Guardados da Memória - Academia Brasileira de Letras
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Naturalismo russo – Dostoievski<br />
to fun<strong>da</strong>mental, comum a todos os seres vivos, mas o amor paixão finamente<br />
i<strong>de</strong>aliza<strong>da</strong>, febre dos sentidos, mas também febre <strong>da</strong> inteligência, partilha exclusiva<br />
do homem civilizado, que não conhece sacrifício, que não encontra<br />
obstáculos, que redime os criminosos, que transforma e que <strong>de</strong>pura a natureza<br />
abjeta dos galés. Ao terminar a leitura <strong>da</strong> última página, fica-nos uma recor<strong>da</strong>ção<br />
saudosa <strong>da</strong>queles infelizes com quem vivemos algumas horas, e é penalizados<br />
que os vemos evaporar-se justamente no momento em que se nos afigura<br />
que vão ensaiar os primeiros passos <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> mais pura. Só por si, esta impressão<br />
geral <strong>da</strong> obra é suficiente para reconhecermos que estamos tratando<br />
com espíritos <strong>de</strong> outra têmpera.<br />
Não são esses os personagens <strong>de</strong> la Curée, não são esses os <strong>de</strong> Fromont Jeune.<br />
Porém não é esta a única impressão <strong>de</strong> originali<strong>da</strong><strong>de</strong> que nos <strong>de</strong>ixa a leitura do<br />
romance capital <strong>de</strong> Dostoievski.<br />
O modo <strong>de</strong> pôr em ação os personagens não é o mesmo <strong>da</strong> escola zolaiana.<br />
O sistema <strong>de</strong> eliminar o autor para <strong>de</strong>ixar aos autores sua libre allure, a separação<br />
do enredo em quadros sucessivos que vão encaminhando a ação para um<br />
<strong>de</strong>sfecho natural, que, como é sabido, caracterizam o romance francês contemporâneo,<br />
não tem ingresso na encenação <strong>de</strong> Dostoievski.<br />
A primeira diferença assinala<strong>da</strong>, creio, <strong>de</strong>ve ser toma<strong>da</strong> em vantagem para a<br />
escola <strong>de</strong> S. Petersburgo, se não a exagerarem; esta segun<strong>da</strong>, porém, traduz<br />
sempre uma superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> artística, um melhor conhecimento do métier por<br />
parte dos romancistas <strong>de</strong> Paris.<br />
Este melhor conhecimento do ofício, talvez efeito principalmente do trabalho<br />
acumulado pelas gerações anteriores, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o gran<strong>de</strong> século <strong>de</strong> Molière e<br />
Racine, ain<strong>da</strong> se manifesta no aprimorado estilo, na arte dificílima <strong>de</strong> arranjar<br />
a frase. A eleva<strong>da</strong> correção <strong>de</strong> Flaubert, as belezas másculas <strong>de</strong> tantas páginas<br />
<strong>de</strong> Zola, as <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>zas feminis <strong>de</strong> Dau<strong>de</strong>t, e o acabamento artístico <strong>da</strong> exposição<br />
dos Goncourt, são aquisições que não pu<strong>de</strong>ram ain<strong>da</strong> ser excedi<strong>da</strong>s nas friorentas<br />
margens do Neva.<br />
O que concluir? Que a perfeição estará nos russos quando tiverem alcançado<br />
a mestria no que se po<strong>de</strong> chamar o arcabouço, a ossaturaeaexteriori<strong>da</strong>-<br />
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