
perto <strong>do</strong> Hotel Villas, ali onde é o SAPS (Cobal), ali<br />
que funcionava. Ouvi falar que ali onde tem um correio12<br />
, na barreira da linha, pra lá <strong>do</strong> escritório: ali foi<br />
12 ) Arrua<strong>do</strong>, conjunto de casas ao longo de uma rua.<br />
240
Estação Estrada de Ferro Cataguases, até Miraí. Ali,<br />
linha, pra lá <strong>do</strong> escritório: ali foi Estação Estrada de<br />
Ferro Cataguases, até Miraí. Ali, na Vila Tâmega...<br />
Antes o trem voltava dali... no meu tempo, já vinha<br />
cá na Estação pra completar o percurso.<br />
Fui cria<strong>do</strong> aqui... seis quilômetros... Miraí.<br />
Aqui tinha uma estação chamada Astolfo Dutra...<br />
Dona Euzébia... Depois, não sei por que passaram<br />
pra lá. Astolfo Dutra era Santo Antônio... Trocaram<br />
de nome passaram Astolfo Dutra... Onde é hoje. Não<br />
sei porque. Ele morou aqui na avenida. Ali. Conhecia<br />
de longe... Conheço. Zacarias era o supervisor. O<br />
Zacarias, ele entrou bem depois. O Zacarias entrou<br />
na turma da picareta, na linha. Depois passou pra<br />
turma de pedreiro. Depois passou a encarrega<strong>do</strong> e<br />
de encarrega<strong>do</strong> aposentou. No meu tempo era encarrega<strong>do</strong><br />
de obra, né. Agora apelidaram de supervisor.<br />
Tinha Rezende, mas não conheço não. Ofélia eu<br />
ainda conheço. Ainda é viva. Acho que ela nunca se<br />
casou. Ou casou? Os sobrinhos conhecia alguns... conhecia<br />
assim... Eles era grande, eu era pequeno, inté<br />
passava longe deles, né. Aqui tinha muita briga <strong>do</strong><br />
Pedro Dutra com o Manoel Peixoto, mas era política<br />
daqui da cidade. Parti<strong>do</strong>... Não tomava parte. Nessa<br />
ocasião eu só pensava em trabalhar, sabe. Nunca gostei<br />
de tomar parte nessas coisas. Aqui to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
241
era grevista, né. Eu sempre fui contra! Achei que po-<br />
dia... por outras maneiras... Não era contra as greves,<br />
porque elas falavam que o pagamento atrasava por-<br />
que não tinha dinheiro, depois da greve tinha dinhei-<br />
ro!? Sacanagem, né. Não podia gostar de outra coisa<br />
porque eu não tinha dinheiro. (Batistinha) foi depois.<br />
Isso não é <strong>do</strong> meu tempo não. Ele era <strong>do</strong> Sindicato,<br />
né. Na época da Revolução é que andaram... Mas não<br />
por aqui, por lá mesmo... o pessoal <strong>do</strong> Getúlio Vargas<br />
andava de trem... não tem nenhum não... Os amigos<br />
já morreram to<strong>do</strong>s, né.<br />
Eles falam: Que tempo bom! Tempo bom é<br />
agora! Melhorou. Agora trabalha pouco, ganha bem.<br />
Tempo bom, mas ninguém quer que volta aquele<br />
tempo. Tempo bom pra cachorro. Morava na roça,<br />
então não tinha tempo... criei oito filhos: nenhum pe-<br />
ga ferramenta não! Agora é melhor, dinheiro é me-<br />
lhor... não, acho que pra mim nunca teve tão bom!<br />
Entrevista<strong>do</strong> em 14/3/1990 por José Luiz Batista e Mônica Macha<strong>do</strong> da<br />
Silva<br />
242
243
T E R E Z I N I M A S S E N A<br />
G U I M A R Ã E S<br />
P R O F E S S O R A A P O S E N TA D A<br />
Sou mais conhecida como Lora, por-<br />
que eu era muito lourinha quan<strong>do</strong> era criança, ca-<br />
cheada, aquele louro quase prata. Aquele louro pra-<br />
tea<strong>do</strong>, e a vovó, mãe da mamãe, tinha loucura co-<br />
migo. Ela só me chamava de “Lora”, ou então “meu<br />
sonho <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>”. E a gente à medida que os anos<br />
vão passan<strong>do</strong>, o cabelo vai escurecen<strong>do</strong>. O meu não<br />
branqueou nada ainda, até gostaria de ter cabelos<br />
brancos porque eu sou avó, com to<strong>do</strong> orgulho, de<br />
três; agora a Flávia vai ter mais um. Eu gostaria de<br />
ter cabelos brancos, então eu faço reflexo pra mim<br />
continuar loura, pra fazer jus até ao meu apeli<strong>do</strong><br />
que a minha avó me colocou carinhosamente: “meu<br />
sonho <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>”e “Lora”.<br />
Foto: Pedro Dutra e correligionários, s/a, s/d, Departamento Municipal<br />
<strong>do</strong> Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases<br />
245
A minha avó, a vovó Josefa, mãe da mamãe,<br />
ela morreu com 96 anos. É família que dura muito. A<br />
mamãe vai fazer 90 agora dia 22 de maio. Você não<br />
fala que a mamãe tem 90, pela disposição dela. Eu<br />
lembro que a vovó, pouco tempo antes de morrer,<br />
ainda conserva uma faixa loura no meio <strong>do</strong> cabeli-<br />
nho branco, que ela fazia coquinho para traz. Eu sou<br />
descendente <strong>do</strong> la<strong>do</strong> da mamãe de italiano. Graciolli.<br />
E o meu pai... a mãe <strong>do</strong> meu pai era filha de escravos.<br />
O pai <strong>do</strong> papai veio... eu não lembro, não sei aonde<br />
eles moravam. Veio, gostou da mãe <strong>do</strong> papai e teve,<br />
ele teve o papai. É onde veio o Massena. Ele é francês.<br />
O pai <strong>do</strong> papai. Papai é descendente de francês.<br />
Um sobrinho meu de Friburgo, ganhou uma<br />
bolsa de estu<strong>do</strong>, foi fazer belas artes na França. Ele<br />
procurou se informar da família Massena. Então ele<br />
viu rua Lorde Massena, porque lá é Massena, né. É<br />
uma família nobre da França. Não sei o que ele (meu<br />
avô), veio fazer. Aventura. Às vezes ele veio procurar<br />
uma escrava, né.<br />
Os Graciolli, a vovó e o vovô, vieram da ltália.<br />
Ela trouxe filhos da Itália - uma até morreu no<br />
navio na vinda pra cá - mas a mamãe é nascida em<br />
Cataguases, né. Mas o vovô chegou... chegou aqui<br />
ele sentiu muita saudade, teve vontade de voltar. Ele<br />
apareceu até num filme da... da... hoje é Eva Comello,<br />
246
como é o nome dela? Eva Nil. Ele (apareceu) com<br />
aquele pau de... passan<strong>do</strong>, venden<strong>do</strong> frango. Ele não<br />
se realizou como ele desejaria. Então ele se apaixo-<br />
nou muito porque ele gostaria de voltar, mas não ti-<br />
nha condição pra voltar com a família. Já tinha mais<br />
filhos aqui, que nasceram aqui. Então ele passou a<br />
beber, bebeu até morrer. O avô materno, Graciolli.<br />
A mamãe fala que eles moravam numa rua<br />
aqui perto, que, na época, tinha o nome de Bedengó.<br />
A mamãe conta que eles moravam numa casa de pau<br />
a pique. E conta que uma coisa que divertia muito e<br />
quan<strong>do</strong> aqueles barros começavam a cair. Uma fica-<br />
va de dentro seguran<strong>do</strong>, e outra de fora juntan<strong>do</strong> o<br />
barro e baten<strong>do</strong> pra tampar os buracos. Eles tiveram<br />
uma vida muito difícil aqui. Agora, se alimentavam<br />
muito bem por causa <strong>do</strong> costume da Itália. Eles fa-<br />
ziam muito queijo, faziam massa de macarrão em<br />
casa, eu mesma comi muito macarrão feito pelas mi-<br />
nhas tias e pela minha avó. Mamãe não tinha tempo<br />
porque costurava muito, né. Uma beleza de massa! E<br />
quan<strong>do</strong> era uma sopa daquela massa fininha, sequi-<br />
nha, elas usavam botar um pouco de vinho dentro da<br />
sopa. Então foram cria<strong>do</strong>s assim muito fortes, muito<br />
cora<strong>do</strong>s, sempre muito trabalha<strong>do</strong>res.<br />
(Meus pais foram) nasci<strong>do</strong>s e cria<strong>do</strong>s em Cata-<br />
guases. O papai (Nestor Massena) morreu com 83<br />
247
anos para 84 anos. Ele com 70, 80, ainda tirava umas<br />
quatro horas por dia para estudar música. Ele lisava<br />
muito o saxofone, limpava porque era de prata o úl-<br />
timo dele, sabe. Ele estudava diariamente 3 a 4 horas<br />
de música. E sabia a fun<strong>do</strong> a música. Aqui mesmo<br />
na rua tem uma pessoa que às vezes tava ensaian<strong>do</strong><br />
e eles, de lá <strong>do</strong> bar dele, falava assim: “Tu<strong>do</strong> erra<strong>do</strong>,<br />
num sabe nada!” Era um <strong>do</strong>m, eu acredito até que<br />
ele não tenha estuda<strong>do</strong>. Eu... isso eu não sei, sincera-<br />
mente. Eu fui uma filha que amava, ele falava mesmo<br />
com as pessoas: “Eu gosto de to<strong>do</strong>s os meus filhos,<br />
mas a Lora é diferente, é especial”. Porque eu acom-<br />
panhei o papai a vida inteira. A profissão dele era<br />
música e alfaiate. Detestava ser alfaiate. Então não<br />
era. Mas a roupa dele, ele próprio, ele mesmo fazia.<br />
Consertos em ternos e tu<strong>do</strong>.<br />
Ele tocava em baile, por exemplo, era uma coi-<br />
sa que não dava, né! Então é como eu falo. Esse aqui<br />
(Luís Cláudio) tem aí <strong>do</strong>m de compositor e tu<strong>do</strong>. Vai<br />
dar um show no Elite mês que vem. Eu falo: “meu<br />
filho, você tem que ter a sua profissão pra sobrevi-<br />
vência.” A música não mantém família, num... num...<br />
vai ter que dar muita alegria, muita realização, nesse<br />
ponto de... Porque a família, parece que a família<br />
é muito romântica, o italiano é muito romântico, o<br />
francês passou de romântico. Então a mistura é fina.<br />
248
A gente tem sangue negro porque a minha avó era<br />
filha de escravos. Então meu pai é descendente de es-<br />
cravos. A gente tem sangue de italiano e de francês,<br />
que é uma super mistura.<br />
Ele (papai) compunha músicas de carnaval<br />
to<strong>do</strong> o ano e deixou uma valsa lindíssima, que ela<br />
(Aparecida Massena) toca no piano até hoje. Uma<br />
valsa lindíssima! Eu não lembro o nome, mas é um<br />
encanto! Às vezes, numa audição de piano que ela dá<br />
to<strong>do</strong> ano com as alunas, ela toca no fim a valsa. Ele<br />
fez várias marchinhas de carnaval e fez uma música<br />
chamada Espera, e eu fiz a letra. Ele ainda brincava<br />
comigo, falava assim: “eu te <strong>do</strong>u um trocadinho pra<br />
você fazer a letra pra mim”. Teve qualquer coisa no<br />
cinema, no Cinema Edgard, então apresentou aquele<br />
conjunto velha guarda: o Ciodaro, o papai... tinha<br />
mais uns antigos. Só que cê sabe, hoje a música é<br />
muito barulhenta, pode não ter agrada<strong>do</strong> tanto assim...<br />
“Esperei o romper da aurora e o por <strong>do</strong> sol /<br />
Esperei que os pássaros partissem no inverno. E você<br />
não veio / Vieram sóis, chuvas e flores. A esperar<br />
me debati / E perdi<strong>do</strong> de amor esperei, esperei você<br />
/ Esta espera me angustia, esta espera me tortura<br />
/ Você virá, virá um dia e findará minha amargura”.<br />
Era muito animada! Ritmada mesmo! E foi um sucesso<br />
assim... mas o pessoal jovem que tava no cinema<br />
249
não se empolgou, porque eles estão gostan<strong>do</strong> de ba-<br />
rulho <strong>do</strong> rock.<br />
Eu fui assim quase como babá <strong>do</strong> meu pai.<br />
Porque eu... Ele trabalhou... o primeiro emprego<br />
dele na Prefeitura, ele foi persegui<strong>do</strong> pela política.<br />
Antigamente era PSD e UDN. O Dr. Pedro Dutra era<br />
meu padrinho de casamento, ele tinha muita consi-<br />
deração. O João Peixoto foi meu padrinho de forma-<br />
tura. Quer dizer, a gente era amigo, a gente não tinha<br />
nada pessoal. A gente tinha gratidão com o Pedro<br />
Dutra, que ele me colocou, colocou meu pai, que já<br />
estava vinte anos desemprega<strong>do</strong>. Mamãe costurava<br />
de manhã à noite inteira. Quan<strong>do</strong> a gente era de me-<br />
nor ela punha os colchonetes, esteiras, naquele tem-<br />
po era mais esteira, e a gente <strong>do</strong>rmia tu<strong>do</strong> em vol-<br />
ta dela aí, 8 filhos. Depois que ela ia deitar, que ela<br />
punha cada um na cama. A gente não <strong>do</strong>rmia sem<br />
ela. Sabe, mamãe não respeitava nem resguar<strong>do</strong>. No<br />
segun<strong>do</strong> dia ela já tava sentada cortan<strong>do</strong> costura e<br />
fazen<strong>do</strong>. Costuran<strong>do</strong> na máquina, sabe. Mas o papai<br />
foi assim... uma pessoa que eu orientei muito a carreira<br />
dele, eu que consegui a nomeação pra fiscal de<br />
renda <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Aí melhorou a situação da casa, da<br />
família, né.<br />
Eu formei muito nova, eu formei com 16 anos.<br />
Eu tirei diploma com 9 anos, mas era uma menina<br />
250
muito precoce na escola. Tive professoras maravilho-<br />
sas: Ruimar, Minalda Peixoto... Dona Minalda me pu-<br />
nha era pra cantar e dançar. Ela punha aquele cachor-<br />
rinho de pele que eu usava... a boquinha <strong>do</strong> cachorro<br />
prendia no rabinho, sabe. Bolsinha, aquele vesti<strong>do</strong><br />
bem curtinho, aparecen<strong>do</strong> a beiradinha da calcinha,<br />
aquelas pernas grossas. Ih... ela me punha muito pra<br />
cantar. A gente fazia um sucesso! O grupo tinha salão,<br />
tinha palco, cortina de velu<strong>do</strong>, tinha tu<strong>do</strong>, depois tu-<br />
<strong>do</strong> se transformou. (o prédio era <strong>do</strong>) Coronel Vieira,<br />
mas era Astolfo Dutra o horário da manhã. Eu sem-<br />
pre estudei e me aposentei lá como diretora, a minha<br />
vida toda lá.<br />
Do grupo eu fui para a Escola Normal, mas co-<br />
mo eu tinha nove anos só, a Irmã, a Madre Aparecida,<br />
aconselhou... Eu fui estudar porque a Cacilda Duarte,<br />
vizinha da mamãe, minha madrinha de primeira co-<br />
munhão - havia naquela época madrinha de primei-<br />
ra comunhão - falou: “Nós não podemos perder essa<br />
inteligência da Lora”. Então eu consegui uma bolsa<br />
de estu<strong>do</strong>s com a Prefeitura. Era aquele tipo de bolsa<br />
que a gente não podia perder um ano que perdia o<br />
lugar, e a Irmã, deu a ideia de aumentar minha idade<br />
pra <strong>do</strong>ze. Foi ideia pra não perder a bolsa. Mas eu<br />
formei com quinze anos. Com dezesseis fui nomeada<br />
pelo Pedro Dutra.<br />
251
No tempo que eu formei era tão... era uma gló-<br />
ria tão grande ser professora... eu acho que é, que de-<br />
ve ser encara<strong>do</strong> assim até hoje. Porque tu<strong>do</strong> começa<br />
ali, né.<br />
Caiu muito... não há estímulo, e muita refor-<br />
ma de ensino. (Na época) só tinha a Irene, filha da<br />
D. Clarisse, no Banco Nacional. Fora disso não havia<br />
moças, mulheres trabalhan<strong>do</strong> em repartição pública.<br />
E ser professora era uma glória! Eles diziam assim<br />
quan<strong>do</strong> a gente era nomeada professora: “a filha da<br />
Terezinha Graciolli ganhou uma cadeira”.<br />
Nessa época que eu formei, fui trabalhar num<br />
armazém na Rua da Estação, que era a antiga Social.<br />
A Alva Spín<strong>do</strong>la estava sain<strong>do</strong> - e a afilhada da ma-<br />
mãe - me chamou pra trabalhar no lugar dela. Foi<br />
meu primeiro trabalho. Dali uma tarde eu fui conversar<br />
com o Pedro Dutra sobre a situação <strong>do</strong> papai.<br />
Papai estava trabalhan<strong>do</strong> na Prefeitura e foi persegui<strong>do</strong>.<br />
Depois foi na fábrica, através <strong>do</strong> João Peixoto,<br />
que sempre foi amigo nosso, que Deus o tenha. Mas<br />
ele não aguentava trabalhar numa sala de pano, em<br />
pé das seis às cinco da tarde. Mamãe toda vida foi<br />
muito trabalha<strong>do</strong>ra. Desde criança senti o drama da<br />
mamãe com o mari<strong>do</strong> desemprega<strong>do</strong>. Quer dizer, ele<br />
tocava num baile, cê sabe que não dava nada. E mamãe<br />
lutava muito. Eu sempre me preocupei. E então,<br />
252
uma tarde, eu fui lá no escritório <strong>do</strong> Pedro Dutra.<br />
Encontrei ele sozinho. Por acaso, acho que a chance<br />
tinha que ser minha mesmo, né. Ele ficou muito ad-<br />
mira<strong>do</strong> que eu falei: “Eu trabalho, mas ganho pouco,<br />
mamãe luta muito”. “Mas você trabalha? Você é uma<br />
menina!” Realmente eu era miúda, apanhei muito<br />
corpo depois de casada, depois <strong>do</strong> primeiro filho. Era<br />
um brotinho muito bem feitinho de corpo, mas não<br />
era corpulenta. Eu falei: “Não, eu sou normalista”.<br />
Ele falou assim: “Olha, eu vou nomear você e o seu<br />
pai. Mas por enquanto você vai avisar lá o seu patrão<br />
e vai trabalhar no meu birô”. Nos éramos vinte e<br />
cinco moças no birô eleitoral. (Era época) de eleição.<br />
Foi quan<strong>do</strong> ele ganhou para deputa<strong>do</strong> federal. Então<br />
chegaram juntos os telegramas: o meu, me nomean<strong>do</strong><br />
professora, e <strong>do</strong> papai nomean<strong>do</strong> fiscal de rendas<br />
da coletoria estadual. Aí tu<strong>do</strong> passou a melhorar lá<br />
em casa. Mamãe já tinha um apoio, né, tanto meu -<br />
que ela exigia, até três meses antes <strong>do</strong> casamento ela<br />
exigiu - como o <strong>do</strong> papai. O chefe de família sabe o<br />
que ele representa, né.<br />
Eu trabalhava num fichário que tinha todas as<br />
informações <strong>do</strong> eleitor. Tinha informações até assim<br />
de... O quê que a pessoa pediu na eleição passada.<br />
Tinha adversário, correligionário... Tinha gente que<br />
tinha pedi<strong>do</strong> uma caixa de pó de arroz.<br />
253
Tinha o eleitora<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> no fichário. Eu preci-<br />
sava de qualquer informação ia ali. Tinha tu<strong>do</strong> ali.<br />
Na época de eleição fazia-se uma listagem, e por ali<br />
ele sabia mais ou menos se ele ganhava ou não elei-<br />
ção. Ele já sabia antes da eleição. Eu trabalhei bas-<br />
tante! Ele foi um patrão excelente, um ser humano<br />
maravilhoso! Pra nós da minha família, ele foi um<br />
pai. Porque ele beneficiou minha família toda. Pra<br />
nomear a Estelina professora, por causa de concur-<br />
so, a colocação <strong>do</strong> concurso, ele teve que nomear du-<br />
as adversárias pra não saltar, pra poder beneficiar a<br />
Estelina. Eu sempre tive nele um amigo. E depois de<br />
casada ele colocou o meu mari<strong>do</strong> na Receita Federal,<br />
(onde) morreu numa chefia.<br />
Ele tinha tanto poder e ele brigava tanto com<br />
os políticos, tinha liberdade, que ele conseguia pelo<br />
telefone daqui falar com os políticos e exigir: “Você<br />
vai nomear fulano de tal”. Ele pôs muita gente no<br />
Banco <strong>do</strong> Brasil pela janela, através <strong>do</strong> telefone dele.<br />
“<strong>Ó</strong>, eu exijo que você faça isso”. Ele tinha muito poder<br />
mesmo. Mas ele fez tanto bem! Ele botou o pão na<br />
mesa de tanta gente! Na época que eu fui nomeada,<br />
ele nomeou todas que estavam no birô, eram umas<br />
vinte e cinco professoras. E na época que o Procópio<br />
foi nomea<strong>do</strong>, nomeou o Procópio, a Hermínia, a<br />
Viena, Ula e o Klebinho. Cinco. E se tivesse consegui-<br />
254
<strong>do</strong> durar aquele “IPASE” aqui, que chegou a abrir, te-<br />
ria coloca<strong>do</strong> muita gente.<br />
Foi uma política terrível! Ele foi traí<strong>do</strong> na épo-<br />
ca <strong>do</strong> Zé Esteves. Ele... num ficou satisfeito porque<br />
o Zé Esteves foi candidato dele. Então foi muito tra-<br />
balha<strong>do</strong>, foi muito vota<strong>do</strong>. Mas ele, aquela vitória,<br />
parece que ele já sabia que num ia levar nada dela,<br />
porque ele dizia que a prefeitura é uma mãe, porque<br />
podia dar emprego a muita gente.<br />
Eu mesma fui muito perseguida. O Pedro<br />
Dutra me punha pra diretora, daí uns dias o outro<br />
me tirava. Bastava ele perder a eleição pro outro me<br />
tirar. Então me perguntaram uma vez como é que<br />
eu encarava aquilo. “Eu encaro isso como uma coisa<br />
mesmo de política, porque pessoalmente nem a gente<br />
tem nada um contra o outro, somos amigos”. Eu<br />
fui muito amiga da Lourdes <strong>do</strong> Fortunato, Lourdes<br />
Ribeiro. Ela até falava que eles chamavam o pessoal<br />
que gostava <strong>do</strong> Pedro Dutra, que era amigo, de “lombriga”.<br />
Eu ia em comícios da UDN com ela e ela falava<br />
assim: “Cê é uma lombriga mansa”.<br />
Mas a minha família, a gente nunca foi fanático,<br />
a gente era amigo, sempre continuamos amigos<br />
da <strong>do</strong>na Flávia enquanto ela teve vida. Sempre com<br />
muita atenção com eles - era uma dívida de gratidão<br />
- porque ele nunca exigiu da gente. Quan<strong>do</strong> o pa-<br />
255
pai foi trabalhar na fábrica, passaram uma lista, um<br />
manifesto contra o Pedro Dutra pra assinar, ele não<br />
aceitou assinar. Foi manda<strong>do</strong> embora. Foi quan<strong>do</strong> ele<br />
foi... daí a pouco coloca<strong>do</strong> como fiscal de rendas 2.<br />
Papai trabalhou na sala de panos, ali na<br />
Irmãos Peixoto. Ele era vai<strong>do</strong>so, gostava de andar<br />
bem vesti<strong>do</strong> e de chapéu. Chapéu da moda. Então<br />
eles queriam que colocasse um macacão e não usa-<br />
va chapéu. Então ele não aceitou aquilo. E realmente<br />
não estava fazen<strong>do</strong> bem pra saúde dele, começou a<br />
inchar as juntas, e eu me preocupava muito com a<br />
família toda, observava to<strong>do</strong>s os problemas. Eu me<br />
propus a colocar o papai melhor. Acompanhei a car-<br />
reira dele a vida inteira. Quan<strong>do</strong> era época de retor-<br />
nar: “Papai, dia tal o senhor tem de retornar”. Eu fui<br />
a primeira a estudar, porque a Eni, a mais velha, ficou<br />
na sala de costuras, arrematan<strong>do</strong> e bordava a sutache,<br />
bordava a lantejoula. Mamãe tinha uma máquina de<br />
bordar... e a gente nunca viu igual. Então, em época<br />
de carnaval faziam capas de fantasia com aquele dragão<br />
atrás. Ela incluía num instantinho, a cores. Uma<br />
máquina fabulosa, nunca mais a gente viu. Não sei<br />
porque a mamãe dispôs daquilo. Teve que vender,<br />
algum aperto que ela deve ter passa<strong>do</strong> na vida, né.<br />
Mas eu acompanhei o papai. A licença toda pra ele<br />
aposentar... eu acredito que ele tenha si<strong>do</strong> muito feliz.<br />
256
Porque ele foi muito ama<strong>do</strong>, mamãe era muito apai-<br />
xonada pelo papai. Foi uma convivência muito boni-<br />
ta, muito boa. A gente foi criada com uma mãe que<br />
é um exemplo até hoje. Naquela luta, naquela peleja.<br />
Ele amola<strong>do</strong> de não ter como... eu dei um impulso<br />
depois que formei, né. Mas eles vieram muito bem.<br />
Ele pode ter ti<strong>do</strong> as mancadas dele aí, por fora, né,<br />
mas a gente não ficou saben<strong>do</strong> de nada não. Papai<br />
participou duma banda. Até eu, numa crônica minha,<br />
eu citei, “Meu largo <strong>do</strong> Rosário quanta saudade”,<br />
porque quan<strong>do</strong> a gente era pequeno o circo era arma-<br />
<strong>do</strong> ali, to<strong>do</strong>s os circos. Foram os circos mais lin<strong>do</strong>s e<br />
mais ricos que passaram por Cataguases. Então, che-<br />
gava 7 horas, 7:30, quan<strong>do</strong> ia começar o espetáculo,<br />
antes um pouco, vinha lá de cima a banda tocan<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>bra<strong>do</strong>. Papai na frente. Então eles puseram o ape-<br />
li<strong>do</strong> de “Banda Furiosa”, sabe. Que vinha trazen<strong>do</strong><br />
mais crianças, mais gente. Eram circos maravilhosos!<br />
E a gente tinha o direito ao camarote. Um parente ia<br />
to<strong>do</strong> dia, não pagava, né, por ele tocar. To<strong>do</strong>s os mú-<br />
sicos tinham permanente pra família ir. A gente não<br />
perdia uma noite. Era uma coisa louca! Nós tivemos<br />
uma infância maravilhosa! Eu não lembro <strong>do</strong> papai<br />
ter da<strong>do</strong> aula de música pra ninguém. Ele num teve<br />
assim alunos de música, porque depois que ele pas-<br />
sou a trabalhar na coletoria, trabalhava o dia to<strong>do</strong>, né.<br />
257
Então não teve condição. Estudava muito: três a qua-<br />
tro horas por dia. Isto era diariamente. Sabia e gos-<br />
tava de um livro de inglês perto dele. To<strong>do</strong> ano, no<br />
meu aniversário, ele fazia uma quadrinha pra mim.<br />
Me cumprimentava pelo aniversário. Ele terminava...<br />
“your father”. A gente foi muito amigo. O cinema era<br />
mu<strong>do</strong>. Eu já ouvi comentários da mamãe, da <strong>do</strong>na<br />
Hilda Condé. Dona Margarida Condé também co-<br />
mentava muito que eles tocavam. Era o Ciodaro, o<br />
papai, a Aída Nacarati e o Rogério Teixeira. Então<br />
enquanto passava o filme havia a orquestra. Mas o<br />
pessoal ia mais pra ouvir a música, <strong>do</strong> que, propria-<br />
mente pra ver o filme. Realmente era uma música<br />
muito boa.<br />
Eu sempre amei Cataguases. Coisa assim que<br />
me faz bem demais e quan<strong>do</strong> eu saio um pouco,<br />
quan<strong>do</strong> eu começo a avistar ali o João XXIII, já começo<br />
a chegar em Cataguases... ai, que coisa boa! Que<br />
felicidade de estar voltan<strong>do</strong>! Às vezes eu saio, visito<br />
um filho aqui, dali vou pro outro, de lá vou pro outro,<br />
porque eu sou pai também, então não aban<strong>do</strong>no.<br />
Agora, gosto, gosto <strong>do</strong> meu cantinho sossega<strong>do</strong>.<br />
Deito ce<strong>do</strong> e levanto ce<strong>do</strong>. Dou uma caminhada de 3<br />
Km to<strong>do</strong>s os dias.<br />
Eu acho que a cidade progrediu muito. Mas eu<br />
sempre gostei de ter nasci<strong>do</strong> em Cataguases. Este pe-<br />
258
daço... Praça San<strong>do</strong>val Azeve<strong>do</strong> hoje... antigamente<br />
Largo <strong>do</strong> Rosário e aqui a rua Francisco Rossi, foi o<br />
pedaço de minha vida, né, porque ali a gente brinca-<br />
va, e na época da enchente isso aqui era o nosso lugar<br />
de brincar. Tinha aqui a chácara <strong>do</strong> Chico Rossi, de<br />
goiabeira assim na beirada da cerca! (Nessa rua) não<br />
tinha nada, nada, nada! Tinha lá em baixo um mata-<br />
<strong>do</strong>uro. Isso aqui tu<strong>do</strong> é coisa <strong>do</strong> progresso. A chácara<br />
<strong>do</strong> Chico Rossi era aquele pedaço ali da Catauto. Dali<br />
daquele ponto <strong>do</strong> prédio da Catauto. Pra lá era uma<br />
chácara enorme. Então, na rua... tinha assim, uma<br />
distância de pedra. E a cerca, de arame farpa<strong>do</strong>, era<br />
toda volta goiabeira! ... Ah, mas a gente pintava e bordava<br />
ali com aquelas goiabeiras! Então, na época de<br />
enchente, que era uma tristeza para to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, pra<br />
nós era uma alegria. A Carminha Graciolli, a Lucy<br />
Graciolli, a Eni, tem as irmãs <strong>do</strong> Paulo Esquer<strong>do</strong> que<br />
mudaram pro Rio, Vanda e Ivone Santos... Primavera<br />
era uma menina muito bonitinha. A gente fazia jangadas<br />
com os troncos de bananeiras, ia até lá perto<br />
<strong>do</strong> campo, atravessava o campo <strong>do</strong> operário quan<strong>do</strong><br />
a enchente era muito forte. Era uma festa pra nós enchente<br />
aqui. A gente vinha até aqui, até no meio, era<br />
uma festa.<br />
Foi um encanto a minha infância! Aliás, das<br />
meninas todas <strong>do</strong> meu tempo. Um brinque<strong>do</strong> que<br />
259
a gente apreciava muito é brincar de circo. Então, a<br />
gente arranjava tu<strong>do</strong> quanto é roupa estrambólica<br />
pra apresentar os números da gente, né. A gente fa-<br />
zia às vezes no quintal de uma, no quintal de outros.<br />
Arranjava assim uma coisa alta, preparava tipo um<br />
circo. E pra entrar pagava cinco palitos de fósforos na<br />
entrada. E aí tinha de tu<strong>do</strong>. Esta época tinha a Zélia<br />
e a Zilda Marques, a Eni casada com o Fernan<strong>do</strong><br />
Miranda. Mas a gente se distraiu muito porque... a<br />
gente vivia com treze anos, a gente vivia uma criança,<br />
uma menina de treze anos. As meninas de treze<br />
anos hoje como é que estão? Elas não têm infância,<br />
não tiveram infância. Nós tivemos aqui no Largo <strong>do</strong><br />
Rosário um time. Era queimada. Então a gente fazia<br />
o nosso time e tinha um time na rua Dr. Sobral.<br />
Tinha <strong>do</strong>mingo que era jogo contra o outro. Era aquela<br />
turminha. Carminha Graciolli, Lucy Graciolli, Eni,<br />
minha irmã, eu. E nessa época tinha também <strong>do</strong>is...<br />
Narte e Nilson Vassalo. Narte namorava a Eni, e o<br />
Nilson me namorava. Eles mudaram daí há muito<br />
tempo, anos. Tinha Delvani, que morreu, o Manoel<br />
Ladeira que também morreu. São meninos que brincavam,<br />
não havia essa coisa... essa malícia, essa maldade<br />
que há hoje. A gente falava que era namora<strong>do</strong>,<br />
pra ser sincera até sem saber o que era flertar. Mas foi<br />
muito gostosa a minha infância. E a minha vida toda<br />
260
eu sempre fui muito feliz. Eu sempre fui muito oti-<br />
mista. E sempre tive muita presença de Deus na mi-<br />
nha vida. Assim, eu tenho muito amor pra dar. Como<br />
professora eu fui uma daquelas crianças. Eu encontro<br />
na praça ali, aqueles homões, aqueles cavalões, me<br />
abraçam, me beijam: “o D. Terezini, me dá receita, eu<br />
estou mais velho <strong>do</strong> que a senhora.”<br />
“Ah! eu comecei a dar aula eu tinha dezessete,<br />
você tinha quatorze, nós regulamos você tá de cabe-<br />
lo branco, cê tá sem dente. Você que não está se cui-<br />
dan<strong>do</strong>”. “<strong>Ó</strong>, se eu não fosse casa<strong>do</strong>, eu ia paquerar<br />
a senhora”. To<strong>do</strong>s falam assim. Ah, o Meia Pataca!<br />
Que coisa linda! Até coloquei no “Cataguases” uma<br />
crônica:<br />
“Meu Meia Pataca Pobrezinho”. Que coisa lin-<br />
da! Quan<strong>do</strong> a gente volta passa aí, fica até triste. Você<br />
via o fun<strong>do</strong>, a gente juntava ali, atravessava para o<br />
outro la<strong>do</strong>. Do la<strong>do</strong> de cá, assim... a volta dele to<strong>do</strong><br />
fazia uma curva, tinha tamarin<strong>do</strong> - vivia carrega<strong>do</strong><br />
o pé - e muita goiabeira. Então a gente tinha tu<strong>do</strong><br />
ali, né. E como eu falo na crônica, eu faço um para-<br />
lelo da poluição dele com a minha: ele poluí<strong>do</strong> pelo<br />
progresso, né, sujo, feio, féti<strong>do</strong> e eu poluída pelo de-<br />
sencanto da angustia da saudade, <strong>do</strong> amor que par-<br />
tiu ce<strong>do</strong> demais. A água era tão cristalina, tão linda,<br />
que a gente enchia as mãos e vinha cheinha de giri-<br />
261
no. Água branquinha! A gente atravessava com água<br />
aqui, (pelos joelhos). Não tinha peixe grande ali, que<br />
era muito razinho. Tinha aqueles peixinhos pequeni-<br />
ninhos. Aí desse la<strong>do</strong> da Rua Professor Alcântara, na-<br />
quela margem ali, a gente brincava. Então na crônica<br />
eu pergunto: “aonde estão os meus girinos?”<br />
A mocidade foi maravilhosa. Eu sou uma pes-<br />
soa muito feliz, sempre fui muito feliz. Eu comecei<br />
a trabalhar muito ce<strong>do</strong> e a mamãe sempre foi muito<br />
enérgica pra mim. Comigo mais que com as outras.<br />
Eu não tenho nada a reclamar, são todas ótimas, to-<br />
das modelos de mãe de família e de <strong>do</strong>nas de casa e<br />
tu<strong>do</strong>. Mas a mamãe, o mo<strong>do</strong> que ela me criou, talvez<br />
ela visse em mim muito mais capacidade para exigir<br />
mais de mim. Ele exigia tanto de mim, que eu pas-<br />
sei, eu mesma, a exigir de mim, o que me forçou a<br />
ser esta mulher autossuficiente que eu sou. Há muito<br />
tempo que eu sou esta mulher autossuficiente. Ela<br />
exigia demais de mim e eu aprendi a exigir de mim<br />
também.<br />
Ah! A Escola Normal acabou, não tem mais,<br />
não volta nunca mais! Era uma coisa louca! Tinha internato<br />
e externato, mas não era mista, no meu tempo<br />
não era mista. Eu peguei o Colégio novo, né, já<br />
novo, este prédio novo. Mas o internato e o externato<br />
era muito amigo. A minha turma tinha Carminha<br />
262
Peixoto, tinha a Nize Pessoa, a Eliana que foi aque-<br />
la artista da Atlândida, que hoje está acabadíssima,<br />
muito <strong>do</strong>ente, que teve uma trombose. Ela ficava<br />
hospedada numa casa da Avenida. Ela veio fazer o<br />
terceiro ano normal. Sabe, a gente fazia o primeiro e<br />
o segun<strong>do</strong> de adaptação, que seria assim uma quinta<br />
série, uma sexta. Depois vinha o primeiro, o segun<strong>do</strong><br />
e o terceiro normal. No ano seguinte que eu saí, co-<br />
meçou o de Formação. Então quem tinha o terceiro<br />
normal já podia começar no segun<strong>do</strong> de Formação.<br />
Eu já trabalhan<strong>do</strong>, eu voltei pra fazer o de Formação.<br />
Mas a gente saía saben<strong>do</strong>. A gente tinha tirocínio. Eu<br />
tive uma professora uma professora de português<br />
maravilhosa, a irmã Edith, que hoje eu soube que<br />
ela está em Mariana. Está velhinha e tá cega. Nancy<br />
Salga<strong>do</strong>, que foi minha professora de matemática<br />
muitos anos, Dona Nancy, ótima professora. Depois<br />
no último ano foi a irmã Salomé, Irma Paulina. Ah,<br />
mas eram professoras maravilhosas, não desfazen-<br />
<strong>do</strong> das de hoje. Agora, eu acho que mu<strong>do</strong>u muito<br />
<strong>do</strong> meu tempo pra cá. Porque no meu tempo a gente<br />
recebia uma educação religiosa, cristã, coisas que<br />
acompanham a gente a vida inteira. Princípios morais,<br />
uma formação. A gente, por exemplo, estudava<br />
uma História Sagrada, Antigo e Novo Testamento.<br />
Dessa grossura! Além disso, um catecismo assim. E<br />
263
a gente tinha aqueles horários de ter uma visita ao<br />
Santíssimo. Hoje a minha filha não aprendeu nem o<br />
Pai-nosso lá. Além <strong>do</strong> exemplo de casa, <strong>do</strong> lar que é<br />
muito importante, aquela educação que a gente rece-<br />
bia lá, aquilo dava a gente uma posição de fortaleza<br />
diante da vida. Firmeza de caráter. Porque a gente<br />
que teve felicidade dessa formação... aquilo sem-<br />
pre segurou, sempre foi um obstáculo para alguma<br />
mancada que se pudesse dar ali adiante. Um princí-<br />
pio moral. Mu<strong>do</strong>u muito, o ensino mu<strong>do</strong>u. A gente<br />
aprendia realmente.<br />
Ah, Naíde Quaresma, professora de Educação<br />
Física, não tinha nada mais lin<strong>do</strong>! A gente fazia aque-<br />
la ginástica de pião, sabe, a gente tinha sempre uma<br />
coisa preparada pra um momento de ter uma fes-<br />
ta. Foi um professora<strong>do</strong>... eu não estou desfazen<strong>do</strong><br />
dessas agora. Mas eu... foi uma coisa maravilhosa<br />
a Escola Normal na minha época! Muito bom (o re-<br />
lacionamento com as irmãs). Elas conversavam so-<br />
bre namora<strong>do</strong>s, elas falavam <strong>do</strong>no. “E o seu <strong>do</strong>no?<br />
Você já tem <strong>do</strong>no?” Elas conversavam, tinha toda<br />
a liberdade de conversar com a gente. Ah, as inter-<br />
nas tinham aquele regime de hábito de Escola mes-<br />
mo. Levantavam muito ce<strong>do</strong>, banho frio e começar<br />
ce<strong>do</strong>. Tinha hora de estu<strong>do</strong>, tinha hora pra tu<strong>do</strong>, né.<br />
E a gente não podia, por exemplo, era proibi<strong>do</strong>, era<br />
264
proibi<strong>do</strong> levar uma carta cá de fora, uma carta de um<br />
namora<strong>do</strong> pra uma interna. Eu mesma quase fui sus-<br />
pensa por uma semana, porque a Carminha Peixoto<br />
namorou o Mário Góes e ele man<strong>do</strong>u uma carta pra<br />
ela, eu entreguei e a irmã pegou a carta.<br />
Tinha internato (no Colégio de Cataguases).<br />
Foi quan<strong>do</strong> o colégio era pago, né. Ai foi uma época<br />
que veio o Chico Buarque, veio o Darcy Fernandes,<br />
que é o capitão. Que me paquera, que está comigo<br />
a uns 4 anos, né. Ele veio a Cataguases com o filho.<br />
Veio até de moto, ele pratica muito esporte. Veio visitar,<br />
mostrar pro filho o colégio que ele estu<strong>do</strong>u. Era<br />
filho único, estu<strong>do</strong>u um ano, e depois o pai a<strong>do</strong>eceu,<br />
eles voltaram pro Rio, eles são <strong>do</strong> Rio. Depois de algum<br />
tempo que a gente se conheceu, conversan<strong>do</strong>,<br />
eu falei: “Darcy, eu te conheço de algum lugar. Tenho<br />
certeza que já te vi”. Ele virou pra mim e falou assim:<br />
“Você não é aquela menina lourinha, que dava aula<br />
naquele grupo da Avenida, naquela primeira janela?<br />
Lembra que eu flertava com você, você não era aquela<br />
menina?” Lembrei, era eu mesmo. Ele passava, a<br />
gente flertava. Ele não chegou a ficar interno, né. Era<br />
filho único, estu<strong>do</strong>u aí, estu<strong>do</strong>u pouco.<br />
Nossa! Os bailes hoje até da tristeza vê baile.<br />
Os bailes eram lindíssimos! Acabou a poesia, onde<br />
está a poesia? Acabou. Em to<strong>do</strong>s os pontos. Não digo<br />
265
só em baile. Por exemplo, baile de professora, era um<br />
baile lin<strong>do</strong>! A gente fazia em benefício a caixa escolar.<br />
Eu fui a bailes no colégio Cataguases, baile a rigor.<br />
Mamãe costurava muito e fazia vesti<strong>do</strong>s de bailes lin-<br />
díssimos. Eu tenho até um retrato aí de vesti<strong>do</strong> de<br />
baile. Pena que não era colori<strong>do</strong>, né. E os bailes... ha-<br />
via muita poesia, a própria música era muito român-<br />
tica. E não havia essa barulheira. A última vez que eu<br />
fui lá no clube <strong>do</strong> Remo, que ele (Luís Claudio) insis-<br />
tiu muito, a gente não podia conversar na mesa, por-<br />
que a gente não escutava nada, uma da outra! Você<br />
saía dali cansada, super cansada. (O traje) ou era ri-<br />
gor ou era passeio, traje passeio simples. Hoje você<br />
vê bermuda, calça jeans, short colori<strong>do</strong>, longo, tu<strong>do</strong><br />
junto. Chanelsinho, tu<strong>do</strong> junto num baile só. Quer di-<br />
zer, não entende.<br />
Carnaval era uma coisa linda! Havia o “Lord<br />
Club” e a rivalidade era com as “Mimosas Camélias”.<br />
Eu com treze anos saía na carruagem <strong>do</strong> Emílio.<br />
Tinha atrás de mim um avião enorme. Eles fizeram<br />
uma espécie de uma jarra toda sextavada ou oita-<br />
vada. Toda em espelho com aquelas flores coloridas.<br />
Em cima, no meio daquela porção de flores de papel,<br />
eu sentada. Com a roupa linda, branca, jogan<strong>do</strong> bei-<br />
jos. Quan<strong>do</strong> eu passava em frente <strong>do</strong> Social, cheio de<br />
pessoas na sacada pra ver passar os blocos, o avião<br />
266
deu aquele tiro de confete. Foi lin<strong>do</strong>! Era lin<strong>do</strong>! Era<br />
lin<strong>do</strong>! Pra te falar a verdade eu nem vou à rua pra ver<br />
carnaval mais. Uma pobreza, é uma pobreza.<br />
Os bailes eram lindíssimos, lindíssimos! Não<br />
esse negócio de pessoa beber, jogar copo, jogar garra-<br />
fa um no outro. Não tinha isso. Aliás, uma moça não<br />
bebia cerveja. Era feio. A gente tomava refrigerante.<br />
Eu era muito nova, eu já era professora, mas eu não<br />
tinha aparência de moça. Então eu dançava na mati-<br />
nê e a noite também.<br />
Ah, a Praça Rui Barbosa era interessante. Era...<br />
a gente andava assim... os rapazes assim e a gente ao<br />
contrário. Chamava “footing” na época. Ali a gente<br />
arranjava os namora<strong>do</strong>s, né, porque agente passava<br />
por eles assim. Cortava volta (pra encontrar mais rá-<br />
pi<strong>do</strong>). Às vezes quan<strong>do</strong> a gente chegava a dar uma<br />
volta ele já vinha. O cinema também era muito bom.<br />
Quer dizer, o cinema você tinha condição de ir. Hoje<br />
você quase não tem. Ou é karatê ou é filme de se-<br />
xo. Então a gente prefere ver um filme na televisão.<br />
Como ontem, sessão da tarde, “Noviça Rebelde”,<br />
que coisa linda! Eu já vi três vezes aquele filme e não<br />
canso. Que saudade... Foi uma época muito... muito<br />
bonita.<br />
Eu gostaria de falar sobre o ensino, um pouco,<br />
né, porque eu trabalhei dezessete anos com regência<br />
267
de classe. Eu fui regente de classe de quarto ano, qua-<br />
torze anos segui<strong>do</strong>s. Eu já dava sistema métrico de-<br />
cimal, aquilo saía assim, com a maior facilidade. Fui<br />
professora <strong>do</strong> Joaquim Branco, o que é uma honra!<br />
Aliás, to<strong>do</strong>s os meninos que passaram por mim, eu<br />
acho que foi uma honra. Porque pra mim são filhos.<br />
Eu amei aquelas crianças desde a primeira vez que vi,<br />
sabe. Então isso marca muito a gente.<br />
Agora, realmente a professora nunca foi bem<br />
remunerada. É uma coisa que magoa. Mas há a re-<br />
compensa invisível, que gratifica muito a gente. E o<br />
carinho <strong>do</strong>s ex-alunos, a gratidão <strong>do</strong>s pais, alguns,<br />
né. Quer dizer, isso é a recompensa que a professora<br />
tem, porque em matéria de ordena<strong>do</strong> uma professora<br />
não pode pagar uma <strong>do</strong>méstica que ganha salário.<br />
De jeito nenhum. Agora, quanto a um deputa<strong>do</strong>, que<br />
passou pela professorinha primeiro, pra chegar onde<br />
ele está, não faz um movimento em benefício das<br />
professoras. Eu já gritei muito pela classe, mas você<br />
sabe, sabe como que são os gritos que ficam sufoca<strong>do</strong>s.<br />
Publiquei tu<strong>do</strong>, correu o mun<strong>do</strong>, o esta<strong>do</strong> de<br />
Minas to<strong>do</strong>. Entreguei nas mãos <strong>do</strong> Newton Car<strong>do</strong>so,<br />
<strong>do</strong> Hélio Garcia, quan<strong>do</strong> estiveram aí. Então você<br />
vê uma professora que trabalhou trinta e cinco anos,<br />
quanto você acha... compara<strong>do</strong> com um deputa<strong>do</strong><br />
que ganha aquele horror. E uma professora, ela tem<br />
268
que manter uma linha, a maneira de vestir, né. A gen-<br />
te dá muito material escolar pras crianças que não<br />
tem. Merenda... quanto a gente segura pela merenda<br />
diária. Eles não estão mandan<strong>do</strong> nada! Quan<strong>do</strong><br />
chega aquelas coisas <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, você abre<br />
aquele saco assim de triguilho, ou duma farinha laminada,<br />
que eles mandavam quan<strong>do</strong> eu era diretora,<br />
já tava sain<strong>do</strong> borboleta. Você vai dar aquilo pra<br />
menino? Você ia dar aquilo pra criança, aquilo podre,<br />
sain<strong>do</strong> borboletinha pra to<strong>do</strong> la<strong>do</strong>? Quantas vezes a<br />
diretora, como eu, saía de porta em porta. Era óleo,<br />
era macarrão, era tu<strong>do</strong> que eu ganhava. A professora<br />
além de estudar muito ela tem que saber psicologia<br />
para entender cada aluno. A professora vai lapidar,<br />
ela tem que saber entender cada cabeça, porque tu<strong>do</strong><br />
começa no lar; a escola é a continuação <strong>do</strong> lar, se não<br />
é, devia ser. Então a professora bem preparada entende<br />
cada criança daquela.<br />
Ah, foi linda! Me realizei demais como professora,<br />
e mais ainda como diretora.<br />
Porque diretora eu pude ajudar muita criança<br />
pobre. Eu ajudei o máximo que eu pude as da minha<br />
sala, enquanto eu fui regente de classe. Eu fui regente<br />
de classe dezessete anos, quatorze anos no quarto<br />
ano primário. E depois eu passei dez anos como diretora.<br />
Então eu trabalhei vinte e sete anos. Como eu<br />
269
entrei com dezesseis anos, eu sai com quarenta e três.<br />
Aposentei nova e com muita vontade de continuar.<br />
Abri aquele jardim de infância no Centro Espírita, onde<br />
a gente pode ajudar muito as crianças menos favorecidas,<br />
e quase não cobrava, a gente dava to<strong>do</strong> o material.<br />
Ali eu devo ter fica<strong>do</strong> uns seis anos. Como eu<br />
gostava de ficar no meio das crianças, eu vim pra creche<br />
SOS. Achei uma beleza o trabalho da Dona Emília,<br />
da diretoria toda. E mais ainda o da Sebastiana, que<br />
tomava conta <strong>do</strong>s meninos, né. E me ofereci pra ajudar<br />
quan<strong>do</strong> precisasse dum relatório, quan<strong>do</strong> precisasse<br />
de um cartaz, porque eles têm convênio com a<br />
LBA e exigem, né. Semana da Comunidade, Semana<br />
da Alimentação, tu<strong>do</strong>. Logo que eu comecei a trabalhar<br />
lá como voluntária, a primeira coisa que eu<br />
fiz foi abrir duas salas de aula, porque os meninos<br />
<strong>do</strong>rmiam depois <strong>do</strong> almoço. Então os pequenos, as<br />
menores tinham aula de manhã e as maiores, que já<br />
não gostavam, de <strong>do</strong>rmir, faziam à tarde. Então há<br />
um trabalho pra duas professoras. O que sempre me<br />
realizou muito foi poder ajudar a colocar mais pessoas.<br />
E eu orientava, até que a D. Emilia conseguiu<br />
que o Mobral pagasse as professoras, porque estava<br />
fican<strong>do</strong> difícil pra ela pagar as professoras. Consegui<br />
fazer coisas lá que ninguém acreditava que eu conseguiria.<br />
Fazer, por exemplo, peças infantis to<strong>do</strong> Natal<br />
270
com as crianças. Crianças pequenininhas, muito ca-<br />
rentes, de ambientes terríveis... porque além da par-<br />
te de diretora das duas salas, eu fazia a escrita toda.<br />
Os prontuários <strong>do</strong> LBA tinham toda a informação de<br />
cada criança. Então eu tinha que entrevistar as mães,<br />
no princípio <strong>do</strong> ano, uma a uma, pra saber aonde que<br />
ela morava, se a casa era de cimento, se tinha banhei-<br />
ro... a maioria não tinha banheiro em casa. Então era<br />
um ambiente assim de meninos que vivem na pro-<br />
miscuidade mesmo. Tu<strong>do</strong> numa cama só com o pai<br />
e a mãe. Mas eu consegui fazer peças infantis lindas.<br />
Trabalhei lá quatro anos e foi muito bom.<br />
Sou uma mulher muito feliz, muito realizada,<br />
tive assim, muitas derrotas, sofrimento, mas sou uma<br />
vitoriosa. Eu tenho aquilo que as pessoas me dão, não<br />
é? Porque realmente a gente tem aquilo que aparen-<br />
ta ter. Mas de coração eu devo tá com vinte e cinco<br />
anos, que eu tenho um coração assim muito apaixo-<br />
na<strong>do</strong>, muito jovem. Eu tô realizan<strong>do</strong> um sonho <strong>do</strong>s<br />
meus quinze anos: ter um quarto cor-de-rosa. A mi-<br />
nha filha teve um quarto cor-de-rosa. Agora eu estou<br />
realizan<strong>do</strong> meu sonho. Nunca é tarde para o amor e<br />
nunca é tarde para realizar um sonho. Coração não<br />
tem idade...<br />
Entrevistada em 27/04/1990 por Gláucia Siqueira e Mariana Cândida.<br />
271